Sua pergunta me deixa paralisada, completamente sem condições para lhe responder. Por que ele me procuraria?! Porque somos amigos desde que nasci? Porque estive ao lado dele em todos os momentos? Porque ele tomou um porre, apareceu lá em casa, chorou no meu ombro, beijou-me e depois fingiu que nada tinha acontecido?
Respiro fundo para controlar o volume da voz e não gritar que ele é um idiota, mas, antes que eu abra a boca, Kyra aparece esbaforida com um telefone na mão.
— Ei, Malinha, você está com seu telefone na bolsa? — Alexios olha para a irmã, puto por ela estar nos interrompendo, e eu franzo a testa, sem entender a pergunta dela. — Seu celular! — Ela bufa... — Seu irmão acaba de ligar para o meu telefone. — E balança o aparelho.
Arregalo os olhos, meu coração dispara, e logo penso em mamãe, que vi apenas um pouco ontem, quando fui buscar o Godofredo. Pego o telefone e confiro as ligações perdidas. Noto Alexios se afastando, mas não me importo; ele continua o mesmo egoísta de sempre.
Samara Schneider está de volta!
Mastigo mais um pedaço do pernil que Kyra serviu como opção de carne na ceia de Natal e não consigo deixar de pensar na volta daquela que foi minha grande amiga e companheira.
Até hoje não entendo o que aconteceu para que ela tomasse a decisão de ir estudar na Espanha sem falar nada comigo. Claro, eu sabia que tinha a possibilidade, afinal, havia anos o pai dela pressionava por isso, para ela ir estudar arquitetura clássica na terra de Gaudí14. No entanto, para minha total surpresa, em vez de ir morar em Barcelona, Samara foi para Madri.
Eu, que até então me considerava seu melhor amigo, só fiquei sabendo desses detalhes todos porque Kyra me contou depois que fui atrás dela para saber o paradeiro de Samara.
Pego a taça com água para ajudar a engolir a comida, pois estou com um aperto na garganta desde que a vi. Eu tinha acabado de sair da sala de reuniões de Kyra depois de um ménage espetacular com Valéria e Priscila, mais animado para encarar a noite especial, sem imaginar a grande surpresa que encontraria no salão e que quase me fez tropeçar em meus próprios pés.
Assim que meus olhos bateram nela, assustei-me, pois a danada da Kyra não havia me contado que Samara tinha voltado. Tentei um sorriso e uma aproximação amigável, como se ela não tivesse me abandonado por longos três anos sem nenhuma notícia. Ela está diferente, ainda mais bonita do que eu me lembro, mas tentei não reparar muito e ser o amigo de sempre.
Nada disso adiantou, pois, ao que parece, Samara desejou que eu corresse atrás dela, que a procurasse e reestabelecesse contato. Como eu poderia imaginar algo assim? Não sou adivinho! Ela some sem nenhum motivo e ainda se sente no direito de ficar puta por eu não ter tentado contato?
Quem entende a cabeça das mulheres?!
— Sua amiga foi embora cedo — Millos comenta ao meu lado. — Será que houve algum problema com a mãe dela?
Olho para meu primo, sentado ao meu lado à mesa, e ele entende meu total desconhecimento do assunto.
— A mãe dela, dona Ana Cohen, está em tratamento contra um linfoma. — Millos bebe mais chope. — Você não sabe nada sobre a vida da sua amiga?
— E você? Como sabe?
O filho da puta apenas dá de ombros, evasivo como sempre, adorando estar sempre um passo à frente de todos. Millos é um sujeito estranho. É o único que consegue interagir com todos nós sem tomar partido e sem revelar nada da vida pessoal de ninguém, nem mesmo da sua. Somos amigos, nos damos bem, mas eu sei pouco sobre ele, sobre suas atividades, e o máximo que conheço de sua vida pessoal é que tem um passado fodido como o meu, frequenta alguns clubes de sexo, tem uma amiga que por sinal é uma gostosa do caralho – mas nunca me deu mole, infelizmente – e só.
Como profissional, o homem é uma verdadeira coruja! Quieto, observador, parece que consegue olhar em 360 graus, além de ser um caçador de informações inigualável. Não há nada que passe despercebido por ele, e o que expõe ou o que fala, tenho certeza de que é o mínimo do que sabe. Por isso, todo cuidado é pouco quando o assunto é Millos Karamanlis, porque o desgraçado é um manipulador de mão cheia!
— Eu não sabia que dona Ana está doente, não vejo os pais de Samara há anos — contesto-o. — Espero que nada grave tenha ocorrido.
— Não vai ligar para saber? — Millos volta a questionar.
Franzo as sobrancelhas, encarando-o, tentando entender o motivo pelo qual ele está tão interessado no assunto.
— Não — respondo seco e volto a comer, mesmo com o questionamento dele na cabeça. Para mim o assunto acabou! Samara já demonstrou que não quer papo comigo por algum motivo, e, mesmo chateado com isso, devo respeitar a decisão dela. Millos é um manipulador e sabe que esse é um assunto que me atinge diretamente, por isso tocou nele.
Não preciso ligar para Samara, como não liguei para ela durante todo o tempo em que esteve fora, mas isso não quer dizer que eu não queira saber o que está acontecendo. Kyra sempre foi minha fonte de informações sobre ela e, caso tenha que ser assim, continuará sendo.
Termino minha refeição, fico mais algum tempo com Kyra e seus convidados, brindo ao sucesso do negócio dela e logo depois vou embora. Tinha pretensão de ir para casa, mas, no meio do caminho, uma mulher com quem eu já saí algumas vezes me manda uma mensagem dizendo que está na cidade, e vou encontrá-la.
Dia 26 de dezembro, pior dia de trabalho do mundo, certamente! Rio ao passar por mais dois engenheiros com cara de ressaca ou, talvez, de quem comeu demais e agora passa mal do estômago.
— Melhor colocar a lixeira perto! — passo, sacaneando meu colega de trabalho, Pedro, engenheiro químico. — Se emporcalhar a sala, vai ter que limpar você mesmo.
— Porra, Alexios, fala mais baixo! — Ele põe a mão na cabeça.
Gargalho e me sento à minha mesa, lotada de projetos, planilhas e minha coleção de lápis. É, eu coleciono lápis! Cada um tem a coleção que lhe cabe, não é?
Ligo o computador, olho para meu caderno de tarefas e arregalo os olhos ao ver um nome que eu não imaginava rever anotado lá – por outra pessoa.
— Ethernium? — questiono olhando para o Pedro.
— Sim! Acabamos de saber, mas o CEO lá da Karamanlis vai querer conversar com você, certamente.
Bufo ao pensar em subir até o Olimpo para conversar com Theodoros, sem esquecer as discussões que tivemos nas últimas semanas por conta de seu egocentrismo e insensibilidade com os funcionários da casa.
Sua mania de pensar que é Deus, inabalável, inatingível e perfeito me irrita, principalmente porque sei que ele não é nada disso, apenas a porra de um filhinho de vovô mimado, que sempre achou que podia fazer qualquer coisa que quisesse sem pensar nas consequências, que o velho grego limparia suas cagadas.
Admito, o velhote sempre fez tudo para seu neto querido. Entretanto, não pôde limpar a merda que Theodoros deixou para trás, apenas jogou-a para debaixo do tapete, limpou a consciência do seu netinho querido, que seguiu a vida como se nada tivesse feito e deixou o resto se fodendo sem se importar o mínimo.
Theo é arrogante, e eu não tenho saco para lidar com gente assim.
Ouço passos, um poc-poc característico de saltos, e em seguida a voz de Lia, outra engenheira que trabalha na minha equipe direta.
— Bom dia! — sua voz soa animada. — Ah... sem Papai Noel de chocolate este ano! — ela resmunga, e eu a vejo procurando sobre sua mesa. — Poxa, Alex, você já foi mais generoso!
— Eu?! — Começo a rir. — Você realmente me imagina comprando e colocando chocolate em formato de Papai Noel nas mesas dos outros? — Ela faz careta e nega. — Eu achava que era você!
— Por quê? Só porque sou mulher?
Rolo os olhos.
— Não, porra, porque você é viciada em chocolate!
— Ele está certo, Lia! — Pedro se mete na conversa em minha defesa. — Eu também achava que era você por causa disso.
Ela se senta frustrada por não ter encontrado o presente do “Papai Noel” misterioso da Karamanlis.
— Bom, não sou eu, e eu contava com isso! Não falha por anos! — Olha em volta para as outras estações de trabalho, ainda vazias sem os profissionais. — Ninguém recebeu?
Nego, e Pedro faz o mesmo.
— Estranho...
— Coisas estranhas têm acontecido por aqui — digo e lhe estendo meu caderno com a anotação da Ethernium.
— O quê? De novo? — Ela geme. — Esses caras da Ethernium são uns malas! Sério, Alexios, eu não vou aguentar gracinhas pra o meu lado de novo não!
— Eu disse que você devia ter respondido a ele. — Dou de ombros. — Mas agora sabe que tem meu total apoio! Se alguém da equipe deles fizer piadas machistas de novo, responda.
— Quem é o machista? Que vou com você dar uma surra nele. — Eliane chega já mostrando as garras – que garras! Minhas costas sofreram com elas – e se senta em sua estação. — Bom dia, feliz Natal, foi tudo ótimo! Agora, silêncio, porque ainda estou agarrada a um cálculo estrutural que não tem me deixado dormir. Obrigada. De nada.
Pedro começa a rir, e Lia só balança a cabeça. Eliane é assim, direta e sem rodeios, por isso mesmo achei-a ideal para o trabalho pelo qual é responsável. Nós nos conhecemos em uma balada, transamos, depois voltamos a nos encontrar na entrevista dela aqui na K-Eng tempos depois. Nunca mais voltamos a trepar, mas conseguimos construir uma relação de trabalho quase perfeita. Sei que posso contar com ela para qualquer coisa aqui dentro.
Tenho mais duas pessoas na minha equipe: Evandro e Michel, mas os dois estão de férias e ainda não retornaram. Não é normal dois membros da mesma equipe saírem em férias juntos, mas, como eles são casados, a lei lhes garante esse direito.
A K-Eng não é formada apenas pela minha equipe de engenheiros em suas especialidades, a verdade é que cada um aqui gere suas próprias divisões. O Pedro, por exemplo, é engenheiro químico, e na divisão dele estão químicos industriais, técnicos em química e outros engenheiros dessa área. Já a Lia é engenheira ambiental, e, dentro de sua divisão, há biólogos, gestores ambientais e engenheiros sanitaristas. A Eliana trabalha com projetos, e ela coordena outros engenheiros, arquitetos e projetistas. O Michel faz toda a parte de planilhas e medições, e o Evandro é responsável pelas operações, é quem lida com empreiteiros, clientes e atua também como fiscalizador de obras.
Além do corpo técnico da K-Eng, a empresa, que é uma subsidiária da Karamanlis, ainda tem setores administrativos e financeiros, e eu, como CEO dessa bagaça aqui, sou quem comanda essas áreas.
O único setor que dividimos com a Karamanlis, infelizmente, é o jurídico, por isso aturo muito a prepotência inglesa do Konstantinos e seu humor ácido. Geralmente não tenho paciência com ele, zoo com sua cara ou apenas o ignoro. Ele não é bem quisto por ninguém da minha equipe, principalmente pelas mulheres.
— Por falar em machismo... — Lia volta a falar. — Será que a Kika não vai voltar mais não?
Dou uma risada por ela ter entrado no assunto justamente quando eu pensava no meu irmão machista.
— Está um silêncio total na Karamanlis — Eliana se pronuncia. — Dá até medo de andar pelos corredores, clima pesadão!
— A Kika era incrível, né? Gata, alto-astral, competente — Pedro lamenta. — Uma pena que tenha perdido a cabeça e tenha sido mandada embora...
— Opa! — Eliana o interrompe. — Ela se demitiu!
— Enfim, está desempregada depois de ter ganhado uma puta promoção para a gerência.
— Eu a preferia à Malu Ruschel. — Lia treme toda. — Aquela mulher congelava até meu sangue só de estar perto dela.
Definitivamente, não o meu!, penso ao me lembrar de Malu Ruschel, a ex-gerente dos hunters da Karamanlis. Malu era bonita, tinha classe e aquele seu jeito focado me enchia de tesão. Uma pena ter ido morar no fim do mundo!
Já com a Kika, nunca senti essa atração, talvez por sempre tê-la achado tão receptiva, maravilhosa com seu jeito espontâneo, que logo gostei dela como se fosse uma amiga de longa data. Tenho muito apreço por ela e lamento que tenha saído da empresa.
Os engenheiros começam a conversar, mas o assunto não me interessa o mínimo, então coloco meus fones de ouvido – a voz forte e rasgada da Janis Joplin soa bem alta – e volto a mexer no projeto em que estava trabalhando.
— Ei, moleque! — Millos me chama assim que para sua moto. — Você não sabe curtir um passeio, puta que pariu!
Ele desce da motocicleta, tira o capacete e a jaqueta e se senta à mesa do bar ao meu lado. Bebo minha água sem responder, porque a única coisa que eu poderia lhe falar é que não sou um velho para ficar andando nessas motos de colecionador há 80 km por hora.
Estou aqui esperando-o há pelo menos 20 minutos, e isso porque saímos juntos de São Paulo em direção ao Guarujá, em uma viagem não programada e cujo motivo, sinceramente, nem entendi. Ele apenas apareceu lá na K-Eng e me chamou para andar de moto com ele, e eu topei.
— Qual é o propósito disso? — resolvo perguntar sem rodeios.
— Do quê?
Millos agradece à garçonete que lhe entrega um coco verde com um canudo e nem percebe a moça comendo-o com os olhos (ou talvez só esteja assustada com suas tatuagens, que cobrem os braços, pescoço e peito).
— Desse “passeio”. A gente se viu há alguns dias na ceia da Kyra, e você não comentou nada sobre isso.
— Nada de mais! — Ele bebe a água de coco. — Vou viajar no Ano Novo, ficar um tempo fora e queria passar um tempo contigo. Já jantei com seus irmãos, mas como você é todo amalucado para comer, achei que uma volta de moto iria cair bem, mas esqueci que você é louco nisso também.
— Você está ficando velho, Millos, sinto lhe informar — debocho. — Acha mesmo que, com essa potência italiana nas mãos, eu iria ficar molengando contigo na estrada?
— Não é molengar, é curtir a viagem, a paisagem...
— Ah, não, você curte essas coisas paradas, não eu. Meditação, ioga, essas coisas todas aí que você faz, tô fora! Não sei ir devagar, Millos, em nada!
— Deveria... talvez assim conseguisse agradar às mulheres. — Ele pisca e tenta disfarçar a troça bebendo mais de sua água.
Eu gargalho.
— Pode ter certeza, elas não reclamam da minha rapidez. Não basta saber correr, tem que saber tirar o máximo proveito de uma máquina, fazê-la dar tudo de si, e isso eu faço.
— Está falando das motos ou das mulheres?
— Tem diferença?
Ele ri novamente.
— Você é um moleque, não sabe nada ainda!
— Falou aquele que nomeia suas motos com nomes femininos!
Nós dois rimos juntos, e o clima fica descontraído.
A verdade é que ele e eu temos muito em comum. Ambos adoramos motocicletas, rock e carne. Apesar de sua onda “zen budista”, Millos nunca conseguiu se livrar da proteína animal e das comidas pesadas que adora preparar para acompanhar suas cervejas artesanais.
Ah, esse é outro ponto em comum: adoramos cerveja! Ele fabrica, eu apenas bebo, mas tenho tanto conhecimento quanto ele, e esse é um dos pontos sobre o que mais conversamos quando estamos juntos, geralmente comendo alguma carne e ouvindo rock.
Raramente saímos juntos de moto, exatamente por ele fazer o estilo tiozão que gosta de andar de Harley, apreciando paisagens, e eu e minha Ducati Multistrada 1260 não temos saco para andar quase parando não.
Embora eu reconheça que tenho que agradecer a esse tiozão por ter minha moto dos sonhos, a que uso para correr nas competições. A Ducati só disponibilizou três unidades da 1299 Superleggera para venda no Brasil, há quase dois anos, e um dos amigos do Millos foi quem comprou uma delas, e, quando ele decidiu vendê-la, meu primo prontamente me avisou, e não pensei duas vezes.
Eu gosto das italianas mais do que das americanas ou japonesas, pelo menos para as motos; não sou tão seletivo assim com mulheres.
— Baile dos Villazzas...
— Ah, Millos, não fode com esse assunto de novo! — reclamo, entendendo agora o motivo do encontro.
— Alexios, preciso de você lá.
Rio.
— Mano, aqueles dois não são crianças, e, muito menos, sou a babá deles! Eles não precisam que eu vá para manter a ordem e o bom nome da...
— Kyra me mostrou o projeto do baile, ela parece bem animada com sua primeira grande produção sem a intervenção dos Karamanlis.
Porra! Ele vai pegar pesado!
— Você é muito filho da puta, sabia?
Millos dá de ombros e bebe mais água.
— Acho que vocês deveriam ir para apoiá-la, acima de todos, você! Será importante para ela, além disso... acho que ela está sem acompanhante, porque deu com o pé na bunda do último idiota que estava comendo.
— Porra, Millos! — Xingo-o. — É a minha irmã, porra!
— E o quê? Só por isso ela não trepa?
— Vai se foder! — Levanto-me da mesa puto e pego o capacete.
— Alexios... — ele me chama, mas não dou atenção, já montando na moto para ir o mais longe possível dele.
Antes que vocês me julguem como machista ou irmão ciumento, adianto logo que não se trata disso. Cada um lida com a merda dentro de si de um jeito, e esse é o jeito da minha irmã de lidar com seu passado. Respeito isso, mas não quer dizer que não me doa ou mesmo que eu não me sinta responsável por ela ser assim.
Eu gostaria que as coisas fossem diferentes, esforcei-me o máximo que pude para que ela fosse menos fodida do que todos nós, mas, a cada novo relacionamento seu destruído, sinto-me um fracassado, o que me dói profundamente.
Piloto rápido, passando pelos radares sem me importar com as multas, sentindo o vento forte bater em mim como se pudesse deixar todas as marcas do meu corpo e da minha alma para trás. Contudo, não posso. Ele fodeu a minha vida várias vezes, não só com as coisas que fez contra mim, mas principalmente por eu ver que também destruiu minha irmã.
— Como ela está, Dani? — pergunto ao meu irmão assim que ele entra na cozinha da casa dos meus pais, onde tomo meu desjejum com a Cida.
— Dormiu bem. — Ele beija minha cabeça. — Mas foi um susto essa febre alta assim do nada.
Ele se senta, visivelmente cansado, e Cida logo lhe serve uma xícara de café. Acostumados demais a dividir as refeições com Cida desde que nascemos, sempre tomamos nosso café juntos. Ela está em nossa casa há tanto tempo que não sei como seria minha vida sem sua presença, e certamente Daniel sente o mesmo.
Minha mãe, Ana Cohen, sempre foi muito ocupada na direção do sistema de ensino criado pelos meus avós, franqueado e distribuído por colégios do Brasil todo. Já meu pai, Benjamin, vem de uma longa linhagem de comerciantes e industriais, como bem acentua nosso sobrenome, que é uma derivação da profissão de algum ascendente que foi alfaiate.
Os Schneiders possuem lojas, fábricas ou empresas que prestam serviços, como era o nosso caso. Meu avô não tinha formação quando fundou sua primeira fábrica de móveis, porém eram um marceneiro muito habilidoso, e meu pai aprendeu com ele. Os negócios iam bem, então papai foi estudar arquitetura e, por fim, design, elevando o nível dos negócios familiares, fazendo dos móveis com nosso sobrenome sinônimos de classe e riqueza.
Há 10 anos meu irmão está à frente dos negócios, desde que papai teve seu primeiro infarto – ele já teve outro e fez duas pontes de safena. Daniel é um administrador maravilhoso, fechou com grandes empresas, e hoje os móveis Schneider não enfeitam mais as coberturas e mansões luxuosas de São Paulo, tão somente redes enormes de hospitais, clínicas, lojas de alto luxo e restaurantes em todo o país.
Meu irmão é incrível! Nós dois somos muito amigos, sempre fomos. O único ponto tenso entre nós era Alexios Karamanlis. Daniel é 10 anos mais velho que eu, um quarentão, como eu costumo provocá-lo, e sempre achou Alex uma péssima companhia. Bom, ele realmente era, mas não para mim. Eu sabia das loucuras que Alexios aprontava, seu envolvimento com drogas, farras, lutas valendo dinheiro e rachas pela cidade. Ele não foi um adolescente fácil, mas sempre me tratou como se ainda conservasse o menino que eu conheci. Sempre me deu conselhos para ficar longe de tudo aquilo que ele mesmo fazia, nossa amizade sempre foi separada das outras companhias dele.
Ainda assim, Dani nunca gostou de Alexios, em compensação, tornou-se um dos grandes amigos de Millos Karamanlis, primo do Alex, mesmo que eu não consiga entender o que, de fato, o executivo tatuado e meu irmão tenham em comum.
— Desculpe-me por tê-la tirado da festa da Kyra — meu irmão volta a falar, afastando-me dos pensamentos. — Eu liguei para o doutor Henrique e já ia pedir uma ambulância, quando fiquei com medo de acontecer algo e você não estar aqui.
Pego sua mão.
— Eu sei. Foi um susto!
Retornei as ligações dele assim que Kyra me alertou, e, quando Dani atendeu, o doutor já havia chegado e ministrado medicamentos. O médico preferiu que ela continuasse em casa por conta de sua baixa imunidade, mas ficou acompanhando durante boa parte da madrugada.
— Ela convulsionou, e eu achei que fosse... — Ele me olha, seus olhos acinzentados tristes. — Eu quase perdi o papai tempos atrás, lembra? — Assinto. — Eu estava com ele quando teve o infarto, e agora quase...
— Dani, não pensa nisso! — Abraço-o. — Você é o melhor filho e irmão do mundo, sempre ao lado deles, ao meu lado. Agora estou aqui também e vou ajudar no que for preciso.
— Eu sei, Samara. Essa fase do tratamento é a mais complicada, por causa da baixa imunidade, mas, quando ela estabiliza, é a mamãe que sempre conhecemos e amamos.
— E a Bianca? — pergunto-lhe sobre sua noiva. — Como vocês estão, faltando pouco para o grande dia?
Ele ri sem jeito.
— Você sabe que não tem essa de grande dia, não? Nós vamos ao cartório, assinaremos os papéis e pronto. — Dá de ombros. — Vida que segue.
Cruzo os braços. Não gosto nada desse conformismo estranho.
— Tem certeza disso, Dani?
Ele olha para a Cida.
— Vou fazer 41 anos, pirralha. 15 anos de relacionamento com ela, então...
— É isso? — Cida balança a cabeça negativamente. — Viu? A Cida não concorda também! E não é que você seja já um solteirão arrastando chinelos, Dani! Você é lindo!
— Não é sobre isso, Samara.
— Ele quer ter uma família, menina. — Arregalo os olhos. — Seu pai vive mais entretido na fazenda do que aqui, sua mãe, antes de adoecer, não parava quieta, sempre viajando com as amigas e...
— Eu na Espanha.
Daniel termina o café sem me encarar, sem falar nada e se levanta.
— Vou voltar para o quarto, render um pouco a enfermeira.
— Também vou, Dani!
Seguimos juntos, mudos, pelo corredor. Meu irmão é a pessoa mais discreta do mundo, completamente o oposto de outros filhos de grandes empresários desta cidade. Nunca gostou de sair em revistas de fofoca, nunca namorou modelos, atrizes ou socialites. Na adolescência, namorou uma garota da escola, depois teve duas ou três namoradas na faculdade e, por fim, conheceu a Bianca em um torneio de polo – esporte em que ele é fera. Desde então engataram nesse relacionamento xoxo, totalmente ioiô – eles já terminaram umas 30 vezes ao longo dos anos – e que agora vai se tornar um casamento meia-boca.
— Você merece mais, Dani — solto sem conseguir frear minha língua, e ele ri.
— Você diz isso porque é minha irmã, pirralha. — Ele tenta bagunçar meus cabelos como quando eu era criança. — Bianca pode não ser o grande amor da minha vida, mas é uma boa amiga e companheira.
— Isso é loucura! Você merece amar, ser amado, estar apaixonado...
— Como você esteve a vida toda por aquele doidivanas? — Paro em seco no corredor e arregalo os olhos. — Qual é, Samara, você achava que eu não sabia? Estava escrito na sua testa e em todos os seus cadernos, com direito a corações rosa! Você teve um peixe daqueles que ficam sozinhos no aquário...
— Um beta. — Começo a rir, sabendo exatamente do que ele está lembrando.
— Pois bem, você teve um beta e o nomeou...
— Beto Schneider Karamanlis — falamos juntos, e eu começo a rir.
— Sim! E como você nunca me deu indícios de ter uma queda pela Kyra, eu supus que era o outro Karamanlis. — Daniel me olha sério. — Por que Diego não veio contigo?
A pergunta é tão inesperada que demoro a processar que ele está falando do meu namorado.
— Não sei quanto tempo vou ficar, então...
— Besteira! Ele poderia passar uns dias aqui contigo, os times estão todos em recesso até a primeira semana de janeiro. — Suspiro e olho para o chão. — Não estraga sua vida, Alex não vale a pena.
Assinto, lembrando-me de tudo o que aconteceu noite passada. Alexios continua igual, vendo e querendo todas as mulheres ao seu redor, menos eu. Sempre fui a amiga, quase uma irmã, menos uma mulher, e, como acabei de perceber, todos sabem da minha paixão por ele, então, Alexios deve simplesmente ignorá-la.
Por muito tempo eu achei que ele não soubesse. Ficava fantasiando que, no dia em que eu tomasse coragem e lhe contasse, Alexios iria se declarar também. Iludida! É isso que eu era, porque, depois do beijo que trocamos, era impossível que ele não soubesse.
Respiro fundo, resignada. Alexios sabe, só não se importa e nem sente o mesmo!
Meu irmão bate levemente na porta do quarto de mamãe e em seguida entra. Sigo-o pelo enorme ambiente, que me traz tantas lembranças alegres dos momentos que dividi com ela, deitada em sua cama, contando sobre meus sonhos.
— Samara Esther! — Mamãe estende os braços, sentada na cama, recostada nos travesseiros. — Trouxe Godofredo de volta?
Rio e concordo.
— Trouxe, está lá embaixo no jardim. — Beijo sua testa. — Como está se sentindo hoje?
— Eu estou bem! — Ela dá uma olhada de esguelha para meu irmão. — Ele é superprotetor, sabe? Exagerado!
Daniel permanece alheio às críticas, conversando com a enfermeira.
— Mamãe, ele não é, e a senhora sabe! — Ana suspira. — A senhora está em tratamento, precisa de cuidados, e, com o papai isolado na fazenda, Daniel é que estava responsável por acompanhá-la em tudo, mas agora estou aqui também!
— Dois superprotetores! — ela finge reclamar, mas sorri satisfeita. — Seu pai quis vir para cá para ficar comigo, mas achei melhor que ficasse por lá. Você sabe como ele é, não me daria um minuto de paz.
Eu rio, mas sou obrigada a concordar. Meus pais são incríveis, mas têm uma relação um tanto estranha desde que Daniel e eu saímos de casa para viver nossas vidas. Passaram a viver cada um no seu espaço, com suas coisas. Dão-se incrivelmente bem, mas cada um com sua vida.
É verdade que eles não eram nada parecidos. Mamãe sempre foi uma mulher de negócios, cheia de trabalho, viagens e reuniões, porém extremamente carinhosa com os filhos. Papai é um homem mais reservado em seus sentimentos, embora seja um artista.
Olho para um dos móveis da minha mãe, e a escultura em madeira em cima dele me faz sorrir. Nela há um casal e um garotinho com a mão na enorme barriga da mulher. Papai deu vida à imagem de uma foto que tiraram quando mamãe estava grávida de mim, e a peça ficou tão perfeita que dá para sentir a alegria de todos.
Quando eu era criança, tinha coleções das esculturas dele: cavalos, cães, gatos, pássaros. A que eu mais gostava era a do Pinóquio, que ganhei quando comecei a ler e andava para baixo e para cima com o livro do boneco de madeira que queria ser menino de verdade.
— Você vai até lá visitá-lo? — minha mãe pergunta, talvez adivinhando que estou pensando nele, por estar olhando a estátua.
— Por agora não. Tentei falar com ele quando cheguei e ontem também, mas não consegui. — Dou de ombros. — Papai se isola quando quer, a senhora sabe.
— O doutor Henrique acabou de dizer que os resultados dos exames ficaram prontos e que ele virá assim que puder para conversar conosco. — Daniel senta-se ao meu lado na cama. — É bom ter Samara aqui perto, não é?
Ele me abraça pelos ombros.
— Eu também estou gostando de estar de volta.
Mal termino a frase, e meu telefone toca. A foto de Kyra tentando beijar Godofredo, e ele de boca aberta para mordê-la aparece na tela, e minha mãe sorri.
— Eu estou esperando pela visita dessa filha emprestada desnaturada. — Ana reclama. — Pode dizer a ela que não vai comer mais minha paella!
— Pode deixar! — Levanto-me da cama e vou para um canto do quarto. — Oi, Kyra! — atendo o telefone.
— Quero notícias! Mal consegui dormir essa noite, deixei mil mensagens no seu telefone. Como está sua mãe?
— Está bem, mas ameaçou greve de paella se você não vier visitá-la em breve.
— Está bem mesmo? — ouço preocupação na voz da minha amiga, e meu coração se aperta, pois sei que minha mãe foi o mais próximo que Kyra teve de figura materna. — Malinha?
— Está, sim. O médico dela explicou que, por conta da medicação, ela ficaria suscetível a doenças, a imunidade está baixa, então qualquer resfriado ataca com força.
Kyra suspira ao telefone, e eu abro um sorriso ao ver o quanto minha amiga durona é, na verdade, tão sensível quanto eu.
— Que bom! Fico feliz em ouvir isso e mais aliviada para te fazer um convite.
Faço careta, já prevendo que ela vai me meter em algum evento seu de final de ano, vestida de garçonete.
— O que você está armando, Kyra?
— Nada! — ela logo se defende, indignada. — Eu só queria companhia! Na véspera do Ano Novo acontecerá o Baile Branco e Preto dos Villazzas, e, como eu estou sem nenhum boy no momento, você podia ser meu par, o que acha?
— Kyra! — Rio. — Um baile? Sério?
— Baile? — mamãe logo se mete na conversa e pergunta lá da cama. — Por acaso é o baile dos Villazzas?
Fodeu! Minha mãe sempre amou bailes e conheceu a matriarca dos Villazzas tempos atrás, através de sua amiga, Cecília Novak. Certamente ela adorará a novidade, achará moderno eu ir acompanhando minha amiga, e eu não terei escapatória.
— É, mamãe, eu vou com Kyra — respondo resignada.
— Eu sabia! — Minha amiga ri ao telefone. — O traje branco é obrigatório para mulheres, então, abuse de cores em outros locais!
— Eu vou te matar, Kyra Karamanlis! — sussurro para que somente ela escute.
— Depois do baile; antes, quero usufruir de tudo o que planejei! Vai ser o evento mais incrível que você já viu!
Relaxo, percebendo que ela realmente está feliz e confiante.
— Tenho certeza disso, Kyra!
Nós nos despedimos, mas não retorno imediatamente para a cama, ao lado da minha mãe e do meu irmão, fico pensando em como é bom estar de volta. Realmente me sinto em casa aqui, com as pessoas que eu amo, ainda que tenha feito amigos na Espanha.
Penso no Diego e sinto um pequeno aperto no coração, um misto de saudade e remorso. Daniel me olha, curioso por eu estar parada no mesmo lugar, sem falar ou fazer nada, e reflito sobre o que ele me disse. Reconheço que eu recuei ante o pedido de casamento de Diego por ter esperança de voltar ao Brasil e encontrar Alexios mudado, porém ele não mudou e nem mudará jamais, mas isso não muda o fato de que ele ainda mexe comigo.
Diego e eu nos damos muito bem, somos amigos, companheiros, temos gostos parecidos. Enquanto eu estava na Espanha, longe do magnetismo e atração de Alexios, realmente pensei que pudesse amá-lo e ter uma vida com ele. Os momentos que passamos juntos foram maravilhosos, mas agora me questiono se, mesmo voltando para Madri, é justo manter essa relação.
O Uber me deixa em frente ao Villazza SP, e vejo a entrada principal do hotel cheia de pessoas bem-vestidas e penteadas. Ando na direção delas, questionando-me se os convites estão sendo verificados na entrada, mas me surpreendo ao ouvir um dos homens que está parado na entrada:
— Nós só queríamos comprar o convite, não conseguimos responder a tempo e...
— Senhor, o que me foi passado foi que esgotaram, eu sinto muito — um dos seguranças responde antes de se virar para mim, mas, vendo o convite em minhas mãos, abre a porta. — Seja bem-vinda!
Entro no saguão principal do enorme hotel e suspiro, apreciando todos os detalhes da construção e da decoração, orgulhosa por ter sido parte da equipe que ajudou a deixá-lo perfeito desse jeito.
O escritório de arquitetura que projetou o Villazza SP foi o dos Boldanis, e o arquiteto principal que assinou o desenho foi ninguém mais, ninguém menos que meu ídolo e professor, Julio Boldani. O italiano é fera demais nas suas linhas clássicas misturadas às modernas.
Eu ajudei o pessoal que compôs o projeto de decoração, pois estava me especializando e, por isso, trabalhei um tempo no Boldani. Foi ali que descobri que, por mais que papai fizesse pressão para que eu fosse uma arquiteta, eu queria mesmo era ser designer de interiores.
Subo as escadarias de mármore com corrimão e guarda-corpo de ferro fundido na cor ouro velho em arabescos e folhas e, no saguão da entrada do salão Royal, encontro a recepção do baile montada como se fosse uma bilheteria antiga de circo.
Sorrio ao pensar na Kyra, reconhecendo que minha amiga sabe como dar vida aos seus projetos de maneira perfeita, pois vi os desenhos quando almoçamos juntas anteontem e confesso que está tudo muito mais bonito do que a ilustração em 3D que ela me mostrou.
Olho em volta, procurando-a, pois combinamos de nos encontrar na entrada, mas arregalo os olhos ao ver Alexios, de smoking preto, vindo em minha direção.
Mesmo contra a minha vontade, minhas mãos gelam e meu coração dispara apenas por vê-lo, por notar o quanto ele está lindo com esse sorriso largo e os olhos brilhando.
Por que ele tinha que ter essa aparência e essa boca?!, penso na injustiça do mundo, indignada por ser tão comum, e ele...
— Samara Esther. — Bufo, pois só ele e minha mãe chamam-me assim. — Você está... linda!
Alexios sorri e me olha desde as unhas dos pés, pintadas e cutiladas, até o alto da cabeça.
— Linda! — repete como se não fosse possível que eu estivesse desse jeito.
— Oi, Alexios — cumprimento-o seca, tentando não dar importância ao fato de que ele parece ter tomado um soco só por me ver mais arrumada. — Estou esperando sua...
— Eu sei, foi ela quem me mandou ficar aqui de plantão te esperando. — Enrugo a testa, sem entender. — Kyra resolveu bancar a fada madrinha e ajudar uma amiga a ter seu baile com um príncipe encantado e, por isso, vai ter que trabalhar esta noite. — A expressão no rosto dele é de deboche ao falar do conto de fadas. — Então, restou a mim.
Puta merda, Kyra!
Pego o celular dentro da bolsa e mando mensagem para ela, mas tenho certeza de que, ocupada com o começo do baile, ela não irá ler. O que eu faço? Penso se devo aceitar fazer companhia ao Alexios ou se devo ir embora, afinal, só vim a esse baile por insistência da Kyra.
— Samara, eu sei que nossa amizade está um tanto estremecida por conta da distância e do tempo, mas... — Alexios me encara, e noto que ele está se esforçando para falar — eu gostaria que você me acompanhasse esta noite.
Minha boca fica seca ao ouvir isso, porque, mesmo com a distância, eu ainda consigo saber quando ele está sendo sincero. Alexios me quer ao seu lado esta noite, e isso é...
— Como nos velhos tempos, lembra? — ele complementa, e, mais uma vez, percebo o quanto sou iludida.
Nada mudou!
Imediatamente me lembro do meu baile de formatura do ensino médio, no qual ele foi meu acompanhante. Chegamos juntos, eu estava empolgada para dançar com ele a noite toda, arrumei-me para parecer uma mulher aos seus olhos e não mais a menina de cabelos revoltos que o seguia para toda parte quando criança.
Havia decidido que iria contar a ele o que sentia naquela noite e que, depois de ele se declarar também, iríamos fazer amor, e eu, aos 17 anos, finalmente teria minha primeira noite com o homem que amava.
Ledo engano!
Alexios dançou uma música comigo, depois foi para o bar, encheu a cara, sumiu com uma garota bem mais “servida” que eu e voltou para o salão todo amarrotado. Eu queria ir embora, mas ele acabou dançando (e sumindo) com mais umas três mulheres.
— Seu acompanhante te deixou sozinha, não é? — Marlon, um dos garotos que estava se formando comigo me perguntou, e só aí percebi que ele estava sentado à mesa comigo.
Começamos a conversar e, naquela noite, tive minha primeira experiência sexual. Não foi ruim, namoramos por um tempo, mas reconheço que ela só aconteceu porque Alexios não me quis. Ele simplesmente não me via!
— Samara? — ele me chama e me faz voltar à realidade.
Por Deus! Não sou mais uma garota de 17 anos, sou adulta, independente, com uma carreira bem-sucedida na Espanha e um dos homens mais gostosos de Madri ao meu lado!
— Vamos entrar! — decido e marcho até uma das “bilheterias”, onde recebo minha máscara preta e uma pulseira.
Alexios recebe as dele e ri ao me mostrar a máscara branca como a de O Fantasma da Ópera. Ah, merda!
— Você se lembra? — Ele ri. — Me obrigou a ver esse filme um milhão de vezes e sabia até as falas!
O desgraçado põe a máscara, ergue uma das sobrancelhas, dobra-se em reverência e sorri.
— Vamos logo com isso! — Saio de perto dele sem rir de sua gracinha, coração retumbando, a cabeça cheia de lembranças da nossa adolescência.
Quando as portas se abrem, perco o fôlego ao ver o que Kyra idealizou.
— Puta que pariu, minha irmã é foda! — Alexios fala ao meu lado.
Eu pulo de susto, não por causa do que ele disse, nem mesmo ao ver um dos artistas cuspindo fogo, mas tão somente por sentir a sua mão em minha cintura. Meu corpo inteiro aquece, a pele arrepia e aquela sensação que sinto desde que os hormônios despertaram em mim na adolescência volta a me tomar.
Atração! Química!
Não sei explicar, mas meu amor de criança transformou-se nisso quando me tornei moça, e a cada toque, cada resvalo, eu resfolegava. Sonhava com ele, acordava suada e sem saber o que estava acontecendo. Meu primeiro orgasmo com masturbação foi pensando nele, instintivo, depois de um sonho erótico e proibido.
Achei que, com a distância, principalmente depois que me envolvi com Diego, isso ia passar, mas parece que me enganei.
Olho-o e percebo que ele permanece alheio ao que me causa, sua atenção tomada pelos malabares que executam movimentos precisos na entrada do baile.
Respiro fundo.
— Vamos?
Ele assente sem me olhar, e seguimos juntos, passando entre os convidados que ainda se encontram de pé conversando ou bebendo no bar, em direção ao centro do salão, tomado de mesas e cadeiras reservadas.
— Onde nós...
Nem preciso terminar a pergunta, pois logo vejo Theodoros Karamanlis, acompanhado de uma lindíssima loira, a uma mesa com o sobrenome deles na placa de reserva. Eu não sou muito fã do irmão mais velho de Alexios, mas sempre fui educada com ele, então armo meu melhor sorriso e o cumprimento:
— Theo! Que bom vê-lo esta noite! — Olho para sua acompanhante agora mais de perto e sinto como se a conhecesse de algum lugar.
— Samara, essa é Valentina de Sá e Campos — Theodoros nos apresenta, e eu sorrio, reconhecendo os sobrenomes dela. — Valentina, essa é a Samara Schneider, uma incrível designer de interiores.
— É um prazer, Valentina! — saúdo-a.
— O prazer é meu, Samara. — Valentina sorri. — Nos conhecemos já?
— Eu acho que sim, embora não me recorde de onde pode ser.
A loira para a fim de tentar se lembrar, e eu ouço a conversa entre Theo e Alexios.
— Viu só esse trabalho da Kyra?
— Claro! — Alexios debocha do irmão. — Seria impossível não ver, já que estou aqui! Já fui até cumprimentá-la, mas está tão ocupada que não consegui nem falar com ela direito.
Só o suficiente para que ela o encarregasse de me acompanhar nesta noite! Kyra me paga!
— Imagino que esteja. Viu o Kostas? — Theo pergunta, mas não consigo ouvir a resposta de Alexios, pois Valentina volta a falar:
— Lembrei! — ela comemora. — Nos encontramos na festa de inauguração da loja da Miriam Benides, lembra?
Eu não faço a mínima ideia do que ela esteja falando, mas, mesmo que não esteja com nenhuma vontade de prosseguir com a conversa, sorrio e concordo por educação.
— Puxa vida, quanto tempo não vejo você por lá! — Valentina continua.
— Eu estava morando em Madri — informo antes de me sentar.
— Ah, eu adoro a Espanha!
Sorrio sem graça, percebendo que vamos conversar. Não quero ser mal-educada com ela, é só que não estou muito confortável em estar aqui neste baile, não depois de perceber que ainda quero Alexios e que não adiantou de nada impor distância.
— Família! — a voz debochada de Kostas interrompe a conversa de Valentina, e ela me pergunta baixinho quem é o homem abraçado a uma loira com um vestido branco tão justo e transparente que beira à indecência.
— Konstantinos... — sussurro antes de ele apresentar sua acompanhante a todos.
— Bruninha, conheça os Karamanlis! — Ele aponta para Alexios e para Theodoros. — Claro que você pode deixar seu cartão com eles depois, mas eu sou o mais bonito, não sou?
Ele faz a mulher girar em seu próprio eixo, e, pela primeira vez depois da tensão toda em que eu estava desde que vi Alexios, sorrio divertida. Kostas é uma figura! Ainda me lembro de quando ele morava no prédio, na cobertura de seu pai, e juro, se não fossem os olhos azuis e a voz, eu diria que não se trata da mesma pessoa!
— Já bêbado? — Theo pergunta a Alexios.
— E mais uma vez com acompanhante paga! — Alexios se aproxima de Theo e cochicha, e isso me surpreende. Não sabia que os dois estavam conseguindo ter uma relação tão cordial. — Estou achando que nosso querido irmão é do outro time.
Theo gargalha e nos olha sem graça.
— Perdoem-me, foi irresistível! — Tenta se conter e bebe mais do seu uísque. — Bom, certamente ele é arrogante e orgulhoso demais para “sair do armário”.
Quem? Kostas?! Olho para o homenzarrão com a prostituta e nego instintivamente com a cabeça. Não mesmo!
— Seria apenas mais um rejeitado pelo seu querido pappoús! — ouço Alexios dizer isso, e meu coração aperta. Olho-o, respiro fundo, lamentando profundamente por ele ainda se sentir rejeitado, percebendo que isso também não mudou.
Rejeição, abandono, violência o tornaram o homem que é. Sei disso, dei essas desculpas para seu comportamento por muitos anos. Toda vez que ele aprontava, eu usava isso para justificá-lo.
Até quando?, penso, olhando-o fixamente. Até quando ele deixará que os erros dos outros façam-no errar também?
— Você gosta muito dele, não é? — Valentina dispara, e eu desvio os olhos de Alexios. — Seus olhos brilham diferente ao olhar para ele.
— Somos amigos há muitos anos — disfarço.
— Bom, isso é muito bom, mas... — Ela ri. — Desculpe-me se estou sendo invasiva, mas seu olhar é de quem é apaixonada, não apenas uma amiga.
Dou um sorriso amarelo para ela, e Valentina fica quieta.
— Tudo bem aí? — Alexios me pergunta, e eu assinto. — O jantar já tinha sido anunciado antes de você chegar, então não deve demorar muito.
Resolvo conversar com ele normalmente, afinal, seria ridículo fazer birra na minha idade.
— Kyra estava muito ansiosa com o jantar desta noite. Um grande chef internacional, ela me contou, é quem está preparando tudo.
— Sim, está na programação. — Alexios lê o nome do chef francês, e eu não consigo deixar de olhar sua boca. Pego a taça de champanhe e a viro de uma só vez. — Uau! — Sorri e faz sinal para um garçom se aproximar com mais. — Minha acompanhante está sedenta.
— Estou. — Decido não discutir e bebo a outra taça. — E com fome também.
Alexios toca minha coxa por cima do vestido, mas logo tira a mão.
— O jantar não deve demorar — repete sério e se vira para olhar o outro lado do salão.
Fico um tempo olhando para minhas pernas, permitindo a sensação de brasa que a mão dele deixou em minha coxa passar, chateada demais por reagir assim a ele e continuar sendo praticamente invisível.
Que porra é essa que está rolando?
Essa pergunta retórica fica martelando minha cabeça enquanto tento prestar atenção em qualquer coisa neste maldito salão lotado que não seja ela. Eu só posso estar com algum problema, só pode! Samara sempre foi minha amiga, quase minha irmã. Eu estar aqui com uma maldita ereção – pela segunda vez esta noite, frise-se – só pode ser loucura!
Preciso de um médico! A loucura congênita dos Karamanlis começou a se manifestar em mim. Sentir tesão por Samara é quase... incestuoso!
Pego a taça com champanhe e a termino em uma só golada a fim de aplacar o fogo que apenas um toque em sua coxa me causou.
A verdade é que eu não esperava encontrar-me com ela nesta noite. Vim por insistência do Millos e, claro, por sua maldita manipulação eficaz ao falar da Kyra e do suporte a ela em seu primeiro grande evento. Cheguei junto aos primeiros convidados e a encontrei correndo de um lado para o outro, “armando” uma surpresa para sua amiga e funcionária, a gostosa da Helena, que, por sinal, está namorando o Bernardo Novak, um amigo de longa data.
Quando finalmente ela terminou todos os preparativos, foi à cozinha falar com o tal chef francês que a estava deixando nervosa, conferiu tudo com as bandas, DJ e artistas circenses é que me deu atenção.
— Oi, Alexios. — Sorriu cansada. — O baile nem começou direito, e eu já estou de um lado para o outro. — Ela espiou a fila se formando na recepção do evento. — Gostou da decoração?
Seus olhos verdes, como os meus, brilharam ansiosos. Eu cheguei perto dela, beijei sua testa e falei baixinho:
— Está tudo perfeito, Kyra. Parabéns, estou muito orgulhoso!
Ela suspirou e depois se afastou.
— Claro que está! Não tinha dúvida alguma disso. — E, do nada, pegou-me pela mão e me arrastou em direção ao salão. — Vem ver!
— Kyra, eu ainda não troquei meu convite e...
— Ah, Alexios, vem ver!
A decoração estava esplêndida, embora eu soubesse que, com os efeitos de luz e os artistas executando seus números, iria ficar ainda mais incrível. A banda, no palco ao fundo do salão, já estava se posicionando, e alguns funcionários de Kyra ajeitavam os últimos detalhes das mesas, arranjos florais ou acendiam as velas.
— Perfeito! — elogiei-a novamente.
— Você ainda não viu nada! — E deu aquele sorriso que eu sei que fode com a cabeça de qualquer homem. É duro ter uma irmã como ela, linda e sexy, e ver os caras babando em cima e não poder socar a fuça de nenhum. — Ah, preciso de um favor.
Estava demorando!
— Kyki, estou de smoking, mas ainda não sei segurar uma bandeja — sacaneei.
— Não, seu idiota! — Ela me estapeou as costas. — É meu par desta noite! Não vou poder participar do baile como havia previsto, então preciso que você faça companhia...
— Ei, ei, pode parar! Não vou ficar pajeando nenhum marmanjo não!
Ela rolou os olhos.
— Não é marmanjo, idiota! Posso terminar de falar? — Assenti. — É a Samara. Convidei-a a vir comigo esta noite e não quero que fique sozinha.
Samara Esther Schneider!
Fiquei um tempo olhando para Kyra, tentando entender se ela tinha feito isso de propósito, para tentar nos reaproximar, afinal, sempre fomos um trio de amigos/irmãos, e, com a relação entre mim e Samara estremecida, Kyra devia estar um tanto confusa.
— Sem problema. — Sorri. — Você avisou a ela?
— E Samara atende aquele celular? — Ela bufou. — Você terá que esperá-la lá fora. Se importa?
— Não — fui sincero.
— Ótimo, agora vaza, porque ainda tenho coisas a fazer antes de abrirmos o salão. — E, do mesmo jeito que me arrastou, colocou-me para fora.
Fiquei um bom tempo esperando por Samara do lado de fora, o que foi surpreendente, pois ela sempre foi pontual. Vi o salão ser aberto, o baile começar, o discurso do doutor Andreas Villazza, o anúncio do jantar, e nada de a minha (ex?) melhor amiga chegar.
Estava olhando para um detalhe na construção do hotel, executada pela Novak Engenharia, quando meus olhos foram atraídos para o topo da escadaria. Não é exagero eu dizer que meus olhos foram atraídos, porque foi como se um ímã puxasse minha atenção para aquele ponto.
Engasguei-me com minha própria saliva ao ver Samara. Sim, ela estava linda, mas não foi o vestido branco ou o penteado elaborado que chamou minha atenção, foi ela.
Ela é linda e, por conta da nossa amizade e do receio que tinha de machucá-la, parei de perceber sua beleza e não notei a mulher que se tornou.
Fiquei parado, tomando nota de tudo, como se a estivesse vendo pela primeira vez, sentindo um incômodo por estar olhando-a com lascívia, afinal, era a Samara!
Balancei a cabeça, tentando voltar a pôr os neurônios no lugar, justificando para mim mesmo que isso aconteceu por causa dos anos distantes, mesmo sabendo que isso era pura enganação, pois ela não mudou nada nesses últimos anos.
O que aconteceu, então? Não sei, ainda estou confuso, tentando entender por que fiquei excitado com o perfume dela ou por que meu pau acordou apenas por eu a ter segurado pela cintura a fim de andar com ela até a mesa.
Tive que ficar parado, olhando para os malabares sem vê-los realmente, com cara de paisagem, fingindo que nada estava acontecendo. Eu não queria que ela soubesse que eu estava reagindo daquela forma a ela; certamente ficaria horrorizada. Sempre fomos como irmãos!
Tentei me conter, agradeci por Theodoros e sua companhia já estarem à mesa, fiquei um tempo distraído conversando com meu irmão mais velho, mesmo que isso fosse uma dor no saco. Não sou tão rancoroso quanto o Konstantinos sobre o Theo, apesar de concordar com meu irmão sem noção sobre ele nos ter abandonado nas mãos do louco Nikkós, mas o que Theodoros poderia fazer? Eu mesmo estive nessa situação quando pude sair de casa, mas não tinha como tirar Kyra dele, por isso fiquei.
O DJ que executa as músicas antes do jantar e da banda ao vivo coloca My Immortal, de Evanescence, e é impossível não olhar para Samara.
— Sua música preferida na adolescência — comento com ela.
Samara sorri e balança a cabeça, olhando os casais indo para a pista de dança.
— Tocou na minha formatura...
— Eu sei, eu queria dançar com você, mas você não parecia muito a fim, então fui beber.
Ela arregala os olhos e me encara como se não soubesse do que eu estou falando. Provavelmente nem se lembra, estava nervosa e ficava repetindo o caminho todo dentro do carro que a gente nem deveria ter ido, que era besteira.
Não somos mais adolescentes!
— Quer dançar? — inquiro impulsivamente e estendo a mão para ela.
Samara olha para minha mão por um tempo, mas aceita.
Porra, que loucura!
Ela pega minha mão, e minha vontade é de puxá-la para mim e beijar sua boca. Foda! Não consigo mais refrear meus desejos; sempre consegui com ela, por isso não entendo o que está acontecendo agora. Não é qualquer mulher aqui comigo, indo para a pista de dança para ficar de corpo colado no meu – porra! – é a Samara!
Samara!
Minha amiga de infância!
Quase uma irmã...
MERDA!
— Está tudo bem? — ela me pergunta, e eu tento relaxar, já que estou dançando como antigamente: a um palmo de distância dela.
— Sim, tudo. — Tento dar meu famoso sorriso, mas não rola, então pigarreio. — Estou com sede, calor... acho que é essa decoração toda.
— Pode ser. — Ela desvia os olhos de mim. — Quer voltar para a mesa?
Quero!
— Não, a não ser que você...
— Tudo bem.
Ela se solta de mim no exato momento em que a música muda para um instrumental baixo e as luzes se acendem.
— O jantar. — Aponto para os garçons em fila e os convidados voltando aos seus lugares. — Vamos?
Salvo pelo gongo do cozinheiro!, penso ao ajustar disfarçadamente minha calça para não andar de pau duro e assustar a todos por causa da claridade do salão.
Samara bebe mais uma taça de champanhe, e eu rio, já preocupado. Nunca a vi beber tanto! Sempre foi séria, careta, estudiosa e boa filha. Ela nunca fazia nada de errado, nunca decepcionou os pais, fazia tudo o que eles queriam... quer dizer, tudo menos se afastar de mim.
— Acho que já quero ir — ela comenta de repente. — Vou chamar um Uber...
Levanta-se um pouco tonta, e eu a amparo pela cintura.
— Você quase não comeu, e bebeu muito — falo, e ela levanta uma sobrancelha atrevida e irônica para mim. — Não estou dando lição de moral, mesmo porque não tenho nenhuma, apenas constatei um fato.
Ela ri.
— Você não tem nenhuma moral mesmo! — arrasta a última palavra. — Sempre foi um galinha, essa cara de santo aí só engana as outras!
Gargalho.
— Elas não ficavam enganadas por muito tempo, pode acreditar!
Samara funga, indignada, e fecha os olhos.
— Eu acho que realmente bebi demais.
Olho em volta; o salão já está praticamente vazio, apenas um ou outro convidado conversando em pequenos grupos. Theodoros se despediu, com Valentina grudada em seu pescoço, há mais de uma hora, e Kostas nem jantou conosco à mesa, provavelmente ficou no bar com sua acompanhante.
Inicialmente eu tinha pensando em esperar tudo terminar para acompanhar Kyra até em casa, mas, com Samara no estado em que se encontra e com tudo aqui ainda para ser desmontado, é melhor eu levar minha amiga para casa – aproveitando que moramos no mesmo prédio – e voltar mais tarde para acompanhar minha irmã.
Pego a pequena bolsa que ela trouxe e, ainda abraçado a ela, caminho para a saída.
— Alexios... tudo está rodando...
— Muito natural depois de todo aquele champanhe.
Ela suspira e joga a cabeça para trás.
— Você é um chato, sabia? Não posso entender o que todas aquelas mulheres viam em você!
— Imagino que não possa mesmo — respondo-lhe, sabendo que vai se irritar.
Samara sempre disse que eu respondia politicamente ou me evadia quando sentia que o assunto poderia ir para alguma direção que não me deixaria confortável. Ela tinha razão na maioria das vezes, mas, neste momento, só estou a fim de irritá-la.
— Você é um babaca, Alexios Angelos!
Opa! Falou meu nome todo! Rio de sua irritação bêbada, talvez por estar um tanto alto como ela, mas sóbrio o suficiente para carregá-la em segurança até a calçada.
Não vim de moto ou carro sozinho exatamente por saber que iria beber – principalmente para aguentar sozinho a companhia dos meus irmãos à mesa –, porém previ que a saída do baile estaria um inferno e que seria difícil conseguir um táxi ou um carro de aplicativo que estivesse por perto, por isso deixei o Cris, que me trouxe, de sobreaviso no estacionamento.
Mando mensagem para ele e espero até meu carro aparecer. Abro a porta de trás e coloco sobre o banco uma Samara parcialmente adormecida por cachaça francesa.
— Essa foi nocaute! — Cris ri quando eu entro. — Para onde?
— Para o Castellani. — Ele dá um sorrisinho malicioso e pisca. — Ela é minha vizinha, Cris, sossega.
— Falou, chefinho.
— Para de merda e dirige.
Ele tenta sair da entrada do hotel, mas é praticamente impossível com o número de carros que também tentam deixar o local. Olho para trás, confiro que Samara está mesmo apagada e fecho os olhos, recostando-me contra o assento do carona.
— Foi uma festança, hein? — Cris volta a falar. — Só vi entrar filé, pena que a maioria estava acompanhada.
— Geralmente isso não é problema — comento, mordaz. — Já comi muita mulher no banheiro de recepções como essa enquanto o marido conversava com os amigos e falava de negócios.
Cris gargalha.
— Você nunca valeu nada, Lex!
Não retruco o apelido ridículo com que ele me chama e me faz parecer o vilão do Homem de Aço. É pura perda de tempo ralhar com Cristino, então simplesmente ignoro, cansado, meio zoado e com tesão frustrado.
Ele e eu nos conhecemos há alguns anos, quando visitei um dos prédios da Karamanlis que foram invadidos por movimentos pró-moradias. O homem era motorista de profissão, com anotação em sua carteira de trabalho em várias empresas, que juntou todo o dinheiro que tinha, investiu em um carro e um ponto de táxi, mas foi engolido e enxotado pelas grandes cooperativas.
Assim, quando nos conhecemos, ele estava sem casa, sem carro, sem emprego e com uma enorme dívida, fazendo bicos aqui e ali. Ajudei-o primeiro a conseguir emprego, depois por fim saiu da invasão, e, nesse ínterim, nos tornamos amigos.
Ano passado, quando a filha dele nasceu, quis que eu a apadrinhasse, mas educadamente declinei, explicando que, mesmo honrado, não poderia aceitar, pois sou ateu, e o apadrinhamento de uma criança tem a ver com questões religiosas, tem um sentido específico, e eu não seria a pessoa certa para isso. Ele entendeu, mas a garotinha já me chama de Didi (seu jeito fofo de bebê de chamar seu dindo, mesmo que oficialmente eu não o seja).
Acho que cochilei também até o Castellani, pois, quando me dei conta, já estávamos na garagem. Cris me perguntou se eu queria ajuda com Samara, mas agradeci e o mandei para casa. Ele não trabalha como meu motorista diariamente, mas sim na Karamanlis, transportando quem quer que precise fazer serviços externos. Contudo, toda vez que preciso, chamo-o para ganhar um extra.
Há muito parei de combinar bebida e direção, não por mim, mas por medo de acontecer algum acidente e eu acabar prejudicando outras pessoas.
Chamo o elevador, e somente dentro dele é que a bela adormecida parece voltar a si.
— Alexios... — Samara olha em volta. — Este é o elevador do Castellani?
— Parece que sim — respondo-lhe divertido.
Samara bufa.
— Só desmaiada é que eu aceitaria vir com você na direção nesse estado em que se encontra.
— Estou melhor que você. — Ela se encosta contra o espelho, olhos fechados e um enorme sorriso bêbado no rosto. — Além do mais, viemos com motorista.
— Bom... — Samara fala devagar e lambe os lábios como se estivessem secos. O efeito no meu pau é instantâneo. Sinto meu corpo inteiro acender, minhas mãos formigam de vontade de tocá-la. Sua pele parece brilhar, atraindo-me como uma chama atrai uma mariposa.
Tento me afastar, pensar em outra coisa, mas o espaço reduzido do elevador não ajuda. As paredes parecem se fechar cada vez mais, aproximando-me de Samara, apertando-me contra ela, espremendo meu corpo...
— Alexios... — ela geme meu nome, e eu me espremo mais, fazendo-a grudar contra o espelho. O seu perfume inebria meus pensamentos, a pele, tão quente e macia que a sinto mesmo por baixo do vestido, me enlouquece. Preciso provar o sabor de sua boca, conferir se o hálito quente e um tanto etílico se confirma em sua saliva.
Sim!
Agarro-a com mais força, minha ereção pressionada contra sua barriga, minha boca correndo em seu pescoço. Tudo parece congelar à nossa volta, não existe mais tempo e nem espaço, apenas o vácuo e nós dois dentro dele, em chamas.
Lábios nos lábios. Meus dedos esfregam sua nuca, a pele arrepia, os pelos eriçam, meu corpo treme. É a viagem mais louca que eu já fiz sem ser através de uma substância química entorpecente... não! É química ainda, é uma droga viciante, é tesão!
Devoro sua boca sem nenhum pudor ou impedimento. Ela me acolhe, abre-a para minha exploração, prende meus lábios entre seus dentes e morde com força, despertando com a dor ainda mais meu desejo.
Enfio os dedos no meio do seu penteado, seguro o cabelo com força, e ela retribui o desespero cravando as unhas nos meus ombros.
Estou pronto para fodê-la, minha cabeça já trabalha uma forma de abrir o zíper da calça social, sacar meu pau e buscar o caminho de sua boceta, que, a julgar pela forma com que ela come a minha boca, já está molhada e quente.
Um pigarrear me faz sobressaltar, e eu me afasto dela o mais rápido possível. Um casal de idosos também vestido em black tie entra no elevador no saguão do prédio, sinal de que o elevador subiu e desceu de novo enquanto nós dois quase nos comíamos dentro dele.
Olho para Samara, mas ela não parece constrangida ou assustada, apenas passa a mão pelos lábios e me encara, sua expressão cheia de perguntas e curiosidade.
Caralho, o que eu estou fazendo?! É a Samara, minha amiga, aquela que eu sempre quis manter longe desse meu lado sem vergonha! Puta que pariu!
Espero o casal descer em seu andar e, assim que as portas se fecham, respiro fundo.
— Desculpa, Samara, acho que estou mais bêbado do que imaginei a princípio. — Não tenho como olhá-la, dividido entre o constrangimento e o desejo ainda pulsando na minha calça. — Somos amigos, eu não deveria atacar você dessa forma, me des...
— Para! — sua voz soa magoada, e eu tenho vontade de socar a cabeça contra o espelho. — Não precisa dizer mais...
— Eu prometo que isso não voltará a acontecer. — Finalmente a encaro e fico fodido ao ver sua expressão confusa. Ela parece não ter gostado do que aconteceu, deve estar achando que eu sou um filho da puta aproveitador. — Você é minha amiga, Samara, mesmo depois dessa distância, eu ainda a vejo como se fosse minha irmã e...
— Chega! — ela grita, e as portas do elevador se abrem no seu andar. — Você tem razão, foi um erro e não deve voltar a acontecer!
Ouvir isso é como um balde de água fria, mesmo reconhecendo que é o certo.
— Eu não quero que isso afete novamente a amizade que nós temos e...
Samara sai pisando duro do elevador sem olhar para trás. Minha vontade é de correr atrás dela, voltar a encostá-la em alguma parede e beijá-la novamente até que perca a razão ou eu alivie esse tesão indesejável que estou sentindo.
As portas se fecham, e eu, ao invés de apertar o botão do meu andar, mando o elevador de volta para o térreo e chamo um Uber.
Preciso trepar!
— Essa sua cara de cachorro cagando na chuva é ainda ressaca do baile? — Kyra me pergunta, sentando-se ao meu lado na rede que ela tem em sua varanda. — Quer café?
Resmungo ainda com os olhos fechados:
— Quero paz!
Ela ri.
— Isso está em falta por aqui hoje, passa na semana que vem... — Encaro-a, puto com a piadinha. — O que aconteceu?
Não respondo, meus olhos fixos no topo do prédio do outro lado do parque. Balanço a cabeça, decidindo ser mais covarde do que tenho sido desde a madrugada do dia primeiro de janeiro e fecho os olhos para tentar nem pensar na confusão que arrumei.
— Você não deveria estar trabalhando hoje? Ou eu? — Kyra volta a me importunar, mas continuo mudo. — Mano, você continua o mesmo chato da porra de sempre! Fica aí com essa cara de Maria do Bairro e não abre a porcaria da boca para me contar o que diabos você fez dessa vez!
— Obrigado pela confiança em mim! — retruco irônico.
— Ah, boquinha para ser mal-educado comigo você tem! — Ela me cutuca o ombro, mas depois suspira e deita a cabeça nele. — Você sabe que faz merda, mas que eu estou aqui, disposta a te ouvir e te ajudar a limpar os cagaços. Somos uma dupla, você e eu, sempre fomos e sempre seremos.
— Costumávamos ser um trio... — assim que eu comento, imediatamente me arrependo, pois Kyra salta da rede – quase me derrubando no percurso – e emite um ensurdecedor: “ahá!”.
— Eu sabia que tinha acontecido algo na madrugada do baile! Samara está estranha, esquiva, e isso não é o natural dela. Que merda você aprontou? — Continuo ignorando-a, sem nenhuma disposição para contar sobre o beijo, o amasso e a confusão que isso criou em mim. — Alexios! — Minha irmã começa a pirar por causa do meu silêncio, mas, se me conhece um pouco, já deve imaginar que eu não irei abrir a boca para falar desse assunto. — Está certo! Você e sua maldita boca de siri. — Volta a se sentar, mas dessa vez não se deita em mim. — Alex, ela é nossa amiga, não a magoe, ok? Samara merece ser feliz, e esses anos que passou na Espanha foram ótimos para ela. Eu morria de saudades, mas estava feliz por ela estar realizada trabalhando com o que ama fazer, com um puta gato espanhol lambendo seus pés e — abro os olhos, mas Kyra não se freia — querendo formar família com ela.
Sento-me bruscamente, e Kyra balança.
— Como assim formar família?
— Ele a pediu em casamento. — Surpreendo-me, mas tento não reagir, não demonstrar. — Deu-lhe um lindíssimo e caro anel de diamante e está esperando pelo retorno dela.
Essa informação, apesar de ter me pegado de surpresa, não é nenhuma novidade. Sempre achei que algum homem de sorte iria conquistar o coração da minha amiga de infância e tê-la para sempre. Samara é a pessoa mais leal que eu conheço, mais incrível, merece muito ser feliz ao lado de alguém que valha a pena.
— Ela não estava usando anel... — penso em voz alta.
— Ainda não falou com os pais dela... — Kyra olha fundo nos meus olhos, procurando qualquer reação minha, mas sei que não irá encontrar nenhuma. Há muito aprendi a sentir sem demonstrar ou a mostrar apenas o que eu quero que os outros vejam. — Vocês não conversaram ontem?
— Acho que ainda não conseguimos estreitar os laços de amizade novamente.
— Hum... — Ela olha para seu relógio no pulso e suspira. — Preciso ir para o trabalho, vai ficar aqui? — Assinto. — Eu tenho a sensação de que você está se escondendo, só não faço ideia do quê.
Ela entra no apartamento, e novamente olho para o alto do Castellani, do outro lado do parque. Daqui do prédio onde ela mora, consigo ver o heliponto no telhado, algumas janelas da cobertura onde Cadu mora, o andar debaixo, onde Bernardo Novak reside, e uma pontinha da minha varanda. O apartamento de Samara fica uns andares abaixo do meu, então não tenho como vê-lo, mas somente por saber que ela está lá dentro, sinto vontade de ficar aqui, bem longe.
Não me entendam mal, não estou fazendo isso porque não quero que ela se aproxime de mim, pelo contrário, estou aqui, exilado como um covarde no apartamento da minha irmã mais nova, porque, se pisar no Castellani, sei que não conseguirei me manter distante dela.
Mesmo depois da maratona de sexo que fiz com uma mulher com quem já havia saído antes das festas de final de ano, não tenho segurança de estar no mesmo ambiente que Samara e me controlar para não a pressionar contra alguma parede e fodê-la sem ao menos dizer um cumprimento.
Definitivamente não vou fazer isso, não com ela!
Muito menos depois de saber que há alguém que a merece, que está à altura dela, esperando sua volta.
Rio de mim ao pensar que estou aqui, evitando-a, quando na verdade ela é quem deve estar querendo ficar a quilômetros de mim. Talvez esteja até indignada e ofendida pelo modo com que a toquei e beijei sem nenhum aviso, como se fôssemos um casal qualquer que se encontrou na balada para trepar, e não duas pessoas que são amigas desde que se entendem por gente.
Não entendo por que perdi o controle do tesão que sempre reprimi, mas me conheço o suficiente para saber que ele não passou. Raramente sinto aquela química com alguém. Era como se meu corpo estivesse sendo atraído, como se algo nela estivesse provocando reações em mim que eu não conseguia controlar. Foi animal, carnal, a famosa atração de pele que muita gente procura, mas pouca tem.
E eu tive justamente com minha melhor amiga!
Kyra volta a aparecer no meu campo de visão, agora com os belíssimos cabelos escuros, longos e fartos soltos, o rosto maquiado e uma roupa de deixar qualquer homem lobotomizado.
— Esse bode aí está foda para passar, hein? — comenta antes de se abaixar para pegar um guarda-chuva no móvel ao lado da rede. — Têm umas sobrinhas do baile na geladeira, cerveja – por favor, não tome todas, mas se tomar, as reponha –, e meu chuveiro tem muita pressão e água fresca. — Pisca para mim, e eu franzo a testa, sem entender. — Você está meio rançoso.
— Vai se ferrar, Kyra — ralho com ela, mas rio.
Ela se aproxima e beija minha testa, e isso, sim, arranca um sorriso sincero meu. Gosto que ela confie em mim o suficiente para me tocar, para recostar-se no meu ombro ou mesmo ficar abraçada, pois sei que ela não é assim com todos, principalmente com homens em geral.
— Fica bem e ouça meu conselho... — Ela anda até a porta antes de complementar: — Tome um banho, você cheira a álcool e a perfume vagabundo.
Levanto o dedo do meio para ela e a escuto ir gargalhando apartamento adentro até a porta de entrada bater. É, eu bebi bastante, sim, devo estar exalando álcool pelos poros, e o perfume barato se impregnou em minha roupa ontem, quando a recoloquei depois de mais de 12 horas nu, e a mulher me abraçou toda perfumada.
Saí do apartamento dela e vim direto para o da Kyra, torcendo para que minha irmã estivesse em casa e sozinha a fim de que eu pudesse cair aqui nesta rede onde estou e tentar pôr a cabeça certa no controle do meu corpo.
O telefone fixo toca alto, afastando meus pensamentos, e aproveito para tomar o banho aconselhado pela minha irmã viciada em limpeza. Entro na sala desabotoando a camisa branca que usei com o smoking – pois é, ainda estou com a mesma roupa do Ano Novo em pleno segundo dia do ano – e noto que não faço ideia de onde estão o paletó e a gravata-borboleta.
A primeira foto que vejo ao entrar no quarto de Kyra é uma que tiramos juntos – Samara, ela e eu – na formatura da minha irmã. Eu fui o par dela, então estava de smoking, e as duas, de vestido longo, maquiagem e penteado. Caminho até o aparador e pego o porta-retratos, focando em Samara e me perguntando como eu conseguia me manter longe do mulherão ao meu lado. Era uma beleza diferente da minha irmã, Samara tem o olhar doce, sorriso largo, nenhum mistério, seu rosto expressa suas emoções, sua sinceridade.
CONTINUA
Sua pergunta me deixa paralisada, completamente sem condições para lhe responder. Por que ele me procuraria?! Porque somos amigos desde que nasci? Porque estive ao lado dele em todos os momentos? Porque ele tomou um porre, apareceu lá em casa, chorou no meu ombro, beijou-me e depois fingiu que nada tinha acontecido?
Respiro fundo para controlar o volume da voz e não gritar que ele é um idiota, mas, antes que eu abra a boca, Kyra aparece esbaforida com um telefone na mão.
— Ei, Malinha, você está com seu telefone na bolsa? — Alexios olha para a irmã, puto por ela estar nos interrompendo, e eu franzo a testa, sem entender a pergunta dela. — Seu celular! — Ela bufa... — Seu irmão acaba de ligar para o meu telefone. — E balança o aparelho.
Arregalo os olhos, meu coração dispara, e logo penso em mamãe, que vi apenas um pouco ontem, quando fui buscar o Godofredo. Pego o telefone e confiro as ligações perdidas. Noto Alexios se afastando, mas não me importo; ele continua o mesmo egoísta de sempre.
Samara Schneider está de volta!
Mastigo mais um pedaço do pernil que Kyra serviu como opção de carne na ceia de Natal e não consigo deixar de pensar na volta daquela que foi minha grande amiga e companheira.
Até hoje não entendo o que aconteceu para que ela tomasse a decisão de ir estudar na Espanha sem falar nada comigo. Claro, eu sabia que tinha a possibilidade, afinal, havia anos o pai dela pressionava por isso, para ela ir estudar arquitetura clássica na terra de Gaudí14. No entanto, para minha total surpresa, em vez de ir morar em Barcelona, Samara foi para Madri.
Eu, que até então me considerava seu melhor amigo, só fiquei sabendo desses detalhes todos porque Kyra me contou depois que fui atrás dela para saber o paradeiro de Samara.
Pego a taça com água para ajudar a engolir a comida, pois estou com um aperto na garganta desde que a vi. Eu tinha acabado de sair da sala de reuniões de Kyra depois de um ménage espetacular com Valéria e Priscila, mais animado para encarar a noite especial, sem imaginar a grande surpresa que encontraria no salão e que quase me fez tropeçar em meus próprios pés.
Assim que meus olhos bateram nela, assustei-me, pois a danada da Kyra não havia me contado que Samara tinha voltado. Tentei um sorriso e uma aproximação amigável, como se ela não tivesse me abandonado por longos três anos sem nenhuma notícia. Ela está diferente, ainda mais bonita do que eu me lembro, mas tentei não reparar muito e ser o amigo de sempre.
Nada disso adiantou, pois, ao que parece, Samara desejou que eu corresse atrás dela, que a procurasse e reestabelecesse contato. Como eu poderia imaginar algo assim? Não sou adivinho! Ela some sem nenhum motivo e ainda se sente no direito de ficar puta por eu não ter tentado contato?
Quem entende a cabeça das mulheres?!
— Sua amiga foi embora cedo — Millos comenta ao meu lado. — Será que houve algum problema com a mãe dela?
Olho para meu primo, sentado ao meu lado à mesa, e ele entende meu total desconhecimento do assunto.
— A mãe dela, dona Ana Cohen, está em tratamento contra um linfoma. — Millos bebe mais chope. — Você não sabe nada sobre a vida da sua amiga?
— E você? Como sabe?
O filho da puta apenas dá de ombros, evasivo como sempre, adorando estar sempre um passo à frente de todos. Millos é um sujeito estranho. É o único que consegue interagir com todos nós sem tomar partido e sem revelar nada da vida pessoal de ninguém, nem mesmo da sua. Somos amigos, nos damos bem, mas eu sei pouco sobre ele, sobre suas atividades, e o máximo que conheço de sua vida pessoal é que tem um passado fodido como o meu, frequenta alguns clubes de sexo, tem uma amiga que por sinal é uma gostosa do caralho – mas nunca me deu mole, infelizmente – e só.
Como profissional, o homem é uma verdadeira coruja! Quieto, observador, parece que consegue olhar em 360 graus, além de ser um caçador de informações inigualável. Não há nada que passe despercebido por ele, e o que expõe ou o que fala, tenho certeza de que é o mínimo do que sabe. Por isso, todo cuidado é pouco quando o assunto é Millos Karamanlis, porque o desgraçado é um manipulador de mão cheia!
— Eu não sabia que dona Ana está doente, não vejo os pais de Samara há anos — contesto-o. — Espero que nada grave tenha ocorrido.
— Não vai ligar para saber? — Millos volta a questionar.
Franzo as sobrancelhas, encarando-o, tentando entender o motivo pelo qual ele está tão interessado no assunto.
— Não — respondo seco e volto a comer, mesmo com o questionamento dele na cabeça. Para mim o assunto acabou! Samara já demonstrou que não quer papo comigo por algum motivo, e, mesmo chateado com isso, devo respeitar a decisão dela. Millos é um manipulador e sabe que esse é um assunto que me atinge diretamente, por isso tocou nele.
Não preciso ligar para Samara, como não liguei para ela durante todo o tempo em que esteve fora, mas isso não quer dizer que eu não queira saber o que está acontecendo. Kyra sempre foi minha fonte de informações sobre ela e, caso tenha que ser assim, continuará sendo.
Termino minha refeição, fico mais algum tempo com Kyra e seus convidados, brindo ao sucesso do negócio dela e logo depois vou embora. Tinha pretensão de ir para casa, mas, no meio do caminho, uma mulher com quem eu já saí algumas vezes me manda uma mensagem dizendo que está na cidade, e vou encontrá-la.
Dia 26 de dezembro, pior dia de trabalho do mundo, certamente! Rio ao passar por mais dois engenheiros com cara de ressaca ou, talvez, de quem comeu demais e agora passa mal do estômago.
— Melhor colocar a lixeira perto! — passo, sacaneando meu colega de trabalho, Pedro, engenheiro químico. — Se emporcalhar a sala, vai ter que limpar você mesmo.
— Porra, Alexios, fala mais baixo! — Ele põe a mão na cabeça.
Gargalho e me sento à minha mesa, lotada de projetos, planilhas e minha coleção de lápis. É, eu coleciono lápis! Cada um tem a coleção que lhe cabe, não é?
Ligo o computador, olho para meu caderno de tarefas e arregalo os olhos ao ver um nome que eu não imaginava rever anotado lá – por outra pessoa.
— Ethernium? — questiono olhando para o Pedro.
— Sim! Acabamos de saber, mas o CEO lá da Karamanlis vai querer conversar com você, certamente.
Bufo ao pensar em subir até o Olimpo para conversar com Theodoros, sem esquecer as discussões que tivemos nas últimas semanas por conta de seu egocentrismo e insensibilidade com os funcionários da casa.
Sua mania de pensar que é Deus, inabalável, inatingível e perfeito me irrita, principalmente porque sei que ele não é nada disso, apenas a porra de um filhinho de vovô mimado, que sempre achou que podia fazer qualquer coisa que quisesse sem pensar nas consequências, que o velho grego limparia suas cagadas.
Admito, o velhote sempre fez tudo para seu neto querido. Entretanto, não pôde limpar a merda que Theodoros deixou para trás, apenas jogou-a para debaixo do tapete, limpou a consciência do seu netinho querido, que seguiu a vida como se nada tivesse feito e deixou o resto se fodendo sem se importar o mínimo.
Theo é arrogante, e eu não tenho saco para lidar com gente assim.
Ouço passos, um poc-poc característico de saltos, e em seguida a voz de Lia, outra engenheira que trabalha na minha equipe direta.
— Bom dia! — sua voz soa animada. — Ah... sem Papai Noel de chocolate este ano! — ela resmunga, e eu a vejo procurando sobre sua mesa. — Poxa, Alex, você já foi mais generoso!
— Eu?! — Começo a rir. — Você realmente me imagina comprando e colocando chocolate em formato de Papai Noel nas mesas dos outros? — Ela faz careta e nega. — Eu achava que era você!
— Por quê? Só porque sou mulher?
Rolo os olhos.
— Não, porra, porque você é viciada em chocolate!
— Ele está certo, Lia! — Pedro se mete na conversa em minha defesa. — Eu também achava que era você por causa disso.
Ela se senta frustrada por não ter encontrado o presente do “Papai Noel” misterioso da Karamanlis.
— Bom, não sou eu, e eu contava com isso! Não falha por anos! — Olha em volta para as outras estações de trabalho, ainda vazias sem os profissionais. — Ninguém recebeu?
Nego, e Pedro faz o mesmo.
— Estranho...
— Coisas estranhas têm acontecido por aqui — digo e lhe estendo meu caderno com a anotação da Ethernium.
— O quê? De novo? — Ela geme. — Esses caras da Ethernium são uns malas! Sério, Alexios, eu não vou aguentar gracinhas pra o meu lado de novo não!
— Eu disse que você devia ter respondido a ele. — Dou de ombros. — Mas agora sabe que tem meu total apoio! Se alguém da equipe deles fizer piadas machistas de novo, responda.
— Quem é o machista? Que vou com você dar uma surra nele. — Eliane chega já mostrando as garras – que garras! Minhas costas sofreram com elas – e se senta em sua estação. — Bom dia, feliz Natal, foi tudo ótimo! Agora, silêncio, porque ainda estou agarrada a um cálculo estrutural que não tem me deixado dormir. Obrigada. De nada.
Pedro começa a rir, e Lia só balança a cabeça. Eliane é assim, direta e sem rodeios, por isso mesmo achei-a ideal para o trabalho pelo qual é responsável. Nós nos conhecemos em uma balada, transamos, depois voltamos a nos encontrar na entrevista dela aqui na K-Eng tempos depois. Nunca mais voltamos a trepar, mas conseguimos construir uma relação de trabalho quase perfeita. Sei que posso contar com ela para qualquer coisa aqui dentro.
Tenho mais duas pessoas na minha equipe: Evandro e Michel, mas os dois estão de férias e ainda não retornaram. Não é normal dois membros da mesma equipe saírem em férias juntos, mas, como eles são casados, a lei lhes garante esse direito.
A K-Eng não é formada apenas pela minha equipe de engenheiros em suas especialidades, a verdade é que cada um aqui gere suas próprias divisões. O Pedro, por exemplo, é engenheiro químico, e na divisão dele estão químicos industriais, técnicos em química e outros engenheiros dessa área. Já a Lia é engenheira ambiental, e, dentro de sua divisão, há biólogos, gestores ambientais e engenheiros sanitaristas. A Eliana trabalha com projetos, e ela coordena outros engenheiros, arquitetos e projetistas. O Michel faz toda a parte de planilhas e medições, e o Evandro é responsável pelas operações, é quem lida com empreiteiros, clientes e atua também como fiscalizador de obras.
Além do corpo técnico da K-Eng, a empresa, que é uma subsidiária da Karamanlis, ainda tem setores administrativos e financeiros, e eu, como CEO dessa bagaça aqui, sou quem comanda essas áreas.
O único setor que dividimos com a Karamanlis, infelizmente, é o jurídico, por isso aturo muito a prepotência inglesa do Konstantinos e seu humor ácido. Geralmente não tenho paciência com ele, zoo com sua cara ou apenas o ignoro. Ele não é bem quisto por ninguém da minha equipe, principalmente pelas mulheres.
— Por falar em machismo... — Lia volta a falar. — Será que a Kika não vai voltar mais não?
Dou uma risada por ela ter entrado no assunto justamente quando eu pensava no meu irmão machista.
— Está um silêncio total na Karamanlis — Eliana se pronuncia. — Dá até medo de andar pelos corredores, clima pesadão!
— A Kika era incrível, né? Gata, alto-astral, competente — Pedro lamenta. — Uma pena que tenha perdido a cabeça e tenha sido mandada embora...
— Opa! — Eliana o interrompe. — Ela se demitiu!
— Enfim, está desempregada depois de ter ganhado uma puta promoção para a gerência.
— Eu a preferia à Malu Ruschel. — Lia treme toda. — Aquela mulher congelava até meu sangue só de estar perto dela.
Definitivamente, não o meu!, penso ao me lembrar de Malu Ruschel, a ex-gerente dos hunters da Karamanlis. Malu era bonita, tinha classe e aquele seu jeito focado me enchia de tesão. Uma pena ter ido morar no fim do mundo!
Já com a Kika, nunca senti essa atração, talvez por sempre tê-la achado tão receptiva, maravilhosa com seu jeito espontâneo, que logo gostei dela como se fosse uma amiga de longa data. Tenho muito apreço por ela e lamento que tenha saído da empresa.
Os engenheiros começam a conversar, mas o assunto não me interessa o mínimo, então coloco meus fones de ouvido – a voz forte e rasgada da Janis Joplin soa bem alta – e volto a mexer no projeto em que estava trabalhando.
— Ei, moleque! — Millos me chama assim que para sua moto. — Você não sabe curtir um passeio, puta que pariu!
Ele desce da motocicleta, tira o capacete e a jaqueta e se senta à mesa do bar ao meu lado. Bebo minha água sem responder, porque a única coisa que eu poderia lhe falar é que não sou um velho para ficar andando nessas motos de colecionador há 80 km por hora.
Estou aqui esperando-o há pelo menos 20 minutos, e isso porque saímos juntos de São Paulo em direção ao Guarujá, em uma viagem não programada e cujo motivo, sinceramente, nem entendi. Ele apenas apareceu lá na K-Eng e me chamou para andar de moto com ele, e eu topei.
— Qual é o propósito disso? — resolvo perguntar sem rodeios.
— Do quê?
Millos agradece à garçonete que lhe entrega um coco verde com um canudo e nem percebe a moça comendo-o com os olhos (ou talvez só esteja assustada com suas tatuagens, que cobrem os braços, pescoço e peito).
— Desse “passeio”. A gente se viu há alguns dias na ceia da Kyra, e você não comentou nada sobre isso.
— Nada de mais! — Ele bebe a água de coco. — Vou viajar no Ano Novo, ficar um tempo fora e queria passar um tempo contigo. Já jantei com seus irmãos, mas como você é todo amalucado para comer, achei que uma volta de moto iria cair bem, mas esqueci que você é louco nisso também.
— Você está ficando velho, Millos, sinto lhe informar — debocho. — Acha mesmo que, com essa potência italiana nas mãos, eu iria ficar molengando contigo na estrada?
— Não é molengar, é curtir a viagem, a paisagem...
— Ah, não, você curte essas coisas paradas, não eu. Meditação, ioga, essas coisas todas aí que você faz, tô fora! Não sei ir devagar, Millos, em nada!
— Deveria... talvez assim conseguisse agradar às mulheres. — Ele pisca e tenta disfarçar a troça bebendo mais de sua água.
Eu gargalho.
— Pode ter certeza, elas não reclamam da minha rapidez. Não basta saber correr, tem que saber tirar o máximo proveito de uma máquina, fazê-la dar tudo de si, e isso eu faço.
— Está falando das motos ou das mulheres?
— Tem diferença?
Ele ri novamente.
— Você é um moleque, não sabe nada ainda!
— Falou aquele que nomeia suas motos com nomes femininos!
Nós dois rimos juntos, e o clima fica descontraído.
A verdade é que ele e eu temos muito em comum. Ambos adoramos motocicletas, rock e carne. Apesar de sua onda “zen budista”, Millos nunca conseguiu se livrar da proteína animal e das comidas pesadas que adora preparar para acompanhar suas cervejas artesanais.
Ah, esse é outro ponto em comum: adoramos cerveja! Ele fabrica, eu apenas bebo, mas tenho tanto conhecimento quanto ele, e esse é um dos pontos sobre o que mais conversamos quando estamos juntos, geralmente comendo alguma carne e ouvindo rock.
Raramente saímos juntos de moto, exatamente por ele fazer o estilo tiozão que gosta de andar de Harley, apreciando paisagens, e eu e minha Ducati Multistrada 1260 não temos saco para andar quase parando não.
Embora eu reconheça que tenho que agradecer a esse tiozão por ter minha moto dos sonhos, a que uso para correr nas competições. A Ducati só disponibilizou três unidades da 1299 Superleggera para venda no Brasil, há quase dois anos, e um dos amigos do Millos foi quem comprou uma delas, e, quando ele decidiu vendê-la, meu primo prontamente me avisou, e não pensei duas vezes.
Eu gosto das italianas mais do que das americanas ou japonesas, pelo menos para as motos; não sou tão seletivo assim com mulheres.
— Baile dos Villazzas...
— Ah, Millos, não fode com esse assunto de novo! — reclamo, entendendo agora o motivo do encontro.
— Alexios, preciso de você lá.
Rio.
— Mano, aqueles dois não são crianças, e, muito menos, sou a babá deles! Eles não precisam que eu vá para manter a ordem e o bom nome da...
— Kyra me mostrou o projeto do baile, ela parece bem animada com sua primeira grande produção sem a intervenção dos Karamanlis.
Porra! Ele vai pegar pesado!
— Você é muito filho da puta, sabia?
Millos dá de ombros e bebe mais água.
— Acho que vocês deveriam ir para apoiá-la, acima de todos, você! Será importante para ela, além disso... acho que ela está sem acompanhante, porque deu com o pé na bunda do último idiota que estava comendo.
— Porra, Millos! — Xingo-o. — É a minha irmã, porra!
— E o quê? Só por isso ela não trepa?
— Vai se foder! — Levanto-me da mesa puto e pego o capacete.
— Alexios... — ele me chama, mas não dou atenção, já montando na moto para ir o mais longe possível dele.
Antes que vocês me julguem como machista ou irmão ciumento, adianto logo que não se trata disso. Cada um lida com a merda dentro de si de um jeito, e esse é o jeito da minha irmã de lidar com seu passado. Respeito isso, mas não quer dizer que não me doa ou mesmo que eu não me sinta responsável por ela ser assim.
Eu gostaria que as coisas fossem diferentes, esforcei-me o máximo que pude para que ela fosse menos fodida do que todos nós, mas, a cada novo relacionamento seu destruído, sinto-me um fracassado, o que me dói profundamente.
Piloto rápido, passando pelos radares sem me importar com as multas, sentindo o vento forte bater em mim como se pudesse deixar todas as marcas do meu corpo e da minha alma para trás. Contudo, não posso. Ele fodeu a minha vida várias vezes, não só com as coisas que fez contra mim, mas principalmente por eu ver que também destruiu minha irmã.
— Como ela está, Dani? — pergunto ao meu irmão assim que ele entra na cozinha da casa dos meus pais, onde tomo meu desjejum com a Cida.
— Dormiu bem. — Ele beija minha cabeça. — Mas foi um susto essa febre alta assim do nada.
Ele se senta, visivelmente cansado, e Cida logo lhe serve uma xícara de café. Acostumados demais a dividir as refeições com Cida desde que nascemos, sempre tomamos nosso café juntos. Ela está em nossa casa há tanto tempo que não sei como seria minha vida sem sua presença, e certamente Daniel sente o mesmo.
Minha mãe, Ana Cohen, sempre foi muito ocupada na direção do sistema de ensino criado pelos meus avós, franqueado e distribuído por colégios do Brasil todo. Já meu pai, Benjamin, vem de uma longa linhagem de comerciantes e industriais, como bem acentua nosso sobrenome, que é uma derivação da profissão de algum ascendente que foi alfaiate.
Os Schneiders possuem lojas, fábricas ou empresas que prestam serviços, como era o nosso caso. Meu avô não tinha formação quando fundou sua primeira fábrica de móveis, porém eram um marceneiro muito habilidoso, e meu pai aprendeu com ele. Os negócios iam bem, então papai foi estudar arquitetura e, por fim, design, elevando o nível dos negócios familiares, fazendo dos móveis com nosso sobrenome sinônimos de classe e riqueza.
Há 10 anos meu irmão está à frente dos negócios, desde que papai teve seu primeiro infarto – ele já teve outro e fez duas pontes de safena. Daniel é um administrador maravilhoso, fechou com grandes empresas, e hoje os móveis Schneider não enfeitam mais as coberturas e mansões luxuosas de São Paulo, tão somente redes enormes de hospitais, clínicas, lojas de alto luxo e restaurantes em todo o país.
Meu irmão é incrível! Nós dois somos muito amigos, sempre fomos. O único ponto tenso entre nós era Alexios Karamanlis. Daniel é 10 anos mais velho que eu, um quarentão, como eu costumo provocá-lo, e sempre achou Alex uma péssima companhia. Bom, ele realmente era, mas não para mim. Eu sabia das loucuras que Alexios aprontava, seu envolvimento com drogas, farras, lutas valendo dinheiro e rachas pela cidade. Ele não foi um adolescente fácil, mas sempre me tratou como se ainda conservasse o menino que eu conheci. Sempre me deu conselhos para ficar longe de tudo aquilo que ele mesmo fazia, nossa amizade sempre foi separada das outras companhias dele.
Ainda assim, Dani nunca gostou de Alexios, em compensação, tornou-se um dos grandes amigos de Millos Karamanlis, primo do Alex, mesmo que eu não consiga entender o que, de fato, o executivo tatuado e meu irmão tenham em comum.
— Desculpe-me por tê-la tirado da festa da Kyra — meu irmão volta a falar, afastando-me dos pensamentos. — Eu liguei para o doutor Henrique e já ia pedir uma ambulância, quando fiquei com medo de acontecer algo e você não estar aqui.
Pego sua mão.
— Eu sei. Foi um susto!
Retornei as ligações dele assim que Kyra me alertou, e, quando Dani atendeu, o doutor já havia chegado e ministrado medicamentos. O médico preferiu que ela continuasse em casa por conta de sua baixa imunidade, mas ficou acompanhando durante boa parte da madrugada.
— Ela convulsionou, e eu achei que fosse... — Ele me olha, seus olhos acinzentados tristes. — Eu quase perdi o papai tempos atrás, lembra? — Assinto. — Eu estava com ele quando teve o infarto, e agora quase...
— Dani, não pensa nisso! — Abraço-o. — Você é o melhor filho e irmão do mundo, sempre ao lado deles, ao meu lado. Agora estou aqui também e vou ajudar no que for preciso.
— Eu sei, Samara. Essa fase do tratamento é a mais complicada, por causa da baixa imunidade, mas, quando ela estabiliza, é a mamãe que sempre conhecemos e amamos.
— E a Bianca? — pergunto-lhe sobre sua noiva. — Como vocês estão, faltando pouco para o grande dia?
Ele ri sem jeito.
— Você sabe que não tem essa de grande dia, não? Nós vamos ao cartório, assinaremos os papéis e pronto. — Dá de ombros. — Vida que segue.
Cruzo os braços. Não gosto nada desse conformismo estranho.
— Tem certeza disso, Dani?
Ele olha para a Cida.
— Vou fazer 41 anos, pirralha. 15 anos de relacionamento com ela, então...
— É isso? — Cida balança a cabeça negativamente. — Viu? A Cida não concorda também! E não é que você seja já um solteirão arrastando chinelos, Dani! Você é lindo!
— Não é sobre isso, Samara.
— Ele quer ter uma família, menina. — Arregalo os olhos. — Seu pai vive mais entretido na fazenda do que aqui, sua mãe, antes de adoecer, não parava quieta, sempre viajando com as amigas e...
— Eu na Espanha.
Daniel termina o café sem me encarar, sem falar nada e se levanta.
— Vou voltar para o quarto, render um pouco a enfermeira.
— Também vou, Dani!
Seguimos juntos, mudos, pelo corredor. Meu irmão é a pessoa mais discreta do mundo, completamente o oposto de outros filhos de grandes empresários desta cidade. Nunca gostou de sair em revistas de fofoca, nunca namorou modelos, atrizes ou socialites. Na adolescência, namorou uma garota da escola, depois teve duas ou três namoradas na faculdade e, por fim, conheceu a Bianca em um torneio de polo – esporte em que ele é fera. Desde então engataram nesse relacionamento xoxo, totalmente ioiô – eles já terminaram umas 30 vezes ao longo dos anos – e que agora vai se tornar um casamento meia-boca.
— Você merece mais, Dani — solto sem conseguir frear minha língua, e ele ri.
— Você diz isso porque é minha irmã, pirralha. — Ele tenta bagunçar meus cabelos como quando eu era criança. — Bianca pode não ser o grande amor da minha vida, mas é uma boa amiga e companheira.
— Isso é loucura! Você merece amar, ser amado, estar apaixonado...
— Como você esteve a vida toda por aquele doidivanas? — Paro em seco no corredor e arregalo os olhos. — Qual é, Samara, você achava que eu não sabia? Estava escrito na sua testa e em todos os seus cadernos, com direito a corações rosa! Você teve um peixe daqueles que ficam sozinhos no aquário...
— Um beta. — Começo a rir, sabendo exatamente do que ele está lembrando.
— Pois bem, você teve um beta e o nomeou...
— Beto Schneider Karamanlis — falamos juntos, e eu começo a rir.
— Sim! E como você nunca me deu indícios de ter uma queda pela Kyra, eu supus que era o outro Karamanlis. — Daniel me olha sério. — Por que Diego não veio contigo?
A pergunta é tão inesperada que demoro a processar que ele está falando do meu namorado.
— Não sei quanto tempo vou ficar, então...
— Besteira! Ele poderia passar uns dias aqui contigo, os times estão todos em recesso até a primeira semana de janeiro. — Suspiro e olho para o chão. — Não estraga sua vida, Alex não vale a pena.
Assinto, lembrando-me de tudo o que aconteceu noite passada. Alexios continua igual, vendo e querendo todas as mulheres ao seu redor, menos eu. Sempre fui a amiga, quase uma irmã, menos uma mulher, e, como acabei de perceber, todos sabem da minha paixão por ele, então, Alexios deve simplesmente ignorá-la.
Por muito tempo eu achei que ele não soubesse. Ficava fantasiando que, no dia em que eu tomasse coragem e lhe contasse, Alexios iria se declarar também. Iludida! É isso que eu era, porque, depois do beijo que trocamos, era impossível que ele não soubesse.
Respiro fundo, resignada. Alexios sabe, só não se importa e nem sente o mesmo!
Meu irmão bate levemente na porta do quarto de mamãe e em seguida entra. Sigo-o pelo enorme ambiente, que me traz tantas lembranças alegres dos momentos que dividi com ela, deitada em sua cama, contando sobre meus sonhos.
— Samara Esther! — Mamãe estende os braços, sentada na cama, recostada nos travesseiros. — Trouxe Godofredo de volta?
Rio e concordo.
— Trouxe, está lá embaixo no jardim. — Beijo sua testa. — Como está se sentindo hoje?
— Eu estou bem! — Ela dá uma olhada de esguelha para meu irmão. — Ele é superprotetor, sabe? Exagerado!
Daniel permanece alheio às críticas, conversando com a enfermeira.
— Mamãe, ele não é, e a senhora sabe! — Ana suspira. — A senhora está em tratamento, precisa de cuidados, e, com o papai isolado na fazenda, Daniel é que estava responsável por acompanhá-la em tudo, mas agora estou aqui também!
— Dois superprotetores! — ela finge reclamar, mas sorri satisfeita. — Seu pai quis vir para cá para ficar comigo, mas achei melhor que ficasse por lá. Você sabe como ele é, não me daria um minuto de paz.
Eu rio, mas sou obrigada a concordar. Meus pais são incríveis, mas têm uma relação um tanto estranha desde que Daniel e eu saímos de casa para viver nossas vidas. Passaram a viver cada um no seu espaço, com suas coisas. Dão-se incrivelmente bem, mas cada um com sua vida.
É verdade que eles não eram nada parecidos. Mamãe sempre foi uma mulher de negócios, cheia de trabalho, viagens e reuniões, porém extremamente carinhosa com os filhos. Papai é um homem mais reservado em seus sentimentos, embora seja um artista.
Olho para um dos móveis da minha mãe, e a escultura em madeira em cima dele me faz sorrir. Nela há um casal e um garotinho com a mão na enorme barriga da mulher. Papai deu vida à imagem de uma foto que tiraram quando mamãe estava grávida de mim, e a peça ficou tão perfeita que dá para sentir a alegria de todos.
Quando eu era criança, tinha coleções das esculturas dele: cavalos, cães, gatos, pássaros. A que eu mais gostava era a do Pinóquio, que ganhei quando comecei a ler e andava para baixo e para cima com o livro do boneco de madeira que queria ser menino de verdade.
— Você vai até lá visitá-lo? — minha mãe pergunta, talvez adivinhando que estou pensando nele, por estar olhando a estátua.
— Por agora não. Tentei falar com ele quando cheguei e ontem também, mas não consegui. — Dou de ombros. — Papai se isola quando quer, a senhora sabe.
— O doutor Henrique acabou de dizer que os resultados dos exames ficaram prontos e que ele virá assim que puder para conversar conosco. — Daniel senta-se ao meu lado na cama. — É bom ter Samara aqui perto, não é?
Ele me abraça pelos ombros.
— Eu também estou gostando de estar de volta.
Mal termino a frase, e meu telefone toca. A foto de Kyra tentando beijar Godofredo, e ele de boca aberta para mordê-la aparece na tela, e minha mãe sorri.
— Eu estou esperando pela visita dessa filha emprestada desnaturada. — Ana reclama. — Pode dizer a ela que não vai comer mais minha paella!
— Pode deixar! — Levanto-me da cama e vou para um canto do quarto. — Oi, Kyra! — atendo o telefone.
— Quero notícias! Mal consegui dormir essa noite, deixei mil mensagens no seu telefone. Como está sua mãe?
— Está bem, mas ameaçou greve de paella se você não vier visitá-la em breve.
— Está bem mesmo? — ouço preocupação na voz da minha amiga, e meu coração se aperta, pois sei que minha mãe foi o mais próximo que Kyra teve de figura materna. — Malinha?
— Está, sim. O médico dela explicou que, por conta da medicação, ela ficaria suscetível a doenças, a imunidade está baixa, então qualquer resfriado ataca com força.
Kyra suspira ao telefone, e eu abro um sorriso ao ver o quanto minha amiga durona é, na verdade, tão sensível quanto eu.
— Que bom! Fico feliz em ouvir isso e mais aliviada para te fazer um convite.
Faço careta, já prevendo que ela vai me meter em algum evento seu de final de ano, vestida de garçonete.
— O que você está armando, Kyra?
— Nada! — ela logo se defende, indignada. — Eu só queria companhia! Na véspera do Ano Novo acontecerá o Baile Branco e Preto dos Villazzas, e, como eu estou sem nenhum boy no momento, você podia ser meu par, o que acha?
— Kyra! — Rio. — Um baile? Sério?
— Baile? — mamãe logo se mete na conversa e pergunta lá da cama. — Por acaso é o baile dos Villazzas?
Fodeu! Minha mãe sempre amou bailes e conheceu a matriarca dos Villazzas tempos atrás, através de sua amiga, Cecília Novak. Certamente ela adorará a novidade, achará moderno eu ir acompanhando minha amiga, e eu não terei escapatória.
— É, mamãe, eu vou com Kyra — respondo resignada.
— Eu sabia! — Minha amiga ri ao telefone. — O traje branco é obrigatório para mulheres, então, abuse de cores em outros locais!
— Eu vou te matar, Kyra Karamanlis! — sussurro para que somente ela escute.
— Depois do baile; antes, quero usufruir de tudo o que planejei! Vai ser o evento mais incrível que você já viu!
Relaxo, percebendo que ela realmente está feliz e confiante.
— Tenho certeza disso, Kyra!
Nós nos despedimos, mas não retorno imediatamente para a cama, ao lado da minha mãe e do meu irmão, fico pensando em como é bom estar de volta. Realmente me sinto em casa aqui, com as pessoas que eu amo, ainda que tenha feito amigos na Espanha.
Penso no Diego e sinto um pequeno aperto no coração, um misto de saudade e remorso. Daniel me olha, curioso por eu estar parada no mesmo lugar, sem falar ou fazer nada, e reflito sobre o que ele me disse. Reconheço que eu recuei ante o pedido de casamento de Diego por ter esperança de voltar ao Brasil e encontrar Alexios mudado, porém ele não mudou e nem mudará jamais, mas isso não muda o fato de que ele ainda mexe comigo.
Diego e eu nos damos muito bem, somos amigos, companheiros, temos gostos parecidos. Enquanto eu estava na Espanha, longe do magnetismo e atração de Alexios, realmente pensei que pudesse amá-lo e ter uma vida com ele. Os momentos que passamos juntos foram maravilhosos, mas agora me questiono se, mesmo voltando para Madri, é justo manter essa relação.
O Uber me deixa em frente ao Villazza SP, e vejo a entrada principal do hotel cheia de pessoas bem-vestidas e penteadas. Ando na direção delas, questionando-me se os convites estão sendo verificados na entrada, mas me surpreendo ao ouvir um dos homens que está parado na entrada:
— Nós só queríamos comprar o convite, não conseguimos responder a tempo e...
— Senhor, o que me foi passado foi que esgotaram, eu sinto muito — um dos seguranças responde antes de se virar para mim, mas, vendo o convite em minhas mãos, abre a porta. — Seja bem-vinda!
Entro no saguão principal do enorme hotel e suspiro, apreciando todos os detalhes da construção e da decoração, orgulhosa por ter sido parte da equipe que ajudou a deixá-lo perfeito desse jeito.
O escritório de arquitetura que projetou o Villazza SP foi o dos Boldanis, e o arquiteto principal que assinou o desenho foi ninguém mais, ninguém menos que meu ídolo e professor, Julio Boldani. O italiano é fera demais nas suas linhas clássicas misturadas às modernas.
Eu ajudei o pessoal que compôs o projeto de decoração, pois estava me especializando e, por isso, trabalhei um tempo no Boldani. Foi ali que descobri que, por mais que papai fizesse pressão para que eu fosse uma arquiteta, eu queria mesmo era ser designer de interiores.
Subo as escadarias de mármore com corrimão e guarda-corpo de ferro fundido na cor ouro velho em arabescos e folhas e, no saguão da entrada do salão Royal, encontro a recepção do baile montada como se fosse uma bilheteria antiga de circo.
Sorrio ao pensar na Kyra, reconhecendo que minha amiga sabe como dar vida aos seus projetos de maneira perfeita, pois vi os desenhos quando almoçamos juntas anteontem e confesso que está tudo muito mais bonito do que a ilustração em 3D que ela me mostrou.
Olho em volta, procurando-a, pois combinamos de nos encontrar na entrada, mas arregalo os olhos ao ver Alexios, de smoking preto, vindo em minha direção.
Mesmo contra a minha vontade, minhas mãos gelam e meu coração dispara apenas por vê-lo, por notar o quanto ele está lindo com esse sorriso largo e os olhos brilhando.
Por que ele tinha que ter essa aparência e essa boca?!, penso na injustiça do mundo, indignada por ser tão comum, e ele...
— Samara Esther. — Bufo, pois só ele e minha mãe chamam-me assim. — Você está... linda!
Alexios sorri e me olha desde as unhas dos pés, pintadas e cutiladas, até o alto da cabeça.
— Linda! — repete como se não fosse possível que eu estivesse desse jeito.
— Oi, Alexios — cumprimento-o seca, tentando não dar importância ao fato de que ele parece ter tomado um soco só por me ver mais arrumada. — Estou esperando sua...
— Eu sei, foi ela quem me mandou ficar aqui de plantão te esperando. — Enrugo a testa, sem entender. — Kyra resolveu bancar a fada madrinha e ajudar uma amiga a ter seu baile com um príncipe encantado e, por isso, vai ter que trabalhar esta noite. — A expressão no rosto dele é de deboche ao falar do conto de fadas. — Então, restou a mim.
Puta merda, Kyra!
Pego o celular dentro da bolsa e mando mensagem para ela, mas tenho certeza de que, ocupada com o começo do baile, ela não irá ler. O que eu faço? Penso se devo aceitar fazer companhia ao Alexios ou se devo ir embora, afinal, só vim a esse baile por insistência da Kyra.
— Samara, eu sei que nossa amizade está um tanto estremecida por conta da distância e do tempo, mas... — Alexios me encara, e noto que ele está se esforçando para falar — eu gostaria que você me acompanhasse esta noite.
Minha boca fica seca ao ouvir isso, porque, mesmo com a distância, eu ainda consigo saber quando ele está sendo sincero. Alexios me quer ao seu lado esta noite, e isso é...
— Como nos velhos tempos, lembra? — ele complementa, e, mais uma vez, percebo o quanto sou iludida.
Nada mudou!
Imediatamente me lembro do meu baile de formatura do ensino médio, no qual ele foi meu acompanhante. Chegamos juntos, eu estava empolgada para dançar com ele a noite toda, arrumei-me para parecer uma mulher aos seus olhos e não mais a menina de cabelos revoltos que o seguia para toda parte quando criança.
Havia decidido que iria contar a ele o que sentia naquela noite e que, depois de ele se declarar também, iríamos fazer amor, e eu, aos 17 anos, finalmente teria minha primeira noite com o homem que amava.
Ledo engano!
Alexios dançou uma música comigo, depois foi para o bar, encheu a cara, sumiu com uma garota bem mais “servida” que eu e voltou para o salão todo amarrotado. Eu queria ir embora, mas ele acabou dançando (e sumindo) com mais umas três mulheres.
— Seu acompanhante te deixou sozinha, não é? — Marlon, um dos garotos que estava se formando comigo me perguntou, e só aí percebi que ele estava sentado à mesa comigo.
Começamos a conversar e, naquela noite, tive minha primeira experiência sexual. Não foi ruim, namoramos por um tempo, mas reconheço que ela só aconteceu porque Alexios não me quis. Ele simplesmente não me via!
— Samara? — ele me chama e me faz voltar à realidade.
Por Deus! Não sou mais uma garota de 17 anos, sou adulta, independente, com uma carreira bem-sucedida na Espanha e um dos homens mais gostosos de Madri ao meu lado!
— Vamos entrar! — decido e marcho até uma das “bilheterias”, onde recebo minha máscara preta e uma pulseira.
Alexios recebe as dele e ri ao me mostrar a máscara branca como a de O Fantasma da Ópera. Ah, merda!
— Você se lembra? — Ele ri. — Me obrigou a ver esse filme um milhão de vezes e sabia até as falas!
O desgraçado põe a máscara, ergue uma das sobrancelhas, dobra-se em reverência e sorri.
— Vamos logo com isso! — Saio de perto dele sem rir de sua gracinha, coração retumbando, a cabeça cheia de lembranças da nossa adolescência.
Quando as portas se abrem, perco o fôlego ao ver o que Kyra idealizou.
— Puta que pariu, minha irmã é foda! — Alexios fala ao meu lado.
Eu pulo de susto, não por causa do que ele disse, nem mesmo ao ver um dos artistas cuspindo fogo, mas tão somente por sentir a sua mão em minha cintura. Meu corpo inteiro aquece, a pele arrepia e aquela sensação que sinto desde que os hormônios despertaram em mim na adolescência volta a me tomar.
Atração! Química!
Não sei explicar, mas meu amor de criança transformou-se nisso quando me tornei moça, e a cada toque, cada resvalo, eu resfolegava. Sonhava com ele, acordava suada e sem saber o que estava acontecendo. Meu primeiro orgasmo com masturbação foi pensando nele, instintivo, depois de um sonho erótico e proibido.
Achei que, com a distância, principalmente depois que me envolvi com Diego, isso ia passar, mas parece que me enganei.
Olho-o e percebo que ele permanece alheio ao que me causa, sua atenção tomada pelos malabares que executam movimentos precisos na entrada do baile.
Respiro fundo.
— Vamos?
Ele assente sem me olhar, e seguimos juntos, passando entre os convidados que ainda se encontram de pé conversando ou bebendo no bar, em direção ao centro do salão, tomado de mesas e cadeiras reservadas.
— Onde nós...
Nem preciso terminar a pergunta, pois logo vejo Theodoros Karamanlis, acompanhado de uma lindíssima loira, a uma mesa com o sobrenome deles na placa de reserva. Eu não sou muito fã do irmão mais velho de Alexios, mas sempre fui educada com ele, então armo meu melhor sorriso e o cumprimento:
— Theo! Que bom vê-lo esta noite! — Olho para sua acompanhante agora mais de perto e sinto como se a conhecesse de algum lugar.
— Samara, essa é Valentina de Sá e Campos — Theodoros nos apresenta, e eu sorrio, reconhecendo os sobrenomes dela. — Valentina, essa é a Samara Schneider, uma incrível designer de interiores.
— É um prazer, Valentina! — saúdo-a.
— O prazer é meu, Samara. — Valentina sorri. — Nos conhecemos já?
— Eu acho que sim, embora não me recorde de onde pode ser.
A loira para a fim de tentar se lembrar, e eu ouço a conversa entre Theo e Alexios.
— Viu só esse trabalho da Kyra?
— Claro! — Alexios debocha do irmão. — Seria impossível não ver, já que estou aqui! Já fui até cumprimentá-la, mas está tão ocupada que não consegui nem falar com ela direito.
Só o suficiente para que ela o encarregasse de me acompanhar nesta noite! Kyra me paga!
— Imagino que esteja. Viu o Kostas? — Theo pergunta, mas não consigo ouvir a resposta de Alexios, pois Valentina volta a falar:
— Lembrei! — ela comemora. — Nos encontramos na festa de inauguração da loja da Miriam Benides, lembra?
Eu não faço a mínima ideia do que ela esteja falando, mas, mesmo que não esteja com nenhuma vontade de prosseguir com a conversa, sorrio e concordo por educação.
— Puxa vida, quanto tempo não vejo você por lá! — Valentina continua.
— Eu estava morando em Madri — informo antes de me sentar.
— Ah, eu adoro a Espanha!
Sorrio sem graça, percebendo que vamos conversar. Não quero ser mal-educada com ela, é só que não estou muito confortável em estar aqui neste baile, não depois de perceber que ainda quero Alexios e que não adiantou de nada impor distância.
— Família! — a voz debochada de Kostas interrompe a conversa de Valentina, e ela me pergunta baixinho quem é o homem abraçado a uma loira com um vestido branco tão justo e transparente que beira à indecência.
— Konstantinos... — sussurro antes de ele apresentar sua acompanhante a todos.
— Bruninha, conheça os Karamanlis! — Ele aponta para Alexios e para Theodoros. — Claro que você pode deixar seu cartão com eles depois, mas eu sou o mais bonito, não sou?
Ele faz a mulher girar em seu próprio eixo, e, pela primeira vez depois da tensão toda em que eu estava desde que vi Alexios, sorrio divertida. Kostas é uma figura! Ainda me lembro de quando ele morava no prédio, na cobertura de seu pai, e juro, se não fossem os olhos azuis e a voz, eu diria que não se trata da mesma pessoa!
— Já bêbado? — Theo pergunta a Alexios.
— E mais uma vez com acompanhante paga! — Alexios se aproxima de Theo e cochicha, e isso me surpreende. Não sabia que os dois estavam conseguindo ter uma relação tão cordial. — Estou achando que nosso querido irmão é do outro time.
Theo gargalha e nos olha sem graça.
— Perdoem-me, foi irresistível! — Tenta se conter e bebe mais do seu uísque. — Bom, certamente ele é arrogante e orgulhoso demais para “sair do armário”.
Quem? Kostas?! Olho para o homenzarrão com a prostituta e nego instintivamente com a cabeça. Não mesmo!
— Seria apenas mais um rejeitado pelo seu querido pappoús! — ouço Alexios dizer isso, e meu coração aperta. Olho-o, respiro fundo, lamentando profundamente por ele ainda se sentir rejeitado, percebendo que isso também não mudou.
Rejeição, abandono, violência o tornaram o homem que é. Sei disso, dei essas desculpas para seu comportamento por muitos anos. Toda vez que ele aprontava, eu usava isso para justificá-lo.
Até quando?, penso, olhando-o fixamente. Até quando ele deixará que os erros dos outros façam-no errar também?
— Você gosta muito dele, não é? — Valentina dispara, e eu desvio os olhos de Alexios. — Seus olhos brilham diferente ao olhar para ele.
— Somos amigos há muitos anos — disfarço.
— Bom, isso é muito bom, mas... — Ela ri. — Desculpe-me se estou sendo invasiva, mas seu olhar é de quem é apaixonada, não apenas uma amiga.
Dou um sorriso amarelo para ela, e Valentina fica quieta.
— Tudo bem aí? — Alexios me pergunta, e eu assinto. — O jantar já tinha sido anunciado antes de você chegar, então não deve demorar muito.
Resolvo conversar com ele normalmente, afinal, seria ridículo fazer birra na minha idade.
— Kyra estava muito ansiosa com o jantar desta noite. Um grande chef internacional, ela me contou, é quem está preparando tudo.
— Sim, está na programação. — Alexios lê o nome do chef francês, e eu não consigo deixar de olhar sua boca. Pego a taça de champanhe e a viro de uma só vez. — Uau! — Sorri e faz sinal para um garçom se aproximar com mais. — Minha acompanhante está sedenta.
— Estou. — Decido não discutir e bebo a outra taça. — E com fome também.
Alexios toca minha coxa por cima do vestido, mas logo tira a mão.
— O jantar não deve demorar — repete sério e se vira para olhar o outro lado do salão.
Fico um tempo olhando para minhas pernas, permitindo a sensação de brasa que a mão dele deixou em minha coxa passar, chateada demais por reagir assim a ele e continuar sendo praticamente invisível.
Que porra é essa que está rolando?
Essa pergunta retórica fica martelando minha cabeça enquanto tento prestar atenção em qualquer coisa neste maldito salão lotado que não seja ela. Eu só posso estar com algum problema, só pode! Samara sempre foi minha amiga, quase minha irmã. Eu estar aqui com uma maldita ereção – pela segunda vez esta noite, frise-se – só pode ser loucura!
Preciso de um médico! A loucura congênita dos Karamanlis começou a se manifestar em mim. Sentir tesão por Samara é quase... incestuoso!
Pego a taça com champanhe e a termino em uma só golada a fim de aplacar o fogo que apenas um toque em sua coxa me causou.
A verdade é que eu não esperava encontrar-me com ela nesta noite. Vim por insistência do Millos e, claro, por sua maldita manipulação eficaz ao falar da Kyra e do suporte a ela em seu primeiro grande evento. Cheguei junto aos primeiros convidados e a encontrei correndo de um lado para o outro, “armando” uma surpresa para sua amiga e funcionária, a gostosa da Helena, que, por sinal, está namorando o Bernardo Novak, um amigo de longa data.
Quando finalmente ela terminou todos os preparativos, foi à cozinha falar com o tal chef francês que a estava deixando nervosa, conferiu tudo com as bandas, DJ e artistas circenses é que me deu atenção.
— Oi, Alexios. — Sorriu cansada. — O baile nem começou direito, e eu já estou de um lado para o outro. — Ela espiou a fila se formando na recepção do evento. — Gostou da decoração?
Seus olhos verdes, como os meus, brilharam ansiosos. Eu cheguei perto dela, beijei sua testa e falei baixinho:
— Está tudo perfeito, Kyra. Parabéns, estou muito orgulhoso!
Ela suspirou e depois se afastou.
— Claro que está! Não tinha dúvida alguma disso. — E, do nada, pegou-me pela mão e me arrastou em direção ao salão. — Vem ver!
— Kyra, eu ainda não troquei meu convite e...
— Ah, Alexios, vem ver!
A decoração estava esplêndida, embora eu soubesse que, com os efeitos de luz e os artistas executando seus números, iria ficar ainda mais incrível. A banda, no palco ao fundo do salão, já estava se posicionando, e alguns funcionários de Kyra ajeitavam os últimos detalhes das mesas, arranjos florais ou acendiam as velas.
— Perfeito! — elogiei-a novamente.
— Você ainda não viu nada! — E deu aquele sorriso que eu sei que fode com a cabeça de qualquer homem. É duro ter uma irmã como ela, linda e sexy, e ver os caras babando em cima e não poder socar a fuça de nenhum. — Ah, preciso de um favor.
Estava demorando!
— Kyki, estou de smoking, mas ainda não sei segurar uma bandeja — sacaneei.
— Não, seu idiota! — Ela me estapeou as costas. — É meu par desta noite! Não vou poder participar do baile como havia previsto, então preciso que você faça companhia...
— Ei, ei, pode parar! Não vou ficar pajeando nenhum marmanjo não!
Ela rolou os olhos.
— Não é marmanjo, idiota! Posso terminar de falar? — Assenti. — É a Samara. Convidei-a a vir comigo esta noite e não quero que fique sozinha.
Samara Esther Schneider!
Fiquei um tempo olhando para Kyra, tentando entender se ela tinha feito isso de propósito, para tentar nos reaproximar, afinal, sempre fomos um trio de amigos/irmãos, e, com a relação entre mim e Samara estremecida, Kyra devia estar um tanto confusa.
— Sem problema. — Sorri. — Você avisou a ela?
— E Samara atende aquele celular? — Ela bufou. — Você terá que esperá-la lá fora. Se importa?
— Não — fui sincero.
— Ótimo, agora vaza, porque ainda tenho coisas a fazer antes de abrirmos o salão. — E, do mesmo jeito que me arrastou, colocou-me para fora.
Fiquei um bom tempo esperando por Samara do lado de fora, o que foi surpreendente, pois ela sempre foi pontual. Vi o salão ser aberto, o baile começar, o discurso do doutor Andreas Villazza, o anúncio do jantar, e nada de a minha (ex?) melhor amiga chegar.
Estava olhando para um detalhe na construção do hotel, executada pela Novak Engenharia, quando meus olhos foram atraídos para o topo da escadaria. Não é exagero eu dizer que meus olhos foram atraídos, porque foi como se um ímã puxasse minha atenção para aquele ponto.
Engasguei-me com minha própria saliva ao ver Samara. Sim, ela estava linda, mas não foi o vestido branco ou o penteado elaborado que chamou minha atenção, foi ela.
Ela é linda e, por conta da nossa amizade e do receio que tinha de machucá-la, parei de perceber sua beleza e não notei a mulher que se tornou.
Fiquei parado, tomando nota de tudo, como se a estivesse vendo pela primeira vez, sentindo um incômodo por estar olhando-a com lascívia, afinal, era a Samara!
Balancei a cabeça, tentando voltar a pôr os neurônios no lugar, justificando para mim mesmo que isso aconteceu por causa dos anos distantes, mesmo sabendo que isso era pura enganação, pois ela não mudou nada nesses últimos anos.
O que aconteceu, então? Não sei, ainda estou confuso, tentando entender por que fiquei excitado com o perfume dela ou por que meu pau acordou apenas por eu a ter segurado pela cintura a fim de andar com ela até a mesa.
Tive que ficar parado, olhando para os malabares sem vê-los realmente, com cara de paisagem, fingindo que nada estava acontecendo. Eu não queria que ela soubesse que eu estava reagindo daquela forma a ela; certamente ficaria horrorizada. Sempre fomos como irmãos!
Tentei me conter, agradeci por Theodoros e sua companhia já estarem à mesa, fiquei um tempo distraído conversando com meu irmão mais velho, mesmo que isso fosse uma dor no saco. Não sou tão rancoroso quanto o Konstantinos sobre o Theo, apesar de concordar com meu irmão sem noção sobre ele nos ter abandonado nas mãos do louco Nikkós, mas o que Theodoros poderia fazer? Eu mesmo estive nessa situação quando pude sair de casa, mas não tinha como tirar Kyra dele, por isso fiquei.
O DJ que executa as músicas antes do jantar e da banda ao vivo coloca My Immortal, de Evanescence, e é impossível não olhar para Samara.
— Sua música preferida na adolescência — comento com ela.
Samara sorri e balança a cabeça, olhando os casais indo para a pista de dança.
— Tocou na minha formatura...
— Eu sei, eu queria dançar com você, mas você não parecia muito a fim, então fui beber.
Ela arregala os olhos e me encara como se não soubesse do que eu estou falando. Provavelmente nem se lembra, estava nervosa e ficava repetindo o caminho todo dentro do carro que a gente nem deveria ter ido, que era besteira.
Não somos mais adolescentes!
— Quer dançar? — inquiro impulsivamente e estendo a mão para ela.
Samara olha para minha mão por um tempo, mas aceita.
Porra, que loucura!
Ela pega minha mão, e minha vontade é de puxá-la para mim e beijar sua boca. Foda! Não consigo mais refrear meus desejos; sempre consegui com ela, por isso não entendo o que está acontecendo agora. Não é qualquer mulher aqui comigo, indo para a pista de dança para ficar de corpo colado no meu – porra! – é a Samara!
Samara!
Minha amiga de infância!
Quase uma irmã...
MERDA!
— Está tudo bem? — ela me pergunta, e eu tento relaxar, já que estou dançando como antigamente: a um palmo de distância dela.
— Sim, tudo. — Tento dar meu famoso sorriso, mas não rola, então pigarreio. — Estou com sede, calor... acho que é essa decoração toda.
— Pode ser. — Ela desvia os olhos de mim. — Quer voltar para a mesa?
Quero!
— Não, a não ser que você...
— Tudo bem.
Ela se solta de mim no exato momento em que a música muda para um instrumental baixo e as luzes se acendem.
— O jantar. — Aponto para os garçons em fila e os convidados voltando aos seus lugares. — Vamos?
Salvo pelo gongo do cozinheiro!, penso ao ajustar disfarçadamente minha calça para não andar de pau duro e assustar a todos por causa da claridade do salão.
Samara bebe mais uma taça de champanhe, e eu rio, já preocupado. Nunca a vi beber tanto! Sempre foi séria, careta, estudiosa e boa filha. Ela nunca fazia nada de errado, nunca decepcionou os pais, fazia tudo o que eles queriam... quer dizer, tudo menos se afastar de mim.
— Acho que já quero ir — ela comenta de repente. — Vou chamar um Uber...
Levanta-se um pouco tonta, e eu a amparo pela cintura.
— Você quase não comeu, e bebeu muito — falo, e ela levanta uma sobrancelha atrevida e irônica para mim. — Não estou dando lição de moral, mesmo porque não tenho nenhuma, apenas constatei um fato.
Ela ri.
— Você não tem nenhuma moral mesmo! — arrasta a última palavra. — Sempre foi um galinha, essa cara de santo aí só engana as outras!
Gargalho.
— Elas não ficavam enganadas por muito tempo, pode acreditar!
Samara funga, indignada, e fecha os olhos.
— Eu acho que realmente bebi demais.
Olho em volta; o salão já está praticamente vazio, apenas um ou outro convidado conversando em pequenos grupos. Theodoros se despediu, com Valentina grudada em seu pescoço, há mais de uma hora, e Kostas nem jantou conosco à mesa, provavelmente ficou no bar com sua acompanhante.
Inicialmente eu tinha pensando em esperar tudo terminar para acompanhar Kyra até em casa, mas, com Samara no estado em que se encontra e com tudo aqui ainda para ser desmontado, é melhor eu levar minha amiga para casa – aproveitando que moramos no mesmo prédio – e voltar mais tarde para acompanhar minha irmã.
Pego a pequena bolsa que ela trouxe e, ainda abraçado a ela, caminho para a saída.
— Alexios... tudo está rodando...
— Muito natural depois de todo aquele champanhe.
Ela suspira e joga a cabeça para trás.
— Você é um chato, sabia? Não posso entender o que todas aquelas mulheres viam em você!
— Imagino que não possa mesmo — respondo-lhe, sabendo que vai se irritar.
Samara sempre disse que eu respondia politicamente ou me evadia quando sentia que o assunto poderia ir para alguma direção que não me deixaria confortável. Ela tinha razão na maioria das vezes, mas, neste momento, só estou a fim de irritá-la.
— Você é um babaca, Alexios Angelos!
Opa! Falou meu nome todo! Rio de sua irritação bêbada, talvez por estar um tanto alto como ela, mas sóbrio o suficiente para carregá-la em segurança até a calçada.
Não vim de moto ou carro sozinho exatamente por saber que iria beber – principalmente para aguentar sozinho a companhia dos meus irmãos à mesa –, porém previ que a saída do baile estaria um inferno e que seria difícil conseguir um táxi ou um carro de aplicativo que estivesse por perto, por isso deixei o Cris, que me trouxe, de sobreaviso no estacionamento.
Mando mensagem para ele e espero até meu carro aparecer. Abro a porta de trás e coloco sobre o banco uma Samara parcialmente adormecida por cachaça francesa.
— Essa foi nocaute! — Cris ri quando eu entro. — Para onde?
— Para o Castellani. — Ele dá um sorrisinho malicioso e pisca. — Ela é minha vizinha, Cris, sossega.
— Falou, chefinho.
— Para de merda e dirige.
Ele tenta sair da entrada do hotel, mas é praticamente impossível com o número de carros que também tentam deixar o local. Olho para trás, confiro que Samara está mesmo apagada e fecho os olhos, recostando-me contra o assento do carona.
— Foi uma festança, hein? — Cris volta a falar. — Só vi entrar filé, pena que a maioria estava acompanhada.
— Geralmente isso não é problema — comento, mordaz. — Já comi muita mulher no banheiro de recepções como essa enquanto o marido conversava com os amigos e falava de negócios.
Cris gargalha.
— Você nunca valeu nada, Lex!
Não retruco o apelido ridículo com que ele me chama e me faz parecer o vilão do Homem de Aço. É pura perda de tempo ralhar com Cristino, então simplesmente ignoro, cansado, meio zoado e com tesão frustrado.
Ele e eu nos conhecemos há alguns anos, quando visitei um dos prédios da Karamanlis que foram invadidos por movimentos pró-moradias. O homem era motorista de profissão, com anotação em sua carteira de trabalho em várias empresas, que juntou todo o dinheiro que tinha, investiu em um carro e um ponto de táxi, mas foi engolido e enxotado pelas grandes cooperativas.
Assim, quando nos conhecemos, ele estava sem casa, sem carro, sem emprego e com uma enorme dívida, fazendo bicos aqui e ali. Ajudei-o primeiro a conseguir emprego, depois por fim saiu da invasão, e, nesse ínterim, nos tornamos amigos.
Ano passado, quando a filha dele nasceu, quis que eu a apadrinhasse, mas educadamente declinei, explicando que, mesmo honrado, não poderia aceitar, pois sou ateu, e o apadrinhamento de uma criança tem a ver com questões religiosas, tem um sentido específico, e eu não seria a pessoa certa para isso. Ele entendeu, mas a garotinha já me chama de Didi (seu jeito fofo de bebê de chamar seu dindo, mesmo que oficialmente eu não o seja).
Acho que cochilei também até o Castellani, pois, quando me dei conta, já estávamos na garagem. Cris me perguntou se eu queria ajuda com Samara, mas agradeci e o mandei para casa. Ele não trabalha como meu motorista diariamente, mas sim na Karamanlis, transportando quem quer que precise fazer serviços externos. Contudo, toda vez que preciso, chamo-o para ganhar um extra.
Há muito parei de combinar bebida e direção, não por mim, mas por medo de acontecer algum acidente e eu acabar prejudicando outras pessoas.
Chamo o elevador, e somente dentro dele é que a bela adormecida parece voltar a si.
— Alexios... — Samara olha em volta. — Este é o elevador do Castellani?
— Parece que sim — respondo-lhe divertido.
Samara bufa.
— Só desmaiada é que eu aceitaria vir com você na direção nesse estado em que se encontra.
— Estou melhor que você. — Ela se encosta contra o espelho, olhos fechados e um enorme sorriso bêbado no rosto. — Além do mais, viemos com motorista.
— Bom... — Samara fala devagar e lambe os lábios como se estivessem secos. O efeito no meu pau é instantâneo. Sinto meu corpo inteiro acender, minhas mãos formigam de vontade de tocá-la. Sua pele parece brilhar, atraindo-me como uma chama atrai uma mariposa.
Tento me afastar, pensar em outra coisa, mas o espaço reduzido do elevador não ajuda. As paredes parecem se fechar cada vez mais, aproximando-me de Samara, apertando-me contra ela, espremendo meu corpo...
— Alexios... — ela geme meu nome, e eu me espremo mais, fazendo-a grudar contra o espelho. O seu perfume inebria meus pensamentos, a pele, tão quente e macia que a sinto mesmo por baixo do vestido, me enlouquece. Preciso provar o sabor de sua boca, conferir se o hálito quente e um tanto etílico se confirma em sua saliva.
Sim!
Agarro-a com mais força, minha ereção pressionada contra sua barriga, minha boca correndo em seu pescoço. Tudo parece congelar à nossa volta, não existe mais tempo e nem espaço, apenas o vácuo e nós dois dentro dele, em chamas.
Lábios nos lábios. Meus dedos esfregam sua nuca, a pele arrepia, os pelos eriçam, meu corpo treme. É a viagem mais louca que eu já fiz sem ser através de uma substância química entorpecente... não! É química ainda, é uma droga viciante, é tesão!
Devoro sua boca sem nenhum pudor ou impedimento. Ela me acolhe, abre-a para minha exploração, prende meus lábios entre seus dentes e morde com força, despertando com a dor ainda mais meu desejo.
Enfio os dedos no meio do seu penteado, seguro o cabelo com força, e ela retribui o desespero cravando as unhas nos meus ombros.
Estou pronto para fodê-la, minha cabeça já trabalha uma forma de abrir o zíper da calça social, sacar meu pau e buscar o caminho de sua boceta, que, a julgar pela forma com que ela come a minha boca, já está molhada e quente.
Um pigarrear me faz sobressaltar, e eu me afasto dela o mais rápido possível. Um casal de idosos também vestido em black tie entra no elevador no saguão do prédio, sinal de que o elevador subiu e desceu de novo enquanto nós dois quase nos comíamos dentro dele.
Olho para Samara, mas ela não parece constrangida ou assustada, apenas passa a mão pelos lábios e me encara, sua expressão cheia de perguntas e curiosidade.
Caralho, o que eu estou fazendo?! É a Samara, minha amiga, aquela que eu sempre quis manter longe desse meu lado sem vergonha! Puta que pariu!
Espero o casal descer em seu andar e, assim que as portas se fecham, respiro fundo.
— Desculpa, Samara, acho que estou mais bêbado do que imaginei a princípio. — Não tenho como olhá-la, dividido entre o constrangimento e o desejo ainda pulsando na minha calça. — Somos amigos, eu não deveria atacar você dessa forma, me des...
— Para! — sua voz soa magoada, e eu tenho vontade de socar a cabeça contra o espelho. — Não precisa dizer mais...
— Eu prometo que isso não voltará a acontecer. — Finalmente a encaro e fico fodido ao ver sua expressão confusa. Ela parece não ter gostado do que aconteceu, deve estar achando que eu sou um filho da puta aproveitador. — Você é minha amiga, Samara, mesmo depois dessa distância, eu ainda a vejo como se fosse minha irmã e...
— Chega! — ela grita, e as portas do elevador se abrem no seu andar. — Você tem razão, foi um erro e não deve voltar a acontecer!
Ouvir isso é como um balde de água fria, mesmo reconhecendo que é o certo.
— Eu não quero que isso afete novamente a amizade que nós temos e...
Samara sai pisando duro do elevador sem olhar para trás. Minha vontade é de correr atrás dela, voltar a encostá-la em alguma parede e beijá-la novamente até que perca a razão ou eu alivie esse tesão indesejável que estou sentindo.
As portas se fecham, e eu, ao invés de apertar o botão do meu andar, mando o elevador de volta para o térreo e chamo um Uber.
Preciso trepar!
— Essa sua cara de cachorro cagando na chuva é ainda ressaca do baile? — Kyra me pergunta, sentando-se ao meu lado na rede que ela tem em sua varanda. — Quer café?
Resmungo ainda com os olhos fechados:
— Quero paz!
Ela ri.
— Isso está em falta por aqui hoje, passa na semana que vem... — Encaro-a, puto com a piadinha. — O que aconteceu?
Não respondo, meus olhos fixos no topo do prédio do outro lado do parque. Balanço a cabeça, decidindo ser mais covarde do que tenho sido desde a madrugada do dia primeiro de janeiro e fecho os olhos para tentar nem pensar na confusão que arrumei.
— Você não deveria estar trabalhando hoje? Ou eu? — Kyra volta a me importunar, mas continuo mudo. — Mano, você continua o mesmo chato da porra de sempre! Fica aí com essa cara de Maria do Bairro e não abre a porcaria da boca para me contar o que diabos você fez dessa vez!
— Obrigado pela confiança em mim! — retruco irônico.
— Ah, boquinha para ser mal-educado comigo você tem! — Ela me cutuca o ombro, mas depois suspira e deita a cabeça nele. — Você sabe que faz merda, mas que eu estou aqui, disposta a te ouvir e te ajudar a limpar os cagaços. Somos uma dupla, você e eu, sempre fomos e sempre seremos.
— Costumávamos ser um trio... — assim que eu comento, imediatamente me arrependo, pois Kyra salta da rede – quase me derrubando no percurso – e emite um ensurdecedor: “ahá!”.
— Eu sabia que tinha acontecido algo na madrugada do baile! Samara está estranha, esquiva, e isso não é o natural dela. Que merda você aprontou? — Continuo ignorando-a, sem nenhuma disposição para contar sobre o beijo, o amasso e a confusão que isso criou em mim. — Alexios! — Minha irmã começa a pirar por causa do meu silêncio, mas, se me conhece um pouco, já deve imaginar que eu não irei abrir a boca para falar desse assunto. — Está certo! Você e sua maldita boca de siri. — Volta a se sentar, mas dessa vez não se deita em mim. — Alex, ela é nossa amiga, não a magoe, ok? Samara merece ser feliz, e esses anos que passou na Espanha foram ótimos para ela. Eu morria de saudades, mas estava feliz por ela estar realizada trabalhando com o que ama fazer, com um puta gato espanhol lambendo seus pés e — abro os olhos, mas Kyra não se freia — querendo formar família com ela.
Sento-me bruscamente, e Kyra balança.
— Como assim formar família?
— Ele a pediu em casamento. — Surpreendo-me, mas tento não reagir, não demonstrar. — Deu-lhe um lindíssimo e caro anel de diamante e está esperando pelo retorno dela.
Essa informação, apesar de ter me pegado de surpresa, não é nenhuma novidade. Sempre achei que algum homem de sorte iria conquistar o coração da minha amiga de infância e tê-la para sempre. Samara é a pessoa mais leal que eu conheço, mais incrível, merece muito ser feliz ao lado de alguém que valha a pena.
— Ela não estava usando anel... — penso em voz alta.
— Ainda não falou com os pais dela... — Kyra olha fundo nos meus olhos, procurando qualquer reação minha, mas sei que não irá encontrar nenhuma. Há muito aprendi a sentir sem demonstrar ou a mostrar apenas o que eu quero que os outros vejam. — Vocês não conversaram ontem?
— Acho que ainda não conseguimos estreitar os laços de amizade novamente.
— Hum... — Ela olha para seu relógio no pulso e suspira. — Preciso ir para o trabalho, vai ficar aqui? — Assinto. — Eu tenho a sensação de que você está se escondendo, só não faço ideia do quê.
Ela entra no apartamento, e novamente olho para o alto do Castellani, do outro lado do parque. Daqui do prédio onde ela mora, consigo ver o heliponto no telhado, algumas janelas da cobertura onde Cadu mora, o andar debaixo, onde Bernardo Novak reside, e uma pontinha da minha varanda. O apartamento de Samara fica uns andares abaixo do meu, então não tenho como vê-lo, mas somente por saber que ela está lá dentro, sinto vontade de ficar aqui, bem longe.
Não me entendam mal, não estou fazendo isso porque não quero que ela se aproxime de mim, pelo contrário, estou aqui, exilado como um covarde no apartamento da minha irmã mais nova, porque, se pisar no Castellani, sei que não conseguirei me manter distante dela.
Mesmo depois da maratona de sexo que fiz com uma mulher com quem já havia saído antes das festas de final de ano, não tenho segurança de estar no mesmo ambiente que Samara e me controlar para não a pressionar contra alguma parede e fodê-la sem ao menos dizer um cumprimento.
Definitivamente não vou fazer isso, não com ela!
Muito menos depois de saber que há alguém que a merece, que está à altura dela, esperando sua volta.
Rio de mim ao pensar que estou aqui, evitando-a, quando na verdade ela é quem deve estar querendo ficar a quilômetros de mim. Talvez esteja até indignada e ofendida pelo modo com que a toquei e beijei sem nenhum aviso, como se fôssemos um casal qualquer que se encontrou na balada para trepar, e não duas pessoas que são amigas desde que se entendem por gente.
Não entendo por que perdi o controle do tesão que sempre reprimi, mas me conheço o suficiente para saber que ele não passou. Raramente sinto aquela química com alguém. Era como se meu corpo estivesse sendo atraído, como se algo nela estivesse provocando reações em mim que eu não conseguia controlar. Foi animal, carnal, a famosa atração de pele que muita gente procura, mas pouca tem.
E eu tive justamente com minha melhor amiga!
Kyra volta a aparecer no meu campo de visão, agora com os belíssimos cabelos escuros, longos e fartos soltos, o rosto maquiado e uma roupa de deixar qualquer homem lobotomizado.
— Esse bode aí está foda para passar, hein? — comenta antes de se abaixar para pegar um guarda-chuva no móvel ao lado da rede. — Têm umas sobrinhas do baile na geladeira, cerveja – por favor, não tome todas, mas se tomar, as reponha –, e meu chuveiro tem muita pressão e água fresca. — Pisca para mim, e eu franzo a testa, sem entender. — Você está meio rançoso.
— Vai se ferrar, Kyra — ralho com ela, mas rio.
Ela se aproxima e beija minha testa, e isso, sim, arranca um sorriso sincero meu. Gosto que ela confie em mim o suficiente para me tocar, para recostar-se no meu ombro ou mesmo ficar abraçada, pois sei que ela não é assim com todos, principalmente com homens em geral.
— Fica bem e ouça meu conselho... — Ela anda até a porta antes de complementar: — Tome um banho, você cheira a álcool e a perfume vagabundo.
Levanto o dedo do meio para ela e a escuto ir gargalhando apartamento adentro até a porta de entrada bater. É, eu bebi bastante, sim, devo estar exalando álcool pelos poros, e o perfume barato se impregnou em minha roupa ontem, quando a recoloquei depois de mais de 12 horas nu, e a mulher me abraçou toda perfumada.
Saí do apartamento dela e vim direto para o da Kyra, torcendo para que minha irmã estivesse em casa e sozinha a fim de que eu pudesse cair aqui nesta rede onde estou e tentar pôr a cabeça certa no controle do meu corpo.
O telefone fixo toca alto, afastando meus pensamentos, e aproveito para tomar o banho aconselhado pela minha irmã viciada em limpeza. Entro na sala desabotoando a camisa branca que usei com o smoking – pois é, ainda estou com a mesma roupa do Ano Novo em pleno segundo dia do ano – e noto que não faço ideia de onde estão o paletó e a gravata-borboleta.
A primeira foto que vejo ao entrar no quarto de Kyra é uma que tiramos juntos – Samara, ela e eu – na formatura da minha irmã. Eu fui o par dela, então estava de smoking, e as duas, de vestido longo, maquiagem e penteado. Caminho até o aparador e pego o porta-retratos, focando em Samara e me perguntando como eu conseguia me manter longe do mulherão ao meu lado. Era uma beleza diferente da minha irmã, Samara tem o olhar doce, sorriso largo, nenhum mistério, seu rosto expressa suas emoções, sua sinceridade.
CONTINUA
Sua pergunta me deixa paralisada, completamente sem condições para lhe responder. Por que ele me procuraria?! Porque somos amigos desde que nasci? Porque estive ao lado dele em todos os momentos? Porque ele tomou um porre, apareceu lá em casa, chorou no meu ombro, beijou-me e depois fingiu que nada tinha acontecido?
Respiro fundo para controlar o volume da voz e não gritar que ele é um idiota, mas, antes que eu abra a boca, Kyra aparece esbaforida com um telefone na mão.
— Ei, Malinha, você está com seu telefone na bolsa? — Alexios olha para a irmã, puto por ela estar nos interrompendo, e eu franzo a testa, sem entender a pergunta dela. — Seu celular! — Ela bufa... — Seu irmão acaba de ligar para o meu telefone. — E balança o aparelho.
Arregalo os olhos, meu coração dispara, e logo penso em mamãe, que vi apenas um pouco ontem, quando fui buscar o Godofredo. Pego o telefone e confiro as ligações perdidas. Noto Alexios se afastando, mas não me importo; ele continua o mesmo egoísta de sempre.
Samara Schneider está de volta!
Mastigo mais um pedaço do pernil que Kyra serviu como opção de carne na ceia de Natal e não consigo deixar de pensar na volta daquela que foi minha grande amiga e companheira.
Até hoje não entendo o que aconteceu para que ela tomasse a decisão de ir estudar na Espanha sem falar nada comigo. Claro, eu sabia que tinha a possibilidade, afinal, havia anos o pai dela pressionava por isso, para ela ir estudar arquitetura clássica na terra de Gaudí14. No entanto, para minha total surpresa, em vez de ir morar em Barcelona, Samara foi para Madri.
Eu, que até então me considerava seu melhor amigo, só fiquei sabendo desses detalhes todos porque Kyra me contou depois que fui atrás dela para saber o paradeiro de Samara.
Pego a taça com água para ajudar a engolir a comida, pois estou com um aperto na garganta desde que a vi. Eu tinha acabado de sair da sala de reuniões de Kyra depois de um ménage espetacular com Valéria e Priscila, mais animado para encarar a noite especial, sem imaginar a grande surpresa que encontraria no salão e que quase me fez tropeçar em meus próprios pés.
Assim que meus olhos bateram nela, assustei-me, pois a danada da Kyra não havia me contado que Samara tinha voltado. Tentei um sorriso e uma aproximação amigável, como se ela não tivesse me abandonado por longos três anos sem nenhuma notícia. Ela está diferente, ainda mais bonita do que eu me lembro, mas tentei não reparar muito e ser o amigo de sempre.
Nada disso adiantou, pois, ao que parece, Samara desejou que eu corresse atrás dela, que a procurasse e reestabelecesse contato. Como eu poderia imaginar algo assim? Não sou adivinho! Ela some sem nenhum motivo e ainda se sente no direito de ficar puta por eu não ter tentado contato?
Quem entende a cabeça das mulheres?!
— Sua amiga foi embora cedo — Millos comenta ao meu lado. — Será que houve algum problema com a mãe dela?
Olho para meu primo, sentado ao meu lado à mesa, e ele entende meu total desconhecimento do assunto.
— A mãe dela, dona Ana Cohen, está em tratamento contra um linfoma. — Millos bebe mais chope. — Você não sabe nada sobre a vida da sua amiga?
— E você? Como sabe?
O filho da puta apenas dá de ombros, evasivo como sempre, adorando estar sempre um passo à frente de todos. Millos é um sujeito estranho. É o único que consegue interagir com todos nós sem tomar partido e sem revelar nada da vida pessoal de ninguém, nem mesmo da sua. Somos amigos, nos damos bem, mas eu sei pouco sobre ele, sobre suas atividades, e o máximo que conheço de sua vida pessoal é que tem um passado fodido como o meu, frequenta alguns clubes de sexo, tem uma amiga que por sinal é uma gostosa do caralho – mas nunca me deu mole, infelizmente – e só.
Como profissional, o homem é uma verdadeira coruja! Quieto, observador, parece que consegue olhar em 360 graus, além de ser um caçador de informações inigualável. Não há nada que passe despercebido por ele, e o que expõe ou o que fala, tenho certeza de que é o mínimo do que sabe. Por isso, todo cuidado é pouco quando o assunto é Millos Karamanlis, porque o desgraçado é um manipulador de mão cheia!
— Eu não sabia que dona Ana está doente, não vejo os pais de Samara há anos — contesto-o. — Espero que nada grave tenha ocorrido.
— Não vai ligar para saber? — Millos volta a questionar.
Franzo as sobrancelhas, encarando-o, tentando entender o motivo pelo qual ele está tão interessado no assunto.
— Não — respondo seco e volto a comer, mesmo com o questionamento dele na cabeça. Para mim o assunto acabou! Samara já demonstrou que não quer papo comigo por algum motivo, e, mesmo chateado com isso, devo respeitar a decisão dela. Millos é um manipulador e sabe que esse é um assunto que me atinge diretamente, por isso tocou nele.
Não preciso ligar para Samara, como não liguei para ela durante todo o tempo em que esteve fora, mas isso não quer dizer que eu não queira saber o que está acontecendo. Kyra sempre foi minha fonte de informações sobre ela e, caso tenha que ser assim, continuará sendo.
Termino minha refeição, fico mais algum tempo com Kyra e seus convidados, brindo ao sucesso do negócio dela e logo depois vou embora. Tinha pretensão de ir para casa, mas, no meio do caminho, uma mulher com quem eu já saí algumas vezes me manda uma mensagem dizendo que está na cidade, e vou encontrá-la.
Dia 26 de dezembro, pior dia de trabalho do mundo, certamente! Rio ao passar por mais dois engenheiros com cara de ressaca ou, talvez, de quem comeu demais e agora passa mal do estômago.
— Melhor colocar a lixeira perto! — passo, sacaneando meu colega de trabalho, Pedro, engenheiro químico. — Se emporcalhar a sala, vai ter que limpar você mesmo.
— Porra, Alexios, fala mais baixo! — Ele põe a mão na cabeça.
Gargalho e me sento à minha mesa, lotada de projetos, planilhas e minha coleção de lápis. É, eu coleciono lápis! Cada um tem a coleção que lhe cabe, não é?
Ligo o computador, olho para meu caderno de tarefas e arregalo os olhos ao ver um nome que eu não imaginava rever anotado lá – por outra pessoa.
— Ethernium? — questiono olhando para o Pedro.
— Sim! Acabamos de saber, mas o CEO lá da Karamanlis vai querer conversar com você, certamente.
Bufo ao pensar em subir até o Olimpo para conversar com Theodoros, sem esquecer as discussões que tivemos nas últimas semanas por conta de seu egocentrismo e insensibilidade com os funcionários da casa.
Sua mania de pensar que é Deus, inabalável, inatingível e perfeito me irrita, principalmente porque sei que ele não é nada disso, apenas a porra de um filhinho de vovô mimado, que sempre achou que podia fazer qualquer coisa que quisesse sem pensar nas consequências, que o velho grego limparia suas cagadas.
Admito, o velhote sempre fez tudo para seu neto querido. Entretanto, não pôde limpar a merda que Theodoros deixou para trás, apenas jogou-a para debaixo do tapete, limpou a consciência do seu netinho querido, que seguiu a vida como se nada tivesse feito e deixou o resto se fodendo sem se importar o mínimo.
Theo é arrogante, e eu não tenho saco para lidar com gente assim.
Ouço passos, um poc-poc característico de saltos, e em seguida a voz de Lia, outra engenheira que trabalha na minha equipe direta.
— Bom dia! — sua voz soa animada. — Ah... sem Papai Noel de chocolate este ano! — ela resmunga, e eu a vejo procurando sobre sua mesa. — Poxa, Alex, você já foi mais generoso!
— Eu?! — Começo a rir. — Você realmente me imagina comprando e colocando chocolate em formato de Papai Noel nas mesas dos outros? — Ela faz careta e nega. — Eu achava que era você!
— Por quê? Só porque sou mulher?
Rolo os olhos.
— Não, porra, porque você é viciada em chocolate!
— Ele está certo, Lia! — Pedro se mete na conversa em minha defesa. — Eu também achava que era você por causa disso.
Ela se senta frustrada por não ter encontrado o presente do “Papai Noel” misterioso da Karamanlis.
— Bom, não sou eu, e eu contava com isso! Não falha por anos! — Olha em volta para as outras estações de trabalho, ainda vazias sem os profissionais. — Ninguém recebeu?
Nego, e Pedro faz o mesmo.
— Estranho...
— Coisas estranhas têm acontecido por aqui — digo e lhe estendo meu caderno com a anotação da Ethernium.
— O quê? De novo? — Ela geme. — Esses caras da Ethernium são uns malas! Sério, Alexios, eu não vou aguentar gracinhas pra o meu lado de novo não!
— Eu disse que você devia ter respondido a ele. — Dou de ombros. — Mas agora sabe que tem meu total apoio! Se alguém da equipe deles fizer piadas machistas de novo, responda.
— Quem é o machista? Que vou com você dar uma surra nele. — Eliane chega já mostrando as garras – que garras! Minhas costas sofreram com elas – e se senta em sua estação. — Bom dia, feliz Natal, foi tudo ótimo! Agora, silêncio, porque ainda estou agarrada a um cálculo estrutural que não tem me deixado dormir. Obrigada. De nada.
Pedro começa a rir, e Lia só balança a cabeça. Eliane é assim, direta e sem rodeios, por isso mesmo achei-a ideal para o trabalho pelo qual é responsável. Nós nos conhecemos em uma balada, transamos, depois voltamos a nos encontrar na entrevista dela aqui na K-Eng tempos depois. Nunca mais voltamos a trepar, mas conseguimos construir uma relação de trabalho quase perfeita. Sei que posso contar com ela para qualquer coisa aqui dentro.
Tenho mais duas pessoas na minha equipe: Evandro e Michel, mas os dois estão de férias e ainda não retornaram. Não é normal dois membros da mesma equipe saírem em férias juntos, mas, como eles são casados, a lei lhes garante esse direito.
A K-Eng não é formada apenas pela minha equipe de engenheiros em suas especialidades, a verdade é que cada um aqui gere suas próprias divisões. O Pedro, por exemplo, é engenheiro químico, e na divisão dele estão químicos industriais, técnicos em química e outros engenheiros dessa área. Já a Lia é engenheira ambiental, e, dentro de sua divisão, há biólogos, gestores ambientais e engenheiros sanitaristas. A Eliana trabalha com projetos, e ela coordena outros engenheiros, arquitetos e projetistas. O Michel faz toda a parte de planilhas e medições, e o Evandro é responsável pelas operações, é quem lida com empreiteiros, clientes e atua também como fiscalizador de obras.
Além do corpo técnico da K-Eng, a empresa, que é uma subsidiária da Karamanlis, ainda tem setores administrativos e financeiros, e eu, como CEO dessa bagaça aqui, sou quem comanda essas áreas.
O único setor que dividimos com a Karamanlis, infelizmente, é o jurídico, por isso aturo muito a prepotência inglesa do Konstantinos e seu humor ácido. Geralmente não tenho paciência com ele, zoo com sua cara ou apenas o ignoro. Ele não é bem quisto por ninguém da minha equipe, principalmente pelas mulheres.
— Por falar em machismo... — Lia volta a falar. — Será que a Kika não vai voltar mais não?
Dou uma risada por ela ter entrado no assunto justamente quando eu pensava no meu irmão machista.
— Está um silêncio total na Karamanlis — Eliana se pronuncia. — Dá até medo de andar pelos corredores, clima pesadão!
— A Kika era incrível, né? Gata, alto-astral, competente — Pedro lamenta. — Uma pena que tenha perdido a cabeça e tenha sido mandada embora...
— Opa! — Eliana o interrompe. — Ela se demitiu!
— Enfim, está desempregada depois de ter ganhado uma puta promoção para a gerência.
— Eu a preferia à Malu Ruschel. — Lia treme toda. — Aquela mulher congelava até meu sangue só de estar perto dela.
Definitivamente, não o meu!, penso ao me lembrar de Malu Ruschel, a ex-gerente dos hunters da Karamanlis. Malu era bonita, tinha classe e aquele seu jeito focado me enchia de tesão. Uma pena ter ido morar no fim do mundo!
Já com a Kika, nunca senti essa atração, talvez por sempre tê-la achado tão receptiva, maravilhosa com seu jeito espontâneo, que logo gostei dela como se fosse uma amiga de longa data. Tenho muito apreço por ela e lamento que tenha saído da empresa.
Os engenheiros começam a conversar, mas o assunto não me interessa o mínimo, então coloco meus fones de ouvido – a voz forte e rasgada da Janis Joplin soa bem alta – e volto a mexer no projeto em que estava trabalhando.
— Ei, moleque! — Millos me chama assim que para sua moto. — Você não sabe curtir um passeio, puta que pariu!
Ele desce da motocicleta, tira o capacete e a jaqueta e se senta à mesa do bar ao meu lado. Bebo minha água sem responder, porque a única coisa que eu poderia lhe falar é que não sou um velho para ficar andando nessas motos de colecionador há 80 km por hora.
Estou aqui esperando-o há pelo menos 20 minutos, e isso porque saímos juntos de São Paulo em direção ao Guarujá, em uma viagem não programada e cujo motivo, sinceramente, nem entendi. Ele apenas apareceu lá na K-Eng e me chamou para andar de moto com ele, e eu topei.
— Qual é o propósito disso? — resolvo perguntar sem rodeios.
— Do quê?
Millos agradece à garçonete que lhe entrega um coco verde com um canudo e nem percebe a moça comendo-o com os olhos (ou talvez só esteja assustada com suas tatuagens, que cobrem os braços, pescoço e peito).
— Desse “passeio”. A gente se viu há alguns dias na ceia da Kyra, e você não comentou nada sobre isso.
— Nada de mais! — Ele bebe a água de coco. — Vou viajar no Ano Novo, ficar um tempo fora e queria passar um tempo contigo. Já jantei com seus irmãos, mas como você é todo amalucado para comer, achei que uma volta de moto iria cair bem, mas esqueci que você é louco nisso também.
— Você está ficando velho, Millos, sinto lhe informar — debocho. — Acha mesmo que, com essa potência italiana nas mãos, eu iria ficar molengando contigo na estrada?
— Não é molengar, é curtir a viagem, a paisagem...
— Ah, não, você curte essas coisas paradas, não eu. Meditação, ioga, essas coisas todas aí que você faz, tô fora! Não sei ir devagar, Millos, em nada!
— Deveria... talvez assim conseguisse agradar às mulheres. — Ele pisca e tenta disfarçar a troça bebendo mais de sua água.
Eu gargalho.
— Pode ter certeza, elas não reclamam da minha rapidez. Não basta saber correr, tem que saber tirar o máximo proveito de uma máquina, fazê-la dar tudo de si, e isso eu faço.
— Está falando das motos ou das mulheres?
— Tem diferença?
Ele ri novamente.
— Você é um moleque, não sabe nada ainda!
— Falou aquele que nomeia suas motos com nomes femininos!
Nós dois rimos juntos, e o clima fica descontraído.
A verdade é que ele e eu temos muito em comum. Ambos adoramos motocicletas, rock e carne. Apesar de sua onda “zen budista”, Millos nunca conseguiu se livrar da proteína animal e das comidas pesadas que adora preparar para acompanhar suas cervejas artesanais.
Ah, esse é outro ponto em comum: adoramos cerveja! Ele fabrica, eu apenas bebo, mas tenho tanto conhecimento quanto ele, e esse é um dos pontos sobre o que mais conversamos quando estamos juntos, geralmente comendo alguma carne e ouvindo rock.
Raramente saímos juntos de moto, exatamente por ele fazer o estilo tiozão que gosta de andar de Harley, apreciando paisagens, e eu e minha Ducati Multistrada 1260 não temos saco para andar quase parando não.
Embora eu reconheça que tenho que agradecer a esse tiozão por ter minha moto dos sonhos, a que uso para correr nas competições. A Ducati só disponibilizou três unidades da 1299 Superleggera para venda no Brasil, há quase dois anos, e um dos amigos do Millos foi quem comprou uma delas, e, quando ele decidiu vendê-la, meu primo prontamente me avisou, e não pensei duas vezes.
Eu gosto das italianas mais do que das americanas ou japonesas, pelo menos para as motos; não sou tão seletivo assim com mulheres.
— Baile dos Villazzas...
— Ah, Millos, não fode com esse assunto de novo! — reclamo, entendendo agora o motivo do encontro.
— Alexios, preciso de você lá.
Rio.
— Mano, aqueles dois não são crianças, e, muito menos, sou a babá deles! Eles não precisam que eu vá para manter a ordem e o bom nome da...
— Kyra me mostrou o projeto do baile, ela parece bem animada com sua primeira grande produção sem a intervenção dos Karamanlis.
Porra! Ele vai pegar pesado!
— Você é muito filho da puta, sabia?
Millos dá de ombros e bebe mais água.
— Acho que vocês deveriam ir para apoiá-la, acima de todos, você! Será importante para ela, além disso... acho que ela está sem acompanhante, porque deu com o pé na bunda do último idiota que estava comendo.
— Porra, Millos! — Xingo-o. — É a minha irmã, porra!
— E o quê? Só por isso ela não trepa?
— Vai se foder! — Levanto-me da mesa puto e pego o capacete.
— Alexios... — ele me chama, mas não dou atenção, já montando na moto para ir o mais longe possível dele.
Antes que vocês me julguem como machista ou irmão ciumento, adianto logo que não se trata disso. Cada um lida com a merda dentro de si de um jeito, e esse é o jeito da minha irmã de lidar com seu passado. Respeito isso, mas não quer dizer que não me doa ou mesmo que eu não me sinta responsável por ela ser assim.
Eu gostaria que as coisas fossem diferentes, esforcei-me o máximo que pude para que ela fosse menos fodida do que todos nós, mas, a cada novo relacionamento seu destruído, sinto-me um fracassado, o que me dói profundamente.
Piloto rápido, passando pelos radares sem me importar com as multas, sentindo o vento forte bater em mim como se pudesse deixar todas as marcas do meu corpo e da minha alma para trás. Contudo, não posso. Ele fodeu a minha vida várias vezes, não só com as coisas que fez contra mim, mas principalmente por eu ver que também destruiu minha irmã.
— Como ela está, Dani? — pergunto ao meu irmão assim que ele entra na cozinha da casa dos meus pais, onde tomo meu desjejum com a Cida.
— Dormiu bem. — Ele beija minha cabeça. — Mas foi um susto essa febre alta assim do nada.
Ele se senta, visivelmente cansado, e Cida logo lhe serve uma xícara de café. Acostumados demais a dividir as refeições com Cida desde que nascemos, sempre tomamos nosso café juntos. Ela está em nossa casa há tanto tempo que não sei como seria minha vida sem sua presença, e certamente Daniel sente o mesmo.
Minha mãe, Ana Cohen, sempre foi muito ocupada na direção do sistema de ensino criado pelos meus avós, franqueado e distribuído por colégios do Brasil todo. Já meu pai, Benjamin, vem de uma longa linhagem de comerciantes e industriais, como bem acentua nosso sobrenome, que é uma derivação da profissão de algum ascendente que foi alfaiate.
Os Schneiders possuem lojas, fábricas ou empresas que prestam serviços, como era o nosso caso. Meu avô não tinha formação quando fundou sua primeira fábrica de móveis, porém eram um marceneiro muito habilidoso, e meu pai aprendeu com ele. Os negócios iam bem, então papai foi estudar arquitetura e, por fim, design, elevando o nível dos negócios familiares, fazendo dos móveis com nosso sobrenome sinônimos de classe e riqueza.
Há 10 anos meu irmão está à frente dos negócios, desde que papai teve seu primeiro infarto – ele já teve outro e fez duas pontes de safena. Daniel é um administrador maravilhoso, fechou com grandes empresas, e hoje os móveis Schneider não enfeitam mais as coberturas e mansões luxuosas de São Paulo, tão somente redes enormes de hospitais, clínicas, lojas de alto luxo e restaurantes em todo o país.
Meu irmão é incrível! Nós dois somos muito amigos, sempre fomos. O único ponto tenso entre nós era Alexios Karamanlis. Daniel é 10 anos mais velho que eu, um quarentão, como eu costumo provocá-lo, e sempre achou Alex uma péssima companhia. Bom, ele realmente era, mas não para mim. Eu sabia das loucuras que Alexios aprontava, seu envolvimento com drogas, farras, lutas valendo dinheiro e rachas pela cidade. Ele não foi um adolescente fácil, mas sempre me tratou como se ainda conservasse o menino que eu conheci. Sempre me deu conselhos para ficar longe de tudo aquilo que ele mesmo fazia, nossa amizade sempre foi separada das outras companhias dele.
Ainda assim, Dani nunca gostou de Alexios, em compensação, tornou-se um dos grandes amigos de Millos Karamanlis, primo do Alex, mesmo que eu não consiga entender o que, de fato, o executivo tatuado e meu irmão tenham em comum.
— Desculpe-me por tê-la tirado da festa da Kyra — meu irmão volta a falar, afastando-me dos pensamentos. — Eu liguei para o doutor Henrique e já ia pedir uma ambulância, quando fiquei com medo de acontecer algo e você não estar aqui.
Pego sua mão.
— Eu sei. Foi um susto!
Retornei as ligações dele assim que Kyra me alertou, e, quando Dani atendeu, o doutor já havia chegado e ministrado medicamentos. O médico preferiu que ela continuasse em casa por conta de sua baixa imunidade, mas ficou acompanhando durante boa parte da madrugada.
— Ela convulsionou, e eu achei que fosse... — Ele me olha, seus olhos acinzentados tristes. — Eu quase perdi o papai tempos atrás, lembra? — Assinto. — Eu estava com ele quando teve o infarto, e agora quase...
— Dani, não pensa nisso! — Abraço-o. — Você é o melhor filho e irmão do mundo, sempre ao lado deles, ao meu lado. Agora estou aqui também e vou ajudar no que for preciso.
— Eu sei, Samara. Essa fase do tratamento é a mais complicada, por causa da baixa imunidade, mas, quando ela estabiliza, é a mamãe que sempre conhecemos e amamos.
— E a Bianca? — pergunto-lhe sobre sua noiva. — Como vocês estão, faltando pouco para o grande dia?
Ele ri sem jeito.
— Você sabe que não tem essa de grande dia, não? Nós vamos ao cartório, assinaremos os papéis e pronto. — Dá de ombros. — Vida que segue.
Cruzo os braços. Não gosto nada desse conformismo estranho.
— Tem certeza disso, Dani?
Ele olha para a Cida.
— Vou fazer 41 anos, pirralha. 15 anos de relacionamento com ela, então...
— É isso? — Cida balança a cabeça negativamente. — Viu? A Cida não concorda também! E não é que você seja já um solteirão arrastando chinelos, Dani! Você é lindo!
— Não é sobre isso, Samara.
— Ele quer ter uma família, menina. — Arregalo os olhos. — Seu pai vive mais entretido na fazenda do que aqui, sua mãe, antes de adoecer, não parava quieta, sempre viajando com as amigas e...
— Eu na Espanha.
Daniel termina o café sem me encarar, sem falar nada e se levanta.
— Vou voltar para o quarto, render um pouco a enfermeira.
— Também vou, Dani!
Seguimos juntos, mudos, pelo corredor. Meu irmão é a pessoa mais discreta do mundo, completamente o oposto de outros filhos de grandes empresários desta cidade. Nunca gostou de sair em revistas de fofoca, nunca namorou modelos, atrizes ou socialites. Na adolescência, namorou uma garota da escola, depois teve duas ou três namoradas na faculdade e, por fim, conheceu a Bianca em um torneio de polo – esporte em que ele é fera. Desde então engataram nesse relacionamento xoxo, totalmente ioiô – eles já terminaram umas 30 vezes ao longo dos anos – e que agora vai se tornar um casamento meia-boca.
— Você merece mais, Dani — solto sem conseguir frear minha língua, e ele ri.
— Você diz isso porque é minha irmã, pirralha. — Ele tenta bagunçar meus cabelos como quando eu era criança. — Bianca pode não ser o grande amor da minha vida, mas é uma boa amiga e companheira.
— Isso é loucura! Você merece amar, ser amado, estar apaixonado...
— Como você esteve a vida toda por aquele doidivanas? — Paro em seco no corredor e arregalo os olhos. — Qual é, Samara, você achava que eu não sabia? Estava escrito na sua testa e em todos os seus cadernos, com direito a corações rosa! Você teve um peixe daqueles que ficam sozinhos no aquário...
— Um beta. — Começo a rir, sabendo exatamente do que ele está lembrando.
— Pois bem, você teve um beta e o nomeou...
— Beto Schneider Karamanlis — falamos juntos, e eu começo a rir.
— Sim! E como você nunca me deu indícios de ter uma queda pela Kyra, eu supus que era o outro Karamanlis. — Daniel me olha sério. — Por que Diego não veio contigo?
A pergunta é tão inesperada que demoro a processar que ele está falando do meu namorado.
— Não sei quanto tempo vou ficar, então...
— Besteira! Ele poderia passar uns dias aqui contigo, os times estão todos em recesso até a primeira semana de janeiro. — Suspiro e olho para o chão. — Não estraga sua vida, Alex não vale a pena.
Assinto, lembrando-me de tudo o que aconteceu noite passada. Alexios continua igual, vendo e querendo todas as mulheres ao seu redor, menos eu. Sempre fui a amiga, quase uma irmã, menos uma mulher, e, como acabei de perceber, todos sabem da minha paixão por ele, então, Alexios deve simplesmente ignorá-la.
Por muito tempo eu achei que ele não soubesse. Ficava fantasiando que, no dia em que eu tomasse coragem e lhe contasse, Alexios iria se declarar também. Iludida! É isso que eu era, porque, depois do beijo que trocamos, era impossível que ele não soubesse.
Respiro fundo, resignada. Alexios sabe, só não se importa e nem sente o mesmo!
Meu irmão bate levemente na porta do quarto de mamãe e em seguida entra. Sigo-o pelo enorme ambiente, que me traz tantas lembranças alegres dos momentos que dividi com ela, deitada em sua cama, contando sobre meus sonhos.
— Samara Esther! — Mamãe estende os braços, sentada na cama, recostada nos travesseiros. — Trouxe Godofredo de volta?
Rio e concordo.
— Trouxe, está lá embaixo no jardim. — Beijo sua testa. — Como está se sentindo hoje?
— Eu estou bem! — Ela dá uma olhada de esguelha para meu irmão. — Ele é superprotetor, sabe? Exagerado!
Daniel permanece alheio às críticas, conversando com a enfermeira.
— Mamãe, ele não é, e a senhora sabe! — Ana suspira. — A senhora está em tratamento, precisa de cuidados, e, com o papai isolado na fazenda, Daniel é que estava responsável por acompanhá-la em tudo, mas agora estou aqui também!
— Dois superprotetores! — ela finge reclamar, mas sorri satisfeita. — Seu pai quis vir para cá para ficar comigo, mas achei melhor que ficasse por lá. Você sabe como ele é, não me daria um minuto de paz.
Eu rio, mas sou obrigada a concordar. Meus pais são incríveis, mas têm uma relação um tanto estranha desde que Daniel e eu saímos de casa para viver nossas vidas. Passaram a viver cada um no seu espaço, com suas coisas. Dão-se incrivelmente bem, mas cada um com sua vida.
É verdade que eles não eram nada parecidos. Mamãe sempre foi uma mulher de negócios, cheia de trabalho, viagens e reuniões, porém extremamente carinhosa com os filhos. Papai é um homem mais reservado em seus sentimentos, embora seja um artista.
Olho para um dos móveis da minha mãe, e a escultura em madeira em cima dele me faz sorrir. Nela há um casal e um garotinho com a mão na enorme barriga da mulher. Papai deu vida à imagem de uma foto que tiraram quando mamãe estava grávida de mim, e a peça ficou tão perfeita que dá para sentir a alegria de todos.
Quando eu era criança, tinha coleções das esculturas dele: cavalos, cães, gatos, pássaros. A que eu mais gostava era a do Pinóquio, que ganhei quando comecei a ler e andava para baixo e para cima com o livro do boneco de madeira que queria ser menino de verdade.
— Você vai até lá visitá-lo? — minha mãe pergunta, talvez adivinhando que estou pensando nele, por estar olhando a estátua.
— Por agora não. Tentei falar com ele quando cheguei e ontem também, mas não consegui. — Dou de ombros. — Papai se isola quando quer, a senhora sabe.
— O doutor Henrique acabou de dizer que os resultados dos exames ficaram prontos e que ele virá assim que puder para conversar conosco. — Daniel senta-se ao meu lado na cama. — É bom ter Samara aqui perto, não é?
Ele me abraça pelos ombros.
— Eu também estou gostando de estar de volta.
Mal termino a frase, e meu telefone toca. A foto de Kyra tentando beijar Godofredo, e ele de boca aberta para mordê-la aparece na tela, e minha mãe sorri.
— Eu estou esperando pela visita dessa filha emprestada desnaturada. — Ana reclama. — Pode dizer a ela que não vai comer mais minha paella!
— Pode deixar! — Levanto-me da cama e vou para um canto do quarto. — Oi, Kyra! — atendo o telefone.
— Quero notícias! Mal consegui dormir essa noite, deixei mil mensagens no seu telefone. Como está sua mãe?
— Está bem, mas ameaçou greve de paella se você não vier visitá-la em breve.
— Está bem mesmo? — ouço preocupação na voz da minha amiga, e meu coração se aperta, pois sei que minha mãe foi o mais próximo que Kyra teve de figura materna. — Malinha?
— Está, sim. O médico dela explicou que, por conta da medicação, ela ficaria suscetível a doenças, a imunidade está baixa, então qualquer resfriado ataca com força.
Kyra suspira ao telefone, e eu abro um sorriso ao ver o quanto minha amiga durona é, na verdade, tão sensível quanto eu.
— Que bom! Fico feliz em ouvir isso e mais aliviada para te fazer um convite.
Faço careta, já prevendo que ela vai me meter em algum evento seu de final de ano, vestida de garçonete.
— O que você está armando, Kyra?
— Nada! — ela logo se defende, indignada. — Eu só queria companhia! Na véspera do Ano Novo acontecerá o Baile Branco e Preto dos Villazzas, e, como eu estou sem nenhum boy no momento, você podia ser meu par, o que acha?
— Kyra! — Rio. — Um baile? Sério?
— Baile? — mamãe logo se mete na conversa e pergunta lá da cama. — Por acaso é o baile dos Villazzas?
Fodeu! Minha mãe sempre amou bailes e conheceu a matriarca dos Villazzas tempos atrás, através de sua amiga, Cecília Novak. Certamente ela adorará a novidade, achará moderno eu ir acompanhando minha amiga, e eu não terei escapatória.
— É, mamãe, eu vou com Kyra — respondo resignada.
— Eu sabia! — Minha amiga ri ao telefone. — O traje branco é obrigatório para mulheres, então, abuse de cores em outros locais!
— Eu vou te matar, Kyra Karamanlis! — sussurro para que somente ela escute.
— Depois do baile; antes, quero usufruir de tudo o que planejei! Vai ser o evento mais incrível que você já viu!
Relaxo, percebendo que ela realmente está feliz e confiante.
— Tenho certeza disso, Kyra!
Nós nos despedimos, mas não retorno imediatamente para a cama, ao lado da minha mãe e do meu irmão, fico pensando em como é bom estar de volta. Realmente me sinto em casa aqui, com as pessoas que eu amo, ainda que tenha feito amigos na Espanha.
Penso no Diego e sinto um pequeno aperto no coração, um misto de saudade e remorso. Daniel me olha, curioso por eu estar parada no mesmo lugar, sem falar ou fazer nada, e reflito sobre o que ele me disse. Reconheço que eu recuei ante o pedido de casamento de Diego por ter esperança de voltar ao Brasil e encontrar Alexios mudado, porém ele não mudou e nem mudará jamais, mas isso não muda o fato de que ele ainda mexe comigo.
Diego e eu nos damos muito bem, somos amigos, companheiros, temos gostos parecidos. Enquanto eu estava na Espanha, longe do magnetismo e atração de Alexios, realmente pensei que pudesse amá-lo e ter uma vida com ele. Os momentos que passamos juntos foram maravilhosos, mas agora me questiono se, mesmo voltando para Madri, é justo manter essa relação.
O Uber me deixa em frente ao Villazza SP, e vejo a entrada principal do hotel cheia de pessoas bem-vestidas e penteadas. Ando na direção delas, questionando-me se os convites estão sendo verificados na entrada, mas me surpreendo ao ouvir um dos homens que está parado na entrada:
— Nós só queríamos comprar o convite, não conseguimos responder a tempo e...
— Senhor, o que me foi passado foi que esgotaram, eu sinto muito — um dos seguranças responde antes de se virar para mim, mas, vendo o convite em minhas mãos, abre a porta. — Seja bem-vinda!
Entro no saguão principal do enorme hotel e suspiro, apreciando todos os detalhes da construção e da decoração, orgulhosa por ter sido parte da equipe que ajudou a deixá-lo perfeito desse jeito.
O escritório de arquitetura que projetou o Villazza SP foi o dos Boldanis, e o arquiteto principal que assinou o desenho foi ninguém mais, ninguém menos que meu ídolo e professor, Julio Boldani. O italiano é fera demais nas suas linhas clássicas misturadas às modernas.
Eu ajudei o pessoal que compôs o projeto de decoração, pois estava me especializando e, por isso, trabalhei um tempo no Boldani. Foi ali que descobri que, por mais que papai fizesse pressão para que eu fosse uma arquiteta, eu queria mesmo era ser designer de interiores.
Subo as escadarias de mármore com corrimão e guarda-corpo de ferro fundido na cor ouro velho em arabescos e folhas e, no saguão da entrada do salão Royal, encontro a recepção do baile montada como se fosse uma bilheteria antiga de circo.
Sorrio ao pensar na Kyra, reconhecendo que minha amiga sabe como dar vida aos seus projetos de maneira perfeita, pois vi os desenhos quando almoçamos juntas anteontem e confesso que está tudo muito mais bonito do que a ilustração em 3D que ela me mostrou.
Olho em volta, procurando-a, pois combinamos de nos encontrar na entrada, mas arregalo os olhos ao ver Alexios, de smoking preto, vindo em minha direção.
Mesmo contra a minha vontade, minhas mãos gelam e meu coração dispara apenas por vê-lo, por notar o quanto ele está lindo com esse sorriso largo e os olhos brilhando.
Por que ele tinha que ter essa aparência e essa boca?!, penso na injustiça do mundo, indignada por ser tão comum, e ele...
— Samara Esther. — Bufo, pois só ele e minha mãe chamam-me assim. — Você está... linda!
Alexios sorri e me olha desde as unhas dos pés, pintadas e cutiladas, até o alto da cabeça.
— Linda! — repete como se não fosse possível que eu estivesse desse jeito.
— Oi, Alexios — cumprimento-o seca, tentando não dar importância ao fato de que ele parece ter tomado um soco só por me ver mais arrumada. — Estou esperando sua...
— Eu sei, foi ela quem me mandou ficar aqui de plantão te esperando. — Enrugo a testa, sem entender. — Kyra resolveu bancar a fada madrinha e ajudar uma amiga a ter seu baile com um príncipe encantado e, por isso, vai ter que trabalhar esta noite. — A expressão no rosto dele é de deboche ao falar do conto de fadas. — Então, restou a mim.
Puta merda, Kyra!
Pego o celular dentro da bolsa e mando mensagem para ela, mas tenho certeza de que, ocupada com o começo do baile, ela não irá ler. O que eu faço? Penso se devo aceitar fazer companhia ao Alexios ou se devo ir embora, afinal, só vim a esse baile por insistência da Kyra.
— Samara, eu sei que nossa amizade está um tanto estremecida por conta da distância e do tempo, mas... — Alexios me encara, e noto que ele está se esforçando para falar — eu gostaria que você me acompanhasse esta noite.
Minha boca fica seca ao ouvir isso, porque, mesmo com a distância, eu ainda consigo saber quando ele está sendo sincero. Alexios me quer ao seu lado esta noite, e isso é...
— Como nos velhos tempos, lembra? — ele complementa, e, mais uma vez, percebo o quanto sou iludida.
Nada mudou!
Imediatamente me lembro do meu baile de formatura do ensino médio, no qual ele foi meu acompanhante. Chegamos juntos, eu estava empolgada para dançar com ele a noite toda, arrumei-me para parecer uma mulher aos seus olhos e não mais a menina de cabelos revoltos que o seguia para toda parte quando criança.
Havia decidido que iria contar a ele o que sentia naquela noite e que, depois de ele se declarar também, iríamos fazer amor, e eu, aos 17 anos, finalmente teria minha primeira noite com o homem que amava.
Ledo engano!
Alexios dançou uma música comigo, depois foi para o bar, encheu a cara, sumiu com uma garota bem mais “servida” que eu e voltou para o salão todo amarrotado. Eu queria ir embora, mas ele acabou dançando (e sumindo) com mais umas três mulheres.
— Seu acompanhante te deixou sozinha, não é? — Marlon, um dos garotos que estava se formando comigo me perguntou, e só aí percebi que ele estava sentado à mesa comigo.
Começamos a conversar e, naquela noite, tive minha primeira experiência sexual. Não foi ruim, namoramos por um tempo, mas reconheço que ela só aconteceu porque Alexios não me quis. Ele simplesmente não me via!
— Samara? — ele me chama e me faz voltar à realidade.
Por Deus! Não sou mais uma garota de 17 anos, sou adulta, independente, com uma carreira bem-sucedida na Espanha e um dos homens mais gostosos de Madri ao meu lado!
— Vamos entrar! — decido e marcho até uma das “bilheterias”, onde recebo minha máscara preta e uma pulseira.
Alexios recebe as dele e ri ao me mostrar a máscara branca como a de O Fantasma da Ópera. Ah, merda!
— Você se lembra? — Ele ri. — Me obrigou a ver esse filme um milhão de vezes e sabia até as falas!
O desgraçado põe a máscara, ergue uma das sobrancelhas, dobra-se em reverência e sorri.
— Vamos logo com isso! — Saio de perto dele sem rir de sua gracinha, coração retumbando, a cabeça cheia de lembranças da nossa adolescência.
Quando as portas se abrem, perco o fôlego ao ver o que Kyra idealizou.
— Puta que pariu, minha irmã é foda! — Alexios fala ao meu lado.
Eu pulo de susto, não por causa do que ele disse, nem mesmo ao ver um dos artistas cuspindo fogo, mas tão somente por sentir a sua mão em minha cintura. Meu corpo inteiro aquece, a pele arrepia e aquela sensação que sinto desde que os hormônios despertaram em mim na adolescência volta a me tomar.
Atração! Química!
Não sei explicar, mas meu amor de criança transformou-se nisso quando me tornei moça, e a cada toque, cada resvalo, eu resfolegava. Sonhava com ele, acordava suada e sem saber o que estava acontecendo. Meu primeiro orgasmo com masturbação foi pensando nele, instintivo, depois de um sonho erótico e proibido.
Achei que, com a distância, principalmente depois que me envolvi com Diego, isso ia passar, mas parece que me enganei.
Olho-o e percebo que ele permanece alheio ao que me causa, sua atenção tomada pelos malabares que executam movimentos precisos na entrada do baile.
Respiro fundo.
— Vamos?
Ele assente sem me olhar, e seguimos juntos, passando entre os convidados que ainda se encontram de pé conversando ou bebendo no bar, em direção ao centro do salão, tomado de mesas e cadeiras reservadas.
— Onde nós...
Nem preciso terminar a pergunta, pois logo vejo Theodoros Karamanlis, acompanhado de uma lindíssima loira, a uma mesa com o sobrenome deles na placa de reserva. Eu não sou muito fã do irmão mais velho de Alexios, mas sempre fui educada com ele, então armo meu melhor sorriso e o cumprimento:
— Theo! Que bom vê-lo esta noite! — Olho para sua acompanhante agora mais de perto e sinto como se a conhecesse de algum lugar.
— Samara, essa é Valentina de Sá e Campos — Theodoros nos apresenta, e eu sorrio, reconhecendo os sobrenomes dela. — Valentina, essa é a Samara Schneider, uma incrível designer de interiores.
— É um prazer, Valentina! — saúdo-a.
— O prazer é meu, Samara. — Valentina sorri. — Nos conhecemos já?
— Eu acho que sim, embora não me recorde de onde pode ser.
A loira para a fim de tentar se lembrar, e eu ouço a conversa entre Theo e Alexios.
— Viu só esse trabalho da Kyra?
— Claro! — Alexios debocha do irmão. — Seria impossível não ver, já que estou aqui! Já fui até cumprimentá-la, mas está tão ocupada que não consegui nem falar com ela direito.
Só o suficiente para que ela o encarregasse de me acompanhar nesta noite! Kyra me paga!
— Imagino que esteja. Viu o Kostas? — Theo pergunta, mas não consigo ouvir a resposta de Alexios, pois Valentina volta a falar:
— Lembrei! — ela comemora. — Nos encontramos na festa de inauguração da loja da Miriam Benides, lembra?
Eu não faço a mínima ideia do que ela esteja falando, mas, mesmo que não esteja com nenhuma vontade de prosseguir com a conversa, sorrio e concordo por educação.
— Puxa vida, quanto tempo não vejo você por lá! — Valentina continua.
— Eu estava morando em Madri — informo antes de me sentar.
— Ah, eu adoro a Espanha!
Sorrio sem graça, percebendo que vamos conversar. Não quero ser mal-educada com ela, é só que não estou muito confortável em estar aqui neste baile, não depois de perceber que ainda quero Alexios e que não adiantou de nada impor distância.
— Família! — a voz debochada de Kostas interrompe a conversa de Valentina, e ela me pergunta baixinho quem é o homem abraçado a uma loira com um vestido branco tão justo e transparente que beira à indecência.
— Konstantinos... — sussurro antes de ele apresentar sua acompanhante a todos.
— Bruninha, conheça os Karamanlis! — Ele aponta para Alexios e para Theodoros. — Claro que você pode deixar seu cartão com eles depois, mas eu sou o mais bonito, não sou?
Ele faz a mulher girar em seu próprio eixo, e, pela primeira vez depois da tensão toda em que eu estava desde que vi Alexios, sorrio divertida. Kostas é uma figura! Ainda me lembro de quando ele morava no prédio, na cobertura de seu pai, e juro, se não fossem os olhos azuis e a voz, eu diria que não se trata da mesma pessoa!
— Já bêbado? — Theo pergunta a Alexios.
— E mais uma vez com acompanhante paga! — Alexios se aproxima de Theo e cochicha, e isso me surpreende. Não sabia que os dois estavam conseguindo ter uma relação tão cordial. — Estou achando que nosso querido irmão é do outro time.
Theo gargalha e nos olha sem graça.
— Perdoem-me, foi irresistível! — Tenta se conter e bebe mais do seu uísque. — Bom, certamente ele é arrogante e orgulhoso demais para “sair do armário”.
Quem? Kostas?! Olho para o homenzarrão com a prostituta e nego instintivamente com a cabeça. Não mesmo!
— Seria apenas mais um rejeitado pelo seu querido pappoús! — ouço Alexios dizer isso, e meu coração aperta. Olho-o, respiro fundo, lamentando profundamente por ele ainda se sentir rejeitado, percebendo que isso também não mudou.
Rejeição, abandono, violência o tornaram o homem que é. Sei disso, dei essas desculpas para seu comportamento por muitos anos. Toda vez que ele aprontava, eu usava isso para justificá-lo.
Até quando?, penso, olhando-o fixamente. Até quando ele deixará que os erros dos outros façam-no errar também?
— Você gosta muito dele, não é? — Valentina dispara, e eu desvio os olhos de Alexios. — Seus olhos brilham diferente ao olhar para ele.
— Somos amigos há muitos anos — disfarço.
— Bom, isso é muito bom, mas... — Ela ri. — Desculpe-me se estou sendo invasiva, mas seu olhar é de quem é apaixonada, não apenas uma amiga.
Dou um sorriso amarelo para ela, e Valentina fica quieta.
— Tudo bem aí? — Alexios me pergunta, e eu assinto. — O jantar já tinha sido anunciado antes de você chegar, então não deve demorar muito.
Resolvo conversar com ele normalmente, afinal, seria ridículo fazer birra na minha idade.
— Kyra estava muito ansiosa com o jantar desta noite. Um grande chef internacional, ela me contou, é quem está preparando tudo.
— Sim, está na programação. — Alexios lê o nome do chef francês, e eu não consigo deixar de olhar sua boca. Pego a taça de champanhe e a viro de uma só vez. — Uau! — Sorri e faz sinal para um garçom se aproximar com mais. — Minha acompanhante está sedenta.
— Estou. — Decido não discutir e bebo a outra taça. — E com fome também.
Alexios toca minha coxa por cima do vestido, mas logo tira a mão.
— O jantar não deve demorar — repete sério e se vira para olhar o outro lado do salão.
Fico um tempo olhando para minhas pernas, permitindo a sensação de brasa que a mão dele deixou em minha coxa passar, chateada demais por reagir assim a ele e continuar sendo praticamente invisível.
Que porra é essa que está rolando?
Essa pergunta retórica fica martelando minha cabeça enquanto tento prestar atenção em qualquer coisa neste maldito salão lotado que não seja ela. Eu só posso estar com algum problema, só pode! Samara sempre foi minha amiga, quase minha irmã. Eu estar aqui com uma maldita ereção – pela segunda vez esta noite, frise-se – só pode ser loucura!
Preciso de um médico! A loucura congênita dos Karamanlis começou a se manifestar em mim. Sentir tesão por Samara é quase... incestuoso!
Pego a taça com champanhe e a termino em uma só golada a fim de aplacar o fogo que apenas um toque em sua coxa me causou.
A verdade é que eu não esperava encontrar-me com ela nesta noite. Vim por insistência do Millos e, claro, por sua maldita manipulação eficaz ao falar da Kyra e do suporte a ela em seu primeiro grande evento. Cheguei junto aos primeiros convidados e a encontrei correndo de um lado para o outro, “armando” uma surpresa para sua amiga e funcionária, a gostosa da Helena, que, por sinal, está namorando o Bernardo Novak, um amigo de longa data.
Quando finalmente ela terminou todos os preparativos, foi à cozinha falar com o tal chef francês que a estava deixando nervosa, conferiu tudo com as bandas, DJ e artistas circenses é que me deu atenção.
— Oi, Alexios. — Sorriu cansada. — O baile nem começou direito, e eu já estou de um lado para o outro. — Ela espiou a fila se formando na recepção do evento. — Gostou da decoração?
Seus olhos verdes, como os meus, brilharam ansiosos. Eu cheguei perto dela, beijei sua testa e falei baixinho:
— Está tudo perfeito, Kyra. Parabéns, estou muito orgulhoso!
Ela suspirou e depois se afastou.
— Claro que está! Não tinha dúvida alguma disso. — E, do nada, pegou-me pela mão e me arrastou em direção ao salão. — Vem ver!
— Kyra, eu ainda não troquei meu convite e...
— Ah, Alexios, vem ver!
A decoração estava esplêndida, embora eu soubesse que, com os efeitos de luz e os artistas executando seus números, iria ficar ainda mais incrível. A banda, no palco ao fundo do salão, já estava se posicionando, e alguns funcionários de Kyra ajeitavam os últimos detalhes das mesas, arranjos florais ou acendiam as velas.
— Perfeito! — elogiei-a novamente.
— Você ainda não viu nada! — E deu aquele sorriso que eu sei que fode com a cabeça de qualquer homem. É duro ter uma irmã como ela, linda e sexy, e ver os caras babando em cima e não poder socar a fuça de nenhum. — Ah, preciso de um favor.
Estava demorando!
— Kyki, estou de smoking, mas ainda não sei segurar uma bandeja — sacaneei.
— Não, seu idiota! — Ela me estapeou as costas. — É meu par desta noite! Não vou poder participar do baile como havia previsto, então preciso que você faça companhia...
— Ei, ei, pode parar! Não vou ficar pajeando nenhum marmanjo não!
Ela rolou os olhos.
— Não é marmanjo, idiota! Posso terminar de falar? — Assenti. — É a Samara. Convidei-a a vir comigo esta noite e não quero que fique sozinha.
Samara Esther Schneider!
Fiquei um tempo olhando para Kyra, tentando entender se ela tinha feito isso de propósito, para tentar nos reaproximar, afinal, sempre fomos um trio de amigos/irmãos, e, com a relação entre mim e Samara estremecida, Kyra devia estar um tanto confusa.
— Sem problema. — Sorri. — Você avisou a ela?
— E Samara atende aquele celular? — Ela bufou. — Você terá que esperá-la lá fora. Se importa?
— Não — fui sincero.
— Ótimo, agora vaza, porque ainda tenho coisas a fazer antes de abrirmos o salão. — E, do mesmo jeito que me arrastou, colocou-me para fora.
Fiquei um bom tempo esperando por Samara do lado de fora, o que foi surpreendente, pois ela sempre foi pontual. Vi o salão ser aberto, o baile começar, o discurso do doutor Andreas Villazza, o anúncio do jantar, e nada de a minha (ex?) melhor amiga chegar.
Estava olhando para um detalhe na construção do hotel, executada pela Novak Engenharia, quando meus olhos foram atraídos para o topo da escadaria. Não é exagero eu dizer que meus olhos foram atraídos, porque foi como se um ímã puxasse minha atenção para aquele ponto.
Engasguei-me com minha própria saliva ao ver Samara. Sim, ela estava linda, mas não foi o vestido branco ou o penteado elaborado que chamou minha atenção, foi ela.
Ela é linda e, por conta da nossa amizade e do receio que tinha de machucá-la, parei de perceber sua beleza e não notei a mulher que se tornou.
Fiquei parado, tomando nota de tudo, como se a estivesse vendo pela primeira vez, sentindo um incômodo por estar olhando-a com lascívia, afinal, era a Samara!
Balancei a cabeça, tentando voltar a pôr os neurônios no lugar, justificando para mim mesmo que isso aconteceu por causa dos anos distantes, mesmo sabendo que isso era pura enganação, pois ela não mudou nada nesses últimos anos.
O que aconteceu, então? Não sei, ainda estou confuso, tentando entender por que fiquei excitado com o perfume dela ou por que meu pau acordou apenas por eu a ter segurado pela cintura a fim de andar com ela até a mesa.
Tive que ficar parado, olhando para os malabares sem vê-los realmente, com cara de paisagem, fingindo que nada estava acontecendo. Eu não queria que ela soubesse que eu estava reagindo daquela forma a ela; certamente ficaria horrorizada. Sempre fomos como irmãos!
Tentei me conter, agradeci por Theodoros e sua companhia já estarem à mesa, fiquei um tempo distraído conversando com meu irmão mais velho, mesmo que isso fosse uma dor no saco. Não sou tão rancoroso quanto o Konstantinos sobre o Theo, apesar de concordar com meu irmão sem noção sobre ele nos ter abandonado nas mãos do louco Nikkós, mas o que Theodoros poderia fazer? Eu mesmo estive nessa situação quando pude sair de casa, mas não tinha como tirar Kyra dele, por isso fiquei.
O DJ que executa as músicas antes do jantar e da banda ao vivo coloca My Immortal, de Evanescence, e é impossível não olhar para Samara.
— Sua música preferida na adolescência — comento com ela.
Samara sorri e balança a cabeça, olhando os casais indo para a pista de dança.
— Tocou na minha formatura...
— Eu sei, eu queria dançar com você, mas você não parecia muito a fim, então fui beber.
Ela arregala os olhos e me encara como se não soubesse do que eu estou falando. Provavelmente nem se lembra, estava nervosa e ficava repetindo o caminho todo dentro do carro que a gente nem deveria ter ido, que era besteira.
Não somos mais adolescentes!
— Quer dançar? — inquiro impulsivamente e estendo a mão para ela.
Samara olha para minha mão por um tempo, mas aceita.
Porra, que loucura!
Ela pega minha mão, e minha vontade é de puxá-la para mim e beijar sua boca. Foda! Não consigo mais refrear meus desejos; sempre consegui com ela, por isso não entendo o que está acontecendo agora. Não é qualquer mulher aqui comigo, indo para a pista de dança para ficar de corpo colado no meu – porra! – é a Samara!
Samara!
Minha amiga de infância!
Quase uma irmã...
MERDA!
— Está tudo bem? — ela me pergunta, e eu tento relaxar, já que estou dançando como antigamente: a um palmo de distância dela.
— Sim, tudo. — Tento dar meu famoso sorriso, mas não rola, então pigarreio. — Estou com sede, calor... acho que é essa decoração toda.
— Pode ser. — Ela desvia os olhos de mim. — Quer voltar para a mesa?
Quero!
— Não, a não ser que você...
— Tudo bem.
Ela se solta de mim no exato momento em que a música muda para um instrumental baixo e as luzes se acendem.
— O jantar. — Aponto para os garçons em fila e os convidados voltando aos seus lugares. — Vamos?
Salvo pelo gongo do cozinheiro!, penso ao ajustar disfarçadamente minha calça para não andar de pau duro e assustar a todos por causa da claridade do salão.
Samara bebe mais uma taça de champanhe, e eu rio, já preocupado. Nunca a vi beber tanto! Sempre foi séria, careta, estudiosa e boa filha. Ela nunca fazia nada de errado, nunca decepcionou os pais, fazia tudo o que eles queriam... quer dizer, tudo menos se afastar de mim.
— Acho que já quero ir — ela comenta de repente. — Vou chamar um Uber...
Levanta-se um pouco tonta, e eu a amparo pela cintura.
— Você quase não comeu, e bebeu muito — falo, e ela levanta uma sobrancelha atrevida e irônica para mim. — Não estou dando lição de moral, mesmo porque não tenho nenhuma, apenas constatei um fato.
Ela ri.
— Você não tem nenhuma moral mesmo! — arrasta a última palavra. — Sempre foi um galinha, essa cara de santo aí só engana as outras!
Gargalho.
— Elas não ficavam enganadas por muito tempo, pode acreditar!
Samara funga, indignada, e fecha os olhos.
— Eu acho que realmente bebi demais.
Olho em volta; o salão já está praticamente vazio, apenas um ou outro convidado conversando em pequenos grupos. Theodoros se despediu, com Valentina grudada em seu pescoço, há mais de uma hora, e Kostas nem jantou conosco à mesa, provavelmente ficou no bar com sua acompanhante.
Inicialmente eu tinha pensando em esperar tudo terminar para acompanhar Kyra até em casa, mas, com Samara no estado em que se encontra e com tudo aqui ainda para ser desmontado, é melhor eu levar minha amiga para casa – aproveitando que moramos no mesmo prédio – e voltar mais tarde para acompanhar minha irmã.
Pego a pequena bolsa que ela trouxe e, ainda abraçado a ela, caminho para a saída.
— Alexios... tudo está rodando...
— Muito natural depois de todo aquele champanhe.
Ela suspira e joga a cabeça para trás.
— Você é um chato, sabia? Não posso entender o que todas aquelas mulheres viam em você!
— Imagino que não possa mesmo — respondo-lhe, sabendo que vai se irritar.
Samara sempre disse que eu respondia politicamente ou me evadia quando sentia que o assunto poderia ir para alguma direção que não me deixaria confortável. Ela tinha razão na maioria das vezes, mas, neste momento, só estou a fim de irritá-la.
— Você é um babaca, Alexios Angelos!
Opa! Falou meu nome todo! Rio de sua irritação bêbada, talvez por estar um tanto alto como ela, mas sóbrio o suficiente para carregá-la em segurança até a calçada.
Não vim de moto ou carro sozinho exatamente por saber que iria beber – principalmente para aguentar sozinho a companhia dos meus irmãos à mesa –, porém previ que a saída do baile estaria um inferno e que seria difícil conseguir um táxi ou um carro de aplicativo que estivesse por perto, por isso deixei o Cris, que me trouxe, de sobreaviso no estacionamento.
Mando mensagem para ele e espero até meu carro aparecer. Abro a porta de trás e coloco sobre o banco uma Samara parcialmente adormecida por cachaça francesa.
— Essa foi nocaute! — Cris ri quando eu entro. — Para onde?
— Para o Castellani. — Ele dá um sorrisinho malicioso e pisca. — Ela é minha vizinha, Cris, sossega.
— Falou, chefinho.
— Para de merda e dirige.
Ele tenta sair da entrada do hotel, mas é praticamente impossível com o número de carros que também tentam deixar o local. Olho para trás, confiro que Samara está mesmo apagada e fecho os olhos, recostando-me contra o assento do carona.
— Foi uma festança, hein? — Cris volta a falar. — Só vi entrar filé, pena que a maioria estava acompanhada.
— Geralmente isso não é problema — comento, mordaz. — Já comi muita mulher no banheiro de recepções como essa enquanto o marido conversava com os amigos e falava de negócios.
Cris gargalha.
— Você nunca valeu nada, Lex!
Não retruco o apelido ridículo com que ele me chama e me faz parecer o vilão do Homem de Aço. É pura perda de tempo ralhar com Cristino, então simplesmente ignoro, cansado, meio zoado e com tesão frustrado.
Ele e eu nos conhecemos há alguns anos, quando visitei um dos prédios da Karamanlis que foram invadidos por movimentos pró-moradias. O homem era motorista de profissão, com anotação em sua carteira de trabalho em várias empresas, que juntou todo o dinheiro que tinha, investiu em um carro e um ponto de táxi, mas foi engolido e enxotado pelas grandes cooperativas.
Assim, quando nos conhecemos, ele estava sem casa, sem carro, sem emprego e com uma enorme dívida, fazendo bicos aqui e ali. Ajudei-o primeiro a conseguir emprego, depois por fim saiu da invasão, e, nesse ínterim, nos tornamos amigos.
Ano passado, quando a filha dele nasceu, quis que eu a apadrinhasse, mas educadamente declinei, explicando que, mesmo honrado, não poderia aceitar, pois sou ateu, e o apadrinhamento de uma criança tem a ver com questões religiosas, tem um sentido específico, e eu não seria a pessoa certa para isso. Ele entendeu, mas a garotinha já me chama de Didi (seu jeito fofo de bebê de chamar seu dindo, mesmo que oficialmente eu não o seja).
Acho que cochilei também até o Castellani, pois, quando me dei conta, já estávamos na garagem. Cris me perguntou se eu queria ajuda com Samara, mas agradeci e o mandei para casa. Ele não trabalha como meu motorista diariamente, mas sim na Karamanlis, transportando quem quer que precise fazer serviços externos. Contudo, toda vez que preciso, chamo-o para ganhar um extra.
Há muito parei de combinar bebida e direção, não por mim, mas por medo de acontecer algum acidente e eu acabar prejudicando outras pessoas.
Chamo o elevador, e somente dentro dele é que a bela adormecida parece voltar a si.
— Alexios... — Samara olha em volta. — Este é o elevador do Castellani?
— Parece que sim — respondo-lhe divertido.
Samara bufa.
— Só desmaiada é que eu aceitaria vir com você na direção nesse estado em que se encontra.
— Estou melhor que você. — Ela se encosta contra o espelho, olhos fechados e um enorme sorriso bêbado no rosto. — Além do mais, viemos com motorista.
— Bom... — Samara fala devagar e lambe os lábios como se estivessem secos. O efeito no meu pau é instantâneo. Sinto meu corpo inteiro acender, minhas mãos formigam de vontade de tocá-la. Sua pele parece brilhar, atraindo-me como uma chama atrai uma mariposa.
Tento me afastar, pensar em outra coisa, mas o espaço reduzido do elevador não ajuda. As paredes parecem se fechar cada vez mais, aproximando-me de Samara, apertando-me contra ela, espremendo meu corpo...
— Alexios... — ela geme meu nome, e eu me espremo mais, fazendo-a grudar contra o espelho. O seu perfume inebria meus pensamentos, a pele, tão quente e macia que a sinto mesmo por baixo do vestido, me enlouquece. Preciso provar o sabor de sua boca, conferir se o hálito quente e um tanto etílico se confirma em sua saliva.
Sim!
Agarro-a com mais força, minha ereção pressionada contra sua barriga, minha boca correndo em seu pescoço. Tudo parece congelar à nossa volta, não existe mais tempo e nem espaço, apenas o vácuo e nós dois dentro dele, em chamas.
Lábios nos lábios. Meus dedos esfregam sua nuca, a pele arrepia, os pelos eriçam, meu corpo treme. É a viagem mais louca que eu já fiz sem ser através de uma substância química entorpecente... não! É química ainda, é uma droga viciante, é tesão!
Devoro sua boca sem nenhum pudor ou impedimento. Ela me acolhe, abre-a para minha exploração, prende meus lábios entre seus dentes e morde com força, despertando com a dor ainda mais meu desejo.
Enfio os dedos no meio do seu penteado, seguro o cabelo com força, e ela retribui o desespero cravando as unhas nos meus ombros.
Estou pronto para fodê-la, minha cabeça já trabalha uma forma de abrir o zíper da calça social, sacar meu pau e buscar o caminho de sua boceta, que, a julgar pela forma com que ela come a minha boca, já está molhada e quente.
Um pigarrear me faz sobressaltar, e eu me afasto dela o mais rápido possível. Um casal de idosos também vestido em black tie entra no elevador no saguão do prédio, sinal de que o elevador subiu e desceu de novo enquanto nós dois quase nos comíamos dentro dele.
Olho para Samara, mas ela não parece constrangida ou assustada, apenas passa a mão pelos lábios e me encara, sua expressão cheia de perguntas e curiosidade.
Caralho, o que eu estou fazendo?! É a Samara, minha amiga, aquela que eu sempre quis manter longe desse meu lado sem vergonha! Puta que pariu!
Espero o casal descer em seu andar e, assim que as portas se fecham, respiro fundo.
— Desculpa, Samara, acho que estou mais bêbado do que imaginei a princípio. — Não tenho como olhá-la, dividido entre o constrangimento e o desejo ainda pulsando na minha calça. — Somos amigos, eu não deveria atacar você dessa forma, me des...
— Para! — sua voz soa magoada, e eu tenho vontade de socar a cabeça contra o espelho. — Não precisa dizer mais...
— Eu prometo que isso não voltará a acontecer. — Finalmente a encaro e fico fodido ao ver sua expressão confusa. Ela parece não ter gostado do que aconteceu, deve estar achando que eu sou um filho da puta aproveitador. — Você é minha amiga, Samara, mesmo depois dessa distância, eu ainda a vejo como se fosse minha irmã e...
— Chega! — ela grita, e as portas do elevador se abrem no seu andar. — Você tem razão, foi um erro e não deve voltar a acontecer!
Ouvir isso é como um balde de água fria, mesmo reconhecendo que é o certo.
— Eu não quero que isso afete novamente a amizade que nós temos e...
Samara sai pisando duro do elevador sem olhar para trás. Minha vontade é de correr atrás dela, voltar a encostá-la em alguma parede e beijá-la novamente até que perca a razão ou eu alivie esse tesão indesejável que estou sentindo.
As portas se fecham, e eu, ao invés de apertar o botão do meu andar, mando o elevador de volta para o térreo e chamo um Uber.
Preciso trepar!
— Essa sua cara de cachorro cagando na chuva é ainda ressaca do baile? — Kyra me pergunta, sentando-se ao meu lado na rede que ela tem em sua varanda. — Quer café?
Resmungo ainda com os olhos fechados:
— Quero paz!
Ela ri.
— Isso está em falta por aqui hoje, passa na semana que vem... — Encaro-a, puto com a piadinha. — O que aconteceu?
Não respondo, meus olhos fixos no topo do prédio do outro lado do parque. Balanço a cabeça, decidindo ser mais covarde do que tenho sido desde a madrugada do dia primeiro de janeiro e fecho os olhos para tentar nem pensar na confusão que arrumei.
— Você não deveria estar trabalhando hoje? Ou eu? — Kyra volta a me importunar, mas continuo mudo. — Mano, você continua o mesmo chato da porra de sempre! Fica aí com essa cara de Maria do Bairro e não abre a porcaria da boca para me contar o que diabos você fez dessa vez!
— Obrigado pela confiança em mim! — retruco irônico.
— Ah, boquinha para ser mal-educado comigo você tem! — Ela me cutuca o ombro, mas depois suspira e deita a cabeça nele. — Você sabe que faz merda, mas que eu estou aqui, disposta a te ouvir e te ajudar a limpar os cagaços. Somos uma dupla, você e eu, sempre fomos e sempre seremos.
— Costumávamos ser um trio... — assim que eu comento, imediatamente me arrependo, pois Kyra salta da rede – quase me derrubando no percurso – e emite um ensurdecedor: “ahá!”.
— Eu sabia que tinha acontecido algo na madrugada do baile! Samara está estranha, esquiva, e isso não é o natural dela. Que merda você aprontou? — Continuo ignorando-a, sem nenhuma disposição para contar sobre o beijo, o amasso e a confusão que isso criou em mim. — Alexios! — Minha irmã começa a pirar por causa do meu silêncio, mas, se me conhece um pouco, já deve imaginar que eu não irei abrir a boca para falar desse assunto. — Está certo! Você e sua maldita boca de siri. — Volta a se sentar, mas dessa vez não se deita em mim. — Alex, ela é nossa amiga, não a magoe, ok? Samara merece ser feliz, e esses anos que passou na Espanha foram ótimos para ela. Eu morria de saudades, mas estava feliz por ela estar realizada trabalhando com o que ama fazer, com um puta gato espanhol lambendo seus pés e — abro os olhos, mas Kyra não se freia — querendo formar família com ela.
Sento-me bruscamente, e Kyra balança.
— Como assim formar família?
— Ele a pediu em casamento. — Surpreendo-me, mas tento não reagir, não demonstrar. — Deu-lhe um lindíssimo e caro anel de diamante e está esperando pelo retorno dela.
Essa informação, apesar de ter me pegado de surpresa, não é nenhuma novidade. Sempre achei que algum homem de sorte iria conquistar o coração da minha amiga de infância e tê-la para sempre. Samara é a pessoa mais leal que eu conheço, mais incrível, merece muito ser feliz ao lado de alguém que valha a pena.
— Ela não estava usando anel... — penso em voz alta.
— Ainda não falou com os pais dela... — Kyra olha fundo nos meus olhos, procurando qualquer reação minha, mas sei que não irá encontrar nenhuma. Há muito aprendi a sentir sem demonstrar ou a mostrar apenas o que eu quero que os outros vejam. — Vocês não conversaram ontem?
— Acho que ainda não conseguimos estreitar os laços de amizade novamente.
— Hum... — Ela olha para seu relógio no pulso e suspira. — Preciso ir para o trabalho, vai ficar aqui? — Assinto. — Eu tenho a sensação de que você está se escondendo, só não faço ideia do quê.
Ela entra no apartamento, e novamente olho para o alto do Castellani, do outro lado do parque. Daqui do prédio onde ela mora, consigo ver o heliponto no telhado, algumas janelas da cobertura onde Cadu mora, o andar debaixo, onde Bernardo Novak reside, e uma pontinha da minha varanda. O apartamento de Samara fica uns andares abaixo do meu, então não tenho como vê-lo, mas somente por saber que ela está lá dentro, sinto vontade de ficar aqui, bem longe.
Não me entendam mal, não estou fazendo isso porque não quero que ela se aproxime de mim, pelo contrário, estou aqui, exilado como um covarde no apartamento da minha irmã mais nova, porque, se pisar no Castellani, sei que não conseguirei me manter distante dela.
Mesmo depois da maratona de sexo que fiz com uma mulher com quem já havia saído antes das festas de final de ano, não tenho segurança de estar no mesmo ambiente que Samara e me controlar para não a pressionar contra alguma parede e fodê-la sem ao menos dizer um cumprimento.
Definitivamente não vou fazer isso, não com ela!
Muito menos depois de saber que há alguém que a merece, que está à altura dela, esperando sua volta.
Rio de mim ao pensar que estou aqui, evitando-a, quando na verdade ela é quem deve estar querendo ficar a quilômetros de mim. Talvez esteja até indignada e ofendida pelo modo com que a toquei e beijei sem nenhum aviso, como se fôssemos um casal qualquer que se encontrou na balada para trepar, e não duas pessoas que são amigas desde que se entendem por gente.
Não entendo por que perdi o controle do tesão que sempre reprimi, mas me conheço o suficiente para saber que ele não passou. Raramente sinto aquela química com alguém. Era como se meu corpo estivesse sendo atraído, como se algo nela estivesse provocando reações em mim que eu não conseguia controlar. Foi animal, carnal, a famosa atração de pele que muita gente procura, mas pouca tem.
E eu tive justamente com minha melhor amiga!
Kyra volta a aparecer no meu campo de visão, agora com os belíssimos cabelos escuros, longos e fartos soltos, o rosto maquiado e uma roupa de deixar qualquer homem lobotomizado.
— Esse bode aí está foda para passar, hein? — comenta antes de se abaixar para pegar um guarda-chuva no móvel ao lado da rede. — Têm umas sobrinhas do baile na geladeira, cerveja – por favor, não tome todas, mas se tomar, as reponha –, e meu chuveiro tem muita pressão e água fresca. — Pisca para mim, e eu franzo a testa, sem entender. — Você está meio rançoso.
— Vai se ferrar, Kyra — ralho com ela, mas rio.
Ela se aproxima e beija minha testa, e isso, sim, arranca um sorriso sincero meu. Gosto que ela confie em mim o suficiente para me tocar, para recostar-se no meu ombro ou mesmo ficar abraçada, pois sei que ela não é assim com todos, principalmente com homens em geral.
— Fica bem e ouça meu conselho... — Ela anda até a porta antes de complementar: — Tome um banho, você cheira a álcool e a perfume vagabundo.
Levanto o dedo do meio para ela e a escuto ir gargalhando apartamento adentro até a porta de entrada bater. É, eu bebi bastante, sim, devo estar exalando álcool pelos poros, e o perfume barato se impregnou em minha roupa ontem, quando a recoloquei depois de mais de 12 horas nu, e a mulher me abraçou toda perfumada.
Saí do apartamento dela e vim direto para o da Kyra, torcendo para que minha irmã estivesse em casa e sozinha a fim de que eu pudesse cair aqui nesta rede onde estou e tentar pôr a cabeça certa no controle do meu corpo.
O telefone fixo toca alto, afastando meus pensamentos, e aproveito para tomar o banho aconselhado pela minha irmã viciada em limpeza. Entro na sala desabotoando a camisa branca que usei com o smoking – pois é, ainda estou com a mesma roupa do Ano Novo em pleno segundo dia do ano – e noto que não faço ideia de onde estão o paletó e a gravata-borboleta.
A primeira foto que vejo ao entrar no quarto de Kyra é uma que tiramos juntos – Samara, ela e eu – na formatura da minha irmã. Eu fui o par dela, então estava de smoking, e as duas, de vestido longo, maquiagem e penteado. Caminho até o aparador e pego o porta-retratos, focando em Samara e me perguntando como eu conseguia me manter longe do mulherão ao meu lado. Era uma beleza diferente da minha irmã, Samara tem o olhar doce, sorriso largo, nenhum mistério, seu rosto expressa suas emoções, sua sinceridade.
CONTINUA
Sua pergunta me deixa paralisada, completamente sem condições para lhe responder. Por que ele me procuraria?! Porque somos amigos desde que nasci? Porque estive ao lado dele em todos os momentos? Porque ele tomou um porre, apareceu lá em casa, chorou no meu ombro, beijou-me e depois fingiu que nada tinha acontecido?
Respiro fundo para controlar o volume da voz e não gritar que ele é um idiota, mas, antes que eu abra a boca, Kyra aparece esbaforida com um telefone na mão.
— Ei, Malinha, você está com seu telefone na bolsa? — Alexios olha para a irmã, puto por ela estar nos interrompendo, e eu franzo a testa, sem entender a pergunta dela. — Seu celular! — Ela bufa... — Seu irmão acaba de ligar para o meu telefone. — E balança o aparelho.
Arregalo os olhos, meu coração dispara, e logo penso em mamãe, que vi apenas um pouco ontem, quando fui buscar o Godofredo. Pego o telefone e confiro as ligações perdidas. Noto Alexios se afastando, mas não me importo; ele continua o mesmo egoísta de sempre.
Samara Schneider está de volta!
Mastigo mais um pedaço do pernil que Kyra serviu como opção de carne na ceia de Natal e não consigo deixar de pensar na volta daquela que foi minha grande amiga e companheira.
Até hoje não entendo o que aconteceu para que ela tomasse a decisão de ir estudar na Espanha sem falar nada comigo. Claro, eu sabia que tinha a possibilidade, afinal, havia anos o pai dela pressionava por isso, para ela ir estudar arquitetura clássica na terra de Gaudí14. No entanto, para minha total surpresa, em vez de ir morar em Barcelona, Samara foi para Madri.
Eu, que até então me considerava seu melhor amigo, só fiquei sabendo desses detalhes todos porque Kyra me contou depois que fui atrás dela para saber o paradeiro de Samara.
Pego a taça com água para ajudar a engolir a comida, pois estou com um aperto na garganta desde que a vi. Eu tinha acabado de sair da sala de reuniões de Kyra depois de um ménage espetacular com Valéria e Priscila, mais animado para encarar a noite especial, sem imaginar a grande surpresa que encontraria no salão e que quase me fez tropeçar em meus próprios pés.
Assim que meus olhos bateram nela, assustei-me, pois a danada da Kyra não havia me contado que Samara tinha voltado. Tentei um sorriso e uma aproximação amigável, como se ela não tivesse me abandonado por longos três anos sem nenhuma notícia. Ela está diferente, ainda mais bonita do que eu me lembro, mas tentei não reparar muito e ser o amigo de sempre.
Nada disso adiantou, pois, ao que parece, Samara desejou que eu corresse atrás dela, que a procurasse e reestabelecesse contato. Como eu poderia imaginar algo assim? Não sou adivinho! Ela some sem nenhum motivo e ainda se sente no direito de ficar puta por eu não ter tentado contato?
Quem entende a cabeça das mulheres?!
— Sua amiga foi embora cedo — Millos comenta ao meu lado. — Será que houve algum problema com a mãe dela?
Olho para meu primo, sentado ao meu lado à mesa, e ele entende meu total desconhecimento do assunto.
— A mãe dela, dona Ana Cohen, está em tratamento contra um linfoma. — Millos bebe mais chope. — Você não sabe nada sobre a vida da sua amiga?
— E você? Como sabe?
O filho da puta apenas dá de ombros, evasivo como sempre, adorando estar sempre um passo à frente de todos. Millos é um sujeito estranho. É o único que consegue interagir com todos nós sem tomar partido e sem revelar nada da vida pessoal de ninguém, nem mesmo da sua. Somos amigos, nos damos bem, mas eu sei pouco sobre ele, sobre suas atividades, e o máximo que conheço de sua vida pessoal é que tem um passado fodido como o meu, frequenta alguns clubes de sexo, tem uma amiga que por sinal é uma gostosa do caralho – mas nunca me deu mole, infelizmente – e só.
Como profissional, o homem é uma verdadeira coruja! Quieto, observador, parece que consegue olhar em 360 graus, além de ser um caçador de informações inigualável. Não há nada que passe despercebido por ele, e o que expõe ou o que fala, tenho certeza de que é o mínimo do que sabe. Por isso, todo cuidado é pouco quando o assunto é Millos Karamanlis, porque o desgraçado é um manipulador de mão cheia!
— Eu não sabia que dona Ana está doente, não vejo os pais de Samara há anos — contesto-o. — Espero que nada grave tenha ocorrido.
— Não vai ligar para saber? — Millos volta a questionar.
Franzo as sobrancelhas, encarando-o, tentando entender o motivo pelo qual ele está tão interessado no assunto.
— Não — respondo seco e volto a comer, mesmo com o questionamento dele na cabeça. Para mim o assunto acabou! Samara já demonstrou que não quer papo comigo por algum motivo, e, mesmo chateado com isso, devo respeitar a decisão dela. Millos é um manipulador e sabe que esse é um assunto que me atinge diretamente, por isso tocou nele.
Não preciso ligar para Samara, como não liguei para ela durante todo o tempo em que esteve fora, mas isso não quer dizer que eu não queira saber o que está acontecendo. Kyra sempre foi minha fonte de informações sobre ela e, caso tenha que ser assim, continuará sendo.
Termino minha refeição, fico mais algum tempo com Kyra e seus convidados, brindo ao sucesso do negócio dela e logo depois vou embora. Tinha pretensão de ir para casa, mas, no meio do caminho, uma mulher com quem eu já saí algumas vezes me manda uma mensagem dizendo que está na cidade, e vou encontrá-la.
Dia 26 de dezembro, pior dia de trabalho do mundo, certamente! Rio ao passar por mais dois engenheiros com cara de ressaca ou, talvez, de quem comeu demais e agora passa mal do estômago.
— Melhor colocar a lixeira perto! — passo, sacaneando meu colega de trabalho, Pedro, engenheiro químico. — Se emporcalhar a sala, vai ter que limpar você mesmo.
— Porra, Alexios, fala mais baixo! — Ele põe a mão na cabeça.
Gargalho e me sento à minha mesa, lotada de projetos, planilhas e minha coleção de lápis. É, eu coleciono lápis! Cada um tem a coleção que lhe cabe, não é?
Ligo o computador, olho para meu caderno de tarefas e arregalo os olhos ao ver um nome que eu não imaginava rever anotado lá – por outra pessoa.
— Ethernium? — questiono olhando para o Pedro.
— Sim! Acabamos de saber, mas o CEO lá da Karamanlis vai querer conversar com você, certamente.
Bufo ao pensar em subir até o Olimpo para conversar com Theodoros, sem esquecer as discussões que tivemos nas últimas semanas por conta de seu egocentrismo e insensibilidade com os funcionários da casa.
Sua mania de pensar que é Deus, inabalável, inatingível e perfeito me irrita, principalmente porque sei que ele não é nada disso, apenas a porra de um filhinho de vovô mimado, que sempre achou que podia fazer qualquer coisa que quisesse sem pensar nas consequências, que o velho grego limparia suas cagadas.
Admito, o velhote sempre fez tudo para seu neto querido. Entretanto, não pôde limpar a merda que Theodoros deixou para trás, apenas jogou-a para debaixo do tapete, limpou a consciência do seu netinho querido, que seguiu a vida como se nada tivesse feito e deixou o resto se fodendo sem se importar o mínimo.
Theo é arrogante, e eu não tenho saco para lidar com gente assim.
Ouço passos, um poc-poc característico de saltos, e em seguida a voz de Lia, outra engenheira que trabalha na minha equipe direta.
— Bom dia! — sua voz soa animada. — Ah... sem Papai Noel de chocolate este ano! — ela resmunga, e eu a vejo procurando sobre sua mesa. — Poxa, Alex, você já foi mais generoso!
— Eu?! — Começo a rir. — Você realmente me imagina comprando e colocando chocolate em formato de Papai Noel nas mesas dos outros? — Ela faz careta e nega. — Eu achava que era você!
— Por quê? Só porque sou mulher?
Rolo os olhos.
— Não, porra, porque você é viciada em chocolate!
— Ele está certo, Lia! — Pedro se mete na conversa em minha defesa. — Eu também achava que era você por causa disso.
Ela se senta frustrada por não ter encontrado o presente do “Papai Noel” misterioso da Karamanlis.
— Bom, não sou eu, e eu contava com isso! Não falha por anos! — Olha em volta para as outras estações de trabalho, ainda vazias sem os profissionais. — Ninguém recebeu?
Nego, e Pedro faz o mesmo.
— Estranho...
— Coisas estranhas têm acontecido por aqui — digo e lhe estendo meu caderno com a anotação da Ethernium.
— O quê? De novo? — Ela geme. — Esses caras da Ethernium são uns malas! Sério, Alexios, eu não vou aguentar gracinhas pra o meu lado de novo não!
— Eu disse que você devia ter respondido a ele. — Dou de ombros. — Mas agora sabe que tem meu total apoio! Se alguém da equipe deles fizer piadas machistas de novo, responda.
— Quem é o machista? Que vou com você dar uma surra nele. — Eliane chega já mostrando as garras – que garras! Minhas costas sofreram com elas – e se senta em sua estação. — Bom dia, feliz Natal, foi tudo ótimo! Agora, silêncio, porque ainda estou agarrada a um cálculo estrutural que não tem me deixado dormir. Obrigada. De nada.
Pedro começa a rir, e Lia só balança a cabeça. Eliane é assim, direta e sem rodeios, por isso mesmo achei-a ideal para o trabalho pelo qual é responsável. Nós nos conhecemos em uma balada, transamos, depois voltamos a nos encontrar na entrevista dela aqui na K-Eng tempos depois. Nunca mais voltamos a trepar, mas conseguimos construir uma relação de trabalho quase perfeita. Sei que posso contar com ela para qualquer coisa aqui dentro.
Tenho mais duas pessoas na minha equipe: Evandro e Michel, mas os dois estão de férias e ainda não retornaram. Não é normal dois membros da mesma equipe saírem em férias juntos, mas, como eles são casados, a lei lhes garante esse direito.
A K-Eng não é formada apenas pela minha equipe de engenheiros em suas especialidades, a verdade é que cada um aqui gere suas próprias divisões. O Pedro, por exemplo, é engenheiro químico, e na divisão dele estão químicos industriais, técnicos em química e outros engenheiros dessa área. Já a Lia é engenheira ambiental, e, dentro de sua divisão, há biólogos, gestores ambientais e engenheiros sanitaristas. A Eliana trabalha com projetos, e ela coordena outros engenheiros, arquitetos e projetistas. O Michel faz toda a parte de planilhas e medições, e o Evandro é responsável pelas operações, é quem lida com empreiteiros, clientes e atua também como fiscalizador de obras.
Além do corpo técnico da K-Eng, a empresa, que é uma subsidiária da Karamanlis, ainda tem setores administrativos e financeiros, e eu, como CEO dessa bagaça aqui, sou quem comanda essas áreas.
O único setor que dividimos com a Karamanlis, infelizmente, é o jurídico, por isso aturo muito a prepotência inglesa do Konstantinos e seu humor ácido. Geralmente não tenho paciência com ele, zoo com sua cara ou apenas o ignoro. Ele não é bem quisto por ninguém da minha equipe, principalmente pelas mulheres.
— Por falar em machismo... — Lia volta a falar. — Será que a Kika não vai voltar mais não?
Dou uma risada por ela ter entrado no assunto justamente quando eu pensava no meu irmão machista.
— Está um silêncio total na Karamanlis — Eliana se pronuncia. — Dá até medo de andar pelos corredores, clima pesadão!
— A Kika era incrível, né? Gata, alto-astral, competente — Pedro lamenta. — Uma pena que tenha perdido a cabeça e tenha sido mandada embora...
— Opa! — Eliana o interrompe. — Ela se demitiu!
— Enfim, está desempregada depois de ter ganhado uma puta promoção para a gerência.
— Eu a preferia à Malu Ruschel. — Lia treme toda. — Aquela mulher congelava até meu sangue só de estar perto dela.
Definitivamente, não o meu!, penso ao me lembrar de Malu Ruschel, a ex-gerente dos hunters da Karamanlis. Malu era bonita, tinha classe e aquele seu jeito focado me enchia de tesão. Uma pena ter ido morar no fim do mundo!
Já com a Kika, nunca senti essa atração, talvez por sempre tê-la achado tão receptiva, maravilhosa com seu jeito espontâneo, que logo gostei dela como se fosse uma amiga de longa data. Tenho muito apreço por ela e lamento que tenha saído da empresa.
Os engenheiros começam a conversar, mas o assunto não me interessa o mínimo, então coloco meus fones de ouvido – a voz forte e rasgada da Janis Joplin soa bem alta – e volto a mexer no projeto em que estava trabalhando.
— Ei, moleque! — Millos me chama assim que para sua moto. — Você não sabe curtir um passeio, puta que pariu!
Ele desce da motocicleta, tira o capacete e a jaqueta e se senta à mesa do bar ao meu lado. Bebo minha água sem responder, porque a única coisa que eu poderia lhe falar é que não sou um velho para ficar andando nessas motos de colecionador há 80 km por hora.
Estou aqui esperando-o há pelo menos 20 minutos, e isso porque saímos juntos de São Paulo em direção ao Guarujá, em uma viagem não programada e cujo motivo, sinceramente, nem entendi. Ele apenas apareceu lá na K-Eng e me chamou para andar de moto com ele, e eu topei.
— Qual é o propósito disso? — resolvo perguntar sem rodeios.
— Do quê?
Millos agradece à garçonete que lhe entrega um coco verde com um canudo e nem percebe a moça comendo-o com os olhos (ou talvez só esteja assustada com suas tatuagens, que cobrem os braços, pescoço e peito).
— Desse “passeio”. A gente se viu há alguns dias na ceia da Kyra, e você não comentou nada sobre isso.
— Nada de mais! — Ele bebe a água de coco. — Vou viajar no Ano Novo, ficar um tempo fora e queria passar um tempo contigo. Já jantei com seus irmãos, mas como você é todo amalucado para comer, achei que uma volta de moto iria cair bem, mas esqueci que você é louco nisso também.
— Você está ficando velho, Millos, sinto lhe informar — debocho. — Acha mesmo que, com essa potência italiana nas mãos, eu iria ficar molengando contigo na estrada?
— Não é molengar, é curtir a viagem, a paisagem...
— Ah, não, você curte essas coisas paradas, não eu. Meditação, ioga, essas coisas todas aí que você faz, tô fora! Não sei ir devagar, Millos, em nada!
— Deveria... talvez assim conseguisse agradar às mulheres. — Ele pisca e tenta disfarçar a troça bebendo mais de sua água.
Eu gargalho.
— Pode ter certeza, elas não reclamam da minha rapidez. Não basta saber correr, tem que saber tirar o máximo proveito de uma máquina, fazê-la dar tudo de si, e isso eu faço.
— Está falando das motos ou das mulheres?
— Tem diferença?
Ele ri novamente.
— Você é um moleque, não sabe nada ainda!
— Falou aquele que nomeia suas motos com nomes femininos!
Nós dois rimos juntos, e o clima fica descontraído.
A verdade é que ele e eu temos muito em comum. Ambos adoramos motocicletas, rock e carne. Apesar de sua onda “zen budista”, Millos nunca conseguiu se livrar da proteína animal e das comidas pesadas que adora preparar para acompanhar suas cervejas artesanais.
Ah, esse é outro ponto em comum: adoramos cerveja! Ele fabrica, eu apenas bebo, mas tenho tanto conhecimento quanto ele, e esse é um dos pontos sobre o que mais conversamos quando estamos juntos, geralmente comendo alguma carne e ouvindo rock.
Raramente saímos juntos de moto, exatamente por ele fazer o estilo tiozão que gosta de andar de Harley, apreciando paisagens, e eu e minha Ducati Multistrada 1260 não temos saco para andar quase parando não.
Embora eu reconheça que tenho que agradecer a esse tiozão por ter minha moto dos sonhos, a que uso para correr nas competições. A Ducati só disponibilizou três unidades da 1299 Superleggera para venda no Brasil, há quase dois anos, e um dos amigos do Millos foi quem comprou uma delas, e, quando ele decidiu vendê-la, meu primo prontamente me avisou, e não pensei duas vezes.
Eu gosto das italianas mais do que das americanas ou japonesas, pelo menos para as motos; não sou tão seletivo assim com mulheres.
— Baile dos Villazzas...
— Ah, Millos, não fode com esse assunto de novo! — reclamo, entendendo agora o motivo do encontro.
— Alexios, preciso de você lá.
Rio.
— Mano, aqueles dois não são crianças, e, muito menos, sou a babá deles! Eles não precisam que eu vá para manter a ordem e o bom nome da...
— Kyra me mostrou o projeto do baile, ela parece bem animada com sua primeira grande produção sem a intervenção dos Karamanlis.
Porra! Ele vai pegar pesado!
— Você é muito filho da puta, sabia?
Millos dá de ombros e bebe mais água.
— Acho que vocês deveriam ir para apoiá-la, acima de todos, você! Será importante para ela, além disso... acho que ela está sem acompanhante, porque deu com o pé na bunda do último idiota que estava comendo.
— Porra, Millos! — Xingo-o. — É a minha irmã, porra!
— E o quê? Só por isso ela não trepa?
— Vai se foder! — Levanto-me da mesa puto e pego o capacete.
— Alexios... — ele me chama, mas não dou atenção, já montando na moto para ir o mais longe possível dele.
Antes que vocês me julguem como machista ou irmão ciumento, adianto logo que não se trata disso. Cada um lida com a merda dentro de si de um jeito, e esse é o jeito da minha irmã de lidar com seu passado. Respeito isso, mas não quer dizer que não me doa ou mesmo que eu não me sinta responsável por ela ser assim.
Eu gostaria que as coisas fossem diferentes, esforcei-me o máximo que pude para que ela fosse menos fodida do que todos nós, mas, a cada novo relacionamento seu destruído, sinto-me um fracassado, o que me dói profundamente.
Piloto rápido, passando pelos radares sem me importar com as multas, sentindo o vento forte bater em mim como se pudesse deixar todas as marcas do meu corpo e da minha alma para trás. Contudo, não posso. Ele fodeu a minha vida várias vezes, não só com as coisas que fez contra mim, mas principalmente por eu ver que também destruiu minha irmã.
— Como ela está, Dani? — pergunto ao meu irmão assim que ele entra na cozinha da casa dos meus pais, onde tomo meu desjejum com a Cida.
— Dormiu bem. — Ele beija minha cabeça. — Mas foi um susto essa febre alta assim do nada.
Ele se senta, visivelmente cansado, e Cida logo lhe serve uma xícara de café. Acostumados demais a dividir as refeições com Cida desde que nascemos, sempre tomamos nosso café juntos. Ela está em nossa casa há tanto tempo que não sei como seria minha vida sem sua presença, e certamente Daniel sente o mesmo.
Minha mãe, Ana Cohen, sempre foi muito ocupada na direção do sistema de ensino criado pelos meus avós, franqueado e distribuído por colégios do Brasil todo. Já meu pai, Benjamin, vem de uma longa linhagem de comerciantes e industriais, como bem acentua nosso sobrenome, que é uma derivação da profissão de algum ascendente que foi alfaiate.
Os Schneiders possuem lojas, fábricas ou empresas que prestam serviços, como era o nosso caso. Meu avô não tinha formação quando fundou sua primeira fábrica de móveis, porém eram um marceneiro muito habilidoso, e meu pai aprendeu com ele. Os negócios iam bem, então papai foi estudar arquitetura e, por fim, design, elevando o nível dos negócios familiares, fazendo dos móveis com nosso sobrenome sinônimos de classe e riqueza.
Há 10 anos meu irmão está à frente dos negócios, desde que papai teve seu primeiro infarto – ele já teve outro e fez duas pontes de safena. Daniel é um administrador maravilhoso, fechou com grandes empresas, e hoje os móveis Schneider não enfeitam mais as coberturas e mansões luxuosas de São Paulo, tão somente redes enormes de hospitais, clínicas, lojas de alto luxo e restaurantes em todo o país.
Meu irmão é incrível! Nós dois somos muito amigos, sempre fomos. O único ponto tenso entre nós era Alexios Karamanlis. Daniel é 10 anos mais velho que eu, um quarentão, como eu costumo provocá-lo, e sempre achou Alex uma péssima companhia. Bom, ele realmente era, mas não para mim. Eu sabia das loucuras que Alexios aprontava, seu envolvimento com drogas, farras, lutas valendo dinheiro e rachas pela cidade. Ele não foi um adolescente fácil, mas sempre me tratou como se ainda conservasse o menino que eu conheci. Sempre me deu conselhos para ficar longe de tudo aquilo que ele mesmo fazia, nossa amizade sempre foi separada das outras companhias dele.
Ainda assim, Dani nunca gostou de Alexios, em compensação, tornou-se um dos grandes amigos de Millos Karamanlis, primo do Alex, mesmo que eu não consiga entender o que, de fato, o executivo tatuado e meu irmão tenham em comum.
— Desculpe-me por tê-la tirado da festa da Kyra — meu irmão volta a falar, afastando-me dos pensamentos. — Eu liguei para o doutor Henrique e já ia pedir uma ambulância, quando fiquei com medo de acontecer algo e você não estar aqui.
Pego sua mão.
— Eu sei. Foi um susto!
Retornei as ligações dele assim que Kyra me alertou, e, quando Dani atendeu, o doutor já havia chegado e ministrado medicamentos. O médico preferiu que ela continuasse em casa por conta de sua baixa imunidade, mas ficou acompanhando durante boa parte da madrugada.
— Ela convulsionou, e eu achei que fosse... — Ele me olha, seus olhos acinzentados tristes. — Eu quase perdi o papai tempos atrás, lembra? — Assinto. — Eu estava com ele quando teve o infarto, e agora quase...
— Dani, não pensa nisso! — Abraço-o. — Você é o melhor filho e irmão do mundo, sempre ao lado deles, ao meu lado. Agora estou aqui também e vou ajudar no que for preciso.
— Eu sei, Samara. Essa fase do tratamento é a mais complicada, por causa da baixa imunidade, mas, quando ela estabiliza, é a mamãe que sempre conhecemos e amamos.
— E a Bianca? — pergunto-lhe sobre sua noiva. — Como vocês estão, faltando pouco para o grande dia?
Ele ri sem jeito.
— Você sabe que não tem essa de grande dia, não? Nós vamos ao cartório, assinaremos os papéis e pronto. — Dá de ombros. — Vida que segue.
Cruzo os braços. Não gosto nada desse conformismo estranho.
— Tem certeza disso, Dani?
Ele olha para a Cida.
— Vou fazer 41 anos, pirralha. 15 anos de relacionamento com ela, então...
— É isso? — Cida balança a cabeça negativamente. — Viu? A Cida não concorda também! E não é que você seja já um solteirão arrastando chinelos, Dani! Você é lindo!
— Não é sobre isso, Samara.
— Ele quer ter uma família, menina. — Arregalo os olhos. — Seu pai vive mais entretido na fazenda do que aqui, sua mãe, antes de adoecer, não parava quieta, sempre viajando com as amigas e...
— Eu na Espanha.
Daniel termina o café sem me encarar, sem falar nada e se levanta.
— Vou voltar para o quarto, render um pouco a enfermeira.
— Também vou, Dani!
Seguimos juntos, mudos, pelo corredor. Meu irmão é a pessoa mais discreta do mundo, completamente o oposto de outros filhos de grandes empresários desta cidade. Nunca gostou de sair em revistas de fofoca, nunca namorou modelos, atrizes ou socialites. Na adolescência, namorou uma garota da escola, depois teve duas ou três namoradas na faculdade e, por fim, conheceu a Bianca em um torneio de polo – esporte em que ele é fera. Desde então engataram nesse relacionamento xoxo, totalmente ioiô – eles já terminaram umas 30 vezes ao longo dos anos – e que agora vai se tornar um casamento meia-boca.
— Você merece mais, Dani — solto sem conseguir frear minha língua, e ele ri.
— Você diz isso porque é minha irmã, pirralha. — Ele tenta bagunçar meus cabelos como quando eu era criança. — Bianca pode não ser o grande amor da minha vida, mas é uma boa amiga e companheira.
— Isso é loucura! Você merece amar, ser amado, estar apaixonado...
— Como você esteve a vida toda por aquele doidivanas? — Paro em seco no corredor e arregalo os olhos. — Qual é, Samara, você achava que eu não sabia? Estava escrito na sua testa e em todos os seus cadernos, com direito a corações rosa! Você teve um peixe daqueles que ficam sozinhos no aquário...
— Um beta. — Começo a rir, sabendo exatamente do que ele está lembrando.
— Pois bem, você teve um beta e o nomeou...
— Beto Schneider Karamanlis — falamos juntos, e eu começo a rir.
— Sim! E como você nunca me deu indícios de ter uma queda pela Kyra, eu supus que era o outro Karamanlis. — Daniel me olha sério. — Por que Diego não veio contigo?
A pergunta é tão inesperada que demoro a processar que ele está falando do meu namorado.
— Não sei quanto tempo vou ficar, então...
— Besteira! Ele poderia passar uns dias aqui contigo, os times estão todos em recesso até a primeira semana de janeiro. — Suspiro e olho para o chão. — Não estraga sua vida, Alex não vale a pena.
Assinto, lembrando-me de tudo o que aconteceu noite passada. Alexios continua igual, vendo e querendo todas as mulheres ao seu redor, menos eu. Sempre fui a amiga, quase uma irmã, menos uma mulher, e, como acabei de perceber, todos sabem da minha paixão por ele, então, Alexios deve simplesmente ignorá-la.
Por muito tempo eu achei que ele não soubesse. Ficava fantasiando que, no dia em que eu tomasse coragem e lhe contasse, Alexios iria se declarar também. Iludida! É isso que eu era, porque, depois do beijo que trocamos, era impossível que ele não soubesse.
Respiro fundo, resignada. Alexios sabe, só não se importa e nem sente o mesmo!
Meu irmão bate levemente na porta do quarto de mamãe e em seguida entra. Sigo-o pelo enorme ambiente, que me traz tantas lembranças alegres dos momentos que dividi com ela, deitada em sua cama, contando sobre meus sonhos.
— Samara Esther! — Mamãe estende os braços, sentada na cama, recostada nos travesseiros. — Trouxe Godofredo de volta?
Rio e concordo.
— Trouxe, está lá embaixo no jardim. — Beijo sua testa. — Como está se sentindo hoje?
— Eu estou bem! — Ela dá uma olhada de esguelha para meu irmão. — Ele é superprotetor, sabe? Exagerado!
Daniel permanece alheio às críticas, conversando com a enfermeira.
— Mamãe, ele não é, e a senhora sabe! — Ana suspira. — A senhora está em tratamento, precisa de cuidados, e, com o papai isolado na fazenda, Daniel é que estava responsável por acompanhá-la em tudo, mas agora estou aqui também!
— Dois superprotetores! — ela finge reclamar, mas sorri satisfeita. — Seu pai quis vir para cá para ficar comigo, mas achei melhor que ficasse por lá. Você sabe como ele é, não me daria um minuto de paz.
Eu rio, mas sou obrigada a concordar. Meus pais são incríveis, mas têm uma relação um tanto estranha desde que Daniel e eu saímos de casa para viver nossas vidas. Passaram a viver cada um no seu espaço, com suas coisas. Dão-se incrivelmente bem, mas cada um com sua vida.
É verdade que eles não eram nada parecidos. Mamãe sempre foi uma mulher de negócios, cheia de trabalho, viagens e reuniões, porém extremamente carinhosa com os filhos. Papai é um homem mais reservado em seus sentimentos, embora seja um artista.
Olho para um dos móveis da minha mãe, e a escultura em madeira em cima dele me faz sorrir. Nela há um casal e um garotinho com a mão na enorme barriga da mulher. Papai deu vida à imagem de uma foto que tiraram quando mamãe estava grávida de mim, e a peça ficou tão perfeita que dá para sentir a alegria de todos.
Quando eu era criança, tinha coleções das esculturas dele: cavalos, cães, gatos, pássaros. A que eu mais gostava era a do Pinóquio, que ganhei quando comecei a ler e andava para baixo e para cima com o livro do boneco de madeira que queria ser menino de verdade.
— Você vai até lá visitá-lo? — minha mãe pergunta, talvez adivinhando que estou pensando nele, por estar olhando a estátua.
— Por agora não. Tentei falar com ele quando cheguei e ontem também, mas não consegui. — Dou de ombros. — Papai se isola quando quer, a senhora sabe.
— O doutor Henrique acabou de dizer que os resultados dos exames ficaram prontos e que ele virá assim que puder para conversar conosco. — Daniel senta-se ao meu lado na cama. — É bom ter Samara aqui perto, não é?
Ele me abraça pelos ombros.
— Eu também estou gostando de estar de volta.
Mal termino a frase, e meu telefone toca. A foto de Kyra tentando beijar Godofredo, e ele de boca aberta para mordê-la aparece na tela, e minha mãe sorri.
— Eu estou esperando pela visita dessa filha emprestada desnaturada. — Ana reclama. — Pode dizer a ela que não vai comer mais minha paella!
— Pode deixar! — Levanto-me da cama e vou para um canto do quarto. — Oi, Kyra! — atendo o telefone.
— Quero notícias! Mal consegui dormir essa noite, deixei mil mensagens no seu telefone. Como está sua mãe?
— Está bem, mas ameaçou greve de paella se você não vier visitá-la em breve.
— Está bem mesmo? — ouço preocupação na voz da minha amiga, e meu coração se aperta, pois sei que minha mãe foi o mais próximo que Kyra teve de figura materna. — Malinha?
— Está, sim. O médico dela explicou que, por conta da medicação, ela ficaria suscetível a doenças, a imunidade está baixa, então qualquer resfriado ataca com força.
Kyra suspira ao telefone, e eu abro um sorriso ao ver o quanto minha amiga durona é, na verdade, tão sensível quanto eu.
— Que bom! Fico feliz em ouvir isso e mais aliviada para te fazer um convite.
Faço careta, já prevendo que ela vai me meter em algum evento seu de final de ano, vestida de garçonete.
— O que você está armando, Kyra?
— Nada! — ela logo se defende, indignada. — Eu só queria companhia! Na véspera do Ano Novo acontecerá o Baile Branco e Preto dos Villazzas, e, como eu estou sem nenhum boy no momento, você podia ser meu par, o que acha?
— Kyra! — Rio. — Um baile? Sério?
— Baile? — mamãe logo se mete na conversa e pergunta lá da cama. — Por acaso é o baile dos Villazzas?
Fodeu! Minha mãe sempre amou bailes e conheceu a matriarca dos Villazzas tempos atrás, através de sua amiga, Cecília Novak. Certamente ela adorará a novidade, achará moderno eu ir acompanhando minha amiga, e eu não terei escapatória.
— É, mamãe, eu vou com Kyra — respondo resignada.
— Eu sabia! — Minha amiga ri ao telefone. — O traje branco é obrigatório para mulheres, então, abuse de cores em outros locais!
— Eu vou te matar, Kyra Karamanlis! — sussurro para que somente ela escute.
— Depois do baile; antes, quero usufruir de tudo o que planejei! Vai ser o evento mais incrível que você já viu!
Relaxo, percebendo que ela realmente está feliz e confiante.
— Tenho certeza disso, Kyra!
Nós nos despedimos, mas não retorno imediatamente para a cama, ao lado da minha mãe e do meu irmão, fico pensando em como é bom estar de volta. Realmente me sinto em casa aqui, com as pessoas que eu amo, ainda que tenha feito amigos na Espanha.
Penso no Diego e sinto um pequeno aperto no coração, um misto de saudade e remorso. Daniel me olha, curioso por eu estar parada no mesmo lugar, sem falar ou fazer nada, e reflito sobre o que ele me disse. Reconheço que eu recuei ante o pedido de casamento de Diego por ter esperança de voltar ao Brasil e encontrar Alexios mudado, porém ele não mudou e nem mudará jamais, mas isso não muda o fato de que ele ainda mexe comigo.
Diego e eu nos damos muito bem, somos amigos, companheiros, temos gostos parecidos. Enquanto eu estava na Espanha, longe do magnetismo e atração de Alexios, realmente pensei que pudesse amá-lo e ter uma vida com ele. Os momentos que passamos juntos foram maravilhosos, mas agora me questiono se, mesmo voltando para Madri, é justo manter essa relação.
O Uber me deixa em frente ao Villazza SP, e vejo a entrada principal do hotel cheia de pessoas bem-vestidas e penteadas. Ando na direção delas, questionando-me se os convites estão sendo verificados na entrada, mas me surpreendo ao ouvir um dos homens que está parado na entrada:
— Nós só queríamos comprar o convite, não conseguimos responder a tempo e...
— Senhor, o que me foi passado foi que esgotaram, eu sinto muito — um dos seguranças responde antes de se virar para mim, mas, vendo o convite em minhas mãos, abre a porta. — Seja bem-vinda!
Entro no saguão principal do enorme hotel e suspiro, apreciando todos os detalhes da construção e da decoração, orgulhosa por ter sido parte da equipe que ajudou a deixá-lo perfeito desse jeito.
O escritório de arquitetura que projetou o Villazza SP foi o dos Boldanis, e o arquiteto principal que assinou o desenho foi ninguém mais, ninguém menos que meu ídolo e professor, Julio Boldani. O italiano é fera demais nas suas linhas clássicas misturadas às modernas.
Eu ajudei o pessoal que compôs o projeto de decoração, pois estava me especializando e, por isso, trabalhei um tempo no Boldani. Foi ali que descobri que, por mais que papai fizesse pressão para que eu fosse uma arquiteta, eu queria mesmo era ser designer de interiores.
Subo as escadarias de mármore com corrimão e guarda-corpo de ferro fundido na cor ouro velho em arabescos e folhas e, no saguão da entrada do salão Royal, encontro a recepção do baile montada como se fosse uma bilheteria antiga de circo.
Sorrio ao pensar na Kyra, reconhecendo que minha amiga sabe como dar vida aos seus projetos de maneira perfeita, pois vi os desenhos quando almoçamos juntas anteontem e confesso que está tudo muito mais bonito do que a ilustração em 3D que ela me mostrou.
Olho em volta, procurando-a, pois combinamos de nos encontrar na entrada, mas arregalo os olhos ao ver Alexios, de smoking preto, vindo em minha direção.
Mesmo contra a minha vontade, minhas mãos gelam e meu coração dispara apenas por vê-lo, por notar o quanto ele está lindo com esse sorriso largo e os olhos brilhando.
Por que ele tinha que ter essa aparência e essa boca?!, penso na injustiça do mundo, indignada por ser tão comum, e ele...
— Samara Esther. — Bufo, pois só ele e minha mãe chamam-me assim. — Você está... linda!
Alexios sorri e me olha desde as unhas dos pés, pintadas e cutiladas, até o alto da cabeça.
— Linda! — repete como se não fosse possível que eu estivesse desse jeito.
— Oi, Alexios — cumprimento-o seca, tentando não dar importância ao fato de que ele parece ter tomado um soco só por me ver mais arrumada. — Estou esperando sua...
— Eu sei, foi ela quem me mandou ficar aqui de plantão te esperando. — Enrugo a testa, sem entender. — Kyra resolveu bancar a fada madrinha e ajudar uma amiga a ter seu baile com um príncipe encantado e, por isso, vai ter que trabalhar esta noite. — A expressão no rosto dele é de deboche ao falar do conto de fadas. — Então, restou a mim.
Puta merda, Kyra!
Pego o celular dentro da bolsa e mando mensagem para ela, mas tenho certeza de que, ocupada com o começo do baile, ela não irá ler. O que eu faço? Penso se devo aceitar fazer companhia ao Alexios ou se devo ir embora, afinal, só vim a esse baile por insistência da Kyra.
— Samara, eu sei que nossa amizade está um tanto estremecida por conta da distância e do tempo, mas... — Alexios me encara, e noto que ele está se esforçando para falar — eu gostaria que você me acompanhasse esta noite.
Minha boca fica seca ao ouvir isso, porque, mesmo com a distância, eu ainda consigo saber quando ele está sendo sincero. Alexios me quer ao seu lado esta noite, e isso é...
— Como nos velhos tempos, lembra? — ele complementa, e, mais uma vez, percebo o quanto sou iludida.
Nada mudou!
Imediatamente me lembro do meu baile de formatura do ensino médio, no qual ele foi meu acompanhante. Chegamos juntos, eu estava empolgada para dançar com ele a noite toda, arrumei-me para parecer uma mulher aos seus olhos e não mais a menina de cabelos revoltos que o seguia para toda parte quando criança.
Havia decidido que iria contar a ele o que sentia naquela noite e que, depois de ele se declarar também, iríamos fazer amor, e eu, aos 17 anos, finalmente teria minha primeira noite com o homem que amava.
Ledo engano!
Alexios dançou uma música comigo, depois foi para o bar, encheu a cara, sumiu com uma garota bem mais “servida” que eu e voltou para o salão todo amarrotado. Eu queria ir embora, mas ele acabou dançando (e sumindo) com mais umas três mulheres.
— Seu acompanhante te deixou sozinha, não é? — Marlon, um dos garotos que estava se formando comigo me perguntou, e só aí percebi que ele estava sentado à mesa comigo.
Começamos a conversar e, naquela noite, tive minha primeira experiência sexual. Não foi ruim, namoramos por um tempo, mas reconheço que ela só aconteceu porque Alexios não me quis. Ele simplesmente não me via!
— Samara? — ele me chama e me faz voltar à realidade.
Por Deus! Não sou mais uma garota de 17 anos, sou adulta, independente, com uma carreira bem-sucedida na Espanha e um dos homens mais gostosos de Madri ao meu lado!
— Vamos entrar! — decido e marcho até uma das “bilheterias”, onde recebo minha máscara preta e uma pulseira.
Alexios recebe as dele e ri ao me mostrar a máscara branca como a de O Fantasma da Ópera. Ah, merda!
— Você se lembra? — Ele ri. — Me obrigou a ver esse filme um milhão de vezes e sabia até as falas!
O desgraçado põe a máscara, ergue uma das sobrancelhas, dobra-se em reverência e sorri.
— Vamos logo com isso! — Saio de perto dele sem rir de sua gracinha, coração retumbando, a cabeça cheia de lembranças da nossa adolescência.
Quando as portas se abrem, perco o fôlego ao ver o que Kyra idealizou.
— Puta que pariu, minha irmã é foda! — Alexios fala ao meu lado.
Eu pulo de susto, não por causa do que ele disse, nem mesmo ao ver um dos artistas cuspindo fogo, mas tão somente por sentir a sua mão em minha cintura. Meu corpo inteiro aquece, a pele arrepia e aquela sensação que sinto desde que os hormônios despertaram em mim na adolescência volta a me tomar.
Atração! Química!
Não sei explicar, mas meu amor de criança transformou-se nisso quando me tornei moça, e a cada toque, cada resvalo, eu resfolegava. Sonhava com ele, acordava suada e sem saber o que estava acontecendo. Meu primeiro orgasmo com masturbação foi pensando nele, instintivo, depois de um sonho erótico e proibido.
Achei que, com a distância, principalmente depois que me envolvi com Diego, isso ia passar, mas parece que me enganei.
Olho-o e percebo que ele permanece alheio ao que me causa, sua atenção tomada pelos malabares que executam movimentos precisos na entrada do baile.
Respiro fundo.
— Vamos?
Ele assente sem me olhar, e seguimos juntos, passando entre os convidados que ainda se encontram de pé conversando ou bebendo no bar, em direção ao centro do salão, tomado de mesas e cadeiras reservadas.
— Onde nós...
Nem preciso terminar a pergunta, pois logo vejo Theodoros Karamanlis, acompanhado de uma lindíssima loira, a uma mesa com o sobrenome deles na placa de reserva. Eu não sou muito fã do irmão mais velho de Alexios, mas sempre fui educada com ele, então armo meu melhor sorriso e o cumprimento:
— Theo! Que bom vê-lo esta noite! — Olho para sua acompanhante agora mais de perto e sinto como se a conhecesse de algum lugar.
— Samara, essa é Valentina de Sá e Campos — Theodoros nos apresenta, e eu sorrio, reconhecendo os sobrenomes dela. — Valentina, essa é a Samara Schneider, uma incrível designer de interiores.
— É um prazer, Valentina! — saúdo-a.
— O prazer é meu, Samara. — Valentina sorri. — Nos conhecemos já?
— Eu acho que sim, embora não me recorde de onde pode ser.
A loira para a fim de tentar se lembrar, e eu ouço a conversa entre Theo e Alexios.
— Viu só esse trabalho da Kyra?
— Claro! — Alexios debocha do irmão. — Seria impossível não ver, já que estou aqui! Já fui até cumprimentá-la, mas está tão ocupada que não consegui nem falar com ela direito.
Só o suficiente para que ela o encarregasse de me acompanhar nesta noite! Kyra me paga!
— Imagino que esteja. Viu o Kostas? — Theo pergunta, mas não consigo ouvir a resposta de Alexios, pois Valentina volta a falar:
— Lembrei! — ela comemora. — Nos encontramos na festa de inauguração da loja da Miriam Benides, lembra?
Eu não faço a mínima ideia do que ela esteja falando, mas, mesmo que não esteja com nenhuma vontade de prosseguir com a conversa, sorrio e concordo por educação.
— Puxa vida, quanto tempo não vejo você por lá! — Valentina continua.
— Eu estava morando em Madri — informo antes de me sentar.
— Ah, eu adoro a Espanha!
Sorrio sem graça, percebendo que vamos conversar. Não quero ser mal-educada com ela, é só que não estou muito confortável em estar aqui neste baile, não depois de perceber que ainda quero Alexios e que não adiantou de nada impor distância.
— Família! — a voz debochada de Kostas interrompe a conversa de Valentina, e ela me pergunta baixinho quem é o homem abraçado a uma loira com um vestido branco tão justo e transparente que beira à indecência.
— Konstantinos... — sussurro antes de ele apresentar sua acompanhante a todos.
— Bruninha, conheça os Karamanlis! — Ele aponta para Alexios e para Theodoros. — Claro que você pode deixar seu cartão com eles depois, mas eu sou o mais bonito, não sou?
Ele faz a mulher girar em seu próprio eixo, e, pela primeira vez depois da tensão toda em que eu estava desde que vi Alexios, sorrio divertida. Kostas é uma figura! Ainda me lembro de quando ele morava no prédio, na cobertura de seu pai, e juro, se não fossem os olhos azuis e a voz, eu diria que não se trata da mesma pessoa!
— Já bêbado? — Theo pergunta a Alexios.
— E mais uma vez com acompanhante paga! — Alexios se aproxima de Theo e cochicha, e isso me surpreende. Não sabia que os dois estavam conseguindo ter uma relação tão cordial. — Estou achando que nosso querido irmão é do outro time.
Theo gargalha e nos olha sem graça.
— Perdoem-me, foi irresistível! — Tenta se conter e bebe mais do seu uísque. — Bom, certamente ele é arrogante e orgulhoso demais para “sair do armário”.
Quem? Kostas?! Olho para o homenzarrão com a prostituta e nego instintivamente com a cabeça. Não mesmo!
— Seria apenas mais um rejeitado pelo seu querido pappoús! — ouço Alexios dizer isso, e meu coração aperta. Olho-o, respiro fundo, lamentando profundamente por ele ainda se sentir rejeitado, percebendo que isso também não mudou.
Rejeição, abandono, violência o tornaram o homem que é. Sei disso, dei essas desculpas para seu comportamento por muitos anos. Toda vez que ele aprontava, eu usava isso para justificá-lo.
Até quando?, penso, olhando-o fixamente. Até quando ele deixará que os erros dos outros façam-no errar também?
— Você gosta muito dele, não é? — Valentina dispara, e eu desvio os olhos de Alexios. — Seus olhos brilham diferente ao olhar para ele.
— Somos amigos há muitos anos — disfarço.
— Bom, isso é muito bom, mas... — Ela ri. — Desculpe-me se estou sendo invasiva, mas seu olhar é de quem é apaixonada, não apenas uma amiga.
Dou um sorriso amarelo para ela, e Valentina fica quieta.
— Tudo bem aí? — Alexios me pergunta, e eu assinto. — O jantar já tinha sido anunciado antes de você chegar, então não deve demorar muito.
Resolvo conversar com ele normalmente, afinal, seria ridículo fazer birra na minha idade.
— Kyra estava muito ansiosa com o jantar desta noite. Um grande chef internacional, ela me contou, é quem está preparando tudo.
— Sim, está na programação. — Alexios lê o nome do chef francês, e eu não consigo deixar de olhar sua boca. Pego a taça de champanhe e a viro de uma só vez. — Uau! — Sorri e faz sinal para um garçom se aproximar com mais. — Minha acompanhante está sedenta.
— Estou. — Decido não discutir e bebo a outra taça. — E com fome também.
Alexios toca minha coxa por cima do vestido, mas logo tira a mão.
— O jantar não deve demorar — repete sério e se vira para olhar o outro lado do salão.
Fico um tempo olhando para minhas pernas, permitindo a sensação de brasa que a mão dele deixou em minha coxa passar, chateada demais por reagir assim a ele e continuar sendo praticamente invisível.
Que porra é essa que está rolando?
Essa pergunta retórica fica martelando minha cabeça enquanto tento prestar atenção em qualquer coisa neste maldito salão lotado que não seja ela. Eu só posso estar com algum problema, só pode! Samara sempre foi minha amiga, quase minha irmã. Eu estar aqui com uma maldita ereção – pela segunda vez esta noite, frise-se – só pode ser loucura!
Preciso de um médico! A loucura congênita dos Karamanlis começou a se manifestar em mim. Sentir tesão por Samara é quase... incestuoso!
Pego a taça com champanhe e a termino em uma só golada a fim de aplacar o fogo que apenas um toque em sua coxa me causou.
A verdade é que eu não esperava encontrar-me com ela nesta noite. Vim por insistência do Millos e, claro, por sua maldita manipulação eficaz ao falar da Kyra e do suporte a ela em seu primeiro grande evento. Cheguei junto aos primeiros convidados e a encontrei correndo de um lado para o outro, “armando” uma surpresa para sua amiga e funcionária, a gostosa da Helena, que, por sinal, está namorando o Bernardo Novak, um amigo de longa data.
Quando finalmente ela terminou todos os preparativos, foi à cozinha falar com o tal chef francês que a estava deixando nervosa, conferiu tudo com as bandas, DJ e artistas circenses é que me deu atenção.
— Oi, Alexios. — Sorriu cansada. — O baile nem começou direito, e eu já estou de um lado para o outro. — Ela espiou a fila se formando na recepção do evento. — Gostou da decoração?
Seus olhos verdes, como os meus, brilharam ansiosos. Eu cheguei perto dela, beijei sua testa e falei baixinho:
— Está tudo perfeito, Kyra. Parabéns, estou muito orgulhoso!
Ela suspirou e depois se afastou.
— Claro que está! Não tinha dúvida alguma disso. — E, do nada, pegou-me pela mão e me arrastou em direção ao salão. — Vem ver!
— Kyra, eu ainda não troquei meu convite e...
— Ah, Alexios, vem ver!
A decoração estava esplêndida, embora eu soubesse que, com os efeitos de luz e os artistas executando seus números, iria ficar ainda mais incrível. A banda, no palco ao fundo do salão, já estava se posicionando, e alguns funcionários de Kyra ajeitavam os últimos detalhes das mesas, arranjos florais ou acendiam as velas.
— Perfeito! — elogiei-a novamente.
— Você ainda não viu nada! — E deu aquele sorriso que eu sei que fode com a cabeça de qualquer homem. É duro ter uma irmã como ela, linda e sexy, e ver os caras babando em cima e não poder socar a fuça de nenhum. — Ah, preciso de um favor.
Estava demorando!
— Kyki, estou de smoking, mas ainda não sei segurar uma bandeja — sacaneei.
— Não, seu idiota! — Ela me estapeou as costas. — É meu par desta noite! Não vou poder participar do baile como havia previsto, então preciso que você faça companhia...
— Ei, ei, pode parar! Não vou ficar pajeando nenhum marmanjo não!
Ela rolou os olhos.
— Não é marmanjo, idiota! Posso terminar de falar? — Assenti. — É a Samara. Convidei-a a vir comigo esta noite e não quero que fique sozinha.
Samara Esther Schneider!
Fiquei um tempo olhando para Kyra, tentando entender se ela tinha feito isso de propósito, para tentar nos reaproximar, afinal, sempre fomos um trio de amigos/irmãos, e, com a relação entre mim e Samara estremecida, Kyra devia estar um tanto confusa.
— Sem problema. — Sorri. — Você avisou a ela?
— E Samara atende aquele celular? — Ela bufou. — Você terá que esperá-la lá fora. Se importa?
— Não — fui sincero.
— Ótimo, agora vaza, porque ainda tenho coisas a fazer antes de abrirmos o salão. — E, do mesmo jeito que me arrastou, colocou-me para fora.
Fiquei um bom tempo esperando por Samara do lado de fora, o que foi surpreendente, pois ela sempre foi pontual. Vi o salão ser aberto, o baile começar, o discurso do doutor Andreas Villazza, o anúncio do jantar, e nada de a minha (ex?) melhor amiga chegar.
Estava olhando para um detalhe na construção do hotel, executada pela Novak Engenharia, quando meus olhos foram atraídos para o topo da escadaria. Não é exagero eu dizer que meus olhos foram atraídos, porque foi como se um ímã puxasse minha atenção para aquele ponto.
Engasguei-me com minha própria saliva ao ver Samara. Sim, ela estava linda, mas não foi o vestido branco ou o penteado elaborado que chamou minha atenção, foi ela.
Ela é linda e, por conta da nossa amizade e do receio que tinha de machucá-la, parei de perceber sua beleza e não notei a mulher que se tornou.
Fiquei parado, tomando nota de tudo, como se a estivesse vendo pela primeira vez, sentindo um incômodo por estar olhando-a com lascívia, afinal, era a Samara!
Balancei a cabeça, tentando voltar a pôr os neurônios no lugar, justificando para mim mesmo que isso aconteceu por causa dos anos distantes, mesmo sabendo que isso era pura enganação, pois ela não mudou nada nesses últimos anos.
O que aconteceu, então? Não sei, ainda estou confuso, tentando entender por que fiquei excitado com o perfume dela ou por que meu pau acordou apenas por eu a ter segurado pela cintura a fim de andar com ela até a mesa.
Tive que ficar parado, olhando para os malabares sem vê-los realmente, com cara de paisagem, fingindo que nada estava acontecendo. Eu não queria que ela soubesse que eu estava reagindo daquela forma a ela; certamente ficaria horrorizada. Sempre fomos como irmãos!
Tentei me conter, agradeci por Theodoros e sua companhia já estarem à mesa, fiquei um tempo distraído conversando com meu irmão mais velho, mesmo que isso fosse uma dor no saco. Não sou tão rancoroso quanto o Konstantinos sobre o Theo, apesar de concordar com meu irmão sem noção sobre ele nos ter abandonado nas mãos do louco Nikkós, mas o que Theodoros poderia fazer? Eu mesmo estive nessa situação quando pude sair de casa, mas não tinha como tirar Kyra dele, por isso fiquei.
O DJ que executa as músicas antes do jantar e da banda ao vivo coloca My Immortal, de Evanescence, e é impossível não olhar para Samara.
— Sua música preferida na adolescência — comento com ela.
Samara sorri e balança a cabeça, olhando os casais indo para a pista de dança.
— Tocou na minha formatura...
— Eu sei, eu queria dançar com você, mas você não parecia muito a fim, então fui beber.
Ela arregala os olhos e me encara como se não soubesse do que eu estou falando. Provavelmente nem se lembra, estava nervosa e ficava repetindo o caminho todo dentro do carro que a gente nem deveria ter ido, que era besteira.
Não somos mais adolescentes!
— Quer dançar? — inquiro impulsivamente e estendo a mão para ela.
Samara olha para minha mão por um tempo, mas aceita.
Porra, que loucura!
Ela pega minha mão, e minha vontade é de puxá-la para mim e beijar sua boca. Foda! Não consigo mais refrear meus desejos; sempre consegui com ela, por isso não entendo o que está acontecendo agora. Não é qualquer mulher aqui comigo, indo para a pista de dança para ficar de corpo colado no meu – porra! – é a Samara!
Samara!
Minha amiga de infância!
Quase uma irmã...
MERDA!
— Está tudo bem? — ela me pergunta, e eu tento relaxar, já que estou dançando como antigamente: a um palmo de distância dela.
— Sim, tudo. — Tento dar meu famoso sorriso, mas não rola, então pigarreio. — Estou com sede, calor... acho que é essa decoração toda.
— Pode ser. — Ela desvia os olhos de mim. — Quer voltar para a mesa?
Quero!
— Não, a não ser que você...
— Tudo bem.
Ela se solta de mim no exato momento em que a música muda para um instrumental baixo e as luzes se acendem.
— O jantar. — Aponto para os garçons em fila e os convidados voltando aos seus lugares. — Vamos?
Salvo pelo gongo do cozinheiro!, penso ao ajustar disfarçadamente minha calça para não andar de pau duro e assustar a todos por causa da claridade do salão.
Samara bebe mais uma taça de champanhe, e eu rio, já preocupado. Nunca a vi beber tanto! Sempre foi séria, careta, estudiosa e boa filha. Ela nunca fazia nada de errado, nunca decepcionou os pais, fazia tudo o que eles queriam... quer dizer, tudo menos se afastar de mim.
— Acho que já quero ir — ela comenta de repente. — Vou chamar um Uber...
Levanta-se um pouco tonta, e eu a amparo pela cintura.
— Você quase não comeu, e bebeu muito — falo, e ela levanta uma sobrancelha atrevida e irônica para mim. — Não estou dando lição de moral, mesmo porque não tenho nenhuma, apenas constatei um fato.
Ela ri.
— Você não tem nenhuma moral mesmo! — arrasta a última palavra. — Sempre foi um galinha, essa cara de santo aí só engana as outras!
Gargalho.
— Elas não ficavam enganadas por muito tempo, pode acreditar!
Samara funga, indignada, e fecha os olhos.
— Eu acho que realmente bebi demais.
Olho em volta; o salão já está praticamente vazio, apenas um ou outro convidado conversando em pequenos grupos. Theodoros se despediu, com Valentina grudada em seu pescoço, há mais de uma hora, e Kostas nem jantou conosco à mesa, provavelmente ficou no bar com sua acompanhante.
Inicialmente eu tinha pensando em esperar tudo terminar para acompanhar Kyra até em casa, mas, com Samara no estado em que se encontra e com tudo aqui ainda para ser desmontado, é melhor eu levar minha amiga para casa – aproveitando que moramos no mesmo prédio – e voltar mais tarde para acompanhar minha irmã.
Pego a pequena bolsa que ela trouxe e, ainda abraçado a ela, caminho para a saída.
— Alexios... tudo está rodando...
— Muito natural depois de todo aquele champanhe.
Ela suspira e joga a cabeça para trás.
— Você é um chato, sabia? Não posso entender o que todas aquelas mulheres viam em você!
— Imagino que não possa mesmo — respondo-lhe, sabendo que vai se irritar.
Samara sempre disse que eu respondia politicamente ou me evadia quando sentia que o assunto poderia ir para alguma direção que não me deixaria confortável. Ela tinha razão na maioria das vezes, mas, neste momento, só estou a fim de irritá-la.
— Você é um babaca, Alexios Angelos!
Opa! Falou meu nome todo! Rio de sua irritação bêbada, talvez por estar um tanto alto como ela, mas sóbrio o suficiente para carregá-la em segurança até a calçada.
Não vim de moto ou carro sozinho exatamente por saber que iria beber – principalmente para aguentar sozinho a companhia dos meus irmãos à mesa –, porém previ que a saída do baile estaria um inferno e que seria difícil conseguir um táxi ou um carro de aplicativo que estivesse por perto, por isso deixei o Cris, que me trouxe, de sobreaviso no estacionamento.
Mando mensagem para ele e espero até meu carro aparecer. Abro a porta de trás e coloco sobre o banco uma Samara parcialmente adormecida por cachaça francesa.
— Essa foi nocaute! — Cris ri quando eu entro. — Para onde?
— Para o Castellani. — Ele dá um sorrisinho malicioso e pisca. — Ela é minha vizinha, Cris, sossega.
— Falou, chefinho.
— Para de merda e dirige.
Ele tenta sair da entrada do hotel, mas é praticamente impossível com o número de carros que também tentam deixar o local. Olho para trás, confiro que Samara está mesmo apagada e fecho os olhos, recostando-me contra o assento do carona.
— Foi uma festança, hein? — Cris volta a falar. — Só vi entrar filé, pena que a maioria estava acompanhada.
— Geralmente isso não é problema — comento, mordaz. — Já comi muita mulher no banheiro de recepções como essa enquanto o marido conversava com os amigos e falava de negócios.
Cris gargalha.
— Você nunca valeu nada, Lex!
Não retruco o apelido ridículo com que ele me chama e me faz parecer o vilão do Homem de Aço. É pura perda de tempo ralhar com Cristino, então simplesmente ignoro, cansado, meio zoado e com tesão frustrado.
Ele e eu nos conhecemos há alguns anos, quando visitei um dos prédios da Karamanlis que foram invadidos por movimentos pró-moradias. O homem era motorista de profissão, com anotação em sua carteira de trabalho em várias empresas, que juntou todo o dinheiro que tinha, investiu em um carro e um ponto de táxi, mas foi engolido e enxotado pelas grandes cooperativas.
Assim, quando nos conhecemos, ele estava sem casa, sem carro, sem emprego e com uma enorme dívida, fazendo bicos aqui e ali. Ajudei-o primeiro a conseguir emprego, depois por fim saiu da invasão, e, nesse ínterim, nos tornamos amigos.
Ano passado, quando a filha dele nasceu, quis que eu a apadrinhasse, mas educadamente declinei, explicando que, mesmo honrado, não poderia aceitar, pois sou ateu, e o apadrinhamento de uma criança tem a ver com questões religiosas, tem um sentido específico, e eu não seria a pessoa certa para isso. Ele entendeu, mas a garotinha já me chama de Didi (seu jeito fofo de bebê de chamar seu dindo, mesmo que oficialmente eu não o seja).
Acho que cochilei também até o Castellani, pois, quando me dei conta, já estávamos na garagem. Cris me perguntou se eu queria ajuda com Samara, mas agradeci e o mandei para casa. Ele não trabalha como meu motorista diariamente, mas sim na Karamanlis, transportando quem quer que precise fazer serviços externos. Contudo, toda vez que preciso, chamo-o para ganhar um extra.
Há muito parei de combinar bebida e direção, não por mim, mas por medo de acontecer algum acidente e eu acabar prejudicando outras pessoas.
Chamo o elevador, e somente dentro dele é que a bela adormecida parece voltar a si.
— Alexios... — Samara olha em volta. — Este é o elevador do Castellani?
— Parece que sim — respondo-lhe divertido.
Samara bufa.
— Só desmaiada é que eu aceitaria vir com você na direção nesse estado em que se encontra.
— Estou melhor que você. — Ela se encosta contra o espelho, olhos fechados e um enorme sorriso bêbado no rosto. — Além do mais, viemos com motorista.
— Bom... — Samara fala devagar e lambe os lábios como se estivessem secos. O efeito no meu pau é instantâneo. Sinto meu corpo inteiro acender, minhas mãos formigam de vontade de tocá-la. Sua pele parece brilhar, atraindo-me como uma chama atrai uma mariposa.
Tento me afastar, pensar em outra coisa, mas o espaço reduzido do elevador não ajuda. As paredes parecem se fechar cada vez mais, aproximando-me de Samara, apertando-me contra ela, espremendo meu corpo...
— Alexios... — ela geme meu nome, e eu me espremo mais, fazendo-a grudar contra o espelho. O seu perfume inebria meus pensamentos, a pele, tão quente e macia que a sinto mesmo por baixo do vestido, me enlouquece. Preciso provar o sabor de sua boca, conferir se o hálito quente e um tanto etílico se confirma em sua saliva.
Sim!
Agarro-a com mais força, minha ereção pressionada contra sua barriga, minha boca correndo em seu pescoço. Tudo parece congelar à nossa volta, não existe mais tempo e nem espaço, apenas o vácuo e nós dois dentro dele, em chamas.
Lábios nos lábios. Meus dedos esfregam sua nuca, a pele arrepia, os pelos eriçam, meu corpo treme. É a viagem mais louca que eu já fiz sem ser através de uma substância química entorpecente... não! É química ainda, é uma droga viciante, é tesão!
Devoro sua boca sem nenhum pudor ou impedimento. Ela me acolhe, abre-a para minha exploração, prende meus lábios entre seus dentes e morde com força, despertando com a dor ainda mais meu desejo.
Enfio os dedos no meio do seu penteado, seguro o cabelo com força, e ela retribui o desespero cravando as unhas nos meus ombros.
Estou pronto para fodê-la, minha cabeça já trabalha uma forma de abrir o zíper da calça social, sacar meu pau e buscar o caminho de sua boceta, que, a julgar pela forma com que ela come a minha boca, já está molhada e quente.
Um pigarrear me faz sobressaltar, e eu me afasto dela o mais rápido possível. Um casal de idosos também vestido em black tie entra no elevador no saguão do prédio, sinal de que o elevador subiu e desceu de novo enquanto nós dois quase nos comíamos dentro dele.
Olho para Samara, mas ela não parece constrangida ou assustada, apenas passa a mão pelos lábios e me encara, sua expressão cheia de perguntas e curiosidade.
Caralho, o que eu estou fazendo?! É a Samara, minha amiga, aquela que eu sempre quis manter longe desse meu lado sem vergonha! Puta que pariu!
Espero o casal descer em seu andar e, assim que as portas se fecham, respiro fundo.
— Desculpa, Samara, acho que estou mais bêbado do que imaginei a princípio. — Não tenho como olhá-la, dividido entre o constrangimento e o desejo ainda pulsando na minha calça. — Somos amigos, eu não deveria atacar você dessa forma, me des...
— Para! — sua voz soa magoada, e eu tenho vontade de socar a cabeça contra o espelho. — Não precisa dizer mais...
— Eu prometo que isso não voltará a acontecer. — Finalmente a encaro e fico fodido ao ver sua expressão confusa. Ela parece não ter gostado do que aconteceu, deve estar achando que eu sou um filho da puta aproveitador. — Você é minha amiga, Samara, mesmo depois dessa distância, eu ainda a vejo como se fosse minha irmã e...
— Chega! — ela grita, e as portas do elevador se abrem no seu andar. — Você tem razão, foi um erro e não deve voltar a acontecer!
Ouvir isso é como um balde de água fria, mesmo reconhecendo que é o certo.
— Eu não quero que isso afete novamente a amizade que nós temos e...
Samara sai pisando duro do elevador sem olhar para trás. Minha vontade é de correr atrás dela, voltar a encostá-la em alguma parede e beijá-la novamente até que perca a razão ou eu alivie esse tesão indesejável que estou sentindo.
As portas se fecham, e eu, ao invés de apertar o botão do meu andar, mando o elevador de volta para o térreo e chamo um Uber.
Preciso trepar!
— Essa sua cara de cachorro cagando na chuva é ainda ressaca do baile? — Kyra me pergunta, sentando-se ao meu lado na rede que ela tem em sua varanda. — Quer café?
Resmungo ainda com os olhos fechados:
— Quero paz!
Ela ri.
— Isso está em falta por aqui hoje, passa na semana que vem... — Encaro-a, puto com a piadinha. — O que aconteceu?
Não respondo, meus olhos fixos no topo do prédio do outro lado do parque. Balanço a cabeça, decidindo ser mais covarde do que tenho sido desde a madrugada do dia primeiro de janeiro e fecho os olhos para tentar nem pensar na confusão que arrumei.
— Você não deveria estar trabalhando hoje? Ou eu? — Kyra volta a me importunar, mas continuo mudo. — Mano, você continua o mesmo chato da porra de sempre! Fica aí com essa cara de Maria do Bairro e não abre a porcaria da boca para me contar o que diabos você fez dessa vez!
— Obrigado pela confiança em mim! — retruco irônico.
— Ah, boquinha para ser mal-educado comigo você tem! — Ela me cutuca o ombro, mas depois suspira e deita a cabeça nele. — Você sabe que faz merda, mas que eu estou aqui, disposta a te ouvir e te ajudar a limpar os cagaços. Somos uma dupla, você e eu, sempre fomos e sempre seremos.
— Costumávamos ser um trio... — assim que eu comento, imediatamente me arrependo, pois Kyra salta da rede – quase me derrubando no percurso – e emite um ensurdecedor: “ahá!”.
— Eu sabia que tinha acontecido algo na madrugada do baile! Samara está estranha, esquiva, e isso não é o natural dela. Que merda você aprontou? — Continuo ignorando-a, sem nenhuma disposição para contar sobre o beijo, o amasso e a confusão que isso criou em mim. — Alexios! — Minha irmã começa a pirar por causa do meu silêncio, mas, se me conhece um pouco, já deve imaginar que eu não irei abrir a boca para falar desse assunto. — Está certo! Você e sua maldita boca de siri. — Volta a se sentar, mas dessa vez não se deita em mim. — Alex, ela é nossa amiga, não a magoe, ok? Samara merece ser feliz, e esses anos que passou na Espanha foram ótimos para ela. Eu morria de saudades, mas estava feliz por ela estar realizada trabalhando com o que ama fazer, com um puta gato espanhol lambendo seus pés e — abro os olhos, mas Kyra não se freia — querendo formar família com ela.
Sento-me bruscamente, e Kyra balança.
— Como assim formar família?
— Ele a pediu em casamento. — Surpreendo-me, mas tento não reagir, não demonstrar. — Deu-lhe um lindíssimo e caro anel de diamante e está esperando pelo retorno dela.
Essa informação, apesar de ter me pegado de surpresa, não é nenhuma novidade. Sempre achei que algum homem de sorte iria conquistar o coração da minha amiga de infância e tê-la para sempre. Samara é a pessoa mais leal que eu conheço, mais incrível, merece muito ser feliz ao lado de alguém que valha a pena.
— Ela não estava usando anel... — penso em voz alta.
— Ainda não falou com os pais dela... — Kyra olha fundo nos meus olhos, procurando qualquer reação minha, mas sei que não irá encontrar nenhuma. Há muito aprendi a sentir sem demonstrar ou a mostrar apenas o que eu quero que os outros vejam. — Vocês não conversaram ontem?
— Acho que ainda não conseguimos estreitar os laços de amizade novamente.
— Hum... — Ela olha para seu relógio no pulso e suspira. — Preciso ir para o trabalho, vai ficar aqui? — Assinto. — Eu tenho a sensação de que você está se escondendo, só não faço ideia do quê.
Ela entra no apartamento, e novamente olho para o alto do Castellani, do outro lado do parque. Daqui do prédio onde ela mora, consigo ver o heliponto no telhado, algumas janelas da cobertura onde Cadu mora, o andar debaixo, onde Bernardo Novak reside, e uma pontinha da minha varanda. O apartamento de Samara fica uns andares abaixo do meu, então não tenho como vê-lo, mas somente por saber que ela está lá dentro, sinto vontade de ficar aqui, bem longe.
Não me entendam mal, não estou fazendo isso porque não quero que ela se aproxime de mim, pelo contrário, estou aqui, exilado como um covarde no apartamento da minha irmã mais nova, porque, se pisar no Castellani, sei que não conseguirei me manter distante dela.
Mesmo depois da maratona de sexo que fiz com uma mulher com quem já havia saído antes das festas de final de ano, não tenho segurança de estar no mesmo ambiente que Samara e me controlar para não a pressionar contra alguma parede e fodê-la sem ao menos dizer um cumprimento.
Definitivamente não vou fazer isso, não com ela!
Muito menos depois de saber que há alguém que a merece, que está à altura dela, esperando sua volta.
Rio de mim ao pensar que estou aqui, evitando-a, quando na verdade ela é quem deve estar querendo ficar a quilômetros de mim. Talvez esteja até indignada e ofendida pelo modo com que a toquei e beijei sem nenhum aviso, como se fôssemos um casal qualquer que se encontrou na balada para trepar, e não duas pessoas que são amigas desde que se entendem por gente.
Não entendo por que perdi o controle do tesão que sempre reprimi, mas me conheço o suficiente para saber que ele não passou. Raramente sinto aquela química com alguém. Era como se meu corpo estivesse sendo atraído, como se algo nela estivesse provocando reações em mim que eu não conseguia controlar. Foi animal, carnal, a famosa atração de pele que muita gente procura, mas pouca tem.
E eu tive justamente com minha melhor amiga!
Kyra volta a aparecer no meu campo de visão, agora com os belíssimos cabelos escuros, longos e fartos soltos, o rosto maquiado e uma roupa de deixar qualquer homem lobotomizado.
— Esse bode aí está foda para passar, hein? — comenta antes de se abaixar para pegar um guarda-chuva no móvel ao lado da rede. — Têm umas sobrinhas do baile na geladeira, cerveja – por favor, não tome todas, mas se tomar, as reponha –, e meu chuveiro tem muita pressão e água fresca. — Pisca para mim, e eu franzo a testa, sem entender. — Você está meio rançoso.
— Vai se ferrar, Kyra — ralho com ela, mas rio.
Ela se aproxima e beija minha testa, e isso, sim, arranca um sorriso sincero meu. Gosto que ela confie em mim o suficiente para me tocar, para recostar-se no meu ombro ou mesmo ficar abraçada, pois sei que ela não é assim com todos, principalmente com homens em geral.
— Fica bem e ouça meu conselho... — Ela anda até a porta antes de complementar: — Tome um banho, você cheira a álcool e a perfume vagabundo.
Levanto o dedo do meio para ela e a escuto ir gargalhando apartamento adentro até a porta de entrada bater. É, eu bebi bastante, sim, devo estar exalando álcool pelos poros, e o perfume barato se impregnou em minha roupa ontem, quando a recoloquei depois de mais de 12 horas nu, e a mulher me abraçou toda perfumada.
Saí do apartamento dela e vim direto para o da Kyra, torcendo para que minha irmã estivesse em casa e sozinha a fim de que eu pudesse cair aqui nesta rede onde estou e tentar pôr a cabeça certa no controle do meu corpo.
O telefone fixo toca alto, afastando meus pensamentos, e aproveito para tomar o banho aconselhado pela minha irmã viciada em limpeza. Entro na sala desabotoando a camisa branca que usei com o smoking – pois é, ainda estou com a mesma roupa do Ano Novo em pleno segundo dia do ano – e noto que não faço ideia de onde estão o paletó e a gravata-borboleta.
A primeira foto que vejo ao entrar no quarto de Kyra é uma que tiramos juntos – Samara, ela e eu – na formatura da minha irmã. Eu fui o par dela, então estava de smoking, e as duas, de vestido longo, maquiagem e penteado. Caminho até o aparador e pego o porta-retratos, focando em Samara e me perguntando como eu conseguia me manter longe do mulherão ao meu lado. Era uma beleza diferente da minha irmã, Samara tem o olhar doce, sorriso largo, nenhum mistério, seu rosto expressa suas emoções, sua sinceridade.
CONTINUA
Sua pergunta me deixa paralisada, completamente sem condições para lhe responder. Por que ele me procuraria?! Porque somos amigos desde que nasci? Porque estive ao lado dele em todos os momentos? Porque ele tomou um porre, apareceu lá em casa, chorou no meu ombro, beijou-me e depois fingiu que nada tinha acontecido?
Respiro fundo para controlar o volume da voz e não gritar que ele é um idiota, mas, antes que eu abra a boca, Kyra aparece esbaforida com um telefone na mão.
— Ei, Malinha, você está com seu telefone na bolsa? — Alexios olha para a irmã, puto por ela estar nos interrompendo, e eu franzo a testa, sem entender a pergunta dela. — Seu celular! — Ela bufa... — Seu irmão acaba de ligar para o meu telefone. — E balança o aparelho.
Arregalo os olhos, meu coração dispara, e logo penso em mamãe, que vi apenas um pouco ontem, quando fui buscar o Godofredo. Pego o telefone e confiro as ligações perdidas. Noto Alexios se afastando, mas não me importo; ele continua o mesmo egoísta de sempre.
Samara Schneider está de volta!
Mastigo mais um pedaço do pernil que Kyra serviu como opção de carne na ceia de Natal e não consigo deixar de pensar na volta daquela que foi minha grande amiga e companheira.
Até hoje não entendo o que aconteceu para que ela tomasse a decisão de ir estudar na Espanha sem falar nada comigo. Claro, eu sabia que tinha a possibilidade, afinal, havia anos o pai dela pressionava por isso, para ela ir estudar arquitetura clássica na terra de Gaudí14. No entanto, para minha total surpresa, em vez de ir morar em Barcelona, Samara foi para Madri.
Eu, que até então me considerava seu melhor amigo, só fiquei sabendo desses detalhes todos porque Kyra me contou depois que fui atrás dela para saber o paradeiro de Samara.
Pego a taça com água para ajudar a engolir a comida, pois estou com um aperto na garganta desde que a vi. Eu tinha acabado de sair da sala de reuniões de Kyra depois de um ménage espetacular com Valéria e Priscila, mais animado para encarar a noite especial, sem imaginar a grande surpresa que encontraria no salão e que quase me fez tropeçar em meus próprios pés.
Assim que meus olhos bateram nela, assustei-me, pois a danada da Kyra não havia me contado que Samara tinha voltado. Tentei um sorriso e uma aproximação amigável, como se ela não tivesse me abandonado por longos três anos sem nenhuma notícia. Ela está diferente, ainda mais bonita do que eu me lembro, mas tentei não reparar muito e ser o amigo de sempre.
Nada disso adiantou, pois, ao que parece, Samara desejou que eu corresse atrás dela, que a procurasse e reestabelecesse contato. Como eu poderia imaginar algo assim? Não sou adivinho! Ela some sem nenhum motivo e ainda se sente no direito de ficar puta por eu não ter tentado contato?
Quem entende a cabeça das mulheres?!
— Sua amiga foi embora cedo — Millos comenta ao meu lado. — Será que houve algum problema com a mãe dela?
Olho para meu primo, sentado ao meu lado à mesa, e ele entende meu total desconhecimento do assunto.
— A mãe dela, dona Ana Cohen, está em tratamento contra um linfoma. — Millos bebe mais chope. — Você não sabe nada sobre a vida da sua amiga?
— E você? Como sabe?
O filho da puta apenas dá de ombros, evasivo como sempre, adorando estar sempre um passo à frente de todos. Millos é um sujeito estranho. É o único que consegue interagir com todos nós sem tomar partido e sem revelar nada da vida pessoal de ninguém, nem mesmo da sua. Somos amigos, nos damos bem, mas eu sei pouco sobre ele, sobre suas atividades, e o máximo que conheço de sua vida pessoal é que tem um passado fodido como o meu, frequenta alguns clubes de sexo, tem uma amiga que por sinal é uma gostosa do caralho – mas nunca me deu mole, infelizmente – e só.
Como profissional, o homem é uma verdadeira coruja! Quieto, observador, parece que consegue olhar em 360 graus, além de ser um caçador de informações inigualável. Não há nada que passe despercebido por ele, e o que expõe ou o que fala, tenho certeza de que é o mínimo do que sabe. Por isso, todo cuidado é pouco quando o assunto é Millos Karamanlis, porque o desgraçado é um manipulador de mão cheia!
— Eu não sabia que dona Ana está doente, não vejo os pais de Samara há anos — contesto-o. — Espero que nada grave tenha ocorrido.
— Não vai ligar para saber? — Millos volta a questionar.
Franzo as sobrancelhas, encarando-o, tentando entender o motivo pelo qual ele está tão interessado no assunto.
— Não — respondo seco e volto a comer, mesmo com o questionamento dele na cabeça. Para mim o assunto acabou! Samara já demonstrou que não quer papo comigo por algum motivo, e, mesmo chateado com isso, devo respeitar a decisão dela. Millos é um manipulador e sabe que esse é um assunto que me atinge diretamente, por isso tocou nele.
Não preciso ligar para Samara, como não liguei para ela durante todo o tempo em que esteve fora, mas isso não quer dizer que eu não queira saber o que está acontecendo. Kyra sempre foi minha fonte de informações sobre ela e, caso tenha que ser assim, continuará sendo.
Termino minha refeição, fico mais algum tempo com Kyra e seus convidados, brindo ao sucesso do negócio dela e logo depois vou embora. Tinha pretensão de ir para casa, mas, no meio do caminho, uma mulher com quem eu já saí algumas vezes me manda uma mensagem dizendo que está na cidade, e vou encontrá-la.
Dia 26 de dezembro, pior dia de trabalho do mundo, certamente! Rio ao passar por mais dois engenheiros com cara de ressaca ou, talvez, de quem comeu demais e agora passa mal do estômago.
— Melhor colocar a lixeira perto! — passo, sacaneando meu colega de trabalho, Pedro, engenheiro químico. — Se emporcalhar a sala, vai ter que limpar você mesmo.
— Porra, Alexios, fala mais baixo! — Ele põe a mão na cabeça.
Gargalho e me sento à minha mesa, lotada de projetos, planilhas e minha coleção de lápis. É, eu coleciono lápis! Cada um tem a coleção que lhe cabe, não é?
Ligo o computador, olho para meu caderno de tarefas e arregalo os olhos ao ver um nome que eu não imaginava rever anotado lá – por outra pessoa.
— Ethernium? — questiono olhando para o Pedro.
— Sim! Acabamos de saber, mas o CEO lá da Karamanlis vai querer conversar com você, certamente.
Bufo ao pensar em subir até o Olimpo para conversar com Theodoros, sem esquecer as discussões que tivemos nas últimas semanas por conta de seu egocentrismo e insensibilidade com os funcionários da casa.
Sua mania de pensar que é Deus, inabalável, inatingível e perfeito me irrita, principalmente porque sei que ele não é nada disso, apenas a porra de um filhinho de vovô mimado, que sempre achou que podia fazer qualquer coisa que quisesse sem pensar nas consequências, que o velho grego limparia suas cagadas.
Admito, o velhote sempre fez tudo para seu neto querido. Entretanto, não pôde limpar a merda que Theodoros deixou para trás, apenas jogou-a para debaixo do tapete, limpou a consciência do seu netinho querido, que seguiu a vida como se nada tivesse feito e deixou o resto se fodendo sem se importar o mínimo.
Theo é arrogante, e eu não tenho saco para lidar com gente assim.
Ouço passos, um poc-poc característico de saltos, e em seguida a voz de Lia, outra engenheira que trabalha na minha equipe direta.
— Bom dia! — sua voz soa animada. — Ah... sem Papai Noel de chocolate este ano! — ela resmunga, e eu a vejo procurando sobre sua mesa. — Poxa, Alex, você já foi mais generoso!
— Eu?! — Começo a rir. — Você realmente me imagina comprando e colocando chocolate em formato de Papai Noel nas mesas dos outros? — Ela faz careta e nega. — Eu achava que era você!
— Por quê? Só porque sou mulher?
Rolo os olhos.
— Não, porra, porque você é viciada em chocolate!
— Ele está certo, Lia! — Pedro se mete na conversa em minha defesa. — Eu também achava que era você por causa disso.
Ela se senta frustrada por não ter encontrado o presente do “Papai Noel” misterioso da Karamanlis.
— Bom, não sou eu, e eu contava com isso! Não falha por anos! — Olha em volta para as outras estações de trabalho, ainda vazias sem os profissionais. — Ninguém recebeu?
Nego, e Pedro faz o mesmo.
— Estranho...
— Coisas estranhas têm acontecido por aqui — digo e lhe estendo meu caderno com a anotação da Ethernium.
— O quê? De novo? — Ela geme. — Esses caras da Ethernium são uns malas! Sério, Alexios, eu não vou aguentar gracinhas pra o meu lado de novo não!
— Eu disse que você devia ter respondido a ele. — Dou de ombros. — Mas agora sabe que tem meu total apoio! Se alguém da equipe deles fizer piadas machistas de novo, responda.
— Quem é o machista? Que vou com você dar uma surra nele. — Eliane chega já mostrando as garras – que garras! Minhas costas sofreram com elas – e se senta em sua estação. — Bom dia, feliz Natal, foi tudo ótimo! Agora, silêncio, porque ainda estou agarrada a um cálculo estrutural que não tem me deixado dormir. Obrigada. De nada.
Pedro começa a rir, e Lia só balança a cabeça. Eliane é assim, direta e sem rodeios, por isso mesmo achei-a ideal para o trabalho pelo qual é responsável. Nós nos conhecemos em uma balada, transamos, depois voltamos a nos encontrar na entrevista dela aqui na K-Eng tempos depois. Nunca mais voltamos a trepar, mas conseguimos construir uma relação de trabalho quase perfeita. Sei que posso contar com ela para qualquer coisa aqui dentro.
Tenho mais duas pessoas na minha equipe: Evandro e Michel, mas os dois estão de férias e ainda não retornaram. Não é normal dois membros da mesma equipe saírem em férias juntos, mas, como eles são casados, a lei lhes garante esse direito.
A K-Eng não é formada apenas pela minha equipe de engenheiros em suas especialidades, a verdade é que cada um aqui gere suas próprias divisões. O Pedro, por exemplo, é engenheiro químico, e na divisão dele estão químicos industriais, técnicos em química e outros engenheiros dessa área. Já a Lia é engenheira ambiental, e, dentro de sua divisão, há biólogos, gestores ambientais e engenheiros sanitaristas. A Eliana trabalha com projetos, e ela coordena outros engenheiros, arquitetos e projetistas. O Michel faz toda a parte de planilhas e medições, e o Evandro é responsável pelas operações, é quem lida com empreiteiros, clientes e atua também como fiscalizador de obras.
Além do corpo técnico da K-Eng, a empresa, que é uma subsidiária da Karamanlis, ainda tem setores administrativos e financeiros, e eu, como CEO dessa bagaça aqui, sou quem comanda essas áreas.
O único setor que dividimos com a Karamanlis, infelizmente, é o jurídico, por isso aturo muito a prepotência inglesa do Konstantinos e seu humor ácido. Geralmente não tenho paciência com ele, zoo com sua cara ou apenas o ignoro. Ele não é bem quisto por ninguém da minha equipe, principalmente pelas mulheres.
— Por falar em machismo... — Lia volta a falar. — Será que a Kika não vai voltar mais não?
Dou uma risada por ela ter entrado no assunto justamente quando eu pensava no meu irmão machista.
— Está um silêncio total na Karamanlis — Eliana se pronuncia. — Dá até medo de andar pelos corredores, clima pesadão!
— A Kika era incrível, né? Gata, alto-astral, competente — Pedro lamenta. — Uma pena que tenha perdido a cabeça e tenha sido mandada embora...
— Opa! — Eliana o interrompe. — Ela se demitiu!
— Enfim, está desempregada depois de ter ganhado uma puta promoção para a gerência.
— Eu a preferia à Malu Ruschel. — Lia treme toda. — Aquela mulher congelava até meu sangue só de estar perto dela.
Definitivamente, não o meu!, penso ao me lembrar de Malu Ruschel, a ex-gerente dos hunters da Karamanlis. Malu era bonita, tinha classe e aquele seu jeito focado me enchia de tesão. Uma pena ter ido morar no fim do mundo!
Já com a Kika, nunca senti essa atração, talvez por sempre tê-la achado tão receptiva, maravilhosa com seu jeito espontâneo, que logo gostei dela como se fosse uma amiga de longa data. Tenho muito apreço por ela e lamento que tenha saído da empresa.
Os engenheiros começam a conversar, mas o assunto não me interessa o mínimo, então coloco meus fones de ouvido – a voz forte e rasgada da Janis Joplin soa bem alta – e volto a mexer no projeto em que estava trabalhando.
— Ei, moleque! — Millos me chama assim que para sua moto. — Você não sabe curtir um passeio, puta que pariu!
Ele desce da motocicleta, tira o capacete e a jaqueta e se senta à mesa do bar ao meu lado. Bebo minha água sem responder, porque a única coisa que eu poderia lhe falar é que não sou um velho para ficar andando nessas motos de colecionador há 80 km por hora.
Estou aqui esperando-o há pelo menos 20 minutos, e isso porque saímos juntos de São Paulo em direção ao Guarujá, em uma viagem não programada e cujo motivo, sinceramente, nem entendi. Ele apenas apareceu lá na K-Eng e me chamou para andar de moto com ele, e eu topei.
— Qual é o propósito disso? — resolvo perguntar sem rodeios.
— Do quê?
Millos agradece à garçonete que lhe entrega um coco verde com um canudo e nem percebe a moça comendo-o com os olhos (ou talvez só esteja assustada com suas tatuagens, que cobrem os braços, pescoço e peito).
— Desse “passeio”. A gente se viu há alguns dias na ceia da Kyra, e você não comentou nada sobre isso.
— Nada de mais! — Ele bebe a água de coco. — Vou viajar no Ano Novo, ficar um tempo fora e queria passar um tempo contigo. Já jantei com seus irmãos, mas como você é todo amalucado para comer, achei que uma volta de moto iria cair bem, mas esqueci que você é louco nisso também.
— Você está ficando velho, Millos, sinto lhe informar — debocho. — Acha mesmo que, com essa potência italiana nas mãos, eu iria ficar molengando contigo na estrada?
— Não é molengar, é curtir a viagem, a paisagem...
— Ah, não, você curte essas coisas paradas, não eu. Meditação, ioga, essas coisas todas aí que você faz, tô fora! Não sei ir devagar, Millos, em nada!
— Deveria... talvez assim conseguisse agradar às mulheres. — Ele pisca e tenta disfarçar a troça bebendo mais de sua água.
Eu gargalho.
— Pode ter certeza, elas não reclamam da minha rapidez. Não basta saber correr, tem que saber tirar o máximo proveito de uma máquina, fazê-la dar tudo de si, e isso eu faço.
— Está falando das motos ou das mulheres?
— Tem diferença?
Ele ri novamente.
— Você é um moleque, não sabe nada ainda!
— Falou aquele que nomeia suas motos com nomes femininos!
Nós dois rimos juntos, e o clima fica descontraído.
A verdade é que ele e eu temos muito em comum. Ambos adoramos motocicletas, rock e carne. Apesar de sua onda “zen budista”, Millos nunca conseguiu se livrar da proteína animal e das comidas pesadas que adora preparar para acompanhar suas cervejas artesanais.
Ah, esse é outro ponto em comum: adoramos cerveja! Ele fabrica, eu apenas bebo, mas tenho tanto conhecimento quanto ele, e esse é um dos pontos sobre o que mais conversamos quando estamos juntos, geralmente comendo alguma carne e ouvindo rock.
Raramente saímos juntos de moto, exatamente por ele fazer o estilo tiozão que gosta de andar de Harley, apreciando paisagens, e eu e minha Ducati Multistrada 1260 não temos saco para andar quase parando não.
Embora eu reconheça que tenho que agradecer a esse tiozão por ter minha moto dos sonhos, a que uso para correr nas competições. A Ducati só disponibilizou três unidades da 1299 Superleggera para venda no Brasil, há quase dois anos, e um dos amigos do Millos foi quem comprou uma delas, e, quando ele decidiu vendê-la, meu primo prontamente me avisou, e não pensei duas vezes.
Eu gosto das italianas mais do que das americanas ou japonesas, pelo menos para as motos; não sou tão seletivo assim com mulheres.
— Baile dos Villazzas...
— Ah, Millos, não fode com esse assunto de novo! — reclamo, entendendo agora o motivo do encontro.
— Alexios, preciso de você lá.
Rio.
— Mano, aqueles dois não são crianças, e, muito menos, sou a babá deles! Eles não precisam que eu vá para manter a ordem e o bom nome da...
— Kyra me mostrou o projeto do baile, ela parece bem animada com sua primeira grande produção sem a intervenção dos Karamanlis.
Porra! Ele vai pegar pesado!
— Você é muito filho da puta, sabia?
Millos dá de ombros e bebe mais água.
— Acho que vocês deveriam ir para apoiá-la, acima de todos, você! Será importante para ela, além disso... acho que ela está sem acompanhante, porque deu com o pé na bunda do último idiota que estava comendo.
— Porra, Millos! — Xingo-o. — É a minha irmã, porra!
— E o quê? Só por isso ela não trepa?
— Vai se foder! — Levanto-me da mesa puto e pego o capacete.
— Alexios... — ele me chama, mas não dou atenção, já montando na moto para ir o mais longe possível dele.
Antes que vocês me julguem como machista ou irmão ciumento, adianto logo que não se trata disso. Cada um lida com a merda dentro de si de um jeito, e esse é o jeito da minha irmã de lidar com seu passado. Respeito isso, mas não quer dizer que não me doa ou mesmo que eu não me sinta responsável por ela ser assim.
Eu gostaria que as coisas fossem diferentes, esforcei-me o máximo que pude para que ela fosse menos fodida do que todos nós, mas, a cada novo relacionamento seu destruído, sinto-me um fracassado, o que me dói profundamente.
Piloto rápido, passando pelos radares sem me importar com as multas, sentindo o vento forte bater em mim como se pudesse deixar todas as marcas do meu corpo e da minha alma para trás. Contudo, não posso. Ele fodeu a minha vida várias vezes, não só com as coisas que fez contra mim, mas principalmente por eu ver que também destruiu minha irmã.
— Como ela está, Dani? — pergunto ao meu irmão assim que ele entra na cozinha da casa dos meus pais, onde tomo meu desjejum com a Cida.
— Dormiu bem. — Ele beija minha cabeça. — Mas foi um susto essa febre alta assim do nada.
Ele se senta, visivelmente cansado, e Cida logo lhe serve uma xícara de café. Acostumados demais a dividir as refeições com Cida desde que nascemos, sempre tomamos nosso café juntos. Ela está em nossa casa há tanto tempo que não sei como seria minha vida sem sua presença, e certamente Daniel sente o mesmo.
Minha mãe, Ana Cohen, sempre foi muito ocupada na direção do sistema de ensino criado pelos meus avós, franqueado e distribuído por colégios do Brasil todo. Já meu pai, Benjamin, vem de uma longa linhagem de comerciantes e industriais, como bem acentua nosso sobrenome, que é uma derivação da profissão de algum ascendente que foi alfaiate.
Os Schneiders possuem lojas, fábricas ou empresas que prestam serviços, como era o nosso caso. Meu avô não tinha formação quando fundou sua primeira fábrica de móveis, porém eram um marceneiro muito habilidoso, e meu pai aprendeu com ele. Os negócios iam bem, então papai foi estudar arquitetura e, por fim, design, elevando o nível dos negócios familiares, fazendo dos móveis com nosso sobrenome sinônimos de classe e riqueza.
Há 10 anos meu irmão está à frente dos negócios, desde que papai teve seu primeiro infarto – ele já teve outro e fez duas pontes de safena. Daniel é um administrador maravilhoso, fechou com grandes empresas, e hoje os móveis Schneider não enfeitam mais as coberturas e mansões luxuosas de São Paulo, tão somente redes enormes de hospitais, clínicas, lojas de alto luxo e restaurantes em todo o país.
Meu irmão é incrível! Nós dois somos muito amigos, sempre fomos. O único ponto tenso entre nós era Alexios Karamanlis. Daniel é 10 anos mais velho que eu, um quarentão, como eu costumo provocá-lo, e sempre achou Alex uma péssima companhia. Bom, ele realmente era, mas não para mim. Eu sabia das loucuras que Alexios aprontava, seu envolvimento com drogas, farras, lutas valendo dinheiro e rachas pela cidade. Ele não foi um adolescente fácil, mas sempre me tratou como se ainda conservasse o menino que eu conheci. Sempre me deu conselhos para ficar longe de tudo aquilo que ele mesmo fazia, nossa amizade sempre foi separada das outras companhias dele.
Ainda assim, Dani nunca gostou de Alexios, em compensação, tornou-se um dos grandes amigos de Millos Karamanlis, primo do Alex, mesmo que eu não consiga entender o que, de fato, o executivo tatuado e meu irmão tenham em comum.
— Desculpe-me por tê-la tirado da festa da Kyra — meu irmão volta a falar, afastando-me dos pensamentos. — Eu liguei para o doutor Henrique e já ia pedir uma ambulância, quando fiquei com medo de acontecer algo e você não estar aqui.
Pego sua mão.
— Eu sei. Foi um susto!
Retornei as ligações dele assim que Kyra me alertou, e, quando Dani atendeu, o doutor já havia chegado e ministrado medicamentos. O médico preferiu que ela continuasse em casa por conta de sua baixa imunidade, mas ficou acompanhando durante boa parte da madrugada.
— Ela convulsionou, e eu achei que fosse... — Ele me olha, seus olhos acinzentados tristes. — Eu quase perdi o papai tempos atrás, lembra? — Assinto. — Eu estava com ele quando teve o infarto, e agora quase...
— Dani, não pensa nisso! — Abraço-o. — Você é o melhor filho e irmão do mundo, sempre ao lado deles, ao meu lado. Agora estou aqui também e vou ajudar no que for preciso.
— Eu sei, Samara. Essa fase do tratamento é a mais complicada, por causa da baixa imunidade, mas, quando ela estabiliza, é a mamãe que sempre conhecemos e amamos.
— E a Bianca? — pergunto-lhe sobre sua noiva. — Como vocês estão, faltando pouco para o grande dia?
Ele ri sem jeito.
— Você sabe que não tem essa de grande dia, não? Nós vamos ao cartório, assinaremos os papéis e pronto. — Dá de ombros. — Vida que segue.
Cruzo os braços. Não gosto nada desse conformismo estranho.
— Tem certeza disso, Dani?
Ele olha para a Cida.
— Vou fazer 41 anos, pirralha. 15 anos de relacionamento com ela, então...
— É isso? — Cida balança a cabeça negativamente. — Viu? A Cida não concorda também! E não é que você seja já um solteirão arrastando chinelos, Dani! Você é lindo!
— Não é sobre isso, Samara.
— Ele quer ter uma família, menina. — Arregalo os olhos. — Seu pai vive mais entretido na fazenda do que aqui, sua mãe, antes de adoecer, não parava quieta, sempre viajando com as amigas e...
— Eu na Espanha.
Daniel termina o café sem me encarar, sem falar nada e se levanta.
— Vou voltar para o quarto, render um pouco a enfermeira.
— Também vou, Dani!
Seguimos juntos, mudos, pelo corredor. Meu irmão é a pessoa mais discreta do mundo, completamente o oposto de outros filhos de grandes empresários desta cidade. Nunca gostou de sair em revistas de fofoca, nunca namorou modelos, atrizes ou socialites. Na adolescência, namorou uma garota da escola, depois teve duas ou três namoradas na faculdade e, por fim, conheceu a Bianca em um torneio de polo – esporte em que ele é fera. Desde então engataram nesse relacionamento xoxo, totalmente ioiô – eles já terminaram umas 30 vezes ao longo dos anos – e que agora vai se tornar um casamento meia-boca.
— Você merece mais, Dani — solto sem conseguir frear minha língua, e ele ri.
— Você diz isso porque é minha irmã, pirralha. — Ele tenta bagunçar meus cabelos como quando eu era criança. — Bianca pode não ser o grande amor da minha vida, mas é uma boa amiga e companheira.
— Isso é loucura! Você merece amar, ser amado, estar apaixonado...
— Como você esteve a vida toda por aquele doidivanas? — Paro em seco no corredor e arregalo os olhos. — Qual é, Samara, você achava que eu não sabia? Estava escrito na sua testa e em todos os seus cadernos, com direito a corações rosa! Você teve um peixe daqueles que ficam sozinhos no aquário...
— Um beta. — Começo a rir, sabendo exatamente do que ele está lembrando.
— Pois bem, você teve um beta e o nomeou...
— Beto Schneider Karamanlis — falamos juntos, e eu começo a rir.
— Sim! E como você nunca me deu indícios de ter uma queda pela Kyra, eu supus que era o outro Karamanlis. — Daniel me olha sério. — Por que Diego não veio contigo?
A pergunta é tão inesperada que demoro a processar que ele está falando do meu namorado.
— Não sei quanto tempo vou ficar, então...
— Besteira! Ele poderia passar uns dias aqui contigo, os times estão todos em recesso até a primeira semana de janeiro. — Suspiro e olho para o chão. — Não estraga sua vida, Alex não vale a pena.
Assinto, lembrando-me de tudo o que aconteceu noite passada. Alexios continua igual, vendo e querendo todas as mulheres ao seu redor, menos eu. Sempre fui a amiga, quase uma irmã, menos uma mulher, e, como acabei de perceber, todos sabem da minha paixão por ele, então, Alexios deve simplesmente ignorá-la.
Por muito tempo eu achei que ele não soubesse. Ficava fantasiando que, no dia em que eu tomasse coragem e lhe contasse, Alexios iria se declarar também. Iludida! É isso que eu era, porque, depois do beijo que trocamos, era impossível que ele não soubesse.
Respiro fundo, resignada. Alexios sabe, só não se importa e nem sente o mesmo!
Meu irmão bate levemente na porta do quarto de mamãe e em seguida entra. Sigo-o pelo enorme ambiente, que me traz tantas lembranças alegres dos momentos que dividi com ela, deitada em sua cama, contando sobre meus sonhos.
— Samara Esther! — Mamãe estende os braços, sentada na cama, recostada nos travesseiros. — Trouxe Godofredo de volta?
Rio e concordo.
— Trouxe, está lá embaixo no jardim. — Beijo sua testa. — Como está se sentindo hoje?
— Eu estou bem! — Ela dá uma olhada de esguelha para meu irmão. — Ele é superprotetor, sabe? Exagerado!
Daniel permanece alheio às críticas, conversando com a enfermeira.
— Mamãe, ele não é, e a senhora sabe! — Ana suspira. — A senhora está em tratamento, precisa de cuidados, e, com o papai isolado na fazenda, Daniel é que estava responsável por acompanhá-la em tudo, mas agora estou aqui também!
— Dois superprotetores! — ela finge reclamar, mas sorri satisfeita. — Seu pai quis vir para cá para ficar comigo, mas achei melhor que ficasse por lá. Você sabe como ele é, não me daria um minuto de paz.
Eu rio, mas sou obrigada a concordar. Meus pais são incríveis, mas têm uma relação um tanto estranha desde que Daniel e eu saímos de casa para viver nossas vidas. Passaram a viver cada um no seu espaço, com suas coisas. Dão-se incrivelmente bem, mas cada um com sua vida.
É verdade que eles não eram nada parecidos. Mamãe sempre foi uma mulher de negócios, cheia de trabalho, viagens e reuniões, porém extremamente carinhosa com os filhos. Papai é um homem mais reservado em seus sentimentos, embora seja um artista.
Olho para um dos móveis da minha mãe, e a escultura em madeira em cima dele me faz sorrir. Nela há um casal e um garotinho com a mão na enorme barriga da mulher. Papai deu vida à imagem de uma foto que tiraram quando mamãe estava grávida de mim, e a peça ficou tão perfeita que dá para sentir a alegria de todos.
Quando eu era criança, tinha coleções das esculturas dele: cavalos, cães, gatos, pássaros. A que eu mais gostava era a do Pinóquio, que ganhei quando comecei a ler e andava para baixo e para cima com o livro do boneco de madeira que queria ser menino de verdade.
— Você vai até lá visitá-lo? — minha mãe pergunta, talvez adivinhando que estou pensando nele, por estar olhando a estátua.
— Por agora não. Tentei falar com ele quando cheguei e ontem também, mas não consegui. — Dou de ombros. — Papai se isola quando quer, a senhora sabe.
— O doutor Henrique acabou de dizer que os resultados dos exames ficaram prontos e que ele virá assim que puder para conversar conosco. — Daniel senta-se ao meu lado na cama. — É bom ter Samara aqui perto, não é?
Ele me abraça pelos ombros.
— Eu também estou gostando de estar de volta.
Mal termino a frase, e meu telefone toca. A foto de Kyra tentando beijar Godofredo, e ele de boca aberta para mordê-la aparece na tela, e minha mãe sorri.
— Eu estou esperando pela visita dessa filha emprestada desnaturada. — Ana reclama. — Pode dizer a ela que não vai comer mais minha paella!
— Pode deixar! — Levanto-me da cama e vou para um canto do quarto. — Oi, Kyra! — atendo o telefone.
— Quero notícias! Mal consegui dormir essa noite, deixei mil mensagens no seu telefone. Como está sua mãe?
— Está bem, mas ameaçou greve de paella se você não vier visitá-la em breve.
— Está bem mesmo? — ouço preocupação na voz da minha amiga, e meu coração se aperta, pois sei que minha mãe foi o mais próximo que Kyra teve de figura materna. — Malinha?
— Está, sim. O médico dela explicou que, por conta da medicação, ela ficaria suscetível a doenças, a imunidade está baixa, então qualquer resfriado ataca com força.
Kyra suspira ao telefone, e eu abro um sorriso ao ver o quanto minha amiga durona é, na verdade, tão sensível quanto eu.
— Que bom! Fico feliz em ouvir isso e mais aliviada para te fazer um convite.
Faço careta, já prevendo que ela vai me meter em algum evento seu de final de ano, vestida de garçonete.
— O que você está armando, Kyra?
— Nada! — ela logo se defende, indignada. — Eu só queria companhia! Na véspera do Ano Novo acontecerá o Baile Branco e Preto dos Villazzas, e, como eu estou sem nenhum boy no momento, você podia ser meu par, o que acha?
— Kyra! — Rio. — Um baile? Sério?
— Baile? — mamãe logo se mete na conversa e pergunta lá da cama. — Por acaso é o baile dos Villazzas?
Fodeu! Minha mãe sempre amou bailes e conheceu a matriarca dos Villazzas tempos atrás, através de sua amiga, Cecília Novak. Certamente ela adorará a novidade, achará moderno eu ir acompanhando minha amiga, e eu não terei escapatória.
— É, mamãe, eu vou com Kyra — respondo resignada.
— Eu sabia! — Minha amiga ri ao telefone. — O traje branco é obrigatório para mulheres, então, abuse de cores em outros locais!
— Eu vou te matar, Kyra Karamanlis! — sussurro para que somente ela escute.
— Depois do baile; antes, quero usufruir de tudo o que planejei! Vai ser o evento mais incrível que você já viu!
Relaxo, percebendo que ela realmente está feliz e confiante.
— Tenho certeza disso, Kyra!
Nós nos despedimos, mas não retorno imediatamente para a cama, ao lado da minha mãe e do meu irmão, fico pensando em como é bom estar de volta. Realmente me sinto em casa aqui, com as pessoas que eu amo, ainda que tenha feito amigos na Espanha.
Penso no Diego e sinto um pequeno aperto no coração, um misto de saudade e remorso. Daniel me olha, curioso por eu estar parada no mesmo lugar, sem falar ou fazer nada, e reflito sobre o que ele me disse. Reconheço que eu recuei ante o pedido de casamento de Diego por ter esperança de voltar ao Brasil e encontrar Alexios mudado, porém ele não mudou e nem mudará jamais, mas isso não muda o fato de que ele ainda mexe comigo.
Diego e eu nos damos muito bem, somos amigos, companheiros, temos gostos parecidos. Enquanto eu estava na Espanha, longe do magnetismo e atração de Alexios, realmente pensei que pudesse amá-lo e ter uma vida com ele. Os momentos que passamos juntos foram maravilhosos, mas agora me questiono se, mesmo voltando para Madri, é justo manter essa relação.
O Uber me deixa em frente ao Villazza SP, e vejo a entrada principal do hotel cheia de pessoas bem-vestidas e penteadas. Ando na direção delas, questionando-me se os convites estão sendo verificados na entrada, mas me surpreendo ao ouvir um dos homens que está parado na entrada:
— Nós só queríamos comprar o convite, não conseguimos responder a tempo e...
— Senhor, o que me foi passado foi que esgotaram, eu sinto muito — um dos seguranças responde antes de se virar para mim, mas, vendo o convite em minhas mãos, abre a porta. — Seja bem-vinda!
Entro no saguão principal do enorme hotel e suspiro, apreciando todos os detalhes da construção e da decoração, orgulhosa por ter sido parte da equipe que ajudou a deixá-lo perfeito desse jeito.
O escritório de arquitetura que projetou o Villazza SP foi o dos Boldanis, e o arquiteto principal que assinou o desenho foi ninguém mais, ninguém menos que meu ídolo e professor, Julio Boldani. O italiano é fera demais nas suas linhas clássicas misturadas às modernas.
Eu ajudei o pessoal que compôs o projeto de decoração, pois estava me especializando e, por isso, trabalhei um tempo no Boldani. Foi ali que descobri que, por mais que papai fizesse pressão para que eu fosse uma arquiteta, eu queria mesmo era ser designer de interiores.
Subo as escadarias de mármore com corrimão e guarda-corpo de ferro fundido na cor ouro velho em arabescos e folhas e, no saguão da entrada do salão Royal, encontro a recepção do baile montada como se fosse uma bilheteria antiga de circo.
Sorrio ao pensar na Kyra, reconhecendo que minha amiga sabe como dar vida aos seus projetos de maneira perfeita, pois vi os desenhos quando almoçamos juntas anteontem e confesso que está tudo muito mais bonito do que a ilustração em 3D que ela me mostrou.
Olho em volta, procurando-a, pois combinamos de nos encontrar na entrada, mas arregalo os olhos ao ver Alexios, de smoking preto, vindo em minha direção.
Mesmo contra a minha vontade, minhas mãos gelam e meu coração dispara apenas por vê-lo, por notar o quanto ele está lindo com esse sorriso largo e os olhos brilhando.
Por que ele tinha que ter essa aparência e essa boca?!, penso na injustiça do mundo, indignada por ser tão comum, e ele...
— Samara Esther. — Bufo, pois só ele e minha mãe chamam-me assim. — Você está... linda!
Alexios sorri e me olha desde as unhas dos pés, pintadas e cutiladas, até o alto da cabeça.
— Linda! — repete como se não fosse possível que eu estivesse desse jeito.
— Oi, Alexios — cumprimento-o seca, tentando não dar importância ao fato de que ele parece ter tomado um soco só por me ver mais arrumada. — Estou esperando sua...
— Eu sei, foi ela quem me mandou ficar aqui de plantão te esperando. — Enrugo a testa, sem entender. — Kyra resolveu bancar a fada madrinha e ajudar uma amiga a ter seu baile com um príncipe encantado e, por isso, vai ter que trabalhar esta noite. — A expressão no rosto dele é de deboche ao falar do conto de fadas. — Então, restou a mim.
Puta merda, Kyra!
Pego o celular dentro da bolsa e mando mensagem para ela, mas tenho certeza de que, ocupada com o começo do baile, ela não irá ler. O que eu faço? Penso se devo aceitar fazer companhia ao Alexios ou se devo ir embora, afinal, só vim a esse baile por insistência da Kyra.
— Samara, eu sei que nossa amizade está um tanto estremecida por conta da distância e do tempo, mas... — Alexios me encara, e noto que ele está se esforçando para falar — eu gostaria que você me acompanhasse esta noite.
Minha boca fica seca ao ouvir isso, porque, mesmo com a distância, eu ainda consigo saber quando ele está sendo sincero. Alexios me quer ao seu lado esta noite, e isso é...
— Como nos velhos tempos, lembra? — ele complementa, e, mais uma vez, percebo o quanto sou iludida.
Nada mudou!
Imediatamente me lembro do meu baile de formatura do ensino médio, no qual ele foi meu acompanhante. Chegamos juntos, eu estava empolgada para dançar com ele a noite toda, arrumei-me para parecer uma mulher aos seus olhos e não mais a menina de cabelos revoltos que o seguia para toda parte quando criança.
Havia decidido que iria contar a ele o que sentia naquela noite e que, depois de ele se declarar também, iríamos fazer amor, e eu, aos 17 anos, finalmente teria minha primeira noite com o homem que amava.
Ledo engano!
Alexios dançou uma música comigo, depois foi para o bar, encheu a cara, sumiu com uma garota bem mais “servida” que eu e voltou para o salão todo amarrotado. Eu queria ir embora, mas ele acabou dançando (e sumindo) com mais umas três mulheres.
— Seu acompanhante te deixou sozinha, não é? — Marlon, um dos garotos que estava se formando comigo me perguntou, e só aí percebi que ele estava sentado à mesa comigo.
Começamos a conversar e, naquela noite, tive minha primeira experiência sexual. Não foi ruim, namoramos por um tempo, mas reconheço que ela só aconteceu porque Alexios não me quis. Ele simplesmente não me via!
— Samara? — ele me chama e me faz voltar à realidade.
Por Deus! Não sou mais uma garota de 17 anos, sou adulta, independente, com uma carreira bem-sucedida na Espanha e um dos homens mais gostosos de Madri ao meu lado!
— Vamos entrar! — decido e marcho até uma das “bilheterias”, onde recebo minha máscara preta e uma pulseira.
Alexios recebe as dele e ri ao me mostrar a máscara branca como a de O Fantasma da Ópera. Ah, merda!
— Você se lembra? — Ele ri. — Me obrigou a ver esse filme um milhão de vezes e sabia até as falas!
O desgraçado põe a máscara, ergue uma das sobrancelhas, dobra-se em reverência e sorri.
— Vamos logo com isso! — Saio de perto dele sem rir de sua gracinha, coração retumbando, a cabeça cheia de lembranças da nossa adolescência.
Quando as portas se abrem, perco o fôlego ao ver o que Kyra idealizou.
— Puta que pariu, minha irmã é foda! — Alexios fala ao meu lado.
Eu pulo de susto, não por causa do que ele disse, nem mesmo ao ver um dos artistas cuspindo fogo, mas tão somente por sentir a sua mão em minha cintura. Meu corpo inteiro aquece, a pele arrepia e aquela sensação que sinto desde que os hormônios despertaram em mim na adolescência volta a me tomar.
Atração! Química!
Não sei explicar, mas meu amor de criança transformou-se nisso quando me tornei moça, e a cada toque, cada resvalo, eu resfolegava. Sonhava com ele, acordava suada e sem saber o que estava acontecendo. Meu primeiro orgasmo com masturbação foi pensando nele, instintivo, depois de um sonho erótico e proibido.
Achei que, com a distância, principalmente depois que me envolvi com Diego, isso ia passar, mas parece que me enganei.
Olho-o e percebo que ele permanece alheio ao que me causa, sua atenção tomada pelos malabares que executam movimentos precisos na entrada do baile.
Respiro fundo.
— Vamos?
Ele assente sem me olhar, e seguimos juntos, passando entre os convidados que ainda se encontram de pé conversando ou bebendo no bar, em direção ao centro do salão, tomado de mesas e cadeiras reservadas.
— Onde nós...
Nem preciso terminar a pergunta, pois logo vejo Theodoros Karamanlis, acompanhado de uma lindíssima loira, a uma mesa com o sobrenome deles na placa de reserva. Eu não sou muito fã do irmão mais velho de Alexios, mas sempre fui educada com ele, então armo meu melhor sorriso e o cumprimento:
— Theo! Que bom vê-lo esta noite! — Olho para sua acompanhante agora mais de perto e sinto como se a conhecesse de algum lugar.
— Samara, essa é Valentina de Sá e Campos — Theodoros nos apresenta, e eu sorrio, reconhecendo os sobrenomes dela. — Valentina, essa é a Samara Schneider, uma incrível designer de interiores.
— É um prazer, Valentina! — saúdo-a.
— O prazer é meu, Samara. — Valentina sorri. — Nos conhecemos já?
— Eu acho que sim, embora não me recorde de onde pode ser.
A loira para a fim de tentar se lembrar, e eu ouço a conversa entre Theo e Alexios.
— Viu só esse trabalho da Kyra?
— Claro! — Alexios debocha do irmão. — Seria impossível não ver, já que estou aqui! Já fui até cumprimentá-la, mas está tão ocupada que não consegui nem falar com ela direito.
Só o suficiente para que ela o encarregasse de me acompanhar nesta noite! Kyra me paga!
— Imagino que esteja. Viu o Kostas? — Theo pergunta, mas não consigo ouvir a resposta de Alexios, pois Valentina volta a falar:
— Lembrei! — ela comemora. — Nos encontramos na festa de inauguração da loja da Miriam Benides, lembra?
Eu não faço a mínima ideia do que ela esteja falando, mas, mesmo que não esteja com nenhuma vontade de prosseguir com a conversa, sorrio e concordo por educação.
— Puxa vida, quanto tempo não vejo você por lá! — Valentina continua.
— Eu estava morando em Madri — informo antes de me sentar.
— Ah, eu adoro a Espanha!
Sorrio sem graça, percebendo que vamos conversar. Não quero ser mal-educada com ela, é só que não estou muito confortável em estar aqui neste baile, não depois de perceber que ainda quero Alexios e que não adiantou de nada impor distância.
— Família! — a voz debochada de Kostas interrompe a conversa de Valentina, e ela me pergunta baixinho quem é o homem abraçado a uma loira com um vestido branco tão justo e transparente que beira à indecência.
— Konstantinos... — sussurro antes de ele apresentar sua acompanhante a todos.
— Bruninha, conheça os Karamanlis! — Ele aponta para Alexios e para Theodoros. — Claro que você pode deixar seu cartão com eles depois, mas eu sou o mais bonito, não sou?
Ele faz a mulher girar em seu próprio eixo, e, pela primeira vez depois da tensão toda em que eu estava desde que vi Alexios, sorrio divertida. Kostas é uma figura! Ainda me lembro de quando ele morava no prédio, na cobertura de seu pai, e juro, se não fossem os olhos azuis e a voz, eu diria que não se trata da mesma pessoa!
— Já bêbado? — Theo pergunta a Alexios.
— E mais uma vez com acompanhante paga! — Alexios se aproxima de Theo e cochicha, e isso me surpreende. Não sabia que os dois estavam conseguindo ter uma relação tão cordial. — Estou achando que nosso querido irmão é do outro time.
Theo gargalha e nos olha sem graça.
— Perdoem-me, foi irresistível! — Tenta se conter e bebe mais do seu uísque. — Bom, certamente ele é arrogante e orgulhoso demais para “sair do armário”.
Quem? Kostas?! Olho para o homenzarrão com a prostituta e nego instintivamente com a cabeça. Não mesmo!
— Seria apenas mais um rejeitado pelo seu querido pappoús! — ouço Alexios dizer isso, e meu coração aperta. Olho-o, respiro fundo, lamentando profundamente por ele ainda se sentir rejeitado, percebendo que isso também não mudou.
Rejeição, abandono, violência o tornaram o homem que é. Sei disso, dei essas desculpas para seu comportamento por muitos anos. Toda vez que ele aprontava, eu usava isso para justificá-lo.
Até quando?, penso, olhando-o fixamente. Até quando ele deixará que os erros dos outros façam-no errar também?
— Você gosta muito dele, não é? — Valentina dispara, e eu desvio os olhos de Alexios. — Seus olhos brilham diferente ao olhar para ele.
— Somos amigos há muitos anos — disfarço.
— Bom, isso é muito bom, mas... — Ela ri. — Desculpe-me se estou sendo invasiva, mas seu olhar é de quem é apaixonada, não apenas uma amiga.
Dou um sorriso amarelo para ela, e Valentina fica quieta.
— Tudo bem aí? — Alexios me pergunta, e eu assinto. — O jantar já tinha sido anunciado antes de você chegar, então não deve demorar muito.
Resolvo conversar com ele normalmente, afinal, seria ridículo fazer birra na minha idade.
— Kyra estava muito ansiosa com o jantar desta noite. Um grande chef internacional, ela me contou, é quem está preparando tudo.
— Sim, está na programação. — Alexios lê o nome do chef francês, e eu não consigo deixar de olhar sua boca. Pego a taça de champanhe e a viro de uma só vez. — Uau! — Sorri e faz sinal para um garçom se aproximar com mais. — Minha acompanhante está sedenta.
— Estou. — Decido não discutir e bebo a outra taça. — E com fome também.
Alexios toca minha coxa por cima do vestido, mas logo tira a mão.
— O jantar não deve demorar — repete sério e se vira para olhar o outro lado do salão.
Fico um tempo olhando para minhas pernas, permitindo a sensação de brasa que a mão dele deixou em minha coxa passar, chateada demais por reagir assim a ele e continuar sendo praticamente invisível.
Que porra é essa que está rolando?
Essa pergunta retórica fica martelando minha cabeça enquanto tento prestar atenção em qualquer coisa neste maldito salão lotado que não seja ela. Eu só posso estar com algum problema, só pode! Samara sempre foi minha amiga, quase minha irmã. Eu estar aqui com uma maldita ereção – pela segunda vez esta noite, frise-se – só pode ser loucura!
Preciso de um médico! A loucura congênita dos Karamanlis começou a se manifestar em mim. Sentir tesão por Samara é quase... incestuoso!
Pego a taça com champanhe e a termino em uma só golada a fim de aplacar o fogo que apenas um toque em sua coxa me causou.
A verdade é que eu não esperava encontrar-me com ela nesta noite. Vim por insistência do Millos e, claro, por sua maldita manipulação eficaz ao falar da Kyra e do suporte a ela em seu primeiro grande evento. Cheguei junto aos primeiros convidados e a encontrei correndo de um lado para o outro, “armando” uma surpresa para sua amiga e funcionária, a gostosa da Helena, que, por sinal, está namorando o Bernardo Novak, um amigo de longa data.
Quando finalmente ela terminou todos os preparativos, foi à cozinha falar com o tal chef francês que a estava deixando nervosa, conferiu tudo com as bandas, DJ e artistas circenses é que me deu atenção.
— Oi, Alexios. — Sorriu cansada. — O baile nem começou direito, e eu já estou de um lado para o outro. — Ela espiou a fila se formando na recepção do evento. — Gostou da decoração?
Seus olhos verdes, como os meus, brilharam ansiosos. Eu cheguei perto dela, beijei sua testa e falei baixinho:
— Está tudo perfeito, Kyra. Parabéns, estou muito orgulhoso!
Ela suspirou e depois se afastou.
— Claro que está! Não tinha dúvida alguma disso. — E, do nada, pegou-me pela mão e me arrastou em direção ao salão. — Vem ver!
— Kyra, eu ainda não troquei meu convite e...
— Ah, Alexios, vem ver!
A decoração estava esplêndida, embora eu soubesse que, com os efeitos de luz e os artistas executando seus números, iria ficar ainda mais incrível. A banda, no palco ao fundo do salão, já estava se posicionando, e alguns funcionários de Kyra ajeitavam os últimos detalhes das mesas, arranjos florais ou acendiam as velas.
— Perfeito! — elogiei-a novamente.
— Você ainda não viu nada! — E deu aquele sorriso que eu sei que fode com a cabeça de qualquer homem. É duro ter uma irmã como ela, linda e sexy, e ver os caras babando em cima e não poder socar a fuça de nenhum. — Ah, preciso de um favor.
Estava demorando!
— Kyki, estou de smoking, mas ainda não sei segurar uma bandeja — sacaneei.
— Não, seu idiota! — Ela me estapeou as costas. — É meu par desta noite! Não vou poder participar do baile como havia previsto, então preciso que você faça companhia...
— Ei, ei, pode parar! Não vou ficar pajeando nenhum marmanjo não!
Ela rolou os olhos.
— Não é marmanjo, idiota! Posso terminar de falar? — Assenti. — É a Samara. Convidei-a a vir comigo esta noite e não quero que fique sozinha.
Samara Esther Schneider!
Fiquei um tempo olhando para Kyra, tentando entender se ela tinha feito isso de propósito, para tentar nos reaproximar, afinal, sempre fomos um trio de amigos/irmãos, e, com a relação entre mim e Samara estremecida, Kyra devia estar um tanto confusa.
— Sem problema. — Sorri. — Você avisou a ela?
— E Samara atende aquele celular? — Ela bufou. — Você terá que esperá-la lá fora. Se importa?
— Não — fui sincero.
— Ótimo, agora vaza, porque ainda tenho coisas a fazer antes de abrirmos o salão. — E, do mesmo jeito que me arrastou, colocou-me para fora.
Fiquei um bom tempo esperando por Samara do lado de fora, o que foi surpreendente, pois ela sempre foi pontual. Vi o salão ser aberto, o baile começar, o discurso do doutor Andreas Villazza, o anúncio do jantar, e nada de a minha (ex?) melhor amiga chegar.
Estava olhando para um detalhe na construção do hotel, executada pela Novak Engenharia, quando meus olhos foram atraídos para o topo da escadaria. Não é exagero eu dizer que meus olhos foram atraídos, porque foi como se um ímã puxasse minha atenção para aquele ponto.
Engasguei-me com minha própria saliva ao ver Samara. Sim, ela estava linda, mas não foi o vestido branco ou o penteado elaborado que chamou minha atenção, foi ela.
Ela é linda e, por conta da nossa amizade e do receio que tinha de machucá-la, parei de perceber sua beleza e não notei a mulher que se tornou.
Fiquei parado, tomando nota de tudo, como se a estivesse vendo pela primeira vez, sentindo um incômodo por estar olhando-a com lascívia, afinal, era a Samara!
Balancei a cabeça, tentando voltar a pôr os neurônios no lugar, justificando para mim mesmo que isso aconteceu por causa dos anos distantes, mesmo sabendo que isso era pura enganação, pois ela não mudou nada nesses últimos anos.
O que aconteceu, então? Não sei, ainda estou confuso, tentando entender por que fiquei excitado com o perfume dela ou por que meu pau acordou apenas por eu a ter segurado pela cintura a fim de andar com ela até a mesa.
Tive que ficar parado, olhando para os malabares sem vê-los realmente, com cara de paisagem, fingindo que nada estava acontecendo. Eu não queria que ela soubesse que eu estava reagindo daquela forma a ela; certamente ficaria horrorizada. Sempre fomos como irmãos!
Tentei me conter, agradeci por Theodoros e sua companhia já estarem à mesa, fiquei um tempo distraído conversando com meu irmão mais velho, mesmo que isso fosse uma dor no saco. Não sou tão rancoroso quanto o Konstantinos sobre o Theo, apesar de concordar com meu irmão sem noção sobre ele nos ter abandonado nas mãos do louco Nikkós, mas o que Theodoros poderia fazer? Eu mesmo estive nessa situação quando pude sair de casa, mas não tinha como tirar Kyra dele, por isso fiquei.
O DJ que executa as músicas antes do jantar e da banda ao vivo coloca My Immortal, de Evanescence, e é impossível não olhar para Samara.
— Sua música preferida na adolescência — comento com ela.
Samara sorri e balança a cabeça, olhando os casais indo para a pista de dança.
— Tocou na minha formatura...
— Eu sei, eu queria dançar com você, mas você não parecia muito a fim, então fui beber.
Ela arregala os olhos e me encara como se não soubesse do que eu estou falando. Provavelmente nem se lembra, estava nervosa e ficava repetindo o caminho todo dentro do carro que a gente nem deveria ter ido, que era besteira.
Não somos mais adolescentes!
— Quer dançar? — inquiro impulsivamente e estendo a mão para ela.
Samara olha para minha mão por um tempo, mas aceita.
Porra, que loucura!
Ela pega minha mão, e minha vontade é de puxá-la para mim e beijar sua boca. Foda! Não consigo mais refrear meus desejos; sempre consegui com ela, por isso não entendo o que está acontecendo agora. Não é qualquer mulher aqui comigo, indo para a pista de dança para ficar de corpo colado no meu – porra! – é a Samara!
Samara!
Minha amiga de infância!
Quase uma irmã...
MERDA!
— Está tudo bem? — ela me pergunta, e eu tento relaxar, já que estou dançando como antigamente: a um palmo de distância dela.
— Sim, tudo. — Tento dar meu famoso sorriso, mas não rola, então pigarreio. — Estou com sede, calor... acho que é essa decoração toda.
— Pode ser. — Ela desvia os olhos de mim. — Quer voltar para a mesa?
Quero!
— Não, a não ser que você...
— Tudo bem.
Ela se solta de mim no exato momento em que a música muda para um instrumental baixo e as luzes se acendem.
— O jantar. — Aponto para os garçons em fila e os convidados voltando aos seus lugares. — Vamos?
Salvo pelo gongo do cozinheiro!, penso ao ajustar disfarçadamente minha calça para não andar de pau duro e assustar a todos por causa da claridade do salão.
Samara bebe mais uma taça de champanhe, e eu rio, já preocupado. Nunca a vi beber tanto! Sempre foi séria, careta, estudiosa e boa filha. Ela nunca fazia nada de errado, nunca decepcionou os pais, fazia tudo o que eles queriam... quer dizer, tudo menos se afastar de mim.
— Acho que já quero ir — ela comenta de repente. — Vou chamar um Uber...
Levanta-se um pouco tonta, e eu a amparo pela cintura.
— Você quase não comeu, e bebeu muito — falo, e ela levanta uma sobrancelha atrevida e irônica para mim. — Não estou dando lição de moral, mesmo porque não tenho nenhuma, apenas constatei um fato.
Ela ri.
— Você não tem nenhuma moral mesmo! — arrasta a última palavra. — Sempre foi um galinha, essa cara de santo aí só engana as outras!
Gargalho.
— Elas não ficavam enganadas por muito tempo, pode acreditar!
Samara funga, indignada, e fecha os olhos.
— Eu acho que realmente bebi demais.
Olho em volta; o salão já está praticamente vazio, apenas um ou outro convidado conversando em pequenos grupos. Theodoros se despediu, com Valentina grudada em seu pescoço, há mais de uma hora, e Kostas nem jantou conosco à mesa, provavelmente ficou no bar com sua acompanhante.
Inicialmente eu tinha pensando em esperar tudo terminar para acompanhar Kyra até em casa, mas, com Samara no estado em que se encontra e com tudo aqui ainda para ser desmontado, é melhor eu levar minha amiga para casa – aproveitando que moramos no mesmo prédio – e voltar mais tarde para acompanhar minha irmã.
Pego a pequena bolsa que ela trouxe e, ainda abraçado a ela, caminho para a saída.
— Alexios... tudo está rodando...
— Muito natural depois de todo aquele champanhe.
Ela suspira e joga a cabeça para trás.
— Você é um chato, sabia? Não posso entender o que todas aquelas mulheres viam em você!
— Imagino que não possa mesmo — respondo-lhe, sabendo que vai se irritar.
Samara sempre disse que eu respondia politicamente ou me evadia quando sentia que o assunto poderia ir para alguma direção que não me deixaria confortável. Ela tinha razão na maioria das vezes, mas, neste momento, só estou a fim de irritá-la.
— Você é um babaca, Alexios Angelos!
Opa! Falou meu nome todo! Rio de sua irritação bêbada, talvez por estar um tanto alto como ela, mas sóbrio o suficiente para carregá-la em segurança até a calçada.
Não vim de moto ou carro sozinho exatamente por saber que iria beber – principalmente para aguentar sozinho a companhia dos meus irmãos à mesa –, porém previ que a saída do baile estaria um inferno e que seria difícil conseguir um táxi ou um carro de aplicativo que estivesse por perto, por isso deixei o Cris, que me trouxe, de sobreaviso no estacionamento.
Mando mensagem para ele e espero até meu carro aparecer. Abro a porta de trás e coloco sobre o banco uma Samara parcialmente adormecida por cachaça francesa.
— Essa foi nocaute! — Cris ri quando eu entro. — Para onde?
— Para o Castellani. — Ele dá um sorrisinho malicioso e pisca. — Ela é minha vizinha, Cris, sossega.
— Falou, chefinho.
— Para de merda e dirige.
Ele tenta sair da entrada do hotel, mas é praticamente impossível com o número de carros que também tentam deixar o local. Olho para trás, confiro que Samara está mesmo apagada e fecho os olhos, recostando-me contra o assento do carona.
— Foi uma festança, hein? — Cris volta a falar. — Só vi entrar filé, pena que a maioria estava acompanhada.
— Geralmente isso não é problema — comento, mordaz. — Já comi muita mulher no banheiro de recepções como essa enquanto o marido conversava com os amigos e falava de negócios.
Cris gargalha.
— Você nunca valeu nada, Lex!
Não retruco o apelido ridículo com que ele me chama e me faz parecer o vilão do Homem de Aço. É pura perda de tempo ralhar com Cristino, então simplesmente ignoro, cansado, meio zoado e com tesão frustrado.
Ele e eu nos conhecemos há alguns anos, quando visitei um dos prédios da Karamanlis que foram invadidos por movimentos pró-moradias. O homem era motorista de profissão, com anotação em sua carteira de trabalho em várias empresas, que juntou todo o dinheiro que tinha, investiu em um carro e um ponto de táxi, mas foi engolido e enxotado pelas grandes cooperativas.
Assim, quando nos conhecemos, ele estava sem casa, sem carro, sem emprego e com uma enorme dívida, fazendo bicos aqui e ali. Ajudei-o primeiro a conseguir emprego, depois por fim saiu da invasão, e, nesse ínterim, nos tornamos amigos.
Ano passado, quando a filha dele nasceu, quis que eu a apadrinhasse, mas educadamente declinei, explicando que, mesmo honrado, não poderia aceitar, pois sou ateu, e o apadrinhamento de uma criança tem a ver com questões religiosas, tem um sentido específico, e eu não seria a pessoa certa para isso. Ele entendeu, mas a garotinha já me chama de Didi (seu jeito fofo de bebê de chamar seu dindo, mesmo que oficialmente eu não o seja).
Acho que cochilei também até o Castellani, pois, quando me dei conta, já estávamos na garagem. Cris me perguntou se eu queria ajuda com Samara, mas agradeci e o mandei para casa. Ele não trabalha como meu motorista diariamente, mas sim na Karamanlis, transportando quem quer que precise fazer serviços externos. Contudo, toda vez que preciso, chamo-o para ganhar um extra.
Há muito parei de combinar bebida e direção, não por mim, mas por medo de acontecer algum acidente e eu acabar prejudicando outras pessoas.
Chamo o elevador, e somente dentro dele é que a bela adormecida parece voltar a si.
— Alexios... — Samara olha em volta. — Este é o elevador do Castellani?
— Parece que sim — respondo-lhe divertido.
Samara bufa.
— Só desmaiada é que eu aceitaria vir com você na direção nesse estado em que se encontra.
— Estou melhor que você. — Ela se encosta contra o espelho, olhos fechados e um enorme sorriso bêbado no rosto. — Além do mais, viemos com motorista.
— Bom... — Samara fala devagar e lambe os lábios como se estivessem secos. O efeito no meu pau é instantâneo. Sinto meu corpo inteiro acender, minhas mãos formigam de vontade de tocá-la. Sua pele parece brilhar, atraindo-me como uma chama atrai uma mariposa.
Tento me afastar, pensar em outra coisa, mas o espaço reduzido do elevador não ajuda. As paredes parecem se fechar cada vez mais, aproximando-me de Samara, apertando-me contra ela, espremendo meu corpo...
— Alexios... — ela geme meu nome, e eu me espremo mais, fazendo-a grudar contra o espelho. O seu perfume inebria meus pensamentos, a pele, tão quente e macia que a sinto mesmo por baixo do vestido, me enlouquece. Preciso provar o sabor de sua boca, conferir se o hálito quente e um tanto etílico se confirma em sua saliva.
Sim!
Agarro-a com mais força, minha ereção pressionada contra sua barriga, minha boca correndo em seu pescoço. Tudo parece congelar à nossa volta, não existe mais tempo e nem espaço, apenas o vácuo e nós dois dentro dele, em chamas.
Lábios nos lábios. Meus dedos esfregam sua nuca, a pele arrepia, os pelos eriçam, meu corpo treme. É a viagem mais louca que eu já fiz sem ser através de uma substância química entorpecente... não! É química ainda, é uma droga viciante, é tesão!
Devoro sua boca sem nenhum pudor ou impedimento. Ela me acolhe, abre-a para minha exploração, prende meus lábios entre seus dentes e morde com força, despertando com a dor ainda mais meu desejo.
Enfio os dedos no meio do seu penteado, seguro o cabelo com força, e ela retribui o desespero cravando as unhas nos meus ombros.
Estou pronto para fodê-la, minha cabeça já trabalha uma forma de abrir o zíper da calça social, sacar meu pau e buscar o caminho de sua boceta, que, a julgar pela forma com que ela come a minha boca, já está molhada e quente.
Um pigarrear me faz sobressaltar, e eu me afasto dela o mais rápido possível. Um casal de idosos também vestido em black tie entra no elevador no saguão do prédio, sinal de que o elevador subiu e desceu de novo enquanto nós dois quase nos comíamos dentro dele.
Olho para Samara, mas ela não parece constrangida ou assustada, apenas passa a mão pelos lábios e me encara, sua expressão cheia de perguntas e curiosidade.
Caralho, o que eu estou fazendo?! É a Samara, minha amiga, aquela que eu sempre quis manter longe desse meu lado sem vergonha! Puta que pariu!
Espero o casal descer em seu andar e, assim que as portas se fecham, respiro fundo.
— Desculpa, Samara, acho que estou mais bêbado do que imaginei a princípio. — Não tenho como olhá-la, dividido entre o constrangimento e o desejo ainda pulsando na minha calça. — Somos amigos, eu não deveria atacar você dessa forma, me des...
— Para! — sua voz soa magoada, e eu tenho vontade de socar a cabeça contra o espelho. — Não precisa dizer mais...
— Eu prometo que isso não voltará a acontecer. — Finalmente a encaro e fico fodido ao ver sua expressão confusa. Ela parece não ter gostado do que aconteceu, deve estar achando que eu sou um filho da puta aproveitador. — Você é minha amiga, Samara, mesmo depois dessa distância, eu ainda a vejo como se fosse minha irmã e...
— Chega! — ela grita, e as portas do elevador se abrem no seu andar. — Você tem razão, foi um erro e não deve voltar a acontecer!
Ouvir isso é como um balde de água fria, mesmo reconhecendo que é o certo.
— Eu não quero que isso afete novamente a amizade que nós temos e...
Samara sai pisando duro do elevador sem olhar para trás. Minha vontade é de correr atrás dela, voltar a encostá-la em alguma parede e beijá-la novamente até que perca a razão ou eu alivie esse tesão indesejável que estou sentindo.
As portas se fecham, e eu, ao invés de apertar o botão do meu andar, mando o elevador de volta para o térreo e chamo um Uber.
Preciso trepar!
— Essa sua cara de cachorro cagando na chuva é ainda ressaca do baile? — Kyra me pergunta, sentando-se ao meu lado na rede que ela tem em sua varanda. — Quer café?
Resmungo ainda com os olhos fechados:
— Quero paz!
Ela ri.
— Isso está em falta por aqui hoje, passa na semana que vem... — Encaro-a, puto com a piadinha. — O que aconteceu?
Não respondo, meus olhos fixos no topo do prédio do outro lado do parque. Balanço a cabeça, decidindo ser mais covarde do que tenho sido desde a madrugada do dia primeiro de janeiro e fecho os olhos para tentar nem pensar na confusão que arrumei.
— Você não deveria estar trabalhando hoje? Ou eu? — Kyra volta a me importunar, mas continuo mudo. — Mano, você continua o mesmo chato da porra de sempre! Fica aí com essa cara de Maria do Bairro e não abre a porcaria da boca para me contar o que diabos você fez dessa vez!
— Obrigado pela confiança em mim! — retruco irônico.
— Ah, boquinha para ser mal-educado comigo você tem! — Ela me cutuca o ombro, mas depois suspira e deita a cabeça nele. — Você sabe que faz merda, mas que eu estou aqui, disposta a te ouvir e te ajudar a limpar os cagaços. Somos uma dupla, você e eu, sempre fomos e sempre seremos.
— Costumávamos ser um trio... — assim que eu comento, imediatamente me arrependo, pois Kyra salta da rede – quase me derrubando no percurso – e emite um ensurdecedor: “ahá!”.
— Eu sabia que tinha acontecido algo na madrugada do baile! Samara está estranha, esquiva, e isso não é o natural dela. Que merda você aprontou? — Continuo ignorando-a, sem nenhuma disposição para contar sobre o beijo, o amasso e a confusão que isso criou em mim. — Alexios! — Minha irmã começa a pirar por causa do meu silêncio, mas, se me conhece um pouco, já deve imaginar que eu não irei abrir a boca para falar desse assunto. — Está certo! Você e sua maldita boca de siri. — Volta a se sentar, mas dessa vez não se deita em mim. — Alex, ela é nossa amiga, não a magoe, ok? Samara merece ser feliz, e esses anos que passou na Espanha foram ótimos para ela. Eu morria de saudades, mas estava feliz por ela estar realizada trabalhando com o que ama fazer, com um puta gato espanhol lambendo seus pés e — abro os olhos, mas Kyra não se freia — querendo formar família com ela.
Sento-me bruscamente, e Kyra balança.
— Como assim formar família?
— Ele a pediu em casamento. — Surpreendo-me, mas tento não reagir, não demonstrar. — Deu-lhe um lindíssimo e caro anel de diamante e está esperando pelo retorno dela.
Essa informação, apesar de ter me pegado de surpresa, não é nenhuma novidade. Sempre achei que algum homem de sorte iria conquistar o coração da minha amiga de infância e tê-la para sempre. Samara é a pessoa mais leal que eu conheço, mais incrível, merece muito ser feliz ao lado de alguém que valha a pena.
— Ela não estava usando anel... — penso em voz alta.
— Ainda não falou com os pais dela... — Kyra olha fundo nos meus olhos, procurando qualquer reação minha, mas sei que não irá encontrar nenhuma. Há muito aprendi a sentir sem demonstrar ou a mostrar apenas o que eu quero que os outros vejam. — Vocês não conversaram ontem?
— Acho que ainda não conseguimos estreitar os laços de amizade novamente.
— Hum... — Ela olha para seu relógio no pulso e suspira. — Preciso ir para o trabalho, vai ficar aqui? — Assinto. — Eu tenho a sensação de que você está se escondendo, só não faço ideia do quê.
Ela entra no apartamento, e novamente olho para o alto do Castellani, do outro lado do parque. Daqui do prédio onde ela mora, consigo ver o heliponto no telhado, algumas janelas da cobertura onde Cadu mora, o andar debaixo, onde Bernardo Novak reside, e uma pontinha da minha varanda. O apartamento de Samara fica uns andares abaixo do meu, então não tenho como vê-lo, mas somente por saber que ela está lá dentro, sinto vontade de ficar aqui, bem longe.
Não me entendam mal, não estou fazendo isso porque não quero que ela se aproxime de mim, pelo contrário, estou aqui, exilado como um covarde no apartamento da minha irmã mais nova, porque, se pisar no Castellani, sei que não conseguirei me manter distante dela.
Mesmo depois da maratona de sexo que fiz com uma mulher com quem já havia saído antes das festas de final de ano, não tenho segurança de estar no mesmo ambiente que Samara e me controlar para não a pressionar contra alguma parede e fodê-la sem ao menos dizer um cumprimento.
Definitivamente não vou fazer isso, não com ela!
Muito menos depois de saber que há alguém que a merece, que está à altura dela, esperando sua volta.
Rio de mim ao pensar que estou aqui, evitando-a, quando na verdade ela é quem deve estar querendo ficar a quilômetros de mim. Talvez esteja até indignada e ofendida pelo modo com que a toquei e beijei sem nenhum aviso, como se fôssemos um casal qualquer que se encontrou na balada para trepar, e não duas pessoas que são amigas desde que se entendem por gente.
Não entendo por que perdi o controle do tesão que sempre reprimi, mas me conheço o suficiente para saber que ele não passou. Raramente sinto aquela química com alguém. Era como se meu corpo estivesse sendo atraído, como se algo nela estivesse provocando reações em mim que eu não conseguia controlar. Foi animal, carnal, a famosa atração de pele que muita gente procura, mas pouca tem.
E eu tive justamente com minha melhor amiga!
Kyra volta a aparecer no meu campo de visão, agora com os belíssimos cabelos escuros, longos e fartos soltos, o rosto maquiado e uma roupa de deixar qualquer homem lobotomizado.
— Esse bode aí está foda para passar, hein? — comenta antes de se abaixar para pegar um guarda-chuva no móvel ao lado da rede. — Têm umas sobrinhas do baile na geladeira, cerveja – por favor, não tome todas, mas se tomar, as reponha –, e meu chuveiro tem muita pressão e água fresca. — Pisca para mim, e eu franzo a testa, sem entender. — Você está meio rançoso.
— Vai se ferrar, Kyra — ralho com ela, mas rio.
Ela se aproxima e beija minha testa, e isso, sim, arranca um sorriso sincero meu. Gosto que ela confie em mim o suficiente para me tocar, para recostar-se no meu ombro ou mesmo ficar abraçada, pois sei que ela não é assim com todos, principalmente com homens em geral.
— Fica bem e ouça meu conselho... — Ela anda até a porta antes de complementar: — Tome um banho, você cheira a álcool e a perfume vagabundo.
Levanto o dedo do meio para ela e a escuto ir gargalhando apartamento adentro até a porta de entrada bater. É, eu bebi bastante, sim, devo estar exalando álcool pelos poros, e o perfume barato se impregnou em minha roupa ontem, quando a recoloquei depois de mais de 12 horas nu, e a mulher me abraçou toda perfumada.
Saí do apartamento dela e vim direto para o da Kyra, torcendo para que minha irmã estivesse em casa e sozinha a fim de que eu pudesse cair aqui nesta rede onde estou e tentar pôr a cabeça certa no controle do meu corpo.
O telefone fixo toca alto, afastando meus pensamentos, e aproveito para tomar o banho aconselhado pela minha irmã viciada em limpeza. Entro na sala desabotoando a camisa branca que usei com o smoking – pois é, ainda estou com a mesma roupa do Ano Novo em pleno segundo dia do ano – e noto que não faço ideia de onde estão o paletó e a gravata-borboleta.
A primeira foto que vejo ao entrar no quarto de Kyra é uma que tiramos juntos – Samara, ela e eu – na formatura da minha irmã. Eu fui o par dela, então estava de smoking, e as duas, de vestido longo, maquiagem e penteado. Caminho até o aparador e pego o porta-retratos, focando em Samara e me perguntando como eu conseguia me manter longe do mulherão ao meu lado. Era uma beleza diferente da minha irmã, Samara tem o olhar doce, sorriso largo, nenhum mistério, seu rosto expressa suas emoções, sua sinceridade.
CONTINUA
Sua pergunta me deixa paralisada, completamente sem condições para lhe responder. Por que ele me procuraria?! Porque somos amigos desde que nasci? Porque estive ao lado dele em todos os momentos? Porque ele tomou um porre, apareceu lá em casa, chorou no meu ombro, beijou-me e depois fingiu que nada tinha acontecido?
Respiro fundo para controlar o volume da voz e não gritar que ele é um idiota, mas, antes que eu abra a boca, Kyra aparece esbaforida com um telefone na mão.
— Ei, Malinha, você está com seu telefone na bolsa? — Alexios olha para a irmã, puto por ela estar nos interrompendo, e eu franzo a testa, sem entender a pergunta dela. — Seu celular! — Ela bufa... — Seu irmão acaba de ligar para o meu telefone. — E balança o aparelho.
Arregalo os olhos, meu coração dispara, e logo penso em mamãe, que vi apenas um pouco ontem, quando fui buscar o Godofredo. Pego o telefone e confiro as ligações perdidas. Noto Alexios se afastando, mas não me importo; ele continua o mesmo egoísta de sempre.
Samara Schneider está de volta!
Mastigo mais um pedaço do pernil que Kyra serviu como opção de carne na ceia de Natal e não consigo deixar de pensar na volta daquela que foi minha grande amiga e companheira.
Até hoje não entendo o que aconteceu para que ela tomasse a decisão de ir estudar na Espanha sem falar nada comigo. Claro, eu sabia que tinha a possibilidade, afinal, havia anos o pai dela pressionava por isso, para ela ir estudar arquitetura clássica na terra de Gaudí14. No entanto, para minha total surpresa, em vez de ir morar em Barcelona, Samara foi para Madri.
Eu, que até então me considerava seu melhor amigo, só fiquei sabendo desses detalhes todos porque Kyra me contou depois que fui atrás dela para saber o paradeiro de Samara.
Pego a taça com água para ajudar a engolir a comida, pois estou com um aperto na garganta desde que a vi. Eu tinha acabado de sair da sala de reuniões de Kyra depois de um ménage espetacular com Valéria e Priscila, mais animado para encarar a noite especial, sem imaginar a grande surpresa que encontraria no salão e que quase me fez tropeçar em meus próprios pés.
Assim que meus olhos bateram nela, assustei-me, pois a danada da Kyra não havia me contado que Samara tinha voltado. Tentei um sorriso e uma aproximação amigável, como se ela não tivesse me abandonado por longos três anos sem nenhuma notícia. Ela está diferente, ainda mais bonita do que eu me lembro, mas tentei não reparar muito e ser o amigo de sempre.
Nada disso adiantou, pois, ao que parece, Samara desejou que eu corresse atrás dela, que a procurasse e reestabelecesse contato. Como eu poderia imaginar algo assim? Não sou adivinho! Ela some sem nenhum motivo e ainda se sente no direito de ficar puta por eu não ter tentado contato?
Quem entende a cabeça das mulheres?!
— Sua amiga foi embora cedo — Millos comenta ao meu lado. — Será que houve algum problema com a mãe dela?
Olho para meu primo, sentado ao meu lado à mesa, e ele entende meu total desconhecimento do assunto.
— A mãe dela, dona Ana Cohen, está em tratamento contra um linfoma. — Millos bebe mais chope. — Você não sabe nada sobre a vida da sua amiga?
— E você? Como sabe?
O filho da puta apenas dá de ombros, evasivo como sempre, adorando estar sempre um passo à frente de todos. Millos é um sujeito estranho. É o único que consegue interagir com todos nós sem tomar partido e sem revelar nada da vida pessoal de ninguém, nem mesmo da sua. Somos amigos, nos damos bem, mas eu sei pouco sobre ele, sobre suas atividades, e o máximo que conheço de sua vida pessoal é que tem um passado fodido como o meu, frequenta alguns clubes de sexo, tem uma amiga que por sinal é uma gostosa do caralho – mas nunca me deu mole, infelizmente – e só.
Como profissional, o homem é uma verdadeira coruja! Quieto, observador, parece que consegue olhar em 360 graus, além de ser um caçador de informações inigualável. Não há nada que passe despercebido por ele, e o que expõe ou o que fala, tenho certeza de que é o mínimo do que sabe. Por isso, todo cuidado é pouco quando o assunto é Millos Karamanlis, porque o desgraçado é um manipulador de mão cheia!
— Eu não sabia que dona Ana está doente, não vejo os pais de Samara há anos — contesto-o. — Espero que nada grave tenha ocorrido.
— Não vai ligar para saber? — Millos volta a questionar.
Franzo as sobrancelhas, encarando-o, tentando entender o motivo pelo qual ele está tão interessado no assunto.
— Não — respondo seco e volto a comer, mesmo com o questionamento dele na cabeça. Para mim o assunto acabou! Samara já demonstrou que não quer papo comigo por algum motivo, e, mesmo chateado com isso, devo respeitar a decisão dela. Millos é um manipulador e sabe que esse é um assunto que me atinge diretamente, por isso tocou nele.
Não preciso ligar para Samara, como não liguei para ela durante todo o tempo em que esteve fora, mas isso não quer dizer que eu não queira saber o que está acontecendo. Kyra sempre foi minha fonte de informações sobre ela e, caso tenha que ser assim, continuará sendo.
Termino minha refeição, fico mais algum tempo com Kyra e seus convidados, brindo ao sucesso do negócio dela e logo depois vou embora. Tinha pretensão de ir para casa, mas, no meio do caminho, uma mulher com quem eu já saí algumas vezes me manda uma mensagem dizendo que está na cidade, e vou encontrá-la.
Dia 26 de dezembro, pior dia de trabalho do mundo, certamente! Rio ao passar por mais dois engenheiros com cara de ressaca ou, talvez, de quem comeu demais e agora passa mal do estômago.
— Melhor colocar a lixeira perto! — passo, sacaneando meu colega de trabalho, Pedro, engenheiro químico. — Se emporcalhar a sala, vai ter que limpar você mesmo.
— Porra, Alexios, fala mais baixo! — Ele põe a mão na cabeça.
Gargalho e me sento à minha mesa, lotada de projetos, planilhas e minha coleção de lápis. É, eu coleciono lápis! Cada um tem a coleção que lhe cabe, não é?
Ligo o computador, olho para meu caderno de tarefas e arregalo os olhos ao ver um nome que eu não imaginava rever anotado lá – por outra pessoa.
— Ethernium? — questiono olhando para o Pedro.
— Sim! Acabamos de saber, mas o CEO lá da Karamanlis vai querer conversar com você, certamente.
Bufo ao pensar em subir até o Olimpo para conversar com Theodoros, sem esquecer as discussões que tivemos nas últimas semanas por conta de seu egocentrismo e insensibilidade com os funcionários da casa.
Sua mania de pensar que é Deus, inabalável, inatingível e perfeito me irrita, principalmente porque sei que ele não é nada disso, apenas a porra de um filhinho de vovô mimado, que sempre achou que podia fazer qualquer coisa que quisesse sem pensar nas consequências, que o velho grego limparia suas cagadas.
Admito, o velhote sempre fez tudo para seu neto querido. Entretanto, não pôde limpar a merda que Theodoros deixou para trás, apenas jogou-a para debaixo do tapete, limpou a consciência do seu netinho querido, que seguiu a vida como se nada tivesse feito e deixou o resto se fodendo sem se importar o mínimo.
Theo é arrogante, e eu não tenho saco para lidar com gente assim.
Ouço passos, um poc-poc característico de saltos, e em seguida a voz de Lia, outra engenheira que trabalha na minha equipe direta.
— Bom dia! — sua voz soa animada. — Ah... sem Papai Noel de chocolate este ano! — ela resmunga, e eu a vejo procurando sobre sua mesa. — Poxa, Alex, você já foi mais generoso!
— Eu?! — Começo a rir. — Você realmente me imagina comprando e colocando chocolate em formato de Papai Noel nas mesas dos outros? — Ela faz careta e nega. — Eu achava que era você!
— Por quê? Só porque sou mulher?
Rolo os olhos.
— Não, porra, porque você é viciada em chocolate!
— Ele está certo, Lia! — Pedro se mete na conversa em minha defesa. — Eu também achava que era você por causa disso.
Ela se senta frustrada por não ter encontrado o presente do “Papai Noel” misterioso da Karamanlis.
— Bom, não sou eu, e eu contava com isso! Não falha por anos! — Olha em volta para as outras estações de trabalho, ainda vazias sem os profissionais. — Ninguém recebeu?
Nego, e Pedro faz o mesmo.
— Estranho...
— Coisas estranhas têm acontecido por aqui — digo e lhe estendo meu caderno com a anotação da Ethernium.
— O quê? De novo? — Ela geme. — Esses caras da Ethernium são uns malas! Sério, Alexios, eu não vou aguentar gracinhas pra o meu lado de novo não!
— Eu disse que você devia ter respondido a ele. — Dou de ombros. — Mas agora sabe que tem meu total apoio! Se alguém da equipe deles fizer piadas machistas de novo, responda.
— Quem é o machista? Que vou com você dar uma surra nele. — Eliane chega já mostrando as garras – que garras! Minhas costas sofreram com elas – e se senta em sua estação. — Bom dia, feliz Natal, foi tudo ótimo! Agora, silêncio, porque ainda estou agarrada a um cálculo estrutural que não tem me deixado dormir. Obrigada. De nada.
Pedro começa a rir, e Lia só balança a cabeça. Eliane é assim, direta e sem rodeios, por isso mesmo achei-a ideal para o trabalho pelo qual é responsável. Nós nos conhecemos em uma balada, transamos, depois voltamos a nos encontrar na entrevista dela aqui na K-Eng tempos depois. Nunca mais voltamos a trepar, mas conseguimos construir uma relação de trabalho quase perfeita. Sei que posso contar com ela para qualquer coisa aqui dentro.
Tenho mais duas pessoas na minha equipe: Evandro e Michel, mas os dois estão de férias e ainda não retornaram. Não é normal dois membros da mesma equipe saírem em férias juntos, mas, como eles são casados, a lei lhes garante esse direito.
A K-Eng não é formada apenas pela minha equipe de engenheiros em suas especialidades, a verdade é que cada um aqui gere suas próprias divisões. O Pedro, por exemplo, é engenheiro químico, e na divisão dele estão químicos industriais, técnicos em química e outros engenheiros dessa área. Já a Lia é engenheira ambiental, e, dentro de sua divisão, há biólogos, gestores ambientais e engenheiros sanitaristas. A Eliana trabalha com projetos, e ela coordena outros engenheiros, arquitetos e projetistas. O Michel faz toda a parte de planilhas e medições, e o Evandro é responsável pelas operações, é quem lida com empreiteiros, clientes e atua também como fiscalizador de obras.
Além do corpo técnico da K-Eng, a empresa, que é uma subsidiária da Karamanlis, ainda tem setores administrativos e financeiros, e eu, como CEO dessa bagaça aqui, sou quem comanda essas áreas.
O único setor que dividimos com a Karamanlis, infelizmente, é o jurídico, por isso aturo muito a prepotência inglesa do Konstantinos e seu humor ácido. Geralmente não tenho paciência com ele, zoo com sua cara ou apenas o ignoro. Ele não é bem quisto por ninguém da minha equipe, principalmente pelas mulheres.
— Por falar em machismo... — Lia volta a falar. — Será que a Kika não vai voltar mais não?
Dou uma risada por ela ter entrado no assunto justamente quando eu pensava no meu irmão machista.
— Está um silêncio total na Karamanlis — Eliana se pronuncia. — Dá até medo de andar pelos corredores, clima pesadão!
— A Kika era incrível, né? Gata, alto-astral, competente — Pedro lamenta. — Uma pena que tenha perdido a cabeça e tenha sido mandada embora...
— Opa! — Eliana o interrompe. — Ela se demitiu!
— Enfim, está desempregada depois de ter ganhado uma puta promoção para a gerência.
— Eu a preferia à Malu Ruschel. — Lia treme toda. — Aquela mulher congelava até meu sangue só de estar perto dela.
Definitivamente, não o meu!, penso ao me lembrar de Malu Ruschel, a ex-gerente dos hunters da Karamanlis. Malu era bonita, tinha classe e aquele seu jeito focado me enchia de tesão. Uma pena ter ido morar no fim do mundo!
Já com a Kika, nunca senti essa atração, talvez por sempre tê-la achado tão receptiva, maravilhosa com seu jeito espontâneo, que logo gostei dela como se fosse uma amiga de longa data. Tenho muito apreço por ela e lamento que tenha saído da empresa.
Os engenheiros começam a conversar, mas o assunto não me interessa o mínimo, então coloco meus fones de ouvido – a voz forte e rasgada da Janis Joplin soa bem alta – e volto a mexer no projeto em que estava trabalhando.
— Ei, moleque! — Millos me chama assim que para sua moto. — Você não sabe curtir um passeio, puta que pariu!
Ele desce da motocicleta, tira o capacete e a jaqueta e se senta à mesa do bar ao meu lado. Bebo minha água sem responder, porque a única coisa que eu poderia lhe falar é que não sou um velho para ficar andando nessas motos de colecionador há 80 km por hora.
Estou aqui esperando-o há pelo menos 20 minutos, e isso porque saímos juntos de São Paulo em direção ao Guarujá, em uma viagem não programada e cujo motivo, sinceramente, nem entendi. Ele apenas apareceu lá na K-Eng e me chamou para andar de moto com ele, e eu topei.
— Qual é o propósito disso? — resolvo perguntar sem rodeios.
— Do quê?
Millos agradece à garçonete que lhe entrega um coco verde com um canudo e nem percebe a moça comendo-o com os olhos (ou talvez só esteja assustada com suas tatuagens, que cobrem os braços, pescoço e peito).
— Desse “passeio”. A gente se viu há alguns dias na ceia da Kyra, e você não comentou nada sobre isso.
— Nada de mais! — Ele bebe a água de coco. — Vou viajar no Ano Novo, ficar um tempo fora e queria passar um tempo contigo. Já jantei com seus irmãos, mas como você é todo amalucado para comer, achei que uma volta de moto iria cair bem, mas esqueci que você é louco nisso também.
— Você está ficando velho, Millos, sinto lhe informar — debocho. — Acha mesmo que, com essa potência italiana nas mãos, eu iria ficar molengando contigo na estrada?
— Não é molengar, é curtir a viagem, a paisagem...
— Ah, não, você curte essas coisas paradas, não eu. Meditação, ioga, essas coisas todas aí que você faz, tô fora! Não sei ir devagar, Millos, em nada!
— Deveria... talvez assim conseguisse agradar às mulheres. — Ele pisca e tenta disfarçar a troça bebendo mais de sua água.
Eu gargalho.
— Pode ter certeza, elas não reclamam da minha rapidez. Não basta saber correr, tem que saber tirar o máximo proveito de uma máquina, fazê-la dar tudo de si, e isso eu faço.
— Está falando das motos ou das mulheres?
— Tem diferença?
Ele ri novamente.
— Você é um moleque, não sabe nada ainda!
— Falou aquele que nomeia suas motos com nomes femininos!
Nós dois rimos juntos, e o clima fica descontraído.
A verdade é que ele e eu temos muito em comum. Ambos adoramos motocicletas, rock e carne. Apesar de sua onda “zen budista”, Millos nunca conseguiu se livrar da proteína animal e das comidas pesadas que adora preparar para acompanhar suas cervejas artesanais.
Ah, esse é outro ponto em comum: adoramos cerveja! Ele fabrica, eu apenas bebo, mas tenho tanto conhecimento quanto ele, e esse é um dos pontos sobre o que mais conversamos quando estamos juntos, geralmente comendo alguma carne e ouvindo rock.
Raramente saímos juntos de moto, exatamente por ele fazer o estilo tiozão que gosta de andar de Harley, apreciando paisagens, e eu e minha Ducati Multistrada 1260 não temos saco para andar quase parando não.
Embora eu reconheça que tenho que agradecer a esse tiozão por ter minha moto dos sonhos, a que uso para correr nas competições. A Ducati só disponibilizou três unidades da 1299 Superleggera para venda no Brasil, há quase dois anos, e um dos amigos do Millos foi quem comprou uma delas, e, quando ele decidiu vendê-la, meu primo prontamente me avisou, e não pensei duas vezes.
Eu gosto das italianas mais do que das americanas ou japonesas, pelo menos para as motos; não sou tão seletivo assim com mulheres.
— Baile dos Villazzas...
— Ah, Millos, não fode com esse assunto de novo! — reclamo, entendendo agora o motivo do encontro.
— Alexios, preciso de você lá.
Rio.
— Mano, aqueles dois não são crianças, e, muito menos, sou a babá deles! Eles não precisam que eu vá para manter a ordem e o bom nome da...
— Kyra me mostrou o projeto do baile, ela parece bem animada com sua primeira grande produção sem a intervenção dos Karamanlis.
Porra! Ele vai pegar pesado!
— Você é muito filho da puta, sabia?
Millos dá de ombros e bebe mais água.
— Acho que vocês deveriam ir para apoiá-la, acima de todos, você! Será importante para ela, além disso... acho que ela está sem acompanhante, porque deu com o pé na bunda do último idiota que estava comendo.
— Porra, Millos! — Xingo-o. — É a minha irmã, porra!
— E o quê? Só por isso ela não trepa?
— Vai se foder! — Levanto-me da mesa puto e pego o capacete.
— Alexios... — ele me chama, mas não dou atenção, já montando na moto para ir o mais longe possível dele.
Antes que vocês me julguem como machista ou irmão ciumento, adianto logo que não se trata disso. Cada um lida com a merda dentro de si de um jeito, e esse é o jeito da minha irmã de lidar com seu passado. Respeito isso, mas não quer dizer que não me doa ou mesmo que eu não me sinta responsável por ela ser assim.
Eu gostaria que as coisas fossem diferentes, esforcei-me o máximo que pude para que ela fosse menos fodida do que todos nós, mas, a cada novo relacionamento seu destruído, sinto-me um fracassado, o que me dói profundamente.
Piloto rápido, passando pelos radares sem me importar com as multas, sentindo o vento forte bater em mim como se pudesse deixar todas as marcas do meu corpo e da minha alma para trás. Contudo, não posso. Ele fodeu a minha vida várias vezes, não só com as coisas que fez contra mim, mas principalmente por eu ver que também destruiu minha irmã.
— Como ela está, Dani? — pergunto ao meu irmão assim que ele entra na cozinha da casa dos meus pais, onde tomo meu desjejum com a Cida.
— Dormiu bem. — Ele beija minha cabeça. — Mas foi um susto essa febre alta assim do nada.
Ele se senta, visivelmente cansado, e Cida logo lhe serve uma xícara de café. Acostumados demais a dividir as refeições com Cida desde que nascemos, sempre tomamos nosso café juntos. Ela está em nossa casa há tanto tempo que não sei como seria minha vida sem sua presença, e certamente Daniel sente o mesmo.
Minha mãe, Ana Cohen, sempre foi muito ocupada na direção do sistema de ensino criado pelos meus avós, franqueado e distribuído por colégios do Brasil todo. Já meu pai, Benjamin, vem de uma longa linhagem de comerciantes e industriais, como bem acentua nosso sobrenome, que é uma derivação da profissão de algum ascendente que foi alfaiate.
Os Schneiders possuem lojas, fábricas ou empresas que prestam serviços, como era o nosso caso. Meu avô não tinha formação quando fundou sua primeira fábrica de móveis, porém eram um marceneiro muito habilidoso, e meu pai aprendeu com ele. Os negócios iam bem, então papai foi estudar arquitetura e, por fim, design, elevando o nível dos negócios familiares, fazendo dos móveis com nosso sobrenome sinônimos de classe e riqueza.
Há 10 anos meu irmão está à frente dos negócios, desde que papai teve seu primeiro infarto – ele já teve outro e fez duas pontes de safena. Daniel é um administrador maravilhoso, fechou com grandes empresas, e hoje os móveis Schneider não enfeitam mais as coberturas e mansões luxuosas de São Paulo, tão somente redes enormes de hospitais, clínicas, lojas de alto luxo e restaurantes em todo o país.
Meu irmão é incrível! Nós dois somos muito amigos, sempre fomos. O único ponto tenso entre nós era Alexios Karamanlis. Daniel é 10 anos mais velho que eu, um quarentão, como eu costumo provocá-lo, e sempre achou Alex uma péssima companhia. Bom, ele realmente era, mas não para mim. Eu sabia das loucuras que Alexios aprontava, seu envolvimento com drogas, farras, lutas valendo dinheiro e rachas pela cidade. Ele não foi um adolescente fácil, mas sempre me tratou como se ainda conservasse o menino que eu conheci. Sempre me deu conselhos para ficar longe de tudo aquilo que ele mesmo fazia, nossa amizade sempre foi separada das outras companhias dele.
Ainda assim, Dani nunca gostou de Alexios, em compensação, tornou-se um dos grandes amigos de Millos Karamanlis, primo do Alex, mesmo que eu não consiga entender o que, de fato, o executivo tatuado e meu irmão tenham em comum.
— Desculpe-me por tê-la tirado da festa da Kyra — meu irmão volta a falar, afastando-me dos pensamentos. — Eu liguei para o doutor Henrique e já ia pedir uma ambulância, quando fiquei com medo de acontecer algo e você não estar aqui.
Pego sua mão.
— Eu sei. Foi um susto!
Retornei as ligações dele assim que Kyra me alertou, e, quando Dani atendeu, o doutor já havia chegado e ministrado medicamentos. O médico preferiu que ela continuasse em casa por conta de sua baixa imunidade, mas ficou acompanhando durante boa parte da madrugada.
— Ela convulsionou, e eu achei que fosse... — Ele me olha, seus olhos acinzentados tristes. — Eu quase perdi o papai tempos atrás, lembra? — Assinto. — Eu estava com ele quando teve o infarto, e agora quase...
— Dani, não pensa nisso! — Abraço-o. — Você é o melhor filho e irmão do mundo, sempre ao lado deles, ao meu lado. Agora estou aqui também e vou ajudar no que for preciso.
— Eu sei, Samara. Essa fase do tratamento é a mais complicada, por causa da baixa imunidade, mas, quando ela estabiliza, é a mamãe que sempre conhecemos e amamos.
— E a Bianca? — pergunto-lhe sobre sua noiva. — Como vocês estão, faltando pouco para o grande dia?
Ele ri sem jeito.
— Você sabe que não tem essa de grande dia, não? Nós vamos ao cartório, assinaremos os papéis e pronto. — Dá de ombros. — Vida que segue.
Cruzo os braços. Não gosto nada desse conformismo estranho.
— Tem certeza disso, Dani?
Ele olha para a Cida.
— Vou fazer 41 anos, pirralha. 15 anos de relacionamento com ela, então...
— É isso? — Cida balança a cabeça negativamente. — Viu? A Cida não concorda também! E não é que você seja já um solteirão arrastando chinelos, Dani! Você é lindo!
— Não é sobre isso, Samara.
— Ele quer ter uma família, menina. — Arregalo os olhos. — Seu pai vive mais entretido na fazenda do que aqui, sua mãe, antes de adoecer, não parava quieta, sempre viajando com as amigas e...
— Eu na Espanha.
Daniel termina o café sem me encarar, sem falar nada e se levanta.
— Vou voltar para o quarto, render um pouco a enfermeira.
— Também vou, Dani!
Seguimos juntos, mudos, pelo corredor. Meu irmão é a pessoa mais discreta do mundo, completamente o oposto de outros filhos de grandes empresários desta cidade. Nunca gostou de sair em revistas de fofoca, nunca namorou modelos, atrizes ou socialites. Na adolescência, namorou uma garota da escola, depois teve duas ou três namoradas na faculdade e, por fim, conheceu a Bianca em um torneio de polo – esporte em que ele é fera. Desde então engataram nesse relacionamento xoxo, totalmente ioiô – eles já terminaram umas 30 vezes ao longo dos anos – e que agora vai se tornar um casamento meia-boca.
— Você merece mais, Dani — solto sem conseguir frear minha língua, e ele ri.
— Você diz isso porque é minha irmã, pirralha. — Ele tenta bagunçar meus cabelos como quando eu era criança. — Bianca pode não ser o grande amor da minha vida, mas é uma boa amiga e companheira.
— Isso é loucura! Você merece amar, ser amado, estar apaixonado...
— Como você esteve a vida toda por aquele doidivanas? — Paro em seco no corredor e arregalo os olhos. — Qual é, Samara, você achava que eu não sabia? Estava escrito na sua testa e em todos os seus cadernos, com direito a corações rosa! Você teve um peixe daqueles que ficam sozinhos no aquário...
— Um beta. — Começo a rir, sabendo exatamente do que ele está lembrando.
— Pois bem, você teve um beta e o nomeou...
— Beto Schneider Karamanlis — falamos juntos, e eu começo a rir.
— Sim! E como você nunca me deu indícios de ter uma queda pela Kyra, eu supus que era o outro Karamanlis. — Daniel me olha sério. — Por que Diego não veio contigo?
A pergunta é tão inesperada que demoro a processar que ele está falando do meu namorado.
— Não sei quanto tempo vou ficar, então...
— Besteira! Ele poderia passar uns dias aqui contigo, os times estão todos em recesso até a primeira semana de janeiro. — Suspiro e olho para o chão. — Não estraga sua vida, Alex não vale a pena.
Assinto, lembrando-me de tudo o que aconteceu noite passada. Alexios continua igual, vendo e querendo todas as mulheres ao seu redor, menos eu. Sempre fui a amiga, quase uma irmã, menos uma mulher, e, como acabei de perceber, todos sabem da minha paixão por ele, então, Alexios deve simplesmente ignorá-la.
Por muito tempo eu achei que ele não soubesse. Ficava fantasiando que, no dia em que eu tomasse coragem e lhe contasse, Alexios iria se declarar também. Iludida! É isso que eu era, porque, depois do beijo que trocamos, era impossível que ele não soubesse.
Respiro fundo, resignada. Alexios sabe, só não se importa e nem sente o mesmo!
Meu irmão bate levemente na porta do quarto de mamãe e em seguida entra. Sigo-o pelo enorme ambiente, que me traz tantas lembranças alegres dos momentos que dividi com ela, deitada em sua cama, contando sobre meus sonhos.
— Samara Esther! — Mamãe estende os braços, sentada na cama, recostada nos travesseiros. — Trouxe Godofredo de volta?
Rio e concordo.
— Trouxe, está lá embaixo no jardim. — Beijo sua testa. — Como está se sentindo hoje?
— Eu estou bem! — Ela dá uma olhada de esguelha para meu irmão. — Ele é superprotetor, sabe? Exagerado!
Daniel permanece alheio às críticas, conversando com a enfermeira.
— Mamãe, ele não é, e a senhora sabe! — Ana suspira. — A senhora está em tratamento, precisa de cuidados, e, com o papai isolado na fazenda, Daniel é que estava responsável por acompanhá-la em tudo, mas agora estou aqui também!
— Dois superprotetores! — ela finge reclamar, mas sorri satisfeita. — Seu pai quis vir para cá para ficar comigo, mas achei melhor que ficasse por lá. Você sabe como ele é, não me daria um minuto de paz.
Eu rio, mas sou obrigada a concordar. Meus pais são incríveis, mas têm uma relação um tanto estranha desde que Daniel e eu saímos de casa para viver nossas vidas. Passaram a viver cada um no seu espaço, com suas coisas. Dão-se incrivelmente bem, mas cada um com sua vida.
É verdade que eles não eram nada parecidos. Mamãe sempre foi uma mulher de negócios, cheia de trabalho, viagens e reuniões, porém extremamente carinhosa com os filhos. Papai é um homem mais reservado em seus sentimentos, embora seja um artista.
Olho para um dos móveis da minha mãe, e a escultura em madeira em cima dele me faz sorrir. Nela há um casal e um garotinho com a mão na enorme barriga da mulher. Papai deu vida à imagem de uma foto que tiraram quando mamãe estava grávida de mim, e a peça ficou tão perfeita que dá para sentir a alegria de todos.
Quando eu era criança, tinha coleções das esculturas dele: cavalos, cães, gatos, pássaros. A que eu mais gostava era a do Pinóquio, que ganhei quando comecei a ler e andava para baixo e para cima com o livro do boneco de madeira que queria ser menino de verdade.
— Você vai até lá visitá-lo? — minha mãe pergunta, talvez adivinhando que estou pensando nele, por estar olhando a estátua.
— Por agora não. Tentei falar com ele quando cheguei e ontem também, mas não consegui. — Dou de ombros. — Papai se isola quando quer, a senhora sabe.
— O doutor Henrique acabou de dizer que os resultados dos exames ficaram prontos e que ele virá assim que puder para conversar conosco. — Daniel senta-se ao meu lado na cama. — É bom ter Samara aqui perto, não é?
Ele me abraça pelos ombros.
— Eu também estou gostando de estar de volta.
Mal termino a frase, e meu telefone toca. A foto de Kyra tentando beijar Godofredo, e ele de boca aberta para mordê-la aparece na tela, e minha mãe sorri.
— Eu estou esperando pela visita dessa filha emprestada desnaturada. — Ana reclama. — Pode dizer a ela que não vai comer mais minha paella!
— Pode deixar! — Levanto-me da cama e vou para um canto do quarto. — Oi, Kyra! — atendo o telefone.
— Quero notícias! Mal consegui dormir essa noite, deixei mil mensagens no seu telefone. Como está sua mãe?
— Está bem, mas ameaçou greve de paella se você não vier visitá-la em breve.
— Está bem mesmo? — ouço preocupação na voz da minha amiga, e meu coração se aperta, pois sei que minha mãe foi o mais próximo que Kyra teve de figura materna. — Malinha?
— Está, sim. O médico dela explicou que, por conta da medicação, ela ficaria suscetível a doenças, a imunidade está baixa, então qualquer resfriado ataca com força.
Kyra suspira ao telefone, e eu abro um sorriso ao ver o quanto minha amiga durona é, na verdade, tão sensível quanto eu.
— Que bom! Fico feliz em ouvir isso e mais aliviada para te fazer um convite.
Faço careta, já prevendo que ela vai me meter em algum evento seu de final de ano, vestida de garçonete.
— O que você está armando, Kyra?
— Nada! — ela logo se defende, indignada. — Eu só queria companhia! Na véspera do Ano Novo acontecerá o Baile Branco e Preto dos Villazzas, e, como eu estou sem nenhum boy no momento, você podia ser meu par, o que acha?
— Kyra! — Rio. — Um baile? Sério?
— Baile? — mamãe logo se mete na conversa e pergunta lá da cama. — Por acaso é o baile dos Villazzas?
Fodeu! Minha mãe sempre amou bailes e conheceu a matriarca dos Villazzas tempos atrás, através de sua amiga, Cecília Novak. Certamente ela adorará a novidade, achará moderno eu ir acompanhando minha amiga, e eu não terei escapatória.
— É, mamãe, eu vou com Kyra — respondo resignada.
— Eu sabia! — Minha amiga ri ao telefone. — O traje branco é obrigatório para mulheres, então, abuse de cores em outros locais!
— Eu vou te matar, Kyra Karamanlis! — sussurro para que somente ela escute.
— Depois do baile; antes, quero usufruir de tudo o que planejei! Vai ser o evento mais incrível que você já viu!
Relaxo, percebendo que ela realmente está feliz e confiante.
— Tenho certeza disso, Kyra!
Nós nos despedimos, mas não retorno imediatamente para a cama, ao lado da minha mãe e do meu irmão, fico pensando em como é bom estar de volta. Realmente me sinto em casa aqui, com as pessoas que eu amo, ainda que tenha feito amigos na Espanha.
Penso no Diego e sinto um pequeno aperto no coração, um misto de saudade e remorso. Daniel me olha, curioso por eu estar parada no mesmo lugar, sem falar ou fazer nada, e reflito sobre o que ele me disse. Reconheço que eu recuei ante o pedido de casamento de Diego por ter esperança de voltar ao Brasil e encontrar Alexios mudado, porém ele não mudou e nem mudará jamais, mas isso não muda o fato de que ele ainda mexe comigo.
Diego e eu nos damos muito bem, somos amigos, companheiros, temos gostos parecidos. Enquanto eu estava na Espanha, longe do magnetismo e atração de Alexios, realmente pensei que pudesse amá-lo e ter uma vida com ele. Os momentos que passamos juntos foram maravilhosos, mas agora me questiono se, mesmo voltando para Madri, é justo manter essa relação.
O Uber me deixa em frente ao Villazza SP, e vejo a entrada principal do hotel cheia de pessoas bem-vestidas e penteadas. Ando na direção delas, questionando-me se os convites estão sendo verificados na entrada, mas me surpreendo ao ouvir um dos homens que está parado na entrada:
— Nós só queríamos comprar o convite, não conseguimos responder a tempo e...
— Senhor, o que me foi passado foi que esgotaram, eu sinto muito — um dos seguranças responde antes de se virar para mim, mas, vendo o convite em minhas mãos, abre a porta. — Seja bem-vinda!
Entro no saguão principal do enorme hotel e suspiro, apreciando todos os detalhes da construção e da decoração, orgulhosa por ter sido parte da equipe que ajudou a deixá-lo perfeito desse jeito.
O escritório de arquitetura que projetou o Villazza SP foi o dos Boldanis, e o arquiteto principal que assinou o desenho foi ninguém mais, ninguém menos que meu ídolo e professor, Julio Boldani. O italiano é fera demais nas suas linhas clássicas misturadas às modernas.
Eu ajudei o pessoal que compôs o projeto de decoração, pois estava me especializando e, por isso, trabalhei um tempo no Boldani. Foi ali que descobri que, por mais que papai fizesse pressão para que eu fosse uma arquiteta, eu queria mesmo era ser designer de interiores.
Subo as escadarias de mármore com corrimão e guarda-corpo de ferro fundido na cor ouro velho em arabescos e folhas e, no saguão da entrada do salão Royal, encontro a recepção do baile montada como se fosse uma bilheteria antiga de circo.
Sorrio ao pensar na Kyra, reconhecendo que minha amiga sabe como dar vida aos seus projetos de maneira perfeita, pois vi os desenhos quando almoçamos juntas anteontem e confesso que está tudo muito mais bonito do que a ilustração em 3D que ela me mostrou.
Olho em volta, procurando-a, pois combinamos de nos encontrar na entrada, mas arregalo os olhos ao ver Alexios, de smoking preto, vindo em minha direção.
Mesmo contra a minha vontade, minhas mãos gelam e meu coração dispara apenas por vê-lo, por notar o quanto ele está lindo com esse sorriso largo e os olhos brilhando.
Por que ele tinha que ter essa aparência e essa boca?!, penso na injustiça do mundo, indignada por ser tão comum, e ele...
— Samara Esther. — Bufo, pois só ele e minha mãe chamam-me assim. — Você está... linda!
Alexios sorri e me olha desde as unhas dos pés, pintadas e cutiladas, até o alto da cabeça.
— Linda! — repete como se não fosse possível que eu estivesse desse jeito.
— Oi, Alexios — cumprimento-o seca, tentando não dar importância ao fato de que ele parece ter tomado um soco só por me ver mais arrumada. — Estou esperando sua...
— Eu sei, foi ela quem me mandou ficar aqui de plantão te esperando. — Enrugo a testa, sem entender. — Kyra resolveu bancar a fada madrinha e ajudar uma amiga a ter seu baile com um príncipe encantado e, por isso, vai ter que trabalhar esta noite. — A expressão no rosto dele é de deboche ao falar do conto de fadas. — Então, restou a mim.
Puta merda, Kyra!
Pego o celular dentro da bolsa e mando mensagem para ela, mas tenho certeza de que, ocupada com o começo do baile, ela não irá ler. O que eu faço? Penso se devo aceitar fazer companhia ao Alexios ou se devo ir embora, afinal, só vim a esse baile por insistência da Kyra.
— Samara, eu sei que nossa amizade está um tanto estremecida por conta da distância e do tempo, mas... — Alexios me encara, e noto que ele está se esforçando para falar — eu gostaria que você me acompanhasse esta noite.
Minha boca fica seca ao ouvir isso, porque, mesmo com a distância, eu ainda consigo saber quando ele está sendo sincero. Alexios me quer ao seu lado esta noite, e isso é...
— Como nos velhos tempos, lembra? — ele complementa, e, mais uma vez, percebo o quanto sou iludida.
Nada mudou!
Imediatamente me lembro do meu baile de formatura do ensino médio, no qual ele foi meu acompanhante. Chegamos juntos, eu estava empolgada para dançar com ele a noite toda, arrumei-me para parecer uma mulher aos seus olhos e não mais a menina de cabelos revoltos que o seguia para toda parte quando criança.
Havia decidido que iria contar a ele o que sentia naquela noite e que, depois de ele se declarar também, iríamos fazer amor, e eu, aos 17 anos, finalmente teria minha primeira noite com o homem que amava.
Ledo engano!
Alexios dançou uma música comigo, depois foi para o bar, encheu a cara, sumiu com uma garota bem mais “servida” que eu e voltou para o salão todo amarrotado. Eu queria ir embora, mas ele acabou dançando (e sumindo) com mais umas três mulheres.
— Seu acompanhante te deixou sozinha, não é? — Marlon, um dos garotos que estava se formando comigo me perguntou, e só aí percebi que ele estava sentado à mesa comigo.
Começamos a conversar e, naquela noite, tive minha primeira experiência sexual. Não foi ruim, namoramos por um tempo, mas reconheço que ela só aconteceu porque Alexios não me quis. Ele simplesmente não me via!
— Samara? — ele me chama e me faz voltar à realidade.
Por Deus! Não sou mais uma garota de 17 anos, sou adulta, independente, com uma carreira bem-sucedida na Espanha e um dos homens mais gostosos de Madri ao meu lado!
— Vamos entrar! — decido e marcho até uma das “bilheterias”, onde recebo minha máscara preta e uma pulseira.
Alexios recebe as dele e ri ao me mostrar a máscara branca como a de O Fantasma da Ópera. Ah, merda!
— Você se lembra? — Ele ri. — Me obrigou a ver esse filme um milhão de vezes e sabia até as falas!
O desgraçado põe a máscara, ergue uma das sobrancelhas, dobra-se em reverência e sorri.
— Vamos logo com isso! — Saio de perto dele sem rir de sua gracinha, coração retumbando, a cabeça cheia de lembranças da nossa adolescência.
Quando as portas se abrem, perco o fôlego ao ver o que Kyra idealizou.
— Puta que pariu, minha irmã é foda! — Alexios fala ao meu lado.
Eu pulo de susto, não por causa do que ele disse, nem mesmo ao ver um dos artistas cuspindo fogo, mas tão somente por sentir a sua mão em minha cintura. Meu corpo inteiro aquece, a pele arrepia e aquela sensação que sinto desde que os hormônios despertaram em mim na adolescência volta a me tomar.
Atração! Química!
Não sei explicar, mas meu amor de criança transformou-se nisso quando me tornei moça, e a cada toque, cada resvalo, eu resfolegava. Sonhava com ele, acordava suada e sem saber o que estava acontecendo. Meu primeiro orgasmo com masturbação foi pensando nele, instintivo, depois de um sonho erótico e proibido.
Achei que, com a distância, principalmente depois que me envolvi com Diego, isso ia passar, mas parece que me enganei.
Olho-o e percebo que ele permanece alheio ao que me causa, sua atenção tomada pelos malabares que executam movimentos precisos na entrada do baile.
Respiro fundo.
— Vamos?
Ele assente sem me olhar, e seguimos juntos, passando entre os convidados que ainda se encontram de pé conversando ou bebendo no bar, em direção ao centro do salão, tomado de mesas e cadeiras reservadas.
— Onde nós...
Nem preciso terminar a pergunta, pois logo vejo Theodoros Karamanlis, acompanhado de uma lindíssima loira, a uma mesa com o sobrenome deles na placa de reserva. Eu não sou muito fã do irmão mais velho de Alexios, mas sempre fui educada com ele, então armo meu melhor sorriso e o cumprimento:
— Theo! Que bom vê-lo esta noite! — Olho para sua acompanhante agora mais de perto e sinto como se a conhecesse de algum lugar.
— Samara, essa é Valentina de Sá e Campos — Theodoros nos apresenta, e eu sorrio, reconhecendo os sobrenomes dela. — Valentina, essa é a Samara Schneider, uma incrível designer de interiores.
— É um prazer, Valentina! — saúdo-a.
— O prazer é meu, Samara. — Valentina sorri. — Nos conhecemos já?
— Eu acho que sim, embora não me recorde de onde pode ser.
A loira para a fim de tentar se lembrar, e eu ouço a conversa entre Theo e Alexios.
— Viu só esse trabalho da Kyra?
— Claro! — Alexios debocha do irmão. — Seria impossível não ver, já que estou aqui! Já fui até cumprimentá-la, mas está tão ocupada que não consegui nem falar com ela direito.
Só o suficiente para que ela o encarregasse de me acompanhar nesta noite! Kyra me paga!
— Imagino que esteja. Viu o Kostas? — Theo pergunta, mas não consigo ouvir a resposta de Alexios, pois Valentina volta a falar:
— Lembrei! — ela comemora. — Nos encontramos na festa de inauguração da loja da Miriam Benides, lembra?
Eu não faço a mínima ideia do que ela esteja falando, mas, mesmo que não esteja com nenhuma vontade de prosseguir com a conversa, sorrio e concordo por educação.
— Puxa vida, quanto tempo não vejo você por lá! — Valentina continua.
— Eu estava morando em Madri — informo antes de me sentar.
— Ah, eu adoro a Espanha!
Sorrio sem graça, percebendo que vamos conversar. Não quero ser mal-educada com ela, é só que não estou muito confortável em estar aqui neste baile, não depois de perceber que ainda quero Alexios e que não adiantou de nada impor distância.
— Família! — a voz debochada de Kostas interrompe a conversa de Valentina, e ela me pergunta baixinho quem é o homem abraçado a uma loira com um vestido branco tão justo e transparente que beira à indecência.
— Konstantinos... — sussurro antes de ele apresentar sua acompanhante a todos.
— Bruninha, conheça os Karamanlis! — Ele aponta para Alexios e para Theodoros. — Claro que você pode deixar seu cartão com eles depois, mas eu sou o mais bonito, não sou?
Ele faz a mulher girar em seu próprio eixo, e, pela primeira vez depois da tensão toda em que eu estava desde que vi Alexios, sorrio divertida. Kostas é uma figura! Ainda me lembro de quando ele morava no prédio, na cobertura de seu pai, e juro, se não fossem os olhos azuis e a voz, eu diria que não se trata da mesma pessoa!
— Já bêbado? — Theo pergunta a Alexios.
— E mais uma vez com acompanhante paga! — Alexios se aproxima de Theo e cochicha, e isso me surpreende. Não sabia que os dois estavam conseguindo ter uma relação tão cordial. — Estou achando que nosso querido irmão é do outro time.
Theo gargalha e nos olha sem graça.
— Perdoem-me, foi irresistível! — Tenta se conter e bebe mais do seu uísque. — Bom, certamente ele é arrogante e orgulhoso demais para “sair do armário”.
Quem? Kostas?! Olho para o homenzarrão com a prostituta e nego instintivamente com a cabeça. Não mesmo!
— Seria apenas mais um rejeitado pelo seu querido pappoús! — ouço Alexios dizer isso, e meu coração aperta. Olho-o, respiro fundo, lamentando profundamente por ele ainda se sentir rejeitado, percebendo que isso também não mudou.
Rejeição, abandono, violência o tornaram o homem que é. Sei disso, dei essas desculpas para seu comportamento por muitos anos. Toda vez que ele aprontava, eu usava isso para justificá-lo.
Até quando?, penso, olhando-o fixamente. Até quando ele deixará que os erros dos outros façam-no errar também?
— Você gosta muito dele, não é? — Valentina dispara, e eu desvio os olhos de Alexios. — Seus olhos brilham diferente ao olhar para ele.
— Somos amigos há muitos anos — disfarço.
— Bom, isso é muito bom, mas... — Ela ri. — Desculpe-me se estou sendo invasiva, mas seu olhar é de quem é apaixonada, não apenas uma amiga.
Dou um sorriso amarelo para ela, e Valentina fica quieta.
— Tudo bem aí? — Alexios me pergunta, e eu assinto. — O jantar já tinha sido anunciado antes de você chegar, então não deve demorar muito.
Resolvo conversar com ele normalmente, afinal, seria ridículo fazer birra na minha idade.
— Kyra estava muito ansiosa com o jantar desta noite. Um grande chef internacional, ela me contou, é quem está preparando tudo.
— Sim, está na programação. — Alexios lê o nome do chef francês, e eu não consigo deixar de olhar sua boca. Pego a taça de champanhe e a viro de uma só vez. — Uau! — Sorri e faz sinal para um garçom se aproximar com mais. — Minha acompanhante está sedenta.
— Estou. — Decido não discutir e bebo a outra taça. — E com fome também.
Alexios toca minha coxa por cima do vestido, mas logo tira a mão.
— O jantar não deve demorar — repete sério e se vira para olhar o outro lado do salão.
Fico um tempo olhando para minhas pernas, permitindo a sensação de brasa que a mão dele deixou em minha coxa passar, chateada demais por reagir assim a ele e continuar sendo praticamente invisível.
Que porra é essa que está rolando?
Essa pergunta retórica fica martelando minha cabeça enquanto tento prestar atenção em qualquer coisa neste maldito salão lotado que não seja ela. Eu só posso estar com algum problema, só pode! Samara sempre foi minha amiga, quase minha irmã. Eu estar aqui com uma maldita ereção – pela segunda vez esta noite, frise-se – só pode ser loucura!
Preciso de um médico! A loucura congênita dos Karamanlis começou a se manifestar em mim. Sentir tesão por Samara é quase... incestuoso!
Pego a taça com champanhe e a termino em uma só golada a fim de aplacar o fogo que apenas um toque em sua coxa me causou.
A verdade é que eu não esperava encontrar-me com ela nesta noite. Vim por insistência do Millos e, claro, por sua maldita manipulação eficaz ao falar da Kyra e do suporte a ela em seu primeiro grande evento. Cheguei junto aos primeiros convidados e a encontrei correndo de um lado para o outro, “armando” uma surpresa para sua amiga e funcionária, a gostosa da Helena, que, por sinal, está namorando o Bernardo Novak, um amigo de longa data.
Quando finalmente ela terminou todos os preparativos, foi à cozinha falar com o tal chef francês que a estava deixando nervosa, conferiu tudo com as bandas, DJ e artistas circenses é que me deu atenção.
— Oi, Alexios. — Sorriu cansada. — O baile nem começou direito, e eu já estou de um lado para o outro. — Ela espiou a fila se formando na recepção do evento. — Gostou da decoração?
Seus olhos verdes, como os meus, brilharam ansiosos. Eu cheguei perto dela, beijei sua testa e falei baixinho:
— Está tudo perfeito, Kyra. Parabéns, estou muito orgulhoso!
Ela suspirou e depois se afastou.
— Claro que está! Não tinha dúvida alguma disso. — E, do nada, pegou-me pela mão e me arrastou em direção ao salão. — Vem ver!
— Kyra, eu ainda não troquei meu convite e...
— Ah, Alexios, vem ver!
A decoração estava esplêndida, embora eu soubesse que, com os efeitos de luz e os artistas executando seus números, iria ficar ainda mais incrível. A banda, no palco ao fundo do salão, já estava se posicionando, e alguns funcionários de Kyra ajeitavam os últimos detalhes das mesas, arranjos florais ou acendiam as velas.
— Perfeito! — elogiei-a novamente.
— Você ainda não viu nada! — E deu aquele sorriso que eu sei que fode com a cabeça de qualquer homem. É duro ter uma irmã como ela, linda e sexy, e ver os caras babando em cima e não poder socar a fuça de nenhum. — Ah, preciso de um favor.
Estava demorando!
— Kyki, estou de smoking, mas ainda não sei segurar uma bandeja — sacaneei.
— Não, seu idiota! — Ela me estapeou as costas. — É meu par desta noite! Não vou poder participar do baile como havia previsto, então preciso que você faça companhia...
— Ei, ei, pode parar! Não vou ficar pajeando nenhum marmanjo não!
Ela rolou os olhos.
— Não é marmanjo, idiota! Posso terminar de falar? — Assenti. — É a Samara. Convidei-a a vir comigo esta noite e não quero que fique sozinha.
Samara Esther Schneider!
Fiquei um tempo olhando para Kyra, tentando entender se ela tinha feito isso de propósito, para tentar nos reaproximar, afinal, sempre fomos um trio de amigos/irmãos, e, com a relação entre mim e Samara estremecida, Kyra devia estar um tanto confusa.
— Sem problema. — Sorri. — Você avisou a ela?
— E Samara atende aquele celular? — Ela bufou. — Você terá que esperá-la lá fora. Se importa?
— Não — fui sincero.
— Ótimo, agora vaza, porque ainda tenho coisas a fazer antes de abrirmos o salão. — E, do mesmo jeito que me arrastou, colocou-me para fora.
Fiquei um bom tempo esperando por Samara do lado de fora, o que foi surpreendente, pois ela sempre foi pontual. Vi o salão ser aberto, o baile começar, o discurso do doutor Andreas Villazza, o anúncio do jantar, e nada de a minha (ex?) melhor amiga chegar.
Estava olhando para um detalhe na construção do hotel, executada pela Novak Engenharia, quando meus olhos foram atraídos para o topo da escadaria. Não é exagero eu dizer que meus olhos foram atraídos, porque foi como se um ímã puxasse minha atenção para aquele ponto.
Engasguei-me com minha própria saliva ao ver Samara. Sim, ela estava linda, mas não foi o vestido branco ou o penteado elaborado que chamou minha atenção, foi ela.
Ela é linda e, por conta da nossa amizade e do receio que tinha de machucá-la, parei de perceber sua beleza e não notei a mulher que se tornou.
Fiquei parado, tomando nota de tudo, como se a estivesse vendo pela primeira vez, sentindo um incômodo por estar olhando-a com lascívia, afinal, era a Samara!
Balancei a cabeça, tentando voltar a pôr os neurônios no lugar, justificando para mim mesmo que isso aconteceu por causa dos anos distantes, mesmo sabendo que isso era pura enganação, pois ela não mudou nada nesses últimos anos.
O que aconteceu, então? Não sei, ainda estou confuso, tentando entender por que fiquei excitado com o perfume dela ou por que meu pau acordou apenas por eu a ter segurado pela cintura a fim de andar com ela até a mesa.
Tive que ficar parado, olhando para os malabares sem vê-los realmente, com cara de paisagem, fingindo que nada estava acontecendo. Eu não queria que ela soubesse que eu estava reagindo daquela forma a ela; certamente ficaria horrorizada. Sempre fomos como irmãos!
Tentei me conter, agradeci por Theodoros e sua companhia já estarem à mesa, fiquei um tempo distraído conversando com meu irmão mais velho, mesmo que isso fosse uma dor no saco. Não sou tão rancoroso quanto o Konstantinos sobre o Theo, apesar de concordar com meu irmão sem noção sobre ele nos ter abandonado nas mãos do louco Nikkós, mas o que Theodoros poderia fazer? Eu mesmo estive nessa situação quando pude sair de casa, mas não tinha como tirar Kyra dele, por isso fiquei.
O DJ que executa as músicas antes do jantar e da banda ao vivo coloca My Immortal, de Evanescence, e é impossível não olhar para Samara.
— Sua música preferida na adolescência — comento com ela.
Samara sorri e balança a cabeça, olhando os casais indo para a pista de dança.
— Tocou na minha formatura...
— Eu sei, eu queria dançar com você, mas você não parecia muito a fim, então fui beber.
Ela arregala os olhos e me encara como se não soubesse do que eu estou falando. Provavelmente nem se lembra, estava nervosa e ficava repetindo o caminho todo dentro do carro que a gente nem deveria ter ido, que era besteira.
Não somos mais adolescentes!
— Quer dançar? — inquiro impulsivamente e estendo a mão para ela.
Samara olha para minha mão por um tempo, mas aceita.
Porra, que loucura!
Ela pega minha mão, e minha vontade é de puxá-la para mim e beijar sua boca. Foda! Não consigo mais refrear meus desejos; sempre consegui com ela, por isso não entendo o que está acontecendo agora. Não é qualquer mulher aqui comigo, indo para a pista de dança para ficar de corpo colado no meu – porra! – é a Samara!
Samara!
Minha amiga de infância!
Quase uma irmã...
MERDA!
— Está tudo bem? — ela me pergunta, e eu tento relaxar, já que estou dançando como antigamente: a um palmo de distância dela.
— Sim, tudo. — Tento dar meu famoso sorriso, mas não rola, então pigarreio. — Estou com sede, calor... acho que é essa decoração toda.
— Pode ser. — Ela desvia os olhos de mim. — Quer voltar para a mesa?
Quero!
— Não, a não ser que você...
— Tudo bem.
Ela se solta de mim no exato momento em que a música muda para um instrumental baixo e as luzes se acendem.
— O jantar. — Aponto para os garçons em fila e os convidados voltando aos seus lugares. — Vamos?
Salvo pelo gongo do cozinheiro!, penso ao ajustar disfarçadamente minha calça para não andar de pau duro e assustar a todos por causa da claridade do salão.
Samara bebe mais uma taça de champanhe, e eu rio, já preocupado. Nunca a vi beber tanto! Sempre foi séria, careta, estudiosa e boa filha. Ela nunca fazia nada de errado, nunca decepcionou os pais, fazia tudo o que eles queriam... quer dizer, tudo menos se afastar de mim.
— Acho que já quero ir — ela comenta de repente. — Vou chamar um Uber...
Levanta-se um pouco tonta, e eu a amparo pela cintura.
— Você quase não comeu, e bebeu muito — falo, e ela levanta uma sobrancelha atrevida e irônica para mim. — Não estou dando lição de moral, mesmo porque não tenho nenhuma, apenas constatei um fato.
Ela ri.
— Você não tem nenhuma moral mesmo! — arrasta a última palavra. — Sempre foi um galinha, essa cara de santo aí só engana as outras!
Gargalho.
— Elas não ficavam enganadas por muito tempo, pode acreditar!
Samara funga, indignada, e fecha os olhos.
— Eu acho que realmente bebi demais.
Olho em volta; o salão já está praticamente vazio, apenas um ou outro convidado conversando em pequenos grupos. Theodoros se despediu, com Valentina grudada em seu pescoço, há mais de uma hora, e Kostas nem jantou conosco à mesa, provavelmente ficou no bar com sua acompanhante.
Inicialmente eu tinha pensando em esperar tudo terminar para acompanhar Kyra até em casa, mas, com Samara no estado em que se encontra e com tudo aqui ainda para ser desmontado, é melhor eu levar minha amiga para casa – aproveitando que moramos no mesmo prédio – e voltar mais tarde para acompanhar minha irmã.
Pego a pequena bolsa que ela trouxe e, ainda abraçado a ela, caminho para a saída.
— Alexios... tudo está rodando...
— Muito natural depois de todo aquele champanhe.
Ela suspira e joga a cabeça para trás.
— Você é um chato, sabia? Não posso entender o que todas aquelas mulheres viam em você!
— Imagino que não possa mesmo — respondo-lhe, sabendo que vai se irritar.
Samara sempre disse que eu respondia politicamente ou me evadia quando sentia que o assunto poderia ir para alguma direção que não me deixaria confortável. Ela tinha razão na maioria das vezes, mas, neste momento, só estou a fim de irritá-la.
— Você é um babaca, Alexios Angelos!
Opa! Falou meu nome todo! Rio de sua irritação bêbada, talvez por estar um tanto alto como ela, mas sóbrio o suficiente para carregá-la em segurança até a calçada.
Não vim de moto ou carro sozinho exatamente por saber que iria beber – principalmente para aguentar sozinho a companhia dos meus irmãos à mesa –, porém previ que a saída do baile estaria um inferno e que seria difícil conseguir um táxi ou um carro de aplicativo que estivesse por perto, por isso deixei o Cris, que me trouxe, de sobreaviso no estacionamento.
Mando mensagem para ele e espero até meu carro aparecer. Abro a porta de trás e coloco sobre o banco uma Samara parcialmente adormecida por cachaça francesa.
— Essa foi nocaute! — Cris ri quando eu entro. — Para onde?
— Para o Castellani. — Ele dá um sorrisinho malicioso e pisca. — Ela é minha vizinha, Cris, sossega.
— Falou, chefinho.
— Para de merda e dirige.
Ele tenta sair da entrada do hotel, mas é praticamente impossível com o número de carros que também tentam deixar o local. Olho para trás, confiro que Samara está mesmo apagada e fecho os olhos, recostando-me contra o assento do carona.
— Foi uma festança, hein? — Cris volta a falar. — Só vi entrar filé, pena que a maioria estava acompanhada.
— Geralmente isso não é problema — comento, mordaz. — Já comi muita mulher no banheiro de recepções como essa enquanto o marido conversava com os amigos e falava de negócios.
Cris gargalha.
— Você nunca valeu nada, Lex!
Não retruco o apelido ridículo com que ele me chama e me faz parecer o vilão do Homem de Aço. É pura perda de tempo ralhar com Cristino, então simplesmente ignoro, cansado, meio zoado e com tesão frustrado.
Ele e eu nos conhecemos há alguns anos, quando visitei um dos prédios da Karamanlis que foram invadidos por movimentos pró-moradias. O homem era motorista de profissão, com anotação em sua carteira de trabalho em várias empresas, que juntou todo o dinheiro que tinha, investiu em um carro e um ponto de táxi, mas foi engolido e enxotado pelas grandes cooperativas.
Assim, quando nos conhecemos, ele estava sem casa, sem carro, sem emprego e com uma enorme dívida, fazendo bicos aqui e ali. Ajudei-o primeiro a conseguir emprego, depois por fim saiu da invasão, e, nesse ínterim, nos tornamos amigos.
Ano passado, quando a filha dele nasceu, quis que eu a apadrinhasse, mas educadamente declinei, explicando que, mesmo honrado, não poderia aceitar, pois sou ateu, e o apadrinhamento de uma criança tem a ver com questões religiosas, tem um sentido específico, e eu não seria a pessoa certa para isso. Ele entendeu, mas a garotinha já me chama de Didi (seu jeito fofo de bebê de chamar seu dindo, mesmo que oficialmente eu não o seja).
Acho que cochilei também até o Castellani, pois, quando me dei conta, já estávamos na garagem. Cris me perguntou se eu queria ajuda com Samara, mas agradeci e o mandei para casa. Ele não trabalha como meu motorista diariamente, mas sim na Karamanlis, transportando quem quer que precise fazer serviços externos. Contudo, toda vez que preciso, chamo-o para ganhar um extra.
Há muito parei de combinar bebida e direção, não por mim, mas por medo de acontecer algum acidente e eu acabar prejudicando outras pessoas.
Chamo o elevador, e somente dentro dele é que a bela adormecida parece voltar a si.
— Alexios... — Samara olha em volta. — Este é o elevador do Castellani?
— Parece que sim — respondo-lhe divertido.
Samara bufa.
— Só desmaiada é que eu aceitaria vir com você na direção nesse estado em que se encontra.
— Estou melhor que você. — Ela se encosta contra o espelho, olhos fechados e um enorme sorriso bêbado no rosto. — Além do mais, viemos com motorista.
— Bom... — Samara fala devagar e lambe os lábios como se estivessem secos. O efeito no meu pau é instantâneo. Sinto meu corpo inteiro acender, minhas mãos formigam de vontade de tocá-la. Sua pele parece brilhar, atraindo-me como uma chama atrai uma mariposa.
Tento me afastar, pensar em outra coisa, mas o espaço reduzido do elevador não ajuda. As paredes parecem se fechar cada vez mais, aproximando-me de Samara, apertando-me contra ela, espremendo meu corpo...
— Alexios... — ela geme meu nome, e eu me espremo mais, fazendo-a grudar contra o espelho. O seu perfume inebria meus pensamentos, a pele, tão quente e macia que a sinto mesmo por baixo do vestido, me enlouquece. Preciso provar o sabor de sua boca, conferir se o hálito quente e um tanto etílico se confirma em sua saliva.
Sim!
Agarro-a com mais força, minha ereção pressionada contra sua barriga, minha boca correndo em seu pescoço. Tudo parece congelar à nossa volta, não existe mais tempo e nem espaço, apenas o vácuo e nós dois dentro dele, em chamas.
Lábios nos lábios. Meus dedos esfregam sua nuca, a pele arrepia, os pelos eriçam, meu corpo treme. É a viagem mais louca que eu já fiz sem ser através de uma substância química entorpecente... não! É química ainda, é uma droga viciante, é tesão!
Devoro sua boca sem nenhum pudor ou impedimento. Ela me acolhe, abre-a para minha exploração, prende meus lábios entre seus dentes e morde com força, despertando com a dor ainda mais meu desejo.
Enfio os dedos no meio do seu penteado, seguro o cabelo com força, e ela retribui o desespero cravando as unhas nos meus ombros.
Estou pronto para fodê-la, minha cabeça já trabalha uma forma de abrir o zíper da calça social, sacar meu pau e buscar o caminho de sua boceta, que, a julgar pela forma com que ela come a minha boca, já está molhada e quente.
Um pigarrear me faz sobressaltar, e eu me afasto dela o mais rápido possível. Um casal de idosos também vestido em black tie entra no elevador no saguão do prédio, sinal de que o elevador subiu e desceu de novo enquanto nós dois quase nos comíamos dentro dele.
Olho para Samara, mas ela não parece constrangida ou assustada, apenas passa a mão pelos lábios e me encara, sua expressão cheia de perguntas e curiosidade.
Caralho, o que eu estou fazendo?! É a Samara, minha amiga, aquela que eu sempre quis manter longe desse meu lado sem vergonha! Puta que pariu!
Espero o casal descer em seu andar e, assim que as portas se fecham, respiro fundo.
— Desculpa, Samara, acho que estou mais bêbado do que imaginei a princípio. — Não tenho como olhá-la, dividido entre o constrangimento e o desejo ainda pulsando na minha calça. — Somos amigos, eu não deveria atacar você dessa forma, me des...
— Para! — sua voz soa magoada, e eu tenho vontade de socar a cabeça contra o espelho. — Não precisa dizer mais...
— Eu prometo que isso não voltará a acontecer. — Finalmente a encaro e fico fodido ao ver sua expressão confusa. Ela parece não ter gostado do que aconteceu, deve estar achando que eu sou um filho da puta aproveitador. — Você é minha amiga, Samara, mesmo depois dessa distância, eu ainda a vejo como se fosse minha irmã e...
— Chega! — ela grita, e as portas do elevador se abrem no seu andar. — Você tem razão, foi um erro e não deve voltar a acontecer!
Ouvir isso é como um balde de água fria, mesmo reconhecendo que é o certo.
— Eu não quero que isso afete novamente a amizade que nós temos e...
Samara sai pisando duro do elevador sem olhar para trás. Minha vontade é de correr atrás dela, voltar a encostá-la em alguma parede e beijá-la novamente até que perca a razão ou eu alivie esse tesão indesejável que estou sentindo.
As portas se fecham, e eu, ao invés de apertar o botão do meu andar, mando o elevador de volta para o térreo e chamo um Uber.
Preciso trepar!
— Essa sua cara de cachorro cagando na chuva é ainda ressaca do baile? — Kyra me pergunta, sentando-se ao meu lado na rede que ela tem em sua varanda. — Quer café?
Resmungo ainda com os olhos fechados:
— Quero paz!
Ela ri.
— Isso está em falta por aqui hoje, passa na semana que vem... — Encaro-a, puto com a piadinha. — O que aconteceu?
Não respondo, meus olhos fixos no topo do prédio do outro lado do parque. Balanço a cabeça, decidindo ser mais covarde do que tenho sido desde a madrugada do dia primeiro de janeiro e fecho os olhos para tentar nem pensar na confusão que arrumei.
— Você não deveria estar trabalhando hoje? Ou eu? — Kyra volta a me importunar, mas continuo mudo. — Mano, você continua o mesmo chato da porra de sempre! Fica aí com essa cara de Maria do Bairro e não abre a porcaria da boca para me contar o que diabos você fez dessa vez!
— Obrigado pela confiança em mim! — retruco irônico.
— Ah, boquinha para ser mal-educado comigo você tem! — Ela me cutuca o ombro, mas depois suspira e deita a cabeça nele. — Você sabe que faz merda, mas que eu estou aqui, disposta a te ouvir e te ajudar a limpar os cagaços. Somos uma dupla, você e eu, sempre fomos e sempre seremos.
— Costumávamos ser um trio... — assim que eu comento, imediatamente me arrependo, pois Kyra salta da rede – quase me derrubando no percurso – e emite um ensurdecedor: “ahá!”.
— Eu sabia que tinha acontecido algo na madrugada do baile! Samara está estranha, esquiva, e isso não é o natural dela. Que merda você aprontou? — Continuo ignorando-a, sem nenhuma disposição para contar sobre o beijo, o amasso e a confusão que isso criou em mim. — Alexios! — Minha irmã começa a pirar por causa do meu silêncio, mas, se me conhece um pouco, já deve imaginar que eu não irei abrir a boca para falar desse assunto. — Está certo! Você e sua maldita boca de siri. — Volta a se sentar, mas dessa vez não se deita em mim. — Alex, ela é nossa amiga, não a magoe, ok? Samara merece ser feliz, e esses anos que passou na Espanha foram ótimos para ela. Eu morria de saudades, mas estava feliz por ela estar realizada trabalhando com o que ama fazer, com um puta gato espanhol lambendo seus pés e — abro os olhos, mas Kyra não se freia — querendo formar família com ela.
Sento-me bruscamente, e Kyra balança.
— Como assim formar família?
— Ele a pediu em casamento. — Surpreendo-me, mas tento não reagir, não demonstrar. — Deu-lhe um lindíssimo e caro anel de diamante e está esperando pelo retorno dela.
Essa informação, apesar de ter me pegado de surpresa, não é nenhuma novidade. Sempre achei que algum homem de sorte iria conquistar o coração da minha amiga de infância e tê-la para sempre. Samara é a pessoa mais leal que eu conheço, mais incrível, merece muito ser feliz ao lado de alguém que valha a pena.
— Ela não estava usando anel... — penso em voz alta.
— Ainda não falou com os pais dela... — Kyra olha fundo nos meus olhos, procurando qualquer reação minha, mas sei que não irá encontrar nenhuma. Há muito aprendi a sentir sem demonstrar ou a mostrar apenas o que eu quero que os outros vejam. — Vocês não conversaram ontem?
— Acho que ainda não conseguimos estreitar os laços de amizade novamente.
— Hum... — Ela olha para seu relógio no pulso e suspira. — Preciso ir para o trabalho, vai ficar aqui? — Assinto. — Eu tenho a sensação de que você está se escondendo, só não faço ideia do quê.
Ela entra no apartamento, e novamente olho para o alto do Castellani, do outro lado do parque. Daqui do prédio onde ela mora, consigo ver o heliponto no telhado, algumas janelas da cobertura onde Cadu mora, o andar debaixo, onde Bernardo Novak reside, e uma pontinha da minha varanda. O apartamento de Samara fica uns andares abaixo do meu, então não tenho como vê-lo, mas somente por saber que ela está lá dentro, sinto vontade de ficar aqui, bem longe.
Não me entendam mal, não estou fazendo isso porque não quero que ela se aproxime de mim, pelo contrário, estou aqui, exilado como um covarde no apartamento da minha irmã mais nova, porque, se pisar no Castellani, sei que não conseguirei me manter distante dela.
Mesmo depois da maratona de sexo que fiz com uma mulher com quem já havia saído antes das festas de final de ano, não tenho segurança de estar no mesmo ambiente que Samara e me controlar para não a pressionar contra alguma parede e fodê-la sem ao menos dizer um cumprimento.
Definitivamente não vou fazer isso, não com ela!
Muito menos depois de saber que há alguém que a merece, que está à altura dela, esperando sua volta.
Rio de mim ao pensar que estou aqui, evitando-a, quando na verdade ela é quem deve estar querendo ficar a quilômetros de mim. Talvez esteja até indignada e ofendida pelo modo com que a toquei e beijei sem nenhum aviso, como se fôssemos um casal qualquer que se encontrou na balada para trepar, e não duas pessoas que são amigas desde que se entendem por gente.
Não entendo por que perdi o controle do tesão que sempre reprimi, mas me conheço o suficiente para saber que ele não passou. Raramente sinto aquela química com alguém. Era como se meu corpo estivesse sendo atraído, como se algo nela estivesse provocando reações em mim que eu não conseguia controlar. Foi animal, carnal, a famosa atração de pele que muita gente procura, mas pouca tem.
E eu tive justamente com minha melhor amiga!
Kyra volta a aparecer no meu campo de visão, agora com os belíssimos cabelos escuros, longos e fartos soltos, o rosto maquiado e uma roupa de deixar qualquer homem lobotomizado.
— Esse bode aí está foda para passar, hein? — comenta antes de se abaixar para pegar um guarda-chuva no móvel ao lado da rede. — Têm umas sobrinhas do baile na geladeira, cerveja – por favor, não tome todas, mas se tomar, as reponha –, e meu chuveiro tem muita pressão e água fresca. — Pisca para mim, e eu franzo a testa, sem entender. — Você está meio rançoso.
— Vai se ferrar, Kyra — ralho com ela, mas rio.
Ela se aproxima e beija minha testa, e isso, sim, arranca um sorriso sincero meu. Gosto que ela confie em mim o suficiente para me tocar, para recostar-se no meu ombro ou mesmo ficar abraçada, pois sei que ela não é assim com todos, principalmente com homens em geral.
— Fica bem e ouça meu conselho... — Ela anda até a porta antes de complementar: — Tome um banho, você cheira a álcool e a perfume vagabundo.
Levanto o dedo do meio para ela e a escuto ir gargalhando apartamento adentro até a porta de entrada bater. É, eu bebi bastante, sim, devo estar exalando álcool pelos poros, e o perfume barato se impregnou em minha roupa ontem, quando a recoloquei depois de mais de 12 horas nu, e a mulher me abraçou toda perfumada.
Saí do apartamento dela e vim direto para o da Kyra, torcendo para que minha irmã estivesse em casa e sozinha a fim de que eu pudesse cair aqui nesta rede onde estou e tentar pôr a cabeça certa no controle do meu corpo.
O telefone fixo toca alto, afastando meus pensamentos, e aproveito para tomar o banho aconselhado pela minha irmã viciada em limpeza. Entro na sala desabotoando a camisa branca que usei com o smoking – pois é, ainda estou com a mesma roupa do Ano Novo em pleno segundo dia do ano – e noto que não faço ideia de onde estão o paletó e a gravata-borboleta.
A primeira foto que vejo ao entrar no quarto de Kyra é uma que tiramos juntos – Samara, ela e eu – na formatura da minha irmã. Eu fui o par dela, então estava de smoking, e as duas, de vestido longo, maquiagem e penteado. Caminho até o aparador e pego o porta-retratos, focando em Samara e me perguntando como eu conseguia me manter longe do mulherão ao meu lado. Era uma beleza diferente da minha irmã, Samara tem o olhar doce, sorriso largo, nenhum mistério, seu rosto expressa suas emoções, sua sinceridade.
CONTINUA
Sua pergunta me deixa paralisada, completamente sem condições para lhe responder. Por que ele me procuraria?! Porque somos amigos desde que nasci? Porque estive ao lado dele em todos os momentos? Porque ele tomou um porre, apareceu lá em casa, chorou no meu ombro, beijou-me e depois fingiu que nada tinha acontecido?
Respiro fundo para controlar o volume da voz e não gritar que ele é um idiota, mas, antes que eu abra a boca, Kyra aparece esbaforida com um telefone na mão.
— Ei, Malinha, você está com seu telefone na bolsa? — Alexios olha para a irmã, puto por ela estar nos interrompendo, e eu franzo a testa, sem entender a pergunta dela. — Seu celular! — Ela bufa... — Seu irmão acaba de ligar para o meu telefone. — E balança o aparelho.
Arregalo os olhos, meu coração dispara, e logo penso em mamãe, que vi apenas um pouco ontem, quando fui buscar o Godofredo. Pego o telefone e confiro as ligações perdidas. Noto Alexios se afastando, mas não me importo; ele continua o mesmo egoísta de sempre.
Samara Schneider está de volta!
Mastigo mais um pedaço do pernil que Kyra serviu como opção de carne na ceia de Natal e não consigo deixar de pensar na volta daquela que foi minha grande amiga e companheira.
Até hoje não entendo o que aconteceu para que ela tomasse a decisão de ir estudar na Espanha sem falar nada comigo. Claro, eu sabia que tinha a possibilidade, afinal, havia anos o pai dela pressionava por isso, para ela ir estudar arquitetura clássica na terra de Gaudí14. No entanto, para minha total surpresa, em vez de ir morar em Barcelona, Samara foi para Madri.
Eu, que até então me considerava seu melhor amigo, só fiquei sabendo desses detalhes todos porque Kyra me contou depois que fui atrás dela para saber o paradeiro de Samara.
Pego a taça com água para ajudar a engolir a comida, pois estou com um aperto na garganta desde que a vi. Eu tinha acabado de sair da sala de reuniões de Kyra depois de um ménage espetacular com Valéria e Priscila, mais animado para encarar a noite especial, sem imaginar a grande surpresa que encontraria no salão e que quase me fez tropeçar em meus próprios pés.
Assim que meus olhos bateram nela, assustei-me, pois a danada da Kyra não havia me contado que Samara tinha voltado. Tentei um sorriso e uma aproximação amigável, como se ela não tivesse me abandonado por longos três anos sem nenhuma notícia. Ela está diferente, ainda mais bonita do que eu me lembro, mas tentei não reparar muito e ser o amigo de sempre.
Nada disso adiantou, pois, ao que parece, Samara desejou que eu corresse atrás dela, que a procurasse e reestabelecesse contato. Como eu poderia imaginar algo assim? Não sou adivinho! Ela some sem nenhum motivo e ainda se sente no direito de ficar puta por eu não ter tentado contato?
Quem entende a cabeça das mulheres?!
— Sua amiga foi embora cedo — Millos comenta ao meu lado. — Será que houve algum problema com a mãe dela?
Olho para meu primo, sentado ao meu lado à mesa, e ele entende meu total desconhecimento do assunto.
— A mãe dela, dona Ana Cohen, está em tratamento contra um linfoma. — Millos bebe mais chope. — Você não sabe nada sobre a vida da sua amiga?
— E você? Como sabe?
O filho da puta apenas dá de ombros, evasivo como sempre, adorando estar sempre um passo à frente de todos. Millos é um sujeito estranho. É o único que consegue interagir com todos nós sem tomar partido e sem revelar nada da vida pessoal de ninguém, nem mesmo da sua. Somos amigos, nos damos bem, mas eu sei pouco sobre ele, sobre suas atividades, e o máximo que conheço de sua vida pessoal é que tem um passado fodido como o meu, frequenta alguns clubes de sexo, tem uma amiga que por sinal é uma gostosa do caralho – mas nunca me deu mole, infelizmente – e só.
Como profissional, o homem é uma verdadeira coruja! Quieto, observador, parece que consegue olhar em 360 graus, além de ser um caçador de informações inigualável. Não há nada que passe despercebido por ele, e o que expõe ou o que fala, tenho certeza de que é o mínimo do que sabe. Por isso, todo cuidado é pouco quando o assunto é Millos Karamanlis, porque o desgraçado é um manipulador de mão cheia!
— Eu não sabia que dona Ana está doente, não vejo os pais de Samara há anos — contesto-o. — Espero que nada grave tenha ocorrido.
— Não vai ligar para saber? — Millos volta a questionar.
Franzo as sobrancelhas, encarando-o, tentando entender o motivo pelo qual ele está tão interessado no assunto.
— Não — respondo seco e volto a comer, mesmo com o questionamento dele na cabeça. Para mim o assunto acabou! Samara já demonstrou que não quer papo comigo por algum motivo, e, mesmo chateado com isso, devo respeitar a decisão dela. Millos é um manipulador e sabe que esse é um assunto que me atinge diretamente, por isso tocou nele.
Não preciso ligar para Samara, como não liguei para ela durante todo o tempo em que esteve fora, mas isso não quer dizer que eu não queira saber o que está acontecendo. Kyra sempre foi minha fonte de informações sobre ela e, caso tenha que ser assim, continuará sendo.
Termino minha refeição, fico mais algum tempo com Kyra e seus convidados, brindo ao sucesso do negócio dela e logo depois vou embora. Tinha pretensão de ir para casa, mas, no meio do caminho, uma mulher com quem eu já saí algumas vezes me manda uma mensagem dizendo que está na cidade, e vou encontrá-la.
Dia 26 de dezembro, pior dia de trabalho do mundo, certamente! Rio ao passar por mais dois engenheiros com cara de ressaca ou, talvez, de quem comeu demais e agora passa mal do estômago.
— Melhor colocar a lixeira perto! — passo, sacaneando meu colega de trabalho, Pedro, engenheiro químico. — Se emporcalhar a sala, vai ter que limpar você mesmo.
— Porra, Alexios, fala mais baixo! — Ele põe a mão na cabeça.
Gargalho e me sento à minha mesa, lotada de projetos, planilhas e minha coleção de lápis. É, eu coleciono lápis! Cada um tem a coleção que lhe cabe, não é?
Ligo o computador, olho para meu caderno de tarefas e arregalo os olhos ao ver um nome que eu não imaginava rever anotado lá – por outra pessoa.
— Ethernium? — questiono olhando para o Pedro.
— Sim! Acabamos de saber, mas o CEO lá da Karamanlis vai querer conversar com você, certamente.
Bufo ao pensar em subir até o Olimpo para conversar com Theodoros, sem esquecer as discussões que tivemos nas últimas semanas por conta de seu egocentrismo e insensibilidade com os funcionários da casa.
Sua mania de pensar que é Deus, inabalável, inatingível e perfeito me irrita, principalmente porque sei que ele não é nada disso, apenas a porra de um filhinho de vovô mimado, que sempre achou que podia fazer qualquer coisa que quisesse sem pensar nas consequências, que o velho grego limparia suas cagadas.
Admito, o velhote sempre fez tudo para seu neto querido. Entretanto, não pôde limpar a merda que Theodoros deixou para trás, apenas jogou-a para debaixo do tapete, limpou a consciência do seu netinho querido, que seguiu a vida como se nada tivesse feito e deixou o resto se fodendo sem se importar o mínimo.
Theo é arrogante, e eu não tenho saco para lidar com gente assim.
Ouço passos, um poc-poc característico de saltos, e em seguida a voz de Lia, outra engenheira que trabalha na minha equipe direta.
— Bom dia! — sua voz soa animada. — Ah... sem Papai Noel de chocolate este ano! — ela resmunga, e eu a vejo procurando sobre sua mesa. — Poxa, Alex, você já foi mais generoso!
— Eu?! — Começo a rir. — Você realmente me imagina comprando e colocando chocolate em formato de Papai Noel nas mesas dos outros? — Ela faz careta e nega. — Eu achava que era você!
— Por quê? Só porque sou mulher?
Rolo os olhos.
— Não, porra, porque você é viciada em chocolate!
— Ele está certo, Lia! — Pedro se mete na conversa em minha defesa. — Eu também achava que era você por causa disso.
Ela se senta frustrada por não ter encontrado o presente do “Papai Noel” misterioso da Karamanlis.
— Bom, não sou eu, e eu contava com isso! Não falha por anos! — Olha em volta para as outras estações de trabalho, ainda vazias sem os profissionais. — Ninguém recebeu?
Nego, e Pedro faz o mesmo.
— Estranho...
— Coisas estranhas têm acontecido por aqui — digo e lhe estendo meu caderno com a anotação da Ethernium.
— O quê? De novo? — Ela geme. — Esses caras da Ethernium são uns malas! Sério, Alexios, eu não vou aguentar gracinhas pra o meu lado de novo não!
— Eu disse que você devia ter respondido a ele. — Dou de ombros. — Mas agora sabe que tem meu total apoio! Se alguém da equipe deles fizer piadas machistas de novo, responda.
— Quem é o machista? Que vou com você dar uma surra nele. — Eliane chega já mostrando as garras – que garras! Minhas costas sofreram com elas – e se senta em sua estação. — Bom dia, feliz Natal, foi tudo ótimo! Agora, silêncio, porque ainda estou agarrada a um cálculo estrutural que não tem me deixado dormir. Obrigada. De nada.
Pedro começa a rir, e Lia só balança a cabeça. Eliane é assim, direta e sem rodeios, por isso mesmo achei-a ideal para o trabalho pelo qual é responsável. Nós nos conhecemos em uma balada, transamos, depois voltamos a nos encontrar na entrevista dela aqui na K-Eng tempos depois. Nunca mais voltamos a trepar, mas conseguimos construir uma relação de trabalho quase perfeita. Sei que posso contar com ela para qualquer coisa aqui dentro.
Tenho mais duas pessoas na minha equipe: Evandro e Michel, mas os dois estão de férias e ainda não retornaram. Não é normal dois membros da mesma equipe saírem em férias juntos, mas, como eles são casados, a lei lhes garante esse direito.
A K-Eng não é formada apenas pela minha equipe de engenheiros em suas especialidades, a verdade é que cada um aqui gere suas próprias divisões. O Pedro, por exemplo, é engenheiro químico, e na divisão dele estão químicos industriais, técnicos em química e outros engenheiros dessa área. Já a Lia é engenheira ambiental, e, dentro de sua divisão, há biólogos, gestores ambientais e engenheiros sanitaristas. A Eliana trabalha com projetos, e ela coordena outros engenheiros, arquitetos e projetistas. O Michel faz toda a parte de planilhas e medições, e o Evandro é responsável pelas operações, é quem lida com empreiteiros, clientes e atua também como fiscalizador de obras.
Além do corpo técnico da K-Eng, a empresa, que é uma subsidiária da Karamanlis, ainda tem setores administrativos e financeiros, e eu, como CEO dessa bagaça aqui, sou quem comanda essas áreas.
O único setor que dividimos com a Karamanlis, infelizmente, é o jurídico, por isso aturo muito a prepotência inglesa do Konstantinos e seu humor ácido. Geralmente não tenho paciência com ele, zoo com sua cara ou apenas o ignoro. Ele não é bem quisto por ninguém da minha equipe, principalmente pelas mulheres.
— Por falar em machismo... — Lia volta a falar. — Será que a Kika não vai voltar mais não?
Dou uma risada por ela ter entrado no assunto justamente quando eu pensava no meu irmão machista.
— Está um silêncio total na Karamanlis — Eliana se pronuncia. — Dá até medo de andar pelos corredores, clima pesadão!
— A Kika era incrível, né? Gata, alto-astral, competente — Pedro lamenta. — Uma pena que tenha perdido a cabeça e tenha sido mandada embora...
— Opa! — Eliana o interrompe. — Ela se demitiu!
— Enfim, está desempregada depois de ter ganhado uma puta promoção para a gerência.
— Eu a preferia à Malu Ruschel. — Lia treme toda. — Aquela mulher congelava até meu sangue só de estar perto dela.
Definitivamente, não o meu!, penso ao me lembrar de Malu Ruschel, a ex-gerente dos hunters da Karamanlis. Malu era bonita, tinha classe e aquele seu jeito focado me enchia de tesão. Uma pena ter ido morar no fim do mundo!
Já com a Kika, nunca senti essa atração, talvez por sempre tê-la achado tão receptiva, maravilhosa com seu jeito espontâneo, que logo gostei dela como se fosse uma amiga de longa data. Tenho muito apreço por ela e lamento que tenha saído da empresa.
Os engenheiros começam a conversar, mas o assunto não me interessa o mínimo, então coloco meus fones de ouvido – a voz forte e rasgada da Janis Joplin soa bem alta – e volto a mexer no projeto em que estava trabalhando.
— Ei, moleque! — Millos me chama assim que para sua moto. — Você não sabe curtir um passeio, puta que pariu!
Ele desce da motocicleta, tira o capacete e a jaqueta e se senta à mesa do bar ao meu lado. Bebo minha água sem responder, porque a única coisa que eu poderia lhe falar é que não sou um velho para ficar andando nessas motos de colecionador há 80 km por hora.
Estou aqui esperando-o há pelo menos 20 minutos, e isso porque saímos juntos de São Paulo em direção ao Guarujá, em uma viagem não programada e cujo motivo, sinceramente, nem entendi. Ele apenas apareceu lá na K-Eng e me chamou para andar de moto com ele, e eu topei.
— Qual é o propósito disso? — resolvo perguntar sem rodeios.
— Do quê?
Millos agradece à garçonete que lhe entrega um coco verde com um canudo e nem percebe a moça comendo-o com os olhos (ou talvez só esteja assustada com suas tatuagens, que cobrem os braços, pescoço e peito).
— Desse “passeio”. A gente se viu há alguns dias na ceia da Kyra, e você não comentou nada sobre isso.
— Nada de mais! — Ele bebe a água de coco. — Vou viajar no Ano Novo, ficar um tempo fora e queria passar um tempo contigo. Já jantei com seus irmãos, mas como você é todo amalucado para comer, achei que uma volta de moto iria cair bem, mas esqueci que você é louco nisso também.
— Você está ficando velho, Millos, sinto lhe informar — debocho. — Acha mesmo que, com essa potência italiana nas mãos, eu iria ficar molengando contigo na estrada?
— Não é molengar, é curtir a viagem, a paisagem...
— Ah, não, você curte essas coisas paradas, não eu. Meditação, ioga, essas coisas todas aí que você faz, tô fora! Não sei ir devagar, Millos, em nada!
— Deveria... talvez assim conseguisse agradar às mulheres. — Ele pisca e tenta disfarçar a troça bebendo mais de sua água.
Eu gargalho.
— Pode ter certeza, elas não reclamam da minha rapidez. Não basta saber correr, tem que saber tirar o máximo proveito de uma máquina, fazê-la dar tudo de si, e isso eu faço.
— Está falando das motos ou das mulheres?
— Tem diferença?
Ele ri novamente.
— Você é um moleque, não sabe nada ainda!
— Falou aquele que nomeia suas motos com nomes femininos!
Nós dois rimos juntos, e o clima fica descontraído.
A verdade é que ele e eu temos muito em comum. Ambos adoramos motocicletas, rock e carne. Apesar de sua onda “zen budista”, Millos nunca conseguiu se livrar da proteína animal e das comidas pesadas que adora preparar para acompanhar suas cervejas artesanais.
Ah, esse é outro ponto em comum: adoramos cerveja! Ele fabrica, eu apenas bebo, mas tenho tanto conhecimento quanto ele, e esse é um dos pontos sobre o que mais conversamos quando estamos juntos, geralmente comendo alguma carne e ouvindo rock.
Raramente saímos juntos de moto, exatamente por ele fazer o estilo tiozão que gosta de andar de Harley, apreciando paisagens, e eu e minha Ducati Multistrada 1260 não temos saco para andar quase parando não.
Embora eu reconheça que tenho que agradecer a esse tiozão por ter minha moto dos sonhos, a que uso para correr nas competições. A Ducati só disponibilizou três unidades da 1299 Superleggera para venda no Brasil, há quase dois anos, e um dos amigos do Millos foi quem comprou uma delas, e, quando ele decidiu vendê-la, meu primo prontamente me avisou, e não pensei duas vezes.
Eu gosto das italianas mais do que das americanas ou japonesas, pelo menos para as motos; não sou tão seletivo assim com mulheres.
— Baile dos Villazzas...
— Ah, Millos, não fode com esse assunto de novo! — reclamo, entendendo agora o motivo do encontro.
— Alexios, preciso de você lá.
Rio.
— Mano, aqueles dois não são crianças, e, muito menos, sou a babá deles! Eles não precisam que eu vá para manter a ordem e o bom nome da...
— Kyra me mostrou o projeto do baile, ela parece bem animada com sua primeira grande produção sem a intervenção dos Karamanlis.
Porra! Ele vai pegar pesado!
— Você é muito filho da puta, sabia?
Millos dá de ombros e bebe mais água.
— Acho que vocês deveriam ir para apoiá-la, acima de todos, você! Será importante para ela, além disso... acho que ela está sem acompanhante, porque deu com o pé na bunda do último idiota que estava comendo.
— Porra, Millos! — Xingo-o. — É a minha irmã, porra!
— E o quê? Só por isso ela não trepa?
— Vai se foder! — Levanto-me da mesa puto e pego o capacete.
— Alexios... — ele me chama, mas não dou atenção, já montando na moto para ir o mais longe possível dele.
Antes que vocês me julguem como machista ou irmão ciumento, adianto logo que não se trata disso. Cada um lida com a merda dentro de si de um jeito, e esse é o jeito da minha irmã de lidar com seu passado. Respeito isso, mas não quer dizer que não me doa ou mesmo que eu não me sinta responsável por ela ser assim.
Eu gostaria que as coisas fossem diferentes, esforcei-me o máximo que pude para que ela fosse menos fodida do que todos nós, mas, a cada novo relacionamento seu destruído, sinto-me um fracassado, o que me dói profundamente.
Piloto rápido, passando pelos radares sem me importar com as multas, sentindo o vento forte bater em mim como se pudesse deixar todas as marcas do meu corpo e da minha alma para trás. Contudo, não posso. Ele fodeu a minha vida várias vezes, não só com as coisas que fez contra mim, mas principalmente por eu ver que também destruiu minha irmã.
— Como ela está, Dani? — pergunto ao meu irmão assim que ele entra na cozinha da casa dos meus pais, onde tomo meu desjejum com a Cida.
— Dormiu bem. — Ele beija minha cabeça. — Mas foi um susto essa febre alta assim do nada.
Ele se senta, visivelmente cansado, e Cida logo lhe serve uma xícara de café. Acostumados demais a dividir as refeições com Cida desde que nascemos, sempre tomamos nosso café juntos. Ela está em nossa casa há tanto tempo que não sei como seria minha vida sem sua presença, e certamente Daniel sente o mesmo.
Minha mãe, Ana Cohen, sempre foi muito ocupada na direção do sistema de ensino criado pelos meus avós, franqueado e distribuído por colégios do Brasil todo. Já meu pai, Benjamin, vem de uma longa linhagem de comerciantes e industriais, como bem acentua nosso sobrenome, que é uma derivação da profissão de algum ascendente que foi alfaiate.
Os Schneiders possuem lojas, fábricas ou empresas que prestam serviços, como era o nosso caso. Meu avô não tinha formação quando fundou sua primeira fábrica de móveis, porém eram um marceneiro muito habilidoso, e meu pai aprendeu com ele. Os negócios iam bem, então papai foi estudar arquitetura e, por fim, design, elevando o nível dos negócios familiares, fazendo dos móveis com nosso sobrenome sinônimos de classe e riqueza.
Há 10 anos meu irmão está à frente dos negócios, desde que papai teve seu primeiro infarto – ele já teve outro e fez duas pontes de safena. Daniel é um administrador maravilhoso, fechou com grandes empresas, e hoje os móveis Schneider não enfeitam mais as coberturas e mansões luxuosas de São Paulo, tão somente redes enormes de hospitais, clínicas, lojas de alto luxo e restaurantes em todo o país.
Meu irmão é incrível! Nós dois somos muito amigos, sempre fomos. O único ponto tenso entre nós era Alexios Karamanlis. Daniel é 10 anos mais velho que eu, um quarentão, como eu costumo provocá-lo, e sempre achou Alex uma péssima companhia. Bom, ele realmente era, mas não para mim. Eu sabia das loucuras que Alexios aprontava, seu envolvimento com drogas, farras, lutas valendo dinheiro e rachas pela cidade. Ele não foi um adolescente fácil, mas sempre me tratou como se ainda conservasse o menino que eu conheci. Sempre me deu conselhos para ficar longe de tudo aquilo que ele mesmo fazia, nossa amizade sempre foi separada das outras companhias dele.
Ainda assim, Dani nunca gostou de Alexios, em compensação, tornou-se um dos grandes amigos de Millos Karamanlis, primo do Alex, mesmo que eu não consiga entender o que, de fato, o executivo tatuado e meu irmão tenham em comum.
— Desculpe-me por tê-la tirado da festa da Kyra — meu irmão volta a falar, afastando-me dos pensamentos. — Eu liguei para o doutor Henrique e já ia pedir uma ambulância, quando fiquei com medo de acontecer algo e você não estar aqui.
Pego sua mão.
— Eu sei. Foi um susto!
Retornei as ligações dele assim que Kyra me alertou, e, quando Dani atendeu, o doutor já havia chegado e ministrado medicamentos. O médico preferiu que ela continuasse em casa por conta de sua baixa imunidade, mas ficou acompanhando durante boa parte da madrugada.
— Ela convulsionou, e eu achei que fosse... — Ele me olha, seus olhos acinzentados tristes. — Eu quase perdi o papai tempos atrás, lembra? — Assinto. — Eu estava com ele quando teve o infarto, e agora quase...
— Dani, não pensa nisso! — Abraço-o. — Você é o melhor filho e irmão do mundo, sempre ao lado deles, ao meu lado. Agora estou aqui também e vou ajudar no que for preciso.
— Eu sei, Samara. Essa fase do tratamento é a mais complicada, por causa da baixa imunidade, mas, quando ela estabiliza, é a mamãe que sempre conhecemos e amamos.
— E a Bianca? — pergunto-lhe sobre sua noiva. — Como vocês estão, faltando pouco para o grande dia?
Ele ri sem jeito.
— Você sabe que não tem essa de grande dia, não? Nós vamos ao cartório, assinaremos os papéis e pronto. — Dá de ombros. — Vida que segue.
Cruzo os braços. Não gosto nada desse conformismo estranho.
— Tem certeza disso, Dani?
Ele olha para a Cida.
— Vou fazer 41 anos, pirralha. 15 anos de relacionamento com ela, então...
— É isso? — Cida balança a cabeça negativamente. — Viu? A Cida não concorda também! E não é que você seja já um solteirão arrastando chinelos, Dani! Você é lindo!
— Não é sobre isso, Samara.
— Ele quer ter uma família, menina. — Arregalo os olhos. — Seu pai vive mais entretido na fazenda do que aqui, sua mãe, antes de adoecer, não parava quieta, sempre viajando com as amigas e...
— Eu na Espanha.
Daniel termina o café sem me encarar, sem falar nada e se levanta.
— Vou voltar para o quarto, render um pouco a enfermeira.
— Também vou, Dani!
Seguimos juntos, mudos, pelo corredor. Meu irmão é a pessoa mais discreta do mundo, completamente o oposto de outros filhos de grandes empresários desta cidade. Nunca gostou de sair em revistas de fofoca, nunca namorou modelos, atrizes ou socialites. Na adolescência, namorou uma garota da escola, depois teve duas ou três namoradas na faculdade e, por fim, conheceu a Bianca em um torneio de polo – esporte em que ele é fera. Desde então engataram nesse relacionamento xoxo, totalmente ioiô – eles já terminaram umas 30 vezes ao longo dos anos – e que agora vai se tornar um casamento meia-boca.
— Você merece mais, Dani — solto sem conseguir frear minha língua, e ele ri.
— Você diz isso porque é minha irmã, pirralha. — Ele tenta bagunçar meus cabelos como quando eu era criança. — Bianca pode não ser o grande amor da minha vida, mas é uma boa amiga e companheira.
— Isso é loucura! Você merece amar, ser amado, estar apaixonado...
— Como você esteve a vida toda por aquele doidivanas? — Paro em seco no corredor e arregalo os olhos. — Qual é, Samara, você achava que eu não sabia? Estava escrito na sua testa e em todos os seus cadernos, com direito a corações rosa! Você teve um peixe daqueles que ficam sozinhos no aquário...
— Um beta. — Começo a rir, sabendo exatamente do que ele está lembrando.
— Pois bem, você teve um beta e o nomeou...
— Beto Schneider Karamanlis — falamos juntos, e eu começo a rir.
— Sim! E como você nunca me deu indícios de ter uma queda pela Kyra, eu supus que era o outro Karamanlis. — Daniel me olha sério. — Por que Diego não veio contigo?
A pergunta é tão inesperada que demoro a processar que ele está falando do meu namorado.
— Não sei quanto tempo vou ficar, então...
— Besteira! Ele poderia passar uns dias aqui contigo, os times estão todos em recesso até a primeira semana de janeiro. — Suspiro e olho para o chão. — Não estraga sua vida, Alex não vale a pena.
Assinto, lembrando-me de tudo o que aconteceu noite passada. Alexios continua igual, vendo e querendo todas as mulheres ao seu redor, menos eu. Sempre fui a amiga, quase uma irmã, menos uma mulher, e, como acabei de perceber, todos sabem da minha paixão por ele, então, Alexios deve simplesmente ignorá-la.
Por muito tempo eu achei que ele não soubesse. Ficava fantasiando que, no dia em que eu tomasse coragem e lhe contasse, Alexios iria se declarar também. Iludida! É isso que eu era, porque, depois do beijo que trocamos, era impossível que ele não soubesse.
Respiro fundo, resignada. Alexios sabe, só não se importa e nem sente o mesmo!
Meu irmão bate levemente na porta do quarto de mamãe e em seguida entra. Sigo-o pelo enorme ambiente, que me traz tantas lembranças alegres dos momentos que dividi com ela, deitada em sua cama, contando sobre meus sonhos.
— Samara Esther! — Mamãe estende os braços, sentada na cama, recostada nos travesseiros. — Trouxe Godofredo de volta?
Rio e concordo.
— Trouxe, está lá embaixo no jardim. — Beijo sua testa. — Como está se sentindo hoje?
— Eu estou bem! — Ela dá uma olhada de esguelha para meu irmão. — Ele é superprotetor, sabe? Exagerado!
Daniel permanece alheio às críticas, conversando com a enfermeira.
— Mamãe, ele não é, e a senhora sabe! — Ana suspira. — A senhora está em tratamento, precisa de cuidados, e, com o papai isolado na fazenda, Daniel é que estava responsável por acompanhá-la em tudo, mas agora estou aqui também!
— Dois superprotetores! — ela finge reclamar, mas sorri satisfeita. — Seu pai quis vir para cá para ficar comigo, mas achei melhor que ficasse por lá. Você sabe como ele é, não me daria um minuto de paz.
Eu rio, mas sou obrigada a concordar. Meus pais são incríveis, mas têm uma relação um tanto estranha desde que Daniel e eu saímos de casa para viver nossas vidas. Passaram a viver cada um no seu espaço, com suas coisas. Dão-se incrivelmente bem, mas cada um com sua vida.
É verdade que eles não eram nada parecidos. Mamãe sempre foi uma mulher de negócios, cheia de trabalho, viagens e reuniões, porém extremamente carinhosa com os filhos. Papai é um homem mais reservado em seus sentimentos, embora seja um artista.
Olho para um dos móveis da minha mãe, e a escultura em madeira em cima dele me faz sorrir. Nela há um casal e um garotinho com a mão na enorme barriga da mulher. Papai deu vida à imagem de uma foto que tiraram quando mamãe estava grávida de mim, e a peça ficou tão perfeita que dá para sentir a alegria de todos.
Quando eu era criança, tinha coleções das esculturas dele: cavalos, cães, gatos, pássaros. A que eu mais gostava era a do Pinóquio, que ganhei quando comecei a ler e andava para baixo e para cima com o livro do boneco de madeira que queria ser menino de verdade.
— Você vai até lá visitá-lo? — minha mãe pergunta, talvez adivinhando que estou pensando nele, por estar olhando a estátua.
— Por agora não. Tentei falar com ele quando cheguei e ontem também, mas não consegui. — Dou de ombros. — Papai se isola quando quer, a senhora sabe.
— O doutor Henrique acabou de dizer que os resultados dos exames ficaram prontos e que ele virá assim que puder para conversar conosco. — Daniel senta-se ao meu lado na cama. — É bom ter Samara aqui perto, não é?
Ele me abraça pelos ombros.
— Eu também estou gostando de estar de volta.
Mal termino a frase, e meu telefone toca. A foto de Kyra tentando beijar Godofredo, e ele de boca aberta para mordê-la aparece na tela, e minha mãe sorri.
— Eu estou esperando pela visita dessa filha emprestada desnaturada. — Ana reclama. — Pode dizer a ela que não vai comer mais minha paella!
— Pode deixar! — Levanto-me da cama e vou para um canto do quarto. — Oi, Kyra! — atendo o telefone.
— Quero notícias! Mal consegui dormir essa noite, deixei mil mensagens no seu telefone. Como está sua mãe?
— Está bem, mas ameaçou greve de paella se você não vier visitá-la em breve.
— Está bem mesmo? — ouço preocupação na voz da minha amiga, e meu coração se aperta, pois sei que minha mãe foi o mais próximo que Kyra teve de figura materna. — Malinha?
— Está, sim. O médico dela explicou que, por conta da medicação, ela ficaria suscetível a doenças, a imunidade está baixa, então qualquer resfriado ataca com força.
Kyra suspira ao telefone, e eu abro um sorriso ao ver o quanto minha amiga durona é, na verdade, tão sensível quanto eu.
— Que bom! Fico feliz em ouvir isso e mais aliviada para te fazer um convite.
Faço careta, já prevendo que ela vai me meter em algum evento seu de final de ano, vestida de garçonete.
— O que você está armando, Kyra?
— Nada! — ela logo se defende, indignada. — Eu só queria companhia! Na véspera do Ano Novo acontecerá o Baile Branco e Preto dos Villazzas, e, como eu estou sem nenhum boy no momento, você podia ser meu par, o que acha?
— Kyra! — Rio. — Um baile? Sério?
— Baile? — mamãe logo se mete na conversa e pergunta lá da cama. — Por acaso é o baile dos Villazzas?
Fodeu! Minha mãe sempre amou bailes e conheceu a matriarca dos Villazzas tempos atrás, através de sua amiga, Cecília Novak. Certamente ela adorará a novidade, achará moderno eu ir acompanhando minha amiga, e eu não terei escapatória.
— É, mamãe, eu vou com Kyra — respondo resignada.
— Eu sabia! — Minha amiga ri ao telefone. — O traje branco é obrigatório para mulheres, então, abuse de cores em outros locais!
— Eu vou te matar, Kyra Karamanlis! — sussurro para que somente ela escute.
— Depois do baile; antes, quero usufruir de tudo o que planejei! Vai ser o evento mais incrível que você já viu!
Relaxo, percebendo que ela realmente está feliz e confiante.
— Tenho certeza disso, Kyra!
Nós nos despedimos, mas não retorno imediatamente para a cama, ao lado da minha mãe e do meu irmão, fico pensando em como é bom estar de volta. Realmente me sinto em casa aqui, com as pessoas que eu amo, ainda que tenha feito amigos na Espanha.
Penso no Diego e sinto um pequeno aperto no coração, um misto de saudade e remorso. Daniel me olha, curioso por eu estar parada no mesmo lugar, sem falar ou fazer nada, e reflito sobre o que ele me disse. Reconheço que eu recuei ante o pedido de casamento de Diego por ter esperança de voltar ao Brasil e encontrar Alexios mudado, porém ele não mudou e nem mudará jamais, mas isso não muda o fato de que ele ainda mexe comigo.
Diego e eu nos damos muito bem, somos amigos, companheiros, temos gostos parecidos. Enquanto eu estava na Espanha, longe do magnetismo e atração de Alexios, realmente pensei que pudesse amá-lo e ter uma vida com ele. Os momentos que passamos juntos foram maravilhosos, mas agora me questiono se, mesmo voltando para Madri, é justo manter essa relação.
O Uber me deixa em frente ao Villazza SP, e vejo a entrada principal do hotel cheia de pessoas bem-vestidas e penteadas. Ando na direção delas, questionando-me se os convites estão sendo verificados na entrada, mas me surpreendo ao ouvir um dos homens que está parado na entrada:
— Nós só queríamos comprar o convite, não conseguimos responder a tempo e...
— Senhor, o que me foi passado foi que esgotaram, eu sinto muito — um dos seguranças responde antes de se virar para mim, mas, vendo o convite em minhas mãos, abre a porta. — Seja bem-vinda!
Entro no saguão principal do enorme hotel e suspiro, apreciando todos os detalhes da construção e da decoração, orgulhosa por ter sido parte da equipe que ajudou a deixá-lo perfeito desse jeito.
O escritório de arquitetura que projetou o Villazza SP foi o dos Boldanis, e o arquiteto principal que assinou o desenho foi ninguém mais, ninguém menos que meu ídolo e professor, Julio Boldani. O italiano é fera demais nas suas linhas clássicas misturadas às modernas.
Eu ajudei o pessoal que compôs o projeto de decoração, pois estava me especializando e, por isso, trabalhei um tempo no Boldani. Foi ali que descobri que, por mais que papai fizesse pressão para que eu fosse uma arquiteta, eu queria mesmo era ser designer de interiores.
Subo as escadarias de mármore com corrimão e guarda-corpo de ferro fundido na cor ouro velho em arabescos e folhas e, no saguão da entrada do salão Royal, encontro a recepção do baile montada como se fosse uma bilheteria antiga de circo.
Sorrio ao pensar na Kyra, reconhecendo que minha amiga sabe como dar vida aos seus projetos de maneira perfeita, pois vi os desenhos quando almoçamos juntas anteontem e confesso que está tudo muito mais bonito do que a ilustração em 3D que ela me mostrou.
Olho em volta, procurando-a, pois combinamos de nos encontrar na entrada, mas arregalo os olhos ao ver Alexios, de smoking preto, vindo em minha direção.
Mesmo contra a minha vontade, minhas mãos gelam e meu coração dispara apenas por vê-lo, por notar o quanto ele está lindo com esse sorriso largo e os olhos brilhando.
Por que ele tinha que ter essa aparência e essa boca?!, penso na injustiça do mundo, indignada por ser tão comum, e ele...
— Samara Esther. — Bufo, pois só ele e minha mãe chamam-me assim. — Você está... linda!
Alexios sorri e me olha desde as unhas dos pés, pintadas e cutiladas, até o alto da cabeça.
— Linda! — repete como se não fosse possível que eu estivesse desse jeito.
— Oi, Alexios — cumprimento-o seca, tentando não dar importância ao fato de que ele parece ter tomado um soco só por me ver mais arrumada. — Estou esperando sua...
— Eu sei, foi ela quem me mandou ficar aqui de plantão te esperando. — Enrugo a testa, sem entender. — Kyra resolveu bancar a fada madrinha e ajudar uma amiga a ter seu baile com um príncipe encantado e, por isso, vai ter que trabalhar esta noite. — A expressão no rosto dele é de deboche ao falar do conto de fadas. — Então, restou a mim.
Puta merda, Kyra!
Pego o celular dentro da bolsa e mando mensagem para ela, mas tenho certeza de que, ocupada com o começo do baile, ela não irá ler. O que eu faço? Penso se devo aceitar fazer companhia ao Alexios ou se devo ir embora, afinal, só vim a esse baile por insistência da Kyra.
— Samara, eu sei que nossa amizade está um tanto estremecida por conta da distância e do tempo, mas... — Alexios me encara, e noto que ele está se esforçando para falar — eu gostaria que você me acompanhasse esta noite.
Minha boca fica seca ao ouvir isso, porque, mesmo com a distância, eu ainda consigo saber quando ele está sendo sincero. Alexios me quer ao seu lado esta noite, e isso é...
— Como nos velhos tempos, lembra? — ele complementa, e, mais uma vez, percebo o quanto sou iludida.
Nada mudou!
Imediatamente me lembro do meu baile de formatura do ensino médio, no qual ele foi meu acompanhante. Chegamos juntos, eu estava empolgada para dançar com ele a noite toda, arrumei-me para parecer uma mulher aos seus olhos e não mais a menina de cabelos revoltos que o seguia para toda parte quando criança.
Havia decidido que iria contar a ele o que sentia naquela noite e que, depois de ele se declarar também, iríamos fazer amor, e eu, aos 17 anos, finalmente teria minha primeira noite com o homem que amava.
Ledo engano!
Alexios dançou uma música comigo, depois foi para o bar, encheu a cara, sumiu com uma garota bem mais “servida” que eu e voltou para o salão todo amarrotado. Eu queria ir embora, mas ele acabou dançando (e sumindo) com mais umas três mulheres.
— Seu acompanhante te deixou sozinha, não é? — Marlon, um dos garotos que estava se formando comigo me perguntou, e só aí percebi que ele estava sentado à mesa comigo.
Começamos a conversar e, naquela noite, tive minha primeira experiência sexual. Não foi ruim, namoramos por um tempo, mas reconheço que ela só aconteceu porque Alexios não me quis. Ele simplesmente não me via!
— Samara? — ele me chama e me faz voltar à realidade.
Por Deus! Não sou mais uma garota de 17 anos, sou adulta, independente, com uma carreira bem-sucedida na Espanha e um dos homens mais gostosos de Madri ao meu lado!
— Vamos entrar! — decido e marcho até uma das “bilheterias”, onde recebo minha máscara preta e uma pulseira.
Alexios recebe as dele e ri ao me mostrar a máscara branca como a de O Fantasma da Ópera. Ah, merda!
— Você se lembra? — Ele ri. — Me obrigou a ver esse filme um milhão de vezes e sabia até as falas!
O desgraçado põe a máscara, ergue uma das sobrancelhas, dobra-se em reverência e sorri.
— Vamos logo com isso! — Saio de perto dele sem rir de sua gracinha, coração retumbando, a cabeça cheia de lembranças da nossa adolescência.
Quando as portas se abrem, perco o fôlego ao ver o que Kyra idealizou.
— Puta que pariu, minha irmã é foda! — Alexios fala ao meu lado.
Eu pulo de susto, não por causa do que ele disse, nem mesmo ao ver um dos artistas cuspindo fogo, mas tão somente por sentir a sua mão em minha cintura. Meu corpo inteiro aquece, a pele arrepia e aquela sensação que sinto desde que os hormônios despertaram em mim na adolescência volta a me tomar.
Atração! Química!
Não sei explicar, mas meu amor de criança transformou-se nisso quando me tornei moça, e a cada toque, cada resvalo, eu resfolegava. Sonhava com ele, acordava suada e sem saber o que estava acontecendo. Meu primeiro orgasmo com masturbação foi pensando nele, instintivo, depois de um sonho erótico e proibido.
Achei que, com a distância, principalmente depois que me envolvi com Diego, isso ia passar, mas parece que me enganei.
Olho-o e percebo que ele permanece alheio ao que me causa, sua atenção tomada pelos malabares que executam movimentos precisos na entrada do baile.
Respiro fundo.
— Vamos?
Ele assente sem me olhar, e seguimos juntos, passando entre os convidados que ainda se encontram de pé conversando ou bebendo no bar, em direção ao centro do salão, tomado de mesas e cadeiras reservadas.
— Onde nós...
Nem preciso terminar a pergunta, pois logo vejo Theodoros Karamanlis, acompanhado de uma lindíssima loira, a uma mesa com o sobrenome deles na placa de reserva. Eu não sou muito fã do irmão mais velho de Alexios, mas sempre fui educada com ele, então armo meu melhor sorriso e o cumprimento:
— Theo! Que bom vê-lo esta noite! — Olho para sua acompanhante agora mais de perto e sinto como se a conhecesse de algum lugar.
— Samara, essa é Valentina de Sá e Campos — Theodoros nos apresenta, e eu sorrio, reconhecendo os sobrenomes dela. — Valentina, essa é a Samara Schneider, uma incrível designer de interiores.
— É um prazer, Valentina! — saúdo-a.
— O prazer é meu, Samara. — Valentina sorri. — Nos conhecemos já?
— Eu acho que sim, embora não me recorde de onde pode ser.
A loira para a fim de tentar se lembrar, e eu ouço a conversa entre Theo e Alexios.
— Viu só esse trabalho da Kyra?
— Claro! — Alexios debocha do irmão. — Seria impossível não ver, já que estou aqui! Já fui até cumprimentá-la, mas está tão ocupada que não consegui nem falar com ela direito.
Só o suficiente para que ela o encarregasse de me acompanhar nesta noite! Kyra me paga!
— Imagino que esteja. Viu o Kostas? — Theo pergunta, mas não consigo ouvir a resposta de Alexios, pois Valentina volta a falar:
— Lembrei! — ela comemora. — Nos encontramos na festa de inauguração da loja da Miriam Benides, lembra?
Eu não faço a mínima ideia do que ela esteja falando, mas, mesmo que não esteja com nenhuma vontade de prosseguir com a conversa, sorrio e concordo por educação.
— Puxa vida, quanto tempo não vejo você por lá! — Valentina continua.
— Eu estava morando em Madri — informo antes de me sentar.
— Ah, eu adoro a Espanha!
Sorrio sem graça, percebendo que vamos conversar. Não quero ser mal-educada com ela, é só que não estou muito confortável em estar aqui neste baile, não depois de perceber que ainda quero Alexios e que não adiantou de nada impor distância.
— Família! — a voz debochada de Kostas interrompe a conversa de Valentina, e ela me pergunta baixinho quem é o homem abraçado a uma loira com um vestido branco tão justo e transparente que beira à indecência.
— Konstantinos... — sussurro antes de ele apresentar sua acompanhante a todos.
— Bruninha, conheça os Karamanlis! — Ele aponta para Alexios e para Theodoros. — Claro que você pode deixar seu cartão com eles depois, mas eu sou o mais bonito, não sou?
Ele faz a mulher girar em seu próprio eixo, e, pela primeira vez depois da tensão toda em que eu estava desde que vi Alexios, sorrio divertida. Kostas é uma figura! Ainda me lembro de quando ele morava no prédio, na cobertura de seu pai, e juro, se não fossem os olhos azuis e a voz, eu diria que não se trata da mesma pessoa!
— Já bêbado? — Theo pergunta a Alexios.
— E mais uma vez com acompanhante paga! — Alexios se aproxima de Theo e cochicha, e isso me surpreende. Não sabia que os dois estavam conseguindo ter uma relação tão cordial. — Estou achando que nosso querido irmão é do outro time.
Theo gargalha e nos olha sem graça.
— Perdoem-me, foi irresistível! — Tenta se conter e bebe mais do seu uísque. — Bom, certamente ele é arrogante e orgulhoso demais para “sair do armário”.
Quem? Kostas?! Olho para o homenzarrão com a prostituta e nego instintivamente com a cabeça. Não mesmo!
— Seria apenas mais um rejeitado pelo seu querido pappoús! — ouço Alexios dizer isso, e meu coração aperta. Olho-o, respiro fundo, lamentando profundamente por ele ainda se sentir rejeitado, percebendo que isso também não mudou.
Rejeição, abandono, violência o tornaram o homem que é. Sei disso, dei essas desculpas para seu comportamento por muitos anos. Toda vez que ele aprontava, eu usava isso para justificá-lo.
Até quando?, penso, olhando-o fixamente. Até quando ele deixará que os erros dos outros façam-no errar também?
— Você gosta muito dele, não é? — Valentina dispara, e eu desvio os olhos de Alexios. — Seus olhos brilham diferente ao olhar para ele.
— Somos amigos há muitos anos — disfarço.
— Bom, isso é muito bom, mas... — Ela ri. — Desculpe-me se estou sendo invasiva, mas seu olhar é de quem é apaixonada, não apenas uma amiga.
Dou um sorriso amarelo para ela, e Valentina fica quieta.
— Tudo bem aí? — Alexios me pergunta, e eu assinto. — O jantar já tinha sido anunciado antes de você chegar, então não deve demorar muito.
Resolvo conversar com ele normalmente, afinal, seria ridículo fazer birra na minha idade.
— Kyra estava muito ansiosa com o jantar desta noite. Um grande chef internacional, ela me contou, é quem está preparando tudo.
— Sim, está na programação. — Alexios lê o nome do chef francês, e eu não consigo deixar de olhar sua boca. Pego a taça de champanhe e a viro de uma só vez. — Uau! — Sorri e faz sinal para um garçom se aproximar com mais. — Minha acompanhante está sedenta.
— Estou. — Decido não discutir e bebo a outra taça. — E com fome também.
Alexios toca minha coxa por cima do vestido, mas logo tira a mão.
— O jantar não deve demorar — repete sério e se vira para olhar o outro lado do salão.
Fico um tempo olhando para minhas pernas, permitindo a sensação de brasa que a mão dele deixou em minha coxa passar, chateada demais por reagir assim a ele e continuar sendo praticamente invisível.
Que porra é essa que está rolando?
Essa pergunta retórica fica martelando minha cabeça enquanto tento prestar atenção em qualquer coisa neste maldito salão lotado que não seja ela. Eu só posso estar com algum problema, só pode! Samara sempre foi minha amiga, quase minha irmã. Eu estar aqui com uma maldita ereção – pela segunda vez esta noite, frise-se – só pode ser loucura!
Preciso de um médico! A loucura congênita dos Karamanlis começou a se manifestar em mim. Sentir tesão por Samara é quase... incestuoso!
Pego a taça com champanhe e a termino em uma só golada a fim de aplacar o fogo que apenas um toque em sua coxa me causou.
A verdade é que eu não esperava encontrar-me com ela nesta noite. Vim por insistência do Millos e, claro, por sua maldita manipulação eficaz ao falar da Kyra e do suporte a ela em seu primeiro grande evento. Cheguei junto aos primeiros convidados e a encontrei correndo de um lado para o outro, “armando” uma surpresa para sua amiga e funcionária, a gostosa da Helena, que, por sinal, está namorando o Bernardo Novak, um amigo de longa data.
Quando finalmente ela terminou todos os preparativos, foi à cozinha falar com o tal chef francês que a estava deixando nervosa, conferiu tudo com as bandas, DJ e artistas circenses é que me deu atenção.
— Oi, Alexios. — Sorriu cansada. — O baile nem começou direito, e eu já estou de um lado para o outro. — Ela espiou a fila se formando na recepção do evento. — Gostou da decoração?
Seus olhos verdes, como os meus, brilharam ansiosos. Eu cheguei perto dela, beijei sua testa e falei baixinho:
— Está tudo perfeito, Kyra. Parabéns, estou muito orgulhoso!
Ela suspirou e depois se afastou.
— Claro que está! Não tinha dúvida alguma disso. — E, do nada, pegou-me pela mão e me arrastou em direção ao salão. — Vem ver!
— Kyra, eu ainda não troquei meu convite e...
— Ah, Alexios, vem ver!
A decoração estava esplêndida, embora eu soubesse que, com os efeitos de luz e os artistas executando seus números, iria ficar ainda mais incrível. A banda, no palco ao fundo do salão, já estava se posicionando, e alguns funcionários de Kyra ajeitavam os últimos detalhes das mesas, arranjos florais ou acendiam as velas.
— Perfeito! — elogiei-a novamente.
— Você ainda não viu nada! — E deu aquele sorriso que eu sei que fode com a cabeça de qualquer homem. É duro ter uma irmã como ela, linda e sexy, e ver os caras babando em cima e não poder socar a fuça de nenhum. — Ah, preciso de um favor.
Estava demorando!
— Kyki, estou de smoking, mas ainda não sei segurar uma bandeja — sacaneei.
— Não, seu idiota! — Ela me estapeou as costas. — É meu par desta noite! Não vou poder participar do baile como havia previsto, então preciso que você faça companhia...
— Ei, ei, pode parar! Não vou ficar pajeando nenhum marmanjo não!
Ela rolou os olhos.
— Não é marmanjo, idiota! Posso terminar de falar? — Assenti. — É a Samara. Convidei-a a vir comigo esta noite e não quero que fique sozinha.
Samara Esther Schneider!
Fiquei um tempo olhando para Kyra, tentando entender se ela tinha feito isso de propósito, para tentar nos reaproximar, afinal, sempre fomos um trio de amigos/irmãos, e, com a relação entre mim e Samara estremecida, Kyra devia estar um tanto confusa.
— Sem problema. — Sorri. — Você avisou a ela?
— E Samara atende aquele celular? — Ela bufou. — Você terá que esperá-la lá fora. Se importa?
— Não — fui sincero.
— Ótimo, agora vaza, porque ainda tenho coisas a fazer antes de abrirmos o salão. — E, do mesmo jeito que me arrastou, colocou-me para fora.
Fiquei um bom tempo esperando por Samara do lado de fora, o que foi surpreendente, pois ela sempre foi pontual. Vi o salão ser aberto, o baile começar, o discurso do doutor Andreas Villazza, o anúncio do jantar, e nada de a minha (ex?) melhor amiga chegar.
Estava olhando para um detalhe na construção do hotel, executada pela Novak Engenharia, quando meus olhos foram atraídos para o topo da escadaria. Não é exagero eu dizer que meus olhos foram atraídos, porque foi como se um ímã puxasse minha atenção para aquele ponto.
Engasguei-me com minha própria saliva ao ver Samara. Sim, ela estava linda, mas não foi o vestido branco ou o penteado elaborado que chamou minha atenção, foi ela.
Ela é linda e, por conta da nossa amizade e do receio que tinha de machucá-la, parei de perceber sua beleza e não notei a mulher que se tornou.
Fiquei parado, tomando nota de tudo, como se a estivesse vendo pela primeira vez, sentindo um incômodo por estar olhando-a com lascívia, afinal, era a Samara!
Balancei a cabeça, tentando voltar a pôr os neurônios no lugar, justificando para mim mesmo que isso aconteceu por causa dos anos distantes, mesmo sabendo que isso era pura enganação, pois ela não mudou nada nesses últimos anos.
O que aconteceu, então? Não sei, ainda estou confuso, tentando entender por que fiquei excitado com o perfume dela ou por que meu pau acordou apenas por eu a ter segurado pela cintura a fim de andar com ela até a mesa.
Tive que ficar parado, olhando para os malabares sem vê-los realmente, com cara de paisagem, fingindo que nada estava acontecendo. Eu não queria que ela soubesse que eu estava reagindo daquela forma a ela; certamente ficaria horrorizada. Sempre fomos como irmãos!
Tentei me conter, agradeci por Theodoros e sua companhia já estarem à mesa, fiquei um tempo distraído conversando com meu irmão mais velho, mesmo que isso fosse uma dor no saco. Não sou tão rancoroso quanto o Konstantinos sobre o Theo, apesar de concordar com meu irmão sem noção sobre ele nos ter abandonado nas mãos do louco Nikkós, mas o que Theodoros poderia fazer? Eu mesmo estive nessa situação quando pude sair de casa, mas não tinha como tirar Kyra dele, por isso fiquei.
O DJ que executa as músicas antes do jantar e da banda ao vivo coloca My Immortal, de Evanescence, e é impossível não olhar para Samara.
— Sua música preferida na adolescência — comento com ela.
Samara sorri e balança a cabeça, olhando os casais indo para a pista de dança.
— Tocou na minha formatura...
— Eu sei, eu queria dançar com você, mas você não parecia muito a fim, então fui beber.
Ela arregala os olhos e me encara como se não soubesse do que eu estou falando. Provavelmente nem se lembra, estava nervosa e ficava repetindo o caminho todo dentro do carro que a gente nem deveria ter ido, que era besteira.
Não somos mais adolescentes!
— Quer dançar? — inquiro impulsivamente e estendo a mão para ela.
Samara olha para minha mão por um tempo, mas aceita.
Porra, que loucura!
Ela pega minha mão, e minha vontade é de puxá-la para mim e beijar sua boca. Foda! Não consigo mais refrear meus desejos; sempre consegui com ela, por isso não entendo o que está acontecendo agora. Não é qualquer mulher aqui comigo, indo para a pista de dança para ficar de corpo colado no meu – porra! – é a Samara!
Samara!
Minha amiga de infância!
Quase uma irmã...
MERDA!
— Está tudo bem? — ela me pergunta, e eu tento relaxar, já que estou dançando como antigamente: a um palmo de distância dela.
— Sim, tudo. — Tento dar meu famoso sorriso, mas não rola, então pigarreio. — Estou com sede, calor... acho que é essa decoração toda.
— Pode ser. — Ela desvia os olhos de mim. — Quer voltar para a mesa?
Quero!
— Não, a não ser que você...
— Tudo bem.
Ela se solta de mim no exato momento em que a música muda para um instrumental baixo e as luzes se acendem.
— O jantar. — Aponto para os garçons em fila e os convidados voltando aos seus lugares. — Vamos?
Salvo pelo gongo do cozinheiro!, penso ao ajustar disfarçadamente minha calça para não andar de pau duro e assustar a todos por causa da claridade do salão.
Samara bebe mais uma taça de champanhe, e eu rio, já preocupado. Nunca a vi beber tanto! Sempre foi séria, careta, estudiosa e boa filha. Ela nunca fazia nada de errado, nunca decepcionou os pais, fazia tudo o que eles queriam... quer dizer, tudo menos se afastar de mim.
— Acho que já quero ir — ela comenta de repente. — Vou chamar um Uber...
Levanta-se um pouco tonta, e eu a amparo pela cintura.
— Você quase não comeu, e bebeu muito — falo, e ela levanta uma sobrancelha atrevida e irônica para mim. — Não estou dando lição de moral, mesmo porque não tenho nenhuma, apenas constatei um fato.
Ela ri.
— Você não tem nenhuma moral mesmo! — arrasta a última palavra. — Sempre foi um galinha, essa cara de santo aí só engana as outras!
Gargalho.
— Elas não ficavam enganadas por muito tempo, pode acreditar!
Samara funga, indignada, e fecha os olhos.
— Eu acho que realmente bebi demais.
Olho em volta; o salão já está praticamente vazio, apenas um ou outro convidado conversando em pequenos grupos. Theodoros se despediu, com Valentina grudada em seu pescoço, há mais de uma hora, e Kostas nem jantou conosco à mesa, provavelmente ficou no bar com sua acompanhante.
Inicialmente eu tinha pensando em esperar tudo terminar para acompanhar Kyra até em casa, mas, com Samara no estado em que se encontra e com tudo aqui ainda para ser desmontado, é melhor eu levar minha amiga para casa – aproveitando que moramos no mesmo prédio – e voltar mais tarde para acompanhar minha irmã.
Pego a pequena bolsa que ela trouxe e, ainda abraçado a ela, caminho para a saída.
— Alexios... tudo está rodando...
— Muito natural depois de todo aquele champanhe.
Ela suspira e joga a cabeça para trás.
— Você é um chato, sabia? Não posso entender o que todas aquelas mulheres viam em você!
— Imagino que não possa mesmo — respondo-lhe, sabendo que vai se irritar.
Samara sempre disse que eu respondia politicamente ou me evadia quando sentia que o assunto poderia ir para alguma direção que não me deixaria confortável. Ela tinha razão na maioria das vezes, mas, neste momento, só estou a fim de irritá-la.
— Você é um babaca, Alexios Angelos!
Opa! Falou meu nome todo! Rio de sua irritação bêbada, talvez por estar um tanto alto como ela, mas sóbrio o suficiente para carregá-la em segurança até a calçada.
Não vim de moto ou carro sozinho exatamente por saber que iria beber – principalmente para aguentar sozinho a companhia dos meus irmãos à mesa –, porém previ que a saída do baile estaria um inferno e que seria difícil conseguir um táxi ou um carro de aplicativo que estivesse por perto, por isso deixei o Cris, que me trouxe, de sobreaviso no estacionamento.
Mando mensagem para ele e espero até meu carro aparecer. Abro a porta de trás e coloco sobre o banco uma Samara parcialmente adormecida por cachaça francesa.
— Essa foi nocaute! — Cris ri quando eu entro. — Para onde?
— Para o Castellani. — Ele dá um sorrisinho malicioso e pisca. — Ela é minha vizinha, Cris, sossega.
— Falou, chefinho.
— Para de merda e dirige.
Ele tenta sair da entrada do hotel, mas é praticamente impossível com o número de carros que também tentam deixar o local. Olho para trás, confiro que Samara está mesmo apagada e fecho os olhos, recostando-me contra o assento do carona.
— Foi uma festança, hein? — Cris volta a falar. — Só vi entrar filé, pena que a maioria estava acompanhada.
— Geralmente isso não é problema — comento, mordaz. — Já comi muita mulher no banheiro de recepções como essa enquanto o marido conversava com os amigos e falava de negócios.
Cris gargalha.
— Você nunca valeu nada, Lex!
Não retruco o apelido ridículo com que ele me chama e me faz parecer o vilão do Homem de Aço. É pura perda de tempo ralhar com Cristino, então simplesmente ignoro, cansado, meio zoado e com tesão frustrado.
Ele e eu nos conhecemos há alguns anos, quando visitei um dos prédios da Karamanlis que foram invadidos por movimentos pró-moradias. O homem era motorista de profissão, com anotação em sua carteira de trabalho em várias empresas, que juntou todo o dinheiro que tinha, investiu em um carro e um ponto de táxi, mas foi engolido e enxotado pelas grandes cooperativas.
Assim, quando nos conhecemos, ele estava sem casa, sem carro, sem emprego e com uma enorme dívida, fazendo bicos aqui e ali. Ajudei-o primeiro a conseguir emprego, depois por fim saiu da invasão, e, nesse ínterim, nos tornamos amigos.
Ano passado, quando a filha dele nasceu, quis que eu a apadrinhasse, mas educadamente declinei, explicando que, mesmo honrado, não poderia aceitar, pois sou ateu, e o apadrinhamento de uma criança tem a ver com questões religiosas, tem um sentido específico, e eu não seria a pessoa certa para isso. Ele entendeu, mas a garotinha já me chama de Didi (seu jeito fofo de bebê de chamar seu dindo, mesmo que oficialmente eu não o seja).
Acho que cochilei também até o Castellani, pois, quando me dei conta, já estávamos na garagem. Cris me perguntou se eu queria ajuda com Samara, mas agradeci e o mandei para casa. Ele não trabalha como meu motorista diariamente, mas sim na Karamanlis, transportando quem quer que precise fazer serviços externos. Contudo, toda vez que preciso, chamo-o para ganhar um extra.
Há muito parei de combinar bebida e direção, não por mim, mas por medo de acontecer algum acidente e eu acabar prejudicando outras pessoas.
Chamo o elevador, e somente dentro dele é que a bela adormecida parece voltar a si.
— Alexios... — Samara olha em volta. — Este é o elevador do Castellani?
— Parece que sim — respondo-lhe divertido.
Samara bufa.
— Só desmaiada é que eu aceitaria vir com você na direção nesse estado em que se encontra.
— Estou melhor que você. — Ela se encosta contra o espelho, olhos fechados e um enorme sorriso bêbado no rosto. — Além do mais, viemos com motorista.
— Bom... — Samara fala devagar e lambe os lábios como se estivessem secos. O efeito no meu pau é instantâneo. Sinto meu corpo inteiro acender, minhas mãos formigam de vontade de tocá-la. Sua pele parece brilhar, atraindo-me como uma chama atrai uma mariposa.
Tento me afastar, pensar em outra coisa, mas o espaço reduzido do elevador não ajuda. As paredes parecem se fechar cada vez mais, aproximando-me de Samara, apertando-me contra ela, espremendo meu corpo...
— Alexios... — ela geme meu nome, e eu me espremo mais, fazendo-a grudar contra o espelho. O seu perfume inebria meus pensamentos, a pele, tão quente e macia que a sinto mesmo por baixo do vestido, me enlouquece. Preciso provar o sabor de sua boca, conferir se o hálito quente e um tanto etílico se confirma em sua saliva.
Sim!
Agarro-a com mais força, minha ereção pressionada contra sua barriga, minha boca correndo em seu pescoço. Tudo parece congelar à nossa volta, não existe mais tempo e nem espaço, apenas o vácuo e nós dois dentro dele, em chamas.
Lábios nos lábios. Meus dedos esfregam sua nuca, a pele arrepia, os pelos eriçam, meu corpo treme. É a viagem mais louca que eu já fiz sem ser através de uma substância química entorpecente... não! É química ainda, é uma droga viciante, é tesão!
Devoro sua boca sem nenhum pudor ou impedimento. Ela me acolhe, abre-a para minha exploração, prende meus lábios entre seus dentes e morde com força, despertando com a dor ainda mais meu desejo.
Enfio os dedos no meio do seu penteado, seguro o cabelo com força, e ela retribui o desespero cravando as unhas nos meus ombros.
Estou pronto para fodê-la, minha cabeça já trabalha uma forma de abrir o zíper da calça social, sacar meu pau e buscar o caminho de sua boceta, que, a julgar pela forma com que ela come a minha boca, já está molhada e quente.
Um pigarrear me faz sobressaltar, e eu me afasto dela o mais rápido possível. Um casal de idosos também vestido em black tie entra no elevador no saguão do prédio, sinal de que o elevador subiu e desceu de novo enquanto nós dois quase nos comíamos dentro dele.
Olho para Samara, mas ela não parece constrangida ou assustada, apenas passa a mão pelos lábios e me encara, sua expressão cheia de perguntas e curiosidade.
Caralho, o que eu estou fazendo?! É a Samara, minha amiga, aquela que eu sempre quis manter longe desse meu lado sem vergonha! Puta que pariu!
Espero o casal descer em seu andar e, assim que as portas se fecham, respiro fundo.
— Desculpa, Samara, acho que estou mais bêbado do que imaginei a princípio. — Não tenho como olhá-la, dividido entre o constrangimento e o desejo ainda pulsando na minha calça. — Somos amigos, eu não deveria atacar você dessa forma, me des...
— Para! — sua voz soa magoada, e eu tenho vontade de socar a cabeça contra o espelho. — Não precisa dizer mais...
— Eu prometo que isso não voltará a acontecer. — Finalmente a encaro e fico fodido ao ver sua expressão confusa. Ela parece não ter gostado do que aconteceu, deve estar achando que eu sou um filho da puta aproveitador. — Você é minha amiga, Samara, mesmo depois dessa distância, eu ainda a vejo como se fosse minha irmã e...
— Chega! — ela grita, e as portas do elevador se abrem no seu andar. — Você tem razão, foi um erro e não deve voltar a acontecer!
Ouvir isso é como um balde de água fria, mesmo reconhecendo que é o certo.
— Eu não quero que isso afete novamente a amizade que nós temos e...
Samara sai pisando duro do elevador sem olhar para trás. Minha vontade é de correr atrás dela, voltar a encostá-la em alguma parede e beijá-la novamente até que perca a razão ou eu alivie esse tesão indesejável que estou sentindo.
As portas se fecham, e eu, ao invés de apertar o botão do meu andar, mando o elevador de volta para o térreo e chamo um Uber.
Preciso trepar!
— Essa sua cara de cachorro cagando na chuva é ainda ressaca do baile? — Kyra me pergunta, sentando-se ao meu lado na rede que ela tem em sua varanda. — Quer café?
Resmungo ainda com os olhos fechados:
— Quero paz!
Ela ri.
— Isso está em falta por aqui hoje, passa na semana que vem... — Encaro-a, puto com a piadinha. — O que aconteceu?
Não respondo, meus olhos fixos no topo do prédio do outro lado do parque. Balanço a cabeça, decidindo ser mais covarde do que tenho sido desde a madrugada do dia primeiro de janeiro e fecho os olhos para tentar nem pensar na confusão que arrumei.
— Você não deveria estar trabalhando hoje? Ou eu? — Kyra volta a me importunar, mas continuo mudo. — Mano, você continua o mesmo chato da porra de sempre! Fica aí com essa cara de Maria do Bairro e não abre a porcaria da boca para me contar o que diabos você fez dessa vez!
— Obrigado pela confiança em mim! — retruco irônico.
— Ah, boquinha para ser mal-educado comigo você tem! — Ela me cutuca o ombro, mas depois suspira e deita a cabeça nele. — Você sabe que faz merda, mas que eu estou aqui, disposta a te ouvir e te ajudar a limpar os cagaços. Somos uma dupla, você e eu, sempre fomos e sempre seremos.
— Costumávamos ser um trio... — assim que eu comento, imediatamente me arrependo, pois Kyra salta da rede – quase me derrubando no percurso – e emite um ensurdecedor: “ahá!”.
— Eu sabia que tinha acontecido algo na madrugada do baile! Samara está estranha, esquiva, e isso não é o natural dela. Que merda você aprontou? — Continuo ignorando-a, sem nenhuma disposição para contar sobre o beijo, o amasso e a confusão que isso criou em mim. — Alexios! — Minha irmã começa a pirar por causa do meu silêncio, mas, se me conhece um pouco, já deve imaginar que eu não irei abrir a boca para falar desse assunto. — Está certo! Você e sua maldita boca de siri. — Volta a se sentar, mas dessa vez não se deita em mim. — Alex, ela é nossa amiga, não a magoe, ok? Samara merece ser feliz, e esses anos que passou na Espanha foram ótimos para ela. Eu morria de saudades, mas estava feliz por ela estar realizada trabalhando com o que ama fazer, com um puta gato espanhol lambendo seus pés e — abro os olhos, mas Kyra não se freia — querendo formar família com ela.
Sento-me bruscamente, e Kyra balança.
— Como assim formar família?
— Ele a pediu em casamento. — Surpreendo-me, mas tento não reagir, não demonstrar. — Deu-lhe um lindíssimo e caro anel de diamante e está esperando pelo retorno dela.
Essa informação, apesar de ter me pegado de surpresa, não é nenhuma novidade. Sempre achei que algum homem de sorte iria conquistar o coração da minha amiga de infância e tê-la para sempre. Samara é a pessoa mais leal que eu conheço, mais incrível, merece muito ser feliz ao lado de alguém que valha a pena.
— Ela não estava usando anel... — penso em voz alta.
— Ainda não falou com os pais dela... — Kyra olha fundo nos meus olhos, procurando qualquer reação minha, mas sei que não irá encontrar nenhuma. Há muito aprendi a sentir sem demonstrar ou a mostrar apenas o que eu quero que os outros vejam. — Vocês não conversaram ontem?
— Acho que ainda não conseguimos estreitar os laços de amizade novamente.
— Hum... — Ela olha para seu relógio no pulso e suspira. — Preciso ir para o trabalho, vai ficar aqui? — Assinto. — Eu tenho a sensação de que você está se escondendo, só não faço ideia do quê.
Ela entra no apartamento, e novamente olho para o alto do Castellani, do outro lado do parque. Daqui do prédio onde ela mora, consigo ver o heliponto no telhado, algumas janelas da cobertura onde Cadu mora, o andar debaixo, onde Bernardo Novak reside, e uma pontinha da minha varanda. O apartamento de Samara fica uns andares abaixo do meu, então não tenho como vê-lo, mas somente por saber que ela está lá dentro, sinto vontade de ficar aqui, bem longe.
Não me entendam mal, não estou fazendo isso porque não quero que ela se aproxime de mim, pelo contrário, estou aqui, exilado como um covarde no apartamento da minha irmã mais nova, porque, se pisar no Castellani, sei que não conseguirei me manter distante dela.
Mesmo depois da maratona de sexo que fiz com uma mulher com quem já havia saído antes das festas de final de ano, não tenho segurança de estar no mesmo ambiente que Samara e me controlar para não a pressionar contra alguma parede e fodê-la sem ao menos dizer um cumprimento.
Definitivamente não vou fazer isso, não com ela!
Muito menos depois de saber que há alguém que a merece, que está à altura dela, esperando sua volta.
Rio de mim ao pensar que estou aqui, evitando-a, quando na verdade ela é quem deve estar querendo ficar a quilômetros de mim. Talvez esteja até indignada e ofendida pelo modo com que a toquei e beijei sem nenhum aviso, como se fôssemos um casal qualquer que se encontrou na balada para trepar, e não duas pessoas que são amigas desde que se entendem por gente.
Não entendo por que perdi o controle do tesão que sempre reprimi, mas me conheço o suficiente para saber que ele não passou. Raramente sinto aquela química com alguém. Era como se meu corpo estivesse sendo atraído, como se algo nela estivesse provocando reações em mim que eu não conseguia controlar. Foi animal, carnal, a famosa atração de pele que muita gente procura, mas pouca tem.
E eu tive justamente com minha melhor amiga!
Kyra volta a aparecer no meu campo de visão, agora com os belíssimos cabelos escuros, longos e fartos soltos, o rosto maquiado e uma roupa de deixar qualquer homem lobotomizado.
— Esse bode aí está foda para passar, hein? — comenta antes de se abaixar para pegar um guarda-chuva no móvel ao lado da rede. — Têm umas sobrinhas do baile na geladeira, cerveja – por favor, não tome todas, mas se tomar, as reponha –, e meu chuveiro tem muita pressão e água fresca. — Pisca para mim, e eu franzo a testa, sem entender. — Você está meio rançoso.
— Vai se ferrar, Kyra — ralho com ela, mas rio.
Ela se aproxima e beija minha testa, e isso, sim, arranca um sorriso sincero meu. Gosto que ela confie em mim o suficiente para me tocar, para recostar-se no meu ombro ou mesmo ficar abraçada, pois sei que ela não é assim com todos, principalmente com homens em geral.
— Fica bem e ouça meu conselho... — Ela anda até a porta antes de complementar: — Tome um banho, você cheira a álcool e a perfume vagabundo.
Levanto o dedo do meio para ela e a escuto ir gargalhando apartamento adentro até a porta de entrada bater. É, eu bebi bastante, sim, devo estar exalando álcool pelos poros, e o perfume barato se impregnou em minha roupa ontem, quando a recoloquei depois de mais de 12 horas nu, e a mulher me abraçou toda perfumada.
Saí do apartamento dela e vim direto para o da Kyra, torcendo para que minha irmã estivesse em casa e sozinha a fim de que eu pudesse cair aqui nesta rede onde estou e tentar pôr a cabeça certa no controle do meu corpo.
O telefone fixo toca alto, afastando meus pensamentos, e aproveito para tomar o banho aconselhado pela minha irmã viciada em limpeza. Entro na sala desabotoando a camisa branca que usei com o smoking – pois é, ainda estou com a mesma roupa do Ano Novo em pleno segundo dia do ano – e noto que não faço ideia de onde estão o paletó e a gravata-borboleta.
A primeira foto que vejo ao entrar no quarto de Kyra é uma que tiramos juntos – Samara, ela e eu – na formatura da minha irmã. Eu fui o par dela, então estava de smoking, e as duas, de vestido longo, maquiagem e penteado. Caminho até o aparador e pego o porta-retratos, focando em Samara e me perguntando como eu conseguia me manter longe do mulherão ao meu lado. Era uma beleza diferente da minha irmã, Samara tem o olhar doce, sorriso largo, nenhum mistério, seu rosto expressa suas emoções, sua sinceridade.
CONTINUA
Sua pergunta me deixa paralisada, completamente sem condições para lhe responder. Por que ele me procuraria?! Porque somos amigos desde que nasci? Porque estive ao lado dele em todos os momentos? Porque ele tomou um porre, apareceu lá em casa, chorou no meu ombro, beijou-me e depois fingiu que nada tinha acontecido?
Respiro fundo para controlar o volume da voz e não gritar que ele é um idiota, mas, antes que eu abra a boca, Kyra aparece esbaforida com um telefone na mão.
— Ei, Malinha, você está com seu telefone na bolsa? — Alexios olha para a irmã, puto por ela estar nos interrompendo, e eu franzo a testa, sem entender a pergunta dela. — Seu celular! — Ela bufa... — Seu irmão acaba de ligar para o meu telefone. — E balança o aparelho.
Arregalo os olhos, meu coração dispara, e logo penso em mamãe, que vi apenas um pouco ontem, quando fui buscar o Godofredo. Pego o telefone e confiro as ligações perdidas. Noto Alexios se afastando, mas não me importo; ele continua o mesmo egoísta de sempre.
Samara Schneider está de volta!
Mastigo mais um pedaço do pernil que Kyra serviu como opção de carne na ceia de Natal e não consigo deixar de pensar na volta daquela que foi minha grande amiga e companheira.
Até hoje não entendo o que aconteceu para que ela tomasse a decisão de ir estudar na Espanha sem falar nada comigo. Claro, eu sabia que tinha a possibilidade, afinal, havia anos o pai dela pressionava por isso, para ela ir estudar arquitetura clássica na terra de Gaudí14. No entanto, para minha total surpresa, em vez de ir morar em Barcelona, Samara foi para Madri.
Eu, que até então me considerava seu melhor amigo, só fiquei sabendo desses detalhes todos porque Kyra me contou depois que fui atrás dela para saber o paradeiro de Samara.
Pego a taça com água para ajudar a engolir a comida, pois estou com um aperto na garganta desde que a vi. Eu tinha acabado de sair da sala de reuniões de Kyra depois de um ménage espetacular com Valéria e Priscila, mais animado para encarar a noite especial, sem imaginar a grande surpresa que encontraria no salão e que quase me fez tropeçar em meus próprios pés.
Assim que meus olhos bateram nela, assustei-me, pois a danada da Kyra não havia me contado que Samara tinha voltado. Tentei um sorriso e uma aproximação amigável, como se ela não tivesse me abandonado por longos três anos sem nenhuma notícia. Ela está diferente, ainda mais bonita do que eu me lembro, mas tentei não reparar muito e ser o amigo de sempre.
Nada disso adiantou, pois, ao que parece, Samara desejou que eu corresse atrás dela, que a procurasse e reestabelecesse contato. Como eu poderia imaginar algo assim? Não sou adivinho! Ela some sem nenhum motivo e ainda se sente no direito de ficar puta por eu não ter tentado contato?
Quem entende a cabeça das mulheres?!
— Sua amiga foi embora cedo — Millos comenta ao meu lado. — Será que houve algum problema com a mãe dela?
Olho para meu primo, sentado ao meu lado à mesa, e ele entende meu total desconhecimento do assunto.
— A mãe dela, dona Ana Cohen, está em tratamento contra um linfoma. — Millos bebe mais chope. — Você não sabe nada sobre a vida da sua amiga?
— E você? Como sabe?
O filho da puta apenas dá de ombros, evasivo como sempre, adorando estar sempre um passo à frente de todos. Millos é um sujeito estranho. É o único que consegue interagir com todos nós sem tomar partido e sem revelar nada da vida pessoal de ninguém, nem mesmo da sua. Somos amigos, nos damos bem, mas eu sei pouco sobre ele, sobre suas atividades, e o máximo que conheço de sua vida pessoal é que tem um passado fodido como o meu, frequenta alguns clubes de sexo, tem uma amiga que por sinal é uma gostosa do caralho – mas nunca me deu mole, infelizmente – e só.
Como profissional, o homem é uma verdadeira coruja! Quieto, observador, parece que consegue olhar em 360 graus, além de ser um caçador de informações inigualável. Não há nada que passe despercebido por ele, e o que expõe ou o que fala, tenho certeza de que é o mínimo do que sabe. Por isso, todo cuidado é pouco quando o assunto é Millos Karamanlis, porque o desgraçado é um manipulador de mão cheia!
— Eu não sabia que dona Ana está doente, não vejo os pais de Samara há anos — contesto-o. — Espero que nada grave tenha ocorrido.
— Não vai ligar para saber? — Millos volta a questionar.
Franzo as sobrancelhas, encarando-o, tentando entender o motivo pelo qual ele está tão interessado no assunto.
— Não — respondo seco e volto a comer, mesmo com o questionamento dele na cabeça. Para mim o assunto acabou! Samara já demonstrou que não quer papo comigo por algum motivo, e, mesmo chateado com isso, devo respeitar a decisão dela. Millos é um manipulador e sabe que esse é um assunto que me atinge diretamente, por isso tocou nele.
Não preciso ligar para Samara, como não liguei para ela durante todo o tempo em que esteve fora, mas isso não quer dizer que eu não queira saber o que está acontecendo. Kyra sempre foi minha fonte de informações sobre ela e, caso tenha que ser assim, continuará sendo.
Termino minha refeição, fico mais algum tempo com Kyra e seus convidados, brindo ao sucesso do negócio dela e logo depois vou embora. Tinha pretensão de ir para casa, mas, no meio do caminho, uma mulher com quem eu já saí algumas vezes me manda uma mensagem dizendo que está na cidade, e vou encontrá-la.
Dia 26 de dezembro, pior dia de trabalho do mundo, certamente! Rio ao passar por mais dois engenheiros com cara de ressaca ou, talvez, de quem comeu demais e agora passa mal do estômago.
— Melhor colocar a lixeira perto! — passo, sacaneando meu colega de trabalho, Pedro, engenheiro químico. — Se emporcalhar a sala, vai ter que limpar você mesmo.
— Porra, Alexios, fala mais baixo! — Ele põe a mão na cabeça.
Gargalho e me sento à minha mesa, lotada de projetos, planilhas e minha coleção de lápis. É, eu coleciono lápis! Cada um tem a coleção que lhe cabe, não é?
Ligo o computador, olho para meu caderno de tarefas e arregalo os olhos ao ver um nome que eu não imaginava rever anotado lá – por outra pessoa.
— Ethernium? — questiono olhando para o Pedro.
— Sim! Acabamos de saber, mas o CEO lá da Karamanlis vai querer conversar com você, certamente.
Bufo ao pensar em subir até o Olimpo para conversar com Theodoros, sem esquecer as discussões que tivemos nas últimas semanas por conta de seu egocentrismo e insensibilidade com os funcionários da casa.
Sua mania de pensar que é Deus, inabalável, inatingível e perfeito me irrita, principalmente porque sei que ele não é nada disso, apenas a porra de um filhinho de vovô mimado, que sempre achou que podia fazer qualquer coisa que quisesse sem pensar nas consequências, que o velho grego limparia suas cagadas.
Admito, o velhote sempre fez tudo para seu neto querido. Entretanto, não pôde limpar a merda que Theodoros deixou para trás, apenas jogou-a para debaixo do tapete, limpou a consciência do seu netinho querido, que seguiu a vida como se nada tivesse feito e deixou o resto se fodendo sem se importar o mínimo.
Theo é arrogante, e eu não tenho saco para lidar com gente assim.
Ouço passos, um poc-poc característico de saltos, e em seguida a voz de Lia, outra engenheira que trabalha na minha equipe direta.
— Bom dia! — sua voz soa animada. — Ah... sem Papai Noel de chocolate este ano! — ela resmunga, e eu a vejo procurando sobre sua mesa. — Poxa, Alex, você já foi mais generoso!
— Eu?! — Começo a rir. — Você realmente me imagina comprando e colocando chocolate em formato de Papai Noel nas mesas dos outros? — Ela faz careta e nega. — Eu achava que era você!
— Por quê? Só porque sou mulher?
Rolo os olhos.
— Não, porra, porque você é viciada em chocolate!
— Ele está certo, Lia! — Pedro se mete na conversa em minha defesa. — Eu também achava que era você por causa disso.
Ela se senta frustrada por não ter encontrado o presente do “Papai Noel” misterioso da Karamanlis.
— Bom, não sou eu, e eu contava com isso! Não falha por anos! — Olha em volta para as outras estações de trabalho, ainda vazias sem os profissionais. — Ninguém recebeu?
Nego, e Pedro faz o mesmo.
— Estranho...
— Coisas estranhas têm acontecido por aqui — digo e lhe estendo meu caderno com a anotação da Ethernium.
— O quê? De novo? — Ela geme. — Esses caras da Ethernium são uns malas! Sério, Alexios, eu não vou aguentar gracinhas pra o meu lado de novo não!
— Eu disse que você devia ter respondido a ele. — Dou de ombros. — Mas agora sabe que tem meu total apoio! Se alguém da equipe deles fizer piadas machistas de novo, responda.
— Quem é o machista? Que vou com você dar uma surra nele. — Eliane chega já mostrando as garras – que garras! Minhas costas sofreram com elas – e se senta em sua estação. — Bom dia, feliz Natal, foi tudo ótimo! Agora, silêncio, porque ainda estou agarrada a um cálculo estrutural que não tem me deixado dormir. Obrigada. De nada.
Pedro começa a rir, e Lia só balança a cabeça. Eliane é assim, direta e sem rodeios, por isso mesmo achei-a ideal para o trabalho pelo qual é responsável. Nós nos conhecemos em uma balada, transamos, depois voltamos a nos encontrar na entrevista dela aqui na K-Eng tempos depois. Nunca mais voltamos a trepar, mas conseguimos construir uma relação de trabalho quase perfeita. Sei que posso contar com ela para qualquer coisa aqui dentro.
Tenho mais duas pessoas na minha equipe: Evandro e Michel, mas os dois estão de férias e ainda não retornaram. Não é normal dois membros da mesma equipe saírem em férias juntos, mas, como eles são casados, a lei lhes garante esse direito.
A K-Eng não é formada apenas pela minha equipe de engenheiros em suas especialidades, a verdade é que cada um aqui gere suas próprias divisões. O Pedro, por exemplo, é engenheiro químico, e na divisão dele estão químicos industriais, técnicos em química e outros engenheiros dessa área. Já a Lia é engenheira ambiental, e, dentro de sua divisão, há biólogos, gestores ambientais e engenheiros sanitaristas. A Eliana trabalha com projetos, e ela coordena outros engenheiros, arquitetos e projetistas. O Michel faz toda a parte de planilhas e medições, e o Evandro é responsável pelas operações, é quem lida com empreiteiros, clientes e atua também como fiscalizador de obras.
Além do corpo técnico da K-Eng, a empresa, que é uma subsidiária da Karamanlis, ainda tem setores administrativos e financeiros, e eu, como CEO dessa bagaça aqui, sou quem comanda essas áreas.
O único setor que dividimos com a Karamanlis, infelizmente, é o jurídico, por isso aturo muito a prepotência inglesa do Konstantinos e seu humor ácido. Geralmente não tenho paciência com ele, zoo com sua cara ou apenas o ignoro. Ele não é bem quisto por ninguém da minha equipe, principalmente pelas mulheres.
— Por falar em machismo... — Lia volta a falar. — Será que a Kika não vai voltar mais não?
Dou uma risada por ela ter entrado no assunto justamente quando eu pensava no meu irmão machista.
— Está um silêncio total na Karamanlis — Eliana se pronuncia. — Dá até medo de andar pelos corredores, clima pesadão!
— A Kika era incrível, né? Gata, alto-astral, competente — Pedro lamenta. — Uma pena que tenha perdido a cabeça e tenha sido mandada embora...
— Opa! — Eliana o interrompe. — Ela se demitiu!
— Enfim, está desempregada depois de ter ganhado uma puta promoção para a gerência.
— Eu a preferia à Malu Ruschel. — Lia treme toda. — Aquela mulher congelava até meu sangue só de estar perto dela.
Definitivamente, não o meu!, penso ao me lembrar de Malu Ruschel, a ex-gerente dos hunters da Karamanlis. Malu era bonita, tinha classe e aquele seu jeito focado me enchia de tesão. Uma pena ter ido morar no fim do mundo!
Já com a Kika, nunca senti essa atração, talvez por sempre tê-la achado tão receptiva, maravilhosa com seu jeito espontâneo, que logo gostei dela como se fosse uma amiga de longa data. Tenho muito apreço por ela e lamento que tenha saído da empresa.
Os engenheiros começam a conversar, mas o assunto não me interessa o mínimo, então coloco meus fones de ouvido – a voz forte e rasgada da Janis Joplin soa bem alta – e volto a mexer no projeto em que estava trabalhando.
— Ei, moleque! — Millos me chama assim que para sua moto. — Você não sabe curtir um passeio, puta que pariu!
Ele desce da motocicleta, tira o capacete e a jaqueta e se senta à mesa do bar ao meu lado. Bebo minha água sem responder, porque a única coisa que eu poderia lhe falar é que não sou um velho para ficar andando nessas motos de colecionador há 80 km por hora.
Estou aqui esperando-o há pelo menos 20 minutos, e isso porque saímos juntos de São Paulo em direção ao Guarujá, em uma viagem não programada e cujo motivo, sinceramente, nem entendi. Ele apenas apareceu lá na K-Eng e me chamou para andar de moto com ele, e eu topei.
— Qual é o propósito disso? — resolvo perguntar sem rodeios.
— Do quê?
Millos agradece à garçonete que lhe entrega um coco verde com um canudo e nem percebe a moça comendo-o com os olhos (ou talvez só esteja assustada com suas tatuagens, que cobrem os braços, pescoço e peito).
— Desse “passeio”. A gente se viu há alguns dias na ceia da Kyra, e você não comentou nada sobre isso.
— Nada de mais! — Ele bebe a água de coco. — Vou viajar no Ano Novo, ficar um tempo fora e queria passar um tempo contigo. Já jantei com seus irmãos, mas como você é todo amalucado para comer, achei que uma volta de moto iria cair bem, mas esqueci que você é louco nisso também.
— Você está ficando velho, Millos, sinto lhe informar — debocho. — Acha mesmo que, com essa potência italiana nas mãos, eu iria ficar molengando contigo na estrada?
— Não é molengar, é curtir a viagem, a paisagem...
— Ah, não, você curte essas coisas paradas, não eu. Meditação, ioga, essas coisas todas aí que você faz, tô fora! Não sei ir devagar, Millos, em nada!
— Deveria... talvez assim conseguisse agradar às mulheres. — Ele pisca e tenta disfarçar a troça bebendo mais de sua água.
Eu gargalho.
— Pode ter certeza, elas não reclamam da minha rapidez. Não basta saber correr, tem que saber tirar o máximo proveito de uma máquina, fazê-la dar tudo de si, e isso eu faço.
— Está falando das motos ou das mulheres?
— Tem diferença?
Ele ri novamente.
— Você é um moleque, não sabe nada ainda!
— Falou aquele que nomeia suas motos com nomes femininos!
Nós dois rimos juntos, e o clima fica descontraído.
A verdade é que ele e eu temos muito em comum. Ambos adoramos motocicletas, rock e carne. Apesar de sua onda “zen budista”, Millos nunca conseguiu se livrar da proteína animal e das comidas pesadas que adora preparar para acompanhar suas cervejas artesanais.
Ah, esse é outro ponto em comum: adoramos cerveja! Ele fabrica, eu apenas bebo, mas tenho tanto conhecimento quanto ele, e esse é um dos pontos sobre o que mais conversamos quando estamos juntos, geralmente comendo alguma carne e ouvindo rock.
Raramente saímos juntos de moto, exatamente por ele fazer o estilo tiozão que gosta de andar de Harley, apreciando paisagens, e eu e minha Ducati Multistrada 1260 não temos saco para andar quase parando não.
Embora eu reconheça que tenho que agradecer a esse tiozão por ter minha moto dos sonhos, a que uso para correr nas competições. A Ducati só disponibilizou três unidades da 1299 Superleggera para venda no Brasil, há quase dois anos, e um dos amigos do Millos foi quem comprou uma delas, e, quando ele decidiu vendê-la, meu primo prontamente me avisou, e não pensei duas vezes.
Eu gosto das italianas mais do que das americanas ou japonesas, pelo menos para as motos; não sou tão seletivo assim com mulheres.
— Baile dos Villazzas...
— Ah, Millos, não fode com esse assunto de novo! — reclamo, entendendo agora o motivo do encontro.
— Alexios, preciso de você lá.
Rio.
— Mano, aqueles dois não são crianças, e, muito menos, sou a babá deles! Eles não precisam que eu vá para manter a ordem e o bom nome da...
— Kyra me mostrou o projeto do baile, ela parece bem animada com sua primeira grande produção sem a intervenção dos Karamanlis.
Porra! Ele vai pegar pesado!
— Você é muito filho da puta, sabia?
Millos dá de ombros e bebe mais água.
— Acho que vocês deveriam ir para apoiá-la, acima de todos, você! Será importante para ela, além disso... acho que ela está sem acompanhante, porque deu com o pé na bunda do último idiota que estava comendo.
— Porra, Millos! — Xingo-o. — É a minha irmã, porra!
— E o quê? Só por isso ela não trepa?
— Vai se foder! — Levanto-me da mesa puto e pego o capacete.
— Alexios... — ele me chama, mas não dou atenção, já montando na moto para ir o mais longe possível dele.
Antes que vocês me julguem como machista ou irmão ciumento, adianto logo que não se trata disso. Cada um lida com a merda dentro de si de um jeito, e esse é o jeito da minha irmã de lidar com seu passado. Respeito isso, mas não quer dizer que não me doa ou mesmo que eu não me sinta responsável por ela ser assim.
Eu gostaria que as coisas fossem diferentes, esforcei-me o máximo que pude para que ela fosse menos fodida do que todos nós, mas, a cada novo relacionamento seu destruído, sinto-me um fracassado, o que me dói profundamente.
Piloto rápido, passando pelos radares sem me importar com as multas, sentindo o vento forte bater em mim como se pudesse deixar todas as marcas do meu corpo e da minha alma para trás. Contudo, não posso. Ele fodeu a minha vida várias vezes, não só com as coisas que fez contra mim, mas principalmente por eu ver que também destruiu minha irmã.
— Como ela está, Dani? — pergunto ao meu irmão assim que ele entra na cozinha da casa dos meus pais, onde tomo meu desjejum com a Cida.
— Dormiu bem. — Ele beija minha cabeça. — Mas foi um susto essa febre alta assim do nada.
Ele se senta, visivelmente cansado, e Cida logo lhe serve uma xícara de café. Acostumados demais a dividir as refeições com Cida desde que nascemos, sempre tomamos nosso café juntos. Ela está em nossa casa há tanto tempo que não sei como seria minha vida sem sua presença, e certamente Daniel sente o mesmo.
Minha mãe, Ana Cohen, sempre foi muito ocupada na direção do sistema de ensino criado pelos meus avós, franqueado e distribuído por colégios do Brasil todo. Já meu pai, Benjamin, vem de uma longa linhagem de comerciantes e industriais, como bem acentua nosso sobrenome, que é uma derivação da profissão de algum ascendente que foi alfaiate.
Os Schneiders possuem lojas, fábricas ou empresas que prestam serviços, como era o nosso caso. Meu avô não tinha formação quando fundou sua primeira fábrica de móveis, porém eram um marceneiro muito habilidoso, e meu pai aprendeu com ele. Os negócios iam bem, então papai foi estudar arquitetura e, por fim, design, elevando o nível dos negócios familiares, fazendo dos móveis com nosso sobrenome sinônimos de classe e riqueza.
Há 10 anos meu irmão está à frente dos negócios, desde que papai teve seu primeiro infarto – ele já teve outro e fez duas pontes de safena. Daniel é um administrador maravilhoso, fechou com grandes empresas, e hoje os móveis Schneider não enfeitam mais as coberturas e mansões luxuosas de São Paulo, tão somente redes enormes de hospitais, clínicas, lojas de alto luxo e restaurantes em todo o país.
Meu irmão é incrível! Nós dois somos muito amigos, sempre fomos. O único ponto tenso entre nós era Alexios Karamanlis. Daniel é 10 anos mais velho que eu, um quarentão, como eu costumo provocá-lo, e sempre achou Alex uma péssima companhia. Bom, ele realmente era, mas não para mim. Eu sabia das loucuras que Alexios aprontava, seu envolvimento com drogas, farras, lutas valendo dinheiro e rachas pela cidade. Ele não foi um adolescente fácil, mas sempre me tratou como se ainda conservasse o menino que eu conheci. Sempre me deu conselhos para ficar longe de tudo aquilo que ele mesmo fazia, nossa amizade sempre foi separada das outras companhias dele.
Ainda assim, Dani nunca gostou de Alexios, em compensação, tornou-se um dos grandes amigos de Millos Karamanlis, primo do Alex, mesmo que eu não consiga entender o que, de fato, o executivo tatuado e meu irmão tenham em comum.
— Desculpe-me por tê-la tirado da festa da Kyra — meu irmão volta a falar, afastando-me dos pensamentos. — Eu liguei para o doutor Henrique e já ia pedir uma ambulância, quando fiquei com medo de acontecer algo e você não estar aqui.
Pego sua mão.
— Eu sei. Foi um susto!
Retornei as ligações dele assim que Kyra me alertou, e, quando Dani atendeu, o doutor já havia chegado e ministrado medicamentos. O médico preferiu que ela continuasse em casa por conta de sua baixa imunidade, mas ficou acompanhando durante boa parte da madrugada.
— Ela convulsionou, e eu achei que fosse... — Ele me olha, seus olhos acinzentados tristes. — Eu quase perdi o papai tempos atrás, lembra? — Assinto. — Eu estava com ele quando teve o infarto, e agora quase...
— Dani, não pensa nisso! — Abraço-o. — Você é o melhor filho e irmão do mundo, sempre ao lado deles, ao meu lado. Agora estou aqui também e vou ajudar no que for preciso.
— Eu sei, Samara. Essa fase do tratamento é a mais complicada, por causa da baixa imunidade, mas, quando ela estabiliza, é a mamãe que sempre conhecemos e amamos.
— E a Bianca? — pergunto-lhe sobre sua noiva. — Como vocês estão, faltando pouco para o grande dia?
Ele ri sem jeito.
— Você sabe que não tem essa de grande dia, não? Nós vamos ao cartório, assinaremos os papéis e pronto. — Dá de ombros. — Vida que segue.
Cruzo os braços. Não gosto nada desse conformismo estranho.
— Tem certeza disso, Dani?
Ele olha para a Cida.
— Vou fazer 41 anos, pirralha. 15 anos de relacionamento com ela, então...
— É isso? — Cida balança a cabeça negativamente. — Viu? A Cida não concorda também! E não é que você seja já um solteirão arrastando chinelos, Dani! Você é lindo!
— Não é sobre isso, Samara.
— Ele quer ter uma família, menina. — Arregalo os olhos. — Seu pai vive mais entretido na fazenda do que aqui, sua mãe, antes de adoecer, não parava quieta, sempre viajando com as amigas e...
— Eu na Espanha.
Daniel termina o café sem me encarar, sem falar nada e se levanta.
— Vou voltar para o quarto, render um pouco a enfermeira.
— Também vou, Dani!
Seguimos juntos, mudos, pelo corredor. Meu irmão é a pessoa mais discreta do mundo, completamente o oposto de outros filhos de grandes empresários desta cidade. Nunca gostou de sair em revistas de fofoca, nunca namorou modelos, atrizes ou socialites. Na adolescência, namorou uma garota da escola, depois teve duas ou três namoradas na faculdade e, por fim, conheceu a Bianca em um torneio de polo – esporte em que ele é fera. Desde então engataram nesse relacionamento xoxo, totalmente ioiô – eles já terminaram umas 30 vezes ao longo dos anos – e que agora vai se tornar um casamento meia-boca.
— Você merece mais, Dani — solto sem conseguir frear minha língua, e ele ri.
— Você diz isso porque é minha irmã, pirralha. — Ele tenta bagunçar meus cabelos como quando eu era criança. — Bianca pode não ser o grande amor da minha vida, mas é uma boa amiga e companheira.
— Isso é loucura! Você merece amar, ser amado, estar apaixonado...
— Como você esteve a vida toda por aquele doidivanas? — Paro em seco no corredor e arregalo os olhos. — Qual é, Samara, você achava que eu não sabia? Estava escrito na sua testa e em todos os seus cadernos, com direito a corações rosa! Você teve um peixe daqueles que ficam sozinhos no aquário...
— Um beta. — Começo a rir, sabendo exatamente do que ele está lembrando.
— Pois bem, você teve um beta e o nomeou...
— Beto Schneider Karamanlis — falamos juntos, e eu começo a rir.
— Sim! E como você nunca me deu indícios de ter uma queda pela Kyra, eu supus que era o outro Karamanlis. — Daniel me olha sério. — Por que Diego não veio contigo?
A pergunta é tão inesperada que demoro a processar que ele está falando do meu namorado.
— Não sei quanto tempo vou ficar, então...
— Besteira! Ele poderia passar uns dias aqui contigo, os times estão todos em recesso até a primeira semana de janeiro. — Suspiro e olho para o chão. — Não estraga sua vida, Alex não vale a pena.
Assinto, lembrando-me de tudo o que aconteceu noite passada. Alexios continua igual, vendo e querendo todas as mulheres ao seu redor, menos eu. Sempre fui a amiga, quase uma irmã, menos uma mulher, e, como acabei de perceber, todos sabem da minha paixão por ele, então, Alexios deve simplesmente ignorá-la.
Por muito tempo eu achei que ele não soubesse. Ficava fantasiando que, no dia em que eu tomasse coragem e lhe contasse, Alexios iria se declarar também. Iludida! É isso que eu era, porque, depois do beijo que trocamos, era impossível que ele não soubesse.
Respiro fundo, resignada. Alexios sabe, só não se importa e nem sente o mesmo!
Meu irmão bate levemente na porta do quarto de mamãe e em seguida entra. Sigo-o pelo enorme ambiente, que me traz tantas lembranças alegres dos momentos que dividi com ela, deitada em sua cama, contando sobre meus sonhos.
— Samara Esther! — Mamãe estende os braços, sentada na cama, recostada nos travesseiros. — Trouxe Godofredo de volta?
Rio e concordo.
— Trouxe, está lá embaixo no jardim. — Beijo sua testa. — Como está se sentindo hoje?
— Eu estou bem! — Ela dá uma olhada de esguelha para meu irmão. — Ele é superprotetor, sabe? Exagerado!
Daniel permanece alheio às críticas, conversando com a enfermeira.
— Mamãe, ele não é, e a senhora sabe! — Ana suspira. — A senhora está em tratamento, precisa de cuidados, e, com o papai isolado na fazenda, Daniel é que estava responsável por acompanhá-la em tudo, mas agora estou aqui também!
— Dois superprotetores! — ela finge reclamar, mas sorri satisfeita. — Seu pai quis vir para cá para ficar comigo, mas achei melhor que ficasse por lá. Você sabe como ele é, não me daria um minuto de paz.
Eu rio, mas sou obrigada a concordar. Meus pais são incríveis, mas têm uma relação um tanto estranha desde que Daniel e eu saímos de casa para viver nossas vidas. Passaram a viver cada um no seu espaço, com suas coisas. Dão-se incrivelmente bem, mas cada um com sua vida.
É verdade que eles não eram nada parecidos. Mamãe sempre foi uma mulher de negócios, cheia de trabalho, viagens e reuniões, porém extremamente carinhosa com os filhos. Papai é um homem mais reservado em seus sentimentos, embora seja um artista.
Olho para um dos móveis da minha mãe, e a escultura em madeira em cima dele me faz sorrir. Nela há um casal e um garotinho com a mão na enorme barriga da mulher. Papai deu vida à imagem de uma foto que tiraram quando mamãe estava grávida de mim, e a peça ficou tão perfeita que dá para sentir a alegria de todos.
Quando eu era criança, tinha coleções das esculturas dele: cavalos, cães, gatos, pássaros. A que eu mais gostava era a do Pinóquio, que ganhei quando comecei a ler e andava para baixo e para cima com o livro do boneco de madeira que queria ser menino de verdade.
— Você vai até lá visitá-lo? — minha mãe pergunta, talvez adivinhando que estou pensando nele, por estar olhando a estátua.
— Por agora não. Tentei falar com ele quando cheguei e ontem também, mas não consegui. — Dou de ombros. — Papai se isola quando quer, a senhora sabe.
— O doutor Henrique acabou de dizer que os resultados dos exames ficaram prontos e que ele virá assim que puder para conversar conosco. — Daniel senta-se ao meu lado na cama. — É bom ter Samara aqui perto, não é?
Ele me abraça pelos ombros.
— Eu também estou gostando de estar de volta.
Mal termino a frase, e meu telefone toca. A foto de Kyra tentando beijar Godofredo, e ele de boca aberta para mordê-la aparece na tela, e minha mãe sorri.
— Eu estou esperando pela visita dessa filha emprestada desnaturada. — Ana reclama. — Pode dizer a ela que não vai comer mais minha paella!
— Pode deixar! — Levanto-me da cama e vou para um canto do quarto. — Oi, Kyra! — atendo o telefone.
— Quero notícias! Mal consegui dormir essa noite, deixei mil mensagens no seu telefone. Como está sua mãe?
— Está bem, mas ameaçou greve de paella se você não vier visitá-la em breve.
— Está bem mesmo? — ouço preocupação na voz da minha amiga, e meu coração se aperta, pois sei que minha mãe foi o mais próximo que Kyra teve de figura materna. — Malinha?
— Está, sim. O médico dela explicou que, por conta da medicação, ela ficaria suscetível a doenças, a imunidade está baixa, então qualquer resfriado ataca com força.
Kyra suspira ao telefone, e eu abro um sorriso ao ver o quanto minha amiga durona é, na verdade, tão sensível quanto eu.
— Que bom! Fico feliz em ouvir isso e mais aliviada para te fazer um convite.
Faço careta, já prevendo que ela vai me meter em algum evento seu de final de ano, vestida de garçonete.
— O que você está armando, Kyra?
— Nada! — ela logo se defende, indignada. — Eu só queria companhia! Na véspera do Ano Novo acontecerá o Baile Branco e Preto dos Villazzas, e, como eu estou sem nenhum boy no momento, você podia ser meu par, o que acha?
— Kyra! — Rio. — Um baile? Sério?
— Baile? — mamãe logo se mete na conversa e pergunta lá da cama. — Por acaso é o baile dos Villazzas?
Fodeu! Minha mãe sempre amou bailes e conheceu a matriarca dos Villazzas tempos atrás, através de sua amiga, Cecília Novak. Certamente ela adorará a novidade, achará moderno eu ir acompanhando minha amiga, e eu não terei escapatória.
— É, mamãe, eu vou com Kyra — respondo resignada.
— Eu sabia! — Minha amiga ri ao telefone. — O traje branco é obrigatório para mulheres, então, abuse de cores em outros locais!
— Eu vou te matar, Kyra Karamanlis! — sussurro para que somente ela escute.
— Depois do baile; antes, quero usufruir de tudo o que planejei! Vai ser o evento mais incrível que você já viu!
Relaxo, percebendo que ela realmente está feliz e confiante.
— Tenho certeza disso, Kyra!
Nós nos despedimos, mas não retorno imediatamente para a cama, ao lado da minha mãe e do meu irmão, fico pensando em como é bom estar de volta. Realmente me sinto em casa aqui, com as pessoas que eu amo, ainda que tenha feito amigos na Espanha.
Penso no Diego e sinto um pequeno aperto no coração, um misto de saudade e remorso. Daniel me olha, curioso por eu estar parada no mesmo lugar, sem falar ou fazer nada, e reflito sobre o que ele me disse. Reconheço que eu recuei ante o pedido de casamento de Diego por ter esperança de voltar ao Brasil e encontrar Alexios mudado, porém ele não mudou e nem mudará jamais, mas isso não muda o fato de que ele ainda mexe comigo.
Diego e eu nos damos muito bem, somos amigos, companheiros, temos gostos parecidos. Enquanto eu estava na Espanha, longe do magnetismo e atração de Alexios, realmente pensei que pudesse amá-lo e ter uma vida com ele. Os momentos que passamos juntos foram maravilhosos, mas agora me questiono se, mesmo voltando para Madri, é justo manter essa relação.
O Uber me deixa em frente ao Villazza SP, e vejo a entrada principal do hotel cheia de pessoas bem-vestidas e penteadas. Ando na direção delas, questionando-me se os convites estão sendo verificados na entrada, mas me surpreendo ao ouvir um dos homens que está parado na entrada:
— Nós só queríamos comprar o convite, não conseguimos responder a tempo e...
— Senhor, o que me foi passado foi que esgotaram, eu sinto muito — um dos seguranças responde antes de se virar para mim, mas, vendo o convite em minhas mãos, abre a porta. — Seja bem-vinda!
Entro no saguão principal do enorme hotel e suspiro, apreciando todos os detalhes da construção e da decoração, orgulhosa por ter sido parte da equipe que ajudou a deixá-lo perfeito desse jeito.
O escritório de arquitetura que projetou o Villazza SP foi o dos Boldanis, e o arquiteto principal que assinou o desenho foi ninguém mais, ninguém menos que meu ídolo e professor, Julio Boldani. O italiano é fera demais nas suas linhas clássicas misturadas às modernas.
Eu ajudei o pessoal que compôs o projeto de decoração, pois estava me especializando e, por isso, trabalhei um tempo no Boldani. Foi ali que descobri que, por mais que papai fizesse pressão para que eu fosse uma arquiteta, eu queria mesmo era ser designer de interiores.
Subo as escadarias de mármore com corrimão e guarda-corpo de ferro fundido na cor ouro velho em arabescos e folhas e, no saguão da entrada do salão Royal, encontro a recepção do baile montada como se fosse uma bilheteria antiga de circo.
Sorrio ao pensar na Kyra, reconhecendo que minha amiga sabe como dar vida aos seus projetos de maneira perfeita, pois vi os desenhos quando almoçamos juntas anteontem e confesso que está tudo muito mais bonito do que a ilustração em 3D que ela me mostrou.
Olho em volta, procurando-a, pois combinamos de nos encontrar na entrada, mas arregalo os olhos ao ver Alexios, de smoking preto, vindo em minha direção.
Mesmo contra a minha vontade, minhas mãos gelam e meu coração dispara apenas por vê-lo, por notar o quanto ele está lindo com esse sorriso largo e os olhos brilhando.
Por que ele tinha que ter essa aparência e essa boca?!, penso na injustiça do mundo, indignada por ser tão comum, e ele...
— Samara Esther. — Bufo, pois só ele e minha mãe chamam-me assim. — Você está... linda!
Alexios sorri e me olha desde as unhas dos pés, pintadas e cutiladas, até o alto da cabeça.
— Linda! — repete como se não fosse possível que eu estivesse desse jeito.
— Oi, Alexios — cumprimento-o seca, tentando não dar importância ao fato de que ele parece ter tomado um soco só por me ver mais arrumada. — Estou esperando sua...
— Eu sei, foi ela quem me mandou ficar aqui de plantão te esperando. — Enrugo a testa, sem entender. — Kyra resolveu bancar a fada madrinha e ajudar uma amiga a ter seu baile com um príncipe encantado e, por isso, vai ter que trabalhar esta noite. — A expressão no rosto dele é de deboche ao falar do conto de fadas. — Então, restou a mim.
Puta merda, Kyra!
Pego o celular dentro da bolsa e mando mensagem para ela, mas tenho certeza de que, ocupada com o começo do baile, ela não irá ler. O que eu faço? Penso se devo aceitar fazer companhia ao Alexios ou se devo ir embora, afinal, só vim a esse baile por insistência da Kyra.
— Samara, eu sei que nossa amizade está um tanto estremecida por conta da distância e do tempo, mas... — Alexios me encara, e noto que ele está se esforçando para falar — eu gostaria que você me acompanhasse esta noite.
Minha boca fica seca ao ouvir isso, porque, mesmo com a distância, eu ainda consigo saber quando ele está sendo sincero. Alexios me quer ao seu lado esta noite, e isso é...
— Como nos velhos tempos, lembra? — ele complementa, e, mais uma vez, percebo o quanto sou iludida.
Nada mudou!
Imediatamente me lembro do meu baile de formatura do ensino médio, no qual ele foi meu acompanhante. Chegamos juntos, eu estava empolgada para dançar com ele a noite toda, arrumei-me para parecer uma mulher aos seus olhos e não mais a menina de cabelos revoltos que o seguia para toda parte quando criança.
Havia decidido que iria contar a ele o que sentia naquela noite e que, depois de ele se declarar também, iríamos fazer amor, e eu, aos 17 anos, finalmente teria minha primeira noite com o homem que amava.
Ledo engano!
Alexios dançou uma música comigo, depois foi para o bar, encheu a cara, sumiu com uma garota bem mais “servida” que eu e voltou para o salão todo amarrotado. Eu queria ir embora, mas ele acabou dançando (e sumindo) com mais umas três mulheres.
— Seu acompanhante te deixou sozinha, não é? — Marlon, um dos garotos que estava se formando comigo me perguntou, e só aí percebi que ele estava sentado à mesa comigo.
Começamos a conversar e, naquela noite, tive minha primeira experiência sexual. Não foi ruim, namoramos por um tempo, mas reconheço que ela só aconteceu porque Alexios não me quis. Ele simplesmente não me via!
— Samara? — ele me chama e me faz voltar à realidade.
Por Deus! Não sou mais uma garota de 17 anos, sou adulta, independente, com uma carreira bem-sucedida na Espanha e um dos homens mais gostosos de Madri ao meu lado!
— Vamos entrar! — decido e marcho até uma das “bilheterias”, onde recebo minha máscara preta e uma pulseira.
Alexios recebe as dele e ri ao me mostrar a máscara branca como a de O Fantasma da Ópera. Ah, merda!
— Você se lembra? — Ele ri. — Me obrigou a ver esse filme um milhão de vezes e sabia até as falas!
O desgraçado põe a máscara, ergue uma das sobrancelhas, dobra-se em reverência e sorri.
— Vamos logo com isso! — Saio de perto dele sem rir de sua gracinha, coração retumbando, a cabeça cheia de lembranças da nossa adolescência.
Quando as portas se abrem, perco o fôlego ao ver o que Kyra idealizou.
— Puta que pariu, minha irmã é foda! — Alexios fala ao meu lado.
Eu pulo de susto, não por causa do que ele disse, nem mesmo ao ver um dos artistas cuspindo fogo, mas tão somente por sentir a sua mão em minha cintura. Meu corpo inteiro aquece, a pele arrepia e aquela sensação que sinto desde que os hormônios despertaram em mim na adolescência volta a me tomar.
Atração! Química!
Não sei explicar, mas meu amor de criança transformou-se nisso quando me tornei moça, e a cada toque, cada resvalo, eu resfolegava. Sonhava com ele, acordava suada e sem saber o que estava acontecendo. Meu primeiro orgasmo com masturbação foi pensando nele, instintivo, depois de um sonho erótico e proibido.
Achei que, com a distância, principalmente depois que me envolvi com Diego, isso ia passar, mas parece que me enganei.
Olho-o e percebo que ele permanece alheio ao que me causa, sua atenção tomada pelos malabares que executam movimentos precisos na entrada do baile.
Respiro fundo.
— Vamos?
Ele assente sem me olhar, e seguimos juntos, passando entre os convidados que ainda se encontram de pé conversando ou bebendo no bar, em direção ao centro do salão, tomado de mesas e cadeiras reservadas.
— Onde nós...
Nem preciso terminar a pergunta, pois logo vejo Theodoros Karamanlis, acompanhado de uma lindíssima loira, a uma mesa com o sobrenome deles na placa de reserva. Eu não sou muito fã do irmão mais velho de Alexios, mas sempre fui educada com ele, então armo meu melhor sorriso e o cumprimento:
— Theo! Que bom vê-lo esta noite! — Olho para sua acompanhante agora mais de perto e sinto como se a conhecesse de algum lugar.
— Samara, essa é Valentina de Sá e Campos — Theodoros nos apresenta, e eu sorrio, reconhecendo os sobrenomes dela. — Valentina, essa é a Samara Schneider, uma incrível designer de interiores.
— É um prazer, Valentina! — saúdo-a.
— O prazer é meu, Samara. — Valentina sorri. — Nos conhecemos já?
— Eu acho que sim, embora não me recorde de onde pode ser.
A loira para a fim de tentar se lembrar, e eu ouço a conversa entre Theo e Alexios.
— Viu só esse trabalho da Kyra?
— Claro! — Alexios debocha do irmão. — Seria impossível não ver, já que estou aqui! Já fui até cumprimentá-la, mas está tão ocupada que não consegui nem falar com ela direito.
Só o suficiente para que ela o encarregasse de me acompanhar nesta noite! Kyra me paga!
— Imagino que esteja. Viu o Kostas? — Theo pergunta, mas não consigo ouvir a resposta de Alexios, pois Valentina volta a falar:
— Lembrei! — ela comemora. — Nos encontramos na festa de inauguração da loja da Miriam Benides, lembra?
Eu não faço a mínima ideia do que ela esteja falando, mas, mesmo que não esteja com nenhuma vontade de prosseguir com a conversa, sorrio e concordo por educação.
— Puxa vida, quanto tempo não vejo você por lá! — Valentina continua.
— Eu estava morando em Madri — informo antes de me sentar.
— Ah, eu adoro a Espanha!
Sorrio sem graça, percebendo que vamos conversar. Não quero ser mal-educada com ela, é só que não estou muito confortável em estar aqui neste baile, não depois de perceber que ainda quero Alexios e que não adiantou de nada impor distância.
— Família! — a voz debochada de Kostas interrompe a conversa de Valentina, e ela me pergunta baixinho quem é o homem abraçado a uma loira com um vestido branco tão justo e transparente que beira à indecência.
— Konstantinos... — sussurro antes de ele apresentar sua acompanhante a todos.
— Bruninha, conheça os Karamanlis! — Ele aponta para Alexios e para Theodoros. — Claro que você pode deixar seu cartão com eles depois, mas eu sou o mais bonito, não sou?
Ele faz a mulher girar em seu próprio eixo, e, pela primeira vez depois da tensão toda em que eu estava desde que vi Alexios, sorrio divertida. Kostas é uma figura! Ainda me lembro de quando ele morava no prédio, na cobertura de seu pai, e juro, se não fossem os olhos azuis e a voz, eu diria que não se trata da mesma pessoa!
— Já bêbado? — Theo pergunta a Alexios.
— E mais uma vez com acompanhante paga! — Alexios se aproxima de Theo e cochicha, e isso me surpreende. Não sabia que os dois estavam conseguindo ter uma relação tão cordial. — Estou achando que nosso querido irmão é do outro time.
Theo gargalha e nos olha sem graça.
— Perdoem-me, foi irresistível! — Tenta se conter e bebe mais do seu uísque. — Bom, certamente ele é arrogante e orgulhoso demais para “sair do armário”.
Quem? Kostas?! Olho para o homenzarrão com a prostituta e nego instintivamente com a cabeça. Não mesmo!
— Seria apenas mais um rejeitado pelo seu querido pappoús! — ouço Alexios dizer isso, e meu coração aperta. Olho-o, respiro fundo, lamentando profundamente por ele ainda se sentir rejeitado, percebendo que isso também não mudou.
Rejeição, abandono, violência o tornaram o homem que é. Sei disso, dei essas desculpas para seu comportamento por muitos anos. Toda vez que ele aprontava, eu usava isso para justificá-lo.
Até quando?, penso, olhando-o fixamente. Até quando ele deixará que os erros dos outros façam-no errar também?
— Você gosta muito dele, não é? — Valentina dispara, e eu desvio os olhos de Alexios. — Seus olhos brilham diferente ao olhar para ele.
— Somos amigos há muitos anos — disfarço.
— Bom, isso é muito bom, mas... — Ela ri. — Desculpe-me se estou sendo invasiva, mas seu olhar é de quem é apaixonada, não apenas uma amiga.
Dou um sorriso amarelo para ela, e Valentina fica quieta.
— Tudo bem aí? — Alexios me pergunta, e eu assinto. — O jantar já tinha sido anunciado antes de você chegar, então não deve demorar muito.
Resolvo conversar com ele normalmente, afinal, seria ridículo fazer birra na minha idade.
— Kyra estava muito ansiosa com o jantar desta noite. Um grande chef internacional, ela me contou, é quem está preparando tudo.
— Sim, está na programação. — Alexios lê o nome do chef francês, e eu não consigo deixar de olhar sua boca. Pego a taça de champanhe e a viro de uma só vez. — Uau! — Sorri e faz sinal para um garçom se aproximar com mais. — Minha acompanhante está sedenta.
— Estou. — Decido não discutir e bebo a outra taça. — E com fome também.
Alexios toca minha coxa por cima do vestido, mas logo tira a mão.
— O jantar não deve demorar — repete sério e se vira para olhar o outro lado do salão.
Fico um tempo olhando para minhas pernas, permitindo a sensação de brasa que a mão dele deixou em minha coxa passar, chateada demais por reagir assim a ele e continuar sendo praticamente invisível.
Que porra é essa que está rolando?
Essa pergunta retórica fica martelando minha cabeça enquanto tento prestar atenção em qualquer coisa neste maldito salão lotado que não seja ela. Eu só posso estar com algum problema, só pode! Samara sempre foi minha amiga, quase minha irmã. Eu estar aqui com uma maldita ereção – pela segunda vez esta noite, frise-se – só pode ser loucura!
Preciso de um médico! A loucura congênita dos Karamanlis começou a se manifestar em mim. Sentir tesão por Samara é quase... incestuoso!
Pego a taça com champanhe e a termino em uma só golada a fim de aplacar o fogo que apenas um toque em sua coxa me causou.
A verdade é que eu não esperava encontrar-me com ela nesta noite. Vim por insistência do Millos e, claro, por sua maldita manipulação eficaz ao falar da Kyra e do suporte a ela em seu primeiro grande evento. Cheguei junto aos primeiros convidados e a encontrei correndo de um lado para o outro, “armando” uma surpresa para sua amiga e funcionária, a gostosa da Helena, que, por sinal, está namorando o Bernardo Novak, um amigo de longa data.
Quando finalmente ela terminou todos os preparativos, foi à cozinha falar com o tal chef francês que a estava deixando nervosa, conferiu tudo com as bandas, DJ e artistas circenses é que me deu atenção.
— Oi, Alexios. — Sorriu cansada. — O baile nem começou direito, e eu já estou de um lado para o outro. — Ela espiou a fila se formando na recepção do evento. — Gostou da decoração?
Seus olhos verdes, como os meus, brilharam ansiosos. Eu cheguei perto dela, beijei sua testa e falei baixinho:
— Está tudo perfeito, Kyra. Parabéns, estou muito orgulhoso!
Ela suspirou e depois se afastou.
— Claro que está! Não tinha dúvida alguma disso. — E, do nada, pegou-me pela mão e me arrastou em direção ao salão. — Vem ver!
— Kyra, eu ainda não troquei meu convite e...
— Ah, Alexios, vem ver!
A decoração estava esplêndida, embora eu soubesse que, com os efeitos de luz e os artistas executando seus números, iria ficar ainda mais incrível. A banda, no palco ao fundo do salão, já estava se posicionando, e alguns funcionários de Kyra ajeitavam os últimos detalhes das mesas, arranjos florais ou acendiam as velas.
— Perfeito! — elogiei-a novamente.
— Você ainda não viu nada! — E deu aquele sorriso que eu sei que fode com a cabeça de qualquer homem. É duro ter uma irmã como ela, linda e sexy, e ver os caras babando em cima e não poder socar a fuça de nenhum. — Ah, preciso de um favor.
Estava demorando!
— Kyki, estou de smoking, mas ainda não sei segurar uma bandeja — sacaneei.
— Não, seu idiota! — Ela me estapeou as costas. — É meu par desta noite! Não vou poder participar do baile como havia previsto, então preciso que você faça companhia...
— Ei, ei, pode parar! Não vou ficar pajeando nenhum marmanjo não!
Ela rolou os olhos.
— Não é marmanjo, idiota! Posso terminar de falar? — Assenti. — É a Samara. Convidei-a a vir comigo esta noite e não quero que fique sozinha.
Samara Esther Schneider!
Fiquei um tempo olhando para Kyra, tentando entender se ela tinha feito isso de propósito, para tentar nos reaproximar, afinal, sempre fomos um trio de amigos/irmãos, e, com a relação entre mim e Samara estremecida, Kyra devia estar um tanto confusa.
— Sem problema. — Sorri. — Você avisou a ela?
— E Samara atende aquele celular? — Ela bufou. — Você terá que esperá-la lá fora. Se importa?
— Não — fui sincero.
— Ótimo, agora vaza, porque ainda tenho coisas a fazer antes de abrirmos o salão. — E, do mesmo jeito que me arrastou, colocou-me para fora.
Fiquei um bom tempo esperando por Samara do lado de fora, o que foi surpreendente, pois ela sempre foi pontual. Vi o salão ser aberto, o baile começar, o discurso do doutor Andreas Villazza, o anúncio do jantar, e nada de a minha (ex?) melhor amiga chegar.
Estava olhando para um detalhe na construção do hotel, executada pela Novak Engenharia, quando meus olhos foram atraídos para o topo da escadaria. Não é exagero eu dizer que meus olhos foram atraídos, porque foi como se um ímã puxasse minha atenção para aquele ponto.
Engasguei-me com minha própria saliva ao ver Samara. Sim, ela estava linda, mas não foi o vestido branco ou o penteado elaborado que chamou minha atenção, foi ela.
Ela é linda e, por conta da nossa amizade e do receio que tinha de machucá-la, parei de perceber sua beleza e não notei a mulher que se tornou.
Fiquei parado, tomando nota de tudo, como se a estivesse vendo pela primeira vez, sentindo um incômodo por estar olhando-a com lascívia, afinal, era a Samara!
Balancei a cabeça, tentando voltar a pôr os neurônios no lugar, justificando para mim mesmo que isso aconteceu por causa dos anos distantes, mesmo sabendo que isso era pura enganação, pois ela não mudou nada nesses últimos anos.
O que aconteceu, então? Não sei, ainda estou confuso, tentando entender por que fiquei excitado com o perfume dela ou por que meu pau acordou apenas por eu a ter segurado pela cintura a fim de andar com ela até a mesa.
Tive que ficar parado, olhando para os malabares sem vê-los realmente, com cara de paisagem, fingindo que nada estava acontecendo. Eu não queria que ela soubesse que eu estava reagindo daquela forma a ela; certamente ficaria horrorizada. Sempre fomos como irmãos!
Tentei me conter, agradeci por Theodoros e sua companhia já estarem à mesa, fiquei um tempo distraído conversando com meu irmão mais velho, mesmo que isso fosse uma dor no saco. Não sou tão rancoroso quanto o Konstantinos sobre o Theo, apesar de concordar com meu irmão sem noção sobre ele nos ter abandonado nas mãos do louco Nikkós, mas o que Theodoros poderia fazer? Eu mesmo estive nessa situação quando pude sair de casa, mas não tinha como tirar Kyra dele, por isso fiquei.
O DJ que executa as músicas antes do jantar e da banda ao vivo coloca My Immortal, de Evanescence, e é impossível não olhar para Samara.
— Sua música preferida na adolescência — comento com ela.
Samara sorri e balança a cabeça, olhando os casais indo para a pista de dança.
— Tocou na minha formatura...
— Eu sei, eu queria dançar com você, mas você não parecia muito a fim, então fui beber.
Ela arregala os olhos e me encara como se não soubesse do que eu estou falando. Provavelmente nem se lembra, estava nervosa e ficava repetindo o caminho todo dentro do carro que a gente nem deveria ter ido, que era besteira.
Não somos mais adolescentes!
— Quer dançar? — inquiro impulsivamente e estendo a mão para ela.
Samara olha para minha mão por um tempo, mas aceita.
Porra, que loucura!
Ela pega minha mão, e minha vontade é de puxá-la para mim e beijar sua boca. Foda! Não consigo mais refrear meus desejos; sempre consegui com ela, por isso não entendo o que está acontecendo agora. Não é qualquer mulher aqui comigo, indo para a pista de dança para ficar de corpo colado no meu – porra! – é a Samara!
Samara!
Minha amiga de infância!
Quase uma irmã...
MERDA!
— Está tudo bem? — ela me pergunta, e eu tento relaxar, já que estou dançando como antigamente: a um palmo de distância dela.
— Sim, tudo. — Tento dar meu famoso sorriso, mas não rola, então pigarreio. — Estou com sede, calor... acho que é essa decoração toda.
— Pode ser. — Ela desvia os olhos de mim. — Quer voltar para a mesa?
Quero!
— Não, a não ser que você...
— Tudo bem.
Ela se solta de mim no exato momento em que a música muda para um instrumental baixo e as luzes se acendem.
— O jantar. — Aponto para os garçons em fila e os convidados voltando aos seus lugares. — Vamos?
Salvo pelo gongo do cozinheiro!, penso ao ajustar disfarçadamente minha calça para não andar de pau duro e assustar a todos por causa da claridade do salão.
Samara bebe mais uma taça de champanhe, e eu rio, já preocupado. Nunca a vi beber tanto! Sempre foi séria, careta, estudiosa e boa filha. Ela nunca fazia nada de errado, nunca decepcionou os pais, fazia tudo o que eles queriam... quer dizer, tudo menos se afastar de mim.
— Acho que já quero ir — ela comenta de repente. — Vou chamar um Uber...
Levanta-se um pouco tonta, e eu a amparo pela cintura.
— Você quase não comeu, e bebeu muito — falo, e ela levanta uma sobrancelha atrevida e irônica para mim. — Não estou dando lição de moral, mesmo porque não tenho nenhuma, apenas constatei um fato.
Ela ri.
— Você não tem nenhuma moral mesmo! — arrasta a última palavra. — Sempre foi um galinha, essa cara de santo aí só engana as outras!
Gargalho.
— Elas não ficavam enganadas por muito tempo, pode acreditar!
Samara funga, indignada, e fecha os olhos.
— Eu acho que realmente bebi demais.
Olho em volta; o salão já está praticamente vazio, apenas um ou outro convidado conversando em pequenos grupos. Theodoros se despediu, com Valentina grudada em seu pescoço, há mais de uma hora, e Kostas nem jantou conosco à mesa, provavelmente ficou no bar com sua acompanhante.
Inicialmente eu tinha pensando em esperar tudo terminar para acompanhar Kyra até em casa, mas, com Samara no estado em que se encontra e com tudo aqui ainda para ser desmontado, é melhor eu levar minha amiga para casa – aproveitando que moramos no mesmo prédio – e voltar mais tarde para acompanhar minha irmã.
Pego a pequena bolsa que ela trouxe e, ainda abraçado a ela, caminho para a saída.
— Alexios... tudo está rodando...
— Muito natural depois de todo aquele champanhe.
Ela suspira e joga a cabeça para trás.
— Você é um chato, sabia? Não posso entender o que todas aquelas mulheres viam em você!
— Imagino que não possa mesmo — respondo-lhe, sabendo que vai se irritar.
Samara sempre disse que eu respondia politicamente ou me evadia quando sentia que o assunto poderia ir para alguma direção que não me deixaria confortável. Ela tinha razão na maioria das vezes, mas, neste momento, só estou a fim de irritá-la.
— Você é um babaca, Alexios Angelos!
Opa! Falou meu nome todo! Rio de sua irritação bêbada, talvez por estar um tanto alto como ela, mas sóbrio o suficiente para carregá-la em segurança até a calçada.
Não vim de moto ou carro sozinho exatamente por saber que iria beber – principalmente para aguentar sozinho a companhia dos meus irmãos à mesa –, porém previ que a saída do baile estaria um inferno e que seria difícil conseguir um táxi ou um carro de aplicativo que estivesse por perto, por isso deixei o Cris, que me trouxe, de sobreaviso no estacionamento.
Mando mensagem para ele e espero até meu carro aparecer. Abro a porta de trás e coloco sobre o banco uma Samara parcialmente adormecida por cachaça francesa.
— Essa foi nocaute! — Cris ri quando eu entro. — Para onde?
— Para o Castellani. — Ele dá um sorrisinho malicioso e pisca. — Ela é minha vizinha, Cris, sossega.
— Falou, chefinho.
— Para de merda e dirige.
Ele tenta sair da entrada do hotel, mas é praticamente impossível com o número de carros que também tentam deixar o local. Olho para trás, confiro que Samara está mesmo apagada e fecho os olhos, recostando-me contra o assento do carona.
— Foi uma festança, hein? — Cris volta a falar. — Só vi entrar filé, pena que a maioria estava acompanhada.
— Geralmente isso não é problema — comento, mordaz. — Já comi muita mulher no banheiro de recepções como essa enquanto o marido conversava com os amigos e falava de negócios.
Cris gargalha.
— Você nunca valeu nada, Lex!
Não retruco o apelido ridículo com que ele me chama e me faz parecer o vilão do Homem de Aço. É pura perda de tempo ralhar com Cristino, então simplesmente ignoro, cansado, meio zoado e com tesão frustrado.
Ele e eu nos conhecemos há alguns anos, quando visitei um dos prédios da Karamanlis que foram invadidos por movimentos pró-moradias. O homem era motorista de profissão, com anotação em sua carteira de trabalho em várias empresas, que juntou todo o dinheiro que tinha, investiu em um carro e um ponto de táxi, mas foi engolido e enxotado pelas grandes cooperativas.
Assim, quando nos conhecemos, ele estava sem casa, sem carro, sem emprego e com uma enorme dívida, fazendo bicos aqui e ali. Ajudei-o primeiro a conseguir emprego, depois por fim saiu da invasão, e, nesse ínterim, nos tornamos amigos.
Ano passado, quando a filha dele nasceu, quis que eu a apadrinhasse, mas educadamente declinei, explicando que, mesmo honrado, não poderia aceitar, pois sou ateu, e o apadrinhamento de uma criança tem a ver com questões religiosas, tem um sentido específico, e eu não seria a pessoa certa para isso. Ele entendeu, mas a garotinha já me chama de Didi (seu jeito fofo de bebê de chamar seu dindo, mesmo que oficialmente eu não o seja).
Acho que cochilei também até o Castellani, pois, quando me dei conta, já estávamos na garagem. Cris me perguntou se eu queria ajuda com Samara, mas agradeci e o mandei para casa. Ele não trabalha como meu motorista diariamente, mas sim na Karamanlis, transportando quem quer que precise fazer serviços externos. Contudo, toda vez que preciso, chamo-o para ganhar um extra.
Há muito parei de combinar bebida e direção, não por mim, mas por medo de acontecer algum acidente e eu acabar prejudicando outras pessoas.
Chamo o elevador, e somente dentro dele é que a bela adormecida parece voltar a si.
— Alexios... — Samara olha em volta. — Este é o elevador do Castellani?
— Parece que sim — respondo-lhe divertido.
Samara bufa.
— Só desmaiada é que eu aceitaria vir com você na direção nesse estado em que se encontra.
— Estou melhor que você. — Ela se encosta contra o espelho, olhos fechados e um enorme sorriso bêbado no rosto. — Além do mais, viemos com motorista.
— Bom... — Samara fala devagar e lambe os lábios como se estivessem secos. O efeito no meu pau é instantâneo. Sinto meu corpo inteiro acender, minhas mãos formigam de vontade de tocá-la. Sua pele parece brilhar, atraindo-me como uma chama atrai uma mariposa.
Tento me afastar, pensar em outra coisa, mas o espaço reduzido do elevador não ajuda. As paredes parecem se fechar cada vez mais, aproximando-me de Samara, apertando-me contra ela, espremendo meu corpo...
— Alexios... — ela geme meu nome, e eu me espremo mais, fazendo-a grudar contra o espelho. O seu perfume inebria meus pensamentos, a pele, tão quente e macia que a sinto mesmo por baixo do vestido, me enlouquece. Preciso provar o sabor de sua boca, conferir se o hálito quente e um tanto etílico se confirma em sua saliva.
Sim!
Agarro-a com mais força, minha ereção pressionada contra sua barriga, minha boca correndo em seu pescoço. Tudo parece congelar à nossa volta, não existe mais tempo e nem espaço, apenas o vácuo e nós dois dentro dele, em chamas.
Lábios nos lábios. Meus dedos esfregam sua nuca, a pele arrepia, os pelos eriçam, meu corpo treme. É a viagem mais louca que eu já fiz sem ser através de uma substância química entorpecente... não! É química ainda, é uma droga viciante, é tesão!
Devoro sua boca sem nenhum pudor ou impedimento. Ela me acolhe, abre-a para minha exploração, prende meus lábios entre seus dentes e morde com força, despertando com a dor ainda mais meu desejo.
Enfio os dedos no meio do seu penteado, seguro o cabelo com força, e ela retribui o desespero cravando as unhas nos meus ombros.
Estou pronto para fodê-la, minha cabeça já trabalha uma forma de abrir o zíper da calça social, sacar meu pau e buscar o caminho de sua boceta, que, a julgar pela forma com que ela come a minha boca, já está molhada e quente.
Um pigarrear me faz sobressaltar, e eu me afasto dela o mais rápido possível. Um casal de idosos também vestido em black tie entra no elevador no saguão do prédio, sinal de que o elevador subiu e desceu de novo enquanto nós dois quase nos comíamos dentro dele.
Olho para Samara, mas ela não parece constrangida ou assustada, apenas passa a mão pelos lábios e me encara, sua expressão cheia de perguntas e curiosidade.
Caralho, o que eu estou fazendo?! É a Samara, minha amiga, aquela que eu sempre quis manter longe desse meu lado sem vergonha! Puta que pariu!
Espero o casal descer em seu andar e, assim que as portas se fecham, respiro fundo.
— Desculpa, Samara, acho que estou mais bêbado do que imaginei a princípio. — Não tenho como olhá-la, dividido entre o constrangimento e o desejo ainda pulsando na minha calça. — Somos amigos, eu não deveria atacar você dessa forma, me des...
— Para! — sua voz soa magoada, e eu tenho vontade de socar a cabeça contra o espelho. — Não precisa dizer mais...
— Eu prometo que isso não voltará a acontecer. — Finalmente a encaro e fico fodido ao ver sua expressão confusa. Ela parece não ter gostado do que aconteceu, deve estar achando que eu sou um filho da puta aproveitador. — Você é minha amiga, Samara, mesmo depois dessa distância, eu ainda a vejo como se fosse minha irmã e...
— Chega! — ela grita, e as portas do elevador se abrem no seu andar. — Você tem razão, foi um erro e não deve voltar a acontecer!
Ouvir isso é como um balde de água fria, mesmo reconhecendo que é o certo.
— Eu não quero que isso afete novamente a amizade que nós temos e...
Samara sai pisando duro do elevador sem olhar para trás. Minha vontade é de correr atrás dela, voltar a encostá-la em alguma parede e beijá-la novamente até que perca a razão ou eu alivie esse tesão indesejável que estou sentindo.
As portas se fecham, e eu, ao invés de apertar o botão do meu andar, mando o elevador de volta para o térreo e chamo um Uber.
Preciso trepar!
— Essa sua cara de cachorro cagando na chuva é ainda ressaca do baile? — Kyra me pergunta, sentando-se ao meu lado na rede que ela tem em sua varanda. — Quer café?
Resmungo ainda com os olhos fechados:
— Quero paz!
Ela ri.
— Isso está em falta por aqui hoje, passa na semana que vem... — Encaro-a, puto com a piadinha. — O que aconteceu?
Não respondo, meus olhos fixos no topo do prédio do outro lado do parque. Balanço a cabeça, decidindo ser mais covarde do que tenho sido desde a madrugada do dia primeiro de janeiro e fecho os olhos para tentar nem pensar na confusão que arrumei.
— Você não deveria estar trabalhando hoje? Ou eu? — Kyra volta a me importunar, mas continuo mudo. — Mano, você continua o mesmo chato da porra de sempre! Fica aí com essa cara de Maria do Bairro e não abre a porcaria da boca para me contar o que diabos você fez dessa vez!
— Obrigado pela confiança em mim! — retruco irônico.
— Ah, boquinha para ser mal-educado comigo você tem! — Ela me cutuca o ombro, mas depois suspira e deita a cabeça nele. — Você sabe que faz merda, mas que eu estou aqui, disposta a te ouvir e te ajudar a limpar os cagaços. Somos uma dupla, você e eu, sempre fomos e sempre seremos.
— Costumávamos ser um trio... — assim que eu comento, imediatamente me arrependo, pois Kyra salta da rede – quase me derrubando no percurso – e emite um ensurdecedor: “ahá!”.
— Eu sabia que tinha acontecido algo na madrugada do baile! Samara está estranha, esquiva, e isso não é o natural dela. Que merda você aprontou? — Continuo ignorando-a, sem nenhuma disposição para contar sobre o beijo, o amasso e a confusão que isso criou em mim. — Alexios! — Minha irmã começa a pirar por causa do meu silêncio, mas, se me conhece um pouco, já deve imaginar que eu não irei abrir a boca para falar desse assunto. — Está certo! Você e sua maldita boca de siri. — Volta a se sentar, mas dessa vez não se deita em mim. — Alex, ela é nossa amiga, não a magoe, ok? Samara merece ser feliz, e esses anos que passou na Espanha foram ótimos para ela. Eu morria de saudades, mas estava feliz por ela estar realizada trabalhando com o que ama fazer, com um puta gato espanhol lambendo seus pés e — abro os olhos, mas Kyra não se freia — querendo formar família com ela.
Sento-me bruscamente, e Kyra balança.
— Como assim formar família?
— Ele a pediu em casamento. — Surpreendo-me, mas tento não reagir, não demonstrar. — Deu-lhe um lindíssimo e caro anel de diamante e está esperando pelo retorno dela.
Essa informação, apesar de ter me pegado de surpresa, não é nenhuma novidade. Sempre achei que algum homem de sorte iria conquistar o coração da minha amiga de infância e tê-la para sempre. Samara é a pessoa mais leal que eu conheço, mais incrível, merece muito ser feliz ao lado de alguém que valha a pena.
— Ela não estava usando anel... — penso em voz alta.
— Ainda não falou com os pais dela... — Kyra olha fundo nos meus olhos, procurando qualquer reação minha, mas sei que não irá encontrar nenhuma. Há muito aprendi a sentir sem demonstrar ou a mostrar apenas o que eu quero que os outros vejam. — Vocês não conversaram ontem?
— Acho que ainda não conseguimos estreitar os laços de amizade novamente.
— Hum... — Ela olha para seu relógio no pulso e suspira. — Preciso ir para o trabalho, vai ficar aqui? — Assinto. — Eu tenho a sensação de que você está se escondendo, só não faço ideia do quê.
Ela entra no apartamento, e novamente olho para o alto do Castellani, do outro lado do parque. Daqui do prédio onde ela mora, consigo ver o heliponto no telhado, algumas janelas da cobertura onde Cadu mora, o andar debaixo, onde Bernardo Novak reside, e uma pontinha da minha varanda. O apartamento de Samara fica uns andares abaixo do meu, então não tenho como vê-lo, mas somente por saber que ela está lá dentro, sinto vontade de ficar aqui, bem longe.
Não me entendam mal, não estou fazendo isso porque não quero que ela se aproxime de mim, pelo contrário, estou aqui, exilado como um covarde no apartamento da minha irmã mais nova, porque, se pisar no Castellani, sei que não conseguirei me manter distante dela.
Mesmo depois da maratona de sexo que fiz com uma mulher com quem já havia saído antes das festas de final de ano, não tenho segurança de estar no mesmo ambiente que Samara e me controlar para não a pressionar contra alguma parede e fodê-la sem ao menos dizer um cumprimento.
Definitivamente não vou fazer isso, não com ela!
Muito menos depois de saber que há alguém que a merece, que está à altura dela, esperando sua volta.
Rio de mim ao pensar que estou aqui, evitando-a, quando na verdade ela é quem deve estar querendo ficar a quilômetros de mim. Talvez esteja até indignada e ofendida pelo modo com que a toquei e beijei sem nenhum aviso, como se fôssemos um casal qualquer que se encontrou na balada para trepar, e não duas pessoas que são amigas desde que se entendem por gente.
Não entendo por que perdi o controle do tesão que sempre reprimi, mas me conheço o suficiente para saber que ele não passou. Raramente sinto aquela química com alguém. Era como se meu corpo estivesse sendo atraído, como se algo nela estivesse provocando reações em mim que eu não conseguia controlar. Foi animal, carnal, a famosa atração de pele que muita gente procura, mas pouca tem.
E eu tive justamente com minha melhor amiga!
Kyra volta a aparecer no meu campo de visão, agora com os belíssimos cabelos escuros, longos e fartos soltos, o rosto maquiado e uma roupa de deixar qualquer homem lobotomizado.
— Esse bode aí está foda para passar, hein? — comenta antes de se abaixar para pegar um guarda-chuva no móvel ao lado da rede. — Têm umas sobrinhas do baile na geladeira, cerveja – por favor, não tome todas, mas se tomar, as reponha –, e meu chuveiro tem muita pressão e água fresca. — Pisca para mim, e eu franzo a testa, sem entender. — Você está meio rançoso.
— Vai se ferrar, Kyra — ralho com ela, mas rio.
Ela se aproxima e beija minha testa, e isso, sim, arranca um sorriso sincero meu. Gosto que ela confie em mim o suficiente para me tocar, para recostar-se no meu ombro ou mesmo ficar abraçada, pois sei que ela não é assim com todos, principalmente com homens em geral.
— Fica bem e ouça meu conselho... — Ela anda até a porta antes de complementar: — Tome um banho, você cheira a álcool e a perfume vagabundo.
Levanto o dedo do meio para ela e a escuto ir gargalhando apartamento adentro até a porta de entrada bater. É, eu bebi bastante, sim, devo estar exalando álcool pelos poros, e o perfume barato se impregnou em minha roupa ontem, quando a recoloquei depois de mais de 12 horas nu, e a mulher me abraçou toda perfumada.
Saí do apartamento dela e vim direto para o da Kyra, torcendo para que minha irmã estivesse em casa e sozinha a fim de que eu pudesse cair aqui nesta rede onde estou e tentar pôr a cabeça certa no controle do meu corpo.
O telefone fixo toca alto, afastando meus pensamentos, e aproveito para tomar o banho aconselhado pela minha irmã viciada em limpeza. Entro na sala desabotoando a camisa branca que usei com o smoking – pois é, ainda estou com a mesma roupa do Ano Novo em pleno segundo dia do ano – e noto que não faço ideia de onde estão o paletó e a gravata-borboleta.
A primeira foto que vejo ao entrar no quarto de Kyra é uma que tiramos juntos – Samara, ela e eu – na formatura da minha irmã. Eu fui o par dela, então estava de smoking, e as duas, de vestido longo, maquiagem e penteado. Caminho até o aparador e pego o porta-retratos, focando em Samara e me perguntando como eu conseguia me manter longe do mulherão ao meu lado. Era uma beleza diferente da minha irmã, Samara tem o olhar doce, sorriso largo, nenhum mistério, seu rosto expressa suas emoções, sua sinceridade.
CONTINUA
Sua pergunta me deixa paralisada, completamente sem condições para lhe responder. Por que ele me procuraria?! Porque somos amigos desde que nasci? Porque estive ao lado dele em todos os momentos? Porque ele tomou um porre, apareceu lá em casa, chorou no meu ombro, beijou-me e depois fingiu que nada tinha acontecido?
Respiro fundo para controlar o volume da voz e não gritar que ele é um idiota, mas, antes que eu abra a boca, Kyra aparece esbaforida com um telefone na mão.
— Ei, Malinha, você está com seu telefone na bolsa? — Alexios olha para a irmã, puto por ela estar nos interrompendo, e eu franzo a testa, sem entender a pergunta dela. — Seu celular! — Ela bufa... — Seu irmão acaba de ligar para o meu telefone. — E balança o aparelho.
Arregalo os olhos, meu coração dispara, e logo penso em mamãe, que vi apenas um pouco ontem, quando fui buscar o Godofredo. Pego o telefone e confiro as ligações perdidas. Noto Alexios se afastando, mas não me importo; ele continua o mesmo egoísta de sempre.
Samara Schneider está de volta!
Mastigo mais um pedaço do pernil que Kyra serviu como opção de carne na ceia de Natal e não consigo deixar de pensar na volta daquela que foi minha grande amiga e companheira.
Até hoje não entendo o que aconteceu para que ela tomasse a decisão de ir estudar na Espanha sem falar nada comigo. Claro, eu sabia que tinha a possibilidade, afinal, havia anos o pai dela pressionava por isso, para ela ir estudar arquitetura clássica na terra de Gaudí14. No entanto, para minha total surpresa, em vez de ir morar em Barcelona, Samara foi para Madri.
Eu, que até então me considerava seu melhor amigo, só fiquei sabendo desses detalhes todos porque Kyra me contou depois que fui atrás dela para saber o paradeiro de Samara.
Pego a taça com água para ajudar a engolir a comida, pois estou com um aperto na garganta desde que a vi. Eu tinha acabado de sair da sala de reuniões de Kyra depois de um ménage espetacular com Valéria e Priscila, mais animado para encarar a noite especial, sem imaginar a grande surpresa que encontraria no salão e que quase me fez tropeçar em meus próprios pés.
Assim que meus olhos bateram nela, assustei-me, pois a danada da Kyra não havia me contado que Samara tinha voltado. Tentei um sorriso e uma aproximação amigável, como se ela não tivesse me abandonado por longos três anos sem nenhuma notícia. Ela está diferente, ainda mais bonita do que eu me lembro, mas tentei não reparar muito e ser o amigo de sempre.
Nada disso adiantou, pois, ao que parece, Samara desejou que eu corresse atrás dela, que a procurasse e reestabelecesse contato. Como eu poderia imaginar algo assim? Não sou adivinho! Ela some sem nenhum motivo e ainda se sente no direito de ficar puta por eu não ter tentado contato?
Quem entende a cabeça das mulheres?!
— Sua amiga foi embora cedo — Millos comenta ao meu lado. — Será que houve algum problema com a mãe dela?
Olho para meu primo, sentado ao meu lado à mesa, e ele entende meu total desconhecimento do assunto.
— A mãe dela, dona Ana Cohen, está em tratamento contra um linfoma. — Millos bebe mais chope. — Você não sabe nada sobre a vida da sua amiga?
— E você? Como sabe?
O filho da puta apenas dá de ombros, evasivo como sempre, adorando estar sempre um passo à frente de todos. Millos é um sujeito estranho. É o único que consegue interagir com todos nós sem tomar partido e sem revelar nada da vida pessoal de ninguém, nem mesmo da sua. Somos amigos, nos damos bem, mas eu sei pouco sobre ele, sobre suas atividades, e o máximo que conheço de sua vida pessoal é que tem um passado fodido como o meu, frequenta alguns clubes de sexo, tem uma amiga que por sinal é uma gostosa do caralho – mas nunca me deu mole, infelizmente – e só.
Como profissional, o homem é uma verdadeira coruja! Quieto, observador, parece que consegue olhar em 360 graus, além de ser um caçador de informações inigualável. Não há nada que passe despercebido por ele, e o que expõe ou o que fala, tenho certeza de que é o mínimo do que sabe. Por isso, todo cuidado é pouco quando o assunto é Millos Karamanlis, porque o desgraçado é um manipulador de mão cheia!
— Eu não sabia que dona Ana está doente, não vejo os pais de Samara há anos — contesto-o. — Espero que nada grave tenha ocorrido.
— Não vai ligar para saber? — Millos volta a questionar.
Franzo as sobrancelhas, encarando-o, tentando entender o motivo pelo qual ele está tão interessado no assunto.
— Não — respondo seco e volto a comer, mesmo com o questionamento dele na cabeça. Para mim o assunto acabou! Samara já demonstrou que não quer papo comigo por algum motivo, e, mesmo chateado com isso, devo respeitar a decisão dela. Millos é um manipulador e sabe que esse é um assunto que me atinge diretamente, por isso tocou nele.
Não preciso ligar para Samara, como não liguei para ela durante todo o tempo em que esteve fora, mas isso não quer dizer que eu não queira saber o que está acontecendo. Kyra sempre foi minha fonte de informações sobre ela e, caso tenha que ser assim, continuará sendo.
Termino minha refeição, fico mais algum tempo com Kyra e seus convidados, brindo ao sucesso do negócio dela e logo depois vou embora. Tinha pretensão de ir para casa, mas, no meio do caminho, uma mulher com quem eu já saí algumas vezes me manda uma mensagem dizendo que está na cidade, e vou encontrá-la.
Dia 26 de dezembro, pior dia de trabalho do mundo, certamente! Rio ao passar por mais dois engenheiros com cara de ressaca ou, talvez, de quem comeu demais e agora passa mal do estômago.
— Melhor colocar a lixeira perto! — passo, sacaneando meu colega de trabalho, Pedro, engenheiro químico. — Se emporcalhar a sala, vai ter que limpar você mesmo.
— Porra, Alexios, fala mais baixo! — Ele põe a mão na cabeça.
Gargalho e me sento à minha mesa, lotada de projetos, planilhas e minha coleção de lápis. É, eu coleciono lápis! Cada um tem a coleção que lhe cabe, não é?
Ligo o computador, olho para meu caderno de tarefas e arregalo os olhos ao ver um nome que eu não imaginava rever anotado lá – por outra pessoa.
— Ethernium? — questiono olhando para o Pedro.
— Sim! Acabamos de saber, mas o CEO lá da Karamanlis vai querer conversar com você, certamente.
Bufo ao pensar em subir até o Olimpo para conversar com Theodoros, sem esquecer as discussões que tivemos nas últimas semanas por conta de seu egocentrismo e insensibilidade com os funcionários da casa.
Sua mania de pensar que é Deus, inabalável, inatingível e perfeito me irrita, principalmente porque sei que ele não é nada disso, apenas a porra de um filhinho de vovô mimado, que sempre achou que podia fazer qualquer coisa que quisesse sem pensar nas consequências, que o velho grego limparia suas cagadas.
Admito, o velhote sempre fez tudo para seu neto querido. Entretanto, não pôde limpar a merda que Theodoros deixou para trás, apenas jogou-a para debaixo do tapete, limpou a consciência do seu netinho querido, que seguiu a vida como se nada tivesse feito e deixou o resto se fodendo sem se importar o mínimo.
Theo é arrogante, e eu não tenho saco para lidar com gente assim.
Ouço passos, um poc-poc característico de saltos, e em seguida a voz de Lia, outra engenheira que trabalha na minha equipe direta.
— Bom dia! — sua voz soa animada. — Ah... sem Papai Noel de chocolate este ano! — ela resmunga, e eu a vejo procurando sobre sua mesa. — Poxa, Alex, você já foi mais generoso!
— Eu?! — Começo a rir. — Você realmente me imagina comprando e colocando chocolate em formato de Papai Noel nas mesas dos outros? — Ela faz careta e nega. — Eu achava que era você!
— Por quê? Só porque sou mulher?
Rolo os olhos.
— Não, porra, porque você é viciada em chocolate!
— Ele está certo, Lia! — Pedro se mete na conversa em minha defesa. — Eu também achava que era você por causa disso.
Ela se senta frustrada por não ter encontrado o presente do “Papai Noel” misterioso da Karamanlis.
— Bom, não sou eu, e eu contava com isso! Não falha por anos! — Olha em volta para as outras estações de trabalho, ainda vazias sem os profissionais. — Ninguém recebeu?
Nego, e Pedro faz o mesmo.
— Estranho...
— Coisas estranhas têm acontecido por aqui — digo e lhe estendo meu caderno com a anotação da Ethernium.
— O quê? De novo? — Ela geme. — Esses caras da Ethernium são uns malas! Sério, Alexios, eu não vou aguentar gracinhas pra o meu lado de novo não!
— Eu disse que você devia ter respondido a ele. — Dou de ombros. — Mas agora sabe que tem meu total apoio! Se alguém da equipe deles fizer piadas machistas de novo, responda.
— Quem é o machista? Que vou com você dar uma surra nele. — Eliane chega já mostrando as garras – que garras! Minhas costas sofreram com elas – e se senta em sua estação. — Bom dia, feliz Natal, foi tudo ótimo! Agora, silêncio, porque ainda estou agarrada a um cálculo estrutural que não tem me deixado dormir. Obrigada. De nada.
Pedro começa a rir, e Lia só balança a cabeça. Eliane é assim, direta e sem rodeios, por isso mesmo achei-a ideal para o trabalho pelo qual é responsável. Nós nos conhecemos em uma balada, transamos, depois voltamos a nos encontrar na entrevista dela aqui na K-Eng tempos depois. Nunca mais voltamos a trepar, mas conseguimos construir uma relação de trabalho quase perfeita. Sei que posso contar com ela para qualquer coisa aqui dentro.
Tenho mais duas pessoas na minha equipe: Evandro e Michel, mas os dois estão de férias e ainda não retornaram. Não é normal dois membros da mesma equipe saírem em férias juntos, mas, como eles são casados, a lei lhes garante esse direito.
A K-Eng não é formada apenas pela minha equipe de engenheiros em suas especialidades, a verdade é que cada um aqui gere suas próprias divisões. O Pedro, por exemplo, é engenheiro químico, e na divisão dele estão químicos industriais, técnicos em química e outros engenheiros dessa área. Já a Lia é engenheira ambiental, e, dentro de sua divisão, há biólogos, gestores ambientais e engenheiros sanitaristas. A Eliana trabalha com projetos, e ela coordena outros engenheiros, arquitetos e projetistas. O Michel faz toda a parte de planilhas e medições, e o Evandro é responsável pelas operações, é quem lida com empreiteiros, clientes e atua também como fiscalizador de obras.
Além do corpo técnico da K-Eng, a empresa, que é uma subsidiária da Karamanlis, ainda tem setores administrativos e financeiros, e eu, como CEO dessa bagaça aqui, sou quem comanda essas áreas.
O único setor que dividimos com a Karamanlis, infelizmente, é o jurídico, por isso aturo muito a prepotência inglesa do Konstantinos e seu humor ácido. Geralmente não tenho paciência com ele, zoo com sua cara ou apenas o ignoro. Ele não é bem quisto por ninguém da minha equipe, principalmente pelas mulheres.
— Por falar em machismo... — Lia volta a falar. — Será que a Kika não vai voltar mais não?
Dou uma risada por ela ter entrado no assunto justamente quando eu pensava no meu irmão machista.
— Está um silêncio total na Karamanlis — Eliana se pronuncia. — Dá até medo de andar pelos corredores, clima pesadão!
— A Kika era incrível, né? Gata, alto-astral, competente — Pedro lamenta. — Uma pena que tenha perdido a cabeça e tenha sido mandada embora...
— Opa! — Eliana o interrompe. — Ela se demitiu!
— Enfim, está desempregada depois de ter ganhado uma puta promoção para a gerência.
— Eu a preferia à Malu Ruschel. — Lia treme toda. — Aquela mulher congelava até meu sangue só de estar perto dela.
Definitivamente, não o meu!, penso ao me lembrar de Malu Ruschel, a ex-gerente dos hunters da Karamanlis. Malu era bonita, tinha classe e aquele seu jeito focado me enchia de tesão. Uma pena ter ido morar no fim do mundo!
Já com a Kika, nunca senti essa atração, talvez por sempre tê-la achado tão receptiva, maravilhosa com seu jeito espontâneo, que logo gostei dela como se fosse uma amiga de longa data. Tenho muito apreço por ela e lamento que tenha saído da empresa.
Os engenheiros começam a conversar, mas o assunto não me interessa o mínimo, então coloco meus fones de ouvido – a voz forte e rasgada da Janis Joplin soa bem alta – e volto a mexer no projeto em que estava trabalhando.
— Ei, moleque! — Millos me chama assim que para sua moto. — Você não sabe curtir um passeio, puta que pariu!
Ele desce da motocicleta, tira o capacete e a jaqueta e se senta à mesa do bar ao meu lado. Bebo minha água sem responder, porque a única coisa que eu poderia lhe falar é que não sou um velho para ficar andando nessas motos de colecionador há 80 km por hora.
Estou aqui esperando-o há pelo menos 20 minutos, e isso porque saímos juntos de São Paulo em direção ao Guarujá, em uma viagem não programada e cujo motivo, sinceramente, nem entendi. Ele apenas apareceu lá na K-Eng e me chamou para andar de moto com ele, e eu topei.
— Qual é o propósito disso? — resolvo perguntar sem rodeios.
— Do quê?
Millos agradece à garçonete que lhe entrega um coco verde com um canudo e nem percebe a moça comendo-o com os olhos (ou talvez só esteja assustada com suas tatuagens, que cobrem os braços, pescoço e peito).
— Desse “passeio”. A gente se viu há alguns dias na ceia da Kyra, e você não comentou nada sobre isso.
— Nada de mais! — Ele bebe a água de coco. — Vou viajar no Ano Novo, ficar um tempo fora e queria passar um tempo contigo. Já jantei com seus irmãos, mas como você é todo amalucado para comer, achei que uma volta de moto iria cair bem, mas esqueci que você é louco nisso também.
— Você está ficando velho, Millos, sinto lhe informar — debocho. — Acha mesmo que, com essa potência italiana nas mãos, eu iria ficar molengando contigo na estrada?
— Não é molengar, é curtir a viagem, a paisagem...
— Ah, não, você curte essas coisas paradas, não eu. Meditação, ioga, essas coisas todas aí que você faz, tô fora! Não sei ir devagar, Millos, em nada!
— Deveria... talvez assim conseguisse agradar às mulheres. — Ele pisca e tenta disfarçar a troça bebendo mais de sua água.
Eu gargalho.
— Pode ter certeza, elas não reclamam da minha rapidez. Não basta saber correr, tem que saber tirar o máximo proveito de uma máquina, fazê-la dar tudo de si, e isso eu faço.
— Está falando das motos ou das mulheres?
— Tem diferença?
Ele ri novamente.
— Você é um moleque, não sabe nada ainda!
— Falou aquele que nomeia suas motos com nomes femininos!
Nós dois rimos juntos, e o clima fica descontraído.
A verdade é que ele e eu temos muito em comum. Ambos adoramos motocicletas, rock e carne. Apesar de sua onda “zen budista”, Millos nunca conseguiu se livrar da proteína animal e das comidas pesadas que adora preparar para acompanhar suas cervejas artesanais.
Ah, esse é outro ponto em comum: adoramos cerveja! Ele fabrica, eu apenas bebo, mas tenho tanto conhecimento quanto ele, e esse é um dos pontos sobre o que mais conversamos quando estamos juntos, geralmente comendo alguma carne e ouvindo rock.
Raramente saímos juntos de moto, exatamente por ele fazer o estilo tiozão que gosta de andar de Harley, apreciando paisagens, e eu e minha Ducati Multistrada 1260 não temos saco para andar quase parando não.
Embora eu reconheça que tenho que agradecer a esse tiozão por ter minha moto dos sonhos, a que uso para correr nas competições. A Ducati só disponibilizou três unidades da 1299 Superleggera para venda no Brasil, há quase dois anos, e um dos amigos do Millos foi quem comprou uma delas, e, quando ele decidiu vendê-la, meu primo prontamente me avisou, e não pensei duas vezes.
Eu gosto das italianas mais do que das americanas ou japonesas, pelo menos para as motos; não sou tão seletivo assim com mulheres.
— Baile dos Villazzas...
— Ah, Millos, não fode com esse assunto de novo! — reclamo, entendendo agora o motivo do encontro.
— Alexios, preciso de você lá.
Rio.
— Mano, aqueles dois não são crianças, e, muito menos, sou a babá deles! Eles não precisam que eu vá para manter a ordem e o bom nome da...
— Kyra me mostrou o projeto do baile, ela parece bem animada com sua primeira grande produção sem a intervenção dos Karamanlis.
Porra! Ele vai pegar pesado!
— Você é muito filho da puta, sabia?
Millos dá de ombros e bebe mais água.
— Acho que vocês deveriam ir para apoiá-la, acima de todos, você! Será importante para ela, além disso... acho que ela está sem acompanhante, porque deu com o pé na bunda do último idiota que estava comendo.
— Porra, Millos! — Xingo-o. — É a minha irmã, porra!
— E o quê? Só por isso ela não trepa?
— Vai se foder! — Levanto-me da mesa puto e pego o capacete.
— Alexios... — ele me chama, mas não dou atenção, já montando na moto para ir o mais longe possível dele.
Antes que vocês me julguem como machista ou irmão ciumento, adianto logo que não se trata disso. Cada um lida com a merda dentro de si de um jeito, e esse é o jeito da minha irmã de lidar com seu passado. Respeito isso, mas não quer dizer que não me doa ou mesmo que eu não me sinta responsável por ela ser assim.
Eu gostaria que as coisas fossem diferentes, esforcei-me o máximo que pude para que ela fosse menos fodida do que todos nós, mas, a cada novo relacionamento seu destruído, sinto-me um fracassado, o que me dói profundamente.
Piloto rápido, passando pelos radares sem me importar com as multas, sentindo o vento forte bater em mim como se pudesse deixar todas as marcas do meu corpo e da minha alma para trás. Contudo, não posso. Ele fodeu a minha vida várias vezes, não só com as coisas que fez contra mim, mas principalmente por eu ver que também destruiu minha irmã.
— Como ela está, Dani? — pergunto ao meu irmão assim que ele entra na cozinha da casa dos meus pais, onde tomo meu desjejum com a Cida.
— Dormiu bem. — Ele beija minha cabeça. — Mas foi um susto essa febre alta assim do nada.
Ele se senta, visivelmente cansado, e Cida logo lhe serve uma xícara de café. Acostumados demais a dividir as refeições com Cida desde que nascemos, sempre tomamos nosso café juntos. Ela está em nossa casa há tanto tempo que não sei como seria minha vida sem sua presença, e certamente Daniel sente o mesmo.
Minha mãe, Ana Cohen, sempre foi muito ocupada na direção do sistema de ensino criado pelos meus avós, franqueado e distribuído por colégios do Brasil todo. Já meu pai, Benjamin, vem de uma longa linhagem de comerciantes e industriais, como bem acentua nosso sobrenome, que é uma derivação da profissão de algum ascendente que foi alfaiate.
Os Schneiders possuem lojas, fábricas ou empresas que prestam serviços, como era o nosso caso. Meu avô não tinha formação quando fundou sua primeira fábrica de móveis, porém eram um marceneiro muito habilidoso, e meu pai aprendeu com ele. Os negócios iam bem, então papai foi estudar arquitetura e, por fim, design, elevando o nível dos negócios familiares, fazendo dos móveis com nosso sobrenome sinônimos de classe e riqueza.
Há 10 anos meu irmão está à frente dos negócios, desde que papai teve seu primeiro infarto – ele já teve outro e fez duas pontes de safena. Daniel é um administrador maravilhoso, fechou com grandes empresas, e hoje os móveis Schneider não enfeitam mais as coberturas e mansões luxuosas de São Paulo, tão somente redes enormes de hospitais, clínicas, lojas de alto luxo e restaurantes em todo o país.
Meu irmão é incrível! Nós dois somos muito amigos, sempre fomos. O único ponto tenso entre nós era Alexios Karamanlis. Daniel é 10 anos mais velho que eu, um quarentão, como eu costumo provocá-lo, e sempre achou Alex uma péssima companhia. Bom, ele realmente era, mas não para mim. Eu sabia das loucuras que Alexios aprontava, seu envolvimento com drogas, farras, lutas valendo dinheiro e rachas pela cidade. Ele não foi um adolescente fácil, mas sempre me tratou como se ainda conservasse o menino que eu conheci. Sempre me deu conselhos para ficar longe de tudo aquilo que ele mesmo fazia, nossa amizade sempre foi separada das outras companhias dele.
Ainda assim, Dani nunca gostou de Alexios, em compensação, tornou-se um dos grandes amigos de Millos Karamanlis, primo do Alex, mesmo que eu não consiga entender o que, de fato, o executivo tatuado e meu irmão tenham em comum.
— Desculpe-me por tê-la tirado da festa da Kyra — meu irmão volta a falar, afastando-me dos pensamentos. — Eu liguei para o doutor Henrique e já ia pedir uma ambulância, quando fiquei com medo de acontecer algo e você não estar aqui.
Pego sua mão.
— Eu sei. Foi um susto!
Retornei as ligações dele assim que Kyra me alertou, e, quando Dani atendeu, o doutor já havia chegado e ministrado medicamentos. O médico preferiu que ela continuasse em casa por conta de sua baixa imunidade, mas ficou acompanhando durante boa parte da madrugada.
— Ela convulsionou, e eu achei que fosse... — Ele me olha, seus olhos acinzentados tristes. — Eu quase perdi o papai tempos atrás, lembra? — Assinto. — Eu estava com ele quando teve o infarto, e agora quase...
— Dani, não pensa nisso! — Abraço-o. — Você é o melhor filho e irmão do mundo, sempre ao lado deles, ao meu lado. Agora estou aqui também e vou ajudar no que for preciso.
— Eu sei, Samara. Essa fase do tratamento é a mais complicada, por causa da baixa imunidade, mas, quando ela estabiliza, é a mamãe que sempre conhecemos e amamos.
— E a Bianca? — pergunto-lhe sobre sua noiva. — Como vocês estão, faltando pouco para o grande dia?
Ele ri sem jeito.
— Você sabe que não tem essa de grande dia, não? Nós vamos ao cartório, assinaremos os papéis e pronto. — Dá de ombros. — Vida que segue.
Cruzo os braços. Não gosto nada desse conformismo estranho.
— Tem certeza disso, Dani?
Ele olha para a Cida.
— Vou fazer 41 anos, pirralha. 15 anos de relacionamento com ela, então...
— É isso? — Cida balança a cabeça negativamente. — Viu? A Cida não concorda também! E não é que você seja já um solteirão arrastando chinelos, Dani! Você é lindo!
— Não é sobre isso, Samara.
— Ele quer ter uma família, menina. — Arregalo os olhos. — Seu pai vive mais entretido na fazenda do que aqui, sua mãe, antes de adoecer, não parava quieta, sempre viajando com as amigas e...
— Eu na Espanha.
Daniel termina o café sem me encarar, sem falar nada e se levanta.
— Vou voltar para o quarto, render um pouco a enfermeira.
— Também vou, Dani!
Seguimos juntos, mudos, pelo corredor. Meu irmão é a pessoa mais discreta do mundo, completamente o oposto de outros filhos de grandes empresários desta cidade. Nunca gostou de sair em revistas de fofoca, nunca namorou modelos, atrizes ou socialites. Na adolescência, namorou uma garota da escola, depois teve duas ou três namoradas na faculdade e, por fim, conheceu a Bianca em um torneio de polo – esporte em que ele é fera. Desde então engataram nesse relacionamento xoxo, totalmente ioiô – eles já terminaram umas 30 vezes ao longo dos anos – e que agora vai se tornar um casamento meia-boca.
— Você merece mais, Dani — solto sem conseguir frear minha língua, e ele ri.
— Você diz isso porque é minha irmã, pirralha. — Ele tenta bagunçar meus cabelos como quando eu era criança. — Bianca pode não ser o grande amor da minha vida, mas é uma boa amiga e companheira.
— Isso é loucura! Você merece amar, ser amado, estar apaixonado...
— Como você esteve a vida toda por aquele doidivanas? — Paro em seco no corredor e arregalo os olhos. — Qual é, Samara, você achava que eu não sabia? Estava escrito na sua testa e em todos os seus cadernos, com direito a corações rosa! Você teve um peixe daqueles que ficam sozinhos no aquário...
— Um beta. — Começo a rir, sabendo exatamente do que ele está lembrando.
— Pois bem, você teve um beta e o nomeou...
— Beto Schneider Karamanlis — falamos juntos, e eu começo a rir.
— Sim! E como você nunca me deu indícios de ter uma queda pela Kyra, eu supus que era o outro Karamanlis. — Daniel me olha sério. — Por que Diego não veio contigo?
A pergunta é tão inesperada que demoro a processar que ele está falando do meu namorado.
— Não sei quanto tempo vou ficar, então...
— Besteira! Ele poderia passar uns dias aqui contigo, os times estão todos em recesso até a primeira semana de janeiro. — Suspiro e olho para o chão. — Não estraga sua vida, Alex não vale a pena.
Assinto, lembrando-me de tudo o que aconteceu noite passada. Alexios continua igual, vendo e querendo todas as mulheres ao seu redor, menos eu. Sempre fui a amiga, quase uma irmã, menos uma mulher, e, como acabei de perceber, todos sabem da minha paixão por ele, então, Alexios deve simplesmente ignorá-la.
Por muito tempo eu achei que ele não soubesse. Ficava fantasiando que, no dia em que eu tomasse coragem e lhe contasse, Alexios iria se declarar também. Iludida! É isso que eu era, porque, depois do beijo que trocamos, era impossível que ele não soubesse.
Respiro fundo, resignada. Alexios sabe, só não se importa e nem sente o mesmo!
Meu irmão bate levemente na porta do quarto de mamãe e em seguida entra. Sigo-o pelo enorme ambiente, que me traz tantas lembranças alegres dos momentos que dividi com ela, deitada em sua cama, contando sobre meus sonhos.
— Samara Esther! — Mamãe estende os braços, sentada na cama, recostada nos travesseiros. — Trouxe Godofredo de volta?
Rio e concordo.
— Trouxe, está lá embaixo no jardim. — Beijo sua testa. — Como está se sentindo hoje?
— Eu estou bem! — Ela dá uma olhada de esguelha para meu irmão. — Ele é superprotetor, sabe? Exagerado!
Daniel permanece alheio às críticas, conversando com a enfermeira.
— Mamãe, ele não é, e a senhora sabe! — Ana suspira. — A senhora está em tratamento, precisa de cuidados, e, com o papai isolado na fazenda, Daniel é que estava responsável por acompanhá-la em tudo, mas agora estou aqui também!
— Dois superprotetores! — ela finge reclamar, mas sorri satisfeita. — Seu pai quis vir para cá para ficar comigo, mas achei melhor que ficasse por lá. Você sabe como ele é, não me daria um minuto de paz.
Eu rio, mas sou obrigada a concordar. Meus pais são incríveis, mas têm uma relação um tanto estranha desde que Daniel e eu saímos de casa para viver nossas vidas. Passaram a viver cada um no seu espaço, com suas coisas. Dão-se incrivelmente bem, mas cada um com sua vida.
É verdade que eles não eram nada parecidos. Mamãe sempre foi uma mulher de negócios, cheia de trabalho, viagens e reuniões, porém extremamente carinhosa com os filhos. Papai é um homem mais reservado em seus sentimentos, embora seja um artista.
Olho para um dos móveis da minha mãe, e a escultura em madeira em cima dele me faz sorrir. Nela há um casal e um garotinho com a mão na enorme barriga da mulher. Papai deu vida à imagem de uma foto que tiraram quando mamãe estava grávida de mim, e a peça ficou tão perfeita que dá para sentir a alegria de todos.
Quando eu era criança, tinha coleções das esculturas dele: cavalos, cães, gatos, pássaros. A que eu mais gostava era a do Pinóquio, que ganhei quando comecei a ler e andava para baixo e para cima com o livro do boneco de madeira que queria ser menino de verdade.
— Você vai até lá visitá-lo? — minha mãe pergunta, talvez adivinhando que estou pensando nele, por estar olhando a estátua.
— Por agora não. Tentei falar com ele quando cheguei e ontem também, mas não consegui. — Dou de ombros. — Papai se isola quando quer, a senhora sabe.
— O doutor Henrique acabou de dizer que os resultados dos exames ficaram prontos e que ele virá assim que puder para conversar conosco. — Daniel senta-se ao meu lado na cama. — É bom ter Samara aqui perto, não é?
Ele me abraça pelos ombros.
— Eu também estou gostando de estar de volta.
Mal termino a frase, e meu telefone toca. A foto de Kyra tentando beijar Godofredo, e ele de boca aberta para mordê-la aparece na tela, e minha mãe sorri.
— Eu estou esperando pela visita dessa filha emprestada desnaturada. — Ana reclama. — Pode dizer a ela que não vai comer mais minha paella!
— Pode deixar! — Levanto-me da cama e vou para um canto do quarto. — Oi, Kyra! — atendo o telefone.
— Quero notícias! Mal consegui dormir essa noite, deixei mil mensagens no seu telefone. Como está sua mãe?
— Está bem, mas ameaçou greve de paella se você não vier visitá-la em breve.
— Está bem mesmo? — ouço preocupação na voz da minha amiga, e meu coração se aperta, pois sei que minha mãe foi o mais próximo que Kyra teve de figura materna. — Malinha?
— Está, sim. O médico dela explicou que, por conta da medicação, ela ficaria suscetível a doenças, a imunidade está baixa, então qualquer resfriado ataca com força.
Kyra suspira ao telefone, e eu abro um sorriso ao ver o quanto minha amiga durona é, na verdade, tão sensível quanto eu.
— Que bom! Fico feliz em ouvir isso e mais aliviada para te fazer um convite.
Faço careta, já prevendo que ela vai me meter em algum evento seu de final de ano, vestida de garçonete.
— O que você está armando, Kyra?
— Nada! — ela logo se defende, indignada. — Eu só queria companhia! Na véspera do Ano Novo acontecerá o Baile Branco e Preto dos Villazzas, e, como eu estou sem nenhum boy no momento, você podia ser meu par, o que acha?
— Kyra! — Rio. — Um baile? Sério?
— Baile? — mamãe logo se mete na conversa e pergunta lá da cama. — Por acaso é o baile dos Villazzas?
Fodeu! Minha mãe sempre amou bailes e conheceu a matriarca dos Villazzas tempos atrás, através de sua amiga, Cecília Novak. Certamente ela adorará a novidade, achará moderno eu ir acompanhando minha amiga, e eu não terei escapatória.
— É, mamãe, eu vou com Kyra — respondo resignada.
— Eu sabia! — Minha amiga ri ao telefone. — O traje branco é obrigatório para mulheres, então, abuse de cores em outros locais!
— Eu vou te matar, Kyra Karamanlis! — sussurro para que somente ela escute.
— Depois do baile; antes, quero usufruir de tudo o que planejei! Vai ser o evento mais incrível que você já viu!
Relaxo, percebendo que ela realmente está feliz e confiante.
— Tenho certeza disso, Kyra!
Nós nos despedimos, mas não retorno imediatamente para a cama, ao lado da minha mãe e do meu irmão, fico pensando em como é bom estar de volta. Realmente me sinto em casa aqui, com as pessoas que eu amo, ainda que tenha feito amigos na Espanha.
Penso no Diego e sinto um pequeno aperto no coração, um misto de saudade e remorso. Daniel me olha, curioso por eu estar parada no mesmo lugar, sem falar ou fazer nada, e reflito sobre o que ele me disse. Reconheço que eu recuei ante o pedido de casamento de Diego por ter esperança de voltar ao Brasil e encontrar Alexios mudado, porém ele não mudou e nem mudará jamais, mas isso não muda o fato de que ele ainda mexe comigo.
Diego e eu nos damos muito bem, somos amigos, companheiros, temos gostos parecidos. Enquanto eu estava na Espanha, longe do magnetismo e atração de Alexios, realmente pensei que pudesse amá-lo e ter uma vida com ele. Os momentos que passamos juntos foram maravilhosos, mas agora me questiono se, mesmo voltando para Madri, é justo manter essa relação.
O Uber me deixa em frente ao Villazza SP, e vejo a entrada principal do hotel cheia de pessoas bem-vestidas e penteadas. Ando na direção delas, questionando-me se os convites estão sendo verificados na entrada, mas me surpreendo ao ouvir um dos homens que está parado na entrada:
— Nós só queríamos comprar o convite, não conseguimos responder a tempo e...
— Senhor, o que me foi passado foi que esgotaram, eu sinto muito — um dos seguranças responde antes de se virar para mim, mas, vendo o convite em minhas mãos, abre a porta. — Seja bem-vinda!
Entro no saguão principal do enorme hotel e suspiro, apreciando todos os detalhes da construção e da decoração, orgulhosa por ter sido parte da equipe que ajudou a deixá-lo perfeito desse jeito.
O escritório de arquitetura que projetou o Villazza SP foi o dos Boldanis, e o arquiteto principal que assinou o desenho foi ninguém mais, ninguém menos que meu ídolo e professor, Julio Boldani. O italiano é fera demais nas suas linhas clássicas misturadas às modernas.
Eu ajudei o pessoal que compôs o projeto de decoração, pois estava me especializando e, por isso, trabalhei um tempo no Boldani. Foi ali que descobri que, por mais que papai fizesse pressão para que eu fosse uma arquiteta, eu queria mesmo era ser designer de interiores.
Subo as escadarias de mármore com corrimão e guarda-corpo de ferro fundido na cor ouro velho em arabescos e folhas e, no saguão da entrada do salão Royal, encontro a recepção do baile montada como se fosse uma bilheteria antiga de circo.
Sorrio ao pensar na Kyra, reconhecendo que minha amiga sabe como dar vida aos seus projetos de maneira perfeita, pois vi os desenhos quando almoçamos juntas anteontem e confesso que está tudo muito mais bonito do que a ilustração em 3D que ela me mostrou.
Olho em volta, procurando-a, pois combinamos de nos encontrar na entrada, mas arregalo os olhos ao ver Alexios, de smoking preto, vindo em minha direção.
Mesmo contra a minha vontade, minhas mãos gelam e meu coração dispara apenas por vê-lo, por notar o quanto ele está lindo com esse sorriso largo e os olhos brilhando.
Por que ele tinha que ter essa aparência e essa boca?!, penso na injustiça do mundo, indignada por ser tão comum, e ele...
— Samara Esther. — Bufo, pois só ele e minha mãe chamam-me assim. — Você está... linda!
Alexios sorri e me olha desde as unhas dos pés, pintadas e cutiladas, até o alto da cabeça.
— Linda! — repete como se não fosse possível que eu estivesse desse jeito.
— Oi, Alexios — cumprimento-o seca, tentando não dar importância ao fato de que ele parece ter tomado um soco só por me ver mais arrumada. — Estou esperando sua...
— Eu sei, foi ela quem me mandou ficar aqui de plantão te esperando. — Enrugo a testa, sem entender. — Kyra resolveu bancar a fada madrinha e ajudar uma amiga a ter seu baile com um príncipe encantado e, por isso, vai ter que trabalhar esta noite. — A expressão no rosto dele é de deboche ao falar do conto de fadas. — Então, restou a mim.
Puta merda, Kyra!
Pego o celular dentro da bolsa e mando mensagem para ela, mas tenho certeza de que, ocupada com o começo do baile, ela não irá ler. O que eu faço? Penso se devo aceitar fazer companhia ao Alexios ou se devo ir embora, afinal, só vim a esse baile por insistência da Kyra.
— Samara, eu sei que nossa amizade está um tanto estremecida por conta da distância e do tempo, mas... — Alexios me encara, e noto que ele está se esforçando para falar — eu gostaria que você me acompanhasse esta noite.
Minha boca fica seca ao ouvir isso, porque, mesmo com a distância, eu ainda consigo saber quando ele está sendo sincero. Alexios me quer ao seu lado esta noite, e isso é...
— Como nos velhos tempos, lembra? — ele complementa, e, mais uma vez, percebo o quanto sou iludida.
Nada mudou!
Imediatamente me lembro do meu baile de formatura do ensino médio, no qual ele foi meu acompanhante. Chegamos juntos, eu estava empolgada para dançar com ele a noite toda, arrumei-me para parecer uma mulher aos seus olhos e não mais a menina de cabelos revoltos que o seguia para toda parte quando criança.
Havia decidido que iria contar a ele o que sentia naquela noite e que, depois de ele se declarar também, iríamos fazer amor, e eu, aos 17 anos, finalmente teria minha primeira noite com o homem que amava.
Ledo engano!
Alexios dançou uma música comigo, depois foi para o bar, encheu a cara, sumiu com uma garota bem mais “servida” que eu e voltou para o salão todo amarrotado. Eu queria ir embora, mas ele acabou dançando (e sumindo) com mais umas três mulheres.
— Seu acompanhante te deixou sozinha, não é? — Marlon, um dos garotos que estava se formando comigo me perguntou, e só aí percebi que ele estava sentado à mesa comigo.
Começamos a conversar e, naquela noite, tive minha primeira experiência sexual. Não foi ruim, namoramos por um tempo, mas reconheço que ela só aconteceu porque Alexios não me quis. Ele simplesmente não me via!
— Samara? — ele me chama e me faz voltar à realidade.
Por Deus! Não sou mais uma garota de 17 anos, sou adulta, independente, com uma carreira bem-sucedida na Espanha e um dos homens mais gostosos de Madri ao meu lado!
— Vamos entrar! — decido e marcho até uma das “bilheterias”, onde recebo minha máscara preta e uma pulseira.
Alexios recebe as dele e ri ao me mostrar a máscara branca como a de O Fantasma da Ópera. Ah, merda!
— Você se lembra? — Ele ri. — Me obrigou a ver esse filme um milhão de vezes e sabia até as falas!
O desgraçado põe a máscara, ergue uma das sobrancelhas, dobra-se em reverência e sorri.
— Vamos logo com isso! — Saio de perto dele sem rir de sua gracinha, coração retumbando, a cabeça cheia de lembranças da nossa adolescência.
Quando as portas se abrem, perco o fôlego ao ver o que Kyra idealizou.
— Puta que pariu, minha irmã é foda! — Alexios fala ao meu lado.
Eu pulo de susto, não por causa do que ele disse, nem mesmo ao ver um dos artistas cuspindo fogo, mas tão somente por sentir a sua mão em minha cintura. Meu corpo inteiro aquece, a pele arrepia e aquela sensação que sinto desde que os hormônios despertaram em mim na adolescência volta a me tomar.
Atração! Química!
Não sei explicar, mas meu amor de criança transformou-se nisso quando me tornei moça, e a cada toque, cada resvalo, eu resfolegava. Sonhava com ele, acordava suada e sem saber o que estava acontecendo. Meu primeiro orgasmo com masturbação foi pensando nele, instintivo, depois de um sonho erótico e proibido.
Achei que, com a distância, principalmente depois que me envolvi com Diego, isso ia passar, mas parece que me enganei.
Olho-o e percebo que ele permanece alheio ao que me causa, sua atenção tomada pelos malabares que executam movimentos precisos na entrada do baile.
Respiro fundo.
— Vamos?
Ele assente sem me olhar, e seguimos juntos, passando entre os convidados que ainda se encontram de pé conversando ou bebendo no bar, em direção ao centro do salão, tomado de mesas e cadeiras reservadas.
— Onde nós...
Nem preciso terminar a pergunta, pois logo vejo Theodoros Karamanlis, acompanhado de uma lindíssima loira, a uma mesa com o sobrenome deles na placa de reserva. Eu não sou muito fã do irmão mais velho de Alexios, mas sempre fui educada com ele, então armo meu melhor sorriso e o cumprimento:
— Theo! Que bom vê-lo esta noite! — Olho para sua acompanhante agora mais de perto e sinto como se a conhecesse de algum lugar.
— Samara, essa é Valentina de Sá e Campos — Theodoros nos apresenta, e eu sorrio, reconhecendo os sobrenomes dela. — Valentina, essa é a Samara Schneider, uma incrível designer de interiores.
— É um prazer, Valentina! — saúdo-a.
— O prazer é meu, Samara. — Valentina sorri. — Nos conhecemos já?
— Eu acho que sim, embora não me recorde de onde pode ser.
A loira para a fim de tentar se lembrar, e eu ouço a conversa entre Theo e Alexios.
— Viu só esse trabalho da Kyra?
— Claro! — Alexios debocha do irmão. — Seria impossível não ver, já que estou aqui! Já fui até cumprimentá-la, mas está tão ocupada que não consegui nem falar com ela direito.
Só o suficiente para que ela o encarregasse de me acompanhar nesta noite! Kyra me paga!
— Imagino que esteja. Viu o Kostas? — Theo pergunta, mas não consigo ouvir a resposta de Alexios, pois Valentina volta a falar:
— Lembrei! — ela comemora. — Nos encontramos na festa de inauguração da loja da Miriam Benides, lembra?
Eu não faço a mínima ideia do que ela esteja falando, mas, mesmo que não esteja com nenhuma vontade de prosseguir com a conversa, sorrio e concordo por educação.
— Puxa vida, quanto tempo não vejo você por lá! — Valentina continua.
— Eu estava morando em Madri — informo antes de me sentar.
— Ah, eu adoro a Espanha!
Sorrio sem graça, percebendo que vamos conversar. Não quero ser mal-educada com ela, é só que não estou muito confortável em estar aqui neste baile, não depois de perceber que ainda quero Alexios e que não adiantou de nada impor distância.
— Família! — a voz debochada de Kostas interrompe a conversa de Valentina, e ela me pergunta baixinho quem é o homem abraçado a uma loira com um vestido branco tão justo e transparente que beira à indecência.
— Konstantinos... — sussurro antes de ele apresentar sua acompanhante a todos.
— Bruninha, conheça os Karamanlis! — Ele aponta para Alexios e para Theodoros. — Claro que você pode deixar seu cartão com eles depois, mas eu sou o mais bonito, não sou?
Ele faz a mulher girar em seu próprio eixo, e, pela primeira vez depois da tensão toda em que eu estava desde que vi Alexios, sorrio divertida. Kostas é uma figura! Ainda me lembro de quando ele morava no prédio, na cobertura de seu pai, e juro, se não fossem os olhos azuis e a voz, eu diria que não se trata da mesma pessoa!
— Já bêbado? — Theo pergunta a Alexios.
— E mais uma vez com acompanhante paga! — Alexios se aproxima de Theo e cochicha, e isso me surpreende. Não sabia que os dois estavam conseguindo ter uma relação tão cordial. — Estou achando que nosso querido irmão é do outro time.
Theo gargalha e nos olha sem graça.
— Perdoem-me, foi irresistível! — Tenta se conter e bebe mais do seu uísque. — Bom, certamente ele é arrogante e orgulhoso demais para “sair do armário”.
Quem? Kostas?! Olho para o homenzarrão com a prostituta e nego instintivamente com a cabeça. Não mesmo!
— Seria apenas mais um rejeitado pelo seu querido pappoús! — ouço Alexios dizer isso, e meu coração aperta. Olho-o, respiro fundo, lamentando profundamente por ele ainda se sentir rejeitado, percebendo que isso também não mudou.
Rejeição, abandono, violência o tornaram o homem que é. Sei disso, dei essas desculpas para seu comportamento por muitos anos. Toda vez que ele aprontava, eu usava isso para justificá-lo.
Até quando?, penso, olhando-o fixamente. Até quando ele deixará que os erros dos outros façam-no errar também?
— Você gosta muito dele, não é? — Valentina dispara, e eu desvio os olhos de Alexios. — Seus olhos brilham diferente ao olhar para ele.
— Somos amigos há muitos anos — disfarço.
— Bom, isso é muito bom, mas... — Ela ri. — Desculpe-me se estou sendo invasiva, mas seu olhar é de quem é apaixonada, não apenas uma amiga.
Dou um sorriso amarelo para ela, e Valentina fica quieta.
— Tudo bem aí? — Alexios me pergunta, e eu assinto. — O jantar já tinha sido anunciado antes de você chegar, então não deve demorar muito.
Resolvo conversar com ele normalmente, afinal, seria ridículo fazer birra na minha idade.
— Kyra estava muito ansiosa com o jantar desta noite. Um grande chef internacional, ela me contou, é quem está preparando tudo.
— Sim, está na programação. — Alexios lê o nome do chef francês, e eu não consigo deixar de olhar sua boca. Pego a taça de champanhe e a viro de uma só vez. — Uau! — Sorri e faz sinal para um garçom se aproximar com mais. — Minha acompanhante está sedenta.
— Estou. — Decido não discutir e bebo a outra taça. — E com fome também.
Alexios toca minha coxa por cima do vestido, mas logo tira a mão.
— O jantar não deve demorar — repete sério e se vira para olhar o outro lado do salão.
Fico um tempo olhando para minhas pernas, permitindo a sensação de brasa que a mão dele deixou em minha coxa passar, chateada demais por reagir assim a ele e continuar sendo praticamente invisível.
Que porra é essa que está rolando?
Essa pergunta retórica fica martelando minha cabeça enquanto tento prestar atenção em qualquer coisa neste maldito salão lotado que não seja ela. Eu só posso estar com algum problema, só pode! Samara sempre foi minha amiga, quase minha irmã. Eu estar aqui com uma maldita ereção – pela segunda vez esta noite, frise-se – só pode ser loucura!
Preciso de um médico! A loucura congênita dos Karamanlis começou a se manifestar em mim. Sentir tesão por Samara é quase... incestuoso!
Pego a taça com champanhe e a termino em uma só golada a fim de aplacar o fogo que apenas um toque em sua coxa me causou.
A verdade é que eu não esperava encontrar-me com ela nesta noite. Vim por insistência do Millos e, claro, por sua maldita manipulação eficaz ao falar da Kyra e do suporte a ela em seu primeiro grande evento. Cheguei junto aos primeiros convidados e a encontrei correndo de um lado para o outro, “armando” uma surpresa para sua amiga e funcionária, a gostosa da Helena, que, por sinal, está namorando o Bernardo Novak, um amigo de longa data.
Quando finalmente ela terminou todos os preparativos, foi à cozinha falar com o tal chef francês que a estava deixando nervosa, conferiu tudo com as bandas, DJ e artistas circenses é que me deu atenção.
— Oi, Alexios. — Sorriu cansada. — O baile nem começou direito, e eu já estou de um lado para o outro. — Ela espiou a fila se formando na recepção do evento. — Gostou da decoração?
Seus olhos verdes, como os meus, brilharam ansiosos. Eu cheguei perto dela, beijei sua testa e falei baixinho:
— Está tudo perfeito, Kyra. Parabéns, estou muito orgulhoso!
Ela suspirou e depois se afastou.
— Claro que está! Não tinha dúvida alguma disso. — E, do nada, pegou-me pela mão e me arrastou em direção ao salão. — Vem ver!
— Kyra, eu ainda não troquei meu convite e...
— Ah, Alexios, vem ver!
A decoração estava esplêndida, embora eu soubesse que, com os efeitos de luz e os artistas executando seus números, iria ficar ainda mais incrível. A banda, no palco ao fundo do salão, já estava se posicionando, e alguns funcionários de Kyra ajeitavam os últimos detalhes das mesas, arranjos florais ou acendiam as velas.
— Perfeito! — elogiei-a novamente.
— Você ainda não viu nada! — E deu aquele sorriso que eu sei que fode com a cabeça de qualquer homem. É duro ter uma irmã como ela, linda e sexy, e ver os caras babando em cima e não poder socar a fuça de nenhum. — Ah, preciso de um favor.
Estava demorando!
— Kyki, estou de smoking, mas ainda não sei segurar uma bandeja — sacaneei.
— Não, seu idiota! — Ela me estapeou as costas. — É meu par desta noite! Não vou poder participar do baile como havia previsto, então preciso que você faça companhia...
— Ei, ei, pode parar! Não vou ficar pajeando nenhum marmanjo não!
Ela rolou os olhos.
— Não é marmanjo, idiota! Posso terminar de falar? — Assenti. — É a Samara. Convidei-a a vir comigo esta noite e não quero que fique sozinha.
Samara Esther Schneider!
Fiquei um tempo olhando para Kyra, tentando entender se ela tinha feito isso de propósito, para tentar nos reaproximar, afinal, sempre fomos um trio de amigos/irmãos, e, com a relação entre mim e Samara estremecida, Kyra devia estar um tanto confusa.
— Sem problema. — Sorri. — Você avisou a ela?
— E Samara atende aquele celular? — Ela bufou. — Você terá que esperá-la lá fora. Se importa?
— Não — fui sincero.
— Ótimo, agora vaza, porque ainda tenho coisas a fazer antes de abrirmos o salão. — E, do mesmo jeito que me arrastou, colocou-me para fora.
Fiquei um bom tempo esperando por Samara do lado de fora, o que foi surpreendente, pois ela sempre foi pontual. Vi o salão ser aberto, o baile começar, o discurso do doutor Andreas Villazza, o anúncio do jantar, e nada de a minha (ex?) melhor amiga chegar.
Estava olhando para um detalhe na construção do hotel, executada pela Novak Engenharia, quando meus olhos foram atraídos para o topo da escadaria. Não é exagero eu dizer que meus olhos foram atraídos, porque foi como se um ímã puxasse minha atenção para aquele ponto.
Engasguei-me com minha própria saliva ao ver Samara. Sim, ela estava linda, mas não foi o vestido branco ou o penteado elaborado que chamou minha atenção, foi ela.
Ela é linda e, por conta da nossa amizade e do receio que tinha de machucá-la, parei de perceber sua beleza e não notei a mulher que se tornou.
Fiquei parado, tomando nota de tudo, como se a estivesse vendo pela primeira vez, sentindo um incômodo por estar olhando-a com lascívia, afinal, era a Samara!
Balancei a cabeça, tentando voltar a pôr os neurônios no lugar, justificando para mim mesmo que isso aconteceu por causa dos anos distantes, mesmo sabendo que isso era pura enganação, pois ela não mudou nada nesses últimos anos.
O que aconteceu, então? Não sei, ainda estou confuso, tentando entender por que fiquei excitado com o perfume dela ou por que meu pau acordou apenas por eu a ter segurado pela cintura a fim de andar com ela até a mesa.
Tive que ficar parado, olhando para os malabares sem vê-los realmente, com cara de paisagem, fingindo que nada estava acontecendo. Eu não queria que ela soubesse que eu estava reagindo daquela forma a ela; certamente ficaria horrorizada. Sempre fomos como irmãos!
Tentei me conter, agradeci por Theodoros e sua companhia já estarem à mesa, fiquei um tempo distraído conversando com meu irmão mais velho, mesmo que isso fosse uma dor no saco. Não sou tão rancoroso quanto o Konstantinos sobre o Theo, apesar de concordar com meu irmão sem noção sobre ele nos ter abandonado nas mãos do louco Nikkós, mas o que Theodoros poderia fazer? Eu mesmo estive nessa situação quando pude sair de casa, mas não tinha como tirar Kyra dele, por isso fiquei.
O DJ que executa as músicas antes do jantar e da banda ao vivo coloca My Immortal, de Evanescence, e é impossível não olhar para Samara.
— Sua música preferida na adolescência — comento com ela.
Samara sorri e balança a cabeça, olhando os casais indo para a pista de dança.
— Tocou na minha formatura...
— Eu sei, eu queria dançar com você, mas você não parecia muito a fim, então fui beber.
Ela arregala os olhos e me encara como se não soubesse do que eu estou falando. Provavelmente nem se lembra, estava nervosa e ficava repetindo o caminho todo dentro do carro que a gente nem deveria ter ido, que era besteira.
Não somos mais adolescentes!
— Quer dançar? — inquiro impulsivamente e estendo a mão para ela.
Samara olha para minha mão por um tempo, mas aceita.
Porra, que loucura!
Ela pega minha mão, e minha vontade é de puxá-la para mim e beijar sua boca. Foda! Não consigo mais refrear meus desejos; sempre consegui com ela, por isso não entendo o que está acontecendo agora. Não é qualquer mulher aqui comigo, indo para a pista de dança para ficar de corpo colado no meu – porra! – é a Samara!
Samara!
Minha amiga de infância!
Quase uma irmã...
MERDA!
— Está tudo bem? — ela me pergunta, e eu tento relaxar, já que estou dançando como antigamente: a um palmo de distância dela.
— Sim, tudo. — Tento dar meu famoso sorriso, mas não rola, então pigarreio. — Estou com sede, calor... acho que é essa decoração toda.
— Pode ser. — Ela desvia os olhos de mim. — Quer voltar para a mesa?
Quero!
— Não, a não ser que você...
— Tudo bem.
Ela se solta de mim no exato momento em que a música muda para um instrumental baixo e as luzes se acendem.
— O jantar. — Aponto para os garçons em fila e os convidados voltando aos seus lugares. — Vamos?
Salvo pelo gongo do cozinheiro!, penso ao ajustar disfarçadamente minha calça para não andar de pau duro e assustar a todos por causa da claridade do salão.
Samara bebe mais uma taça de champanhe, e eu rio, já preocupado. Nunca a vi beber tanto! Sempre foi séria, careta, estudiosa e boa filha. Ela nunca fazia nada de errado, nunca decepcionou os pais, fazia tudo o que eles queriam... quer dizer, tudo menos se afastar de mim.
— Acho que já quero ir — ela comenta de repente. — Vou chamar um Uber...
Levanta-se um pouco tonta, e eu a amparo pela cintura.
— Você quase não comeu, e bebeu muito — falo, e ela levanta uma sobrancelha atrevida e irônica para mim. — Não estou dando lição de moral, mesmo porque não tenho nenhuma, apenas constatei um fato.
Ela ri.
— Você não tem nenhuma moral mesmo! — arrasta a última palavra. — Sempre foi um galinha, essa cara de santo aí só engana as outras!
Gargalho.
— Elas não ficavam enganadas por muito tempo, pode acreditar!
Samara funga, indignada, e fecha os olhos.
— Eu acho que realmente bebi demais.
Olho em volta; o salão já está praticamente vazio, apenas um ou outro convidado conversando em pequenos grupos. Theodoros se despediu, com Valentina grudada em seu pescoço, há mais de uma hora, e Kostas nem jantou conosco à mesa, provavelmente ficou no bar com sua acompanhante.
Inicialmente eu tinha pensando em esperar tudo terminar para acompanhar Kyra até em casa, mas, com Samara no estado em que se encontra e com tudo aqui ainda para ser desmontado, é melhor eu levar minha amiga para casa – aproveitando que moramos no mesmo prédio – e voltar mais tarde para acompanhar minha irmã.
Pego a pequena bolsa que ela trouxe e, ainda abraçado a ela, caminho para a saída.
— Alexios... tudo está rodando...
— Muito natural depois de todo aquele champanhe.
Ela suspira e joga a cabeça para trás.
— Você é um chato, sabia? Não posso entender o que todas aquelas mulheres viam em você!
— Imagino que não possa mesmo — respondo-lhe, sabendo que vai se irritar.
Samara sempre disse que eu respondia politicamente ou me evadia quando sentia que o assunto poderia ir para alguma direção que não me deixaria confortável. Ela tinha razão na maioria das vezes, mas, neste momento, só estou a fim de irritá-la.
— Você é um babaca, Alexios Angelos!
Opa! Falou meu nome todo! Rio de sua irritação bêbada, talvez por estar um tanto alto como ela, mas sóbrio o suficiente para carregá-la em segurança até a calçada.
Não vim de moto ou carro sozinho exatamente por saber que iria beber – principalmente para aguentar sozinho a companhia dos meus irmãos à mesa –, porém previ que a saída do baile estaria um inferno e que seria difícil conseguir um táxi ou um carro de aplicativo que estivesse por perto, por isso deixei o Cris, que me trouxe, de sobreaviso no estacionamento.
Mando mensagem para ele e espero até meu carro aparecer. Abro a porta de trás e coloco sobre o banco uma Samara parcialmente adormecida por cachaça francesa.
— Essa foi nocaute! — Cris ri quando eu entro. — Para onde?
— Para o Castellani. — Ele dá um sorrisinho malicioso e pisca. — Ela é minha vizinha, Cris, sossega.
— Falou, chefinho.
— Para de merda e dirige.
Ele tenta sair da entrada do hotel, mas é praticamente impossível com o número de carros que também tentam deixar o local. Olho para trás, confiro que Samara está mesmo apagada e fecho os olhos, recostando-me contra o assento do carona.
— Foi uma festança, hein? — Cris volta a falar. — Só vi entrar filé, pena que a maioria estava acompanhada.
— Geralmente isso não é problema — comento, mordaz. — Já comi muita mulher no banheiro de recepções como essa enquanto o marido conversava com os amigos e falava de negócios.
Cris gargalha.
— Você nunca valeu nada, Lex!
Não retruco o apelido ridículo com que ele me chama e me faz parecer o vilão do Homem de Aço. É pura perda de tempo ralhar com Cristino, então simplesmente ignoro, cansado, meio zoado e com tesão frustrado.
Ele e eu nos conhecemos há alguns anos, quando visitei um dos prédios da Karamanlis que foram invadidos por movimentos pró-moradias. O homem era motorista de profissão, com anotação em sua carteira de trabalho em várias empresas, que juntou todo o dinheiro que tinha, investiu em um carro e um ponto de táxi, mas foi engolido e enxotado pelas grandes cooperativas.
Assim, quando nos conhecemos, ele estava sem casa, sem carro, sem emprego e com uma enorme dívida, fazendo bicos aqui e ali. Ajudei-o primeiro a conseguir emprego, depois por fim saiu da invasão, e, nesse ínterim, nos tornamos amigos.
Ano passado, quando a filha dele nasceu, quis que eu a apadrinhasse, mas educadamente declinei, explicando que, mesmo honrado, não poderia aceitar, pois sou ateu, e o apadrinhamento de uma criança tem a ver com questões religiosas, tem um sentido específico, e eu não seria a pessoa certa para isso. Ele entendeu, mas a garotinha já me chama de Didi (seu jeito fofo de bebê de chamar seu dindo, mesmo que oficialmente eu não o seja).
Acho que cochilei também até o Castellani, pois, quando me dei conta, já estávamos na garagem. Cris me perguntou se eu queria ajuda com Samara, mas agradeci e o mandei para casa. Ele não trabalha como meu motorista diariamente, mas sim na Karamanlis, transportando quem quer que precise fazer serviços externos. Contudo, toda vez que preciso, chamo-o para ganhar um extra.
Há muito parei de combinar bebida e direção, não por mim, mas por medo de acontecer algum acidente e eu acabar prejudicando outras pessoas.
Chamo o elevador, e somente dentro dele é que a bela adormecida parece voltar a si.
— Alexios... — Samara olha em volta. — Este é o elevador do Castellani?
— Parece que sim — respondo-lhe divertido.
Samara bufa.
— Só desmaiada é que eu aceitaria vir com você na direção nesse estado em que se encontra.
— Estou melhor que você. — Ela se encosta contra o espelho, olhos fechados e um enorme sorriso bêbado no rosto. — Além do mais, viemos com motorista.
— Bom... — Samara fala devagar e lambe os lábios como se estivessem secos. O efeito no meu pau é instantâneo. Sinto meu corpo inteiro acender, minhas mãos formigam de vontade de tocá-la. Sua pele parece brilhar, atraindo-me como uma chama atrai uma mariposa.
Tento me afastar, pensar em outra coisa, mas o espaço reduzido do elevador não ajuda. As paredes parecem se fechar cada vez mais, aproximando-me de Samara, apertando-me contra ela, espremendo meu corpo...
— Alexios... — ela geme meu nome, e eu me espremo mais, fazendo-a grudar contra o espelho. O seu perfume inebria meus pensamentos, a pele, tão quente e macia que a sinto mesmo por baixo do vestido, me enlouquece. Preciso provar o sabor de sua boca, conferir se o hálito quente e um tanto etílico se confirma em sua saliva.
Sim!
Agarro-a com mais força, minha ereção pressionada contra sua barriga, minha boca correndo em seu pescoço. Tudo parece congelar à nossa volta, não existe mais tempo e nem espaço, apenas o vácuo e nós dois dentro dele, em chamas.
Lábios nos lábios. Meus dedos esfregam sua nuca, a pele arrepia, os pelos eriçam, meu corpo treme. É a viagem mais louca que eu já fiz sem ser através de uma substância química entorpecente... não! É química ainda, é uma droga viciante, é tesão!
Devoro sua boca sem nenhum pudor ou impedimento. Ela me acolhe, abre-a para minha exploração, prende meus lábios entre seus dentes e morde com força, despertando com a dor ainda mais meu desejo.
Enfio os dedos no meio do seu penteado, seguro o cabelo com força, e ela retribui o desespero cravando as unhas nos meus ombros.
Estou pronto para fodê-la, minha cabeça já trabalha uma forma de abrir o zíper da calça social, sacar meu pau e buscar o caminho de sua boceta, que, a julgar pela forma com que ela come a minha boca, já está molhada e quente.
Um pigarrear me faz sobressaltar, e eu me afasto dela o mais rápido possível. Um casal de idosos também vestido em black tie entra no elevador no saguão do prédio, sinal de que o elevador subiu e desceu de novo enquanto nós dois quase nos comíamos dentro dele.
Olho para Samara, mas ela não parece constrangida ou assustada, apenas passa a mão pelos lábios e me encara, sua expressão cheia de perguntas e curiosidade.
Caralho, o que eu estou fazendo?! É a Samara, minha amiga, aquela que eu sempre quis manter longe desse meu lado sem vergonha! Puta que pariu!
Espero o casal descer em seu andar e, assim que as portas se fecham, respiro fundo.
— Desculpa, Samara, acho que estou mais bêbado do que imaginei a princípio. — Não tenho como olhá-la, dividido entre o constrangimento e o desejo ainda pulsando na minha calça. — Somos amigos, eu não deveria atacar você dessa forma, me des...
— Para! — sua voz soa magoada, e eu tenho vontade de socar a cabeça contra o espelho. — Não precisa dizer mais...
— Eu prometo que isso não voltará a acontecer. — Finalmente a encaro e fico fodido ao ver sua expressão confusa. Ela parece não ter gostado do que aconteceu, deve estar achando que eu sou um filho da puta aproveitador. — Você é minha amiga, Samara, mesmo depois dessa distância, eu ainda a vejo como se fosse minha irmã e...
— Chega! — ela grita, e as portas do elevador se abrem no seu andar. — Você tem razão, foi um erro e não deve voltar a acontecer!
Ouvir isso é como um balde de água fria, mesmo reconhecendo que é o certo.
— Eu não quero que isso afete novamente a amizade que nós temos e...
Samara sai pisando duro do elevador sem olhar para trás. Minha vontade é de correr atrás dela, voltar a encostá-la em alguma parede e beijá-la novamente até que perca a razão ou eu alivie esse tesão indesejável que estou sentindo.
As portas se fecham, e eu, ao invés de apertar o botão do meu andar, mando o elevador de volta para o térreo e chamo um Uber.
Preciso trepar!
— Essa sua cara de cachorro cagando na chuva é ainda ressaca do baile? — Kyra me pergunta, sentando-se ao meu lado na rede que ela tem em sua varanda. — Quer café?
Resmungo ainda com os olhos fechados:
— Quero paz!
Ela ri.
— Isso está em falta por aqui hoje, passa na semana que vem... — Encaro-a, puto com a piadinha. — O que aconteceu?
Não respondo, meus olhos fixos no topo do prédio do outro lado do parque. Balanço a cabeça, decidindo ser mais covarde do que tenho sido desde a madrugada do dia primeiro de janeiro e fecho os olhos para tentar nem pensar na confusão que arrumei.
— Você não deveria estar trabalhando hoje? Ou eu? — Kyra volta a me importunar, mas continuo mudo. — Mano, você continua o mesmo chato da porra de sempre! Fica aí com essa cara de Maria do Bairro e não abre a porcaria da boca para me contar o que diabos você fez dessa vez!
— Obrigado pela confiança em mim! — retruco irônico.
— Ah, boquinha para ser mal-educado comigo você tem! — Ela me cutuca o ombro, mas depois suspira e deita a cabeça nele. — Você sabe que faz merda, mas que eu estou aqui, disposta a te ouvir e te ajudar a limpar os cagaços. Somos uma dupla, você e eu, sempre fomos e sempre seremos.
— Costumávamos ser um trio... — assim que eu comento, imediatamente me arrependo, pois Kyra salta da rede – quase me derrubando no percurso – e emite um ensurdecedor: “ahá!”.
— Eu sabia que tinha acontecido algo na madrugada do baile! Samara está estranha, esquiva, e isso não é o natural dela. Que merda você aprontou? — Continuo ignorando-a, sem nenhuma disposição para contar sobre o beijo, o amasso e a confusão que isso criou em mim. — Alexios! — Minha irmã começa a pirar por causa do meu silêncio, mas, se me conhece um pouco, já deve imaginar que eu não irei abrir a boca para falar desse assunto. — Está certo! Você e sua maldita boca de siri. — Volta a se sentar, mas dessa vez não se deita em mim. — Alex, ela é nossa amiga, não a magoe, ok? Samara merece ser feliz, e esses anos que passou na Espanha foram ótimos para ela. Eu morria de saudades, mas estava feliz por ela estar realizada trabalhando com o que ama fazer, com um puta gato espanhol lambendo seus pés e — abro os olhos, mas Kyra não se freia — querendo formar família com ela.
Sento-me bruscamente, e Kyra balança.
— Como assim formar família?
— Ele a pediu em casamento. — Surpreendo-me, mas tento não reagir, não demonstrar. — Deu-lhe um lindíssimo e caro anel de diamante e está esperando pelo retorno dela.
Essa informação, apesar de ter me pegado de surpresa, não é nenhuma novidade. Sempre achei que algum homem de sorte iria conquistar o coração da minha amiga de infância e tê-la para sempre. Samara é a pessoa mais leal que eu conheço, mais incrível, merece muito ser feliz ao lado de alguém que valha a pena.
— Ela não estava usando anel... — penso em voz alta.
— Ainda não falou com os pais dela... — Kyra olha fundo nos meus olhos, procurando qualquer reação minha, mas sei que não irá encontrar nenhuma. Há muito aprendi a sentir sem demonstrar ou a mostrar apenas o que eu quero que os outros vejam. — Vocês não conversaram ontem?
— Acho que ainda não conseguimos estreitar os laços de amizade novamente.
— Hum... — Ela olha para seu relógio no pulso e suspira. — Preciso ir para o trabalho, vai ficar aqui? — Assinto. — Eu tenho a sensação de que você está se escondendo, só não faço ideia do quê.
Ela entra no apartamento, e novamente olho para o alto do Castellani, do outro lado do parque. Daqui do prédio onde ela mora, consigo ver o heliponto no telhado, algumas janelas da cobertura onde Cadu mora, o andar debaixo, onde Bernardo Novak reside, e uma pontinha da minha varanda. O apartamento de Samara fica uns andares abaixo do meu, então não tenho como vê-lo, mas somente por saber que ela está lá dentro, sinto vontade de ficar aqui, bem longe.
Não me entendam mal, não estou fazendo isso porque não quero que ela se aproxime de mim, pelo contrário, estou aqui, exilado como um covarde no apartamento da minha irmã mais nova, porque, se pisar no Castellani, sei que não conseguirei me manter distante dela.
Mesmo depois da maratona de sexo que fiz com uma mulher com quem já havia saído antes das festas de final de ano, não tenho segurança de estar no mesmo ambiente que Samara e me controlar para não a pressionar contra alguma parede e fodê-la sem ao menos dizer um cumprimento.
Definitivamente não vou fazer isso, não com ela!
Muito menos depois de saber que há alguém que a merece, que está à altura dela, esperando sua volta.
Rio de mim ao pensar que estou aqui, evitando-a, quando na verdade ela é quem deve estar querendo ficar a quilômetros de mim. Talvez esteja até indignada e ofendida pelo modo com que a toquei e beijei sem nenhum aviso, como se fôssemos um casal qualquer que se encontrou na balada para trepar, e não duas pessoas que são amigas desde que se entendem por gente.
Não entendo por que perdi o controle do tesão que sempre reprimi, mas me conheço o suficiente para saber que ele não passou. Raramente sinto aquela química com alguém. Era como se meu corpo estivesse sendo atraído, como se algo nela estivesse provocando reações em mim que eu não conseguia controlar. Foi animal, carnal, a famosa atração de pele que muita gente procura, mas pouca tem.
E eu tive justamente com minha melhor amiga!
Kyra volta a aparecer no meu campo de visão, agora com os belíssimos cabelos escuros, longos e fartos soltos, o rosto maquiado e uma roupa de deixar qualquer homem lobotomizado.
— Esse bode aí está foda para passar, hein? — comenta antes de se abaixar para pegar um guarda-chuva no móvel ao lado da rede. — Têm umas sobrinhas do baile na geladeira, cerveja – por favor, não tome todas, mas se tomar, as reponha –, e meu chuveiro tem muita pressão e água fresca. — Pisca para mim, e eu franzo a testa, sem entender. — Você está meio rançoso.
— Vai se ferrar, Kyra — ralho com ela, mas rio.
Ela se aproxima e beija minha testa, e isso, sim, arranca um sorriso sincero meu. Gosto que ela confie em mim o suficiente para me tocar, para recostar-se no meu ombro ou mesmo ficar abraçada, pois sei que ela não é assim com todos, principalmente com homens em geral.
— Fica bem e ouça meu conselho... — Ela anda até a porta antes de complementar: — Tome um banho, você cheira a álcool e a perfume vagabundo.
Levanto o dedo do meio para ela e a escuto ir gargalhando apartamento adentro até a porta de entrada bater. É, eu bebi bastante, sim, devo estar exalando álcool pelos poros, e o perfume barato se impregnou em minha roupa ontem, quando a recoloquei depois de mais de 12 horas nu, e a mulher me abraçou toda perfumada.
Saí do apartamento dela e vim direto para o da Kyra, torcendo para que minha irmã estivesse em casa e sozinha a fim de que eu pudesse cair aqui nesta rede onde estou e tentar pôr a cabeça certa no controle do meu corpo.
O telefone fixo toca alto, afastando meus pensamentos, e aproveito para tomar o banho aconselhado pela minha irmã viciada em limpeza. Entro na sala desabotoando a camisa branca que usei com o smoking – pois é, ainda estou com a mesma roupa do Ano Novo em pleno segundo dia do ano – e noto que não faço ideia de onde estão o paletó e a gravata-borboleta.
A primeira foto que vejo ao entrar no quarto de Kyra é uma que tiramos juntos – Samara, ela e eu – na formatura da minha irmã. Eu fui o par dela, então estava de smoking, e as duas, de vestido longo, maquiagem e penteado. Caminho até o aparador e pego o porta-retratos, focando em Samara e me perguntando como eu conseguia me manter longe do mulherão ao meu lado. Era uma beleza diferente da minha irmã, Samara tem o olhar doce, sorriso largo, nenhum mistério, seu rosto expressa suas emoções, sua sinceridade.
CONTINUA
Sua pergunta me deixa paralisada, completamente sem condições para lhe responder. Por que ele me procuraria?! Porque somos amigos desde que nasci? Porque estive ao lado dele em todos os momentos? Porque ele tomou um porre, apareceu lá em casa, chorou no meu ombro, beijou-me e depois fingiu que nada tinha acontecido?
Respiro fundo para controlar o volume da voz e não gritar que ele é um idiota, mas, antes que eu abra a boca, Kyra aparece esbaforida com um telefone na mão.
— Ei, Malinha, você está com seu telefone na bolsa? — Alexios olha para a irmã, puto por ela estar nos interrompendo, e eu franzo a testa, sem entender a pergunta dela. — Seu celular! — Ela bufa... — Seu irmão acaba de ligar para o meu telefone. — E balança o aparelho.
Arregalo os olhos, meu coração dispara, e logo penso em mamãe, que vi apenas um pouco ontem, quando fui buscar o Godofredo. Pego o telefone e confiro as ligações perdidas. Noto Alexios se afastando, mas não me importo; ele continua o mesmo egoísta de sempre.
Samara Schneider está de volta!
Mastigo mais um pedaço do pernil que Kyra serviu como opção de carne na ceia de Natal e não consigo deixar de pensar na volta daquela que foi minha grande amiga e companheira.
Até hoje não entendo o que aconteceu para que ela tomasse a decisão de ir estudar na Espanha sem falar nada comigo. Claro, eu sabia que tinha a possibilidade, afinal, havia anos o pai dela pressionava por isso, para ela ir estudar arquitetura clássica na terra de Gaudí14. No entanto, para minha total surpresa, em vez de ir morar em Barcelona, Samara foi para Madri.
Eu, que até então me considerava seu melhor amigo, só fiquei sabendo desses detalhes todos porque Kyra me contou depois que fui atrás dela para saber o paradeiro de Samara.
Pego a taça com água para ajudar a engolir a comida, pois estou com um aperto na garganta desde que a vi. Eu tinha acabado de sair da sala de reuniões de Kyra depois de um ménage espetacular com Valéria e Priscila, mais animado para encarar a noite especial, sem imaginar a grande surpresa que encontraria no salão e que quase me fez tropeçar em meus próprios pés.
Assim que meus olhos bateram nela, assustei-me, pois a danada da Kyra não havia me contado que Samara tinha voltado. Tentei um sorriso e uma aproximação amigável, como se ela não tivesse me abandonado por longos três anos sem nenhuma notícia. Ela está diferente, ainda mais bonita do que eu me lembro, mas tentei não reparar muito e ser o amigo de sempre.
Nada disso adiantou, pois, ao que parece, Samara desejou que eu corresse atrás dela, que a procurasse e reestabelecesse contato. Como eu poderia imaginar algo assim? Não sou adivinho! Ela some sem nenhum motivo e ainda se sente no direito de ficar puta por eu não ter tentado contato?
Quem entende a cabeça das mulheres?!
— Sua amiga foi embora cedo — Millos comenta ao meu lado. — Será que houve algum problema com a mãe dela?
Olho para meu primo, sentado ao meu lado à mesa, e ele entende meu total desconhecimento do assunto.
— A mãe dela, dona Ana Cohen, está em tratamento contra um linfoma. — Millos bebe mais chope. — Você não sabe nada sobre a vida da sua amiga?
— E você? Como sabe?
O filho da puta apenas dá de ombros, evasivo como sempre, adorando estar sempre um passo à frente de todos. Millos é um sujeito estranho. É o único que consegue interagir com todos nós sem tomar partido e sem revelar nada da vida pessoal de ninguém, nem mesmo da sua. Somos amigos, nos damos bem, mas eu sei pouco sobre ele, sobre suas atividades, e o máximo que conheço de sua vida pessoal é que tem um passado fodido como o meu, frequenta alguns clubes de sexo, tem uma amiga que por sinal é uma gostosa do caralho – mas nunca me deu mole, infelizmente – e só.
Como profissional, o homem é uma verdadeira coruja! Quieto, observador, parece que consegue olhar em 360 graus, além de ser um caçador de informações inigualável. Não há nada que passe despercebido por ele, e o que expõe ou o que fala, tenho certeza de que é o mínimo do que sabe. Por isso, todo cuidado é pouco quando o assunto é Millos Karamanlis, porque o desgraçado é um manipulador de mão cheia!
— Eu não sabia que dona Ana está doente, não vejo os pais de Samara há anos — contesto-o. — Espero que nada grave tenha ocorrido.
— Não vai ligar para saber? — Millos volta a questionar.
Franzo as sobrancelhas, encarando-o, tentando entender o motivo pelo qual ele está tão interessado no assunto.
— Não — respondo seco e volto a comer, mesmo com o questionamento dele na cabeça. Para mim o assunto acabou! Samara já demonstrou que não quer papo comigo por algum motivo, e, mesmo chateado com isso, devo respeitar a decisão dela. Millos é um manipulador e sabe que esse é um assunto que me atinge diretamente, por isso tocou nele.
Não preciso ligar para Samara, como não liguei para ela durante todo o tempo em que esteve fora, mas isso não quer dizer que eu não queira saber o que está acontecendo. Kyra sempre foi minha fonte de informações sobre ela e, caso tenha que ser assim, continuará sendo.
Termino minha refeição, fico mais algum tempo com Kyra e seus convidados, brindo ao sucesso do negócio dela e logo depois vou embora. Tinha pretensão de ir para casa, mas, no meio do caminho, uma mulher com quem eu já saí algumas vezes me manda uma mensagem dizendo que está na cidade, e vou encontrá-la.
Dia 26 de dezembro, pior dia de trabalho do mundo, certamente! Rio ao passar por mais dois engenheiros com cara de ressaca ou, talvez, de quem comeu demais e agora passa mal do estômago.
— Melhor colocar a lixeira perto! — passo, sacaneando meu colega de trabalho, Pedro, engenheiro químico. — Se emporcalhar a sala, vai ter que limpar você mesmo.
— Porra, Alexios, fala mais baixo! — Ele põe a mão na cabeça.
Gargalho e me sento à minha mesa, lotada de projetos, planilhas e minha coleção de lápis. É, eu coleciono lápis! Cada um tem a coleção que lhe cabe, não é?
Ligo o computador, olho para meu caderno de tarefas e arregalo os olhos ao ver um nome que eu não imaginava rever anotado lá – por outra pessoa.
— Ethernium? — questiono olhando para o Pedro.
— Sim! Acabamos de saber, mas o CEO lá da Karamanlis vai querer conversar com você, certamente.
Bufo ao pensar em subir até o Olimpo para conversar com Theodoros, sem esquecer as discussões que tivemos nas últimas semanas por conta de seu egocentrismo e insensibilidade com os funcionários da casa.
Sua mania de pensar que é Deus, inabalável, inatingível e perfeito me irrita, principalmente porque sei que ele não é nada disso, apenas a porra de um filhinho de vovô mimado, que sempre achou que podia fazer qualquer coisa que quisesse sem pensar nas consequências, que o velho grego limparia suas cagadas.
Admito, o velhote sempre fez tudo para seu neto querido. Entretanto, não pôde limpar a merda que Theodoros deixou para trás, apenas jogou-a para debaixo do tapete, limpou a consciência do seu netinho querido, que seguiu a vida como se nada tivesse feito e deixou o resto se fodendo sem se importar o mínimo.
Theo é arrogante, e eu não tenho saco para lidar com gente assim.
Ouço passos, um poc-poc característico de saltos, e em seguida a voz de Lia, outra engenheira que trabalha na minha equipe direta.
— Bom dia! — sua voz soa animada. — Ah... sem Papai Noel de chocolate este ano! — ela resmunga, e eu a vejo procurando sobre sua mesa. — Poxa, Alex, você já foi mais generoso!
— Eu?! — Começo a rir. — Você realmente me imagina comprando e colocando chocolate em formato de Papai Noel nas mesas dos outros? — Ela faz careta e nega. — Eu achava que era você!
— Por quê? Só porque sou mulher?
Rolo os olhos.
— Não, porra, porque você é viciada em chocolate!
— Ele está certo, Lia! — Pedro se mete na conversa em minha defesa. — Eu também achava que era você por causa disso.
Ela se senta frustrada por não ter encontrado o presente do “Papai Noel” misterioso da Karamanlis.
— Bom, não sou eu, e eu contava com isso! Não falha por anos! — Olha em volta para as outras estações de trabalho, ainda vazias sem os profissionais. — Ninguém recebeu?
Nego, e Pedro faz o mesmo.
— Estranho...
— Coisas estranhas têm acontecido por aqui — digo e lhe estendo meu caderno com a anotação da Ethernium.
— O quê? De novo? — Ela geme. — Esses caras da Ethernium são uns malas! Sério, Alexios, eu não vou aguentar gracinhas pra o meu lado de novo não!
— Eu disse que você devia ter respondido a ele. — Dou de ombros. — Mas agora sabe que tem meu total apoio! Se alguém da equipe deles fizer piadas machistas de novo, responda.
— Quem é o machista? Que vou com você dar uma surra nele. — Eliane chega já mostrando as garras – que garras! Minhas costas sofreram com elas – e se senta em sua estação. — Bom dia, feliz Natal, foi tudo ótimo! Agora, silêncio, porque ainda estou agarrada a um cálculo estrutural que não tem me deixado dormir. Obrigada. De nada.
Pedro começa a rir, e Lia só balança a cabeça. Eliane é assim, direta e sem rodeios, por isso mesmo achei-a ideal para o trabalho pelo qual é responsável. Nós nos conhecemos em uma balada, transamos, depois voltamos a nos encontrar na entrevista dela aqui na K-Eng tempos depois. Nunca mais voltamos a trepar, mas conseguimos construir uma relação de trabalho quase perfeita. Sei que posso contar com ela para qualquer coisa aqui dentro.
Tenho mais duas pessoas na minha equipe: Evandro e Michel, mas os dois estão de férias e ainda não retornaram. Não é normal dois membros da mesma equipe saírem em férias juntos, mas, como eles são casados, a lei lhes garante esse direito.
A K-Eng não é formada apenas pela minha equipe de engenheiros em suas especialidades, a verdade é que cada um aqui gere suas próprias divisões. O Pedro, por exemplo, é engenheiro químico, e na divisão dele estão químicos industriais, técnicos em química e outros engenheiros dessa área. Já a Lia é engenheira ambiental, e, dentro de sua divisão, há biólogos, gestores ambientais e engenheiros sanitaristas. A Eliana trabalha com projetos, e ela coordena outros engenheiros, arquitetos e projetistas. O Michel faz toda a parte de planilhas e medições, e o Evandro é responsável pelas operações, é quem lida com empreiteiros, clientes e atua também como fiscalizador de obras.
Além do corpo técnico da K-Eng, a empresa, que é uma subsidiária da Karamanlis, ainda tem setores administrativos e financeiros, e eu, como CEO dessa bagaça aqui, sou quem comanda essas áreas.
O único setor que dividimos com a Karamanlis, infelizmente, é o jurídico, por isso aturo muito a prepotência inglesa do Konstantinos e seu humor ácido. Geralmente não tenho paciência com ele, zoo com sua cara ou apenas o ignoro. Ele não é bem quisto por ninguém da minha equipe, principalmente pelas mulheres.
— Por falar em machismo... — Lia volta a falar. — Será que a Kika não vai voltar mais não?
Dou uma risada por ela ter entrado no assunto justamente quando eu pensava no meu irmão machista.
— Está um silêncio total na Karamanlis — Eliana se pronuncia. — Dá até medo de andar pelos corredores, clima pesadão!
— A Kika era incrível, né? Gata, alto-astral, competente — Pedro lamenta. — Uma pena que tenha perdido a cabeça e tenha sido mandada embora...
— Opa! — Eliana o interrompe. — Ela se demitiu!
— Enfim, está desempregada depois de ter ganhado uma puta promoção para a gerência.
— Eu a preferia à Malu Ruschel. — Lia treme toda. — Aquela mulher congelava até meu sangue só de estar perto dela.
Definitivamente, não o meu!, penso ao me lembrar de Malu Ruschel, a ex-gerente dos hunters da Karamanlis. Malu era bonita, tinha classe e aquele seu jeito focado me enchia de tesão. Uma pena ter ido morar no fim do mundo!
Já com a Kika, nunca senti essa atração, talvez por sempre tê-la achado tão receptiva, maravilhosa com seu jeito espontâneo, que logo gostei dela como se fosse uma amiga de longa data. Tenho muito apreço por ela e lamento que tenha saído da empresa.
Os engenheiros começam a conversar, mas o assunto não me interessa o mínimo, então coloco meus fones de ouvido – a voz forte e rasgada da Janis Joplin soa bem alta – e volto a mexer no projeto em que estava trabalhando.
— Ei, moleque! — Millos me chama assim que para sua moto. — Você não sabe curtir um passeio, puta que pariu!
Ele desce da motocicleta, tira o capacete e a jaqueta e se senta à mesa do bar ao meu lado. Bebo minha água sem responder, porque a única coisa que eu poderia lhe falar é que não sou um velho para ficar andando nessas motos de colecionador há 80 km por hora.
Estou aqui esperando-o há pelo menos 20 minutos, e isso porque saímos juntos de São Paulo em direção ao Guarujá, em uma viagem não programada e cujo motivo, sinceramente, nem entendi. Ele apenas apareceu lá na K-Eng e me chamou para andar de moto com ele, e eu topei.
— Qual é o propósito disso? — resolvo perguntar sem rodeios.
— Do quê?
Millos agradece à garçonete que lhe entrega um coco verde com um canudo e nem percebe a moça comendo-o com os olhos (ou talvez só esteja assustada com suas tatuagens, que cobrem os braços, pescoço e peito).
— Desse “passeio”. A gente se viu há alguns dias na ceia da Kyra, e você não comentou nada sobre isso.
— Nada de mais! — Ele bebe a água de coco. — Vou viajar no Ano Novo, ficar um tempo fora e queria passar um tempo contigo. Já jantei com seus irmãos, mas como você é todo amalucado para comer, achei que uma volta de moto iria cair bem, mas esqueci que você é louco nisso também.
— Você está ficando velho, Millos, sinto lhe informar — debocho. — Acha mesmo que, com essa potência italiana nas mãos, eu iria ficar molengando contigo na estrada?
— Não é molengar, é curtir a viagem, a paisagem...
— Ah, não, você curte essas coisas paradas, não eu. Meditação, ioga, essas coisas todas aí que você faz, tô fora! Não sei ir devagar, Millos, em nada!
— Deveria... talvez assim conseguisse agradar às mulheres. — Ele pisca e tenta disfarçar a troça bebendo mais de sua água.
Eu gargalho.
— Pode ter certeza, elas não reclamam da minha rapidez. Não basta saber correr, tem que saber tirar o máximo proveito de uma máquina, fazê-la dar tudo de si, e isso eu faço.
— Está falando das motos ou das mulheres?
— Tem diferença?
Ele ri novamente.
— Você é um moleque, não sabe nada ainda!
— Falou aquele que nomeia suas motos com nomes femininos!
Nós dois rimos juntos, e o clima fica descontraído.
A verdade é que ele e eu temos muito em comum. Ambos adoramos motocicletas, rock e carne. Apesar de sua onda “zen budista”, Millos nunca conseguiu se livrar da proteína animal e das comidas pesadas que adora preparar para acompanhar suas cervejas artesanais.
Ah, esse é outro ponto em comum: adoramos cerveja! Ele fabrica, eu apenas bebo, mas tenho tanto conhecimento quanto ele, e esse é um dos pontos sobre o que mais conversamos quando estamos juntos, geralmente comendo alguma carne e ouvindo rock.
Raramente saímos juntos de moto, exatamente por ele fazer o estilo tiozão que gosta de andar de Harley, apreciando paisagens, e eu e minha Ducati Multistrada 1260 não temos saco para andar quase parando não.
Embora eu reconheça que tenho que agradecer a esse tiozão por ter minha moto dos sonhos, a que uso para correr nas competições. A Ducati só disponibilizou três unidades da 1299 Superleggera para venda no Brasil, há quase dois anos, e um dos amigos do Millos foi quem comprou uma delas, e, quando ele decidiu vendê-la, meu primo prontamente me avisou, e não pensei duas vezes.
Eu gosto das italianas mais do que das americanas ou japonesas, pelo menos para as motos; não sou tão seletivo assim com mulheres.
— Baile dos Villazzas...
— Ah, Millos, não fode com esse assunto de novo! — reclamo, entendendo agora o motivo do encontro.
— Alexios, preciso de você lá.
Rio.
— Mano, aqueles dois não são crianças, e, muito menos, sou a babá deles! Eles não precisam que eu vá para manter a ordem e o bom nome da...
— Kyra me mostrou o projeto do baile, ela parece bem animada com sua primeira grande produção sem a intervenção dos Karamanlis.
Porra! Ele vai pegar pesado!
— Você é muito filho da puta, sabia?
Millos dá de ombros e bebe mais água.
— Acho que vocês deveriam ir para apoiá-la, acima de todos, você! Será importante para ela, além disso... acho que ela está sem acompanhante, porque deu com o pé na bunda do último idiota que estava comendo.
— Porra, Millos! — Xingo-o. — É a minha irmã, porra!
— E o quê? Só por isso ela não trepa?
— Vai se foder! — Levanto-me da mesa puto e pego o capacete.
— Alexios... — ele me chama, mas não dou atenção, já montando na moto para ir o mais longe possível dele.
Antes que vocês me julguem como machista ou irmão ciumento, adianto logo que não se trata disso. Cada um lida com a merda dentro de si de um jeito, e esse é o jeito da minha irmã de lidar com seu passado. Respeito isso, mas não quer dizer que não me doa ou mesmo que eu não me sinta responsável por ela ser assim.
Eu gostaria que as coisas fossem diferentes, esforcei-me o máximo que pude para que ela fosse menos fodida do que todos nós, mas, a cada novo relacionamento seu destruído, sinto-me um fracassado, o que me dói profundamente.
Piloto rápido, passando pelos radares sem me importar com as multas, sentindo o vento forte bater em mim como se pudesse deixar todas as marcas do meu corpo e da minha alma para trás. Contudo, não posso. Ele fodeu a minha vida várias vezes, não só com as coisas que fez contra mim, mas principalmente por eu ver que também destruiu minha irmã.
— Como ela está, Dani? — pergunto ao meu irmão assim que ele entra na cozinha da casa dos meus pais, onde tomo meu desjejum com a Cida.
— Dormiu bem. — Ele beija minha cabeça. — Mas foi um susto essa febre alta assim do nada.
Ele se senta, visivelmente cansado, e Cida logo lhe serve uma xícara de café. Acostumados demais a dividir as refeições com Cida desde que nascemos, sempre tomamos nosso café juntos. Ela está em nossa casa há tanto tempo que não sei como seria minha vida sem sua presença, e certamente Daniel sente o mesmo.
Minha mãe, Ana Cohen, sempre foi muito ocupada na direção do sistema de ensino criado pelos meus avós, franqueado e distribuído por colégios do Brasil todo. Já meu pai, Benjamin, vem de uma longa linhagem de comerciantes e industriais, como bem acentua nosso sobrenome, que é uma derivação da profissão de algum ascendente que foi alfaiate.
Os Schneiders possuem lojas, fábricas ou empresas que prestam serviços, como era o nosso caso. Meu avô não tinha formação quando fundou sua primeira fábrica de móveis, porém eram um marceneiro muito habilidoso, e meu pai aprendeu com ele. Os negócios iam bem, então papai foi estudar arquitetura e, por fim, design, elevando o nível dos negócios familiares, fazendo dos móveis com nosso sobrenome sinônimos de classe e riqueza.
Há 10 anos meu irmão está à frente dos negócios, desde que papai teve seu primeiro infarto – ele já teve outro e fez duas pontes de safena. Daniel é um administrador maravilhoso, fechou com grandes empresas, e hoje os móveis Schneider não enfeitam mais as coberturas e mansões luxuosas de São Paulo, tão somente redes enormes de hospitais, clínicas, lojas de alto luxo e restaurantes em todo o país.
Meu irmão é incrível! Nós dois somos muito amigos, sempre fomos. O único ponto tenso entre nós era Alexios Karamanlis. Daniel é 10 anos mais velho que eu, um quarentão, como eu costumo provocá-lo, e sempre achou Alex uma péssima companhia. Bom, ele realmente era, mas não para mim. Eu sabia das loucuras que Alexios aprontava, seu envolvimento com drogas, farras, lutas valendo dinheiro e rachas pela cidade. Ele não foi um adolescente fácil, mas sempre me tratou como se ainda conservasse o menino que eu conheci. Sempre me deu conselhos para ficar longe de tudo aquilo que ele mesmo fazia, nossa amizade sempre foi separada das outras companhias dele.
Ainda assim, Dani nunca gostou de Alexios, em compensação, tornou-se um dos grandes amigos de Millos Karamanlis, primo do Alex, mesmo que eu não consiga entender o que, de fato, o executivo tatuado e meu irmão tenham em comum.
— Desculpe-me por tê-la tirado da festa da Kyra — meu irmão volta a falar, afastando-me dos pensamentos. — Eu liguei para o doutor Henrique e já ia pedir uma ambulância, quando fiquei com medo de acontecer algo e você não estar aqui.
Pego sua mão.
— Eu sei. Foi um susto!
Retornei as ligações dele assim que Kyra me alertou, e, quando Dani atendeu, o doutor já havia chegado e ministrado medicamentos. O médico preferiu que ela continuasse em casa por conta de sua baixa imunidade, mas ficou acompanhando durante boa parte da madrugada.
— Ela convulsionou, e eu achei que fosse... — Ele me olha, seus olhos acinzentados tristes. — Eu quase perdi o papai tempos atrás, lembra? — Assinto. — Eu estava com ele quando teve o infarto, e agora quase...
— Dani, não pensa nisso! — Abraço-o. — Você é o melhor filho e irmão do mundo, sempre ao lado deles, ao meu lado. Agora estou aqui também e vou ajudar no que for preciso.
— Eu sei, Samara. Essa fase do tratamento é a mais complicada, por causa da baixa imunidade, mas, quando ela estabiliza, é a mamãe que sempre conhecemos e amamos.
— E a Bianca? — pergunto-lhe sobre sua noiva. — Como vocês estão, faltando pouco para o grande dia?
Ele ri sem jeito.
— Você sabe que não tem essa de grande dia, não? Nós vamos ao cartório, assinaremos os papéis e pronto. — Dá de ombros. — Vida que segue.
Cruzo os braços. Não gosto nada desse conformismo estranho.
— Tem certeza disso, Dani?
Ele olha para a Cida.
— Vou fazer 41 anos, pirralha. 15 anos de relacionamento com ela, então...
— É isso? — Cida balança a cabeça negativamente. — Viu? A Cida não concorda também! E não é que você seja já um solteirão arrastando chinelos, Dani! Você é lindo!
— Não é sobre isso, Samara.
— Ele quer ter uma família, menina. — Arregalo os olhos. — Seu pai vive mais entretido na fazenda do que aqui, sua mãe, antes de adoecer, não parava quieta, sempre viajando com as amigas e...
— Eu na Espanha.
Daniel termina o café sem me encarar, sem falar nada e se levanta.
— Vou voltar para o quarto, render um pouco a enfermeira.
— Também vou, Dani!
Seguimos juntos, mudos, pelo corredor. Meu irmão é a pessoa mais discreta do mundo, completamente o oposto de outros filhos de grandes empresários desta cidade. Nunca gostou de sair em revistas de fofoca, nunca namorou modelos, atrizes ou socialites. Na adolescência, namorou uma garota da escola, depois teve duas ou três namoradas na faculdade e, por fim, conheceu a Bianca em um torneio de polo – esporte em que ele é fera. Desde então engataram nesse relacionamento xoxo, totalmente ioiô – eles já terminaram umas 30 vezes ao longo dos anos – e que agora vai se tornar um casamento meia-boca.
— Você merece mais, Dani — solto sem conseguir frear minha língua, e ele ri.
— Você diz isso porque é minha irmã, pirralha. — Ele tenta bagunçar meus cabelos como quando eu era criança. — Bianca pode não ser o grande amor da minha vida, mas é uma boa amiga e companheira.
— Isso é loucura! Você merece amar, ser amado, estar apaixonado...
— Como você esteve a vida toda por aquele doidivanas? — Paro em seco no corredor e arregalo os olhos. — Qual é, Samara, você achava que eu não sabia? Estava escrito na sua testa e em todos os seus cadernos, com direito a corações rosa! Você teve um peixe daqueles que ficam sozinhos no aquário...
— Um beta. — Começo a rir, sabendo exatamente do que ele está lembrando.
— Pois bem, você teve um beta e o nomeou...
— Beto Schneider Karamanlis — falamos juntos, e eu começo a rir.
— Sim! E como você nunca me deu indícios de ter uma queda pela Kyra, eu supus que era o outro Karamanlis. — Daniel me olha sério. — Por que Diego não veio contigo?
A pergunta é tão inesperada que demoro a processar que ele está falando do meu namorado.
— Não sei quanto tempo vou ficar, então...
— Besteira! Ele poderia passar uns dias aqui contigo, os times estão todos em recesso até a primeira semana de janeiro. — Suspiro e olho para o chão. — Não estraga sua vida, Alex não vale a pena.
Assinto, lembrando-me de tudo o que aconteceu noite passada. Alexios continua igual, vendo e querendo todas as mulheres ao seu redor, menos eu. Sempre fui a amiga, quase uma irmã, menos uma mulher, e, como acabei de perceber, todos sabem da minha paixão por ele, então, Alexios deve simplesmente ignorá-la.
Por muito tempo eu achei que ele não soubesse. Ficava fantasiando que, no dia em que eu tomasse coragem e lhe contasse, Alexios iria se declarar também. Iludida! É isso que eu era, porque, depois do beijo que trocamos, era impossível que ele não soubesse.
Respiro fundo, resignada. Alexios sabe, só não se importa e nem sente o mesmo!
Meu irmão bate levemente na porta do quarto de mamãe e em seguida entra. Sigo-o pelo enorme ambiente, que me traz tantas lembranças alegres dos momentos que dividi com ela, deitada em sua cama, contando sobre meus sonhos.
— Samara Esther! — Mamãe estende os braços, sentada na cama, recostada nos travesseiros. — Trouxe Godofredo de volta?
Rio e concordo.
— Trouxe, está lá embaixo no jardim. — Beijo sua testa. — Como está se sentindo hoje?
— Eu estou bem! — Ela dá uma olhada de esguelha para meu irmão. — Ele é superprotetor, sabe? Exagerado!
Daniel permanece alheio às críticas, conversando com a enfermeira.
— Mamãe, ele não é, e a senhora sabe! — Ana suspira. — A senhora está em tratamento, precisa de cuidados, e, com o papai isolado na fazenda, Daniel é que estava responsável por acompanhá-la em tudo, mas agora estou aqui também!
— Dois superprotetores! — ela finge reclamar, mas sorri satisfeita. — Seu pai quis vir para cá para ficar comigo, mas achei melhor que ficasse por lá. Você sabe como ele é, não me daria um minuto de paz.
Eu rio, mas sou obrigada a concordar. Meus pais são incríveis, mas têm uma relação um tanto estranha desde que Daniel e eu saímos de casa para viver nossas vidas. Passaram a viver cada um no seu espaço, com suas coisas. Dão-se incrivelmente bem, mas cada um com sua vida.
É verdade que eles não eram nada parecidos. Mamãe sempre foi uma mulher de negócios, cheia de trabalho, viagens e reuniões, porém extremamente carinhosa com os filhos. Papai é um homem mais reservado em seus sentimentos, embora seja um artista.
Olho para um dos móveis da minha mãe, e a escultura em madeira em cima dele me faz sorrir. Nela há um casal e um garotinho com a mão na enorme barriga da mulher. Papai deu vida à imagem de uma foto que tiraram quando mamãe estava grávida de mim, e a peça ficou tão perfeita que dá para sentir a alegria de todos.
Quando eu era criança, tinha coleções das esculturas dele: cavalos, cães, gatos, pássaros. A que eu mais gostava era a do Pinóquio, que ganhei quando comecei a ler e andava para baixo e para cima com o livro do boneco de madeira que queria ser menino de verdade.
— Você vai até lá visitá-lo? — minha mãe pergunta, talvez adivinhando que estou pensando nele, por estar olhando a estátua.
— Por agora não. Tentei falar com ele quando cheguei e ontem também, mas não consegui. — Dou de ombros. — Papai se isola quando quer, a senhora sabe.
— O doutor Henrique acabou de dizer que os resultados dos exames ficaram prontos e que ele virá assim que puder para conversar conosco. — Daniel senta-se ao meu lado na cama. — É bom ter Samara aqui perto, não é?
Ele me abraça pelos ombros.
— Eu também estou gostando de estar de volta.
Mal termino a frase, e meu telefone toca. A foto de Kyra tentando beijar Godofredo, e ele de boca aberta para mordê-la aparece na tela, e minha mãe sorri.
— Eu estou esperando pela visita dessa filha emprestada desnaturada. — Ana reclama. — Pode dizer a ela que não vai comer mais minha paella!
— Pode deixar! — Levanto-me da cama e vou para um canto do quarto. — Oi, Kyra! — atendo o telefone.
— Quero notícias! Mal consegui dormir essa noite, deixei mil mensagens no seu telefone. Como está sua mãe?
— Está bem, mas ameaçou greve de paella se você não vier visitá-la em breve.
— Está bem mesmo? — ouço preocupação na voz da minha amiga, e meu coração se aperta, pois sei que minha mãe foi o mais próximo que Kyra teve de figura materna. — Malinha?
— Está, sim. O médico dela explicou que, por conta da medicação, ela ficaria suscetível a doenças, a imunidade está baixa, então qualquer resfriado ataca com força.
Kyra suspira ao telefone, e eu abro um sorriso ao ver o quanto minha amiga durona é, na verdade, tão sensível quanto eu.
— Que bom! Fico feliz em ouvir isso e mais aliviada para te fazer um convite.
Faço careta, já prevendo que ela vai me meter em algum evento seu de final de ano, vestida de garçonete.
— O que você está armando, Kyra?
— Nada! — ela logo se defende, indignada. — Eu só queria companhia! Na véspera do Ano Novo acontecerá o Baile Branco e Preto dos Villazzas, e, como eu estou sem nenhum boy no momento, você podia ser meu par, o que acha?
— Kyra! — Rio. — Um baile? Sério?
— Baile? — mamãe logo se mete na conversa e pergunta lá da cama. — Por acaso é o baile dos Villazzas?
Fodeu! Minha mãe sempre amou bailes e conheceu a matriarca dos Villazzas tempos atrás, através de sua amiga, Cecília Novak. Certamente ela adorará a novidade, achará moderno eu ir acompanhando minha amiga, e eu não terei escapatória.
— É, mamãe, eu vou com Kyra — respondo resignada.
— Eu sabia! — Minha amiga ri ao telefone. — O traje branco é obrigatório para mulheres, então, abuse de cores em outros locais!
— Eu vou te matar, Kyra Karamanlis! — sussurro para que somente ela escute.
— Depois do baile; antes, quero usufruir de tudo o que planejei! Vai ser o evento mais incrível que você já viu!
Relaxo, percebendo que ela realmente está feliz e confiante.
— Tenho certeza disso, Kyra!
Nós nos despedimos, mas não retorno imediatamente para a cama, ao lado da minha mãe e do meu irmão, fico pensando em como é bom estar de volta. Realmente me sinto em casa aqui, com as pessoas que eu amo, ainda que tenha feito amigos na Espanha.
Penso no Diego e sinto um pequeno aperto no coração, um misto de saudade e remorso. Daniel me olha, curioso por eu estar parada no mesmo lugar, sem falar ou fazer nada, e reflito sobre o que ele me disse. Reconheço que eu recuei ante o pedido de casamento de Diego por ter esperança de voltar ao Brasil e encontrar Alexios mudado, porém ele não mudou e nem mudará jamais, mas isso não muda o fato de que ele ainda mexe comigo.
Diego e eu nos damos muito bem, somos amigos, companheiros, temos gostos parecidos. Enquanto eu estava na Espanha, longe do magnetismo e atração de Alexios, realmente pensei que pudesse amá-lo e ter uma vida com ele. Os momentos que passamos juntos foram maravilhosos, mas agora me questiono se, mesmo voltando para Madri, é justo manter essa relação.
O Uber me deixa em frente ao Villazza SP, e vejo a entrada principal do hotel cheia de pessoas bem-vestidas e penteadas. Ando na direção delas, questionando-me se os convites estão sendo verificados na entrada, mas me surpreendo ao ouvir um dos homens que está parado na entrada:
— Nós só queríamos comprar o convite, não conseguimos responder a tempo e...
— Senhor, o que me foi passado foi que esgotaram, eu sinto muito — um dos seguranças responde antes de se virar para mim, mas, vendo o convite em minhas mãos, abre a porta. — Seja bem-vinda!
Entro no saguão principal do enorme hotel e suspiro, apreciando todos os detalhes da construção e da decoração, orgulhosa por ter sido parte da equipe que ajudou a deixá-lo perfeito desse jeito.
O escritório de arquitetura que projetou o Villazza SP foi o dos Boldanis, e o arquiteto principal que assinou o desenho foi ninguém mais, ninguém menos que meu ídolo e professor, Julio Boldani. O italiano é fera demais nas suas linhas clássicas misturadas às modernas.
Eu ajudei o pessoal que compôs o projeto de decoração, pois estava me especializando e, por isso, trabalhei um tempo no Boldani. Foi ali que descobri que, por mais que papai fizesse pressão para que eu fosse uma arquiteta, eu queria mesmo era ser designer de interiores.
Subo as escadarias de mármore com corrimão e guarda-corpo de ferro fundido na cor ouro velho em arabescos e folhas e, no saguão da entrada do salão Royal, encontro a recepção do baile montada como se fosse uma bilheteria antiga de circo.
Sorrio ao pensar na Kyra, reconhecendo que minha amiga sabe como dar vida aos seus projetos de maneira perfeita, pois vi os desenhos quando almoçamos juntas anteontem e confesso que está tudo muito mais bonito do que a ilustração em 3D que ela me mostrou.
Olho em volta, procurando-a, pois combinamos de nos encontrar na entrada, mas arregalo os olhos ao ver Alexios, de smoking preto, vindo em minha direção.
Mesmo contra a minha vontade, minhas mãos gelam e meu coração dispara apenas por vê-lo, por notar o quanto ele está lindo com esse sorriso largo e os olhos brilhando.
Por que ele tinha que ter essa aparência e essa boca?!, penso na injustiça do mundo, indignada por ser tão comum, e ele...
— Samara Esther. — Bufo, pois só ele e minha mãe chamam-me assim. — Você está... linda!
Alexios sorri e me olha desde as unhas dos pés, pintadas e cutiladas, até o alto da cabeça.
— Linda! — repete como se não fosse possível que eu estivesse desse jeito.
— Oi, Alexios — cumprimento-o seca, tentando não dar importância ao fato de que ele parece ter tomado um soco só por me ver mais arrumada. — Estou esperando sua...
— Eu sei, foi ela quem me mandou ficar aqui de plantão te esperando. — Enrugo a testa, sem entender. — Kyra resolveu bancar a fada madrinha e ajudar uma amiga a ter seu baile com um príncipe encantado e, por isso, vai ter que trabalhar esta noite. — A expressão no rosto dele é de deboche ao falar do conto de fadas. — Então, restou a mim.
Puta merda, Kyra!
Pego o celular dentro da bolsa e mando mensagem para ela, mas tenho certeza de que, ocupada com o começo do baile, ela não irá ler. O que eu faço? Penso se devo aceitar fazer companhia ao Alexios ou se devo ir embora, afinal, só vim a esse baile por insistência da Kyra.
— Samara, eu sei que nossa amizade está um tanto estremecida por conta da distância e do tempo, mas... — Alexios me encara, e noto que ele está se esforçando para falar — eu gostaria que você me acompanhasse esta noite.
Minha boca fica seca ao ouvir isso, porque, mesmo com a distância, eu ainda consigo saber quando ele está sendo sincero. Alexios me quer ao seu lado esta noite, e isso é...
— Como nos velhos tempos, lembra? — ele complementa, e, mais uma vez, percebo o quanto sou iludida.
Nada mudou!
Imediatamente me lembro do meu baile de formatura do ensino médio, no qual ele foi meu acompanhante. Chegamos juntos, eu estava empolgada para dançar com ele a noite toda, arrumei-me para parecer uma mulher aos seus olhos e não mais a menina de cabelos revoltos que o seguia para toda parte quando criança.
Havia decidido que iria contar a ele o que sentia naquela noite e que, depois de ele se declarar também, iríamos fazer amor, e eu, aos 17 anos, finalmente teria minha primeira noite com o homem que amava.
Ledo engano!
Alexios dançou uma música comigo, depois foi para o bar, encheu a cara, sumiu com uma garota bem mais “servida” que eu e voltou para o salão todo amarrotado. Eu queria ir embora, mas ele acabou dançando (e sumindo) com mais umas três mulheres.
— Seu acompanhante te deixou sozinha, não é? — Marlon, um dos garotos que estava se formando comigo me perguntou, e só aí percebi que ele estava sentado à mesa comigo.
Começamos a conversar e, naquela noite, tive minha primeira experiência sexual. Não foi ruim, namoramos por um tempo, mas reconheço que ela só aconteceu porque Alexios não me quis. Ele simplesmente não me via!
— Samara? — ele me chama e me faz voltar à realidade.
Por Deus! Não sou mais uma garota de 17 anos, sou adulta, independente, com uma carreira bem-sucedida na Espanha e um dos homens mais gostosos de Madri ao meu lado!
— Vamos entrar! — decido e marcho até uma das “bilheterias”, onde recebo minha máscara preta e uma pulseira.
Alexios recebe as dele e ri ao me mostrar a máscara branca como a de O Fantasma da Ópera. Ah, merda!
— Você se lembra? — Ele ri. — Me obrigou a ver esse filme um milhão de vezes e sabia até as falas!
O desgraçado põe a máscara, ergue uma das sobrancelhas, dobra-se em reverência e sorri.
— Vamos logo com isso! — Saio de perto dele sem rir de sua gracinha, coração retumbando, a cabeça cheia de lembranças da nossa adolescência.
Quando as portas se abrem, perco o fôlego ao ver o que Kyra idealizou.
— Puta que pariu, minha irmã é foda! — Alexios fala ao meu lado.
Eu pulo de susto, não por causa do que ele disse, nem mesmo ao ver um dos artistas cuspindo fogo, mas tão somente por sentir a sua mão em minha cintura. Meu corpo inteiro aquece, a pele arrepia e aquela sensação que sinto desde que os hormônios despertaram em mim na adolescência volta a me tomar.
Atração! Química!
Não sei explicar, mas meu amor de criança transformou-se nisso quando me tornei moça, e a cada toque, cada resvalo, eu resfolegava. Sonhava com ele, acordava suada e sem saber o que estava acontecendo. Meu primeiro orgasmo com masturbação foi pensando nele, instintivo, depois de um sonho erótico e proibido.
Achei que, com a distância, principalmente depois que me envolvi com Diego, isso ia passar, mas parece que me enganei.
Olho-o e percebo que ele permanece alheio ao que me causa, sua atenção tomada pelos malabares que executam movimentos precisos na entrada do baile.
Respiro fundo.
— Vamos?
Ele assente sem me olhar, e seguimos juntos, passando entre os convidados que ainda se encontram de pé conversando ou bebendo no bar, em direção ao centro do salão, tomado de mesas e cadeiras reservadas.
— Onde nós...
Nem preciso terminar a pergunta, pois logo vejo Theodoros Karamanlis, acompanhado de uma lindíssima loira, a uma mesa com o sobrenome deles na placa de reserva. Eu não sou muito fã do irmão mais velho de Alexios, mas sempre fui educada com ele, então armo meu melhor sorriso e o cumprimento:
— Theo! Que bom vê-lo esta noite! — Olho para sua acompanhante agora mais de perto e sinto como se a conhecesse de algum lugar.
— Samara, essa é Valentina de Sá e Campos — Theodoros nos apresenta, e eu sorrio, reconhecendo os sobrenomes dela. — Valentina, essa é a Samara Schneider, uma incrível designer de interiores.
— É um prazer, Valentina! — saúdo-a.
— O prazer é meu, Samara. — Valentina sorri. — Nos conhecemos já?
— Eu acho que sim, embora não me recorde de onde pode ser.
A loira para a fim de tentar se lembrar, e eu ouço a conversa entre Theo e Alexios.
— Viu só esse trabalho da Kyra?
— Claro! — Alexios debocha do irmão. — Seria impossível não ver, já que estou aqui! Já fui até cumprimentá-la, mas está tão ocupada que não consegui nem falar com ela direito.
Só o suficiente para que ela o encarregasse de me acompanhar nesta noite! Kyra me paga!
— Imagino que esteja. Viu o Kostas? — Theo pergunta, mas não consigo ouvir a resposta de Alexios, pois Valentina volta a falar:
— Lembrei! — ela comemora. — Nos encontramos na festa de inauguração da loja da Miriam Benides, lembra?
Eu não faço a mínima ideia do que ela esteja falando, mas, mesmo que não esteja com nenhuma vontade de prosseguir com a conversa, sorrio e concordo por educação.
— Puxa vida, quanto tempo não vejo você por lá! — Valentina continua.
— Eu estava morando em Madri — informo antes de me sentar.
— Ah, eu adoro a Espanha!
Sorrio sem graça, percebendo que vamos conversar. Não quero ser mal-educada com ela, é só que não estou muito confortável em estar aqui neste baile, não depois de perceber que ainda quero Alexios e que não adiantou de nada impor distância.
— Família! — a voz debochada de Kostas interrompe a conversa de Valentina, e ela me pergunta baixinho quem é o homem abraçado a uma loira com um vestido branco tão justo e transparente que beira à indecência.
— Konstantinos... — sussurro antes de ele apresentar sua acompanhante a todos.
— Bruninha, conheça os Karamanlis! — Ele aponta para Alexios e para Theodoros. — Claro que você pode deixar seu cartão com eles depois, mas eu sou o mais bonito, não sou?
Ele faz a mulher girar em seu próprio eixo, e, pela primeira vez depois da tensão toda em que eu estava desde que vi Alexios, sorrio divertida. Kostas é uma figura! Ainda me lembro de quando ele morava no prédio, na cobertura de seu pai, e juro, se não fossem os olhos azuis e a voz, eu diria que não se trata da mesma pessoa!
— Já bêbado? — Theo pergunta a Alexios.
— E mais uma vez com acompanhante paga! — Alexios se aproxima de Theo e cochicha, e isso me surpreende. Não sabia que os dois estavam conseguindo ter uma relação tão cordial. — Estou achando que nosso querido irmão é do outro time.
Theo gargalha e nos olha sem graça.
— Perdoem-me, foi irresistível! — Tenta se conter e bebe mais do seu uísque. — Bom, certamente ele é arrogante e orgulhoso demais para “sair do armário”.
Quem? Kostas?! Olho para o homenzarrão com a prostituta e nego instintivamente com a cabeça. Não mesmo!
— Seria apenas mais um rejeitado pelo seu querido pappoús! — ouço Alexios dizer isso, e meu coração aperta. Olho-o, respiro fundo, lamentando profundamente por ele ainda se sentir rejeitado, percebendo que isso também não mudou.
Rejeição, abandono, violência o tornaram o homem que é. Sei disso, dei essas desculpas para seu comportamento por muitos anos. Toda vez que ele aprontava, eu usava isso para justificá-lo.
Até quando?, penso, olhando-o fixamente. Até quando ele deixará que os erros dos outros façam-no errar também?
— Você gosta muito dele, não é? — Valentina dispara, e eu desvio os olhos de Alexios. — Seus olhos brilham diferente ao olhar para ele.
— Somos amigos há muitos anos — disfarço.
— Bom, isso é muito bom, mas... — Ela ri. — Desculpe-me se estou sendo invasiva, mas seu olhar é de quem é apaixonada, não apenas uma amiga.
Dou um sorriso amarelo para ela, e Valentina fica quieta.
— Tudo bem aí? — Alexios me pergunta, e eu assinto. — O jantar já tinha sido anunciado antes de você chegar, então não deve demorar muito.
Resolvo conversar com ele normalmente, afinal, seria ridículo fazer birra na minha idade.
— Kyra estava muito ansiosa com o jantar desta noite. Um grande chef internacional, ela me contou, é quem está preparando tudo.
— Sim, está na programação. — Alexios lê o nome do chef francês, e eu não consigo deixar de olhar sua boca. Pego a taça de champanhe e a viro de uma só vez. — Uau! — Sorri e faz sinal para um garçom se aproximar com mais. — Minha acompanhante está sedenta.
— Estou. — Decido não discutir e bebo a outra taça. — E com fome também.
Alexios toca minha coxa por cima do vestido, mas logo tira a mão.
— O jantar não deve demorar — repete sério e se vira para olhar o outro lado do salão.
Fico um tempo olhando para minhas pernas, permitindo a sensação de brasa que a mão dele deixou em minha coxa passar, chateada demais por reagir assim a ele e continuar sendo praticamente invisível.
Que porra é essa que está rolando?
Essa pergunta retórica fica martelando minha cabeça enquanto tento prestar atenção em qualquer coisa neste maldito salão lotado que não seja ela. Eu só posso estar com algum problema, só pode! Samara sempre foi minha amiga, quase minha irmã. Eu estar aqui com uma maldita ereção – pela segunda vez esta noite, frise-se – só pode ser loucura!
Preciso de um médico! A loucura congênita dos Karamanlis começou a se manifestar em mim. Sentir tesão por Samara é quase... incestuoso!
Pego a taça com champanhe e a termino em uma só golada a fim de aplacar o fogo que apenas um toque em sua coxa me causou.
A verdade é que eu não esperava encontrar-me com ela nesta noite. Vim por insistência do Millos e, claro, por sua maldita manipulação eficaz ao falar da Kyra e do suporte a ela em seu primeiro grande evento. Cheguei junto aos primeiros convidados e a encontrei correndo de um lado para o outro, “armando” uma surpresa para sua amiga e funcionária, a gostosa da Helena, que, por sinal, está namorando o Bernardo Novak, um amigo de longa data.
Quando finalmente ela terminou todos os preparativos, foi à cozinha falar com o tal chef francês que a estava deixando nervosa, conferiu tudo com as bandas, DJ e artistas circenses é que me deu atenção.
— Oi, Alexios. — Sorriu cansada. — O baile nem começou direito, e eu já estou de um lado para o outro. — Ela espiou a fila se formando na recepção do evento. — Gostou da decoração?
Seus olhos verdes, como os meus, brilharam ansiosos. Eu cheguei perto dela, beijei sua testa e falei baixinho:
— Está tudo perfeito, Kyra. Parabéns, estou muito orgulhoso!
Ela suspirou e depois se afastou.
— Claro que está! Não tinha dúvida alguma disso. — E, do nada, pegou-me pela mão e me arrastou em direção ao salão. — Vem ver!
— Kyra, eu ainda não troquei meu convite e...
— Ah, Alexios, vem ver!
A decoração estava esplêndida, embora eu soubesse que, com os efeitos de luz e os artistas executando seus números, iria ficar ainda mais incrível. A banda, no palco ao fundo do salão, já estava se posicionando, e alguns funcionários de Kyra ajeitavam os últimos detalhes das mesas, arranjos florais ou acendiam as velas.
— Perfeito! — elogiei-a novamente.
— Você ainda não viu nada! — E deu aquele sorriso que eu sei que fode com a cabeça de qualquer homem. É duro ter uma irmã como ela, linda e sexy, e ver os caras babando em cima e não poder socar a fuça de nenhum. — Ah, preciso de um favor.
Estava demorando!
— Kyki, estou de smoking, mas ainda não sei segurar uma bandeja — sacaneei.
— Não, seu idiota! — Ela me estapeou as costas. — É meu par desta noite! Não vou poder participar do baile como havia previsto, então preciso que você faça companhia...
— Ei, ei, pode parar! Não vou ficar pajeando nenhum marmanjo não!
Ela rolou os olhos.
— Não é marmanjo, idiota! Posso terminar de falar? — Assenti. — É a Samara. Convidei-a a vir comigo esta noite e não quero que fique sozinha.
Samara Esther Schneider!
Fiquei um tempo olhando para Kyra, tentando entender se ela tinha feito isso de propósito, para tentar nos reaproximar, afinal, sempre fomos um trio de amigos/irmãos, e, com a relação entre mim e Samara estremecida, Kyra devia estar um tanto confusa.
— Sem problema. — Sorri. — Você avisou a ela?
— E Samara atende aquele celular? — Ela bufou. — Você terá que esperá-la lá fora. Se importa?
— Não — fui sincero.
— Ótimo, agora vaza, porque ainda tenho coisas a fazer antes de abrirmos o salão. — E, do mesmo jeito que me arrastou, colocou-me para fora.
Fiquei um bom tempo esperando por Samara do lado de fora, o que foi surpreendente, pois ela sempre foi pontual. Vi o salão ser aberto, o baile começar, o discurso do doutor Andreas Villazza, o anúncio do jantar, e nada de a minha (ex?) melhor amiga chegar.
Estava olhando para um detalhe na construção do hotel, executada pela Novak Engenharia, quando meus olhos foram atraídos para o topo da escadaria. Não é exagero eu dizer que meus olhos foram atraídos, porque foi como se um ímã puxasse minha atenção para aquele ponto.
Engasguei-me com minha própria saliva ao ver Samara. Sim, ela estava linda, mas não foi o vestido branco ou o penteado elaborado que chamou minha atenção, foi ela.
Ela é linda e, por conta da nossa amizade e do receio que tinha de machucá-la, parei de perceber sua beleza e não notei a mulher que se tornou.
Fiquei parado, tomando nota de tudo, como se a estivesse vendo pela primeira vez, sentindo um incômodo por estar olhando-a com lascívia, afinal, era a Samara!
Balancei a cabeça, tentando voltar a pôr os neurônios no lugar, justificando para mim mesmo que isso aconteceu por causa dos anos distantes, mesmo sabendo que isso era pura enganação, pois ela não mudou nada nesses últimos anos.
O que aconteceu, então? Não sei, ainda estou confuso, tentando entender por que fiquei excitado com o perfume dela ou por que meu pau acordou apenas por eu a ter segurado pela cintura a fim de andar com ela até a mesa.
Tive que ficar parado, olhando para os malabares sem vê-los realmente, com cara de paisagem, fingindo que nada estava acontecendo. Eu não queria que ela soubesse que eu estava reagindo daquela forma a ela; certamente ficaria horrorizada. Sempre fomos como irmãos!
Tentei me conter, agradeci por Theodoros e sua companhia já estarem à mesa, fiquei um tempo distraído conversando com meu irmão mais velho, mesmo que isso fosse uma dor no saco. Não sou tão rancoroso quanto o Konstantinos sobre o Theo, apesar de concordar com meu irmão sem noção sobre ele nos ter abandonado nas mãos do louco Nikkós, mas o que Theodoros poderia fazer? Eu mesmo estive nessa situação quando pude sair de casa, mas não tinha como tirar Kyra dele, por isso fiquei.
O DJ que executa as músicas antes do jantar e da banda ao vivo coloca My Immortal, de Evanescence, e é impossível não olhar para Samara.
— Sua música preferida na adolescência — comento com ela.
Samara sorri e balança a cabeça, olhando os casais indo para a pista de dança.
— Tocou na minha formatura...
— Eu sei, eu queria dançar com você, mas você não parecia muito a fim, então fui beber.
Ela arregala os olhos e me encara como se não soubesse do que eu estou falando. Provavelmente nem se lembra, estava nervosa e ficava repetindo o caminho todo dentro do carro que a gente nem deveria ter ido, que era besteira.
Não somos mais adolescentes!
— Quer dançar? — inquiro impulsivamente e estendo a mão para ela.
Samara olha para minha mão por um tempo, mas aceita.
Porra, que loucura!
Ela pega minha mão, e minha vontade é de puxá-la para mim e beijar sua boca. Foda! Não consigo mais refrear meus desejos; sempre consegui com ela, por isso não entendo o que está acontecendo agora. Não é qualquer mulher aqui comigo, indo para a pista de dança para ficar de corpo colado no meu – porra! – é a Samara!
Samara!
Minha amiga de infância!
Quase uma irmã...
MERDA!
— Está tudo bem? — ela me pergunta, e eu tento relaxar, já que estou dançando como antigamente: a um palmo de distância dela.
— Sim, tudo. — Tento dar meu famoso sorriso, mas não rola, então pigarreio. — Estou com sede, calor... acho que é essa decoração toda.
— Pode ser. — Ela desvia os olhos de mim. — Quer voltar para a mesa?
Quero!
— Não, a não ser que você...
— Tudo bem.
Ela se solta de mim no exato momento em que a música muda para um instrumental baixo e as luzes se acendem.
— O jantar. — Aponto para os garçons em fila e os convidados voltando aos seus lugares. — Vamos?
Salvo pelo gongo do cozinheiro!, penso ao ajustar disfarçadamente minha calça para não andar de pau duro e assustar a todos por causa da claridade do salão.
Samara bebe mais uma taça de champanhe, e eu rio, já preocupado. Nunca a vi beber tanto! Sempre foi séria, careta, estudiosa e boa filha. Ela nunca fazia nada de errado, nunca decepcionou os pais, fazia tudo o que eles queriam... quer dizer, tudo menos se afastar de mim.
— Acho que já quero ir — ela comenta de repente. — Vou chamar um Uber...
Levanta-se um pouco tonta, e eu a amparo pela cintura.
— Você quase não comeu, e bebeu muito — falo, e ela levanta uma sobrancelha atrevida e irônica para mim. — Não estou dando lição de moral, mesmo porque não tenho nenhuma, apenas constatei um fato.
Ela ri.
— Você não tem nenhuma moral mesmo! — arrasta a última palavra. — Sempre foi um galinha, essa cara de santo aí só engana as outras!
Gargalho.
— Elas não ficavam enganadas por muito tempo, pode acreditar!
Samara funga, indignada, e fecha os olhos.
— Eu acho que realmente bebi demais.
Olho em volta; o salão já está praticamente vazio, apenas um ou outro convidado conversando em pequenos grupos. Theodoros se despediu, com Valentina grudada em seu pescoço, há mais de uma hora, e Kostas nem jantou conosco à mesa, provavelmente ficou no bar com sua acompanhante.
Inicialmente eu tinha pensando em esperar tudo terminar para acompanhar Kyra até em casa, mas, com Samara no estado em que se encontra e com tudo aqui ainda para ser desmontado, é melhor eu levar minha amiga para casa – aproveitando que moramos no mesmo prédio – e voltar mais tarde para acompanhar minha irmã.
Pego a pequena bolsa que ela trouxe e, ainda abraçado a ela, caminho para a saída.
— Alexios... tudo está rodando...
— Muito natural depois de todo aquele champanhe.
Ela suspira e joga a cabeça para trás.
— Você é um chato, sabia? Não posso entender o que todas aquelas mulheres viam em você!
— Imagino que não possa mesmo — respondo-lhe, sabendo que vai se irritar.
Samara sempre disse que eu respondia politicamente ou me evadia quando sentia que o assunto poderia ir para alguma direção que não me deixaria confortável. Ela tinha razão na maioria das vezes, mas, neste momento, só estou a fim de irritá-la.
— Você é um babaca, Alexios Angelos!
Opa! Falou meu nome todo! Rio de sua irritação bêbada, talvez por estar um tanto alto como ela, mas sóbrio o suficiente para carregá-la em segurança até a calçada.
Não vim de moto ou carro sozinho exatamente por saber que iria beber – principalmente para aguentar sozinho a companhia dos meus irmãos à mesa –, porém previ que a saída do baile estaria um inferno e que seria difícil conseguir um táxi ou um carro de aplicativo que estivesse por perto, por isso deixei o Cris, que me trouxe, de sobreaviso no estacionamento.
Mando mensagem para ele e espero até meu carro aparecer. Abro a porta de trás e coloco sobre o banco uma Samara parcialmente adormecida por cachaça francesa.
— Essa foi nocaute! — Cris ri quando eu entro. — Para onde?
— Para o Castellani. — Ele dá um sorrisinho malicioso e pisca. — Ela é minha vizinha, Cris, sossega.
— Falou, chefinho.
— Para de merda e dirige.
Ele tenta sair da entrada do hotel, mas é praticamente impossível com o número de carros que também tentam deixar o local. Olho para trás, confiro que Samara está mesmo apagada e fecho os olhos, recostando-me contra o assento do carona.
— Foi uma festança, hein? — Cris volta a falar. — Só vi entrar filé, pena que a maioria estava acompanhada.
— Geralmente isso não é problema — comento, mordaz. — Já comi muita mulher no banheiro de recepções como essa enquanto o marido conversava com os amigos e falava de negócios.
Cris gargalha.
— Você nunca valeu nada, Lex!
Não retruco o apelido ridículo com que ele me chama e me faz parecer o vilão do Homem de Aço. É pura perda de tempo ralhar com Cristino, então simplesmente ignoro, cansado, meio zoado e com tesão frustrado.
Ele e eu nos conhecemos há alguns anos, quando visitei um dos prédios da Karamanlis que foram invadidos por movimentos pró-moradias. O homem era motorista de profissão, com anotação em sua carteira de trabalho em várias empresas, que juntou todo o dinheiro que tinha, investiu em um carro e um ponto de táxi, mas foi engolido e enxotado pelas grandes cooperativas.
Assim, quando nos conhecemos, ele estava sem casa, sem carro, sem emprego e com uma enorme dívida, fazendo bicos aqui e ali. Ajudei-o primeiro a conseguir emprego, depois por fim saiu da invasão, e, nesse ínterim, nos tornamos amigos.
Ano passado, quando a filha dele nasceu, quis que eu a apadrinhasse, mas educadamente declinei, explicando que, mesmo honrado, não poderia aceitar, pois sou ateu, e o apadrinhamento de uma criança tem a ver com questões religiosas, tem um sentido específico, e eu não seria a pessoa certa para isso. Ele entendeu, mas a garotinha já me chama de Didi (seu jeito fofo de bebê de chamar seu dindo, mesmo que oficialmente eu não o seja).
Acho que cochilei também até o Castellani, pois, quando me dei conta, já estávamos na garagem. Cris me perguntou se eu queria ajuda com Samara, mas agradeci e o mandei para casa. Ele não trabalha como meu motorista diariamente, mas sim na Karamanlis, transportando quem quer que precise fazer serviços externos. Contudo, toda vez que preciso, chamo-o para ganhar um extra.
Há muito parei de combinar bebida e direção, não por mim, mas por medo de acontecer algum acidente e eu acabar prejudicando outras pessoas.
Chamo o elevador, e somente dentro dele é que a bela adormecida parece voltar a si.
— Alexios... — Samara olha em volta. — Este é o elevador do Castellani?
— Parece que sim — respondo-lhe divertido.
Samara bufa.
— Só desmaiada é que eu aceitaria vir com você na direção nesse estado em que se encontra.
— Estou melhor que você. — Ela se encosta contra o espelho, olhos fechados e um enorme sorriso bêbado no rosto. — Além do mais, viemos com motorista.
— Bom... — Samara fala devagar e lambe os lábios como se estivessem secos. O efeito no meu pau é instantâneo. Sinto meu corpo inteiro acender, minhas mãos formigam de vontade de tocá-la. Sua pele parece brilhar, atraindo-me como uma chama atrai uma mariposa.
Tento me afastar, pensar em outra coisa, mas o espaço reduzido do elevador não ajuda. As paredes parecem se fechar cada vez mais, aproximando-me de Samara, apertando-me contra ela, espremendo meu corpo...
— Alexios... — ela geme meu nome, e eu me espremo mais, fazendo-a grudar contra o espelho. O seu perfume inebria meus pensamentos, a pele, tão quente e macia que a sinto mesmo por baixo do vestido, me enlouquece. Preciso provar o sabor de sua boca, conferir se o hálito quente e um tanto etílico se confirma em sua saliva.
Sim!
Agarro-a com mais força, minha ereção pressionada contra sua barriga, minha boca correndo em seu pescoço. Tudo parece congelar à nossa volta, não existe mais tempo e nem espaço, apenas o vácuo e nós dois dentro dele, em chamas.
Lábios nos lábios. Meus dedos esfregam sua nuca, a pele arrepia, os pelos eriçam, meu corpo treme. É a viagem mais louca que eu já fiz sem ser através de uma substância química entorpecente... não! É química ainda, é uma droga viciante, é tesão!
Devoro sua boca sem nenhum pudor ou impedimento. Ela me acolhe, abre-a para minha exploração, prende meus lábios entre seus dentes e morde com força, despertando com a dor ainda mais meu desejo.
Enfio os dedos no meio do seu penteado, seguro o cabelo com força, e ela retribui o desespero cravando as unhas nos meus ombros.
Estou pronto para fodê-la, minha cabeça já trabalha uma forma de abrir o zíper da calça social, sacar meu pau e buscar o caminho de sua boceta, que, a julgar pela forma com que ela come a minha boca, já está molhada e quente.
Um pigarrear me faz sobressaltar, e eu me afasto dela o mais rápido possível. Um casal de idosos também vestido em black tie entra no elevador no saguão do prédio, sinal de que o elevador subiu e desceu de novo enquanto nós dois quase nos comíamos dentro dele.
Olho para Samara, mas ela não parece constrangida ou assustada, apenas passa a mão pelos lábios e me encara, sua expressão cheia de perguntas e curiosidade.
Caralho, o que eu estou fazendo?! É a Samara, minha amiga, aquela que eu sempre quis manter longe desse meu lado sem vergonha! Puta que pariu!
Espero o casal descer em seu andar e, assim que as portas se fecham, respiro fundo.
— Desculpa, Samara, acho que estou mais bêbado do que imaginei a princípio. — Não tenho como olhá-la, dividido entre o constrangimento e o desejo ainda pulsando na minha calça. — Somos amigos, eu não deveria atacar você dessa forma, me des...
— Para! — sua voz soa magoada, e eu tenho vontade de socar a cabeça contra o espelho. — Não precisa dizer mais...
— Eu prometo que isso não voltará a acontecer. — Finalmente a encaro e fico fodido ao ver sua expressão confusa. Ela parece não ter gostado do que aconteceu, deve estar achando que eu sou um filho da puta aproveitador. — Você é minha amiga, Samara, mesmo depois dessa distância, eu ainda a vejo como se fosse minha irmã e...
— Chega! — ela grita, e as portas do elevador se abrem no seu andar. — Você tem razão, foi um erro e não deve voltar a acontecer!
Ouvir isso é como um balde de água fria, mesmo reconhecendo que é o certo.
— Eu não quero que isso afete novamente a amizade que nós temos e...
Samara sai pisando duro do elevador sem olhar para trás. Minha vontade é de correr atrás dela, voltar a encostá-la em alguma parede e beijá-la novamente até que perca a razão ou eu alivie esse tesão indesejável que estou sentindo.
As portas se fecham, e eu, ao invés de apertar o botão do meu andar, mando o elevador de volta para o térreo e chamo um Uber.
Preciso trepar!
— Essa sua cara de cachorro cagando na chuva é ainda ressaca do baile? — Kyra me pergunta, sentando-se ao meu lado na rede que ela tem em sua varanda. — Quer café?
Resmungo ainda com os olhos fechados:
— Quero paz!
Ela ri.
— Isso está em falta por aqui hoje, passa na semana que vem... — Encaro-a, puto com a piadinha. — O que aconteceu?
Não respondo, meus olhos fixos no topo do prédio do outro lado do parque. Balanço a cabeça, decidindo ser mais covarde do que tenho sido desde a madrugada do dia primeiro de janeiro e fecho os olhos para tentar nem pensar na confusão que arrumei.
— Você não deveria estar trabalhando hoje? Ou eu? — Kyra volta a me importunar, mas continuo mudo. — Mano, você continua o mesmo chato da porra de sempre! Fica aí com essa cara de Maria do Bairro e não abre a porcaria da boca para me contar o que diabos você fez dessa vez!
— Obrigado pela confiança em mim! — retruco irônico.
— Ah, boquinha para ser mal-educado comigo você tem! — Ela me cutuca o ombro, mas depois suspira e deita a cabeça nele. — Você sabe que faz merda, mas que eu estou aqui, disposta a te ouvir e te ajudar a limpar os cagaços. Somos uma dupla, você e eu, sempre fomos e sempre seremos.
— Costumávamos ser um trio... — assim que eu comento, imediatamente me arrependo, pois Kyra salta da rede – quase me derrubando no percurso – e emite um ensurdecedor: “ahá!”.
— Eu sabia que tinha acontecido algo na madrugada do baile! Samara está estranha, esquiva, e isso não é o natural dela. Que merda você aprontou? — Continuo ignorando-a, sem nenhuma disposição para contar sobre o beijo, o amasso e a confusão que isso criou em mim. — Alexios! — Minha irmã começa a pirar por causa do meu silêncio, mas, se me conhece um pouco, já deve imaginar que eu não irei abrir a boca para falar desse assunto. — Está certo! Você e sua maldita boca de siri. — Volta a se sentar, mas dessa vez não se deita em mim. — Alex, ela é nossa amiga, não a magoe, ok? Samara merece ser feliz, e esses anos que passou na Espanha foram ótimos para ela. Eu morria de saudades, mas estava feliz por ela estar realizada trabalhando com o que ama fazer, com um puta gato espanhol lambendo seus pés e — abro os olhos, mas Kyra não se freia — querendo formar família com ela.
Sento-me bruscamente, e Kyra balança.
— Como assim formar família?
— Ele a pediu em casamento. — Surpreendo-me, mas tento não reagir, não demonstrar. — Deu-lhe um lindíssimo e caro anel de diamante e está esperando pelo retorno dela.
Essa informação, apesar de ter me pegado de surpresa, não é nenhuma novidade. Sempre achei que algum homem de sorte iria conquistar o coração da minha amiga de infância e tê-la para sempre. Samara é a pessoa mais leal que eu conheço, mais incrível, merece muito ser feliz ao lado de alguém que valha a pena.
— Ela não estava usando anel... — penso em voz alta.
— Ainda não falou com os pais dela... — Kyra olha fundo nos meus olhos, procurando qualquer reação minha, mas sei que não irá encontrar nenhuma. Há muito aprendi a sentir sem demonstrar ou a mostrar apenas o que eu quero que os outros vejam. — Vocês não conversaram ontem?
— Acho que ainda não conseguimos estreitar os laços de amizade novamente.
— Hum... — Ela olha para seu relógio no pulso e suspira. — Preciso ir para o trabalho, vai ficar aqui? — Assinto. — Eu tenho a sensação de que você está se escondendo, só não faço ideia do quê.
Ela entra no apartamento, e novamente olho para o alto do Castellani, do outro lado do parque. Daqui do prédio onde ela mora, consigo ver o heliponto no telhado, algumas janelas da cobertura onde Cadu mora, o andar debaixo, onde Bernardo Novak reside, e uma pontinha da minha varanda. O apartamento de Samara fica uns andares abaixo do meu, então não tenho como vê-lo, mas somente por saber que ela está lá dentro, sinto vontade de ficar aqui, bem longe.
Não me entendam mal, não estou fazendo isso porque não quero que ela se aproxime de mim, pelo contrário, estou aqui, exilado como um covarde no apartamento da minha irmã mais nova, porque, se pisar no Castellani, sei que não conseguirei me manter distante dela.
Mesmo depois da maratona de sexo que fiz com uma mulher com quem já havia saído antes das festas de final de ano, não tenho segurança de estar no mesmo ambiente que Samara e me controlar para não a pressionar contra alguma parede e fodê-la sem ao menos dizer um cumprimento.
Definitivamente não vou fazer isso, não com ela!
Muito menos depois de saber que há alguém que a merece, que está à altura dela, esperando sua volta.
Rio de mim ao pensar que estou aqui, evitando-a, quando na verdade ela é quem deve estar querendo ficar a quilômetros de mim. Talvez esteja até indignada e ofendida pelo modo com que a toquei e beijei sem nenhum aviso, como se fôssemos um casal qualquer que se encontrou na balada para trepar, e não duas pessoas que são amigas desde que se entendem por gente.
Não entendo por que perdi o controle do tesão que sempre reprimi, mas me conheço o suficiente para saber que ele não passou. Raramente sinto aquela química com alguém. Era como se meu corpo estivesse sendo atraído, como se algo nela estivesse provocando reações em mim que eu não conseguia controlar. Foi animal, carnal, a famosa atração de pele que muita gente procura, mas pouca tem.
E eu tive justamente com minha melhor amiga!
Kyra volta a aparecer no meu campo de visão, agora com os belíssimos cabelos escuros, longos e fartos soltos, o rosto maquiado e uma roupa de deixar qualquer homem lobotomizado.
— Esse bode aí está foda para passar, hein? — comenta antes de se abaixar para pegar um guarda-chuva no móvel ao lado da rede. — Têm umas sobrinhas do baile na geladeira, cerveja – por favor, não tome todas, mas se tomar, as reponha –, e meu chuveiro tem muita pressão e água fresca. — Pisca para mim, e eu franzo a testa, sem entender. — Você está meio rançoso.
— Vai se ferrar, Kyra — ralho com ela, mas rio.
Ela se aproxima e beija minha testa, e isso, sim, arranca um sorriso sincero meu. Gosto que ela confie em mim o suficiente para me tocar, para recostar-se no meu ombro ou mesmo ficar abraçada, pois sei que ela não é assim com todos, principalmente com homens em geral.
— Fica bem e ouça meu conselho... — Ela anda até a porta antes de complementar: — Tome um banho, você cheira a álcool e a perfume vagabundo.
Levanto o dedo do meio para ela e a escuto ir gargalhando apartamento adentro até a porta de entrada bater. É, eu bebi bastante, sim, devo estar exalando álcool pelos poros, e o perfume barato se impregnou em minha roupa ontem, quando a recoloquei depois de mais de 12 horas nu, e a mulher me abraçou toda perfumada.
Saí do apartamento dela e vim direto para o da Kyra, torcendo para que minha irmã estivesse em casa e sozinha a fim de que eu pudesse cair aqui nesta rede onde estou e tentar pôr a cabeça certa no controle do meu corpo.
O telefone fixo toca alto, afastando meus pensamentos, e aproveito para tomar o banho aconselhado pela minha irmã viciada em limpeza. Entro na sala desabotoando a camisa branca que usei com o smoking – pois é, ainda estou com a mesma roupa do Ano Novo em pleno segundo dia do ano – e noto que não faço ideia de onde estão o paletó e a gravata-borboleta.
A primeira foto que vejo ao entrar no quarto de Kyra é uma que tiramos juntos – Samara, ela e eu – na formatura da minha irmã. Eu fui o par dela, então estava de smoking, e as duas, de vestido longo, maquiagem e penteado. Caminho até o aparador e pego o porta-retratos, focando em Samara e me perguntando como eu conseguia me manter longe do mulherão ao meu lado. Era uma beleza diferente da minha irmã, Samara tem o olhar doce, sorriso largo, nenhum mistério, seu rosto expressa suas emoções, sua sinceridade.
CONTINUA
Sua pergunta me deixa paralisada, completamente sem condições para lhe responder. Por que ele me procuraria?! Porque somos amigos desde que nasci? Porque estive ao lado dele em todos os momentos? Porque ele tomou um porre, apareceu lá em casa, chorou no meu ombro, beijou-me e depois fingiu que nada tinha acontecido?
Respiro fundo para controlar o volume da voz e não gritar que ele é um idiota, mas, antes que eu abra a boca, Kyra aparece esbaforida com um telefone na mão.
— Ei, Malinha, você está com seu telefone na bolsa? — Alexios olha para a irmã, puto por ela estar nos interrompendo, e eu franzo a testa, sem entender a pergunta dela. — Seu celular! — Ela bufa... — Seu irmão acaba de ligar para o meu telefone. — E balança o aparelho.
Arregalo os olhos, meu coração dispara, e logo penso em mamãe, que vi apenas um pouco ontem, quando fui buscar o Godofredo. Pego o telefone e confiro as ligações perdidas. Noto Alexios se afastando, mas não me importo; ele continua o mesmo egoísta de sempre.
Samara Schneider está de volta!
Mastigo mais um pedaço do pernil que Kyra serviu como opção de carne na ceia de Natal e não consigo deixar de pensar na volta daquela que foi minha grande amiga e companheira.
Até hoje não entendo o que aconteceu para que ela tomasse a decisão de ir estudar na Espanha sem falar nada comigo. Claro, eu sabia que tinha a possibilidade, afinal, havia anos o pai dela pressionava por isso, para ela ir estudar arquitetura clássica na terra de Gaudí14. No entanto, para minha total surpresa, em vez de ir morar em Barcelona, Samara foi para Madri.
Eu, que até então me considerava seu melhor amigo, só fiquei sabendo desses detalhes todos porque Kyra me contou depois que fui atrás dela para saber o paradeiro de Samara.
Pego a taça com água para ajudar a engolir a comida, pois estou com um aperto na garganta desde que a vi. Eu tinha acabado de sair da sala de reuniões de Kyra depois de um ménage espetacular com Valéria e Priscila, mais animado para encarar a noite especial, sem imaginar a grande surpresa que encontraria no salão e que quase me fez tropeçar em meus próprios pés.
Assim que meus olhos bateram nela, assustei-me, pois a danada da Kyra não havia me contado que Samara tinha voltado. Tentei um sorriso e uma aproximação amigável, como se ela não tivesse me abandonado por longos três anos sem nenhuma notícia. Ela está diferente, ainda mais bonita do que eu me lembro, mas tentei não reparar muito e ser o amigo de sempre.
Nada disso adiantou, pois, ao que parece, Samara desejou que eu corresse atrás dela, que a procurasse e reestabelecesse contato. Como eu poderia imaginar algo assim? Não sou adivinho! Ela some sem nenhum motivo e ainda se sente no direito de ficar puta por eu não ter tentado contato?
Quem entende a cabeça das mulheres?!
— Sua amiga foi embora cedo — Millos comenta ao meu lado. — Será que houve algum problema com a mãe dela?
Olho para meu primo, sentado ao meu lado à mesa, e ele entende meu total desconhecimento do assunto.
— A mãe dela, dona Ana Cohen, está em tratamento contra um linfoma. — Millos bebe mais chope. — Você não sabe nada sobre a vida da sua amiga?
— E você? Como sabe?
O filho da puta apenas dá de ombros, evasivo como sempre, adorando estar sempre um passo à frente de todos. Millos é um sujeito estranho. É o único que consegue interagir com todos nós sem tomar partido e sem revelar nada da vida pessoal de ninguém, nem mesmo da sua. Somos amigos, nos damos bem, mas eu sei pouco sobre ele, sobre suas atividades, e o máximo que conheço de sua vida pessoal é que tem um passado fodido como o meu, frequenta alguns clubes de sexo, tem uma amiga que por sinal é uma gostosa do caralho – mas nunca me deu mole, infelizmente – e só.
Como profissional, o homem é uma verdadeira coruja! Quieto, observador, parece que consegue olhar em 360 graus, além de ser um caçador de informações inigualável. Não há nada que passe despercebido por ele, e o que expõe ou o que fala, tenho certeza de que é o mínimo do que sabe. Por isso, todo cuidado é pouco quando o assunto é Millos Karamanlis, porque o desgraçado é um manipulador de mão cheia!
— Eu não sabia que dona Ana está doente, não vejo os pais de Samara há anos — contesto-o. — Espero que nada grave tenha ocorrido.
— Não vai ligar para saber? — Millos volta a questionar.
Franzo as sobrancelhas, encarando-o, tentando entender o motivo pelo qual ele está tão interessado no assunto.
— Não — respondo seco e volto a comer, mesmo com o questionamento dele na cabeça. Para mim o assunto acabou! Samara já demonstrou que não quer papo comigo por algum motivo, e, mesmo chateado com isso, devo respeitar a decisão dela. Millos é um manipulador e sabe que esse é um assunto que me atinge diretamente, por isso tocou nele.
Não preciso ligar para Samara, como não liguei para ela durante todo o tempo em que esteve fora, mas isso não quer dizer que eu não queira saber o que está acontecendo. Kyra sempre foi minha fonte de informações sobre ela e, caso tenha que ser assim, continuará sendo.
Termino minha refeição, fico mais algum tempo com Kyra e seus convidados, brindo ao sucesso do negócio dela e logo depois vou embora. Tinha pretensão de ir para casa, mas, no meio do caminho, uma mulher com quem eu já saí algumas vezes me manda uma mensagem dizendo que está na cidade, e vou encontrá-la.
Dia 26 de dezembro, pior dia de trabalho do mundo, certamente! Rio ao passar por mais dois engenheiros com cara de ressaca ou, talvez, de quem comeu demais e agora passa mal do estômago.
— Melhor colocar a lixeira perto! — passo, sacaneando meu colega de trabalho, Pedro, engenheiro químico. — Se emporcalhar a sala, vai ter que limpar você mesmo.
— Porra, Alexios, fala mais baixo! — Ele põe a mão na cabeça.
Gargalho e me sento à minha mesa, lotada de projetos, planilhas e minha coleção de lápis. É, eu coleciono lápis! Cada um tem a coleção que lhe cabe, não é?
Ligo o computador, olho para meu caderno de tarefas e arregalo os olhos ao ver um nome que eu não imaginava rever anotado lá – por outra pessoa.
— Ethernium? — questiono olhando para o Pedro.
— Sim! Acabamos de saber, mas o CEO lá da Karamanlis vai querer conversar com você, certamente.
Bufo ao pensar em subir até o Olimpo para conversar com Theodoros, sem esquecer as discussões que tivemos nas últimas semanas por conta de seu egocentrismo e insensibilidade com os funcionários da casa.
Sua mania de pensar que é Deus, inabalável, inatingível e perfeito me irrita, principalmente porque sei que ele não é nada disso, apenas a porra de um filhinho de vovô mimado, que sempre achou que podia fazer qualquer coisa que quisesse sem pensar nas consequências, que o velho grego limparia suas cagadas.
Admito, o velhote sempre fez tudo para seu neto querido. Entretanto, não pôde limpar a merda que Theodoros deixou para trás, apenas jogou-a para debaixo do tapete, limpou a consciência do seu netinho querido, que seguiu a vida como se nada tivesse feito e deixou o resto se fodendo sem se importar o mínimo.
Theo é arrogante, e eu não tenho saco para lidar com gente assim.
Ouço passos, um poc-poc característico de saltos, e em seguida a voz de Lia, outra engenheira que trabalha na minha equipe direta.
— Bom dia! — sua voz soa animada. — Ah... sem Papai Noel de chocolate este ano! — ela resmunga, e eu a vejo procurando sobre sua mesa. — Poxa, Alex, você já foi mais generoso!
— Eu?! — Começo a rir. — Você realmente me imagina comprando e colocando chocolate em formato de Papai Noel nas mesas dos outros? — Ela faz careta e nega. — Eu achava que era você!
— Por quê? Só porque sou mulher?
Rolo os olhos.
— Não, porra, porque você é viciada em chocolate!
— Ele está certo, Lia! — Pedro se mete na conversa em minha defesa. — Eu também achava que era você por causa disso.
Ela se senta frustrada por não ter encontrado o presente do “Papai Noel” misterioso da Karamanlis.
— Bom, não sou eu, e eu contava com isso! Não falha por anos! — Olha em volta para as outras estações de trabalho, ainda vazias sem os profissionais. — Ninguém recebeu?
Nego, e Pedro faz o mesmo.
— Estranho...
— Coisas estranhas têm acontecido por aqui — digo e lhe estendo meu caderno com a anotação da Ethernium.
— O quê? De novo? — Ela geme. — Esses caras da Ethernium são uns malas! Sério, Alexios, eu não vou aguentar gracinhas pra o meu lado de novo não!
— Eu disse que você devia ter respondido a ele. — Dou de ombros. — Mas agora sabe que tem meu total apoio! Se alguém da equipe deles fizer piadas machistas de novo, responda.
— Quem é o machista? Que vou com você dar uma surra nele. — Eliane chega já mostrando as garras – que garras! Minhas costas sofreram com elas – e se senta em sua estação. — Bom dia, feliz Natal, foi tudo ótimo! Agora, silêncio, porque ainda estou agarrada a um cálculo estrutural que não tem me deixado dormir. Obrigada. De nada.
Pedro começa a rir, e Lia só balança a cabeça. Eliane é assim, direta e sem rodeios, por isso mesmo achei-a ideal para o trabalho pelo qual é responsável. Nós nos conhecemos em uma balada, transamos, depois voltamos a nos encontrar na entrevista dela aqui na K-Eng tempos depois. Nunca mais voltamos a trepar, mas conseguimos construir uma relação de trabalho quase perfeita. Sei que posso contar com ela para qualquer coisa aqui dentro.
Tenho mais duas pessoas na minha equipe: Evandro e Michel, mas os dois estão de férias e ainda não retornaram. Não é normal dois membros da mesma equipe saírem em férias juntos, mas, como eles são casados, a lei lhes garante esse direito.
A K-Eng não é formada apenas pela minha equipe de engenheiros em suas especialidades, a verdade é que cada um aqui gere suas próprias divisões. O Pedro, por exemplo, é engenheiro químico, e na divisão dele estão químicos industriais, técnicos em química e outros engenheiros dessa área. Já a Lia é engenheira ambiental, e, dentro de sua divisão, há biólogos, gestores ambientais e engenheiros sanitaristas. A Eliana trabalha com projetos, e ela coordena outros engenheiros, arquitetos e projetistas. O Michel faz toda a parte de planilhas e medições, e o Evandro é responsável pelas operações, é quem lida com empreiteiros, clientes e atua também como fiscalizador de obras.
Além do corpo técnico da K-Eng, a empresa, que é uma subsidiária da Karamanlis, ainda tem setores administrativos e financeiros, e eu, como CEO dessa bagaça aqui, sou quem comanda essas áreas.
O único setor que dividimos com a Karamanlis, infelizmente, é o jurídico, por isso aturo muito a prepotência inglesa do Konstantinos e seu humor ácido. Geralmente não tenho paciência com ele, zoo com sua cara ou apenas o ignoro. Ele não é bem quisto por ninguém da minha equipe, principalmente pelas mulheres.
— Por falar em machismo... — Lia volta a falar. — Será que a Kika não vai voltar mais não?
Dou uma risada por ela ter entrado no assunto justamente quando eu pensava no meu irmão machista.
— Está um silêncio total na Karamanlis — Eliana se pronuncia. — Dá até medo de andar pelos corredores, clima pesadão!
— A Kika era incrível, né? Gata, alto-astral, competente — Pedro lamenta. — Uma pena que tenha perdido a cabeça e tenha sido mandada embora...
— Opa! — Eliana o interrompe. — Ela se demitiu!
— Enfim, está desempregada depois de ter ganhado uma puta promoção para a gerência.
— Eu a preferia à Malu Ruschel. — Lia treme toda. — Aquela mulher congelava até meu sangue só de estar perto dela.
Definitivamente, não o meu!, penso ao me lembrar de Malu Ruschel, a ex-gerente dos hunters da Karamanlis. Malu era bonita, tinha classe e aquele seu jeito focado me enchia de tesão. Uma pena ter ido morar no fim do mundo!
Já com a Kika, nunca senti essa atração, talvez por sempre tê-la achado tão receptiva, maravilhosa com seu jeito espontâneo, que logo gostei dela como se fosse uma amiga de longa data. Tenho muito apreço por ela e lamento que tenha saído da empresa.
Os engenheiros começam a conversar, mas o assunto não me interessa o mínimo, então coloco meus fones de ouvido – a voz forte e rasgada da Janis Joplin soa bem alta – e volto a mexer no projeto em que estava trabalhando.
— Ei, moleque! — Millos me chama assim que para sua moto. — Você não sabe curtir um passeio, puta que pariu!
Ele desce da motocicleta, tira o capacete e a jaqueta e se senta à mesa do bar ao meu lado. Bebo minha água sem responder, porque a única coisa que eu poderia lhe falar é que não sou um velho para ficar andando nessas motos de colecionador há 80 km por hora.
Estou aqui esperando-o há pelo menos 20 minutos, e isso porque saímos juntos de São Paulo em direção ao Guarujá, em uma viagem não programada e cujo motivo, sinceramente, nem entendi. Ele apenas apareceu lá na K-Eng e me chamou para andar de moto com ele, e eu topei.
— Qual é o propósito disso? — resolvo perguntar sem rodeios.
— Do quê?
Millos agradece à garçonete que lhe entrega um coco verde com um canudo e nem percebe a moça comendo-o com os olhos (ou talvez só esteja assustada com suas tatuagens, que cobrem os braços, pescoço e peito).
— Desse “passeio”. A gente se viu há alguns dias na ceia da Kyra, e você não comentou nada sobre isso.
— Nada de mais! — Ele bebe a água de coco. — Vou viajar no Ano Novo, ficar um tempo fora e queria passar um tempo contigo. Já jantei com seus irmãos, mas como você é todo amalucado para comer, achei que uma volta de moto iria cair bem, mas esqueci que você é louco nisso também.
— Você está ficando velho, Millos, sinto lhe informar — debocho. — Acha mesmo que, com essa potência italiana nas mãos, eu iria ficar molengando contigo na estrada?
— Não é molengar, é curtir a viagem, a paisagem...
— Ah, não, você curte essas coisas paradas, não eu. Meditação, ioga, essas coisas todas aí que você faz, tô fora! Não sei ir devagar, Millos, em nada!
— Deveria... talvez assim conseguisse agradar às mulheres. — Ele pisca e tenta disfarçar a troça bebendo mais de sua água.
Eu gargalho.
— Pode ter certeza, elas não reclamam da minha rapidez. Não basta saber correr, tem que saber tirar o máximo proveito de uma máquina, fazê-la dar tudo de si, e isso eu faço.
— Está falando das motos ou das mulheres?
— Tem diferença?
Ele ri novamente.
— Você é um moleque, não sabe nada ainda!
— Falou aquele que nomeia suas motos com nomes femininos!
Nós dois rimos juntos, e o clima fica descontraído.
A verdade é que ele e eu temos muito em comum. Ambos adoramos motocicletas, rock e carne. Apesar de sua onda “zen budista”, Millos nunca conseguiu se livrar da proteína animal e das comidas pesadas que adora preparar para acompanhar suas cervejas artesanais.
Ah, esse é outro ponto em comum: adoramos cerveja! Ele fabrica, eu apenas bebo, mas tenho tanto conhecimento quanto ele, e esse é um dos pontos sobre o que mais conversamos quando estamos juntos, geralmente comendo alguma carne e ouvindo rock.
Raramente saímos juntos de moto, exatamente por ele fazer o estilo tiozão que gosta de andar de Harley, apreciando paisagens, e eu e minha Ducati Multistrada 1260 não temos saco para andar quase parando não.
Embora eu reconheça que tenho que agradecer a esse tiozão por ter minha moto dos sonhos, a que uso para correr nas competições. A Ducati só disponibilizou três unidades da 1299 Superleggera para venda no Brasil, há quase dois anos, e um dos amigos do Millos foi quem comprou uma delas, e, quando ele decidiu vendê-la, meu primo prontamente me avisou, e não pensei duas vezes.
Eu gosto das italianas mais do que das americanas ou japonesas, pelo menos para as motos; não sou tão seletivo assim com mulheres.
— Baile dos Villazzas...
— Ah, Millos, não fode com esse assunto de novo! — reclamo, entendendo agora o motivo do encontro.
— Alexios, preciso de você lá.
Rio.
— Mano, aqueles dois não são crianças, e, muito menos, sou a babá deles! Eles não precisam que eu vá para manter a ordem e o bom nome da...
— Kyra me mostrou o projeto do baile, ela parece bem animada com sua primeira grande produção sem a intervenção dos Karamanlis.
Porra! Ele vai pegar pesado!
— Você é muito filho da puta, sabia?
Millos dá de ombros e bebe mais água.
— Acho que vocês deveriam ir para apoiá-la, acima de todos, você! Será importante para ela, além disso... acho que ela está sem acompanhante, porque deu com o pé na bunda do último idiota que estava comendo.
— Porra, Millos! — Xingo-o. — É a minha irmã, porra!
— E o quê? Só por isso ela não trepa?
— Vai se foder! — Levanto-me da mesa puto e pego o capacete.
— Alexios... — ele me chama, mas não dou atenção, já montando na moto para ir o mais longe possível dele.
Antes que vocês me julguem como machista ou irmão ciumento, adianto logo que não se trata disso. Cada um lida com a merda dentro de si de um jeito, e esse é o jeito da minha irmã de lidar com seu passado. Respeito isso, mas não quer dizer que não me doa ou mesmo que eu não me sinta responsável por ela ser assim.
Eu gostaria que as coisas fossem diferentes, esforcei-me o máximo que pude para que ela fosse menos fodida do que todos nós, mas, a cada novo relacionamento seu destruído, sinto-me um fracassado, o que me dói profundamente.
Piloto rápido, passando pelos radares sem me importar com as multas, sentindo o vento forte bater em mim como se pudesse deixar todas as marcas do meu corpo e da minha alma para trás. Contudo, não posso. Ele fodeu a minha vida várias vezes, não só com as coisas que fez contra mim, mas principalmente por eu ver que também destruiu minha irmã.
— Como ela está, Dani? — pergunto ao meu irmão assim que ele entra na cozinha da casa dos meus pais, onde tomo meu desjejum com a Cida.
— Dormiu bem. — Ele beija minha cabeça. — Mas foi um susto essa febre alta assim do nada.
Ele se senta, visivelmente cansado, e Cida logo lhe serve uma xícara de café. Acostumados demais a dividir as refeições com Cida desde que nascemos, sempre tomamos nosso café juntos. Ela está em nossa casa há tanto tempo que não sei como seria minha vida sem sua presença, e certamente Daniel sente o mesmo.
Minha mãe, Ana Cohen, sempre foi muito ocupada na direção do sistema de ensino criado pelos meus avós, franqueado e distribuído por colégios do Brasil todo. Já meu pai, Benjamin, vem de uma longa linhagem de comerciantes e industriais, como bem acentua nosso sobrenome, que é uma derivação da profissão de algum ascendente que foi alfaiate.
Os Schneiders possuem lojas, fábricas ou empresas que prestam serviços, como era o nosso caso. Meu avô não tinha formação quando fundou sua primeira fábrica de móveis, porém eram um marceneiro muito habilidoso, e meu pai aprendeu com ele. Os negócios iam bem, então papai foi estudar arquitetura e, por fim, design, elevando o nível dos negócios familiares, fazendo dos móveis com nosso sobrenome sinônimos de classe e riqueza.
Há 10 anos meu irmão está à frente dos negócios, desde que papai teve seu primeiro infarto – ele já teve outro e fez duas pontes de safena. Daniel é um administrador maravilhoso, fechou com grandes empresas, e hoje os móveis Schneider não enfeitam mais as coberturas e mansões luxuosas de São Paulo, tão somente redes enormes de hospitais, clínicas, lojas de alto luxo e restaurantes em todo o país.
Meu irmão é incrível! Nós dois somos muito amigos, sempre fomos. O único ponto tenso entre nós era Alexios Karamanlis. Daniel é 10 anos mais velho que eu, um quarentão, como eu costumo provocá-lo, e sempre achou Alex uma péssima companhia. Bom, ele realmente era, mas não para mim. Eu sabia das loucuras que Alexios aprontava, seu envolvimento com drogas, farras, lutas valendo dinheiro e rachas pela cidade. Ele não foi um adolescente fácil, mas sempre me tratou como se ainda conservasse o menino que eu conheci. Sempre me deu conselhos para ficar longe de tudo aquilo que ele mesmo fazia, nossa amizade sempre foi separada das outras companhias dele.
Ainda assim, Dani nunca gostou de Alexios, em compensação, tornou-se um dos grandes amigos de Millos Karamanlis, primo do Alex, mesmo que eu não consiga entender o que, de fato, o executivo tatuado e meu irmão tenham em comum.
— Desculpe-me por tê-la tirado da festa da Kyra — meu irmão volta a falar, afastando-me dos pensamentos. — Eu liguei para o doutor Henrique e já ia pedir uma ambulância, quando fiquei com medo de acontecer algo e você não estar aqui.
Pego sua mão.
— Eu sei. Foi um susto!
Retornei as ligações dele assim que Kyra me alertou, e, quando Dani atendeu, o doutor já havia chegado e ministrado medicamentos. O médico preferiu que ela continuasse em casa por conta de sua baixa imunidade, mas ficou acompanhando durante boa parte da madrugada.
— Ela convulsionou, e eu achei que fosse... — Ele me olha, seus olhos acinzentados tristes. — Eu quase perdi o papai tempos atrás, lembra? — Assinto. — Eu estava com ele quando teve o infarto, e agora quase...
— Dani, não pensa nisso! — Abraço-o. — Você é o melhor filho e irmão do mundo, sempre ao lado deles, ao meu lado. Agora estou aqui também e vou ajudar no que for preciso.
— Eu sei, Samara. Essa fase do tratamento é a mais complicada, por causa da baixa imunidade, mas, quando ela estabiliza, é a mamãe que sempre conhecemos e amamos.
— E a Bianca? — pergunto-lhe sobre sua noiva. — Como vocês estão, faltando pouco para o grande dia?
Ele ri sem jeito.
— Você sabe que não tem essa de grande dia, não? Nós vamos ao cartório, assinaremos os papéis e pronto. — Dá de ombros. — Vida que segue.
Cruzo os braços. Não gosto nada desse conformismo estranho.
— Tem certeza disso, Dani?
Ele olha para a Cida.
— Vou fazer 41 anos, pirralha. 15 anos de relacionamento com ela, então...
— É isso? — Cida balança a cabeça negativamente. — Viu? A Cida não concorda também! E não é que você seja já um solteirão arrastando chinelos, Dani! Você é lindo!
— Não é sobre isso, Samara.
— Ele quer ter uma família, menina. — Arregalo os olhos. — Seu pai vive mais entretido na fazenda do que aqui, sua mãe, antes de adoecer, não parava quieta, sempre viajando com as amigas e...
— Eu na Espanha.
Daniel termina o café sem me encarar, sem falar nada e se levanta.
— Vou voltar para o quarto, render um pouco a enfermeira.
— Também vou, Dani!
Seguimos juntos, mudos, pelo corredor. Meu irmão é a pessoa mais discreta do mundo, completamente o oposto de outros filhos de grandes empresários desta cidade. Nunca gostou de sair em revistas de fofoca, nunca namorou modelos, atrizes ou socialites. Na adolescência, namorou uma garota da escola, depois teve duas ou três namoradas na faculdade e, por fim, conheceu a Bianca em um torneio de polo – esporte em que ele é fera. Desde então engataram nesse relacionamento xoxo, totalmente ioiô – eles já terminaram umas 30 vezes ao longo dos anos – e que agora vai se tornar um casamento meia-boca.
— Você merece mais, Dani — solto sem conseguir frear minha língua, e ele ri.
— Você diz isso porque é minha irmã, pirralha. — Ele tenta bagunçar meus cabelos como quando eu era criança. — Bianca pode não ser o grande amor da minha vida, mas é uma boa amiga e companheira.
— Isso é loucura! Você merece amar, ser amado, estar apaixonado...
— Como você esteve a vida toda por aquele doidivanas? — Paro em seco no corredor e arregalo os olhos. — Qual é, Samara, você achava que eu não sabia? Estava escrito na sua testa e em todos os seus cadernos, com direito a corações rosa! Você teve um peixe daqueles que ficam sozinhos no aquário...
— Um beta. — Começo a rir, sabendo exatamente do que ele está lembrando.
— Pois bem, você teve um beta e o nomeou...
— Beto Schneider Karamanlis — falamos juntos, e eu começo a rir.
— Sim! E como você nunca me deu indícios de ter uma queda pela Kyra, eu supus que era o outro Karamanlis. — Daniel me olha sério. — Por que Diego não veio contigo?
A pergunta é tão inesperada que demoro a processar que ele está falando do meu namorado.
— Não sei quanto tempo vou ficar, então...
— Besteira! Ele poderia passar uns dias aqui contigo, os times estão todos em recesso até a primeira semana de janeiro. — Suspiro e olho para o chão. — Não estraga sua vida, Alex não vale a pena.
Assinto, lembrando-me de tudo o que aconteceu noite passada. Alexios continua igual, vendo e querendo todas as mulheres ao seu redor, menos eu. Sempre fui a amiga, quase uma irmã, menos uma mulher, e, como acabei de perceber, todos sabem da minha paixão por ele, então, Alexios deve simplesmente ignorá-la.
Por muito tempo eu achei que ele não soubesse. Ficava fantasiando que, no dia em que eu tomasse coragem e lhe contasse, Alexios iria se declarar também. Iludida! É isso que eu era, porque, depois do beijo que trocamos, era impossível que ele não soubesse.
Respiro fundo, resignada. Alexios sabe, só não se importa e nem sente o mesmo!
Meu irmão bate levemente na porta do quarto de mamãe e em seguida entra. Sigo-o pelo enorme ambiente, que me traz tantas lembranças alegres dos momentos que dividi com ela, deitada em sua cama, contando sobre meus sonhos.
— Samara Esther! — Mamãe estende os braços, sentada na cama, recostada nos travesseiros. — Trouxe Godofredo de volta?
Rio e concordo.
— Trouxe, está lá embaixo no jardim. — Beijo sua testa. — Como está se sentindo hoje?
— Eu estou bem! — Ela dá uma olhada de esguelha para meu irmão. — Ele é superprotetor, sabe? Exagerado!
Daniel permanece alheio às críticas, conversando com a enfermeira.
— Mamãe, ele não é, e a senhora sabe! — Ana suspira. — A senhora está em tratamento, precisa de cuidados, e, com o papai isolado na fazenda, Daniel é que estava responsável por acompanhá-la em tudo, mas agora estou aqui também!
— Dois superprotetores! — ela finge reclamar, mas sorri satisfeita. — Seu pai quis vir para cá para ficar comigo, mas achei melhor que ficasse por lá. Você sabe como ele é, não me daria um minuto de paz.
Eu rio, mas sou obrigada a concordar. Meus pais são incríveis, mas têm uma relação um tanto estranha desde que Daniel e eu saímos de casa para viver nossas vidas. Passaram a viver cada um no seu espaço, com suas coisas. Dão-se incrivelmente bem, mas cada um com sua vida.
É verdade que eles não eram nada parecidos. Mamãe sempre foi uma mulher de negócios, cheia de trabalho, viagens e reuniões, porém extremamente carinhosa com os filhos. Papai é um homem mais reservado em seus sentimentos, embora seja um artista.
Olho para um dos móveis da minha mãe, e a escultura em madeira em cima dele me faz sorrir. Nela há um casal e um garotinho com a mão na enorme barriga da mulher. Papai deu vida à imagem de uma foto que tiraram quando mamãe estava grávida de mim, e a peça ficou tão perfeita que dá para sentir a alegria de todos.
Quando eu era criança, tinha coleções das esculturas dele: cavalos, cães, gatos, pássaros. A que eu mais gostava era a do Pinóquio, que ganhei quando comecei a ler e andava para baixo e para cima com o livro do boneco de madeira que queria ser menino de verdade.
— Você vai até lá visitá-lo? — minha mãe pergunta, talvez adivinhando que estou pensando nele, por estar olhando a estátua.
— Por agora não. Tentei falar com ele quando cheguei e ontem também, mas não consegui. — Dou de ombros. — Papai se isola quando quer, a senhora sabe.
— O doutor Henrique acabou de dizer que os resultados dos exames ficaram prontos e que ele virá assim que puder para conversar conosco. — Daniel senta-se ao meu lado na cama. — É bom ter Samara aqui perto, não é?
Ele me abraça pelos ombros.
— Eu também estou gostando de estar de volta.
Mal termino a frase, e meu telefone toca. A foto de Kyra tentando beijar Godofredo, e ele de boca aberta para mordê-la aparece na tela, e minha mãe sorri.
— Eu estou esperando pela visita dessa filha emprestada desnaturada. — Ana reclama. — Pode dizer a ela que não vai comer mais minha paella!
— Pode deixar! — Levanto-me da cama e vou para um canto do quarto. — Oi, Kyra! — atendo o telefone.
— Quero notícias! Mal consegui dormir essa noite, deixei mil mensagens no seu telefone. Como está sua mãe?
— Está bem, mas ameaçou greve de paella se você não vier visitá-la em breve.
— Está bem mesmo? — ouço preocupação na voz da minha amiga, e meu coração se aperta, pois sei que minha mãe foi o mais próximo que Kyra teve de figura materna. — Malinha?
— Está, sim. O médico dela explicou que, por conta da medicação, ela ficaria suscetível a doenças, a imunidade está baixa, então qualquer resfriado ataca com força.
Kyra suspira ao telefone, e eu abro um sorriso ao ver o quanto minha amiga durona é, na verdade, tão sensível quanto eu.
— Que bom! Fico feliz em ouvir isso e mais aliviada para te fazer um convite.
Faço careta, já prevendo que ela vai me meter em algum evento seu de final de ano, vestida de garçonete.
— O que você está armando, Kyra?
— Nada! — ela logo se defende, indignada. — Eu só queria companhia! Na véspera do Ano Novo acontecerá o Baile Branco e Preto dos Villazzas, e, como eu estou sem nenhum boy no momento, você podia ser meu par, o que acha?
— Kyra! — Rio. — Um baile? Sério?
— Baile? — mamãe logo se mete na conversa e pergunta lá da cama. — Por acaso é o baile dos Villazzas?
Fodeu! Minha mãe sempre amou bailes e conheceu a matriarca dos Villazzas tempos atrás, através de sua amiga, Cecília Novak. Certamente ela adorará a novidade, achará moderno eu ir acompanhando minha amiga, e eu não terei escapatória.
— É, mamãe, eu vou com Kyra — respondo resignada.
— Eu sabia! — Minha amiga ri ao telefone. — O traje branco é obrigatório para mulheres, então, abuse de cores em outros locais!
— Eu vou te matar, Kyra Karamanlis! — sussurro para que somente ela escute.
— Depois do baile; antes, quero usufruir de tudo o que planejei! Vai ser o evento mais incrível que você já viu!
Relaxo, percebendo que ela realmente está feliz e confiante.
— Tenho certeza disso, Kyra!
Nós nos despedimos, mas não retorno imediatamente para a cama, ao lado da minha mãe e do meu irmão, fico pensando em como é bom estar de volta. Realmente me sinto em casa aqui, com as pessoas que eu amo, ainda que tenha feito amigos na Espanha.
Penso no Diego e sinto um pequeno aperto no coração, um misto de saudade e remorso. Daniel me olha, curioso por eu estar parada no mesmo lugar, sem falar ou fazer nada, e reflito sobre o que ele me disse. Reconheço que eu recuei ante o pedido de casamento de Diego por ter esperança de voltar ao Brasil e encontrar Alexios mudado, porém ele não mudou e nem mudará jamais, mas isso não muda o fato de que ele ainda mexe comigo.
Diego e eu nos damos muito bem, somos amigos, companheiros, temos gostos parecidos. Enquanto eu estava na Espanha, longe do magnetismo e atração de Alexios, realmente pensei que pudesse amá-lo e ter uma vida com ele. Os momentos que passamos juntos foram maravilhosos, mas agora me questiono se, mesmo voltando para Madri, é justo manter essa relação.
O Uber me deixa em frente ao Villazza SP, e vejo a entrada principal do hotel cheia de pessoas bem-vestidas e penteadas. Ando na direção delas, questionando-me se os convites estão sendo verificados na entrada, mas me surpreendo ao ouvir um dos homens que está parado na entrada:
— Nós só queríamos comprar o convite, não conseguimos responder a tempo e...
— Senhor, o que me foi passado foi que esgotaram, eu sinto muito — um dos seguranças responde antes de se virar para mim, mas, vendo o convite em minhas mãos, abre a porta. — Seja bem-vinda!
Entro no saguão principal do enorme hotel e suspiro, apreciando todos os detalhes da construção e da decoração, orgulhosa por ter sido parte da equipe que ajudou a deixá-lo perfeito desse jeito.
O escritório de arquitetura que projetou o Villazza SP foi o dos Boldanis, e o arquiteto principal que assinou o desenho foi ninguém mais, ninguém menos que meu ídolo e professor, Julio Boldani. O italiano é fera demais nas suas linhas clássicas misturadas às modernas.
Eu ajudei o pessoal que compôs o projeto de decoração, pois estava me especializando e, por isso, trabalhei um tempo no Boldani. Foi ali que descobri que, por mais que papai fizesse pressão para que eu fosse uma arquiteta, eu queria mesmo era ser designer de interiores.
Subo as escadarias de mármore com corrimão e guarda-corpo de ferro fundido na cor ouro velho em arabescos e folhas e, no saguão da entrada do salão Royal, encontro a recepção do baile montada como se fosse uma bilheteria antiga de circo.
Sorrio ao pensar na Kyra, reconhecendo que minha amiga sabe como dar vida aos seus projetos de maneira perfeita, pois vi os desenhos quando almoçamos juntas anteontem e confesso que está tudo muito mais bonito do que a ilustração em 3D que ela me mostrou.
Olho em volta, procurando-a, pois combinamos de nos encontrar na entrada, mas arregalo os olhos ao ver Alexios, de smoking preto, vindo em minha direção.
Mesmo contra a minha vontade, minhas mãos gelam e meu coração dispara apenas por vê-lo, por notar o quanto ele está lindo com esse sorriso largo e os olhos brilhando.
Por que ele tinha que ter essa aparência e essa boca?!, penso na injustiça do mundo, indignada por ser tão comum, e ele...
— Samara Esther. — Bufo, pois só ele e minha mãe chamam-me assim. — Você está... linda!
Alexios sorri e me olha desde as unhas dos pés, pintadas e cutiladas, até o alto da cabeça.
— Linda! — repete como se não fosse possível que eu estivesse desse jeito.
— Oi, Alexios — cumprimento-o seca, tentando não dar importância ao fato de que ele parece ter tomado um soco só por me ver mais arrumada. — Estou esperando sua...
— Eu sei, foi ela quem me mandou ficar aqui de plantão te esperando. — Enrugo a testa, sem entender. — Kyra resolveu bancar a fada madrinha e ajudar uma amiga a ter seu baile com um príncipe encantado e, por isso, vai ter que trabalhar esta noite. — A expressão no rosto dele é de deboche ao falar do conto de fadas. — Então, restou a mim.
Puta merda, Kyra!
Pego o celular dentro da bolsa e mando mensagem para ela, mas tenho certeza de que, ocupada com o começo do baile, ela não irá ler. O que eu faço? Penso se devo aceitar fazer companhia ao Alexios ou se devo ir embora, afinal, só vim a esse baile por insistência da Kyra.
— Samara, eu sei que nossa amizade está um tanto estremecida por conta da distância e do tempo, mas... — Alexios me encara, e noto que ele está se esforçando para falar — eu gostaria que você me acompanhasse esta noite.
Minha boca fica seca ao ouvir isso, porque, mesmo com a distância, eu ainda consigo saber quando ele está sendo sincero. Alexios me quer ao seu lado esta noite, e isso é...
— Como nos velhos tempos, lembra? — ele complementa, e, mais uma vez, percebo o quanto sou iludida.
Nada mudou!
Imediatamente me lembro do meu baile de formatura do ensino médio, no qual ele foi meu acompanhante. Chegamos juntos, eu estava empolgada para dançar com ele a noite toda, arrumei-me para parecer uma mulher aos seus olhos e não mais a menina de cabelos revoltos que o seguia para toda parte quando criança.
Havia decidido que iria contar a ele o que sentia naquela noite e que, depois de ele se declarar também, iríamos fazer amor, e eu, aos 17 anos, finalmente teria minha primeira noite com o homem que amava.
Ledo engano!
Alexios dançou uma música comigo, depois foi para o bar, encheu a cara, sumiu com uma garota bem mais “servida” que eu e voltou para o salão todo amarrotado. Eu queria ir embora, mas ele acabou dançando (e sumindo) com mais umas três mulheres.
— Seu acompanhante te deixou sozinha, não é? — Marlon, um dos garotos que estava se formando comigo me perguntou, e só aí percebi que ele estava sentado à mesa comigo.
Começamos a conversar e, naquela noite, tive minha primeira experiência sexual. Não foi ruim, namoramos por um tempo, mas reconheço que ela só aconteceu porque Alexios não me quis. Ele simplesmente não me via!
— Samara? — ele me chama e me faz voltar à realidade.
Por Deus! Não sou mais uma garota de 17 anos, sou adulta, independente, com uma carreira bem-sucedida na Espanha e um dos homens mais gostosos de Madri ao meu lado!
— Vamos entrar! — decido e marcho até uma das “bilheterias”, onde recebo minha máscara preta e uma pulseira.
Alexios recebe as dele e ri ao me mostrar a máscara branca como a de O Fantasma da Ópera. Ah, merda!
— Você se lembra? — Ele ri. — Me obrigou a ver esse filme um milhão de vezes e sabia até as falas!
O desgraçado põe a máscara, ergue uma das sobrancelhas, dobra-se em reverência e sorri.
— Vamos logo com isso! — Saio de perto dele sem rir de sua gracinha, coração retumbando, a cabeça cheia de lembranças da nossa adolescência.
Quando as portas se abrem, perco o fôlego ao ver o que Kyra idealizou.
— Puta que pariu, minha irmã é foda! — Alexios fala ao meu lado.
Eu pulo de susto, não por causa do que ele disse, nem mesmo ao ver um dos artistas cuspindo fogo, mas tão somente por sentir a sua mão em minha cintura. Meu corpo inteiro aquece, a pele arrepia e aquela sensação que sinto desde que os hormônios despertaram em mim na adolescência volta a me tomar.
Atração! Química!
Não sei explicar, mas meu amor de criança transformou-se nisso quando me tornei moça, e a cada toque, cada resvalo, eu resfolegava. Sonhava com ele, acordava suada e sem saber o que estava acontecendo. Meu primeiro orgasmo com masturbação foi pensando nele, instintivo, depois de um sonho erótico e proibido.
Achei que, com a distância, principalmente depois que me envolvi com Diego, isso ia passar, mas parece que me enganei.
Olho-o e percebo que ele permanece alheio ao que me causa, sua atenção tomada pelos malabares que executam movimentos precisos na entrada do baile.
Respiro fundo.
— Vamos?
Ele assente sem me olhar, e seguimos juntos, passando entre os convidados que ainda se encontram de pé conversando ou bebendo no bar, em direção ao centro do salão, tomado de mesas e cadeiras reservadas.
— Onde nós...
Nem preciso terminar a pergunta, pois logo vejo Theodoros Karamanlis, acompanhado de uma lindíssima loira, a uma mesa com o sobrenome deles na placa de reserva. Eu não sou muito fã do irmão mais velho de Alexios, mas sempre fui educada com ele, então armo meu melhor sorriso e o cumprimento:
— Theo! Que bom vê-lo esta noite! — Olho para sua acompanhante agora mais de perto e sinto como se a conhecesse de algum lugar.
— Samara, essa é Valentina de Sá e Campos — Theodoros nos apresenta, e eu sorrio, reconhecendo os sobrenomes dela. — Valentina, essa é a Samara Schneider, uma incrível designer de interiores.
— É um prazer, Valentina! — saúdo-a.
— O prazer é meu, Samara. — Valentina sorri. — Nos conhecemos já?
— Eu acho que sim, embora não me recorde de onde pode ser.
A loira para a fim de tentar se lembrar, e eu ouço a conversa entre Theo e Alexios.
— Viu só esse trabalho da Kyra?
— Claro! — Alexios debocha do irmão. — Seria impossível não ver, já que estou aqui! Já fui até cumprimentá-la, mas está tão ocupada que não consegui nem falar com ela direito.
Só o suficiente para que ela o encarregasse de me acompanhar nesta noite! Kyra me paga!
— Imagino que esteja. Viu o Kostas? — Theo pergunta, mas não consigo ouvir a resposta de Alexios, pois Valentina volta a falar:
— Lembrei! — ela comemora. — Nos encontramos na festa de inauguração da loja da Miriam Benides, lembra?
Eu não faço a mínima ideia do que ela esteja falando, mas, mesmo que não esteja com nenhuma vontade de prosseguir com a conversa, sorrio e concordo por educação.
— Puxa vida, quanto tempo não vejo você por lá! — Valentina continua.
— Eu estava morando em Madri — informo antes de me sentar.
— Ah, eu adoro a Espanha!
Sorrio sem graça, percebendo que vamos conversar. Não quero ser mal-educada com ela, é só que não estou muito confortável em estar aqui neste baile, não depois de perceber que ainda quero Alexios e que não adiantou de nada impor distância.
— Família! — a voz debochada de Kostas interrompe a conversa de Valentina, e ela me pergunta baixinho quem é o homem abraçado a uma loira com um vestido branco tão justo e transparente que beira à indecência.
— Konstantinos... — sussurro antes de ele apresentar sua acompanhante a todos.
— Bruninha, conheça os Karamanlis! — Ele aponta para Alexios e para Theodoros. — Claro que você pode deixar seu cartão com eles depois, mas eu sou o mais bonito, não sou?
Ele faz a mulher girar em seu próprio eixo, e, pela primeira vez depois da tensão toda em que eu estava desde que vi Alexios, sorrio divertida. Kostas é uma figura! Ainda me lembro de quando ele morava no prédio, na cobertura de seu pai, e juro, se não fossem os olhos azuis e a voz, eu diria que não se trata da mesma pessoa!
— Já bêbado? — Theo pergunta a Alexios.
— E mais uma vez com acompanhante paga! — Alexios se aproxima de Theo e cochicha, e isso me surpreende. Não sabia que os dois estavam conseguindo ter uma relação tão cordial. — Estou achando que nosso querido irmão é do outro time.
Theo gargalha e nos olha sem graça.
— Perdoem-me, foi irresistível! — Tenta se conter e bebe mais do seu uísque. — Bom, certamente ele é arrogante e orgulhoso demais para “sair do armário”.
Quem? Kostas?! Olho para o homenzarrão com a prostituta e nego instintivamente com a cabeça. Não mesmo!
— Seria apenas mais um rejeitado pelo seu querido pappoús! — ouço Alexios dizer isso, e meu coração aperta. Olho-o, respiro fundo, lamentando profundamente por ele ainda se sentir rejeitado, percebendo que isso também não mudou.
Rejeição, abandono, violência o tornaram o homem que é. Sei disso, dei essas desculpas para seu comportamento por muitos anos. Toda vez que ele aprontava, eu usava isso para justificá-lo.
Até quando?, penso, olhando-o fixamente. Até quando ele deixará que os erros dos outros façam-no errar também?
— Você gosta muito dele, não é? — Valentina dispara, e eu desvio os olhos de Alexios. — Seus olhos brilham diferente ao olhar para ele.
— Somos amigos há muitos anos — disfarço.
— Bom, isso é muito bom, mas... — Ela ri. — Desculpe-me se estou sendo invasiva, mas seu olhar é de quem é apaixonada, não apenas uma amiga.
Dou um sorriso amarelo para ela, e Valentina fica quieta.
— Tudo bem aí? — Alexios me pergunta, e eu assinto. — O jantar já tinha sido anunciado antes de você chegar, então não deve demorar muito.
Resolvo conversar com ele normalmente, afinal, seria ridículo fazer birra na minha idade.
— Kyra estava muito ansiosa com o jantar desta noite. Um grande chef internacional, ela me contou, é quem está preparando tudo.
— Sim, está na programação. — Alexios lê o nome do chef francês, e eu não consigo deixar de olhar sua boca. Pego a taça de champanhe e a viro de uma só vez. — Uau! — Sorri e faz sinal para um garçom se aproximar com mais. — Minha acompanhante está sedenta.
— Estou. — Decido não discutir e bebo a outra taça. — E com fome também.
Alexios toca minha coxa por cima do vestido, mas logo tira a mão.
— O jantar não deve demorar — repete sério e se vira para olhar o outro lado do salão.
Fico um tempo olhando para minhas pernas, permitindo a sensação de brasa que a mão dele deixou em minha coxa passar, chateada demais por reagir assim a ele e continuar sendo praticamente invisível.
Que porra é essa que está rolando?
Essa pergunta retórica fica martelando minha cabeça enquanto tento prestar atenção em qualquer coisa neste maldito salão lotado que não seja ela. Eu só posso estar com algum problema, só pode! Samara sempre foi minha amiga, quase minha irmã. Eu estar aqui com uma maldita ereção – pela segunda vez esta noite, frise-se – só pode ser loucura!
Preciso de um médico! A loucura congênita dos Karamanlis começou a se manifestar em mim. Sentir tesão por Samara é quase... incestuoso!
Pego a taça com champanhe e a termino em uma só golada a fim de aplacar o fogo que apenas um toque em sua coxa me causou.
A verdade é que eu não esperava encontrar-me com ela nesta noite. Vim por insistência do Millos e, claro, por sua maldita manipulação eficaz ao falar da Kyra e do suporte a ela em seu primeiro grande evento. Cheguei junto aos primeiros convidados e a encontrei correndo de um lado para o outro, “armando” uma surpresa para sua amiga e funcionária, a gostosa da Helena, que, por sinal, está namorando o Bernardo Novak, um amigo de longa data.
Quando finalmente ela terminou todos os preparativos, foi à cozinha falar com o tal chef francês que a estava deixando nervosa, conferiu tudo com as bandas, DJ e artistas circenses é que me deu atenção.
— Oi, Alexios. — Sorriu cansada. — O baile nem começou direito, e eu já estou de um lado para o outro. — Ela espiou a fila se formando na recepção do evento. — Gostou da decoração?
Seus olhos verdes, como os meus, brilharam ansiosos. Eu cheguei perto dela, beijei sua testa e falei baixinho:
— Está tudo perfeito, Kyra. Parabéns, estou muito orgulhoso!
Ela suspirou e depois se afastou.
— Claro que está! Não tinha dúvida alguma disso. — E, do nada, pegou-me pela mão e me arrastou em direção ao salão. — Vem ver!
— Kyra, eu ainda não troquei meu convite e...
— Ah, Alexios, vem ver!
A decoração estava esplêndida, embora eu soubesse que, com os efeitos de luz e os artistas executando seus números, iria ficar ainda mais incrível. A banda, no palco ao fundo do salão, já estava se posicionando, e alguns funcionários de Kyra ajeitavam os últimos detalhes das mesas, arranjos florais ou acendiam as velas.
— Perfeito! — elogiei-a novamente.
— Você ainda não viu nada! — E deu aquele sorriso que eu sei que fode com a cabeça de qualquer homem. É duro ter uma irmã como ela, linda e sexy, e ver os caras babando em cima e não poder socar a fuça de nenhum. — Ah, preciso de um favor.
Estava demorando!
— Kyki, estou de smoking, mas ainda não sei segurar uma bandeja — sacaneei.
— Não, seu idiota! — Ela me estapeou as costas. — É meu par desta noite! Não vou poder participar do baile como havia previsto, então preciso que você faça companhia...
— Ei, ei, pode parar! Não vou ficar pajeando nenhum marmanjo não!
Ela rolou os olhos.
— Não é marmanjo, idiota! Posso terminar de falar? — Assenti. — É a Samara. Convidei-a a vir comigo esta noite e não quero que fique sozinha.
Samara Esther Schneider!
Fiquei um tempo olhando para Kyra, tentando entender se ela tinha feito isso de propósito, para tentar nos reaproximar, afinal, sempre fomos um trio de amigos/irmãos, e, com a relação entre mim e Samara estremecida, Kyra devia estar um tanto confusa.
— Sem problema. — Sorri. — Você avisou a ela?
— E Samara atende aquele celular? — Ela bufou. — Você terá que esperá-la lá fora. Se importa?
— Não — fui sincero.
— Ótimo, agora vaza, porque ainda tenho coisas a fazer antes de abrirmos o salão. — E, do mesmo jeito que me arrastou, colocou-me para fora.
Fiquei um bom tempo esperando por Samara do lado de fora, o que foi surpreendente, pois ela sempre foi pontual. Vi o salão ser aberto, o baile começar, o discurso do doutor Andreas Villazza, o anúncio do jantar, e nada de a minha (ex?) melhor amiga chegar.
Estava olhando para um detalhe na construção do hotel, executada pela Novak Engenharia, quando meus olhos foram atraídos para o topo da escadaria. Não é exagero eu dizer que meus olhos foram atraídos, porque foi como se um ímã puxasse minha atenção para aquele ponto.
Engasguei-me com minha própria saliva ao ver Samara. Sim, ela estava linda, mas não foi o vestido branco ou o penteado elaborado que chamou minha atenção, foi ela.
Ela é linda e, por conta da nossa amizade e do receio que tinha de machucá-la, parei de perceber sua beleza e não notei a mulher que se tornou.
Fiquei parado, tomando nota de tudo, como se a estivesse vendo pela primeira vez, sentindo um incômodo por estar olhando-a com lascívia, afinal, era a Samara!
Balancei a cabeça, tentando voltar a pôr os neurônios no lugar, justificando para mim mesmo que isso aconteceu por causa dos anos distantes, mesmo sabendo que isso era pura enganação, pois ela não mudou nada nesses últimos anos.
O que aconteceu, então? Não sei, ainda estou confuso, tentando entender por que fiquei excitado com o perfume dela ou por que meu pau acordou apenas por eu a ter segurado pela cintura a fim de andar com ela até a mesa.
Tive que ficar parado, olhando para os malabares sem vê-los realmente, com cara de paisagem, fingindo que nada estava acontecendo. Eu não queria que ela soubesse que eu estava reagindo daquela forma a ela; certamente ficaria horrorizada. Sempre fomos como irmãos!
Tentei me conter, agradeci por Theodoros e sua companhia já estarem à mesa, fiquei um tempo distraído conversando com meu irmão mais velho, mesmo que isso fosse uma dor no saco. Não sou tão rancoroso quanto o Konstantinos sobre o Theo, apesar de concordar com meu irmão sem noção sobre ele nos ter abandonado nas mãos do louco Nikkós, mas o que Theodoros poderia fazer? Eu mesmo estive nessa situação quando pude sair de casa, mas não tinha como tirar Kyra dele, por isso fiquei.
O DJ que executa as músicas antes do jantar e da banda ao vivo coloca My Immortal, de Evanescence, e é impossível não olhar para Samara.
— Sua música preferida na adolescência — comento com ela.
Samara sorri e balança a cabeça, olhando os casais indo para a pista de dança.
— Tocou na minha formatura...
— Eu sei, eu queria dançar com você, mas você não parecia muito a fim, então fui beber.
Ela arregala os olhos e me encara como se não soubesse do que eu estou falando. Provavelmente nem se lembra, estava nervosa e ficava repetindo o caminho todo dentro do carro que a gente nem deveria ter ido, que era besteira.
Não somos mais adolescentes!
— Quer dançar? — inquiro impulsivamente e estendo a mão para ela.
Samara olha para minha mão por um tempo, mas aceita.
Porra, que loucura!
Ela pega minha mão, e minha vontade é de puxá-la para mim e beijar sua boca. Foda! Não consigo mais refrear meus desejos; sempre consegui com ela, por isso não entendo o que está acontecendo agora. Não é qualquer mulher aqui comigo, indo para a pista de dança para ficar de corpo colado no meu – porra! – é a Samara!
Samara!
Minha amiga de infância!
Quase uma irmã...
MERDA!
— Está tudo bem? — ela me pergunta, e eu tento relaxar, já que estou dançando como antigamente: a um palmo de distância dela.
— Sim, tudo. — Tento dar meu famoso sorriso, mas não rola, então pigarreio. — Estou com sede, calor... acho que é essa decoração toda.
— Pode ser. — Ela desvia os olhos de mim. — Quer voltar para a mesa?
Quero!
— Não, a não ser que você...
— Tudo bem.
Ela se solta de mim no exato momento em que a música muda para um instrumental baixo e as luzes se acendem.
— O jantar. — Aponto para os garçons em fila e os convidados voltando aos seus lugares. — Vamos?
Salvo pelo gongo do cozinheiro!, penso ao ajustar disfarçadamente minha calça para não andar de pau duro e assustar a todos por causa da claridade do salão.
Samara bebe mais uma taça de champanhe, e eu rio, já preocupado. Nunca a vi beber tanto! Sempre foi séria, careta, estudiosa e boa filha. Ela nunca fazia nada de errado, nunca decepcionou os pais, fazia tudo o que eles queriam... quer dizer, tudo menos se afastar de mim.
— Acho que já quero ir — ela comenta de repente. — Vou chamar um Uber...
Levanta-se um pouco tonta, e eu a amparo pela cintura.
— Você quase não comeu, e bebeu muito — falo, e ela levanta uma sobrancelha atrevida e irônica para mim. — Não estou dando lição de moral, mesmo porque não tenho nenhuma, apenas constatei um fato.
Ela ri.
— Você não tem nenhuma moral mesmo! — arrasta a última palavra. — Sempre foi um galinha, essa cara de santo aí só engana as outras!
Gargalho.
— Elas não ficavam enganadas por muito tempo, pode acreditar!
Samara funga, indignada, e fecha os olhos.
— Eu acho que realmente bebi demais.
Olho em volta; o salão já está praticamente vazio, apenas um ou outro convidado conversando em pequenos grupos. Theodoros se despediu, com Valentina grudada em seu pescoço, há mais de uma hora, e Kostas nem jantou conosco à mesa, provavelmente ficou no bar com sua acompanhante.
Inicialmente eu tinha pensando em esperar tudo terminar para acompanhar Kyra até em casa, mas, com Samara no estado em que se encontra e com tudo aqui ainda para ser desmontado, é melhor eu levar minha amiga para casa – aproveitando que moramos no mesmo prédio – e voltar mais tarde para acompanhar minha irmã.
Pego a pequena bolsa que ela trouxe e, ainda abraçado a ela, caminho para a saída.
— Alexios... tudo está rodando...
— Muito natural depois de todo aquele champanhe.
Ela suspira e joga a cabeça para trás.
— Você é um chato, sabia? Não posso entender o que todas aquelas mulheres viam em você!
— Imagino que não possa mesmo — respondo-lhe, sabendo que vai se irritar.
Samara sempre disse que eu respondia politicamente ou me evadia quando sentia que o assunto poderia ir para alguma direção que não me deixaria confortável. Ela tinha razão na maioria das vezes, mas, neste momento, só estou a fim de irritá-la.
— Você é um babaca, Alexios Angelos!
Opa! Falou meu nome todo! Rio de sua irritação bêbada, talvez por estar um tanto alto como ela, mas sóbrio o suficiente para carregá-la em segurança até a calçada.
Não vim de moto ou carro sozinho exatamente por saber que iria beber – principalmente para aguentar sozinho a companhia dos meus irmãos à mesa –, porém previ que a saída do baile estaria um inferno e que seria difícil conseguir um táxi ou um carro de aplicativo que estivesse por perto, por isso deixei o Cris, que me trouxe, de sobreaviso no estacionamento.
Mando mensagem para ele e espero até meu carro aparecer. Abro a porta de trás e coloco sobre o banco uma Samara parcialmente adormecida por cachaça francesa.
— Essa foi nocaute! — Cris ri quando eu entro. — Para onde?
— Para o Castellani. — Ele dá um sorrisinho malicioso e pisca. — Ela é minha vizinha, Cris, sossega.
— Falou, chefinho.
— Para de merda e dirige.
Ele tenta sair da entrada do hotel, mas é praticamente impossível com o número de carros que também tentam deixar o local. Olho para trás, confiro que Samara está mesmo apagada e fecho os olhos, recostando-me contra o assento do carona.
— Foi uma festança, hein? — Cris volta a falar. — Só vi entrar filé, pena que a maioria estava acompanhada.
— Geralmente isso não é problema — comento, mordaz. — Já comi muita mulher no banheiro de recepções como essa enquanto o marido conversava com os amigos e falava de negócios.
Cris gargalha.
— Você nunca valeu nada, Lex!
Não retruco o apelido ridículo com que ele me chama e me faz parecer o vilão do Homem de Aço. É pura perda de tempo ralhar com Cristino, então simplesmente ignoro, cansado, meio zoado e com tesão frustrado.
Ele e eu nos conhecemos há alguns anos, quando visitei um dos prédios da Karamanlis que foram invadidos por movimentos pró-moradias. O homem era motorista de profissão, com anotação em sua carteira de trabalho em várias empresas, que juntou todo o dinheiro que tinha, investiu em um carro e um ponto de táxi, mas foi engolido e enxotado pelas grandes cooperativas.
Assim, quando nos conhecemos, ele estava sem casa, sem carro, sem emprego e com uma enorme dívida, fazendo bicos aqui e ali. Ajudei-o primeiro a conseguir emprego, depois por fim saiu da invasão, e, nesse ínterim, nos tornamos amigos.
Ano passado, quando a filha dele nasceu, quis que eu a apadrinhasse, mas educadamente declinei, explicando que, mesmo honrado, não poderia aceitar, pois sou ateu, e o apadrinhamento de uma criança tem a ver com questões religiosas, tem um sentido específico, e eu não seria a pessoa certa para isso. Ele entendeu, mas a garotinha já me chama de Didi (seu jeito fofo de bebê de chamar seu dindo, mesmo que oficialmente eu não o seja).
Acho que cochilei também até o Castellani, pois, quando me dei conta, já estávamos na garagem. Cris me perguntou se eu queria ajuda com Samara, mas agradeci e o mandei para casa. Ele não trabalha como meu motorista diariamente, mas sim na Karamanlis, transportando quem quer que precise fazer serviços externos. Contudo, toda vez que preciso, chamo-o para ganhar um extra.
Há muito parei de combinar bebida e direção, não por mim, mas por medo de acontecer algum acidente e eu acabar prejudicando outras pessoas.
Chamo o elevador, e somente dentro dele é que a bela adormecida parece voltar a si.
— Alexios... — Samara olha em volta. — Este é o elevador do Castellani?
— Parece que sim — respondo-lhe divertido.
Samara bufa.
— Só desmaiada é que eu aceitaria vir com você na direção nesse estado em que se encontra.
— Estou melhor que você. — Ela se encosta contra o espelho, olhos fechados e um enorme sorriso bêbado no rosto. — Além do mais, viemos com motorista.
— Bom... — Samara fala devagar e lambe os lábios como se estivessem secos. O efeito no meu pau é instantâneo. Sinto meu corpo inteiro acender, minhas mãos formigam de vontade de tocá-la. Sua pele parece brilhar, atraindo-me como uma chama atrai uma mariposa.
Tento me afastar, pensar em outra coisa, mas o espaço reduzido do elevador não ajuda. As paredes parecem se fechar cada vez mais, aproximando-me de Samara, apertando-me contra ela, espremendo meu corpo...
— Alexios... — ela geme meu nome, e eu me espremo mais, fazendo-a grudar contra o espelho. O seu perfume inebria meus pensamentos, a pele, tão quente e macia que a sinto mesmo por baixo do vestido, me enlouquece. Preciso provar o sabor de sua boca, conferir se o hálito quente e um tanto etílico se confirma em sua saliva.
Sim!
Agarro-a com mais força, minha ereção pressionada contra sua barriga, minha boca correndo em seu pescoço. Tudo parece congelar à nossa volta, não existe mais tempo e nem espaço, apenas o vácuo e nós dois dentro dele, em chamas.
Lábios nos lábios. Meus dedos esfregam sua nuca, a pele arrepia, os pelos eriçam, meu corpo treme. É a viagem mais louca que eu já fiz sem ser através de uma substância química entorpecente... não! É química ainda, é uma droga viciante, é tesão!
Devoro sua boca sem nenhum pudor ou impedimento. Ela me acolhe, abre-a para minha exploração, prende meus lábios entre seus dentes e morde com força, despertando com a dor ainda mais meu desejo.
Enfio os dedos no meio do seu penteado, seguro o cabelo com força, e ela retribui o desespero cravando as unhas nos meus ombros.
Estou pronto para fodê-la, minha cabeça já trabalha uma forma de abrir o zíper da calça social, sacar meu pau e buscar o caminho de sua boceta, que, a julgar pela forma com que ela come a minha boca, já está molhada e quente.
Um pigarrear me faz sobressaltar, e eu me afasto dela o mais rápido possível. Um casal de idosos também vestido em black tie entra no elevador no saguão do prédio, sinal de que o elevador subiu e desceu de novo enquanto nós dois quase nos comíamos dentro dele.
Olho para Samara, mas ela não parece constrangida ou assustada, apenas passa a mão pelos lábios e me encara, sua expressão cheia de perguntas e curiosidade.
Caralho, o que eu estou fazendo?! É a Samara, minha amiga, aquela que eu sempre quis manter longe desse meu lado sem vergonha! Puta que pariu!
Espero o casal descer em seu andar e, assim que as portas se fecham, respiro fundo.
— Desculpa, Samara, acho que estou mais bêbado do que imaginei a princípio. — Não tenho como olhá-la, dividido entre o constrangimento e o desejo ainda pulsando na minha calça. — Somos amigos, eu não deveria atacar você dessa forma, me des...
— Para! — sua voz soa magoada, e eu tenho vontade de socar a cabeça contra o espelho. — Não precisa dizer mais...
— Eu prometo que isso não voltará a acontecer. — Finalmente a encaro e fico fodido ao ver sua expressão confusa. Ela parece não ter gostado do que aconteceu, deve estar achando que eu sou um filho da puta aproveitador. — Você é minha amiga, Samara, mesmo depois dessa distância, eu ainda a vejo como se fosse minha irmã e...
— Chega! — ela grita, e as portas do elevador se abrem no seu andar. — Você tem razão, foi um erro e não deve voltar a acontecer!
Ouvir isso é como um balde de água fria, mesmo reconhecendo que é o certo.
— Eu não quero que isso afete novamente a amizade que nós temos e...
Samara sai pisando duro do elevador sem olhar para trás. Minha vontade é de correr atrás dela, voltar a encostá-la em alguma parede e beijá-la novamente até que perca a razão ou eu alivie esse tesão indesejável que estou sentindo.
As portas se fecham, e eu, ao invés de apertar o botão do meu andar, mando o elevador de volta para o térreo e chamo um Uber.
Preciso trepar!
— Essa sua cara de cachorro cagando na chuva é ainda ressaca do baile? — Kyra me pergunta, sentando-se ao meu lado na rede que ela tem em sua varanda. — Quer café?
Resmungo ainda com os olhos fechados:
— Quero paz!
Ela ri.
— Isso está em falta por aqui hoje, passa na semana que vem... — Encaro-a, puto com a piadinha. — O que aconteceu?
Não respondo, meus olhos fixos no topo do prédio do outro lado do parque. Balanço a cabeça, decidindo ser mais covarde do que tenho sido desde a madrugada do dia primeiro de janeiro e fecho os olhos para tentar nem pensar na confusão que arrumei.
— Você não deveria estar trabalhando hoje? Ou eu? — Kyra volta a me importunar, mas continuo mudo. — Mano, você continua o mesmo chato da porra de sempre! Fica aí com essa cara de Maria do Bairro e não abre a porcaria da boca para me contar o que diabos você fez dessa vez!
— Obrigado pela confiança em mim! — retruco irônico.
— Ah, boquinha para ser mal-educado comigo você tem! — Ela me cutuca o ombro, mas depois suspira e deita a cabeça nele. — Você sabe que faz merda, mas que eu estou aqui, disposta a te ouvir e te ajudar a limpar os cagaços. Somos uma dupla, você e eu, sempre fomos e sempre seremos.
— Costumávamos ser um trio... — assim que eu comento, imediatamente me arrependo, pois Kyra salta da rede – quase me derrubando no percurso – e emite um ensurdecedor: “ahá!”.
— Eu sabia que tinha acontecido algo na madrugada do baile! Samara está estranha, esquiva, e isso não é o natural dela. Que merda você aprontou? — Continuo ignorando-a, sem nenhuma disposição para contar sobre o beijo, o amasso e a confusão que isso criou em mim. — Alexios! — Minha irmã começa a pirar por causa do meu silêncio, mas, se me conhece um pouco, já deve imaginar que eu não irei abrir a boca para falar desse assunto. — Está certo! Você e sua maldita boca de siri. — Volta a se sentar, mas dessa vez não se deita em mim. — Alex, ela é nossa amiga, não a magoe, ok? Samara merece ser feliz, e esses anos que passou na Espanha foram ótimos para ela. Eu morria de saudades, mas estava feliz por ela estar realizada trabalhando com o que ama fazer, com um puta gato espanhol lambendo seus pés e — abro os olhos, mas Kyra não se freia — querendo formar família com ela.
Sento-me bruscamente, e Kyra balança.
— Como assim formar família?
— Ele a pediu em casamento. — Surpreendo-me, mas tento não reagir, não demonstrar. — Deu-lhe um lindíssimo e caro anel de diamante e está esperando pelo retorno dela.
Essa informação, apesar de ter me pegado de surpresa, não é nenhuma novidade. Sempre achei que algum homem de sorte iria conquistar o coração da minha amiga de infância e tê-la para sempre. Samara é a pessoa mais leal que eu conheço, mais incrível, merece muito ser feliz ao lado de alguém que valha a pena.
— Ela não estava usando anel... — penso em voz alta.
— Ainda não falou com os pais dela... — Kyra olha fundo nos meus olhos, procurando qualquer reação minha, mas sei que não irá encontrar nenhuma. Há muito aprendi a sentir sem demonstrar ou a mostrar apenas o que eu quero que os outros vejam. — Vocês não conversaram ontem?
— Acho que ainda não conseguimos estreitar os laços de amizade novamente.
— Hum... — Ela olha para seu relógio no pulso e suspira. — Preciso ir para o trabalho, vai ficar aqui? — Assinto. — Eu tenho a sensação de que você está se escondendo, só não faço ideia do quê.
Ela entra no apartamento, e novamente olho para o alto do Castellani, do outro lado do parque. Daqui do prédio onde ela mora, consigo ver o heliponto no telhado, algumas janelas da cobertura onde Cadu mora, o andar debaixo, onde Bernardo Novak reside, e uma pontinha da minha varanda. O apartamento de Samara fica uns andares abaixo do meu, então não tenho como vê-lo, mas somente por saber que ela está lá dentro, sinto vontade de ficar aqui, bem longe.
Não me entendam mal, não estou fazendo isso porque não quero que ela se aproxime de mim, pelo contrário, estou aqui, exilado como um covarde no apartamento da minha irmã mais nova, porque, se pisar no Castellani, sei que não conseguirei me manter distante dela.
Mesmo depois da maratona de sexo que fiz com uma mulher com quem já havia saído antes das festas de final de ano, não tenho segurança de estar no mesmo ambiente que Samara e me controlar para não a pressionar contra alguma parede e fodê-la sem ao menos dizer um cumprimento.
Definitivamente não vou fazer isso, não com ela!
Muito menos depois de saber que há alguém que a merece, que está à altura dela, esperando sua volta.
Rio de mim ao pensar que estou aqui, evitando-a, quando na verdade ela é quem deve estar querendo ficar a quilômetros de mim. Talvez esteja até indignada e ofendida pelo modo com que a toquei e beijei sem nenhum aviso, como se fôssemos um casal qualquer que se encontrou na balada para trepar, e não duas pessoas que são amigas desde que se entendem por gente.
Não entendo por que perdi o controle do tesão que sempre reprimi, mas me conheço o suficiente para saber que ele não passou. Raramente sinto aquela química com alguém. Era como se meu corpo estivesse sendo atraído, como se algo nela estivesse provocando reações em mim que eu não conseguia controlar. Foi animal, carnal, a famosa atração de pele que muita gente procura, mas pouca tem.
E eu tive justamente com minha melhor amiga!
Kyra volta a aparecer no meu campo de visão, agora com os belíssimos cabelos escuros, longos e fartos soltos, o rosto maquiado e uma roupa de deixar qualquer homem lobotomizado.
— Esse bode aí está foda para passar, hein? — comenta antes de se abaixar para pegar um guarda-chuva no móvel ao lado da rede. — Têm umas sobrinhas do baile na geladeira, cerveja – por favor, não tome todas, mas se tomar, as reponha –, e meu chuveiro tem muita pressão e água fresca. — Pisca para mim, e eu franzo a testa, sem entender. — Você está meio rançoso.
— Vai se ferrar, Kyra — ralho com ela, mas rio.
Ela se aproxima e beija minha testa, e isso, sim, arranca um sorriso sincero meu. Gosto que ela confie em mim o suficiente para me tocar, para recostar-se no meu ombro ou mesmo ficar abraçada, pois sei que ela não é assim com todos, principalmente com homens em geral.
— Fica bem e ouça meu conselho... — Ela anda até a porta antes de complementar: — Tome um banho, você cheira a álcool e a perfume vagabundo.
Levanto o dedo do meio para ela e a escuto ir gargalhando apartamento adentro até a porta de entrada bater. É, eu bebi bastante, sim, devo estar exalando álcool pelos poros, e o perfume barato se impregnou em minha roupa ontem, quando a recoloquei depois de mais de 12 horas nu, e a mulher me abraçou toda perfumada.
Saí do apartamento dela e vim direto para o da Kyra, torcendo para que minha irmã estivesse em casa e sozinha a fim de que eu pudesse cair aqui nesta rede onde estou e tentar pôr a cabeça certa no controle do meu corpo.
O telefone fixo toca alto, afastando meus pensamentos, e aproveito para tomar o banho aconselhado pela minha irmã viciada em limpeza. Entro na sala desabotoando a camisa branca que usei com o smoking – pois é, ainda estou com a mesma roupa do Ano Novo em pleno segundo dia do ano – e noto que não faço ideia de onde estão o paletó e a gravata-borboleta.
A primeira foto que vejo ao entrar no quarto de Kyra é uma que tiramos juntos – Samara, ela e eu – na formatura da minha irmã. Eu fui o par dela, então estava de smoking, e as duas, de vestido longo, maquiagem e penteado. Caminho até o aparador e pego o porta-retratos, focando em Samara e me perguntando como eu conseguia me manter longe do mulherão ao meu lado. Era uma beleza diferente da minha irmã, Samara tem o olhar doce, sorriso largo, nenhum mistério, seu rosto expressa suas emoções, sua sinceridade.
CONTINUA
Sua pergunta me deixa paralisada, completamente sem condições para lhe responder. Por que ele me procuraria?! Porque somos amigos desde que nasci? Porque estive ao lado dele em todos os momentos? Porque ele tomou um porre, apareceu lá em casa, chorou no meu ombro, beijou-me e depois fingiu que nada tinha acontecido?
Respiro fundo para controlar o volume da voz e não gritar que ele é um idiota, mas, antes que eu abra a boca, Kyra aparece esbaforida com um telefone na mão.
— Ei, Malinha, você está com seu telefone na bolsa? — Alexios olha para a irmã, puto por ela estar nos interrompendo, e eu franzo a testa, sem entender a pergunta dela. — Seu celular! — Ela bufa... — Seu irmão acaba de ligar para o meu telefone. — E balança o aparelho.
Arregalo os olhos, meu coração dispara, e logo penso em mamãe, que vi apenas um pouco ontem, quando fui buscar o Godofredo. Pego o telefone e confiro as ligações perdidas. Noto Alexios se afastando, mas não me importo; ele continua o mesmo egoísta de sempre.
Samara Schneider está de volta!
Mastigo mais um pedaço do pernil que Kyra serviu como opção de carne na ceia de Natal e não consigo deixar de pensar na volta daquela que foi minha grande amiga e companheira.
Até hoje não entendo o que aconteceu para que ela tomasse a decisão de ir estudar na Espanha sem falar nada comigo. Claro, eu sabia que tinha a possibilidade, afinal, havia anos o pai dela pressionava por isso, para ela ir estudar arquitetura clássica na terra de Gaudí14. No entanto, para minha total surpresa, em vez de ir morar em Barcelona, Samara foi para Madri.
Eu, que até então me considerava seu melhor amigo, só fiquei sabendo desses detalhes todos porque Kyra me contou depois que fui atrás dela para saber o paradeiro de Samara.
Pego a taça com água para ajudar a engolir a comida, pois estou com um aperto na garganta desde que a vi. Eu tinha acabado de sair da sala de reuniões de Kyra depois de um ménage espetacular com Valéria e Priscila, mais animado para encarar a noite especial, sem imaginar a grande surpresa que encontraria no salão e que quase me fez tropeçar em meus próprios pés.
Assim que meus olhos bateram nela, assustei-me, pois a danada da Kyra não havia me contado que Samara tinha voltado. Tentei um sorriso e uma aproximação amigável, como se ela não tivesse me abandonado por longos três anos sem nenhuma notícia. Ela está diferente, ainda mais bonita do que eu me lembro, mas tentei não reparar muito e ser o amigo de sempre.
Nada disso adiantou, pois, ao que parece, Samara desejou que eu corresse atrás dela, que a procurasse e reestabelecesse contato. Como eu poderia imaginar algo assim? Não sou adivinho! Ela some sem nenhum motivo e ainda se sente no direito de ficar puta por eu não ter tentado contato?
Quem entende a cabeça das mulheres?!
— Sua amiga foi embora cedo — Millos comenta ao meu lado. — Será que houve algum problema com a mãe dela?
Olho para meu primo, sentado ao meu lado à mesa, e ele entende meu total desconhecimento do assunto.
— A mãe dela, dona Ana Cohen, está em tratamento contra um linfoma. — Millos bebe mais chope. — Você não sabe nada sobre a vida da sua amiga?
— E você? Como sabe?
O filho da puta apenas dá de ombros, evasivo como sempre, adorando estar sempre um passo à frente de todos. Millos é um sujeito estranho. É o único que consegue interagir com todos nós sem tomar partido e sem revelar nada da vida pessoal de ninguém, nem mesmo da sua. Somos amigos, nos damos bem, mas eu sei pouco sobre ele, sobre suas atividades, e o máximo que conheço de sua vida pessoal é que tem um passado fodido como o meu, frequenta alguns clubes de sexo, tem uma amiga que por sinal é uma gostosa do caralho – mas nunca me deu mole, infelizmente – e só.
Como profissional, o homem é uma verdadeira coruja! Quieto, observador, parece que consegue olhar em 360 graus, além de ser um caçador de informações inigualável. Não há nada que passe despercebido por ele, e o que expõe ou o que fala, tenho certeza de que é o mínimo do que sabe. Por isso, todo cuidado é pouco quando o assunto é Millos Karamanlis, porque o desgraçado é um manipulador de mão cheia!
— Eu não sabia que dona Ana está doente, não vejo os pais de Samara há anos — contesto-o. — Espero que nada grave tenha ocorrido.
— Não vai ligar para saber? — Millos volta a questionar.
Franzo as sobrancelhas, encarando-o, tentando entender o motivo pelo qual ele está tão interessado no assunto.
— Não — respondo seco e volto a comer, mesmo com o questionamento dele na cabeça. Para mim o assunto acabou! Samara já demonstrou que não quer papo comigo por algum motivo, e, mesmo chateado com isso, devo respeitar a decisão dela. Millos é um manipulador e sabe que esse é um assunto que me atinge diretamente, por isso tocou nele.
Não preciso ligar para Samara, como não liguei para ela durante todo o tempo em que esteve fora, mas isso não quer dizer que eu não queira saber o que está acontecendo. Kyra sempre foi minha fonte de informações sobre ela e, caso tenha que ser assim, continuará sendo.
Termino minha refeição, fico mais algum tempo com Kyra e seus convidados, brindo ao sucesso do negócio dela e logo depois vou embora. Tinha pretensão de ir para casa, mas, no meio do caminho, uma mulher com quem eu já saí algumas vezes me manda uma mensagem dizendo que está na cidade, e vou encontrá-la.
Dia 26 de dezembro, pior dia de trabalho do mundo, certamente! Rio ao passar por mais dois engenheiros com cara de ressaca ou, talvez, de quem comeu demais e agora passa mal do estômago.
— Melhor colocar a lixeira perto! — passo, sacaneando meu colega de trabalho, Pedro, engenheiro químico. — Se emporcalhar a sala, vai ter que limpar você mesmo.
— Porra, Alexios, fala mais baixo! — Ele põe a mão na cabeça.
Gargalho e me sento à minha mesa, lotada de projetos, planilhas e minha coleção de lápis. É, eu coleciono lápis! Cada um tem a coleção que lhe cabe, não é?
Ligo o computador, olho para meu caderno de tarefas e arregalo os olhos ao ver um nome que eu não imaginava rever anotado lá – por outra pessoa.
— Ethernium? — questiono olhando para o Pedro.
— Sim! Acabamos de saber, mas o CEO lá da Karamanlis vai querer conversar com você, certamente.
Bufo ao pensar em subir até o Olimpo para conversar com Theodoros, sem esquecer as discussões que tivemos nas últimas semanas por conta de seu egocentrismo e insensibilidade com os funcionários da casa.
Sua mania de pensar que é Deus, inabalável, inatingível e perfeito me irrita, principalmente porque sei que ele não é nada disso, apenas a porra de um filhinho de vovô mimado, que sempre achou que podia fazer qualquer coisa que quisesse sem pensar nas consequências, que o velho grego limparia suas cagadas.
Admito, o velhote sempre fez tudo para seu neto querido. Entretanto, não pôde limpar a merda que Theodoros deixou para trás, apenas jogou-a para debaixo do tapete, limpou a consciência do seu netinho querido, que seguiu a vida como se nada tivesse feito e deixou o resto se fodendo sem se importar o mínimo.
Theo é arrogante, e eu não tenho saco para lidar com gente assim.
Ouço passos, um poc-poc característico de saltos, e em seguida a voz de Lia, outra engenheira que trabalha na minha equipe direta.
— Bom dia! — sua voz soa animada. — Ah... sem Papai Noel de chocolate este ano! — ela resmunga, e eu a vejo procurando sobre sua mesa. — Poxa, Alex, você já foi mais generoso!
— Eu?! — Começo a rir. — Você realmente me imagina comprando e colocando chocolate em formato de Papai Noel nas mesas dos outros? — Ela faz careta e nega. — Eu achava que era você!
— Por quê? Só porque sou mulher?
Rolo os olhos.
— Não, porra, porque você é viciada em chocolate!
— Ele está certo, Lia! — Pedro se mete na conversa em minha defesa. — Eu também achava que era você por causa disso.
Ela se senta frustrada por não ter encontrado o presente do “Papai Noel” misterioso da Karamanlis.
— Bom, não sou eu, e eu contava com isso! Não falha por anos! — Olha em volta para as outras estações de trabalho, ainda vazias sem os profissionais. — Ninguém recebeu?
Nego, e Pedro faz o mesmo.
— Estranho...
— Coisas estranhas têm acontecido por aqui — digo e lhe estendo meu caderno com a anotação da Ethernium.
— O quê? De novo? — Ela geme. — Esses caras da Ethernium são uns malas! Sério, Alexios, eu não vou aguentar gracinhas pra o meu lado de novo não!
— Eu disse que você devia ter respondido a ele. — Dou de ombros. — Mas agora sabe que tem meu total apoio! Se alguém da equipe deles fizer piadas machistas de novo, responda.
— Quem é o machista? Que vou com você dar uma surra nele. — Eliane chega já mostrando as garras – que garras! Minhas costas sofreram com elas – e se senta em sua estação. — Bom dia, feliz Natal, foi tudo ótimo! Agora, silêncio, porque ainda estou agarrada a um cálculo estrutural que não tem me deixado dormir. Obrigada. De nada.
Pedro começa a rir, e Lia só balança a cabeça. Eliane é assim, direta e sem rodeios, por isso mesmo achei-a ideal para o trabalho pelo qual é responsável. Nós nos conhecemos em uma balada, transamos, depois voltamos a nos encontrar na entrevista dela aqui na K-Eng tempos depois. Nunca mais voltamos a trepar, mas conseguimos construir uma relação de trabalho quase perfeita. Sei que posso contar com ela para qualquer coisa aqui dentro.
Tenho mais duas pessoas na minha equipe: Evandro e Michel, mas os dois estão de férias e ainda não retornaram. Não é normal dois membros da mesma equipe saírem em férias juntos, mas, como eles são casados, a lei lhes garante esse direito.
A K-Eng não é formada apenas pela minha equipe de engenheiros em suas especialidades, a verdade é que cada um aqui gere suas próprias divisões. O Pedro, por exemplo, é engenheiro químico, e na divisão dele estão químicos industriais, técnicos em química e outros engenheiros dessa área. Já a Lia é engenheira ambiental, e, dentro de sua divisão, há biólogos, gestores ambientais e engenheiros sanitaristas. A Eliana trabalha com projetos, e ela coordena outros engenheiros, arquitetos e projetistas. O Michel faz toda a parte de planilhas e medições, e o Evandro é responsável pelas operações, é quem lida com empreiteiros, clientes e atua também como fiscalizador de obras.
Além do corpo técnico da K-Eng, a empresa, que é uma subsidiária da Karamanlis, ainda tem setores administrativos e financeiros, e eu, como CEO dessa bagaça aqui, sou quem comanda essas áreas.
O único setor que dividimos com a Karamanlis, infelizmente, é o jurídico, por isso aturo muito a prepotência inglesa do Konstantinos e seu humor ácido. Geralmente não tenho paciência com ele, zoo com sua cara ou apenas o ignoro. Ele não é bem quisto por ninguém da minha equipe, principalmente pelas mulheres.
— Por falar em machismo... — Lia volta a falar. — Será que a Kika não vai voltar mais não?
Dou uma risada por ela ter entrado no assunto justamente quando eu pensava no meu irmão machista.
— Está um silêncio total na Karamanlis — Eliana se pronuncia. — Dá até medo de andar pelos corredores, clima pesadão!
— A Kika era incrível, né? Gata, alto-astral, competente — Pedro lamenta. — Uma pena que tenha perdido a cabeça e tenha sido mandada embora...
— Opa! — Eliana o interrompe. — Ela se demitiu!
— Enfim, está desempregada depois de ter ganhado uma puta promoção para a gerência.
— Eu a preferia à Malu Ruschel. — Lia treme toda. — Aquela mulher congelava até meu sangue só de estar perto dela.
Definitivamente, não o meu!, penso ao me lembrar de Malu Ruschel, a ex-gerente dos hunters da Karamanlis. Malu era bonita, tinha classe e aquele seu jeito focado me enchia de tesão. Uma pena ter ido morar no fim do mundo!
Já com a Kika, nunca senti essa atração, talvez por sempre tê-la achado tão receptiva, maravilhosa com seu jeito espontâneo, que logo gostei dela como se fosse uma amiga de longa data. Tenho muito apreço por ela e lamento que tenha saído da empresa.
Os engenheiros começam a conversar, mas o assunto não me interessa o mínimo, então coloco meus fones de ouvido – a voz forte e rasgada da Janis Joplin soa bem alta – e volto a mexer no projeto em que estava trabalhando.
— Ei, moleque! — Millos me chama assim que para sua moto. — Você não sabe curtir um passeio, puta que pariu!
Ele desce da motocicleta, tira o capacete e a jaqueta e se senta à mesa do bar ao meu lado. Bebo minha água sem responder, porque a única coisa que eu poderia lhe falar é que não sou um velho para ficar andando nessas motos de colecionador há 80 km por hora.
Estou aqui esperando-o há pelo menos 20 minutos, e isso porque saímos juntos de São Paulo em direção ao Guarujá, em uma viagem não programada e cujo motivo, sinceramente, nem entendi. Ele apenas apareceu lá na K-Eng e me chamou para andar de moto com ele, e eu topei.
— Qual é o propósito disso? — resolvo perguntar sem rodeios.
— Do quê?
Millos agradece à garçonete que lhe entrega um coco verde com um canudo e nem percebe a moça comendo-o com os olhos (ou talvez só esteja assustada com suas tatuagens, que cobrem os braços, pescoço e peito).
— Desse “passeio”. A gente se viu há alguns dias na ceia da Kyra, e você não comentou nada sobre isso.
— Nada de mais! — Ele bebe a água de coco. — Vou viajar no Ano Novo, ficar um tempo fora e queria passar um tempo contigo. Já jantei com seus irmãos, mas como você é todo amalucado para comer, achei que uma volta de moto iria cair bem, mas esqueci que você é louco nisso também.
— Você está ficando velho, Millos, sinto lhe informar — debocho. — Acha mesmo que, com essa potência italiana nas mãos, eu iria ficar molengando contigo na estrada?
— Não é molengar, é curtir a viagem, a paisagem...
— Ah, não, você curte essas coisas paradas, não eu. Meditação, ioga, essas coisas todas aí que você faz, tô fora! Não sei ir devagar, Millos, em nada!
— Deveria... talvez assim conseguisse agradar às mulheres. — Ele pisca e tenta disfarçar a troça bebendo mais de sua água.
Eu gargalho.
— Pode ter certeza, elas não reclamam da minha rapidez. Não basta saber correr, tem que saber tirar o máximo proveito de uma máquina, fazê-la dar tudo de si, e isso eu faço.
— Está falando das motos ou das mulheres?
— Tem diferença?
Ele ri novamente.
— Você é um moleque, não sabe nada ainda!
— Falou aquele que nomeia suas motos com nomes femininos!
Nós dois rimos juntos, e o clima fica descontraído.
A verdade é que ele e eu temos muito em comum. Ambos adoramos motocicletas, rock e carne. Apesar de sua onda “zen budista”, Millos nunca conseguiu se livrar da proteína animal e das comidas pesadas que adora preparar para acompanhar suas cervejas artesanais.
Ah, esse é outro ponto em comum: adoramos cerveja! Ele fabrica, eu apenas bebo, mas tenho tanto conhecimento quanto ele, e esse é um dos pontos sobre o que mais conversamos quando estamos juntos, geralmente comendo alguma carne e ouvindo rock.
Raramente saímos juntos de moto, exatamente por ele fazer o estilo tiozão que gosta de andar de Harley, apreciando paisagens, e eu e minha Ducati Multistrada 1260 não temos saco para andar quase parando não.
Embora eu reconheça que tenho que agradecer a esse tiozão por ter minha moto dos sonhos, a que uso para correr nas competições. A Ducati só disponibilizou três unidades da 1299 Superleggera para venda no Brasil, há quase dois anos, e um dos amigos do Millos foi quem comprou uma delas, e, quando ele decidiu vendê-la, meu primo prontamente me avisou, e não pensei duas vezes.
Eu gosto das italianas mais do que das americanas ou japonesas, pelo menos para as motos; não sou tão seletivo assim com mulheres.
— Baile dos Villazzas...
— Ah, Millos, não fode com esse assunto de novo! — reclamo, entendendo agora o motivo do encontro.
— Alexios, preciso de você lá.
Rio.
— Mano, aqueles dois não são crianças, e, muito menos, sou a babá deles! Eles não precisam que eu vá para manter a ordem e o bom nome da...
— Kyra me mostrou o projeto do baile, ela parece bem animada com sua primeira grande produção sem a intervenção dos Karamanlis.
Porra! Ele vai pegar pesado!
— Você é muito filho da puta, sabia?
Millos dá de ombros e bebe mais água.
— Acho que vocês deveriam ir para apoiá-la, acima de todos, você! Será importante para ela, além disso... acho que ela está sem acompanhante, porque deu com o pé na bunda do último idiota que estava comendo.
— Porra, Millos! — Xingo-o. — É a minha irmã, porra!
— E o quê? Só por isso ela não trepa?
— Vai se foder! — Levanto-me da mesa puto e pego o capacete.
— Alexios... — ele me chama, mas não dou atenção, já montando na moto para ir o mais longe possível dele.
Antes que vocês me julguem como machista ou irmão ciumento, adianto logo que não se trata disso. Cada um lida com a merda dentro de si de um jeito, e esse é o jeito da minha irmã de lidar com seu passado. Respeito isso, mas não quer dizer que não me doa ou mesmo que eu não me sinta responsável por ela ser assim.
Eu gostaria que as coisas fossem diferentes, esforcei-me o máximo que pude para que ela fosse menos fodida do que todos nós, mas, a cada novo relacionamento seu destruído, sinto-me um fracassado, o que me dói profundamente.
Piloto rápido, passando pelos radares sem me importar com as multas, sentindo o vento forte bater em mim como se pudesse deixar todas as marcas do meu corpo e da minha alma para trás. Contudo, não posso. Ele fodeu a minha vida várias vezes, não só com as coisas que fez contra mim, mas principalmente por eu ver que também destruiu minha irmã.
— Como ela está, Dani? — pergunto ao meu irmão assim que ele entra na cozinha da casa dos meus pais, onde tomo meu desjejum com a Cida.
— Dormiu bem. — Ele beija minha cabeça. — Mas foi um susto essa febre alta assim do nada.
Ele se senta, visivelmente cansado, e Cida logo lhe serve uma xícara de café. Acostumados demais a dividir as refeições com Cida desde que nascemos, sempre tomamos nosso café juntos. Ela está em nossa casa há tanto tempo que não sei como seria minha vida sem sua presença, e certamente Daniel sente o mesmo.
Minha mãe, Ana Cohen, sempre foi muito ocupada na direção do sistema de ensino criado pelos meus avós, franqueado e distribuído por colégios do Brasil todo. Já meu pai, Benjamin, vem de uma longa linhagem de comerciantes e industriais, como bem acentua nosso sobrenome, que é uma derivação da profissão de algum ascendente que foi alfaiate.
Os Schneiders possuem lojas, fábricas ou empresas que prestam serviços, como era o nosso caso. Meu avô não tinha formação quando fundou sua primeira fábrica de móveis, porém eram um marceneiro muito habilidoso, e meu pai aprendeu com ele. Os negócios iam bem, então papai foi estudar arquitetura e, por fim, design, elevando o nível dos negócios familiares, fazendo dos móveis com nosso sobrenome sinônimos de classe e riqueza.
Há 10 anos meu irmão está à frente dos negócios, desde que papai teve seu primeiro infarto – ele já teve outro e fez duas pontes de safena. Daniel é um administrador maravilhoso, fechou com grandes empresas, e hoje os móveis Schneider não enfeitam mais as coberturas e mansões luxuosas de São Paulo, tão somente redes enormes de hospitais, clínicas, lojas de alto luxo e restaurantes em todo o país.
Meu irmão é incrível! Nós dois somos muito amigos, sempre fomos. O único ponto tenso entre nós era Alexios Karamanlis. Daniel é 10 anos mais velho que eu, um quarentão, como eu costumo provocá-lo, e sempre achou Alex uma péssima companhia. Bom, ele realmente era, mas não para mim. Eu sabia das loucuras que Alexios aprontava, seu envolvimento com drogas, farras, lutas valendo dinheiro e rachas pela cidade. Ele não foi um adolescente fácil, mas sempre me tratou como se ainda conservasse o menino que eu conheci. Sempre me deu conselhos para ficar longe de tudo aquilo que ele mesmo fazia, nossa amizade sempre foi separada das outras companhias dele.
Ainda assim, Dani nunca gostou de Alexios, em compensação, tornou-se um dos grandes amigos de Millos Karamanlis, primo do Alex, mesmo que eu não consiga entender o que, de fato, o executivo tatuado e meu irmão tenham em comum.
— Desculpe-me por tê-la tirado da festa da Kyra — meu irmão volta a falar, afastando-me dos pensamentos. — Eu liguei para o doutor Henrique e já ia pedir uma ambulância, quando fiquei com medo de acontecer algo e você não estar aqui.
Pego sua mão.
— Eu sei. Foi um susto!
Retornei as ligações dele assim que Kyra me alertou, e, quando Dani atendeu, o doutor já havia chegado e ministrado medicamentos. O médico preferiu que ela continuasse em casa por conta de sua baixa imunidade, mas ficou acompanhando durante boa parte da madrugada.
— Ela convulsionou, e eu achei que fosse... — Ele me olha, seus olhos acinzentados tristes. — Eu quase perdi o papai tempos atrás, lembra? — Assinto. — Eu estava com ele quando teve o infarto, e agora quase...
— Dani, não pensa nisso! — Abraço-o. — Você é o melhor filho e irmão do mundo, sempre ao lado deles, ao meu lado. Agora estou aqui também e vou ajudar no que for preciso.
— Eu sei, Samara. Essa fase do tratamento é a mais complicada, por causa da baixa imunidade, mas, quando ela estabiliza, é a mamãe que sempre conhecemos e amamos.
— E a Bianca? — pergunto-lhe sobre sua noiva. — Como vocês estão, faltando pouco para o grande dia?
Ele ri sem jeito.
— Você sabe que não tem essa de grande dia, não? Nós vamos ao cartório, assinaremos os papéis e pronto. — Dá de ombros. — Vida que segue.
Cruzo os braços. Não gosto nada desse conformismo estranho.
— Tem certeza disso, Dani?
Ele olha para a Cida.
— Vou fazer 41 anos, pirralha. 15 anos de relacionamento com ela, então...
— É isso? — Cida balança a cabeça negativamente. — Viu? A Cida não concorda também! E não é que você seja já um solteirão arrastando chinelos, Dani! Você é lindo!
— Não é sobre isso, Samara.
— Ele quer ter uma família, menina. — Arregalo os olhos. — Seu pai vive mais entretido na fazenda do que aqui, sua mãe, antes de adoecer, não parava quieta, sempre viajando com as amigas e...
— Eu na Espanha.
Daniel termina o café sem me encarar, sem falar nada e se levanta.
— Vou voltar para o quarto, render um pouco a enfermeira.
— Também vou, Dani!
Seguimos juntos, mudos, pelo corredor. Meu irmão é a pessoa mais discreta do mundo, completamente o oposto de outros filhos de grandes empresários desta cidade. Nunca gostou de sair em revistas de fofoca, nunca namorou modelos, atrizes ou socialites. Na adolescência, namorou uma garota da escola, depois teve duas ou três namoradas na faculdade e, por fim, conheceu a Bianca em um torneio de polo – esporte em que ele é fera. Desde então engataram nesse relacionamento xoxo, totalmente ioiô – eles já terminaram umas 30 vezes ao longo dos anos – e que agora vai se tornar um casamento meia-boca.
— Você merece mais, Dani — solto sem conseguir frear minha língua, e ele ri.
— Você diz isso porque é minha irmã, pirralha. — Ele tenta bagunçar meus cabelos como quando eu era criança. — Bianca pode não ser o grande amor da minha vida, mas é uma boa amiga e companheira.
— Isso é loucura! Você merece amar, ser amado, estar apaixonado...
— Como você esteve a vida toda por aquele doidivanas? — Paro em seco no corredor e arregalo os olhos. — Qual é, Samara, você achava que eu não sabia? Estava escrito na sua testa e em todos os seus cadernos, com direito a corações rosa! Você teve um peixe daqueles que ficam sozinhos no aquário...
— Um beta. — Começo a rir, sabendo exatamente do que ele está lembrando.
— Pois bem, você teve um beta e o nomeou...
— Beto Schneider Karamanlis — falamos juntos, e eu começo a rir.
— Sim! E como você nunca me deu indícios de ter uma queda pela Kyra, eu supus que era o outro Karamanlis. — Daniel me olha sério. — Por que Diego não veio contigo?
A pergunta é tão inesperada que demoro a processar que ele está falando do meu namorado.
— Não sei quanto tempo vou ficar, então...
— Besteira! Ele poderia passar uns dias aqui contigo, os times estão todos em recesso até a primeira semana de janeiro. — Suspiro e olho para o chão. — Não estraga sua vida, Alex não vale a pena.
Assinto, lembrando-me de tudo o que aconteceu noite passada. Alexios continua igual, vendo e querendo todas as mulheres ao seu redor, menos eu. Sempre fui a amiga, quase uma irmã, menos uma mulher, e, como acabei de perceber, todos sabem da minha paixão por ele, então, Alexios deve simplesmente ignorá-la.
Por muito tempo eu achei que ele não soubesse. Ficava fantasiando que, no dia em que eu tomasse coragem e lhe contasse, Alexios iria se declarar também. Iludida! É isso que eu era, porque, depois do beijo que trocamos, era impossível que ele não soubesse.
Respiro fundo, resignada. Alexios sabe, só não se importa e nem sente o mesmo!
Meu irmão bate levemente na porta do quarto de mamãe e em seguida entra. Sigo-o pelo enorme ambiente, que me traz tantas lembranças alegres dos momentos que dividi com ela, deitada em sua cama, contando sobre meus sonhos.
— Samara Esther! — Mamãe estende os braços, sentada na cama, recostada nos travesseiros. — Trouxe Godofredo de volta?
Rio e concordo.
— Trouxe, está lá embaixo no jardim. — Beijo sua testa. — Como está se sentindo hoje?
— Eu estou bem! — Ela dá uma olhada de esguelha para meu irmão. — Ele é superprotetor, sabe? Exagerado!
Daniel permanece alheio às críticas, conversando com a enfermeira.
— Mamãe, ele não é, e a senhora sabe! — Ana suspira. — A senhora está em tratamento, precisa de cuidados, e, com o papai isolado na fazenda, Daniel é que estava responsável por acompanhá-la em tudo, mas agora estou aqui também!
— Dois superprotetores! — ela finge reclamar, mas sorri satisfeita. — Seu pai quis vir para cá para ficar comigo, mas achei melhor que ficasse por lá. Você sabe como ele é, não me daria um minuto de paz.
Eu rio, mas sou obrigada a concordar. Meus pais são incríveis, mas têm uma relação um tanto estranha desde que Daniel e eu saímos de casa para viver nossas vidas. Passaram a viver cada um no seu espaço, com suas coisas. Dão-se incrivelmente bem, mas cada um com sua vida.
É verdade que eles não eram nada parecidos. Mamãe sempre foi uma mulher de negócios, cheia de trabalho, viagens e reuniões, porém extremamente carinhosa com os filhos. Papai é um homem mais reservado em seus sentimentos, embora seja um artista.
Olho para um dos móveis da minha mãe, e a escultura em madeira em cima dele me faz sorrir. Nela há um casal e um garotinho com a mão na enorme barriga da mulher. Papai deu vida à imagem de uma foto que tiraram quando mamãe estava grávida de mim, e a peça ficou tão perfeita que dá para sentir a alegria de todos.
Quando eu era criança, tinha coleções das esculturas dele: cavalos, cães, gatos, pássaros. A que eu mais gostava era a do Pinóquio, que ganhei quando comecei a ler e andava para baixo e para cima com o livro do boneco de madeira que queria ser menino de verdade.
— Você vai até lá visitá-lo? — minha mãe pergunta, talvez adivinhando que estou pensando nele, por estar olhando a estátua.
— Por agora não. Tentei falar com ele quando cheguei e ontem também, mas não consegui. — Dou de ombros. — Papai se isola quando quer, a senhora sabe.
— O doutor Henrique acabou de dizer que os resultados dos exames ficaram prontos e que ele virá assim que puder para conversar conosco. — Daniel senta-se ao meu lado na cama. — É bom ter Samara aqui perto, não é?
Ele me abraça pelos ombros.
— Eu também estou gostando de estar de volta.
Mal termino a frase, e meu telefone toca. A foto de Kyra tentando beijar Godofredo, e ele de boca aberta para mordê-la aparece na tela, e minha mãe sorri.
— Eu estou esperando pela visita dessa filha emprestada desnaturada. — Ana reclama. — Pode dizer a ela que não vai comer mais minha paella!
— Pode deixar! — Levanto-me da cama e vou para um canto do quarto. — Oi, Kyra! — atendo o telefone.
— Quero notícias! Mal consegui dormir essa noite, deixei mil mensagens no seu telefone. Como está sua mãe?
— Está bem, mas ameaçou greve de paella se você não vier visitá-la em breve.
— Está bem mesmo? — ouço preocupação na voz da minha amiga, e meu coração se aperta, pois sei que minha mãe foi o mais próximo que Kyra teve de figura materna. — Malinha?
— Está, sim. O médico dela explicou que, por conta da medicação, ela ficaria suscetível a doenças, a imunidade está baixa, então qualquer resfriado ataca com força.
Kyra suspira ao telefone, e eu abro um sorriso ao ver o quanto minha amiga durona é, na verdade, tão sensível quanto eu.
— Que bom! Fico feliz em ouvir isso e mais aliviada para te fazer um convite.
Faço careta, já prevendo que ela vai me meter em algum evento seu de final de ano, vestida de garçonete.
— O que você está armando, Kyra?
— Nada! — ela logo se defende, indignada. — Eu só queria companhia! Na véspera do Ano Novo acontecerá o Baile Branco e Preto dos Villazzas, e, como eu estou sem nenhum boy no momento, você podia ser meu par, o que acha?
— Kyra! — Rio. — Um baile? Sério?
— Baile? — mamãe logo se mete na conversa e pergunta lá da cama. — Por acaso é o baile dos Villazzas?
Fodeu! Minha mãe sempre amou bailes e conheceu a matriarca dos Villazzas tempos atrás, através de sua amiga, Cecília Novak. Certamente ela adorará a novidade, achará moderno eu ir acompanhando minha amiga, e eu não terei escapatória.
— É, mamãe, eu vou com Kyra — respondo resignada.
— Eu sabia! — Minha amiga ri ao telefone. — O traje branco é obrigatório para mulheres, então, abuse de cores em outros locais!
— Eu vou te matar, Kyra Karamanlis! — sussurro para que somente ela escute.
— Depois do baile; antes, quero usufruir de tudo o que planejei! Vai ser o evento mais incrível que você já viu!
Relaxo, percebendo que ela realmente está feliz e confiante.
— Tenho certeza disso, Kyra!
Nós nos despedimos, mas não retorno imediatamente para a cama, ao lado da minha mãe e do meu irmão, fico pensando em como é bom estar de volta. Realmente me sinto em casa aqui, com as pessoas que eu amo, ainda que tenha feito amigos na Espanha.
Penso no Diego e sinto um pequeno aperto no coração, um misto de saudade e remorso. Daniel me olha, curioso por eu estar parada no mesmo lugar, sem falar ou fazer nada, e reflito sobre o que ele me disse. Reconheço que eu recuei ante o pedido de casamento de Diego por ter esperança de voltar ao Brasil e encontrar Alexios mudado, porém ele não mudou e nem mudará jamais, mas isso não muda o fato de que ele ainda mexe comigo.
Diego e eu nos damos muito bem, somos amigos, companheiros, temos gostos parecidos. Enquanto eu estava na Espanha, longe do magnetismo e atração de Alexios, realmente pensei que pudesse amá-lo e ter uma vida com ele. Os momentos que passamos juntos foram maravilhosos, mas agora me questiono se, mesmo voltando para Madri, é justo manter essa relação.
O Uber me deixa em frente ao Villazza SP, e vejo a entrada principal do hotel cheia de pessoas bem-vestidas e penteadas. Ando na direção delas, questionando-me se os convites estão sendo verificados na entrada, mas me surpreendo ao ouvir um dos homens que está parado na entrada:
— Nós só queríamos comprar o convite, não conseguimos responder a tempo e...
— Senhor, o que me foi passado foi que esgotaram, eu sinto muito — um dos seguranças responde antes de se virar para mim, mas, vendo o convite em minhas mãos, abre a porta. — Seja bem-vinda!
Entro no saguão principal do enorme hotel e suspiro, apreciando todos os detalhes da construção e da decoração, orgulhosa por ter sido parte da equipe que ajudou a deixá-lo perfeito desse jeito.
O escritório de arquitetura que projetou o Villazza SP foi o dos Boldanis, e o arquiteto principal que assinou o desenho foi ninguém mais, ninguém menos que meu ídolo e professor, Julio Boldani. O italiano é fera demais nas suas linhas clássicas misturadas às modernas.
Eu ajudei o pessoal que compôs o projeto de decoração, pois estava me especializando e, por isso, trabalhei um tempo no Boldani. Foi ali que descobri que, por mais que papai fizesse pressão para que eu fosse uma arquiteta, eu queria mesmo era ser designer de interiores.
Subo as escadarias de mármore com corrimão e guarda-corpo de ferro fundido na cor ouro velho em arabescos e folhas e, no saguão da entrada do salão Royal, encontro a recepção do baile montada como se fosse uma bilheteria antiga de circo.
Sorrio ao pensar na Kyra, reconhecendo que minha amiga sabe como dar vida aos seus projetos de maneira perfeita, pois vi os desenhos quando almoçamos juntas anteontem e confesso que está tudo muito mais bonito do que a ilustração em 3D que ela me mostrou.
Olho em volta, procurando-a, pois combinamos de nos encontrar na entrada, mas arregalo os olhos ao ver Alexios, de smoking preto, vindo em minha direção.
Mesmo contra a minha vontade, minhas mãos gelam e meu coração dispara apenas por vê-lo, por notar o quanto ele está lindo com esse sorriso largo e os olhos brilhando.
Por que ele tinha que ter essa aparência e essa boca?!, penso na injustiça do mundo, indignada por ser tão comum, e ele...
— Samara Esther. — Bufo, pois só ele e minha mãe chamam-me assim. — Você está... linda!
Alexios sorri e me olha desde as unhas dos pés, pintadas e cutiladas, até o alto da cabeça.
— Linda! — repete como se não fosse possível que eu estivesse desse jeito.
— Oi, Alexios — cumprimento-o seca, tentando não dar importância ao fato de que ele parece ter tomado um soco só por me ver mais arrumada. — Estou esperando sua...
— Eu sei, foi ela quem me mandou ficar aqui de plantão te esperando. — Enrugo a testa, sem entender. — Kyra resolveu bancar a fada madrinha e ajudar uma amiga a ter seu baile com um príncipe encantado e, por isso, vai ter que trabalhar esta noite. — A expressão no rosto dele é de deboche ao falar do conto de fadas. — Então, restou a mim.
Puta merda, Kyra!
Pego o celular dentro da bolsa e mando mensagem para ela, mas tenho certeza de que, ocupada com o começo do baile, ela não irá ler. O que eu faço? Penso se devo aceitar fazer companhia ao Alexios ou se devo ir embora, afinal, só vim a esse baile por insistência da Kyra.
— Samara, eu sei que nossa amizade está um tanto estremecida por conta da distância e do tempo, mas... — Alexios me encara, e noto que ele está se esforçando para falar — eu gostaria que você me acompanhasse esta noite.
Minha boca fica seca ao ouvir isso, porque, mesmo com a distância, eu ainda consigo saber quando ele está sendo sincero. Alexios me quer ao seu lado esta noite, e isso é...
— Como nos velhos tempos, lembra? — ele complementa, e, mais uma vez, percebo o quanto sou iludida.
Nada mudou!
Imediatamente me lembro do meu baile de formatura do ensino médio, no qual ele foi meu acompanhante. Chegamos juntos, eu estava empolgada para dançar com ele a noite toda, arrumei-me para parecer uma mulher aos seus olhos e não mais a menina de cabelos revoltos que o seguia para toda parte quando criança.
Havia decidido que iria contar a ele o que sentia naquela noite e que, depois de ele se declarar também, iríamos fazer amor, e eu, aos 17 anos, finalmente teria minha primeira noite com o homem que amava.
Ledo engano!
Alexios dançou uma música comigo, depois foi para o bar, encheu a cara, sumiu com uma garota bem mais “servida” que eu e voltou para o salão todo amarrotado. Eu queria ir embora, mas ele acabou dançando (e sumindo) com mais umas três mulheres.
— Seu acompanhante te deixou sozinha, não é? — Marlon, um dos garotos que estava se formando comigo me perguntou, e só aí percebi que ele estava sentado à mesa comigo.
Começamos a conversar e, naquela noite, tive minha primeira experiência sexual. Não foi ruim, namoramos por um tempo, mas reconheço que ela só aconteceu porque Alexios não me quis. Ele simplesmente não me via!
— Samara? — ele me chama e me faz voltar à realidade.
Por Deus! Não sou mais uma garota de 17 anos, sou adulta, independente, com uma carreira bem-sucedida na Espanha e um dos homens mais gostosos de Madri ao meu lado!
— Vamos entrar! — decido e marcho até uma das “bilheterias”, onde recebo minha máscara preta e uma pulseira.
Alexios recebe as dele e ri ao me mostrar a máscara branca como a de O Fantasma da Ópera. Ah, merda!
— Você se lembra? — Ele ri. — Me obrigou a ver esse filme um milhão de vezes e sabia até as falas!
O desgraçado põe a máscara, ergue uma das sobrancelhas, dobra-se em reverência e sorri.
— Vamos logo com isso! — Saio de perto dele sem rir de sua gracinha, coração retumbando, a cabeça cheia de lembranças da nossa adolescência.
Quando as portas se abrem, perco o fôlego ao ver o que Kyra idealizou.
— Puta que pariu, minha irmã é foda! — Alexios fala ao meu lado.
Eu pulo de susto, não por causa do que ele disse, nem mesmo ao ver um dos artistas cuspindo fogo, mas tão somente por sentir a sua mão em minha cintura. Meu corpo inteiro aquece, a pele arrepia e aquela sensação que sinto desde que os hormônios despertaram em mim na adolescência volta a me tomar.
Atração! Química!
Não sei explicar, mas meu amor de criança transformou-se nisso quando me tornei moça, e a cada toque, cada resvalo, eu resfolegava. Sonhava com ele, acordava suada e sem saber o que estava acontecendo. Meu primeiro orgasmo com masturbação foi pensando nele, instintivo, depois de um sonho erótico e proibido.
Achei que, com a distância, principalmente depois que me envolvi com Diego, isso ia passar, mas parece que me enganei.
Olho-o e percebo que ele permanece alheio ao que me causa, sua atenção tomada pelos malabares que executam movimentos precisos na entrada do baile.
Respiro fundo.
— Vamos?
Ele assente sem me olhar, e seguimos juntos, passando entre os convidados que ainda se encontram de pé conversando ou bebendo no bar, em direção ao centro do salão, tomado de mesas e cadeiras reservadas.
— Onde nós...
Nem preciso terminar a pergunta, pois logo vejo Theodoros Karamanlis, acompanhado de uma lindíssima loira, a uma mesa com o sobrenome deles na placa de reserva. Eu não sou muito fã do irmão mais velho de Alexios, mas sempre fui educada com ele, então armo meu melhor sorriso e o cumprimento:
— Theo! Que bom vê-lo esta noite! — Olho para sua acompanhante agora mais de perto e sinto como se a conhecesse de algum lugar.
— Samara, essa é Valentina de Sá e Campos — Theodoros nos apresenta, e eu sorrio, reconhecendo os sobrenomes dela. — Valentina, essa é a Samara Schneider, uma incrível designer de interiores.
— É um prazer, Valentina! — saúdo-a.
— O prazer é meu, Samara. — Valentina sorri. — Nos conhecemos já?
— Eu acho que sim, embora não me recorde de onde pode ser.
A loira para a fim de tentar se lembrar, e eu ouço a conversa entre Theo e Alexios.
— Viu só esse trabalho da Kyra?
— Claro! — Alexios debocha do irmão. — Seria impossível não ver, já que estou aqui! Já fui até cumprimentá-la, mas está tão ocupada que não consegui nem falar com ela direito.
Só o suficiente para que ela o encarregasse de me acompanhar nesta noite! Kyra me paga!
— Imagino que esteja. Viu o Kostas? — Theo pergunta, mas não consigo ouvir a resposta de Alexios, pois Valentina volta a falar:
— Lembrei! — ela comemora. — Nos encontramos na festa de inauguração da loja da Miriam Benides, lembra?
Eu não faço a mínima ideia do que ela esteja falando, mas, mesmo que não esteja com nenhuma vontade de prosseguir com a conversa, sorrio e concordo por educação.
— Puxa vida, quanto tempo não vejo você por lá! — Valentina continua.
— Eu estava morando em Madri — informo antes de me sentar.
— Ah, eu adoro a Espanha!
Sorrio sem graça, percebendo que vamos conversar. Não quero ser mal-educada com ela, é só que não estou muito confortável em estar aqui neste baile, não depois de perceber que ainda quero Alexios e que não adiantou de nada impor distância.
— Família! — a voz debochada de Kostas interrompe a conversa de Valentina, e ela me pergunta baixinho quem é o homem abraçado a uma loira com um vestido branco tão justo e transparente que beira à indecência.
— Konstantinos... — sussurro antes de ele apresentar sua acompanhante a todos.
— Bruninha, conheça os Karamanlis! — Ele aponta para Alexios e para Theodoros. — Claro que você pode deixar seu cartão com eles depois, mas eu sou o mais bonito, não sou?
Ele faz a mulher girar em seu próprio eixo, e, pela primeira vez depois da tensão toda em que eu estava desde que vi Alexios, sorrio divertida. Kostas é uma figura! Ainda me lembro de quando ele morava no prédio, na cobertura de seu pai, e juro, se não fossem os olhos azuis e a voz, eu diria que não se trata da mesma pessoa!
— Já bêbado? — Theo pergunta a Alexios.
— E mais uma vez com acompanhante paga! — Alexios se aproxima de Theo e cochicha, e isso me surpreende. Não sabia que os dois estavam conseguindo ter uma relação tão cordial. — Estou achando que nosso querido irmão é do outro time.
Theo gargalha e nos olha sem graça.
— Perdoem-me, foi irresistível! — Tenta se conter e bebe mais do seu uísque. — Bom, certamente ele é arrogante e orgulhoso demais para “sair do armário”.
Quem? Kostas?! Olho para o homenzarrão com a prostituta e nego instintivamente com a cabeça. Não mesmo!
— Seria apenas mais um rejeitado pelo seu querido pappoús! — ouço Alexios dizer isso, e meu coração aperta. Olho-o, respiro fundo, lamentando profundamente por ele ainda se sentir rejeitado, percebendo que isso também não mudou.
Rejeição, abandono, violência o tornaram o homem que é. Sei disso, dei essas desculpas para seu comportamento por muitos anos. Toda vez que ele aprontava, eu usava isso para justificá-lo.
Até quando?, penso, olhando-o fixamente. Até quando ele deixará que os erros dos outros façam-no errar também?
— Você gosta muito dele, não é? — Valentina dispara, e eu desvio os olhos de Alexios. — Seus olhos brilham diferente ao olhar para ele.
— Somos amigos há muitos anos — disfarço.
— Bom, isso é muito bom, mas... — Ela ri. — Desculpe-me se estou sendo invasiva, mas seu olhar é de quem é apaixonada, não apenas uma amiga.
Dou um sorriso amarelo para ela, e Valentina fica quieta.
— Tudo bem aí? — Alexios me pergunta, e eu assinto. — O jantar já tinha sido anunciado antes de você chegar, então não deve demorar muito.
Resolvo conversar com ele normalmente, afinal, seria ridículo fazer birra na minha idade.
— Kyra estava muito ansiosa com o jantar desta noite. Um grande chef internacional, ela me contou, é quem está preparando tudo.
— Sim, está na programação. — Alexios lê o nome do chef francês, e eu não consigo deixar de olhar sua boca. Pego a taça de champanhe e a viro de uma só vez. — Uau! — Sorri e faz sinal para um garçom se aproximar com mais. — Minha acompanhante está sedenta.
— Estou. — Decido não discutir e bebo a outra taça. — E com fome também.
Alexios toca minha coxa por cima do vestido, mas logo tira a mão.
— O jantar não deve demorar — repete sério e se vira para olhar o outro lado do salão.
Fico um tempo olhando para minhas pernas, permitindo a sensação de brasa que a mão dele deixou em minha coxa passar, chateada demais por reagir assim a ele e continuar sendo praticamente invisível.
Que porra é essa que está rolando?
Essa pergunta retórica fica martelando minha cabeça enquanto tento prestar atenção em qualquer coisa neste maldito salão lotado que não seja ela. Eu só posso estar com algum problema, só pode! Samara sempre foi minha amiga, quase minha irmã. Eu estar aqui com uma maldita ereção – pela segunda vez esta noite, frise-se – só pode ser loucura!
Preciso de um médico! A loucura congênita dos Karamanlis começou a se manifestar em mim. Sentir tesão por Samara é quase... incestuoso!
Pego a taça com champanhe e a termino em uma só golada a fim de aplacar o fogo que apenas um toque em sua coxa me causou.
A verdade é que eu não esperava encontrar-me com ela nesta noite. Vim por insistência do Millos e, claro, por sua maldita manipulação eficaz ao falar da Kyra e do suporte a ela em seu primeiro grande evento. Cheguei junto aos primeiros convidados e a encontrei correndo de um lado para o outro, “armando” uma surpresa para sua amiga e funcionária, a gostosa da Helena, que, por sinal, está namorando o Bernardo Novak, um amigo de longa data.
Quando finalmente ela terminou todos os preparativos, foi à cozinha falar com o tal chef francês que a estava deixando nervosa, conferiu tudo com as bandas, DJ e artistas circenses é que me deu atenção.
— Oi, Alexios. — Sorriu cansada. — O baile nem começou direito, e eu já estou de um lado para o outro. — Ela espiou a fila se formando na recepção do evento. — Gostou da decoração?
Seus olhos verdes, como os meus, brilharam ansiosos. Eu cheguei perto dela, beijei sua testa e falei baixinho:
— Está tudo perfeito, Kyra. Parabéns, estou muito orgulhoso!
Ela suspirou e depois se afastou.
— Claro que está! Não tinha dúvida alguma disso. — E, do nada, pegou-me pela mão e me arrastou em direção ao salão. — Vem ver!
— Kyra, eu ainda não troquei meu convite e...
— Ah, Alexios, vem ver!
A decoração estava esplêndida, embora eu soubesse que, com os efeitos de luz e os artistas executando seus números, iria ficar ainda mais incrível. A banda, no palco ao fundo do salão, já estava se posicionando, e alguns funcionários de Kyra ajeitavam os últimos detalhes das mesas, arranjos florais ou acendiam as velas.
— Perfeito! — elogiei-a novamente.
— Você ainda não viu nada! — E deu aquele sorriso que eu sei que fode com a cabeça de qualquer homem. É duro ter uma irmã como ela, linda e sexy, e ver os caras babando em cima e não poder socar a fuça de nenhum. — Ah, preciso de um favor.
Estava demorando!
— Kyki, estou de smoking, mas ainda não sei segurar uma bandeja — sacaneei.
— Não, seu idiota! — Ela me estapeou as costas. — É meu par desta noite! Não vou poder participar do baile como havia previsto, então preciso que você faça companhia...
— Ei, ei, pode parar! Não vou ficar pajeando nenhum marmanjo não!
Ela rolou os olhos.
— Não é marmanjo, idiota! Posso terminar de falar? — Assenti. — É a Samara. Convidei-a a vir comigo esta noite e não quero que fique sozinha.
Samara Esther Schneider!
Fiquei um tempo olhando para Kyra, tentando entender se ela tinha feito isso de propósito, para tentar nos reaproximar, afinal, sempre fomos um trio de amigos/irmãos, e, com a relação entre mim e Samara estremecida, Kyra devia estar um tanto confusa.
— Sem problema. — Sorri. — Você avisou a ela?
— E Samara atende aquele celular? — Ela bufou. — Você terá que esperá-la lá fora. Se importa?
— Não — fui sincero.
— Ótimo, agora vaza, porque ainda tenho coisas a fazer antes de abrirmos o salão. — E, do mesmo jeito que me arrastou, colocou-me para fora.
Fiquei um bom tempo esperando por Samara do lado de fora, o que foi surpreendente, pois ela sempre foi pontual. Vi o salão ser aberto, o baile começar, o discurso do doutor Andreas Villazza, o anúncio do jantar, e nada de a minha (ex?) melhor amiga chegar.
Estava olhando para um detalhe na construção do hotel, executada pela Novak Engenharia, quando meus olhos foram atraídos para o topo da escadaria. Não é exagero eu dizer que meus olhos foram atraídos, porque foi como se um ímã puxasse minha atenção para aquele ponto.
Engasguei-me com minha própria saliva ao ver Samara. Sim, ela estava linda, mas não foi o vestido branco ou o penteado elaborado que chamou minha atenção, foi ela.
Ela é linda e, por conta da nossa amizade e do receio que tinha de machucá-la, parei de perceber sua beleza e não notei a mulher que se tornou.
Fiquei parado, tomando nota de tudo, como se a estivesse vendo pela primeira vez, sentindo um incômodo por estar olhando-a com lascívia, afinal, era a Samara!
Balancei a cabeça, tentando voltar a pôr os neurônios no lugar, justificando para mim mesmo que isso aconteceu por causa dos anos distantes, mesmo sabendo que isso era pura enganação, pois ela não mudou nada nesses últimos anos.
O que aconteceu, então? Não sei, ainda estou confuso, tentando entender por que fiquei excitado com o perfume dela ou por que meu pau acordou apenas por eu a ter segurado pela cintura a fim de andar com ela até a mesa.
Tive que ficar parado, olhando para os malabares sem vê-los realmente, com cara de paisagem, fingindo que nada estava acontecendo. Eu não queria que ela soubesse que eu estava reagindo daquela forma a ela; certamente ficaria horrorizada. Sempre fomos como irmãos!
Tentei me conter, agradeci por Theodoros e sua companhia já estarem à mesa, fiquei um tempo distraído conversando com meu irmão mais velho, mesmo que isso fosse uma dor no saco. Não sou tão rancoroso quanto o Konstantinos sobre o Theo, apesar de concordar com meu irmão sem noção sobre ele nos ter abandonado nas mãos do louco Nikkós, mas o que Theodoros poderia fazer? Eu mesmo estive nessa situação quando pude sair de casa, mas não tinha como tirar Kyra dele, por isso fiquei.
O DJ que executa as músicas antes do jantar e da banda ao vivo coloca My Immortal, de Evanescence, e é impossível não olhar para Samara.
— Sua música preferida na adolescência — comento com ela.
Samara sorri e balança a cabeça, olhando os casais indo para a pista de dança.
— Tocou na minha formatura...
— Eu sei, eu queria dançar com você, mas você não parecia muito a fim, então fui beber.
Ela arregala os olhos e me encara como se não soubesse do que eu estou falando. Provavelmente nem se lembra, estava nervosa e ficava repetindo o caminho todo dentro do carro que a gente nem deveria ter ido, que era besteira.
Não somos mais adolescentes!
— Quer dançar? — inquiro impulsivamente e estendo a mão para ela.
Samara olha para minha mão por um tempo, mas aceita.
Porra, que loucura!
Ela pega minha mão, e minha vontade é de puxá-la para mim e beijar sua boca. Foda! Não consigo mais refrear meus desejos; sempre consegui com ela, por isso não entendo o que está acontecendo agora. Não é qualquer mulher aqui comigo, indo para a pista de dança para ficar de corpo colado no meu – porra! – é a Samara!
Samara!
Minha amiga de infância!
Quase uma irmã...
MERDA!
— Está tudo bem? — ela me pergunta, e eu tento relaxar, já que estou dançando como antigamente: a um palmo de distância dela.
— Sim, tudo. — Tento dar meu famoso sorriso, mas não rola, então pigarreio. — Estou com sede, calor... acho que é essa decoração toda.
— Pode ser. — Ela desvia os olhos de mim. — Quer voltar para a mesa?
Quero!
— Não, a não ser que você...
— Tudo bem.
Ela se solta de mim no exato momento em que a música muda para um instrumental baixo e as luzes se acendem.
— O jantar. — Aponto para os garçons em fila e os convidados voltando aos seus lugares. — Vamos?
Salvo pelo gongo do cozinheiro!, penso ao ajustar disfarçadamente minha calça para não andar de pau duro e assustar a todos por causa da claridade do salão.
Samara bebe mais uma taça de champanhe, e eu rio, já preocupado. Nunca a vi beber tanto! Sempre foi séria, careta, estudiosa e boa filha. Ela nunca fazia nada de errado, nunca decepcionou os pais, fazia tudo o que eles queriam... quer dizer, tudo menos se afastar de mim.
— Acho que já quero ir — ela comenta de repente. — Vou chamar um Uber...
Levanta-se um pouco tonta, e eu a amparo pela cintura.
— Você quase não comeu, e bebeu muito — falo, e ela levanta uma sobrancelha atrevida e irônica para mim. — Não estou dando lição de moral, mesmo porque não tenho nenhuma, apenas constatei um fato.
Ela ri.
— Você não tem nenhuma moral mesmo! — arrasta a última palavra. — Sempre foi um galinha, essa cara de santo aí só engana as outras!
Gargalho.
— Elas não ficavam enganadas por muito tempo, pode acreditar!
Samara funga, indignada, e fecha os olhos.
— Eu acho que realmente bebi demais.
Olho em volta; o salão já está praticamente vazio, apenas um ou outro convidado conversando em pequenos grupos. Theodoros se despediu, com Valentina grudada em seu pescoço, há mais de uma hora, e Kostas nem jantou conosco à mesa, provavelmente ficou no bar com sua acompanhante.
Inicialmente eu tinha pensando em esperar tudo terminar para acompanhar Kyra até em casa, mas, com Samara no estado em que se encontra e com tudo aqui ainda para ser desmontado, é melhor eu levar minha amiga para casa – aproveitando que moramos no mesmo prédio – e voltar mais tarde para acompanhar minha irmã.
Pego a pequena bolsa que ela trouxe e, ainda abraçado a ela, caminho para a saída.
— Alexios... tudo está rodando...
— Muito natural depois de todo aquele champanhe.
Ela suspira e joga a cabeça para trás.
— Você é um chato, sabia? Não posso entender o que todas aquelas mulheres viam em você!
— Imagino que não possa mesmo — respondo-lhe, sabendo que vai se irritar.
Samara sempre disse que eu respondia politicamente ou me evadia quando sentia que o assunto poderia ir para alguma direção que não me deixaria confortável. Ela tinha razão na maioria das vezes, mas, neste momento, só estou a fim de irritá-la.
— Você é um babaca, Alexios Angelos!
Opa! Falou meu nome todo! Rio de sua irritação bêbada, talvez por estar um tanto alto como ela, mas sóbrio o suficiente para carregá-la em segurança até a calçada.
Não vim de moto ou carro sozinho exatamente por saber que iria beber – principalmente para aguentar sozinho a companhia dos meus irmãos à mesa –, porém previ que a saída do baile estaria um inferno e que seria difícil conseguir um táxi ou um carro de aplicativo que estivesse por perto, por isso deixei o Cris, que me trouxe, de sobreaviso no estacionamento.
Mando mensagem para ele e espero até meu carro aparecer. Abro a porta de trás e coloco sobre o banco uma Samara parcialmente adormecida por cachaça francesa.
— Essa foi nocaute! — Cris ri quando eu entro. — Para onde?
— Para o Castellani. — Ele dá um sorrisinho malicioso e pisca. — Ela é minha vizinha, Cris, sossega.
— Falou, chefinho.
— Para de merda e dirige.
Ele tenta sair da entrada do hotel, mas é praticamente impossível com o número de carros que também tentam deixar o local. Olho para trás, confiro que Samara está mesmo apagada e fecho os olhos, recostando-me contra o assento do carona.
— Foi uma festança, hein? — Cris volta a falar. — Só vi entrar filé, pena que a maioria estava acompanhada.
— Geralmente isso não é problema — comento, mordaz. — Já comi muita mulher no banheiro de recepções como essa enquanto o marido conversava com os amigos e falava de negócios.
Cris gargalha.
— Você nunca valeu nada, Lex!
Não retruco o apelido ridículo com que ele me chama e me faz parecer o vilão do Homem de Aço. É pura perda de tempo ralhar com Cristino, então simplesmente ignoro, cansado, meio zoado e com tesão frustrado.
Ele e eu nos conhecemos há alguns anos, quando visitei um dos prédios da Karamanlis que foram invadidos por movimentos pró-moradias. O homem era motorista de profissão, com anotação em sua carteira de trabalho em várias empresas, que juntou todo o dinheiro que tinha, investiu em um carro e um ponto de táxi, mas foi engolido e enxotado pelas grandes cooperativas.
Assim, quando nos conhecemos, ele estava sem casa, sem carro, sem emprego e com uma enorme dívida, fazendo bicos aqui e ali. Ajudei-o primeiro a conseguir emprego, depois por fim saiu da invasão, e, nesse ínterim, nos tornamos amigos.
Ano passado, quando a filha dele nasceu, quis que eu a apadrinhasse, mas educadamente declinei, explicando que, mesmo honrado, não poderia aceitar, pois sou ateu, e o apadrinhamento de uma criança tem a ver com questões religiosas, tem um sentido específico, e eu não seria a pessoa certa para isso. Ele entendeu, mas a garotinha já me chama de Didi (seu jeito fofo de bebê de chamar seu dindo, mesmo que oficialmente eu não o seja).
Acho que cochilei também até o Castellani, pois, quando me dei conta, já estávamos na garagem. Cris me perguntou se eu queria ajuda com Samara, mas agradeci e o mandei para casa. Ele não trabalha como meu motorista diariamente, mas sim na Karamanlis, transportando quem quer que precise fazer serviços externos. Contudo, toda vez que preciso, chamo-o para ganhar um extra.
Há muito parei de combinar bebida e direção, não por mim, mas por medo de acontecer algum acidente e eu acabar prejudicando outras pessoas.
Chamo o elevador, e somente dentro dele é que a bela adormecida parece voltar a si.
— Alexios... — Samara olha em volta. — Este é o elevador do Castellani?
— Parece que sim — respondo-lhe divertido.
Samara bufa.
— Só desmaiada é que eu aceitaria vir com você na direção nesse estado em que se encontra.
— Estou melhor que você. — Ela se encosta contra o espelho, olhos fechados e um enorme sorriso bêbado no rosto. — Além do mais, viemos com motorista.
— Bom... — Samara fala devagar e lambe os lábios como se estivessem secos. O efeito no meu pau é instantâneo. Sinto meu corpo inteiro acender, minhas mãos formigam de vontade de tocá-la. Sua pele parece brilhar, atraindo-me como uma chama atrai uma mariposa.
Tento me afastar, pensar em outra coisa, mas o espaço reduzido do elevador não ajuda. As paredes parecem se fechar cada vez mais, aproximando-me de Samara, apertando-me contra ela, espremendo meu corpo...
— Alexios... — ela geme meu nome, e eu me espremo mais, fazendo-a grudar contra o espelho. O seu perfume inebria meus pensamentos, a pele, tão quente e macia que a sinto mesmo por baixo do vestido, me enlouquece. Preciso provar o sabor de sua boca, conferir se o hálito quente e um tanto etílico se confirma em sua saliva.
Sim!
Agarro-a com mais força, minha ereção pressionada contra sua barriga, minha boca correndo em seu pescoço. Tudo parece congelar à nossa volta, não existe mais tempo e nem espaço, apenas o vácuo e nós dois dentro dele, em chamas.
Lábios nos lábios. Meus dedos esfregam sua nuca, a pele arrepia, os pelos eriçam, meu corpo treme. É a viagem mais louca que eu já fiz sem ser através de uma substância química entorpecente... não! É química ainda, é uma droga viciante, é tesão!
Devoro sua boca sem nenhum pudor ou impedimento. Ela me acolhe, abre-a para minha exploração, prende meus lábios entre seus dentes e morde com força, despertando com a dor ainda mais meu desejo.
Enfio os dedos no meio do seu penteado, seguro o cabelo com força, e ela retribui o desespero cravando as unhas nos meus ombros.
Estou pronto para fodê-la, minha cabeça já trabalha uma forma de abrir o zíper da calça social, sacar meu pau e buscar o caminho de sua boceta, que, a julgar pela forma com que ela come a minha boca, já está molhada e quente.
Um pigarrear me faz sobressaltar, e eu me afasto dela o mais rápido possível. Um casal de idosos também vestido em black tie entra no elevador no saguão do prédio, sinal de que o elevador subiu e desceu de novo enquanto nós dois quase nos comíamos dentro dele.
Olho para Samara, mas ela não parece constrangida ou assustada, apenas passa a mão pelos lábios e me encara, sua expressão cheia de perguntas e curiosidade.
Caralho, o que eu estou fazendo?! É a Samara, minha amiga, aquela que eu sempre quis manter longe desse meu lado sem vergonha! Puta que pariu!
Espero o casal descer em seu andar e, assim que as portas se fecham, respiro fundo.
— Desculpa, Samara, acho que estou mais bêbado do que imaginei a princípio. — Não tenho como olhá-la, dividido entre o constrangimento e o desejo ainda pulsando na minha calça. — Somos amigos, eu não deveria atacar você dessa forma, me des...
— Para! — sua voz soa magoada, e eu tenho vontade de socar a cabeça contra o espelho. — Não precisa dizer mais...
— Eu prometo que isso não voltará a acontecer. — Finalmente a encaro e fico fodido ao ver sua expressão confusa. Ela parece não ter gostado do que aconteceu, deve estar achando que eu sou um filho da puta aproveitador. — Você é minha amiga, Samara, mesmo depois dessa distância, eu ainda a vejo como se fosse minha irmã e...
— Chega! — ela grita, e as portas do elevador se abrem no seu andar. — Você tem razão, foi um erro e não deve voltar a acontecer!
Ouvir isso é como um balde de água fria, mesmo reconhecendo que é o certo.
— Eu não quero que isso afete novamente a amizade que nós temos e...
Samara sai pisando duro do elevador sem olhar para trás. Minha vontade é de correr atrás dela, voltar a encostá-la em alguma parede e beijá-la novamente até que perca a razão ou eu alivie esse tesão indesejável que estou sentindo.
As portas se fecham, e eu, ao invés de apertar o botão do meu andar, mando o elevador de volta para o térreo e chamo um Uber.
Preciso trepar!
— Essa sua cara de cachorro cagando na chuva é ainda ressaca do baile? — Kyra me pergunta, sentando-se ao meu lado na rede que ela tem em sua varanda. — Quer café?
Resmungo ainda com os olhos fechados:
— Quero paz!
Ela ri.
— Isso está em falta por aqui hoje, passa na semana que vem... — Encaro-a, puto com a piadinha. — O que aconteceu?
Não respondo, meus olhos fixos no topo do prédio do outro lado do parque. Balanço a cabeça, decidindo ser mais covarde do que tenho sido desde a madrugada do dia primeiro de janeiro e fecho os olhos para tentar nem pensar na confusão que arrumei.
— Você não deveria estar trabalhando hoje? Ou eu? — Kyra volta a me importunar, mas continuo mudo. — Mano, você continua o mesmo chato da porra de sempre! Fica aí com essa cara de Maria do Bairro e não abre a porcaria da boca para me contar o que diabos você fez dessa vez!
— Obrigado pela confiança em mim! — retruco irônico.
— Ah, boquinha para ser mal-educado comigo você tem! — Ela me cutuca o ombro, mas depois suspira e deita a cabeça nele. — Você sabe que faz merda, mas que eu estou aqui, disposta a te ouvir e te ajudar a limpar os cagaços. Somos uma dupla, você e eu, sempre fomos e sempre seremos.
— Costumávamos ser um trio... — assim que eu comento, imediatamente me arrependo, pois Kyra salta da rede – quase me derrubando no percurso – e emite um ensurdecedor: “ahá!”.
— Eu sabia que tinha acontecido algo na madrugada do baile! Samara está estranha, esquiva, e isso não é o natural dela. Que merda você aprontou? — Continuo ignorando-a, sem nenhuma disposição para contar sobre o beijo, o amasso e a confusão que isso criou em mim. — Alexios! — Minha irmã começa a pirar por causa do meu silêncio, mas, se me conhece um pouco, já deve imaginar que eu não irei abrir a boca para falar desse assunto. — Está certo! Você e sua maldita boca de siri. — Volta a se sentar, mas dessa vez não se deita em mim. — Alex, ela é nossa amiga, não a magoe, ok? Samara merece ser feliz, e esses anos que passou na Espanha foram ótimos para ela. Eu morria de saudades, mas estava feliz por ela estar realizada trabalhando com o que ama fazer, com um puta gato espanhol lambendo seus pés e — abro os olhos, mas Kyra não se freia — querendo formar família com ela.
Sento-me bruscamente, e Kyra balança.
— Como assim formar família?
— Ele a pediu em casamento. — Surpreendo-me, mas tento não reagir, não demonstrar. — Deu-lhe um lindíssimo e caro anel de diamante e está esperando pelo retorno dela.
Essa informação, apesar de ter me pegado de surpresa, não é nenhuma novidade. Sempre achei que algum homem de sorte iria conquistar o coração da minha amiga de infância e tê-la para sempre. Samara é a pessoa mais leal que eu conheço, mais incrível, merece muito ser feliz ao lado de alguém que valha a pena.
— Ela não estava usando anel... — penso em voz alta.
— Ainda não falou com os pais dela... — Kyra olha fundo nos meus olhos, procurando qualquer reação minha, mas sei que não irá encontrar nenhuma. Há muito aprendi a sentir sem demonstrar ou a mostrar apenas o que eu quero que os outros vejam. — Vocês não conversaram ontem?
— Acho que ainda não conseguimos estreitar os laços de amizade novamente.
— Hum... — Ela olha para seu relógio no pulso e suspira. — Preciso ir para o trabalho, vai ficar aqui? — Assinto. — Eu tenho a sensação de que você está se escondendo, só não faço ideia do quê.
Ela entra no apartamento, e novamente olho para o alto do Castellani, do outro lado do parque. Daqui do prédio onde ela mora, consigo ver o heliponto no telhado, algumas janelas da cobertura onde Cadu mora, o andar debaixo, onde Bernardo Novak reside, e uma pontinha da minha varanda. O apartamento de Samara fica uns andares abaixo do meu, então não tenho como vê-lo, mas somente por saber que ela está lá dentro, sinto vontade de ficar aqui, bem longe.
Não me entendam mal, não estou fazendo isso porque não quero que ela se aproxime de mim, pelo contrário, estou aqui, exilado como um covarde no apartamento da minha irmã mais nova, porque, se pisar no Castellani, sei que não conseguirei me manter distante dela.
Mesmo depois da maratona de sexo que fiz com uma mulher com quem já havia saído antes das festas de final de ano, não tenho segurança de estar no mesmo ambiente que Samara e me controlar para não a pressionar contra alguma parede e fodê-la sem ao menos dizer um cumprimento.
Definitivamente não vou fazer isso, não com ela!
Muito menos depois de saber que há alguém que a merece, que está à altura dela, esperando sua volta.
Rio de mim ao pensar que estou aqui, evitando-a, quando na verdade ela é quem deve estar querendo ficar a quilômetros de mim. Talvez esteja até indignada e ofendida pelo modo com que a toquei e beijei sem nenhum aviso, como se fôssemos um casal qualquer que se encontrou na balada para trepar, e não duas pessoas que são amigas desde que se entendem por gente.
Não entendo por que perdi o controle do tesão que sempre reprimi, mas me conheço o suficiente para saber que ele não passou. Raramente sinto aquela química com alguém. Era como se meu corpo estivesse sendo atraído, como se algo nela estivesse provocando reações em mim que eu não conseguia controlar. Foi animal, carnal, a famosa atração de pele que muita gente procura, mas pouca tem.
E eu tive justamente com minha melhor amiga!
Kyra volta a aparecer no meu campo de visão, agora com os belíssimos cabelos escuros, longos e fartos soltos, o rosto maquiado e uma roupa de deixar qualquer homem lobotomizado.
— Esse bode aí está foda para passar, hein? — comenta antes de se abaixar para pegar um guarda-chuva no móvel ao lado da rede. — Têm umas sobrinhas do baile na geladeira, cerveja – por favor, não tome todas, mas se tomar, as reponha –, e meu chuveiro tem muita pressão e água fresca. — Pisca para mim, e eu franzo a testa, sem entender. — Você está meio rançoso.
— Vai se ferrar, Kyra — ralho com ela, mas rio.
Ela se aproxima e beija minha testa, e isso, sim, arranca um sorriso sincero meu. Gosto que ela confie em mim o suficiente para me tocar, para recostar-se no meu ombro ou mesmo ficar abraçada, pois sei que ela não é assim com todos, principalmente com homens em geral.
— Fica bem e ouça meu conselho... — Ela anda até a porta antes de complementar: — Tome um banho, você cheira a álcool e a perfume vagabundo.
Levanto o dedo do meio para ela e a escuto ir gargalhando apartamento adentro até a porta de entrada bater. É, eu bebi bastante, sim, devo estar exalando álcool pelos poros, e o perfume barato se impregnou em minha roupa ontem, quando a recoloquei depois de mais de 12 horas nu, e a mulher me abraçou toda perfumada.
Saí do apartamento dela e vim direto para o da Kyra, torcendo para que minha irmã estivesse em casa e sozinha a fim de que eu pudesse cair aqui nesta rede onde estou e tentar pôr a cabeça certa no controle do meu corpo.
O telefone fixo toca alto, afastando meus pensamentos, e aproveito para tomar o banho aconselhado pela minha irmã viciada em limpeza. Entro na sala desabotoando a camisa branca que usei com o smoking – pois é, ainda estou com a mesma roupa do Ano Novo em pleno segundo dia do ano – e noto que não faço ideia de onde estão o paletó e a gravata-borboleta.
A primeira foto que vejo ao entrar no quarto de Kyra é uma que tiramos juntos – Samara, ela e eu – na formatura da minha irmã. Eu fui o par dela, então estava de smoking, e as duas, de vestido longo, maquiagem e penteado. Caminho até o aparador e pego o porta-retratos, focando em Samara e me perguntando como eu conseguia me manter longe do mulherão ao meu lado. Era uma beleza diferente da minha irmã, Samara tem o olhar doce, sorriso largo, nenhum mistério, seu rosto expressa suas emoções, sua sinceridade.
CONTINUA
Sua pergunta me deixa paralisada, completamente sem condições para lhe responder. Por que ele me procuraria?! Porque somos amigos desde que nasci? Porque estive ao lado dele em todos os momentos? Porque ele tomou um porre, apareceu lá em casa, chorou no meu ombro, beijou-me e depois fingiu que nada tinha acontecido?
Respiro fundo para controlar o volume da voz e não gritar que ele é um idiota, mas, antes que eu abra a boca, Kyra aparece esbaforida com um telefone na mão.
— Ei, Malinha, você está com seu telefone na bolsa? — Alexios olha para a irmã, puto por ela estar nos interrompendo, e eu franzo a testa, sem entender a pergunta dela. — Seu celular! — Ela bufa... — Seu irmão acaba de ligar para o meu telefone. — E balança o aparelho.
Arregalo os olhos, meu coração dispara, e logo penso em mamãe, que vi apenas um pouco ontem, quando fui buscar o Godofredo. Pego o telefone e confiro as ligações perdidas. Noto Alexios se afastando, mas não me importo; ele continua o mesmo egoísta de sempre.
Samara Schneider está de volta!
Mastigo mais um pedaço do pernil que Kyra serviu como opção de carne na ceia de Natal e não consigo deixar de pensar na volta daquela que foi minha grande amiga e companheira.
Até hoje não entendo o que aconteceu para que ela tomasse a decisão de ir estudar na Espanha sem falar nada comigo. Claro, eu sabia que tinha a possibilidade, afinal, havia anos o pai dela pressionava por isso, para ela ir estudar arquitetura clássica na terra de Gaudí14. No entanto, para minha total surpresa, em vez de ir morar em Barcelona, Samara foi para Madri.
Eu, que até então me considerava seu melhor amigo, só fiquei sabendo desses detalhes todos porque Kyra me contou depois que fui atrás dela para saber o paradeiro de Samara.
Pego a taça com água para ajudar a engolir a comida, pois estou com um aperto na garganta desde que a vi. Eu tinha acabado de sair da sala de reuniões de Kyra depois de um ménage espetacular com Valéria e Priscila, mais animado para encarar a noite especial, sem imaginar a grande surpresa que encontraria no salão e que quase me fez tropeçar em meus próprios pés.
Assim que meus olhos bateram nela, assustei-me, pois a danada da Kyra não havia me contado que Samara tinha voltado. Tentei um sorriso e uma aproximação amigável, como se ela não tivesse me abandonado por longos três anos sem nenhuma notícia. Ela está diferente, ainda mais bonita do que eu me lembro, mas tentei não reparar muito e ser o amigo de sempre.
Nada disso adiantou, pois, ao que parece, Samara desejou que eu corresse atrás dela, que a procurasse e reestabelecesse contato. Como eu poderia imaginar algo assim? Não sou adivinho! Ela some sem nenhum motivo e ainda se sente no direito de ficar puta por eu não ter tentado contato?
Quem entende a cabeça das mulheres?!
— Sua amiga foi embora cedo — Millos comenta ao meu lado. — Será que houve algum problema com a mãe dela?
Olho para meu primo, sentado ao meu lado à mesa, e ele entende meu total desconhecimento do assunto.
— A mãe dela, dona Ana Cohen, está em tratamento contra um linfoma. — Millos bebe mais chope. — Você não sabe nada sobre a vida da sua amiga?
— E você? Como sabe?
O filho da puta apenas dá de ombros, evasivo como sempre, adorando estar sempre um passo à frente de todos. Millos é um sujeito estranho. É o único que consegue interagir com todos nós sem tomar partido e sem revelar nada da vida pessoal de ninguém, nem mesmo da sua. Somos amigos, nos damos bem, mas eu sei pouco sobre ele, sobre suas atividades, e o máximo que conheço de sua vida pessoal é que tem um passado fodido como o meu, frequenta alguns clubes de sexo, tem uma amiga que por sinal é uma gostosa do caralho – mas nunca me deu mole, infelizmente – e só.
Como profissional, o homem é uma verdadeira coruja! Quieto, observador, parece que consegue olhar em 360 graus, além de ser um caçador de informações inigualável. Não há nada que passe despercebido por ele, e o que expõe ou o que fala, tenho certeza de que é o mínimo do que sabe. Por isso, todo cuidado é pouco quando o assunto é Millos Karamanlis, porque o desgraçado é um manipulador de mão cheia!
— Eu não sabia que dona Ana está doente, não vejo os pais de Samara há anos — contesto-o. — Espero que nada grave tenha ocorrido.
— Não vai ligar para saber? — Millos volta a questionar.
Franzo as sobrancelhas, encarando-o, tentando entender o motivo pelo qual ele está tão interessado no assunto.
— Não — respondo seco e volto a comer, mesmo com o questionamento dele na cabeça. Para mim o assunto acabou! Samara já demonstrou que não quer papo comigo por algum motivo, e, mesmo chateado com isso, devo respeitar a decisão dela. Millos é um manipulador e sabe que esse é um assunto que me atinge diretamente, por isso tocou nele.
Não preciso ligar para Samara, como não liguei para ela durante todo o tempo em que esteve fora, mas isso não quer dizer que eu não queira saber o que está acontecendo. Kyra sempre foi minha fonte de informações sobre ela e, caso tenha que ser assim, continuará sendo.
Termino minha refeição, fico mais algum tempo com Kyra e seus convidados, brindo ao sucesso do negócio dela e logo depois vou embora. Tinha pretensão de ir para casa, mas, no meio do caminho, uma mulher com quem eu já saí algumas vezes me manda uma mensagem dizendo que está na cidade, e vou encontrá-la.
Dia 26 de dezembro, pior dia de trabalho do mundo, certamente! Rio ao passar por mais dois engenheiros com cara de ressaca ou, talvez, de quem comeu demais e agora passa mal do estômago.
— Melhor colocar a lixeira perto! — passo, sacaneando meu colega de trabalho, Pedro, engenheiro químico. — Se emporcalhar a sala, vai ter que limpar você mesmo.
— Porra, Alexios, fala mais baixo! — Ele põe a mão na cabeça.
Gargalho e me sento à minha mesa, lotada de projetos, planilhas e minha coleção de lápis. É, eu coleciono lápis! Cada um tem a coleção que lhe cabe, não é?
Ligo o computador, olho para meu caderno de tarefas e arregalo os olhos ao ver um nome que eu não imaginava rever anotado lá – por outra pessoa.
— Ethernium? — questiono olhando para o Pedro.
— Sim! Acabamos de saber, mas o CEO lá da Karamanlis vai querer conversar com você, certamente.
Bufo ao pensar em subir até o Olimpo para conversar com Theodoros, sem esquecer as discussões que tivemos nas últimas semanas por conta de seu egocentrismo e insensibilidade com os funcionários da casa.
Sua mania de pensar que é Deus, inabalável, inatingível e perfeito me irrita, principalmente porque sei que ele não é nada disso, apenas a porra de um filhinho de vovô mimado, que sempre achou que podia fazer qualquer coisa que quisesse sem pensar nas consequências, que o velho grego limparia suas cagadas.
Admito, o velhote sempre fez tudo para seu neto querido. Entretanto, não pôde limpar a merda que Theodoros deixou para trás, apenas jogou-a para debaixo do tapete, limpou a consciência do seu netinho querido, que seguiu a vida como se nada tivesse feito e deixou o resto se fodendo sem se importar o mínimo.
Theo é arrogante, e eu não tenho saco para lidar com gente assim.
Ouço passos, um poc-poc característico de saltos, e em seguida a voz de Lia, outra engenheira que trabalha na minha equipe direta.
— Bom dia! — sua voz soa animada. — Ah... sem Papai Noel de chocolate este ano! — ela resmunga, e eu a vejo procurando sobre sua mesa. — Poxa, Alex, você já foi mais generoso!
— Eu?! — Começo a rir. — Você realmente me imagina comprando e colocando chocolate em formato de Papai Noel nas mesas dos outros? — Ela faz careta e nega. — Eu achava que era você!
— Por quê? Só porque sou mulher?
Rolo os olhos.
— Não, porra, porque você é viciada em chocolate!
— Ele está certo, Lia! — Pedro se mete na conversa em minha defesa. — Eu também achava que era você por causa disso.
Ela se senta frustrada por não ter encontrado o presente do “Papai Noel” misterioso da Karamanlis.
— Bom, não sou eu, e eu contava com isso! Não falha por anos! — Olha em volta para as outras estações de trabalho, ainda vazias sem os profissionais. — Ninguém recebeu?
Nego, e Pedro faz o mesmo.
— Estranho...
— Coisas estranhas têm acontecido por aqui — digo e lhe estendo meu caderno com a anotação da Ethernium.
— O quê? De novo? — Ela geme. — Esses caras da Ethernium são uns malas! Sério, Alexios, eu não vou aguentar gracinhas pra o meu lado de novo não!
— Eu disse que você devia ter respondido a ele. — Dou de ombros. — Mas agora sabe que tem meu total apoio! Se alguém da equipe deles fizer piadas machistas de novo, responda.
— Quem é o machista? Que vou com você dar uma surra nele. — Eliane chega já mostrando as garras – que garras! Minhas costas sofreram com elas – e se senta em sua estação. — Bom dia, feliz Natal, foi tudo ótimo! Agora, silêncio, porque ainda estou agarrada a um cálculo estrutural que não tem me deixado dormir. Obrigada. De nada.
Pedro começa a rir, e Lia só balança a cabeça. Eliane é assim, direta e sem rodeios, por isso mesmo achei-a ideal para o trabalho pelo qual é responsável. Nós nos conhecemos em uma balada, transamos, depois voltamos a nos encontrar na entrevista dela aqui na K-Eng tempos depois. Nunca mais voltamos a trepar, mas conseguimos construir uma relação de trabalho quase perfeita. Sei que posso contar com ela para qualquer coisa aqui dentro.
Tenho mais duas pessoas na minha equipe: Evandro e Michel, mas os dois estão de férias e ainda não retornaram. Não é normal dois membros da mesma equipe saírem em férias juntos, mas, como eles são casados, a lei lhes garante esse direito.
A K-Eng não é formada apenas pela minha equipe de engenheiros em suas especialidades, a verdade é que cada um aqui gere suas próprias divisões. O Pedro, por exemplo, é engenheiro químico, e na divisão dele estão químicos industriais, técnicos em química e outros engenheiros dessa área. Já a Lia é engenheira ambiental, e, dentro de sua divisão, há biólogos, gestores ambientais e engenheiros sanitaristas. A Eliana trabalha com projetos, e ela coordena outros engenheiros, arquitetos e projetistas. O Michel faz toda a parte de planilhas e medições, e o Evandro é responsável pelas operações, é quem lida com empreiteiros, clientes e atua também como fiscalizador de obras.
Além do corpo técnico da K-Eng, a empresa, que é uma subsidiária da Karamanlis, ainda tem setores administrativos e financeiros, e eu, como CEO dessa bagaça aqui, sou quem comanda essas áreas.
O único setor que dividimos com a Karamanlis, infelizmente, é o jurídico, por isso aturo muito a prepotência inglesa do Konstantinos e seu humor ácido. Geralmente não tenho paciência com ele, zoo com sua cara ou apenas o ignoro. Ele não é bem quisto por ninguém da minha equipe, principalmente pelas mulheres.
— Por falar em machismo... — Lia volta a falar. — Será que a Kika não vai voltar mais não?
Dou uma risada por ela ter entrado no assunto justamente quando eu pensava no meu irmão machista.
— Está um silêncio total na Karamanlis — Eliana se pronuncia. — Dá até medo de andar pelos corredores, clima pesadão!
— A Kika era incrível, né? Gata, alto-astral, competente — Pedro lamenta. — Uma pena que tenha perdido a cabeça e tenha sido mandada embora...
— Opa! — Eliana o interrompe. — Ela se demitiu!
— Enfim, está desempregada depois de ter ganhado uma puta promoção para a gerência.
— Eu a preferia à Malu Ruschel. — Lia treme toda. — Aquela mulher congelava até meu sangue só de estar perto dela.
Definitivamente, não o meu!, penso ao me lembrar de Malu Ruschel, a ex-gerente dos hunters da Karamanlis. Malu era bonita, tinha classe e aquele seu jeito focado me enchia de tesão. Uma pena ter ido morar no fim do mundo!
Já com a Kika, nunca senti essa atração, talvez por sempre tê-la achado tão receptiva, maravilhosa com seu jeito espontâneo, que logo gostei dela como se fosse uma amiga de longa data. Tenho muito apreço por ela e lamento que tenha saído da empresa.
Os engenheiros começam a conversar, mas o assunto não me interessa o mínimo, então coloco meus fones de ouvido – a voz forte e rasgada da Janis Joplin soa bem alta – e volto a mexer no projeto em que estava trabalhando.
— Ei, moleque! — Millos me chama assim que para sua moto. — Você não sabe curtir um passeio, puta que pariu!
Ele desce da motocicleta, tira o capacete e a jaqueta e se senta à mesa do bar ao meu lado. Bebo minha água sem responder, porque a única coisa que eu poderia lhe falar é que não sou um velho para ficar andando nessas motos de colecionador há 80 km por hora.
Estou aqui esperando-o há pelo menos 20 minutos, e isso porque saímos juntos de São Paulo em direção ao Guarujá, em uma viagem não programada e cujo motivo, sinceramente, nem entendi. Ele apenas apareceu lá na K-Eng e me chamou para andar de moto com ele, e eu topei.
— Qual é o propósito disso? — resolvo perguntar sem rodeios.
— Do quê?
Millos agradece à garçonete que lhe entrega um coco verde com um canudo e nem percebe a moça comendo-o com os olhos (ou talvez só esteja assustada com suas tatuagens, que cobrem os braços, pescoço e peito).
— Desse “passeio”. A gente se viu há alguns dias na ceia da Kyra, e você não comentou nada sobre isso.
— Nada de mais! — Ele bebe a água de coco. — Vou viajar no Ano Novo, ficar um tempo fora e queria passar um tempo contigo. Já jantei com seus irmãos, mas como você é todo amalucado para comer, achei que uma volta de moto iria cair bem, mas esqueci que você é louco nisso também.
— Você está ficando velho, Millos, sinto lhe informar — debocho. — Acha mesmo que, com essa potência italiana nas mãos, eu iria ficar molengando contigo na estrada?
— Não é molengar, é curtir a viagem, a paisagem...
— Ah, não, você curte essas coisas paradas, não eu. Meditação, ioga, essas coisas todas aí que você faz, tô fora! Não sei ir devagar, Millos, em nada!
— Deveria... talvez assim conseguisse agradar às mulheres. — Ele pisca e tenta disfarçar a troça bebendo mais de sua água.
Eu gargalho.
— Pode ter certeza, elas não reclamam da minha rapidez. Não basta saber correr, tem que saber tirar o máximo proveito de uma máquina, fazê-la dar tudo de si, e isso eu faço.
— Está falando das motos ou das mulheres?
— Tem diferença?
Ele ri novamente.
— Você é um moleque, não sabe nada ainda!
— Falou aquele que nomeia suas motos com nomes femininos!
Nós dois rimos juntos, e o clima fica descontraído.
A verdade é que ele e eu temos muito em comum. Ambos adoramos motocicletas, rock e carne. Apesar de sua onda “zen budista”, Millos nunca conseguiu se livrar da proteína animal e das comidas pesadas que adora preparar para acompanhar suas cervejas artesanais.
Ah, esse é outro ponto em comum: adoramos cerveja! Ele fabrica, eu apenas bebo, mas tenho tanto conhecimento quanto ele, e esse é um dos pontos sobre o que mais conversamos quando estamos juntos, geralmente comendo alguma carne e ouvindo rock.
Raramente saímos juntos de moto, exatamente por ele fazer o estilo tiozão que gosta de andar de Harley, apreciando paisagens, e eu e minha Ducati Multistrada 1260 não temos saco para andar quase parando não.
Embora eu reconheça que tenho que agradecer a esse tiozão por ter minha moto dos sonhos, a que uso para correr nas competições. A Ducati só disponibilizou três unidades da 1299 Superleggera para venda no Brasil, há quase dois anos, e um dos amigos do Millos foi quem comprou uma delas, e, quando ele decidiu vendê-la, meu primo prontamente me avisou, e não pensei duas vezes.
Eu gosto das italianas mais do que das americanas ou japonesas, pelo menos para as motos; não sou tão seletivo assim com mulheres.
— Baile dos Villazzas...
— Ah, Millos, não fode com esse assunto de novo! — reclamo, entendendo agora o motivo do encontro.
— Alexios, preciso de você lá.
Rio.
— Mano, aqueles dois não são crianças, e, muito menos, sou a babá deles! Eles não precisam que eu vá para manter a ordem e o bom nome da...
— Kyra me mostrou o projeto do baile, ela parece bem animada com sua primeira grande produção sem a intervenção dos Karamanlis.
Porra! Ele vai pegar pesado!
— Você é muito filho da puta, sabia?
Millos dá de ombros e bebe mais água.
— Acho que vocês deveriam ir para apoiá-la, acima de todos, você! Será importante para ela, além disso... acho que ela está sem acompanhante, porque deu com o pé na bunda do último idiota que estava comendo.
— Porra, Millos! — Xingo-o. — É a minha irmã, porra!
— E o quê? Só por isso ela não trepa?
— Vai se foder! — Levanto-me da mesa puto e pego o capacete.
— Alexios... — ele me chama, mas não dou atenção, já montando na moto para ir o mais longe possível dele.
Antes que vocês me julguem como machista ou irmão ciumento, adianto logo que não se trata disso. Cada um lida com a merda dentro de si de um jeito, e esse é o jeito da minha irmã de lidar com seu passado. Respeito isso, mas não quer dizer que não me doa ou mesmo que eu não me sinta responsável por ela ser assim.
Eu gostaria que as coisas fossem diferentes, esforcei-me o máximo que pude para que ela fosse menos fodida do que todos nós, mas, a cada novo relacionamento seu destruído, sinto-me um fracassado, o que me dói profundamente.
Piloto rápido, passando pelos radares sem me importar com as multas, sentindo o vento forte bater em mim como se pudesse deixar todas as marcas do meu corpo e da minha alma para trás. Contudo, não posso. Ele fodeu a minha vida várias vezes, não só com as coisas que fez contra mim, mas principalmente por eu ver que também destruiu minha irmã.
— Como ela está, Dani? — pergunto ao meu irmão assim que ele entra na cozinha da casa dos meus pais, onde tomo meu desjejum com a Cida.
— Dormiu bem. — Ele beija minha cabeça. — Mas foi um susto essa febre alta assim do nada.
Ele se senta, visivelmente cansado, e Cida logo lhe serve uma xícara de café. Acostumados demais a dividir as refeições com Cida desde que nascemos, sempre tomamos nosso café juntos. Ela está em nossa casa há tanto tempo que não sei como seria minha vida sem sua presença, e certamente Daniel sente o mesmo.
Minha mãe, Ana Cohen, sempre foi muito ocupada na direção do sistema de ensino criado pelos meus avós, franqueado e distribuído por colégios do Brasil todo. Já meu pai, Benjamin, vem de uma longa linhagem de comerciantes e industriais, como bem acentua nosso sobrenome, que é uma derivação da profissão de algum ascendente que foi alfaiate.
Os Schneiders possuem lojas, fábricas ou empresas que prestam serviços, como era o nosso caso. Meu avô não tinha formação quando fundou sua primeira fábrica de móveis, porém eram um marceneiro muito habilidoso, e meu pai aprendeu com ele. Os negócios iam bem, então papai foi estudar arquitetura e, por fim, design, elevando o nível dos negócios familiares, fazendo dos móveis com nosso sobrenome sinônimos de classe e riqueza.
Há 10 anos meu irmão está à frente dos negócios, desde que papai teve seu primeiro infarto – ele já teve outro e fez duas pontes de safena. Daniel é um administrador maravilhoso, fechou com grandes empresas, e hoje os móveis Schneider não enfeitam mais as coberturas e mansões luxuosas de São Paulo, tão somente redes enormes de hospitais, clínicas, lojas de alto luxo e restaurantes em todo o país.
Meu irmão é incrível! Nós dois somos muito amigos, sempre fomos. O único ponto tenso entre nós era Alexios Karamanlis. Daniel é 10 anos mais velho que eu, um quarentão, como eu costumo provocá-lo, e sempre achou Alex uma péssima companhia. Bom, ele realmente era, mas não para mim. Eu sabia das loucuras que Alexios aprontava, seu envolvimento com drogas, farras, lutas valendo dinheiro e rachas pela cidade. Ele não foi um adolescente fácil, mas sempre me tratou como se ainda conservasse o menino que eu conheci. Sempre me deu conselhos para ficar longe de tudo aquilo que ele mesmo fazia, nossa amizade sempre foi separada das outras companhias dele.
Ainda assim, Dani nunca gostou de Alexios, em compensação, tornou-se um dos grandes amigos de Millos Karamanlis, primo do Alex, mesmo que eu não consiga entender o que, de fato, o executivo tatuado e meu irmão tenham em comum.
— Desculpe-me por tê-la tirado da festa da Kyra — meu irmão volta a falar, afastando-me dos pensamentos. — Eu liguei para o doutor Henrique e já ia pedir uma ambulância, quando fiquei com medo de acontecer algo e você não estar aqui.
Pego sua mão.
— Eu sei. Foi um susto!
Retornei as ligações dele assim que Kyra me alertou, e, quando Dani atendeu, o doutor já havia chegado e ministrado medicamentos. O médico preferiu que ela continuasse em casa por conta de sua baixa imunidade, mas ficou acompanhando durante boa parte da madrugada.
— Ela convulsionou, e eu achei que fosse... — Ele me olha, seus olhos acinzentados tristes. — Eu quase perdi o papai tempos atrás, lembra? — Assinto. — Eu estava com ele quando teve o infarto, e agora quase...
— Dani, não pensa nisso! — Abraço-o. — Você é o melhor filho e irmão do mundo, sempre ao lado deles, ao meu lado. Agora estou aqui também e vou ajudar no que for preciso.
— Eu sei, Samara. Essa fase do tratamento é a mais complicada, por causa da baixa imunidade, mas, quando ela estabiliza, é a mamãe que sempre conhecemos e amamos.
— E a Bianca? — pergunto-lhe sobre sua noiva. — Como vocês estão, faltando pouco para o grande dia?
Ele ri sem jeito.
— Você sabe que não tem essa de grande dia, não? Nós vamos ao cartório, assinaremos os papéis e pronto. — Dá de ombros. — Vida que segue.
Cruzo os braços. Não gosto nada desse conformismo estranho.
— Tem certeza disso, Dani?
Ele olha para a Cida.
— Vou fazer 41 anos, pirralha. 15 anos de relacionamento com ela, então...
— É isso? — Cida balança a cabeça negativamente. — Viu? A Cida não concorda também! E não é que você seja já um solteirão arrastando chinelos, Dani! Você é lindo!
— Não é sobre isso, Samara.
— Ele quer ter uma família, menina. — Arregalo os olhos. — Seu pai vive mais entretido na fazenda do que aqui, sua mãe, antes de adoecer, não parava quieta, sempre viajando com as amigas e...
— Eu na Espanha.
Daniel termina o café sem me encarar, sem falar nada e se levanta.
— Vou voltar para o quarto, render um pouco a enfermeira.
— Também vou, Dani!
Seguimos juntos, mudos, pelo corredor. Meu irmão é a pessoa mais discreta do mundo, completamente o oposto de outros filhos de grandes empresários desta cidade. Nunca gostou de sair em revistas de fofoca, nunca namorou modelos, atrizes ou socialites. Na adolescência, namorou uma garota da escola, depois teve duas ou três namoradas na faculdade e, por fim, conheceu a Bianca em um torneio de polo – esporte em que ele é fera. Desde então engataram nesse relacionamento xoxo, totalmente ioiô – eles já terminaram umas 30 vezes ao longo dos anos – e que agora vai se tornar um casamento meia-boca.
— Você merece mais, Dani — solto sem conseguir frear minha língua, e ele ri.
— Você diz isso porque é minha irmã, pirralha. — Ele tenta bagunçar meus cabelos como quando eu era criança. — Bianca pode não ser o grande amor da minha vida, mas é uma boa amiga e companheira.
— Isso é loucura! Você merece amar, ser amado, estar apaixonado...
— Como você esteve a vida toda por aquele doidivanas? — Paro em seco no corredor e arregalo os olhos. — Qual é, Samara, você achava que eu não sabia? Estava escrito na sua testa e em todos os seus cadernos, com direito a corações rosa! Você teve um peixe daqueles que ficam sozinhos no aquário...
— Um beta. — Começo a rir, sabendo exatamente do que ele está lembrando.
— Pois bem, você teve um beta e o nomeou...
— Beto Schneider Karamanlis — falamos juntos, e eu começo a rir.
— Sim! E como você nunca me deu indícios de ter uma queda pela Kyra, eu supus que era o outro Karamanlis. — Daniel me olha sério. — Por que Diego não veio contigo?
A pergunta é tão inesperada que demoro a processar que ele está falando do meu namorado.
— Não sei quanto tempo vou ficar, então...
— Besteira! Ele poderia passar uns dias aqui contigo, os times estão todos em recesso até a primeira semana de janeiro. — Suspiro e olho para o chão. — Não estraga sua vida, Alex não vale a pena.
Assinto, lembrando-me de tudo o que aconteceu noite passada. Alexios continua igual, vendo e querendo todas as mulheres ao seu redor, menos eu. Sempre fui a amiga, quase uma irmã, menos uma mulher, e, como acabei de perceber, todos sabem da minha paixão por ele, então, Alexios deve simplesmente ignorá-la.
Por muito tempo eu achei que ele não soubesse. Ficava fantasiando que, no dia em que eu tomasse coragem e lhe contasse, Alexios iria se declarar também. Iludida! É isso que eu era, porque, depois do beijo que trocamos, era impossível que ele não soubesse.
Respiro fundo, resignada. Alexios sabe, só não se importa e nem sente o mesmo!
Meu irmão bate levemente na porta do quarto de mamãe e em seguida entra. Sigo-o pelo enorme ambiente, que me traz tantas lembranças alegres dos momentos que dividi com ela, deitada em sua cama, contando sobre meus sonhos.
— Samara Esther! — Mamãe estende os braços, sentada na cama, recostada nos travesseiros. — Trouxe Godofredo de volta?
Rio e concordo.
— Trouxe, está lá embaixo no jardim. — Beijo sua testa. — Como está se sentindo hoje?
— Eu estou bem! — Ela dá uma olhada de esguelha para meu irmão. — Ele é superprotetor, sabe? Exagerado!
Daniel permanece alheio às críticas, conversando com a enfermeira.
— Mamãe, ele não é, e a senhora sabe! — Ana suspira. — A senhora está em tratamento, precisa de cuidados, e, com o papai isolado na fazenda, Daniel é que estava responsável por acompanhá-la em tudo, mas agora estou aqui também!
— Dois superprotetores! — ela finge reclamar, mas sorri satisfeita. — Seu pai quis vir para cá para ficar comigo, mas achei melhor que ficasse por lá. Você sabe como ele é, não me daria um minuto de paz.
Eu rio, mas sou obrigada a concordar. Meus pais são incríveis, mas têm uma relação um tanto estranha desde que Daniel e eu saímos de casa para viver nossas vidas. Passaram a viver cada um no seu espaço, com suas coisas. Dão-se incrivelmente bem, mas cada um com sua vida.
É verdade que eles não eram nada parecidos. Mamãe sempre foi uma mulher de negócios, cheia de trabalho, viagens e reuniões, porém extremamente carinhosa com os filhos. Papai é um homem mais reservado em seus sentimentos, embora seja um artista.
Olho para um dos móveis da minha mãe, e a escultura em madeira em cima dele me faz sorrir. Nela há um casal e um garotinho com a mão na enorme barriga da mulher. Papai deu vida à imagem de uma foto que tiraram quando mamãe estava grávida de mim, e a peça ficou tão perfeita que dá para sentir a alegria de todos.
Quando eu era criança, tinha coleções das esculturas dele: cavalos, cães, gatos, pássaros. A que eu mais gostava era a do Pinóquio, que ganhei quando comecei a ler e andava para baixo e para cima com o livro do boneco de madeira que queria ser menino de verdade.
— Você vai até lá visitá-lo? — minha mãe pergunta, talvez adivinhando que estou pensando nele, por estar olhando a estátua.
— Por agora não. Tentei falar com ele quando cheguei e ontem também, mas não consegui. — Dou de ombros. — Papai se isola quando quer, a senhora sabe.
— O doutor Henrique acabou de dizer que os resultados dos exames ficaram prontos e que ele virá assim que puder para conversar conosco. — Daniel senta-se ao meu lado na cama. — É bom ter Samara aqui perto, não é?
Ele me abraça pelos ombros.
— Eu também estou gostando de estar de volta.
Mal termino a frase, e meu telefone toca. A foto de Kyra tentando beijar Godofredo, e ele de boca aberta para mordê-la aparece na tela, e minha mãe sorri.
— Eu estou esperando pela visita dessa filha emprestada desnaturada. — Ana reclama. — Pode dizer a ela que não vai comer mais minha paella!
— Pode deixar! — Levanto-me da cama e vou para um canto do quarto. — Oi, Kyra! — atendo o telefone.
— Quero notícias! Mal consegui dormir essa noite, deixei mil mensagens no seu telefone. Como está sua mãe?
— Está bem, mas ameaçou greve de paella se você não vier visitá-la em breve.
— Está bem mesmo? — ouço preocupação na voz da minha amiga, e meu coração se aperta, pois sei que minha mãe foi o mais próximo que Kyra teve de figura materna. — Malinha?
— Está, sim. O médico dela explicou que, por conta da medicação, ela ficaria suscetível a doenças, a imunidade está baixa, então qualquer resfriado ataca com força.
Kyra suspira ao telefone, e eu abro um sorriso ao ver o quanto minha amiga durona é, na verdade, tão sensível quanto eu.
— Que bom! Fico feliz em ouvir isso e mais aliviada para te fazer um convite.
Faço careta, já prevendo que ela vai me meter em algum evento seu de final de ano, vestida de garçonete.
— O que você está armando, Kyra?
— Nada! — ela logo se defende, indignada. — Eu só queria companhia! Na véspera do Ano Novo acontecerá o Baile Branco e Preto dos Villazzas, e, como eu estou sem nenhum boy no momento, você podia ser meu par, o que acha?
— Kyra! — Rio. — Um baile? Sério?
— Baile? — mamãe logo se mete na conversa e pergunta lá da cama. — Por acaso é o baile dos Villazzas?
Fodeu! Minha mãe sempre amou bailes e conheceu a matriarca dos Villazzas tempos atrás, através de sua amiga, Cecília Novak. Certamente ela adorará a novidade, achará moderno eu ir acompanhando minha amiga, e eu não terei escapatória.
— É, mamãe, eu vou com Kyra — respondo resignada.
— Eu sabia! — Minha amiga ri ao telefone. — O traje branco é obrigatório para mulheres, então, abuse de cores em outros locais!
— Eu vou te matar, Kyra Karamanlis! — sussurro para que somente ela escute.
— Depois do baile; antes, quero usufruir de tudo o que planejei! Vai ser o evento mais incrível que você já viu!
Relaxo, percebendo que ela realmente está feliz e confiante.
— Tenho certeza disso, Kyra!
Nós nos despedimos, mas não retorno imediatamente para a cama, ao lado da minha mãe e do meu irmão, fico pensando em como é bom estar de volta. Realmente me sinto em casa aqui, com as pessoas que eu amo, ainda que tenha feito amigos na Espanha.
Penso no Diego e sinto um pequeno aperto no coração, um misto de saudade e remorso. Daniel me olha, curioso por eu estar parada no mesmo lugar, sem falar ou fazer nada, e reflito sobre o que ele me disse. Reconheço que eu recuei ante o pedido de casamento de Diego por ter esperança de voltar ao Brasil e encontrar Alexios mudado, porém ele não mudou e nem mudará jamais, mas isso não muda o fato de que ele ainda mexe comigo.
Diego e eu nos damos muito bem, somos amigos, companheiros, temos gostos parecidos. Enquanto eu estava na Espanha, longe do magnetismo e atração de Alexios, realmente pensei que pudesse amá-lo e ter uma vida com ele. Os momentos que passamos juntos foram maravilhosos, mas agora me questiono se, mesmo voltando para Madri, é justo manter essa relação.
O Uber me deixa em frente ao Villazza SP, e vejo a entrada principal do hotel cheia de pessoas bem-vestidas e penteadas. Ando na direção delas, questionando-me se os convites estão sendo verificados na entrada, mas me surpreendo ao ouvir um dos homens que está parado na entrada:
— Nós só queríamos comprar o convite, não conseguimos responder a tempo e...
— Senhor, o que me foi passado foi que esgotaram, eu sinto muito — um dos seguranças responde antes de se virar para mim, mas, vendo o convite em minhas mãos, abre a porta. — Seja bem-vinda!
Entro no saguão principal do enorme hotel e suspiro, apreciando todos os detalhes da construção e da decoração, orgulhosa por ter sido parte da equipe que ajudou a deixá-lo perfeito desse jeito.
O escritório de arquitetura que projetou o Villazza SP foi o dos Boldanis, e o arquiteto principal que assinou o desenho foi ninguém mais, ninguém menos que meu ídolo e professor, Julio Boldani. O italiano é fera demais nas suas linhas clássicas misturadas às modernas.
Eu ajudei o pessoal que compôs o projeto de decoração, pois estava me especializando e, por isso, trabalhei um tempo no Boldani. Foi ali que descobri que, por mais que papai fizesse pressão para que eu fosse uma arquiteta, eu queria mesmo era ser designer de interiores.
Subo as escadarias de mármore com corrimão e guarda-corpo de ferro fundido na cor ouro velho em arabescos e folhas e, no saguão da entrada do salão Royal, encontro a recepção do baile montada como se fosse uma bilheteria antiga de circo.
Sorrio ao pensar na Kyra, reconhecendo que minha amiga sabe como dar vida aos seus projetos de maneira perfeita, pois vi os desenhos quando almoçamos juntas anteontem e confesso que está tudo muito mais bonito do que a ilustração em 3D que ela me mostrou.
Olho em volta, procurando-a, pois combinamos de nos encontrar na entrada, mas arregalo os olhos ao ver Alexios, de smoking preto, vindo em minha direção.
Mesmo contra a minha vontade, minhas mãos gelam e meu coração dispara apenas por vê-lo, por notar o quanto ele está lindo com esse sorriso largo e os olhos brilhando.
Por que ele tinha que ter essa aparência e essa boca?!, penso na injustiça do mundo, indignada por ser tão comum, e ele...
— Samara Esther. — Bufo, pois só ele e minha mãe chamam-me assim. — Você está... linda!
Alexios sorri e me olha desde as unhas dos pés, pintadas e cutiladas, até o alto da cabeça.
— Linda! — repete como se não fosse possível que eu estivesse desse jeito.
— Oi, Alexios — cumprimento-o seca, tentando não dar importância ao fato de que ele parece ter tomado um soco só por me ver mais arrumada. — Estou esperando sua...
— Eu sei, foi ela quem me mandou ficar aqui de plantão te esperando. — Enrugo a testa, sem entender. — Kyra resolveu bancar a fada madrinha e ajudar uma amiga a ter seu baile com um príncipe encantado e, por isso, vai ter que trabalhar esta noite. — A expressão no rosto dele é de deboche ao falar do conto de fadas. — Então, restou a mim.
Puta merda, Kyra!
Pego o celular dentro da bolsa e mando mensagem para ela, mas tenho certeza de que, ocupada com o começo do baile, ela não irá ler. O que eu faço? Penso se devo aceitar fazer companhia ao Alexios ou se devo ir embora, afinal, só vim a esse baile por insistência da Kyra.
— Samara, eu sei que nossa amizade está um tanto estremecida por conta da distância e do tempo, mas... — Alexios me encara, e noto que ele está se esforçando para falar — eu gostaria que você me acompanhasse esta noite.
Minha boca fica seca ao ouvir isso, porque, mesmo com a distância, eu ainda consigo saber quando ele está sendo sincero. Alexios me quer ao seu lado esta noite, e isso é...
— Como nos velhos tempos, lembra? — ele complementa, e, mais uma vez, percebo o quanto sou iludida.
Nada mudou!
Imediatamente me lembro do meu baile de formatura do ensino médio, no qual ele foi meu acompanhante. Chegamos juntos, eu estava empolgada para dançar com ele a noite toda, arrumei-me para parecer uma mulher aos seus olhos e não mais a menina de cabelos revoltos que o seguia para toda parte quando criança.
Havia decidido que iria contar a ele o que sentia naquela noite e que, depois de ele se declarar também, iríamos fazer amor, e eu, aos 17 anos, finalmente teria minha primeira noite com o homem que amava.
Ledo engano!
Alexios dançou uma música comigo, depois foi para o bar, encheu a cara, sumiu com uma garota bem mais “servida” que eu e voltou para o salão todo amarrotado. Eu queria ir embora, mas ele acabou dançando (e sumindo) com mais umas três mulheres.
— Seu acompanhante te deixou sozinha, não é? — Marlon, um dos garotos que estava se formando comigo me perguntou, e só aí percebi que ele estava sentado à mesa comigo.
Começamos a conversar e, naquela noite, tive minha primeira experiência sexual. Não foi ruim, namoramos por um tempo, mas reconheço que ela só aconteceu porque Alexios não me quis. Ele simplesmente não me via!
— Samara? — ele me chama e me faz voltar à realidade.
Por Deus! Não sou mais uma garota de 17 anos, sou adulta, independente, com uma carreira bem-sucedida na Espanha e um dos homens mais gostosos de Madri ao meu lado!
— Vamos entrar! — decido e marcho até uma das “bilheterias”, onde recebo minha máscara preta e uma pulseira.
Alexios recebe as dele e ri ao me mostrar a máscara branca como a de O Fantasma da Ópera. Ah, merda!
— Você se lembra? — Ele ri. — Me obrigou a ver esse filme um milhão de vezes e sabia até as falas!
O desgraçado põe a máscara, ergue uma das sobrancelhas, dobra-se em reverência e sorri.
— Vamos logo com isso! — Saio de perto dele sem rir de sua gracinha, coração retumbando, a cabeça cheia de lembranças da nossa adolescência.
Quando as portas se abrem, perco o fôlego ao ver o que Kyra idealizou.
— Puta que pariu, minha irmã é foda! — Alexios fala ao meu lado.
Eu pulo de susto, não por causa do que ele disse, nem mesmo ao ver um dos artistas cuspindo fogo, mas tão somente por sentir a sua mão em minha cintura. Meu corpo inteiro aquece, a pele arrepia e aquela sensação que sinto desde que os hormônios despertaram em mim na adolescência volta a me tomar.
Atração! Química!
Não sei explicar, mas meu amor de criança transformou-se nisso quando me tornei moça, e a cada toque, cada resvalo, eu resfolegava. Sonhava com ele, acordava suada e sem saber o que estava acontecendo. Meu primeiro orgasmo com masturbação foi pensando nele, instintivo, depois de um sonho erótico e proibido.
Achei que, com a distância, principalmente depois que me envolvi com Diego, isso ia passar, mas parece que me enganei.
Olho-o e percebo que ele permanece alheio ao que me causa, sua atenção tomada pelos malabares que executam movimentos precisos na entrada do baile.
Respiro fundo.
— Vamos?
Ele assente sem me olhar, e seguimos juntos, passando entre os convidados que ainda se encontram de pé conversando ou bebendo no bar, em direção ao centro do salão, tomado de mesas e cadeiras reservadas.
— Onde nós...
Nem preciso terminar a pergunta, pois logo vejo Theodoros Karamanlis, acompanhado de uma lindíssima loira, a uma mesa com o sobrenome deles na placa de reserva. Eu não sou muito fã do irmão mais velho de Alexios, mas sempre fui educada com ele, então armo meu melhor sorriso e o cumprimento:
— Theo! Que bom vê-lo esta noite! — Olho para sua acompanhante agora mais de perto e sinto como se a conhecesse de algum lugar.
— Samara, essa é Valentina de Sá e Campos — Theodoros nos apresenta, e eu sorrio, reconhecendo os sobrenomes dela. — Valentina, essa é a Samara Schneider, uma incrível designer de interiores.
— É um prazer, Valentina! — saúdo-a.
— O prazer é meu, Samara. — Valentina sorri. — Nos conhecemos já?
— Eu acho que sim, embora não me recorde de onde pode ser.
A loira para a fim de tentar se lembrar, e eu ouço a conversa entre Theo e Alexios.
— Viu só esse trabalho da Kyra?
— Claro! — Alexios debocha do irmão. — Seria impossível não ver, já que estou aqui! Já fui até cumprimentá-la, mas está tão ocupada que não consegui nem falar com ela direito.
Só o suficiente para que ela o encarregasse de me acompanhar nesta noite! Kyra me paga!
— Imagino que esteja. Viu o Kostas? — Theo pergunta, mas não consigo ouvir a resposta de Alexios, pois Valentina volta a falar:
— Lembrei! — ela comemora. — Nos encontramos na festa de inauguração da loja da Miriam Benides, lembra?
Eu não faço a mínima ideia do que ela esteja falando, mas, mesmo que não esteja com nenhuma vontade de prosseguir com a conversa, sorrio e concordo por educação.
— Puxa vida, quanto tempo não vejo você por lá! — Valentina continua.
— Eu estava morando em Madri — informo antes de me sentar.
— Ah, eu adoro a Espanha!
Sorrio sem graça, percebendo que vamos conversar. Não quero ser mal-educada com ela, é só que não estou muito confortável em estar aqui neste baile, não depois de perceber que ainda quero Alexios e que não adiantou de nada impor distância.
— Família! — a voz debochada de Kostas interrompe a conversa de Valentina, e ela me pergunta baixinho quem é o homem abraçado a uma loira com um vestido branco tão justo e transparente que beira à indecência.
— Konstantinos... — sussurro antes de ele apresentar sua acompanhante a todos.
— Bruninha, conheça os Karamanlis! — Ele aponta para Alexios e para Theodoros. — Claro que você pode deixar seu cartão com eles depois, mas eu sou o mais bonito, não sou?
Ele faz a mulher girar em seu próprio eixo, e, pela primeira vez depois da tensão toda em que eu estava desde que vi Alexios, sorrio divertida. Kostas é uma figura! Ainda me lembro de quando ele morava no prédio, na cobertura de seu pai, e juro, se não fossem os olhos azuis e a voz, eu diria que não se trata da mesma pessoa!
— Já bêbado? — Theo pergunta a Alexios.
— E mais uma vez com acompanhante paga! — Alexios se aproxima de Theo e cochicha, e isso me surpreende. Não sabia que os dois estavam conseguindo ter uma relação tão cordial. — Estou achando que nosso querido irmão é do outro time.
Theo gargalha e nos olha sem graça.
— Perdoem-me, foi irresistível! — Tenta se conter e bebe mais do seu uísque. — Bom, certamente ele é arrogante e orgulhoso demais para “sair do armário”.
Quem? Kostas?! Olho para o homenzarrão com a prostituta e nego instintivamente com a cabeça. Não mesmo!
— Seria apenas mais um rejeitado pelo seu querido pappoús! — ouço Alexios dizer isso, e meu coração aperta. Olho-o, respiro fundo, lamentando profundamente por ele ainda se sentir rejeitado, percebendo que isso também não mudou.
Rejeição, abandono, violência o tornaram o homem que é. Sei disso, dei essas desculpas para seu comportamento por muitos anos. Toda vez que ele aprontava, eu usava isso para justificá-lo.
Até quando?, penso, olhando-o fixamente. Até quando ele deixará que os erros dos outros façam-no errar também?
— Você gosta muito dele, não é? — Valentina dispara, e eu desvio os olhos de Alexios. — Seus olhos brilham diferente ao olhar para ele.
— Somos amigos há muitos anos — disfarço.
— Bom, isso é muito bom, mas... — Ela ri. — Desculpe-me se estou sendo invasiva, mas seu olhar é de quem é apaixonada, não apenas uma amiga.
Dou um sorriso amarelo para ela, e Valentina fica quieta.
— Tudo bem aí? — Alexios me pergunta, e eu assinto. — O jantar já tinha sido anunciado antes de você chegar, então não deve demorar muito.
Resolvo conversar com ele normalmente, afinal, seria ridículo fazer birra na minha idade.
— Kyra estava muito ansiosa com o jantar desta noite. Um grande chef internacional, ela me contou, é quem está preparando tudo.
— Sim, está na programação. — Alexios lê o nome do chef francês, e eu não consigo deixar de olhar sua boca. Pego a taça de champanhe e a viro de uma só vez. — Uau! — Sorri e faz sinal para um garçom se aproximar com mais. — Minha acompanhante está sedenta.
— Estou. — Decido não discutir e bebo a outra taça. — E com fome também.
Alexios toca minha coxa por cima do vestido, mas logo tira a mão.
— O jantar não deve demorar — repete sério e se vira para olhar o outro lado do salão.
Fico um tempo olhando para minhas pernas, permitindo a sensação de brasa que a mão dele deixou em minha coxa passar, chateada demais por reagir assim a ele e continuar sendo praticamente invisível.
Que porra é essa que está rolando?
Essa pergunta retórica fica martelando minha cabeça enquanto tento prestar atenção em qualquer coisa neste maldito salão lotado que não seja ela. Eu só posso estar com algum problema, só pode! Samara sempre foi minha amiga, quase minha irmã. Eu estar aqui com uma maldita ereção – pela segunda vez esta noite, frise-se – só pode ser loucura!
Preciso de um médico! A loucura congênita dos Karamanlis começou a se manifestar em mim. Sentir tesão por Samara é quase... incestuoso!
Pego a taça com champanhe e a termino em uma só golada a fim de aplacar o fogo que apenas um toque em sua coxa me causou.
A verdade é que eu não esperava encontrar-me com ela nesta noite. Vim por insistência do Millos e, claro, por sua maldita manipulação eficaz ao falar da Kyra e do suporte a ela em seu primeiro grande evento. Cheguei junto aos primeiros convidados e a encontrei correndo de um lado para o outro, “armando” uma surpresa para sua amiga e funcionária, a gostosa da Helena, que, por sinal, está namorando o Bernardo Novak, um amigo de longa data.
Quando finalmente ela terminou todos os preparativos, foi à cozinha falar com o tal chef francês que a estava deixando nervosa, conferiu tudo com as bandas, DJ e artistas circenses é que me deu atenção.
— Oi, Alexios. — Sorriu cansada. — O baile nem começou direito, e eu já estou de um lado para o outro. — Ela espiou a fila se formando na recepção do evento. — Gostou da decoração?
Seus olhos verdes, como os meus, brilharam ansiosos. Eu cheguei perto dela, beijei sua testa e falei baixinho:
— Está tudo perfeito, Kyra. Parabéns, estou muito orgulhoso!
Ela suspirou e depois se afastou.
— Claro que está! Não tinha dúvida alguma disso. — E, do nada, pegou-me pela mão e me arrastou em direção ao salão. — Vem ver!
— Kyra, eu ainda não troquei meu convite e...
— Ah, Alexios, vem ver!
A decoração estava esplêndida, embora eu soubesse que, com os efeitos de luz e os artistas executando seus números, iria ficar ainda mais incrível. A banda, no palco ao fundo do salão, já estava se posicionando, e alguns funcionários de Kyra ajeitavam os últimos detalhes das mesas, arranjos florais ou acendiam as velas.
— Perfeito! — elogiei-a novamente.
— Você ainda não viu nada! — E deu aquele sorriso que eu sei que fode com a cabeça de qualquer homem. É duro ter uma irmã como ela, linda e sexy, e ver os caras babando em cima e não poder socar a fuça de nenhum. — Ah, preciso de um favor.
Estava demorando!
— Kyki, estou de smoking, mas ainda não sei segurar uma bandeja — sacaneei.
— Não, seu idiota! — Ela me estapeou as costas. — É meu par desta noite! Não vou poder participar do baile como havia previsto, então preciso que você faça companhia...
— Ei, ei, pode parar! Não vou ficar pajeando nenhum marmanjo não!
Ela rolou os olhos.
— Não é marmanjo, idiota! Posso terminar de falar? — Assenti. — É a Samara. Convidei-a a vir comigo esta noite e não quero que fique sozinha.
Samara Esther Schneider!
Fiquei um tempo olhando para Kyra, tentando entender se ela tinha feito isso de propósito, para tentar nos reaproximar, afinal, sempre fomos um trio de amigos/irmãos, e, com a relação entre mim e Samara estremecida, Kyra devia estar um tanto confusa.
— Sem problema. — Sorri. — Você avisou a ela?
— E Samara atende aquele celular? — Ela bufou. — Você terá que esperá-la lá fora. Se importa?
— Não — fui sincero.
— Ótimo, agora vaza, porque ainda tenho coisas a fazer antes de abrirmos o salão. — E, do mesmo jeito que me arrastou, colocou-me para fora.
Fiquei um bom tempo esperando por Samara do lado de fora, o que foi surpreendente, pois ela sempre foi pontual. Vi o salão ser aberto, o baile começar, o discurso do doutor Andreas Villazza, o anúncio do jantar, e nada de a minha (ex?) melhor amiga chegar.
Estava olhando para um detalhe na construção do hotel, executada pela Novak Engenharia, quando meus olhos foram atraídos para o topo da escadaria. Não é exagero eu dizer que meus olhos foram atraídos, porque foi como se um ímã puxasse minha atenção para aquele ponto.
Engasguei-me com minha própria saliva ao ver Samara. Sim, ela estava linda, mas não foi o vestido branco ou o penteado elaborado que chamou minha atenção, foi ela.
Ela é linda e, por conta da nossa amizade e do receio que tinha de machucá-la, parei de perceber sua beleza e não notei a mulher que se tornou.
Fiquei parado, tomando nota de tudo, como se a estivesse vendo pela primeira vez, sentindo um incômodo por estar olhando-a com lascívia, afinal, era a Samara!
Balancei a cabeça, tentando voltar a pôr os neurônios no lugar, justificando para mim mesmo que isso aconteceu por causa dos anos distantes, mesmo sabendo que isso era pura enganação, pois ela não mudou nada nesses últimos anos.
O que aconteceu, então? Não sei, ainda estou confuso, tentando entender por que fiquei excitado com o perfume dela ou por que meu pau acordou apenas por eu a ter segurado pela cintura a fim de andar com ela até a mesa.
Tive que ficar parado, olhando para os malabares sem vê-los realmente, com cara de paisagem, fingindo que nada estava acontecendo. Eu não queria que ela soubesse que eu estava reagindo daquela forma a ela; certamente ficaria horrorizada. Sempre fomos como irmãos!
Tentei me conter, agradeci por Theodoros e sua companhia já estarem à mesa, fiquei um tempo distraído conversando com meu irmão mais velho, mesmo que isso fosse uma dor no saco. Não sou tão rancoroso quanto o Konstantinos sobre o Theo, apesar de concordar com meu irmão sem noção sobre ele nos ter abandonado nas mãos do louco Nikkós, mas o que Theodoros poderia fazer? Eu mesmo estive nessa situação quando pude sair de casa, mas não tinha como tirar Kyra dele, por isso fiquei.
O DJ que executa as músicas antes do jantar e da banda ao vivo coloca My Immortal, de Evanescence, e é impossível não olhar para Samara.
— Sua música preferida na adolescência — comento com ela.
Samara sorri e balança a cabeça, olhando os casais indo para a pista de dança.
— Tocou na minha formatura...
— Eu sei, eu queria dançar com você, mas você não parecia muito a fim, então fui beber.
Ela arregala os olhos e me encara como se não soubesse do que eu estou falando. Provavelmente nem se lembra, estava nervosa e ficava repetindo o caminho todo dentro do carro que a gente nem deveria ter ido, que era besteira.
Não somos mais adolescentes!
— Quer dançar? — inquiro impulsivamente e estendo a mão para ela.
Samara olha para minha mão por um tempo, mas aceita.
Porra, que loucura!
Ela pega minha mão, e minha vontade é de puxá-la para mim e beijar sua boca. Foda! Não consigo mais refrear meus desejos; sempre consegui com ela, por isso não entendo o que está acontecendo agora. Não é qualquer mulher aqui comigo, indo para a pista de dança para ficar de corpo colado no meu – porra! – é a Samara!
Samara!
Minha amiga de infância!
Quase uma irmã...
MERDA!
— Está tudo bem? — ela me pergunta, e eu tento relaxar, já que estou dançando como antigamente: a um palmo de distância dela.
— Sim, tudo. — Tento dar meu famoso sorriso, mas não rola, então pigarreio. — Estou com sede, calor... acho que é essa decoração toda.
— Pode ser. — Ela desvia os olhos de mim. — Quer voltar para a mesa?
Quero!
— Não, a não ser que você...
— Tudo bem.
Ela se solta de mim no exato momento em que a música muda para um instrumental baixo e as luzes se acendem.
— O jantar. — Aponto para os garçons em fila e os convidados voltando aos seus lugares. — Vamos?
Salvo pelo gongo do cozinheiro!, penso ao ajustar disfarçadamente minha calça para não andar de pau duro e assustar a todos por causa da claridade do salão.
Samara bebe mais uma taça de champanhe, e eu rio, já preocupado. Nunca a vi beber tanto! Sempre foi séria, careta, estudiosa e boa filha. Ela nunca fazia nada de errado, nunca decepcionou os pais, fazia tudo o que eles queriam... quer dizer, tudo menos se afastar de mim.
— Acho que já quero ir — ela comenta de repente. — Vou chamar um Uber...
Levanta-se um pouco tonta, e eu a amparo pela cintura.
— Você quase não comeu, e bebeu muito — falo, e ela levanta uma sobrancelha atrevida e irônica para mim. — Não estou dando lição de moral, mesmo porque não tenho nenhuma, apenas constatei um fato.
Ela ri.
— Você não tem nenhuma moral mesmo! — arrasta a última palavra. — Sempre foi um galinha, essa cara de santo aí só engana as outras!
Gargalho.
— Elas não ficavam enganadas por muito tempo, pode acreditar!
Samara funga, indignada, e fecha os olhos.
— Eu acho que realmente bebi demais.
Olho em volta; o salão já está praticamente vazio, apenas um ou outro convidado conversando em pequenos grupos. Theodoros se despediu, com Valentina grudada em seu pescoço, há mais de uma hora, e Kostas nem jantou conosco à mesa, provavelmente ficou no bar com sua acompanhante.
Inicialmente eu tinha pensando em esperar tudo terminar para acompanhar Kyra até em casa, mas, com Samara no estado em que se encontra e com tudo aqui ainda para ser desmontado, é melhor eu levar minha amiga para casa – aproveitando que moramos no mesmo prédio – e voltar mais tarde para acompanhar minha irmã.
Pego a pequena bolsa que ela trouxe e, ainda abraçado a ela, caminho para a saída.
— Alexios... tudo está rodando...
— Muito natural depois de todo aquele champanhe.
Ela suspira e joga a cabeça para trás.
— Você é um chato, sabia? Não posso entender o que todas aquelas mulheres viam em você!
— Imagino que não possa mesmo — respondo-lhe, sabendo que vai se irritar.
Samara sempre disse que eu respondia politicamente ou me evadia quando sentia que o assunto poderia ir para alguma direção que não me deixaria confortável. Ela tinha razão na maioria das vezes, mas, neste momento, só estou a fim de irritá-la.
— Você é um babaca, Alexios Angelos!
Opa! Falou meu nome todo! Rio de sua irritação bêbada, talvez por estar um tanto alto como ela, mas sóbrio o suficiente para carregá-la em segurança até a calçada.
Não vim de moto ou carro sozinho exatamente por saber que iria beber – principalmente para aguentar sozinho a companhia dos meus irmãos à mesa –, porém previ que a saída do baile estaria um inferno e que seria difícil conseguir um táxi ou um carro de aplicativo que estivesse por perto, por isso deixei o Cris, que me trouxe, de sobreaviso no estacionamento.
Mando mensagem para ele e espero até meu carro aparecer. Abro a porta de trás e coloco sobre o banco uma Samara parcialmente adormecida por cachaça francesa.
— Essa foi nocaute! — Cris ri quando eu entro. — Para onde?
— Para o Castellani. — Ele dá um sorrisinho malicioso e pisca. — Ela é minha vizinha, Cris, sossega.
— Falou, chefinho.
— Para de merda e dirige.
Ele tenta sair da entrada do hotel, mas é praticamente impossível com o número de carros que também tentam deixar o local. Olho para trás, confiro que Samara está mesmo apagada e fecho os olhos, recostando-me contra o assento do carona.
— Foi uma festança, hein? — Cris volta a falar. — Só vi entrar filé, pena que a maioria estava acompanhada.
— Geralmente isso não é problema — comento, mordaz. — Já comi muita mulher no banheiro de recepções como essa enquanto o marido conversava com os amigos e falava de negócios.
Cris gargalha.
— Você nunca valeu nada, Lex!
Não retruco o apelido ridículo com que ele me chama e me faz parecer o vilão do Homem de Aço. É pura perda de tempo ralhar com Cristino, então simplesmente ignoro, cansado, meio zoado e com tesão frustrado.
Ele e eu nos conhecemos há alguns anos, quando visitei um dos prédios da Karamanlis que foram invadidos por movimentos pró-moradias. O homem era motorista de profissão, com anotação em sua carteira de trabalho em várias empresas, que juntou todo o dinheiro que tinha, investiu em um carro e um ponto de táxi, mas foi engolido e enxotado pelas grandes cooperativas.
Assim, quando nos conhecemos, ele estava sem casa, sem carro, sem emprego e com uma enorme dívida, fazendo bicos aqui e ali. Ajudei-o primeiro a conseguir emprego, depois por fim saiu da invasão, e, nesse ínterim, nos tornamos amigos.
Ano passado, quando a filha dele nasceu, quis que eu a apadrinhasse, mas educadamente declinei, explicando que, mesmo honrado, não poderia aceitar, pois sou ateu, e o apadrinhamento de uma criança tem a ver com questões religiosas, tem um sentido específico, e eu não seria a pessoa certa para isso. Ele entendeu, mas a garotinha já me chama de Didi (seu jeito fofo de bebê de chamar seu dindo, mesmo que oficialmente eu não o seja).
Acho que cochilei também até o Castellani, pois, quando me dei conta, já estávamos na garagem. Cris me perguntou se eu queria ajuda com Samara, mas agradeci e o mandei para casa. Ele não trabalha como meu motorista diariamente, mas sim na Karamanlis, transportando quem quer que precise fazer serviços externos. Contudo, toda vez que preciso, chamo-o para ganhar um extra.
Há muito parei de combinar bebida e direção, não por mim, mas por medo de acontecer algum acidente e eu acabar prejudicando outras pessoas.
Chamo o elevador, e somente dentro dele é que a bela adormecida parece voltar a si.
— Alexios... — Samara olha em volta. — Este é o elevador do Castellani?
— Parece que sim — respondo-lhe divertido.
Samara bufa.
— Só desmaiada é que eu aceitaria vir com você na direção nesse estado em que se encontra.
— Estou melhor que você. — Ela se encosta contra o espelho, olhos fechados e um enorme sorriso bêbado no rosto. — Além do mais, viemos com motorista.
— Bom... — Samara fala devagar e lambe os lábios como se estivessem secos. O efeito no meu pau é instantâneo. Sinto meu corpo inteiro acender, minhas mãos formigam de vontade de tocá-la. Sua pele parece brilhar, atraindo-me como uma chama atrai uma mariposa.
Tento me afastar, pensar em outra coisa, mas o espaço reduzido do elevador não ajuda. As paredes parecem se fechar cada vez mais, aproximando-me de Samara, apertando-me contra ela, espremendo meu corpo...
— Alexios... — ela geme meu nome, e eu me espremo mais, fazendo-a grudar contra o espelho. O seu perfume inebria meus pensamentos, a pele, tão quente e macia que a sinto mesmo por baixo do vestido, me enlouquece. Preciso provar o sabor de sua boca, conferir se o hálito quente e um tanto etílico se confirma em sua saliva.
Sim!
Agarro-a com mais força, minha ereção pressionada contra sua barriga, minha boca correndo em seu pescoço. Tudo parece congelar à nossa volta, não existe mais tempo e nem espaço, apenas o vácuo e nós dois dentro dele, em chamas.
Lábios nos lábios. Meus dedos esfregam sua nuca, a pele arrepia, os pelos eriçam, meu corpo treme. É a viagem mais louca que eu já fiz sem ser através de uma substância química entorpecente... não! É química ainda, é uma droga viciante, é tesão!
Devoro sua boca sem nenhum pudor ou impedimento. Ela me acolhe, abre-a para minha exploração, prende meus lábios entre seus dentes e morde com força, despertando com a dor ainda mais meu desejo.
Enfio os dedos no meio do seu penteado, seguro o cabelo com força, e ela retribui o desespero cravando as unhas nos meus ombros.
Estou pronto para fodê-la, minha cabeça já trabalha uma forma de abrir o zíper da calça social, sacar meu pau e buscar o caminho de sua boceta, que, a julgar pela forma com que ela come a minha boca, já está molhada e quente.
Um pigarrear me faz sobressaltar, e eu me afasto dela o mais rápido possível. Um casal de idosos também vestido em black tie entra no elevador no saguão do prédio, sinal de que o elevador subiu e desceu de novo enquanto nós dois quase nos comíamos dentro dele.
Olho para Samara, mas ela não parece constrangida ou assustada, apenas passa a mão pelos lábios e me encara, sua expressão cheia de perguntas e curiosidade.
Caralho, o que eu estou fazendo?! É a Samara, minha amiga, aquela que eu sempre quis manter longe desse meu lado sem vergonha! Puta que pariu!
Espero o casal descer em seu andar e, assim que as portas se fecham, respiro fundo.
— Desculpa, Samara, acho que estou mais bêbado do que imaginei a princípio. — Não tenho como olhá-la, dividido entre o constrangimento e o desejo ainda pulsando na minha calça. — Somos amigos, eu não deveria atacar você dessa forma, me des...
— Para! — sua voz soa magoada, e eu tenho vontade de socar a cabeça contra o espelho. — Não precisa dizer mais...
— Eu prometo que isso não voltará a acontecer. — Finalmente a encaro e fico fodido ao ver sua expressão confusa. Ela parece não ter gostado do que aconteceu, deve estar achando que eu sou um filho da puta aproveitador. — Você é minha amiga, Samara, mesmo depois dessa distância, eu ainda a vejo como se fosse minha irmã e...
— Chega! — ela grita, e as portas do elevador se abrem no seu andar. — Você tem razão, foi um erro e não deve voltar a acontecer!
Ouvir isso é como um balde de água fria, mesmo reconhecendo que é o certo.
— Eu não quero que isso afete novamente a amizade que nós temos e...
Samara sai pisando duro do elevador sem olhar para trás. Minha vontade é de correr atrás dela, voltar a encostá-la em alguma parede e beijá-la novamente até que perca a razão ou eu alivie esse tesão indesejável que estou sentindo.
As portas se fecham, e eu, ao invés de apertar o botão do meu andar, mando o elevador de volta para o térreo e chamo um Uber.
Preciso trepar!
— Essa sua cara de cachorro cagando na chuva é ainda ressaca do baile? — Kyra me pergunta, sentando-se ao meu lado na rede que ela tem em sua varanda. — Quer café?
Resmungo ainda com os olhos fechados:
— Quero paz!
Ela ri.
— Isso está em falta por aqui hoje, passa na semana que vem... — Encaro-a, puto com a piadinha. — O que aconteceu?
Não respondo, meus olhos fixos no topo do prédio do outro lado do parque. Balanço a cabeça, decidindo ser mais covarde do que tenho sido desde a madrugada do dia primeiro de janeiro e fecho os olhos para tentar nem pensar na confusão que arrumei.
— Você não deveria estar trabalhando hoje? Ou eu? — Kyra volta a me importunar, mas continuo mudo. — Mano, você continua o mesmo chato da porra de sempre! Fica aí com essa cara de Maria do Bairro e não abre a porcaria da boca para me contar o que diabos você fez dessa vez!
— Obrigado pela confiança em mim! — retruco irônico.
— Ah, boquinha para ser mal-educado comigo você tem! — Ela me cutuca o ombro, mas depois suspira e deita a cabeça nele. — Você sabe que faz merda, mas que eu estou aqui, disposta a te ouvir e te ajudar a limpar os cagaços. Somos uma dupla, você e eu, sempre fomos e sempre seremos.
— Costumávamos ser um trio... — assim que eu comento, imediatamente me arrependo, pois Kyra salta da rede – quase me derrubando no percurso – e emite um ensurdecedor: “ahá!”.
— Eu sabia que tinha acontecido algo na madrugada do baile! Samara está estranha, esquiva, e isso não é o natural dela. Que merda você aprontou? — Continuo ignorando-a, sem nenhuma disposição para contar sobre o beijo, o amasso e a confusão que isso criou em mim. — Alexios! — Minha irmã começa a pirar por causa do meu silêncio, mas, se me conhece um pouco, já deve imaginar que eu não irei abrir a boca para falar desse assunto. — Está certo! Você e sua maldita boca de siri. — Volta a se sentar, mas dessa vez não se deita em mim. — Alex, ela é nossa amiga, não a magoe, ok? Samara merece ser feliz, e esses anos que passou na Espanha foram ótimos para ela. Eu morria de saudades, mas estava feliz por ela estar realizada trabalhando com o que ama fazer, com um puta gato espanhol lambendo seus pés e — abro os olhos, mas Kyra não se freia — querendo formar família com ela.
Sento-me bruscamente, e Kyra balança.
— Como assim formar família?
— Ele a pediu em casamento. — Surpreendo-me, mas tento não reagir, não demonstrar. — Deu-lhe um lindíssimo e caro anel de diamante e está esperando pelo retorno dela.
Essa informação, apesar de ter me pegado de surpresa, não é nenhuma novidade. Sempre achei que algum homem de sorte iria conquistar o coração da minha amiga de infância e tê-la para sempre. Samara é a pessoa mais leal que eu conheço, mais incrível, merece muito ser feliz ao lado de alguém que valha a pena.
— Ela não estava usando anel... — penso em voz alta.
— Ainda não falou com os pais dela... — Kyra olha fundo nos meus olhos, procurando qualquer reação minha, mas sei que não irá encontrar nenhuma. Há muito aprendi a sentir sem demonstrar ou a mostrar apenas o que eu quero que os outros vejam. — Vocês não conversaram ontem?
— Acho que ainda não conseguimos estreitar os laços de amizade novamente.
— Hum... — Ela olha para seu relógio no pulso e suspira. — Preciso ir para o trabalho, vai ficar aqui? — Assinto. — Eu tenho a sensação de que você está se escondendo, só não faço ideia do quê.
Ela entra no apartamento, e novamente olho para o alto do Castellani, do outro lado do parque. Daqui do prédio onde ela mora, consigo ver o heliponto no telhado, algumas janelas da cobertura onde Cadu mora, o andar debaixo, onde Bernardo Novak reside, e uma pontinha da minha varanda. O apartamento de Samara fica uns andares abaixo do meu, então não tenho como vê-lo, mas somente por saber que ela está lá dentro, sinto vontade de ficar aqui, bem longe.
Não me entendam mal, não estou fazendo isso porque não quero que ela se aproxime de mim, pelo contrário, estou aqui, exilado como um covarde no apartamento da minha irmã mais nova, porque, se pisar no Castellani, sei que não conseguirei me manter distante dela.
Mesmo depois da maratona de sexo que fiz com uma mulher com quem já havia saído antes das festas de final de ano, não tenho segurança de estar no mesmo ambiente que Samara e me controlar para não a pressionar contra alguma parede e fodê-la sem ao menos dizer um cumprimento.
Definitivamente não vou fazer isso, não com ela!
Muito menos depois de saber que há alguém que a merece, que está à altura dela, esperando sua volta.
Rio de mim ao pensar que estou aqui, evitando-a, quando na verdade ela é quem deve estar querendo ficar a quilômetros de mim. Talvez esteja até indignada e ofendida pelo modo com que a toquei e beijei sem nenhum aviso, como se fôssemos um casal qualquer que se encontrou na balada para trepar, e não duas pessoas que são amigas desde que se entendem por gente.
Não entendo por que perdi o controle do tesão que sempre reprimi, mas me conheço o suficiente para saber que ele não passou. Raramente sinto aquela química com alguém. Era como se meu corpo estivesse sendo atraído, como se algo nela estivesse provocando reações em mim que eu não conseguia controlar. Foi animal, carnal, a famosa atração de pele que muita gente procura, mas pouca tem.
E eu tive justamente com minha melhor amiga!
Kyra volta a aparecer no meu campo de visão, agora com os belíssimos cabelos escuros, longos e fartos soltos, o rosto maquiado e uma roupa de deixar qualquer homem lobotomizado.
— Esse bode aí está foda para passar, hein? — comenta antes de se abaixar para pegar um guarda-chuva no móvel ao lado da rede. — Têm umas sobrinhas do baile na geladeira, cerveja – por favor, não tome todas, mas se tomar, as reponha –, e meu chuveiro tem muita pressão e água fresca. — Pisca para mim, e eu franzo a testa, sem entender. — Você está meio rançoso.
— Vai se ferrar, Kyra — ralho com ela, mas rio.
Ela se aproxima e beija minha testa, e isso, sim, arranca um sorriso sincero meu. Gosto que ela confie em mim o suficiente para me tocar, para recostar-se no meu ombro ou mesmo ficar abraçada, pois sei que ela não é assim com todos, principalmente com homens em geral.
— Fica bem e ouça meu conselho... — Ela anda até a porta antes de complementar: — Tome um banho, você cheira a álcool e a perfume vagabundo.
Levanto o dedo do meio para ela e a escuto ir gargalhando apartamento adentro até a porta de entrada bater. É, eu bebi bastante, sim, devo estar exalando álcool pelos poros, e o perfume barato se impregnou em minha roupa ontem, quando a recoloquei depois de mais de 12 horas nu, e a mulher me abraçou toda perfumada.
Saí do apartamento dela e vim direto para o da Kyra, torcendo para que minha irmã estivesse em casa e sozinha a fim de que eu pudesse cair aqui nesta rede onde estou e tentar pôr a cabeça certa no controle do meu corpo.
O telefone fixo toca alto, afastando meus pensamentos, e aproveito para tomar o banho aconselhado pela minha irmã viciada em limpeza. Entro na sala desabotoando a camisa branca que usei com o smoking – pois é, ainda estou com a mesma roupa do Ano Novo em pleno segundo dia do ano – e noto que não faço ideia de onde estão o paletó e a gravata-borboleta.
A primeira foto que vejo ao entrar no quarto de Kyra é uma que tiramos juntos – Samara, ela e eu – na formatura da minha irmã. Eu fui o par dela, então estava de smoking, e as duas, de vestido longo, maquiagem e penteado. Caminho até o aparador e pego o porta-retratos, focando em Samara e me perguntando como eu conseguia me manter longe do mulherão ao meu lado. Era uma beleza diferente da minha irmã, Samara tem o olhar doce, sorriso largo, nenhum mistério, seu rosto expressa suas emoções, sua sinceridade.
CONTINUA
Sua pergunta me deixa paralisada, completamente sem condições para lhe responder. Por que ele me procuraria?! Porque somos amigos desde que nasci? Porque estive ao lado dele em todos os momentos? Porque ele tomou um porre, apareceu lá em casa, chorou no meu ombro, beijou-me e depois fingiu que nada tinha acontecido?
Respiro fundo para controlar o volume da voz e não gritar que ele é um idiota, mas, antes que eu abra a boca, Kyra aparece esbaforida com um telefone na mão.
— Ei, Malinha, você está com seu telefone na bolsa? — Alexios olha para a irmã, puto por ela estar nos interrompendo, e eu franzo a testa, sem entender a pergunta dela. — Seu celular! — Ela bufa... — Seu irmão acaba de ligar para o meu telefone. — E balança o aparelho.
Arregalo os olhos, meu coração dispara, e logo penso em mamãe, que vi apenas um pouco ontem, quando fui buscar o Godofredo. Pego o telefone e confiro as ligações perdidas. Noto Alexios se afastando, mas não me importo; ele continua o mesmo egoísta de sempre.
Samara Schneider está de volta!
Mastigo mais um pedaço do pernil que Kyra serviu como opção de carne na ceia de Natal e não consigo deixar de pensar na volta daquela que foi minha grande amiga e companheira.
Até hoje não entendo o que aconteceu para que ela tomasse a decisão de ir estudar na Espanha sem falar nada comigo. Claro, eu sabia que tinha a possibilidade, afinal, havia anos o pai dela pressionava por isso, para ela ir estudar arquitetura clássica na terra de Gaudí14. No entanto, para minha total surpresa, em vez de ir morar em Barcelona, Samara foi para Madri.
Eu, que até então me considerava seu melhor amigo, só fiquei sabendo desses detalhes todos porque Kyra me contou depois que fui atrás dela para saber o paradeiro de Samara.
Pego a taça com água para ajudar a engolir a comida, pois estou com um aperto na garganta desde que a vi. Eu tinha acabado de sair da sala de reuniões de Kyra depois de um ménage espetacular com Valéria e Priscila, mais animado para encarar a noite especial, sem imaginar a grande surpresa que encontraria no salão e que quase me fez tropeçar em meus próprios pés.
Assim que meus olhos bateram nela, assustei-me, pois a danada da Kyra não havia me contado que Samara tinha voltado. Tentei um sorriso e uma aproximação amigável, como se ela não tivesse me abandonado por longos três anos sem nenhuma notícia. Ela está diferente, ainda mais bonita do que eu me lembro, mas tentei não reparar muito e ser o amigo de sempre.
Nada disso adiantou, pois, ao que parece, Samara desejou que eu corresse atrás dela, que a procurasse e reestabelecesse contato. Como eu poderia imaginar algo assim? Não sou adivinho! Ela some sem nenhum motivo e ainda se sente no direito de ficar puta por eu não ter tentado contato?
Quem entende a cabeça das mulheres?!
— Sua amiga foi embora cedo — Millos comenta ao meu lado. — Será que houve algum problema com a mãe dela?
Olho para meu primo, sentado ao meu lado à mesa, e ele entende meu total desconhecimento do assunto.
— A mãe dela, dona Ana Cohen, está em tratamento contra um linfoma. — Millos bebe mais chope. — Você não sabe nada sobre a vida da sua amiga?
— E você? Como sabe?
O filho da puta apenas dá de ombros, evasivo como sempre, adorando estar sempre um passo à frente de todos. Millos é um sujeito estranho. É o único que consegue interagir com todos nós sem tomar partido e sem revelar nada da vida pessoal de ninguém, nem mesmo da sua. Somos amigos, nos damos bem, mas eu sei pouco sobre ele, sobre suas atividades, e o máximo que conheço de sua vida pessoal é que tem um passado fodido como o meu, frequenta alguns clubes de sexo, tem uma amiga que por sinal é uma gostosa do caralho – mas nunca me deu mole, infelizmente – e só.
Como profissional, o homem é uma verdadeira coruja! Quieto, observador, parece que consegue olhar em 360 graus, além de ser um caçador de informações inigualável. Não há nada que passe despercebido por ele, e o que expõe ou o que fala, tenho certeza de que é o mínimo do que sabe. Por isso, todo cuidado é pouco quando o assunto é Millos Karamanlis, porque o desgraçado é um manipulador de mão cheia!
— Eu não sabia que dona Ana está doente, não vejo os pais de Samara há anos — contesto-o. — Espero que nada grave tenha ocorrido.
— Não vai ligar para saber? — Millos volta a questionar.
Franzo as sobrancelhas, encarando-o, tentando entender o motivo pelo qual ele está tão interessado no assunto.
— Não — respondo seco e volto a comer, mesmo com o questionamento dele na cabeça. Para mim o assunto acabou! Samara já demonstrou que não quer papo comigo por algum motivo, e, mesmo chateado com isso, devo respeitar a decisão dela. Millos é um manipulador e sabe que esse é um assunto que me atinge diretamente, por isso tocou nele.
Não preciso ligar para Samara, como não liguei para ela durante todo o tempo em que esteve fora, mas isso não quer dizer que eu não queira saber o que está acontecendo. Kyra sempre foi minha fonte de informações sobre ela e, caso tenha que ser assim, continuará sendo.
Termino minha refeição, fico mais algum tempo com Kyra e seus convidados, brindo ao sucesso do negócio dela e logo depois vou embora. Tinha pretensão de ir para casa, mas, no meio do caminho, uma mulher com quem eu já saí algumas vezes me manda uma mensagem dizendo que está na cidade, e vou encontrá-la.
Dia 26 de dezembro, pior dia de trabalho do mundo, certamente! Rio ao passar por mais dois engenheiros com cara de ressaca ou, talvez, de quem comeu demais e agora passa mal do estômago.
— Melhor colocar a lixeira perto! — passo, sacaneando meu colega de trabalho, Pedro, engenheiro químico. — Se emporcalhar a sala, vai ter que limpar você mesmo.
— Porra, Alexios, fala mais baixo! — Ele põe a mão na cabeça.
Gargalho e me sento à minha mesa, lotada de projetos, planilhas e minha coleção de lápis. É, eu coleciono lápis! Cada um tem a coleção que lhe cabe, não é?
Ligo o computador, olho para meu caderno de tarefas e arregalo os olhos ao ver um nome que eu não imaginava rever anotado lá – por outra pessoa.
— Ethernium? — questiono olhando para o Pedro.
— Sim! Acabamos de saber, mas o CEO lá da Karamanlis vai querer conversar com você, certamente.
Bufo ao pensar em subir até o Olimpo para conversar com Theodoros, sem esquecer as discussões que tivemos nas últimas semanas por conta de seu egocentrismo e insensibilidade com os funcionários da casa.
Sua mania de pensar que é Deus, inabalável, inatingível e perfeito me irrita, principalmente porque sei que ele não é nada disso, apenas a porra de um filhinho de vovô mimado, que sempre achou que podia fazer qualquer coisa que quisesse sem pensar nas consequências, que o velho grego limparia suas cagadas.
Admito, o velhote sempre fez tudo para seu neto querido. Entretanto, não pôde limpar a merda que Theodoros deixou para trás, apenas jogou-a para debaixo do tapete, limpou a consciência do seu netinho querido, que seguiu a vida como se nada tivesse feito e deixou o resto se fodendo sem se importar o mínimo.
Theo é arrogante, e eu não tenho saco para lidar com gente assim.
Ouço passos, um poc-poc característico de saltos, e em seguida a voz de Lia, outra engenheira que trabalha na minha equipe direta.
— Bom dia! — sua voz soa animada. — Ah... sem Papai Noel de chocolate este ano! — ela resmunga, e eu a vejo procurando sobre sua mesa. — Poxa, Alex, você já foi mais generoso!
— Eu?! — Começo a rir. — Você realmente me imagina comprando e colocando chocolate em formato de Papai Noel nas mesas dos outros? — Ela faz careta e nega. — Eu achava que era você!
— Por quê? Só porque sou mulher?
Rolo os olhos.
— Não, porra, porque você é viciada em chocolate!
— Ele está certo, Lia! — Pedro se mete na conversa em minha defesa. — Eu também achava que era você por causa disso.
Ela se senta frustrada por não ter encontrado o presente do “Papai Noel” misterioso da Karamanlis.
— Bom, não sou eu, e eu contava com isso! Não falha por anos! — Olha em volta para as outras estações de trabalho, ainda vazias sem os profissionais. — Ninguém recebeu?
Nego, e Pedro faz o mesmo.
— Estranho...
— Coisas estranhas têm acontecido por aqui — digo e lhe estendo meu caderno com a anotação da Ethernium.
— O quê? De novo? — Ela geme. — Esses caras da Ethernium são uns malas! Sério, Alexios, eu não vou aguentar gracinhas pra o meu lado de novo não!
— Eu disse que você devia ter respondido a ele. — Dou de ombros. — Mas agora sabe que tem meu total apoio! Se alguém da equipe deles fizer piadas machistas de novo, responda.
— Quem é o machista? Que vou com você dar uma surra nele. — Eliane chega já mostrando as garras – que garras! Minhas costas sofreram com elas – e se senta em sua estação. — Bom dia, feliz Natal, foi tudo ótimo! Agora, silêncio, porque ainda estou agarrada a um cálculo estrutural que não tem me deixado dormir. Obrigada. De nada.
Pedro começa a rir, e Lia só balança a cabeça. Eliane é assim, direta e sem rodeios, por isso mesmo achei-a ideal para o trabalho pelo qual é responsável. Nós nos conhecemos em uma balada, transamos, depois voltamos a nos encontrar na entrevista dela aqui na K-Eng tempos depois. Nunca mais voltamos a trepar, mas conseguimos construir uma relação de trabalho quase perfeita. Sei que posso contar com ela para qualquer coisa aqui dentro.
Tenho mais duas pessoas na minha equipe: Evandro e Michel, mas os dois estão de férias e ainda não retornaram. Não é normal dois membros da mesma equipe saírem em férias juntos, mas, como eles são casados, a lei lhes garante esse direito.
A K-Eng não é formada apenas pela minha equipe de engenheiros em suas especialidades, a verdade é que cada um aqui gere suas próprias divisões. O Pedro, por exemplo, é engenheiro químico, e na divisão dele estão químicos industriais, técnicos em química e outros engenheiros dessa área. Já a Lia é engenheira ambiental, e, dentro de sua divisão, há biólogos, gestores ambientais e engenheiros sanitaristas. A Eliana trabalha com projetos, e ela coordena outros engenheiros, arquitetos e projetistas. O Michel faz toda a parte de planilhas e medições, e o Evandro é responsável pelas operações, é quem lida com empreiteiros, clientes e atua também como fiscalizador de obras.
Além do corpo técnico da K-Eng, a empresa, que é uma subsidiária da Karamanlis, ainda tem setores administrativos e financeiros, e eu, como CEO dessa bagaça aqui, sou quem comanda essas áreas.
O único setor que dividimos com a Karamanlis, infelizmente, é o jurídico, por isso aturo muito a prepotência inglesa do Konstantinos e seu humor ácido. Geralmente não tenho paciência com ele, zoo com sua cara ou apenas o ignoro. Ele não é bem quisto por ninguém da minha equipe, principalmente pelas mulheres.
— Por falar em machismo... — Lia volta a falar. — Será que a Kika não vai voltar mais não?
Dou uma risada por ela ter entrado no assunto justamente quando eu pensava no meu irmão machista.
— Está um silêncio total na Karamanlis — Eliana se pronuncia. — Dá até medo de andar pelos corredores, clima pesadão!
— A Kika era incrível, né? Gata, alto-astral, competente — Pedro lamenta. — Uma pena que tenha perdido a cabeça e tenha sido mandada embora...
— Opa! — Eliana o interrompe. — Ela se demitiu!
— Enfim, está desempregada depois de ter ganhado uma puta promoção para a gerência.
— Eu a preferia à Malu Ruschel. — Lia treme toda. — Aquela mulher congelava até meu sangue só de estar perto dela.
Definitivamente, não o meu!, penso ao me lembrar de Malu Ruschel, a ex-gerente dos hunters da Karamanlis. Malu era bonita, tinha classe e aquele seu jeito focado me enchia de tesão. Uma pena ter ido morar no fim do mundo!
Já com a Kika, nunca senti essa atração, talvez por sempre tê-la achado tão receptiva, maravilhosa com seu jeito espontâneo, que logo gostei dela como se fosse uma amiga de longa data. Tenho muito apreço por ela e lamento que tenha saído da empresa.
Os engenheiros começam a conversar, mas o assunto não me interessa o mínimo, então coloco meus fones de ouvido – a voz forte e rasgada da Janis Joplin soa bem alta – e volto a mexer no projeto em que estava trabalhando.
— Ei, moleque! — Millos me chama assim que para sua moto. — Você não sabe curtir um passeio, puta que pariu!
Ele desce da motocicleta, tira o capacete e a jaqueta e se senta à mesa do bar ao meu lado. Bebo minha água sem responder, porque a única coisa que eu poderia lhe falar é que não sou um velho para ficar andando nessas motos de colecionador há 80 km por hora.
Estou aqui esperando-o há pelo menos 20 minutos, e isso porque saímos juntos de São Paulo em direção ao Guarujá, em uma viagem não programada e cujo motivo, sinceramente, nem entendi. Ele apenas apareceu lá na K-Eng e me chamou para andar de moto com ele, e eu topei.
— Qual é o propósito disso? — resolvo perguntar sem rodeios.
— Do quê?
Millos agradece à garçonete que lhe entrega um coco verde com um canudo e nem percebe a moça comendo-o com os olhos (ou talvez só esteja assustada com suas tatuagens, que cobrem os braços, pescoço e peito).
— Desse “passeio”. A gente se viu há alguns dias na ceia da Kyra, e você não comentou nada sobre isso.
— Nada de mais! — Ele bebe a água de coco. — Vou viajar no Ano Novo, ficar um tempo fora e queria passar um tempo contigo. Já jantei com seus irmãos, mas como você é todo amalucado para comer, achei que uma volta de moto iria cair bem, mas esqueci que você é louco nisso também.
— Você está ficando velho, Millos, sinto lhe informar — debocho. — Acha mesmo que, com essa potência italiana nas mãos, eu iria ficar molengando contigo na estrada?
— Não é molengar, é curtir a viagem, a paisagem...
— Ah, não, você curte essas coisas paradas, não eu. Meditação, ioga, essas coisas todas aí que você faz, tô fora! Não sei ir devagar, Millos, em nada!
— Deveria... talvez assim conseguisse agradar às mulheres. — Ele pisca e tenta disfarçar a troça bebendo mais de sua água.
Eu gargalho.
— Pode ter certeza, elas não reclamam da minha rapidez. Não basta saber correr, tem que saber tirar o máximo proveito de uma máquina, fazê-la dar tudo de si, e isso eu faço.
— Está falando das motos ou das mulheres?
— Tem diferença?
Ele ri novamente.
— Você é um moleque, não sabe nada ainda!
— Falou aquele que nomeia suas motos com nomes femininos!
Nós dois rimos juntos, e o clima fica descontraído.
A verdade é que ele e eu temos muito em comum. Ambos adoramos motocicletas, rock e carne. Apesar de sua onda “zen budista”, Millos nunca conseguiu se livrar da proteína animal e das comidas pesadas que adora preparar para acompanhar suas cervejas artesanais.
Ah, esse é outro ponto em comum: adoramos cerveja! Ele fabrica, eu apenas bebo, mas tenho tanto conhecimento quanto ele, e esse é um dos pontos sobre o que mais conversamos quando estamos juntos, geralmente comendo alguma carne e ouvindo rock.
Raramente saímos juntos de moto, exatamente por ele fazer o estilo tiozão que gosta de andar de Harley, apreciando paisagens, e eu e minha Ducati Multistrada 1260 não temos saco para andar quase parando não.
Embora eu reconheça que tenho que agradecer a esse tiozão por ter minha moto dos sonhos, a que uso para correr nas competições. A Ducati só disponibilizou três unidades da 1299 Superleggera para venda no Brasil, há quase dois anos, e um dos amigos do Millos foi quem comprou uma delas, e, quando ele decidiu vendê-la, meu primo prontamente me avisou, e não pensei duas vezes.
Eu gosto das italianas mais do que das americanas ou japonesas, pelo menos para as motos; não sou tão seletivo assim com mulheres.
— Baile dos Villazzas...
— Ah, Millos, não fode com esse assunto de novo! — reclamo, entendendo agora o motivo do encontro.
— Alexios, preciso de você lá.
Rio.
— Mano, aqueles dois não são crianças, e, muito menos, sou a babá deles! Eles não precisam que eu vá para manter a ordem e o bom nome da...
— Kyra me mostrou o projeto do baile, ela parece bem animada com sua primeira grande produção sem a intervenção dos Karamanlis.
Porra! Ele vai pegar pesado!
— Você é muito filho da puta, sabia?
Millos dá de ombros e bebe mais água.
— Acho que vocês deveriam ir para apoiá-la, acima de todos, você! Será importante para ela, além disso... acho que ela está sem acompanhante, porque deu com o pé na bunda do último idiota que estava comendo.
— Porra, Millos! — Xingo-o. — É a minha irmã, porra!
— E o quê? Só por isso ela não trepa?
— Vai se foder! — Levanto-me da mesa puto e pego o capacete.
— Alexios... — ele me chama, mas não dou atenção, já montando na moto para ir o mais longe possível dele.
Antes que vocês me julguem como machista ou irmão ciumento, adianto logo que não se trata disso. Cada um lida com a merda dentro de si de um jeito, e esse é o jeito da minha irmã de lidar com seu passado. Respeito isso, mas não quer dizer que não me doa ou mesmo que eu não me sinta responsável por ela ser assim.
Eu gostaria que as coisas fossem diferentes, esforcei-me o máximo que pude para que ela fosse menos fodida do que todos nós, mas, a cada novo relacionamento seu destruído, sinto-me um fracassado, o que me dói profundamente.
Piloto rápido, passando pelos radares sem me importar com as multas, sentindo o vento forte bater em mim como se pudesse deixar todas as marcas do meu corpo e da minha alma para trás. Contudo, não posso. Ele fodeu a minha vida várias vezes, não só com as coisas que fez contra mim, mas principalmente por eu ver que também destruiu minha irmã.
— Como ela está, Dani? — pergunto ao meu irmão assim que ele entra na cozinha da casa dos meus pais, onde tomo meu desjejum com a Cida.
— Dormiu bem. — Ele beija minha cabeça. — Mas foi um susto essa febre alta assim do nada.
Ele se senta, visivelmente cansado, e Cida logo lhe serve uma xícara de café. Acostumados demais a dividir as refeições com Cida desde que nascemos, sempre tomamos nosso café juntos. Ela está em nossa casa há tanto tempo que não sei como seria minha vida sem sua presença, e certamente Daniel sente o mesmo.
Minha mãe, Ana Cohen, sempre foi muito ocupada na direção do sistema de ensino criado pelos meus avós, franqueado e distribuído por colégios do Brasil todo. Já meu pai, Benjamin, vem de uma longa linhagem de comerciantes e industriais, como bem acentua nosso sobrenome, que é uma derivação da profissão de algum ascendente que foi alfaiate.
Os Schneiders possuem lojas, fábricas ou empresas que prestam serviços, como era o nosso caso. Meu avô não tinha formação quando fundou sua primeira fábrica de móveis, porém eram um marceneiro muito habilidoso, e meu pai aprendeu com ele. Os negócios iam bem, então papai foi estudar arquitetura e, por fim, design, elevando o nível dos negócios familiares, fazendo dos móveis com nosso sobrenome sinônimos de classe e riqueza.
Há 10 anos meu irmão está à frente dos negócios, desde que papai teve seu primeiro infarto – ele já teve outro e fez duas pontes de safena. Daniel é um administrador maravilhoso, fechou com grandes empresas, e hoje os móveis Schneider não enfeitam mais as coberturas e mansões luxuosas de São Paulo, tão somente redes enormes de hospitais, clínicas, lojas de alto luxo e restaurantes em todo o país.
Meu irmão é incrível! Nós dois somos muito amigos, sempre fomos. O único ponto tenso entre nós era Alexios Karamanlis. Daniel é 10 anos mais velho que eu, um quarentão, como eu costumo provocá-lo, e sempre achou Alex uma péssima companhia. Bom, ele realmente era, mas não para mim. Eu sabia das loucuras que Alexios aprontava, seu envolvimento com drogas, farras, lutas valendo dinheiro e rachas pela cidade. Ele não foi um adolescente fácil, mas sempre me tratou como se ainda conservasse o menino que eu conheci. Sempre me deu conselhos para ficar longe de tudo aquilo que ele mesmo fazia, nossa amizade sempre foi separada das outras companhias dele.
Ainda assim, Dani nunca gostou de Alexios, em compensação, tornou-se um dos grandes amigos de Millos Karamanlis, primo do Alex, mesmo que eu não consiga entender o que, de fato, o executivo tatuado e meu irmão tenham em comum.
— Desculpe-me por tê-la tirado da festa da Kyra — meu irmão volta a falar, afastando-me dos pensamentos. — Eu liguei para o doutor Henrique e já ia pedir uma ambulância, quando fiquei com medo de acontecer algo e você não estar aqui.
Pego sua mão.
— Eu sei. Foi um susto!
Retornei as ligações dele assim que Kyra me alertou, e, quando Dani atendeu, o doutor já havia chegado e ministrado medicamentos. O médico preferiu que ela continuasse em casa por conta de sua baixa imunidade, mas ficou acompanhando durante boa parte da madrugada.
— Ela convulsionou, e eu achei que fosse... — Ele me olha, seus olhos acinzentados tristes. — Eu quase perdi o papai tempos atrás, lembra? — Assinto. — Eu estava com ele quando teve o infarto, e agora quase...
— Dani, não pensa nisso! — Abraço-o. — Você é o melhor filho e irmão do mundo, sempre ao lado deles, ao meu lado. Agora estou aqui também e vou ajudar no que for preciso.
— Eu sei, Samara. Essa fase do tratamento é a mais complicada, por causa da baixa imunidade, mas, quando ela estabiliza, é a mamãe que sempre conhecemos e amamos.
— E a Bianca? — pergunto-lhe sobre sua noiva. — Como vocês estão, faltando pouco para o grande dia?
Ele ri sem jeito.
— Você sabe que não tem essa de grande dia, não? Nós vamos ao cartório, assinaremos os papéis e pronto. — Dá de ombros. — Vida que segue.
Cruzo os braços. Não gosto nada desse conformismo estranho.
— Tem certeza disso, Dani?
Ele olha para a Cida.
— Vou fazer 41 anos, pirralha. 15 anos de relacionamento com ela, então...
— É isso? — Cida balança a cabeça negativamente. — Viu? A Cida não concorda também! E não é que você seja já um solteirão arrastando chinelos, Dani! Você é lindo!
— Não é sobre isso, Samara.
— Ele quer ter uma família, menina. — Arregalo os olhos. — Seu pai vive mais entretido na fazenda do que aqui, sua mãe, antes de adoecer, não parava quieta, sempre viajando com as amigas e...
— Eu na Espanha.
Daniel termina o café sem me encarar, sem falar nada e se levanta.
— Vou voltar para o quarto, render um pouco a enfermeira.
— Também vou, Dani!
Seguimos juntos, mudos, pelo corredor. Meu irmão é a pessoa mais discreta do mundo, completamente o oposto de outros filhos de grandes empresários desta cidade. Nunca gostou de sair em revistas de fofoca, nunca namorou modelos, atrizes ou socialites. Na adolescência, namorou uma garota da escola, depois teve duas ou três namoradas na faculdade e, por fim, conheceu a Bianca em um torneio de polo – esporte em que ele é fera. Desde então engataram nesse relacionamento xoxo, totalmente ioiô – eles já terminaram umas 30 vezes ao longo dos anos – e que agora vai se tornar um casamento meia-boca.
— Você merece mais, Dani — solto sem conseguir frear minha língua, e ele ri.
— Você diz isso porque é minha irmã, pirralha. — Ele tenta bagunçar meus cabelos como quando eu era criança. — Bianca pode não ser o grande amor da minha vida, mas é uma boa amiga e companheira.
— Isso é loucura! Você merece amar, ser amado, estar apaixonado...
— Como você esteve a vida toda por aquele doidivanas? — Paro em seco no corredor e arregalo os olhos. — Qual é, Samara, você achava que eu não sabia? Estava escrito na sua testa e em todos os seus cadernos, com direito a corações rosa! Você teve um peixe daqueles que ficam sozinhos no aquário...
— Um beta. — Começo a rir, sabendo exatamente do que ele está lembrando.
— Pois bem, você teve um beta e o nomeou...
— Beto Schneider Karamanlis — falamos juntos, e eu começo a rir.
— Sim! E como você nunca me deu indícios de ter uma queda pela Kyra, eu supus que era o outro Karamanlis. — Daniel me olha sério. — Por que Diego não veio contigo?
A pergunta é tão inesperada que demoro a processar que ele está falando do meu namorado.
— Não sei quanto tempo vou ficar, então...
— Besteira! Ele poderia passar uns dias aqui contigo, os times estão todos em recesso até a primeira semana de janeiro. — Suspiro e olho para o chão. — Não estraga sua vida, Alex não vale a pena.
Assinto, lembrando-me de tudo o que aconteceu noite passada. Alexios continua igual, vendo e querendo todas as mulheres ao seu redor, menos eu. Sempre fui a amiga, quase uma irmã, menos uma mulher, e, como acabei de perceber, todos sabem da minha paixão por ele, então, Alexios deve simplesmente ignorá-la.
Por muito tempo eu achei que ele não soubesse. Ficava fantasiando que, no dia em que eu tomasse coragem e lhe contasse, Alexios iria se declarar também. Iludida! É isso que eu era, porque, depois do beijo que trocamos, era impossível que ele não soubesse.
Respiro fundo, resignada. Alexios sabe, só não se importa e nem sente o mesmo!
Meu irmão bate levemente na porta do quarto de mamãe e em seguida entra. Sigo-o pelo enorme ambiente, que me traz tantas lembranças alegres dos momentos que dividi com ela, deitada em sua cama, contando sobre meus sonhos.
— Samara Esther! — Mamãe estende os braços, sentada na cama, recostada nos travesseiros. — Trouxe Godofredo de volta?
Rio e concordo.
— Trouxe, está lá embaixo no jardim. — Beijo sua testa. — Como está se sentindo hoje?
— Eu estou bem! — Ela dá uma olhada de esguelha para meu irmão. — Ele é superprotetor, sabe? Exagerado!
Daniel permanece alheio às críticas, conversando com a enfermeira.
— Mamãe, ele não é, e a senhora sabe! — Ana suspira. — A senhora está em tratamento, precisa de cuidados, e, com o papai isolado na fazenda, Daniel é que estava responsável por acompanhá-la em tudo, mas agora estou aqui também!
— Dois superprotetores! — ela finge reclamar, mas sorri satisfeita. — Seu pai quis vir para cá para ficar comigo, mas achei melhor que ficasse por lá. Você sabe como ele é, não me daria um minuto de paz.
Eu rio, mas sou obrigada a concordar. Meus pais são incríveis, mas têm uma relação um tanto estranha desde que Daniel e eu saímos de casa para viver nossas vidas. Passaram a viver cada um no seu espaço, com suas coisas. Dão-se incrivelmente bem, mas cada um com sua vida.
É verdade que eles não eram nada parecidos. Mamãe sempre foi uma mulher de negócios, cheia de trabalho, viagens e reuniões, porém extremamente carinhosa com os filhos. Papai é um homem mais reservado em seus sentimentos, embora seja um artista.
Olho para um dos móveis da minha mãe, e a escultura em madeira em cima dele me faz sorrir. Nela há um casal e um garotinho com a mão na enorme barriga da mulher. Papai deu vida à imagem de uma foto que tiraram quando mamãe estava grávida de mim, e a peça ficou tão perfeita que dá para sentir a alegria de todos.
Quando eu era criança, tinha coleções das esculturas dele: cavalos, cães, gatos, pássaros. A que eu mais gostava era a do Pinóquio, que ganhei quando comecei a ler e andava para baixo e para cima com o livro do boneco de madeira que queria ser menino de verdade.
— Você vai até lá visitá-lo? — minha mãe pergunta, talvez adivinhando que estou pensando nele, por estar olhando a estátua.
— Por agora não. Tentei falar com ele quando cheguei e ontem também, mas não consegui. — Dou de ombros. — Papai se isola quando quer, a senhora sabe.
— O doutor Henrique acabou de dizer que os resultados dos exames ficaram prontos e que ele virá assim que puder para conversar conosco. — Daniel senta-se ao meu lado na cama. — É bom ter Samara aqui perto, não é?
Ele me abraça pelos ombros.
— Eu também estou gostando de estar de volta.
Mal termino a frase, e meu telefone toca. A foto de Kyra tentando beijar Godofredo, e ele de boca aberta para mordê-la aparece na tela, e minha mãe sorri.
— Eu estou esperando pela visita dessa filha emprestada desnaturada. — Ana reclama. — Pode dizer a ela que não vai comer mais minha paella!
— Pode deixar! — Levanto-me da cama e vou para um canto do quarto. — Oi, Kyra! — atendo o telefone.
— Quero notícias! Mal consegui dormir essa noite, deixei mil mensagens no seu telefone. Como está sua mãe?
— Está bem, mas ameaçou greve de paella se você não vier visitá-la em breve.
— Está bem mesmo? — ouço preocupação na voz da minha amiga, e meu coração se aperta, pois sei que minha mãe foi o mais próximo que Kyra teve de figura materna. — Malinha?
— Está, sim. O médico dela explicou que, por conta da medicação, ela ficaria suscetível a doenças, a imunidade está baixa, então qualquer resfriado ataca com força.
Kyra suspira ao telefone, e eu abro um sorriso ao ver o quanto minha amiga durona é, na verdade, tão sensível quanto eu.
— Que bom! Fico feliz em ouvir isso e mais aliviada para te fazer um convite.
Faço careta, já prevendo que ela vai me meter em algum evento seu de final de ano, vestida de garçonete.
— O que você está armando, Kyra?
— Nada! — ela logo se defende, indignada. — Eu só queria companhia! Na véspera do Ano Novo acontecerá o Baile Branco e Preto dos Villazzas, e, como eu estou sem nenhum boy no momento, você podia ser meu par, o que acha?
— Kyra! — Rio. — Um baile? Sério?
— Baile? — mamãe logo se mete na conversa e pergunta lá da cama. — Por acaso é o baile dos Villazzas?
Fodeu! Minha mãe sempre amou bailes e conheceu a matriarca dos Villazzas tempos atrás, através de sua amiga, Cecília Novak. Certamente ela adorará a novidade, achará moderno eu ir acompanhando minha amiga, e eu não terei escapatória.
— É, mamãe, eu vou com Kyra — respondo resignada.
— Eu sabia! — Minha amiga ri ao telefone. — O traje branco é obrigatório para mulheres, então, abuse de cores em outros locais!
— Eu vou te matar, Kyra Karamanlis! — sussurro para que somente ela escute.
— Depois do baile; antes, quero usufruir de tudo o que planejei! Vai ser o evento mais incrível que você já viu!
Relaxo, percebendo que ela realmente está feliz e confiante.
— Tenho certeza disso, Kyra!
Nós nos despedimos, mas não retorno imediatamente para a cama, ao lado da minha mãe e do meu irmão, fico pensando em como é bom estar de volta. Realmente me sinto em casa aqui, com as pessoas que eu amo, ainda que tenha feito amigos na Espanha.
Penso no Diego e sinto um pequeno aperto no coração, um misto de saudade e remorso. Daniel me olha, curioso por eu estar parada no mesmo lugar, sem falar ou fazer nada, e reflito sobre o que ele me disse. Reconheço que eu recuei ante o pedido de casamento de Diego por ter esperança de voltar ao Brasil e encontrar Alexios mudado, porém ele não mudou e nem mudará jamais, mas isso não muda o fato de que ele ainda mexe comigo.
Diego e eu nos damos muito bem, somos amigos, companheiros, temos gostos parecidos. Enquanto eu estava na Espanha, longe do magnetismo e atração de Alexios, realmente pensei que pudesse amá-lo e ter uma vida com ele. Os momentos que passamos juntos foram maravilhosos, mas agora me questiono se, mesmo voltando para Madri, é justo manter essa relação.
O Uber me deixa em frente ao Villazza SP, e vejo a entrada principal do hotel cheia de pessoas bem-vestidas e penteadas. Ando na direção delas, questionando-me se os convites estão sendo verificados na entrada, mas me surpreendo ao ouvir um dos homens que está parado na entrada:
— Nós só queríamos comprar o convite, não conseguimos responder a tempo e...
— Senhor, o que me foi passado foi que esgotaram, eu sinto muito — um dos seguranças responde antes de se virar para mim, mas, vendo o convite em minhas mãos, abre a porta. — Seja bem-vinda!
Entro no saguão principal do enorme hotel e suspiro, apreciando todos os detalhes da construção e da decoração, orgulhosa por ter sido parte da equipe que ajudou a deixá-lo perfeito desse jeito.
O escritório de arquitetura que projetou o Villazza SP foi o dos Boldanis, e o arquiteto principal que assinou o desenho foi ninguém mais, ninguém menos que meu ídolo e professor, Julio Boldani. O italiano é fera demais nas suas linhas clássicas misturadas às modernas.
Eu ajudei o pessoal que compôs o projeto de decoração, pois estava me especializando e, por isso, trabalhei um tempo no Boldani. Foi ali que descobri que, por mais que papai fizesse pressão para que eu fosse uma arquiteta, eu queria mesmo era ser designer de interiores.
Subo as escadarias de mármore com corrimão e guarda-corpo de ferro fundido na cor ouro velho em arabescos e folhas e, no saguão da entrada do salão Royal, encontro a recepção do baile montada como se fosse uma bilheteria antiga de circo.
Sorrio ao pensar na Kyra, reconhecendo que minha amiga sabe como dar vida aos seus projetos de maneira perfeita, pois vi os desenhos quando almoçamos juntas anteontem e confesso que está tudo muito mais bonito do que a ilustração em 3D que ela me mostrou.
Olho em volta, procurando-a, pois combinamos de nos encontrar na entrada, mas arregalo os olhos ao ver Alexios, de smoking preto, vindo em minha direção.
Mesmo contra a minha vontade, minhas mãos gelam e meu coração dispara apenas por vê-lo, por notar o quanto ele está lindo com esse sorriso largo e os olhos brilhando.
Por que ele tinha que ter essa aparência e essa boca?!, penso na injustiça do mundo, indignada por ser tão comum, e ele...
— Samara Esther. — Bufo, pois só ele e minha mãe chamam-me assim. — Você está... linda!
Alexios sorri e me olha desde as unhas dos pés, pintadas e cutiladas, até o alto da cabeça.
— Linda! — repete como se não fosse possível que eu estivesse desse jeito.
— Oi, Alexios — cumprimento-o seca, tentando não dar importância ao fato de que ele parece ter tomado um soco só por me ver mais arrumada. — Estou esperando sua...
— Eu sei, foi ela quem me mandou ficar aqui de plantão te esperando. — Enrugo a testa, sem entender. — Kyra resolveu bancar a fada madrinha e ajudar uma amiga a ter seu baile com um príncipe encantado e, por isso, vai ter que trabalhar esta noite. — A expressão no rosto dele é de deboche ao falar do conto de fadas. — Então, restou a mim.
Puta merda, Kyra!
Pego o celular dentro da bolsa e mando mensagem para ela, mas tenho certeza de que, ocupada com o começo do baile, ela não irá ler. O que eu faço? Penso se devo aceitar fazer companhia ao Alexios ou se devo ir embora, afinal, só vim a esse baile por insistência da Kyra.
— Samara, eu sei que nossa amizade está um tanto estremecida por conta da distância e do tempo, mas... — Alexios me encara, e noto que ele está se esforçando para falar — eu gostaria que você me acompanhasse esta noite.
Minha boca fica seca ao ouvir isso, porque, mesmo com a distância, eu ainda consigo saber quando ele está sendo sincero. Alexios me quer ao seu lado esta noite, e isso é...
— Como nos velhos tempos, lembra? — ele complementa, e, mais uma vez, percebo o quanto sou iludida.
Nada mudou!
Imediatamente me lembro do meu baile de formatura do ensino médio, no qual ele foi meu acompanhante. Chegamos juntos, eu estava empolgada para dançar com ele a noite toda, arrumei-me para parecer uma mulher aos seus olhos e não mais a menina de cabelos revoltos que o seguia para toda parte quando criança.
Havia decidido que iria contar a ele o que sentia naquela noite e que, depois de ele se declarar também, iríamos fazer amor, e eu, aos 17 anos, finalmente teria minha primeira noite com o homem que amava.
Ledo engano!
Alexios dançou uma música comigo, depois foi para o bar, encheu a cara, sumiu com uma garota bem mais “servida” que eu e voltou para o salão todo amarrotado. Eu queria ir embora, mas ele acabou dançando (e sumindo) com mais umas três mulheres.
— Seu acompanhante te deixou sozinha, não é? — Marlon, um dos garotos que estava se formando comigo me perguntou, e só aí percebi que ele estava sentado à mesa comigo.
Começamos a conversar e, naquela noite, tive minha primeira experiência sexual. Não foi ruim, namoramos por um tempo, mas reconheço que ela só aconteceu porque Alexios não me quis. Ele simplesmente não me via!
— Samara? — ele me chama e me faz voltar à realidade.
Por Deus! Não sou mais uma garota de 17 anos, sou adulta, independente, com uma carreira bem-sucedida na Espanha e um dos homens mais gostosos de Madri ao meu lado!
— Vamos entrar! — decido e marcho até uma das “bilheterias”, onde recebo minha máscara preta e uma pulseira.
Alexios recebe as dele e ri ao me mostrar a máscara branca como a de O Fantasma da Ópera. Ah, merda!
— Você se lembra? — Ele ri. — Me obrigou a ver esse filme um milhão de vezes e sabia até as falas!
O desgraçado põe a máscara, ergue uma das sobrancelhas, dobra-se em reverência e sorri.
— Vamos logo com isso! — Saio de perto dele sem rir de sua gracinha, coração retumbando, a cabeça cheia de lembranças da nossa adolescência.
Quando as portas se abrem, perco o fôlego ao ver o que Kyra idealizou.
— Puta que pariu, minha irmã é foda! — Alexios fala ao meu lado.
Eu pulo de susto, não por causa do que ele disse, nem mesmo ao ver um dos artistas cuspindo fogo, mas tão somente por sentir a sua mão em minha cintura. Meu corpo inteiro aquece, a pele arrepia e aquela sensação que sinto desde que os hormônios despertaram em mim na adolescência volta a me tomar.
Atração! Química!
Não sei explicar, mas meu amor de criança transformou-se nisso quando me tornei moça, e a cada toque, cada resvalo, eu resfolegava. Sonhava com ele, acordava suada e sem saber o que estava acontecendo. Meu primeiro orgasmo com masturbação foi pensando nele, instintivo, depois de um sonho erótico e proibido.
Achei que, com a distância, principalmente depois que me envolvi com Diego, isso ia passar, mas parece que me enganei.
Olho-o e percebo que ele permanece alheio ao que me causa, sua atenção tomada pelos malabares que executam movimentos precisos na entrada do baile.
Respiro fundo.
— Vamos?
Ele assente sem me olhar, e seguimos juntos, passando entre os convidados que ainda se encontram de pé conversando ou bebendo no bar, em direção ao centro do salão, tomado de mesas e cadeiras reservadas.
— Onde nós...
Nem preciso terminar a pergunta, pois logo vejo Theodoros Karamanlis, acompanhado de uma lindíssima loira, a uma mesa com o sobrenome deles na placa de reserva. Eu não sou muito fã do irmão mais velho de Alexios, mas sempre fui educada com ele, então armo meu melhor sorriso e o cumprimento:
— Theo! Que bom vê-lo esta noite! — Olho para sua acompanhante agora mais de perto e sinto como se a conhecesse de algum lugar.
— Samara, essa é Valentina de Sá e Campos — Theodoros nos apresenta, e eu sorrio, reconhecendo os sobrenomes dela. — Valentina, essa é a Samara Schneider, uma incrível designer de interiores.
— É um prazer, Valentina! — saúdo-a.
— O prazer é meu, Samara. — Valentina sorri. — Nos conhecemos já?
— Eu acho que sim, embora não me recorde de onde pode ser.
A loira para a fim de tentar se lembrar, e eu ouço a conversa entre Theo e Alexios.
— Viu só esse trabalho da Kyra?
— Claro! — Alexios debocha do irmão. — Seria impossível não ver, já que estou aqui! Já fui até cumprimentá-la, mas está tão ocupada que não consegui nem falar com ela direito.
Só o suficiente para que ela o encarregasse de me acompanhar nesta noite! Kyra me paga!
— Imagino que esteja. Viu o Kostas? — Theo pergunta, mas não consigo ouvir a resposta de Alexios, pois Valentina volta a falar:
— Lembrei! — ela comemora. — Nos encontramos na festa de inauguração da loja da Miriam Benides, lembra?
Eu não faço a mínima ideia do que ela esteja falando, mas, mesmo que não esteja com nenhuma vontade de prosseguir com a conversa, sorrio e concordo por educação.
— Puxa vida, quanto tempo não vejo você por lá! — Valentina continua.
— Eu estava morando em Madri — informo antes de me sentar.
— Ah, eu adoro a Espanha!
Sorrio sem graça, percebendo que vamos conversar. Não quero ser mal-educada com ela, é só que não estou muito confortável em estar aqui neste baile, não depois de perceber que ainda quero Alexios e que não adiantou de nada impor distância.
— Família! — a voz debochada de Kostas interrompe a conversa de Valentina, e ela me pergunta baixinho quem é o homem abraçado a uma loira com um vestido branco tão justo e transparente que beira à indecência.
— Konstantinos... — sussurro antes de ele apresentar sua acompanhante a todos.
— Bruninha, conheça os Karamanlis! — Ele aponta para Alexios e para Theodoros. — Claro que você pode deixar seu cartão com eles depois, mas eu sou o mais bonito, não sou?
Ele faz a mulher girar em seu próprio eixo, e, pela primeira vez depois da tensão toda em que eu estava desde que vi Alexios, sorrio divertida. Kostas é uma figura! Ainda me lembro de quando ele morava no prédio, na cobertura de seu pai, e juro, se não fossem os olhos azuis e a voz, eu diria que não se trata da mesma pessoa!
— Já bêbado? — Theo pergunta a Alexios.
— E mais uma vez com acompanhante paga! — Alexios se aproxima de Theo e cochicha, e isso me surpreende. Não sabia que os dois estavam conseguindo ter uma relação tão cordial. — Estou achando que nosso querido irmão é do outro time.
Theo gargalha e nos olha sem graça.
— Perdoem-me, foi irresistível! — Tenta se conter e bebe mais do seu uísque. — Bom, certamente ele é arrogante e orgulhoso demais para “sair do armário”.
Quem? Kostas?! Olho para o homenzarrão com a prostituta e nego instintivamente com a cabeça. Não mesmo!
— Seria apenas mais um rejeitado pelo seu querido pappoús! — ouço Alexios dizer isso, e meu coração aperta. Olho-o, respiro fundo, lamentando profundamente por ele ainda se sentir rejeitado, percebendo que isso também não mudou.
Rejeição, abandono, violência o tornaram o homem que é. Sei disso, dei essas desculpas para seu comportamento por muitos anos. Toda vez que ele aprontava, eu usava isso para justificá-lo.
Até quando?, penso, olhando-o fixamente. Até quando ele deixará que os erros dos outros façam-no errar também?
— Você gosta muito dele, não é? — Valentina dispara, e eu desvio os olhos de Alexios. — Seus olhos brilham diferente ao olhar para ele.
— Somos amigos há muitos anos — disfarço.
— Bom, isso é muito bom, mas... — Ela ri. — Desculpe-me se estou sendo invasiva, mas seu olhar é de quem é apaixonada, não apenas uma amiga.
Dou um sorriso amarelo para ela, e Valentina fica quieta.
— Tudo bem aí? — Alexios me pergunta, e eu assinto. — O jantar já tinha sido anunciado antes de você chegar, então não deve demorar muito.
Resolvo conversar com ele normalmente, afinal, seria ridículo fazer birra na minha idade.
— Kyra estava muito ansiosa com o jantar desta noite. Um grande chef internacional, ela me contou, é quem está preparando tudo.
— Sim, está na programação. — Alexios lê o nome do chef francês, e eu não consigo deixar de olhar sua boca. Pego a taça de champanhe e a viro de uma só vez. — Uau! — Sorri e faz sinal para um garçom se aproximar com mais. — Minha acompanhante está sedenta.
— Estou. — Decido não discutir e bebo a outra taça. — E com fome também.
Alexios toca minha coxa por cima do vestido, mas logo tira a mão.
— O jantar não deve demorar — repete sério e se vira para olhar o outro lado do salão.
Fico um tempo olhando para minhas pernas, permitindo a sensação de brasa que a mão dele deixou em minha coxa passar, chateada demais por reagir assim a ele e continuar sendo praticamente invisível.
Que porra é essa que está rolando?
Essa pergunta retórica fica martelando minha cabeça enquanto tento prestar atenção em qualquer coisa neste maldito salão lotado que não seja ela. Eu só posso estar com algum problema, só pode! Samara sempre foi minha amiga, quase minha irmã. Eu estar aqui com uma maldita ereção – pela segunda vez esta noite, frise-se – só pode ser loucura!
Preciso de um médico! A loucura congênita dos Karamanlis começou a se manifestar em mim. Sentir tesão por Samara é quase... incestuoso!
Pego a taça com champanhe e a termino em uma só golada a fim de aplacar o fogo que apenas um toque em sua coxa me causou.
A verdade é que eu não esperava encontrar-me com ela nesta noite. Vim por insistência do Millos e, claro, por sua maldita manipulação eficaz ao falar da Kyra e do suporte a ela em seu primeiro grande evento. Cheguei junto aos primeiros convidados e a encontrei correndo de um lado para o outro, “armando” uma surpresa para sua amiga e funcionária, a gostosa da Helena, que, por sinal, está namorando o Bernardo Novak, um amigo de longa data.
Quando finalmente ela terminou todos os preparativos, foi à cozinha falar com o tal chef francês que a estava deixando nervosa, conferiu tudo com as bandas, DJ e artistas circenses é que me deu atenção.
— Oi, Alexios. — Sorriu cansada. — O baile nem começou direito, e eu já estou de um lado para o outro. — Ela espiou a fila se formando na recepção do evento. — Gostou da decoração?
Seus olhos verdes, como os meus, brilharam ansiosos. Eu cheguei perto dela, beijei sua testa e falei baixinho:
— Está tudo perfeito, Kyra. Parabéns, estou muito orgulhoso!
Ela suspirou e depois se afastou.
— Claro que está! Não tinha dúvida alguma disso. — E, do nada, pegou-me pela mão e me arrastou em direção ao salão. — Vem ver!
— Kyra, eu ainda não troquei meu convite e...
— Ah, Alexios, vem ver!
A decoração estava esplêndida, embora eu soubesse que, com os efeitos de luz e os artistas executando seus números, iria ficar ainda mais incrível. A banda, no palco ao fundo do salão, já estava se posicionando, e alguns funcionários de Kyra ajeitavam os últimos detalhes das mesas, arranjos florais ou acendiam as velas.
— Perfeito! — elogiei-a novamente.
— Você ainda não viu nada! — E deu aquele sorriso que eu sei que fode com a cabeça de qualquer homem. É duro ter uma irmã como ela, linda e sexy, e ver os caras babando em cima e não poder socar a fuça de nenhum. — Ah, preciso de um favor.
Estava demorando!
— Kyki, estou de smoking, mas ainda não sei segurar uma bandeja — sacaneei.
— Não, seu idiota! — Ela me estapeou as costas. — É meu par desta noite! Não vou poder participar do baile como havia previsto, então preciso que você faça companhia...
— Ei, ei, pode parar! Não vou ficar pajeando nenhum marmanjo não!
Ela rolou os olhos.
— Não é marmanjo, idiota! Posso terminar de falar? — Assenti. — É a Samara. Convidei-a a vir comigo esta noite e não quero que fique sozinha.
Samara Esther Schneider!
Fiquei um tempo olhando para Kyra, tentando entender se ela tinha feito isso de propósito, para tentar nos reaproximar, afinal, sempre fomos um trio de amigos/irmãos, e, com a relação entre mim e Samara estremecida, Kyra devia estar um tanto confusa.
— Sem problema. — Sorri. — Você avisou a ela?
— E Samara atende aquele celular? — Ela bufou. — Você terá que esperá-la lá fora. Se importa?
— Não — fui sincero.
— Ótimo, agora vaza, porque ainda tenho coisas a fazer antes de abrirmos o salão. — E, do mesmo jeito que me arrastou, colocou-me para fora.
Fiquei um bom tempo esperando por Samara do lado de fora, o que foi surpreendente, pois ela sempre foi pontual. Vi o salão ser aberto, o baile começar, o discurso do doutor Andreas Villazza, o anúncio do jantar, e nada de a minha (ex?) melhor amiga chegar.
Estava olhando para um detalhe na construção do hotel, executada pela Novak Engenharia, quando meus olhos foram atraídos para o topo da escadaria. Não é exagero eu dizer que meus olhos foram atraídos, porque foi como se um ímã puxasse minha atenção para aquele ponto.
Engasguei-me com minha própria saliva ao ver Samara. Sim, ela estava linda, mas não foi o vestido branco ou o penteado elaborado que chamou minha atenção, foi ela.
Ela é linda e, por conta da nossa amizade e do receio que tinha de machucá-la, parei de perceber sua beleza e não notei a mulher que se tornou.
Fiquei parado, tomando nota de tudo, como se a estivesse vendo pela primeira vez, sentindo um incômodo por estar olhando-a com lascívia, afinal, era a Samara!
Balancei a cabeça, tentando voltar a pôr os neurônios no lugar, justificando para mim mesmo que isso aconteceu por causa dos anos distantes, mesmo sabendo que isso era pura enganação, pois ela não mudou nada nesses últimos anos.
O que aconteceu, então? Não sei, ainda estou confuso, tentando entender por que fiquei excitado com o perfume dela ou por que meu pau acordou apenas por eu a ter segurado pela cintura a fim de andar com ela até a mesa.
Tive que ficar parado, olhando para os malabares sem vê-los realmente, com cara de paisagem, fingindo que nada estava acontecendo. Eu não queria que ela soubesse que eu estava reagindo daquela forma a ela; certamente ficaria horrorizada. Sempre fomos como irmãos!
Tentei me conter, agradeci por Theodoros e sua companhia já estarem à mesa, fiquei um tempo distraído conversando com meu irmão mais velho, mesmo que isso fosse uma dor no saco. Não sou tão rancoroso quanto o Konstantinos sobre o Theo, apesar de concordar com meu irmão sem noção sobre ele nos ter abandonado nas mãos do louco Nikkós, mas o que Theodoros poderia fazer? Eu mesmo estive nessa situação quando pude sair de casa, mas não tinha como tirar Kyra dele, por isso fiquei.
O DJ que executa as músicas antes do jantar e da banda ao vivo coloca My Immortal, de Evanescence, e é impossível não olhar para Samara.
— Sua música preferida na adolescência — comento com ela.
Samara sorri e balança a cabeça, olhando os casais indo para a pista de dança.
— Tocou na minha formatura...
— Eu sei, eu queria dançar com você, mas você não parecia muito a fim, então fui beber.
Ela arregala os olhos e me encara como se não soubesse do que eu estou falando. Provavelmente nem se lembra, estava nervosa e ficava repetindo o caminho todo dentro do carro que a gente nem deveria ter ido, que era besteira.
Não somos mais adolescentes!
— Quer dançar? — inquiro impulsivamente e estendo a mão para ela.
Samara olha para minha mão por um tempo, mas aceita.
Porra, que loucura!
Ela pega minha mão, e minha vontade é de puxá-la para mim e beijar sua boca. Foda! Não consigo mais refrear meus desejos; sempre consegui com ela, por isso não entendo o que está acontecendo agora. Não é qualquer mulher aqui comigo, indo para a pista de dança para ficar de corpo colado no meu – porra! – é a Samara!
Samara!
Minha amiga de infância!
Quase uma irmã...
MERDA!
— Está tudo bem? — ela me pergunta, e eu tento relaxar, já que estou dançando como antigamente: a um palmo de distância dela.
— Sim, tudo. — Tento dar meu famoso sorriso, mas não rola, então pigarreio. — Estou com sede, calor... acho que é essa decoração toda.
— Pode ser. — Ela desvia os olhos de mim. — Quer voltar para a mesa?
Quero!
— Não, a não ser que você...
— Tudo bem.
Ela se solta de mim no exato momento em que a música muda para um instrumental baixo e as luzes se acendem.
— O jantar. — Aponto para os garçons em fila e os convidados voltando aos seus lugares. — Vamos?
Salvo pelo gongo do cozinheiro!, penso ao ajustar disfarçadamente minha calça para não andar de pau duro e assustar a todos por causa da claridade do salão.
Samara bebe mais uma taça de champanhe, e eu rio, já preocupado. Nunca a vi beber tanto! Sempre foi séria, careta, estudiosa e boa filha. Ela nunca fazia nada de errado, nunca decepcionou os pais, fazia tudo o que eles queriam... quer dizer, tudo menos se afastar de mim.
— Acho que já quero ir — ela comenta de repente. — Vou chamar um Uber...
Levanta-se um pouco tonta, e eu a amparo pela cintura.
— Você quase não comeu, e bebeu muito — falo, e ela levanta uma sobrancelha atrevida e irônica para mim. — Não estou dando lição de moral, mesmo porque não tenho nenhuma, apenas constatei um fato.
Ela ri.
— Você não tem nenhuma moral mesmo! — arrasta a última palavra. — Sempre foi um galinha, essa cara de santo aí só engana as outras!
Gargalho.
— Elas não ficavam enganadas por muito tempo, pode acreditar!
Samara funga, indignada, e fecha os olhos.
— Eu acho que realmente bebi demais.
Olho em volta; o salão já está praticamente vazio, apenas um ou outro convidado conversando em pequenos grupos. Theodoros se despediu, com Valentina grudada em seu pescoço, há mais de uma hora, e Kostas nem jantou conosco à mesa, provavelmente ficou no bar com sua acompanhante.
Inicialmente eu tinha pensando em esperar tudo terminar para acompanhar Kyra até em casa, mas, com Samara no estado em que se encontra e com tudo aqui ainda para ser desmontado, é melhor eu levar minha amiga para casa – aproveitando que moramos no mesmo prédio – e voltar mais tarde para acompanhar minha irmã.
Pego a pequena bolsa que ela trouxe e, ainda abraçado a ela, caminho para a saída.
— Alexios... tudo está rodando...
— Muito natural depois de todo aquele champanhe.
Ela suspira e joga a cabeça para trás.
— Você é um chato, sabia? Não posso entender o que todas aquelas mulheres viam em você!
— Imagino que não possa mesmo — respondo-lhe, sabendo que vai se irritar.
Samara sempre disse que eu respondia politicamente ou me evadia quando sentia que o assunto poderia ir para alguma direção que não me deixaria confortável. Ela tinha razão na maioria das vezes, mas, neste momento, só estou a fim de irritá-la.
— Você é um babaca, Alexios Angelos!
Opa! Falou meu nome todo! Rio de sua irritação bêbada, talvez por estar um tanto alto como ela, mas sóbrio o suficiente para carregá-la em segurança até a calçada.
Não vim de moto ou carro sozinho exatamente por saber que iria beber – principalmente para aguentar sozinho a companhia dos meus irmãos à mesa –, porém previ que a saída do baile estaria um inferno e que seria difícil conseguir um táxi ou um carro de aplicativo que estivesse por perto, por isso deixei o Cris, que me trouxe, de sobreaviso no estacionamento.
Mando mensagem para ele e espero até meu carro aparecer. Abro a porta de trás e coloco sobre o banco uma Samara parcialmente adormecida por cachaça francesa.
— Essa foi nocaute! — Cris ri quando eu entro. — Para onde?
— Para o Castellani. — Ele dá um sorrisinho malicioso e pisca. — Ela é minha vizinha, Cris, sossega.
— Falou, chefinho.
— Para de merda e dirige.
Ele tenta sair da entrada do hotel, mas é praticamente impossível com o número de carros que também tentam deixar o local. Olho para trás, confiro que Samara está mesmo apagada e fecho os olhos, recostando-me contra o assento do carona.
— Foi uma festança, hein? — Cris volta a falar. — Só vi entrar filé, pena que a maioria estava acompanhada.
— Geralmente isso não é problema — comento, mordaz. — Já comi muita mulher no banheiro de recepções como essa enquanto o marido conversava com os amigos e falava de negócios.
Cris gargalha.
— Você nunca valeu nada, Lex!
Não retruco o apelido ridículo com que ele me chama e me faz parecer o vilão do Homem de Aço. É pura perda de tempo ralhar com Cristino, então simplesmente ignoro, cansado, meio zoado e com tesão frustrado.
Ele e eu nos conhecemos há alguns anos, quando visitei um dos prédios da Karamanlis que foram invadidos por movimentos pró-moradias. O homem era motorista de profissão, com anotação em sua carteira de trabalho em várias empresas, que juntou todo o dinheiro que tinha, investiu em um carro e um ponto de táxi, mas foi engolido e enxotado pelas grandes cooperativas.
Assim, quando nos conhecemos, ele estava sem casa, sem carro, sem emprego e com uma enorme dívida, fazendo bicos aqui e ali. Ajudei-o primeiro a conseguir emprego, depois por fim saiu da invasão, e, nesse ínterim, nos tornamos amigos.
Ano passado, quando a filha dele nasceu, quis que eu a apadrinhasse, mas educadamente declinei, explicando que, mesmo honrado, não poderia aceitar, pois sou ateu, e o apadrinhamento de uma criança tem a ver com questões religiosas, tem um sentido específico, e eu não seria a pessoa certa para isso. Ele entendeu, mas a garotinha já me chama de Didi (seu jeito fofo de bebê de chamar seu dindo, mesmo que oficialmente eu não o seja).
Acho que cochilei também até o Castellani, pois, quando me dei conta, já estávamos na garagem. Cris me perguntou se eu queria ajuda com Samara, mas agradeci e o mandei para casa. Ele não trabalha como meu motorista diariamente, mas sim na Karamanlis, transportando quem quer que precise fazer serviços externos. Contudo, toda vez que preciso, chamo-o para ganhar um extra.
Há muito parei de combinar bebida e direção, não por mim, mas por medo de acontecer algum acidente e eu acabar prejudicando outras pessoas.
Chamo o elevador, e somente dentro dele é que a bela adormecida parece voltar a si.
— Alexios... — Samara olha em volta. — Este é o elevador do Castellani?
— Parece que sim — respondo-lhe divertido.
Samara bufa.
— Só desmaiada é que eu aceitaria vir com você na direção nesse estado em que se encontra.
— Estou melhor que você. — Ela se encosta contra o espelho, olhos fechados e um enorme sorriso bêbado no rosto. — Além do mais, viemos com motorista.
— Bom... — Samara fala devagar e lambe os lábios como se estivessem secos. O efeito no meu pau é instantâneo. Sinto meu corpo inteiro acender, minhas mãos formigam de vontade de tocá-la. Sua pele parece brilhar, atraindo-me como uma chama atrai uma mariposa.
Tento me afastar, pensar em outra coisa, mas o espaço reduzido do elevador não ajuda. As paredes parecem se fechar cada vez mais, aproximando-me de Samara, apertando-me contra ela, espremendo meu corpo...
— Alexios... — ela geme meu nome, e eu me espremo mais, fazendo-a grudar contra o espelho. O seu perfume inebria meus pensamentos, a pele, tão quente e macia que a sinto mesmo por baixo do vestido, me enlouquece. Preciso provar o sabor de sua boca, conferir se o hálito quente e um tanto etílico se confirma em sua saliva.
Sim!
Agarro-a com mais força, minha ereção pressionada contra sua barriga, minha boca correndo em seu pescoço. Tudo parece congelar à nossa volta, não existe mais tempo e nem espaço, apenas o vácuo e nós dois dentro dele, em chamas.
Lábios nos lábios. Meus dedos esfregam sua nuca, a pele arrepia, os pelos eriçam, meu corpo treme. É a viagem mais louca que eu já fiz sem ser através de uma substância química entorpecente... não! É química ainda, é uma droga viciante, é tesão!
Devoro sua boca sem nenhum pudor ou impedimento. Ela me acolhe, abre-a para minha exploração, prende meus lábios entre seus dentes e morde com força, despertando com a dor ainda mais meu desejo.
Enfio os dedos no meio do seu penteado, seguro o cabelo com força, e ela retribui o desespero cravando as unhas nos meus ombros.
Estou pronto para fodê-la, minha cabeça já trabalha uma forma de abrir o zíper da calça social, sacar meu pau e buscar o caminho de sua boceta, que, a julgar pela forma com que ela come a minha boca, já está molhada e quente.
Um pigarrear me faz sobressaltar, e eu me afasto dela o mais rápido possível. Um casal de idosos também vestido em black tie entra no elevador no saguão do prédio, sinal de que o elevador subiu e desceu de novo enquanto nós dois quase nos comíamos dentro dele.
Olho para Samara, mas ela não parece constrangida ou assustada, apenas passa a mão pelos lábios e me encara, sua expressão cheia de perguntas e curiosidade.
Caralho, o que eu estou fazendo?! É a Samara, minha amiga, aquela que eu sempre quis manter longe desse meu lado sem vergonha! Puta que pariu!
Espero o casal descer em seu andar e, assim que as portas se fecham, respiro fundo.
— Desculpa, Samara, acho que estou mais bêbado do que imaginei a princípio. — Não tenho como olhá-la, dividido entre o constrangimento e o desejo ainda pulsando na minha calça. — Somos amigos, eu não deveria atacar você dessa forma, me des...
— Para! — sua voz soa magoada, e eu tenho vontade de socar a cabeça contra o espelho. — Não precisa dizer mais...
— Eu prometo que isso não voltará a acontecer. — Finalmente a encaro e fico fodido ao ver sua expressão confusa. Ela parece não ter gostado do que aconteceu, deve estar achando que eu sou um filho da puta aproveitador. — Você é minha amiga, Samara, mesmo depois dessa distância, eu ainda a vejo como se fosse minha irmã e...
— Chega! — ela grita, e as portas do elevador se abrem no seu andar. — Você tem razão, foi um erro e não deve voltar a acontecer!
Ouvir isso é como um balde de água fria, mesmo reconhecendo que é o certo.
— Eu não quero que isso afete novamente a amizade que nós temos e...
Samara sai pisando duro do elevador sem olhar para trás. Minha vontade é de correr atrás dela, voltar a encostá-la em alguma parede e beijá-la novamente até que perca a razão ou eu alivie esse tesão indesejável que estou sentindo.
As portas se fecham, e eu, ao invés de apertar o botão do meu andar, mando o elevador de volta para o térreo e chamo um Uber.
Preciso trepar!
— Essa sua cara de cachorro cagando na chuva é ainda ressaca do baile? — Kyra me pergunta, sentando-se ao meu lado na rede que ela tem em sua varanda. — Quer café?
Resmungo ainda com os olhos fechados:
— Quero paz!
Ela ri.
— Isso está em falta por aqui hoje, passa na semana que vem... — Encaro-a, puto com a piadinha. — O que aconteceu?
Não respondo, meus olhos fixos no topo do prédio do outro lado do parque. Balanço a cabeça, decidindo ser mais covarde do que tenho sido desde a madrugada do dia primeiro de janeiro e fecho os olhos para tentar nem pensar na confusão que arrumei.
— Você não deveria estar trabalhando hoje? Ou eu? — Kyra volta a me importunar, mas continuo mudo. — Mano, você continua o mesmo chato da porra de sempre! Fica aí com essa cara de Maria do Bairro e não abre a porcaria da boca para me contar o que diabos você fez dessa vez!
— Obrigado pela confiança em mim! — retruco irônico.
— Ah, boquinha para ser mal-educado comigo você tem! — Ela me cutuca o ombro, mas depois suspira e deita a cabeça nele. — Você sabe que faz merda, mas que eu estou aqui, disposta a te ouvir e te ajudar a limpar os cagaços. Somos uma dupla, você e eu, sempre fomos e sempre seremos.
— Costumávamos ser um trio... — assim que eu comento, imediatamente me arrependo, pois Kyra salta da rede – quase me derrubando no percurso – e emite um ensurdecedor: “ahá!”.
— Eu sabia que tinha acontecido algo na madrugada do baile! Samara está estranha, esquiva, e isso não é o natural dela. Que merda você aprontou? — Continuo ignorando-a, sem nenhuma disposição para contar sobre o beijo, o amasso e a confusão que isso criou em mim. — Alexios! — Minha irmã começa a pirar por causa do meu silêncio, mas, se me conhece um pouco, já deve imaginar que eu não irei abrir a boca para falar desse assunto. — Está certo! Você e sua maldita boca de siri. — Volta a se sentar, mas dessa vez não se deita em mim. — Alex, ela é nossa amiga, não a magoe, ok? Samara merece ser feliz, e esses anos que passou na Espanha foram ótimos para ela. Eu morria de saudades, mas estava feliz por ela estar realizada trabalhando com o que ama fazer, com um puta gato espanhol lambendo seus pés e — abro os olhos, mas Kyra não se freia — querendo formar família com ela.
Sento-me bruscamente, e Kyra balança.
— Como assim formar família?
— Ele a pediu em casamento. — Surpreendo-me, mas tento não reagir, não demonstrar. — Deu-lhe um lindíssimo e caro anel de diamante e está esperando pelo retorno dela.
Essa informação, apesar de ter me pegado de surpresa, não é nenhuma novidade. Sempre achei que algum homem de sorte iria conquistar o coração da minha amiga de infância e tê-la para sempre. Samara é a pessoa mais leal que eu conheço, mais incrível, merece muito ser feliz ao lado de alguém que valha a pena.
— Ela não estava usando anel... — penso em voz alta.
— Ainda não falou com os pais dela... — Kyra olha fundo nos meus olhos, procurando qualquer reação minha, mas sei que não irá encontrar nenhuma. Há muito aprendi a sentir sem demonstrar ou a mostrar apenas o que eu quero que os outros vejam. — Vocês não conversaram ontem?
— Acho que ainda não conseguimos estreitar os laços de amizade novamente.
— Hum... — Ela olha para seu relógio no pulso e suspira. — Preciso ir para o trabalho, vai ficar aqui? — Assinto. — Eu tenho a sensação de que você está se escondendo, só não faço ideia do quê.
Ela entra no apartamento, e novamente olho para o alto do Castellani, do outro lado do parque. Daqui do prédio onde ela mora, consigo ver o heliponto no telhado, algumas janelas da cobertura onde Cadu mora, o andar debaixo, onde Bernardo Novak reside, e uma pontinha da minha varanda. O apartamento de Samara fica uns andares abaixo do meu, então não tenho como vê-lo, mas somente por saber que ela está lá dentro, sinto vontade de ficar aqui, bem longe.
Não me entendam mal, não estou fazendo isso porque não quero que ela se aproxime de mim, pelo contrário, estou aqui, exilado como um covarde no apartamento da minha irmã mais nova, porque, se pisar no Castellani, sei que não conseguirei me manter distante dela.
Mesmo depois da maratona de sexo que fiz com uma mulher com quem já havia saído antes das festas de final de ano, não tenho segurança de estar no mesmo ambiente que Samara e me controlar para não a pressionar contra alguma parede e fodê-la sem ao menos dizer um cumprimento.
Definitivamente não vou fazer isso, não com ela!
Muito menos depois de saber que há alguém que a merece, que está à altura dela, esperando sua volta.
Rio de mim ao pensar que estou aqui, evitando-a, quando na verdade ela é quem deve estar querendo ficar a quilômetros de mim. Talvez esteja até indignada e ofendida pelo modo com que a toquei e beijei sem nenhum aviso, como se fôssemos um casal qualquer que se encontrou na balada para trepar, e não duas pessoas que são amigas desde que se entendem por gente.
Não entendo por que perdi o controle do tesão que sempre reprimi, mas me conheço o suficiente para saber que ele não passou. Raramente sinto aquela química com alguém. Era como se meu corpo estivesse sendo atraído, como se algo nela estivesse provocando reações em mim que eu não conseguia controlar. Foi animal, carnal, a famosa atração de pele que muita gente procura, mas pouca tem.
E eu tive justamente com minha melhor amiga!
Kyra volta a aparecer no meu campo de visão, agora com os belíssimos cabelos escuros, longos e fartos soltos, o rosto maquiado e uma roupa de deixar qualquer homem lobotomizado.
— Esse bode aí está foda para passar, hein? — comenta antes de se abaixar para pegar um guarda-chuva no móvel ao lado da rede. — Têm umas sobrinhas do baile na geladeira, cerveja – por favor, não tome todas, mas se tomar, as reponha –, e meu chuveiro tem muita pressão e água fresca. — Pisca para mim, e eu franzo a testa, sem entender. — Você está meio rançoso.
— Vai se ferrar, Kyra — ralho com ela, mas rio.
Ela se aproxima e beija minha testa, e isso, sim, arranca um sorriso sincero meu. Gosto que ela confie em mim o suficiente para me tocar, para recostar-se no meu ombro ou mesmo ficar abraçada, pois sei que ela não é assim com todos, principalmente com homens em geral.
— Fica bem e ouça meu conselho... — Ela anda até a porta antes de complementar: — Tome um banho, você cheira a álcool e a perfume vagabundo.
Levanto o dedo do meio para ela e a escuto ir gargalhando apartamento adentro até a porta de entrada bater. É, eu bebi bastante, sim, devo estar exalando álcool pelos poros, e o perfume barato se impregnou em minha roupa ontem, quando a recoloquei depois de mais de 12 horas nu, e a mulher me abraçou toda perfumada.
Saí do apartamento dela e vim direto para o da Kyra, torcendo para que minha irmã estivesse em casa e sozinha a fim de que eu pudesse cair aqui nesta rede onde estou e tentar pôr a cabeça certa no controle do meu corpo.
O telefone fixo toca alto, afastando meus pensamentos, e aproveito para tomar o banho aconselhado pela minha irmã viciada em limpeza. Entro na sala desabotoando a camisa branca que usei com o smoking – pois é, ainda estou com a mesma roupa do Ano Novo em pleno segundo dia do ano – e noto que não faço ideia de onde estão o paletó e a gravata-borboleta.
A primeira foto que vejo ao entrar no quarto de Kyra é uma que tiramos juntos – Samara, ela e eu – na formatura da minha irmã. Eu fui o par dela, então estava de smoking, e as duas, de vestido longo, maquiagem e penteado. Caminho até o aparador e pego o porta-retratos, focando em Samara e me perguntando como eu conseguia me manter longe do mulherão ao meu lado. Era uma beleza diferente da minha irmã, Samara tem o olhar doce, sorriso largo, nenhum mistério, seu rosto expressa suas emoções, sua sinceridade.
CONTINUA
Sua pergunta me deixa paralisada, completamente sem condições para lhe responder. Por que ele me procuraria?! Porque somos amigos desde que nasci? Porque estive ao lado dele em todos os momentos? Porque ele tomou um porre, apareceu lá em casa, chorou no meu ombro, beijou-me e depois fingiu que nada tinha acontecido?
Respiro fundo para controlar o volume da voz e não gritar que ele é um idiota, mas, antes que eu abra a boca, Kyra aparece esbaforida com um telefone na mão.
— Ei, Malinha, você está com seu telefone na bolsa? — Alexios olha para a irmã, puto por ela estar nos interrompendo, e eu franzo a testa, sem entender a pergunta dela. — Seu celular! — Ela bufa... — Seu irmão acaba de ligar para o meu telefone. — E balança o aparelho.
Arregalo os olhos, meu coração dispara, e logo penso em mamãe, que vi apenas um pouco ontem, quando fui buscar o Godofredo. Pego o telefone e confiro as ligações perdidas. Noto Alexios se afastando, mas não me importo; ele continua o mesmo egoísta de sempre.
Samara Schneider está de volta!
Mastigo mais um pedaço do pernil que Kyra serviu como opção de carne na ceia de Natal e não consigo deixar de pensar na volta daquela que foi minha grande amiga e companheira.
Até hoje não entendo o que aconteceu para que ela tomasse a decisão de ir estudar na Espanha sem falar nada comigo. Claro, eu sabia que tinha a possibilidade, afinal, havia anos o pai dela pressionava por isso, para ela ir estudar arquitetura clássica na terra de Gaudí14. No entanto, para minha total surpresa, em vez de ir morar em Barcelona, Samara foi para Madri.
Eu, que até então me considerava seu melhor amigo, só fiquei sabendo desses detalhes todos porque Kyra me contou depois que fui atrás dela para saber o paradeiro de Samara.
Pego a taça com água para ajudar a engolir a comida, pois estou com um aperto na garganta desde que a vi. Eu tinha acabado de sair da sala de reuniões de Kyra depois de um ménage espetacular com Valéria e Priscila, mais animado para encarar a noite especial, sem imaginar a grande surpresa que encontraria no salão e que quase me fez tropeçar em meus próprios pés.
Assim que meus olhos bateram nela, assustei-me, pois a danada da Kyra não havia me contado que Samara tinha voltado. Tentei um sorriso e uma aproximação amigável, como se ela não tivesse me abandonado por longos três anos sem nenhuma notícia. Ela está diferente, ainda mais bonita do que eu me lembro, mas tentei não reparar muito e ser o amigo de sempre.
Nada disso adiantou, pois, ao que parece, Samara desejou que eu corresse atrás dela, que a procurasse e reestabelecesse contato. Como eu poderia imaginar algo assim? Não sou adivinho! Ela some sem nenhum motivo e ainda se sente no direito de ficar puta por eu não ter tentado contato?
Quem entende a cabeça das mulheres?!
— Sua amiga foi embora cedo — Millos comenta ao meu lado. — Será que houve algum problema com a mãe dela?
Olho para meu primo, sentado ao meu lado à mesa, e ele entende meu total desconhecimento do assunto.
— A mãe dela, dona Ana Cohen, está em tratamento contra um linfoma. — Millos bebe mais chope. — Você não sabe nada sobre a vida da sua amiga?
— E você? Como sabe?
O filho da puta apenas dá de ombros, evasivo como sempre, adorando estar sempre um passo à frente de todos. Millos é um sujeito estranho. É o único que consegue interagir com todos nós sem tomar partido e sem revelar nada da vida pessoal de ninguém, nem mesmo da sua. Somos amigos, nos damos bem, mas eu sei pouco sobre ele, sobre suas atividades, e o máximo que conheço de sua vida pessoal é que tem um passado fodido como o meu, frequenta alguns clubes de sexo, tem uma amiga que por sinal é uma gostosa do caralho – mas nunca me deu mole, infelizmente – e só.
Como profissional, o homem é uma verdadeira coruja! Quieto, observador, parece que consegue olhar em 360 graus, além de ser um caçador de informações inigualável. Não há nada que passe despercebido por ele, e o que expõe ou o que fala, tenho certeza de que é o mínimo do que sabe. Por isso, todo cuidado é pouco quando o assunto é Millos Karamanlis, porque o desgraçado é um manipulador de mão cheia!
— Eu não sabia que dona Ana está doente, não vejo os pais de Samara há anos — contesto-o. — Espero que nada grave tenha ocorrido.
— Não vai ligar para saber? — Millos volta a questionar.
Franzo as sobrancelhas, encarando-o, tentando entender o motivo pelo qual ele está tão interessado no assunto.
— Não — respondo seco e volto a comer, mesmo com o questionamento dele na cabeça. Para mim o assunto acabou! Samara já demonstrou que não quer papo comigo por algum motivo, e, mesmo chateado com isso, devo respeitar a decisão dela. Millos é um manipulador e sabe que esse é um assunto que me atinge diretamente, por isso tocou nele.
Não preciso ligar para Samara, como não liguei para ela durante todo o tempo em que esteve fora, mas isso não quer dizer que eu não queira saber o que está acontecendo. Kyra sempre foi minha fonte de informações sobre ela e, caso tenha que ser assim, continuará sendo.
Termino minha refeição, fico mais algum tempo com Kyra e seus convidados, brindo ao sucesso do negócio dela e logo depois vou embora. Tinha pretensão de ir para casa, mas, no meio do caminho, uma mulher com quem eu já saí algumas vezes me manda uma mensagem dizendo que está na cidade, e vou encontrá-la.
Dia 26 de dezembro, pior dia de trabalho do mundo, certamente! Rio ao passar por mais dois engenheiros com cara de ressaca ou, talvez, de quem comeu demais e agora passa mal do estômago.
— Melhor colocar a lixeira perto! — passo, sacaneando meu colega de trabalho, Pedro, engenheiro químico. — Se emporcalhar a sala, vai ter que limpar você mesmo.
— Porra, Alexios, fala mais baixo! — Ele põe a mão na cabeça.
Gargalho e me sento à minha mesa, lotada de projetos, planilhas e minha coleção de lápis. É, eu coleciono lápis! Cada um tem a coleção que lhe cabe, não é?
Ligo o computador, olho para meu caderno de tarefas e arregalo os olhos ao ver um nome que eu não imaginava rever anotado lá – por outra pessoa.
— Ethernium? — questiono olhando para o Pedro.
— Sim! Acabamos de saber, mas o CEO lá da Karamanlis vai querer conversar com você, certamente.
Bufo ao pensar em subir até o Olimpo para conversar com Theodoros, sem esquecer as discussões que tivemos nas últimas semanas por conta de seu egocentrismo e insensibilidade com os funcionários da casa.
Sua mania de pensar que é Deus, inabalável, inatingível e perfeito me irrita, principalmente porque sei que ele não é nada disso, apenas a porra de um filhinho de vovô mimado, que sempre achou que podia fazer qualquer coisa que quisesse sem pensar nas consequências, que o velho grego limparia suas cagadas.
Admito, o velhote sempre fez tudo para seu neto querido. Entretanto, não pôde limpar a merda que Theodoros deixou para trás, apenas jogou-a para debaixo do tapete, limpou a consciência do seu netinho querido, que seguiu a vida como se nada tivesse feito e deixou o resto se fodendo sem se importar o mínimo.
Theo é arrogante, e eu não tenho saco para lidar com gente assim.
Ouço passos, um poc-poc característico de saltos, e em seguida a voz de Lia, outra engenheira que trabalha na minha equipe direta.
— Bom dia! — sua voz soa animada. — Ah... sem Papai Noel de chocolate este ano! — ela resmunga, e eu a vejo procurando sobre sua mesa. — Poxa, Alex, você já foi mais generoso!
— Eu?! — Começo a rir. — Você realmente me imagina comprando e colocando chocolate em formato de Papai Noel nas mesas dos outros? — Ela faz careta e nega. — Eu achava que era você!
— Por quê? Só porque sou mulher?
Rolo os olhos.
— Não, porra, porque você é viciada em chocolate!
— Ele está certo, Lia! — Pedro se mete na conversa em minha defesa. — Eu também achava que era você por causa disso.
Ela se senta frustrada por não ter encontrado o presente do “Papai Noel” misterioso da Karamanlis.
— Bom, não sou eu, e eu contava com isso! Não falha por anos! — Olha em volta para as outras estações de trabalho, ainda vazias sem os profissionais. — Ninguém recebeu?
Nego, e Pedro faz o mesmo.
— Estranho...
— Coisas estranhas têm acontecido por aqui — digo e lhe estendo meu caderno com a anotação da Ethernium.
— O quê? De novo? — Ela geme. — Esses caras da Ethernium são uns malas! Sério, Alexios, eu não vou aguentar gracinhas pra o meu lado de novo não!
— Eu disse que você devia ter respondido a ele. — Dou de ombros. — Mas agora sabe que tem meu total apoio! Se alguém da equipe deles fizer piadas machistas de novo, responda.
— Quem é o machista? Que vou com você dar uma surra nele. — Eliane chega já mostrando as garras – que garras! Minhas costas sofreram com elas – e se senta em sua estação. — Bom dia, feliz Natal, foi tudo ótimo! Agora, silêncio, porque ainda estou agarrada a um cálculo estrutural que não tem me deixado dormir. Obrigada. De nada.
Pedro começa a rir, e Lia só balança a cabeça. Eliane é assim, direta e sem rodeios, por isso mesmo achei-a ideal para o trabalho pelo qual é responsável. Nós nos conhecemos em uma balada, transamos, depois voltamos a nos encontrar na entrevista dela aqui na K-Eng tempos depois. Nunca mais voltamos a trepar, mas conseguimos construir uma relação de trabalho quase perfeita. Sei que posso contar com ela para qualquer coisa aqui dentro.
Tenho mais duas pessoas na minha equipe: Evandro e Michel, mas os dois estão de férias e ainda não retornaram. Não é normal dois membros da mesma equipe saírem em férias juntos, mas, como eles são casados, a lei lhes garante esse direito.
A K-Eng não é formada apenas pela minha equipe de engenheiros em suas especialidades, a verdade é que cada um aqui gere suas próprias divisões. O Pedro, por exemplo, é engenheiro químico, e na divisão dele estão químicos industriais, técnicos em química e outros engenheiros dessa área. Já a Lia é engenheira ambiental, e, dentro de sua divisão, há biólogos, gestores ambientais e engenheiros sanitaristas. A Eliana trabalha com projetos, e ela coordena outros engenheiros, arquitetos e projetistas. O Michel faz toda a parte de planilhas e medições, e o Evandro é responsável pelas operações, é quem lida com empreiteiros, clientes e atua também como fiscalizador de obras.
Além do corpo técnico da K-Eng, a empresa, que é uma subsidiária da Karamanlis, ainda tem setores administrativos e financeiros, e eu, como CEO dessa bagaça aqui, sou quem comanda essas áreas.
O único setor que dividimos com a Karamanlis, infelizmente, é o jurídico, por isso aturo muito a prepotência inglesa do Konstantinos e seu humor ácido. Geralmente não tenho paciência com ele, zoo com sua cara ou apenas o ignoro. Ele não é bem quisto por ninguém da minha equipe, principalmente pelas mulheres.
— Por falar em machismo... — Lia volta a falar. — Será que a Kika não vai voltar mais não?
Dou uma risada por ela ter entrado no assunto justamente quando eu pensava no meu irmão machista.
— Está um silêncio total na Karamanlis — Eliana se pronuncia. — Dá até medo de andar pelos corredores, clima pesadão!
— A Kika era incrível, né? Gata, alto-astral, competente — Pedro lamenta. — Uma pena que tenha perdido a cabeça e tenha sido mandada embora...
— Opa! — Eliana o interrompe. — Ela se demitiu!
— Enfim, está desempregada depois de ter ganhado uma puta promoção para a gerência.
— Eu a preferia à Malu Ruschel. — Lia treme toda. — Aquela mulher congelava até meu sangue só de estar perto dela.
Definitivamente, não o meu!, penso ao me lembrar de Malu Ruschel, a ex-gerente dos hunters da Karamanlis. Malu era bonita, tinha classe e aquele seu jeito focado me enchia de tesão. Uma pena ter ido morar no fim do mundo!
Já com a Kika, nunca senti essa atração, talvez por sempre tê-la achado tão receptiva, maravilhosa com seu jeito espontâneo, que logo gostei dela como se fosse uma amiga de longa data. Tenho muito apreço por ela e lamento que tenha saído da empresa.
Os engenheiros começam a conversar, mas o assunto não me interessa o mínimo, então coloco meus fones de ouvido – a voz forte e rasgada da Janis Joplin soa bem alta – e volto a mexer no projeto em que estava trabalhando.
— Ei, moleque! — Millos me chama assim que para sua moto. — Você não sabe curtir um passeio, puta que pariu!
Ele desce da motocicleta, tira o capacete e a jaqueta e se senta à mesa do bar ao meu lado. Bebo minha água sem responder, porque a única coisa que eu poderia lhe falar é que não sou um velho para ficar andando nessas motos de colecionador há 80 km por hora.
Estou aqui esperando-o há pelo menos 20 minutos, e isso porque saímos juntos de São Paulo em direção ao Guarujá, em uma viagem não programada e cujo motivo, sinceramente, nem entendi. Ele apenas apareceu lá na K-Eng e me chamou para andar de moto com ele, e eu topei.
— Qual é o propósito disso? — resolvo perguntar sem rodeios.
— Do quê?
Millos agradece à garçonete que lhe entrega um coco verde com um canudo e nem percebe a moça comendo-o com os olhos (ou talvez só esteja assustada com suas tatuagens, que cobrem os braços, pescoço e peito).
— Desse “passeio”. A gente se viu há alguns dias na ceia da Kyra, e você não comentou nada sobre isso.
— Nada de mais! — Ele bebe a água de coco. — Vou viajar no Ano Novo, ficar um tempo fora e queria passar um tempo contigo. Já jantei com seus irmãos, mas como você é todo amalucado para comer, achei que uma volta de moto iria cair bem, mas esqueci que você é louco nisso também.
— Você está ficando velho, Millos, sinto lhe informar — debocho. — Acha mesmo que, com essa potência italiana nas mãos, eu iria ficar molengando contigo na estrada?
— Não é molengar, é curtir a viagem, a paisagem...
— Ah, não, você curte essas coisas paradas, não eu. Meditação, ioga, essas coisas todas aí que você faz, tô fora! Não sei ir devagar, Millos, em nada!
— Deveria... talvez assim conseguisse agradar às mulheres. — Ele pisca e tenta disfarçar a troça bebendo mais de sua água.
Eu gargalho.
— Pode ter certeza, elas não reclamam da minha rapidez. Não basta saber correr, tem que saber tirar o máximo proveito de uma máquina, fazê-la dar tudo de si, e isso eu faço.
— Está falando das motos ou das mulheres?
— Tem diferença?
Ele ri novamente.
— Você é um moleque, não sabe nada ainda!
— Falou aquele que nomeia suas motos com nomes femininos!
Nós dois rimos juntos, e o clima fica descontraído.
A verdade é que ele e eu temos muito em comum. Ambos adoramos motocicletas, rock e carne. Apesar de sua onda “zen budista”, Millos nunca conseguiu se livrar da proteína animal e das comidas pesadas que adora preparar para acompanhar suas cervejas artesanais.
Ah, esse é outro ponto em comum: adoramos cerveja! Ele fabrica, eu apenas bebo, mas tenho tanto conhecimento quanto ele, e esse é um dos pontos sobre o que mais conversamos quando estamos juntos, geralmente comendo alguma carne e ouvindo rock.
Raramente saímos juntos de moto, exatamente por ele fazer o estilo tiozão que gosta de andar de Harley, apreciando paisagens, e eu e minha Ducati Multistrada 1260 não temos saco para andar quase parando não.
Embora eu reconheça que tenho que agradecer a esse tiozão por ter minha moto dos sonhos, a que uso para correr nas competições. A Ducati só disponibilizou três unidades da 1299 Superleggera para venda no Brasil, há quase dois anos, e um dos amigos do Millos foi quem comprou uma delas, e, quando ele decidiu vendê-la, meu primo prontamente me avisou, e não pensei duas vezes.
Eu gosto das italianas mais do que das americanas ou japonesas, pelo menos para as motos; não sou tão seletivo assim com mulheres.
— Baile dos Villazzas...
— Ah, Millos, não fode com esse assunto de novo! — reclamo, entendendo agora o motivo do encontro.
— Alexios, preciso de você lá.
Rio.
— Mano, aqueles dois não são crianças, e, muito menos, sou a babá deles! Eles não precisam que eu vá para manter a ordem e o bom nome da...
— Kyra me mostrou o projeto do baile, ela parece bem animada com sua primeira grande produção sem a intervenção dos Karamanlis.
Porra! Ele vai pegar pesado!
— Você é muito filho da puta, sabia?
Millos dá de ombros e bebe mais água.
— Acho que vocês deveriam ir para apoiá-la, acima de todos, você! Será importante para ela, além disso... acho que ela está sem acompanhante, porque deu com o pé na bunda do último idiota que estava comendo.
— Porra, Millos! — Xingo-o. — É a minha irmã, porra!
— E o quê? Só por isso ela não trepa?
— Vai se foder! — Levanto-me da mesa puto e pego o capacete.
— Alexios... — ele me chama, mas não dou atenção, já montando na moto para ir o mais longe possível dele.
Antes que vocês me julguem como machista ou irmão ciumento, adianto logo que não se trata disso. Cada um lida com a merda dentro de si de um jeito, e esse é o jeito da minha irmã de lidar com seu passado. Respeito isso, mas não quer dizer que não me doa ou mesmo que eu não me sinta responsável por ela ser assim.
Eu gostaria que as coisas fossem diferentes, esforcei-me o máximo que pude para que ela fosse menos fodida do que todos nós, mas, a cada novo relacionamento seu destruído, sinto-me um fracassado, o que me dói profundamente.
Piloto rápido, passando pelos radares sem me importar com as multas, sentindo o vento forte bater em mim como se pudesse deixar todas as marcas do meu corpo e da minha alma para trás. Contudo, não posso. Ele fodeu a minha vida várias vezes, não só com as coisas que fez contra mim, mas principalmente por eu ver que também destruiu minha irmã.
— Como ela está, Dani? — pergunto ao meu irmão assim que ele entra na cozinha da casa dos meus pais, onde tomo meu desjejum com a Cida.
— Dormiu bem. — Ele beija minha cabeça. — Mas foi um susto essa febre alta assim do nada.
Ele se senta, visivelmente cansado, e Cida logo lhe serve uma xícara de café. Acostumados demais a dividir as refeições com Cida desde que nascemos, sempre tomamos nosso café juntos. Ela está em nossa casa há tanto tempo que não sei como seria minha vida sem sua presença, e certamente Daniel sente o mesmo.
Minha mãe, Ana Cohen, sempre foi muito ocupada na direção do sistema de ensino criado pelos meus avós, franqueado e distribuído por colégios do Brasil todo. Já meu pai, Benjamin, vem de uma longa linhagem de comerciantes e industriais, como bem acentua nosso sobrenome, que é uma derivação da profissão de algum ascendente que foi alfaiate.
Os Schneiders possuem lojas, fábricas ou empresas que prestam serviços, como era o nosso caso. Meu avô não tinha formação quando fundou sua primeira fábrica de móveis, porém eram um marceneiro muito habilidoso, e meu pai aprendeu com ele. Os negócios iam bem, então papai foi estudar arquitetura e, por fim, design, elevando o nível dos negócios familiares, fazendo dos móveis com nosso sobrenome sinônimos de classe e riqueza.
Há 10 anos meu irmão está à frente dos negócios, desde que papai teve seu primeiro infarto – ele já teve outro e fez duas pontes de safena. Daniel é um administrador maravilhoso, fechou com grandes empresas, e hoje os móveis Schneider não enfeitam mais as coberturas e mansões luxuosas de São Paulo, tão somente redes enormes de hospitais, clínicas, lojas de alto luxo e restaurantes em todo o país.
Meu irmão é incrível! Nós dois somos muito amigos, sempre fomos. O único ponto tenso entre nós era Alexios Karamanlis. Daniel é 10 anos mais velho que eu, um quarentão, como eu costumo provocá-lo, e sempre achou Alex uma péssima companhia. Bom, ele realmente era, mas não para mim. Eu sabia das loucuras que Alexios aprontava, seu envolvimento com drogas, farras, lutas valendo dinheiro e rachas pela cidade. Ele não foi um adolescente fácil, mas sempre me tratou como se ainda conservasse o menino que eu conheci. Sempre me deu conselhos para ficar longe de tudo aquilo que ele mesmo fazia, nossa amizade sempre foi separada das outras companhias dele.
Ainda assim, Dani nunca gostou de Alexios, em compensação, tornou-se um dos grandes amigos de Millos Karamanlis, primo do Alex, mesmo que eu não consiga entender o que, de fato, o executivo tatuado e meu irmão tenham em comum.
— Desculpe-me por tê-la tirado da festa da Kyra — meu irmão volta a falar, afastando-me dos pensamentos. — Eu liguei para o doutor Henrique e já ia pedir uma ambulância, quando fiquei com medo de acontecer algo e você não estar aqui.
Pego sua mão.
— Eu sei. Foi um susto!
Retornei as ligações dele assim que Kyra me alertou, e, quando Dani atendeu, o doutor já havia chegado e ministrado medicamentos. O médico preferiu que ela continuasse em casa por conta de sua baixa imunidade, mas ficou acompanhando durante boa parte da madrugada.
— Ela convulsionou, e eu achei que fosse... — Ele me olha, seus olhos acinzentados tristes. — Eu quase perdi o papai tempos atrás, lembra? — Assinto. — Eu estava com ele quando teve o infarto, e agora quase...
— Dani, não pensa nisso! — Abraço-o. — Você é o melhor filho e irmão do mundo, sempre ao lado deles, ao meu lado. Agora estou aqui também e vou ajudar no que for preciso.
— Eu sei, Samara. Essa fase do tratamento é a mais complicada, por causa da baixa imunidade, mas, quando ela estabiliza, é a mamãe que sempre conhecemos e amamos.
— E a Bianca? — pergunto-lhe sobre sua noiva. — Como vocês estão, faltando pouco para o grande dia?
Ele ri sem jeito.
— Você sabe que não tem essa de grande dia, não? Nós vamos ao cartório, assinaremos os papéis e pronto. — Dá de ombros. — Vida que segue.
Cruzo os braços. Não gosto nada desse conformismo estranho.
— Tem certeza disso, Dani?
Ele olha para a Cida.
— Vou fazer 41 anos, pirralha. 15 anos de relacionamento com ela, então...
— É isso? — Cida balança a cabeça negativamente. — Viu? A Cida não concorda também! E não é que você seja já um solteirão arrastando chinelos, Dani! Você é lindo!
— Não é sobre isso, Samara.
— Ele quer ter uma família, menina. — Arregalo os olhos. — Seu pai vive mais entretido na fazenda do que aqui, sua mãe, antes de adoecer, não parava quieta, sempre viajando com as amigas e...
— Eu na Espanha.
Daniel termina o café sem me encarar, sem falar nada e se levanta.
— Vou voltar para o quarto, render um pouco a enfermeira.
— Também vou, Dani!
Seguimos juntos, mudos, pelo corredor. Meu irmão é a pessoa mais discreta do mundo, completamente o oposto de outros filhos de grandes empresários desta cidade. Nunca gostou de sair em revistas de fofoca, nunca namorou modelos, atrizes ou socialites. Na adolescência, namorou uma garota da escola, depois teve duas ou três namoradas na faculdade e, por fim, conheceu a Bianca em um torneio de polo – esporte em que ele é fera. Desde então engataram nesse relacionamento xoxo, totalmente ioiô – eles já terminaram umas 30 vezes ao longo dos anos – e que agora vai se tornar um casamento meia-boca.
— Você merece mais, Dani — solto sem conseguir frear minha língua, e ele ri.
— Você diz isso porque é minha irmã, pirralha. — Ele tenta bagunçar meus cabelos como quando eu era criança. — Bianca pode não ser o grande amor da minha vida, mas é uma boa amiga e companheira.
— Isso é loucura! Você merece amar, ser amado, estar apaixonado...
— Como você esteve a vida toda por aquele doidivanas? — Paro em seco no corredor e arregalo os olhos. — Qual é, Samara, você achava que eu não sabia? Estava escrito na sua testa e em todos os seus cadernos, com direito a corações rosa! Você teve um peixe daqueles que ficam sozinhos no aquário...
— Um beta. — Começo a rir, sabendo exatamente do que ele está lembrando.
— Pois bem, você teve um beta e o nomeou...
— Beto Schneider Karamanlis — falamos juntos, e eu começo a rir.
— Sim! E como você nunca me deu indícios de ter uma queda pela Kyra, eu supus que era o outro Karamanlis. — Daniel me olha sério. — Por que Diego não veio contigo?
A pergunta é tão inesperada que demoro a processar que ele está falando do meu namorado.
— Não sei quanto tempo vou ficar, então...
— Besteira! Ele poderia passar uns dias aqui contigo, os times estão todos em recesso até a primeira semana de janeiro. — Suspiro e olho para o chão. — Não estraga sua vida, Alex não vale a pena.
Assinto, lembrando-me de tudo o que aconteceu noite passada. Alexios continua igual, vendo e querendo todas as mulheres ao seu redor, menos eu. Sempre fui a amiga, quase uma irmã, menos uma mulher, e, como acabei de perceber, todos sabem da minha paixão por ele, então, Alexios deve simplesmente ignorá-la.
Por muito tempo eu achei que ele não soubesse. Ficava fantasiando que, no dia em que eu tomasse coragem e lhe contasse, Alexios iria se declarar também. Iludida! É isso que eu era, porque, depois do beijo que trocamos, era impossível que ele não soubesse.
Respiro fundo, resignada. Alexios sabe, só não se importa e nem sente o mesmo!
Meu irmão bate levemente na porta do quarto de mamãe e em seguida entra. Sigo-o pelo enorme ambiente, que me traz tantas lembranças alegres dos momentos que dividi com ela, deitada em sua cama, contando sobre meus sonhos.
— Samara Esther! — Mamãe estende os braços, sentada na cama, recostada nos travesseiros. — Trouxe Godofredo de volta?
Rio e concordo.
— Trouxe, está lá embaixo no jardim. — Beijo sua testa. — Como está se sentindo hoje?
— Eu estou bem! — Ela dá uma olhada de esguelha para meu irmão. — Ele é superprotetor, sabe? Exagerado!
Daniel permanece alheio às críticas, conversando com a enfermeira.
— Mamãe, ele não é, e a senhora sabe! — Ana suspira. — A senhora está em tratamento, precisa de cuidados, e, com o papai isolado na fazenda, Daniel é que estava responsável por acompanhá-la em tudo, mas agora estou aqui também!
— Dois superprotetores! — ela finge reclamar, mas sorri satisfeita. — Seu pai quis vir para cá para ficar comigo, mas achei melhor que ficasse por lá. Você sabe como ele é, não me daria um minuto de paz.
Eu rio, mas sou obrigada a concordar. Meus pais são incríveis, mas têm uma relação um tanto estranha desde que Daniel e eu saímos de casa para viver nossas vidas. Passaram a viver cada um no seu espaço, com suas coisas. Dão-se incrivelmente bem, mas cada um com sua vida.
É verdade que eles não eram nada parecidos. Mamãe sempre foi uma mulher de negócios, cheia de trabalho, viagens e reuniões, porém extremamente carinhosa com os filhos. Papai é um homem mais reservado em seus sentimentos, embora seja um artista.
Olho para um dos móveis da minha mãe, e a escultura em madeira em cima dele me faz sorrir. Nela há um casal e um garotinho com a mão na enorme barriga da mulher. Papai deu vida à imagem de uma foto que tiraram quando mamãe estava grávida de mim, e a peça ficou tão perfeita que dá para sentir a alegria de todos.
Quando eu era criança, tinha coleções das esculturas dele: cavalos, cães, gatos, pássaros. A que eu mais gostava era a do Pinóquio, que ganhei quando comecei a ler e andava para baixo e para cima com o livro do boneco de madeira que queria ser menino de verdade.
— Você vai até lá visitá-lo? — minha mãe pergunta, talvez adivinhando que estou pensando nele, por estar olhando a estátua.
— Por agora não. Tentei falar com ele quando cheguei e ontem também, mas não consegui. — Dou de ombros. — Papai se isola quando quer, a senhora sabe.
— O doutor Henrique acabou de dizer que os resultados dos exames ficaram prontos e que ele virá assim que puder para conversar conosco. — Daniel senta-se ao meu lado na cama. — É bom ter Samara aqui perto, não é?
Ele me abraça pelos ombros.
— Eu também estou gostando de estar de volta.
Mal termino a frase, e meu telefone toca. A foto de Kyra tentando beijar Godofredo, e ele de boca aberta para mordê-la aparece na tela, e minha mãe sorri.
— Eu estou esperando pela visita dessa filha emprestada desnaturada. — Ana reclama. — Pode dizer a ela que não vai comer mais minha paella!
— Pode deixar! — Levanto-me da cama e vou para um canto do quarto. — Oi, Kyra! — atendo o telefone.
— Quero notícias! Mal consegui dormir essa noite, deixei mil mensagens no seu telefone. Como está sua mãe?
— Está bem, mas ameaçou greve de paella se você não vier visitá-la em breve.
— Está bem mesmo? — ouço preocupação na voz da minha amiga, e meu coração se aperta, pois sei que minha mãe foi o mais próximo que Kyra teve de figura materna. — Malinha?
— Está, sim. O médico dela explicou que, por conta da medicação, ela ficaria suscetível a doenças, a imunidade está baixa, então qualquer resfriado ataca com força.
Kyra suspira ao telefone, e eu abro um sorriso ao ver o quanto minha amiga durona é, na verdade, tão sensível quanto eu.
— Que bom! Fico feliz em ouvir isso e mais aliviada para te fazer um convite.
Faço careta, já prevendo que ela vai me meter em algum evento seu de final de ano, vestida de garçonete.
— O que você está armando, Kyra?
— Nada! — ela logo se defende, indignada. — Eu só queria companhia! Na véspera do Ano Novo acontecerá o Baile Branco e Preto dos Villazzas, e, como eu estou sem nenhum boy no momento, você podia ser meu par, o que acha?
— Kyra! — Rio. — Um baile? Sério?
— Baile? — mamãe logo se mete na conversa e pergunta lá da cama. — Por acaso é o baile dos Villazzas?
Fodeu! Minha mãe sempre amou bailes e conheceu a matriarca dos Villazzas tempos atrás, através de sua amiga, Cecília Novak. Certamente ela adorará a novidade, achará moderno eu ir acompanhando minha amiga, e eu não terei escapatória.
— É, mamãe, eu vou com Kyra — respondo resignada.
— Eu sabia! — Minha amiga ri ao telefone. — O traje branco é obrigatório para mulheres, então, abuse de cores em outros locais!
— Eu vou te matar, Kyra Karamanlis! — sussurro para que somente ela escute.
— Depois do baile; antes, quero usufruir de tudo o que planejei! Vai ser o evento mais incrível que você já viu!
Relaxo, percebendo que ela realmente está feliz e confiante.
— Tenho certeza disso, Kyra!
Nós nos despedimos, mas não retorno imediatamente para a cama, ao lado da minha mãe e do meu irmão, fico pensando em como é bom estar de volta. Realmente me sinto em casa aqui, com as pessoas que eu amo, ainda que tenha feito amigos na Espanha.
Penso no Diego e sinto um pequeno aperto no coração, um misto de saudade e remorso. Daniel me olha, curioso por eu estar parada no mesmo lugar, sem falar ou fazer nada, e reflito sobre o que ele me disse. Reconheço que eu recuei ante o pedido de casamento de Diego por ter esperança de voltar ao Brasil e encontrar Alexios mudado, porém ele não mudou e nem mudará jamais, mas isso não muda o fato de que ele ainda mexe comigo.
Diego e eu nos damos muito bem, somos amigos, companheiros, temos gostos parecidos. Enquanto eu estava na Espanha, longe do magnetismo e atração de Alexios, realmente pensei que pudesse amá-lo e ter uma vida com ele. Os momentos que passamos juntos foram maravilhosos, mas agora me questiono se, mesmo voltando para Madri, é justo manter essa relação.
O Uber me deixa em frente ao Villazza SP, e vejo a entrada principal do hotel cheia de pessoas bem-vestidas e penteadas. Ando na direção delas, questionando-me se os convites estão sendo verificados na entrada, mas me surpreendo ao ouvir um dos homens que está parado na entrada:
— Nós só queríamos comprar o convite, não conseguimos responder a tempo e...
— Senhor, o que me foi passado foi que esgotaram, eu sinto muito — um dos seguranças responde antes de se virar para mim, mas, vendo o convite em minhas mãos, abre a porta. — Seja bem-vinda!
Entro no saguão principal do enorme hotel e suspiro, apreciando todos os detalhes da construção e da decoração, orgulhosa por ter sido parte da equipe que ajudou a deixá-lo perfeito desse jeito.
O escritório de arquitetura que projetou o Villazza SP foi o dos Boldanis, e o arquiteto principal que assinou o desenho foi ninguém mais, ninguém menos que meu ídolo e professor, Julio Boldani. O italiano é fera demais nas suas linhas clássicas misturadas às modernas.
Eu ajudei o pessoal que compôs o projeto de decoração, pois estava me especializando e, por isso, trabalhei um tempo no Boldani. Foi ali que descobri que, por mais que papai fizesse pressão para que eu fosse uma arquiteta, eu queria mesmo era ser designer de interiores.
Subo as escadarias de mármore com corrimão e guarda-corpo de ferro fundido na cor ouro velho em arabescos e folhas e, no saguão da entrada do salão Royal, encontro a recepção do baile montada como se fosse uma bilheteria antiga de circo.
Sorrio ao pensar na Kyra, reconhecendo que minha amiga sabe como dar vida aos seus projetos de maneira perfeita, pois vi os desenhos quando almoçamos juntas anteontem e confesso que está tudo muito mais bonito do que a ilustração em 3D que ela me mostrou.
Olho em volta, procurando-a, pois combinamos de nos encontrar na entrada, mas arregalo os olhos ao ver Alexios, de smoking preto, vindo em minha direção.
Mesmo contra a minha vontade, minhas mãos gelam e meu coração dispara apenas por vê-lo, por notar o quanto ele está lindo com esse sorriso largo e os olhos brilhando.
Por que ele tinha que ter essa aparência e essa boca?!, penso na injustiça do mundo, indignada por ser tão comum, e ele...
— Samara Esther. — Bufo, pois só ele e minha mãe chamam-me assim. — Você está... linda!
Alexios sorri e me olha desde as unhas dos pés, pintadas e cutiladas, até o alto da cabeça.
— Linda! — repete como se não fosse possível que eu estivesse desse jeito.
— Oi, Alexios — cumprimento-o seca, tentando não dar importância ao fato de que ele parece ter tomado um soco só por me ver mais arrumada. — Estou esperando sua...
— Eu sei, foi ela quem me mandou ficar aqui de plantão te esperando. — Enrugo a testa, sem entender. — Kyra resolveu bancar a fada madrinha e ajudar uma amiga a ter seu baile com um príncipe encantado e, por isso, vai ter que trabalhar esta noite. — A expressão no rosto dele é de deboche ao falar do conto de fadas. — Então, restou a mim.
Puta merda, Kyra!
Pego o celular dentro da bolsa e mando mensagem para ela, mas tenho certeza de que, ocupada com o começo do baile, ela não irá ler. O que eu faço? Penso se devo aceitar fazer companhia ao Alexios ou se devo ir embora, afinal, só vim a esse baile por insistência da Kyra.
— Samara, eu sei que nossa amizade está um tanto estremecida por conta da distância e do tempo, mas... — Alexios me encara, e noto que ele está se esforçando para falar — eu gostaria que você me acompanhasse esta noite.
Minha boca fica seca ao ouvir isso, porque, mesmo com a distância, eu ainda consigo saber quando ele está sendo sincero. Alexios me quer ao seu lado esta noite, e isso é...
— Como nos velhos tempos, lembra? — ele complementa, e, mais uma vez, percebo o quanto sou iludida.
Nada mudou!
Imediatamente me lembro do meu baile de formatura do ensino médio, no qual ele foi meu acompanhante. Chegamos juntos, eu estava empolgada para dançar com ele a noite toda, arrumei-me para parecer uma mulher aos seus olhos e não mais a menina de cabelos revoltos que o seguia para toda parte quando criança.
Havia decidido que iria contar a ele o que sentia naquela noite e que, depois de ele se declarar também, iríamos fazer amor, e eu, aos 17 anos, finalmente teria minha primeira noite com o homem que amava.
Ledo engano!
Alexios dançou uma música comigo, depois foi para o bar, encheu a cara, sumiu com uma garota bem mais “servida” que eu e voltou para o salão todo amarrotado. Eu queria ir embora, mas ele acabou dançando (e sumindo) com mais umas três mulheres.
— Seu acompanhante te deixou sozinha, não é? — Marlon, um dos garotos que estava se formando comigo me perguntou, e só aí percebi que ele estava sentado à mesa comigo.
Começamos a conversar e, naquela noite, tive minha primeira experiência sexual. Não foi ruim, namoramos por um tempo, mas reconheço que ela só aconteceu porque Alexios não me quis. Ele simplesmente não me via!
— Samara? — ele me chama e me faz voltar à realidade.
Por Deus! Não sou mais uma garota de 17 anos, sou adulta, independente, com uma carreira bem-sucedida na Espanha e um dos homens mais gostosos de Madri ao meu lado!
— Vamos entrar! — decido e marcho até uma das “bilheterias”, onde recebo minha máscara preta e uma pulseira.
Alexios recebe as dele e ri ao me mostrar a máscara branca como a de O Fantasma da Ópera. Ah, merda!
— Você se lembra? — Ele ri. — Me obrigou a ver esse filme um milhão de vezes e sabia até as falas!
O desgraçado põe a máscara, ergue uma das sobrancelhas, dobra-se em reverência e sorri.
— Vamos logo com isso! — Saio de perto dele sem rir de sua gracinha, coração retumbando, a cabeça cheia de lembranças da nossa adolescência.
Quando as portas se abrem, perco o fôlego ao ver o que Kyra idealizou.
— Puta que pariu, minha irmã é foda! — Alexios fala ao meu lado.
Eu pulo de susto, não por causa do que ele disse, nem mesmo ao ver um dos artistas cuspindo fogo, mas tão somente por sentir a sua mão em minha cintura. Meu corpo inteiro aquece, a pele arrepia e aquela sensação que sinto desde que os hormônios despertaram em mim na adolescência volta a me tomar.
Atração! Química!
Não sei explicar, mas meu amor de criança transformou-se nisso quando me tornei moça, e a cada toque, cada resvalo, eu resfolegava. Sonhava com ele, acordava suada e sem saber o que estava acontecendo. Meu primeiro orgasmo com masturbação foi pensando nele, instintivo, depois de um sonho erótico e proibido.
Achei que, com a distância, principalmente depois que me envolvi com Diego, isso ia passar, mas parece que me enganei.
Olho-o e percebo que ele permanece alheio ao que me causa, sua atenção tomada pelos malabares que executam movimentos precisos na entrada do baile.
Respiro fundo.
— Vamos?
Ele assente sem me olhar, e seguimos juntos, passando entre os convidados que ainda se encontram de pé conversando ou bebendo no bar, em direção ao centro do salão, tomado de mesas e cadeiras reservadas.
— Onde nós...
Nem preciso terminar a pergunta, pois logo vejo Theodoros Karamanlis, acompanhado de uma lindíssima loira, a uma mesa com o sobrenome deles na placa de reserva. Eu não sou muito fã do irmão mais velho de Alexios, mas sempre fui educada com ele, então armo meu melhor sorriso e o cumprimento:
— Theo! Que bom vê-lo esta noite! — Olho para sua acompanhante agora mais de perto e sinto como se a conhecesse de algum lugar.
— Samara, essa é Valentina de Sá e Campos — Theodoros nos apresenta, e eu sorrio, reconhecendo os sobrenomes dela. — Valentina, essa é a Samara Schneider, uma incrível designer de interiores.
— É um prazer, Valentina! — saúdo-a.
— O prazer é meu, Samara. — Valentina sorri. — Nos conhecemos já?
— Eu acho que sim, embora não me recorde de onde pode ser.
A loira para a fim de tentar se lembrar, e eu ouço a conversa entre Theo e Alexios.
— Viu só esse trabalho da Kyra?
— Claro! — Alexios debocha do irmão. — Seria impossível não ver, já que estou aqui! Já fui até cumprimentá-la, mas está tão ocupada que não consegui nem falar com ela direito.
Só o suficiente para que ela o encarregasse de me acompanhar nesta noite! Kyra me paga!
— Imagino que esteja. Viu o Kostas? — Theo pergunta, mas não consigo ouvir a resposta de Alexios, pois Valentina volta a falar:
— Lembrei! — ela comemora. — Nos encontramos na festa de inauguração da loja da Miriam Benides, lembra?
Eu não faço a mínima ideia do que ela esteja falando, mas, mesmo que não esteja com nenhuma vontade de prosseguir com a conversa, sorrio e concordo por educação.
— Puxa vida, quanto tempo não vejo você por lá! — Valentina continua.
— Eu estava morando em Madri — informo antes de me sentar.
— Ah, eu adoro a Espanha!
Sorrio sem graça, percebendo que vamos conversar. Não quero ser mal-educada com ela, é só que não estou muito confortável em estar aqui neste baile, não depois de perceber que ainda quero Alexios e que não adiantou de nada impor distância.
— Família! — a voz debochada de Kostas interrompe a conversa de Valentina, e ela me pergunta baixinho quem é o homem abraçado a uma loira com um vestido branco tão justo e transparente que beira à indecência.
— Konstantinos... — sussurro antes de ele apresentar sua acompanhante a todos.
— Bruninha, conheça os Karamanlis! — Ele aponta para Alexios e para Theodoros. — Claro que você pode deixar seu cartão com eles depois, mas eu sou o mais bonito, não sou?
Ele faz a mulher girar em seu próprio eixo, e, pela primeira vez depois da tensão toda em que eu estava desde que vi Alexios, sorrio divertida. Kostas é uma figura! Ainda me lembro de quando ele morava no prédio, na cobertura de seu pai, e juro, se não fossem os olhos azuis e a voz, eu diria que não se trata da mesma pessoa!
— Já bêbado? — Theo pergunta a Alexios.
— E mais uma vez com acompanhante paga! — Alexios se aproxima de Theo e cochicha, e isso me surpreende. Não sabia que os dois estavam conseguindo ter uma relação tão cordial. — Estou achando que nosso querido irmão é do outro time.
Theo gargalha e nos olha sem graça.
— Perdoem-me, foi irresistível! — Tenta se conter e bebe mais do seu uísque. — Bom, certamente ele é arrogante e orgulhoso demais para “sair do armário”.
Quem? Kostas?! Olho para o homenzarrão com a prostituta e nego instintivamente com a cabeça. Não mesmo!
— Seria apenas mais um rejeitado pelo seu querido pappoús! — ouço Alexios dizer isso, e meu coração aperta. Olho-o, respiro fundo, lamentando profundamente por ele ainda se sentir rejeitado, percebendo que isso também não mudou.
Rejeição, abandono, violência o tornaram o homem que é. Sei disso, dei essas desculpas para seu comportamento por muitos anos. Toda vez que ele aprontava, eu usava isso para justificá-lo.
Até quando?, penso, olhando-o fixamente. Até quando ele deixará que os erros dos outros façam-no errar também?
— Você gosta muito dele, não é? — Valentina dispara, e eu desvio os olhos de Alexios. — Seus olhos brilham diferente ao olhar para ele.
— Somos amigos há muitos anos — disfarço.
— Bom, isso é muito bom, mas... — Ela ri. — Desculpe-me se estou sendo invasiva, mas seu olhar é de quem é apaixonada, não apenas uma amiga.
Dou um sorriso amarelo para ela, e Valentina fica quieta.
— Tudo bem aí? — Alexios me pergunta, e eu assinto. — O jantar já tinha sido anunciado antes de você chegar, então não deve demorar muito.
Resolvo conversar com ele normalmente, afinal, seria ridículo fazer birra na minha idade.
— Kyra estava muito ansiosa com o jantar desta noite. Um grande chef internacional, ela me contou, é quem está preparando tudo.
— Sim, está na programação. — Alexios lê o nome do chef francês, e eu não consigo deixar de olhar sua boca. Pego a taça de champanhe e a viro de uma só vez. — Uau! — Sorri e faz sinal para um garçom se aproximar com mais. — Minha acompanhante está sedenta.
— Estou. — Decido não discutir e bebo a outra taça. — E com fome também.
Alexios toca minha coxa por cima do vestido, mas logo tira a mão.
— O jantar não deve demorar — repete sério e se vira para olhar o outro lado do salão.
Fico um tempo olhando para minhas pernas, permitindo a sensação de brasa que a mão dele deixou em minha coxa passar, chateada demais por reagir assim a ele e continuar sendo praticamente invisível.
Que porra é essa que está rolando?
Essa pergunta retórica fica martelando minha cabeça enquanto tento prestar atenção em qualquer coisa neste maldito salão lotado que não seja ela. Eu só posso estar com algum problema, só pode! Samara sempre foi minha amiga, quase minha irmã. Eu estar aqui com uma maldita ereção – pela segunda vez esta noite, frise-se – só pode ser loucura!
Preciso de um médico! A loucura congênita dos Karamanlis começou a se manifestar em mim. Sentir tesão por Samara é quase... incestuoso!
Pego a taça com champanhe e a termino em uma só golada a fim de aplacar o fogo que apenas um toque em sua coxa me causou.
A verdade é que eu não esperava encontrar-me com ela nesta noite. Vim por insistência do Millos e, claro, por sua maldita manipulação eficaz ao falar da Kyra e do suporte a ela em seu primeiro grande evento. Cheguei junto aos primeiros convidados e a encontrei correndo de um lado para o outro, “armando” uma surpresa para sua amiga e funcionária, a gostosa da Helena, que, por sinal, está namorando o Bernardo Novak, um amigo de longa data.
Quando finalmente ela terminou todos os preparativos, foi à cozinha falar com o tal chef francês que a estava deixando nervosa, conferiu tudo com as bandas, DJ e artistas circenses é que me deu atenção.
— Oi, Alexios. — Sorriu cansada. — O baile nem começou direito, e eu já estou de um lado para o outro. — Ela espiou a fila se formando na recepção do evento. — Gostou da decoração?
Seus olhos verdes, como os meus, brilharam ansiosos. Eu cheguei perto dela, beijei sua testa e falei baixinho:
— Está tudo perfeito, Kyra. Parabéns, estou muito orgulhoso!
Ela suspirou e depois se afastou.
— Claro que está! Não tinha dúvida alguma disso. — E, do nada, pegou-me pela mão e me arrastou em direção ao salão. — Vem ver!
— Kyra, eu ainda não troquei meu convite e...
— Ah, Alexios, vem ver!
A decoração estava esplêndida, embora eu soubesse que, com os efeitos de luz e os artistas executando seus números, iria ficar ainda mais incrível. A banda, no palco ao fundo do salão, já estava se posicionando, e alguns funcionários de Kyra ajeitavam os últimos detalhes das mesas, arranjos florais ou acendiam as velas.
— Perfeito! — elogiei-a novamente.
— Você ainda não viu nada! — E deu aquele sorriso que eu sei que fode com a cabeça de qualquer homem. É duro ter uma irmã como ela, linda e sexy, e ver os caras babando em cima e não poder socar a fuça de nenhum. — Ah, preciso de um favor.
Estava demorando!
— Kyki, estou de smoking, mas ainda não sei segurar uma bandeja — sacaneei.
— Não, seu idiota! — Ela me estapeou as costas. — É meu par desta noite! Não vou poder participar do baile como havia previsto, então preciso que você faça companhia...
— Ei, ei, pode parar! Não vou ficar pajeando nenhum marmanjo não!
Ela rolou os olhos.
— Não é marmanjo, idiota! Posso terminar de falar? — Assenti. — É a Samara. Convidei-a a vir comigo esta noite e não quero que fique sozinha.
Samara Esther Schneider!
Fiquei um tempo olhando para Kyra, tentando entender se ela tinha feito isso de propósito, para tentar nos reaproximar, afinal, sempre fomos um trio de amigos/irmãos, e, com a relação entre mim e Samara estremecida, Kyra devia estar um tanto confusa.
— Sem problema. — Sorri. — Você avisou a ela?
— E Samara atende aquele celular? — Ela bufou. — Você terá que esperá-la lá fora. Se importa?
— Não — fui sincero.
— Ótimo, agora vaza, porque ainda tenho coisas a fazer antes de abrirmos o salão. — E, do mesmo jeito que me arrastou, colocou-me para fora.
Fiquei um bom tempo esperando por Samara do lado de fora, o que foi surpreendente, pois ela sempre foi pontual. Vi o salão ser aberto, o baile começar, o discurso do doutor Andreas Villazza, o anúncio do jantar, e nada de a minha (ex?) melhor amiga chegar.
Estava olhando para um detalhe na construção do hotel, executada pela Novak Engenharia, quando meus olhos foram atraídos para o topo da escadaria. Não é exagero eu dizer que meus olhos foram atraídos, porque foi como se um ímã puxasse minha atenção para aquele ponto.
Engasguei-me com minha própria saliva ao ver Samara. Sim, ela estava linda, mas não foi o vestido branco ou o penteado elaborado que chamou minha atenção, foi ela.
Ela é linda e, por conta da nossa amizade e do receio que tinha de machucá-la, parei de perceber sua beleza e não notei a mulher que se tornou.
Fiquei parado, tomando nota de tudo, como se a estivesse vendo pela primeira vez, sentindo um incômodo por estar olhando-a com lascívia, afinal, era a Samara!
Balancei a cabeça, tentando voltar a pôr os neurônios no lugar, justificando para mim mesmo que isso aconteceu por causa dos anos distantes, mesmo sabendo que isso era pura enganação, pois ela não mudou nada nesses últimos anos.
O que aconteceu, então? Não sei, ainda estou confuso, tentando entender por que fiquei excitado com o perfume dela ou por que meu pau acordou apenas por eu a ter segurado pela cintura a fim de andar com ela até a mesa.
Tive que ficar parado, olhando para os malabares sem vê-los realmente, com cara de paisagem, fingindo que nada estava acontecendo. Eu não queria que ela soubesse que eu estava reagindo daquela forma a ela; certamente ficaria horrorizada. Sempre fomos como irmãos!
Tentei me conter, agradeci por Theodoros e sua companhia já estarem à mesa, fiquei um tempo distraído conversando com meu irmão mais velho, mesmo que isso fosse uma dor no saco. Não sou tão rancoroso quanto o Konstantinos sobre o Theo, apesar de concordar com meu irmão sem noção sobre ele nos ter abandonado nas mãos do louco Nikkós, mas o que Theodoros poderia fazer? Eu mesmo estive nessa situação quando pude sair de casa, mas não tinha como tirar Kyra dele, por isso fiquei.
O DJ que executa as músicas antes do jantar e da banda ao vivo coloca My Immortal, de Evanescence, e é impossível não olhar para Samara.
— Sua música preferida na adolescência — comento com ela.
Samara sorri e balança a cabeça, olhando os casais indo para a pista de dança.
— Tocou na minha formatura...
— Eu sei, eu queria dançar com você, mas você não parecia muito a fim, então fui beber.
Ela arregala os olhos e me encara como se não soubesse do que eu estou falando. Provavelmente nem se lembra, estava nervosa e ficava repetindo o caminho todo dentro do carro que a gente nem deveria ter ido, que era besteira.
Não somos mais adolescentes!
— Quer dançar? — inquiro impulsivamente e estendo a mão para ela.
Samara olha para minha mão por um tempo, mas aceita.
Porra, que loucura!
Ela pega minha mão, e minha vontade é de puxá-la para mim e beijar sua boca. Foda! Não consigo mais refrear meus desejos; sempre consegui com ela, por isso não entendo o que está acontecendo agora. Não é qualquer mulher aqui comigo, indo para a pista de dança para ficar de corpo colado no meu – porra! – é a Samara!
Samara!
Minha amiga de infância!
Quase uma irmã...
MERDA!
— Está tudo bem? — ela me pergunta, e eu tento relaxar, já que estou dançando como antigamente: a um palmo de distância dela.
— Sim, tudo. — Tento dar meu famoso sorriso, mas não rola, então pigarreio. — Estou com sede, calor... acho que é essa decoração toda.
— Pode ser. — Ela desvia os olhos de mim. — Quer voltar para a mesa?
Quero!
— Não, a não ser que você...
— Tudo bem.
Ela se solta de mim no exato momento em que a música muda para um instrumental baixo e as luzes se acendem.
— O jantar. — Aponto para os garçons em fila e os convidados voltando aos seus lugares. — Vamos?
Salvo pelo gongo do cozinheiro!, penso ao ajustar disfarçadamente minha calça para não andar de pau duro e assustar a todos por causa da claridade do salão.
Samara bebe mais uma taça de champanhe, e eu rio, já preocupado. Nunca a vi beber tanto! Sempre foi séria, careta, estudiosa e boa filha. Ela nunca fazia nada de errado, nunca decepcionou os pais, fazia tudo o que eles queriam... quer dizer, tudo menos se afastar de mim.
— Acho que já quero ir — ela comenta de repente. — Vou chamar um Uber...
Levanta-se um pouco tonta, e eu a amparo pela cintura.
— Você quase não comeu, e bebeu muito — falo, e ela levanta uma sobrancelha atrevida e irônica para mim. — Não estou dando lição de moral, mesmo porque não tenho nenhuma, apenas constatei um fato.
Ela ri.
— Você não tem nenhuma moral mesmo! — arrasta a última palavra. — Sempre foi um galinha, essa cara de santo aí só engana as outras!
Gargalho.
— Elas não ficavam enganadas por muito tempo, pode acreditar!
Samara funga, indignada, e fecha os olhos.
— Eu acho que realmente bebi demais.
Olho em volta; o salão já está praticamente vazio, apenas um ou outro convidado conversando em pequenos grupos. Theodoros se despediu, com Valentina grudada em seu pescoço, há mais de uma hora, e Kostas nem jantou conosco à mesa, provavelmente ficou no bar com sua acompanhante.
Inicialmente eu tinha pensando em esperar tudo terminar para acompanhar Kyra até em casa, mas, com Samara no estado em que se encontra e com tudo aqui ainda para ser desmontado, é melhor eu levar minha amiga para casa – aproveitando que moramos no mesmo prédio – e voltar mais tarde para acompanhar minha irmã.
Pego a pequena bolsa que ela trouxe e, ainda abraçado a ela, caminho para a saída.
— Alexios... tudo está rodando...
— Muito natural depois de todo aquele champanhe.
Ela suspira e joga a cabeça para trás.
— Você é um chato, sabia? Não posso entender o que todas aquelas mulheres viam em você!
— Imagino que não possa mesmo — respondo-lhe, sabendo que vai se irritar.
Samara sempre disse que eu respondia politicamente ou me evadia quando sentia que o assunto poderia ir para alguma direção que não me deixaria confortável. Ela tinha razão na maioria das vezes, mas, neste momento, só estou a fim de irritá-la.
— Você é um babaca, Alexios Angelos!
Opa! Falou meu nome todo! Rio de sua irritação bêbada, talvez por estar um tanto alto como ela, mas sóbrio o suficiente para carregá-la em segurança até a calçada.
Não vim de moto ou carro sozinho exatamente por saber que iria beber – principalmente para aguentar sozinho a companhia dos meus irmãos à mesa –, porém previ que a saída do baile estaria um inferno e que seria difícil conseguir um táxi ou um carro de aplicativo que estivesse por perto, por isso deixei o Cris, que me trouxe, de sobreaviso no estacionamento.
Mando mensagem para ele e espero até meu carro aparecer. Abro a porta de trás e coloco sobre o banco uma Samara parcialmente adormecida por cachaça francesa.
— Essa foi nocaute! — Cris ri quando eu entro. — Para onde?
— Para o Castellani. — Ele dá um sorrisinho malicioso e pisca. — Ela é minha vizinha, Cris, sossega.
— Falou, chefinho.
— Para de merda e dirige.
Ele tenta sair da entrada do hotel, mas é praticamente impossível com o número de carros que também tentam deixar o local. Olho para trás, confiro que Samara está mesmo apagada e fecho os olhos, recostando-me contra o assento do carona.
— Foi uma festança, hein? — Cris volta a falar. — Só vi entrar filé, pena que a maioria estava acompanhada.
— Geralmente isso não é problema — comento, mordaz. — Já comi muita mulher no banheiro de recepções como essa enquanto o marido conversava com os amigos e falava de negócios.
Cris gargalha.
— Você nunca valeu nada, Lex!
Não retruco o apelido ridículo com que ele me chama e me faz parecer o vilão do Homem de Aço. É pura perda de tempo ralhar com Cristino, então simplesmente ignoro, cansado, meio zoado e com tesão frustrado.
Ele e eu nos conhecemos há alguns anos, quando visitei um dos prédios da Karamanlis que foram invadidos por movimentos pró-moradias. O homem era motorista de profissão, com anotação em sua carteira de trabalho em várias empresas, que juntou todo o dinheiro que tinha, investiu em um carro e um ponto de táxi, mas foi engolido e enxotado pelas grandes cooperativas.
Assim, quando nos conhecemos, ele estava sem casa, sem carro, sem emprego e com uma enorme dívida, fazendo bicos aqui e ali. Ajudei-o primeiro a conseguir emprego, depois por fim saiu da invasão, e, nesse ínterim, nos tornamos amigos.
Ano passado, quando a filha dele nasceu, quis que eu a apadrinhasse, mas educadamente declinei, explicando que, mesmo honrado, não poderia aceitar, pois sou ateu, e o apadrinhamento de uma criança tem a ver com questões religiosas, tem um sentido específico, e eu não seria a pessoa certa para isso. Ele entendeu, mas a garotinha já me chama de Didi (seu jeito fofo de bebê de chamar seu dindo, mesmo que oficialmente eu não o seja).
Acho que cochilei também até o Castellani, pois, quando me dei conta, já estávamos na garagem. Cris me perguntou se eu queria ajuda com Samara, mas agradeci e o mandei para casa. Ele não trabalha como meu motorista diariamente, mas sim na Karamanlis, transportando quem quer que precise fazer serviços externos. Contudo, toda vez que preciso, chamo-o para ganhar um extra.
Há muito parei de combinar bebida e direção, não por mim, mas por medo de acontecer algum acidente e eu acabar prejudicando outras pessoas.
Chamo o elevador, e somente dentro dele é que a bela adormecida parece voltar a si.
— Alexios... — Samara olha em volta. — Este é o elevador do Castellani?
— Parece que sim — respondo-lhe divertido.
Samara bufa.
— Só desmaiada é que eu aceitaria vir com você na direção nesse estado em que se encontra.
— Estou melhor que você. — Ela se encosta contra o espelho, olhos fechados e um enorme sorriso bêbado no rosto. — Além do mais, viemos com motorista.
— Bom... — Samara fala devagar e lambe os lábios como se estivessem secos. O efeito no meu pau é instantâneo. Sinto meu corpo inteiro acender, minhas mãos formigam de vontade de tocá-la. Sua pele parece brilhar, atraindo-me como uma chama atrai uma mariposa.
Tento me afastar, pensar em outra coisa, mas o espaço reduzido do elevador não ajuda. As paredes parecem se fechar cada vez mais, aproximando-me de Samara, apertando-me contra ela, espremendo meu corpo...
— Alexios... — ela geme meu nome, e eu me espremo mais, fazendo-a grudar contra o espelho. O seu perfume inebria meus pensamentos, a pele, tão quente e macia que a sinto mesmo por baixo do vestido, me enlouquece. Preciso provar o sabor de sua boca, conferir se o hálito quente e um tanto etílico se confirma em sua saliva.
Sim!
Agarro-a com mais força, minha ereção pressionada contra sua barriga, minha boca correndo em seu pescoço. Tudo parece congelar à nossa volta, não existe mais tempo e nem espaço, apenas o vácuo e nós dois dentro dele, em chamas.
Lábios nos lábios. Meus dedos esfregam sua nuca, a pele arrepia, os pelos eriçam, meu corpo treme. É a viagem mais louca que eu já fiz sem ser através de uma substância química entorpecente... não! É química ainda, é uma droga viciante, é tesão!
Devoro sua boca sem nenhum pudor ou impedimento. Ela me acolhe, abre-a para minha exploração, prende meus lábios entre seus dentes e morde com força, despertando com a dor ainda mais meu desejo.
Enfio os dedos no meio do seu penteado, seguro o cabelo com força, e ela retribui o desespero cravando as unhas nos meus ombros.
Estou pronto para fodê-la, minha cabeça já trabalha uma forma de abrir o zíper da calça social, sacar meu pau e buscar o caminho de sua boceta, que, a julgar pela forma com que ela come a minha boca, já está molhada e quente.
Um pigarrear me faz sobressaltar, e eu me afasto dela o mais rápido possível. Um casal de idosos também vestido em black tie entra no elevador no saguão do prédio, sinal de que o elevador subiu e desceu de novo enquanto nós dois quase nos comíamos dentro dele.
Olho para Samara, mas ela não parece constrangida ou assustada, apenas passa a mão pelos lábios e me encara, sua expressão cheia de perguntas e curiosidade.
Caralho, o que eu estou fazendo?! É a Samara, minha amiga, aquela que eu sempre quis manter longe desse meu lado sem vergonha! Puta que pariu!
Espero o casal descer em seu andar e, assim que as portas se fecham, respiro fundo.
— Desculpa, Samara, acho que estou mais bêbado do que imaginei a princípio. — Não tenho como olhá-la, dividido entre o constrangimento e o desejo ainda pulsando na minha calça. — Somos amigos, eu não deveria atacar você dessa forma, me des...
— Para! — sua voz soa magoada, e eu tenho vontade de socar a cabeça contra o espelho. — Não precisa dizer mais...
— Eu prometo que isso não voltará a acontecer. — Finalmente a encaro e fico fodido ao ver sua expressão confusa. Ela parece não ter gostado do que aconteceu, deve estar achando que eu sou um filho da puta aproveitador. — Você é minha amiga, Samara, mesmo depois dessa distância, eu ainda a vejo como se fosse minha irmã e...
— Chega! — ela grita, e as portas do elevador se abrem no seu andar. — Você tem razão, foi um erro e não deve voltar a acontecer!
Ouvir isso é como um balde de água fria, mesmo reconhecendo que é o certo.
— Eu não quero que isso afete novamente a amizade que nós temos e...
Samara sai pisando duro do elevador sem olhar para trás. Minha vontade é de correr atrás dela, voltar a encostá-la em alguma parede e beijá-la novamente até que perca a razão ou eu alivie esse tesão indesejável que estou sentindo.
As portas se fecham, e eu, ao invés de apertar o botão do meu andar, mando o elevador de volta para o térreo e chamo um Uber.
Preciso trepar!
— Essa sua cara de cachorro cagando na chuva é ainda ressaca do baile? — Kyra me pergunta, sentando-se ao meu lado na rede que ela tem em sua varanda. — Quer café?
Resmungo ainda com os olhos fechados:
— Quero paz!
Ela ri.
— Isso está em falta por aqui hoje, passa na semana que vem... — Encaro-a, puto com a piadinha. — O que aconteceu?
Não respondo, meus olhos fixos no topo do prédio do outro lado do parque. Balanço a cabeça, decidindo ser mais covarde do que tenho sido desde a madrugada do dia primeiro de janeiro e fecho os olhos para tentar nem pensar na confusão que arrumei.
— Você não deveria estar trabalhando hoje? Ou eu? — Kyra volta a me importunar, mas continuo mudo. — Mano, você continua o mesmo chato da porra de sempre! Fica aí com essa cara de Maria do Bairro e não abre a porcaria da boca para me contar o que diabos você fez dessa vez!
— Obrigado pela confiança em mim! — retruco irônico.
— Ah, boquinha para ser mal-educado comigo você tem! — Ela me cutuca o ombro, mas depois suspira e deita a cabeça nele. — Você sabe que faz merda, mas que eu estou aqui, disposta a te ouvir e te ajudar a limpar os cagaços. Somos uma dupla, você e eu, sempre fomos e sempre seremos.
— Costumávamos ser um trio... — assim que eu comento, imediatamente me arrependo, pois Kyra salta da rede – quase me derrubando no percurso – e emite um ensurdecedor: “ahá!”.
— Eu sabia que tinha acontecido algo na madrugada do baile! Samara está estranha, esquiva, e isso não é o natural dela. Que merda você aprontou? — Continuo ignorando-a, sem nenhuma disposição para contar sobre o beijo, o amasso e a confusão que isso criou em mim. — Alexios! — Minha irmã começa a pirar por causa do meu silêncio, mas, se me conhece um pouco, já deve imaginar que eu não irei abrir a boca para falar desse assunto. — Está certo! Você e sua maldita boca de siri. — Volta a se sentar, mas dessa vez não se deita em mim. — Alex, ela é nossa amiga, não a magoe, ok? Samara merece ser feliz, e esses anos que passou na Espanha foram ótimos para ela. Eu morria de saudades, mas estava feliz por ela estar realizada trabalhando com o que ama fazer, com um puta gato espanhol lambendo seus pés e — abro os olhos, mas Kyra não se freia — querendo formar família com ela.
Sento-me bruscamente, e Kyra balança.
— Como assim formar família?
— Ele a pediu em casamento. — Surpreendo-me, mas tento não reagir, não demonstrar. — Deu-lhe um lindíssimo e caro anel de diamante e está esperando pelo retorno dela.
Essa informação, apesar de ter me pegado de surpresa, não é nenhuma novidade. Sempre achei que algum homem de sorte iria conquistar o coração da minha amiga de infância e tê-la para sempre. Samara é a pessoa mais leal que eu conheço, mais incrível, merece muito ser feliz ao lado de alguém que valha a pena.
— Ela não estava usando anel... — penso em voz alta.
— Ainda não falou com os pais dela... — Kyra olha fundo nos meus olhos, procurando qualquer reação minha, mas sei que não irá encontrar nenhuma. Há muito aprendi a sentir sem demonstrar ou a mostrar apenas o que eu quero que os outros vejam. — Vocês não conversaram ontem?
— Acho que ainda não conseguimos estreitar os laços de amizade novamente.
— Hum... — Ela olha para seu relógio no pulso e suspira. — Preciso ir para o trabalho, vai ficar aqui? — Assinto. — Eu tenho a sensação de que você está se escondendo, só não faço ideia do quê.
Ela entra no apartamento, e novamente olho para o alto do Castellani, do outro lado do parque. Daqui do prédio onde ela mora, consigo ver o heliponto no telhado, algumas janelas da cobertura onde Cadu mora, o andar debaixo, onde Bernardo Novak reside, e uma pontinha da minha varanda. O apartamento de Samara fica uns andares abaixo do meu, então não tenho como vê-lo, mas somente por saber que ela está lá dentro, sinto vontade de ficar aqui, bem longe.
Não me entendam mal, não estou fazendo isso porque não quero que ela se aproxime de mim, pelo contrário, estou aqui, exilado como um covarde no apartamento da minha irmã mais nova, porque, se pisar no Castellani, sei que não conseguirei me manter distante dela.
Mesmo depois da maratona de sexo que fiz com uma mulher com quem já havia saído antes das festas de final de ano, não tenho segurança de estar no mesmo ambiente que Samara e me controlar para não a pressionar contra alguma parede e fodê-la sem ao menos dizer um cumprimento.
Definitivamente não vou fazer isso, não com ela!
Muito menos depois de saber que há alguém que a merece, que está à altura dela, esperando sua volta.
Rio de mim ao pensar que estou aqui, evitando-a, quando na verdade ela é quem deve estar querendo ficar a quilômetros de mim. Talvez esteja até indignada e ofendida pelo modo com que a toquei e beijei sem nenhum aviso, como se fôssemos um casal qualquer que se encontrou na balada para trepar, e não duas pessoas que são amigas desde que se entendem por gente.
Não entendo por que perdi o controle do tesão que sempre reprimi, mas me conheço o suficiente para saber que ele não passou. Raramente sinto aquela química com alguém. Era como se meu corpo estivesse sendo atraído, como se algo nela estivesse provocando reações em mim que eu não conseguia controlar. Foi animal, carnal, a famosa atração de pele que muita gente procura, mas pouca tem.
E eu tive justamente com minha melhor amiga!
Kyra volta a aparecer no meu campo de visão, agora com os belíssimos cabelos escuros, longos e fartos soltos, o rosto maquiado e uma roupa de deixar qualquer homem lobotomizado.
— Esse bode aí está foda para passar, hein? — comenta antes de se abaixar para pegar um guarda-chuva no móvel ao lado da rede. — Têm umas sobrinhas do baile na geladeira, cerveja – por favor, não tome todas, mas se tomar, as reponha –, e meu chuveiro tem muita pressão e água fresca. — Pisca para mim, e eu franzo a testa, sem entender. — Você está meio rançoso.
— Vai se ferrar, Kyra — ralho com ela, mas rio.
Ela se aproxima e beija minha testa, e isso, sim, arranca um sorriso sincero meu. Gosto que ela confie em mim o suficiente para me tocar, para recostar-se no meu ombro ou mesmo ficar abraçada, pois sei que ela não é assim com todos, principalmente com homens em geral.
— Fica bem e ouça meu conselho... — Ela anda até a porta antes de complementar: — Tome um banho, você cheira a álcool e a perfume vagabundo.
Levanto o dedo do meio para ela e a escuto ir gargalhando apartamento adentro até a porta de entrada bater. É, eu bebi bastante, sim, devo estar exalando álcool pelos poros, e o perfume barato se impregnou em minha roupa ontem, quando a recoloquei depois de mais de 12 horas nu, e a mulher me abraçou toda perfumada.
Saí do apartamento dela e vim direto para o da Kyra, torcendo para que minha irmã estivesse em casa e sozinha a fim de que eu pudesse cair aqui nesta rede onde estou e tentar pôr a cabeça certa no controle do meu corpo.
O telefone fixo toca alto, afastando meus pensamentos, e aproveito para tomar o banho aconselhado pela minha irmã viciada em limpeza. Entro na sala desabotoando a camisa branca que usei com o smoking – pois é, ainda estou com a mesma roupa do Ano Novo em pleno segundo dia do ano – e noto que não faço ideia de onde estão o paletó e a gravata-borboleta.
A primeira foto que vejo ao entrar no quarto de Kyra é uma que tiramos juntos – Samara, ela e eu – na formatura da minha irmã. Eu fui o par dela, então estava de smoking, e as duas, de vestido longo, maquiagem e penteado. Caminho até o aparador e pego o porta-retratos, focando em Samara e me perguntando como eu conseguia me manter longe do mulherão ao meu lado. Era uma beleza diferente da minha irmã, Samara tem o olhar doce, sorriso largo, nenhum mistério, seu rosto expressa suas emoções, sua sinceridade.
CONTINUA
Sua pergunta me deixa paralisada, completamente sem condições para lhe responder. Por que ele me procuraria?! Porque somos amigos desde que nasci? Porque estive ao lado dele em todos os momentos? Porque ele tomou um porre, apareceu lá em casa, chorou no meu ombro, beijou-me e depois fingiu que nada tinha acontecido?
Respiro fundo para controlar o volume da voz e não gritar que ele é um idiota, mas, antes que eu abra a boca, Kyra aparece esbaforida com um telefone na mão.
— Ei, Malinha, você está com seu telefone na bolsa? — Alexios olha para a irmã, puto por ela estar nos interrompendo, e eu franzo a testa, sem entender a pergunta dela. — Seu celular! — Ela bufa... — Seu irmão acaba de ligar para o meu telefone. — E balança o aparelho.
Arregalo os olhos, meu coração dispara, e logo penso em mamãe, que vi apenas um pouco ontem, quando fui buscar o Godofredo. Pego o telefone e confiro as ligações perdidas. Noto Alexios se afastando, mas não me importo; ele continua o mesmo egoísta de sempre.
Samara Schneider está de volta!
Mastigo mais um pedaço do pernil que Kyra serviu como opção de carne na ceia de Natal e não consigo deixar de pensar na volta daquela que foi minha grande amiga e companheira.
Até hoje não entendo o que aconteceu para que ela tomasse a decisão de ir estudar na Espanha sem falar nada comigo. Claro, eu sabia que tinha a possibilidade, afinal, havia anos o pai dela pressionava por isso, para ela ir estudar arquitetura clássica na terra de Gaudí14. No entanto, para minha total surpresa, em vez de ir morar em Barcelona, Samara foi para Madri.
Eu, que até então me considerava seu melhor amigo, só fiquei sabendo desses detalhes todos porque Kyra me contou depois que fui atrás dela para saber o paradeiro de Samara.
Pego a taça com água para ajudar a engolir a comida, pois estou com um aperto na garganta desde que a vi. Eu tinha acabado de sair da sala de reuniões de Kyra depois de um ménage espetacular com Valéria e Priscila, mais animado para encarar a noite especial, sem imaginar a grande surpresa que encontraria no salão e que quase me fez tropeçar em meus próprios pés.
Assim que meus olhos bateram nela, assustei-me, pois a danada da Kyra não havia me contado que Samara tinha voltado. Tentei um sorriso e uma aproximação amigável, como se ela não tivesse me abandonado por longos três anos sem nenhuma notícia. Ela está diferente, ainda mais bonita do que eu me lembro, mas tentei não reparar muito e ser o amigo de sempre.
Nada disso adiantou, pois, ao que parece, Samara desejou que eu corresse atrás dela, que a procurasse e reestabelecesse contato. Como eu poderia imaginar algo assim? Não sou adivinho! Ela some sem nenhum motivo e ainda se sente no direito de ficar puta por eu não ter tentado contato?
Quem entende a cabeça das mulheres?!
— Sua amiga foi embora cedo — Millos comenta ao meu lado. — Será que houve algum problema com a mãe dela?
Olho para meu primo, sentado ao meu lado à mesa, e ele entende meu total desconhecimento do assunto.
— A mãe dela, dona Ana Cohen, está em tratamento contra um linfoma. — Millos bebe mais chope. — Você não sabe nada sobre a vida da sua amiga?
— E você? Como sabe?
O filho da puta apenas dá de ombros, evasivo como sempre, adorando estar sempre um passo à frente de todos. Millos é um sujeito estranho. É o único que consegue interagir com todos nós sem tomar partido e sem revelar nada da vida pessoal de ninguém, nem mesmo da sua. Somos amigos, nos damos bem, mas eu sei pouco sobre ele, sobre suas atividades, e o máximo que conheço de sua vida pessoal é que tem um passado fodido como o meu, frequenta alguns clubes de sexo, tem uma amiga que por sinal é uma gostosa do caralho – mas nunca me deu mole, infelizmente – e só.
Como profissional, o homem é uma verdadeira coruja! Quieto, observador, parece que consegue olhar em 360 graus, além de ser um caçador de informações inigualável. Não há nada que passe despercebido por ele, e o que expõe ou o que fala, tenho certeza de que é o mínimo do que sabe. Por isso, todo cuidado é pouco quando o assunto é Millos Karamanlis, porque o desgraçado é um manipulador de mão cheia!
— Eu não sabia que dona Ana está doente, não vejo os pais de Samara há anos — contesto-o. — Espero que nada grave tenha ocorrido.
— Não vai ligar para saber? — Millos volta a questionar.
Franzo as sobrancelhas, encarando-o, tentando entender o motivo pelo qual ele está tão interessado no assunto.
— Não — respondo seco e volto a comer, mesmo com o questionamento dele na cabeça. Para mim o assunto acabou! Samara já demonstrou que não quer papo comigo por algum motivo, e, mesmo chateado com isso, devo respeitar a decisão dela. Millos é um manipulador e sabe que esse é um assunto que me atinge diretamente, por isso tocou nele.
Não preciso ligar para Samara, como não liguei para ela durante todo o tempo em que esteve fora, mas isso não quer dizer que eu não queira saber o que está acontecendo. Kyra sempre foi minha fonte de informações sobre ela e, caso tenha que ser assim, continuará sendo.
Termino minha refeição, fico mais algum tempo com Kyra e seus convidados, brindo ao sucesso do negócio dela e logo depois vou embora. Tinha pretensão de ir para casa, mas, no meio do caminho, uma mulher com quem eu já saí algumas vezes me manda uma mensagem dizendo que está na cidade, e vou encontrá-la.
Dia 26 de dezembro, pior dia de trabalho do mundo, certamente! Rio ao passar por mais dois engenheiros com cara de ressaca ou, talvez, de quem comeu demais e agora passa mal do estômago.
— Melhor colocar a lixeira perto! — passo, sacaneando meu colega de trabalho, Pedro, engenheiro químico. — Se emporcalhar a sala, vai ter que limpar você mesmo.
— Porra, Alexios, fala mais baixo! — Ele põe a mão na cabeça.
Gargalho e me sento à minha mesa, lotada de projetos, planilhas e minha coleção de lápis. É, eu coleciono lápis! Cada um tem a coleção que lhe cabe, não é?
Ligo o computador, olho para meu caderno de tarefas e arregalo os olhos ao ver um nome que eu não imaginava rever anotado lá – por outra pessoa.
— Ethernium? — questiono olhando para o Pedro.
— Sim! Acabamos de saber, mas o CEO lá da Karamanlis vai querer conversar com você, certamente.
Bufo ao pensar em subir até o Olimpo para conversar com Theodoros, sem esquecer as discussões que tivemos nas últimas semanas por conta de seu egocentrismo e insensibilidade com os funcionários da casa.
Sua mania de pensar que é Deus, inabalável, inatingível e perfeito me irrita, principalmente porque sei que ele não é nada disso, apenas a porra de um filhinho de vovô mimado, que sempre achou que podia fazer qualquer coisa que quisesse sem pensar nas consequências, que o velho grego limparia suas cagadas.
Admito, o velhote sempre fez tudo para seu neto querido. Entretanto, não pôde limpar a merda que Theodoros deixou para trás, apenas jogou-a para debaixo do tapete, limpou a consciência do seu netinho querido, que seguiu a vida como se nada tivesse feito e deixou o resto se fodendo sem se importar o mínimo.
Theo é arrogante, e eu não tenho saco para lidar com gente assim.
Ouço passos, um poc-poc característico de saltos, e em seguida a voz de Lia, outra engenheira que trabalha na minha equipe direta.
— Bom dia! — sua voz soa animada. — Ah... sem Papai Noel de chocolate este ano! — ela resmunga, e eu a vejo procurando sobre sua mesa. — Poxa, Alex, você já foi mais generoso!
— Eu?! — Começo a rir. — Você realmente me imagina comprando e colocando chocolate em formato de Papai Noel nas mesas dos outros? — Ela faz careta e nega. — Eu achava que era você!
— Por quê? Só porque sou mulher?
Rolo os olhos.
— Não, porra, porque você é viciada em chocolate!
— Ele está certo, Lia! — Pedro se mete na conversa em minha defesa. — Eu também achava que era você por causa disso.
Ela se senta frustrada por não ter encontrado o presente do “Papai Noel” misterioso da Karamanlis.
— Bom, não sou eu, e eu contava com isso! Não falha por anos! — Olha em volta para as outras estações de trabalho, ainda vazias sem os profissionais. — Ninguém recebeu?
Nego, e Pedro faz o mesmo.
— Estranho...
— Coisas estranhas têm acontecido por aqui — digo e lhe estendo meu caderno com a anotação da Ethernium.
— O quê? De novo? — Ela geme. — Esses caras da Ethernium são uns malas! Sério, Alexios, eu não vou aguentar gracinhas pra o meu lado de novo não!
— Eu disse que você devia ter respondido a ele. — Dou de ombros. — Mas agora sabe que tem meu total apoio! Se alguém da equipe deles fizer piadas machistas de novo, responda.
— Quem é o machista? Que vou com você dar uma surra nele. — Eliane chega já mostrando as garras – que garras! Minhas costas sofreram com elas – e se senta em sua estação. — Bom dia, feliz Natal, foi tudo ótimo! Agora, silêncio, porque ainda estou agarrada a um cálculo estrutural que não tem me deixado dormir. Obrigada. De nada.
Pedro começa a rir, e Lia só balança a cabeça. Eliane é assim, direta e sem rodeios, por isso mesmo achei-a ideal para o trabalho pelo qual é responsável. Nós nos conhecemos em uma balada, transamos, depois voltamos a nos encontrar na entrevista dela aqui na K-Eng tempos depois. Nunca mais voltamos a trepar, mas conseguimos construir uma relação de trabalho quase perfeita. Sei que posso contar com ela para qualquer coisa aqui dentro.
Tenho mais duas pessoas na minha equipe: Evandro e Michel, mas os dois estão de férias e ainda não retornaram. Não é normal dois membros da mesma equipe saírem em férias juntos, mas, como eles são casados, a lei lhes garante esse direito.
A K-Eng não é formada apenas pela minha equipe de engenheiros em suas especialidades, a verdade é que cada um aqui gere suas próprias divisões. O Pedro, por exemplo, é engenheiro químico, e na divisão dele estão químicos industriais, técnicos em química e outros engenheiros dessa área. Já a Lia é engenheira ambiental, e, dentro de sua divisão, há biólogos, gestores ambientais e engenheiros sanitaristas. A Eliana trabalha com projetos, e ela coordena outros engenheiros, arquitetos e projetistas. O Michel faz toda a parte de planilhas e medições, e o Evandro é responsável pelas operações, é quem lida com empreiteiros, clientes e atua também como fiscalizador de obras.
Além do corpo técnico da K-Eng, a empresa, que é uma subsidiária da Karamanlis, ainda tem setores administrativos e financeiros, e eu, como CEO dessa bagaça aqui, sou quem comanda essas áreas.
O único setor que dividimos com a Karamanlis, infelizmente, é o jurídico, por isso aturo muito a prepotência inglesa do Konstantinos e seu humor ácido. Geralmente não tenho paciência com ele, zoo com sua cara ou apenas o ignoro. Ele não é bem quisto por ninguém da minha equipe, principalmente pelas mulheres.
— Por falar em machismo... — Lia volta a falar. — Será que a Kika não vai voltar mais não?
Dou uma risada por ela ter entrado no assunto justamente quando eu pensava no meu irmão machista.
— Está um silêncio total na Karamanlis — Eliana se pronuncia. — Dá até medo de andar pelos corredores, clima pesadão!
— A Kika era incrível, né? Gata, alto-astral, competente — Pedro lamenta. — Uma pena que tenha perdido a cabeça e tenha sido mandada embora...
— Opa! — Eliana o interrompe. — Ela se demitiu!
— Enfim, está desempregada depois de ter ganhado uma puta promoção para a gerência.
— Eu a preferia à Malu Ruschel. — Lia treme toda. — Aquela mulher congelava até meu sangue só de estar perto dela.
Definitivamente, não o meu!, penso ao me lembrar de Malu Ruschel, a ex-gerente dos hunters da Karamanlis. Malu era bonita, tinha classe e aquele seu jeito focado me enchia de tesão. Uma pena ter ido morar no fim do mundo!
Já com a Kika, nunca senti essa atração, talvez por sempre tê-la achado tão receptiva, maravilhosa com seu jeito espontâneo, que logo gostei dela como se fosse uma amiga de longa data. Tenho muito apreço por ela e lamento que tenha saído da empresa.
Os engenheiros começam a conversar, mas o assunto não me interessa o mínimo, então coloco meus fones de ouvido – a voz forte e rasgada da Janis Joplin soa bem alta – e volto a mexer no projeto em que estava trabalhando.
— Ei, moleque! — Millos me chama assim que para sua moto. — Você não sabe curtir um passeio, puta que pariu!
Ele desce da motocicleta, tira o capacete e a jaqueta e se senta à mesa do bar ao meu lado. Bebo minha água sem responder, porque a única coisa que eu poderia lhe falar é que não sou um velho para ficar andando nessas motos de colecionador há 80 km por hora.
Estou aqui esperando-o há pelo menos 20 minutos, e isso porque saímos juntos de São Paulo em direção ao Guarujá, em uma viagem não programada e cujo motivo, sinceramente, nem entendi. Ele apenas apareceu lá na K-Eng e me chamou para andar de moto com ele, e eu topei.
— Qual é o propósito disso? — resolvo perguntar sem rodeios.
— Do quê?
Millos agradece à garçonete que lhe entrega um coco verde com um canudo e nem percebe a moça comendo-o com os olhos (ou talvez só esteja assustada com suas tatuagens, que cobrem os braços, pescoço e peito).
— Desse “passeio”. A gente se viu há alguns dias na ceia da Kyra, e você não comentou nada sobre isso.
— Nada de mais! — Ele bebe a água de coco. — Vou viajar no Ano Novo, ficar um tempo fora e queria passar um tempo contigo. Já jantei com seus irmãos, mas como você é todo amalucado para comer, achei que uma volta de moto iria cair bem, mas esqueci que você é louco nisso também.
— Você está ficando velho, Millos, sinto lhe informar — debocho. — Acha mesmo que, com essa potência italiana nas mãos, eu iria ficar molengando contigo na estrada?
— Não é molengar, é curtir a viagem, a paisagem...
— Ah, não, você curte essas coisas paradas, não eu. Meditação, ioga, essas coisas todas aí que você faz, tô fora! Não sei ir devagar, Millos, em nada!
— Deveria... talvez assim conseguisse agradar às mulheres. — Ele pisca e tenta disfarçar a troça bebendo mais de sua água.
Eu gargalho.
— Pode ter certeza, elas não reclamam da minha rapidez. Não basta saber correr, tem que saber tirar o máximo proveito de uma máquina, fazê-la dar tudo de si, e isso eu faço.
— Está falando das motos ou das mulheres?
— Tem diferença?
Ele ri novamente.
— Você é um moleque, não sabe nada ainda!
— Falou aquele que nomeia suas motos com nomes femininos!
Nós dois rimos juntos, e o clima fica descontraído.
A verdade é que ele e eu temos muito em comum. Ambos adoramos motocicletas, rock e carne. Apesar de sua onda “zen budista”, Millos nunca conseguiu se livrar da proteína animal e das comidas pesadas que adora preparar para acompanhar suas cervejas artesanais.
Ah, esse é outro ponto em comum: adoramos cerveja! Ele fabrica, eu apenas bebo, mas tenho tanto conhecimento quanto ele, e esse é um dos pontos sobre o que mais conversamos quando estamos juntos, geralmente comendo alguma carne e ouvindo rock.
Raramente saímos juntos de moto, exatamente por ele fazer o estilo tiozão que gosta de andar de Harley, apreciando paisagens, e eu e minha Ducati Multistrada 1260 não temos saco para andar quase parando não.
Embora eu reconheça que tenho que agradecer a esse tiozão por ter minha moto dos sonhos, a que uso para correr nas competições. A Ducati só disponibilizou três unidades da 1299 Superleggera para venda no Brasil, há quase dois anos, e um dos amigos do Millos foi quem comprou uma delas, e, quando ele decidiu vendê-la, meu primo prontamente me avisou, e não pensei duas vezes.
Eu gosto das italianas mais do que das americanas ou japonesas, pelo menos para as motos; não sou tão seletivo assim com mulheres.
— Baile dos Villazzas...
— Ah, Millos, não fode com esse assunto de novo! — reclamo, entendendo agora o motivo do encontro.
— Alexios, preciso de você lá.
Rio.
— Mano, aqueles dois não são crianças, e, muito menos, sou a babá deles! Eles não precisam que eu vá para manter a ordem e o bom nome da...
— Kyra me mostrou o projeto do baile, ela parece bem animada com sua primeira grande produção sem a intervenção dos Karamanlis.
Porra! Ele vai pegar pesado!
— Você é muito filho da puta, sabia?
Millos dá de ombros e bebe mais água.
— Acho que vocês deveriam ir para apoiá-la, acima de todos, você! Será importante para ela, além disso... acho que ela está sem acompanhante, porque deu com o pé na bunda do último idiota que estava comendo.
— Porra, Millos! — Xingo-o. — É a minha irmã, porra!
— E o quê? Só por isso ela não trepa?
— Vai se foder! — Levanto-me da mesa puto e pego o capacete.
— Alexios... — ele me chama, mas não dou atenção, já montando na moto para ir o mais longe possível dele.
Antes que vocês me julguem como machista ou irmão ciumento, adianto logo que não se trata disso. Cada um lida com a merda dentro de si de um jeito, e esse é o jeito da minha irmã de lidar com seu passado. Respeito isso, mas não quer dizer que não me doa ou mesmo que eu não me sinta responsável por ela ser assim.
Eu gostaria que as coisas fossem diferentes, esforcei-me o máximo que pude para que ela fosse menos fodida do que todos nós, mas, a cada novo relacionamento seu destruído, sinto-me um fracassado, o que me dói profundamente.
Piloto rápido, passando pelos radares sem me importar com as multas, sentindo o vento forte bater em mim como se pudesse deixar todas as marcas do meu corpo e da minha alma para trás. Contudo, não posso. Ele fodeu a minha vida várias vezes, não só com as coisas que fez contra mim, mas principalmente por eu ver que também destruiu minha irmã.
— Como ela está, Dani? — pergunto ao meu irmão assim que ele entra na cozinha da casa dos meus pais, onde tomo meu desjejum com a Cida.
— Dormiu bem. — Ele beija minha cabeça. — Mas foi um susto essa febre alta assim do nada.
Ele se senta, visivelmente cansado, e Cida logo lhe serve uma xícara de café. Acostumados demais a dividir as refeições com Cida desde que nascemos, sempre tomamos nosso café juntos. Ela está em nossa casa há tanto tempo que não sei como seria minha vida sem sua presença, e certamente Daniel sente o mesmo.
Minha mãe, Ana Cohen, sempre foi muito ocupada na direção do sistema de ensino criado pelos meus avós, franqueado e distribuído por colégios do Brasil todo. Já meu pai, Benjamin, vem de uma longa linhagem de comerciantes e industriais, como bem acentua nosso sobrenome, que é uma derivação da profissão de algum ascendente que foi alfaiate.
Os Schneiders possuem lojas, fábricas ou empresas que prestam serviços, como era o nosso caso. Meu avô não tinha formação quando fundou sua primeira fábrica de móveis, porém eram um marceneiro muito habilidoso, e meu pai aprendeu com ele. Os negócios iam bem, então papai foi estudar arquitetura e, por fim, design, elevando o nível dos negócios familiares, fazendo dos móveis com nosso sobrenome sinônimos de classe e riqueza.
Há 10 anos meu irmão está à frente dos negócios, desde que papai teve seu primeiro infarto – ele já teve outro e fez duas pontes de safena. Daniel é um administrador maravilhoso, fechou com grandes empresas, e hoje os móveis Schneider não enfeitam mais as coberturas e mansões luxuosas de São Paulo, tão somente redes enormes de hospitais, clínicas, lojas de alto luxo e restaurantes em todo o país.
Meu irmão é incrível! Nós dois somos muito amigos, sempre fomos. O único ponto tenso entre nós era Alexios Karamanlis. Daniel é 10 anos mais velho que eu, um quarentão, como eu costumo provocá-lo, e sempre achou Alex uma péssima companhia. Bom, ele realmente era, mas não para mim. Eu sabia das loucuras que Alexios aprontava, seu envolvimento com drogas, farras, lutas valendo dinheiro e rachas pela cidade. Ele não foi um adolescente fácil, mas sempre me tratou como se ainda conservasse o menino que eu conheci. Sempre me deu conselhos para ficar longe de tudo aquilo que ele mesmo fazia, nossa amizade sempre foi separada das outras companhias dele.
Ainda assim, Dani nunca gostou de Alexios, em compensação, tornou-se um dos grandes amigos de Millos Karamanlis, primo do Alex, mesmo que eu não consiga entender o que, de fato, o executivo tatuado e meu irmão tenham em comum.
— Desculpe-me por tê-la tirado da festa da Kyra — meu irmão volta a falar, afastando-me dos pensamentos. — Eu liguei para o doutor Henrique e já ia pedir uma ambulância, quando fiquei com medo de acontecer algo e você não estar aqui.
Pego sua mão.
— Eu sei. Foi um susto!
Retornei as ligações dele assim que Kyra me alertou, e, quando Dani atendeu, o doutor já havia chegado e ministrado medicamentos. O médico preferiu que ela continuasse em casa por conta de sua baixa imunidade, mas ficou acompanhando durante boa parte da madrugada.
— Ela convulsionou, e eu achei que fosse... — Ele me olha, seus olhos acinzentados tristes. — Eu quase perdi o papai tempos atrás, lembra? — Assinto. — Eu estava com ele quando teve o infarto, e agora quase...
— Dani, não pensa nisso! — Abraço-o. — Você é o melhor filho e irmão do mundo, sempre ao lado deles, ao meu lado. Agora estou aqui também e vou ajudar no que for preciso.
— Eu sei, Samara. Essa fase do tratamento é a mais complicada, por causa da baixa imunidade, mas, quando ela estabiliza, é a mamãe que sempre conhecemos e amamos.
— E a Bianca? — pergunto-lhe sobre sua noiva. — Como vocês estão, faltando pouco para o grande dia?
Ele ri sem jeito.
— Você sabe que não tem essa de grande dia, não? Nós vamos ao cartório, assinaremos os papéis e pronto. — Dá de ombros. — Vida que segue.
Cruzo os braços. Não gosto nada desse conformismo estranho.
— Tem certeza disso, Dani?
Ele olha para a Cida.
— Vou fazer 41 anos, pirralha. 15 anos de relacionamento com ela, então...
— É isso? — Cida balança a cabeça negativamente. — Viu? A Cida não concorda também! E não é que você seja já um solteirão arrastando chinelos, Dani! Você é lindo!
— Não é sobre isso, Samara.
— Ele quer ter uma família, menina. — Arregalo os olhos. — Seu pai vive mais entretido na fazenda do que aqui, sua mãe, antes de adoecer, não parava quieta, sempre viajando com as amigas e...
— Eu na Espanha.
Daniel termina o café sem me encarar, sem falar nada e se levanta.
— Vou voltar para o quarto, render um pouco a enfermeira.
— Também vou, Dani!
Seguimos juntos, mudos, pelo corredor. Meu irmão é a pessoa mais discreta do mundo, completamente o oposto de outros filhos de grandes empresários desta cidade. Nunca gostou de sair em revistas de fofoca, nunca namorou modelos, atrizes ou socialites. Na adolescência, namorou uma garota da escola, depois teve duas ou três namoradas na faculdade e, por fim, conheceu a Bianca em um torneio de polo – esporte em que ele é fera. Desde então engataram nesse relacionamento xoxo, totalmente ioiô – eles já terminaram umas 30 vezes ao longo dos anos – e que agora vai se tornar um casamento meia-boca.
— Você merece mais, Dani — solto sem conseguir frear minha língua, e ele ri.
— Você diz isso porque é minha irmã, pirralha. — Ele tenta bagunçar meus cabelos como quando eu era criança. — Bianca pode não ser o grande amor da minha vida, mas é uma boa amiga e companheira.
— Isso é loucura! Você merece amar, ser amado, estar apaixonado...
— Como você esteve a vida toda por aquele doidivanas? — Paro em seco no corredor e arregalo os olhos. — Qual é, Samara, você achava que eu não sabia? Estava escrito na sua testa e em todos os seus cadernos, com direito a corações rosa! Você teve um peixe daqueles que ficam sozinhos no aquário...
— Um beta. — Começo a rir, sabendo exatamente do que ele está lembrando.
— Pois bem, você teve um beta e o nomeou...
— Beto Schneider Karamanlis — falamos juntos, e eu começo a rir.
— Sim! E como você nunca me deu indícios de ter uma queda pela Kyra, eu supus que era o outro Karamanlis. — Daniel me olha sério. — Por que Diego não veio contigo?
A pergunta é tão inesperada que demoro a processar que ele está falando do meu namorado.
— Não sei quanto tempo vou ficar, então...
— Besteira! Ele poderia passar uns dias aqui contigo, os times estão todos em recesso até a primeira semana de janeiro. — Suspiro e olho para o chão. — Não estraga sua vida, Alex não vale a pena.
Assinto, lembrando-me de tudo o que aconteceu noite passada. Alexios continua igual, vendo e querendo todas as mulheres ao seu redor, menos eu. Sempre fui a amiga, quase uma irmã, menos uma mulher, e, como acabei de perceber, todos sabem da minha paixão por ele, então, Alexios deve simplesmente ignorá-la.
Por muito tempo eu achei que ele não soubesse. Ficava fantasiando que, no dia em que eu tomasse coragem e lhe contasse, Alexios iria se declarar também. Iludida! É isso que eu era, porque, depois do beijo que trocamos, era impossível que ele não soubesse.
Respiro fundo, resignada. Alexios sabe, só não se importa e nem sente o mesmo!
Meu irmão bate levemente na porta do quarto de mamãe e em seguida entra. Sigo-o pelo enorme ambiente, que me traz tantas lembranças alegres dos momentos que dividi com ela, deitada em sua cama, contando sobre meus sonhos.
— Samara Esther! — Mamãe estende os braços, sentada na cama, recostada nos travesseiros. — Trouxe Godofredo de volta?
Rio e concordo.
— Trouxe, está lá embaixo no jardim. — Beijo sua testa. — Como está se sentindo hoje?
— Eu estou bem! — Ela dá uma olhada de esguelha para meu irmão. — Ele é superprotetor, sabe? Exagerado!
Daniel permanece alheio às críticas, conversando com a enfermeira.
— Mamãe, ele não é, e a senhora sabe! — Ana suspira. — A senhora está em tratamento, precisa de cuidados, e, com o papai isolado na fazenda, Daniel é que estava responsável por acompanhá-la em tudo, mas agora estou aqui também!
— Dois superprotetores! — ela finge reclamar, mas sorri satisfeita. — Seu pai quis vir para cá para ficar comigo, mas achei melhor que ficasse por lá. Você sabe como ele é, não me daria um minuto de paz.
Eu rio, mas sou obrigada a concordar. Meus pais são incríveis, mas têm uma relação um tanto estranha desde que Daniel e eu saímos de casa para viver nossas vidas. Passaram a viver cada um no seu espaço, com suas coisas. Dão-se incrivelmente bem, mas cada um com sua vida.
É verdade que eles não eram nada parecidos. Mamãe sempre foi uma mulher de negócios, cheia de trabalho, viagens e reuniões, porém extremamente carinhosa com os filhos. Papai é um homem mais reservado em seus sentimentos, embora seja um artista.
Olho para um dos móveis da minha mãe, e a escultura em madeira em cima dele me faz sorrir. Nela há um casal e um garotinho com a mão na enorme barriga da mulher. Papai deu vida à imagem de uma foto que tiraram quando mamãe estava grávida de mim, e a peça ficou tão perfeita que dá para sentir a alegria de todos.
Quando eu era criança, tinha coleções das esculturas dele: cavalos, cães, gatos, pássaros. A que eu mais gostava era a do Pinóquio, que ganhei quando comecei a ler e andava para baixo e para cima com o livro do boneco de madeira que queria ser menino de verdade.
— Você vai até lá visitá-lo? — minha mãe pergunta, talvez adivinhando que estou pensando nele, por estar olhando a estátua.
— Por agora não. Tentei falar com ele quando cheguei e ontem também, mas não consegui. — Dou de ombros. — Papai se isola quando quer, a senhora sabe.
— O doutor Henrique acabou de dizer que os resultados dos exames ficaram prontos e que ele virá assim que puder para conversar conosco. — Daniel senta-se ao meu lado na cama. — É bom ter Samara aqui perto, não é?
Ele me abraça pelos ombros.
— Eu também estou gostando de estar de volta.
Mal termino a frase, e meu telefone toca. A foto de Kyra tentando beijar Godofredo, e ele de boca aberta para mordê-la aparece na tela, e minha mãe sorri.
— Eu estou esperando pela visita dessa filha emprestada desnaturada. — Ana reclama. — Pode dizer a ela que não vai comer mais minha paella!
— Pode deixar! — Levanto-me da cama e vou para um canto do quarto. — Oi, Kyra! — atendo o telefone.
— Quero notícias! Mal consegui dormir essa noite, deixei mil mensagens no seu telefone. Como está sua mãe?
— Está bem, mas ameaçou greve de paella se você não vier visitá-la em breve.
— Está bem mesmo? — ouço preocupação na voz da minha amiga, e meu coração se aperta, pois sei que minha mãe foi o mais próximo que Kyra teve de figura materna. — Malinha?
— Está, sim. O médico dela explicou que, por conta da medicação, ela ficaria suscetível a doenças, a imunidade está baixa, então qualquer resfriado ataca com força.
Kyra suspira ao telefone, e eu abro um sorriso ao ver o quanto minha amiga durona é, na verdade, tão sensível quanto eu.
— Que bom! Fico feliz em ouvir isso e mais aliviada para te fazer um convite.
Faço careta, já prevendo que ela vai me meter em algum evento seu de final de ano, vestida de garçonete.
— O que você está armando, Kyra?
— Nada! — ela logo se defende, indignada. — Eu só queria companhia! Na véspera do Ano Novo acontecerá o Baile Branco e Preto dos Villazzas, e, como eu estou sem nenhum boy no momento, você podia ser meu par, o que acha?
— Kyra! — Rio. — Um baile? Sério?
— Baile? — mamãe logo se mete na conversa e pergunta lá da cama. — Por acaso é o baile dos Villazzas?
Fodeu! Minha mãe sempre amou bailes e conheceu a matriarca dos Villazzas tempos atrás, através de sua amiga, Cecília Novak. Certamente ela adorará a novidade, achará moderno eu ir acompanhando minha amiga, e eu não terei escapatória.
— É, mamãe, eu vou com Kyra — respondo resignada.
— Eu sabia! — Minha amiga ri ao telefone. — O traje branco é obrigatório para mulheres, então, abuse de cores em outros locais!
— Eu vou te matar, Kyra Karamanlis! — sussurro para que somente ela escute.
— Depois do baile; antes, quero usufruir de tudo o que planejei! Vai ser o evento mais incrível que você já viu!
Relaxo, percebendo que ela realmente está feliz e confiante.
— Tenho certeza disso, Kyra!
Nós nos despedimos, mas não retorno imediatamente para a cama, ao lado da minha mãe e do meu irmão, fico pensando em como é bom estar de volta. Realmente me sinto em casa aqui, com as pessoas que eu amo, ainda que tenha feito amigos na Espanha.
Penso no Diego e sinto um pequeno aperto no coração, um misto de saudade e remorso. Daniel me olha, curioso por eu estar parada no mesmo lugar, sem falar ou fazer nada, e reflito sobre o que ele me disse. Reconheço que eu recuei ante o pedido de casamento de Diego por ter esperança de voltar ao Brasil e encontrar Alexios mudado, porém ele não mudou e nem mudará jamais, mas isso não muda o fato de que ele ainda mexe comigo.
Diego e eu nos damos muito bem, somos amigos, companheiros, temos gostos parecidos. Enquanto eu estava na Espanha, longe do magnetismo e atração de Alexios, realmente pensei que pudesse amá-lo e ter uma vida com ele. Os momentos que passamos juntos foram maravilhosos, mas agora me questiono se, mesmo voltando para Madri, é justo manter essa relação.
O Uber me deixa em frente ao Villazza SP, e vejo a entrada principal do hotel cheia de pessoas bem-vestidas e penteadas. Ando na direção delas, questionando-me se os convites estão sendo verificados na entrada, mas me surpreendo ao ouvir um dos homens que está parado na entrada:
— Nós só queríamos comprar o convite, não conseguimos responder a tempo e...
— Senhor, o que me foi passado foi que esgotaram, eu sinto muito — um dos seguranças responde antes de se virar para mim, mas, vendo o convite em minhas mãos, abre a porta. — Seja bem-vinda!
Entro no saguão principal do enorme hotel e suspiro, apreciando todos os detalhes da construção e da decoração, orgulhosa por ter sido parte da equipe que ajudou a deixá-lo perfeito desse jeito.
O escritório de arquitetura que projetou o Villazza SP foi o dos Boldanis, e o arquiteto principal que assinou o desenho foi ninguém mais, ninguém menos que meu ídolo e professor, Julio Boldani. O italiano é fera demais nas suas linhas clássicas misturadas às modernas.
Eu ajudei o pessoal que compôs o projeto de decoração, pois estava me especializando e, por isso, trabalhei um tempo no Boldani. Foi ali que descobri que, por mais que papai fizesse pressão para que eu fosse uma arquiteta, eu queria mesmo era ser designer de interiores.
Subo as escadarias de mármore com corrimão e guarda-corpo de ferro fundido na cor ouro velho em arabescos e folhas e, no saguão da entrada do salão Royal, encontro a recepção do baile montada como se fosse uma bilheteria antiga de circo.
Sorrio ao pensar na Kyra, reconhecendo que minha amiga sabe como dar vida aos seus projetos de maneira perfeita, pois vi os desenhos quando almoçamos juntas anteontem e confesso que está tudo muito mais bonito do que a ilustração em 3D que ela me mostrou.
Olho em volta, procurando-a, pois combinamos de nos encontrar na entrada, mas arregalo os olhos ao ver Alexios, de smoking preto, vindo em minha direção.
Mesmo contra a minha vontade, minhas mãos gelam e meu coração dispara apenas por vê-lo, por notar o quanto ele está lindo com esse sorriso largo e os olhos brilhando.
Por que ele tinha que ter essa aparência e essa boca?!, penso na injustiça do mundo, indignada por ser tão comum, e ele...
— Samara Esther. — Bufo, pois só ele e minha mãe chamam-me assim. — Você está... linda!
Alexios sorri e me olha desde as unhas dos pés, pintadas e cutiladas, até o alto da cabeça.
— Linda! — repete como se não fosse possível que eu estivesse desse jeito.
— Oi, Alexios — cumprimento-o seca, tentando não dar importância ao fato de que ele parece ter tomado um soco só por me ver mais arrumada. — Estou esperando sua...
— Eu sei, foi ela quem me mandou ficar aqui de plantão te esperando. — Enrugo a testa, sem entender. — Kyra resolveu bancar a fada madrinha e ajudar uma amiga a ter seu baile com um príncipe encantado e, por isso, vai ter que trabalhar esta noite. — A expressão no rosto dele é de deboche ao falar do conto de fadas. — Então, restou a mim.
Puta merda, Kyra!
Pego o celular dentro da bolsa e mando mensagem para ela, mas tenho certeza de que, ocupada com o começo do baile, ela não irá ler. O que eu faço? Penso se devo aceitar fazer companhia ao Alexios ou se devo ir embora, afinal, só vim a esse baile por insistência da Kyra.
— Samara, eu sei que nossa amizade está um tanto estremecida por conta da distância e do tempo, mas... — Alexios me encara, e noto que ele está se esforçando para falar — eu gostaria que você me acompanhasse esta noite.
Minha boca fica seca ao ouvir isso, porque, mesmo com a distância, eu ainda consigo saber quando ele está sendo sincero. Alexios me quer ao seu lado esta noite, e isso é...
— Como nos velhos tempos, lembra? — ele complementa, e, mais uma vez, percebo o quanto sou iludida.
Nada mudou!
Imediatamente me lembro do meu baile de formatura do ensino médio, no qual ele foi meu acompanhante. Chegamos juntos, eu estava empolgada para dançar com ele a noite toda, arrumei-me para parecer uma mulher aos seus olhos e não mais a menina de cabelos revoltos que o seguia para toda parte quando criança.
Havia decidido que iria contar a ele o que sentia naquela noite e que, depois de ele se declarar também, iríamos fazer amor, e eu, aos 17 anos, finalmente teria minha primeira noite com o homem que amava.
Ledo engano!
Alexios dançou uma música comigo, depois foi para o bar, encheu a cara, sumiu com uma garota bem mais “servida” que eu e voltou para o salão todo amarrotado. Eu queria ir embora, mas ele acabou dançando (e sumindo) com mais umas três mulheres.
— Seu acompanhante te deixou sozinha, não é? — Marlon, um dos garotos que estava se formando comigo me perguntou, e só aí percebi que ele estava sentado à mesa comigo.
Começamos a conversar e, naquela noite, tive minha primeira experiência sexual. Não foi ruim, namoramos por um tempo, mas reconheço que ela só aconteceu porque Alexios não me quis. Ele simplesmente não me via!
— Samara? — ele me chama e me faz voltar à realidade.
Por Deus! Não sou mais uma garota de 17 anos, sou adulta, independente, com uma carreira bem-sucedida na Espanha e um dos homens mais gostosos de Madri ao meu lado!
— Vamos entrar! — decido e marcho até uma das “bilheterias”, onde recebo minha máscara preta e uma pulseira.
Alexios recebe as dele e ri ao me mostrar a máscara branca como a de O Fantasma da Ópera. Ah, merda!
— Você se lembra? — Ele ri. — Me obrigou a ver esse filme um milhão de vezes e sabia até as falas!
O desgraçado põe a máscara, ergue uma das sobrancelhas, dobra-se em reverência e sorri.
— Vamos logo com isso! — Saio de perto dele sem rir de sua gracinha, coração retumbando, a cabeça cheia de lembranças da nossa adolescência.
Quando as portas se abrem, perco o fôlego ao ver o que Kyra idealizou.
— Puta que pariu, minha irmã é foda! — Alexios fala ao meu lado.
Eu pulo de susto, não por causa do que ele disse, nem mesmo ao ver um dos artistas cuspindo fogo, mas tão somente por sentir a sua mão em minha cintura. Meu corpo inteiro aquece, a pele arrepia e aquela sensação que sinto desde que os hormônios despertaram em mim na adolescência volta a me tomar.
Atração! Química!
Não sei explicar, mas meu amor de criança transformou-se nisso quando me tornei moça, e a cada toque, cada resvalo, eu resfolegava. Sonhava com ele, acordava suada e sem saber o que estava acontecendo. Meu primeiro orgasmo com masturbação foi pensando nele, instintivo, depois de um sonho erótico e proibido.
Achei que, com a distância, principalmente depois que me envolvi com Diego, isso ia passar, mas parece que me enganei.
Olho-o e percebo que ele permanece alheio ao que me causa, sua atenção tomada pelos malabares que executam movimentos precisos na entrada do baile.
Respiro fundo.
— Vamos?
Ele assente sem me olhar, e seguimos juntos, passando entre os convidados que ainda se encontram de pé conversando ou bebendo no bar, em direção ao centro do salão, tomado de mesas e cadeiras reservadas.
— Onde nós...
Nem preciso terminar a pergunta, pois logo vejo Theodoros Karamanlis, acompanhado de uma lindíssima loira, a uma mesa com o sobrenome deles na placa de reserva. Eu não sou muito fã do irmão mais velho de Alexios, mas sempre fui educada com ele, então armo meu melhor sorriso e o cumprimento:
— Theo! Que bom vê-lo esta noite! — Olho para sua acompanhante agora mais de perto e sinto como se a conhecesse de algum lugar.
— Samara, essa é Valentina de Sá e Campos — Theodoros nos apresenta, e eu sorrio, reconhecendo os sobrenomes dela. — Valentina, essa é a Samara Schneider, uma incrível designer de interiores.
— É um prazer, Valentina! — saúdo-a.
— O prazer é meu, Samara. — Valentina sorri. — Nos conhecemos já?
— Eu acho que sim, embora não me recorde de onde pode ser.
A loira para a fim de tentar se lembrar, e eu ouço a conversa entre Theo e Alexios.
— Viu só esse trabalho da Kyra?
— Claro! — Alexios debocha do irmão. — Seria impossível não ver, já que estou aqui! Já fui até cumprimentá-la, mas está tão ocupada que não consegui nem falar com ela direito.
Só o suficiente para que ela o encarregasse de me acompanhar nesta noite! Kyra me paga!
— Imagino que esteja. Viu o Kostas? — Theo pergunta, mas não consigo ouvir a resposta de Alexios, pois Valentina volta a falar:
— Lembrei! — ela comemora. — Nos encontramos na festa de inauguração da loja da Miriam Benides, lembra?
Eu não faço a mínima ideia do que ela esteja falando, mas, mesmo que não esteja com nenhuma vontade de prosseguir com a conversa, sorrio e concordo por educação.
— Puxa vida, quanto tempo não vejo você por lá! — Valentina continua.
— Eu estava morando em Madri — informo antes de me sentar.
— Ah, eu adoro a Espanha!
Sorrio sem graça, percebendo que vamos conversar. Não quero ser mal-educada com ela, é só que não estou muito confortável em estar aqui neste baile, não depois de perceber que ainda quero Alexios e que não adiantou de nada impor distância.
— Família! — a voz debochada de Kostas interrompe a conversa de Valentina, e ela me pergunta baixinho quem é o homem abraçado a uma loira com um vestido branco tão justo e transparente que beira à indecência.
— Konstantinos... — sussurro antes de ele apresentar sua acompanhante a todos.
— Bruninha, conheça os Karamanlis! — Ele aponta para Alexios e para Theodoros. — Claro que você pode deixar seu cartão com eles depois, mas eu sou o mais bonito, não sou?
Ele faz a mulher girar em seu próprio eixo, e, pela primeira vez depois da tensão toda em que eu estava desde que vi Alexios, sorrio divertida. Kostas é uma figura! Ainda me lembro de quando ele morava no prédio, na cobertura de seu pai, e juro, se não fossem os olhos azuis e a voz, eu diria que não se trata da mesma pessoa!
— Já bêbado? — Theo pergunta a Alexios.
— E mais uma vez com acompanhante paga! — Alexios se aproxima de Theo e cochicha, e isso me surpreende. Não sabia que os dois estavam conseguindo ter uma relação tão cordial. — Estou achando que nosso querido irmão é do outro time.
Theo gargalha e nos olha sem graça.
— Perdoem-me, foi irresistível! — Tenta se conter e bebe mais do seu uísque. — Bom, certamente ele é arrogante e orgulhoso demais para “sair do armário”.
Quem? Kostas?! Olho para o homenzarrão com a prostituta e nego instintivamente com a cabeça. Não mesmo!
— Seria apenas mais um rejeitado pelo seu querido pappoús! — ouço Alexios dizer isso, e meu coração aperta. Olho-o, respiro fundo, lamentando profundamente por ele ainda se sentir rejeitado, percebendo que isso também não mudou.
Rejeição, abandono, violência o tornaram o homem que é. Sei disso, dei essas desculpas para seu comportamento por muitos anos. Toda vez que ele aprontava, eu usava isso para justificá-lo.
Até quando?, penso, olhando-o fixamente. Até quando ele deixará que os erros dos outros façam-no errar também?
— Você gosta muito dele, não é? — Valentina dispara, e eu desvio os olhos de Alexios. — Seus olhos brilham diferente ao olhar para ele.
— Somos amigos há muitos anos — disfarço.
— Bom, isso é muito bom, mas... — Ela ri. — Desculpe-me se estou sendo invasiva, mas seu olhar é de quem é apaixonada, não apenas uma amiga.
Dou um sorriso amarelo para ela, e Valentina fica quieta.
— Tudo bem aí? — Alexios me pergunta, e eu assinto. — O jantar já tinha sido anunciado antes de você chegar, então não deve demorar muito.
Resolvo conversar com ele normalmente, afinal, seria ridículo fazer birra na minha idade.
— Kyra estava muito ansiosa com o jantar desta noite. Um grande chef internacional, ela me contou, é quem está preparando tudo.
— Sim, está na programação. — Alexios lê o nome do chef francês, e eu não consigo deixar de olhar sua boca. Pego a taça de champanhe e a viro de uma só vez. — Uau! — Sorri e faz sinal para um garçom se aproximar com mais. — Minha acompanhante está sedenta.
— Estou. — Decido não discutir e bebo a outra taça. — E com fome também.
Alexios toca minha coxa por cima do vestido, mas logo tira a mão.
— O jantar não deve demorar — repete sério e se vira para olhar o outro lado do salão.
Fico um tempo olhando para minhas pernas, permitindo a sensação de brasa que a mão dele deixou em minha coxa passar, chateada demais por reagir assim a ele e continuar sendo praticamente invisível.
Que porra é essa que está rolando?
Essa pergunta retórica fica martelando minha cabeça enquanto tento prestar atenção em qualquer coisa neste maldito salão lotado que não seja ela. Eu só posso estar com algum problema, só pode! Samara sempre foi minha amiga, quase minha irmã. Eu estar aqui com uma maldita ereção – pela segunda vez esta noite, frise-se – só pode ser loucura!
Preciso de um médico! A loucura congênita dos Karamanlis começou a se manifestar em mim. Sentir tesão por Samara é quase... incestuoso!
Pego a taça com champanhe e a termino em uma só golada a fim de aplacar o fogo que apenas um toque em sua coxa me causou.
A verdade é que eu não esperava encontrar-me com ela nesta noite. Vim por insistência do Millos e, claro, por sua maldita manipulação eficaz ao falar da Kyra e do suporte a ela em seu primeiro grande evento. Cheguei junto aos primeiros convidados e a encontrei correndo de um lado para o outro, “armando” uma surpresa para sua amiga e funcionária, a gostosa da Helena, que, por sinal, está namorando o Bernardo Novak, um amigo de longa data.
Quando finalmente ela terminou todos os preparativos, foi à cozinha falar com o tal chef francês que a estava deixando nervosa, conferiu tudo com as bandas, DJ e artistas circenses é que me deu atenção.
— Oi, Alexios. — Sorriu cansada. — O baile nem começou direito, e eu já estou de um lado para o outro. — Ela espiou a fila se formando na recepção do evento. — Gostou da decoração?
Seus olhos verdes, como os meus, brilharam ansiosos. Eu cheguei perto dela, beijei sua testa e falei baixinho:
— Está tudo perfeito, Kyra. Parabéns, estou muito orgulhoso!
Ela suspirou e depois se afastou.
— Claro que está! Não tinha dúvida alguma disso. — E, do nada, pegou-me pela mão e me arrastou em direção ao salão. — Vem ver!
— Kyra, eu ainda não troquei meu convite e...
— Ah, Alexios, vem ver!
A decoração estava esplêndida, embora eu soubesse que, com os efeitos de luz e os artistas executando seus números, iria ficar ainda mais incrível. A banda, no palco ao fundo do salão, já estava se posicionando, e alguns funcionários de Kyra ajeitavam os últimos detalhes das mesas, arranjos florais ou acendiam as velas.
— Perfeito! — elogiei-a novamente.
— Você ainda não viu nada! — E deu aquele sorriso que eu sei que fode com a cabeça de qualquer homem. É duro ter uma irmã como ela, linda e sexy, e ver os caras babando em cima e não poder socar a fuça de nenhum. — Ah, preciso de um favor.
Estava demorando!
— Kyki, estou de smoking, mas ainda não sei segurar uma bandeja — sacaneei.
— Não, seu idiota! — Ela me estapeou as costas. — É meu par desta noite! Não vou poder participar do baile como havia previsto, então preciso que você faça companhia...
— Ei, ei, pode parar! Não vou ficar pajeando nenhum marmanjo não!
Ela rolou os olhos.
— Não é marmanjo, idiota! Posso terminar de falar? — Assenti. — É a Samara. Convidei-a a vir comigo esta noite e não quero que fique sozinha.
Samara Esther Schneider!
Fiquei um tempo olhando para Kyra, tentando entender se ela tinha feito isso de propósito, para tentar nos reaproximar, afinal, sempre fomos um trio de amigos/irmãos, e, com a relação entre mim e Samara estremecida, Kyra devia estar um tanto confusa.
— Sem problema. — Sorri. — Você avisou a ela?
— E Samara atende aquele celular? — Ela bufou. — Você terá que esperá-la lá fora. Se importa?
— Não — fui sincero.
— Ótimo, agora vaza, porque ainda tenho coisas a fazer antes de abrirmos o salão. — E, do mesmo jeito que me arrastou, colocou-me para fora.
Fiquei um bom tempo esperando por Samara do lado de fora, o que foi surpreendente, pois ela sempre foi pontual. Vi o salão ser aberto, o baile começar, o discurso do doutor Andreas Villazza, o anúncio do jantar, e nada de a minha (ex?) melhor amiga chegar.
Estava olhando para um detalhe na construção do hotel, executada pela Novak Engenharia, quando meus olhos foram atraídos para o topo da escadaria. Não é exagero eu dizer que meus olhos foram atraídos, porque foi como se um ímã puxasse minha atenção para aquele ponto.
Engasguei-me com minha própria saliva ao ver Samara. Sim, ela estava linda, mas não foi o vestido branco ou o penteado elaborado que chamou minha atenção, foi ela.
Ela é linda e, por conta da nossa amizade e do receio que tinha de machucá-la, parei de perceber sua beleza e não notei a mulher que se tornou.
Fiquei parado, tomando nota de tudo, como se a estivesse vendo pela primeira vez, sentindo um incômodo por estar olhando-a com lascívia, afinal, era a Samara!
Balancei a cabeça, tentando voltar a pôr os neurônios no lugar, justificando para mim mesmo que isso aconteceu por causa dos anos distantes, mesmo sabendo que isso era pura enganação, pois ela não mudou nada nesses últimos anos.
O que aconteceu, então? Não sei, ainda estou confuso, tentando entender por que fiquei excitado com o perfume dela ou por que meu pau acordou apenas por eu a ter segurado pela cintura a fim de andar com ela até a mesa.
Tive que ficar parado, olhando para os malabares sem vê-los realmente, com cara de paisagem, fingindo que nada estava acontecendo. Eu não queria que ela soubesse que eu estava reagindo daquela forma a ela; certamente ficaria horrorizada. Sempre fomos como irmãos!
Tentei me conter, agradeci por Theodoros e sua companhia já estarem à mesa, fiquei um tempo distraído conversando com meu irmão mais velho, mesmo que isso fosse uma dor no saco. Não sou tão rancoroso quanto o Konstantinos sobre o Theo, apesar de concordar com meu irmão sem noção sobre ele nos ter abandonado nas mãos do louco Nikkós, mas o que Theodoros poderia fazer? Eu mesmo estive nessa situação quando pude sair de casa, mas não tinha como tirar Kyra dele, por isso fiquei.
O DJ que executa as músicas antes do jantar e da banda ao vivo coloca My Immortal, de Evanescence, e é impossível não olhar para Samara.
— Sua música preferida na adolescência — comento com ela.
Samara sorri e balança a cabeça, olhando os casais indo para a pista de dança.
— Tocou na minha formatura...
— Eu sei, eu queria dançar com você, mas você não parecia muito a fim, então fui beber.
Ela arregala os olhos e me encara como se não soubesse do que eu estou falando. Provavelmente nem se lembra, estava nervosa e ficava repetindo o caminho todo dentro do carro que a gente nem deveria ter ido, que era besteira.
Não somos mais adolescentes!
— Quer dançar? — inquiro impulsivamente e estendo a mão para ela.
Samara olha para minha mão por um tempo, mas aceita.
Porra, que loucura!
Ela pega minha mão, e minha vontade é de puxá-la para mim e beijar sua boca. Foda! Não consigo mais refrear meus desejos; sempre consegui com ela, por isso não entendo o que está acontecendo agora. Não é qualquer mulher aqui comigo, indo para a pista de dança para ficar de corpo colado no meu – porra! – é a Samara!
Samara!
Minha amiga de infância!
Quase uma irmã...
MERDA!
— Está tudo bem? — ela me pergunta, e eu tento relaxar, já que estou dançando como antigamente: a um palmo de distância dela.
— Sim, tudo. — Tento dar meu famoso sorriso, mas não rola, então pigarreio. — Estou com sede, calor... acho que é essa decoração toda.
— Pode ser. — Ela desvia os olhos de mim. — Quer voltar para a mesa?
Quero!
— Não, a não ser que você...
— Tudo bem.
Ela se solta de mim no exato momento em que a música muda para um instrumental baixo e as luzes se acendem.
— O jantar. — Aponto para os garçons em fila e os convidados voltando aos seus lugares. — Vamos?
Salvo pelo gongo do cozinheiro!, penso ao ajustar disfarçadamente minha calça para não andar de pau duro e assustar a todos por causa da claridade do salão.
Samara bebe mais uma taça de champanhe, e eu rio, já preocupado. Nunca a vi beber tanto! Sempre foi séria, careta, estudiosa e boa filha. Ela nunca fazia nada de errado, nunca decepcionou os pais, fazia tudo o que eles queriam... quer dizer, tudo menos se afastar de mim.
— Acho que já quero ir — ela comenta de repente. — Vou chamar um Uber...
Levanta-se um pouco tonta, e eu a amparo pela cintura.
— Você quase não comeu, e bebeu muito — falo, e ela levanta uma sobrancelha atrevida e irônica para mim. — Não estou dando lição de moral, mesmo porque não tenho nenhuma, apenas constatei um fato.
Ela ri.
— Você não tem nenhuma moral mesmo! — arrasta a última palavra. — Sempre foi um galinha, essa cara de santo aí só engana as outras!
Gargalho.
— Elas não ficavam enganadas por muito tempo, pode acreditar!
Samara funga, indignada, e fecha os olhos.
— Eu acho que realmente bebi demais.
Olho em volta; o salão já está praticamente vazio, apenas um ou outro convidado conversando em pequenos grupos. Theodoros se despediu, com Valentina grudada em seu pescoço, há mais de uma hora, e Kostas nem jantou conosco à mesa, provavelmente ficou no bar com sua acompanhante.
Inicialmente eu tinha pensando em esperar tudo terminar para acompanhar Kyra até em casa, mas, com Samara no estado em que se encontra e com tudo aqui ainda para ser desmontado, é melhor eu levar minha amiga para casa – aproveitando que moramos no mesmo prédio – e voltar mais tarde para acompanhar minha irmã.
Pego a pequena bolsa que ela trouxe e, ainda abraçado a ela, caminho para a saída.
— Alexios... tudo está rodando...
— Muito natural depois de todo aquele champanhe.
Ela suspira e joga a cabeça para trás.
— Você é um chato, sabia? Não posso entender o que todas aquelas mulheres viam em você!
— Imagino que não possa mesmo — respondo-lhe, sabendo que vai se irritar.
Samara sempre disse que eu respondia politicamente ou me evadia quando sentia que o assunto poderia ir para alguma direção que não me deixaria confortável. Ela tinha razão na maioria das vezes, mas, neste momento, só estou a fim de irritá-la.
— Você é um babaca, Alexios Angelos!
Opa! Falou meu nome todo! Rio de sua irritação bêbada, talvez por estar um tanto alto como ela, mas sóbrio o suficiente para carregá-la em segurança até a calçada.
Não vim de moto ou carro sozinho exatamente por saber que iria beber – principalmente para aguentar sozinho a companhia dos meus irmãos à mesa –, porém previ que a saída do baile estaria um inferno e que seria difícil conseguir um táxi ou um carro de aplicativo que estivesse por perto, por isso deixei o Cris, que me trouxe, de sobreaviso no estacionamento.
Mando mensagem para ele e espero até meu carro aparecer. Abro a porta de trás e coloco sobre o banco uma Samara parcialmente adormecida por cachaça francesa.
— Essa foi nocaute! — Cris ri quando eu entro. — Para onde?
— Para o Castellani. — Ele dá um sorrisinho malicioso e pisca. — Ela é minha vizinha, Cris, sossega.
— Falou, chefinho.
— Para de merda e dirige.
Ele tenta sair da entrada do hotel, mas é praticamente impossível com o número de carros que também tentam deixar o local. Olho para trás, confiro que Samara está mesmo apagada e fecho os olhos, recostando-me contra o assento do carona.
— Foi uma festança, hein? — Cris volta a falar. — Só vi entrar filé, pena que a maioria estava acompanhada.
— Geralmente isso não é problema — comento, mordaz. — Já comi muita mulher no banheiro de recepções como essa enquanto o marido conversava com os amigos e falava de negócios.
Cris gargalha.
— Você nunca valeu nada, Lex!
Não retruco o apelido ridículo com que ele me chama e me faz parecer o vilão do Homem de Aço. É pura perda de tempo ralhar com Cristino, então simplesmente ignoro, cansado, meio zoado e com tesão frustrado.
Ele e eu nos conhecemos há alguns anos, quando visitei um dos prédios da Karamanlis que foram invadidos por movimentos pró-moradias. O homem era motorista de profissão, com anotação em sua carteira de trabalho em várias empresas, que juntou todo o dinheiro que tinha, investiu em um carro e um ponto de táxi, mas foi engolido e enxotado pelas grandes cooperativas.
Assim, quando nos conhecemos, ele estava sem casa, sem carro, sem emprego e com uma enorme dívida, fazendo bicos aqui e ali. Ajudei-o primeiro a conseguir emprego, depois por fim saiu da invasão, e, nesse ínterim, nos tornamos amigos.
Ano passado, quando a filha dele nasceu, quis que eu a apadrinhasse, mas educadamente declinei, explicando que, mesmo honrado, não poderia aceitar, pois sou ateu, e o apadrinhamento de uma criança tem a ver com questões religiosas, tem um sentido específico, e eu não seria a pessoa certa para isso. Ele entendeu, mas a garotinha já me chama de Didi (seu jeito fofo de bebê de chamar seu dindo, mesmo que oficialmente eu não o seja).
Acho que cochilei também até o Castellani, pois, quando me dei conta, já estávamos na garagem. Cris me perguntou se eu queria ajuda com Samara, mas agradeci e o mandei para casa. Ele não trabalha como meu motorista diariamente, mas sim na Karamanlis, transportando quem quer que precise fazer serviços externos. Contudo, toda vez que preciso, chamo-o para ganhar um extra.
Há muito parei de combinar bebida e direção, não por mim, mas por medo de acontecer algum acidente e eu acabar prejudicando outras pessoas.
Chamo o elevador, e somente dentro dele é que a bela adormecida parece voltar a si.
— Alexios... — Samara olha em volta. — Este é o elevador do Castellani?
— Parece que sim — respondo-lhe divertido.
Samara bufa.
— Só desmaiada é que eu aceitaria vir com você na direção nesse estado em que se encontra.
— Estou melhor que você. — Ela se encosta contra o espelho, olhos fechados e um enorme sorriso bêbado no rosto. — Além do mais, viemos com motorista.
— Bom... — Samara fala devagar e lambe os lábios como se estivessem secos. O efeito no meu pau é instantâneo. Sinto meu corpo inteiro acender, minhas mãos formigam de vontade de tocá-la. Sua pele parece brilhar, atraindo-me como uma chama atrai uma mariposa.
Tento me afastar, pensar em outra coisa, mas o espaço reduzido do elevador não ajuda. As paredes parecem se fechar cada vez mais, aproximando-me de Samara, apertando-me contra ela, espremendo meu corpo...
— Alexios... — ela geme meu nome, e eu me espremo mais, fazendo-a grudar contra o espelho. O seu perfume inebria meus pensamentos, a pele, tão quente e macia que a sinto mesmo por baixo do vestido, me enlouquece. Preciso provar o sabor de sua boca, conferir se o hálito quente e um tanto etílico se confirma em sua saliva.
Sim!
Agarro-a com mais força, minha ereção pressionada contra sua barriga, minha boca correndo em seu pescoço. Tudo parece congelar à nossa volta, não existe mais tempo e nem espaço, apenas o vácuo e nós dois dentro dele, em chamas.
Lábios nos lábios. Meus dedos esfregam sua nuca, a pele arrepia, os pelos eriçam, meu corpo treme. É a viagem mais louca que eu já fiz sem ser através de uma substância química entorpecente... não! É química ainda, é uma droga viciante, é tesão!
Devoro sua boca sem nenhum pudor ou impedimento. Ela me acolhe, abre-a para minha exploração, prende meus lábios entre seus dentes e morde com força, despertando com a dor ainda mais meu desejo.
Enfio os dedos no meio do seu penteado, seguro o cabelo com força, e ela retribui o desespero cravando as unhas nos meus ombros.
Estou pronto para fodê-la, minha cabeça já trabalha uma forma de abrir o zíper da calça social, sacar meu pau e buscar o caminho de sua boceta, que, a julgar pela forma com que ela come a minha boca, já está molhada e quente.
Um pigarrear me faz sobressaltar, e eu me afasto dela o mais rápido possível. Um casal de idosos também vestido em black tie entra no elevador no saguão do prédio, sinal de que o elevador subiu e desceu de novo enquanto nós dois quase nos comíamos dentro dele.
Olho para Samara, mas ela não parece constrangida ou assustada, apenas passa a mão pelos lábios e me encara, sua expressão cheia de perguntas e curiosidade.
Caralho, o que eu estou fazendo?! É a Samara, minha amiga, aquela que eu sempre quis manter longe desse meu lado sem vergonha! Puta que pariu!
Espero o casal descer em seu andar e, assim que as portas se fecham, respiro fundo.
— Desculpa, Samara, acho que estou mais bêbado do que imaginei a princípio. — Não tenho como olhá-la, dividido entre o constrangimento e o desejo ainda pulsando na minha calça. — Somos amigos, eu não deveria atacar você dessa forma, me des...
— Para! — sua voz soa magoada, e eu tenho vontade de socar a cabeça contra o espelho. — Não precisa dizer mais...
— Eu prometo que isso não voltará a acontecer. — Finalmente a encaro e fico fodido ao ver sua expressão confusa. Ela parece não ter gostado do que aconteceu, deve estar achando que eu sou um filho da puta aproveitador. — Você é minha amiga, Samara, mesmo depois dessa distância, eu ainda a vejo como se fosse minha irmã e...
— Chega! — ela grita, e as portas do elevador se abrem no seu andar. — Você tem razão, foi um erro e não deve voltar a acontecer!
Ouvir isso é como um balde de água fria, mesmo reconhecendo que é o certo.
— Eu não quero que isso afete novamente a amizade que nós temos e...
Samara sai pisando duro do elevador sem olhar para trás. Minha vontade é de correr atrás dela, voltar a encostá-la em alguma parede e beijá-la novamente até que perca a razão ou eu alivie esse tesão indesejável que estou sentindo.
As portas se fecham, e eu, ao invés de apertar o botão do meu andar, mando o elevador de volta para o térreo e chamo um Uber.
Preciso trepar!
— Essa sua cara de cachorro cagando na chuva é ainda ressaca do baile? — Kyra me pergunta, sentando-se ao meu lado na rede que ela tem em sua varanda. — Quer café?
Resmungo ainda com os olhos fechados:
— Quero paz!
Ela ri.
— Isso está em falta por aqui hoje, passa na semana que vem... — Encaro-a, puto com a piadinha. — O que aconteceu?
Não respondo, meus olhos fixos no topo do prédio do outro lado do parque. Balanço a cabeça, decidindo ser mais covarde do que tenho sido desde a madrugada do dia primeiro de janeiro e fecho os olhos para tentar nem pensar na confusão que arrumei.
— Você não deveria estar trabalhando hoje? Ou eu? — Kyra volta a me importunar, mas continuo mudo. — Mano, você continua o mesmo chato da porra de sempre! Fica aí com essa cara de Maria do Bairro e não abre a porcaria da boca para me contar o que diabos você fez dessa vez!
— Obrigado pela confiança em mim! — retruco irônico.
— Ah, boquinha para ser mal-educado comigo você tem! — Ela me cutuca o ombro, mas depois suspira e deita a cabeça nele. — Você sabe que faz merda, mas que eu estou aqui, disposta a te ouvir e te ajudar a limpar os cagaços. Somos uma dupla, você e eu, sempre fomos e sempre seremos.
— Costumávamos ser um trio... — assim que eu comento, imediatamente me arrependo, pois Kyra salta da rede – quase me derrubando no percurso – e emite um ensurdecedor: “ahá!”.
— Eu sabia que tinha acontecido algo na madrugada do baile! Samara está estranha, esquiva, e isso não é o natural dela. Que merda você aprontou? — Continuo ignorando-a, sem nenhuma disposição para contar sobre o beijo, o amasso e a confusão que isso criou em mim. — Alexios! — Minha irmã começa a pirar por causa do meu silêncio, mas, se me conhece um pouco, já deve imaginar que eu não irei abrir a boca para falar desse assunto. — Está certo! Você e sua maldita boca de siri. — Volta a se sentar, mas dessa vez não se deita em mim. — Alex, ela é nossa amiga, não a magoe, ok? Samara merece ser feliz, e esses anos que passou na Espanha foram ótimos para ela. Eu morria de saudades, mas estava feliz por ela estar realizada trabalhando com o que ama fazer, com um puta gato espanhol lambendo seus pés e — abro os olhos, mas Kyra não se freia — querendo formar família com ela.
Sento-me bruscamente, e Kyra balança.
— Como assim formar família?
— Ele a pediu em casamento. — Surpreendo-me, mas tento não reagir, não demonstrar. — Deu-lhe um lindíssimo e caro anel de diamante e está esperando pelo retorno dela.
Essa informação, apesar de ter me pegado de surpresa, não é nenhuma novidade. Sempre achei que algum homem de sorte iria conquistar o coração da minha amiga de infância e tê-la para sempre. Samara é a pessoa mais leal que eu conheço, mais incrível, merece muito ser feliz ao lado de alguém que valha a pena.
— Ela não estava usando anel... — penso em voz alta.
— Ainda não falou com os pais dela... — Kyra olha fundo nos meus olhos, procurando qualquer reação minha, mas sei que não irá encontrar nenhuma. Há muito aprendi a sentir sem demonstrar ou a mostrar apenas o que eu quero que os outros vejam. — Vocês não conversaram ontem?
— Acho que ainda não conseguimos estreitar os laços de amizade novamente.
— Hum... — Ela olha para seu relógio no pulso e suspira. — Preciso ir para o trabalho, vai ficar aqui? — Assinto. — Eu tenho a sensação de que você está se escondendo, só não faço ideia do quê.
Ela entra no apartamento, e novamente olho para o alto do Castellani, do outro lado do parque. Daqui do prédio onde ela mora, consigo ver o heliponto no telhado, algumas janelas da cobertura onde Cadu mora, o andar debaixo, onde Bernardo Novak reside, e uma pontinha da minha varanda. O apartamento de Samara fica uns andares abaixo do meu, então não tenho como vê-lo, mas somente por saber que ela está lá dentro, sinto vontade de ficar aqui, bem longe.
Não me entendam mal, não estou fazendo isso porque não quero que ela se aproxime de mim, pelo contrário, estou aqui, exilado como um covarde no apartamento da minha irmã mais nova, porque, se pisar no Castellani, sei que não conseguirei me manter distante dela.
Mesmo depois da maratona de sexo que fiz com uma mulher com quem já havia saído antes das festas de final de ano, não tenho segurança de estar no mesmo ambiente que Samara e me controlar para não a pressionar contra alguma parede e fodê-la sem ao menos dizer um cumprimento.
Definitivamente não vou fazer isso, não com ela!
Muito menos depois de saber que há alguém que a merece, que está à altura dela, esperando sua volta.
Rio de mim ao pensar que estou aqui, evitando-a, quando na verdade ela é quem deve estar querendo ficar a quilômetros de mim. Talvez esteja até indignada e ofendida pelo modo com que a toquei e beijei sem nenhum aviso, como se fôssemos um casal qualquer que se encontrou na balada para trepar, e não duas pessoas que são amigas desde que se entendem por gente.
Não entendo por que perdi o controle do tesão que sempre reprimi, mas me conheço o suficiente para saber que ele não passou. Raramente sinto aquela química com alguém. Era como se meu corpo estivesse sendo atraído, como se algo nela estivesse provocando reações em mim que eu não conseguia controlar. Foi animal, carnal, a famosa atração de pele que muita gente procura, mas pouca tem.
E eu tive justamente com minha melhor amiga!
Kyra volta a aparecer no meu campo de visão, agora com os belíssimos cabelos escuros, longos e fartos soltos, o rosto maquiado e uma roupa de deixar qualquer homem lobotomizado.
— Esse bode aí está foda para passar, hein? — comenta antes de se abaixar para pegar um guarda-chuva no móvel ao lado da rede. — Têm umas sobrinhas do baile na geladeira, cerveja – por favor, não tome todas, mas se tomar, as reponha –, e meu chuveiro tem muita pressão e água fresca. — Pisca para mim, e eu franzo a testa, sem entender. — Você está meio rançoso.
— Vai se ferrar, Kyra — ralho com ela, mas rio.
Ela se aproxima e beija minha testa, e isso, sim, arranca um sorriso sincero meu. Gosto que ela confie em mim o suficiente para me tocar, para recostar-se no meu ombro ou mesmo ficar abraçada, pois sei que ela não é assim com todos, principalmente com homens em geral.
— Fica bem e ouça meu conselho... — Ela anda até a porta antes de complementar: — Tome um banho, você cheira a álcool e a perfume vagabundo.
Levanto o dedo do meio para ela e a escuto ir gargalhando apartamento adentro até a porta de entrada bater. É, eu bebi bastante, sim, devo estar exalando álcool pelos poros, e o perfume barato se impregnou em minha roupa ontem, quando a recoloquei depois de mais de 12 horas nu, e a mulher me abraçou toda perfumada.
Saí do apartamento dela e vim direto para o da Kyra, torcendo para que minha irmã estivesse em casa e sozinha a fim de que eu pudesse cair aqui nesta rede onde estou e tentar pôr a cabeça certa no controle do meu corpo.
O telefone fixo toca alto, afastando meus pensamentos, e aproveito para tomar o banho aconselhado pela minha irmã viciada em limpeza. Entro na sala desabotoando a camisa branca que usei com o smoking – pois é, ainda estou com a mesma roupa do Ano Novo em pleno segundo dia do ano – e noto que não faço ideia de onde estão o paletó e a gravata-borboleta.
A primeira foto que vejo ao entrar no quarto de Kyra é uma que tiramos juntos – Samara, ela e eu – na formatura da minha irmã. Eu fui o par dela, então estava de smoking, e as duas, de vestido longo, maquiagem e penteado. Caminho até o aparador e pego o porta-retratos, focando em Samara e me perguntando como eu conseguia me manter longe do mulherão ao meu lado. Era uma beleza diferente da minha irmã, Samara tem o olhar doce, sorriso largo, nenhum mistério, seu rosto expressa suas emoções, sua sinceridade.
CONTINUA
Sua pergunta me deixa paralisada, completamente sem condições para lhe responder. Por que ele me procuraria?! Porque somos amigos desde que nasci? Porque estive ao lado dele em todos os momentos? Porque ele tomou um porre, apareceu lá em casa, chorou no meu ombro, beijou-me e depois fingiu que nada tinha acontecido?
Respiro fundo para controlar o volume da voz e não gritar que ele é um idiota, mas, antes que eu abra a boca, Kyra aparece esbaforida com um telefone na mão.
— Ei, Malinha, você está com seu telefone na bolsa? — Alexios olha para a irmã, puto por ela estar nos interrompendo, e eu franzo a testa, sem entender a pergunta dela. — Seu celular! — Ela bufa... — Seu irmão acaba de ligar para o meu telefone. — E balança o aparelho.
Arregalo os olhos, meu coração dispara, e logo penso em mamãe, que vi apenas um pouco ontem, quando fui buscar o Godofredo. Pego o telefone e confiro as ligações perdidas. Noto Alexios se afastando, mas não me importo; ele continua o mesmo egoísta de sempre.
Samara Schneider está de volta!
Mastigo mais um pedaço do pernil que Kyra serviu como opção de carne na ceia de Natal e não consigo deixar de pensar na volta daquela que foi minha grande amiga e companheira.
Até hoje não entendo o que aconteceu para que ela tomasse a decisão de ir estudar na Espanha sem falar nada comigo. Claro, eu sabia que tinha a possibilidade, afinal, havia anos o pai dela pressionava por isso, para ela ir estudar arquitetura clássica na terra de Gaudí14. No entanto, para minha total surpresa, em vez de ir morar em Barcelona, Samara foi para Madri.
Eu, que até então me considerava seu melhor amigo, só fiquei sabendo desses detalhes todos porque Kyra me contou depois que fui atrás dela para saber o paradeiro de Samara.
Pego a taça com água para ajudar a engolir a comida, pois estou com um aperto na garganta desde que a vi. Eu tinha acabado de sair da sala de reuniões de Kyra depois de um ménage espetacular com Valéria e Priscila, mais animado para encarar a noite especial, sem imaginar a grande surpresa que encontraria no salão e que quase me fez tropeçar em meus próprios pés.
Assim que meus olhos bateram nela, assustei-me, pois a danada da Kyra não havia me contado que Samara tinha voltado. Tentei um sorriso e uma aproximação amigável, como se ela não tivesse me abandonado por longos três anos sem nenhuma notícia. Ela está diferente, ainda mais bonita do que eu me lembro, mas tentei não reparar muito e ser o amigo de sempre.
Nada disso adiantou, pois, ao que parece, Samara desejou que eu corresse atrás dela, que a procurasse e reestabelecesse contato. Como eu poderia imaginar algo assim? Não sou adivinho! Ela some sem nenhum motivo e ainda se sente no direito de ficar puta por eu não ter tentado contato?
Quem entende a cabeça das mulheres?!
— Sua amiga foi embora cedo — Millos comenta ao meu lado. — Será que houve algum problema com a mãe dela?
Olho para meu primo, sentado ao meu lado à mesa, e ele entende meu total desconhecimento do assunto.
— A mãe dela, dona Ana Cohen, está em tratamento contra um linfoma. — Millos bebe mais chope. — Você não sabe nada sobre a vida da sua amiga?
— E você? Como sabe?
O filho da puta apenas dá de ombros, evasivo como sempre, adorando estar sempre um passo à frente de todos. Millos é um sujeito estranho. É o único que consegue interagir com todos nós sem tomar partido e sem revelar nada da vida pessoal de ninguém, nem mesmo da sua. Somos amigos, nos damos bem, mas eu sei pouco sobre ele, sobre suas atividades, e o máximo que conheço de sua vida pessoal é que tem um passado fodido como o meu, frequenta alguns clubes de sexo, tem uma amiga que por sinal é uma gostosa do caralho – mas nunca me deu mole, infelizmente – e só.
Como profissional, o homem é uma verdadeira coruja! Quieto, observador, parece que consegue olhar em 360 graus, além de ser um caçador de informações inigualável. Não há nada que passe despercebido por ele, e o que expõe ou o que fala, tenho certeza de que é o mínimo do que sabe. Por isso, todo cuidado é pouco quando o assunto é Millos Karamanlis, porque o desgraçado é um manipulador de mão cheia!
— Eu não sabia que dona Ana está doente, não vejo os pais de Samara há anos — contesto-o. — Espero que nada grave tenha ocorrido.
— Não vai ligar para saber? — Millos volta a questionar.
Franzo as sobrancelhas, encarando-o, tentando entender o motivo pelo qual ele está tão interessado no assunto.
— Não — respondo seco e volto a comer, mesmo com o questionamento dele na cabeça. Para mim o assunto acabou! Samara já demonstrou que não quer papo comigo por algum motivo, e, mesmo chateado com isso, devo respeitar a decisão dela. Millos é um manipulador e sabe que esse é um assunto que me atinge diretamente, por isso tocou nele.
Não preciso ligar para Samara, como não liguei para ela durante todo o tempo em que esteve fora, mas isso não quer dizer que eu não queira saber o que está acontecendo. Kyra sempre foi minha fonte de informações sobre ela e, caso tenha que ser assim, continuará sendo.
Termino minha refeição, fico mais algum tempo com Kyra e seus convidados, brindo ao sucesso do negócio dela e logo depois vou embora. Tinha pretensão de ir para casa, mas, no meio do caminho, uma mulher com quem eu já saí algumas vezes me manda uma mensagem dizendo que está na cidade, e vou encontrá-la.
Dia 26 de dezembro, pior dia de trabalho do mundo, certamente! Rio ao passar por mais dois engenheiros com cara de ressaca ou, talvez, de quem comeu demais e agora passa mal do estômago.
— Melhor colocar a lixeira perto! — passo, sacaneando meu colega de trabalho, Pedro, engenheiro químico. — Se emporcalhar a sala, vai ter que limpar você mesmo.
— Porra, Alexios, fala mais baixo! — Ele põe a mão na cabeça.
Gargalho e me sento à minha mesa, lotada de projetos, planilhas e minha coleção de lápis. É, eu coleciono lápis! Cada um tem a coleção que lhe cabe, não é?
Ligo o computador, olho para meu caderno de tarefas e arregalo os olhos ao ver um nome que eu não imaginava rever anotado lá – por outra pessoa.
— Ethernium? — questiono olhando para o Pedro.
— Sim! Acabamos de saber, mas o CEO lá da Karamanlis vai querer conversar com você, certamente.
Bufo ao pensar em subir até o Olimpo para conversar com Theodoros, sem esquecer as discussões que tivemos nas últimas semanas por conta de seu egocentrismo e insensibilidade com os funcionários da casa.
Sua mania de pensar que é Deus, inabalável, inatingível e perfeito me irrita, principalmente porque sei que ele não é nada disso, apenas a porra de um filhinho de vovô mimado, que sempre achou que podia fazer qualquer coisa que quisesse sem pensar nas consequências, que o velho grego limparia suas cagadas.
Admito, o velhote sempre fez tudo para seu neto querido. Entretanto, não pôde limpar a merda que Theodoros deixou para trás, apenas jogou-a para debaixo do tapete, limpou a consciência do seu netinho querido, que seguiu a vida como se nada tivesse feito e deixou o resto se fodendo sem se importar o mínimo.
Theo é arrogante, e eu não tenho saco para lidar com gente assim.
Ouço passos, um poc-poc característico de saltos, e em seguida a voz de Lia, outra engenheira que trabalha na minha equipe direta.
— Bom dia! — sua voz soa animada. — Ah... sem Papai Noel de chocolate este ano! — ela resmunga, e eu a vejo procurando sobre sua mesa. — Poxa, Alex, você já foi mais generoso!
— Eu?! — Começo a rir. — Você realmente me imagina comprando e colocando chocolate em formato de Papai Noel nas mesas dos outros? — Ela faz careta e nega. — Eu achava que era você!
— Por quê? Só porque sou mulher?
Rolo os olhos.
— Não, porra, porque você é viciada em chocolate!
— Ele está certo, Lia! — Pedro se mete na conversa em minha defesa. — Eu também achava que era você por causa disso.
Ela se senta frustrada por não ter encontrado o presente do “Papai Noel” misterioso da Karamanlis.
— Bom, não sou eu, e eu contava com isso! Não falha por anos! — Olha em volta para as outras estações de trabalho, ainda vazias sem os profissionais. — Ninguém recebeu?
Nego, e Pedro faz o mesmo.
— Estranho...
— Coisas estranhas têm acontecido por aqui — digo e lhe estendo meu caderno com a anotação da Ethernium.
— O quê? De novo? — Ela geme. — Esses caras da Ethernium são uns malas! Sério, Alexios, eu não vou aguentar gracinhas pra o meu lado de novo não!
— Eu disse que você devia ter respondido a ele. — Dou de ombros. — Mas agora sabe que tem meu total apoio! Se alguém da equipe deles fizer piadas machistas de novo, responda.
— Quem é o machista? Que vou com você dar uma surra nele. — Eliane chega já mostrando as garras – que garras! Minhas costas sofreram com elas – e se senta em sua estação. — Bom dia, feliz Natal, foi tudo ótimo! Agora, silêncio, porque ainda estou agarrada a um cálculo estrutural que não tem me deixado dormir. Obrigada. De nada.
Pedro começa a rir, e Lia só balança a cabeça. Eliane é assim, direta e sem rodeios, por isso mesmo achei-a ideal para o trabalho pelo qual é responsável. Nós nos conhecemos em uma balada, transamos, depois voltamos a nos encontrar na entrevista dela aqui na K-Eng tempos depois. Nunca mais voltamos a trepar, mas conseguimos construir uma relação de trabalho quase perfeita. Sei que posso contar com ela para qualquer coisa aqui dentro.
Tenho mais duas pessoas na minha equipe: Evandro e Michel, mas os dois estão de férias e ainda não retornaram. Não é normal dois membros da mesma equipe saírem em férias juntos, mas, como eles são casados, a lei lhes garante esse direito.
A K-Eng não é formada apenas pela minha equipe de engenheiros em suas especialidades, a verdade é que cada um aqui gere suas próprias divisões. O Pedro, por exemplo, é engenheiro químico, e na divisão dele estão químicos industriais, técnicos em química e outros engenheiros dessa área. Já a Lia é engenheira ambiental, e, dentro de sua divisão, há biólogos, gestores ambientais e engenheiros sanitaristas. A Eliana trabalha com projetos, e ela coordena outros engenheiros, arquitetos e projetistas. O Michel faz toda a parte de planilhas e medições, e o Evandro é responsável pelas operações, é quem lida com empreiteiros, clientes e atua também como fiscalizador de obras.
Além do corpo técnico da K-Eng, a empresa, que é uma subsidiária da Karamanlis, ainda tem setores administrativos e financeiros, e eu, como CEO dessa bagaça aqui, sou quem comanda essas áreas.
O único setor que dividimos com a Karamanlis, infelizmente, é o jurídico, por isso aturo muito a prepotência inglesa do Konstantinos e seu humor ácido. Geralmente não tenho paciência com ele, zoo com sua cara ou apenas o ignoro. Ele não é bem quisto por ninguém da minha equipe, principalmente pelas mulheres.
— Por falar em machismo... — Lia volta a falar. — Será que a Kika não vai voltar mais não?
Dou uma risada por ela ter entrado no assunto justamente quando eu pensava no meu irmão machista.
— Está um silêncio total na Karamanlis — Eliana se pronuncia. — Dá até medo de andar pelos corredores, clima pesadão!
— A Kika era incrível, né? Gata, alto-astral, competente — Pedro lamenta. — Uma pena que tenha perdido a cabeça e tenha sido mandada embora...
— Opa! — Eliana o interrompe. — Ela se demitiu!
— Enfim, está desempregada depois de ter ganhado uma puta promoção para a gerência.
— Eu a preferia à Malu Ruschel. — Lia treme toda. — Aquela mulher congelava até meu sangue só de estar perto dela.
Definitivamente, não o meu!, penso ao me lembrar de Malu Ruschel, a ex-gerente dos hunters da Karamanlis. Malu era bonita, tinha classe e aquele seu jeito focado me enchia de tesão. Uma pena ter ido morar no fim do mundo!
Já com a Kika, nunca senti essa atração, talvez por sempre tê-la achado tão receptiva, maravilhosa com seu jeito espontâneo, que logo gostei dela como se fosse uma amiga de longa data. Tenho muito apreço por ela e lamento que tenha saído da empresa.
Os engenheiros começam a conversar, mas o assunto não me interessa o mínimo, então coloco meus fones de ouvido – a voz forte e rasgada da Janis Joplin soa bem alta – e volto a mexer no projeto em que estava trabalhando.
— Ei, moleque! — Millos me chama assim que para sua moto. — Você não sabe curtir um passeio, puta que pariu!
Ele desce da motocicleta, tira o capacete e a jaqueta e se senta à mesa do bar ao meu lado. Bebo minha água sem responder, porque a única coisa que eu poderia lhe falar é que não sou um velho para ficar andando nessas motos de colecionador há 80 km por hora.
Estou aqui esperando-o há pelo menos 20 minutos, e isso porque saímos juntos de São Paulo em direção ao Guarujá, em uma viagem não programada e cujo motivo, sinceramente, nem entendi. Ele apenas apareceu lá na K-Eng e me chamou para andar de moto com ele, e eu topei.
— Qual é o propósito disso? — resolvo perguntar sem rodeios.
— Do quê?
Millos agradece à garçonete que lhe entrega um coco verde com um canudo e nem percebe a moça comendo-o com os olhos (ou talvez só esteja assustada com suas tatuagens, que cobrem os braços, pescoço e peito).
— Desse “passeio”. A gente se viu há alguns dias na ceia da Kyra, e você não comentou nada sobre isso.
— Nada de mais! — Ele bebe a água de coco. — Vou viajar no Ano Novo, ficar um tempo fora e queria passar um tempo contigo. Já jantei com seus irmãos, mas como você é todo amalucado para comer, achei que uma volta de moto iria cair bem, mas esqueci que você é louco nisso também.
— Você está ficando velho, Millos, sinto lhe informar — debocho. — Acha mesmo que, com essa potência italiana nas mãos, eu iria ficar molengando contigo na estrada?
— Não é molengar, é curtir a viagem, a paisagem...
— Ah, não, você curte essas coisas paradas, não eu. Meditação, ioga, essas coisas todas aí que você faz, tô fora! Não sei ir devagar, Millos, em nada!
— Deveria... talvez assim conseguisse agradar às mulheres. — Ele pisca e tenta disfarçar a troça bebendo mais de sua água.
Eu gargalho.
— Pode ter certeza, elas não reclamam da minha rapidez. Não basta saber correr, tem que saber tirar o máximo proveito de uma máquina, fazê-la dar tudo de si, e isso eu faço.
— Está falando das motos ou das mulheres?
— Tem diferença?
Ele ri novamente.
— Você é um moleque, não sabe nada ainda!
— Falou aquele que nomeia suas motos com nomes femininos!
Nós dois rimos juntos, e o clima fica descontraído.
A verdade é que ele e eu temos muito em comum. Ambos adoramos motocicletas, rock e carne. Apesar de sua onda “zen budista”, Millos nunca conseguiu se livrar da proteína animal e das comidas pesadas que adora preparar para acompanhar suas cervejas artesanais.
Ah, esse é outro ponto em comum: adoramos cerveja! Ele fabrica, eu apenas bebo, mas tenho tanto conhecimento quanto ele, e esse é um dos pontos sobre o que mais conversamos quando estamos juntos, geralmente comendo alguma carne e ouvindo rock.
Raramente saímos juntos de moto, exatamente por ele fazer o estilo tiozão que gosta de andar de Harley, apreciando paisagens, e eu e minha Ducati Multistrada 1260 não temos saco para andar quase parando não.
Embora eu reconheça que tenho que agradecer a esse tiozão por ter minha moto dos sonhos, a que uso para correr nas competições. A Ducati só disponibilizou três unidades da 1299 Superleggera para venda no Brasil, há quase dois anos, e um dos amigos do Millos foi quem comprou uma delas, e, quando ele decidiu vendê-la, meu primo prontamente me avisou, e não pensei duas vezes.
Eu gosto das italianas mais do que das americanas ou japonesas, pelo menos para as motos; não sou tão seletivo assim com mulheres.
— Baile dos Villazzas...
— Ah, Millos, não fode com esse assunto de novo! — reclamo, entendendo agora o motivo do encontro.
— Alexios, preciso de você lá.
Rio.
— Mano, aqueles dois não são crianças, e, muito menos, sou a babá deles! Eles não precisam que eu vá para manter a ordem e o bom nome da...
— Kyra me mostrou o projeto do baile, ela parece bem animada com sua primeira grande produção sem a intervenção dos Karamanlis.
Porra! Ele vai pegar pesado!
— Você é muito filho da puta, sabia?
Millos dá de ombros e bebe mais água.
— Acho que vocês deveriam ir para apoiá-la, acima de todos, você! Será importante para ela, além disso... acho que ela está sem acompanhante, porque deu com o pé na bunda do último idiota que estava comendo.
— Porra, Millos! — Xingo-o. — É a minha irmã, porra!
— E o quê? Só por isso ela não trepa?
— Vai se foder! — Levanto-me da mesa puto e pego o capacete.
— Alexios... — ele me chama, mas não dou atenção, já montando na moto para ir o mais longe possível dele.
Antes que vocês me julguem como machista ou irmão ciumento, adianto logo que não se trata disso. Cada um lida com a merda dentro de si de um jeito, e esse é o jeito da minha irmã de lidar com seu passado. Respeito isso, mas não quer dizer que não me doa ou mesmo que eu não me sinta responsável por ela ser assim.
Eu gostaria que as coisas fossem diferentes, esforcei-me o máximo que pude para que ela fosse menos fodida do que todos nós, mas, a cada novo relacionamento seu destruído, sinto-me um fracassado, o que me dói profundamente.
Piloto rápido, passando pelos radares sem me importar com as multas, sentindo o vento forte bater em mim como se pudesse deixar todas as marcas do meu corpo e da minha alma para trás. Contudo, não posso. Ele fodeu a minha vida várias vezes, não só com as coisas que fez contra mim, mas principalmente por eu ver que também destruiu minha irmã.
— Como ela está, Dani? — pergunto ao meu irmão assim que ele entra na cozinha da casa dos meus pais, onde tomo meu desjejum com a Cida.
— Dormiu bem. — Ele beija minha cabeça. — Mas foi um susto essa febre alta assim do nada.
Ele se senta, visivelmente cansado, e Cida logo lhe serve uma xícara de café. Acostumados demais a dividir as refeições com Cida desde que nascemos, sempre tomamos nosso café juntos. Ela está em nossa casa há tanto tempo que não sei como seria minha vida sem sua presença, e certamente Daniel sente o mesmo.
Minha mãe, Ana Cohen, sempre foi muito ocupada na direção do sistema de ensino criado pelos meus avós, franqueado e distribuído por colégios do Brasil todo. Já meu pai, Benjamin, vem de uma longa linhagem de comerciantes e industriais, como bem acentua nosso sobrenome, que é uma derivação da profissão de algum ascendente que foi alfaiate.
Os Schneiders possuem lojas, fábricas ou empresas que prestam serviços, como era o nosso caso. Meu avô não tinha formação quando fundou sua primeira fábrica de móveis, porém eram um marceneiro muito habilidoso, e meu pai aprendeu com ele. Os negócios iam bem, então papai foi estudar arquitetura e, por fim, design, elevando o nível dos negócios familiares, fazendo dos móveis com nosso sobrenome sinônimos de classe e riqueza.
Há 10 anos meu irmão está à frente dos negócios, desde que papai teve seu primeiro infarto – ele já teve outro e fez duas pontes de safena. Daniel é um administrador maravilhoso, fechou com grandes empresas, e hoje os móveis Schneider não enfeitam mais as coberturas e mansões luxuosas de São Paulo, tão somente redes enormes de hospitais, clínicas, lojas de alto luxo e restaurantes em todo o país.
Meu irmão é incrível! Nós dois somos muito amigos, sempre fomos. O único ponto tenso entre nós era Alexios Karamanlis. Daniel é 10 anos mais velho que eu, um quarentão, como eu costumo provocá-lo, e sempre achou Alex uma péssima companhia. Bom, ele realmente era, mas não para mim. Eu sabia das loucuras que Alexios aprontava, seu envolvimento com drogas, farras, lutas valendo dinheiro e rachas pela cidade. Ele não foi um adolescente fácil, mas sempre me tratou como se ainda conservasse o menino que eu conheci. Sempre me deu conselhos para ficar longe de tudo aquilo que ele mesmo fazia, nossa amizade sempre foi separada das outras companhias dele.
Ainda assim, Dani nunca gostou de Alexios, em compensação, tornou-se um dos grandes amigos de Millos Karamanlis, primo do Alex, mesmo que eu não consiga entender o que, de fato, o executivo tatuado e meu irmão tenham em comum.
— Desculpe-me por tê-la tirado da festa da Kyra — meu irmão volta a falar, afastando-me dos pensamentos. — Eu liguei para o doutor Henrique e já ia pedir uma ambulância, quando fiquei com medo de acontecer algo e você não estar aqui.
Pego sua mão.
— Eu sei. Foi um susto!
Retornei as ligações dele assim que Kyra me alertou, e, quando Dani atendeu, o doutor já havia chegado e ministrado medicamentos. O médico preferiu que ela continuasse em casa por conta de sua baixa imunidade, mas ficou acompanhando durante boa parte da madrugada.
— Ela convulsionou, e eu achei que fosse... — Ele me olha, seus olhos acinzentados tristes. — Eu quase perdi o papai tempos atrás, lembra? — Assinto. — Eu estava com ele quando teve o infarto, e agora quase...
— Dani, não pensa nisso! — Abraço-o. — Você é o melhor filho e irmão do mundo, sempre ao lado deles, ao meu lado. Agora estou aqui também e vou ajudar no que for preciso.
— Eu sei, Samara. Essa fase do tratamento é a mais complicada, por causa da baixa imunidade, mas, quando ela estabiliza, é a mamãe que sempre conhecemos e amamos.
— E a Bianca? — pergunto-lhe sobre sua noiva. — Como vocês estão, faltando pouco para o grande dia?
Ele ri sem jeito.
— Você sabe que não tem essa de grande dia, não? Nós vamos ao cartório, assinaremos os papéis e pronto. — Dá de ombros. — Vida que segue.
Cruzo os braços. Não gosto nada desse conformismo estranho.
— Tem certeza disso, Dani?
Ele olha para a Cida.
— Vou fazer 41 anos, pirralha. 15 anos de relacionamento com ela, então...
— É isso? — Cida balança a cabeça negativamente. — Viu? A Cida não concorda também! E não é que você seja já um solteirão arrastando chinelos, Dani! Você é lindo!
— Não é sobre isso, Samara.
— Ele quer ter uma família, menina. — Arregalo os olhos. — Seu pai vive mais entretido na fazenda do que aqui, sua mãe, antes de adoecer, não parava quieta, sempre viajando com as amigas e...
— Eu na Espanha.
Daniel termina o café sem me encarar, sem falar nada e se levanta.
— Vou voltar para o quarto, render um pouco a enfermeira.
— Também vou, Dani!
Seguimos juntos, mudos, pelo corredor. Meu irmão é a pessoa mais discreta do mundo, completamente o oposto de outros filhos de grandes empresários desta cidade. Nunca gostou de sair em revistas de fofoca, nunca namorou modelos, atrizes ou socialites. Na adolescência, namorou uma garota da escola, depois teve duas ou três namoradas na faculdade e, por fim, conheceu a Bianca em um torneio de polo – esporte em que ele é fera. Desde então engataram nesse relacionamento xoxo, totalmente ioiô – eles já terminaram umas 30 vezes ao longo dos anos – e que agora vai se tornar um casamento meia-boca.
— Você merece mais, Dani — solto sem conseguir frear minha língua, e ele ri.
— Você diz isso porque é minha irmã, pirralha. — Ele tenta bagunçar meus cabelos como quando eu era criança. — Bianca pode não ser o grande amor da minha vida, mas é uma boa amiga e companheira.
— Isso é loucura! Você merece amar, ser amado, estar apaixonado...
— Como você esteve a vida toda por aquele doidivanas? — Paro em seco no corredor e arregalo os olhos. — Qual é, Samara, você achava que eu não sabia? Estava escrito na sua testa e em todos os seus cadernos, com direito a corações rosa! Você teve um peixe daqueles que ficam sozinhos no aquário...
— Um beta. — Começo a rir, sabendo exatamente do que ele está lembrando.
— Pois bem, você teve um beta e o nomeou...
— Beto Schneider Karamanlis — falamos juntos, e eu começo a rir.
— Sim! E como você nunca me deu indícios de ter uma queda pela Kyra, eu supus que era o outro Karamanlis. — Daniel me olha sério. — Por que Diego não veio contigo?
A pergunta é tão inesperada que demoro a processar que ele está falando do meu namorado.
— Não sei quanto tempo vou ficar, então...
— Besteira! Ele poderia passar uns dias aqui contigo, os times estão todos em recesso até a primeira semana de janeiro. — Suspiro e olho para o chão. — Não estraga sua vida, Alex não vale a pena.
Assinto, lembrando-me de tudo o que aconteceu noite passada. Alexios continua igual, vendo e querendo todas as mulheres ao seu redor, menos eu. Sempre fui a amiga, quase uma irmã, menos uma mulher, e, como acabei de perceber, todos sabem da minha paixão por ele, então, Alexios deve simplesmente ignorá-la.
Por muito tempo eu achei que ele não soubesse. Ficava fantasiando que, no dia em que eu tomasse coragem e lhe contasse, Alexios iria se declarar também. Iludida! É isso que eu era, porque, depois do beijo que trocamos, era impossível que ele não soubesse.
Respiro fundo, resignada. Alexios sabe, só não se importa e nem sente o mesmo!
Meu irmão bate levemente na porta do quarto de mamãe e em seguida entra. Sigo-o pelo enorme ambiente, que me traz tantas lembranças alegres dos momentos que dividi com ela, deitada em sua cama, contando sobre meus sonhos.
— Samara Esther! — Mamãe estende os braços, sentada na cama, recostada nos travesseiros. — Trouxe Godofredo de volta?
Rio e concordo.
— Trouxe, está lá embaixo no jardim. — Beijo sua testa. — Como está se sentindo hoje?
— Eu estou bem! — Ela dá uma olhada de esguelha para meu irmão. — Ele é superprotetor, sabe? Exagerado!
Daniel permanece alheio às críticas, conversando com a enfermeira.
— Mamãe, ele não é, e a senhora sabe! — Ana suspira. — A senhora está em tratamento, precisa de cuidados, e, com o papai isolado na fazenda, Daniel é que estava responsável por acompanhá-la em tudo, mas agora estou aqui também!
— Dois superprotetores! — ela finge reclamar, mas sorri satisfeita. — Seu pai quis vir para cá para ficar comigo, mas achei melhor que ficasse por lá. Você sabe como ele é, não me daria um minuto de paz.
Eu rio, mas sou obrigada a concordar. Meus pais são incríveis, mas têm uma relação um tanto estranha desde que Daniel e eu saímos de casa para viver nossas vidas. Passaram a viver cada um no seu espaço, com suas coisas. Dão-se incrivelmente bem, mas cada um com sua vida.
É verdade que eles não eram nada parecidos. Mamãe sempre foi uma mulher de negócios, cheia de trabalho, viagens e reuniões, porém extremamente carinhosa com os filhos. Papai é um homem mais reservado em seus sentimentos, embora seja um artista.
Olho para um dos móveis da minha mãe, e a escultura em madeira em cima dele me faz sorrir. Nela há um casal e um garotinho com a mão na enorme barriga da mulher. Papai deu vida à imagem de uma foto que tiraram quando mamãe estava grávida de mim, e a peça ficou tão perfeita que dá para sentir a alegria de todos.
Quando eu era criança, tinha coleções das esculturas dele: cavalos, cães, gatos, pássaros. A que eu mais gostava era a do Pinóquio, que ganhei quando comecei a ler e andava para baixo e para cima com o livro do boneco de madeira que queria ser menino de verdade.
— Você vai até lá visitá-lo? — minha mãe pergunta, talvez adivinhando que estou pensando nele, por estar olhando a estátua.
— Por agora não. Tentei falar com ele quando cheguei e ontem também, mas não consegui. — Dou de ombros. — Papai se isola quando quer, a senhora sabe.
— O doutor Henrique acabou de dizer que os resultados dos exames ficaram prontos e que ele virá assim que puder para conversar conosco. — Daniel senta-se ao meu lado na cama. — É bom ter Samara aqui perto, não é?
Ele me abraça pelos ombros.
— Eu também estou gostando de estar de volta.
Mal termino a frase, e meu telefone toca. A foto de Kyra tentando beijar Godofredo, e ele de boca aberta para mordê-la aparece na tela, e minha mãe sorri.
— Eu estou esperando pela visita dessa filha emprestada desnaturada. — Ana reclama. — Pode dizer a ela que não vai comer mais minha paella!
— Pode deixar! — Levanto-me da cama e vou para um canto do quarto. — Oi, Kyra! — atendo o telefone.
— Quero notícias! Mal consegui dormir essa noite, deixei mil mensagens no seu telefone. Como está sua mãe?
— Está bem, mas ameaçou greve de paella se você não vier visitá-la em breve.
— Está bem mesmo? — ouço preocupação na voz da minha amiga, e meu coração se aperta, pois sei que minha mãe foi o mais próximo que Kyra teve de figura materna. — Malinha?
— Está, sim. O médico dela explicou que, por conta da medicação, ela ficaria suscetível a doenças, a imunidade está baixa, então qualquer resfriado ataca com força.
Kyra suspira ao telefone, e eu abro um sorriso ao ver o quanto minha amiga durona é, na verdade, tão sensível quanto eu.
— Que bom! Fico feliz em ouvir isso e mais aliviada para te fazer um convite.
Faço careta, já prevendo que ela vai me meter em algum evento seu de final de ano, vestida de garçonete.
— O que você está armando, Kyra?
— Nada! — ela logo se defende, indignada. — Eu só queria companhia! Na véspera do Ano Novo acontecerá o Baile Branco e Preto dos Villazzas, e, como eu estou sem nenhum boy no momento, você podia ser meu par, o que acha?
— Kyra! — Rio. — Um baile? Sério?
— Baile? — mamãe logo se mete na conversa e pergunta lá da cama. — Por acaso é o baile dos Villazzas?
Fodeu! Minha mãe sempre amou bailes e conheceu a matriarca dos Villazzas tempos atrás, através de sua amiga, Cecília Novak. Certamente ela adorará a novidade, achará moderno eu ir acompanhando minha amiga, e eu não terei escapatória.
— É, mamãe, eu vou com Kyra — respondo resignada.
— Eu sabia! — Minha amiga ri ao telefone. — O traje branco é obrigatório para mulheres, então, abuse de cores em outros locais!
— Eu vou te matar, Kyra Karamanlis! — sussurro para que somente ela escute.
— Depois do baile; antes, quero usufruir de tudo o que planejei! Vai ser o evento mais incrível que você já viu!
Relaxo, percebendo que ela realmente está feliz e confiante.
— Tenho certeza disso, Kyra!
Nós nos despedimos, mas não retorno imediatamente para a cama, ao lado da minha mãe e do meu irmão, fico pensando em como é bom estar de volta. Realmente me sinto em casa aqui, com as pessoas que eu amo, ainda que tenha feito amigos na Espanha.
Penso no Diego e sinto um pequeno aperto no coração, um misto de saudade e remorso. Daniel me olha, curioso por eu estar parada no mesmo lugar, sem falar ou fazer nada, e reflito sobre o que ele me disse. Reconheço que eu recuei ante o pedido de casamento de Diego por ter esperança de voltar ao Brasil e encontrar Alexios mudado, porém ele não mudou e nem mudará jamais, mas isso não muda o fato de que ele ainda mexe comigo.
Diego e eu nos damos muito bem, somos amigos, companheiros, temos gostos parecidos. Enquanto eu estava na Espanha, longe do magnetismo e atração de Alexios, realmente pensei que pudesse amá-lo e ter uma vida com ele. Os momentos que passamos juntos foram maravilhosos, mas agora me questiono se, mesmo voltando para Madri, é justo manter essa relação.
O Uber me deixa em frente ao Villazza SP, e vejo a entrada principal do hotel cheia de pessoas bem-vestidas e penteadas. Ando na direção delas, questionando-me se os convites estão sendo verificados na entrada, mas me surpreendo ao ouvir um dos homens que está parado na entrada:
— Nós só queríamos comprar o convite, não conseguimos responder a tempo e...
— Senhor, o que me foi passado foi que esgotaram, eu sinto muito — um dos seguranças responde antes de se virar para mim, mas, vendo o convite em minhas mãos, abre a porta. — Seja bem-vinda!
Entro no saguão principal do enorme hotel e suspiro, apreciando todos os detalhes da construção e da decoração, orgulhosa por ter sido parte da equipe que ajudou a deixá-lo perfeito desse jeito.
O escritório de arquitetura que projetou o Villazza SP foi o dos Boldanis, e o arquiteto principal que assinou o desenho foi ninguém mais, ninguém menos que meu ídolo e professor, Julio Boldani. O italiano é fera demais nas suas linhas clássicas misturadas às modernas.
Eu ajudei o pessoal que compôs o projeto de decoração, pois estava me especializando e, por isso, trabalhei um tempo no Boldani. Foi ali que descobri que, por mais que papai fizesse pressão para que eu fosse uma arquiteta, eu queria mesmo era ser designer de interiores.
Subo as escadarias de mármore com corrimão e guarda-corpo de ferro fundido na cor ouro velho em arabescos e folhas e, no saguão da entrada do salão Royal, encontro a recepção do baile montada como se fosse uma bilheteria antiga de circo.
Sorrio ao pensar na Kyra, reconhecendo que minha amiga sabe como dar vida aos seus projetos de maneira perfeita, pois vi os desenhos quando almoçamos juntas anteontem e confesso que está tudo muito mais bonito do que a ilustração em 3D que ela me mostrou.
Olho em volta, procurando-a, pois combinamos de nos encontrar na entrada, mas arregalo os olhos ao ver Alexios, de smoking preto, vindo em minha direção.
Mesmo contra a minha vontade, minhas mãos gelam e meu coração dispara apenas por vê-lo, por notar o quanto ele está lindo com esse sorriso largo e os olhos brilhando.
Por que ele tinha que ter essa aparência e essa boca?!, penso na injustiça do mundo, indignada por ser tão comum, e ele...
— Samara Esther. — Bufo, pois só ele e minha mãe chamam-me assim. — Você está... linda!
Alexios sorri e me olha desde as unhas dos pés, pintadas e cutiladas, até o alto da cabeça.
— Linda! — repete como se não fosse possível que eu estivesse desse jeito.
— Oi, Alexios — cumprimento-o seca, tentando não dar importância ao fato de que ele parece ter tomado um soco só por me ver mais arrumada. — Estou esperando sua...
— Eu sei, foi ela quem me mandou ficar aqui de plantão te esperando. — Enrugo a testa, sem entender. — Kyra resolveu bancar a fada madrinha e ajudar uma amiga a ter seu baile com um príncipe encantado e, por isso, vai ter que trabalhar esta noite. — A expressão no rosto dele é de deboche ao falar do conto de fadas. — Então, restou a mim.
Puta merda, Kyra!
Pego o celular dentro da bolsa e mando mensagem para ela, mas tenho certeza de que, ocupada com o começo do baile, ela não irá ler. O que eu faço? Penso se devo aceitar fazer companhia ao Alexios ou se devo ir embora, afinal, só vim a esse baile por insistência da Kyra.
— Samara, eu sei que nossa amizade está um tanto estremecida por conta da distância e do tempo, mas... — Alexios me encara, e noto que ele está se esforçando para falar — eu gostaria que você me acompanhasse esta noite.
Minha boca fica seca ao ouvir isso, porque, mesmo com a distância, eu ainda consigo saber quando ele está sendo sincero. Alexios me quer ao seu lado esta noite, e isso é...
— Como nos velhos tempos, lembra? — ele complementa, e, mais uma vez, percebo o quanto sou iludida.
Nada mudou!
Imediatamente me lembro do meu baile de formatura do ensino médio, no qual ele foi meu acompanhante. Chegamos juntos, eu estava empolgada para dançar com ele a noite toda, arrumei-me para parecer uma mulher aos seus olhos e não mais a menina de cabelos revoltos que o seguia para toda parte quando criança.
Havia decidido que iria contar a ele o que sentia naquela noite e que, depois de ele se declarar também, iríamos fazer amor, e eu, aos 17 anos, finalmente teria minha primeira noite com o homem que amava.
Ledo engano!
Alexios dançou uma música comigo, depois foi para o bar, encheu a cara, sumiu com uma garota bem mais “servida” que eu e voltou para o salão todo amarrotado. Eu queria ir embora, mas ele acabou dançando (e sumindo) com mais umas três mulheres.
— Seu acompanhante te deixou sozinha, não é? — Marlon, um dos garotos que estava se formando comigo me perguntou, e só aí percebi que ele estava sentado à mesa comigo.
Começamos a conversar e, naquela noite, tive minha primeira experiência sexual. Não foi ruim, namoramos por um tempo, mas reconheço que ela só aconteceu porque Alexios não me quis. Ele simplesmente não me via!
— Samara? — ele me chama e me faz voltar à realidade.
Por Deus! Não sou mais uma garota de 17 anos, sou adulta, independente, com uma carreira bem-sucedida na Espanha e um dos homens mais gostosos de Madri ao meu lado!
— Vamos entrar! — decido e marcho até uma das “bilheterias”, onde recebo minha máscara preta e uma pulseira.
Alexios recebe as dele e ri ao me mostrar a máscara branca como a de O Fantasma da Ópera. Ah, merda!
— Você se lembra? — Ele ri. — Me obrigou a ver esse filme um milhão de vezes e sabia até as falas!
O desgraçado põe a máscara, ergue uma das sobrancelhas, dobra-se em reverência e sorri.
— Vamos logo com isso! — Saio de perto dele sem rir de sua gracinha, coração retumbando, a cabeça cheia de lembranças da nossa adolescência.
Quando as portas se abrem, perco o fôlego ao ver o que Kyra idealizou.
— Puta que pariu, minha irmã é foda! — Alexios fala ao meu lado.
Eu pulo de susto, não por causa do que ele disse, nem mesmo ao ver um dos artistas cuspindo fogo, mas tão somente por sentir a sua mão em minha cintura. Meu corpo inteiro aquece, a pele arrepia e aquela sensação que sinto desde que os hormônios despertaram em mim na adolescência volta a me tomar.
Atração! Química!
Não sei explicar, mas meu amor de criança transformou-se nisso quando me tornei moça, e a cada toque, cada resvalo, eu resfolegava. Sonhava com ele, acordava suada e sem saber o que estava acontecendo. Meu primeiro orgasmo com masturbação foi pensando nele, instintivo, depois de um sonho erótico e proibido.
Achei que, com a distância, principalmente depois que me envolvi com Diego, isso ia passar, mas parece que me enganei.
Olho-o e percebo que ele permanece alheio ao que me causa, sua atenção tomada pelos malabares que executam movimentos precisos na entrada do baile.
Respiro fundo.
— Vamos?
Ele assente sem me olhar, e seguimos juntos, passando entre os convidados que ainda se encontram de pé conversando ou bebendo no bar, em direção ao centro do salão, tomado de mesas e cadeiras reservadas.
— Onde nós...
Nem preciso terminar a pergunta, pois logo vejo Theodoros Karamanlis, acompanhado de uma lindíssima loira, a uma mesa com o sobrenome deles na placa de reserva. Eu não sou muito fã do irmão mais velho de Alexios, mas sempre fui educada com ele, então armo meu melhor sorriso e o cumprimento:
— Theo! Que bom vê-lo esta noite! — Olho para sua acompanhante agora mais de perto e sinto como se a conhecesse de algum lugar.
— Samara, essa é Valentina de Sá e Campos — Theodoros nos apresenta, e eu sorrio, reconhecendo os sobrenomes dela. — Valentina, essa é a Samara Schneider, uma incrível designer de interiores.
— É um prazer, Valentina! — saúdo-a.
— O prazer é meu, Samara. — Valentina sorri. — Nos conhecemos já?
— Eu acho que sim, embora não me recorde de onde pode ser.
A loira para a fim de tentar se lembrar, e eu ouço a conversa entre Theo e Alexios.
— Viu só esse trabalho da Kyra?
— Claro! — Alexios debocha do irmão. — Seria impossível não ver, já que estou aqui! Já fui até cumprimentá-la, mas está tão ocupada que não consegui nem falar com ela direito.
Só o suficiente para que ela o encarregasse de me acompanhar nesta noite! Kyra me paga!
— Imagino que esteja. Viu o Kostas? — Theo pergunta, mas não consigo ouvir a resposta de Alexios, pois Valentina volta a falar:
— Lembrei! — ela comemora. — Nos encontramos na festa de inauguração da loja da Miriam Benides, lembra?
Eu não faço a mínima ideia do que ela esteja falando, mas, mesmo que não esteja com nenhuma vontade de prosseguir com a conversa, sorrio e concordo por educação.
— Puxa vida, quanto tempo não vejo você por lá! — Valentina continua.
— Eu estava morando em Madri — informo antes de me sentar.
— Ah, eu adoro a Espanha!
Sorrio sem graça, percebendo que vamos conversar. Não quero ser mal-educada com ela, é só que não estou muito confortável em estar aqui neste baile, não depois de perceber que ainda quero Alexios e que não adiantou de nada impor distância.
— Família! — a voz debochada de Kostas interrompe a conversa de Valentina, e ela me pergunta baixinho quem é o homem abraçado a uma loira com um vestido branco tão justo e transparente que beira à indecência.
— Konstantinos... — sussurro antes de ele apresentar sua acompanhante a todos.
— Bruninha, conheça os Karamanlis! — Ele aponta para Alexios e para Theodoros. — Claro que você pode deixar seu cartão com eles depois, mas eu sou o mais bonito, não sou?
Ele faz a mulher girar em seu próprio eixo, e, pela primeira vez depois da tensão toda em que eu estava desde que vi Alexios, sorrio divertida. Kostas é uma figura! Ainda me lembro de quando ele morava no prédio, na cobertura de seu pai, e juro, se não fossem os olhos azuis e a voz, eu diria que não se trata da mesma pessoa!
— Já bêbado? — Theo pergunta a Alexios.
— E mais uma vez com acompanhante paga! — Alexios se aproxima de Theo e cochicha, e isso me surpreende. Não sabia que os dois estavam conseguindo ter uma relação tão cordial. — Estou achando que nosso querido irmão é do outro time.
Theo gargalha e nos olha sem graça.
— Perdoem-me, foi irresistível! — Tenta se conter e bebe mais do seu uísque. — Bom, certamente ele é arrogante e orgulhoso demais para “sair do armário”.
Quem? Kostas?! Olho para o homenzarrão com a prostituta e nego instintivamente com a cabeça. Não mesmo!
— Seria apenas mais um rejeitado pelo seu querido pappoús! — ouço Alexios dizer isso, e meu coração aperta. Olho-o, respiro fundo, lamentando profundamente por ele ainda se sentir rejeitado, percebendo que isso também não mudou.
Rejeição, abandono, violência o tornaram o homem que é. Sei disso, dei essas desculpas para seu comportamento por muitos anos. Toda vez que ele aprontava, eu usava isso para justificá-lo.
Até quando?, penso, olhando-o fixamente. Até quando ele deixará que os erros dos outros façam-no errar também?
— Você gosta muito dele, não é? — Valentina dispara, e eu desvio os olhos de Alexios. — Seus olhos brilham diferente ao olhar para ele.
— Somos amigos há muitos anos — disfarço.
— Bom, isso é muito bom, mas... — Ela ri. — Desculpe-me se estou sendo invasiva, mas seu olhar é de quem é apaixonada, não apenas uma amiga.
Dou um sorriso amarelo para ela, e Valentina fica quieta.
— Tudo bem aí? — Alexios me pergunta, e eu assinto. — O jantar já tinha sido anunciado antes de você chegar, então não deve demorar muito.
Resolvo conversar com ele normalmente, afinal, seria ridículo fazer birra na minha idade.
— Kyra estava muito ansiosa com o jantar desta noite. Um grande chef internacional, ela me contou, é quem está preparando tudo.
— Sim, está na programação. — Alexios lê o nome do chef francês, e eu não consigo deixar de olhar sua boca. Pego a taça de champanhe e a viro de uma só vez. — Uau! — Sorri e faz sinal para um garçom se aproximar com mais. — Minha acompanhante está sedenta.
— Estou. — Decido não discutir e bebo a outra taça. — E com fome também.
Alexios toca minha coxa por cima do vestido, mas logo tira a mão.
— O jantar não deve demorar — repete sério e se vira para olhar o outro lado do salão.
Fico um tempo olhando para minhas pernas, permitindo a sensação de brasa que a mão dele deixou em minha coxa passar, chateada demais por reagir assim a ele e continuar sendo praticamente invisível.
Que porra é essa que está rolando?
Essa pergunta retórica fica martelando minha cabeça enquanto tento prestar atenção em qualquer coisa neste maldito salão lotado que não seja ela. Eu só posso estar com algum problema, só pode! Samara sempre foi minha amiga, quase minha irmã. Eu estar aqui com uma maldita ereção – pela segunda vez esta noite, frise-se – só pode ser loucura!
Preciso de um médico! A loucura congênita dos Karamanlis começou a se manifestar em mim. Sentir tesão por Samara é quase... incestuoso!
Pego a taça com champanhe e a termino em uma só golada a fim de aplacar o fogo que apenas um toque em sua coxa me causou.
A verdade é que eu não esperava encontrar-me com ela nesta noite. Vim por insistência do Millos e, claro, por sua maldita manipulação eficaz ao falar da Kyra e do suporte a ela em seu primeiro grande evento. Cheguei junto aos primeiros convidados e a encontrei correndo de um lado para o outro, “armando” uma surpresa para sua amiga e funcionária, a gostosa da Helena, que, por sinal, está namorando o Bernardo Novak, um amigo de longa data.
Quando finalmente ela terminou todos os preparativos, foi à cozinha falar com o tal chef francês que a estava deixando nervosa, conferiu tudo com as bandas, DJ e artistas circenses é que me deu atenção.
— Oi, Alexios. — Sorriu cansada. — O baile nem começou direito, e eu já estou de um lado para o outro. — Ela espiou a fila se formando na recepção do evento. — Gostou da decoração?
Seus olhos verdes, como os meus, brilharam ansiosos. Eu cheguei perto dela, beijei sua testa e falei baixinho:
— Está tudo perfeito, Kyra. Parabéns, estou muito orgulhoso!
Ela suspirou e depois se afastou.
— Claro que está! Não tinha dúvida alguma disso. — E, do nada, pegou-me pela mão e me arrastou em direção ao salão. — Vem ver!
— Kyra, eu ainda não troquei meu convite e...
— Ah, Alexios, vem ver!
A decoração estava esplêndida, embora eu soubesse que, com os efeitos de luz e os artistas executando seus números, iria ficar ainda mais incrível. A banda, no palco ao fundo do salão, já estava se posicionando, e alguns funcionários de Kyra ajeitavam os últimos detalhes das mesas, arranjos florais ou acendiam as velas.
— Perfeito! — elogiei-a novamente.
— Você ainda não viu nada! — E deu aquele sorriso que eu sei que fode com a cabeça de qualquer homem. É duro ter uma irmã como ela, linda e sexy, e ver os caras babando em cima e não poder socar a fuça de nenhum. — Ah, preciso de um favor.
Estava demorando!
— Kyki, estou de smoking, mas ainda não sei segurar uma bandeja — sacaneei.
— Não, seu idiota! — Ela me estapeou as costas. — É meu par desta noite! Não vou poder participar do baile como havia previsto, então preciso que você faça companhia...
— Ei, ei, pode parar! Não vou ficar pajeando nenhum marmanjo não!
Ela rolou os olhos.
— Não é marmanjo, idiota! Posso terminar de falar? — Assenti. — É a Samara. Convidei-a a vir comigo esta noite e não quero que fique sozinha.
Samara Esther Schneider!
Fiquei um tempo olhando para Kyra, tentando entender se ela tinha feito isso de propósito, para tentar nos reaproximar, afinal, sempre fomos um trio de amigos/irmãos, e, com a relação entre mim e Samara estremecida, Kyra devia estar um tanto confusa.
— Sem problema. — Sorri. — Você avisou a ela?
— E Samara atende aquele celular? — Ela bufou. — Você terá que esperá-la lá fora. Se importa?
— Não — fui sincero.
— Ótimo, agora vaza, porque ainda tenho coisas a fazer antes de abrirmos o salão. — E, do mesmo jeito que me arrastou, colocou-me para fora.
Fiquei um bom tempo esperando por Samara do lado de fora, o que foi surpreendente, pois ela sempre foi pontual. Vi o salão ser aberto, o baile começar, o discurso do doutor Andreas Villazza, o anúncio do jantar, e nada de a minha (ex?) melhor amiga chegar.
Estava olhando para um detalhe na construção do hotel, executada pela Novak Engenharia, quando meus olhos foram atraídos para o topo da escadaria. Não é exagero eu dizer que meus olhos foram atraídos, porque foi como se um ímã puxasse minha atenção para aquele ponto.
Engasguei-me com minha própria saliva ao ver Samara. Sim, ela estava linda, mas não foi o vestido branco ou o penteado elaborado que chamou minha atenção, foi ela.
Ela é linda e, por conta da nossa amizade e do receio que tinha de machucá-la, parei de perceber sua beleza e não notei a mulher que se tornou.
Fiquei parado, tomando nota de tudo, como se a estivesse vendo pela primeira vez, sentindo um incômodo por estar olhando-a com lascívia, afinal, era a Samara!
Balancei a cabeça, tentando voltar a pôr os neurônios no lugar, justificando para mim mesmo que isso aconteceu por causa dos anos distantes, mesmo sabendo que isso era pura enganação, pois ela não mudou nada nesses últimos anos.
O que aconteceu, então? Não sei, ainda estou confuso, tentando entender por que fiquei excitado com o perfume dela ou por que meu pau acordou apenas por eu a ter segurado pela cintura a fim de andar com ela até a mesa.
Tive que ficar parado, olhando para os malabares sem vê-los realmente, com cara de paisagem, fingindo que nada estava acontecendo. Eu não queria que ela soubesse que eu estava reagindo daquela forma a ela; certamente ficaria horrorizada. Sempre fomos como irmãos!
Tentei me conter, agradeci por Theodoros e sua companhia já estarem à mesa, fiquei um tempo distraído conversando com meu irmão mais velho, mesmo que isso fosse uma dor no saco. Não sou tão rancoroso quanto o Konstantinos sobre o Theo, apesar de concordar com meu irmão sem noção sobre ele nos ter abandonado nas mãos do louco Nikkós, mas o que Theodoros poderia fazer? Eu mesmo estive nessa situação quando pude sair de casa, mas não tinha como tirar Kyra dele, por isso fiquei.
O DJ que executa as músicas antes do jantar e da banda ao vivo coloca My Immortal, de Evanescence, e é impossível não olhar para Samara.
— Sua música preferida na adolescência — comento com ela.
Samara sorri e balança a cabeça, olhando os casais indo para a pista de dança.
— Tocou na minha formatura...
— Eu sei, eu queria dançar com você, mas você não parecia muito a fim, então fui beber.
Ela arregala os olhos e me encara como se não soubesse do que eu estou falando. Provavelmente nem se lembra, estava nervosa e ficava repetindo o caminho todo dentro do carro que a gente nem deveria ter ido, que era besteira.
Não somos mais adolescentes!
— Quer dançar? — inquiro impulsivamente e estendo a mão para ela.
Samara olha para minha mão por um tempo, mas aceita.
Porra, que loucura!
Ela pega minha mão, e minha vontade é de puxá-la para mim e beijar sua boca. Foda! Não consigo mais refrear meus desejos; sempre consegui com ela, por isso não entendo o que está acontecendo agora. Não é qualquer mulher aqui comigo, indo para a pista de dança para ficar de corpo colado no meu – porra! – é a Samara!
Samara!
Minha amiga de infância!
Quase uma irmã...
MERDA!
— Está tudo bem? — ela me pergunta, e eu tento relaxar, já que estou dançando como antigamente: a um palmo de distância dela.
— Sim, tudo. — Tento dar meu famoso sorriso, mas não rola, então pigarreio. — Estou com sede, calor... acho que é essa decoração toda.
— Pode ser. — Ela desvia os olhos de mim. — Quer voltar para a mesa?
Quero!
— Não, a não ser que você...
— Tudo bem.
Ela se solta de mim no exato momento em que a música muda para um instrumental baixo e as luzes se acendem.
— O jantar. — Aponto para os garçons em fila e os convidados voltando aos seus lugares. — Vamos?
Salvo pelo gongo do cozinheiro!, penso ao ajustar disfarçadamente minha calça para não andar de pau duro e assustar a todos por causa da claridade do salão.
Samara bebe mais uma taça de champanhe, e eu rio, já preocupado. Nunca a vi beber tanto! Sempre foi séria, careta, estudiosa e boa filha. Ela nunca fazia nada de errado, nunca decepcionou os pais, fazia tudo o que eles queriam... quer dizer, tudo menos se afastar de mim.
— Acho que já quero ir — ela comenta de repente. — Vou chamar um Uber...
Levanta-se um pouco tonta, e eu a amparo pela cintura.
— Você quase não comeu, e bebeu muito — falo, e ela levanta uma sobrancelha atrevida e irônica para mim. — Não estou dando lição de moral, mesmo porque não tenho nenhuma, apenas constatei um fato.
Ela ri.
— Você não tem nenhuma moral mesmo! — arrasta a última palavra. — Sempre foi um galinha, essa cara de santo aí só engana as outras!
Gargalho.
— Elas não ficavam enganadas por muito tempo, pode acreditar!
Samara funga, indignada, e fecha os olhos.
— Eu acho que realmente bebi demais.
Olho em volta; o salão já está praticamente vazio, apenas um ou outro convidado conversando em pequenos grupos. Theodoros se despediu, com Valentina grudada em seu pescoço, há mais de uma hora, e Kostas nem jantou conosco à mesa, provavelmente ficou no bar com sua acompanhante.
Inicialmente eu tinha pensando em esperar tudo terminar para acompanhar Kyra até em casa, mas, com Samara no estado em que se encontra e com tudo aqui ainda para ser desmontado, é melhor eu levar minha amiga para casa – aproveitando que moramos no mesmo prédio – e voltar mais tarde para acompanhar minha irmã.
Pego a pequena bolsa que ela trouxe e, ainda abraçado a ela, caminho para a saída.
— Alexios... tudo está rodando...
— Muito natural depois de todo aquele champanhe.
Ela suspira e joga a cabeça para trás.
— Você é um chato, sabia? Não posso entender o que todas aquelas mulheres viam em você!
— Imagino que não possa mesmo — respondo-lhe, sabendo que vai se irritar.
Samara sempre disse que eu respondia politicamente ou me evadia quando sentia que o assunto poderia ir para alguma direção que não me deixaria confortável. Ela tinha razão na maioria das vezes, mas, neste momento, só estou a fim de irritá-la.
— Você é um babaca, Alexios Angelos!
Opa! Falou meu nome todo! Rio de sua irritação bêbada, talvez por estar um tanto alto como ela, mas sóbrio o suficiente para carregá-la em segurança até a calçada.
Não vim de moto ou carro sozinho exatamente por saber que iria beber – principalmente para aguentar sozinho a companhia dos meus irmãos à mesa –, porém previ que a saída do baile estaria um inferno e que seria difícil conseguir um táxi ou um carro de aplicativo que estivesse por perto, por isso deixei o Cris, que me trouxe, de sobreaviso no estacionamento.
Mando mensagem para ele e espero até meu carro aparecer. Abro a porta de trás e coloco sobre o banco uma Samara parcialmente adormecida por cachaça francesa.
— Essa foi nocaute! — Cris ri quando eu entro. — Para onde?
— Para o Castellani. — Ele dá um sorrisinho malicioso e pisca. — Ela é minha vizinha, Cris, sossega.
— Falou, chefinho.
— Para de merda e dirige.
Ele tenta sair da entrada do hotel, mas é praticamente impossível com o número de carros que também tentam deixar o local. Olho para trás, confiro que Samara está mesmo apagada e fecho os olhos, recostando-me contra o assento do carona.
— Foi uma festança, hein? — Cris volta a falar. — Só vi entrar filé, pena que a maioria estava acompanhada.
— Geralmente isso não é problema — comento, mordaz. — Já comi muita mulher no banheiro de recepções como essa enquanto o marido conversava com os amigos e falava de negócios.
Cris gargalha.
— Você nunca valeu nada, Lex!
Não retruco o apelido ridículo com que ele me chama e me faz parecer o vilão do Homem de Aço. É pura perda de tempo ralhar com Cristino, então simplesmente ignoro, cansado, meio zoado e com tesão frustrado.
Ele e eu nos conhecemos há alguns anos, quando visitei um dos prédios da Karamanlis que foram invadidos por movimentos pró-moradias. O homem era motorista de profissão, com anotação em sua carteira de trabalho em várias empresas, que juntou todo o dinheiro que tinha, investiu em um carro e um ponto de táxi, mas foi engolido e enxotado pelas grandes cooperativas.
Assim, quando nos conhecemos, ele estava sem casa, sem carro, sem emprego e com uma enorme dívida, fazendo bicos aqui e ali. Ajudei-o primeiro a conseguir emprego, depois por fim saiu da invasão, e, nesse ínterim, nos tornamos amigos.
Ano passado, quando a filha dele nasceu, quis que eu a apadrinhasse, mas educadamente declinei, explicando que, mesmo honrado, não poderia aceitar, pois sou ateu, e o apadrinhamento de uma criança tem a ver com questões religiosas, tem um sentido específico, e eu não seria a pessoa certa para isso. Ele entendeu, mas a garotinha já me chama de Didi (seu jeito fofo de bebê de chamar seu dindo, mesmo que oficialmente eu não o seja).
Acho que cochilei também até o Castellani, pois, quando me dei conta, já estávamos na garagem. Cris me perguntou se eu queria ajuda com Samara, mas agradeci e o mandei para casa. Ele não trabalha como meu motorista diariamente, mas sim na Karamanlis, transportando quem quer que precise fazer serviços externos. Contudo, toda vez que preciso, chamo-o para ganhar um extra.
Há muito parei de combinar bebida e direção, não por mim, mas por medo de acontecer algum acidente e eu acabar prejudicando outras pessoas.
Chamo o elevador, e somente dentro dele é que a bela adormecida parece voltar a si.
— Alexios... — Samara olha em volta. — Este é o elevador do Castellani?
— Parece que sim — respondo-lhe divertido.
Samara bufa.
— Só desmaiada é que eu aceitaria vir com você na direção nesse estado em que se encontra.
— Estou melhor que você. — Ela se encosta contra o espelho, olhos fechados e um enorme sorriso bêbado no rosto. — Além do mais, viemos com motorista.
— Bom... — Samara fala devagar e lambe os lábios como se estivessem secos. O efeito no meu pau é instantâneo. Sinto meu corpo inteiro acender, minhas mãos formigam de vontade de tocá-la. Sua pele parece brilhar, atraindo-me como uma chama atrai uma mariposa.
Tento me afastar, pensar em outra coisa, mas o espaço reduzido do elevador não ajuda. As paredes parecem se fechar cada vez mais, aproximando-me de Samara, apertando-me contra ela, espremendo meu corpo...
— Alexios... — ela geme meu nome, e eu me espremo mais, fazendo-a grudar contra o espelho. O seu perfume inebria meus pensamentos, a pele, tão quente e macia que a sinto mesmo por baixo do vestido, me enlouquece. Preciso provar o sabor de sua boca, conferir se o hálito quente e um tanto etílico se confirma em sua saliva.
Sim!
Agarro-a com mais força, minha ereção pressionada contra sua barriga, minha boca correndo em seu pescoço. Tudo parece congelar à nossa volta, não existe mais tempo e nem espaço, apenas o vácuo e nós dois dentro dele, em chamas.
Lábios nos lábios. Meus dedos esfregam sua nuca, a pele arrepia, os pelos eriçam, meu corpo treme. É a viagem mais louca que eu já fiz sem ser através de uma substância química entorpecente... não! É química ainda, é uma droga viciante, é tesão!
Devoro sua boca sem nenhum pudor ou impedimento. Ela me acolhe, abre-a para minha exploração, prende meus lábios entre seus dentes e morde com força, despertando com a dor ainda mais meu desejo.
Enfio os dedos no meio do seu penteado, seguro o cabelo com força, e ela retribui o desespero cravando as unhas nos meus ombros.
Estou pronto para fodê-la, minha cabeça já trabalha uma forma de abrir o zíper da calça social, sacar meu pau e buscar o caminho de sua boceta, que, a julgar pela forma com que ela come a minha boca, já está molhada e quente.
Um pigarrear me faz sobressaltar, e eu me afasto dela o mais rápido possível. Um casal de idosos também vestido em black tie entra no elevador no saguão do prédio, sinal de que o elevador subiu e desceu de novo enquanto nós dois quase nos comíamos dentro dele.
Olho para Samara, mas ela não parece constrangida ou assustada, apenas passa a mão pelos lábios e me encara, sua expressão cheia de perguntas e curiosidade.
Caralho, o que eu estou fazendo?! É a Samara, minha amiga, aquela que eu sempre quis manter longe desse meu lado sem vergonha! Puta que pariu!
Espero o casal descer em seu andar e, assim que as portas se fecham, respiro fundo.
— Desculpa, Samara, acho que estou mais bêbado do que imaginei a princípio. — Não tenho como olhá-la, dividido entre o constrangimento e o desejo ainda pulsando na minha calça. — Somos amigos, eu não deveria atacar você dessa forma, me des...
— Para! — sua voz soa magoada, e eu tenho vontade de socar a cabeça contra o espelho. — Não precisa dizer mais...
— Eu prometo que isso não voltará a acontecer. — Finalmente a encaro e fico fodido ao ver sua expressão confusa. Ela parece não ter gostado do que aconteceu, deve estar achando que eu sou um filho da puta aproveitador. — Você é minha amiga, Samara, mesmo depois dessa distância, eu ainda a vejo como se fosse minha irmã e...
— Chega! — ela grita, e as portas do elevador se abrem no seu andar. — Você tem razão, foi um erro e não deve voltar a acontecer!
Ouvir isso é como um balde de água fria, mesmo reconhecendo que é o certo.
— Eu não quero que isso afete novamente a amizade que nós temos e...
Samara sai pisando duro do elevador sem olhar para trás. Minha vontade é de correr atrás dela, voltar a encostá-la em alguma parede e beijá-la novamente até que perca a razão ou eu alivie esse tesão indesejável que estou sentindo.
As portas se fecham, e eu, ao invés de apertar o botão do meu andar, mando o elevador de volta para o térreo e chamo um Uber.
Preciso trepar!
— Essa sua cara de cachorro cagando na chuva é ainda ressaca do baile? — Kyra me pergunta, sentando-se ao meu lado na rede que ela tem em sua varanda. — Quer café?
Resmungo ainda com os olhos fechados:
— Quero paz!
Ela ri.
— Isso está em falta por aqui hoje, passa na semana que vem... — Encaro-a, puto com a piadinha. — O que aconteceu?
Não respondo, meus olhos fixos no topo do prédio do outro lado do parque. Balanço a cabeça, decidindo ser mais covarde do que tenho sido desde a madrugada do dia primeiro de janeiro e fecho os olhos para tentar nem pensar na confusão que arrumei.
— Você não deveria estar trabalhando hoje? Ou eu? — Kyra volta a me importunar, mas continuo mudo. — Mano, você continua o mesmo chato da porra de sempre! Fica aí com essa cara de Maria do Bairro e não abre a porcaria da boca para me contar o que diabos você fez dessa vez!
— Obrigado pela confiança em mim! — retruco irônico.
— Ah, boquinha para ser mal-educado comigo você tem! — Ela me cutuca o ombro, mas depois suspira e deita a cabeça nele. — Você sabe que faz merda, mas que eu estou aqui, disposta a te ouvir e te ajudar a limpar os cagaços. Somos uma dupla, você e eu, sempre fomos e sempre seremos.
— Costumávamos ser um trio... — assim que eu comento, imediatamente me arrependo, pois Kyra salta da rede – quase me derrubando no percurso – e emite um ensurdecedor: “ahá!”.
— Eu sabia que tinha acontecido algo na madrugada do baile! Samara está estranha, esquiva, e isso não é o natural dela. Que merda você aprontou? — Continuo ignorando-a, sem nenhuma disposição para contar sobre o beijo, o amasso e a confusão que isso criou em mim. — Alexios! — Minha irmã começa a pirar por causa do meu silêncio, mas, se me conhece um pouco, já deve imaginar que eu não irei abrir a boca para falar desse assunto. — Está certo! Você e sua maldita boca de siri. — Volta a se sentar, mas dessa vez não se deita em mim. — Alex, ela é nossa amiga, não a magoe, ok? Samara merece ser feliz, e esses anos que passou na Espanha foram ótimos para ela. Eu morria de saudades, mas estava feliz por ela estar realizada trabalhando com o que ama fazer, com um puta gato espanhol lambendo seus pés e — abro os olhos, mas Kyra não se freia — querendo formar família com ela.
Sento-me bruscamente, e Kyra balança.
— Como assim formar família?
— Ele a pediu em casamento. — Surpreendo-me, mas tento não reagir, não demonstrar. — Deu-lhe um lindíssimo e caro anel de diamante e está esperando pelo retorno dela.
Essa informação, apesar de ter me pegado de surpresa, não é nenhuma novidade. Sempre achei que algum homem de sorte iria conquistar o coração da minha amiga de infância e tê-la para sempre. Samara é a pessoa mais leal que eu conheço, mais incrível, merece muito ser feliz ao lado de alguém que valha a pena.
— Ela não estava usando anel... — penso em voz alta.
— Ainda não falou com os pais dela... — Kyra olha fundo nos meus olhos, procurando qualquer reação minha, mas sei que não irá encontrar nenhuma. Há muito aprendi a sentir sem demonstrar ou a mostrar apenas o que eu quero que os outros vejam. — Vocês não conversaram ontem?
— Acho que ainda não conseguimos estreitar os laços de amizade novamente.
— Hum... — Ela olha para seu relógio no pulso e suspira. — Preciso ir para o trabalho, vai ficar aqui? — Assinto. — Eu tenho a sensação de que você está se escondendo, só não faço ideia do quê.
Ela entra no apartamento, e novamente olho para o alto do Castellani, do outro lado do parque. Daqui do prédio onde ela mora, consigo ver o heliponto no telhado, algumas janelas da cobertura onde Cadu mora, o andar debaixo, onde Bernardo Novak reside, e uma pontinha da minha varanda. O apartamento de Samara fica uns andares abaixo do meu, então não tenho como vê-lo, mas somente por saber que ela está lá dentro, sinto vontade de ficar aqui, bem longe.
Não me entendam mal, não estou fazendo isso porque não quero que ela se aproxime de mim, pelo contrário, estou aqui, exilado como um covarde no apartamento da minha irmã mais nova, porque, se pisar no Castellani, sei que não conseguirei me manter distante dela.
Mesmo depois da maratona de sexo que fiz com uma mulher com quem já havia saído antes das festas de final de ano, não tenho segurança de estar no mesmo ambiente que Samara e me controlar para não a pressionar contra alguma parede e fodê-la sem ao menos dizer um cumprimento.
Definitivamente não vou fazer isso, não com ela!
Muito menos depois de saber que há alguém que a merece, que está à altura dela, esperando sua volta.
Rio de mim ao pensar que estou aqui, evitando-a, quando na verdade ela é quem deve estar querendo ficar a quilômetros de mim. Talvez esteja até indignada e ofendida pelo modo com que a toquei e beijei sem nenhum aviso, como se fôssemos um casal qualquer que se encontrou na balada para trepar, e não duas pessoas que são amigas desde que se entendem por gente.
Não entendo por que perdi o controle do tesão que sempre reprimi, mas me conheço o suficiente para saber que ele não passou. Raramente sinto aquela química com alguém. Era como se meu corpo estivesse sendo atraído, como se algo nela estivesse provocando reações em mim que eu não conseguia controlar. Foi animal, carnal, a famosa atração de pele que muita gente procura, mas pouca tem.
E eu tive justamente com minha melhor amiga!
Kyra volta a aparecer no meu campo de visão, agora com os belíssimos cabelos escuros, longos e fartos soltos, o rosto maquiado e uma roupa de deixar qualquer homem lobotomizado.
— Esse bode aí está foda para passar, hein? — comenta antes de se abaixar para pegar um guarda-chuva no móvel ao lado da rede. — Têm umas sobrinhas do baile na geladeira, cerveja – por favor, não tome todas, mas se tomar, as reponha –, e meu chuveiro tem muita pressão e água fresca. — Pisca para mim, e eu franzo a testa, sem entender. — Você está meio rançoso.
— Vai se ferrar, Kyra — ralho com ela, mas rio.
Ela se aproxima e beija minha testa, e isso, sim, arranca um sorriso sincero meu. Gosto que ela confie em mim o suficiente para me tocar, para recostar-se no meu ombro ou mesmo ficar abraçada, pois sei que ela não é assim com todos, principalmente com homens em geral.
— Fica bem e ouça meu conselho... — Ela anda até a porta antes de complementar: — Tome um banho, você cheira a álcool e a perfume vagabundo.
Levanto o dedo do meio para ela e a escuto ir gargalhando apartamento adentro até a porta de entrada bater. É, eu bebi bastante, sim, devo estar exalando álcool pelos poros, e o perfume barato se impregnou em minha roupa ontem, quando a recoloquei depois de mais de 12 horas nu, e a mulher me abraçou toda perfumada.
Saí do apartamento dela e vim direto para o da Kyra, torcendo para que minha irmã estivesse em casa e sozinha a fim de que eu pudesse cair aqui nesta rede onde estou e tentar pôr a cabeça certa no controle do meu corpo.
O telefone fixo toca alto, afastando meus pensamentos, e aproveito para tomar o banho aconselhado pela minha irmã viciada em limpeza. Entro na sala desabotoando a camisa branca que usei com o smoking – pois é, ainda estou com a mesma roupa do Ano Novo em pleno segundo dia do ano – e noto que não faço ideia de onde estão o paletó e a gravata-borboleta.
A primeira foto que vejo ao entrar no quarto de Kyra é uma que tiramos juntos – Samara, ela e eu – na formatura da minha irmã. Eu fui o par dela, então estava de smoking, e as duas, de vestido longo, maquiagem e penteado. Caminho até o aparador e pego o porta-retratos, focando em Samara e me perguntando como eu conseguia me manter longe do mulherão ao meu lado. Era uma beleza diferente da minha irmã, Samara tem o olhar doce, sorriso largo, nenhum mistério, seu rosto expressa suas emoções, sua sinceridade.
CONTINUA
Sua pergunta me deixa paralisada, completamente sem condições para lhe responder. Por que ele me procuraria?! Porque somos amigos desde que nasci? Porque estive ao lado dele em todos os momentos? Porque ele tomou um porre, apareceu lá em casa, chorou no meu ombro, beijou-me e depois fingiu que nada tinha acontecido?
Respiro fundo para controlar o volume da voz e não gritar que ele é um idiota, mas, antes que eu abra a boca, Kyra aparece esbaforida com um telefone na mão.
— Ei, Malinha, você está com seu telefone na bolsa? — Alexios olha para a irmã, puto por ela estar nos interrompendo, e eu franzo a testa, sem entender a pergunta dela. — Seu celular! — Ela bufa... — Seu irmão acaba de ligar para o meu telefone. — E balança o aparelho.
Arregalo os olhos, meu coração dispara, e logo penso em mamãe, que vi apenas um pouco ontem, quando fui buscar o Godofredo. Pego o telefone e confiro as ligações perdidas. Noto Alexios se afastando, mas não me importo; ele continua o mesmo egoísta de sempre.
Samara Schneider está de volta!
Mastigo mais um pedaço do pernil que Kyra serviu como opção de carne na ceia de Natal e não consigo deixar de pensar na volta daquela que foi minha grande amiga e companheira.
Até hoje não entendo o que aconteceu para que ela tomasse a decisão de ir estudar na Espanha sem falar nada comigo. Claro, eu sabia que tinha a possibilidade, afinal, havia anos o pai dela pressionava por isso, para ela ir estudar arquitetura clássica na terra de Gaudí14. No entanto, para minha total surpresa, em vez de ir morar em Barcelona, Samara foi para Madri.
Eu, que até então me considerava seu melhor amigo, só fiquei sabendo desses detalhes todos porque Kyra me contou depois que fui atrás dela para saber o paradeiro de Samara.
Pego a taça com água para ajudar a engolir a comida, pois estou com um aperto na garganta desde que a vi. Eu tinha acabado de sair da sala de reuniões de Kyra depois de um ménage espetacular com Valéria e Priscila, mais animado para encarar a noite especial, sem imaginar a grande surpresa que encontraria no salão e que quase me fez tropeçar em meus próprios pés.
Assim que meus olhos bateram nela, assustei-me, pois a danada da Kyra não havia me contado que Samara tinha voltado. Tentei um sorriso e uma aproximação amigável, como se ela não tivesse me abandonado por longos três anos sem nenhuma notícia. Ela está diferente, ainda mais bonita do que eu me lembro, mas tentei não reparar muito e ser o amigo de sempre.
Nada disso adiantou, pois, ao que parece, Samara desejou que eu corresse atrás dela, que a procurasse e reestabelecesse contato. Como eu poderia imaginar algo assim? Não sou adivinho! Ela some sem nenhum motivo e ainda se sente no direito de ficar puta por eu não ter tentado contato?
Quem entende a cabeça das mulheres?!
— Sua amiga foi embora cedo — Millos comenta ao meu lado. — Será que houve algum problema com a mãe dela?
Olho para meu primo, sentado ao meu lado à mesa, e ele entende meu total desconhecimento do assunto.
— A mãe dela, dona Ana Cohen, está em tratamento contra um linfoma. — Millos bebe mais chope. — Você não sabe nada sobre a vida da sua amiga?
— E você? Como sabe?
O filho da puta apenas dá de ombros, evasivo como sempre, adorando estar sempre um passo à frente de todos. Millos é um sujeito estranho. É o único que consegue interagir com todos nós sem tomar partido e sem revelar nada da vida pessoal de ninguém, nem mesmo da sua. Somos amigos, nos damos bem, mas eu sei pouco sobre ele, sobre suas atividades, e o máximo que conheço de sua vida pessoal é que tem um passado fodido como o meu, frequenta alguns clubes de sexo, tem uma amiga que por sinal é uma gostosa do caralho – mas nunca me deu mole, infelizmente – e só.
Como profissional, o homem é uma verdadeira coruja! Quieto, observador, parece que consegue olhar em 360 graus, além de ser um caçador de informações inigualável. Não há nada que passe despercebido por ele, e o que expõe ou o que fala, tenho certeza de que é o mínimo do que sabe. Por isso, todo cuidado é pouco quando o assunto é Millos Karamanlis, porque o desgraçado é um manipulador de mão cheia!
— Eu não sabia que dona Ana está doente, não vejo os pais de Samara há anos — contesto-o. — Espero que nada grave tenha ocorrido.
— Não vai ligar para saber? — Millos volta a questionar.
Franzo as sobrancelhas, encarando-o, tentando entender o motivo pelo qual ele está tão interessado no assunto.
— Não — respondo seco e volto a comer, mesmo com o questionamento dele na cabeça. Para mim o assunto acabou! Samara já demonstrou que não quer papo comigo por algum motivo, e, mesmo chateado com isso, devo respeitar a decisão dela. Millos é um manipulador e sabe que esse é um assunto que me atinge diretamente, por isso tocou nele.
Não preciso ligar para Samara, como não liguei para ela durante todo o tempo em que esteve fora, mas isso não quer dizer que eu não queira saber o que está acontecendo. Kyra sempre foi minha fonte de informações sobre ela e, caso tenha que ser assim, continuará sendo.
Termino minha refeição, fico mais algum tempo com Kyra e seus convidados, brindo ao sucesso do negócio dela e logo depois vou embora. Tinha pretensão de ir para casa, mas, no meio do caminho, uma mulher com quem eu já saí algumas vezes me manda uma mensagem dizendo que está na cidade, e vou encontrá-la.
Dia 26 de dezembro, pior dia de trabalho do mundo, certamente! Rio ao passar por mais dois engenheiros com cara de ressaca ou, talvez, de quem comeu demais e agora passa mal do estômago.
— Melhor colocar a lixeira perto! — passo, sacaneando meu colega de trabalho, Pedro, engenheiro químico. — Se emporcalhar a sala, vai ter que limpar você mesmo.
— Porra, Alexios, fala mais baixo! — Ele põe a mão na cabeça.
Gargalho e me sento à minha mesa, lotada de projetos, planilhas e minha coleção de lápis. É, eu coleciono lápis! Cada um tem a coleção que lhe cabe, não é?
Ligo o computador, olho para meu caderno de tarefas e arregalo os olhos ao ver um nome que eu não imaginava rever anotado lá – por outra pessoa.
— Ethernium? — questiono olhando para o Pedro.
— Sim! Acabamos de saber, mas o CEO lá da Karamanlis vai querer conversar com você, certamente.
Bufo ao pensar em subir até o Olimpo para conversar com Theodoros, sem esquecer as discussões que tivemos nas últimas semanas por conta de seu egocentrismo e insensibilidade com os funcionários da casa.
Sua mania de pensar que é Deus, inabalável, inatingível e perfeito me irrita, principalmente porque sei que ele não é nada disso, apenas a porra de um filhinho de vovô mimado, que sempre achou que podia fazer qualquer coisa que quisesse sem pensar nas consequências, que o velho grego limparia suas cagadas.
Admito, o velhote sempre fez tudo para seu neto querido. Entretanto, não pôde limpar a merda que Theodoros deixou para trás, apenas jogou-a para debaixo do tapete, limpou a consciência do seu netinho querido, que seguiu a vida como se nada tivesse feito e deixou o resto se fodendo sem se importar o mínimo.
Theo é arrogante, e eu não tenho saco para lidar com gente assim.
Ouço passos, um poc-poc característico de saltos, e em seguida a voz de Lia, outra engenheira que trabalha na minha equipe direta.
— Bom dia! — sua voz soa animada. — Ah... sem Papai Noel de chocolate este ano! — ela resmunga, e eu a vejo procurando sobre sua mesa. — Poxa, Alex, você já foi mais generoso!
— Eu?! — Começo a rir. — Você realmente me imagina comprando e colocando chocolate em formato de Papai Noel nas mesas dos outros? — Ela faz careta e nega. — Eu achava que era você!
— Por quê? Só porque sou mulher?
Rolo os olhos.
— Não, porra, porque você é viciada em chocolate!
— Ele está certo, Lia! — Pedro se mete na conversa em minha defesa. — Eu também achava que era você por causa disso.
Ela se senta frustrada por não ter encontrado o presente do “Papai Noel” misterioso da Karamanlis.
— Bom, não sou eu, e eu contava com isso! Não falha por anos! — Olha em volta para as outras estações de trabalho, ainda vazias sem os profissionais. — Ninguém recebeu?
Nego, e Pedro faz o mesmo.
— Estranho...
— Coisas estranhas têm acontecido por aqui — digo e lhe estendo meu caderno com a anotação da Ethernium.
— O quê? De novo? — Ela geme. — Esses caras da Ethernium são uns malas! Sério, Alexios, eu não vou aguentar gracinhas pra o meu lado de novo não!
— Eu disse que você devia ter respondido a ele. — Dou de ombros. — Mas agora sabe que tem meu total apoio! Se alguém da equipe deles fizer piadas machistas de novo, responda.
— Quem é o machista? Que vou com você dar uma surra nele. — Eliane chega já mostrando as garras – que garras! Minhas costas sofreram com elas – e se senta em sua estação. — Bom dia, feliz Natal, foi tudo ótimo! Agora, silêncio, porque ainda estou agarrada a um cálculo estrutural que não tem me deixado dormir. Obrigada. De nada.
Pedro começa a rir, e Lia só balança a cabeça. Eliane é assim, direta e sem rodeios, por isso mesmo achei-a ideal para o trabalho pelo qual é responsável. Nós nos conhecemos em uma balada, transamos, depois voltamos a nos encontrar na entrevista dela aqui na K-Eng tempos depois. Nunca mais voltamos a trepar, mas conseguimos construir uma relação de trabalho quase perfeita. Sei que posso contar com ela para qualquer coisa aqui dentro.
Tenho mais duas pessoas na minha equipe: Evandro e Michel, mas os dois estão de férias e ainda não retornaram. Não é normal dois membros da mesma equipe saírem em férias juntos, mas, como eles são casados, a lei lhes garante esse direito.
A K-Eng não é formada apenas pela minha equipe de engenheiros em suas especialidades, a verdade é que cada um aqui gere suas próprias divisões. O Pedro, por exemplo, é engenheiro químico, e na divisão dele estão químicos industriais, técnicos em química e outros engenheiros dessa área. Já a Lia é engenheira ambiental, e, dentro de sua divisão, há biólogos, gestores ambientais e engenheiros sanitaristas. A Eliana trabalha com projetos, e ela coordena outros engenheiros, arquitetos e projetistas. O Michel faz toda a parte de planilhas e medições, e o Evandro é responsável pelas operações, é quem lida com empreiteiros, clientes e atua também como fiscalizador de obras.
Além do corpo técnico da K-Eng, a empresa, que é uma subsidiária da Karamanlis, ainda tem setores administrativos e financeiros, e eu, como CEO dessa bagaça aqui, sou quem comanda essas áreas.
O único setor que dividimos com a Karamanlis, infelizmente, é o jurídico, por isso aturo muito a prepotência inglesa do Konstantinos e seu humor ácido. Geralmente não tenho paciência com ele, zoo com sua cara ou apenas o ignoro. Ele não é bem quisto por ninguém da minha equipe, principalmente pelas mulheres.
— Por falar em machismo... — Lia volta a falar. — Será que a Kika não vai voltar mais não?
Dou uma risada por ela ter entrado no assunto justamente quando eu pensava no meu irmão machista.
— Está um silêncio total na Karamanlis — Eliana se pronuncia. — Dá até medo de andar pelos corredores, clima pesadão!
— A Kika era incrível, né? Gata, alto-astral, competente — Pedro lamenta. — Uma pena que tenha perdido a cabeça e tenha sido mandada embora...
— Opa! — Eliana o interrompe. — Ela se demitiu!
— Enfim, está desempregada depois de ter ganhado uma puta promoção para a gerência.
— Eu a preferia à Malu Ruschel. — Lia treme toda. — Aquela mulher congelava até meu sangue só de estar perto dela.
Definitivamente, não o meu!, penso ao me lembrar de Malu Ruschel, a ex-gerente dos hunters da Karamanlis. Malu era bonita, tinha classe e aquele seu jeito focado me enchia de tesão. Uma pena ter ido morar no fim do mundo!
Já com a Kika, nunca senti essa atração, talvez por sempre tê-la achado tão receptiva, maravilhosa com seu jeito espontâneo, que logo gostei dela como se fosse uma amiga de longa data. Tenho muito apreço por ela e lamento que tenha saído da empresa.
Os engenheiros começam a conversar, mas o assunto não me interessa o mínimo, então coloco meus fones de ouvido – a voz forte e rasgada da Janis Joplin soa bem alta – e volto a mexer no projeto em que estava trabalhando.
— Ei, moleque! — Millos me chama assim que para sua moto. — Você não sabe curtir um passeio, puta que pariu!
Ele desce da motocicleta, tira o capacete e a jaqueta e se senta à mesa do bar ao meu lado. Bebo minha água sem responder, porque a única coisa que eu poderia lhe falar é que não sou um velho para ficar andando nessas motos de colecionador há 80 km por hora.
Estou aqui esperando-o há pelo menos 20 minutos, e isso porque saímos juntos de São Paulo em direção ao Guarujá, em uma viagem não programada e cujo motivo, sinceramente, nem entendi. Ele apenas apareceu lá na K-Eng e me chamou para andar de moto com ele, e eu topei.
— Qual é o propósito disso? — resolvo perguntar sem rodeios.
— Do quê?
Millos agradece à garçonete que lhe entrega um coco verde com um canudo e nem percebe a moça comendo-o com os olhos (ou talvez só esteja assustada com suas tatuagens, que cobrem os braços, pescoço e peito).
— Desse “passeio”. A gente se viu há alguns dias na ceia da Kyra, e você não comentou nada sobre isso.
— Nada de mais! — Ele bebe a água de coco. — Vou viajar no Ano Novo, ficar um tempo fora e queria passar um tempo contigo. Já jantei com seus irmãos, mas como você é todo amalucado para comer, achei que uma volta de moto iria cair bem, mas esqueci que você é louco nisso também.
— Você está ficando velho, Millos, sinto lhe informar — debocho. — Acha mesmo que, com essa potência italiana nas mãos, eu iria ficar molengando contigo na estrada?
— Não é molengar, é curtir a viagem, a paisagem...
— Ah, não, você curte essas coisas paradas, não eu. Meditação, ioga, essas coisas todas aí que você faz, tô fora! Não sei ir devagar, Millos, em nada!
— Deveria... talvez assim conseguisse agradar às mulheres. — Ele pisca e tenta disfarçar a troça bebendo mais de sua água.
Eu gargalho.
— Pode ter certeza, elas não reclamam da minha rapidez. Não basta saber correr, tem que saber tirar o máximo proveito de uma máquina, fazê-la dar tudo de si, e isso eu faço.
— Está falando das motos ou das mulheres?
— Tem diferença?
Ele ri novamente.
— Você é um moleque, não sabe nada ainda!
— Falou aquele que nomeia suas motos com nomes femininos!
Nós dois rimos juntos, e o clima fica descontraído.
A verdade é que ele e eu temos muito em comum. Ambos adoramos motocicletas, rock e carne. Apesar de sua onda “zen budista”, Millos nunca conseguiu se livrar da proteína animal e das comidas pesadas que adora preparar para acompanhar suas cervejas artesanais.
Ah, esse é outro ponto em comum: adoramos cerveja! Ele fabrica, eu apenas bebo, mas tenho tanto conhecimento quanto ele, e esse é um dos pontos sobre o que mais conversamos quando estamos juntos, geralmente comendo alguma carne e ouvindo rock.
Raramente saímos juntos de moto, exatamente por ele fazer o estilo tiozão que gosta de andar de Harley, apreciando paisagens, e eu e minha Ducati Multistrada 1260 não temos saco para andar quase parando não.
Embora eu reconheça que tenho que agradecer a esse tiozão por ter minha moto dos sonhos, a que uso para correr nas competições. A Ducati só disponibilizou três unidades da 1299 Superleggera para venda no Brasil, há quase dois anos, e um dos amigos do Millos foi quem comprou uma delas, e, quando ele decidiu vendê-la, meu primo prontamente me avisou, e não pensei duas vezes.
Eu gosto das italianas mais do que das americanas ou japonesas, pelo menos para as motos; não sou tão seletivo assim com mulheres.
— Baile dos Villazzas...
— Ah, Millos, não fode com esse assunto de novo! — reclamo, entendendo agora o motivo do encontro.
— Alexios, preciso de você lá.
Rio.
— Mano, aqueles dois não são crianças, e, muito menos, sou a babá deles! Eles não precisam que eu vá para manter a ordem e o bom nome da...
— Kyra me mostrou o projeto do baile, ela parece bem animada com sua primeira grande produção sem a intervenção dos Karamanlis.
Porra! Ele vai pegar pesado!
— Você é muito filho da puta, sabia?
Millos dá de ombros e bebe mais água.
— Acho que vocês deveriam ir para apoiá-la, acima de todos, você! Será importante para ela, além disso... acho que ela está sem acompanhante, porque deu com o pé na bunda do último idiota que estava comendo.
— Porra, Millos! — Xingo-o. — É a minha irmã, porra!
— E o quê? Só por isso ela não trepa?
— Vai se foder! — Levanto-me da mesa puto e pego o capacete.
— Alexios... — ele me chama, mas não dou atenção, já montando na moto para ir o mais longe possível dele.
Antes que vocês me julguem como machista ou irmão ciumento, adianto logo que não se trata disso. Cada um lida com a merda dentro de si de um jeito, e esse é o jeito da minha irmã de lidar com seu passado. Respeito isso, mas não quer dizer que não me doa ou mesmo que eu não me sinta responsável por ela ser assim.
Eu gostaria que as coisas fossem diferentes, esforcei-me o máximo que pude para que ela fosse menos fodida do que todos nós, mas, a cada novo relacionamento seu destruído, sinto-me um fracassado, o que me dói profundamente.
Piloto rápido, passando pelos radares sem me importar com as multas, sentindo o vento forte bater em mim como se pudesse deixar todas as marcas do meu corpo e da minha alma para trás. Contudo, não posso. Ele fodeu a minha vida várias vezes, não só com as coisas que fez contra mim, mas principalmente por eu ver que também destruiu minha irmã.
— Como ela está, Dani? — pergunto ao meu irmão assim que ele entra na cozinha da casa dos meus pais, onde tomo meu desjejum com a Cida.
— Dormiu bem. — Ele beija minha cabeça. — Mas foi um susto essa febre alta assim do nada.
Ele se senta, visivelmente cansado, e Cida logo lhe serve uma xícara de café. Acostumados demais a dividir as refeições com Cida desde que nascemos, sempre tomamos nosso café juntos. Ela está em nossa casa há tanto tempo que não sei como seria minha vida sem sua presença, e certamente Daniel sente o mesmo.
Minha mãe, Ana Cohen, sempre foi muito ocupada na direção do sistema de ensino criado pelos meus avós, franqueado e distribuído por colégios do Brasil todo. Já meu pai, Benjamin, vem de uma longa linhagem de comerciantes e industriais, como bem acentua nosso sobrenome, que é uma derivação da profissão de algum ascendente que foi alfaiate.
Os Schneiders possuem lojas, fábricas ou empresas que prestam serviços, como era o nosso caso. Meu avô não tinha formação quando fundou sua primeira fábrica de móveis, porém eram um marceneiro muito habilidoso, e meu pai aprendeu com ele. Os negócios iam bem, então papai foi estudar arquitetura e, por fim, design, elevando o nível dos negócios familiares, fazendo dos móveis com nosso sobrenome sinônimos de classe e riqueza.
Há 10 anos meu irmão está à frente dos negócios, desde que papai teve seu primeiro infarto – ele já teve outro e fez duas pontes de safena. Daniel é um administrador maravilhoso, fechou com grandes empresas, e hoje os móveis Schneider não enfeitam mais as coberturas e mansões luxuosas de São Paulo, tão somente redes enormes de hospitais, clínicas, lojas de alto luxo e restaurantes em todo o país.
Meu irmão é incrível! Nós dois somos muito amigos, sempre fomos. O único ponto tenso entre nós era Alexios Karamanlis. Daniel é 10 anos mais velho que eu, um quarentão, como eu costumo provocá-lo, e sempre achou Alex uma péssima companhia. Bom, ele realmente era, mas não para mim. Eu sabia das loucuras que Alexios aprontava, seu envolvimento com drogas, farras, lutas valendo dinheiro e rachas pela cidade. Ele não foi um adolescente fácil, mas sempre me tratou como se ainda conservasse o menino que eu conheci. Sempre me deu conselhos para ficar longe de tudo aquilo que ele mesmo fazia, nossa amizade sempre foi separada das outras companhias dele.
Ainda assim, Dani nunca gostou de Alexios, em compensação, tornou-se um dos grandes amigos de Millos Karamanlis, primo do Alex, mesmo que eu não consiga entender o que, de fato, o executivo tatuado e meu irmão tenham em comum.
— Desculpe-me por tê-la tirado da festa da Kyra — meu irmão volta a falar, afastando-me dos pensamentos. — Eu liguei para o doutor Henrique e já ia pedir uma ambulância, quando fiquei com medo de acontecer algo e você não estar aqui.
Pego sua mão.
— Eu sei. Foi um susto!
Retornei as ligações dele assim que Kyra me alertou, e, quando Dani atendeu, o doutor já havia chegado e ministrado medicamentos. O médico preferiu que ela continuasse em casa por conta de sua baixa imunidade, mas ficou acompanhando durante boa parte da madrugada.
— Ela convulsionou, e eu achei que fosse... — Ele me olha, seus olhos acinzentados tristes. — Eu quase perdi o papai tempos atrás, lembra? — Assinto. — Eu estava com ele quando teve o infarto, e agora quase...
— Dani, não pensa nisso! — Abraço-o. — Você é o melhor filho e irmão do mundo, sempre ao lado deles, ao meu lado. Agora estou aqui também e vou ajudar no que for preciso.
— Eu sei, Samara. Essa fase do tratamento é a mais complicada, por causa da baixa imunidade, mas, quando ela estabiliza, é a mamãe que sempre conhecemos e amamos.
— E a Bianca? — pergunto-lhe sobre sua noiva. — Como vocês estão, faltando pouco para o grande dia?
Ele ri sem jeito.
— Você sabe que não tem essa de grande dia, não? Nós vamos ao cartório, assinaremos os papéis e pronto. — Dá de ombros. — Vida que segue.
Cruzo os braços. Não gosto nada desse conformismo estranho.
— Tem certeza disso, Dani?
Ele olha para a Cida.
— Vou fazer 41 anos, pirralha. 15 anos de relacionamento com ela, então...
— É isso? — Cida balança a cabeça negativamente. — Viu? A Cida não concorda também! E não é que você seja já um solteirão arrastando chinelos, Dani! Você é lindo!
— Não é sobre isso, Samara.
— Ele quer ter uma família, menina. — Arregalo os olhos. — Seu pai vive mais entretido na fazenda do que aqui, sua mãe, antes de adoecer, não parava quieta, sempre viajando com as amigas e...
— Eu na Espanha.
Daniel termina o café sem me encarar, sem falar nada e se levanta.
— Vou voltar para o quarto, render um pouco a enfermeira.
— Também vou, Dani!
Seguimos juntos, mudos, pelo corredor. Meu irmão é a pessoa mais discreta do mundo, completamente o oposto de outros filhos de grandes empresários desta cidade. Nunca gostou de sair em revistas de fofoca, nunca namorou modelos, atrizes ou socialites. Na adolescência, namorou uma garota da escola, depois teve duas ou três namoradas na faculdade e, por fim, conheceu a Bianca em um torneio de polo – esporte em que ele é fera. Desde então engataram nesse relacionamento xoxo, totalmente ioiô – eles já terminaram umas 30 vezes ao longo dos anos – e que agora vai se tornar um casamento meia-boca.
— Você merece mais, Dani — solto sem conseguir frear minha língua, e ele ri.
— Você diz isso porque é minha irmã, pirralha. — Ele tenta bagunçar meus cabelos como quando eu era criança. — Bianca pode não ser o grande amor da minha vida, mas é uma boa amiga e companheira.
— Isso é loucura! Você merece amar, ser amado, estar apaixonado...
— Como você esteve a vida toda por aquele doidivanas? — Paro em seco no corredor e arregalo os olhos. — Qual é, Samara, você achava que eu não sabia? Estava escrito na sua testa e em todos os seus cadernos, com direito a corações rosa! Você teve um peixe daqueles que ficam sozinhos no aquário...
— Um beta. — Começo a rir, sabendo exatamente do que ele está lembrando.
— Pois bem, você teve um beta e o nomeou...
— Beto Schneider Karamanlis — falamos juntos, e eu começo a rir.
— Sim! E como você nunca me deu indícios de ter uma queda pela Kyra, eu supus que era o outro Karamanlis. — Daniel me olha sério. — Por que Diego não veio contigo?
A pergunta é tão inesperada que demoro a processar que ele está falando do meu namorado.
— Não sei quanto tempo vou ficar, então...
— Besteira! Ele poderia passar uns dias aqui contigo, os times estão todos em recesso até a primeira semana de janeiro. — Suspiro e olho para o chão. — Não estraga sua vida, Alex não vale a pena.
Assinto, lembrando-me de tudo o que aconteceu noite passada. Alexios continua igual, vendo e querendo todas as mulheres ao seu redor, menos eu. Sempre fui a amiga, quase uma irmã, menos uma mulher, e, como acabei de perceber, todos sabem da minha paixão por ele, então, Alexios deve simplesmente ignorá-la.
Por muito tempo eu achei que ele não soubesse. Ficava fantasiando que, no dia em que eu tomasse coragem e lhe contasse, Alexios iria se declarar também. Iludida! É isso que eu era, porque, depois do beijo que trocamos, era impossível que ele não soubesse.
Respiro fundo, resignada. Alexios sabe, só não se importa e nem sente o mesmo!
Meu irmão bate levemente na porta do quarto de mamãe e em seguida entra. Sigo-o pelo enorme ambiente, que me traz tantas lembranças alegres dos momentos que dividi com ela, deitada em sua cama, contando sobre meus sonhos.
— Samara Esther! — Mamãe estende os braços, sentada na cama, recostada nos travesseiros. — Trouxe Godofredo de volta?
Rio e concordo.
— Trouxe, está lá embaixo no jardim. — Beijo sua testa. — Como está se sentindo hoje?
— Eu estou bem! — Ela dá uma olhada de esguelha para meu irmão. — Ele é superprotetor, sabe? Exagerado!
Daniel permanece alheio às críticas, conversando com a enfermeira.
— Mamãe, ele não é, e a senhora sabe! — Ana suspira. — A senhora está em tratamento, precisa de cuidados, e, com o papai isolado na fazenda, Daniel é que estava responsável por acompanhá-la em tudo, mas agora estou aqui também!
— Dois superprotetores! — ela finge reclamar, mas sorri satisfeita. — Seu pai quis vir para cá para ficar comigo, mas achei melhor que ficasse por lá. Você sabe como ele é, não me daria um minuto de paz.
Eu rio, mas sou obrigada a concordar. Meus pais são incríveis, mas têm uma relação um tanto estranha desde que Daniel e eu saímos de casa para viver nossas vidas. Passaram a viver cada um no seu espaço, com suas coisas. Dão-se incrivelmente bem, mas cada um com sua vida.
É verdade que eles não eram nada parecidos. Mamãe sempre foi uma mulher de negócios, cheia de trabalho, viagens e reuniões, porém extremamente carinhosa com os filhos. Papai é um homem mais reservado em seus sentimentos, embora seja um artista.
Olho para um dos móveis da minha mãe, e a escultura em madeira em cima dele me faz sorrir. Nela há um casal e um garotinho com a mão na enorme barriga da mulher. Papai deu vida à imagem de uma foto que tiraram quando mamãe estava grávida de mim, e a peça ficou tão perfeita que dá para sentir a alegria de todos.
Quando eu era criança, tinha coleções das esculturas dele: cavalos, cães, gatos, pássaros. A que eu mais gostava era a do Pinóquio, que ganhei quando comecei a ler e andava para baixo e para cima com o livro do boneco de madeira que queria ser menino de verdade.
— Você vai até lá visitá-lo? — minha mãe pergunta, talvez adivinhando que estou pensando nele, por estar olhando a estátua.
— Por agora não. Tentei falar com ele quando cheguei e ontem também, mas não consegui. — Dou de ombros. — Papai se isola quando quer, a senhora sabe.
— O doutor Henrique acabou de dizer que os resultados dos exames ficaram prontos e que ele virá assim que puder para conversar conosco. — Daniel senta-se ao meu lado na cama. — É bom ter Samara aqui perto, não é?
Ele me abraça pelos ombros.
— Eu também estou gostando de estar de volta.
Mal termino a frase, e meu telefone toca. A foto de Kyra tentando beijar Godofredo, e ele de boca aberta para mordê-la aparece na tela, e minha mãe sorri.
— Eu estou esperando pela visita dessa filha emprestada desnaturada. — Ana reclama. — Pode dizer a ela que não vai comer mais minha paella!
— Pode deixar! — Levanto-me da cama e vou para um canto do quarto. — Oi, Kyra! — atendo o telefone.
— Quero notícias! Mal consegui dormir essa noite, deixei mil mensagens no seu telefone. Como está sua mãe?
— Está bem, mas ameaçou greve de paella se você não vier visitá-la em breve.
— Está bem mesmo? — ouço preocupação na voz da minha amiga, e meu coração se aperta, pois sei que minha mãe foi o mais próximo que Kyra teve de figura materna. — Malinha?
— Está, sim. O médico dela explicou que, por conta da medicação, ela ficaria suscetível a doenças, a imunidade está baixa, então qualquer resfriado ataca com força.
Kyra suspira ao telefone, e eu abro um sorriso ao ver o quanto minha amiga durona é, na verdade, tão sensível quanto eu.
— Que bom! Fico feliz em ouvir isso e mais aliviada para te fazer um convite.
Faço careta, já prevendo que ela vai me meter em algum evento seu de final de ano, vestida de garçonete.
— O que você está armando, Kyra?
— Nada! — ela logo se defende, indignada. — Eu só queria companhia! Na véspera do Ano Novo acontecerá o Baile Branco e Preto dos Villazzas, e, como eu estou sem nenhum boy no momento, você podia ser meu par, o que acha?
— Kyra! — Rio. — Um baile? Sério?
— Baile? — mamãe logo se mete na conversa e pergunta lá da cama. — Por acaso é o baile dos Villazzas?
Fodeu! Minha mãe sempre amou bailes e conheceu a matriarca dos Villazzas tempos atrás, através de sua amiga, Cecília Novak. Certamente ela adorará a novidade, achará moderno eu ir acompanhando minha amiga, e eu não terei escapatória.
— É, mamãe, eu vou com Kyra — respondo resignada.
— Eu sabia! — Minha amiga ri ao telefone. — O traje branco é obrigatório para mulheres, então, abuse de cores em outros locais!
— Eu vou te matar, Kyra Karamanlis! — sussurro para que somente ela escute.
— Depois do baile; antes, quero usufruir de tudo o que planejei! Vai ser o evento mais incrível que você já viu!
Relaxo, percebendo que ela realmente está feliz e confiante.
— Tenho certeza disso, Kyra!
Nós nos despedimos, mas não retorno imediatamente para a cama, ao lado da minha mãe e do meu irmão, fico pensando em como é bom estar de volta. Realmente me sinto em casa aqui, com as pessoas que eu amo, ainda que tenha feito amigos na Espanha.
Penso no Diego e sinto um pequeno aperto no coração, um misto de saudade e remorso. Daniel me olha, curioso por eu estar parada no mesmo lugar, sem falar ou fazer nada, e reflito sobre o que ele me disse. Reconheço que eu recuei ante o pedido de casamento de Diego por ter esperança de voltar ao Brasil e encontrar Alexios mudado, porém ele não mudou e nem mudará jamais, mas isso não muda o fato de que ele ainda mexe comigo.
Diego e eu nos damos muito bem, somos amigos, companheiros, temos gostos parecidos. Enquanto eu estava na Espanha, longe do magnetismo e atração de Alexios, realmente pensei que pudesse amá-lo e ter uma vida com ele. Os momentos que passamos juntos foram maravilhosos, mas agora me questiono se, mesmo voltando para Madri, é justo manter essa relação.
O Uber me deixa em frente ao Villazza SP, e vejo a entrada principal do hotel cheia de pessoas bem-vestidas e penteadas. Ando na direção delas, questionando-me se os convites estão sendo verificados na entrada, mas me surpreendo ao ouvir um dos homens que está parado na entrada:
— Nós só queríamos comprar o convite, não conseguimos responder a tempo e...
— Senhor, o que me foi passado foi que esgotaram, eu sinto muito — um dos seguranças responde antes de se virar para mim, mas, vendo o convite em minhas mãos, abre a porta. — Seja bem-vinda!
Entro no saguão principal do enorme hotel e suspiro, apreciando todos os detalhes da construção e da decoração, orgulhosa por ter sido parte da equipe que ajudou a deixá-lo perfeito desse jeito.
O escritório de arquitetura que projetou o Villazza SP foi o dos Boldanis, e o arquiteto principal que assinou o desenho foi ninguém mais, ninguém menos que meu ídolo e professor, Julio Boldani. O italiano é fera demais nas suas linhas clássicas misturadas às modernas.
Eu ajudei o pessoal que compôs o projeto de decoração, pois estava me especializando e, por isso, trabalhei um tempo no Boldani. Foi ali que descobri que, por mais que papai fizesse pressão para que eu fosse uma arquiteta, eu queria mesmo era ser designer de interiores.
Subo as escadarias de mármore com corrimão e guarda-corpo de ferro fundido na cor ouro velho em arabescos e folhas e, no saguão da entrada do salão Royal, encontro a recepção do baile montada como se fosse uma bilheteria antiga de circo.
Sorrio ao pensar na Kyra, reconhecendo que minha amiga sabe como dar vida aos seus projetos de maneira perfeita, pois vi os desenhos quando almoçamos juntas anteontem e confesso que está tudo muito mais bonito do que a ilustração em 3D que ela me mostrou.
Olho em volta, procurando-a, pois combinamos de nos encontrar na entrada, mas arregalo os olhos ao ver Alexios, de smoking preto, vindo em minha direção.
Mesmo contra a minha vontade, minhas mãos gelam e meu coração dispara apenas por vê-lo, por notar o quanto ele está lindo com esse sorriso largo e os olhos brilhando.
Por que ele tinha que ter essa aparência e essa boca?!, penso na injustiça do mundo, indignada por ser tão comum, e ele...
— Samara Esther. — Bufo, pois só ele e minha mãe chamam-me assim. — Você está... linda!
Alexios sorri e me olha desde as unhas dos pés, pintadas e cutiladas, até o alto da cabeça.
— Linda! — repete como se não fosse possível que eu estivesse desse jeito.
— Oi, Alexios — cumprimento-o seca, tentando não dar importância ao fato de que ele parece ter tomado um soco só por me ver mais arrumada. — Estou esperando sua...
— Eu sei, foi ela quem me mandou ficar aqui de plantão te esperando. — Enrugo a testa, sem entender. — Kyra resolveu bancar a fada madrinha e ajudar uma amiga a ter seu baile com um príncipe encantado e, por isso, vai ter que trabalhar esta noite. — A expressão no rosto dele é de deboche ao falar do conto de fadas. — Então, restou a mim.
Puta merda, Kyra!
Pego o celular dentro da bolsa e mando mensagem para ela, mas tenho certeza de que, ocupada com o começo do baile, ela não irá ler. O que eu faço? Penso se devo aceitar fazer companhia ao Alexios ou se devo ir embora, afinal, só vim a esse baile por insistência da Kyra.
— Samara, eu sei que nossa amizade está um tanto estremecida por conta da distância e do tempo, mas... — Alexios me encara, e noto que ele está se esforçando para falar — eu gostaria que você me acompanhasse esta noite.
Minha boca fica seca ao ouvir isso, porque, mesmo com a distância, eu ainda consigo saber quando ele está sendo sincero. Alexios me quer ao seu lado esta noite, e isso é...
— Como nos velhos tempos, lembra? — ele complementa, e, mais uma vez, percebo o quanto sou iludida.
Nada mudou!
Imediatamente me lembro do meu baile de formatura do ensino médio, no qual ele foi meu acompanhante. Chegamos juntos, eu estava empolgada para dançar com ele a noite toda, arrumei-me para parecer uma mulher aos seus olhos e não mais a menina de cabelos revoltos que o seguia para toda parte quando criança.
Havia decidido que iria contar a ele o que sentia naquela noite e que, depois de ele se declarar também, iríamos fazer amor, e eu, aos 17 anos, finalmente teria minha primeira noite com o homem que amava.
Ledo engano!
Alexios dançou uma música comigo, depois foi para o bar, encheu a cara, sumiu com uma garota bem mais “servida” que eu e voltou para o salão todo amarrotado. Eu queria ir embora, mas ele acabou dançando (e sumindo) com mais umas três mulheres.
— Seu acompanhante te deixou sozinha, não é? — Marlon, um dos garotos que estava se formando comigo me perguntou, e só aí percebi que ele estava sentado à mesa comigo.
Começamos a conversar e, naquela noite, tive minha primeira experiência sexual. Não foi ruim, namoramos por um tempo, mas reconheço que ela só aconteceu porque Alexios não me quis. Ele simplesmente não me via!
— Samara? — ele me chama e me faz voltar à realidade.
Por Deus! Não sou mais uma garota de 17 anos, sou adulta, independente, com uma carreira bem-sucedida na Espanha e um dos homens mais gostosos de Madri ao meu lado!
— Vamos entrar! — decido e marcho até uma das “bilheterias”, onde recebo minha máscara preta e uma pulseira.
Alexios recebe as dele e ri ao me mostrar a máscara branca como a de O Fantasma da Ópera. Ah, merda!
— Você se lembra? — Ele ri. — Me obrigou a ver esse filme um milhão de vezes e sabia até as falas!
O desgraçado põe a máscara, ergue uma das sobrancelhas, dobra-se em reverência e sorri.
— Vamos logo com isso! — Saio de perto dele sem rir de sua gracinha, coração retumbando, a cabeça cheia de lembranças da nossa adolescência.
Quando as portas se abrem, perco o fôlego ao ver o que Kyra idealizou.
— Puta que pariu, minha irmã é foda! — Alexios fala ao meu lado.
Eu pulo de susto, não por causa do que ele disse, nem mesmo ao ver um dos artistas cuspindo fogo, mas tão somente por sentir a sua mão em minha cintura. Meu corpo inteiro aquece, a pele arrepia e aquela sensação que sinto desde que os hormônios despertaram em mim na adolescência volta a me tomar.
Atração! Química!
Não sei explicar, mas meu amor de criança transformou-se nisso quando me tornei moça, e a cada toque, cada resvalo, eu resfolegava. Sonhava com ele, acordava suada e sem saber o que estava acontecendo. Meu primeiro orgasmo com masturbação foi pensando nele, instintivo, depois de um sonho erótico e proibido.
Achei que, com a distância, principalmente depois que me envolvi com Diego, isso ia passar, mas parece que me enganei.
Olho-o e percebo que ele permanece alheio ao que me causa, sua atenção tomada pelos malabares que executam movimentos precisos na entrada do baile.
Respiro fundo.
— Vamos?
Ele assente sem me olhar, e seguimos juntos, passando entre os convidados que ainda se encontram de pé conversando ou bebendo no bar, em direção ao centro do salão, tomado de mesas e cadeiras reservadas.
— Onde nós...
Nem preciso terminar a pergunta, pois logo vejo Theodoros Karamanlis, acompanhado de uma lindíssima loira, a uma mesa com o sobrenome deles na placa de reserva. Eu não sou muito fã do irmão mais velho de Alexios, mas sempre fui educada com ele, então armo meu melhor sorriso e o cumprimento:
— Theo! Que bom vê-lo esta noite! — Olho para sua acompanhante agora mais de perto e sinto como se a conhecesse de algum lugar.
— Samara, essa é Valentina de Sá e Campos — Theodoros nos apresenta, e eu sorrio, reconhecendo os sobrenomes dela. — Valentina, essa é a Samara Schneider, uma incrível designer de interiores.
— É um prazer, Valentina! — saúdo-a.
— O prazer é meu, Samara. — Valentina sorri. — Nos conhecemos já?
— Eu acho que sim, embora não me recorde de onde pode ser.
A loira para a fim de tentar se lembrar, e eu ouço a conversa entre Theo e Alexios.
— Viu só esse trabalho da Kyra?
— Claro! — Alexios debocha do irmão. — Seria impossível não ver, já que estou aqui! Já fui até cumprimentá-la, mas está tão ocupada que não consegui nem falar com ela direito.
Só o suficiente para que ela o encarregasse de me acompanhar nesta noite! Kyra me paga!
— Imagino que esteja. Viu o Kostas? — Theo pergunta, mas não consigo ouvir a resposta de Alexios, pois Valentina volta a falar:
— Lembrei! — ela comemora. — Nos encontramos na festa de inauguração da loja da Miriam Benides, lembra?
Eu não faço a mínima ideia do que ela esteja falando, mas, mesmo que não esteja com nenhuma vontade de prosseguir com a conversa, sorrio e concordo por educação.
— Puxa vida, quanto tempo não vejo você por lá! — Valentina continua.
— Eu estava morando em Madri — informo antes de me sentar.
— Ah, eu adoro a Espanha!
Sorrio sem graça, percebendo que vamos conversar. Não quero ser mal-educada com ela, é só que não estou muito confortável em estar aqui neste baile, não depois de perceber que ainda quero Alexios e que não adiantou de nada impor distância.
— Família! — a voz debochada de Kostas interrompe a conversa de Valentina, e ela me pergunta baixinho quem é o homem abraçado a uma loira com um vestido branco tão justo e transparente que beira à indecência.
— Konstantinos... — sussurro antes de ele apresentar sua acompanhante a todos.
— Bruninha, conheça os Karamanlis! — Ele aponta para Alexios e para Theodoros. — Claro que você pode deixar seu cartão com eles depois, mas eu sou o mais bonito, não sou?
Ele faz a mulher girar em seu próprio eixo, e, pela primeira vez depois da tensão toda em que eu estava desde que vi Alexios, sorrio divertida. Kostas é uma figura! Ainda me lembro de quando ele morava no prédio, na cobertura de seu pai, e juro, se não fossem os olhos azuis e a voz, eu diria que não se trata da mesma pessoa!
— Já bêbado? — Theo pergunta a Alexios.
— E mais uma vez com acompanhante paga! — Alexios se aproxima de Theo e cochicha, e isso me surpreende. Não sabia que os dois estavam conseguindo ter uma relação tão cordial. — Estou achando que nosso querido irmão é do outro time.
Theo gargalha e nos olha sem graça.
— Perdoem-me, foi irresistível! — Tenta se conter e bebe mais do seu uísque. — Bom, certamente ele é arrogante e orgulhoso demais para “sair do armário”.
Quem? Kostas?! Olho para o homenzarrão com a prostituta e nego instintivamente com a cabeça. Não mesmo!
— Seria apenas mais um rejeitado pelo seu querido pappoús! — ouço Alexios dizer isso, e meu coração aperta. Olho-o, respiro fundo, lamentando profundamente por ele ainda se sentir rejeitado, percebendo que isso também não mudou.
Rejeição, abandono, violência o tornaram o homem que é. Sei disso, dei essas desculpas para seu comportamento por muitos anos. Toda vez que ele aprontava, eu usava isso para justificá-lo.
Até quando?, penso, olhando-o fixamente. Até quando ele deixará que os erros dos outros façam-no errar também?
— Você gosta muito dele, não é? — Valentina dispara, e eu desvio os olhos de Alexios. — Seus olhos brilham diferente ao olhar para ele.
— Somos amigos há muitos anos — disfarço.
— Bom, isso é muito bom, mas... — Ela ri. — Desculpe-me se estou sendo invasiva, mas seu olhar é de quem é apaixonada, não apenas uma amiga.
Dou um sorriso amarelo para ela, e Valentina fica quieta.
— Tudo bem aí? — Alexios me pergunta, e eu assinto. — O jantar já tinha sido anunciado antes de você chegar, então não deve demorar muito.
Resolvo conversar com ele normalmente, afinal, seria ridículo fazer birra na minha idade.
— Kyra estava muito ansiosa com o jantar desta noite. Um grande chef internacional, ela me contou, é quem está preparando tudo.
— Sim, está na programação. — Alexios lê o nome do chef francês, e eu não consigo deixar de olhar sua boca. Pego a taça de champanhe e a viro de uma só vez. — Uau! — Sorri e faz sinal para um garçom se aproximar com mais. — Minha acompanhante está sedenta.
— Estou. — Decido não discutir e bebo a outra taça. — E com fome também.
Alexios toca minha coxa por cima do vestido, mas logo tira a mão.
— O jantar não deve demorar — repete sério e se vira para olhar o outro lado do salão.
Fico um tempo olhando para minhas pernas, permitindo a sensação de brasa que a mão dele deixou em minha coxa passar, chateada demais por reagir assim a ele e continuar sendo praticamente invisível.
Que porra é essa que está rolando?
Essa pergunta retórica fica martelando minha cabeça enquanto tento prestar atenção em qualquer coisa neste maldito salão lotado que não seja ela. Eu só posso estar com algum problema, só pode! Samara sempre foi minha amiga, quase minha irmã. Eu estar aqui com uma maldita ereção – pela segunda vez esta noite, frise-se – só pode ser loucura!
Preciso de um médico! A loucura congênita dos Karamanlis começou a se manifestar em mim. Sentir tesão por Samara é quase... incestuoso!
Pego a taça com champanhe e a termino em uma só golada a fim de aplacar o fogo que apenas um toque em sua coxa me causou.
A verdade é que eu não esperava encontrar-me com ela nesta noite. Vim por insistência do Millos e, claro, por sua maldita manipulação eficaz ao falar da Kyra e do suporte a ela em seu primeiro grande evento. Cheguei junto aos primeiros convidados e a encontrei correndo de um lado para o outro, “armando” uma surpresa para sua amiga e funcionária, a gostosa da Helena, que, por sinal, está namorando o Bernardo Novak, um amigo de longa data.
Quando finalmente ela terminou todos os preparativos, foi à cozinha falar com o tal chef francês que a estava deixando nervosa, conferiu tudo com as bandas, DJ e artistas circenses é que me deu atenção.
— Oi, Alexios. — Sorriu cansada. — O baile nem começou direito, e eu já estou de um lado para o outro. — Ela espiou a fila se formando na recepção do evento. — Gostou da decoração?
Seus olhos verdes, como os meus, brilharam ansiosos. Eu cheguei perto dela, beijei sua testa e falei baixinho:
— Está tudo perfeito, Kyra. Parabéns, estou muito orgulhoso!
Ela suspirou e depois se afastou.
— Claro que está! Não tinha dúvida alguma disso. — E, do nada, pegou-me pela mão e me arrastou em direção ao salão. — Vem ver!
— Kyra, eu ainda não troquei meu convite e...
— Ah, Alexios, vem ver!
A decoração estava esplêndida, embora eu soubesse que, com os efeitos de luz e os artistas executando seus números, iria ficar ainda mais incrível. A banda, no palco ao fundo do salão, já estava se posicionando, e alguns funcionários de Kyra ajeitavam os últimos detalhes das mesas, arranjos florais ou acendiam as velas.
— Perfeito! — elogiei-a novamente.
— Você ainda não viu nada! — E deu aquele sorriso que eu sei que fode com a cabeça de qualquer homem. É duro ter uma irmã como ela, linda e sexy, e ver os caras babando em cima e não poder socar a fuça de nenhum. — Ah, preciso de um favor.
Estava demorando!
— Kyki, estou de smoking, mas ainda não sei segurar uma bandeja — sacaneei.
— Não, seu idiota! — Ela me estapeou as costas. — É meu par desta noite! Não vou poder participar do baile como havia previsto, então preciso que você faça companhia...
— Ei, ei, pode parar! Não vou ficar pajeando nenhum marmanjo não!
Ela rolou os olhos.
— Não é marmanjo, idiota! Posso terminar de falar? — Assenti. — É a Samara. Convidei-a a vir comigo esta noite e não quero que fique sozinha.
Samara Esther Schneider!
Fiquei um tempo olhando para Kyra, tentando entender se ela tinha feito isso de propósito, para tentar nos reaproximar, afinal, sempre fomos um trio de amigos/irmãos, e, com a relação entre mim e Samara estremecida, Kyra devia estar um tanto confusa.
— Sem problema. — Sorri. — Você avisou a ela?
— E Samara atende aquele celular? — Ela bufou. — Você terá que esperá-la lá fora. Se importa?
— Não — fui sincero.
— Ótimo, agora vaza, porque ainda tenho coisas a fazer antes de abrirmos o salão. — E, do mesmo jeito que me arrastou, colocou-me para fora.
Fiquei um bom tempo esperando por Samara do lado de fora, o que foi surpreendente, pois ela sempre foi pontual. Vi o salão ser aberto, o baile começar, o discurso do doutor Andreas Villazza, o anúncio do jantar, e nada de a minha (ex?) melhor amiga chegar.
Estava olhando para um detalhe na construção do hotel, executada pela Novak Engenharia, quando meus olhos foram atraídos para o topo da escadaria. Não é exagero eu dizer que meus olhos foram atraídos, porque foi como se um ímã puxasse minha atenção para aquele ponto.
Engasguei-me com minha própria saliva ao ver Samara. Sim, ela estava linda, mas não foi o vestido branco ou o penteado elaborado que chamou minha atenção, foi ela.
Ela é linda e, por conta da nossa amizade e do receio que tinha de machucá-la, parei de perceber sua beleza e não notei a mulher que se tornou.
Fiquei parado, tomando nota de tudo, como se a estivesse vendo pela primeira vez, sentindo um incômodo por estar olhando-a com lascívia, afinal, era a Samara!
Balancei a cabeça, tentando voltar a pôr os neurônios no lugar, justificando para mim mesmo que isso aconteceu por causa dos anos distantes, mesmo sabendo que isso era pura enganação, pois ela não mudou nada nesses últimos anos.
O que aconteceu, então? Não sei, ainda estou confuso, tentando entender por que fiquei excitado com o perfume dela ou por que meu pau acordou apenas por eu a ter segurado pela cintura a fim de andar com ela até a mesa.
Tive que ficar parado, olhando para os malabares sem vê-los realmente, com cara de paisagem, fingindo que nada estava acontecendo. Eu não queria que ela soubesse que eu estava reagindo daquela forma a ela; certamente ficaria horrorizada. Sempre fomos como irmãos!
Tentei me conter, agradeci por Theodoros e sua companhia já estarem à mesa, fiquei um tempo distraído conversando com meu irmão mais velho, mesmo que isso fosse uma dor no saco. Não sou tão rancoroso quanto o Konstantinos sobre o Theo, apesar de concordar com meu irmão sem noção sobre ele nos ter abandonado nas mãos do louco Nikkós, mas o que Theodoros poderia fazer? Eu mesmo estive nessa situação quando pude sair de casa, mas não tinha como tirar Kyra dele, por isso fiquei.
O DJ que executa as músicas antes do jantar e da banda ao vivo coloca My Immortal, de Evanescence, e é impossível não olhar para Samara.
— Sua música preferida na adolescência — comento com ela.
Samara sorri e balança a cabeça, olhando os casais indo para a pista de dança.
— Tocou na minha formatura...
— Eu sei, eu queria dançar com você, mas você não parecia muito a fim, então fui beber.
Ela arregala os olhos e me encara como se não soubesse do que eu estou falando. Provavelmente nem se lembra, estava nervosa e ficava repetindo o caminho todo dentro do carro que a gente nem deveria ter ido, que era besteira.
Não somos mais adolescentes!
— Quer dançar? — inquiro impulsivamente e estendo a mão para ela.
Samara olha para minha mão por um tempo, mas aceita.
Porra, que loucura!
Ela pega minha mão, e minha vontade é de puxá-la para mim e beijar sua boca. Foda! Não consigo mais refrear meus desejos; sempre consegui com ela, por isso não entendo o que está acontecendo agora. Não é qualquer mulher aqui comigo, indo para a pista de dança para ficar de corpo colado no meu – porra! – é a Samara!
Samara!
Minha amiga de infância!
Quase uma irmã...
MERDA!
— Está tudo bem? — ela me pergunta, e eu tento relaxar, já que estou dançando como antigamente: a um palmo de distância dela.
— Sim, tudo. — Tento dar meu famoso sorriso, mas não rola, então pigarreio. — Estou com sede, calor... acho que é essa decoração toda.
— Pode ser. — Ela desvia os olhos de mim. — Quer voltar para a mesa?
Quero!
— Não, a não ser que você...
— Tudo bem.
Ela se solta de mim no exato momento em que a música muda para um instrumental baixo e as luzes se acendem.
— O jantar. — Aponto para os garçons em fila e os convidados voltando aos seus lugares. — Vamos?
Salvo pelo gongo do cozinheiro!, penso ao ajustar disfarçadamente minha calça para não andar de pau duro e assustar a todos por causa da claridade do salão.
Samara bebe mais uma taça de champanhe, e eu rio, já preocupado. Nunca a vi beber tanto! Sempre foi séria, careta, estudiosa e boa filha. Ela nunca fazia nada de errado, nunca decepcionou os pais, fazia tudo o que eles queriam... quer dizer, tudo menos se afastar de mim.
— Acho que já quero ir — ela comenta de repente. — Vou chamar um Uber...
Levanta-se um pouco tonta, e eu a amparo pela cintura.
— Você quase não comeu, e bebeu muito — falo, e ela levanta uma sobrancelha atrevida e irônica para mim. — Não estou dando lição de moral, mesmo porque não tenho nenhuma, apenas constatei um fato.
Ela ri.
— Você não tem nenhuma moral mesmo! — arrasta a última palavra. — Sempre foi um galinha, essa cara de santo aí só engana as outras!
Gargalho.
— Elas não ficavam enganadas por muito tempo, pode acreditar!
Samara funga, indignada, e fecha os olhos.
— Eu acho que realmente bebi demais.
Olho em volta; o salão já está praticamente vazio, apenas um ou outro convidado conversando em pequenos grupos. Theodoros se despediu, com Valentina grudada em seu pescoço, há mais de uma hora, e Kostas nem jantou conosco à mesa, provavelmente ficou no bar com sua acompanhante.
Inicialmente eu tinha pensando em esperar tudo terminar para acompanhar Kyra até em casa, mas, com Samara no estado em que se encontra e com tudo aqui ainda para ser desmontado, é melhor eu levar minha amiga para casa – aproveitando que moramos no mesmo prédio – e voltar mais tarde para acompanhar minha irmã.
Pego a pequena bolsa que ela trouxe e, ainda abraçado a ela, caminho para a saída.
— Alexios... tudo está rodando...
— Muito natural depois de todo aquele champanhe.
Ela suspira e joga a cabeça para trás.
— Você é um chato, sabia? Não posso entender o que todas aquelas mulheres viam em você!
— Imagino que não possa mesmo — respondo-lhe, sabendo que vai se irritar.
Samara sempre disse que eu respondia politicamente ou me evadia quando sentia que o assunto poderia ir para alguma direção que não me deixaria confortável. Ela tinha razão na maioria das vezes, mas, neste momento, só estou a fim de irritá-la.
— Você é um babaca, Alexios Angelos!
Opa! Falou meu nome todo! Rio de sua irritação bêbada, talvez por estar um tanto alto como ela, mas sóbrio o suficiente para carregá-la em segurança até a calçada.
Não vim de moto ou carro sozinho exatamente por saber que iria beber – principalmente para aguentar sozinho a companhia dos meus irmãos à mesa –, porém previ que a saída do baile estaria um inferno e que seria difícil conseguir um táxi ou um carro de aplicativo que estivesse por perto, por isso deixei o Cris, que me trouxe, de sobreaviso no estacionamento.
Mando mensagem para ele e espero até meu carro aparecer. Abro a porta de trás e coloco sobre o banco uma Samara parcialmente adormecida por cachaça francesa.
— Essa foi nocaute! — Cris ri quando eu entro. — Para onde?
— Para o Castellani. — Ele dá um sorrisinho malicioso e pisca. — Ela é minha vizinha, Cris, sossega.
— Falou, chefinho.
— Para de merda e dirige.
Ele tenta sair da entrada do hotel, mas é praticamente impossível com o número de carros que também tentam deixar o local. Olho para trás, confiro que Samara está mesmo apagada e fecho os olhos, recostando-me contra o assento do carona.
— Foi uma festança, hein? — Cris volta a falar. — Só vi entrar filé, pena que a maioria estava acompanhada.
— Geralmente isso não é problema — comento, mordaz. — Já comi muita mulher no banheiro de recepções como essa enquanto o marido conversava com os amigos e falava de negócios.
Cris gargalha.
— Você nunca valeu nada, Lex!
Não retruco o apelido ridículo com que ele me chama e me faz parecer o vilão do Homem de Aço. É pura perda de tempo ralhar com Cristino, então simplesmente ignoro, cansado, meio zoado e com tesão frustrado.
Ele e eu nos conhecemos há alguns anos, quando visitei um dos prédios da Karamanlis que foram invadidos por movimentos pró-moradias. O homem era motorista de profissão, com anotação em sua carteira de trabalho em várias empresas, que juntou todo o dinheiro que tinha, investiu em um carro e um ponto de táxi, mas foi engolido e enxotado pelas grandes cooperativas.
Assim, quando nos conhecemos, ele estava sem casa, sem carro, sem emprego e com uma enorme dívida, fazendo bicos aqui e ali. Ajudei-o primeiro a conseguir emprego, depois por fim saiu da invasão, e, nesse ínterim, nos tornamos amigos.
Ano passado, quando a filha dele nasceu, quis que eu a apadrinhasse, mas educadamente declinei, explicando que, mesmo honrado, não poderia aceitar, pois sou ateu, e o apadrinhamento de uma criança tem a ver com questões religiosas, tem um sentido específico, e eu não seria a pessoa certa para isso. Ele entendeu, mas a garotinha já me chama de Didi (seu jeito fofo de bebê de chamar seu dindo, mesmo que oficialmente eu não o seja).
Acho que cochilei também até o Castellani, pois, quando me dei conta, já estávamos na garagem. Cris me perguntou se eu queria ajuda com Samara, mas agradeci e o mandei para casa. Ele não trabalha como meu motorista diariamente, mas sim na Karamanlis, transportando quem quer que precise fazer serviços externos. Contudo, toda vez que preciso, chamo-o para ganhar um extra.
Há muito parei de combinar bebida e direção, não por mim, mas por medo de acontecer algum acidente e eu acabar prejudicando outras pessoas.
Chamo o elevador, e somente dentro dele é que a bela adormecida parece voltar a si.
— Alexios... — Samara olha em volta. — Este é o elevador do Castellani?
— Parece que sim — respondo-lhe divertido.
Samara bufa.
— Só desmaiada é que eu aceitaria vir com você na direção nesse estado em que se encontra.
— Estou melhor que você. — Ela se encosta contra o espelho, olhos fechados e um enorme sorriso bêbado no rosto. — Além do mais, viemos com motorista.
— Bom... — Samara fala devagar e lambe os lábios como se estivessem secos. O efeito no meu pau é instantâneo. Sinto meu corpo inteiro acender, minhas mãos formigam de vontade de tocá-la. Sua pele parece brilhar, atraindo-me como uma chama atrai uma mariposa.
Tento me afastar, pensar em outra coisa, mas o espaço reduzido do elevador não ajuda. As paredes parecem se fechar cada vez mais, aproximando-me de Samara, apertando-me contra ela, espremendo meu corpo...
— Alexios... — ela geme meu nome, e eu me espremo mais, fazendo-a grudar contra o espelho. O seu perfume inebria meus pensamentos, a pele, tão quente e macia que a sinto mesmo por baixo do vestido, me enlouquece. Preciso provar o sabor de sua boca, conferir se o hálito quente e um tanto etílico se confirma em sua saliva.
Sim!
Agarro-a com mais força, minha ereção pressionada contra sua barriga, minha boca correndo em seu pescoço. Tudo parece congelar à nossa volta, não existe mais tempo e nem espaço, apenas o vácuo e nós dois dentro dele, em chamas.
Lábios nos lábios. Meus dedos esfregam sua nuca, a pele arrepia, os pelos eriçam, meu corpo treme. É a viagem mais louca que eu já fiz sem ser através de uma substância química entorpecente... não! É química ainda, é uma droga viciante, é tesão!
Devoro sua boca sem nenhum pudor ou impedimento. Ela me acolhe, abre-a para minha exploração, prende meus lábios entre seus dentes e morde com força, despertando com a dor ainda mais meu desejo.
Enfio os dedos no meio do seu penteado, seguro o cabelo com força, e ela retribui o desespero cravando as unhas nos meus ombros.
Estou pronto para fodê-la, minha cabeça já trabalha uma forma de abrir o zíper da calça social, sacar meu pau e buscar o caminho de sua boceta, que, a julgar pela forma com que ela come a minha boca, já está molhada e quente.
Um pigarrear me faz sobressaltar, e eu me afasto dela o mais rápido possível. Um casal de idosos também vestido em black tie entra no elevador no saguão do prédio, sinal de que o elevador subiu e desceu de novo enquanto nós dois quase nos comíamos dentro dele.
Olho para Samara, mas ela não parece constrangida ou assustada, apenas passa a mão pelos lábios e me encara, sua expressão cheia de perguntas e curiosidade.
Caralho, o que eu estou fazendo?! É a Samara, minha amiga, aquela que eu sempre quis manter longe desse meu lado sem vergonha! Puta que pariu!
Espero o casal descer em seu andar e, assim que as portas se fecham, respiro fundo.
— Desculpa, Samara, acho que estou mais bêbado do que imaginei a princípio. — Não tenho como olhá-la, dividido entre o constrangimento e o desejo ainda pulsando na minha calça. — Somos amigos, eu não deveria atacar você dessa forma, me des...
— Para! — sua voz soa magoada, e eu tenho vontade de socar a cabeça contra o espelho. — Não precisa dizer mais...
— Eu prometo que isso não voltará a acontecer. — Finalmente a encaro e fico fodido ao ver sua expressão confusa. Ela parece não ter gostado do que aconteceu, deve estar achando que eu sou um filho da puta aproveitador. — Você é minha amiga, Samara, mesmo depois dessa distância, eu ainda a vejo como se fosse minha irmã e...
— Chega! — ela grita, e as portas do elevador se abrem no seu andar. — Você tem razão, foi um erro e não deve voltar a acontecer!
Ouvir isso é como um balde de água fria, mesmo reconhecendo que é o certo.
— Eu não quero que isso afete novamente a amizade que nós temos e...
Samara sai pisando duro do elevador sem olhar para trás. Minha vontade é de correr atrás dela, voltar a encostá-la em alguma parede e beijá-la novamente até que perca a razão ou eu alivie esse tesão indesejável que estou sentindo.
As portas se fecham, e eu, ao invés de apertar o botão do meu andar, mando o elevador de volta para o térreo e chamo um Uber.
Preciso trepar!
— Essa sua cara de cachorro cagando na chuva é ainda ressaca do baile? — Kyra me pergunta, sentando-se ao meu lado na rede que ela tem em sua varanda. — Quer café?
Resmungo ainda com os olhos fechados:
— Quero paz!
Ela ri.
— Isso está em falta por aqui hoje, passa na semana que vem... — Encaro-a, puto com a piadinha. — O que aconteceu?
Não respondo, meus olhos fixos no topo do prédio do outro lado do parque. Balanço a cabeça, decidindo ser mais covarde do que tenho sido desde a madrugada do dia primeiro de janeiro e fecho os olhos para tentar nem pensar na confusão que arrumei.
— Você não deveria estar trabalhando hoje? Ou eu? — Kyra volta a me importunar, mas continuo mudo. — Mano, você continua o mesmo chato da porra de sempre! Fica aí com essa cara de Maria do Bairro e não abre a porcaria da boca para me contar o que diabos você fez dessa vez!
— Obrigado pela confiança em mim! — retruco irônico.
— Ah, boquinha para ser mal-educado comigo você tem! — Ela me cutuca o ombro, mas depois suspira e deita a cabeça nele. — Você sabe que faz merda, mas que eu estou aqui, disposta a te ouvir e te ajudar a limpar os cagaços. Somos uma dupla, você e eu, sempre fomos e sempre seremos.
— Costumávamos ser um trio... — assim que eu comento, imediatamente me arrependo, pois Kyra salta da rede – quase me derrubando no percurso – e emite um ensurdecedor: “ahá!”.
— Eu sabia que tinha acontecido algo na madrugada do baile! Samara está estranha, esquiva, e isso não é o natural dela. Que merda você aprontou? — Continuo ignorando-a, sem nenhuma disposição para contar sobre o beijo, o amasso e a confusão que isso criou em mim. — Alexios! — Minha irmã começa a pirar por causa do meu silêncio, mas, se me conhece um pouco, já deve imaginar que eu não irei abrir a boca para falar desse assunto. — Está certo! Você e sua maldita boca de siri. — Volta a se sentar, mas dessa vez não se deita em mim. — Alex, ela é nossa amiga, não a magoe, ok? Samara merece ser feliz, e esses anos que passou na Espanha foram ótimos para ela. Eu morria de saudades, mas estava feliz por ela estar realizada trabalhando com o que ama fazer, com um puta gato espanhol lambendo seus pés e — abro os olhos, mas Kyra não se freia — querendo formar família com ela.
Sento-me bruscamente, e Kyra balança.
— Como assim formar família?
— Ele a pediu em casamento. — Surpreendo-me, mas tento não reagir, não demonstrar. — Deu-lhe um lindíssimo e caro anel de diamante e está esperando pelo retorno dela.
Essa informação, apesar de ter me pegado de surpresa, não é nenhuma novidade. Sempre achei que algum homem de sorte iria conquistar o coração da minha amiga de infância e tê-la para sempre. Samara é a pessoa mais leal que eu conheço, mais incrível, merece muito ser feliz ao lado de alguém que valha a pena.
— Ela não estava usando anel... — penso em voz alta.
— Ainda não falou com os pais dela... — Kyra olha fundo nos meus olhos, procurando qualquer reação minha, mas sei que não irá encontrar nenhuma. Há muito aprendi a sentir sem demonstrar ou a mostrar apenas o que eu quero que os outros vejam. — Vocês não conversaram ontem?
— Acho que ainda não conseguimos estreitar os laços de amizade novamente.
— Hum... — Ela olha para seu relógio no pulso e suspira. — Preciso ir para o trabalho, vai ficar aqui? — Assinto. — Eu tenho a sensação de que você está se escondendo, só não faço ideia do quê.
Ela entra no apartamento, e novamente olho para o alto do Castellani, do outro lado do parque. Daqui do prédio onde ela mora, consigo ver o heliponto no telhado, algumas janelas da cobertura onde Cadu mora, o andar debaixo, onde Bernardo Novak reside, e uma pontinha da minha varanda. O apartamento de Samara fica uns andares abaixo do meu, então não tenho como vê-lo, mas somente por saber que ela está lá dentro, sinto vontade de ficar aqui, bem longe.
Não me entendam mal, não estou fazendo isso porque não quero que ela se aproxime de mim, pelo contrário, estou aqui, exilado como um covarde no apartamento da minha irmã mais nova, porque, se pisar no Castellani, sei que não conseguirei me manter distante dela.
Mesmo depois da maratona de sexo que fiz com uma mulher com quem já havia saído antes das festas de final de ano, não tenho segurança de estar no mesmo ambiente que Samara e me controlar para não a pressionar contra alguma parede e fodê-la sem ao menos dizer um cumprimento.
Definitivamente não vou fazer isso, não com ela!
Muito menos depois de saber que há alguém que a merece, que está à altura dela, esperando sua volta.
Rio de mim ao pensar que estou aqui, evitando-a, quando na verdade ela é quem deve estar querendo ficar a quilômetros de mim. Talvez esteja até indignada e ofendida pelo modo com que a toquei e beijei sem nenhum aviso, como se fôssemos um casal qualquer que se encontrou na balada para trepar, e não duas pessoas que são amigas desde que se entendem por gente.
Não entendo por que perdi o controle do tesão que sempre reprimi, mas me conheço o suficiente para saber que ele não passou. Raramente sinto aquela química com alguém. Era como se meu corpo estivesse sendo atraído, como se algo nela estivesse provocando reações em mim que eu não conseguia controlar. Foi animal, carnal, a famosa atração de pele que muita gente procura, mas pouca tem.
E eu tive justamente com minha melhor amiga!
Kyra volta a aparecer no meu campo de visão, agora com os belíssimos cabelos escuros, longos e fartos soltos, o rosto maquiado e uma roupa de deixar qualquer homem lobotomizado.
— Esse bode aí está foda para passar, hein? — comenta antes de se abaixar para pegar um guarda-chuva no móvel ao lado da rede. — Têm umas sobrinhas do baile na geladeira, cerveja – por favor, não tome todas, mas se tomar, as reponha –, e meu chuveiro tem muita pressão e água fresca. — Pisca para mim, e eu franzo a testa, sem entender. — Você está meio rançoso.
— Vai se ferrar, Kyra — ralho com ela, mas rio.
Ela se aproxima e beija minha testa, e isso, sim, arranca um sorriso sincero meu. Gosto que ela confie em mim o suficiente para me tocar, para recostar-se no meu ombro ou mesmo ficar abraçada, pois sei que ela não é assim com todos, principalmente com homens em geral.
— Fica bem e ouça meu conselho... — Ela anda até a porta antes de complementar: — Tome um banho, você cheira a álcool e a perfume vagabundo.
Levanto o dedo do meio para ela e a escuto ir gargalhando apartamento adentro até a porta de entrada bater. É, eu bebi bastante, sim, devo estar exalando álcool pelos poros, e o perfume barato se impregnou em minha roupa ontem, quando a recoloquei depois de mais de 12 horas nu, e a mulher me abraçou toda perfumada.
Saí do apartamento dela e vim direto para o da Kyra, torcendo para que minha irmã estivesse em casa e sozinha a fim de que eu pudesse cair aqui nesta rede onde estou e tentar pôr a cabeça certa no controle do meu corpo.
O telefone fixo toca alto, afastando meus pensamentos, e aproveito para tomar o banho aconselhado pela minha irmã viciada em limpeza. Entro na sala desabotoando a camisa branca que usei com o smoking – pois é, ainda estou com a mesma roupa do Ano Novo em pleno segundo dia do ano – e noto que não faço ideia de onde estão o paletó e a gravata-borboleta.
A primeira foto que vejo ao entrar no quarto de Kyra é uma que tiramos juntos – Samara, ela e eu – na formatura da minha irmã. Eu fui o par dela, então estava de smoking, e as duas, de vestido longo, maquiagem e penteado. Caminho até o aparador e pego o porta-retratos, focando em Samara e me perguntando como eu conseguia me manter longe do mulherão ao meu lado. Era uma beleza diferente da minha irmã, Samara tem o olhar doce, sorriso largo, nenhum mistério, seu rosto expressa suas emoções, sua sinceridade.