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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ALEXIOS
ALEXIOS

                                                                                                 

 

 

 

 

Kyra arregala os olhos quando sua convidada fala essa maldita expressão e me encara. Minha irmã sabe como eu odeio ser chamado assim, principalmente desde que uma revista que cobre a alta sociedade brasileira fez uma entrevista comigo e pôs essa alcunha na capa.

Anjo rebelde dos Karamanlis! Parece piada!

— Alex? — Kyra me chama. Eu respiro fundo, volto a sorrir como o anjo que sua amiga espera que eu seja, e ela relaxa. — Divirtam-se.

Acompanho minha irmã com o olhar e a vejo cumprimentar mais pessoas que acabaram de chegar. Confesso a vocês que meu tesão despertado pelas curvas deliciosas das mulheres à minha frente deu uma caída, mas não vou deixar Kyra em uma saia justa com suas convidadas, que podem ser somente suas amigas, mas também possíveis clientes.

— Então, Alexios, o que você curte fazer quando não está à frente da K-Eng? — Priscila é quem pergunta, claramente interessada.

Encaro-a sem responder por alguns minutos, jogo um olhar para sua amiga, percebendo que ela também entrou no jogo, e disparo:

— Trepar.

A mulher, que, enquanto eu estava distraído olhando para Kyra, pegou uma taça de champanhe, se engasga e tosse, tentando disfarçar, mas Valéria não se faz de rogada, abre um enorme sorriso, como quem já esperava por essa resposta.

— Uau! Que resposta mais direta! — Ela olha para sua companheira.

— Está mais para anjo malvado do que rebelde...

— Até os anjos têm sexo, baby! — confesso, assumindo minha faceta de cafajeste. — Não tive um só pensamento celestial desde quando vocês apareceram.

Priscila sorri sem jeito, mas claramente interessada e mais uma vez consulta a mulher ao seu lado com o olhar.

— Podemos marcar um jantar qualquer dia para... — Valéria é quem começa, mas ela não me conhece! Não vou deixá-la assumir as rédeas do jogo não!

— Já estamos em um. — Aponto para a mesa posta. — Podemos pular essa parte. — Pisco.

Agora ela me olha cheia de tesão, e eu confirmo que gosta de um pulso firme também.

— Você está nos propondo sexo?

— O quê?! — Priscila arregala os olhos. — Agora?

Chego perto dela, a mais delicada das duas, olhando intensamente para seus olhos, depois abaixo levemente a cabeça e falo perto de seu ouvido:

— Estou te propondo alguns orgasmos de Natal junto à sua amiga. Sexo é só a caixinha de presente. — Ainda abaixado, com a boca a pouco centímetros de sua orelha, olho para Valéria. — Conheço este lugar como a palma da minha mão, ajudei a planejá-lo.

— Val? — A pele arrepiada não nega que ela está doida para aceitar o convite, mas julguei certo ao perceber quem decide as coisas entre as duas e quem derreteria com uma abordagem mais firme.

— Adoraria conhecer o local!

Sorrio de forma doce e inocente, o mesmo sorriso político que uso na empresa e que faz as pessoas me acharem fofo e inofensivo.

Eu não sou!

Faço um gesto para que elas passem à minha frente e as guio, apoiando levemente minhas mãos na base da coluna de cada uma delas. Kyra arregala os olhos quando nos vê passar indo em direção à sua sala de reuniões. Pisco para ela e sussurro:

— Não vou danificar nada!

Abro uma porta e ofereço passagem às minhas companheiras.

— Senhoritas, por favor!

Olho para o salão uma última vez antes de adentrar ao corredor que nos levará até o local onde, por algum tempo, vou descontar a frustração e a chatice de estar neste evento e vejo Konstantinos chegar. Cumprimentamo-nos com um gesto de cabeça, ele segue até onde Millos conversa com Helena, e eu fecho a porta, pronto para a diversão.

O tesão volta a me acertar quando vejo as duas já esquentando os motores, beijando-se como se estivessem se comendo. Fico parado, assistindo, apenas um voyeur desfrutando da magnitude plástica que é ver duas mulheres juntas. Perfeição, lindas, tão naturais e soberanas que tenho desejo de eternizá-las.

— Você só vai ficar olhando? — Valéria pergunta, provocando-me.

— Claro que não. — Tranco a porta do corredor por dentro, mas sei que o pessoal da cozinha também tem acesso a este lugar. — Vou orquestrar!

A bela morena com cabelos afro juntados no alto da cabeça ergue uma de suas sobrancelhas, mas não para de acariciar a loirinha miúda que está abraçada a si.

— Como você quer?

Cruzo os braços. Sei que ela é a dominante, mas sou perverso o bastante para tirá-la de sua zona de conforto.

— Quero que ela te coma — desafio-a.

Valéria prende a respiração, avaliando meu pedido, e eu me encosto contra a porta que tranquei, esperando, sorriso bonzinho na cara, como se não tivesse pedido nada de mais.

A morena começa a desabotoar o vestido, tomando as rédeas da situação. Reconheço sua inteligência, vai continuar no comando, mesmo sendo passiva.

— Pri — chamo a loirinha —, eu quero que você a deixe nua, a beije e a chupe inteira até que goze.

Priscila segura as mãos de Valéria, impedindo-a de continuar, mas a sinto ficar tensa. Mudo de jogo, vou até as duas, posto-me contra a parede e as puxo para perto, às costas de Valéria. Beijo seu pescoço cheiroso, seguro firme seus cachos, fazendo sua cabeça inclinar para o lado, expondo mais sua orelha para que eu possa provocá-la.

Priscila desce pelo corpo curvilíneo e perfeito de Valéria, desnudando-a, lambendo-a como uma gata faminta. Sinto o tesão no corpo da morena, sua temperatura mais alta, o movimento involuntário do seu quadril contra o meu, pressionando meu pau.

Os cabelos fartos já estão enrolados em meu punho, firmes, sendo puxados quase dolorosamente, enquanto a beijo no pescoço, orelha, ombros e boca, girando sua cabeça ao máximo para que nossos lábios se encontrem.

Priscila está de joelhos no chão, a cabeça enfiada entre as coxas torneadas de Valéria, sua língua trabalhando rápido na boceta molhada da amiga, que geme alto e segura com força meu pau, ainda aprisionado pelos tecidos da roupa, atrás de si.

O gozo de Valéria é incrível de se assistir! Uma orquestra bem afinada parece produzir seus gemidos, seu corpo todo brilhante pela fina camada de suor, os músculos tensos, o desespero demonstrado no aperto forte em meu pênis.

— Agora... — sussurro em seu ouvido assim que vejo Priscila se erguendo lambendo os lábios — você e eu vamos comê-la juntos!

Ela ri, deliciada, buscando minha boca, abraçando-me de frente. Seguro firme em suas nádegas, moendo-a contra meu pau, sugando sua língua, mas sem tirar os olhos da loirinha gostosa de quem vamos desfrutar.


Confiro a lista em minhas mãos, certificando-me de que não estou esquecendo nada. Sempre esqueço!, penso rindo, fechando a terceira mala que acabei de aprontar. Se tem algo em que eu sou mestre é esquecer algum item essencial ao viajar.

Bebo o restante do chocolate quente – já frio, diga-se de passagem – que comprei pouco antes de subir até meu apartamento e voltar a arrumar a mala. Desci para comprar mais uns sacos organizadores, porque eu sou a típica pessoa que gosta de tudo separado e guardado dentro da mala, simplesmente não consigo levar nada solto, e aproveitei para tomar meu último chocolate espanhol, pelo menos por uns meses.

Suspiro e olho em volta no apartamento onde moro há três anos, desde que vim para cá estudar, acabei arrumando trabalho e fincando raízes que estão se tornando cada vez mais fortes.

Caminho até um móvel do quarto e pego o porta-retratos onde Diego e eu aparecemos juntos, sorridentes e felizes, dentro de uma gôndola em um dos canais de Veneza, depois de termos nos conhecido na Piazza San Marco7, quando ele derrubou meu tripé com a câmera que eu usava para fotografar o local.

— Lo siento8 — ele disse nervoso e depois começou a rir. — Mi scusi!9 — Percebi que estava bem nervoso, tentei não rir, e ele ficou ainda mais. — Sorry?

— “Lo siento” fue lo suficiente. Yo hablo español.10 — Ele soltou o ar audivelmente e sorriu, seus olhos cor de chocolate brilhando divertidos, os cabelos revoltos por causa do vento. — No hay problema.11 — Ele pareceu não entender e franziu as sobrancelhas. Apontei para a câmera. — Con la cámara fotográfica.12

Foi então que ele sorriu de modo diferente, formando covinhas em suas bochechas, e eu percebi o quanto era bonito. Alto, magro, bem-vestido e muito, muito cheiroso.

— Diego Ramírez González de Vergara — apresentou-se.

— Samara Esther Cohen Schneider.

Rimos juntos dos nossos nomes enormes, ele me convidou para tomar um espresso, conversamos, descobrimos que ambos morávamos em Madri e que estávamos em viagem de férias/trabalho. Marcamos um jantar, passamos a noite juntos, e ele voltou para Madri. Quando voltei para a Espanha, dez dias depois, encontrei um enorme arranjo floral e um cartão com seu nome, desejando-me bom retorno e me convidando para outro jantar.

Isso aconteceu há um ano. Desde então, estamos juntos.

Diego viaja muito, pois é jornalista esportivo e acompanha exclusivamente o Real Madri. Vemo-nos com frequência durante a Copa do Rei, férias ou quando há jogos aqui na Espanha, mas no geral ele está viajando atrás do time. Eu nunca fui muito ligada em futebol, mas aprendi a gostar – e a torcer – indo com ele aos campeonatos e assistindo aos treinos. Nós nos damos bem, somos amigos, parceiros e gostamos muito da companhia um do outro.

Suspiro e olho para minha mão direita, onde, ontem, no nosso jantar de despedida, ele colocou um anel de noivado. Fiquei sem reação com o seu pedido de casamento, pois não esperava por isso, muito embora já morássemos juntos havia seis meses. Mas casamento?

Ponho o porta-retratos no lugar, ainda com o som da porta principal batendo com força quando eu lhe disse que só iria responder depois que voltasse do Brasil, ou seja, daqui a alguns meses.

— Eu queria que você já saísse daqui com um compromisso firmado — justificou. — Eu nem conheci sua família ainda, Samara, tive que dormir na casa do Juan quando sua mãe veio te visitar!

Concordei com Diego. Nunca achei que era a hora de falar sobre ele com minha família, embora meu irmão saiba que existe um namorado espanhol. Meus pais são muito tradicionais, não consigo me imaginar contando a eles que estou morando com alguém.

— Um noivado não seria o momento ideal para lhes contar que estamos juntos? — Diego questionou.

— Não quero te prender! — respondi. — Vou ficar uns meses no Brasil, enquanto mamãe faz o tratamento. — Ele concordou. — Não sei exatamente quando volto para cá, não acho justo te prender...

— Não acha justo me prender ou se prender? — Diego se afastou de mim. — Tivemos oportunidade de contar à sua família, eu me dispus a ir ao Brasil contigo, a passar essa virada de ano lá com você, mas você parece que quer me esconder.

— Eu não tenho motivo para te esconder de ninguém!

— Não? — Ele pegou o anel, colocou-o de volta na caixinha de veludo e caminhou até a porta principal do apartamento. — Não é o que parece. — Deu de ombros. — A sensação que eu tenho é de que, enquanto você estava aqui o tempo todo, seu coração estava em outro lugar.

Não respondi, fechei os olhos e ouvi a porta batendo com força. Senti-me injustiçada, ao mesmo tempo em que lhe dava razão. Nunca pude dizer a ele que o amava. Mesmo sentindo algo forte, nunca senti que “amor” fosse a palavra. Pelo menos, não como o amor que já senti uma única vez na vida.

Pego meu celular e pesquiso – em vão, mais uma vez – nas redes sociais o nome de Alexios Karamanlis. Nada! Ele continua antissocial, sem Facebook, Twitter ou Instagram. Quando jogo o nome dele no Google, tudo que aparece são reportagens sobre ele e suas farras, sobre a K-Eng ou sobre sua família.

Abro minha nuvem de arquivos e olho as fotos que tenho dele. Entre elas, uma de quando éramos ainda crianças, ele mais velho que eu apenas dois anos, andando de bicicleta no condomínio onde morávamos. Ele tinha uma bike estilosa, aventureira, e eu, uma rosa, com cestinha branca e rodinhas. Na foto, tirada pela minha babá na época, estamos lado a lado, ele olhando para frente e rindo, e eu o fitando já com olhos apaixonados.

Sim, nem lembro quando me apaixonei por Alexios, talvez desde sempre. Seus cabelos lisos e loiros, o rosto perfeito, os olhos ora verdes, ora azuis, o sorriso gigante, tudo isso me fazia suspirar a partir do instante em que eu soube que o que sentia era mais que amizade. Eu sonhava com ele, que era meu príncipe encantado, que cresceríamos juntos, teríamos uma casa cheia de cães – nunca pudemos ter um bichinho de estimação –, vários filhos, alguns morenos como eu e outros loirinhos como ele e comeríamos bife com batata frita todos os dias.

Então, as coisas mudaram na casa dele, o garoto doce e brincalhão ficou estranho, quieto, já não sorria ou conversava comigo. Fiquei triste, achei que ele já não gostava mais de mim, e só fui me dar conta do que estava acontecendo anos depois, quando passei a enxergar as marcas em seu corpo e a dor em sua alma.

Estava com 13 anos quando ele me pediu para ser mais amiga da Kyra do que dele. Fiquei magoada, não entendi o motivo pelo qual ele me pedira isso, até que soube que ela havia menstruado, estava cheia de dúvidas sobre o que acontecia consigo, e Alex, cheio de medo por alguma razão.

Pensar em Kyra parece tê-la evocado, pois o celular vibra em minha mão, e a mensagem dela, ansiosa pela minha volta, prometendo buscar-me no aeroporto, aparece na tela.

Não perdi o contato com ela durante o tempo em que estou na Espanha, ela já veio me visitar, inclusive é uma das únicas amigas que sabe sobre Diego. Temos um acordo tácito de não falarmos sobre Alexios, com quem não tenho nenhum contato desde que saí do Brasil.

O aviso de que o carro que pedi para o aeroporto está à minha espera me desperta de todas essas memórias e reflexões, pego minhas malas, jogo o copo descartável do chocolate na lixeira pública do prédio e respiro fundo, despedindo-me de Madri para voltar ao Brasil, onde está o homem que sempre habitou meu coração, mesmo sem querer, impedindo qualquer outro de entrar.

Eu preciso esquecer Alexios e seguir minha vida!

 

Desembarquei em Guarulhos cansada, com um humor péssimo, depois de horas de voo, uma escala no Galeão e a cabeça martelando. Eu sabia que não seria fácil estar de volta, embora tenha sido sofrido demais ficar longe por tanto tempo.

A especialização que fui fazer em Madri foi só uma desculpa para sair do país e me afastar, com a esperança de que pudesse tocar minha vida para frente. Estava próxima dos 30 anos, vários relacionamentos falidos no currículo, uma inconstância total entre fazer o que eu amava – o design de interiores – e o que esperavam de mim.

E, acima de tudo, queria esquecer Alexios Karamanlis de vez, perder toda a paixonite que desenvolvi por ele ao longo dos anos de amizade. Ele nunca seria capaz de me corresponder ou de ser de novo o homem pelo qual me apaixonei. Eu tentei entender, juro que tentei relevar as coisas que me disse pouco antes de eu decidir morar na Espanha, mas me magoaram demais.

A voz de Alexios ressoa como se estivesse falando aos meus ouvidos neste instante:

— Você vê o mundo por detrás de lentes cor-de-rosa! Tudo é perfeito! Samara Schneider não merece nada menos que a perfeição! — E riu, bêbado demais. — Vou te contar a verdade, menina mimada, te iludiram a vida toda! Não existe “felizes para sempre”; não existe “amor verdadeiro”, muito menos príncipe encantado, que é o que parece que você anda buscando nesses seus namorados toscos.

Doeu, principalmente porque eu nunca busquei perfeição ou um príncipe encantado, apenas ele; Alexios era meu príncipe, apesar de seus defeitos. Foi a partir daquele dia que percebi que estava fazendo tudo errado, pautando minha vida em um sentimento infantil e em um homem que há muito havia deixado de ser o menino que eu amava.

Arrumo a bolsa sobre meu ombro, sentindo-a incrivelmente mais pesada do que quando saí do meu apartamento ontem. Não está, claro, apesar de agora conter algo que não havia naquele instante.

A caixinha de veludo com o anel de noivado parece ser de chumbo! É psicológico, eu sei, na realidade não pesa nada, mas minha consciência me acusa de ser covarde de duas formas diferentes: por não ter dito “sim” e por não ter dito “não” ao Diego.

Ele apareceu no aeroporto assim que escutei a chamada para o voo em direção a São Paulo, com escala no Rio de Janeiro, e decidi entrar para a área de embarque, pois já havia feito o check-in e despachado as bagagens. Simplesmente segurou meu ombro, e eu me virei para encará-lo.

— Não pude deixar você ir sem vir te abraçar. — Diego puxou-me para seus braços. — Eu amo você, Samara, e, se precisa desse tempo para me responder, eu vou esperar.

— Diego, eu não...

Ele me calou com um beijo e, antes de se afastar para ir embora, colocou a caixinha com o anel na minha mão.

— Se, quando você voltar, estiver usando-o, terei minha resposta.

Observei-o indo embora, paralisada, segurando a caixinha de uma joia caríssima na mão, no meio do Madrid-Barajas13, com meu voo sendo anunciado e a cabeça confusa demais.

Nem sei como me recompus para poder ingressar no terminal de embarque, mas o fato é que passei todo o tempo da viagem acordada, sem conseguir nem mesmo cochilar, sem comer, apenas ansiosa e cheia de questionamentos. Sentia que estava cometendo um erro ao tê-lo deixado para trás sem uma resposta, mas me justificava dizendo a mim mesma que eu não sabia que resposta lhe dar.

Empilho minhas malas no carrinho e saio do desembarque já procurando a Kyra. Não demoro muito a achá-la, alta, linda, corpo escultural de modelo, os cabelos negros e compridos e uma postura de segurança e poder que sempre me deixam perplexa – porque conheço bem a verdadeira Kyra – e que atraem olhares de homens e mulheres.

Magnetismo dos Karamanlis!

Eu senti em minha própria pele esse poder de sedução que cada um deles tem, lindos e poderosos, porém com histórias de vida tão fodidas que eu chegava a sentir pena.

Com Kyra também não foi diferente.

— Malinha!!! — Ela grita. — Você voltou!

Gargalho, revirando os olhos para ela e esse apelido absurdo. Sim, pasmem, minha melhor amiga me chama de Malinha! Na verdade, não tem nada a ver por eu ser chata ou algo do tipo, é apenas, segundo ela e sua lógica louca, o diminutivo do meu nome. Papai e mamãe, por muitos anos, me chamaram de “Samarinha”. Kyra não conseguia reproduzir o som igual e só me chamava de “Samalinha”, daí, com o tempo, mesmo já falando perfeitamente, ela resolveu diminuir o diminutivo, e eu virei “Malinha”.

— Oi, Kyra! — Abraço-a com força, matando um pouco da saudade. — Obrigada por ter vindo me buscar!

— Eu nunca deixaria você voltar para casa, depois de tanto tempo longe, em um Uber! — Ela me ajuda com o carrinho, não antes de enviar um olhar “eu sei que sou gostosa, então babe” para um sujeito que a come com os olhos. — Estamos atoladas lá na empresa com o baile dos Villazzas. — Sorri animada. — Eu te contei que vencemos a concorrência, não? — Assinto, porque ela me ligou ensandecida de alegria, principalmente por ter se livrado de ter que trabalhar para o babaca do Theodoros. — Pois bem, vou chegar atrasada hoje, mas a Lena dá conta!

— Que bom que você a encontrou, eu estava ficando preocupada por você ter que gerir dinheiro. — Ela fecha a cara. — Ué, nós duas sabemos que você não nasceu para isso! Economiza no que não deve e gasta no desnecessário.

Kyra dá de ombros, mas não fala nada. É difícil para ela lidar com a verdade nua e crua das coisas, mas sei que depois voltará a relaxar, a sorrir e a usar sua capa de normalidade.

— Meu carro! — Aponta, ainda um pouco azeda, para um utilitário no estacionamento. — Economia porca ou gasto desnecessário?

Rio.

— Quem escolheu o modelo?

Ela fecha a cara de novo, mas logo começa a rir.

— Helena! — Faz careta. — Você é uma mala mesmo!

— Sou, mas sou a mala que te suporta e que te ama.

Pronto! Cara fechada de novo, mas dessa vez não por mau humor ou azedume, apenas por não saber como lidar com o que eu lhe disse.

Entramos no carro mudas depois de colocarmos todas as malas no pequeno baú cheio de caixas de algum fornecedor que ela já deve ter visitado hoje e seguimos para o meu apartamento no Castellani. Respiro fundo, odiando-me por ter comprado minha unidade no mesmo prédio onde Alexios também mora.

— Pedi a uma faxineira lá do Castellani, a mesma que cuida do apartamento do Alex, para dar uma geral no seu. — Sorrio agradecida. — Invejo a facilidade que vocês têm naquele prédio, deveria ter comprado meu apartamento lá, mas na época não tinha grana.

— Te vendo o meu! — disparo sem pensar, e ela me encara, parada no farol vermelho. — O quê? Nunca disse que estava voltando para ficar, apenas para acompanhar mamãe na quimioterapia!

— Eu pensei que... — Suspira. — Bom, você sabe o que é melhor!

Kyra volta a dirigir e a se concentrar no trânsito. Ela nunca expressaria sua opinião, afinal, precisaria se expor. Mesmo que tivesse que se despedir de mim, nunca me pediria para ficar ou diria que iria sentir minha falta.

— Ah, antes que eu me esqueça — ela volta a falar pouco antes de chegarmos ao meu prédio —, vou fazer uma ceia de Natal, e, antes que você diga que não é cristã e por isso não comemora, é só uma desculpa para comemorar a expansão dos negócios.

— Já vai crescer? — animo-me. — Ah, Kyra, que notícia ótima! Claro que eu vou!

Ela para em frente ao portão da garagem, eu pego minha identificação de moradora, ela a coloca no scanner, mas ainda assim o porteiro fala pelo interfone:

— Pois não?

Debruço-me sobre Kyra para que ele possa me enxergar na câmera.

— Voltei, seu Pedro, é a Samara!

— Oh, dona Samara, pode entrar!

O portão é liberado, e Kyra me ajuda a tirar a bagagem. Fico tensa, olhando para o lado, procurando o carro ou a moto do Alex nas vagas de seu apartamento, porém não acho nenhum deles.

— Ele deve ter saído e levado a moto — Kyra parece ler minha mente. — Agora comprou um negócio que põe atrás do carro e carrega a moto para onde vai. — Ela dá de ombros. — E só Deus sabe onde!

— Eu não... — tento disfarçar, mas ela me olha cheia de tédio.

— Não fode, você olhou diretamente para a vaga do apartamento dele! — Bufo por ela ser assim, tão observadora ou me conhecer tanto. — Bem, de qualquer forma, é melhor vê-lo do que somente aos pertences dele.

Enrugo a testa, sem entender.

— Ele vai estar na ceia de Natal.

Isso me surpreende, afinal, uma ceia de Natal era o último local em que eu imaginaria vê-lo.

E... pensando bem, o último lugar em que ele espera me ver também!

 


Escolhi morar no sétimo andar do Castellani. Não é muito alto, eu sei, mas ainda assim me arrependo. Não gosto de altura, então quase não vou até minha sacada. Minhas plantas foram espalhadas dentro do apartamento exatamente por causa disso, e a tal “varanda gourmet” nunca foi usada por conta da minha fobia.

Seria, confesso, muito mais prático ter comprado uma casa em algum condomínio fechado, mas, quando o coração comanda, a cabeça sofre. Vim morar aqui para ficar mais próxima “dos meus amigos”, mesmo sabendo que Kyra nunca teve intenção de se mudar para cá com Alexios.

Abro a porta do apartamento onde não piso há três anos e suspiro saudosa ao encontrar tudo no lugar. O cheiro de limpeza, dos produtos usados no piso e revestimentos me faz sorrir, mas ao mesmo tempo me causa apreensão.

— Cadê o Godofredo? — pergunto à Kyra, assustada.

— Relaxa, ele está com sua mãe essa semana. — Respiro aliviada. — É a primeira vez que vejo uma tartaruga ficar em guarda compartilhada.

Rio e concordo.

— Primeiramente, ele é um jabuti, e a culpa disso tudo é sua, nunca mandei me dar um bicho que irá sobreviver a todos nós!

Kyra faz careta.

— Como eu ia saber? Eu tinha 16 anos e o achei tão pequeno e indefeso!

Gargalho, pois agora Godofredo é enorme e a odeia! Os pés de Kyra sofrem com mordidas do meu cão de guarda quelônio. Ele é o único a desfrutar do jardim da varanda gourmet, pois passa as manhãs lá tomando sol para não ficar deprimido. É, meu bichinho tem que ter seus cuidados, mas talvez eu o tenha mimado demais!

— Difícil agora vai ser convencer sua mãe a devolver o cascudo para você! — Kyra mostra a língua. — O bicho já era mimado, olhando para todos com aqueles olhos entediados, rosnando e mordendo como um cão quando entrávamos em seu território, mas agora... eu sofro quando é minha semana de ficar com ele!

Olho-a espantada.

— É só um jabuti! — Rio. — Você o trata como se fosse gente!

— Gente, não, homem! — Ela abre minha geladeira e sorri ao pegar uma garrafa de água com gás, seu vício. — Eu deveria ter escolhido uma fêmea, aposto que não seria tão melindrosa!

Ela começa a rir, desistindo de fingir que, apesar das mordidas, é louca pelo cascudo, tanto que briga com minha mãe para levá-lo para sua casa.

Arrasto minhas malas até minha suíte e fico séria quando avisto, em um porta-retratos bem grande, uma foto de muitos anos atrás, onde três adolescentes aparecem abraçados: uma melancólica Kyra espremida entre um zangado Alexios e uma sorridente eu.

— Sente falta dele, não é?

Pulo ao ser surpreendida pela pergunta.

— Sinto falta da nossa amizade, nada mais do que isso — minto, mas sei que não a convenço. — Diego me pediu em casamento.

Olho para Kyra – que está com a garrafa de água parada a meio caminho de sua boca aberta – e sorrio triste.

— Aceitou? — ela indaga, por fim.

Dou de ombros, pego a caixinha de dentro da bolsa, e ela arregala os olhos ao ver o diamante.

— Ele disse que, se eu voltar usando-o, terá minha resposta.

Kyra suspira.

— Você sabe o que eu acho sobre casamentos, não é? — Assinto. — Mas isso sou eu! Você combina com essa imagem de família de comercial de margarina, amiga. Sabe? Você, alguns remelentos, o Godofredo velho e com flatulência e um homem babando por você mesmo com seu sobrepeso pós-parto.

Faço careta, mas rio, achando-a ainda mais maluca do que me lembrava.

— Eu te amo, sabia? — declaro-me para ela. — Você é minha irmã, minha amiga, mesmo sendo tão doida como é.

Kyra fica séria, sem jeito, olha para todos os lados sem saber o que falar, procurando algo para mudar o foco da conversa.

— Nem adianta, que não vou te ajudar a desfazer as malas. — Bebe um longo gole de água e se afasta, indo para a sala. — Ah, e coloque um belo vestido para a ceia de Natal! Vermelho combina!

Ouço a porta principal bater e suspiro resignada, voltando a olhar para o porta-retratos, nostálgica, sentindo falta do tempo em que éramos tão juntos, mesmo que, ao mesmo tempo, agradeça que aquele período tenha passado, pois não foi fácil para eles.

Sim, eu sinto falta dele mais do que deveria sentir!

 

Odeio a Kyra!, desço do Uber amaldiçoando minha amiga pelo convite, por esse evento e pela dica de vestido – que acabei acatando! Bom, acho que não posso culpá-la muito por estar usando esse traje, afinal, comprei-o na Espanha e o trouxe com o firme propósito de usá-lo, então não posso afirmar que ela me obrigou a nada.

Mas me induziu! Sinto mais uma vez a revolta assim que desço a saia do vestido. Respiro fundo na calçada do showroom de seu bufê, tentando manter a calma e não parecer uma maldita adolescente desajeitada e clichê de filmes americanos ao rever Alexios.

Tenho 31 anos, sou bem-sucedida, experiente, não há motivos para me sentir insegura, muito menos vestindo uma criação da minha amiga Angela Velázquez, uma brasileira filha de espanhóis que voltou para o país dos pais para estudar arquitetura e se descobriu uma estilista talentosíssima.

— Samara? — a voz de Helena me faz voltar à realidade. — É você, não é?

A mulher, que é o braço direito da Kyra, encara-me com um sorriso enorme. Nós ainda não nos conhecemos pessoalmente, embora já tenhamos falado por vídeo-chamadas.

— Sou eu, sim! — Abraço-a. — Que prazer em te conhecer! — Olho para seu companheiro e o cumprimento. — Oi, Bê!

— Oi! Finalmente voltou ao Brasil! — ele brinca comigo. — Mamãe vai adorar saber disso, ela sente falta de suas dicas com as orquídeas.

Rio sem jeito.

— Nada! Dona Cecília é ótima com as plantas! — Percebo as mãos dos dois entrelaçadas. — Oh, meu Deus!

Bernardo ri de minha surpresa, e Helena fica corada.

— É, estamos juntos.

— É perfeito! — digo com sinceridade. — Vocês dois formam um belo casal, parabéns!

Helena volta a me abraçar, e Bernardo agradece.

— Precisamos ir, ceia lá em casa. Vou dizer à mamãe que você está de volta!

— Mande um abraço para todos!

Eles entram no carro, e fico parada – ainda na calçada – com um sorriso congelado. Conheço o Bernardo Novak desde menina e confesso que não gostava muito dele na época, mas soube o que aconteceu anos atrás e acredito que isso o tenha mudado muito.

Kyra me contou sobre a situação da Helena, e, juntando as coisas agora, acho mesmo que eles são perfeitos um para o outro. Tomara que deem certo!

Larga de ser covarde e entra!, minha consciência canta, fazendo-me rir. Bom, vim até aqui, não vou retroceder. Uma hora ou outra eu teria que me encontrar com Alexios; que seja já.

Abro a porta dupla de vidro, passo pelo hall principal e então adentro no salão. Tento controlar meu olhar para não o procurar e agradeço a boa sorte de dar de cara com a Kyra.

— Ah, você veio! — minha amiga, em um vestido ao estilo sereia, todo bordado com cristais dourados, cumprimenta-me. — Achei que teria que pedir a alguém para te arrancar daquele apartamento!

— Sem graça! — Percebo a decoração e abro um sorriso. — Uau, você fez um trabalho lindíssimo!

— Eu fiz, sou foda! — Dá de ombros sem nenhuma modéstia. — Vem, que eu quero te apresentar a algumas pessoas. — Ela me puxa. — Pena que Helena já foi...

— Me encontrei com ela e o com o Bernardo Novak na saída.

— Ah, que bom! Bê Novak tem sido uma grata surpresa, e, pelo bem dele, espero que continue sendo, porque ele sabe que eu luto bem.

Gargalho e pego uma taça de champanhe de um garçom que passa, ainda sendo arrastada por ela.

Chegamos a um grupo de pessoas, e ela me apresenta a cada uma delas. São integrantes de sua equipe, fornecedores e parceiros. Sorrio, troco beijos, pego a mão, mas meus olhos passeiam pelo salão à procura de um certo homem.

Avisto Konstantinos Karamanlis conversando com alguém que não conheço e me surpreendo ao vê-lo aqui. Nunca fui muito próxima dele, pois era um adolescente esquisito, introspectivo e sempre com uma cara amarrada. Depois tomei raiva quando ele foi embora estudar e deixou Alexios e Kyra sozinhos.

Millos está perto da chopeira, conversando com o pessoal responsável pela bebida. Uau! Os anos se passam, e ele fica ainda mais gostoso e misterioso, o típico mocinho bad boy dos livros de motoclub que fazem sucesso por aí. Nunca tive intimidade com o primo de Kyra, mas uma vez o vi treinar artes marciais junto a minha amiga e fiquei sem reação. Grande, musculoso, tatuado... lindo!

Procuro por Alexios mais uma vez, mas não o vejo. Será que ele não...

— Ele está aqui, mas está ocupado — Kyra cochicha no meu ouvido.

Bufo e tento disfarçar:

— Não estou procu...

— Me poupe, Malinha! — Rola os olhos. — O diabo está com duas clientes minhas – cujo casamento eu fiz, diga-se de passagem – lá na área de escritórios.

Franzo a testa.

— Trabalhando?

Kyra engasga-se com o champanhe.

— Samara, Alexios escondido com duas mulheres enquanto minha festa acontece. Adivinha o que ele está fazendo com as duas!

Arregalo os olhos, meu coração dispara, e desvio os olhos dos dela para que não perceba o quanto isso me afeta. A constatação de que ele não mudou nada, continua sendo o safado de sempre, quebra um pouco a expectativa que eu tinha – mesmo sem querer ter – de que ele possa ter amadurecido.

Não, continua o mesmo cafajeste sedutor.

Incrivelmente, isso me ajuda a relaxar, a me esquecer da presença de Alexios – ou da falta dela – aqui, e consigo conversar e socializar como uma pessoa normal. Antigamente, quando eu o via com alguém, tinha duas reações: ia embora chorar na cama, que é lugar quente, ou ficava puta e pegava o primeiro que me dava mole.

Amadureci! Alexios Angelos Karamanlis não tem tanto poder mais sobre mim! Sorrio, sentindo-me segura, bebo mais um gole de champanhe e olho em volta, feliz pela conquista da minha amiga e por ter vindo celebrá-la com ela.

— Ele é demais, não é? — alguém sussurra ao meu lado.

Volto para o homem ao meu lado a fim de lhe perguntar a quem está se referindo, mas acompanho seu olhar e vejo Alexios, entre duas lindas mulheres, entrar no salão como se nada tivesse acontecido entre eles. O safado sorri para elas, acena e se afasta, vindo na direção do grupo onde estou.

Nossos olhares se encontram. Vejo-o titubear por um segundo, então abrir aquele sorriso angelical – e totalmente falso – e vir na minha direção.

— Samara Esther, você está de volta!

Tento sorrir para ele da mesma forma com que faz para mim, porém não sou tão boa em esconder minhas emoções.

— Oi, Alexios — cumprimento-o seca.

Ele fica sério, por um momento sua máscara de “anjo rebelde” cai, e eu vejo constrangimento e confusão, mas então ele logo volta a sorrir, cruza os braços e me encara com ar descontraído e sedutor.

— Achei que você também não comemorasse o Natal.

Bebo o champanhe para tirar um pouco do bolo que sinto em minha garganta antes de responder:

— Vim comemorar o sucesso da minha melhor amiga. — Relaxo o corpo, viro-me de frente para ele e decido ser bem sincera: — Três anos, Alexios, e nenhuma porra de telefonema, agora vem todo faceiro puxando assunto comigo?

Seu sorriso morre de vez, ele olha para os lados e segura no meu cotovelo, separando-me do restante do grupo. Tento me soltar sem fazer movimentos bruscos, afinal não quero fazer uma cena aqui, mas ele mantém sua mão como uma garra em meu braço.

— Você foi embora sem me falar nada, Samara! Você! — sua voz sai grave, posso sentir a raiva e o ressentimento, tão inerentes a ele com todos, mas pela primeira vez comigo. — Fui igual a um idiota ao seu apartamento, bati, achei que você tinha saído, voltei várias vezes, até que um dos seus vizinhos disse que você tinha viajado e que Kyra tinha ido lá resgatar o Godofredo.

Paramos praticamente atrás da gigante árvore de Natal, e ele me solta.

— Você não tentou contato! — jogo em sua cara.

— Você não se despediu! Isso foi um sinal claro de que estava querendo ficar longe de mim, então, por que eu te procuraria?

 

 


                                                                  CONTINUA