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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ALEXIOS
ALEXIOS

                                                                                                  

  

 

 

 

 

Kyra sempre foi exuberante, beleza herdada de sua mãe, devo acrescentar, pois Sabrina ainda continua tão linda quanto era na época em que era casada com Nikkós. Contudo, minha irmã ainda recebeu alguns belos traços dos Karamanlis, principalmente da famosa giagiá15, que todos sempre fazem questão de dizer que era linda e tinha a mesma coloração de olhos da minha irmã (e minha também, só que os Karamanlis nunca engoliram bem que eu realmente tenha o sangue nobre deles).

No papel, Kyra e eu somos filhos dos mesmos pais, pois Sabrina me adotou legalmente quando eu ainda era um garotinho. Ela, por poucos meses, possuía a diferença de idade obrigatória pela lei entre nós (16 anos) e, por isso, conseguiu, aos 18, adotar-me aos dois anos. Logo em seguida nasceu a Kyra, e a família ficou completa.

Na verdade, eu nunca soube da minha mãe. Tentei descobrir algo durante a adolescência, principalmente por ser esse um dos pontos que meu sádico pai adorava usar contra mim. Inventar uma história nova a cada dia sobre meu nascimento, minha origem, era sua principal diversão e tortura psicológica.

Nunca entendi nada sobre mim, a única certeza que tenho é de que, infelizmente, sou mesmo filho dele, algo que comprovei através de exame de DNA, cujo resultado positivo nunca divulguei, porque eu tinha esperança de não ter o sangue daquele monstro.

Volto a prestar atenção na foto, dessa vez em meu próprio rosto cheio de enfado por estar naquele baile com elas. Sorrio. Eu fazia esse tipo, mas a verdade é que adorava cada momento que passávamos juntos, pois me sentia em família de verdade.

Ponho a moldura no lugar e respiro fundo, controlando meu corpo, colocando juízo na minha cabeça, ressaltando tudo o que tem de importante na amizade entre mim e Samara e concluindo que um envolvimento fora desses termos entre nós só serviria para destruir anos e anos de companheirismo.

Samara merece ser feliz com alguém que possa ser o homem com que ela sempre sonhou, o príncipe encantado dos seus sonhos de menina, alguém que saiba quem é, que tenha valor e que possa demonstrar todo o amor que sente por ela e reconheça o privilégio que é ser amado.

Esse homem não sou eu!

 

Depois do banho na casa de Kyra, fui direto para a empresa. É providencial ter uma mochila de roupas minhas no apartamento dela, mas confesso que não vou muito de jeans e camisa de malha para a Karamanlis.

Passei no Castellani apenas para pegar minha moto, nem me atrevi a subir até meu apartamento, sendo covarde mais uma vez. A questão é que eu não saberia nem mesmo o que dizer a Samara caso nos encontrássemos de novo.

Estava saindo do estacionamento quando meu celular tocou, mas, como já estava sobre a moto – e não queria demorar muito na garagem, porque o carro de Samara ainda estava na vaga dela –, deixei para conferir a ligação quando estivesse no prédio, o que faço agora, retornando a ligação.

— Oi, Chicão! — cumprimento-o assim que atende.

— Alex, seu grande safado, feliz Ano Novo! — o homem mais velho, que se tornou um grande amigo e a quem eu considero como um pai – no sentido do que realmente um pai deveria ser – por pouco não me ensurdece ao telefone. — Cheguei ao inferno hoje, queria saber se poderia passar uns dias lá naquele seu apartamento cinco estrelas.

Abro um sorriso de felicidade ao pensar que ele está de volta a São Paulo. Francisco Salatiel Figueiroa é o nome dessa figura de quase 60 anos, paulistano – mas que odeia sua cidade natal – e viciado em esportes radicais assim como eu.

Nós nos conhecemos quando eu ainda estava no colégio, devia ter uns 15 anos e fui participar de um racha de moto pela cidade. Ele apareceu por lá, chamou-me em um canto e me convidou a fazer cross ao invés de colocar minha vida e a de outras pessoas em risco correndo pelas ruas.

Comecei a ir para o os circuitos de motocross, tomei muito tombo, enlameei-me até o pescoço e me senti mais vivo do que quando me arriscava nos rachas. Nós nos tornamos amigos mesmo com nossa gritante diferença de idade, pois ele dizia que eu lembrava o moleque atentado que ele mesmo tinha sido um dia, e comecei a acompanhá-lo em suas atividades.

Foi por causa dele que deixei de buscar alívio e fuga nas drogas, pois conseguiu me mostrar que, se eu quisesse me livrar de Nikkós, teria que ser melhor que ele. Não foi um processo fácil, admito, levei anos para entender e ouvir seus conselhos, mas nem por isso ele desistiu de mim ou se afastou.

Francisco começou a me mostrar que eu poderia extravasar toda minha angústia, solidão, medo e revolta em esportes como trilhas de moto, bike, escaladas, voos livres, paraquedismo e, quando tirei minha carteira de motorista, apresentou-me a alguns amigos dos circuitos de motovelocidade.

Os esportes aliviavam meu corpo da tensão vivida em casa, mas minha cabeça e minha alma continuavam pesadas, então, um dia, ele me viu desenhar e descobriu como eu poderia tratar os demônios dentro de mim.

Devo muito a ele, não só pelo equilíbrio que consegui hoje em minha vida, como também por permanecer vivo e são. Samara e ele foram os únicos a permanecerem ao meu lado nos piores momentos da minha vida, ela me auxiliando principalmente com Kyra, e ele entendendo meus problemas e me ajudando a achar soluções.

— Meu apartamento é seu! Te dei a chave, afinal.

— Eu sei, mas é sempre bom dar uma conferida, vai que você resolveu sossegar seu pau numa boceta só.

Gargalho com seu jeito rude e direto.

— Não, meu pau ainda gosta de explorar por aí. — Ele me chama de “vadio” e ri. — Estou na Karamanlis agora e...

— Ah, me diz que estou sonhado... — estranho o que ele fala, escuto vozes ao fundo e percebo que não falou comigo. Espero que ele retome a ligação, entro no elevador, cumprimento as pessoas com a cabeça e sorrio para uma mulher gostosa que nunca vi aqui no prédio. — Seu trapaceiro de uma figa! Samara está de volta e, caramba, mais linda do que nunca.

Só de ouvir o nome dela, sinto meu corpo reagir como se uma descarga elétrica tivesse me atingido.

— Encontrou-se com ela agora?

— Sim, seu embuste! Quantos anos ela esteve fora? Caralho, você já a viu?

Franzo a testa, desço no meu andar, confuso com a perplexidade dele apenas por ter visto a Samara no prédio, afinal, ele sabe muito bem que ela tem um apartamento lá.

— Já, desde que chegou — respondo distraído, acenando para os funcionários da K-Eng. — Por quê?

— Alexios, eu sempre me perguntei se você era cego ou apenas muito burro. — Ouço o barulho de uma porta se fechando. — Nunca entendi por que vocês dois nunca tiveram nada um com o outro.

Paro no meio do corredor, atraindo os olhares de pelo menos dois engenheiros que passam por mim. Que merda é essa?!

— Ela é minha amiga — digo o óbvio.

— Ela é incrível e sua amiga, isso já não é meio caminho para um relacionamento de sucesso?

Um alerta dispara em meu cérebro. Chicão nunca foi um homem ligado a relacionamentos permanentes, tanto que é solteiro até hoje, então não entendo o motivo pelo qual está falando essas coisas sobre mim e Samara.

— Chicão, sou eu! Eu não tenho relacionamentos, eu fodo por aí, só isso. E, definitivamente, Samara não é uma mulher apenas para se foder.

Ele emite um grunhido, e, ao fundo, escuto o bipe da minha cafeteira sendo ligada.

— Nisso concordamos. Mas ela é incrível, sempre foi, se eu tivesse a sua idade e a sua aparência, não perderia a oportunidade de tê-la comigo.

Mas o que... Arregalo os olhos, e meu coração dispara.

— Você está morrendo? — inquiro-lhe como se fosse a única opção válida para essa mudança de comportamento.

Chicão gargalha.

— Não, mas estou ficando velho e sozinho. — Bufa. — Mas isso não é assunto para discutirmos ao telefone, já que você está na empresa.

— Chicão, está tudo bem?

— Vai trabalhar, embuste, depois conversamos. Viajei a noite toda, quero tomar um banho, comer algo e dormir um pouco. Obrigado pelo abrigo.

Ele ainda não me convenceu, algo está errado.

— A casa é sua! — declaro, e ele encerra a ligação.


— Quer mais um travesseiro? — pergunto à minha mãe assim que ela se deita na cama.

— Não, filha, estou bem. — Sorri, mas o cansaço não permite que o faça por muito tempo. — É sempre assim no dia da medicação, mas passa.

Balanço a cabeça concordando, enternecida por ela estar tentando me consolar, quando é ela quem está passando por isso tudo. Sempre a admirei por sua força, seu destemor e a capacidade de realizar qualquer coisa que se propunha a fazer.

Mamãe não tem um gênio fácil de lidar, mas nunca negou amor e afeto aos seus filhos, mesmo sendo brava e exigente como era. Dani e eu tínhamos muito mais medo dela do que do papai, que sempre foi mais maleável, mas moderno e liberal.

O relacionamento dos meus pais, enquanto casal, não era um mar de rosas, mas eles eram amigos, companheiros. Ele sempre a apoiou em tudo, e ela acima de tudo o admirava. Não tinham grandes arroubos de paixão, pelo menos não na nossa frente, mas se respeitavam, conversam, riam e, principalmente, nos amavam muito. Dani, como filho e mais velho, sempre foi agarrado a minha mãe mais do que a nosso pai. Os dois se dão bem, são muito parecidos em alguns aspectos, mas quem sempre teve mais afinidade com papai fui eu.

Acho que nossas almas são parecidas. Ambos somos apaixonados pelas formas, perfeccionistas, românticos e, arrisco dizer, sonhadores. Eu sou assim, gostaria de ser prática como mamãe, mas há muito que parei de tentar ser quem não sou. Demorei, mas consegui aceitar meu jeito e me respeitar acima de tudo.

É dolorido tentar ser quem não é para se encaixar ou seguir uma tendência. Eu sou forte, mesmo sendo doce; sou feminista, mesmo sendo feminina e vaidosa; sou empoderada, mesmo sonhando em casar e ter uma família.

Eu me importo com a opinião alheia, sim, porque ninguém é uma ilha e não teria sentido na vida se todos fôssemos autossuficientes e não dependêssemos de ninguém. Não tenho preconceitos, sou feliz com a felicidade dos outros e não me importo que a recíproca não seja verdadeira. Cada um escolhe o caminho que quer percorrer. Eu escolhi ser assim, exatamente como sou.

Chegar até essa conclusão não foi fácil, principalmente quando se percebe que o homem por quem você é apaixonada prefere as mulheres que têm atitude, que são furacão e não calmaria. Eu quis fazer tipo e percebi que estava indo na contramão de tudo o que uma “mulher de atitude” prega, que estava tentando ser outra pessoa para agradar a um homem.

Foi aí que aquela máxima tão clichê, mas que é tão difícil de ser vivida, fez sentido para mim: quem me amar, precisa me conhecer e me aceitar como sou.

Demorei a perceber a importância disso, precisei praticamente ter isso esfregado na cara. Então arrumei minhas malas, disse ao meu pai que não iria para Barcelona, mas sim para Madri, e segui com minha vida.

Alexios foi o estopim que eu precisava para explodir naquela época, depois de ter aparecido no meu apartamento bêbado a ponto de não se aguentar de pé. Ele pediu para dormir no meu sofá, tivemos uma dura discussão quando tentei lhe passar sermão e, no meio da noite, acordei com ele na minha cama.

Fiquei sem reação quando senti sua mão na minha cintura, alisando minha pele por cima do pijama de seda. Fechei os olhos, excitada e ansiosa, e o deixei prosseguir com a exploração. Não o impedi quando me virou, nem quando me beijou e subiu em cima de mim. Tinha esperado por aquilo a vida toda, e estava acontecendo.

Ledo engano!

Ele ficou imóvel, esmagando-me com seu peso, então percebi que havia dormido. Joguei-o para o lado e passei a noite em claro, sem entender nada, esperando que ele acordasse e explicasse.

Acabei dormindo e acordando sozinha na cama. Ele tinha ido embora, e não conversamos, mas esperei que a conversa viesse mais tarde. Não veio. Ele simplesmente ignorou o beijo, as carícias, como se não fossem nada, como se eu não fosse nada.

Fiquei irritada, subi para perguntar diretamente a ele o motivo pelo qual tinha me beijado, mas, quando cheguei ao seu apartamento, estava rolando uma de suas festinhas regada a bebidas e sexo, e o filho da mãe estava sentado no sofá com uma mulher de cada lado em um beijo triplo.

Ele nem me viu, fechei a porta, desci e decidi parar de protelar minhas decisões esperando por algo que nunca iria acontecer. Um relacionamento com Alexios era uma ilusão infantil, mas eu já não era mais criança.

Viajei dois dias depois e pensei que, quando voltasse, toda essa ilusão teria se desfeito.

— Então o nome dele é Diego — mamãe fala, e eu quase pulo de susto, deixando as lembranças para tentar entender do que ela está falando. — Diego Vergara!

Sento-me na beirada da cama, curiosa sobre como ela conseguiu essa informação.

— O nome dele é mais comprido do que isso, mas, sim, Diego Vergara.

Ela sorri cheia de sabedoria.

— E você deve estar aí querendo saber como eu sei o nome dele. — Concordo. — Seu irmão me contou.

Daniel e sua boca! Meu irmão sempre foi o maior X9 do mundo, não é de se espantar que tenha contado sobre o Diego para minha mãe.

— Há quanto tempo estão juntos?

Não sei o que dizer a ela e agradeço quando uma enfermeira entra no quarto, dando-me a desculpa perfeita para escapulir de sua curiosidade. O fato é que tudo mudou depois da noite do baile dos Villazzas.

Não sei o que levou Alexios a me beijar daquela forma no elevador, eu estava bem bêbada dessa vez, mas ele não tanto, além disso, eu senti a energia entre nós, senti o tesão que ele exalava, que trazia na saliva e em cada toque no meu corpo. Alexios não escondeu em nenhum momento o quanto estava excitado, esfregou sua ereção contra mim, esmagou-me contra o espelho do elevador parecendo que queria me comer ali mesmo.

Depois, do nada, mudou. Pediu desculpas! Desculpas por me beijar! Só faltou dizer que estava com tesão, e eu era a única mulher próxima dele, mas que nem assim servia.

Para piorar, quando entrei no apartamento e peguei o celular, vi uma mensagem de Diego dizendo o quanto sentia minha falta e como ele gostaria de poder estar aqui comigo. Foi a gota d’água! Senti-me um lixo, uma pessoa má que engana e trai e percebi que tê-lo deixado na Espanha sem uma resposta definitiva foi uma atitude egoísta.

Chorando, sem pensar direito, fiz uma chamada de vídeo para ele e, quando atendeu, disparei:

— Diego, eu sou uma pessoa horrível, mas não posso fazer isso com você! — Soluçava tanto que ele se assustou e me pediu para falar devagar. Todavia, eu não conseguia. — Você é um homem incrível, um amigo maravilhoso, e eu adorei cada momento que passamos juntos...

— Calmarse, Samara! Yo no comprendo!

— Você merece mais, merece alguém melhor, e eu não posso...

— Usted está me dejando preocupado, cariño.

— Eu não queria fazer isso assim, por telefone. — Ele ficou sério, atento, prevendo o que eu lhe diria. — Mas não é justo que você fique aguardando minha volta para que eu diga isso. — Respirei fundo, armando-me de coragem. — Eu não posso aceitar seu pedido, Diego. Eu não estou pronta para amar você como deveria, como você merece.

— Samara, sucedio algo com su mamá?

Neguei.

— Não. Sou eu, não mereço você. Você tem razão ao dizer que meu coração nunca pôde estar aí contigo.

— Samara, despues hablamos, está muy nervosa. — Tentei dizer a ele que não, mas não me deu oportunidade: — Tengo que ir.

— Diego, não...

Ele encerrou a chamada. Tentei retornar outras vezes, porém a ligação não completava. Deixei mensagens, mas que, até o momento, ele não visualizou. Volto a olhar para mamãe, que boceja, visivelmente cansada, e fecha os olhos, recostada nos travesseiros, enquanto a enfermeira mede sua pressão. Eu voltei ao Brasil apenas por causa dela, para estar ao seu lado nesses momentos tão difíceis, não por qualquer outro motivo. Sinceramente, não esperava essa pressão acerca de Alexios e Diego. Minha família nunca foi assim, muito menos mamãe, que sempre pregou que uma mulher não precisa de marido e filhos para se sentir completa e feliz.

Mamãe adormece, e eu saio do quarto. Quando estou prestes a descer a escada, escuto uma voz conhecida e muito amada:

— Minha Samara está de volta! — Papai está no corredor de braços abertos. Sorrio e vou até ele para abraçá-lo. — Ah, que saudades!

— Eu também estava, mas cheguei há mais de uma semana, e você nem se dignou a vir me ver.

— Eu sei, mas agora vim para ficar, Herzchen16, e estou feliz por te ter de volta aqui em casa. — Ele beija minha testa. — Não pretende voltar para a Espanha, não é?

Suspiro. Papai foi o primeiro a me incentivar a ir estudar fora, mas o único a ficar chateado quando decidi ficar depois que terminei a especialização. Nunca foi me visitar. Embora falássemos sempre, eu percebia que ele ainda não havia entendido minha necessidade de ficar longe.

— Vou voltar, sim, tenho compromissos de trabalho por lá que...

— Besteira! Aposto que você já tem tudo desenhado e organizado e que, em uma visita ou duas, poria fim a esses “compromissos”.

— Papai, não vim para ficar, e o senhor sabe. Mamãe está na parte mais agressiva do tratamento, e Dani precisou de mim para ajudar a cuidar dela e acompanhá-la...

— Estou aqui também! — ele se ofende por não ter sido incluído. — Ela diz que não precisa de mim, mas estou aqui, sempre estive por ela.

Oh, Deus, que situação!

— Eu sei, pai.

Benjamin Abraão Nogueira Klein Schneider nunca entendeu bem a distância fria de mamãe, por mais que os dois sempre tenham se dado bem. Acho até que foi por esse motivo que se afastaram depois que crescemos e que, após minha ida para a Espanha e a de Dani para seu próprio apartamento, papai decidiu se mudar para a fazenda.

Uma vez, quando eu ainda era uma garotinha, eu o vi bêbado no escritório do antigo apartamento em que morávamos. Ele bebia e parecia mal, chorava e segurava alguns documentos. Quando me viu, tentou sorrir e me chamou para perto de si.

— Tudo bem? — perguntei na inocência dos meus oito anos de idade e limpei suas lágrimas.

— Tudo. — Ele guardou a papelada dentro de uma caixa, onde vislumbrei também algumas fotos, trancou-a com chave e depois respirou fundo. — A vida adulta é complicada, Herzchen. Fazemos escolhas baseadas no que achamos ser melhor e esquecemos o preço que isso cobra, tanto aqui — ele apontou para sua cabeça — quanto aqui. — E, por fim, tocou em seu coração.

Na época não entendi nada, mas esse momento nunca deixou minha memória e, com o tempo, supus que ele estivesse falando de seu relacionamento com mamãe. Os dois se davam bem, mas era ele quem sempre cedia numa discussão ou quem corria atrás quando as coisas ficavam tensas entre eles.

— Vi seu bichinho pré-histórico lá no jardim comendo algumas plantas — ele ri, mudando de assunto. — Você poderia ter adotado um cachorro ou um gato como qualquer outra pessoa, não é?

— Pai, eu o ganhei de presente e gosto dele.

— Mas ele é feroz! — Faz cara de medo. — Já me mordeu algumas vezes.

Gargalho.

— Godofredo é muito territorialista, ele sempre ataca os homens.

— Hum, que interessante! Começo a gostar desse bichinho. — Rio do seu ciúme. — Você não trouxe nenhum espanhol junto contigo, não é?

Suspiro.

— Não. E se o Dani disse algo para o senhor também, ele é...

Benjamin me afasta de seus braços, segurando-me pelos ombros, e me olha surpreso.

Merda!

— Ele não disse nada, não é? — pergunto, achando-me idiota.

Meu pai nega:

— Era só uma pergunta brincalhona e especulativa. — Olha em volta. — O que ele deveria me dizer?

— Eu tinha um namorado em Madri, mas ele ficou por lá.

Ele põe a mão sobre o peito.

— Adorei esse tempo verbal: “eu tinha um namorado”. — Rio. — Agora você terá que me contar sobre esse tal...

— Ele me pediu em casamento — disparo. — Mas eu não pude aceitar.

Ficamos um tempo um olhando para o outro, parados no corredor, sem emitir um som sequer. Papai sempre foi bom ouvinte e dava bons conselhos. Mesmo não sendo muito de falar sobre como se sentia, mesmo reservado em seus sentimentos, até mesmo com seus filhos, ele sabia ouvir sem julgar e só opinava quando achava necessário, o contrário de mamãe.

— Preciso de um café ou de algo mais forte — confessa, e eu rio nervosa. — Vou falar com sua mãe e...

— Ela acabou de dormir — informo-lhe.

— Certo! — Respira fundo. — Se lembra daquele seu namorado da faculdade? — Gemo e assinto. — Você tinha dúvidas quanto ao caráter dele e, mesmo com todos os seus instintos te alertando que algo não estava bem, você aceitou o namoro e...

— Meus instintos estavam certos, ele era um pilantra filho da puta casado!

— E eu quis castrá-lo. — Ele sorri doce, como se isso não fosse nada. — Enfim, o meu conselho para essa questão sempre é: siga seus instintos. Se você não se achava pronta para aceitar o pedido, então fez certo ao recusá-lo.

— Então, você acha que eu fiz certo ao ouvir meu coração?

Ele ri e nega.

— Não, eu disse para ouvir seus instintos, porque seu coração não tem juízo. — Eu rio, achando que ele está fazendo troça, mas, então, ele completa: — Já se apaixonou uma vez por Alexios Karamanlis!

Fico séria, coração disparado, porque, embora ele saiba de todos os meus namorados e experiências, nunca contei a ele sobre Alexios.

Era óbvio para todos, não sei como consegui enganar a mim mesma! Eu ainda amo aquele safado!


— Alexios? — Termino de calçar os tênis antes de me virar para olhar Laura deitada na cama. — Já vai?

Ela se contorce languidamente, seu corpo curvilíneo, dourado de sol se mexendo contra os macios e perfumados lençóis de sua cama. Sorrio, deslizo a mão pela curva de seu lindo rabo e desfiro um tapa nele, fazendo-a rir.

— Preciso ir, tenho reuniões importantes agora de manhã na empresa, e, com a viagem de Theodoros para a Grécia e a demora na volta de Millos, as coisas ficaram acumuladas entre mim e o Kostas.

Ela bufa e se senta.

— Eu sei, ontem eles me passaram as informações sobre a propriedade no Rio de Janeiro, da reunião que tiveram na quinta-feira. — Ela dá de ombros. — Achei que Kika ia aparecer cheia de gás na sexta-feira, mas nem ela e nem seu irmão apareceram na empresa.

— A área é boa mesmo? — pergunto, pois apenas vi algumas imagens do local, e, como Laura é do geoferenciamento, deve ter detalhes bem específicos.

Ela confirma.

— O pessoal do jurídico está alvoroçado, e fiquei sabendo que o Leo, o braço direito da Kika, pediu para o pessoal acelerar com as outras áreas, porque gostaram muito da do Rio. — Laura me abraça pelos ombros e lambe minha orelha. — Falando em acelerar, adorei aquela rapidinha ontem na sala de servidores.

Eu rio, mas balanço a cabeça.

— Você jogou sujo comigo. — Levanto-me da cama, e a safada senta-se na beirada do colchão, os peitos cheios e rosados, as coxas musculosas bem abertas. Porra! — Goza para mim! — ordeno, e ela não se faz de rogada, tocando-se sem nenhum pudor. Vou até uma das luminárias, acendo-a e tenho a visão perfeita de sua boceta totalmente depilada já molhada de tesão.

Foda-se!

Apenas abro o cinto da calça, baixo o fecho e saco meu pau para fora. Pego uma camisinha em cima de seu criado-mudo, e ela ri quando avanço até onde está.

— De costas!

Ela se deita de bruços, e eu me agacho para entrar em uma única investida. Fecho os olhos, concentrando-me nas sensações, excitado com seus gemidos, mas, de repente, sinto um cheiro diferente, os sons mudam, e um rosto doce, sorridente, de lindos olhos castanhos aparece em minha mente.

Xingo alto, querendo expulsar a imagem de Samara, aumento as estocadas até sentir as pernas arderem e gozo sem ao menos saber se minha parceira teve seu prazer.

Caralho!

Afasto-me dela e apoio as mãos contra o aparador, colocando a culpa das súbitas aparições de Samara em minha mente na distância que impus entre nós depois daquele beijo no elevador. Claro que, se ela não tivesse se mudado para a casa da mãe, certamente essa distância não seria tão dura, afinal, eu poderia encontrá-la casualmente pelos corredores do Castellani, mas quem disse que a sorte gosta de mim?

Agora, além de ter visões dela durante minhas trepadas, acordo excitado por algum sonho erótico protagonizado por ela e ainda tenho que aguentar os questionamentos de Kyra e de Chicão sobre o motivo pelo qual eu e Samara não nos falamos mais.

— Tudo bem? — Laura me toca o ombro, fazendo com que eu desperte dos devaneios sobre Samara.

— Tudo. — Retiro a camisinha e a jogo no lixo. — Preciso ir, já está amanhecendo.

— Eu sei.

Ela sorri, doce e compreensiva, e eu respiro fundo, sabendo que estou fazendo merda. Primeiro, por ela ser funcionária da Karamanlis, e segundo, por eu estar fazendo sexo com ela há duas semanas.

Nunca fico tanto tempo com alguém. Para falar a verdade, não me lembro da última vez que mantive uma única parceira, mas, por algum motivo, tenho andado preguiçoso, sem vontade de sair e, como trepei com ela e gostei, achei mais simples continuar.

Despeço-me dela apenas com um aceno de cabeça. Laura me acompanha até a porta de seu apartamento, e eu desço até o térreo, onde minha moto está estacionada em frente à portaria do prédio.

Sigo para o Castellani, mas a cabeça continua a vagar por lembranças dessas longas seis semanas desde o baile dos Villazzas. Tanta coisa aconteceu dentro e fora da Karamanlis, ainda assim senti o tempo passar lentamente.

No trabalho, as coisas começaram a ficar mais intensas, apesar de começo de ano sempre ser mais devagar. Com a conta da Ethernium, tive que mobilizar boa parte dos profissionais para elaborar croquis baseados na planta da siderúrgica e as áreas que foram aparecendo. A volta de Kika à empresa foi providencial, pois ela nos apresentou uma ideia que facilitou muito a vida de todos.

Eu ainda estou surpreso por Theodoros ter colocado a gerente dos hunters e meu irmão trabalhando juntos, pois isso não é algo do perfil do meu irmão mais velho. Foi então que, conversando ao telefone com Millos, descobri que tinha dedo dele nessa história.

A ideia de os dois trabalharem juntos não surgiu na reunião preliminar do projeto, mas foi algo que Theodoros e Millos combinaram assim que souberam que ela iria voltar para a empresa. Agora, conhecendo Millos como conheço, só me pergunto o que, especificamente, meu primo pretendeu ao dar essa sugestão.

Esperei que os dois se matassem desde a primeira semana juntos, ainda mais depois que Theodoros viajou, mas não, aparentemente tudo tem transcorrido bem entre os dois, e a conta da Ethernium parece estar em boas mãos.

Em casa, com a presença de Chico, que ainda está por lá, tenho sempre companhia para jogar bilhar, videogame ou para corridas aos finais de semana. Decidi não participar de nenhum campeonato este ano, nem de moto, nem de carro, pois o trabalho iria consumir muito de minha equipe, e eu não sou o tipo de chefe que deixa seus funcionários se fodendo de trabalhar e sai cedo para treinar ou viajar. Não sou profissional por isso, não consigo me dedicar integralmente às corridas, embora goste muito delas. Vejo-as com um hobby, assim como os esportes e outras atividades que uso para ocupar minha cabeça.

Entro na garagem do prédio, paro a moto e, assim que tiro o capacete, paro em seco ao ver Samara.

— Bom dia — ela me cumprimenta, sem parar para falar comigo e sem olhar para trás.

Confiro as horas no relógio e estranho que ela esteja saindo tão cedo de casa.

— Algum problema? — pergunto preocupado.

Samara para e me olha.

— Não. — Abre o carro, mas me aproximo antes que entre. — O que foi, Alexios? — sua voz é impaciente, e eu percebo que o clima estranho está de volta.

— Como está sua mãe?

Ela franze a testa, ajeita o cabelo e ri amarga.

— Teve que se encontrar casualmente comigo para lembrar que minha mãe está doente? — Balança a cabeça. — Sempre soube que você era desligado com as coisas, Alexios, mas na verdade é um egoísta.

Suas palavras cheias de mágoa me acertam. Aperto a mão no capacete, ciente de que ela tem razão. Eu poderia tê-la procurado, ter ligado, ter sido o amigo que ela merecia, mas, em vez disso, escolhi me afastar e deixá-la sozinha com seus problemas.

Sim, além de covarde, um grande egoísta!

— Você tem razão. — Aceno. — Bom dia.

Dou a volta e sigo em direção ao elevador, achando-me ainda mais desprezível do que sempre me achei.

— Ela está melhorando — a voz de Samara ecoa na garagem, e eu paro. — A quimioterapia está tendo os resultados esperados, e os médicos estão confiantes.

Viro-me para olhá-la, ainda parada do lado de fora do carro, com a porta do motorista aberta.

— Eu sinto muito por não ter ligado antes. — Ela dá de ombros como se não se importasse, mas sei que se importa; eu me importaria. — Você tem razão sobre eu ser um egoísta, você merecia um amigo melhor.

Samara bufa e, sem dizer nada, entra no carro, fecha a porta e liga o motor. Instantes depois, vejo-a passar por mim sem dizer nada e me sinto um bundão. Subo para meu apartamento e, assim que entro, encontro Chicão no meio da sala, usando apenas uma cueca, meditando.

— Que visão do inferno! — sacaneio e sigo para meu quarto.

— Bom dia, embuste! — saúda-me sem ao menos abrir os olhos. — Você deveria tentar, pelo visto nem suas trepadas diárias estão conseguindo mantê-lo relaxado, então, quem sabe a meditação...

— Nem fodendo! — grito para ele e sigo para o banheiro.

Somente quando fecho a porta é que toda a armadura se vai. Fico parado, olhando para o espelho, tentando analisar além da aparência que todos veem. Eu sou um filho da puta egoísta e imbecil, um impostor, uma fraude gigante que perambula pela cidade sem nem mesmo saber quem é.

Anjo dos Karamanlis! Engenheiro filantropo! Chefe preocupado com funcionários... tudo mentira!

Retiro a roupa, jogando-a no cesto de roupa suja antes de me enfiar debaixo da água gelada do chuveiro. Gostaria que, da mesma forma que essa água consegue limpar meu exterior, pudesse fazer o mesmo dentro de mim. Sou tão vazio e frio quanto meu irmão do meio e tão arrogante e egoísta quanto Theodoros. Sou tão louco quanto Nikkós!

Doeu-me ver e ouvir a mágoa que causei em Samara, mas é somente isso que causo nas pessoas. Decepção! Eu não mereço sua amizade e nem estar perto dela. A raiva de mim mesmo explode como há muitos anos não a sinto. Sem pensar, soco o vidro do boxe, que se espatifa e desaba sobre mim.

A porta do banheiro é aberta com um estrondo, e um apavorado Chicão aparece, olhos arregalados, olhando a destruição que causei ao meu banheiro.

— Merda, Alexios! — Ele salta em minha direção sem se preocupar com os cacos de vidro pelo chão e tenta me tirar do boxe. — Porra, sai daí.

Nego, o sangue escorrendo pelo ralo do banheiro, minha mão ardendo, assim como meus braços e os pés. Não me movo, apenas tremo, tentando ainda conter toda a fúria dentro de mim.

— Sai daí, Alex, você está ferido, porra! — Chicão grita.

— Não! — Não me movo. — Eu sou um lixo! Ele nunca deveria ter me pegado no lixo onde me encontrou, deveria ter me deixado morrer, deveria...

— Para com essa merda! — Some para dentro do meu quarto e, quando volta, está calçando meus coturnos. — Você não vai mais fazer isso, ouviu?

Chicão entra no que restou do boxe, desliga a água, joga uma toalha sobre meu corpo e me ergue. Não consigo reagir, a cabeça girando, todos os insultos e histórias sobre mim que ouvi de Nikkós por tantos anos enchendo meus ouvidos, torturando-me mais uma vez, ressaltando o quanto sou desprezível.

— Você não vai fazer isso consigo mesmo de novo, ouviu?! — Chicão esbraveja, fazendo pressão com a toalha de rosto na minha mão. — Ele te machucou, você se machucou, mas essa merda já acabou faz tempo. Ele não pode mais, Alexios, nem te tocar e nem contar mentiras a você. Chega!

Nego.

— Eu sinto tanta raiva... — Meus dentes batem um no outro, e eu os travo. Minha vontade é de gritar, socar, foder com tudo.

— Eu sei, já passamos por isso antes, e eu... — ele baixa o tom de voz e expira — achei que já tinha superado.

— Como? — questiono-lhe. — Como posso esquecer, se continuo a ser a mesma pessoa desprezível de sempre? Não são as marcas que ele causou no meu corpo que me causam essa raiva, sou eu!

— O que aconteceu?

Nego, trêmulo e me sento na cama. Gemo ao sentir as dores dos cortes, percebendo que a adrenalina passou mais rápido do que antigamente. Eu aprendi a controlar a dor usando a raiva. Durante anos de espancamento, percebi que, quanto mais raiva eu sentisse, menos dor ele me causava. Mais tarde, quando sentia raiva por qualquer motivo, eu mesmo me machucava, levava-me ao limite do meu corpo e quase me destruía.

Era um círculo vicioso que eu achei que já havia passado, mas, aparentemente, não.

— Encontrei Samara na garagem, provavelmente indo se encontrar com sua mãe e levá-la ao hospital — confesso, cansado demais para guardar qualquer coisa. — Eu não a via há semanas, desde o baile dos Villazzas no Ano Novo.

— Eu também só a vi uma vez aqui no prédio...

— Eu não liguei, não procurei por ela, não justifiquei meu ato e nem meu sumiço — interrompo-o e o encaro. — Ela está magoada comigo.

Chicão confere o sangramento da mão, tirando a toalha e depois se senta ao meu lado na cama.

— Por que você fez isso? Sumiu e não a procurou?

Respiro fundo; comecei o assunto, agora preciso terminá-lo.

— Preferi me afastar. — Olho para baixo, envergonhado. — Eu quase trepei com ela no elevador aqui do prédio. — Fecho os olhos. — Eu a quis como mulher, não consegui reprimir a vontade, como sempre fiz, e agi feito um idiota excitado.

— Ela o repeliu?

— O quê?

— Samara o repeliu? Te xingou? Bateu em você? Disse que você abusou dela? Mandou que ficasse longe?

Lembro-me daquela noite, a forma como reagiu ao beijo, o jeito que gemia e parecia tão excitada quanto eu.

— Ela estava bêbada, me aproveitei dela, sou um canalha.

— Nisso concordamos, mas o que ela pensa sobre o acontecido?

Balanço os ombros.

— Não sei, não falo com ela desde então. — Lembro-me da conversa com Kyra no dia seguinte ao baile e praguejo. — Ela está noiva.

— Samara? — Assinto. — Que merda!

— É, o beijo foi uma merda enorme, e eu não sei como...

— Não, seu idiota! — Ele estapeia minha cabeça. — Que merda que Samara esteja noiva, ela é a mulher perfeita para você.

Olho-o como se ele estivesse louco.

— Claro que não, ela merece alguém muito melhor do que eu! Samara nunca cogitou qualquer tipo de relacionamento comigo a não ser o de amizade.

Chicão bufa.

— Você não é idiota, Alexios Karamanlis, é um burro!

Ele joga a toalha, manchada de sangue, no chão do quarto e sai puto comigo ou com alguma coisa que eu disse. Ele não entende, óbvio! Samara é... especial, e alguém especial como ela nunca se relacionaria com alguém tão ordinário como eu.

Olho para minha mão e rio ao pensar na bagunça que sou.

Obviamente ela nunca se relacionaria e nem deveria se relacionar com alguém tão fodido como eu.

 

— O que houve com sua mão? — Laura me pergunta de repente, assustando-me, pois eu nem mesmo sabia que estava por perto. Encaro-a sem entender como e o que está fazendo aqui na K-Eng. Seu olhar é de assombro aos machucados em minha mão, além de questionadores, o que me irrita um pouco.

— Um pequeno acidente — respondo seco. — O que você está fazendo aqui?

Levanto-me da mesa, agradecendo por não ter mais ninguém por aqui a essa hora e fico de frente para ela. Laura abre um sorriso sem graça, mas logo se pendura em meu pescoço.

— Tem mais de uma semana que não te vejo, você não liga e nem aparece lá no meu apartamento. Então, se Maomé não vai até a montanha...

Reviro os olhos e retiro as suas mãos de mim.

— Laura, você trabalha na Karamanlis, então já deve ter percebido a movimentação infernal na empresa por conta da Ethernium. — Ela concorda. — Além disso, não entendi o motivo pelo qual eu deveria dar satisfação ou ter regularidade em nossos encontros.

A moça arregala os olhos por causa de minha sinceridade.

— Eu pensei que... — ela suspira — estávamos tendo essa regularidade, afinal, ficamos juntos por umas semanas e...

— Ficamos porque estava gostoso — não tenho medo de ser direto. — Mas não significa que temos qualquer tipo de compromisso. Não sou desses, Laura, e foi a primeira coisa que te disse quando trepamos a primeira vez.

Ela fica um tempo muda, olhando para o nada, então, de repente, abre um sorriso e desliza a mão pelo meu peito.

— Disse. Como disse também que queria trepar mais, lembra? Eu ainda quero mais, Alex — sua voz é ronronante. — Sempre imaginei como seria fazer sexo aqui na sua sala.

Respiro fundo, levemente excitado com o oferecimento, contudo, sem nenhuma vontade de fodê-la aqui – ou em qualquer outro lugar – depois desses questionamentos.

— Infelizmente, eu estou muito ocupado agora, motivo pelo qual ainda estou na empresa quando todos já foram. — Ela faz um biquinho, mas me afasto e volto a me sentar à mesa. — Acho melhor você ir.

Ela bufa.

— Sério isso?

Volto a olhá-la, sem esconder meu desagrado e impaciência, e ela se sobressalta.

— Sério.

Laura fica um tempo me encarando, depois vira as costas e sai da sala, andando firme e visivelmente puta. Balanço a cabeça, repreendendo a mim mesmo por ter deixado as coisas chegarem a esse ponto. Foi muito bom trepar com ela, aposto que a recíproca é verdadeira, porém não imaginei que ela criaria tantas expectativas e se sentisse no direito de vir me cobrar algo.

Erro de cálculo!, penso, sem deixar de pontuar que isso, para um engenheiro, é algo muito perigoso, que pode pôr tudo a perder.

Pego a pequena bola de borracha que tenho usado para exercitar minha mão e reparo nos machucados nela. Os cortes já estão todos secos, e os pontos que tomei em um deles já foram retirados.

Socar o vidro do boxe foi um momento de loucura, como tantos outros por que já passei. Fazia muito tempo que eu não perdia a cabeça daquele jeito, e sei que o que Samara me disse foi o gatilho responsável por isso. Não tiro, em hipótese alguma, a razão dela para me dizer aquelas palavras, mas elas acertaram o alvo na mosca.

Fecho os olhos e tensiono o pescoço, tentando relaxar um pouco para voltar a trabalhar e não enveredar pelos acontecimentos dessa semana, mas ainda não tenho esse controle total da mente e dos meus pensamentos.

A frustração me bate ao me lembrar do almoço com Konstantinos, meu irmão advogado. Achei que, pela primeira vez, ele iria se dispor a me ajudar com as respostas que procuro por anos, mas, ao que parece, ser egoísta e frio é algo familiar.

Mexo na minha agenda de anotações e encontro lá o endereço do sobrado de propriedade de Kostas. A voz da mulher misteriosa que encontrei na porta do Castellani ainda ressoa nítida em meus ouvidos:

“Eu conheci sua mãe biológica. Se quiser respostas, procure pela casa de Madame Linete.”

Foi o encontro mais estranho da minha vida. Ela estava parada lá, olhando o prédio e, quando me viu, logo perguntou se eu era um Karamanlis. Estranhei a pergunta, tentando reconhecer a senhora frágil e de cabelos brancos, mas não precisei responder, pois ela logo disse essas duas frases e se afastou sem me dar a chance de perguntar qualquer coisa mais.

Claro que eu já havia cogitado a ideia de que tinha sido gerado por alguma prostituta daquela maldita casa, afinal, era o local que meu pai mais utilizava. Não deveria ter começado do nada sua amizade com a cafetina asquerosa, mas nunca achei nada que me ligasse àquele local até esse encontro.

Talvez fosse uma pista falsa apenas, mas eu não poderia ignorar mais nada, não enquanto não achasse as respostas que procurei por toda minha adolescência a fim de tirar esse poder das mãos de Nikkós.

Não conhecer meu passado era o suficiente para meu pai ter uma enorme arma psicológica contra mim, coisa que ele utilizou por muitos e muitos anos.

Foi pensando em exterminar todo e qualquer poder que meu pai ainda pudesse ter sobre minha vida que atraí meu irmão para um almoço com a desculpa de falar da conta na qual estávamos trabalhando em conjunto.

Confesso que estranhei quando ele aceitou sem que eu tivesse que recorrer a inúmeros subterfúgios, mas agradeci a boa sorte, e nos encontramos em um restaurante neutro, escolhido a esmo, embora de alta gastronomia.

Achei que seria difícil introduzir o assunto, principalmente porque ele iria saber que pesquisei o maldito imóvel e descobri que ele o comprou há anos, quando foi a leilão. Isso me surpreendeu, claro, saber que ele comprou o sobrado e que ainda o mantém de pé sem nenhuma modificação ou uso. O assunto não surgiu naturalmente. Kostas estava estranho, mesmo falando de negócios, o que me surpreendeu, pois sempre imaginei que ele fosse se aproveitar da distância de Millos e Theo para tentar assumir a empresa.

— Eu acho que temos um acordo implícito de não falarmos sobre o passado — decidi não ser mais sutil, e Kostas reagiu imediatamente:

— Não é implícito. Não quero falar do passado. Mais explícito que isso, impossível!

Eu sabia que não seria fácil, ele é tão fechado quanto eu, então precisei desarmá-lo. Aproximei-me dele por sobre a mesa do restaurante e abaixei o tom de voz:

— Dessa vez, não poderei acatar sua vontade, Konstantinos. Sei que você comprou o sobrado da Rua...

Kostas levantou-se.

— Perdi a fome, vou voltar para a empresa.

Pus-me de pé também e o vi caminhar na direção da saída do restaurante, mas não ia desistir, não quando já havia agitado o vespeiro.

— Eu nunca te pedi ajuda. — Meu irmão parou, mas não se virou para me olhar. Decidi continuar por essa linha de ação: sinceridade. — Eu não podia te ajudar, então nunca pedi ajuda também.

— Alexios, não faça isso...

Eu soube que atingi o ponto certo, pois podia sentir a tensão no seu corpo. Nós dois temos consciência do que passamos na mão do nosso pai e de tudo que fizemos para que a loucura de Nikkós ficasse longe de Kyra. Kostas não aguentou por muito tempo, e eu o entendo, mas fiquei lá sozinho, lutando contra o monstro, tentando proteger minha irmã, mesmo sem ninguém para fazer o mesmo por mim.

Nunca tinha pensado em lhe cobrar, mas situações extremas pedem medidas extremas.

— Eu preciso, senão não faria. Há chances de eu descobrir o que Nikkós fez com minha mãe.

Fiquei satisfeito ao vê-lo se virar completamente surpreso.

— Sua mãe? Você soube algo dela?

— Nada conclusivo, mas acabei cruzando com uma pessoa que, quando soube que eu era filho dele, disse tê-la conhecido.

— Isso é loucura! Você procurou durante sua adolescência toda, quase se matou por isso, não há pistas, não há nomes, não há nada!

Lembranças de anos e anos de buscas vãs me fizeram titubear por alguns instantes. Eu não tinha um ponto de partida na época, pois ela podia ser qualquer pessoa, mas, naquele momento, eu tinha a maldita pista do imóvel.

— Preciso acessar o sobrado — voltei a falar, mas Kostas negou. — Preciso entrar e remexer tudo lá.

— Não!

— Foda-se, eu vou! — Soquei a mesa, decidido, puto demais por estar ali pedindo ajuda a ele pela primeira vez e não ser compreendido. Eu sempre o entendi, sempre o justifiquei quando saiu do apartamento e foi viver sua vida. Quando descobri que o sobrado lhe pertencia, nunca pensei em questionar seus motivos, apenas o entendi. Não era justo não ter o mesmo tratamento e consideração. — Eu sei que, por algum motivo bizarro, você o comprou, trancou-o com tudo dentro e o tem deixado apodrecendo por mais de 15 anos! Pode ter alguma pista lá.

— Não é seguro. Não vou arriscar que você morra lá dentro e eu ainda tenha que responder a...

Caralho de desculpa mais esfarrapada!

— Porra, Kostas, não fode! — Perdi a paciência, circundei a mesa e me aproximei dele, disposto a jogar pesado. — Eu sei dos teus motivos, respeito-os. Como disse, nunca te pedi ajuda antes porque sabia que você também precisava e não tinha a quem pedir, mas agora estou pedindo, agora estou contando com você. Não me faça arrombá-lo, porque eu o farei, apenas dê-me as chaves de todas aquelas grades que pôs lá.

Vi-o pensar, achei mesmo que eu estivesse tocando em alguma parte ainda viva de seu corpo, talvez no menino que conheci quando chegou para morar conosco, mas não, ao que parecia, meu irmão havia virado a porra de uma rocha fria e sem sentimentos.

— Tente invadir. Será um prazer implodir aquela merda com tudo dentro!

A mera possibilidade de ele destruir a única pista que tive do meu passado me desconsertou. Kostas aproveitou-se do momento e foi embora do restaurante.

Fiquei um tempo parado, até que ouvi um leve pigarrear e vi os garçons chegando com nossos pedidos. Estava sem fome, um bolo havia se formado em minha garganta, então pedi que embrulhassem tudo e deixei as quentinhas com o primeiro morador de rua que achei pelo caminho.

Andei sem rumo, sem saber o que fazer ou como agir. Tinha aberto meu peito para ele, pedira ajuda pela primeira vez e recebera um sonoro não. Senti algo inédito pelo meu irmão, raiva. Kostas nunca fora o alvo da minha revolta, pois sempre o compreendi, mas naquele momento não podia mais entendê-lo, não quando eu poderia ter respostas para acabar com minha tortura.

Sair de casa ajudou meu irmão a dar fim ao poder de Nikkós sobre sua vida, mas o mesmo não aconteceu comigo, e, enquanto eu não souber sobre o meu passado, não poderei tirar do homem que me gerou a possibilidade de voltar a me ferir.

O som de mensagem no celular me faz deixar de lado essas lembranças, e eu leio a mensagem de minha irmã me convidando para jantar com ela.


“Kyra, ainda estou na empresa, não poderei ir.”


Envio a mensagem esperando que seja suficiente, mas não é.


“Uma hora você precisará comer, e eu não tenho nenhuma intenção de jantar cedo. Venha no horário que puder, esperarei você.”


Merda, ela sabe ser insistente!


“Ok.”


Olho para o monitor do computador, respiro fundo e desisto de trabalhar. Minha barriga ronca, e decido aceitar o convite inesperado de minha irmã. Antes, porém, olho novamente o endereço do sobrado e traço um plano para invadi-lo sem que Konstantinos tome conhecimento.

As respostas que busco sobre mim mesmo podem ser achadas lá; não vou desistir tão fácil assim de encontrá-las. Nunca desisti fácil de nada, essa não será a primeira vez.

Imediatamente a imagem de Samara aparece em minha mente, e eu bufo, chamando-me de hipócrita. Claro que já desisti fácil de algo, eu só não gostava de admitir isso por não me achar sequer digno dela.

Quem sabe se eu achar as...

Interrompo o pensamento antes de criar ilusões que só serviriam para me machucar. Não há possibilidade de eu tê-la, mesmo que tenha todas as respostas da minha vida. Samara nunca estará ao meu alcance, e, sinceramente, acho bom que não haja nenhum envolvimento entre nós.

Ela merece mais!


Pego mais um copo de café e volto a me sentar ao lado de Daniel, sacudindo a perna, bebericando ou soprando a bebida quente. Olho para o corredor e, sem nem mesmo consumir metade do café, levanto-me para pegar um copo d’água.

Volto a me sentar, as pernas agitadas, confundo os copos e dou uma golada no café fumegante.

— Merda!

Daniel põe a mão no meu joelho e me obriga a parar de sacudir a perna.

— Se você não sossegar agora, juro que te ponho para fora — ele me ameaça.

— Desculpa. — Sorrio sem jeito. — Estou nervosa com os resultados desse primeiro ciclo de quimio e acho que deveríamos ter entrado com ela para saber mais...

— Nosso pai entrou com ela, Samara. Sossegue, você está me deixando irritado parecendo uma criança ansiosa! — Daniel fala alto, e eu o encaro surpresa. — Desculpa. — Ele põe a mão na cabeça e esfrega os olhos. — Eu quase não dormi essa noite, mas você não tem nada a ver com meu mau humor.

— Ela vai ficar bem, Dani. — Ponho minha mão em seu ombro.

— Eu sei que vai! Nunca tive dúvidas disso.

Respiro fundo e concordo com ele, embora não tenha a mesma confiança que ele demonstra ter.

Têm sido dias difíceis desde que cheguei ao Brasil, mas em momento algum me dei a oportunidade de esmorecer perto deles. A cada medicação, mamãe tinha reações mais fortes, requerendo tanto cuidado e atenção que decidi desistir de morar no meu apartamento e voltei para a casa dos meus pais.

Confesso que essa decisão também me ajudou a manter distância de Alexios Karamanlis. Não que eu ache que em algum momento ele tenha notado minha ausência ou se importado com isso, mas para mim fez toda a diferença.

É aquele ditado, sabe? O que os olhos não veem...

Suspiro.

— Você foi incrível nesses dias, Samara — Daniel volta a falar. — Mamãe esteve muito mais à vontade com você por perto do que comigo.

— Não fala besteira, Dani! — Ele sorri, sabendo que é o xodó da mamãe. — Eu gostei de ter conseguido ajudar e estar com ela de novo.

— Ela também ado... — ele para de falar assim que vê nossos pais vindo até onde estamos. Levantamo-nos juntos, apreensivos, esperançosos, e o sorriso de mamãe é reconfortante.

— O que o médico disse? — indago assim que eles se aproximam.

— O medicamento fez o efeito esperado para esse primeiro ciclo. Agora é esperar o tempo de descanso para começar de novo. — Mamãe sorri.

— E a radioterapia? — Dani questiona, e ela dá de ombros.

— O doutor ainda não prescreveu — papai responde. — Vamos torcer para que a quimio resolva sem precisar da rádio! — Ele sorri e abraça mamãe pelos ombros. — Em breve você terá sua vida agitada de volta.

Ela suspira cansada.

— Bom, vamos todos almoçar para comemorar o fim desse primeiro degrau rumo à vitória! — tento animar a todos, mas só meu pai sorri. — Ah, gente, vamos lá! Mamãe?

Ela assente e olha para Daniel.

— Você não está cansada? — meu irmão pergunta a ela.

— Não, podemos ir!

Bato palmas e a beijo na testa.

Eu entendo o desânimo dela, seria cruel não entender, pois, ainda que todos estejamos empenhados em seu tratamento, é ela quem passa por todos os efeitos colaterais dos medicamentos e pela doença. Mamãe nunca foi uma mulher parada ou passiva, e depender de outras pessoas deve estar sendo uma verdadeira prova para ela.

Foram semanas difíceis, não nego. Fiquei totalmente à disposição de minha mãe, levando-a às consultas e às sessões, fazendo companhia a ela, amparando-a em momentos de indisposição e dor. Godofredo e eu nos mudamos para a mansão da família, e eu mal tive tempo para ir ao Castellani ou mesmo visitar amigos.

Kyra esteve várias vezes conosco, geralmente após o expediente de trabalho, quando não tinha eventos. Daniel e Bianca, sua noiva, também estiveram presentes nos jantares e almoços de finais de semana, e, claro, papai.

Sorrio ao pensar em como é bom ter meu pai por perto. Ele e eu temos muitas afinidades, então, passamos muito tempo conversando, vendo filmes ou ouvindo música. Mamãe prefere ler sozinha em seu quarto à noite, por isso faço esses programas todos com papai.

Assim, o mês de janeiro se foi, e fevereiro entrou com força total com a finalização do primeiro ciclo de quimio da mamãe e o inesperado convite de Daniel para que eu trabalhe na empresa com ele.

— Dani, eu sou designer de interiores. Já trabalhei decorando mansões, apartamentos, iates e até um motor home, mas nunca fiz nada empresarial. — Fiz careta ao lhe responder. — É tudo muito frio.

— É um hotel — ele logo me informou. — Vamos redecorar um enorme hotel.

Meus olhos brilharam.

— Ele vai seguir algum padrão já existente? É um hotel de rede?

Ele nega.

— Não. É uma casa de campo que está virando hotel. — Arregalei os olhos. — O projeto de reforma é da Karamanlis, e a executora da obra é a Novak.

— K-Eng? — inquiri baixinho, e ele suspirou.

— É, mas quem está acompanhando é um dos braços direitos do seu amigo.

Havia muitos dias eu já não pensava no Alexios e nem no beijo do Ano Novo. Não foi o primeiro que trocamos depois de umas bebidas, então eu não devia lhe dar tanta importância, embora reconhecesse que ter me afastado do Castellani ajudou muito a manter distância dele. Alexios e eu já não somos mais amigos!

A perspectiva de trabalhar em um projeto como aquele enquanto eu estivesse no Brasil era maravilhosa, mesmo com a possibilidade de encontrar o CEO da K-Eng eventualmente.

— Aceito olhar o projeto e conversar sobre o briefing, só isso. — Daniel sorriu satisfeito. — Se eu puder executar meu trabalho sem a interferência de pessoas que nada entendem de decoração, pego para fazer; do contrário, estou fora.

— É assim que se fala! Você vai amar o projeto de reforma, ficar cheia de ideias, e tenho certeza de que os responsáveis pelo empreendimento vão adorar seu trabalho.

O projeto realmente estava incrível, e a ideia de como os donos queriam a decoração dos quartos e áreas comuns me deixou louca para começar o trabalho. Aceitei a proposta, negociei sob a garantia da Schneider e fechei um belo negócio aqui no meu país.

Penso no meu trabalho na Espanha e Diego me vem à cabeça. Entro no carro, no banco do carona, ao lado de Daniel e suspiro.

— O que foi? — meu irmão pergunta, seguindo o carro do papai para fora do estacionamento.

— Estava pensando no Diego.

— Vocês têm se falado?

— Sim, por mensagens. — Balanço a cabeça. — Não sei mais o que fazer para ele entender que não estou tendo nenhum tipo de crise por conta do tratamento da mamãe. Eu fui sincera com ele quando terminei. Não foi certo fazer por vídeo, mas eu não podia mais me sentir enganando-o.

— Eu entendo você, embora não goste nada do motivo que a levou a isso.

— Não tem nada a ver com Alexios, nós nem temos nos visto. Eu pensei em ir até a Espanha para conversar melhor com Diego, mas acabei de pegar esse projeto enorme e não posso me ausentar por agora. Além disso, ele está seguindo o time na Champions...

— Não sei se é boa ideia você ir atrás dele. Acho-o um tanto insistente demais. Concordo que não foi certo terminar por vídeo-ligação, mas depois disso vocês conversaram várias vezes, e o homem não para de insistir.

Eu concordo, mas ao mesmo tempo me sinto culpada.

— Sim. Mesmo assim sinto que lhe devo uma explicação.

Paramos no farol, e ele me olha.

— Você quer retornar para Madri mesmo depois desse término?

Respiro fundo e dou de ombros.

—Sim, trabalho em uma ótima empresa lá, então, por que não voltar?

Meu irmão ri.

— Isso é você quem tem que responder a si mesma. — Ele me puxa para perto e beija o topo da minha cabeça. — A decisão é sua; certa ou errada, cabe a você decidir o que fazer.

— Eu sei.

Sorrio, mesmo com minha cabeça fervendo de perguntas sem respostas, mesmo sem entender o que eu quero e por onde devo ir.

Fui para a Espanha para fugir de um sentimento que parecia não ter fim, mesmo diante da impossibilidade de se tornar algo real, e acabei fazendo amigos e criando laços por lá, mas é aqui que minha família e meus amigos estão. A decisão não é fácil!

Quanto a Alexios... o sentimento não morreu, obviamente, porém não guardo mais nenhuma ilusão com relação a ele. Sempre serei vista como a grande amiga e nada mais.


— Alexios está esquisito essa semana — Kyra comenta.

Eu rio e bebo mais um gole do vinho.

— Quando ele não foi esquisito? — debocho.

— Exatamente, a esquisitice dele não me surpreende, mas essa semana ele está mais esquisito. — Presto atenção ao que Kyra diz, pois minha amiga não costuma exagerar, pelo contrário. — Eu sei que ele está em um ritmo frenético de trabalho, mas, quando falei com ele ontem, achei-o um tanto...

— Esquisito — complemento, e Kyra revira os olhos ante minha brincadeira. — Kyra, seu irmão é a pessoa mais fechada do mundo, você sabe. Mesmo que ele esteja com merda até nos ouvidos, precisa quase se afogar nela para pedir ajuda ou falar com alguém.

Ela assente, e nós duas ficamos mudas. Eu me lembro de quando tomei conhecimento, pela primeira vez, do que eles viviam com o pai. Alexios telefonou para minha casa pedindo para que eu subisse até a cobertura, pois precisava de um favor. Não pensei duas vezes e fui até ele pensando que queria ajuda com algum jogo ou matéria – história nunca foi o seu forte –, mas, quando o vi, mal conseguia me mover.

Ele estava todo machucado nas costas. Os cortes eram verdadeiros talhos, de onde saía muito sangue, e eu tive que respirar fundo várias vezes para não vomitar.

— Samara, preciso que você seja dura agora — ele me disse com a voz calma, com toda sua sabedoria de 15 anos de idade.

— O que você quer que eu faça? — perguntei temerosa, já prevendo que ele me pediria para limpar e fazer curativos.

O problema era que, por conta do tamanho e da profundidade dos cortes, curativos não seriam o bastante. Ele ergueu uma agulha curva com um enorme pedaço de linha preta.

— Costure.

Neguei várias vezes com a cabeça, incapaz de abrir a boca sem derramar todo o lanche que havia acabado de tomar, mas ele me olhava suplicante. Percebi que, mesmo sentindo dor, ele tentava não demonstrar.

— Você precisa de um médico!

— Não. — Ele ergueu a agulha novamente. — Preciso de você.

Peguei o metal curvado. Minhas mãos tremiam, o queixo também. Era possível ouvir o som dos meus dentes batendo forte um contra o outro. Não entendia o que estava acontecendo, o motivo pelo qual ele estava daquele jeito e não ia até um hospital.

Eu mal sabia bordar, e somente a possibilidade de machucá-lo ainda mais me apavorava.

— Se fosse em outro local, eu juro que não pediria isso a você, mas eu não consigo suturar as costas sozinho.

Foi então que percebi que não era a primeira vez.

— O que foi isso, Alexios?

Ele sorriu tentando me despistar, mas depois suspirou.

— Caí em cima da mesinha de centro da sala lá de cima. — Apontou para o segundo piso da cobertura. — Ela era toda espelhada, por isso me cortei.

— Caiu?

Ele não respondeu, apenas virou-se de costas para mim e começou a me dizer o que fazer.

— A agulha já está desinfetada, e eu tomei banho, mas ainda assim preciso que você passe esse antisséptico, limpe bem o sangue e comece a costurar. — Ouvi o som de sua risada. — Pense que sou um dos seus tecidos finos e delicados de almofada e borde em mim.

Bufei com a comparação.

— Não achei graça nenhuma!

Foi um longo processo, mas cumpri com o que ele pediu e somente anos depois é que entendi tudo aquilo, inclusive a história esfarrapada do “caí por cima da mesa”.

Fiz muitos favores como esse para ele por muito tempo ainda. Aprendi a costurar sua pele, a recolocar seus ossos no lugar quando se deslocavam e até mesmo a imobilizar alguma parte de seu corpo. Porém, mesmo estando ao lado dele em todos esses momentos dolorosos, Alexios só me contou que era o pai que o espancava depois que saiu de casa com Kyra.

Eu sofri tanto por pensar nas atrocidades que eles viveram, porque minha amiga até reclama do irmão, mas são farinha do mesmo saco. Não faço ideia de como Nikkós a afetou, mas é certo que ela não foi poupada da loucura do pai.

— Ei, Samara no mundo da lua! — Kyra me cutuca. — Está pensando em quê? Perguntei por Diego, e você ainda nem me respondeu o que ficou decidido.

— Nada de diferente. — Ela cruza os braços. — Temos conversado bastante por mensagens, mas ele parece não aceitar que acabou. Diz que estou em crise e que, assim que puder, virá ao Brasil.

— Para quê?

— Conversar pessoalmente. — Fecho os olhos. — Gostaria tanto que tudo fosse diferente, sabe? Que eu pudesse gostar dele da forma como deveria.

— E por que não pode? — Olho para Kyra, e ela entende a resposta. — Uma merda isso! Então você não vai voltar para Madri mais?

Penso em Diego e em todo esse tempo em que estivemos juntos, recordo-me de como me senti feliz ao lado dele e do escritório maravilhoso de design em que trabalhei durante esses anos. Ele tem alegado isso, que estou confusa por estar longe, com medo de mudar de vez para Madri e ficar longe da minha família. Não é isso! Ter voltado ao Brasil mexeu, sim, com meus sentimentos, principalmente quebrou a ilusão de que eu tinha esquecido Alexios. Por isso ainda penso em voltar a morar na Espanha, mas não quero mais me enganar e enganar outra pessoa no percurso.

— Eu gostaria de ter essa resposta, Kyra — volto a falar. — Gostaria de saber o que é melhor para mim, mas não sei. Aqui há tantos motivos para eu ficar, como também para que eu vá, mas ainda estou indecisa.

— Eu sei. — Ela sorri compreensiva.

A campainha do apartamento dela soa alto. Estranho, porque ela não me disse que teríamos companhia, mas, por sua reação, Kyra já estava à espera de alguém.

— Talvez o motivo de sua indecisão tenha chegado agora.

Arregalo os olhos com a possibilidade de ser Alexios.

— Kyra, o que você... — não termino de formular a frase, pois minha amiga abre a porta, e o vejo olhá-la com um sorriso cansado, entrar no apartamento e parar surpreso ao me ver.

— Oi — cumprimento-o.

— Oi. — Ele desvia o olhar para Kyra.

— Vou ver se o jantar já... — ela para de falar e ergue a mão dele. — O que houve?

Os olhos de Alexios não deixam os meus, então ele abre um sorriso lindo – esse é o bendito que ele usa quando quer disfarçar alguma situação séria ou desviar o assunto – e dá de ombros.

— Um pequeno acidente besta, nada importante. — Kyra parece não engolir a desculpa esfarrapada também, mas não insiste, pois conhece o irmão muito bem. — Tem cerveja?

— Claro que tem! Vou pegar umas para você. — Ela aponta para mim. — Faça companhia para a Samara.

Nós dois a olhamos, entendendo que o jantar foi uma armadilha dela para que voltemos a nos falar. Sinceramente não entendo minha amiga. Ela sabe o que sinto e o que Alexios não sente, mas ainda assim insiste em nos manter unidos, mesmo dizendo sempre que seu irmão não é uma boa opção para mim.

Como se um dia ele considerasse me ver como mulher!

— Como estão as coisas com sua mãe? — Alexios puxa assunto de repente e se senta em uma poltrona individual bem longe de onde estou.

— O primeiro ciclo de quimioterapia acabou, e ela está bem — respondo seca. — E você, como está?

Ele abre o maldito sorriso fingido.

— Ótimo! Cheio de trabalho, sem tempo para fazer bobagens...

— Não parece. — Aponto para sua mão. — Achei que seus momentos de fúria já tivessem passado desde que começou a praticar esportes. — Ele fica sério. — Por falar nisso, vi o Chicão lá no prédio esses dias. Ele está hospedado contigo?

— Está, como sempre. — Alexios olha para trás, na direção da cozinha de Kyra e respira fundo. — Eu queria pedir desculpas novamente por...

— Não precisa — interrompo-o antes que eu seja obrigada a socar sua cara.

— Preciso — ele insiste. — Kyra me contou sobre seu relacionamento — meu coração dispara ao ouvi-lo falar sobre isso como se não tivesse importância alguma. — Espero que ele seja o homem que você merece e que sejam muito felizes como você sempre sonhou.

Engulo em seco, abro um sorriso – fervendo de raiva da Kyra – e digo a primeira coisa que me vem à cabeça:

— Ele é! — minto, e Alexios fica sério, seus olhos claros fixos nos meus. — Um verdadeiro príncipe como sempre sonhei.

— Quem bom. — Ele se levanta. — Vou até a cozinha pegar a cerveja, estou morrendo de sede.

Acompanho-o com os olhos e, quando desaparece da minha vista, gemo e me dou um tapa na cabeça. Que ridícula! Por que, mesmo sendo tão madura em vários aspectos, sou uma imbecil quando estou perto dele? Parece até que estou de volta ao aniversário de 18 anos da Kyra, quando saímos nós três para comemorar, e eu fiquei com um babaca total só porque Alexios pegou uma das garçonetes da pizzaria.

Não sou mais essa garota!

Alexios e Kyra voltam para a sala, ele, bebendo uma longneck, e minha amiga, com uma travessa na mão.

— Escondidinho de camarão, como vocês dois sempre gostaram — ela anuncia.

— O cheiro está incrível! — elogio, levantando-me do sofá e indo ajudá-la. — Há muitos anos não sinto algo tão delicioso!

— Eu também não — Alexios fala perto de mim.

Os pelos do meu corpo se arrepiam todos por causa do som de sua voz e seu hálito no meu pescoço. Viro-me para ele, sem entender o motivo pelo qual está tão próximo de mim e me surpreendo por um instante ao decifrar seu olhar: fome, e não é de comida.

Balanço a cabeça, achando impossível que seu olhar esfomeado seja para mim e me afasto dele, indo posicionar os pratos como Kyra me ensinou a fazer tempos atrás.

— Andou treinando? — minha amiga brinca ao me ver executar com perfeição seu ensinamento.

— Sim, fiz alguns jantares em Madri — conto orgulhosa. — Recebi poucas pessoas, a maioria amigos, e fiz questão de colocar em prática tudo o que você me ensinou...

— E que você achava que era bobagem! — Ela ri e olha para Alexios. — Uma arquiteta de interiores deve, no mínimo, saber montar uma mesa, não acha?

Alexios franze a testa, pensa um momento e depois concorda.

— Pregar pregos na parede, fazer arranjos florais, pintar um quadro... — Kyra fica séria, e ele começa a rir. — Há profissionais para isso, Kyra, Samara é responsável pelos layouts de móveis e projetos de planejados, não precisa saber fazer tudo!

Kyra parece estupefata, e, confesso, eu também estou, porque geralmente os dois se uniam para brincar ou me provocar, e agora ele acabou de me defender!

Alexios parece ficar sem jeito com o silêncio e dá uma enorme golada, até pôr fim ao conteúdo da garrafinha de cerveja, em seguida volta para a cozinha.

— O que está rolando? — Kyra me pressiona.

— Não sei do que...

— Samara, sem essa de “não sei do que você está falando”. Não nasci ontem, percebi que vocês estão estremecidos. Achei que tinha sido por conta dos anos longe, mas achei que isso ia passar depois do baile, mas então Alexios aparece aqui mais perdido do que cachorro que caiu da mudança e se recusa a falar o que aprontou contigo na virada do ano! — Aproxima-se. — Conte-me já!

Nem em sonho!

— Não há nada para contar.

Alexios retorna, e sua irmã avança para ele igual a um anjo vingador.

— O que está rolando entre vocês dois? — Ela põe a mão na cintura. — Sempre fomos amigos! Éramos um trio, estivemos juntos nos piores momentos de nossa infância e adolescência, parem já com qualquer merda que estiverem fazendo!

— Quanto você bebeu? — Alexios debocha. — Nada está acontecendo, não é?

 

CONTINUA

Kyra sempre foi exuberante, beleza herdada de sua mãe, devo acrescentar, pois Sabrina ainda continua tão linda quanto era na época em que era casada com Nikkós. Contudo, minha irmã ainda recebeu alguns belos traços dos Karamanlis, principalmente da famosa giagiá15, que todos sempre fazem questão de dizer que era linda e tinha a mesma coloração de olhos da minha irmã (e minha também, só que os Karamanlis nunca engoliram bem que eu realmente tenha o sangue nobre deles).

No papel, Kyra e eu somos filhos dos mesmos pais, pois Sabrina me adotou legalmente quando eu ainda era um garotinho. Ela, por poucos meses, possuía a diferença de idade obrigatória pela lei entre nós (16 anos) e, por isso, conseguiu, aos 18, adotar-me aos dois anos. Logo em seguida nasceu a Kyra, e a família ficou completa.

Na verdade, eu nunca soube da minha mãe. Tentei descobrir algo durante a adolescência, principalmente por ser esse um dos pontos que meu sádico pai adorava usar contra mim. Inventar uma história nova a cada dia sobre meu nascimento, minha origem, era sua principal diversão e tortura psicológica.

Nunca entendi nada sobre mim, a única certeza que tenho é de que, infelizmente, sou mesmo filho dele, algo que comprovei através de exame de DNA, cujo resultado positivo nunca divulguei, porque eu tinha esperança de não ter o sangue daquele monstro.

Volto a prestar atenção na foto, dessa vez em meu próprio rosto cheio de enfado por estar naquele baile com elas. Sorrio. Eu fazia esse tipo, mas a verdade é que adorava cada momento que passávamos juntos, pois me sentia em família de verdade.

Ponho a moldura no lugar e respiro fundo, controlando meu corpo, colocando juízo na minha cabeça, ressaltando tudo o que tem de importante na amizade entre mim e Samara e concluindo que um envolvimento fora desses termos entre nós só serviria para destruir anos e anos de companheirismo.

Samara merece ser feliz com alguém que possa ser o homem com que ela sempre sonhou, o príncipe encantado dos seus sonhos de menina, alguém que saiba quem é, que tenha valor e que possa demonstrar todo o amor que sente por ela e reconheça o privilégio que é ser amado.

Esse homem não sou eu!

 

Depois do banho na casa de Kyra, fui direto para a empresa. É providencial ter uma mochila de roupas minhas no apartamento dela, mas confesso que não vou muito de jeans e camisa de malha para a Karamanlis.

Passei no Castellani apenas para pegar minha moto, nem me atrevi a subir até meu apartamento, sendo covarde mais uma vez. A questão é que eu não saberia nem mesmo o que dizer a Samara caso nos encontrássemos de novo.

Estava saindo do estacionamento quando meu celular tocou, mas, como já estava sobre a moto – e não queria demorar muito na garagem, porque o carro de Samara ainda estava na vaga dela –, deixei para conferir a ligação quando estivesse no prédio, o que faço agora, retornando a ligação.

— Oi, Chicão! — cumprimento-o assim que atende.

— Alex, seu grande safado, feliz Ano Novo! — o homem mais velho, que se tornou um grande amigo e a quem eu considero como um pai – no sentido do que realmente um pai deveria ser – por pouco não me ensurdece ao telefone. — Cheguei ao inferno hoje, queria saber se poderia passar uns dias lá naquele seu apartamento cinco estrelas.

Abro um sorriso de felicidade ao pensar que ele está de volta a São Paulo. Francisco Salatiel Figueiroa é o nome dessa figura de quase 60 anos, paulistano – mas que odeia sua cidade natal – e viciado em esportes radicais assim como eu.

Nós nos conhecemos quando eu ainda estava no colégio, devia ter uns 15 anos e fui participar de um racha de moto pela cidade. Ele apareceu por lá, chamou-me em um canto e me convidou a fazer cross ao invés de colocar minha vida e a de outras pessoas em risco correndo pelas ruas.

Comecei a ir para o os circuitos de motocross, tomei muito tombo, enlameei-me até o pescoço e me senti mais vivo do que quando me arriscava nos rachas. Nós nos tornamos amigos mesmo com nossa gritante diferença de idade, pois ele dizia que eu lembrava o moleque atentado que ele mesmo tinha sido um dia, e comecei a acompanhá-lo em suas atividades.

Foi por causa dele que deixei de buscar alívio e fuga nas drogas, pois conseguiu me mostrar que, se eu quisesse me livrar de Nikkós, teria que ser melhor que ele. Não foi um processo fácil, admito, levei anos para entender e ouvir seus conselhos, mas nem por isso ele desistiu de mim ou se afastou.

Francisco começou a me mostrar que eu poderia extravasar toda minha angústia, solidão, medo e revolta em esportes como trilhas de moto, bike, escaladas, voos livres, paraquedismo e, quando tirei minha carteira de motorista, apresentou-me a alguns amigos dos circuitos de motovelocidade.

Os esportes aliviavam meu corpo da tensão vivida em casa, mas minha cabeça e minha alma continuavam pesadas, então, um dia, ele me viu desenhar e descobriu como eu poderia tratar os demônios dentro de mim.

Devo muito a ele, não só pelo equilíbrio que consegui hoje em minha vida, como também por permanecer vivo e são. Samara e ele foram os únicos a permanecerem ao meu lado nos piores momentos da minha vida, ela me auxiliando principalmente com Kyra, e ele entendendo meus problemas e me ajudando a achar soluções.

— Meu apartamento é seu! Te dei a chave, afinal.

— Eu sei, mas é sempre bom dar uma conferida, vai que você resolveu sossegar seu pau numa boceta só.

Gargalho com seu jeito rude e direto.

— Não, meu pau ainda gosta de explorar por aí. — Ele me chama de “vadio” e ri. — Estou na Karamanlis agora e...

— Ah, me diz que estou sonhado... — estranho o que ele fala, escuto vozes ao fundo e percebo que não falou comigo. Espero que ele retome a ligação, entro no elevador, cumprimento as pessoas com a cabeça e sorrio para uma mulher gostosa que nunca vi aqui no prédio. — Seu trapaceiro de uma figa! Samara está de volta e, caramba, mais linda do que nunca.

Só de ouvir o nome dela, sinto meu corpo reagir como se uma descarga elétrica tivesse me atingido.

— Encontrou-se com ela agora?

— Sim, seu embuste! Quantos anos ela esteve fora? Caralho, você já a viu?

Franzo a testa, desço no meu andar, confuso com a perplexidade dele apenas por ter visto a Samara no prédio, afinal, ele sabe muito bem que ela tem um apartamento lá.

— Já, desde que chegou — respondo distraído, acenando para os funcionários da K-Eng. — Por quê?

— Alexios, eu sempre me perguntei se você era cego ou apenas muito burro. — Ouço o barulho de uma porta se fechando. — Nunca entendi por que vocês dois nunca tiveram nada um com o outro.

Paro no meio do corredor, atraindo os olhares de pelo menos dois engenheiros que passam por mim. Que merda é essa?!

— Ela é minha amiga — digo o óbvio.

— Ela é incrível e sua amiga, isso já não é meio caminho para um relacionamento de sucesso?

Um alerta dispara em meu cérebro. Chicão nunca foi um homem ligado a relacionamentos permanentes, tanto que é solteiro até hoje, então não entendo o motivo pelo qual está falando essas coisas sobre mim e Samara.

— Chicão, sou eu! Eu não tenho relacionamentos, eu fodo por aí, só isso. E, definitivamente, Samara não é uma mulher apenas para se foder.

Ele emite um grunhido, e, ao fundo, escuto o bipe da minha cafeteira sendo ligada.

— Nisso concordamos. Mas ela é incrível, sempre foi, se eu tivesse a sua idade e a sua aparência, não perderia a oportunidade de tê-la comigo.

Mas o que... Arregalo os olhos, e meu coração dispara.

— Você está morrendo? — inquiro-lhe como se fosse a única opção válida para essa mudança de comportamento.

Chicão gargalha.

— Não, mas estou ficando velho e sozinho. — Bufa. — Mas isso não é assunto para discutirmos ao telefone, já que você está na empresa.

— Chicão, está tudo bem?

— Vai trabalhar, embuste, depois conversamos. Viajei a noite toda, quero tomar um banho, comer algo e dormir um pouco. Obrigado pelo abrigo.

Ele ainda não me convenceu, algo está errado.

— A casa é sua! — declaro, e ele encerra a ligação.


— Quer mais um travesseiro? — pergunto à minha mãe assim que ela se deita na cama.

— Não, filha, estou bem. — Sorri, mas o cansaço não permite que o faça por muito tempo. — É sempre assim no dia da medicação, mas passa.

Balanço a cabeça concordando, enternecida por ela estar tentando me consolar, quando é ela quem está passando por isso tudo. Sempre a admirei por sua força, seu destemor e a capacidade de realizar qualquer coisa que se propunha a fazer.

Mamãe não tem um gênio fácil de lidar, mas nunca negou amor e afeto aos seus filhos, mesmo sendo brava e exigente como era. Dani e eu tínhamos muito mais medo dela do que do papai, que sempre foi mais maleável, mas moderno e liberal.

O relacionamento dos meus pais, enquanto casal, não era um mar de rosas, mas eles eram amigos, companheiros. Ele sempre a apoiou em tudo, e ela acima de tudo o admirava. Não tinham grandes arroubos de paixão, pelo menos não na nossa frente, mas se respeitavam, conversam, riam e, principalmente, nos amavam muito. Dani, como filho e mais velho, sempre foi agarrado a minha mãe mais do que a nosso pai. Os dois se dão bem, são muito parecidos em alguns aspectos, mas quem sempre teve mais afinidade com papai fui eu.

Acho que nossas almas são parecidas. Ambos somos apaixonados pelas formas, perfeccionistas, românticos e, arrisco dizer, sonhadores. Eu sou assim, gostaria de ser prática como mamãe, mas há muito que parei de tentar ser quem não sou. Demorei, mas consegui aceitar meu jeito e me respeitar acima de tudo.

É dolorido tentar ser quem não é para se encaixar ou seguir uma tendência. Eu sou forte, mesmo sendo doce; sou feminista, mesmo sendo feminina e vaidosa; sou empoderada, mesmo sonhando em casar e ter uma família.

Eu me importo com a opinião alheia, sim, porque ninguém é uma ilha e não teria sentido na vida se todos fôssemos autossuficientes e não dependêssemos de ninguém. Não tenho preconceitos, sou feliz com a felicidade dos outros e não me importo que a recíproca não seja verdadeira. Cada um escolhe o caminho que quer percorrer. Eu escolhi ser assim, exatamente como sou.

Chegar até essa conclusão não foi fácil, principalmente quando se percebe que o homem por quem você é apaixonada prefere as mulheres que têm atitude, que são furacão e não calmaria. Eu quis fazer tipo e percebi que estava indo na contramão de tudo o que uma “mulher de atitude” prega, que estava tentando ser outra pessoa para agradar a um homem.

Foi aí que aquela máxima tão clichê, mas que é tão difícil de ser vivida, fez sentido para mim: quem me amar, precisa me conhecer e me aceitar como sou.

Demorei a perceber a importância disso, precisei praticamente ter isso esfregado na cara. Então arrumei minhas malas, disse ao meu pai que não iria para Barcelona, mas sim para Madri, e segui com minha vida.

Alexios foi o estopim que eu precisava para explodir naquela época, depois de ter aparecido no meu apartamento bêbado a ponto de não se aguentar de pé. Ele pediu para dormir no meu sofá, tivemos uma dura discussão quando tentei lhe passar sermão e, no meio da noite, acordei com ele na minha cama.

Fiquei sem reação quando senti sua mão na minha cintura, alisando minha pele por cima do pijama de seda. Fechei os olhos, excitada e ansiosa, e o deixei prosseguir com a exploração. Não o impedi quando me virou, nem quando me beijou e subiu em cima de mim. Tinha esperado por aquilo a vida toda, e estava acontecendo.

Ledo engano!

Ele ficou imóvel, esmagando-me com seu peso, então percebi que havia dormido. Joguei-o para o lado e passei a noite em claro, sem entender nada, esperando que ele acordasse e explicasse.

Acabei dormindo e acordando sozinha na cama. Ele tinha ido embora, e não conversamos, mas esperei que a conversa viesse mais tarde. Não veio. Ele simplesmente ignorou o beijo, as carícias, como se não fossem nada, como se eu não fosse nada.

Fiquei irritada, subi para perguntar diretamente a ele o motivo pelo qual tinha me beijado, mas, quando cheguei ao seu apartamento, estava rolando uma de suas festinhas regada a bebidas e sexo, e o filho da mãe estava sentado no sofá com uma mulher de cada lado em um beijo triplo.

Ele nem me viu, fechei a porta, desci e decidi parar de protelar minhas decisões esperando por algo que nunca iria acontecer. Um relacionamento com Alexios era uma ilusão infantil, mas eu já não era mais criança.

Viajei dois dias depois e pensei que, quando voltasse, toda essa ilusão teria se desfeito.

— Então o nome dele é Diego — mamãe fala, e eu quase pulo de susto, deixando as lembranças para tentar entender do que ela está falando. — Diego Vergara!

Sento-me na beirada da cama, curiosa sobre como ela conseguiu essa informação.

— O nome dele é mais comprido do que isso, mas, sim, Diego Vergara.

Ela sorri cheia de sabedoria.

— E você deve estar aí querendo saber como eu sei o nome dele. — Concordo. — Seu irmão me contou.

Daniel e sua boca! Meu irmão sempre foi o maior X9 do mundo, não é de se espantar que tenha contado sobre o Diego para minha mãe.

— Há quanto tempo estão juntos?

Não sei o que dizer a ela e agradeço quando uma enfermeira entra no quarto, dando-me a desculpa perfeita para escapulir de sua curiosidade. O fato é que tudo mudou depois da noite do baile dos Villazzas.

Não sei o que levou Alexios a me beijar daquela forma no elevador, eu estava bem bêbada dessa vez, mas ele não tanto, além disso, eu senti a energia entre nós, senti o tesão que ele exalava, que trazia na saliva e em cada toque no meu corpo. Alexios não escondeu em nenhum momento o quanto estava excitado, esfregou sua ereção contra mim, esmagou-me contra o espelho do elevador parecendo que queria me comer ali mesmo.

Depois, do nada, mudou. Pediu desculpas! Desculpas por me beijar! Só faltou dizer que estava com tesão, e eu era a única mulher próxima dele, mas que nem assim servia.

Para piorar, quando entrei no apartamento e peguei o celular, vi uma mensagem de Diego dizendo o quanto sentia minha falta e como ele gostaria de poder estar aqui comigo. Foi a gota d’água! Senti-me um lixo, uma pessoa má que engana e trai e percebi que tê-lo deixado na Espanha sem uma resposta definitiva foi uma atitude egoísta.

Chorando, sem pensar direito, fiz uma chamada de vídeo para ele e, quando atendeu, disparei:

— Diego, eu sou uma pessoa horrível, mas não posso fazer isso com você! — Soluçava tanto que ele se assustou e me pediu para falar devagar. Todavia, eu não conseguia. — Você é um homem incrível, um amigo maravilhoso, e eu adorei cada momento que passamos juntos...

— Calmarse, Samara! Yo no comprendo!

— Você merece mais, merece alguém melhor, e eu não posso...

— Usted está me dejando preocupado, cariño.

— Eu não queria fazer isso assim, por telefone. — Ele ficou sério, atento, prevendo o que eu lhe diria. — Mas não é justo que você fique aguardando minha volta para que eu diga isso. — Respirei fundo, armando-me de coragem. — Eu não posso aceitar seu pedido, Diego. Eu não estou pronta para amar você como deveria, como você merece.

— Samara, sucedio algo com su mamá?

Neguei.

— Não. Sou eu, não mereço você. Você tem razão ao dizer que meu coração nunca pôde estar aí contigo.

— Samara, despues hablamos, está muy nervosa. — Tentei dizer a ele que não, mas não me deu oportunidade: — Tengo que ir.

— Diego, não...

Ele encerrou a chamada. Tentei retornar outras vezes, porém a ligação não completava. Deixei mensagens, mas que, até o momento, ele não visualizou. Volto a olhar para mamãe, que boceja, visivelmente cansada, e fecha os olhos, recostada nos travesseiros, enquanto a enfermeira mede sua pressão. Eu voltei ao Brasil apenas por causa dela, para estar ao seu lado nesses momentos tão difíceis, não por qualquer outro motivo. Sinceramente, não esperava essa pressão acerca de Alexios e Diego. Minha família nunca foi assim, muito menos mamãe, que sempre pregou que uma mulher não precisa de marido e filhos para se sentir completa e feliz.

Mamãe adormece, e eu saio do quarto. Quando estou prestes a descer a escada, escuto uma voz conhecida e muito amada:

— Minha Samara está de volta! — Papai está no corredor de braços abertos. Sorrio e vou até ele para abraçá-lo. — Ah, que saudades!

— Eu também estava, mas cheguei há mais de uma semana, e você nem se dignou a vir me ver.

— Eu sei, mas agora vim para ficar, Herzchen16, e estou feliz por te ter de volta aqui em casa. — Ele beija minha testa. — Não pretende voltar para a Espanha, não é?

Suspiro. Papai foi o primeiro a me incentivar a ir estudar fora, mas o único a ficar chateado quando decidi ficar depois que terminei a especialização. Nunca foi me visitar. Embora falássemos sempre, eu percebia que ele ainda não havia entendido minha necessidade de ficar longe.

— Vou voltar, sim, tenho compromissos de trabalho por lá que...

— Besteira! Aposto que você já tem tudo desenhado e organizado e que, em uma visita ou duas, poria fim a esses “compromissos”.

— Papai, não vim para ficar, e o senhor sabe. Mamãe está na parte mais agressiva do tratamento, e Dani precisou de mim para ajudar a cuidar dela e acompanhá-la...

— Estou aqui também! — ele se ofende por não ter sido incluído. — Ela diz que não precisa de mim, mas estou aqui, sempre estive por ela.

Oh, Deus, que situação!

— Eu sei, pai.

Benjamin Abraão Nogueira Klein Schneider nunca entendeu bem a distância fria de mamãe, por mais que os dois sempre tenham se dado bem. Acho até que foi por esse motivo que se afastaram depois que crescemos e que, após minha ida para a Espanha e a de Dani para seu próprio apartamento, papai decidiu se mudar para a fazenda.

Uma vez, quando eu ainda era uma garotinha, eu o vi bêbado no escritório do antigo apartamento em que morávamos. Ele bebia e parecia mal, chorava e segurava alguns documentos. Quando me viu, tentou sorrir e me chamou para perto de si.

— Tudo bem? — perguntei na inocência dos meus oito anos de idade e limpei suas lágrimas.

— Tudo. — Ele guardou a papelada dentro de uma caixa, onde vislumbrei também algumas fotos, trancou-a com chave e depois respirou fundo. — A vida adulta é complicada, Herzchen. Fazemos escolhas baseadas no que achamos ser melhor e esquecemos o preço que isso cobra, tanto aqui — ele apontou para sua cabeça — quanto aqui. — E, por fim, tocou em seu coração.

Na época não entendi nada, mas esse momento nunca deixou minha memória e, com o tempo, supus que ele estivesse falando de seu relacionamento com mamãe. Os dois se davam bem, mas era ele quem sempre cedia numa discussão ou quem corria atrás quando as coisas ficavam tensas entre eles.

— Vi seu bichinho pré-histórico lá no jardim comendo algumas plantas — ele ri, mudando de assunto. — Você poderia ter adotado um cachorro ou um gato como qualquer outra pessoa, não é?

— Pai, eu o ganhei de presente e gosto dele.

— Mas ele é feroz! — Faz cara de medo. — Já me mordeu algumas vezes.

Gargalho.

— Godofredo é muito territorialista, ele sempre ataca os homens.

— Hum, que interessante! Começo a gostar desse bichinho. — Rio do seu ciúme. — Você não trouxe nenhum espanhol junto contigo, não é?

Suspiro.

— Não. E se o Dani disse algo para o senhor também, ele é...

Benjamin me afasta de seus braços, segurando-me pelos ombros, e me olha surpreso.

Merda!

— Ele não disse nada, não é? — pergunto, achando-me idiota.

Meu pai nega:

— Era só uma pergunta brincalhona e especulativa. — Olha em volta. — O que ele deveria me dizer?

— Eu tinha um namorado em Madri, mas ele ficou por lá.

Ele põe a mão sobre o peito.

— Adorei esse tempo verbal: “eu tinha um namorado”. — Rio. — Agora você terá que me contar sobre esse tal...

— Ele me pediu em casamento — disparo. — Mas eu não pude aceitar.

Ficamos um tempo um olhando para o outro, parados no corredor, sem emitir um som sequer. Papai sempre foi bom ouvinte e dava bons conselhos. Mesmo não sendo muito de falar sobre como se sentia, mesmo reservado em seus sentimentos, até mesmo com seus filhos, ele sabia ouvir sem julgar e só opinava quando achava necessário, o contrário de mamãe.

— Preciso de um café ou de algo mais forte — confessa, e eu rio nervosa. — Vou falar com sua mãe e...

— Ela acabou de dormir — informo-lhe.

— Certo! — Respira fundo. — Se lembra daquele seu namorado da faculdade? — Gemo e assinto. — Você tinha dúvidas quanto ao caráter dele e, mesmo com todos os seus instintos te alertando que algo não estava bem, você aceitou o namoro e...

— Meus instintos estavam certos, ele era um pilantra filho da puta casado!

— E eu quis castrá-lo. — Ele sorri doce, como se isso não fosse nada. — Enfim, o meu conselho para essa questão sempre é: siga seus instintos. Se você não se achava pronta para aceitar o pedido, então fez certo ao recusá-lo.

— Então, você acha que eu fiz certo ao ouvir meu coração?

Ele ri e nega.

— Não, eu disse para ouvir seus instintos, porque seu coração não tem juízo. — Eu rio, achando que ele está fazendo troça, mas, então, ele completa: — Já se apaixonou uma vez por Alexios Karamanlis!

Fico séria, coração disparado, porque, embora ele saiba de todos os meus namorados e experiências, nunca contei a ele sobre Alexios.

Era óbvio para todos, não sei como consegui enganar a mim mesma! Eu ainda amo aquele safado!


— Alexios? — Termino de calçar os tênis antes de me virar para olhar Laura deitada na cama. — Já vai?

Ela se contorce languidamente, seu corpo curvilíneo, dourado de sol se mexendo contra os macios e perfumados lençóis de sua cama. Sorrio, deslizo a mão pela curva de seu lindo rabo e desfiro um tapa nele, fazendo-a rir.

— Preciso ir, tenho reuniões importantes agora de manhã na empresa, e, com a viagem de Theodoros para a Grécia e a demora na volta de Millos, as coisas ficaram acumuladas entre mim e o Kostas.

Ela bufa e se senta.

— Eu sei, ontem eles me passaram as informações sobre a propriedade no Rio de Janeiro, da reunião que tiveram na quinta-feira. — Ela dá de ombros. — Achei que Kika ia aparecer cheia de gás na sexta-feira, mas nem ela e nem seu irmão apareceram na empresa.

— A área é boa mesmo? — pergunto, pois apenas vi algumas imagens do local, e, como Laura é do geoferenciamento, deve ter detalhes bem específicos.

Ela confirma.

— O pessoal do jurídico está alvoroçado, e fiquei sabendo que o Leo, o braço direito da Kika, pediu para o pessoal acelerar com as outras áreas, porque gostaram muito da do Rio. — Laura me abraça pelos ombros e lambe minha orelha. — Falando em acelerar, adorei aquela rapidinha ontem na sala de servidores.

Eu rio, mas balanço a cabeça.

— Você jogou sujo comigo. — Levanto-me da cama, e a safada senta-se na beirada do colchão, os peitos cheios e rosados, as coxas musculosas bem abertas. Porra! — Goza para mim! — ordeno, e ela não se faz de rogada, tocando-se sem nenhum pudor. Vou até uma das luminárias, acendo-a e tenho a visão perfeita de sua boceta totalmente depilada já molhada de tesão.

Foda-se!

Apenas abro o cinto da calça, baixo o fecho e saco meu pau para fora. Pego uma camisinha em cima de seu criado-mudo, e ela ri quando avanço até onde está.

— De costas!

Ela se deita de bruços, e eu me agacho para entrar em uma única investida. Fecho os olhos, concentrando-me nas sensações, excitado com seus gemidos, mas, de repente, sinto um cheiro diferente, os sons mudam, e um rosto doce, sorridente, de lindos olhos castanhos aparece em minha mente.

Xingo alto, querendo expulsar a imagem de Samara, aumento as estocadas até sentir as pernas arderem e gozo sem ao menos saber se minha parceira teve seu prazer.

Caralho!

Afasto-me dela e apoio as mãos contra o aparador, colocando a culpa das súbitas aparições de Samara em minha mente na distância que impus entre nós depois daquele beijo no elevador. Claro que, se ela não tivesse se mudado para a casa da mãe, certamente essa distância não seria tão dura, afinal, eu poderia encontrá-la casualmente pelos corredores do Castellani, mas quem disse que a sorte gosta de mim?

Agora, além de ter visões dela durante minhas trepadas, acordo excitado por algum sonho erótico protagonizado por ela e ainda tenho que aguentar os questionamentos de Kyra e de Chicão sobre o motivo pelo qual eu e Samara não nos falamos mais.

— Tudo bem? — Laura me toca o ombro, fazendo com que eu desperte dos devaneios sobre Samara.

— Tudo. — Retiro a camisinha e a jogo no lixo. — Preciso ir, já está amanhecendo.

— Eu sei.

Ela sorri, doce e compreensiva, e eu respiro fundo, sabendo que estou fazendo merda. Primeiro, por ela ser funcionária da Karamanlis, e segundo, por eu estar fazendo sexo com ela há duas semanas.

Nunca fico tanto tempo com alguém. Para falar a verdade, não me lembro da última vez que mantive uma única parceira, mas, por algum motivo, tenho andado preguiçoso, sem vontade de sair e, como trepei com ela e gostei, achei mais simples continuar.

Despeço-me dela apenas com um aceno de cabeça. Laura me acompanha até a porta de seu apartamento, e eu desço até o térreo, onde minha moto está estacionada em frente à portaria do prédio.

Sigo para o Castellani, mas a cabeça continua a vagar por lembranças dessas longas seis semanas desde o baile dos Villazzas. Tanta coisa aconteceu dentro e fora da Karamanlis, ainda assim senti o tempo passar lentamente.

No trabalho, as coisas começaram a ficar mais intensas, apesar de começo de ano sempre ser mais devagar. Com a conta da Ethernium, tive que mobilizar boa parte dos profissionais para elaborar croquis baseados na planta da siderúrgica e as áreas que foram aparecendo. A volta de Kika à empresa foi providencial, pois ela nos apresentou uma ideia que facilitou muito a vida de todos.

Eu ainda estou surpreso por Theodoros ter colocado a gerente dos hunters e meu irmão trabalhando juntos, pois isso não é algo do perfil do meu irmão mais velho. Foi então que, conversando ao telefone com Millos, descobri que tinha dedo dele nessa história.

A ideia de os dois trabalharem juntos não surgiu na reunião preliminar do projeto, mas foi algo que Theodoros e Millos combinaram assim que souberam que ela iria voltar para a empresa. Agora, conhecendo Millos como conheço, só me pergunto o que, especificamente, meu primo pretendeu ao dar essa sugestão.

Esperei que os dois se matassem desde a primeira semana juntos, ainda mais depois que Theodoros viajou, mas não, aparentemente tudo tem transcorrido bem entre os dois, e a conta da Ethernium parece estar em boas mãos.

Em casa, com a presença de Chico, que ainda está por lá, tenho sempre companhia para jogar bilhar, videogame ou para corridas aos finais de semana. Decidi não participar de nenhum campeonato este ano, nem de moto, nem de carro, pois o trabalho iria consumir muito de minha equipe, e eu não sou o tipo de chefe que deixa seus funcionários se fodendo de trabalhar e sai cedo para treinar ou viajar. Não sou profissional por isso, não consigo me dedicar integralmente às corridas, embora goste muito delas. Vejo-as com um hobby, assim como os esportes e outras atividades que uso para ocupar minha cabeça.

Entro na garagem do prédio, paro a moto e, assim que tiro o capacete, paro em seco ao ver Samara.

— Bom dia — ela me cumprimenta, sem parar para falar comigo e sem olhar para trás.

Confiro as horas no relógio e estranho que ela esteja saindo tão cedo de casa.

— Algum problema? — pergunto preocupado.

Samara para e me olha.

— Não. — Abre o carro, mas me aproximo antes que entre. — O que foi, Alexios? — sua voz é impaciente, e eu percebo que o clima estranho está de volta.

— Como está sua mãe?

Ela franze a testa, ajeita o cabelo e ri amarga.

— Teve que se encontrar casualmente comigo para lembrar que minha mãe está doente? — Balança a cabeça. — Sempre soube que você era desligado com as coisas, Alexios, mas na verdade é um egoísta.

Suas palavras cheias de mágoa me acertam. Aperto a mão no capacete, ciente de que ela tem razão. Eu poderia tê-la procurado, ter ligado, ter sido o amigo que ela merecia, mas, em vez disso, escolhi me afastar e deixá-la sozinha com seus problemas.

Sim, além de covarde, um grande egoísta!

— Você tem razão. — Aceno. — Bom dia.

Dou a volta e sigo em direção ao elevador, achando-me ainda mais desprezível do que sempre me achei.

— Ela está melhorando — a voz de Samara ecoa na garagem, e eu paro. — A quimioterapia está tendo os resultados esperados, e os médicos estão confiantes.

Viro-me para olhá-la, ainda parada do lado de fora do carro, com a porta do motorista aberta.

— Eu sinto muito por não ter ligado antes. — Ela dá de ombros como se não se importasse, mas sei que se importa; eu me importaria. — Você tem razão sobre eu ser um egoísta, você merecia um amigo melhor.

Samara bufa e, sem dizer nada, entra no carro, fecha a porta e liga o motor. Instantes depois, vejo-a passar por mim sem dizer nada e me sinto um bundão. Subo para meu apartamento e, assim que entro, encontro Chicão no meio da sala, usando apenas uma cueca, meditando.

— Que visão do inferno! — sacaneio e sigo para meu quarto.

— Bom dia, embuste! — saúda-me sem ao menos abrir os olhos. — Você deveria tentar, pelo visto nem suas trepadas diárias estão conseguindo mantê-lo relaxado, então, quem sabe a meditação...

— Nem fodendo! — grito para ele e sigo para o banheiro.

Somente quando fecho a porta é que toda a armadura se vai. Fico parado, olhando para o espelho, tentando analisar além da aparência que todos veem. Eu sou um filho da puta egoísta e imbecil, um impostor, uma fraude gigante que perambula pela cidade sem nem mesmo saber quem é.

Anjo dos Karamanlis! Engenheiro filantropo! Chefe preocupado com funcionários... tudo mentira!

Retiro a roupa, jogando-a no cesto de roupa suja antes de me enfiar debaixo da água gelada do chuveiro. Gostaria que, da mesma forma que essa água consegue limpar meu exterior, pudesse fazer o mesmo dentro de mim. Sou tão vazio e frio quanto meu irmão do meio e tão arrogante e egoísta quanto Theodoros. Sou tão louco quanto Nikkós!

Doeu-me ver e ouvir a mágoa que causei em Samara, mas é somente isso que causo nas pessoas. Decepção! Eu não mereço sua amizade e nem estar perto dela. A raiva de mim mesmo explode como há muitos anos não a sinto. Sem pensar, soco o vidro do boxe, que se espatifa e desaba sobre mim.

A porta do banheiro é aberta com um estrondo, e um apavorado Chicão aparece, olhos arregalados, olhando a destruição que causei ao meu banheiro.

— Merda, Alexios! — Ele salta em minha direção sem se preocupar com os cacos de vidro pelo chão e tenta me tirar do boxe. — Porra, sai daí.

Nego, o sangue escorrendo pelo ralo do banheiro, minha mão ardendo, assim como meus braços e os pés. Não me movo, apenas tremo, tentando ainda conter toda a fúria dentro de mim.

— Sai daí, Alex, você está ferido, porra! — Chicão grita.

— Não! — Não me movo. — Eu sou um lixo! Ele nunca deveria ter me pegado no lixo onde me encontrou, deveria ter me deixado morrer, deveria...

— Para com essa merda! — Some para dentro do meu quarto e, quando volta, está calçando meus coturnos. — Você não vai mais fazer isso, ouviu?

Chicão entra no que restou do boxe, desliga a água, joga uma toalha sobre meu corpo e me ergue. Não consigo reagir, a cabeça girando, todos os insultos e histórias sobre mim que ouvi de Nikkós por tantos anos enchendo meus ouvidos, torturando-me mais uma vez, ressaltando o quanto sou desprezível.

— Você não vai fazer isso consigo mesmo de novo, ouviu?! — Chicão esbraveja, fazendo pressão com a toalha de rosto na minha mão. — Ele te machucou, você se machucou, mas essa merda já acabou faz tempo. Ele não pode mais, Alexios, nem te tocar e nem contar mentiras a você. Chega!

Nego.

— Eu sinto tanta raiva... — Meus dentes batem um no outro, e eu os travo. Minha vontade é de gritar, socar, foder com tudo.

— Eu sei, já passamos por isso antes, e eu... — ele baixa o tom de voz e expira — achei que já tinha superado.

— Como? — questiono-lhe. — Como posso esquecer, se continuo a ser a mesma pessoa desprezível de sempre? Não são as marcas que ele causou no meu corpo que me causam essa raiva, sou eu!

— O que aconteceu?

Nego, trêmulo e me sento na cama. Gemo ao sentir as dores dos cortes, percebendo que a adrenalina passou mais rápido do que antigamente. Eu aprendi a controlar a dor usando a raiva. Durante anos de espancamento, percebi que, quanto mais raiva eu sentisse, menos dor ele me causava. Mais tarde, quando sentia raiva por qualquer motivo, eu mesmo me machucava, levava-me ao limite do meu corpo e quase me destruía.

Era um círculo vicioso que eu achei que já havia passado, mas, aparentemente, não.

— Encontrei Samara na garagem, provavelmente indo se encontrar com sua mãe e levá-la ao hospital — confesso, cansado demais para guardar qualquer coisa. — Eu não a via há semanas, desde o baile dos Villazzas no Ano Novo.

— Eu também só a vi uma vez aqui no prédio...

— Eu não liguei, não procurei por ela, não justifiquei meu ato e nem meu sumiço — interrompo-o e o encaro. — Ela está magoada comigo.

Chicão confere o sangramento da mão, tirando a toalha e depois se senta ao meu lado na cama.

— Por que você fez isso? Sumiu e não a procurou?

Respiro fundo; comecei o assunto, agora preciso terminá-lo.

— Preferi me afastar. — Olho para baixo, envergonhado. — Eu quase trepei com ela no elevador aqui do prédio. — Fecho os olhos. — Eu a quis como mulher, não consegui reprimir a vontade, como sempre fiz, e agi feito um idiota excitado.

— Ela o repeliu?

— O quê?

— Samara o repeliu? Te xingou? Bateu em você? Disse que você abusou dela? Mandou que ficasse longe?

Lembro-me daquela noite, a forma como reagiu ao beijo, o jeito que gemia e parecia tão excitada quanto eu.

— Ela estava bêbada, me aproveitei dela, sou um canalha.

— Nisso concordamos, mas o que ela pensa sobre o acontecido?

Balanço os ombros.

— Não sei, não falo com ela desde então. — Lembro-me da conversa com Kyra no dia seguinte ao baile e praguejo. — Ela está noiva.

— Samara? — Assinto. — Que merda!

— É, o beijo foi uma merda enorme, e eu não sei como...

— Não, seu idiota! — Ele estapeia minha cabeça. — Que merda que Samara esteja noiva, ela é a mulher perfeita para você.

Olho-o como se ele estivesse louco.

— Claro que não, ela merece alguém muito melhor do que eu! Samara nunca cogitou qualquer tipo de relacionamento comigo a não ser o de amizade.

Chicão bufa.

— Você não é idiota, Alexios Karamanlis, é um burro!

Ele joga a toalha, manchada de sangue, no chão do quarto e sai puto comigo ou com alguma coisa que eu disse. Ele não entende, óbvio! Samara é... especial, e alguém especial como ela nunca se relacionaria com alguém tão ordinário como eu.

Olho para minha mão e rio ao pensar na bagunça que sou.

Obviamente ela nunca se relacionaria e nem deveria se relacionar com alguém tão fodido como eu.

 

— O que houve com sua mão? — Laura me pergunta de repente, assustando-me, pois eu nem mesmo sabia que estava por perto. Encaro-a sem entender como e o que está fazendo aqui na K-Eng. Seu olhar é de assombro aos machucados em minha mão, além de questionadores, o que me irrita um pouco.

— Um pequeno acidente — respondo seco. — O que você está fazendo aqui?

Levanto-me da mesa, agradecendo por não ter mais ninguém por aqui a essa hora e fico de frente para ela. Laura abre um sorriso sem graça, mas logo se pendura em meu pescoço.

— Tem mais de uma semana que não te vejo, você não liga e nem aparece lá no meu apartamento. Então, se Maomé não vai até a montanha...

Reviro os olhos e retiro as suas mãos de mim.

— Laura, você trabalha na Karamanlis, então já deve ter percebido a movimentação infernal na empresa por conta da Ethernium. — Ela concorda. — Além disso, não entendi o motivo pelo qual eu deveria dar satisfação ou ter regularidade em nossos encontros.

A moça arregala os olhos por causa de minha sinceridade.

— Eu pensei que... — ela suspira — estávamos tendo essa regularidade, afinal, ficamos juntos por umas semanas e...

— Ficamos porque estava gostoso — não tenho medo de ser direto. — Mas não significa que temos qualquer tipo de compromisso. Não sou desses, Laura, e foi a primeira coisa que te disse quando trepamos a primeira vez.

Ela fica um tempo muda, olhando para o nada, então, de repente, abre um sorriso e desliza a mão pelo meu peito.

— Disse. Como disse também que queria trepar mais, lembra? Eu ainda quero mais, Alex — sua voz é ronronante. — Sempre imaginei como seria fazer sexo aqui na sua sala.

Respiro fundo, levemente excitado com o oferecimento, contudo, sem nenhuma vontade de fodê-la aqui – ou em qualquer outro lugar – depois desses questionamentos.

— Infelizmente, eu estou muito ocupado agora, motivo pelo qual ainda estou na empresa quando todos já foram. — Ela faz um biquinho, mas me afasto e volto a me sentar à mesa. — Acho melhor você ir.

Ela bufa.

— Sério isso?

Volto a olhá-la, sem esconder meu desagrado e impaciência, e ela se sobressalta.

— Sério.

Laura fica um tempo me encarando, depois vira as costas e sai da sala, andando firme e visivelmente puta. Balanço a cabeça, repreendendo a mim mesmo por ter deixado as coisas chegarem a esse ponto. Foi muito bom trepar com ela, aposto que a recíproca é verdadeira, porém não imaginei que ela criaria tantas expectativas e se sentisse no direito de vir me cobrar algo.

Erro de cálculo!, penso, sem deixar de pontuar que isso, para um engenheiro, é algo muito perigoso, que pode pôr tudo a perder.

Pego a pequena bola de borracha que tenho usado para exercitar minha mão e reparo nos machucados nela. Os cortes já estão todos secos, e os pontos que tomei em um deles já foram retirados.

Socar o vidro do boxe foi um momento de loucura, como tantos outros por que já passei. Fazia muito tempo que eu não perdia a cabeça daquele jeito, e sei que o que Samara me disse foi o gatilho responsável por isso. Não tiro, em hipótese alguma, a razão dela para me dizer aquelas palavras, mas elas acertaram o alvo na mosca.

Fecho os olhos e tensiono o pescoço, tentando relaxar um pouco para voltar a trabalhar e não enveredar pelos acontecimentos dessa semana, mas ainda não tenho esse controle total da mente e dos meus pensamentos.

A frustração me bate ao me lembrar do almoço com Konstantinos, meu irmão advogado. Achei que, pela primeira vez, ele iria se dispor a me ajudar com as respostas que procuro por anos, mas, ao que parece, ser egoísta e frio é algo familiar.

Mexo na minha agenda de anotações e encontro lá o endereço do sobrado de propriedade de Kostas. A voz da mulher misteriosa que encontrei na porta do Castellani ainda ressoa nítida em meus ouvidos:

“Eu conheci sua mãe biológica. Se quiser respostas, procure pela casa de Madame Linete.”

Foi o encontro mais estranho da minha vida. Ela estava parada lá, olhando o prédio e, quando me viu, logo perguntou se eu era um Karamanlis. Estranhei a pergunta, tentando reconhecer a senhora frágil e de cabelos brancos, mas não precisei responder, pois ela logo disse essas duas frases e se afastou sem me dar a chance de perguntar qualquer coisa mais.

Claro que eu já havia cogitado a ideia de que tinha sido gerado por alguma prostituta daquela maldita casa, afinal, era o local que meu pai mais utilizava. Não deveria ter começado do nada sua amizade com a cafetina asquerosa, mas nunca achei nada que me ligasse àquele local até esse encontro.

Talvez fosse uma pista falsa apenas, mas eu não poderia ignorar mais nada, não enquanto não achasse as respostas que procurei por toda minha adolescência a fim de tirar esse poder das mãos de Nikkós.

Não conhecer meu passado era o suficiente para meu pai ter uma enorme arma psicológica contra mim, coisa que ele utilizou por muitos e muitos anos.

Foi pensando em exterminar todo e qualquer poder que meu pai ainda pudesse ter sobre minha vida que atraí meu irmão para um almoço com a desculpa de falar da conta na qual estávamos trabalhando em conjunto.

Confesso que estranhei quando ele aceitou sem que eu tivesse que recorrer a inúmeros subterfúgios, mas agradeci a boa sorte, e nos encontramos em um restaurante neutro, escolhido a esmo, embora de alta gastronomia.

Achei que seria difícil introduzir o assunto, principalmente porque ele iria saber que pesquisei o maldito imóvel e descobri que ele o comprou há anos, quando foi a leilão. Isso me surpreendeu, claro, saber que ele comprou o sobrado e que ainda o mantém de pé sem nenhuma modificação ou uso. O assunto não surgiu naturalmente. Kostas estava estranho, mesmo falando de negócios, o que me surpreendeu, pois sempre imaginei que ele fosse se aproveitar da distância de Millos e Theo para tentar assumir a empresa.

— Eu acho que temos um acordo implícito de não falarmos sobre o passado — decidi não ser mais sutil, e Kostas reagiu imediatamente:

— Não é implícito. Não quero falar do passado. Mais explícito que isso, impossível!

Eu sabia que não seria fácil, ele é tão fechado quanto eu, então precisei desarmá-lo. Aproximei-me dele por sobre a mesa do restaurante e abaixei o tom de voz:

— Dessa vez, não poderei acatar sua vontade, Konstantinos. Sei que você comprou o sobrado da Rua...

Kostas levantou-se.

— Perdi a fome, vou voltar para a empresa.

Pus-me de pé também e o vi caminhar na direção da saída do restaurante, mas não ia desistir, não quando já havia agitado o vespeiro.

— Eu nunca te pedi ajuda. — Meu irmão parou, mas não se virou para me olhar. Decidi continuar por essa linha de ação: sinceridade. — Eu não podia te ajudar, então nunca pedi ajuda também.

— Alexios, não faça isso...

Eu soube que atingi o ponto certo, pois podia sentir a tensão no seu corpo. Nós dois temos consciência do que passamos na mão do nosso pai e de tudo que fizemos para que a loucura de Nikkós ficasse longe de Kyra. Kostas não aguentou por muito tempo, e eu o entendo, mas fiquei lá sozinho, lutando contra o monstro, tentando proteger minha irmã, mesmo sem ninguém para fazer o mesmo por mim.

Nunca tinha pensado em lhe cobrar, mas situações extremas pedem medidas extremas.

— Eu preciso, senão não faria. Há chances de eu descobrir o que Nikkós fez com minha mãe.

Fiquei satisfeito ao vê-lo se virar completamente surpreso.

— Sua mãe? Você soube algo dela?

— Nada conclusivo, mas acabei cruzando com uma pessoa que, quando soube que eu era filho dele, disse tê-la conhecido.

— Isso é loucura! Você procurou durante sua adolescência toda, quase se matou por isso, não há pistas, não há nomes, não há nada!

Lembranças de anos e anos de buscas vãs me fizeram titubear por alguns instantes. Eu não tinha um ponto de partida na época, pois ela podia ser qualquer pessoa, mas, naquele momento, eu tinha a maldita pista do imóvel.

— Preciso acessar o sobrado — voltei a falar, mas Kostas negou. — Preciso entrar e remexer tudo lá.

— Não!

— Foda-se, eu vou! — Soquei a mesa, decidido, puto demais por estar ali pedindo ajuda a ele pela primeira vez e não ser compreendido. Eu sempre o entendi, sempre o justifiquei quando saiu do apartamento e foi viver sua vida. Quando descobri que o sobrado lhe pertencia, nunca pensei em questionar seus motivos, apenas o entendi. Não era justo não ter o mesmo tratamento e consideração. — Eu sei que, por algum motivo bizarro, você o comprou, trancou-o com tudo dentro e o tem deixado apodrecendo por mais de 15 anos! Pode ter alguma pista lá.

— Não é seguro. Não vou arriscar que você morra lá dentro e eu ainda tenha que responder a...

Caralho de desculpa mais esfarrapada!

— Porra, Kostas, não fode! — Perdi a paciência, circundei a mesa e me aproximei dele, disposto a jogar pesado. — Eu sei dos teus motivos, respeito-os. Como disse, nunca te pedi ajuda antes porque sabia que você também precisava e não tinha a quem pedir, mas agora estou pedindo, agora estou contando com você. Não me faça arrombá-lo, porque eu o farei, apenas dê-me as chaves de todas aquelas grades que pôs lá.

Vi-o pensar, achei mesmo que eu estivesse tocando em alguma parte ainda viva de seu corpo, talvez no menino que conheci quando chegou para morar conosco, mas não, ao que parecia, meu irmão havia virado a porra de uma rocha fria e sem sentimentos.

— Tente invadir. Será um prazer implodir aquela merda com tudo dentro!

A mera possibilidade de ele destruir a única pista que tive do meu passado me desconsertou. Kostas aproveitou-se do momento e foi embora do restaurante.

Fiquei um tempo parado, até que ouvi um leve pigarrear e vi os garçons chegando com nossos pedidos. Estava sem fome, um bolo havia se formado em minha garganta, então pedi que embrulhassem tudo e deixei as quentinhas com o primeiro morador de rua que achei pelo caminho.

Andei sem rumo, sem saber o que fazer ou como agir. Tinha aberto meu peito para ele, pedira ajuda pela primeira vez e recebera um sonoro não. Senti algo inédito pelo meu irmão, raiva. Kostas nunca fora o alvo da minha revolta, pois sempre o compreendi, mas naquele momento não podia mais entendê-lo, não quando eu poderia ter respostas para acabar com minha tortura.

Sair de casa ajudou meu irmão a dar fim ao poder de Nikkós sobre sua vida, mas o mesmo não aconteceu comigo, e, enquanto eu não souber sobre o meu passado, não poderei tirar do homem que me gerou a possibilidade de voltar a me ferir.

O som de mensagem no celular me faz deixar de lado essas lembranças, e eu leio a mensagem de minha irmã me convidando para jantar com ela.


“Kyra, ainda estou na empresa, não poderei ir.”


Envio a mensagem esperando que seja suficiente, mas não é.


“Uma hora você precisará comer, e eu não tenho nenhuma intenção de jantar cedo. Venha no horário que puder, esperarei você.”


Merda, ela sabe ser insistente!


“Ok.”


Olho para o monitor do computador, respiro fundo e desisto de trabalhar. Minha barriga ronca, e decido aceitar o convite inesperado de minha irmã. Antes, porém, olho novamente o endereço do sobrado e traço um plano para invadi-lo sem que Konstantinos tome conhecimento.

As respostas que busco sobre mim mesmo podem ser achadas lá; não vou desistir tão fácil assim de encontrá-las. Nunca desisti fácil de nada, essa não será a primeira vez.

Imediatamente a imagem de Samara aparece em minha mente, e eu bufo, chamando-me de hipócrita. Claro que já desisti fácil de algo, eu só não gostava de admitir isso por não me achar sequer digno dela.

Quem sabe se eu achar as...

Interrompo o pensamento antes de criar ilusões que só serviriam para me machucar. Não há possibilidade de eu tê-la, mesmo que tenha todas as respostas da minha vida. Samara nunca estará ao meu alcance, e, sinceramente, acho bom que não haja nenhum envolvimento entre nós.

Ela merece mais!


Pego mais um copo de café e volto a me sentar ao lado de Daniel, sacudindo a perna, bebericando ou soprando a bebida quente. Olho para o corredor e, sem nem mesmo consumir metade do café, levanto-me para pegar um copo d’água.

Volto a me sentar, as pernas agitadas, confundo os copos e dou uma golada no café fumegante.

— Merda!

Daniel põe a mão no meu joelho e me obriga a parar de sacudir a perna.

— Se você não sossegar agora, juro que te ponho para fora — ele me ameaça.

— Desculpa. — Sorrio sem jeito. — Estou nervosa com os resultados desse primeiro ciclo de quimio e acho que deveríamos ter entrado com ela para saber mais...

— Nosso pai entrou com ela, Samara. Sossegue, você está me deixando irritado parecendo uma criança ansiosa! — Daniel fala alto, e eu o encaro surpresa. — Desculpa. — Ele põe a mão na cabeça e esfrega os olhos. — Eu quase não dormi essa noite, mas você não tem nada a ver com meu mau humor.

— Ela vai ficar bem, Dani. — Ponho minha mão em seu ombro.

— Eu sei que vai! Nunca tive dúvidas disso.

Respiro fundo e concordo com ele, embora não tenha a mesma confiança que ele demonstra ter.

Têm sido dias difíceis desde que cheguei ao Brasil, mas em momento algum me dei a oportunidade de esmorecer perto deles. A cada medicação, mamãe tinha reações mais fortes, requerendo tanto cuidado e atenção que decidi desistir de morar no meu apartamento e voltei para a casa dos meus pais.

Confesso que essa decisão também me ajudou a manter distância de Alexios Karamanlis. Não que eu ache que em algum momento ele tenha notado minha ausência ou se importado com isso, mas para mim fez toda a diferença.

É aquele ditado, sabe? O que os olhos não veem...

Suspiro.

— Você foi incrível nesses dias, Samara — Daniel volta a falar. — Mamãe esteve muito mais à vontade com você por perto do que comigo.

— Não fala besteira, Dani! — Ele sorri, sabendo que é o xodó da mamãe. — Eu gostei de ter conseguido ajudar e estar com ela de novo.

— Ela também ado... — ele para de falar assim que vê nossos pais vindo até onde estamos. Levantamo-nos juntos, apreensivos, esperançosos, e o sorriso de mamãe é reconfortante.

— O que o médico disse? — indago assim que eles se aproximam.

— O medicamento fez o efeito esperado para esse primeiro ciclo. Agora é esperar o tempo de descanso para começar de novo. — Mamãe sorri.

— E a radioterapia? — Dani questiona, e ela dá de ombros.

— O doutor ainda não prescreveu — papai responde. — Vamos torcer para que a quimio resolva sem precisar da rádio! — Ele sorri e abraça mamãe pelos ombros. — Em breve você terá sua vida agitada de volta.

Ela suspira cansada.

— Bom, vamos todos almoçar para comemorar o fim desse primeiro degrau rumo à vitória! — tento animar a todos, mas só meu pai sorri. — Ah, gente, vamos lá! Mamãe?

Ela assente e olha para Daniel.

— Você não está cansada? — meu irmão pergunta a ela.

— Não, podemos ir!

Bato palmas e a beijo na testa.

Eu entendo o desânimo dela, seria cruel não entender, pois, ainda que todos estejamos empenhados em seu tratamento, é ela quem passa por todos os efeitos colaterais dos medicamentos e pela doença. Mamãe nunca foi uma mulher parada ou passiva, e depender de outras pessoas deve estar sendo uma verdadeira prova para ela.

Foram semanas difíceis, não nego. Fiquei totalmente à disposição de minha mãe, levando-a às consultas e às sessões, fazendo companhia a ela, amparando-a em momentos de indisposição e dor. Godofredo e eu nos mudamos para a mansão da família, e eu mal tive tempo para ir ao Castellani ou mesmo visitar amigos.

Kyra esteve várias vezes conosco, geralmente após o expediente de trabalho, quando não tinha eventos. Daniel e Bianca, sua noiva, também estiveram presentes nos jantares e almoços de finais de semana, e, claro, papai.

Sorrio ao pensar em como é bom ter meu pai por perto. Ele e eu temos muitas afinidades, então, passamos muito tempo conversando, vendo filmes ou ouvindo música. Mamãe prefere ler sozinha em seu quarto à noite, por isso faço esses programas todos com papai.

Assim, o mês de janeiro se foi, e fevereiro entrou com força total com a finalização do primeiro ciclo de quimio da mamãe e o inesperado convite de Daniel para que eu trabalhe na empresa com ele.

— Dani, eu sou designer de interiores. Já trabalhei decorando mansões, apartamentos, iates e até um motor home, mas nunca fiz nada empresarial. — Fiz careta ao lhe responder. — É tudo muito frio.

— É um hotel — ele logo me informou. — Vamos redecorar um enorme hotel.

Meus olhos brilharam.

— Ele vai seguir algum padrão já existente? É um hotel de rede?

Ele nega.

— Não. É uma casa de campo que está virando hotel. — Arregalei os olhos. — O projeto de reforma é da Karamanlis, e a executora da obra é a Novak.

— K-Eng? — inquiri baixinho, e ele suspirou.

— É, mas quem está acompanhando é um dos braços direitos do seu amigo.

Havia muitos dias eu já não pensava no Alexios e nem no beijo do Ano Novo. Não foi o primeiro que trocamos depois de umas bebidas, então eu não devia lhe dar tanta importância, embora reconhecesse que ter me afastado do Castellani ajudou muito a manter distância dele. Alexios e eu já não somos mais amigos!

A perspectiva de trabalhar em um projeto como aquele enquanto eu estivesse no Brasil era maravilhosa, mesmo com a possibilidade de encontrar o CEO da K-Eng eventualmente.

— Aceito olhar o projeto e conversar sobre o briefing, só isso. — Daniel sorriu satisfeito. — Se eu puder executar meu trabalho sem a interferência de pessoas que nada entendem de decoração, pego para fazer; do contrário, estou fora.

— É assim que se fala! Você vai amar o projeto de reforma, ficar cheia de ideias, e tenho certeza de que os responsáveis pelo empreendimento vão adorar seu trabalho.

O projeto realmente estava incrível, e a ideia de como os donos queriam a decoração dos quartos e áreas comuns me deixou louca para começar o trabalho. Aceitei a proposta, negociei sob a garantia da Schneider e fechei um belo negócio aqui no meu país.

Penso no meu trabalho na Espanha e Diego me vem à cabeça. Entro no carro, no banco do carona, ao lado de Daniel e suspiro.

— O que foi? — meu irmão pergunta, seguindo o carro do papai para fora do estacionamento.

— Estava pensando no Diego.

— Vocês têm se falado?

— Sim, por mensagens. — Balanço a cabeça. — Não sei mais o que fazer para ele entender que não estou tendo nenhum tipo de crise por conta do tratamento da mamãe. Eu fui sincera com ele quando terminei. Não foi certo fazer por vídeo, mas eu não podia mais me sentir enganando-o.

— Eu entendo você, embora não goste nada do motivo que a levou a isso.

— Não tem nada a ver com Alexios, nós nem temos nos visto. Eu pensei em ir até a Espanha para conversar melhor com Diego, mas acabei de pegar esse projeto enorme e não posso me ausentar por agora. Além disso, ele está seguindo o time na Champions...

— Não sei se é boa ideia você ir atrás dele. Acho-o um tanto insistente demais. Concordo que não foi certo terminar por vídeo-ligação, mas depois disso vocês conversaram várias vezes, e o homem não para de insistir.

Eu concordo, mas ao mesmo tempo me sinto culpada.

— Sim. Mesmo assim sinto que lhe devo uma explicação.

Paramos no farol, e ele me olha.

— Você quer retornar para Madri mesmo depois desse término?

Respiro fundo e dou de ombros.

—Sim, trabalho em uma ótima empresa lá, então, por que não voltar?

Meu irmão ri.

— Isso é você quem tem que responder a si mesma. — Ele me puxa para perto e beija o topo da minha cabeça. — A decisão é sua; certa ou errada, cabe a você decidir o que fazer.

— Eu sei.

Sorrio, mesmo com minha cabeça fervendo de perguntas sem respostas, mesmo sem entender o que eu quero e por onde devo ir.

Fui para a Espanha para fugir de um sentimento que parecia não ter fim, mesmo diante da impossibilidade de se tornar algo real, e acabei fazendo amigos e criando laços por lá, mas é aqui que minha família e meus amigos estão. A decisão não é fácil!

Quanto a Alexios... o sentimento não morreu, obviamente, porém não guardo mais nenhuma ilusão com relação a ele. Sempre serei vista como a grande amiga e nada mais.


— Alexios está esquisito essa semana — Kyra comenta.

Eu rio e bebo mais um gole do vinho.

— Quando ele não foi esquisito? — debocho.

— Exatamente, a esquisitice dele não me surpreende, mas essa semana ele está mais esquisito. — Presto atenção ao que Kyra diz, pois minha amiga não costuma exagerar, pelo contrário. — Eu sei que ele está em um ritmo frenético de trabalho, mas, quando falei com ele ontem, achei-o um tanto...

— Esquisito — complemento, e Kyra revira os olhos ante minha brincadeira. — Kyra, seu irmão é a pessoa mais fechada do mundo, você sabe. Mesmo que ele esteja com merda até nos ouvidos, precisa quase se afogar nela para pedir ajuda ou falar com alguém.

Ela assente, e nós duas ficamos mudas. Eu me lembro de quando tomei conhecimento, pela primeira vez, do que eles viviam com o pai. Alexios telefonou para minha casa pedindo para que eu subisse até a cobertura, pois precisava de um favor. Não pensei duas vezes e fui até ele pensando que queria ajuda com algum jogo ou matéria – história nunca foi o seu forte –, mas, quando o vi, mal conseguia me mover.

Ele estava todo machucado nas costas. Os cortes eram verdadeiros talhos, de onde saía muito sangue, e eu tive que respirar fundo várias vezes para não vomitar.

— Samara, preciso que você seja dura agora — ele me disse com a voz calma, com toda sua sabedoria de 15 anos de idade.

— O que você quer que eu faça? — perguntei temerosa, já prevendo que ele me pediria para limpar e fazer curativos.

O problema era que, por conta do tamanho e da profundidade dos cortes, curativos não seriam o bastante. Ele ergueu uma agulha curva com um enorme pedaço de linha preta.

— Costure.

Neguei várias vezes com a cabeça, incapaz de abrir a boca sem derramar todo o lanche que havia acabado de tomar, mas ele me olhava suplicante. Percebi que, mesmo sentindo dor, ele tentava não demonstrar.

— Você precisa de um médico!

— Não. — Ele ergueu a agulha novamente. — Preciso de você.

Peguei o metal curvado. Minhas mãos tremiam, o queixo também. Era possível ouvir o som dos meus dentes batendo forte um contra o outro. Não entendia o que estava acontecendo, o motivo pelo qual ele estava daquele jeito e não ia até um hospital.

Eu mal sabia bordar, e somente a possibilidade de machucá-lo ainda mais me apavorava.

— Se fosse em outro local, eu juro que não pediria isso a você, mas eu não consigo suturar as costas sozinho.

Foi então que percebi que não era a primeira vez.

— O que foi isso, Alexios?

Ele sorriu tentando me despistar, mas depois suspirou.

— Caí em cima da mesinha de centro da sala lá de cima. — Apontou para o segundo piso da cobertura. — Ela era toda espelhada, por isso me cortei.

— Caiu?

Ele não respondeu, apenas virou-se de costas para mim e começou a me dizer o que fazer.

— A agulha já está desinfetada, e eu tomei banho, mas ainda assim preciso que você passe esse antisséptico, limpe bem o sangue e comece a costurar. — Ouvi o som de sua risada. — Pense que sou um dos seus tecidos finos e delicados de almofada e borde em mim.

Bufei com a comparação.

— Não achei graça nenhuma!

Foi um longo processo, mas cumpri com o que ele pediu e somente anos depois é que entendi tudo aquilo, inclusive a história esfarrapada do “caí por cima da mesa”.

Fiz muitos favores como esse para ele por muito tempo ainda. Aprendi a costurar sua pele, a recolocar seus ossos no lugar quando se deslocavam e até mesmo a imobilizar alguma parte de seu corpo. Porém, mesmo estando ao lado dele em todos esses momentos dolorosos, Alexios só me contou que era o pai que o espancava depois que saiu de casa com Kyra.

Eu sofri tanto por pensar nas atrocidades que eles viveram, porque minha amiga até reclama do irmão, mas são farinha do mesmo saco. Não faço ideia de como Nikkós a afetou, mas é certo que ela não foi poupada da loucura do pai.

— Ei, Samara no mundo da lua! — Kyra me cutuca. — Está pensando em quê? Perguntei por Diego, e você ainda nem me respondeu o que ficou decidido.

— Nada de diferente. — Ela cruza os braços. — Temos conversado bastante por mensagens, mas ele parece não aceitar que acabou. Diz que estou em crise e que, assim que puder, virá ao Brasil.

— Para quê?

— Conversar pessoalmente. — Fecho os olhos. — Gostaria tanto que tudo fosse diferente, sabe? Que eu pudesse gostar dele da forma como deveria.

— E por que não pode? — Olho para Kyra, e ela entende a resposta. — Uma merda isso! Então você não vai voltar para Madri mais?

Penso em Diego e em todo esse tempo em que estivemos juntos, recordo-me de como me senti feliz ao lado dele e do escritório maravilhoso de design em que trabalhei durante esses anos. Ele tem alegado isso, que estou confusa por estar longe, com medo de mudar de vez para Madri e ficar longe da minha família. Não é isso! Ter voltado ao Brasil mexeu, sim, com meus sentimentos, principalmente quebrou a ilusão de que eu tinha esquecido Alexios. Por isso ainda penso em voltar a morar na Espanha, mas não quero mais me enganar e enganar outra pessoa no percurso.

— Eu gostaria de ter essa resposta, Kyra — volto a falar. — Gostaria de saber o que é melhor para mim, mas não sei. Aqui há tantos motivos para eu ficar, como também para que eu vá, mas ainda estou indecisa.

— Eu sei. — Ela sorri compreensiva.

A campainha do apartamento dela soa alto. Estranho, porque ela não me disse que teríamos companhia, mas, por sua reação, Kyra já estava à espera de alguém.

— Talvez o motivo de sua indecisão tenha chegado agora.

Arregalo os olhos com a possibilidade de ser Alexios.

— Kyra, o que você... — não termino de formular a frase, pois minha amiga abre a porta, e o vejo olhá-la com um sorriso cansado, entrar no apartamento e parar surpreso ao me ver.

— Oi — cumprimento-o.

— Oi. — Ele desvia o olhar para Kyra.

— Vou ver se o jantar já... — ela para de falar e ergue a mão dele. — O que houve?

Os olhos de Alexios não deixam os meus, então ele abre um sorriso lindo – esse é o bendito que ele usa quando quer disfarçar alguma situação séria ou desviar o assunto – e dá de ombros.

— Um pequeno acidente besta, nada importante. — Kyra parece não engolir a desculpa esfarrapada também, mas não insiste, pois conhece o irmão muito bem. — Tem cerveja?

— Claro que tem! Vou pegar umas para você. — Ela aponta para mim. — Faça companhia para a Samara.

Nós dois a olhamos, entendendo que o jantar foi uma armadilha dela para que voltemos a nos falar. Sinceramente não entendo minha amiga. Ela sabe o que sinto e o que Alexios não sente, mas ainda assim insiste em nos manter unidos, mesmo dizendo sempre que seu irmão não é uma boa opção para mim.

Como se um dia ele considerasse me ver como mulher!

— Como estão as coisas com sua mãe? — Alexios puxa assunto de repente e se senta em uma poltrona individual bem longe de onde estou.

— O primeiro ciclo de quimioterapia acabou, e ela está bem — respondo seca. — E você, como está?

Ele abre o maldito sorriso fingido.

— Ótimo! Cheio de trabalho, sem tempo para fazer bobagens...

— Não parece. — Aponto para sua mão. — Achei que seus momentos de fúria já tivessem passado desde que começou a praticar esportes. — Ele fica sério. — Por falar nisso, vi o Chicão lá no prédio esses dias. Ele está hospedado contigo?

— Está, como sempre. — Alexios olha para trás, na direção da cozinha de Kyra e respira fundo. — Eu queria pedir desculpas novamente por...

— Não precisa — interrompo-o antes que eu seja obrigada a socar sua cara.

— Preciso — ele insiste. — Kyra me contou sobre seu relacionamento — meu coração dispara ao ouvi-lo falar sobre isso como se não tivesse importância alguma. — Espero que ele seja o homem que você merece e que sejam muito felizes como você sempre sonhou.

Engulo em seco, abro um sorriso – fervendo de raiva da Kyra – e digo a primeira coisa que me vem à cabeça:

— Ele é! — minto, e Alexios fica sério, seus olhos claros fixos nos meus. — Um verdadeiro príncipe como sempre sonhei.

— Quem bom. — Ele se levanta. — Vou até a cozinha pegar a cerveja, estou morrendo de sede.

Acompanho-o com os olhos e, quando desaparece da minha vista, gemo e me dou um tapa na cabeça. Que ridícula! Por que, mesmo sendo tão madura em vários aspectos, sou uma imbecil quando estou perto dele? Parece até que estou de volta ao aniversário de 18 anos da Kyra, quando saímos nós três para comemorar, e eu fiquei com um babaca total só porque Alexios pegou uma das garçonetes da pizzaria.

Não sou mais essa garota!

Alexios e Kyra voltam para a sala, ele, bebendo uma longneck, e minha amiga, com uma travessa na mão.

— Escondidinho de camarão, como vocês dois sempre gostaram — ela anuncia.

— O cheiro está incrível! — elogio, levantando-me do sofá e indo ajudá-la. — Há muitos anos não sinto algo tão delicioso!

— Eu também não — Alexios fala perto de mim.

Os pelos do meu corpo se arrepiam todos por causa do som de sua voz e seu hálito no meu pescoço. Viro-me para ele, sem entender o motivo pelo qual está tão próximo de mim e me surpreendo por um instante ao decifrar seu olhar: fome, e não é de comida.

Balanço a cabeça, achando impossível que seu olhar esfomeado seja para mim e me afasto dele, indo posicionar os pratos como Kyra me ensinou a fazer tempos atrás.

— Andou treinando? — minha amiga brinca ao me ver executar com perfeição seu ensinamento.

— Sim, fiz alguns jantares em Madri — conto orgulhosa. — Recebi poucas pessoas, a maioria amigos, e fiz questão de colocar em prática tudo o que você me ensinou...

— E que você achava que era bobagem! — Ela ri e olha para Alexios. — Uma arquiteta de interiores deve, no mínimo, saber montar uma mesa, não acha?

Alexios franze a testa, pensa um momento e depois concorda.

— Pregar pregos na parede, fazer arranjos florais, pintar um quadro... — Kyra fica séria, e ele começa a rir. — Há profissionais para isso, Kyra, Samara é responsável pelos layouts de móveis e projetos de planejados, não precisa saber fazer tudo!

Kyra parece estupefata, e, confesso, eu também estou, porque geralmente os dois se uniam para brincar ou me provocar, e agora ele acabou de me defender!

Alexios parece ficar sem jeito com o silêncio e dá uma enorme golada, até pôr fim ao conteúdo da garrafinha de cerveja, em seguida volta para a cozinha.

— O que está rolando? — Kyra me pressiona.

— Não sei do que...

— Samara, sem essa de “não sei do que você está falando”. Não nasci ontem, percebi que vocês estão estremecidos. Achei que tinha sido por conta dos anos longe, mas achei que isso ia passar depois do baile, mas então Alexios aparece aqui mais perdido do que cachorro que caiu da mudança e se recusa a falar o que aprontou contigo na virada do ano! — Aproxima-se. — Conte-me já!

Nem em sonho!

— Não há nada para contar.

Alexios retorna, e sua irmã avança para ele igual a um anjo vingador.

— O que está rolando entre vocês dois? — Ela põe a mão na cintura. — Sempre fomos amigos! Éramos um trio, estivemos juntos nos piores momentos de nossa infância e adolescência, parem já com qualquer merda que estiverem fazendo!

— Quanto você bebeu? — Alexios debocha. — Nada está acontecendo, não é?

 

CONTINUA

Kyra sempre foi exuberante, beleza herdada de sua mãe, devo acrescentar, pois Sabrina ainda continua tão linda quanto era na época em que era casada com Nikkós. Contudo, minha irmã ainda recebeu alguns belos traços dos Karamanlis, principalmente da famosa giagiá15, que todos sempre fazem questão de dizer que era linda e tinha a mesma coloração de olhos da minha irmã (e minha também, só que os Karamanlis nunca engoliram bem que eu realmente tenha o sangue nobre deles).

No papel, Kyra e eu somos filhos dos mesmos pais, pois Sabrina me adotou legalmente quando eu ainda era um garotinho. Ela, por poucos meses, possuía a diferença de idade obrigatória pela lei entre nós (16 anos) e, por isso, conseguiu, aos 18, adotar-me aos dois anos. Logo em seguida nasceu a Kyra, e a família ficou completa.

Na verdade, eu nunca soube da minha mãe. Tentei descobrir algo durante a adolescência, principalmente por ser esse um dos pontos que meu sádico pai adorava usar contra mim. Inventar uma história nova a cada dia sobre meu nascimento, minha origem, era sua principal diversão e tortura psicológica.

Nunca entendi nada sobre mim, a única certeza que tenho é de que, infelizmente, sou mesmo filho dele, algo que comprovei através de exame de DNA, cujo resultado positivo nunca divulguei, porque eu tinha esperança de não ter o sangue daquele monstro.

Volto a prestar atenção na foto, dessa vez em meu próprio rosto cheio de enfado por estar naquele baile com elas. Sorrio. Eu fazia esse tipo, mas a verdade é que adorava cada momento que passávamos juntos, pois me sentia em família de verdade.

Ponho a moldura no lugar e respiro fundo, controlando meu corpo, colocando juízo na minha cabeça, ressaltando tudo o que tem de importante na amizade entre mim e Samara e concluindo que um envolvimento fora desses termos entre nós só serviria para destruir anos e anos de companheirismo.

Samara merece ser feliz com alguém que possa ser o homem com que ela sempre sonhou, o príncipe encantado dos seus sonhos de menina, alguém que saiba quem é, que tenha valor e que possa demonstrar todo o amor que sente por ela e reconheça o privilégio que é ser amado.

Esse homem não sou eu!

 

Depois do banho na casa de Kyra, fui direto para a empresa. É providencial ter uma mochila de roupas minhas no apartamento dela, mas confesso que não vou muito de jeans e camisa de malha para a Karamanlis.

Passei no Castellani apenas para pegar minha moto, nem me atrevi a subir até meu apartamento, sendo covarde mais uma vez. A questão é que eu não saberia nem mesmo o que dizer a Samara caso nos encontrássemos de novo.

Estava saindo do estacionamento quando meu celular tocou, mas, como já estava sobre a moto – e não queria demorar muito na garagem, porque o carro de Samara ainda estava na vaga dela –, deixei para conferir a ligação quando estivesse no prédio, o que faço agora, retornando a ligação.

— Oi, Chicão! — cumprimento-o assim que atende.

— Alex, seu grande safado, feliz Ano Novo! — o homem mais velho, que se tornou um grande amigo e a quem eu considero como um pai – no sentido do que realmente um pai deveria ser – por pouco não me ensurdece ao telefone. — Cheguei ao inferno hoje, queria saber se poderia passar uns dias lá naquele seu apartamento cinco estrelas.

Abro um sorriso de felicidade ao pensar que ele está de volta a São Paulo. Francisco Salatiel Figueiroa é o nome dessa figura de quase 60 anos, paulistano – mas que odeia sua cidade natal – e viciado em esportes radicais assim como eu.

Nós nos conhecemos quando eu ainda estava no colégio, devia ter uns 15 anos e fui participar de um racha de moto pela cidade. Ele apareceu por lá, chamou-me em um canto e me convidou a fazer cross ao invés de colocar minha vida e a de outras pessoas em risco correndo pelas ruas.

Comecei a ir para o os circuitos de motocross, tomei muito tombo, enlameei-me até o pescoço e me senti mais vivo do que quando me arriscava nos rachas. Nós nos tornamos amigos mesmo com nossa gritante diferença de idade, pois ele dizia que eu lembrava o moleque atentado que ele mesmo tinha sido um dia, e comecei a acompanhá-lo em suas atividades.

Foi por causa dele que deixei de buscar alívio e fuga nas drogas, pois conseguiu me mostrar que, se eu quisesse me livrar de Nikkós, teria que ser melhor que ele. Não foi um processo fácil, admito, levei anos para entender e ouvir seus conselhos, mas nem por isso ele desistiu de mim ou se afastou.

Francisco começou a me mostrar que eu poderia extravasar toda minha angústia, solidão, medo e revolta em esportes como trilhas de moto, bike, escaladas, voos livres, paraquedismo e, quando tirei minha carteira de motorista, apresentou-me a alguns amigos dos circuitos de motovelocidade.

Os esportes aliviavam meu corpo da tensão vivida em casa, mas minha cabeça e minha alma continuavam pesadas, então, um dia, ele me viu desenhar e descobriu como eu poderia tratar os demônios dentro de mim.

Devo muito a ele, não só pelo equilíbrio que consegui hoje em minha vida, como também por permanecer vivo e são. Samara e ele foram os únicos a permanecerem ao meu lado nos piores momentos da minha vida, ela me auxiliando principalmente com Kyra, e ele entendendo meus problemas e me ajudando a achar soluções.

— Meu apartamento é seu! Te dei a chave, afinal.

— Eu sei, mas é sempre bom dar uma conferida, vai que você resolveu sossegar seu pau numa boceta só.

Gargalho com seu jeito rude e direto.

— Não, meu pau ainda gosta de explorar por aí. — Ele me chama de “vadio” e ri. — Estou na Karamanlis agora e...

— Ah, me diz que estou sonhado... — estranho o que ele fala, escuto vozes ao fundo e percebo que não falou comigo. Espero que ele retome a ligação, entro no elevador, cumprimento as pessoas com a cabeça e sorrio para uma mulher gostosa que nunca vi aqui no prédio. — Seu trapaceiro de uma figa! Samara está de volta e, caramba, mais linda do que nunca.

Só de ouvir o nome dela, sinto meu corpo reagir como se uma descarga elétrica tivesse me atingido.

— Encontrou-se com ela agora?

— Sim, seu embuste! Quantos anos ela esteve fora? Caralho, você já a viu?

Franzo a testa, desço no meu andar, confuso com a perplexidade dele apenas por ter visto a Samara no prédio, afinal, ele sabe muito bem que ela tem um apartamento lá.

— Já, desde que chegou — respondo distraído, acenando para os funcionários da K-Eng. — Por quê?

— Alexios, eu sempre me perguntei se você era cego ou apenas muito burro. — Ouço o barulho de uma porta se fechando. — Nunca entendi por que vocês dois nunca tiveram nada um com o outro.

Paro no meio do corredor, atraindo os olhares de pelo menos dois engenheiros que passam por mim. Que merda é essa?!

— Ela é minha amiga — digo o óbvio.

— Ela é incrível e sua amiga, isso já não é meio caminho para um relacionamento de sucesso?

Um alerta dispara em meu cérebro. Chicão nunca foi um homem ligado a relacionamentos permanentes, tanto que é solteiro até hoje, então não entendo o motivo pelo qual está falando essas coisas sobre mim e Samara.

— Chicão, sou eu! Eu não tenho relacionamentos, eu fodo por aí, só isso. E, definitivamente, Samara não é uma mulher apenas para se foder.

Ele emite um grunhido, e, ao fundo, escuto o bipe da minha cafeteira sendo ligada.

— Nisso concordamos. Mas ela é incrível, sempre foi, se eu tivesse a sua idade e a sua aparência, não perderia a oportunidade de tê-la comigo.

Mas o que... Arregalo os olhos, e meu coração dispara.

— Você está morrendo? — inquiro-lhe como se fosse a única opção válida para essa mudança de comportamento.

Chicão gargalha.

— Não, mas estou ficando velho e sozinho. — Bufa. — Mas isso não é assunto para discutirmos ao telefone, já que você está na empresa.

— Chicão, está tudo bem?

— Vai trabalhar, embuste, depois conversamos. Viajei a noite toda, quero tomar um banho, comer algo e dormir um pouco. Obrigado pelo abrigo.

Ele ainda não me convenceu, algo está errado.

— A casa é sua! — declaro, e ele encerra a ligação.


— Quer mais um travesseiro? — pergunto à minha mãe assim que ela se deita na cama.

— Não, filha, estou bem. — Sorri, mas o cansaço não permite que o faça por muito tempo. — É sempre assim no dia da medicação, mas passa.

Balanço a cabeça concordando, enternecida por ela estar tentando me consolar, quando é ela quem está passando por isso tudo. Sempre a admirei por sua força, seu destemor e a capacidade de realizar qualquer coisa que se propunha a fazer.

Mamãe não tem um gênio fácil de lidar, mas nunca negou amor e afeto aos seus filhos, mesmo sendo brava e exigente como era. Dani e eu tínhamos muito mais medo dela do que do papai, que sempre foi mais maleável, mas moderno e liberal.

O relacionamento dos meus pais, enquanto casal, não era um mar de rosas, mas eles eram amigos, companheiros. Ele sempre a apoiou em tudo, e ela acima de tudo o admirava. Não tinham grandes arroubos de paixão, pelo menos não na nossa frente, mas se respeitavam, conversam, riam e, principalmente, nos amavam muito. Dani, como filho e mais velho, sempre foi agarrado a minha mãe mais do que a nosso pai. Os dois se dão bem, são muito parecidos em alguns aspectos, mas quem sempre teve mais afinidade com papai fui eu.

Acho que nossas almas são parecidas. Ambos somos apaixonados pelas formas, perfeccionistas, românticos e, arrisco dizer, sonhadores. Eu sou assim, gostaria de ser prática como mamãe, mas há muito que parei de tentar ser quem não sou. Demorei, mas consegui aceitar meu jeito e me respeitar acima de tudo.

É dolorido tentar ser quem não é para se encaixar ou seguir uma tendência. Eu sou forte, mesmo sendo doce; sou feminista, mesmo sendo feminina e vaidosa; sou empoderada, mesmo sonhando em casar e ter uma família.

Eu me importo com a opinião alheia, sim, porque ninguém é uma ilha e não teria sentido na vida se todos fôssemos autossuficientes e não dependêssemos de ninguém. Não tenho preconceitos, sou feliz com a felicidade dos outros e não me importo que a recíproca não seja verdadeira. Cada um escolhe o caminho que quer percorrer. Eu escolhi ser assim, exatamente como sou.

Chegar até essa conclusão não foi fácil, principalmente quando se percebe que o homem por quem você é apaixonada prefere as mulheres que têm atitude, que são furacão e não calmaria. Eu quis fazer tipo e percebi que estava indo na contramão de tudo o que uma “mulher de atitude” prega, que estava tentando ser outra pessoa para agradar a um homem.

Foi aí que aquela máxima tão clichê, mas que é tão difícil de ser vivida, fez sentido para mim: quem me amar, precisa me conhecer e me aceitar como sou.

Demorei a perceber a importância disso, precisei praticamente ter isso esfregado na cara. Então arrumei minhas malas, disse ao meu pai que não iria para Barcelona, mas sim para Madri, e segui com minha vida.

Alexios foi o estopim que eu precisava para explodir naquela época, depois de ter aparecido no meu apartamento bêbado a ponto de não se aguentar de pé. Ele pediu para dormir no meu sofá, tivemos uma dura discussão quando tentei lhe passar sermão e, no meio da noite, acordei com ele na minha cama.

Fiquei sem reação quando senti sua mão na minha cintura, alisando minha pele por cima do pijama de seda. Fechei os olhos, excitada e ansiosa, e o deixei prosseguir com a exploração. Não o impedi quando me virou, nem quando me beijou e subiu em cima de mim. Tinha esperado por aquilo a vida toda, e estava acontecendo.

Ledo engano!

Ele ficou imóvel, esmagando-me com seu peso, então percebi que havia dormido. Joguei-o para o lado e passei a noite em claro, sem entender nada, esperando que ele acordasse e explicasse.

Acabei dormindo e acordando sozinha na cama. Ele tinha ido embora, e não conversamos, mas esperei que a conversa viesse mais tarde. Não veio. Ele simplesmente ignorou o beijo, as carícias, como se não fossem nada, como se eu não fosse nada.

Fiquei irritada, subi para perguntar diretamente a ele o motivo pelo qual tinha me beijado, mas, quando cheguei ao seu apartamento, estava rolando uma de suas festinhas regada a bebidas e sexo, e o filho da mãe estava sentado no sofá com uma mulher de cada lado em um beijo triplo.

Ele nem me viu, fechei a porta, desci e decidi parar de protelar minhas decisões esperando por algo que nunca iria acontecer. Um relacionamento com Alexios era uma ilusão infantil, mas eu já não era mais criança.

Viajei dois dias depois e pensei que, quando voltasse, toda essa ilusão teria se desfeito.

— Então o nome dele é Diego — mamãe fala, e eu quase pulo de susto, deixando as lembranças para tentar entender do que ela está falando. — Diego Vergara!

Sento-me na beirada da cama, curiosa sobre como ela conseguiu essa informação.

— O nome dele é mais comprido do que isso, mas, sim, Diego Vergara.

Ela sorri cheia de sabedoria.

— E você deve estar aí querendo saber como eu sei o nome dele. — Concordo. — Seu irmão me contou.

Daniel e sua boca! Meu irmão sempre foi o maior X9 do mundo, não é de se espantar que tenha contado sobre o Diego para minha mãe.

— Há quanto tempo estão juntos?

Não sei o que dizer a ela e agradeço quando uma enfermeira entra no quarto, dando-me a desculpa perfeita para escapulir de sua curiosidade. O fato é que tudo mudou depois da noite do baile dos Villazzas.

Não sei o que levou Alexios a me beijar daquela forma no elevador, eu estava bem bêbada dessa vez, mas ele não tanto, além disso, eu senti a energia entre nós, senti o tesão que ele exalava, que trazia na saliva e em cada toque no meu corpo. Alexios não escondeu em nenhum momento o quanto estava excitado, esfregou sua ereção contra mim, esmagou-me contra o espelho do elevador parecendo que queria me comer ali mesmo.

Depois, do nada, mudou. Pediu desculpas! Desculpas por me beijar! Só faltou dizer que estava com tesão, e eu era a única mulher próxima dele, mas que nem assim servia.

Para piorar, quando entrei no apartamento e peguei o celular, vi uma mensagem de Diego dizendo o quanto sentia minha falta e como ele gostaria de poder estar aqui comigo. Foi a gota d’água! Senti-me um lixo, uma pessoa má que engana e trai e percebi que tê-lo deixado na Espanha sem uma resposta definitiva foi uma atitude egoísta.

Chorando, sem pensar direito, fiz uma chamada de vídeo para ele e, quando atendeu, disparei:

— Diego, eu sou uma pessoa horrível, mas não posso fazer isso com você! — Soluçava tanto que ele se assustou e me pediu para falar devagar. Todavia, eu não conseguia. — Você é um homem incrível, um amigo maravilhoso, e eu adorei cada momento que passamos juntos...

— Calmarse, Samara! Yo no comprendo!

— Você merece mais, merece alguém melhor, e eu não posso...

— Usted está me dejando preocupado, cariño.

— Eu não queria fazer isso assim, por telefone. — Ele ficou sério, atento, prevendo o que eu lhe diria. — Mas não é justo que você fique aguardando minha volta para que eu diga isso. — Respirei fundo, armando-me de coragem. — Eu não posso aceitar seu pedido, Diego. Eu não estou pronta para amar você como deveria, como você merece.

— Samara, sucedio algo com su mamá?

Neguei.

— Não. Sou eu, não mereço você. Você tem razão ao dizer que meu coração nunca pôde estar aí contigo.

— Samara, despues hablamos, está muy nervosa. — Tentei dizer a ele que não, mas não me deu oportunidade: — Tengo que ir.

— Diego, não...

Ele encerrou a chamada. Tentei retornar outras vezes, porém a ligação não completava. Deixei mensagens, mas que, até o momento, ele não visualizou. Volto a olhar para mamãe, que boceja, visivelmente cansada, e fecha os olhos, recostada nos travesseiros, enquanto a enfermeira mede sua pressão. Eu voltei ao Brasil apenas por causa dela, para estar ao seu lado nesses momentos tão difíceis, não por qualquer outro motivo. Sinceramente, não esperava essa pressão acerca de Alexios e Diego. Minha família nunca foi assim, muito menos mamãe, que sempre pregou que uma mulher não precisa de marido e filhos para se sentir completa e feliz.

Mamãe adormece, e eu saio do quarto. Quando estou prestes a descer a escada, escuto uma voz conhecida e muito amada:

— Minha Samara está de volta! — Papai está no corredor de braços abertos. Sorrio e vou até ele para abraçá-lo. — Ah, que saudades!

— Eu também estava, mas cheguei há mais de uma semana, e você nem se dignou a vir me ver.

— Eu sei, mas agora vim para ficar, Herzchen16, e estou feliz por te ter de volta aqui em casa. — Ele beija minha testa. — Não pretende voltar para a Espanha, não é?

Suspiro. Papai foi o primeiro a me incentivar a ir estudar fora, mas o único a ficar chateado quando decidi ficar depois que terminei a especialização. Nunca foi me visitar. Embora falássemos sempre, eu percebia que ele ainda não havia entendido minha necessidade de ficar longe.

— Vou voltar, sim, tenho compromissos de trabalho por lá que...

— Besteira! Aposto que você já tem tudo desenhado e organizado e que, em uma visita ou duas, poria fim a esses “compromissos”.

— Papai, não vim para ficar, e o senhor sabe. Mamãe está na parte mais agressiva do tratamento, e Dani precisou de mim para ajudar a cuidar dela e acompanhá-la...

— Estou aqui também! — ele se ofende por não ter sido incluído. — Ela diz que não precisa de mim, mas estou aqui, sempre estive por ela.

Oh, Deus, que situação!

— Eu sei, pai.

Benjamin Abraão Nogueira Klein Schneider nunca entendeu bem a distância fria de mamãe, por mais que os dois sempre tenham se dado bem. Acho até que foi por esse motivo que se afastaram depois que crescemos e que, após minha ida para a Espanha e a de Dani para seu próprio apartamento, papai decidiu se mudar para a fazenda.

Uma vez, quando eu ainda era uma garotinha, eu o vi bêbado no escritório do antigo apartamento em que morávamos. Ele bebia e parecia mal, chorava e segurava alguns documentos. Quando me viu, tentou sorrir e me chamou para perto de si.

— Tudo bem? — perguntei na inocência dos meus oito anos de idade e limpei suas lágrimas.

— Tudo. — Ele guardou a papelada dentro de uma caixa, onde vislumbrei também algumas fotos, trancou-a com chave e depois respirou fundo. — A vida adulta é complicada, Herzchen. Fazemos escolhas baseadas no que achamos ser melhor e esquecemos o preço que isso cobra, tanto aqui — ele apontou para sua cabeça — quanto aqui. — E, por fim, tocou em seu coração.

Na época não entendi nada, mas esse momento nunca deixou minha memória e, com o tempo, supus que ele estivesse falando de seu relacionamento com mamãe. Os dois se davam bem, mas era ele quem sempre cedia numa discussão ou quem corria atrás quando as coisas ficavam tensas entre eles.

— Vi seu bichinho pré-histórico lá no jardim comendo algumas plantas — ele ri, mudando de assunto. — Você poderia ter adotado um cachorro ou um gato como qualquer outra pessoa, não é?

— Pai, eu o ganhei de presente e gosto dele.

— Mas ele é feroz! — Faz cara de medo. — Já me mordeu algumas vezes.

Gargalho.

— Godofredo é muito territorialista, ele sempre ataca os homens.

— Hum, que interessante! Começo a gostar desse bichinho. — Rio do seu ciúme. — Você não trouxe nenhum espanhol junto contigo, não é?

Suspiro.

— Não. E se o Dani disse algo para o senhor também, ele é...

Benjamin me afasta de seus braços, segurando-me pelos ombros, e me olha surpreso.

Merda!

— Ele não disse nada, não é? — pergunto, achando-me idiota.

Meu pai nega:

— Era só uma pergunta brincalhona e especulativa. — Olha em volta. — O que ele deveria me dizer?

— Eu tinha um namorado em Madri, mas ele ficou por lá.

Ele põe a mão sobre o peito.

— Adorei esse tempo verbal: “eu tinha um namorado”. — Rio. — Agora você terá que me contar sobre esse tal...

— Ele me pediu em casamento — disparo. — Mas eu não pude aceitar.

Ficamos um tempo um olhando para o outro, parados no corredor, sem emitir um som sequer. Papai sempre foi bom ouvinte e dava bons conselhos. Mesmo não sendo muito de falar sobre como se sentia, mesmo reservado em seus sentimentos, até mesmo com seus filhos, ele sabia ouvir sem julgar e só opinava quando achava necessário, o contrário de mamãe.

— Preciso de um café ou de algo mais forte — confessa, e eu rio nervosa. — Vou falar com sua mãe e...

— Ela acabou de dormir — informo-lhe.

— Certo! — Respira fundo. — Se lembra daquele seu namorado da faculdade? — Gemo e assinto. — Você tinha dúvidas quanto ao caráter dele e, mesmo com todos os seus instintos te alertando que algo não estava bem, você aceitou o namoro e...

— Meus instintos estavam certos, ele era um pilantra filho da puta casado!

— E eu quis castrá-lo. — Ele sorri doce, como se isso não fosse nada. — Enfim, o meu conselho para essa questão sempre é: siga seus instintos. Se você não se achava pronta para aceitar o pedido, então fez certo ao recusá-lo.

— Então, você acha que eu fiz certo ao ouvir meu coração?

Ele ri e nega.

— Não, eu disse para ouvir seus instintos, porque seu coração não tem juízo. — Eu rio, achando que ele está fazendo troça, mas, então, ele completa: — Já se apaixonou uma vez por Alexios Karamanlis!

Fico séria, coração disparado, porque, embora ele saiba de todos os meus namorados e experiências, nunca contei a ele sobre Alexios.

Era óbvio para todos, não sei como consegui enganar a mim mesma! Eu ainda amo aquele safado!


— Alexios? — Termino de calçar os tênis antes de me virar para olhar Laura deitada na cama. — Já vai?

Ela se contorce languidamente, seu corpo curvilíneo, dourado de sol se mexendo contra os macios e perfumados lençóis de sua cama. Sorrio, deslizo a mão pela curva de seu lindo rabo e desfiro um tapa nele, fazendo-a rir.

— Preciso ir, tenho reuniões importantes agora de manhã na empresa, e, com a viagem de Theodoros para a Grécia e a demora na volta de Millos, as coisas ficaram acumuladas entre mim e o Kostas.

Ela bufa e se senta.

— Eu sei, ontem eles me passaram as informações sobre a propriedade no Rio de Janeiro, da reunião que tiveram na quinta-feira. — Ela dá de ombros. — Achei que Kika ia aparecer cheia de gás na sexta-feira, mas nem ela e nem seu irmão apareceram na empresa.

— A área é boa mesmo? — pergunto, pois apenas vi algumas imagens do local, e, como Laura é do geoferenciamento, deve ter detalhes bem específicos.

Ela confirma.

— O pessoal do jurídico está alvoroçado, e fiquei sabendo que o Leo, o braço direito da Kika, pediu para o pessoal acelerar com as outras áreas, porque gostaram muito da do Rio. — Laura me abraça pelos ombros e lambe minha orelha. — Falando em acelerar, adorei aquela rapidinha ontem na sala de servidores.

Eu rio, mas balanço a cabeça.

— Você jogou sujo comigo. — Levanto-me da cama, e a safada senta-se na beirada do colchão, os peitos cheios e rosados, as coxas musculosas bem abertas. Porra! — Goza para mim! — ordeno, e ela não se faz de rogada, tocando-se sem nenhum pudor. Vou até uma das luminárias, acendo-a e tenho a visão perfeita de sua boceta totalmente depilada já molhada de tesão.

Foda-se!

Apenas abro o cinto da calça, baixo o fecho e saco meu pau para fora. Pego uma camisinha em cima de seu criado-mudo, e ela ri quando avanço até onde está.

— De costas!

Ela se deita de bruços, e eu me agacho para entrar em uma única investida. Fecho os olhos, concentrando-me nas sensações, excitado com seus gemidos, mas, de repente, sinto um cheiro diferente, os sons mudam, e um rosto doce, sorridente, de lindos olhos castanhos aparece em minha mente.

Xingo alto, querendo expulsar a imagem de Samara, aumento as estocadas até sentir as pernas arderem e gozo sem ao menos saber se minha parceira teve seu prazer.

Caralho!

Afasto-me dela e apoio as mãos contra o aparador, colocando a culpa das súbitas aparições de Samara em minha mente na distância que impus entre nós depois daquele beijo no elevador. Claro que, se ela não tivesse se mudado para a casa da mãe, certamente essa distância não seria tão dura, afinal, eu poderia encontrá-la casualmente pelos corredores do Castellani, mas quem disse que a sorte gosta de mim?

Agora, além de ter visões dela durante minhas trepadas, acordo excitado por algum sonho erótico protagonizado por ela e ainda tenho que aguentar os questionamentos de Kyra e de Chicão sobre o motivo pelo qual eu e Samara não nos falamos mais.

— Tudo bem? — Laura me toca o ombro, fazendo com que eu desperte dos devaneios sobre Samara.

— Tudo. — Retiro a camisinha e a jogo no lixo. — Preciso ir, já está amanhecendo.

— Eu sei.

Ela sorri, doce e compreensiva, e eu respiro fundo, sabendo que estou fazendo merda. Primeiro, por ela ser funcionária da Karamanlis, e segundo, por eu estar fazendo sexo com ela há duas semanas.

Nunca fico tanto tempo com alguém. Para falar a verdade, não me lembro da última vez que mantive uma única parceira, mas, por algum motivo, tenho andado preguiçoso, sem vontade de sair e, como trepei com ela e gostei, achei mais simples continuar.

Despeço-me dela apenas com um aceno de cabeça. Laura me acompanha até a porta de seu apartamento, e eu desço até o térreo, onde minha moto está estacionada em frente à portaria do prédio.

Sigo para o Castellani, mas a cabeça continua a vagar por lembranças dessas longas seis semanas desde o baile dos Villazzas. Tanta coisa aconteceu dentro e fora da Karamanlis, ainda assim senti o tempo passar lentamente.

No trabalho, as coisas começaram a ficar mais intensas, apesar de começo de ano sempre ser mais devagar. Com a conta da Ethernium, tive que mobilizar boa parte dos profissionais para elaborar croquis baseados na planta da siderúrgica e as áreas que foram aparecendo. A volta de Kika à empresa foi providencial, pois ela nos apresentou uma ideia que facilitou muito a vida de todos.

Eu ainda estou surpreso por Theodoros ter colocado a gerente dos hunters e meu irmão trabalhando juntos, pois isso não é algo do perfil do meu irmão mais velho. Foi então que, conversando ao telefone com Millos, descobri que tinha dedo dele nessa história.

A ideia de os dois trabalharem juntos não surgiu na reunião preliminar do projeto, mas foi algo que Theodoros e Millos combinaram assim que souberam que ela iria voltar para a empresa. Agora, conhecendo Millos como conheço, só me pergunto o que, especificamente, meu primo pretendeu ao dar essa sugestão.

Esperei que os dois se matassem desde a primeira semana juntos, ainda mais depois que Theodoros viajou, mas não, aparentemente tudo tem transcorrido bem entre os dois, e a conta da Ethernium parece estar em boas mãos.

Em casa, com a presença de Chico, que ainda está por lá, tenho sempre companhia para jogar bilhar, videogame ou para corridas aos finais de semana. Decidi não participar de nenhum campeonato este ano, nem de moto, nem de carro, pois o trabalho iria consumir muito de minha equipe, e eu não sou o tipo de chefe que deixa seus funcionários se fodendo de trabalhar e sai cedo para treinar ou viajar. Não sou profissional por isso, não consigo me dedicar integralmente às corridas, embora goste muito delas. Vejo-as com um hobby, assim como os esportes e outras atividades que uso para ocupar minha cabeça.

Entro na garagem do prédio, paro a moto e, assim que tiro o capacete, paro em seco ao ver Samara.

— Bom dia — ela me cumprimenta, sem parar para falar comigo e sem olhar para trás.

Confiro as horas no relógio e estranho que ela esteja saindo tão cedo de casa.

— Algum problema? — pergunto preocupado.

Samara para e me olha.

— Não. — Abre o carro, mas me aproximo antes que entre. — O que foi, Alexios? — sua voz é impaciente, e eu percebo que o clima estranho está de volta.

— Como está sua mãe?

Ela franze a testa, ajeita o cabelo e ri amarga.

— Teve que se encontrar casualmente comigo para lembrar que minha mãe está doente? — Balança a cabeça. — Sempre soube que você era desligado com as coisas, Alexios, mas na verdade é um egoísta.

Suas palavras cheias de mágoa me acertam. Aperto a mão no capacete, ciente de que ela tem razão. Eu poderia tê-la procurado, ter ligado, ter sido o amigo que ela merecia, mas, em vez disso, escolhi me afastar e deixá-la sozinha com seus problemas.

Sim, além de covarde, um grande egoísta!

— Você tem razão. — Aceno. — Bom dia.

Dou a volta e sigo em direção ao elevador, achando-me ainda mais desprezível do que sempre me achei.

— Ela está melhorando — a voz de Samara ecoa na garagem, e eu paro. — A quimioterapia está tendo os resultados esperados, e os médicos estão confiantes.

Viro-me para olhá-la, ainda parada do lado de fora do carro, com a porta do motorista aberta.

— Eu sinto muito por não ter ligado antes. — Ela dá de ombros como se não se importasse, mas sei que se importa; eu me importaria. — Você tem razão sobre eu ser um egoísta, você merecia um amigo melhor.

Samara bufa e, sem dizer nada, entra no carro, fecha a porta e liga o motor. Instantes depois, vejo-a passar por mim sem dizer nada e me sinto um bundão. Subo para meu apartamento e, assim que entro, encontro Chicão no meio da sala, usando apenas uma cueca, meditando.

— Que visão do inferno! — sacaneio e sigo para meu quarto.

— Bom dia, embuste! — saúda-me sem ao menos abrir os olhos. — Você deveria tentar, pelo visto nem suas trepadas diárias estão conseguindo mantê-lo relaxado, então, quem sabe a meditação...

— Nem fodendo! — grito para ele e sigo para o banheiro.

Somente quando fecho a porta é que toda a armadura se vai. Fico parado, olhando para o espelho, tentando analisar além da aparência que todos veem. Eu sou um filho da puta egoísta e imbecil, um impostor, uma fraude gigante que perambula pela cidade sem nem mesmo saber quem é.

Anjo dos Karamanlis! Engenheiro filantropo! Chefe preocupado com funcionários... tudo mentira!

Retiro a roupa, jogando-a no cesto de roupa suja antes de me enfiar debaixo da água gelada do chuveiro. Gostaria que, da mesma forma que essa água consegue limpar meu exterior, pudesse fazer o mesmo dentro de mim. Sou tão vazio e frio quanto meu irmão do meio e tão arrogante e egoísta quanto Theodoros. Sou tão louco quanto Nikkós!

Doeu-me ver e ouvir a mágoa que causei em Samara, mas é somente isso que causo nas pessoas. Decepção! Eu não mereço sua amizade e nem estar perto dela. A raiva de mim mesmo explode como há muitos anos não a sinto. Sem pensar, soco o vidro do boxe, que se espatifa e desaba sobre mim.

A porta do banheiro é aberta com um estrondo, e um apavorado Chicão aparece, olhos arregalados, olhando a destruição que causei ao meu banheiro.

— Merda, Alexios! — Ele salta em minha direção sem se preocupar com os cacos de vidro pelo chão e tenta me tirar do boxe. — Porra, sai daí.

Nego, o sangue escorrendo pelo ralo do banheiro, minha mão ardendo, assim como meus braços e os pés. Não me movo, apenas tremo, tentando ainda conter toda a fúria dentro de mim.

— Sai daí, Alex, você está ferido, porra! — Chicão grita.

— Não! — Não me movo. — Eu sou um lixo! Ele nunca deveria ter me pegado no lixo onde me encontrou, deveria ter me deixado morrer, deveria...

— Para com essa merda! — Some para dentro do meu quarto e, quando volta, está calçando meus coturnos. — Você não vai mais fazer isso, ouviu?

Chicão entra no que restou do boxe, desliga a água, joga uma toalha sobre meu corpo e me ergue. Não consigo reagir, a cabeça girando, todos os insultos e histórias sobre mim que ouvi de Nikkós por tantos anos enchendo meus ouvidos, torturando-me mais uma vez, ressaltando o quanto sou desprezível.

— Você não vai fazer isso consigo mesmo de novo, ouviu?! — Chicão esbraveja, fazendo pressão com a toalha de rosto na minha mão. — Ele te machucou, você se machucou, mas essa merda já acabou faz tempo. Ele não pode mais, Alexios, nem te tocar e nem contar mentiras a você. Chega!

Nego.

— Eu sinto tanta raiva... — Meus dentes batem um no outro, e eu os travo. Minha vontade é de gritar, socar, foder com tudo.

— Eu sei, já passamos por isso antes, e eu... — ele baixa o tom de voz e expira — achei que já tinha superado.

— Como? — questiono-lhe. — Como posso esquecer, se continuo a ser a mesma pessoa desprezível de sempre? Não são as marcas que ele causou no meu corpo que me causam essa raiva, sou eu!

— O que aconteceu?

Nego, trêmulo e me sento na cama. Gemo ao sentir as dores dos cortes, percebendo que a adrenalina passou mais rápido do que antigamente. Eu aprendi a controlar a dor usando a raiva. Durante anos de espancamento, percebi que, quanto mais raiva eu sentisse, menos dor ele me causava. Mais tarde, quando sentia raiva por qualquer motivo, eu mesmo me machucava, levava-me ao limite do meu corpo e quase me destruía.

Era um círculo vicioso que eu achei que já havia passado, mas, aparentemente, não.

— Encontrei Samara na garagem, provavelmente indo se encontrar com sua mãe e levá-la ao hospital — confesso, cansado demais para guardar qualquer coisa. — Eu não a via há semanas, desde o baile dos Villazzas no Ano Novo.

— Eu também só a vi uma vez aqui no prédio...

— Eu não liguei, não procurei por ela, não justifiquei meu ato e nem meu sumiço — interrompo-o e o encaro. — Ela está magoada comigo.

Chicão confere o sangramento da mão, tirando a toalha e depois se senta ao meu lado na cama.

— Por que você fez isso? Sumiu e não a procurou?

Respiro fundo; comecei o assunto, agora preciso terminá-lo.

— Preferi me afastar. — Olho para baixo, envergonhado. — Eu quase trepei com ela no elevador aqui do prédio. — Fecho os olhos. — Eu a quis como mulher, não consegui reprimir a vontade, como sempre fiz, e agi feito um idiota excitado.

— Ela o repeliu?

— O quê?

— Samara o repeliu? Te xingou? Bateu em você? Disse que você abusou dela? Mandou que ficasse longe?

Lembro-me daquela noite, a forma como reagiu ao beijo, o jeito que gemia e parecia tão excitada quanto eu.

— Ela estava bêbada, me aproveitei dela, sou um canalha.

— Nisso concordamos, mas o que ela pensa sobre o acontecido?

Balanço os ombros.

— Não sei, não falo com ela desde então. — Lembro-me da conversa com Kyra no dia seguinte ao baile e praguejo. — Ela está noiva.

— Samara? — Assinto. — Que merda!

— É, o beijo foi uma merda enorme, e eu não sei como...

— Não, seu idiota! — Ele estapeia minha cabeça. — Que merda que Samara esteja noiva, ela é a mulher perfeita para você.

Olho-o como se ele estivesse louco.

— Claro que não, ela merece alguém muito melhor do que eu! Samara nunca cogitou qualquer tipo de relacionamento comigo a não ser o de amizade.

Chicão bufa.

— Você não é idiota, Alexios Karamanlis, é um burro!

Ele joga a toalha, manchada de sangue, no chão do quarto e sai puto comigo ou com alguma coisa que eu disse. Ele não entende, óbvio! Samara é... especial, e alguém especial como ela nunca se relacionaria com alguém tão ordinário como eu.

Olho para minha mão e rio ao pensar na bagunça que sou.

Obviamente ela nunca se relacionaria e nem deveria se relacionar com alguém tão fodido como eu.

 

— O que houve com sua mão? — Laura me pergunta de repente, assustando-me, pois eu nem mesmo sabia que estava por perto. Encaro-a sem entender como e o que está fazendo aqui na K-Eng. Seu olhar é de assombro aos machucados em minha mão, além de questionadores, o que me irrita um pouco.

— Um pequeno acidente — respondo seco. — O que você está fazendo aqui?

Levanto-me da mesa, agradecendo por não ter mais ninguém por aqui a essa hora e fico de frente para ela. Laura abre um sorriso sem graça, mas logo se pendura em meu pescoço.

— Tem mais de uma semana que não te vejo, você não liga e nem aparece lá no meu apartamento. Então, se Maomé não vai até a montanha...

Reviro os olhos e retiro as suas mãos de mim.

— Laura, você trabalha na Karamanlis, então já deve ter percebido a movimentação infernal na empresa por conta da Ethernium. — Ela concorda. — Além disso, não entendi o motivo pelo qual eu deveria dar satisfação ou ter regularidade em nossos encontros.

A moça arregala os olhos por causa de minha sinceridade.

— Eu pensei que... — ela suspira — estávamos tendo essa regularidade, afinal, ficamos juntos por umas semanas e...

— Ficamos porque estava gostoso — não tenho medo de ser direto. — Mas não significa que temos qualquer tipo de compromisso. Não sou desses, Laura, e foi a primeira coisa que te disse quando trepamos a primeira vez.

Ela fica um tempo muda, olhando para o nada, então, de repente, abre um sorriso e desliza a mão pelo meu peito.

— Disse. Como disse também que queria trepar mais, lembra? Eu ainda quero mais, Alex — sua voz é ronronante. — Sempre imaginei como seria fazer sexo aqui na sua sala.

Respiro fundo, levemente excitado com o oferecimento, contudo, sem nenhuma vontade de fodê-la aqui – ou em qualquer outro lugar – depois desses questionamentos.

— Infelizmente, eu estou muito ocupado agora, motivo pelo qual ainda estou na empresa quando todos já foram. — Ela faz um biquinho, mas me afasto e volto a me sentar à mesa. — Acho melhor você ir.

Ela bufa.

— Sério isso?

Volto a olhá-la, sem esconder meu desagrado e impaciência, e ela se sobressalta.

— Sério.

Laura fica um tempo me encarando, depois vira as costas e sai da sala, andando firme e visivelmente puta. Balanço a cabeça, repreendendo a mim mesmo por ter deixado as coisas chegarem a esse ponto. Foi muito bom trepar com ela, aposto que a recíproca é verdadeira, porém não imaginei que ela criaria tantas expectativas e se sentisse no direito de vir me cobrar algo.

Erro de cálculo!, penso, sem deixar de pontuar que isso, para um engenheiro, é algo muito perigoso, que pode pôr tudo a perder.

Pego a pequena bola de borracha que tenho usado para exercitar minha mão e reparo nos machucados nela. Os cortes já estão todos secos, e os pontos que tomei em um deles já foram retirados.

Socar o vidro do boxe foi um momento de loucura, como tantos outros por que já passei. Fazia muito tempo que eu não perdia a cabeça daquele jeito, e sei que o que Samara me disse foi o gatilho responsável por isso. Não tiro, em hipótese alguma, a razão dela para me dizer aquelas palavras, mas elas acertaram o alvo na mosca.

Fecho os olhos e tensiono o pescoço, tentando relaxar um pouco para voltar a trabalhar e não enveredar pelos acontecimentos dessa semana, mas ainda não tenho esse controle total da mente e dos meus pensamentos.

A frustração me bate ao me lembrar do almoço com Konstantinos, meu irmão advogado. Achei que, pela primeira vez, ele iria se dispor a me ajudar com as respostas que procuro por anos, mas, ao que parece, ser egoísta e frio é algo familiar.

Mexo na minha agenda de anotações e encontro lá o endereço do sobrado de propriedade de Kostas. A voz da mulher misteriosa que encontrei na porta do Castellani ainda ressoa nítida em meus ouvidos:

“Eu conheci sua mãe biológica. Se quiser respostas, procure pela casa de Madame Linete.”

Foi o encontro mais estranho da minha vida. Ela estava parada lá, olhando o prédio e, quando me viu, logo perguntou se eu era um Karamanlis. Estranhei a pergunta, tentando reconhecer a senhora frágil e de cabelos brancos, mas não precisei responder, pois ela logo disse essas duas frases e se afastou sem me dar a chance de perguntar qualquer coisa mais.

Claro que eu já havia cogitado a ideia de que tinha sido gerado por alguma prostituta daquela maldita casa, afinal, era o local que meu pai mais utilizava. Não deveria ter começado do nada sua amizade com a cafetina asquerosa, mas nunca achei nada que me ligasse àquele local até esse encontro.

Talvez fosse uma pista falsa apenas, mas eu não poderia ignorar mais nada, não enquanto não achasse as respostas que procurei por toda minha adolescência a fim de tirar esse poder das mãos de Nikkós.

Não conhecer meu passado era o suficiente para meu pai ter uma enorme arma psicológica contra mim, coisa que ele utilizou por muitos e muitos anos.

Foi pensando em exterminar todo e qualquer poder que meu pai ainda pudesse ter sobre minha vida que atraí meu irmão para um almoço com a desculpa de falar da conta na qual estávamos trabalhando em conjunto.

Confesso que estranhei quando ele aceitou sem que eu tivesse que recorrer a inúmeros subterfúgios, mas agradeci a boa sorte, e nos encontramos em um restaurante neutro, escolhido a esmo, embora de alta gastronomia.

Achei que seria difícil introduzir o assunto, principalmente porque ele iria saber que pesquisei o maldito imóvel e descobri que ele o comprou há anos, quando foi a leilão. Isso me surpreendeu, claro, saber que ele comprou o sobrado e que ainda o mantém de pé sem nenhuma modificação ou uso. O assunto não surgiu naturalmente. Kostas estava estranho, mesmo falando de negócios, o que me surpreendeu, pois sempre imaginei que ele fosse se aproveitar da distância de Millos e Theo para tentar assumir a empresa.

— Eu acho que temos um acordo implícito de não falarmos sobre o passado — decidi não ser mais sutil, e Kostas reagiu imediatamente:

— Não é implícito. Não quero falar do passado. Mais explícito que isso, impossível!

Eu sabia que não seria fácil, ele é tão fechado quanto eu, então precisei desarmá-lo. Aproximei-me dele por sobre a mesa do restaurante e abaixei o tom de voz:

— Dessa vez, não poderei acatar sua vontade, Konstantinos. Sei que você comprou o sobrado da Rua...

Kostas levantou-se.

— Perdi a fome, vou voltar para a empresa.

Pus-me de pé também e o vi caminhar na direção da saída do restaurante, mas não ia desistir, não quando já havia agitado o vespeiro.

— Eu nunca te pedi ajuda. — Meu irmão parou, mas não se virou para me olhar. Decidi continuar por essa linha de ação: sinceridade. — Eu não podia te ajudar, então nunca pedi ajuda também.

— Alexios, não faça isso...

Eu soube que atingi o ponto certo, pois podia sentir a tensão no seu corpo. Nós dois temos consciência do que passamos na mão do nosso pai e de tudo que fizemos para que a loucura de Nikkós ficasse longe de Kyra. Kostas não aguentou por muito tempo, e eu o entendo, mas fiquei lá sozinho, lutando contra o monstro, tentando proteger minha irmã, mesmo sem ninguém para fazer o mesmo por mim.

Nunca tinha pensado em lhe cobrar, mas situações extremas pedem medidas extremas.

— Eu preciso, senão não faria. Há chances de eu descobrir o que Nikkós fez com minha mãe.

Fiquei satisfeito ao vê-lo se virar completamente surpreso.

— Sua mãe? Você soube algo dela?

— Nada conclusivo, mas acabei cruzando com uma pessoa que, quando soube que eu era filho dele, disse tê-la conhecido.

— Isso é loucura! Você procurou durante sua adolescência toda, quase se matou por isso, não há pistas, não há nomes, não há nada!

Lembranças de anos e anos de buscas vãs me fizeram titubear por alguns instantes. Eu não tinha um ponto de partida na época, pois ela podia ser qualquer pessoa, mas, naquele momento, eu tinha a maldita pista do imóvel.

— Preciso acessar o sobrado — voltei a falar, mas Kostas negou. — Preciso entrar e remexer tudo lá.

— Não!

— Foda-se, eu vou! — Soquei a mesa, decidido, puto demais por estar ali pedindo ajuda a ele pela primeira vez e não ser compreendido. Eu sempre o entendi, sempre o justifiquei quando saiu do apartamento e foi viver sua vida. Quando descobri que o sobrado lhe pertencia, nunca pensei em questionar seus motivos, apenas o entendi. Não era justo não ter o mesmo tratamento e consideração. — Eu sei que, por algum motivo bizarro, você o comprou, trancou-o com tudo dentro e o tem deixado apodrecendo por mais de 15 anos! Pode ter alguma pista lá.

— Não é seguro. Não vou arriscar que você morra lá dentro e eu ainda tenha que responder a...

Caralho de desculpa mais esfarrapada!

— Porra, Kostas, não fode! — Perdi a paciência, circundei a mesa e me aproximei dele, disposto a jogar pesado. — Eu sei dos teus motivos, respeito-os. Como disse, nunca te pedi ajuda antes porque sabia que você também precisava e não tinha a quem pedir, mas agora estou pedindo, agora estou contando com você. Não me faça arrombá-lo, porque eu o farei, apenas dê-me as chaves de todas aquelas grades que pôs lá.

Vi-o pensar, achei mesmo que eu estivesse tocando em alguma parte ainda viva de seu corpo, talvez no menino que conheci quando chegou para morar conosco, mas não, ao que parecia, meu irmão havia virado a porra de uma rocha fria e sem sentimentos.

— Tente invadir. Será um prazer implodir aquela merda com tudo dentro!

A mera possibilidade de ele destruir a única pista que tive do meu passado me desconsertou. Kostas aproveitou-se do momento e foi embora do restaurante.

Fiquei um tempo parado, até que ouvi um leve pigarrear e vi os garçons chegando com nossos pedidos. Estava sem fome, um bolo havia se formado em minha garganta, então pedi que embrulhassem tudo e deixei as quentinhas com o primeiro morador de rua que achei pelo caminho.

Andei sem rumo, sem saber o que fazer ou como agir. Tinha aberto meu peito para ele, pedira ajuda pela primeira vez e recebera um sonoro não. Senti algo inédito pelo meu irmão, raiva. Kostas nunca fora o alvo da minha revolta, pois sempre o compreendi, mas naquele momento não podia mais entendê-lo, não quando eu poderia ter respostas para acabar com minha tortura.

Sair de casa ajudou meu irmão a dar fim ao poder de Nikkós sobre sua vida, mas o mesmo não aconteceu comigo, e, enquanto eu não souber sobre o meu passado, não poderei tirar do homem que me gerou a possibilidade de voltar a me ferir.

O som de mensagem no celular me faz deixar de lado essas lembranças, e eu leio a mensagem de minha irmã me convidando para jantar com ela.


“Kyra, ainda estou na empresa, não poderei ir.”


Envio a mensagem esperando que seja suficiente, mas não é.


“Uma hora você precisará comer, e eu não tenho nenhuma intenção de jantar cedo. Venha no horário que puder, esperarei você.”


Merda, ela sabe ser insistente!


“Ok.”


Olho para o monitor do computador, respiro fundo e desisto de trabalhar. Minha barriga ronca, e decido aceitar o convite inesperado de minha irmã. Antes, porém, olho novamente o endereço do sobrado e traço um plano para invadi-lo sem que Konstantinos tome conhecimento.

As respostas que busco sobre mim mesmo podem ser achadas lá; não vou desistir tão fácil assim de encontrá-las. Nunca desisti fácil de nada, essa não será a primeira vez.

Imediatamente a imagem de Samara aparece em minha mente, e eu bufo, chamando-me de hipócrita. Claro que já desisti fácil de algo, eu só não gostava de admitir isso por não me achar sequer digno dela.

Quem sabe se eu achar as...

Interrompo o pensamento antes de criar ilusões que só serviriam para me machucar. Não há possibilidade de eu tê-la, mesmo que tenha todas as respostas da minha vida. Samara nunca estará ao meu alcance, e, sinceramente, acho bom que não haja nenhum envolvimento entre nós.

Ela merece mais!


Pego mais um copo de café e volto a me sentar ao lado de Daniel, sacudindo a perna, bebericando ou soprando a bebida quente. Olho para o corredor e, sem nem mesmo consumir metade do café, levanto-me para pegar um copo d’água.

Volto a me sentar, as pernas agitadas, confundo os copos e dou uma golada no café fumegante.

— Merda!

Daniel põe a mão no meu joelho e me obriga a parar de sacudir a perna.

— Se você não sossegar agora, juro que te ponho para fora — ele me ameaça.

— Desculpa. — Sorrio sem jeito. — Estou nervosa com os resultados desse primeiro ciclo de quimio e acho que deveríamos ter entrado com ela para saber mais...

— Nosso pai entrou com ela, Samara. Sossegue, você está me deixando irritado parecendo uma criança ansiosa! — Daniel fala alto, e eu o encaro surpresa. — Desculpa. — Ele põe a mão na cabeça e esfrega os olhos. — Eu quase não dormi essa noite, mas você não tem nada a ver com meu mau humor.

— Ela vai ficar bem, Dani. — Ponho minha mão em seu ombro.

— Eu sei que vai! Nunca tive dúvidas disso.

Respiro fundo e concordo com ele, embora não tenha a mesma confiança que ele demonstra ter.

Têm sido dias difíceis desde que cheguei ao Brasil, mas em momento algum me dei a oportunidade de esmorecer perto deles. A cada medicação, mamãe tinha reações mais fortes, requerendo tanto cuidado e atenção que decidi desistir de morar no meu apartamento e voltei para a casa dos meus pais.

Confesso que essa decisão também me ajudou a manter distância de Alexios Karamanlis. Não que eu ache que em algum momento ele tenha notado minha ausência ou se importado com isso, mas para mim fez toda a diferença.

É aquele ditado, sabe? O que os olhos não veem...

Suspiro.

— Você foi incrível nesses dias, Samara — Daniel volta a falar. — Mamãe esteve muito mais à vontade com você por perto do que comigo.

— Não fala besteira, Dani! — Ele sorri, sabendo que é o xodó da mamãe. — Eu gostei de ter conseguido ajudar e estar com ela de novo.

— Ela também ado... — ele para de falar assim que vê nossos pais vindo até onde estamos. Levantamo-nos juntos, apreensivos, esperançosos, e o sorriso de mamãe é reconfortante.

— O que o médico disse? — indago assim que eles se aproximam.

— O medicamento fez o efeito esperado para esse primeiro ciclo. Agora é esperar o tempo de descanso para começar de novo. — Mamãe sorri.

— E a radioterapia? — Dani questiona, e ela dá de ombros.

— O doutor ainda não prescreveu — papai responde. — Vamos torcer para que a quimio resolva sem precisar da rádio! — Ele sorri e abraça mamãe pelos ombros. — Em breve você terá sua vida agitada de volta.

Ela suspira cansada.

— Bom, vamos todos almoçar para comemorar o fim desse primeiro degrau rumo à vitória! — tento animar a todos, mas só meu pai sorri. — Ah, gente, vamos lá! Mamãe?

Ela assente e olha para Daniel.

— Você não está cansada? — meu irmão pergunta a ela.

— Não, podemos ir!

Bato palmas e a beijo na testa.

Eu entendo o desânimo dela, seria cruel não entender, pois, ainda que todos estejamos empenhados em seu tratamento, é ela quem passa por todos os efeitos colaterais dos medicamentos e pela doença. Mamãe nunca foi uma mulher parada ou passiva, e depender de outras pessoas deve estar sendo uma verdadeira prova para ela.

Foram semanas difíceis, não nego. Fiquei totalmente à disposição de minha mãe, levando-a às consultas e às sessões, fazendo companhia a ela, amparando-a em momentos de indisposição e dor. Godofredo e eu nos mudamos para a mansão da família, e eu mal tive tempo para ir ao Castellani ou mesmo visitar amigos.

Kyra esteve várias vezes conosco, geralmente após o expediente de trabalho, quando não tinha eventos. Daniel e Bianca, sua noiva, também estiveram presentes nos jantares e almoços de finais de semana, e, claro, papai.

Sorrio ao pensar em como é bom ter meu pai por perto. Ele e eu temos muitas afinidades, então, passamos muito tempo conversando, vendo filmes ou ouvindo música. Mamãe prefere ler sozinha em seu quarto à noite, por isso faço esses programas todos com papai.

Assim, o mês de janeiro se foi, e fevereiro entrou com força total com a finalização do primeiro ciclo de quimio da mamãe e o inesperado convite de Daniel para que eu trabalhe na empresa com ele.

— Dani, eu sou designer de interiores. Já trabalhei decorando mansões, apartamentos, iates e até um motor home, mas nunca fiz nada empresarial. — Fiz careta ao lhe responder. — É tudo muito frio.

— É um hotel — ele logo me informou. — Vamos redecorar um enorme hotel.

Meus olhos brilharam.

— Ele vai seguir algum padrão já existente? É um hotel de rede?

Ele nega.

— Não. É uma casa de campo que está virando hotel. — Arregalei os olhos. — O projeto de reforma é da Karamanlis, e a executora da obra é a Novak.

— K-Eng? — inquiri baixinho, e ele suspirou.

— É, mas quem está acompanhando é um dos braços direitos do seu amigo.

Havia muitos dias eu já não pensava no Alexios e nem no beijo do Ano Novo. Não foi o primeiro que trocamos depois de umas bebidas, então eu não devia lhe dar tanta importância, embora reconhecesse que ter me afastado do Castellani ajudou muito a manter distância dele. Alexios e eu já não somos mais amigos!

A perspectiva de trabalhar em um projeto como aquele enquanto eu estivesse no Brasil era maravilhosa, mesmo com a possibilidade de encontrar o CEO da K-Eng eventualmente.

— Aceito olhar o projeto e conversar sobre o briefing, só isso. — Daniel sorriu satisfeito. — Se eu puder executar meu trabalho sem a interferência de pessoas que nada entendem de decoração, pego para fazer; do contrário, estou fora.

— É assim que se fala! Você vai amar o projeto de reforma, ficar cheia de ideias, e tenho certeza de que os responsáveis pelo empreendimento vão adorar seu trabalho.

O projeto realmente estava incrível, e a ideia de como os donos queriam a decoração dos quartos e áreas comuns me deixou louca para começar o trabalho. Aceitei a proposta, negociei sob a garantia da Schneider e fechei um belo negócio aqui no meu país.

Penso no meu trabalho na Espanha e Diego me vem à cabeça. Entro no carro, no banco do carona, ao lado de Daniel e suspiro.

— O que foi? — meu irmão pergunta, seguindo o carro do papai para fora do estacionamento.

— Estava pensando no Diego.

— Vocês têm se falado?

— Sim, por mensagens. — Balanço a cabeça. — Não sei mais o que fazer para ele entender que não estou tendo nenhum tipo de crise por conta do tratamento da mamãe. Eu fui sincera com ele quando terminei. Não foi certo fazer por vídeo, mas eu não podia mais me sentir enganando-o.

— Eu entendo você, embora não goste nada do motivo que a levou a isso.

— Não tem nada a ver com Alexios, nós nem temos nos visto. Eu pensei em ir até a Espanha para conversar melhor com Diego, mas acabei de pegar esse projeto enorme e não posso me ausentar por agora. Além disso, ele está seguindo o time na Champions...

— Não sei se é boa ideia você ir atrás dele. Acho-o um tanto insistente demais. Concordo que não foi certo terminar por vídeo-ligação, mas depois disso vocês conversaram várias vezes, e o homem não para de insistir.

Eu concordo, mas ao mesmo tempo me sinto culpada.

— Sim. Mesmo assim sinto que lhe devo uma explicação.

Paramos no farol, e ele me olha.

— Você quer retornar para Madri mesmo depois desse término?

Respiro fundo e dou de ombros.

—Sim, trabalho em uma ótima empresa lá, então, por que não voltar?

Meu irmão ri.

— Isso é você quem tem que responder a si mesma. — Ele me puxa para perto e beija o topo da minha cabeça. — A decisão é sua; certa ou errada, cabe a você decidir o que fazer.

— Eu sei.

Sorrio, mesmo com minha cabeça fervendo de perguntas sem respostas, mesmo sem entender o que eu quero e por onde devo ir.

Fui para a Espanha para fugir de um sentimento que parecia não ter fim, mesmo diante da impossibilidade de se tornar algo real, e acabei fazendo amigos e criando laços por lá, mas é aqui que minha família e meus amigos estão. A decisão não é fácil!

Quanto a Alexios... o sentimento não morreu, obviamente, porém não guardo mais nenhuma ilusão com relação a ele. Sempre serei vista como a grande amiga e nada mais.


— Alexios está esquisito essa semana — Kyra comenta.

Eu rio e bebo mais um gole do vinho.

— Quando ele não foi esquisito? — debocho.

— Exatamente, a esquisitice dele não me surpreende, mas essa semana ele está mais esquisito. — Presto atenção ao que Kyra diz, pois minha amiga não costuma exagerar, pelo contrário. — Eu sei que ele está em um ritmo frenético de trabalho, mas, quando falei com ele ontem, achei-o um tanto...

— Esquisito — complemento, e Kyra revira os olhos ante minha brincadeira. — Kyra, seu irmão é a pessoa mais fechada do mundo, você sabe. Mesmo que ele esteja com merda até nos ouvidos, precisa quase se afogar nela para pedir ajuda ou falar com alguém.

Ela assente, e nós duas ficamos mudas. Eu me lembro de quando tomei conhecimento, pela primeira vez, do que eles viviam com o pai. Alexios telefonou para minha casa pedindo para que eu subisse até a cobertura, pois precisava de um favor. Não pensei duas vezes e fui até ele pensando que queria ajuda com algum jogo ou matéria – história nunca foi o seu forte –, mas, quando o vi, mal conseguia me mover.

Ele estava todo machucado nas costas. Os cortes eram verdadeiros talhos, de onde saía muito sangue, e eu tive que respirar fundo várias vezes para não vomitar.

— Samara, preciso que você seja dura agora — ele me disse com a voz calma, com toda sua sabedoria de 15 anos de idade.

— O que você quer que eu faça? — perguntei temerosa, já prevendo que ele me pediria para limpar e fazer curativos.

O problema era que, por conta do tamanho e da profundidade dos cortes, curativos não seriam o bastante. Ele ergueu uma agulha curva com um enorme pedaço de linha preta.

— Costure.

Neguei várias vezes com a cabeça, incapaz de abrir a boca sem derramar todo o lanche que havia acabado de tomar, mas ele me olhava suplicante. Percebi que, mesmo sentindo dor, ele tentava não demonstrar.

— Você precisa de um médico!

— Não. — Ele ergueu a agulha novamente. — Preciso de você.

Peguei o metal curvado. Minhas mãos tremiam, o queixo também. Era possível ouvir o som dos meus dentes batendo forte um contra o outro. Não entendia o que estava acontecendo, o motivo pelo qual ele estava daquele jeito e não ia até um hospital.

Eu mal sabia bordar, e somente a possibilidade de machucá-lo ainda mais me apavorava.

— Se fosse em outro local, eu juro que não pediria isso a você, mas eu não consigo suturar as costas sozinho.

Foi então que percebi que não era a primeira vez.

— O que foi isso, Alexios?

Ele sorriu tentando me despistar, mas depois suspirou.

— Caí em cima da mesinha de centro da sala lá de cima. — Apontou para o segundo piso da cobertura. — Ela era toda espelhada, por isso me cortei.

— Caiu?

Ele não respondeu, apenas virou-se de costas para mim e começou a me dizer o que fazer.

— A agulha já está desinfetada, e eu tomei banho, mas ainda assim preciso que você passe esse antisséptico, limpe bem o sangue e comece a costurar. — Ouvi o som de sua risada. — Pense que sou um dos seus tecidos finos e delicados de almofada e borde em mim.

Bufei com a comparação.

— Não achei graça nenhuma!

Foi um longo processo, mas cumpri com o que ele pediu e somente anos depois é que entendi tudo aquilo, inclusive a história esfarrapada do “caí por cima da mesa”.

Fiz muitos favores como esse para ele por muito tempo ainda. Aprendi a costurar sua pele, a recolocar seus ossos no lugar quando se deslocavam e até mesmo a imobilizar alguma parte de seu corpo. Porém, mesmo estando ao lado dele em todos esses momentos dolorosos, Alexios só me contou que era o pai que o espancava depois que saiu de casa com Kyra.

Eu sofri tanto por pensar nas atrocidades que eles viveram, porque minha amiga até reclama do irmão, mas são farinha do mesmo saco. Não faço ideia de como Nikkós a afetou, mas é certo que ela não foi poupada da loucura do pai.

— Ei, Samara no mundo da lua! — Kyra me cutuca. — Está pensando em quê? Perguntei por Diego, e você ainda nem me respondeu o que ficou decidido.

— Nada de diferente. — Ela cruza os braços. — Temos conversado bastante por mensagens, mas ele parece não aceitar que acabou. Diz que estou em crise e que, assim que puder, virá ao Brasil.

— Para quê?

— Conversar pessoalmente. — Fecho os olhos. — Gostaria tanto que tudo fosse diferente, sabe? Que eu pudesse gostar dele da forma como deveria.

— E por que não pode? — Olho para Kyra, e ela entende a resposta. — Uma merda isso! Então você não vai voltar para Madri mais?

Penso em Diego e em todo esse tempo em que estivemos juntos, recordo-me de como me senti feliz ao lado dele e do escritório maravilhoso de design em que trabalhei durante esses anos. Ele tem alegado isso, que estou confusa por estar longe, com medo de mudar de vez para Madri e ficar longe da minha família. Não é isso! Ter voltado ao Brasil mexeu, sim, com meus sentimentos, principalmente quebrou a ilusão de que eu tinha esquecido Alexios. Por isso ainda penso em voltar a morar na Espanha, mas não quero mais me enganar e enganar outra pessoa no percurso.

— Eu gostaria de ter essa resposta, Kyra — volto a falar. — Gostaria de saber o que é melhor para mim, mas não sei. Aqui há tantos motivos para eu ficar, como também para que eu vá, mas ainda estou indecisa.

— Eu sei. — Ela sorri compreensiva.

A campainha do apartamento dela soa alto. Estranho, porque ela não me disse que teríamos companhia, mas, por sua reação, Kyra já estava à espera de alguém.

— Talvez o motivo de sua indecisão tenha chegado agora.

Arregalo os olhos com a possibilidade de ser Alexios.

— Kyra, o que você... — não termino de formular a frase, pois minha amiga abre a porta, e o vejo olhá-la com um sorriso cansado, entrar no apartamento e parar surpreso ao me ver.

— Oi — cumprimento-o.

— Oi. — Ele desvia o olhar para Kyra.

— Vou ver se o jantar já... — ela para de falar e ergue a mão dele. — O que houve?

Os olhos de Alexios não deixam os meus, então ele abre um sorriso lindo – esse é o bendito que ele usa quando quer disfarçar alguma situação séria ou desviar o assunto – e dá de ombros.

— Um pequeno acidente besta, nada importante. — Kyra parece não engolir a desculpa esfarrapada também, mas não insiste, pois conhece o irmão muito bem. — Tem cerveja?

— Claro que tem! Vou pegar umas para você. — Ela aponta para mim. — Faça companhia para a Samara.

Nós dois a olhamos, entendendo que o jantar foi uma armadilha dela para que voltemos a nos falar. Sinceramente não entendo minha amiga. Ela sabe o que sinto e o que Alexios não sente, mas ainda assim insiste em nos manter unidos, mesmo dizendo sempre que seu irmão não é uma boa opção para mim.

Como se um dia ele considerasse me ver como mulher!

— Como estão as coisas com sua mãe? — Alexios puxa assunto de repente e se senta em uma poltrona individual bem longe de onde estou.

— O primeiro ciclo de quimioterapia acabou, e ela está bem — respondo seca. — E você, como está?

Ele abre o maldito sorriso fingido.

— Ótimo! Cheio de trabalho, sem tempo para fazer bobagens...

— Não parece. — Aponto para sua mão. — Achei que seus momentos de fúria já tivessem passado desde que começou a praticar esportes. — Ele fica sério. — Por falar nisso, vi o Chicão lá no prédio esses dias. Ele está hospedado contigo?

— Está, como sempre. — Alexios olha para trás, na direção da cozinha de Kyra e respira fundo. — Eu queria pedir desculpas novamente por...

— Não precisa — interrompo-o antes que eu seja obrigada a socar sua cara.

— Preciso — ele insiste. — Kyra me contou sobre seu relacionamento — meu coração dispara ao ouvi-lo falar sobre isso como se não tivesse importância alguma. — Espero que ele seja o homem que você merece e que sejam muito felizes como você sempre sonhou.

Engulo em seco, abro um sorriso – fervendo de raiva da Kyra – e digo a primeira coisa que me vem à cabeça:

— Ele é! — minto, e Alexios fica sério, seus olhos claros fixos nos meus. — Um verdadeiro príncipe como sempre sonhei.

— Quem bom. — Ele se levanta. — Vou até a cozinha pegar a cerveja, estou morrendo de sede.

Acompanho-o com os olhos e, quando desaparece da minha vista, gemo e me dou um tapa na cabeça. Que ridícula! Por que, mesmo sendo tão madura em vários aspectos, sou uma imbecil quando estou perto dele? Parece até que estou de volta ao aniversário de 18 anos da Kyra, quando saímos nós três para comemorar, e eu fiquei com um babaca total só porque Alexios pegou uma das garçonetes da pizzaria.

Não sou mais essa garota!

Alexios e Kyra voltam para a sala, ele, bebendo uma longneck, e minha amiga, com uma travessa na mão.

— Escondidinho de camarão, como vocês dois sempre gostaram — ela anuncia.

— O cheiro está incrível! — elogio, levantando-me do sofá e indo ajudá-la. — Há muitos anos não sinto algo tão delicioso!

— Eu também não — Alexios fala perto de mim.

Os pelos do meu corpo se arrepiam todos por causa do som de sua voz e seu hálito no meu pescoço. Viro-me para ele, sem entender o motivo pelo qual está tão próximo de mim e me surpreendo por um instante ao decifrar seu olhar: fome, e não é de comida.

Balanço a cabeça, achando impossível que seu olhar esfomeado seja para mim e me afasto dele, indo posicionar os pratos como Kyra me ensinou a fazer tempos atrás.

— Andou treinando? — minha amiga brinca ao me ver executar com perfeição seu ensinamento.

— Sim, fiz alguns jantares em Madri — conto orgulhosa. — Recebi poucas pessoas, a maioria amigos, e fiz questão de colocar em prática tudo o que você me ensinou...

— E que você achava que era bobagem! — Ela ri e olha para Alexios. — Uma arquiteta de interiores deve, no mínimo, saber montar uma mesa, não acha?

Alexios franze a testa, pensa um momento e depois concorda.

— Pregar pregos na parede, fazer arranjos florais, pintar um quadro... — Kyra fica séria, e ele começa a rir. — Há profissionais para isso, Kyra, Samara é responsável pelos layouts de móveis e projetos de planejados, não precisa saber fazer tudo!

Kyra parece estupefata, e, confesso, eu também estou, porque geralmente os dois se uniam para brincar ou me provocar, e agora ele acabou de me defender!

Alexios parece ficar sem jeito com o silêncio e dá uma enorme golada, até pôr fim ao conteúdo da garrafinha de cerveja, em seguida volta para a cozinha.

— O que está rolando? — Kyra me pressiona.

— Não sei do que...

— Samara, sem essa de “não sei do que você está falando”. Não nasci ontem, percebi que vocês estão estremecidos. Achei que tinha sido por conta dos anos longe, mas achei que isso ia passar depois do baile, mas então Alexios aparece aqui mais perdido do que cachorro que caiu da mudança e se recusa a falar o que aprontou contigo na virada do ano! — Aproxima-se. — Conte-me já!

Nem em sonho!

— Não há nada para contar.

Alexios retorna, e sua irmã avança para ele igual a um anjo vingador.

— O que está rolando entre vocês dois? — Ela põe a mão na cintura. — Sempre fomos amigos! Éramos um trio, estivemos juntos nos piores momentos de nossa infância e adolescência, parem já com qualquer merda que estiverem fazendo!

— Quanto você bebeu? — Alexios debocha. — Nada está acontecendo, não é?

 

CONTINUA

Kyra sempre foi exuberante, beleza herdada de sua mãe, devo acrescentar, pois Sabrina ainda continua tão linda quanto era na época em que era casada com Nikkós. Contudo, minha irmã ainda recebeu alguns belos traços dos Karamanlis, principalmente da famosa giagiá15, que todos sempre fazem questão de dizer que era linda e tinha a mesma coloração de olhos da minha irmã (e minha também, só que os Karamanlis nunca engoliram bem que eu realmente tenha o sangue nobre deles).

No papel, Kyra e eu somos filhos dos mesmos pais, pois Sabrina me adotou legalmente quando eu ainda era um garotinho. Ela, por poucos meses, possuía a diferença de idade obrigatória pela lei entre nós (16 anos) e, por isso, conseguiu, aos 18, adotar-me aos dois anos. Logo em seguida nasceu a Kyra, e a família ficou completa.

Na verdade, eu nunca soube da minha mãe. Tentei descobrir algo durante a adolescência, principalmente por ser esse um dos pontos que meu sádico pai adorava usar contra mim. Inventar uma história nova a cada dia sobre meu nascimento, minha origem, era sua principal diversão e tortura psicológica.

Nunca entendi nada sobre mim, a única certeza que tenho é de que, infelizmente, sou mesmo filho dele, algo que comprovei através de exame de DNA, cujo resultado positivo nunca divulguei, porque eu tinha esperança de não ter o sangue daquele monstro.

Volto a prestar atenção na foto, dessa vez em meu próprio rosto cheio de enfado por estar naquele baile com elas. Sorrio. Eu fazia esse tipo, mas a verdade é que adorava cada momento que passávamos juntos, pois me sentia em família de verdade.

Ponho a moldura no lugar e respiro fundo, controlando meu corpo, colocando juízo na minha cabeça, ressaltando tudo o que tem de importante na amizade entre mim e Samara e concluindo que um envolvimento fora desses termos entre nós só serviria para destruir anos e anos de companheirismo.

Samara merece ser feliz com alguém que possa ser o homem com que ela sempre sonhou, o príncipe encantado dos seus sonhos de menina, alguém que saiba quem é, que tenha valor e que possa demonstrar todo o amor que sente por ela e reconheça o privilégio que é ser amado.

Esse homem não sou eu!

 

Depois do banho na casa de Kyra, fui direto para a empresa. É providencial ter uma mochila de roupas minhas no apartamento dela, mas confesso que não vou muito de jeans e camisa de malha para a Karamanlis.

Passei no Castellani apenas para pegar minha moto, nem me atrevi a subir até meu apartamento, sendo covarde mais uma vez. A questão é que eu não saberia nem mesmo o que dizer a Samara caso nos encontrássemos de novo.

Estava saindo do estacionamento quando meu celular tocou, mas, como já estava sobre a moto – e não queria demorar muito na garagem, porque o carro de Samara ainda estava na vaga dela –, deixei para conferir a ligação quando estivesse no prédio, o que faço agora, retornando a ligação.

— Oi, Chicão! — cumprimento-o assim que atende.

— Alex, seu grande safado, feliz Ano Novo! — o homem mais velho, que se tornou um grande amigo e a quem eu considero como um pai – no sentido do que realmente um pai deveria ser – por pouco não me ensurdece ao telefone. — Cheguei ao inferno hoje, queria saber se poderia passar uns dias lá naquele seu apartamento cinco estrelas.

Abro um sorriso de felicidade ao pensar que ele está de volta a São Paulo. Francisco Salatiel Figueiroa é o nome dessa figura de quase 60 anos, paulistano – mas que odeia sua cidade natal – e viciado em esportes radicais assim como eu.

Nós nos conhecemos quando eu ainda estava no colégio, devia ter uns 15 anos e fui participar de um racha de moto pela cidade. Ele apareceu por lá, chamou-me em um canto e me convidou a fazer cross ao invés de colocar minha vida e a de outras pessoas em risco correndo pelas ruas.

Comecei a ir para o os circuitos de motocross, tomei muito tombo, enlameei-me até o pescoço e me senti mais vivo do que quando me arriscava nos rachas. Nós nos tornamos amigos mesmo com nossa gritante diferença de idade, pois ele dizia que eu lembrava o moleque atentado que ele mesmo tinha sido um dia, e comecei a acompanhá-lo em suas atividades.

Foi por causa dele que deixei de buscar alívio e fuga nas drogas, pois conseguiu me mostrar que, se eu quisesse me livrar de Nikkós, teria que ser melhor que ele. Não foi um processo fácil, admito, levei anos para entender e ouvir seus conselhos, mas nem por isso ele desistiu de mim ou se afastou.

Francisco começou a me mostrar que eu poderia extravasar toda minha angústia, solidão, medo e revolta em esportes como trilhas de moto, bike, escaladas, voos livres, paraquedismo e, quando tirei minha carteira de motorista, apresentou-me a alguns amigos dos circuitos de motovelocidade.

Os esportes aliviavam meu corpo da tensão vivida em casa, mas minha cabeça e minha alma continuavam pesadas, então, um dia, ele me viu desenhar e descobriu como eu poderia tratar os demônios dentro de mim.

Devo muito a ele, não só pelo equilíbrio que consegui hoje em minha vida, como também por permanecer vivo e são. Samara e ele foram os únicos a permanecerem ao meu lado nos piores momentos da minha vida, ela me auxiliando principalmente com Kyra, e ele entendendo meus problemas e me ajudando a achar soluções.

— Meu apartamento é seu! Te dei a chave, afinal.

— Eu sei, mas é sempre bom dar uma conferida, vai que você resolveu sossegar seu pau numa boceta só.

Gargalho com seu jeito rude e direto.

— Não, meu pau ainda gosta de explorar por aí. — Ele me chama de “vadio” e ri. — Estou na Karamanlis agora e...

— Ah, me diz que estou sonhado... — estranho o que ele fala, escuto vozes ao fundo e percebo que não falou comigo. Espero que ele retome a ligação, entro no elevador, cumprimento as pessoas com a cabeça e sorrio para uma mulher gostosa que nunca vi aqui no prédio. — Seu trapaceiro de uma figa! Samara está de volta e, caramba, mais linda do que nunca.

Só de ouvir o nome dela, sinto meu corpo reagir como se uma descarga elétrica tivesse me atingido.

— Encontrou-se com ela agora?

— Sim, seu embuste! Quantos anos ela esteve fora? Caralho, você já a viu?

Franzo a testa, desço no meu andar, confuso com a perplexidade dele apenas por ter visto a Samara no prédio, afinal, ele sabe muito bem que ela tem um apartamento lá.

— Já, desde que chegou — respondo distraído, acenando para os funcionários da K-Eng. — Por quê?

— Alexios, eu sempre me perguntei se você era cego ou apenas muito burro. — Ouço o barulho de uma porta se fechando. — Nunca entendi por que vocês dois nunca tiveram nada um com o outro.

Paro no meio do corredor, atraindo os olhares de pelo menos dois engenheiros que passam por mim. Que merda é essa?!

— Ela é minha amiga — digo o óbvio.

— Ela é incrível e sua amiga, isso já não é meio caminho para um relacionamento de sucesso?

Um alerta dispara em meu cérebro. Chicão nunca foi um homem ligado a relacionamentos permanentes, tanto que é solteiro até hoje, então não entendo o motivo pelo qual está falando essas coisas sobre mim e Samara.

— Chicão, sou eu! Eu não tenho relacionamentos, eu fodo por aí, só isso. E, definitivamente, Samara não é uma mulher apenas para se foder.

Ele emite um grunhido, e, ao fundo, escuto o bipe da minha cafeteira sendo ligada.

— Nisso concordamos. Mas ela é incrível, sempre foi, se eu tivesse a sua idade e a sua aparência, não perderia a oportunidade de tê-la comigo.

Mas o que... Arregalo os olhos, e meu coração dispara.

— Você está morrendo? — inquiro-lhe como se fosse a única opção válida para essa mudança de comportamento.

Chicão gargalha.

— Não, mas estou ficando velho e sozinho. — Bufa. — Mas isso não é assunto para discutirmos ao telefone, já que você está na empresa.

— Chicão, está tudo bem?

— Vai trabalhar, embuste, depois conversamos. Viajei a noite toda, quero tomar um banho, comer algo e dormir um pouco. Obrigado pelo abrigo.

Ele ainda não me convenceu, algo está errado.

— A casa é sua! — declaro, e ele encerra a ligação.


— Quer mais um travesseiro? — pergunto à minha mãe assim que ela se deita na cama.

— Não, filha, estou bem. — Sorri, mas o cansaço não permite que o faça por muito tempo. — É sempre assim no dia da medicação, mas passa.

Balanço a cabeça concordando, enternecida por ela estar tentando me consolar, quando é ela quem está passando por isso tudo. Sempre a admirei por sua força, seu destemor e a capacidade de realizar qualquer coisa que se propunha a fazer.

Mamãe não tem um gênio fácil de lidar, mas nunca negou amor e afeto aos seus filhos, mesmo sendo brava e exigente como era. Dani e eu tínhamos muito mais medo dela do que do papai, que sempre foi mais maleável, mas moderno e liberal.

O relacionamento dos meus pais, enquanto casal, não era um mar de rosas, mas eles eram amigos, companheiros. Ele sempre a apoiou em tudo, e ela acima de tudo o admirava. Não tinham grandes arroubos de paixão, pelo menos não na nossa frente, mas se respeitavam, conversam, riam e, principalmente, nos amavam muito. Dani, como filho e mais velho, sempre foi agarrado a minha mãe mais do que a nosso pai. Os dois se dão bem, são muito parecidos em alguns aspectos, mas quem sempre teve mais afinidade com papai fui eu.

Acho que nossas almas são parecidas. Ambos somos apaixonados pelas formas, perfeccionistas, românticos e, arrisco dizer, sonhadores. Eu sou assim, gostaria de ser prática como mamãe, mas há muito que parei de tentar ser quem não sou. Demorei, mas consegui aceitar meu jeito e me respeitar acima de tudo.

É dolorido tentar ser quem não é para se encaixar ou seguir uma tendência. Eu sou forte, mesmo sendo doce; sou feminista, mesmo sendo feminina e vaidosa; sou empoderada, mesmo sonhando em casar e ter uma família.

Eu me importo com a opinião alheia, sim, porque ninguém é uma ilha e não teria sentido na vida se todos fôssemos autossuficientes e não dependêssemos de ninguém. Não tenho preconceitos, sou feliz com a felicidade dos outros e não me importo que a recíproca não seja verdadeira. Cada um escolhe o caminho que quer percorrer. Eu escolhi ser assim, exatamente como sou.

Chegar até essa conclusão não foi fácil, principalmente quando se percebe que o homem por quem você é apaixonada prefere as mulheres que têm atitude, que são furacão e não calmaria. Eu quis fazer tipo e percebi que estava indo na contramão de tudo o que uma “mulher de atitude” prega, que estava tentando ser outra pessoa para agradar a um homem.

Foi aí que aquela máxima tão clichê, mas que é tão difícil de ser vivida, fez sentido para mim: quem me amar, precisa me conhecer e me aceitar como sou.

Demorei a perceber a importância disso, precisei praticamente ter isso esfregado na cara. Então arrumei minhas malas, disse ao meu pai que não iria para Barcelona, mas sim para Madri, e segui com minha vida.

Alexios foi o estopim que eu precisava para explodir naquela época, depois de ter aparecido no meu apartamento bêbado a ponto de não se aguentar de pé. Ele pediu para dormir no meu sofá, tivemos uma dura discussão quando tentei lhe passar sermão e, no meio da noite, acordei com ele na minha cama.

Fiquei sem reação quando senti sua mão na minha cintura, alisando minha pele por cima do pijama de seda. Fechei os olhos, excitada e ansiosa, e o deixei prosseguir com a exploração. Não o impedi quando me virou, nem quando me beijou e subiu em cima de mim. Tinha esperado por aquilo a vida toda, e estava acontecendo.

Ledo engano!

Ele ficou imóvel, esmagando-me com seu peso, então percebi que havia dormido. Joguei-o para o lado e passei a noite em claro, sem entender nada, esperando que ele acordasse e explicasse.

Acabei dormindo e acordando sozinha na cama. Ele tinha ido embora, e não conversamos, mas esperei que a conversa viesse mais tarde. Não veio. Ele simplesmente ignorou o beijo, as carícias, como se não fossem nada, como se eu não fosse nada.

Fiquei irritada, subi para perguntar diretamente a ele o motivo pelo qual tinha me beijado, mas, quando cheguei ao seu apartamento, estava rolando uma de suas festinhas regada a bebidas e sexo, e o filho da mãe estava sentado no sofá com uma mulher de cada lado em um beijo triplo.

Ele nem me viu, fechei a porta, desci e decidi parar de protelar minhas decisões esperando por algo que nunca iria acontecer. Um relacionamento com Alexios era uma ilusão infantil, mas eu já não era mais criança.

Viajei dois dias depois e pensei que, quando voltasse, toda essa ilusão teria se desfeito.

— Então o nome dele é Diego — mamãe fala, e eu quase pulo de susto, deixando as lembranças para tentar entender do que ela está falando. — Diego Vergara!

Sento-me na beirada da cama, curiosa sobre como ela conseguiu essa informação.

— O nome dele é mais comprido do que isso, mas, sim, Diego Vergara.

Ela sorri cheia de sabedoria.

— E você deve estar aí querendo saber como eu sei o nome dele. — Concordo. — Seu irmão me contou.

Daniel e sua boca! Meu irmão sempre foi o maior X9 do mundo, não é de se espantar que tenha contado sobre o Diego para minha mãe.

— Há quanto tempo estão juntos?

Não sei o que dizer a ela e agradeço quando uma enfermeira entra no quarto, dando-me a desculpa perfeita para escapulir de sua curiosidade. O fato é que tudo mudou depois da noite do baile dos Villazzas.

Não sei o que levou Alexios a me beijar daquela forma no elevador, eu estava bem bêbada dessa vez, mas ele não tanto, além disso, eu senti a energia entre nós, senti o tesão que ele exalava, que trazia na saliva e em cada toque no meu corpo. Alexios não escondeu em nenhum momento o quanto estava excitado, esfregou sua ereção contra mim, esmagou-me contra o espelho do elevador parecendo que queria me comer ali mesmo.

Depois, do nada, mudou. Pediu desculpas! Desculpas por me beijar! Só faltou dizer que estava com tesão, e eu era a única mulher próxima dele, mas que nem assim servia.

Para piorar, quando entrei no apartamento e peguei o celular, vi uma mensagem de Diego dizendo o quanto sentia minha falta e como ele gostaria de poder estar aqui comigo. Foi a gota d’água! Senti-me um lixo, uma pessoa má que engana e trai e percebi que tê-lo deixado na Espanha sem uma resposta definitiva foi uma atitude egoísta.

Chorando, sem pensar direito, fiz uma chamada de vídeo para ele e, quando atendeu, disparei:

— Diego, eu sou uma pessoa horrível, mas não posso fazer isso com você! — Soluçava tanto que ele se assustou e me pediu para falar devagar. Todavia, eu não conseguia. — Você é um homem incrível, um amigo maravilhoso, e eu adorei cada momento que passamos juntos...

— Calmarse, Samara! Yo no comprendo!

— Você merece mais, merece alguém melhor, e eu não posso...

— Usted está me dejando preocupado, cariño.

— Eu não queria fazer isso assim, por telefone. — Ele ficou sério, atento, prevendo o que eu lhe diria. — Mas não é justo que você fique aguardando minha volta para que eu diga isso. — Respirei fundo, armando-me de coragem. — Eu não posso aceitar seu pedido, Diego. Eu não estou pronta para amar você como deveria, como você merece.

— Samara, sucedio algo com su mamá?

Neguei.

— Não. Sou eu, não mereço você. Você tem razão ao dizer que meu coração nunca pôde estar aí contigo.

— Samara, despues hablamos, está muy nervosa. — Tentei dizer a ele que não, mas não me deu oportunidade: — Tengo que ir.

— Diego, não...

Ele encerrou a chamada. Tentei retornar outras vezes, porém a ligação não completava. Deixei mensagens, mas que, até o momento, ele não visualizou. Volto a olhar para mamãe, que boceja, visivelmente cansada, e fecha os olhos, recostada nos travesseiros, enquanto a enfermeira mede sua pressão. Eu voltei ao Brasil apenas por causa dela, para estar ao seu lado nesses momentos tão difíceis, não por qualquer outro motivo. Sinceramente, não esperava essa pressão acerca de Alexios e Diego. Minha família nunca foi assim, muito menos mamãe, que sempre pregou que uma mulher não precisa de marido e filhos para se sentir completa e feliz.

Mamãe adormece, e eu saio do quarto. Quando estou prestes a descer a escada, escuto uma voz conhecida e muito amada:

— Minha Samara está de volta! — Papai está no corredor de braços abertos. Sorrio e vou até ele para abraçá-lo. — Ah, que saudades!

— Eu também estava, mas cheguei há mais de uma semana, e você nem se dignou a vir me ver.

— Eu sei, mas agora vim para ficar, Herzchen16, e estou feliz por te ter de volta aqui em casa. — Ele beija minha testa. — Não pretende voltar para a Espanha, não é?

Suspiro. Papai foi o primeiro a me incentivar a ir estudar fora, mas o único a ficar chateado quando decidi ficar depois que terminei a especialização. Nunca foi me visitar. Embora falássemos sempre, eu percebia que ele ainda não havia entendido minha necessidade de ficar longe.

— Vou voltar, sim, tenho compromissos de trabalho por lá que...

— Besteira! Aposto que você já tem tudo desenhado e organizado e que, em uma visita ou duas, poria fim a esses “compromissos”.

— Papai, não vim para ficar, e o senhor sabe. Mamãe está na parte mais agressiva do tratamento, e Dani precisou de mim para ajudar a cuidar dela e acompanhá-la...

— Estou aqui também! — ele se ofende por não ter sido incluído. — Ela diz que não precisa de mim, mas estou aqui, sempre estive por ela.

Oh, Deus, que situação!

— Eu sei, pai.

Benjamin Abraão Nogueira Klein Schneider nunca entendeu bem a distância fria de mamãe, por mais que os dois sempre tenham se dado bem. Acho até que foi por esse motivo que se afastaram depois que crescemos e que, após minha ida para a Espanha e a de Dani para seu próprio apartamento, papai decidiu se mudar para a fazenda.

Uma vez, quando eu ainda era uma garotinha, eu o vi bêbado no escritório do antigo apartamento em que morávamos. Ele bebia e parecia mal, chorava e segurava alguns documentos. Quando me viu, tentou sorrir e me chamou para perto de si.

— Tudo bem? — perguntei na inocência dos meus oito anos de idade e limpei suas lágrimas.

— Tudo. — Ele guardou a papelada dentro de uma caixa, onde vislumbrei também algumas fotos, trancou-a com chave e depois respirou fundo. — A vida adulta é complicada, Herzchen. Fazemos escolhas baseadas no que achamos ser melhor e esquecemos o preço que isso cobra, tanto aqui — ele apontou para sua cabeça — quanto aqui. — E, por fim, tocou em seu coração.

Na época não entendi nada, mas esse momento nunca deixou minha memória e, com o tempo, supus que ele estivesse falando de seu relacionamento com mamãe. Os dois se davam bem, mas era ele quem sempre cedia numa discussão ou quem corria atrás quando as coisas ficavam tensas entre eles.

— Vi seu bichinho pré-histórico lá no jardim comendo algumas plantas — ele ri, mudando de assunto. — Você poderia ter adotado um cachorro ou um gato como qualquer outra pessoa, não é?

— Pai, eu o ganhei de presente e gosto dele.

— Mas ele é feroz! — Faz cara de medo. — Já me mordeu algumas vezes.

Gargalho.

— Godofredo é muito territorialista, ele sempre ataca os homens.

— Hum, que interessante! Começo a gostar desse bichinho. — Rio do seu ciúme. — Você não trouxe nenhum espanhol junto contigo, não é?

Suspiro.

— Não. E se o Dani disse algo para o senhor também, ele é...

Benjamin me afasta de seus braços, segurando-me pelos ombros, e me olha surpreso.

Merda!

— Ele não disse nada, não é? — pergunto, achando-me idiota.

Meu pai nega:

— Era só uma pergunta brincalhona e especulativa. — Olha em volta. — O que ele deveria me dizer?

— Eu tinha um namorado em Madri, mas ele ficou por lá.

Ele põe a mão sobre o peito.

— Adorei esse tempo verbal: “eu tinha um namorado”. — Rio. — Agora você terá que me contar sobre esse tal...

— Ele me pediu em casamento — disparo. — Mas eu não pude aceitar.

Ficamos um tempo um olhando para o outro, parados no corredor, sem emitir um som sequer. Papai sempre foi bom ouvinte e dava bons conselhos. Mesmo não sendo muito de falar sobre como se sentia, mesmo reservado em seus sentimentos, até mesmo com seus filhos, ele sabia ouvir sem julgar e só opinava quando achava necessário, o contrário de mamãe.

— Preciso de um café ou de algo mais forte — confessa, e eu rio nervosa. — Vou falar com sua mãe e...

— Ela acabou de dormir — informo-lhe.

— Certo! — Respira fundo. — Se lembra daquele seu namorado da faculdade? — Gemo e assinto. — Você tinha dúvidas quanto ao caráter dele e, mesmo com todos os seus instintos te alertando que algo não estava bem, você aceitou o namoro e...

— Meus instintos estavam certos, ele era um pilantra filho da puta casado!

— E eu quis castrá-lo. — Ele sorri doce, como se isso não fosse nada. — Enfim, o meu conselho para essa questão sempre é: siga seus instintos. Se você não se achava pronta para aceitar o pedido, então fez certo ao recusá-lo.

— Então, você acha que eu fiz certo ao ouvir meu coração?

Ele ri e nega.

— Não, eu disse para ouvir seus instintos, porque seu coração não tem juízo. — Eu rio, achando que ele está fazendo troça, mas, então, ele completa: — Já se apaixonou uma vez por Alexios Karamanlis!

Fico séria, coração disparado, porque, embora ele saiba de todos os meus namorados e experiências, nunca contei a ele sobre Alexios.

Era óbvio para todos, não sei como consegui enganar a mim mesma! Eu ainda amo aquele safado!


— Alexios? — Termino de calçar os tênis antes de me virar para olhar Laura deitada na cama. — Já vai?

Ela se contorce languidamente, seu corpo curvilíneo, dourado de sol se mexendo contra os macios e perfumados lençóis de sua cama. Sorrio, deslizo a mão pela curva de seu lindo rabo e desfiro um tapa nele, fazendo-a rir.

— Preciso ir, tenho reuniões importantes agora de manhã na empresa, e, com a viagem de Theodoros para a Grécia e a demora na volta de Millos, as coisas ficaram acumuladas entre mim e o Kostas.

Ela bufa e se senta.

— Eu sei, ontem eles me passaram as informações sobre a propriedade no Rio de Janeiro, da reunião que tiveram na quinta-feira. — Ela dá de ombros. — Achei que Kika ia aparecer cheia de gás na sexta-feira, mas nem ela e nem seu irmão apareceram na empresa.

— A área é boa mesmo? — pergunto, pois apenas vi algumas imagens do local, e, como Laura é do geoferenciamento, deve ter detalhes bem específicos.

Ela confirma.

— O pessoal do jurídico está alvoroçado, e fiquei sabendo que o Leo, o braço direito da Kika, pediu para o pessoal acelerar com as outras áreas, porque gostaram muito da do Rio. — Laura me abraça pelos ombros e lambe minha orelha. — Falando em acelerar, adorei aquela rapidinha ontem na sala de servidores.

Eu rio, mas balanço a cabeça.

— Você jogou sujo comigo. — Levanto-me da cama, e a safada senta-se na beirada do colchão, os peitos cheios e rosados, as coxas musculosas bem abertas. Porra! — Goza para mim! — ordeno, e ela não se faz de rogada, tocando-se sem nenhum pudor. Vou até uma das luminárias, acendo-a e tenho a visão perfeita de sua boceta totalmente depilada já molhada de tesão.

Foda-se!

Apenas abro o cinto da calça, baixo o fecho e saco meu pau para fora. Pego uma camisinha em cima de seu criado-mudo, e ela ri quando avanço até onde está.

— De costas!

Ela se deita de bruços, e eu me agacho para entrar em uma única investida. Fecho os olhos, concentrando-me nas sensações, excitado com seus gemidos, mas, de repente, sinto um cheiro diferente, os sons mudam, e um rosto doce, sorridente, de lindos olhos castanhos aparece em minha mente.

Xingo alto, querendo expulsar a imagem de Samara, aumento as estocadas até sentir as pernas arderem e gozo sem ao menos saber se minha parceira teve seu prazer.

Caralho!

Afasto-me dela e apoio as mãos contra o aparador, colocando a culpa das súbitas aparições de Samara em minha mente na distância que impus entre nós depois daquele beijo no elevador. Claro que, se ela não tivesse se mudado para a casa da mãe, certamente essa distância não seria tão dura, afinal, eu poderia encontrá-la casualmente pelos corredores do Castellani, mas quem disse que a sorte gosta de mim?

Agora, além de ter visões dela durante minhas trepadas, acordo excitado por algum sonho erótico protagonizado por ela e ainda tenho que aguentar os questionamentos de Kyra e de Chicão sobre o motivo pelo qual eu e Samara não nos falamos mais.

— Tudo bem? — Laura me toca o ombro, fazendo com que eu desperte dos devaneios sobre Samara.

— Tudo. — Retiro a camisinha e a jogo no lixo. — Preciso ir, já está amanhecendo.

— Eu sei.

Ela sorri, doce e compreensiva, e eu respiro fundo, sabendo que estou fazendo merda. Primeiro, por ela ser funcionária da Karamanlis, e segundo, por eu estar fazendo sexo com ela há duas semanas.

Nunca fico tanto tempo com alguém. Para falar a verdade, não me lembro da última vez que mantive uma única parceira, mas, por algum motivo, tenho andado preguiçoso, sem vontade de sair e, como trepei com ela e gostei, achei mais simples continuar.

Despeço-me dela apenas com um aceno de cabeça. Laura me acompanha até a porta de seu apartamento, e eu desço até o térreo, onde minha moto está estacionada em frente à portaria do prédio.

Sigo para o Castellani, mas a cabeça continua a vagar por lembranças dessas longas seis semanas desde o baile dos Villazzas. Tanta coisa aconteceu dentro e fora da Karamanlis, ainda assim senti o tempo passar lentamente.

No trabalho, as coisas começaram a ficar mais intensas, apesar de começo de ano sempre ser mais devagar. Com a conta da Ethernium, tive que mobilizar boa parte dos profissionais para elaborar croquis baseados na planta da siderúrgica e as áreas que foram aparecendo. A volta de Kika à empresa foi providencial, pois ela nos apresentou uma ideia que facilitou muito a vida de todos.

Eu ainda estou surpreso por Theodoros ter colocado a gerente dos hunters e meu irmão trabalhando juntos, pois isso não é algo do perfil do meu irmão mais velho. Foi então que, conversando ao telefone com Millos, descobri que tinha dedo dele nessa história.

A ideia de os dois trabalharem juntos não surgiu na reunião preliminar do projeto, mas foi algo que Theodoros e Millos combinaram assim que souberam que ela iria voltar para a empresa. Agora, conhecendo Millos como conheço, só me pergunto o que, especificamente, meu primo pretendeu ao dar essa sugestão.

Esperei que os dois se matassem desde a primeira semana juntos, ainda mais depois que Theodoros viajou, mas não, aparentemente tudo tem transcorrido bem entre os dois, e a conta da Ethernium parece estar em boas mãos.

Em casa, com a presença de Chico, que ainda está por lá, tenho sempre companhia para jogar bilhar, videogame ou para corridas aos finais de semana. Decidi não participar de nenhum campeonato este ano, nem de moto, nem de carro, pois o trabalho iria consumir muito de minha equipe, e eu não sou o tipo de chefe que deixa seus funcionários se fodendo de trabalhar e sai cedo para treinar ou viajar. Não sou profissional por isso, não consigo me dedicar integralmente às corridas, embora goste muito delas. Vejo-as com um hobby, assim como os esportes e outras atividades que uso para ocupar minha cabeça.

Entro na garagem do prédio, paro a moto e, assim que tiro o capacete, paro em seco ao ver Samara.

— Bom dia — ela me cumprimenta, sem parar para falar comigo e sem olhar para trás.

Confiro as horas no relógio e estranho que ela esteja saindo tão cedo de casa.

— Algum problema? — pergunto preocupado.

Samara para e me olha.

— Não. — Abre o carro, mas me aproximo antes que entre. — O que foi, Alexios? — sua voz é impaciente, e eu percebo que o clima estranho está de volta.

— Como está sua mãe?

Ela franze a testa, ajeita o cabelo e ri amarga.

— Teve que se encontrar casualmente comigo para lembrar que minha mãe está doente? — Balança a cabeça. — Sempre soube que você era desligado com as coisas, Alexios, mas na verdade é um egoísta.

Suas palavras cheias de mágoa me acertam. Aperto a mão no capacete, ciente de que ela tem razão. Eu poderia tê-la procurado, ter ligado, ter sido o amigo que ela merecia, mas, em vez disso, escolhi me afastar e deixá-la sozinha com seus problemas.

Sim, além de covarde, um grande egoísta!

— Você tem razão. — Aceno. — Bom dia.

Dou a volta e sigo em direção ao elevador, achando-me ainda mais desprezível do que sempre me achei.

— Ela está melhorando — a voz de Samara ecoa na garagem, e eu paro. — A quimioterapia está tendo os resultados esperados, e os médicos estão confiantes.

Viro-me para olhá-la, ainda parada do lado de fora do carro, com a porta do motorista aberta.

— Eu sinto muito por não ter ligado antes. — Ela dá de ombros como se não se importasse, mas sei que se importa; eu me importaria. — Você tem razão sobre eu ser um egoísta, você merecia um amigo melhor.

Samara bufa e, sem dizer nada, entra no carro, fecha a porta e liga o motor. Instantes depois, vejo-a passar por mim sem dizer nada e me sinto um bundão. Subo para meu apartamento e, assim que entro, encontro Chicão no meio da sala, usando apenas uma cueca, meditando.

— Que visão do inferno! — sacaneio e sigo para meu quarto.

— Bom dia, embuste! — saúda-me sem ao menos abrir os olhos. — Você deveria tentar, pelo visto nem suas trepadas diárias estão conseguindo mantê-lo relaxado, então, quem sabe a meditação...

— Nem fodendo! — grito para ele e sigo para o banheiro.

Somente quando fecho a porta é que toda a armadura se vai. Fico parado, olhando para o espelho, tentando analisar além da aparência que todos veem. Eu sou um filho da puta egoísta e imbecil, um impostor, uma fraude gigante que perambula pela cidade sem nem mesmo saber quem é.

Anjo dos Karamanlis! Engenheiro filantropo! Chefe preocupado com funcionários... tudo mentira!

Retiro a roupa, jogando-a no cesto de roupa suja antes de me enfiar debaixo da água gelada do chuveiro. Gostaria que, da mesma forma que essa água consegue limpar meu exterior, pudesse fazer o mesmo dentro de mim. Sou tão vazio e frio quanto meu irmão do meio e tão arrogante e egoísta quanto Theodoros. Sou tão louco quanto Nikkós!

Doeu-me ver e ouvir a mágoa que causei em Samara, mas é somente isso que causo nas pessoas. Decepção! Eu não mereço sua amizade e nem estar perto dela. A raiva de mim mesmo explode como há muitos anos não a sinto. Sem pensar, soco o vidro do boxe, que se espatifa e desaba sobre mim.

A porta do banheiro é aberta com um estrondo, e um apavorado Chicão aparece, olhos arregalados, olhando a destruição que causei ao meu banheiro.

— Merda, Alexios! — Ele salta em minha direção sem se preocupar com os cacos de vidro pelo chão e tenta me tirar do boxe. — Porra, sai daí.

Nego, o sangue escorrendo pelo ralo do banheiro, minha mão ardendo, assim como meus braços e os pés. Não me movo, apenas tremo, tentando ainda conter toda a fúria dentro de mim.

— Sai daí, Alex, você está ferido, porra! — Chicão grita.

— Não! — Não me movo. — Eu sou um lixo! Ele nunca deveria ter me pegado no lixo onde me encontrou, deveria ter me deixado morrer, deveria...

— Para com essa merda! — Some para dentro do meu quarto e, quando volta, está calçando meus coturnos. — Você não vai mais fazer isso, ouviu?

Chicão entra no que restou do boxe, desliga a água, joga uma toalha sobre meu corpo e me ergue. Não consigo reagir, a cabeça girando, todos os insultos e histórias sobre mim que ouvi de Nikkós por tantos anos enchendo meus ouvidos, torturando-me mais uma vez, ressaltando o quanto sou desprezível.

— Você não vai fazer isso consigo mesmo de novo, ouviu?! — Chicão esbraveja, fazendo pressão com a toalha de rosto na minha mão. — Ele te machucou, você se machucou, mas essa merda já acabou faz tempo. Ele não pode mais, Alexios, nem te tocar e nem contar mentiras a você. Chega!

Nego.

— Eu sinto tanta raiva... — Meus dentes batem um no outro, e eu os travo. Minha vontade é de gritar, socar, foder com tudo.

— Eu sei, já passamos por isso antes, e eu... — ele baixa o tom de voz e expira — achei que já tinha superado.

— Como? — questiono-lhe. — Como posso esquecer, se continuo a ser a mesma pessoa desprezível de sempre? Não são as marcas que ele causou no meu corpo que me causam essa raiva, sou eu!

— O que aconteceu?

Nego, trêmulo e me sento na cama. Gemo ao sentir as dores dos cortes, percebendo que a adrenalina passou mais rápido do que antigamente. Eu aprendi a controlar a dor usando a raiva. Durante anos de espancamento, percebi que, quanto mais raiva eu sentisse, menos dor ele me causava. Mais tarde, quando sentia raiva por qualquer motivo, eu mesmo me machucava, levava-me ao limite do meu corpo e quase me destruía.

Era um círculo vicioso que eu achei que já havia passado, mas, aparentemente, não.

— Encontrei Samara na garagem, provavelmente indo se encontrar com sua mãe e levá-la ao hospital — confesso, cansado demais para guardar qualquer coisa. — Eu não a via há semanas, desde o baile dos Villazzas no Ano Novo.

— Eu também só a vi uma vez aqui no prédio...

— Eu não liguei, não procurei por ela, não justifiquei meu ato e nem meu sumiço — interrompo-o e o encaro. — Ela está magoada comigo.

Chicão confere o sangramento da mão, tirando a toalha e depois se senta ao meu lado na cama.

— Por que você fez isso? Sumiu e não a procurou?

Respiro fundo; comecei o assunto, agora preciso terminá-lo.

— Preferi me afastar. — Olho para baixo, envergonhado. — Eu quase trepei com ela no elevador aqui do prédio. — Fecho os olhos. — Eu a quis como mulher, não consegui reprimir a vontade, como sempre fiz, e agi feito um idiota excitado.

— Ela o repeliu?

— O quê?

— Samara o repeliu? Te xingou? Bateu em você? Disse que você abusou dela? Mandou que ficasse longe?

Lembro-me daquela noite, a forma como reagiu ao beijo, o jeito que gemia e parecia tão excitada quanto eu.

— Ela estava bêbada, me aproveitei dela, sou um canalha.

— Nisso concordamos, mas o que ela pensa sobre o acontecido?

Balanço os ombros.

— Não sei, não falo com ela desde então. — Lembro-me da conversa com Kyra no dia seguinte ao baile e praguejo. — Ela está noiva.

— Samara? — Assinto. — Que merda!

— É, o beijo foi uma merda enorme, e eu não sei como...

— Não, seu idiota! — Ele estapeia minha cabeça. — Que merda que Samara esteja noiva, ela é a mulher perfeita para você.

Olho-o como se ele estivesse louco.

— Claro que não, ela merece alguém muito melhor do que eu! Samara nunca cogitou qualquer tipo de relacionamento comigo a não ser o de amizade.

Chicão bufa.

— Você não é idiota, Alexios Karamanlis, é um burro!

Ele joga a toalha, manchada de sangue, no chão do quarto e sai puto comigo ou com alguma coisa que eu disse. Ele não entende, óbvio! Samara é... especial, e alguém especial como ela nunca se relacionaria com alguém tão ordinário como eu.

Olho para minha mão e rio ao pensar na bagunça que sou.

Obviamente ela nunca se relacionaria e nem deveria se relacionar com alguém tão fodido como eu.

 

— O que houve com sua mão? — Laura me pergunta de repente, assustando-me, pois eu nem mesmo sabia que estava por perto. Encaro-a sem entender como e o que está fazendo aqui na K-Eng. Seu olhar é de assombro aos machucados em minha mão, além de questionadores, o que me irrita um pouco.

— Um pequeno acidente — respondo seco. — O que você está fazendo aqui?

Levanto-me da mesa, agradecendo por não ter mais ninguém por aqui a essa hora e fico de frente para ela. Laura abre um sorriso sem graça, mas logo se pendura em meu pescoço.

— Tem mais de uma semana que não te vejo, você não liga e nem aparece lá no meu apartamento. Então, se Maomé não vai até a montanha...

Reviro os olhos e retiro as suas mãos de mim.

— Laura, você trabalha na Karamanlis, então já deve ter percebido a movimentação infernal na empresa por conta da Ethernium. — Ela concorda. — Além disso, não entendi o motivo pelo qual eu deveria dar satisfação ou ter regularidade em nossos encontros.

A moça arregala os olhos por causa de minha sinceridade.

— Eu pensei que... — ela suspira — estávamos tendo essa regularidade, afinal, ficamos juntos por umas semanas e...

— Ficamos porque estava gostoso — não tenho medo de ser direto. — Mas não significa que temos qualquer tipo de compromisso. Não sou desses, Laura, e foi a primeira coisa que te disse quando trepamos a primeira vez.

Ela fica um tempo muda, olhando para o nada, então, de repente, abre um sorriso e desliza a mão pelo meu peito.

— Disse. Como disse também que queria trepar mais, lembra? Eu ainda quero mais, Alex — sua voz é ronronante. — Sempre imaginei como seria fazer sexo aqui na sua sala.

Respiro fundo, levemente excitado com o oferecimento, contudo, sem nenhuma vontade de fodê-la aqui – ou em qualquer outro lugar – depois desses questionamentos.

— Infelizmente, eu estou muito ocupado agora, motivo pelo qual ainda estou na empresa quando todos já foram. — Ela faz um biquinho, mas me afasto e volto a me sentar à mesa. — Acho melhor você ir.

Ela bufa.

— Sério isso?

Volto a olhá-la, sem esconder meu desagrado e impaciência, e ela se sobressalta.

— Sério.

Laura fica um tempo me encarando, depois vira as costas e sai da sala, andando firme e visivelmente puta. Balanço a cabeça, repreendendo a mim mesmo por ter deixado as coisas chegarem a esse ponto. Foi muito bom trepar com ela, aposto que a recíproca é verdadeira, porém não imaginei que ela criaria tantas expectativas e se sentisse no direito de vir me cobrar algo.

Erro de cálculo!, penso, sem deixar de pontuar que isso, para um engenheiro, é algo muito perigoso, que pode pôr tudo a perder.

Pego a pequena bola de borracha que tenho usado para exercitar minha mão e reparo nos machucados nela. Os cortes já estão todos secos, e os pontos que tomei em um deles já foram retirados.

Socar o vidro do boxe foi um momento de loucura, como tantos outros por que já passei. Fazia muito tempo que eu não perdia a cabeça daquele jeito, e sei que o que Samara me disse foi o gatilho responsável por isso. Não tiro, em hipótese alguma, a razão dela para me dizer aquelas palavras, mas elas acertaram o alvo na mosca.

Fecho os olhos e tensiono o pescoço, tentando relaxar um pouco para voltar a trabalhar e não enveredar pelos acontecimentos dessa semana, mas ainda não tenho esse controle total da mente e dos meus pensamentos.

A frustração me bate ao me lembrar do almoço com Konstantinos, meu irmão advogado. Achei que, pela primeira vez, ele iria se dispor a me ajudar com as respostas que procuro por anos, mas, ao que parece, ser egoísta e frio é algo familiar.

Mexo na minha agenda de anotações e encontro lá o endereço do sobrado de propriedade de Kostas. A voz da mulher misteriosa que encontrei na porta do Castellani ainda ressoa nítida em meus ouvidos:

“Eu conheci sua mãe biológica. Se quiser respostas, procure pela casa de Madame Linete.”

Foi o encontro mais estranho da minha vida. Ela estava parada lá, olhando o prédio e, quando me viu, logo perguntou se eu era um Karamanlis. Estranhei a pergunta, tentando reconhecer a senhora frágil e de cabelos brancos, mas não precisei responder, pois ela logo disse essas duas frases e se afastou sem me dar a chance de perguntar qualquer coisa mais.

Claro que eu já havia cogitado a ideia de que tinha sido gerado por alguma prostituta daquela maldita casa, afinal, era o local que meu pai mais utilizava. Não deveria ter começado do nada sua amizade com a cafetina asquerosa, mas nunca achei nada que me ligasse àquele local até esse encontro.

Talvez fosse uma pista falsa apenas, mas eu não poderia ignorar mais nada, não enquanto não achasse as respostas que procurei por toda minha adolescência a fim de tirar esse poder das mãos de Nikkós.

Não conhecer meu passado era o suficiente para meu pai ter uma enorme arma psicológica contra mim, coisa que ele utilizou por muitos e muitos anos.

Foi pensando em exterminar todo e qualquer poder que meu pai ainda pudesse ter sobre minha vida que atraí meu irmão para um almoço com a desculpa de falar da conta na qual estávamos trabalhando em conjunto.

Confesso que estranhei quando ele aceitou sem que eu tivesse que recorrer a inúmeros subterfúgios, mas agradeci a boa sorte, e nos encontramos em um restaurante neutro, escolhido a esmo, embora de alta gastronomia.

Achei que seria difícil introduzir o assunto, principalmente porque ele iria saber que pesquisei o maldito imóvel e descobri que ele o comprou há anos, quando foi a leilão. Isso me surpreendeu, claro, saber que ele comprou o sobrado e que ainda o mantém de pé sem nenhuma modificação ou uso. O assunto não surgiu naturalmente. Kostas estava estranho, mesmo falando de negócios, o que me surpreendeu, pois sempre imaginei que ele fosse se aproveitar da distância de Millos e Theo para tentar assumir a empresa.

— Eu acho que temos um acordo implícito de não falarmos sobre o passado — decidi não ser mais sutil, e Kostas reagiu imediatamente:

— Não é implícito. Não quero falar do passado. Mais explícito que isso, impossível!

Eu sabia que não seria fácil, ele é tão fechado quanto eu, então precisei desarmá-lo. Aproximei-me dele por sobre a mesa do restaurante e abaixei o tom de voz:

— Dessa vez, não poderei acatar sua vontade, Konstantinos. Sei que você comprou o sobrado da Rua...

Kostas levantou-se.

— Perdi a fome, vou voltar para a empresa.

Pus-me de pé também e o vi caminhar na direção da saída do restaurante, mas não ia desistir, não quando já havia agitado o vespeiro.

— Eu nunca te pedi ajuda. — Meu irmão parou, mas não se virou para me olhar. Decidi continuar por essa linha de ação: sinceridade. — Eu não podia te ajudar, então nunca pedi ajuda também.

— Alexios, não faça isso...

Eu soube que atingi o ponto certo, pois podia sentir a tensão no seu corpo. Nós dois temos consciência do que passamos na mão do nosso pai e de tudo que fizemos para que a loucura de Nikkós ficasse longe de Kyra. Kostas não aguentou por muito tempo, e eu o entendo, mas fiquei lá sozinho, lutando contra o monstro, tentando proteger minha irmã, mesmo sem ninguém para fazer o mesmo por mim.

Nunca tinha pensado em lhe cobrar, mas situações extremas pedem medidas extremas.

— Eu preciso, senão não faria. Há chances de eu descobrir o que Nikkós fez com minha mãe.

Fiquei satisfeito ao vê-lo se virar completamente surpreso.

— Sua mãe? Você soube algo dela?

— Nada conclusivo, mas acabei cruzando com uma pessoa que, quando soube que eu era filho dele, disse tê-la conhecido.

— Isso é loucura! Você procurou durante sua adolescência toda, quase se matou por isso, não há pistas, não há nomes, não há nada!

Lembranças de anos e anos de buscas vãs me fizeram titubear por alguns instantes. Eu não tinha um ponto de partida na época, pois ela podia ser qualquer pessoa, mas, naquele momento, eu tinha a maldita pista do imóvel.

— Preciso acessar o sobrado — voltei a falar, mas Kostas negou. — Preciso entrar e remexer tudo lá.

— Não!

— Foda-se, eu vou! — Soquei a mesa, decidido, puto demais por estar ali pedindo ajuda a ele pela primeira vez e não ser compreendido. Eu sempre o entendi, sempre o justifiquei quando saiu do apartamento e foi viver sua vida. Quando descobri que o sobrado lhe pertencia, nunca pensei em questionar seus motivos, apenas o entendi. Não era justo não ter o mesmo tratamento e consideração. — Eu sei que, por algum motivo bizarro, você o comprou, trancou-o com tudo dentro e o tem deixado apodrecendo por mais de 15 anos! Pode ter alguma pista lá.

— Não é seguro. Não vou arriscar que você morra lá dentro e eu ainda tenha que responder a...

Caralho de desculpa mais esfarrapada!

— Porra, Kostas, não fode! — Perdi a paciência, circundei a mesa e me aproximei dele, disposto a jogar pesado. — Eu sei dos teus motivos, respeito-os. Como disse, nunca te pedi ajuda antes porque sabia que você também precisava e não tinha a quem pedir, mas agora estou pedindo, agora estou contando com você. Não me faça arrombá-lo, porque eu o farei, apenas dê-me as chaves de todas aquelas grades que pôs lá.

Vi-o pensar, achei mesmo que eu estivesse tocando em alguma parte ainda viva de seu corpo, talvez no menino que conheci quando chegou para morar conosco, mas não, ao que parecia, meu irmão havia virado a porra de uma rocha fria e sem sentimentos.

— Tente invadir. Será um prazer implodir aquela merda com tudo dentro!

A mera possibilidade de ele destruir a única pista que tive do meu passado me desconsertou. Kostas aproveitou-se do momento e foi embora do restaurante.

Fiquei um tempo parado, até que ouvi um leve pigarrear e vi os garçons chegando com nossos pedidos. Estava sem fome, um bolo havia se formado em minha garganta, então pedi que embrulhassem tudo e deixei as quentinhas com o primeiro morador de rua que achei pelo caminho.

Andei sem rumo, sem saber o que fazer ou como agir. Tinha aberto meu peito para ele, pedira ajuda pela primeira vez e recebera um sonoro não. Senti algo inédito pelo meu irmão, raiva. Kostas nunca fora o alvo da minha revolta, pois sempre o compreendi, mas naquele momento não podia mais entendê-lo, não quando eu poderia ter respostas para acabar com minha tortura.

Sair de casa ajudou meu irmão a dar fim ao poder de Nikkós sobre sua vida, mas o mesmo não aconteceu comigo, e, enquanto eu não souber sobre o meu passado, não poderei tirar do homem que me gerou a possibilidade de voltar a me ferir.

O som de mensagem no celular me faz deixar de lado essas lembranças, e eu leio a mensagem de minha irmã me convidando para jantar com ela.


“Kyra, ainda estou na empresa, não poderei ir.”


Envio a mensagem esperando que seja suficiente, mas não é.


“Uma hora você precisará comer, e eu não tenho nenhuma intenção de jantar cedo. Venha no horário que puder, esperarei você.”


Merda, ela sabe ser insistente!


“Ok.”


Olho para o monitor do computador, respiro fundo e desisto de trabalhar. Minha barriga ronca, e decido aceitar o convite inesperado de minha irmã. Antes, porém, olho novamente o endereço do sobrado e traço um plano para invadi-lo sem que Konstantinos tome conhecimento.

As respostas que busco sobre mim mesmo podem ser achadas lá; não vou desistir tão fácil assim de encontrá-las. Nunca desisti fácil de nada, essa não será a primeira vez.

Imediatamente a imagem de Samara aparece em minha mente, e eu bufo, chamando-me de hipócrita. Claro que já desisti fácil de algo, eu só não gostava de admitir isso por não me achar sequer digno dela.

Quem sabe se eu achar as...

Interrompo o pensamento antes de criar ilusões que só serviriam para me machucar. Não há possibilidade de eu tê-la, mesmo que tenha todas as respostas da minha vida. Samara nunca estará ao meu alcance, e, sinceramente, acho bom que não haja nenhum envolvimento entre nós.

Ela merece mais!


Pego mais um copo de café e volto a me sentar ao lado de Daniel, sacudindo a perna, bebericando ou soprando a bebida quente. Olho para o corredor e, sem nem mesmo consumir metade do café, levanto-me para pegar um copo d’água.

Volto a me sentar, as pernas agitadas, confundo os copos e dou uma golada no café fumegante.

— Merda!

Daniel põe a mão no meu joelho e me obriga a parar de sacudir a perna.

— Se você não sossegar agora, juro que te ponho para fora — ele me ameaça.

— Desculpa. — Sorrio sem jeito. — Estou nervosa com os resultados desse primeiro ciclo de quimio e acho que deveríamos ter entrado com ela para saber mais...

— Nosso pai entrou com ela, Samara. Sossegue, você está me deixando irritado parecendo uma criança ansiosa! — Daniel fala alto, e eu o encaro surpresa. — Desculpa. — Ele põe a mão na cabeça e esfrega os olhos. — Eu quase não dormi essa noite, mas você não tem nada a ver com meu mau humor.

— Ela vai ficar bem, Dani. — Ponho minha mão em seu ombro.

— Eu sei que vai! Nunca tive dúvidas disso.

Respiro fundo e concordo com ele, embora não tenha a mesma confiança que ele demonstra ter.

Têm sido dias difíceis desde que cheguei ao Brasil, mas em momento algum me dei a oportunidade de esmorecer perto deles. A cada medicação, mamãe tinha reações mais fortes, requerendo tanto cuidado e atenção que decidi desistir de morar no meu apartamento e voltei para a casa dos meus pais.

Confesso que essa decisão também me ajudou a manter distância de Alexios Karamanlis. Não que eu ache que em algum momento ele tenha notado minha ausência ou se importado com isso, mas para mim fez toda a diferença.

É aquele ditado, sabe? O que os olhos não veem...

Suspiro.

— Você foi incrível nesses dias, Samara — Daniel volta a falar. — Mamãe esteve muito mais à vontade com você por perto do que comigo.

— Não fala besteira, Dani! — Ele sorri, sabendo que é o xodó da mamãe. — Eu gostei de ter conseguido ajudar e estar com ela de novo.

— Ela também ado... — ele para de falar assim que vê nossos pais vindo até onde estamos. Levantamo-nos juntos, apreensivos, esperançosos, e o sorriso de mamãe é reconfortante.

— O que o médico disse? — indago assim que eles se aproximam.

— O medicamento fez o efeito esperado para esse primeiro ciclo. Agora é esperar o tempo de descanso para começar de novo. — Mamãe sorri.

— E a radioterapia? — Dani questiona, e ela dá de ombros.

— O doutor ainda não prescreveu — papai responde. — Vamos torcer para que a quimio resolva sem precisar da rádio! — Ele sorri e abraça mamãe pelos ombros. — Em breve você terá sua vida agitada de volta.

Ela suspira cansada.

— Bom, vamos todos almoçar para comemorar o fim desse primeiro degrau rumo à vitória! — tento animar a todos, mas só meu pai sorri. — Ah, gente, vamos lá! Mamãe?

Ela assente e olha para Daniel.

— Você não está cansada? — meu irmão pergunta a ela.

— Não, podemos ir!

Bato palmas e a beijo na testa.

Eu entendo o desânimo dela, seria cruel não entender, pois, ainda que todos estejamos empenhados em seu tratamento, é ela quem passa por todos os efeitos colaterais dos medicamentos e pela doença. Mamãe nunca foi uma mulher parada ou passiva, e depender de outras pessoas deve estar sendo uma verdadeira prova para ela.

Foram semanas difíceis, não nego. Fiquei totalmente à disposição de minha mãe, levando-a às consultas e às sessões, fazendo companhia a ela, amparando-a em momentos de indisposição e dor. Godofredo e eu nos mudamos para a mansão da família, e eu mal tive tempo para ir ao Castellani ou mesmo visitar amigos.

Kyra esteve várias vezes conosco, geralmente após o expediente de trabalho, quando não tinha eventos. Daniel e Bianca, sua noiva, também estiveram presentes nos jantares e almoços de finais de semana, e, claro, papai.

Sorrio ao pensar em como é bom ter meu pai por perto. Ele e eu temos muitas afinidades, então, passamos muito tempo conversando, vendo filmes ou ouvindo música. Mamãe prefere ler sozinha em seu quarto à noite, por isso faço esses programas todos com papai.

Assim, o mês de janeiro se foi, e fevereiro entrou com força total com a finalização do primeiro ciclo de quimio da mamãe e o inesperado convite de Daniel para que eu trabalhe na empresa com ele.

— Dani, eu sou designer de interiores. Já trabalhei decorando mansões, apartamentos, iates e até um motor home, mas nunca fiz nada empresarial. — Fiz careta ao lhe responder. — É tudo muito frio.

— É um hotel — ele logo me informou. — Vamos redecorar um enorme hotel.

Meus olhos brilharam.

— Ele vai seguir algum padrão já existente? É um hotel de rede?

Ele nega.

— Não. É uma casa de campo que está virando hotel. — Arregalei os olhos. — O projeto de reforma é da Karamanlis, e a executora da obra é a Novak.

— K-Eng? — inquiri baixinho, e ele suspirou.

— É, mas quem está acompanhando é um dos braços direitos do seu amigo.

Havia muitos dias eu já não pensava no Alexios e nem no beijo do Ano Novo. Não foi o primeiro que trocamos depois de umas bebidas, então eu não devia lhe dar tanta importância, embora reconhecesse que ter me afastado do Castellani ajudou muito a manter distância dele. Alexios e eu já não somos mais amigos!

A perspectiva de trabalhar em um projeto como aquele enquanto eu estivesse no Brasil era maravilhosa, mesmo com a possibilidade de encontrar o CEO da K-Eng eventualmente.

— Aceito olhar o projeto e conversar sobre o briefing, só isso. — Daniel sorriu satisfeito. — Se eu puder executar meu trabalho sem a interferência de pessoas que nada entendem de decoração, pego para fazer; do contrário, estou fora.

— É assim que se fala! Você vai amar o projeto de reforma, ficar cheia de ideias, e tenho certeza de que os responsáveis pelo empreendimento vão adorar seu trabalho.

O projeto realmente estava incrível, e a ideia de como os donos queriam a decoração dos quartos e áreas comuns me deixou louca para começar o trabalho. Aceitei a proposta, negociei sob a garantia da Schneider e fechei um belo negócio aqui no meu país.

Penso no meu trabalho na Espanha e Diego me vem à cabeça. Entro no carro, no banco do carona, ao lado de Daniel e suspiro.

— O que foi? — meu irmão pergunta, seguindo o carro do papai para fora do estacionamento.

— Estava pensando no Diego.

— Vocês têm se falado?

— Sim, por mensagens. — Balanço a cabeça. — Não sei mais o que fazer para ele entender que não estou tendo nenhum tipo de crise por conta do tratamento da mamãe. Eu fui sincera com ele quando terminei. Não foi certo fazer por vídeo, mas eu não podia mais me sentir enganando-o.

— Eu entendo você, embora não goste nada do motivo que a levou a isso.

— Não tem nada a ver com Alexios, nós nem temos nos visto. Eu pensei em ir até a Espanha para conversar melhor com Diego, mas acabei de pegar esse projeto enorme e não posso me ausentar por agora. Além disso, ele está seguindo o time na Champions...

— Não sei se é boa ideia você ir atrás dele. Acho-o um tanto insistente demais. Concordo que não foi certo terminar por vídeo-ligação, mas depois disso vocês conversaram várias vezes, e o homem não para de insistir.

Eu concordo, mas ao mesmo tempo me sinto culpada.

— Sim. Mesmo assim sinto que lhe devo uma explicação.

Paramos no farol, e ele me olha.

— Você quer retornar para Madri mesmo depois desse término?

Respiro fundo e dou de ombros.

—Sim, trabalho em uma ótima empresa lá, então, por que não voltar?

Meu irmão ri.

— Isso é você quem tem que responder a si mesma. — Ele me puxa para perto e beija o topo da minha cabeça. — A decisão é sua; certa ou errada, cabe a você decidir o que fazer.

— Eu sei.

Sorrio, mesmo com minha cabeça fervendo de perguntas sem respostas, mesmo sem entender o que eu quero e por onde devo ir.

Fui para a Espanha para fugir de um sentimento que parecia não ter fim, mesmo diante da impossibilidade de se tornar algo real, e acabei fazendo amigos e criando laços por lá, mas é aqui que minha família e meus amigos estão. A decisão não é fácil!

Quanto a Alexios... o sentimento não morreu, obviamente, porém não guardo mais nenhuma ilusão com relação a ele. Sempre serei vista como a grande amiga e nada mais.


— Alexios está esquisito essa semana — Kyra comenta.

Eu rio e bebo mais um gole do vinho.

— Quando ele não foi esquisito? — debocho.

— Exatamente, a esquisitice dele não me surpreende, mas essa semana ele está mais esquisito. — Presto atenção ao que Kyra diz, pois minha amiga não costuma exagerar, pelo contrário. — Eu sei que ele está em um ritmo frenético de trabalho, mas, quando falei com ele ontem, achei-o um tanto...

— Esquisito — complemento, e Kyra revira os olhos ante minha brincadeira. — Kyra, seu irmão é a pessoa mais fechada do mundo, você sabe. Mesmo que ele esteja com merda até nos ouvidos, precisa quase se afogar nela para pedir ajuda ou falar com alguém.

Ela assente, e nós duas ficamos mudas. Eu me lembro de quando tomei conhecimento, pela primeira vez, do que eles viviam com o pai. Alexios telefonou para minha casa pedindo para que eu subisse até a cobertura, pois precisava de um favor. Não pensei duas vezes e fui até ele pensando que queria ajuda com algum jogo ou matéria – história nunca foi o seu forte –, mas, quando o vi, mal conseguia me mover.

Ele estava todo machucado nas costas. Os cortes eram verdadeiros talhos, de onde saía muito sangue, e eu tive que respirar fundo várias vezes para não vomitar.

— Samara, preciso que você seja dura agora — ele me disse com a voz calma, com toda sua sabedoria de 15 anos de idade.

— O que você quer que eu faça? — perguntei temerosa, já prevendo que ele me pediria para limpar e fazer curativos.

O problema era que, por conta do tamanho e da profundidade dos cortes, curativos não seriam o bastante. Ele ergueu uma agulha curva com um enorme pedaço de linha preta.

— Costure.

Neguei várias vezes com a cabeça, incapaz de abrir a boca sem derramar todo o lanche que havia acabado de tomar, mas ele me olhava suplicante. Percebi que, mesmo sentindo dor, ele tentava não demonstrar.

— Você precisa de um médico!

— Não. — Ele ergueu a agulha novamente. — Preciso de você.

Peguei o metal curvado. Minhas mãos tremiam, o queixo também. Era possível ouvir o som dos meus dentes batendo forte um contra o outro. Não entendia o que estava acontecendo, o motivo pelo qual ele estava daquele jeito e não ia até um hospital.

Eu mal sabia bordar, e somente a possibilidade de machucá-lo ainda mais me apavorava.

— Se fosse em outro local, eu juro que não pediria isso a você, mas eu não consigo suturar as costas sozinho.

Foi então que percebi que não era a primeira vez.

— O que foi isso, Alexios?

Ele sorriu tentando me despistar, mas depois suspirou.

— Caí em cima da mesinha de centro da sala lá de cima. — Apontou para o segundo piso da cobertura. — Ela era toda espelhada, por isso me cortei.

— Caiu?

Ele não respondeu, apenas virou-se de costas para mim e começou a me dizer o que fazer.

— A agulha já está desinfetada, e eu tomei banho, mas ainda assim preciso que você passe esse antisséptico, limpe bem o sangue e comece a costurar. — Ouvi o som de sua risada. — Pense que sou um dos seus tecidos finos e delicados de almofada e borde em mim.

Bufei com a comparação.

— Não achei graça nenhuma!

Foi um longo processo, mas cumpri com o que ele pediu e somente anos depois é que entendi tudo aquilo, inclusive a história esfarrapada do “caí por cima da mesa”.

Fiz muitos favores como esse para ele por muito tempo ainda. Aprendi a costurar sua pele, a recolocar seus ossos no lugar quando se deslocavam e até mesmo a imobilizar alguma parte de seu corpo. Porém, mesmo estando ao lado dele em todos esses momentos dolorosos, Alexios só me contou que era o pai que o espancava depois que saiu de casa com Kyra.

Eu sofri tanto por pensar nas atrocidades que eles viveram, porque minha amiga até reclama do irmão, mas são farinha do mesmo saco. Não faço ideia de como Nikkós a afetou, mas é certo que ela não foi poupada da loucura do pai.

— Ei, Samara no mundo da lua! — Kyra me cutuca. — Está pensando em quê? Perguntei por Diego, e você ainda nem me respondeu o que ficou decidido.

— Nada de diferente. — Ela cruza os braços. — Temos conversado bastante por mensagens, mas ele parece não aceitar que acabou. Diz que estou em crise e que, assim que puder, virá ao Brasil.

— Para quê?

— Conversar pessoalmente. — Fecho os olhos. — Gostaria tanto que tudo fosse diferente, sabe? Que eu pudesse gostar dele da forma como deveria.

— E por que não pode? — Olho para Kyra, e ela entende a resposta. — Uma merda isso! Então você não vai voltar para Madri mais?

Penso em Diego e em todo esse tempo em que estivemos juntos, recordo-me de como me senti feliz ao lado dele e do escritório maravilhoso de design em que trabalhei durante esses anos. Ele tem alegado isso, que estou confusa por estar longe, com medo de mudar de vez para Madri e ficar longe da minha família. Não é isso! Ter voltado ao Brasil mexeu, sim, com meus sentimentos, principalmente quebrou a ilusão de que eu tinha esquecido Alexios. Por isso ainda penso em voltar a morar na Espanha, mas não quero mais me enganar e enganar outra pessoa no percurso.

— Eu gostaria de ter essa resposta, Kyra — volto a falar. — Gostaria de saber o que é melhor para mim, mas não sei. Aqui há tantos motivos para eu ficar, como também para que eu vá, mas ainda estou indecisa.

— Eu sei. — Ela sorri compreensiva.

A campainha do apartamento dela soa alto. Estranho, porque ela não me disse que teríamos companhia, mas, por sua reação, Kyra já estava à espera de alguém.

— Talvez o motivo de sua indecisão tenha chegado agora.

Arregalo os olhos com a possibilidade de ser Alexios.

— Kyra, o que você... — não termino de formular a frase, pois minha amiga abre a porta, e o vejo olhá-la com um sorriso cansado, entrar no apartamento e parar surpreso ao me ver.

— Oi — cumprimento-o.

— Oi. — Ele desvia o olhar para Kyra.

— Vou ver se o jantar já... — ela para de falar e ergue a mão dele. — O que houve?

Os olhos de Alexios não deixam os meus, então ele abre um sorriso lindo – esse é o bendito que ele usa quando quer disfarçar alguma situação séria ou desviar o assunto – e dá de ombros.

— Um pequeno acidente besta, nada importante. — Kyra parece não engolir a desculpa esfarrapada também, mas não insiste, pois conhece o irmão muito bem. — Tem cerveja?

— Claro que tem! Vou pegar umas para você. — Ela aponta para mim. — Faça companhia para a Samara.

Nós dois a olhamos, entendendo que o jantar foi uma armadilha dela para que voltemos a nos falar. Sinceramente não entendo minha amiga. Ela sabe o que sinto e o que Alexios não sente, mas ainda assim insiste em nos manter unidos, mesmo dizendo sempre que seu irmão não é uma boa opção para mim.

Como se um dia ele considerasse me ver como mulher!

— Como estão as coisas com sua mãe? — Alexios puxa assunto de repente e se senta em uma poltrona individual bem longe de onde estou.

— O primeiro ciclo de quimioterapia acabou, e ela está bem — respondo seca. — E você, como está?

Ele abre o maldito sorriso fingido.

— Ótimo! Cheio de trabalho, sem tempo para fazer bobagens...

— Não parece. — Aponto para sua mão. — Achei que seus momentos de fúria já tivessem passado desde que começou a praticar esportes. — Ele fica sério. — Por falar nisso, vi o Chicão lá no prédio esses dias. Ele está hospedado contigo?

— Está, como sempre. — Alexios olha para trás, na direção da cozinha de Kyra e respira fundo. — Eu queria pedir desculpas novamente por...

— Não precisa — interrompo-o antes que eu seja obrigada a socar sua cara.

— Preciso — ele insiste. — Kyra me contou sobre seu relacionamento — meu coração dispara ao ouvi-lo falar sobre isso como se não tivesse importância alguma. — Espero que ele seja o homem que você merece e que sejam muito felizes como você sempre sonhou.

Engulo em seco, abro um sorriso – fervendo de raiva da Kyra – e digo a primeira coisa que me vem à cabeça:

— Ele é! — minto, e Alexios fica sério, seus olhos claros fixos nos meus. — Um verdadeiro príncipe como sempre sonhei.

— Quem bom. — Ele se levanta. — Vou até a cozinha pegar a cerveja, estou morrendo de sede.

Acompanho-o com os olhos e, quando desaparece da minha vista, gemo e me dou um tapa na cabeça. Que ridícula! Por que, mesmo sendo tão madura em vários aspectos, sou uma imbecil quando estou perto dele? Parece até que estou de volta ao aniversário de 18 anos da Kyra, quando saímos nós três para comemorar, e eu fiquei com um babaca total só porque Alexios pegou uma das garçonetes da pizzaria.

Não sou mais essa garota!

Alexios e Kyra voltam para a sala, ele, bebendo uma longneck, e minha amiga, com uma travessa na mão.

— Escondidinho de camarão, como vocês dois sempre gostaram — ela anuncia.

— O cheiro está incrível! — elogio, levantando-me do sofá e indo ajudá-la. — Há muitos anos não sinto algo tão delicioso!

— Eu também não — Alexios fala perto de mim.

Os pelos do meu corpo se arrepiam todos por causa do som de sua voz e seu hálito no meu pescoço. Viro-me para ele, sem entender o motivo pelo qual está tão próximo de mim e me surpreendo por um instante ao decifrar seu olhar: fome, e não é de comida.

Balanço a cabeça, achando impossível que seu olhar esfomeado seja para mim e me afasto dele, indo posicionar os pratos como Kyra me ensinou a fazer tempos atrás.

— Andou treinando? — minha amiga brinca ao me ver executar com perfeição seu ensinamento.

— Sim, fiz alguns jantares em Madri — conto orgulhosa. — Recebi poucas pessoas, a maioria amigos, e fiz questão de colocar em prática tudo o que você me ensinou...

— E que você achava que era bobagem! — Ela ri e olha para Alexios. — Uma arquiteta de interiores deve, no mínimo, saber montar uma mesa, não acha?

Alexios franze a testa, pensa um momento e depois concorda.

— Pregar pregos na parede, fazer arranjos florais, pintar um quadro... — Kyra fica séria, e ele começa a rir. — Há profissionais para isso, Kyra, Samara é responsável pelos layouts de móveis e projetos de planejados, não precisa saber fazer tudo!

Kyra parece estupefata, e, confesso, eu também estou, porque geralmente os dois se uniam para brincar ou me provocar, e agora ele acabou de me defender!

Alexios parece ficar sem jeito com o silêncio e dá uma enorme golada, até pôr fim ao conteúdo da garrafinha de cerveja, em seguida volta para a cozinha.

— O que está rolando? — Kyra me pressiona.

— Não sei do que...

— Samara, sem essa de “não sei do que você está falando”. Não nasci ontem, percebi que vocês estão estremecidos. Achei que tinha sido por conta dos anos longe, mas achei que isso ia passar depois do baile, mas então Alexios aparece aqui mais perdido do que cachorro que caiu da mudança e se recusa a falar o que aprontou contigo na virada do ano! — Aproxima-se. — Conte-me já!

Nem em sonho!

— Não há nada para contar.

Alexios retorna, e sua irmã avança para ele igual a um anjo vingador.

— O que está rolando entre vocês dois? — Ela põe a mão na cintura. — Sempre fomos amigos! Éramos um trio, estivemos juntos nos piores momentos de nossa infância e adolescência, parem já com qualquer merda que estiverem fazendo!

— Quanto você bebeu? — Alexios debocha. — Nada está acontecendo, não é?

 

CONTINUA

Kyra sempre foi exuberante, beleza herdada de sua mãe, devo acrescentar, pois Sabrina ainda continua tão linda quanto era na época em que era casada com Nikkós. Contudo, minha irmã ainda recebeu alguns belos traços dos Karamanlis, principalmente da famosa giagiá15, que todos sempre fazem questão de dizer que era linda e tinha a mesma coloração de olhos da minha irmã (e minha também, só que os Karamanlis nunca engoliram bem que eu realmente tenha o sangue nobre deles).

No papel, Kyra e eu somos filhos dos mesmos pais, pois Sabrina me adotou legalmente quando eu ainda era um garotinho. Ela, por poucos meses, possuía a diferença de idade obrigatória pela lei entre nós (16 anos) e, por isso, conseguiu, aos 18, adotar-me aos dois anos. Logo em seguida nasceu a Kyra, e a família ficou completa.

Na verdade, eu nunca soube da minha mãe. Tentei descobrir algo durante a adolescência, principalmente por ser esse um dos pontos que meu sádico pai adorava usar contra mim. Inventar uma história nova a cada dia sobre meu nascimento, minha origem, era sua principal diversão e tortura psicológica.

Nunca entendi nada sobre mim, a única certeza que tenho é de que, infelizmente, sou mesmo filho dele, algo que comprovei através de exame de DNA, cujo resultado positivo nunca divulguei, porque eu tinha esperança de não ter o sangue daquele monstro.

Volto a prestar atenção na foto, dessa vez em meu próprio rosto cheio de enfado por estar naquele baile com elas. Sorrio. Eu fazia esse tipo, mas a verdade é que adorava cada momento que passávamos juntos, pois me sentia em família de verdade.

Ponho a moldura no lugar e respiro fundo, controlando meu corpo, colocando juízo na minha cabeça, ressaltando tudo o que tem de importante na amizade entre mim e Samara e concluindo que um envolvimento fora desses termos entre nós só serviria para destruir anos e anos de companheirismo.

Samara merece ser feliz com alguém que possa ser o homem com que ela sempre sonhou, o príncipe encantado dos seus sonhos de menina, alguém que saiba quem é, que tenha valor e que possa demonstrar todo o amor que sente por ela e reconheça o privilégio que é ser amado.

Esse homem não sou eu!

 

Depois do banho na casa de Kyra, fui direto para a empresa. É providencial ter uma mochila de roupas minhas no apartamento dela, mas confesso que não vou muito de jeans e camisa de malha para a Karamanlis.

Passei no Castellani apenas para pegar minha moto, nem me atrevi a subir até meu apartamento, sendo covarde mais uma vez. A questão é que eu não saberia nem mesmo o que dizer a Samara caso nos encontrássemos de novo.

Estava saindo do estacionamento quando meu celular tocou, mas, como já estava sobre a moto – e não queria demorar muito na garagem, porque o carro de Samara ainda estava na vaga dela –, deixei para conferir a ligação quando estivesse no prédio, o que faço agora, retornando a ligação.

— Oi, Chicão! — cumprimento-o assim que atende.

— Alex, seu grande safado, feliz Ano Novo! — o homem mais velho, que se tornou um grande amigo e a quem eu considero como um pai – no sentido do que realmente um pai deveria ser – por pouco não me ensurdece ao telefone. — Cheguei ao inferno hoje, queria saber se poderia passar uns dias lá naquele seu apartamento cinco estrelas.

Abro um sorriso de felicidade ao pensar que ele está de volta a São Paulo. Francisco Salatiel Figueiroa é o nome dessa figura de quase 60 anos, paulistano – mas que odeia sua cidade natal – e viciado em esportes radicais assim como eu.

Nós nos conhecemos quando eu ainda estava no colégio, devia ter uns 15 anos e fui participar de um racha de moto pela cidade. Ele apareceu por lá, chamou-me em um canto e me convidou a fazer cross ao invés de colocar minha vida e a de outras pessoas em risco correndo pelas ruas.

Comecei a ir para o os circuitos de motocross, tomei muito tombo, enlameei-me até o pescoço e me senti mais vivo do que quando me arriscava nos rachas. Nós nos tornamos amigos mesmo com nossa gritante diferença de idade, pois ele dizia que eu lembrava o moleque atentado que ele mesmo tinha sido um dia, e comecei a acompanhá-lo em suas atividades.

Foi por causa dele que deixei de buscar alívio e fuga nas drogas, pois conseguiu me mostrar que, se eu quisesse me livrar de Nikkós, teria que ser melhor que ele. Não foi um processo fácil, admito, levei anos para entender e ouvir seus conselhos, mas nem por isso ele desistiu de mim ou se afastou.

Francisco começou a me mostrar que eu poderia extravasar toda minha angústia, solidão, medo e revolta em esportes como trilhas de moto, bike, escaladas, voos livres, paraquedismo e, quando tirei minha carteira de motorista, apresentou-me a alguns amigos dos circuitos de motovelocidade.

Os esportes aliviavam meu corpo da tensão vivida em casa, mas minha cabeça e minha alma continuavam pesadas, então, um dia, ele me viu desenhar e descobriu como eu poderia tratar os demônios dentro de mim.

Devo muito a ele, não só pelo equilíbrio que consegui hoje em minha vida, como também por permanecer vivo e são. Samara e ele foram os únicos a permanecerem ao meu lado nos piores momentos da minha vida, ela me auxiliando principalmente com Kyra, e ele entendendo meus problemas e me ajudando a achar soluções.

— Meu apartamento é seu! Te dei a chave, afinal.

— Eu sei, mas é sempre bom dar uma conferida, vai que você resolveu sossegar seu pau numa boceta só.

Gargalho com seu jeito rude e direto.

— Não, meu pau ainda gosta de explorar por aí. — Ele me chama de “vadio” e ri. — Estou na Karamanlis agora e...

— Ah, me diz que estou sonhado... — estranho o que ele fala, escuto vozes ao fundo e percebo que não falou comigo. Espero que ele retome a ligação, entro no elevador, cumprimento as pessoas com a cabeça e sorrio para uma mulher gostosa que nunca vi aqui no prédio. — Seu trapaceiro de uma figa! Samara está de volta e, caramba, mais linda do que nunca.

Só de ouvir o nome dela, sinto meu corpo reagir como se uma descarga elétrica tivesse me atingido.

— Encontrou-se com ela agora?

— Sim, seu embuste! Quantos anos ela esteve fora? Caralho, você já a viu?

Franzo a testa, desço no meu andar, confuso com a perplexidade dele apenas por ter visto a Samara no prédio, afinal, ele sabe muito bem que ela tem um apartamento lá.

— Já, desde que chegou — respondo distraído, acenando para os funcionários da K-Eng. — Por quê?

— Alexios, eu sempre me perguntei se você era cego ou apenas muito burro. — Ouço o barulho de uma porta se fechando. — Nunca entendi por que vocês dois nunca tiveram nada um com o outro.

Paro no meio do corredor, atraindo os olhares de pelo menos dois engenheiros que passam por mim. Que merda é essa?!

— Ela é minha amiga — digo o óbvio.

— Ela é incrível e sua amiga, isso já não é meio caminho para um relacionamento de sucesso?

Um alerta dispara em meu cérebro. Chicão nunca foi um homem ligado a relacionamentos permanentes, tanto que é solteiro até hoje, então não entendo o motivo pelo qual está falando essas coisas sobre mim e Samara.

— Chicão, sou eu! Eu não tenho relacionamentos, eu fodo por aí, só isso. E, definitivamente, Samara não é uma mulher apenas para se foder.

Ele emite um grunhido, e, ao fundo, escuto o bipe da minha cafeteira sendo ligada.

— Nisso concordamos. Mas ela é incrível, sempre foi, se eu tivesse a sua idade e a sua aparência, não perderia a oportunidade de tê-la comigo.

Mas o que... Arregalo os olhos, e meu coração dispara.

— Você está morrendo? — inquiro-lhe como se fosse a única opção válida para essa mudança de comportamento.

Chicão gargalha.

— Não, mas estou ficando velho e sozinho. — Bufa. — Mas isso não é assunto para discutirmos ao telefone, já que você está na empresa.

— Chicão, está tudo bem?

— Vai trabalhar, embuste, depois conversamos. Viajei a noite toda, quero tomar um banho, comer algo e dormir um pouco. Obrigado pelo abrigo.

Ele ainda não me convenceu, algo está errado.

— A casa é sua! — declaro, e ele encerra a ligação.


— Quer mais um travesseiro? — pergunto à minha mãe assim que ela se deita na cama.

— Não, filha, estou bem. — Sorri, mas o cansaço não permite que o faça por muito tempo. — É sempre assim no dia da medicação, mas passa.

Balanço a cabeça concordando, enternecida por ela estar tentando me consolar, quando é ela quem está passando por isso tudo. Sempre a admirei por sua força, seu destemor e a capacidade de realizar qualquer coisa que se propunha a fazer.

Mamãe não tem um gênio fácil de lidar, mas nunca negou amor e afeto aos seus filhos, mesmo sendo brava e exigente como era. Dani e eu tínhamos muito mais medo dela do que do papai, que sempre foi mais maleável, mas moderno e liberal.

O relacionamento dos meus pais, enquanto casal, não era um mar de rosas, mas eles eram amigos, companheiros. Ele sempre a apoiou em tudo, e ela acima de tudo o admirava. Não tinham grandes arroubos de paixão, pelo menos não na nossa frente, mas se respeitavam, conversam, riam e, principalmente, nos amavam muito. Dani, como filho e mais velho, sempre foi agarrado a minha mãe mais do que a nosso pai. Os dois se dão bem, são muito parecidos em alguns aspectos, mas quem sempre teve mais afinidade com papai fui eu.

Acho que nossas almas são parecidas. Ambos somos apaixonados pelas formas, perfeccionistas, românticos e, arrisco dizer, sonhadores. Eu sou assim, gostaria de ser prática como mamãe, mas há muito que parei de tentar ser quem não sou. Demorei, mas consegui aceitar meu jeito e me respeitar acima de tudo.

É dolorido tentar ser quem não é para se encaixar ou seguir uma tendência. Eu sou forte, mesmo sendo doce; sou feminista, mesmo sendo feminina e vaidosa; sou empoderada, mesmo sonhando em casar e ter uma família.

Eu me importo com a opinião alheia, sim, porque ninguém é uma ilha e não teria sentido na vida se todos fôssemos autossuficientes e não dependêssemos de ninguém. Não tenho preconceitos, sou feliz com a felicidade dos outros e não me importo que a recíproca não seja verdadeira. Cada um escolhe o caminho que quer percorrer. Eu escolhi ser assim, exatamente como sou.

Chegar até essa conclusão não foi fácil, principalmente quando se percebe que o homem por quem você é apaixonada prefere as mulheres que têm atitude, que são furacão e não calmaria. Eu quis fazer tipo e percebi que estava indo na contramão de tudo o que uma “mulher de atitude” prega, que estava tentando ser outra pessoa para agradar a um homem.

Foi aí que aquela máxima tão clichê, mas que é tão difícil de ser vivida, fez sentido para mim: quem me amar, precisa me conhecer e me aceitar como sou.

Demorei a perceber a importância disso, precisei praticamente ter isso esfregado na cara. Então arrumei minhas malas, disse ao meu pai que não iria para Barcelona, mas sim para Madri, e segui com minha vida.

Alexios foi o estopim que eu precisava para explodir naquela época, depois de ter aparecido no meu apartamento bêbado a ponto de não se aguentar de pé. Ele pediu para dormir no meu sofá, tivemos uma dura discussão quando tentei lhe passar sermão e, no meio da noite, acordei com ele na minha cama.

Fiquei sem reação quando senti sua mão na minha cintura, alisando minha pele por cima do pijama de seda. Fechei os olhos, excitada e ansiosa, e o deixei prosseguir com a exploração. Não o impedi quando me virou, nem quando me beijou e subiu em cima de mim. Tinha esperado por aquilo a vida toda, e estava acontecendo.

Ledo engano!

Ele ficou imóvel, esmagando-me com seu peso, então percebi que havia dormido. Joguei-o para o lado e passei a noite em claro, sem entender nada, esperando que ele acordasse e explicasse.

Acabei dormindo e acordando sozinha na cama. Ele tinha ido embora, e não conversamos, mas esperei que a conversa viesse mais tarde. Não veio. Ele simplesmente ignorou o beijo, as carícias, como se não fossem nada, como se eu não fosse nada.

Fiquei irritada, subi para perguntar diretamente a ele o motivo pelo qual tinha me beijado, mas, quando cheguei ao seu apartamento, estava rolando uma de suas festinhas regada a bebidas e sexo, e o filho da mãe estava sentado no sofá com uma mulher de cada lado em um beijo triplo.

Ele nem me viu, fechei a porta, desci e decidi parar de protelar minhas decisões esperando por algo que nunca iria acontecer. Um relacionamento com Alexios era uma ilusão infantil, mas eu já não era mais criança.

Viajei dois dias depois e pensei que, quando voltasse, toda essa ilusão teria se desfeito.

— Então o nome dele é Diego — mamãe fala, e eu quase pulo de susto, deixando as lembranças para tentar entender do que ela está falando. — Diego Vergara!

Sento-me na beirada da cama, curiosa sobre como ela conseguiu essa informação.

— O nome dele é mais comprido do que isso, mas, sim, Diego Vergara.

Ela sorri cheia de sabedoria.

— E você deve estar aí querendo saber como eu sei o nome dele. — Concordo. — Seu irmão me contou.

Daniel e sua boca! Meu irmão sempre foi o maior X9 do mundo, não é de se espantar que tenha contado sobre o Diego para minha mãe.

— Há quanto tempo estão juntos?

Não sei o que dizer a ela e agradeço quando uma enfermeira entra no quarto, dando-me a desculpa perfeita para escapulir de sua curiosidade. O fato é que tudo mudou depois da noite do baile dos Villazzas.

Não sei o que levou Alexios a me beijar daquela forma no elevador, eu estava bem bêbada dessa vez, mas ele não tanto, além disso, eu senti a energia entre nós, senti o tesão que ele exalava, que trazia na saliva e em cada toque no meu corpo. Alexios não escondeu em nenhum momento o quanto estava excitado, esfregou sua ereção contra mim, esmagou-me contra o espelho do elevador parecendo que queria me comer ali mesmo.

Depois, do nada, mudou. Pediu desculpas! Desculpas por me beijar! Só faltou dizer que estava com tesão, e eu era a única mulher próxima dele, mas que nem assim servia.

Para piorar, quando entrei no apartamento e peguei o celular, vi uma mensagem de Diego dizendo o quanto sentia minha falta e como ele gostaria de poder estar aqui comigo. Foi a gota d’água! Senti-me um lixo, uma pessoa má que engana e trai e percebi que tê-lo deixado na Espanha sem uma resposta definitiva foi uma atitude egoísta.

Chorando, sem pensar direito, fiz uma chamada de vídeo para ele e, quando atendeu, disparei:

— Diego, eu sou uma pessoa horrível, mas não posso fazer isso com você! — Soluçava tanto que ele se assustou e me pediu para falar devagar. Todavia, eu não conseguia. — Você é um homem incrível, um amigo maravilhoso, e eu adorei cada momento que passamos juntos...

— Calmarse, Samara! Yo no comprendo!

— Você merece mais, merece alguém melhor, e eu não posso...

— Usted está me dejando preocupado, cariño.

— Eu não queria fazer isso assim, por telefone. — Ele ficou sério, atento, prevendo o que eu lhe diria. — Mas não é justo que você fique aguardando minha volta para que eu diga isso. — Respirei fundo, armando-me de coragem. — Eu não posso aceitar seu pedido, Diego. Eu não estou pronta para amar você como deveria, como você merece.

— Samara, sucedio algo com su mamá?

Neguei.

— Não. Sou eu, não mereço você. Você tem razão ao dizer que meu coração nunca pôde estar aí contigo.

— Samara, despues hablamos, está muy nervosa. — Tentei dizer a ele que não, mas não me deu oportunidade: — Tengo que ir.

— Diego, não...

Ele encerrou a chamada. Tentei retornar outras vezes, porém a ligação não completava. Deixei mensagens, mas que, até o momento, ele não visualizou. Volto a olhar para mamãe, que boceja, visivelmente cansada, e fecha os olhos, recostada nos travesseiros, enquanto a enfermeira mede sua pressão. Eu voltei ao Brasil apenas por causa dela, para estar ao seu lado nesses momentos tão difíceis, não por qualquer outro motivo. Sinceramente, não esperava essa pressão acerca de Alexios e Diego. Minha família nunca foi assim, muito menos mamãe, que sempre pregou que uma mulher não precisa de marido e filhos para se sentir completa e feliz.

Mamãe adormece, e eu saio do quarto. Quando estou prestes a descer a escada, escuto uma voz conhecida e muito amada:

— Minha Samara está de volta! — Papai está no corredor de braços abertos. Sorrio e vou até ele para abraçá-lo. — Ah, que saudades!

— Eu também estava, mas cheguei há mais de uma semana, e você nem se dignou a vir me ver.

— Eu sei, mas agora vim para ficar, Herzchen16, e estou feliz por te ter de volta aqui em casa. — Ele beija minha testa. — Não pretende voltar para a Espanha, não é?

Suspiro. Papai foi o primeiro a me incentivar a ir estudar fora, mas o único a ficar chateado quando decidi ficar depois que terminei a especialização. Nunca foi me visitar. Embora falássemos sempre, eu percebia que ele ainda não havia entendido minha necessidade de ficar longe.

— Vou voltar, sim, tenho compromissos de trabalho por lá que...

— Besteira! Aposto que você já tem tudo desenhado e organizado e que, em uma visita ou duas, poria fim a esses “compromissos”.

— Papai, não vim para ficar, e o senhor sabe. Mamãe está na parte mais agressiva do tratamento, e Dani precisou de mim para ajudar a cuidar dela e acompanhá-la...

— Estou aqui também! — ele se ofende por não ter sido incluído. — Ela diz que não precisa de mim, mas estou aqui, sempre estive por ela.

Oh, Deus, que situação!

— Eu sei, pai.

Benjamin Abraão Nogueira Klein Schneider nunca entendeu bem a distância fria de mamãe, por mais que os dois sempre tenham se dado bem. Acho até que foi por esse motivo que se afastaram depois que crescemos e que, após minha ida para a Espanha e a de Dani para seu próprio apartamento, papai decidiu se mudar para a fazenda.

Uma vez, quando eu ainda era uma garotinha, eu o vi bêbado no escritório do antigo apartamento em que morávamos. Ele bebia e parecia mal, chorava e segurava alguns documentos. Quando me viu, tentou sorrir e me chamou para perto de si.

— Tudo bem? — perguntei na inocência dos meus oito anos de idade e limpei suas lágrimas.

— Tudo. — Ele guardou a papelada dentro de uma caixa, onde vislumbrei também algumas fotos, trancou-a com chave e depois respirou fundo. — A vida adulta é complicada, Herzchen. Fazemos escolhas baseadas no que achamos ser melhor e esquecemos o preço que isso cobra, tanto aqui — ele apontou para sua cabeça — quanto aqui. — E, por fim, tocou em seu coração.

Na época não entendi nada, mas esse momento nunca deixou minha memória e, com o tempo, supus que ele estivesse falando de seu relacionamento com mamãe. Os dois se davam bem, mas era ele quem sempre cedia numa discussão ou quem corria atrás quando as coisas ficavam tensas entre eles.

— Vi seu bichinho pré-histórico lá no jardim comendo algumas plantas — ele ri, mudando de assunto. — Você poderia ter adotado um cachorro ou um gato como qualquer outra pessoa, não é?

— Pai, eu o ganhei de presente e gosto dele.

— Mas ele é feroz! — Faz cara de medo. — Já me mordeu algumas vezes.

Gargalho.

— Godofredo é muito territorialista, ele sempre ataca os homens.

— Hum, que interessante! Começo a gostar desse bichinho. — Rio do seu ciúme. — Você não trouxe nenhum espanhol junto contigo, não é?

Suspiro.

— Não. E se o Dani disse algo para o senhor também, ele é...

Benjamin me afasta de seus braços, segurando-me pelos ombros, e me olha surpreso.

Merda!

— Ele não disse nada, não é? — pergunto, achando-me idiota.

Meu pai nega:

— Era só uma pergunta brincalhona e especulativa. — Olha em volta. — O que ele deveria me dizer?

— Eu tinha um namorado em Madri, mas ele ficou por lá.

Ele põe a mão sobre o peito.

— Adorei esse tempo verbal: “eu tinha um namorado”. — Rio. — Agora você terá que me contar sobre esse tal...

— Ele me pediu em casamento — disparo. — Mas eu não pude aceitar.

Ficamos um tempo um olhando para o outro, parados no corredor, sem emitir um som sequer. Papai sempre foi bom ouvinte e dava bons conselhos. Mesmo não sendo muito de falar sobre como se sentia, mesmo reservado em seus sentimentos, até mesmo com seus filhos, ele sabia ouvir sem julgar e só opinava quando achava necessário, o contrário de mamãe.

— Preciso de um café ou de algo mais forte — confessa, e eu rio nervosa. — Vou falar com sua mãe e...

— Ela acabou de dormir — informo-lhe.

— Certo! — Respira fundo. — Se lembra daquele seu namorado da faculdade? — Gemo e assinto. — Você tinha dúvidas quanto ao caráter dele e, mesmo com todos os seus instintos te alertando que algo não estava bem, você aceitou o namoro e...

— Meus instintos estavam certos, ele era um pilantra filho da puta casado!

— E eu quis castrá-lo. — Ele sorri doce, como se isso não fosse nada. — Enfim, o meu conselho para essa questão sempre é: siga seus instintos. Se você não se achava pronta para aceitar o pedido, então fez certo ao recusá-lo.

— Então, você acha que eu fiz certo ao ouvir meu coração?

Ele ri e nega.

— Não, eu disse para ouvir seus instintos, porque seu coração não tem juízo. — Eu rio, achando que ele está fazendo troça, mas, então, ele completa: — Já se apaixonou uma vez por Alexios Karamanlis!

Fico séria, coração disparado, porque, embora ele saiba de todos os meus namorados e experiências, nunca contei a ele sobre Alexios.

Era óbvio para todos, não sei como consegui enganar a mim mesma! Eu ainda amo aquele safado!


— Alexios? — Termino de calçar os tênis antes de me virar para olhar Laura deitada na cama. — Já vai?

Ela se contorce languidamente, seu corpo curvilíneo, dourado de sol se mexendo contra os macios e perfumados lençóis de sua cama. Sorrio, deslizo a mão pela curva de seu lindo rabo e desfiro um tapa nele, fazendo-a rir.

— Preciso ir, tenho reuniões importantes agora de manhã na empresa, e, com a viagem de Theodoros para a Grécia e a demora na volta de Millos, as coisas ficaram acumuladas entre mim e o Kostas.

Ela bufa e se senta.

— Eu sei, ontem eles me passaram as informações sobre a propriedade no Rio de Janeiro, da reunião que tiveram na quinta-feira. — Ela dá de ombros. — Achei que Kika ia aparecer cheia de gás na sexta-feira, mas nem ela e nem seu irmão apareceram na empresa.

— A área é boa mesmo? — pergunto, pois apenas vi algumas imagens do local, e, como Laura é do geoferenciamento, deve ter detalhes bem específicos.

Ela confirma.

— O pessoal do jurídico está alvoroçado, e fiquei sabendo que o Leo, o braço direito da Kika, pediu para o pessoal acelerar com as outras áreas, porque gostaram muito da do Rio. — Laura me abraça pelos ombros e lambe minha orelha. — Falando em acelerar, adorei aquela rapidinha ontem na sala de servidores.

Eu rio, mas balanço a cabeça.

— Você jogou sujo comigo. — Levanto-me da cama, e a safada senta-se na beirada do colchão, os peitos cheios e rosados, as coxas musculosas bem abertas. Porra! — Goza para mim! — ordeno, e ela não se faz de rogada, tocando-se sem nenhum pudor. Vou até uma das luminárias, acendo-a e tenho a visão perfeita de sua boceta totalmente depilada já molhada de tesão.

Foda-se!

Apenas abro o cinto da calça, baixo o fecho e saco meu pau para fora. Pego uma camisinha em cima de seu criado-mudo, e ela ri quando avanço até onde está.

— De costas!

Ela se deita de bruços, e eu me agacho para entrar em uma única investida. Fecho os olhos, concentrando-me nas sensações, excitado com seus gemidos, mas, de repente, sinto um cheiro diferente, os sons mudam, e um rosto doce, sorridente, de lindos olhos castanhos aparece em minha mente.

Xingo alto, querendo expulsar a imagem de Samara, aumento as estocadas até sentir as pernas arderem e gozo sem ao menos saber se minha parceira teve seu prazer.

Caralho!

Afasto-me dela e apoio as mãos contra o aparador, colocando a culpa das súbitas aparições de Samara em minha mente na distância que impus entre nós depois daquele beijo no elevador. Claro que, se ela não tivesse se mudado para a casa da mãe, certamente essa distância não seria tão dura, afinal, eu poderia encontrá-la casualmente pelos corredores do Castellani, mas quem disse que a sorte gosta de mim?

Agora, além de ter visões dela durante minhas trepadas, acordo excitado por algum sonho erótico protagonizado por ela e ainda tenho que aguentar os questionamentos de Kyra e de Chicão sobre o motivo pelo qual eu e Samara não nos falamos mais.

— Tudo bem? — Laura me toca o ombro, fazendo com que eu desperte dos devaneios sobre Samara.

— Tudo. — Retiro a camisinha e a jogo no lixo. — Preciso ir, já está amanhecendo.

— Eu sei.

Ela sorri, doce e compreensiva, e eu respiro fundo, sabendo que estou fazendo merda. Primeiro, por ela ser funcionária da Karamanlis, e segundo, por eu estar fazendo sexo com ela há duas semanas.

Nunca fico tanto tempo com alguém. Para falar a verdade, não me lembro da última vez que mantive uma única parceira, mas, por algum motivo, tenho andado preguiçoso, sem vontade de sair e, como trepei com ela e gostei, achei mais simples continuar.

Despeço-me dela apenas com um aceno de cabeça. Laura me acompanha até a porta de seu apartamento, e eu desço até o térreo, onde minha moto está estacionada em frente à portaria do prédio.

Sigo para o Castellani, mas a cabeça continua a vagar por lembranças dessas longas seis semanas desde o baile dos Villazzas. Tanta coisa aconteceu dentro e fora da Karamanlis, ainda assim senti o tempo passar lentamente.

No trabalho, as coisas começaram a ficar mais intensas, apesar de começo de ano sempre ser mais devagar. Com a conta da Ethernium, tive que mobilizar boa parte dos profissionais para elaborar croquis baseados na planta da siderúrgica e as áreas que foram aparecendo. A volta de Kika à empresa foi providencial, pois ela nos apresentou uma ideia que facilitou muito a vida de todos.

Eu ainda estou surpreso por Theodoros ter colocado a gerente dos hunters e meu irmão trabalhando juntos, pois isso não é algo do perfil do meu irmão mais velho. Foi então que, conversando ao telefone com Millos, descobri que tinha dedo dele nessa história.

A ideia de os dois trabalharem juntos não surgiu na reunião preliminar do projeto, mas foi algo que Theodoros e Millos combinaram assim que souberam que ela iria voltar para a empresa. Agora, conhecendo Millos como conheço, só me pergunto o que, especificamente, meu primo pretendeu ao dar essa sugestão.

Esperei que os dois se matassem desde a primeira semana juntos, ainda mais depois que Theodoros viajou, mas não, aparentemente tudo tem transcorrido bem entre os dois, e a conta da Ethernium parece estar em boas mãos.

Em casa, com a presença de Chico, que ainda está por lá, tenho sempre companhia para jogar bilhar, videogame ou para corridas aos finais de semana. Decidi não participar de nenhum campeonato este ano, nem de moto, nem de carro, pois o trabalho iria consumir muito de minha equipe, e eu não sou o tipo de chefe que deixa seus funcionários se fodendo de trabalhar e sai cedo para treinar ou viajar. Não sou profissional por isso, não consigo me dedicar integralmente às corridas, embora goste muito delas. Vejo-as com um hobby, assim como os esportes e outras atividades que uso para ocupar minha cabeça.

Entro na garagem do prédio, paro a moto e, assim que tiro o capacete, paro em seco ao ver Samara.

— Bom dia — ela me cumprimenta, sem parar para falar comigo e sem olhar para trás.

Confiro as horas no relógio e estranho que ela esteja saindo tão cedo de casa.

— Algum problema? — pergunto preocupado.

Samara para e me olha.

— Não. — Abre o carro, mas me aproximo antes que entre. — O que foi, Alexios? — sua voz é impaciente, e eu percebo que o clima estranho está de volta.

— Como está sua mãe?

Ela franze a testa, ajeita o cabelo e ri amarga.

— Teve que se encontrar casualmente comigo para lembrar que minha mãe está doente? — Balança a cabeça. — Sempre soube que você era desligado com as coisas, Alexios, mas na verdade é um egoísta.

Suas palavras cheias de mágoa me acertam. Aperto a mão no capacete, ciente de que ela tem razão. Eu poderia tê-la procurado, ter ligado, ter sido o amigo que ela merecia, mas, em vez disso, escolhi me afastar e deixá-la sozinha com seus problemas.

Sim, além de covarde, um grande egoísta!

— Você tem razão. — Aceno. — Bom dia.

Dou a volta e sigo em direção ao elevador, achando-me ainda mais desprezível do que sempre me achei.

— Ela está melhorando — a voz de Samara ecoa na garagem, e eu paro. — A quimioterapia está tendo os resultados esperados, e os médicos estão confiantes.

Viro-me para olhá-la, ainda parada do lado de fora do carro, com a porta do motorista aberta.

— Eu sinto muito por não ter ligado antes. — Ela dá de ombros como se não se importasse, mas sei que se importa; eu me importaria. — Você tem razão sobre eu ser um egoísta, você merecia um amigo melhor.

Samara bufa e, sem dizer nada, entra no carro, fecha a porta e liga o motor. Instantes depois, vejo-a passar por mim sem dizer nada e me sinto um bundão. Subo para meu apartamento e, assim que entro, encontro Chicão no meio da sala, usando apenas uma cueca, meditando.

— Que visão do inferno! — sacaneio e sigo para meu quarto.

— Bom dia, embuste! — saúda-me sem ao menos abrir os olhos. — Você deveria tentar, pelo visto nem suas trepadas diárias estão conseguindo mantê-lo relaxado, então, quem sabe a meditação...

— Nem fodendo! — grito para ele e sigo para o banheiro.

Somente quando fecho a porta é que toda a armadura se vai. Fico parado, olhando para o espelho, tentando analisar além da aparência que todos veem. Eu sou um filho da puta egoísta e imbecil, um impostor, uma fraude gigante que perambula pela cidade sem nem mesmo saber quem é.

Anjo dos Karamanlis! Engenheiro filantropo! Chefe preocupado com funcionários... tudo mentira!

Retiro a roupa, jogando-a no cesto de roupa suja antes de me enfiar debaixo da água gelada do chuveiro. Gostaria que, da mesma forma que essa água consegue limpar meu exterior, pudesse fazer o mesmo dentro de mim. Sou tão vazio e frio quanto meu irmão do meio e tão arrogante e egoísta quanto Theodoros. Sou tão louco quanto Nikkós!

Doeu-me ver e ouvir a mágoa que causei em Samara, mas é somente isso que causo nas pessoas. Decepção! Eu não mereço sua amizade e nem estar perto dela. A raiva de mim mesmo explode como há muitos anos não a sinto. Sem pensar, soco o vidro do boxe, que se espatifa e desaba sobre mim.

A porta do banheiro é aberta com um estrondo, e um apavorado Chicão aparece, olhos arregalados, olhando a destruição que causei ao meu banheiro.

— Merda, Alexios! — Ele salta em minha direção sem se preocupar com os cacos de vidro pelo chão e tenta me tirar do boxe. — Porra, sai daí.

Nego, o sangue escorrendo pelo ralo do banheiro, minha mão ardendo, assim como meus braços e os pés. Não me movo, apenas tremo, tentando ainda conter toda a fúria dentro de mim.

— Sai daí, Alex, você está ferido, porra! — Chicão grita.

— Não! — Não me movo. — Eu sou um lixo! Ele nunca deveria ter me pegado no lixo onde me encontrou, deveria ter me deixado morrer, deveria...

— Para com essa merda! — Some para dentro do meu quarto e, quando volta, está calçando meus coturnos. — Você não vai mais fazer isso, ouviu?

Chicão entra no que restou do boxe, desliga a água, joga uma toalha sobre meu corpo e me ergue. Não consigo reagir, a cabeça girando, todos os insultos e histórias sobre mim que ouvi de Nikkós por tantos anos enchendo meus ouvidos, torturando-me mais uma vez, ressaltando o quanto sou desprezível.

— Você não vai fazer isso consigo mesmo de novo, ouviu?! — Chicão esbraveja, fazendo pressão com a toalha de rosto na minha mão. — Ele te machucou, você se machucou, mas essa merda já acabou faz tempo. Ele não pode mais, Alexios, nem te tocar e nem contar mentiras a você. Chega!

Nego.

— Eu sinto tanta raiva... — Meus dentes batem um no outro, e eu os travo. Minha vontade é de gritar, socar, foder com tudo.

— Eu sei, já passamos por isso antes, e eu... — ele baixa o tom de voz e expira — achei que já tinha superado.

— Como? — questiono-lhe. — Como posso esquecer, se continuo a ser a mesma pessoa desprezível de sempre? Não são as marcas que ele causou no meu corpo que me causam essa raiva, sou eu!

— O que aconteceu?

Nego, trêmulo e me sento na cama. Gemo ao sentir as dores dos cortes, percebendo que a adrenalina passou mais rápido do que antigamente. Eu aprendi a controlar a dor usando a raiva. Durante anos de espancamento, percebi que, quanto mais raiva eu sentisse, menos dor ele me causava. Mais tarde, quando sentia raiva por qualquer motivo, eu mesmo me machucava, levava-me ao limite do meu corpo e quase me destruía.

Era um círculo vicioso que eu achei que já havia passado, mas, aparentemente, não.

— Encontrei Samara na garagem, provavelmente indo se encontrar com sua mãe e levá-la ao hospital — confesso, cansado demais para guardar qualquer coisa. — Eu não a via há semanas, desde o baile dos Villazzas no Ano Novo.

— Eu também só a vi uma vez aqui no prédio...

— Eu não liguei, não procurei por ela, não justifiquei meu ato e nem meu sumiço — interrompo-o e o encaro. — Ela está magoada comigo.

Chicão confere o sangramento da mão, tirando a toalha e depois se senta ao meu lado na cama.

— Por que você fez isso? Sumiu e não a procurou?

Respiro fundo; comecei o assunto, agora preciso terminá-lo.

— Preferi me afastar. — Olho para baixo, envergonhado. — Eu quase trepei com ela no elevador aqui do prédio. — Fecho os olhos. — Eu a quis como mulher, não consegui reprimir a vontade, como sempre fiz, e agi feito um idiota excitado.

— Ela o repeliu?

— O quê?

— Samara o repeliu? Te xingou? Bateu em você? Disse que você abusou dela? Mandou que ficasse longe?

Lembro-me daquela noite, a forma como reagiu ao beijo, o jeito que gemia e parecia tão excitada quanto eu.

— Ela estava bêbada, me aproveitei dela, sou um canalha.

— Nisso concordamos, mas o que ela pensa sobre o acontecido?

Balanço os ombros.

— Não sei, não falo com ela desde então. — Lembro-me da conversa com Kyra no dia seguinte ao baile e praguejo. — Ela está noiva.

— Samara? — Assinto. — Que merda!

— É, o beijo foi uma merda enorme, e eu não sei como...

— Não, seu idiota! — Ele estapeia minha cabeça. — Que merda que Samara esteja noiva, ela é a mulher perfeita para você.

Olho-o como se ele estivesse louco.

— Claro que não, ela merece alguém muito melhor do que eu! Samara nunca cogitou qualquer tipo de relacionamento comigo a não ser o de amizade.

Chicão bufa.

— Você não é idiota, Alexios Karamanlis, é um burro!

Ele joga a toalha, manchada de sangue, no chão do quarto e sai puto comigo ou com alguma coisa que eu disse. Ele não entende, óbvio! Samara é... especial, e alguém especial como ela nunca se relacionaria com alguém tão ordinário como eu.

Olho para minha mão e rio ao pensar na bagunça que sou.

Obviamente ela nunca se relacionaria e nem deveria se relacionar com alguém tão fodido como eu.

 

— O que houve com sua mão? — Laura me pergunta de repente, assustando-me, pois eu nem mesmo sabia que estava por perto. Encaro-a sem entender como e o que está fazendo aqui na K-Eng. Seu olhar é de assombro aos machucados em minha mão, além de questionadores, o que me irrita um pouco.

— Um pequeno acidente — respondo seco. — O que você está fazendo aqui?

Levanto-me da mesa, agradecendo por não ter mais ninguém por aqui a essa hora e fico de frente para ela. Laura abre um sorriso sem graça, mas logo se pendura em meu pescoço.

— Tem mais de uma semana que não te vejo, você não liga e nem aparece lá no meu apartamento. Então, se Maomé não vai até a montanha...

Reviro os olhos e retiro as suas mãos de mim.

— Laura, você trabalha na Karamanlis, então já deve ter percebido a movimentação infernal na empresa por conta da Ethernium. — Ela concorda. — Além disso, não entendi o motivo pelo qual eu deveria dar satisfação ou ter regularidade em nossos encontros.

A moça arregala os olhos por causa de minha sinceridade.

— Eu pensei que... — ela suspira — estávamos tendo essa regularidade, afinal, ficamos juntos por umas semanas e...

— Ficamos porque estava gostoso — não tenho medo de ser direto. — Mas não significa que temos qualquer tipo de compromisso. Não sou desses, Laura, e foi a primeira coisa que te disse quando trepamos a primeira vez.

Ela fica um tempo muda, olhando para o nada, então, de repente, abre um sorriso e desliza a mão pelo meu peito.

— Disse. Como disse também que queria trepar mais, lembra? Eu ainda quero mais, Alex — sua voz é ronronante. — Sempre imaginei como seria fazer sexo aqui na sua sala.

Respiro fundo, levemente excitado com o oferecimento, contudo, sem nenhuma vontade de fodê-la aqui – ou em qualquer outro lugar – depois desses questionamentos.

— Infelizmente, eu estou muito ocupado agora, motivo pelo qual ainda estou na empresa quando todos já foram. — Ela faz um biquinho, mas me afasto e volto a me sentar à mesa. — Acho melhor você ir.

Ela bufa.

— Sério isso?

Volto a olhá-la, sem esconder meu desagrado e impaciência, e ela se sobressalta.

— Sério.

Laura fica um tempo me encarando, depois vira as costas e sai da sala, andando firme e visivelmente puta. Balanço a cabeça, repreendendo a mim mesmo por ter deixado as coisas chegarem a esse ponto. Foi muito bom trepar com ela, aposto que a recíproca é verdadeira, porém não imaginei que ela criaria tantas expectativas e se sentisse no direito de vir me cobrar algo.

Erro de cálculo!, penso, sem deixar de pontuar que isso, para um engenheiro, é algo muito perigoso, que pode pôr tudo a perder.

Pego a pequena bola de borracha que tenho usado para exercitar minha mão e reparo nos machucados nela. Os cortes já estão todos secos, e os pontos que tomei em um deles já foram retirados.

Socar o vidro do boxe foi um momento de loucura, como tantos outros por que já passei. Fazia muito tempo que eu não perdia a cabeça daquele jeito, e sei que o que Samara me disse foi o gatilho responsável por isso. Não tiro, em hipótese alguma, a razão dela para me dizer aquelas palavras, mas elas acertaram o alvo na mosca.

Fecho os olhos e tensiono o pescoço, tentando relaxar um pouco para voltar a trabalhar e não enveredar pelos acontecimentos dessa semana, mas ainda não tenho esse controle total da mente e dos meus pensamentos.

A frustração me bate ao me lembrar do almoço com Konstantinos, meu irmão advogado. Achei que, pela primeira vez, ele iria se dispor a me ajudar com as respostas que procuro por anos, mas, ao que parece, ser egoísta e frio é algo familiar.

Mexo na minha agenda de anotações e encontro lá o endereço do sobrado de propriedade de Kostas. A voz da mulher misteriosa que encontrei na porta do Castellani ainda ressoa nítida em meus ouvidos:

“Eu conheci sua mãe biológica. Se quiser respostas, procure pela casa de Madame Linete.”

Foi o encontro mais estranho da minha vida. Ela estava parada lá, olhando o prédio e, quando me viu, logo perguntou se eu era um Karamanlis. Estranhei a pergunta, tentando reconhecer a senhora frágil e de cabelos brancos, mas não precisei responder, pois ela logo disse essas duas frases e se afastou sem me dar a chance de perguntar qualquer coisa mais.

Claro que eu já havia cogitado a ideia de que tinha sido gerado por alguma prostituta daquela maldita casa, afinal, era o local que meu pai mais utilizava. Não deveria ter começado do nada sua amizade com a cafetina asquerosa, mas nunca achei nada que me ligasse àquele local até esse encontro.

Talvez fosse uma pista falsa apenas, mas eu não poderia ignorar mais nada, não enquanto não achasse as respostas que procurei por toda minha adolescência a fim de tirar esse poder das mãos de Nikkós.

Não conhecer meu passado era o suficiente para meu pai ter uma enorme arma psicológica contra mim, coisa que ele utilizou por muitos e muitos anos.

Foi pensando em exterminar todo e qualquer poder que meu pai ainda pudesse ter sobre minha vida que atraí meu irmão para um almoço com a desculpa de falar da conta na qual estávamos trabalhando em conjunto.

Confesso que estranhei quando ele aceitou sem que eu tivesse que recorrer a inúmeros subterfúgios, mas agradeci a boa sorte, e nos encontramos em um restaurante neutro, escolhido a esmo, embora de alta gastronomia.

Achei que seria difícil introduzir o assunto, principalmente porque ele iria saber que pesquisei o maldito imóvel e descobri que ele o comprou há anos, quando foi a leilão. Isso me surpreendeu, claro, saber que ele comprou o sobrado e que ainda o mantém de pé sem nenhuma modificação ou uso. O assunto não surgiu naturalmente. Kostas estava estranho, mesmo falando de negócios, o que me surpreendeu, pois sempre imaginei que ele fosse se aproveitar da distância de Millos e Theo para tentar assumir a empresa.

— Eu acho que temos um acordo implícito de não falarmos sobre o passado — decidi não ser mais sutil, e Kostas reagiu imediatamente:

— Não é implícito. Não quero falar do passado. Mais explícito que isso, impossível!

Eu sabia que não seria fácil, ele é tão fechado quanto eu, então precisei desarmá-lo. Aproximei-me dele por sobre a mesa do restaurante e abaixei o tom de voz:

— Dessa vez, não poderei acatar sua vontade, Konstantinos. Sei que você comprou o sobrado da Rua...

Kostas levantou-se.

— Perdi a fome, vou voltar para a empresa.

Pus-me de pé também e o vi caminhar na direção da saída do restaurante, mas não ia desistir, não quando já havia agitado o vespeiro.

— Eu nunca te pedi ajuda. — Meu irmão parou, mas não se virou para me olhar. Decidi continuar por essa linha de ação: sinceridade. — Eu não podia te ajudar, então nunca pedi ajuda também.

— Alexios, não faça isso...

Eu soube que atingi o ponto certo, pois podia sentir a tensão no seu corpo. Nós dois temos consciência do que passamos na mão do nosso pai e de tudo que fizemos para que a loucura de Nikkós ficasse longe de Kyra. Kostas não aguentou por muito tempo, e eu o entendo, mas fiquei lá sozinho, lutando contra o monstro, tentando proteger minha irmã, mesmo sem ninguém para fazer o mesmo por mim.

Nunca tinha pensado em lhe cobrar, mas situações extremas pedem medidas extremas.

— Eu preciso, senão não faria. Há chances de eu descobrir o que Nikkós fez com minha mãe.

Fiquei satisfeito ao vê-lo se virar completamente surpreso.

— Sua mãe? Você soube algo dela?

— Nada conclusivo, mas acabei cruzando com uma pessoa que, quando soube que eu era filho dele, disse tê-la conhecido.

— Isso é loucura! Você procurou durante sua adolescência toda, quase se matou por isso, não há pistas, não há nomes, não há nada!

Lembranças de anos e anos de buscas vãs me fizeram titubear por alguns instantes. Eu não tinha um ponto de partida na época, pois ela podia ser qualquer pessoa, mas, naquele momento, eu tinha a maldita pista do imóvel.

— Preciso acessar o sobrado — voltei a falar, mas Kostas negou. — Preciso entrar e remexer tudo lá.

— Não!

— Foda-se, eu vou! — Soquei a mesa, decidido, puto demais por estar ali pedindo ajuda a ele pela primeira vez e não ser compreendido. Eu sempre o entendi, sempre o justifiquei quando saiu do apartamento e foi viver sua vida. Quando descobri que o sobrado lhe pertencia, nunca pensei em questionar seus motivos, apenas o entendi. Não era justo não ter o mesmo tratamento e consideração. — Eu sei que, por algum motivo bizarro, você o comprou, trancou-o com tudo dentro e o tem deixado apodrecendo por mais de 15 anos! Pode ter alguma pista lá.

— Não é seguro. Não vou arriscar que você morra lá dentro e eu ainda tenha que responder a...

Caralho de desculpa mais esfarrapada!

— Porra, Kostas, não fode! — Perdi a paciência, circundei a mesa e me aproximei dele, disposto a jogar pesado. — Eu sei dos teus motivos, respeito-os. Como disse, nunca te pedi ajuda antes porque sabia que você também precisava e não tinha a quem pedir, mas agora estou pedindo, agora estou contando com você. Não me faça arrombá-lo, porque eu o farei, apenas dê-me as chaves de todas aquelas grades que pôs lá.

Vi-o pensar, achei mesmo que eu estivesse tocando em alguma parte ainda viva de seu corpo, talvez no menino que conheci quando chegou para morar conosco, mas não, ao que parecia, meu irmão havia virado a porra de uma rocha fria e sem sentimentos.

— Tente invadir. Será um prazer implodir aquela merda com tudo dentro!

A mera possibilidade de ele destruir a única pista que tive do meu passado me desconsertou. Kostas aproveitou-se do momento e foi embora do restaurante.

Fiquei um tempo parado, até que ouvi um leve pigarrear e vi os garçons chegando com nossos pedidos. Estava sem fome, um bolo havia se formado em minha garganta, então pedi que embrulhassem tudo e deixei as quentinhas com o primeiro morador de rua que achei pelo caminho.

Andei sem rumo, sem saber o que fazer ou como agir. Tinha aberto meu peito para ele, pedira ajuda pela primeira vez e recebera um sonoro não. Senti algo inédito pelo meu irmão, raiva. Kostas nunca fora o alvo da minha revolta, pois sempre o compreendi, mas naquele momento não podia mais entendê-lo, não quando eu poderia ter respostas para acabar com minha tortura.

Sair de casa ajudou meu irmão a dar fim ao poder de Nikkós sobre sua vida, mas o mesmo não aconteceu comigo, e, enquanto eu não souber sobre o meu passado, não poderei tirar do homem que me gerou a possibilidade de voltar a me ferir.

O som de mensagem no celular me faz deixar de lado essas lembranças, e eu leio a mensagem de minha irmã me convidando para jantar com ela.


“Kyra, ainda estou na empresa, não poderei ir.”


Envio a mensagem esperando que seja suficiente, mas não é.


“Uma hora você precisará comer, e eu não tenho nenhuma intenção de jantar cedo. Venha no horário que puder, esperarei você.”


Merda, ela sabe ser insistente!


“Ok.”


Olho para o monitor do computador, respiro fundo e desisto de trabalhar. Minha barriga ronca, e decido aceitar o convite inesperado de minha irmã. Antes, porém, olho novamente o endereço do sobrado e traço um plano para invadi-lo sem que Konstantinos tome conhecimento.

As respostas que busco sobre mim mesmo podem ser achadas lá; não vou desistir tão fácil assim de encontrá-las. Nunca desisti fácil de nada, essa não será a primeira vez.

Imediatamente a imagem de Samara aparece em minha mente, e eu bufo, chamando-me de hipócrita. Claro que já desisti fácil de algo, eu só não gostava de admitir isso por não me achar sequer digno dela.

Quem sabe se eu achar as...

Interrompo o pensamento antes de criar ilusões que só serviriam para me machucar. Não há possibilidade de eu tê-la, mesmo que tenha todas as respostas da minha vida. Samara nunca estará ao meu alcance, e, sinceramente, acho bom que não haja nenhum envolvimento entre nós.

Ela merece mais!


Pego mais um copo de café e volto a me sentar ao lado de Daniel, sacudindo a perna, bebericando ou soprando a bebida quente. Olho para o corredor e, sem nem mesmo consumir metade do café, levanto-me para pegar um copo d’água.

Volto a me sentar, as pernas agitadas, confundo os copos e dou uma golada no café fumegante.

— Merda!

Daniel põe a mão no meu joelho e me obriga a parar de sacudir a perna.

— Se você não sossegar agora, juro que te ponho para fora — ele me ameaça.

— Desculpa. — Sorrio sem jeito. — Estou nervosa com os resultados desse primeiro ciclo de quimio e acho que deveríamos ter entrado com ela para saber mais...

— Nosso pai entrou com ela, Samara. Sossegue, você está me deixando irritado parecendo uma criança ansiosa! — Daniel fala alto, e eu o encaro surpresa. — Desculpa. — Ele põe a mão na cabeça e esfrega os olhos. — Eu quase não dormi essa noite, mas você não tem nada a ver com meu mau humor.

— Ela vai ficar bem, Dani. — Ponho minha mão em seu ombro.

— Eu sei que vai! Nunca tive dúvidas disso.

Respiro fundo e concordo com ele, embora não tenha a mesma confiança que ele demonstra ter.

Têm sido dias difíceis desde que cheguei ao Brasil, mas em momento algum me dei a oportunidade de esmorecer perto deles. A cada medicação, mamãe tinha reações mais fortes, requerendo tanto cuidado e atenção que decidi desistir de morar no meu apartamento e voltei para a casa dos meus pais.

Confesso que essa decisão também me ajudou a manter distância de Alexios Karamanlis. Não que eu ache que em algum momento ele tenha notado minha ausência ou se importado com isso, mas para mim fez toda a diferença.

É aquele ditado, sabe? O que os olhos não veem...

Suspiro.

— Você foi incrível nesses dias, Samara — Daniel volta a falar. — Mamãe esteve muito mais à vontade com você por perto do que comigo.

— Não fala besteira, Dani! — Ele sorri, sabendo que é o xodó da mamãe. — Eu gostei de ter conseguido ajudar e estar com ela de novo.

— Ela também ado... — ele para de falar assim que vê nossos pais vindo até onde estamos. Levantamo-nos juntos, apreensivos, esperançosos, e o sorriso de mamãe é reconfortante.

— O que o médico disse? — indago assim que eles se aproximam.

— O medicamento fez o efeito esperado para esse primeiro ciclo. Agora é esperar o tempo de descanso para começar de novo. — Mamãe sorri.

— E a radioterapia? — Dani questiona, e ela dá de ombros.

— O doutor ainda não prescreveu — papai responde. — Vamos torcer para que a quimio resolva sem precisar da rádio! — Ele sorri e abraça mamãe pelos ombros. — Em breve você terá sua vida agitada de volta.

Ela suspira cansada.

— Bom, vamos todos almoçar para comemorar o fim desse primeiro degrau rumo à vitória! — tento animar a todos, mas só meu pai sorri. — Ah, gente, vamos lá! Mamãe?

Ela assente e olha para Daniel.

— Você não está cansada? — meu irmão pergunta a ela.

— Não, podemos ir!

Bato palmas e a beijo na testa.

Eu entendo o desânimo dela, seria cruel não entender, pois, ainda que todos estejamos empenhados em seu tratamento, é ela quem passa por todos os efeitos colaterais dos medicamentos e pela doença. Mamãe nunca foi uma mulher parada ou passiva, e depender de outras pessoas deve estar sendo uma verdadeira prova para ela.

Foram semanas difíceis, não nego. Fiquei totalmente à disposição de minha mãe, levando-a às consultas e às sessões, fazendo companhia a ela, amparando-a em momentos de indisposição e dor. Godofredo e eu nos mudamos para a mansão da família, e eu mal tive tempo para ir ao Castellani ou mesmo visitar amigos.

Kyra esteve várias vezes conosco, geralmente após o expediente de trabalho, quando não tinha eventos. Daniel e Bianca, sua noiva, também estiveram presentes nos jantares e almoços de finais de semana, e, claro, papai.

Sorrio ao pensar em como é bom ter meu pai por perto. Ele e eu temos muitas afinidades, então, passamos muito tempo conversando, vendo filmes ou ouvindo música. Mamãe prefere ler sozinha em seu quarto à noite, por isso faço esses programas todos com papai.

Assim, o mês de janeiro se foi, e fevereiro entrou com força total com a finalização do primeiro ciclo de quimio da mamãe e o inesperado convite de Daniel para que eu trabalhe na empresa com ele.

— Dani, eu sou designer de interiores. Já trabalhei decorando mansões, apartamentos, iates e até um motor home, mas nunca fiz nada empresarial. — Fiz careta ao lhe responder. — É tudo muito frio.

— É um hotel — ele logo me informou. — Vamos redecorar um enorme hotel.

Meus olhos brilharam.

— Ele vai seguir algum padrão já existente? É um hotel de rede?

Ele nega.

— Não. É uma casa de campo que está virando hotel. — Arregalei os olhos. — O projeto de reforma é da Karamanlis, e a executora da obra é a Novak.

— K-Eng? — inquiri baixinho, e ele suspirou.

— É, mas quem está acompanhando é um dos braços direitos do seu amigo.

Havia muitos dias eu já não pensava no Alexios e nem no beijo do Ano Novo. Não foi o primeiro que trocamos depois de umas bebidas, então eu não devia lhe dar tanta importância, embora reconhecesse que ter me afastado do Castellani ajudou muito a manter distância dele. Alexios e eu já não somos mais amigos!

A perspectiva de trabalhar em um projeto como aquele enquanto eu estivesse no Brasil era maravilhosa, mesmo com a possibilidade de encontrar o CEO da K-Eng eventualmente.

— Aceito olhar o projeto e conversar sobre o briefing, só isso. — Daniel sorriu satisfeito. — Se eu puder executar meu trabalho sem a interferência de pessoas que nada entendem de decoração, pego para fazer; do contrário, estou fora.

— É assim que se fala! Você vai amar o projeto de reforma, ficar cheia de ideias, e tenho certeza de que os responsáveis pelo empreendimento vão adorar seu trabalho.

O projeto realmente estava incrível, e a ideia de como os donos queriam a decoração dos quartos e áreas comuns me deixou louca para começar o trabalho. Aceitei a proposta, negociei sob a garantia da Schneider e fechei um belo negócio aqui no meu país.

Penso no meu trabalho na Espanha e Diego me vem à cabeça. Entro no carro, no banco do carona, ao lado de Daniel e suspiro.

— O que foi? — meu irmão pergunta, seguindo o carro do papai para fora do estacionamento.

— Estava pensando no Diego.

— Vocês têm se falado?

— Sim, por mensagens. — Balanço a cabeça. — Não sei mais o que fazer para ele entender que não estou tendo nenhum tipo de crise por conta do tratamento da mamãe. Eu fui sincera com ele quando terminei. Não foi certo fazer por vídeo, mas eu não podia mais me sentir enganando-o.

— Eu entendo você, embora não goste nada do motivo que a levou a isso.

— Não tem nada a ver com Alexios, nós nem temos nos visto. Eu pensei em ir até a Espanha para conversar melhor com Diego, mas acabei de pegar esse projeto enorme e não posso me ausentar por agora. Além disso, ele está seguindo o time na Champions...

— Não sei se é boa ideia você ir atrás dele. Acho-o um tanto insistente demais. Concordo que não foi certo terminar por vídeo-ligação, mas depois disso vocês conversaram várias vezes, e o homem não para de insistir.

Eu concordo, mas ao mesmo tempo me sinto culpada.

— Sim. Mesmo assim sinto que lhe devo uma explicação.

Paramos no farol, e ele me olha.

— Você quer retornar para Madri mesmo depois desse término?

Respiro fundo e dou de ombros.

—Sim, trabalho em uma ótima empresa lá, então, por que não voltar?

Meu irmão ri.

— Isso é você quem tem que responder a si mesma. — Ele me puxa para perto e beija o topo da minha cabeça. — A decisão é sua; certa ou errada, cabe a você decidir o que fazer.

— Eu sei.

Sorrio, mesmo com minha cabeça fervendo de perguntas sem respostas, mesmo sem entender o que eu quero e por onde devo ir.

Fui para a Espanha para fugir de um sentimento que parecia não ter fim, mesmo diante da impossibilidade de se tornar algo real, e acabei fazendo amigos e criando laços por lá, mas é aqui que minha família e meus amigos estão. A decisão não é fácil!

Quanto a Alexios... o sentimento não morreu, obviamente, porém não guardo mais nenhuma ilusão com relação a ele. Sempre serei vista como a grande amiga e nada mais.


— Alexios está esquisito essa semana — Kyra comenta.

Eu rio e bebo mais um gole do vinho.

— Quando ele não foi esquisito? — debocho.

— Exatamente, a esquisitice dele não me surpreende, mas essa semana ele está mais esquisito. — Presto atenção ao que Kyra diz, pois minha amiga não costuma exagerar, pelo contrário. — Eu sei que ele está em um ritmo frenético de trabalho, mas, quando falei com ele ontem, achei-o um tanto...

— Esquisito — complemento, e Kyra revira os olhos ante minha brincadeira. — Kyra, seu irmão é a pessoa mais fechada do mundo, você sabe. Mesmo que ele esteja com merda até nos ouvidos, precisa quase se afogar nela para pedir ajuda ou falar com alguém.

Ela assente, e nós duas ficamos mudas. Eu me lembro de quando tomei conhecimento, pela primeira vez, do que eles viviam com o pai. Alexios telefonou para minha casa pedindo para que eu subisse até a cobertura, pois precisava de um favor. Não pensei duas vezes e fui até ele pensando que queria ajuda com algum jogo ou matéria – história nunca foi o seu forte –, mas, quando o vi, mal conseguia me mover.

Ele estava todo machucado nas costas. Os cortes eram verdadeiros talhos, de onde saía muito sangue, e eu tive que respirar fundo várias vezes para não vomitar.

— Samara, preciso que você seja dura agora — ele me disse com a voz calma, com toda sua sabedoria de 15 anos de idade.

— O que você quer que eu faça? — perguntei temerosa, já prevendo que ele me pediria para limpar e fazer curativos.

O problema era que, por conta do tamanho e da profundidade dos cortes, curativos não seriam o bastante. Ele ergueu uma agulha curva com um enorme pedaço de linha preta.

— Costure.

Neguei várias vezes com a cabeça, incapaz de abrir a boca sem derramar todo o lanche que havia acabado de tomar, mas ele me olhava suplicante. Percebi que, mesmo sentindo dor, ele tentava não demonstrar.

— Você precisa de um médico!

— Não. — Ele ergueu a agulha novamente. — Preciso de você.

Peguei o metal curvado. Minhas mãos tremiam, o queixo também. Era possível ouvir o som dos meus dentes batendo forte um contra o outro. Não entendia o que estava acontecendo, o motivo pelo qual ele estava daquele jeito e não ia até um hospital.

Eu mal sabia bordar, e somente a possibilidade de machucá-lo ainda mais me apavorava.

— Se fosse em outro local, eu juro que não pediria isso a você, mas eu não consigo suturar as costas sozinho.

Foi então que percebi que não era a primeira vez.

— O que foi isso, Alexios?

Ele sorriu tentando me despistar, mas depois suspirou.

— Caí em cima da mesinha de centro da sala lá de cima. — Apontou para o segundo piso da cobertura. — Ela era toda espelhada, por isso me cortei.

— Caiu?

Ele não respondeu, apenas virou-se de costas para mim e começou a me dizer o que fazer.

— A agulha já está desinfetada, e eu tomei banho, mas ainda assim preciso que você passe esse antisséptico, limpe bem o sangue e comece a costurar. — Ouvi o som de sua risada. — Pense que sou um dos seus tecidos finos e delicados de almofada e borde em mim.

Bufei com a comparação.

— Não achei graça nenhuma!

Foi um longo processo, mas cumpri com o que ele pediu e somente anos depois é que entendi tudo aquilo, inclusive a história esfarrapada do “caí por cima da mesa”.

Fiz muitos favores como esse para ele por muito tempo ainda. Aprendi a costurar sua pele, a recolocar seus ossos no lugar quando se deslocavam e até mesmo a imobilizar alguma parte de seu corpo. Porém, mesmo estando ao lado dele em todos esses momentos dolorosos, Alexios só me contou que era o pai que o espancava depois que saiu de casa com Kyra.

Eu sofri tanto por pensar nas atrocidades que eles viveram, porque minha amiga até reclama do irmão, mas são farinha do mesmo saco. Não faço ideia de como Nikkós a afetou, mas é certo que ela não foi poupada da loucura do pai.

— Ei, Samara no mundo da lua! — Kyra me cutuca. — Está pensando em quê? Perguntei por Diego, e você ainda nem me respondeu o que ficou decidido.

— Nada de diferente. — Ela cruza os braços. — Temos conversado bastante por mensagens, mas ele parece não aceitar que acabou. Diz que estou em crise e que, assim que puder, virá ao Brasil.

— Para quê?

— Conversar pessoalmente. — Fecho os olhos. — Gostaria tanto que tudo fosse diferente, sabe? Que eu pudesse gostar dele da forma como deveria.

— E por que não pode? — Olho para Kyra, e ela entende a resposta. — Uma merda isso! Então você não vai voltar para Madri mais?

Penso em Diego e em todo esse tempo em que estivemos juntos, recordo-me de como me senti feliz ao lado dele e do escritório maravilhoso de design em que trabalhei durante esses anos. Ele tem alegado isso, que estou confusa por estar longe, com medo de mudar de vez para Madri e ficar longe da minha família. Não é isso! Ter voltado ao Brasil mexeu, sim, com meus sentimentos, principalmente quebrou a ilusão de que eu tinha esquecido Alexios. Por isso ainda penso em voltar a morar na Espanha, mas não quero mais me enganar e enganar outra pessoa no percurso.

— Eu gostaria de ter essa resposta, Kyra — volto a falar. — Gostaria de saber o que é melhor para mim, mas não sei. Aqui há tantos motivos para eu ficar, como também para que eu vá, mas ainda estou indecisa.

— Eu sei. — Ela sorri compreensiva.

A campainha do apartamento dela soa alto. Estranho, porque ela não me disse que teríamos companhia, mas, por sua reação, Kyra já estava à espera de alguém.

— Talvez o motivo de sua indecisão tenha chegado agora.

Arregalo os olhos com a possibilidade de ser Alexios.

— Kyra, o que você... — não termino de formular a frase, pois minha amiga abre a porta, e o vejo olhá-la com um sorriso cansado, entrar no apartamento e parar surpreso ao me ver.

— Oi — cumprimento-o.

— Oi. — Ele desvia o olhar para Kyra.

— Vou ver se o jantar já... — ela para de falar e ergue a mão dele. — O que houve?

Os olhos de Alexios não deixam os meus, então ele abre um sorriso lindo – esse é o bendito que ele usa quando quer disfarçar alguma situação séria ou desviar o assunto – e dá de ombros.

— Um pequeno acidente besta, nada importante. — Kyra parece não engolir a desculpa esfarrapada também, mas não insiste, pois conhece o irmão muito bem. — Tem cerveja?

— Claro que tem! Vou pegar umas para você. — Ela aponta para mim. — Faça companhia para a Samara.

Nós dois a olhamos, entendendo que o jantar foi uma armadilha dela para que voltemos a nos falar. Sinceramente não entendo minha amiga. Ela sabe o que sinto e o que Alexios não sente, mas ainda assim insiste em nos manter unidos, mesmo dizendo sempre que seu irmão não é uma boa opção para mim.

Como se um dia ele considerasse me ver como mulher!

— Como estão as coisas com sua mãe? — Alexios puxa assunto de repente e se senta em uma poltrona individual bem longe de onde estou.

— O primeiro ciclo de quimioterapia acabou, e ela está bem — respondo seca. — E você, como está?

Ele abre o maldito sorriso fingido.

— Ótimo! Cheio de trabalho, sem tempo para fazer bobagens...

— Não parece. — Aponto para sua mão. — Achei que seus momentos de fúria já tivessem passado desde que começou a praticar esportes. — Ele fica sério. — Por falar nisso, vi o Chicão lá no prédio esses dias. Ele está hospedado contigo?

— Está, como sempre. — Alexios olha para trás, na direção da cozinha de Kyra e respira fundo. — Eu queria pedir desculpas novamente por...

— Não precisa — interrompo-o antes que eu seja obrigada a socar sua cara.

— Preciso — ele insiste. — Kyra me contou sobre seu relacionamento — meu coração dispara ao ouvi-lo falar sobre isso como se não tivesse importância alguma. — Espero que ele seja o homem que você merece e que sejam muito felizes como você sempre sonhou.

Engulo em seco, abro um sorriso – fervendo de raiva da Kyra – e digo a primeira coisa que me vem à cabeça:

— Ele é! — minto, e Alexios fica sério, seus olhos claros fixos nos meus. — Um verdadeiro príncipe como sempre sonhei.

— Quem bom. — Ele se levanta. — Vou até a cozinha pegar a cerveja, estou morrendo de sede.

Acompanho-o com os olhos e, quando desaparece da minha vista, gemo e me dou um tapa na cabeça. Que ridícula! Por que, mesmo sendo tão madura em vários aspectos, sou uma imbecil quando estou perto dele? Parece até que estou de volta ao aniversário de 18 anos da Kyra, quando saímos nós três para comemorar, e eu fiquei com um babaca total só porque Alexios pegou uma das garçonetes da pizzaria.

Não sou mais essa garota!

Alexios e Kyra voltam para a sala, ele, bebendo uma longneck, e minha amiga, com uma travessa na mão.

— Escondidinho de camarão, como vocês dois sempre gostaram — ela anuncia.

— O cheiro está incrível! — elogio, levantando-me do sofá e indo ajudá-la. — Há muitos anos não sinto algo tão delicioso!

— Eu também não — Alexios fala perto de mim.

Os pelos do meu corpo se arrepiam todos por causa do som de sua voz e seu hálito no meu pescoço. Viro-me para ele, sem entender o motivo pelo qual está tão próximo de mim e me surpreendo por um instante ao decifrar seu olhar: fome, e não é de comida.

Balanço a cabeça, achando impossível que seu olhar esfomeado seja para mim e me afasto dele, indo posicionar os pratos como Kyra me ensinou a fazer tempos atrás.

— Andou treinando? — minha amiga brinca ao me ver executar com perfeição seu ensinamento.

— Sim, fiz alguns jantares em Madri — conto orgulhosa. — Recebi poucas pessoas, a maioria amigos, e fiz questão de colocar em prática tudo o que você me ensinou...

— E que você achava que era bobagem! — Ela ri e olha para Alexios. — Uma arquiteta de interiores deve, no mínimo, saber montar uma mesa, não acha?

Alexios franze a testa, pensa um momento e depois concorda.

— Pregar pregos na parede, fazer arranjos florais, pintar um quadro... — Kyra fica séria, e ele começa a rir. — Há profissionais para isso, Kyra, Samara é responsável pelos layouts de móveis e projetos de planejados, não precisa saber fazer tudo!

Kyra parece estupefata, e, confesso, eu também estou, porque geralmente os dois se uniam para brincar ou me provocar, e agora ele acabou de me defender!

Alexios parece ficar sem jeito com o silêncio e dá uma enorme golada, até pôr fim ao conteúdo da garrafinha de cerveja, em seguida volta para a cozinha.

— O que está rolando? — Kyra me pressiona.

— Não sei do que...

— Samara, sem essa de “não sei do que você está falando”. Não nasci ontem, percebi que vocês estão estremecidos. Achei que tinha sido por conta dos anos longe, mas achei que isso ia passar depois do baile, mas então Alexios aparece aqui mais perdido do que cachorro que caiu da mudança e se recusa a falar o que aprontou contigo na virada do ano! — Aproxima-se. — Conte-me já!

Nem em sonho!

— Não há nada para contar.

Alexios retorna, e sua irmã avança para ele igual a um anjo vingador.

— O que está rolando entre vocês dois? — Ela põe a mão na cintura. — Sempre fomos amigos! Éramos um trio, estivemos juntos nos piores momentos de nossa infância e adolescência, parem já com qualquer merda que estiverem fazendo!

— Quanto você bebeu? — Alexios debocha. — Nada está acontecendo, não é?

 

CONTINUA

Kyra sempre foi exuberante, beleza herdada de sua mãe, devo acrescentar, pois Sabrina ainda continua tão linda quanto era na época em que era casada com Nikkós. Contudo, minha irmã ainda recebeu alguns belos traços dos Karamanlis, principalmente da famosa giagiá15, que todos sempre fazem questão de dizer que era linda e tinha a mesma coloração de olhos da minha irmã (e minha também, só que os Karamanlis nunca engoliram bem que eu realmente tenha o sangue nobre deles).

No papel, Kyra e eu somos filhos dos mesmos pais, pois Sabrina me adotou legalmente quando eu ainda era um garotinho. Ela, por poucos meses, possuía a diferença de idade obrigatória pela lei entre nós (16 anos) e, por isso, conseguiu, aos 18, adotar-me aos dois anos. Logo em seguida nasceu a Kyra, e a família ficou completa.

Na verdade, eu nunca soube da minha mãe. Tentei descobrir algo durante a adolescência, principalmente por ser esse um dos pontos que meu sádico pai adorava usar contra mim. Inventar uma história nova a cada dia sobre meu nascimento, minha origem, era sua principal diversão e tortura psicológica.

Nunca entendi nada sobre mim, a única certeza que tenho é de que, infelizmente, sou mesmo filho dele, algo que comprovei através de exame de DNA, cujo resultado positivo nunca divulguei, porque eu tinha esperança de não ter o sangue daquele monstro.

Volto a prestar atenção na foto, dessa vez em meu próprio rosto cheio de enfado por estar naquele baile com elas. Sorrio. Eu fazia esse tipo, mas a verdade é que adorava cada momento que passávamos juntos, pois me sentia em família de verdade.

Ponho a moldura no lugar e respiro fundo, controlando meu corpo, colocando juízo na minha cabeça, ressaltando tudo o que tem de importante na amizade entre mim e Samara e concluindo que um envolvimento fora desses termos entre nós só serviria para destruir anos e anos de companheirismo.

Samara merece ser feliz com alguém que possa ser o homem com que ela sempre sonhou, o príncipe encantado dos seus sonhos de menina, alguém que saiba quem é, que tenha valor e que possa demonstrar todo o amor que sente por ela e reconheça o privilégio que é ser amado.

Esse homem não sou eu!

 

Depois do banho na casa de Kyra, fui direto para a empresa. É providencial ter uma mochila de roupas minhas no apartamento dela, mas confesso que não vou muito de jeans e camisa de malha para a Karamanlis.

Passei no Castellani apenas para pegar minha moto, nem me atrevi a subir até meu apartamento, sendo covarde mais uma vez. A questão é que eu não saberia nem mesmo o que dizer a Samara caso nos encontrássemos de novo.

Estava saindo do estacionamento quando meu celular tocou, mas, como já estava sobre a moto – e não queria demorar muito na garagem, porque o carro de Samara ainda estava na vaga dela –, deixei para conferir a ligação quando estivesse no prédio, o que faço agora, retornando a ligação.

— Oi, Chicão! — cumprimento-o assim que atende.

— Alex, seu grande safado, feliz Ano Novo! — o homem mais velho, que se tornou um grande amigo e a quem eu considero como um pai – no sentido do que realmente um pai deveria ser – por pouco não me ensurdece ao telefone. — Cheguei ao inferno hoje, queria saber se poderia passar uns dias lá naquele seu apartamento cinco estrelas.

Abro um sorriso de felicidade ao pensar que ele está de volta a São Paulo. Francisco Salatiel Figueiroa é o nome dessa figura de quase 60 anos, paulistano – mas que odeia sua cidade natal – e viciado em esportes radicais assim como eu.

Nós nos conhecemos quando eu ainda estava no colégio, devia ter uns 15 anos e fui participar de um racha de moto pela cidade. Ele apareceu por lá, chamou-me em um canto e me convidou a fazer cross ao invés de colocar minha vida e a de outras pessoas em risco correndo pelas ruas.

Comecei a ir para o os circuitos de motocross, tomei muito tombo, enlameei-me até o pescoço e me senti mais vivo do que quando me arriscava nos rachas. Nós nos tornamos amigos mesmo com nossa gritante diferença de idade, pois ele dizia que eu lembrava o moleque atentado que ele mesmo tinha sido um dia, e comecei a acompanhá-lo em suas atividades.

Foi por causa dele que deixei de buscar alívio e fuga nas drogas, pois conseguiu me mostrar que, se eu quisesse me livrar de Nikkós, teria que ser melhor que ele. Não foi um processo fácil, admito, levei anos para entender e ouvir seus conselhos, mas nem por isso ele desistiu de mim ou se afastou.

Francisco começou a me mostrar que eu poderia extravasar toda minha angústia, solidão, medo e revolta em esportes como trilhas de moto, bike, escaladas, voos livres, paraquedismo e, quando tirei minha carteira de motorista, apresentou-me a alguns amigos dos circuitos de motovelocidade.

Os esportes aliviavam meu corpo da tensão vivida em casa, mas minha cabeça e minha alma continuavam pesadas, então, um dia, ele me viu desenhar e descobriu como eu poderia tratar os demônios dentro de mim.

Devo muito a ele, não só pelo equilíbrio que consegui hoje em minha vida, como também por permanecer vivo e são. Samara e ele foram os únicos a permanecerem ao meu lado nos piores momentos da minha vida, ela me auxiliando principalmente com Kyra, e ele entendendo meus problemas e me ajudando a achar soluções.

— Meu apartamento é seu! Te dei a chave, afinal.

— Eu sei, mas é sempre bom dar uma conferida, vai que você resolveu sossegar seu pau numa boceta só.

Gargalho com seu jeito rude e direto.

— Não, meu pau ainda gosta de explorar por aí. — Ele me chama de “vadio” e ri. — Estou na Karamanlis agora e...

— Ah, me diz que estou sonhado... — estranho o que ele fala, escuto vozes ao fundo e percebo que não falou comigo. Espero que ele retome a ligação, entro no elevador, cumprimento as pessoas com a cabeça e sorrio para uma mulher gostosa que nunca vi aqui no prédio. — Seu trapaceiro de uma figa! Samara está de volta e, caramba, mais linda do que nunca.

Só de ouvir o nome dela, sinto meu corpo reagir como se uma descarga elétrica tivesse me atingido.

— Encontrou-se com ela agora?

— Sim, seu embuste! Quantos anos ela esteve fora? Caralho, você já a viu?

Franzo a testa, desço no meu andar, confuso com a perplexidade dele apenas por ter visto a Samara no prédio, afinal, ele sabe muito bem que ela tem um apartamento lá.

— Já, desde que chegou — respondo distraído, acenando para os funcionários da K-Eng. — Por quê?

— Alexios, eu sempre me perguntei se você era cego ou apenas muito burro. — Ouço o barulho de uma porta se fechando. — Nunca entendi por que vocês dois nunca tiveram nada um com o outro.

Paro no meio do corredor, atraindo os olhares de pelo menos dois engenheiros que passam por mim. Que merda é essa?!

— Ela é minha amiga — digo o óbvio.

— Ela é incrível e sua amiga, isso já não é meio caminho para um relacionamento de sucesso?

Um alerta dispara em meu cérebro. Chicão nunca foi um homem ligado a relacionamentos permanentes, tanto que é solteiro até hoje, então não entendo o motivo pelo qual está falando essas coisas sobre mim e Samara.

— Chicão, sou eu! Eu não tenho relacionamentos, eu fodo por aí, só isso. E, definitivamente, Samara não é uma mulher apenas para se foder.

Ele emite um grunhido, e, ao fundo, escuto o bipe da minha cafeteira sendo ligada.

— Nisso concordamos. Mas ela é incrível, sempre foi, se eu tivesse a sua idade e a sua aparência, não perderia a oportunidade de tê-la comigo.

Mas o que... Arregalo os olhos, e meu coração dispara.

— Você está morrendo? — inquiro-lhe como se fosse a única opção válida para essa mudança de comportamento.

Chicão gargalha.

— Não, mas estou ficando velho e sozinho. — Bufa. — Mas isso não é assunto para discutirmos ao telefone, já que você está na empresa.

— Chicão, está tudo bem?

— Vai trabalhar, embuste, depois conversamos. Viajei a noite toda, quero tomar um banho, comer algo e dormir um pouco. Obrigado pelo abrigo.

Ele ainda não me convenceu, algo está errado.

— A casa é sua! — declaro, e ele encerra a ligação.


— Quer mais um travesseiro? — pergunto à minha mãe assim que ela se deita na cama.

— Não, filha, estou bem. — Sorri, mas o cansaço não permite que o faça por muito tempo. — É sempre assim no dia da medicação, mas passa.

Balanço a cabeça concordando, enternecida por ela estar tentando me consolar, quando é ela quem está passando por isso tudo. Sempre a admirei por sua força, seu destemor e a capacidade de realizar qualquer coisa que se propunha a fazer.

Mamãe não tem um gênio fácil de lidar, mas nunca negou amor e afeto aos seus filhos, mesmo sendo brava e exigente como era. Dani e eu tínhamos muito mais medo dela do que do papai, que sempre foi mais maleável, mas moderno e liberal.

O relacionamento dos meus pais, enquanto casal, não era um mar de rosas, mas eles eram amigos, companheiros. Ele sempre a apoiou em tudo, e ela acima de tudo o admirava. Não tinham grandes arroubos de paixão, pelo menos não na nossa frente, mas se respeitavam, conversam, riam e, principalmente, nos amavam muito. Dani, como filho e mais velho, sempre foi agarrado a minha mãe mais do que a nosso pai. Os dois se dão bem, são muito parecidos em alguns aspectos, mas quem sempre teve mais afinidade com papai fui eu.

Acho que nossas almas são parecidas. Ambos somos apaixonados pelas formas, perfeccionistas, românticos e, arrisco dizer, sonhadores. Eu sou assim, gostaria de ser prática como mamãe, mas há muito que parei de tentar ser quem não sou. Demorei, mas consegui aceitar meu jeito e me respeitar acima de tudo.

É dolorido tentar ser quem não é para se encaixar ou seguir uma tendência. Eu sou forte, mesmo sendo doce; sou feminista, mesmo sendo feminina e vaidosa; sou empoderada, mesmo sonhando em casar e ter uma família.

Eu me importo com a opinião alheia, sim, porque ninguém é uma ilha e não teria sentido na vida se todos fôssemos autossuficientes e não dependêssemos de ninguém. Não tenho preconceitos, sou feliz com a felicidade dos outros e não me importo que a recíproca não seja verdadeira. Cada um escolhe o caminho que quer percorrer. Eu escolhi ser assim, exatamente como sou.

Chegar até essa conclusão não foi fácil, principalmente quando se percebe que o homem por quem você é apaixonada prefere as mulheres que têm atitude, que são furacão e não calmaria. Eu quis fazer tipo e percebi que estava indo na contramão de tudo o que uma “mulher de atitude” prega, que estava tentando ser outra pessoa para agradar a um homem.

Foi aí que aquela máxima tão clichê, mas que é tão difícil de ser vivida, fez sentido para mim: quem me amar, precisa me conhecer e me aceitar como sou.

Demorei a perceber a importância disso, precisei praticamente ter isso esfregado na cara. Então arrumei minhas malas, disse ao meu pai que não iria para Barcelona, mas sim para Madri, e segui com minha vida.

Alexios foi o estopim que eu precisava para explodir naquela época, depois de ter aparecido no meu apartamento bêbado a ponto de não se aguentar de pé. Ele pediu para dormir no meu sofá, tivemos uma dura discussão quando tentei lhe passar sermão e, no meio da noite, acordei com ele na minha cama.

Fiquei sem reação quando senti sua mão na minha cintura, alisando minha pele por cima do pijama de seda. Fechei os olhos, excitada e ansiosa, e o deixei prosseguir com a exploração. Não o impedi quando me virou, nem quando me beijou e subiu em cima de mim. Tinha esperado por aquilo a vida toda, e estava acontecendo.

Ledo engano!

Ele ficou imóvel, esmagando-me com seu peso, então percebi que havia dormido. Joguei-o para o lado e passei a noite em claro, sem entender nada, esperando que ele acordasse e explicasse.

Acabei dormindo e acordando sozinha na cama. Ele tinha ido embora, e não conversamos, mas esperei que a conversa viesse mais tarde. Não veio. Ele simplesmente ignorou o beijo, as carícias, como se não fossem nada, como se eu não fosse nada.

Fiquei irritada, subi para perguntar diretamente a ele o motivo pelo qual tinha me beijado, mas, quando cheguei ao seu apartamento, estava rolando uma de suas festinhas regada a bebidas e sexo, e o filho da mãe estava sentado no sofá com uma mulher de cada lado em um beijo triplo.

Ele nem me viu, fechei a porta, desci e decidi parar de protelar minhas decisões esperando por algo que nunca iria acontecer. Um relacionamento com Alexios era uma ilusão infantil, mas eu já não era mais criança.

Viajei dois dias depois e pensei que, quando voltasse, toda essa ilusão teria se desfeito.

— Então o nome dele é Diego — mamãe fala, e eu quase pulo de susto, deixando as lembranças para tentar entender do que ela está falando. — Diego Vergara!

Sento-me na beirada da cama, curiosa sobre como ela conseguiu essa informação.

— O nome dele é mais comprido do que isso, mas, sim, Diego Vergara.

Ela sorri cheia de sabedoria.

— E você deve estar aí querendo saber como eu sei o nome dele. — Concordo. — Seu irmão me contou.

Daniel e sua boca! Meu irmão sempre foi o maior X9 do mundo, não é de se espantar que tenha contado sobre o Diego para minha mãe.

— Há quanto tempo estão juntos?

Não sei o que dizer a ela e agradeço quando uma enfermeira entra no quarto, dando-me a desculpa perfeita para escapulir de sua curiosidade. O fato é que tudo mudou depois da noite do baile dos Villazzas.

Não sei o que levou Alexios a me beijar daquela forma no elevador, eu estava bem bêbada dessa vez, mas ele não tanto, além disso, eu senti a energia entre nós, senti o tesão que ele exalava, que trazia na saliva e em cada toque no meu corpo. Alexios não escondeu em nenhum momento o quanto estava excitado, esfregou sua ereção contra mim, esmagou-me contra o espelho do elevador parecendo que queria me comer ali mesmo.

Depois, do nada, mudou. Pediu desculpas! Desculpas por me beijar! Só faltou dizer que estava com tesão, e eu era a única mulher próxima dele, mas que nem assim servia.

Para piorar, quando entrei no apartamento e peguei o celular, vi uma mensagem de Diego dizendo o quanto sentia minha falta e como ele gostaria de poder estar aqui comigo. Foi a gota d’água! Senti-me um lixo, uma pessoa má que engana e trai e percebi que tê-lo deixado na Espanha sem uma resposta definitiva foi uma atitude egoísta.

Chorando, sem pensar direito, fiz uma chamada de vídeo para ele e, quando atendeu, disparei:

— Diego, eu sou uma pessoa horrível, mas não posso fazer isso com você! — Soluçava tanto que ele se assustou e me pediu para falar devagar. Todavia, eu não conseguia. — Você é um homem incrível, um amigo maravilhoso, e eu adorei cada momento que passamos juntos...

— Calmarse, Samara! Yo no comprendo!

— Você merece mais, merece alguém melhor, e eu não posso...

— Usted está me dejando preocupado, cariño.

— Eu não queria fazer isso assim, por telefone. — Ele ficou sério, atento, prevendo o que eu lhe diria. — Mas não é justo que você fique aguardando minha volta para que eu diga isso. — Respirei fundo, armando-me de coragem. — Eu não posso aceitar seu pedido, Diego. Eu não estou pronta para amar você como deveria, como você merece.

— Samara, sucedio algo com su mamá?

Neguei.

— Não. Sou eu, não mereço você. Você tem razão ao dizer que meu coração nunca pôde estar aí contigo.

— Samara, despues hablamos, está muy nervosa. — Tentei dizer a ele que não, mas não me deu oportunidade: — Tengo que ir.

— Diego, não...

Ele encerrou a chamada. Tentei retornar outras vezes, porém a ligação não completava. Deixei mensagens, mas que, até o momento, ele não visualizou. Volto a olhar para mamãe, que boceja, visivelmente cansada, e fecha os olhos, recostada nos travesseiros, enquanto a enfermeira mede sua pressão. Eu voltei ao Brasil apenas por causa dela, para estar ao seu lado nesses momentos tão difíceis, não por qualquer outro motivo. Sinceramente, não esperava essa pressão acerca de Alexios e Diego. Minha família nunca foi assim, muito menos mamãe, que sempre pregou que uma mulher não precisa de marido e filhos para se sentir completa e feliz.

Mamãe adormece, e eu saio do quarto. Quando estou prestes a descer a escada, escuto uma voz conhecida e muito amada:

— Minha Samara está de volta! — Papai está no corredor de braços abertos. Sorrio e vou até ele para abraçá-lo. — Ah, que saudades!

— Eu também estava, mas cheguei há mais de uma semana, e você nem se dignou a vir me ver.

— Eu sei, mas agora vim para ficar, Herzchen16, e estou feliz por te ter de volta aqui em casa. — Ele beija minha testa. — Não pretende voltar para a Espanha, não é?

Suspiro. Papai foi o primeiro a me incentivar a ir estudar fora, mas o único a ficar chateado quando decidi ficar depois que terminei a especialização. Nunca foi me visitar. Embora falássemos sempre, eu percebia que ele ainda não havia entendido minha necessidade de ficar longe.

— Vou voltar, sim, tenho compromissos de trabalho por lá que...

— Besteira! Aposto que você já tem tudo desenhado e organizado e que, em uma visita ou duas, poria fim a esses “compromissos”.

— Papai, não vim para ficar, e o senhor sabe. Mamãe está na parte mais agressiva do tratamento, e Dani precisou de mim para ajudar a cuidar dela e acompanhá-la...

— Estou aqui também! — ele se ofende por não ter sido incluído. — Ela diz que não precisa de mim, mas estou aqui, sempre estive por ela.

Oh, Deus, que situação!

— Eu sei, pai.

Benjamin Abraão Nogueira Klein Schneider nunca entendeu bem a distância fria de mamãe, por mais que os dois sempre tenham se dado bem. Acho até que foi por esse motivo que se afastaram depois que crescemos e que, após minha ida para a Espanha e a de Dani para seu próprio apartamento, papai decidiu se mudar para a fazenda.

Uma vez, quando eu ainda era uma garotinha, eu o vi bêbado no escritório do antigo apartamento em que morávamos. Ele bebia e parecia mal, chorava e segurava alguns documentos. Quando me viu, tentou sorrir e me chamou para perto de si.

— Tudo bem? — perguntei na inocência dos meus oito anos de idade e limpei suas lágrimas.

— Tudo. — Ele guardou a papelada dentro de uma caixa, onde vislumbrei também algumas fotos, trancou-a com chave e depois respirou fundo. — A vida adulta é complicada, Herzchen. Fazemos escolhas baseadas no que achamos ser melhor e esquecemos o preço que isso cobra, tanto aqui — ele apontou para sua cabeça — quanto aqui. — E, por fim, tocou em seu coração.

Na época não entendi nada, mas esse momento nunca deixou minha memória e, com o tempo, supus que ele estivesse falando de seu relacionamento com mamãe. Os dois se davam bem, mas era ele quem sempre cedia numa discussão ou quem corria atrás quando as coisas ficavam tensas entre eles.

— Vi seu bichinho pré-histórico lá no jardim comendo algumas plantas — ele ri, mudando de assunto. — Você poderia ter adotado um cachorro ou um gato como qualquer outra pessoa, não é?

— Pai, eu o ganhei de presente e gosto dele.

— Mas ele é feroz! — Faz cara de medo. — Já me mordeu algumas vezes.

Gargalho.

— Godofredo é muito territorialista, ele sempre ataca os homens.

— Hum, que interessante! Começo a gostar desse bichinho. — Rio do seu ciúme. — Você não trouxe nenhum espanhol junto contigo, não é?

Suspiro.

— Não. E se o Dani disse algo para o senhor também, ele é...

Benjamin me afasta de seus braços, segurando-me pelos ombros, e me olha surpreso.

Merda!

— Ele não disse nada, não é? — pergunto, achando-me idiota.

Meu pai nega:

— Era só uma pergunta brincalhona e especulativa. — Olha em volta. — O que ele deveria me dizer?

— Eu tinha um namorado em Madri, mas ele ficou por lá.

Ele põe a mão sobre o peito.

— Adorei esse tempo verbal: “eu tinha um namorado”. — Rio. — Agora você terá que me contar sobre esse tal...

— Ele me pediu em casamento — disparo. — Mas eu não pude aceitar.

Ficamos um tempo um olhando para o outro, parados no corredor, sem emitir um som sequer. Papai sempre foi bom ouvinte e dava bons conselhos. Mesmo não sendo muito de falar sobre como se sentia, mesmo reservado em seus sentimentos, até mesmo com seus filhos, ele sabia ouvir sem julgar e só opinava quando achava necessário, o contrário de mamãe.

— Preciso de um café ou de algo mais forte — confessa, e eu rio nervosa. — Vou falar com sua mãe e...

— Ela acabou de dormir — informo-lhe.

— Certo! — Respira fundo. — Se lembra daquele seu namorado da faculdade? — Gemo e assinto. — Você tinha dúvidas quanto ao caráter dele e, mesmo com todos os seus instintos te alertando que algo não estava bem, você aceitou o namoro e...

— Meus instintos estavam certos, ele era um pilantra filho da puta casado!

— E eu quis castrá-lo. — Ele sorri doce, como se isso não fosse nada. — Enfim, o meu conselho para essa questão sempre é: siga seus instintos. Se você não se achava pronta para aceitar o pedido, então fez certo ao recusá-lo.

— Então, você acha que eu fiz certo ao ouvir meu coração?

Ele ri e nega.

— Não, eu disse para ouvir seus instintos, porque seu coração não tem juízo. — Eu rio, achando que ele está fazendo troça, mas, então, ele completa: — Já se apaixonou uma vez por Alexios Karamanlis!

Fico séria, coração disparado, porque, embora ele saiba de todos os meus namorados e experiências, nunca contei a ele sobre Alexios.

Era óbvio para todos, não sei como consegui enganar a mim mesma! Eu ainda amo aquele safado!


— Alexios? — Termino de calçar os tênis antes de me virar para olhar Laura deitada na cama. — Já vai?

Ela se contorce languidamente, seu corpo curvilíneo, dourado de sol se mexendo contra os macios e perfumados lençóis de sua cama. Sorrio, deslizo a mão pela curva de seu lindo rabo e desfiro um tapa nele, fazendo-a rir.

— Preciso ir, tenho reuniões importantes agora de manhã na empresa, e, com a viagem de Theodoros para a Grécia e a demora na volta de Millos, as coisas ficaram acumuladas entre mim e o Kostas.

Ela bufa e se senta.

— Eu sei, ontem eles me passaram as informações sobre a propriedade no Rio de Janeiro, da reunião que tiveram na quinta-feira. — Ela dá de ombros. — Achei que Kika ia aparecer cheia de gás na sexta-feira, mas nem ela e nem seu irmão apareceram na empresa.

— A área é boa mesmo? — pergunto, pois apenas vi algumas imagens do local, e, como Laura é do geoferenciamento, deve ter detalhes bem específicos.

Ela confirma.

— O pessoal do jurídico está alvoroçado, e fiquei sabendo que o Leo, o braço direito da Kika, pediu para o pessoal acelerar com as outras áreas, porque gostaram muito da do Rio. — Laura me abraça pelos ombros e lambe minha orelha. — Falando em acelerar, adorei aquela rapidinha ontem na sala de servidores.

Eu rio, mas balanço a cabeça.

— Você jogou sujo comigo. — Levanto-me da cama, e a safada senta-se na beirada do colchão, os peitos cheios e rosados, as coxas musculosas bem abertas. Porra! — Goza para mim! — ordeno, e ela não se faz de rogada, tocando-se sem nenhum pudor. Vou até uma das luminárias, acendo-a e tenho a visão perfeita de sua boceta totalmente depilada já molhada de tesão.

Foda-se!

Apenas abro o cinto da calça, baixo o fecho e saco meu pau para fora. Pego uma camisinha em cima de seu criado-mudo, e ela ri quando avanço até onde está.

— De costas!

Ela se deita de bruços, e eu me agacho para entrar em uma única investida. Fecho os olhos, concentrando-me nas sensações, excitado com seus gemidos, mas, de repente, sinto um cheiro diferente, os sons mudam, e um rosto doce, sorridente, de lindos olhos castanhos aparece em minha mente.

Xingo alto, querendo expulsar a imagem de Samara, aumento as estocadas até sentir as pernas arderem e gozo sem ao menos saber se minha parceira teve seu prazer.

Caralho!

Afasto-me dela e apoio as mãos contra o aparador, colocando a culpa das súbitas aparições de Samara em minha mente na distância que impus entre nós depois daquele beijo no elevador. Claro que, se ela não tivesse se mudado para a casa da mãe, certamente essa distância não seria tão dura, afinal, eu poderia encontrá-la casualmente pelos corredores do Castellani, mas quem disse que a sorte gosta de mim?

Agora, além de ter visões dela durante minhas trepadas, acordo excitado por algum sonho erótico protagonizado por ela e ainda tenho que aguentar os questionamentos de Kyra e de Chicão sobre o motivo pelo qual eu e Samara não nos falamos mais.

— Tudo bem? — Laura me toca o ombro, fazendo com que eu desperte dos devaneios sobre Samara.

— Tudo. — Retiro a camisinha e a jogo no lixo. — Preciso ir, já está amanhecendo.

— Eu sei.

Ela sorri, doce e compreensiva, e eu respiro fundo, sabendo que estou fazendo merda. Primeiro, por ela ser funcionária da Karamanlis, e segundo, por eu estar fazendo sexo com ela há duas semanas.

Nunca fico tanto tempo com alguém. Para falar a verdade, não me lembro da última vez que mantive uma única parceira, mas, por algum motivo, tenho andado preguiçoso, sem vontade de sair e, como trepei com ela e gostei, achei mais simples continuar.

Despeço-me dela apenas com um aceno de cabeça. Laura me acompanha até a porta de seu apartamento, e eu desço até o térreo, onde minha moto está estacionada em frente à portaria do prédio.

Sigo para o Castellani, mas a cabeça continua a vagar por lembranças dessas longas seis semanas desde o baile dos Villazzas. Tanta coisa aconteceu dentro e fora da Karamanlis, ainda assim senti o tempo passar lentamente.

No trabalho, as coisas começaram a ficar mais intensas, apesar de começo de ano sempre ser mais devagar. Com a conta da Ethernium, tive que mobilizar boa parte dos profissionais para elaborar croquis baseados na planta da siderúrgica e as áreas que foram aparecendo. A volta de Kika à empresa foi providencial, pois ela nos apresentou uma ideia que facilitou muito a vida de todos.

Eu ainda estou surpreso por Theodoros ter colocado a gerente dos hunters e meu irmão trabalhando juntos, pois isso não é algo do perfil do meu irmão mais velho. Foi então que, conversando ao telefone com Millos, descobri que tinha dedo dele nessa história.

A ideia de os dois trabalharem juntos não surgiu na reunião preliminar do projeto, mas foi algo que Theodoros e Millos combinaram assim que souberam que ela iria voltar para a empresa. Agora, conhecendo Millos como conheço, só me pergunto o que, especificamente, meu primo pretendeu ao dar essa sugestão.

Esperei que os dois se matassem desde a primeira semana juntos, ainda mais depois que Theodoros viajou, mas não, aparentemente tudo tem transcorrido bem entre os dois, e a conta da Ethernium parece estar em boas mãos.

Em casa, com a presença de Chico, que ainda está por lá, tenho sempre companhia para jogar bilhar, videogame ou para corridas aos finais de semana. Decidi não participar de nenhum campeonato este ano, nem de moto, nem de carro, pois o trabalho iria consumir muito de minha equipe, e eu não sou o tipo de chefe que deixa seus funcionários se fodendo de trabalhar e sai cedo para treinar ou viajar. Não sou profissional por isso, não consigo me dedicar integralmente às corridas, embora goste muito delas. Vejo-as com um hobby, assim como os esportes e outras atividades que uso para ocupar minha cabeça.

Entro na garagem do prédio, paro a moto e, assim que tiro o capacete, paro em seco ao ver Samara.

— Bom dia — ela me cumprimenta, sem parar para falar comigo e sem olhar para trás.

Confiro as horas no relógio e estranho que ela esteja saindo tão cedo de casa.

— Algum problema? — pergunto preocupado.

Samara para e me olha.

— Não. — Abre o carro, mas me aproximo antes que entre. — O que foi, Alexios? — sua voz é impaciente, e eu percebo que o clima estranho está de volta.

— Como está sua mãe?

Ela franze a testa, ajeita o cabelo e ri amarga.

— Teve que se encontrar casualmente comigo para lembrar que minha mãe está doente? — Balança a cabeça. — Sempre soube que você era desligado com as coisas, Alexios, mas na verdade é um egoísta.

Suas palavras cheias de mágoa me acertam. Aperto a mão no capacete, ciente de que ela tem razão. Eu poderia tê-la procurado, ter ligado, ter sido o amigo que ela merecia, mas, em vez disso, escolhi me afastar e deixá-la sozinha com seus problemas.

Sim, além de covarde, um grande egoísta!

— Você tem razão. — Aceno. — Bom dia.

Dou a volta e sigo em direção ao elevador, achando-me ainda mais desprezível do que sempre me achei.

— Ela está melhorando — a voz de Samara ecoa na garagem, e eu paro. — A quimioterapia está tendo os resultados esperados, e os médicos estão confiantes.

Viro-me para olhá-la, ainda parada do lado de fora do carro, com a porta do motorista aberta.

— Eu sinto muito por não ter ligado antes. — Ela dá de ombros como se não se importasse, mas sei que se importa; eu me importaria. — Você tem razão sobre eu ser um egoísta, você merecia um amigo melhor.

Samara bufa e, sem dizer nada, entra no carro, fecha a porta e liga o motor. Instantes depois, vejo-a passar por mim sem dizer nada e me sinto um bundão. Subo para meu apartamento e, assim que entro, encontro Chicão no meio da sala, usando apenas uma cueca, meditando.

— Que visão do inferno! — sacaneio e sigo para meu quarto.

— Bom dia, embuste! — saúda-me sem ao menos abrir os olhos. — Você deveria tentar, pelo visto nem suas trepadas diárias estão conseguindo mantê-lo relaxado, então, quem sabe a meditação...

— Nem fodendo! — grito para ele e sigo para o banheiro.

Somente quando fecho a porta é que toda a armadura se vai. Fico parado, olhando para o espelho, tentando analisar além da aparência que todos veem. Eu sou um filho da puta egoísta e imbecil, um impostor, uma fraude gigante que perambula pela cidade sem nem mesmo saber quem é.

Anjo dos Karamanlis! Engenheiro filantropo! Chefe preocupado com funcionários... tudo mentira!

Retiro a roupa, jogando-a no cesto de roupa suja antes de me enfiar debaixo da água gelada do chuveiro. Gostaria que, da mesma forma que essa água consegue limpar meu exterior, pudesse fazer o mesmo dentro de mim. Sou tão vazio e frio quanto meu irmão do meio e tão arrogante e egoísta quanto Theodoros. Sou tão louco quanto Nikkós!

Doeu-me ver e ouvir a mágoa que causei em Samara, mas é somente isso que causo nas pessoas. Decepção! Eu não mereço sua amizade e nem estar perto dela. A raiva de mim mesmo explode como há muitos anos não a sinto. Sem pensar, soco o vidro do boxe, que se espatifa e desaba sobre mim.

A porta do banheiro é aberta com um estrondo, e um apavorado Chicão aparece, olhos arregalados, olhando a destruição que causei ao meu banheiro.

— Merda, Alexios! — Ele salta em minha direção sem se preocupar com os cacos de vidro pelo chão e tenta me tirar do boxe. — Porra, sai daí.

Nego, o sangue escorrendo pelo ralo do banheiro, minha mão ardendo, assim como meus braços e os pés. Não me movo, apenas tremo, tentando ainda conter toda a fúria dentro de mim.

— Sai daí, Alex, você está ferido, porra! — Chicão grita.

— Não! — Não me movo. — Eu sou um lixo! Ele nunca deveria ter me pegado no lixo onde me encontrou, deveria ter me deixado morrer, deveria...

— Para com essa merda! — Some para dentro do meu quarto e, quando volta, está calçando meus coturnos. — Você não vai mais fazer isso, ouviu?

Chicão entra no que restou do boxe, desliga a água, joga uma toalha sobre meu corpo e me ergue. Não consigo reagir, a cabeça girando, todos os insultos e histórias sobre mim que ouvi de Nikkós por tantos anos enchendo meus ouvidos, torturando-me mais uma vez, ressaltando o quanto sou desprezível.

— Você não vai fazer isso consigo mesmo de novo, ouviu?! — Chicão esbraveja, fazendo pressão com a toalha de rosto na minha mão. — Ele te machucou, você se machucou, mas essa merda já acabou faz tempo. Ele não pode mais, Alexios, nem te tocar e nem contar mentiras a você. Chega!

Nego.

— Eu sinto tanta raiva... — Meus dentes batem um no outro, e eu os travo. Minha vontade é de gritar, socar, foder com tudo.

— Eu sei, já passamos por isso antes, e eu... — ele baixa o tom de voz e expira — achei que já tinha superado.

— Como? — questiono-lhe. — Como posso esquecer, se continuo a ser a mesma pessoa desprezível de sempre? Não são as marcas que ele causou no meu corpo que me causam essa raiva, sou eu!

— O que aconteceu?

Nego, trêmulo e me sento na cama. Gemo ao sentir as dores dos cortes, percebendo que a adrenalina passou mais rápido do que antigamente. Eu aprendi a controlar a dor usando a raiva. Durante anos de espancamento, percebi que, quanto mais raiva eu sentisse, menos dor ele me causava. Mais tarde, quando sentia raiva por qualquer motivo, eu mesmo me machucava, levava-me ao limite do meu corpo e quase me destruía.

Era um círculo vicioso que eu achei que já havia passado, mas, aparentemente, não.

— Encontrei Samara na garagem, provavelmente indo se encontrar com sua mãe e levá-la ao hospital — confesso, cansado demais para guardar qualquer coisa. — Eu não a via há semanas, desde o baile dos Villazzas no Ano Novo.

— Eu também só a vi uma vez aqui no prédio...

— Eu não liguei, não procurei por ela, não justifiquei meu ato e nem meu sumiço — interrompo-o e o encaro. — Ela está magoada comigo.

Chicão confere o sangramento da mão, tirando a toalha e depois se senta ao meu lado na cama.

— Por que você fez isso? Sumiu e não a procurou?

Respiro fundo; comecei o assunto, agora preciso terminá-lo.

— Preferi me afastar. — Olho para baixo, envergonhado. — Eu quase trepei com ela no elevador aqui do prédio. — Fecho os olhos. — Eu a quis como mulher, não consegui reprimir a vontade, como sempre fiz, e agi feito um idiota excitado.

— Ela o repeliu?

— O quê?

— Samara o repeliu? Te xingou? Bateu em você? Disse que você abusou dela? Mandou que ficasse longe?

Lembro-me daquela noite, a forma como reagiu ao beijo, o jeito que gemia e parecia tão excitada quanto eu.

— Ela estava bêbada, me aproveitei dela, sou um canalha.

— Nisso concordamos, mas o que ela pensa sobre o acontecido?

Balanço os ombros.

— Não sei, não falo com ela desde então. — Lembro-me da conversa com Kyra no dia seguinte ao baile e praguejo. — Ela está noiva.

— Samara? — Assinto. — Que merda!

— É, o beijo foi uma merda enorme, e eu não sei como...

— Não, seu idiota! — Ele estapeia minha cabeça. — Que merda que Samara esteja noiva, ela é a mulher perfeita para você.

Olho-o como se ele estivesse louco.

— Claro que não, ela merece alguém muito melhor do que eu! Samara nunca cogitou qualquer tipo de relacionamento comigo a não ser o de amizade.

Chicão bufa.

— Você não é idiota, Alexios Karamanlis, é um burro!

Ele joga a toalha, manchada de sangue, no chão do quarto e sai puto comigo ou com alguma coisa que eu disse. Ele não entende, óbvio! Samara é... especial, e alguém especial como ela nunca se relacionaria com alguém tão ordinário como eu.

Olho para minha mão e rio ao pensar na bagunça que sou.

Obviamente ela nunca se relacionaria e nem deveria se relacionar com alguém tão fodido como eu.

 

— O que houve com sua mão? — Laura me pergunta de repente, assustando-me, pois eu nem mesmo sabia que estava por perto. Encaro-a sem entender como e o que está fazendo aqui na K-Eng. Seu olhar é de assombro aos machucados em minha mão, além de questionadores, o que me irrita um pouco.

— Um pequeno acidente — respondo seco. — O que você está fazendo aqui?

Levanto-me da mesa, agradecendo por não ter mais ninguém por aqui a essa hora e fico de frente para ela. Laura abre um sorriso sem graça, mas logo se pendura em meu pescoço.

— Tem mais de uma semana que não te vejo, você não liga e nem aparece lá no meu apartamento. Então, se Maomé não vai até a montanha...

Reviro os olhos e retiro as suas mãos de mim.

— Laura, você trabalha na Karamanlis, então já deve ter percebido a movimentação infernal na empresa por conta da Ethernium. — Ela concorda. — Além disso, não entendi o motivo pelo qual eu deveria dar satisfação ou ter regularidade em nossos encontros.

A moça arregala os olhos por causa de minha sinceridade.

— Eu pensei que... — ela suspira — estávamos tendo essa regularidade, afinal, ficamos juntos por umas semanas e...

— Ficamos porque estava gostoso — não tenho medo de ser direto. — Mas não significa que temos qualquer tipo de compromisso. Não sou desses, Laura, e foi a primeira coisa que te disse quando trepamos a primeira vez.

Ela fica um tempo muda, olhando para o nada, então, de repente, abre um sorriso e desliza a mão pelo meu peito.

— Disse. Como disse também que queria trepar mais, lembra? Eu ainda quero mais, Alex — sua voz é ronronante. — Sempre imaginei como seria fazer sexo aqui na sua sala.

Respiro fundo, levemente excitado com o oferecimento, contudo, sem nenhuma vontade de fodê-la aqui – ou em qualquer outro lugar – depois desses questionamentos.

— Infelizmente, eu estou muito ocupado agora, motivo pelo qual ainda estou na empresa quando todos já foram. — Ela faz um biquinho, mas me afasto e volto a me sentar à mesa. — Acho melhor você ir.

Ela bufa.

— Sério isso?

Volto a olhá-la, sem esconder meu desagrado e impaciência, e ela se sobressalta.

— Sério.

Laura fica um tempo me encarando, depois vira as costas e sai da sala, andando firme e visivelmente puta. Balanço a cabeça, repreendendo a mim mesmo por ter deixado as coisas chegarem a esse ponto. Foi muito bom trepar com ela, aposto que a recíproca é verdadeira, porém não imaginei que ela criaria tantas expectativas e se sentisse no direito de vir me cobrar algo.

Erro de cálculo!, penso, sem deixar de pontuar que isso, para um engenheiro, é algo muito perigoso, que pode pôr tudo a perder.

Pego a pequena bola de borracha que tenho usado para exercitar minha mão e reparo nos machucados nela. Os cortes já estão todos secos, e os pontos que tomei em um deles já foram retirados.

Socar o vidro do boxe foi um momento de loucura, como tantos outros por que já passei. Fazia muito tempo que eu não perdia a cabeça daquele jeito, e sei que o que Samara me disse foi o gatilho responsável por isso. Não tiro, em hipótese alguma, a razão dela para me dizer aquelas palavras, mas elas acertaram o alvo na mosca.

Fecho os olhos e tensiono o pescoço, tentando relaxar um pouco para voltar a trabalhar e não enveredar pelos acontecimentos dessa semana, mas ainda não tenho esse controle total da mente e dos meus pensamentos.

A frustração me bate ao me lembrar do almoço com Konstantinos, meu irmão advogado. Achei que, pela primeira vez, ele iria se dispor a me ajudar com as respostas que procuro por anos, mas, ao que parece, ser egoísta e frio é algo familiar.

Mexo na minha agenda de anotações e encontro lá o endereço do sobrado de propriedade de Kostas. A voz da mulher misteriosa que encontrei na porta do Castellani ainda ressoa nítida em meus ouvidos:

“Eu conheci sua mãe biológica. Se quiser respostas, procure pela casa de Madame Linete.”

Foi o encontro mais estranho da minha vida. Ela estava parada lá, olhando o prédio e, quando me viu, logo perguntou se eu era um Karamanlis. Estranhei a pergunta, tentando reconhecer a senhora frágil e de cabelos brancos, mas não precisei responder, pois ela logo disse essas duas frases e se afastou sem me dar a chance de perguntar qualquer coisa mais.

Claro que eu já havia cogitado a ideia de que tinha sido gerado por alguma prostituta daquela maldita casa, afinal, era o local que meu pai mais utilizava. Não deveria ter começado do nada sua amizade com a cafetina asquerosa, mas nunca achei nada que me ligasse àquele local até esse encontro.

Talvez fosse uma pista falsa apenas, mas eu não poderia ignorar mais nada, não enquanto não achasse as respostas que procurei por toda minha adolescência a fim de tirar esse poder das mãos de Nikkós.

Não conhecer meu passado era o suficiente para meu pai ter uma enorme arma psicológica contra mim, coisa que ele utilizou por muitos e muitos anos.

Foi pensando em exterminar todo e qualquer poder que meu pai ainda pudesse ter sobre minha vida que atraí meu irmão para um almoço com a desculpa de falar da conta na qual estávamos trabalhando em conjunto.

Confesso que estranhei quando ele aceitou sem que eu tivesse que recorrer a inúmeros subterfúgios, mas agradeci a boa sorte, e nos encontramos em um restaurante neutro, escolhido a esmo, embora de alta gastronomia.

Achei que seria difícil introduzir o assunto, principalmente porque ele iria saber que pesquisei o maldito imóvel e descobri que ele o comprou há anos, quando foi a leilão. Isso me surpreendeu, claro, saber que ele comprou o sobrado e que ainda o mantém de pé sem nenhuma modificação ou uso. O assunto não surgiu naturalmente. Kostas estava estranho, mesmo falando de negócios, o que me surpreendeu, pois sempre imaginei que ele fosse se aproveitar da distância de Millos e Theo para tentar assumir a empresa.

— Eu acho que temos um acordo implícito de não falarmos sobre o passado — decidi não ser mais sutil, e Kostas reagiu imediatamente:

— Não é implícito. Não quero falar do passado. Mais explícito que isso, impossível!

Eu sabia que não seria fácil, ele é tão fechado quanto eu, então precisei desarmá-lo. Aproximei-me dele por sobre a mesa do restaurante e abaixei o tom de voz:

— Dessa vez, não poderei acatar sua vontade, Konstantinos. Sei que você comprou o sobrado da Rua...

Kostas levantou-se.

— Perdi a fome, vou voltar para a empresa.

Pus-me de pé também e o vi caminhar na direção da saída do restaurante, mas não ia desistir, não quando já havia agitado o vespeiro.

— Eu nunca te pedi ajuda. — Meu irmão parou, mas não se virou para me olhar. Decidi continuar por essa linha de ação: sinceridade. — Eu não podia te ajudar, então nunca pedi ajuda também.

— Alexios, não faça isso...

Eu soube que atingi o ponto certo, pois podia sentir a tensão no seu corpo. Nós dois temos consciência do que passamos na mão do nosso pai e de tudo que fizemos para que a loucura de Nikkós ficasse longe de Kyra. Kostas não aguentou por muito tempo, e eu o entendo, mas fiquei lá sozinho, lutando contra o monstro, tentando proteger minha irmã, mesmo sem ninguém para fazer o mesmo por mim.

Nunca tinha pensado em lhe cobrar, mas situações extremas pedem medidas extremas.

— Eu preciso, senão não faria. Há chances de eu descobrir o que Nikkós fez com minha mãe.

Fiquei satisfeito ao vê-lo se virar completamente surpreso.

— Sua mãe? Você soube algo dela?

— Nada conclusivo, mas acabei cruzando com uma pessoa que, quando soube que eu era filho dele, disse tê-la conhecido.

— Isso é loucura! Você procurou durante sua adolescência toda, quase se matou por isso, não há pistas, não há nomes, não há nada!

Lembranças de anos e anos de buscas vãs me fizeram titubear por alguns instantes. Eu não tinha um ponto de partida na época, pois ela podia ser qualquer pessoa, mas, naquele momento, eu tinha a maldita pista do imóvel.

— Preciso acessar o sobrado — voltei a falar, mas Kostas negou. — Preciso entrar e remexer tudo lá.

— Não!

— Foda-se, eu vou! — Soquei a mesa, decidido, puto demais por estar ali pedindo ajuda a ele pela primeira vez e não ser compreendido. Eu sempre o entendi, sempre o justifiquei quando saiu do apartamento e foi viver sua vida. Quando descobri que o sobrado lhe pertencia, nunca pensei em questionar seus motivos, apenas o entendi. Não era justo não ter o mesmo tratamento e consideração. — Eu sei que, por algum motivo bizarro, você o comprou, trancou-o com tudo dentro e o tem deixado apodrecendo por mais de 15 anos! Pode ter alguma pista lá.

— Não é seguro. Não vou arriscar que você morra lá dentro e eu ainda tenha que responder a...

Caralho de desculpa mais esfarrapada!

— Porra, Kostas, não fode! — Perdi a paciência, circundei a mesa e me aproximei dele, disposto a jogar pesado. — Eu sei dos teus motivos, respeito-os. Como disse, nunca te pedi ajuda antes porque sabia que você também precisava e não tinha a quem pedir, mas agora estou pedindo, agora estou contando com você. Não me faça arrombá-lo, porque eu o farei, apenas dê-me as chaves de todas aquelas grades que pôs lá.

Vi-o pensar, achei mesmo que eu estivesse tocando em alguma parte ainda viva de seu corpo, talvez no menino que conheci quando chegou para morar conosco, mas não, ao que parecia, meu irmão havia virado a porra de uma rocha fria e sem sentimentos.

— Tente invadir. Será um prazer implodir aquela merda com tudo dentro!

A mera possibilidade de ele destruir a única pista que tive do meu passado me desconsertou. Kostas aproveitou-se do momento e foi embora do restaurante.

Fiquei um tempo parado, até que ouvi um leve pigarrear e vi os garçons chegando com nossos pedidos. Estava sem fome, um bolo havia se formado em minha garganta, então pedi que embrulhassem tudo e deixei as quentinhas com o primeiro morador de rua que achei pelo caminho.

Andei sem rumo, sem saber o que fazer ou como agir. Tinha aberto meu peito para ele, pedira ajuda pela primeira vez e recebera um sonoro não. Senti algo inédito pelo meu irmão, raiva. Kostas nunca fora o alvo da minha revolta, pois sempre o compreendi, mas naquele momento não podia mais entendê-lo, não quando eu poderia ter respostas para acabar com minha tortura.

Sair de casa ajudou meu irmão a dar fim ao poder de Nikkós sobre sua vida, mas o mesmo não aconteceu comigo, e, enquanto eu não souber sobre o meu passado, não poderei tirar do homem que me gerou a possibilidade de voltar a me ferir.

O som de mensagem no celular me faz deixar de lado essas lembranças, e eu leio a mensagem de minha irmã me convidando para jantar com ela.


“Kyra, ainda estou na empresa, não poderei ir.”


Envio a mensagem esperando que seja suficiente, mas não é.


“Uma hora você precisará comer, e eu não tenho nenhuma intenção de jantar cedo. Venha no horário que puder, esperarei você.”


Merda, ela sabe ser insistente!


“Ok.”


Olho para o monitor do computador, respiro fundo e desisto de trabalhar. Minha barriga ronca, e decido aceitar o convite inesperado de minha irmã. Antes, porém, olho novamente o endereço do sobrado e traço um plano para invadi-lo sem que Konstantinos tome conhecimento.

As respostas que busco sobre mim mesmo podem ser achadas lá; não vou desistir tão fácil assim de encontrá-las. Nunca desisti fácil de nada, essa não será a primeira vez.

Imediatamente a imagem de Samara aparece em minha mente, e eu bufo, chamando-me de hipócrita. Claro que já desisti fácil de algo, eu só não gostava de admitir isso por não me achar sequer digno dela.

Quem sabe se eu achar as...

Interrompo o pensamento antes de criar ilusões que só serviriam para me machucar. Não há possibilidade de eu tê-la, mesmo que tenha todas as respostas da minha vida. Samara nunca estará ao meu alcance, e, sinceramente, acho bom que não haja nenhum envolvimento entre nós.

Ela merece mais!


Pego mais um copo de café e volto a me sentar ao lado de Daniel, sacudindo a perna, bebericando ou soprando a bebida quente. Olho para o corredor e, sem nem mesmo consumir metade do café, levanto-me para pegar um copo d’água.

Volto a me sentar, as pernas agitadas, confundo os copos e dou uma golada no café fumegante.

— Merda!

Daniel põe a mão no meu joelho e me obriga a parar de sacudir a perna.

— Se você não sossegar agora, juro que te ponho para fora — ele me ameaça.

— Desculpa. — Sorrio sem jeito. — Estou nervosa com os resultados desse primeiro ciclo de quimio e acho que deveríamos ter entrado com ela para saber mais...

— Nosso pai entrou com ela, Samara. Sossegue, você está me deixando irritado parecendo uma criança ansiosa! — Daniel fala alto, e eu o encaro surpresa. — Desculpa. — Ele põe a mão na cabeça e esfrega os olhos. — Eu quase não dormi essa noite, mas você não tem nada a ver com meu mau humor.

— Ela vai ficar bem, Dani. — Ponho minha mão em seu ombro.

— Eu sei que vai! Nunca tive dúvidas disso.

Respiro fundo e concordo com ele, embora não tenha a mesma confiança que ele demonstra ter.

Têm sido dias difíceis desde que cheguei ao Brasil, mas em momento algum me dei a oportunidade de esmorecer perto deles. A cada medicação, mamãe tinha reações mais fortes, requerendo tanto cuidado e atenção que decidi desistir de morar no meu apartamento e voltei para a casa dos meus pais.

Confesso que essa decisão também me ajudou a manter distância de Alexios Karamanlis. Não que eu ache que em algum momento ele tenha notado minha ausência ou se importado com isso, mas para mim fez toda a diferença.

É aquele ditado, sabe? O que os olhos não veem...

Suspiro.

— Você foi incrível nesses dias, Samara — Daniel volta a falar. — Mamãe esteve muito mais à vontade com você por perto do que comigo.

— Não fala besteira, Dani! — Ele sorri, sabendo que é o xodó da mamãe. — Eu gostei de ter conseguido ajudar e estar com ela de novo.

— Ela também ado... — ele para de falar assim que vê nossos pais vindo até onde estamos. Levantamo-nos juntos, apreensivos, esperançosos, e o sorriso de mamãe é reconfortante.

— O que o médico disse? — indago assim que eles se aproximam.

— O medicamento fez o efeito esperado para esse primeiro ciclo. Agora é esperar o tempo de descanso para começar de novo. — Mamãe sorri.

— E a radioterapia? — Dani questiona, e ela dá de ombros.

— O doutor ainda não prescreveu — papai responde. — Vamos torcer para que a quimio resolva sem precisar da rádio! — Ele sorri e abraça mamãe pelos ombros. — Em breve você terá sua vida agitada de volta.

Ela suspira cansada.

— Bom, vamos todos almoçar para comemorar o fim desse primeiro degrau rumo à vitória! — tento animar a todos, mas só meu pai sorri. — Ah, gente, vamos lá! Mamãe?

Ela assente e olha para Daniel.

— Você não está cansada? — meu irmão pergunta a ela.

— Não, podemos ir!

Bato palmas e a beijo na testa.

Eu entendo o desânimo dela, seria cruel não entender, pois, ainda que todos estejamos empenhados em seu tratamento, é ela quem passa por todos os efeitos colaterais dos medicamentos e pela doença. Mamãe nunca foi uma mulher parada ou passiva, e depender de outras pessoas deve estar sendo uma verdadeira prova para ela.

Foram semanas difíceis, não nego. Fiquei totalmente à disposição de minha mãe, levando-a às consultas e às sessões, fazendo companhia a ela, amparando-a em momentos de indisposição e dor. Godofredo e eu nos mudamos para a mansão da família, e eu mal tive tempo para ir ao Castellani ou mesmo visitar amigos.

Kyra esteve várias vezes conosco, geralmente após o expediente de trabalho, quando não tinha eventos. Daniel e Bianca, sua noiva, também estiveram presentes nos jantares e almoços de finais de semana, e, claro, papai.

Sorrio ao pensar em como é bom ter meu pai por perto. Ele e eu temos muitas afinidades, então, passamos muito tempo conversando, vendo filmes ou ouvindo música. Mamãe prefere ler sozinha em seu quarto à noite, por isso faço esses programas todos com papai.

Assim, o mês de janeiro se foi, e fevereiro entrou com força total com a finalização do primeiro ciclo de quimio da mamãe e o inesperado convite de Daniel para que eu trabalhe na empresa com ele.

— Dani, eu sou designer de interiores. Já trabalhei decorando mansões, apartamentos, iates e até um motor home, mas nunca fiz nada empresarial. — Fiz careta ao lhe responder. — É tudo muito frio.

— É um hotel — ele logo me informou. — Vamos redecorar um enorme hotel.

Meus olhos brilharam.

— Ele vai seguir algum padrão já existente? É um hotel de rede?

Ele nega.

— Não. É uma casa de campo que está virando hotel. — Arregalei os olhos. — O projeto de reforma é da Karamanlis, e a executora da obra é a Novak.

— K-Eng? — inquiri baixinho, e ele suspirou.

— É, mas quem está acompanhando é um dos braços direitos do seu amigo.

Havia muitos dias eu já não pensava no Alexios e nem no beijo do Ano Novo. Não foi o primeiro que trocamos depois de umas bebidas, então eu não devia lhe dar tanta importância, embora reconhecesse que ter me afastado do Castellani ajudou muito a manter distância dele. Alexios e eu já não somos mais amigos!

A perspectiva de trabalhar em um projeto como aquele enquanto eu estivesse no Brasil era maravilhosa, mesmo com a possibilidade de encontrar o CEO da K-Eng eventualmente.

— Aceito olhar o projeto e conversar sobre o briefing, só isso. — Daniel sorriu satisfeito. — Se eu puder executar meu trabalho sem a interferência de pessoas que nada entendem de decoração, pego para fazer; do contrário, estou fora.

— É assim que se fala! Você vai amar o projeto de reforma, ficar cheia de ideias, e tenho certeza de que os responsáveis pelo empreendimento vão adorar seu trabalho.

O projeto realmente estava incrível, e a ideia de como os donos queriam a decoração dos quartos e áreas comuns me deixou louca para começar o trabalho. Aceitei a proposta, negociei sob a garantia da Schneider e fechei um belo negócio aqui no meu país.

Penso no meu trabalho na Espanha e Diego me vem à cabeça. Entro no carro, no banco do carona, ao lado de Daniel e suspiro.

— O que foi? — meu irmão pergunta, seguindo o carro do papai para fora do estacionamento.

— Estava pensando no Diego.

— Vocês têm se falado?

— Sim, por mensagens. — Balanço a cabeça. — Não sei mais o que fazer para ele entender que não estou tendo nenhum tipo de crise por conta do tratamento da mamãe. Eu fui sincera com ele quando terminei. Não foi certo fazer por vídeo, mas eu não podia mais me sentir enganando-o.

— Eu entendo você, embora não goste nada do motivo que a levou a isso.

— Não tem nada a ver com Alexios, nós nem temos nos visto. Eu pensei em ir até a Espanha para conversar melhor com Diego, mas acabei de pegar esse projeto enorme e não posso me ausentar por agora. Além disso, ele está seguindo o time na Champions...

— Não sei se é boa ideia você ir atrás dele. Acho-o um tanto insistente demais. Concordo que não foi certo terminar por vídeo-ligação, mas depois disso vocês conversaram várias vezes, e o homem não para de insistir.

Eu concordo, mas ao mesmo tempo me sinto culpada.

— Sim. Mesmo assim sinto que lhe devo uma explicação.

Paramos no farol, e ele me olha.

— Você quer retornar para Madri mesmo depois desse término?

Respiro fundo e dou de ombros.

—Sim, trabalho em uma ótima empresa lá, então, por que não voltar?

Meu irmão ri.

— Isso é você quem tem que responder a si mesma. — Ele me puxa para perto e beija o topo da minha cabeça. — A decisão é sua; certa ou errada, cabe a você decidir o que fazer.

— Eu sei.

Sorrio, mesmo com minha cabeça fervendo de perguntas sem respostas, mesmo sem entender o que eu quero e por onde devo ir.

Fui para a Espanha para fugir de um sentimento que parecia não ter fim, mesmo diante da impossibilidade de se tornar algo real, e acabei fazendo amigos e criando laços por lá, mas é aqui que minha família e meus amigos estão. A decisão não é fácil!

Quanto a Alexios... o sentimento não morreu, obviamente, porém não guardo mais nenhuma ilusão com relação a ele. Sempre serei vista como a grande amiga e nada mais.


— Alexios está esquisito essa semana — Kyra comenta.

Eu rio e bebo mais um gole do vinho.

— Quando ele não foi esquisito? — debocho.

— Exatamente, a esquisitice dele não me surpreende, mas essa semana ele está mais esquisito. — Presto atenção ao que Kyra diz, pois minha amiga não costuma exagerar, pelo contrário. — Eu sei que ele está em um ritmo frenético de trabalho, mas, quando falei com ele ontem, achei-o um tanto...

— Esquisito — complemento, e Kyra revira os olhos ante minha brincadeira. — Kyra, seu irmão é a pessoa mais fechada do mundo, você sabe. Mesmo que ele esteja com merda até nos ouvidos, precisa quase se afogar nela para pedir ajuda ou falar com alguém.

Ela assente, e nós duas ficamos mudas. Eu me lembro de quando tomei conhecimento, pela primeira vez, do que eles viviam com o pai. Alexios telefonou para minha casa pedindo para que eu subisse até a cobertura, pois precisava de um favor. Não pensei duas vezes e fui até ele pensando que queria ajuda com algum jogo ou matéria – história nunca foi o seu forte –, mas, quando o vi, mal conseguia me mover.

Ele estava todo machucado nas costas. Os cortes eram verdadeiros talhos, de onde saía muito sangue, e eu tive que respirar fundo várias vezes para não vomitar.

— Samara, preciso que você seja dura agora — ele me disse com a voz calma, com toda sua sabedoria de 15 anos de idade.

— O que você quer que eu faça? — perguntei temerosa, já prevendo que ele me pediria para limpar e fazer curativos.

O problema era que, por conta do tamanho e da profundidade dos cortes, curativos não seriam o bastante. Ele ergueu uma agulha curva com um enorme pedaço de linha preta.

— Costure.

Neguei várias vezes com a cabeça, incapaz de abrir a boca sem derramar todo o lanche que havia acabado de tomar, mas ele me olhava suplicante. Percebi que, mesmo sentindo dor, ele tentava não demonstrar.

— Você precisa de um médico!

— Não. — Ele ergueu a agulha novamente. — Preciso de você.

Peguei o metal curvado. Minhas mãos tremiam, o queixo também. Era possível ouvir o som dos meus dentes batendo forte um contra o outro. Não entendia o que estava acontecendo, o motivo pelo qual ele estava daquele jeito e não ia até um hospital.

Eu mal sabia bordar, e somente a possibilidade de machucá-lo ainda mais me apavorava.

— Se fosse em outro local, eu juro que não pediria isso a você, mas eu não consigo suturar as costas sozinho.

Foi então que percebi que não era a primeira vez.

— O que foi isso, Alexios?

Ele sorriu tentando me despistar, mas depois suspirou.

— Caí em cima da mesinha de centro da sala lá de cima. — Apontou para o segundo piso da cobertura. — Ela era toda espelhada, por isso me cortei.

— Caiu?

Ele não respondeu, apenas virou-se de costas para mim e começou a me dizer o que fazer.

— A agulha já está desinfetada, e eu tomei banho, mas ainda assim preciso que você passe esse antisséptico, limpe bem o sangue e comece a costurar. — Ouvi o som de sua risada. — Pense que sou um dos seus tecidos finos e delicados de almofada e borde em mim.

Bufei com a comparação.

— Não achei graça nenhuma!

Foi um longo processo, mas cumpri com o que ele pediu e somente anos depois é que entendi tudo aquilo, inclusive a história esfarrapada do “caí por cima da mesa”.

Fiz muitos favores como esse para ele por muito tempo ainda. Aprendi a costurar sua pele, a recolocar seus ossos no lugar quando se deslocavam e até mesmo a imobilizar alguma parte de seu corpo. Porém, mesmo estando ao lado dele em todos esses momentos dolorosos, Alexios só me contou que era o pai que o espancava depois que saiu de casa com Kyra.

Eu sofri tanto por pensar nas atrocidades que eles viveram, porque minha amiga até reclama do irmão, mas são farinha do mesmo saco. Não faço ideia de como Nikkós a afetou, mas é certo que ela não foi poupada da loucura do pai.

— Ei, Samara no mundo da lua! — Kyra me cutuca. — Está pensando em quê? Perguntei por Diego, e você ainda nem me respondeu o que ficou decidido.

— Nada de diferente. — Ela cruza os braços. — Temos conversado bastante por mensagens, mas ele parece não aceitar que acabou. Diz que estou em crise e que, assim que puder, virá ao Brasil.

— Para quê?

— Conversar pessoalmente. — Fecho os olhos. — Gostaria tanto que tudo fosse diferente, sabe? Que eu pudesse gostar dele da forma como deveria.

— E por que não pode? — Olho para Kyra, e ela entende a resposta. — Uma merda isso! Então você não vai voltar para Madri mais?

Penso em Diego e em todo esse tempo em que estivemos juntos, recordo-me de como me senti feliz ao lado dele e do escritório maravilhoso de design em que trabalhei durante esses anos. Ele tem alegado isso, que estou confusa por estar longe, com medo de mudar de vez para Madri e ficar longe da minha família. Não é isso! Ter voltado ao Brasil mexeu, sim, com meus sentimentos, principalmente quebrou a ilusão de que eu tinha esquecido Alexios. Por isso ainda penso em voltar a morar na Espanha, mas não quero mais me enganar e enganar outra pessoa no percurso.

— Eu gostaria de ter essa resposta, Kyra — volto a falar. — Gostaria de saber o que é melhor para mim, mas não sei. Aqui há tantos motivos para eu ficar, como também para que eu vá, mas ainda estou indecisa.

— Eu sei. — Ela sorri compreensiva.

A campainha do apartamento dela soa alto. Estranho, porque ela não me disse que teríamos companhia, mas, por sua reação, Kyra já estava à espera de alguém.

— Talvez o motivo de sua indecisão tenha chegado agora.

Arregalo os olhos com a possibilidade de ser Alexios.

— Kyra, o que você... — não termino de formular a frase, pois minha amiga abre a porta, e o vejo olhá-la com um sorriso cansado, entrar no apartamento e parar surpreso ao me ver.

— Oi — cumprimento-o.

— Oi. — Ele desvia o olhar para Kyra.

— Vou ver se o jantar já... — ela para de falar e ergue a mão dele. — O que houve?

Os olhos de Alexios não deixam os meus, então ele abre um sorriso lindo – esse é o bendito que ele usa quando quer disfarçar alguma situação séria ou desviar o assunto – e dá de ombros.

— Um pequeno acidente besta, nada importante. — Kyra parece não engolir a desculpa esfarrapada também, mas não insiste, pois conhece o irmão muito bem. — Tem cerveja?

— Claro que tem! Vou pegar umas para você. — Ela aponta para mim. — Faça companhia para a Samara.

Nós dois a olhamos, entendendo que o jantar foi uma armadilha dela para que voltemos a nos falar. Sinceramente não entendo minha amiga. Ela sabe o que sinto e o que Alexios não sente, mas ainda assim insiste em nos manter unidos, mesmo dizendo sempre que seu irmão não é uma boa opção para mim.

Como se um dia ele considerasse me ver como mulher!

— Como estão as coisas com sua mãe? — Alexios puxa assunto de repente e se senta em uma poltrona individual bem longe de onde estou.

— O primeiro ciclo de quimioterapia acabou, e ela está bem — respondo seca. — E você, como está?

Ele abre o maldito sorriso fingido.

— Ótimo! Cheio de trabalho, sem tempo para fazer bobagens...

— Não parece. — Aponto para sua mão. — Achei que seus momentos de fúria já tivessem passado desde que começou a praticar esportes. — Ele fica sério. — Por falar nisso, vi o Chicão lá no prédio esses dias. Ele está hospedado contigo?

— Está, como sempre. — Alexios olha para trás, na direção da cozinha de Kyra e respira fundo. — Eu queria pedir desculpas novamente por...

— Não precisa — interrompo-o antes que eu seja obrigada a socar sua cara.

— Preciso — ele insiste. — Kyra me contou sobre seu relacionamento — meu coração dispara ao ouvi-lo falar sobre isso como se não tivesse importância alguma. — Espero que ele seja o homem que você merece e que sejam muito felizes como você sempre sonhou.

Engulo em seco, abro um sorriso – fervendo de raiva da Kyra – e digo a primeira coisa que me vem à cabeça:

— Ele é! — minto, e Alexios fica sério, seus olhos claros fixos nos meus. — Um verdadeiro príncipe como sempre sonhei.

— Quem bom. — Ele se levanta. — Vou até a cozinha pegar a cerveja, estou morrendo de sede.

Acompanho-o com os olhos e, quando desaparece da minha vista, gemo e me dou um tapa na cabeça. Que ridícula! Por que, mesmo sendo tão madura em vários aspectos, sou uma imbecil quando estou perto dele? Parece até que estou de volta ao aniversário de 18 anos da Kyra, quando saímos nós três para comemorar, e eu fiquei com um babaca total só porque Alexios pegou uma das garçonetes da pizzaria.

Não sou mais essa garota!

Alexios e Kyra voltam para a sala, ele, bebendo uma longneck, e minha amiga, com uma travessa na mão.

— Escondidinho de camarão, como vocês dois sempre gostaram — ela anuncia.

— O cheiro está incrível! — elogio, levantando-me do sofá e indo ajudá-la. — Há muitos anos não sinto algo tão delicioso!

— Eu também não — Alexios fala perto de mim.

Os pelos do meu corpo se arrepiam todos por causa do som de sua voz e seu hálito no meu pescoço. Viro-me para ele, sem entender o motivo pelo qual está tão próximo de mim e me surpreendo por um instante ao decifrar seu olhar: fome, e não é de comida.

Balanço a cabeça, achando impossível que seu olhar esfomeado seja para mim e me afasto dele, indo posicionar os pratos como Kyra me ensinou a fazer tempos atrás.

— Andou treinando? — minha amiga brinca ao me ver executar com perfeição seu ensinamento.

— Sim, fiz alguns jantares em Madri — conto orgulhosa. — Recebi poucas pessoas, a maioria amigos, e fiz questão de colocar em prática tudo o que você me ensinou...

— E que você achava que era bobagem! — Ela ri e olha para Alexios. — Uma arquiteta de interiores deve, no mínimo, saber montar uma mesa, não acha?

Alexios franze a testa, pensa um momento e depois concorda.

— Pregar pregos na parede, fazer arranjos florais, pintar um quadro... — Kyra fica séria, e ele começa a rir. — Há profissionais para isso, Kyra, Samara é responsável pelos layouts de móveis e projetos de planejados, não precisa saber fazer tudo!

Kyra parece estupefata, e, confesso, eu também estou, porque geralmente os dois se uniam para brincar ou me provocar, e agora ele acabou de me defender!

Alexios parece ficar sem jeito com o silêncio e dá uma enorme golada, até pôr fim ao conteúdo da garrafinha de cerveja, em seguida volta para a cozinha.

— O que está rolando? — Kyra me pressiona.

— Não sei do que...

— Samara, sem essa de “não sei do que você está falando”. Não nasci ontem, percebi que vocês estão estremecidos. Achei que tinha sido por conta dos anos longe, mas achei que isso ia passar depois do baile, mas então Alexios aparece aqui mais perdido do que cachorro que caiu da mudança e se recusa a falar o que aprontou contigo na virada do ano! — Aproxima-se. — Conte-me já!

Nem em sonho!

— Não há nada para contar.

Alexios retorna, e sua irmã avança para ele igual a um anjo vingador.

— O que está rolando entre vocês dois? — Ela põe a mão na cintura. — Sempre fomos amigos! Éramos um trio, estivemos juntos nos piores momentos de nossa infância e adolescência, parem já com qualquer merda que estiverem fazendo!

— Quanto você bebeu? — Alexios debocha. — Nada está acontecendo, não é?

 

CONTINUA

Kyra sempre foi exuberante, beleza herdada de sua mãe, devo acrescentar, pois Sabrina ainda continua tão linda quanto era na época em que era casada com Nikkós. Contudo, minha irmã ainda recebeu alguns belos traços dos Karamanlis, principalmente da famosa giagiá15, que todos sempre fazem questão de dizer que era linda e tinha a mesma coloração de olhos da minha irmã (e minha também, só que os Karamanlis nunca engoliram bem que eu realmente tenha o sangue nobre deles).

No papel, Kyra e eu somos filhos dos mesmos pais, pois Sabrina me adotou legalmente quando eu ainda era um garotinho. Ela, por poucos meses, possuía a diferença de idade obrigatória pela lei entre nós (16 anos) e, por isso, conseguiu, aos 18, adotar-me aos dois anos. Logo em seguida nasceu a Kyra, e a família ficou completa.

Na verdade, eu nunca soube da minha mãe. Tentei descobrir algo durante a adolescência, principalmente por ser esse um dos pontos que meu sádico pai adorava usar contra mim. Inventar uma história nova a cada dia sobre meu nascimento, minha origem, era sua principal diversão e tortura psicológica.

Nunca entendi nada sobre mim, a única certeza que tenho é de que, infelizmente, sou mesmo filho dele, algo que comprovei através de exame de DNA, cujo resultado positivo nunca divulguei, porque eu tinha esperança de não ter o sangue daquele monstro.

Volto a prestar atenção na foto, dessa vez em meu próprio rosto cheio de enfado por estar naquele baile com elas. Sorrio. Eu fazia esse tipo, mas a verdade é que adorava cada momento que passávamos juntos, pois me sentia em família de verdade.

Ponho a moldura no lugar e respiro fundo, controlando meu corpo, colocando juízo na minha cabeça, ressaltando tudo o que tem de importante na amizade entre mim e Samara e concluindo que um envolvimento fora desses termos entre nós só serviria para destruir anos e anos de companheirismo.

Samara merece ser feliz com alguém que possa ser o homem com que ela sempre sonhou, o príncipe encantado dos seus sonhos de menina, alguém que saiba quem é, que tenha valor e que possa demonstrar todo o amor que sente por ela e reconheça o privilégio que é ser amado.

Esse homem não sou eu!

 

Depois do banho na casa de Kyra, fui direto para a empresa. É providencial ter uma mochila de roupas minhas no apartamento dela, mas confesso que não vou muito de jeans e camisa de malha para a Karamanlis.

Passei no Castellani apenas para pegar minha moto, nem me atrevi a subir até meu apartamento, sendo covarde mais uma vez. A questão é que eu não saberia nem mesmo o que dizer a Samara caso nos encontrássemos de novo.

Estava saindo do estacionamento quando meu celular tocou, mas, como já estava sobre a moto – e não queria demorar muito na garagem, porque o carro de Samara ainda estava na vaga dela –, deixei para conferir a ligação quando estivesse no prédio, o que faço agora, retornando a ligação.

— Oi, Chicão! — cumprimento-o assim que atende.

— Alex, seu grande safado, feliz Ano Novo! — o homem mais velho, que se tornou um grande amigo e a quem eu considero como um pai – no sentido do que realmente um pai deveria ser – por pouco não me ensurdece ao telefone. — Cheguei ao inferno hoje, queria saber se poderia passar uns dias lá naquele seu apartamento cinco estrelas.

Abro um sorriso de felicidade ao pensar que ele está de volta a São Paulo. Francisco Salatiel Figueiroa é o nome dessa figura de quase 60 anos, paulistano – mas que odeia sua cidade natal – e viciado em esportes radicais assim como eu.

Nós nos conhecemos quando eu ainda estava no colégio, devia ter uns 15 anos e fui participar de um racha de moto pela cidade. Ele apareceu por lá, chamou-me em um canto e me convidou a fazer cross ao invés de colocar minha vida e a de outras pessoas em risco correndo pelas ruas.

Comecei a ir para o os circuitos de motocross, tomei muito tombo, enlameei-me até o pescoço e me senti mais vivo do que quando me arriscava nos rachas. Nós nos tornamos amigos mesmo com nossa gritante diferença de idade, pois ele dizia que eu lembrava o moleque atentado que ele mesmo tinha sido um dia, e comecei a acompanhá-lo em suas atividades.

Foi por causa dele que deixei de buscar alívio e fuga nas drogas, pois conseguiu me mostrar que, se eu quisesse me livrar de Nikkós, teria que ser melhor que ele. Não foi um processo fácil, admito, levei anos para entender e ouvir seus conselhos, mas nem por isso ele desistiu de mim ou se afastou.

Francisco começou a me mostrar que eu poderia extravasar toda minha angústia, solidão, medo e revolta em esportes como trilhas de moto, bike, escaladas, voos livres, paraquedismo e, quando tirei minha carteira de motorista, apresentou-me a alguns amigos dos circuitos de motovelocidade.

Os esportes aliviavam meu corpo da tensão vivida em casa, mas minha cabeça e minha alma continuavam pesadas, então, um dia, ele me viu desenhar e descobriu como eu poderia tratar os demônios dentro de mim.

Devo muito a ele, não só pelo equilíbrio que consegui hoje em minha vida, como também por permanecer vivo e são. Samara e ele foram os únicos a permanecerem ao meu lado nos piores momentos da minha vida, ela me auxiliando principalmente com Kyra, e ele entendendo meus problemas e me ajudando a achar soluções.

— Meu apartamento é seu! Te dei a chave, afinal.

— Eu sei, mas é sempre bom dar uma conferida, vai que você resolveu sossegar seu pau numa boceta só.

Gargalho com seu jeito rude e direto.

— Não, meu pau ainda gosta de explorar por aí. — Ele me chama de “vadio” e ri. — Estou na Karamanlis agora e...

— Ah, me diz que estou sonhado... — estranho o que ele fala, escuto vozes ao fundo e percebo que não falou comigo. Espero que ele retome a ligação, entro no elevador, cumprimento as pessoas com a cabeça e sorrio para uma mulher gostosa que nunca vi aqui no prédio. — Seu trapaceiro de uma figa! Samara está de volta e, caramba, mais linda do que nunca.

Só de ouvir o nome dela, sinto meu corpo reagir como se uma descarga elétrica tivesse me atingido.

— Encontrou-se com ela agora?

— Sim, seu embuste! Quantos anos ela esteve fora? Caralho, você já a viu?

Franzo a testa, desço no meu andar, confuso com a perplexidade dele apenas por ter visto a Samara no prédio, afinal, ele sabe muito bem que ela tem um apartamento lá.

— Já, desde que chegou — respondo distraído, acenando para os funcionários da K-Eng. — Por quê?

— Alexios, eu sempre me perguntei se você era cego ou apenas muito burro. — Ouço o barulho de uma porta se fechando. — Nunca entendi por que vocês dois nunca tiveram nada um com o outro.

Paro no meio do corredor, atraindo os olhares de pelo menos dois engenheiros que passam por mim. Que merda é essa?!

— Ela é minha amiga — digo o óbvio.

— Ela é incrível e sua amiga, isso já não é meio caminho para um relacionamento de sucesso?

Um alerta dispara em meu cérebro. Chicão nunca foi um homem ligado a relacionamentos permanentes, tanto que é solteiro até hoje, então não entendo o motivo pelo qual está falando essas coisas sobre mim e Samara.

— Chicão, sou eu! Eu não tenho relacionamentos, eu fodo por aí, só isso. E, definitivamente, Samara não é uma mulher apenas para se foder.

Ele emite um grunhido, e, ao fundo, escuto o bipe da minha cafeteira sendo ligada.

— Nisso concordamos. Mas ela é incrível, sempre foi, se eu tivesse a sua idade e a sua aparência, não perderia a oportunidade de tê-la comigo.

Mas o que... Arregalo os olhos, e meu coração dispara.

— Você está morrendo? — inquiro-lhe como se fosse a única opção válida para essa mudança de comportamento.

Chicão gargalha.

— Não, mas estou ficando velho e sozinho. — Bufa. — Mas isso não é assunto para discutirmos ao telefone, já que você está na empresa.

— Chicão, está tudo bem?

— Vai trabalhar, embuste, depois conversamos. Viajei a noite toda, quero tomar um banho, comer algo e dormir um pouco. Obrigado pelo abrigo.

Ele ainda não me convenceu, algo está errado.

— A casa é sua! — declaro, e ele encerra a ligação.


— Quer mais um travesseiro? — pergunto à minha mãe assim que ela se deita na cama.

— Não, filha, estou bem. — Sorri, mas o cansaço não permite que o faça por muito tempo. — É sempre assim no dia da medicação, mas passa.

Balanço a cabeça concordando, enternecida por ela estar tentando me consolar, quando é ela quem está passando por isso tudo. Sempre a admirei por sua força, seu destemor e a capacidade de realizar qualquer coisa que se propunha a fazer.

Mamãe não tem um gênio fácil de lidar, mas nunca negou amor e afeto aos seus filhos, mesmo sendo brava e exigente como era. Dani e eu tínhamos muito mais medo dela do que do papai, que sempre foi mais maleável, mas moderno e liberal.

O relacionamento dos meus pais, enquanto casal, não era um mar de rosas, mas eles eram amigos, companheiros. Ele sempre a apoiou em tudo, e ela acima de tudo o admirava. Não tinham grandes arroubos de paixão, pelo menos não na nossa frente, mas se respeitavam, conversam, riam e, principalmente, nos amavam muito. Dani, como filho e mais velho, sempre foi agarrado a minha mãe mais do que a nosso pai. Os dois se dão bem, são muito parecidos em alguns aspectos, mas quem sempre teve mais afinidade com papai fui eu.

Acho que nossas almas são parecidas. Ambos somos apaixonados pelas formas, perfeccionistas, românticos e, arrisco dizer, sonhadores. Eu sou assim, gostaria de ser prática como mamãe, mas há muito que parei de tentar ser quem não sou. Demorei, mas consegui aceitar meu jeito e me respeitar acima de tudo.

É dolorido tentar ser quem não é para se encaixar ou seguir uma tendência. Eu sou forte, mesmo sendo doce; sou feminista, mesmo sendo feminina e vaidosa; sou empoderada, mesmo sonhando em casar e ter uma família.

Eu me importo com a opinião alheia, sim, porque ninguém é uma ilha e não teria sentido na vida se todos fôssemos autossuficientes e não dependêssemos de ninguém. Não tenho preconceitos, sou feliz com a felicidade dos outros e não me importo que a recíproca não seja verdadeira. Cada um escolhe o caminho que quer percorrer. Eu escolhi ser assim, exatamente como sou.

Chegar até essa conclusão não foi fácil, principalmente quando se percebe que o homem por quem você é apaixonada prefere as mulheres que têm atitude, que são furacão e não calmaria. Eu quis fazer tipo e percebi que estava indo na contramão de tudo o que uma “mulher de atitude” prega, que estava tentando ser outra pessoa para agradar a um homem.

Foi aí que aquela máxima tão clichê, mas que é tão difícil de ser vivida, fez sentido para mim: quem me amar, precisa me conhecer e me aceitar como sou.

Demorei a perceber a importância disso, precisei praticamente ter isso esfregado na cara. Então arrumei minhas malas, disse ao meu pai que não iria para Barcelona, mas sim para Madri, e segui com minha vida.

Alexios foi o estopim que eu precisava para explodir naquela época, depois de ter aparecido no meu apartamento bêbado a ponto de não se aguentar de pé. Ele pediu para dormir no meu sofá, tivemos uma dura discussão quando tentei lhe passar sermão e, no meio da noite, acordei com ele na minha cama.

Fiquei sem reação quando senti sua mão na minha cintura, alisando minha pele por cima do pijama de seda. Fechei os olhos, excitada e ansiosa, e o deixei prosseguir com a exploração. Não o impedi quando me virou, nem quando me beijou e subiu em cima de mim. Tinha esperado por aquilo a vida toda, e estava acontecendo.

Ledo engano!

Ele ficou imóvel, esmagando-me com seu peso, então percebi que havia dormido. Joguei-o para o lado e passei a noite em claro, sem entender nada, esperando que ele acordasse e explicasse.

Acabei dormindo e acordando sozinha na cama. Ele tinha ido embora, e não conversamos, mas esperei que a conversa viesse mais tarde. Não veio. Ele simplesmente ignorou o beijo, as carícias, como se não fossem nada, como se eu não fosse nada.

Fiquei irritada, subi para perguntar diretamente a ele o motivo pelo qual tinha me beijado, mas, quando cheguei ao seu apartamento, estava rolando uma de suas festinhas regada a bebidas e sexo, e o filho da mãe estava sentado no sofá com uma mulher de cada lado em um beijo triplo.

Ele nem me viu, fechei a porta, desci e decidi parar de protelar minhas decisões esperando por algo que nunca iria acontecer. Um relacionamento com Alexios era uma ilusão infantil, mas eu já não era mais criança.

Viajei dois dias depois e pensei que, quando voltasse, toda essa ilusão teria se desfeito.

— Então o nome dele é Diego — mamãe fala, e eu quase pulo de susto, deixando as lembranças para tentar entender do que ela está falando. — Diego Vergara!

Sento-me na beirada da cama, curiosa sobre como ela conseguiu essa informação.

— O nome dele é mais comprido do que isso, mas, sim, Diego Vergara.

Ela sorri cheia de sabedoria.

— E você deve estar aí querendo saber como eu sei o nome dele. — Concordo. — Seu irmão me contou.

Daniel e sua boca! Meu irmão sempre foi o maior X9 do mundo, não é de se espantar que tenha contado sobre o Diego para minha mãe.

— Há quanto tempo estão juntos?

Não sei o que dizer a ela e agradeço quando uma enfermeira entra no quarto, dando-me a desculpa perfeita para escapulir de sua curiosidade. O fato é que tudo mudou depois da noite do baile dos Villazzas.

Não sei o que levou Alexios a me beijar daquela forma no elevador, eu estava bem bêbada dessa vez, mas ele não tanto, além disso, eu senti a energia entre nós, senti o tesão que ele exalava, que trazia na saliva e em cada toque no meu corpo. Alexios não escondeu em nenhum momento o quanto estava excitado, esfregou sua ereção contra mim, esmagou-me contra o espelho do elevador parecendo que queria me comer ali mesmo.

Depois, do nada, mudou. Pediu desculpas! Desculpas por me beijar! Só faltou dizer que estava com tesão, e eu era a única mulher próxima dele, mas que nem assim servia.

Para piorar, quando entrei no apartamento e peguei o celular, vi uma mensagem de Diego dizendo o quanto sentia minha falta e como ele gostaria de poder estar aqui comigo. Foi a gota d’água! Senti-me um lixo, uma pessoa má que engana e trai e percebi que tê-lo deixado na Espanha sem uma resposta definitiva foi uma atitude egoísta.

Chorando, sem pensar direito, fiz uma chamada de vídeo para ele e, quando atendeu, disparei:

— Diego, eu sou uma pessoa horrível, mas não posso fazer isso com você! — Soluçava tanto que ele se assustou e me pediu para falar devagar. Todavia, eu não conseguia. — Você é um homem incrível, um amigo maravilhoso, e eu adorei cada momento que passamos juntos...

— Calmarse, Samara! Yo no comprendo!

— Você merece mais, merece alguém melhor, e eu não posso...

— Usted está me dejando preocupado, cariño.

— Eu não queria fazer isso assim, por telefone. — Ele ficou sério, atento, prevendo o que eu lhe diria. — Mas não é justo que você fique aguardando minha volta para que eu diga isso. — Respirei fundo, armando-me de coragem. — Eu não posso aceitar seu pedido, Diego. Eu não estou pronta para amar você como deveria, como você merece.

— Samara, sucedio algo com su mamá?

Neguei.

— Não. Sou eu, não mereço você. Você tem razão ao dizer que meu coração nunca pôde estar aí contigo.

— Samara, despues hablamos, está muy nervosa. — Tentei dizer a ele que não, mas não me deu oportunidade: — Tengo que ir.

— Diego, não...

Ele encerrou a chamada. Tentei retornar outras vezes, porém a ligação não completava. Deixei mensagens, mas que, até o momento, ele não visualizou. Volto a olhar para mamãe, que boceja, visivelmente cansada, e fecha os olhos, recostada nos travesseiros, enquanto a enfermeira mede sua pressão. Eu voltei ao Brasil apenas por causa dela, para estar ao seu lado nesses momentos tão difíceis, não por qualquer outro motivo. Sinceramente, não esperava essa pressão acerca de Alexios e Diego. Minha família nunca foi assim, muito menos mamãe, que sempre pregou que uma mulher não precisa de marido e filhos para se sentir completa e feliz.

Mamãe adormece, e eu saio do quarto. Quando estou prestes a descer a escada, escuto uma voz conhecida e muito amada:

— Minha Samara está de volta! — Papai está no corredor de braços abertos. Sorrio e vou até ele para abraçá-lo. — Ah, que saudades!

— Eu também estava, mas cheguei há mais de uma semana, e você nem se dignou a vir me ver.

— Eu sei, mas agora vim para ficar, Herzchen16, e estou feliz por te ter de volta aqui em casa. — Ele beija minha testa. — Não pretende voltar para a Espanha, não é?

Suspiro. Papai foi o primeiro a me incentivar a ir estudar fora, mas o único a ficar chateado quando decidi ficar depois que terminei a especialização. Nunca foi me visitar. Embora falássemos sempre, eu percebia que ele ainda não havia entendido minha necessidade de ficar longe.

— Vou voltar, sim, tenho compromissos de trabalho por lá que...

— Besteira! Aposto que você já tem tudo desenhado e organizado e que, em uma visita ou duas, poria fim a esses “compromissos”.

— Papai, não vim para ficar, e o senhor sabe. Mamãe está na parte mais agressiva do tratamento, e Dani precisou de mim para ajudar a cuidar dela e acompanhá-la...

— Estou aqui também! — ele se ofende por não ter sido incluído. — Ela diz que não precisa de mim, mas estou aqui, sempre estive por ela.

Oh, Deus, que situação!

— Eu sei, pai.

Benjamin Abraão Nogueira Klein Schneider nunca entendeu bem a distância fria de mamãe, por mais que os dois sempre tenham se dado bem. Acho até que foi por esse motivo que se afastaram depois que crescemos e que, após minha ida para a Espanha e a de Dani para seu próprio apartamento, papai decidiu se mudar para a fazenda.

Uma vez, quando eu ainda era uma garotinha, eu o vi bêbado no escritório do antigo apartamento em que morávamos. Ele bebia e parecia mal, chorava e segurava alguns documentos. Quando me viu, tentou sorrir e me chamou para perto de si.

— Tudo bem? — perguntei na inocência dos meus oito anos de idade e limpei suas lágrimas.

— Tudo. — Ele guardou a papelada dentro de uma caixa, onde vislumbrei também algumas fotos, trancou-a com chave e depois respirou fundo. — A vida adulta é complicada, Herzchen. Fazemos escolhas baseadas no que achamos ser melhor e esquecemos o preço que isso cobra, tanto aqui — ele apontou para sua cabeça — quanto aqui. — E, por fim, tocou em seu coração.

Na época não entendi nada, mas esse momento nunca deixou minha memória e, com o tempo, supus que ele estivesse falando de seu relacionamento com mamãe. Os dois se davam bem, mas era ele quem sempre cedia numa discussão ou quem corria atrás quando as coisas ficavam tensas entre eles.

— Vi seu bichinho pré-histórico lá no jardim comendo algumas plantas — ele ri, mudando de assunto. — Você poderia ter adotado um cachorro ou um gato como qualquer outra pessoa, não é?

— Pai, eu o ganhei de presente e gosto dele.

— Mas ele é feroz! — Faz cara de medo. — Já me mordeu algumas vezes.

Gargalho.

— Godofredo é muito territorialista, ele sempre ataca os homens.

— Hum, que interessante! Começo a gostar desse bichinho. — Rio do seu ciúme. — Você não trouxe nenhum espanhol junto contigo, não é?

Suspiro.

— Não. E se o Dani disse algo para o senhor também, ele é...

Benjamin me afasta de seus braços, segurando-me pelos ombros, e me olha surpreso.

Merda!

— Ele não disse nada, não é? — pergunto, achando-me idiota.

Meu pai nega:

— Era só uma pergunta brincalhona e especulativa. — Olha em volta. — O que ele deveria me dizer?

— Eu tinha um namorado em Madri, mas ele ficou por lá.

Ele põe a mão sobre o peito.

— Adorei esse tempo verbal: “eu tinha um namorado”. — Rio. — Agora você terá que me contar sobre esse tal...

— Ele me pediu em casamento — disparo. — Mas eu não pude aceitar.

Ficamos um tempo um olhando para o outro, parados no corredor, sem emitir um som sequer. Papai sempre foi bom ouvinte e dava bons conselhos. Mesmo não sendo muito de falar sobre como se sentia, mesmo reservado em seus sentimentos, até mesmo com seus filhos, ele sabia ouvir sem julgar e só opinava quando achava necessário, o contrário de mamãe.

— Preciso de um café ou de algo mais forte — confessa, e eu rio nervosa. — Vou falar com sua mãe e...

— Ela acabou de dormir — informo-lhe.

— Certo! — Respira fundo. — Se lembra daquele seu namorado da faculdade? — Gemo e assinto. — Você tinha dúvidas quanto ao caráter dele e, mesmo com todos os seus instintos te alertando que algo não estava bem, você aceitou o namoro e...

— Meus instintos estavam certos, ele era um pilantra filho da puta casado!

— E eu quis castrá-lo. — Ele sorri doce, como se isso não fosse nada. — Enfim, o meu conselho para essa questão sempre é: siga seus instintos. Se você não se achava pronta para aceitar o pedido, então fez certo ao recusá-lo.

— Então, você acha que eu fiz certo ao ouvir meu coração?

Ele ri e nega.

— Não, eu disse para ouvir seus instintos, porque seu coração não tem juízo. — Eu rio, achando que ele está fazendo troça, mas, então, ele completa: — Já se apaixonou uma vez por Alexios Karamanlis!

Fico séria, coração disparado, porque, embora ele saiba de todos os meus namorados e experiências, nunca contei a ele sobre Alexios.

Era óbvio para todos, não sei como consegui enganar a mim mesma! Eu ainda amo aquele safado!


— Alexios? — Termino de calçar os tênis antes de me virar para olhar Laura deitada na cama. — Já vai?

Ela se contorce languidamente, seu corpo curvilíneo, dourado de sol se mexendo contra os macios e perfumados lençóis de sua cama. Sorrio, deslizo a mão pela curva de seu lindo rabo e desfiro um tapa nele, fazendo-a rir.

— Preciso ir, tenho reuniões importantes agora de manhã na empresa, e, com a viagem de Theodoros para a Grécia e a demora na volta de Millos, as coisas ficaram acumuladas entre mim e o Kostas.

Ela bufa e se senta.

— Eu sei, ontem eles me passaram as informações sobre a propriedade no Rio de Janeiro, da reunião que tiveram na quinta-feira. — Ela dá de ombros. — Achei que Kika ia aparecer cheia de gás na sexta-feira, mas nem ela e nem seu irmão apareceram na empresa.

— A área é boa mesmo? — pergunto, pois apenas vi algumas imagens do local, e, como Laura é do geoferenciamento, deve ter detalhes bem específicos.

Ela confirma.

— O pessoal do jurídico está alvoroçado, e fiquei sabendo que o Leo, o braço direito da Kika, pediu para o pessoal acelerar com as outras áreas, porque gostaram muito da do Rio. — Laura me abraça pelos ombros e lambe minha orelha. — Falando em acelerar, adorei aquela rapidinha ontem na sala de servidores.

Eu rio, mas balanço a cabeça.

— Você jogou sujo comigo. — Levanto-me da cama, e a safada senta-se na beirada do colchão, os peitos cheios e rosados, as coxas musculosas bem abertas. Porra! — Goza para mim! — ordeno, e ela não se faz de rogada, tocando-se sem nenhum pudor. Vou até uma das luminárias, acendo-a e tenho a visão perfeita de sua boceta totalmente depilada já molhada de tesão.

Foda-se!

Apenas abro o cinto da calça, baixo o fecho e saco meu pau para fora. Pego uma camisinha em cima de seu criado-mudo, e ela ri quando avanço até onde está.

— De costas!

Ela se deita de bruços, e eu me agacho para entrar em uma única investida. Fecho os olhos, concentrando-me nas sensações, excitado com seus gemidos, mas, de repente, sinto um cheiro diferente, os sons mudam, e um rosto doce, sorridente, de lindos olhos castanhos aparece em minha mente.

Xingo alto, querendo expulsar a imagem de Samara, aumento as estocadas até sentir as pernas arderem e gozo sem ao menos saber se minha parceira teve seu prazer.

Caralho!

Afasto-me dela e apoio as mãos contra o aparador, colocando a culpa das súbitas aparições de Samara em minha mente na distância que impus entre nós depois daquele beijo no elevador. Claro que, se ela não tivesse se mudado para a casa da mãe, certamente essa distância não seria tão dura, afinal, eu poderia encontrá-la casualmente pelos corredores do Castellani, mas quem disse que a sorte gosta de mim?

Agora, além de ter visões dela durante minhas trepadas, acordo excitado por algum sonho erótico protagonizado por ela e ainda tenho que aguentar os questionamentos de Kyra e de Chicão sobre o motivo pelo qual eu e Samara não nos falamos mais.

— Tudo bem? — Laura me toca o ombro, fazendo com que eu desperte dos devaneios sobre Samara.

— Tudo. — Retiro a camisinha e a jogo no lixo. — Preciso ir, já está amanhecendo.

— Eu sei.

Ela sorri, doce e compreensiva, e eu respiro fundo, sabendo que estou fazendo merda. Primeiro, por ela ser funcionária da Karamanlis, e segundo, por eu estar fazendo sexo com ela há duas semanas.

Nunca fico tanto tempo com alguém. Para falar a verdade, não me lembro da última vez que mantive uma única parceira, mas, por algum motivo, tenho andado preguiçoso, sem vontade de sair e, como trepei com ela e gostei, achei mais simples continuar.

Despeço-me dela apenas com um aceno de cabeça. Laura me acompanha até a porta de seu apartamento, e eu desço até o térreo, onde minha moto está estacionada em frente à portaria do prédio.

Sigo para o Castellani, mas a cabeça continua a vagar por lembranças dessas longas seis semanas desde o baile dos Villazzas. Tanta coisa aconteceu dentro e fora da Karamanlis, ainda assim senti o tempo passar lentamente.

No trabalho, as coisas começaram a ficar mais intensas, apesar de começo de ano sempre ser mais devagar. Com a conta da Ethernium, tive que mobilizar boa parte dos profissionais para elaborar croquis baseados na planta da siderúrgica e as áreas que foram aparecendo. A volta de Kika à empresa foi providencial, pois ela nos apresentou uma ideia que facilitou muito a vida de todos.

Eu ainda estou surpreso por Theodoros ter colocado a gerente dos hunters e meu irmão trabalhando juntos, pois isso não é algo do perfil do meu irmão mais velho. Foi então que, conversando ao telefone com Millos, descobri que tinha dedo dele nessa história.

A ideia de os dois trabalharem juntos não surgiu na reunião preliminar do projeto, mas foi algo que Theodoros e Millos combinaram assim que souberam que ela iria voltar para a empresa. Agora, conhecendo Millos como conheço, só me pergunto o que, especificamente, meu primo pretendeu ao dar essa sugestão.

Esperei que os dois se matassem desde a primeira semana juntos, ainda mais depois que Theodoros viajou, mas não, aparentemente tudo tem transcorrido bem entre os dois, e a conta da Ethernium parece estar em boas mãos.

Em casa, com a presença de Chico, que ainda está por lá, tenho sempre companhia para jogar bilhar, videogame ou para corridas aos finais de semana. Decidi não participar de nenhum campeonato este ano, nem de moto, nem de carro, pois o trabalho iria consumir muito de minha equipe, e eu não sou o tipo de chefe que deixa seus funcionários se fodendo de trabalhar e sai cedo para treinar ou viajar. Não sou profissional por isso, não consigo me dedicar integralmente às corridas, embora goste muito delas. Vejo-as com um hobby, assim como os esportes e outras atividades que uso para ocupar minha cabeça.

Entro na garagem do prédio, paro a moto e, assim que tiro o capacete, paro em seco ao ver Samara.

— Bom dia — ela me cumprimenta, sem parar para falar comigo e sem olhar para trás.

Confiro as horas no relógio e estranho que ela esteja saindo tão cedo de casa.

— Algum problema? — pergunto preocupado.

Samara para e me olha.

— Não. — Abre o carro, mas me aproximo antes que entre. — O que foi, Alexios? — sua voz é impaciente, e eu percebo que o clima estranho está de volta.

— Como está sua mãe?

Ela franze a testa, ajeita o cabelo e ri amarga.

— Teve que se encontrar casualmente comigo para lembrar que minha mãe está doente? — Balança a cabeça. — Sempre soube que você era desligado com as coisas, Alexios, mas na verdade é um egoísta.

Suas palavras cheias de mágoa me acertam. Aperto a mão no capacete, ciente de que ela tem razão. Eu poderia tê-la procurado, ter ligado, ter sido o amigo que ela merecia, mas, em vez disso, escolhi me afastar e deixá-la sozinha com seus problemas.

Sim, além de covarde, um grande egoísta!

— Você tem razão. — Aceno. — Bom dia.

Dou a volta e sigo em direção ao elevador, achando-me ainda mais desprezível do que sempre me achei.

— Ela está melhorando — a voz de Samara ecoa na garagem, e eu paro. — A quimioterapia está tendo os resultados esperados, e os médicos estão confiantes.

Viro-me para olhá-la, ainda parada do lado de fora do carro, com a porta do motorista aberta.

— Eu sinto muito por não ter ligado antes. — Ela dá de ombros como se não se importasse, mas sei que se importa; eu me importaria. — Você tem razão sobre eu ser um egoísta, você merecia um amigo melhor.

Samara bufa e, sem dizer nada, entra no carro, fecha a porta e liga o motor. Instantes depois, vejo-a passar por mim sem dizer nada e me sinto um bundão. Subo para meu apartamento e, assim que entro, encontro Chicão no meio da sala, usando apenas uma cueca, meditando.

— Que visão do inferno! — sacaneio e sigo para meu quarto.

— Bom dia, embuste! — saúda-me sem ao menos abrir os olhos. — Você deveria tentar, pelo visto nem suas trepadas diárias estão conseguindo mantê-lo relaxado, então, quem sabe a meditação...

— Nem fodendo! — grito para ele e sigo para o banheiro.

Somente quando fecho a porta é que toda a armadura se vai. Fico parado, olhando para o espelho, tentando analisar além da aparência que todos veem. Eu sou um filho da puta egoísta e imbecil, um impostor, uma fraude gigante que perambula pela cidade sem nem mesmo saber quem é.

Anjo dos Karamanlis! Engenheiro filantropo! Chefe preocupado com funcionários... tudo mentira!

Retiro a roupa, jogando-a no cesto de roupa suja antes de me enfiar debaixo da água gelada do chuveiro. Gostaria que, da mesma forma que essa água consegue limpar meu exterior, pudesse fazer o mesmo dentro de mim. Sou tão vazio e frio quanto meu irmão do meio e tão arrogante e egoísta quanto Theodoros. Sou tão louco quanto Nikkós!

Doeu-me ver e ouvir a mágoa que causei em Samara, mas é somente isso que causo nas pessoas. Decepção! Eu não mereço sua amizade e nem estar perto dela. A raiva de mim mesmo explode como há muitos anos não a sinto. Sem pensar, soco o vidro do boxe, que se espatifa e desaba sobre mim.

A porta do banheiro é aberta com um estrondo, e um apavorado Chicão aparece, olhos arregalados, olhando a destruição que causei ao meu banheiro.

— Merda, Alexios! — Ele salta em minha direção sem se preocupar com os cacos de vidro pelo chão e tenta me tirar do boxe. — Porra, sai daí.

Nego, o sangue escorrendo pelo ralo do banheiro, minha mão ardendo, assim como meus braços e os pés. Não me movo, apenas tremo, tentando ainda conter toda a fúria dentro de mim.

— Sai daí, Alex, você está ferido, porra! — Chicão grita.

— Não! — Não me movo. — Eu sou um lixo! Ele nunca deveria ter me pegado no lixo onde me encontrou, deveria ter me deixado morrer, deveria...

— Para com essa merda! — Some para dentro do meu quarto e, quando volta, está calçando meus coturnos. — Você não vai mais fazer isso, ouviu?

Chicão entra no que restou do boxe, desliga a água, joga uma toalha sobre meu corpo e me ergue. Não consigo reagir, a cabeça girando, todos os insultos e histórias sobre mim que ouvi de Nikkós por tantos anos enchendo meus ouvidos, torturando-me mais uma vez, ressaltando o quanto sou desprezível.

— Você não vai fazer isso consigo mesmo de novo, ouviu?! — Chicão esbraveja, fazendo pressão com a toalha de rosto na minha mão. — Ele te machucou, você se machucou, mas essa merda já acabou faz tempo. Ele não pode mais, Alexios, nem te tocar e nem contar mentiras a você. Chega!

Nego.

— Eu sinto tanta raiva... — Meus dentes batem um no outro, e eu os travo. Minha vontade é de gritar, socar, foder com tudo.

— Eu sei, já passamos por isso antes, e eu... — ele baixa o tom de voz e expira — achei que já tinha superado.

— Como? — questiono-lhe. — Como posso esquecer, se continuo a ser a mesma pessoa desprezível de sempre? Não são as marcas que ele causou no meu corpo que me causam essa raiva, sou eu!

— O que aconteceu?

Nego, trêmulo e me sento na cama. Gemo ao sentir as dores dos cortes, percebendo que a adrenalina passou mais rápido do que antigamente. Eu aprendi a controlar a dor usando a raiva. Durante anos de espancamento, percebi que, quanto mais raiva eu sentisse, menos dor ele me causava. Mais tarde, quando sentia raiva por qualquer motivo, eu mesmo me machucava, levava-me ao limite do meu corpo e quase me destruía.

Era um círculo vicioso que eu achei que já havia passado, mas, aparentemente, não.

— Encontrei Samara na garagem, provavelmente indo se encontrar com sua mãe e levá-la ao hospital — confesso, cansado demais para guardar qualquer coisa. — Eu não a via há semanas, desde o baile dos Villazzas no Ano Novo.

— Eu também só a vi uma vez aqui no prédio...

— Eu não liguei, não procurei por ela, não justifiquei meu ato e nem meu sumiço — interrompo-o e o encaro. — Ela está magoada comigo.

Chicão confere o sangramento da mão, tirando a toalha e depois se senta ao meu lado na cama.

— Por que você fez isso? Sumiu e não a procurou?

Respiro fundo; comecei o assunto, agora preciso terminá-lo.

— Preferi me afastar. — Olho para baixo, envergonhado. — Eu quase trepei com ela no elevador aqui do prédio. — Fecho os olhos. — Eu a quis como mulher, não consegui reprimir a vontade, como sempre fiz, e agi feito um idiota excitado.

— Ela o repeliu?

— O quê?

— Samara o repeliu? Te xingou? Bateu em você? Disse que você abusou dela? Mandou que ficasse longe?

Lembro-me daquela noite, a forma como reagiu ao beijo, o jeito que gemia e parecia tão excitada quanto eu.

— Ela estava bêbada, me aproveitei dela, sou um canalha.

— Nisso concordamos, mas o que ela pensa sobre o acontecido?

Balanço os ombros.

— Não sei, não falo com ela desde então. — Lembro-me da conversa com Kyra no dia seguinte ao baile e praguejo. — Ela está noiva.

— Samara? — Assinto. — Que merda!

— É, o beijo foi uma merda enorme, e eu não sei como...

— Não, seu idiota! — Ele estapeia minha cabeça. — Que merda que Samara esteja noiva, ela é a mulher perfeita para você.

Olho-o como se ele estivesse louco.

— Claro que não, ela merece alguém muito melhor do que eu! Samara nunca cogitou qualquer tipo de relacionamento comigo a não ser o de amizade.

Chicão bufa.

— Você não é idiota, Alexios Karamanlis, é um burro!

Ele joga a toalha, manchada de sangue, no chão do quarto e sai puto comigo ou com alguma coisa que eu disse. Ele não entende, óbvio! Samara é... especial, e alguém especial como ela nunca se relacionaria com alguém tão ordinário como eu.

Olho para minha mão e rio ao pensar na bagunça que sou.

Obviamente ela nunca se relacionaria e nem deveria se relacionar com alguém tão fodido como eu.

 

— O que houve com sua mão? — Laura me pergunta de repente, assustando-me, pois eu nem mesmo sabia que estava por perto. Encaro-a sem entender como e o que está fazendo aqui na K-Eng. Seu olhar é de assombro aos machucados em minha mão, além de questionadores, o que me irrita um pouco.

— Um pequeno acidente — respondo seco. — O que você está fazendo aqui?

Levanto-me da mesa, agradecendo por não ter mais ninguém por aqui a essa hora e fico de frente para ela. Laura abre um sorriso sem graça, mas logo se pendura em meu pescoço.

— Tem mais de uma semana que não te vejo, você não liga e nem aparece lá no meu apartamento. Então, se Maomé não vai até a montanha...

Reviro os olhos e retiro as suas mãos de mim.

— Laura, você trabalha na Karamanlis, então já deve ter percebido a movimentação infernal na empresa por conta da Ethernium. — Ela concorda. — Além disso, não entendi o motivo pelo qual eu deveria dar satisfação ou ter regularidade em nossos encontros.

A moça arregala os olhos por causa de minha sinceridade.

— Eu pensei que... — ela suspira — estávamos tendo essa regularidade, afinal, ficamos juntos por umas semanas e...

— Ficamos porque estava gostoso — não tenho medo de ser direto. — Mas não significa que temos qualquer tipo de compromisso. Não sou desses, Laura, e foi a primeira coisa que te disse quando trepamos a primeira vez.

Ela fica um tempo muda, olhando para o nada, então, de repente, abre um sorriso e desliza a mão pelo meu peito.

— Disse. Como disse também que queria trepar mais, lembra? Eu ainda quero mais, Alex — sua voz é ronronante. — Sempre imaginei como seria fazer sexo aqui na sua sala.

Respiro fundo, levemente excitado com o oferecimento, contudo, sem nenhuma vontade de fodê-la aqui – ou em qualquer outro lugar – depois desses questionamentos.

— Infelizmente, eu estou muito ocupado agora, motivo pelo qual ainda estou na empresa quando todos já foram. — Ela faz um biquinho, mas me afasto e volto a me sentar à mesa. — Acho melhor você ir.

Ela bufa.

— Sério isso?

Volto a olhá-la, sem esconder meu desagrado e impaciência, e ela se sobressalta.

— Sério.

Laura fica um tempo me encarando, depois vira as costas e sai da sala, andando firme e visivelmente puta. Balanço a cabeça, repreendendo a mim mesmo por ter deixado as coisas chegarem a esse ponto. Foi muito bom trepar com ela, aposto que a recíproca é verdadeira, porém não imaginei que ela criaria tantas expectativas e se sentisse no direito de vir me cobrar algo.

Erro de cálculo!, penso, sem deixar de pontuar que isso, para um engenheiro, é algo muito perigoso, que pode pôr tudo a perder.

Pego a pequena bola de borracha que tenho usado para exercitar minha mão e reparo nos machucados nela. Os cortes já estão todos secos, e os pontos que tomei em um deles já foram retirados.

Socar o vidro do boxe foi um momento de loucura, como tantos outros por que já passei. Fazia muito tempo que eu não perdia a cabeça daquele jeito, e sei que o que Samara me disse foi o gatilho responsável por isso. Não tiro, em hipótese alguma, a razão dela para me dizer aquelas palavras, mas elas acertaram o alvo na mosca.

Fecho os olhos e tensiono o pescoço, tentando relaxar um pouco para voltar a trabalhar e não enveredar pelos acontecimentos dessa semana, mas ainda não tenho esse controle total da mente e dos meus pensamentos.

A frustração me bate ao me lembrar do almoço com Konstantinos, meu irmão advogado. Achei que, pela primeira vez, ele iria se dispor a me ajudar com as respostas que procuro por anos, mas, ao que parece, ser egoísta e frio é algo familiar.

Mexo na minha agenda de anotações e encontro lá o endereço do sobrado de propriedade de Kostas. A voz da mulher misteriosa que encontrei na porta do Castellani ainda ressoa nítida em meus ouvidos:

“Eu conheci sua mãe biológica. Se quiser respostas, procure pela casa de Madame Linete.”

Foi o encontro mais estranho da minha vida. Ela estava parada lá, olhando o prédio e, quando me viu, logo perguntou se eu era um Karamanlis. Estranhei a pergunta, tentando reconhecer a senhora frágil e de cabelos brancos, mas não precisei responder, pois ela logo disse essas duas frases e se afastou sem me dar a chance de perguntar qualquer coisa mais.

Claro que eu já havia cogitado a ideia de que tinha sido gerado por alguma prostituta daquela maldita casa, afinal, era o local que meu pai mais utilizava. Não deveria ter começado do nada sua amizade com a cafetina asquerosa, mas nunca achei nada que me ligasse àquele local até esse encontro.

Talvez fosse uma pista falsa apenas, mas eu não poderia ignorar mais nada, não enquanto não achasse as respostas que procurei por toda minha adolescência a fim de tirar esse poder das mãos de Nikkós.

Não conhecer meu passado era o suficiente para meu pai ter uma enorme arma psicológica contra mim, coisa que ele utilizou por muitos e muitos anos.

Foi pensando em exterminar todo e qualquer poder que meu pai ainda pudesse ter sobre minha vida que atraí meu irmão para um almoço com a desculpa de falar da conta na qual estávamos trabalhando em conjunto.

Confesso que estranhei quando ele aceitou sem que eu tivesse que recorrer a inúmeros subterfúgios, mas agradeci a boa sorte, e nos encontramos em um restaurante neutro, escolhido a esmo, embora de alta gastronomia.

Achei que seria difícil introduzir o assunto, principalmente porque ele iria saber que pesquisei o maldito imóvel e descobri que ele o comprou há anos, quando foi a leilão. Isso me surpreendeu, claro, saber que ele comprou o sobrado e que ainda o mantém de pé sem nenhuma modificação ou uso. O assunto não surgiu naturalmente. Kostas estava estranho, mesmo falando de negócios, o que me surpreendeu, pois sempre imaginei que ele fosse se aproveitar da distância de Millos e Theo para tentar assumir a empresa.

— Eu acho que temos um acordo implícito de não falarmos sobre o passado — decidi não ser mais sutil, e Kostas reagiu imediatamente:

— Não é implícito. Não quero falar do passado. Mais explícito que isso, impossível!

Eu sabia que não seria fácil, ele é tão fechado quanto eu, então precisei desarmá-lo. Aproximei-me dele por sobre a mesa do restaurante e abaixei o tom de voz:

— Dessa vez, não poderei acatar sua vontade, Konstantinos. Sei que você comprou o sobrado da Rua...

Kostas levantou-se.

— Perdi a fome, vou voltar para a empresa.

Pus-me de pé também e o vi caminhar na direção da saída do restaurante, mas não ia desistir, não quando já havia agitado o vespeiro.

— Eu nunca te pedi ajuda. — Meu irmão parou, mas não se virou para me olhar. Decidi continuar por essa linha de ação: sinceridade. — Eu não podia te ajudar, então nunca pedi ajuda também.

— Alexios, não faça isso...

Eu soube que atingi o ponto certo, pois podia sentir a tensão no seu corpo. Nós dois temos consciência do que passamos na mão do nosso pai e de tudo que fizemos para que a loucura de Nikkós ficasse longe de Kyra. Kostas não aguentou por muito tempo, e eu o entendo, mas fiquei lá sozinho, lutando contra o monstro, tentando proteger minha irmã, mesmo sem ninguém para fazer o mesmo por mim.

Nunca tinha pensado em lhe cobrar, mas situações extremas pedem medidas extremas.

— Eu preciso, senão não faria. Há chances de eu descobrir o que Nikkós fez com minha mãe.

Fiquei satisfeito ao vê-lo se virar completamente surpreso.

— Sua mãe? Você soube algo dela?

— Nada conclusivo, mas acabei cruzando com uma pessoa que, quando soube que eu era filho dele, disse tê-la conhecido.

— Isso é loucura! Você procurou durante sua adolescência toda, quase se matou por isso, não há pistas, não há nomes, não há nada!

Lembranças de anos e anos de buscas vãs me fizeram titubear por alguns instantes. Eu não tinha um ponto de partida na época, pois ela podia ser qualquer pessoa, mas, naquele momento, eu tinha a maldita pista do imóvel.

— Preciso acessar o sobrado — voltei a falar, mas Kostas negou. — Preciso entrar e remexer tudo lá.

— Não!

— Foda-se, eu vou! — Soquei a mesa, decidido, puto demais por estar ali pedindo ajuda a ele pela primeira vez e não ser compreendido. Eu sempre o entendi, sempre o justifiquei quando saiu do apartamento e foi viver sua vida. Quando descobri que o sobrado lhe pertencia, nunca pensei em questionar seus motivos, apenas o entendi. Não era justo não ter o mesmo tratamento e consideração. — Eu sei que, por algum motivo bizarro, você o comprou, trancou-o com tudo dentro e o tem deixado apodrecendo por mais de 15 anos! Pode ter alguma pista lá.

— Não é seguro. Não vou arriscar que você morra lá dentro e eu ainda tenha que responder a...

Caralho de desculpa mais esfarrapada!

— Porra, Kostas, não fode! — Perdi a paciência, circundei a mesa e me aproximei dele, disposto a jogar pesado. — Eu sei dos teus motivos, respeito-os. Como disse, nunca te pedi ajuda antes porque sabia que você também precisava e não tinha a quem pedir, mas agora estou pedindo, agora estou contando com você. Não me faça arrombá-lo, porque eu o farei, apenas dê-me as chaves de todas aquelas grades que pôs lá.

Vi-o pensar, achei mesmo que eu estivesse tocando em alguma parte ainda viva de seu corpo, talvez no menino que conheci quando chegou para morar conosco, mas não, ao que parecia, meu irmão havia virado a porra de uma rocha fria e sem sentimentos.

— Tente invadir. Será um prazer implodir aquela merda com tudo dentro!

A mera possibilidade de ele destruir a única pista que tive do meu passado me desconsertou. Kostas aproveitou-se do momento e foi embora do restaurante.

Fiquei um tempo parado, até que ouvi um leve pigarrear e vi os garçons chegando com nossos pedidos. Estava sem fome, um bolo havia se formado em minha garganta, então pedi que embrulhassem tudo e deixei as quentinhas com o primeiro morador de rua que achei pelo caminho.

Andei sem rumo, sem saber o que fazer ou como agir. Tinha aberto meu peito para ele, pedira ajuda pela primeira vez e recebera um sonoro não. Senti algo inédito pelo meu irmão, raiva. Kostas nunca fora o alvo da minha revolta, pois sempre o compreendi, mas naquele momento não podia mais entendê-lo, não quando eu poderia ter respostas para acabar com minha tortura.

Sair de casa ajudou meu irmão a dar fim ao poder de Nikkós sobre sua vida, mas o mesmo não aconteceu comigo, e, enquanto eu não souber sobre o meu passado, não poderei tirar do homem que me gerou a possibilidade de voltar a me ferir.

O som de mensagem no celular me faz deixar de lado essas lembranças, e eu leio a mensagem de minha irmã me convidando para jantar com ela.


“Kyra, ainda estou na empresa, não poderei ir.”


Envio a mensagem esperando que seja suficiente, mas não é.


“Uma hora você precisará comer, e eu não tenho nenhuma intenção de jantar cedo. Venha no horário que puder, esperarei você.”


Merda, ela sabe ser insistente!


“Ok.”


Olho para o monitor do computador, respiro fundo e desisto de trabalhar. Minha barriga ronca, e decido aceitar o convite inesperado de minha irmã. Antes, porém, olho novamente o endereço do sobrado e traço um plano para invadi-lo sem que Konstantinos tome conhecimento.

As respostas que busco sobre mim mesmo podem ser achadas lá; não vou desistir tão fácil assim de encontrá-las. Nunca desisti fácil de nada, essa não será a primeira vez.

Imediatamente a imagem de Samara aparece em minha mente, e eu bufo, chamando-me de hipócrita. Claro que já desisti fácil de algo, eu só não gostava de admitir isso por não me achar sequer digno dela.

Quem sabe se eu achar as...

Interrompo o pensamento antes de criar ilusões que só serviriam para me machucar. Não há possibilidade de eu tê-la, mesmo que tenha todas as respostas da minha vida. Samara nunca estará ao meu alcance, e, sinceramente, acho bom que não haja nenhum envolvimento entre nós.

Ela merece mais!


Pego mais um copo de café e volto a me sentar ao lado de Daniel, sacudindo a perna, bebericando ou soprando a bebida quente. Olho para o corredor e, sem nem mesmo consumir metade do café, levanto-me para pegar um copo d’água.

Volto a me sentar, as pernas agitadas, confundo os copos e dou uma golada no café fumegante.

— Merda!

Daniel põe a mão no meu joelho e me obriga a parar de sacudir a perna.

— Se você não sossegar agora, juro que te ponho para fora — ele me ameaça.

— Desculpa. — Sorrio sem jeito. — Estou nervosa com os resultados desse primeiro ciclo de quimio e acho que deveríamos ter entrado com ela para saber mais...

— Nosso pai entrou com ela, Samara. Sossegue, você está me deixando irritado parecendo uma criança ansiosa! — Daniel fala alto, e eu o encaro surpresa. — Desculpa. — Ele põe a mão na cabeça e esfrega os olhos. — Eu quase não dormi essa noite, mas você não tem nada a ver com meu mau humor.

— Ela vai ficar bem, Dani. — Ponho minha mão em seu ombro.

— Eu sei que vai! Nunca tive dúvidas disso.

Respiro fundo e concordo com ele, embora não tenha a mesma confiança que ele demonstra ter.

Têm sido dias difíceis desde que cheguei ao Brasil, mas em momento algum me dei a oportunidade de esmorecer perto deles. A cada medicação, mamãe tinha reações mais fortes, requerendo tanto cuidado e atenção que decidi desistir de morar no meu apartamento e voltei para a casa dos meus pais.

Confesso que essa decisão também me ajudou a manter distância de Alexios Karamanlis. Não que eu ache que em algum momento ele tenha notado minha ausência ou se importado com isso, mas para mim fez toda a diferença.

É aquele ditado, sabe? O que os olhos não veem...

Suspiro.

— Você foi incrível nesses dias, Samara — Daniel volta a falar. — Mamãe esteve muito mais à vontade com você por perto do que comigo.

— Não fala besteira, Dani! — Ele sorri, sabendo que é o xodó da mamãe. — Eu gostei de ter conseguido ajudar e estar com ela de novo.

— Ela também ado... — ele para de falar assim que vê nossos pais vindo até onde estamos. Levantamo-nos juntos, apreensivos, esperançosos, e o sorriso de mamãe é reconfortante.

— O que o médico disse? — indago assim que eles se aproximam.

— O medicamento fez o efeito esperado para esse primeiro ciclo. Agora é esperar o tempo de descanso para começar de novo. — Mamãe sorri.

— E a radioterapia? — Dani questiona, e ela dá de ombros.

— O doutor ainda não prescreveu — papai responde. — Vamos torcer para que a quimio resolva sem precisar da rádio! — Ele sorri e abraça mamãe pelos ombros. — Em breve você terá sua vida agitada de volta.

Ela suspira cansada.

— Bom, vamos todos almoçar para comemorar o fim desse primeiro degrau rumo à vitória! — tento animar a todos, mas só meu pai sorri. — Ah, gente, vamos lá! Mamãe?

Ela assente e olha para Daniel.

— Você não está cansada? — meu irmão pergunta a ela.

— Não, podemos ir!

Bato palmas e a beijo na testa.

Eu entendo o desânimo dela, seria cruel não entender, pois, ainda que todos estejamos empenhados em seu tratamento, é ela quem passa por todos os efeitos colaterais dos medicamentos e pela doença. Mamãe nunca foi uma mulher parada ou passiva, e depender de outras pessoas deve estar sendo uma verdadeira prova para ela.

Foram semanas difíceis, não nego. Fiquei totalmente à disposição de minha mãe, levando-a às consultas e às sessões, fazendo companhia a ela, amparando-a em momentos de indisposição e dor. Godofredo e eu nos mudamos para a mansão da família, e eu mal tive tempo para ir ao Castellani ou mesmo visitar amigos.

Kyra esteve várias vezes conosco, geralmente após o expediente de trabalho, quando não tinha eventos. Daniel e Bianca, sua noiva, também estiveram presentes nos jantares e almoços de finais de semana, e, claro, papai.

Sorrio ao pensar em como é bom ter meu pai por perto. Ele e eu temos muitas afinidades, então, passamos muito tempo conversando, vendo filmes ou ouvindo música. Mamãe prefere ler sozinha em seu quarto à noite, por isso faço esses programas todos com papai.

Assim, o mês de janeiro se foi, e fevereiro entrou com força total com a finalização do primeiro ciclo de quimio da mamãe e o inesperado convite de Daniel para que eu trabalhe na empresa com ele.

— Dani, eu sou designer de interiores. Já trabalhei decorando mansões, apartamentos, iates e até um motor home, mas nunca fiz nada empresarial. — Fiz careta ao lhe responder. — É tudo muito frio.

— É um hotel — ele logo me informou. — Vamos redecorar um enorme hotel.

Meus olhos brilharam.

— Ele vai seguir algum padrão já existente? É um hotel de rede?

Ele nega.

— Não. É uma casa de campo que está virando hotel. — Arregalei os olhos. — O projeto de reforma é da Karamanlis, e a executora da obra é a Novak.

— K-Eng? — inquiri baixinho, e ele suspirou.

— É, mas quem está acompanhando é um dos braços direitos do seu amigo.

Havia muitos dias eu já não pensava no Alexios e nem no beijo do Ano Novo. Não foi o primeiro que trocamos depois de umas bebidas, então eu não devia lhe dar tanta importância, embora reconhecesse que ter me afastado do Castellani ajudou muito a manter distância dele. Alexios e eu já não somos mais amigos!

A perspectiva de trabalhar em um projeto como aquele enquanto eu estivesse no Brasil era maravilhosa, mesmo com a possibilidade de encontrar o CEO da K-Eng eventualmente.

— Aceito olhar o projeto e conversar sobre o briefing, só isso. — Daniel sorriu satisfeito. — Se eu puder executar meu trabalho sem a interferência de pessoas que nada entendem de decoração, pego para fazer; do contrário, estou fora.

— É assim que se fala! Você vai amar o projeto de reforma, ficar cheia de ideias, e tenho certeza de que os responsáveis pelo empreendimento vão adorar seu trabalho.

O projeto realmente estava incrível, e a ideia de como os donos queriam a decoração dos quartos e áreas comuns me deixou louca para começar o trabalho. Aceitei a proposta, negociei sob a garantia da Schneider e fechei um belo negócio aqui no meu país.

Penso no meu trabalho na Espanha e Diego me vem à cabeça. Entro no carro, no banco do carona, ao lado de Daniel e suspiro.

— O que foi? — meu irmão pergunta, seguindo o carro do papai para fora do estacionamento.

— Estava pensando no Diego.

— Vocês têm se falado?

— Sim, por mensagens. — Balanço a cabeça. — Não sei mais o que fazer para ele entender que não estou tendo nenhum tipo de crise por conta do tratamento da mamãe. Eu fui sincera com ele quando terminei. Não foi certo fazer por vídeo, mas eu não podia mais me sentir enganando-o.

— Eu entendo você, embora não goste nada do motivo que a levou a isso.

— Não tem nada a ver com Alexios, nós nem temos nos visto. Eu pensei em ir até a Espanha para conversar melhor com Diego, mas acabei de pegar esse projeto enorme e não posso me ausentar por agora. Além disso, ele está seguindo o time na Champions...

— Não sei se é boa ideia você ir atrás dele. Acho-o um tanto insistente demais. Concordo que não foi certo terminar por vídeo-ligação, mas depois disso vocês conversaram várias vezes, e o homem não para de insistir.

Eu concordo, mas ao mesmo tempo me sinto culpada.

— Sim. Mesmo assim sinto que lhe devo uma explicação.

Paramos no farol, e ele me olha.

— Você quer retornar para Madri mesmo depois desse término?

Respiro fundo e dou de ombros.

—Sim, trabalho em uma ótima empresa lá, então, por que não voltar?

Meu irmão ri.

— Isso é você quem tem que responder a si mesma. — Ele me puxa para perto e beija o topo da minha cabeça. — A decisão é sua; certa ou errada, cabe a você decidir o que fazer.

— Eu sei.

Sorrio, mesmo com minha cabeça fervendo de perguntas sem respostas, mesmo sem entender o que eu quero e por onde devo ir.

Fui para a Espanha para fugir de um sentimento que parecia não ter fim, mesmo diante da impossibilidade de se tornar algo real, e acabei fazendo amigos e criando laços por lá, mas é aqui que minha família e meus amigos estão. A decisão não é fácil!

Quanto a Alexios... o sentimento não morreu, obviamente, porém não guardo mais nenhuma ilusão com relação a ele. Sempre serei vista como a grande amiga e nada mais.


— Alexios está esquisito essa semana — Kyra comenta.

Eu rio e bebo mais um gole do vinho.

— Quando ele não foi esquisito? — debocho.

— Exatamente, a esquisitice dele não me surpreende, mas essa semana ele está mais esquisito. — Presto atenção ao que Kyra diz, pois minha amiga não costuma exagerar, pelo contrário. — Eu sei que ele está em um ritmo frenético de trabalho, mas, quando falei com ele ontem, achei-o um tanto...

— Esquisito — complemento, e Kyra revira os olhos ante minha brincadeira. — Kyra, seu irmão é a pessoa mais fechada do mundo, você sabe. Mesmo que ele esteja com merda até nos ouvidos, precisa quase se afogar nela para pedir ajuda ou falar com alguém.

Ela assente, e nós duas ficamos mudas. Eu me lembro de quando tomei conhecimento, pela primeira vez, do que eles viviam com o pai. Alexios telefonou para minha casa pedindo para que eu subisse até a cobertura, pois precisava de um favor. Não pensei duas vezes e fui até ele pensando que queria ajuda com algum jogo ou matéria – história nunca foi o seu forte –, mas, quando o vi, mal conseguia me mover.

Ele estava todo machucado nas costas. Os cortes eram verdadeiros talhos, de onde saía muito sangue, e eu tive que respirar fundo várias vezes para não vomitar.

— Samara, preciso que você seja dura agora — ele me disse com a voz calma, com toda sua sabedoria de 15 anos de idade.

— O que você quer que eu faça? — perguntei temerosa, já prevendo que ele me pediria para limpar e fazer curativos.

O problema era que, por conta do tamanho e da profundidade dos cortes, curativos não seriam o bastante. Ele ergueu uma agulha curva com um enorme pedaço de linha preta.

— Costure.

Neguei várias vezes com a cabeça, incapaz de abrir a boca sem derramar todo o lanche que havia acabado de tomar, mas ele me olhava suplicante. Percebi que, mesmo sentindo dor, ele tentava não demonstrar.

— Você precisa de um médico!

— Não. — Ele ergueu a agulha novamente. — Preciso de você.

Peguei o metal curvado. Minhas mãos tremiam, o queixo também. Era possível ouvir o som dos meus dentes batendo forte um contra o outro. Não entendia o que estava acontecendo, o motivo pelo qual ele estava daquele jeito e não ia até um hospital.

Eu mal sabia bordar, e somente a possibilidade de machucá-lo ainda mais me apavorava.

— Se fosse em outro local, eu juro que não pediria isso a você, mas eu não consigo suturar as costas sozinho.

Foi então que percebi que não era a primeira vez.

— O que foi isso, Alexios?

Ele sorriu tentando me despistar, mas depois suspirou.

— Caí em cima da mesinha de centro da sala lá de cima. — Apontou para o segundo piso da cobertura. — Ela era toda espelhada, por isso me cortei.

— Caiu?

Ele não respondeu, apenas virou-se de costas para mim e começou a me dizer o que fazer.

— A agulha já está desinfetada, e eu tomei banho, mas ainda assim preciso que você passe esse antisséptico, limpe bem o sangue e comece a costurar. — Ouvi o som de sua risada. — Pense que sou um dos seus tecidos finos e delicados de almofada e borde em mim.

Bufei com a comparação.

— Não achei graça nenhuma!

Foi um longo processo, mas cumpri com o que ele pediu e somente anos depois é que entendi tudo aquilo, inclusive a história esfarrapada do “caí por cima da mesa”.

Fiz muitos favores como esse para ele por muito tempo ainda. Aprendi a costurar sua pele, a recolocar seus ossos no lugar quando se deslocavam e até mesmo a imobilizar alguma parte de seu corpo. Porém, mesmo estando ao lado dele em todos esses momentos dolorosos, Alexios só me contou que era o pai que o espancava depois que saiu de casa com Kyra.

Eu sofri tanto por pensar nas atrocidades que eles viveram, porque minha amiga até reclama do irmão, mas são farinha do mesmo saco. Não faço ideia de como Nikkós a afetou, mas é certo que ela não foi poupada da loucura do pai.

— Ei, Samara no mundo da lua! — Kyra me cutuca. — Está pensando em quê? Perguntei por Diego, e você ainda nem me respondeu o que ficou decidido.

— Nada de diferente. — Ela cruza os braços. — Temos conversado bastante por mensagens, mas ele parece não aceitar que acabou. Diz que estou em crise e que, assim que puder, virá ao Brasil.

— Para quê?

— Conversar pessoalmente. — Fecho os olhos. — Gostaria tanto que tudo fosse diferente, sabe? Que eu pudesse gostar dele da forma como deveria.

— E por que não pode? — Olho para Kyra, e ela entende a resposta. — Uma merda isso! Então você não vai voltar para Madri mais?

Penso em Diego e em todo esse tempo em que estivemos juntos, recordo-me de como me senti feliz ao lado dele e do escritório maravilhoso de design em que trabalhei durante esses anos. Ele tem alegado isso, que estou confusa por estar longe, com medo de mudar de vez para Madri e ficar longe da minha família. Não é isso! Ter voltado ao Brasil mexeu, sim, com meus sentimentos, principalmente quebrou a ilusão de que eu tinha esquecido Alexios. Por isso ainda penso em voltar a morar na Espanha, mas não quero mais me enganar e enganar outra pessoa no percurso.

— Eu gostaria de ter essa resposta, Kyra — volto a falar. — Gostaria de saber o que é melhor para mim, mas não sei. Aqui há tantos motivos para eu ficar, como também para que eu vá, mas ainda estou indecisa.

— Eu sei. — Ela sorri compreensiva.

A campainha do apartamento dela soa alto. Estranho, porque ela não me disse que teríamos companhia, mas, por sua reação, Kyra já estava à espera de alguém.

— Talvez o motivo de sua indecisão tenha chegado agora.

Arregalo os olhos com a possibilidade de ser Alexios.

— Kyra, o que você... — não termino de formular a frase, pois minha amiga abre a porta, e o vejo olhá-la com um sorriso cansado, entrar no apartamento e parar surpreso ao me ver.

— Oi — cumprimento-o.

— Oi. — Ele desvia o olhar para Kyra.

— Vou ver se o jantar já... — ela para de falar e ergue a mão dele. — O que houve?

Os olhos de Alexios não deixam os meus, então ele abre um sorriso lindo – esse é o bendito que ele usa quando quer disfarçar alguma situação séria ou desviar o assunto – e dá de ombros.

— Um pequeno acidente besta, nada importante. — Kyra parece não engolir a desculpa esfarrapada também, mas não insiste, pois conhece o irmão muito bem. — Tem cerveja?

— Claro que tem! Vou pegar umas para você. — Ela aponta para mim. — Faça companhia para a Samara.

Nós dois a olhamos, entendendo que o jantar foi uma armadilha dela para que voltemos a nos falar. Sinceramente não entendo minha amiga. Ela sabe o que sinto e o que Alexios não sente, mas ainda assim insiste em nos manter unidos, mesmo dizendo sempre que seu irmão não é uma boa opção para mim.

Como se um dia ele considerasse me ver como mulher!

— Como estão as coisas com sua mãe? — Alexios puxa assunto de repente e se senta em uma poltrona individual bem longe de onde estou.

— O primeiro ciclo de quimioterapia acabou, e ela está bem — respondo seca. — E você, como está?

Ele abre o maldito sorriso fingido.

— Ótimo! Cheio de trabalho, sem tempo para fazer bobagens...

— Não parece. — Aponto para sua mão. — Achei que seus momentos de fúria já tivessem passado desde que começou a praticar esportes. — Ele fica sério. — Por falar nisso, vi o Chicão lá no prédio esses dias. Ele está hospedado contigo?

— Está, como sempre. — Alexios olha para trás, na direção da cozinha de Kyra e respira fundo. — Eu queria pedir desculpas novamente por...

— Não precisa — interrompo-o antes que eu seja obrigada a socar sua cara.

— Preciso — ele insiste. — Kyra me contou sobre seu relacionamento — meu coração dispara ao ouvi-lo falar sobre isso como se não tivesse importância alguma. — Espero que ele seja o homem que você merece e que sejam muito felizes como você sempre sonhou.

Engulo em seco, abro um sorriso – fervendo de raiva da Kyra – e digo a primeira coisa que me vem à cabeça:

— Ele é! — minto, e Alexios fica sério, seus olhos claros fixos nos meus. — Um verdadeiro príncipe como sempre sonhei.

— Quem bom. — Ele se levanta. — Vou até a cozinha pegar a cerveja, estou morrendo de sede.

Acompanho-o com os olhos e, quando desaparece da minha vista, gemo e me dou um tapa na cabeça. Que ridícula! Por que, mesmo sendo tão madura em vários aspectos, sou uma imbecil quando estou perto dele? Parece até que estou de volta ao aniversário de 18 anos da Kyra, quando saímos nós três para comemorar, e eu fiquei com um babaca total só porque Alexios pegou uma das garçonetes da pizzaria.

Não sou mais essa garota!

Alexios e Kyra voltam para a sala, ele, bebendo uma longneck, e minha amiga, com uma travessa na mão.

— Escondidinho de camarão, como vocês dois sempre gostaram — ela anuncia.

— O cheiro está incrível! — elogio, levantando-me do sofá e indo ajudá-la. — Há muitos anos não sinto algo tão delicioso!

— Eu também não — Alexios fala perto de mim.

Os pelos do meu corpo se arrepiam todos por causa do som de sua voz e seu hálito no meu pescoço. Viro-me para ele, sem entender o motivo pelo qual está tão próximo de mim e me surpreendo por um instante ao decifrar seu olhar: fome, e não é de comida.

Balanço a cabeça, achando impossível que seu olhar esfomeado seja para mim e me afasto dele, indo posicionar os pratos como Kyra me ensinou a fazer tempos atrás.

— Andou treinando? — minha amiga brinca ao me ver executar com perfeição seu ensinamento.

— Sim, fiz alguns jantares em Madri — conto orgulhosa. — Recebi poucas pessoas, a maioria amigos, e fiz questão de colocar em prática tudo o que você me ensinou...

— E que você achava que era bobagem! — Ela ri e olha para Alexios. — Uma arquiteta de interiores deve, no mínimo, saber montar uma mesa, não acha?

Alexios franze a testa, pensa um momento e depois concorda.

— Pregar pregos na parede, fazer arranjos florais, pintar um quadro... — Kyra fica séria, e ele começa a rir. — Há profissionais para isso, Kyra, Samara é responsável pelos layouts de móveis e projetos de planejados, não precisa saber fazer tudo!

Kyra parece estupefata, e, confesso, eu também estou, porque geralmente os dois se uniam para brincar ou me provocar, e agora ele acabou de me defender!

Alexios parece ficar sem jeito com o silêncio e dá uma enorme golada, até pôr fim ao conteúdo da garrafinha de cerveja, em seguida volta para a cozinha.

— O que está rolando? — Kyra me pressiona.

— Não sei do que...

— Samara, sem essa de “não sei do que você está falando”. Não nasci ontem, percebi que vocês estão estremecidos. Achei que tinha sido por conta dos anos longe, mas achei que isso ia passar depois do baile, mas então Alexios aparece aqui mais perdido do que cachorro que caiu da mudança e se recusa a falar o que aprontou contigo na virada do ano! — Aproxima-se. — Conte-me já!

Nem em sonho!

— Não há nada para contar.

Alexios retorna, e sua irmã avança para ele igual a um anjo vingador.

— O que está rolando entre vocês dois? — Ela põe a mão na cintura. — Sempre fomos amigos! Éramos um trio, estivemos juntos nos piores momentos de nossa infância e adolescência, parem já com qualquer merda que estiverem fazendo!

— Quanto você bebeu? — Alexios debocha. — Nada está acontecendo, não é?

 

CONTINUA

Kyra sempre foi exuberante, beleza herdada de sua mãe, devo acrescentar, pois Sabrina ainda continua tão linda quanto era na época em que era casada com Nikkós. Contudo, minha irmã ainda recebeu alguns belos traços dos Karamanlis, principalmente da famosa giagiá15, que todos sempre fazem questão de dizer que era linda e tinha a mesma coloração de olhos da minha irmã (e minha também, só que os Karamanlis nunca engoliram bem que eu realmente tenha o sangue nobre deles).

No papel, Kyra e eu somos filhos dos mesmos pais, pois Sabrina me adotou legalmente quando eu ainda era um garotinho. Ela, por poucos meses, possuía a diferença de idade obrigatória pela lei entre nós (16 anos) e, por isso, conseguiu, aos 18, adotar-me aos dois anos. Logo em seguida nasceu a Kyra, e a família ficou completa.

Na verdade, eu nunca soube da minha mãe. Tentei descobrir algo durante a adolescência, principalmente por ser esse um dos pontos que meu sádico pai adorava usar contra mim. Inventar uma história nova a cada dia sobre meu nascimento, minha origem, era sua principal diversão e tortura psicológica.

Nunca entendi nada sobre mim, a única certeza que tenho é de que, infelizmente, sou mesmo filho dele, algo que comprovei através de exame de DNA, cujo resultado positivo nunca divulguei, porque eu tinha esperança de não ter o sangue daquele monstro.

Volto a prestar atenção na foto, dessa vez em meu próprio rosto cheio de enfado por estar naquele baile com elas. Sorrio. Eu fazia esse tipo, mas a verdade é que adorava cada momento que passávamos juntos, pois me sentia em família de verdade.

Ponho a moldura no lugar e respiro fundo, controlando meu corpo, colocando juízo na minha cabeça, ressaltando tudo o que tem de importante na amizade entre mim e Samara e concluindo que um envolvimento fora desses termos entre nós só serviria para destruir anos e anos de companheirismo.

Samara merece ser feliz com alguém que possa ser o homem com que ela sempre sonhou, o príncipe encantado dos seus sonhos de menina, alguém que saiba quem é, que tenha valor e que possa demonstrar todo o amor que sente por ela e reconheça o privilégio que é ser amado.

Esse homem não sou eu!

 

Depois do banho na casa de Kyra, fui direto para a empresa. É providencial ter uma mochila de roupas minhas no apartamento dela, mas confesso que não vou muito de jeans e camisa de malha para a Karamanlis.

Passei no Castellani apenas para pegar minha moto, nem me atrevi a subir até meu apartamento, sendo covarde mais uma vez. A questão é que eu não saberia nem mesmo o que dizer a Samara caso nos encontrássemos de novo.

Estava saindo do estacionamento quando meu celular tocou, mas, como já estava sobre a moto – e não queria demorar muito na garagem, porque o carro de Samara ainda estava na vaga dela –, deixei para conferir a ligação quando estivesse no prédio, o que faço agora, retornando a ligação.

— Oi, Chicão! — cumprimento-o assim que atende.

— Alex, seu grande safado, feliz Ano Novo! — o homem mais velho, que se tornou um grande amigo e a quem eu considero como um pai – no sentido do que realmente um pai deveria ser – por pouco não me ensurdece ao telefone. — Cheguei ao inferno hoje, queria saber se poderia passar uns dias lá naquele seu apartamento cinco estrelas.

Abro um sorriso de felicidade ao pensar que ele está de volta a São Paulo. Francisco Salatiel Figueiroa é o nome dessa figura de quase 60 anos, paulistano – mas que odeia sua cidade natal – e viciado em esportes radicais assim como eu.

Nós nos conhecemos quando eu ainda estava no colégio, devia ter uns 15 anos e fui participar de um racha de moto pela cidade. Ele apareceu por lá, chamou-me em um canto e me convidou a fazer cross ao invés de colocar minha vida e a de outras pessoas em risco correndo pelas ruas.

Comecei a ir para o os circuitos de motocross, tomei muito tombo, enlameei-me até o pescoço e me senti mais vivo do que quando me arriscava nos rachas. Nós nos tornamos amigos mesmo com nossa gritante diferença de idade, pois ele dizia que eu lembrava o moleque atentado que ele mesmo tinha sido um dia, e comecei a acompanhá-lo em suas atividades.

Foi por causa dele que deixei de buscar alívio e fuga nas drogas, pois conseguiu me mostrar que, se eu quisesse me livrar de Nikkós, teria que ser melhor que ele. Não foi um processo fácil, admito, levei anos para entender e ouvir seus conselhos, mas nem por isso ele desistiu de mim ou se afastou.

Francisco começou a me mostrar que eu poderia extravasar toda minha angústia, solidão, medo e revolta em esportes como trilhas de moto, bike, escaladas, voos livres, paraquedismo e, quando tirei minha carteira de motorista, apresentou-me a alguns amigos dos circuitos de motovelocidade.

Os esportes aliviavam meu corpo da tensão vivida em casa, mas minha cabeça e minha alma continuavam pesadas, então, um dia, ele me viu desenhar e descobriu como eu poderia tratar os demônios dentro de mim.

Devo muito a ele, não só pelo equilíbrio que consegui hoje em minha vida, como também por permanecer vivo e são. Samara e ele foram os únicos a permanecerem ao meu lado nos piores momentos da minha vida, ela me auxiliando principalmente com Kyra, e ele entendendo meus problemas e me ajudando a achar soluções.

— Meu apartamento é seu! Te dei a chave, afinal.

— Eu sei, mas é sempre bom dar uma conferida, vai que você resolveu sossegar seu pau numa boceta só.

Gargalho com seu jeito rude e direto.

— Não, meu pau ainda gosta de explorar por aí. — Ele me chama de “vadio” e ri. — Estou na Karamanlis agora e...

— Ah, me diz que estou sonhado... — estranho o que ele fala, escuto vozes ao fundo e percebo que não falou comigo. Espero que ele retome a ligação, entro no elevador, cumprimento as pessoas com a cabeça e sorrio para uma mulher gostosa que nunca vi aqui no prédio. — Seu trapaceiro de uma figa! Samara está de volta e, caramba, mais linda do que nunca.

Só de ouvir o nome dela, sinto meu corpo reagir como se uma descarga elétrica tivesse me atingido.

— Encontrou-se com ela agora?

— Sim, seu embuste! Quantos anos ela esteve fora? Caralho, você já a viu?

Franzo a testa, desço no meu andar, confuso com a perplexidade dele apenas por ter visto a Samara no prédio, afinal, ele sabe muito bem que ela tem um apartamento lá.

— Já, desde que chegou — respondo distraído, acenando para os funcionários da K-Eng. — Por quê?

— Alexios, eu sempre me perguntei se você era cego ou apenas muito burro. — Ouço o barulho de uma porta se fechando. — Nunca entendi por que vocês dois nunca tiveram nada um com o outro.

Paro no meio do corredor, atraindo os olhares de pelo menos dois engenheiros que passam por mim. Que merda é essa?!

— Ela é minha amiga — digo o óbvio.

— Ela é incrível e sua amiga, isso já não é meio caminho para um relacionamento de sucesso?

Um alerta dispara em meu cérebro. Chicão nunca foi um homem ligado a relacionamentos permanentes, tanto que é solteiro até hoje, então não entendo o motivo pelo qual está falando essas coisas sobre mim e Samara.

— Chicão, sou eu! Eu não tenho relacionamentos, eu fodo por aí, só isso. E, definitivamente, Samara não é uma mulher apenas para se foder.

Ele emite um grunhido, e, ao fundo, escuto o bipe da minha cafeteira sendo ligada.

— Nisso concordamos. Mas ela é incrível, sempre foi, se eu tivesse a sua idade e a sua aparência, não perderia a oportunidade de tê-la comigo.

Mas o que... Arregalo os olhos, e meu coração dispara.

— Você está morrendo? — inquiro-lhe como se fosse a única opção válida para essa mudança de comportamento.

Chicão gargalha.

— Não, mas estou ficando velho e sozinho. — Bufa. — Mas isso não é assunto para discutirmos ao telefone, já que você está na empresa.

— Chicão, está tudo bem?

— Vai trabalhar, embuste, depois conversamos. Viajei a noite toda, quero tomar um banho, comer algo e dormir um pouco. Obrigado pelo abrigo.

Ele ainda não me convenceu, algo está errado.

— A casa é sua! — declaro, e ele encerra a ligação.


— Quer mais um travesseiro? — pergunto à minha mãe assim que ela se deita na cama.

— Não, filha, estou bem. — Sorri, mas o cansaço não permite que o faça por muito tempo. — É sempre assim no dia da medicação, mas passa.

Balanço a cabeça concordando, enternecida por ela estar tentando me consolar, quando é ela quem está passando por isso tudo. Sempre a admirei por sua força, seu destemor e a capacidade de realizar qualquer coisa que se propunha a fazer.

Mamãe não tem um gênio fácil de lidar, mas nunca negou amor e afeto aos seus filhos, mesmo sendo brava e exigente como era. Dani e eu tínhamos muito mais medo dela do que do papai, que sempre foi mais maleável, mas moderno e liberal.

O relacionamento dos meus pais, enquanto casal, não era um mar de rosas, mas eles eram amigos, companheiros. Ele sempre a apoiou em tudo, e ela acima de tudo o admirava. Não tinham grandes arroubos de paixão, pelo menos não na nossa frente, mas se respeitavam, conversam, riam e, principalmente, nos amavam muito. Dani, como filho e mais velho, sempre foi agarrado a minha mãe mais do que a nosso pai. Os dois se dão bem, são muito parecidos em alguns aspectos, mas quem sempre teve mais afinidade com papai fui eu.

Acho que nossas almas são parecidas. Ambos somos apaixonados pelas formas, perfeccionistas, românticos e, arrisco dizer, sonhadores. Eu sou assim, gostaria de ser prática como mamãe, mas há muito que parei de tentar ser quem não sou. Demorei, mas consegui aceitar meu jeito e me respeitar acima de tudo.

É dolorido tentar ser quem não é para se encaixar ou seguir uma tendência. Eu sou forte, mesmo sendo doce; sou feminista, mesmo sendo feminina e vaidosa; sou empoderada, mesmo sonhando em casar e ter uma família.

Eu me importo com a opinião alheia, sim, porque ninguém é uma ilha e não teria sentido na vida se todos fôssemos autossuficientes e não dependêssemos de ninguém. Não tenho preconceitos, sou feliz com a felicidade dos outros e não me importo que a recíproca não seja verdadeira. Cada um escolhe o caminho que quer percorrer. Eu escolhi ser assim, exatamente como sou.

Chegar até essa conclusão não foi fácil, principalmente quando se percebe que o homem por quem você é apaixonada prefere as mulheres que têm atitude, que são furacão e não calmaria. Eu quis fazer tipo e percebi que estava indo na contramão de tudo o que uma “mulher de atitude” prega, que estava tentando ser outra pessoa para agradar a um homem.

Foi aí que aquela máxima tão clichê, mas que é tão difícil de ser vivida, fez sentido para mim: quem me amar, precisa me conhecer e me aceitar como sou.

Demorei a perceber a importância disso, precisei praticamente ter isso esfregado na cara. Então arrumei minhas malas, disse ao meu pai que não iria para Barcelona, mas sim para Madri, e segui com minha vida.

Alexios foi o estopim que eu precisava para explodir naquela época, depois de ter aparecido no meu apartamento bêbado a ponto de não se aguentar de pé. Ele pediu para dormir no meu sofá, tivemos uma dura discussão quando tentei lhe passar sermão e, no meio da noite, acordei com ele na minha cama.

Fiquei sem reação quando senti sua mão na minha cintura, alisando minha pele por cima do pijama de seda. Fechei os olhos, excitada e ansiosa, e o deixei prosseguir com a exploração. Não o impedi quando me virou, nem quando me beijou e subiu em cima de mim. Tinha esperado por aquilo a vida toda, e estava acontecendo.

Ledo engano!

Ele ficou imóvel, esmagando-me com seu peso, então percebi que havia dormido. Joguei-o para o lado e passei a noite em claro, sem entender nada, esperando que ele acordasse e explicasse.

Acabei dormindo e acordando sozinha na cama. Ele tinha ido embora, e não conversamos, mas esperei que a conversa viesse mais tarde. Não veio. Ele simplesmente ignorou o beijo, as carícias, como se não fossem nada, como se eu não fosse nada.

Fiquei irritada, subi para perguntar diretamente a ele o motivo pelo qual tinha me beijado, mas, quando cheguei ao seu apartamento, estava rolando uma de suas festinhas regada a bebidas e sexo, e o filho da mãe estava sentado no sofá com uma mulher de cada lado em um beijo triplo.

Ele nem me viu, fechei a porta, desci e decidi parar de protelar minhas decisões esperando por algo que nunca iria acontecer. Um relacionamento com Alexios era uma ilusão infantil, mas eu já não era mais criança.

Viajei dois dias depois e pensei que, quando voltasse, toda essa ilusão teria se desfeito.

— Então o nome dele é Diego — mamãe fala, e eu quase pulo de susto, deixando as lembranças para tentar entender do que ela está falando. — Diego Vergara!

Sento-me na beirada da cama, curiosa sobre como ela conseguiu essa informação.

— O nome dele é mais comprido do que isso, mas, sim, Diego Vergara.

Ela sorri cheia de sabedoria.

— E você deve estar aí querendo saber como eu sei o nome dele. — Concordo. — Seu irmão me contou.

Daniel e sua boca! Meu irmão sempre foi o maior X9 do mundo, não é de se espantar que tenha contado sobre o Diego para minha mãe.

— Há quanto tempo estão juntos?

Não sei o que dizer a ela e agradeço quando uma enfermeira entra no quarto, dando-me a desculpa perfeita para escapulir de sua curiosidade. O fato é que tudo mudou depois da noite do baile dos Villazzas.

Não sei o que levou Alexios a me beijar daquela forma no elevador, eu estava bem bêbada dessa vez, mas ele não tanto, além disso, eu senti a energia entre nós, senti o tesão que ele exalava, que trazia na saliva e em cada toque no meu corpo. Alexios não escondeu em nenhum momento o quanto estava excitado, esfregou sua ereção contra mim, esmagou-me contra o espelho do elevador parecendo que queria me comer ali mesmo.

Depois, do nada, mudou. Pediu desculpas! Desculpas por me beijar! Só faltou dizer que estava com tesão, e eu era a única mulher próxima dele, mas que nem assim servia.

Para piorar, quando entrei no apartamento e peguei o celular, vi uma mensagem de Diego dizendo o quanto sentia minha falta e como ele gostaria de poder estar aqui comigo. Foi a gota d’água! Senti-me um lixo, uma pessoa má que engana e trai e percebi que tê-lo deixado na Espanha sem uma resposta definitiva foi uma atitude egoísta.

Chorando, sem pensar direito, fiz uma chamada de vídeo para ele e, quando atendeu, disparei:

— Diego, eu sou uma pessoa horrível, mas não posso fazer isso com você! — Soluçava tanto que ele se assustou e me pediu para falar devagar. Todavia, eu não conseguia. — Você é um homem incrível, um amigo maravilhoso, e eu adorei cada momento que passamos juntos...

— Calmarse, Samara! Yo no comprendo!

— Você merece mais, merece alguém melhor, e eu não posso...

— Usted está me dejando preocupado, cariño.

— Eu não queria fazer isso assim, por telefone. — Ele ficou sério, atento, prevendo o que eu lhe diria. — Mas não é justo que você fique aguardando minha volta para que eu diga isso. — Respirei fundo, armando-me de coragem. — Eu não posso aceitar seu pedido, Diego. Eu não estou pronta para amar você como deveria, como você merece.

— Samara, sucedio algo com su mamá?

Neguei.

— Não. Sou eu, não mereço você. Você tem razão ao dizer que meu coração nunca pôde estar aí contigo.

— Samara, despues hablamos, está muy nervosa. — Tentei dizer a ele que não, mas não me deu oportunidade: — Tengo que ir.

— Diego, não...

Ele encerrou a chamada. Tentei retornar outras vezes, porém a ligação não completava. Deixei mensagens, mas que, até o momento, ele não visualizou. Volto a olhar para mamãe, que boceja, visivelmente cansada, e fecha os olhos, recostada nos travesseiros, enquanto a enfermeira mede sua pressão. Eu voltei ao Brasil apenas por causa dela, para estar ao seu lado nesses momentos tão difíceis, não por qualquer outro motivo. Sinceramente, não esperava essa pressão acerca de Alexios e Diego. Minha família nunca foi assim, muito menos mamãe, que sempre pregou que uma mulher não precisa de marido e filhos para se sentir completa e feliz.

Mamãe adormece, e eu saio do quarto. Quando estou prestes a descer a escada, escuto uma voz conhecida e muito amada:

— Minha Samara está de volta! — Papai está no corredor de braços abertos. Sorrio e vou até ele para abraçá-lo. — Ah, que saudades!

— Eu também estava, mas cheguei há mais de uma semana, e você nem se dignou a vir me ver.

— Eu sei, mas agora vim para ficar, Herzchen16, e estou feliz por te ter de volta aqui em casa. — Ele beija minha testa. — Não pretende voltar para a Espanha, não é?

Suspiro. Papai foi o primeiro a me incentivar a ir estudar fora, mas o único a ficar chateado quando decidi ficar depois que terminei a especialização. Nunca foi me visitar. Embora falássemos sempre, eu percebia que ele ainda não havia entendido minha necessidade de ficar longe.

— Vou voltar, sim, tenho compromissos de trabalho por lá que...

— Besteira! Aposto que você já tem tudo desenhado e organizado e que, em uma visita ou duas, poria fim a esses “compromissos”.

— Papai, não vim para ficar, e o senhor sabe. Mamãe está na parte mais agressiva do tratamento, e Dani precisou de mim para ajudar a cuidar dela e acompanhá-la...

— Estou aqui também! — ele se ofende por não ter sido incluído. — Ela diz que não precisa de mim, mas estou aqui, sempre estive por ela.

Oh, Deus, que situação!

— Eu sei, pai.

Benjamin Abraão Nogueira Klein Schneider nunca entendeu bem a distância fria de mamãe, por mais que os dois sempre tenham se dado bem. Acho até que foi por esse motivo que se afastaram depois que crescemos e que, após minha ida para a Espanha e a de Dani para seu próprio apartamento, papai decidiu se mudar para a fazenda.

Uma vez, quando eu ainda era uma garotinha, eu o vi bêbado no escritório do antigo apartamento em que morávamos. Ele bebia e parecia mal, chorava e segurava alguns documentos. Quando me viu, tentou sorrir e me chamou para perto de si.

— Tudo bem? — perguntei na inocência dos meus oito anos de idade e limpei suas lágrimas.

— Tudo. — Ele guardou a papelada dentro de uma caixa, onde vislumbrei também algumas fotos, trancou-a com chave e depois respirou fundo. — A vida adulta é complicada, Herzchen. Fazemos escolhas baseadas no que achamos ser melhor e esquecemos o preço que isso cobra, tanto aqui — ele apontou para sua cabeça — quanto aqui. — E, por fim, tocou em seu coração.

Na época não entendi nada, mas esse momento nunca deixou minha memória e, com o tempo, supus que ele estivesse falando de seu relacionamento com mamãe. Os dois se davam bem, mas era ele quem sempre cedia numa discussão ou quem corria atrás quando as coisas ficavam tensas entre eles.

— Vi seu bichinho pré-histórico lá no jardim comendo algumas plantas — ele ri, mudando de assunto. — Você poderia ter adotado um cachorro ou um gato como qualquer outra pessoa, não é?

— Pai, eu o ganhei de presente e gosto dele.

— Mas ele é feroz! — Faz cara de medo. — Já me mordeu algumas vezes.

Gargalho.

— Godofredo é muito territorialista, ele sempre ataca os homens.

— Hum, que interessante! Começo a gostar desse bichinho. — Rio do seu ciúme. — Você não trouxe nenhum espanhol junto contigo, não é?

Suspiro.

— Não. E se o Dani disse algo para o senhor também, ele é...

Benjamin me afasta de seus braços, segurando-me pelos ombros, e me olha surpreso.

Merda!

— Ele não disse nada, não é? — pergunto, achando-me idiota.

Meu pai nega:

— Era só uma pergunta brincalhona e especulativa. — Olha em volta. — O que ele deveria me dizer?

— Eu tinha um namorado em Madri, mas ele ficou por lá.

Ele põe a mão sobre o peito.

— Adorei esse tempo verbal: “eu tinha um namorado”. — Rio. — Agora você terá que me contar sobre esse tal...

— Ele me pediu em casamento — disparo. — Mas eu não pude aceitar.

Ficamos um tempo um olhando para o outro, parados no corredor, sem emitir um som sequer. Papai sempre foi bom ouvinte e dava bons conselhos. Mesmo não sendo muito de falar sobre como se sentia, mesmo reservado em seus sentimentos, até mesmo com seus filhos, ele sabia ouvir sem julgar e só opinava quando achava necessário, o contrário de mamãe.

— Preciso de um café ou de algo mais forte — confessa, e eu rio nervosa. — Vou falar com sua mãe e...

— Ela acabou de dormir — informo-lhe.

— Certo! — Respira fundo. — Se lembra daquele seu namorado da faculdade? — Gemo e assinto. — Você tinha dúvidas quanto ao caráter dele e, mesmo com todos os seus instintos te alertando que algo não estava bem, você aceitou o namoro e...

— Meus instintos estavam certos, ele era um pilantra filho da puta casado!

— E eu quis castrá-lo. — Ele sorri doce, como se isso não fosse nada. — Enfim, o meu conselho para essa questão sempre é: siga seus instintos. Se você não se achava pronta para aceitar o pedido, então fez certo ao recusá-lo.

— Então, você acha que eu fiz certo ao ouvir meu coração?

Ele ri e nega.

— Não, eu disse para ouvir seus instintos, porque seu coração não tem juízo. — Eu rio, achando que ele está fazendo troça, mas, então, ele completa: — Já se apaixonou uma vez por Alexios Karamanlis!

Fico séria, coração disparado, porque, embora ele saiba de todos os meus namorados e experiências, nunca contei a ele sobre Alexios.

Era óbvio para todos, não sei como consegui enganar a mim mesma! Eu ainda amo aquele safado!


— Alexios? — Termino de calçar os tênis antes de me virar para olhar Laura deitada na cama. — Já vai?

Ela se contorce languidamente, seu corpo curvilíneo, dourado de sol se mexendo contra os macios e perfumados lençóis de sua cama. Sorrio, deslizo a mão pela curva de seu lindo rabo e desfiro um tapa nele, fazendo-a rir.

— Preciso ir, tenho reuniões importantes agora de manhã na empresa, e, com a viagem de Theodoros para a Grécia e a demora na volta de Millos, as coisas ficaram acumuladas entre mim e o Kostas.

Ela bufa e se senta.

— Eu sei, ontem eles me passaram as informações sobre a propriedade no Rio de Janeiro, da reunião que tiveram na quinta-feira. — Ela dá de ombros. — Achei que Kika ia aparecer cheia de gás na sexta-feira, mas nem ela e nem seu irmão apareceram na empresa.

— A área é boa mesmo? — pergunto, pois apenas vi algumas imagens do local, e, como Laura é do geoferenciamento, deve ter detalhes bem específicos.

Ela confirma.

— O pessoal do jurídico está alvoroçado, e fiquei sabendo que o Leo, o braço direito da Kika, pediu para o pessoal acelerar com as outras áreas, porque gostaram muito da do Rio. — Laura me abraça pelos ombros e lambe minha orelha. — Falando em acelerar, adorei aquela rapidinha ontem na sala de servidores.

Eu rio, mas balanço a cabeça.

— Você jogou sujo comigo. — Levanto-me da cama, e a safada senta-se na beirada do colchão, os peitos cheios e rosados, as coxas musculosas bem abertas. Porra! — Goza para mim! — ordeno, e ela não se faz de rogada, tocando-se sem nenhum pudor. Vou até uma das luminárias, acendo-a e tenho a visão perfeita de sua boceta totalmente depilada já molhada de tesão.

Foda-se!

Apenas abro o cinto da calça, baixo o fecho e saco meu pau para fora. Pego uma camisinha em cima de seu criado-mudo, e ela ri quando avanço até onde está.

— De costas!

Ela se deita de bruços, e eu me agacho para entrar em uma única investida. Fecho os olhos, concentrando-me nas sensações, excitado com seus gemidos, mas, de repente, sinto um cheiro diferente, os sons mudam, e um rosto doce, sorridente, de lindos olhos castanhos aparece em minha mente.

Xingo alto, querendo expulsar a imagem de Samara, aumento as estocadas até sentir as pernas arderem e gozo sem ao menos saber se minha parceira teve seu prazer.

Caralho!

Afasto-me dela e apoio as mãos contra o aparador, colocando a culpa das súbitas aparições de Samara em minha mente na distância que impus entre nós depois daquele beijo no elevador. Claro que, se ela não tivesse se mudado para a casa da mãe, certamente essa distância não seria tão dura, afinal, eu poderia encontrá-la casualmente pelos corredores do Castellani, mas quem disse que a sorte gosta de mim?

Agora, além de ter visões dela durante minhas trepadas, acordo excitado por algum sonho erótico protagonizado por ela e ainda tenho que aguentar os questionamentos de Kyra e de Chicão sobre o motivo pelo qual eu e Samara não nos falamos mais.

— Tudo bem? — Laura me toca o ombro, fazendo com que eu desperte dos devaneios sobre Samara.

— Tudo. — Retiro a camisinha e a jogo no lixo. — Preciso ir, já está amanhecendo.

— Eu sei.

Ela sorri, doce e compreensiva, e eu respiro fundo, sabendo que estou fazendo merda. Primeiro, por ela ser funcionária da Karamanlis, e segundo, por eu estar fazendo sexo com ela há duas semanas.

Nunca fico tanto tempo com alguém. Para falar a verdade, não me lembro da última vez que mantive uma única parceira, mas, por algum motivo, tenho andado preguiçoso, sem vontade de sair e, como trepei com ela e gostei, achei mais simples continuar.

Despeço-me dela apenas com um aceno de cabeça. Laura me acompanha até a porta de seu apartamento, e eu desço até o térreo, onde minha moto está estacionada em frente à portaria do prédio.

Sigo para o Castellani, mas a cabeça continua a vagar por lembranças dessas longas seis semanas desde o baile dos Villazzas. Tanta coisa aconteceu dentro e fora da Karamanlis, ainda assim senti o tempo passar lentamente.

No trabalho, as coisas começaram a ficar mais intensas, apesar de começo de ano sempre ser mais devagar. Com a conta da Ethernium, tive que mobilizar boa parte dos profissionais para elaborar croquis baseados na planta da siderúrgica e as áreas que foram aparecendo. A volta de Kika à empresa foi providencial, pois ela nos apresentou uma ideia que facilitou muito a vida de todos.

Eu ainda estou surpreso por Theodoros ter colocado a gerente dos hunters e meu irmão trabalhando juntos, pois isso não é algo do perfil do meu irmão mais velho. Foi então que, conversando ao telefone com Millos, descobri que tinha dedo dele nessa história.

A ideia de os dois trabalharem juntos não surgiu na reunião preliminar do projeto, mas foi algo que Theodoros e Millos combinaram assim que souberam que ela iria voltar para a empresa. Agora, conhecendo Millos como conheço, só me pergunto o que, especificamente, meu primo pretendeu ao dar essa sugestão.

Esperei que os dois se matassem desde a primeira semana juntos, ainda mais depois que Theodoros viajou, mas não, aparentemente tudo tem transcorrido bem entre os dois, e a conta da Ethernium parece estar em boas mãos.

Em casa, com a presença de Chico, que ainda está por lá, tenho sempre companhia para jogar bilhar, videogame ou para corridas aos finais de semana. Decidi não participar de nenhum campeonato este ano, nem de moto, nem de carro, pois o trabalho iria consumir muito de minha equipe, e eu não sou o tipo de chefe que deixa seus funcionários se fodendo de trabalhar e sai cedo para treinar ou viajar. Não sou profissional por isso, não consigo me dedicar integralmente às corridas, embora goste muito delas. Vejo-as com um hobby, assim como os esportes e outras atividades que uso para ocupar minha cabeça.

Entro na garagem do prédio, paro a moto e, assim que tiro o capacete, paro em seco ao ver Samara.

— Bom dia — ela me cumprimenta, sem parar para falar comigo e sem olhar para trás.

Confiro as horas no relógio e estranho que ela esteja saindo tão cedo de casa.

— Algum problema? — pergunto preocupado.

Samara para e me olha.

— Não. — Abre o carro, mas me aproximo antes que entre. — O que foi, Alexios? — sua voz é impaciente, e eu percebo que o clima estranho está de volta.

— Como está sua mãe?

Ela franze a testa, ajeita o cabelo e ri amarga.

— Teve que se encontrar casualmente comigo para lembrar que minha mãe está doente? — Balança a cabeça. — Sempre soube que você era desligado com as coisas, Alexios, mas na verdade é um egoísta.

Suas palavras cheias de mágoa me acertam. Aperto a mão no capacete, ciente de que ela tem razão. Eu poderia tê-la procurado, ter ligado, ter sido o amigo que ela merecia, mas, em vez disso, escolhi me afastar e deixá-la sozinha com seus problemas.

Sim, além de covarde, um grande egoísta!

— Você tem razão. — Aceno. — Bom dia.

Dou a volta e sigo em direção ao elevador, achando-me ainda mais desprezível do que sempre me achei.

— Ela está melhorando — a voz de Samara ecoa na garagem, e eu paro. — A quimioterapia está tendo os resultados esperados, e os médicos estão confiantes.

Viro-me para olhá-la, ainda parada do lado de fora do carro, com a porta do motorista aberta.

— Eu sinto muito por não ter ligado antes. — Ela dá de ombros como se não se importasse, mas sei que se importa; eu me importaria. — Você tem razão sobre eu ser um egoísta, você merecia um amigo melhor.

Samara bufa e, sem dizer nada, entra no carro, fecha a porta e liga o motor. Instantes depois, vejo-a passar por mim sem dizer nada e me sinto um bundão. Subo para meu apartamento e, assim que entro, encontro Chicão no meio da sala, usando apenas uma cueca, meditando.

— Que visão do inferno! — sacaneio e sigo para meu quarto.

— Bom dia, embuste! — saúda-me sem ao menos abrir os olhos. — Você deveria tentar, pelo visto nem suas trepadas diárias estão conseguindo mantê-lo relaxado, então, quem sabe a meditação...

— Nem fodendo! — grito para ele e sigo para o banheiro.

Somente quando fecho a porta é que toda a armadura se vai. Fico parado, olhando para o espelho, tentando analisar além da aparência que todos veem. Eu sou um filho da puta egoísta e imbecil, um impostor, uma fraude gigante que perambula pela cidade sem nem mesmo saber quem é.

Anjo dos Karamanlis! Engenheiro filantropo! Chefe preocupado com funcionários... tudo mentira!

Retiro a roupa, jogando-a no cesto de roupa suja antes de me enfiar debaixo da água gelada do chuveiro. Gostaria que, da mesma forma que essa água consegue limpar meu exterior, pudesse fazer o mesmo dentro de mim. Sou tão vazio e frio quanto meu irmão do meio e tão arrogante e egoísta quanto Theodoros. Sou tão louco quanto Nikkós!

Doeu-me ver e ouvir a mágoa que causei em Samara, mas é somente isso que causo nas pessoas. Decepção! Eu não mereço sua amizade e nem estar perto dela. A raiva de mim mesmo explode como há muitos anos não a sinto. Sem pensar, soco o vidro do boxe, que se espatifa e desaba sobre mim.

A porta do banheiro é aberta com um estrondo, e um apavorado Chicão aparece, olhos arregalados, olhando a destruição que causei ao meu banheiro.

— Merda, Alexios! — Ele salta em minha direção sem se preocupar com os cacos de vidro pelo chão e tenta me tirar do boxe. — Porra, sai daí.

Nego, o sangue escorrendo pelo ralo do banheiro, minha mão ardendo, assim como meus braços e os pés. Não me movo, apenas tremo, tentando ainda conter toda a fúria dentro de mim.

— Sai daí, Alex, você está ferido, porra! — Chicão grita.

— Não! — Não me movo. — Eu sou um lixo! Ele nunca deveria ter me pegado no lixo onde me encontrou, deveria ter me deixado morrer, deveria...

— Para com essa merda! — Some para dentro do meu quarto e, quando volta, está calçando meus coturnos. — Você não vai mais fazer isso, ouviu?

Chicão entra no que restou do boxe, desliga a água, joga uma toalha sobre meu corpo e me ergue. Não consigo reagir, a cabeça girando, todos os insultos e histórias sobre mim que ouvi de Nikkós por tantos anos enchendo meus ouvidos, torturando-me mais uma vez, ressaltando o quanto sou desprezível.

— Você não vai fazer isso consigo mesmo de novo, ouviu?! — Chicão esbraveja, fazendo pressão com a toalha de rosto na minha mão. — Ele te machucou, você se machucou, mas essa merda já acabou faz tempo. Ele não pode mais, Alexios, nem te tocar e nem contar mentiras a você. Chega!

Nego.

— Eu sinto tanta raiva... — Meus dentes batem um no outro, e eu os travo. Minha vontade é de gritar, socar, foder com tudo.

— Eu sei, já passamos por isso antes, e eu... — ele baixa o tom de voz e expira — achei que já tinha superado.

— Como? — questiono-lhe. — Como posso esquecer, se continuo a ser a mesma pessoa desprezível de sempre? Não são as marcas que ele causou no meu corpo que me causam essa raiva, sou eu!

— O que aconteceu?

Nego, trêmulo e me sento na cama. Gemo ao sentir as dores dos cortes, percebendo que a adrenalina passou mais rápido do que antigamente. Eu aprendi a controlar a dor usando a raiva. Durante anos de espancamento, percebi que, quanto mais raiva eu sentisse, menos dor ele me causava. Mais tarde, quando sentia raiva por qualquer motivo, eu mesmo me machucava, levava-me ao limite do meu corpo e quase me destruía.

Era um círculo vicioso que eu achei que já havia passado, mas, aparentemente, não.

— Encontrei Samara na garagem, provavelmente indo se encontrar com sua mãe e levá-la ao hospital — confesso, cansado demais para guardar qualquer coisa. — Eu não a via há semanas, desde o baile dos Villazzas no Ano Novo.

— Eu também só a vi uma vez aqui no prédio...

— Eu não liguei, não procurei por ela, não justifiquei meu ato e nem meu sumiço — interrompo-o e o encaro. — Ela está magoada comigo.

Chicão confere o sangramento da mão, tirando a toalha e depois se senta ao meu lado na cama.

— Por que você fez isso? Sumiu e não a procurou?

Respiro fundo; comecei o assunto, agora preciso terminá-lo.

— Preferi me afastar. — Olho para baixo, envergonhado. — Eu quase trepei com ela no elevador aqui do prédio. — Fecho os olhos. — Eu a quis como mulher, não consegui reprimir a vontade, como sempre fiz, e agi feito um idiota excitado.

— Ela o repeliu?

— O quê?

— Samara o repeliu? Te xingou? Bateu em você? Disse que você abusou dela? Mandou que ficasse longe?

Lembro-me daquela noite, a forma como reagiu ao beijo, o jeito que gemia e parecia tão excitada quanto eu.

— Ela estava bêbada, me aproveitei dela, sou um canalha.

— Nisso concordamos, mas o que ela pensa sobre o acontecido?

Balanço os ombros.

— Não sei, não falo com ela desde então. — Lembro-me da conversa com Kyra no dia seguinte ao baile e praguejo. — Ela está noiva.

— Samara? — Assinto. — Que merda!

— É, o beijo foi uma merda enorme, e eu não sei como...

— Não, seu idiota! — Ele estapeia minha cabeça. — Que merda que Samara esteja noiva, ela é a mulher perfeita para você.

Olho-o como se ele estivesse louco.

— Claro que não, ela merece alguém muito melhor do que eu! Samara nunca cogitou qualquer tipo de relacionamento comigo a não ser o de amizade.

Chicão bufa.

— Você não é idiota, Alexios Karamanlis, é um burro!

Ele joga a toalha, manchada de sangue, no chão do quarto e sai puto comigo ou com alguma coisa que eu disse. Ele não entende, óbvio! Samara é... especial, e alguém especial como ela nunca se relacionaria com alguém tão ordinário como eu.

Olho para minha mão e rio ao pensar na bagunça que sou.

Obviamente ela nunca se relacionaria e nem deveria se relacionar com alguém tão fodido como eu.

 

— O que houve com sua mão? — Laura me pergunta de repente, assustando-me, pois eu nem mesmo sabia que estava por perto. Encaro-a sem entender como e o que está fazendo aqui na K-Eng. Seu olhar é de assombro aos machucados em minha mão, além de questionadores, o que me irrita um pouco.

— Um pequeno acidente — respondo seco. — O que você está fazendo aqui?

Levanto-me da mesa, agradecendo por não ter mais ninguém por aqui a essa hora e fico de frente para ela. Laura abre um sorriso sem graça, mas logo se pendura em meu pescoço.

— Tem mais de uma semana que não te vejo, você não liga e nem aparece lá no meu apartamento. Então, se Maomé não vai até a montanha...

Reviro os olhos e retiro as suas mãos de mim.

— Laura, você trabalha na Karamanlis, então já deve ter percebido a movimentação infernal na empresa por conta da Ethernium. — Ela concorda. — Além disso, não entendi o motivo pelo qual eu deveria dar satisfação ou ter regularidade em nossos encontros.

A moça arregala os olhos por causa de minha sinceridade.

— Eu pensei que... — ela suspira — estávamos tendo essa regularidade, afinal, ficamos juntos por umas semanas e...

— Ficamos porque estava gostoso — não tenho medo de ser direto. — Mas não significa que temos qualquer tipo de compromisso. Não sou desses, Laura, e foi a primeira coisa que te disse quando trepamos a primeira vez.

Ela fica um tempo muda, olhando para o nada, então, de repente, abre um sorriso e desliza a mão pelo meu peito.

— Disse. Como disse também que queria trepar mais, lembra? Eu ainda quero mais, Alex — sua voz é ronronante. — Sempre imaginei como seria fazer sexo aqui na sua sala.

Respiro fundo, levemente excitado com o oferecimento, contudo, sem nenhuma vontade de fodê-la aqui – ou em qualquer outro lugar – depois desses questionamentos.

— Infelizmente, eu estou muito ocupado agora, motivo pelo qual ainda estou na empresa quando todos já foram. — Ela faz um biquinho, mas me afasto e volto a me sentar à mesa. — Acho melhor você ir.

Ela bufa.

— Sério isso?

Volto a olhá-la, sem esconder meu desagrado e impaciência, e ela se sobressalta.

— Sério.

Laura fica um tempo me encarando, depois vira as costas e sai da sala, andando firme e visivelmente puta. Balanço a cabeça, repreendendo a mim mesmo por ter deixado as coisas chegarem a esse ponto. Foi muito bom trepar com ela, aposto que a recíproca é verdadeira, porém não imaginei que ela criaria tantas expectativas e se sentisse no direito de vir me cobrar algo.

Erro de cálculo!, penso, sem deixar de pontuar que isso, para um engenheiro, é algo muito perigoso, que pode pôr tudo a perder.

Pego a pequena bola de borracha que tenho usado para exercitar minha mão e reparo nos machucados nela. Os cortes já estão todos secos, e os pontos que tomei em um deles já foram retirados.

Socar o vidro do boxe foi um momento de loucura, como tantos outros por que já passei. Fazia muito tempo que eu não perdia a cabeça daquele jeito, e sei que o que Samara me disse foi o gatilho responsável por isso. Não tiro, em hipótese alguma, a razão dela para me dizer aquelas palavras, mas elas acertaram o alvo na mosca.

Fecho os olhos e tensiono o pescoço, tentando relaxar um pouco para voltar a trabalhar e não enveredar pelos acontecimentos dessa semana, mas ainda não tenho esse controle total da mente e dos meus pensamentos.

A frustração me bate ao me lembrar do almoço com Konstantinos, meu irmão advogado. Achei que, pela primeira vez, ele iria se dispor a me ajudar com as respostas que procuro por anos, mas, ao que parece, ser egoísta e frio é algo familiar.

Mexo na minha agenda de anotações e encontro lá o endereço do sobrado de propriedade de Kostas. A voz da mulher misteriosa que encontrei na porta do Castellani ainda ressoa nítida em meus ouvidos:

“Eu conheci sua mãe biológica. Se quiser respostas, procure pela casa de Madame Linete.”

Foi o encontro mais estranho da minha vida. Ela estava parada lá, olhando o prédio e, quando me viu, logo perguntou se eu era um Karamanlis. Estranhei a pergunta, tentando reconhecer a senhora frágil e de cabelos brancos, mas não precisei responder, pois ela logo disse essas duas frases e se afastou sem me dar a chance de perguntar qualquer coisa mais.

Claro que eu já havia cogitado a ideia de que tinha sido gerado por alguma prostituta daquela maldita casa, afinal, era o local que meu pai mais utilizava. Não deveria ter começado do nada sua amizade com a cafetina asquerosa, mas nunca achei nada que me ligasse àquele local até esse encontro.

Talvez fosse uma pista falsa apenas, mas eu não poderia ignorar mais nada, não enquanto não achasse as respostas que procurei por toda minha adolescência a fim de tirar esse poder das mãos de Nikkós.

Não conhecer meu passado era o suficiente para meu pai ter uma enorme arma psicológica contra mim, coisa que ele utilizou por muitos e muitos anos.

Foi pensando em exterminar todo e qualquer poder que meu pai ainda pudesse ter sobre minha vida que atraí meu irmão para um almoço com a desculpa de falar da conta na qual estávamos trabalhando em conjunto.

Confesso que estranhei quando ele aceitou sem que eu tivesse que recorrer a inúmeros subterfúgios, mas agradeci a boa sorte, e nos encontramos em um restaurante neutro, escolhido a esmo, embora de alta gastronomia.

Achei que seria difícil introduzir o assunto, principalmente porque ele iria saber que pesquisei o maldito imóvel e descobri que ele o comprou há anos, quando foi a leilão. Isso me surpreendeu, claro, saber que ele comprou o sobrado e que ainda o mantém de pé sem nenhuma modificação ou uso. O assunto não surgiu naturalmente. Kostas estava estranho, mesmo falando de negócios, o que me surpreendeu, pois sempre imaginei que ele fosse se aproveitar da distância de Millos e Theo para tentar assumir a empresa.

— Eu acho que temos um acordo implícito de não falarmos sobre o passado — decidi não ser mais sutil, e Kostas reagiu imediatamente:

— Não é implícito. Não quero falar do passado. Mais explícito que isso, impossível!

Eu sabia que não seria fácil, ele é tão fechado quanto eu, então precisei desarmá-lo. Aproximei-me dele por sobre a mesa do restaurante e abaixei o tom de voz:

— Dessa vez, não poderei acatar sua vontade, Konstantinos. Sei que você comprou o sobrado da Rua...

Kostas levantou-se.

— Perdi a fome, vou voltar para a empresa.

Pus-me de pé também e o vi caminhar na direção da saída do restaurante, mas não ia desistir, não quando já havia agitado o vespeiro.

— Eu nunca te pedi ajuda. — Meu irmão parou, mas não se virou para me olhar. Decidi continuar por essa linha de ação: sinceridade. — Eu não podia te ajudar, então nunca pedi ajuda também.

— Alexios, não faça isso...

Eu soube que atingi o ponto certo, pois podia sentir a tensão no seu corpo. Nós dois temos consciência do que passamos na mão do nosso pai e de tudo que fizemos para que a loucura de Nikkós ficasse longe de Kyra. Kostas não aguentou por muito tempo, e eu o entendo, mas fiquei lá sozinho, lutando contra o monstro, tentando proteger minha irmã, mesmo sem ninguém para fazer o mesmo por mim.

Nunca tinha pensado em lhe cobrar, mas situações extremas pedem medidas extremas.

— Eu preciso, senão não faria. Há chances de eu descobrir o que Nikkós fez com minha mãe.

Fiquei satisfeito ao vê-lo se virar completamente surpreso.

— Sua mãe? Você soube algo dela?

— Nada conclusivo, mas acabei cruzando com uma pessoa que, quando soube que eu era filho dele, disse tê-la conhecido.

— Isso é loucura! Você procurou durante sua adolescência toda, quase se matou por isso, não há pistas, não há nomes, não há nada!

Lembranças de anos e anos de buscas vãs me fizeram titubear por alguns instantes. Eu não tinha um ponto de partida na época, pois ela podia ser qualquer pessoa, mas, naquele momento, eu tinha a maldita pista do imóvel.

— Preciso acessar o sobrado — voltei a falar, mas Kostas negou. — Preciso entrar e remexer tudo lá.

— Não!

— Foda-se, eu vou! — Soquei a mesa, decidido, puto demais por estar ali pedindo ajuda a ele pela primeira vez e não ser compreendido. Eu sempre o entendi, sempre o justifiquei quando saiu do apartamento e foi viver sua vida. Quando descobri que o sobrado lhe pertencia, nunca pensei em questionar seus motivos, apenas o entendi. Não era justo não ter o mesmo tratamento e consideração. — Eu sei que, por algum motivo bizarro, você o comprou, trancou-o com tudo dentro e o tem deixado apodrecendo por mais de 15 anos! Pode ter alguma pista lá.

— Não é seguro. Não vou arriscar que você morra lá dentro e eu ainda tenha que responder a...

Caralho de desculpa mais esfarrapada!

— Porra, Kostas, não fode! — Perdi a paciência, circundei a mesa e me aproximei dele, disposto a jogar pesado. — Eu sei dos teus motivos, respeito-os. Como disse, nunca te pedi ajuda antes porque sabia que você também precisava e não tinha a quem pedir, mas agora estou pedindo, agora estou contando com você. Não me faça arrombá-lo, porque eu o farei, apenas dê-me as chaves de todas aquelas grades que pôs lá.

Vi-o pensar, achei mesmo que eu estivesse tocando em alguma parte ainda viva de seu corpo, talvez no menino que conheci quando chegou para morar conosco, mas não, ao que parecia, meu irmão havia virado a porra de uma rocha fria e sem sentimentos.

— Tente invadir. Será um prazer implodir aquela merda com tudo dentro!

A mera possibilidade de ele destruir a única pista que tive do meu passado me desconsertou. Kostas aproveitou-se do momento e foi embora do restaurante.

Fiquei um tempo parado, até que ouvi um leve pigarrear e vi os garçons chegando com nossos pedidos. Estava sem fome, um bolo havia se formado em minha garganta, então pedi que embrulhassem tudo e deixei as quentinhas com o primeiro morador de rua que achei pelo caminho.

Andei sem rumo, sem saber o que fazer ou como agir. Tinha aberto meu peito para ele, pedira ajuda pela primeira vez e recebera um sonoro não. Senti algo inédito pelo meu irmão, raiva. Kostas nunca fora o alvo da minha revolta, pois sempre o compreendi, mas naquele momento não podia mais entendê-lo, não quando eu poderia ter respostas para acabar com minha tortura.

Sair de casa ajudou meu irmão a dar fim ao poder de Nikkós sobre sua vida, mas o mesmo não aconteceu comigo, e, enquanto eu não souber sobre o meu passado, não poderei tirar do homem que me gerou a possibilidade de voltar a me ferir.

O som de mensagem no celular me faz deixar de lado essas lembranças, e eu leio a mensagem de minha irmã me convidando para jantar com ela.


“Kyra, ainda estou na empresa, não poderei ir.”


Envio a mensagem esperando que seja suficiente, mas não é.


“Uma hora você precisará comer, e eu não tenho nenhuma intenção de jantar cedo. Venha no horário que puder, esperarei você.”


Merda, ela sabe ser insistente!


“Ok.”


Olho para o monitor do computador, respiro fundo e desisto de trabalhar. Minha barriga ronca, e decido aceitar o convite inesperado de minha irmã. Antes, porém, olho novamente o endereço do sobrado e traço um plano para invadi-lo sem que Konstantinos tome conhecimento.

As respostas que busco sobre mim mesmo podem ser achadas lá; não vou desistir tão fácil assim de encontrá-las. Nunca desisti fácil de nada, essa não será a primeira vez.

Imediatamente a imagem de Samara aparece em minha mente, e eu bufo, chamando-me de hipócrita. Claro que já desisti fácil de algo, eu só não gostava de admitir isso por não me achar sequer digno dela.

Quem sabe se eu achar as...

Interrompo o pensamento antes de criar ilusões que só serviriam para me machucar. Não há possibilidade de eu tê-la, mesmo que tenha todas as respostas da minha vida. Samara nunca estará ao meu alcance, e, sinceramente, acho bom que não haja nenhum envolvimento entre nós.

Ela merece mais!


Pego mais um copo de café e volto a me sentar ao lado de Daniel, sacudindo a perna, bebericando ou soprando a bebida quente. Olho para o corredor e, sem nem mesmo consumir metade do café, levanto-me para pegar um copo d’água.

Volto a me sentar, as pernas agitadas, confundo os copos e dou uma golada no café fumegante.

— Merda!

Daniel põe a mão no meu joelho e me obriga a parar de sacudir a perna.

— Se você não sossegar agora, juro que te ponho para fora — ele me ameaça.

— Desculpa. — Sorrio sem jeito. — Estou nervosa com os resultados desse primeiro ciclo de quimio e acho que deveríamos ter entrado com ela para saber mais...

— Nosso pai entrou com ela, Samara. Sossegue, você está me deixando irritado parecendo uma criança ansiosa! — Daniel fala alto, e eu o encaro surpresa. — Desculpa. — Ele põe a mão na cabeça e esfrega os olhos. — Eu quase não dormi essa noite, mas você não tem nada a ver com meu mau humor.

— Ela vai ficar bem, Dani. — Ponho minha mão em seu ombro.

— Eu sei que vai! Nunca tive dúvidas disso.

Respiro fundo e concordo com ele, embora não tenha a mesma confiança que ele demonstra ter.

Têm sido dias difíceis desde que cheguei ao Brasil, mas em momento algum me dei a oportunidade de esmorecer perto deles. A cada medicação, mamãe tinha reações mais fortes, requerendo tanto cuidado e atenção que decidi desistir de morar no meu apartamento e voltei para a casa dos meus pais.

Confesso que essa decisão também me ajudou a manter distância de Alexios Karamanlis. Não que eu ache que em algum momento ele tenha notado minha ausência ou se importado com isso, mas para mim fez toda a diferença.

É aquele ditado, sabe? O que os olhos não veem...

Suspiro.

— Você foi incrível nesses dias, Samara — Daniel volta a falar. — Mamãe esteve muito mais à vontade com você por perto do que comigo.

— Não fala besteira, Dani! — Ele sorri, sabendo que é o xodó da mamãe. — Eu gostei de ter conseguido ajudar e estar com ela de novo.

— Ela também ado... — ele para de falar assim que vê nossos pais vindo até onde estamos. Levantamo-nos juntos, apreensivos, esperançosos, e o sorriso de mamãe é reconfortante.

— O que o médico disse? — indago assim que eles se aproximam.

— O medicamento fez o efeito esperado para esse primeiro ciclo. Agora é esperar o tempo de descanso para começar de novo. — Mamãe sorri.

— E a radioterapia? — Dani questiona, e ela dá de ombros.

— O doutor ainda não prescreveu — papai responde. — Vamos torcer para que a quimio resolva sem precisar da rádio! — Ele sorri e abraça mamãe pelos ombros. — Em breve você terá sua vida agitada de volta.

Ela suspira cansada.

— Bom, vamos todos almoçar para comemorar o fim desse primeiro degrau rumo à vitória! — tento animar a todos, mas só meu pai sorri. — Ah, gente, vamos lá! Mamãe?

Ela assente e olha para Daniel.

— Você não está cansada? — meu irmão pergunta a ela.

— Não, podemos ir!

Bato palmas e a beijo na testa.

Eu entendo o desânimo dela, seria cruel não entender, pois, ainda que todos estejamos empenhados em seu tratamento, é ela quem passa por todos os efeitos colaterais dos medicamentos e pela doença. Mamãe nunca foi uma mulher parada ou passiva, e depender de outras pessoas deve estar sendo uma verdadeira prova para ela.

Foram semanas difíceis, não nego. Fiquei totalmente à disposição de minha mãe, levando-a às consultas e às sessões, fazendo companhia a ela, amparando-a em momentos de indisposição e dor. Godofredo e eu nos mudamos para a mansão da família, e eu mal tive tempo para ir ao Castellani ou mesmo visitar amigos.

Kyra esteve várias vezes conosco, geralmente após o expediente de trabalho, quando não tinha eventos. Daniel e Bianca, sua noiva, também estiveram presentes nos jantares e almoços de finais de semana, e, claro, papai.

Sorrio ao pensar em como é bom ter meu pai por perto. Ele e eu temos muitas afinidades, então, passamos muito tempo conversando, vendo filmes ou ouvindo música. Mamãe prefere ler sozinha em seu quarto à noite, por isso faço esses programas todos com papai.

Assim, o mês de janeiro se foi, e fevereiro entrou com força total com a finalização do primeiro ciclo de quimio da mamãe e o inesperado convite de Daniel para que eu trabalhe na empresa com ele.

— Dani, eu sou designer de interiores. Já trabalhei decorando mansões, apartamentos, iates e até um motor home, mas nunca fiz nada empresarial. — Fiz careta ao lhe responder. — É tudo muito frio.

— É um hotel — ele logo me informou. — Vamos redecorar um enorme hotel.

Meus olhos brilharam.

— Ele vai seguir algum padrão já existente? É um hotel de rede?

Ele nega.

— Não. É uma casa de campo que está virando hotel. — Arregalei os olhos. — O projeto de reforma é da Karamanlis, e a executora da obra é a Novak.

— K-Eng? — inquiri baixinho, e ele suspirou.

— É, mas quem está acompanhando é um dos braços direitos do seu amigo.

Havia muitos dias eu já não pensava no Alexios e nem no beijo do Ano Novo. Não foi o primeiro que trocamos depois de umas bebidas, então eu não devia lhe dar tanta importância, embora reconhecesse que ter me afastado do Castellani ajudou muito a manter distância dele. Alexios e eu já não somos mais amigos!

A perspectiva de trabalhar em um projeto como aquele enquanto eu estivesse no Brasil era maravilhosa, mesmo com a possibilidade de encontrar o CEO da K-Eng eventualmente.

— Aceito olhar o projeto e conversar sobre o briefing, só isso. — Daniel sorriu satisfeito. — Se eu puder executar meu trabalho sem a interferência de pessoas que nada entendem de decoração, pego para fazer; do contrário, estou fora.

— É assim que se fala! Você vai amar o projeto de reforma, ficar cheia de ideias, e tenho certeza de que os responsáveis pelo empreendimento vão adorar seu trabalho.

O projeto realmente estava incrível, e a ideia de como os donos queriam a decoração dos quartos e áreas comuns me deixou louca para começar o trabalho. Aceitei a proposta, negociei sob a garantia da Schneider e fechei um belo negócio aqui no meu país.

Penso no meu trabalho na Espanha e Diego me vem à cabeça. Entro no carro, no banco do carona, ao lado de Daniel e suspiro.

— O que foi? — meu irmão pergunta, seguindo o carro do papai para fora do estacionamento.

— Estava pensando no Diego.

— Vocês têm se falado?

— Sim, por mensagens. — Balanço a cabeça. — Não sei mais o que fazer para ele entender que não estou tendo nenhum tipo de crise por conta do tratamento da mamãe. Eu fui sincera com ele quando terminei. Não foi certo fazer por vídeo, mas eu não podia mais me sentir enganando-o.

— Eu entendo você, embora não goste nada do motivo que a levou a isso.

— Não tem nada a ver com Alexios, nós nem temos nos visto. Eu pensei em ir até a Espanha para conversar melhor com Diego, mas acabei de pegar esse projeto enorme e não posso me ausentar por agora. Além disso, ele está seguindo o time na Champions...

— Não sei se é boa ideia você ir atrás dele. Acho-o um tanto insistente demais. Concordo que não foi certo terminar por vídeo-ligação, mas depois disso vocês conversaram várias vezes, e o homem não para de insistir.

Eu concordo, mas ao mesmo tempo me sinto culpada.

— Sim. Mesmo assim sinto que lhe devo uma explicação.

Paramos no farol, e ele me olha.

— Você quer retornar para Madri mesmo depois desse término?

Respiro fundo e dou de ombros.

—Sim, trabalho em uma ótima empresa lá, então, por que não voltar?

Meu irmão ri.

— Isso é você quem tem que responder a si mesma. — Ele me puxa para perto e beija o topo da minha cabeça. — A decisão é sua; certa ou errada, cabe a você decidir o que fazer.

— Eu sei.

Sorrio, mesmo com minha cabeça fervendo de perguntas sem respostas, mesmo sem entender o que eu quero e por onde devo ir.

Fui para a Espanha para fugir de um sentimento que parecia não ter fim, mesmo diante da impossibilidade de se tornar algo real, e acabei fazendo amigos e criando laços por lá, mas é aqui que minha família e meus amigos estão. A decisão não é fácil!

Quanto a Alexios... o sentimento não morreu, obviamente, porém não guardo mais nenhuma ilusão com relação a ele. Sempre serei vista como a grande amiga e nada mais.


— Alexios está esquisito essa semana — Kyra comenta.

Eu rio e bebo mais um gole do vinho.

— Quando ele não foi esquisito? — debocho.

— Exatamente, a esquisitice dele não me surpreende, mas essa semana ele está mais esquisito. — Presto atenção ao que Kyra diz, pois minha amiga não costuma exagerar, pelo contrário. — Eu sei que ele está em um ritmo frenético de trabalho, mas, quando falei com ele ontem, achei-o um tanto...

— Esquisito — complemento, e Kyra revira os olhos ante minha brincadeira. — Kyra, seu irmão é a pessoa mais fechada do mundo, você sabe. Mesmo que ele esteja com merda até nos ouvidos, precisa quase se afogar nela para pedir ajuda ou falar com alguém.

Ela assente, e nós duas ficamos mudas. Eu me lembro de quando tomei conhecimento, pela primeira vez, do que eles viviam com o pai. Alexios telefonou para minha casa pedindo para que eu subisse até a cobertura, pois precisava de um favor. Não pensei duas vezes e fui até ele pensando que queria ajuda com algum jogo ou matéria – história nunca foi o seu forte –, mas, quando o vi, mal conseguia me mover.

Ele estava todo machucado nas costas. Os cortes eram verdadeiros talhos, de onde saía muito sangue, e eu tive que respirar fundo várias vezes para não vomitar.

— Samara, preciso que você seja dura agora — ele me disse com a voz calma, com toda sua sabedoria de 15 anos de idade.

— O que você quer que eu faça? — perguntei temerosa, já prevendo que ele me pediria para limpar e fazer curativos.

O problema era que, por conta do tamanho e da profundidade dos cortes, curativos não seriam o bastante. Ele ergueu uma agulha curva com um enorme pedaço de linha preta.

— Costure.

Neguei várias vezes com a cabeça, incapaz de abrir a boca sem derramar todo o lanche que havia acabado de tomar, mas ele me olhava suplicante. Percebi que, mesmo sentindo dor, ele tentava não demonstrar.

— Você precisa de um médico!

— Não. — Ele ergueu a agulha novamente. — Preciso de você.

Peguei o metal curvado. Minhas mãos tremiam, o queixo também. Era possível ouvir o som dos meus dentes batendo forte um contra o outro. Não entendia o que estava acontecendo, o motivo pelo qual ele estava daquele jeito e não ia até um hospital.

Eu mal sabia bordar, e somente a possibilidade de machucá-lo ainda mais me apavorava.

— Se fosse em outro local, eu juro que não pediria isso a você, mas eu não consigo suturar as costas sozinho.

Foi então que percebi que não era a primeira vez.

— O que foi isso, Alexios?

Ele sorriu tentando me despistar, mas depois suspirou.

— Caí em cima da mesinha de centro da sala lá de cima. — Apontou para o segundo piso da cobertura. — Ela era toda espelhada, por isso me cortei.

— Caiu?

Ele não respondeu, apenas virou-se de costas para mim e começou a me dizer o que fazer.

— A agulha já está desinfetada, e eu tomei banho, mas ainda assim preciso que você passe esse antisséptico, limpe bem o sangue e comece a costurar. — Ouvi o som de sua risada. — Pense que sou um dos seus tecidos finos e delicados de almofada e borde em mim.

Bufei com a comparação.

— Não achei graça nenhuma!

Foi um longo processo, mas cumpri com o que ele pediu e somente anos depois é que entendi tudo aquilo, inclusive a história esfarrapada do “caí por cima da mesa”.

Fiz muitos favores como esse para ele por muito tempo ainda. Aprendi a costurar sua pele, a recolocar seus ossos no lugar quando se deslocavam e até mesmo a imobilizar alguma parte de seu corpo. Porém, mesmo estando ao lado dele em todos esses momentos dolorosos, Alexios só me contou que era o pai que o espancava depois que saiu de casa com Kyra.

Eu sofri tanto por pensar nas atrocidades que eles viveram, porque minha amiga até reclama do irmão, mas são farinha do mesmo saco. Não faço ideia de como Nikkós a afetou, mas é certo que ela não foi poupada da loucura do pai.

— Ei, Samara no mundo da lua! — Kyra me cutuca. — Está pensando em quê? Perguntei por Diego, e você ainda nem me respondeu o que ficou decidido.

— Nada de diferente. — Ela cruza os braços. — Temos conversado bastante por mensagens, mas ele parece não aceitar que acabou. Diz que estou em crise e que, assim que puder, virá ao Brasil.

— Para quê?

— Conversar pessoalmente. — Fecho os olhos. — Gostaria tanto que tudo fosse diferente, sabe? Que eu pudesse gostar dele da forma como deveria.

— E por que não pode? — Olho para Kyra, e ela entende a resposta. — Uma merda isso! Então você não vai voltar para Madri mais?

Penso em Diego e em todo esse tempo em que estivemos juntos, recordo-me de como me senti feliz ao lado dele e do escritório maravilhoso de design em que trabalhei durante esses anos. Ele tem alegado isso, que estou confusa por estar longe, com medo de mudar de vez para Madri e ficar longe da minha família. Não é isso! Ter voltado ao Brasil mexeu, sim, com meus sentimentos, principalmente quebrou a ilusão de que eu tinha esquecido Alexios. Por isso ainda penso em voltar a morar na Espanha, mas não quero mais me enganar e enganar outra pessoa no percurso.

— Eu gostaria de ter essa resposta, Kyra — volto a falar. — Gostaria de saber o que é melhor para mim, mas não sei. Aqui há tantos motivos para eu ficar, como também para que eu vá, mas ainda estou indecisa.

— Eu sei. — Ela sorri compreensiva.

A campainha do apartamento dela soa alto. Estranho, porque ela não me disse que teríamos companhia, mas, por sua reação, Kyra já estava à espera de alguém.

— Talvez o motivo de sua indecisão tenha chegado agora.

Arregalo os olhos com a possibilidade de ser Alexios.

— Kyra, o que você... — não termino de formular a frase, pois minha amiga abre a porta, e o vejo olhá-la com um sorriso cansado, entrar no apartamento e parar surpreso ao me ver.

— Oi — cumprimento-o.

— Oi. — Ele desvia o olhar para Kyra.

— Vou ver se o jantar já... — ela para de falar e ergue a mão dele. — O que houve?

Os olhos de Alexios não deixam os meus, então ele abre um sorriso lindo – esse é o bendito que ele usa quando quer disfarçar alguma situação séria ou desviar o assunto – e dá de ombros.

— Um pequeno acidente besta, nada importante. — Kyra parece não engolir a desculpa esfarrapada também, mas não insiste, pois conhece o irmão muito bem. — Tem cerveja?

— Claro que tem! Vou pegar umas para você. — Ela aponta para mim. — Faça companhia para a Samara.

Nós dois a olhamos, entendendo que o jantar foi uma armadilha dela para que voltemos a nos falar. Sinceramente não entendo minha amiga. Ela sabe o que sinto e o que Alexios não sente, mas ainda assim insiste em nos manter unidos, mesmo dizendo sempre que seu irmão não é uma boa opção para mim.

Como se um dia ele considerasse me ver como mulher!

— Como estão as coisas com sua mãe? — Alexios puxa assunto de repente e se senta em uma poltrona individual bem longe de onde estou.

— O primeiro ciclo de quimioterapia acabou, e ela está bem — respondo seca. — E você, como está?

Ele abre o maldito sorriso fingido.

— Ótimo! Cheio de trabalho, sem tempo para fazer bobagens...

— Não parece. — Aponto para sua mão. — Achei que seus momentos de fúria já tivessem passado desde que começou a praticar esportes. — Ele fica sério. — Por falar nisso, vi o Chicão lá no prédio esses dias. Ele está hospedado contigo?

— Está, como sempre. — Alexios olha para trás, na direção da cozinha de Kyra e respira fundo. — Eu queria pedir desculpas novamente por...

— Não precisa — interrompo-o antes que eu seja obrigada a socar sua cara.

— Preciso — ele insiste. — Kyra me contou sobre seu relacionamento — meu coração dispara ao ouvi-lo falar sobre isso como se não tivesse importância alguma. — Espero que ele seja o homem que você merece e que sejam muito felizes como você sempre sonhou.

Engulo em seco, abro um sorriso – fervendo de raiva da Kyra – e digo a primeira coisa que me vem à cabeça:

— Ele é! — minto, e Alexios fica sério, seus olhos claros fixos nos meus. — Um verdadeiro príncipe como sempre sonhei.

— Quem bom. — Ele se levanta. — Vou até a cozinha pegar a cerveja, estou morrendo de sede.

Acompanho-o com os olhos e, quando desaparece da minha vista, gemo e me dou um tapa na cabeça. Que ridícula! Por que, mesmo sendo tão madura em vários aspectos, sou uma imbecil quando estou perto dele? Parece até que estou de volta ao aniversário de 18 anos da Kyra, quando saímos nós três para comemorar, e eu fiquei com um babaca total só porque Alexios pegou uma das garçonetes da pizzaria.

Não sou mais essa garota!

Alexios e Kyra voltam para a sala, ele, bebendo uma longneck, e minha amiga, com uma travessa na mão.

— Escondidinho de camarão, como vocês dois sempre gostaram — ela anuncia.

— O cheiro está incrível! — elogio, levantando-me do sofá e indo ajudá-la. — Há muitos anos não sinto algo tão delicioso!

— Eu também não — Alexios fala perto de mim.

Os pelos do meu corpo se arrepiam todos por causa do som de sua voz e seu hálito no meu pescoço. Viro-me para ele, sem entender o motivo pelo qual está tão próximo de mim e me surpreendo por um instante ao decifrar seu olhar: fome, e não é de comida.

Balanço a cabeça, achando impossível que seu olhar esfomeado seja para mim e me afasto dele, indo posicionar os pratos como Kyra me ensinou a fazer tempos atrás.

— Andou treinando? — minha amiga brinca ao me ver executar com perfeição seu ensinamento.

— Sim, fiz alguns jantares em Madri — conto orgulhosa. — Recebi poucas pessoas, a maioria amigos, e fiz questão de colocar em prática tudo o que você me ensinou...

— E que você achava que era bobagem! — Ela ri e olha para Alexios. — Uma arquiteta de interiores deve, no mínimo, saber montar uma mesa, não acha?

Alexios franze a testa, pensa um momento e depois concorda.

— Pregar pregos na parede, fazer arranjos florais, pintar um quadro... — Kyra fica séria, e ele começa a rir. — Há profissionais para isso, Kyra, Samara é responsável pelos layouts de móveis e projetos de planejados, não precisa saber fazer tudo!

Kyra parece estupefata, e, confesso, eu também estou, porque geralmente os dois se uniam para brincar ou me provocar, e agora ele acabou de me defender!

Alexios parece ficar sem jeito com o silêncio e dá uma enorme golada, até pôr fim ao conteúdo da garrafinha de cerveja, em seguida volta para a cozinha.

— O que está rolando? — Kyra me pressiona.

— Não sei do que...

— Samara, sem essa de “não sei do que você está falando”. Não nasci ontem, percebi que vocês estão estremecidos. Achei que tinha sido por conta dos anos longe, mas achei que isso ia passar depois do baile, mas então Alexios aparece aqui mais perdido do que cachorro que caiu da mudança e se recusa a falar o que aprontou contigo na virada do ano! — Aproxima-se. — Conte-me já!

Nem em sonho!

— Não há nada para contar.

Alexios retorna, e sua irmã avança para ele igual a um anjo vingador.

— O que está rolando entre vocês dois? — Ela põe a mão na cintura. — Sempre fomos amigos! Éramos um trio, estivemos juntos nos piores momentos de nossa infância e adolescência, parem já com qualquer merda que estiverem fazendo!

— Quanto você bebeu? — Alexios debocha. — Nada está acontecendo, não é?

 

CONTINUA

Kyra sempre foi exuberante, beleza herdada de sua mãe, devo acrescentar, pois Sabrina ainda continua tão linda quanto era na época em que era casada com Nikkós. Contudo, minha irmã ainda recebeu alguns belos traços dos Karamanlis, principalmente da famosa giagiá15, que todos sempre fazem questão de dizer que era linda e tinha a mesma coloração de olhos da minha irmã (e minha também, só que os Karamanlis nunca engoliram bem que eu realmente tenha o sangue nobre deles).

No papel, Kyra e eu somos filhos dos mesmos pais, pois Sabrina me adotou legalmente quando eu ainda era um garotinho. Ela, por poucos meses, possuía a diferença de idade obrigatória pela lei entre nós (16 anos) e, por isso, conseguiu, aos 18, adotar-me aos dois anos. Logo em seguida nasceu a Kyra, e a família ficou completa.

Na verdade, eu nunca soube da minha mãe. Tentei descobrir algo durante a adolescência, principalmente por ser esse um dos pontos que meu sádico pai adorava usar contra mim. Inventar uma história nova a cada dia sobre meu nascimento, minha origem, era sua principal diversão e tortura psicológica.

Nunca entendi nada sobre mim, a única certeza que tenho é de que, infelizmente, sou mesmo filho dele, algo que comprovei através de exame de DNA, cujo resultado positivo nunca divulguei, porque eu tinha esperança de não ter o sangue daquele monstro.

Volto a prestar atenção na foto, dessa vez em meu próprio rosto cheio de enfado por estar naquele baile com elas. Sorrio. Eu fazia esse tipo, mas a verdade é que adorava cada momento que passávamos juntos, pois me sentia em família de verdade.

Ponho a moldura no lugar e respiro fundo, controlando meu corpo, colocando juízo na minha cabeça, ressaltando tudo o que tem de importante na amizade entre mim e Samara e concluindo que um envolvimento fora desses termos entre nós só serviria para destruir anos e anos de companheirismo.

Samara merece ser feliz com alguém que possa ser o homem com que ela sempre sonhou, o príncipe encantado dos seus sonhos de menina, alguém que saiba quem é, que tenha valor e que possa demonstrar todo o amor que sente por ela e reconheça o privilégio que é ser amado.

Esse homem não sou eu!

 

Depois do banho na casa de Kyra, fui direto para a empresa. É providencial ter uma mochila de roupas minhas no apartamento dela, mas confesso que não vou muito de jeans e camisa de malha para a Karamanlis.

Passei no Castellani apenas para pegar minha moto, nem me atrevi a subir até meu apartamento, sendo covarde mais uma vez. A questão é que eu não saberia nem mesmo o que dizer a Samara caso nos encontrássemos de novo.

Estava saindo do estacionamento quando meu celular tocou, mas, como já estava sobre a moto – e não queria demorar muito na garagem, porque o carro de Samara ainda estava na vaga dela –, deixei para conferir a ligação quando estivesse no prédio, o que faço agora, retornando a ligação.

— Oi, Chicão! — cumprimento-o assim que atende.

— Alex, seu grande safado, feliz Ano Novo! — o homem mais velho, que se tornou um grande amigo e a quem eu considero como um pai – no sentido do que realmente um pai deveria ser – por pouco não me ensurdece ao telefone. — Cheguei ao inferno hoje, queria saber se poderia passar uns dias lá naquele seu apartamento cinco estrelas.

Abro um sorriso de felicidade ao pensar que ele está de volta a São Paulo. Francisco Salatiel Figueiroa é o nome dessa figura de quase 60 anos, paulistano – mas que odeia sua cidade natal – e viciado em esportes radicais assim como eu.

Nós nos conhecemos quando eu ainda estava no colégio, devia ter uns 15 anos e fui participar de um racha de moto pela cidade. Ele apareceu por lá, chamou-me em um canto e me convidou a fazer cross ao invés de colocar minha vida e a de outras pessoas em risco correndo pelas ruas.

Comecei a ir para o os circuitos de motocross, tomei muito tombo, enlameei-me até o pescoço e me senti mais vivo do que quando me arriscava nos rachas. Nós nos tornamos amigos mesmo com nossa gritante diferença de idade, pois ele dizia que eu lembrava o moleque atentado que ele mesmo tinha sido um dia, e comecei a acompanhá-lo em suas atividades.

Foi por causa dele que deixei de buscar alívio e fuga nas drogas, pois conseguiu me mostrar que, se eu quisesse me livrar de Nikkós, teria que ser melhor que ele. Não foi um processo fácil, admito, levei anos para entender e ouvir seus conselhos, mas nem por isso ele desistiu de mim ou se afastou.

Francisco começou a me mostrar que eu poderia extravasar toda minha angústia, solidão, medo e revolta em esportes como trilhas de moto, bike, escaladas, voos livres, paraquedismo e, quando tirei minha carteira de motorista, apresentou-me a alguns amigos dos circuitos de motovelocidade.

Os esportes aliviavam meu corpo da tensão vivida em casa, mas minha cabeça e minha alma continuavam pesadas, então, um dia, ele me viu desenhar e descobriu como eu poderia tratar os demônios dentro de mim.

Devo muito a ele, não só pelo equilíbrio que consegui hoje em minha vida, como também por permanecer vivo e são. Samara e ele foram os únicos a permanecerem ao meu lado nos piores momentos da minha vida, ela me auxiliando principalmente com Kyra, e ele entendendo meus problemas e me ajudando a achar soluções.

— Meu apartamento é seu! Te dei a chave, afinal.

— Eu sei, mas é sempre bom dar uma conferida, vai que você resolveu sossegar seu pau numa boceta só.

Gargalho com seu jeito rude e direto.

— Não, meu pau ainda gosta de explorar por aí. — Ele me chama de “vadio” e ri. — Estou na Karamanlis agora e...

— Ah, me diz que estou sonhado... — estranho o que ele fala, escuto vozes ao fundo e percebo que não falou comigo. Espero que ele retome a ligação, entro no elevador, cumprimento as pessoas com a cabeça e sorrio para uma mulher gostosa que nunca vi aqui no prédio. — Seu trapaceiro de uma figa! Samara está de volta e, caramba, mais linda do que nunca.

Só de ouvir o nome dela, sinto meu corpo reagir como se uma descarga elétrica tivesse me atingido.

— Encontrou-se com ela agora?

— Sim, seu embuste! Quantos anos ela esteve fora? Caralho, você já a viu?

Franzo a testa, desço no meu andar, confuso com a perplexidade dele apenas por ter visto a Samara no prédio, afinal, ele sabe muito bem que ela tem um apartamento lá.

— Já, desde que chegou — respondo distraído, acenando para os funcionários da K-Eng. — Por quê?

— Alexios, eu sempre me perguntei se você era cego ou apenas muito burro. — Ouço o barulho de uma porta se fechando. — Nunca entendi por que vocês dois nunca tiveram nada um com o outro.

Paro no meio do corredor, atraindo os olhares de pelo menos dois engenheiros que passam por mim. Que merda é essa?!

— Ela é minha amiga — digo o óbvio.

— Ela é incrível e sua amiga, isso já não é meio caminho para um relacionamento de sucesso?

Um alerta dispara em meu cérebro. Chicão nunca foi um homem ligado a relacionamentos permanentes, tanto que é solteiro até hoje, então não entendo o motivo pelo qual está falando essas coisas sobre mim e Samara.

— Chicão, sou eu! Eu não tenho relacionamentos, eu fodo por aí, só isso. E, definitivamente, Samara não é uma mulher apenas para se foder.

Ele emite um grunhido, e, ao fundo, escuto o bipe da minha cafeteira sendo ligada.

— Nisso concordamos. Mas ela é incrível, sempre foi, se eu tivesse a sua idade e a sua aparência, não perderia a oportunidade de tê-la comigo.

Mas o que... Arregalo os olhos, e meu coração dispara.

— Você está morrendo? — inquiro-lhe como se fosse a única opção válida para essa mudança de comportamento.

Chicão gargalha.

— Não, mas estou ficando velho e sozinho. — Bufa. — Mas isso não é assunto para discutirmos ao telefone, já que você está na empresa.

— Chicão, está tudo bem?

— Vai trabalhar, embuste, depois conversamos. Viajei a noite toda, quero tomar um banho, comer algo e dormir um pouco. Obrigado pelo abrigo.

Ele ainda não me convenceu, algo está errado.

— A casa é sua! — declaro, e ele encerra a ligação.


— Quer mais um travesseiro? — pergunto à minha mãe assim que ela se deita na cama.

— Não, filha, estou bem. — Sorri, mas o cansaço não permite que o faça por muito tempo. — É sempre assim no dia da medicação, mas passa.

Balanço a cabeça concordando, enternecida por ela estar tentando me consolar, quando é ela quem está passando por isso tudo. Sempre a admirei por sua força, seu destemor e a capacidade de realizar qualquer coisa que se propunha a fazer.

Mamãe não tem um gênio fácil de lidar, mas nunca negou amor e afeto aos seus filhos, mesmo sendo brava e exigente como era. Dani e eu tínhamos muito mais medo dela do que do papai, que sempre foi mais maleável, mas moderno e liberal.

O relacionamento dos meus pais, enquanto casal, não era um mar de rosas, mas eles eram amigos, companheiros. Ele sempre a apoiou em tudo, e ela acima de tudo o admirava. Não tinham grandes arroubos de paixão, pelo menos não na nossa frente, mas se respeitavam, conversam, riam e, principalmente, nos amavam muito. Dani, como filho e mais velho, sempre foi agarrado a minha mãe mais do que a nosso pai. Os dois se dão bem, são muito parecidos em alguns aspectos, mas quem sempre teve mais afinidade com papai fui eu.

Acho que nossas almas são parecidas. Ambos somos apaixonados pelas formas, perfeccionistas, românticos e, arrisco dizer, sonhadores. Eu sou assim, gostaria de ser prática como mamãe, mas há muito que parei de tentar ser quem não sou. Demorei, mas consegui aceitar meu jeito e me respeitar acima de tudo.

É dolorido tentar ser quem não é para se encaixar ou seguir uma tendência. Eu sou forte, mesmo sendo doce; sou feminista, mesmo sendo feminina e vaidosa; sou empoderada, mesmo sonhando em casar e ter uma família.

Eu me importo com a opinião alheia, sim, porque ninguém é uma ilha e não teria sentido na vida se todos fôssemos autossuficientes e não dependêssemos de ninguém. Não tenho preconceitos, sou feliz com a felicidade dos outros e não me importo que a recíproca não seja verdadeira. Cada um escolhe o caminho que quer percorrer. Eu escolhi ser assim, exatamente como sou.

Chegar até essa conclusão não foi fácil, principalmente quando se percebe que o homem por quem você é apaixonada prefere as mulheres que têm atitude, que são furacão e não calmaria. Eu quis fazer tipo e percebi que estava indo na contramão de tudo o que uma “mulher de atitude” prega, que estava tentando ser outra pessoa para agradar a um homem.

Foi aí que aquela máxima tão clichê, mas que é tão difícil de ser vivida, fez sentido para mim: quem me amar, precisa me conhecer e me aceitar como sou.

Demorei a perceber a importância disso, precisei praticamente ter isso esfregado na cara. Então arrumei minhas malas, disse ao meu pai que não iria para Barcelona, mas sim para Madri, e segui com minha vida.

Alexios foi o estopim que eu precisava para explodir naquela época, depois de ter aparecido no meu apartamento bêbado a ponto de não se aguentar de pé. Ele pediu para dormir no meu sofá, tivemos uma dura discussão quando tentei lhe passar sermão e, no meio da noite, acordei com ele na minha cama.

Fiquei sem reação quando senti sua mão na minha cintura, alisando minha pele por cima do pijama de seda. Fechei os olhos, excitada e ansiosa, e o deixei prosseguir com a exploração. Não o impedi quando me virou, nem quando me beijou e subiu em cima de mim. Tinha esperado por aquilo a vida toda, e estava acontecendo.

Ledo engano!

Ele ficou imóvel, esmagando-me com seu peso, então percebi que havia dormido. Joguei-o para o lado e passei a noite em claro, sem entender nada, esperando que ele acordasse e explicasse.

Acabei dormindo e acordando sozinha na cama. Ele tinha ido embora, e não conversamos, mas esperei que a conversa viesse mais tarde. Não veio. Ele simplesmente ignorou o beijo, as carícias, como se não fossem nada, como se eu não fosse nada.

Fiquei irritada, subi para perguntar diretamente a ele o motivo pelo qual tinha me beijado, mas, quando cheguei ao seu apartamento, estava rolando uma de suas festinhas regada a bebidas e sexo, e o filho da mãe estava sentado no sofá com uma mulher de cada lado em um beijo triplo.

Ele nem me viu, fechei a porta, desci e decidi parar de protelar minhas decisões esperando por algo que nunca iria acontecer. Um relacionamento com Alexios era uma ilusão infantil, mas eu já não era mais criança.

Viajei dois dias depois e pensei que, quando voltasse, toda essa ilusão teria se desfeito.

— Então o nome dele é Diego — mamãe fala, e eu quase pulo de susto, deixando as lembranças para tentar entender do que ela está falando. — Diego Vergara!

Sento-me na beirada da cama, curiosa sobre como ela conseguiu essa informação.

— O nome dele é mais comprido do que isso, mas, sim, Diego Vergara.

Ela sorri cheia de sabedoria.

— E você deve estar aí querendo saber como eu sei o nome dele. — Concordo. — Seu irmão me contou.

Daniel e sua boca! Meu irmão sempre foi o maior X9 do mundo, não é de se espantar que tenha contado sobre o Diego para minha mãe.

— Há quanto tempo estão juntos?

Não sei o que dizer a ela e agradeço quando uma enfermeira entra no quarto, dando-me a desculpa perfeita para escapulir de sua curiosidade. O fato é que tudo mudou depois da noite do baile dos Villazzas.

Não sei o que levou Alexios a me beijar daquela forma no elevador, eu estava bem bêbada dessa vez, mas ele não tanto, além disso, eu senti a energia entre nós, senti o tesão que ele exalava, que trazia na saliva e em cada toque no meu corpo. Alexios não escondeu em nenhum momento o quanto estava excitado, esfregou sua ereção contra mim, esmagou-me contra o espelho do elevador parecendo que queria me comer ali mesmo.

Depois, do nada, mudou. Pediu desculpas! Desculpas por me beijar! Só faltou dizer que estava com tesão, e eu era a única mulher próxima dele, mas que nem assim servia.

Para piorar, quando entrei no apartamento e peguei o celular, vi uma mensagem de Diego dizendo o quanto sentia minha falta e como ele gostaria de poder estar aqui comigo. Foi a gota d’água! Senti-me um lixo, uma pessoa má que engana e trai e percebi que tê-lo deixado na Espanha sem uma resposta definitiva foi uma atitude egoísta.

Chorando, sem pensar direito, fiz uma chamada de vídeo para ele e, quando atendeu, disparei:

— Diego, eu sou uma pessoa horrível, mas não posso fazer isso com você! — Soluçava tanto que ele se assustou e me pediu para falar devagar. Todavia, eu não conseguia. — Você é um homem incrível, um amigo maravilhoso, e eu adorei cada momento que passamos juntos...

— Calmarse, Samara! Yo no comprendo!

— Você merece mais, merece alguém melhor, e eu não posso...

— Usted está me dejando preocupado, cariño.

— Eu não queria fazer isso assim, por telefone. — Ele ficou sério, atento, prevendo o que eu lhe diria. — Mas não é justo que você fique aguardando minha volta para que eu diga isso. — Respirei fundo, armando-me de coragem. — Eu não posso aceitar seu pedido, Diego. Eu não estou pronta para amar você como deveria, como você merece.

— Samara, sucedio algo com su mamá?

Neguei.

— Não. Sou eu, não mereço você. Você tem razão ao dizer que meu coração nunca pôde estar aí contigo.

— Samara, despues hablamos, está muy nervosa. — Tentei dizer a ele que não, mas não me deu oportunidade: — Tengo que ir.

— Diego, não...

Ele encerrou a chamada. Tentei retornar outras vezes, porém a ligação não completava. Deixei mensagens, mas que, até o momento, ele não visualizou. Volto a olhar para mamãe, que boceja, visivelmente cansada, e fecha os olhos, recostada nos travesseiros, enquanto a enfermeira mede sua pressão. Eu voltei ao Brasil apenas por causa dela, para estar ao seu lado nesses momentos tão difíceis, não por qualquer outro motivo. Sinceramente, não esperava essa pressão acerca de Alexios e Diego. Minha família nunca foi assim, muito menos mamãe, que sempre pregou que uma mulher não precisa de marido e filhos para se sentir completa e feliz.

Mamãe adormece, e eu saio do quarto. Quando estou prestes a descer a escada, escuto uma voz conhecida e muito amada:

— Minha Samara está de volta! — Papai está no corredor de braços abertos. Sorrio e vou até ele para abraçá-lo. — Ah, que saudades!

— Eu também estava, mas cheguei há mais de uma semana, e você nem se dignou a vir me ver.

— Eu sei, mas agora vim para ficar, Herzchen16, e estou feliz por te ter de volta aqui em casa. — Ele beija minha testa. — Não pretende voltar para a Espanha, não é?

Suspiro. Papai foi o primeiro a me incentivar a ir estudar fora, mas o único a ficar chateado quando decidi ficar depois que terminei a especialização. Nunca foi me visitar. Embora falássemos sempre, eu percebia que ele ainda não havia entendido minha necessidade de ficar longe.

— Vou voltar, sim, tenho compromissos de trabalho por lá que...

— Besteira! Aposto que você já tem tudo desenhado e organizado e que, em uma visita ou duas, poria fim a esses “compromissos”.

— Papai, não vim para ficar, e o senhor sabe. Mamãe está na parte mais agressiva do tratamento, e Dani precisou de mim para ajudar a cuidar dela e acompanhá-la...

— Estou aqui também! — ele se ofende por não ter sido incluído. — Ela diz que não precisa de mim, mas estou aqui, sempre estive por ela.

Oh, Deus, que situação!

— Eu sei, pai.

Benjamin Abraão Nogueira Klein Schneider nunca entendeu bem a distância fria de mamãe, por mais que os dois sempre tenham se dado bem. Acho até que foi por esse motivo que se afastaram depois que crescemos e que, após minha ida para a Espanha e a de Dani para seu próprio apartamento, papai decidiu se mudar para a fazenda.

Uma vez, quando eu ainda era uma garotinha, eu o vi bêbado no escritório do antigo apartamento em que morávamos. Ele bebia e parecia mal, chorava e segurava alguns documentos. Quando me viu, tentou sorrir e me chamou para perto de si.

— Tudo bem? — perguntei na inocência dos meus oito anos de idade e limpei suas lágrimas.

— Tudo. — Ele guardou a papelada dentro de uma caixa, onde vislumbrei também algumas fotos, trancou-a com chave e depois respirou fundo. — A vida adulta é complicada, Herzchen. Fazemos escolhas baseadas no que achamos ser melhor e esquecemos o preço que isso cobra, tanto aqui — ele apontou para sua cabeça — quanto aqui. — E, por fim, tocou em seu coração.

Na época não entendi nada, mas esse momento nunca deixou minha memória e, com o tempo, supus que ele estivesse falando de seu relacionamento com mamãe. Os dois se davam bem, mas era ele quem sempre cedia numa discussão ou quem corria atrás quando as coisas ficavam tensas entre eles.

— Vi seu bichinho pré-histórico lá no jardim comendo algumas plantas — ele ri, mudando de assunto. — Você poderia ter adotado um cachorro ou um gato como qualquer outra pessoa, não é?

— Pai, eu o ganhei de presente e gosto dele.

— Mas ele é feroz! — Faz cara de medo. — Já me mordeu algumas vezes.

Gargalho.

— Godofredo é muito territorialista, ele sempre ataca os homens.

— Hum, que interessante! Começo a gostar desse bichinho. — Rio do seu ciúme. — Você não trouxe nenhum espanhol junto contigo, não é?

Suspiro.

— Não. E se o Dani disse algo para o senhor também, ele é...

Benjamin me afasta de seus braços, segurando-me pelos ombros, e me olha surpreso.

Merda!

— Ele não disse nada, não é? — pergunto, achando-me idiota.

Meu pai nega:

— Era só uma pergunta brincalhona e especulativa. — Olha em volta. — O que ele deveria me dizer?

— Eu tinha um namorado em Madri, mas ele ficou por lá.

Ele põe a mão sobre o peito.

— Adorei esse tempo verbal: “eu tinha um namorado”. — Rio. — Agora você terá que me contar sobre esse tal...

— Ele me pediu em casamento — disparo. — Mas eu não pude aceitar.

Ficamos um tempo um olhando para o outro, parados no corredor, sem emitir um som sequer. Papai sempre foi bom ouvinte e dava bons conselhos. Mesmo não sendo muito de falar sobre como se sentia, mesmo reservado em seus sentimentos, até mesmo com seus filhos, ele sabia ouvir sem julgar e só opinava quando achava necessário, o contrário de mamãe.

— Preciso de um café ou de algo mais forte — confessa, e eu rio nervosa. — Vou falar com sua mãe e...

— Ela acabou de dormir — informo-lhe.

— Certo! — Respira fundo. — Se lembra daquele seu namorado da faculdade? — Gemo e assinto. — Você tinha dúvidas quanto ao caráter dele e, mesmo com todos os seus instintos te alertando que algo não estava bem, você aceitou o namoro e...

— Meus instintos estavam certos, ele era um pilantra filho da puta casado!

— E eu quis castrá-lo. — Ele sorri doce, como se isso não fosse nada. — Enfim, o meu conselho para essa questão sempre é: siga seus instintos. Se você não se achava pronta para aceitar o pedido, então fez certo ao recusá-lo.

— Então, você acha que eu fiz certo ao ouvir meu coração?

Ele ri e nega.

— Não, eu disse para ouvir seus instintos, porque seu coração não tem juízo. — Eu rio, achando que ele está fazendo troça, mas, então, ele completa: — Já se apaixonou uma vez por Alexios Karamanlis!

Fico séria, coração disparado, porque, embora ele saiba de todos os meus namorados e experiências, nunca contei a ele sobre Alexios.

Era óbvio para todos, não sei como consegui enganar a mim mesma! Eu ainda amo aquele safado!


— Alexios? — Termino de calçar os tênis antes de me virar para olhar Laura deitada na cama. — Já vai?

Ela se contorce languidamente, seu corpo curvilíneo, dourado de sol se mexendo contra os macios e perfumados lençóis de sua cama. Sorrio, deslizo a mão pela curva de seu lindo rabo e desfiro um tapa nele, fazendo-a rir.

— Preciso ir, tenho reuniões importantes agora de manhã na empresa, e, com a viagem de Theodoros para a Grécia e a demora na volta de Millos, as coisas ficaram acumuladas entre mim e o Kostas.

Ela bufa e se senta.

— Eu sei, ontem eles me passaram as informações sobre a propriedade no Rio de Janeiro, da reunião que tiveram na quinta-feira. — Ela dá de ombros. — Achei que Kika ia aparecer cheia de gás na sexta-feira, mas nem ela e nem seu irmão apareceram na empresa.

— A área é boa mesmo? — pergunto, pois apenas vi algumas imagens do local, e, como Laura é do geoferenciamento, deve ter detalhes bem específicos.

Ela confirma.

— O pessoal do jurídico está alvoroçado, e fiquei sabendo que o Leo, o braço direito da Kika, pediu para o pessoal acelerar com as outras áreas, porque gostaram muito da do Rio. — Laura me abraça pelos ombros e lambe minha orelha. — Falando em acelerar, adorei aquela rapidinha ontem na sala de servidores.

Eu rio, mas balanço a cabeça.

— Você jogou sujo comigo. — Levanto-me da cama, e a safada senta-se na beirada do colchão, os peitos cheios e rosados, as coxas musculosas bem abertas. Porra! — Goza para mim! — ordeno, e ela não se faz de rogada, tocando-se sem nenhum pudor. Vou até uma das luminárias, acendo-a e tenho a visão perfeita de sua boceta totalmente depilada já molhada de tesão.

Foda-se!

Apenas abro o cinto da calça, baixo o fecho e saco meu pau para fora. Pego uma camisinha em cima de seu criado-mudo, e ela ri quando avanço até onde está.

— De costas!

Ela se deita de bruços, e eu me agacho para entrar em uma única investida. Fecho os olhos, concentrando-me nas sensações, excitado com seus gemidos, mas, de repente, sinto um cheiro diferente, os sons mudam, e um rosto doce, sorridente, de lindos olhos castanhos aparece em minha mente.

Xingo alto, querendo expulsar a imagem de Samara, aumento as estocadas até sentir as pernas arderem e gozo sem ao menos saber se minha parceira teve seu prazer.

Caralho!

Afasto-me dela e apoio as mãos contra o aparador, colocando a culpa das súbitas aparições de Samara em minha mente na distância que impus entre nós depois daquele beijo no elevador. Claro que, se ela não tivesse se mudado para a casa da mãe, certamente essa distância não seria tão dura, afinal, eu poderia encontrá-la casualmente pelos corredores do Castellani, mas quem disse que a sorte gosta de mim?

Agora, além de ter visões dela durante minhas trepadas, acordo excitado por algum sonho erótico protagonizado por ela e ainda tenho que aguentar os questionamentos de Kyra e de Chicão sobre o motivo pelo qual eu e Samara não nos falamos mais.

— Tudo bem? — Laura me toca o ombro, fazendo com que eu desperte dos devaneios sobre Samara.

— Tudo. — Retiro a camisinha e a jogo no lixo. — Preciso ir, já está amanhecendo.

— Eu sei.

Ela sorri, doce e compreensiva, e eu respiro fundo, sabendo que estou fazendo merda. Primeiro, por ela ser funcionária da Karamanlis, e segundo, por eu estar fazendo sexo com ela há duas semanas.

Nunca fico tanto tempo com alguém. Para falar a verdade, não me lembro da última vez que mantive uma única parceira, mas, por algum motivo, tenho andado preguiçoso, sem vontade de sair e, como trepei com ela e gostei, achei mais simples continuar.

Despeço-me dela apenas com um aceno de cabeça. Laura me acompanha até a porta de seu apartamento, e eu desço até o térreo, onde minha moto está estacionada em frente à portaria do prédio.

Sigo para o Castellani, mas a cabeça continua a vagar por lembranças dessas longas seis semanas desde o baile dos Villazzas. Tanta coisa aconteceu dentro e fora da Karamanlis, ainda assim senti o tempo passar lentamente.

No trabalho, as coisas começaram a ficar mais intensas, apesar de começo de ano sempre ser mais devagar. Com a conta da Ethernium, tive que mobilizar boa parte dos profissionais para elaborar croquis baseados na planta da siderúrgica e as áreas que foram aparecendo. A volta de Kika à empresa foi providencial, pois ela nos apresentou uma ideia que facilitou muito a vida de todos.

Eu ainda estou surpreso por Theodoros ter colocado a gerente dos hunters e meu irmão trabalhando juntos, pois isso não é algo do perfil do meu irmão mais velho. Foi então que, conversando ao telefone com Millos, descobri que tinha dedo dele nessa história.

A ideia de os dois trabalharem juntos não surgiu na reunião preliminar do projeto, mas foi algo que Theodoros e Millos combinaram assim que souberam que ela iria voltar para a empresa. Agora, conhecendo Millos como conheço, só me pergunto o que, especificamente, meu primo pretendeu ao dar essa sugestão.

Esperei que os dois se matassem desde a primeira semana juntos, ainda mais depois que Theodoros viajou, mas não, aparentemente tudo tem transcorrido bem entre os dois, e a conta da Ethernium parece estar em boas mãos.

Em casa, com a presença de Chico, que ainda está por lá, tenho sempre companhia para jogar bilhar, videogame ou para corridas aos finais de semana. Decidi não participar de nenhum campeonato este ano, nem de moto, nem de carro, pois o trabalho iria consumir muito de minha equipe, e eu não sou o tipo de chefe que deixa seus funcionários se fodendo de trabalhar e sai cedo para treinar ou viajar. Não sou profissional por isso, não consigo me dedicar integralmente às corridas, embora goste muito delas. Vejo-as com um hobby, assim como os esportes e outras atividades que uso para ocupar minha cabeça.

Entro na garagem do prédio, paro a moto e, assim que tiro o capacete, paro em seco ao ver Samara.

— Bom dia — ela me cumprimenta, sem parar para falar comigo e sem olhar para trás.

Confiro as horas no relógio e estranho que ela esteja saindo tão cedo de casa.

— Algum problema? — pergunto preocupado.

Samara para e me olha.

— Não. — Abre o carro, mas me aproximo antes que entre. — O que foi, Alexios? — sua voz é impaciente, e eu percebo que o clima estranho está de volta.

— Como está sua mãe?

Ela franze a testa, ajeita o cabelo e ri amarga.

— Teve que se encontrar casualmente comigo para lembrar que minha mãe está doente? — Balança a cabeça. — Sempre soube que você era desligado com as coisas, Alexios, mas na verdade é um egoísta.

Suas palavras cheias de mágoa me acertam. Aperto a mão no capacete, ciente de que ela tem razão. Eu poderia tê-la procurado, ter ligado, ter sido o amigo que ela merecia, mas, em vez disso, escolhi me afastar e deixá-la sozinha com seus problemas.

Sim, além de covarde, um grande egoísta!

— Você tem razão. — Aceno. — Bom dia.

Dou a volta e sigo em direção ao elevador, achando-me ainda mais desprezível do que sempre me achei.

— Ela está melhorando — a voz de Samara ecoa na garagem, e eu paro. — A quimioterapia está tendo os resultados esperados, e os médicos estão confiantes.

Viro-me para olhá-la, ainda parada do lado de fora do carro, com a porta do motorista aberta.

— Eu sinto muito por não ter ligado antes. — Ela dá de ombros como se não se importasse, mas sei que se importa; eu me importaria. — Você tem razão sobre eu ser um egoísta, você merecia um amigo melhor.

Samara bufa e, sem dizer nada, entra no carro, fecha a porta e liga o motor. Instantes depois, vejo-a passar por mim sem dizer nada e me sinto um bundão. Subo para meu apartamento e, assim que entro, encontro Chicão no meio da sala, usando apenas uma cueca, meditando.

— Que visão do inferno! — sacaneio e sigo para meu quarto.

— Bom dia, embuste! — saúda-me sem ao menos abrir os olhos. — Você deveria tentar, pelo visto nem suas trepadas diárias estão conseguindo mantê-lo relaxado, então, quem sabe a meditação...

— Nem fodendo! — grito para ele e sigo para o banheiro.

Somente quando fecho a porta é que toda a armadura se vai. Fico parado, olhando para o espelho, tentando analisar além da aparência que todos veem. Eu sou um filho da puta egoísta e imbecil, um impostor, uma fraude gigante que perambula pela cidade sem nem mesmo saber quem é.

Anjo dos Karamanlis! Engenheiro filantropo! Chefe preocupado com funcionários... tudo mentira!

Retiro a roupa, jogando-a no cesto de roupa suja antes de me enfiar debaixo da água gelada do chuveiro. Gostaria que, da mesma forma que essa água consegue limpar meu exterior, pudesse fazer o mesmo dentro de mim. Sou tão vazio e frio quanto meu irmão do meio e tão arrogante e egoísta quanto Theodoros. Sou tão louco quanto Nikkós!

Doeu-me ver e ouvir a mágoa que causei em Samara, mas é somente isso que causo nas pessoas. Decepção! Eu não mereço sua amizade e nem estar perto dela. A raiva de mim mesmo explode como há muitos anos não a sinto. Sem pensar, soco o vidro do boxe, que se espatifa e desaba sobre mim.

A porta do banheiro é aberta com um estrondo, e um apavorado Chicão aparece, olhos arregalados, olhando a destruição que causei ao meu banheiro.

— Merda, Alexios! — Ele salta em minha direção sem se preocupar com os cacos de vidro pelo chão e tenta me tirar do boxe. — Porra, sai daí.

Nego, o sangue escorrendo pelo ralo do banheiro, minha mão ardendo, assim como meus braços e os pés. Não me movo, apenas tremo, tentando ainda conter toda a fúria dentro de mim.

— Sai daí, Alex, você está ferido, porra! — Chicão grita.

— Não! — Não me movo. — Eu sou um lixo! Ele nunca deveria ter me pegado no lixo onde me encontrou, deveria ter me deixado morrer, deveria...

— Para com essa merda! — Some para dentro do meu quarto e, quando volta, está calçando meus coturnos. — Você não vai mais fazer isso, ouviu?

Chicão entra no que restou do boxe, desliga a água, joga uma toalha sobre meu corpo e me ergue. Não consigo reagir, a cabeça girando, todos os insultos e histórias sobre mim que ouvi de Nikkós por tantos anos enchendo meus ouvidos, torturando-me mais uma vez, ressaltando o quanto sou desprezível.

— Você não vai fazer isso consigo mesmo de novo, ouviu?! — Chicão esbraveja, fazendo pressão com a toalha de rosto na minha mão. — Ele te machucou, você se machucou, mas essa merda já acabou faz tempo. Ele não pode mais, Alexios, nem te tocar e nem contar mentiras a você. Chega!

Nego.

— Eu sinto tanta raiva... — Meus dentes batem um no outro, e eu os travo. Minha vontade é de gritar, socar, foder com tudo.

— Eu sei, já passamos por isso antes, e eu... — ele baixa o tom de voz e expira — achei que já tinha superado.

— Como? — questiono-lhe. — Como posso esquecer, se continuo a ser a mesma pessoa desprezível de sempre? Não são as marcas que ele causou no meu corpo que me causam essa raiva, sou eu!

— O que aconteceu?

Nego, trêmulo e me sento na cama. Gemo ao sentir as dores dos cortes, percebendo que a adrenalina passou mais rápido do que antigamente. Eu aprendi a controlar a dor usando a raiva. Durante anos de espancamento, percebi que, quanto mais raiva eu sentisse, menos dor ele me causava. Mais tarde, quando sentia raiva por qualquer motivo, eu mesmo me machucava, levava-me ao limite do meu corpo e quase me destruía.

Era um círculo vicioso que eu achei que já havia passado, mas, aparentemente, não.

— Encontrei Samara na garagem, provavelmente indo se encontrar com sua mãe e levá-la ao hospital — confesso, cansado demais para guardar qualquer coisa. — Eu não a via há semanas, desde o baile dos Villazzas no Ano Novo.

— Eu também só a vi uma vez aqui no prédio...

— Eu não liguei, não procurei por ela, não justifiquei meu ato e nem meu sumiço — interrompo-o e o encaro. — Ela está magoada comigo.

Chicão confere o sangramento da mão, tirando a toalha e depois se senta ao meu lado na cama.

— Por que você fez isso? Sumiu e não a procurou?

Respiro fundo; comecei o assunto, agora preciso terminá-lo.

— Preferi me afastar. — Olho para baixo, envergonhado. — Eu quase trepei com ela no elevador aqui do prédio. — Fecho os olhos. — Eu a quis como mulher, não consegui reprimir a vontade, como sempre fiz, e agi feito um idiota excitado.

— Ela o repeliu?

— O quê?

— Samara o repeliu? Te xingou? Bateu em você? Disse que você abusou dela? Mandou que ficasse longe?

Lembro-me daquela noite, a forma como reagiu ao beijo, o jeito que gemia e parecia tão excitada quanto eu.

— Ela estava bêbada, me aproveitei dela, sou um canalha.

— Nisso concordamos, mas o que ela pensa sobre o acontecido?

Balanço os ombros.

— Não sei, não falo com ela desde então. — Lembro-me da conversa com Kyra no dia seguinte ao baile e praguejo. — Ela está noiva.

— Samara? — Assinto. — Que merda!

— É, o beijo foi uma merda enorme, e eu não sei como...

— Não, seu idiota! — Ele estapeia minha cabeça. — Que merda que Samara esteja noiva, ela é a mulher perfeita para você.

Olho-o como se ele estivesse louco.

— Claro que não, ela merece alguém muito melhor do que eu! Samara nunca cogitou qualquer tipo de relacionamento comigo a não ser o de amizade.

Chicão bufa.

— Você não é idiota, Alexios Karamanlis, é um burro!

Ele joga a toalha, manchada de sangue, no chão do quarto e sai puto comigo ou com alguma coisa que eu disse. Ele não entende, óbvio! Samara é... especial, e alguém especial como ela nunca se relacionaria com alguém tão ordinário como eu.

Olho para minha mão e rio ao pensar na bagunça que sou.

Obviamente ela nunca se relacionaria e nem deveria se relacionar com alguém tão fodido como eu.

 

— O que houve com sua mão? — Laura me pergunta de repente, assustando-me, pois eu nem mesmo sabia que estava por perto. Encaro-a sem entender como e o que está fazendo aqui na K-Eng. Seu olhar é de assombro aos machucados em minha mão, além de questionadores, o que me irrita um pouco.

— Um pequeno acidente — respondo seco. — O que você está fazendo aqui?

Levanto-me da mesa, agradecendo por não ter mais ninguém por aqui a essa hora e fico de frente para ela. Laura abre um sorriso sem graça, mas logo se pendura em meu pescoço.

— Tem mais de uma semana que não te vejo, você não liga e nem aparece lá no meu apartamento. Então, se Maomé não vai até a montanha...

Reviro os olhos e retiro as suas mãos de mim.

— Laura, você trabalha na Karamanlis, então já deve ter percebido a movimentação infernal na empresa por conta da Ethernium. — Ela concorda. — Além disso, não entendi o motivo pelo qual eu deveria dar satisfação ou ter regularidade em nossos encontros.

A moça arregala os olhos por causa de minha sinceridade.

— Eu pensei que... — ela suspira — estávamos tendo essa regularidade, afinal, ficamos juntos por umas semanas e...

— Ficamos porque estava gostoso — não tenho medo de ser direto. — Mas não significa que temos qualquer tipo de compromisso. Não sou desses, Laura, e foi a primeira coisa que te disse quando trepamos a primeira vez.

Ela fica um tempo muda, olhando para o nada, então, de repente, abre um sorriso e desliza a mão pelo meu peito.

— Disse. Como disse também que queria trepar mais, lembra? Eu ainda quero mais, Alex — sua voz é ronronante. — Sempre imaginei como seria fazer sexo aqui na sua sala.

Respiro fundo, levemente excitado com o oferecimento, contudo, sem nenhuma vontade de fodê-la aqui – ou em qualquer outro lugar – depois desses questionamentos.

— Infelizmente, eu estou muito ocupado agora, motivo pelo qual ainda estou na empresa quando todos já foram. — Ela faz um biquinho, mas me afasto e volto a me sentar à mesa. — Acho melhor você ir.

Ela bufa.

— Sério isso?

Volto a olhá-la, sem esconder meu desagrado e impaciência, e ela se sobressalta.

— Sério.

Laura fica um tempo me encarando, depois vira as costas e sai da sala, andando firme e visivelmente puta. Balanço a cabeça, repreendendo a mim mesmo por ter deixado as coisas chegarem a esse ponto. Foi muito bom trepar com ela, aposto que a recíproca é verdadeira, porém não imaginei que ela criaria tantas expectativas e se sentisse no direito de vir me cobrar algo.

Erro de cálculo!, penso, sem deixar de pontuar que isso, para um engenheiro, é algo muito perigoso, que pode pôr tudo a perder.

Pego a pequena bola de borracha que tenho usado para exercitar minha mão e reparo nos machucados nela. Os cortes já estão todos secos, e os pontos que tomei em um deles já foram retirados.

Socar o vidro do boxe foi um momento de loucura, como tantos outros por que já passei. Fazia muito tempo que eu não perdia a cabeça daquele jeito, e sei que o que Samara me disse foi o gatilho responsável por isso. Não tiro, em hipótese alguma, a razão dela para me dizer aquelas palavras, mas elas acertaram o alvo na mosca.

Fecho os olhos e tensiono o pescoço, tentando relaxar um pouco para voltar a trabalhar e não enveredar pelos acontecimentos dessa semana, mas ainda não tenho esse controle total da mente e dos meus pensamentos.

A frustração me bate ao me lembrar do almoço com Konstantinos, meu irmão advogado. Achei que, pela primeira vez, ele iria se dispor a me ajudar com as respostas que procuro por anos, mas, ao que parece, ser egoísta e frio é algo familiar.

Mexo na minha agenda de anotações e encontro lá o endereço do sobrado de propriedade de Kostas. A voz da mulher misteriosa que encontrei na porta do Castellani ainda ressoa nítida em meus ouvidos:

“Eu conheci sua mãe biológica. Se quiser respostas, procure pela casa de Madame Linete.”

Foi o encontro mais estranho da minha vida. Ela estava parada lá, olhando o prédio e, quando me viu, logo perguntou se eu era um Karamanlis. Estranhei a pergunta, tentando reconhecer a senhora frágil e de cabelos brancos, mas não precisei responder, pois ela logo disse essas duas frases e se afastou sem me dar a chance de perguntar qualquer coisa mais.

Claro que eu já havia cogitado a ideia de que tinha sido gerado por alguma prostituta daquela maldita casa, afinal, era o local que meu pai mais utilizava. Não deveria ter começado do nada sua amizade com a cafetina asquerosa, mas nunca achei nada que me ligasse àquele local até esse encontro.

Talvez fosse uma pista falsa apenas, mas eu não poderia ignorar mais nada, não enquanto não achasse as respostas que procurei por toda minha adolescência a fim de tirar esse poder das mãos de Nikkós.

Não conhecer meu passado era o suficiente para meu pai ter uma enorme arma psicológica contra mim, coisa que ele utilizou por muitos e muitos anos.

Foi pensando em exterminar todo e qualquer poder que meu pai ainda pudesse ter sobre minha vida que atraí meu irmão para um almoço com a desculpa de falar da conta na qual estávamos trabalhando em conjunto.

Confesso que estranhei quando ele aceitou sem que eu tivesse que recorrer a inúmeros subterfúgios, mas agradeci a boa sorte, e nos encontramos em um restaurante neutro, escolhido a esmo, embora de alta gastronomia.

Achei que seria difícil introduzir o assunto, principalmente porque ele iria saber que pesquisei o maldito imóvel e descobri que ele o comprou há anos, quando foi a leilão. Isso me surpreendeu, claro, saber que ele comprou o sobrado e que ainda o mantém de pé sem nenhuma modificação ou uso. O assunto não surgiu naturalmente. Kostas estava estranho, mesmo falando de negócios, o que me surpreendeu, pois sempre imaginei que ele fosse se aproveitar da distância de Millos e Theo para tentar assumir a empresa.

— Eu acho que temos um acordo implícito de não falarmos sobre o passado — decidi não ser mais sutil, e Kostas reagiu imediatamente:

— Não é implícito. Não quero falar do passado. Mais explícito que isso, impossível!

Eu sabia que não seria fácil, ele é tão fechado quanto eu, então precisei desarmá-lo. Aproximei-me dele por sobre a mesa do restaurante e abaixei o tom de voz:

— Dessa vez, não poderei acatar sua vontade, Konstantinos. Sei que você comprou o sobrado da Rua...

Kostas levantou-se.

— Perdi a fome, vou voltar para a empresa.

Pus-me de pé também e o vi caminhar na direção da saída do restaurante, mas não ia desistir, não quando já havia agitado o vespeiro.

— Eu nunca te pedi ajuda. — Meu irmão parou, mas não se virou para me olhar. Decidi continuar por essa linha de ação: sinceridade. — Eu não podia te ajudar, então nunca pedi ajuda também.

— Alexios, não faça isso...

Eu soube que atingi o ponto certo, pois podia sentir a tensão no seu corpo. Nós dois temos consciência do que passamos na mão do nosso pai e de tudo que fizemos para que a loucura de Nikkós ficasse longe de Kyra. Kostas não aguentou por muito tempo, e eu o entendo, mas fiquei lá sozinho, lutando contra o monstro, tentando proteger minha irmã, mesmo sem ninguém para fazer o mesmo por mim.

Nunca tinha pensado em lhe cobrar, mas situações extremas pedem medidas extremas.

— Eu preciso, senão não faria. Há chances de eu descobrir o que Nikkós fez com minha mãe.

Fiquei satisfeito ao vê-lo se virar completamente surpreso.

— Sua mãe? Você soube algo dela?

— Nada conclusivo, mas acabei cruzando com uma pessoa que, quando soube que eu era filho dele, disse tê-la conhecido.

— Isso é loucura! Você procurou durante sua adolescência toda, quase se matou por isso, não há pistas, não há nomes, não há nada!

Lembranças de anos e anos de buscas vãs me fizeram titubear por alguns instantes. Eu não tinha um ponto de partida na época, pois ela podia ser qualquer pessoa, mas, naquele momento, eu tinha a maldita pista do imóvel.

— Preciso acessar o sobrado — voltei a falar, mas Kostas negou. — Preciso entrar e remexer tudo lá.

— Não!

— Foda-se, eu vou! — Soquei a mesa, decidido, puto demais por estar ali pedindo ajuda a ele pela primeira vez e não ser compreendido. Eu sempre o entendi, sempre o justifiquei quando saiu do apartamento e foi viver sua vida. Quando descobri que o sobrado lhe pertencia, nunca pensei em questionar seus motivos, apenas o entendi. Não era justo não ter o mesmo tratamento e consideração. — Eu sei que, por algum motivo bizarro, você o comprou, trancou-o com tudo dentro e o tem deixado apodrecendo por mais de 15 anos! Pode ter alguma pista lá.

— Não é seguro. Não vou arriscar que você morra lá dentro e eu ainda tenha que responder a...

Caralho de desculpa mais esfarrapada!

— Porra, Kostas, não fode! — Perdi a paciência, circundei a mesa e me aproximei dele, disposto a jogar pesado. — Eu sei dos teus motivos, respeito-os. Como disse, nunca te pedi ajuda antes porque sabia que você também precisava e não tinha a quem pedir, mas agora estou pedindo, agora estou contando com você. Não me faça arrombá-lo, porque eu o farei, apenas dê-me as chaves de todas aquelas grades que pôs lá.

Vi-o pensar, achei mesmo que eu estivesse tocando em alguma parte ainda viva de seu corpo, talvez no menino que conheci quando chegou para morar conosco, mas não, ao que parecia, meu irmão havia virado a porra de uma rocha fria e sem sentimentos.

— Tente invadir. Será um prazer implodir aquela merda com tudo dentro!

A mera possibilidade de ele destruir a única pista que tive do meu passado me desconsertou. Kostas aproveitou-se do momento e foi embora do restaurante.

Fiquei um tempo parado, até que ouvi um leve pigarrear e vi os garçons chegando com nossos pedidos. Estava sem fome, um bolo havia se formado em minha garganta, então pedi que embrulhassem tudo e deixei as quentinhas com o primeiro morador de rua que achei pelo caminho.

Andei sem rumo, sem saber o que fazer ou como agir. Tinha aberto meu peito para ele, pedira ajuda pela primeira vez e recebera um sonoro não. Senti algo inédito pelo meu irmão, raiva. Kostas nunca fora o alvo da minha revolta, pois sempre o compreendi, mas naquele momento não podia mais entendê-lo, não quando eu poderia ter respostas para acabar com minha tortura.

Sair de casa ajudou meu irmão a dar fim ao poder de Nikkós sobre sua vida, mas o mesmo não aconteceu comigo, e, enquanto eu não souber sobre o meu passado, não poderei tirar do homem que me gerou a possibilidade de voltar a me ferir.

O som de mensagem no celular me faz deixar de lado essas lembranças, e eu leio a mensagem de minha irmã me convidando para jantar com ela.


“Kyra, ainda estou na empresa, não poderei ir.”


Envio a mensagem esperando que seja suficiente, mas não é.


“Uma hora você precisará comer, e eu não tenho nenhuma intenção de jantar cedo. Venha no horário que puder, esperarei você.”


Merda, ela sabe ser insistente!


“Ok.”


Olho para o monitor do computador, respiro fundo e desisto de trabalhar. Minha barriga ronca, e decido aceitar o convite inesperado de minha irmã. Antes, porém, olho novamente o endereço do sobrado e traço um plano para invadi-lo sem que Konstantinos tome conhecimento.

As respostas que busco sobre mim mesmo podem ser achadas lá; não vou desistir tão fácil assim de encontrá-las. Nunca desisti fácil de nada, essa não será a primeira vez.

Imediatamente a imagem de Samara aparece em minha mente, e eu bufo, chamando-me de hipócrita. Claro que já desisti fácil de algo, eu só não gostava de admitir isso por não me achar sequer digno dela.

Quem sabe se eu achar as...

Interrompo o pensamento antes de criar ilusões que só serviriam para me machucar. Não há possibilidade de eu tê-la, mesmo que tenha todas as respostas da minha vida. Samara nunca estará ao meu alcance, e, sinceramente, acho bom que não haja nenhum envolvimento entre nós.

Ela merece mais!


Pego mais um copo de café e volto a me sentar ao lado de Daniel, sacudindo a perna, bebericando ou soprando a bebida quente. Olho para o corredor e, sem nem mesmo consumir metade do café, levanto-me para pegar um copo d’água.

Volto a me sentar, as pernas agitadas, confundo os copos e dou uma golada no café fumegante.

— Merda!

Daniel põe a mão no meu joelho e me obriga a parar de sacudir a perna.

— Se você não sossegar agora, juro que te ponho para fora — ele me ameaça.

— Desculpa. — Sorrio sem jeito. — Estou nervosa com os resultados desse primeiro ciclo de quimio e acho que deveríamos ter entrado com ela para saber mais...

— Nosso pai entrou com ela, Samara. Sossegue, você está me deixando irritado parecendo uma criança ansiosa! — Daniel fala alto, e eu o encaro surpresa. — Desculpa. — Ele põe a mão na cabeça e esfrega os olhos. — Eu quase não dormi essa noite, mas você não tem nada a ver com meu mau humor.

— Ela vai ficar bem, Dani. — Ponho minha mão em seu ombro.

— Eu sei que vai! Nunca tive dúvidas disso.

Respiro fundo e concordo com ele, embora não tenha a mesma confiança que ele demonstra ter.

Têm sido dias difíceis desde que cheguei ao Brasil, mas em momento algum me dei a oportunidade de esmorecer perto deles. A cada medicação, mamãe tinha reações mais fortes, requerendo tanto cuidado e atenção que decidi desistir de morar no meu apartamento e voltei para a casa dos meus pais.

Confesso que essa decisão também me ajudou a manter distância de Alexios Karamanlis. Não que eu ache que em algum momento ele tenha notado minha ausência ou se importado com isso, mas para mim fez toda a diferença.

É aquele ditado, sabe? O que os olhos não veem...

Suspiro.

— Você foi incrível nesses dias, Samara — Daniel volta a falar. — Mamãe esteve muito mais à vontade com você por perto do que comigo.

— Não fala besteira, Dani! — Ele sorri, sabendo que é o xodó da mamãe. — Eu gostei de ter conseguido ajudar e estar com ela de novo.

— Ela também ado... — ele para de falar assim que vê nossos pais vindo até onde estamos. Levantamo-nos juntos, apreensivos, esperançosos, e o sorriso de mamãe é reconfortante.

— O que o médico disse? — indago assim que eles se aproximam.

— O medicamento fez o efeito esperado para esse primeiro ciclo. Agora é esperar o tempo de descanso para começar de novo. — Mamãe sorri.

— E a radioterapia? — Dani questiona, e ela dá de ombros.

— O doutor ainda não prescreveu — papai responde. — Vamos torcer para que a quimio resolva sem precisar da rádio! — Ele sorri e abraça mamãe pelos ombros. — Em breve você terá sua vida agitada de volta.

Ela suspira cansada.

— Bom, vamos todos almoçar para comemorar o fim desse primeiro degrau rumo à vitória! — tento animar a todos, mas só meu pai sorri. — Ah, gente, vamos lá! Mamãe?

Ela assente e olha para Daniel.

— Você não está cansada? — meu irmão pergunta a ela.

— Não, podemos ir!

Bato palmas e a beijo na testa.

Eu entendo o desânimo dela, seria cruel não entender, pois, ainda que todos estejamos empenhados em seu tratamento, é ela quem passa por todos os efeitos colaterais dos medicamentos e pela doença. Mamãe nunca foi uma mulher parada ou passiva, e depender de outras pessoas deve estar sendo uma verdadeira prova para ela.

Foram semanas difíceis, não nego. Fiquei totalmente à disposição de minha mãe, levando-a às consultas e às sessões, fazendo companhia a ela, amparando-a em momentos de indisposição e dor. Godofredo e eu nos mudamos para a mansão da família, e eu mal tive tempo para ir ao Castellani ou mesmo visitar amigos.

Kyra esteve várias vezes conosco, geralmente após o expediente de trabalho, quando não tinha eventos. Daniel e Bianca, sua noiva, também estiveram presentes nos jantares e almoços de finais de semana, e, claro, papai.

Sorrio ao pensar em como é bom ter meu pai por perto. Ele e eu temos muitas afinidades, então, passamos muito tempo conversando, vendo filmes ou ouvindo música. Mamãe prefere ler sozinha em seu quarto à noite, por isso faço esses programas todos com papai.

Assim, o mês de janeiro se foi, e fevereiro entrou com força total com a finalização do primeiro ciclo de quimio da mamãe e o inesperado convite de Daniel para que eu trabalhe na empresa com ele.

— Dani, eu sou designer de interiores. Já trabalhei decorando mansões, apartamentos, iates e até um motor home, mas nunca fiz nada empresarial. — Fiz careta ao lhe responder. — É tudo muito frio.

— É um hotel — ele logo me informou. — Vamos redecorar um enorme hotel.

Meus olhos brilharam.

— Ele vai seguir algum padrão já existente? É um hotel de rede?

Ele nega.

— Não. É uma casa de campo que está virando hotel. — Arregalei os olhos. — O projeto de reforma é da Karamanlis, e a executora da obra é a Novak.

— K-Eng? — inquiri baixinho, e ele suspirou.

— É, mas quem está acompanhando é um dos braços direitos do seu amigo.

Havia muitos dias eu já não pensava no Alexios e nem no beijo do Ano Novo. Não foi o primeiro que trocamos depois de umas bebidas, então eu não devia lhe dar tanta importância, embora reconhecesse que ter me afastado do Castellani ajudou muito a manter distância dele. Alexios e eu já não somos mais amigos!

A perspectiva de trabalhar em um projeto como aquele enquanto eu estivesse no Brasil era maravilhosa, mesmo com a possibilidade de encontrar o CEO da K-Eng eventualmente.

— Aceito olhar o projeto e conversar sobre o briefing, só isso. — Daniel sorriu satisfeito. — Se eu puder executar meu trabalho sem a interferência de pessoas que nada entendem de decoração, pego para fazer; do contrário, estou fora.

— É assim que se fala! Você vai amar o projeto de reforma, ficar cheia de ideias, e tenho certeza de que os responsáveis pelo empreendimento vão adorar seu trabalho.

O projeto realmente estava incrível, e a ideia de como os donos queriam a decoração dos quartos e áreas comuns me deixou louca para começar o trabalho. Aceitei a proposta, negociei sob a garantia da Schneider e fechei um belo negócio aqui no meu país.

Penso no meu trabalho na Espanha e Diego me vem à cabeça. Entro no carro, no banco do carona, ao lado de Daniel e suspiro.

— O que foi? — meu irmão pergunta, seguindo o carro do papai para fora do estacionamento.

— Estava pensando no Diego.

— Vocês têm se falado?

— Sim, por mensagens. — Balanço a cabeça. — Não sei mais o que fazer para ele entender que não estou tendo nenhum tipo de crise por conta do tratamento da mamãe. Eu fui sincera com ele quando terminei. Não foi certo fazer por vídeo, mas eu não podia mais me sentir enganando-o.

— Eu entendo você, embora não goste nada do motivo que a levou a isso.

— Não tem nada a ver com Alexios, nós nem temos nos visto. Eu pensei em ir até a Espanha para conversar melhor com Diego, mas acabei de pegar esse projeto enorme e não posso me ausentar por agora. Além disso, ele está seguindo o time na Champions...

— Não sei se é boa ideia você ir atrás dele. Acho-o um tanto insistente demais. Concordo que não foi certo terminar por vídeo-ligação, mas depois disso vocês conversaram várias vezes, e o homem não para de insistir.

Eu concordo, mas ao mesmo tempo me sinto culpada.

— Sim. Mesmo assim sinto que lhe devo uma explicação.

Paramos no farol, e ele me olha.

— Você quer retornar para Madri mesmo depois desse término?

Respiro fundo e dou de ombros.

—Sim, trabalho em uma ótima empresa lá, então, por que não voltar?

Meu irmão ri.

— Isso é você quem tem que responder a si mesma. — Ele me puxa para perto e beija o topo da minha cabeça. — A decisão é sua; certa ou errada, cabe a você decidir o que fazer.

— Eu sei.

Sorrio, mesmo com minha cabeça fervendo de perguntas sem respostas, mesmo sem entender o que eu quero e por onde devo ir.

Fui para a Espanha para fugir de um sentimento que parecia não ter fim, mesmo diante da impossibilidade de se tornar algo real, e acabei fazendo amigos e criando laços por lá, mas é aqui que minha família e meus amigos estão. A decisão não é fácil!

Quanto a Alexios... o sentimento não morreu, obviamente, porém não guardo mais nenhuma ilusão com relação a ele. Sempre serei vista como a grande amiga e nada mais.


— Alexios está esquisito essa semana — Kyra comenta.

Eu rio e bebo mais um gole do vinho.

— Quando ele não foi esquisito? — debocho.

— Exatamente, a esquisitice dele não me surpreende, mas essa semana ele está mais esquisito. — Presto atenção ao que Kyra diz, pois minha amiga não costuma exagerar, pelo contrário. — Eu sei que ele está em um ritmo frenético de trabalho, mas, quando falei com ele ontem, achei-o um tanto...

— Esquisito — complemento, e Kyra revira os olhos ante minha brincadeira. — Kyra, seu irmão é a pessoa mais fechada do mundo, você sabe. Mesmo que ele esteja com merda até nos ouvidos, precisa quase se afogar nela para pedir ajuda ou falar com alguém.

Ela assente, e nós duas ficamos mudas. Eu me lembro de quando tomei conhecimento, pela primeira vez, do que eles viviam com o pai. Alexios telefonou para minha casa pedindo para que eu subisse até a cobertura, pois precisava de um favor. Não pensei duas vezes e fui até ele pensando que queria ajuda com algum jogo ou matéria – história nunca foi o seu forte –, mas, quando o vi, mal conseguia me mover.

Ele estava todo machucado nas costas. Os cortes eram verdadeiros talhos, de onde saía muito sangue, e eu tive que respirar fundo várias vezes para não vomitar.

— Samara, preciso que você seja dura agora — ele me disse com a voz calma, com toda sua sabedoria de 15 anos de idade.

— O que você quer que eu faça? — perguntei temerosa, já prevendo que ele me pediria para limpar e fazer curativos.

O problema era que, por conta do tamanho e da profundidade dos cortes, curativos não seriam o bastante. Ele ergueu uma agulha curva com um enorme pedaço de linha preta.

— Costure.

Neguei várias vezes com a cabeça, incapaz de abrir a boca sem derramar todo o lanche que havia acabado de tomar, mas ele me olhava suplicante. Percebi que, mesmo sentindo dor, ele tentava não demonstrar.

— Você precisa de um médico!

— Não. — Ele ergueu a agulha novamente. — Preciso de você.

Peguei o metal curvado. Minhas mãos tremiam, o queixo também. Era possível ouvir o som dos meus dentes batendo forte um contra o outro. Não entendia o que estava acontecendo, o motivo pelo qual ele estava daquele jeito e não ia até um hospital.

Eu mal sabia bordar, e somente a possibilidade de machucá-lo ainda mais me apavorava.

— Se fosse em outro local, eu juro que não pediria isso a você, mas eu não consigo suturar as costas sozinho.

Foi então que percebi que não era a primeira vez.

— O que foi isso, Alexios?

Ele sorriu tentando me despistar, mas depois suspirou.

— Caí em cima da mesinha de centro da sala lá de cima. — Apontou para o segundo piso da cobertura. — Ela era toda espelhada, por isso me cortei.

— Caiu?

Ele não respondeu, apenas virou-se de costas para mim e começou a me dizer o que fazer.

— A agulha já está desinfetada, e eu tomei banho, mas ainda assim preciso que você passe esse antisséptico, limpe bem o sangue e comece a costurar. — Ouvi o som de sua risada. — Pense que sou um dos seus tecidos finos e delicados de almofada e borde em mim.

Bufei com a comparação.

— Não achei graça nenhuma!

Foi um longo processo, mas cumpri com o que ele pediu e somente anos depois é que entendi tudo aquilo, inclusive a história esfarrapada do “caí por cima da mesa”.

Fiz muitos favores como esse para ele por muito tempo ainda. Aprendi a costurar sua pele, a recolocar seus ossos no lugar quando se deslocavam e até mesmo a imobilizar alguma parte de seu corpo. Porém, mesmo estando ao lado dele em todos esses momentos dolorosos, Alexios só me contou que era o pai que o espancava depois que saiu de casa com Kyra.

Eu sofri tanto por pensar nas atrocidades que eles viveram, porque minha amiga até reclama do irmão, mas são farinha do mesmo saco. Não faço ideia de como Nikkós a afetou, mas é certo que ela não foi poupada da loucura do pai.

— Ei, Samara no mundo da lua! — Kyra me cutuca. — Está pensando em quê? Perguntei por Diego, e você ainda nem me respondeu o que ficou decidido.

— Nada de diferente. — Ela cruza os braços. — Temos conversado bastante por mensagens, mas ele parece não aceitar que acabou. Diz que estou em crise e que, assim que puder, virá ao Brasil.

— Para quê?

— Conversar pessoalmente. — Fecho os olhos. — Gostaria tanto que tudo fosse diferente, sabe? Que eu pudesse gostar dele da forma como deveria.

— E por que não pode? — Olho para Kyra, e ela entende a resposta. — Uma merda isso! Então você não vai voltar para Madri mais?

Penso em Diego e em todo esse tempo em que estivemos juntos, recordo-me de como me senti feliz ao lado dele e do escritório maravilhoso de design em que trabalhei durante esses anos. Ele tem alegado isso, que estou confusa por estar longe, com medo de mudar de vez para Madri e ficar longe da minha família. Não é isso! Ter voltado ao Brasil mexeu, sim, com meus sentimentos, principalmente quebrou a ilusão de que eu tinha esquecido Alexios. Por isso ainda penso em voltar a morar na Espanha, mas não quero mais me enganar e enganar outra pessoa no percurso.

— Eu gostaria de ter essa resposta, Kyra — volto a falar. — Gostaria de saber o que é melhor para mim, mas não sei. Aqui há tantos motivos para eu ficar, como também para que eu vá, mas ainda estou indecisa.

— Eu sei. — Ela sorri compreensiva.

A campainha do apartamento dela soa alto. Estranho, porque ela não me disse que teríamos companhia, mas, por sua reação, Kyra já estava à espera de alguém.

— Talvez o motivo de sua indecisão tenha chegado agora.

Arregalo os olhos com a possibilidade de ser Alexios.

— Kyra, o que você... — não termino de formular a frase, pois minha amiga abre a porta, e o vejo olhá-la com um sorriso cansado, entrar no apartamento e parar surpreso ao me ver.

— Oi — cumprimento-o.

— Oi. — Ele desvia o olhar para Kyra.

— Vou ver se o jantar já... — ela para de falar e ergue a mão dele. — O que houve?

Os olhos de Alexios não deixam os meus, então ele abre um sorriso lindo – esse é o bendito que ele usa quando quer disfarçar alguma situação séria ou desviar o assunto – e dá de ombros.

— Um pequeno acidente besta, nada importante. — Kyra parece não engolir a desculpa esfarrapada também, mas não insiste, pois conhece o irmão muito bem. — Tem cerveja?

— Claro que tem! Vou pegar umas para você. — Ela aponta para mim. — Faça companhia para a Samara.

Nós dois a olhamos, entendendo que o jantar foi uma armadilha dela para que voltemos a nos falar. Sinceramente não entendo minha amiga. Ela sabe o que sinto e o que Alexios não sente, mas ainda assim insiste em nos manter unidos, mesmo dizendo sempre que seu irmão não é uma boa opção para mim.

Como se um dia ele considerasse me ver como mulher!

— Como estão as coisas com sua mãe? — Alexios puxa assunto de repente e se senta em uma poltrona individual bem longe de onde estou.

— O primeiro ciclo de quimioterapia acabou, e ela está bem — respondo seca. — E você, como está?

Ele abre o maldito sorriso fingido.

— Ótimo! Cheio de trabalho, sem tempo para fazer bobagens...

— Não parece. — Aponto para sua mão. — Achei que seus momentos de fúria já tivessem passado desde que começou a praticar esportes. — Ele fica sério. — Por falar nisso, vi o Chicão lá no prédio esses dias. Ele está hospedado contigo?

— Está, como sempre. — Alexios olha para trás, na direção da cozinha de Kyra e respira fundo. — Eu queria pedir desculpas novamente por...

— Não precisa — interrompo-o antes que eu seja obrigada a socar sua cara.

— Preciso — ele insiste. — Kyra me contou sobre seu relacionamento — meu coração dispara ao ouvi-lo falar sobre isso como se não tivesse importância alguma. — Espero que ele seja o homem que você merece e que sejam muito felizes como você sempre sonhou.

Engulo em seco, abro um sorriso – fervendo de raiva da Kyra – e digo a primeira coisa que me vem à cabeça:

— Ele é! — minto, e Alexios fica sério, seus olhos claros fixos nos meus. — Um verdadeiro príncipe como sempre sonhei.

— Quem bom. — Ele se levanta. — Vou até a cozinha pegar a cerveja, estou morrendo de sede.

Acompanho-o com os olhos e, quando desaparece da minha vista, gemo e me dou um tapa na cabeça. Que ridícula! Por que, mesmo sendo tão madura em vários aspectos, sou uma imbecil quando estou perto dele? Parece até que estou de volta ao aniversário de 18 anos da Kyra, quando saímos nós três para comemorar, e eu fiquei com um babaca total só porque Alexios pegou uma das garçonetes da pizzaria.

Não sou mais essa garota!

Alexios e Kyra voltam para a sala, ele, bebendo uma longneck, e minha amiga, com uma travessa na mão.

— Escondidinho de camarão, como vocês dois sempre gostaram — ela anuncia.

— O cheiro está incrível! — elogio, levantando-me do sofá e indo ajudá-la. — Há muitos anos não sinto algo tão delicioso!

— Eu também não — Alexios fala perto de mim.

Os pelos do meu corpo se arrepiam todos por causa do som de sua voz e seu hálito no meu pescoço. Viro-me para ele, sem entender o motivo pelo qual está tão próximo de mim e me surpreendo por um instante ao decifrar seu olhar: fome, e não é de comida.

Balanço a cabeça, achando impossível que seu olhar esfomeado seja para mim e me afasto dele, indo posicionar os pratos como Kyra me ensinou a fazer tempos atrás.

— Andou treinando? — minha amiga brinca ao me ver executar com perfeição seu ensinamento.

— Sim, fiz alguns jantares em Madri — conto orgulhosa. — Recebi poucas pessoas, a maioria amigos, e fiz questão de colocar em prática tudo o que você me ensinou...

— E que você achava que era bobagem! — Ela ri e olha para Alexios. — Uma arquiteta de interiores deve, no mínimo, saber montar uma mesa, não acha?

Alexios franze a testa, pensa um momento e depois concorda.

— Pregar pregos na parede, fazer arranjos florais, pintar um quadro... — Kyra fica séria, e ele começa a rir. — Há profissionais para isso, Kyra, Samara é responsável pelos layouts de móveis e projetos de planejados, não precisa saber fazer tudo!

Kyra parece estupefata, e, confesso, eu também estou, porque geralmente os dois se uniam para brincar ou me provocar, e agora ele acabou de me defender!

Alexios parece ficar sem jeito com o silêncio e dá uma enorme golada, até pôr fim ao conteúdo da garrafinha de cerveja, em seguida volta para a cozinha.

— O que está rolando? — Kyra me pressiona.

— Não sei do que...

— Samara, sem essa de “não sei do que você está falando”. Não nasci ontem, percebi que vocês estão estremecidos. Achei que tinha sido por conta dos anos longe, mas achei que isso ia passar depois do baile, mas então Alexios aparece aqui mais perdido do que cachorro que caiu da mudança e se recusa a falar o que aprontou contigo na virada do ano! — Aproxima-se. — Conte-me já!

Nem em sonho!

— Não há nada para contar.

Alexios retorna, e sua irmã avança para ele igual a um anjo vingador.

— O que está rolando entre vocês dois? — Ela põe a mão na cintura. — Sempre fomos amigos! Éramos um trio, estivemos juntos nos piores momentos de nossa infância e adolescência, parem já com qualquer merda que estiverem fazendo!

— Quanto você bebeu? — Alexios debocha. — Nada está acontecendo, não é?

 

CONTINUA

Kyra sempre foi exuberante, beleza herdada de sua mãe, devo acrescentar, pois Sabrina ainda continua tão linda quanto era na época em que era casada com Nikkós. Contudo, minha irmã ainda recebeu alguns belos traços dos Karamanlis, principalmente da famosa giagiá15, que todos sempre fazem questão de dizer que era linda e tinha a mesma coloração de olhos da minha irmã (e minha também, só que os Karamanlis nunca engoliram bem que eu realmente tenha o sangue nobre deles).

No papel, Kyra e eu somos filhos dos mesmos pais, pois Sabrina me adotou legalmente quando eu ainda era um garotinho. Ela, por poucos meses, possuía a diferença de idade obrigatória pela lei entre nós (16 anos) e, por isso, conseguiu, aos 18, adotar-me aos dois anos. Logo em seguida nasceu a Kyra, e a família ficou completa.

Na verdade, eu nunca soube da minha mãe. Tentei descobrir algo durante a adolescência, principalmente por ser esse um dos pontos que meu sádico pai adorava usar contra mim. Inventar uma história nova a cada dia sobre meu nascimento, minha origem, era sua principal diversão e tortura psicológica.

Nunca entendi nada sobre mim, a única certeza que tenho é de que, infelizmente, sou mesmo filho dele, algo que comprovei através de exame de DNA, cujo resultado positivo nunca divulguei, porque eu tinha esperança de não ter o sangue daquele monstro.

Volto a prestar atenção na foto, dessa vez em meu próprio rosto cheio de enfado por estar naquele baile com elas. Sorrio. Eu fazia esse tipo, mas a verdade é que adorava cada momento que passávamos juntos, pois me sentia em família de verdade.

Ponho a moldura no lugar e respiro fundo, controlando meu corpo, colocando juízo na minha cabeça, ressaltando tudo o que tem de importante na amizade entre mim e Samara e concluindo que um envolvimento fora desses termos entre nós só serviria para destruir anos e anos de companheirismo.

Samara merece ser feliz com alguém que possa ser o homem com que ela sempre sonhou, o príncipe encantado dos seus sonhos de menina, alguém que saiba quem é, que tenha valor e que possa demonstrar todo o amor que sente por ela e reconheça o privilégio que é ser amado.

Esse homem não sou eu!

 

Depois do banho na casa de Kyra, fui direto para a empresa. É providencial ter uma mochila de roupas minhas no apartamento dela, mas confesso que não vou muito de jeans e camisa de malha para a Karamanlis.

Passei no Castellani apenas para pegar minha moto, nem me atrevi a subir até meu apartamento, sendo covarde mais uma vez. A questão é que eu não saberia nem mesmo o que dizer a Samara caso nos encontrássemos de novo.

Estava saindo do estacionamento quando meu celular tocou, mas, como já estava sobre a moto – e não queria demorar muito na garagem, porque o carro de Samara ainda estava na vaga dela –, deixei para conferir a ligação quando estivesse no prédio, o que faço agora, retornando a ligação.

— Oi, Chicão! — cumprimento-o assim que atende.

— Alex, seu grande safado, feliz Ano Novo! — o homem mais velho, que se tornou um grande amigo e a quem eu considero como um pai – no sentido do que realmente um pai deveria ser – por pouco não me ensurdece ao telefone. — Cheguei ao inferno hoje, queria saber se poderia passar uns dias lá naquele seu apartamento cinco estrelas.

Abro um sorriso de felicidade ao pensar que ele está de volta a São Paulo. Francisco Salatiel Figueiroa é o nome dessa figura de quase 60 anos, paulistano – mas que odeia sua cidade natal – e viciado em esportes radicais assim como eu.

Nós nos conhecemos quando eu ainda estava no colégio, devia ter uns 15 anos e fui participar de um racha de moto pela cidade. Ele apareceu por lá, chamou-me em um canto e me convidou a fazer cross ao invés de colocar minha vida e a de outras pessoas em risco correndo pelas ruas.

Comecei a ir para o os circuitos de motocross, tomei muito tombo, enlameei-me até o pescoço e me senti mais vivo do que quando me arriscava nos rachas. Nós nos tornamos amigos mesmo com nossa gritante diferença de idade, pois ele dizia que eu lembrava o moleque atentado que ele mesmo tinha sido um dia, e comecei a acompanhá-lo em suas atividades.

Foi por causa dele que deixei de buscar alívio e fuga nas drogas, pois conseguiu me mostrar que, se eu quisesse me livrar de Nikkós, teria que ser melhor que ele. Não foi um processo fácil, admito, levei anos para entender e ouvir seus conselhos, mas nem por isso ele desistiu de mim ou se afastou.

Francisco começou a me mostrar que eu poderia extravasar toda minha angústia, solidão, medo e revolta em esportes como trilhas de moto, bike, escaladas, voos livres, paraquedismo e, quando tirei minha carteira de motorista, apresentou-me a alguns amigos dos circuitos de motovelocidade.

Os esportes aliviavam meu corpo da tensão vivida em casa, mas minha cabeça e minha alma continuavam pesadas, então, um dia, ele me viu desenhar e descobriu como eu poderia tratar os demônios dentro de mim.

Devo muito a ele, não só pelo equilíbrio que consegui hoje em minha vida, como também por permanecer vivo e são. Samara e ele foram os únicos a permanecerem ao meu lado nos piores momentos da minha vida, ela me auxiliando principalmente com Kyra, e ele entendendo meus problemas e me ajudando a achar soluções.

— Meu apartamento é seu! Te dei a chave, afinal.

— Eu sei, mas é sempre bom dar uma conferida, vai que você resolveu sossegar seu pau numa boceta só.

Gargalho com seu jeito rude e direto.

— Não, meu pau ainda gosta de explorar por aí. — Ele me chama de “vadio” e ri. — Estou na Karamanlis agora e...

— Ah, me diz que estou sonhado... — estranho o que ele fala, escuto vozes ao fundo e percebo que não falou comigo. Espero que ele retome a ligação, entro no elevador, cumprimento as pessoas com a cabeça e sorrio para uma mulher gostosa que nunca vi aqui no prédio. — Seu trapaceiro de uma figa! Samara está de volta e, caramba, mais linda do que nunca.

Só de ouvir o nome dela, sinto meu corpo reagir como se uma descarga elétrica tivesse me atingido.

— Encontrou-se com ela agora?

— Sim, seu embuste! Quantos anos ela esteve fora? Caralho, você já a viu?

Franzo a testa, desço no meu andar, confuso com a perplexidade dele apenas por ter visto a Samara no prédio, afinal, ele sabe muito bem que ela tem um apartamento lá.

— Já, desde que chegou — respondo distraído, acenando para os funcionários da K-Eng. — Por quê?

— Alexios, eu sempre me perguntei se você era cego ou apenas muito burro. — Ouço o barulho de uma porta se fechando. — Nunca entendi por que vocês dois nunca tiveram nada um com o outro.

Paro no meio do corredor, atraindo os olhares de pelo menos dois engenheiros que passam por mim. Que merda é essa?!

— Ela é minha amiga — digo o óbvio.

— Ela é incrível e sua amiga, isso já não é meio caminho para um relacionamento de sucesso?

Um alerta dispara em meu cérebro. Chicão nunca foi um homem ligado a relacionamentos permanentes, tanto que é solteiro até hoje, então não entendo o motivo pelo qual está falando essas coisas sobre mim e Samara.

— Chicão, sou eu! Eu não tenho relacionamentos, eu fodo por aí, só isso. E, definitivamente, Samara não é uma mulher apenas para se foder.

Ele emite um grunhido, e, ao fundo, escuto o bipe da minha cafeteira sendo ligada.

— Nisso concordamos. Mas ela é incrível, sempre foi, se eu tivesse a sua idade e a sua aparência, não perderia a oportunidade de tê-la comigo.

Mas o que... Arregalo os olhos, e meu coração dispara.

— Você está morrendo? — inquiro-lhe como se fosse a única opção válida para essa mudança de comportamento.

Chicão gargalha.

— Não, mas estou ficando velho e sozinho. — Bufa. — Mas isso não é assunto para discutirmos ao telefone, já que você está na empresa.

— Chicão, está tudo bem?

— Vai trabalhar, embuste, depois conversamos. Viajei a noite toda, quero tomar um banho, comer algo e dormir um pouco. Obrigado pelo abrigo.

Ele ainda não me convenceu, algo está errado.

— A casa é sua! — declaro, e ele encerra a ligação.


— Quer mais um travesseiro? — pergunto à minha mãe assim que ela se deita na cama.

— Não, filha, estou bem. — Sorri, mas o cansaço não permite que o faça por muito tempo. — É sempre assim no dia da medicação, mas passa.

Balanço a cabeça concordando, enternecida por ela estar tentando me consolar, quando é ela quem está passando por isso tudo. Sempre a admirei por sua força, seu destemor e a capacidade de realizar qualquer coisa que se propunha a fazer.

Mamãe não tem um gênio fácil de lidar, mas nunca negou amor e afeto aos seus filhos, mesmo sendo brava e exigente como era. Dani e eu tínhamos muito mais medo dela do que do papai, que sempre foi mais maleável, mas moderno e liberal.

O relacionamento dos meus pais, enquanto casal, não era um mar de rosas, mas eles eram amigos, companheiros. Ele sempre a apoiou em tudo, e ela acima de tudo o admirava. Não tinham grandes arroubos de paixão, pelo menos não na nossa frente, mas se respeitavam, conversam, riam e, principalmente, nos amavam muito. Dani, como filho e mais velho, sempre foi agarrado a minha mãe mais do que a nosso pai. Os dois se dão bem, são muito parecidos em alguns aspectos, mas quem sempre teve mais afinidade com papai fui eu.

Acho que nossas almas são parecidas. Ambos somos apaixonados pelas formas, perfeccionistas, românticos e, arrisco dizer, sonhadores. Eu sou assim, gostaria de ser prática como mamãe, mas há muito que parei de tentar ser quem não sou. Demorei, mas consegui aceitar meu jeito e me respeitar acima de tudo.

É dolorido tentar ser quem não é para se encaixar ou seguir uma tendência. Eu sou forte, mesmo sendo doce; sou feminista, mesmo sendo feminina e vaidosa; sou empoderada, mesmo sonhando em casar e ter uma família.

Eu me importo com a opinião alheia, sim, porque ninguém é uma ilha e não teria sentido na vida se todos fôssemos autossuficientes e não dependêssemos de ninguém. Não tenho preconceitos, sou feliz com a felicidade dos outros e não me importo que a recíproca não seja verdadeira. Cada um escolhe o caminho que quer percorrer. Eu escolhi ser assim, exatamente como sou.

Chegar até essa conclusão não foi fácil, principalmente quando se percebe que o homem por quem você é apaixonada prefere as mulheres que têm atitude, que são furacão e não calmaria. Eu quis fazer tipo e percebi que estava indo na contramão de tudo o que uma “mulher de atitude” prega, que estava tentando ser outra pessoa para agradar a um homem.

Foi aí que aquela máxima tão clichê, mas que é tão difícil de ser vivida, fez sentido para mim: quem me amar, precisa me conhecer e me aceitar como sou.

Demorei a perceber a importância disso, precisei praticamente ter isso esfregado na cara. Então arrumei minhas malas, disse ao meu pai que não iria para Barcelona, mas sim para Madri, e segui com minha vida.

Alexios foi o estopim que eu precisava para explodir naquela época, depois de ter aparecido no meu apartamento bêbado a ponto de não se aguentar de pé. Ele pediu para dormir no meu sofá, tivemos uma dura discussão quando tentei lhe passar sermão e, no meio da noite, acordei com ele na minha cama.

Fiquei sem reação quando senti sua mão na minha cintura, alisando minha pele por cima do pijama de seda. Fechei os olhos, excitada e ansiosa, e o deixei prosseguir com a exploração. Não o impedi quando me virou, nem quando me beijou e subiu em cima de mim. Tinha esperado por aquilo a vida toda, e estava acontecendo.

Ledo engano!

Ele ficou imóvel, esmagando-me com seu peso, então percebi que havia dormido. Joguei-o para o lado e passei a noite em claro, sem entender nada, esperando que ele acordasse e explicasse.

Acabei dormindo e acordando sozinha na cama. Ele tinha ido embora, e não conversamos, mas esperei que a conversa viesse mais tarde. Não veio. Ele simplesmente ignorou o beijo, as carícias, como se não fossem nada, como se eu não fosse nada.

Fiquei irritada, subi para perguntar diretamente a ele o motivo pelo qual tinha me beijado, mas, quando cheguei ao seu apartamento, estava rolando uma de suas festinhas regada a bebidas e sexo, e o filho da mãe estava sentado no sofá com uma mulher de cada lado em um beijo triplo.

Ele nem me viu, fechei a porta, desci e decidi parar de protelar minhas decisões esperando por algo que nunca iria acontecer. Um relacionamento com Alexios era uma ilusão infantil, mas eu já não era mais criança.

Viajei dois dias depois e pensei que, quando voltasse, toda essa ilusão teria se desfeito.

— Então o nome dele é Diego — mamãe fala, e eu quase pulo de susto, deixando as lembranças para tentar entender do que ela está falando. — Diego Vergara!

Sento-me na beirada da cama, curiosa sobre como ela conseguiu essa informação.

— O nome dele é mais comprido do que isso, mas, sim, Diego Vergara.

Ela sorri cheia de sabedoria.

— E você deve estar aí querendo saber como eu sei o nome dele. — Concordo. — Seu irmão me contou.

Daniel e sua boca! Meu irmão sempre foi o maior X9 do mundo, não é de se espantar que tenha contado sobre o Diego para minha mãe.

— Há quanto tempo estão juntos?

Não sei o que dizer a ela e agradeço quando uma enfermeira entra no quarto, dando-me a desculpa perfeita para escapulir de sua curiosidade. O fato é que tudo mudou depois da noite do baile dos Villazzas.

Não sei o que levou Alexios a me beijar daquela forma no elevador, eu estava bem bêbada dessa vez, mas ele não tanto, além disso, eu senti a energia entre nós, senti o tesão que ele exalava, que trazia na saliva e em cada toque no meu corpo. Alexios não escondeu em nenhum momento o quanto estava excitado, esfregou sua ereção contra mim, esmagou-me contra o espelho do elevador parecendo que queria me comer ali mesmo.

Depois, do nada, mudou. Pediu desculpas! Desculpas por me beijar! Só faltou dizer que estava com tesão, e eu era a única mulher próxima dele, mas que nem assim servia.

Para piorar, quando entrei no apartamento e peguei o celular, vi uma mensagem de Diego dizendo o quanto sentia minha falta e como ele gostaria de poder estar aqui comigo. Foi a gota d’água! Senti-me um lixo, uma pessoa má que engana e trai e percebi que tê-lo deixado na Espanha sem uma resposta definitiva foi uma atitude egoísta.

Chorando, sem pensar direito, fiz uma chamada de vídeo para ele e, quando atendeu, disparei:

— Diego, eu sou uma pessoa horrível, mas não posso fazer isso com você! — Soluçava tanto que ele se assustou e me pediu para falar devagar. Todavia, eu não conseguia. — Você é um homem incrível, um amigo maravilhoso, e eu adorei cada momento que passamos juntos...

— Calmarse, Samara! Yo no comprendo!

— Você merece mais, merece alguém melhor, e eu não posso...

— Usted está me dejando preocupado, cariño.

— Eu não queria fazer isso assim, por telefone. — Ele ficou sério, atento, prevendo o que eu lhe diria. — Mas não é justo que você fique aguardando minha volta para que eu diga isso. — Respirei fundo, armando-me de coragem. — Eu não posso aceitar seu pedido, Diego. Eu não estou pronta para amar você como deveria, como você merece.

— Samara, sucedio algo com su mamá?

Neguei.

— Não. Sou eu, não mereço você. Você tem razão ao dizer que meu coração nunca pôde estar aí contigo.

— Samara, despues hablamos, está muy nervosa. — Tentei dizer a ele que não, mas não me deu oportunidade: — Tengo que ir.

— Diego, não...

Ele encerrou a chamada. Tentei retornar outras vezes, porém a ligação não completava. Deixei mensagens, mas que, até o momento, ele não visualizou. Volto a olhar para mamãe, que boceja, visivelmente cansada, e fecha os olhos, recostada nos travesseiros, enquanto a enfermeira mede sua pressão. Eu voltei ao Brasil apenas por causa dela, para estar ao seu lado nesses momentos tão difíceis, não por qualquer outro motivo. Sinceramente, não esperava essa pressão acerca de Alexios e Diego. Minha família nunca foi assim, muito menos mamãe, que sempre pregou que uma mulher não precisa de marido e filhos para se sentir completa e feliz.

Mamãe adormece, e eu saio do quarto. Quando estou prestes a descer a escada, escuto uma voz conhecida e muito amada:

— Minha Samara está de volta! — Papai está no corredor de braços abertos. Sorrio e vou até ele para abraçá-lo. — Ah, que saudades!

— Eu também estava, mas cheguei há mais de uma semana, e você nem se dignou a vir me ver.

— Eu sei, mas agora vim para ficar, Herzchen16, e estou feliz por te ter de volta aqui em casa. — Ele beija minha testa. — Não pretende voltar para a Espanha, não é?

Suspiro. Papai foi o primeiro a me incentivar a ir estudar fora, mas o único a ficar chateado quando decidi ficar depois que terminei a especialização. Nunca foi me visitar. Embora falássemos sempre, eu percebia que ele ainda não havia entendido minha necessidade de ficar longe.

— Vou voltar, sim, tenho compromissos de trabalho por lá que...

— Besteira! Aposto que você já tem tudo desenhado e organizado e que, em uma visita ou duas, poria fim a esses “compromissos”.

— Papai, não vim para ficar, e o senhor sabe. Mamãe está na parte mais agressiva do tratamento, e Dani precisou de mim para ajudar a cuidar dela e acompanhá-la...

— Estou aqui também! — ele se ofende por não ter sido incluído. — Ela diz que não precisa de mim, mas estou aqui, sempre estive por ela.

Oh, Deus, que situação!

— Eu sei, pai.

Benjamin Abraão Nogueira Klein Schneider nunca entendeu bem a distância fria de mamãe, por mais que os dois sempre tenham se dado bem. Acho até que foi por esse motivo que se afastaram depois que crescemos e que, após minha ida para a Espanha e a de Dani para seu próprio apartamento, papai decidiu se mudar para a fazenda.

Uma vez, quando eu ainda era uma garotinha, eu o vi bêbado no escritório do antigo apartamento em que morávamos. Ele bebia e parecia mal, chorava e segurava alguns documentos. Quando me viu, tentou sorrir e me chamou para perto de si.

— Tudo bem? — perguntei na inocência dos meus oito anos de idade e limpei suas lágrimas.

— Tudo. — Ele guardou a papelada dentro de uma caixa, onde vislumbrei também algumas fotos, trancou-a com chave e depois respirou fundo. — A vida adulta é complicada, Herzchen. Fazemos escolhas baseadas no que achamos ser melhor e esquecemos o preço que isso cobra, tanto aqui — ele apontou para sua cabeça — quanto aqui. — E, por fim, tocou em seu coração.

Na época não entendi nada, mas esse momento nunca deixou minha memória e, com o tempo, supus que ele estivesse falando de seu relacionamento com mamãe. Os dois se davam bem, mas era ele quem sempre cedia numa discussão ou quem corria atrás quando as coisas ficavam tensas entre eles.

— Vi seu bichinho pré-histórico lá no jardim comendo algumas plantas — ele ri, mudando de assunto. — Você poderia ter adotado um cachorro ou um gato como qualquer outra pessoa, não é?

— Pai, eu o ganhei de presente e gosto dele.

— Mas ele é feroz! — Faz cara de medo. — Já me mordeu algumas vezes.

Gargalho.

— Godofredo é muito territorialista, ele sempre ataca os homens.

— Hum, que interessante! Começo a gostar desse bichinho. — Rio do seu ciúme. — Você não trouxe nenhum espanhol junto contigo, não é?

Suspiro.

— Não. E se o Dani disse algo para o senhor também, ele é...

Benjamin me afasta de seus braços, segurando-me pelos ombros, e me olha surpreso.

Merda!

— Ele não disse nada, não é? — pergunto, achando-me idiota.

Meu pai nega:

— Era só uma pergunta brincalhona e especulativa. — Olha em volta. — O que ele deveria me dizer?

— Eu tinha um namorado em Madri, mas ele ficou por lá.

Ele põe a mão sobre o peito.

— Adorei esse tempo verbal: “eu tinha um namorado”. — Rio. — Agora você terá que me contar sobre esse tal...

— Ele me pediu em casamento — disparo. — Mas eu não pude aceitar.

Ficamos um tempo um olhando para o outro, parados no corredor, sem emitir um som sequer. Papai sempre foi bom ouvinte e dava bons conselhos. Mesmo não sendo muito de falar sobre como se sentia, mesmo reservado em seus sentimentos, até mesmo com seus filhos, ele sabia ouvir sem julgar e só opinava quando achava necessário, o contrário de mamãe.

— Preciso de um café ou de algo mais forte — confessa, e eu rio nervosa. — Vou falar com sua mãe e...

— Ela acabou de dormir — informo-lhe.

— Certo! — Respira fundo. — Se lembra daquele seu namorado da faculdade? — Gemo e assinto. — Você tinha dúvidas quanto ao caráter dele e, mesmo com todos os seus instintos te alertando que algo não estava bem, você aceitou o namoro e...

— Meus instintos estavam certos, ele era um pilantra filho da puta casado!

— E eu quis castrá-lo. — Ele sorri doce, como se isso não fosse nada. — Enfim, o meu conselho para essa questão sempre é: siga seus instintos. Se você não se achava pronta para aceitar o pedido, então fez certo ao recusá-lo.

— Então, você acha que eu fiz certo ao ouvir meu coração?

Ele ri e nega.

— Não, eu disse para ouvir seus instintos, porque seu coração não tem juízo. — Eu rio, achando que ele está fazendo troça, mas, então, ele completa: — Já se apaixonou uma vez por Alexios Karamanlis!

Fico séria, coração disparado, porque, embora ele saiba de todos os meus namorados e experiências, nunca contei a ele sobre Alexios.

Era óbvio para todos, não sei como consegui enganar a mim mesma! Eu ainda amo aquele safado!


— Alexios? — Termino de calçar os tênis antes de me virar para olhar Laura deitada na cama. — Já vai?

Ela se contorce languidamente, seu corpo curvilíneo, dourado de sol se mexendo contra os macios e perfumados lençóis de sua cama. Sorrio, deslizo a mão pela curva de seu lindo rabo e desfiro um tapa nele, fazendo-a rir.

— Preciso ir, tenho reuniões importantes agora de manhã na empresa, e, com a viagem de Theodoros para a Grécia e a demora na volta de Millos, as coisas ficaram acumuladas entre mim e o Kostas.

Ela bufa e se senta.

— Eu sei, ontem eles me passaram as informações sobre a propriedade no Rio de Janeiro, da reunião que tiveram na quinta-feira. — Ela dá de ombros. — Achei que Kika ia aparecer cheia de gás na sexta-feira, mas nem ela e nem seu irmão apareceram na empresa.

— A área é boa mesmo? — pergunto, pois apenas vi algumas imagens do local, e, como Laura é do geoferenciamento, deve ter detalhes bem específicos.

Ela confirma.

— O pessoal do jurídico está alvoroçado, e fiquei sabendo que o Leo, o braço direito da Kika, pediu para o pessoal acelerar com as outras áreas, porque gostaram muito da do Rio. — Laura me abraça pelos ombros e lambe minha orelha. — Falando em acelerar, adorei aquela rapidinha ontem na sala de servidores.

Eu rio, mas balanço a cabeça.

— Você jogou sujo comigo. — Levanto-me da cama, e a safada senta-se na beirada do colchão, os peitos cheios e rosados, as coxas musculosas bem abertas. Porra! — Goza para mim! — ordeno, e ela não se faz de rogada, tocando-se sem nenhum pudor. Vou até uma das luminárias, acendo-a e tenho a visão perfeita de sua boceta totalmente depilada já molhada de tesão.

Foda-se!

Apenas abro o cinto da calça, baixo o fecho e saco meu pau para fora. Pego uma camisinha em cima de seu criado-mudo, e ela ri quando avanço até onde está.

— De costas!

Ela se deita de bruços, e eu me agacho para entrar em uma única investida. Fecho os olhos, concentrando-me nas sensações, excitado com seus gemidos, mas, de repente, sinto um cheiro diferente, os sons mudam, e um rosto doce, sorridente, de lindos olhos castanhos aparece em minha mente.

Xingo alto, querendo expulsar a imagem de Samara, aumento as estocadas até sentir as pernas arderem e gozo sem ao menos saber se minha parceira teve seu prazer.

Caralho!

Afasto-me dela e apoio as mãos contra o aparador, colocando a culpa das súbitas aparições de Samara em minha mente na distância que impus entre nós depois daquele beijo no elevador. Claro que, se ela não tivesse se mudado para a casa da mãe, certamente essa distância não seria tão dura, afinal, eu poderia encontrá-la casualmente pelos corredores do Castellani, mas quem disse que a sorte gosta de mim?

Agora, além de ter visões dela durante minhas trepadas, acordo excitado por algum sonho erótico protagonizado por ela e ainda tenho que aguentar os questionamentos de Kyra e de Chicão sobre o motivo pelo qual eu e Samara não nos falamos mais.

— Tudo bem? — Laura me toca o ombro, fazendo com que eu desperte dos devaneios sobre Samara.

— Tudo. — Retiro a camisinha e a jogo no lixo. — Preciso ir, já está amanhecendo.

— Eu sei.

Ela sorri, doce e compreensiva, e eu respiro fundo, sabendo que estou fazendo merda. Primeiro, por ela ser funcionária da Karamanlis, e segundo, por eu estar fazendo sexo com ela há duas semanas.

Nunca fico tanto tempo com alguém. Para falar a verdade, não me lembro da última vez que mantive uma única parceira, mas, por algum motivo, tenho andado preguiçoso, sem vontade de sair e, como trepei com ela e gostei, achei mais simples continuar.

Despeço-me dela apenas com um aceno de cabeça. Laura me acompanha até a porta de seu apartamento, e eu desço até o térreo, onde minha moto está estacionada em frente à portaria do prédio.

Sigo para o Castellani, mas a cabeça continua a vagar por lembranças dessas longas seis semanas desde o baile dos Villazzas. Tanta coisa aconteceu dentro e fora da Karamanlis, ainda assim senti o tempo passar lentamente.

No trabalho, as coisas começaram a ficar mais intensas, apesar de começo de ano sempre ser mais devagar. Com a conta da Ethernium, tive que mobilizar boa parte dos profissionais para elaborar croquis baseados na planta da siderúrgica e as áreas que foram aparecendo. A volta de Kika à empresa foi providencial, pois ela nos apresentou uma ideia que facilitou muito a vida de todos.

Eu ainda estou surpreso por Theodoros ter colocado a gerente dos hunters e meu irmão trabalhando juntos, pois isso não é algo do perfil do meu irmão mais velho. Foi então que, conversando ao telefone com Millos, descobri que tinha dedo dele nessa história.

A ideia de os dois trabalharem juntos não surgiu na reunião preliminar do projeto, mas foi algo que Theodoros e Millos combinaram assim que souberam que ela iria voltar para a empresa. Agora, conhecendo Millos como conheço, só me pergunto o que, especificamente, meu primo pretendeu ao dar essa sugestão.

Esperei que os dois se matassem desde a primeira semana juntos, ainda mais depois que Theodoros viajou, mas não, aparentemente tudo tem transcorrido bem entre os dois, e a conta da Ethernium parece estar em boas mãos.

Em casa, com a presença de Chico, que ainda está por lá, tenho sempre companhia para jogar bilhar, videogame ou para corridas aos finais de semana. Decidi não participar de nenhum campeonato este ano, nem de moto, nem de carro, pois o trabalho iria consumir muito de minha equipe, e eu não sou o tipo de chefe que deixa seus funcionários se fodendo de trabalhar e sai cedo para treinar ou viajar. Não sou profissional por isso, não consigo me dedicar integralmente às corridas, embora goste muito delas. Vejo-as com um hobby, assim como os esportes e outras atividades que uso para ocupar minha cabeça.

Entro na garagem do prédio, paro a moto e, assim que tiro o capacete, paro em seco ao ver Samara.

— Bom dia — ela me cumprimenta, sem parar para falar comigo e sem olhar para trás.

Confiro as horas no relógio e estranho que ela esteja saindo tão cedo de casa.

— Algum problema? — pergunto preocupado.

Samara para e me olha.

— Não. — Abre o carro, mas me aproximo antes que entre. — O que foi, Alexios? — sua voz é impaciente, e eu percebo que o clima estranho está de volta.

— Como está sua mãe?

Ela franze a testa, ajeita o cabelo e ri amarga.

— Teve que se encontrar casualmente comigo para lembrar que minha mãe está doente? — Balança a cabeça. — Sempre soube que você era desligado com as coisas, Alexios, mas na verdade é um egoísta.

Suas palavras cheias de mágoa me acertam. Aperto a mão no capacete, ciente de que ela tem razão. Eu poderia tê-la procurado, ter ligado, ter sido o amigo que ela merecia, mas, em vez disso, escolhi me afastar e deixá-la sozinha com seus problemas.

Sim, além de covarde, um grande egoísta!

— Você tem razão. — Aceno. — Bom dia.

Dou a volta e sigo em direção ao elevador, achando-me ainda mais desprezível do que sempre me achei.

— Ela está melhorando — a voz de Samara ecoa na garagem, e eu paro. — A quimioterapia está tendo os resultados esperados, e os médicos estão confiantes.

Viro-me para olhá-la, ainda parada do lado de fora do carro, com a porta do motorista aberta.

— Eu sinto muito por não ter ligado antes. — Ela dá de ombros como se não se importasse, mas sei que se importa; eu me importaria. — Você tem razão sobre eu ser um egoísta, você merecia um amigo melhor.

Samara bufa e, sem dizer nada, entra no carro, fecha a porta e liga o motor. Instantes depois, vejo-a passar por mim sem dizer nada e me sinto um bundão. Subo para meu apartamento e, assim que entro, encontro Chicão no meio da sala, usando apenas uma cueca, meditando.

— Que visão do inferno! — sacaneio e sigo para meu quarto.

— Bom dia, embuste! — saúda-me sem ao menos abrir os olhos. — Você deveria tentar, pelo visto nem suas trepadas diárias estão conseguindo mantê-lo relaxado, então, quem sabe a meditação...

— Nem fodendo! — grito para ele e sigo para o banheiro.

Somente quando fecho a porta é que toda a armadura se vai. Fico parado, olhando para o espelho, tentando analisar além da aparência que todos veem. Eu sou um filho da puta egoísta e imbecil, um impostor, uma fraude gigante que perambula pela cidade sem nem mesmo saber quem é.

Anjo dos Karamanlis! Engenheiro filantropo! Chefe preocupado com funcionários... tudo mentira!

Retiro a roupa, jogando-a no cesto de roupa suja antes de me enfiar debaixo da água gelada do chuveiro. Gostaria que, da mesma forma que essa água consegue limpar meu exterior, pudesse fazer o mesmo dentro de mim. Sou tão vazio e frio quanto meu irmão do meio e tão arrogante e egoísta quanto Theodoros. Sou tão louco quanto Nikkós!

Doeu-me ver e ouvir a mágoa que causei em Samara, mas é somente isso que causo nas pessoas. Decepção! Eu não mereço sua amizade e nem estar perto dela. A raiva de mim mesmo explode como há muitos anos não a sinto. Sem pensar, soco o vidro do boxe, que se espatifa e desaba sobre mim.

A porta do banheiro é aberta com um estrondo, e um apavorado Chicão aparece, olhos arregalados, olhando a destruição que causei ao meu banheiro.

— Merda, Alexios! — Ele salta em minha direção sem se preocupar com os cacos de vidro pelo chão e tenta me tirar do boxe. — Porra, sai daí.

Nego, o sangue escorrendo pelo ralo do banheiro, minha mão ardendo, assim como meus braços e os pés. Não me movo, apenas tremo, tentando ainda conter toda a fúria dentro de mim.

— Sai daí, Alex, você está ferido, porra! — Chicão grita.

— Não! — Não me movo. — Eu sou um lixo! Ele nunca deveria ter me pegado no lixo onde me encontrou, deveria ter me deixado morrer, deveria...

— Para com essa merda! — Some para dentro do meu quarto e, quando volta, está calçando meus coturnos. — Você não vai mais fazer isso, ouviu?

Chicão entra no que restou do boxe, desliga a água, joga uma toalha sobre meu corpo e me ergue. Não consigo reagir, a cabeça girando, todos os insultos e histórias sobre mim que ouvi de Nikkós por tantos anos enchendo meus ouvidos, torturando-me mais uma vez, ressaltando o quanto sou desprezível.

— Você não vai fazer isso consigo mesmo de novo, ouviu?! — Chicão esbraveja, fazendo pressão com a toalha de rosto na minha mão. — Ele te machucou, você se machucou, mas essa merda já acabou faz tempo. Ele não pode mais, Alexios, nem te tocar e nem contar mentiras a você. Chega!

Nego.

— Eu sinto tanta raiva... — Meus dentes batem um no outro, e eu os travo. Minha vontade é de gritar, socar, foder com tudo.

— Eu sei, já passamos por isso antes, e eu... — ele baixa o tom de voz e expira — achei que já tinha superado.

— Como? — questiono-lhe. — Como posso esquecer, se continuo a ser a mesma pessoa desprezível de sempre? Não são as marcas que ele causou no meu corpo que me causam essa raiva, sou eu!

— O que aconteceu?

Nego, trêmulo e me sento na cama. Gemo ao sentir as dores dos cortes, percebendo que a adrenalina passou mais rápido do que antigamente. Eu aprendi a controlar a dor usando a raiva. Durante anos de espancamento, percebi que, quanto mais raiva eu sentisse, menos dor ele me causava. Mais tarde, quando sentia raiva por qualquer motivo, eu mesmo me machucava, levava-me ao limite do meu corpo e quase me destruía.

Era um círculo vicioso que eu achei que já havia passado, mas, aparentemente, não.

— Encontrei Samara na garagem, provavelmente indo se encontrar com sua mãe e levá-la ao hospital — confesso, cansado demais para guardar qualquer coisa. — Eu não a via há semanas, desde o baile dos Villazzas no Ano Novo.

— Eu também só a vi uma vez aqui no prédio...

— Eu não liguei, não procurei por ela, não justifiquei meu ato e nem meu sumiço — interrompo-o e o encaro. — Ela está magoada comigo.

Chicão confere o sangramento da mão, tirando a toalha e depois se senta ao meu lado na cama.

— Por que você fez isso? Sumiu e não a procurou?

Respiro fundo; comecei o assunto, agora preciso terminá-lo.

— Preferi me afastar. — Olho para baixo, envergonhado. — Eu quase trepei com ela no elevador aqui do prédio. — Fecho os olhos. — Eu a quis como mulher, não consegui reprimir a vontade, como sempre fiz, e agi feito um idiota excitado.

— Ela o repeliu?

— O quê?

— Samara o repeliu? Te xingou? Bateu em você? Disse que você abusou dela? Mandou que ficasse longe?

Lembro-me daquela noite, a forma como reagiu ao beijo, o jeito que gemia e parecia tão excitada quanto eu.

— Ela estava bêbada, me aproveitei dela, sou um canalha.

— Nisso concordamos, mas o que ela pensa sobre o acontecido?

Balanço os ombros.

— Não sei, não falo com ela desde então. — Lembro-me da conversa com Kyra no dia seguinte ao baile e praguejo. — Ela está noiva.

— Samara? — Assinto. — Que merda!

— É, o beijo foi uma merda enorme, e eu não sei como...

— Não, seu idiota! — Ele estapeia minha cabeça. — Que merda que Samara esteja noiva, ela é a mulher perfeita para você.

Olho-o como se ele estivesse louco.

— Claro que não, ela merece alguém muito melhor do que eu! Samara nunca cogitou qualquer tipo de relacionamento comigo a não ser o de amizade.

Chicão bufa.

— Você não é idiota, Alexios Karamanlis, é um burro!

Ele joga a toalha, manchada de sangue, no chão do quarto e sai puto comigo ou com alguma coisa que eu disse. Ele não entende, óbvio! Samara é... especial, e alguém especial como ela nunca se relacionaria com alguém tão ordinário como eu.

Olho para minha mão e rio ao pensar na bagunça que sou.

Obviamente ela nunca se relacionaria e nem deveria se relacionar com alguém tão fodido como eu.

 

— O que houve com sua mão? — Laura me pergunta de repente, assustando-me, pois eu nem mesmo sabia que estava por perto. Encaro-a sem entender como e o que está fazendo aqui na K-Eng. Seu olhar é de assombro aos machucados em minha mão, além de questionadores, o que me irrita um pouco.

— Um pequeno acidente — respondo seco. — O que você está fazendo aqui?

Levanto-me da mesa, agradecendo por não ter mais ninguém por aqui a essa hora e fico de frente para ela. Laura abre um sorriso sem graça, mas logo se pendura em meu pescoço.

— Tem mais de uma semana que não te vejo, você não liga e nem aparece lá no meu apartamento. Então, se Maomé não vai até a montanha...

Reviro os olhos e retiro as suas mãos de mim.

— Laura, você trabalha na Karamanlis, então já deve ter percebido a movimentação infernal na empresa por conta da Ethernium. — Ela concorda. — Além disso, não entendi o motivo pelo qual eu deveria dar satisfação ou ter regularidade em nossos encontros.

A moça arregala os olhos por causa de minha sinceridade.

— Eu pensei que... — ela suspira — estávamos tendo essa regularidade, afinal, ficamos juntos por umas semanas e...

— Ficamos porque estava gostoso — não tenho medo de ser direto. — Mas não significa que temos qualquer tipo de compromisso. Não sou desses, Laura, e foi a primeira coisa que te disse quando trepamos a primeira vez.

Ela fica um tempo muda, olhando para o nada, então, de repente, abre um sorriso e desliza a mão pelo meu peito.

— Disse. Como disse também que queria trepar mais, lembra? Eu ainda quero mais, Alex — sua voz é ronronante. — Sempre imaginei como seria fazer sexo aqui na sua sala.

Respiro fundo, levemente excitado com o oferecimento, contudo, sem nenhuma vontade de fodê-la aqui – ou em qualquer outro lugar – depois desses questionamentos.

— Infelizmente, eu estou muito ocupado agora, motivo pelo qual ainda estou na empresa quando todos já foram. — Ela faz um biquinho, mas me afasto e volto a me sentar à mesa. — Acho melhor você ir.

Ela bufa.

— Sério isso?

Volto a olhá-la, sem esconder meu desagrado e impaciência, e ela se sobressalta.

— Sério.

Laura fica um tempo me encarando, depois vira as costas e sai da sala, andando firme e visivelmente puta. Balanço a cabeça, repreendendo a mim mesmo por ter deixado as coisas chegarem a esse ponto. Foi muito bom trepar com ela, aposto que a recíproca é verdadeira, porém não imaginei que ela criaria tantas expectativas e se sentisse no direito de vir me cobrar algo.

Erro de cálculo!, penso, sem deixar de pontuar que isso, para um engenheiro, é algo muito perigoso, que pode pôr tudo a perder.

Pego a pequena bola de borracha que tenho usado para exercitar minha mão e reparo nos machucados nela. Os cortes já estão todos secos, e os pontos que tomei em um deles já foram retirados.

Socar o vidro do boxe foi um momento de loucura, como tantos outros por que já passei. Fazia muito tempo que eu não perdia a cabeça daquele jeito, e sei que o que Samara me disse foi o gatilho responsável por isso. Não tiro, em hipótese alguma, a razão dela para me dizer aquelas palavras, mas elas acertaram o alvo na mosca.

Fecho os olhos e tensiono o pescoço, tentando relaxar um pouco para voltar a trabalhar e não enveredar pelos acontecimentos dessa semana, mas ainda não tenho esse controle total da mente e dos meus pensamentos.

A frustração me bate ao me lembrar do almoço com Konstantinos, meu irmão advogado. Achei que, pela primeira vez, ele iria se dispor a me ajudar com as respostas que procuro por anos, mas, ao que parece, ser egoísta e frio é algo familiar.

Mexo na minha agenda de anotações e encontro lá o endereço do sobrado de propriedade de Kostas. A voz da mulher misteriosa que encontrei na porta do Castellani ainda ressoa nítida em meus ouvidos:

“Eu conheci sua mãe biológica. Se quiser respostas, procure pela casa de Madame Linete.”

Foi o encontro mais estranho da minha vida. Ela estava parada lá, olhando o prédio e, quando me viu, logo perguntou se eu era um Karamanlis. Estranhei a pergunta, tentando reconhecer a senhora frágil e de cabelos brancos, mas não precisei responder, pois ela logo disse essas duas frases e se afastou sem me dar a chance de perguntar qualquer coisa mais.

Claro que eu já havia cogitado a ideia de que tinha sido gerado por alguma prostituta daquela maldita casa, afinal, era o local que meu pai mais utilizava. Não deveria ter começado do nada sua amizade com a cafetina asquerosa, mas nunca achei nada que me ligasse àquele local até esse encontro.

Talvez fosse uma pista falsa apenas, mas eu não poderia ignorar mais nada, não enquanto não achasse as respostas que procurei por toda minha adolescência a fim de tirar esse poder das mãos de Nikkós.

Não conhecer meu passado era o suficiente para meu pai ter uma enorme arma psicológica contra mim, coisa que ele utilizou por muitos e muitos anos.

Foi pensando em exterminar todo e qualquer poder que meu pai ainda pudesse ter sobre minha vida que atraí meu irmão para um almoço com a desculpa de falar da conta na qual estávamos trabalhando em conjunto.

Confesso que estranhei quando ele aceitou sem que eu tivesse que recorrer a inúmeros subterfúgios, mas agradeci a boa sorte, e nos encontramos em um restaurante neutro, escolhido a esmo, embora de alta gastronomia.

Achei que seria difícil introduzir o assunto, principalmente porque ele iria saber que pesquisei o maldito imóvel e descobri que ele o comprou há anos, quando foi a leilão. Isso me surpreendeu, claro, saber que ele comprou o sobrado e que ainda o mantém de pé sem nenhuma modificação ou uso. O assunto não surgiu naturalmente. Kostas estava estranho, mesmo falando de negócios, o que me surpreendeu, pois sempre imaginei que ele fosse se aproveitar da distância de Millos e Theo para tentar assumir a empresa.

— Eu acho que temos um acordo implícito de não falarmos sobre o passado — decidi não ser mais sutil, e Kostas reagiu imediatamente:

— Não é implícito. Não quero falar do passado. Mais explícito que isso, impossível!

Eu sabia que não seria fácil, ele é tão fechado quanto eu, então precisei desarmá-lo. Aproximei-me dele por sobre a mesa do restaurante e abaixei o tom de voz:

— Dessa vez, não poderei acatar sua vontade, Konstantinos. Sei que você comprou o sobrado da Rua...

Kostas levantou-se.

— Perdi a fome, vou voltar para a empresa.

Pus-me de pé também e o vi caminhar na direção da saída do restaurante, mas não ia desistir, não quando já havia agitado o vespeiro.

— Eu nunca te pedi ajuda. — Meu irmão parou, mas não se virou para me olhar. Decidi continuar por essa linha de ação: sinceridade. — Eu não podia te ajudar, então nunca pedi ajuda também.

— Alexios, não faça isso...

Eu soube que atingi o ponto certo, pois podia sentir a tensão no seu corpo. Nós dois temos consciência do que passamos na mão do nosso pai e de tudo que fizemos para que a loucura de Nikkós ficasse longe de Kyra. Kostas não aguentou por muito tempo, e eu o entendo, mas fiquei lá sozinho, lutando contra o monstro, tentando proteger minha irmã, mesmo sem ninguém para fazer o mesmo por mim.

Nunca tinha pensado em lhe cobrar, mas situações extremas pedem medidas extremas.

— Eu preciso, senão não faria. Há chances de eu descobrir o que Nikkós fez com minha mãe.

Fiquei satisfeito ao vê-lo se virar completamente surpreso.

— Sua mãe? Você soube algo dela?

— Nada conclusivo, mas acabei cruzando com uma pessoa que, quando soube que eu era filho dele, disse tê-la conhecido.

— Isso é loucura! Você procurou durante sua adolescência toda, quase se matou por isso, não há pistas, não há nomes, não há nada!

Lembranças de anos e anos de buscas vãs me fizeram titubear por alguns instantes. Eu não tinha um ponto de partida na época, pois ela podia ser qualquer pessoa, mas, naquele momento, eu tinha a maldita pista do imóvel.

— Preciso acessar o sobrado — voltei a falar, mas Kostas negou. — Preciso entrar e remexer tudo lá.

— Não!

— Foda-se, eu vou! — Soquei a mesa, decidido, puto demais por estar ali pedindo ajuda a ele pela primeira vez e não ser compreendido. Eu sempre o entendi, sempre o justifiquei quando saiu do apartamento e foi viver sua vida. Quando descobri que o sobrado lhe pertencia, nunca pensei em questionar seus motivos, apenas o entendi. Não era justo não ter o mesmo tratamento e consideração. — Eu sei que, por algum motivo bizarro, você o comprou, trancou-o com tudo dentro e o tem deixado apodrecendo por mais de 15 anos! Pode ter alguma pista lá.

— Não é seguro. Não vou arriscar que você morra lá dentro e eu ainda tenha que responder a...

Caralho de desculpa mais esfarrapada!

— Porra, Kostas, não fode! — Perdi a paciência, circundei a mesa e me aproximei dele, disposto a jogar pesado. — Eu sei dos teus motivos, respeito-os. Como disse, nunca te pedi ajuda antes porque sabia que você também precisava e não tinha a quem pedir, mas agora estou pedindo, agora estou contando com você. Não me faça arrombá-lo, porque eu o farei, apenas dê-me as chaves de todas aquelas grades que pôs lá.

Vi-o pensar, achei mesmo que eu estivesse tocando em alguma parte ainda viva de seu corpo, talvez no menino que conheci quando chegou para morar conosco, mas não, ao que parecia, meu irmão havia virado a porra de uma rocha fria e sem sentimentos.

— Tente invadir. Será um prazer implodir aquela merda com tudo dentro!

A mera possibilidade de ele destruir a única pista que tive do meu passado me desconsertou. Kostas aproveitou-se do momento e foi embora do restaurante.

Fiquei um tempo parado, até que ouvi um leve pigarrear e vi os garçons chegando com nossos pedidos. Estava sem fome, um bolo havia se formado em minha garganta, então pedi que embrulhassem tudo e deixei as quentinhas com o primeiro morador de rua que achei pelo caminho.

Andei sem rumo, sem saber o que fazer ou como agir. Tinha aberto meu peito para ele, pedira ajuda pela primeira vez e recebera um sonoro não. Senti algo inédito pelo meu irmão, raiva. Kostas nunca fora o alvo da minha revolta, pois sempre o compreendi, mas naquele momento não podia mais entendê-lo, não quando eu poderia ter respostas para acabar com minha tortura.

Sair de casa ajudou meu irmão a dar fim ao poder de Nikkós sobre sua vida, mas o mesmo não aconteceu comigo, e, enquanto eu não souber sobre o meu passado, não poderei tirar do homem que me gerou a possibilidade de voltar a me ferir.

O som de mensagem no celular me faz deixar de lado essas lembranças, e eu leio a mensagem de minha irmã me convidando para jantar com ela.


“Kyra, ainda estou na empresa, não poderei ir.”


Envio a mensagem esperando que seja suficiente, mas não é.


“Uma hora você precisará comer, e eu não tenho nenhuma intenção de jantar cedo. Venha no horário que puder, esperarei você.”


Merda, ela sabe ser insistente!


“Ok.”


Olho para o monitor do computador, respiro fundo e desisto de trabalhar. Minha barriga ronca, e decido aceitar o convite inesperado de minha irmã. Antes, porém, olho novamente o endereço do sobrado e traço um plano para invadi-lo sem que Konstantinos tome conhecimento.

As respostas que busco sobre mim mesmo podem ser achadas lá; não vou desistir tão fácil assim de encontrá-las. Nunca desisti fácil de nada, essa não será a primeira vez.

Imediatamente a imagem de Samara aparece em minha mente, e eu bufo, chamando-me de hipócrita. Claro que já desisti fácil de algo, eu só não gostava de admitir isso por não me achar sequer digno dela.

Quem sabe se eu achar as...

Interrompo o pensamento antes de criar ilusões que só serviriam para me machucar. Não há possibilidade de eu tê-la, mesmo que tenha todas as respostas da minha vida. Samara nunca estará ao meu alcance, e, sinceramente, acho bom que não haja nenhum envolvimento entre nós.

Ela merece mais!


Pego mais um copo de café e volto a me sentar ao lado de Daniel, sacudindo a perna, bebericando ou soprando a bebida quente. Olho para o corredor e, sem nem mesmo consumir metade do café, levanto-me para pegar um copo d’água.

Volto a me sentar, as pernas agitadas, confundo os copos e dou uma golada no café fumegante.

— Merda!

Daniel põe a mão no meu joelho e me obriga a parar de sacudir a perna.

— Se você não sossegar agora, juro que te ponho para fora — ele me ameaça.

— Desculpa. — Sorrio sem jeito. — Estou nervosa com os resultados desse primeiro ciclo de quimio e acho que deveríamos ter entrado com ela para saber mais...

— Nosso pai entrou com ela, Samara. Sossegue, você está me deixando irritado parecendo uma criança ansiosa! — Daniel fala alto, e eu o encaro surpresa. — Desculpa. — Ele põe a mão na cabeça e esfrega os olhos. — Eu quase não dormi essa noite, mas você não tem nada a ver com meu mau humor.

— Ela vai ficar bem, Dani. — Ponho minha mão em seu ombro.

— Eu sei que vai! Nunca tive dúvidas disso.

Respiro fundo e concordo com ele, embora não tenha a mesma confiança que ele demonstra ter.

Têm sido dias difíceis desde que cheguei ao Brasil, mas em momento algum me dei a oportunidade de esmorecer perto deles. A cada medicação, mamãe tinha reações mais fortes, requerendo tanto cuidado e atenção que decidi desistir de morar no meu apartamento e voltei para a casa dos meus pais.

Confesso que essa decisão também me ajudou a manter distância de Alexios Karamanlis. Não que eu ache que em algum momento ele tenha notado minha ausência ou se importado com isso, mas para mim fez toda a diferença.

É aquele ditado, sabe? O que os olhos não veem...

Suspiro.

— Você foi incrível nesses dias, Samara — Daniel volta a falar. — Mamãe esteve muito mais à vontade com você por perto do que comigo.

— Não fala besteira, Dani! — Ele sorri, sabendo que é o xodó da mamãe. — Eu gostei de ter conseguido ajudar e estar com ela de novo.

— Ela também ado... — ele para de falar assim que vê nossos pais vindo até onde estamos. Levantamo-nos juntos, apreensivos, esperançosos, e o sorriso de mamãe é reconfortante.

— O que o médico disse? — indago assim que eles se aproximam.

— O medicamento fez o efeito esperado para esse primeiro ciclo. Agora é esperar o tempo de descanso para começar de novo. — Mamãe sorri.

— E a radioterapia? — Dani questiona, e ela dá de ombros.

— O doutor ainda não prescreveu — papai responde. — Vamos torcer para que a quimio resolva sem precisar da rádio! — Ele sorri e abraça mamãe pelos ombros. — Em breve você terá sua vida agitada de volta.

Ela suspira cansada.

— Bom, vamos todos almoçar para comemorar o fim desse primeiro degrau rumo à vitória! — tento animar a todos, mas só meu pai sorri. — Ah, gente, vamos lá! Mamãe?

Ela assente e olha para Daniel.

— Você não está cansada? — meu irmão pergunta a ela.

— Não, podemos ir!

Bato palmas e a beijo na testa.

Eu entendo o desânimo dela, seria cruel não entender, pois, ainda que todos estejamos empenhados em seu tratamento, é ela quem passa por todos os efeitos colaterais dos medicamentos e pela doença. Mamãe nunca foi uma mulher parada ou passiva, e depender de outras pessoas deve estar sendo uma verdadeira prova para ela.

Foram semanas difíceis, não nego. Fiquei totalmente à disposição de minha mãe, levando-a às consultas e às sessões, fazendo companhia a ela, amparando-a em momentos de indisposição e dor. Godofredo e eu nos mudamos para a mansão da família, e eu mal tive tempo para ir ao Castellani ou mesmo visitar amigos.

Kyra esteve várias vezes conosco, geralmente após o expediente de trabalho, quando não tinha eventos. Daniel e Bianca, sua noiva, também estiveram presentes nos jantares e almoços de finais de semana, e, claro, papai.

Sorrio ao pensar em como é bom ter meu pai por perto. Ele e eu temos muitas afinidades, então, passamos muito tempo conversando, vendo filmes ou ouvindo música. Mamãe prefere ler sozinha em seu quarto à noite, por isso faço esses programas todos com papai.

Assim, o mês de janeiro se foi, e fevereiro entrou com força total com a finalização do primeiro ciclo de quimio da mamãe e o inesperado convite de Daniel para que eu trabalhe na empresa com ele.

— Dani, eu sou designer de interiores. Já trabalhei decorando mansões, apartamentos, iates e até um motor home, mas nunca fiz nada empresarial. — Fiz careta ao lhe responder. — É tudo muito frio.

— É um hotel — ele logo me informou. — Vamos redecorar um enorme hotel.

Meus olhos brilharam.

— Ele vai seguir algum padrão já existente? É um hotel de rede?

Ele nega.

— Não. É uma casa de campo que está virando hotel. — Arregalei os olhos. — O projeto de reforma é da Karamanlis, e a executora da obra é a Novak.

— K-Eng? — inquiri baixinho, e ele suspirou.

— É, mas quem está acompanhando é um dos braços direitos do seu amigo.

Havia muitos dias eu já não pensava no Alexios e nem no beijo do Ano Novo. Não foi o primeiro que trocamos depois de umas bebidas, então eu não devia lhe dar tanta importância, embora reconhecesse que ter me afastado do Castellani ajudou muito a manter distância dele. Alexios e eu já não somos mais amigos!

A perspectiva de trabalhar em um projeto como aquele enquanto eu estivesse no Brasil era maravilhosa, mesmo com a possibilidade de encontrar o CEO da K-Eng eventualmente.

— Aceito olhar o projeto e conversar sobre o briefing, só isso. — Daniel sorriu satisfeito. — Se eu puder executar meu trabalho sem a interferência de pessoas que nada entendem de decoração, pego para fazer; do contrário, estou fora.

— É assim que se fala! Você vai amar o projeto de reforma, ficar cheia de ideias, e tenho certeza de que os responsáveis pelo empreendimento vão adorar seu trabalho.

O projeto realmente estava incrível, e a ideia de como os donos queriam a decoração dos quartos e áreas comuns me deixou louca para começar o trabalho. Aceitei a proposta, negociei sob a garantia da Schneider e fechei um belo negócio aqui no meu país.

Penso no meu trabalho na Espanha e Diego me vem à cabeça. Entro no carro, no banco do carona, ao lado de Daniel e suspiro.

— O que foi? — meu irmão pergunta, seguindo o carro do papai para fora do estacionamento.

— Estava pensando no Diego.

— Vocês têm se falado?

— Sim, por mensagens. — Balanço a cabeça. — Não sei mais o que fazer para ele entender que não estou tendo nenhum tipo de crise por conta do tratamento da mamãe. Eu fui sincera com ele quando terminei. Não foi certo fazer por vídeo, mas eu não podia mais me sentir enganando-o.

— Eu entendo você, embora não goste nada do motivo que a levou a isso.

— Não tem nada a ver com Alexios, nós nem temos nos visto. Eu pensei em ir até a Espanha para conversar melhor com Diego, mas acabei de pegar esse projeto enorme e não posso me ausentar por agora. Além disso, ele está seguindo o time na Champions...

— Não sei se é boa ideia você ir atrás dele. Acho-o um tanto insistente demais. Concordo que não foi certo terminar por vídeo-ligação, mas depois disso vocês conversaram várias vezes, e o homem não para de insistir.

Eu concordo, mas ao mesmo tempo me sinto culpada.

— Sim. Mesmo assim sinto que lhe devo uma explicação.

Paramos no farol, e ele me olha.

— Você quer retornar para Madri mesmo depois desse término?

Respiro fundo e dou de ombros.

—Sim, trabalho em uma ótima empresa lá, então, por que não voltar?

Meu irmão ri.

— Isso é você quem tem que responder a si mesma. — Ele me puxa para perto e beija o topo da minha cabeça. — A decisão é sua; certa ou errada, cabe a você decidir o que fazer.

— Eu sei.

Sorrio, mesmo com minha cabeça fervendo de perguntas sem respostas, mesmo sem entender o que eu quero e por onde devo ir.

Fui para a Espanha para fugir de um sentimento que parecia não ter fim, mesmo diante da impossibilidade de se tornar algo real, e acabei fazendo amigos e criando laços por lá, mas é aqui que minha família e meus amigos estão. A decisão não é fácil!

Quanto a Alexios... o sentimento não morreu, obviamente, porém não guardo mais nenhuma ilusão com relação a ele. Sempre serei vista como a grande amiga e nada mais.


— Alexios está esquisito essa semana — Kyra comenta.

Eu rio e bebo mais um gole do vinho.

— Quando ele não foi esquisito? — debocho.

— Exatamente, a esquisitice dele não me surpreende, mas essa semana ele está mais esquisito. — Presto atenção ao que Kyra diz, pois minha amiga não costuma exagerar, pelo contrário. — Eu sei que ele está em um ritmo frenético de trabalho, mas, quando falei com ele ontem, achei-o um tanto...

— Esquisito — complemento, e Kyra revira os olhos ante minha brincadeira. — Kyra, seu irmão é a pessoa mais fechada do mundo, você sabe. Mesmo que ele esteja com merda até nos ouvidos, precisa quase se afogar nela para pedir ajuda ou falar com alguém.

Ela assente, e nós duas ficamos mudas. Eu me lembro de quando tomei conhecimento, pela primeira vez, do que eles viviam com o pai. Alexios telefonou para minha casa pedindo para que eu subisse até a cobertura, pois precisava de um favor. Não pensei duas vezes e fui até ele pensando que queria ajuda com algum jogo ou matéria – história nunca foi o seu forte –, mas, quando o vi, mal conseguia me mover.

Ele estava todo machucado nas costas. Os cortes eram verdadeiros talhos, de onde saía muito sangue, e eu tive que respirar fundo várias vezes para não vomitar.

— Samara, preciso que você seja dura agora — ele me disse com a voz calma, com toda sua sabedoria de 15 anos de idade.

— O que você quer que eu faça? — perguntei temerosa, já prevendo que ele me pediria para limpar e fazer curativos.

O problema era que, por conta do tamanho e da profundidade dos cortes, curativos não seriam o bastante. Ele ergueu uma agulha curva com um enorme pedaço de linha preta.

— Costure.

Neguei várias vezes com a cabeça, incapaz de abrir a boca sem derramar todo o lanche que havia acabado de tomar, mas ele me olhava suplicante. Percebi que, mesmo sentindo dor, ele tentava não demonstrar.

— Você precisa de um médico!

— Não. — Ele ergueu a agulha novamente. — Preciso de você.

Peguei o metal curvado. Minhas mãos tremiam, o queixo também. Era possível ouvir o som dos meus dentes batendo forte um contra o outro. Não entendia o que estava acontecendo, o motivo pelo qual ele estava daquele jeito e não ia até um hospital.

Eu mal sabia bordar, e somente a possibilidade de machucá-lo ainda mais me apavorava.

— Se fosse em outro local, eu juro que não pediria isso a você, mas eu não consigo suturar as costas sozinho.

Foi então que percebi que não era a primeira vez.

— O que foi isso, Alexios?

Ele sorriu tentando me despistar, mas depois suspirou.

— Caí em cima da mesinha de centro da sala lá de cima. — Apontou para o segundo piso da cobertura. — Ela era toda espelhada, por isso me cortei.

— Caiu?

Ele não respondeu, apenas virou-se de costas para mim e começou a me dizer o que fazer.

— A agulha já está desinfetada, e eu tomei banho, mas ainda assim preciso que você passe esse antisséptico, limpe bem o sangue e comece a costurar. — Ouvi o som de sua risada. — Pense que sou um dos seus tecidos finos e delicados de almofada e borde em mim.

Bufei com a comparação.

— Não achei graça nenhuma!

Foi um longo processo, mas cumpri com o que ele pediu e somente anos depois é que entendi tudo aquilo, inclusive a história esfarrapada do “caí por cima da mesa”.

Fiz muitos favores como esse para ele por muito tempo ainda. Aprendi a costurar sua pele, a recolocar seus ossos no lugar quando se deslocavam e até mesmo a imobilizar alguma parte de seu corpo. Porém, mesmo estando ao lado dele em todos esses momentos dolorosos, Alexios só me contou que era o pai que o espancava depois que saiu de casa com Kyra.

Eu sofri tanto por pensar nas atrocidades que eles viveram, porque minha amiga até reclama do irmão, mas são farinha do mesmo saco. Não faço ideia de como Nikkós a afetou, mas é certo que ela não foi poupada da loucura do pai.

— Ei, Samara no mundo da lua! — Kyra me cutuca. — Está pensando em quê? Perguntei por Diego, e você ainda nem me respondeu o que ficou decidido.

— Nada de diferente. — Ela cruza os braços. — Temos conversado bastante por mensagens, mas ele parece não aceitar que acabou. Diz que estou em crise e que, assim que puder, virá ao Brasil.

— Para quê?

— Conversar pessoalmente. — Fecho os olhos. — Gostaria tanto que tudo fosse diferente, sabe? Que eu pudesse gostar dele da forma como deveria.

— E por que não pode? — Olho para Kyra, e ela entende a resposta. — Uma merda isso! Então você não vai voltar para Madri mais?

Penso em Diego e em todo esse tempo em que estivemos juntos, recordo-me de como me senti feliz ao lado dele e do escritório maravilhoso de design em que trabalhei durante esses anos. Ele tem alegado isso, que estou confusa por estar longe, com medo de mudar de vez para Madri e ficar longe da minha família. Não é isso! Ter voltado ao Brasil mexeu, sim, com meus sentimentos, principalmente quebrou a ilusão de que eu tinha esquecido Alexios. Por isso ainda penso em voltar a morar na Espanha, mas não quero mais me enganar e enganar outra pessoa no percurso.

— Eu gostaria de ter essa resposta, Kyra — volto a falar. — Gostaria de saber o que é melhor para mim, mas não sei. Aqui há tantos motivos para eu ficar, como também para que eu vá, mas ainda estou indecisa.

— Eu sei. — Ela sorri compreensiva.

A campainha do apartamento dela soa alto. Estranho, porque ela não me disse que teríamos companhia, mas, por sua reação, Kyra já estava à espera de alguém.

— Talvez o motivo de sua indecisão tenha chegado agora.

Arregalo os olhos com a possibilidade de ser Alexios.

— Kyra, o que você... — não termino de formular a frase, pois minha amiga abre a porta, e o vejo olhá-la com um sorriso cansado, entrar no apartamento e parar surpreso ao me ver.

— Oi — cumprimento-o.

— Oi. — Ele desvia o olhar para Kyra.

— Vou ver se o jantar já... — ela para de falar e ergue a mão dele. — O que houve?

Os olhos de Alexios não deixam os meus, então ele abre um sorriso lindo – esse é o bendito que ele usa quando quer disfarçar alguma situação séria ou desviar o assunto – e dá de ombros.

— Um pequeno acidente besta, nada importante. — Kyra parece não engolir a desculpa esfarrapada também, mas não insiste, pois conhece o irmão muito bem. — Tem cerveja?

— Claro que tem! Vou pegar umas para você. — Ela aponta para mim. — Faça companhia para a Samara.

Nós dois a olhamos, entendendo que o jantar foi uma armadilha dela para que voltemos a nos falar. Sinceramente não entendo minha amiga. Ela sabe o que sinto e o que Alexios não sente, mas ainda assim insiste em nos manter unidos, mesmo dizendo sempre que seu irmão não é uma boa opção para mim.

Como se um dia ele considerasse me ver como mulher!

— Como estão as coisas com sua mãe? — Alexios puxa assunto de repente e se senta em uma poltrona individual bem longe de onde estou.

— O primeiro ciclo de quimioterapia acabou, e ela está bem — respondo seca. — E você, como está?

Ele abre o maldito sorriso fingido.

— Ótimo! Cheio de trabalho, sem tempo para fazer bobagens...

— Não parece. — Aponto para sua mão. — Achei que seus momentos de fúria já tivessem passado desde que começou a praticar esportes. — Ele fica sério. — Por falar nisso, vi o Chicão lá no prédio esses dias. Ele está hospedado contigo?

— Está, como sempre. — Alexios olha para trás, na direção da cozinha de Kyra e respira fundo. — Eu queria pedir desculpas novamente por...

— Não precisa — interrompo-o antes que eu seja obrigada a socar sua cara.

— Preciso — ele insiste. — Kyra me contou sobre seu relacionamento — meu coração dispara ao ouvi-lo falar sobre isso como se não tivesse importância alguma. — Espero que ele seja o homem que você merece e que sejam muito felizes como você sempre sonhou.

Engulo em seco, abro um sorriso – fervendo de raiva da Kyra – e digo a primeira coisa que me vem à cabeça:

— Ele é! — minto, e Alexios fica sério, seus olhos claros fixos nos meus. — Um verdadeiro príncipe como sempre sonhei.

— Quem bom. — Ele se levanta. — Vou até a cozinha pegar a cerveja, estou morrendo de sede.

Acompanho-o com os olhos e, quando desaparece da minha vista, gemo e me dou um tapa na cabeça. Que ridícula! Por que, mesmo sendo tão madura em vários aspectos, sou uma imbecil quando estou perto dele? Parece até que estou de volta ao aniversário de 18 anos da Kyra, quando saímos nós três para comemorar, e eu fiquei com um babaca total só porque Alexios pegou uma das garçonetes da pizzaria.

Não sou mais essa garota!

Alexios e Kyra voltam para a sala, ele, bebendo uma longneck, e minha amiga, com uma travessa na mão.

— Escondidinho de camarão, como vocês dois sempre gostaram — ela anuncia.

— O cheiro está incrível! — elogio, levantando-me do sofá e indo ajudá-la. — Há muitos anos não sinto algo tão delicioso!

— Eu também não — Alexios fala perto de mim.

Os pelos do meu corpo se arrepiam todos por causa do som de sua voz e seu hálito no meu pescoço. Viro-me para ele, sem entender o motivo pelo qual está tão próximo de mim e me surpreendo por um instante ao decifrar seu olhar: fome, e não é de comida.

Balanço a cabeça, achando impossível que seu olhar esfomeado seja para mim e me afasto dele, indo posicionar os pratos como Kyra me ensinou a fazer tempos atrás.

— Andou treinando? — minha amiga brinca ao me ver executar com perfeição seu ensinamento.

— Sim, fiz alguns jantares em Madri — conto orgulhosa. — Recebi poucas pessoas, a maioria amigos, e fiz questão de colocar em prática tudo o que você me ensinou...

— E que você achava que era bobagem! — Ela ri e olha para Alexios. — Uma arquiteta de interiores deve, no mínimo, saber montar uma mesa, não acha?

Alexios franze a testa, pensa um momento e depois concorda.

— Pregar pregos na parede, fazer arranjos florais, pintar um quadro... — Kyra fica séria, e ele começa a rir. — Há profissionais para isso, Kyra, Samara é responsável pelos layouts de móveis e projetos de planejados, não precisa saber fazer tudo!

Kyra parece estupefata, e, confesso, eu também estou, porque geralmente os dois se uniam para brincar ou me provocar, e agora ele acabou de me defender!

Alexios parece ficar sem jeito com o silêncio e dá uma enorme golada, até pôr fim ao conteúdo da garrafinha de cerveja, em seguida volta para a cozinha.

— O que está rolando? — Kyra me pressiona.

— Não sei do que...

— Samara, sem essa de “não sei do que você está falando”. Não nasci ontem, percebi que vocês estão estremecidos. Achei que tinha sido por conta dos anos longe, mas achei que isso ia passar depois do baile, mas então Alexios aparece aqui mais perdido do que cachorro que caiu da mudança e se recusa a falar o que aprontou contigo na virada do ano! — Aproxima-se. — Conte-me já!

Nem em sonho!

— Não há nada para contar.

Alexios retorna, e sua irmã avança para ele igual a um anjo vingador.

— O que está rolando entre vocês dois? — Ela põe a mão na cintura. — Sempre fomos amigos! Éramos um trio, estivemos juntos nos piores momentos de nossa infância e adolescência, parem já com qualquer merda que estiverem fazendo!

— Quanto você bebeu? — Alexios debocha. — Nada está acontecendo, não é?

 

CONTINUA

Kyra sempre foi exuberante, beleza herdada de sua mãe, devo acrescentar, pois Sabrina ainda continua tão linda quanto era na época em que era casada com Nikkós. Contudo, minha irmã ainda recebeu alguns belos traços dos Karamanlis, principalmente da famosa giagiá15, que todos sempre fazem questão de dizer que era linda e tinha a mesma coloração de olhos da minha irmã (e minha também, só que os Karamanlis nunca engoliram bem que eu realmente tenha o sangue nobre deles).

No papel, Kyra e eu somos filhos dos mesmos pais, pois Sabrina me adotou legalmente quando eu ainda era um garotinho. Ela, por poucos meses, possuía a diferença de idade obrigatória pela lei entre nós (16 anos) e, por isso, conseguiu, aos 18, adotar-me aos dois anos. Logo em seguida nasceu a Kyra, e a família ficou completa.

Na verdade, eu nunca soube da minha mãe. Tentei descobrir algo durante a adolescência, principalmente por ser esse um dos pontos que meu sádico pai adorava usar contra mim. Inventar uma história nova a cada dia sobre meu nascimento, minha origem, era sua principal diversão e tortura psicológica.

Nunca entendi nada sobre mim, a única certeza que tenho é de que, infelizmente, sou mesmo filho dele, algo que comprovei através de exame de DNA, cujo resultado positivo nunca divulguei, porque eu tinha esperança de não ter o sangue daquele monstro.

Volto a prestar atenção na foto, dessa vez em meu próprio rosto cheio de enfado por estar naquele baile com elas. Sorrio. Eu fazia esse tipo, mas a verdade é que adorava cada momento que passávamos juntos, pois me sentia em família de verdade.

Ponho a moldura no lugar e respiro fundo, controlando meu corpo, colocando juízo na minha cabeça, ressaltando tudo o que tem de importante na amizade entre mim e Samara e concluindo que um envolvimento fora desses termos entre nós só serviria para destruir anos e anos de companheirismo.

Samara merece ser feliz com alguém que possa ser o homem com que ela sempre sonhou, o príncipe encantado dos seus sonhos de menina, alguém que saiba quem é, que tenha valor e que possa demonstrar todo o amor que sente por ela e reconheça o privilégio que é ser amado.

Esse homem não sou eu!

 

Depois do banho na casa de Kyra, fui direto para a empresa. É providencial ter uma mochila de roupas minhas no apartamento dela, mas confesso que não vou muito de jeans e camisa de malha para a Karamanlis.

Passei no Castellani apenas para pegar minha moto, nem me atrevi a subir até meu apartamento, sendo covarde mais uma vez. A questão é que eu não saberia nem mesmo o que dizer a Samara caso nos encontrássemos de novo.

Estava saindo do estacionamento quando meu celular tocou, mas, como já estava sobre a moto – e não queria demorar muito na garagem, porque o carro de Samara ainda estava na vaga dela –, deixei para conferir a ligação quando estivesse no prédio, o que faço agora, retornando a ligação.

— Oi, Chicão! — cumprimento-o assim que atende.

— Alex, seu grande safado, feliz Ano Novo! — o homem mais velho, que se tornou um grande amigo e a quem eu considero como um pai – no sentido do que realmente um pai deveria ser – por pouco não me ensurdece ao telefone. — Cheguei ao inferno hoje, queria saber se poderia passar uns dias lá naquele seu apartamento cinco estrelas.

Abro um sorriso de felicidade ao pensar que ele está de volta a São Paulo. Francisco Salatiel Figueiroa é o nome dessa figura de quase 60 anos, paulistano – mas que odeia sua cidade natal – e viciado em esportes radicais assim como eu.

Nós nos conhecemos quando eu ainda estava no colégio, devia ter uns 15 anos e fui participar de um racha de moto pela cidade. Ele apareceu por lá, chamou-me em um canto e me convidou a fazer cross ao invés de colocar minha vida e a de outras pessoas em risco correndo pelas ruas.

Comecei a ir para o os circuitos de motocross, tomei muito tombo, enlameei-me até o pescoço e me senti mais vivo do que quando me arriscava nos rachas. Nós nos tornamos amigos mesmo com nossa gritante diferença de idade, pois ele dizia que eu lembrava o moleque atentado que ele mesmo tinha sido um dia, e comecei a acompanhá-lo em suas atividades.

Foi por causa dele que deixei de buscar alívio e fuga nas drogas, pois conseguiu me mostrar que, se eu quisesse me livrar de Nikkós, teria que ser melhor que ele. Não foi um processo fácil, admito, levei anos para entender e ouvir seus conselhos, mas nem por isso ele desistiu de mim ou se afastou.

Francisco começou a me mostrar que eu poderia extravasar toda minha angústia, solidão, medo e revolta em esportes como trilhas de moto, bike, escaladas, voos livres, paraquedismo e, quando tirei minha carteira de motorista, apresentou-me a alguns amigos dos circuitos de motovelocidade.

Os esportes aliviavam meu corpo da tensão vivida em casa, mas minha cabeça e minha alma continuavam pesadas, então, um dia, ele me viu desenhar e descobriu como eu poderia tratar os demônios dentro de mim.

Devo muito a ele, não só pelo equilíbrio que consegui hoje em minha vida, como também por permanecer vivo e são. Samara e ele foram os únicos a permanecerem ao meu lado nos piores momentos da minha vida, ela me auxiliando principalmente com Kyra, e ele entendendo meus problemas e me ajudando a achar soluções.

— Meu apartamento é seu! Te dei a chave, afinal.

— Eu sei, mas é sempre bom dar uma conferida, vai que você resolveu sossegar seu pau numa boceta só.

Gargalho com seu jeito rude e direto.

— Não, meu pau ainda gosta de explorar por aí. — Ele me chama de “vadio” e ri. — Estou na Karamanlis agora e...

— Ah, me diz que estou sonhado... — estranho o que ele fala, escuto vozes ao fundo e percebo que não falou comigo. Espero que ele retome a ligação, entro no elevador, cumprimento as pessoas com a cabeça e sorrio para uma mulher gostosa que nunca vi aqui no prédio. — Seu trapaceiro de uma figa! Samara está de volta e, caramba, mais linda do que nunca.

Só de ouvir o nome dela, sinto meu corpo reagir como se uma descarga elétrica tivesse me atingido.

— Encontrou-se com ela agora?

— Sim, seu embuste! Quantos anos ela esteve fora? Caralho, você já a viu?

Franzo a testa, desço no meu andar, confuso com a perplexidade dele apenas por ter visto a Samara no prédio, afinal, ele sabe muito bem que ela tem um apartamento lá.

— Já, desde que chegou — respondo distraído, acenando para os funcionários da K-Eng. — Por quê?

— Alexios, eu sempre me perguntei se você era cego ou apenas muito burro. — Ouço o barulho de uma porta se fechando. — Nunca entendi por que vocês dois nunca tiveram nada um com o outro.

Paro no meio do corredor, atraindo os olhares de pelo menos dois engenheiros que passam por mim. Que merda é essa?!

— Ela é minha amiga — digo o óbvio.

— Ela é incrível e sua amiga, isso já não é meio caminho para um relacionamento de sucesso?

Um alerta dispara em meu cérebro. Chicão nunca foi um homem ligado a relacionamentos permanentes, tanto que é solteiro até hoje, então não entendo o motivo pelo qual está falando essas coisas sobre mim e Samara.

— Chicão, sou eu! Eu não tenho relacionamentos, eu fodo por aí, só isso. E, definitivamente, Samara não é uma mulher apenas para se foder.

Ele emite um grunhido, e, ao fundo, escuto o bipe da minha cafeteira sendo ligada.

— Nisso concordamos. Mas ela é incrível, sempre foi, se eu tivesse a sua idade e a sua aparência, não perderia a oportunidade de tê-la comigo.

Mas o que... Arregalo os olhos, e meu coração dispara.

— Você está morrendo? — inquiro-lhe como se fosse a única opção válida para essa mudança de comportamento.

Chicão gargalha.

— Não, mas estou ficando velho e sozinho. — Bufa. — Mas isso não é assunto para discutirmos ao telefone, já que você está na empresa.

— Chicão, está tudo bem?

— Vai trabalhar, embuste, depois conversamos. Viajei a noite toda, quero tomar um banho, comer algo e dormir um pouco. Obrigado pelo abrigo.

Ele ainda não me convenceu, algo está errado.

— A casa é sua! — declaro, e ele encerra a ligação.


— Quer mais um travesseiro? — pergunto à minha mãe assim que ela se deita na cama.

— Não, filha, estou bem. — Sorri, mas o cansaço não permite que o faça por muito tempo. — É sempre assim no dia da medicação, mas passa.

Balanço a cabeça concordando, enternecida por ela estar tentando me consolar, quando é ela quem está passando por isso tudo. Sempre a admirei por sua força, seu destemor e a capacidade de realizar qualquer coisa que se propunha a fazer.

Mamãe não tem um gênio fácil de lidar, mas nunca negou amor e afeto aos seus filhos, mesmo sendo brava e exigente como era. Dani e eu tínhamos muito mais medo dela do que do papai, que sempre foi mais maleável, mas moderno e liberal.

O relacionamento dos meus pais, enquanto casal, não era um mar de rosas, mas eles eram amigos, companheiros. Ele sempre a apoiou em tudo, e ela acima de tudo o admirava. Não tinham grandes arroubos de paixão, pelo menos não na nossa frente, mas se respeitavam, conversam, riam e, principalmente, nos amavam muito. Dani, como filho e mais velho, sempre foi agarrado a minha mãe mais do que a nosso pai. Os dois se dão bem, são muito parecidos em alguns aspectos, mas quem sempre teve mais afinidade com papai fui eu.

Acho que nossas almas são parecidas. Ambos somos apaixonados pelas formas, perfeccionistas, românticos e, arrisco dizer, sonhadores. Eu sou assim, gostaria de ser prática como mamãe, mas há muito que parei de tentar ser quem não sou. Demorei, mas consegui aceitar meu jeito e me respeitar acima de tudo.

É dolorido tentar ser quem não é para se encaixar ou seguir uma tendência. Eu sou forte, mesmo sendo doce; sou feminista, mesmo sendo feminina e vaidosa; sou empoderada, mesmo sonhando em casar e ter uma família.

Eu me importo com a opinião alheia, sim, porque ninguém é uma ilha e não teria sentido na vida se todos fôssemos autossuficientes e não dependêssemos de ninguém. Não tenho preconceitos, sou feliz com a felicidade dos outros e não me importo que a recíproca não seja verdadeira. Cada um escolhe o caminho que quer percorrer. Eu escolhi ser assim, exatamente como sou.

Chegar até essa conclusão não foi fácil, principalmente quando se percebe que o homem por quem você é apaixonada prefere as mulheres que têm atitude, que são furacão e não calmaria. Eu quis fazer tipo e percebi que estava indo na contramão de tudo o que uma “mulher de atitude” prega, que estava tentando ser outra pessoa para agradar a um homem.

Foi aí que aquela máxima tão clichê, mas que é tão difícil de ser vivida, fez sentido para mim: quem me amar, precisa me conhecer e me aceitar como sou.

Demorei a perceber a importância disso, precisei praticamente ter isso esfregado na cara. Então arrumei minhas malas, disse ao meu pai que não iria para Barcelona, mas sim para Madri, e segui com minha vida.

Alexios foi o estopim que eu precisava para explodir naquela época, depois de ter aparecido no meu apartamento bêbado a ponto de não se aguentar de pé. Ele pediu para dormir no meu sofá, tivemos uma dura discussão quando tentei lhe passar sermão e, no meio da noite, acordei com ele na minha cama.

Fiquei sem reação quando senti sua mão na minha cintura, alisando minha pele por cima do pijama de seda. Fechei os olhos, excitada e ansiosa, e o deixei prosseguir com a exploração. Não o impedi quando me virou, nem quando me beijou e subiu em cima de mim. Tinha esperado por aquilo a vida toda, e estava acontecendo.

Ledo engano!

Ele ficou imóvel, esmagando-me com seu peso, então percebi que havia dormido. Joguei-o para o lado e passei a noite em claro, sem entender nada, esperando que ele acordasse e explicasse.

Acabei dormindo e acordando sozinha na cama. Ele tinha ido embora, e não conversamos, mas esperei que a conversa viesse mais tarde. Não veio. Ele simplesmente ignorou o beijo, as carícias, como se não fossem nada, como se eu não fosse nada.

Fiquei irritada, subi para perguntar diretamente a ele o motivo pelo qual tinha me beijado, mas, quando cheguei ao seu apartamento, estava rolando uma de suas festinhas regada a bebidas e sexo, e o filho da mãe estava sentado no sofá com uma mulher de cada lado em um beijo triplo.

Ele nem me viu, fechei a porta, desci e decidi parar de protelar minhas decisões esperando por algo que nunca iria acontecer. Um relacionamento com Alexios era uma ilusão infantil, mas eu já não era mais criança.

Viajei dois dias depois e pensei que, quando voltasse, toda essa ilusão teria se desfeito.

— Então o nome dele é Diego — mamãe fala, e eu quase pulo de susto, deixando as lembranças para tentar entender do que ela está falando. — Diego Vergara!

Sento-me na beirada da cama, curiosa sobre como ela conseguiu essa informação.

— O nome dele é mais comprido do que isso, mas, sim, Diego Vergara.

Ela sorri cheia de sabedoria.

— E você deve estar aí querendo saber como eu sei o nome dele. — Concordo. — Seu irmão me contou.

Daniel e sua boca! Meu irmão sempre foi o maior X9 do mundo, não é de se espantar que tenha contado sobre o Diego para minha mãe.

— Há quanto tempo estão juntos?

Não sei o que dizer a ela e agradeço quando uma enfermeira entra no quarto, dando-me a desculpa perfeita para escapulir de sua curiosidade. O fato é que tudo mudou depois da noite do baile dos Villazzas.

Não sei o que levou Alexios a me beijar daquela forma no elevador, eu estava bem bêbada dessa vez, mas ele não tanto, além disso, eu senti a energia entre nós, senti o tesão que ele exalava, que trazia na saliva e em cada toque no meu corpo. Alexios não escondeu em nenhum momento o quanto estava excitado, esfregou sua ereção contra mim, esmagou-me contra o espelho do elevador parecendo que queria me comer ali mesmo.

Depois, do nada, mudou. Pediu desculpas! Desculpas por me beijar! Só faltou dizer que estava com tesão, e eu era a única mulher próxima dele, mas que nem assim servia.

Para piorar, quando entrei no apartamento e peguei o celular, vi uma mensagem de Diego dizendo o quanto sentia minha falta e como ele gostaria de poder estar aqui comigo. Foi a gota d’água! Senti-me um lixo, uma pessoa má que engana e trai e percebi que tê-lo deixado na Espanha sem uma resposta definitiva foi uma atitude egoísta.

Chorando, sem pensar direito, fiz uma chamada de vídeo para ele e, quando atendeu, disparei:

— Diego, eu sou uma pessoa horrível, mas não posso fazer isso com você! — Soluçava tanto que ele se assustou e me pediu para falar devagar. Todavia, eu não conseguia. — Você é um homem incrível, um amigo maravilhoso, e eu adorei cada momento que passamos juntos...

— Calmarse, Samara! Yo no comprendo!

— Você merece mais, merece alguém melhor, e eu não posso...

— Usted está me dejando preocupado, cariño.

— Eu não queria fazer isso assim, por telefone. — Ele ficou sério, atento, prevendo o que eu lhe diria. — Mas não é justo que você fique aguardando minha volta para que eu diga isso. — Respirei fundo, armando-me de coragem. — Eu não posso aceitar seu pedido, Diego. Eu não estou pronta para amar você como deveria, como você merece.

— Samara, sucedio algo com su mamá?

Neguei.

— Não. Sou eu, não mereço você. Você tem razão ao dizer que meu coração nunca pôde estar aí contigo.

— Samara, despues hablamos, está muy nervosa. — Tentei dizer a ele que não, mas não me deu oportunidade: — Tengo que ir.

— Diego, não...

Ele encerrou a chamada. Tentei retornar outras vezes, porém a ligação não completava. Deixei mensagens, mas que, até o momento, ele não visualizou. Volto a olhar para mamãe, que boceja, visivelmente cansada, e fecha os olhos, recostada nos travesseiros, enquanto a enfermeira mede sua pressão. Eu voltei ao Brasil apenas por causa dela, para estar ao seu lado nesses momentos tão difíceis, não por qualquer outro motivo. Sinceramente, não esperava essa pressão acerca de Alexios e Diego. Minha família nunca foi assim, muito menos mamãe, que sempre pregou que uma mulher não precisa de marido e filhos para se sentir completa e feliz.

Mamãe adormece, e eu saio do quarto. Quando estou prestes a descer a escada, escuto uma voz conhecida e muito amada:

— Minha Samara está de volta! — Papai está no corredor de braços abertos. Sorrio e vou até ele para abraçá-lo. — Ah, que saudades!

— Eu também estava, mas cheguei há mais de uma semana, e você nem se dignou a vir me ver.

— Eu sei, mas agora vim para ficar, Herzchen16, e estou feliz por te ter de volta aqui em casa. — Ele beija minha testa. — Não pretende voltar para a Espanha, não é?

Suspiro. Papai foi o primeiro a me incentivar a ir estudar fora, mas o único a ficar chateado quando decidi ficar depois que terminei a especialização. Nunca foi me visitar. Embora falássemos sempre, eu percebia que ele ainda não havia entendido minha necessidade de ficar longe.

— Vou voltar, sim, tenho compromissos de trabalho por lá que...

— Besteira! Aposto que você já tem tudo desenhado e organizado e que, em uma visita ou duas, poria fim a esses “compromissos”.

— Papai, não vim para ficar, e o senhor sabe. Mamãe está na parte mais agressiva do tratamento, e Dani precisou de mim para ajudar a cuidar dela e acompanhá-la...

— Estou aqui também! — ele se ofende por não ter sido incluído. — Ela diz que não precisa de mim, mas estou aqui, sempre estive por ela.

Oh, Deus, que situação!

— Eu sei, pai.

Benjamin Abraão Nogueira Klein Schneider nunca entendeu bem a distância fria de mamãe, por mais que os dois sempre tenham se dado bem. Acho até que foi por esse motivo que se afastaram depois que crescemos e que, após minha ida para a Espanha e a de Dani para seu próprio apartamento, papai decidiu se mudar para a fazenda.

Uma vez, quando eu ainda era uma garotinha, eu o vi bêbado no escritório do antigo apartamento em que morávamos. Ele bebia e parecia mal, chorava e segurava alguns documentos. Quando me viu, tentou sorrir e me chamou para perto de si.

— Tudo bem? — perguntei na inocência dos meus oito anos de idade e limpei suas lágrimas.

— Tudo. — Ele guardou a papelada dentro de uma caixa, onde vislumbrei também algumas fotos, trancou-a com chave e depois respirou fundo. — A vida adulta é complicada, Herzchen. Fazemos escolhas baseadas no que achamos ser melhor e esquecemos o preço que isso cobra, tanto aqui — ele apontou para sua cabeça — quanto aqui. — E, por fim, tocou em seu coração.

Na época não entendi nada, mas esse momento nunca deixou minha memória e, com o tempo, supus que ele estivesse falando de seu relacionamento com mamãe. Os dois se davam bem, mas era ele quem sempre cedia numa discussão ou quem corria atrás quando as coisas ficavam tensas entre eles.

— Vi seu bichinho pré-histórico lá no jardim comendo algumas plantas — ele ri, mudando de assunto. — Você poderia ter adotado um cachorro ou um gato como qualquer outra pessoa, não é?

— Pai, eu o ganhei de presente e gosto dele.

— Mas ele é feroz! — Faz cara de medo. — Já me mordeu algumas vezes.

Gargalho.

— Godofredo é muito territorialista, ele sempre ataca os homens.

— Hum, que interessante! Começo a gostar desse bichinho. — Rio do seu ciúme. — Você não trouxe nenhum espanhol junto contigo, não é?

Suspiro.

— Não. E se o Dani disse algo para o senhor também, ele é...

Benjamin me afasta de seus braços, segurando-me pelos ombros, e me olha surpreso.

Merda!

— Ele não disse nada, não é? — pergunto, achando-me idiota.

Meu pai nega:

— Era só uma pergunta brincalhona e especulativa. — Olha em volta. — O que ele deveria me dizer?

— Eu tinha um namorado em Madri, mas ele ficou por lá.

Ele põe a mão sobre o peito.

— Adorei esse tempo verbal: “eu tinha um namorado”. — Rio. — Agora você terá que me contar sobre esse tal...

— Ele me pediu em casamento — disparo. — Mas eu não pude aceitar.

Ficamos um tempo um olhando para o outro, parados no corredor, sem emitir um som sequer. Papai sempre foi bom ouvinte e dava bons conselhos. Mesmo não sendo muito de falar sobre como se sentia, mesmo reservado em seus sentimentos, até mesmo com seus filhos, ele sabia ouvir sem julgar e só opinava quando achava necessário, o contrário de mamãe.

— Preciso de um café ou de algo mais forte — confessa, e eu rio nervosa. — Vou falar com sua mãe e...

— Ela acabou de dormir — informo-lhe.

— Certo! — Respira fundo. — Se lembra daquele seu namorado da faculdade? — Gemo e assinto. — Você tinha dúvidas quanto ao caráter dele e, mesmo com todos os seus instintos te alertando que algo não estava bem, você aceitou o namoro e...

— Meus instintos estavam certos, ele era um pilantra filho da puta casado!

— E eu quis castrá-lo. — Ele sorri doce, como se isso não fosse nada. — Enfim, o meu conselho para essa questão sempre é: siga seus instintos. Se você não se achava pronta para aceitar o pedido, então fez certo ao recusá-lo.

— Então, você acha que eu fiz certo ao ouvir meu coração?

Ele ri e nega.

— Não, eu disse para ouvir seus instintos, porque seu coração não tem juízo. — Eu rio, achando que ele está fazendo troça, mas, então, ele completa: — Já se apaixonou uma vez por Alexios Karamanlis!

Fico séria, coração disparado, porque, embora ele saiba de todos os meus namorados e experiências, nunca contei a ele sobre Alexios.

Era óbvio para todos, não sei como consegui enganar a mim mesma! Eu ainda amo aquele safado!


— Alexios? — Termino de calçar os tênis antes de me virar para olhar Laura deitada na cama. — Já vai?

Ela se contorce languidamente, seu corpo curvilíneo, dourado de sol se mexendo contra os macios e perfumados lençóis de sua cama. Sorrio, deslizo a mão pela curva de seu lindo rabo e desfiro um tapa nele, fazendo-a rir.

— Preciso ir, tenho reuniões importantes agora de manhã na empresa, e, com a viagem de Theodoros para a Grécia e a demora na volta de Millos, as coisas ficaram acumuladas entre mim e o Kostas.

Ela bufa e se senta.

— Eu sei, ontem eles me passaram as informações sobre a propriedade no Rio de Janeiro, da reunião que tiveram na quinta-feira. — Ela dá de ombros. — Achei que Kika ia aparecer cheia de gás na sexta-feira, mas nem ela e nem seu irmão apareceram na empresa.

— A área é boa mesmo? — pergunto, pois apenas vi algumas imagens do local, e, como Laura é do geoferenciamento, deve ter detalhes bem específicos.

Ela confirma.

— O pessoal do jurídico está alvoroçado, e fiquei sabendo que o Leo, o braço direito da Kika, pediu para o pessoal acelerar com as outras áreas, porque gostaram muito da do Rio. — Laura me abraça pelos ombros e lambe minha orelha. — Falando em acelerar, adorei aquela rapidinha ontem na sala de servidores.

Eu rio, mas balanço a cabeça.

— Você jogou sujo comigo. — Levanto-me da cama, e a safada senta-se na beirada do colchão, os peitos cheios e rosados, as coxas musculosas bem abertas. Porra! — Goza para mim! — ordeno, e ela não se faz de rogada, tocando-se sem nenhum pudor. Vou até uma das luminárias, acendo-a e tenho a visão perfeita de sua boceta totalmente depilada já molhada de tesão.

Foda-se!

Apenas abro o cinto da calça, baixo o fecho e saco meu pau para fora. Pego uma camisinha em cima de seu criado-mudo, e ela ri quando avanço até onde está.

— De costas!

Ela se deita de bruços, e eu me agacho para entrar em uma única investida. Fecho os olhos, concentrando-me nas sensações, excitado com seus gemidos, mas, de repente, sinto um cheiro diferente, os sons mudam, e um rosto doce, sorridente, de lindos olhos castanhos aparece em minha mente.

Xingo alto, querendo expulsar a imagem de Samara, aumento as estocadas até sentir as pernas arderem e gozo sem ao menos saber se minha parceira teve seu prazer.

Caralho!

Afasto-me dela e apoio as mãos contra o aparador, colocando a culpa das súbitas aparições de Samara em minha mente na distância que impus entre nós depois daquele beijo no elevador. Claro que, se ela não tivesse se mudado para a casa da mãe, certamente essa distância não seria tão dura, afinal, eu poderia encontrá-la casualmente pelos corredores do Castellani, mas quem disse que a sorte gosta de mim?

Agora, além de ter visões dela durante minhas trepadas, acordo excitado por algum sonho erótico protagonizado por ela e ainda tenho que aguentar os questionamentos de Kyra e de Chicão sobre o motivo pelo qual eu e Samara não nos falamos mais.

— Tudo bem? — Laura me toca o ombro, fazendo com que eu desperte dos devaneios sobre Samara.

— Tudo. — Retiro a camisinha e a jogo no lixo. — Preciso ir, já está amanhecendo.

— Eu sei.

Ela sorri, doce e compreensiva, e eu respiro fundo, sabendo que estou fazendo merda. Primeiro, por ela ser funcionária da Karamanlis, e segundo, por eu estar fazendo sexo com ela há duas semanas.

Nunca fico tanto tempo com alguém. Para falar a verdade, não me lembro da última vez que mantive uma única parceira, mas, por algum motivo, tenho andado preguiçoso, sem vontade de sair e, como trepei com ela e gostei, achei mais simples continuar.

Despeço-me dela apenas com um aceno de cabeça. Laura me acompanha até a porta de seu apartamento, e eu desço até o térreo, onde minha moto está estacionada em frente à portaria do prédio.

Sigo para o Castellani, mas a cabeça continua a vagar por lembranças dessas longas seis semanas desde o baile dos Villazzas. Tanta coisa aconteceu dentro e fora da Karamanlis, ainda assim senti o tempo passar lentamente.

No trabalho, as coisas começaram a ficar mais intensas, apesar de começo de ano sempre ser mais devagar. Com a conta da Ethernium, tive que mobilizar boa parte dos profissionais para elaborar croquis baseados na planta da siderúrgica e as áreas que foram aparecendo. A volta de Kika à empresa foi providencial, pois ela nos apresentou uma ideia que facilitou muito a vida de todos.

Eu ainda estou surpreso por Theodoros ter colocado a gerente dos hunters e meu irmão trabalhando juntos, pois isso não é algo do perfil do meu irmão mais velho. Foi então que, conversando ao telefone com Millos, descobri que tinha dedo dele nessa história.

A ideia de os dois trabalharem juntos não surgiu na reunião preliminar do projeto, mas foi algo que Theodoros e Millos combinaram assim que souberam que ela iria voltar para a empresa. Agora, conhecendo Millos como conheço, só me pergunto o que, especificamente, meu primo pretendeu ao dar essa sugestão.

Esperei que os dois se matassem desde a primeira semana juntos, ainda mais depois que Theodoros viajou, mas não, aparentemente tudo tem transcorrido bem entre os dois, e a conta da Ethernium parece estar em boas mãos.

Em casa, com a presença de Chico, que ainda está por lá, tenho sempre companhia para jogar bilhar, videogame ou para corridas aos finais de semana. Decidi não participar de nenhum campeonato este ano, nem de moto, nem de carro, pois o trabalho iria consumir muito de minha equipe, e eu não sou o tipo de chefe que deixa seus funcionários se fodendo de trabalhar e sai cedo para treinar ou viajar. Não sou profissional por isso, não consigo me dedicar integralmente às corridas, embora goste muito delas. Vejo-as com um hobby, assim como os esportes e outras atividades que uso para ocupar minha cabeça.

Entro na garagem do prédio, paro a moto e, assim que tiro o capacete, paro em seco ao ver Samara.

— Bom dia — ela me cumprimenta, sem parar para falar comigo e sem olhar para trás.

Confiro as horas no relógio e estranho que ela esteja saindo tão cedo de casa.

— Algum problema? — pergunto preocupado.

Samara para e me olha.

— Não. — Abre o carro, mas me aproximo antes que entre. — O que foi, Alexios? — sua voz é impaciente, e eu percebo que o clima estranho está de volta.

— Como está sua mãe?

Ela franze a testa, ajeita o cabelo e ri amarga.

— Teve que se encontrar casualmente comigo para lembrar que minha mãe está doente? — Balança a cabeça. — Sempre soube que você era desligado com as coisas, Alexios, mas na verdade é um egoísta.

Suas palavras cheias de mágoa me acertam. Aperto a mão no capacete, ciente de que ela tem razão. Eu poderia tê-la procurado, ter ligado, ter sido o amigo que ela merecia, mas, em vez disso, escolhi me afastar e deixá-la sozinha com seus problemas.

Sim, além de covarde, um grande egoísta!

— Você tem razão. — Aceno. — Bom dia.

Dou a volta e sigo em direção ao elevador, achando-me ainda mais desprezível do que sempre me achei.

— Ela está melhorando — a voz de Samara ecoa na garagem, e eu paro. — A quimioterapia está tendo os resultados esperados, e os médicos estão confiantes.

Viro-me para olhá-la, ainda parada do lado de fora do carro, com a porta do motorista aberta.

— Eu sinto muito por não ter ligado antes. — Ela dá de ombros como se não se importasse, mas sei que se importa; eu me importaria. — Você tem razão sobre eu ser um egoísta, você merecia um amigo melhor.

Samara bufa e, sem dizer nada, entra no carro, fecha a porta e liga o motor. Instantes depois, vejo-a passar por mim sem dizer nada e me sinto um bundão. Subo para meu apartamento e, assim que entro, encontro Chicão no meio da sala, usando apenas uma cueca, meditando.

— Que visão do inferno! — sacaneio e sigo para meu quarto.

— Bom dia, embuste! — saúda-me sem ao menos abrir os olhos. — Você deveria tentar, pelo visto nem suas trepadas diárias estão conseguindo mantê-lo relaxado, então, quem sabe a meditação...

— Nem fodendo! — grito para ele e sigo para o banheiro.

Somente quando fecho a porta é que toda a armadura se vai. Fico parado, olhando para o espelho, tentando analisar além da aparência que todos veem. Eu sou um filho da puta egoísta e imbecil, um impostor, uma fraude gigante que perambula pela cidade sem nem mesmo saber quem é.

Anjo dos Karamanlis! Engenheiro filantropo! Chefe preocupado com funcionários... tudo mentira!

Retiro a roupa, jogando-a no cesto de roupa suja antes de me enfiar debaixo da água gelada do chuveiro. Gostaria que, da mesma forma que essa água consegue limpar meu exterior, pudesse fazer o mesmo dentro de mim. Sou tão vazio e frio quanto meu irmão do meio e tão arrogante e egoísta quanto Theodoros. Sou tão louco quanto Nikkós!

Doeu-me ver e ouvir a mágoa que causei em Samara, mas é somente isso que causo nas pessoas. Decepção! Eu não mereço sua amizade e nem estar perto dela. A raiva de mim mesmo explode como há muitos anos não a sinto. Sem pensar, soco o vidro do boxe, que se espatifa e desaba sobre mim.

A porta do banheiro é aberta com um estrondo, e um apavorado Chicão aparece, olhos arregalados, olhando a destruição que causei ao meu banheiro.

— Merda, Alexios! — Ele salta em minha direção sem se preocupar com os cacos de vidro pelo chão e tenta me tirar do boxe. — Porra, sai daí.

Nego, o sangue escorrendo pelo ralo do banheiro, minha mão ardendo, assim como meus braços e os pés. Não me movo, apenas tremo, tentando ainda conter toda a fúria dentro de mim.

— Sai daí, Alex, você está ferido, porra! — Chicão grita.

— Não! — Não me movo. — Eu sou um lixo! Ele nunca deveria ter me pegado no lixo onde me encontrou, deveria ter me deixado morrer, deveria...

— Para com essa merda! — Some para dentro do meu quarto e, quando volta, está calçando meus coturnos. — Você não vai mais fazer isso, ouviu?

Chicão entra no que restou do boxe, desliga a água, joga uma toalha sobre meu corpo e me ergue. Não consigo reagir, a cabeça girando, todos os insultos e histórias sobre mim que ouvi de Nikkós por tantos anos enchendo meus ouvidos, torturando-me mais uma vez, ressaltando o quanto sou desprezível.

— Você não vai fazer isso consigo mesmo de novo, ouviu?! — Chicão esbraveja, fazendo pressão com a toalha de rosto na minha mão. — Ele te machucou, você se machucou, mas essa merda já acabou faz tempo. Ele não pode mais, Alexios, nem te tocar e nem contar mentiras a você. Chega!

Nego.

— Eu sinto tanta raiva... — Meus dentes batem um no outro, e eu os travo. Minha vontade é de gritar, socar, foder com tudo.

— Eu sei, já passamos por isso antes, e eu... — ele baixa o tom de voz e expira — achei que já tinha superado.

— Como? — questiono-lhe. — Como posso esquecer, se continuo a ser a mesma pessoa desprezível de sempre? Não são as marcas que ele causou no meu corpo que me causam essa raiva, sou eu!

— O que aconteceu?

Nego, trêmulo e me sento na cama. Gemo ao sentir as dores dos cortes, percebendo que a adrenalina passou mais rápido do que antigamente. Eu aprendi a controlar a dor usando a raiva. Durante anos de espancamento, percebi que, quanto mais raiva eu sentisse, menos dor ele me causava. Mais tarde, quando sentia raiva por qualquer motivo, eu mesmo me machucava, levava-me ao limite do meu corpo e quase me destruía.

Era um círculo vicioso que eu achei que já havia passado, mas, aparentemente, não.

— Encontrei Samara na garagem, provavelmente indo se encontrar com sua mãe e levá-la ao hospital — confesso, cansado demais para guardar qualquer coisa. — Eu não a via há semanas, desde o baile dos Villazzas no Ano Novo.

— Eu também só a vi uma vez aqui no prédio...

— Eu não liguei, não procurei por ela, não justifiquei meu ato e nem meu sumiço — interrompo-o e o encaro. — Ela está magoada comigo.

Chicão confere o sangramento da mão, tirando a toalha e depois se senta ao meu lado na cama.

— Por que você fez isso? Sumiu e não a procurou?

Respiro fundo; comecei o assunto, agora preciso terminá-lo.

— Preferi me afastar. — Olho para baixo, envergonhado. — Eu quase trepei com ela no elevador aqui do prédio. — Fecho os olhos. — Eu a quis como mulher, não consegui reprimir a vontade, como sempre fiz, e agi feito um idiota excitado.

— Ela o repeliu?

— O quê?

— Samara o repeliu? Te xingou? Bateu em você? Disse que você abusou dela? Mandou que ficasse longe?

Lembro-me daquela noite, a forma como reagiu ao beijo, o jeito que gemia e parecia tão excitada quanto eu.

— Ela estava bêbada, me aproveitei dela, sou um canalha.

— Nisso concordamos, mas o que ela pensa sobre o acontecido?

Balanço os ombros.

— Não sei, não falo com ela desde então. — Lembro-me da conversa com Kyra no dia seguinte ao baile e praguejo. — Ela está noiva.

— Samara? — Assinto. — Que merda!

— É, o beijo foi uma merda enorme, e eu não sei como...

— Não, seu idiota! — Ele estapeia minha cabeça. — Que merda que Samara esteja noiva, ela é a mulher perfeita para você.

Olho-o como se ele estivesse louco.

— Claro que não, ela merece alguém muito melhor do que eu! Samara nunca cogitou qualquer tipo de relacionamento comigo a não ser o de amizade.

Chicão bufa.

— Você não é idiota, Alexios Karamanlis, é um burro!

Ele joga a toalha, manchada de sangue, no chão do quarto e sai puto comigo ou com alguma coisa que eu disse. Ele não entende, óbvio! Samara é... especial, e alguém especial como ela nunca se relacionaria com alguém tão ordinário como eu.

Olho para minha mão e rio ao pensar na bagunça que sou.

Obviamente ela nunca se relacionaria e nem deveria se relacionar com alguém tão fodido como eu.

 

— O que houve com sua mão? — Laura me pergunta de repente, assustando-me, pois eu nem mesmo sabia que estava por perto. Encaro-a sem entender como e o que está fazendo aqui na K-Eng. Seu olhar é de assombro aos machucados em minha mão, além de questionadores, o que me irrita um pouco.

— Um pequeno acidente — respondo seco. — O que você está fazendo aqui?

Levanto-me da mesa, agradecendo por não ter mais ninguém por aqui a essa hora e fico de frente para ela. Laura abre um sorriso sem graça, mas logo se pendura em meu pescoço.

— Tem mais de uma semana que não te vejo, você não liga e nem aparece lá no meu apartamento. Então, se Maomé não vai até a montanha...

Reviro os olhos e retiro as suas mãos de mim.

— Laura, você trabalha na Karamanlis, então já deve ter percebido a movimentação infernal na empresa por conta da Ethernium. — Ela concorda. — Além disso, não entendi o motivo pelo qual eu deveria dar satisfação ou ter regularidade em nossos encontros.

A moça arregala os olhos por causa de minha sinceridade.

— Eu pensei que... — ela suspira — estávamos tendo essa regularidade, afinal, ficamos juntos por umas semanas e...

— Ficamos porque estava gostoso — não tenho medo de ser direto. — Mas não significa que temos qualquer tipo de compromisso. Não sou desses, Laura, e foi a primeira coisa que te disse quando trepamos a primeira vez.

Ela fica um tempo muda, olhando para o nada, então, de repente, abre um sorriso e desliza a mão pelo meu peito.

— Disse. Como disse também que queria trepar mais, lembra? Eu ainda quero mais, Alex — sua voz é ronronante. — Sempre imaginei como seria fazer sexo aqui na sua sala.

Respiro fundo, levemente excitado com o oferecimento, contudo, sem nenhuma vontade de fodê-la aqui – ou em qualquer outro lugar – depois desses questionamentos.

— Infelizmente, eu estou muito ocupado agora, motivo pelo qual ainda estou na empresa quando todos já foram. — Ela faz um biquinho, mas me afasto e volto a me sentar à mesa. — Acho melhor você ir.

Ela bufa.

— Sério isso?

Volto a olhá-la, sem esconder meu desagrado e impaciência, e ela se sobressalta.

— Sério.

Laura fica um tempo me encarando, depois vira as costas e sai da sala, andando firme e visivelmente puta. Balanço a cabeça, repreendendo a mim mesmo por ter deixado as coisas chegarem a esse ponto. Foi muito bom trepar com ela, aposto que a recíproca é verdadeira, porém não imaginei que ela criaria tantas expectativas e se sentisse no direito de vir me cobrar algo.

Erro de cálculo!, penso, sem deixar de pontuar que isso, para um engenheiro, é algo muito perigoso, que pode pôr tudo a perder.

Pego a pequena bola de borracha que tenho usado para exercitar minha mão e reparo nos machucados nela. Os cortes já estão todos secos, e os pontos que tomei em um deles já foram retirados.

Socar o vidro do boxe foi um momento de loucura, como tantos outros por que já passei. Fazia muito tempo que eu não perdia a cabeça daquele jeito, e sei que o que Samara me disse foi o gatilho responsável por isso. Não tiro, em hipótese alguma, a razão dela para me dizer aquelas palavras, mas elas acertaram o alvo na mosca.

Fecho os olhos e tensiono o pescoço, tentando relaxar um pouco para voltar a trabalhar e não enveredar pelos acontecimentos dessa semana, mas ainda não tenho esse controle total da mente e dos meus pensamentos.

A frustração me bate ao me lembrar do almoço com Konstantinos, meu irmão advogado. Achei que, pela primeira vez, ele iria se dispor a me ajudar com as respostas que procuro por anos, mas, ao que parece, ser egoísta e frio é algo familiar.

Mexo na minha agenda de anotações e encontro lá o endereço do sobrado de propriedade de Kostas. A voz da mulher misteriosa que encontrei na porta do Castellani ainda ressoa nítida em meus ouvidos:

“Eu conheci sua mãe biológica. Se quiser respostas, procure pela casa de Madame Linete.”

Foi o encontro mais estranho da minha vida. Ela estava parada lá, olhando o prédio e, quando me viu, logo perguntou se eu era um Karamanlis. Estranhei a pergunta, tentando reconhecer a senhora frágil e de cabelos brancos, mas não precisei responder, pois ela logo disse essas duas frases e se afastou sem me dar a chance de perguntar qualquer coisa mais.

Claro que eu já havia cogitado a ideia de que tinha sido gerado por alguma prostituta daquela maldita casa, afinal, era o local que meu pai mais utilizava. Não deveria ter começado do nada sua amizade com a cafetina asquerosa, mas nunca achei nada que me ligasse àquele local até esse encontro.

Talvez fosse uma pista falsa apenas, mas eu não poderia ignorar mais nada, não enquanto não achasse as respostas que procurei por toda minha adolescência a fim de tirar esse poder das mãos de Nikkós.

Não conhecer meu passado era o suficiente para meu pai ter uma enorme arma psicológica contra mim, coisa que ele utilizou por muitos e muitos anos.

Foi pensando em exterminar todo e qualquer poder que meu pai ainda pudesse ter sobre minha vida que atraí meu irmão para um almoço com a desculpa de falar da conta na qual estávamos trabalhando em conjunto.

Confesso que estranhei quando ele aceitou sem que eu tivesse que recorrer a inúmeros subterfúgios, mas agradeci a boa sorte, e nos encontramos em um restaurante neutro, escolhido a esmo, embora de alta gastronomia.

Achei que seria difícil introduzir o assunto, principalmente porque ele iria saber que pesquisei o maldito imóvel e descobri que ele o comprou há anos, quando foi a leilão. Isso me surpreendeu, claro, saber que ele comprou o sobrado e que ainda o mantém de pé sem nenhuma modificação ou uso. O assunto não surgiu naturalmente. Kostas estava estranho, mesmo falando de negócios, o que me surpreendeu, pois sempre imaginei que ele fosse se aproveitar da distância de Millos e Theo para tentar assumir a empresa.

— Eu acho que temos um acordo implícito de não falarmos sobre o passado — decidi não ser mais sutil, e Kostas reagiu imediatamente:

— Não é implícito. Não quero falar do passado. Mais explícito que isso, impossível!

Eu sabia que não seria fácil, ele é tão fechado quanto eu, então precisei desarmá-lo. Aproximei-me dele por sobre a mesa do restaurante e abaixei o tom de voz:

— Dessa vez, não poderei acatar sua vontade, Konstantinos. Sei que você comprou o sobrado da Rua...

Kostas levantou-se.

— Perdi a fome, vou voltar para a empresa.

Pus-me de pé também e o vi caminhar na direção da saída do restaurante, mas não ia desistir, não quando já havia agitado o vespeiro.

— Eu nunca te pedi ajuda. — Meu irmão parou, mas não se virou para me olhar. Decidi continuar por essa linha de ação: sinceridade. — Eu não podia te ajudar, então nunca pedi ajuda também.

— Alexios, não faça isso...

Eu soube que atingi o ponto certo, pois podia sentir a tensão no seu corpo. Nós dois temos consciência do que passamos na mão do nosso pai e de tudo que fizemos para que a loucura de Nikkós ficasse longe de Kyra. Kostas não aguentou por muito tempo, e eu o entendo, mas fiquei lá sozinho, lutando contra o monstro, tentando proteger minha irmã, mesmo sem ninguém para fazer o mesmo por mim.

Nunca tinha pensado em lhe cobrar, mas situações extremas pedem medidas extremas.

— Eu preciso, senão não faria. Há chances de eu descobrir o que Nikkós fez com minha mãe.

Fiquei satisfeito ao vê-lo se virar completamente surpreso.

— Sua mãe? Você soube algo dela?

— Nada conclusivo, mas acabei cruzando com uma pessoa que, quando soube que eu era filho dele, disse tê-la conhecido.

— Isso é loucura! Você procurou durante sua adolescência toda, quase se matou por isso, não há pistas, não há nomes, não há nada!

Lembranças de anos e anos de buscas vãs me fizeram titubear por alguns instantes. Eu não tinha um ponto de partida na época, pois ela podia ser qualquer pessoa, mas, naquele momento, eu tinha a maldita pista do imóvel.

— Preciso acessar o sobrado — voltei a falar, mas Kostas negou. — Preciso entrar e remexer tudo lá.

— Não!

— Foda-se, eu vou! — Soquei a mesa, decidido, puto demais por estar ali pedindo ajuda a ele pela primeira vez e não ser compreendido. Eu sempre o entendi, sempre o justifiquei quando saiu do apartamento e foi viver sua vida. Quando descobri que o sobrado lhe pertencia, nunca pensei em questionar seus motivos, apenas o entendi. Não era justo não ter o mesmo tratamento e consideração. — Eu sei que, por algum motivo bizarro, você o comprou, trancou-o com tudo dentro e o tem deixado apodrecendo por mais de 15 anos! Pode ter alguma pista lá.

— Não é seguro. Não vou arriscar que você morra lá dentro e eu ainda tenha que responder a...

Caralho de desculpa mais esfarrapada!

— Porra, Kostas, não fode! — Perdi a paciência, circundei a mesa e me aproximei dele, disposto a jogar pesado. — Eu sei dos teus motivos, respeito-os. Como disse, nunca te pedi ajuda antes porque sabia que você também precisava e não tinha a quem pedir, mas agora estou pedindo, agora estou contando com você. Não me faça arrombá-lo, porque eu o farei, apenas dê-me as chaves de todas aquelas grades que pôs lá.

Vi-o pensar, achei mesmo que eu estivesse tocando em alguma parte ainda viva de seu corpo, talvez no menino que conheci quando chegou para morar conosco, mas não, ao que parecia, meu irmão havia virado a porra de uma rocha fria e sem sentimentos.

— Tente invadir. Será um prazer implodir aquela merda com tudo dentro!

A mera possibilidade de ele destruir a única pista que tive do meu passado me desconsertou. Kostas aproveitou-se do momento e foi embora do restaurante.

Fiquei um tempo parado, até que ouvi um leve pigarrear e vi os garçons chegando com nossos pedidos. Estava sem fome, um bolo havia se formado em minha garganta, então pedi que embrulhassem tudo e deixei as quentinhas com o primeiro morador de rua que achei pelo caminho.

Andei sem rumo, sem saber o que fazer ou como agir. Tinha aberto meu peito para ele, pedira ajuda pela primeira vez e recebera um sonoro não. Senti algo inédito pelo meu irmão, raiva. Kostas nunca fora o alvo da minha revolta, pois sempre o compreendi, mas naquele momento não podia mais entendê-lo, não quando eu poderia ter respostas para acabar com minha tortura.

Sair de casa ajudou meu irmão a dar fim ao poder de Nikkós sobre sua vida, mas o mesmo não aconteceu comigo, e, enquanto eu não souber sobre o meu passado, não poderei tirar do homem que me gerou a possibilidade de voltar a me ferir.

O som de mensagem no celular me faz deixar de lado essas lembranças, e eu leio a mensagem de minha irmã me convidando para jantar com ela.


“Kyra, ainda estou na empresa, não poderei ir.”


Envio a mensagem esperando que seja suficiente, mas não é.


“Uma hora você precisará comer, e eu não tenho nenhuma intenção de jantar cedo. Venha no horário que puder, esperarei você.”


Merda, ela sabe ser insistente!


“Ok.”


Olho para o monitor do computador, respiro fundo e desisto de trabalhar. Minha barriga ronca, e decido aceitar o convite inesperado de minha irmã. Antes, porém, olho novamente o endereço do sobrado e traço um plano para invadi-lo sem que Konstantinos tome conhecimento.

As respostas que busco sobre mim mesmo podem ser achadas lá; não vou desistir tão fácil assim de encontrá-las. Nunca desisti fácil de nada, essa não será a primeira vez.

Imediatamente a imagem de Samara aparece em minha mente, e eu bufo, chamando-me de hipócrita. Claro que já desisti fácil de algo, eu só não gostava de admitir isso por não me achar sequer digno dela.

Quem sabe se eu achar as...

Interrompo o pensamento antes de criar ilusões que só serviriam para me machucar. Não há possibilidade de eu tê-la, mesmo que tenha todas as respostas da minha vida. Samara nunca estará ao meu alcance, e, sinceramente, acho bom que não haja nenhum envolvimento entre nós.

Ela merece mais!


Pego mais um copo de café e volto a me sentar ao lado de Daniel, sacudindo a perna, bebericando ou soprando a bebida quente. Olho para o corredor e, sem nem mesmo consumir metade do café, levanto-me para pegar um copo d’água.

Volto a me sentar, as pernas agitadas, confundo os copos e dou uma golada no café fumegante.

— Merda!

Daniel põe a mão no meu joelho e me obriga a parar de sacudir a perna.

— Se você não sossegar agora, juro que te ponho para fora — ele me ameaça.

— Desculpa. — Sorrio sem jeito. — Estou nervosa com os resultados desse primeiro ciclo de quimio e acho que deveríamos ter entrado com ela para saber mais...

— Nosso pai entrou com ela, Samara. Sossegue, você está me deixando irritado parecendo uma criança ansiosa! — Daniel fala alto, e eu o encaro surpresa. — Desculpa. — Ele põe a mão na cabeça e esfrega os olhos. — Eu quase não dormi essa noite, mas você não tem nada a ver com meu mau humor.

— Ela vai ficar bem, Dani. — Ponho minha mão em seu ombro.

— Eu sei que vai! Nunca tive dúvidas disso.

Respiro fundo e concordo com ele, embora não tenha a mesma confiança que ele demonstra ter.

Têm sido dias difíceis desde que cheguei ao Brasil, mas em momento algum me dei a oportunidade de esmorecer perto deles. A cada medicação, mamãe tinha reações mais fortes, requerendo tanto cuidado e atenção que decidi desistir de morar no meu apartamento e voltei para a casa dos meus pais.

Confesso que essa decisão também me ajudou a manter distância de Alexios Karamanlis. Não que eu ache que em algum momento ele tenha notado minha ausência ou se importado com isso, mas para mim fez toda a diferença.

É aquele ditado, sabe? O que os olhos não veem...

Suspiro.

— Você foi incrível nesses dias, Samara — Daniel volta a falar. — Mamãe esteve muito mais à vontade com você por perto do que comigo.

— Não fala besteira, Dani! — Ele sorri, sabendo que é o xodó da mamãe. — Eu gostei de ter conseguido ajudar e estar com ela de novo.

— Ela também ado... — ele para de falar assim que vê nossos pais vindo até onde estamos. Levantamo-nos juntos, apreensivos, esperançosos, e o sorriso de mamãe é reconfortante.

— O que o médico disse? — indago assim que eles se aproximam.

— O medicamento fez o efeito esperado para esse primeiro ciclo. Agora é esperar o tempo de descanso para começar de novo. — Mamãe sorri.

— E a radioterapia? — Dani questiona, e ela dá de ombros.

— O doutor ainda não prescreveu — papai responde. — Vamos torcer para que a quimio resolva sem precisar da rádio! — Ele sorri e abraça mamãe pelos ombros. — Em breve você terá sua vida agitada de volta.

Ela suspira cansada.

— Bom, vamos todos almoçar para comemorar o fim desse primeiro degrau rumo à vitória! — tento animar a todos, mas só meu pai sorri. — Ah, gente, vamos lá! Mamãe?

Ela assente e olha para Daniel.

— Você não está cansada? — meu irmão pergunta a ela.

— Não, podemos ir!

Bato palmas e a beijo na testa.

Eu entendo o desânimo dela, seria cruel não entender, pois, ainda que todos estejamos empenhados em seu tratamento, é ela quem passa por todos os efeitos colaterais dos medicamentos e pela doença. Mamãe nunca foi uma mulher parada ou passiva, e depender de outras pessoas deve estar sendo uma verdadeira prova para ela.

Foram semanas difíceis, não nego. Fiquei totalmente à disposição de minha mãe, levando-a às consultas e às sessões, fazendo companhia a ela, amparando-a em momentos de indisposição e dor. Godofredo e eu nos mudamos para a mansão da família, e eu mal tive tempo para ir ao Castellani ou mesmo visitar amigos.

Kyra esteve várias vezes conosco, geralmente após o expediente de trabalho, quando não tinha eventos. Daniel e Bianca, sua noiva, também estiveram presentes nos jantares e almoços de finais de semana, e, claro, papai.

Sorrio ao pensar em como é bom ter meu pai por perto. Ele e eu temos muitas afinidades, então, passamos muito tempo conversando, vendo filmes ou ouvindo música. Mamãe prefere ler sozinha em seu quarto à noite, por isso faço esses programas todos com papai.

Assim, o mês de janeiro se foi, e fevereiro entrou com força total com a finalização do primeiro ciclo de quimio da mamãe e o inesperado convite de Daniel para que eu trabalhe na empresa com ele.

— Dani, eu sou designer de interiores. Já trabalhei decorando mansões, apartamentos, iates e até um motor home, mas nunca fiz nada empresarial. — Fiz careta ao lhe responder. — É tudo muito frio.

— É um hotel — ele logo me informou. — Vamos redecorar um enorme hotel.

Meus olhos brilharam.

— Ele vai seguir algum padrão já existente? É um hotel de rede?

Ele nega.

— Não. É uma casa de campo que está virando hotel. — Arregalei os olhos. — O projeto de reforma é da Karamanlis, e a executora da obra é a Novak.

— K-Eng? — inquiri baixinho, e ele suspirou.

— É, mas quem está acompanhando é um dos braços direitos do seu amigo.

Havia muitos dias eu já não pensava no Alexios e nem no beijo do Ano Novo. Não foi o primeiro que trocamos depois de umas bebidas, então eu não devia lhe dar tanta importância, embora reconhecesse que ter me afastado do Castellani ajudou muito a manter distância dele. Alexios e eu já não somos mais amigos!

A perspectiva de trabalhar em um projeto como aquele enquanto eu estivesse no Brasil era maravilhosa, mesmo com a possibilidade de encontrar o CEO da K-Eng eventualmente.

— Aceito olhar o projeto e conversar sobre o briefing, só isso. — Daniel sorriu satisfeito. — Se eu puder executar meu trabalho sem a interferência de pessoas que nada entendem de decoração, pego para fazer; do contrário, estou fora.

— É assim que se fala! Você vai amar o projeto de reforma, ficar cheia de ideias, e tenho certeza de que os responsáveis pelo empreendimento vão adorar seu trabalho.

O projeto realmente estava incrível, e a ideia de como os donos queriam a decoração dos quartos e áreas comuns me deixou louca para começar o trabalho. Aceitei a proposta, negociei sob a garantia da Schneider e fechei um belo negócio aqui no meu país.

Penso no meu trabalho na Espanha e Diego me vem à cabeça. Entro no carro, no banco do carona, ao lado de Daniel e suspiro.

— O que foi? — meu irmão pergunta, seguindo o carro do papai para fora do estacionamento.

— Estava pensando no Diego.

— Vocês têm se falado?

— Sim, por mensagens. — Balanço a cabeça. — Não sei mais o que fazer para ele entender que não estou tendo nenhum tipo de crise por conta do tratamento da mamãe. Eu fui sincera com ele quando terminei. Não foi certo fazer por vídeo, mas eu não podia mais me sentir enganando-o.

— Eu entendo você, embora não goste nada do motivo que a levou a isso.

— Não tem nada a ver com Alexios, nós nem temos nos visto. Eu pensei em ir até a Espanha para conversar melhor com Diego, mas acabei de pegar esse projeto enorme e não posso me ausentar por agora. Além disso, ele está seguindo o time na Champions...

— Não sei se é boa ideia você ir atrás dele. Acho-o um tanto insistente demais. Concordo que não foi certo terminar por vídeo-ligação, mas depois disso vocês conversaram várias vezes, e o homem não para de insistir.

Eu concordo, mas ao mesmo tempo me sinto culpada.

— Sim. Mesmo assim sinto que lhe devo uma explicação.

Paramos no farol, e ele me olha.

— Você quer retornar para Madri mesmo depois desse término?

Respiro fundo e dou de ombros.

—Sim, trabalho em uma ótima empresa lá, então, por que não voltar?

Meu irmão ri.

— Isso é você quem tem que responder a si mesma. — Ele me puxa para perto e beija o topo da minha cabeça. — A decisão é sua; certa ou errada, cabe a você decidir o que fazer.

— Eu sei.

Sorrio, mesmo com minha cabeça fervendo de perguntas sem respostas, mesmo sem entender o que eu quero e por onde devo ir.

Fui para a Espanha para fugir de um sentimento que parecia não ter fim, mesmo diante da impossibilidade de se tornar algo real, e acabei fazendo amigos e criando laços por lá, mas é aqui que minha família e meus amigos estão. A decisão não é fácil!

Quanto a Alexios... o sentimento não morreu, obviamente, porém não guardo mais nenhuma ilusão com relação a ele. Sempre serei vista como a grande amiga e nada mais.


— Alexios está esquisito essa semana — Kyra comenta.

Eu rio e bebo mais um gole do vinho.

— Quando ele não foi esquisito? — debocho.

— Exatamente, a esquisitice dele não me surpreende, mas essa semana ele está mais esquisito. — Presto atenção ao que Kyra diz, pois minha amiga não costuma exagerar, pelo contrário. — Eu sei que ele está em um ritmo frenético de trabalho, mas, quando falei com ele ontem, achei-o um tanto...

— Esquisito — complemento, e Kyra revira os olhos ante minha brincadeira. — Kyra, seu irmão é a pessoa mais fechada do mundo, você sabe. Mesmo que ele esteja com merda até nos ouvidos, precisa quase se afogar nela para pedir ajuda ou falar com alguém.

Ela assente, e nós duas ficamos mudas. Eu me lembro de quando tomei conhecimento, pela primeira vez, do que eles viviam com o pai. Alexios telefonou para minha casa pedindo para que eu subisse até a cobertura, pois precisava de um favor. Não pensei duas vezes e fui até ele pensando que queria ajuda com algum jogo ou matéria – história nunca foi o seu forte –, mas, quando o vi, mal conseguia me mover.

Ele estava todo machucado nas costas. Os cortes eram verdadeiros talhos, de onde saía muito sangue, e eu tive que respirar fundo várias vezes para não vomitar.

— Samara, preciso que você seja dura agora — ele me disse com a voz calma, com toda sua sabedoria de 15 anos de idade.

— O que você quer que eu faça? — perguntei temerosa, já prevendo que ele me pediria para limpar e fazer curativos.

O problema era que, por conta do tamanho e da profundidade dos cortes, curativos não seriam o bastante. Ele ergueu uma agulha curva com um enorme pedaço de linha preta.

— Costure.

Neguei várias vezes com a cabeça, incapaz de abrir a boca sem derramar todo o lanche que havia acabado de tomar, mas ele me olhava suplicante. Percebi que, mesmo sentindo dor, ele tentava não demonstrar.

— Você precisa de um médico!

— Não. — Ele ergueu a agulha novamente. — Preciso de você.

Peguei o metal curvado. Minhas mãos tremiam, o queixo também. Era possível ouvir o som dos meus dentes batendo forte um contra o outro. Não entendia o que estava acontecendo, o motivo pelo qual ele estava daquele jeito e não ia até um hospital.

Eu mal sabia bordar, e somente a possibilidade de machucá-lo ainda mais me apavorava.

— Se fosse em outro local, eu juro que não pediria isso a você, mas eu não consigo suturar as costas sozinho.

Foi então que percebi que não era a primeira vez.

— O que foi isso, Alexios?

Ele sorriu tentando me despistar, mas depois suspirou.

— Caí em cima da mesinha de centro da sala lá de cima. — Apontou para o segundo piso da cobertura. — Ela era toda espelhada, por isso me cortei.

— Caiu?

Ele não respondeu, apenas virou-se de costas para mim e começou a me dizer o que fazer.

— A agulha já está desinfetada, e eu tomei banho, mas ainda assim preciso que você passe esse antisséptico, limpe bem o sangue e comece a costurar. — Ouvi o som de sua risada. — Pense que sou um dos seus tecidos finos e delicados de almofada e borde em mim.

Bufei com a comparação.

— Não achei graça nenhuma!

Foi um longo processo, mas cumpri com o que ele pediu e somente anos depois é que entendi tudo aquilo, inclusive a história esfarrapada do “caí por cima da mesa”.

Fiz muitos favores como esse para ele por muito tempo ainda. Aprendi a costurar sua pele, a recolocar seus ossos no lugar quando se deslocavam e até mesmo a imobilizar alguma parte de seu corpo. Porém, mesmo estando ao lado dele em todos esses momentos dolorosos, Alexios só me contou que era o pai que o espancava depois que saiu de casa com Kyra.

Eu sofri tanto por pensar nas atrocidades que eles viveram, porque minha amiga até reclama do irmão, mas são farinha do mesmo saco. Não faço ideia de como Nikkós a afetou, mas é certo que ela não foi poupada da loucura do pai.

— Ei, Samara no mundo da lua! — Kyra me cutuca. — Está pensando em quê? Perguntei por Diego, e você ainda nem me respondeu o que ficou decidido.

— Nada de diferente. — Ela cruza os braços. — Temos conversado bastante por mensagens, mas ele parece não aceitar que acabou. Diz que estou em crise e que, assim que puder, virá ao Brasil.

— Para quê?

— Conversar pessoalmente. — Fecho os olhos. — Gostaria tanto que tudo fosse diferente, sabe? Que eu pudesse gostar dele da forma como deveria.

— E por que não pode? — Olho para Kyra, e ela entende a resposta. — Uma merda isso! Então você não vai voltar para Madri mais?

Penso em Diego e em todo esse tempo em que estivemos juntos, recordo-me de como me senti feliz ao lado dele e do escritório maravilhoso de design em que trabalhei durante esses anos. Ele tem alegado isso, que estou confusa por estar longe, com medo de mudar de vez para Madri e ficar longe da minha família. Não é isso! Ter voltado ao Brasil mexeu, sim, com meus sentimentos, principalmente quebrou a ilusão de que eu tinha esquecido Alexios. Por isso ainda penso em voltar a morar na Espanha, mas não quero mais me enganar e enganar outra pessoa no percurso.

— Eu gostaria de ter essa resposta, Kyra — volto a falar. — Gostaria de saber o que é melhor para mim, mas não sei. Aqui há tantos motivos para eu ficar, como também para que eu vá, mas ainda estou indecisa.

— Eu sei. — Ela sorri compreensiva.

A campainha do apartamento dela soa alto. Estranho, porque ela não me disse que teríamos companhia, mas, por sua reação, Kyra já estava à espera de alguém.

— Talvez o motivo de sua indecisão tenha chegado agora.

Arregalo os olhos com a possibilidade de ser Alexios.

— Kyra, o que você... — não termino de formular a frase, pois minha amiga abre a porta, e o vejo olhá-la com um sorriso cansado, entrar no apartamento e parar surpreso ao me ver.

— Oi — cumprimento-o.

— Oi. — Ele desvia o olhar para Kyra.

— Vou ver se o jantar já... — ela para de falar e ergue a mão dele. — O que houve?

Os olhos de Alexios não deixam os meus, então ele abre um sorriso lindo – esse é o bendito que ele usa quando quer disfarçar alguma situação séria ou desviar o assunto – e dá de ombros.

— Um pequeno acidente besta, nada importante. — Kyra parece não engolir a desculpa esfarrapada também, mas não insiste, pois conhece o irmão muito bem. — Tem cerveja?

— Claro que tem! Vou pegar umas para você. — Ela aponta para mim. — Faça companhia para a Samara.

Nós dois a olhamos, entendendo que o jantar foi uma armadilha dela para que voltemos a nos falar. Sinceramente não entendo minha amiga. Ela sabe o que sinto e o que Alexios não sente, mas ainda assim insiste em nos manter unidos, mesmo dizendo sempre que seu irmão não é uma boa opção para mim.

Como se um dia ele considerasse me ver como mulher!

— Como estão as coisas com sua mãe? — Alexios puxa assunto de repente e se senta em uma poltrona individual bem longe de onde estou.

— O primeiro ciclo de quimioterapia acabou, e ela está bem — respondo seca. — E você, como está?

Ele abre o maldito sorriso fingido.

— Ótimo! Cheio de trabalho, sem tempo para fazer bobagens...

— Não parece. — Aponto para sua mão. — Achei que seus momentos de fúria já tivessem passado desde que começou a praticar esportes. — Ele fica sério. — Por falar nisso, vi o Chicão lá no prédio esses dias. Ele está hospedado contigo?

— Está, como sempre. — Alexios olha para trás, na direção da cozinha de Kyra e respira fundo. — Eu queria pedir desculpas novamente por...

— Não precisa — interrompo-o antes que eu seja obrigada a socar sua cara.

— Preciso — ele insiste. — Kyra me contou sobre seu relacionamento — meu coração dispara ao ouvi-lo falar sobre isso como se não tivesse importância alguma. — Espero que ele seja o homem que você merece e que sejam muito felizes como você sempre sonhou.

Engulo em seco, abro um sorriso – fervendo de raiva da Kyra – e digo a primeira coisa que me vem à cabeça:

— Ele é! — minto, e Alexios fica sério, seus olhos claros fixos nos meus. — Um verdadeiro príncipe como sempre sonhei.

— Quem bom. — Ele se levanta. — Vou até a cozinha pegar a cerveja, estou morrendo de sede.

Acompanho-o com os olhos e, quando desaparece da minha vista, gemo e me dou um tapa na cabeça. Que ridícula! Por que, mesmo sendo tão madura em vários aspectos, sou uma imbecil quando estou perto dele? Parece até que estou de volta ao aniversário de 18 anos da Kyra, quando saímos nós três para comemorar, e eu fiquei com um babaca total só porque Alexios pegou uma das garçonetes da pizzaria.

Não sou mais essa garota!

Alexios e Kyra voltam para a sala, ele, bebendo uma longneck, e minha amiga, com uma travessa na mão.

— Escondidinho de camarão, como vocês dois sempre gostaram — ela anuncia.

— O cheiro está incrível! — elogio, levantando-me do sofá e indo ajudá-la. — Há muitos anos não sinto algo tão delicioso!

— Eu também não — Alexios fala perto de mim.

Os pelos do meu corpo se arrepiam todos por causa do som de sua voz e seu hálito no meu pescoço. Viro-me para ele, sem entender o motivo pelo qual está tão próximo de mim e me surpreendo por um instante ao decifrar seu olhar: fome, e não é de comida.

Balanço a cabeça, achando impossível que seu olhar esfomeado seja para mim e me afasto dele, indo posicionar os pratos como Kyra me ensinou a fazer tempos atrás.

— Andou treinando? — minha amiga brinca ao me ver executar com perfeição seu ensinamento.

— Sim, fiz alguns jantares em Madri — conto orgulhosa. — Recebi poucas pessoas, a maioria amigos, e fiz questão de colocar em prática tudo o que você me ensinou...

— E que você achava que era bobagem! — Ela ri e olha para Alexios. — Uma arquiteta de interiores deve, no mínimo, saber montar uma mesa, não acha?

Alexios franze a testa, pensa um momento e depois concorda.

— Pregar pregos na parede, fazer arranjos florais, pintar um quadro... — Kyra fica séria, e ele começa a rir. — Há profissionais para isso, Kyra, Samara é responsável pelos layouts de móveis e projetos de planejados, não precisa saber fazer tudo!

Kyra parece estupefata, e, confesso, eu também estou, porque geralmente os dois se uniam para brincar ou me provocar, e agora ele acabou de me defender!

Alexios parece ficar sem jeito com o silêncio e dá uma enorme golada, até pôr fim ao conteúdo da garrafinha de cerveja, em seguida volta para a cozinha.

— O que está rolando? — Kyra me pressiona.

— Não sei do que...

— Samara, sem essa de “não sei do que você está falando”. Não nasci ontem, percebi que vocês estão estremecidos. Achei que tinha sido por conta dos anos longe, mas achei que isso ia passar depois do baile, mas então Alexios aparece aqui mais perdido do que cachorro que caiu da mudança e se recusa a falar o que aprontou contigo na virada do ano! — Aproxima-se. — Conte-me já!

Nem em sonho!

— Não há nada para contar.

Alexios retorna, e sua irmã avança para ele igual a um anjo vingador.

— O que está rolando entre vocês dois? — Ela põe a mão na cintura. — Sempre fomos amigos! Éramos um trio, estivemos juntos nos piores momentos de nossa infância e adolescência, parem já com qualquer merda que estiverem fazendo!

— Quanto você bebeu? — Alexios debocha. — Nada está acontecendo, não é?

 

CONTINUA

Kyra sempre foi exuberante, beleza herdada de sua mãe, devo acrescentar, pois Sabrina ainda continua tão linda quanto era na época em que era casada com Nikkós. Contudo, minha irmã ainda recebeu alguns belos traços dos Karamanlis, principalmente da famosa giagiá15, que todos sempre fazem questão de dizer que era linda e tinha a mesma coloração de olhos da minha irmã (e minha também, só que os Karamanlis nunca engoliram bem que eu realmente tenha o sangue nobre deles).

No papel, Kyra e eu somos filhos dos mesmos pais, pois Sabrina me adotou legalmente quando eu ainda era um garotinho. Ela, por poucos meses, possuía a diferença de idade obrigatória pela lei entre nós (16 anos) e, por isso, conseguiu, aos 18, adotar-me aos dois anos. Logo em seguida nasceu a Kyra, e a família ficou completa.

Na verdade, eu nunca soube da minha mãe. Tentei descobrir algo durante a adolescência, principalmente por ser esse um dos pontos que meu sádico pai adorava usar contra mim. Inventar uma história nova a cada dia sobre meu nascimento, minha origem, era sua principal diversão e tortura psicológica.

Nunca entendi nada sobre mim, a única certeza que tenho é de que, infelizmente, sou mesmo filho dele, algo que comprovei através de exame de DNA, cujo resultado positivo nunca divulguei, porque eu tinha esperança de não ter o sangue daquele monstro.

Volto a prestar atenção na foto, dessa vez em meu próprio rosto cheio de enfado por estar naquele baile com elas. Sorrio. Eu fazia esse tipo, mas a verdade é que adorava cada momento que passávamos juntos, pois me sentia em família de verdade.

Ponho a moldura no lugar e respiro fundo, controlando meu corpo, colocando juízo na minha cabeça, ressaltando tudo o que tem de importante na amizade entre mim e Samara e concluindo que um envolvimento fora desses termos entre nós só serviria para destruir anos e anos de companheirismo.

Samara merece ser feliz com alguém que possa ser o homem com que ela sempre sonhou, o príncipe encantado dos seus sonhos de menina, alguém que saiba quem é, que tenha valor e que possa demonstrar todo o amor que sente por ela e reconheça o privilégio que é ser amado.

Esse homem não sou eu!

 

Depois do banho na casa de Kyra, fui direto para a empresa. É providencial ter uma mochila de roupas minhas no apartamento dela, mas confesso que não vou muito de jeans e camisa de malha para a Karamanlis.

Passei no Castellani apenas para pegar minha moto, nem me atrevi a subir até meu apartamento, sendo covarde mais uma vez. A questão é que eu não saberia nem mesmo o que dizer a Samara caso nos encontrássemos de novo.

Estava saindo do estacionamento quando meu celular tocou, mas, como já estava sobre a moto – e não queria demorar muito na garagem, porque o carro de Samara ainda estava na vaga dela –, deixei para conferir a ligação quando estivesse no prédio, o que faço agora, retornando a ligação.

— Oi, Chicão! — cumprimento-o assim que atende.

— Alex, seu grande safado, feliz Ano Novo! — o homem mais velho, que se tornou um grande amigo e a quem eu considero como um pai – no sentido do que realmente um pai deveria ser – por pouco não me ensurdece ao telefone. — Cheguei ao inferno hoje, queria saber se poderia passar uns dias lá naquele seu apartamento cinco estrelas.

Abro um sorriso de felicidade ao pensar que ele está de volta a São Paulo. Francisco Salatiel Figueiroa é o nome dessa figura de quase 60 anos, paulistano – mas que odeia sua cidade natal – e viciado em esportes radicais assim como eu.

Nós nos conhecemos quando eu ainda estava no colégio, devia ter uns 15 anos e fui participar de um racha de moto pela cidade. Ele apareceu por lá, chamou-me em um canto e me convidou a fazer cross ao invés de colocar minha vida e a de outras pessoas em risco correndo pelas ruas.

Comecei a ir para o os circuitos de motocross, tomei muito tombo, enlameei-me até o pescoço e me senti mais vivo do que quando me arriscava nos rachas. Nós nos tornamos amigos mesmo com nossa gritante diferença de idade, pois ele dizia que eu lembrava o moleque atentado que ele mesmo tinha sido um dia, e comecei a acompanhá-lo em suas atividades.

Foi por causa dele que deixei de buscar alívio e fuga nas drogas, pois conseguiu me mostrar que, se eu quisesse me livrar de Nikkós, teria que ser melhor que ele. Não foi um processo fácil, admito, levei anos para entender e ouvir seus conselhos, mas nem por isso ele desistiu de mim ou se afastou.

Francisco começou a me mostrar que eu poderia extravasar toda minha angústia, solidão, medo e revolta em esportes como trilhas de moto, bike, escaladas, voos livres, paraquedismo e, quando tirei minha carteira de motorista, apresentou-me a alguns amigos dos circuitos de motovelocidade.

Os esportes aliviavam meu corpo da tensão vivida em casa, mas minha cabeça e minha alma continuavam pesadas, então, um dia, ele me viu desenhar e descobriu como eu poderia tratar os demônios dentro de mim.

Devo muito a ele, não só pelo equilíbrio que consegui hoje em minha vida, como também por permanecer vivo e são. Samara e ele foram os únicos a permanecerem ao meu lado nos piores momentos da minha vida, ela me auxiliando principalmente com Kyra, e ele entendendo meus problemas e me ajudando a achar soluções.

— Meu apartamento é seu! Te dei a chave, afinal.

— Eu sei, mas é sempre bom dar uma conferida, vai que você resolveu sossegar seu pau numa boceta só.

Gargalho com seu jeito rude e direto.

— Não, meu pau ainda gosta de explorar por aí. — Ele me chama de “vadio” e ri. — Estou na Karamanlis agora e...

— Ah, me diz que estou sonhado... — estranho o que ele fala, escuto vozes ao fundo e percebo que não falou comigo. Espero que ele retome a ligação, entro no elevador, cumprimento as pessoas com a cabeça e sorrio para uma mulher gostosa que nunca vi aqui no prédio. — Seu trapaceiro de uma figa! Samara está de volta e, caramba, mais linda do que nunca.

Só de ouvir o nome dela, sinto meu corpo reagir como se uma descarga elétrica tivesse me atingido.

— Encontrou-se com ela agora?

— Sim, seu embuste! Quantos anos ela esteve fora? Caralho, você já a viu?

Franzo a testa, desço no meu andar, confuso com a perplexidade dele apenas por ter visto a Samara no prédio, afinal, ele sabe muito bem que ela tem um apartamento lá.

— Já, desde que chegou — respondo distraído, acenando para os funcionários da K-Eng. — Por quê?

— Alexios, eu sempre me perguntei se você era cego ou apenas muito burro. — Ouço o barulho de uma porta se fechando. — Nunca entendi por que vocês dois nunca tiveram nada um com o outro.

Paro no meio do corredor, atraindo os olhares de pelo menos dois engenheiros que passam por mim. Que merda é essa?!

— Ela é minha amiga — digo o óbvio.

— Ela é incrível e sua amiga, isso já não é meio caminho para um relacionamento de sucesso?

Um alerta dispara em meu cérebro. Chicão nunca foi um homem ligado a relacionamentos permanentes, tanto que é solteiro até hoje, então não entendo o motivo pelo qual está falando essas coisas sobre mim e Samara.

— Chicão, sou eu! Eu não tenho relacionamentos, eu fodo por aí, só isso. E, definitivamente, Samara não é uma mulher apenas para se foder.

Ele emite um grunhido, e, ao fundo, escuto o bipe da minha cafeteira sendo ligada.

— Nisso concordamos. Mas ela é incrível, sempre foi, se eu tivesse a sua idade e a sua aparência, não perderia a oportunidade de tê-la comigo.

Mas o que... Arregalo os olhos, e meu coração dispara.

— Você está morrendo? — inquiro-lhe como se fosse a única opção válida para essa mudança de comportamento.

Chicão gargalha.

— Não, mas estou ficando velho e sozinho. — Bufa. — Mas isso não é assunto para discutirmos ao telefone, já que você está na empresa.

— Chicão, está tudo bem?

— Vai trabalhar, embuste, depois conversamos. Viajei a noite toda, quero tomar um banho, comer algo e dormir um pouco. Obrigado pelo abrigo.

Ele ainda não me convenceu, algo está errado.

— A casa é sua! — declaro, e ele encerra a ligação.


— Quer mais um travesseiro? — pergunto à minha mãe assim que ela se deita na cama.

— Não, filha, estou bem. — Sorri, mas o cansaço não permite que o faça por muito tempo. — É sempre assim no dia da medicação, mas passa.

Balanço a cabeça concordando, enternecida por ela estar tentando me consolar, quando é ela quem está passando por isso tudo. Sempre a admirei por sua força, seu destemor e a capacidade de realizar qualquer coisa que se propunha a fazer.

Mamãe não tem um gênio fácil de lidar, mas nunca negou amor e afeto aos seus filhos, mesmo sendo brava e exigente como era. Dani e eu tínhamos muito mais medo dela do que do papai, que sempre foi mais maleável, mas moderno e liberal.

O relacionamento dos meus pais, enquanto casal, não era um mar de rosas, mas eles eram amigos, companheiros. Ele sempre a apoiou em tudo, e ela acima de tudo o admirava. Não tinham grandes arroubos de paixão, pelo menos não na nossa frente, mas se respeitavam, conversam, riam e, principalmente, nos amavam muito. Dani, como filho e mais velho, sempre foi agarrado a minha mãe mais do que a nosso pai. Os dois se dão bem, são muito parecidos em alguns aspectos, mas quem sempre teve mais afinidade com papai fui eu.

Acho que nossas almas são parecidas. Ambos somos apaixonados pelas formas, perfeccionistas, românticos e, arrisco dizer, sonhadores. Eu sou assim, gostaria de ser prática como mamãe, mas há muito que parei de tentar ser quem não sou. Demorei, mas consegui aceitar meu jeito e me respeitar acima de tudo.

É dolorido tentar ser quem não é para se encaixar ou seguir uma tendência. Eu sou forte, mesmo sendo doce; sou feminista, mesmo sendo feminina e vaidosa; sou empoderada, mesmo sonhando em casar e ter uma família.

Eu me importo com a opinião alheia, sim, porque ninguém é uma ilha e não teria sentido na vida se todos fôssemos autossuficientes e não dependêssemos de ninguém. Não tenho preconceitos, sou feliz com a felicidade dos outros e não me importo que a recíproca não seja verdadeira. Cada um escolhe o caminho que quer percorrer. Eu escolhi ser assim, exatamente como sou.

Chegar até essa conclusão não foi fácil, principalmente quando se percebe que o homem por quem você é apaixonada prefere as mulheres que têm atitude, que são furacão e não calmaria. Eu quis fazer tipo e percebi que estava indo na contramão de tudo o que uma “mulher de atitude” prega, que estava tentando ser outra pessoa para agradar a um homem.

Foi aí que aquela máxima tão clichê, mas que é tão difícil de ser vivida, fez sentido para mim: quem me amar, precisa me conhecer e me aceitar como sou.

Demorei a perceber a importância disso, precisei praticamente ter isso esfregado na cara. Então arrumei minhas malas, disse ao meu pai que não iria para Barcelona, mas sim para Madri, e segui com minha vida.

Alexios foi o estopim que eu precisava para explodir naquela época, depois de ter aparecido no meu apartamento bêbado a ponto de não se aguentar de pé. Ele pediu para dormir no meu sofá, tivemos uma dura discussão quando tentei lhe passar sermão e, no meio da noite, acordei com ele na minha cama.

Fiquei sem reação quando senti sua mão na minha cintura, alisando minha pele por cima do pijama de seda. Fechei os olhos, excitada e ansiosa, e o deixei prosseguir com a exploração. Não o impedi quando me virou, nem quando me beijou e subiu em cima de mim. Tinha esperado por aquilo a vida toda, e estava acontecendo.

Ledo engano!

Ele ficou imóvel, esmagando-me com seu peso, então percebi que havia dormido. Joguei-o para o lado e passei a noite em claro, sem entender nada, esperando que ele acordasse e explicasse.

Acabei dormindo e acordando sozinha na cama. Ele tinha ido embora, e não conversamos, mas esperei que a conversa viesse mais tarde. Não veio. Ele simplesmente ignorou o beijo, as carícias, como se não fossem nada, como se eu não fosse nada.

Fiquei irritada, subi para perguntar diretamente a ele o motivo pelo qual tinha me beijado, mas, quando cheguei ao seu apartamento, estava rolando uma de suas festinhas regada a bebidas e sexo, e o filho da mãe estava sentado no sofá com uma mulher de cada lado em um beijo triplo.

Ele nem me viu, fechei a porta, desci e decidi parar de protelar minhas decisões esperando por algo que nunca iria acontecer. Um relacionamento com Alexios era uma ilusão infantil, mas eu já não era mais criança.

Viajei dois dias depois e pensei que, quando voltasse, toda essa ilusão teria se desfeito.

— Então o nome dele é Diego — mamãe fala, e eu quase pulo de susto, deixando as lembranças para tentar entender do que ela está falando. — Diego Vergara!

Sento-me na beirada da cama, curiosa sobre como ela conseguiu essa informação.

— O nome dele é mais comprido do que isso, mas, sim, Diego Vergara.

Ela sorri cheia de sabedoria.

— E você deve estar aí querendo saber como eu sei o nome dele. — Concordo. — Seu irmão me contou.

Daniel e sua boca! Meu irmão sempre foi o maior X9 do mundo, não é de se espantar que tenha contado sobre o Diego para minha mãe.

— Há quanto tempo estão juntos?

Não sei o que dizer a ela e agradeço quando uma enfermeira entra no quarto, dando-me a desculpa perfeita para escapulir de sua curiosidade. O fato é que tudo mudou depois da noite do baile dos Villazzas.

Não sei o que levou Alexios a me beijar daquela forma no elevador, eu estava bem bêbada dessa vez, mas ele não tanto, além disso, eu senti a energia entre nós, senti o tesão que ele exalava, que trazia na saliva e em cada toque no meu corpo. Alexios não escondeu em nenhum momento o quanto estava excitado, esfregou sua ereção contra mim, esmagou-me contra o espelho do elevador parecendo que queria me comer ali mesmo.

Depois, do nada, mudou. Pediu desculpas! Desculpas por me beijar! Só faltou dizer que estava com tesão, e eu era a única mulher próxima dele, mas que nem assim servia.

Para piorar, quando entrei no apartamento e peguei o celular, vi uma mensagem de Diego dizendo o quanto sentia minha falta e como ele gostaria de poder estar aqui comigo. Foi a gota d’água! Senti-me um lixo, uma pessoa má que engana e trai e percebi que tê-lo deixado na Espanha sem uma resposta definitiva foi uma atitude egoísta.

Chorando, sem pensar direito, fiz uma chamada de vídeo para ele e, quando atendeu, disparei:

— Diego, eu sou uma pessoa horrível, mas não posso fazer isso com você! — Soluçava tanto que ele se assustou e me pediu para falar devagar. Todavia, eu não conseguia. — Você é um homem incrível, um amigo maravilhoso, e eu adorei cada momento que passamos juntos...

— Calmarse, Samara! Yo no comprendo!

— Você merece mais, merece alguém melhor, e eu não posso...

— Usted está me dejando preocupado, cariño.

— Eu não queria fazer isso assim, por telefone. — Ele ficou sério, atento, prevendo o que eu lhe diria. — Mas não é justo que você fique aguardando minha volta para que eu diga isso. — Respirei fundo, armando-me de coragem. — Eu não posso aceitar seu pedido, Diego. Eu não estou pronta para amar você como deveria, como você merece.

— Samara, sucedio algo com su mamá?

Neguei.

— Não. Sou eu, não mereço você. Você tem razão ao dizer que meu coração nunca pôde estar aí contigo.

— Samara, despues hablamos, está muy nervosa. — Tentei dizer a ele que não, mas não me deu oportunidade: — Tengo que ir.

— Diego, não...

Ele encerrou a chamada. Tentei retornar outras vezes, porém a ligação não completava. Deixei mensagens, mas que, até o momento, ele não visualizou. Volto a olhar para mamãe, que boceja, visivelmente cansada, e fecha os olhos, recostada nos travesseiros, enquanto a enfermeira mede sua pressão. Eu voltei ao Brasil apenas por causa dela, para estar ao seu lado nesses momentos tão difíceis, não por qualquer outro motivo. Sinceramente, não esperava essa pressão acerca de Alexios e Diego. Minha família nunca foi assim, muito menos mamãe, que sempre pregou que uma mulher não precisa de marido e filhos para se sentir completa e feliz.

Mamãe adormece, e eu saio do quarto. Quando estou prestes a descer a escada, escuto uma voz conhecida e muito amada:

— Minha Samara está de volta! — Papai está no corredor de braços abertos. Sorrio e vou até ele para abraçá-lo. — Ah, que saudades!

— Eu também estava, mas cheguei há mais de uma semana, e você nem se dignou a vir me ver.

— Eu sei, mas agora vim para ficar, Herzchen16, e estou feliz por te ter de volta aqui em casa. — Ele beija minha testa. — Não pretende voltar para a Espanha, não é?

Suspiro. Papai foi o primeiro a me incentivar a ir estudar fora, mas o único a ficar chateado quando decidi ficar depois que terminei a especialização. Nunca foi me visitar. Embora falássemos sempre, eu percebia que ele ainda não havia entendido minha necessidade de ficar longe.

— Vou voltar, sim, tenho compromissos de trabalho por lá que...

— Besteira! Aposto que você já tem tudo desenhado e organizado e que, em uma visita ou duas, poria fim a esses “compromissos”.

— Papai, não vim para ficar, e o senhor sabe. Mamãe está na parte mais agressiva do tratamento, e Dani precisou de mim para ajudar a cuidar dela e acompanhá-la...

— Estou aqui também! — ele se ofende por não ter sido incluído. — Ela diz que não precisa de mim, mas estou aqui, sempre estive por ela.

Oh, Deus, que situação!

— Eu sei, pai.

Benjamin Abraão Nogueira Klein Schneider nunca entendeu bem a distância fria de mamãe, por mais que os dois sempre tenham se dado bem. Acho até que foi por esse motivo que se afastaram depois que crescemos e que, após minha ida para a Espanha e a de Dani para seu próprio apartamento, papai decidiu se mudar para a fazenda.

Uma vez, quando eu ainda era uma garotinha, eu o vi bêbado no escritório do antigo apartamento em que morávamos. Ele bebia e parecia mal, chorava e segurava alguns documentos. Quando me viu, tentou sorrir e me chamou para perto de si.

— Tudo bem? — perguntei na inocência dos meus oito anos de idade e limpei suas lágrimas.

— Tudo. — Ele guardou a papelada dentro de uma caixa, onde vislumbrei também algumas fotos, trancou-a com chave e depois respirou fundo. — A vida adulta é complicada, Herzchen. Fazemos escolhas baseadas no que achamos ser melhor e esquecemos o preço que isso cobra, tanto aqui — ele apontou para sua cabeça — quanto aqui. — E, por fim, tocou em seu coração.

Na época não entendi nada, mas esse momento nunca deixou minha memória e, com o tempo, supus que ele estivesse falando de seu relacionamento com mamãe. Os dois se davam bem, mas era ele quem sempre cedia numa discussão ou quem corria atrás quando as coisas ficavam tensas entre eles.

— Vi seu bichinho pré-histórico lá no jardim comendo algumas plantas — ele ri, mudando de assunto. — Você poderia ter adotado um cachorro ou um gato como qualquer outra pessoa, não é?

— Pai, eu o ganhei de presente e gosto dele.

— Mas ele é feroz! — Faz cara de medo. — Já me mordeu algumas vezes.

Gargalho.

— Godofredo é muito territorialista, ele sempre ataca os homens.

— Hum, que interessante! Começo a gostar desse bichinho. — Rio do seu ciúme. — Você não trouxe nenhum espanhol junto contigo, não é?

Suspiro.

— Não. E se o Dani disse algo para o senhor também, ele é...

Benjamin me afasta de seus braços, segurando-me pelos ombros, e me olha surpreso.

Merda!

— Ele não disse nada, não é? — pergunto, achando-me idiota.

Meu pai nega:

— Era só uma pergunta brincalhona e especulativa. — Olha em volta. — O que ele deveria me dizer?

— Eu tinha um namorado em Madri, mas ele ficou por lá.

Ele põe a mão sobre o peito.

— Adorei esse tempo verbal: “eu tinha um namorado”. — Rio. — Agora você terá que me contar sobre esse tal...

— Ele me pediu em casamento — disparo. — Mas eu não pude aceitar.

Ficamos um tempo um olhando para o outro, parados no corredor, sem emitir um som sequer. Papai sempre foi bom ouvinte e dava bons conselhos. Mesmo não sendo muito de falar sobre como se sentia, mesmo reservado em seus sentimentos, até mesmo com seus filhos, ele sabia ouvir sem julgar e só opinava quando achava necessário, o contrário de mamãe.

— Preciso de um café ou de algo mais forte — confessa, e eu rio nervosa. — Vou falar com sua mãe e...

— Ela acabou de dormir — informo-lhe.

— Certo! — Respira fundo. — Se lembra daquele seu namorado da faculdade? — Gemo e assinto. — Você tinha dúvidas quanto ao caráter dele e, mesmo com todos os seus instintos te alertando que algo não estava bem, você aceitou o namoro e...

— Meus instintos estavam certos, ele era um pilantra filho da puta casado!

— E eu quis castrá-lo. — Ele sorri doce, como se isso não fosse nada. — Enfim, o meu conselho para essa questão sempre é: siga seus instintos. Se você não se achava pronta para aceitar o pedido, então fez certo ao recusá-lo.

— Então, você acha que eu fiz certo ao ouvir meu coração?

Ele ri e nega.

— Não, eu disse para ouvir seus instintos, porque seu coração não tem juízo. — Eu rio, achando que ele está fazendo troça, mas, então, ele completa: — Já se apaixonou uma vez por Alexios Karamanlis!

Fico séria, coração disparado, porque, embora ele saiba de todos os meus namorados e experiências, nunca contei a ele sobre Alexios.

Era óbvio para todos, não sei como consegui enganar a mim mesma! Eu ainda amo aquele safado!


— Alexios? — Termino de calçar os tênis antes de me virar para olhar Laura deitada na cama. — Já vai?

Ela se contorce languidamente, seu corpo curvilíneo, dourado de sol se mexendo contra os macios e perfumados lençóis de sua cama. Sorrio, deslizo a mão pela curva de seu lindo rabo e desfiro um tapa nele, fazendo-a rir.

— Preciso ir, tenho reuniões importantes agora de manhã na empresa, e, com a viagem de Theodoros para a Grécia e a demora na volta de Millos, as coisas ficaram acumuladas entre mim e o Kostas.

Ela bufa e se senta.

— Eu sei, ontem eles me passaram as informações sobre a propriedade no Rio de Janeiro, da reunião que tiveram na quinta-feira. — Ela dá de ombros. — Achei que Kika ia aparecer cheia de gás na sexta-feira, mas nem ela e nem seu irmão apareceram na empresa.

— A área é boa mesmo? — pergunto, pois apenas vi algumas imagens do local, e, como Laura é do geoferenciamento, deve ter detalhes bem específicos.

Ela confirma.

— O pessoal do jurídico está alvoroçado, e fiquei sabendo que o Leo, o braço direito da Kika, pediu para o pessoal acelerar com as outras áreas, porque gostaram muito da do Rio. — Laura me abraça pelos ombros e lambe minha orelha. — Falando em acelerar, adorei aquela rapidinha ontem na sala de servidores.

Eu rio, mas balanço a cabeça.

— Você jogou sujo comigo. — Levanto-me da cama, e a safada senta-se na beirada do colchão, os peitos cheios e rosados, as coxas musculosas bem abertas. Porra! — Goza para mim! — ordeno, e ela não se faz de rogada, tocando-se sem nenhum pudor. Vou até uma das luminárias, acendo-a e tenho a visão perfeita de sua boceta totalmente depilada já molhada de tesão.

Foda-se!

Apenas abro o cinto da calça, baixo o fecho e saco meu pau para fora. Pego uma camisinha em cima de seu criado-mudo, e ela ri quando avanço até onde está.

— De costas!

Ela se deita de bruços, e eu me agacho para entrar em uma única investida. Fecho os olhos, concentrando-me nas sensações, excitado com seus gemidos, mas, de repente, sinto um cheiro diferente, os sons mudam, e um rosto doce, sorridente, de lindos olhos castanhos aparece em minha mente.

Xingo alto, querendo expulsar a imagem de Samara, aumento as estocadas até sentir as pernas arderem e gozo sem ao menos saber se minha parceira teve seu prazer.

Caralho!

Afasto-me dela e apoio as mãos contra o aparador, colocando a culpa das súbitas aparições de Samara em minha mente na distância que impus entre nós depois daquele beijo no elevador. Claro que, se ela não tivesse se mudado para a casa da mãe, certamente essa distância não seria tão dura, afinal, eu poderia encontrá-la casualmente pelos corredores do Castellani, mas quem disse que a sorte gosta de mim?

Agora, além de ter visões dela durante minhas trepadas, acordo excitado por algum sonho erótico protagonizado por ela e ainda tenho que aguentar os questionamentos de Kyra e de Chicão sobre o motivo pelo qual eu e Samara não nos falamos mais.

— Tudo bem? — Laura me toca o ombro, fazendo com que eu desperte dos devaneios sobre Samara.

— Tudo. — Retiro a camisinha e a jogo no lixo. — Preciso ir, já está amanhecendo.

— Eu sei.

Ela sorri, doce e compreensiva, e eu respiro fundo, sabendo que estou fazendo merda. Primeiro, por ela ser funcionária da Karamanlis, e segundo, por eu estar fazendo sexo com ela há duas semanas.

Nunca fico tanto tempo com alguém. Para falar a verdade, não me lembro da última vez que mantive uma única parceira, mas, por algum motivo, tenho andado preguiçoso, sem vontade de sair e, como trepei com ela e gostei, achei mais simples continuar.

Despeço-me dela apenas com um aceno de cabeça. Laura me acompanha até a porta de seu apartamento, e eu desço até o térreo, onde minha moto está estacionada em frente à portaria do prédio.

Sigo para o Castellani, mas a cabeça continua a vagar por lembranças dessas longas seis semanas desde o baile dos Villazzas. Tanta coisa aconteceu dentro e fora da Karamanlis, ainda assim senti o tempo passar lentamente.

No trabalho, as coisas começaram a ficar mais intensas, apesar de começo de ano sempre ser mais devagar. Com a conta da Ethernium, tive que mobilizar boa parte dos profissionais para elaborar croquis baseados na planta da siderúrgica e as áreas que foram aparecendo. A volta de Kika à empresa foi providencial, pois ela nos apresentou uma ideia que facilitou muito a vida de todos.

Eu ainda estou surpreso por Theodoros ter colocado a gerente dos hunters e meu irmão trabalhando juntos, pois isso não é algo do perfil do meu irmão mais velho. Foi então que, conversando ao telefone com Millos, descobri que tinha dedo dele nessa história.

A ideia de os dois trabalharem juntos não surgiu na reunião preliminar do projeto, mas foi algo que Theodoros e Millos combinaram assim que souberam que ela iria voltar para a empresa. Agora, conhecendo Millos como conheço, só me pergunto o que, especificamente, meu primo pretendeu ao dar essa sugestão.

Esperei que os dois se matassem desde a primeira semana juntos, ainda mais depois que Theodoros viajou, mas não, aparentemente tudo tem transcorrido bem entre os dois, e a conta da Ethernium parece estar em boas mãos.

Em casa, com a presença de Chico, que ainda está por lá, tenho sempre companhia para jogar bilhar, videogame ou para corridas aos finais de semana. Decidi não participar de nenhum campeonato este ano, nem de moto, nem de carro, pois o trabalho iria consumir muito de minha equipe, e eu não sou o tipo de chefe que deixa seus funcionários se fodendo de trabalhar e sai cedo para treinar ou viajar. Não sou profissional por isso, não consigo me dedicar integralmente às corridas, embora goste muito delas. Vejo-as com um hobby, assim como os esportes e outras atividades que uso para ocupar minha cabeça.

Entro na garagem do prédio, paro a moto e, assim que tiro o capacete, paro em seco ao ver Samara.

— Bom dia — ela me cumprimenta, sem parar para falar comigo e sem olhar para trás.

Confiro as horas no relógio e estranho que ela esteja saindo tão cedo de casa.

— Algum problema? — pergunto preocupado.

Samara para e me olha.

— Não. — Abre o carro, mas me aproximo antes que entre. — O que foi, Alexios? — sua voz é impaciente, e eu percebo que o clima estranho está de volta.

— Como está sua mãe?

Ela franze a testa, ajeita o cabelo e ri amarga.

— Teve que se encontrar casualmente comigo para lembrar que minha mãe está doente? — Balança a cabeça. — Sempre soube que você era desligado com as coisas, Alexios, mas na verdade é um egoísta.

Suas palavras cheias de mágoa me acertam. Aperto a mão no capacete, ciente de que ela tem razão. Eu poderia tê-la procurado, ter ligado, ter sido o amigo que ela merecia, mas, em vez disso, escolhi me afastar e deixá-la sozinha com seus problemas.

Sim, além de covarde, um grande egoísta!

— Você tem razão. — Aceno. — Bom dia.

Dou a volta e sigo em direção ao elevador, achando-me ainda mais desprezível do que sempre me achei.

— Ela está melhorando — a voz de Samara ecoa na garagem, e eu paro. — A quimioterapia está tendo os resultados esperados, e os médicos estão confiantes.

Viro-me para olhá-la, ainda parada do lado de fora do carro, com a porta do motorista aberta.

— Eu sinto muito por não ter ligado antes. — Ela dá de ombros como se não se importasse, mas sei que se importa; eu me importaria. — Você tem razão sobre eu ser um egoísta, você merecia um amigo melhor.

Samara bufa e, sem dizer nada, entra no carro, fecha a porta e liga o motor. Instantes depois, vejo-a passar por mim sem dizer nada e me sinto um bundão. Subo para meu apartamento e, assim que entro, encontro Chicão no meio da sala, usando apenas uma cueca, meditando.

— Que visão do inferno! — sacaneio e sigo para meu quarto.

— Bom dia, embuste! — saúda-me sem ao menos abrir os olhos. — Você deveria tentar, pelo visto nem suas trepadas diárias estão conseguindo mantê-lo relaxado, então, quem sabe a meditação...

— Nem fodendo! — grito para ele e sigo para o banheiro.

Somente quando fecho a porta é que toda a armadura se vai. Fico parado, olhando para o espelho, tentando analisar além da aparência que todos veem. Eu sou um filho da puta egoísta e imbecil, um impostor, uma fraude gigante que perambula pela cidade sem nem mesmo saber quem é.

Anjo dos Karamanlis! Engenheiro filantropo! Chefe preocupado com funcionários... tudo mentira!

Retiro a roupa, jogando-a no cesto de roupa suja antes de me enfiar debaixo da água gelada do chuveiro. Gostaria que, da mesma forma que essa água consegue limpar meu exterior, pudesse fazer o mesmo dentro de mim. Sou tão vazio e frio quanto meu irmão do meio e tão arrogante e egoísta quanto Theodoros. Sou tão louco quanto Nikkós!

Doeu-me ver e ouvir a mágoa que causei em Samara, mas é somente isso que causo nas pessoas. Decepção! Eu não mereço sua amizade e nem estar perto dela. A raiva de mim mesmo explode como há muitos anos não a sinto. Sem pensar, soco o vidro do boxe, que se espatifa e desaba sobre mim.

A porta do banheiro é aberta com um estrondo, e um apavorado Chicão aparece, olhos arregalados, olhando a destruição que causei ao meu banheiro.

— Merda, Alexios! — Ele salta em minha direção sem se preocupar com os cacos de vidro pelo chão e tenta me tirar do boxe. — Porra, sai daí.

Nego, o sangue escorrendo pelo ralo do banheiro, minha mão ardendo, assim como meus braços e os pés. Não me movo, apenas tremo, tentando ainda conter toda a fúria dentro de mim.

— Sai daí, Alex, você está ferido, porra! — Chicão grita.

— Não! — Não me movo. — Eu sou um lixo! Ele nunca deveria ter me pegado no lixo onde me encontrou, deveria ter me deixado morrer, deveria...

— Para com essa merda! — Some para dentro do meu quarto e, quando volta, está calçando meus coturnos. — Você não vai mais fazer isso, ouviu?

Chicão entra no que restou do boxe, desliga a água, joga uma toalha sobre meu corpo e me ergue. Não consigo reagir, a cabeça girando, todos os insultos e histórias sobre mim que ouvi de Nikkós por tantos anos enchendo meus ouvidos, torturando-me mais uma vez, ressaltando o quanto sou desprezível.

— Você não vai fazer isso consigo mesmo de novo, ouviu?! — Chicão esbraveja, fazendo pressão com a toalha de rosto na minha mão. — Ele te machucou, você se machucou, mas essa merda já acabou faz tempo. Ele não pode mais, Alexios, nem te tocar e nem contar mentiras a você. Chega!

Nego.

— Eu sinto tanta raiva... — Meus dentes batem um no outro, e eu os travo. Minha vontade é de gritar, socar, foder com tudo.

— Eu sei, já passamos por isso antes, e eu... — ele baixa o tom de voz e expira — achei que já tinha superado.

— Como? — questiono-lhe. — Como posso esquecer, se continuo a ser a mesma pessoa desprezível de sempre? Não são as marcas que ele causou no meu corpo que me causam essa raiva, sou eu!

— O que aconteceu?

Nego, trêmulo e me sento na cama. Gemo ao sentir as dores dos cortes, percebendo que a adrenalina passou mais rápido do que antigamente. Eu aprendi a controlar a dor usando a raiva. Durante anos de espancamento, percebi que, quanto mais raiva eu sentisse, menos dor ele me causava. Mais tarde, quando sentia raiva por qualquer motivo, eu mesmo me machucava, levava-me ao limite do meu corpo e quase me destruía.

Era um círculo vicioso que eu achei que já havia passado, mas, aparentemente, não.

— Encontrei Samara na garagem, provavelmente indo se encontrar com sua mãe e levá-la ao hospital — confesso, cansado demais para guardar qualquer coisa. — Eu não a via há semanas, desde o baile dos Villazzas no Ano Novo.

— Eu também só a vi uma vez aqui no prédio...

— Eu não liguei, não procurei por ela, não justifiquei meu ato e nem meu sumiço — interrompo-o e o encaro. — Ela está magoada comigo.

Chicão confere o sangramento da mão, tirando a toalha e depois se senta ao meu lado na cama.

— Por que você fez isso? Sumiu e não a procurou?

Respiro fundo; comecei o assunto, agora preciso terminá-lo.

— Preferi me afastar. — Olho para baixo, envergonhado. — Eu quase trepei com ela no elevador aqui do prédio. — Fecho os olhos. — Eu a quis como mulher, não consegui reprimir a vontade, como sempre fiz, e agi feito um idiota excitado.

— Ela o repeliu?

— O quê?

— Samara o repeliu? Te xingou? Bateu em você? Disse que você abusou dela? Mandou que ficasse longe?

Lembro-me daquela noite, a forma como reagiu ao beijo, o jeito que gemia e parecia tão excitada quanto eu.

— Ela estava bêbada, me aproveitei dela, sou um canalha.

— Nisso concordamos, mas o que ela pensa sobre o acontecido?

Balanço os ombros.

— Não sei, não falo com ela desde então. — Lembro-me da conversa com Kyra no dia seguinte ao baile e praguejo. — Ela está noiva.

— Samara? — Assinto. — Que merda!

— É, o beijo foi uma merda enorme, e eu não sei como...

— Não, seu idiota! — Ele estapeia minha cabeça. — Que merda que Samara esteja noiva, ela é a mulher perfeita para você.

Olho-o como se ele estivesse louco.

— Claro que não, ela merece alguém muito melhor do que eu! Samara nunca cogitou qualquer tipo de relacionamento comigo a não ser o de amizade.

Chicão bufa.

— Você não é idiota, Alexios Karamanlis, é um burro!

Ele joga a toalha, manchada de sangue, no chão do quarto e sai puto comigo ou com alguma coisa que eu disse. Ele não entende, óbvio! Samara é... especial, e alguém especial como ela nunca se relacionaria com alguém tão ordinário como eu.

Olho para minha mão e rio ao pensar na bagunça que sou.

Obviamente ela nunca se relacionaria e nem deveria se relacionar com alguém tão fodido como eu.

 

— O que houve com sua mão? — Laura me pergunta de repente, assustando-me, pois eu nem mesmo sabia que estava por perto. Encaro-a sem entender como e o que está fazendo aqui na K-Eng. Seu olhar é de assombro aos machucados em minha mão, além de questionadores, o que me irrita um pouco.

— Um pequeno acidente — respondo seco. — O que você está fazendo aqui?

Levanto-me da mesa, agradecendo por não ter mais ninguém por aqui a essa hora e fico de frente para ela. Laura abre um sorriso sem graça, mas logo se pendura em meu pescoço.

— Tem mais de uma semana que não te vejo, você não liga e nem aparece lá no meu apartamento. Então, se Maomé não vai até a montanha...

Reviro os olhos e retiro as suas mãos de mim.

— Laura, você trabalha na Karamanlis, então já deve ter percebido a movimentação infernal na empresa por conta da Ethernium. — Ela concorda. — Além disso, não entendi o motivo pelo qual eu deveria dar satisfação ou ter regularidade em nossos encontros.

A moça arregala os olhos por causa de minha sinceridade.

— Eu pensei que... — ela suspira — estávamos tendo essa regularidade, afinal, ficamos juntos por umas semanas e...

— Ficamos porque estava gostoso — não tenho medo de ser direto. — Mas não significa que temos qualquer tipo de compromisso. Não sou desses, Laura, e foi a primeira coisa que te disse quando trepamos a primeira vez.

Ela fica um tempo muda, olhando para o nada, então, de repente, abre um sorriso e desliza a mão pelo meu peito.

— Disse. Como disse também que queria trepar mais, lembra? Eu ainda quero mais, Alex — sua voz é ronronante. — Sempre imaginei como seria fazer sexo aqui na sua sala.

Respiro fundo, levemente excitado com o oferecimento, contudo, sem nenhuma vontade de fodê-la aqui – ou em qualquer outro lugar – depois desses questionamentos.

— Infelizmente, eu estou muito ocupado agora, motivo pelo qual ainda estou na empresa quando todos já foram. — Ela faz um biquinho, mas me afasto e volto a me sentar à mesa. — Acho melhor você ir.

Ela bufa.

— Sério isso?

Volto a olhá-la, sem esconder meu desagrado e impaciência, e ela se sobressalta.

— Sério.

Laura fica um tempo me encarando, depois vira as costas e sai da sala, andando firme e visivelmente puta. Balanço a cabeça, repreendendo a mim mesmo por ter deixado as coisas chegarem a esse ponto. Foi muito bom trepar com ela, aposto que a recíproca é verdadeira, porém não imaginei que ela criaria tantas expectativas e se sentisse no direito de vir me cobrar algo.

Erro de cálculo!, penso, sem deixar de pontuar que isso, para um engenheiro, é algo muito perigoso, que pode pôr tudo a perder.

Pego a pequena bola de borracha que tenho usado para exercitar minha mão e reparo nos machucados nela. Os cortes já estão todos secos, e os pontos que tomei em um deles já foram retirados.

Socar o vidro do boxe foi um momento de loucura, como tantos outros por que já passei. Fazia muito tempo que eu não perdia a cabeça daquele jeito, e sei que o que Samara me disse foi o gatilho responsável por isso. Não tiro, em hipótese alguma, a razão dela para me dizer aquelas palavras, mas elas acertaram o alvo na mosca.

Fecho os olhos e tensiono o pescoço, tentando relaxar um pouco para voltar a trabalhar e não enveredar pelos acontecimentos dessa semana, mas ainda não tenho esse controle total da mente e dos meus pensamentos.

A frustração me bate ao me lembrar do almoço com Konstantinos, meu irmão advogado. Achei que, pela primeira vez, ele iria se dispor a me ajudar com as respostas que procuro por anos, mas, ao que parece, ser egoísta e frio é algo familiar.

Mexo na minha agenda de anotações e encontro lá o endereço do sobrado de propriedade de Kostas. A voz da mulher misteriosa que encontrei na porta do Castellani ainda ressoa nítida em meus ouvidos:

“Eu conheci sua mãe biológica. Se quiser respostas, procure pela casa de Madame Linete.”

Foi o encontro mais estranho da minha vida. Ela estava parada lá, olhando o prédio e, quando me viu, logo perguntou se eu era um Karamanlis. Estranhei a pergunta, tentando reconhecer a senhora frágil e de cabelos brancos, mas não precisei responder, pois ela logo disse essas duas frases e se afastou sem me dar a chance de perguntar qualquer coisa mais.

Claro que eu já havia cogitado a ideia de que tinha sido gerado por alguma prostituta daquela maldita casa, afinal, era o local que meu pai mais utilizava. Não deveria ter começado do nada sua amizade com a cafetina asquerosa, mas nunca achei nada que me ligasse àquele local até esse encontro.

Talvez fosse uma pista falsa apenas, mas eu não poderia ignorar mais nada, não enquanto não achasse as respostas que procurei por toda minha adolescência a fim de tirar esse poder das mãos de Nikkós.

Não conhecer meu passado era o suficiente para meu pai ter uma enorme arma psicológica contra mim, coisa que ele utilizou por muitos e muitos anos.

Foi pensando em exterminar todo e qualquer poder que meu pai ainda pudesse ter sobre minha vida que atraí meu irmão para um almoço com a desculpa de falar da conta na qual estávamos trabalhando em conjunto.

Confesso que estranhei quando ele aceitou sem que eu tivesse que recorrer a inúmeros subterfúgios, mas agradeci a boa sorte, e nos encontramos em um restaurante neutro, escolhido a esmo, embora de alta gastronomia.

Achei que seria difícil introduzir o assunto, principalmente porque ele iria saber que pesquisei o maldito imóvel e descobri que ele o comprou há anos, quando foi a leilão. Isso me surpreendeu, claro, saber que ele comprou o sobrado e que ainda o mantém de pé sem nenhuma modificação ou uso. O assunto não surgiu naturalmente. Kostas estava estranho, mesmo falando de negócios, o que me surpreendeu, pois sempre imaginei que ele fosse se aproveitar da distância de Millos e Theo para tentar assumir a empresa.

— Eu acho que temos um acordo implícito de não falarmos sobre o passado — decidi não ser mais sutil, e Kostas reagiu imediatamente:

— Não é implícito. Não quero falar do passado. Mais explícito que isso, impossível!

Eu sabia que não seria fácil, ele é tão fechado quanto eu, então precisei desarmá-lo. Aproximei-me dele por sobre a mesa do restaurante e abaixei o tom de voz:

— Dessa vez, não poderei acatar sua vontade, Konstantinos. Sei que você comprou o sobrado da Rua...

Kostas levantou-se.

— Perdi a fome, vou voltar para a empresa.

Pus-me de pé também e o vi caminhar na direção da saída do restaurante, mas não ia desistir, não quando já havia agitado o vespeiro.

— Eu nunca te pedi ajuda. — Meu irmão parou, mas não se virou para me olhar. Decidi continuar por essa linha de ação: sinceridade. — Eu não podia te ajudar, então nunca pedi ajuda também.

— Alexios, não faça isso...

Eu soube que atingi o ponto certo, pois podia sentir a tensão no seu corpo. Nós dois temos consciência do que passamos na mão do nosso pai e de tudo que fizemos para que a loucura de Nikkós ficasse longe de Kyra. Kostas não aguentou por muito tempo, e eu o entendo, mas fiquei lá sozinho, lutando contra o monstro, tentando proteger minha irmã, mesmo sem ninguém para fazer o mesmo por mim.

Nunca tinha pensado em lhe cobrar, mas situações extremas pedem medidas extremas.

— Eu preciso, senão não faria. Há chances de eu descobrir o que Nikkós fez com minha mãe.

Fiquei satisfeito ao vê-lo se virar completamente surpreso.

— Sua mãe? Você soube algo dela?

— Nada conclusivo, mas acabei cruzando com uma pessoa que, quando soube que eu era filho dele, disse tê-la conhecido.

— Isso é loucura! Você procurou durante sua adolescência toda, quase se matou por isso, não há pistas, não há nomes, não há nada!

Lembranças de anos e anos de buscas vãs me fizeram titubear por alguns instantes. Eu não tinha um ponto de partida na época, pois ela podia ser qualquer pessoa, mas, naquele momento, eu tinha a maldita pista do imóvel.

— Preciso acessar o sobrado — voltei a falar, mas Kostas negou. — Preciso entrar e remexer tudo lá.

— Não!

— Foda-se, eu vou! — Soquei a mesa, decidido, puto demais por estar ali pedindo ajuda a ele pela primeira vez e não ser compreendido. Eu sempre o entendi, sempre o justifiquei quando saiu do apartamento e foi viver sua vida. Quando descobri que o sobrado lhe pertencia, nunca pensei em questionar seus motivos, apenas o entendi. Não era justo não ter o mesmo tratamento e consideração. — Eu sei que, por algum motivo bizarro, você o comprou, trancou-o com tudo dentro e o tem deixado apodrecendo por mais de 15 anos! Pode ter alguma pista lá.

— Não é seguro. Não vou arriscar que você morra lá dentro e eu ainda tenha que responder a...

Caralho de desculpa mais esfarrapada!

— Porra, Kostas, não fode! — Perdi a paciência, circundei a mesa e me aproximei dele, disposto a jogar pesado. — Eu sei dos teus motivos, respeito-os. Como disse, nunca te pedi ajuda antes porque sabia que você também precisava e não tinha a quem pedir, mas agora estou pedindo, agora estou contando com você. Não me faça arrombá-lo, porque eu o farei, apenas dê-me as chaves de todas aquelas grades que pôs lá.

Vi-o pensar, achei mesmo que eu estivesse tocando em alguma parte ainda viva de seu corpo, talvez no menino que conheci quando chegou para morar conosco, mas não, ao que parecia, meu irmão havia virado a porra de uma rocha fria e sem sentimentos.

— Tente invadir. Será um prazer implodir aquela merda com tudo dentro!

A mera possibilidade de ele destruir a única pista que tive do meu passado me desconsertou. Kostas aproveitou-se do momento e foi embora do restaurante.

Fiquei um tempo parado, até que ouvi um leve pigarrear e vi os garçons chegando com nossos pedidos. Estava sem fome, um bolo havia se formado em minha garganta, então pedi que embrulhassem tudo e deixei as quentinhas com o primeiro morador de rua que achei pelo caminho.

Andei sem rumo, sem saber o que fazer ou como agir. Tinha aberto meu peito para ele, pedira ajuda pela primeira vez e recebera um sonoro não. Senti algo inédito pelo meu irmão, raiva. Kostas nunca fora o alvo da minha revolta, pois sempre o compreendi, mas naquele momento não podia mais entendê-lo, não quando eu poderia ter respostas para acabar com minha tortura.

Sair de casa ajudou meu irmão a dar fim ao poder de Nikkós sobre sua vida, mas o mesmo não aconteceu comigo, e, enquanto eu não souber sobre o meu passado, não poderei tirar do homem que me gerou a possibilidade de voltar a me ferir.

O som de mensagem no celular me faz deixar de lado essas lembranças, e eu leio a mensagem de minha irmã me convidando para jantar com ela.


“Kyra, ainda estou na empresa, não poderei ir.”


Envio a mensagem esperando que seja suficiente, mas não é.


“Uma hora você precisará comer, e eu não tenho nenhuma intenção de jantar cedo. Venha no horário que puder, esperarei você.”


Merda, ela sabe ser insistente!


“Ok.”


Olho para o monitor do computador, respiro fundo e desisto de trabalhar. Minha barriga ronca, e decido aceitar o convite inesperado de minha irmã. Antes, porém, olho novamente o endereço do sobrado e traço um plano para invadi-lo sem que Konstantinos tome conhecimento.

As respostas que busco sobre mim mesmo podem ser achadas lá; não vou desistir tão fácil assim de encontrá-las. Nunca desisti fácil de nada, essa não será a primeira vez.

Imediatamente a imagem de Samara aparece em minha mente, e eu bufo, chamando-me de hipócrita. Claro que já desisti fácil de algo, eu só não gostava de admitir isso por não me achar sequer digno dela.

Quem sabe se eu achar as...

Interrompo o pensamento antes de criar ilusões que só serviriam para me machucar. Não há possibilidade de eu tê-la, mesmo que tenha todas as respostas da minha vida. Samara nunca estará ao meu alcance, e, sinceramente, acho bom que não haja nenhum envolvimento entre nós.

Ela merece mais!


Pego mais um copo de café e volto a me sentar ao lado de Daniel, sacudindo a perna, bebericando ou soprando a bebida quente. Olho para o corredor e, sem nem mesmo consumir metade do café, levanto-me para pegar um copo d’água.

Volto a me sentar, as pernas agitadas, confundo os copos e dou uma golada no café fumegante.

— Merda!

Daniel põe a mão no meu joelho e me obriga a parar de sacudir a perna.

— Se você não sossegar agora, juro que te ponho para fora — ele me ameaça.

— Desculpa. — Sorrio sem jeito. — Estou nervosa com os resultados desse primeiro ciclo de quimio e acho que deveríamos ter entrado com ela para saber mais...

— Nosso pai entrou com ela, Samara. Sossegue, você está me deixando irritado parecendo uma criança ansiosa! — Daniel fala alto, e eu o encaro surpresa. — Desculpa. — Ele põe a mão na cabeça e esfrega os olhos. — Eu quase não dormi essa noite, mas você não tem nada a ver com meu mau humor.

— Ela vai ficar bem, Dani. — Ponho minha mão em seu ombro.

— Eu sei que vai! Nunca tive dúvidas disso.

Respiro fundo e concordo com ele, embora não tenha a mesma confiança que ele demonstra ter.

Têm sido dias difíceis desde que cheguei ao Brasil, mas em momento algum me dei a oportunidade de esmorecer perto deles. A cada medicação, mamãe tinha reações mais fortes, requerendo tanto cuidado e atenção que decidi desistir de morar no meu apartamento e voltei para a casa dos meus pais.

Confesso que essa decisão também me ajudou a manter distância de Alexios Karamanlis. Não que eu ache que em algum momento ele tenha notado minha ausência ou se importado com isso, mas para mim fez toda a diferença.

É aquele ditado, sabe? O que os olhos não veem...

Suspiro.

— Você foi incrível nesses dias, Samara — Daniel volta a falar. — Mamãe esteve muito mais à vontade com você por perto do que comigo.

— Não fala besteira, Dani! — Ele sorri, sabendo que é o xodó da mamãe. — Eu gostei de ter conseguido ajudar e estar com ela de novo.

— Ela também ado... — ele para de falar assim que vê nossos pais vindo até onde estamos. Levantamo-nos juntos, apreensivos, esperançosos, e o sorriso de mamãe é reconfortante.

— O que o médico disse? — indago assim que eles se aproximam.

— O medicamento fez o efeito esperado para esse primeiro ciclo. Agora é esperar o tempo de descanso para começar de novo. — Mamãe sorri.

— E a radioterapia? — Dani questiona, e ela dá de ombros.

— O doutor ainda não prescreveu — papai responde. — Vamos torcer para que a quimio resolva sem precisar da rádio! — Ele sorri e abraça mamãe pelos ombros. — Em breve você terá sua vida agitada de volta.

Ela suspira cansada.

— Bom, vamos todos almoçar para comemorar o fim desse primeiro degrau rumo à vitória! — tento animar a todos, mas só meu pai sorri. — Ah, gente, vamos lá! Mamãe?

Ela assente e olha para Daniel.

— Você não está cansada? — meu irmão pergunta a ela.

— Não, podemos ir!

Bato palmas e a beijo na testa.

Eu entendo o desânimo dela, seria cruel não entender, pois, ainda que todos estejamos empenhados em seu tratamento, é ela quem passa por todos os efeitos colaterais dos medicamentos e pela doença. Mamãe nunca foi uma mulher parada ou passiva, e depender de outras pessoas deve estar sendo uma verdadeira prova para ela.

Foram semanas difíceis, não nego. Fiquei totalmente à disposição de minha mãe, levando-a às consultas e às sessões, fazendo companhia a ela, amparando-a em momentos de indisposição e dor. Godofredo e eu nos mudamos para a mansão da família, e eu mal tive tempo para ir ao Castellani ou mesmo visitar amigos.

Kyra esteve várias vezes conosco, geralmente após o expediente de trabalho, quando não tinha eventos. Daniel e Bianca, sua noiva, também estiveram presentes nos jantares e almoços de finais de semana, e, claro, papai.

Sorrio ao pensar em como é bom ter meu pai por perto. Ele e eu temos muitas afinidades, então, passamos muito tempo conversando, vendo filmes ou ouvindo música. Mamãe prefere ler sozinha em seu quarto à noite, por isso faço esses programas todos com papai.

Assim, o mês de janeiro se foi, e fevereiro entrou com força total com a finalização do primeiro ciclo de quimio da mamãe e o inesperado convite de Daniel para que eu trabalhe na empresa com ele.

— Dani, eu sou designer de interiores. Já trabalhei decorando mansões, apartamentos, iates e até um motor home, mas nunca fiz nada empresarial. — Fiz careta ao lhe responder. — É tudo muito frio.

— É um hotel — ele logo me informou. — Vamos redecorar um enorme hotel.

Meus olhos brilharam.

— Ele vai seguir algum padrão já existente? É um hotel de rede?

Ele nega.

— Não. É uma casa de campo que está virando hotel. — Arregalei os olhos. — O projeto de reforma é da Karamanlis, e a executora da obra é a Novak.

— K-Eng? — inquiri baixinho, e ele suspirou.

— É, mas quem está acompanhando é um dos braços direitos do seu amigo.

Havia muitos dias eu já não pensava no Alexios e nem no beijo do Ano Novo. Não foi o primeiro que trocamos depois de umas bebidas, então eu não devia lhe dar tanta importância, embora reconhecesse que ter me afastado do Castellani ajudou muito a manter distância dele. Alexios e eu já não somos mais amigos!

A perspectiva de trabalhar em um projeto como aquele enquanto eu estivesse no Brasil era maravilhosa, mesmo com a possibilidade de encontrar o CEO da K-Eng eventualmente.

— Aceito olhar o projeto e conversar sobre o briefing, só isso. — Daniel sorriu satisfeito. — Se eu puder executar meu trabalho sem a interferência de pessoas que nada entendem de decoração, pego para fazer; do contrário, estou fora.

— É assim que se fala! Você vai amar o projeto de reforma, ficar cheia de ideias, e tenho certeza de que os responsáveis pelo empreendimento vão adorar seu trabalho.

O projeto realmente estava incrível, e a ideia de como os donos queriam a decoração dos quartos e áreas comuns me deixou louca para começar o trabalho. Aceitei a proposta, negociei sob a garantia da Schneider e fechei um belo negócio aqui no meu país.

Penso no meu trabalho na Espanha e Diego me vem à cabeça. Entro no carro, no banco do carona, ao lado de Daniel e suspiro.

— O que foi? — meu irmão pergunta, seguindo o carro do papai para fora do estacionamento.

— Estava pensando no Diego.

— Vocês têm se falado?

— Sim, por mensagens. — Balanço a cabeça. — Não sei mais o que fazer para ele entender que não estou tendo nenhum tipo de crise por conta do tratamento da mamãe. Eu fui sincera com ele quando terminei. Não foi certo fazer por vídeo, mas eu não podia mais me sentir enganando-o.

— Eu entendo você, embora não goste nada do motivo que a levou a isso.

— Não tem nada a ver com Alexios, nós nem temos nos visto. Eu pensei em ir até a Espanha para conversar melhor com Diego, mas acabei de pegar esse projeto enorme e não posso me ausentar por agora. Além disso, ele está seguindo o time na Champions...

— Não sei se é boa ideia você ir atrás dele. Acho-o um tanto insistente demais. Concordo que não foi certo terminar por vídeo-ligação, mas depois disso vocês conversaram várias vezes, e o homem não para de insistir.

Eu concordo, mas ao mesmo tempo me sinto culpada.

— Sim. Mesmo assim sinto que lhe devo uma explicação.

Paramos no farol, e ele me olha.

— Você quer retornar para Madri mesmo depois desse término?

Respiro fundo e dou de ombros.

—Sim, trabalho em uma ótima empresa lá, então, por que não voltar?

Meu irmão ri.

— Isso é você quem tem que responder a si mesma. — Ele me puxa para perto e beija o topo da minha cabeça. — A decisão é sua; certa ou errada, cabe a você decidir o que fazer.

— Eu sei.

Sorrio, mesmo com minha cabeça fervendo de perguntas sem respostas, mesmo sem entender o que eu quero e por onde devo ir.

Fui para a Espanha para fugir de um sentimento que parecia não ter fim, mesmo diante da impossibilidade de se tornar algo real, e acabei fazendo amigos e criando laços por lá, mas é aqui que minha família e meus amigos estão. A decisão não é fácil!

Quanto a Alexios... o sentimento não morreu, obviamente, porém não guardo mais nenhuma ilusão com relação a ele. Sempre serei vista como a grande amiga e nada mais.


— Alexios está esquisito essa semana — Kyra comenta.

Eu rio e bebo mais um gole do vinho.

— Quando ele não foi esquisito? — debocho.

— Exatamente, a esquisitice dele não me surpreende, mas essa semana ele está mais esquisito. — Presto atenção ao que Kyra diz, pois minha amiga não costuma exagerar, pelo contrário. — Eu sei que ele está em um ritmo frenético de trabalho, mas, quando falei com ele ontem, achei-o um tanto...

— Esquisito — complemento, e Kyra revira os olhos ante minha brincadeira. — Kyra, seu irmão é a pessoa mais fechada do mundo, você sabe. Mesmo que ele esteja com merda até nos ouvidos, precisa quase se afogar nela para pedir ajuda ou falar com alguém.

Ela assente, e nós duas ficamos mudas. Eu me lembro de quando tomei conhecimento, pela primeira vez, do que eles viviam com o pai. Alexios telefonou para minha casa pedindo para que eu subisse até a cobertura, pois precisava de um favor. Não pensei duas vezes e fui até ele pensando que queria ajuda com algum jogo ou matéria – história nunca foi o seu forte –, mas, quando o vi, mal conseguia me mover.

Ele estava todo machucado nas costas. Os cortes eram verdadeiros talhos, de onde saía muito sangue, e eu tive que respirar fundo várias vezes para não vomitar.

— Samara, preciso que você seja dura agora — ele me disse com a voz calma, com toda sua sabedoria de 15 anos de idade.

— O que você quer que eu faça? — perguntei temerosa, já prevendo que ele me pediria para limpar e fazer curativos.

O problema era que, por conta do tamanho e da profundidade dos cortes, curativos não seriam o bastante. Ele ergueu uma agulha curva com um enorme pedaço de linha preta.

— Costure.

Neguei várias vezes com a cabeça, incapaz de abrir a boca sem derramar todo o lanche que havia acabado de tomar, mas ele me olhava suplicante. Percebi que, mesmo sentindo dor, ele tentava não demonstrar.

— Você precisa de um médico!

— Não. — Ele ergueu a agulha novamente. — Preciso de você.

Peguei o metal curvado. Minhas mãos tremiam, o queixo também. Era possível ouvir o som dos meus dentes batendo forte um contra o outro. Não entendia o que estava acontecendo, o motivo pelo qual ele estava daquele jeito e não ia até um hospital.

Eu mal sabia bordar, e somente a possibilidade de machucá-lo ainda mais me apavorava.

— Se fosse em outro local, eu juro que não pediria isso a você, mas eu não consigo suturar as costas sozinho.

Foi então que percebi que não era a primeira vez.

— O que foi isso, Alexios?

Ele sorriu tentando me despistar, mas depois suspirou.

— Caí em cima da mesinha de centro da sala lá de cima. — Apontou para o segundo piso da cobertura. — Ela era toda espelhada, por isso me cortei.

— Caiu?

Ele não respondeu, apenas virou-se de costas para mim e começou a me dizer o que fazer.

— A agulha já está desinfetada, e eu tomei banho, mas ainda assim preciso que você passe esse antisséptico, limpe bem o sangue e comece a costurar. — Ouvi o som de sua risada. — Pense que sou um dos seus tecidos finos e delicados de almofada e borde em mim.

Bufei com a comparação.

— Não achei graça nenhuma!

Foi um longo processo, mas cumpri com o que ele pediu e somente anos depois é que entendi tudo aquilo, inclusive a história esfarrapada do “caí por cima da mesa”.

Fiz muitos favores como esse para ele por muito tempo ainda. Aprendi a costurar sua pele, a recolocar seus ossos no lugar quando se deslocavam e até mesmo a imobilizar alguma parte de seu corpo. Porém, mesmo estando ao lado dele em todos esses momentos dolorosos, Alexios só me contou que era o pai que o espancava depois que saiu de casa com Kyra.

Eu sofri tanto por pensar nas atrocidades que eles viveram, porque minha amiga até reclama do irmão, mas são farinha do mesmo saco. Não faço ideia de como Nikkós a afetou, mas é certo que ela não foi poupada da loucura do pai.

— Ei, Samara no mundo da lua! — Kyra me cutuca. — Está pensando em quê? Perguntei por Diego, e você ainda nem me respondeu o que ficou decidido.

— Nada de diferente. — Ela cruza os braços. — Temos conversado bastante por mensagens, mas ele parece não aceitar que acabou. Diz que estou em crise e que, assim que puder, virá ao Brasil.

— Para quê?

— Conversar pessoalmente. — Fecho os olhos. — Gostaria tanto que tudo fosse diferente, sabe? Que eu pudesse gostar dele da forma como deveria.

— E por que não pode? — Olho para Kyra, e ela entende a resposta. — Uma merda isso! Então você não vai voltar para Madri mais?

Penso em Diego e em todo esse tempo em que estivemos juntos, recordo-me de como me senti feliz ao lado dele e do escritório maravilhoso de design em que trabalhei durante esses anos. Ele tem alegado isso, que estou confusa por estar longe, com medo de mudar de vez para Madri e ficar longe da minha família. Não é isso! Ter voltado ao Brasil mexeu, sim, com meus sentimentos, principalmente quebrou a ilusão de que eu tinha esquecido Alexios. Por isso ainda penso em voltar a morar na Espanha, mas não quero mais me enganar e enganar outra pessoa no percurso.

— Eu gostaria de ter essa resposta, Kyra — volto a falar. — Gostaria de saber o que é melhor para mim, mas não sei. Aqui há tantos motivos para eu ficar, como também para que eu vá, mas ainda estou indecisa.

— Eu sei. — Ela sorri compreensiva.

A campainha do apartamento dela soa alto. Estranho, porque ela não me disse que teríamos companhia, mas, por sua reação, Kyra já estava à espera de alguém.

— Talvez o motivo de sua indecisão tenha chegado agora.

Arregalo os olhos com a possibilidade de ser Alexios.

— Kyra, o que você... — não termino de formular a frase, pois minha amiga abre a porta, e o vejo olhá-la com um sorriso cansado, entrar no apartamento e parar surpreso ao me ver.

— Oi — cumprimento-o.

— Oi. — Ele desvia o olhar para Kyra.

— Vou ver se o jantar já... — ela para de falar e ergue a mão dele. — O que houve?

Os olhos de Alexios não deixam os meus, então ele abre um sorriso lindo – esse é o bendito que ele usa quando quer disfarçar alguma situação séria ou desviar o assunto – e dá de ombros.

— Um pequeno acidente besta, nada importante. — Kyra parece não engolir a desculpa esfarrapada também, mas não insiste, pois conhece o irmão muito bem. — Tem cerveja?

— Claro que tem! Vou pegar umas para você. — Ela aponta para mim. — Faça companhia para a Samara.

Nós dois a olhamos, entendendo que o jantar foi uma armadilha dela para que voltemos a nos falar. Sinceramente não entendo minha amiga. Ela sabe o que sinto e o que Alexios não sente, mas ainda assim insiste em nos manter unidos, mesmo dizendo sempre que seu irmão não é uma boa opção para mim.

Como se um dia ele considerasse me ver como mulher!

— Como estão as coisas com sua mãe? — Alexios puxa assunto de repente e se senta em uma poltrona individual bem longe de onde estou.

— O primeiro ciclo de quimioterapia acabou, e ela está bem — respondo seca. — E você, como está?

Ele abre o maldito sorriso fingido.

— Ótimo! Cheio de trabalho, sem tempo para fazer bobagens...

— Não parece. — Aponto para sua mão. — Achei que seus momentos de fúria já tivessem passado desde que começou a praticar esportes. — Ele fica sério. — Por falar nisso, vi o Chicão lá no prédio esses dias. Ele está hospedado contigo?

— Está, como sempre. — Alexios olha para trás, na direção da cozinha de Kyra e respira fundo. — Eu queria pedir desculpas novamente por...

— Não precisa — interrompo-o antes que eu seja obrigada a socar sua cara.

— Preciso — ele insiste. — Kyra me contou sobre seu relacionamento — meu coração dispara ao ouvi-lo falar sobre isso como se não tivesse importância alguma. — Espero que ele seja o homem que você merece e que sejam muito felizes como você sempre sonhou.

Engulo em seco, abro um sorriso – fervendo de raiva da Kyra – e digo a primeira coisa que me vem à cabeça:

— Ele é! — minto, e Alexios fica sério, seus olhos claros fixos nos meus. — Um verdadeiro príncipe como sempre sonhei.

— Quem bom. — Ele se levanta. — Vou até a cozinha pegar a cerveja, estou morrendo de sede.

Acompanho-o com os olhos e, quando desaparece da minha vista, gemo e me dou um tapa na cabeça. Que ridícula! Por que, mesmo sendo tão madura em vários aspectos, sou uma imbecil quando estou perto dele? Parece até que estou de volta ao aniversário de 18 anos da Kyra, quando saímos nós três para comemorar, e eu fiquei com um babaca total só porque Alexios pegou uma das garçonetes da pizzaria.

Não sou mais essa garota!

Alexios e Kyra voltam para a sala, ele, bebendo uma longneck, e minha amiga, com uma travessa na mão.

— Escondidinho de camarão, como vocês dois sempre gostaram — ela anuncia.

— O cheiro está incrível! — elogio, levantando-me do sofá e indo ajudá-la. — Há muitos anos não sinto algo tão delicioso!

— Eu também não — Alexios fala perto de mim.

Os pelos do meu corpo se arrepiam todos por causa do som de sua voz e seu hálito no meu pescoço. Viro-me para ele, sem entender o motivo pelo qual está tão próximo de mim e me surpreendo por um instante ao decifrar seu olhar: fome, e não é de comida.

Balanço a cabeça, achando impossível que seu olhar esfomeado seja para mim e me afasto dele, indo posicionar os pratos como Kyra me ensinou a fazer tempos atrás.

— Andou treinando? — minha amiga brinca ao me ver executar com perfeição seu ensinamento.

— Sim, fiz alguns jantares em Madri — conto orgulhosa. — Recebi poucas pessoas, a maioria amigos, e fiz questão de colocar em prática tudo o que você me ensinou...

— E que você achava que era bobagem! — Ela ri e olha para Alexios. — Uma arquiteta de interiores deve, no mínimo, saber montar uma mesa, não acha?

Alexios franze a testa, pensa um momento e depois concorda.

— Pregar pregos na parede, fazer arranjos florais, pintar um quadro... — Kyra fica séria, e ele começa a rir. — Há profissionais para isso, Kyra, Samara é responsável pelos layouts de móveis e projetos de planejados, não precisa saber fazer tudo!

Kyra parece estupefata, e, confesso, eu também estou, porque geralmente os dois se uniam para brincar ou me provocar, e agora ele acabou de me defender!

Alexios parece ficar sem jeito com o silêncio e dá uma enorme golada, até pôr fim ao conteúdo da garrafinha de cerveja, em seguida volta para a cozinha.

— O que está rolando? — Kyra me pressiona.

— Não sei do que...

— Samara, sem essa de “não sei do que você está falando”. Não nasci ontem, percebi que vocês estão estremecidos. Achei que tinha sido por conta dos anos longe, mas achei que isso ia passar depois do baile, mas então Alexios aparece aqui mais perdido do que cachorro que caiu da mudança e se recusa a falar o que aprontou contigo na virada do ano! — Aproxima-se. — Conte-me já!

Nem em sonho!

— Não há nada para contar.

Alexios retorna, e sua irmã avança para ele igual a um anjo vingador.

— O que está rolando entre vocês dois? — Ela põe a mão na cintura. — Sempre fomos amigos! Éramos um trio, estivemos juntos nos piores momentos de nossa infância e adolescência, parem já com qualquer merda que estiverem fazendo!

— Quanto você bebeu? — Alexios debocha. — Nada está acontecendo, não é?

 

CONTINUA

Kyra sempre foi exuberante, beleza herdada de sua mãe, devo acrescentar, pois Sabrina ainda continua tão linda quanto era na época em que era casada com Nikkós. Contudo, minha irmã ainda recebeu alguns belos traços dos Karamanlis, principalmente da famosa giagiá15, que todos sempre fazem questão de dizer que era linda e tinha a mesma coloração de olhos da minha irmã (e minha também, só que os Karamanlis nunca engoliram bem que eu realmente tenha o sangue nobre deles).

No papel, Kyra e eu somos filhos dos mesmos pais, pois Sabrina me adotou legalmente quando eu ainda era um garotinho. Ela, por poucos meses, possuía a diferença de idade obrigatória pela lei entre nós (16 anos) e, por isso, conseguiu, aos 18, adotar-me aos dois anos. Logo em seguida nasceu a Kyra, e a família ficou completa.

Na verdade, eu nunca soube da minha mãe. Tentei descobrir algo durante a adolescência, principalmente por ser esse um dos pontos que meu sádico pai adorava usar contra mim. Inventar uma história nova a cada dia sobre meu nascimento, minha origem, era sua principal diversão e tortura psicológica.

Nunca entendi nada sobre mim, a única certeza que tenho é de que, infelizmente, sou mesmo filho dele, algo que comprovei através de exame de DNA, cujo resultado positivo nunca divulguei, porque eu tinha esperança de não ter o sangue daquele monstro.

Volto a prestar atenção na foto, dessa vez em meu próprio rosto cheio de enfado por estar naquele baile com elas. Sorrio. Eu fazia esse tipo, mas a verdade é que adorava cada momento que passávamos juntos, pois me sentia em família de verdade.

Ponho a moldura no lugar e respiro fundo, controlando meu corpo, colocando juízo na minha cabeça, ressaltando tudo o que tem de importante na amizade entre mim e Samara e concluindo que um envolvimento fora desses termos entre nós só serviria para destruir anos e anos de companheirismo.

Samara merece ser feliz com alguém que possa ser o homem com que ela sempre sonhou, o príncipe encantado dos seus sonhos de menina, alguém que saiba quem é, que tenha valor e que possa demonstrar todo o amor que sente por ela e reconheça o privilégio que é ser amado.

Esse homem não sou eu!

 

Depois do banho na casa de Kyra, fui direto para a empresa. É providencial ter uma mochila de roupas minhas no apartamento dela, mas confesso que não vou muito de jeans e camisa de malha para a Karamanlis.

Passei no Castellani apenas para pegar minha moto, nem me atrevi a subir até meu apartamento, sendo covarde mais uma vez. A questão é que eu não saberia nem mesmo o que dizer a Samara caso nos encontrássemos de novo.

Estava saindo do estacionamento quando meu celular tocou, mas, como já estava sobre a moto – e não queria demorar muito na garagem, porque o carro de Samara ainda estava na vaga dela –, deixei para conferir a ligação quando estivesse no prédio, o que faço agora, retornando a ligação.

— Oi, Chicão! — cumprimento-o assim que atende.

— Alex, seu grande safado, feliz Ano Novo! — o homem mais velho, que se tornou um grande amigo e a quem eu considero como um pai – no sentido do que realmente um pai deveria ser – por pouco não me ensurdece ao telefone. — Cheguei ao inferno hoje, queria saber se poderia passar uns dias lá naquele seu apartamento cinco estrelas.

Abro um sorriso de felicidade ao pensar que ele está de volta a São Paulo. Francisco Salatiel Figueiroa é o nome dessa figura de quase 60 anos, paulistano – mas que odeia sua cidade natal – e viciado em esportes radicais assim como eu.

Nós nos conhecemos quando eu ainda estava no colégio, devia ter uns 15 anos e fui participar de um racha de moto pela cidade. Ele apareceu por lá, chamou-me em um canto e me convidou a fazer cross ao invés de colocar minha vida e a de outras pessoas em risco correndo pelas ruas.

Comecei a ir para o os circuitos de motocross, tomei muito tombo, enlameei-me até o pescoço e me senti mais vivo do que quando me arriscava nos rachas. Nós nos tornamos amigos mesmo com nossa gritante diferença de idade, pois ele dizia que eu lembrava o moleque atentado que ele mesmo tinha sido um dia, e comecei a acompanhá-lo em suas atividades.

Foi por causa dele que deixei de buscar alívio e fuga nas drogas, pois conseguiu me mostrar que, se eu quisesse me livrar de Nikkós, teria que ser melhor que ele. Não foi um processo fácil, admito, levei anos para entender e ouvir seus conselhos, mas nem por isso ele desistiu de mim ou se afastou.

Francisco começou a me mostrar que eu poderia extravasar toda minha angústia, solidão, medo e revolta em esportes como trilhas de moto, bike, escaladas, voos livres, paraquedismo e, quando tirei minha carteira de motorista, apresentou-me a alguns amigos dos circuitos de motovelocidade.

Os esportes aliviavam meu corpo da tensão vivida em casa, mas minha cabeça e minha alma continuavam pesadas, então, um dia, ele me viu desenhar e descobriu como eu poderia tratar os demônios dentro de mim.

Devo muito a ele, não só pelo equilíbrio que consegui hoje em minha vida, como também por permanecer vivo e são. Samara e ele foram os únicos a permanecerem ao meu lado nos piores momentos da minha vida, ela me auxiliando principalmente com Kyra, e ele entendendo meus problemas e me ajudando a achar soluções.

— Meu apartamento é seu! Te dei a chave, afinal.

— Eu sei, mas é sempre bom dar uma conferida, vai que você resolveu sossegar seu pau numa boceta só.

Gargalho com seu jeito rude e direto.

— Não, meu pau ainda gosta de explorar por aí. — Ele me chama de “vadio” e ri. — Estou na Karamanlis agora e...

— Ah, me diz que estou sonhado... — estranho o que ele fala, escuto vozes ao fundo e percebo que não falou comigo. Espero que ele retome a ligação, entro no elevador, cumprimento as pessoas com a cabeça e sorrio para uma mulher gostosa que nunca vi aqui no prédio. — Seu trapaceiro de uma figa! Samara está de volta e, caramba, mais linda do que nunca.

Só de ouvir o nome dela, sinto meu corpo reagir como se uma descarga elétrica tivesse me atingido.

— Encontrou-se com ela agora?

— Sim, seu embuste! Quantos anos ela esteve fora? Caralho, você já a viu?

Franzo a testa, desço no meu andar, confuso com a perplexidade dele apenas por ter visto a Samara no prédio, afinal, ele sabe muito bem que ela tem um apartamento lá.

— Já, desde que chegou — respondo distraído, acenando para os funcionários da K-Eng. — Por quê?

— Alexios, eu sempre me perguntei se você era cego ou apenas muito burro. — Ouço o barulho de uma porta se fechando. — Nunca entendi por que vocês dois nunca tiveram nada um com o outro.

Paro no meio do corredor, atraindo os olhares de pelo menos dois engenheiros que passam por mim. Que merda é essa?!

— Ela é minha amiga — digo o óbvio.

— Ela é incrível e sua amiga, isso já não é meio caminho para um relacionamento de sucesso?

Um alerta dispara em meu cérebro. Chicão nunca foi um homem ligado a relacionamentos permanentes, tanto que é solteiro até hoje, então não entendo o motivo pelo qual está falando essas coisas sobre mim e Samara.

— Chicão, sou eu! Eu não tenho relacionamentos, eu fodo por aí, só isso. E, definitivamente, Samara não é uma mulher apenas para se foder.

Ele emite um grunhido, e, ao fundo, escuto o bipe da minha cafeteira sendo ligada.

— Nisso concordamos. Mas ela é incrível, sempre foi, se eu tivesse a sua idade e a sua aparência, não perderia a oportunidade de tê-la comigo.

Mas o que... Arregalo os olhos, e meu coração dispara.

— Você está morrendo? — inquiro-lhe como se fosse a única opção válida para essa mudança de comportamento.

Chicão gargalha.

— Não, mas estou ficando velho e sozinho. — Bufa. — Mas isso não é assunto para discutirmos ao telefone, já que você está na empresa.

— Chicão, está tudo bem?

— Vai trabalhar, embuste, depois conversamos. Viajei a noite toda, quero tomar um banho, comer algo e dormir um pouco. Obrigado pelo abrigo.

Ele ainda não me convenceu, algo está errado.

— A casa é sua! — declaro, e ele encerra a ligação.


— Quer mais um travesseiro? — pergunto à minha mãe assim que ela se deita na cama.

— Não, filha, estou bem. — Sorri, mas o cansaço não permite que o faça por muito tempo. — É sempre assim no dia da medicação, mas passa.

Balanço a cabeça concordando, enternecida por ela estar tentando me consolar, quando é ela quem está passando por isso tudo. Sempre a admirei por sua força, seu destemor e a capacidade de realizar qualquer coisa que se propunha a fazer.

Mamãe não tem um gênio fácil de lidar, mas nunca negou amor e afeto aos seus filhos, mesmo sendo brava e exigente como era. Dani e eu tínhamos muito mais medo dela do que do papai, que sempre foi mais maleável, mas moderno e liberal.

O relacionamento dos meus pais, enquanto casal, não era um mar de rosas, mas eles eram amigos, companheiros. Ele sempre a apoiou em tudo, e ela acima de tudo o admirava. Não tinham grandes arroubos de paixão, pelo menos não na nossa frente, mas se respeitavam, conversam, riam e, principalmente, nos amavam muito. Dani, como filho e mais velho, sempre foi agarrado a minha mãe mais do que a nosso pai. Os dois se dão bem, são muito parecidos em alguns aspectos, mas quem sempre teve mais afinidade com papai fui eu.

Acho que nossas almas são parecidas. Ambos somos apaixonados pelas formas, perfeccionistas, românticos e, arrisco dizer, sonhadores. Eu sou assim, gostaria de ser prática como mamãe, mas há muito que parei de tentar ser quem não sou. Demorei, mas consegui aceitar meu jeito e me respeitar acima de tudo.

É dolorido tentar ser quem não é para se encaixar ou seguir uma tendência. Eu sou forte, mesmo sendo doce; sou feminista, mesmo sendo feminina e vaidosa; sou empoderada, mesmo sonhando em casar e ter uma família.

Eu me importo com a opinião alheia, sim, porque ninguém é uma ilha e não teria sentido na vida se todos fôssemos autossuficientes e não dependêssemos de ninguém. Não tenho preconceitos, sou feliz com a felicidade dos outros e não me importo que a recíproca não seja verdadeira. Cada um escolhe o caminho que quer percorrer. Eu escolhi ser assim, exatamente como sou.

Chegar até essa conclusão não foi fácil, principalmente quando se percebe que o homem por quem você é apaixonada prefere as mulheres que têm atitude, que são furacão e não calmaria. Eu quis fazer tipo e percebi que estava indo na contramão de tudo o que uma “mulher de atitude” prega, que estava tentando ser outra pessoa para agradar a um homem.

Foi aí que aquela máxima tão clichê, mas que é tão difícil de ser vivida, fez sentido para mim: quem me amar, precisa me conhecer e me aceitar como sou.

Demorei a perceber a importância disso, precisei praticamente ter isso esfregado na cara. Então arrumei minhas malas, disse ao meu pai que não iria para Barcelona, mas sim para Madri, e segui com minha vida.

Alexios foi o estopim que eu precisava para explodir naquela época, depois de ter aparecido no meu apartamento bêbado a ponto de não se aguentar de pé. Ele pediu para dormir no meu sofá, tivemos uma dura discussão quando tentei lhe passar sermão e, no meio da noite, acordei com ele na minha cama.

Fiquei sem reação quando senti sua mão na minha cintura, alisando minha pele por cima do pijama de seda. Fechei os olhos, excitada e ansiosa, e o deixei prosseguir com a exploração. Não o impedi quando me virou, nem quando me beijou e subiu em cima de mim. Tinha esperado por aquilo a vida toda, e estava acontecendo.

Ledo engano!

Ele ficou imóvel, esmagando-me com seu peso, então percebi que havia dormido. Joguei-o para o lado e passei a noite em claro, sem entender nada, esperando que ele acordasse e explicasse.

Acabei dormindo e acordando sozinha na cama. Ele tinha ido embora, e não conversamos, mas esperei que a conversa viesse mais tarde. Não veio. Ele simplesmente ignorou o beijo, as carícias, como se não fossem nada, como se eu não fosse nada.

Fiquei irritada, subi para perguntar diretamente a ele o motivo pelo qual tinha me beijado, mas, quando cheguei ao seu apartamento, estava rolando uma de suas festinhas regada a bebidas e sexo, e o filho da mãe estava sentado no sofá com uma mulher de cada lado em um beijo triplo.

Ele nem me viu, fechei a porta, desci e decidi parar de protelar minhas decisões esperando por algo que nunca iria acontecer. Um relacionamento com Alexios era uma ilusão infantil, mas eu já não era mais criança.

Viajei dois dias depois e pensei que, quando voltasse, toda essa ilusão teria se desfeito.

— Então o nome dele é Diego — mamãe fala, e eu quase pulo de susto, deixando as lembranças para tentar entender do que ela está falando. — Diego Vergara!

Sento-me na beirada da cama, curiosa sobre como ela conseguiu essa informação.

— O nome dele é mais comprido do que isso, mas, sim, Diego Vergara.

Ela sorri cheia de sabedoria.

— E você deve estar aí querendo saber como eu sei o nome dele. — Concordo. — Seu irmão me contou.

Daniel e sua boca! Meu irmão sempre foi o maior X9 do mundo, não é de se espantar que tenha contado sobre o Diego para minha mãe.

— Há quanto tempo estão juntos?

Não sei o que dizer a ela e agradeço quando uma enfermeira entra no quarto, dando-me a desculpa perfeita para escapulir de sua curiosidade. O fato é que tudo mudou depois da noite do baile dos Villazzas.

Não sei o que levou Alexios a me beijar daquela forma no elevador, eu estava bem bêbada dessa vez, mas ele não tanto, além disso, eu senti a energia entre nós, senti o tesão que ele exalava, que trazia na saliva e em cada toque no meu corpo. Alexios não escondeu em nenhum momento o quanto estava excitado, esfregou sua ereção contra mim, esmagou-me contra o espelho do elevador parecendo que queria me comer ali mesmo.

Depois, do nada, mudou. Pediu desculpas! Desculpas por me beijar! Só faltou dizer que estava com tesão, e eu era a única mulher próxima dele, mas que nem assim servia.

Para piorar, quando entrei no apartamento e peguei o celular, vi uma mensagem de Diego dizendo o quanto sentia minha falta e como ele gostaria de poder estar aqui comigo. Foi a gota d’água! Senti-me um lixo, uma pessoa má que engana e trai e percebi que tê-lo deixado na Espanha sem uma resposta definitiva foi uma atitude egoísta.

Chorando, sem pensar direito, fiz uma chamada de vídeo para ele e, quando atendeu, disparei:

— Diego, eu sou uma pessoa horrível, mas não posso fazer isso com você! — Soluçava tanto que ele se assustou e me pediu para falar devagar. Todavia, eu não conseguia. — Você é um homem incrível, um amigo maravilhoso, e eu adorei cada momento que passamos juntos...

— Calmarse, Samara! Yo no comprendo!

— Você merece mais, merece alguém melhor, e eu não posso...

— Usted está me dejando preocupado, cariño.

— Eu não queria fazer isso assim, por telefone. — Ele ficou sério, atento, prevendo o que eu lhe diria. — Mas não é justo que você fique aguardando minha volta para que eu diga isso. — Respirei fundo, armando-me de coragem. — Eu não posso aceitar seu pedido, Diego. Eu não estou pronta para amar você como deveria, como você merece.

— Samara, sucedio algo com su mamá?

Neguei.

— Não. Sou eu, não mereço você. Você tem razão ao dizer que meu coração nunca pôde estar aí contigo.

— Samara, despues hablamos, está muy nervosa. — Tentei dizer a ele que não, mas não me deu oportunidade: — Tengo que ir.

— Diego, não...

Ele encerrou a chamada. Tentei retornar outras vezes, porém a ligação não completava. Deixei mensagens, mas que, até o momento, ele não visualizou. Volto a olhar para mamãe, que boceja, visivelmente cansada, e fecha os olhos, recostada nos travesseiros, enquanto a enfermeira mede sua pressão. Eu voltei ao Brasil apenas por causa dela, para estar ao seu lado nesses momentos tão difíceis, não por qualquer outro motivo. Sinceramente, não esperava essa pressão acerca de Alexios e Diego. Minha família nunca foi assim, muito menos mamãe, que sempre pregou que uma mulher não precisa de marido e filhos para se sentir completa e feliz.

Mamãe adormece, e eu saio do quarto. Quando estou prestes a descer a escada, escuto uma voz conhecida e muito amada:

— Minha Samara está de volta! — Papai está no corredor de braços abertos. Sorrio e vou até ele para abraçá-lo. — Ah, que saudades!

— Eu também estava, mas cheguei há mais de uma semana, e você nem se dignou a vir me ver.

— Eu sei, mas agora vim para ficar, Herzchen16, e estou feliz por te ter de volta aqui em casa. — Ele beija minha testa. — Não pretende voltar para a Espanha, não é?

Suspiro. Papai foi o primeiro a me incentivar a ir estudar fora, mas o único a ficar chateado quando decidi ficar depois que terminei a especialização. Nunca foi me visitar. Embora falássemos sempre, eu percebia que ele ainda não havia entendido minha necessidade de ficar longe.

— Vou voltar, sim, tenho compromissos de trabalho por lá que...

— Besteira! Aposto que você já tem tudo desenhado e organizado e que, em uma visita ou duas, poria fim a esses “compromissos”.

— Papai, não vim para ficar, e o senhor sabe. Mamãe está na parte mais agressiva do tratamento, e Dani precisou de mim para ajudar a cuidar dela e acompanhá-la...

— Estou aqui também! — ele se ofende por não ter sido incluído. — Ela diz que não precisa de mim, mas estou aqui, sempre estive por ela.

Oh, Deus, que situação!

— Eu sei, pai.

Benjamin Abraão Nogueira Klein Schneider nunca entendeu bem a distância fria de mamãe, por mais que os dois sempre tenham se dado bem. Acho até que foi por esse motivo que se afastaram depois que crescemos e que, após minha ida para a Espanha e a de Dani para seu próprio apartamento, papai decidiu se mudar para a fazenda.

Uma vez, quando eu ainda era uma garotinha, eu o vi bêbado no escritório do antigo apartamento em que morávamos. Ele bebia e parecia mal, chorava e segurava alguns documentos. Quando me viu, tentou sorrir e me chamou para perto de si.

— Tudo bem? — perguntei na inocência dos meus oito anos de idade e limpei suas lágrimas.

— Tudo. — Ele guardou a papelada dentro de uma caixa, onde vislumbrei também algumas fotos, trancou-a com chave e depois respirou fundo. — A vida adulta é complicada, Herzchen. Fazemos escolhas baseadas no que achamos ser melhor e esquecemos o preço que isso cobra, tanto aqui — ele apontou para sua cabeça — quanto aqui. — E, por fim, tocou em seu coração.

Na época não entendi nada, mas esse momento nunca deixou minha memória e, com o tempo, supus que ele estivesse falando de seu relacionamento com mamãe. Os dois se davam bem, mas era ele quem sempre cedia numa discussão ou quem corria atrás quando as coisas ficavam tensas entre eles.

— Vi seu bichinho pré-histórico lá no jardim comendo algumas plantas — ele ri, mudando de assunto. — Você poderia ter adotado um cachorro ou um gato como qualquer outra pessoa, não é?

— Pai, eu o ganhei de presente e gosto dele.

— Mas ele é feroz! — Faz cara de medo. — Já me mordeu algumas vezes.

Gargalho.

— Godofredo é muito territorialista, ele sempre ataca os homens.

— Hum, que interessante! Começo a gostar desse bichinho. — Rio do seu ciúme. — Você não trouxe nenhum espanhol junto contigo, não é?

Suspiro.

— Não. E se o Dani disse algo para o senhor também, ele é...

Benjamin me afasta de seus braços, segurando-me pelos ombros, e me olha surpreso.

Merda!

— Ele não disse nada, não é? — pergunto, achando-me idiota.

Meu pai nega:

— Era só uma pergunta brincalhona e especulativa. — Olha em volta. — O que ele deveria me dizer?

— Eu tinha um namorado em Madri, mas ele ficou por lá.

Ele põe a mão sobre o peito.

— Adorei esse tempo verbal: “eu tinha um namorado”. — Rio. — Agora você terá que me contar sobre esse tal...

— Ele me pediu em casamento — disparo. — Mas eu não pude aceitar.

Ficamos um tempo um olhando para o outro, parados no corredor, sem emitir um som sequer. Papai sempre foi bom ouvinte e dava bons conselhos. Mesmo não sendo muito de falar sobre como se sentia, mesmo reservado em seus sentimentos, até mesmo com seus filhos, ele sabia ouvir sem julgar e só opinava quando achava necessário, o contrário de mamãe.

— Preciso de um café ou de algo mais forte — confessa, e eu rio nervosa. — Vou falar com sua mãe e...

— Ela acabou de dormir — informo-lhe.

— Certo! — Respira fundo. — Se lembra daquele seu namorado da faculdade? — Gemo e assinto. — Você tinha dúvidas quanto ao caráter dele e, mesmo com todos os seus instintos te alertando que algo não estava bem, você aceitou o namoro e...

— Meus instintos estavam certos, ele era um pilantra filho da puta casado!

— E eu quis castrá-lo. — Ele sorri doce, como se isso não fosse nada. — Enfim, o meu conselho para essa questão sempre é: siga seus instintos. Se você não se achava pronta para aceitar o pedido, então fez certo ao recusá-lo.

— Então, você acha que eu fiz certo ao ouvir meu coração?

Ele ri e nega.

— Não, eu disse para ouvir seus instintos, porque seu coração não tem juízo. — Eu rio, achando que ele está fazendo troça, mas, então, ele completa: — Já se apaixonou uma vez por Alexios Karamanlis!

Fico séria, coração disparado, porque, embora ele saiba de todos os meus namorados e experiências, nunca contei a ele sobre Alexios.

Era óbvio para todos, não sei como consegui enganar a mim mesma! Eu ainda amo aquele safado!


— Alexios? — Termino de calçar os tênis antes de me virar para olhar Laura deitada na cama. — Já vai?

Ela se contorce languidamente, seu corpo curvilíneo, dourado de sol se mexendo contra os macios e perfumados lençóis de sua cama. Sorrio, deslizo a mão pela curva de seu lindo rabo e desfiro um tapa nele, fazendo-a rir.

— Preciso ir, tenho reuniões importantes agora de manhã na empresa, e, com a viagem de Theodoros para a Grécia e a demora na volta de Millos, as coisas ficaram acumuladas entre mim e o Kostas.

Ela bufa e se senta.

— Eu sei, ontem eles me passaram as informações sobre a propriedade no Rio de Janeiro, da reunião que tiveram na quinta-feira. — Ela dá de ombros. — Achei que Kika ia aparecer cheia de gás na sexta-feira, mas nem ela e nem seu irmão apareceram na empresa.

— A área é boa mesmo? — pergunto, pois apenas vi algumas imagens do local, e, como Laura é do geoferenciamento, deve ter detalhes bem específicos.

Ela confirma.

— O pessoal do jurídico está alvoroçado, e fiquei sabendo que o Leo, o braço direito da Kika, pediu para o pessoal acelerar com as outras áreas, porque gostaram muito da do Rio. — Laura me abraça pelos ombros e lambe minha orelha. — Falando em acelerar, adorei aquela rapidinha ontem na sala de servidores.

Eu rio, mas balanço a cabeça.

— Você jogou sujo comigo. — Levanto-me da cama, e a safada senta-se na beirada do colchão, os peitos cheios e rosados, as coxas musculosas bem abertas. Porra! — Goza para mim! — ordeno, e ela não se faz de rogada, tocando-se sem nenhum pudor. Vou até uma das luminárias, acendo-a e tenho a visão perfeita de sua boceta totalmente depilada já molhada de tesão.

Foda-se!

Apenas abro o cinto da calça, baixo o fecho e saco meu pau para fora. Pego uma camisinha em cima de seu criado-mudo, e ela ri quando avanço até onde está.

— De costas!

Ela se deita de bruços, e eu me agacho para entrar em uma única investida. Fecho os olhos, concentrando-me nas sensações, excitado com seus gemidos, mas, de repente, sinto um cheiro diferente, os sons mudam, e um rosto doce, sorridente, de lindos olhos castanhos aparece em minha mente.

Xingo alto, querendo expulsar a imagem de Samara, aumento as estocadas até sentir as pernas arderem e gozo sem ao menos saber se minha parceira teve seu prazer.

Caralho!

Afasto-me dela e apoio as mãos contra o aparador, colocando a culpa das súbitas aparições de Samara em minha mente na distância que impus entre nós depois daquele beijo no elevador. Claro que, se ela não tivesse se mudado para a casa da mãe, certamente essa distância não seria tão dura, afinal, eu poderia encontrá-la casualmente pelos corredores do Castellani, mas quem disse que a sorte gosta de mim?

Agora, além de ter visões dela durante minhas trepadas, acordo excitado por algum sonho erótico protagonizado por ela e ainda tenho que aguentar os questionamentos de Kyra e de Chicão sobre o motivo pelo qual eu e Samara não nos falamos mais.

— Tudo bem? — Laura me toca o ombro, fazendo com que eu desperte dos devaneios sobre Samara.

— Tudo. — Retiro a camisinha e a jogo no lixo. — Preciso ir, já está amanhecendo.

— Eu sei.

Ela sorri, doce e compreensiva, e eu respiro fundo, sabendo que estou fazendo merda. Primeiro, por ela ser funcionária da Karamanlis, e segundo, por eu estar fazendo sexo com ela há duas semanas.

Nunca fico tanto tempo com alguém. Para falar a verdade, não me lembro da última vez que mantive uma única parceira, mas, por algum motivo, tenho andado preguiçoso, sem vontade de sair e, como trepei com ela e gostei, achei mais simples continuar.

Despeço-me dela apenas com um aceno de cabeça. Laura me acompanha até a porta de seu apartamento, e eu desço até o térreo, onde minha moto está estacionada em frente à portaria do prédio.

Sigo para o Castellani, mas a cabeça continua a vagar por lembranças dessas longas seis semanas desde o baile dos Villazzas. Tanta coisa aconteceu dentro e fora da Karamanlis, ainda assim senti o tempo passar lentamente.

No trabalho, as coisas começaram a ficar mais intensas, apesar de começo de ano sempre ser mais devagar. Com a conta da Ethernium, tive que mobilizar boa parte dos profissionais para elaborar croquis baseados na planta da siderúrgica e as áreas que foram aparecendo. A volta de Kika à empresa foi providencial, pois ela nos apresentou uma ideia que facilitou muito a vida de todos.

Eu ainda estou surpreso por Theodoros ter colocado a gerente dos hunters e meu irmão trabalhando juntos, pois isso não é algo do perfil do meu irmão mais velho. Foi então que, conversando ao telefone com Millos, descobri que tinha dedo dele nessa história.

A ideia de os dois trabalharem juntos não surgiu na reunião preliminar do projeto, mas foi algo que Theodoros e Millos combinaram assim que souberam que ela iria voltar para a empresa. Agora, conhecendo Millos como conheço, só me pergunto o que, especificamente, meu primo pretendeu ao dar essa sugestão.

Esperei que os dois se matassem desde a primeira semana juntos, ainda mais depois que Theodoros viajou, mas não, aparentemente tudo tem transcorrido bem entre os dois, e a conta da Ethernium parece estar em boas mãos.

Em casa, com a presença de Chico, que ainda está por lá, tenho sempre companhia para jogar bilhar, videogame ou para corridas aos finais de semana. Decidi não participar de nenhum campeonato este ano, nem de moto, nem de carro, pois o trabalho iria consumir muito de minha equipe, e eu não sou o tipo de chefe que deixa seus funcionários se fodendo de trabalhar e sai cedo para treinar ou viajar. Não sou profissional por isso, não consigo me dedicar integralmente às corridas, embora goste muito delas. Vejo-as com um hobby, assim como os esportes e outras atividades que uso para ocupar minha cabeça.

Entro na garagem do prédio, paro a moto e, assim que tiro o capacete, paro em seco ao ver Samara.

— Bom dia — ela me cumprimenta, sem parar para falar comigo e sem olhar para trás.

Confiro as horas no relógio e estranho que ela esteja saindo tão cedo de casa.

— Algum problema? — pergunto preocupado.

Samara para e me olha.

— Não. — Abre o carro, mas me aproximo antes que entre. — O que foi, Alexios? — sua voz é impaciente, e eu percebo que o clima estranho está de volta.

— Como está sua mãe?

Ela franze a testa, ajeita o cabelo e ri amarga.

— Teve que se encontrar casualmente comigo para lembrar que minha mãe está doente? — Balança a cabeça. — Sempre soube que você era desligado com as coisas, Alexios, mas na verdade é um egoísta.

Suas palavras cheias de mágoa me acertam. Aperto a mão no capacete, ciente de que ela tem razão. Eu poderia tê-la procurado, ter ligado, ter sido o amigo que ela merecia, mas, em vez disso, escolhi me afastar e deixá-la sozinha com seus problemas.

Sim, além de covarde, um grande egoísta!

— Você tem razão. — Aceno. — Bom dia.

Dou a volta e sigo em direção ao elevador, achando-me ainda mais desprezível do que sempre me achei.

— Ela está melhorando — a voz de Samara ecoa na garagem, e eu paro. — A quimioterapia está tendo os resultados esperados, e os médicos estão confiantes.

Viro-me para olhá-la, ainda parada do lado de fora do carro, com a porta do motorista aberta.

— Eu sinto muito por não ter ligado antes. — Ela dá de ombros como se não se importasse, mas sei que se importa; eu me importaria. — Você tem razão sobre eu ser um egoísta, você merecia um amigo melhor.

Samara bufa e, sem dizer nada, entra no carro, fecha a porta e liga o motor. Instantes depois, vejo-a passar por mim sem dizer nada e me sinto um bundão. Subo para meu apartamento e, assim que entro, encontro Chicão no meio da sala, usando apenas uma cueca, meditando.

— Que visão do inferno! — sacaneio e sigo para meu quarto.

— Bom dia, embuste! — saúda-me sem ao menos abrir os olhos. — Você deveria tentar, pelo visto nem suas trepadas diárias estão conseguindo mantê-lo relaxado, então, quem sabe a meditação...

— Nem fodendo! — grito para ele e sigo para o banheiro.

Somente quando fecho a porta é que toda a armadura se vai. Fico parado, olhando para o espelho, tentando analisar além da aparência que todos veem. Eu sou um filho da puta egoísta e imbecil, um impostor, uma fraude gigante que perambula pela cidade sem nem mesmo saber quem é.

Anjo dos Karamanlis! Engenheiro filantropo! Chefe preocupado com funcionários... tudo mentira!

Retiro a roupa, jogando-a no cesto de roupa suja antes de me enfiar debaixo da água gelada do chuveiro. Gostaria que, da mesma forma que essa água consegue limpar meu exterior, pudesse fazer o mesmo dentro de mim. Sou tão vazio e frio quanto meu irmão do meio e tão arrogante e egoísta quanto Theodoros. Sou tão louco quanto Nikkós!

Doeu-me ver e ouvir a mágoa que causei em Samara, mas é somente isso que causo nas pessoas. Decepção! Eu não mereço sua amizade e nem estar perto dela. A raiva de mim mesmo explode como há muitos anos não a sinto. Sem pensar, soco o vidro do boxe, que se espatifa e desaba sobre mim.

A porta do banheiro é aberta com um estrondo, e um apavorado Chicão aparece, olhos arregalados, olhando a destruição que causei ao meu banheiro.

— Merda, Alexios! — Ele salta em minha direção sem se preocupar com os cacos de vidro pelo chão e tenta me tirar do boxe. — Porra, sai daí.

Nego, o sangue escorrendo pelo ralo do banheiro, minha mão ardendo, assim como meus braços e os pés. Não me movo, apenas tremo, tentando ainda conter toda a fúria dentro de mim.

— Sai daí, Alex, você está ferido, porra! — Chicão grita.

— Não! — Não me movo. — Eu sou um lixo! Ele nunca deveria ter me pegado no lixo onde me encontrou, deveria ter me deixado morrer, deveria...

— Para com essa merda! — Some para dentro do meu quarto e, quando volta, está calçando meus coturnos. — Você não vai mais fazer isso, ouviu?

Chicão entra no que restou do boxe, desliga a água, joga uma toalha sobre meu corpo e me ergue. Não consigo reagir, a cabeça girando, todos os insultos e histórias sobre mim que ouvi de Nikkós por tantos anos enchendo meus ouvidos, torturando-me mais uma vez, ressaltando o quanto sou desprezível.

— Você não vai fazer isso consigo mesmo de novo, ouviu?! — Chicão esbraveja, fazendo pressão com a toalha de rosto na minha mão. — Ele te machucou, você se machucou, mas essa merda já acabou faz tempo. Ele não pode mais, Alexios, nem te tocar e nem contar mentiras a você. Chega!

Nego.

— Eu sinto tanta raiva... — Meus dentes batem um no outro, e eu os travo. Minha vontade é de gritar, socar, foder com tudo.

— Eu sei, já passamos por isso antes, e eu... — ele baixa o tom de voz e expira — achei que já tinha superado.

— Como? — questiono-lhe. — Como posso esquecer, se continuo a ser a mesma pessoa desprezível de sempre? Não são as marcas que ele causou no meu corpo que me causam essa raiva, sou eu!

— O que aconteceu?

Nego, trêmulo e me sento na cama. Gemo ao sentir as dores dos cortes, percebendo que a adrenalina passou mais rápido do que antigamente. Eu aprendi a controlar a dor usando a raiva. Durante anos de espancamento, percebi que, quanto mais raiva eu sentisse, menos dor ele me causava. Mais tarde, quando sentia raiva por qualquer motivo, eu mesmo me machucava, levava-me ao limite do meu corpo e quase me destruía.

Era um círculo vicioso que eu achei que já havia passado, mas, aparentemente, não.

— Encontrei Samara na garagem, provavelmente indo se encontrar com sua mãe e levá-la ao hospital — confesso, cansado demais para guardar qualquer coisa. — Eu não a via há semanas, desde o baile dos Villazzas no Ano Novo.

— Eu também só a vi uma vez aqui no prédio...

— Eu não liguei, não procurei por ela, não justifiquei meu ato e nem meu sumiço — interrompo-o e o encaro. — Ela está magoada comigo.

Chicão confere o sangramento da mão, tirando a toalha e depois se senta ao meu lado na cama.

— Por que você fez isso? Sumiu e não a procurou?

Respiro fundo; comecei o assunto, agora preciso terminá-lo.

— Preferi me afastar. — Olho para baixo, envergonhado. — Eu quase trepei com ela no elevador aqui do prédio. — Fecho os olhos. — Eu a quis como mulher, não consegui reprimir a vontade, como sempre fiz, e agi feito um idiota excitado.

— Ela o repeliu?

— O quê?

— Samara o repeliu? Te xingou? Bateu em você? Disse que você abusou dela? Mandou que ficasse longe?

Lembro-me daquela noite, a forma como reagiu ao beijo, o jeito que gemia e parecia tão excitada quanto eu.

— Ela estava bêbada, me aproveitei dela, sou um canalha.

— Nisso concordamos, mas o que ela pensa sobre o acontecido?

Balanço os ombros.

— Não sei, não falo com ela desde então. — Lembro-me da conversa com Kyra no dia seguinte ao baile e praguejo. — Ela está noiva.

— Samara? — Assinto. — Que merda!

— É, o beijo foi uma merda enorme, e eu não sei como...

— Não, seu idiota! — Ele estapeia minha cabeça. — Que merda que Samara esteja noiva, ela é a mulher perfeita para você.

Olho-o como se ele estivesse louco.

— Claro que não, ela merece alguém muito melhor do que eu! Samara nunca cogitou qualquer tipo de relacionamento comigo a não ser o de amizade.

Chicão bufa.

— Você não é idiota, Alexios Karamanlis, é um burro!

Ele joga a toalha, manchada de sangue, no chão do quarto e sai puto comigo ou com alguma coisa que eu disse. Ele não entende, óbvio! Samara é... especial, e alguém especial como ela nunca se relacionaria com alguém tão ordinário como eu.

Olho para minha mão e rio ao pensar na bagunça que sou.

Obviamente ela nunca se relacionaria e nem deveria se relacionar com alguém tão fodido como eu.

 

— O que houve com sua mão? — Laura me pergunta de repente, assustando-me, pois eu nem mesmo sabia que estava por perto. Encaro-a sem entender como e o que está fazendo aqui na K-Eng. Seu olhar é de assombro aos machucados em minha mão, além de questionadores, o que me irrita um pouco.

— Um pequeno acidente — respondo seco. — O que você está fazendo aqui?

Levanto-me da mesa, agradecendo por não ter mais ninguém por aqui a essa hora e fico de frente para ela. Laura abre um sorriso sem graça, mas logo se pendura em meu pescoço.

— Tem mais de uma semana que não te vejo, você não liga e nem aparece lá no meu apartamento. Então, se Maomé não vai até a montanha...

Reviro os olhos e retiro as suas mãos de mim.

— Laura, você trabalha na Karamanlis, então já deve ter percebido a movimentação infernal na empresa por conta da Ethernium. — Ela concorda. — Além disso, não entendi o motivo pelo qual eu deveria dar satisfação ou ter regularidade em nossos encontros.

A moça arregala os olhos por causa de minha sinceridade.

— Eu pensei que... — ela suspira — estávamos tendo essa regularidade, afinal, ficamos juntos por umas semanas e...

— Ficamos porque estava gostoso — não tenho medo de ser direto. — Mas não significa que temos qualquer tipo de compromisso. Não sou desses, Laura, e foi a primeira coisa que te disse quando trepamos a primeira vez.

Ela fica um tempo muda, olhando para o nada, então, de repente, abre um sorriso e desliza a mão pelo meu peito.

— Disse. Como disse também que queria trepar mais, lembra? Eu ainda quero mais, Alex — sua voz é ronronante. — Sempre imaginei como seria fazer sexo aqui na sua sala.

Respiro fundo, levemente excitado com o oferecimento, contudo, sem nenhuma vontade de fodê-la aqui – ou em qualquer outro lugar – depois desses questionamentos.

— Infelizmente, eu estou muito ocupado agora, motivo pelo qual ainda estou na empresa quando todos já foram. — Ela faz um biquinho, mas me afasto e volto a me sentar à mesa. — Acho melhor você ir.

Ela bufa.

— Sério isso?

Volto a olhá-la, sem esconder meu desagrado e impaciência, e ela se sobressalta.

— Sério.

Laura fica um tempo me encarando, depois vira as costas e sai da sala, andando firme e visivelmente puta. Balanço a cabeça, repreendendo a mim mesmo por ter deixado as coisas chegarem a esse ponto. Foi muito bom trepar com ela, aposto que a recíproca é verdadeira, porém não imaginei que ela criaria tantas expectativas e se sentisse no direito de vir me cobrar algo.

Erro de cálculo!, penso, sem deixar de pontuar que isso, para um engenheiro, é algo muito perigoso, que pode pôr tudo a perder.

Pego a pequena bola de borracha que tenho usado para exercitar minha mão e reparo nos machucados nela. Os cortes já estão todos secos, e os pontos que tomei em um deles já foram retirados.

Socar o vidro do boxe foi um momento de loucura, como tantos outros por que já passei. Fazia muito tempo que eu não perdia a cabeça daquele jeito, e sei que o que Samara me disse foi o gatilho responsável por isso. Não tiro, em hipótese alguma, a razão dela para me dizer aquelas palavras, mas elas acertaram o alvo na mosca.

Fecho os olhos e tensiono o pescoço, tentando relaxar um pouco para voltar a trabalhar e não enveredar pelos acontecimentos dessa semana, mas ainda não tenho esse controle total da mente e dos meus pensamentos.

A frustração me bate ao me lembrar do almoço com Konstantinos, meu irmão advogado. Achei que, pela primeira vez, ele iria se dispor a me ajudar com as respostas que procuro por anos, mas, ao que parece, ser egoísta e frio é algo familiar.

Mexo na minha agenda de anotações e encontro lá o endereço do sobrado de propriedade de Kostas. A voz da mulher misteriosa que encontrei na porta do Castellani ainda ressoa nítida em meus ouvidos:

“Eu conheci sua mãe biológica. Se quiser respostas, procure pela casa de Madame Linete.”

Foi o encontro mais estranho da minha vida. Ela estava parada lá, olhando o prédio e, quando me viu, logo perguntou se eu era um Karamanlis. Estranhei a pergunta, tentando reconhecer a senhora frágil e de cabelos brancos, mas não precisei responder, pois ela logo disse essas duas frases e se afastou sem me dar a chance de perguntar qualquer coisa mais.

Claro que eu já havia cogitado a ideia de que tinha sido gerado por alguma prostituta daquela maldita casa, afinal, era o local que meu pai mais utilizava. Não deveria ter começado do nada sua amizade com a cafetina asquerosa, mas nunca achei nada que me ligasse àquele local até esse encontro.

Talvez fosse uma pista falsa apenas, mas eu não poderia ignorar mais nada, não enquanto não achasse as respostas que procurei por toda minha adolescência a fim de tirar esse poder das mãos de Nikkós.

Não conhecer meu passado era o suficiente para meu pai ter uma enorme arma psicológica contra mim, coisa que ele utilizou por muitos e muitos anos.

Foi pensando em exterminar todo e qualquer poder que meu pai ainda pudesse ter sobre minha vida que atraí meu irmão para um almoço com a desculpa de falar da conta na qual estávamos trabalhando em conjunto.

Confesso que estranhei quando ele aceitou sem que eu tivesse que recorrer a inúmeros subterfúgios, mas agradeci a boa sorte, e nos encontramos em um restaurante neutro, escolhido a esmo, embora de alta gastronomia.

Achei que seria difícil introduzir o assunto, principalmente porque ele iria saber que pesquisei o maldito imóvel e descobri que ele o comprou há anos, quando foi a leilão. Isso me surpreendeu, claro, saber que ele comprou o sobrado e que ainda o mantém de pé sem nenhuma modificação ou uso. O assunto não surgiu naturalmente. Kostas estava estranho, mesmo falando de negócios, o que me surpreendeu, pois sempre imaginei que ele fosse se aproveitar da distância de Millos e Theo para tentar assumir a empresa.

— Eu acho que temos um acordo implícito de não falarmos sobre o passado — decidi não ser mais sutil, e Kostas reagiu imediatamente:

— Não é implícito. Não quero falar do passado. Mais explícito que isso, impossível!

Eu sabia que não seria fácil, ele é tão fechado quanto eu, então precisei desarmá-lo. Aproximei-me dele por sobre a mesa do restaurante e abaixei o tom de voz:

— Dessa vez, não poderei acatar sua vontade, Konstantinos. Sei que você comprou o sobrado da Rua...

Kostas levantou-se.

— Perdi a fome, vou voltar para a empresa.

Pus-me de pé também e o vi caminhar na direção da saída do restaurante, mas não ia desistir, não quando já havia agitado o vespeiro.

— Eu nunca te pedi ajuda. — Meu irmão parou, mas não se virou para me olhar. Decidi continuar por essa linha de ação: sinceridade. — Eu não podia te ajudar, então nunca pedi ajuda também.

— Alexios, não faça isso...

Eu soube que atingi o ponto certo, pois podia sentir a tensão no seu corpo. Nós dois temos consciência do que passamos na mão do nosso pai e de tudo que fizemos para que a loucura de Nikkós ficasse longe de Kyra. Kostas não aguentou por muito tempo, e eu o entendo, mas fiquei lá sozinho, lutando contra o monstro, tentando proteger minha irmã, mesmo sem ninguém para fazer o mesmo por mim.

Nunca tinha pensado em lhe cobrar, mas situações extremas pedem medidas extremas.

— Eu preciso, senão não faria. Há chances de eu descobrir o que Nikkós fez com minha mãe.

Fiquei satisfeito ao vê-lo se virar completamente surpreso.

— Sua mãe? Você soube algo dela?

— Nada conclusivo, mas acabei cruzando com uma pessoa que, quando soube que eu era filho dele, disse tê-la conhecido.

— Isso é loucura! Você procurou durante sua adolescência toda, quase se matou por isso, não há pistas, não há nomes, não há nada!

Lembranças de anos e anos de buscas vãs me fizeram titubear por alguns instantes. Eu não tinha um ponto de partida na época, pois ela podia ser qualquer pessoa, mas, naquele momento, eu tinha a maldita pista do imóvel.

— Preciso acessar o sobrado — voltei a falar, mas Kostas negou. — Preciso entrar e remexer tudo lá.

— Não!

— Foda-se, eu vou! — Soquei a mesa, decidido, puto demais por estar ali pedindo ajuda a ele pela primeira vez e não ser compreendido. Eu sempre o entendi, sempre o justifiquei quando saiu do apartamento e foi viver sua vida. Quando descobri que o sobrado lhe pertencia, nunca pensei em questionar seus motivos, apenas o entendi. Não era justo não ter o mesmo tratamento e consideração. — Eu sei que, por algum motivo bizarro, você o comprou, trancou-o com tudo dentro e o tem deixado apodrecendo por mais de 15 anos! Pode ter alguma pista lá.

— Não é seguro. Não vou arriscar que você morra lá dentro e eu ainda tenha que responder a...

Caralho de desculpa mais esfarrapada!

— Porra, Kostas, não fode! — Perdi a paciência, circundei a mesa e me aproximei dele, disposto a jogar pesado. — Eu sei dos teus motivos, respeito-os. Como disse, nunca te pedi ajuda antes porque sabia que você também precisava e não tinha a quem pedir, mas agora estou pedindo, agora estou contando com você. Não me faça arrombá-lo, porque eu o farei, apenas dê-me as chaves de todas aquelas grades que pôs lá.

Vi-o pensar, achei mesmo que eu estivesse tocando em alguma parte ainda viva de seu corpo, talvez no menino que conheci quando chegou para morar conosco, mas não, ao que parecia, meu irmão havia virado a porra de uma rocha fria e sem sentimentos.

— Tente invadir. Será um prazer implodir aquela merda com tudo dentro!

A mera possibilidade de ele destruir a única pista que tive do meu passado me desconsertou. Kostas aproveitou-se do momento e foi embora do restaurante.

Fiquei um tempo parado, até que ouvi um leve pigarrear e vi os garçons chegando com nossos pedidos. Estava sem fome, um bolo havia se formado em minha garganta, então pedi que embrulhassem tudo e deixei as quentinhas com o primeiro morador de rua que achei pelo caminho.

Andei sem rumo, sem saber o que fazer ou como agir. Tinha aberto meu peito para ele, pedira ajuda pela primeira vez e recebera um sonoro não. Senti algo inédito pelo meu irmão, raiva. Kostas nunca fora o alvo da minha revolta, pois sempre o compreendi, mas naquele momento não podia mais entendê-lo, não quando eu poderia ter respostas para acabar com minha tortura.

Sair de casa ajudou meu irmão a dar fim ao poder de Nikkós sobre sua vida, mas o mesmo não aconteceu comigo, e, enquanto eu não souber sobre o meu passado, não poderei tirar do homem que me gerou a possibilidade de voltar a me ferir.

O som de mensagem no celular me faz deixar de lado essas lembranças, e eu leio a mensagem de minha irmã me convidando para jantar com ela.


“Kyra, ainda estou na empresa, não poderei ir.”


Envio a mensagem esperando que seja suficiente, mas não é.


“Uma hora você precisará comer, e eu não tenho nenhuma intenção de jantar cedo. Venha no horário que puder, esperarei você.”


Merda, ela sabe ser insistente!


“Ok.”


Olho para o monitor do computador, respiro fundo e desisto de trabalhar. Minha barriga ronca, e decido aceitar o convite inesperado de minha irmã. Antes, porém, olho novamente o endereço do sobrado e traço um plano para invadi-lo sem que Konstantinos tome conhecimento.

As respostas que busco sobre mim mesmo podem ser achadas lá; não vou desistir tão fácil assim de encontrá-las. Nunca desisti fácil de nada, essa não será a primeira vez.

Imediatamente a imagem de Samara aparece em minha mente, e eu bufo, chamando-me de hipócrita. Claro que já desisti fácil de algo, eu só não gostava de admitir isso por não me achar sequer digno dela.

Quem sabe se eu achar as...

Interrompo o pensamento antes de criar ilusões que só serviriam para me machucar. Não há possibilidade de eu tê-la, mesmo que tenha todas as respostas da minha vida. Samara nunca estará ao meu alcance, e, sinceramente, acho bom que não haja nenhum envolvimento entre nós.

Ela merece mais!


Pego mais um copo de café e volto a me sentar ao lado de Daniel, sacudindo a perna, bebericando ou soprando a bebida quente. Olho para o corredor e, sem nem mesmo consumir metade do café, levanto-me para pegar um copo d’água.

Volto a me sentar, as pernas agitadas, confundo os copos e dou uma golada no café fumegante.

— Merda!

Daniel põe a mão no meu joelho e me obriga a parar de sacudir a perna.

— Se você não sossegar agora, juro que te ponho para fora — ele me ameaça.

— Desculpa. — Sorrio sem jeito. — Estou nervosa com os resultados desse primeiro ciclo de quimio e acho que deveríamos ter entrado com ela para saber mais...

— Nosso pai entrou com ela, Samara. Sossegue, você está me deixando irritado parecendo uma criança ansiosa! — Daniel fala alto, e eu o encaro surpresa. — Desculpa. — Ele põe a mão na cabeça e esfrega os olhos. — Eu quase não dormi essa noite, mas você não tem nada a ver com meu mau humor.

— Ela vai ficar bem, Dani. — Ponho minha mão em seu ombro.

— Eu sei que vai! Nunca tive dúvidas disso.

Respiro fundo e concordo com ele, embora não tenha a mesma confiança que ele demonstra ter.

Têm sido dias difíceis desde que cheguei ao Brasil, mas em momento algum me dei a oportunidade de esmorecer perto deles. A cada medicação, mamãe tinha reações mais fortes, requerendo tanto cuidado e atenção que decidi desistir de morar no meu apartamento e voltei para a casa dos meus pais.

Confesso que essa decisão também me ajudou a manter distância de Alexios Karamanlis. Não que eu ache que em algum momento ele tenha notado minha ausência ou se importado com isso, mas para mim fez toda a diferença.

É aquele ditado, sabe? O que os olhos não veem...

Suspiro.

— Você foi incrível nesses dias, Samara — Daniel volta a falar. — Mamãe esteve muito mais à vontade com você por perto do que comigo.

— Não fala besteira, Dani! — Ele sorri, sabendo que é o xodó da mamãe. — Eu gostei de ter conseguido ajudar e estar com ela de novo.

— Ela também ado... — ele para de falar assim que vê nossos pais vindo até onde estamos. Levantamo-nos juntos, apreensivos, esperançosos, e o sorriso de mamãe é reconfortante.

— O que o médico disse? — indago assim que eles se aproximam.

— O medicamento fez o efeito esperado para esse primeiro ciclo. Agora é esperar o tempo de descanso para começar de novo. — Mamãe sorri.

— E a radioterapia? — Dani questiona, e ela dá de ombros.

— O doutor ainda não prescreveu — papai responde. — Vamos torcer para que a quimio resolva sem precisar da rádio! — Ele sorri e abraça mamãe pelos ombros. — Em breve você terá sua vida agitada de volta.

Ela suspira cansada.

— Bom, vamos todos almoçar para comemorar o fim desse primeiro degrau rumo à vitória! — tento animar a todos, mas só meu pai sorri. — Ah, gente, vamos lá! Mamãe?

Ela assente e olha para Daniel.

— Você não está cansada? — meu irmão pergunta a ela.

— Não, podemos ir!

Bato palmas e a beijo na testa.

Eu entendo o desânimo dela, seria cruel não entender, pois, ainda que todos estejamos empenhados em seu tratamento, é ela quem passa por todos os efeitos colaterais dos medicamentos e pela doença. Mamãe nunca foi uma mulher parada ou passiva, e depender de outras pessoas deve estar sendo uma verdadeira prova para ela.

Foram semanas difíceis, não nego. Fiquei totalmente à disposição de minha mãe, levando-a às consultas e às sessões, fazendo companhia a ela, amparando-a em momentos de indisposição e dor. Godofredo e eu nos mudamos para a mansão da família, e eu mal tive tempo para ir ao Castellani ou mesmo visitar amigos.

Kyra esteve várias vezes conosco, geralmente após o expediente de trabalho, quando não tinha eventos. Daniel e Bianca, sua noiva, também estiveram presentes nos jantares e almoços de finais de semana, e, claro, papai.

Sorrio ao pensar em como é bom ter meu pai por perto. Ele e eu temos muitas afinidades, então, passamos muito tempo conversando, vendo filmes ou ouvindo música. Mamãe prefere ler sozinha em seu quarto à noite, por isso faço esses programas todos com papai.

Assim, o mês de janeiro se foi, e fevereiro entrou com força total com a finalização do primeiro ciclo de quimio da mamãe e o inesperado convite de Daniel para que eu trabalhe na empresa com ele.

— Dani, eu sou designer de interiores. Já trabalhei decorando mansões, apartamentos, iates e até um motor home, mas nunca fiz nada empresarial. — Fiz careta ao lhe responder. — É tudo muito frio.

— É um hotel — ele logo me informou. — Vamos redecorar um enorme hotel.

Meus olhos brilharam.

— Ele vai seguir algum padrão já existente? É um hotel de rede?

Ele nega.

— Não. É uma casa de campo que está virando hotel. — Arregalei os olhos. — O projeto de reforma é da Karamanlis, e a executora da obra é a Novak.

— K-Eng? — inquiri baixinho, e ele suspirou.

— É, mas quem está acompanhando é um dos braços direitos do seu amigo.

Havia muitos dias eu já não pensava no Alexios e nem no beijo do Ano Novo. Não foi o primeiro que trocamos depois de umas bebidas, então eu não devia lhe dar tanta importância, embora reconhecesse que ter me afastado do Castellani ajudou muito a manter distância dele. Alexios e eu já não somos mais amigos!

A perspectiva de trabalhar em um projeto como aquele enquanto eu estivesse no Brasil era maravilhosa, mesmo com a possibilidade de encontrar o CEO da K-Eng eventualmente.

— Aceito olhar o projeto e conversar sobre o briefing, só isso. — Daniel sorriu satisfeito. — Se eu puder executar meu trabalho sem a interferência de pessoas que nada entendem de decoração, pego para fazer; do contrário, estou fora.

— É assim que se fala! Você vai amar o projeto de reforma, ficar cheia de ideias, e tenho certeza de que os responsáveis pelo empreendimento vão adorar seu trabalho.

O projeto realmente estava incrível, e a ideia de como os donos queriam a decoração dos quartos e áreas comuns me deixou louca para começar o trabalho. Aceitei a proposta, negociei sob a garantia da Schneider e fechei um belo negócio aqui no meu país.

Penso no meu trabalho na Espanha e Diego me vem à cabeça. Entro no carro, no banco do carona, ao lado de Daniel e suspiro.

— O que foi? — meu irmão pergunta, seguindo o carro do papai para fora do estacionamento.

— Estava pensando no Diego.

— Vocês têm se falado?

— Sim, por mensagens. — Balanço a cabeça. — Não sei mais o que fazer para ele entender que não estou tendo nenhum tipo de crise por conta do tratamento da mamãe. Eu fui sincera com ele quando terminei. Não foi certo fazer por vídeo, mas eu não podia mais me sentir enganando-o.

— Eu entendo você, embora não goste nada do motivo que a levou a isso.

— Não tem nada a ver com Alexios, nós nem temos nos visto. Eu pensei em ir até a Espanha para conversar melhor com Diego, mas acabei de pegar esse projeto enorme e não posso me ausentar por agora. Além disso, ele está seguindo o time na Champions...

— Não sei se é boa ideia você ir atrás dele. Acho-o um tanto insistente demais. Concordo que não foi certo terminar por vídeo-ligação, mas depois disso vocês conversaram várias vezes, e o homem não para de insistir.

Eu concordo, mas ao mesmo tempo me sinto culpada.

— Sim. Mesmo assim sinto que lhe devo uma explicação.

Paramos no farol, e ele me olha.

— Você quer retornar para Madri mesmo depois desse término?

Respiro fundo e dou de ombros.

—Sim, trabalho em uma ótima empresa lá, então, por que não voltar?

Meu irmão ri.

— Isso é você quem tem que responder a si mesma. — Ele me puxa para perto e beija o topo da minha cabeça. — A decisão é sua; certa ou errada, cabe a você decidir o que fazer.

— Eu sei.

Sorrio, mesmo com minha cabeça fervendo de perguntas sem respostas, mesmo sem entender o que eu quero e por onde devo ir.

Fui para a Espanha para fugir de um sentimento que parecia não ter fim, mesmo diante da impossibilidade de se tornar algo real, e acabei fazendo amigos e criando laços por lá, mas é aqui que minha família e meus amigos estão. A decisão não é fácil!

Quanto a Alexios... o sentimento não morreu, obviamente, porém não guardo mais nenhuma ilusão com relação a ele. Sempre serei vista como a grande amiga e nada mais.


— Alexios está esquisito essa semana — Kyra comenta.

Eu rio e bebo mais um gole do vinho.

— Quando ele não foi esquisito? — debocho.

— Exatamente, a esquisitice dele não me surpreende, mas essa semana ele está mais esquisito. — Presto atenção ao que Kyra diz, pois minha amiga não costuma exagerar, pelo contrário. — Eu sei que ele está em um ritmo frenético de trabalho, mas, quando falei com ele ontem, achei-o um tanto...

— Esquisito — complemento, e Kyra revira os olhos ante minha brincadeira. — Kyra, seu irmão é a pessoa mais fechada do mundo, você sabe. Mesmo que ele esteja com merda até nos ouvidos, precisa quase se afogar nela para pedir ajuda ou falar com alguém.

Ela assente, e nós duas ficamos mudas. Eu me lembro de quando tomei conhecimento, pela primeira vez, do que eles viviam com o pai. Alexios telefonou para minha casa pedindo para que eu subisse até a cobertura, pois precisava de um favor. Não pensei duas vezes e fui até ele pensando que queria ajuda com algum jogo ou matéria – história nunca foi o seu forte –, mas, quando o vi, mal conseguia me mover.

Ele estava todo machucado nas costas. Os cortes eram verdadeiros talhos, de onde saía muito sangue, e eu tive que respirar fundo várias vezes para não vomitar.

— Samara, preciso que você seja dura agora — ele me disse com a voz calma, com toda sua sabedoria de 15 anos de idade.

— O que você quer que eu faça? — perguntei temerosa, já prevendo que ele me pediria para limpar e fazer curativos.

O problema era que, por conta do tamanho e da profundidade dos cortes, curativos não seriam o bastante. Ele ergueu uma agulha curva com um enorme pedaço de linha preta.

— Costure.

Neguei várias vezes com a cabeça, incapaz de abrir a boca sem derramar todo o lanche que havia acabado de tomar, mas ele me olhava suplicante. Percebi que, mesmo sentindo dor, ele tentava não demonstrar.

— Você precisa de um médico!

— Não. — Ele ergueu a agulha novamente. — Preciso de você.

Peguei o metal curvado. Minhas mãos tremiam, o queixo também. Era possível ouvir o som dos meus dentes batendo forte um contra o outro. Não entendia o que estava acontecendo, o motivo pelo qual ele estava daquele jeito e não ia até um hospital.

Eu mal sabia bordar, e somente a possibilidade de machucá-lo ainda mais me apavorava.

— Se fosse em outro local, eu juro que não pediria isso a você, mas eu não consigo suturar as costas sozinho.

Foi então que percebi que não era a primeira vez.

— O que foi isso, Alexios?

Ele sorriu tentando me despistar, mas depois suspirou.

— Caí em cima da mesinha de centro da sala lá de cima. — Apontou para o segundo piso da cobertura. — Ela era toda espelhada, por isso me cortei.

— Caiu?

Ele não respondeu, apenas virou-se de costas para mim e começou a me dizer o que fazer.

— A agulha já está desinfetada, e eu tomei banho, mas ainda assim preciso que você passe esse antisséptico, limpe bem o sangue e comece a costurar. — Ouvi o som de sua risada. — Pense que sou um dos seus tecidos finos e delicados de almofada e borde em mim.

Bufei com a comparação.

— Não achei graça nenhuma!

Foi um longo processo, mas cumpri com o que ele pediu e somente anos depois é que entendi tudo aquilo, inclusive a história esfarrapada do “caí por cima da mesa”.

Fiz muitos favores como esse para ele por muito tempo ainda. Aprendi a costurar sua pele, a recolocar seus ossos no lugar quando se deslocavam e até mesmo a imobilizar alguma parte de seu corpo. Porém, mesmo estando ao lado dele em todos esses momentos dolorosos, Alexios só me contou que era o pai que o espancava depois que saiu de casa com Kyra.

Eu sofri tanto por pensar nas atrocidades que eles viveram, porque minha amiga até reclama do irmão, mas são farinha do mesmo saco. Não faço ideia de como Nikkós a afetou, mas é certo que ela não foi poupada da loucura do pai.

— Ei, Samara no mundo da lua! — Kyra me cutuca. — Está pensando em quê? Perguntei por Diego, e você ainda nem me respondeu o que ficou decidido.

— Nada de diferente. — Ela cruza os braços. — Temos conversado bastante por mensagens, mas ele parece não aceitar que acabou. Diz que estou em crise e que, assim que puder, virá ao Brasil.

— Para quê?

— Conversar pessoalmente. — Fecho os olhos. — Gostaria tanto que tudo fosse diferente, sabe? Que eu pudesse gostar dele da forma como deveria.

— E por que não pode? — Olho para Kyra, e ela entende a resposta. — Uma merda isso! Então você não vai voltar para Madri mais?

Penso em Diego e em todo esse tempo em que estivemos juntos, recordo-me de como me senti feliz ao lado dele e do escritório maravilhoso de design em que trabalhei durante esses anos. Ele tem alegado isso, que estou confusa por estar longe, com medo de mudar de vez para Madri e ficar longe da minha família. Não é isso! Ter voltado ao Brasil mexeu, sim, com meus sentimentos, principalmente quebrou a ilusão de que eu tinha esquecido Alexios. Por isso ainda penso em voltar a morar na Espanha, mas não quero mais me enganar e enganar outra pessoa no percurso.

— Eu gostaria de ter essa resposta, Kyra — volto a falar. — Gostaria de saber o que é melhor para mim, mas não sei. Aqui há tantos motivos para eu ficar, como também para que eu vá, mas ainda estou indecisa.

— Eu sei. — Ela sorri compreensiva.

A campainha do apartamento dela soa alto. Estranho, porque ela não me disse que teríamos companhia, mas, por sua reação, Kyra já estava à espera de alguém.

— Talvez o motivo de sua indecisão tenha chegado agora.

Arregalo os olhos com a possibilidade de ser Alexios.

— Kyra, o que você... — não termino de formular a frase, pois minha amiga abre a porta, e o vejo olhá-la com um sorriso cansado, entrar no apartamento e parar surpreso ao me ver.

— Oi — cumprimento-o.

— Oi. — Ele desvia o olhar para Kyra.

— Vou ver se o jantar já... — ela para de falar e ergue a mão dele. — O que houve?

Os olhos de Alexios não deixam os meus, então ele abre um sorriso lindo – esse é o bendito que ele usa quando quer disfarçar alguma situação séria ou desviar o assunto – e dá de ombros.

— Um pequeno acidente besta, nada importante. — Kyra parece não engolir a desculpa esfarrapada também, mas não insiste, pois conhece o irmão muito bem. — Tem cerveja?

— Claro que tem! Vou pegar umas para você. — Ela aponta para mim. — Faça companhia para a Samara.

Nós dois a olhamos, entendendo que o jantar foi uma armadilha dela para que voltemos a nos falar. Sinceramente não entendo minha amiga. Ela sabe o que sinto e o que Alexios não sente, mas ainda assim insiste em nos manter unidos, mesmo dizendo sempre que seu irmão não é uma boa opção para mim.

Como se um dia ele considerasse me ver como mulher!

— Como estão as coisas com sua mãe? — Alexios puxa assunto de repente e se senta em uma poltrona individual bem longe de onde estou.

— O primeiro ciclo de quimioterapia acabou, e ela está bem — respondo seca. — E você, como está?

Ele abre o maldito sorriso fingido.

— Ótimo! Cheio de trabalho, sem tempo para fazer bobagens...

— Não parece. — Aponto para sua mão. — Achei que seus momentos de fúria já tivessem passado desde que começou a praticar esportes. — Ele fica sério. — Por falar nisso, vi o Chicão lá no prédio esses dias. Ele está hospedado contigo?

— Está, como sempre. — Alexios olha para trás, na direção da cozinha de Kyra e respira fundo. — Eu queria pedir desculpas novamente por...

— Não precisa — interrompo-o antes que eu seja obrigada a socar sua cara.

— Preciso — ele insiste. — Kyra me contou sobre seu relacionamento — meu coração dispara ao ouvi-lo falar sobre isso como se não tivesse importância alguma. — Espero que ele seja o homem que você merece e que sejam muito felizes como você sempre sonhou.

Engulo em seco, abro um sorriso – fervendo de raiva da Kyra – e digo a primeira coisa que me vem à cabeça:

— Ele é! — minto, e Alexios fica sério, seus olhos claros fixos nos meus. — Um verdadeiro príncipe como sempre sonhei.

— Quem bom. — Ele se levanta. — Vou até a cozinha pegar a cerveja, estou morrendo de sede.

Acompanho-o com os olhos e, quando desaparece da minha vista, gemo e me dou um tapa na cabeça. Que ridícula! Por que, mesmo sendo tão madura em vários aspectos, sou uma imbecil quando estou perto dele? Parece até que estou de volta ao aniversário de 18 anos da Kyra, quando saímos nós três para comemorar, e eu fiquei com um babaca total só porque Alexios pegou uma das garçonetes da pizzaria.

Não sou mais essa garota!

Alexios e Kyra voltam para a sala, ele, bebendo uma longneck, e minha amiga, com uma travessa na mão.

— Escondidinho de camarão, como vocês dois sempre gostaram — ela anuncia.

— O cheiro está incrível! — elogio, levantando-me do sofá e indo ajudá-la. — Há muitos anos não sinto algo tão delicioso!

— Eu também não — Alexios fala perto de mim.

Os pelos do meu corpo se arrepiam todos por causa do som de sua voz e seu hálito no meu pescoço. Viro-me para ele, sem entender o motivo pelo qual está tão próximo de mim e me surpreendo por um instante ao decifrar seu olhar: fome, e não é de comida.

Balanço a cabeça, achando impossível que seu olhar esfomeado seja para mim e me afasto dele, indo posicionar os pratos como Kyra me ensinou a fazer tempos atrás.

— Andou treinando? — minha amiga brinca ao me ver executar com perfeição seu ensinamento.

— Sim, fiz alguns jantares em Madri — conto orgulhosa. — Recebi poucas pessoas, a maioria amigos, e fiz questão de colocar em prática tudo o que você me ensinou...

— E que você achava que era bobagem! — Ela ri e olha para Alexios. — Uma arquiteta de interiores deve, no mínimo, saber montar uma mesa, não acha?

Alexios franze a testa, pensa um momento e depois concorda.

— Pregar pregos na parede, fazer arranjos florais, pintar um quadro... — Kyra fica séria, e ele começa a rir. — Há profissionais para isso, Kyra, Samara é responsável pelos layouts de móveis e projetos de planejados, não precisa saber fazer tudo!

Kyra parece estupefata, e, confesso, eu também estou, porque geralmente os dois se uniam para brincar ou me provocar, e agora ele acabou de me defender!

Alexios parece ficar sem jeito com o silêncio e dá uma enorme golada, até pôr fim ao conteúdo da garrafinha de cerveja, em seguida volta para a cozinha.

— O que está rolando? — Kyra me pressiona.

— Não sei do que...

— Samara, sem essa de “não sei do que você está falando”. Não nasci ontem, percebi que vocês estão estremecidos. Achei que tinha sido por conta dos anos longe, mas achei que isso ia passar depois do baile, mas então Alexios aparece aqui mais perdido do que cachorro que caiu da mudança e se recusa a falar o que aprontou contigo na virada do ano! — Aproxima-se. — Conte-me já!

Nem em sonho!

— Não há nada para contar.

Alexios retorna, e sua irmã avança para ele igual a um anjo vingador.

— O que está rolando entre vocês dois? — Ela põe a mão na cintura. — Sempre fomos amigos! Éramos um trio, estivemos juntos nos piores momentos de nossa infância e adolescência, parem já com qualquer merda que estiverem fazendo!

— Quanto você bebeu? — Alexios debocha. — Nada está acontecendo, não é?

 

CONTINUA

Kyra sempre foi exuberante, beleza herdada de sua mãe, devo acrescentar, pois Sabrina ainda continua tão linda quanto era na época em que era casada com Nikkós. Contudo, minha irmã ainda recebeu alguns belos traços dos Karamanlis, principalmente da famosa giagiá15, que todos sempre fazem questão de dizer que era linda e tinha a mesma coloração de olhos da minha irmã (e minha também, só que os Karamanlis nunca engoliram bem que eu realmente tenha o sangue nobre deles).

No papel, Kyra e eu somos filhos dos mesmos pais, pois Sabrina me adotou legalmente quando eu ainda era um garotinho. Ela, por poucos meses, possuía a diferença de idade obrigatória pela lei entre nós (16 anos) e, por isso, conseguiu, aos 18, adotar-me aos dois anos. Logo em seguida nasceu a Kyra, e a família ficou completa.

Na verdade, eu nunca soube da minha mãe. Tentei descobrir algo durante a adolescência, principalmente por ser esse um dos pontos que meu sádico pai adorava usar contra mim. Inventar uma história nova a cada dia sobre meu nascimento, minha origem, era sua principal diversão e tortura psicológica.

Nunca entendi nada sobre mim, a única certeza que tenho é de que, infelizmente, sou mesmo filho dele, algo que comprovei através de exame de DNA, cujo resultado positivo nunca divulguei, porque eu tinha esperança de não ter o sangue daquele monstro.

Volto a prestar atenção na foto, dessa vez em meu próprio rosto cheio de enfado por estar naquele baile com elas. Sorrio. Eu fazia esse tipo, mas a verdade é que adorava cada momento que passávamos juntos, pois me sentia em família de verdade.

Ponho a moldura no lugar e respiro fundo, controlando meu corpo, colocando juízo na minha cabeça, ressaltando tudo o que tem de importante na amizade entre mim e Samara e concluindo que um envolvimento fora desses termos entre nós só serviria para destruir anos e anos de companheirismo.

Samara merece ser feliz com alguém que possa ser o homem com que ela sempre sonhou, o príncipe encantado dos seus sonhos de menina, alguém que saiba quem é, que tenha valor e que possa demonstrar todo o amor que sente por ela e reconheça o privilégio que é ser amado.

Esse homem não sou eu!

 

Depois do banho na casa de Kyra, fui direto para a empresa. É providencial ter uma mochila de roupas minhas no apartamento dela, mas confesso que não vou muito de jeans e camisa de malha para a Karamanlis.

Passei no Castellani apenas para pegar minha moto, nem me atrevi a subir até meu apartamento, sendo covarde mais uma vez. A questão é que eu não saberia nem mesmo o que dizer a Samara caso nos encontrássemos de novo.

Estava saindo do estacionamento quando meu celular tocou, mas, como já estava sobre a moto – e não queria demorar muito na garagem, porque o carro de Samara ainda estava na vaga dela –, deixei para conferir a ligação quando estivesse no prédio, o que faço agora, retornando a ligação.

— Oi, Chicão! — cumprimento-o assim que atende.

— Alex, seu grande safado, feliz Ano Novo! — o homem mais velho, que se tornou um grande amigo e a quem eu considero como um pai – no sentido do que realmente um pai deveria ser – por pouco não me ensurdece ao telefone. — Cheguei ao inferno hoje, queria saber se poderia passar uns dias lá naquele seu apartamento cinco estrelas.

Abro um sorriso de felicidade ao pensar que ele está de volta a São Paulo. Francisco Salatiel Figueiroa é o nome dessa figura de quase 60 anos, paulistano – mas que odeia sua cidade natal – e viciado em esportes radicais assim como eu.

Nós nos conhecemos quando eu ainda estava no colégio, devia ter uns 15 anos e fui participar de um racha de moto pela cidade. Ele apareceu por lá, chamou-me em um canto e me convidou a fazer cross ao invés de colocar minha vida e a de outras pessoas em risco correndo pelas ruas.

Comecei a ir para o os circuitos de motocross, tomei muito tombo, enlameei-me até o pescoço e me senti mais vivo do que quando me arriscava nos rachas. Nós nos tornamos amigos mesmo com nossa gritante diferença de idade, pois ele dizia que eu lembrava o moleque atentado que ele mesmo tinha sido um dia, e comecei a acompanhá-lo em suas atividades.

Foi por causa dele que deixei de buscar alívio e fuga nas drogas, pois conseguiu me mostrar que, se eu quisesse me livrar de Nikkós, teria que ser melhor que ele. Não foi um processo fácil, admito, levei anos para entender e ouvir seus conselhos, mas nem por isso ele desistiu de mim ou se afastou.

Francisco começou a me mostrar que eu poderia extravasar toda minha angústia, solidão, medo e revolta em esportes como trilhas de moto, bike, escaladas, voos livres, paraquedismo e, quando tirei minha carteira de motorista, apresentou-me a alguns amigos dos circuitos de motovelocidade.

Os esportes aliviavam meu corpo da tensão vivida em casa, mas minha cabeça e minha alma continuavam pesadas, então, um dia, ele me viu desenhar e descobriu como eu poderia tratar os demônios dentro de mim.

Devo muito a ele, não só pelo equilíbrio que consegui hoje em minha vida, como também por permanecer vivo e são. Samara e ele foram os únicos a permanecerem ao meu lado nos piores momentos da minha vida, ela me auxiliando principalmente com Kyra, e ele entendendo meus problemas e me ajudando a achar soluções.

— Meu apartamento é seu! Te dei a chave, afinal.

— Eu sei, mas é sempre bom dar uma conferida, vai que você resolveu sossegar seu pau numa boceta só.

Gargalho com seu jeito rude e direto.

— Não, meu pau ainda gosta de explorar por aí. — Ele me chama de “vadio” e ri. — Estou na Karamanlis agora e...

— Ah, me diz que estou sonhado... — estranho o que ele fala, escuto vozes ao fundo e percebo que não falou comigo. Espero que ele retome a ligação, entro no elevador, cumprimento as pessoas com a cabeça e sorrio para uma mulher gostosa que nunca vi aqui no prédio. — Seu trapaceiro de uma figa! Samara está de volta e, caramba, mais linda do que nunca.

Só de ouvir o nome dela, sinto meu corpo reagir como se uma descarga elétrica tivesse me atingido.

— Encontrou-se com ela agora?

— Sim, seu embuste! Quantos anos ela esteve fora? Caralho, você já a viu?

Franzo a testa, desço no meu andar, confuso com a perplexidade dele apenas por ter visto a Samara no prédio, afinal, ele sabe muito bem que ela tem um apartamento lá.

— Já, desde que chegou — respondo distraído, acenando para os funcionários da K-Eng. — Por quê?

— Alexios, eu sempre me perguntei se você era cego ou apenas muito burro. — Ouço o barulho de uma porta se fechando. — Nunca entendi por que vocês dois nunca tiveram nada um com o outro.

Paro no meio do corredor, atraindo os olhares de pelo menos dois engenheiros que passam por mim. Que merda é essa?!

— Ela é minha amiga — digo o óbvio.

— Ela é incrível e sua amiga, isso já não é meio caminho para um relacionamento de sucesso?

Um alerta dispara em meu cérebro. Chicão nunca foi um homem ligado a relacionamentos permanentes, tanto que é solteiro até hoje, então não entendo o motivo pelo qual está falando essas coisas sobre mim e Samara.

— Chicão, sou eu! Eu não tenho relacionamentos, eu fodo por aí, só isso. E, definitivamente, Samara não é uma mulher apenas para se foder.

Ele emite um grunhido, e, ao fundo, escuto o bipe da minha cafeteira sendo ligada.

— Nisso concordamos. Mas ela é incrível, sempre foi, se eu tivesse a sua idade e a sua aparência, não perderia a oportunidade de tê-la comigo.

Mas o que... Arregalo os olhos, e meu coração dispara.

— Você está morrendo? — inquiro-lhe como se fosse a única opção válida para essa mudança de comportamento.

Chicão gargalha.

— Não, mas estou ficando velho e sozinho. — Bufa. — Mas isso não é assunto para discutirmos ao telefone, já que você está na empresa.

— Chicão, está tudo bem?

— Vai trabalhar, embuste, depois conversamos. Viajei a noite toda, quero tomar um banho, comer algo e dormir um pouco. Obrigado pelo abrigo.

Ele ainda não me convenceu, algo está errado.

— A casa é sua! — declaro, e ele encerra a ligação.


— Quer mais um travesseiro? — pergunto à minha mãe assim que ela se deita na cama.

— Não, filha, estou bem. — Sorri, mas o cansaço não permite que o faça por muito tempo. — É sempre assim no dia da medicação, mas passa.

Balanço a cabeça concordando, enternecida por ela estar tentando me consolar, quando é ela quem está passando por isso tudo. Sempre a admirei por sua força, seu destemor e a capacidade de realizar qualquer coisa que se propunha a fazer.

Mamãe não tem um gênio fácil de lidar, mas nunca negou amor e afeto aos seus filhos, mesmo sendo brava e exigente como era. Dani e eu tínhamos muito mais medo dela do que do papai, que sempre foi mais maleável, mas moderno e liberal.

O relacionamento dos meus pais, enquanto casal, não era um mar de rosas, mas eles eram amigos, companheiros. Ele sempre a apoiou em tudo, e ela acima de tudo o admirava. Não tinham grandes arroubos de paixão, pelo menos não na nossa frente, mas se respeitavam, conversam, riam e, principalmente, nos amavam muito. Dani, como filho e mais velho, sempre foi agarrado a minha mãe mais do que a nosso pai. Os dois se dão bem, são muito parecidos em alguns aspectos, mas quem sempre teve mais afinidade com papai fui eu.

Acho que nossas almas são parecidas. Ambos somos apaixonados pelas formas, perfeccionistas, românticos e, arrisco dizer, sonhadores. Eu sou assim, gostaria de ser prática como mamãe, mas há muito que parei de tentar ser quem não sou. Demorei, mas consegui aceitar meu jeito e me respeitar acima de tudo.

É dolorido tentar ser quem não é para se encaixar ou seguir uma tendência. Eu sou forte, mesmo sendo doce; sou feminista, mesmo sendo feminina e vaidosa; sou empoderada, mesmo sonhando em casar e ter uma família.

Eu me importo com a opinião alheia, sim, porque ninguém é uma ilha e não teria sentido na vida se todos fôssemos autossuficientes e não dependêssemos de ninguém. Não tenho preconceitos, sou feliz com a felicidade dos outros e não me importo que a recíproca não seja verdadeira. Cada um escolhe o caminho que quer percorrer. Eu escolhi ser assim, exatamente como sou.

Chegar até essa conclusão não foi fácil, principalmente quando se percebe que o homem por quem você é apaixonada prefere as mulheres que têm atitude, que são furacão e não calmaria. Eu quis fazer tipo e percebi que estava indo na contramão de tudo o que uma “mulher de atitude” prega, que estava tentando ser outra pessoa para agradar a um homem.

Foi aí que aquela máxima tão clichê, mas que é tão difícil de ser vivida, fez sentido para mim: quem me amar, precisa me conhecer e me aceitar como sou.

Demorei a perceber a importância disso, precisei praticamente ter isso esfregado na cara. Então arrumei minhas malas, disse ao meu pai que não iria para Barcelona, mas sim para Madri, e segui com minha vida.

Alexios foi o estopim que eu precisava para explodir naquela época, depois de ter aparecido no meu apartamento bêbado a ponto de não se aguentar de pé. Ele pediu para dormir no meu sofá, tivemos uma dura discussão quando tentei lhe passar sermão e, no meio da noite, acordei com ele na minha cama.

Fiquei sem reação quando senti sua mão na minha cintura, alisando minha pele por cima do pijama de seda. Fechei os olhos, excitada e ansiosa, e o deixei prosseguir com a exploração. Não o impedi quando me virou, nem quando me beijou e subiu em cima de mim. Tinha esperado por aquilo a vida toda, e estava acontecendo.

Ledo engano!

Ele ficou imóvel, esmagando-me com seu peso, então percebi que havia dormido. Joguei-o para o lado e passei a noite em claro, sem entender nada, esperando que ele acordasse e explicasse.

Acabei dormindo e acordando sozinha na cama. Ele tinha ido embora, e não conversamos, mas esperei que a conversa viesse mais tarde. Não veio. Ele simplesmente ignorou o beijo, as carícias, como se não fossem nada, como se eu não fosse nada.

Fiquei irritada, subi para perguntar diretamente a ele o motivo pelo qual tinha me beijado, mas, quando cheguei ao seu apartamento, estava rolando uma de suas festinhas regada a bebidas e sexo, e o filho da mãe estava sentado no sofá com uma mulher de cada lado em um beijo triplo.

Ele nem me viu, fechei a porta, desci e decidi parar de protelar minhas decisões esperando por algo que nunca iria acontecer. Um relacionamento com Alexios era uma ilusão infantil, mas eu já não era mais criança.

Viajei dois dias depois e pensei que, quando voltasse, toda essa ilusão teria se desfeito.

— Então o nome dele é Diego — mamãe fala, e eu quase pulo de susto, deixando as lembranças para tentar entender do que ela está falando. — Diego Vergara!

Sento-me na beirada da cama, curiosa sobre como ela conseguiu essa informação.

— O nome dele é mais comprido do que isso, mas, sim, Diego Vergara.

Ela sorri cheia de sabedoria.

— E você deve estar aí querendo saber como eu sei o nome dele. — Concordo. — Seu irmão me contou.

Daniel e sua boca! Meu irmão sempre foi o maior X9 do mundo, não é de se espantar que tenha contado sobre o Diego para minha mãe.

— Há quanto tempo estão juntos?

Não sei o que dizer a ela e agradeço quando uma enfermeira entra no quarto, dando-me a desculpa perfeita para escapulir de sua curiosidade. O fato é que tudo mudou depois da noite do baile dos Villazzas.

Não sei o que levou Alexios a me beijar daquela forma no elevador, eu estava bem bêbada dessa vez, mas ele não tanto, além disso, eu senti a energia entre nós, senti o tesão que ele exalava, que trazia na saliva e em cada toque no meu corpo. Alexios não escondeu em nenhum momento o quanto estava excitado, esfregou sua ereção contra mim, esmagou-me contra o espelho do elevador parecendo que queria me comer ali mesmo.

Depois, do nada, mudou. Pediu desculpas! Desculpas por me beijar! Só faltou dizer que estava com tesão, e eu era a única mulher próxima dele, mas que nem assim servia.

Para piorar, quando entrei no apartamento e peguei o celular, vi uma mensagem de Diego dizendo o quanto sentia minha falta e como ele gostaria de poder estar aqui comigo. Foi a gota d’água! Senti-me um lixo, uma pessoa má que engana e trai e percebi que tê-lo deixado na Espanha sem uma resposta definitiva foi uma atitude egoísta.

Chorando, sem pensar direito, fiz uma chamada de vídeo para ele e, quando atendeu, disparei:

— Diego, eu sou uma pessoa horrível, mas não posso fazer isso com você! — Soluçava tanto que ele se assustou e me pediu para falar devagar. Todavia, eu não conseguia. — Você é um homem incrível, um amigo maravilhoso, e eu adorei cada momento que passamos juntos...

— Calmarse, Samara! Yo no comprendo!

— Você merece mais, merece alguém melhor, e eu não posso...

— Usted está me dejando preocupado, cariño.

— Eu não queria fazer isso assim, por telefone. — Ele ficou sério, atento, prevendo o que eu lhe diria. — Mas não é justo que você fique aguardando minha volta para que eu diga isso. — Respirei fundo, armando-me de coragem. — Eu não posso aceitar seu pedido, Diego. Eu não estou pronta para amar você como deveria, como você merece.

— Samara, sucedio algo com su mamá?

Neguei.

— Não. Sou eu, não mereço você. Você tem razão ao dizer que meu coração nunca pôde estar aí contigo.

— Samara, despues hablamos, está muy nervosa. — Tentei dizer a ele que não, mas não me deu oportunidade: — Tengo que ir.

— Diego, não...

Ele encerrou a chamada. Tentei retornar outras vezes, porém a ligação não completava. Deixei mensagens, mas que, até o momento, ele não visualizou. Volto a olhar para mamãe, que boceja, visivelmente cansada, e fecha os olhos, recostada nos travesseiros, enquanto a enfermeira mede sua pressão. Eu voltei ao Brasil apenas por causa dela, para estar ao seu lado nesses momentos tão difíceis, não por qualquer outro motivo. Sinceramente, não esperava essa pressão acerca de Alexios e Diego. Minha família nunca foi assim, muito menos mamãe, que sempre pregou que uma mulher não precisa de marido e filhos para se sentir completa e feliz.

Mamãe adormece, e eu saio do quarto. Quando estou prestes a descer a escada, escuto uma voz conhecida e muito amada:

— Minha Samara está de volta! — Papai está no corredor de braços abertos. Sorrio e vou até ele para abraçá-lo. — Ah, que saudades!

— Eu também estava, mas cheguei há mais de uma semana, e você nem se dignou a vir me ver.

— Eu sei, mas agora vim para ficar, Herzchen16, e estou feliz por te ter de volta aqui em casa. — Ele beija minha testa. — Não pretende voltar para a Espanha, não é?

Suspiro. Papai foi o primeiro a me incentivar a ir estudar fora, mas o único a ficar chateado quando decidi ficar depois que terminei a especialização. Nunca foi me visitar. Embora falássemos sempre, eu percebia que ele ainda não havia entendido minha necessidade de ficar longe.

— Vou voltar, sim, tenho compromissos de trabalho por lá que...

— Besteira! Aposto que você já tem tudo desenhado e organizado e que, em uma visita ou duas, poria fim a esses “compromissos”.

— Papai, não vim para ficar, e o senhor sabe. Mamãe está na parte mais agressiva do tratamento, e Dani precisou de mim para ajudar a cuidar dela e acompanhá-la...

— Estou aqui também! — ele se ofende por não ter sido incluído. — Ela diz que não precisa de mim, mas estou aqui, sempre estive por ela.

Oh, Deus, que situação!

— Eu sei, pai.

Benjamin Abraão Nogueira Klein Schneider nunca entendeu bem a distância fria de mamãe, por mais que os dois sempre tenham se dado bem. Acho até que foi por esse motivo que se afastaram depois que crescemos e que, após minha ida para a Espanha e a de Dani para seu próprio apartamento, papai decidiu se mudar para a fazenda.

Uma vez, quando eu ainda era uma garotinha, eu o vi bêbado no escritório do antigo apartamento em que morávamos. Ele bebia e parecia mal, chorava e segurava alguns documentos. Quando me viu, tentou sorrir e me chamou para perto de si.

— Tudo bem? — perguntei na inocência dos meus oito anos de idade e limpei suas lágrimas.

— Tudo. — Ele guardou a papelada dentro de uma caixa, onde vislumbrei também algumas fotos, trancou-a com chave e depois respirou fundo. — A vida adulta é complicada, Herzchen. Fazemos escolhas baseadas no que achamos ser melhor e esquecemos o preço que isso cobra, tanto aqui — ele apontou para sua cabeça — quanto aqui. — E, por fim, tocou em seu coração.

Na época não entendi nada, mas esse momento nunca deixou minha memória e, com o tempo, supus que ele estivesse falando de seu relacionamento com mamãe. Os dois se davam bem, mas era ele quem sempre cedia numa discussão ou quem corria atrás quando as coisas ficavam tensas entre eles.

— Vi seu bichinho pré-histórico lá no jardim comendo algumas plantas — ele ri, mudando de assunto. — Você poderia ter adotado um cachorro ou um gato como qualquer outra pessoa, não é?

— Pai, eu o ganhei de presente e gosto dele.

— Mas ele é feroz! — Faz cara de medo. — Já me mordeu algumas vezes.

Gargalho.

— Godofredo é muito territorialista, ele sempre ataca os homens.

— Hum, que interessante! Começo a gostar desse bichinho. — Rio do seu ciúme. — Você não trouxe nenhum espanhol junto contigo, não é?

Suspiro.

— Não. E se o Dani disse algo para o senhor também, ele é...

Benjamin me afasta de seus braços, segurando-me pelos ombros, e me olha surpreso.

Merda!

— Ele não disse nada, não é? — pergunto, achando-me idiota.

Meu pai nega:

— Era só uma pergunta brincalhona e especulativa. — Olha em volta. — O que ele deveria me dizer?

— Eu tinha um namorado em Madri, mas ele ficou por lá.

Ele põe a mão sobre o peito.

— Adorei esse tempo verbal: “eu tinha um namorado”. — Rio. — Agora você terá que me contar sobre esse tal...

— Ele me pediu em casamento — disparo. — Mas eu não pude aceitar.

Ficamos um tempo um olhando para o outro, parados no corredor, sem emitir um som sequer. Papai sempre foi bom ouvinte e dava bons conselhos. Mesmo não sendo muito de falar sobre como se sentia, mesmo reservado em seus sentimentos, até mesmo com seus filhos, ele sabia ouvir sem julgar e só opinava quando achava necessário, o contrário de mamãe.

— Preciso de um café ou de algo mais forte — confessa, e eu rio nervosa. — Vou falar com sua mãe e...

— Ela acabou de dormir — informo-lhe.

— Certo! — Respira fundo. — Se lembra daquele seu namorado da faculdade? — Gemo e assinto. — Você tinha dúvidas quanto ao caráter dele e, mesmo com todos os seus instintos te alertando que algo não estava bem, você aceitou o namoro e...

— Meus instintos estavam certos, ele era um pilantra filho da puta casado!

— E eu quis castrá-lo. — Ele sorri doce, como se isso não fosse nada. — Enfim, o meu conselho para essa questão sempre é: siga seus instintos. Se você não se achava pronta para aceitar o pedido, então fez certo ao recusá-lo.

— Então, você acha que eu fiz certo ao ouvir meu coração?

Ele ri e nega.

— Não, eu disse para ouvir seus instintos, porque seu coração não tem juízo. — Eu rio, achando que ele está fazendo troça, mas, então, ele completa: — Já se apaixonou uma vez por Alexios Karamanlis!

Fico séria, coração disparado, porque, embora ele saiba de todos os meus namorados e experiências, nunca contei a ele sobre Alexios.

Era óbvio para todos, não sei como consegui enganar a mim mesma! Eu ainda amo aquele safado!


— Alexios? — Termino de calçar os tênis antes de me virar para olhar Laura deitada na cama. — Já vai?

Ela se contorce languidamente, seu corpo curvilíneo, dourado de sol se mexendo contra os macios e perfumados lençóis de sua cama. Sorrio, deslizo a mão pela curva de seu lindo rabo e desfiro um tapa nele, fazendo-a rir.

— Preciso ir, tenho reuniões importantes agora de manhã na empresa, e, com a viagem de Theodoros para a Grécia e a demora na volta de Millos, as coisas ficaram acumuladas entre mim e o Kostas.

Ela bufa e se senta.

— Eu sei, ontem eles me passaram as informações sobre a propriedade no Rio de Janeiro, da reunião que tiveram na quinta-feira. — Ela dá de ombros. — Achei que Kika ia aparecer cheia de gás na sexta-feira, mas nem ela e nem seu irmão apareceram na empresa.

— A área é boa mesmo? — pergunto, pois apenas vi algumas imagens do local, e, como Laura é do geoferenciamento, deve ter detalhes bem específicos.

Ela confirma.

— O pessoal do jurídico está alvoroçado, e fiquei sabendo que o Leo, o braço direito da Kika, pediu para o pessoal acelerar com as outras áreas, porque gostaram muito da do Rio. — Laura me abraça pelos ombros e lambe minha orelha. — Falando em acelerar, adorei aquela rapidinha ontem na sala de servidores.

Eu rio, mas balanço a cabeça.

— Você jogou sujo comigo. — Levanto-me da cama, e a safada senta-se na beirada do colchão, os peitos cheios e rosados, as coxas musculosas bem abertas. Porra! — Goza para mim! — ordeno, e ela não se faz de rogada, tocando-se sem nenhum pudor. Vou até uma das luminárias, acendo-a e tenho a visão perfeita de sua boceta totalmente depilada já molhada de tesão.

Foda-se!

Apenas abro o cinto da calça, baixo o fecho e saco meu pau para fora. Pego uma camisinha em cima de seu criado-mudo, e ela ri quando avanço até onde está.

— De costas!

Ela se deita de bruços, e eu me agacho para entrar em uma única investida. Fecho os olhos, concentrando-me nas sensações, excitado com seus gemidos, mas, de repente, sinto um cheiro diferente, os sons mudam, e um rosto doce, sorridente, de lindos olhos castanhos aparece em minha mente.

Xingo alto, querendo expulsar a imagem de Samara, aumento as estocadas até sentir as pernas arderem e gozo sem ao menos saber se minha parceira teve seu prazer.

Caralho!

Afasto-me dela e apoio as mãos contra o aparador, colocando a culpa das súbitas aparições de Samara em minha mente na distância que impus entre nós depois daquele beijo no elevador. Claro que, se ela não tivesse se mudado para a casa da mãe, certamente essa distância não seria tão dura, afinal, eu poderia encontrá-la casualmente pelos corredores do Castellani, mas quem disse que a sorte gosta de mim?

Agora, além de ter visões dela durante minhas trepadas, acordo excitado por algum sonho erótico protagonizado por ela e ainda tenho que aguentar os questionamentos de Kyra e de Chicão sobre o motivo pelo qual eu e Samara não nos falamos mais.

— Tudo bem? — Laura me toca o ombro, fazendo com que eu desperte dos devaneios sobre Samara.

— Tudo. — Retiro a camisinha e a jogo no lixo. — Preciso ir, já está amanhecendo.

— Eu sei.

Ela sorri, doce e compreensiva, e eu respiro fundo, sabendo que estou fazendo merda. Primeiro, por ela ser funcionária da Karamanlis, e segundo, por eu estar fazendo sexo com ela há duas semanas.

Nunca fico tanto tempo com alguém. Para falar a verdade, não me lembro da última vez que mantive uma única parceira, mas, por algum motivo, tenho andado preguiçoso, sem vontade de sair e, como trepei com ela e gostei, achei mais simples continuar.

Despeço-me dela apenas com um aceno de cabeça. Laura me acompanha até a porta de seu apartamento, e eu desço até o térreo, onde minha moto está estacionada em frente à portaria do prédio.

Sigo para o Castellani, mas a cabeça continua a vagar por lembranças dessas longas seis semanas desde o baile dos Villazzas. Tanta coisa aconteceu dentro e fora da Karamanlis, ainda assim senti o tempo passar lentamente.

No trabalho, as coisas começaram a ficar mais intensas, apesar de começo de ano sempre ser mais devagar. Com a conta da Ethernium, tive que mobilizar boa parte dos profissionais para elaborar croquis baseados na planta da siderúrgica e as áreas que foram aparecendo. A volta de Kika à empresa foi providencial, pois ela nos apresentou uma ideia que facilitou muito a vida de todos.

Eu ainda estou surpreso por Theodoros ter colocado a gerente dos hunters e meu irmão trabalhando juntos, pois isso não é algo do perfil do meu irmão mais velho. Foi então que, conversando ao telefone com Millos, descobri que tinha dedo dele nessa história.

A ideia de os dois trabalharem juntos não surgiu na reunião preliminar do projeto, mas foi algo que Theodoros e Millos combinaram assim que souberam que ela iria voltar para a empresa. Agora, conhecendo Millos como conheço, só me pergunto o que, especificamente, meu primo pretendeu ao dar essa sugestão.

Esperei que os dois se matassem desde a primeira semana juntos, ainda mais depois que Theodoros viajou, mas não, aparentemente tudo tem transcorrido bem entre os dois, e a conta da Ethernium parece estar em boas mãos.

Em casa, com a presença de Chico, que ainda está por lá, tenho sempre companhia para jogar bilhar, videogame ou para corridas aos finais de semana. Decidi não participar de nenhum campeonato este ano, nem de moto, nem de carro, pois o trabalho iria consumir muito de minha equipe, e eu não sou o tipo de chefe que deixa seus funcionários se fodendo de trabalhar e sai cedo para treinar ou viajar. Não sou profissional por isso, não consigo me dedicar integralmente às corridas, embora goste muito delas. Vejo-as com um hobby, assim como os esportes e outras atividades que uso para ocupar minha cabeça.

Entro na garagem do prédio, paro a moto e, assim que tiro o capacete, paro em seco ao ver Samara.

— Bom dia — ela me cumprimenta, sem parar para falar comigo e sem olhar para trás.

Confiro as horas no relógio e estranho que ela esteja saindo tão cedo de casa.

— Algum problema? — pergunto preocupado.

Samara para e me olha.

— Não. — Abre o carro, mas me aproximo antes que entre. — O que foi, Alexios? — sua voz é impaciente, e eu percebo que o clima estranho está de volta.

— Como está sua mãe?

Ela franze a testa, ajeita o cabelo e ri amarga.

— Teve que se encontrar casualmente comigo para lembrar que minha mãe está doente? — Balança a cabeça. — Sempre soube que você era desligado com as coisas, Alexios, mas na verdade é um egoísta.

Suas palavras cheias de mágoa me acertam. Aperto a mão no capacete, ciente de que ela tem razão. Eu poderia tê-la procurado, ter ligado, ter sido o amigo que ela merecia, mas, em vez disso, escolhi me afastar e deixá-la sozinha com seus problemas.

Sim, além de covarde, um grande egoísta!

— Você tem razão. — Aceno. — Bom dia.

Dou a volta e sigo em direção ao elevador, achando-me ainda mais desprezível do que sempre me achei.

— Ela está melhorando — a voz de Samara ecoa na garagem, e eu paro. — A quimioterapia está tendo os resultados esperados, e os médicos estão confiantes.

Viro-me para olhá-la, ainda parada do lado de fora do carro, com a porta do motorista aberta.

— Eu sinto muito por não ter ligado antes. — Ela dá de ombros como se não se importasse, mas sei que se importa; eu me importaria. — Você tem razão sobre eu ser um egoísta, você merecia um amigo melhor.

Samara bufa e, sem dizer nada, entra no carro, fecha a porta e liga o motor. Instantes depois, vejo-a passar por mim sem dizer nada e me sinto um bundão. Subo para meu apartamento e, assim que entro, encontro Chicão no meio da sala, usando apenas uma cueca, meditando.

— Que visão do inferno! — sacaneio e sigo para meu quarto.

— Bom dia, embuste! — saúda-me sem ao menos abrir os olhos. — Você deveria tentar, pelo visto nem suas trepadas diárias estão conseguindo mantê-lo relaxado, então, quem sabe a meditação...

— Nem fodendo! — grito para ele e sigo para o banheiro.

Somente quando fecho a porta é que toda a armadura se vai. Fico parado, olhando para o espelho, tentando analisar além da aparência que todos veem. Eu sou um filho da puta egoísta e imbecil, um impostor, uma fraude gigante que perambula pela cidade sem nem mesmo saber quem é.

Anjo dos Karamanlis! Engenheiro filantropo! Chefe preocupado com funcionários... tudo mentira!

Retiro a roupa, jogando-a no cesto de roupa suja antes de me enfiar debaixo da água gelada do chuveiro. Gostaria que, da mesma forma que essa água consegue limpar meu exterior, pudesse fazer o mesmo dentro de mim. Sou tão vazio e frio quanto meu irmão do meio e tão arrogante e egoísta quanto Theodoros. Sou tão louco quanto Nikkós!

Doeu-me ver e ouvir a mágoa que causei em Samara, mas é somente isso que causo nas pessoas. Decepção! Eu não mereço sua amizade e nem estar perto dela. A raiva de mim mesmo explode como há muitos anos não a sinto. Sem pensar, soco o vidro do boxe, que se espatifa e desaba sobre mim.

A porta do banheiro é aberta com um estrondo, e um apavorado Chicão aparece, olhos arregalados, olhando a destruição que causei ao meu banheiro.

— Merda, Alexios! — Ele salta em minha direção sem se preocupar com os cacos de vidro pelo chão e tenta me tirar do boxe. — Porra, sai daí.

Nego, o sangue escorrendo pelo ralo do banheiro, minha mão ardendo, assim como meus braços e os pés. Não me movo, apenas tremo, tentando ainda conter toda a fúria dentro de mim.

— Sai daí, Alex, você está ferido, porra! — Chicão grita.

— Não! — Não me movo. — Eu sou um lixo! Ele nunca deveria ter me pegado no lixo onde me encontrou, deveria ter me deixado morrer, deveria...

— Para com essa merda! — Some para dentro do meu quarto e, quando volta, está calçando meus coturnos. — Você não vai mais fazer isso, ouviu?

Chicão entra no que restou do boxe, desliga a água, joga uma toalha sobre meu corpo e me ergue. Não consigo reagir, a cabeça girando, todos os insultos e histórias sobre mim que ouvi de Nikkós por tantos anos enchendo meus ouvidos, torturando-me mais uma vez, ressaltando o quanto sou desprezível.

— Você não vai fazer isso consigo mesmo de novo, ouviu?! — Chicão esbraveja, fazendo pressão com a toalha de rosto na minha mão. — Ele te machucou, você se machucou, mas essa merda já acabou faz tempo. Ele não pode mais, Alexios, nem te tocar e nem contar mentiras a você. Chega!

Nego.

— Eu sinto tanta raiva... — Meus dentes batem um no outro, e eu os travo. Minha vontade é de gritar, socar, foder com tudo.

— Eu sei, já passamos por isso antes, e eu... — ele baixa o tom de voz e expira — achei que já tinha superado.

— Como? — questiono-lhe. — Como posso esquecer, se continuo a ser a mesma pessoa desprezível de sempre? Não são as marcas que ele causou no meu corpo que me causam essa raiva, sou eu!

— O que aconteceu?

Nego, trêmulo e me sento na cama. Gemo ao sentir as dores dos cortes, percebendo que a adrenalina passou mais rápido do que antigamente. Eu aprendi a controlar a dor usando a raiva. Durante anos de espancamento, percebi que, quanto mais raiva eu sentisse, menos dor ele me causava. Mais tarde, quando sentia raiva por qualquer motivo, eu mesmo me machucava, levava-me ao limite do meu corpo e quase me destruía.

Era um círculo vicioso que eu achei que já havia passado, mas, aparentemente, não.

— Encontrei Samara na garagem, provavelmente indo se encontrar com sua mãe e levá-la ao hospital — confesso, cansado demais para guardar qualquer coisa. — Eu não a via há semanas, desde o baile dos Villazzas no Ano Novo.

— Eu também só a vi uma vez aqui no prédio...

— Eu não liguei, não procurei por ela, não justifiquei meu ato e nem meu sumiço — interrompo-o e o encaro. — Ela está magoada comigo.

Chicão confere o sangramento da mão, tirando a toalha e depois se senta ao meu lado na cama.

— Por que você fez isso? Sumiu e não a procurou?

Respiro fundo; comecei o assunto, agora preciso terminá-lo.

— Preferi me afastar. — Olho para baixo, envergonhado. — Eu quase trepei com ela no elevador aqui do prédio. — Fecho os olhos. — Eu a quis como mulher, não consegui reprimir a vontade, como sempre fiz, e agi feito um idiota excitado.

— Ela o repeliu?

— O quê?

— Samara o repeliu? Te xingou? Bateu em você? Disse que você abusou dela? Mandou que ficasse longe?

Lembro-me daquela noite, a forma como reagiu ao beijo, o jeito que gemia e parecia tão excitada quanto eu.

— Ela estava bêbada, me aproveitei dela, sou um canalha.

— Nisso concordamos, mas o que ela pensa sobre o acontecido?

Balanço os ombros.

— Não sei, não falo com ela desde então. — Lembro-me da conversa com Kyra no dia seguinte ao baile e praguejo. — Ela está noiva.

— Samara? — Assinto. — Que merda!

— É, o beijo foi uma merda enorme, e eu não sei como...

— Não, seu idiota! — Ele estapeia minha cabeça. — Que merda que Samara esteja noiva, ela é a mulher perfeita para você.

Olho-o como se ele estivesse louco.

— Claro que não, ela merece alguém muito melhor do que eu! Samara nunca cogitou qualquer tipo de relacionamento comigo a não ser o de amizade.

Chicão bufa.

— Você não é idiota, Alexios Karamanlis, é um burro!

Ele joga a toalha, manchada de sangue, no chão do quarto e sai puto comigo ou com alguma coisa que eu disse. Ele não entende, óbvio! Samara é... especial, e alguém especial como ela nunca se relacionaria com alguém tão ordinário como eu.

Olho para minha mão e rio ao pensar na bagunça que sou.

Obviamente ela nunca se relacionaria e nem deveria se relacionar com alguém tão fodido como eu.

 

— O que houve com sua mão? — Laura me pergunta de repente, assustando-me, pois eu nem mesmo sabia que estava por perto. Encaro-a sem entender como e o que está fazendo aqui na K-Eng. Seu olhar é de assombro aos machucados em minha mão, além de questionadores, o que me irrita um pouco.

— Um pequeno acidente — respondo seco. — O que você está fazendo aqui?

Levanto-me da mesa, agradecendo por não ter mais ninguém por aqui a essa hora e fico de frente para ela. Laura abre um sorriso sem graça, mas logo se pendura em meu pescoço.

— Tem mais de uma semana que não te vejo, você não liga e nem aparece lá no meu apartamento. Então, se Maomé não vai até a montanha...

Reviro os olhos e retiro as suas mãos de mim.

— Laura, você trabalha na Karamanlis, então já deve ter percebido a movimentação infernal na empresa por conta da Ethernium. — Ela concorda. — Além disso, não entendi o motivo pelo qual eu deveria dar satisfação ou ter regularidade em nossos encontros.

A moça arregala os olhos por causa de minha sinceridade.

— Eu pensei que... — ela suspira — estávamos tendo essa regularidade, afinal, ficamos juntos por umas semanas e...

— Ficamos porque estava gostoso — não tenho medo de ser direto. — Mas não significa que temos qualquer tipo de compromisso. Não sou desses, Laura, e foi a primeira coisa que te disse quando trepamos a primeira vez.

Ela fica um tempo muda, olhando para o nada, então, de repente, abre um sorriso e desliza a mão pelo meu peito.

— Disse. Como disse também que queria trepar mais, lembra? Eu ainda quero mais, Alex — sua voz é ronronante. — Sempre imaginei como seria fazer sexo aqui na sua sala.

Respiro fundo, levemente excitado com o oferecimento, contudo, sem nenhuma vontade de fodê-la aqui – ou em qualquer outro lugar – depois desses questionamentos.

— Infelizmente, eu estou muito ocupado agora, motivo pelo qual ainda estou na empresa quando todos já foram. — Ela faz um biquinho, mas me afasto e volto a me sentar à mesa. — Acho melhor você ir.

Ela bufa.

— Sério isso?

Volto a olhá-la, sem esconder meu desagrado e impaciência, e ela se sobressalta.

— Sério.

Laura fica um tempo me encarando, depois vira as costas e sai da sala, andando firme e visivelmente puta. Balanço a cabeça, repreendendo a mim mesmo por ter deixado as coisas chegarem a esse ponto. Foi muito bom trepar com ela, aposto que a recíproca é verdadeira, porém não imaginei que ela criaria tantas expectativas e se sentisse no direito de vir me cobrar algo.

Erro de cálculo!, penso, sem deixar de pontuar que isso, para um engenheiro, é algo muito perigoso, que pode pôr tudo a perder.

Pego a pequena bola de borracha que tenho usado para exercitar minha mão e reparo nos machucados nela. Os cortes já estão todos secos, e os pontos que tomei em um deles já foram retirados.

Socar o vidro do boxe foi um momento de loucura, como tantos outros por que já passei. Fazia muito tempo que eu não perdia a cabeça daquele jeito, e sei que o que Samara me disse foi o gatilho responsável por isso. Não tiro, em hipótese alguma, a razão dela para me dizer aquelas palavras, mas elas acertaram o alvo na mosca.

Fecho os olhos e tensiono o pescoço, tentando relaxar um pouco para voltar a trabalhar e não enveredar pelos acontecimentos dessa semana, mas ainda não tenho esse controle total da mente e dos meus pensamentos.

A frustração me bate ao me lembrar do almoço com Konstantinos, meu irmão advogado. Achei que, pela primeira vez, ele iria se dispor a me ajudar com as respostas que procuro por anos, mas, ao que parece, ser egoísta e frio é algo familiar.

Mexo na minha agenda de anotações e encontro lá o endereço do sobrado de propriedade de Kostas. A voz da mulher misteriosa que encontrei na porta do Castellani ainda ressoa nítida em meus ouvidos:

“Eu conheci sua mãe biológica. Se quiser respostas, procure pela casa de Madame Linete.”

Foi o encontro mais estranho da minha vida. Ela estava parada lá, olhando o prédio e, quando me viu, logo perguntou se eu era um Karamanlis. Estranhei a pergunta, tentando reconhecer a senhora frágil e de cabelos brancos, mas não precisei responder, pois ela logo disse essas duas frases e se afastou sem me dar a chance de perguntar qualquer coisa mais.

Claro que eu já havia cogitado a ideia de que tinha sido gerado por alguma prostituta daquela maldita casa, afinal, era o local que meu pai mais utilizava. Não deveria ter começado do nada sua amizade com a cafetina asquerosa, mas nunca achei nada que me ligasse àquele local até esse encontro.

Talvez fosse uma pista falsa apenas, mas eu não poderia ignorar mais nada, não enquanto não achasse as respostas que procurei por toda minha adolescência a fim de tirar esse poder das mãos de Nikkós.

Não conhecer meu passado era o suficiente para meu pai ter uma enorme arma psicológica contra mim, coisa que ele utilizou por muitos e muitos anos.

Foi pensando em exterminar todo e qualquer poder que meu pai ainda pudesse ter sobre minha vida que atraí meu irmão para um almoço com a desculpa de falar da conta na qual estávamos trabalhando em conjunto.

Confesso que estranhei quando ele aceitou sem que eu tivesse que recorrer a inúmeros subterfúgios, mas agradeci a boa sorte, e nos encontramos em um restaurante neutro, escolhido a esmo, embora de alta gastronomia.

Achei que seria difícil introduzir o assunto, principalmente porque ele iria saber que pesquisei o maldito imóvel e descobri que ele o comprou há anos, quando foi a leilão. Isso me surpreendeu, claro, saber que ele comprou o sobrado e que ainda o mantém de pé sem nenhuma modificação ou uso. O assunto não surgiu naturalmente. Kostas estava estranho, mesmo falando de negócios, o que me surpreendeu, pois sempre imaginei que ele fosse se aproveitar da distância de Millos e Theo para tentar assumir a empresa.

— Eu acho que temos um acordo implícito de não falarmos sobre o passado — decidi não ser mais sutil, e Kostas reagiu imediatamente:

— Não é implícito. Não quero falar do passado. Mais explícito que isso, impossível!

Eu sabia que não seria fácil, ele é tão fechado quanto eu, então precisei desarmá-lo. Aproximei-me dele por sobre a mesa do restaurante e abaixei o tom de voz:

— Dessa vez, não poderei acatar sua vontade, Konstantinos. Sei que você comprou o sobrado da Rua...

Kostas levantou-se.

— Perdi a fome, vou voltar para a empresa.

Pus-me de pé também e o vi caminhar na direção da saída do restaurante, mas não ia desistir, não quando já havia agitado o vespeiro.

— Eu nunca te pedi ajuda. — Meu irmão parou, mas não se virou para me olhar. Decidi continuar por essa linha de ação: sinceridade. — Eu não podia te ajudar, então nunca pedi ajuda também.

— Alexios, não faça isso...

Eu soube que atingi o ponto certo, pois podia sentir a tensão no seu corpo. Nós dois temos consciência do que passamos na mão do nosso pai e de tudo que fizemos para que a loucura de Nikkós ficasse longe de Kyra. Kostas não aguentou por muito tempo, e eu o entendo, mas fiquei lá sozinho, lutando contra o monstro, tentando proteger minha irmã, mesmo sem ninguém para fazer o mesmo por mim.

Nunca tinha pensado em lhe cobrar, mas situações extremas pedem medidas extremas.

— Eu preciso, senão não faria. Há chances de eu descobrir o que Nikkós fez com minha mãe.

Fiquei satisfeito ao vê-lo se virar completamente surpreso.

— Sua mãe? Você soube algo dela?

— Nada conclusivo, mas acabei cruzando com uma pessoa que, quando soube que eu era filho dele, disse tê-la conhecido.

— Isso é loucura! Você procurou durante sua adolescência toda, quase se matou por isso, não há pistas, não há nomes, não há nada!

Lembranças de anos e anos de buscas vãs me fizeram titubear por alguns instantes. Eu não tinha um ponto de partida na época, pois ela podia ser qualquer pessoa, mas, naquele momento, eu tinha a maldita pista do imóvel.

— Preciso acessar o sobrado — voltei a falar, mas Kostas negou. — Preciso entrar e remexer tudo lá.

— Não!

— Foda-se, eu vou! — Soquei a mesa, decidido, puto demais por estar ali pedindo ajuda a ele pela primeira vez e não ser compreendido. Eu sempre o entendi, sempre o justifiquei quando saiu do apartamento e foi viver sua vida. Quando descobri que o sobrado lhe pertencia, nunca pensei em questionar seus motivos, apenas o entendi. Não era justo não ter o mesmo tratamento e consideração. — Eu sei que, por algum motivo bizarro, você o comprou, trancou-o com tudo dentro e o tem deixado apodrecendo por mais de 15 anos! Pode ter alguma pista lá.

— Não é seguro. Não vou arriscar que você morra lá dentro e eu ainda tenha que responder a...

Caralho de desculpa mais esfarrapada!

— Porra, Kostas, não fode! — Perdi a paciência, circundei a mesa e me aproximei dele, disposto a jogar pesado. — Eu sei dos teus motivos, respeito-os. Como disse, nunca te pedi ajuda antes porque sabia que você também precisava e não tinha a quem pedir, mas agora estou pedindo, agora estou contando com você. Não me faça arrombá-lo, porque eu o farei, apenas dê-me as chaves de todas aquelas grades que pôs lá.

Vi-o pensar, achei mesmo que eu estivesse tocando em alguma parte ainda viva de seu corpo, talvez no menino que conheci quando chegou para morar conosco, mas não, ao que parecia, meu irmão havia virado a porra de uma rocha fria e sem sentimentos.

— Tente invadir. Será um prazer implodir aquela merda com tudo dentro!

A mera possibilidade de ele destruir a única pista que tive do meu passado me desconsertou. Kostas aproveitou-se do momento e foi embora do restaurante.

Fiquei um tempo parado, até que ouvi um leve pigarrear e vi os garçons chegando com nossos pedidos. Estava sem fome, um bolo havia se formado em minha garganta, então pedi que embrulhassem tudo e deixei as quentinhas com o primeiro morador de rua que achei pelo caminho.

Andei sem rumo, sem saber o que fazer ou como agir. Tinha aberto meu peito para ele, pedira ajuda pela primeira vez e recebera um sonoro não. Senti algo inédito pelo meu irmão, raiva. Kostas nunca fora o alvo da minha revolta, pois sempre o compreendi, mas naquele momento não podia mais entendê-lo, não quando eu poderia ter respostas para acabar com minha tortura.

Sair de casa ajudou meu irmão a dar fim ao poder de Nikkós sobre sua vida, mas o mesmo não aconteceu comigo, e, enquanto eu não souber sobre o meu passado, não poderei tirar do homem que me gerou a possibilidade de voltar a me ferir.

O som de mensagem no celular me faz deixar de lado essas lembranças, e eu leio a mensagem de minha irmã me convidando para jantar com ela.


“Kyra, ainda estou na empresa, não poderei ir.”


Envio a mensagem esperando que seja suficiente, mas não é.


“Uma hora você precisará comer, e eu não tenho nenhuma intenção de jantar cedo. Venha no horário que puder, esperarei você.”


Merda, ela sabe ser insistente!


“Ok.”


Olho para o monitor do computador, respiro fundo e desisto de trabalhar. Minha barriga ronca, e decido aceitar o convite inesperado de minha irmã. Antes, porém, olho novamente o endereço do sobrado e traço um plano para invadi-lo sem que Konstantinos tome conhecimento.

As respostas que busco sobre mim mesmo podem ser achadas lá; não vou desistir tão fácil assim de encontrá-las. Nunca desisti fácil de nada, essa não será a primeira vez.

Imediatamente a imagem de Samara aparece em minha mente, e eu bufo, chamando-me de hipócrita. Claro que já desisti fácil de algo, eu só não gostava de admitir isso por não me achar sequer digno dela.

Quem sabe se eu achar as...

Interrompo o pensamento antes de criar ilusões que só serviriam para me machucar. Não há possibilidade de eu tê-la, mesmo que tenha todas as respostas da minha vida. Samara nunca estará ao meu alcance, e, sinceramente, acho bom que não haja nenhum envolvimento entre nós.

Ela merece mais!


Pego mais um copo de café e volto a me sentar ao lado de Daniel, sacudindo a perna, bebericando ou soprando a bebida quente. Olho para o corredor e, sem nem mesmo consumir metade do café, levanto-me para pegar um copo d’água.

Volto a me sentar, as pernas agitadas, confundo os copos e dou uma golada no café fumegante.

— Merda!

Daniel põe a mão no meu joelho e me obriga a parar de sacudir a perna.

— Se você não sossegar agora, juro que te ponho para fora — ele me ameaça.

— Desculpa. — Sorrio sem jeito. — Estou nervosa com os resultados desse primeiro ciclo de quimio e acho que deveríamos ter entrado com ela para saber mais...

— Nosso pai entrou com ela, Samara. Sossegue, você está me deixando irritado parecendo uma criança ansiosa! — Daniel fala alto, e eu o encaro surpresa. — Desculpa. — Ele põe a mão na cabeça e esfrega os olhos. — Eu quase não dormi essa noite, mas você não tem nada a ver com meu mau humor.

— Ela vai ficar bem, Dani. — Ponho minha mão em seu ombro.

— Eu sei que vai! Nunca tive dúvidas disso.

Respiro fundo e concordo com ele, embora não tenha a mesma confiança que ele demonstra ter.

Têm sido dias difíceis desde que cheguei ao Brasil, mas em momento algum me dei a oportunidade de esmorecer perto deles. A cada medicação, mamãe tinha reações mais fortes, requerendo tanto cuidado e atenção que decidi desistir de morar no meu apartamento e voltei para a casa dos meus pais.

Confesso que essa decisão também me ajudou a manter distância de Alexios Karamanlis. Não que eu ache que em algum momento ele tenha notado minha ausência ou se importado com isso, mas para mim fez toda a diferença.

É aquele ditado, sabe? O que os olhos não veem...

Suspiro.

— Você foi incrível nesses dias, Samara — Daniel volta a falar. — Mamãe esteve muito mais à vontade com você por perto do que comigo.

— Não fala besteira, Dani! — Ele sorri, sabendo que é o xodó da mamãe. — Eu gostei de ter conseguido ajudar e estar com ela de novo.

— Ela também ado... — ele para de falar assim que vê nossos pais vindo até onde estamos. Levantamo-nos juntos, apreensivos, esperançosos, e o sorriso de mamãe é reconfortante.

— O que o médico disse? — indago assim que eles se aproximam.

— O medicamento fez o efeito esperado para esse primeiro ciclo. Agora é esperar o tempo de descanso para começar de novo. — Mamãe sorri.

— E a radioterapia? — Dani questiona, e ela dá de ombros.

— O doutor ainda não prescreveu — papai responde. — Vamos torcer para que a quimio resolva sem precisar da rádio! — Ele sorri e abraça mamãe pelos ombros. — Em breve você terá sua vida agitada de volta.

Ela suspira cansada.

— Bom, vamos todos almoçar para comemorar o fim desse primeiro degrau rumo à vitória! — tento animar a todos, mas só meu pai sorri. — Ah, gente, vamos lá! Mamãe?

Ela assente e olha para Daniel.

— Você não está cansada? — meu irmão pergunta a ela.

— Não, podemos ir!

Bato palmas e a beijo na testa.

Eu entendo o desânimo dela, seria cruel não entender, pois, ainda que todos estejamos empenhados em seu tratamento, é ela quem passa por todos os efeitos colaterais dos medicamentos e pela doença. Mamãe nunca foi uma mulher parada ou passiva, e depender de outras pessoas deve estar sendo uma verdadeira prova para ela.

Foram semanas difíceis, não nego. Fiquei totalmente à disposição de minha mãe, levando-a às consultas e às sessões, fazendo companhia a ela, amparando-a em momentos de indisposição e dor. Godofredo e eu nos mudamos para a mansão da família, e eu mal tive tempo para ir ao Castellani ou mesmo visitar amigos.

Kyra esteve várias vezes conosco, geralmente após o expediente de trabalho, quando não tinha eventos. Daniel e Bianca, sua noiva, também estiveram presentes nos jantares e almoços de finais de semana, e, claro, papai.

Sorrio ao pensar em como é bom ter meu pai por perto. Ele e eu temos muitas afinidades, então, passamos muito tempo conversando, vendo filmes ou ouvindo música. Mamãe prefere ler sozinha em seu quarto à noite, por isso faço esses programas todos com papai.

Assim, o mês de janeiro se foi, e fevereiro entrou com força total com a finalização do primeiro ciclo de quimio da mamãe e o inesperado convite de Daniel para que eu trabalhe na empresa com ele.

— Dani, eu sou designer de interiores. Já trabalhei decorando mansões, apartamentos, iates e até um motor home, mas nunca fiz nada empresarial. — Fiz careta ao lhe responder. — É tudo muito frio.

— É um hotel — ele logo me informou. — Vamos redecorar um enorme hotel.

Meus olhos brilharam.

— Ele vai seguir algum padrão já existente? É um hotel de rede?

Ele nega.

— Não. É uma casa de campo que está virando hotel. — Arregalei os olhos. — O projeto de reforma é da Karamanlis, e a executora da obra é a Novak.

— K-Eng? — inquiri baixinho, e ele suspirou.

— É, mas quem está acompanhando é um dos braços direitos do seu amigo.

Havia muitos dias eu já não pensava no Alexios e nem no beijo do Ano Novo. Não foi o primeiro que trocamos depois de umas bebidas, então eu não devia lhe dar tanta importância, embora reconhecesse que ter me afastado do Castellani ajudou muito a manter distância dele. Alexios e eu já não somos mais amigos!

A perspectiva de trabalhar em um projeto como aquele enquanto eu estivesse no Brasil era maravilhosa, mesmo com a possibilidade de encontrar o CEO da K-Eng eventualmente.

— Aceito olhar o projeto e conversar sobre o briefing, só isso. — Daniel sorriu satisfeito. — Se eu puder executar meu trabalho sem a interferência de pessoas que nada entendem de decoração, pego para fazer; do contrário, estou fora.

— É assim que se fala! Você vai amar o projeto de reforma, ficar cheia de ideias, e tenho certeza de que os responsáveis pelo empreendimento vão adorar seu trabalho.

O projeto realmente estava incrível, e a ideia de como os donos queriam a decoração dos quartos e áreas comuns me deixou louca para começar o trabalho. Aceitei a proposta, negociei sob a garantia da Schneider e fechei um belo negócio aqui no meu país.

Penso no meu trabalho na Espanha e Diego me vem à cabeça. Entro no carro, no banco do carona, ao lado de Daniel e suspiro.

— O que foi? — meu irmão pergunta, seguindo o carro do papai para fora do estacionamento.

— Estava pensando no Diego.

— Vocês têm se falado?

— Sim, por mensagens. — Balanço a cabeça. — Não sei mais o que fazer para ele entender que não estou tendo nenhum tipo de crise por conta do tratamento da mamãe. Eu fui sincera com ele quando terminei. Não foi certo fazer por vídeo, mas eu não podia mais me sentir enganando-o.

— Eu entendo você, embora não goste nada do motivo que a levou a isso.

— Não tem nada a ver com Alexios, nós nem temos nos visto. Eu pensei em ir até a Espanha para conversar melhor com Diego, mas acabei de pegar esse projeto enorme e não posso me ausentar por agora. Além disso, ele está seguindo o time na Champions...

— Não sei se é boa ideia você ir atrás dele. Acho-o um tanto insistente demais. Concordo que não foi certo terminar por vídeo-ligação, mas depois disso vocês conversaram várias vezes, e o homem não para de insistir.

Eu concordo, mas ao mesmo tempo me sinto culpada.

— Sim. Mesmo assim sinto que lhe devo uma explicação.

Paramos no farol, e ele me olha.

— Você quer retornar para Madri mesmo depois desse término?

Respiro fundo e dou de ombros.

—Sim, trabalho em uma ótima empresa lá, então, por que não voltar?

Meu irmão ri.

— Isso é você quem tem que responder a si mesma. — Ele me puxa para perto e beija o topo da minha cabeça. — A decisão é sua; certa ou errada, cabe a você decidir o que fazer.

— Eu sei.

Sorrio, mesmo com minha cabeça fervendo de perguntas sem respostas, mesmo sem entender o que eu quero e por onde devo ir.

Fui para a Espanha para fugir de um sentimento que parecia não ter fim, mesmo diante da impossibilidade de se tornar algo real, e acabei fazendo amigos e criando laços por lá, mas é aqui que minha família e meus amigos estão. A decisão não é fácil!

Quanto a Alexios... o sentimento não morreu, obviamente, porém não guardo mais nenhuma ilusão com relação a ele. Sempre serei vista como a grande amiga e nada mais.


— Alexios está esquisito essa semana — Kyra comenta.

Eu rio e bebo mais um gole do vinho.

— Quando ele não foi esquisito? — debocho.

— Exatamente, a esquisitice dele não me surpreende, mas essa semana ele está mais esquisito. — Presto atenção ao que Kyra diz, pois minha amiga não costuma exagerar, pelo contrário. — Eu sei que ele está em um ritmo frenético de trabalho, mas, quando falei com ele ontem, achei-o um tanto...

— Esquisito — complemento, e Kyra revira os olhos ante minha brincadeira. — Kyra, seu irmão é a pessoa mais fechada do mundo, você sabe. Mesmo que ele esteja com merda até nos ouvidos, precisa quase se afogar nela para pedir ajuda ou falar com alguém.

Ela assente, e nós duas ficamos mudas. Eu me lembro de quando tomei conhecimento, pela primeira vez, do que eles viviam com o pai. Alexios telefonou para minha casa pedindo para que eu subisse até a cobertura, pois precisava de um favor. Não pensei duas vezes e fui até ele pensando que queria ajuda com algum jogo ou matéria – história nunca foi o seu forte –, mas, quando o vi, mal conseguia me mover.

Ele estava todo machucado nas costas. Os cortes eram verdadeiros talhos, de onde saía muito sangue, e eu tive que respirar fundo várias vezes para não vomitar.

— Samara, preciso que você seja dura agora — ele me disse com a voz calma, com toda sua sabedoria de 15 anos de idade.

— O que você quer que eu faça? — perguntei temerosa, já prevendo que ele me pediria para limpar e fazer curativos.

O problema era que, por conta do tamanho e da profundidade dos cortes, curativos não seriam o bastante. Ele ergueu uma agulha curva com um enorme pedaço de linha preta.

— Costure.

Neguei várias vezes com a cabeça, incapaz de abrir a boca sem derramar todo o lanche que havia acabado de tomar, mas ele me olhava suplicante. Percebi que, mesmo sentindo dor, ele tentava não demonstrar.

— Você precisa de um médico!

— Não. — Ele ergueu a agulha novamente. — Preciso de você.

Peguei o metal curvado. Minhas mãos tremiam, o queixo também. Era possível ouvir o som dos meus dentes batendo forte um contra o outro. Não entendia o que estava acontecendo, o motivo pelo qual ele estava daquele jeito e não ia até um hospital.

Eu mal sabia bordar, e somente a possibilidade de machucá-lo ainda mais me apavorava.

— Se fosse em outro local, eu juro que não pediria isso a você, mas eu não consigo suturar as costas sozinho.

Foi então que percebi que não era a primeira vez.

— O que foi isso, Alexios?

Ele sorriu tentando me despistar, mas depois suspirou.

— Caí em cima da mesinha de centro da sala lá de cima. — Apontou para o segundo piso da cobertura. — Ela era toda espelhada, por isso me cortei.

— Caiu?

Ele não respondeu, apenas virou-se de costas para mim e começou a me dizer o que fazer.

— A agulha já está desinfetada, e eu tomei banho, mas ainda assim preciso que você passe esse antisséptico, limpe bem o sangue e comece a costurar. — Ouvi o som de sua risada. — Pense que sou um dos seus tecidos finos e delicados de almofada e borde em mim.

Bufei com a comparação.

— Não achei graça nenhuma!

Foi um longo processo, mas cumpri com o que ele pediu e somente anos depois é que entendi tudo aquilo, inclusive a história esfarrapada do “caí por cima da mesa”.

Fiz muitos favores como esse para ele por muito tempo ainda. Aprendi a costurar sua pele, a recolocar seus ossos no lugar quando se deslocavam e até mesmo a imobilizar alguma parte de seu corpo. Porém, mesmo estando ao lado dele em todos esses momentos dolorosos, Alexios só me contou que era o pai que o espancava depois que saiu de casa com Kyra.

Eu sofri tanto por pensar nas atrocidades que eles viveram, porque minha amiga até reclama do irmão, mas são farinha do mesmo saco. Não faço ideia de como Nikkós a afetou, mas é certo que ela não foi poupada da loucura do pai.

— Ei, Samara no mundo da lua! — Kyra me cutuca. — Está pensando em quê? Perguntei por Diego, e você ainda nem me respondeu o que ficou decidido.

— Nada de diferente. — Ela cruza os braços. — Temos conversado bastante por mensagens, mas ele parece não aceitar que acabou. Diz que estou em crise e que, assim que puder, virá ao Brasil.

— Para quê?

— Conversar pessoalmente. — Fecho os olhos. — Gostaria tanto que tudo fosse diferente, sabe? Que eu pudesse gostar dele da forma como deveria.

— E por que não pode? — Olho para Kyra, e ela entende a resposta. — Uma merda isso! Então você não vai voltar para Madri mais?

Penso em Diego e em todo esse tempo em que estivemos juntos, recordo-me de como me senti feliz ao lado dele e do escritório maravilhoso de design em que trabalhei durante esses anos. Ele tem alegado isso, que estou confusa por estar longe, com medo de mudar de vez para Madri e ficar longe da minha família. Não é isso! Ter voltado ao Brasil mexeu, sim, com meus sentimentos, principalmente quebrou a ilusão de que eu tinha esquecido Alexios. Por isso ainda penso em voltar a morar na Espanha, mas não quero mais me enganar e enganar outra pessoa no percurso.

— Eu gostaria de ter essa resposta, Kyra — volto a falar. — Gostaria de saber o que é melhor para mim, mas não sei. Aqui há tantos motivos para eu ficar, como também para que eu vá, mas ainda estou indecisa.

— Eu sei. — Ela sorri compreensiva.

A campainha do apartamento dela soa alto. Estranho, porque ela não me disse que teríamos companhia, mas, por sua reação, Kyra já estava à espera de alguém.

— Talvez o motivo de sua indecisão tenha chegado agora.

Arregalo os olhos com a possibilidade de ser Alexios.

— Kyra, o que você... — não termino de formular a frase, pois minha amiga abre a porta, e o vejo olhá-la com um sorriso cansado, entrar no apartamento e parar surpreso ao me ver.

— Oi — cumprimento-o.

— Oi. — Ele desvia o olhar para Kyra.

— Vou ver se o jantar já... — ela para de falar e ergue a mão dele. — O que houve?

Os olhos de Alexios não deixam os meus, então ele abre um sorriso lindo – esse é o bendito que ele usa quando quer disfarçar alguma situação séria ou desviar o assunto – e dá de ombros.

— Um pequeno acidente besta, nada importante. — Kyra parece não engolir a desculpa esfarrapada também, mas não insiste, pois conhece o irmão muito bem. — Tem cerveja?

— Claro que tem! Vou pegar umas para você. — Ela aponta para mim. — Faça companhia para a Samara.

Nós dois a olhamos, entendendo que o jantar foi uma armadilha dela para que voltemos a nos falar. Sinceramente não entendo minha amiga. Ela sabe o que sinto e o que Alexios não sente, mas ainda assim insiste em nos manter unidos, mesmo dizendo sempre que seu irmão não é uma boa opção para mim.

Como se um dia ele considerasse me ver como mulher!

— Como estão as coisas com sua mãe? — Alexios puxa assunto de repente e se senta em uma poltrona individual bem longe de onde estou.

— O primeiro ciclo de quimioterapia acabou, e ela está bem — respondo seca. — E você, como está?

Ele abre o maldito sorriso fingido.

— Ótimo! Cheio de trabalho, sem tempo para fazer bobagens...

— Não parece. — Aponto para sua mão. — Achei que seus momentos de fúria já tivessem passado desde que começou a praticar esportes. — Ele fica sério. — Por falar nisso, vi o Chicão lá no prédio esses dias. Ele está hospedado contigo?

— Está, como sempre. — Alexios olha para trás, na direção da cozinha de Kyra e respira fundo. — Eu queria pedir desculpas novamente por...

— Não precisa — interrompo-o antes que eu seja obrigada a socar sua cara.

— Preciso — ele insiste. — Kyra me contou sobre seu relacionamento — meu coração dispara ao ouvi-lo falar sobre isso como se não tivesse importância alguma. — Espero que ele seja o homem que você merece e que sejam muito felizes como você sempre sonhou.

Engulo em seco, abro um sorriso – fervendo de raiva da Kyra – e digo a primeira coisa que me vem à cabeça:

— Ele é! — minto, e Alexios fica sério, seus olhos claros fixos nos meus. — Um verdadeiro príncipe como sempre sonhei.

— Quem bom. — Ele se levanta. — Vou até a cozinha pegar a cerveja, estou morrendo de sede.

Acompanho-o com os olhos e, quando desaparece da minha vista, gemo e me dou um tapa na cabeça. Que ridícula! Por que, mesmo sendo tão madura em vários aspectos, sou uma imbecil quando estou perto dele? Parece até que estou de volta ao aniversário de 18 anos da Kyra, quando saímos nós três para comemorar, e eu fiquei com um babaca total só porque Alexios pegou uma das garçonetes da pizzaria.

Não sou mais essa garota!

Alexios e Kyra voltam para a sala, ele, bebendo uma longneck, e minha amiga, com uma travessa na mão.

— Escondidinho de camarão, como vocês dois sempre gostaram — ela anuncia.

— O cheiro está incrível! — elogio, levantando-me do sofá e indo ajudá-la. — Há muitos anos não sinto algo tão delicioso!

— Eu também não — Alexios fala perto de mim.

Os pelos do meu corpo se arrepiam todos por causa do som de sua voz e seu hálito no meu pescoço. Viro-me para ele, sem entender o motivo pelo qual está tão próximo de mim e me surpreendo por um instante ao decifrar seu olhar: fome, e não é de comida.

Balanço a cabeça, achando impossível que seu olhar esfomeado seja para mim e me afasto dele, indo posicionar os pratos como Kyra me ensinou a fazer tempos atrás.

— Andou treinando? — minha amiga brinca ao me ver executar com perfeição seu ensinamento.

— Sim, fiz alguns jantares em Madri — conto orgulhosa. — Recebi poucas pessoas, a maioria amigos, e fiz questão de colocar em prática tudo o que você me ensinou...

— E que você achava que era bobagem! — Ela ri e olha para Alexios. — Uma arquiteta de interiores deve, no mínimo, saber montar uma mesa, não acha?

Alexios franze a testa, pensa um momento e depois concorda.

— Pregar pregos na parede, fazer arranjos florais, pintar um quadro... — Kyra fica séria, e ele começa a rir. — Há profissionais para isso, Kyra, Samara é responsável pelos layouts de móveis e projetos de planejados, não precisa saber fazer tudo!

Kyra parece estupefata, e, confesso, eu também estou, porque geralmente os dois se uniam para brincar ou me provocar, e agora ele acabou de me defender!

Alexios parece ficar sem jeito com o silêncio e dá uma enorme golada, até pôr fim ao conteúdo da garrafinha de cerveja, em seguida volta para a cozinha.

— O que está rolando? — Kyra me pressiona.

— Não sei do que...

— Samara, sem essa de “não sei do que você está falando”. Não nasci ontem, percebi que vocês estão estremecidos. Achei que tinha sido por conta dos anos longe, mas achei que isso ia passar depois do baile, mas então Alexios aparece aqui mais perdido do que cachorro que caiu da mudança e se recusa a falar o que aprontou contigo na virada do ano! — Aproxima-se. — Conte-me já!

Nem em sonho!

— Não há nada para contar.

Alexios retorna, e sua irmã avança para ele igual a um anjo vingador.

— O que está rolando entre vocês dois? — Ela põe a mão na cintura. — Sempre fomos amigos! Éramos um trio, estivemos juntos nos piores momentos de nossa infância e adolescência, parem já com qualquer merda que estiverem fazendo!

— Quanto você bebeu? — Alexios debocha. — Nada está acontecendo, não é?

 

 

                                              CONTINUA