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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AMANTE FINALMENTE J. R. Ward
AMANTE FINALMENTE J. R. Ward

 

 

 

                                                            Irmandade da "Adaga Negra"                                                                 

 

 

 

 

Qhuinn, filho de Lohstrong, entrou na casa da família passando pela imponente porta da frente. No instante em que passou pela soleira, o cheiro do lugar invadiu seu nariz. Lustra-móveis de limão. Velas de cera de abelha. Flores frescas do jardim que os doggen colhiam diariamente. Perfume – da mãe. Colônia – do pai e do irmão. Chiclete de canela – da irmã.
Se a empresa Glade um dia produzisse um aromatizador como aquele, ele seria chamado de “Campina dos Abastados”. Ou “Aurora de uma Conta Bancária Polpuda”.
Ou, quem sabe, o mais popular “Somos Melhores do que Todos”.
Vozes distantes vinham da sala de jantar, as vogais tão brilhantes quanto os diamantes lapidados, as consoantes arrastadas, suaves e longas como fitas de cetim.
– Ah, Lillie, isso parece ótimo, obrigada – a mãe disse à criada. – Porém, é muito para mim. E não sirva tanto assim a Solange. Ela está engordando.
Ah, sim, a dieta da mãe permanentemente imposta à geração seguinte: as fêmeas da glymera supostamente devem desaparecer de vista quando estão de perfil, cada osso da clavícula exposto, as faces encovadas e antebraços ossudos como uma espécie de distintivo de honra de merda.
Como se você se tornasse uma pessoa melhor por se parecer com um atiçador de lareira.
E como se a Virgem Escriba a protegesse caso a aparência de sua filha fosse saudável.
– Ah, sim, obrigado, Lilith – o pai agradeceu. – Um pouco mais para mim, por favor.
Qhuinn fechou os olhos e tentou convencer o corpo a dar um passo à frente. Um após o outro. Não devia ser tão difícil assim.
Seu calçado Ed Hardys, novinho, levantou o dedo do meio para essa sugestão. Por outro lado, por tantos motivos, entrar naquela sala de jantar costumava ser bem desagradável.
Deixou cair a bolsa de lona no chão. Os dois dias passados na casa do seu melhor amigo, Blay, fizeram-lhe bem, como uma folga da completa falta de ar desta casa. Infelizmente, a dor do regresso era tão intensa que o custo-benefício de sair equilibrava a situação.
Ok, aquilo era ridículo. Não podia continuar ali parado como um objeto inanimado.
Caminhando para a parede lateral, recostou-se contra um antigo espelho de corpo inteiro colocado bem ao lado da porta. Tão atencioso. Tão adequado com as necessidades da aristocracia em parecer bem. Dessa forma, os visitantes poderiam ajeitar os cabelos e as roupas enquanto o mordomo recebia seus casacos e chapéus.
O rosto do jovem pré-trans que o fitava pelo espelho tinha feições equilibradas, um belo maxilar, uma boca que, ele tinha de admitir, parecia ser capaz de fazer belos estragos à pele nua quando ele amadurecesse. Ou talvez isso fosse apenas ilusão sua. O cabelo era de Vlad, o Empalador, com tufos espetados no alto da testa. O pescoço estava envolto por uma corrente de moto – e não um modelo comprado na Urban Outfitters, mas a velha correia que impulsionara sua antiga 12 cilindros.
Levando-se tudo isso em consideração, ele mais se parecia com um ladrão que invadira a casa e estava preparado para destruir o lugar à procura de prata de lei, joias e eletrônicos portáteis.
A ironia era que esse papo furado gótico não era a parte de sua aparência que mais ofendia sua família. Na verdade, ele poderia ficar nu, pendurar um abajur na bunda e passear pelo primeiro andar imitando Jose Canseco* com a decoração da casa que sequer chegaria perto do real motivo que irritava seus pais.
Eram os seus olhos.
Um azul. Um verde.
Ops. Foi mal.
A glymera não gosta de defeitos. Não em sua porcelana, não nos jardins. Tampouco no papel de parede, nos tapetes e nas bancadas. Não na seda da roupa íntima, nem na lã de seus blazers, ou no chiffon de seus vestidos.
E, com certeza, nunca em seus filhos.
Com a irmã tudo bem – ok, exceto pelo “pequeno problema de peso” que, na verdade, era inexistente, e um ceceio que sua transição não curara –, ah, sim, e o fato de ela ter a personalidade da mãe deles. E essa porcaria não tinha como ser mudada. O irmão, por sua vez, era uma maldita estrela, o filho primogênito preparado para levar adiante a linhagem da família, reproduzindo-se num interlúdio muito cavalheiresco, sem gemidos, sem suor, com uma fêmea escolhida para ele pela família.
Inferno, o recipiente de esperma dele já estava à espera. Ele copularia assim que passasse pela transição...
– Como está se sentindo, filho? – perguntou o pai com hesitação.
– Cansado, senhor – respondeu uma voz profunda. – Mas isso vai ajudar.
Um calafrio percorreu a coluna de Qhuinn. Aquilo não se parecia com seu irmão. Grave demais. Masculino demais. Muito...
Puta merda, o cara fizera a transição.
Nessa hora, seus Ed Hardys resolveram seguir em frente, adiantando-o até que ele conseguisse enxergar a sala de jantar. O pai estava sentado à cabeceira da mesa. Confere. A mãe em seu lugar adiante, oposta à porta de vaivém da cozinha. Confere. A irmã de frente para a porta da sala, faltando pouco para lamber o prato de tanta fome que sentia. Confere.
O macho cujas costas davam para Qhuinn não fazia parte do cenário.
Luchas tinha dobrado de tamanho desde que Qhuinn fora abordado por um doggen que lhe dissera para juntar suas coisas e ir para a casa de Blay.
Bem, isso explicava tudo. Ele deduzira que o pai finalmente cedera ao pedido que lhe fizera semanas antes. Mas não, o homem só o queria fora da casa porque a transformação chegara para a carga genética do filho dourado.
Será que o irmão transou com a garota? Quem usaram para o sangue...?
O pai, um tipo que nunca demonstrava afeto, esticou a mão e deu um tapinha sem graça no antebraço de Luchas.
– Estamos muito orgulhosos de você. Você está... perfeito.
– Está mesmo – a mãe de Qhuinn concordou. – Simplesmente perfeito. O seu irmão não está perfeito, Solange?
– Sim, ele está. Perfeito.
– E eu tenho algo para lhe dar – disse Lohstrong.
O macho pôs a mão dentro do bolso da jaqueta esportiva e retirou uma caixinha de veludo preta do tamanho de uma bola de golfe.
Emocionando-se, a mãe começou a enxugar os olhos.
– Isto é para você, meu filho precioso.
A caixa foi empurrada por sobre a toalha de mesa branca adamascada, e a mão, agora grande, de seu irmão a pegou e levantou a tampa.
Qhuinn viu o dourado do outro lado do vestíbulo.
Enquanto todos à mesa permaneceram calados, o irmão fitou o anel de sinete, obviamente surpreso, enquanto a mãe continuava a enxugar os olhos, e até mesmo os do pai se umedeciam. E a irmã surrupiava um pãozinho da cesta.
– Obrigado, senhor – agradeceu Luchas ao colocar o anel no indicador.
– Serve, não é mesmo? – perguntou Lohstrong.
– Sim, senhor. Perfeitamente.
– Temos o mesmo tamanho, então.
Claro que sim.
No mesmo instante, o pai desviou o olhar, como se esperasse que o movimento dos olhos cuidasse da camada de lágrimas que atrapalhara sua visão.
E flagrou Qhuinn à espreita do lado de fora da sala de jantar.
Houve um flash de reconhecimento. Não do tipo “como vai, filho?” ou “ah, que bom, meu outro filho chegou”. Algo mais parecido como quando você anda pela grama e percebe um amontoado de cocô de cachorro tarde demais para não pisar nele.
O macho voltou a fitar a família, excluindo Qhuinn.
Obviamente, a última coisa que Lohstrong queria era que tal momento histórico fosse arruinado – e foi por isso que, provavelmente, ele não fez os gestos para espantar o mal. Normalmente, todos na casa faziam esse ritual quando viam Qhuinn. Não naquela noite. Papai não queria que os outros soubessem.
Qhuinn voltou para junto da bolsa de lona. Passando o peso pelo ombro, seguiu até a escadaria da frente para ir ao quarto. A mãe preferia que ele tomasse a escadaria de serviço, mas, para isso, ele teria de atravessar todo aquele amor ali presente.
Seu quarto ficava o mais distante possível dos outros, bem na extrema direita. Muitas vezes, ele se perguntava por que não o mandavam logo ficar com os doggen – mas provavelmente a criadagem se demitiria.
Fechando-se no quarto, largou a mala no chão sem nenhum tapete e sentou-se na cama. Fitando sua única bagagem, deduziu que seria melhor lavar logo a roupa, já que havia uma sunga molhada ali.
As criadas se recusavam a tocar em suas roupas – como se o mal dentro dele permeasse as fibras dos seus jeans e camisetas. O lado bom era que, por nunca ser bem recebido em eventos formais, bastava simplesmente lavá-las e usá-las.
Descobriu que estava chorando quando fitou seus Ed Hardys e percebeu que havia algumas gotas de água bem no meio dos cadarços.
Jamais receberia um anel.

Ah, inferno... Como doía...
Ele esfregava o rosto com as palmas das mãos quando seu telefone tocou. Pegando-o de dentro da jaqueta de motoqueiro, teve que piscar algumas vezes para focar a visão.
Apertou o botão para aceitar a ligação, mas não atendeu.
– Acabei de saber – disse Blay do outro lado. – Como é que você está?
Qhuinn abriu a boca para responder, o cérebro se debatendo com todo tipo de resposta: “Maravilha. Melhor impossível”, “Pelo menos não sou ‘gordo’ como a minha irmã”, “Não, não sei se o meu irmão transou”.
Em vez disso, falou:
– Eles me fizeram sair de casa. Não quiseram que eu amaldiçoasse a transição. Acho que deu certo porque o cara parece estar muito bem.
Blay praguejou baixinho.
– Ah, e ele acabou de ganhar o anel. Meu pai deu... o anel dele.
O anel de sinete com o brasão da família, o símbolo que todos os machos de boas linhagens usavam para atestar o valor de sua ascendência.
– Vi quando Luchas o colocou no dedo – disse Qhuinn, sentindo como se tivesse sido apunhalado por uma adaga que subia pelos braços. – Coube certinho. Ficou lindo. Mas sabe, né... Como se pudesse ser de outro jeito...
Nessa hora ele começou a soluçar.
Perdeu completamente o controle.
A terrível verdade era que debaixo do seu “foda-se” contracultural, ele queria que a família o amasse. Por mais afetada que a irmã fosse, por mais nerd que o irmão fosse, por mais reservados que os pais fossem, ele via o amor entre os quatro. Ele sentia o amor entre eles. Era um laço que unia aqueles indivíduos, um cordão invisível que ia de um coração ao outro, o comprometimento de se preocupar com tudo o que dizia respeito desde qualquer bobeira até os dramas mais verdadeiros e mortais. E a única coisa mais poderosa do que essa ligação era... sentir-se excluído dela.
Todos os malditos dias de sua vida.
A voz de Blay se fez ouvir acima do choro.
– Pode contar comigo. E eu sinto muito... Estou aqui para o que precisar... Apenas não faça nada estúpido, ok? Deixe-me ir aí...
Só mesmo Blay para saber que ele estava pensando em coisas que envolviam cordas e chuveiros.
Na verdade, a mão livre já abaixara para o cinto improvisado que ele mesmo confeccionara com um pedaço resistente de corda de náilon – porque seus pais não lhe davam dinheiro suficiente para roupas, e o cinto de verdade que ele possuíra se quebrara há vários anos.
Puxando-o, ele olhou para a porta fechada do banheiro. Tudo o que precisava fazer era amarrar a coisa no cano da parede – Deus bem sabia que aqueles canos de água tiveram utilidades nos tempos idos, quando as coisas eram fortes o suficiente para suportar um pouco de peso. Ele até tinha uma cadeira na qual podia subir para depois chutá-la debaixo de si.
– Preciso ir...
– Qhuinn? Não desligue. Não ouse desligar na minha cara...
– Olha aqui, eu tenho que ir...
– Estou indo te encontrar agora – muita comoção do outro lado da linha, como se Blay estivesse se vestindo às pressas. – Qhuinn! Não desligue... Qhuinn...!

Jose Canseco, cubano, ex-jogador profissional de baseball, foi campeão do World Series em 2000, jogando pelo New York Yankees. Em 2005, ele admitiu ter feito uso de esteroides anabolizantes. (N.T.)

 

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO 1

DIAS ATUAIS

– Saca só que belezinha fodida aí, ô!

Jonsey olhou para o idiota que estava agachado ao seu lado no ponto de ônibus. Os dois estavam esperando na gaiola de acrílico há três horas. No mínimo. Ainda que comentários como aquele fizessem parecer que se tratavam de dias.

E dariam uma bela justificativa para um assassinato.

– ‘Cê é branco, sabia? – observou Jonsey.

– Como é que é, mano?

Ok, talvez três anos de espera.

– Caucasiano, cara. ‘Cê precisa de protetor solar no verão, entende? Eu não...

– Deixa disso, mano, olha só o carango...

– E porque ‘cê tem de falar como se fosse do meu pedaço? ‘Cê ‘tá fazendo papel de besta, cara.

Àquela altura, ele só queria que a noite acabasse logo. Estava frio, nevava, e ele tinha de se perguntar a quem irritara tanto para acabar atolado ali com aquele Vanilla Ice.

Na verdade, estava considerando largar tudo. Vinha se dando bem traficando em Caldwell; fazia dois meses que saíra da prisão pelos homicídios que cometera quando menor de idade; a última coisa em que estaria interessado era passar tempo com um branquelo idiota que pensava em ganhar créditos de rua por meio do vocabulário.

Ah, sem falar naquele bairro de riquinhos em que estavam. Até onde ele podia supor, devia existir algum decreto que proibisse as pessoas de circular pelas ruas depois das dez da noite.

Por que diabos concordara com aquilo?

– Por favor. Olhe. Para. Aquele. Lindo. Automóvel.

Só para calar a boca do cara, Jonsey virou a cabeça e se inclinou para fora do abrigo. A neve soprando o atingiu no rosto e ele praguejou. Maldito norte de Nova York no inverno. Frio o suficiente para gelar as bolas...

Nossa... Olha ali...

Do outro lado de um estacionamento, bem diante de uma farmácia CVS 24 horas novinha, de paredes brancas sem nenhum grafite, havia mesmo um carrão fodido. O Hummer era completamente preto, nenhum cromado à vista – não nas rodas, nem em volta das janelas, nem mesmo no para-choque dianteiro. E era enorme – a julgar por toda aquela pompa, sem dúvida o motor devia ser o máximo.

O carrão era do tipo que se via nas ruas de onde ele vinha; seria o carro de um dos mandachuvas. A não ser pelo fato de que aquele lugar era bem longe da cidade, por isso só podia ser algum branquelo tentando mostrar que tinha colhões.

Vanilla Ice pegou a mochila e colocou uma alça no ombro.

– Vou dar uma espiada.

– O ônibus já vai chegar – Jonsey consultou o relógio e desejou que isso fosse verdade. – Cinco, talvez dez minutos.

– Vamos...

– Tchau, cretino.

– ‘Tá com medinho? – o filho da puta levantou as mãos e começou a sacudi-las. – Ai, que meeedo...

Jonsey puxou o revólver e apoiou o cano bem no meio do rosto do cretino.

– Não tenho nenhum problema em matar você bem aqui. Já fiz isso antes. Posso fazer de novo. Agora para de idiotice e faz um favor pra você mesmo. Cala a porra dessa sua boca.

Quando Jonsey encarou os olhos do outro, não se importou muito com o resultado daquilo tudo. Atirar no idiota. Não atirar. Não fazia diferença.

– ‘Tá bom, ‘tá bom, ‘tá bom. – O senhor Conversador recuou e deixou o ponto de ônibus.

Obrigado. Cacete.

Jonsey guardou a pistola, cruzou os braços e ficou olhando na direção que o ônibus viria – como se isso adiantasse.

Idiota filho da puta.

Olhou para o relógio de novo. Cara, chega disso. Se um ônibus voltando para a cidade chegasse ali primeiro, ele subiria e o resto que se foda.

Mudando de posição a mochila que lhe disseram para pegar, ele sentiu o contorno rígido do jarro dentro dela. O pacote ele entendia. Se ele ia transportar mercadoria de onde “Judas perdeu as botas” para o bairro, então tudo bem. Mas um jarro? Para que diabos alguém precisa disso?

A menos que fosse pó solto.

O fato de ele ter sido escolhido pelo C-Rider, o próprio, para aquilo foi bom pra cacete. Até ele ter conhecido o Garoto Branco – e daí a coisa perdeu um pouco da graça. As instruções do chefe foram claras: encontrar com o cara na parada da Rua Quatro. Pegar o último ônibus que ia para a periferia e esperar. Transferir-se para a linha rural quando o serviço voltasse a funcionar de madrugada. Descer na parada de Warren County. Depois andar um quilômetro e meio até uma propriedade rural.

C-Rider os encontraria ali com um punhado de outros caras para tratar de negócios. E depois? Jonsey faria parte da nova equipe montada para dominar o cenário em Caldie.

Ele gostava dessa merda. E respeitava completamente o C-Rider – o filho da puta era garantido: no comando lá do pedaço; foda.

Mas se o resto deles fosse como o Vanilla...

O ronco de um motor o fez pensar que algum ônibus da Companhia de Transportes de Caldwell tivesse finalmente chegado, e ele se pôs de pé...

– Puta que o pariu... – sussurrou.

O Hummer preto tinha parado bem na frente do ponto de ônibus e, quando o vidro abaixou, o Garoto Branco estava alucinado atrás do volante – e não só porque Cypress Hill estava, de fato, berrando no rádio.

– Entra! Entra! Entra!

– Que merda que ‘cê fez? – Jonsey gaguejou, mesmo assim dando a volta por trás do carro e subindo no banco do passageiro.

Puta que o pariu – o cretino não era um cretino completo, não se conseguia fazer uma coisa dessas.

O cara pisou fundo no acelerador, o motor rugiu, e os pneus cravaram na neve acumulada, lançando-os para frente a oitenta quilômetros por hora.

Jonsey se segurou como pôde conforme eles dispararam pelo cruzamento de farol vermelho e depois por cima da calçada da loja Hannaford. Enquanto eles se distanciavam, a música sufocou o alarme que avisava que eles não tinham colocado o cinto de segurança.

Jonsey começou a rir.

– Isso aí, puta merda! Seu foda, floco de neve fodido...!

– Acho que isso é Justin Bieber.

De frente para a prateleira de batatinhas fritas, Qhuinn levantou o olhar para os alto-falantes de teto.

– É. Acertei, e odeio o fato de eu saber isso.

Ao seu lado, John Matthew sinalizou:

Como você sabe?

– O merdinha está por todos os lados – para provar o que disse, indicou um expositor de cartões com Short, Cocky e Fifteen-Minutes-Are-Up. – Juro, o garoto é a prova de que o Anticristo está chegando. Talvez ele já esteja aqui.

– Isso explicaria Miley Cyrus.

Bem observado.

Enquanto John voltava a analisar a sua escolha de salgadinhos, Qhuinn deu uma olhada na loja. Quatro da manhã e a farmácia estava completamente abastecida e absolutamente vazia – a não ser por eles dois e pelo rapaz na caixa registradora, que lia o National Enquirer e comia uma barrinha de chocolate Snickers.

Nenhum redutor. Ninguém do Bando de Bastardos.

Nada em que atirar.

A menos que o expositor de Justin Bieber contasse.

O que vai pegar?, John perguntou com sinais.

Qhuinn deu de ombros e continuou olhando em volta. Como ahstrux nohtrum de John, era sua responsabilidade garantir que o cara voltasse inteiro para a mansão da Irmandade todas as noites e, depois de mais de um ano, tudo bem por enquanto...

Puxa, como sentia falta de Blay.

Balançando a cabeça, esticou o braço a esmo. Quando o braço recuou, ele segurava um pacote de batatas com cebola e creme azedo.

Olhando para o logo da Lay’s e o close-up da batatinha, ele só conseguia pensar na época em que ele, John e Blay costumavam matar o tempo na casa dos pais de Blay, jogando Xbox, bebendo cerveja, sonhando com vidas melhores e maiores após a transição.

Infelizmente, melhor e maior só resultou no tamanho e na força de seus corpos. Ainda que talvez esse fosse apenas o seu ponto de vista. Afinal, John estava muito bem com sua companheira. E Blay estava com...

Merda, ele não conseguia nem mesmo dizer mentalmente o nome do primo.

– Tudo certo, J.? – perguntou asperamente.

John Matthew pegou uma embalagem normal de Doritos e assentiu.

Vamos pegar bebidas.

Enquanto avançavam pela loja, Qhuinn desejou que estivessem no centro da cidade, brigando nos becos, enfrentando qualquer um dos seus dois inimigos. Tempo em excesso despendido em detalhes suburbanos e isso significava pensar demais em...

Interrompeu-se novamente.

Que diferença fazia? Além disso, ele detestava ter qualquer contato com a glymera – e isso era recíproco. Infelizmente, os membros da aristocracia gradualmente retornavam para Caldwell, e isso significava que Wrath ficara até o pescoço com chamados de supostos assassinatos.

Como se os mortos-vivos de Ômega não tivessem coisas melhores a fazer do que espreitar entre pomares desnudos e piscinas congeladas.

Ainda assim, o Rei não estava em posição de mandar os janotas se foderem. Não desde que Xcor e seu Bando de Bastardos colocaram uma bala no pescoço real.

Traidores. Malditos. Com um pouco de sorte, Vishous iria provar sem sombra de dúvida de onde tinha vindo o tiro de rifle, e então eles poderiam destripar aqueles soldados, colocar suas cabeças em estacas e atear fogo em seus corpos.

Assim como descobrir exatamente quem no Conselho estava de conluio com o novo inimigo.

Sim, amistoso era o nome do jogo agora – por isso, uma noite por semana, cada uma das equipes acabava ali no bairro em que ele crescera, batendo em portas e olhando debaixo das camas.

Em casas parecidas com museus que lhe davam mais arrepios do que qualquer passagem escura do centro da cidade.

Uma batidinha no seu braço fez com que ele virasse a cabeça.

– O que foi?

Era o que eu ia perguntar.

– Como é?

Você parou aqui. E ficou olhando para... Bem, você sabe.

Qhuinn franziu o cenho e olhou de relance para a prateleira de produtos. E acabou perdendo o fio da meada dos seus pensamentos – e boa parte do sangue da cabeça.

– Ah, é... Bem... – merda, alguém aumentou a calefação do lugar? – Hum...

Mamadeiras. Leite em pó. Babadores e lenços umedecidos e hastes flexíveis. Chupetas. Garrafinhas. Algum tipo de contraceptivo...

Ai, meu Deus, uma bomba de leite.

Qhuinn deu uma volta de 180° tão rápida que acabou de frente a uma pilha de fraldas Pampers, depois rebateu de volta no mundo das NUKs e, por fim, ricocheteou para fora do ambiente infantil graças ao rechaço de um A + D. O que quer que isso fosse.

Baby. Baby. Baby...

Ah, melhor assim... Seguiu o caminho para o caixa.

Enfiando a mão na jaqueta de motoqueiro, Qhuinn puxou a carteira e esticou a mão para trás para pegar a comida de John.

– Me passe isso aí.

Enquanto o cara começava a discutir, articulando as palavras visto que as mãos estavam ocupadas, Qhuinn apanhou a garrafa de Mountain Dew e os Doritos que estavam atrapalhando a comunicação deles.

– Prontinho. Enquanto ele cobra, você pode gritar comigo como se deve.

E como era de se esperar, as mãos de John dispararam em todas as posições possíveis na linguagem de sinais para dizer que aquela era por sua conta.

– Ele é surdo? – o rapaz atrás da caixa registradora perguntou num sussurro. Como se alguém usando linguagem de sinais fosse alguma aberração.

– Não. Cego.

– Ah.

Quando o rapaz continuou encarando, Qhuinn sentiu vontade de dar um peteleco nele.

– Vai nos ajudar aqui ou não?

– Ah, claro... Ei, você tem uma tatuagem no rosto – o senhor Observador se movia lentamente, como se os códigos de barra das embalagens estivessem criando algum campo de resistência debaixo do leitor a laser. – Sabia disso?

Sério?

– Não saberia dizer.

– Você também é cego?

O cara não tinha filtro algum. Nenhum mesmo.

– É, sou.

– Ah, então é por isso que os seus olhos são tão esquisitos.

– É. Pode crer.

Qhuinn pegou uma nota de vinte e não esperou pelo troco – homicídio era uma possibilidade um tantinho tentadora demais. Acenando para John, que também media o rapaz para encomendar uma mortalha, Qhuinn tomou o caminho da saída.

– E o seu troco? – chamou o rapaz

– Também sou surdo. Não estou ouvindo.

O rapaz gritou mais alto.

– Então vou ficar com ele, ok?

– Boa ideia – exclamou Qhuinn por sobre o ombro.

O idiota pertencia ao nível cinco de estupidez. Nível máximo.

Passando pelas barras de segurança, Qhuinn ponderou que era um milagre que humanos como aquele conseguissem passar seus dias. E o cretino conseguira vestir as calças e operar uma caixa registradora.

Os milagres nunca deixavam de acontecer.

Ao empurrar a porta para sair, o frio o esbofeteou, o vento açoitou seus cabelos, flocos de neve atingiam seu nariz...

Qhuinn ficou imóvel.

Olhou para a esquerda. Para a direita.

– Caralho... Cadê o meu Hummer?

Em sua visão periférica, as mãos de John começaram a voar como se ele estivesse se perguntando a mesma coisa. Em seguida, ele apontou para baixo, para a neve recém-caída e... para as marcas fundas dos quatro pneus monstruosos que formavam um círculo grande e seguiam para a saída do estacionamento.

– Puta que o pariu! – rosnou Qhuinn.

E ele pensava que o estúpido era o senhor Observador?


CAPÍTULO 2

Na mansão da Irmandade, Blaylock estava sentado na beira da cama, o corpo nu afogueado, uma camada de suor sobre o peito e os ombros. Entre as pernas, o pênis estava adormecido e os quadris relaxados depois de todo tipo de investida e encontrão. Por sua vez, a respiração estava acelerada, a carne necessitando de um tantinho mais de oxigênio do que seus pulmões conseguiam fornecer.

Naturalmente por isso, ele se esticou para pegar o maço de Dunhill Reds que mantinha na mesinha de cabeceira.

Os barulhos no chuveiro do banheiro do outro lado, junto ao perfume cítrico do sabonete artesanal, eram dolorosamente familiares.

Já fazia quase um ano?

Tirando um dos cigarros, ele pegou o isqueiro Van Cleef & Arpels que Sax lhe dera em seu aniversário. O objeto era de ouro e tinha os rubis Mystery Set incrustados conforme a técnica especializada da empresa, uma peça adorável dos anos quarenta, que nunca deixava de agradar aos olhos e ao coração.

Enquanto a chama acendia, o chuveiro era desligado.

Blay se inclinou na direção da chama, inalou e fechou a tampa do isqueiro. Como sempre, um rastro do fluido do isqueiro permeou o ar, sua doçura se misturando com a fumaça que ele exalou.

Qhuinn detestava cigarros.

Nunca os aprovara.

O que, considerando-se a quantidade de coisas ultrajantes que o cara tinha o hábito de fazer, parecia simplesmente ofensivo.

Sexo com inúmeros desconhecidos em banheiros de boates? Ménage à trois com machos e fêmeas? Piercings? Tatuagens em diversos lugares?

E o cara não “aprovava” que se fumasse. Como se fosse um vício sórdido com o qual ninguém, em seu juízo perfeito, devesse perder tempo.

No banheiro, o secador de cabelos que ele e Sax partilhavam foi ligado, e Blay pôde imaginar o cabelo loiro que ele acabara de agarrar e puxar para trás voando no ar artificial, captando a iluminação, os reflexos naturais brilhando.

Saxton era bonito, de pele lisa, corpo definido e excelente bom gosto.

Deus, e as roupas em seu guarda-roupa? Incríveis. Como se o Grande Gatsby tivesse saído das páginas de um romance, passado pela 5ª Avenida e comprado todo o estoque de alta costura.

Qhuinn jamais foi assim. Ele usava camisetas da Hanes e uniformes de couro, e ainda usava a mesma jaqueta de motoqueiro que tinha desde logo depois de sua transição. Nada de Ferragamo ou Bally para ele; New Rocks com solados do tamanho de pneus de caminhão. Cabelo? Com um pouco de sorte penteado. Colônia? Pólvora e orgasmos.

Diabos, em todos aqueles anos em que Blay conhecia o cara – e isso era praticamente desde o nascimento –, ele jamais vira Qhuinn vestindo um terno.

Há de se duvidar que ele soubesse que smokings podiam ser comprados, não apenas alugados.

Se Saxton era o retrato perfeito da aristocracia, Qhuinn era o de um bandido...

– Aqui está. Bata as cinzas nisto.

Blay levantou a cabeça. Saxton estava nu, perfeitamente penteado e cheirava a Cool Water – e estava segurando o pesado cinzeiro Baccarat que ele comprara no verão como um presente de solstício. Também era dos anos quarenta, e pesava tanto quanto uma bola de boliche.

Blay obedeceu, pegando-o e balançando-o na palma da mão.

– Está de saída para o trabalho?

Como se isso não estivesse óbvio.

– Exato.

Saxton se virou e o banqueteou com suas nádegas espetaculares ao seguir para o closet. Tecnicamente, ele devia viver num dos quartos de hóspedes vazios da casa, mas no decorrer do tempo, suas roupas acabaram migrando para ali.

Ele não se importava com o fumo. Até mesmo chegava a partilhar um cigarro de vez em quando depois de uma... de um intercâmbio energético, digamos assim.

– Como está indo? – Blay perguntou numa exalada. – Quero dizer, a sua missão secreta.

– Muito bem. Estou quase terminando.

– Isso quer dizer que vai poder finalmente me contar do que se trata?

– Logo você vai descobrir.

Quando uma sacudida de camisa emanou do closet, Blay virou o cigarro e fitou a ponta acesa. Saxton vinha trabalhando em algo extremamente secreto para o Rei desde o outono, e não houve confissões de travesseiro a respeito – o que devia ter sido apenas um dos motivos pelos quais Wrath tornou o macho o seu advogado particular. Saxton tinha a mesma discrição de um cofre de banco.

Qhuinn, por outro lado, jamais fora capaz de guardar um segredo. Desde festas surpresa a boatos e detalhes pessoais embaraçosos tais como se você transou com uma prostituta barata na...

– Blay?

– Desculpe, o que disse?

Saxton saiu do closet, completamente vestido num terno de três peças de tweed da Ralph Lauren.

– Eu disse, vejo você na Última Refeição?

– Puxa. Já está tarde assim?

– Sim, está.

Pelo visto transaram durante toda a Primeira Refeição do dia – como eles vinham fazendo desde...

Deus. Ele nem conseguia pensar no que acontecera apenas uma semana antes. Não conseguia sequer traduzir em palavras como se sentia a respeito da única coisa com a qual jamais se preocupara que pudesse acontecer – bem na frente dos seus olhos.

E ele acreditara que ser rejeitado por Qhuinn era ruim?

Vê-lo ter um filho com uma fêmea...

Merda, ele tinha de responder ao seu amante, não tinha?

– Sim, claro. Vejo você mais tarde.

Houve uma hesitação, depois Saxton se aproximou e pressionou um beijo nos lábios de Blay.

– Está de folga esta noite?

Blay concordou, mantendo o cigarro longe para não queimar as belas roupas do macho.

– Pensei em ler a New Yorker e talvez começar Paixões desenfreadas.

Saxton sorriu, obviamente apreciando o apelo de ambos.

– Como eu o invejo. Depois que eu terminar, vou tirar algumas noites de folga e só relaxar.

– Talvez a gente possa ir para algum lugar.

– Talvez.

A expressão contraída do belo rosto foi rápida e triste. Porque Saxton sabia que eles não iriam a parte alguma.

E não só porque uma viagem a Sandals com tudo incluso não estava no futuro deles.

– Cuide-se – disse Saxton, esfregando os nós dos dedos no rosto de Blay.

Blay acarinhou a mão com o nariz.

– Você também.

Um segundo depois, a porta abriu e fechou... e ele ficou sozinho. Sentado na cama bagunçada, no silêncio que pareceu esmagá-lo de todos os lados, ele fumou aquele cigarro até o filtro, esmagou-o no cinzeiro e acendeu outro.

Fechando os olhos, tentou se lembrar do som dos gemidos de Saxton ou da visão das costas másculas arqueadas ou da sensação da pele contra a pele.

Não conseguiu.

E essa era a raiz do problema, não?

– Deixe-me ver se eu entendi – V. disse com a voz arrastada pelo telefone. – Você perdeu o Hummer.

Qhuinn queria atravessar a vidraça com a cabeça.

– É. Perdi. Então, pode, por favor...

– Mas como foi que você perdeu um veículo de três toneladas?

– Isso não importa...

– Bem, na verdade, importa se você quiser que eu acesse o GPS e lhe diga onde pode encontrar o maldito carro; pois é por isso que você me ligou, não foi? Ou você acha que se confessar sem contar os detalhes faz bem para a alma e essa porcaria toda?

Qhuinn segurou o telefone com força.

– Deixeiaschavesnocontato.

– Como é? Pode repetir? Não entendi.

Até parece.

– Deixei as chaves no contato.

– Que idiotice, filho.

Jura?

– Então, pode me ajudar...?

– Acabei de mandar as coordenadas para você por e-mail. Ah, mais uma coisa... Quando recuperar o veículo...

– Sim?

– Pare um segundo só para ver se os ladrões ajeitaram o banco... Sabe, só para ficarem confortáveis e à vontade. Porque eles provavelmente não estavam com pressa, já que as chaves estavam lá – o som da risada de V. era como ser acertado nas bolas com o para-choque de um carro. – Olha só, preciso ir. Preciso das duas mãos para segurar a barriga de tanto que estou rindo de você. Até mais...

Quando a ligação ficou muda, Qhuinn precisou de um minuto para controlar o desejo de atirar longe o telefone.

É, porque perdê-lo também o ajudaria muito.

Entrando na sua conta do Hotmail, e imaginando quanto tempo teria de aguentar aquela vergonha, conseguiu a localização do maldito carro.

– Está seguindo para o oeste – virou o telefone para que John pudesse ver. – Vamos lá.

Desmaterializando-se, Qhuinn ficou vagamente ciente de que sua raiva era desproporcional ao problema: conforme suas moléculas se dispersavam, ele era como um fusível aceso esperando para se conectar a alguma dinamite – e não era apenas o fato de ele ser um estúpido, ou de perder o carro, ou pelo fato de ele ficar com cara de idiota diante de um dos machos que ele mais respeitava na Irmandade.

Havia muitas outras coisas.

Materializando-se numa estrada rural, ele verificou o telefone novamente e esperou John aparecer. Quando o lutador surgiu, ele recalibrou e eles seguiram ainda mais a oeste, aproximando-se, redirecionando-se... até que Qhuinn irrompeu na exata faixa de asfalto coberta de neve na qual estava o seu maldito Hummer.

A menos de cem metros à frente do veículo.

Quem quer que fosse o filho da puta que estava atrás do volante dirigia a quase cem quilômetros por hora na neve, seguindo para uma curva. Que estúp...

Bem, chamá-los de estúpidos era exatamente o tipo de coisa que o sujo diz para o mal-lavado na qual aquela noite estava se transformando.

Deixe-me atirar nos pneus, John gesticulou, como se soubesse que uma arma na mão de Qhuinn não seria a melhor das ideias.

No entanto, antes que ele conseguisse sacar a sua .40, Qhuinn se materializou... bem em cima do capô do SUV.

Primeiro ele aterrissou de cara no para-brisa, o traseiro recebendo o tipo de brisa que o transformou num inseto contra o vidro. Depois, veio o espanto geral: graças ao brilho do painel, ele enxergou as expressões de “Ai, meu Deus!” nos rostos dos dois homens no banco da frente... E então a sua brilhante ideia se transformou na merda número dois da noite.

Em vez de pisar no freio, o motorista virou o volante, como se assim conseguisse evitar o que já tinha pousado no capô do Hummer. O torque arremessou Qhuinn, o corpo ficando sem peso conforme ele voava no ar, tentando manter contato visual com a sua carona.

No fim, ele é quem teve sorte.

Como Hummers foram projetados e construídos para outras coisas que não a aerodinâmica e a facilidade na frenagem, as leis da física se agarraram a todo aquele metal pesado e capotaram a coisa. No processo, e apesar da cobertura de neve, o metal se chocou com o asfalto, e os gritos agudos de soprano romperam a noite...

O impacto ensurdecedor do SUV cravando em um objeto sólido do tamanho de uma casa pôs fim aos gritos. Qhuinn não prestou muita atenção à batida, porém. Porque ele também aterrissou, a estrada pavimentada batendo em seu ombro e quadril, o corpo fazendo a sua própria versão de um porco untado deslizando pelo chão coberto de neve.

CRASH!

Seu movimento cinético também foi interrompido quando algo duro o acertou na cabeça...

Em seguida, um show espetacular de luzes, como se alguém tivesse acendido fogos de artifício bem diante do seu rosto. Depois, foi a vez do Piu-Piu, de estrelinhas rodando em sua visão enquanto dores em vários lugares começaram a aparecer.

Empurrando o que quer que estivesse mais próximo dele – e ele não sabia muito bem se era o chão, uma árvore ou aquele gordinho de vermelho, o Papai-Noel –, ele se pôs de costas. Ao se deitar, o frio foi para a sua cabeça e ajudou a entorpecer as coisas.

Tinha a intenção de se levantar. Verificar o Hummer. Socar quem quer que tivesse tirado vantagem de seu vacilo. Mas isso era apenas o seu cérebro brincando consigo próprio. O corpo assumira o comando do volante e do acelerador, e não tinha a mínima intenção de ir a parte alguma.

Deitado o mais imóvel que conseguia e respirando bafejos de frio desiguais, o tempo recuou e depois começou a se metamorfosear. Por um segundo, ele ficou confuso quanto ao que o colocara naquela condição à margem da estrada. O acidente que ele causara?

Ou... a Guarda de Honra antes dos ataques?

Aquela coisa de ficar deitado de costas no asfalto era uma lembrança do seu passado ou algo que estava de fato acontecendo?

A boa notícia era que tentar descobrir a realidade proporcionou ao seu cérebro outra coisa para fazer em vez de insistir naquela merda de se mexer. A notícia ruim era que as lembranças da noite em que sua família o repudiou estavam mais dolorosas do que qualquer outra coisa que estivesse sentindo no momento.

Deus, estava tudo tão claro, o doggen trazendo-lhe os papéis oficiais e exigindo um pouco de sangue para um ritual de purificação. Ele jogando aquela bolsa de lona sobre o ombro e saindo de casa pela última vez. A estrada se estendendo à sua frente, vazia e escura...

Esta mesma estrada, na verdade. A estrada de agora em que caíra. E na qual estava. Ao sair da casa dos pais, ele tivera a intenção de seguir para o oeste, onde ouvira falar de um bando de malandros cretinos parecidos com ele. No entanto, quatro machos surgiram em mantos negros e o surraram até a morte – literalmente. Ele fora até os portões do Fade e, lá, vira um futuro no qual não acreditara... até ele acontecer. Estava acontecendo – naquele momento. Com Layla.

Ah, olha só, John estava falando com ele.

Bem diante dos seus olhos, as mãos do cara faziam movimentos, por assim dizer, e Qhuinn pretendia responder com algum tipo de informação.

– É real? – murmurou.

John pareceu momentaneamente confuso.

Tinha de ser real, pensou Qhuinn. Por que a Guarda de Honra o procurara no verão, e o ar que ele estava respirando era frio.

Você está bem?, John articulou com os lábios ao gesticular.

Enfiando a mão no chão coberto de neve, Qhuinn empurrou com toda a força que tinha. Quando não se moveu mais do que alguns centímetros, deixou que isso respondesse por ele... e apagou.


CAPÍTULO 3

O som da coca sendo fungada por um septo desviado fez com que o homem do lado de fora da porta apertasse ainda mais a adaga.

Idiota. Maldito idiota.

A primeira regra para qualquer traficante de sucesso era não ser usuário. Viciados que davam início aos seus negócios usavam. Associados sobre quem você precisava ter poder usavam. Prostitutas que você necessitava que fossem para as ruas usavam.

A administração nunca usava. Jamais.

O raciocínio era muito lógico, fundamental e nada diferente de, digamos, ir a um cassino de seis milhões de metros quadrados, com comida suficiente para alimentar um pequeno país e malditas folhas de ouro espalhadas a torto e a direito, e se surpreender por ter perdido todo o seu dinheiro. Se consumir drogas era uma ideia tão genial, por que pessoas morriam regularmente com essa merda, destruíam suas vidas por causa delas, eram mandadas para a prisão graças a isso?

Cretino.

O homem virou a maçaneta e empurrou. Claro que a porta estava destrancada, e conforme ele entrava no quarto esquálido, o odor de talco de bebê o teria sobrepujado – se já não tivesse se acostumado a ele.

O cheiro desagradável era a única coisa da qual ele não gostara na mudança. Todo o resto – a força, a longevidade, a liberdade – ele aceitara. Mas o cheiro, que maldição.

Não importava a quantidade de colônia que usasse, não conseguia se livrar dele.

Ah, sim, e sentia falta de poder fazer sexo.

Fora isso, a Sociedade Redutora era o seu bilhete para a dominação.

A fungada parou e o Redutor Principal levantou a cabeça da revista People sobre a qual fizera as carreiras. Debaixo do resíduo, um cara chamado Channing Tatum olhava para a câmera, sexy como o quê.

– Ei, o que está fazendo aqui?

Conforme os olhos injetados e lustrosos se esforçavam para focalizar, o “chefe” parecia ter acabado de dar um boquete num donut açucarado.

– Trouxe uma coisa para você.

– Mais? Ah, bom Deus, como você sabia? Só tenho mais cinquenta gramas e...

Connors, também conhecido como C-Rider, moveu-se rapidamente, dando três passos à frente, esticando o braço amplamente, balançando a adaga num círculo amplo – que acabou ao lado da cabeça do Redutor Principal. A lâmina de aço afundou, atravessando o osso mais mole da têmpora, perfurando a massa cinzenta confusa.

O Redutor Principal teve uma convulsão, talvez por causa do ferimento... Mais provavelmente porque suas glândulas adrenais acabaram de lançar milhões de centímetros cúbicos de “puta merda” na circulação sanguínea e a coisa não estava se misturando muito bem com a cocaína. Enquanto o merdinha caía num baque da cadeira e trepidava até o chão, a adaga ficou com Connors, soltando-se da lateral do crânio, a lâmina marcada com sangue negro.

Connors sustentou o olhar do seu agora antigo superior e sentiu-se tremendamente bem a respeito da promoção que acontecia. O próprio Ômega o procurara oferecendo-lhe o emprego, sem dúvida reconhecendo, como todos os outros, que um punkezinho de rua qualquer não era o que se queria para comandar qualquer organização maior do que um jogo de pôquer. Bem, é óbvio que o cara fora útil em aumentar o pelotão. Mas quantidade não era o mesmo que qualidade, e não seria preciso o Exército, a Marinha, a Força Aérea ou os Fuzileiros para ver que a Sociedade Redutora estava sendo atropelada por jovens sem lei e com déficit de atenção.

Difícil promover qualquer programa com esse tipo de pelotão e histórico – a menos que você tivesse um administrador verdadeiramente profissional.

Motivo pelo qual Ômega pusera tudo aquilo em ação.

– O q-q-que...

– Você está despedido, filho da puta.

A parte final da aposentadoria forçada veio com mais uma apunhalada, esta com a lâmina penetrando bem no meio do peito. Com um “puf ” e um pouco de fumaça, a mudança de regime foi concluída.

E Connors se tornou o cabeça de tudo.

A supremacia o fez rir por um momento – até seus olhos percorrerem o recinto. Por algum motivo, ele pensou naquele comercial de aromatizador de ar Febreze, aquele em que eles bagunçaram um lugar, borrifaram o produto como loucos, depois arrastaram “pessoas reais, não atores” para a cena para dar uma cheirada no ambiente.

Caramba, a não ser pelos restos de comida – que não existiam, porque assassinos não precisavam comer – tudo se encaixava: o mofo no teto, a mobília decadente, o vazamento na pia... e especialmente a parafernália que acompanhava os múltiplos vícios, como seringas, colheres, até mesmo a garrafa de dois litros de Sprite do laboratório de metanfetamina no canto.

Aquele não era um lugar que emanava poder. Era apenas um antro de drogas.

Connors se aproximou e pegou o celular do merdinha. A tela estava quebrada e havia algum tipo de remendo pegajoso na parte de trás. O equipamento não tinha senha de proteção e, quando ele entrou na parte das mensagens, todo tipo de puxa-saquismo surgiu, os textos cheios de blá-blá-blás parabenizando pela cerimônia de iniciação que aconteceria naquela noite.

Mas o Redutor Principal não soubera daquilo. Não era coisa dele.

No entanto, Connors não retaliaria. Os babacas puxa-sacos só estavam tentando permanecer vivos e chupariam o pau de qualquer um para continuar a respirar: ele, de fato, esperava a mesma lista se dirigindo a ele, e queria que o fizessem. Os espiões tinham o seu propósito no âmbito geral.

E, caramba, como havia trabalho a ser feito.

Pelo que ele deduzira do seu abençoado curto tempo de puxa-saquismo, a Sociedade Redutora tinha poucos recursos no que se referia à artilharia, à munição ou às propriedades. Nenhum dinheiro, pois o que entrara na forma de roubos menores acabara subindo pelo nariz do merdinha ou sendo injetado em seu braço. Nenhuma lista de recrutas, nenhuma tropa organizada, nada de treinamento.

Muita coisa precisava ser refeita rapidamente...

Uma rajada de ar frio entrou no cômodo, e Connors deu meia-volta. Ômega chegara de lugar nenhum, as vestes brancas do Mal brilhando suavemente, a sombra negra por baixo parecendo uma ilusão ótica.

A repulsa que perpassou Connors era algo a que ele sabia que teria de se acostumar. Ômega sempre apreciava um relacionamento especial com seu Redutor Principal – e, talvez por isso, dizia-se por aí que eles raramente duravam muito.

Mas, pensando bem, considerando-se quem ele escolhia...

– Cuidei dele – disse Connors, indicando a marca de queimado no chão.

– Sei disso – replicou Ômega, a voz se distorcendo no ar frio e fétido.

Do lado de fora, uma rajada de vento lançou neve contra a janela, o buraco no peitoril permitindo a entrada de alguns flocos. Ao entrarem, eles flutuaram até o chão, o frio ali presente era suficiente para sustentá-los, graças à presença do mestre.

– Ele voltou para casa agora – Ômega avançou como uma brisa, sem nenhuma evidência de que qualquer espécie de pernas se movesse debaixo dele. – E eu estou deveras satisfeito.

Connors ordenou aos seus pés que ficassem parados. Não havia para onde correr, nenhum lugar para onde escapar; ele simplesmente tinha que superar o que estava por vir.

Ao menos ele se preparara para isso.

– Tenho novos recrutas para você.

Ômega se deteve.

– Verdade?

– Uma espécie de tributo, por assim dizer – ou mais especificamente um ponto final definitivo naquilo: ele tinha de se encaminhar logo, planejara cuidadosamente para que aqueles dois eventos fossem próximos. Ômega, afinal, gostava dos seus brinquedinhos, mas gostava ainda mais da sua Sociedade e do seu propósito de eliminar os vampiros.

– Você me agrada imensamente – sussurrou Ômega ao se aproximar. – Acredito que vamos nos entender muito bem... Sr. C.


CAPÍTULO 4

A Escolhida Layla existira em seu próprio corpo sem qualquer comprometimento físico pela totalidade de sua existência. Nascida no Santuário da Virgem Escriba e treinada na paz sobrenatural e refinada dali, ela jamais soubera o que era fome, ou estado febril, ou dor de qualquer tipo. Nem calor, tampouco frio, contusão, concussão ou contração. Seu corpo fora, como com todas as coisas no lugar mais sagrado da mãe da raça, sempre da mesma placidez, um espécime perfeito funcionando no nível mais alto...

– Ai, meu Deus – ela engoliu em seco ao pular da cama e se arrastar até o banheiro.

Seus pés nus derraparam no mármore quando ela se lançou de joelhos, levantando a tampa do vaso sanitário, e se inclinou para ficar frente a frente com a epiglote do vaso.

– Só... acabe com... isso – ela arfou quando a onda de náusea poluiu seu corpo até os dedos dos pés se dobrarem agarrando-se ao chão. – Por favor... Pelo amor da Virgem Escriba...

Se ao menos ela conseguisse esvaziar o estômago, por certo a tortura terminaria...

Colocando o indicador e o dedo médio na garganta, ela os pressionou com tanta força que engasgou. Mas foi só isso. Não havia coordenação em seu diafragma, nenhuma libertação da carne estragada em seu estômago... Não que ela tivesse comido – isso ou qualquer outra coisa – por... quanto tempo mesmo? Dias.

Talvez fosse esse o problema.

Passando um braço ao redor do quadril, ela apoiou a testa suada na beirada fria e dura do vaso sanitário e tentou respirar superficialmente. A sensação do ar subindo e descendo pelo fundo de sua garganta só fazia piorar a necessidade impotente de vomitar.

Há apenas poucos dias, quando ela entrara no cio, seu corpo assumira o controle, a necessidade de copular forte o suficiente para apagar todo pensamento e emoção. Aquela supremacia logo passara, contudo, do mesmo modo que as dores da cópula infindável, a pele e os ossos mais uma vez tomando o assento de trás em seu cérebro.

O equilíbrio estava recuando mais uma vez.

Desistindo, mudou de posição com cuidado, apoiando os ombros na parede de mármore.

Considerando-se como se sentia mal, só podia deduzir que estava abortando. Jamais vira ninguém no Santuário passar por aquilo – será que aquele mal-estar era normal ali na Terra?

Fechando os olhos, desejou poder falar com alguém sobre isso. Porém, bem poucas pessoas sabiam de sua condição – e, por enquanto, ela precisava que as coisas continuassem assim. A maioria das pessoas sequer sabia que ela passara pelo cio e fora obsequiada. O período fértil de Autumn começara antes e, em reação, a Irmandade se afastara ao máximo para não correr o risco de se expor a esses hormônios – por um bom motivo, como ela tomou conhecimento em primeira mão. E quando as pessoas retornaram aos seus quartos normais na mansão? O seu cio passara, e qualquer corrente residual de hormônios no ar foi atribuída por todos ao fim do período de Autumn.

Entretanto, a privacidade naqueles seus dois cômodos não duraria se a gestação continuasse. Primeiro porque sua condição seria sentida pelos outros, especialmente pelos machos, que particularmente percebiam esse tipo de coisa.

Segundo, depois de um tempo, começaria a aparecer.

A não ser... Como é que o bebê sobreviveria se ela se sentia tão mal?

Enquanto uma leve sensação de contração se acomodava no baixo ventre, como se sua pélvis estivesse sendo comprimida por uma hera invisível, ela procurou focar a mente em alguma coisa, qualquer coisa que não fossem as sensações físicas.

Olhos da cor da noite surgiram.

Olhos penetrantes, olhos que fitavam de um rosto ensanguentado e distorcido... e belos mesmo em sua feiura.

Ok. Aquilo não era melhora alguma.

Xcor, o líder do Bando de Bastardos. Um traidor do Rei, um macho caçador que era inimigo da Irmandade e dos vampiros em todas as partes. O guerreiro bravio que nascera de uma mãe nobre que não o quisera por causa de sua aparência, e de um pai desconhecido que nunca reconhecera a paternidade. Um fardo indesejado saído de casa para um orfanato até entrar para o campo de treinamento de Bloodletter no Velho Mundo. Um lutador sem remorso, treinado nisso para grandes feitos; depois, em sua maturidade, um mestre na morte que viajou pela terra com um bando de lutadores de elite, primeiro aliados ao próprio Bloodletter e, depois, a Xcor – e a ninguém mais.

O rastro de informações na biblioteca do Santuário terminava ali porque nenhuma das Escolhidas vinha atualizando mais nada. O resto, contudo, ela podia completar por si só: a Irmandade acreditava que o atentado contra a vida de Wrath no outono fora planejado por Xcor, e ela também ouvira que existiam insurgentes dentro da glymera a serviço do guerreiro.

Xcor. Um traidor, um macho brutal sem consciência, sem lealdade, sem princípios a não ser para seu benefício.

Todavia, quando ela encarou aqueles olhos, quando esteve em sua presença, quando, sem saber, alimentara esse novo inimigo... sentira-se uma fêmea completa pela primeira vez em sua vida.

Porque ele a fitara não com agressão, mas com...

– Chega – disse ela em voz alta. – Pare com isso agora.

Como se ela fosse uma criança subindo numa estante ou algo assim.

Forçando-se a ficar de pé, ajeitou o roupão e resolveu sair do quarto e ir até a cozinha. Era necessária uma mudança de cenário, assim como comida – mesmo que fosse para dar ao seu estômago algo para expelir.

Antes de sair, não verificou o cabelo nem o rosto no espelho. Não se preocupou com o modo como o manto lhe caía. Não gastou nem um minuto ponderando sobre qual das suas sandálias idênticas usaria.

Tanto tempo fora gasto com detalhes em sua aparência.

Teria sido melhor despendê-lo estudando ou treinando para uma vocação. Isso, porém, não fora possível dentro dos preceitos permitidos das atividades para uma Escolhida.

Ao sair para o corredor, respirou fundo, equilibrou-se e começou a andar na direção do escritório do Rei.

Logo à frente, Blaylock, filho de Rocke, entrou apressado no corredor das estátuas, com as sobrancelhas unidas e o corpo coberto em couro do alto dos ombros até as solas dos enormes coturnos. Ao avançar, ele verificava as armas uma a uma, tirando-as dos coldres, recolocando-as, prendendo-as.

Layla parou de pronto.

E quando o macho finalmente a viu, ele fez o mesmo, os olhos se mostrando reservados.

Cabelos ruivos escuros, um par adorável de olhos azul safira, o aristocrata de sangue puro era um lutador da Irmandade, mas não era um bruto. Não importava como ele passasse as noites no campo de batalha, no complexo ele continuava um inteligente cavalheiro de boas maneiras, conduta e educação.

Por isso não foi surpresa que, mesmo em sua pressa, ele se inclinasse ligeiramente à cintura num cumprimento formal antes de voltar a correr para a escadaria principal.

Na descida dele para o vestíbulo, a voz de Qhuinn lhe retornou.

Estou apaixonado por alguém...

Layla praticou seu novo hábito de praguejar baixinho. Triste a situação entre esses dois guerreiros, e a sua gravidez em nada ajudaria.

Mas a sorte fora lançada.

E todos eles teriam de lidar com as consequências.

Quando chegou à escadaria, Blay sentia como se estivesse sendo perseguido, e isso era loucura. Ninguém que representasse qualquer tipo de ameaça estava atrás dele. Nenhum tarado com uma máscara de Jason, ou um bastardo com um infeliz suéter natalino e facas no lugar dos dedos, nem mesmo um palhaço assassino...

Somente uma Escolhida provavelmente grávida que, por acaso, passara bem umas doze horas transando com o seu maldito ex-melhor amigo.

Nada de mais.

Pelo menos, ela não deveria ser problema algum. A questão era que, toda vez que ele via aquela fêmea, sentia como se tivesse levado um soco no estômago. O que era mais uma loucura. Ela não fizera nada errado. Nem Qhuinn.

A menos que, Deus, se ela estivesse grávida...

Blay mandou todos esses pensamentos felizes para o fundo da mente ao cruzar o vestíbulo num trote. Não havia tempo para asneiras psicológicas, mesmo que só consigo: quando Vishous liga para você na sua noite de folga e lhe diz para estar na porta da frente em cinco minutos, não é porque as coisas estão bem.

Nenhum detalhe foi fornecido ao telefone; nenhum foi solicitado. Blay só levara um minuto para enviar uma mensagem de texto a Saxton, depois vestira couro e aço, pronto para qualquer coisa.

De certo modo, aquilo era bom. Passar a noite lendo no quarto acabara se mostrando uma tortura, e apesar de ele não querer que ninguém estivesse em apuros, ao menos aquilo o envolveria em alguma atividade. Saindo às pressas do vestíbulo, ele...

Deparou-se com o caminhão guincho da Irmandade.

O veículo estava equipado para parecer autenticamente humano, deliberadamente pintado com o logo vermelho da AAA* e o nome fictício Guinchos Murphy. Número de telefone falso. Slogan “Você pode contar sempre conosco” falso.

Bobagem. A menos que “você” fosse alguém da Irmandade.

Blay subiu no assento do passageiro e encontrou Tohr, e não V., atrás do volante.

– Vishous está vindo?

– Somos você e eu, garoto. Ele ainda está trabalhando no exame de balística daquela arma.

O Irmão pisou no acelerador, o motor a diesel roncou como uma fera, as luzes formando um círculo amplo ao redor da fonte do pátio e circundando os carros estacionados um atrás do outro.

Assim que Blay verificou os veículos e calculou quem estava faltando, Tohr disse:

– Qhuinn e John.

As pálpebras de Blay se fecharam por um átimo de segundo.

– O que houve?

– Não sei muito. John ligou para V. pedindo ajuda – o Irmão o fitou. – E você e eu somos os únicos disponíveis.

Blay alcançou a maçaneta da porta, pronto para abri-la e se desmaterializar dali.

– Onde eles est...

– Acalme-se, filho. Conhece as regras. Nenhum de nós pode sair desacompanhado, por isso preciso do seu traseiro nesse assento ou estarei violando o meu maldito protocolo.

Blay bateu o punho na porta, com força suficiente para que a dor na mão clareasse um pouco suas ideias. Maldito Bando de Bastardos, limitando-os assim – e o fato de a regra fazer sentido só o irritava ainda mais. Xcor e seus rapazes mostraram que eram perigosos, agressivos e completamente amorais – não eram exatamente o tipo de inimigo que você gostaria de enfrentar sozinho.

Mas, caramba...

Blay apanhou o telefone, pretendendo mandar uma mensagem para John, mas se conteve, pois não queria distraí-los ao tentar obter detalhes.

– Não há ninguém que consiga chegar lá antes?

– V. ligou para os outros. A luta está correndo solta no centro e ninguém consegue sair.

– Maldição.

– Vou dirigir o mais rápido que puder, filho.

Blay assentiu, só para não parecer rude.

– Onde estão e vai demorar muito?

– Uns quinze, vinte minutos. É depois da periferia.

Merda.

Olhando para fora da janela e vendo os flocos de neve passando, ele disse a si mesmo que se John estava mandando mensagens, eles estavam vivos e, pelo amor de Deus, o cara pedira um guincho, não uma ambulância. Até onde ele podia saber, os dois estavam com um pneu furado ou o para-brisa quebrado, e ficar histérico não encurtaria a distância, tampouco diminuiria o drama, se é que havia algum, nem mudaria as consequências.

– Desculpe se estou agindo como um idiota – murmurou Blay, quando o Irmão entrou na autoestrada.

– Não precisa se desculpar por se preocupar com um dos seus garotos.

Cara, o Tohr sabia ser legal.

Como era bem tarde da noite, a Northway não tinha nenhum carro, só um ou outro caminhão, cujos motoristas pilhados seguiam como morcegos saindo do inferno. O guincho não ficou muito tempo na estrada larga. Uns quinze quilômetros mais tarde, eles pegaram a saída ao norte do centro de Caldwell, numa área suburbana conhecida pelas suas mansões, não por ranchos; pelas Mercedes, não por Mazdas.

– Que diabos eles estão fazendo aqui? – perguntou Blay.

– Investigando aqueles relatos.

– Sobre os redutores?

– Isso.

Blay balançou a cabeça ao passarem por paredes de pedra tão altas e fortes quanto zagueiros de futebol americano, e portões com delicadas filigranas de ferro fechados para estranhos.

Abruptamente, respirou fundo e relaxou. Os aristocratas que voltavam para a cidade estavam assustados e viam provas das atividades dos redutores em tudo que os circundava – o que não significava que assassinos, de fato, saltassem detrás das esculturas dos jardins nem se escondessem em seus porões.

Aquele não era um evento mortal. Era só mecânico.

Blay esfregou o rosto e tratou de arrancar tudo do seu botão de pânico interno.

Pelo menos até saírem do outro lado do código postal e encontrarem o acidente.

Ao terminarem uma curva da estrada, havia um par de lanternas traseiras piscando sua luz vermelha do outro lado – bem depois do acostamento, de ponta cabeça.

O cacete que se tratava só de um problema mecânico.

Blay saltou antes de Tohr sequer começar a estacionar, materializando-se diretamente ao lado do Hummer.

– Oh, Cristo, isso não... – gemeu ao ver duas marcas no para-brisa dianteiro, o tipo de coisa que só podia ser feito por um par de cabeças atingindo o vidro.

Caminhando na neve, ele foi até a porta do motorista, o cheiro doce do combustível golpeando-o no nariz, a fumaça do motor cegando-o...

Um assobio agudo cortou o ar noturno logo à esquerda. Virando, Blay vasculhou o cenário acarpetado de neve... e encontrou duas formas desajeitadas cerca de seis metros mais distante, aninhadas na base de uma árvore quase do tamanho daquela na qual o Hummer se amontoara.

Andando com dificuldade pela neve acumulada, Blay se apressou até lá e aterrou sobre os joelhos. Qhuinn estava largado no chão, as pernas longas e pesadas esticadas, a parte superior do corpo no colo de John.

O macho apenas o encarou com aqueles olhos descombinados, sem se mover, sem falar.

– Ele está paralisado? – Blay exigiu saber, olhando para John.

– Não que eu saiba – respondeu Qhuinn secamente.

Acho que ele está com uma concussão, sinalizou John.

– Eu não...

Ele saiu voando do capô do carro e atingiu esta árvore...

– Quase nem acertei a árvore...

E eu tive que segurá-lo quieto desde então.

– O que está me irritando...

– E aí, rapazes, como estão? – Tohr perguntou ao se agachar perto deles, as botas esmagando o gelo. – Alguém ferido?

Qhuinn se soltou de John e se levantou.

– Não... Nós só...

Ao dizer isso, o equilíbrio dele oscilou, o corpo inclinando-se tanto que Tohr teve que segurá-lo.

– Vá esperar no guincho – o Irmão disse sério.

– Que se foda...

Tohr puxou-o até que ficassem de frente.

– Desculpe, filho, o que foi que disse? Porque tive a impressão que tentou usar a palavra que começa com “f ” comigo.

Ok. Certo. Blay sabia de antemão que havia poucas coisas na vida diante das quais Qhuinn recuava; dito isso, um Irmão respeitado por ele, que estava mais do que pronto para concluir o trabalho que aquele pinheiro começara, era, definitivamente, uma delas.

Qhuinn olhou para o SUV destruído.

– Desculpe. Noite ruim. E só fiquei tonto por um segundo. Estou bem.

Numa atitude típica de Qhuinn, o maldito se soltou e se afastou, seguindo para a pilha fumegante que antes era metal condutível como se pudesse se livrar dos seus ferimentos pela simples força de vontade.

Deixando os outros para comer poeira.

Blay se pôs de pé e se obrigou a focar em John.

– O que aconteceu?

Deus abençoe a linguagem de sinais; isso lhe dava algo para que olhar e, felizmente, John se alongou em detalhes. Quando a narrativa chegou ao fim, Blay só conseguia fitar o amigo. Mas seria impossível alguém inventar tudo aquilo.

Não a respeito de alguém de quem se gostava, pelo menos.

Tohrment começou a rir.

– Pelo que você está me dizendo, ele cometeu um hyslop.

– Não sei muito bem o que isso quer dizer – Blay interrompeu.

Tohr deu de ombros e seguiu a trilha de Qhuinn pela neve, mexendo o braço na direção do acidente.

– Bem ali. Aquela é a definição de um hyslop... iniciada pelo seu garoto deixando as chaves na ignição.

Ele não é o meu garoto, Blay disse para si mesmo. Nunca foi. Nunca será.

E o fato de isso doer mais do que qualquer tipo de concussão era algo tão significativo que ele resolveu se calar.

De lado e longe da luz dos faróis, Blay ficou para trás e viu Qhuinn se agachar pelo lado da porta do motorista e praguejar baixinho.

– Meleca. Mas que meleca...

Tohr fez o mesmo do lado do passageiro.

– Olha só, um parzinho.

– Acho que estão mortos.

– Mesmo? O que foi que o convenceu disso? O fato de eles não estarem se mexendo ou por este cara aqui não ter mais nenhuma feição?

Qhuinn se endireitou e olhou por cima da parte inferior do carro.

– Precisamos virá-lo para guinchá-lo.

– E cá estava eu pensando que íamos derreter marshmellows – comentou Tohr. – John? Blay? Venham cá.

Os quatro se posicionaram lado a lado entre os pneus e se afundaram nas botas, travando suas posições na neve. Quatro pares de mãos seguravam pelas portas; quatro corpos inclinando-se na posição de partida; quatro pares de ombros se preparando.

Uma única voz, a de Tohr, contou em voz alta:

– No três. Um. Dois. Três...

O Hummer já tivera uma noite ruim, e essa coisa de acertar o que estava errado o fez gemer tão alto que uma coruja disparou pela estrada e um par de cervos saiu correndo em seus cascos em meio às árvores.

Porém, o Hummer não era a única coisa praguejando. Todos se portaram como George Carlin* debaixo do peso morto ao se esforçarem contra a gravidade de todo aquele aço. As leis da física eram possessivas, porém, e enquanto o corpo de Blay se retesava, todos os seus músculos se esticando sobre os ossos, ele virou a cabeça e mudou a pegada...

Estava ao lado de Qhuinn. Bem próximo.

Os olhos de Qhuinn estavam focando para a frente, os lábios arreganhados para trás das presas, sua expressão feroz era o resultado de um esforço anatômico total...

Bem perto de como ele ficava quando gozava.

Santa inadequação, Batman. Que pena que isso não mudasse em nada o curso dos seus pensamentos.

O problema era que Blay sabia de antemão o que um orgasmo provocava naquele homem – ainda que não porque ele tivesse sido um dos milhares que foram o repositório. Isso não. Nunca isso. Que Deus não permitisse que o cara que enfiava o pau em tudo o que respirasse – e quiçá objetos inanimados – um dia fizesse isso com Blay.

Sim, porque esse perspicaz paladar sexual que levou Qhuinn a copular com tudo em Caldwell entre os vinte e os vinte e oito anos excluiu Blay do grupo de risco.

– Ele... está começando a se mexer... – disse Tohr por entre os dentes. – Para baixo!

Blay e Qhuinn responderam rápido, relaxando a pegada, agachando-se e passando os ombros por debaixo do teto do carro. De frente um para o outro, os olhos se encontraram quando o ar foi expelido das bocas, as coxas reagindo, os corpos travando uma batalha contra todo aquele peso morto e frio – que, por acaso, também estava escorregadio graças à neve.

A força conjunta deles foi a causa da virada – literalmente. Um eixo se formou nos pneus opostos, e o fardo de toneladas do Hummer mudou entre eles, tornando-se cada vez mais leve.

Por que diabos Qhuinn olhava para ele daquele modo?

Aqueles olhos, um par de azul e verde, estavam cravados nos de Blay, sem se mexerem.

Talvez fosse apenas resultado da concentração, como se ele estivesse apenas se centrando nos poucos centímetros à frente e, por acaso, Blay estivesse no fim do seu campo de visão.

Só podia ser isso...

– Devagar, rapazes! – avisou Tohr. – Ou a maldita coisa vai dar um giro completo!

Blay aliviou a pressão, e houve um momento de suspensão, um átimo de segundo em que o impossível aconteceu, quando um veículo utilitário de três toneladas se equilibrou perfeitamente em duas rodas, em que o que fora excruciante se tornou... hilário.

E, ainda assim, Qhuinn o encarava.

Quando o Hummer aterrissou nas quatro rodas, Blay franziu o cenho e se virou. Quando voltou a olhar... os olhos de Qhuinn estavam exatamente onde estiveram antes.

Blay se inclinou e sibilou:

– O que foi?

Antes que houvesse qualquer tipo de resposta, Tohr se adiantou e abriu a porta do SUV. O cheiro de sangue fresco flutuou com a brisa.

– Cara, mesmo que isto não tenha tido perda total, não sei não se você vai querê-lo de volta. Limpar isto vai ser o cacete!

Qhuinn não respondeu, parecendo ter se esquecido completamente a respeito do vívido comercial de seguros de carros pelo qual o seu veículo estava passando. Apenas ficou ali, olhando para Blay.

Talvez o filho da mãe tivesse tido um derrame de pé?

– Qual é o seu problema? – repetiu Blay.

– Vou trazer o guincho – disse Tohr ao seguir para o outro veículo. – Vamos deixar os corpos onde eles estão; vocês podem descartá-los no caminho de casa.

Nesse meio-tempo, Blay pôde sentir John parando e olhando para eles – algo com que Qhuinn não parecia se importar.

Com uma imprecação, Blay solucionou o problema correndo para o guincho e caminhando ao lado enquanto Tohr dava a ré até o Hummer acidentado. Aproximando-se da manivela, Blay soltou o gancho e começou a liberar o cabo.

Ele tinha a sensação de saber o que se passava pela cabeça de Qhuinn e, caso estivesse certo, era melhor o cara ficar de boca fechada e recuar.

Ele não queria ouvir.

Associação Automobilística Americana. (N.T.)

Humorista e comediante de stand-up americano. (N.T.)


CAPÍTULO 5

Enquanto Qhuinn permanecia parado no vento, vendo Blay enganchar o Hummer, a neve solta começou a cobrir suas botas, o peso leve e macio gradualmente obscurecendo as pontas de metal. Olhando para baixo, ele teve a vaga noção de que, se ficasse onde estava por tempo suficiente, acabaria completamente coberto por ela, da cabeça aos pés.

Que coisa mais estranha de se pensar.

O rugir do motor do guincho fez sua cabeça se erguer novamente, os olhos mudando de direção quando o cabo começou a arrastar seu carro arruinado do monte de neve.

Era Blay quem cuidava do içamento, ficando ao lado para monitorar e controlar a velocidade do cabo cuidadosamente a fim de que nenhuma força desnecessária fosse aplicada nos vários componentes mecânicos daquela produção de bom samaritanismo automotiva.

Tão atento. Tão controlado.

Tentando parecer casual, Qhuinn seguiu para perto de Tohr e fingiu que ele, assim como o Irmão, estava apenas monitorando o progresso do içamento. Não estava. Tratava-se apenas de Blay.

Sempre fora Blay.

Procurando demonstrar seu desinteresse, cruzou os braços sobre o peito, mas teve que abaixá-los novamente, visto que o ombro machucado reclamou.

– Lição aprendida – disse ele com o intuito de puxar conversa.

Tohr murmurou algo em resposta, mas ele não conseguiu ouvir. E menos ainda conseguia ver outra coisa que não Blay. Não num piscar de olhos. Nem numa respiração. Tampouco numa batida de coração.

Fitando através da neve rodopiante, ele se maravilhou em como alguém que sabia tudo a seu respeito, que vivia no mesmo corredor, que comia com você, trabalhava com você e dormia na mesma hora que você, pudesse... se tornar um estranho.

Pensando bem, e como sempre, aquilo se tratava de distância emocional, e não da coisa de trabalhar sob o mesmo teto.

A questão era que Qhuinn sentia como se quisesse explicar as coisas. Infelizmente, e diferentemente do seu primo sórdido, Saxton o Sacana, ele não tinha o dom das palavras, e o sentimento complicado no meio do seu peito só piorava ainda mais a sua tendência ao mutismo.

Depois de uma última puxada, o Hummer por fim se encontrava no piso do guincho, e Blay começou a passar a correia para dentro e para fora por baixo da carroceria.

– Certo, vocês três levem esse monte de entulho de volta – disse Tohr enquanto flocos de neve voltavam a cair.

Blay parou e olhou para o Irmão.

– Nós seguimos em pares. Portanto, devo ir com você.

Como se ele estivesse mais do que pronto a ir embora.

– Deu uma boa olhada no que temos aqui? Um monte de aço incapacitado com dois humanos mortos dentro. Acha que a situação é para relaxar?

– Eles conseguem cuidar disso – Blay disse baixo. – Os dois são capazes.

– Mas com você ficam mais fortes ainda. Vou desmaterializar de volta para casa.

No silêncio que se seguiu, a linha ereta que se formou subindo do traseiro de Blay até a base do crânio foi o equivalente a um dedo médio erguido. Não para o Irmão, porém.

Qhuinn sabia exatamente para quem.

As coisas correram rapidamente a partir daí; o SUV sendo amarrado, Tohr indo embora e John subindo no banco do motorista. Nesse meio-tempo, Qhuinn deu a volta até a porta do passageiro, abriu-a e deu um passo de lado, esperando.

Como um cavalheiro faria, supôs.

Blay apareceu, atravessando a neve. Sua expressão era como a do cenário que os envolvia: fria, reservada e inóspita.

– Depois de você – murmurou ele, pegando um maço de cigarros e um isqueiro elegante.

Qhuinn abaixou a cabeça num aceno rápido, depois entrou, deslizando pelo banco até o ombro encostar no de John.

Blay entrou em seguida, bateu a porta e entreabriu a janela, deixando a ponta acesa do prego do seu caixão na abertura para minimizar o cheiro.

O guincho foi quem sustentou a conversa por uns oito quilômetros mais ou menos.

Sentando entre os que costumavam ser seus dois melhores amigos, Qhuinn fitava o limpador de para-brisa e contava os segundos intermitentes entre as limpadas... três, dois... um... Sobe e desce. E... três, dois... um... Sobe e desce.

Mal havia neve solta o suficiente no ar para se darem ao trabalho.

– Desculpe – deixou escapar.

Silêncio. A não ser pelo ronco do motor diante dele e pelo ocasional barulho de correntes na parte de trás quando passavam por sobre uma elevação ou buraco.

Qhuinn olhou de relance e, ora essa, Blay parecia estar mastigando metal.

– Está falando comigo? – disse ele ranzinza.

– Sim. Estou.

– Não tem do que se desculpar – Blay esmagou o toco do cigarro no cinzeiro do painel. E acendeu outro. – Pode, por favor, parar de me encarar?

– Eu só... – Qhuinn levou a mão aos cabelos e lhes deu um puxão e tanto. – Eu não... Não sei o que dizer a respeito de Layla.

A cabeça de Blay se virou num rompante.

– O que você faz com a sua vida não me diz respeito...

– Isso não é verdade – Qhuinn disse baixinho. – Eu...

– Não é verdade?

– Blay, escute aqui, Layla e eu...

– O que o faz pensar que quero ouvir sequer uma palavra sobre você e ela?

– Só pensei que talvez você precisasse de algum... sei lá, de um contexto, ou algo assim.

Blay simplesmente fitou a frente um momento.

– E por que, exatamente, você acredita que eu precise de um “contexto”?

– Porque... pensei que talvez você achasse tudo... perturbador. Ou algo assim.

– E por quê?

Qhuinn não conseguia acreditar que o cara quisesse que ele dissesse tudo em voz alta. Menos ainda na frente de outra pessoa, mesmo que fosse John.

– Bem, por causa... Você sabe.

Blay se inclinou, o lábio superior se retraindo atrás das presas.

– Só para que fiquemos bem claros aqui, o seu primo está me dando tudo de que preciso. O dia inteiro. Todos os dias. Você e eu? – ele moveu a mão com o cigarro para frente e para trás entre eles. – Nós trabalhamos juntos. Só isso. Por isso, quero que nos faça um favor antes de pensar que eu “preciso” saber de alguma coisa. Pergunte-se “se eu estivesse preparando hambúrgueres no McDonald’s, eu contaria isso para o cara das fritas?”. Se a resposta for não, então fique de bico fechado.

Qhuinn voltou a olhar para o para-brisa. E pensou em atravessá-lo com o rosto.

– John, encoste.

O lutador olhou de relance para ele. E começou a balançar a cabeça.

– John, encoste esta merda. Ou faço isso por você.

Qhuinn estava vagamente ciente de que o peito subia e descia com força e que a mão se fechara num punho cerrado.

– Encoste esta merda! – rugiu ao socar o painel com tanta força que fez com que uma das saídas de ar saltasse.

O guincho foi para a lateral da estrada e os freios rangeram quando a velocidade diminuiu. Mas Qhuinn já estava do lado de fora. Desmaterializando-se, ele escapou pela fresta na janela, junto à fumaça exalada por Blay.

Quase imediatamente, ele reapareceu ao lado da estrada, incapaz de sustentar seu estado molecular porque suas emoções estavam afetadas demais para tal. Colocando uma bota na frente da outra, ele caminhou pela neve, sua necessidade de se mover afogando tudo, inclusive a dor pulsante nas juntas dos dedos.

No fundo de sua mente, algo a respeito daquela faixa de estrada se apresentou, mas havia barulho demais no seu cérebro para que a especificidade da coisa surgisse à tona.

Não fazia ideia para onde estava indo.

Caramba, estava frio demais.

Sentando no banco do guincho, Blay se concentrava na ponta acesa do cigarro, a luzinha laranja mexia de um lado para o outro como a corda de uma guitarra.

A mão devia estar tremendo.

O assobio ao seu lado era a maneira de John lhe chamar a atenção, mas ele o ignorou. O que o fez levar um tapa no braço.

Isto é muito ruim para ele, sinalizou John.

– Está de brincadeira, né? – murmurou Blay. – Só pode estar me zoando. Ele sempre quis um relacionamento convencional e transou com uma Escolhida... Eu diria que isso...

Não isso, isto. John apontou para o asfalto. Aqui.

Blay mudou o olhar para o para-brisa só porque estava cansado demais para discutir. Na frente do guincho, os faróis iluminavam tudo, o cenário branco coberto de neve a ponto de cegar, a figura caminhando ao lado da estrada como uma sombra largada.

Pingos vermelhos marcavam o caminho das pegadas.

As mãos de Qhuinn sangravam por ele ter socado o painel...

De repente, Blay franziu o cenho. Sentou-se um pouco mais ereto.

Como as peças de um quebra-cabeças se encaixando, os detalhes aleatórios de onde estavam, desde a curva da estrada, até as árvores e a parede de pedra ao lado deles, tudo se juntou e completou um cenário.

– Ai, que merda. – Blay bateu a cabeça no encosto de trás. Fechando os olhos de leve, tentou encontrar outra solução para aquilo, qualquer coisa que não fosse sair dali.

E não conseguiu encontrar coisa alguma. Absolutamente nada.

Ao empurrar a porta, o frio invadiu o interior aquecido da cabine. Não disse nada a John. Não havia por quê. Coisas como sair na neve atrás de alguém eram autoexplicativas.

Afundando, ele andou ruidosamente em meio ao acúmulo de neve. A estrada fora limpa antes, mas já havia algum tempo.

O que significava que ele teria de agir rapidamente.

Ali, naquela parte rica da cidade, onde a base de arrecadação era tão grande quanto os jardins enormes, era melhor acreditar que um daqueles miniarados amarelos de remover neve apareceria ali antes do amanhecer.

Não havia necessidade de fazer aquilo diante de humanos. Ainda mais com o par de cadáveres ensanguentados no Hummer.

– Qhuinn – disse ele seco. – Qhuinn, pare.

Ele não gritou. Não tinha energia para tanto. Aquela... coisa, o que quer que houvesse entre eles, já se tornara exaustiva há muito tempo, e o atual espetáculo no acostamento da estrada era mais um episódio para o qual ele não tinha energia.

– Qhuinn. Sério.

Pelo menos o cara diminuiu um pouco o passo. E, com um pouco de sorte, ele estaria tão furioso que não juntaria as pistas sobre a localização deles.

Jesus, qual seria a probabilidade... pensou Blay ao olhar ao redor. Foi exatamente ali no quilômetro seguinte que a Guarda de Honra fizera seu servicinho – e Qhuinn quase morrera em decorrência da surra.

Deus, Blay se lembrava de ter se armado aquela noite, um par de faróis diferentes captando uma figura escura, daquela vez sangrando no chão.

Estremecendo, deu mais uma chance ao jogo.

– Qhuinn.

Ele parou, as botas se plantando na neve e não se adiantando mais. No entanto, ele não se virou.

Blay gesticulou para que John apagasse as luzes e, um segundo depois, tudo o que lhe restava eram as luzes alaranjadas de estacionamento do guincho.

Qhuinn apoiou as mãos nos quadris e olhou para o céu, a cabeça inclinada para trás, a respiração subindo numa nuvem de condensação.

– Volte e entre no guincho – Blay deu mais uma tragada e soltou a fumaça. – Precisamos ir embora...

– Sei o quanto Saxton significa para você – disse Qhuinn de modo brusco. – Já entendi. De verdade.

Blay se forçou a dizer:

– Isso é bom.

– Só acho que... ouvir isso ainda é um choque.

Blay franziu o cenho na luz diminuta.

– Não entendo.

– Sei que não. E isso é culpa minha. Tudo isso... é minha culpa – Qhuinn olhou de relance sobre o ombro, o rosto rígido e forte numa expressão séria. – Só não quero que pense que eu a amo. É só isso.

Blay foi dar mais um tragada em seu Dunhill, mas não tinha força suficiente nos pulmões.

– Eu... lamento... Não entendo... por que...

Ora, se essa não foi uma resposta maravilhosa.

– Não estou apaixonado por ela. Ela não está apaixonada por mim. Não estamos dormindo juntos.

Blay emitiu uma risada ríspida.

– Até parece.

– É sério. Eu a servi no cio porque quero um filho, e ela também, e tudo começou e terminou ali.

Blay fechou os olhos quando a ferida em seu peito foi reaberta.

– Qhuinn, para com isso. Você esteve com ela o último ano inteiro. Eu vi vocês... Todos viram vocês...

– Tirei a virgindade dela há quatro noites. Ninguém esteve com ela antes disso, nem mesmo eu.

Ah, essa era uma imagem que ele realmente precisava na cabeça.

– Eu não a amo. Ela não me ama. Não estamos dormindo juntos.

Blay não conseguia mais ficar parado, por isso deu alguns passos, a neve se acumulando debaixo das botas. E, do nada, surgiu a voz da Senhora da Igreja do SNL* em sua cabeça: Ora, isso não é incríííível?

– Não estou com ninguém – disse Qhuinn.

Blay riu mais uma vez com uma pontada de escárnio.

– Num relacionamento? Claro que não. Mas não espere que eu acredite que você está passando seu tempo fazendo florzinhas de crochê e colocando os temperos nas prateleiras em ordem alfabética com aquela fêmea.

– Faz mais de um ano que não faço sexo.

Isso o deteve.

Deus, onde fora parar o oxigênio daquela parte do universo?

– Tolice – Blay replicou com a voz entrecortada. – Você esteve com Layla... Há quatro noites. Como você mesmo disse.

No silêncio que se seguiu, a terrível verdade mostrou sua cara feia de novo, a dor tornando impossível para ele esconder o que tão diligentemente vinha escondendo nos últimos dias.

– Você esteve com ela de verdade – disse ele. – Vi o candelabro da biblioteca balançar debaixo do seu quarto.

E então foi Qhuinn quem fechou os olhos como se quisesse esquecer.

– Foi com um propósito.

– Preste atenção... – Blay balançou a cabeça. – Não estou entendendo bem por que você está me contando isso. Falei sério quando eu disse que não preciso de explicações quanto ao que você faz da sua vida. Você e eu... Nós crescemos juntos, e é só isso. Verdade, partilhamos muitas coisas no passado, e estávamos sempre presentes quando era preciso. Mas nenhum de nós cabe mais nas roupas que costumávamos usar, e esse nosso relacionamento também é assim. Ele não cabe mais nas nossas vidas. Nós... não cabemos mais. Você e eu? Temos um passado. E só. E é só isso... o que teremos sempre.

Qhuinn desviou o olhar, o rosto mais uma vez nas sombras.

Blay se forçou a continuar a falar.

– Sei que essa... coisa com a Layla... é importante para você. Ou imagino que seja... como pode não ser se ela está grávida? Quanto a mim? Honestamente, desejo que sejam felizes. Mas você não me deve nenhuma explicação... e mais importante, não preciso delas. Toquei o barco quanto a paixonites infantis... e era isso o que eu sentia por você. Na época, era apenas uma paixão, Qhuinn. Portanto, por favor, cuide da sua fêmea e não fique se preocupando se cortarei meus pulsos porque você encontrou alguém para amar. Assim como eu encontrei.

– Eu já disse. Eu não a amo.

Espere por isso, Blay pensou para si mesmo. Porque está chegando.

Aquilo ali era o clássico Qhuinn.

O macho era incrível na batalha. Leal ao ponto da psicose. E esperto. E tão sensual que era capaz de provocar distrações. E milhares de outras coisas que Blay tinha de admitir que ninguém se equiparava. Mas ele tinha um defeito sério, e não era a cor dos olhos.

Ele não sabia lidar com emoções.

Com nenhuma.

Qhuinn sempre correra de qualquer coisa profunda – mesmo sem se mexer. Ele era capaz de se sentar na sua frente e assentir e falar, mas quando as emoções se aprofundavam para ele, ele saía de sua pele. Simplesmente se distanciava. E se você tentasse forçá-lo a confrontá-las?

Bem, isso não era possível. Ninguém forçava Qhuinn a fazer coisa alguma.

Ah, sim, claro que havia um bom número de bons motivos para ele ser assim. A família dele tratando-o como se fosse uma maldição. A glymera menosprezando-o. Não ter tido raízes a vida inteira. Porém, quaisquer que fossem os motivos, no fim do dia, o macho fugiria de tudo o que fosse complicado, ou exigisse algo dele.

Provavelmente a única coisa que poderia mudar isso seria um filho.

Portanto, não importava o que ele dizia agora, não havia dúvidas de que ele estava apaixonado por Layla; mas tendo passado o cio com ela, e agora aguardando os resultados, estava perdendo a cabeça de tanta preocupação e se afastava dela.

E, por isso, estava ali parado no acostamento da estrada, tagarelando a respeito de coisas que não faziam sentido algum.

– Desejo o melhor para os dois – disse Blay, com o coração batendo forte dentro do peito. – Com toda sinceridade. Espero, de verdade, que isso dê certo para vocês dois.

Em uma quietude tensa, Blay se suspendeu do buraco em que mais uma vez caíra, agarrando-se para ressurgir à superfície, longe da agonia dolorosa e incandescente no centro da sua alma.

– E agora, podemos voltar para o guincho e terminar o nosso trabalho? – disse de modo neutro.

As mãos de Qhuinn se elevaram brevemente diante do rosto. Depois, ele abaixou a cabeça, enfiou as juntas ensanguentadas nos bolsos da calça e começou a voltar para o guincho.

– É. Vamos fazer isso.

Saturday Night Live, programa humorístico da TV americana, no qual a personagem The Church Lady, uma senhora devota e presunçosa, é a âncora de um programa de entrevistas da igreja. (N.T.)


CAPÍTULO 6

– Ah, meu Deus, eu vou gozar... Eu vou gozar...

Mais ao sul, no centro de Caldwell, no estacionamento atrás do Iron Mask, Trez Latimer estava feliz em saber disso, não surpreso. Mas ninguém na região dos três condados precisava saber.

Enquanto entrava e saía da participante muito disposta debaixo do seu corpo, ele a calou com um beijo sôfrego, a língua penetrando na boca quente, todos os comentários desnecessários sendo interrompidos.

O carro no qual se encontravam estava apinhado e rescendia ao perfume da mulher: doce e barato – merda, da próxima vez, ele escolheria uma voluntária com um SUV ou, melhor ainda, uma Mercedes S550 com espaço adequado no banco traseiro.

Obviamente, aquele produto da Nissan não fora fabricado para acomodar 120 quilos fodendo uma auxiliar de dentista seminua. Ou ela era uma auxiliar jurídica?

Não se lembrava.

E ele tinha problemas mais imediatos com que se preocupar. Numa mudança abrupta. Ergueu os lábios, pois quanto mais se aproximava do orgasmo, mais as presas se estendiam do maxilar superior, e ele não queria mordê-la por engano; o sabor de sangue fresco o colocaria num limiar mais perigoso, e ele não estava muito certo de que se alimentar dela seria uma boa ideia...

Risque isso.

Era uma má ideia. E não só por ela ser apenas humana.

Alguém os observava.

Erguendo a cabeça, espiou pelo vidro traseiro. Sendo um Sombra, sua visão era de três a quatro vezes mais perceptiva do que a de um vampiro normal, e ele conseguia enxergar com facilidade no escuro.

Sim, alguém os assistia à esquerda da entrada dos empregados como se estivesse vendo um filme.

Hora de acabar logo com aquilo.

Assumiu o controle de imediato, colocando a mão entre os corpos até chegar ao sexo da mulher, e masturbou-a ao mesmo tempo em que a penetrava, fazendo-a gozar com tanta intensidade que ela jogou a cabeça para trás e bateu na porta.

Nenhum orgasmo para ele.

Que seja. Alguém se demorando nas imediações fazia com que seu divertimento fosse transferido a outro território, o que significava que ele tinha de acabar logo com aquilo. Mesmo se não gozasse.

Ele tinha uma bela quantidade de inimigos graças às suas várias associações.

E também existiam... complicações... que eram somente suas.

– Oh, meu Deus...

Levando-se em consideração a respiração pesada, todas aquelas torções e as pulsações que comprimiam o pau de Trez, a auxiliar de dentista/assistente de advogado/técnica em veterinária estava se divertindo bastante. Ele, porém, já se retirara mentalmente daquela bobagem e bem que poderia estar saindo do carro, pegando a arma para...

Era uma fêmea. Sim, quem quer que fosse definitivamente era do sexo feminino...

Trez franziu o cenho ao perceber quem era.

Merda.

Bem, pelo menos não era um redutor. Um sympatho. Um traficante de drogas de quem ele precisava cuidar. Um cafetão rival com uma opinião a respeito de alguma coisa. Um vampiro desajustado. iAm, seu irmão...

Mas não. Apenas uma mulher inofensiva, e pena que ele não poderia voltar para seu bocado de prazer. O clima já era.

A auxiliar de dentista/assistente de advogado/técnica em veterinária/cabeleireira arfava como se tivesse carregado um piano sobre os ombros.

– Isso foi... incrível... Isso... foi...

Trez se retraiu e recolocou o pênis para dentro do zíper. Eram grandes as chances de sofrer de um caso de bolas de neon dentro de meia hora, mas ele lidaria com a situação quando ela surgisse.

– Você foi incrível. Você é o mais incrível dos...

Trez deixou que a barragem de palavras tolas recaísse sobre ele.

– Você também, gatinha.

Ele a beijou de modo que ela pensasse que ele se importava – e ele se importava, de certo modo. Essas mulheres humanas que ele usava importavam no sentido de serem seres vivos, merecedores de respeito e bondade pelo simples fato de terem corações pulsantes. Por um tempo breve, elas deixavam que ele lhes usasse os corpos, e algumas vezes as veias, e ele valorizava tais presentes, que lhes eram dados de livre e espontânea vontade, algumas vezes mais de uma vez.

E esse era o problema que se apresentava agora.

Subindo o zíper, Trez mudou o corpanzil de posição a fim de não esmagar a parceira de dez minutos, tampouco fazer uma craniotomia no teto do carro.

A garota não parecia querer se mexer, porém. Ela só continuava deitada como um travesseiro largado no assento, as pernas ainda abertas, o sexo ainda pronto, os seios ainda elevados desafiando a gravidade como dois melões colados nas costelas.

Devem estar debaixo da musculatura, pensou ele.

– Vamos vestir você – sugeriu, juntando as metades do sutiã rendado dela.

– Você foi tão fantástico...

Ela parecia feita de gelatina – a não ser pelos seios duros falsos – e toda maleável e aprazível, mas uma completa inútil quando ele a vestiu e a suspendeu, afagando seu rosto.

– Isso foi divertido, gatinha – murmurou, falando a verdade.

– Posso ver você de novo?

– Talvez – ele sorriu com comedimento para ela para que as presas não aparecessem. – Estou por aí.

Com isso, ela ronronou tal qual uma gata e depois lhe disse seu número de telefone, o qual ele não se deu ao trabalho de memorizar.

A triste verdade a respeito de mulheres como essa era que ela era apenas uma entre tantas. Naquela cidade de muitos milhões, deviam existir umas duzentas mil jovens de traseiros firmes e pernas frouxas à procura de diversão. Na verdade, eram apenas variações da mesma pessoa, motivo pelo qual ele precisava de novidades.

Com tanto em comum, uma porta giratória de suprimento novo era necessária para mantê-lo interessado.

Trez estava do lado de fora do carro um minuto e meio depois, e não se dera ao trabalho de apagar-lhe a memória. Como um Sombra, ele dispunha de muitos truques da mente para se apoiar, mas parara de se importar com isso há vários anos. O esforço não valia a pena – e, de vez em quando, ele gostava de repetir.

Verificada rápida na vigia.

Maldição, acabaria se atrasando para chegar ao encontro com iAm, mas, obviamente, ele teria de lidar com o problema da porta dos fundos antes de levantar acampamento.

Ao se adiantar e parar na frente da mulher, ela ergueu o queixo e colocou uma mão no quadril. Essa versão de pronta e disposta tinha entrelaçamentos loiros e preferia shorts curtos a saias – por isso parecia ridícula no frio, com a parca peluda rosa e as pernas nuas na brisa.

Muito parecida com uma bola de neve sobre dois palitos de dente.

– Mantendo-se ocupado? – ela exigiu saber. Obviamente, tentava parecer relaxada, mas devido ao modo como o sapato de salto batia no chão, ela evidentemente estava exaltada e incomodada... e não de um jeito bom.

– Oi, gatinha – ele as chamava sempre assim. – Está tendo uma noite agradável?

– Não.

– Puxa, que pena. Bem, vejo você por aí...

A mulher cometeu o erro colossal de segurá-lo pelo braço quando ele passou por ela, as unhas cravando na camisa de seda e apertando-lhe a pele.

A cabeça de Trez virou rápido, os olhos reluzindo. Mas, pelo menos, ele conseguiu se conter antes de arreganhar as presas.

– Que diabos você pensa que está fazendo? – perguntou ela, recostando-se nele.

– Trez! – alguém exclamou.

Abruptamente, a voz da sua segurança invadiu sua cabeça. Ainda bem. Os Sombras eram espécies pacíficas por natureza, desde que não fossem agredidos.

Enquanto Xhex se apressava, como se soubesse que homicídio não estava cem por cento fora de questão, ele desvencilhou o braço, sentindo cinco lâminas de dor provocadas pelas unhas da mulher. Refreando a fúria, ele a encarou.

– Vá para casa agora.

– Você me deve uma explicação...

Ele balançou a cabeça.

– Não sou seu namorado, gatinha.

– Ainda bem, ele sabe como tratar uma mulher!

– Então volta pra casa, pra ele – disse Trez com seriedade.

– O que você faz, transa com uma garota diferente toda noite?

– É. E às vezes duas aos domingos – merda, ele podia ter apagado a memória dessa. Quando foi que esteve com ela? Há duas noites? Três? Tarde demais agora. – Volte pra casa, pro seu homem.

– Você me enoja! Seu maldito filho da puta...

Enquanto Xhex se interpôs entre eles e começou a falar num tom baixo com a histérica, Trez ficou mais do que contente em recuar... Porque, veja só, a garota do Nissan escolheu aquele exato instante para dar a ré no estacionamento e passar por ali.

Abaixando a janela, ela sorriu como se gostasse de ser a outra.

– Vejo você depois, gatão.

Deixa para choro: garota de parca rosa, com namorado e desordem de afeição explodiu num acesso de choro digno de um velório.

E... naturalmente foi nesse instante que iAm apareceu.

Ao registrar a presença do irmão, Trez fechou os olhos.

Maravilha. Simplesmente perfeito.


CAPÍTULO 7

A cerca de dez quarteirões da noite de mal a pior de Trez, Xcor limpava a lâmina de sua foice com um pedaço de camurça mais macia que a orelha de um cordeiro.

Do outro lado do beco, Throe estava ao telefone, falando em voz baixa. Ele estava assim desde que o terceiro dos três redutores que encontraram naquele quadrante da cidade fora devolvido a Ômega.

Xcor não estava interessado em nenhum atraso, telefônico ou de qualquer outro tipo. O restante do Bando de Bastardos estava em outra parte do centro da cidade, à procura de qualquer um dos dois inimigos – e ele preferia estar completamente envolvido.

Mas as necessidades biológicas falavam alto. Maldição.

Throe concluiu a ligação e levantou o olhar, o belo rosto retesado em linhas sérias.

– Ela está disposta.

– Quanta gentileza a dela – Xcor embainhou a foice e guardou o pano. – Eu, no entanto, estou menos interessado no consentimento dela do que na questão da sua capacidade.

– Ela é capaz.

– E como sabemos disso?

Throe pigarreou e desviou o olhar.

– Fui até ela ontem à noite e me certifiquei pessoalmente.

Xcor sorriu com frieza. Então isso explicava a ausência do soldado. E o motivo da sua saída era um alívio. Ele temera que o outro macho tivesse...

– E como ela é?

– Viável.

– Você experimentou os encantos dela?

O cavalheiro, que um dia fora membro intelectual da glymera, mas que agora se mostrava útil, pigarreou.

– Eu... Hum, sim.

– E como foram? – quando não houve resposta, Xcor avançou pela neve suja e se aproximou do seu braço direito. – Como ela estava, Throe. Molhada e disposta?

O rubor do macho se intensificou em seu rosto perfeitamente delineado.

– Ela se mostrou adequada.

– Quantas vezes você a tomou?

– Diversas.

– Em diferentes posições, espero – quando houve apenas um aceno, Xcor cedeu. – Bem, então você cumpriu sua tarefa com honra perante seus colegas soldados. Estou bem certo de que os outros haverão de querer usufruir tanto da veia quanto do sexo.

No silêncio constrangedor que se seguiu, Xcor jamais admitiria para ninguém que ele não pressionara para saber dos detalhes para espicaçar seu subordinado... mas porque estava satisfeito que Throe tivesse se deitado com a fêmea. Ele queria distância entre o macho e o que acontecera no outono. Queria calendários repletos de anos, inúmeras fêmeas e rios de sangue de outras fêmeas...

– Contudo, há uma condição – disse Throe.

Xcor estreitou os lábios. Como a fêmea em questão ainda não o vira, não poderia ser mais dinheiro e, além disso, ele ainda não precisava se alimentar. Graças a...

– E qual seria?

– Tem que ser feito no domicílio dela. No início da noite de amanhã.

– Ah – Xcor sorriu com frieza. – Então, trata-se de uma cilada.

– A Irmandade não sabe quem fez a consulta.

– Você identificou seis machos, não?

– Não usei nossos nomes.

– Não importa – Xcor relanceou pelo beco, os sentidos se aguçando, procurando por redutores ou Irmãos. – Não subestimo o alcance do Rei. Nem você deveria.

De fato, suas ambições lançaram todos contra um inimigo de valor. O atentado à vida de Wrath no outono passado fora sua declaração de guerra e, como esperado, houve um efeito previsível: a Irmandade encontrara o esconderijo do Bando de Bastardos, infiltrara-se e saíra com a caixa do rifle que continha a arma que fora usada para colocar a bala no pescoço do Rei Cego.

Indubitavelmente, eles queriam provas.

A questão era, do quê? Ele ainda não sabia se o Rei sobrevivera ou se morrera, nem o Conselho sabia, pelo que ele ficou sabendo. Na verdade, a glymera nem sabia que o atentado ocorrera.

Wrath sobrevivera? Ou fora assassinado e a Irmandade agora se ocupava em preencher a lacuna? A Lei Antiga era muito clara quanto às regras de sucessão, desde que o rei tivesse herdeiros, o que ele não tinha. Portanto, seria seu parente mais próximo, uma vez que houvesse um.

Xcor queria saber, mas não fez perguntas. Tudo o que podia fazer era esperar até que a novidade se espalhasse – e, nesse meio-tempo, ele e seus soldados continuavam a matar redutores, e ele prosseguia reforçando sua força de base dentro da glymera. Pelo menos essas duas empreitadas estavam se encaminhando bem. Todas as noites, eles apunhalavam assassinos, mandando-os de volta a Ômega. E seu contato no Conselho, o não tão venerável Elan, filho de Larex, revelava-se bem ingênuo e maleável – duas características muito úteis numa ferramenta descartável.

No entanto, Xcor estava ficando cansado do vácuo de informações. E, na verdade, o arranjo com a fêmea que Throe encontrara era necessário, porém repleto de perigos. Uma fêmea capaz de vender as veias e o sexo para múltiplos usuários certamente era capaz de trocar informações por dinheiro – e ainda que Throe tivesse mantido suas identidades em segredo, a quantidade em que estavam fora revelada. A Irmandade deve ter calculado que nenhum do Bando de Bastardos era casado e, cedo ou tarde, naquela terra nova, eles necessitariam daquilo que tinham em abundância no Velho Mundo.

Talvez aquela fêmea tivesse sido colocada à disposição pelo Rei e pela sua segurança privada.

Bem, descobririam no dia seguinte. Emboscadas eram facilmente armadas, e não havia momento mais vulnerável do que quando um macho faminto estava na garganta ou entre as pernas de uma fêmea. Todavia, chegara a hora. Seus soldados estavam dispostos a lutar, mas seus rostos estavam tensos, os olhos encovados, a pele esticada demais sobre os malares. Sangue humano, o fraco substituto, não fornecia força o suficiente, e seus bastardos vinham se sustentando com isso por tempo demais. No Velho Mundo, havia fêmeas em número suficiente para servir quando era necessário. Mas desde que chegaram ao Novo Mundo, eles tiveram que se contentar.

Se aquilo era uma armadilha, ele estava disposto a combater os Irmãos. Pensando bem, ele fora bem servido...

Pelo amor à Virgem Escriba, não pensaria nisso.

Xcor pigarreou quando a dor em seu peito dificultou que engolisse.

– Diga à fêmea que no início da noite é cedo demais. Em vez disso, a procuraremos à meia-noite. E providencie alimentos humanos assim que a noite cair. Se os Irmãos estiverem lá, devemos nos confrontar numa posição de relativa força.

As sobrancelhas de Throe se ergueram como se ele tivesse se impressionado com o raciocínio de Xcor.

– Sim. Farei isso.

Xcor assentiu e desviou o olhar.

No silêncio, os eventos do outono se interpuseram, esfriando ainda mais o frígido ar de dezembro.

Aquela Escolhida sagrada estava sempre com ambos.

– O alvorecer se aproxima com rapidez – disse Throe em seu sotaque perfeito. – Está na hora de irmos.

Xcor olhou de relance para o leste. O início da aurora ainda estava por chegar, mas seu subordinado estava correto. Logo... muito em breve... a luz mortal do sol se espalharia, e pouco importava que estivesse em seu nível mais fraco, com o solstício do inverno passado há tão pouco tempo.

– Chame os soldados do campo de batalha – disse Xcor. – E encontre-os na base.

Throe digitou alguma combinação de letras numa mensagem que Xcor não teria sido capaz de ler. Em seguida, o soldado guardou o telefone com a expressão fechada.

– Não vai voltar? – perguntou Throe.

– Vá.

Houve uma longa pausa. E depois o soldado disse com suavidade:

– Não vais?

Nesse instante, Xcor pensou em cada um dos seus soldados. Zypher, o conquistador sexual. Balthazar, o ladrão. Syphon, o assassino. E o outro que não tinha nome, mas tinha pecados demais para contar. Então, chamavam-no de Syn.

E depois considerou seu leal e justo Throe, seu tenente.

Throe, de passado perfeito, raça impecável.

Lindo, agradável Throe.

– Vá agora – disse ao macho.

– E quanto a você?

– Vá.

Throe hesitou e, durante a pausa, a noite em que Xcor quase morrera voltou aos dois. Como não poderia?

– Como preferir.

O soldado se desmaterializou, deixando Xcor parado sozinho contra o vento. Quando teve certeza de estar sozinho, também enviou suas moléculas em rajadas frias, aventurando-se para o norte, para uma campina coberta por neve. Tomando forma, parou na base de uma colina suave, encarando uma bela árvore orgulhosa e adorável no cume.

Pensou na elevação do seio de uma fêmea, a clavícula elegante, o mais sublime pescoço pálido...

Enquanto o vento golpeava sua nuca, ele fechou os olhos e deu um passo à frente, atraído a retornar ao local em que encontrara sua perdição.

Onde estava a sua Escolhida?

Estaria ainda viva? A Irmandade teria lhe tirado a vida por causa de seu presente generoso, bondoso e extraordinário ao inimigo do seu Rei?

Xcor sabia que teria morrido sem o sangue dela. Gravemente ferido durante o atentado à vida de Wrath, esteve à beira da morte quando Throe o levara àquela campina e convocara a Escolhida, e a façanha fora realizada.

Throe orquestrara tudo. E, no processo, cravara uma maldição no coração sombrio de Xcor.

Suas ambições continuaram as mesmas: ele pretendia lutar pelo trono do Rei Cego e governar sobre os vampiros. Havia, porém, uma fraqueza que o perseguia.

Aquela fêmea.

Ela fora arrastada injustamente ao conflito entre os machos portadores de adagas, uma inocente que fora manipulada e depois usada.

Ele se preocupava demasiadamente com o bem-estar dela.

De fato, ele só tinha um arrependimento em uma vida inteira de atos de maldade. Se não tivesse mandado Throe para os braços da Irmandade, seu tenente não teria cruzado o caminho dela e se alimentado dela. E, não fosse esse encontro, Throe não teria convocado os serviços dela mais tarde, e ela não teria ido até eles naquela campina... e Xcor jamais teria fitado aqueles olhos cheios de compaixão.

E perdido uma parte de si mesmo.

Ele não passava de um vira-lata imundo, malformado e bastardo, um traidor da ordem e da proteção sob a qual ela vivia por direito. Não merecera o presente dela.

Tampouco Throe, e não porque ele fora deposto de sua antiga posição superior na glymera.

Nenhum homem mortal era merecedor.

Parando debaixo da árvore, Xcor fitou o lugar em que jazera deitado diante dela... onde ela se ajoelhara perto dele e sulcara seu pulso, e ele abrira a boca para receber o poder que somente ela poderia lhe dar.

Houve um momento em que seus olhos se encontraram e o tempo parou... e depois ela abaixou lentamente o pulso para a boca dele.

Ah, aquele contato tão breve.

Ele se convencera de que ela não passara de uma aparição de sua mente errante, mas quando Throe o levara de volta ao covil, sua consciência compreendera que fora real. Muito real.

Semanas se passaram. E então, numa noite, na cidade, ele a pressentira, e seguira o eco do sangue dela em suas veias para vê-la.

Nesse ínterim, ela descobrira a verdade a seu respeito: fitara-o na escuridão, diretamente para ele, e sua aflição ficara evidente.

Depois disso, seu covil fora infiltrado. Muito provavelmente por causa das suas orientações.

Com uma rajada de vento, a neve começou a cair novamente, os flocos espessando o ar, girando ao redor, atingindo-o nos olhos.

Onde ela estaria agora?

O que fizeram com ela?

No leste, o brilho do sol começou a aparecer, apesar do manto de nuvens, e seus olhos queimaram – por isso, ele cuidou de mantê-los fixos no arauto alaranjado da luz do sol, só pela dor.

Nunca antes ele se debatera com suas emoções como agora. Toda a vida só se concentrara na sobrevivência – primeiro nos anos no acampamento de guerra, e depois na eternidade debaixo de Bloodletter, e agora, nesta época atual, como chefe do seu bando de lutadores.

Contudo, ela o fendera, criando uma fissura vital.

Certo como ela lhe dera vida, também lhe tomara uma parte dela, e ele não sabia o que fazer.

Talvez apenas se permitisse ficar ali para ser incinerado. Parecia uma situação mais fácil do que a que vivia agora...

Que sina fora a dela?

Ele tinha de saber.

Isso era tão crucial quanto a sua busca pelo trono.


CAPÍTULO 8

– Então, o que fizeram com os corpos? – perguntou V. ao caminhar pela saída de trás do centro de treinamento.

Enquanto Qhuinn esperava para que John e Blay saíssem do guincho, deixou que um deles respondesse à pergunta de V. Estava cansado demais para isso; na verdade, ao olhar de relance pelo para-brisa e espiar o estacionamento subterrâneo das instalações, ele pensou em apenas se esticar no banco da frente e dormir.

Estava cansado demais para se preocupar com qualquer coisa.

No fim, porém, seguiu John e passou o traseiro cansado pela porta do motorista. Tinha de verificar Layla, e isso não aconteceria dali.

Desconsiderando-se o episódio do acostamento, pelo menos ele, John e Blay trabalharam bem juntos a caminho de casa. Cerca de quinze quilômetros antes do cruzamento para o complexo da Irmandade, eles encostaram em uma estrada deserta, despiram os dois homens mortos e desovaram os corpos num buraco de escoamento natural que não tinha nenhum fundo visível. Depois só restou dar marcha a ré e voltar para a estrada, sumindo dali, e permitindo que a neve, que voltara a cair pesadamente, cobrisse seus rastros, assim como vários pingos que formaram uma trilha de sangue vivo. Até o meio-dia, levando-se em consideração a estimativa de acúmulo de neve, seria como se nada tivesse acontecido.

Um perfeito trabalho da neve. Rá-rá...

Ele achava que devia se sentir mal pelas famílias dos homens, pois ninguém jamais encontraria seus restos mortais. Mas as evidências grotescas sugeriam que os dois viviam à margem, e não por serem hippies: armas, facas, um canivete, maconha e um pouco de ecstasy foram encontrados em seus diversos bolsos. E só Deus sabia o que havia nas mochilas.

Vidas violentas tendiam a ter fins violentos.

– ... filho da puta – dizia V. ao caminhar sobre o Hummer em sua plataforma. – No que foi que eles bateram? Uma barricada de cimento?

John sinalizou algo e V. olhou intensamente para Qhuinn.

– Em que diabos você estava pensando? Você poderia ter morrido.

Qhuinn golpeou o próprio peito.

– Ainda batendo.

– Idiota – mas o Irmão sorriu, revelando as presas. – No seu lugar, eu teria feito a mesma coisa.

Pelo canto do olho, Qhuinn notou que Blay caminhava sorrateiramente para a porta que conduzia às instalações. Ele desapareceria em mais um segundo e meio, pondo um fim ao drama que mais uma vez fora despejado aos seus pés.

Qhuinn sentiu uma necessidade repentina e urgente de seguir o lutador pelo corredor, longe de olhares curiosos. Mas até parece que ele precisava de mais uma...

O seu primo está me dando tudo de que preciso. O dia inteiro. Todos os dias.

Ai, Jesus, ia vomitar.

– E então, mais algum objeto particular?

Qhuinn se desvencilhou de toda aquela merda e foi ser útil.

– Vou buscar.

Subindo na plataforma do guincho, forçou a porta amassada do bagageiro do Hummer e se apertou numa abertura de trinta centímetros até o banco traseiro. Foi bom apertar o corpo por lugares pelos quais ele não passaria – isso lhe dava algo em que pensar, e as poucas reclamações dos seus ferimentos eram outra digressão fantástica.

As duas mochilas foram bem sacudidas. Ele encontrou a que tinham visto primeiro no volante bem atrás do banco do passageiro, e a outra estava na frente sobre o freio e o acelerador. Bagagem esquisita a daqueles dois, até onde ele podia afirmar; a imagem pedestre não combinava em nada com todo o resto de roupas urbanas descoladas que eles vestiam.

Mais para Ensino Médio que para intermediário no tráfico de drogas.

A menos que precisassem de um lugar para colocar os distintivos de honra ao mérito dos seus laboratórios de metanfetamina ou uma merda dessas.

Enquanto Qhuinn se arrastava de volta ao banco de trás, tomou a decisão abrupta de não sair pelo lado em que entrara. Girando, deitou-se no couro arruinado e levantou os joelhos na altura do peito. Com uma inspiração profunda, empurrou as botas na outra porta lateral e a abriu num estouro, as dobradiças de metal soltando-se num rugido, o painel rebatendo no concreto com um baque.

Satisfatório.

Enquanto os sons reverberavam em todo o estacionamento, V. acendeu um dos seus cigarros enrolados à mão e se inclinou no buraco que Qhuinn acabara de fazer.

– Você sabia que existem maçanetas feitas exclusivamente para isso, não sabia?

Qhuinn se sentou – e percebeu que acabara de arrebentar o único lado que não tinha sido destruído.

Oras se aquilo não era uma metáfora de toda a sua vida até aquele ponto.

Lançando as duas mochilas para fora, ele se jogou e aterrou firme ao mesmo tempo em que John pegava os fardos e os abria.

Droga. Blay tinha ido embora. A porta que dava para o centro de treinamento estava se fechando.

Praguejando baixinho, murmurou:

– Se houver celulares, eles ainda estão lá dentro; mesmo as janelas estando partidas, o vidro ainda está intacto, portanto nada deve ter saído voando.

– Ora, ora, ora... – comentou o Irmão num só sopro.

Qhuinn franziu o cenho e olhou para o que John tinha encontrado. Mas... que... diabos...

– Está de zoeira comigo?

Seu melhor amigo acabara de retirar um pote de cerâmica – um bem barato, daqueles que se encontram em lojas de departamento Target. E, olha só, o outro cara também tinha um.

Quais seriam as probabilidades de...?

– Precisamos encontrar esses telefones – murmurou Qhuinn, voltando a subir na plataforma do guincho. – Alguém tem uma lanterna?

Vishous retirou a luva de couro e esticou a mão iluminada.

– Bem aqui.

Enquanto o Irmão subia na beira da plataforma, Qhuinn se agachou e voltou para o compartimento traseiro do Hummer.

– Só não me acerte com essa coisa, ok, V.?

– Seria uma surra que você jamais esqueceria, eu prometo.

Puxa, aquela mão estava... bem à mão. Quando V. a colocou para dentro, todo o interior se iluminou como o dia, toda a carnificina formando sombras profundas e acentuadas. Rastejando em volta, Qhuinn apalpou debaixo dos bancos, esticando-se nos cantos. O cheiro era terrível, uma desagradável combinação de gasolina, plástico queimado e sangue fresco – e toda vez que ele apoiava a mão, ela afofava o resíduo de pó dos air bags.

Mas as pseudoposições de ioga valeram o esforço.

Ele saiu com um par de iPhones.

– Detesto essas coisas – V. murmurou ao recolocar a luva e apanhar os equipamentos.

Retornando ao ar relativamente fresco, Qhuinn respirou fundo e estalou o pescoço, depois desceu em outro pulo. Houve um tanto de conversa àquela altura, e ele acenou com a cabeça como se soubesse o que estava sendo dito.

– Olha, se você não se importar, preciso de um tempo para ver uma coisa – ele interrompeu.

Os olhos de V. se estreitaram nele.

– Com quem?

Na hora certa, John se adiantou, perguntando sobre o Hummer e o plano de recuperação, como alguém agitando um sinalizador na frente de um T-Rex para chamar a sua atenção. Enquanto V. falava do futuro do SUV como escultura de jardim, Qhuinn quase soprou um beijo na direção de seu camarada.

Ninguém, a não ser John e Blay, sabia a respeito de Layla – e eram assim que as coisas tinham de continuar naquele início.

No papel de ashtrux nohtrum de John, ele não podia ir longe, e não o fez. Passou pela porta que Blay utilizara e pegou o telefone. Discou para um dos ramais da casa e esperou, olhando para o veículo arruinado.

Lembrava-se da noite em que comprara a maldita coisa. Ainda que seus pais tivessem dinheiro, eles não sentiram uma necessidade premente de sustentá-lo assim como o fizeram com a irmã e o irmão. Antes da transição, ele se virara vendendo drogas às escondidas, mas não traficara muito – apenas o bastante para tapar o buraco da sua mesada miserável e evitar viver à custa de Blay o tempo inteiro.

O problema de caixa terminara assim que fora promovido a guarda-costas de John. Seu novo trabalho viera acompanhado de um salário de verdade: 75 mil por ano. E, levando-se em conta que ele não pagava impostos para o maldito governo humano, e a estadia e a alimentação eram gratuitas, ele tinha mais do que suficiente para sobrar.

O Hummer fora sua primeira aquisição importante. Ele fizera uma pesquisa na internet, mas a verdade era que ele já sabia o que queria. Fritz saíra para cuidar da negociação e da compra oficial... E na primeira vez em que Qhuinn ficou atrás daquele volante, girou a chave e sentiu o ronco debaixo do capô, ele quase chorou como uma menininha.

E agora o carro estava destruído. Ele não era mecânico, mas os danos estruturais eram tão graves que não fazia sentido algum ficar com ele...

– Alô?

O som da voz de Layla o fez voltar ao presente.

– Oi. Acabei de voltar. Como está se sentindo?

A enunciação precisa que lhe voltou o fez se lembrar dos seus pais, cada palavra pronunciada perfeitamente e escolhida com cuidado.

– Estou bem, obrigada. Descansei e assisti à televisão, conforme você me sugeriu. Estava passando uma maratona de Million Dollar Listing.

– Que diabos é isso?

– Um programa no qual se vendem casas em Los Angeles; por um instante, pensei que fosse ficção. Mas você sabe que é um reality show? Pensei que tivessem inventado tudo aquilo. Madison tem um cabelo maravilhoso... E gosto de John Flagg. Ele é muito astuto e muito gentil com a avó.

Ele lhe fez mais algumas perguntas. Queria saber se ela tinha se alimentado ou tirado um cochilo, por exemplo, só para mantê-la falando. Isso porque era entre as sílabas que ele procurava por sinais de desconforto ou preocupação.

– Então, você está bem – confirmou.

– Sim, e antes que você pergunte, já pedi a Fritz que me traga a Última Refeição. E sim, comerei todo o meu rosbife.

Ele franziu o cenho, sem querer que ela se sentisse acuada.

– Ei, escute, não se trata só do bem-estar do bebê. É também pelo seu. Quero que fique bem, sabe disso, não?

A voz dela ficou um pouco mais baixa.

– Você sempre foi assim. Antes de nós... sim, você sempre quis o que era o melhor para mim.

Concentrando-se na porta do carro que ele arrancara, ele pensou em como era bom chutar as coisas.

– Bem, meu plano é ir para a academia um pouco. Vou dar uma olhada em você antes de dormir, ok?

– Está bem. Cuide-se.

– Você também.

Ao desligar, ele percebeu que V. tinha parado de falar e olhava para ele como se algo estivesse fora de lugar – fogo nos cabelos, calças na altura dos tornozelos, sobrancelhas raspadas.

– Você está com uma fêmea por aí, Qhuinn? – perguntou o Irmão com fala arrastada.

Qhuinn olhou ao redor em busca de um bote salva-vidas e não encontrou nada.

– Eu... hum...

V. respirou fundo e se aproximou.

– Tanto faz. Vou trabalhar nestes telefones. E você precisa comprar outro carro – qualquer coisa desde que não seja um Prius. Até mais.

Quando John e ele se viram sozinhos, ficou bem claro que o outro estava se preparando para comentar sobre o acontecido no acostamento da estrada.

– Não quero ouvir, John. Não tenho forças para isso agora.

Merda, sinalizou John.

– Mais ou menos isso, amigo. Vai para casa?

Na interpretação severa das funções de trabalho de um ahstrux nohtrum, Qhuinn precisava estar com John 24 horas por dia, sete dias por semana. O Rei, contudo, os dispensara disso se estivessem dentro do complexo. De outro modo, ele acabaria sabendo coisas demais a respeito do seu amigo e de Xhex.

E John teria testemunhado o que ele e Layla... hum, é isso.

Quando John assentiu, Qhuinn abriu a porta e a segurou bem aberta.

– Depois de você.

Recusou-se a olhar no rosto do lutador quando ele passou; simplesmente não conseguiria. Porque sabia exatamente o que estava na cabeça do cara – e ele não tinha intenção alguma de falar sobre o que acontecera naquele pedaço de estrada em que ele caminhara pouco antes. Não da porcaria daquela noite. Nem da porcaria de... de tanto tempo atrás graças à Guarda de Honra.

Para ele, não havia mais o que falar.

A merda nunca ajudou ninguém a nada.

Saxton, filho de Tyhm, fechou o último Livro da História Oral e só conseguiu ficar olhando para a capa de couro macia com seus detalhes gravados em ouro.

O último.

Nem conseguia acreditar. Há quanto tempo vinha pesquisando aquilo? Três meses? Quatro? Será que havia terminado?

Uma rápida pesquisa visual na biblioteca da Irmandade, com suas centenas e centenas de volumes de direito, discursos e decretos reais... e ele pensou, sim, de fato, levara meses e meses para repassá-los. E agora, com a pesquisa completa, as anotações feitas e os caminhos legais pavimentados para aquilo que o Rei queria realizar, deveria existir um senso de realização.

Em vez disso, ele sentia medo.

Em seus estudos e prática como advogado, ele se deparara com problemas complicados antes, ainda mais depois que se mudara para aquela vasta casa e começara em suas funções como advogado pessoal do Rei Cego: as Leis Antigas eram muito complicadas, arcaicas não somente em seu fraseado, mas no próprio conteúdo – e o monarca da raça dos vampiros não era nada disso. O raciocínio de Wrath era tanto direto quanto revolucionário, e quando a questão era o seu governo, o passado e o futuro nem sempre coexistiam sem uma bela dose de remanejamento – das Leis Antigas, que fique bem entendido.

Aquilo, contudo, estava em um nível completamente diferente.

Wrath, como soberano, podia muito bem fazer o que quisesse, desde que os precedentes apropriados fossem identificados, remodulados e registrados. Afinal, o Rei era a lei viva, uma manifestação física da ordem necessária para uma sociedade civilizada. O problema era que a tradição não acontecia por acaso; era o resultado de gerações após gerações vivendo e tomando decisões baseadas em determinados grupos de lei que foram aceitos pelo público. Pensadores progressistas tentando liderar sociedades conservadoras entrincheiradas em novas direções tendiam a se deparar com problemas.

E essas... alterações adicionais sobre o modo como as coisas eram feitas? No atual ambiente político, no qual a liderança de Wrath já estava sendo desafiada...

– Está perdido em pensamentos.

Ante o som da voz de Blay, Saxton deu um salto e quase deixou sua Montblanc cair por cima do ombro.

Imediatamente Blay se adiantou para ajeitar o que fora perturbado.

– Desculpe...

– Não, está tudo bem, eu... – Saxton franziu o cenho ao ver as roupas de soldado molhadas e ensanguentadas. – Santa Virgem Escriba... o que aconteceu esta noite?

Evidentemente, em vez de responder, Blay seguiu para o bar sobre a antiga cômoda bombê no canto. Enquanto se demorava para escolher entre o xerez e um Dubonnet, ficou claro que ele preparava uma sequência de palavras em sua mente.

O que significa que aquilo estava ligado a Qhuinn.

Na verdade, Blay não gostava nem de xerez, nem de Dubonnet. E, obviamente, serviu-se de Porto.

Saxton se recostou na poltrona e fitou o candelabro penso tão distante do chão. O objeto era um espécime formidável de Baccarat, produzido na metade do século XIX, com todos os cristais chumbados e trabalho artesanal que havia de se esperar.

Lembrava-se dele oscilando sutilmente de um lado para o outro, os reflexos arco-íris cintilando ao redor do cômodo.

Há quantas noites? Fazia quanto tempo que Qhuinn servira à Escolhida no quarto imediatamente acima daquele cômodo?

Nada fora como antes depois disso.

– Um carro quebrado – Blay deu uma golada longa. – Apenas problemas mecânicos.

É por isso que sua roupa de couro está molhada e você tem sangue na camisa?, Saxton se perguntou.

E mesmo assim manteve a pergunta apenas para si.

Ele se acostumara a guardar as coisas para si.

Silêncio.

Blay terminou o Porto e se serviu de outro copo com o entusiasmo tipicamente reservado aos bêbados. Algo que ele não era.

– E... você? – perguntou o macho. – Como vai o seu trabalho?

– Terminei. Bem, quase.

Os olhos azuis de Blay se voltaram para ele.

– Verdade? Pensei que você ficaria nisso para sempre.

Saxton tracejou aquele rosto que ele conhecia tão bem. Aquele olhar no qual se detivera no que parecia uma vida inteira. Aqueles lábios nos quais ficara grudado por horas.

A sensação esmagadora de tristeza que sentiu foi tão inegável quanto a atração que o levara até aquela casa, para aquele trabalho, para sua vida nova.

– Eu também – disse ele depois de um momento. – Eu também...

pensei que duraria mais tempo do que durou.

Blay fitou o próprio copo.

– Faz quanto tempo que você começou?

– Eu não... consigo lembrar – Saxton levantou uma mão e esfregou a parte do nariz que se junta à testa. – Não importa.

Mais silêncio. No qual Saxton estava pronto para apostar o ar em seus pulmões que a mente de Blay recuara para o outro macho, aquele a quem ele amava como a ninguém mais, a sua outra metade.

– O que era, então? – perguntou Blay.

– O que disse?

– O seu projeto. Todo esse trabalho – Blay agitou o copo em círculos de modo elegante. – Estes livros que você tem examinado. Se terminou, você pode me contar sobre o que se trata, não?

Saxton considerou brevemente contar-lhe a verdade... de que existiram outras coisas, tão importantes e urgentes sobre as quais ele se calara. Coisas com as quais ele acreditava poder viver, mas as quais, com o passar do tempo, provaram ser um fardo pesado demais para ser carregado.

– Logo você vai descobrir.

Blay assentiu, mas foi com aquela distração vital que ele demonstrara desde o começo. A não ser pelo fato de ele dizer:

– Estou feliz que esteja aqui.

A sobrancelha de Saxton se arqueou.

– Verdade...?

– Wrath precisa de um advogado verdadeiramente bom ao seu lado.

Ah.

Saxton afastou a cadeira e se levantou.

– Sim. É verdade.

Foi com uma estranha sensação de fragilidade que ele juntou seus papéis. Por certo parecia, naquele momento tenso e triste, como se somente eles o sustentassem, aquelas folhas finas, porém poderosas com incontáveis palavras, cada uma delas escritas à mão e com cuidado, contidas com esmero em suas linhas de texto.

Ele não sabia o que faria sem elas numa noite como aquela.

Pigarreou.

– Quais os seus planos para o que resta da noite?

Enquanto esperava por uma resposta, seu coração batia por detrás das costelas, porque ele, e somente ele, parecia perceber que a tarefa dada pelo Rei não era a única coisa que estava terminando naquela noite. De fato, o otimismo sem fundamento que o sustentara nas fases iniciais daquele caso amoroso se deteriorara num tipo de desespero que o fizera se agarrar a migalhas de modo pouco característico... mas agora, até isso sumira.

Era realmente irônico. O sexo era apenas uma ligação física transitória – e muitas vezes em sua vida era a única coisa por que ele procurara. Mesmo com Blaylock, no começo, fora assim. No transcorrer do tempo, porém, o coração se envolvera, e isso o levara aonde estava naquela noite.

O fim de tudo...

– ... me exercitar.

Saxton saiu do seu transe.

– Desculpe, o que disse?

– Vou me exercitar um pouco.

Depois de beber quase uma garrafa de Porto?, pensou Saxton.

Por um instante, ele ficou tentado a pedir mais informações sobre a noite, os mínimos detalhes sobre “quem”, “o quê” e “onde” – como se eles pudessem desencadear algum tipo de alívio. Mas ele sabia que não devia fazer isso. Blay era uma alma generosa e compassiva, e tortura era algo que ele só realizava como parte do seu trabalho quando necessário.

Nenhum alívio viria, não de qualquer combinação de sexo, conversa ou silêncio.

Sentindo como se estivesse se preparando para o pior, Saxton abotoou o blazer e verificou se a gravata estava no lugar. Uma passada pelos peitorais indicou que o lenço quadrado estava precisamente arrumado, mas os punhos franceses da camisa precisavam de um ajuste, e ele logo providenciou isso.

– Preciso de um tempo para relaxar antes de ir falar com o Rei. Meus ombros estão me matando por eu ter passado a noite inteira sentado à escrivaninha.

– Tome um banho de banheira. Isso deve ajudar, não?

– Sim. Um banho.

– Vejo você mais tarde, então – disse Blay ao se servir novamente e se aproximar.

As bocas se encontraram num beijo breve, depois do qual Blay se virou e saiu para o vestíbulo, desaparecendo escada acima para ir se trocar.

Saxton observou sua saída. Até se adiantou alguns passos, só para poder ver os chutadores de merda, como os Irmãos chamavam os coturnos, subindo a escadaria principal, um degrau de cada vez.

Uma parte sua gritava para que ele seguisse o macho até o quarto e o ajudasse a se despir. Desconsiderando as emoções, a atração física entre eles sempre fora forte, e ele sentiu que gostaria de explorar aquilo agora.

A não ser pelo fato de que até mesmo esse Band-Aid estava se esfarelando.

Avançando para se servir de um xerez, sorveu-o e foi se sentar diante da lareira. Não fazia muito tempo que Fritz reestocara a lenha, e as chamas estavam vívidas e ativas por sobre as achas.

Aquilo doeria, Saxton pensou. Mas não o quebraria.

No fim, ele se recuperaria. Se curaria. Seguiria em frente.

Corações eram partidos o tempo todo...

Não havia uma canção a esse respeito?

A pergunta era, claro, quando ele e Blaylock falariam sobre aquilo.


CAPÍTULO 9

O som dos esquis cross-country deslizando sobre a neve era um avanço rítmico, repetido rapidamente.

A tempestade que viera do norte se dissipara após o alvorecer, e o sol ascendente que brilhava debaixo da camada de nuvens que se partia atravessava a floresta até iluminar o chão reluzente.

Para Sola Morte, os feixes de ouro pareciam lâminas.

Logo adiante, seu objetivo se apresentava como um ovo Fabergé acomodado numa prateleira: a casa no Rio Hudson era um espetáculo da arquitetura, uma gaiola de vigas aparentemente frágeis segurando pilhas e pilhas de painéis de vidro. Por todos os lados, os reflexos da água e do sol nascente eram como fotografias capturadas por um verdadeiro artista, as imagens congeladas na própria construção da casa.

Não me pagariam para viver assim, pensou Sola.

A menos que fosse à prova de balas. Mas quem tinha dinheiro para tanto?

De acordo com o departamento de registros públicos de Caldwell, a terra fora adquirida por um tal de Vincent DiPietro dois anos antes, e desenvolvida pela imobiliária do homem. Não se pouparam gastos na construção – pelo menos de acordo com a listagem de avaliação das propriedades, que era superior a oito milhões de dólares. Só depois da construção, concluiu-se que a propriedade mudou de mãos, mas não para uma pessoa física; para um fundo imobiliário – com apenas um advogado em Londres apontado como curador.

No entanto, ela sabia quem vivia ali.

Era ele o motivo por ela estar ali.

Ele também era o motivo por ela ter se armado até os dentes. Sola tinha muitas armas em lugares de fácil acesso: uma adaga na bainha atrás das costas, uma pistola no quadril direito, um chicote escondido na gola da parca de camuflagem branca e creme.

Homens como o seu alvo não apreciavam ser espionados – mesmo que ela estivesse ali apenas em busca de informações, e não para matá-lo, não tinha dúvidas de que se a encontrassem na propriedade, a situação ficaria tensa. Rapidamente.

Ao pegar os binóculos de dentro do bolso da parca, manteve-se imóvel e em silêncio. Nenhum som de alguém se aproximando por trás ou pelas laterais, e, à frente, ela tinha visão desobstruída da parte de trás da casa.

Normalmente, quando era contratada para esse tipo de missão, ela operava à noite. Mas não com esse alvo.

Chefões do tráfico de drogas conduziam seus negócios das nove às cinco – da noite, não do dia. Durante o dia eles dormiam e transavam, portanto era nessa hora que você quereria avaliar suas casas, aprender seus hábitos, conhecer os empregados e como eles se protegiam durante seu período de repouso.

Focando a casa, ela fez sua avaliação. Portas de garagem. Portão dos fundos. Janelas pela metade que ela supunha ser da cozinha. E depois começavam os vidros do chão ao teto, passando da parte dos fundos e dando a volta para a margem do rio.

Três andares.

Não conseguia ver nada que se movesse no interior.

Caramba, aquilo era muito vidro. E, dependendo do ângulo da luz, ela até conseguia ver alguns dos cômodos, especialmente o espaço amplo que parecia tomar pelo menos metade do primeiro andar. A mobília era esparsa e moderna, como se o proprietário não fosse hospitaleiro com gente à toa.

Ela apostava que a vista era incrível. Ainda mais agora, com uma nuvem cobrindo parcialmente o sol.

Passando os binóculos para o beiral do telhado, procurou por câmeras de segurança, esperando ver uma a cada seis metros.

Isso mesmo.

Ok, fazia sentido. Pelo que lhe disseram, o dono da casa era muito cuidadoso e esse tipo de desconfiança implacável tendia a ser acompanhada por uma boa dose de comportamento voltado à segurança, incluindo, mas não se limitando, guarda-costas, carros blindados e, muito certamente, monitoramento constante de qualquer ambiente no qual o indivíduo passasse algum tempo.

O homem que a contratara, por exemplo, tinha tudo isso e mais um pouco.

– Mas o qu... – sussurrou, focando melhor os binóculos.

Parou de respirar para garantir que nada se movesse.

Aquilo estava... tudo errado. Havia um padrão de ondulação no que estava no interior da casa. A pouca mobília que ela via estava ondulando sutilmente.

Abaixando as lentes poderosas, ela olhou ao redor, perguntando-se se talvez o problema fosse com a sua visão.

Não. Todos os pinheiros na floresta se comportavam apropriadamente, inertes, os galhos imóveis no ar frio. E quando ela levantou os binóculos mais uma vez, tracejou o telhado da casa e o contorno das chaminés de pedra.

Tudo estava completamente inanimado.

De volta ao vidro.

Inspirando profundamente, ela segurou o oxigênio nos pulmões e se equilibrou contra o galho da árvore mais próxima para dar mais estabilidade ao corpo.

Alguma coisa continuava estranha. As molduras das portas de correr e as linhas das varandas e todo o resto na casa? Estático e sólido. O interior, contudo, parecia... de alguma forma em má resolução, como uma imagem múltipla que fora criada para fazer as coisas parecerem como se fossem mobília... e essa imagem fora sobreposta a algo como uma cortina... que parecia estar sujeita a uma corrente de ar suave.

Aquele projeto seria mais interessante do que ela imaginara. Reportar as atividades de um parceiro de negócios de um “amigo” seu não a animara muito. Ela preferia desafios maiores.

No entanto, talvez houvesse mais a respeito desse homem do que parecia à primeira vista.

Afinal, camuflagem significava que você estava escondendo algo e ela fizera uma carreira à custa de tirar das pessoas o que elas queriam manter. Segredos. Itens de valor. Informações. Documentos.

O vocabulário usado para definir as coisas era irrelevante para ela. O ato de penetrar numa casa trancada, ou num carro, num cofre, ou numa maleta, e extrair o que ela procurava era o que importava.

Ela era uma caçadora.

E o homem naquela casa, quem quer que fosse, era a sua presa.


CAPÍTULO 10

Blay não tinha que ficar perto de pesos, muito menos do tipo de ferro que havia na academia do centro de treinamento. Forçar aquele Porto no estômago vazio o deixara tonto e descoordenado. Mas ele precisava ter algum tipo de direção... um plano, um destino para o qual arrastar seu pobre traseiro. Qualquer coisa que não fosse subir para o quarto, sentar naquela cama de novo e começar o dia do mesmo modo como começara a noite – fumando e fitando o vazio.

Muito provavelmente com muito mais Porto para acompanhar.

Saindo do túnel subterrâneo, ele passou pelo escritório e empurrou a porta de vidro.

Enquanto avançava, ainda bebendo do copo meio vazio, sua mente andava em círculos, imaginando quando aquele monte de asneiras entre ele e Qhuinn chegaria ao fim. No seu leito de morte? Deus, ele achava que não conseguiria durar tanto, levando-se em conta que ele ainda tinha uma vida inteira diante de si.

Talvez ele devesse se mudar da mansão. Antes de Wellsie ser assassinada, ela e Tohr viveram numa casa própria. Diabos, se fizesse isso, não teria de ver Qhuinn a não ser durante as reuniões – e com tantas pessoas espalhadas pela Irmandade, seria fácil ficar longe do campo de visão.

Na verdade, já vinha fazendo isso há algum tempo.

De fato, com esse plano, os dois nunca teriam de cruzar seus caminhos: John era sempre o parceiro do cara por causa de toda aquela coisa do ahstrux nohtrum, e considerando-se os turnos, a maneira como o território era dividido, ele e Qhuinn nunca lutavam juntos, a não ser numa emergência.

Saxton podia ir e voltar do trabalho...

Blay parou de pronto na entrada da sala de levantamento de pesos. Pelo vidro, ele viu pesos subindo e descendo na máquina reclinada de agachamentos, e ele sabia a quem pertencia aquele par de Nikes.

Maldição, não tinha um minuto de folga.

Inclinando-se, ele bateu a cabeça uma vez. Duas. Três...

– Sabe que as séries de repetições devem ser feitas nas máquinas... e não na porta.

A voz de Manny Manello era tão bem-vinda quanto uma biqueira de aço no meio das bolas.

Blay se endireitou, e o mundo deu uma girada rápida, ao ponto em que ele teve que colocar, disfarçadamente, a mão livre no batente só para que seu desequilíbrio não ficasse evidente. E também escondeu seu drinque quase finalizado.

O médico provavelmente não consideraria uma boa ideia exercitar-se sob a influência de álcool.

– Como vai? – perguntou Blay, mesmo não se importando com a resposta... e esse não era um comentário reservado ao hellren de Payne. Ele não se importava com muita coisa no momento.

A boca de Manello começou a se mover e Blay ficou olhando os lábios do homem formarem e soltarem as sílabas. Um momento depois, algum tipo de adeus foi dito, e logo Blay se viu sozinho com a porta de novo.

Parecia uma idiotice ficar apenas parado ali, e ele dissera ao médico que entraria. Além disso, devia haver o quê... uns 25 equipamentos na sala? Além de barras e pesos. Esteiras. StairMasters, elípticos... muita coisa com que se ocupar.

Não estou apaixonado por Layla.

Com uma imprecação, Blay empurrou a porta e se preparou para um desajeitado “ah, oi, é você...”. A não ser pelo fato de Qhuinn nem ter notado a sua entrada. Em vez de se exercitar com a música ambiente, ele estava com aqueles fones que cobrem os ouvidos e tinha se mudado para a barra fixa, portanto estava de frente para uma parede de concreto.

Blay se afastou o quanto pôde, subindo numa máquina qualquer – peitorais. Tanto faz.

Depois de apoiar o copo e ajustar o pino na pilha de pesos, acomodou-se no assento acolchoado, segurou as manoplas e começou a empurrar na altura do peito.

Tudo para o que podia olhar era Qhuinn.

Ou talvez isso fosse porque seus olhos se recusaram a olhar em qualquer outra direção.

O macho usava uma camiseta regata preta que deixava aqueles ombros tremendos em completa exposição... e os músculos ao longo deles se flexionavam ao máximo quando ele chegava ao topo da puxada, as saliências e os contornos de um lutador... não de um advogado...

Blay se deteve.

Qualquer comparação como aquela era injusta a ponto de provocar náuseas. Depois do último ano, ele conhecia o corpo de Saxton quase tão bem quanto o seu, e o macho era muito bem formado, tão magro e elegante...

Qhuinn suspendeu-se novamente, o peso da parte inferior do corpo exigindo força daqueles braços e daquele torso. E, graças ao seu esforço, o suor irrompeu sobre toda a pele, fazendo-o brilhar debaixo das luzes.

A tatuagem na parte de trás da nuca mudava conforme ele soltava e descia para ficar pendurado, e depois novamente na subida. E na descida. E na subida.

Blay pensou no modo como o macho ficara quando viraram o Hummer: poderoso, masculino... erótico.

Aquilo não podia estar acontecendo.

Ele não estava, de fato, sentado ali, olhando para Qhuinn daquele jeito...

Imagens do passado se infiltraram, transformando sua mente numa tela de televisão. Ele viu Qhuinn se inclinando sobre uma mulher humana que fora deitada com o traseiro para cima numa mesa, os quadris dele bombeando conforme ele a fodia, as mãos travadas nos quadris dela para segurá-la no lugar. Naquela vez ele não estava de camisa, e os ombros se mostraram tão rijos como agora.

Corpo firme sendo bem utilizado.

Havia tantas cenas como aquela, com Qhuinn em diferentes posições com pessoas diferentes, machos e fêmeas. No começo, logo depois das transições, houve uma tremenda sensação de excitação conforme os dois saíam para caçar juntos – ou melhor, era Qhuinn quem caçava e Blay aceitava o que quer que fosse trazido. Tanto sexo com tantas pessoas – ainda que, àquela altura, Blay se ativesse apenas às fêmeas.

Talvez porque ele soubesse que elas eram seguras, que elas “não contavam” em tantos modos.

Tão descomplicado no começo. Mas, em algum momento ao longo dos anos, as coisas sofreram uma mudança e ele começara a perceber que ao observar Qhuinn com os aleatórios, imaginava-se debaixo daquele corpo, recebendo o que o homem era tão bom em dar. Depois de um tempo, já não era mais a boca de um desconhecido no pau de Qhuinn; era a sua. E quando aqueles orgasmos surgiam, e eles sempre surgiam, era ele quem os recebia. Eram as suas mãos no corpo de Qhuinn, e seus lábios encaixados, e as suas pernas abertas.

E isso ferrou tudo.

Merda, lembrava-se de ter ficado acordado durante o dia, olhando para o teto, dizendo a si mesmo que quando estivessem numa boate novamente, naqueles banheiros, ou em qualquer lugar em que o mesmo acontecia, ele não faria mais aquilo. Mas toda vez que saíam, era como se uma pílula do sabor ideal fosse oferecida a um viciado.

E depois ocorreram aqueles dois beijos... o primeiro no corredor saindo dali, na sala de exames da clínica. E ele teve que implorar para recebê-lo. E depois o segundo no seu banheiro, pouco antes de ele sair com Saxton pela primeira vez.

Ele também teve que implorar por aquele.

Abruptamente, Blay parou de fingir que estava de fato se exercitando e baixou as mãos para as coxas.

Ordenou-se a ir embora. Apenas se levantar daquele lugar, sair dali antes que Qhuinn fosse para o próximo equipamento e ele fosse descoberto.

Em vez disso, viu seus olhos fixos naqueles ombros e naquela coluna, na cintura estreita e no traseiro firme, nas pernas fortes.

Talvez fosse o álcool. O resultado daquela discussão no guincho. A coisa toda do sexo com Layla...

Naquele instante, porém, ele se excitou. Ficou duro como uma pedra. Pronto para a coisa.

Blay baixou o olhar do peito para seus shorts largos e sentiu vontade de se dar um tiro na cabeça.

Ai, Jesus, ele precisava sair dali imediatamente.

Enquanto Qhuinn continuava sua série na barra fixa, as mãos entorpeciam e ele sentia como se os bíceps estivessem sendo arrancados dos ossos por facas cegas, e isso não passava de brincadeira se comparado com os ombros. Eram eles o verdadeiro problema. Alguém obviamente se aproximara por trás, aplicara removedor de verniz sobre eles e depois os friccionara com uma lixa industrial.

Não fazia ideia de quantas repetições fizera. Nem de quantos quilômetros correra. Não contara os abdominais, os agachamentos e afundos.

Ele só sabia que continuaria.

Objetivo: exaustão absoluta. Queria desmaiar no momento em que subisse e se deitasse na cama.

Descendo da barra, pousou as mãos nos quadris, abaixou a cabeça e respirou fundo. Seu ombro direito logo se recuperou, mas esse era o seu lado dominante, por isso era o esperado. Para relaxar o nó nos músculos, girou o braço num círculo amplo ao se virar...

E parou.

Do outro lado dos colchonetes azuis, Blay estava na máquina mais próxima à porta, sentado tão parado quanto os pesos que ele não levantava.

A expressão no rosto dele era vulcânica. Mas não estava furioso.

Não, não estava.

Ele estava com uma ereção tão grande que se via do outro lado do cômodo. Talvez do outro lado do Estado.

Qhuinn abriu a boca. Fechou-a. Abriu-a novamente.

No fim, resolveu que aquele era um exemplo típico de que a vida nunca deixava de surpreender. De todas as situações nas quais pensou que pudessem estar assim, esta não era nenhuma delas. Não depois... bem, depois de tudo.

Tirou os fones de ouvido e os deixou pendurados no pescoço, as batidas frenéticas de um show ensurdecedor diminuindo para apenas um sibilo.

Isso é para mim?, ele queria perguntar.

Por uma fração de segundo, ele pensou que poderia ser, mas, pensando bem, não seria muita arrogância de sua parte? O cara mal acabara de lhe fazer um discurso sobre como os dois não passavam de colegas trabalhando lado a lado em estações de gordura trans. Em seguida, Blay aparece com uma ereção do tamanho de um pé-de-cabra, e a primeira coisa que lhe vem à mente é que, talvez, quem sabe, seria possível, aquilo ser... para ele?

Que idiota ele era.

E, P.S., o que diabos ele faria se subitamente se encontrasse num universo paralelo, com Blay dizendo “ei, que tal” naquele departamento?

Claro que o desejava.

Mas que merda, sempre o desejara a ponto de se perguntar quanto daquela coisa de evitá-lo “pelo bem de Blay” não fora, na verdade, pelo seu próprio bem.

Pensando nisso, percebeu o copo repousando ao lado dos pés dele. Ah, o álcool estava envolvido – honestamente, ele duvidava que aqueles centímetros de líquido escuro fossem Coca-Cola.

Merda, pelo que podia saber, Saxton acabara de lhe enviar uma mensagem quente e essa era a causa da ereção.

Ah, se isso não era broxante.

O seu primo está me dando tudo de que preciso. O dia inteiro. Todos os dias.

– Tem mais alguma coisa para me dizer? – Qhuinn perguntou com aspereza.

Blay moveu a cabeça de um lado para o outro uma vez.

Qhuinn franziu o cenho. Blay não era esquentado – nunca fora, e em parte por isso, por muito tempo, eles foram tão próximos. Equilíbrio e todo aquele papo-furado. Naquele instante, porém, parecia que o cara estava bem perto de perder as estribeiras.

Problemas no paraíso do casal feliz?

Não, eles eram bons demais juntos.

– Ok – caramba, a ideia de ficar por perto enquanto Blay estava com o mastro erguido para mais uma sessão com Saxton, o Magnífico, era insustentável. – Até mais.

Ao se afastar, sentiu os olhos de Blay sobre si, mas eles não estavam no nível do seu rosto. Pelo menos, não parecia.

Que porra estava acontecendo ali?

Empurrando a porta para o corredor, deu uma olhada para ver se as paredes de concreto não estavam derretendo ou se ele não tinha, subitamente, peixes no lugar das mãos ou algo assim. Nada disso era verdade, mas uma sensação esquisita de irrealidade o perseguiu enquanto ele avançava até o vestiário. Uma chuveirada era obrigatória; estava coberto por suor, e por mais que os doggen adorassem uma bela bagunça, ele não pretendia dar-lhes mais trabalho só porque tentara se matar na academia...

Duro. Excitado. Pronto para o sexo.

Enquanto essa imagem de Blay martelava em sua cabeça, ele fechou os olhos, e chegou à porta do mundo dos azulejos e chuveiros. Tinha a intenção de seguir diretamente para os chuveiros, mas acabou se demorando na parte da frente do lugar, onde os armários estavam enfileirados e os bancos atravessavam os corredores pelo meio.

Parando, desamarrou os Nikes, chutou-os e tirou as meias.

Totalmente excitado.

Blay estivera fora de si por conta disso.

Por algum motivo, os dois últimos encontros sexuais de Qhuinn lhe vieram à mente. Houve o ruivo no Iron Mask – aquele a quem seduzira e com quem transara no banheiro. Escolhera-o aleatoriamente no meio da multidão por uma determinada característica física e, naturalmente, o sexo não lhe provocara nada de extraordinário. Em retrospecto, foi como querer tomar tequila e acabar bebendo água tônica.

E depois aconteceu aquela coisa com Layla, que não passara de um trabalho físico exigente, como cavar uma trincheira ou levantar uma parede...

Deus, sentia-se mal ao pensar assim, pois não queria desrespeitar a Escolhida. Mas pelo menos ficou bem claro que ela pensava do mesmo modo.

Foi só isso no último ano. Apenas aqueles dois.

Quase doze meses de nada, e ele nem vinha se masturbando. Ele simplesmente não estava interessado em nada, como se suas bolas estivessem hibernando.

Engraçado, depois da sua transição, ele transara com qualquer coisa com duas pernas e um coração pulsante, e enquanto se esforçava para se lembrar de alguns dos muitos rostos – Deus bem sabia que ele não se dera ao trabalho de saber os nomes muitas vezes –, uma sensação desconfortável contraía seu estômago.

Todas aquelas transas anônimas, sem nomes, sem rostos... diante de Blay. Sempre com ele, pensando bem. Na época, parecia um tipo de acontecimento entre camaradas, mas agora ele se questionava.

Ah, que merda. Ele sabia do que tratara.

Era um tremendo covarde, não?

Pondo-se de pé, despiu-se e deixou a camiseta e os shorts sobre o banco numa bagunça suada. Andando para os chuveiros, escolheu um a esmo, abrindo a torneira e entrando debaixo do jato. A água estava absurdamente fria, mas ele não se importava. Enfrentou o açoite, fechando as pálpebras e abrindo a boca.

Aquele ruivo do clube quase um ano atrás? Enquanto seduzia o cara para o banheiro, era Blay quem esteve em sua mente o tempo inteiro.

Foi Blay quem ele empurrou para a pia e beijou com sofreguidão. Foi o pau de Blay que ele chupou, e o corpo de Blay que ele comeu por trás e...

– Pelo amor de... – gemeu.

Do nada, a imagem do velho amigo sentado na máquina de pesos, com os joelhos afastados, o pênis pressionando o tecido fino dos shorts entrou em sua mente e atravessou a coluna, indo direto para o meio das suas pernas. Praguejando, ele se arqueou e teve que apoiar uma mão no azulejo escorregadio.

– Ai... cacete...

Recostando-se, apoiou a testa no braço e tentou se concentrar na sensação da água batendo na nuca.

Nada.

Tudo o que percebia era a pulsação no pênis.

Bem, isso e uma fantasia ressonante dele caindo de joelhos e se encaixando entre as coxas afastadas de Blay, lambendo o caminho até aquela boca... enquanto se insinuaria debaixo do cós dos shorts e começaria a aplicar um trabalho manual que o cara jamais conseguiria esquecer.

Entre outras coisas.

Virando para se livrar do jato, Qhuinn levou as mãos aos cabelos e os esticou para trás, arqueando a coluna.

Sentia o pênis ereto, implorando por atenção.

Mas não faria nada a respeito. Blay merecia mais do que isso. Sim, não fazia sentido, mas parecia sórdido masturbar-se no chuveiro por causa da excitação do cara por outra pessoa.

Inferno, por causa do parceiro do cara.

O primo de Qhuinn, pelo amor de Deus.

Enquanto sua ereção simplesmente continuava, inabalada pela lógica, ele soube que o dia seria bem longo.


CONTINUA

Qhuinn, filho de Lohstrong, entrou na casa da família passando pela imponente porta da frente. No instante em que passou pela soleira, o cheiro do lugar invadiu seu nariz. Lustra-móveis de limão. Velas de cera de abelha. Flores frescas do jardim que os doggen colhiam diariamente. Perfume – da mãe. Colônia – do pai e do irmão. Chiclete de canela – da irmã.
Se a empresa Glade um dia produzisse um aromatizador como aquele, ele seria chamado de “Campina dos Abastados”. Ou “Aurora de uma Conta Bancária Polpuda”.
Ou, quem sabe, o mais popular “Somos Melhores do que Todos”.
Vozes distantes vinham da sala de jantar, as vogais tão brilhantes quanto os diamantes lapidados, as consoantes arrastadas, suaves e longas como fitas de cetim.
– Ah, Lillie, isso parece ótimo, obrigada – a mãe disse à criada. – Porém, é muito para mim. E não sirva tanto assim a Solange. Ela está engordando.
Ah, sim, a dieta da mãe permanentemente imposta à geração seguinte: as fêmeas da glymera supostamente devem desaparecer de vista quando estão de perfil, cada osso da clavícula exposto, as faces encovadas e antebraços ossudos como uma espécie de distintivo de honra de merda.
Como se você se tornasse uma pessoa melhor por se parecer com um atiçador de lareira.
E como se a Virgem Escriba a protegesse caso a aparência de sua filha fosse saudável.
– Ah, sim, obrigado, Lilith – o pai agradeceu. – Um pouco mais para mim, por favor.
Qhuinn fechou os olhos e tentou convencer o corpo a dar um passo à frente. Um após o outro. Não devia ser tão difícil assim.
Seu calçado Ed Hardys, novinho, levantou o dedo do meio para essa sugestão. Por outro lado, por tantos motivos, entrar naquela sala de jantar costumava ser bem desagradável.
Deixou cair a bolsa de lona no chão. Os dois dias passados na casa do seu melhor amigo, Blay, fizeram-lhe bem, como uma folga da completa falta de ar desta casa. Infelizmente, a dor do regresso era tão intensa que o custo-benefício de sair equilibrava a situação.
Ok, aquilo era ridículo. Não podia continuar ali parado como um objeto inanimado.
Caminhando para a parede lateral, recostou-se contra um antigo espelho de corpo inteiro colocado bem ao lado da porta. Tão atencioso. Tão adequado com as necessidades da aristocracia em parecer bem. Dessa forma, os visitantes poderiam ajeitar os cabelos e as roupas enquanto o mordomo recebia seus casacos e chapéus.
O rosto do jovem pré-trans que o fitava pelo espelho tinha feições equilibradas, um belo maxilar, uma boca que, ele tinha de admitir, parecia ser capaz de fazer belos estragos à pele nua quando ele amadurecesse. Ou talvez isso fosse apenas ilusão sua. O cabelo era de Vlad, o Empalador, com tufos espetados no alto da testa. O pescoço estava envolto por uma corrente de moto – e não um modelo comprado na Urban Outfitters, mas a velha correia que impulsionara sua antiga 12 cilindros.
Levando-se tudo isso em consideração, ele mais se parecia com um ladrão que invadira a casa e estava preparado para destruir o lugar à procura de prata de lei, joias e eletrônicos portáteis.
A ironia era que esse papo furado gótico não era a parte de sua aparência que mais ofendia sua família. Na verdade, ele poderia ficar nu, pendurar um abajur na bunda e passear pelo primeiro andar imitando Jose Canseco* com a decoração da casa que sequer chegaria perto do real motivo que irritava seus pais.
Eram os seus olhos.
Um azul. Um verde.
Ops. Foi mal.
A glymera não gosta de defeitos. Não em sua porcelana, não nos jardins. Tampouco no papel de parede, nos tapetes e nas bancadas. Não na seda da roupa íntima, nem na lã de seus blazers, ou no chiffon de seus vestidos.
E, com certeza, nunca em seus filhos.
Com a irmã tudo bem – ok, exceto pelo “pequeno problema de peso” que, na verdade, era inexistente, e um ceceio que sua transição não curara –, ah, sim, e o fato de ela ter a personalidade da mãe deles. E essa porcaria não tinha como ser mudada. O irmão, por sua vez, era uma maldita estrela, o filho primogênito preparado para levar adiante a linhagem da família, reproduzindo-se num interlúdio muito cavalheiresco, sem gemidos, sem suor, com uma fêmea escolhida para ele pela família.
Inferno, o recipiente de esperma dele já estava à espera. Ele copularia assim que passasse pela transição...
– Como está se sentindo, filho? – perguntou o pai com hesitação.
– Cansado, senhor – respondeu uma voz profunda. – Mas isso vai ajudar.
Um calafrio percorreu a coluna de Qhuinn. Aquilo não se parecia com seu irmão. Grave demais. Masculino demais. Muito...
Puta merda, o cara fizera a transição.
Nessa hora, seus Ed Hardys resolveram seguir em frente, adiantando-o até que ele conseguisse enxergar a sala de jantar. O pai estava sentado à cabeceira da mesa. Confere. A mãe em seu lugar adiante, oposta à porta de vaivém da cozinha. Confere. A irmã de frente para a porta da sala, faltando pouco para lamber o prato de tanta fome que sentia. Confere.
O macho cujas costas davam para Qhuinn não fazia parte do cenário.
Luchas tinha dobrado de tamanho desde que Qhuinn fora abordado por um doggen que lhe dissera para juntar suas coisas e ir para a casa de Blay.
Bem, isso explicava tudo. Ele deduzira que o pai finalmente cedera ao pedido que lhe fizera semanas antes. Mas não, o homem só o queria fora da casa porque a transformação chegara para a carga genética do filho dourado.
Será que o irmão transou com a garota? Quem usaram para o sangue...?
O pai, um tipo que nunca demonstrava afeto, esticou a mão e deu um tapinha sem graça no antebraço de Luchas.
– Estamos muito orgulhosos de você. Você está... perfeito.
– Está mesmo – a mãe de Qhuinn concordou. – Simplesmente perfeito. O seu irmão não está perfeito, Solange?
– Sim, ele está. Perfeito.
– E eu tenho algo para lhe dar – disse Lohstrong.
O macho pôs a mão dentro do bolso da jaqueta esportiva e retirou uma caixinha de veludo preta do tamanho de uma bola de golfe.
Emocionando-se, a mãe começou a enxugar os olhos.
– Isto é para você, meu filho precioso.
A caixa foi empurrada por sobre a toalha de mesa branca adamascada, e a mão, agora grande, de seu irmão a pegou e levantou a tampa.
Qhuinn viu o dourado do outro lado do vestíbulo.
Enquanto todos à mesa permaneceram calados, o irmão fitou o anel de sinete, obviamente surpreso, enquanto a mãe continuava a enxugar os olhos, e até mesmo os do pai se umedeciam. E a irmã surrupiava um pãozinho da cesta.
– Obrigado, senhor – agradeceu Luchas ao colocar o anel no indicador.
– Serve, não é mesmo? – perguntou Lohstrong.
– Sim, senhor. Perfeitamente.
– Temos o mesmo tamanho, então.
Claro que sim.
No mesmo instante, o pai desviou o olhar, como se esperasse que o movimento dos olhos cuidasse da camada de lágrimas que atrapalhara sua visão.
E flagrou Qhuinn à espreita do lado de fora da sala de jantar.
Houve um flash de reconhecimento. Não do tipo “como vai, filho?” ou “ah, que bom, meu outro filho chegou”. Algo mais parecido como quando você anda pela grama e percebe um amontoado de cocô de cachorro tarde demais para não pisar nele.
O macho voltou a fitar a família, excluindo Qhuinn.
Obviamente, a última coisa que Lohstrong queria era que tal momento histórico fosse arruinado – e foi por isso que, provavelmente, ele não fez os gestos para espantar o mal. Normalmente, todos na casa faziam esse ritual quando viam Qhuinn. Não naquela noite. Papai não queria que os outros soubessem.
Qhuinn voltou para junto da bolsa de lona. Passando o peso pelo ombro, seguiu até a escadaria da frente para ir ao quarto. A mãe preferia que ele tomasse a escadaria de serviço, mas, para isso, ele teria de atravessar todo aquele amor ali presente.
Seu quarto ficava o mais distante possível dos outros, bem na extrema direita. Muitas vezes, ele se perguntava por que não o mandavam logo ficar com os doggen – mas provavelmente a criadagem se demitiria.
Fechando-se no quarto, largou a mala no chão sem nenhum tapete e sentou-se na cama. Fitando sua única bagagem, deduziu que seria melhor lavar logo a roupa, já que havia uma sunga molhada ali.
As criadas se recusavam a tocar em suas roupas – como se o mal dentro dele permeasse as fibras dos seus jeans e camisetas. O lado bom era que, por nunca ser bem recebido em eventos formais, bastava simplesmente lavá-las e usá-las.
Descobriu que estava chorando quando fitou seus Ed Hardys e percebeu que havia algumas gotas de água bem no meio dos cadarços.
Jamais receberia um anel.

Ah, inferno... Como doía...
Ele esfregava o rosto com as palmas das mãos quando seu telefone tocou. Pegando-o de dentro da jaqueta de motoqueiro, teve que piscar algumas vezes para focar a visão.
Apertou o botão para aceitar a ligação, mas não atendeu.
– Acabei de saber – disse Blay do outro lado. – Como é que você está?
Qhuinn abriu a boca para responder, o cérebro se debatendo com todo tipo de resposta: “Maravilha. Melhor impossível”, “Pelo menos não sou ‘gordo’ como a minha irmã”, “Não, não sei se o meu irmão transou”.
Em vez disso, falou:
– Eles me fizeram sair de casa. Não quiseram que eu amaldiçoasse a transição. Acho que deu certo porque o cara parece estar muito bem.
Blay praguejou baixinho.
– Ah, e ele acabou de ganhar o anel. Meu pai deu... o anel dele.
O anel de sinete com o brasão da família, o símbolo que todos os machos de boas linhagens usavam para atestar o valor de sua ascendência.
– Vi quando Luchas o colocou no dedo – disse Qhuinn, sentindo como se tivesse sido apunhalado por uma adaga que subia pelos braços. – Coube certinho. Ficou lindo. Mas sabe, né... Como se pudesse ser de outro jeito...
Nessa hora ele começou a soluçar.
Perdeu completamente o controle.
A terrível verdade era que debaixo do seu “foda-se” contracultural, ele queria que a família o amasse. Por mais afetada que a irmã fosse, por mais nerd que o irmão fosse, por mais reservados que os pais fossem, ele via o amor entre os quatro. Ele sentia o amor entre eles. Era um laço que unia aqueles indivíduos, um cordão invisível que ia de um coração ao outro, o comprometimento de se preocupar com tudo o que dizia respeito desde qualquer bobeira até os dramas mais verdadeiros e mortais. E a única coisa mais poderosa do que essa ligação era... sentir-se excluído dela.
Todos os malditos dias de sua vida.
A voz de Blay se fez ouvir acima do choro.
– Pode contar comigo. E eu sinto muito... Estou aqui para o que precisar... Apenas não faça nada estúpido, ok? Deixe-me ir aí...
Só mesmo Blay para saber que ele estava pensando em coisas que envolviam cordas e chuveiros.
Na verdade, a mão livre já abaixara para o cinto improvisado que ele mesmo confeccionara com um pedaço resistente de corda de náilon – porque seus pais não lhe davam dinheiro suficiente para roupas, e o cinto de verdade que ele possuíra se quebrara há vários anos.
Puxando-o, ele olhou para a porta fechada do banheiro. Tudo o que precisava fazer era amarrar a coisa no cano da parede – Deus bem sabia que aqueles canos de água tiveram utilidades nos tempos idos, quando as coisas eram fortes o suficiente para suportar um pouco de peso. Ele até tinha uma cadeira na qual podia subir para depois chutá-la debaixo de si.
– Preciso ir...
– Qhuinn? Não desligue. Não ouse desligar na minha cara...
– Olha aqui, eu tenho que ir...
– Estou indo te encontrar agora – muita comoção do outro lado da linha, como se Blay estivesse se vestindo às pressas. – Qhuinn! Não desligue... Qhuinn...!

Jose Canseco, cubano, ex-jogador profissional de baseball, foi campeão do World Series em 2000, jogando pelo New York Yankees. Em 2005, ele admitiu ter feito uso de esteroides anabolizantes. (N.T.)

 

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CAPÍTULO 1

DIAS ATUAIS

– Saca só que belezinha fodida aí, ô!

Jonsey olhou para o idiota que estava agachado ao seu lado no ponto de ônibus. Os dois estavam esperando na gaiola de acrílico há três horas. No mínimo. Ainda que comentários como aquele fizessem parecer que se tratavam de dias.

E dariam uma bela justificativa para um assassinato.

– ‘Cê é branco, sabia? – observou Jonsey.

– Como é que é, mano?

Ok, talvez três anos de espera.

– Caucasiano, cara. ‘Cê precisa de protetor solar no verão, entende? Eu não...

– Deixa disso, mano, olha só o carango...

– E porque ‘cê tem de falar como se fosse do meu pedaço? ‘Cê ‘tá fazendo papel de besta, cara.

Àquela altura, ele só queria que a noite acabasse logo. Estava frio, nevava, e ele tinha de se perguntar a quem irritara tanto para acabar atolado ali com aquele Vanilla Ice.

Na verdade, estava considerando largar tudo. Vinha se dando bem traficando em Caldwell; fazia dois meses que saíra da prisão pelos homicídios que cometera quando menor de idade; a última coisa em que estaria interessado era passar tempo com um branquelo idiota que pensava em ganhar créditos de rua por meio do vocabulário.

Ah, sem falar naquele bairro de riquinhos em que estavam. Até onde ele podia supor, devia existir algum decreto que proibisse as pessoas de circular pelas ruas depois das dez da noite.

Por que diabos concordara com aquilo?

– Por favor. Olhe. Para. Aquele. Lindo. Automóvel.

Só para calar a boca do cara, Jonsey virou a cabeça e se inclinou para fora do abrigo. A neve soprando o atingiu no rosto e ele praguejou. Maldito norte de Nova York no inverno. Frio o suficiente para gelar as bolas...

Nossa... Olha ali...

Do outro lado de um estacionamento, bem diante de uma farmácia CVS 24 horas novinha, de paredes brancas sem nenhum grafite, havia mesmo um carrão fodido. O Hummer era completamente preto, nenhum cromado à vista – não nas rodas, nem em volta das janelas, nem mesmo no para-choque dianteiro. E era enorme – a julgar por toda aquela pompa, sem dúvida o motor devia ser o máximo.

O carrão era do tipo que se via nas ruas de onde ele vinha; seria o carro de um dos mandachuvas. A não ser pelo fato de que aquele lugar era bem longe da cidade, por isso só podia ser algum branquelo tentando mostrar que tinha colhões.

Vanilla Ice pegou a mochila e colocou uma alça no ombro.

– Vou dar uma espiada.

– O ônibus já vai chegar – Jonsey consultou o relógio e desejou que isso fosse verdade. – Cinco, talvez dez minutos.

– Vamos...

– Tchau, cretino.

– ‘Tá com medinho? – o filho da puta levantou as mãos e começou a sacudi-las. – Ai, que meeedo...

Jonsey puxou o revólver e apoiou o cano bem no meio do rosto do cretino.

– Não tenho nenhum problema em matar você bem aqui. Já fiz isso antes. Posso fazer de novo. Agora para de idiotice e faz um favor pra você mesmo. Cala a porra dessa sua boca.

Quando Jonsey encarou os olhos do outro, não se importou muito com o resultado daquilo tudo. Atirar no idiota. Não atirar. Não fazia diferença.

– ‘Tá bom, ‘tá bom, ‘tá bom. – O senhor Conversador recuou e deixou o ponto de ônibus.

Obrigado. Cacete.

Jonsey guardou a pistola, cruzou os braços e ficou olhando na direção que o ônibus viria – como se isso adiantasse.

Idiota filho da puta.

Olhou para o relógio de novo. Cara, chega disso. Se um ônibus voltando para a cidade chegasse ali primeiro, ele subiria e o resto que se foda.

Mudando de posição a mochila que lhe disseram para pegar, ele sentiu o contorno rígido do jarro dentro dela. O pacote ele entendia. Se ele ia transportar mercadoria de onde “Judas perdeu as botas” para o bairro, então tudo bem. Mas um jarro? Para que diabos alguém precisa disso?

A menos que fosse pó solto.

O fato de ele ter sido escolhido pelo C-Rider, o próprio, para aquilo foi bom pra cacete. Até ele ter conhecido o Garoto Branco – e daí a coisa perdeu um pouco da graça. As instruções do chefe foram claras: encontrar com o cara na parada da Rua Quatro. Pegar o último ônibus que ia para a periferia e esperar. Transferir-se para a linha rural quando o serviço voltasse a funcionar de madrugada. Descer na parada de Warren County. Depois andar um quilômetro e meio até uma propriedade rural.

C-Rider os encontraria ali com um punhado de outros caras para tratar de negócios. E depois? Jonsey faria parte da nova equipe montada para dominar o cenário em Caldie.

Ele gostava dessa merda. E respeitava completamente o C-Rider – o filho da puta era garantido: no comando lá do pedaço; foda.

Mas se o resto deles fosse como o Vanilla...

O ronco de um motor o fez pensar que algum ônibus da Companhia de Transportes de Caldwell tivesse finalmente chegado, e ele se pôs de pé...

– Puta que o pariu... – sussurrou.

O Hummer preto tinha parado bem na frente do ponto de ônibus e, quando o vidro abaixou, o Garoto Branco estava alucinado atrás do volante – e não só porque Cypress Hill estava, de fato, berrando no rádio.

– Entra! Entra! Entra!

– Que merda que ‘cê fez? – Jonsey gaguejou, mesmo assim dando a volta por trás do carro e subindo no banco do passageiro.

Puta que o pariu – o cretino não era um cretino completo, não se conseguia fazer uma coisa dessas.

O cara pisou fundo no acelerador, o motor rugiu, e os pneus cravaram na neve acumulada, lançando-os para frente a oitenta quilômetros por hora.

Jonsey se segurou como pôde conforme eles dispararam pelo cruzamento de farol vermelho e depois por cima da calçada da loja Hannaford. Enquanto eles se distanciavam, a música sufocou o alarme que avisava que eles não tinham colocado o cinto de segurança.

Jonsey começou a rir.

– Isso aí, puta merda! Seu foda, floco de neve fodido...!

– Acho que isso é Justin Bieber.

De frente para a prateleira de batatinhas fritas, Qhuinn levantou o olhar para os alto-falantes de teto.

– É. Acertei, e odeio o fato de eu saber isso.

Ao seu lado, John Matthew sinalizou:

Como você sabe?

– O merdinha está por todos os lados – para provar o que disse, indicou um expositor de cartões com Short, Cocky e Fifteen-Minutes-Are-Up. – Juro, o garoto é a prova de que o Anticristo está chegando. Talvez ele já esteja aqui.

– Isso explicaria Miley Cyrus.

Bem observado.

Enquanto John voltava a analisar a sua escolha de salgadinhos, Qhuinn deu uma olhada na loja. Quatro da manhã e a farmácia estava completamente abastecida e absolutamente vazia – a não ser por eles dois e pelo rapaz na caixa registradora, que lia o National Enquirer e comia uma barrinha de chocolate Snickers.

Nenhum redutor. Ninguém do Bando de Bastardos.

Nada em que atirar.

A menos que o expositor de Justin Bieber contasse.

O que vai pegar?, John perguntou com sinais.

Qhuinn deu de ombros e continuou olhando em volta. Como ahstrux nohtrum de John, era sua responsabilidade garantir que o cara voltasse inteiro para a mansão da Irmandade todas as noites e, depois de mais de um ano, tudo bem por enquanto...

Puxa, como sentia falta de Blay.

Balançando a cabeça, esticou o braço a esmo. Quando o braço recuou, ele segurava um pacote de batatas com cebola e creme azedo.

Olhando para o logo da Lay’s e o close-up da batatinha, ele só conseguia pensar na época em que ele, John e Blay costumavam matar o tempo na casa dos pais de Blay, jogando Xbox, bebendo cerveja, sonhando com vidas melhores e maiores após a transição.

Infelizmente, melhor e maior só resultou no tamanho e na força de seus corpos. Ainda que talvez esse fosse apenas o seu ponto de vista. Afinal, John estava muito bem com sua companheira. E Blay estava com...

Merda, ele não conseguia nem mesmo dizer mentalmente o nome do primo.

– Tudo certo, J.? – perguntou asperamente.

John Matthew pegou uma embalagem normal de Doritos e assentiu.

Vamos pegar bebidas.

Enquanto avançavam pela loja, Qhuinn desejou que estivessem no centro da cidade, brigando nos becos, enfrentando qualquer um dos seus dois inimigos. Tempo em excesso despendido em detalhes suburbanos e isso significava pensar demais em...

Interrompeu-se novamente.

Que diferença fazia? Além disso, ele detestava ter qualquer contato com a glymera – e isso era recíproco. Infelizmente, os membros da aristocracia gradualmente retornavam para Caldwell, e isso significava que Wrath ficara até o pescoço com chamados de supostos assassinatos.

Como se os mortos-vivos de Ômega não tivessem coisas melhores a fazer do que espreitar entre pomares desnudos e piscinas congeladas.

Ainda assim, o Rei não estava em posição de mandar os janotas se foderem. Não desde que Xcor e seu Bando de Bastardos colocaram uma bala no pescoço real.

Traidores. Malditos. Com um pouco de sorte, Vishous iria provar sem sombra de dúvida de onde tinha vindo o tiro de rifle, e então eles poderiam destripar aqueles soldados, colocar suas cabeças em estacas e atear fogo em seus corpos.

Assim como descobrir exatamente quem no Conselho estava de conluio com o novo inimigo.

Sim, amistoso era o nome do jogo agora – por isso, uma noite por semana, cada uma das equipes acabava ali no bairro em que ele crescera, batendo em portas e olhando debaixo das camas.

Em casas parecidas com museus que lhe davam mais arrepios do que qualquer passagem escura do centro da cidade.

Uma batidinha no seu braço fez com que ele virasse a cabeça.

– O que foi?

Era o que eu ia perguntar.

– Como é?

Você parou aqui. E ficou olhando para... Bem, você sabe.

Qhuinn franziu o cenho e olhou de relance para a prateleira de produtos. E acabou perdendo o fio da meada dos seus pensamentos – e boa parte do sangue da cabeça.

– Ah, é... Bem... – merda, alguém aumentou a calefação do lugar? – Hum...

Mamadeiras. Leite em pó. Babadores e lenços umedecidos e hastes flexíveis. Chupetas. Garrafinhas. Algum tipo de contraceptivo...

Ai, meu Deus, uma bomba de leite.

Qhuinn deu uma volta de 180° tão rápida que acabou de frente a uma pilha de fraldas Pampers, depois rebateu de volta no mundo das NUKs e, por fim, ricocheteou para fora do ambiente infantil graças ao rechaço de um A + D. O que quer que isso fosse.

Baby. Baby. Baby...

Ah, melhor assim... Seguiu o caminho para o caixa.

Enfiando a mão na jaqueta de motoqueiro, Qhuinn puxou a carteira e esticou a mão para trás para pegar a comida de John.

– Me passe isso aí.

Enquanto o cara começava a discutir, articulando as palavras visto que as mãos estavam ocupadas, Qhuinn apanhou a garrafa de Mountain Dew e os Doritos que estavam atrapalhando a comunicação deles.

– Prontinho. Enquanto ele cobra, você pode gritar comigo como se deve.

E como era de se esperar, as mãos de John dispararam em todas as posições possíveis na linguagem de sinais para dizer que aquela era por sua conta.

– Ele é surdo? – o rapaz atrás da caixa registradora perguntou num sussurro. Como se alguém usando linguagem de sinais fosse alguma aberração.

– Não. Cego.

– Ah.

Quando o rapaz continuou encarando, Qhuinn sentiu vontade de dar um peteleco nele.

– Vai nos ajudar aqui ou não?

– Ah, claro... Ei, você tem uma tatuagem no rosto – o senhor Observador se movia lentamente, como se os códigos de barra das embalagens estivessem criando algum campo de resistência debaixo do leitor a laser. – Sabia disso?

Sério?

– Não saberia dizer.

– Você também é cego?

O cara não tinha filtro algum. Nenhum mesmo.

– É, sou.

– Ah, então é por isso que os seus olhos são tão esquisitos.

– É. Pode crer.

Qhuinn pegou uma nota de vinte e não esperou pelo troco – homicídio era uma possibilidade um tantinho tentadora demais. Acenando para John, que também media o rapaz para encomendar uma mortalha, Qhuinn tomou o caminho da saída.

– E o seu troco? – chamou o rapaz

– Também sou surdo. Não estou ouvindo.

O rapaz gritou mais alto.

– Então vou ficar com ele, ok?

– Boa ideia – exclamou Qhuinn por sobre o ombro.

O idiota pertencia ao nível cinco de estupidez. Nível máximo.

Passando pelas barras de segurança, Qhuinn ponderou que era um milagre que humanos como aquele conseguissem passar seus dias. E o cretino conseguira vestir as calças e operar uma caixa registradora.

Os milagres nunca deixavam de acontecer.

Ao empurrar a porta para sair, o frio o esbofeteou, o vento açoitou seus cabelos, flocos de neve atingiam seu nariz...

Qhuinn ficou imóvel.

Olhou para a esquerda. Para a direita.

– Caralho... Cadê o meu Hummer?

Em sua visão periférica, as mãos de John começaram a voar como se ele estivesse se perguntando a mesma coisa. Em seguida, ele apontou para baixo, para a neve recém-caída e... para as marcas fundas dos quatro pneus monstruosos que formavam um círculo grande e seguiam para a saída do estacionamento.

– Puta que o pariu! – rosnou Qhuinn.

E ele pensava que o estúpido era o senhor Observador?


CAPÍTULO 2

Na mansão da Irmandade, Blaylock estava sentado na beira da cama, o corpo nu afogueado, uma camada de suor sobre o peito e os ombros. Entre as pernas, o pênis estava adormecido e os quadris relaxados depois de todo tipo de investida e encontrão. Por sua vez, a respiração estava acelerada, a carne necessitando de um tantinho mais de oxigênio do que seus pulmões conseguiam fornecer.

Naturalmente por isso, ele se esticou para pegar o maço de Dunhill Reds que mantinha na mesinha de cabeceira.

Os barulhos no chuveiro do banheiro do outro lado, junto ao perfume cítrico do sabonete artesanal, eram dolorosamente familiares.

Já fazia quase um ano?

Tirando um dos cigarros, ele pegou o isqueiro Van Cleef & Arpels que Sax lhe dera em seu aniversário. O objeto era de ouro e tinha os rubis Mystery Set incrustados conforme a técnica especializada da empresa, uma peça adorável dos anos quarenta, que nunca deixava de agradar aos olhos e ao coração.

Enquanto a chama acendia, o chuveiro era desligado.

Blay se inclinou na direção da chama, inalou e fechou a tampa do isqueiro. Como sempre, um rastro do fluido do isqueiro permeou o ar, sua doçura se misturando com a fumaça que ele exalou.

Qhuinn detestava cigarros.

Nunca os aprovara.

O que, considerando-se a quantidade de coisas ultrajantes que o cara tinha o hábito de fazer, parecia simplesmente ofensivo.

Sexo com inúmeros desconhecidos em banheiros de boates? Ménage à trois com machos e fêmeas? Piercings? Tatuagens em diversos lugares?

E o cara não “aprovava” que se fumasse. Como se fosse um vício sórdido com o qual ninguém, em seu juízo perfeito, devesse perder tempo.

No banheiro, o secador de cabelos que ele e Sax partilhavam foi ligado, e Blay pôde imaginar o cabelo loiro que ele acabara de agarrar e puxar para trás voando no ar artificial, captando a iluminação, os reflexos naturais brilhando.

Saxton era bonito, de pele lisa, corpo definido e excelente bom gosto.

Deus, e as roupas em seu guarda-roupa? Incríveis. Como se o Grande Gatsby tivesse saído das páginas de um romance, passado pela 5ª Avenida e comprado todo o estoque de alta costura.

Qhuinn jamais foi assim. Ele usava camisetas da Hanes e uniformes de couro, e ainda usava a mesma jaqueta de motoqueiro que tinha desde logo depois de sua transição. Nada de Ferragamo ou Bally para ele; New Rocks com solados do tamanho de pneus de caminhão. Cabelo? Com um pouco de sorte penteado. Colônia? Pólvora e orgasmos.

Diabos, em todos aqueles anos em que Blay conhecia o cara – e isso era praticamente desde o nascimento –, ele jamais vira Qhuinn vestindo um terno.

Há de se duvidar que ele soubesse que smokings podiam ser comprados, não apenas alugados.

Se Saxton era o retrato perfeito da aristocracia, Qhuinn era o de um bandido...

– Aqui está. Bata as cinzas nisto.

Blay levantou a cabeça. Saxton estava nu, perfeitamente penteado e cheirava a Cool Water – e estava segurando o pesado cinzeiro Baccarat que ele comprara no verão como um presente de solstício. Também era dos anos quarenta, e pesava tanto quanto uma bola de boliche.

Blay obedeceu, pegando-o e balançando-o na palma da mão.

– Está de saída para o trabalho?

Como se isso não estivesse óbvio.

– Exato.

Saxton se virou e o banqueteou com suas nádegas espetaculares ao seguir para o closet. Tecnicamente, ele devia viver num dos quartos de hóspedes vazios da casa, mas no decorrer do tempo, suas roupas acabaram migrando para ali.

Ele não se importava com o fumo. Até mesmo chegava a partilhar um cigarro de vez em quando depois de uma... de um intercâmbio energético, digamos assim.

– Como está indo? – Blay perguntou numa exalada. – Quero dizer, a sua missão secreta.

– Muito bem. Estou quase terminando.

– Isso quer dizer que vai poder finalmente me contar do que se trata?

– Logo você vai descobrir.

Quando uma sacudida de camisa emanou do closet, Blay virou o cigarro e fitou a ponta acesa. Saxton vinha trabalhando em algo extremamente secreto para o Rei desde o outono, e não houve confissões de travesseiro a respeito – o que devia ter sido apenas um dos motivos pelos quais Wrath tornou o macho o seu advogado particular. Saxton tinha a mesma discrição de um cofre de banco.

Qhuinn, por outro lado, jamais fora capaz de guardar um segredo. Desde festas surpresa a boatos e detalhes pessoais embaraçosos tais como se você transou com uma prostituta barata na...

– Blay?

– Desculpe, o que disse?

Saxton saiu do closet, completamente vestido num terno de três peças de tweed da Ralph Lauren.

– Eu disse, vejo você na Última Refeição?

– Puxa. Já está tarde assim?

– Sim, está.

Pelo visto transaram durante toda a Primeira Refeição do dia – como eles vinham fazendo desde...

Deus. Ele nem conseguia pensar no que acontecera apenas uma semana antes. Não conseguia sequer traduzir em palavras como se sentia a respeito da única coisa com a qual jamais se preocupara que pudesse acontecer – bem na frente dos seus olhos.

E ele acreditara que ser rejeitado por Qhuinn era ruim?

Vê-lo ter um filho com uma fêmea...

Merda, ele tinha de responder ao seu amante, não tinha?

– Sim, claro. Vejo você mais tarde.

Houve uma hesitação, depois Saxton se aproximou e pressionou um beijo nos lábios de Blay.

– Está de folga esta noite?

Blay concordou, mantendo o cigarro longe para não queimar as belas roupas do macho.

– Pensei em ler a New Yorker e talvez começar Paixões desenfreadas.

Saxton sorriu, obviamente apreciando o apelo de ambos.

– Como eu o invejo. Depois que eu terminar, vou tirar algumas noites de folga e só relaxar.

– Talvez a gente possa ir para algum lugar.

– Talvez.

A expressão contraída do belo rosto foi rápida e triste. Porque Saxton sabia que eles não iriam a parte alguma.

E não só porque uma viagem a Sandals com tudo incluso não estava no futuro deles.

– Cuide-se – disse Saxton, esfregando os nós dos dedos no rosto de Blay.

Blay acarinhou a mão com o nariz.

– Você também.

Um segundo depois, a porta abriu e fechou... e ele ficou sozinho. Sentado na cama bagunçada, no silêncio que pareceu esmagá-lo de todos os lados, ele fumou aquele cigarro até o filtro, esmagou-o no cinzeiro e acendeu outro.

Fechando os olhos, tentou se lembrar do som dos gemidos de Saxton ou da visão das costas másculas arqueadas ou da sensação da pele contra a pele.

Não conseguiu.

E essa era a raiz do problema, não?

– Deixe-me ver se eu entendi – V. disse com a voz arrastada pelo telefone. – Você perdeu o Hummer.

Qhuinn queria atravessar a vidraça com a cabeça.

– É. Perdi. Então, pode, por favor...

– Mas como foi que você perdeu um veículo de três toneladas?

– Isso não importa...

– Bem, na verdade, importa se você quiser que eu acesse o GPS e lhe diga onde pode encontrar o maldito carro; pois é por isso que você me ligou, não foi? Ou você acha que se confessar sem contar os detalhes faz bem para a alma e essa porcaria toda?

Qhuinn segurou o telefone com força.

– Deixeiaschavesnocontato.

– Como é? Pode repetir? Não entendi.

Até parece.

– Deixei as chaves no contato.

– Que idiotice, filho.

Jura?

– Então, pode me ajudar...?

– Acabei de mandar as coordenadas para você por e-mail. Ah, mais uma coisa... Quando recuperar o veículo...

– Sim?

– Pare um segundo só para ver se os ladrões ajeitaram o banco... Sabe, só para ficarem confortáveis e à vontade. Porque eles provavelmente não estavam com pressa, já que as chaves estavam lá – o som da risada de V. era como ser acertado nas bolas com o para-choque de um carro. – Olha só, preciso ir. Preciso das duas mãos para segurar a barriga de tanto que estou rindo de você. Até mais...

Quando a ligação ficou muda, Qhuinn precisou de um minuto para controlar o desejo de atirar longe o telefone.

É, porque perdê-lo também o ajudaria muito.

Entrando na sua conta do Hotmail, e imaginando quanto tempo teria de aguentar aquela vergonha, conseguiu a localização do maldito carro.

– Está seguindo para o oeste – virou o telefone para que John pudesse ver. – Vamos lá.

Desmaterializando-se, Qhuinn ficou vagamente ciente de que sua raiva era desproporcional ao problema: conforme suas moléculas se dispersavam, ele era como um fusível aceso esperando para se conectar a alguma dinamite – e não era apenas o fato de ele ser um estúpido, ou de perder o carro, ou pelo fato de ele ficar com cara de idiota diante de um dos machos que ele mais respeitava na Irmandade.

Havia muitas outras coisas.

Materializando-se numa estrada rural, ele verificou o telefone novamente e esperou John aparecer. Quando o lutador surgiu, ele recalibrou e eles seguiram ainda mais a oeste, aproximando-se, redirecionando-se... até que Qhuinn irrompeu na exata faixa de asfalto coberta de neve na qual estava o seu maldito Hummer.

A menos de cem metros à frente do veículo.

Quem quer que fosse o filho da puta que estava atrás do volante dirigia a quase cem quilômetros por hora na neve, seguindo para uma curva. Que estúp...

Bem, chamá-los de estúpidos era exatamente o tipo de coisa que o sujo diz para o mal-lavado na qual aquela noite estava se transformando.

Deixe-me atirar nos pneus, John gesticulou, como se soubesse que uma arma na mão de Qhuinn não seria a melhor das ideias.

No entanto, antes que ele conseguisse sacar a sua .40, Qhuinn se materializou... bem em cima do capô do SUV.

Primeiro ele aterrissou de cara no para-brisa, o traseiro recebendo o tipo de brisa que o transformou num inseto contra o vidro. Depois, veio o espanto geral: graças ao brilho do painel, ele enxergou as expressões de “Ai, meu Deus!” nos rostos dos dois homens no banco da frente... E então a sua brilhante ideia se transformou na merda número dois da noite.

Em vez de pisar no freio, o motorista virou o volante, como se assim conseguisse evitar o que já tinha pousado no capô do Hummer. O torque arremessou Qhuinn, o corpo ficando sem peso conforme ele voava no ar, tentando manter contato visual com a sua carona.

No fim, ele é quem teve sorte.

Como Hummers foram projetados e construídos para outras coisas que não a aerodinâmica e a facilidade na frenagem, as leis da física se agarraram a todo aquele metal pesado e capotaram a coisa. No processo, e apesar da cobertura de neve, o metal se chocou com o asfalto, e os gritos agudos de soprano romperam a noite...

O impacto ensurdecedor do SUV cravando em um objeto sólido do tamanho de uma casa pôs fim aos gritos. Qhuinn não prestou muita atenção à batida, porém. Porque ele também aterrissou, a estrada pavimentada batendo em seu ombro e quadril, o corpo fazendo a sua própria versão de um porco untado deslizando pelo chão coberto de neve.

CRASH!

Seu movimento cinético também foi interrompido quando algo duro o acertou na cabeça...

Em seguida, um show espetacular de luzes, como se alguém tivesse acendido fogos de artifício bem diante do seu rosto. Depois, foi a vez do Piu-Piu, de estrelinhas rodando em sua visão enquanto dores em vários lugares começaram a aparecer.

Empurrando o que quer que estivesse mais próximo dele – e ele não sabia muito bem se era o chão, uma árvore ou aquele gordinho de vermelho, o Papai-Noel –, ele se pôs de costas. Ao se deitar, o frio foi para a sua cabeça e ajudou a entorpecer as coisas.

Tinha a intenção de se levantar. Verificar o Hummer. Socar quem quer que tivesse tirado vantagem de seu vacilo. Mas isso era apenas o seu cérebro brincando consigo próprio. O corpo assumira o comando do volante e do acelerador, e não tinha a mínima intenção de ir a parte alguma.

Deitado o mais imóvel que conseguia e respirando bafejos de frio desiguais, o tempo recuou e depois começou a se metamorfosear. Por um segundo, ele ficou confuso quanto ao que o colocara naquela condição à margem da estrada. O acidente que ele causara?

Ou... a Guarda de Honra antes dos ataques?

Aquela coisa de ficar deitado de costas no asfalto era uma lembrança do seu passado ou algo que estava de fato acontecendo?

A boa notícia era que tentar descobrir a realidade proporcionou ao seu cérebro outra coisa para fazer em vez de insistir naquela merda de se mexer. A notícia ruim era que as lembranças da noite em que sua família o repudiou estavam mais dolorosas do que qualquer outra coisa que estivesse sentindo no momento.

Deus, estava tudo tão claro, o doggen trazendo-lhe os papéis oficiais e exigindo um pouco de sangue para um ritual de purificação. Ele jogando aquela bolsa de lona sobre o ombro e saindo de casa pela última vez. A estrada se estendendo à sua frente, vazia e escura...

Esta mesma estrada, na verdade. A estrada de agora em que caíra. E na qual estava. Ao sair da casa dos pais, ele tivera a intenção de seguir para o oeste, onde ouvira falar de um bando de malandros cretinos parecidos com ele. No entanto, quatro machos surgiram em mantos negros e o surraram até a morte – literalmente. Ele fora até os portões do Fade e, lá, vira um futuro no qual não acreditara... até ele acontecer. Estava acontecendo – naquele momento. Com Layla.

Ah, olha só, John estava falando com ele.

Bem diante dos seus olhos, as mãos do cara faziam movimentos, por assim dizer, e Qhuinn pretendia responder com algum tipo de informação.

– É real? – murmurou.

John pareceu momentaneamente confuso.

Tinha de ser real, pensou Qhuinn. Por que a Guarda de Honra o procurara no verão, e o ar que ele estava respirando era frio.

Você está bem?, John articulou com os lábios ao gesticular.

Enfiando a mão no chão coberto de neve, Qhuinn empurrou com toda a força que tinha. Quando não se moveu mais do que alguns centímetros, deixou que isso respondesse por ele... e apagou.


CAPÍTULO 3

O som da coca sendo fungada por um septo desviado fez com que o homem do lado de fora da porta apertasse ainda mais a adaga.

Idiota. Maldito idiota.

A primeira regra para qualquer traficante de sucesso era não ser usuário. Viciados que davam início aos seus negócios usavam. Associados sobre quem você precisava ter poder usavam. Prostitutas que você necessitava que fossem para as ruas usavam.

A administração nunca usava. Jamais.

O raciocínio era muito lógico, fundamental e nada diferente de, digamos, ir a um cassino de seis milhões de metros quadrados, com comida suficiente para alimentar um pequeno país e malditas folhas de ouro espalhadas a torto e a direito, e se surpreender por ter perdido todo o seu dinheiro. Se consumir drogas era uma ideia tão genial, por que pessoas morriam regularmente com essa merda, destruíam suas vidas por causa delas, eram mandadas para a prisão graças a isso?

Cretino.

O homem virou a maçaneta e empurrou. Claro que a porta estava destrancada, e conforme ele entrava no quarto esquálido, o odor de talco de bebê o teria sobrepujado – se já não tivesse se acostumado a ele.

O cheiro desagradável era a única coisa da qual ele não gostara na mudança. Todo o resto – a força, a longevidade, a liberdade – ele aceitara. Mas o cheiro, que maldição.

Não importava a quantidade de colônia que usasse, não conseguia se livrar dele.

Ah, sim, e sentia falta de poder fazer sexo.

Fora isso, a Sociedade Redutora era o seu bilhete para a dominação.

A fungada parou e o Redutor Principal levantou a cabeça da revista People sobre a qual fizera as carreiras. Debaixo do resíduo, um cara chamado Channing Tatum olhava para a câmera, sexy como o quê.

– Ei, o que está fazendo aqui?

Conforme os olhos injetados e lustrosos se esforçavam para focalizar, o “chefe” parecia ter acabado de dar um boquete num donut açucarado.

– Trouxe uma coisa para você.

– Mais? Ah, bom Deus, como você sabia? Só tenho mais cinquenta gramas e...

Connors, também conhecido como C-Rider, moveu-se rapidamente, dando três passos à frente, esticando o braço amplamente, balançando a adaga num círculo amplo – que acabou ao lado da cabeça do Redutor Principal. A lâmina de aço afundou, atravessando o osso mais mole da têmpora, perfurando a massa cinzenta confusa.

O Redutor Principal teve uma convulsão, talvez por causa do ferimento... Mais provavelmente porque suas glândulas adrenais acabaram de lançar milhões de centímetros cúbicos de “puta merda” na circulação sanguínea e a coisa não estava se misturando muito bem com a cocaína. Enquanto o merdinha caía num baque da cadeira e trepidava até o chão, a adaga ficou com Connors, soltando-se da lateral do crânio, a lâmina marcada com sangue negro.

Connors sustentou o olhar do seu agora antigo superior e sentiu-se tremendamente bem a respeito da promoção que acontecia. O próprio Ômega o procurara oferecendo-lhe o emprego, sem dúvida reconhecendo, como todos os outros, que um punkezinho de rua qualquer não era o que se queria para comandar qualquer organização maior do que um jogo de pôquer. Bem, é óbvio que o cara fora útil em aumentar o pelotão. Mas quantidade não era o mesmo que qualidade, e não seria preciso o Exército, a Marinha, a Força Aérea ou os Fuzileiros para ver que a Sociedade Redutora estava sendo atropelada por jovens sem lei e com déficit de atenção.

Difícil promover qualquer programa com esse tipo de pelotão e histórico – a menos que você tivesse um administrador verdadeiramente profissional.

Motivo pelo qual Ômega pusera tudo aquilo em ação.

– O q-q-que...

– Você está despedido, filho da puta.

A parte final da aposentadoria forçada veio com mais uma apunhalada, esta com a lâmina penetrando bem no meio do peito. Com um “puf ” e um pouco de fumaça, a mudança de regime foi concluída.

E Connors se tornou o cabeça de tudo.

A supremacia o fez rir por um momento – até seus olhos percorrerem o recinto. Por algum motivo, ele pensou naquele comercial de aromatizador de ar Febreze, aquele em que eles bagunçaram um lugar, borrifaram o produto como loucos, depois arrastaram “pessoas reais, não atores” para a cena para dar uma cheirada no ambiente.

Caramba, a não ser pelos restos de comida – que não existiam, porque assassinos não precisavam comer – tudo se encaixava: o mofo no teto, a mobília decadente, o vazamento na pia... e especialmente a parafernália que acompanhava os múltiplos vícios, como seringas, colheres, até mesmo a garrafa de dois litros de Sprite do laboratório de metanfetamina no canto.

Aquele não era um lugar que emanava poder. Era apenas um antro de drogas.

Connors se aproximou e pegou o celular do merdinha. A tela estava quebrada e havia algum tipo de remendo pegajoso na parte de trás. O equipamento não tinha senha de proteção e, quando ele entrou na parte das mensagens, todo tipo de puxa-saquismo surgiu, os textos cheios de blá-blá-blás parabenizando pela cerimônia de iniciação que aconteceria naquela noite.

Mas o Redutor Principal não soubera daquilo. Não era coisa dele.

No entanto, Connors não retaliaria. Os babacas puxa-sacos só estavam tentando permanecer vivos e chupariam o pau de qualquer um para continuar a respirar: ele, de fato, esperava a mesma lista se dirigindo a ele, e queria que o fizessem. Os espiões tinham o seu propósito no âmbito geral.

E, caramba, como havia trabalho a ser feito.

Pelo que ele deduzira do seu abençoado curto tempo de puxa-saquismo, a Sociedade Redutora tinha poucos recursos no que se referia à artilharia, à munição ou às propriedades. Nenhum dinheiro, pois o que entrara na forma de roubos menores acabara subindo pelo nariz do merdinha ou sendo injetado em seu braço. Nenhuma lista de recrutas, nenhuma tropa organizada, nada de treinamento.

Muita coisa precisava ser refeita rapidamente...

Uma rajada de ar frio entrou no cômodo, e Connors deu meia-volta. Ômega chegara de lugar nenhum, as vestes brancas do Mal brilhando suavemente, a sombra negra por baixo parecendo uma ilusão ótica.

A repulsa que perpassou Connors era algo a que ele sabia que teria de se acostumar. Ômega sempre apreciava um relacionamento especial com seu Redutor Principal – e, talvez por isso, dizia-se por aí que eles raramente duravam muito.

Mas, pensando bem, considerando-se quem ele escolhia...

– Cuidei dele – disse Connors, indicando a marca de queimado no chão.

– Sei disso – replicou Ômega, a voz se distorcendo no ar frio e fétido.

Do lado de fora, uma rajada de vento lançou neve contra a janela, o buraco no peitoril permitindo a entrada de alguns flocos. Ao entrarem, eles flutuaram até o chão, o frio ali presente era suficiente para sustentá-los, graças à presença do mestre.

– Ele voltou para casa agora – Ômega avançou como uma brisa, sem nenhuma evidência de que qualquer espécie de pernas se movesse debaixo dele. – E eu estou deveras satisfeito.

Connors ordenou aos seus pés que ficassem parados. Não havia para onde correr, nenhum lugar para onde escapar; ele simplesmente tinha que superar o que estava por vir.

Ao menos ele se preparara para isso.

– Tenho novos recrutas para você.

Ômega se deteve.

– Verdade?

– Uma espécie de tributo, por assim dizer – ou mais especificamente um ponto final definitivo naquilo: ele tinha de se encaminhar logo, planejara cuidadosamente para que aqueles dois eventos fossem próximos. Ômega, afinal, gostava dos seus brinquedinhos, mas gostava ainda mais da sua Sociedade e do seu propósito de eliminar os vampiros.

– Você me agrada imensamente – sussurrou Ômega ao se aproximar. – Acredito que vamos nos entender muito bem... Sr. C.


CAPÍTULO 4

A Escolhida Layla existira em seu próprio corpo sem qualquer comprometimento físico pela totalidade de sua existência. Nascida no Santuário da Virgem Escriba e treinada na paz sobrenatural e refinada dali, ela jamais soubera o que era fome, ou estado febril, ou dor de qualquer tipo. Nem calor, tampouco frio, contusão, concussão ou contração. Seu corpo fora, como com todas as coisas no lugar mais sagrado da mãe da raça, sempre da mesma placidez, um espécime perfeito funcionando no nível mais alto...

– Ai, meu Deus – ela engoliu em seco ao pular da cama e se arrastar até o banheiro.

Seus pés nus derraparam no mármore quando ela se lançou de joelhos, levantando a tampa do vaso sanitário, e se inclinou para ficar frente a frente com a epiglote do vaso.

– Só... acabe com... isso – ela arfou quando a onda de náusea poluiu seu corpo até os dedos dos pés se dobrarem agarrando-se ao chão. – Por favor... Pelo amor da Virgem Escriba...

Se ao menos ela conseguisse esvaziar o estômago, por certo a tortura terminaria...

Colocando o indicador e o dedo médio na garganta, ela os pressionou com tanta força que engasgou. Mas foi só isso. Não havia coordenação em seu diafragma, nenhuma libertação da carne estragada em seu estômago... Não que ela tivesse comido – isso ou qualquer outra coisa – por... quanto tempo mesmo? Dias.

Talvez fosse esse o problema.

Passando um braço ao redor do quadril, ela apoiou a testa suada na beirada fria e dura do vaso sanitário e tentou respirar superficialmente. A sensação do ar subindo e descendo pelo fundo de sua garganta só fazia piorar a necessidade impotente de vomitar.

Há apenas poucos dias, quando ela entrara no cio, seu corpo assumira o controle, a necessidade de copular forte o suficiente para apagar todo pensamento e emoção. Aquela supremacia logo passara, contudo, do mesmo modo que as dores da cópula infindável, a pele e os ossos mais uma vez tomando o assento de trás em seu cérebro.

O equilíbrio estava recuando mais uma vez.

Desistindo, mudou de posição com cuidado, apoiando os ombros na parede de mármore.

Considerando-se como se sentia mal, só podia deduzir que estava abortando. Jamais vira ninguém no Santuário passar por aquilo – será que aquele mal-estar era normal ali na Terra?

Fechando os olhos, desejou poder falar com alguém sobre isso. Porém, bem poucas pessoas sabiam de sua condição – e, por enquanto, ela precisava que as coisas continuassem assim. A maioria das pessoas sequer sabia que ela passara pelo cio e fora obsequiada. O período fértil de Autumn começara antes e, em reação, a Irmandade se afastara ao máximo para não correr o risco de se expor a esses hormônios – por um bom motivo, como ela tomou conhecimento em primeira mão. E quando as pessoas retornaram aos seus quartos normais na mansão? O seu cio passara, e qualquer corrente residual de hormônios no ar foi atribuída por todos ao fim do período de Autumn.

Entretanto, a privacidade naqueles seus dois cômodos não duraria se a gestação continuasse. Primeiro porque sua condição seria sentida pelos outros, especialmente pelos machos, que particularmente percebiam esse tipo de coisa.

Segundo, depois de um tempo, começaria a aparecer.

A não ser... Como é que o bebê sobreviveria se ela se sentia tão mal?

Enquanto uma leve sensação de contração se acomodava no baixo ventre, como se sua pélvis estivesse sendo comprimida por uma hera invisível, ela procurou focar a mente em alguma coisa, qualquer coisa que não fossem as sensações físicas.

Olhos da cor da noite surgiram.

Olhos penetrantes, olhos que fitavam de um rosto ensanguentado e distorcido... e belos mesmo em sua feiura.

Ok. Aquilo não era melhora alguma.

Xcor, o líder do Bando de Bastardos. Um traidor do Rei, um macho caçador que era inimigo da Irmandade e dos vampiros em todas as partes. O guerreiro bravio que nascera de uma mãe nobre que não o quisera por causa de sua aparência, e de um pai desconhecido que nunca reconhecera a paternidade. Um fardo indesejado saído de casa para um orfanato até entrar para o campo de treinamento de Bloodletter no Velho Mundo. Um lutador sem remorso, treinado nisso para grandes feitos; depois, em sua maturidade, um mestre na morte que viajou pela terra com um bando de lutadores de elite, primeiro aliados ao próprio Bloodletter e, depois, a Xcor – e a ninguém mais.

O rastro de informações na biblioteca do Santuário terminava ali porque nenhuma das Escolhidas vinha atualizando mais nada. O resto, contudo, ela podia completar por si só: a Irmandade acreditava que o atentado contra a vida de Wrath no outono fora planejado por Xcor, e ela também ouvira que existiam insurgentes dentro da glymera a serviço do guerreiro.

Xcor. Um traidor, um macho brutal sem consciência, sem lealdade, sem princípios a não ser para seu benefício.

Todavia, quando ela encarou aqueles olhos, quando esteve em sua presença, quando, sem saber, alimentara esse novo inimigo... sentira-se uma fêmea completa pela primeira vez em sua vida.

Porque ele a fitara não com agressão, mas com...

– Chega – disse ela em voz alta. – Pare com isso agora.

Como se ela fosse uma criança subindo numa estante ou algo assim.

Forçando-se a ficar de pé, ajeitou o roupão e resolveu sair do quarto e ir até a cozinha. Era necessária uma mudança de cenário, assim como comida – mesmo que fosse para dar ao seu estômago algo para expelir.

Antes de sair, não verificou o cabelo nem o rosto no espelho. Não se preocupou com o modo como o manto lhe caía. Não gastou nem um minuto ponderando sobre qual das suas sandálias idênticas usaria.

Tanto tempo fora gasto com detalhes em sua aparência.

Teria sido melhor despendê-lo estudando ou treinando para uma vocação. Isso, porém, não fora possível dentro dos preceitos permitidos das atividades para uma Escolhida.

Ao sair para o corredor, respirou fundo, equilibrou-se e começou a andar na direção do escritório do Rei.

Logo à frente, Blaylock, filho de Rocke, entrou apressado no corredor das estátuas, com as sobrancelhas unidas e o corpo coberto em couro do alto dos ombros até as solas dos enormes coturnos. Ao avançar, ele verificava as armas uma a uma, tirando-as dos coldres, recolocando-as, prendendo-as.

Layla parou de pronto.

E quando o macho finalmente a viu, ele fez o mesmo, os olhos se mostrando reservados.

Cabelos ruivos escuros, um par adorável de olhos azul safira, o aristocrata de sangue puro era um lutador da Irmandade, mas não era um bruto. Não importava como ele passasse as noites no campo de batalha, no complexo ele continuava um inteligente cavalheiro de boas maneiras, conduta e educação.

Por isso não foi surpresa que, mesmo em sua pressa, ele se inclinasse ligeiramente à cintura num cumprimento formal antes de voltar a correr para a escadaria principal.

Na descida dele para o vestíbulo, a voz de Qhuinn lhe retornou.

Estou apaixonado por alguém...

Layla praticou seu novo hábito de praguejar baixinho. Triste a situação entre esses dois guerreiros, e a sua gravidez em nada ajudaria.

Mas a sorte fora lançada.

E todos eles teriam de lidar com as consequências.

Quando chegou à escadaria, Blay sentia como se estivesse sendo perseguido, e isso era loucura. Ninguém que representasse qualquer tipo de ameaça estava atrás dele. Nenhum tarado com uma máscara de Jason, ou um bastardo com um infeliz suéter natalino e facas no lugar dos dedos, nem mesmo um palhaço assassino...

Somente uma Escolhida provavelmente grávida que, por acaso, passara bem umas doze horas transando com o seu maldito ex-melhor amigo.

Nada de mais.

Pelo menos, ela não deveria ser problema algum. A questão era que, toda vez que ele via aquela fêmea, sentia como se tivesse levado um soco no estômago. O que era mais uma loucura. Ela não fizera nada errado. Nem Qhuinn.

A menos que, Deus, se ela estivesse grávida...

Blay mandou todos esses pensamentos felizes para o fundo da mente ao cruzar o vestíbulo num trote. Não havia tempo para asneiras psicológicas, mesmo que só consigo: quando Vishous liga para você na sua noite de folga e lhe diz para estar na porta da frente em cinco minutos, não é porque as coisas estão bem.

Nenhum detalhe foi fornecido ao telefone; nenhum foi solicitado. Blay só levara um minuto para enviar uma mensagem de texto a Saxton, depois vestira couro e aço, pronto para qualquer coisa.

De certo modo, aquilo era bom. Passar a noite lendo no quarto acabara se mostrando uma tortura, e apesar de ele não querer que ninguém estivesse em apuros, ao menos aquilo o envolveria em alguma atividade. Saindo às pressas do vestíbulo, ele...

Deparou-se com o caminhão guincho da Irmandade.

O veículo estava equipado para parecer autenticamente humano, deliberadamente pintado com o logo vermelho da AAA* e o nome fictício Guinchos Murphy. Número de telefone falso. Slogan “Você pode contar sempre conosco” falso.

Bobagem. A menos que “você” fosse alguém da Irmandade.

Blay subiu no assento do passageiro e encontrou Tohr, e não V., atrás do volante.

– Vishous está vindo?

– Somos você e eu, garoto. Ele ainda está trabalhando no exame de balística daquela arma.

O Irmão pisou no acelerador, o motor a diesel roncou como uma fera, as luzes formando um círculo amplo ao redor da fonte do pátio e circundando os carros estacionados um atrás do outro.

Assim que Blay verificou os veículos e calculou quem estava faltando, Tohr disse:

– Qhuinn e John.

As pálpebras de Blay se fecharam por um átimo de segundo.

– O que houve?

– Não sei muito. John ligou para V. pedindo ajuda – o Irmão o fitou. – E você e eu somos os únicos disponíveis.

Blay alcançou a maçaneta da porta, pronto para abri-la e se desmaterializar dali.

– Onde eles est...

– Acalme-se, filho. Conhece as regras. Nenhum de nós pode sair desacompanhado, por isso preciso do seu traseiro nesse assento ou estarei violando o meu maldito protocolo.

Blay bateu o punho na porta, com força suficiente para que a dor na mão clareasse um pouco suas ideias. Maldito Bando de Bastardos, limitando-os assim – e o fato de a regra fazer sentido só o irritava ainda mais. Xcor e seus rapazes mostraram que eram perigosos, agressivos e completamente amorais – não eram exatamente o tipo de inimigo que você gostaria de enfrentar sozinho.

Mas, caramba...

Blay apanhou o telefone, pretendendo mandar uma mensagem para John, mas se conteve, pois não queria distraí-los ao tentar obter detalhes.

– Não há ninguém que consiga chegar lá antes?

– V. ligou para os outros. A luta está correndo solta no centro e ninguém consegue sair.

– Maldição.

– Vou dirigir o mais rápido que puder, filho.

Blay assentiu, só para não parecer rude.

– Onde estão e vai demorar muito?

– Uns quinze, vinte minutos. É depois da periferia.

Merda.

Olhando para fora da janela e vendo os flocos de neve passando, ele disse a si mesmo que se John estava mandando mensagens, eles estavam vivos e, pelo amor de Deus, o cara pedira um guincho, não uma ambulância. Até onde ele podia saber, os dois estavam com um pneu furado ou o para-brisa quebrado, e ficar histérico não encurtaria a distância, tampouco diminuiria o drama, se é que havia algum, nem mudaria as consequências.

– Desculpe se estou agindo como um idiota – murmurou Blay, quando o Irmão entrou na autoestrada.

– Não precisa se desculpar por se preocupar com um dos seus garotos.

Cara, o Tohr sabia ser legal.

Como era bem tarde da noite, a Northway não tinha nenhum carro, só um ou outro caminhão, cujos motoristas pilhados seguiam como morcegos saindo do inferno. O guincho não ficou muito tempo na estrada larga. Uns quinze quilômetros mais tarde, eles pegaram a saída ao norte do centro de Caldwell, numa área suburbana conhecida pelas suas mansões, não por ranchos; pelas Mercedes, não por Mazdas.

– Que diabos eles estão fazendo aqui? – perguntou Blay.

– Investigando aqueles relatos.

– Sobre os redutores?

– Isso.

Blay balançou a cabeça ao passarem por paredes de pedra tão altas e fortes quanto zagueiros de futebol americano, e portões com delicadas filigranas de ferro fechados para estranhos.

Abruptamente, respirou fundo e relaxou. Os aristocratas que voltavam para a cidade estavam assustados e viam provas das atividades dos redutores em tudo que os circundava – o que não significava que assassinos, de fato, saltassem detrás das esculturas dos jardins nem se escondessem em seus porões.

Aquele não era um evento mortal. Era só mecânico.

Blay esfregou o rosto e tratou de arrancar tudo do seu botão de pânico interno.

Pelo menos até saírem do outro lado do código postal e encontrarem o acidente.

Ao terminarem uma curva da estrada, havia um par de lanternas traseiras piscando sua luz vermelha do outro lado – bem depois do acostamento, de ponta cabeça.

O cacete que se tratava só de um problema mecânico.

Blay saltou antes de Tohr sequer começar a estacionar, materializando-se diretamente ao lado do Hummer.

– Oh, Cristo, isso não... – gemeu ao ver duas marcas no para-brisa dianteiro, o tipo de coisa que só podia ser feito por um par de cabeças atingindo o vidro.

Caminhando na neve, ele foi até a porta do motorista, o cheiro doce do combustível golpeando-o no nariz, a fumaça do motor cegando-o...

Um assobio agudo cortou o ar noturno logo à esquerda. Virando, Blay vasculhou o cenário acarpetado de neve... e encontrou duas formas desajeitadas cerca de seis metros mais distante, aninhadas na base de uma árvore quase do tamanho daquela na qual o Hummer se amontoara.

Andando com dificuldade pela neve acumulada, Blay se apressou até lá e aterrou sobre os joelhos. Qhuinn estava largado no chão, as pernas longas e pesadas esticadas, a parte superior do corpo no colo de John.

O macho apenas o encarou com aqueles olhos descombinados, sem se mover, sem falar.

– Ele está paralisado? – Blay exigiu saber, olhando para John.

– Não que eu saiba – respondeu Qhuinn secamente.

Acho que ele está com uma concussão, sinalizou John.

– Eu não...

Ele saiu voando do capô do carro e atingiu esta árvore...

– Quase nem acertei a árvore...

E eu tive que segurá-lo quieto desde então.

– O que está me irritando...

– E aí, rapazes, como estão? – Tohr perguntou ao se agachar perto deles, as botas esmagando o gelo. – Alguém ferido?

Qhuinn se soltou de John e se levantou.

– Não... Nós só...

Ao dizer isso, o equilíbrio dele oscilou, o corpo inclinando-se tanto que Tohr teve que segurá-lo.

– Vá esperar no guincho – o Irmão disse sério.

– Que se foda...

Tohr puxou-o até que ficassem de frente.

– Desculpe, filho, o que foi que disse? Porque tive a impressão que tentou usar a palavra que começa com “f ” comigo.

Ok. Certo. Blay sabia de antemão que havia poucas coisas na vida diante das quais Qhuinn recuava; dito isso, um Irmão respeitado por ele, que estava mais do que pronto para concluir o trabalho que aquele pinheiro começara, era, definitivamente, uma delas.

Qhuinn olhou para o SUV destruído.

– Desculpe. Noite ruim. E só fiquei tonto por um segundo. Estou bem.

Numa atitude típica de Qhuinn, o maldito se soltou e se afastou, seguindo para a pilha fumegante que antes era metal condutível como se pudesse se livrar dos seus ferimentos pela simples força de vontade.

Deixando os outros para comer poeira.

Blay se pôs de pé e se obrigou a focar em John.

– O que aconteceu?

Deus abençoe a linguagem de sinais; isso lhe dava algo para que olhar e, felizmente, John se alongou em detalhes. Quando a narrativa chegou ao fim, Blay só conseguia fitar o amigo. Mas seria impossível alguém inventar tudo aquilo.

Não a respeito de alguém de quem se gostava, pelo menos.

Tohrment começou a rir.

– Pelo que você está me dizendo, ele cometeu um hyslop.

– Não sei muito bem o que isso quer dizer – Blay interrompeu.

Tohr deu de ombros e seguiu a trilha de Qhuinn pela neve, mexendo o braço na direção do acidente.

– Bem ali. Aquela é a definição de um hyslop... iniciada pelo seu garoto deixando as chaves na ignição.

Ele não é o meu garoto, Blay disse para si mesmo. Nunca foi. Nunca será.

E o fato de isso doer mais do que qualquer tipo de concussão era algo tão significativo que ele resolveu se calar.

De lado e longe da luz dos faróis, Blay ficou para trás e viu Qhuinn se agachar pelo lado da porta do motorista e praguejar baixinho.

– Meleca. Mas que meleca...

Tohr fez o mesmo do lado do passageiro.

– Olha só, um parzinho.

– Acho que estão mortos.

– Mesmo? O que foi que o convenceu disso? O fato de eles não estarem se mexendo ou por este cara aqui não ter mais nenhuma feição?

Qhuinn se endireitou e olhou por cima da parte inferior do carro.

– Precisamos virá-lo para guinchá-lo.

– E cá estava eu pensando que íamos derreter marshmellows – comentou Tohr. – John? Blay? Venham cá.

Os quatro se posicionaram lado a lado entre os pneus e se afundaram nas botas, travando suas posições na neve. Quatro pares de mãos seguravam pelas portas; quatro corpos inclinando-se na posição de partida; quatro pares de ombros se preparando.

Uma única voz, a de Tohr, contou em voz alta:

– No três. Um. Dois. Três...

O Hummer já tivera uma noite ruim, e essa coisa de acertar o que estava errado o fez gemer tão alto que uma coruja disparou pela estrada e um par de cervos saiu correndo em seus cascos em meio às árvores.

Porém, o Hummer não era a única coisa praguejando. Todos se portaram como George Carlin* debaixo do peso morto ao se esforçarem contra a gravidade de todo aquele aço. As leis da física eram possessivas, porém, e enquanto o corpo de Blay se retesava, todos os seus músculos se esticando sobre os ossos, ele virou a cabeça e mudou a pegada...

Estava ao lado de Qhuinn. Bem próximo.

Os olhos de Qhuinn estavam focando para a frente, os lábios arreganhados para trás das presas, sua expressão feroz era o resultado de um esforço anatômico total...

Bem perto de como ele ficava quando gozava.

Santa inadequação, Batman. Que pena que isso não mudasse em nada o curso dos seus pensamentos.

O problema era que Blay sabia de antemão o que um orgasmo provocava naquele homem – ainda que não porque ele tivesse sido um dos milhares que foram o repositório. Isso não. Nunca isso. Que Deus não permitisse que o cara que enfiava o pau em tudo o que respirasse – e quiçá objetos inanimados – um dia fizesse isso com Blay.

Sim, porque esse perspicaz paladar sexual que levou Qhuinn a copular com tudo em Caldwell entre os vinte e os vinte e oito anos excluiu Blay do grupo de risco.

– Ele... está começando a se mexer... – disse Tohr por entre os dentes. – Para baixo!

Blay e Qhuinn responderam rápido, relaxando a pegada, agachando-se e passando os ombros por debaixo do teto do carro. De frente um para o outro, os olhos se encontraram quando o ar foi expelido das bocas, as coxas reagindo, os corpos travando uma batalha contra todo aquele peso morto e frio – que, por acaso, também estava escorregadio graças à neve.

A força conjunta deles foi a causa da virada – literalmente. Um eixo se formou nos pneus opostos, e o fardo de toneladas do Hummer mudou entre eles, tornando-se cada vez mais leve.

Por que diabos Qhuinn olhava para ele daquele modo?

Aqueles olhos, um par de azul e verde, estavam cravados nos de Blay, sem se mexerem.

Talvez fosse apenas resultado da concentração, como se ele estivesse apenas se centrando nos poucos centímetros à frente e, por acaso, Blay estivesse no fim do seu campo de visão.

Só podia ser isso...

– Devagar, rapazes! – avisou Tohr. – Ou a maldita coisa vai dar um giro completo!

Blay aliviou a pressão, e houve um momento de suspensão, um átimo de segundo em que o impossível aconteceu, quando um veículo utilitário de três toneladas se equilibrou perfeitamente em duas rodas, em que o que fora excruciante se tornou... hilário.

E, ainda assim, Qhuinn o encarava.

Quando o Hummer aterrissou nas quatro rodas, Blay franziu o cenho e se virou. Quando voltou a olhar... os olhos de Qhuinn estavam exatamente onde estiveram antes.

Blay se inclinou e sibilou:

– O que foi?

Antes que houvesse qualquer tipo de resposta, Tohr se adiantou e abriu a porta do SUV. O cheiro de sangue fresco flutuou com a brisa.

– Cara, mesmo que isto não tenha tido perda total, não sei não se você vai querê-lo de volta. Limpar isto vai ser o cacete!

Qhuinn não respondeu, parecendo ter se esquecido completamente a respeito do vívido comercial de seguros de carros pelo qual o seu veículo estava passando. Apenas ficou ali, olhando para Blay.

Talvez o filho da mãe tivesse tido um derrame de pé?

– Qual é o seu problema? – repetiu Blay.

– Vou trazer o guincho – disse Tohr ao seguir para o outro veículo. – Vamos deixar os corpos onde eles estão; vocês podem descartá-los no caminho de casa.

Nesse meio-tempo, Blay pôde sentir John parando e olhando para eles – algo com que Qhuinn não parecia se importar.

Com uma imprecação, Blay solucionou o problema correndo para o guincho e caminhando ao lado enquanto Tohr dava a ré até o Hummer acidentado. Aproximando-se da manivela, Blay soltou o gancho e começou a liberar o cabo.

Ele tinha a sensação de saber o que se passava pela cabeça de Qhuinn e, caso estivesse certo, era melhor o cara ficar de boca fechada e recuar.

Ele não queria ouvir.

Associação Automobilística Americana. (N.T.)

Humorista e comediante de stand-up americano. (N.T.)


CAPÍTULO 5

Enquanto Qhuinn permanecia parado no vento, vendo Blay enganchar o Hummer, a neve solta começou a cobrir suas botas, o peso leve e macio gradualmente obscurecendo as pontas de metal. Olhando para baixo, ele teve a vaga noção de que, se ficasse onde estava por tempo suficiente, acabaria completamente coberto por ela, da cabeça aos pés.

Que coisa mais estranha de se pensar.

O rugir do motor do guincho fez sua cabeça se erguer novamente, os olhos mudando de direção quando o cabo começou a arrastar seu carro arruinado do monte de neve.

Era Blay quem cuidava do içamento, ficando ao lado para monitorar e controlar a velocidade do cabo cuidadosamente a fim de que nenhuma força desnecessária fosse aplicada nos vários componentes mecânicos daquela produção de bom samaritanismo automotiva.

Tão atento. Tão controlado.

Tentando parecer casual, Qhuinn seguiu para perto de Tohr e fingiu que ele, assim como o Irmão, estava apenas monitorando o progresso do içamento. Não estava. Tratava-se apenas de Blay.

Sempre fora Blay.

Procurando demonstrar seu desinteresse, cruzou os braços sobre o peito, mas teve que abaixá-los novamente, visto que o ombro machucado reclamou.

– Lição aprendida – disse ele com o intuito de puxar conversa.

Tohr murmurou algo em resposta, mas ele não conseguiu ouvir. E menos ainda conseguia ver outra coisa que não Blay. Não num piscar de olhos. Nem numa respiração. Tampouco numa batida de coração.

Fitando através da neve rodopiante, ele se maravilhou em como alguém que sabia tudo a seu respeito, que vivia no mesmo corredor, que comia com você, trabalhava com você e dormia na mesma hora que você, pudesse... se tornar um estranho.

Pensando bem, e como sempre, aquilo se tratava de distância emocional, e não da coisa de trabalhar sob o mesmo teto.

A questão era que Qhuinn sentia como se quisesse explicar as coisas. Infelizmente, e diferentemente do seu primo sórdido, Saxton o Sacana, ele não tinha o dom das palavras, e o sentimento complicado no meio do seu peito só piorava ainda mais a sua tendência ao mutismo.

Depois de uma última puxada, o Hummer por fim se encontrava no piso do guincho, e Blay começou a passar a correia para dentro e para fora por baixo da carroceria.

– Certo, vocês três levem esse monte de entulho de volta – disse Tohr enquanto flocos de neve voltavam a cair.

Blay parou e olhou para o Irmão.

– Nós seguimos em pares. Portanto, devo ir com você.

Como se ele estivesse mais do que pronto a ir embora.

– Deu uma boa olhada no que temos aqui? Um monte de aço incapacitado com dois humanos mortos dentro. Acha que a situação é para relaxar?

– Eles conseguem cuidar disso – Blay disse baixo. – Os dois são capazes.

– Mas com você ficam mais fortes ainda. Vou desmaterializar de volta para casa.

No silêncio que se seguiu, a linha ereta que se formou subindo do traseiro de Blay até a base do crânio foi o equivalente a um dedo médio erguido. Não para o Irmão, porém.

Qhuinn sabia exatamente para quem.

As coisas correram rapidamente a partir daí; o SUV sendo amarrado, Tohr indo embora e John subindo no banco do motorista. Nesse meio-tempo, Qhuinn deu a volta até a porta do passageiro, abriu-a e deu um passo de lado, esperando.

Como um cavalheiro faria, supôs.

Blay apareceu, atravessando a neve. Sua expressão era como a do cenário que os envolvia: fria, reservada e inóspita.

– Depois de você – murmurou ele, pegando um maço de cigarros e um isqueiro elegante.

Qhuinn abaixou a cabeça num aceno rápido, depois entrou, deslizando pelo banco até o ombro encostar no de John.

Blay entrou em seguida, bateu a porta e entreabriu a janela, deixando a ponta acesa do prego do seu caixão na abertura para minimizar o cheiro.

O guincho foi quem sustentou a conversa por uns oito quilômetros mais ou menos.

Sentando entre os que costumavam ser seus dois melhores amigos, Qhuinn fitava o limpador de para-brisa e contava os segundos intermitentes entre as limpadas... três, dois... um... Sobe e desce. E... três, dois... um... Sobe e desce.

Mal havia neve solta o suficiente no ar para se darem ao trabalho.

– Desculpe – deixou escapar.

Silêncio. A não ser pelo ronco do motor diante dele e pelo ocasional barulho de correntes na parte de trás quando passavam por sobre uma elevação ou buraco.

Qhuinn olhou de relance e, ora essa, Blay parecia estar mastigando metal.

– Está falando comigo? – disse ele ranzinza.

– Sim. Estou.

– Não tem do que se desculpar – Blay esmagou o toco do cigarro no cinzeiro do painel. E acendeu outro. – Pode, por favor, parar de me encarar?

– Eu só... – Qhuinn levou a mão aos cabelos e lhes deu um puxão e tanto. – Eu não... Não sei o que dizer a respeito de Layla.

A cabeça de Blay se virou num rompante.

– O que você faz com a sua vida não me diz respeito...

– Isso não é verdade – Qhuinn disse baixinho. – Eu...

– Não é verdade?

– Blay, escute aqui, Layla e eu...

– O que o faz pensar que quero ouvir sequer uma palavra sobre você e ela?

– Só pensei que talvez você precisasse de algum... sei lá, de um contexto, ou algo assim.

Blay simplesmente fitou a frente um momento.

– E por que, exatamente, você acredita que eu precise de um “contexto”?

– Porque... pensei que talvez você achasse tudo... perturbador. Ou algo assim.

– E por quê?

Qhuinn não conseguia acreditar que o cara quisesse que ele dissesse tudo em voz alta. Menos ainda na frente de outra pessoa, mesmo que fosse John.

– Bem, por causa... Você sabe.

Blay se inclinou, o lábio superior se retraindo atrás das presas.

– Só para que fiquemos bem claros aqui, o seu primo está me dando tudo de que preciso. O dia inteiro. Todos os dias. Você e eu? – ele moveu a mão com o cigarro para frente e para trás entre eles. – Nós trabalhamos juntos. Só isso. Por isso, quero que nos faça um favor antes de pensar que eu “preciso” saber de alguma coisa. Pergunte-se “se eu estivesse preparando hambúrgueres no McDonald’s, eu contaria isso para o cara das fritas?”. Se a resposta for não, então fique de bico fechado.

Qhuinn voltou a olhar para o para-brisa. E pensou em atravessá-lo com o rosto.

– John, encoste.

O lutador olhou de relance para ele. E começou a balançar a cabeça.

– John, encoste esta merda. Ou faço isso por você.

Qhuinn estava vagamente ciente de que o peito subia e descia com força e que a mão se fechara num punho cerrado.

– Encoste esta merda! – rugiu ao socar o painel com tanta força que fez com que uma das saídas de ar saltasse.

O guincho foi para a lateral da estrada e os freios rangeram quando a velocidade diminuiu. Mas Qhuinn já estava do lado de fora. Desmaterializando-se, ele escapou pela fresta na janela, junto à fumaça exalada por Blay.

Quase imediatamente, ele reapareceu ao lado da estrada, incapaz de sustentar seu estado molecular porque suas emoções estavam afetadas demais para tal. Colocando uma bota na frente da outra, ele caminhou pela neve, sua necessidade de se mover afogando tudo, inclusive a dor pulsante nas juntas dos dedos.

No fundo de sua mente, algo a respeito daquela faixa de estrada se apresentou, mas havia barulho demais no seu cérebro para que a especificidade da coisa surgisse à tona.

Não fazia ideia para onde estava indo.

Caramba, estava frio demais.

Sentando no banco do guincho, Blay se concentrava na ponta acesa do cigarro, a luzinha laranja mexia de um lado para o outro como a corda de uma guitarra.

A mão devia estar tremendo.

O assobio ao seu lado era a maneira de John lhe chamar a atenção, mas ele o ignorou. O que o fez levar um tapa no braço.

Isto é muito ruim para ele, sinalizou John.

– Está de brincadeira, né? – murmurou Blay. – Só pode estar me zoando. Ele sempre quis um relacionamento convencional e transou com uma Escolhida... Eu diria que isso...

Não isso, isto. John apontou para o asfalto. Aqui.

Blay mudou o olhar para o para-brisa só porque estava cansado demais para discutir. Na frente do guincho, os faróis iluminavam tudo, o cenário branco coberto de neve a ponto de cegar, a figura caminhando ao lado da estrada como uma sombra largada.

Pingos vermelhos marcavam o caminho das pegadas.

As mãos de Qhuinn sangravam por ele ter socado o painel...

De repente, Blay franziu o cenho. Sentou-se um pouco mais ereto.

Como as peças de um quebra-cabeças se encaixando, os detalhes aleatórios de onde estavam, desde a curva da estrada, até as árvores e a parede de pedra ao lado deles, tudo se juntou e completou um cenário.

– Ai, que merda. – Blay bateu a cabeça no encosto de trás. Fechando os olhos de leve, tentou encontrar outra solução para aquilo, qualquer coisa que não fosse sair dali.

E não conseguiu encontrar coisa alguma. Absolutamente nada.

Ao empurrar a porta, o frio invadiu o interior aquecido da cabine. Não disse nada a John. Não havia por quê. Coisas como sair na neve atrás de alguém eram autoexplicativas.

Afundando, ele andou ruidosamente em meio ao acúmulo de neve. A estrada fora limpa antes, mas já havia algum tempo.

O que significava que ele teria de agir rapidamente.

Ali, naquela parte rica da cidade, onde a base de arrecadação era tão grande quanto os jardins enormes, era melhor acreditar que um daqueles miniarados amarelos de remover neve apareceria ali antes do amanhecer.

Não havia necessidade de fazer aquilo diante de humanos. Ainda mais com o par de cadáveres ensanguentados no Hummer.

– Qhuinn – disse ele seco. – Qhuinn, pare.

Ele não gritou. Não tinha energia para tanto. Aquela... coisa, o que quer que houvesse entre eles, já se tornara exaustiva há muito tempo, e o atual espetáculo no acostamento da estrada era mais um episódio para o qual ele não tinha energia.

– Qhuinn. Sério.

Pelo menos o cara diminuiu um pouco o passo. E, com um pouco de sorte, ele estaria tão furioso que não juntaria as pistas sobre a localização deles.

Jesus, qual seria a probabilidade... pensou Blay ao olhar ao redor. Foi exatamente ali no quilômetro seguinte que a Guarda de Honra fizera seu servicinho – e Qhuinn quase morrera em decorrência da surra.

Deus, Blay se lembrava de ter se armado aquela noite, um par de faróis diferentes captando uma figura escura, daquela vez sangrando no chão.

Estremecendo, deu mais uma chance ao jogo.

– Qhuinn.

Ele parou, as botas se plantando na neve e não se adiantando mais. No entanto, ele não se virou.

Blay gesticulou para que John apagasse as luzes e, um segundo depois, tudo o que lhe restava eram as luzes alaranjadas de estacionamento do guincho.

Qhuinn apoiou as mãos nos quadris e olhou para o céu, a cabeça inclinada para trás, a respiração subindo numa nuvem de condensação.

– Volte e entre no guincho – Blay deu mais uma tragada e soltou a fumaça. – Precisamos ir embora...

– Sei o quanto Saxton significa para você – disse Qhuinn de modo brusco. – Já entendi. De verdade.

Blay se forçou a dizer:

– Isso é bom.

– Só acho que... ouvir isso ainda é um choque.

Blay franziu o cenho na luz diminuta.

– Não entendo.

– Sei que não. E isso é culpa minha. Tudo isso... é minha culpa – Qhuinn olhou de relance sobre o ombro, o rosto rígido e forte numa expressão séria. – Só não quero que pense que eu a amo. É só isso.

Blay foi dar mais um tragada em seu Dunhill, mas não tinha força suficiente nos pulmões.

– Eu... lamento... Não entendo... por que...

Ora, se essa não foi uma resposta maravilhosa.

– Não estou apaixonado por ela. Ela não está apaixonada por mim. Não estamos dormindo juntos.

Blay emitiu uma risada ríspida.

– Até parece.

– É sério. Eu a servi no cio porque quero um filho, e ela também, e tudo começou e terminou ali.

Blay fechou os olhos quando a ferida em seu peito foi reaberta.

– Qhuinn, para com isso. Você esteve com ela o último ano inteiro. Eu vi vocês... Todos viram vocês...

– Tirei a virgindade dela há quatro noites. Ninguém esteve com ela antes disso, nem mesmo eu.

Ah, essa era uma imagem que ele realmente precisava na cabeça.

– Eu não a amo. Ela não me ama. Não estamos dormindo juntos.

Blay não conseguia mais ficar parado, por isso deu alguns passos, a neve se acumulando debaixo das botas. E, do nada, surgiu a voz da Senhora da Igreja do SNL* em sua cabeça: Ora, isso não é incríííível?

– Não estou com ninguém – disse Qhuinn.

Blay riu mais uma vez com uma pontada de escárnio.

– Num relacionamento? Claro que não. Mas não espere que eu acredite que você está passando seu tempo fazendo florzinhas de crochê e colocando os temperos nas prateleiras em ordem alfabética com aquela fêmea.

– Faz mais de um ano que não faço sexo.

Isso o deteve.

Deus, onde fora parar o oxigênio daquela parte do universo?

– Tolice – Blay replicou com a voz entrecortada. – Você esteve com Layla... Há quatro noites. Como você mesmo disse.

No silêncio que se seguiu, a terrível verdade mostrou sua cara feia de novo, a dor tornando impossível para ele esconder o que tão diligentemente vinha escondendo nos últimos dias.

– Você esteve com ela de verdade – disse ele. – Vi o candelabro da biblioteca balançar debaixo do seu quarto.

E então foi Qhuinn quem fechou os olhos como se quisesse esquecer.

– Foi com um propósito.

– Preste atenção... – Blay balançou a cabeça. – Não estou entendendo bem por que você está me contando isso. Falei sério quando eu disse que não preciso de explicações quanto ao que você faz da sua vida. Você e eu... Nós crescemos juntos, e é só isso. Verdade, partilhamos muitas coisas no passado, e estávamos sempre presentes quando era preciso. Mas nenhum de nós cabe mais nas roupas que costumávamos usar, e esse nosso relacionamento também é assim. Ele não cabe mais nas nossas vidas. Nós... não cabemos mais. Você e eu? Temos um passado. E só. E é só isso... o que teremos sempre.

Qhuinn desviou o olhar, o rosto mais uma vez nas sombras.

Blay se forçou a continuar a falar.

– Sei que essa... coisa com a Layla... é importante para você. Ou imagino que seja... como pode não ser se ela está grávida? Quanto a mim? Honestamente, desejo que sejam felizes. Mas você não me deve nenhuma explicação... e mais importante, não preciso delas. Toquei o barco quanto a paixonites infantis... e era isso o que eu sentia por você. Na época, era apenas uma paixão, Qhuinn. Portanto, por favor, cuide da sua fêmea e não fique se preocupando se cortarei meus pulsos porque você encontrou alguém para amar. Assim como eu encontrei.

– Eu já disse. Eu não a amo.

Espere por isso, Blay pensou para si mesmo. Porque está chegando.

Aquilo ali era o clássico Qhuinn.

O macho era incrível na batalha. Leal ao ponto da psicose. E esperto. E tão sensual que era capaz de provocar distrações. E milhares de outras coisas que Blay tinha de admitir que ninguém se equiparava. Mas ele tinha um defeito sério, e não era a cor dos olhos.

Ele não sabia lidar com emoções.

Com nenhuma.

Qhuinn sempre correra de qualquer coisa profunda – mesmo sem se mexer. Ele era capaz de se sentar na sua frente e assentir e falar, mas quando as emoções se aprofundavam para ele, ele saía de sua pele. Simplesmente se distanciava. E se você tentasse forçá-lo a confrontá-las?

Bem, isso não era possível. Ninguém forçava Qhuinn a fazer coisa alguma.

Ah, sim, claro que havia um bom número de bons motivos para ele ser assim. A família dele tratando-o como se fosse uma maldição. A glymera menosprezando-o. Não ter tido raízes a vida inteira. Porém, quaisquer que fossem os motivos, no fim do dia, o macho fugiria de tudo o que fosse complicado, ou exigisse algo dele.

Provavelmente a única coisa que poderia mudar isso seria um filho.

Portanto, não importava o que ele dizia agora, não havia dúvidas de que ele estava apaixonado por Layla; mas tendo passado o cio com ela, e agora aguardando os resultados, estava perdendo a cabeça de tanta preocupação e se afastava dela.

E, por isso, estava ali parado no acostamento da estrada, tagarelando a respeito de coisas que não faziam sentido algum.

– Desejo o melhor para os dois – disse Blay, com o coração batendo forte dentro do peito. – Com toda sinceridade. Espero, de verdade, que isso dê certo para vocês dois.

Em uma quietude tensa, Blay se suspendeu do buraco em que mais uma vez caíra, agarrando-se para ressurgir à superfície, longe da agonia dolorosa e incandescente no centro da sua alma.

– E agora, podemos voltar para o guincho e terminar o nosso trabalho? – disse de modo neutro.

As mãos de Qhuinn se elevaram brevemente diante do rosto. Depois, ele abaixou a cabeça, enfiou as juntas ensanguentadas nos bolsos da calça e começou a voltar para o guincho.

– É. Vamos fazer isso.

Saturday Night Live, programa humorístico da TV americana, no qual a personagem The Church Lady, uma senhora devota e presunçosa, é a âncora de um programa de entrevistas da igreja. (N.T.)


CAPÍTULO 6

– Ah, meu Deus, eu vou gozar... Eu vou gozar...

Mais ao sul, no centro de Caldwell, no estacionamento atrás do Iron Mask, Trez Latimer estava feliz em saber disso, não surpreso. Mas ninguém na região dos três condados precisava saber.

Enquanto entrava e saía da participante muito disposta debaixo do seu corpo, ele a calou com um beijo sôfrego, a língua penetrando na boca quente, todos os comentários desnecessários sendo interrompidos.

O carro no qual se encontravam estava apinhado e rescendia ao perfume da mulher: doce e barato – merda, da próxima vez, ele escolheria uma voluntária com um SUV ou, melhor ainda, uma Mercedes S550 com espaço adequado no banco traseiro.

Obviamente, aquele produto da Nissan não fora fabricado para acomodar 120 quilos fodendo uma auxiliar de dentista seminua. Ou ela era uma auxiliar jurídica?

Não se lembrava.

E ele tinha problemas mais imediatos com que se preocupar. Numa mudança abrupta. Ergueu os lábios, pois quanto mais se aproximava do orgasmo, mais as presas se estendiam do maxilar superior, e ele não queria mordê-la por engano; o sabor de sangue fresco o colocaria num limiar mais perigoso, e ele não estava muito certo de que se alimentar dela seria uma boa ideia...

Risque isso.

Era uma má ideia. E não só por ela ser apenas humana.

Alguém os observava.

Erguendo a cabeça, espiou pelo vidro traseiro. Sendo um Sombra, sua visão era de três a quatro vezes mais perceptiva do que a de um vampiro normal, e ele conseguia enxergar com facilidade no escuro.

Sim, alguém os assistia à esquerda da entrada dos empregados como se estivesse vendo um filme.

Hora de acabar logo com aquilo.

Assumiu o controle de imediato, colocando a mão entre os corpos até chegar ao sexo da mulher, e masturbou-a ao mesmo tempo em que a penetrava, fazendo-a gozar com tanta intensidade que ela jogou a cabeça para trás e bateu na porta.

Nenhum orgasmo para ele.

Que seja. Alguém se demorando nas imediações fazia com que seu divertimento fosse transferido a outro território, o que significava que ele tinha de acabar logo com aquilo. Mesmo se não gozasse.

Ele tinha uma bela quantidade de inimigos graças às suas várias associações.

E também existiam... complicações... que eram somente suas.

– Oh, meu Deus...

Levando-se em consideração a respiração pesada, todas aquelas torções e as pulsações que comprimiam o pau de Trez, a auxiliar de dentista/assistente de advogado/técnica em veterinária estava se divertindo bastante. Ele, porém, já se retirara mentalmente daquela bobagem e bem que poderia estar saindo do carro, pegando a arma para...

Era uma fêmea. Sim, quem quer que fosse definitivamente era do sexo feminino...

Trez franziu o cenho ao perceber quem era.

Merda.

Bem, pelo menos não era um redutor. Um sympatho. Um traficante de drogas de quem ele precisava cuidar. Um cafetão rival com uma opinião a respeito de alguma coisa. Um vampiro desajustado. iAm, seu irmão...

Mas não. Apenas uma mulher inofensiva, e pena que ele não poderia voltar para seu bocado de prazer. O clima já era.

A auxiliar de dentista/assistente de advogado/técnica em veterinária/cabeleireira arfava como se tivesse carregado um piano sobre os ombros.

– Isso foi... incrível... Isso... foi...

Trez se retraiu e recolocou o pênis para dentro do zíper. Eram grandes as chances de sofrer de um caso de bolas de neon dentro de meia hora, mas ele lidaria com a situação quando ela surgisse.

– Você foi incrível. Você é o mais incrível dos...

Trez deixou que a barragem de palavras tolas recaísse sobre ele.

– Você também, gatinha.

Ele a beijou de modo que ela pensasse que ele se importava – e ele se importava, de certo modo. Essas mulheres humanas que ele usava importavam no sentido de serem seres vivos, merecedores de respeito e bondade pelo simples fato de terem corações pulsantes. Por um tempo breve, elas deixavam que ele lhes usasse os corpos, e algumas vezes as veias, e ele valorizava tais presentes, que lhes eram dados de livre e espontânea vontade, algumas vezes mais de uma vez.

E esse era o problema que se apresentava agora.

Subindo o zíper, Trez mudou o corpanzil de posição a fim de não esmagar a parceira de dez minutos, tampouco fazer uma craniotomia no teto do carro.

A garota não parecia querer se mexer, porém. Ela só continuava deitada como um travesseiro largado no assento, as pernas ainda abertas, o sexo ainda pronto, os seios ainda elevados desafiando a gravidade como dois melões colados nas costelas.

Devem estar debaixo da musculatura, pensou ele.

– Vamos vestir você – sugeriu, juntando as metades do sutiã rendado dela.

– Você foi tão fantástico...

Ela parecia feita de gelatina – a não ser pelos seios duros falsos – e toda maleável e aprazível, mas uma completa inútil quando ele a vestiu e a suspendeu, afagando seu rosto.

– Isso foi divertido, gatinha – murmurou, falando a verdade.

– Posso ver você de novo?

– Talvez – ele sorriu com comedimento para ela para que as presas não aparecessem. – Estou por aí.

Com isso, ela ronronou tal qual uma gata e depois lhe disse seu número de telefone, o qual ele não se deu ao trabalho de memorizar.

A triste verdade a respeito de mulheres como essa era que ela era apenas uma entre tantas. Naquela cidade de muitos milhões, deviam existir umas duzentas mil jovens de traseiros firmes e pernas frouxas à procura de diversão. Na verdade, eram apenas variações da mesma pessoa, motivo pelo qual ele precisava de novidades.

Com tanto em comum, uma porta giratória de suprimento novo era necessária para mantê-lo interessado.

Trez estava do lado de fora do carro um minuto e meio depois, e não se dera ao trabalho de apagar-lhe a memória. Como um Sombra, ele dispunha de muitos truques da mente para se apoiar, mas parara de se importar com isso há vários anos. O esforço não valia a pena – e, de vez em quando, ele gostava de repetir.

Verificada rápida na vigia.

Maldição, acabaria se atrasando para chegar ao encontro com iAm, mas, obviamente, ele teria de lidar com o problema da porta dos fundos antes de levantar acampamento.

Ao se adiantar e parar na frente da mulher, ela ergueu o queixo e colocou uma mão no quadril. Essa versão de pronta e disposta tinha entrelaçamentos loiros e preferia shorts curtos a saias – por isso parecia ridícula no frio, com a parca peluda rosa e as pernas nuas na brisa.

Muito parecida com uma bola de neve sobre dois palitos de dente.

– Mantendo-se ocupado? – ela exigiu saber. Obviamente, tentava parecer relaxada, mas devido ao modo como o sapato de salto batia no chão, ela evidentemente estava exaltada e incomodada... e não de um jeito bom.

– Oi, gatinha – ele as chamava sempre assim. – Está tendo uma noite agradável?

– Não.

– Puxa, que pena. Bem, vejo você por aí...

A mulher cometeu o erro colossal de segurá-lo pelo braço quando ele passou por ela, as unhas cravando na camisa de seda e apertando-lhe a pele.

A cabeça de Trez virou rápido, os olhos reluzindo. Mas, pelo menos, ele conseguiu se conter antes de arreganhar as presas.

– Que diabos você pensa que está fazendo? – perguntou ela, recostando-se nele.

– Trez! – alguém exclamou.

Abruptamente, a voz da sua segurança invadiu sua cabeça. Ainda bem. Os Sombras eram espécies pacíficas por natureza, desde que não fossem agredidos.

Enquanto Xhex se apressava, como se soubesse que homicídio não estava cem por cento fora de questão, ele desvencilhou o braço, sentindo cinco lâminas de dor provocadas pelas unhas da mulher. Refreando a fúria, ele a encarou.

– Vá para casa agora.

– Você me deve uma explicação...

Ele balançou a cabeça.

– Não sou seu namorado, gatinha.

– Ainda bem, ele sabe como tratar uma mulher!

– Então volta pra casa, pra ele – disse Trez com seriedade.

– O que você faz, transa com uma garota diferente toda noite?

– É. E às vezes duas aos domingos – merda, ele podia ter apagado a memória dessa. Quando foi que esteve com ela? Há duas noites? Três? Tarde demais agora. – Volte pra casa, pro seu homem.

– Você me enoja! Seu maldito filho da puta...

Enquanto Xhex se interpôs entre eles e começou a falar num tom baixo com a histérica, Trez ficou mais do que contente em recuar... Porque, veja só, a garota do Nissan escolheu aquele exato instante para dar a ré no estacionamento e passar por ali.

Abaixando a janela, ela sorriu como se gostasse de ser a outra.

– Vejo você depois, gatão.

Deixa para choro: garota de parca rosa, com namorado e desordem de afeição explodiu num acesso de choro digno de um velório.

E... naturalmente foi nesse instante que iAm apareceu.

Ao registrar a presença do irmão, Trez fechou os olhos.

Maravilha. Simplesmente perfeito.


CAPÍTULO 7

A cerca de dez quarteirões da noite de mal a pior de Trez, Xcor limpava a lâmina de sua foice com um pedaço de camurça mais macia que a orelha de um cordeiro.

Do outro lado do beco, Throe estava ao telefone, falando em voz baixa. Ele estava assim desde que o terceiro dos três redutores que encontraram naquele quadrante da cidade fora devolvido a Ômega.

Xcor não estava interessado em nenhum atraso, telefônico ou de qualquer outro tipo. O restante do Bando de Bastardos estava em outra parte do centro da cidade, à procura de qualquer um dos dois inimigos – e ele preferia estar completamente envolvido.

Mas as necessidades biológicas falavam alto. Maldição.

Throe concluiu a ligação e levantou o olhar, o belo rosto retesado em linhas sérias.

– Ela está disposta.

– Quanta gentileza a dela – Xcor embainhou a foice e guardou o pano. – Eu, no entanto, estou menos interessado no consentimento dela do que na questão da sua capacidade.

– Ela é capaz.

– E como sabemos disso?

Throe pigarreou e desviou o olhar.

– Fui até ela ontem à noite e me certifiquei pessoalmente.

Xcor sorriu com frieza. Então isso explicava a ausência do soldado. E o motivo da sua saída era um alívio. Ele temera que o outro macho tivesse...

– E como ela é?

– Viável.

– Você experimentou os encantos dela?

O cavalheiro, que um dia fora membro intelectual da glymera, mas que agora se mostrava útil, pigarreou.

– Eu... Hum, sim.

– E como foram? – quando não houve resposta, Xcor avançou pela neve suja e se aproximou do seu braço direito. – Como ela estava, Throe. Molhada e disposta?

O rubor do macho se intensificou em seu rosto perfeitamente delineado.

– Ela se mostrou adequada.

– Quantas vezes você a tomou?

– Diversas.

– Em diferentes posições, espero – quando houve apenas um aceno, Xcor cedeu. – Bem, então você cumpriu sua tarefa com honra perante seus colegas soldados. Estou bem certo de que os outros haverão de querer usufruir tanto da veia quanto do sexo.

No silêncio constrangedor que se seguiu, Xcor jamais admitiria para ninguém que ele não pressionara para saber dos detalhes para espicaçar seu subordinado... mas porque estava satisfeito que Throe tivesse se deitado com a fêmea. Ele queria distância entre o macho e o que acontecera no outono. Queria calendários repletos de anos, inúmeras fêmeas e rios de sangue de outras fêmeas...

– Contudo, há uma condição – disse Throe.

Xcor estreitou os lábios. Como a fêmea em questão ainda não o vira, não poderia ser mais dinheiro e, além disso, ele ainda não precisava se alimentar. Graças a...

– E qual seria?

– Tem que ser feito no domicílio dela. No início da noite de amanhã.

– Ah – Xcor sorriu com frieza. – Então, trata-se de uma cilada.

– A Irmandade não sabe quem fez a consulta.

– Você identificou seis machos, não?

– Não usei nossos nomes.

– Não importa – Xcor relanceou pelo beco, os sentidos se aguçando, procurando por redutores ou Irmãos. – Não subestimo o alcance do Rei. Nem você deveria.

De fato, suas ambições lançaram todos contra um inimigo de valor. O atentado à vida de Wrath no outono passado fora sua declaração de guerra e, como esperado, houve um efeito previsível: a Irmandade encontrara o esconderijo do Bando de Bastardos, infiltrara-se e saíra com a caixa do rifle que continha a arma que fora usada para colocar a bala no pescoço do Rei Cego.

Indubitavelmente, eles queriam provas.

A questão era, do quê? Ele ainda não sabia se o Rei sobrevivera ou se morrera, nem o Conselho sabia, pelo que ele ficou sabendo. Na verdade, a glymera nem sabia que o atentado ocorrera.

Wrath sobrevivera? Ou fora assassinado e a Irmandade agora se ocupava em preencher a lacuna? A Lei Antiga era muito clara quanto às regras de sucessão, desde que o rei tivesse herdeiros, o que ele não tinha. Portanto, seria seu parente mais próximo, uma vez que houvesse um.

Xcor queria saber, mas não fez perguntas. Tudo o que podia fazer era esperar até que a novidade se espalhasse – e, nesse meio-tempo, ele e seus soldados continuavam a matar redutores, e ele prosseguia reforçando sua força de base dentro da glymera. Pelo menos essas duas empreitadas estavam se encaminhando bem. Todas as noites, eles apunhalavam assassinos, mandando-os de volta a Ômega. E seu contato no Conselho, o não tão venerável Elan, filho de Larex, revelava-se bem ingênuo e maleável – duas características muito úteis numa ferramenta descartável.

No entanto, Xcor estava ficando cansado do vácuo de informações. E, na verdade, o arranjo com a fêmea que Throe encontrara era necessário, porém repleto de perigos. Uma fêmea capaz de vender as veias e o sexo para múltiplos usuários certamente era capaz de trocar informações por dinheiro – e ainda que Throe tivesse mantido suas identidades em segredo, a quantidade em que estavam fora revelada. A Irmandade deve ter calculado que nenhum do Bando de Bastardos era casado e, cedo ou tarde, naquela terra nova, eles necessitariam daquilo que tinham em abundância no Velho Mundo.

Talvez aquela fêmea tivesse sido colocada à disposição pelo Rei e pela sua segurança privada.

Bem, descobririam no dia seguinte. Emboscadas eram facilmente armadas, e não havia momento mais vulnerável do que quando um macho faminto estava na garganta ou entre as pernas de uma fêmea. Todavia, chegara a hora. Seus soldados estavam dispostos a lutar, mas seus rostos estavam tensos, os olhos encovados, a pele esticada demais sobre os malares. Sangue humano, o fraco substituto, não fornecia força o suficiente, e seus bastardos vinham se sustentando com isso por tempo demais. No Velho Mundo, havia fêmeas em número suficiente para servir quando era necessário. Mas desde que chegaram ao Novo Mundo, eles tiveram que se contentar.

Se aquilo era uma armadilha, ele estava disposto a combater os Irmãos. Pensando bem, ele fora bem servido...

Pelo amor à Virgem Escriba, não pensaria nisso.

Xcor pigarreou quando a dor em seu peito dificultou que engolisse.

– Diga à fêmea que no início da noite é cedo demais. Em vez disso, a procuraremos à meia-noite. E providencie alimentos humanos assim que a noite cair. Se os Irmãos estiverem lá, devemos nos confrontar numa posição de relativa força.

As sobrancelhas de Throe se ergueram como se ele tivesse se impressionado com o raciocínio de Xcor.

– Sim. Farei isso.

Xcor assentiu e desviou o olhar.

No silêncio, os eventos do outono se interpuseram, esfriando ainda mais o frígido ar de dezembro.

Aquela Escolhida sagrada estava sempre com ambos.

– O alvorecer se aproxima com rapidez – disse Throe em seu sotaque perfeito. – Está na hora de irmos.

Xcor olhou de relance para o leste. O início da aurora ainda estava por chegar, mas seu subordinado estava correto. Logo... muito em breve... a luz mortal do sol se espalharia, e pouco importava que estivesse em seu nível mais fraco, com o solstício do inverno passado há tão pouco tempo.

– Chame os soldados do campo de batalha – disse Xcor. – E encontre-os na base.

Throe digitou alguma combinação de letras numa mensagem que Xcor não teria sido capaz de ler. Em seguida, o soldado guardou o telefone com a expressão fechada.

– Não vai voltar? – perguntou Throe.

– Vá.

Houve uma longa pausa. E depois o soldado disse com suavidade:

– Não vais?

Nesse instante, Xcor pensou em cada um dos seus soldados. Zypher, o conquistador sexual. Balthazar, o ladrão. Syphon, o assassino. E o outro que não tinha nome, mas tinha pecados demais para contar. Então, chamavam-no de Syn.

E depois considerou seu leal e justo Throe, seu tenente.

Throe, de passado perfeito, raça impecável.

Lindo, agradável Throe.

– Vá agora – disse ao macho.

– E quanto a você?

– Vá.

Throe hesitou e, durante a pausa, a noite em que Xcor quase morrera voltou aos dois. Como não poderia?

– Como preferir.

O soldado se desmaterializou, deixando Xcor parado sozinho contra o vento. Quando teve certeza de estar sozinho, também enviou suas moléculas em rajadas frias, aventurando-se para o norte, para uma campina coberta por neve. Tomando forma, parou na base de uma colina suave, encarando uma bela árvore orgulhosa e adorável no cume.

Pensou na elevação do seio de uma fêmea, a clavícula elegante, o mais sublime pescoço pálido...

Enquanto o vento golpeava sua nuca, ele fechou os olhos e deu um passo à frente, atraído a retornar ao local em que encontrara sua perdição.

Onde estava a sua Escolhida?

Estaria ainda viva? A Irmandade teria lhe tirado a vida por causa de seu presente generoso, bondoso e extraordinário ao inimigo do seu Rei?

Xcor sabia que teria morrido sem o sangue dela. Gravemente ferido durante o atentado à vida de Wrath, esteve à beira da morte quando Throe o levara àquela campina e convocara a Escolhida, e a façanha fora realizada.

Throe orquestrara tudo. E, no processo, cravara uma maldição no coração sombrio de Xcor.

Suas ambições continuaram as mesmas: ele pretendia lutar pelo trono do Rei Cego e governar sobre os vampiros. Havia, porém, uma fraqueza que o perseguia.

Aquela fêmea.

Ela fora arrastada injustamente ao conflito entre os machos portadores de adagas, uma inocente que fora manipulada e depois usada.

Ele se preocupava demasiadamente com o bem-estar dela.

De fato, ele só tinha um arrependimento em uma vida inteira de atos de maldade. Se não tivesse mandado Throe para os braços da Irmandade, seu tenente não teria cruzado o caminho dela e se alimentado dela. E, não fosse esse encontro, Throe não teria convocado os serviços dela mais tarde, e ela não teria ido até eles naquela campina... e Xcor jamais teria fitado aqueles olhos cheios de compaixão.

E perdido uma parte de si mesmo.

Ele não passava de um vira-lata imundo, malformado e bastardo, um traidor da ordem e da proteção sob a qual ela vivia por direito. Não merecera o presente dela.

Tampouco Throe, e não porque ele fora deposto de sua antiga posição superior na glymera.

Nenhum homem mortal era merecedor.

Parando debaixo da árvore, Xcor fitou o lugar em que jazera deitado diante dela... onde ela se ajoelhara perto dele e sulcara seu pulso, e ele abrira a boca para receber o poder que somente ela poderia lhe dar.

Houve um momento em que seus olhos se encontraram e o tempo parou... e depois ela abaixou lentamente o pulso para a boca dele.

Ah, aquele contato tão breve.

Ele se convencera de que ela não passara de uma aparição de sua mente errante, mas quando Throe o levara de volta ao covil, sua consciência compreendera que fora real. Muito real.

Semanas se passaram. E então, numa noite, na cidade, ele a pressentira, e seguira o eco do sangue dela em suas veias para vê-la.

Nesse ínterim, ela descobrira a verdade a seu respeito: fitara-o na escuridão, diretamente para ele, e sua aflição ficara evidente.

Depois disso, seu covil fora infiltrado. Muito provavelmente por causa das suas orientações.

Com uma rajada de vento, a neve começou a cair novamente, os flocos espessando o ar, girando ao redor, atingindo-o nos olhos.

Onde ela estaria agora?

O que fizeram com ela?

No leste, o brilho do sol começou a aparecer, apesar do manto de nuvens, e seus olhos queimaram – por isso, ele cuidou de mantê-los fixos no arauto alaranjado da luz do sol, só pela dor.

Nunca antes ele se debatera com suas emoções como agora. Toda a vida só se concentrara na sobrevivência – primeiro nos anos no acampamento de guerra, e depois na eternidade debaixo de Bloodletter, e agora, nesta época atual, como chefe do seu bando de lutadores.

Contudo, ela o fendera, criando uma fissura vital.

Certo como ela lhe dera vida, também lhe tomara uma parte dela, e ele não sabia o que fazer.

Talvez apenas se permitisse ficar ali para ser incinerado. Parecia uma situação mais fácil do que a que vivia agora...

Que sina fora a dela?

Ele tinha de saber.

Isso era tão crucial quanto a sua busca pelo trono.


CAPÍTULO 8

– Então, o que fizeram com os corpos? – perguntou V. ao caminhar pela saída de trás do centro de treinamento.

Enquanto Qhuinn esperava para que John e Blay saíssem do guincho, deixou que um deles respondesse à pergunta de V. Estava cansado demais para isso; na verdade, ao olhar de relance pelo para-brisa e espiar o estacionamento subterrâneo das instalações, ele pensou em apenas se esticar no banco da frente e dormir.

Estava cansado demais para se preocupar com qualquer coisa.

No fim, porém, seguiu John e passou o traseiro cansado pela porta do motorista. Tinha de verificar Layla, e isso não aconteceria dali.

Desconsiderando-se o episódio do acostamento, pelo menos ele, John e Blay trabalharam bem juntos a caminho de casa. Cerca de quinze quilômetros antes do cruzamento para o complexo da Irmandade, eles encostaram em uma estrada deserta, despiram os dois homens mortos e desovaram os corpos num buraco de escoamento natural que não tinha nenhum fundo visível. Depois só restou dar marcha a ré e voltar para a estrada, sumindo dali, e permitindo que a neve, que voltara a cair pesadamente, cobrisse seus rastros, assim como vários pingos que formaram uma trilha de sangue vivo. Até o meio-dia, levando-se em consideração a estimativa de acúmulo de neve, seria como se nada tivesse acontecido.

Um perfeito trabalho da neve. Rá-rá...

Ele achava que devia se sentir mal pelas famílias dos homens, pois ninguém jamais encontraria seus restos mortais. Mas as evidências grotescas sugeriam que os dois viviam à margem, e não por serem hippies: armas, facas, um canivete, maconha e um pouco de ecstasy foram encontrados em seus diversos bolsos. E só Deus sabia o que havia nas mochilas.

Vidas violentas tendiam a ter fins violentos.

– ... filho da puta – dizia V. ao caminhar sobre o Hummer em sua plataforma. – No que foi que eles bateram? Uma barricada de cimento?

John sinalizou algo e V. olhou intensamente para Qhuinn.

– Em que diabos você estava pensando? Você poderia ter morrido.

Qhuinn golpeou o próprio peito.

– Ainda batendo.

– Idiota – mas o Irmão sorriu, revelando as presas. – No seu lugar, eu teria feito a mesma coisa.

Pelo canto do olho, Qhuinn notou que Blay caminhava sorrateiramente para a porta que conduzia às instalações. Ele desapareceria em mais um segundo e meio, pondo um fim ao drama que mais uma vez fora despejado aos seus pés.

Qhuinn sentiu uma necessidade repentina e urgente de seguir o lutador pelo corredor, longe de olhares curiosos. Mas até parece que ele precisava de mais uma...

O seu primo está me dando tudo de que preciso. O dia inteiro. Todos os dias.

Ai, Jesus, ia vomitar.

– E então, mais algum objeto particular?

Qhuinn se desvencilhou de toda aquela merda e foi ser útil.

– Vou buscar.

Subindo na plataforma do guincho, forçou a porta amassada do bagageiro do Hummer e se apertou numa abertura de trinta centímetros até o banco traseiro. Foi bom apertar o corpo por lugares pelos quais ele não passaria – isso lhe dava algo em que pensar, e as poucas reclamações dos seus ferimentos eram outra digressão fantástica.

As duas mochilas foram bem sacudidas. Ele encontrou a que tinham visto primeiro no volante bem atrás do banco do passageiro, e a outra estava na frente sobre o freio e o acelerador. Bagagem esquisita a daqueles dois, até onde ele podia afirmar; a imagem pedestre não combinava em nada com todo o resto de roupas urbanas descoladas que eles vestiam.

Mais para Ensino Médio que para intermediário no tráfico de drogas.

A menos que precisassem de um lugar para colocar os distintivos de honra ao mérito dos seus laboratórios de metanfetamina ou uma merda dessas.

Enquanto Qhuinn se arrastava de volta ao banco de trás, tomou a decisão abrupta de não sair pelo lado em que entrara. Girando, deitou-se no couro arruinado e levantou os joelhos na altura do peito. Com uma inspiração profunda, empurrou as botas na outra porta lateral e a abriu num estouro, as dobradiças de metal soltando-se num rugido, o painel rebatendo no concreto com um baque.

Satisfatório.

Enquanto os sons reverberavam em todo o estacionamento, V. acendeu um dos seus cigarros enrolados à mão e se inclinou no buraco que Qhuinn acabara de fazer.

– Você sabia que existem maçanetas feitas exclusivamente para isso, não sabia?

Qhuinn se sentou – e percebeu que acabara de arrebentar o único lado que não tinha sido destruído.

Oras se aquilo não era uma metáfora de toda a sua vida até aquele ponto.

Lançando as duas mochilas para fora, ele se jogou e aterrou firme ao mesmo tempo em que John pegava os fardos e os abria.

Droga. Blay tinha ido embora. A porta que dava para o centro de treinamento estava se fechando.

Praguejando baixinho, murmurou:

– Se houver celulares, eles ainda estão lá dentro; mesmo as janelas estando partidas, o vidro ainda está intacto, portanto nada deve ter saído voando.

– Ora, ora, ora... – comentou o Irmão num só sopro.

Qhuinn franziu o cenho e olhou para o que John tinha encontrado. Mas... que... diabos...

– Está de zoeira comigo?

Seu melhor amigo acabara de retirar um pote de cerâmica – um bem barato, daqueles que se encontram em lojas de departamento Target. E, olha só, o outro cara também tinha um.

Quais seriam as probabilidades de...?

– Precisamos encontrar esses telefones – murmurou Qhuinn, voltando a subir na plataforma do guincho. – Alguém tem uma lanterna?

Vishous retirou a luva de couro e esticou a mão iluminada.

– Bem aqui.

Enquanto o Irmão subia na beira da plataforma, Qhuinn se agachou e voltou para o compartimento traseiro do Hummer.

– Só não me acerte com essa coisa, ok, V.?

– Seria uma surra que você jamais esqueceria, eu prometo.

Puxa, aquela mão estava... bem à mão. Quando V. a colocou para dentro, todo o interior se iluminou como o dia, toda a carnificina formando sombras profundas e acentuadas. Rastejando em volta, Qhuinn apalpou debaixo dos bancos, esticando-se nos cantos. O cheiro era terrível, uma desagradável combinação de gasolina, plástico queimado e sangue fresco – e toda vez que ele apoiava a mão, ela afofava o resíduo de pó dos air bags.

Mas as pseudoposições de ioga valeram o esforço.

Ele saiu com um par de iPhones.

– Detesto essas coisas – V. murmurou ao recolocar a luva e apanhar os equipamentos.

Retornando ao ar relativamente fresco, Qhuinn respirou fundo e estalou o pescoço, depois desceu em outro pulo. Houve um tanto de conversa àquela altura, e ele acenou com a cabeça como se soubesse o que estava sendo dito.

– Olha, se você não se importar, preciso de um tempo para ver uma coisa – ele interrompeu.

Os olhos de V. se estreitaram nele.

– Com quem?

Na hora certa, John se adiantou, perguntando sobre o Hummer e o plano de recuperação, como alguém agitando um sinalizador na frente de um T-Rex para chamar a sua atenção. Enquanto V. falava do futuro do SUV como escultura de jardim, Qhuinn quase soprou um beijo na direção de seu camarada.

Ninguém, a não ser John e Blay, sabia a respeito de Layla – e eram assim que as coisas tinham de continuar naquele início.

No papel de ashtrux nohtrum de John, ele não podia ir longe, e não o fez. Passou pela porta que Blay utilizara e pegou o telefone. Discou para um dos ramais da casa e esperou, olhando para o veículo arruinado.

Lembrava-se da noite em que comprara a maldita coisa. Ainda que seus pais tivessem dinheiro, eles não sentiram uma necessidade premente de sustentá-lo assim como o fizeram com a irmã e o irmão. Antes da transição, ele se virara vendendo drogas às escondidas, mas não traficara muito – apenas o bastante para tapar o buraco da sua mesada miserável e evitar viver à custa de Blay o tempo inteiro.

O problema de caixa terminara assim que fora promovido a guarda-costas de John. Seu novo trabalho viera acompanhado de um salário de verdade: 75 mil por ano. E, levando-se em conta que ele não pagava impostos para o maldito governo humano, e a estadia e a alimentação eram gratuitas, ele tinha mais do que suficiente para sobrar.

O Hummer fora sua primeira aquisição importante. Ele fizera uma pesquisa na internet, mas a verdade era que ele já sabia o que queria. Fritz saíra para cuidar da negociação e da compra oficial... E na primeira vez em que Qhuinn ficou atrás daquele volante, girou a chave e sentiu o ronco debaixo do capô, ele quase chorou como uma menininha.

E agora o carro estava destruído. Ele não era mecânico, mas os danos estruturais eram tão graves que não fazia sentido algum ficar com ele...

– Alô?

O som da voz de Layla o fez voltar ao presente.

– Oi. Acabei de voltar. Como está se sentindo?

A enunciação precisa que lhe voltou o fez se lembrar dos seus pais, cada palavra pronunciada perfeitamente e escolhida com cuidado.

– Estou bem, obrigada. Descansei e assisti à televisão, conforme você me sugeriu. Estava passando uma maratona de Million Dollar Listing.

– Que diabos é isso?

– Um programa no qual se vendem casas em Los Angeles; por um instante, pensei que fosse ficção. Mas você sabe que é um reality show? Pensei que tivessem inventado tudo aquilo. Madison tem um cabelo maravilhoso... E gosto de John Flagg. Ele é muito astuto e muito gentil com a avó.

Ele lhe fez mais algumas perguntas. Queria saber se ela tinha se alimentado ou tirado um cochilo, por exemplo, só para mantê-la falando. Isso porque era entre as sílabas que ele procurava por sinais de desconforto ou preocupação.

– Então, você está bem – confirmou.

– Sim, e antes que você pergunte, já pedi a Fritz que me traga a Última Refeição. E sim, comerei todo o meu rosbife.

Ele franziu o cenho, sem querer que ela se sentisse acuada.

– Ei, escute, não se trata só do bem-estar do bebê. É também pelo seu. Quero que fique bem, sabe disso, não?

A voz dela ficou um pouco mais baixa.

– Você sempre foi assim. Antes de nós... sim, você sempre quis o que era o melhor para mim.

Concentrando-se na porta do carro que ele arrancara, ele pensou em como era bom chutar as coisas.

– Bem, meu plano é ir para a academia um pouco. Vou dar uma olhada em você antes de dormir, ok?

– Está bem. Cuide-se.

– Você também.

Ao desligar, ele percebeu que V. tinha parado de falar e olhava para ele como se algo estivesse fora de lugar – fogo nos cabelos, calças na altura dos tornozelos, sobrancelhas raspadas.

– Você está com uma fêmea por aí, Qhuinn? – perguntou o Irmão com fala arrastada.

Qhuinn olhou ao redor em busca de um bote salva-vidas e não encontrou nada.

– Eu... hum...

V. respirou fundo e se aproximou.

– Tanto faz. Vou trabalhar nestes telefones. E você precisa comprar outro carro – qualquer coisa desde que não seja um Prius. Até mais.

Quando John e ele se viram sozinhos, ficou bem claro que o outro estava se preparando para comentar sobre o acontecido no acostamento da estrada.

– Não quero ouvir, John. Não tenho forças para isso agora.

Merda, sinalizou John.

– Mais ou menos isso, amigo. Vai para casa?

Na interpretação severa das funções de trabalho de um ahstrux nohtrum, Qhuinn precisava estar com John 24 horas por dia, sete dias por semana. O Rei, contudo, os dispensara disso se estivessem dentro do complexo. De outro modo, ele acabaria sabendo coisas demais a respeito do seu amigo e de Xhex.

E John teria testemunhado o que ele e Layla... hum, é isso.

Quando John assentiu, Qhuinn abriu a porta e a segurou bem aberta.

– Depois de você.

Recusou-se a olhar no rosto do lutador quando ele passou; simplesmente não conseguiria. Porque sabia exatamente o que estava na cabeça do cara – e ele não tinha intenção alguma de falar sobre o que acontecera naquele pedaço de estrada em que ele caminhara pouco antes. Não da porcaria daquela noite. Nem da porcaria de... de tanto tempo atrás graças à Guarda de Honra.

Para ele, não havia mais o que falar.

A merda nunca ajudou ninguém a nada.

Saxton, filho de Tyhm, fechou o último Livro da História Oral e só conseguiu ficar olhando para a capa de couro macia com seus detalhes gravados em ouro.

O último.

Nem conseguia acreditar. Há quanto tempo vinha pesquisando aquilo? Três meses? Quatro? Será que havia terminado?

Uma rápida pesquisa visual na biblioteca da Irmandade, com suas centenas e centenas de volumes de direito, discursos e decretos reais... e ele pensou, sim, de fato, levara meses e meses para repassá-los. E agora, com a pesquisa completa, as anotações feitas e os caminhos legais pavimentados para aquilo que o Rei queria realizar, deveria existir um senso de realização.

Em vez disso, ele sentia medo.

Em seus estudos e prática como advogado, ele se deparara com problemas complicados antes, ainda mais depois que se mudara para aquela vasta casa e começara em suas funções como advogado pessoal do Rei Cego: as Leis Antigas eram muito complicadas, arcaicas não somente em seu fraseado, mas no próprio conteúdo – e o monarca da raça dos vampiros não era nada disso. O raciocínio de Wrath era tanto direto quanto revolucionário, e quando a questão era o seu governo, o passado e o futuro nem sempre coexistiam sem uma bela dose de remanejamento – das Leis Antigas, que fique bem entendido.

Aquilo, contudo, estava em um nível completamente diferente.

Wrath, como soberano, podia muito bem fazer o que quisesse, desde que os precedentes apropriados fossem identificados, remodulados e registrados. Afinal, o Rei era a lei viva, uma manifestação física da ordem necessária para uma sociedade civilizada. O problema era que a tradição não acontecia por acaso; era o resultado de gerações após gerações vivendo e tomando decisões baseadas em determinados grupos de lei que foram aceitos pelo público. Pensadores progressistas tentando liderar sociedades conservadoras entrincheiradas em novas direções tendiam a se deparar com problemas.

E essas... alterações adicionais sobre o modo como as coisas eram feitas? No atual ambiente político, no qual a liderança de Wrath já estava sendo desafiada...

– Está perdido em pensamentos.

Ante o som da voz de Blay, Saxton deu um salto e quase deixou sua Montblanc cair por cima do ombro.

Imediatamente Blay se adiantou para ajeitar o que fora perturbado.

– Desculpe...

– Não, está tudo bem, eu... – Saxton franziu o cenho ao ver as roupas de soldado molhadas e ensanguentadas. – Santa Virgem Escriba... o que aconteceu esta noite?

Evidentemente, em vez de responder, Blay seguiu para o bar sobre a antiga cômoda bombê no canto. Enquanto se demorava para escolher entre o xerez e um Dubonnet, ficou claro que ele preparava uma sequência de palavras em sua mente.

O que significa que aquilo estava ligado a Qhuinn.

Na verdade, Blay não gostava nem de xerez, nem de Dubonnet. E, obviamente, serviu-se de Porto.

Saxton se recostou na poltrona e fitou o candelabro penso tão distante do chão. O objeto era um espécime formidável de Baccarat, produzido na metade do século XIX, com todos os cristais chumbados e trabalho artesanal que havia de se esperar.

Lembrava-se dele oscilando sutilmente de um lado para o outro, os reflexos arco-íris cintilando ao redor do cômodo.

Há quantas noites? Fazia quanto tempo que Qhuinn servira à Escolhida no quarto imediatamente acima daquele cômodo?

Nada fora como antes depois disso.

– Um carro quebrado – Blay deu uma golada longa. – Apenas problemas mecânicos.

É por isso que sua roupa de couro está molhada e você tem sangue na camisa?, Saxton se perguntou.

E mesmo assim manteve a pergunta apenas para si.

Ele se acostumara a guardar as coisas para si.

Silêncio.

Blay terminou o Porto e se serviu de outro copo com o entusiasmo tipicamente reservado aos bêbados. Algo que ele não era.

– E... você? – perguntou o macho. – Como vai o seu trabalho?

– Terminei. Bem, quase.

Os olhos azuis de Blay se voltaram para ele.

– Verdade? Pensei que você ficaria nisso para sempre.

Saxton tracejou aquele rosto que ele conhecia tão bem. Aquele olhar no qual se detivera no que parecia uma vida inteira. Aqueles lábios nos quais ficara grudado por horas.

A sensação esmagadora de tristeza que sentiu foi tão inegável quanto a atração que o levara até aquela casa, para aquele trabalho, para sua vida nova.

– Eu também – disse ele depois de um momento. – Eu também...

pensei que duraria mais tempo do que durou.

Blay fitou o próprio copo.

– Faz quanto tempo que você começou?

– Eu não... consigo lembrar – Saxton levantou uma mão e esfregou a parte do nariz que se junta à testa. – Não importa.

Mais silêncio. No qual Saxton estava pronto para apostar o ar em seus pulmões que a mente de Blay recuara para o outro macho, aquele a quem ele amava como a ninguém mais, a sua outra metade.

– O que era, então? – perguntou Blay.

– O que disse?

– O seu projeto. Todo esse trabalho – Blay agitou o copo em círculos de modo elegante. – Estes livros que você tem examinado. Se terminou, você pode me contar sobre o que se trata, não?

Saxton considerou brevemente contar-lhe a verdade... de que existiram outras coisas, tão importantes e urgentes sobre as quais ele se calara. Coisas com as quais ele acreditava poder viver, mas as quais, com o passar do tempo, provaram ser um fardo pesado demais para ser carregado.

– Logo você vai descobrir.

Blay assentiu, mas foi com aquela distração vital que ele demonstrara desde o começo. A não ser pelo fato de ele dizer:

– Estou feliz que esteja aqui.

A sobrancelha de Saxton se arqueou.

– Verdade...?

– Wrath precisa de um advogado verdadeiramente bom ao seu lado.

Ah.

Saxton afastou a cadeira e se levantou.

– Sim. É verdade.

Foi com uma estranha sensação de fragilidade que ele juntou seus papéis. Por certo parecia, naquele momento tenso e triste, como se somente eles o sustentassem, aquelas folhas finas, porém poderosas com incontáveis palavras, cada uma delas escritas à mão e com cuidado, contidas com esmero em suas linhas de texto.

Ele não sabia o que faria sem elas numa noite como aquela.

Pigarreou.

– Quais os seus planos para o que resta da noite?

Enquanto esperava por uma resposta, seu coração batia por detrás das costelas, porque ele, e somente ele, parecia perceber que a tarefa dada pelo Rei não era a única coisa que estava terminando naquela noite. De fato, o otimismo sem fundamento que o sustentara nas fases iniciais daquele caso amoroso se deteriorara num tipo de desespero que o fizera se agarrar a migalhas de modo pouco característico... mas agora, até isso sumira.

Era realmente irônico. O sexo era apenas uma ligação física transitória – e muitas vezes em sua vida era a única coisa por que ele procurara. Mesmo com Blaylock, no começo, fora assim. No transcorrer do tempo, porém, o coração se envolvera, e isso o levara aonde estava naquela noite.

O fim de tudo...

– ... me exercitar.

Saxton saiu do seu transe.

– Desculpe, o que disse?

– Vou me exercitar um pouco.

Depois de beber quase uma garrafa de Porto?, pensou Saxton.

Por um instante, ele ficou tentado a pedir mais informações sobre a noite, os mínimos detalhes sobre “quem”, “o quê” e “onde” – como se eles pudessem desencadear algum tipo de alívio. Mas ele sabia que não devia fazer isso. Blay era uma alma generosa e compassiva, e tortura era algo que ele só realizava como parte do seu trabalho quando necessário.

Nenhum alívio viria, não de qualquer combinação de sexo, conversa ou silêncio.

Sentindo como se estivesse se preparando para o pior, Saxton abotoou o blazer e verificou se a gravata estava no lugar. Uma passada pelos peitorais indicou que o lenço quadrado estava precisamente arrumado, mas os punhos franceses da camisa precisavam de um ajuste, e ele logo providenciou isso.

– Preciso de um tempo para relaxar antes de ir falar com o Rei. Meus ombros estão me matando por eu ter passado a noite inteira sentado à escrivaninha.

– Tome um banho de banheira. Isso deve ajudar, não?

– Sim. Um banho.

– Vejo você mais tarde, então – disse Blay ao se servir novamente e se aproximar.

As bocas se encontraram num beijo breve, depois do qual Blay se virou e saiu para o vestíbulo, desaparecendo escada acima para ir se trocar.

Saxton observou sua saída. Até se adiantou alguns passos, só para poder ver os chutadores de merda, como os Irmãos chamavam os coturnos, subindo a escadaria principal, um degrau de cada vez.

Uma parte sua gritava para que ele seguisse o macho até o quarto e o ajudasse a se despir. Desconsiderando as emoções, a atração física entre eles sempre fora forte, e ele sentiu que gostaria de explorar aquilo agora.

A não ser pelo fato de que até mesmo esse Band-Aid estava se esfarelando.

Avançando para se servir de um xerez, sorveu-o e foi se sentar diante da lareira. Não fazia muito tempo que Fritz reestocara a lenha, e as chamas estavam vívidas e ativas por sobre as achas.

Aquilo doeria, Saxton pensou. Mas não o quebraria.

No fim, ele se recuperaria. Se curaria. Seguiria em frente.

Corações eram partidos o tempo todo...

Não havia uma canção a esse respeito?

A pergunta era, claro, quando ele e Blaylock falariam sobre aquilo.


CAPÍTULO 9

O som dos esquis cross-country deslizando sobre a neve era um avanço rítmico, repetido rapidamente.

A tempestade que viera do norte se dissipara após o alvorecer, e o sol ascendente que brilhava debaixo da camada de nuvens que se partia atravessava a floresta até iluminar o chão reluzente.

Para Sola Morte, os feixes de ouro pareciam lâminas.

Logo adiante, seu objetivo se apresentava como um ovo Fabergé acomodado numa prateleira: a casa no Rio Hudson era um espetáculo da arquitetura, uma gaiola de vigas aparentemente frágeis segurando pilhas e pilhas de painéis de vidro. Por todos os lados, os reflexos da água e do sol nascente eram como fotografias capturadas por um verdadeiro artista, as imagens congeladas na própria construção da casa.

Não me pagariam para viver assim, pensou Sola.

A menos que fosse à prova de balas. Mas quem tinha dinheiro para tanto?

De acordo com o departamento de registros públicos de Caldwell, a terra fora adquirida por um tal de Vincent DiPietro dois anos antes, e desenvolvida pela imobiliária do homem. Não se pouparam gastos na construção – pelo menos de acordo com a listagem de avaliação das propriedades, que era superior a oito milhões de dólares. Só depois da construção, concluiu-se que a propriedade mudou de mãos, mas não para uma pessoa física; para um fundo imobiliário – com apenas um advogado em Londres apontado como curador.

No entanto, ela sabia quem vivia ali.

Era ele o motivo por ela estar ali.

Ele também era o motivo por ela ter se armado até os dentes. Sola tinha muitas armas em lugares de fácil acesso: uma adaga na bainha atrás das costas, uma pistola no quadril direito, um chicote escondido na gola da parca de camuflagem branca e creme.

Homens como o seu alvo não apreciavam ser espionados – mesmo que ela estivesse ali apenas em busca de informações, e não para matá-lo, não tinha dúvidas de que se a encontrassem na propriedade, a situação ficaria tensa. Rapidamente.

Ao pegar os binóculos de dentro do bolso da parca, manteve-se imóvel e em silêncio. Nenhum som de alguém se aproximando por trás ou pelas laterais, e, à frente, ela tinha visão desobstruída da parte de trás da casa.

Normalmente, quando era contratada para esse tipo de missão, ela operava à noite. Mas não com esse alvo.

Chefões do tráfico de drogas conduziam seus negócios das nove às cinco – da noite, não do dia. Durante o dia eles dormiam e transavam, portanto era nessa hora que você quereria avaliar suas casas, aprender seus hábitos, conhecer os empregados e como eles se protegiam durante seu período de repouso.

Focando a casa, ela fez sua avaliação. Portas de garagem. Portão dos fundos. Janelas pela metade que ela supunha ser da cozinha. E depois começavam os vidros do chão ao teto, passando da parte dos fundos e dando a volta para a margem do rio.

Três andares.

Não conseguia ver nada que se movesse no interior.

Caramba, aquilo era muito vidro. E, dependendo do ângulo da luz, ela até conseguia ver alguns dos cômodos, especialmente o espaço amplo que parecia tomar pelo menos metade do primeiro andar. A mobília era esparsa e moderna, como se o proprietário não fosse hospitaleiro com gente à toa.

Ela apostava que a vista era incrível. Ainda mais agora, com uma nuvem cobrindo parcialmente o sol.

Passando os binóculos para o beiral do telhado, procurou por câmeras de segurança, esperando ver uma a cada seis metros.

Isso mesmo.

Ok, fazia sentido. Pelo que lhe disseram, o dono da casa era muito cuidadoso e esse tipo de desconfiança implacável tendia a ser acompanhada por uma boa dose de comportamento voltado à segurança, incluindo, mas não se limitando, guarda-costas, carros blindados e, muito certamente, monitoramento constante de qualquer ambiente no qual o indivíduo passasse algum tempo.

O homem que a contratara, por exemplo, tinha tudo isso e mais um pouco.

– Mas o qu... – sussurrou, focando melhor os binóculos.

Parou de respirar para garantir que nada se movesse.

Aquilo estava... tudo errado. Havia um padrão de ondulação no que estava no interior da casa. A pouca mobília que ela via estava ondulando sutilmente.

Abaixando as lentes poderosas, ela olhou ao redor, perguntando-se se talvez o problema fosse com a sua visão.

Não. Todos os pinheiros na floresta se comportavam apropriadamente, inertes, os galhos imóveis no ar frio. E quando ela levantou os binóculos mais uma vez, tracejou o telhado da casa e o contorno das chaminés de pedra.

Tudo estava completamente inanimado.

De volta ao vidro.

Inspirando profundamente, ela segurou o oxigênio nos pulmões e se equilibrou contra o galho da árvore mais próxima para dar mais estabilidade ao corpo.

Alguma coisa continuava estranha. As molduras das portas de correr e as linhas das varandas e todo o resto na casa? Estático e sólido. O interior, contudo, parecia... de alguma forma em má resolução, como uma imagem múltipla que fora criada para fazer as coisas parecerem como se fossem mobília... e essa imagem fora sobreposta a algo como uma cortina... que parecia estar sujeita a uma corrente de ar suave.

Aquele projeto seria mais interessante do que ela imaginara. Reportar as atividades de um parceiro de negócios de um “amigo” seu não a animara muito. Ela preferia desafios maiores.

No entanto, talvez houvesse mais a respeito desse homem do que parecia à primeira vista.

Afinal, camuflagem significava que você estava escondendo algo e ela fizera uma carreira à custa de tirar das pessoas o que elas queriam manter. Segredos. Itens de valor. Informações. Documentos.

O vocabulário usado para definir as coisas era irrelevante para ela. O ato de penetrar numa casa trancada, ou num carro, num cofre, ou numa maleta, e extrair o que ela procurava era o que importava.

Ela era uma caçadora.

E o homem naquela casa, quem quer que fosse, era a sua presa.


CAPÍTULO 10

Blay não tinha que ficar perto de pesos, muito menos do tipo de ferro que havia na academia do centro de treinamento. Forçar aquele Porto no estômago vazio o deixara tonto e descoordenado. Mas ele precisava ter algum tipo de direção... um plano, um destino para o qual arrastar seu pobre traseiro. Qualquer coisa que não fosse subir para o quarto, sentar naquela cama de novo e começar o dia do mesmo modo como começara a noite – fumando e fitando o vazio.

Muito provavelmente com muito mais Porto para acompanhar.

Saindo do túnel subterrâneo, ele passou pelo escritório e empurrou a porta de vidro.

Enquanto avançava, ainda bebendo do copo meio vazio, sua mente andava em círculos, imaginando quando aquele monte de asneiras entre ele e Qhuinn chegaria ao fim. No seu leito de morte? Deus, ele achava que não conseguiria durar tanto, levando-se em conta que ele ainda tinha uma vida inteira diante de si.

Talvez ele devesse se mudar da mansão. Antes de Wellsie ser assassinada, ela e Tohr viveram numa casa própria. Diabos, se fizesse isso, não teria de ver Qhuinn a não ser durante as reuniões – e com tantas pessoas espalhadas pela Irmandade, seria fácil ficar longe do campo de visão.

Na verdade, já vinha fazendo isso há algum tempo.

De fato, com esse plano, os dois nunca teriam de cruzar seus caminhos: John era sempre o parceiro do cara por causa de toda aquela coisa do ahstrux nohtrum, e considerando-se os turnos, a maneira como o território era dividido, ele e Qhuinn nunca lutavam juntos, a não ser numa emergência.

Saxton podia ir e voltar do trabalho...

Blay parou de pronto na entrada da sala de levantamento de pesos. Pelo vidro, ele viu pesos subindo e descendo na máquina reclinada de agachamentos, e ele sabia a quem pertencia aquele par de Nikes.

Maldição, não tinha um minuto de folga.

Inclinando-se, ele bateu a cabeça uma vez. Duas. Três...

– Sabe que as séries de repetições devem ser feitas nas máquinas... e não na porta.

A voz de Manny Manello era tão bem-vinda quanto uma biqueira de aço no meio das bolas.

Blay se endireitou, e o mundo deu uma girada rápida, ao ponto em que ele teve que colocar, disfarçadamente, a mão livre no batente só para que seu desequilíbrio não ficasse evidente. E também escondeu seu drinque quase finalizado.

O médico provavelmente não consideraria uma boa ideia exercitar-se sob a influência de álcool.

– Como vai? – perguntou Blay, mesmo não se importando com a resposta... e esse não era um comentário reservado ao hellren de Payne. Ele não se importava com muita coisa no momento.

A boca de Manello começou a se mover e Blay ficou olhando os lábios do homem formarem e soltarem as sílabas. Um momento depois, algum tipo de adeus foi dito, e logo Blay se viu sozinho com a porta de novo.

Parecia uma idiotice ficar apenas parado ali, e ele dissera ao médico que entraria. Além disso, devia haver o quê... uns 25 equipamentos na sala? Além de barras e pesos. Esteiras. StairMasters, elípticos... muita coisa com que se ocupar.

Não estou apaixonado por Layla.

Com uma imprecação, Blay empurrou a porta e se preparou para um desajeitado “ah, oi, é você...”. A não ser pelo fato de Qhuinn nem ter notado a sua entrada. Em vez de se exercitar com a música ambiente, ele estava com aqueles fones que cobrem os ouvidos e tinha se mudado para a barra fixa, portanto estava de frente para uma parede de concreto.

Blay se afastou o quanto pôde, subindo numa máquina qualquer – peitorais. Tanto faz.

Depois de apoiar o copo e ajustar o pino na pilha de pesos, acomodou-se no assento acolchoado, segurou as manoplas e começou a empurrar na altura do peito.

Tudo para o que podia olhar era Qhuinn.

Ou talvez isso fosse porque seus olhos se recusaram a olhar em qualquer outra direção.

O macho usava uma camiseta regata preta que deixava aqueles ombros tremendos em completa exposição... e os músculos ao longo deles se flexionavam ao máximo quando ele chegava ao topo da puxada, as saliências e os contornos de um lutador... não de um advogado...

Blay se deteve.

Qualquer comparação como aquela era injusta a ponto de provocar náuseas. Depois do último ano, ele conhecia o corpo de Saxton quase tão bem quanto o seu, e o macho era muito bem formado, tão magro e elegante...

Qhuinn suspendeu-se novamente, o peso da parte inferior do corpo exigindo força daqueles braços e daquele torso. E, graças ao seu esforço, o suor irrompeu sobre toda a pele, fazendo-o brilhar debaixo das luzes.

A tatuagem na parte de trás da nuca mudava conforme ele soltava e descia para ficar pendurado, e depois novamente na subida. E na descida. E na subida.

Blay pensou no modo como o macho ficara quando viraram o Hummer: poderoso, masculino... erótico.

Aquilo não podia estar acontecendo.

Ele não estava, de fato, sentado ali, olhando para Qhuinn daquele jeito...

Imagens do passado se infiltraram, transformando sua mente numa tela de televisão. Ele viu Qhuinn se inclinando sobre uma mulher humana que fora deitada com o traseiro para cima numa mesa, os quadris dele bombeando conforme ele a fodia, as mãos travadas nos quadris dela para segurá-la no lugar. Naquela vez ele não estava de camisa, e os ombros se mostraram tão rijos como agora.

Corpo firme sendo bem utilizado.

Havia tantas cenas como aquela, com Qhuinn em diferentes posições com pessoas diferentes, machos e fêmeas. No começo, logo depois das transições, houve uma tremenda sensação de excitação conforme os dois saíam para caçar juntos – ou melhor, era Qhuinn quem caçava e Blay aceitava o que quer que fosse trazido. Tanto sexo com tantas pessoas – ainda que, àquela altura, Blay se ativesse apenas às fêmeas.

Talvez porque ele soubesse que elas eram seguras, que elas “não contavam” em tantos modos.

Tão descomplicado no começo. Mas, em algum momento ao longo dos anos, as coisas sofreram uma mudança e ele começara a perceber que ao observar Qhuinn com os aleatórios, imaginava-se debaixo daquele corpo, recebendo o que o homem era tão bom em dar. Depois de um tempo, já não era mais a boca de um desconhecido no pau de Qhuinn; era a sua. E quando aqueles orgasmos surgiam, e eles sempre surgiam, era ele quem os recebia. Eram as suas mãos no corpo de Qhuinn, e seus lábios encaixados, e as suas pernas abertas.

E isso ferrou tudo.

Merda, lembrava-se de ter ficado acordado durante o dia, olhando para o teto, dizendo a si mesmo que quando estivessem numa boate novamente, naqueles banheiros, ou em qualquer lugar em que o mesmo acontecia, ele não faria mais aquilo. Mas toda vez que saíam, era como se uma pílula do sabor ideal fosse oferecida a um viciado.

E depois ocorreram aqueles dois beijos... o primeiro no corredor saindo dali, na sala de exames da clínica. E ele teve que implorar para recebê-lo. E depois o segundo no seu banheiro, pouco antes de ele sair com Saxton pela primeira vez.

Ele também teve que implorar por aquele.

Abruptamente, Blay parou de fingir que estava de fato se exercitando e baixou as mãos para as coxas.

Ordenou-se a ir embora. Apenas se levantar daquele lugar, sair dali antes que Qhuinn fosse para o próximo equipamento e ele fosse descoberto.

Em vez disso, viu seus olhos fixos naqueles ombros e naquela coluna, na cintura estreita e no traseiro firme, nas pernas fortes.

Talvez fosse o álcool. O resultado daquela discussão no guincho. A coisa toda do sexo com Layla...

Naquele instante, porém, ele se excitou. Ficou duro como uma pedra. Pronto para a coisa.

Blay baixou o olhar do peito para seus shorts largos e sentiu vontade de se dar um tiro na cabeça.

Ai, Jesus, ele precisava sair dali imediatamente.

Enquanto Qhuinn continuava sua série na barra fixa, as mãos entorpeciam e ele sentia como se os bíceps estivessem sendo arrancados dos ossos por facas cegas, e isso não passava de brincadeira se comparado com os ombros. Eram eles o verdadeiro problema. Alguém obviamente se aproximara por trás, aplicara removedor de verniz sobre eles e depois os friccionara com uma lixa industrial.

Não fazia ideia de quantas repetições fizera. Nem de quantos quilômetros correra. Não contara os abdominais, os agachamentos e afundos.

Ele só sabia que continuaria.

Objetivo: exaustão absoluta. Queria desmaiar no momento em que subisse e se deitasse na cama.

Descendo da barra, pousou as mãos nos quadris, abaixou a cabeça e respirou fundo. Seu ombro direito logo se recuperou, mas esse era o seu lado dominante, por isso era o esperado. Para relaxar o nó nos músculos, girou o braço num círculo amplo ao se virar...

E parou.

Do outro lado dos colchonetes azuis, Blay estava na máquina mais próxima à porta, sentado tão parado quanto os pesos que ele não levantava.

A expressão no rosto dele era vulcânica. Mas não estava furioso.

Não, não estava.

Ele estava com uma ereção tão grande que se via do outro lado do cômodo. Talvez do outro lado do Estado.

Qhuinn abriu a boca. Fechou-a. Abriu-a novamente.

No fim, resolveu que aquele era um exemplo típico de que a vida nunca deixava de surpreender. De todas as situações nas quais pensou que pudessem estar assim, esta não era nenhuma delas. Não depois... bem, depois de tudo.

Tirou os fones de ouvido e os deixou pendurados no pescoço, as batidas frenéticas de um show ensurdecedor diminuindo para apenas um sibilo.

Isso é para mim?, ele queria perguntar.

Por uma fração de segundo, ele pensou que poderia ser, mas, pensando bem, não seria muita arrogância de sua parte? O cara mal acabara de lhe fazer um discurso sobre como os dois não passavam de colegas trabalhando lado a lado em estações de gordura trans. Em seguida, Blay aparece com uma ereção do tamanho de um pé-de-cabra, e a primeira coisa que lhe vem à mente é que, talvez, quem sabe, seria possível, aquilo ser... para ele?

Que idiota ele era.

E, P.S., o que diabos ele faria se subitamente se encontrasse num universo paralelo, com Blay dizendo “ei, que tal” naquele departamento?

Claro que o desejava.

Mas que merda, sempre o desejara a ponto de se perguntar quanto daquela coisa de evitá-lo “pelo bem de Blay” não fora, na verdade, pelo seu próprio bem.

Pensando nisso, percebeu o copo repousando ao lado dos pés dele. Ah, o álcool estava envolvido – honestamente, ele duvidava que aqueles centímetros de líquido escuro fossem Coca-Cola.

Merda, pelo que podia saber, Saxton acabara de lhe enviar uma mensagem quente e essa era a causa da ereção.

Ah, se isso não era broxante.

O seu primo está me dando tudo de que preciso. O dia inteiro. Todos os dias.

– Tem mais alguma coisa para me dizer? – Qhuinn perguntou com aspereza.

Blay moveu a cabeça de um lado para o outro uma vez.

Qhuinn franziu o cenho. Blay não era esquentado – nunca fora, e em parte por isso, por muito tempo, eles foram tão próximos. Equilíbrio e todo aquele papo-furado. Naquele instante, porém, parecia que o cara estava bem perto de perder as estribeiras.

Problemas no paraíso do casal feliz?

Não, eles eram bons demais juntos.

– Ok – caramba, a ideia de ficar por perto enquanto Blay estava com o mastro erguido para mais uma sessão com Saxton, o Magnífico, era insustentável. – Até mais.

Ao se afastar, sentiu os olhos de Blay sobre si, mas eles não estavam no nível do seu rosto. Pelo menos, não parecia.

Que porra estava acontecendo ali?

Empurrando a porta para o corredor, deu uma olhada para ver se as paredes de concreto não estavam derretendo ou se ele não tinha, subitamente, peixes no lugar das mãos ou algo assim. Nada disso era verdade, mas uma sensação esquisita de irrealidade o perseguiu enquanto ele avançava até o vestiário. Uma chuveirada era obrigatória; estava coberto por suor, e por mais que os doggen adorassem uma bela bagunça, ele não pretendia dar-lhes mais trabalho só porque tentara se matar na academia...

Duro. Excitado. Pronto para o sexo.

Enquanto essa imagem de Blay martelava em sua cabeça, ele fechou os olhos, e chegou à porta do mundo dos azulejos e chuveiros. Tinha a intenção de seguir diretamente para os chuveiros, mas acabou se demorando na parte da frente do lugar, onde os armários estavam enfileirados e os bancos atravessavam os corredores pelo meio.

Parando, desamarrou os Nikes, chutou-os e tirou as meias.

Totalmente excitado.

Blay estivera fora de si por conta disso.

Por algum motivo, os dois últimos encontros sexuais de Qhuinn lhe vieram à mente. Houve o ruivo no Iron Mask – aquele a quem seduzira e com quem transara no banheiro. Escolhera-o aleatoriamente no meio da multidão por uma determinada característica física e, naturalmente, o sexo não lhe provocara nada de extraordinário. Em retrospecto, foi como querer tomar tequila e acabar bebendo água tônica.

E depois aconteceu aquela coisa com Layla, que não passara de um trabalho físico exigente, como cavar uma trincheira ou levantar uma parede...

Deus, sentia-se mal ao pensar assim, pois não queria desrespeitar a Escolhida. Mas pelo menos ficou bem claro que ela pensava do mesmo modo.

Foi só isso no último ano. Apenas aqueles dois.

Quase doze meses de nada, e ele nem vinha se masturbando. Ele simplesmente não estava interessado em nada, como se suas bolas estivessem hibernando.

Engraçado, depois da sua transição, ele transara com qualquer coisa com duas pernas e um coração pulsante, e enquanto se esforçava para se lembrar de alguns dos muitos rostos – Deus bem sabia que ele não se dera ao trabalho de saber os nomes muitas vezes –, uma sensação desconfortável contraía seu estômago.

Todas aquelas transas anônimas, sem nomes, sem rostos... diante de Blay. Sempre com ele, pensando bem. Na época, parecia um tipo de acontecimento entre camaradas, mas agora ele se questionava.

Ah, que merda. Ele sabia do que tratara.

Era um tremendo covarde, não?

Pondo-se de pé, despiu-se e deixou a camiseta e os shorts sobre o banco numa bagunça suada. Andando para os chuveiros, escolheu um a esmo, abrindo a torneira e entrando debaixo do jato. A água estava absurdamente fria, mas ele não se importava. Enfrentou o açoite, fechando as pálpebras e abrindo a boca.

Aquele ruivo do clube quase um ano atrás? Enquanto seduzia o cara para o banheiro, era Blay quem esteve em sua mente o tempo inteiro.

Foi Blay quem ele empurrou para a pia e beijou com sofreguidão. Foi o pau de Blay que ele chupou, e o corpo de Blay que ele comeu por trás e...

– Pelo amor de... – gemeu.

Do nada, a imagem do velho amigo sentado na máquina de pesos, com os joelhos afastados, o pênis pressionando o tecido fino dos shorts entrou em sua mente e atravessou a coluna, indo direto para o meio das suas pernas. Praguejando, ele se arqueou e teve que apoiar uma mão no azulejo escorregadio.

– Ai... cacete...

Recostando-se, apoiou a testa no braço e tentou se concentrar na sensação da água batendo na nuca.

Nada.

Tudo o que percebia era a pulsação no pênis.

Bem, isso e uma fantasia ressonante dele caindo de joelhos e se encaixando entre as coxas afastadas de Blay, lambendo o caminho até aquela boca... enquanto se insinuaria debaixo do cós dos shorts e começaria a aplicar um trabalho manual que o cara jamais conseguiria esquecer.

Entre outras coisas.

Virando para se livrar do jato, Qhuinn levou as mãos aos cabelos e os esticou para trás, arqueando a coluna.

Sentia o pênis ereto, implorando por atenção.

Mas não faria nada a respeito. Blay merecia mais do que isso. Sim, não fazia sentido, mas parecia sórdido masturbar-se no chuveiro por causa da excitação do cara por outra pessoa.

Inferno, por causa do parceiro do cara.

O primo de Qhuinn, pelo amor de Deus.

Enquanto sua ereção simplesmente continuava, inabalada pela lógica, ele soube que o dia seria bem longo.


CONTINUA

Qhuinn, filho de Lohstrong, entrou na casa da família passando pela imponente porta da frente. No instante em que passou pela soleira, o cheiro do lugar invadiu seu nariz. Lustra-móveis de limão. Velas de cera de abelha. Flores frescas do jardim que os doggen colhiam diariamente. Perfume – da mãe. Colônia – do pai e do irmão. Chiclete de canela – da irmã.
Se a empresa Glade um dia produzisse um aromatizador como aquele, ele seria chamado de “Campina dos Abastados”. Ou “Aurora de uma Conta Bancária Polpuda”.
Ou, quem sabe, o mais popular “Somos Melhores do que Todos”.
Vozes distantes vinham da sala de jantar, as vogais tão brilhantes quanto os diamantes lapidados, as consoantes arrastadas, suaves e longas como fitas de cetim.
– Ah, Lillie, isso parece ótimo, obrigada – a mãe disse à criada. – Porém, é muito para mim. E não sirva tanto assim a Solange. Ela está engordando.
Ah, sim, a dieta da mãe permanentemente imposta à geração seguinte: as fêmeas da glymera supostamente devem desaparecer de vista quando estão de perfil, cada osso da clavícula exposto, as faces encovadas e antebraços ossudos como uma espécie de distintivo de honra de merda.
Como se você se tornasse uma pessoa melhor por se parecer com um atiçador de lareira.
E como se a Virgem Escriba a protegesse caso a aparência de sua filha fosse saudável.
– Ah, sim, obrigado, Lilith – o pai agradeceu. – Um pouco mais para mim, por favor.
Qhuinn fechou os olhos e tentou convencer o corpo a dar um passo à frente. Um após o outro. Não devia ser tão difícil assim.
Seu calçado Ed Hardys, novinho, levantou o dedo do meio para essa sugestão. Por outro lado, por tantos motivos, entrar naquela sala de jantar costumava ser bem desagradável.
Deixou cair a bolsa de lona no chão. Os dois dias passados na casa do seu melhor amigo, Blay, fizeram-lhe bem, como uma folga da completa falta de ar desta casa. Infelizmente, a dor do regresso era tão intensa que o custo-benefício de sair equilibrava a situação.
Ok, aquilo era ridículo. Não podia continuar ali parado como um objeto inanimado.
Caminhando para a parede lateral, recostou-se contra um antigo espelho de corpo inteiro colocado bem ao lado da porta. Tão atencioso. Tão adequado com as necessidades da aristocracia em parecer bem. Dessa forma, os visitantes poderiam ajeitar os cabelos e as roupas enquanto o mordomo recebia seus casacos e chapéus.
O rosto do jovem pré-trans que o fitava pelo espelho tinha feições equilibradas, um belo maxilar, uma boca que, ele tinha de admitir, parecia ser capaz de fazer belos estragos à pele nua quando ele amadurecesse. Ou talvez isso fosse apenas ilusão sua. O cabelo era de Vlad, o Empalador, com tufos espetados no alto da testa. O pescoço estava envolto por uma corrente de moto – e não um modelo comprado na Urban Outfitters, mas a velha correia que impulsionara sua antiga 12 cilindros.
Levando-se tudo isso em consideração, ele mais se parecia com um ladrão que invadira a casa e estava preparado para destruir o lugar à procura de prata de lei, joias e eletrônicos portáteis.
A ironia era que esse papo furado gótico não era a parte de sua aparência que mais ofendia sua família. Na verdade, ele poderia ficar nu, pendurar um abajur na bunda e passear pelo primeiro andar imitando Jose Canseco* com a decoração da casa que sequer chegaria perto do real motivo que irritava seus pais.
Eram os seus olhos.
Um azul. Um verde.
Ops. Foi mal.
A glymera não gosta de defeitos. Não em sua porcelana, não nos jardins. Tampouco no papel de parede, nos tapetes e nas bancadas. Não na seda da roupa íntima, nem na lã de seus blazers, ou no chiffon de seus vestidos.
E, com certeza, nunca em seus filhos.
Com a irmã tudo bem – ok, exceto pelo “pequeno problema de peso” que, na verdade, era inexistente, e um ceceio que sua transição não curara –, ah, sim, e o fato de ela ter a personalidade da mãe deles. E essa porcaria não tinha como ser mudada. O irmão, por sua vez, era uma maldita estrela, o filho primogênito preparado para levar adiante a linhagem da família, reproduzindo-se num interlúdio muito cavalheiresco, sem gemidos, sem suor, com uma fêmea escolhida para ele pela família.
Inferno, o recipiente de esperma dele já estava à espera. Ele copularia assim que passasse pela transição...
– Como está se sentindo, filho? – perguntou o pai com hesitação.
– Cansado, senhor – respondeu uma voz profunda. – Mas isso vai ajudar.
Um calafrio percorreu a coluna de Qhuinn. Aquilo não se parecia com seu irmão. Grave demais. Masculino demais. Muito...
Puta merda, o cara fizera a transição.
Nessa hora, seus Ed Hardys resolveram seguir em frente, adiantando-o até que ele conseguisse enxergar a sala de jantar. O pai estava sentado à cabeceira da mesa. Confere. A mãe em seu lugar adiante, oposta à porta de vaivém da cozinha. Confere. A irmã de frente para a porta da sala, faltando pouco para lamber o prato de tanta fome que sentia. Confere.
O macho cujas costas davam para Qhuinn não fazia parte do cenário.
Luchas tinha dobrado de tamanho desde que Qhuinn fora abordado por um doggen que lhe dissera para juntar suas coisas e ir para a casa de Blay.
Bem, isso explicava tudo. Ele deduzira que o pai finalmente cedera ao pedido que lhe fizera semanas antes. Mas não, o homem só o queria fora da casa porque a transformação chegara para a carga genética do filho dourado.
Será que o irmão transou com a garota? Quem usaram para o sangue...?
O pai, um tipo que nunca demonstrava afeto, esticou a mão e deu um tapinha sem graça no antebraço de Luchas.
– Estamos muito orgulhosos de você. Você está... perfeito.
– Está mesmo – a mãe de Qhuinn concordou. – Simplesmente perfeito. O seu irmão não está perfeito, Solange?
– Sim, ele está. Perfeito.
– E eu tenho algo para lhe dar – disse Lohstrong.
O macho pôs a mão dentro do bolso da jaqueta esportiva e retirou uma caixinha de veludo preta do tamanho de uma bola de golfe.
Emocionando-se, a mãe começou a enxugar os olhos.
– Isto é para você, meu filho precioso.
A caixa foi empurrada por sobre a toalha de mesa branca adamascada, e a mão, agora grande, de seu irmão a pegou e levantou a tampa.
Qhuinn viu o dourado do outro lado do vestíbulo.
Enquanto todos à mesa permaneceram calados, o irmão fitou o anel de sinete, obviamente surpreso, enquanto a mãe continuava a enxugar os olhos, e até mesmo os do pai se umedeciam. E a irmã surrupiava um pãozinho da cesta.
– Obrigado, senhor – agradeceu Luchas ao colocar o anel no indicador.
– Serve, não é mesmo? – perguntou Lohstrong.
– Sim, senhor. Perfeitamente.
– Temos o mesmo tamanho, então.
Claro que sim.
No mesmo instante, o pai desviou o olhar, como se esperasse que o movimento dos olhos cuidasse da camada de lágrimas que atrapalhara sua visão.
E flagrou Qhuinn à espreita do lado de fora da sala de jantar.
Houve um flash de reconhecimento. Não do tipo “como vai, filho?” ou “ah, que bom, meu outro filho chegou”. Algo mais parecido como quando você anda pela grama e percebe um amontoado de cocô de cachorro tarde demais para não pisar nele.
O macho voltou a fitar a família, excluindo Qhuinn.
Obviamente, a última coisa que Lohstrong queria era que tal momento histórico fosse arruinado – e foi por isso que, provavelmente, ele não fez os gestos para espantar o mal. Normalmente, todos na casa faziam esse ritual quando viam Qhuinn. Não naquela noite. Papai não queria que os outros soubessem.
Qhuinn voltou para junto da bolsa de lona. Passando o peso pelo ombro, seguiu até a escadaria da frente para ir ao quarto. A mãe preferia que ele tomasse a escadaria de serviço, mas, para isso, ele teria de atravessar todo aquele amor ali presente.
Seu quarto ficava o mais distante possível dos outros, bem na extrema direita. Muitas vezes, ele se perguntava por que não o mandavam logo ficar com os doggen – mas provavelmente a criadagem se demitiria.
Fechando-se no quarto, largou a mala no chão sem nenhum tapete e sentou-se na cama. Fitando sua única bagagem, deduziu que seria melhor lavar logo a roupa, já que havia uma sunga molhada ali.
As criadas se recusavam a tocar em suas roupas – como se o mal dentro dele permeasse as fibras dos seus jeans e camisetas. O lado bom era que, por nunca ser bem recebido em eventos formais, bastava simplesmente lavá-las e usá-las.
Descobriu que estava chorando quando fitou seus Ed Hardys e percebeu que havia algumas gotas de água bem no meio dos cadarços.
Jamais receberia um anel.

Ah, inferno... Como doía...
Ele esfregava o rosto com as palmas das mãos quando seu telefone tocou. Pegando-o de dentro da jaqueta de motoqueiro, teve que piscar algumas vezes para focar a visão.
Apertou o botão para aceitar a ligação, mas não atendeu.
– Acabei de saber – disse Blay do outro lado. – Como é que você está?
Qhuinn abriu a boca para responder, o cérebro se debatendo com todo tipo de resposta: “Maravilha. Melhor impossível”, “Pelo menos não sou ‘gordo’ como a minha irmã”, “Não, não sei se o meu irmão transou”.
Em vez disso, falou:
– Eles me fizeram sair de casa. Não quiseram que eu amaldiçoasse a transição. Acho que deu certo porque o cara parece estar muito bem.
Blay praguejou baixinho.
– Ah, e ele acabou de ganhar o anel. Meu pai deu... o anel dele.
O anel de sinete com o brasão da família, o símbolo que todos os machos de boas linhagens usavam para atestar o valor de sua ascendência.
– Vi quando Luchas o colocou no dedo – disse Qhuinn, sentindo como se tivesse sido apunhalado por uma adaga que subia pelos braços. – Coube certinho. Ficou lindo. Mas sabe, né... Como se pudesse ser de outro jeito...
Nessa hora ele começou a soluçar.
Perdeu completamente o controle.
A terrível verdade era que debaixo do seu “foda-se” contracultural, ele queria que a família o amasse. Por mais afetada que a irmã fosse, por mais nerd que o irmão fosse, por mais reservados que os pais fossem, ele via o amor entre os quatro. Ele sentia o amor entre eles. Era um laço que unia aqueles indivíduos, um cordão invisível que ia de um coração ao outro, o comprometimento de se preocupar com tudo o que dizia respeito desde qualquer bobeira até os dramas mais verdadeiros e mortais. E a única coisa mais poderosa do que essa ligação era... sentir-se excluído dela.
Todos os malditos dias de sua vida.
A voz de Blay se fez ouvir acima do choro.
– Pode contar comigo. E eu sinto muito... Estou aqui para o que precisar... Apenas não faça nada estúpido, ok? Deixe-me ir aí...
Só mesmo Blay para saber que ele estava pensando em coisas que envolviam cordas e chuveiros.
Na verdade, a mão livre já abaixara para o cinto improvisado que ele mesmo confeccionara com um pedaço resistente de corda de náilon – porque seus pais não lhe davam dinheiro suficiente para roupas, e o cinto de verdade que ele possuíra se quebrara há vários anos.
Puxando-o, ele olhou para a porta fechada do banheiro. Tudo o que precisava fazer era amarrar a coisa no cano da parede – Deus bem sabia que aqueles canos de água tiveram utilidades nos tempos idos, quando as coisas eram fortes o suficiente para suportar um pouco de peso. Ele até tinha uma cadeira na qual podia subir para depois chutá-la debaixo de si.
– Preciso ir...
– Qhuinn? Não desligue. Não ouse desligar na minha cara...
– Olha aqui, eu tenho que ir...
– Estou indo te encontrar agora – muita comoção do outro lado da linha, como se Blay estivesse se vestindo às pressas. – Qhuinn! Não desligue... Qhuinn...!

Jose Canseco, cubano, ex-jogador profissional de baseball, foi campeão do World Series em 2000, jogando pelo New York Yankees. Em 2005, ele admitiu ter feito uso de esteroides anabolizantes. (N.T.)

 

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CAPÍTULO 1

DIAS ATUAIS

– Saca só que belezinha fodida aí, ô!

Jonsey olhou para o idiota que estava agachado ao seu lado no ponto de ônibus. Os dois estavam esperando na gaiola de acrílico há três horas. No mínimo. Ainda que comentários como aquele fizessem parecer que se tratavam de dias.

E dariam uma bela justificativa para um assassinato.

– ‘Cê é branco, sabia? – observou Jonsey.

– Como é que é, mano?

Ok, talvez três anos de espera.

– Caucasiano, cara. ‘Cê precisa de protetor solar no verão, entende? Eu não...

– Deixa disso, mano, olha só o carango...

– E porque ‘cê tem de falar como se fosse do meu pedaço? ‘Cê ‘tá fazendo papel de besta, cara.

Àquela altura, ele só queria que a noite acabasse logo. Estava frio, nevava, e ele tinha de se perguntar a quem irritara tanto para acabar atolado ali com aquele Vanilla Ice.

Na verdade, estava considerando largar tudo. Vinha se dando bem traficando em Caldwell; fazia dois meses que saíra da prisão pelos homicídios que cometera quando menor de idade; a última coisa em que estaria interessado era passar tempo com um branquelo idiota que pensava em ganhar créditos de rua por meio do vocabulário.

Ah, sem falar naquele bairro de riquinhos em que estavam. Até onde ele podia supor, devia existir algum decreto que proibisse as pessoas de circular pelas ruas depois das dez da noite.

Por que diabos concordara com aquilo?

– Por favor. Olhe. Para. Aquele. Lindo. Automóvel.

Só para calar a boca do cara, Jonsey virou a cabeça e se inclinou para fora do abrigo. A neve soprando o atingiu no rosto e ele praguejou. Maldito norte de Nova York no inverno. Frio o suficiente para gelar as bolas...

Nossa... Olha ali...

Do outro lado de um estacionamento, bem diante de uma farmácia CVS 24 horas novinha, de paredes brancas sem nenhum grafite, havia mesmo um carrão fodido. O Hummer era completamente preto, nenhum cromado à vista – não nas rodas, nem em volta das janelas, nem mesmo no para-choque dianteiro. E era enorme – a julgar por toda aquela pompa, sem dúvida o motor devia ser o máximo.

O carrão era do tipo que se via nas ruas de onde ele vinha; seria o carro de um dos mandachuvas. A não ser pelo fato de que aquele lugar era bem longe da cidade, por isso só podia ser algum branquelo tentando mostrar que tinha colhões.

Vanilla Ice pegou a mochila e colocou uma alça no ombro.

– Vou dar uma espiada.

– O ônibus já vai chegar – Jonsey consultou o relógio e desejou que isso fosse verdade. – Cinco, talvez dez minutos.

– Vamos...

– Tchau, cretino.

– ‘Tá com medinho? – o filho da puta levantou as mãos e começou a sacudi-las. – Ai, que meeedo...

Jonsey puxou o revólver e apoiou o cano bem no meio do rosto do cretino.

– Não tenho nenhum problema em matar você bem aqui. Já fiz isso antes. Posso fazer de novo. Agora para de idiotice e faz um favor pra você mesmo. Cala a porra dessa sua boca.

Quando Jonsey encarou os olhos do outro, não se importou muito com o resultado daquilo tudo. Atirar no idiota. Não atirar. Não fazia diferença.

– ‘Tá bom, ‘tá bom, ‘tá bom. – O senhor Conversador recuou e deixou o ponto de ônibus.

Obrigado. Cacete.

Jonsey guardou a pistola, cruzou os braços e ficou olhando na direção que o ônibus viria – como se isso adiantasse.

Idiota filho da puta.

Olhou para o relógio de novo. Cara, chega disso. Se um ônibus voltando para a cidade chegasse ali primeiro, ele subiria e o resto que se foda.

Mudando de posição a mochila que lhe disseram para pegar, ele sentiu o contorno rígido do jarro dentro dela. O pacote ele entendia. Se ele ia transportar mercadoria de onde “Judas perdeu as botas” para o bairro, então tudo bem. Mas um jarro? Para que diabos alguém precisa disso?

A menos que fosse pó solto.

O fato de ele ter sido escolhido pelo C-Rider, o próprio, para aquilo foi bom pra cacete. Até ele ter conhecido o Garoto Branco – e daí a coisa perdeu um pouco da graça. As instruções do chefe foram claras: encontrar com o cara na parada da Rua Quatro. Pegar o último ônibus que ia para a periferia e esperar. Transferir-se para a linha rural quando o serviço voltasse a funcionar de madrugada. Descer na parada de Warren County. Depois andar um quilômetro e meio até uma propriedade rural.

C-Rider os encontraria ali com um punhado de outros caras para tratar de negócios. E depois? Jonsey faria parte da nova equipe montada para dominar o cenário em Caldie.

Ele gostava dessa merda. E respeitava completamente o C-Rider – o filho da puta era garantido: no comando lá do pedaço; foda.

Mas se o resto deles fosse como o Vanilla...

O ronco de um motor o fez pensar que algum ônibus da Companhia de Transportes de Caldwell tivesse finalmente chegado, e ele se pôs de pé...

– Puta que o pariu... – sussurrou.

O Hummer preto tinha parado bem na frente do ponto de ônibus e, quando o vidro abaixou, o Garoto Branco estava alucinado atrás do volante – e não só porque Cypress Hill estava, de fato, berrando no rádio.

– Entra! Entra! Entra!

– Que merda que ‘cê fez? – Jonsey gaguejou, mesmo assim dando a volta por trás do carro e subindo no banco do passageiro.

Puta que o pariu – o cretino não era um cretino completo, não se conseguia fazer uma coisa dessas.

O cara pisou fundo no acelerador, o motor rugiu, e os pneus cravaram na neve acumulada, lançando-os para frente a oitenta quilômetros por hora.

Jonsey se segurou como pôde conforme eles dispararam pelo cruzamento de farol vermelho e depois por cima da calçada da loja Hannaford. Enquanto eles se distanciavam, a música sufocou o alarme que avisava que eles não tinham colocado o cinto de segurança.

Jonsey começou a rir.

– Isso aí, puta merda! Seu foda, floco de neve fodido...!

– Acho que isso é Justin Bieber.

De frente para a prateleira de batatinhas fritas, Qhuinn levantou o olhar para os alto-falantes de teto.

– É. Acertei, e odeio o fato de eu saber isso.

Ao seu lado, John Matthew sinalizou:

Como você sabe?

– O merdinha está por todos os lados – para provar o que disse, indicou um expositor de cartões com Short, Cocky e Fifteen-Minutes-Are-Up. – Juro, o garoto é a prova de que o Anticristo está chegando. Talvez ele já esteja aqui.

– Isso explicaria Miley Cyrus.

Bem observado.

Enquanto John voltava a analisar a sua escolha de salgadinhos, Qhuinn deu uma olhada na loja. Quatro da manhã e a farmácia estava completamente abastecida e absolutamente vazia – a não ser por eles dois e pelo rapaz na caixa registradora, que lia o National Enquirer e comia uma barrinha de chocolate Snickers.

Nenhum redutor. Ninguém do Bando de Bastardos.

Nada em que atirar.

A menos que o expositor de Justin Bieber contasse.

O que vai pegar?, John perguntou com sinais.

Qhuinn deu de ombros e continuou olhando em volta. Como ahstrux nohtrum de John, era sua responsabilidade garantir que o cara voltasse inteiro para a mansão da Irmandade todas as noites e, depois de mais de um ano, tudo bem por enquanto...

Puxa, como sentia falta de Blay.

Balançando a cabeça, esticou o braço a esmo. Quando o braço recuou, ele segurava um pacote de batatas com cebola e creme azedo.

Olhando para o logo da Lay’s e o close-up da batatinha, ele só conseguia pensar na época em que ele, John e Blay costumavam matar o tempo na casa dos pais de Blay, jogando Xbox, bebendo cerveja, sonhando com vidas melhores e maiores após a transição.

Infelizmente, melhor e maior só resultou no tamanho e na força de seus corpos. Ainda que talvez esse fosse apenas o seu ponto de vista. Afinal, John estava muito bem com sua companheira. E Blay estava com...

Merda, ele não conseguia nem mesmo dizer mentalmente o nome do primo.

– Tudo certo, J.? – perguntou asperamente.

John Matthew pegou uma embalagem normal de Doritos e assentiu.

Vamos pegar bebidas.

Enquanto avançavam pela loja, Qhuinn desejou que estivessem no centro da cidade, brigando nos becos, enfrentando qualquer um dos seus dois inimigos. Tempo em excesso despendido em detalhes suburbanos e isso significava pensar demais em...

Interrompeu-se novamente.

Que diferença fazia? Além disso, ele detestava ter qualquer contato com a glymera – e isso era recíproco. Infelizmente, os membros da aristocracia gradualmente retornavam para Caldwell, e isso significava que Wrath ficara até o pescoço com chamados de supostos assassinatos.

Como se os mortos-vivos de Ômega não tivessem coisas melhores a fazer do que espreitar entre pomares desnudos e piscinas congeladas.

Ainda assim, o Rei não estava em posição de mandar os janotas se foderem. Não desde que Xcor e seu Bando de Bastardos colocaram uma bala no pescoço real.

Traidores. Malditos. Com um pouco de sorte, Vishous iria provar sem sombra de dúvida de onde tinha vindo o tiro de rifle, e então eles poderiam destripar aqueles soldados, colocar suas cabeças em estacas e atear fogo em seus corpos.

Assim como descobrir exatamente quem no Conselho estava de conluio com o novo inimigo.

Sim, amistoso era o nome do jogo agora – por isso, uma noite por semana, cada uma das equipes acabava ali no bairro em que ele crescera, batendo em portas e olhando debaixo das camas.

Em casas parecidas com museus que lhe davam mais arrepios do que qualquer passagem escura do centro da cidade.

Uma batidinha no seu braço fez com que ele virasse a cabeça.

– O que foi?

Era o que eu ia perguntar.

– Como é?

Você parou aqui. E ficou olhando para... Bem, você sabe.

Qhuinn franziu o cenho e olhou de relance para a prateleira de produtos. E acabou perdendo o fio da meada dos seus pensamentos – e boa parte do sangue da cabeça.

– Ah, é... Bem... – merda, alguém aumentou a calefação do lugar? – Hum...

Mamadeiras. Leite em pó. Babadores e lenços umedecidos e hastes flexíveis. Chupetas. Garrafinhas. Algum tipo de contraceptivo...

Ai, meu Deus, uma bomba de leite.

Qhuinn deu uma volta de 180° tão rápida que acabou de frente a uma pilha de fraldas Pampers, depois rebateu de volta no mundo das NUKs e, por fim, ricocheteou para fora do ambiente infantil graças ao rechaço de um A + D. O que quer que isso fosse.

Baby. Baby. Baby...

Ah, melhor assim... Seguiu o caminho para o caixa.

Enfiando a mão na jaqueta de motoqueiro, Qhuinn puxou a carteira e esticou a mão para trás para pegar a comida de John.

– Me passe isso aí.

Enquanto o cara começava a discutir, articulando as palavras visto que as mãos estavam ocupadas, Qhuinn apanhou a garrafa de Mountain Dew e os Doritos que estavam atrapalhando a comunicação deles.

– Prontinho. Enquanto ele cobra, você pode gritar comigo como se deve.

E como era de se esperar, as mãos de John dispararam em todas as posições possíveis na linguagem de sinais para dizer que aquela era por sua conta.

– Ele é surdo? – o rapaz atrás da caixa registradora perguntou num sussurro. Como se alguém usando linguagem de sinais fosse alguma aberração.

– Não. Cego.

– Ah.

Quando o rapaz continuou encarando, Qhuinn sentiu vontade de dar um peteleco nele.

– Vai nos ajudar aqui ou não?

– Ah, claro... Ei, você tem uma tatuagem no rosto – o senhor Observador se movia lentamente, como se os códigos de barra das embalagens estivessem criando algum campo de resistência debaixo do leitor a laser. – Sabia disso?

Sério?

– Não saberia dizer.

– Você também é cego?

O cara não tinha filtro algum. Nenhum mesmo.

– É, sou.

– Ah, então é por isso que os seus olhos são tão esquisitos.

– É. Pode crer.

Qhuinn pegou uma nota de vinte e não esperou pelo troco – homicídio era uma possibilidade um tantinho tentadora demais. Acenando para John, que também media o rapaz para encomendar uma mortalha, Qhuinn tomou o caminho da saída.

– E o seu troco? – chamou o rapaz

– Também sou surdo. Não estou ouvindo.

O rapaz gritou mais alto.

– Então vou ficar com ele, ok?

– Boa ideia – exclamou Qhuinn por sobre o ombro.

O idiota pertencia ao nível cinco de estupidez. Nível máximo.

Passando pelas barras de segurança, Qhuinn ponderou que era um milagre que humanos como aquele conseguissem passar seus dias. E o cretino conseguira vestir as calças e operar uma caixa registradora.

Os milagres nunca deixavam de acontecer.

Ao empurrar a porta para sair, o frio o esbofeteou, o vento açoitou seus cabelos, flocos de neve atingiam seu nariz...

Qhuinn ficou imóvel.

Olhou para a esquerda. Para a direita.

– Caralho... Cadê o meu Hummer?

Em sua visão periférica, as mãos de John começaram a voar como se ele estivesse se perguntando a mesma coisa. Em seguida, ele apontou para baixo, para a neve recém-caída e... para as marcas fundas dos quatro pneus monstruosos que formavam um círculo grande e seguiam para a saída do estacionamento.

– Puta que o pariu! – rosnou Qhuinn.

E ele pensava que o estúpido era o senhor Observador?


CAPÍTULO 2

Na mansão da Irmandade, Blaylock estava sentado na beira da cama, o corpo nu afogueado, uma camada de suor sobre o peito e os ombros. Entre as pernas, o pênis estava adormecido e os quadris relaxados depois de todo tipo de investida e encontrão. Por sua vez, a respiração estava acelerada, a carne necessitando de um tantinho mais de oxigênio do que seus pulmões conseguiam fornecer.

Naturalmente por isso, ele se esticou para pegar o maço de Dunhill Reds que mantinha na mesinha de cabeceira.

Os barulhos no chuveiro do banheiro do outro lado, junto ao perfume cítrico do sabonete artesanal, eram dolorosamente familiares.

Já fazia quase um ano?

Tirando um dos cigarros, ele pegou o isqueiro Van Cleef & Arpels que Sax lhe dera em seu aniversário. O objeto era de ouro e tinha os rubis Mystery Set incrustados conforme a técnica especializada da empresa, uma peça adorável dos anos quarenta, que nunca deixava de agradar aos olhos e ao coração.

Enquanto a chama acendia, o chuveiro era desligado.

Blay se inclinou na direção da chama, inalou e fechou a tampa do isqueiro. Como sempre, um rastro do fluido do isqueiro permeou o ar, sua doçura se misturando com a fumaça que ele exalou.

Qhuinn detestava cigarros.

Nunca os aprovara.

O que, considerando-se a quantidade de coisas ultrajantes que o cara tinha o hábito de fazer, parecia simplesmente ofensivo.

Sexo com inúmeros desconhecidos em banheiros de boates? Ménage à trois com machos e fêmeas? Piercings? Tatuagens em diversos lugares?

E o cara não “aprovava” que se fumasse. Como se fosse um vício sórdido com o qual ninguém, em seu juízo perfeito, devesse perder tempo.

No banheiro, o secador de cabelos que ele e Sax partilhavam foi ligado, e Blay pôde imaginar o cabelo loiro que ele acabara de agarrar e puxar para trás voando no ar artificial, captando a iluminação, os reflexos naturais brilhando.

Saxton era bonito, de pele lisa, corpo definido e excelente bom gosto.

Deus, e as roupas em seu guarda-roupa? Incríveis. Como se o Grande Gatsby tivesse saído das páginas de um romance, passado pela 5ª Avenida e comprado todo o estoque de alta costura.

Qhuinn jamais foi assim. Ele usava camisetas da Hanes e uniformes de couro, e ainda usava a mesma jaqueta de motoqueiro que tinha desde logo depois de sua transição. Nada de Ferragamo ou Bally para ele; New Rocks com solados do tamanho de pneus de caminhão. Cabelo? Com um pouco de sorte penteado. Colônia? Pólvora e orgasmos.

Diabos, em todos aqueles anos em que Blay conhecia o cara – e isso era praticamente desde o nascimento –, ele jamais vira Qhuinn vestindo um terno.

Há de se duvidar que ele soubesse que smokings podiam ser comprados, não apenas alugados.

Se Saxton era o retrato perfeito da aristocracia, Qhuinn era o de um bandido...

– Aqui está. Bata as cinzas nisto.

Blay levantou a cabeça. Saxton estava nu, perfeitamente penteado e cheirava a Cool Water – e estava segurando o pesado cinzeiro Baccarat que ele comprara no verão como um presente de solstício. Também era dos anos quarenta, e pesava tanto quanto uma bola de boliche.

Blay obedeceu, pegando-o e balançando-o na palma da mão.

– Está de saída para o trabalho?

Como se isso não estivesse óbvio.

– Exato.

Saxton se virou e o banqueteou com suas nádegas espetaculares ao seguir para o closet. Tecnicamente, ele devia viver num dos quartos de hóspedes vazios da casa, mas no decorrer do tempo, suas roupas acabaram migrando para ali.

Ele não se importava com o fumo. Até mesmo chegava a partilhar um cigarro de vez em quando depois de uma... de um intercâmbio energético, digamos assim.

– Como está indo? – Blay perguntou numa exalada. – Quero dizer, a sua missão secreta.

– Muito bem. Estou quase terminando.

– Isso quer dizer que vai poder finalmente me contar do que se trata?

– Logo você vai descobrir.

Quando uma sacudida de camisa emanou do closet, Blay virou o cigarro e fitou a ponta acesa. Saxton vinha trabalhando em algo extremamente secreto para o Rei desde o outono, e não houve confissões de travesseiro a respeito – o que devia ter sido apenas um dos motivos pelos quais Wrath tornou o macho o seu advogado particular. Saxton tinha a mesma discrição de um cofre de banco.

Qhuinn, por outro lado, jamais fora capaz de guardar um segredo. Desde festas surpresa a boatos e detalhes pessoais embaraçosos tais como se você transou com uma prostituta barata na...

– Blay?

– Desculpe, o que disse?

Saxton saiu do closet, completamente vestido num terno de três peças de tweed da Ralph Lauren.

– Eu disse, vejo você na Última Refeição?

– Puxa. Já está tarde assim?

– Sim, está.

Pelo visto transaram durante toda a Primeira Refeição do dia – como eles vinham fazendo desde...

Deus. Ele nem conseguia pensar no que acontecera apenas uma semana antes. Não conseguia sequer traduzir em palavras como se sentia a respeito da única coisa com a qual jamais se preocupara que pudesse acontecer – bem na frente dos seus olhos.

E ele acreditara que ser rejeitado por Qhuinn era ruim?

Vê-lo ter um filho com uma fêmea...

Merda, ele tinha de responder ao seu amante, não tinha?

– Sim, claro. Vejo você mais tarde.

Houve uma hesitação, depois Saxton se aproximou e pressionou um beijo nos lábios de Blay.

– Está de folga esta noite?

Blay concordou, mantendo o cigarro longe para não queimar as belas roupas do macho.

– Pensei em ler a New Yorker e talvez começar Paixões desenfreadas.

Saxton sorriu, obviamente apreciando o apelo de ambos.

– Como eu o invejo. Depois que eu terminar, vou tirar algumas noites de folga e só relaxar.

– Talvez a gente possa ir para algum lugar.

– Talvez.

A expressão contraída do belo rosto foi rápida e triste. Porque Saxton sabia que eles não iriam a parte alguma.

E não só porque uma viagem a Sandals com tudo incluso não estava no futuro deles.

– Cuide-se – disse Saxton, esfregando os nós dos dedos no rosto de Blay.

Blay acarinhou a mão com o nariz.

– Você também.

Um segundo depois, a porta abriu e fechou... e ele ficou sozinho. Sentado na cama bagunçada, no silêncio que pareceu esmagá-lo de todos os lados, ele fumou aquele cigarro até o filtro, esmagou-o no cinzeiro e acendeu outro.

Fechando os olhos, tentou se lembrar do som dos gemidos de Saxton ou da visão das costas másculas arqueadas ou da sensação da pele contra a pele.

Não conseguiu.

E essa era a raiz do problema, não?

– Deixe-me ver se eu entendi – V. disse com a voz arrastada pelo telefone. – Você perdeu o Hummer.

Qhuinn queria atravessar a vidraça com a cabeça.

– É. Perdi. Então, pode, por favor...

– Mas como foi que você perdeu um veículo de três toneladas?

– Isso não importa...

– Bem, na verdade, importa se você quiser que eu acesse o GPS e lhe diga onde pode encontrar o maldito carro; pois é por isso que você me ligou, não foi? Ou você acha que se confessar sem contar os detalhes faz bem para a alma e essa porcaria toda?

Qhuinn segurou o telefone com força.

– Deixeiaschavesnocontato.

– Como é? Pode repetir? Não entendi.

Até parece.

– Deixei as chaves no contato.

– Que idiotice, filho.

Jura?

– Então, pode me ajudar...?

– Acabei de mandar as coordenadas para você por e-mail. Ah, mais uma coisa... Quando recuperar o veículo...

– Sim?

– Pare um segundo só para ver se os ladrões ajeitaram o banco... Sabe, só para ficarem confortáveis e à vontade. Porque eles provavelmente não estavam com pressa, já que as chaves estavam lá – o som da risada de V. era como ser acertado nas bolas com o para-choque de um carro. – Olha só, preciso ir. Preciso das duas mãos para segurar a barriga de tanto que estou rindo de você. Até mais...

Quando a ligação ficou muda, Qhuinn precisou de um minuto para controlar o desejo de atirar longe o telefone.

É, porque perdê-lo também o ajudaria muito.

Entrando na sua conta do Hotmail, e imaginando quanto tempo teria de aguentar aquela vergonha, conseguiu a localização do maldito carro.

– Está seguindo para o oeste – virou o telefone para que John pudesse ver. – Vamos lá.

Desmaterializando-se, Qhuinn ficou vagamente ciente de que sua raiva era desproporcional ao problema: conforme suas moléculas se dispersavam, ele era como um fusível aceso esperando para se conectar a alguma dinamite – e não era apenas o fato de ele ser um estúpido, ou de perder o carro, ou pelo fato de ele ficar com cara de idiota diante de um dos machos que ele mais respeitava na Irmandade.

Havia muitas outras coisas.

Materializando-se numa estrada rural, ele verificou o telefone novamente e esperou John aparecer. Quando o lutador surgiu, ele recalibrou e eles seguiram ainda mais a oeste, aproximando-se, redirecionando-se... até que Qhuinn irrompeu na exata faixa de asfalto coberta de neve na qual estava o seu maldito Hummer.

A menos de cem metros à frente do veículo.

Quem quer que fosse o filho da puta que estava atrás do volante dirigia a quase cem quilômetros por hora na neve, seguindo para uma curva. Que estúp...

Bem, chamá-los de estúpidos era exatamente o tipo de coisa que o sujo diz para o mal-lavado na qual aquela noite estava se transformando.

Deixe-me atirar nos pneus, John gesticulou, como se soubesse que uma arma na mão de Qhuinn não seria a melhor das ideias.

No entanto, antes que ele conseguisse sacar a sua .40, Qhuinn se materializou... bem em cima do capô do SUV.

Primeiro ele aterrissou de cara no para-brisa, o traseiro recebendo o tipo de brisa que o transformou num inseto contra o vidro. Depois, veio o espanto geral: graças ao brilho do painel, ele enxergou as expressões de “Ai, meu Deus!” nos rostos dos dois homens no banco da frente... E então a sua brilhante ideia se transformou na merda número dois da noite.

Em vez de pisar no freio, o motorista virou o volante, como se assim conseguisse evitar o que já tinha pousado no capô do Hummer. O torque arremessou Qhuinn, o corpo ficando sem peso conforme ele voava no ar, tentando manter contato visual com a sua carona.

No fim, ele é quem teve sorte.

Como Hummers foram projetados e construídos para outras coisas que não a aerodinâmica e a facilidade na frenagem, as leis da física se agarraram a todo aquele metal pesado e capotaram a coisa. No processo, e apesar da cobertura de neve, o metal se chocou com o asfalto, e os gritos agudos de soprano romperam a noite...

O impacto ensurdecedor do SUV cravando em um objeto sólido do tamanho de uma casa pôs fim aos gritos. Qhuinn não prestou muita atenção à batida, porém. Porque ele também aterrissou, a estrada pavimentada batendo em seu ombro e quadril, o corpo fazendo a sua própria versão de um porco untado deslizando pelo chão coberto de neve.

CRASH!

Seu movimento cinético também foi interrompido quando algo duro o acertou na cabeça...

Em seguida, um show espetacular de luzes, como se alguém tivesse acendido fogos de artifício bem diante do seu rosto. Depois, foi a vez do Piu-Piu, de estrelinhas rodando em sua visão enquanto dores em vários lugares começaram a aparecer.

Empurrando o que quer que estivesse mais próximo dele – e ele não sabia muito bem se era o chão, uma árvore ou aquele gordinho de vermelho, o Papai-Noel –, ele se pôs de costas. Ao se deitar, o frio foi para a sua cabeça e ajudou a entorpecer as coisas.

Tinha a intenção de se levantar. Verificar o Hummer. Socar quem quer que tivesse tirado vantagem de seu vacilo. Mas isso era apenas o seu cérebro brincando consigo próprio. O corpo assumira o comando do volante e do acelerador, e não tinha a mínima intenção de ir a parte alguma.

Deitado o mais imóvel que conseguia e respirando bafejos de frio desiguais, o tempo recuou e depois começou a se metamorfosear. Por um segundo, ele ficou confuso quanto ao que o colocara naquela condição à margem da estrada. O acidente que ele causara?

Ou... a Guarda de Honra antes dos ataques?

Aquela coisa de ficar deitado de costas no asfalto era uma lembrança do seu passado ou algo que estava de fato acontecendo?

A boa notícia era que tentar descobrir a realidade proporcionou ao seu cérebro outra coisa para fazer em vez de insistir naquela merda de se mexer. A notícia ruim era que as lembranças da noite em que sua família o repudiou estavam mais dolorosas do que qualquer outra coisa que estivesse sentindo no momento.

Deus, estava tudo tão claro, o doggen trazendo-lhe os papéis oficiais e exigindo um pouco de sangue para um ritual de purificação. Ele jogando aquela bolsa de lona sobre o ombro e saindo de casa pela última vez. A estrada se estendendo à sua frente, vazia e escura...

Esta mesma estrada, na verdade. A estrada de agora em que caíra. E na qual estava. Ao sair da casa dos pais, ele tivera a intenção de seguir para o oeste, onde ouvira falar de um bando de malandros cretinos parecidos com ele. No entanto, quatro machos surgiram em mantos negros e o surraram até a morte – literalmente. Ele fora até os portões do Fade e, lá, vira um futuro no qual não acreditara... até ele acontecer. Estava acontecendo – naquele momento. Com Layla.

Ah, olha só, John estava falando com ele.

Bem diante dos seus olhos, as mãos do cara faziam movimentos, por assim dizer, e Qhuinn pretendia responder com algum tipo de informação.

– É real? – murmurou.

John pareceu momentaneamente confuso.

Tinha de ser real, pensou Qhuinn. Por que a Guarda de Honra o procurara no verão, e o ar que ele estava respirando era frio.

Você está bem?, John articulou com os lábios ao gesticular.

Enfiando a mão no chão coberto de neve, Qhuinn empurrou com toda a força que tinha. Quando não se moveu mais do que alguns centímetros, deixou que isso respondesse por ele... e apagou.


CAPÍTULO 3

O som da coca sendo fungada por um septo desviado fez com que o homem do lado de fora da porta apertasse ainda mais a adaga.

Idiota. Maldito idiota.

A primeira regra para qualquer traficante de sucesso era não ser usuário. Viciados que davam início aos seus negócios usavam. Associados sobre quem você precisava ter poder usavam. Prostitutas que você necessitava que fossem para as ruas usavam.

A administração nunca usava. Jamais.

O raciocínio era muito lógico, fundamental e nada diferente de, digamos, ir a um cassino de seis milhões de metros quadrados, com comida suficiente para alimentar um pequeno país e malditas folhas de ouro espalhadas a torto e a direito, e se surpreender por ter perdido todo o seu dinheiro. Se consumir drogas era uma ideia tão genial, por que pessoas morriam regularmente com essa merda, destruíam suas vidas por causa delas, eram mandadas para a prisão graças a isso?

Cretino.

O homem virou a maçaneta e empurrou. Claro que a porta estava destrancada, e conforme ele entrava no quarto esquálido, o odor de talco de bebê o teria sobrepujado – se já não tivesse se acostumado a ele.

O cheiro desagradável era a única coisa da qual ele não gostara na mudança. Todo o resto – a força, a longevidade, a liberdade – ele aceitara. Mas o cheiro, que maldição.

Não importava a quantidade de colônia que usasse, não conseguia se livrar dele.

Ah, sim, e sentia falta de poder fazer sexo.

Fora isso, a Sociedade Redutora era o seu bilhete para a dominação.

A fungada parou e o Redutor Principal levantou a cabeça da revista People sobre a qual fizera as carreiras. Debaixo do resíduo, um cara chamado Channing Tatum olhava para a câmera, sexy como o quê.

– Ei, o que está fazendo aqui?

Conforme os olhos injetados e lustrosos se esforçavam para focalizar, o “chefe” parecia ter acabado de dar um boquete num donut açucarado.

– Trouxe uma coisa para você.

– Mais? Ah, bom Deus, como você sabia? Só tenho mais cinquenta gramas e...

Connors, também conhecido como C-Rider, moveu-se rapidamente, dando três passos à frente, esticando o braço amplamente, balançando a adaga num círculo amplo – que acabou ao lado da cabeça do Redutor Principal. A lâmina de aço afundou, atravessando o osso mais mole da têmpora, perfurando a massa cinzenta confusa.

O Redutor Principal teve uma convulsão, talvez por causa do ferimento... Mais provavelmente porque suas glândulas adrenais acabaram de lançar milhões de centímetros cúbicos de “puta merda” na circulação sanguínea e a coisa não estava se misturando muito bem com a cocaína. Enquanto o merdinha caía num baque da cadeira e trepidava até o chão, a adaga ficou com Connors, soltando-se da lateral do crânio, a lâmina marcada com sangue negro.

Connors sustentou o olhar do seu agora antigo superior e sentiu-se tremendamente bem a respeito da promoção que acontecia. O próprio Ômega o procurara oferecendo-lhe o emprego, sem dúvida reconhecendo, como todos os outros, que um punkezinho de rua qualquer não era o que se queria para comandar qualquer organização maior do que um jogo de pôquer. Bem, é óbvio que o cara fora útil em aumentar o pelotão. Mas quantidade não era o mesmo que qualidade, e não seria preciso o Exército, a Marinha, a Força Aérea ou os Fuzileiros para ver que a Sociedade Redutora estava sendo atropelada por jovens sem lei e com déficit de atenção.

Difícil promover qualquer programa com esse tipo de pelotão e histórico – a menos que você tivesse um administrador verdadeiramente profissional.

Motivo pelo qual Ômega pusera tudo aquilo em ação.

– O q-q-que...

– Você está despedido, filho da puta.

A parte final da aposentadoria forçada veio com mais uma apunhalada, esta com a lâmina penetrando bem no meio do peito. Com um “puf ” e um pouco de fumaça, a mudança de regime foi concluída.

E Connors se tornou o cabeça de tudo.

A supremacia o fez rir por um momento – até seus olhos percorrerem o recinto. Por algum motivo, ele pensou naquele comercial de aromatizador de ar Febreze, aquele em que eles bagunçaram um lugar, borrifaram o produto como loucos, depois arrastaram “pessoas reais, não atores” para a cena para dar uma cheirada no ambiente.

Caramba, a não ser pelos restos de comida – que não existiam, porque assassinos não precisavam comer – tudo se encaixava: o mofo no teto, a mobília decadente, o vazamento na pia... e especialmente a parafernália que acompanhava os múltiplos vícios, como seringas, colheres, até mesmo a garrafa de dois litros de Sprite do laboratório de metanfetamina no canto.

Aquele não era um lugar que emanava poder. Era apenas um antro de drogas.

Connors se aproximou e pegou o celular do merdinha. A tela estava quebrada e havia algum tipo de remendo pegajoso na parte de trás. O equipamento não tinha senha de proteção e, quando ele entrou na parte das mensagens, todo tipo de puxa-saquismo surgiu, os textos cheios de blá-blá-blás parabenizando pela cerimônia de iniciação que aconteceria naquela noite.

Mas o Redutor Principal não soubera daquilo. Não era coisa dele.

No entanto, Connors não retaliaria. Os babacas puxa-sacos só estavam tentando permanecer vivos e chupariam o pau de qualquer um para continuar a respirar: ele, de fato, esperava a mesma lista se dirigindo a ele, e queria que o fizessem. Os espiões tinham o seu propósito no âmbito geral.

E, caramba, como havia trabalho a ser feito.

Pelo que ele deduzira do seu abençoado curto tempo de puxa-saquismo, a Sociedade Redutora tinha poucos recursos no que se referia à artilharia, à munição ou às propriedades. Nenhum dinheiro, pois o que entrara na forma de roubos menores acabara subindo pelo nariz do merdinha ou sendo injetado em seu braço. Nenhuma lista de recrutas, nenhuma tropa organizada, nada de treinamento.

Muita coisa precisava ser refeita rapidamente...

Uma rajada de ar frio entrou no cômodo, e Connors deu meia-volta. Ômega chegara de lugar nenhum, as vestes brancas do Mal brilhando suavemente, a sombra negra por baixo parecendo uma ilusão ótica.

A repulsa que perpassou Connors era algo a que ele sabia que teria de se acostumar. Ômega sempre apreciava um relacionamento especial com seu Redutor Principal – e, talvez por isso, dizia-se por aí que eles raramente duravam muito.

Mas, pensando bem, considerando-se quem ele escolhia...

– Cuidei dele – disse Connors, indicando a marca de queimado no chão.

– Sei disso – replicou Ômega, a voz se distorcendo no ar frio e fétido.

Do lado de fora, uma rajada de vento lançou neve contra a janela, o buraco no peitoril permitindo a entrada de alguns flocos. Ao entrarem, eles flutuaram até o chão, o frio ali presente era suficiente para sustentá-los, graças à presença do mestre.

– Ele voltou para casa agora – Ômega avançou como uma brisa, sem nenhuma evidência de que qualquer espécie de pernas se movesse debaixo dele. – E eu estou deveras satisfeito.

Connors ordenou aos seus pés que ficassem parados. Não havia para onde correr, nenhum lugar para onde escapar; ele simplesmente tinha que superar o que estava por vir.

Ao menos ele se preparara para isso.

– Tenho novos recrutas para você.

Ômega se deteve.

– Verdade?

– Uma espécie de tributo, por assim dizer – ou mais especificamente um ponto final definitivo naquilo: ele tinha de se encaminhar logo, planejara cuidadosamente para que aqueles dois eventos fossem próximos. Ômega, afinal, gostava dos seus brinquedinhos, mas gostava ainda mais da sua Sociedade e do seu propósito de eliminar os vampiros.

– Você me agrada imensamente – sussurrou Ômega ao se aproximar. – Acredito que vamos nos entender muito bem... Sr. C.


CAPÍTULO 4

A Escolhida Layla existira em seu próprio corpo sem qualquer comprometimento físico pela totalidade de sua existência. Nascida no Santuário da Virgem Escriba e treinada na paz sobrenatural e refinada dali, ela jamais soubera o que era fome, ou estado febril, ou dor de qualquer tipo. Nem calor, tampouco frio, contusão, concussão ou contração. Seu corpo fora, como com todas as coisas no lugar mais sagrado da mãe da raça, sempre da mesma placidez, um espécime perfeito funcionando no nível mais alto...

– Ai, meu Deus – ela engoliu em seco ao pular da cama e se arrastar até o banheiro.

Seus pés nus derraparam no mármore quando ela se lançou de joelhos, levantando a tampa do vaso sanitário, e se inclinou para ficar frente a frente com a epiglote do vaso.

– Só... acabe com... isso – ela arfou quando a onda de náusea poluiu seu corpo até os dedos dos pés se dobrarem agarrando-se ao chão. – Por favor... Pelo amor da Virgem Escriba...

Se ao menos ela conseguisse esvaziar o estômago, por certo a tortura terminaria...

Colocando o indicador e o dedo médio na garganta, ela os pressionou com tanta força que engasgou. Mas foi só isso. Não havia coordenação em seu diafragma, nenhuma libertação da carne estragada em seu estômago... Não que ela tivesse comido – isso ou qualquer outra coisa – por... quanto tempo mesmo? Dias.

Talvez fosse esse o problema.

Passando um braço ao redor do quadril, ela apoiou a testa suada na beirada fria e dura do vaso sanitário e tentou respirar superficialmente. A sensação do ar subindo e descendo pelo fundo de sua garganta só fazia piorar a necessidade impotente de vomitar.

Há apenas poucos dias, quando ela entrara no cio, seu corpo assumira o controle, a necessidade de copular forte o suficiente para apagar todo pensamento e emoção. Aquela supremacia logo passara, contudo, do mesmo modo que as dores da cópula infindável, a pele e os ossos mais uma vez tomando o assento de trás em seu cérebro.

O equilíbrio estava recuando mais uma vez.

Desistindo, mudou de posição com cuidado, apoiando os ombros na parede de mármore.

Considerando-se como se sentia mal, só podia deduzir que estava abortando. Jamais vira ninguém no Santuário passar por aquilo – será que aquele mal-estar era normal ali na Terra?

Fechando os olhos, desejou poder falar com alguém sobre isso. Porém, bem poucas pessoas sabiam de sua condição – e, por enquanto, ela precisava que as coisas continuassem assim. A maioria das pessoas sequer sabia que ela passara pelo cio e fora obsequiada. O período fértil de Autumn começara antes e, em reação, a Irmandade se afastara ao máximo para não correr o risco de se expor a esses hormônios – por um bom motivo, como ela tomou conhecimento em primeira mão. E quando as pessoas retornaram aos seus quartos normais na mansão? O seu cio passara, e qualquer corrente residual de hormônios no ar foi atribuída por todos ao fim do período de Autumn.

Entretanto, a privacidade naqueles seus dois cômodos não duraria se a gestação continuasse. Primeiro porque sua condição seria sentida pelos outros, especialmente pelos machos, que particularmente percebiam esse tipo de coisa.

Segundo, depois de um tempo, começaria a aparecer.

A não ser... Como é que o bebê sobreviveria se ela se sentia tão mal?

Enquanto uma leve sensação de contração se acomodava no baixo ventre, como se sua pélvis estivesse sendo comprimida por uma hera invisível, ela procurou focar a mente em alguma coisa, qualquer coisa que não fossem as sensações físicas.

Olhos da cor da noite surgiram.

Olhos penetrantes, olhos que fitavam de um rosto ensanguentado e distorcido... e belos mesmo em sua feiura.

Ok. Aquilo não era melhora alguma.

Xcor, o líder do Bando de Bastardos. Um traidor do Rei, um macho caçador que era inimigo da Irmandade e dos vampiros em todas as partes. O guerreiro bravio que nascera de uma mãe nobre que não o quisera por causa de sua aparência, e de um pai desconhecido que nunca reconhecera a paternidade. Um fardo indesejado saído de casa para um orfanato até entrar para o campo de treinamento de Bloodletter no Velho Mundo. Um lutador sem remorso, treinado nisso para grandes feitos; depois, em sua maturidade, um mestre na morte que viajou pela terra com um bando de lutadores de elite, primeiro aliados ao próprio Bloodletter e, depois, a Xcor – e a ninguém mais.

O rastro de informações na biblioteca do Santuário terminava ali porque nenhuma das Escolhidas vinha atualizando mais nada. O resto, contudo, ela podia completar por si só: a Irmandade acreditava que o atentado contra a vida de Wrath no outono fora planejado por Xcor, e ela também ouvira que existiam insurgentes dentro da glymera a serviço do guerreiro.

Xcor. Um traidor, um macho brutal sem consciência, sem lealdade, sem princípios a não ser para seu benefício.

Todavia, quando ela encarou aqueles olhos, quando esteve em sua presença, quando, sem saber, alimentara esse novo inimigo... sentira-se uma fêmea completa pela primeira vez em sua vida.

Porque ele a fitara não com agressão, mas com...

– Chega – disse ela em voz alta. – Pare com isso agora.

Como se ela fosse uma criança subindo numa estante ou algo assim.

Forçando-se a ficar de pé, ajeitou o roupão e resolveu sair do quarto e ir até a cozinha. Era necessária uma mudança de cenário, assim como comida – mesmo que fosse para dar ao seu estômago algo para expelir.

Antes de sair, não verificou o cabelo nem o rosto no espelho. Não se preocupou com o modo como o manto lhe caía. Não gastou nem um minuto ponderando sobre qual das suas sandálias idênticas usaria.

Tanto tempo fora gasto com detalhes em sua aparência.

Teria sido melhor despendê-lo estudando ou treinando para uma vocação. Isso, porém, não fora possível dentro dos preceitos permitidos das atividades para uma Escolhida.

Ao sair para o corredor, respirou fundo, equilibrou-se e começou a andar na direção do escritório do Rei.

Logo à frente, Blaylock, filho de Rocke, entrou apressado no corredor das estátuas, com as sobrancelhas unidas e o corpo coberto em couro do alto dos ombros até as solas dos enormes coturnos. Ao avançar, ele verificava as armas uma a uma, tirando-as dos coldres, recolocando-as, prendendo-as.

Layla parou de pronto.

E quando o macho finalmente a viu, ele fez o mesmo, os olhos se mostrando reservados.

Cabelos ruivos escuros, um par adorável de olhos azul safira, o aristocrata de sangue puro era um lutador da Irmandade, mas não era um bruto. Não importava como ele passasse as noites no campo de batalha, no complexo ele continuava um inteligente cavalheiro de boas maneiras, conduta e educação.

Por isso não foi surpresa que, mesmo em sua pressa, ele se inclinasse ligeiramente à cintura num cumprimento formal antes de voltar a correr para a escadaria principal.

Na descida dele para o vestíbulo, a voz de Qhuinn lhe retornou.

Estou apaixonado por alguém...

Layla praticou seu novo hábito de praguejar baixinho. Triste a situação entre esses dois guerreiros, e a sua gravidez em nada ajudaria.

Mas a sorte fora lançada.

E todos eles teriam de lidar com as consequências.

Quando chegou à escadaria, Blay sentia como se estivesse sendo perseguido, e isso era loucura. Ninguém que representasse qualquer tipo de ameaça estava atrás dele. Nenhum tarado com uma máscara de Jason, ou um bastardo com um infeliz suéter natalino e facas no lugar dos dedos, nem mesmo um palhaço assassino...

Somente uma Escolhida provavelmente grávida que, por acaso, passara bem umas doze horas transando com o seu maldito ex-melhor amigo.

Nada de mais.

Pelo menos, ela não deveria ser problema algum. A questão era que, toda vez que ele via aquela fêmea, sentia como se tivesse levado um soco no estômago. O que era mais uma loucura. Ela não fizera nada errado. Nem Qhuinn.

A menos que, Deus, se ela estivesse grávida...

Blay mandou todos esses pensamentos felizes para o fundo da mente ao cruzar o vestíbulo num trote. Não havia tempo para asneiras psicológicas, mesmo que só consigo: quando Vishous liga para você na sua noite de folga e lhe diz para estar na porta da frente em cinco minutos, não é porque as coisas estão bem.

Nenhum detalhe foi fornecido ao telefone; nenhum foi solicitado. Blay só levara um minuto para enviar uma mensagem de texto a Saxton, depois vestira couro e aço, pronto para qualquer coisa.

De certo modo, aquilo era bom. Passar a noite lendo no quarto acabara se mostrando uma tortura, e apesar de ele não querer que ninguém estivesse em apuros, ao menos aquilo o envolveria em alguma atividade. Saindo às pressas do vestíbulo, ele...

Deparou-se com o caminhão guincho da Irmandade.

O veículo estava equipado para parecer autenticamente humano, deliberadamente pintado com o logo vermelho da AAA* e o nome fictício Guinchos Murphy. Número de telefone falso. Slogan “Você pode contar sempre conosco” falso.

Bobagem. A menos que “você” fosse alguém da Irmandade.

Blay subiu no assento do passageiro e encontrou Tohr, e não V., atrás do volante.

– Vishous está vindo?

– Somos você e eu, garoto. Ele ainda está trabalhando no exame de balística daquela arma.

O Irmão pisou no acelerador, o motor a diesel roncou como uma fera, as luzes formando um círculo amplo ao redor da fonte do pátio e circundando os carros estacionados um atrás do outro.

Assim que Blay verificou os veículos e calculou quem estava faltando, Tohr disse:

– Qhuinn e John.

As pálpebras de Blay se fecharam por um átimo de segundo.

– O que houve?

– Não sei muito. John ligou para V. pedindo ajuda – o Irmão o fitou. – E você e eu somos os únicos disponíveis.

Blay alcançou a maçaneta da porta, pronto para abri-la e se desmaterializar dali.

– Onde eles est...

– Acalme-se, filho. Conhece as regras. Nenhum de nós pode sair desacompanhado, por isso preciso do seu traseiro nesse assento ou estarei violando o meu maldito protocolo.

Blay bateu o punho na porta, com força suficiente para que a dor na mão clareasse um pouco suas ideias. Maldito Bando de Bastardos, limitando-os assim – e o fato de a regra fazer sentido só o irritava ainda mais. Xcor e seus rapazes mostraram que eram perigosos, agressivos e completamente amorais – não eram exatamente o tipo de inimigo que você gostaria de enfrentar sozinho.

Mas, caramba...

Blay apanhou o telefone, pretendendo mandar uma mensagem para John, mas se conteve, pois não queria distraí-los ao tentar obter detalhes.

– Não há ninguém que consiga chegar lá antes?

– V. ligou para os outros. A luta está correndo solta no centro e ninguém consegue sair.

– Maldição.

– Vou dirigir o mais rápido que puder, filho.

Blay assentiu, só para não parecer rude.

– Onde estão e vai demorar muito?

– Uns quinze, vinte minutos. É depois da periferia.

Merda.

Olhando para fora da janela e vendo os flocos de neve passando, ele disse a si mesmo que se John estava mandando mensagens, eles estavam vivos e, pelo amor de Deus, o cara pedira um guincho, não uma ambulância. Até onde ele podia saber, os dois estavam com um pneu furado ou o para-brisa quebrado, e ficar histérico não encurtaria a distância, tampouco diminuiria o drama, se é que havia algum, nem mudaria as consequências.

– Desculpe se estou agindo como um idiota – murmurou Blay, quando o Irmão entrou na autoestrada.

– Não precisa se desculpar por se preocupar com um dos seus garotos.

Cara, o Tohr sabia ser legal.

Como era bem tarde da noite, a Northway não tinha nenhum carro, só um ou outro caminhão, cujos motoristas pilhados seguiam como morcegos saindo do inferno. O guincho não ficou muito tempo na estrada larga. Uns quinze quilômetros mais tarde, eles pegaram a saída ao norte do centro de Caldwell, numa área suburbana conhecida pelas suas mansões, não por ranchos; pelas Mercedes, não por Mazdas.

– Que diabos eles estão fazendo aqui? – perguntou Blay.

– Investigando aqueles relatos.

– Sobre os redutores?

– Isso.

Blay balançou a cabeça ao passarem por paredes de pedra tão altas e fortes quanto zagueiros de futebol americano, e portões com delicadas filigranas de ferro fechados para estranhos.

Abruptamente, respirou fundo e relaxou. Os aristocratas que voltavam para a cidade estavam assustados e viam provas das atividades dos redutores em tudo que os circundava – o que não significava que assassinos, de fato, saltassem detrás das esculturas dos jardins nem se escondessem em seus porões.

Aquele não era um evento mortal. Era só mecânico.

Blay esfregou o rosto e tratou de arrancar tudo do seu botão de pânico interno.

Pelo menos até saírem do outro lado do código postal e encontrarem o acidente.

Ao terminarem uma curva da estrada, havia um par de lanternas traseiras piscando sua luz vermelha do outro lado – bem depois do acostamento, de ponta cabeça.

O cacete que se tratava só de um problema mecânico.

Blay saltou antes de Tohr sequer começar a estacionar, materializando-se diretamente ao lado do Hummer.

– Oh, Cristo, isso não... – gemeu ao ver duas marcas no para-brisa dianteiro, o tipo de coisa que só podia ser feito por um par de cabeças atingindo o vidro.

Caminhando na neve, ele foi até a porta do motorista, o cheiro doce do combustível golpeando-o no nariz, a fumaça do motor cegando-o...

Um assobio agudo cortou o ar noturno logo à esquerda. Virando, Blay vasculhou o cenário acarpetado de neve... e encontrou duas formas desajeitadas cerca de seis metros mais distante, aninhadas na base de uma árvore quase do tamanho daquela na qual o Hummer se amontoara.

Andando com dificuldade pela neve acumulada, Blay se apressou até lá e aterrou sobre os joelhos. Qhuinn estava largado no chão, as pernas longas e pesadas esticadas, a parte superior do corpo no colo de John.

O macho apenas o encarou com aqueles olhos descombinados, sem se mover, sem falar.

– Ele está paralisado? – Blay exigiu saber, olhando para John.

– Não que eu saiba – respondeu Qhuinn secamente.

Acho que ele está com uma concussão, sinalizou John.

– Eu não...

Ele saiu voando do capô do carro e atingiu esta árvore...

– Quase nem acertei a árvore...

E eu tive que segurá-lo quieto desde então.

– O que está me irritando...

– E aí, rapazes, como estão? – Tohr perguntou ao se agachar perto deles, as botas esmagando o gelo. – Alguém ferido?

Qhuinn se soltou de John e se levantou.

– Não... Nós só...

Ao dizer isso, o equilíbrio dele oscilou, o corpo inclinando-se tanto que Tohr teve que segurá-lo.

– Vá esperar no guincho – o Irmão disse sério.

– Que se foda...

Tohr puxou-o até que ficassem de frente.

– Desculpe, filho, o que foi que disse? Porque tive a impressão que tentou usar a palavra que começa com “f ” comigo.

Ok. Certo. Blay sabia de antemão que havia poucas coisas na vida diante das quais Qhuinn recuava; dito isso, um Irmão respeitado por ele, que estava mais do que pronto para concluir o trabalho que aquele pinheiro começara, era, definitivamente, uma delas.

Qhuinn olhou para o SUV destruído.

– Desculpe. Noite ruim. E só fiquei tonto por um segundo. Estou bem.

Numa atitude típica de Qhuinn, o maldito se soltou e se afastou, seguindo para a pilha fumegante que antes era metal condutível como se pudesse se livrar dos seus ferimentos pela simples força de vontade.

Deixando os outros para comer poeira.

Blay se pôs de pé e se obrigou a focar em John.

– O que aconteceu?

Deus abençoe a linguagem de sinais; isso lhe dava algo para que olhar e, felizmente, John se alongou em detalhes. Quando a narrativa chegou ao fim, Blay só conseguia fitar o amigo. Mas seria impossível alguém inventar tudo aquilo.

Não a respeito de alguém de quem se gostava, pelo menos.

Tohrment começou a rir.

– Pelo que você está me dizendo, ele cometeu um hyslop.

– Não sei muito bem o que isso quer dizer – Blay interrompeu.

Tohr deu de ombros e seguiu a trilha de Qhuinn pela neve, mexendo o braço na direção do acidente.

– Bem ali. Aquela é a definição de um hyslop... iniciada pelo seu garoto deixando as chaves na ignição.

Ele não é o meu garoto, Blay disse para si mesmo. Nunca foi. Nunca será.

E o fato de isso doer mais do que qualquer tipo de concussão era algo tão significativo que ele resolveu se calar.

De lado e longe da luz dos faróis, Blay ficou para trás e viu Qhuinn se agachar pelo lado da porta do motorista e praguejar baixinho.

– Meleca. Mas que meleca...

Tohr fez o mesmo do lado do passageiro.

– Olha só, um parzinho.

– Acho que estão mortos.

– Mesmo? O que foi que o convenceu disso? O fato de eles não estarem se mexendo ou por este cara aqui não ter mais nenhuma feição?

Qhuinn se endireitou e olhou por cima da parte inferior do carro.

– Precisamos virá-lo para guinchá-lo.

– E cá estava eu pensando que íamos derreter marshmellows – comentou Tohr. – John? Blay? Venham cá.

Os quatro se posicionaram lado a lado entre os pneus e se afundaram nas botas, travando suas posições na neve. Quatro pares de mãos seguravam pelas portas; quatro corpos inclinando-se na posição de partida; quatro pares de ombros se preparando.

Uma única voz, a de Tohr, contou em voz alta:

– No três. Um. Dois. Três...

O Hummer já tivera uma noite ruim, e essa coisa de acertar o que estava errado o fez gemer tão alto que uma coruja disparou pela estrada e um par de cervos saiu correndo em seus cascos em meio às árvores.

Porém, o Hummer não era a única coisa praguejando. Todos se portaram como George Carlin* debaixo do peso morto ao se esforçarem contra a gravidade de todo aquele aço. As leis da física eram possessivas, porém, e enquanto o corpo de Blay se retesava, todos os seus músculos se esticando sobre os ossos, ele virou a cabeça e mudou a pegada...

Estava ao lado de Qhuinn. Bem próximo.

Os olhos de Qhuinn estavam focando para a frente, os lábios arreganhados para trás das presas, sua expressão feroz era o resultado de um esforço anatômico total...

Bem perto de como ele ficava quando gozava.

Santa inadequação, Batman. Que pena que isso não mudasse em nada o curso dos seus pensamentos.

O problema era que Blay sabia de antemão o que um orgasmo provocava naquele homem – ainda que não porque ele tivesse sido um dos milhares que foram o repositório. Isso não. Nunca isso. Que Deus não permitisse que o cara que enfiava o pau em tudo o que respirasse – e quiçá objetos inanimados – um dia fizesse isso com Blay.

Sim, porque esse perspicaz paladar sexual que levou Qhuinn a copular com tudo em Caldwell entre os vinte e os vinte e oito anos excluiu Blay do grupo de risco.

– Ele... está começando a se mexer... – disse Tohr por entre os dentes. – Para baixo!

Blay e Qhuinn responderam rápido, relaxando a pegada, agachando-se e passando os ombros por debaixo do teto do carro. De frente um para o outro, os olhos se encontraram quando o ar foi expelido das bocas, as coxas reagindo, os corpos travando uma batalha contra todo aquele peso morto e frio – que, por acaso, também estava escorregadio graças à neve.

A força conjunta deles foi a causa da virada – literalmente. Um eixo se formou nos pneus opostos, e o fardo de toneladas do Hummer mudou entre eles, tornando-se cada vez mais leve.

Por que diabos Qhuinn olhava para ele daquele modo?

Aqueles olhos, um par de azul e verde, estavam cravados nos de Blay, sem se mexerem.

Talvez fosse apenas resultado da concentração, como se ele estivesse apenas se centrando nos poucos centímetros à frente e, por acaso, Blay estivesse no fim do seu campo de visão.

Só podia ser isso...

– Devagar, rapazes! – avisou Tohr. – Ou a maldita coisa vai dar um giro completo!

Blay aliviou a pressão, e houve um momento de suspensão, um átimo de segundo em que o impossível aconteceu, quando um veículo utilitário de três toneladas se equilibrou perfeitamente em duas rodas, em que o que fora excruciante se tornou... hilário.

E, ainda assim, Qhuinn o encarava.

Quando o Hummer aterrissou nas quatro rodas, Blay franziu o cenho e se virou. Quando voltou a olhar... os olhos de Qhuinn estavam exatamente onde estiveram antes.

Blay se inclinou e sibilou:

– O que foi?

Antes que houvesse qualquer tipo de resposta, Tohr se adiantou e abriu a porta do SUV. O cheiro de sangue fresco flutuou com a brisa.

– Cara, mesmo que isto não tenha tido perda total, não sei não se você vai querê-lo de volta. Limpar isto vai ser o cacete!

Qhuinn não respondeu, parecendo ter se esquecido completamente a respeito do vívido comercial de seguros de carros pelo qual o seu veículo estava passando. Apenas ficou ali, olhando para Blay.

Talvez o filho da mãe tivesse tido um derrame de pé?

– Qual é o seu problema? – repetiu Blay.

– Vou trazer o guincho – disse Tohr ao seguir para o outro veículo. – Vamos deixar os corpos onde eles estão; vocês podem descartá-los no caminho de casa.

Nesse meio-tempo, Blay pôde sentir John parando e olhando para eles – algo com que Qhuinn não parecia se importar.

Com uma imprecação, Blay solucionou o problema correndo para o guincho e caminhando ao lado enquanto Tohr dava a ré até o Hummer acidentado. Aproximando-se da manivela, Blay soltou o gancho e começou a liberar o cabo.

Ele tinha a sensação de saber o que se passava pela cabeça de Qhuinn e, caso estivesse certo, era melhor o cara ficar de boca fechada e recuar.

Ele não queria ouvir.

Associação Automobilística Americana. (N.T.)

Humorista e comediante de stand-up americano. (N.T.)


CAPÍTULO 5

Enquanto Qhuinn permanecia parado no vento, vendo Blay enganchar o Hummer, a neve solta começou a cobrir suas botas, o peso leve e macio gradualmente obscurecendo as pontas de metal. Olhando para baixo, ele teve a vaga noção de que, se ficasse onde estava por tempo suficiente, acabaria completamente coberto por ela, da cabeça aos pés.

Que coisa mais estranha de se pensar.

O rugir do motor do guincho fez sua cabeça se erguer novamente, os olhos mudando de direção quando o cabo começou a arrastar seu carro arruinado do monte de neve.

Era Blay quem cuidava do içamento, ficando ao lado para monitorar e controlar a velocidade do cabo cuidadosamente a fim de que nenhuma força desnecessária fosse aplicada nos vários componentes mecânicos daquela produção de bom samaritanismo automotiva.

Tão atento. Tão controlado.

Tentando parecer casual, Qhuinn seguiu para perto de Tohr e fingiu que ele, assim como o Irmão, estava apenas monitorando o progresso do içamento. Não estava. Tratava-se apenas de Blay.

Sempre fora Blay.

Procurando demonstrar seu desinteresse, cruzou os braços sobre o peito, mas teve que abaixá-los novamente, visto que o ombro machucado reclamou.

– Lição aprendida – disse ele com o intuito de puxar conversa.

Tohr murmurou algo em resposta, mas ele não conseguiu ouvir. E menos ainda conseguia ver outra coisa que não Blay. Não num piscar de olhos. Nem numa respiração. Tampouco numa batida de coração.

Fitando através da neve rodopiante, ele se maravilhou em como alguém que sabia tudo a seu respeito, que vivia no mesmo corredor, que comia com você, trabalhava com você e dormia na mesma hora que você, pudesse... se tornar um estranho.

Pensando bem, e como sempre, aquilo se tratava de distância emocional, e não da coisa de trabalhar sob o mesmo teto.

A questão era que Qhuinn sentia como se quisesse explicar as coisas. Infelizmente, e diferentemente do seu primo sórdido, Saxton o Sacana, ele não tinha o dom das palavras, e o sentimento complicado no meio do seu peito só piorava ainda mais a sua tendência ao mutismo.

Depois de uma última puxada, o Hummer por fim se encontrava no piso do guincho, e Blay começou a passar a correia para dentro e para fora por baixo da carroceria.

– Certo, vocês três levem esse monte de entulho de volta – disse Tohr enquanto flocos de neve voltavam a cair.

Blay parou e olhou para o Irmão.

– Nós seguimos em pares. Portanto, devo ir com você.

Como se ele estivesse mais do que pronto a ir embora.

– Deu uma boa olhada no que temos aqui? Um monte de aço incapacitado com dois humanos mortos dentro. Acha que a situação é para relaxar?

– Eles conseguem cuidar disso – Blay disse baixo. – Os dois são capazes.

– Mas com você ficam mais fortes ainda. Vou desmaterializar de volta para casa.

No silêncio que se seguiu, a linha ereta que se formou subindo do traseiro de Blay até a base do crânio foi o equivalente a um dedo médio erguido. Não para o Irmão, porém.

Qhuinn sabia exatamente para quem.

As coisas correram rapidamente a partir daí; o SUV sendo amarrado, Tohr indo embora e John subindo no banco do motorista. Nesse meio-tempo, Qhuinn deu a volta até a porta do passageiro, abriu-a e deu um passo de lado, esperando.

Como um cavalheiro faria, supôs.

Blay apareceu, atravessando a neve. Sua expressão era como a do cenário que os envolvia: fria, reservada e inóspita.

– Depois de você – murmurou ele, pegando um maço de cigarros e um isqueiro elegante.

Qhuinn abaixou a cabeça num aceno rápido, depois entrou, deslizando pelo banco até o ombro encostar no de John.

Blay entrou em seguida, bateu a porta e entreabriu a janela, deixando a ponta acesa do prego do seu caixão na abertura para minimizar o cheiro.

O guincho foi quem sustentou a conversa por uns oito quilômetros mais ou menos.

Sentando entre os que costumavam ser seus dois melhores amigos, Qhuinn fitava o limpador de para-brisa e contava os segundos intermitentes entre as limpadas... três, dois... um... Sobe e desce. E... três, dois... um... Sobe e desce.

Mal havia neve solta o suficiente no ar para se darem ao trabalho.

– Desculpe – deixou escapar.

Silêncio. A não ser pelo ronco do motor diante dele e pelo ocasional barulho de correntes na parte de trás quando passavam por sobre uma elevação ou buraco.

Qhuinn olhou de relance e, ora essa, Blay parecia estar mastigando metal.

– Está falando comigo? – disse ele ranzinza.

– Sim. Estou.

– Não tem do que se desculpar – Blay esmagou o toco do cigarro no cinzeiro do painel. E acendeu outro. – Pode, por favor, parar de me encarar?

– Eu só... – Qhuinn levou a mão aos cabelos e lhes deu um puxão e tanto. – Eu não... Não sei o que dizer a respeito de Layla.

A cabeça de Blay se virou num rompante.

– O que você faz com a sua vida não me diz respeito...

– Isso não é verdade – Qhuinn disse baixinho. – Eu...

– Não é verdade?

– Blay, escute aqui, Layla e eu...

– O que o faz pensar que quero ouvir sequer uma palavra sobre você e ela?

– Só pensei que talvez você precisasse de algum... sei lá, de um contexto, ou algo assim.

Blay simplesmente fitou a frente um momento.

– E por que, exatamente, você acredita que eu precise de um “contexto”?

– Porque... pensei que talvez você achasse tudo... perturbador. Ou algo assim.

– E por quê?

Qhuinn não conseguia acreditar que o cara quisesse que ele dissesse tudo em voz alta. Menos ainda na frente de outra pessoa, mesmo que fosse John.

– Bem, por causa... Você sabe.

Blay se inclinou, o lábio superior se retraindo atrás das presas.

– Só para que fiquemos bem claros aqui, o seu primo está me dando tudo de que preciso. O dia inteiro. Todos os dias. Você e eu? – ele moveu a mão com o cigarro para frente e para trás entre eles. – Nós trabalhamos juntos. Só isso. Por isso, quero que nos faça um favor antes de pensar que eu “preciso” saber de alguma coisa. Pergunte-se “se eu estivesse preparando hambúrgueres no McDonald’s, eu contaria isso para o cara das fritas?”. Se a resposta for não, então fique de bico fechado.

Qhuinn voltou a olhar para o para-brisa. E pensou em atravessá-lo com o rosto.

– John, encoste.

O lutador olhou de relance para ele. E começou a balançar a cabeça.

– John, encoste esta merda. Ou faço isso por você.

Qhuinn estava vagamente ciente de que o peito subia e descia com força e que a mão se fechara num punho cerrado.

– Encoste esta merda! – rugiu ao socar o painel com tanta força que fez com que uma das saídas de ar saltasse.

O guincho foi para a lateral da estrada e os freios rangeram quando a velocidade diminuiu. Mas Qhuinn já estava do lado de fora. Desmaterializando-se, ele escapou pela fresta na janela, junto à fumaça exalada por Blay.

Quase imediatamente, ele reapareceu ao lado da estrada, incapaz de sustentar seu estado molecular porque suas emoções estavam afetadas demais para tal. Colocando uma bota na frente da outra, ele caminhou pela neve, sua necessidade de se mover afogando tudo, inclusive a dor pulsante nas juntas dos dedos.

No fundo de sua mente, algo a respeito daquela faixa de estrada se apresentou, mas havia barulho demais no seu cérebro para que a especificidade da coisa surgisse à tona.

Não fazia ideia para onde estava indo.

Caramba, estava frio demais.

Sentando no banco do guincho, Blay se concentrava na ponta acesa do cigarro, a luzinha laranja mexia de um lado para o outro como a corda de uma guitarra.

A mão devia estar tremendo.

O assobio ao seu lado era a maneira de John lhe chamar a atenção, mas ele o ignorou. O que o fez levar um tapa no braço.

Isto é muito ruim para ele, sinalizou John.

– Está de brincadeira, né? – murmurou Blay. – Só pode estar me zoando. Ele sempre quis um relacionamento convencional e transou com uma Escolhida... Eu diria que isso...

Não isso, isto. John apontou para o asfalto. Aqui.

Blay mudou o olhar para o para-brisa só porque estava cansado demais para discutir. Na frente do guincho, os faróis iluminavam tudo, o cenário branco coberto de neve a ponto de cegar, a figura caminhando ao lado da estrada como uma sombra largada.

Pingos vermelhos marcavam o caminho das pegadas.

As mãos de Qhuinn sangravam por ele ter socado o painel...

De repente, Blay franziu o cenho. Sentou-se um pouco mais ereto.

Como as peças de um quebra-cabeças se encaixando, os detalhes aleatórios de onde estavam, desde a curva da estrada, até as árvores e a parede de pedra ao lado deles, tudo se juntou e completou um cenário.

– Ai, que merda. – Blay bateu a cabeça no encosto de trás. Fechando os olhos de leve, tentou encontrar outra solução para aquilo, qualquer coisa que não fosse sair dali.

E não conseguiu encontrar coisa alguma. Absolutamente nada.

Ao empurrar a porta, o frio invadiu o interior aquecido da cabine. Não disse nada a John. Não havia por quê. Coisas como sair na neve atrás de alguém eram autoexplicativas.

Afundando, ele andou ruidosamente em meio ao acúmulo de neve. A estrada fora limpa antes, mas já havia algum tempo.

O que significava que ele teria de agir rapidamente.

Ali, naquela parte rica da cidade, onde a base de arrecadação era tão grande quanto os jardins enormes, era melhor acreditar que um daqueles miniarados amarelos de remover neve apareceria ali antes do amanhecer.

Não havia necessidade de fazer aquilo diante de humanos. Ainda mais com o par de cadáveres ensanguentados no Hummer.

– Qhuinn – disse ele seco. – Qhuinn, pare.

Ele não gritou. Não tinha energia para tanto. Aquela... coisa, o que quer que houvesse entre eles, já se tornara exaustiva há muito tempo, e o atual espetáculo no acostamento da estrada era mais um episódio para o qual ele não tinha energia.

– Qhuinn. Sério.

Pelo menos o cara diminuiu um pouco o passo. E, com um pouco de sorte, ele estaria tão furioso que não juntaria as pistas sobre a localização deles.

Jesus, qual seria a probabilidade... pensou Blay ao olhar ao redor. Foi exatamente ali no quilômetro seguinte que a Guarda de Honra fizera seu servicinho – e Qhuinn quase morrera em decorrência da surra.

Deus, Blay se lembrava de ter se armado aquela noite, um par de faróis diferentes captando uma figura escura, daquela vez sangrando no chão.

Estremecendo, deu mais uma chance ao jogo.

– Qhuinn.

Ele parou, as botas se plantando na neve e não se adiantando mais. No entanto, ele não se virou.

Blay gesticulou para que John apagasse as luzes e, um segundo depois, tudo o que lhe restava eram as luzes alaranjadas de estacionamento do guincho.

Qhuinn apoiou as mãos nos quadris e olhou para o céu, a cabeça inclinada para trás, a respiração subindo numa nuvem de condensação.

– Volte e entre no guincho – Blay deu mais uma tragada e soltou a fumaça. – Precisamos ir embora...

– Sei o quanto Saxton significa para você – disse Qhuinn de modo brusco. – Já entendi. De verdade.

Blay se forçou a dizer:

– Isso é bom.

– Só acho que... ouvir isso ainda é um choque.

Blay franziu o cenho na luz diminuta.

– Não entendo.

– Sei que não. E isso é culpa minha. Tudo isso... é minha culpa – Qhuinn olhou de relance sobre o ombro, o rosto rígido e forte numa expressão séria. – Só não quero que pense que eu a amo. É só isso.

Blay foi dar mais um tragada em seu Dunhill, mas não tinha força suficiente nos pulmões.

– Eu... lamento... Não entendo... por que...

Ora, se essa não foi uma resposta maravilhosa.

– Não estou apaixonado por ela. Ela não está apaixonada por mim. Não estamos dormindo juntos.

Blay emitiu uma risada ríspida.

– Até parece.

– É sério. Eu a servi no cio porque quero um filho, e ela também, e tudo começou e terminou ali.

Blay fechou os olhos quando a ferida em seu peito foi reaberta.

– Qhuinn, para com isso. Você esteve com ela o último ano inteiro. Eu vi vocês... Todos viram vocês...

– Tirei a virgindade dela há quatro noites. Ninguém esteve com ela antes disso, nem mesmo eu.

Ah, essa era uma imagem que ele realmente precisava na cabeça.

– Eu não a amo. Ela não me ama. Não estamos dormindo juntos.

Blay não conseguia mais ficar parado, por isso deu alguns passos, a neve se acumulando debaixo das botas. E, do nada, surgiu a voz da Senhora da Igreja do SNL* em sua cabeça: Ora, isso não é incríííível?

– Não estou com ninguém – disse Qhuinn.

Blay riu mais uma vez com uma pontada de escárnio.

– Num relacionamento? Claro que não. Mas não espere que eu acredite que você está passando seu tempo fazendo florzinhas de crochê e colocando os temperos nas prateleiras em ordem alfabética com aquela fêmea.

– Faz mais de um ano que não faço sexo.

Isso o deteve.

Deus, onde fora parar o oxigênio daquela parte do universo?

– Tolice – Blay replicou com a voz entrecortada. – Você esteve com Layla... Há quatro noites. Como você mesmo disse.

No silêncio que se seguiu, a terrível verdade mostrou sua cara feia de novo, a dor tornando impossível para ele esconder o que tão diligentemente vinha escondendo nos últimos dias.

– Você esteve com ela de verdade – disse ele. – Vi o candelabro da biblioteca balançar debaixo do seu quarto.

E então foi Qhuinn quem fechou os olhos como se quisesse esquecer.

– Foi com um propósito.

– Preste atenção... – Blay balançou a cabeça. – Não estou entendendo bem por que você está me contando isso. Falei sério quando eu disse que não preciso de explicações quanto ao que você faz da sua vida. Você e eu... Nós crescemos juntos, e é só isso. Verdade, partilhamos muitas coisas no passado, e estávamos sempre presentes quando era preciso. Mas nenhum de nós cabe mais nas roupas que costumávamos usar, e esse nosso relacionamento também é assim. Ele não cabe mais nas nossas vidas. Nós... não cabemos mais. Você e eu? Temos um passado. E só. E é só isso... o que teremos sempre.

Qhuinn desviou o olhar, o rosto mais uma vez nas sombras.

Blay se forçou a continuar a falar.

– Sei que essa... coisa com a Layla... é importante para você. Ou imagino que seja... como pode não ser se ela está grávida? Quanto a mim? Honestamente, desejo que sejam felizes. Mas você não me deve nenhuma explicação... e mais importante, não preciso delas. Toquei o barco quanto a paixonites infantis... e era isso o que eu sentia por você. Na época, era apenas uma paixão, Qhuinn. Portanto, por favor, cuide da sua fêmea e não fique se preocupando se cortarei meus pulsos porque você encontrou alguém para amar. Assim como eu encontrei.

– Eu já disse. Eu não a amo.

Espere por isso, Blay pensou para si mesmo. Porque está chegando.

Aquilo ali era o clássico Qhuinn.

O macho era incrível na batalha. Leal ao ponto da psicose. E esperto. E tão sensual que era capaz de provocar distrações. E milhares de outras coisas que Blay tinha de admitir que ninguém se equiparava. Mas ele tinha um defeito sério, e não era a cor dos olhos.

Ele não sabia lidar com emoções.

Com nenhuma.

Qhuinn sempre correra de qualquer coisa profunda – mesmo sem se mexer. Ele era capaz de se sentar na sua frente e assentir e falar, mas quando as emoções se aprofundavam para ele, ele saía de sua pele. Simplesmente se distanciava. E se você tentasse forçá-lo a confrontá-las?

Bem, isso não era possível. Ninguém forçava Qhuinn a fazer coisa alguma.

Ah, sim, claro que havia um bom número de bons motivos para ele ser assim. A família dele tratando-o como se fosse uma maldição. A glymera menosprezando-o. Não ter tido raízes a vida inteira. Porém, quaisquer que fossem os motivos, no fim do dia, o macho fugiria de tudo o que fosse complicado, ou exigisse algo dele.

Provavelmente a única coisa que poderia mudar isso seria um filho.

Portanto, não importava o que ele dizia agora, não havia dúvidas de que ele estava apaixonado por Layla; mas tendo passado o cio com ela, e agora aguardando os resultados, estava perdendo a cabeça de tanta preocupação e se afastava dela.

E, por isso, estava ali parado no acostamento da estrada, tagarelando a respeito de coisas que não faziam sentido algum.

– Desejo o melhor para os dois – disse Blay, com o coração batendo forte dentro do peito. – Com toda sinceridade. Espero, de verdade, que isso dê certo para vocês dois.

Em uma quietude tensa, Blay se suspendeu do buraco em que mais uma vez caíra, agarrando-se para ressurgir à superfície, longe da agonia dolorosa e incandescente no centro da sua alma.

– E agora, podemos voltar para o guincho e terminar o nosso trabalho? – disse de modo neutro.

As mãos de Qhuinn se elevaram brevemente diante do rosto. Depois, ele abaixou a cabeça, enfiou as juntas ensanguentadas nos bolsos da calça e começou a voltar para o guincho.

– É. Vamos fazer isso.

Saturday Night Live, programa humorístico da TV americana, no qual a personagem The Church Lady, uma senhora devota e presunçosa, é a âncora de um programa de entrevistas da igreja. (N.T.)


CAPÍTULO 6

– Ah, meu Deus, eu vou gozar... Eu vou gozar...

Mais ao sul, no centro de Caldwell, no estacionamento atrás do Iron Mask, Trez Latimer estava feliz em saber disso, não surpreso. Mas ninguém na região dos três condados precisava saber.

Enquanto entrava e saía da participante muito disposta debaixo do seu corpo, ele a calou com um beijo sôfrego, a língua penetrando na boca quente, todos os comentários desnecessários sendo interrompidos.

O carro no qual se encontravam estava apinhado e rescendia ao perfume da mulher: doce e barato – merda, da próxima vez, ele escolheria uma voluntária com um SUV ou, melhor ainda, uma Mercedes S550 com espaço adequado no banco traseiro.

Obviamente, aquele produto da Nissan não fora fabricado para acomodar 120 quilos fodendo uma auxiliar de dentista seminua. Ou ela era uma auxiliar jurídica?

Não se lembrava.

E ele tinha problemas mais imediatos com que se preocupar. Numa mudança abrupta. Ergueu os lábios, pois quanto mais se aproximava do orgasmo, mais as presas se estendiam do maxilar superior, e ele não queria mordê-la por engano; o sabor de sangue fresco o colocaria num limiar mais perigoso, e ele não estava muito certo de que se alimentar dela seria uma boa ideia...

Risque isso.

Era uma má ideia. E não só por ela ser apenas humana.

Alguém os observava.

Erguendo a cabeça, espiou pelo vidro traseiro. Sendo um Sombra, sua visão era de três a quatro vezes mais perceptiva do que a de um vampiro normal, e ele conseguia enxergar com facilidade no escuro.

Sim, alguém os assistia à esquerda da entrada dos empregados como se estivesse vendo um filme.

Hora de acabar logo com aquilo.

Assumiu o controle de imediato, colocando a mão entre os corpos até chegar ao sexo da mulher, e masturbou-a ao mesmo tempo em que a penetrava, fazendo-a gozar com tanta intensidade que ela jogou a cabeça para trás e bateu na porta.

Nenhum orgasmo para ele.

Que seja. Alguém se demorando nas imediações fazia com que seu divertimento fosse transferido a outro território, o que significava que ele tinha de acabar logo com aquilo. Mesmo se não gozasse.

Ele tinha uma bela quantidade de inimigos graças às suas várias associações.

E também existiam... complicações... que eram somente suas.

– Oh, meu Deus...

Levando-se em consideração a respiração pesada, todas aquelas torções e as pulsações que comprimiam o pau de Trez, a auxiliar de dentista/assistente de advogado/técnica em veterinária estava se divertindo bastante. Ele, porém, já se retirara mentalmente daquela bobagem e bem que poderia estar saindo do carro, pegando a arma para...

Era uma fêmea. Sim, quem quer que fosse definitivamente era do sexo feminino...

Trez franziu o cenho ao perceber quem era.

Merda.

Bem, pelo menos não era um redutor. Um sympatho. Um traficante de drogas de quem ele precisava cuidar. Um cafetão rival com uma opinião a respeito de alguma coisa. Um vampiro desajustado. iAm, seu irmão...

Mas não. Apenas uma mulher inofensiva, e pena que ele não poderia voltar para seu bocado de prazer. O clima já era.

A auxiliar de dentista/assistente de advogado/técnica em veterinária/cabeleireira arfava como se tivesse carregado um piano sobre os ombros.

– Isso foi... incrível... Isso... foi...

Trez se retraiu e recolocou o pênis para dentro do zíper. Eram grandes as chances de sofrer de um caso de bolas de neon dentro de meia hora, mas ele lidaria com a situação quando ela surgisse.

– Você foi incrível. Você é o mais incrível dos...

Trez deixou que a barragem de palavras tolas recaísse sobre ele.

– Você também, gatinha.

Ele a beijou de modo que ela pensasse que ele se importava – e ele se importava, de certo modo. Essas mulheres humanas que ele usava importavam no sentido de serem seres vivos, merecedores de respeito e bondade pelo simples fato de terem corações pulsantes. Por um tempo breve, elas deixavam que ele lhes usasse os corpos, e algumas vezes as veias, e ele valorizava tais presentes, que lhes eram dados de livre e espontânea vontade, algumas vezes mais de uma vez.

E esse era o problema que se apresentava agora.

Subindo o zíper, Trez mudou o corpanzil de posição a fim de não esmagar a parceira de dez minutos, tampouco fazer uma craniotomia no teto do carro.

A garota não parecia querer se mexer, porém. Ela só continuava deitada como um travesseiro largado no assento, as pernas ainda abertas, o sexo ainda pronto, os seios ainda elevados desafiando a gravidade como dois melões colados nas costelas.

Devem estar debaixo da musculatura, pensou ele.

– Vamos vestir você – sugeriu, juntando as metades do sutiã rendado dela.

– Você foi tão fantástico...

Ela parecia feita de gelatina – a não ser pelos seios duros falsos – e toda maleável e aprazível, mas uma completa inútil quando ele a vestiu e a suspendeu, afagando seu rosto.

– Isso foi divertido, gatinha – murmurou, falando a verdade.

– Posso ver você de novo?

– Talvez – ele sorriu com comedimento para ela para que as presas não aparecessem. – Estou por aí.

Com isso, ela ronronou tal qual uma gata e depois lhe disse seu número de telefone, o qual ele não se deu ao trabalho de memorizar.

A triste verdade a respeito de mulheres como essa era que ela era apenas uma entre tantas. Naquela cidade de muitos milhões, deviam existir umas duzentas mil jovens de traseiros firmes e pernas frouxas à procura de diversão. Na verdade, eram apenas variações da mesma pessoa, motivo pelo qual ele precisava de novidades.

Com tanto em comum, uma porta giratória de suprimento novo era necessária para mantê-lo interessado.

Trez estava do lado de fora do carro um minuto e meio depois, e não se dera ao trabalho de apagar-lhe a memória. Como um Sombra, ele dispunha de muitos truques da mente para se apoiar, mas parara de se importar com isso há vários anos. O esforço não valia a pena – e, de vez em quando, ele gostava de repetir.

Verificada rápida na vigia.

Maldição, acabaria se atrasando para chegar ao encontro com iAm, mas, obviamente, ele teria de lidar com o problema da porta dos fundos antes de levantar acampamento.

Ao se adiantar e parar na frente da mulher, ela ergueu o queixo e colocou uma mão no quadril. Essa versão de pronta e disposta tinha entrelaçamentos loiros e preferia shorts curtos a saias – por isso parecia ridícula no frio, com a parca peluda rosa e as pernas nuas na brisa.

Muito parecida com uma bola de neve sobre dois palitos de dente.

– Mantendo-se ocupado? – ela exigiu saber. Obviamente, tentava parecer relaxada, mas devido ao modo como o sapato de salto batia no chão, ela evidentemente estava exaltada e incomodada... e não de um jeito bom.

– Oi, gatinha – ele as chamava sempre assim. – Está tendo uma noite agradável?

– Não.

– Puxa, que pena. Bem, vejo você por aí...

A mulher cometeu o erro colossal de segurá-lo pelo braço quando ele passou por ela, as unhas cravando na camisa de seda e apertando-lhe a pele.

A cabeça de Trez virou rápido, os olhos reluzindo. Mas, pelo menos, ele conseguiu se conter antes de arreganhar as presas.

– Que diabos você pensa que está fazendo? – perguntou ela, recostando-se nele.

– Trez! – alguém exclamou.

Abruptamente, a voz da sua segurança invadiu sua cabeça. Ainda bem. Os Sombras eram espécies pacíficas por natureza, desde que não fossem agredidos.

Enquanto Xhex se apressava, como se soubesse que homicídio não estava cem por cento fora de questão, ele desvencilhou o braço, sentindo cinco lâminas de dor provocadas pelas unhas da mulher. Refreando a fúria, ele a encarou.

– Vá para casa agora.

– Você me deve uma explicação...

Ele balançou a cabeça.

– Não sou seu namorado, gatinha.

– Ainda bem, ele sabe como tratar uma mulher!

– Então volta pra casa, pra ele – disse Trez com seriedade.

– O que você faz, transa com uma garota diferente toda noite?

– É. E às vezes duas aos domingos – merda, ele podia ter apagado a memória dessa. Quando foi que esteve com ela? Há duas noites? Três? Tarde demais agora. – Volte pra casa, pro seu homem.

– Você me enoja! Seu maldito filho da puta...

Enquanto Xhex se interpôs entre eles e começou a falar num tom baixo com a histérica, Trez ficou mais do que contente em recuar... Porque, veja só, a garota do Nissan escolheu aquele exato instante para dar a ré no estacionamento e passar por ali.

Abaixando a janela, ela sorriu como se gostasse de ser a outra.

– Vejo você depois, gatão.

Deixa para choro: garota de parca rosa, com namorado e desordem de afeição explodiu num acesso de choro digno de um velório.

E... naturalmente foi nesse instante que iAm apareceu.

Ao registrar a presença do irmão, Trez fechou os olhos.

Maravilha. Simplesmente perfeito.


CAPÍTULO 7

A cerca de dez quarteirões da noite de mal a pior de Trez, Xcor limpava a lâmina de sua foice com um pedaço de camurça mais macia que a orelha de um cordeiro.

Do outro lado do beco, Throe estava ao telefone, falando em voz baixa. Ele estava assim desde que o terceiro dos três redutores que encontraram naquele quadrante da cidade fora devolvido a Ômega.

Xcor não estava interessado em nenhum atraso, telefônico ou de qualquer outro tipo. O restante do Bando de Bastardos estava em outra parte do centro da cidade, à procura de qualquer um dos dois inimigos – e ele preferia estar completamente envolvido.

Mas as necessidades biológicas falavam alto. Maldição.

Throe concluiu a ligação e levantou o olhar, o belo rosto retesado em linhas sérias.

– Ela está disposta.

– Quanta gentileza a dela – Xcor embainhou a foice e guardou o pano. – Eu, no entanto, estou menos interessado no consentimento dela do que na questão da sua capacidade.

– Ela é capaz.

– E como sabemos disso?

Throe pigarreou e desviou o olhar.

– Fui até ela ontem à noite e me certifiquei pessoalmente.

Xcor sorriu com frieza. Então isso explicava a ausência do soldado. E o motivo da sua saída era um alívio. Ele temera que o outro macho tivesse...

– E como ela é?

– Viável.

– Você experimentou os encantos dela?

O cavalheiro, que um dia fora membro intelectual da glymera, mas que agora se mostrava útil, pigarreou.

– Eu... Hum, sim.

– E como foram? – quando não houve resposta, Xcor avançou pela neve suja e se aproximou do seu braço direito. – Como ela estava, Throe. Molhada e disposta?

O rubor do macho se intensificou em seu rosto perfeitamente delineado.

– Ela se mostrou adequada.

– Quantas vezes você a tomou?

– Diversas.

– Em diferentes posições, espero – quando houve apenas um aceno, Xcor cedeu. – Bem, então você cumpriu sua tarefa com honra perante seus colegas soldados. Estou bem certo de que os outros haverão de querer usufruir tanto da veia quanto do sexo.

No silêncio constrangedor que se seguiu, Xcor jamais admitiria para ninguém que ele não pressionara para saber dos detalhes para espicaçar seu subordinado... mas porque estava satisfeito que Throe tivesse se deitado com a fêmea. Ele queria distância entre o macho e o que acontecera no outono. Queria calendários repletos de anos, inúmeras fêmeas e rios de sangue de outras fêmeas...

– Contudo, há uma condição – disse Throe.

Xcor estreitou os lábios. Como a fêmea em questão ainda não o vira, não poderia ser mais dinheiro e, além disso, ele ainda não precisava se alimentar. Graças a...

– E qual seria?

– Tem que ser feito no domicílio dela. No início da noite de amanhã.

– Ah – Xcor sorriu com frieza. – Então, trata-se de uma cilada.

– A Irmandade não sabe quem fez a consulta.

– Você identificou seis machos, não?

– Não usei nossos nomes.

– Não importa – Xcor relanceou pelo beco, os sentidos se aguçando, procurando por redutores ou Irmãos. – Não subestimo o alcance do Rei. Nem você deveria.

De fato, suas ambições lançaram todos contra um inimigo de valor. O atentado à vida de Wrath no outono passado fora sua declaração de guerra e, como esperado, houve um efeito previsível: a Irmandade encontrara o esconderijo do Bando de Bastardos, infiltrara-se e saíra com a caixa do rifle que continha a arma que fora usada para colocar a bala no pescoço do Rei Cego.

Indubitavelmente, eles queriam provas.

A questão era, do quê? Ele ainda não sabia se o Rei sobrevivera ou se morrera, nem o Conselho sabia, pelo que ele ficou sabendo. Na verdade, a glymera nem sabia que o atentado ocorrera.

Wrath sobrevivera? Ou fora assassinado e a Irmandade agora se ocupava em preencher a lacuna? A Lei Antiga era muito clara quanto às regras de sucessão, desde que o rei tivesse herdeiros, o que ele não tinha. Portanto, seria seu parente mais próximo, uma vez que houvesse um.

Xcor queria saber, mas não fez perguntas. Tudo o que podia fazer era esperar até que a novidade se espalhasse – e, nesse meio-tempo, ele e seus soldados continuavam a matar redutores, e ele prosseguia reforçando sua força de base dentro da glymera. Pelo menos essas duas empreitadas estavam se encaminhando bem. Todas as noites, eles apunhalavam assassinos, mandando-os de volta a Ômega. E seu contato no Conselho, o não tão venerável Elan, filho de Larex, revelava-se bem ingênuo e maleável – duas características muito úteis numa ferramenta descartável.

No entanto, Xcor estava ficando cansado do vácuo de informações. E, na verdade, o arranjo com a fêmea que Throe encontrara era necessário, porém repleto de perigos. Uma fêmea capaz de vender as veias e o sexo para múltiplos usuários certamente era capaz de trocar informações por dinheiro – e ainda que Throe tivesse mantido suas identidades em segredo, a quantidade em que estavam fora revelada. A Irmandade deve ter calculado que nenhum do Bando de Bastardos era casado e, cedo ou tarde, naquela terra nova, eles necessitariam daquilo que tinham em abundância no Velho Mundo.

Talvez aquela fêmea tivesse sido colocada à disposição pelo Rei e pela sua segurança privada.

Bem, descobririam no dia seguinte. Emboscadas eram facilmente armadas, e não havia momento mais vulnerável do que quando um macho faminto estava na garganta ou entre as pernas de uma fêmea. Todavia, chegara a hora. Seus soldados estavam dispostos a lutar, mas seus rostos estavam tensos, os olhos encovados, a pele esticada demais sobre os malares. Sangue humano, o fraco substituto, não fornecia força o suficiente, e seus bastardos vinham se sustentando com isso por tempo demais. No Velho Mundo, havia fêmeas em número suficiente para servir quando era necessário. Mas desde que chegaram ao Novo Mundo, eles tiveram que se contentar.

Se aquilo era uma armadilha, ele estava disposto a combater os Irmãos. Pensando bem, ele fora bem servido...

Pelo amor à Virgem Escriba, não pensaria nisso.

Xcor pigarreou quando a dor em seu peito dificultou que engolisse.

– Diga à fêmea que no início da noite é cedo demais. Em vez disso, a procuraremos à meia-noite. E providencie alimentos humanos assim que a noite cair. Se os Irmãos estiverem lá, devemos nos confrontar numa posição de relativa força.

As sobrancelhas de Throe se ergueram como se ele tivesse se impressionado com o raciocínio de Xcor.

– Sim. Farei isso.

Xcor assentiu e desviou o olhar.

No silêncio, os eventos do outono se interpuseram, esfriando ainda mais o frígido ar de dezembro.

Aquela Escolhida sagrada estava sempre com ambos.

– O alvorecer se aproxima com rapidez – disse Throe em seu sotaque perfeito. – Está na hora de irmos.

Xcor olhou de relance para o leste. O início da aurora ainda estava por chegar, mas seu subordinado estava correto. Logo... muito em breve... a luz mortal do sol se espalharia, e pouco importava que estivesse em seu nível mais fraco, com o solstício do inverno passado há tão pouco tempo.

– Chame os soldados do campo de batalha – disse Xcor. – E encontre-os na base.

Throe digitou alguma combinação de letras numa mensagem que Xcor não teria sido capaz de ler. Em seguida, o soldado guardou o telefone com a expressão fechada.

– Não vai voltar? – perguntou Throe.

– Vá.

Houve uma longa pausa. E depois o soldado disse com suavidade:

– Não vais?

Nesse instante, Xcor pensou em cada um dos seus soldados. Zypher, o conquistador sexual. Balthazar, o ladrão. Syphon, o assassino. E o outro que não tinha nome, mas tinha pecados demais para contar. Então, chamavam-no de Syn.

E depois considerou seu leal e justo Throe, seu tenente.

Throe, de passado perfeito, raça impecável.

Lindo, agradável Throe.

– Vá agora – disse ao macho.

– E quanto a você?

– Vá.

Throe hesitou e, durante a pausa, a noite em que Xcor quase morrera voltou aos dois. Como não poderia?

– Como preferir.

O soldado se desmaterializou, deixando Xcor parado sozinho contra o vento. Quando teve certeza de estar sozinho, também enviou suas moléculas em rajadas frias, aventurando-se para o norte, para uma campina coberta por neve. Tomando forma, parou na base de uma colina suave, encarando uma bela árvore orgulhosa e adorável no cume.

Pensou na elevação do seio de uma fêmea, a clavícula elegante, o mais sublime pescoço pálido...

Enquanto o vento golpeava sua nuca, ele fechou os olhos e deu um passo à frente, atraído a retornar ao local em que encontrara sua perdição.

Onde estava a sua Escolhida?

Estaria ainda viva? A Irmandade teria lhe tirado a vida por causa de seu presente generoso, bondoso e extraordinário ao inimigo do seu Rei?

Xcor sabia que teria morrido sem o sangue dela. Gravemente ferido durante o atentado à vida de Wrath, esteve à beira da morte quando Throe o levara àquela campina e convocara a Escolhida, e a façanha fora realizada.

Throe orquestrara tudo. E, no processo, cravara uma maldição no coração sombrio de Xcor.

Suas ambições continuaram as mesmas: ele pretendia lutar pelo trono do Rei Cego e governar sobre os vampiros. Havia, porém, uma fraqueza que o perseguia.

Aquela fêmea.

Ela fora arrastada injustamente ao conflito entre os machos portadores de adagas, uma inocente que fora manipulada e depois usada.

Ele se preocupava demasiadamente com o bem-estar dela.

De fato, ele só tinha um arrependimento em uma vida inteira de atos de maldade. Se não tivesse mandado Throe para os braços da Irmandade, seu tenente não teria cruzado o caminho dela e se alimentado dela. E, não fosse esse encontro, Throe não teria convocado os serviços dela mais tarde, e ela não teria ido até eles naquela campina... e Xcor jamais teria fitado aqueles olhos cheios de compaixão.

E perdido uma parte de si mesmo.

Ele não passava de um vira-lata imundo, malformado e bastardo, um traidor da ordem e da proteção sob a qual ela vivia por direito. Não merecera o presente dela.

Tampouco Throe, e não porque ele fora deposto de sua antiga posição superior na glymera.

Nenhum homem mortal era merecedor.

Parando debaixo da árvore, Xcor fitou o lugar em que jazera deitado diante dela... onde ela se ajoelhara perto dele e sulcara seu pulso, e ele abrira a boca para receber o poder que somente ela poderia lhe dar.

Houve um momento em que seus olhos se encontraram e o tempo parou... e depois ela abaixou lentamente o pulso para a boca dele.

Ah, aquele contato tão breve.

Ele se convencera de que ela não passara de uma aparição de sua mente errante, mas quando Throe o levara de volta ao covil, sua consciência compreendera que fora real. Muito real.

Semanas se passaram. E então, numa noite, na cidade, ele a pressentira, e seguira o eco do sangue dela em suas veias para vê-la.

Nesse ínterim, ela descobrira a verdade a seu respeito: fitara-o na escuridão, diretamente para ele, e sua aflição ficara evidente.

Depois disso, seu covil fora infiltrado. Muito provavelmente por causa das suas orientações.

Com uma rajada de vento, a neve começou a cair novamente, os flocos espessando o ar, girando ao redor, atingindo-o nos olhos.

Onde ela estaria agora?

O que fizeram com ela?

No leste, o brilho do sol começou a aparecer, apesar do manto de nuvens, e seus olhos queimaram – por isso, ele cuidou de mantê-los fixos no arauto alaranjado da luz do sol, só pela dor.

Nunca antes ele se debatera com suas emoções como agora. Toda a vida só se concentrara na sobrevivência – primeiro nos anos no acampamento de guerra, e depois na eternidade debaixo de Bloodletter, e agora, nesta época atual, como chefe do seu bando de lutadores.

Contudo, ela o fendera, criando uma fissura vital.

Certo como ela lhe dera vida, também lhe tomara uma parte dela, e ele não sabia o que fazer.

Talvez apenas se permitisse ficar ali para ser incinerado. Parecia uma situação mais fácil do que a que vivia agora...

Que sina fora a dela?

Ele tinha de saber.

Isso era tão crucial quanto a sua busca pelo trono.


CAPÍTULO 8

– Então, o que fizeram com os corpos? – perguntou V. ao caminhar pela saída de trás do centro de treinamento.

Enquanto Qhuinn esperava para que John e Blay saíssem do guincho, deixou que um deles respondesse à pergunta de V. Estava cansado demais para isso; na verdade, ao olhar de relance pelo para-brisa e espiar o estacionamento subterrâneo das instalações, ele pensou em apenas se esticar no banco da frente e dormir.

Estava cansado demais para se preocupar com qualquer coisa.

No fim, porém, seguiu John e passou o traseiro cansado pela porta do motorista. Tinha de verificar Layla, e isso não aconteceria dali.

Desconsiderando-se o episódio do acostamento, pelo menos ele, John e Blay trabalharam bem juntos a caminho de casa. Cerca de quinze quilômetros antes do cruzamento para o complexo da Irmandade, eles encostaram em uma estrada deserta, despiram os dois homens mortos e desovaram os corpos num buraco de escoamento natural que não tinha nenhum fundo visível. Depois só restou dar marcha a ré e voltar para a estrada, sumindo dali, e permitindo que a neve, que voltara a cair pesadamente, cobrisse seus rastros, assim como vários pingos que formaram uma trilha de sangue vivo. Até o meio-dia, levando-se em consideração a estimativa de acúmulo de neve, seria como se nada tivesse acontecido.

Um perfeito trabalho da neve. Rá-rá...

Ele achava que devia se sentir mal pelas famílias dos homens, pois ninguém jamais encontraria seus restos mortais. Mas as evidências grotescas sugeriam que os dois viviam à margem, e não por serem hippies: armas, facas, um canivete, maconha e um pouco de ecstasy foram encontrados em seus diversos bolsos. E só Deus sabia o que havia nas mochilas.

Vidas violentas tendiam a ter fins violentos.

– ... filho da puta – dizia V. ao caminhar sobre o Hummer em sua plataforma. – No que foi que eles bateram? Uma barricada de cimento?

John sinalizou algo e V. olhou intensamente para Qhuinn.

– Em que diabos você estava pensando? Você poderia ter morrido.

Qhuinn golpeou o próprio peito.

– Ainda batendo.

– Idiota – mas o Irmão sorriu, revelando as presas. – No seu lugar, eu teria feito a mesma coisa.

Pelo canto do olho, Qhuinn notou que Blay caminhava sorrateiramente para a porta que conduzia às instalações. Ele desapareceria em mais um segundo e meio, pondo um fim ao drama que mais uma vez fora despejado aos seus pés.

Qhuinn sentiu uma necessidade repentina e urgente de seguir o lutador pelo corredor, longe de olhares curiosos. Mas até parece que ele precisava de mais uma...

O seu primo está me dando tudo de que preciso. O dia inteiro. Todos os dias.

Ai, Jesus, ia vomitar.

– E então, mais algum objeto particular?

Qhuinn se desvencilhou de toda aquela merda e foi ser útil.

– Vou buscar.

Subindo na plataforma do guincho, forçou a porta amassada do bagageiro do Hummer e se apertou numa abertura de trinta centímetros até o banco traseiro. Foi bom apertar o corpo por lugares pelos quais ele não passaria – isso lhe dava algo em que pensar, e as poucas reclamações dos seus ferimentos eram outra digressão fantástica.

As duas mochilas foram bem sacudidas. Ele encontrou a que tinham visto primeiro no volante bem atrás do banco do passageiro, e a outra estava na frente sobre o freio e o acelerador. Bagagem esquisita a daqueles dois, até onde ele podia afirmar; a imagem pedestre não combinava em nada com todo o resto de roupas urbanas descoladas que eles vestiam.

Mais para Ensino Médio que para intermediário no tráfico de drogas.

A menos que precisassem de um lugar para colocar os distintivos de honra ao mérito dos seus laboratórios de metanfetamina ou uma merda dessas.

Enquanto Qhuinn se arrastava de volta ao banco de trás, tomou a decisão abrupta de não sair pelo lado em que entrara. Girando, deitou-se no couro arruinado e levantou os joelhos na altura do peito. Com uma inspiração profunda, empurrou as botas na outra porta lateral e a abriu num estouro, as dobradiças de metal soltando-se num rugido, o painel rebatendo no concreto com um baque.

Satisfatório.

Enquanto os sons reverberavam em todo o estacionamento, V. acendeu um dos seus cigarros enrolados à mão e se inclinou no buraco que Qhuinn acabara de fazer.

– Você sabia que existem maçanetas feitas exclusivamente para isso, não sabia?

Qhuinn se sentou – e percebeu que acabara de arrebentar o único lado que não tinha sido destruído.

Oras se aquilo não era uma metáfora de toda a sua vida até aquele ponto.

Lançando as duas mochilas para fora, ele se jogou e aterrou firme ao mesmo tempo em que John pegava os fardos e os abria.

Droga. Blay tinha ido embora. A porta que dava para o centro de treinamento estava se fechando.

Praguejando baixinho, murmurou:

– Se houver celulares, eles ainda estão lá dentro; mesmo as janelas estando partidas, o vidro ainda está intacto, portanto nada deve ter saído voando.

– Ora, ora, ora... – comentou o Irmão num só sopro.

Qhuinn franziu o cenho e olhou para o que John tinha encontrado. Mas... que... diabos...

– Está de zoeira comigo?

Seu melhor amigo acabara de retirar um pote de cerâmica – um bem barato, daqueles que se encontram em lojas de departamento Target. E, olha só, o outro cara também tinha um.

Quais seriam as probabilidades de...?

– Precisamos encontrar esses telefones – murmurou Qhuinn, voltando a subir na plataforma do guincho. – Alguém tem uma lanterna?

Vishous retirou a luva de couro e esticou a mão iluminada.

– Bem aqui.

Enquanto o Irmão subia na beira da plataforma, Qhuinn se agachou e voltou para o compartimento traseiro do Hummer.

– Só não me acerte com essa coisa, ok, V.?

– Seria uma surra que você jamais esqueceria, eu prometo.

Puxa, aquela mão estava... bem à mão. Quando V. a colocou para dentro, todo o interior se iluminou como o dia, toda a carnificina formando sombras profundas e acentuadas. Rastejando em volta, Qhuinn apalpou debaixo dos bancos, esticando-se nos cantos. O cheiro era terrível, uma desagradável combinação de gasolina, plástico queimado e sangue fresco – e toda vez que ele apoiava a mão, ela afofava o resíduo de pó dos air bags.

Mas as pseudoposições de ioga valeram o esforço.

Ele saiu com um par de iPhones.

– Detesto essas coisas – V. murmurou ao recolocar a luva e apanhar os equipamentos.

Retornando ao ar relativamente fresco, Qhuinn respirou fundo e estalou o pescoço, depois desceu em outro pulo. Houve um tanto de conversa àquela altura, e ele acenou com a cabeça como se soubesse o que estava sendo dito.

– Olha, se você não se importar, preciso de um tempo para ver uma coisa – ele interrompeu.

Os olhos de V. se estreitaram nele.

– Com quem?

Na hora certa, John se adiantou, perguntando sobre o Hummer e o plano de recuperação, como alguém agitando um sinalizador na frente de um T-Rex para chamar a sua atenção. Enquanto V. falava do futuro do SUV como escultura de jardim, Qhuinn quase soprou um beijo na direção de seu camarada.

Ninguém, a não ser John e Blay, sabia a respeito de Layla – e eram assim que as coisas tinham de continuar naquele início.

No papel de ashtrux nohtrum de John, ele não podia ir longe, e não o fez. Passou pela porta que Blay utilizara e pegou o telefone. Discou para um dos ramais da casa e esperou, olhando para o veículo arruinado.

Lembrava-se da noite em que comprara a maldita coisa. Ainda que seus pais tivessem dinheiro, eles não sentiram uma necessidade premente de sustentá-lo assim como o fizeram com a irmã e o irmão. Antes da transição, ele se virara vendendo drogas às escondidas, mas não traficara muito – apenas o bastante para tapar o buraco da sua mesada miserável e evitar viver à custa de Blay o tempo inteiro.

O problema de caixa terminara assim que fora promovido a guarda-costas de John. Seu novo trabalho viera acompanhado de um salário de verdade: 75 mil por ano. E, levando-se em conta que ele não pagava impostos para o maldito governo humano, e a estadia e a alimentação eram gratuitas, ele tinha mais do que suficiente para sobrar.

O Hummer fora sua primeira aquisição importante. Ele fizera uma pesquisa na internet, mas a verdade era que ele já sabia o que queria. Fritz saíra para cuidar da negociação e da compra oficial... E na primeira vez em que Qhuinn ficou atrás daquele volante, girou a chave e sentiu o ronco debaixo do capô, ele quase chorou como uma menininha.

E agora o carro estava destruído. Ele não era mecânico, mas os danos estruturais eram tão graves que não fazia sentido algum ficar com ele...

– Alô?

O som da voz de Layla o fez voltar ao presente.

– Oi. Acabei de voltar. Como está se sentindo?

A enunciação precisa que lhe voltou o fez se lembrar dos seus pais, cada palavra pronunciada perfeitamente e escolhida com cuidado.

– Estou bem, obrigada. Descansei e assisti à televisão, conforme você me sugeriu. Estava passando uma maratona de Million Dollar Listing.

– Que diabos é isso?

– Um programa no qual se vendem casas em Los Angeles; por um instante, pensei que fosse ficção. Mas você sabe que é um reality show? Pensei que tivessem inventado tudo aquilo. Madison tem um cabelo maravilhoso... E gosto de John Flagg. Ele é muito astuto e muito gentil com a avó.

Ele lhe fez mais algumas perguntas. Queria saber se ela tinha se alimentado ou tirado um cochilo, por exemplo, só para mantê-la falando. Isso porque era entre as sílabas que ele procurava por sinais de desconforto ou preocupação.

– Então, você está bem – confirmou.

– Sim, e antes que você pergunte, já pedi a Fritz que me traga a Última Refeição. E sim, comerei todo o meu rosbife.

Ele franziu o cenho, sem querer que ela se sentisse acuada.

– Ei, escute, não se trata só do bem-estar do bebê. É também pelo seu. Quero que fique bem, sabe disso, não?

A voz dela ficou um pouco mais baixa.

– Você sempre foi assim. Antes de nós... sim, você sempre quis o que era o melhor para mim.

Concentrando-se na porta do carro que ele arrancara, ele pensou em como era bom chutar as coisas.

– Bem, meu plano é ir para a academia um pouco. Vou dar uma olhada em você antes de dormir, ok?

– Está bem. Cuide-se.

– Você também.

Ao desligar, ele percebeu que V. tinha parado de falar e olhava para ele como se algo estivesse fora de lugar – fogo nos cabelos, calças na altura dos tornozelos, sobrancelhas raspadas.

– Você está com uma fêmea por aí, Qhuinn? – perguntou o Irmão com fala arrastada.

Qhuinn olhou ao redor em busca de um bote salva-vidas e não encontrou nada.

– Eu... hum...

V. respirou fundo e se aproximou.

– Tanto faz. Vou trabalhar nestes telefones. E você precisa comprar outro carro – qualquer coisa desde que não seja um Prius. Até mais.

Quando John e ele se viram sozinhos, ficou bem claro que o outro estava se preparando para comentar sobre o acontecido no acostamento da estrada.

– Não quero ouvir, John. Não tenho forças para isso agora.

Merda, sinalizou John.

– Mais ou menos isso, amigo. Vai para casa?

Na interpretação severa das funções de trabalho de um ahstrux nohtrum, Qhuinn precisava estar com John 24 horas por dia, sete dias por semana. O Rei, contudo, os dispensara disso se estivessem dentro do complexo. De outro modo, ele acabaria sabendo coisas demais a respeito do seu amigo e de Xhex.

E John teria testemunhado o que ele e Layla... hum, é isso.

Quando John assentiu, Qhuinn abriu a porta e a segurou bem aberta.

– Depois de você.

Recusou-se a olhar no rosto do lutador quando ele passou; simplesmente não conseguiria. Porque sabia exatamente o que estava na cabeça do cara – e ele não tinha intenção alguma de falar sobre o que acontecera naquele pedaço de estrada em que ele caminhara pouco antes. Não da porcaria daquela noite. Nem da porcaria de... de tanto tempo atrás graças à Guarda de Honra.

Para ele, não havia mais o que falar.

A merda nunca ajudou ninguém a nada.

Saxton, filho de Tyhm, fechou o último Livro da História Oral e só conseguiu ficar olhando para a capa de couro macia com seus detalhes gravados em ouro.

O último.

Nem conseguia acreditar. Há quanto tempo vinha pesquisando aquilo? Três meses? Quatro? Será que havia terminado?

Uma rápida pesquisa visual na biblioteca da Irmandade, com suas centenas e centenas de volumes de direito, discursos e decretos reais... e ele pensou, sim, de fato, levara meses e meses para repassá-los. E agora, com a pesquisa completa, as anotações feitas e os caminhos legais pavimentados para aquilo que o Rei queria realizar, deveria existir um senso de realização.

Em vez disso, ele sentia medo.

Em seus estudos e prática como advogado, ele se deparara com problemas complicados antes, ainda mais depois que se mudara para aquela vasta casa e começara em suas funções como advogado pessoal do Rei Cego: as Leis Antigas eram muito complicadas, arcaicas não somente em seu fraseado, mas no próprio conteúdo – e o monarca da raça dos vampiros não era nada disso. O raciocínio de Wrath era tanto direto quanto revolucionário, e quando a questão era o seu governo, o passado e o futuro nem sempre coexistiam sem uma bela dose de remanejamento – das Leis Antigas, que fique bem entendido.

Aquilo, contudo, estava em um nível completamente diferente.

Wrath, como soberano, podia muito bem fazer o que quisesse, desde que os precedentes apropriados fossem identificados, remodulados e registrados. Afinal, o Rei era a lei viva, uma manifestação física da ordem necessária para uma sociedade civilizada. O problema era que a tradição não acontecia por acaso; era o resultado de gerações após gerações vivendo e tomando decisões baseadas em determinados grupos de lei que foram aceitos pelo público. Pensadores progressistas tentando liderar sociedades conservadoras entrincheiradas em novas direções tendiam a se deparar com problemas.

E essas... alterações adicionais sobre o modo como as coisas eram feitas? No atual ambiente político, no qual a liderança de Wrath já estava sendo desafiada...

– Está perdido em pensamentos.

Ante o som da voz de Blay, Saxton deu um salto e quase deixou sua Montblanc cair por cima do ombro.

Imediatamente Blay se adiantou para ajeitar o que fora perturbado.

– Desculpe...

– Não, está tudo bem, eu... – Saxton franziu o cenho ao ver as roupas de soldado molhadas e ensanguentadas. – Santa Virgem Escriba... o que aconteceu esta noite?

Evidentemente, em vez de responder, Blay seguiu para o bar sobre a antiga cômoda bombê no canto. Enquanto se demorava para escolher entre o xerez e um Dubonnet, ficou claro que ele preparava uma sequência de palavras em sua mente.

O que significa que aquilo estava ligado a Qhuinn.

Na verdade, Blay não gostava nem de xerez, nem de Dubonnet. E, obviamente, serviu-se de Porto.

Saxton se recostou na poltrona e fitou o candelabro penso tão distante do chão. O objeto era um espécime formidável de Baccarat, produzido na metade do século XIX, com todos os cristais chumbados e trabalho artesanal que havia de se esperar.

Lembrava-se dele oscilando sutilmente de um lado para o outro, os reflexos arco-íris cintilando ao redor do cômodo.

Há quantas noites? Fazia quanto tempo que Qhuinn servira à Escolhida no quarto imediatamente acima daquele cômodo?

Nada fora como antes depois disso.

– Um carro quebrado – Blay deu uma golada longa. – Apenas problemas mecânicos.

É por isso que sua roupa de couro está molhada e você tem sangue na camisa?, Saxton se perguntou.

E mesmo assim manteve a pergunta apenas para si.

Ele se acostumara a guardar as coisas para si.

Silêncio.

Blay terminou o Porto e se serviu de outro copo com o entusiasmo tipicamente reservado aos bêbados. Algo que ele não era.

– E... você? – perguntou o macho. – Como vai o seu trabalho?

– Terminei. Bem, quase.

Os olhos azuis de Blay se voltaram para ele.

– Verdade? Pensei que você ficaria nisso para sempre.

Saxton tracejou aquele rosto que ele conhecia tão bem. Aquele olhar no qual se detivera no que parecia uma vida inteira. Aqueles lábios nos quais ficara grudado por horas.

A sensação esmagadora de tristeza que sentiu foi tão inegável quanto a atração que o levara até aquela casa, para aquele trabalho, para sua vida nova.

– Eu também – disse ele depois de um momento. – Eu também...

pensei que duraria mais tempo do que durou.

Blay fitou o próprio copo.

– Faz quanto tempo que você começou?

– Eu não... consigo lembrar – Saxton levantou uma mão e esfregou a parte do nariz que se junta à testa. – Não importa.

Mais silêncio. No qual Saxton estava pronto para apostar o ar em seus pulmões que a mente de Blay recuara para o outro macho, aquele a quem ele amava como a ninguém mais, a sua outra metade.

– O que era, então? – perguntou Blay.

– O que disse?

– O seu projeto. Todo esse trabalho – Blay agitou o copo em círculos de modo elegante. – Estes livros que você tem examinado. Se terminou, você pode me contar sobre o que se trata, não?

Saxton considerou brevemente contar-lhe a verdade... de que existiram outras coisas, tão importantes e urgentes sobre as quais ele se calara. Coisas com as quais ele acreditava poder viver, mas as quais, com o passar do tempo, provaram ser um fardo pesado demais para ser carregado.

– Logo você vai descobrir.

Blay assentiu, mas foi com aquela distração vital que ele demonstrara desde o começo. A não ser pelo fato de ele dizer:

– Estou feliz que esteja aqui.

A sobrancelha de Saxton se arqueou.

– Verdade...?

– Wrath precisa de um advogado verdadeiramente bom ao seu lado.

Ah.

Saxton afastou a cadeira e se levantou.

– Sim. É verdade.

Foi com uma estranha sensação de fragilidade que ele juntou seus papéis. Por certo parecia, naquele momento tenso e triste, como se somente eles o sustentassem, aquelas folhas finas, porém poderosas com incontáveis palavras, cada uma delas escritas à mão e com cuidado, contidas com esmero em suas linhas de texto.

Ele não sabia o que faria sem elas numa noite como aquela.

Pigarreou.

– Quais os seus planos para o que resta da noite?

Enquanto esperava por uma resposta, seu coração batia por detrás das costelas, porque ele, e somente ele, parecia perceber que a tarefa dada pelo Rei não era a única coisa que estava terminando naquela noite. De fato, o otimismo sem fundamento que o sustentara nas fases iniciais daquele caso amoroso se deteriorara num tipo de desespero que o fizera se agarrar a migalhas de modo pouco característico... mas agora, até isso sumira.

Era realmente irônico. O sexo era apenas uma ligação física transitória – e muitas vezes em sua vida era a única coisa por que ele procurara. Mesmo com Blaylock, no começo, fora assim. No transcorrer do tempo, porém, o coração se envolvera, e isso o levara aonde estava naquela noite.

O fim de tudo...

– ... me exercitar.

Saxton saiu do seu transe.

– Desculpe, o que disse?

– Vou me exercitar um pouco.

Depois de beber quase uma garrafa de Porto?, pensou Saxton.

Por um instante, ele ficou tentado a pedir mais informações sobre a noite, os mínimos detalhes sobre “quem”, “o quê” e “onde” – como se eles pudessem desencadear algum tipo de alívio. Mas ele sabia que não devia fazer isso. Blay era uma alma generosa e compassiva, e tortura era algo que ele só realizava como parte do seu trabalho quando necessário.

Nenhum alívio viria, não de qualquer combinação de sexo, conversa ou silêncio.

Sentindo como se estivesse se preparando para o pior, Saxton abotoou o blazer e verificou se a gravata estava no lugar. Uma passada pelos peitorais indicou que o lenço quadrado estava precisamente arrumado, mas os punhos franceses da camisa precisavam de um ajuste, e ele logo providenciou isso.

– Preciso de um tempo para relaxar antes de ir falar com o Rei. Meus ombros estão me matando por eu ter passado a noite inteira sentado à escrivaninha.

– Tome um banho de banheira. Isso deve ajudar, não?

– Sim. Um banho.

– Vejo você mais tarde, então – disse Blay ao se servir novamente e se aproximar.

As bocas se encontraram num beijo breve, depois do qual Blay se virou e saiu para o vestíbulo, desaparecendo escada acima para ir se trocar.

Saxton observou sua saída. Até se adiantou alguns passos, só para poder ver os chutadores de merda, como os Irmãos chamavam os coturnos, subindo a escadaria principal, um degrau de cada vez.

Uma parte sua gritava para que ele seguisse o macho até o quarto e o ajudasse a se despir. Desconsiderando as emoções, a atração física entre eles sempre fora forte, e ele sentiu que gostaria de explorar aquilo agora.

A não ser pelo fato de que até mesmo esse Band-Aid estava se esfarelando.

Avançando para se servir de um xerez, sorveu-o e foi se sentar diante da lareira. Não fazia muito tempo que Fritz reestocara a lenha, e as chamas estavam vívidas e ativas por sobre as achas.

Aquilo doeria, Saxton pensou. Mas não o quebraria.

No fim, ele se recuperaria. Se curaria. Seguiria em frente.

Corações eram partidos o tempo todo...

Não havia uma canção a esse respeito?

A pergunta era, claro, quando ele e Blaylock falariam sobre aquilo.


CAPÍTULO 9

O som dos esquis cross-country deslizando sobre a neve era um avanço rítmico, repetido rapidamente.

A tempestade que viera do norte se dissipara após o alvorecer, e o sol ascendente que brilhava debaixo da camada de nuvens que se partia atravessava a floresta até iluminar o chão reluzente.

Para Sola Morte, os feixes de ouro pareciam lâminas.

Logo adiante, seu objetivo se apresentava como um ovo Fabergé acomodado numa prateleira: a casa no Rio Hudson era um espetáculo da arquitetura, uma gaiola de vigas aparentemente frágeis segurando pilhas e pilhas de painéis de vidro. Por todos os lados, os reflexos da água e do sol nascente eram como fotografias capturadas por um verdadeiro artista, as imagens congeladas na própria construção da casa.

Não me pagariam para viver assim, pensou Sola.

A menos que fosse à prova de balas. Mas quem tinha dinheiro para tanto?

De acordo com o departamento de registros públicos de Caldwell, a terra fora adquirida por um tal de Vincent DiPietro dois anos antes, e desenvolvida pela imobiliária do homem. Não se pouparam gastos na construção – pelo menos de acordo com a listagem de avaliação das propriedades, que era superior a oito milhões de dólares. Só depois da construção, concluiu-se que a propriedade mudou de mãos, mas não para uma pessoa física; para um fundo imobiliário – com apenas um advogado em Londres apontado como curador.

No entanto, ela sabia quem vivia ali.

Era ele o motivo por ela estar ali.

Ele também era o motivo por ela ter se armado até os dentes. Sola tinha muitas armas em lugares de fácil acesso: uma adaga na bainha atrás das costas, uma pistola no quadril direito, um chicote escondido na gola da parca de camuflagem branca e creme.

Homens como o seu alvo não apreciavam ser espionados – mesmo que ela estivesse ali apenas em busca de informações, e não para matá-lo, não tinha dúvidas de que se a encontrassem na propriedade, a situação ficaria tensa. Rapidamente.

Ao pegar os binóculos de dentro do bolso da parca, manteve-se imóvel e em silêncio. Nenhum som de alguém se aproximando por trás ou pelas laterais, e, à frente, ela tinha visão desobstruída da parte de trás da casa.

Normalmente, quando era contratada para esse tipo de missão, ela operava à noite. Mas não com esse alvo.

Chefões do tráfico de drogas conduziam seus negócios das nove às cinco – da noite, não do dia. Durante o dia eles dormiam e transavam, portanto era nessa hora que você quereria avaliar suas casas, aprender seus hábitos, conhecer os empregados e como eles se protegiam durante seu período de repouso.

Focando a casa, ela fez sua avaliação. Portas de garagem. Portão dos fundos. Janelas pela metade que ela supunha ser da cozinha. E depois começavam os vidros do chão ao teto, passando da parte dos fundos e dando a volta para a margem do rio.

Três andares.

Não conseguia ver nada que se movesse no interior.

Caramba, aquilo era muito vidro. E, dependendo do ângulo da luz, ela até conseguia ver alguns dos cômodos, especialmente o espaço amplo que parecia tomar pelo menos metade do primeiro andar. A mobília era esparsa e moderna, como se o proprietário não fosse hospitaleiro com gente à toa.

Ela apostava que a vista era incrível. Ainda mais agora, com uma nuvem cobrindo parcialmente o sol.

Passando os binóculos para o beiral do telhado, procurou por câmeras de segurança, esperando ver uma a cada seis metros.

Isso mesmo.

Ok, fazia sentido. Pelo que lhe disseram, o dono da casa era muito cuidadoso e esse tipo de desconfiança implacável tendia a ser acompanhada por uma boa dose de comportamento voltado à segurança, incluindo, mas não se limitando, guarda-costas, carros blindados e, muito certamente, monitoramento constante de qualquer ambiente no qual o indivíduo passasse algum tempo.

O homem que a contratara, por exemplo, tinha tudo isso e mais um pouco.

– Mas o qu... – sussurrou, focando melhor os binóculos.

Parou de respirar para garantir que nada se movesse.

Aquilo estava... tudo errado. Havia um padrão de ondulação no que estava no interior da casa. A pouca mobília que ela via estava ondulando sutilmente.

Abaixando as lentes poderosas, ela olhou ao redor, perguntando-se se talvez o problema fosse com a sua visão.

Não. Todos os pinheiros na floresta se comportavam apropriadamente, inertes, os galhos imóveis no ar frio. E quando ela levantou os binóculos mais uma vez, tracejou o telhado da casa e o contorno das chaminés de pedra.

Tudo estava completamente inanimado.

De volta ao vidro.

Inspirando profundamente, ela segurou o oxigênio nos pulmões e se equilibrou contra o galho da árvore mais próxima para dar mais estabilidade ao corpo.

Alguma coisa continuava estranha. As molduras das portas de correr e as linhas das varandas e todo o resto na casa? Estático e sólido. O interior, contudo, parecia... de alguma forma em má resolução, como uma imagem múltipla que fora criada para fazer as coisas parecerem como se fossem mobília... e essa imagem fora sobreposta a algo como uma cortina... que parecia estar sujeita a uma corrente de ar suave.

Aquele projeto seria mais interessante do que ela imaginara. Reportar as atividades de um parceiro de negócios de um “amigo” seu não a animara muito. Ela preferia desafios maiores.

No entanto, talvez houvesse mais a respeito desse homem do que parecia à primeira vista.

Afinal, camuflagem significava que você estava escondendo algo e ela fizera uma carreira à custa de tirar das pessoas o que elas queriam manter. Segredos. Itens de valor. Informações. Documentos.

O vocabulário usado para definir as coisas era irrelevante para ela. O ato de penetrar numa casa trancada, ou num carro, num cofre, ou numa maleta, e extrair o que ela procurava era o que importava.

Ela era uma caçadora.

E o homem naquela casa, quem quer que fosse, era a sua presa.


CAPÍTULO 10

Blay não tinha que ficar perto de pesos, muito menos do tipo de ferro que havia na academia do centro de treinamento. Forçar aquele Porto no estômago vazio o deixara tonto e descoordenado. Mas ele precisava ter algum tipo de direção... um plano, um destino para o qual arrastar seu pobre traseiro. Qualquer coisa que não fosse subir para o quarto, sentar naquela cama de novo e começar o dia do mesmo modo como começara a noite – fumando e fitando o vazio.

Muito provavelmente com muito mais Porto para acompanhar.

Saindo do túnel subterrâneo, ele passou pelo escritório e empurrou a porta de vidro.

Enquanto avançava, ainda bebendo do copo meio vazio, sua mente andava em círculos, imaginando quando aquele monte de asneiras entre ele e Qhuinn chegaria ao fim. No seu leito de morte? Deus, ele achava que não conseguiria durar tanto, levando-se em conta que ele ainda tinha uma vida inteira diante de si.

Talvez ele devesse se mudar da mansão. Antes de Wellsie ser assassinada, ela e Tohr viveram numa casa própria. Diabos, se fizesse isso, não teria de ver Qhuinn a não ser durante as reuniões – e com tantas pessoas espalhadas pela Irmandade, seria fácil ficar longe do campo de visão.

Na verdade, já vinha fazendo isso há algum tempo.

De fato, com esse plano, os dois nunca teriam de cruzar seus caminhos: John era sempre o parceiro do cara por causa de toda aquela coisa do ahstrux nohtrum, e considerando-se os turnos, a maneira como o território era dividido, ele e Qhuinn nunca lutavam juntos, a não ser numa emergência.

Saxton podia ir e voltar do trabalho...

Blay parou de pronto na entrada da sala de levantamento de pesos. Pelo vidro, ele viu pesos subindo e descendo na máquina reclinada de agachamentos, e ele sabia a quem pertencia aquele par de Nikes.

Maldição, não tinha um minuto de folga.

Inclinando-se, ele bateu a cabeça uma vez. Duas. Três...

– Sabe que as séries de repetições devem ser feitas nas máquinas... e não na porta.

A voz de Manny Manello era tão bem-vinda quanto uma biqueira de aço no meio das bolas.

Blay se endireitou, e o mundo deu uma girada rápida, ao ponto em que ele teve que colocar, disfarçadamente, a mão livre no batente só para que seu desequilíbrio não ficasse evidente. E também escondeu seu drinque quase finalizado.

O médico provavelmente não consideraria uma boa ideia exercitar-se sob a influência de álcool.

– Como vai? – perguntou Blay, mesmo não se importando com a resposta... e esse não era um comentário reservado ao hellren de Payne. Ele não se importava com muita coisa no momento.

A boca de Manello começou a se mover e Blay ficou olhando os lábios do homem formarem e soltarem as sílabas. Um momento depois, algum tipo de adeus foi dito, e logo Blay se viu sozinho com a porta de novo.

Parecia uma idiotice ficar apenas parado ali, e ele dissera ao médico que entraria. Além disso, devia haver o quê... uns 25 equipamentos na sala? Além de barras e pesos. Esteiras. StairMasters, elípticos... muita coisa com que se ocupar.

Não estou apaixonado por Layla.

Com uma imprecação, Blay empurrou a porta e se preparou para um desajeitado “ah, oi, é você...”. A não ser pelo fato de Qhuinn nem ter notado a sua entrada. Em vez de se exercitar com a música ambiente, ele estava com aqueles fones que cobrem os ouvidos e tinha se mudado para a barra fixa, portanto estava de frente para uma parede de concreto.

Blay se afastou o quanto pôde, subindo numa máquina qualquer – peitorais. Tanto faz.

Depois de apoiar o copo e ajustar o pino na pilha de pesos, acomodou-se no assento acolchoado, segurou as manoplas e começou a empurrar na altura do peito.

Tudo para o que podia olhar era Qhuinn.

Ou talvez isso fosse porque seus olhos se recusaram a olhar em qualquer outra direção.

O macho usava uma camiseta regata preta que deixava aqueles ombros tremendos em completa exposição... e os músculos ao longo deles se flexionavam ao máximo quando ele chegava ao topo da puxada, as saliências e os contornos de um lutador... não de um advogado...

Blay se deteve.

Qualquer comparação como aquela era injusta a ponto de provocar náuseas. Depois do último ano, ele conhecia o corpo de Saxton quase tão bem quanto o seu, e o macho era muito bem formado, tão magro e elegante...

Qhuinn suspendeu-se novamente, o peso da parte inferior do corpo exigindo força daqueles braços e daquele torso. E, graças ao seu esforço, o suor irrompeu sobre toda a pele, fazendo-o brilhar debaixo das luzes.

A tatuagem na parte de trás da nuca mudava conforme ele soltava e descia para ficar pendurado, e depois novamente na subida. E na descida. E na subida.

Blay pensou no modo como o macho ficara quando viraram o Hummer: poderoso, masculino... erótico.

Aquilo não podia estar acontecendo.

Ele não estava, de fato, sentado ali, olhando para Qhuinn daquele jeito...

Imagens do passado se infiltraram, transformando sua mente numa tela de televisão. Ele viu Qhuinn se inclinando sobre uma mulher humana que fora deitada com o traseiro para cima numa mesa, os quadris dele bombeando conforme ele a fodia, as mãos travadas nos quadris dela para segurá-la no lugar. Naquela vez ele não estava de camisa, e os ombros se mostraram tão rijos como agora.

Corpo firme sendo bem utilizado.

Havia tantas cenas como aquela, com Qhuinn em diferentes posições com pessoas diferentes, machos e fêmeas. No começo, logo depois das transições, houve uma tremenda sensação de excitação conforme os dois saíam para caçar juntos – ou melhor, era Qhuinn quem caçava e Blay aceitava o que quer que fosse trazido. Tanto sexo com tantas pessoas – ainda que, àquela altura, Blay se ativesse apenas às fêmeas.

Talvez porque ele soubesse que elas eram seguras, que elas “não contavam” em tantos modos.

Tão descomplicado no começo. Mas, em algum momento ao longo dos anos, as coisas sofreram uma mudança e ele começara a perceber que ao observar Qhuinn com os aleatórios, imaginava-se debaixo daquele corpo, recebendo o que o homem era tão bom em dar. Depois de um tempo, já não era mais a boca de um desconhecido no pau de Qhuinn; era a sua. E quando aqueles orgasmos surgiam, e eles sempre surgiam, era ele quem os recebia. Eram as suas mãos no corpo de Qhuinn, e seus lábios encaixados, e as suas pernas abertas.

E isso ferrou tudo.

Merda, lembrava-se de ter ficado acordado durante o dia, olhando para o teto, dizendo a si mesmo que quando estivessem numa boate novamente, naqueles banheiros, ou em qualquer lugar em que o mesmo acontecia, ele não faria mais aquilo. Mas toda vez que saíam, era como se uma pílula do sabor ideal fosse oferecida a um viciado.

E depois ocorreram aqueles dois beijos... o primeiro no corredor saindo dali, na sala de exames da clínica. E ele teve que implorar para recebê-lo. E depois o segundo no seu banheiro, pouco antes de ele sair com Saxton pela primeira vez.

Ele também teve que implorar por aquele.

Abruptamente, Blay parou de fingir que estava de fato se exercitando e baixou as mãos para as coxas.

Ordenou-se a ir embora. Apenas se levantar daquele lugar, sair dali antes que Qhuinn fosse para o próximo equipamento e ele fosse descoberto.

Em vez disso, viu seus olhos fixos naqueles ombros e naquela coluna, na cintura estreita e no traseiro firme, nas pernas fortes.

Talvez fosse o álcool. O resultado daquela discussão no guincho. A coisa toda do sexo com Layla...

Naquele instante, porém, ele se excitou. Ficou duro como uma pedra. Pronto para a coisa.

Blay baixou o olhar do peito para seus shorts largos e sentiu vontade de se dar um tiro na cabeça.

Ai, Jesus, ele precisava sair dali imediatamente.

Enquanto Qhuinn continuava sua série na barra fixa, as mãos entorpeciam e ele sentia como se os bíceps estivessem sendo arrancados dos ossos por facas cegas, e isso não passava de brincadeira se comparado com os ombros. Eram eles o verdadeiro problema. Alguém obviamente se aproximara por trás, aplicara removedor de verniz sobre eles e depois os friccionara com uma lixa industrial.

Não fazia ideia de quantas repetições fizera. Nem de quantos quilômetros correra. Não contara os abdominais, os agachamentos e afundos.

Ele só sabia que continuaria.

Objetivo: exaustão absoluta. Queria desmaiar no momento em que subisse e se deitasse na cama.

Descendo da barra, pousou as mãos nos quadris, abaixou a cabeça e respirou fundo. Seu ombro direito logo se recuperou, mas esse era o seu lado dominante, por isso era o esperado. Para relaxar o nó nos músculos, girou o braço num círculo amplo ao se virar...

E parou.

Do outro lado dos colchonetes azuis, Blay estava na máquina mais próxima à porta, sentado tão parado quanto os pesos que ele não levantava.

A expressão no rosto dele era vulcânica. Mas não estava furioso.

Não, não estava.

Ele estava com uma ereção tão grande que se via do outro lado do cômodo. Talvez do outro lado do Estado.

Qhuinn abriu a boca. Fechou-a. Abriu-a novamente.

No fim, resolveu que aquele era um exemplo típico de que a vida nunca deixava de surpreender. De todas as situações nas quais pensou que pudessem estar assim, esta não era nenhuma delas. Não depois... bem, depois de tudo.

Tirou os fones de ouvido e os deixou pendurados no pescoço, as batidas frenéticas de um show ensurdecedor diminuindo para apenas um sibilo.

Isso é para mim?, ele queria perguntar.

Por uma fração de segundo, ele pensou que poderia ser, mas, pensando bem, não seria muita arrogância de sua parte? O cara mal acabara de lhe fazer um discurso sobre como os dois não passavam de colegas trabalhando lado a lado em estações de gordura trans. Em seguida, Blay aparece com uma ereção do tamanho de um pé-de-cabra, e a primeira coisa que lhe vem à mente é que, talvez, quem sabe, seria possível, aquilo ser... para ele?

Que idiota ele era.

E, P.S., o que diabos ele faria se subitamente se encontrasse num universo paralelo, com Blay dizendo “ei, que tal” naquele departamento?

Claro que o desejava.

Mas que merda, sempre o desejara a ponto de se perguntar quanto daquela coisa de evitá-lo “pelo bem de Blay” não fora, na verdade, pelo seu próprio bem.

Pensando nisso, percebeu o copo repousando ao lado dos pés dele. Ah, o álcool estava envolvido – honestamente, ele duvidava que aqueles centímetros de líquido escuro fossem Coca-Cola.

Merda, pelo que podia saber, Saxton acabara de lhe enviar uma mensagem quente e essa era a causa da ereção.

Ah, se isso não era broxante.

O seu primo está me dando tudo de que preciso. O dia inteiro. Todos os dias.

– Tem mais alguma coisa para me dizer? – Qhuinn perguntou com aspereza.

Blay moveu a cabeça de um lado para o outro uma vez.

Qhuinn franziu o cenho. Blay não era esquentado – nunca fora, e em parte por isso, por muito tempo, eles foram tão próximos. Equilíbrio e todo aquele papo-furado. Naquele instante, porém, parecia que o cara estava bem perto de perder as estribeiras.

Problemas no paraíso do casal feliz?

Não, eles eram bons demais juntos.

– Ok – caramba, a ideia de ficar por perto enquanto Blay estava com o mastro erguido para mais uma sessão com Saxton, o Magnífico, era insustentável. – Até mais.

Ao se afastar, sentiu os olhos de Blay sobre si, mas eles não estavam no nível do seu rosto. Pelo menos, não parecia.

Que porra estava acontecendo ali?

Empurrando a porta para o corredor, deu uma olhada para ver se as paredes de concreto não estavam derretendo ou se ele não tinha, subitamente, peixes no lugar das mãos ou algo assim. Nada disso era verdade, mas uma sensação esquisita de irrealidade o perseguiu enquanto ele avançava até o vestiário. Uma chuveirada era obrigatória; estava coberto por suor, e por mais que os doggen adorassem uma bela bagunça, ele não pretendia dar-lhes mais trabalho só porque tentara se matar na academia...

Duro. Excitado. Pronto para o sexo.

Enquanto essa imagem de Blay martelava em sua cabeça, ele fechou os olhos, e chegou à porta do mundo dos azulejos e chuveiros. Tinha a intenção de seguir diretamente para os chuveiros, mas acabou se demorando na parte da frente do lugar, onde os armários estavam enfileirados e os bancos atravessavam os corredores pelo meio.

Parando, desamarrou os Nikes, chutou-os e tirou as meias.

Totalmente excitado.

Blay estivera fora de si por conta disso.

Por algum motivo, os dois últimos encontros sexuais de Qhuinn lhe vieram à mente. Houve o ruivo no Iron Mask – aquele a quem seduzira e com quem transara no banheiro. Escolhera-o aleatoriamente no meio da multidão por uma determinada característica física e, naturalmente, o sexo não lhe provocara nada de extraordinário. Em retrospecto, foi como querer tomar tequila e acabar bebendo água tônica.

E depois aconteceu aquela coisa com Layla, que não passara de um trabalho físico exigente, como cavar uma trincheira ou levantar uma parede...

Deus, sentia-se mal ao pensar assim, pois não queria desrespeitar a Escolhida. Mas pelo menos ficou bem claro que ela pensava do mesmo modo.

Foi só isso no último ano. Apenas aqueles dois.

Quase doze meses de nada, e ele nem vinha se masturbando. Ele simplesmente não estava interessado em nada, como se suas bolas estivessem hibernando.

Engraçado, depois da sua transição, ele transara com qualquer coisa com duas pernas e um coração pulsante, e enquanto se esforçava para se lembrar de alguns dos muitos rostos – Deus bem sabia que ele não se dera ao trabalho de saber os nomes muitas vezes –, uma sensação desconfortável contraía seu estômago.

Todas aquelas transas anônimas, sem nomes, sem rostos... diante de Blay. Sempre com ele, pensando bem. Na época, parecia um tipo de acontecimento entre camaradas, mas agora ele se questionava.

Ah, que merda. Ele sabia do que tratara.

Era um tremendo covarde, não?

Pondo-se de pé, despiu-se e deixou a camiseta e os shorts sobre o banco numa bagunça suada. Andando para os chuveiros, escolheu um a esmo, abrindo a torneira e entrando debaixo do jato. A água estava absurdamente fria, mas ele não se importava. Enfrentou o açoite, fechando as pálpebras e abrindo a boca.

Aquele ruivo do clube quase um ano atrás? Enquanto seduzia o cara para o banheiro, era Blay quem esteve em sua mente o tempo inteiro.

Foi Blay quem ele empurrou para a pia e beijou com sofreguidão. Foi o pau de Blay que ele chupou, e o corpo de Blay que ele comeu por trás e...

– Pelo amor de... – gemeu.

Do nada, a imagem do velho amigo sentado na máquina de pesos, com os joelhos afastados, o pênis pressionando o tecido fino dos shorts entrou em sua mente e atravessou a coluna, indo direto para o meio das suas pernas. Praguejando, ele se arqueou e teve que apoiar uma mão no azulejo escorregadio.

– Ai... cacete...

Recostando-se, apoiou a testa no braço e tentou se concentrar na sensação da água batendo na nuca.

Nada.

Tudo o que percebia era a pulsação no pênis.

Bem, isso e uma fantasia ressonante dele caindo de joelhos e se encaixando entre as coxas afastadas de Blay, lambendo o caminho até aquela boca... enquanto se insinuaria debaixo do cós dos shorts e começaria a aplicar um trabalho manual que o cara jamais conseguiria esquecer.

Entre outras coisas.

Virando para se livrar do jato, Qhuinn levou as mãos aos cabelos e os esticou para trás, arqueando a coluna.

Sentia o pênis ereto, implorando por atenção.

Mas não faria nada a respeito. Blay merecia mais do que isso. Sim, não fazia sentido, mas parecia sórdido masturbar-se no chuveiro por causa da excitação do cara por outra pessoa.

Inferno, por causa do parceiro do cara.

O primo de Qhuinn, pelo amor de Deus.

Enquanto sua ereção simplesmente continuava, inabalada pela lógica, ele soube que o dia seria bem longo.

 


                                     CONTINUA