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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AMANTE FINALMENTE
AMANTE FINALMENTE

 

 

 

                                                            Irmandade da "Adaga Negra"                                                                 

 

 

 

 

CAPÍTULO 11

Blay baixou a cabeça com uma imprecação enquanto a porta da academia se fechava. E claro, daquele ângulo, tudo o que enxergava era a sua ereção.

O que não ajudou.

Levantando o olhar, viu a barra fixa, e soube que tinha de fazer alguma coisa. Ficar sentado ali meio embriagado com uma festa armada entre as pernas dificilmente era uma posição na qual queria ser flagrado. Se um Irmão como Rhage entrasse e visse aquilo? Blay teria de aguentar a gozação pelo resto da vida. Além disso, estava com roupas de ginástica, cercado por equipamentos, portanto, só lhe restava se ocupar, puxar um pouco de ferro, e esperar que o senhor Alegria afundasse em depressão por falta de atenção.

Um bom plano.

Mesmo.

Claro.

Quando, um pouco depois, olhou para o relógio, percebeu que uns quinze minutos haviam se passado e ele não estava mais próximo de movimentos repetitivos e construtivos, a menos que se considerasse a respiração.

Sua ereção tinha uma sugestão para esse tipo de objetivo.

E sua palma se preparou, indo para o meio das pernas, encontrando a rigidez...

Blay levantou do assento num pulo e seguiu para a porta. Chega de idiotice. Iria para o banheiro do vestiário na esperança de reciclar um pouco do álcool no seu sistema. Depois voltaria para a esteira e suaria o resto da bebida.

Depois disso, seria hora de ir para a cama, onde, se precisasse de uma válvula de descarga do tipo erótico, ele a encontraria no local apropriado.

O primeiro sinal de que seu novo plano poderia levá-lo para mais confusão surgiu quando empurrou a porta do vestiário: o som de água corrente significava que alguém estava atarefado com o ritual do xampu e sabonete. Ele estava tão concentrado em se chutar no traseiro, porém, que nem se preocupou com qualquer conclusão.

O que o teria feito parar, virar e encontrar outro banheiro o mais rápido possível.

Em vez disso, passou pelos armários e foi fazer o que tinha de ser feito. Só quando estava lavando as mãos que os cálculos começaram a ser computados.

Por vontade própria, a cabeça girou na direção dos chuveiros.

Você tem que sair, ele se ordenou.

Ao desligar a torneira, o rangido sutil pareceu mais alto que um grito, e ele se recusou a se olhar no espelho. Não queria enxergar o que havia em seu olhar.

Volte para a porta. Apenas volte para a porta. Apenas...

O fracasso do seu corpo em seguir esse simples comando não foi apenas um exercício de rebelião física. Era, tragicamente, um padrão.

E ele se lamentaria mais tarde.

No momento, contudo, quando ele tomou a decisão de se aproximar e se esgueirar ao redor da parede de azulejos para os chuveiros, onde se manteve praticamente escondido, e espiou o macho que não deveria... a tresloucada onda de emoção que era tão dolorosamente familiar, era um conjunto de roupas feito sob medida para a sua insanidade.

Qhuinn estava de frente para o chuveiro com uma mão contra a parede escorregadia, a cabeça morena pensa debaixo do jato. A água corria pelos ombros e pelos acres de pele flexível que recobria as costas poderosas... depois descia pelo traseiro magnífico... e seguia em frente, passando pelas pernas longas e musculosas.

Durante o último ano, o lutador encorpara muito. Qhuinn ficara grande depois da transição e crescera ainda mais durante os primeiros meses de alimentação intensa. Mas já fazia um tempo desde que Blay não o via sem roupas... e, caramba, a rotina de puxar ferro à qual ele se submetera mostrava os resultados em todos aqueles músculos definidos...

Abruptamente, Qhuinn mudou de posição, virando, jogando a cabeça para trás, fazendo a água correr pelo cabelo escuro, aquele corpo incrível arqueando.

Ele manteve o piercing no pênis.

E, puta merda, estava excitado...

Um orgasmo imediatamente ameaçou a cabeça do pênis de Blay, os testículos ficando duros como punhos cerrados.

Dando meia-volta, ele saiu do vestiário como se tivesse sido lançado de um canhão, empurrando a porta, saindo em disparada no corredor.

– Ai, merda... cacete... puta que o...

Andando o mais rápido que podia, ele tentou tirar aquela imagem da cabeça, lembrando-se de que tinha um amante, que tocara a vida, que era possível se autodestruir a respeito da mesma coisa apenas uma limitada quantidade de vezes e que depois se chegava ao fim.

Quando nada disso funcionou, ele repetiu o discurso que fizera para Qhuinn no guincho...

Inferno, onde ficava o escritório?

Parando, olhou ao redor. Ah, fantástico. Tomara a direção oposta daquela que pretendia ter tomado, e agora tinha passado pela clínica e estava na ala de salas de aula do centro de treinamento.

A quilômetros de distância da entrada do túnel.

– ... laceração tão profunda. Mas ele não teve nada disso.

A voz grave de Manny Manello precedeu o homem que vinha pelo corredor saindo da sala de exames. Um segundo depois, a doutora Jane apareceu bem ao lado dele, com um prontuário aberto na mão, a ponta do dedo descendo pela página.

Blay se enfiou na primeira porta que encontrou...

E se deparou com uma parede de escuridão. Apalpando para encontrar um interruptor, visto que estava abalado demais para acender qualquer luz mentalmente, encontrou um, apertou e ficou momentaneamente cego.

– Ai!

A dor aguda que subiu da canela para o cérebro lhe disse que ele colidira com algo grande.

Ah, uma escrivaninha.

Estava num daqueles miniescritórios satélites das salas de aula, e isso era uma notícia muito boa. Com o programa de treinamento ainda suspenso por causa dos ataques, não havia ninguém ali embaixo, e provavelmente ninguém teria motivo para estar naquela saleta vazia.

Ele poderia ter um pouco de privacidade por um tempo, o que era uma bênção. Deus bem sabia que ele não tentaria voltar para a mansão agora. Com a sua sorte, acabaria se deparando com Qhuinn, e a última coisa de que ele precisava era estar perto do cara.

Indo para trás da escrivaninha, sentou-se na cadeira de escritório acolchoada e levantou as pernas, esticando-as sobre a superfície que deveria conter um computador, uma planta, um pote cheio de canetas. Em vez disso, estava vazia, ainda que não estivesse empoeirada. Fritz jamais permitiria isso mesmo num cômodo desocupado.

Esfregando a parte dolorida na canela, ficou evidente que produziria um belo hematoma. Mas ao menos a dor o distraíra daquilo que o motivara até ali.

Entretanto, isso não durou muito.

Ao inclinar a cadeira para trás e fechar os olhos, sua mente retornou ao vestiário.

E ele pensou se a tortura nunca teria um fim.

Deus, seu pênis estava latejando.

Considerando suas opções, ele ordenou que as luzes se apagassem, fechou os olhos e comandou que seu cérebro se desligasse para ele poder dormir. Se, ao menos, ele conseguisse cochilar uma ou duas horas ali, acordaria mais sóbrio, flácido e pronto para enfrentar as pessoas novamente.

Bem, esse era um bom plano, e também o ambiente era perfeito. Escuro, fresquinho, bem tranquilo do modo como somente as instalações subterrâneas podem ser.

Ajeitando o corpo ainda mais para baixo na cadeira, cruzou os braços sobre o peito e se preparou para o trem do sono REM chegar à estação.

Quando isso não funcionou, ele começou a imaginar todo tipo de situação “de desligamento”, como aspiradores de pó sendo puxados da tomada e incêndios sendo apagados com água e telas de TV escurecendo...

Qhuinn estava tão altamente “transável” daquele jeito, o corpo macio e liso entalhado em músculos, o sexo grosso e orgulhoso. Toda aquela água o deixara escorregadio e sensual... e, santa Virgem Escriba, Blay teria dado praticamente qualquer coisa para se aproximar, se ajoelhar e tomar o sexo dele na boca, sentindo aquela cabeça com suas investidas penetrantes em sua língua ao entrar e sair...

O som desgostoso que emitiu ecoou, parecendo mais alto do que provavelmente fora.

Abrindo os olhos, tentou tirar da cabeça qualquer fantasia que envolvesse chupar. Mas a escuridão completa não ajudou; apenas formou a tela perfeita para ele continuar a projetar as imagens.

Praguejando, deu uma chance para o lance de ioga, com o qual você relaxa a tensão em cada parte do corpo, começando pela prega sempre presente entre as sobrancelhas, depois as cordas rígidas que desciam pelos ombros até a base do crânio. O peito também estava apertado, os peitorais contraídos sem nenhum motivo aparente, os bíceps afundando nos antebraços.

Em seguida, ele deveria focar no abdômen, depois nas nádegas e coxas, nos joelhos e panturrilhas... até a pontinha do pé.

Ele não chegou tão longe.

Pensando bem, tentar convencer sua excitação sobre qualquer tipo de maleabilidade demandaria poderes de persuasão que seu cérebro parcialmente embriagado não possuía.

Infelizmente, só havia um modo seguro de se livrar do senhor Alegria. E, no escuro, sozinho, com a garantia de que “ninguém nunca vai ficar sabendo”, por que ele não podia simplesmente cuidar daquilo, apagar o fogo e desmaiar? Não era muito diferente de despertar no meio da noite com uma ereção – porque Deus bem sabia que não havia nenhuma emoção envolvida. E ele estava alcoolizado, certo? Então isso era mais uma razão.

Repetiu a si mesmo que não estava traindo Saxton. Não estava com Qhuinn – e era Saxton quem ele queria...

Por um instante, ele continuou a pesar os prós e os contras, mas, no fim, sua mão tomou a decisão por ele. Antes de se dar conta, a palma se escondia debaixo do cós folgado e...

O sibilo que emitiu ao se segurar foi como um tiro no silêncio, assim como o rangido da cadeira quando a investida dos quadris empurrou os ombros contra o estofamento de couro. Quente e duro, grosso e longo, seu pênis clamava por atenção, mas a angulação estava errada, e não havia espaço para mexer dentro dos malditos shorts.

Por algum motivo, a ideia de se despir da cintura para baixo o fez se sentir sujo, mas seu senso de decoro foi para o espaço bem rápido quando tudo o que ele conseguia fazer era apertar. Elevando o traseiro, abaixou os shorts, depois percebeu que precisaria de alguma coisa para limpar a bagunça.

A camiseta foi retirada em seguida.

Nu no escuro, esticado da cadeira para a escrivaninha, ele se entregou, afastando as pernas, bombeando para cima e para baixo. A fricção fez seus olhos revirarem, morder o lábio inferior. Deus, as sensações eram tão boas, fluindo pelo corpo...

Droga.

Qhuinn estava na sua cabeça, Qhuinn estava na sua boca... Qhuinn estava dentro dele, os dois se movendo juntos...

Isso era errado.

Congelou. Parou de pronto.

– Merda.

Blay soltou o pênis, ainda que o simples processo de desistir da traição o fizesse cerrar os molares.

Abrindo os olhos, fitou a escuridão. O som da sua respiração entrando e saindo do peito o fez praguejar novamente. Assim como a necessidade pulsante de um orgasmo – ao qual ele se recusava a ceder.

Não daria continuidade àquilo...

Do nada, a imagem de Qhuinn arqueado debaixo do jato de água golpeou sua mente, assumindo o controle. Contrariando seu raciocínio, sua lealdade, seu senso de justiça... seu corpo se sobrecarregou, o orgasmo atingindo o pênis antes que ele o conseguisse detê-lo, antes que ele conseguisse negar, pois aquilo não era certo... antes que ele conseguisse dizer “De novo, não. Nunca mais”.

Ah, Deus. A sensação doce e penetrante, repetida uma vez depois da outra até ele se perguntar se aquilo um dia terminaria, mesmo ele não tendo ajudado.

Aquela reação física podia estar além do seu controle. Sua reação a ela não.

Quando ele se aquietou por fim, a respiração estava agitada e o frio na pele nua do peito sugeria que ele suara... e enquanto o corpo se recuperava, sua consciência retornava, e a ereção murchando era como um barômetro do seu humor.

Esticando-se, apalpou a mesa até encontrar a camiseta; depois esfregou-a e pressionou-a na junção das coxas.

O resto da confusão em que se metera não seria tão fácil de limpar.

Do outro lado da cidade, no 18o andar do Commodore, Trez estava sentado numa cadeira lustrosa de aço e couro que ficava de frente para a parede envidraçada dando para o rio Hudson. O sol do meio-dia brilhava mais por causa da neve fresca que caíra nas margens durante a noite.

– Sei que está aqui – disse secamente, sorvendo um gole da caneca de café.

Quando não houve resposta, ele rodopiou a cadeira em sua base giratória. Como esperado, iAm viera do quarto e estava sentado no sofá, com o iPad no colo, o indicador deslizando pela tela. Ele devia estar lendo a edição online do The New York Times, claro; era o que fazia toda manhã ao acordar.

– Então – disse Trez. – Manda ver.

A única resposta que teve foi uma das sobrancelhas de iAm se erguendo. Por, digamos, meio segundo.

O bastardo presunçoso nem olhava para ele.

– Deve ser um artigo fascinante. Sobre o que é? Irmãos teimosos?

Trez passou algum tempo segurando a caneca de café quente.

– iAm. Sério. Que bobagem.

Depois de um momento, o olhar escuro do irmão se ergueu. Os olhos que sustentaram os seus estavam, como sempre, completamente livres de emoção, dúvida e todas as asneiras com que os mortais lidavam. iAm era sensível de maneira sobrenatural... como uma cobra: atenta, inteligente, pronta a atacar, mas relutante em desperdiçar força até que fosse necessário.

– O que foi? – resmungou Trez.

– Seria redundante lhe dizer o que você já sabe.

– Faça isso por mim – ele sorveu mais um gole e se perguntou por que diabos estava se oferecendo para aquilo. – Vá em frente.

Os lábios de iAm se contraíram como sempre quando ele pensava numa resposta. Depois ele fechou a capa do iPad, cada uma das quatro seções descendo como pegadas na tela. Então ele pôs de lado o equipamento, descruzou as pernas e se inclinou para frente para equilibrar os cotovelos sobre os joelhos. Os bíceps dele eram tão grossos que as mangas da camisa pareciam que se rasgariam.

– Sua vida sexual está fora de controle – enquanto Trez revirava os olhos, o irmão continuou a falar. – Está transando com três ou quatro mulheres por noite, às vezes mais. Não se trata de alimentar-se, portanto não perca o nosso tempo tentando usar essa desculpa. Você está comprometendo os padrões profissionais do...

– Eu lido com bebidas e prostitutas. Não acha que isso parece um pouco intelectual...

iAm pegou o iPad e o balançou.

– Devo voltar a ler?

– Só estou dizendo...

– Você me pediu para falar. Se isto é um problema, a solução não é ficar na defensiva porque não gosta do que está ouvindo. A resposta é não me convidar a falar.

Trez cerrou os dentes. Veja, era esse o problema com o maldito irmão. Ele era sensato demais.

Levantando-se num rompante, atravessou a sala ampla. A cozinha era como todo o resto do apartamento: moderna, arejada e despojada. O que significava que se ele se servisse de um pouco mais de cafeína, conseguiria enxergar o irmão em sua visão periférica.

Caramba, às vezes ele detestava aquele lugar. A menos que estivesse no quarto com a porta fechada, não conseguia se livrar daqueles olhos.

– Devo ler ou falar? – perguntou iAm com tranquilidade, como se isso lhe fosse indiferente.

Caramba, como Trez queria falar para o cara enfiar o nariz no jornal, mas isso seria o mesmo que admitir uma derrota.

– Continue – Trez voltou à poltrona e se preparou para uma surra.

– Você não está se comportando de maneira profissional.

– Você come no Sal’s.

– O meu linguini com molho de mariscos não requer uma ordem judicial quando decido que na noite seguinte quero o Fra Diavolo.

Bem observado. E, de alguma forma, isso o fez se sentir quase violento.

– Sei o que está fazendo – disse iAm. – E por quê.

– Você não é virgem, portanto é claro que...

– Sei o que lhe enviaram.

Trez parou.

– Como?

– Quando você não atendeu, recebi um telefonema.

Trez empurrou o tapete debaixo dos pés e girou a cadeira para ficar de frente para o rio. Merda. Ele imaginou que acalmaria a situação com aquilo, do tipo, dar ao irmão uma sessão de sermão para que os dois pudessem voltar ao normal. Eles costumavam ser como pele e osso, e o bom relacionamento era essencial.

Ele conseguia lidar com quase tudo, exceto com um desentendimento com o irmão.

Infelizmente, os problemas sobre os quais se referiam ali eram a única coisa no “quase tudo”.

– Ignorar não vai fazer isso desaparecer, Trez.

Isso foi dito com uma certa medida de gentileza, como se o cara lamentasse por ele.

Enquanto Trez fitava o rio, imaginou estar em seu clube, com humanos cercando-o, o dinheiro trocando de mãos e as mulheres que trabalhavam lá fazendo o que faziam nos fundos. Legal. Normal. Controlado e confortável.

– Você tem responsabilidades.

Trez segurou a caneca com mais força.

– Não me apresentei como voluntário a eles.

– Não importa.

Ele virou com tanta rapidez que derramou café na coxa. Ignorou o ardor.

– Deveria. O cacete como deveria. Não sou um objeto inanimado que eles podem dar a quem quiserem. A coisa toda é uma tolice.

– Alguns considerariam uma honra.

– Bem, eu não. Não vou me amarrar àquela fêmea. Não me importo quem ela seja ou quem armou isso ou quão “importante” isso é para o s’Hisbe.

Trez se preparou para a enxurrada do “ah, sim, você vai”. Em vez disso, seu irmão pareceu triste, como se ele também não quisesse aquela maldição.

– Vou repetir, Trez. Isso não vai desaparecer num passe de mágica. E tentar sair dessa transando por aí? Não só é fútil, como potencialmente perigoso.

Trez esfregou o rosto.

– As mulheres são apenas humanas. Elas não têm importância – ele voltou a olhar para o rio. – E, francamente, se eu não fizer alguma coisa, vou enlouquecer. Um punhado de orgasmos tem que ser melhor do que isso, certo?

Enquanto o silêncio retornava, ele soube que o irmão discordava dele. Mas a prova de que sua vida estava na mais absoluta merda era que a conversa terminara ali.

iAm, pelo visto, não era o tipo de homem que chuta um cara caído.

Tanto faz. Ele não se importava com o que se esperava dele. Ele não voltaria para ser condenado a uma vida de serviços forçados.

Pouco se importava se era para a filha da rainha.


CAPÍTULO 12

Era fim de tarde quando Wrath chegou a um beco sem saída. Estava à mesa, sentado no trono do pai, os dedos percorrendo um relatório escrito em braille, quando, de repente, não conseguia ler nem mais uma maldita palavra do texto.

Empurrando os papéis para o lado, praguejou e arrancou os óculos escuros do rosto. Bem na hora em que estava para lançá-los contra a parede, sentiu um focinho no cotovelo.

Passando o braço ao redor do golden retriever, pressionou a mão no pelo macio que crescia nos flancos do cachorro.

– Você sempre sabe, não é?

George se aninhou, pressionando o peito na perna de Wrath – a dica de que “alguém” queria ser erguido.

Wrath se inclinou e apanhou todos os quarenta quilos nos braços. Enquanto acomodava as quatro patas, a juba de leão e o rabo volante para que tudo coubesse, ele concluiu que era bom que fosse tão alto. Coisas grandes ofereciam um colo grande.

E o ato de afagar todo aquele pelo o acalmou, mesmo que não lhe tranquilizasse a mente.

Seu pai fora um Rei notável, capaz de suportar inúmeras horas de cerimônias, noites infindáveis nos esboços de proclamações e convocações, meses e anos inteiros de protocolo e tradição. E isso antes de ser inundado pelo fluxo perene de reclamações que vinham de todos os lados: cartas, telefonemas, e-mails – ainda que, obviamente, os últimos estivessem fora de questão na época do seu pai.

Wrath, um dia, fora um lutador. Um excelente lutador.

Levantando a mão, sentiu a lateral do pescoço, o lugar por onde a bala entrara...

A batida à porta foi decidida, direta ao ponto, mais uma exigência do que uma solicitação respeitosa para entrar.

– Pode entrar, V. – respondeu.

O odor adstringente da hamamélis que precedeu o Irmão foi uma pista evidente de que alguém estava irritado. E, com toda certeza, sua voz grave tinha uma ponta de descontentamento.

– Finalmente terminei os testes de balística. Malditos fragmentos sempre tomam tempo demais.

– E? – Wrath o instigou.

– É uma combinação perfeita. Cem por cento – enquanto Vishous se sentava na cadeira oposta à mesa, a peça de mobília rangeu debaixo do peso. – Nós os pegamos.

Wrath exalou longamente, parte do zumbido impotente escorrendo de sua mente.

– Bom – ele correu a mão pela cabeça grande de George, descendo até as costelas. – Então, esta é a nossa munição.

– Exato. O que aconteceria de qualquer maneira agora toma uma forma legal.

A Irmandade soubera o tempo todo quem estivera por trás do tiro que quase matara o Rei no outono, e a tarefa de acabar com o Bando de Bastardos um a um era algo que eles encaravam muito mais como uma tarefa sagrada para a raça.

– Olha aqui, eu preciso ser franco, certo?

– E quando não foi? – Wrath argumentou.

– Por que diabos está atando as nossas mãos?

– Eu não sabia que estava fazendo isso.

– Com Tohr.

Wrath reposicionou George a fim de que o fluxo sanguíneo da perna esquerda não ficasse completamente bloqueado pelo peso do cão.

– Ele solicitou o decreto.

– Todos nós temos o direito de acabar com Xcor. O cretino é o prêmio que todos nós queremos. Isso não deveria estar restrito somente a ele.

– Ele pediu.

– Isso só faz com que seja muito mais difícil matar o bastardo. E se um de nós o encontrar, e Tohr não estiver conosco?

– Vocês o trazem para cá – houve uma longa pausa, um silêncio tenso. – Você me ouviu, V.? Traga aquele monte de merda para cá e deixe Tohr fazer o serviço.

– O objetivo é eliminar o Bando de Bastardos.

– E como isso o impede de fazer o seu trabalho? – quando não houve resposta, Wrath balançou a cabeça. – Tohr estava naquela van comigo, meu Irmão. Ele salvou a minha vida. Sem ele...

Enquanto a frase não foi finalizada, V. praguejou baixinho, como se estivesse fazendo os cálculos sobre aquela lembrança e chegando à conclusão de que o Irmão que teve que cortar o tubo plástico da sua garrafa CamelBak e executar uma traqueotomia no seu Rei num veículo em movimento a quilômetros de distância de qualquer ajuda médica deveria ter um tantinho só a mais de direito de matar o criminoso.

Wrath sorriu de leve.

– Que tal se, só porque eu sou um cara legal, eu deixar que cada um de vocês dê um soco nele antes que Tohr mate o filho da puta com as próprias mãos? Fechado?

V. riu.

– Isso alivia um pouco.

A batida que os interrompeu foi baixa e respeitosa, uma sequência de batidinhas leves que parecia sugerir que quem quer que fosse ficaria feliz em ser mandado embora, satisfeito em aguardar, ou esperava por uma audiência imediata, tudo ao mesmo tempo.

– Pois não? – chamou Wrath.

Uma colônia cara anunciou a chegada do advogado: Saxton sempre cheirava bem, e isso se encaixava em sua personalidade. Pelo que Wrath lembrava, além da excelente educação do cara e da qualidade do seu raciocínio, ele sempre se vestia de acordo com a moda como um filho bem nascido da glymera. Isso é, com perfeição.

Não que Wrath tivesse visto isso recentemente.

Ele recolocou os óculos num movimento rápido. Uma coisa era se expor na frente de V.; isso não aconteceria diante do macho jovem e eficiente que passava pela porta, não importando o quanto Sax fosse confiável e profissional.

– O que tem para mim? – perguntou Wrath enquanto o rabo de George se movia de um lado para o outro à guisa de um cumprimento.

Houve uma longa pausa.

– Talvez seja melhor eu voltar mais tarde?

– Você pode dizer qualquer coisa na frente do meu Irmão.

Outra pausa longa, durante a qual V. provavelmente encarava o advogado como se quisesse tirar um naco do traseiro do garoto bonito e bem-vestido por sugerir que havia uma divisa de informações que precisava ser respeitada.

– Mesmo que seja sobre a Irmandade? – Saxton perguntou com franqueza.

Wrath praticamente sentia os olhos gélidos de V. virando de direção. E, como esperado, o Irmão bradou:

– O que há conosco?

Quando Saxton permaneceu calado, Wrath deduziu sobre o que se tratava.

– Pode nos dar um minuto, V.?

– Está de brincadeira?

Wrath pegou George e o colocou no chão.

– Só preciso de cinco minutos.

– Tudo bem. Divirta-se, meu senhor – grasnou V. ao se levantar. – Merda.

Um instante depois, a porta bateu.

Saxton pigarreou.

– Eu poderia ter voltado depois.

– Se eu quisesse isso, eu teria lhe dito. Agora fale.

Uma inspiração profunda, seguida de uma expiração, como se o civil estivesse olhando para a saída e se perguntando se a partida intempestiva de V. poderia ser a causa de ele acordar morto mais tarde.

– Hum... a auditoria das Leis Antigas está completa, e eu posso lhe fornecer uma lista completa das seções que necessitam de emendas, além de reformulações propostas, e um cronograma para que as mudanças possam ser implementadas se...

– Sim ou não. É tudo o que me interessa.

A julgar pelo sussurro dos sapatos resvalando o tapete Aubusson, Wrath deduziu que o advogado estava andando de um lado para o outro. De cabeça, ele visualizou o escritório, desde as paredes azul-claras até as cornijas em arabesco e toda a mobília francesa antiga e frágil.

Saxton fazia mais sentido naquele cômodo do que Wrath com seu couro e camiseta justa.

Mas a lei prescrevia quem deveria ser o Rei.

– Você precisa começar a mexer os lábios, Saxton. Garanto que não será demitido se falar comigo francamente. Se tentar editar a verdade ou suavizá-la? Isso sim o fará cair, pouco importando com quem está dormindo.

Houve um novo pigarrear. E então, a voz aculturada chegou até ele diretamente do outro lado da escrivaninha.

– Sim, pode fazer o que desejar. No entanto, preocupo-me quanto ao momento.

– Por quê? Porque vai precisar de dois anos para fazer as emendas?

– O senhor está fazendo uma mudança fundamental na seção da sociedade que protege a espécie – e isso pode desestabilizar ainda mais o seu governo. Estou a par das pressões que tem sofrido, e seria negligente de minha parte se eu não apontasse o óbvio. Se o senhor alterar a prescrição sobre quem pode entrar na Irmandade da Adaga Negra, isso poderá provocar ainda mais abertura para dissensão... isso não se parece com nada que tenha tentado em seu reinado, e virá numa época de extremo distúrbio social.

Wrath inspirou profundamente pelo nariz – e não captou vibração negativa; não havia evidências de que o homem estivesse sendo fraudulento ou que não estivesse disposto a realizar o trabalho.

E ele tinha razão.

– Agradeço sua opinião – disse Wrath. – Mas não vou me curvar ante o passado. Recuso-me. E se eu tivesse dúvidas a respeito do macho em questão, eu não estaria fazendo isso.

– Como os outros Irmãos se sentem a esse respeito?

– Isso não é da sua conta – na verdade, não tocara no assunto com eles ainda. Afinal, por que se importar se não houvesse possibilidade de seguir adiante? Tohr e Beth eram os únicos que sabiam exatamente até onde ele estava preparado para levar aquilo. – Quanto tempo vai levar para que você torne isso oficial?

– Posso deixar tudo preparado para o alvorecer de amanhã, no máximo ao anoitecer.

– Faça isso – Wrath cerrou um punho e o bateu no braço do trono. – Faça isso agora.

– Como desejar, meu senhor.

Houve uma movimentação de tecidos finos, como se o macho estivesse se inclinando, e depois mais passos antes que uma das portas duplas se abrisse e se fechasse.

Wrath fitou o vazio produzido pelos seus olhos cegos.

Tempos perigosos por certo. E francamente, o sensato a fazer era ter mais Irmãos, e não pensar em motivos para não os ter, ainda que a contra-argumentação fosse: se aqueles três garotos estavam dispostos a lutar ao lado deles sem serem iniciados, por que se importar?

Foda-se. Era costume antigo querer honrar alguém que tivesse colocado a própria vida em risco só para que a dele pudesse continuar.

A real questão, contudo, tirando as leis... era: o que os outros pensariam?

Muito provavelmente seria isso a colocar um freio na questão mais do que qualquer detalhe legal.

Quando a noite caiu horas mais tarde, Qhuinn estava deitado nu na cama. Ele dormia, mas nem seu corpo nem sua mente estavam descansando.

Em seu sonho, ele tinha voltado para o acostamento da estrada, tendo saído a pé da casa da família. Carregava no ombro uma bolsa de lona, a proclamação de deserdação enfiada na cintura e uma carteira que, a não ser por onze dólares, estava vazia.

Tudo estava bem nítido. Nada fora modificado devido a um erro de reprodução de memória: desde a noite úmida de verão e o som dos seus New Rocks no pedregulho do acostamento... até o fato de ele ter ciência de que não havia nada em seu futuro.

Não tinha para onde ir. Nenhum lar para onde voltar.

Nenhuma perspectiva. Nem mesmo um passado.

Quando o carro parou atrás dele, ele sabia que só podia ser John ou Blay...

Mas, não. Não foram seus amigos. Era a morte na forma de quatro machos em mantos negros que saíram por quatro portas e convergiram ao seu redor.

Uma Guarda de Honra. Enviada pelo seu pai para surrá-lo por desonrar o nome da família.

Quanta ironia. Alguém haveria de deduzir que esfaquear um sociopata que tentara estuprar seu colega seria uma coisa boa. Mas não quando o agressor era o seu perfeito primo de primeiro grau.

Em câmera lenta, Qhuinn se colocou em postura de luta, preparado para enfrentar o ataque. Não havia olhos para encarar, nenhum rosto em que reparar – e não havia motivo para tal: o fato de os mantos esconderem suas identidades supostamente faria com que a pessoa que transgredira sentisse como se toda a sociedade desaprovasse as ações que ele executara.

Circundando, circundando, aproximando-se... No fim, conseguiriam derrubá-lo, mas ele os feriria no processo.

E foi o que fez.

Mas ele também teve razão: depois do que pareceram serem horas de defesa, ele acabou de costas, e foi nesse momento que a surra de fato aconteceu. Deitado no asfalto, ele cobriu a cabeça e o escroto o melhor que pôde, os golpes chovendo sobre ele, mantos negros voando como asas de corvos conforme era golpeado e surrado.

Depois de um tempo, não sentiu dor.

Iria morrer ali no acostamento da estrada...

– Pare! Não devemos matá-lo!

A voz do irmão atravessou tudo aquilo, atingindo-o de um modo como nenhum golpe podia mais...

Qhuinn despertou com um grito, levando as mãos ao rosto, as coxas se elevando para proteger a virilha...

Nenhum punho, nenhum taco vindo em sua direção.

E ele não estava no acostamento da estrada.

Fazendo com que as luzes se acendessem, olhou ao redor do quarto no qual vinha ficando desde que fora expulso da casa da própria família. Não combinava em nada com ele, o papel de parede de seda e os objetos eram algo que a sua mãe escolheria – ainda assim, naquele momento, a visão de toda aquela quinquilharia que outra pessoa escolhera, comprara e pendurara, fez com que ele se acalmasse.

Mesmo enquanto a lembrança pairava.

Deus, o som da voz do irmão.

Seu próprio irmão fizera parte da Guarda de Honra enviada atrás dele. Em retrospecto, isso enviava uma mensagem ainda mais poderosa para a glymera sobre a seriedade com que a família cuidava dos seus assuntos. E não era como se o cara não tivesse sido treinado. Ele aprendera artes marciais, embora, naturalmente, não lhe permitissem lutar. Inferno, mal permitiram que ele brigasse nos treinos.

Valioso demais para a linhagem. E se ele se ferisse? Aquele que seguiria os passos do pai e um dia se tornaria lídher do Conselho poderia ficar exposto.

Risco pequeno de um dano catastrófico para a família.

Qhuinn, por sua vez... Antes de ser renegado, fora colocado no programa de treinamento, talvez com a esperança de que sofresse algum ferimento mortal no campo de batalha e fizesse o favor a todos de morrer com honra.

Pare! Não devemos matá-lo!

Essa fora a última vez em que ouvira a voz do irmão. Pouco depois de Qhuinn ter sido expulso de casa, a Sociedade Redutora conduzira uma onda de ataques e matara a todos, o pai, a mãe, a irmã – e Luchas.

Todos morreram. E mesmo que uma parte sua os odiasse pelo que lhe fizeram, ele não desejaria esse tipo de morte a ninguém.

Qhuinn esfregou o rosto.

Hora de uma chuveirada. Era tudo o que ele sabia.

Pondo-se de pé, espreguiçou-se até as costas estalarem e verificou o celular. Uma mensagem de texto para o grupo anunciava que haveria uma reunião no escritório de Wrath; e uma espiada rápida no relógio lhe informou que ele tinha pouco tempo.

O que não era ruim. Ao passar para velocidade acelerada e se apressar para o banheiro, era um alívio se concentrar em coisas reais em vez de no passado maldito.

Não havia nada que ele pudesse fazer a respeito desse último a não ser amaldiçoá-lo. E ele bem sabia que já fizera isso o suficiente para doze vidas.

Hora de acordar, pensou.

Hora de ir trabalhar.


CAPÍTULO 13

Lá pela mesma hora em que Qhuinn tomava banho na casa principal, Blay despertou na cadeira daquele escritoriozinho no subterrâneo. A dor de cabeça que lhe serviu como despertador não se originava do vinho do Porto, mas pelo fato de ter pulado a Última Refeição. Mas, caramba, bem que ele queria que a bebida estivesse por trás do latejar em seu crânio. Ele poderia se valer disso para justificar o estado absolutamente deplorável com que fora parar ali.

Praguejando, abaixou as pernas da escrivaninha e se sentou melhor. O corpo estava duro como uma tábua, as dores brotavam em todo tipo de lugar enquanto ele fez as luzes se acenderem.

Merda. Ainda estava nu.

Mas até parece que os elfos recatados entrariam sorrateiramente ali para vesti-lo enquanto dormia... só para que ele não se lembrasse do que havia feito?

Vestindo os shorts, enfiou os pés nos tênis e se esticou para pegar a camiseta antes mesmo de se lembrar para o que a usara.

Ao olhar para as dobras amarrotadas do algodão e sentir os pontos endurecidos no tecido macio, deu-se conta de que nenhuma quantidade de racionalização mudaria o fato de ele ter traído Saxton. Contato físico com alguém era apenas uma das medidas da infidelidade – e, sim, isso era o maior divisor. O que fizera na noite anterior, porém, fora uma violação do relacionamento deles, mesmo que o orgasmo tivesse sido causado pelo cérebro e não pela sua mão.

Pondo-se de pé, sentiu-se meio morto ao se encaminhar para a porta e entreabri-la. Se houvesse alguém nas imediações, ele voltaria para dentro e esperaria até que o corredor estivesse vazio. Ele absolutamente não queria ser apanhado saindo daquele escritório vazio, meio despido e com aquela aparência lastimável. O lado bom de viver no complexo era que você estava sempre cercado por gente que se preocupava com você; o lado ruim era que todos tinham olhos e ouvidos, e nenhum assunto particular era totalmente particular.

Quando não ouviu nem vozes nem passos, explodiu para o corredor e começou a caminhar numa passada rápida, como se estivesse estado em algum lugar com determinado propósito e estivesse se dirigindo para o quarto com uma finalidade igualmente importante. Teve a sensação de ter se safado ao chegar ao túnel. Claro, não costumava andar por aí sem camisa, mas muitos dos outros Irmãos e machos faziam isso quando saíam da academia, não era nada extraordinário.

E ele realmente sentiu como se tivesse ganhado na loteria quando saiu de baixo da grande escadaria da mansão e foi recebido por mais uma bela dose de corredor vazio. O único problema era que, pelo som da louça sendo levada da sala de jantar, devia ser mais tarde do que ele imaginava. Obviamente, perdera a Primeira Refeição – notícia ruim para a sua cabeça, mas, pelo menos, ele tinha umas barras de proteína no quarto.

Sua sorte chegou ao fim quando ele subiu as escadas para o segundo andar. Parados diante das portas fechadas do escritório de Wrath, Qhuinn e John estavam vestidos para o combate, com as armas a postos e os corpos cobertos por couro preto.

De jeito nenhum ele olharia para Qhuinn. Só o fato de tê-lo em sua visão periférica era ruim o bastante.

– O que está acontecendo? – perguntou.

Temos uma reunião agora, sinalizou John. Ou, pelo menos, era para termos. Não recebeu a mensagem?

Merda, ele não fazia ideia de onde estava seu telefone. No quarto? Tomara.

– Vou tomar uma chuveirada e volto já.

Talvez tenha de se apressar. Os Irmãos estão a portas fechadas há meia hora. Não sei o que está acontecendo.

Ao lado dele, Qhuinn se balançava para frente e para trás nos coturnos, a oscilação do peso fazendo parecer que estava andando, mesmo ele não indo a parte alguma.

– Cinco minutos – murmurou Blay. – Só preciso disso.

Ele esperava que a Irmandade abrisse as portas até lá, a última coisa que queria era ficar sem fazer nada ao lado de Qhuinn.

Praguejando ao andar, Blay correu até o quarto. Normalmente, ele demorava para se aprontar, ainda mais se Sax estivesse a fim, mas dessa vez seria entrar, chuveiro e...

Ao abrir a porta, parou.

Mas o quê...?

Malas. Na cama. Tantas que ele não conseguia ver mais do que alguns centímetros do edredom. E ele sabia a quem elas pertenciam. Guccis combinando, brancas com o logo azul-marinho e as alças de tecido em azul e vermelho, porque, segundo Saxton, o tradicional marrom sobre marrom com vermelho e verde eram “óbvios demais”.

Blay fechou a porta em silêncio. Seu primeiro pensamento foi “puta merda, Saxton sabe”. De algum modo, ele soube o que aconteceu no centro de treinamento.

O macho em questão apareceu do banheiro com os braços cheios de frascos de xampu, condicionador e outros produtos. E parou no ato.

– Oi – disse Blay. – Vai sair de férias?

Depois de um momento tenso, Saxton se aproximou, colocou os produtos numa mala e se virou. Como sempre, seu lindo cabelo loiro estava afastado da testa em ondas espessas. E ele estava perfeitamente bem vestido, em outro terno de tweed com colete combinando, uma gravata vermelha e um lencinho de bolso também vermelho só para dar o toque certo de cor.

– Acho que você sabe o que vou dizer – Saxton sorriu triste. – Porque você não é nenhum idiota, assim como eu não sou.

Blay foi se sentar na cama, mas teve que mudar de ideia, pois não havia onde se acomodar. Acabou na chaise-longue e, com uma inclinação discreta para o lado, enfiou a camiseta suja debaixo do tecido do saiote. Longe dos olhos. Era o mínimo que podia fazer.

Deus, aquilo estaria mesmo acontecendo?

– Não quero que você vá – Blay se ouviu dizendo com voz grave.

– Acredito nisso.

Blay olhou para além das malas.

– Por que agora?

Pensou nos dois no dia anterior, debaixo dos lençóis, fazendo sexo selvagem. Estiveram tão próximos... Ainda que, sendo brutalmente honesto, talvez aquilo tivesse sido apenas físico.

Retire o talvez.

– Venho enganando a mim mesmo – Saxton balançou a cabeça. – Pensei que poderia continuar com você assim, mas não posso. Isto está me matando.

Blay fechou os olhos.

– Sei que tenho ficado muito tempo fora...

– Não é disso que estou falando.

Enquanto Qhuinn tomava todo o espaço entre eles, Blay quis gritar. Mas que bem aquilo faria? Parecia que ele e Saxton chegaram ao mesmo beco sem saída no mesmo momento lamentável.

Seu amante o fitou por cima da bagagem.

– Acabei aquela missão para Wrath. É uma boa hora para terminarmos, para eu me mudar e encontrar outro emprego...

– Espere, quer dizer que está abandonando o Rei também? – Blay franziu o rosto. – Não importa como estejam as coisas entre nós, você precisa continuar trabalhando para ele. Isso é mais importante do que o nosso relacionamento.

O olhar de Saxton abaixou.

– Suspeito que isso seja mais fácil para você dizer.

– Não é verdade – rebateu Blay inflexível. – Deus, eu... sinto muito.

– Você não fez nada errado. Você tem que saber que não sinto raiva de você, nem amargura. Você sempre foi honesto, e eu sempre soube que terminaria assim entre nós. Eu só não sabia quando. Não sabia... até chegar ao fim. Que é agora.

Ai, droga.

Mesmo sabendo que Saxton estava certo, Blay sentiu uma necessidade compulsiva de lutar por ele.

– Preste atenção, tenho estado distraído na última semana, e eu sinto muito. Mas as coisas vão acabar se ajeitando, e você e eu vamos voltar ao normal...

– Eu te amo.

Blay fechou a boca de súbito.

– Por isso, veja – Saxton continuou rouco –, não foi você quem mudou. Fui eu... e eu sinto que as minhas emoções tolas nos distanciaram.

Blay se colocou de pé e avançou pelo carpete de bela textura até o outro macho.

Ao chegar ao seu destino, ficou aliviado a ponto de sentir lágrimas nos olhos por Saxton aceitar o seu abraço. Ao segurar o seu primeiro amante verdadeiro contra si, sentindo a diferença familiar em suas alturas e o perfume maravilhoso da sua colônia, uma parte dele queria discutir aquele rompimento até que os dois desistissem e continuassem tentando.

Mas não seria justo.

Como Saxton, ele tivera a vaga noção de que as coisas terminariam em algum momento. E, tal qual seu amante, também se surpreendia por ser agora.

O que, claro, não alterava o resultado.

Saxton recuou um passo.

– Nunca tive a intenção de me envolver emocionalmente.

– Desculpe... Eu sinto muito – merda, isso era tudo o que saía da sua boca. – Eu daria tudo para que fosse diferente. Eu queria... ser diferente.

– Eu sei – Saxton esticou a mão e resvalou-a na lateral do rosto dele. – Eu perdoo você... e você tem que se perdoar.

Ele não tinha certeza se poderia fazer isso; ainda mais agora, nesse momento, e como sempre, quando uma ligação emocional que não queria, e que não poderia mudar, mais uma vez o impedia de ter algo que desejava.

Qhuinn era uma tremenda maldição para ele, era isso o que o cara era.

Cerca de 25 quilômetros ao sul da montanha do complexo da Irmandade, Assail despertou em sua cama redonda na suíte principal da sua mansão às margens do Hudson. Acima dele, painéis espelhados cobriam o teto e seu corpo nu estava iluminado com o brilho suave das luzes instaladas ao redor da base do colchão. O quarto octogonal estava escuro fora isso, as cortinas fechadas, a noite escondida.

Ao pensar em todo o vidro da casa, sabia que muitos vampiros considerariam as acomodações inadequadas. Muitos evitariam a mansão por completo.

Risco demais durante o dia.

Assail, contudo, nunca se sentira preso a convenções, e o perigo inerente de morar numa construção com tanto acesso à luz era algo que podia ser administrado, e não evitado.

Levantando-se, foi para a escrivaninha, ligou o computador e acessou o sistema de segurança que monitorava não apenas a casa, mas toda a propriedade. Alertas soaram várias vezes nas primeiras horas do dia, avisos não de ataques iminentes, mas de algum tipo de atividade que fora detectado pelo programa de filtragem do sistema de segurança.

Na verdade, faltava-lhe a energia para se preocupar demais, um sinal indesejável de que precisava se alimentar...

Assail franziu o cenho ao receber o relatório.

Ora, se aquilo não era interessante.

E era exatamente por isso que ele instalara todo aquele equipamento.

Nas imagens produzidas pelas câmeras de trás, ele viu uma figura vestida com uma roupa camuflada de neve passeando em esquis de cross-country pelo meio da floresta, aproximando-se da casa pelo norte. Quem quer que fosse, permaneceu escondido entre os pinheiros grande parte do tempo, e vigiou a casa por diversos ângulos por aproximadamente dezenove minutos... antes de atravessar o limite de pinheiros a oeste, atravessando a propriedade vizinha, e descendo pelo gelo. Duzentos metros mais à frente, o homem parou, pegou os binóculos novamente, e encarou a casa de Assail. Depois, circundou a península que se projetava do rio, voltou a entrar na floresta e desapareceu.

Aproximando-se da tela, Assail repetiu a gravação, aumentando o zoom para identificar a expressão facial, se possível. Mas não foi. A cabeça estava coberta por uma máscara de esqui, com abertura apenas para os olhos, o nariz e a boca. Junto à parca e às calças de esqui, o homem estava coberto dos pés à cabeça.

Recostando-se, Assail sorriu para si mesmo, as presas formigando numa reação territorial.

Só existiam dois grupos que poderiam se interessar em suas atividades, e a julgar pela luz solar que reinara durante aquele reconhecimento, ficou claro que a curiosidade não se originara da Irmandade: Wrath jamais usaria humanos para qualquer outra coisa que não fosse uma fonte derradeira de alimentação, e nenhum vampiro suportaria aquela intensidade de luz solar sem se incendiar.

Restava, então, alguém do mundo humano. E só havia um homem com interesse e recursos para tentar atacar a ele e ao seu território.

– Entre – disse ele pouco antes de uma batida soar à porta.

Enquanto um par de machos entrava, ele não se deu ao trabalho de desviar a vista da tela do computador.

– Como dormiram?

Uma voz conhecida e grave respondeu:

– Como os mortos.

– Que bom para você. Mudança de fuso horário pode ser uma inconveniência, pelo que sei. A propósito, tivemos um visitante esta manhã.

Assail inclinou-se para um lado a fim de que seus dois associados vissem a filmagem.

Era estranho ter gente morando com ele, mas teria que se acostumar à presença deles. Quando chegara ao Novo Mundo, fora uma viagem solitária, e ele tivera a intenção de manter essa situação por inúmeros motivos. O sucesso no ramo escolhido, todavia, exigira que ele chamasse uma retaguarda – e as únicas pessoas nas quais poderia confiar parcialmente eram da família.

E aqueles dois ofereciam um benefício sem igual.

Seus dois primos eram uma raridade na espécie vampiresca: eram gêmeos idênticos. Quando totalmente vestidos, o único modo de distingui-los era por uma única pinta atrás do lóbulo da orelha; fora isso, desde as vozes até os olhos negros e desconfiados, incluindo os corpos musculosos, eram o reflexo perfeito um do outro.

– Vou sair – anunciou Assail. – Se o nosso visitante aparecer novamente, sejam hospitaleiros, sim?

Ehric, o mais velho por questão de minutos, olhou de relance, o rosto destacado pela iluminação da base da cama. Tanta maldade naquela bela combinação de feições... a ponto de alguém quase sentir pena do intruso.

– Será um prazer, eu garanto.

– Mantenha-o vivo.

– Claro.

– Essa é uma divisória um tanto sutil que vocês dois às vezes gostaram de apreciar.

– Confie em mim.

– Não é você quem me preocupa – Assail olhou para o outro. – Entendeu?

O gêmeo de Ehric permaneceu calado, apesar de concordar com a cabeça uma vez.

Era precisamente por essa reação contrariada que Assail preferiria ter mantido a sua vida nova simples. Mas era impossível estar em mais de um lugar ao mesmo tempo. E aquela violação de privacidade era a prova de que ele não poderia fazer tudo sozinho.

– Sabem como me encontrar – disse antes de dispensá-los do quarto.

Vinte minutos mais tarde, saiu da casa de banho tomado, vestido e atrás do volante do seu Range Rover blindado.

O centro da cidade de Caldwell à noite era belo de longe, especialmente ao passar pela ponte de acesso. Só depois que ele penetrou no sistema viário que o esgoto da cidade ficou evidente: os becos com neve suja acumulada, as latas de lixo transbordando e os humanos sem-teto descartados, meio congelados, contavam a triste verdade sobre a desprotegida municipalidade.

Seu local de trabalho, evidentemente.

Ao chegar à Galeria de Arte Benloise, estacionou nos fundos, em uma das vagas que era paralela à construção atrás do estabelecimento. Ao sair do carro, o vento frio açoitou o casaco de pelo de camelo e ele teve que segurar as duas pontas juntas ao atravessar a calçada, aproximando-se da porta de tamanho industrial.

Não teve que bater. Ricardo Benloise tinha muitas pessoas trabalhando para ele e nem todos eram do tipo que se associava aos negociantes das artes. Um macho humano do tamanho de um parque de diversões abriu a porta e ficou de lado.

– Ele o está aguardando?

– Não, não está.

Disneylândia assentiu.

– Quer esperar na galeria?

– Seria bom.

– Quer beber alguma coisa?

– Não, obrigado.

Ao atravessarem a parte do escritório e seguirem para o espaço de exibições, a deferência agora concedida a Assail era algo novo, merecido tanto pelos enormes pedidos de mercadoria que ele vinha fazendo quanto pelo sangue derramado de incontáveis humanos. Graças a ele, a taxa de suicídio entre os machos desprivilegiados entre os 18 e os 29 anos com registros criminais em drogas aumentou como nunca na cidade, chegando ao noticiário nacional.

Imagine só.

Enquanto âncoras de TV e repórteres tentavam entender essas tragédias, ele simplesmente continuava a expandir os negócios usando qualquer meio necessário. As mentes humanas eram tremendamente sugestionáveis; praticamente nenhum esforço era necessário para fazer com que os traficantes intermediários levassem as pistolas às têmporas e apertassem os gatilhos. E, do mesmo modo como a natureza abominava um vácuo, o mesmo acontecia com a demanda de suplementos químicos.

Assail tinha as drogas. Os viciados tinham o dinheiro.

O sistema econômico mais do que sobrevivia à reorganização forçada.

– Vou subir – disse o homem na porta camuflada – para avisar da sua chegada.

– Leve o tempo de que precisar.

Deixado só, Assail passeou pelo espaço aberto de teto alto, entrelaçando as mãos às costas. De vez em quando, parava para ver a “arte” pendurada nas paredes e nas divisórias e foi lembrado do motivo pelo qual os humanos deviam ser erradicados, preferencialmente com métodos lentos e dolorosos.

Pratos de papel usados colados a tábuas de compensados baratas recobertas com citações de comerciais de TV escritas à mão? Um autorretrato feito com creme dental? E igualmente ofensivas eram as placas enaltecedoras ao lado das porcarias declarando que aquela tolice era a nova onda do Expressionismo Americano.

Tamanha explicação sobre a cultura de tantas maneiras.

– Ele pode recebê-lo agora.

Assail sorriu para si mesmo e se virou.

– Quanta gentileza.

Ao passar pela porta escondida e subir até o terceiro andar, Assail não condenou seu fornecedor por ser desconfiado e querer mais informações a respeito do seu maior cliente. Afinal, num espaço muito curto de tempo, o tráfico de drogas da cidade fora remanejado, redefinido e controlado por um completo desconhecido.

Há que se respeitar a posição do homem.

Mas as investigações terminariam ali.

No topo das escadas, outros dois homenzarrões estavam diante da porta, tão sólidos quanto vigas de sustentação. Assim como o segurança do primeiro andar, logo abriram a porta e acenaram em sua direção respeitosamente.

Do lado oposto, Benloise estava sentado no fundo de uma sala estreita com janelas em um dos lados e apenas três peças de mobiliário: sua escrivaninha elevada, que não passava de uma prancha grossa de teca com um abajur moderno e um cinzeiro por cima; a cadeira dele, com um estilo moderno; e um segundo assento no lado oposto para apenas um visitante.

O homem em si era como o seu ambiente: limpo, oficioso e despojado em seu modo de pensar. Na verdade, ele provou que, por mais ilícito que fosse o tráfico de drogas, os princípios de gerenciamento e as habilidades interpessoais de um CEO importavam muito se você quisesse faturar milhões com isso e manter o dinheiro.

– Assail. Como vai? – o homem baixinho se levantou e esticou a mão. – É um prazer inesperado.

Assail atravessou a sala, apertou o que lhe foi estendido e não esperou pelo convite para se sentar.

– O que posso fazer por você? – perguntou Benloise ao voltar a se sentar.

Assail pegou um charuto cubano de dentro do bolso. Cortando a ponta, inclinou-se para frente e colocou a ponta desprezada sobre o tampo da mesa.

Enquanto Benloise franzia o cenho como se alguém tivesse defecado em sua cama, Assail sorriu o suficiente para exibir rapidamente suas presas.

– Trata-se do que eu posso fazer por você.

– Ah.

– Sempre fui um homem reservado, levando uma vida privada por livre escolha – guardou o cortador e pegou um isqueiro de ouro. Acendendo a chama, inclinou-se e tragou até o charuto sustentar a ponta queimada. – Contudo, mais importante do que isso, sou um homem de negócios envolvido num ramo perigoso. Dessa forma, considero qualquer invasão na minha propriedade ou intrusão no meu anonimato como um ato direto de agressão.

Benloise sorriu com suavidade e se recostou na cadeira em forma de trono.

– Respeito-o por isso, claro, todavia estou confuso quanto aos motivos de você sentir a necessidade de explicitar isso para mim.

– Você e eu entramos num relacionamento mutuamente benéfico, e é meu desejo continuar com essa associação – Assail bafejou o charuto, soltando uma nuvem de fumaça azul francês. – Portanto, quero lhe mostrar o devido respeito e deixar isso claro antes de agir, pois se eu descobrir qualquer pessoa na minha propriedade a quem eu não tenha convidado, eu não só o erradicarei, como também descobrirei a origem das investigações – e bafejou novamente – e farei o que for necessário para defender a minha privacidade. Estou sendo bem claro?

As sobrancelhas de Benloise se abaixaram, os olhos escuros se zangando.

– Estou? – murmurou Assail.

Havia, obviamente, apenas uma resposta. Levando-se em consideração que o humano desejava viver mais do que até aquele final de semana.

– Sabe, você me lembra o seu predecessor – Benloise disse num sotaque britânico. – Conheceu o Reverendo?

– Sim, frequentamos alguns dos mesmos círculos.

– Ele foi assassinado de modo bem violento. Cerca de um ano atrás, não? A boate dele foi explodida.

– Acidentes acontecem.

– Normalmente em casa, pelo que ouvi dizer.

– Algo de que deve sempre se lembrar.

Enquanto Assail sustentava aquele olhar, Benloise desviou o dele primeiro. Pigarreando, o maior importador de drogas da costa leste passou a palma da mão sobre o tampo lustroso da mesa, como se sentisse os veios da madeira.

– Os nossos negócios – disse Benloise – têm um delicado ecossistema que, por conta de toda a sua robustez financeira, deve ser mantido cuidadosamente. A estabilidade é rara e muito desejável para homens como você e eu.

– Concordo. E para que isso aconteça, pretendo retornar à conclusão da noite com o meu pagamento desse ínterim, conforme planejado. Como sempre, venho a você em boa fé, e não lhe dou motivos para duvidar das minhas intenções.

Benloise lhe ofereceu outro sorriso suave.

– Você faz parecer como se eu estivesse por trás – ele moveu a mão num gesto aleatório de dispensa no ar – do que quer que o tenha incomodado.

Inclinando-se para frente, Assail deixou o queixo cair e o encarou.

– Não estou incomodado. Ainda.

Uma das mãos de Benloise sub-repticiamente saiu do campo de visão. Uma fração de segundo depois, Assail ouviu a porta do outro lado do cômodo se abrir.

Mantendo a voz baixa, Assail disse:

– Isto foi uma cortesia para você. Da próxima vez que eu encontrar alguém na minha propriedade, quer você o tenha enviado ou não, não demonstrarei nem metade dessa educação.

Dito isso, levantou-se e enterrou o charuto no tampo da mesa.

– Desejo-lhe uma boa noite – disse antes de sair.


CAPÍTULO 14

Aquilo sim é que era começar tarde.

Enquanto Qhuinn se desmaterializava para longe da mansão, ele custava a acreditar que já fosse dez da noite e eles estavam apenas começando. Pensando bem, a Irmandade ficou enfiada no escritório de Wrath pelo que pareceu uma eternidade e quando ele e John, por fim, foram admitidos, o anúncio de V. de que a prova contra o Bando de Bastardos era concreta levou a mais uma bela meia hora de excomunhão de Xcor e dos comparsas.

Diferentes usos criativos para a palavra arregaçar, bem como excelentes sugestões de onde se enfiar objetos inanimados.

Ele jamais pensara em fazer aquilo com um rastelo, por exemplo. Divertido. Muito divertido.

E Blay perdera aquilo tudo.

Retomando forma numa área florestal a sudoeste do complexo, Qhuinn evitou pensar em que tipo de interferências o pudesse ter retardado, ainda que a verdade fosse que o lutador subira para o quarto e não voltara. E por mais que a maioria dos acidentes acontecesse em casa, seria um bom palpite deduzir que ele não escorregara e caíra.

A menos que Saxton estivesse brincando com o tapete no piso de mármore do banheiro.

Sentindo como se quisesse se estapear, vasculhou o cenário coberto de neve enquanto John, Rhage e Z. surgiam ao seu lado. As coordenadas daquela localização foram encontradas nos telefones dos ladrões de carro da noite anterior, a propriedade aparentemente abandonada cerca de quinze a vinte quilômetros além do local em que ele encontrara o Hummer roubado.

– Que diabos é isso?

Enquanto alguém falava, ele olhou por sobre o ombro. “Que diabos” estava certo: assomando-se atrás deles estava uma construção tão alta quanto um campanário de igreja e tão simples quanto uma lata de lixo reciclável.

– Hangar de aviões – anunciou Zsadist ao começar a andar naquela direção. – Só pode ser.

Qhuinn o seguiu, tomando a retaguarda caso alguém resolvesse fazer uma surpresa.

Do nada, Blay apareceu, todo coberto em couro e tão armado quanto o resto deles. Em reação, os pés de Qhuinn diminuíram de velocidade, depois pararam na neve, em boa parte porque não queria tropeçar e parecer um tolo.

Puxa, ele parecia bem sério. Haveria problemas no paraíso?

Ainda que não existisse nenhum contato visual entre eles, Qhuinn se sentiu compelido a dizer algo:

– O que...

Não concluiu a frase. Por que se importar? O cara passou por ele como se ele nem estivesse ali.

– Estou bem – murmurou Qhuinn, voltando a avançar pela neve compacta. – Obrigado por perguntar. Ah, está tendo problemas com Saxton? Mesmo? Que tal sairmos para tomar um drinque e conversar a respeito? É? Perfeito. Posso ser a sua menta pós-jantar e...

Ele interrompeu o monólogo fantasioso quando a brisa mudou de direção e seu nariz captou algo adocicado e desagradável.

Todos sacaram as armas e se concentraram no hangar.

– Estamos a favor do vento – observou Rhage –, portanto, a bagunça aí dentro deve ser incrível.

Os cinco se aproximaram da construção com cautela, espalhando-se e vasculhando o ambiente iluminado pelo luar à procura de algo que se movesse.

O hangar tinha duas entradas, uma bipartida e grande o bastante para deixar passar a envergadura de uma asa, e a outra supostamente para pessoas, que, em comparação, parecia do tamanho de uma Barbie. E Rhage tinha razão: apesar de o vento gélido os atingir pelas costas, o cheiro era forte o bastante para aguçar as narinas, e não no bom sentido.

Caramba, o frio costumava aplacar o fedor.

Comunicando-se por gestos, dividiram-se em dois grupos, com ele e John ficando num dos lados das portas duplas gigantes, e Rhage, Blay e Z. na entrada menor.

Rhage, como era de se esperar, tentou a maçaneta enquanto todos se preparavam para um confronto. Se houvesse o equivalente a um time de futebol de redutores ali, fazia sentido enviar o Irmão primeiro, porque ele tinha o tipo de retaguarda que ninguém tinha: a besta amava assassinos, e não no sentido de ter um relacionamento com eles.

Quem tinha falado em menta mesmo?

Hollywood levou a mão acima da cabeça. Três... dois... um...

O Irmão penetrou no silêncio absoluto, empurrando a porta e entrando sorrateiramente. Z. foi em seguida e Blay o acompanhou.

Qhuinn sentiu um segundo de puro terror quando o macho saltou para o desconhecido com nada além de um par de pistolas .40 para protegê-lo. Deus, a ideia de que Blay pudesse morrer naquela noite, bem na sua frente, naquela missão comum, fez com que ele quisesse parar com toda aquela tolice de defender a raça e transformar o lutador num bibliotecário. Ou modelo de mãos. Ou cabeleireiro...

O assobio que surgiu menos de sessenta segundos depois foi uma dádiva de Deus. O sinal de Z. de que estava tudo bem para que ele e John se reposicionassem, indo para a lateral da agora porta aberta e passando por...

Ok. Uau.

Falando em fedor. Nota máxima...

Os três que entraram antes ligaram as lanternas, e os fachos de luz cortaram o espaço cavernoso, atravessando a escuridão, iluminando o que a princípio não parecia ser nada além de uma camada de gelo negro. A não ser pelo fato de não ser preto e de não estar congelado. Era sangue humano engrossado – uns mil litros da coisa. Misturado com uma boa quantidade de Ômega.

O hangar foi o local de uma iniciação em massa, numa escala que tornava o que acontecia há um tempo naquela casa de campo nada mais do que uma brincadeira de criança.

– Acho que os garotos que você castigou estavam vindo para uma festa e tanto – comentou Rhage.

– Bem observado – murmurou Z.

Enquanto fachos de luz destacavam um velho e decrépito avião no fundo, e absolutamente nada mais, Z. balançou a cabeça.

– Vamos vasculhar o exterior. Não há nada aqui.

Visto que o chalé não prometia muito pelo lado de fora, apenas uma típica cabana de caçador/pescador no meio da floresta, o Sr. C. sentiu-se tentado a ignorar a maldita coisa. A perfeição tinha as suas virtudes, contudo, e a localização do chalé, cerca de uns dois ou três quilômetros para dentro daquele pedaço de terra, sugeria que ele podia ter sido usado como um quartel-general a certa altura.

Levando-se tudo em consideração, teria sido mais inteligente verificar a propriedade antes de ele ter usado o hangar para a maior iniciação da história da Sociedade Redutora. Mas as prioridades se apresentaram daquele modo. Primeiro, ele teve que se colocar no controle; segundo, de justificar a promoção; e terceiro, de lidar com todos aqueles novos redutores.

E isso significava que ele precisava de recursos. Rápido.

Seguindo a cerimônia grande e suja de Ômega, e o período nauseante que durou algumas horas depois, o Sr. C. ordenara que os novos recrutas subissem num ônibus escolar que ele roubara de uma loja de veículos usados uma semana antes. Devido à exaustão e ao desconforto físico em que se encontravam, portaram-se como garotinhos obedientes, entrando e sentando-se dois a dois como se estivessem numa porra de uma Arca de Noé.

Dali, ele mesmo dirigira (por não confiar esse tipo de bem a qualquer um) para a Escola para Garotas de Brownswick. A extinta escola preparatória ficava no subúrbio em 35 acres de propriedades ignoradas, dilapidadas e cobertas de mato, e os boatos de ser assombrada mantinham afastadas as pessoas normais.

Por enquanto, a Sociedade Redutora estava desabrigada, mas a placa “Vende-se” na curva perto da estrada significava que ele poderia dar um jeito nisso. Tão logo arranjasse algum dinheiro.

Com os rapazes terminando de se recuperar na escola, e os assassinos atuais no centro à procura da Irmandade, ele estava por conta catalogando as poucas propriedades restantes da Sociedade – inclusive aquele pedaço praticamente deserto de floresta ao norte da cidade.

Embora começasse a acreditar que estivesse perdendo tempo.

Subindo na varanda do chalé, iluminou o interior com uma lanterna. Fogão antigo. Mesa de madeira tosca com duas cadeiras. Três camas sem colchão, nem lençóis. Quitinete.

Dando a volta para os fundos, ele encontrou um gerador sem combustível e um tanque de diesel enferrujado, o que sugeria que o lugar teve algum tipo de aquecimento em alguma época.

Voltando para a frente, tentou a porta e descobriu-a trancada.

Não fazia diferença. Não havia muita coisa ali.

Pegando um mapa de dentro da jaqueta de aviador, desdobrou-o e encontrou sua localização. Verificando o quadradinho, pegou a bússola, ajustou a direção e começou a caminhar para o noroeste.

De acordo com aquele mapa, que ele havia encontrado no antro de drogas do Redutor Principal, aquele pedaço de propriedade totalizava cinco acres e tinha esse tipo de chalé espalhado em intervalos randômicos. Ele imaginava que o lugar devia ter sido algum tipo de acampamento com proprietários múltiplos, um tipo de reserva de caça moderna que se perdera para a carga tributária do Estado de Nova York e depois comprada pela Sociedade nos anos oitenta.

Pelo menos era isso o que estava escrito à mão no canto, embora só Deus soubesse se a Sociedade ainda era a proprietária daquilo. Considerando-se a situação financeira da organização, o bom e velho Estado de Nova York poderia bem ter o penhor da propriedade a esta altura, ou até mesmo tê-la reempossado.

Ele parou e verificou a bússola novamente. Caramba, sendo urbano, ele detestava vagar pela floresta à noite, superando a neve com dificuldade, verificando aquele tipo de merda como se fosse algum tipo de guarda florestal. Mas ele tinha de ver com seus próprios olhos aquilo com que tinha que trabalhar, e só havia um modo de fazer isso.

Ao menos tinha um fluxo de receita preparado.

Nas próximas 24 horas, quando aqueles garotos estivessem finalmente de pé, ele voltaria a preencher os cofres. Aquele era o primeiro passo rumo à recuperação.

Passo número dois?

A dominação do mundo.


CAPÍTULO 15

Ela estava sangrando.

Quando Layla olhou para o papel higiênico na mão, a mancha vermelha em todo aquele branco era o equivalente visual de um grito.

Esticando a mão para trás, deu a descarga, e teve que usar a parede para se equilibrar ao se levantar. Com uma mão no baixo ventre e a outra sobre a bancada da pia e depois na maçaneta, ela tropicou para o quarto e foi direto para o telefone.

Seu primeiro instinto foi ligar para a doutora Jane, mas decidiu não fazer isso. Concluindo que estava sofrendo um aborto espontâneo, existia a possibilidade de poupar Qhuinn da ira do Primale. Desde que ela deixasse aquilo debaixo dos panos. E usar a clínica geral da Irmandade provavelmente não seria o melhor modo de assegurar privacidade.

Afinal, só havia um motivo para uma fêmea sangrar. E perguntas a respeito do seu cio e de como ela lidara com isso inevitavelmente se seguiriam.

Na mesinha de cabeceira, ela abriu uma gaveta e retirou um caderninho preto. Encontrando o número da clínica da raça, ela discou com mãos trêmulas.

Quando desligou pouco depois, tinha um horário marcado para dali a trinta minutos.

Mas como sairia dali? Não poderia se desmaterializar, estava ansiosa demais e, de qualquer modo, fêmeas grávidas eram desencorajadas a fazer isso. E ela também não se sentia forte o bastante para dirigir até lá. As aulas de Qhuinn foram bem abrangentes, mas ela não conseguia se imaginar, em seu estado, pegando a autoestrada e tentando acompanhar o fluxo do tráfego humano.

Fritz Perlmutter era a sua única resposta.

Indo até o armário, pegou uma camisola macia, torceu-a numa corda espessa e colocou-a entre as pernas com a ajuda de diversos pares de calcinha. A solução para o seu problema de sangramento mostrou-se incrivelmente volumosa e dificultou o andar, mas esse era o menor dos seus problemas.

Um telefonema para a cozinha garantiu que o mordomo a levaria.

Agora ela só precisava descer as escadas, sair pelo vestíbulo e entrar inteira no enorme sedã. Tudo isso sem se deparar com nenhum macho da casa.

Bem quando estava para sair do quarto, viu seu reflexo no espelho na parede. O manto branco e seu penteado formal anunciavam seu status de Escolhida como nenhuma outra coisa. Ninguém além das fêmeas sagradas da Virgem Escriba da espécie se vestia daquela forma.

Mesmo se aparecesse sob o nome fictício que fornecera à recepcionista, todos adivinhariam sua afiliação sobrenatural.

Tirando o manto, tentou entrar num par de calças de ioga, mas o enchimento que ajustara em si impossibilitou isso. E os jeans que ela e Qhuinn compraram juntos também não estavam dando certo.

Tirando a camisola, ela usou papel higiênico do banheiro para lidar com o problema e conseguiu entrar nos jeans. Um suéter pesado a esquentaria e uma bela escovada nos cabelos e um rabo de cavalo faria com que ela parecesse... quase normal.

Saindo do quarto, ela segurou o tal do celular que Qhuinn lhe dera. Passou pela sua cabeça telefonar para ele, mas, na verdade, o que diria? Ele tinha tanto controle sobre aquele processo quanto ela...

Ah, santa Virgem Escriba, ela estava perdendo o bebê.

O pensamento lhe ocorreu bem quando ela chegou ao topo da escadaria principal. Ela estava perdendo o bebê deles. Naquele instante. Ali do lado de fora do escritório do Rei.

De repente, o teto caiu sobre a sua cabeça e as paredes do vestíbulo grande e espaçoso a apertaram tanto que ela não conseguia respirar.

– Sua Graça?

Estremecendo, ela olhou para baixo para a passadeira vermelha. Fritz estava ao pé das escadas, vestido em seu costumeiro uniforme, e sua adorável e anciã expressão carregada de preocupação.

– Sua Graça, vamos agora? – perguntou ele.

Quando ela assentiu e desceu com cuidado, não conseguia crer que tudo aquilo fora para nada, todas aquelas horas de esforço com Qhuinn... os gélidos momentos seguintes nos quais ela não conseguia se mover... a espera e antecipação de uma esperança quieta e traiçoeira.

O fato de ter cedido o presente de sua virgindade a troco de nada.

Qhuinn sofreria tanto, e o fracasso que ela impingiria a ele só aumentava imensamente o seu próprio sofrimento. Ele sacrificara o corpo durante o cio dela, o desejo dele de ter um laço de sangue incitando-o a fazer algo que ele não teria, de outro modo, escolhido fazer.

O fato de a biologia ter suas vontades não a aliviava.

A perda... ainda parecia ser culpa sua.

Tomar outra dose para acabar com a ressaca.

Saxton acreditava que esse adágio era grosseiro, no entanto, verdadeiro.

Parado nu diante do espelho do banheiro, abaixou o secador e passou os dedos pelos cabelos. As ondas se assentaram em seu estado normal, os fios loiros encontrando uma disposição perfeita para complementar o rosto quadrado e equilibrado.

A imagem que ele via era exatamente aquela da noite anterior, e da anterior àquela, contudo, por mais familiar que seu reflexo fosse, ele se sentia como se pertencesse a uma pessoa diferente, à parte.

Seu corpo mudara tanto por dentro, parecia bem razoável deduzir que a transformação se ecoaria na aparência. Deus, não era assim!

Virando e saindo para o closet, imaginou que não deveria se surpreender, tanto pelo seu íntimo perturbado quanto pelo seu exterior de falsa compostura.

Depois que ele e Blay conversaram, ele precisou de uma hora para tirar tudo do quarto em que ficara com o antigo amante e voltar para a suíte no fim do corredor. Ele recebera aquelas acomodações quando fora morar na mansão, porém, conforme as coisas progrediram com Blay, seus pertences gradualmente migraram para o outro quarto.

Esse processo migratório fora crescente, assim como o seu amor: um caso de uma camisa aqui e um par de sapatos acolá, uma escova de cabelos uma noite e meias na seguinte... uma conversa de valores partilhados seguida por uma maratona de sete horas de sexo acompanhada por um pote de sorvete de café Breyers com apenas uma colher.

Ele não percebera a distância transposta pelo seu coração, do mesmo modo como um andarilho se vê perdido em meio à selva. Contudo, quinze quilômetros e um determinado número de bifurcações em seu caminho mais tarde e não havia como voltar. Àquela altura, não restava alternativa a não ser organizar seus recursos para construir um abrigo e criar raízes novas.

Ele deduzira que construiria seu novo espaço pessoal com Blay.

Sim, deduzira. Afinal, por quanto tempo poderia sobreviver um amor não correspondido? Como o fogo precisa de oxigênio para queimar, assim é com as emoções.

Não no que se referia a Qhuinn, ao que tudo levava a crer. Não para Blay.

Saxton estava decidido a não sair da mansão real, porém. Quanto a isso, Blay tinha razão: Wrath, o Rei, precisava dele, e, mais do que isso, ele gostava do seu trabalho ali. Era ágil, desafiador... e a parte egoísta que havia dentro de si queria ser o advogado que reformaria a lei da maneira correta.

Deduzindo-se que o trono não seria tomado e que ele não fosse decapitado num novo regime.

Mas não se podia viver preocupado com coisas como essa.

Pegando um terno de xadrez escocês do closet, escolheu uma camisa e um colete e estendeu tudo sobre a cama.

Era um clichê triste, bem desestimulante, sair para procurar algo núbil e espiritual para aplacar a dor, mas ele preferia ter um orgasmo a se embriagar. Além disso, o “finja até encontrar um propósito novamente” parecia dar certo.

E parecia especialmente verdadeiro quando ele se olhou arrumado no espelho de corpo inteiro do banheiro, e isso ajudava.

Antes de sair, verificou o celular novamente. As Leis Antigas foram remodeladas seguindo as ordens de Wrath, e agora ele estava de prontidão, à espera da nova tarefa.

Deduziu que logo descobriria o que seria.

Wrath era notoriamente exigente, mas nunca irracional.

Nesse ínterim, ele afogaria sua tristeza no único tipo de “loira gelada” que o apetecia... algo com vinte e poucos anos, lá pelos seus um e oitenta de altura, atlético...

E preferivelmente moreno. Ou loiro.


CAPÍTULO 16

– Alguém já passou por aqui.

Enquanto Rhage falava, Qhuinn pegou sua lanterna de bolso e apontou o discreto facho de luz para o chão. E lá estavam pegadas na neve fresca, sem nenhuma cobertura de flocos... que partiam diretamente para a clareira da floresta. Desligando a luz, ele se concentrou no chalé de caça mais à frente que parecia estar abandonado ao clima frio: nenhuma fumaça subindo pela chaminé, nenhuma iluminação interna e, mais importante, nenhum rastro de cheiro.

Os cinco se aproximaram, circundando a clareira e se movimentando sorrateiramente num ângulo amplo. Como não houve nenhuma ação defensiva de parte alguma, todos subiram na varanda e espiaram o interior pelas janelas estreitas.

– Nada – murmurou Rhage ao ir para a porta.

Uma tentativa rápida na maçaneta. Fechada.

Com um empurrão, o Irmão esmagou o ombro imenso contra o batente e mandou a coisa pelos ares, fragmentos da tranca caindo espalhados bem como lascas de madeira.

– Olá, querida, cheguei – gritou Hollywood ao marchar para dentro.

Qhuinn e John seguiram o protocolo e ficaram na varanda enquanto Blay e Z. entravam e vasculhavam.

A floresta estava quieta ao redor deles, mas seus olhos aguçados acompanharam aquelas pegadas... que, depois de uma passeada pelo chalé, seguiam para o noroeste.

Por certo era indício de que alguém estava ali com eles, vasculhando a propriedade ao mesmo tempo.

Humano? Redutor?

Ele acreditava mais na última opção, devido a toda aquela bagunça no hangar, e também por aquele lugar ser remoto e relativamente seguro por conta disso.

Ainda que houvessem de querer trazer a Stanley Steemer* para aquela construção para uma bela limpeza antes.

A voz de Blay surgiu através da porta aberta.

– Achei uma coisa.

Qhuinn teve que recorrer a todo o seu treinamento a fim de não parar de inspecionar o cenário e olhar para dentro. Não porque ele se importasse particularmente com o que fora encontrado. Durante todo aquele processo, ele vinha checando Blay constantemente, só para ver se o humor dele mudara.

Se mudara, fora para pior.

Vozes baixas se fizeram ouvir dentro do chalé, e depois os três emergiram.

– Encontramos uma caixa trancada a chave – anunciou Rhage ao baixar o zíper da jaqueta e enfiar o contêiner longo e estreito de metal junto ao peito. – Abriremos mais tarde. Primeiro, vamos encontrar o dono dessas botas, rapazes.

Desmaterializando-se rapidamente a cada quinze ou vinte metros, eles se espalharam pelas árvores, rastreando as pegadas na neve, seguindo em silêncio.

Depararam-se com o redutor um quilômetro adiante.

O assassino solitário marchava pela floresta coberta de neve num passo que somente um humano com treinamento olímpico teria conseguido sustentar por algumas centenas de metros. As roupas eram escuras, havia uma mochila nas costas e o fato de ele estar se movimentando apenas com a própria visão eram indicadores de que se tratava do inimigo: a maioria dos Homo sapiens não conseguiria se mover com aquela rapidez com tão pouca iluminação sem a ajuda de uma luz artificial.

Gesticulando em código, Rhage orientou o grupo a fazer uma formação de triângulo reverso que dava a volta ao redor do rastro do redutor. Continuando a avançar junto a ele, observaram-no por uma área mais ou menos do tamanho de um campo de futebol e, em seguida, todos de uma vez aproximaram-se, circundando o assassino, e bloquearam-no em pontos cardinais opostos na mira das armas.

O redutor parou de andar.

Ele era um recruta mais jovem, o cabelo escuro e a pele oliva sugeriam que tivesse descendência mexicana ou italiana, e mereceu pontos por não demonstrar medo. Mesmo tendo caído numa cilada, ele só olhou tranquilamente por sobre o ombro, como que para confirmar que, de fato, fora emboscado.

– Como tem passado? – Rhage perguntou com a fala arrastada.

O redutor não se deu ao trabalho de responder, o que era o oposto do que vinham presenciando nos últimos tempos. Diferentemente dos outros, aquele não era um garotinho metido a esperto cheio de falatório. Calmo, perspicaz... Controlado, ele era o tipo de inimigo que melhorava o seu desempenho no trabalho.

Não exatamente algo ruim...

E, como era de se esperar, a mão dele desapareceu para dentro do casaco.

– Não seja idiota, cara – exclamou Qhuinn, preparado para meter uma bala no bastardo sem nenhum aviso adicional.

O redutor não deteve o movimento.

Tudo bem.

Ele apertou o maldito gatilho e derrubou o merdinha.

No segundo em que o redutor caiu na neve, Blay ficou imobilizado com a arma ainda apontada. Os outros fizeram o mesmo.

Segundos silenciosos se passaram, eles continuaram a encarar o assassino caído. Nenhum movimento. Nenhuma reação da área periférica. Qhuinn o incapacitara, e ele parecia estar trabalhando sozinho.

Engraçado, mesmo se Blay não tivesse ouvido o tiro à esquerda do seu ouvido, ele teria sabido que o atirador fora Qhuinn: qualquer outro teria dado ao inimigo outra chance para reconsiderar.

O sinal para que se aproximasse foi o assobio de Rhage. Os cinco se moveram como uma matilha de lobos ao redor de sua presa, rápidos e confiantes, cruzando a neve com as armas erguidas. O assassino permaneceu absolutamente imóvel, mas não houvera uma morte na família, por assim dizer. Para isso, seria preciso que uma adaga de aço lhe atravessasse o peito.

Porém, aquele era o estado desejável. Queriam que ele fosse capaz de falar.

Ou, pelo menos, que estivesse em condições de ser forçado a falar...

Mais tarde, quando repassou o que aconteceu em seguida... quando sua mente ardeu obsessivamente a respeito dos fatos... quando ficou acordado tentando entender como as peças se encaixaram na esperança de adivinhar uma mudança de procedimento que garantisse que algo semelhante nunca mais acontecesse... Blay se demoraria naquela mudança de eventos.

Aquele leve tremor no braço. Apenas uma contração muscular aparentemente desconectada de qualquer pensamento consciente ou vontade. Nada perigoso. Nenhum sinal do que estava por vir.

Apenas uma contração.

A não ser pelo fato de que, com um movimento mais rápido que um piscar de olhos, o assassino sacou uma arma sabe-se lá de onde. Foi sem precedentes. Num segundo ele estava como morto no chão; no seguinte, estava atirando de modo controlado num raio amplo.

E mesmo antes de os sons dos tiros pararem, Blay percebeu a imagem horripilante de Zsadist levando chumbo bem no coração, um impacto tão forte que foi capaz de deter o avanço do Irmão, o torso catapultando para trás, os braços se abrindo enquanto ele caía no chão.

No mesmo instante, a dinâmica mudou. Ninguém mais queria interrogar o maldito.

Quatro adagas foram desembainhadas. Quatro corpos se adiantaram. Quatro braços talharam com lâminas afiadas e frias. Quatro impactos, um após o outro.

Tarde demais, porém.

O assassino desaparecera bem diante deles, as armas golpeando a neve manchada onde o inimigo estivera deitado, em vez de atingirem uma cavidade torácica vazia.

Que seja. Haveria tempo para se perguntarem quanto ao desaparecimento improcedente mais tarde. No momento, eles tinham um soldado caído.

Rhage praticamente se lançou sobre o Irmão, colocando o corpo diante de tudo e todos.

– Z.? Z.? Ai, mãe da raça...

Blay sacou o telefone e discou. Quando Manny Manello atendeu, não havia tempo a perder.

– Temos um Irmão ferido. Tiro no peito...

– Espere!

A voz de Z. foi uma surpresa. Assim como o braço do Irmão levantando e empurrando Rhage para o lado.

– Saia de cima de mim!

– Mas estou tentando fazer ressuscitação cardio...

– Prefiro morrer antes de beijar você, Hollywood – Z. tentou se sentar, estava com a respiração pesada. – Nem pense nisso.

– Alô? – a voz de Manello disse ao telefone. – Blay?

– Espere...

Qhuinn se ajoelhou perto de Zsadist, e apesar do fato de o Irmão não gostar de ser tocado, segurou-o por debaixo do braço e ajudou o macho a suspender o torso do chão.

– Estou com a clínica na linha – disse Blay. – Qual o seu estado?

Em resposta, Z. levou a mão até a bainha da adaga e a puxou. Depois, abaixou o zíper da jaqueta de couro e rasgou a camiseta ao meio.

Para revelar o mais lindo colete à prova de balas que Blay jamais vira.

Rhage se curvou em sinal de alívio, a ponto de Qhuinn ter que segurá-lo com a mão livre para que o cara também não caísse no chão.

– Kevlar – Blay murmurou para Manello. – Ah, graças a Deus, ele está usando um Kevlar.

– Que ótimo, mas escute, preciso que você tire o colete e verifique se ele deteve a bala, ok?

– Entendido – olhou de relance para John, contente em ver que ele estava de pé, com as duas armas adiante, os olhos vasculhando o ambiente enquanto o resto deles avaliava a situação. – Vou cuidar disso.

Blay se aproximou e se agachou na frente do Irmão. Qhuinn podia ter tido a coragem de fazer contato com Zsadist, mas ele não faria isso sem permissão expressa.

– O doutor Manello quer saber se você pode tirar o colete para que possamos ver se existe algum ferimento.

Z. moveu os braços e depois franziu o cenho. Tentou novamente. Depois da terceira tentativa, o Irmão conseguiu levantar as mãos até as tiras de velcro, mas elas não conseguiam fazer muita coisa.

Blay engoliu com força.

– Posso cuidar disso? Prometo não tocar em você o quanto for possível.

Ótima gramática ali. Mas ele falava sério.

Os olhos de Z. se levantaram para ele. Estavam negros de dor, e não amarelos.

– Faça o que tem que fazer, filho. Vou aguentar.

O Irmão desviou o olhar, o rosto contraído numa careta, a cicatriz que formava o S do alto do nariz até o canto da boca destacando-se num relevo alto.

Com um sermão severo, Blay ordenou às suas mãos que ficassem firmes, e a mensagem de algum modo foi levada adiante: ele puxou as tiras que o prendiam nos ombros, o barulho mais alto do que o grito em sua cabeça, e depois retirou o colete, aterrorizado pelo que descobriria.

Havia uma grande marca redonda bem no meio do peito musculoso de Z. Bem onde ficava o coração.

Mas era apenas um hematoma. Não um buraco.

Apenas um hematoma.

– Somente ferimento superficial – Blay afundou o dedo no preenchimento denso do colete e encontrou a bala. – Estou sentindo a bala dentro do colete.

– Então por que não consigo mexer meu...

O cheiro de sangue fresco do Irmão pareceu atingir todos os narizes ao mesmo tempo. Alguém praguejou, e Blay se inclinou.

– Você também foi alvejado debaixo do braço.

– É ruim? – Z. perguntou.

Pelo telefone, Manello disse:

– Dê uma olhada e veja o que consegue descobrir.

Blay suspendeu o braço pesado e iluminou a parte interna com uma lanterna de bolso. Aparentemente, uma bala entrara no torso pela pequena parte desprotegida nas axilas – um tiro em um milhão que se você tentasse recriar, não conseguiria repetir.

Merda.

– Não vejo o buraco da saída. É bem na lateral das costelas, no alto.

– Ele está respirando bem? – perguntou Manello.

– Com dificuldade, mas regular.

– Reanimação cardiorrespiratória foi administrada?

– Ele ameaçou castrar Hollywood se houvesse qualquer contato labial.

– Escute aqui, deixe eu me desmaterializar – Z. tossiu um pouco. – Me dê um pouco de espaço...

Todos ofereceram uma variedade de opiniões a essa altura, mas Zsadist não aceitou nenhuma delas. Empurrando-os, o Irmão fechou os olhos e...

Blay soube que estavam com problemas sérios quando nada aconteceu. Sim, Zsadist não fora morto, e estava muito melhor do que estaria se estivesse sem o colete. Mas não conseguia se movimentar – e eles estavam no meio do nada, tão floresta adentro que mesmo que chamassem por reforços, ninguém conseguiria levar um carro até quilômetros de onde estavam.

E o pior? Blay tinha a sensação de que o assassino que derrubaram era algo consideravelmente pior do que um redutor qualquer.

Não havia como saber quando os reforços chegariam.

O som de uma mensagem de texto chegando ao celular de um deles soou, e Rhage a leu.

– Merda. Os outros estão presos no centro da cidade. Teremos que cuidar disso sozinhos.

– Maldição – Zsadist murmurou entredentes.

Sim. A situação era mais ou menos essa.

* Empresa americana especializada em limpeza residencial usando máquina a vapor. (N.T.)


CAPÍTULO 17

Xcor não esperara aquilo.

Enquanto ele e seus soldados se materializavam na localização da alimentação comunal arranjada, ele esperara uma propriedade decaída ou, quem sabe, à beira da condenação, um lugar num estado tão deplorável que uma fêmea seria forçada a vender suas veias e seu sexo para sobreviver.

Nada disso.

A propriedade alcançava os padrões da glymera, a imensa mansão no alto da colina se destacava em sua iluminação, os jardins impecavelmente bem podados, o chalé menor da criadagem perto dos portões em perfeito estado apesar da idade óbvia.

Talvez ela fosse uma prima distante de alguém de linhagem mais importante?

– Quem é essa fêmea? – ele perguntou a Throe.

Seu tenente deu de ombros.

– Não sei nada de sua família. Mas verifiquei a filiação dela com uma linhagem de valor.

Ao redor deles, os soldados estavam ansiosos, os coturnos de combate socando a neve compacta aos seus pés enquanto andavam no mesmo lugar, a respiração escapando dos narizes como se eles fossem cavalos de corrida prestes a explodirem para fora dos portões da pista.

– Há que se perguntar se ela sabe para o que se ofereceu – murmurou Xcor, nem um pouco preocupado se a fêmea sabia ou não.

– Vamos? – perguntou Throe.

– Sim, antes que os outros se descontrolem e invadam aquele chalé dela.

Throe se desmaterializou até a porta singular, com seu topo arqueado e com uma lamparina que se esperaria ver do lado de fora de uma casa de bonecas. Porém, seu braço direito não foi persuadido pelo charme. A iluminação acima de sua cabeça logo foi cortada, certamente ao comando de Throe, e a batida à porta do soldado foi rápida e severa, uma exigência, não um pedido.

Momentos depois, a porta se abriu. A luz de uma lareira escapou para a noite, o brilho dourado das labaredas tão intenso que sugeria que elas conseguiriam derreter a camada de neve – e bem no meio daquela iluminação adorável, a figura de uma fêmea destacava uma silhueta escura e curvilínea.

Ela estava nua. E o cheiro que foi carregado pela brisa gélida indicava que ela estava pronta.

Zypher rosnou baixinho.

– Contenha-se – exigiu Xcor. – Não deixe que a sua avidez seja usada como uma arma contra nós.

Throe falou com ela e depois enfiou a mão no bolso para pegar o dinheiro. A fêmea aceitou o que lhe foi dado e depois esticou um braço no batente, angulando o corpo de modo a fazer com que um seio farto fosse iluminado por aquele brilho suave.

Throe olhou de relance sobre o ombro e acenou com a cabeça.

Os outros não esperaram por um segundo convite. Os lutadores de Xcor convergiram para a entrada, os corpos másculos tão grandes e tão numerosos, que a fêmea logo ficou invisível.

Praguejando, ele também se aproximou andando.

Zypher naturalmente foi o primeiro, tomando-a nos lábios e apalpando os seios, mas ele não foi o único. Os três primos brigaram por suas posições, um indo para trás e arqueando os quadris, como se estivesse esfregando o pau contra o traseiro dela, os outros dois alcançando os mamilos e o sexo dela, as mãos serpenteando conforme ela foi envolvida.

Throe falou acima dos gemidos crescentes.

– Vou montar guarda do lado de fora.

Xcor abriu a boca para ordenar o contrário, e depois percebeu que pareceria como se ele estivesse evitando a cena, e isso dificilmente seria algo másculo.

– Faça isso – murmurou. – Monto guarda no interior.

Seus machos pegaram a fêmea, as mãos das adagas segurando-a pelos braços, coxas e cintura, e, em conjunto, carregaram-na para o interior aconchegante do chalé. Foi Xcor quem fechou a porta e se certificou de que não havia nenhuma tranca para confiná-los. Também foi ele quem vasculhou o interior do chalé. Enquanto seus bastardos carregavam seu alimento para a frente da lareira, onde um tapete de peles recobria o chão, ele se inclinou em uma janela fechada, levantou a cortina e verificou os vitrôs. Antigos e chumbados, com suportes de madeira, não de aço.

Nada seguros. Ótimo.


– Alguém entre em mim – a fêmea gemeu numa voz profunda.

Xcor não se preocupou em ver se a obedeceram ou não, ainda que o gemido ofegante sugerisse que o fora. Em vez disso, olhou ao redor, procurando outras portas e lugares nos quais uma emboscada poderia ser armada. Aparentemente, não existia nenhum. O chalé não tinha um segundo andar, o esqueleto do teto formava um arco acima da sua cabeça e só havia um banheiro pequeno, cuja porta estava entreaberta e a luz acesa revelava um pé em forma de garra da banheira e uma pia em estilo antigo. A cozinha aberta não passava de uma bancada com alguns poucos eletrodomésticos modestos.

Xcor olhou para a ação. A fêmea estava deitada de costas, com os braços abertos formando um T, o pescoço exposto, as pernas escancaradas. Zypher montara nela e a penetrava ritmadamente, fazendo com que a cabeça subisse e descesse no tapete branco fofo enquanto ela absorvia os impactos. Dois dos primos se agarraram aos seus pulsos, e o terceiro tirara o pênis para fora e a fodia na boca. Na verdade, havia pouco dela que não estivesse coberto por machos vampiros, e seu êxtase por estar sendo usada era óbvio não somente aos olhos, mas também aos ouvidos: ao redor da ereção que entrava e saía dos lábios abundantes, a respiração pesada e os gemidos eróticos escapavam para a atmosfera carregada de sexo.

Xcor caminhou até a bancada da cozinha. Não havia nada ali, nenhum resto de comida, nenhum copo abandonado meio cheio. Havia pratos nos armários, contudo, e quando ele abriu a grande geladeira de estilo europeu, garrafas de vinho branco estavam organizadas horizontalmente nas prateleiras.

Uma imprecação masculina atraiu seu olhar para a diversão. Zypher estava gozando, os corpos se arqueando para frente enquanto a cabeça pendia para trás e, em meio ao seu orgasmo, um dos primos o afastava, assumindo seu posto, levantando os quadris da fêmea e se afundando no sexo rosado e molhado. Pelo menos Zypher parecia completamente satisfeito de trocar de lugar; ele expôs as presas, afundou a cabeça debaixo do peito agora arfante do seu camarada e beliscou o seio da fêmea para poder se alimentar perto do mamilo.

Aquele que estava na boca também gozou, e ela sorveu todo o sêmen, sugando a cabeça do pênis do lutador, soltando-a em seguida e lambendo os lábios úmidos como se ainda estivesse com fome. Alguém logo a atendeu, outra ereção bombeando seus lábios, os ritmos contrários das investidas do que acontecia em sua cabeça e entre as pernas balançando-a para frente e para trás num modo que ela parecia apreciar.

Xcor voltou a verificar o banheiro, mas sua primeira avaliação estava correta: não havia onde se esconder naquele confinamento diminuto.

Tendo garantido o interior, ele não pensou em nada mais para fazer a não ser se recostar num canto que lhe oferecia a melhor visão de acesso e testemunhar a refeição. Conforme as coisas se intensificaram, seus lutadores perderam a aparente civilização que tinham, trocando de posição como leões sobre carniça fresca, as presas se revelando, os olhos selvagens de agressão enquanto eles lutavam por suas posições. No entanto, eles não perderam completamente as cabeças. Cuidaram da fêmea.

Não demorou e alguém cortou a própria veia, aproximando-a dos lábios dela.

Xcor baixou o olhar para as botas e permitiu que sua visão periférica monitorasse o ambiente.

Houve uma época em que se excitaria com aquilo. E não por se interessar particularmente pelo sexo, mas do mesmo modo como seu estômago roncava quando via comida. Dessa forma, no passado, quando sentia a necessidade de tomar uma fêmea, era o que teria feito. Normalmente no escuro, claro, para que a pobre garota não sentisse nem repulsa nem medo.

Ele bem podia imaginar que as expressões de excitação que os machos exibiam em seus rompantes eróticos pouco melhoraram sua aparência.

Mas agora? De maneira curiosa, sentia-se desligado de tudo aquilo, como se estivesse assistindo os machos carregando mobília de um lado para o outro ou, quem sabe, limpando as folhas em um jardim.

O motivo era a sua Escolhida, claro.

Tendo tido os lábios pressionados contra a pele pura, tendo olhando dentro dos olhos verdes luminosos, tendo sentido o perfume delicado dela, ele estava completamente desinteressado pelos charmes bem utilizados daquela fêmea diante da lareira.

Ah, a sua Escolhida... ele jamais soube que tal graça existisse e, além disso, não teria como imaginar que se sentiria tão completamente tocado por aquilo que era tão antitético para ele. Ela era o seu oposto, gentil e generosa, enquanto ele era brutal e impiedoso, bela para a sua feiura, etérea para a sua depravação.

E ela o marcara. Do mesmo modo como se o tivesse golpeado e deixado uma cicatriz em sua carne, ele estava ferido e enfraquecido por ela.

Não havia nada a ser feito.

Deus, mesmo as lembranças dos momentos que partilhara com ela, quando estivera completamente vestida, e ele, tão gravemente ferido, bastavam para excitá-lo, seu pobre sexo endurecendo por nenhum motivo aparente: mesmo que não estivessem em lados opostos na guerra pelo trono, ela jamais permitiria que ele a abordasse como um macho faz ao se enfeitiçar por uma fêmea de valor. Naquela noite outonal quando se encontraram debaixo daquela árvore, ela executara um ato válido segundo seus preceitos. Não tivera nada a ver com ele em particular.

Mas, ah, como ele a desejava mesmo assim...

Abruptamente, a fêmea diante da lareira se arqueou debaixo dos pesos orgásmicos que mudavam sobre ela, e ele voltou-lhe sua atenção. Como se ela percebesse sua excitação, o olhar enevoado e extasiado focalizou nele, e uma surpresa repentina cruzou sua expressão – ou o pouco que ele conseguia distinguir por cima do antebraço grosso que lhe oferecia alimento.

O choque arregalou seu olhar. Evidentemente, ela não notara a presença dele, mas agora que o fazia, o medo, e não a paixão, fez-se óbvio dentro dela.

Sem querer atrapalhar toda aquela ação, ele balançou a cabeça e estendeu a palma num gesto de “pare”, para garantir a ela que não teria de suportar sua mordida – ou pior, seu sexo.

A mensagem aparentemente funcionou, porque o medo abandonou sua expressão, e quando um dos soldados apresentou o pau pedindo atenção, ela o apanhou e começou a massageá-lo acima da sua cabeça.

Xcor sorriu para si mesmo de modo horripilante. Aquela prostituta não o queria, e mesmo assim, seu corpo, em toda a sua estupidez, insistia em reagir àquela Escolhida, como se a fêmea sagrada um dia fosse olhar para ele.

Tão tolo.

Consultando o relógio, surpreendeu-se ao ver que a refeição já vinha acontecendo há mais de uma hora. Que seja. Desde que seus machos obedecessem com suas duas regras básicas, ele não se importava em deixá-los continuar: tinham de permanecer substancialmente vestidos e as armas deveriam estar nos coldres com as travas desarmadas.

Dessa forma, se o clima mudasse, eles poderiam se defender rapidamente.

Ele estava mais do que disposto a lhes conceder aquele passatempo.

Depois daquele interlúdio? Muitos estariam no máximo de suas forças, e pelo modo como as coisas estavam com a Irmandade... eles precisariam estar assim.


CAPÍTULO 18

– Não. De jeito nenhum.

Qhuinn teve que concordar com a opinião de Z. quanto à ideia brilhante de Rhage.

O grupo já se esforçara na floresta, com Rhage suportando boa parte do peso de Z., enquanto os demais os circundavam aos pares, a postos para apanhar qualquer um ou qualquer coisa que os ameaçasse pelas margens. Agora estavam de volta ao hangar e a solução de Hollywood para o problema de mobilidade parecia uma complicação com implicações mortais, e não exatamente algo que de fato ajudasse.

– Pilotar não deve ser tão difícil – enquanto todos, inclusive Z., apenas o encaravam, Rhage deu de ombros. – O que foi? Os humanos o fazem o tempo todo.

Z. esfregou o peito e lentamente se deixou cair no chão. Depois de respirar, balançou a cabeça.

– Primeiro, você não sabe se... a maldita coisa... pode subir. Provavelmente... está sem combustível... e você nunca pilotou antes.

– Quer me contar a nossa outra opção? Ainda estamos a quilômetros de um ponto plausível para que nos busquem, você não está melhorando e podemos ser encurralados. Deixe-me pelo menos entrar lá para ver se consigo fazer o motor pegar.

– Não é uma decisão inteligente.

No silêncio que se seguiu, Qhuinn raciocinou e olhou para o hangar. Depois de um instante, disse:

– Eu dou cobertura. Vamos fazer isso.

No fim, Rhage estava certo. Aquela evacuação a pé estava demorando demais e o redutor desaparecera antes que o apunhalassem, e não o contrário.

Será que Ômega dera poderes especiais aos seus garotos?

Tanto faz. Um soldado inteligente jamais subestimava o inimigo, ainda mais quando um dos seus estava abatido. Precisavam levar Z. para um lugar seguro e se isso significava ir pelo ar, que assim fosse.

Ele e Rhage entraram no hangar e ligaram as lanternas. O avião estava onde o tinham deixado no canto do fundo, como se fosse o filho adotivo feio de algum outro tipo de transporte muito mais bonito que há muito saíra de cena. Aproximando-se, Qhuinn viu que a hélice parecia estar inteira, e apesar de as asas estarem empoeiradas, conseguiu sustentar seu peso nelas.

O fato de a porta ter rangido como o diabo quando Rhage a abriu não foi uma notícia tão promissora.

– Nossa! – murmurou Rhage ao se encolher. – Parece que há algo morto ali dentro.


Caramba, o fedor devia ser tremendo se o Irmão conseguia distingui-lo do resto do cheiro que permeava o hangar.

Talvez a ideia não fosse tão boa assim.

Antes que Qhuinn conseguisse emitir uma segunda opinião a respeito do fedor, Rhage se espremeu como um pretzel e passou pela abertura oval.

– Puta merda... Chaves! As chaves estão aqui, dá pra acreditar?

– E quanto ao combustível? – murmurou Qhuinn, ao lançar o facho da lanterna de bolso num círculo amplo. Nada além de chão imundo.

– Acho bom recuar um pouco, filho – Rhage berrou de dentro da cabine. – Vou tentar ligar essa máquina velha.

Qhuinn se afastou, mas oras, se a coisa fosse explodir, poucos metros não fariam muita diferença...

A explosão foi alta, a fumaça, espessa, e o motor parecia estar sofrendo com um acesso de tosse mecânica. Mas a merda se estabilizou. Quanto mais deixaram o motor esquentar, mais equilibrado o ritmo se tornou.

– Temos que sair daqui antes de nos asfixiarmos – Qhuinn gritou de dentro do avião.

Bem nessa hora, Rhage deve ter colocado a coisa para se mexer ou algo assim, porque o avião se lançou para a frente com um gemido, como se cada prego e parafuso da sua fuselagem doesse.

E aquela coisa voaria?

Qhuinn correu na frente e chegou à porta dupla. Segurando de um lado, usou toda a sua força para puxar e afastou as portas, lançando diversas trincas e travas para todos os lados.

Ele só esperava que o avião não se inspirasse naqueles fragmentos.

Sob o luar, as expressões de John e Blay não tinham preço ao darem uma bela olhada para o plano de fuga – e ele bem sabia de onde elas vinham.

Rhage pressionou o freio e se espremeu de novo para sair.

– Vamos trazê-lo para dentro.

Silêncio. Bem, a não ser pelo avião ofegante atrás deles.

– Você não vai levá-lo – disse Qhuinn, quase para si mesmo.

Rhage olhou sério para ele.

– O que disse?

– Você é valioso demais. Se esta coisa cair, não podemos perder dois Irmãos. Isso não vai acontecer. Eu sou dispensável, você não.

Rhage abriu a boca como se fosse argumentar. Mas quando a fechou, uma expressão estranha atravessou seu belo rosto.

– Ele tem razão – disse Z. sério. – Não posso colocar você em perigo, Hollywood.

– Que se foda, posso me desmaterializar para fora da cabine...

– E acha que vai conseguir fazer isso quando estiverem num espiral? Tolice...

Uma saraivada de balas irrompeu das margens das árvores, atingindo a neve, o zumbido passando pelos ouvidos.

Todos reagiram. Qhuinn mergulhou dentro do avião, posicionou-se atrás do assento do piloto e tentou entender... puta merda, havia botões demais. A única coisa que o salvava era que...

Rá-tá-tá!

... ele assistira a um número suficiente de filmes para saber que a alavanca com a manopla era o acelerador e que a direção em forma de gravata borboleta era a coisa que você puxava para subir, e abaixava para descer.

– Cacete – murmurou ao ficar abaixado o máximo que podia.

Considerando-se os sons explosivos que se seguiram, John e Blay também atiravam, por isso Qhuinn se sentou um pouco mais elevado e olhou para a fileira de instrumentos. Deduziu que aquele com um tanquezinho de combustível era o que ele estava procurando.

Um quarto de tanque disponível. E metade daquela coisa só devia ser condensação.

Aquela era uma ideia bem ruim.

– Traga-o aqui! – Qhuinn berrou, olhando para o campo aberto e reto à sua esquerda.

Rhage logo o atendeu, jogando Zsadist no avião com toda a gentileza de um estivador. O Irmão aterrissou como uma pilha amontoada, mas ao menos praguejava, o que significava que ainda estava bom o bastante para sentir dor.

Qhuinn não esperou pela tolice de fechar as portas. Soltou o pedal do freio, apertou o acelerador e rezou para não derrapar na neve...

Metade do para-brisa se estilhaçou na sua frente; a bala que causara o estrago ricocheteou pela cabine, o “fuuu” do assento ao lado do seu, sugerindo que o encosto de cabeça tivesse sido atingido. O que era melhor do que o seu braço. Ou o crânio.

A única notícia boa era que o avião parecia pronto para sair dali também, o motor enferrujado girando a hélice rapidamente como se soubesse que sair do chão era a única saída para a segurança. Ao lado das janelas, o cenário começava a passar e ele se orientou no meio da “pista” mantendo as duas fileiras de árvores equidistantes.

– Segure-se – gritou acima do estrondo.

O vento entrava na cabine como se houvesse um ventilador industrial preenchendo o espaço onde o vidro estivera, mas ele não pretendia subir o bastante para que necessitassem de pressurização.

Àquela altura, ele só queria passar por cima da floresta logo adiante.

– Vamos, meu bem, você consegue... Vamos, vamos...

Ele já estava com a alavanca toda puxada e teve que ordenar ao braço que relaxasse um pouco. Não havia mais para onde puxar, e quebrar a maldita coisa era a garantia de acabar com tudo ali mesmo.

O barulho aumentou ainda mais.

As árvores se agitaram cada vez mais.

A trepidação ficou cada vez mais violenta, até seus dentes batiam uns nos outros, e ele se convenceu de que uma ou as duas asas se partiriam e cairiam pelas laterais.

Concluindo que não havia tempo a perder, Qhuinn puxou o manche para trás o máximo que pôde, segurando firme, como se isso, de alguma forma, fosse se traduzir à fuselagem do avião e se mantivesse junto no lugar...

Algo caiu do teto e voou na direção de Z.

Um mapa? O manual do proprietário? Quem diabos haveria de saber...?

Caramba, as árvores na ponta extrema estavam se aproximando...

Qhuinn puxou ainda mais, apesar de o manche estar o mais próximo possível dele, o que era uma pena, porque estavam ficando sem pista e ainda colados no chão...

Sons de arranhados vinham da barriga do avião, como se a vegetação rasteira estivesse se esticando e tentando segurar as placas de aço.

As árvores estavam cada vez mais perto.

Seu primeiro pensamento ao enfrentar a morte era que jamais conheceria a filha. Pelo menos não neste lado do Fade.

O segundo e último era que não acreditava que nunca tivesse dito a Blay que o amava. Em todos os minutos e horas e noites de sua vida, em todas as palavras ditas ao macho no decorrer dos anos em que se conheciam, ele somente o afastara.

E agora era tarde demais.

Idiota. Que tremendo cretino que ele era.

Porque parecia bem evidente que seu cartão de biblioteca ficaria inutilizado aquela noite.

Endireitando-se e fazendo com que as lufadas o atingissem em cheio no rosto, Qhuinn encarou aquela arremetida, imaginando todos aqueles pinheiros logo adiante, já que não conseguia enxergá-los pelo fato de os olhos estarem lacrimejando devido ao vento. Abrindo a boca, ele gritou, acrescentando voz à confusão.

Maldição, não morreria como um covarde. Não mergulharia no chão, nada de frases patéticas implorando para que Deus o salvasse. Ao diabo com isso. Enfrentaria a morte com as presas expostas, o corpo preparado e o coração acelerado não de medo, mas com uma tremenda descarga de...

– Morte, vá se foder!

Enquanto Qhuinn tentava levantar voo, Blay tinha o cano da pistola apontado para a borda das árvores e descarregava balas como se tivesse um suprimento infindável... o que não era verdade.

Aquilo era horrível. Ele, John e Rhage não tinham cobertura; não havia como saber quantos assassinos estavam na floresta; e, pelo amor de Deus, só o que aquele avião antigo fazia era expelir uma nuvem de fumaça tóxica em seu rastro enquanto passava como se estivesse num desfile dominical.

Ah, e a máquina estava longe de ser blindada, mas, evidentemente, tinha combustível no tanque.

Qhuinn e Z. não conseguiriam. Colidiriam na floresta ao fim da pista. Isso se não explodissem antes.

Nesse instante, quando soube que uma bola de fogo era iminente de um ou outro modo, ele se partiu ao meio. A parte física permanecia concentrada em combater o ataque, os braços esticados, os indicadores apertando os gatilhos, os olhos e ouvidos rastreando os sons e as aparições de flashes de pistolas e os movimentos do inimigo.

A sua outra parte estava naquele avião.

Era como se estivesse assistindo à própria morte. Imaginava com nitidez a vibração violenta do avião, os saltos descontrolados no chão e a vista da margem sólida das árvores que se aproximavam dele, como se estivesse enxergando através dos olhos de Qhuinn e não dos seus.

Filho da puta imprudente.

Tantas vezes Blay pensou “ele vai se matar”.

Tantas vezes no campo de batalha e fora dele.

Mas aquela era a vez em que isso aconteceria...

Uma bala o atingiu na coxa e a dor que subiu pela perna até o coração indicava que sua total atenção precisava voltar ao combate: se quisesse viver, teria de se concentrar completamente.

Contudo, quando essa convicção o acometeu, houve uma fração de segundo em que ele pensou: vamos acabar com isso aqui. Vamos acabar com essa tolice de vida de castigos, de “quase lá”, de “e se?”, da agonia crônica e infindável em que sempre esteve... e da qual estava tão cansado...

Ele não entendeu o que o fez atingir a neve.

Num minuto, estava olhando para o avião esperando que ele explodisse em chamas. No minuto seguinte, estava de peito no chão, com os cotovelos enfiados na terra congelada e obstinada, a perna machucada latejando.

Flap! Flap! Flap!...

O rugido que interrompeu o som das balas era tão alto que ele abaixou a cabeça, como se isso o ajudasse a evitar a bola de fogo crônica do avião.

Só que não houve nem luz nem calor. E o som vinha de cima...

Planando. O fardo de parafusos estava mesmo voando. Acima deles.

Blay despendeu um segundo olhando para cima, só para o caso de ter sido alvejado e a sua percepção da realidade ter sido afetada. Mas não. Aquela antiguidade de pulverização de plantações estava no céu, fazendo uma curva larga e seguindo na direção que, se é que conseguiria permanecer suspenso, levaria Qhuinn e Z. para o complexo da Irmandade.

Se tivessem sorte.

Caramba, aquele voo não seria fácil. Nada parecido com uma águia voando segura e decidida pelo céu noturno. Mais parecido com uma andorinha recém-saída do ninho com uma asa quebrada.

De um lado para o outro. Para cima e para baixo, inclinando-se de lado a lado.

Ao ponto em que parecia ter realizado o impossível saindo do chão... só para cair e queimar no meio da floresta...

Do nada, algo o atingiu na lateral do rosto, golpeando-o com tanta força que ele caiu de costas e quase perdeu as pistolas. Uma mão – fora uma mão que o espalmara como se ele fosse uma bola de basquete.

Em seguida, um peso absurdo o atingiu no peito, esticando-o no chão coberto de neve, fazendo-o exalar com tanta força que ele se perguntou se não deveria olhar ao redor para procurar o fígado.

– Porra, vai ficar abaixado ou não? – Rhage sibilou em seu ouvido. – Está tentando levar bala... de novo?

Enquanto a calmaria do tiroteio se estendia de segundos até completar um minuto, os redutores emergiram pela linha de árvores adiante, o quarteto de assassinos caminhando pela neve com as armadas suspensas e prontas.

– Não se mexa – sussurrou Rhage. – Dois podem brincar nesse jogo.

Blay fez seu melhor para não inspirar tão fundo quanto a queimação em seus pulmões lhe dizia que precisava. Também tentou não espirrar já que flocos soltos coçavam em seu nariz toda vez que ele respirava.

Espera.

Espera.

Espera.

John estava a um metro de distância, deitado numa posição contorcida que fez o coração de Blay se apertar...

O cara sutilmente levantou o polegar, como se estivesse lendo a mente de Blay.

Graças a Deus. Cacete.

Blay desviou o olhar sem mudar a posição estranha da cabeça, e depois discretamente trocou uma das pistolas por uma das suas adagas.

Enquanto um zumbido desengonçado começou a vibrar em sua cabeça, ele calculou os movimentos dos redutores, suas trajetórias, suas armas. Ele estava quase sem munição e não havia tempo para recarregar as pistolas. E ele sabia que tanto Rhage quanto John estavam na mesma condição.

As adagas que V. fizera à mão para todos eles eram o único recurso.

Mais perto... mais perto...

Quando os quatro assassinos finalmente estavam ao alcance, sua cronometragem foi perfeita. Assim como a dos outros.

Com um movimento coordenado perfeito, ele saltou e começou a apunhalar os dois mais próximos a ele. John e Rhage atacaram os outros...

Quase imediatamente, mais assassinos surgiram das árvores, mas, por algum motivo, talvez porque a Sociedade Redutora não estivesse armando seus alistados muito bem, não havia balas. O segundo round se passou pela neve com o tipo de armas que se esperaria ver numa briga de beco: tacos de baseball, pés-de-cabra, chaves de rodas e correntes.

Por ele, tudo bem.

Estava tão pilhado e furioso, que lhe faria bem sair na mão.


CAPÍTULO 19

Sentada na mesa de exames, com uma camisola frágil de papel cobrindo-a e os pés descalços pendurados da orla acolchoada, Layla sentiu como se estivesse cercada por instrumentos de tortura. E devia ser isso mesmo. Todo tipo de utensílios de aço inoxidável estava enfileirado na bancada da pia, com as embalagens plásticas transparentes indicando que estavam estéreis e prontos para serem usados.

Já fazia uma eternidade que estava na clínica de Havers. Ou, pelo menos, era o que parecia.

Em contraste com o trajeto apressado para atravessar o rio, quando o mordomo dirigira como se soubesse que a pressa era essencial, desde que ali chegara só acontecera um retardo após o outro. Desde a burocracia até a sala de espera, o aguardo pela enfermeira, a demora para que Havers apresentasse o resultado do seu exame de sangue.

Era o suficiente para enlouquecer alguém.

Do lado oposto ao que ela estava sentada, havia uma imagem emoldurada pendurada na parede, e há tempos ela havia memorizado suas pinceladas e cores, o buquê de flores pintadas em azuis e amarelos vibrantes. O nome embaixo dizia: van Gogh.

Àquela altura, ela nunca mais queria ver uma íris novamente.

Mudando de posição, fez uma careta. A enfermeira lhe entregara um objeto apropriado para o sangramento e ela ficou horrorizada ao perceber que logo precisaria de outro...

A porta se abriu com uma batida e seu instinto imediato foi correr, o que era ridículo. Era ali que precisava estar.

Só que tratava-se apenas da enfermeira que a levara até ali, tirara a amostra de sangue para o exame e seus sinais vitais, e tomara notas no computador.

– Sinto muito, houve outra emergência. Só quis certificá-la de que será a próxima.

– Obrigada – Layla se ouviu dizer.

A fêmea se aproximou e pôs uma mão em seu ombro.

– Como está se sentindo?

A gentileza a fez piscar rápido.

– Acho que vou precisar de outro... – ela apontou para o quadril.

A enfermeira assentiu e deu um leve apertão antes de seguir para a bancada e apanhar uma embalagem quadrada cor de pêssego.

– Temos mais aqui. Gostaria que eu a acompanhasse até o banheiro no final do corredor?

– Sim, por favor...

– Espere, não se levante ainda. Deixe-me pegar algo para que se cubra melhor.

Layla baixou o olhar para as mãos, aquelas que estavam enroscadas uma na outra e que não conseguiam ficar quietas.

– Obrigada.

– Aqui está – algo macio a envolveu. – Ok, agora vamos colocá-la de pé.

Escorregando para fora da mesa, ela se desequilibrou um pouco e a enfermeira estava logo ali, segurando-a pelo cotovelo para estabilizá-la.

– Vamos bem devagar.

E foi o que fizeram. No corredor, havia enfermeiras se apressando de quarto em quarto, e pessoas entrando e saindo das suas consultas, e outras equipes correndo... e Layla não conseguia acreditar que um dia fora rápida como eles. Para se afastarem do tráfego, ela e a gentil acompanhante ficaram próximas da parede, a fim de evitar serem atropeladas, mas os outros eram verdadeiramente gentis. Como se todos soubessem que ela estava sofrendo seriamente.

– Vou entrar com você – disse a enfermeira quando chegaram ao banheiro. – A sua pressão está muito baixa e fico preocupada que possa desmaiar, está bem?

Enquanto Layla assentia, elas entraram e trancaram a porta. A enfermeira retirou-lhe a coberta, e ela, desconcertada, afastou o papel do caminho.

Sentando-se, ela...

– Ah, santa Virgem Escriba.

– Psiu, está tudo bem, tudo bem – a enfermeira se inclinou e lhe estendeu o absorvente. – Vamos cuidar disso. Você está bem... aqui, não, você precisa me dar isso. Temos que encaminhar para o laboratório. Existe a possibilidade de ser usado para determinar o que está acontecendo e você há de querer ter essa informação quando tentar novamente.

Tentar novamente. Como se a perda já tivesse ocorrido.

A enfermeira colocou as luvas e pegou um saco plástico de um suporte. Ela cuidou de tudo com discrição e diligência, e Layla viu quando o nome que havia dado foi escrito do lado de fora do saco com uma caneta preta.

– Ah, querida, está tudo bem.

A enfermeira retirou as luvas, arrancou um pedaço de papel higiênico de um suporte na parede e se ajoelhou. Segurando o queixo de Layla com uma mão gentil, cuidadosamente enxugou as faces que se molharam de lágrimas.

– Sei bem pelo que está passando. Também perdi um – o rosto da enfermeira se tornou belo pela compaixão. – Tem certeza de que não podemos chamar o seu hellren?

Layla apenas balançou a cabeça.

– Bem, avise-me se mudar de ideia. Sei que é difícil vê-los tristes e preocupados, mas não acha que ele gostaria de estar aqui com você?

Ah, como contaria a Qhuinn? Ele parecera tão certo de tudo, como se já tivesse visto o futuro e encarado os olhos do filho deles. Aquilo seria um choque.

– Saberei se estive mesmo grávida? – murmurou Layla.

A enfermeira hesitou.

– O exame de sangue pode revelar isso, mas tudo depende de quanto tempo você está se sentindo assim.

Layla fitou as mãos novamente. As juntas estavam brancas.

– Preciso saber se estou tendo um aborto ou se isto é apenas um sangramento normal que acontece quando não se engravida. Isso é importante.

– Lamento muito, mas não sou eu quem pode lhe garantir isso.

– Mas você sabe, não sabe? – Layla levantou a cabeça para fitá-la nos olhos. – Não sabe?

– Repito, não sou eu quem pode lhe garantir, mas... com esse tanto de sangue?

– Eu estava grávida.

A enfermeira fez um movimento amplo com as mãos, os lábios se contraindo.

– Não conte a Havers que eu lhe disse isso, mas... sim, provavelmente. E você precisa saber, não há nada que você possa fazer para deter o processo. Não é culpa sua, e você não fez nada errado. É só que, às vezes, essas coisas simplesmente acontecem.

Layla deixou a cabeça pender.


– Obrigada por ser honesta comigo. E... na verdade, é isso o que acho que está acontecendo.

– Uma fêmea sabe. Bem, vamos levá-la de volta.

– Sim, muito obrigada.

Mas Layla teve dificuldade para suspender a calcinha ao se levantar. Quando ficou claro que não conseguia coordenar as mãos, a enfermeira se adiantou e a ajudou com facilidade invejável, e tudo foi tão vergonhoso e assustador. Ficar fraca e à mercê de outra pessoa para uma coisa tão simples...

– Você tem um sotaque maravilhoso – disse a enfermeira ao voltarem para o tráfego do corredor, retornando mais uma vez para a faixa mais lenta. – É tão Velho Mundo... minha avó aprovaria. Ela odeia o fato de o inglês ter se tornado a língua dominante aqui. Acredita que isso será a derrocada da nossa espécie.

A conversa a respeito de nada em especial ajudou, dando a Layla algo em que se concentrar em vez de pensar em quanto tempo aguentaria até ter de refazer aquele percurso... e se as coisas estavam piorando nesse aborto... e como seria quando fosse forçada a encarar Qhuinn para lhe dizer que fracassara...

De algum modo, chegaram à sala de exames.

– Não deve demorar muito mais. Prometo.

– Obrigada.

A enfermeira parou à porta e, ao se imobilizar, sombras cruzaram o fundo do seu olhar, como se ela estivesse revivendo partes de seu próprio passado. E no silêncio entre elas, um momento de comunicação ocorreu, e embora fosse raro ter algo em comum com uma fêmea da Terra, a conexão foi um alívio.

Ela se sentira tão sozinha naquilo tudo.

– Temos pessoas com quem você pode conversar – disse a fêmea. – Às vezes, conversar depois de tudo pode ajudar de verdade.

– Obrigada.

– Use esse botão branco se precisar de ajuda ou se sentir-se tonta, está bem? Não vou estar longe.

– Sim, farei isso, obrigada.

Enquanto a porta se fechava, lágrimas embaraçam sua visão, e mesmo sentindo uma dor profunda, a sensação esmagadora de perda era desproporcional à realidade. A gestação estava apenas bem no comecinho e, logicamente, não havia muito a perder.

No entanto, para ela, aquilo era o seu filho.

Aquilo era a morte do seu filho...

Houve uma batida suave à porta e depois uma voz masculina.

– Posso entrar?

Layla apertou os olhos e engoliu com força.

– Por favor.

O médico da raça era alto e distinto, com óculos de aro de tartaruga e uma gravata borboleta. Com um estetoscópio ao redor do pescoço e aquele longo jaleco branco, ele era a figura perfeita de um curador, calmo e competente.

Ele fechou a porta e sorriu de leve para ela.

– Como está se sentindo?

– Bem, obrigada.

Ele a fitou do outro lado da sala, como se estivesse avaliando seu estado clínico, embora não a tocasse ou usasse instrumento algum.

– Posso ser franco?

– Sim, por favor.

Ele assentiu e puxou um banquinho com rodinhas. Sentando-se, equilibrou o prontuário no colo e a encarou.

– Vejo que você não indicou o nome do seu hellren... nem do seu pai.

– É preciso?

O médico hesitou.

– Não tem nenhum parente, minha querida? – quando ela negou com a cabeça, os olhos dele registraram tristeza profunda. – Lamento muito pelas suas perdas. Então, não há ninguém que possa estar aqui com você? Ninguém?

Como ela simplesmente continuou ali, sem dizer nada, ele inspirou fundo.

– Muito bem...

– Mas posso pagar – ela deixou escapar de supetão. Ela não sabia muito bem onde arranjaria o dinheiro, mas...

– Ah, meu bem, não se preocupe com isso. Não preciso receber se não puder pagar – ele abriu o prontuário e afastou uma página. – Vejamos, vejo aqui que passou pelo seu cio.

Layla apenas concordou, como se isso fosse tudo o que pudesse fazer para não gritar: Qual é o resultado do exame?

– Bem, verifiquei o resultado do seu exame de sangue e ele mostrou algumas... coisas que eu não esperava. Portanto, se permitir, eu gostaria de coletar mais uma amostra e enviá-la para o laboratório para mais alguns exames. Com isso, espero ser capaz de entender o que está acontecendo... e também farei um ultrassom, se não se importar. É um exame padrão que me dará uma ideia de como as coisas estão progredindo.

– Como, por exemplo, quanto tempo sangrarei até que termine tudo? – disse com severidade.

O médico da raça esticou a mão para segurar a dela.

– Primeiro vamos ver como você está, certo?

Layla respirou fundo e concordou mais uma vez.

– Certo.

Havers foi até a porta e chamou a enfermeira. Quando a fêmea entrou no quarto, ela trouxe consigo o que parecia ser um computador de mesa montado num carrinho: havia um teclado, um monitor e umas varetas erguidas nas laterais do equipamento.

– Vou deixar que a enfermeira tire o sangue... as mãos dela são muito mais competentes que as minhas nesse quesito – ele sorriu de maneira gentil. – Nesse meio-tempo, vou verificar outro paciente. Volto em seguida.

A segunda picada de agulha foi muito melhor do que a primeira, pois ela sabia o que esperar, e ela foi deixada a sós por um curto tempo quando a enfermeira saiu para levar a amostra ao laboratório – o que quer que fosse ele e onde quer que estivesse localizado. Ambos voltaram em seguida.

– Pronta? – Havers perguntou.

Quando Layla fez que sim, ele e a enfermeira trocaram algumas palavras e o equipamento foi disposto perto de onde ela estava sentada. O médico, então, acomodou-se novamente no banquinho e puxou dois tipos de extensões das laterais da mesa de exame. Abrindo o que pareciam ser um par de estribos, ele fez um gesto para a enfermeira que reduziu a iluminação e se aproximou para apoiar uma mão no ombro de Layla.

– Deite-se, por favor – pediu Havers. – E desça até chegar ao fim da mesa. Você vai colocar os pés aqui depois de despir a roupa de baixo.

Enquanto ele indicava os dois estribos, os olhos de Layla se arregalaram. Ela não fazia ideia de que o exame seria...

– Nunca antes fez um exame interno? – perguntou Havers com hesitação. Quando ela começou a balançar a cabeça, ele assentiu. – Bem, isso não é incomum, ainda mais se esse foi o seu primeiro cio.

– Mas não posso tirar... – ela se interrompeu. – Estou sangrando.

– Cuidaremos disso – o médico parecia cem por cento confiante. – Vamos começar?

Layla fechou os olhos e se inclinou para trás para se deitar, o papel fino que cobria a superfície acolchoada rangendo debaixo do seu peso. Elevando os quadris e mudando um pouco de posição, ela se desfez do que a cobria.

– Cuido disso para você – disse a enfermeira baixinho.

Os joelhos de Layla se encontraram enquanto ela foi tateando com os pés à procura dos malditos estribos.

– Isso mesmo – o banquinho de rodinhas guinchou quando o médico se aproximou. – Mas vá mais para baixo.

Por uma fração de segundo, ela pensou que não conseguiria.

Curvando os braços ao redor do baixo ventre, apertou-os, como se pudesse, de algum modo, segurar o bebê dentro dela ao mesmo tempo em que tentava se controlar. Mas não havia nada que pudesse fazer, nenhuma conversa que pudesse ter com seu corpo para acalmá-lo e segurar o que fora implantado, nenhum papo amoroso que pudesse ter com o filho para que ele tentasse sobreviver, nenhum fluxo de palavras para acalmá-la do seu pânico absoluto.

Por um momento, ela desejou a vida enclausurada que um dia considerou tão sufocante. Lá no Santuário da Virgem Escriba, a natureza plácida da sua existência fora algo que ela dera como certo. De fato, desde que descera para a Terra e tentara encontrar um propósito aqui, fora atingida por um trauma atrás do outro.

Isso fez com que respeitasse os machos e as fêmeas de quem lhe disseram ser inferiores a ela.

Ali embaixo, todos pareciam estar à mercê de forças além do controle deles.

– Está pronta? – perguntou o médico.

Enquanto lágrimas corriam pelos cantos dos olhos, ela se concentrou no teto e agarrou a beira da mesa.

– Sim. Pode começar.


CAPÍTULO 20

Puta merda, Qhuinn estava completamente sem controle.

Quase nenhuma visibilidade. O avião balançando de um lado para o outro como se estivesse sofrendo delirium tremens. Motor ligando e desligando.

E ele nem podia dar uma olhada em Z. O vento estava forte demais para gritar, e não pretendia despregar os olhos do que quer que viesse pela frente – ou melhor dizendo, daquilo no que bateriam de frente – mesmo sem conseguir enxergar nada...

O que o fizera pensar que aquilo era uma boa ideia?

A única coisa que parecia estar funcionando era a bússola, portanto, ao menos ele conseguia se orientar quanto à localização da base: o complexo da Irmandade ficava ao norte, um tantinho ao leste, no topo de uma montanha circundada pelo mhis de V., a divisa defensiva invisível. Com isso, em relação ao direcionamento, ele estava certo, desde que o mostrador de N – S – L – O estivesse mais operacional do que, digamos, todo o resto daquele caixote.

Ao olhar para a direita, o vento incessante que passava pelo vidro parcialmente quebrado atingiu seu canal auditivo. Pela janela lateral, ele via... uma imensidão negra. O que ele interpretou como indício de eles terem passado pelo subúrbio e estarem sobrevoando as fazendas. Talvez já estivessem sobre as colinas que, no fim, transformariam-se na montanha...

Um som como o do escapamento de um carro explodindo chamou sua atenção negativamente, mas o que foi pior?

O silêncio repentino que se seguiu.

Nada de motor roncando. Apenas o vento soprando para dentro da cabine.

Ok, agora sim estavam em apuros.

Por um átimo, ele pensou em se desmaterializar. Era forte o bastante, estava consciente, mas jamais abandonaria Z...

Uma mão forte pousou em seu ombro, assustando-o tremendamente.

Z. se arrastara para a frente e, baseando-se em sua expressão, estava tendo dificuldades para se manter de pé. E não só pelos solavancos.

O Irmão falou, sua voz grossa superando todo aquele barulho.

– Hora de você ir embora.

– Nem a pau – berrou Qhuinn em resposta. Esticando o braço, tentou a ignição. Não faria mal tentar, não é mesmo?

– Não me obrigue a jogá-lo para fora.

– Tente.

– Qhuinn...

O motor voltou a pegar, o barulho se intensificando. Boas novas. A questão era que, se o maldito desligara uma vez, era bem possível que o fizesse novamente.

Qhuinn enfiou a mão na jaqueta. Ao apanhar o celular, pensou em todos que os dois estavam deixando para trás e passou o objeto para o Irmão.

Se existia uma hierarquia nessa coisa de se despedir, Z. estava no topo da lista. Ele tinha uma shellan e uma filha. Se alguém tinha de fazer uma ligação, esse alguém era ele.

– Para que isso? – Zsadist perguntou sombrio.

– Descubra você mesmo.

– E você pode ir...

– Não vou a parte alguma. Vou pilotar esta armadilha até batermos em alguma coisa.

Houve certa discussão depois disso, mas ele não sairia do assento do piloto, e por mais forte que o Irmão fosse em circunstâncias normais, Z. não estava em condições de suspender nada além de uma fatia de pão. E a conversa não durou muito. Depois que a discussão terminou, Z. desapareceu, sem dúvida indo para os fundos para fazer o último contato com as pessoas amadas.

Decisão inteligente.

Deixado a sós com seus equipamentos, Qhuinn fechou os olhos e lançou uma oração para quem pudesse ouvir. E visualizou o rosto de Blay...

– Pegue.

Ele abriu os olhos. O celular estava bem na sua frente, firme na mão de Z. E o mapa de GPS estava sendo mostrado, as pequenas setas piscantes indicando onde exatamente eles estavam.

– Mais uns cinco quilômetros – exclamou o Irmão acima do barulho ensurdecedor. – É tudo de que precisamos...

Houve um estouro, um assobio e mais uma rodada daquele silêncio terrível. Praguejando, Qhuinn concentrou-se naquela tela sempre desejando que as coisas voltassem a funcionar. Mais para o norte, obviamente, porém, mais para o leste. Muito mais. Seus cálculos estavam certos, mas não exatos.

Sem o telefone? Estariam fritos.

Bem, isso e toda aquela situação do motor.

Verificando a localização precisa, ele fez alguns cálculos mentalmente e virou para a direita, tentando chegar àquela indicação no mapa que levava diretamente para a montanha. Em seguida, seria a vez de tentar religar o motor.

Estavam perdendo altitude. Não espiralando, situação na qual haveria um close-up no altímetro e a coisa estaria acelerada do modo como você desejaria que as hélices estivessem. Mas lentamente, inexoravelmente indo para baixo... e se perdessem a aceleração, o que era o que aquela máquina de costura insegura debaixo do teto seria capaz de prover, acabariam caindo como uma pedra.

Tentando a ignição repetidas vezes, murmurou:

– Vamos, vamos, vamos...

Era difícil tentar manter o nariz empinado com apenas uma mão; e bem quando ele ia passar a devotar toda sua atenção ao manche, o braço de Z. se esticou, afastou a mão dele, e assumiu o controle sobre o botão da ignição.

Por um segundo, Qhuinn vislumbrou a marca de escravo para fora dos punhos da jaqueta do Irmão, mas logo voltou a se concentrar.

Deus, seus ombros estavam em chamas por puxar o manche para trás.

E pensar que ele estava morrendo de vontade de ouvir aquela barulheira do...

De uma só vez, o motor engasgou de volta à vida, e a mudança de altitude foi imediata. No instante em que os plugues e pistões começaram a rugir novamente, os números começaram a subir.

Mantendo a alavanca puxada, verificou o nível de combustível. Estava no vazio. Talvez estivessem apenas sem combustível, e não se tratasse de um problema mecânico?

Uma tolice, certo?

– Só mais um pouquinho, meu bem... um pouco mais, vamos lá, querida, você consegue...

Enquanto um fluxo interminável de encorajamento escapava dos seus lábios, as palavras impotentes eram abafadas pela única coisa que importava – mas, espere, como se o Cessna falasse inglês...!

Caramba, parecia que aquilo duraria uma eternidade, a esperança e as orações, seu cérebro num jogo de pingue-pongue entre os melhores e os piores cenários enquanto quilômetros eram atravessados num ritmo agonizantemente lento.

– Diga que telefonou para as suas fêmeas – berrou Qhuinn.

– Diga que consegue nos manter acima do solo.

– Não vou mentir.

– Leve-nos mais para o leste.

– O quê?

– Leste! Vá para o leste!

Z. aumentou o zoom do mapa e começou a correr o dedo em uma direção, de leste a oeste.

– Você vai precisar aterrissar neste ponto... atrás da mansão!

Qhuinn deduziu que deveria tomar como um bom sinal que o cara estava fazendo planos de aterrissagem que não envolviam bolas de fogo. E a sugestão era boa. Se conseguissem se orientar ao longo da mansão, do lado oposto à piscina, eles poderiam acabar com algumas árvores frutíferas... porém, teriam mais ou menos o mesmo tanto de pista que tiveram para decolar.

Muito melhor do que bater no muro que cercava a propriedade...

Daquela vez, o motor não emitiu nenhum aviso. Simplesmente morreu, como se estivesse cansado de brincar de pega-pega e houvesse decidido tirar uma folga permanente.

Ao menos já estavam próximos da aterrissagem.

Uma chance. Era tudo de que dispunham.

Uma única tentativa de aterrissar que, desde que ele conseguisse levá-los até as cercanias da propriedade, penetrar o mhis, e conseguir não colidir na mansão, no ginásio, nas construções, nos portões nem em nada que fosse real ou algum tipo de propriedade... resultaria nele entregando o orgulhoso pai e amoroso hellren, e soberbo lutador... de volta aos braços da família.

Mas não era só em Z. que ele estava pensando.

O Primale cuidaria da saúde e do bem-estar de Layla. Blay tinha os pais amorosos e Sax. John tinha a sua Xhex.

Todos eles ficariam bem.

Qhuinn se virou.

– Sente-se! Lá atrás! Sente-se e prenda o cinto de segurança...

O Irmão abriu a boca e Qhuinn fez o impensável. Cobriu os lábios do macho com a mão.

– Sente-se de uma vez e se amarre! Chegamos até aqui... não vamos estragar tudo!

E pegou o celular de volta.

– Vá! Deixe comigo!

Os olhos de Z. se conectaram aos seus e, por um breve segundo, Qhuinn se perguntou se seria lançado para fora da cabine. Mas então, o milagre aconteceu: um instante de conexão se estendeu entre eles, uma corrente de elos tão grossos quanto coxas ligando-os um ao outro.


Z. levantou o indicador e apontou direto no rosto de Qhuinn. Depois de acenar uma vez com a cabeça, desapareceu na parte traseira.

Qhuinn voltou a se concentrar.

A navegação os mantinha no alto, e graças às orientações de Z., aquela guinada extra à direita os colocara na direção certa. De acordo com o GPS, estavam se aproximando da junção de estradas que dava a volta na base da montanha, centímetro a centímetro. Centímetro... a centímetro...

Ele estava bem certo de que localizavam-se acima da propriedade agora.

Enquanto o avião abaixava mais, ele se preparou, continuando a puxar o manche com força até que os ombros cravassem no assento atrás dele. Não havia trem de pouso para puxar. Ele esteve abaixado o tempo todo...

Um assobio repentino penetrou na cabine, e isso, junto a uma abrupta mudança de angulação, anunciou que a gravidade começara a vencer a batalha, exigindo a construção de fibra de vidro e metal e tendo um par de vidas como seu prêmio.

Eles não conseguiriam... era cedo demais...

Uma vibração selvagem se seguiu e, por um momento, ele se perguntou se não tinham atingido o chão sem que ele percebesse. Copas de árvores, talvez? Não. Algo...

O mhis?

O amortecedor repentino parecia se estender para cima, e, ora essa, o avião reagiu de modo diferente, o bico se nivelando sem nenhum esforço da parte de Qhuinn ou ajuda do peso morto que era aquele motor. Até mesmo o sacolejo de um lado para o outro cessou.

Aparentemente, a defesa invisível de V. não só mantinha afastados humanos e redutores, como também sustentava um Cessna no ar.

Só que tinham um problema. Aquela elevação vital parecia não acabar.

Do modo como iam as coisas, era como se ele fosse flutuar ali para sempre, ultrapassando a única pista de aterrissagem que tinham...

Abruptamente, o barulho retornou, e ele verificou o altímetro. Tinham descido cerca de sete metros, e ele teve que se perguntar se tinham penetrado a barreira.

Luzes. Ah, bom Jesus amado. Luzes.

Do lado de fora da janela, abaixo, ele via o brilho da mansão e o pátio. Estava distante demais para distinguir os detalhes, mas só podia ser – sim, a pequena ramificação só podia ser o ginásio.

Instantaneamente, seu cérebro dimensionou e reorientou tudo.

Merda. O ângulo estava errado. Se continuasse assim, aterrissaria de frente para a propriedade e não ao longo dela. E a porcaria era que não tinha altitude suficiente para executar um círculo grande para apontá-lo para a direção certa.

Quando não se tem opções, a única alternativa é fazer dar certo.

Seu maior problema era deixar passar o gramado. Só havia uma clareira na montanha. O resto? Árvores que os devorariam.

Ele precisava descer mais. Imediatamente.

– Segure-se!

Mesmo sendo um contrassenso, ele arremessou o manche para frente, e os direcionou para o chão. Houve uma mudança de velocidade imediata, e ele rezou que se recuperasse disso quando chegasse à zona de impacto. E merda, a intensa trepidação ficou ainda pior, ao ponto de ele ficar tonto, e os braços doerem por segurar firme o manche.

Mais rápido. Mais próximo. Mais rápido. Mais barulhento. Mais próximo.

E, então, chegou a hora. A casa e os jardins estavam logo à frente, indo ao encontro deles numa velocidade de matar.

Ele puxou com força, e a nova velocidade os fez levantar um pouco. Por cima da casa...

– Prepare-se! – exclamou a plenos pulmões.

Enquanto a câmera lenta assumia o comando, tudo se ampliou: a propriedade, os segundos, a dor nos olhos enquanto ele se esforçava para olhar adiante, a sensação do seu corpo sendo empurrado para trás no assento...

Merda. Ele estava sem o cinto de segurança.

Nem se preocupara com isso. Coisas demais em que pensar.

Idiota...

Nesse mesmo instante, fizeram contato com algo. Com força. O avião pulou, bateu em outra coisa, ricocheteou e pulou novamente. Nesse meio-tempo, sua cabeça bateu no painel acima dele, e seu traseiro ficou estatelado no assento, e seu...

Deixa para um mix de dores.

A fase seguinte da aterrissagem dos infernos foi um misto de desliza-chacoalha-rola que quase o lançou para fora da cabine. Aquilo era o chão – só podia ser – e, maldição, como iam rápido. As luzes corriam pelas janelas, tudo parecendo o Studio 54* até ele ficar praticamente cego. E por causa do lado em que o estroboscópio estava, ele deduziu que estavam no jardim – mas estavam ficando sem espaço.

Segurando o manche, ele os fez dar um cavalo de pau, na esperança que as mesmas leis da física que se aplicavam a carros desgovernados funcionassem ali: sem freios, espaço limitado e o único modo de diminuir a velocidade era mudar o coeficiente aerodinâmico.

A força centrífuga o fez bater na lateral da cabine e a neve bombardeou seu rosto; depois, algo afiado.

Merda, eles não estavam desacelerando em nada.

E aquele muro de proteção de seis metros de altura e 45 centímetros de espessura estava se aproximando com rapidez.

E por falar em paradas abruptas...

* Lendária discoteca em Manhattan que funcionou entre 1977 e 1986. (N.T.)


CAPÍTULO 21

Blay se desmaterializou para a mansão no instante em que o último assassino naquela clareira foi enviado de volta a Ômega. Como Qhuinn ainda estava no ar com Z., não havia razão para perder mais tempo à espera de mais um esquadrão.

Mesmo por que não havia nada que alguém pudesse fazer para ajudar aqueles dois.

Reaparecendo no pátio, ele...

Diretamente acima dele, sem produzir som algum, aquele maldito avião bloqueava a luz da lua.

Puta merda, eles conseguiram e, caramba, estavam tão próximos que ele pensou que, caso se esticasse, conseguiria tocar a fuselagem do Cessna.

O silêncio sepulcral, porém, não era um bom sinal...

O primeiro impacto veio do alto das cercas vivas que delimitavam o jardim. O avião saltou das pontas, pegou uma corrente de ar, depois sumiu de vista.

Blay se desmaterializou ao redor da varanda bem a tempo de ver o Cessna bater na neve, caindo como um homem obeso mergulhando de barriga numa piscina, criando grandes ondas brancas para todos os lados. E então a aeronave se transformou no maior cortador de grama jamais visto pelo homem, a combinação de seu corpo de aço e a velocidade acelerada demais, destruindo fileiras de árvores frutíferas e de moitas de flores que foram protegidas do inverno, e caramba, até mesmo a fileira de bebedouros para os pássaros.

Mas ao inferno com tudo isso. Ele pouco se importava se tivessem de replantar o lugar inteiro, desde que o avião parasse... antes do muro de contenção.

Por uma fração de segundo, ele chegou a pensar em se materializar diante da coisa e detê-la com as mãos, mas isso seria loucura. Se o Cessna não parecia se incomodar com as estátuas de mármore que ele agora destruía, pouco se importaria com um macho vivo e respirando diante dele...

Por nenhum motivo aparente, todo aquele descontrole começou a girar, a asa encarando Blay como se Qhuinn estivesse tentando virar. A derrapagem foi o movimento perfeito. Nem precisava ser dito que não havia freios, e desde que o espiral se sustentasse, eles teriam mais área para perder velocidade.

Merda, eles estavam mesmo perto demais do muro de contenção...

Centelhas de luz iluminaram a noite, além do grito de metal contra pedra que anunciava que “o perto demais do muro” fora substituído por “bem contra ele”, mas, graças à manobra de Qhuinn, eles se colocaram numa posição paralela em vez de irem de frente.

Blay começou a correr na direção do show de luzes, e outros o acompanharam quando ele assim o fez, um verdadeiro bloco de pessoas em fila. Não havia como deter aquilo, mas eles bem podiam estar a postos quando as coisas...

Tum!

... terminassem.

O avião finalmente encontrou um objeto inanimado que não conseguiu superar: o barracão usado para guardar alguns dos equipamentos e produtos de jardinagem bem no fim do jardim.

Parada completa.

E tudo estava silencioso demais. Tudo o que Blay ouviu foi o suissssh dos coturnos trafegando pela neve, e sua respiração arfando no ar frio, e a pressa dos outros atrás de si.

Ele foi o primeiro a chegar à aeronave e se dirigiu à porta que, como por milagre, estava livre e não imprensada ao muro de concreto. Abrindo-a e sacando a lanterna de bolso, ele não sabia o que esperava encontrar. Fumaça? Gases? Sangue e partes de corpos?

Zsadist estava sentado rígido no assento de frente para os fundos, com o corpo amarrado, ambas as mãos travadas nos apoios de braços. O Irmão encarava à frente, sem piscar.

– Paramos de nos mexer? – perguntou rouco.

Ok, ao que tudo levava a crer, até mesmo um Irmão podia ficar em estado de choque.

– Sim, pararam – Blay não queria ser rude, mas agora que estava certo de que um deles sobrevivera, ele queria ver se Qhuinn...

O macho cambaleou para fora da cabine. No facho de luz da lanterna de Blay, ele parecia ter estado num brinquedo radical de um parque de diversões, com o cabelo todo para trás da testa queimada pela ação do vento, os olhos, um verde e outro azul, arregalados num rosto completamente pálido, cada membro do corpo trêmulo.

– Você está bem? – exclamou ele, como se os ouvidos estivessem surdos depois de expostos a muito barulho. – Z., diga alguma coisa...

– Estou aqui – respondeu o Irmão, fazendo uma careta de dor ao soltar uma das garras dos apoios de braço. – Estou bem, filho... Estou bem.

Qhuinn se agarrou ao que estava saliente e foi então que seus joelhos se dobraram. Ele apenas caiu entre as mãos estendidas, a voz entrecortada a ponto de ele mal conseguir falar.

– Eu só... queria que você... estivesse bem... Só queria... que você... ficasse bem, oh Deus... para a sua filha... Só queria que você ficasse ok...

Zsadist, o Irmão que nunca tocava em ninguém, esticou-se e pousou uma mão livre na cabeça inclinada de Qhuinn. Erguendo os olhos, ele disse suavemente:

– Não deixe ninguém entrar aqui. Dê um minuto a ele, ok?

Blay assentiu e se virou, bloqueando a entrada com o corpo.

– Eles estão bem, eles estão bem...

Enquanto falava com a multidão, um bom número de pessoas fitava-no como se ele fosse um enviado de Deus, mas Bella não estava entre eles. Ela estava...

– Zsadist! Zsaaaaadist!

O grito se transportou por todo o caminho do gramado quando, do alto da varanda, uma figura solitária partiu em disparada em meio à neve.

Muitas pessoas responderam a Bella, mas ele duvidava de que ela tivesse ouvido qualquer coisa.

– Zsaaaadist!

Quando ela escorregou já perto dele, Blay imediatamente se esticou para pegá-la, preocupado que ela acabasse se chocando com a lateral do avião. Ah, Deus, ele jamais se esqueceria da expressão no rosto dela: era mais terrível do que qualquer atrocidade que já vira, como se ela estivesse sendo esfolada viva, como se os braços e pernas estivessem amarrados, e a pele estivesse sendo arrancada de seu corpo.

Qhuinn saiu do avião.

– Ele está bem, ele está bem, prometo... Ele está bem.

Bella se imobilizou, como se aquela fosse a última coisa que ela esperasse ouvir.

– Minha nalla, entre – disse Z. no mesmo tom baixo que usara com Qhuinn. – Entre aqui.

A fêmea chegou a olhar para Blay como se precisasse de uma garantia para saber se aquilo que ouvia estava correto. Em resposta, ele simplesmente a levou pelo cotovelo e a ajudou a passar pela portinhola.

Depois, mais uma vez virou de frente para bloquear a passagem. Enquanto os sons da fêmea chorando livremente em sinal de alívio emanavam, ele viu Qhuinn passar as mãos sobre os olhos como se o macho estivesse se livrando de lágrimas.

– Caramba, filho, eu não sabia que você sabia pilotar – alguém disse.

Enquanto Qhuinn levantava a cabeça, aparentemente olhando de relance para o cenário, Blay fez o mesmo. Pense numa cena apocalíptica: havia um rastro em toda a extensão pela qual o avião passara, como se o dedo de Deus tivesse feito uma linha em todo o jardim.

– Na verdade... eu não sei – murmurou Qhuinn.

V. levou o cigarro aos lábios e estendeu a palma.

– Você trouxe o meu Irmão de volta em um só pedaço. Que se foda o resto.

– Verdade...

– Sim, graças a Deus...

– Diabos, é isso aí...

– Amém...

Um a um, a Irmandade se adiantou, cada um deles erguendo a mão da adaga. A procissão levou um tempo, mas ninguém parecia se importar com o frio.

Blay, por certo, não o sentia. A ponto de ficar paranoico...

Colocando a mão dentro da jaqueta, encontrou o tórax e se deu um beliscão bem forte.

Ai.

Fechando os olhos, fez uma prece silenciosa para que aquilo fosse mesmo verdade... e não o horror que poderia ter sido.

Toda aquela atenção estava deixando Qhuinn nervoso.

E o seu pequeno voo nem fora uma experiência tão zen assim. A queimadura no rosto por causa de todo aquele vento, as dores nos ombros e nas costas, as pernas trêmulas... Ele sentia como se ainda estivesse lá em cima, ainda rezando para nada em que acreditava existir, parado e para sempre no limiar.

Da morte.

Além disso, estava tremendamente envergonhado. Deixar-se abater daquele jeito diante de Z.? Ora essa... Que covarde.

– Importam-se se eu der uma olhada? – a doutora Jane disse ao se aproximar da multidão.

Sim, uma boa ideia. O objetivo de tudo aquilo foi Z. estar ferido tão gravemente que não conseguia se desmaterializar.

– Qhuinn? – disse a fêmea.

– Como disse? – ah, ele estava atrapalhando. – Ok, deixe-me sair da frente...

– Não, não o Zsadist. Você.

– Hum?

– Você está sangrando.

– Estou?

A médica virou a mão dele.

– Vê? – e, como era de se esperar, escorriam gotas vermelhas de suas palmas. – Você acabou de esfregar o rosto. Está com um corte feio na cabeça.

– Ah, ok – talvez por isso se sentisse tão aéreo? – E quanto a Z.?

– Manny já está lá dentro.

Hum. Devia ter perdido aquela parte.

– Quer dar uma olhada em mim aqui?

Ela deu uma risada de leve.

– Que tal levarmos você de volta para a casa? Se conseguir andar.

– Eu cuido dele...

– Pode deixar que eu levo...

– Eu levo...

– Já peguei...

O coro de voluntários foi uma surpresa, bem como todos os braços solícitos que apareceram de todos os lados: ele, literalmente, foi envolvido por braços fortes de lutadores, e todos quase a carregá-lo do lugar como se estivesse fazendo stage diving num show de rock.

Ele olhou para trás, esperando ver Blay, rezando para se deparar com os olhos dele, mesmo isso sendo loucura...

Mas Blay estava lá.

O lindo olhar azul estava logo ali, tão firme e certo ao sustentar o seu que ele quase desmoronou novamente. E ele retirou forças daquele olhar, assim como o fizera na época em que passavam tanto tempo juntos. A verdade era que ele desejava que fosse Blay a levá-lo de volta à mansão, mas ninguém se arriscava a dizer nada à Irmandade quando ela aparecia em massa assim. Além disso, sem dúvida o cara pensaria que estariam próximos demais.

Qhuinn se concentrou no caminho à frente. Puta... merda...

O jardim fora completamente dizimado, metade da cerca viva de três metros de altura próxima à casa fora cortada, todos os tipos de árvore arrancados, arbustos aparados, os restos da colisão espalhados por todos os lados como estilhaços de uma metralha.

Caramba, muito do entulho se parecia com partes de avião.

Ah, olhe ali um painel de aço.

– Esperem – disse, libertando-se. Inclinando-se, pegou um fragmento afiado do chão no lugar em que derretera a neve. Ele podia jurar que a coisa ainda estava quente. – Eu sinto muito mesmo... disse para ninguém em especial.

A voz do Rei rebumbou diante dele:

– Por manter o meu Irmão vivo?

Qhuinn levantou a cabeça. Wrath saíra da biblioteca com George de um lado e a rainha do outro. O macho parecia tão grande e forte quanto a mansão atrás dele: mesmo cego, ele se parecia com um super-herói com aqueles óculos escuros encobrindo os olhos.

– Eu destruí o seu jardim – murmurou Qhuinn ao se aproximar do macho real. – Quero dizer... mudei o paisagismo de um modo muito ruim.

– Isso dará a Fritz algo para fazer na primavera. Você sabe o quanto ele adora arrancar ervas daninhas.

– Esse é o último dos seus problemas. Tenho quase certeza de que vai precisar de uma escavadeira.

Wrath se adiantou, encontrando-o no meio da varanda.

– Esta é a segunda vez, filho.

– Que eu arruinei algo mecânico nas últimas 24 horas? É, eu sei... Da próxima vez, é provável que eu destrua um navio de guerra.

As sobrancelhas negras se abaixaram.

– Não é disso que estou falando.

Ok, aquilo tinha de terminar logo. Ele realmente detestava ter as atenções voltadas para si.

Deliberadamente ignorando a afirmação do Rei, ele disse:

– Bem, a boa notícia é, meu Rei, que não estou pensando numa terceira rodada. Por isso, acho que vamos estar seguros daqui por diante.

Houve um murmúrio coletivo de concordância.

– Posso levá-lo para a clínica agora? – a doutora Jane interrompeu.

Wrath sorriu, as presas refletindo o luar.

– Faça isso.

Graças a Deus... a noite chegava ao fim.

– Onde está Layla? – a médica perguntou quando entraram no calor da biblioteca. – Acho que você precisa se alimentar.

Merda.

Enquanto a legião em roupas de couro atrás deles concordava com a ideia, os olhos de Qhuinn reviraram. Uma crise por noite era mais do que o suficiente. A última coisa na qual ele estava interessado era explicar por que, exatamente, a Escolhida não poderia ser usada como fonte de sangue.

– Você parece tonto – alguém comentou.

– Acho que ele vai...

E essa foi a última coisa que ele ouviu por um tempo.


CONTINUA

CAPÍTULO 11

Blay baixou a cabeça com uma imprecação enquanto a porta da academia se fechava. E claro, daquele ângulo, tudo o que enxergava era a sua ereção.

O que não ajudou.

Levantando o olhar, viu a barra fixa, e soube que tinha de fazer alguma coisa. Ficar sentado ali meio embriagado com uma festa armada entre as pernas dificilmente era uma posição na qual queria ser flagrado. Se um Irmão como Rhage entrasse e visse aquilo? Blay teria de aguentar a gozação pelo resto da vida. Além disso, estava com roupas de ginástica, cercado por equipamentos, portanto, só lhe restava se ocupar, puxar um pouco de ferro, e esperar que o senhor Alegria afundasse em depressão por falta de atenção.

Um bom plano.

Mesmo.

Claro.

Quando, um pouco depois, olhou para o relógio, percebeu que uns quinze minutos haviam se passado e ele não estava mais próximo de movimentos repetitivos e construtivos, a menos que se considerasse a respiração.

Sua ereção tinha uma sugestão para esse tipo de objetivo.

E sua palma se preparou, indo para o meio das pernas, encontrando a rigidez...

Blay levantou do assento num pulo e seguiu para a porta. Chega de idiotice. Iria para o banheiro do vestiário na esperança de reciclar um pouco do álcool no seu sistema. Depois voltaria para a esteira e suaria o resto da bebida.

Depois disso, seria hora de ir para a cama, onde, se precisasse de uma válvula de descarga do tipo erótico, ele a encontraria no local apropriado.

O primeiro sinal de que seu novo plano poderia levá-lo para mais confusão surgiu quando empurrou a porta do vestiário: o som de água corrente significava que alguém estava atarefado com o ritual do xampu e sabonete. Ele estava tão concentrado em se chutar no traseiro, porém, que nem se preocupou com qualquer conclusão.

O que o teria feito parar, virar e encontrar outro banheiro o mais rápido possível.

Em vez disso, passou pelos armários e foi fazer o que tinha de ser feito. Só quando estava lavando as mãos que os cálculos começaram a ser computados.

Por vontade própria, a cabeça girou na direção dos chuveiros.

Você tem que sair, ele se ordenou.

Ao desligar a torneira, o rangido sutil pareceu mais alto que um grito, e ele se recusou a se olhar no espelho. Não queria enxergar o que havia em seu olhar.

Volte para a porta. Apenas volte para a porta. Apenas...

O fracasso do seu corpo em seguir esse simples comando não foi apenas um exercício de rebelião física. Era, tragicamente, um padrão.

E ele se lamentaria mais tarde.

No momento, contudo, quando ele tomou a decisão de se aproximar e se esgueirar ao redor da parede de azulejos para os chuveiros, onde se manteve praticamente escondido, e espiou o macho que não deveria... a tresloucada onda de emoção que era tão dolorosamente familiar, era um conjunto de roupas feito sob medida para a sua insanidade.

Qhuinn estava de frente para o chuveiro com uma mão contra a parede escorregadia, a cabeça morena pensa debaixo do jato. A água corria pelos ombros e pelos acres de pele flexível que recobria as costas poderosas... depois descia pelo traseiro magnífico... e seguia em frente, passando pelas pernas longas e musculosas.

Durante o último ano, o lutador encorpara muito. Qhuinn ficara grande depois da transição e crescera ainda mais durante os primeiros meses de alimentação intensa. Mas já fazia um tempo desde que Blay não o via sem roupas... e, caramba, a rotina de puxar ferro à qual ele se submetera mostrava os resultados em todos aqueles músculos definidos...

Abruptamente, Qhuinn mudou de posição, virando, jogando a cabeça para trás, fazendo a água correr pelo cabelo escuro, aquele corpo incrível arqueando.

Ele manteve o piercing no pênis.

E, puta merda, estava excitado...

Um orgasmo imediatamente ameaçou a cabeça do pênis de Blay, os testículos ficando duros como punhos cerrados.

Dando meia-volta, ele saiu do vestiário como se tivesse sido lançado de um canhão, empurrando a porta, saindo em disparada no corredor.

– Ai, merda... cacete... puta que o...

Andando o mais rápido que podia, ele tentou tirar aquela imagem da cabeça, lembrando-se de que tinha um amante, que tocara a vida, que era possível se autodestruir a respeito da mesma coisa apenas uma limitada quantidade de vezes e que depois se chegava ao fim.

Quando nada disso funcionou, ele repetiu o discurso que fizera para Qhuinn no guincho...

Inferno, onde ficava o escritório?

Parando, olhou ao redor. Ah, fantástico. Tomara a direção oposta daquela que pretendia ter tomado, e agora tinha passado pela clínica e estava na ala de salas de aula do centro de treinamento.

A quilômetros de distância da entrada do túnel.

– ... laceração tão profunda. Mas ele não teve nada disso.

A voz grave de Manny Manello precedeu o homem que vinha pelo corredor saindo da sala de exames. Um segundo depois, a doutora Jane apareceu bem ao lado dele, com um prontuário aberto na mão, a ponta do dedo descendo pela página.

Blay se enfiou na primeira porta que encontrou...

E se deparou com uma parede de escuridão. Apalpando para encontrar um interruptor, visto que estava abalado demais para acender qualquer luz mentalmente, encontrou um, apertou e ficou momentaneamente cego.

– Ai!

A dor aguda que subiu da canela para o cérebro lhe disse que ele colidira com algo grande.

Ah, uma escrivaninha.

Estava num daqueles miniescritórios satélites das salas de aula, e isso era uma notícia muito boa. Com o programa de treinamento ainda suspenso por causa dos ataques, não havia ninguém ali embaixo, e provavelmente ninguém teria motivo para estar naquela saleta vazia.

Ele poderia ter um pouco de privacidade por um tempo, o que era uma bênção. Deus bem sabia que ele não tentaria voltar para a mansão agora. Com a sua sorte, acabaria se deparando com Qhuinn, e a última coisa de que ele precisava era estar perto do cara.

Indo para trás da escrivaninha, sentou-se na cadeira de escritório acolchoada e levantou as pernas, esticando-as sobre a superfície que deveria conter um computador, uma planta, um pote cheio de canetas. Em vez disso, estava vazia, ainda que não estivesse empoeirada. Fritz jamais permitiria isso mesmo num cômodo desocupado.

Esfregando a parte dolorida na canela, ficou evidente que produziria um belo hematoma. Mas ao menos a dor o distraíra daquilo que o motivara até ali.

Entretanto, isso não durou muito.

Ao inclinar a cadeira para trás e fechar os olhos, sua mente retornou ao vestiário.

E ele pensou se a tortura nunca teria um fim.

Deus, seu pênis estava latejando.

Considerando suas opções, ele ordenou que as luzes se apagassem, fechou os olhos e comandou que seu cérebro se desligasse para ele poder dormir. Se, ao menos, ele conseguisse cochilar uma ou duas horas ali, acordaria mais sóbrio, flácido e pronto para enfrentar as pessoas novamente.

Bem, esse era um bom plano, e também o ambiente era perfeito. Escuro, fresquinho, bem tranquilo do modo como somente as instalações subterrâneas podem ser.

Ajeitando o corpo ainda mais para baixo na cadeira, cruzou os braços sobre o peito e se preparou para o trem do sono REM chegar à estação.

Quando isso não funcionou, ele começou a imaginar todo tipo de situação “de desligamento”, como aspiradores de pó sendo puxados da tomada e incêndios sendo apagados com água e telas de TV escurecendo...

Qhuinn estava tão altamente “transável” daquele jeito, o corpo macio e liso entalhado em músculos, o sexo grosso e orgulhoso. Toda aquela água o deixara escorregadio e sensual... e, santa Virgem Escriba, Blay teria dado praticamente qualquer coisa para se aproximar, se ajoelhar e tomar o sexo dele na boca, sentindo aquela cabeça com suas investidas penetrantes em sua língua ao entrar e sair...

O som desgostoso que emitiu ecoou, parecendo mais alto do que provavelmente fora.

Abrindo os olhos, tentou tirar da cabeça qualquer fantasia que envolvesse chupar. Mas a escuridão completa não ajudou; apenas formou a tela perfeita para ele continuar a projetar as imagens.

Praguejando, deu uma chance para o lance de ioga, com o qual você relaxa a tensão em cada parte do corpo, começando pela prega sempre presente entre as sobrancelhas, depois as cordas rígidas que desciam pelos ombros até a base do crânio. O peito também estava apertado, os peitorais contraídos sem nenhum motivo aparente, os bíceps afundando nos antebraços.

Em seguida, ele deveria focar no abdômen, depois nas nádegas e coxas, nos joelhos e panturrilhas... até a pontinha do pé.

Ele não chegou tão longe.

Pensando bem, tentar convencer sua excitação sobre qualquer tipo de maleabilidade demandaria poderes de persuasão que seu cérebro parcialmente embriagado não possuía.

Infelizmente, só havia um modo seguro de se livrar do senhor Alegria. E, no escuro, sozinho, com a garantia de que “ninguém nunca vai ficar sabendo”, por que ele não podia simplesmente cuidar daquilo, apagar o fogo e desmaiar? Não era muito diferente de despertar no meio da noite com uma ereção – porque Deus bem sabia que não havia nenhuma emoção envolvida. E ele estava alcoolizado, certo? Então isso era mais uma razão.

Repetiu a si mesmo que não estava traindo Saxton. Não estava com Qhuinn – e era Saxton quem ele queria...

Por um instante, ele continuou a pesar os prós e os contras, mas, no fim, sua mão tomou a decisão por ele. Antes de se dar conta, a palma se escondia debaixo do cós folgado e...

O sibilo que emitiu ao se segurar foi como um tiro no silêncio, assim como o rangido da cadeira quando a investida dos quadris empurrou os ombros contra o estofamento de couro. Quente e duro, grosso e longo, seu pênis clamava por atenção, mas a angulação estava errada, e não havia espaço para mexer dentro dos malditos shorts.

Por algum motivo, a ideia de se despir da cintura para baixo o fez se sentir sujo, mas seu senso de decoro foi para o espaço bem rápido quando tudo o que ele conseguia fazer era apertar. Elevando o traseiro, abaixou os shorts, depois percebeu que precisaria de alguma coisa para limpar a bagunça.

A camiseta foi retirada em seguida.

Nu no escuro, esticado da cadeira para a escrivaninha, ele se entregou, afastando as pernas, bombeando para cima e para baixo. A fricção fez seus olhos revirarem, morder o lábio inferior. Deus, as sensações eram tão boas, fluindo pelo corpo...

Droga.

Qhuinn estava na sua cabeça, Qhuinn estava na sua boca... Qhuinn estava dentro dele, os dois se movendo juntos...

Isso era errado.

Congelou. Parou de pronto.

– Merda.

Blay soltou o pênis, ainda que o simples processo de desistir da traição o fizesse cerrar os molares.

Abrindo os olhos, fitou a escuridão. O som da sua respiração entrando e saindo do peito o fez praguejar novamente. Assim como a necessidade pulsante de um orgasmo – ao qual ele se recusava a ceder.

Não daria continuidade àquilo...

Do nada, a imagem de Qhuinn arqueado debaixo do jato de água golpeou sua mente, assumindo o controle. Contrariando seu raciocínio, sua lealdade, seu senso de justiça... seu corpo se sobrecarregou, o orgasmo atingindo o pênis antes que ele o conseguisse detê-lo, antes que ele conseguisse negar, pois aquilo não era certo... antes que ele conseguisse dizer “De novo, não. Nunca mais”.

Ah, Deus. A sensação doce e penetrante, repetida uma vez depois da outra até ele se perguntar se aquilo um dia terminaria, mesmo ele não tendo ajudado.

Aquela reação física podia estar além do seu controle. Sua reação a ela não.

Quando ele se aquietou por fim, a respiração estava agitada e o frio na pele nua do peito sugeria que ele suara... e enquanto o corpo se recuperava, sua consciência retornava, e a ereção murchando era como um barômetro do seu humor.

Esticando-se, apalpou a mesa até encontrar a camiseta; depois esfregou-a e pressionou-a na junção das coxas.

O resto da confusão em que se metera não seria tão fácil de limpar.

Do outro lado da cidade, no 18o andar do Commodore, Trez estava sentado numa cadeira lustrosa de aço e couro que ficava de frente para a parede envidraçada dando para o rio Hudson. O sol do meio-dia brilhava mais por causa da neve fresca que caíra nas margens durante a noite.

– Sei que está aqui – disse secamente, sorvendo um gole da caneca de café.

Quando não houve resposta, ele rodopiou a cadeira em sua base giratória. Como esperado, iAm viera do quarto e estava sentado no sofá, com o iPad no colo, o indicador deslizando pela tela. Ele devia estar lendo a edição online do The New York Times, claro; era o que fazia toda manhã ao acordar.

– Então – disse Trez. – Manda ver.

A única resposta que teve foi uma das sobrancelhas de iAm se erguendo. Por, digamos, meio segundo.

O bastardo presunçoso nem olhava para ele.

– Deve ser um artigo fascinante. Sobre o que é? Irmãos teimosos?

Trez passou algum tempo segurando a caneca de café quente.

– iAm. Sério. Que bobagem.

Depois de um momento, o olhar escuro do irmão se ergueu. Os olhos que sustentaram os seus estavam, como sempre, completamente livres de emoção, dúvida e todas as asneiras com que os mortais lidavam. iAm era sensível de maneira sobrenatural... como uma cobra: atenta, inteligente, pronta a atacar, mas relutante em desperdiçar força até que fosse necessário.

– O que foi? – resmungou Trez.

– Seria redundante lhe dizer o que você já sabe.

– Faça isso por mim – ele sorveu mais um gole e se perguntou por que diabos estava se oferecendo para aquilo. – Vá em frente.

Os lábios de iAm se contraíram como sempre quando ele pensava numa resposta. Depois ele fechou a capa do iPad, cada uma das quatro seções descendo como pegadas na tela. Então ele pôs de lado o equipamento, descruzou as pernas e se inclinou para frente para equilibrar os cotovelos sobre os joelhos. Os bíceps dele eram tão grossos que as mangas da camisa pareciam que se rasgariam.

– Sua vida sexual está fora de controle – enquanto Trez revirava os olhos, o irmão continuou a falar. – Está transando com três ou quatro mulheres por noite, às vezes mais. Não se trata de alimentar-se, portanto não perca o nosso tempo tentando usar essa desculpa. Você está comprometendo os padrões profissionais do...

– Eu lido com bebidas e prostitutas. Não acha que isso parece um pouco intelectual...

iAm pegou o iPad e o balançou.

– Devo voltar a ler?

– Só estou dizendo...

– Você me pediu para falar. Se isto é um problema, a solução não é ficar na defensiva porque não gosta do que está ouvindo. A resposta é não me convidar a falar.

Trez cerrou os dentes. Veja, era esse o problema com o maldito irmão. Ele era sensato demais.

Levantando-se num rompante, atravessou a sala ampla. A cozinha era como todo o resto do apartamento: moderna, arejada e despojada. O que significava que se ele se servisse de um pouco mais de cafeína, conseguiria enxergar o irmão em sua visão periférica.

Caramba, às vezes ele detestava aquele lugar. A menos que estivesse no quarto com a porta fechada, não conseguia se livrar daqueles olhos.

– Devo ler ou falar? – perguntou iAm com tranquilidade, como se isso lhe fosse indiferente.

Caramba, como Trez queria falar para o cara enfiar o nariz no jornal, mas isso seria o mesmo que admitir uma derrota.

– Continue – Trez voltou à poltrona e se preparou para uma surra.

– Você não está se comportando de maneira profissional.

– Você come no Sal’s.

– O meu linguini com molho de mariscos não requer uma ordem judicial quando decido que na noite seguinte quero o Fra Diavolo.

Bem observado. E, de alguma forma, isso o fez se sentir quase violento.

– Sei o que está fazendo – disse iAm. – E por quê.

– Você não é virgem, portanto é claro que...

– Sei o que lhe enviaram.

Trez parou.

– Como?

– Quando você não atendeu, recebi um telefonema.

Trez empurrou o tapete debaixo dos pés e girou a cadeira para ficar de frente para o rio. Merda. Ele imaginou que acalmaria a situação com aquilo, do tipo, dar ao irmão uma sessão de sermão para que os dois pudessem voltar ao normal. Eles costumavam ser como pele e osso, e o bom relacionamento era essencial.

Ele conseguia lidar com quase tudo, exceto com um desentendimento com o irmão.

Infelizmente, os problemas sobre os quais se referiam ali eram a única coisa no “quase tudo”.

– Ignorar não vai fazer isso desaparecer, Trez.

Isso foi dito com uma certa medida de gentileza, como se o cara lamentasse por ele.

Enquanto Trez fitava o rio, imaginou estar em seu clube, com humanos cercando-o, o dinheiro trocando de mãos e as mulheres que trabalhavam lá fazendo o que faziam nos fundos. Legal. Normal. Controlado e confortável.

– Você tem responsabilidades.

Trez segurou a caneca com mais força.

– Não me apresentei como voluntário a eles.

– Não importa.

Ele virou com tanta rapidez que derramou café na coxa. Ignorou o ardor.

– Deveria. O cacete como deveria. Não sou um objeto inanimado que eles podem dar a quem quiserem. A coisa toda é uma tolice.

– Alguns considerariam uma honra.

– Bem, eu não. Não vou me amarrar àquela fêmea. Não me importo quem ela seja ou quem armou isso ou quão “importante” isso é para o s’Hisbe.

Trez se preparou para a enxurrada do “ah, sim, você vai”. Em vez disso, seu irmão pareceu triste, como se ele também não quisesse aquela maldição.

– Vou repetir, Trez. Isso não vai desaparecer num passe de mágica. E tentar sair dessa transando por aí? Não só é fútil, como potencialmente perigoso.

Trez esfregou o rosto.

– As mulheres são apenas humanas. Elas não têm importância – ele voltou a olhar para o rio. – E, francamente, se eu não fizer alguma coisa, vou enlouquecer. Um punhado de orgasmos tem que ser melhor do que isso, certo?

Enquanto o silêncio retornava, ele soube que o irmão discordava dele. Mas a prova de que sua vida estava na mais absoluta merda era que a conversa terminara ali.

iAm, pelo visto, não era o tipo de homem que chuta um cara caído.

Tanto faz. Ele não se importava com o que se esperava dele. Ele não voltaria para ser condenado a uma vida de serviços forçados.

Pouco se importava se era para a filha da rainha.


CAPÍTULO 12

Era fim de tarde quando Wrath chegou a um beco sem saída. Estava à mesa, sentado no trono do pai, os dedos percorrendo um relatório escrito em braille, quando, de repente, não conseguia ler nem mais uma maldita palavra do texto.

Empurrando os papéis para o lado, praguejou e arrancou os óculos escuros do rosto. Bem na hora em que estava para lançá-los contra a parede, sentiu um focinho no cotovelo.

Passando o braço ao redor do golden retriever, pressionou a mão no pelo macio que crescia nos flancos do cachorro.

– Você sempre sabe, não é?

George se aninhou, pressionando o peito na perna de Wrath – a dica de que “alguém” queria ser erguido.

Wrath se inclinou e apanhou todos os quarenta quilos nos braços. Enquanto acomodava as quatro patas, a juba de leão e o rabo volante para que tudo coubesse, ele concluiu que era bom que fosse tão alto. Coisas grandes ofereciam um colo grande.

E o ato de afagar todo aquele pelo o acalmou, mesmo que não lhe tranquilizasse a mente.

Seu pai fora um Rei notável, capaz de suportar inúmeras horas de cerimônias, noites infindáveis nos esboços de proclamações e convocações, meses e anos inteiros de protocolo e tradição. E isso antes de ser inundado pelo fluxo perene de reclamações que vinham de todos os lados: cartas, telefonemas, e-mails – ainda que, obviamente, os últimos estivessem fora de questão na época do seu pai.

Wrath, um dia, fora um lutador. Um excelente lutador.

Levantando a mão, sentiu a lateral do pescoço, o lugar por onde a bala entrara...

A batida à porta foi decidida, direta ao ponto, mais uma exigência do que uma solicitação respeitosa para entrar.

– Pode entrar, V. – respondeu.

O odor adstringente da hamamélis que precedeu o Irmão foi uma pista evidente de que alguém estava irritado. E, com toda certeza, sua voz grave tinha uma ponta de descontentamento.

– Finalmente terminei os testes de balística. Malditos fragmentos sempre tomam tempo demais.

– E? – Wrath o instigou.

– É uma combinação perfeita. Cem por cento – enquanto Vishous se sentava na cadeira oposta à mesa, a peça de mobília rangeu debaixo do peso. – Nós os pegamos.

Wrath exalou longamente, parte do zumbido impotente escorrendo de sua mente.

– Bom – ele correu a mão pela cabeça grande de George, descendo até as costelas. – Então, esta é a nossa munição.

– Exato. O que aconteceria de qualquer maneira agora toma uma forma legal.

A Irmandade soubera o tempo todo quem estivera por trás do tiro que quase matara o Rei no outono, e a tarefa de acabar com o Bando de Bastardos um a um era algo que eles encaravam muito mais como uma tarefa sagrada para a raça.

– Olha aqui, eu preciso ser franco, certo?

– E quando não foi? – Wrath argumentou.

– Por que diabos está atando as nossas mãos?

– Eu não sabia que estava fazendo isso.

– Com Tohr.

Wrath reposicionou George a fim de que o fluxo sanguíneo da perna esquerda não ficasse completamente bloqueado pelo peso do cão.

– Ele solicitou o decreto.

– Todos nós temos o direito de acabar com Xcor. O cretino é o prêmio que todos nós queremos. Isso não deveria estar restrito somente a ele.

– Ele pediu.

– Isso só faz com que seja muito mais difícil matar o bastardo. E se um de nós o encontrar, e Tohr não estiver conosco?

– Vocês o trazem para cá – houve uma longa pausa, um silêncio tenso. – Você me ouviu, V.? Traga aquele monte de merda para cá e deixe Tohr fazer o serviço.

– O objetivo é eliminar o Bando de Bastardos.

– E como isso o impede de fazer o seu trabalho? – quando não houve resposta, Wrath balançou a cabeça. – Tohr estava naquela van comigo, meu Irmão. Ele salvou a minha vida. Sem ele...

Enquanto a frase não foi finalizada, V. praguejou baixinho, como se estivesse fazendo os cálculos sobre aquela lembrança e chegando à conclusão de que o Irmão que teve que cortar o tubo plástico da sua garrafa CamelBak e executar uma traqueotomia no seu Rei num veículo em movimento a quilômetros de distância de qualquer ajuda médica deveria ter um tantinho só a mais de direito de matar o criminoso.

Wrath sorriu de leve.

– Que tal se, só porque eu sou um cara legal, eu deixar que cada um de vocês dê um soco nele antes que Tohr mate o filho da puta com as próprias mãos? Fechado?

V. riu.

– Isso alivia um pouco.

A batida que os interrompeu foi baixa e respeitosa, uma sequência de batidinhas leves que parecia sugerir que quem quer que fosse ficaria feliz em ser mandado embora, satisfeito em aguardar, ou esperava por uma audiência imediata, tudo ao mesmo tempo.

– Pois não? – chamou Wrath.

Uma colônia cara anunciou a chegada do advogado: Saxton sempre cheirava bem, e isso se encaixava em sua personalidade. Pelo que Wrath lembrava, além da excelente educação do cara e da qualidade do seu raciocínio, ele sempre se vestia de acordo com a moda como um filho bem nascido da glymera. Isso é, com perfeição.

Não que Wrath tivesse visto isso recentemente.

Ele recolocou os óculos num movimento rápido. Uma coisa era se expor na frente de V.; isso não aconteceria diante do macho jovem e eficiente que passava pela porta, não importando o quanto Sax fosse confiável e profissional.

– O que tem para mim? – perguntou Wrath enquanto o rabo de George se movia de um lado para o outro à guisa de um cumprimento.

Houve uma longa pausa.

– Talvez seja melhor eu voltar mais tarde?

– Você pode dizer qualquer coisa na frente do meu Irmão.

Outra pausa longa, durante a qual V. provavelmente encarava o advogado como se quisesse tirar um naco do traseiro do garoto bonito e bem-vestido por sugerir que havia uma divisa de informações que precisava ser respeitada.

– Mesmo que seja sobre a Irmandade? – Saxton perguntou com franqueza.

Wrath praticamente sentia os olhos gélidos de V. virando de direção. E, como esperado, o Irmão bradou:

– O que há conosco?

Quando Saxton permaneceu calado, Wrath deduziu sobre o que se tratava.

– Pode nos dar um minuto, V.?

– Está de brincadeira?

Wrath pegou George e o colocou no chão.

– Só preciso de cinco minutos.

– Tudo bem. Divirta-se, meu senhor – grasnou V. ao se levantar. – Merda.

Um instante depois, a porta bateu.

Saxton pigarreou.

– Eu poderia ter voltado depois.

– Se eu quisesse isso, eu teria lhe dito. Agora fale.

Uma inspiração profunda, seguida de uma expiração, como se o civil estivesse olhando para a saída e se perguntando se a partida intempestiva de V. poderia ser a causa de ele acordar morto mais tarde.

– Hum... a auditoria das Leis Antigas está completa, e eu posso lhe fornecer uma lista completa das seções que necessitam de emendas, além de reformulações propostas, e um cronograma para que as mudanças possam ser implementadas se...

– Sim ou não. É tudo o que me interessa.

A julgar pelo sussurro dos sapatos resvalando o tapete Aubusson, Wrath deduziu que o advogado estava andando de um lado para o outro. De cabeça, ele visualizou o escritório, desde as paredes azul-claras até as cornijas em arabesco e toda a mobília francesa antiga e frágil.

Saxton fazia mais sentido naquele cômodo do que Wrath com seu couro e camiseta justa.

Mas a lei prescrevia quem deveria ser o Rei.

– Você precisa começar a mexer os lábios, Saxton. Garanto que não será demitido se falar comigo francamente. Se tentar editar a verdade ou suavizá-la? Isso sim o fará cair, pouco importando com quem está dormindo.

Houve um novo pigarrear. E então, a voz aculturada chegou até ele diretamente do outro lado da escrivaninha.

– Sim, pode fazer o que desejar. No entanto, preocupo-me quanto ao momento.

– Por quê? Porque vai precisar de dois anos para fazer as emendas?

– O senhor está fazendo uma mudança fundamental na seção da sociedade que protege a espécie – e isso pode desestabilizar ainda mais o seu governo. Estou a par das pressões que tem sofrido, e seria negligente de minha parte se eu não apontasse o óbvio. Se o senhor alterar a prescrição sobre quem pode entrar na Irmandade da Adaga Negra, isso poderá provocar ainda mais abertura para dissensão... isso não se parece com nada que tenha tentado em seu reinado, e virá numa época de extremo distúrbio social.

Wrath inspirou profundamente pelo nariz – e não captou vibração negativa; não havia evidências de que o homem estivesse sendo fraudulento ou que não estivesse disposto a realizar o trabalho.

E ele tinha razão.

– Agradeço sua opinião – disse Wrath. – Mas não vou me curvar ante o passado. Recuso-me. E se eu tivesse dúvidas a respeito do macho em questão, eu não estaria fazendo isso.

– Como os outros Irmãos se sentem a esse respeito?

– Isso não é da sua conta – na verdade, não tocara no assunto com eles ainda. Afinal, por que se importar se não houvesse possibilidade de seguir adiante? Tohr e Beth eram os únicos que sabiam exatamente até onde ele estava preparado para levar aquilo. – Quanto tempo vai levar para que você torne isso oficial?

– Posso deixar tudo preparado para o alvorecer de amanhã, no máximo ao anoitecer.

– Faça isso – Wrath cerrou um punho e o bateu no braço do trono. – Faça isso agora.

– Como desejar, meu senhor.

Houve uma movimentação de tecidos finos, como se o macho estivesse se inclinando, e depois mais passos antes que uma das portas duplas se abrisse e se fechasse.

Wrath fitou o vazio produzido pelos seus olhos cegos.

Tempos perigosos por certo. E francamente, o sensato a fazer era ter mais Irmãos, e não pensar em motivos para não os ter, ainda que a contra-argumentação fosse: se aqueles três garotos estavam dispostos a lutar ao lado deles sem serem iniciados, por que se importar?

Foda-se. Era costume antigo querer honrar alguém que tivesse colocado a própria vida em risco só para que a dele pudesse continuar.

A real questão, contudo, tirando as leis... era: o que os outros pensariam?

Muito provavelmente seria isso a colocar um freio na questão mais do que qualquer detalhe legal.

Quando a noite caiu horas mais tarde, Qhuinn estava deitado nu na cama. Ele dormia, mas nem seu corpo nem sua mente estavam descansando.

Em seu sonho, ele tinha voltado para o acostamento da estrada, tendo saído a pé da casa da família. Carregava no ombro uma bolsa de lona, a proclamação de deserdação enfiada na cintura e uma carteira que, a não ser por onze dólares, estava vazia.

Tudo estava bem nítido. Nada fora modificado devido a um erro de reprodução de memória: desde a noite úmida de verão e o som dos seus New Rocks no pedregulho do acostamento... até o fato de ele ter ciência de que não havia nada em seu futuro.

Não tinha para onde ir. Nenhum lar para onde voltar.

Nenhuma perspectiva. Nem mesmo um passado.

Quando o carro parou atrás dele, ele sabia que só podia ser John ou Blay...

Mas, não. Não foram seus amigos. Era a morte na forma de quatro machos em mantos negros que saíram por quatro portas e convergiram ao seu redor.

Uma Guarda de Honra. Enviada pelo seu pai para surrá-lo por desonrar o nome da família.

Quanta ironia. Alguém haveria de deduzir que esfaquear um sociopata que tentara estuprar seu colega seria uma coisa boa. Mas não quando o agressor era o seu perfeito primo de primeiro grau.

Em câmera lenta, Qhuinn se colocou em postura de luta, preparado para enfrentar o ataque. Não havia olhos para encarar, nenhum rosto em que reparar – e não havia motivo para tal: o fato de os mantos esconderem suas identidades supostamente faria com que a pessoa que transgredira sentisse como se toda a sociedade desaprovasse as ações que ele executara.

Circundando, circundando, aproximando-se... No fim, conseguiriam derrubá-lo, mas ele os feriria no processo.

E foi o que fez.

Mas ele também teve razão: depois do que pareceram serem horas de defesa, ele acabou de costas, e foi nesse momento que a surra de fato aconteceu. Deitado no asfalto, ele cobriu a cabeça e o escroto o melhor que pôde, os golpes chovendo sobre ele, mantos negros voando como asas de corvos conforme era golpeado e surrado.

Depois de um tempo, não sentiu dor.

Iria morrer ali no acostamento da estrada...

– Pare! Não devemos matá-lo!

A voz do irmão atravessou tudo aquilo, atingindo-o de um modo como nenhum golpe podia mais...

Qhuinn despertou com um grito, levando as mãos ao rosto, as coxas se elevando para proteger a virilha...

Nenhum punho, nenhum taco vindo em sua direção.

E ele não estava no acostamento da estrada.

Fazendo com que as luzes se acendessem, olhou ao redor do quarto no qual vinha ficando desde que fora expulso da casa da própria família. Não combinava em nada com ele, o papel de parede de seda e os objetos eram algo que a sua mãe escolheria – ainda assim, naquele momento, a visão de toda aquela quinquilharia que outra pessoa escolhera, comprara e pendurara, fez com que ele se acalmasse.

Mesmo enquanto a lembrança pairava.

Deus, o som da voz do irmão.

Seu próprio irmão fizera parte da Guarda de Honra enviada atrás dele. Em retrospecto, isso enviava uma mensagem ainda mais poderosa para a glymera sobre a seriedade com que a família cuidava dos seus assuntos. E não era como se o cara não tivesse sido treinado. Ele aprendera artes marciais, embora, naturalmente, não lhe permitissem lutar. Inferno, mal permitiram que ele brigasse nos treinos.

Valioso demais para a linhagem. E se ele se ferisse? Aquele que seguiria os passos do pai e um dia se tornaria lídher do Conselho poderia ficar exposto.

Risco pequeno de um dano catastrófico para a família.

Qhuinn, por sua vez... Antes de ser renegado, fora colocado no programa de treinamento, talvez com a esperança de que sofresse algum ferimento mortal no campo de batalha e fizesse o favor a todos de morrer com honra.

Pare! Não devemos matá-lo!

Essa fora a última vez em que ouvira a voz do irmão. Pouco depois de Qhuinn ter sido expulso de casa, a Sociedade Redutora conduzira uma onda de ataques e matara a todos, o pai, a mãe, a irmã – e Luchas.

Todos morreram. E mesmo que uma parte sua os odiasse pelo que lhe fizeram, ele não desejaria esse tipo de morte a ninguém.

Qhuinn esfregou o rosto.

Hora de uma chuveirada. Era tudo o que ele sabia.

Pondo-se de pé, espreguiçou-se até as costas estalarem e verificou o celular. Uma mensagem de texto para o grupo anunciava que haveria uma reunião no escritório de Wrath; e uma espiada rápida no relógio lhe informou que ele tinha pouco tempo.

O que não era ruim. Ao passar para velocidade acelerada e se apressar para o banheiro, era um alívio se concentrar em coisas reais em vez de no passado maldito.

Não havia nada que ele pudesse fazer a respeito desse último a não ser amaldiçoá-lo. E ele bem sabia que já fizera isso o suficiente para doze vidas.

Hora de acordar, pensou.

Hora de ir trabalhar.


CAPÍTULO 13

Lá pela mesma hora em que Qhuinn tomava banho na casa principal, Blay despertou na cadeira daquele escritoriozinho no subterrâneo. A dor de cabeça que lhe serviu como despertador não se originava do vinho do Porto, mas pelo fato de ter pulado a Última Refeição. Mas, caramba, bem que ele queria que a bebida estivesse por trás do latejar em seu crânio. Ele poderia se valer disso para justificar o estado absolutamente deplorável com que fora parar ali.

Praguejando, abaixou as pernas da escrivaninha e se sentou melhor. O corpo estava duro como uma tábua, as dores brotavam em todo tipo de lugar enquanto ele fez as luzes se acenderem.

Merda. Ainda estava nu.

Mas até parece que os elfos recatados entrariam sorrateiramente ali para vesti-lo enquanto dormia... só para que ele não se lembrasse do que havia feito?

Vestindo os shorts, enfiou os pés nos tênis e se esticou para pegar a camiseta antes mesmo de se lembrar para o que a usara.

Ao olhar para as dobras amarrotadas do algodão e sentir os pontos endurecidos no tecido macio, deu-se conta de que nenhuma quantidade de racionalização mudaria o fato de ele ter traído Saxton. Contato físico com alguém era apenas uma das medidas da infidelidade – e, sim, isso era o maior divisor. O que fizera na noite anterior, porém, fora uma violação do relacionamento deles, mesmo que o orgasmo tivesse sido causado pelo cérebro e não pela sua mão.

Pondo-se de pé, sentiu-se meio morto ao se encaminhar para a porta e entreabri-la. Se houvesse alguém nas imediações, ele voltaria para dentro e esperaria até que o corredor estivesse vazio. Ele absolutamente não queria ser apanhado saindo daquele escritório vazio, meio despido e com aquela aparência lastimável. O lado bom de viver no complexo era que você estava sempre cercado por gente que se preocupava com você; o lado ruim era que todos tinham olhos e ouvidos, e nenhum assunto particular era totalmente particular.

Quando não ouviu nem vozes nem passos, explodiu para o corredor e começou a caminhar numa passada rápida, como se estivesse estado em algum lugar com determinado propósito e estivesse se dirigindo para o quarto com uma finalidade igualmente importante. Teve a sensação de ter se safado ao chegar ao túnel. Claro, não costumava andar por aí sem camisa, mas muitos dos outros Irmãos e machos faziam isso quando saíam da academia, não era nada extraordinário.

E ele realmente sentiu como se tivesse ganhado na loteria quando saiu de baixo da grande escadaria da mansão e foi recebido por mais uma bela dose de corredor vazio. O único problema era que, pelo som da louça sendo levada da sala de jantar, devia ser mais tarde do que ele imaginava. Obviamente, perdera a Primeira Refeição – notícia ruim para a sua cabeça, mas, pelo menos, ele tinha umas barras de proteína no quarto.

Sua sorte chegou ao fim quando ele subiu as escadas para o segundo andar. Parados diante das portas fechadas do escritório de Wrath, Qhuinn e John estavam vestidos para o combate, com as armas a postos e os corpos cobertos por couro preto.

De jeito nenhum ele olharia para Qhuinn. Só o fato de tê-lo em sua visão periférica era ruim o bastante.

– O que está acontecendo? – perguntou.

Temos uma reunião agora, sinalizou John. Ou, pelo menos, era para termos. Não recebeu a mensagem?

Merda, ele não fazia ideia de onde estava seu telefone. No quarto? Tomara.

– Vou tomar uma chuveirada e volto já.

Talvez tenha de se apressar. Os Irmãos estão a portas fechadas há meia hora. Não sei o que está acontecendo.

Ao lado dele, Qhuinn se balançava para frente e para trás nos coturnos, a oscilação do peso fazendo parecer que estava andando, mesmo ele não indo a parte alguma.

– Cinco minutos – murmurou Blay. – Só preciso disso.

Ele esperava que a Irmandade abrisse as portas até lá, a última coisa que queria era ficar sem fazer nada ao lado de Qhuinn.

Praguejando ao andar, Blay correu até o quarto. Normalmente, ele demorava para se aprontar, ainda mais se Sax estivesse a fim, mas dessa vez seria entrar, chuveiro e...

Ao abrir a porta, parou.

Mas o quê...?

Malas. Na cama. Tantas que ele não conseguia ver mais do que alguns centímetros do edredom. E ele sabia a quem elas pertenciam. Guccis combinando, brancas com o logo azul-marinho e as alças de tecido em azul e vermelho, porque, segundo Saxton, o tradicional marrom sobre marrom com vermelho e verde eram “óbvios demais”.

Blay fechou a porta em silêncio. Seu primeiro pensamento foi “puta merda, Saxton sabe”. De algum modo, ele soube o que aconteceu no centro de treinamento.

O macho em questão apareceu do banheiro com os braços cheios de frascos de xampu, condicionador e outros produtos. E parou no ato.

– Oi – disse Blay. – Vai sair de férias?

Depois de um momento tenso, Saxton se aproximou, colocou os produtos numa mala e se virou. Como sempre, seu lindo cabelo loiro estava afastado da testa em ondas espessas. E ele estava perfeitamente bem vestido, em outro terno de tweed com colete combinando, uma gravata vermelha e um lencinho de bolso também vermelho só para dar o toque certo de cor.

– Acho que você sabe o que vou dizer – Saxton sorriu triste. – Porque você não é nenhum idiota, assim como eu não sou.

Blay foi se sentar na cama, mas teve que mudar de ideia, pois não havia onde se acomodar. Acabou na chaise-longue e, com uma inclinação discreta para o lado, enfiou a camiseta suja debaixo do tecido do saiote. Longe dos olhos. Era o mínimo que podia fazer.

Deus, aquilo estaria mesmo acontecendo?

– Não quero que você vá – Blay se ouviu dizendo com voz grave.

– Acredito nisso.

Blay olhou para além das malas.

– Por que agora?

Pensou nos dois no dia anterior, debaixo dos lençóis, fazendo sexo selvagem. Estiveram tão próximos... Ainda que, sendo brutalmente honesto, talvez aquilo tivesse sido apenas físico.

Retire o talvez.

– Venho enganando a mim mesmo – Saxton balançou a cabeça. – Pensei que poderia continuar com você assim, mas não posso. Isto está me matando.

Blay fechou os olhos.

– Sei que tenho ficado muito tempo fora...

– Não é disso que estou falando.

Enquanto Qhuinn tomava todo o espaço entre eles, Blay quis gritar. Mas que bem aquilo faria? Parecia que ele e Saxton chegaram ao mesmo beco sem saída no mesmo momento lamentável.

Seu amante o fitou por cima da bagagem.

– Acabei aquela missão para Wrath. É uma boa hora para terminarmos, para eu me mudar e encontrar outro emprego...

– Espere, quer dizer que está abandonando o Rei também? – Blay franziu o rosto. – Não importa como estejam as coisas entre nós, você precisa continuar trabalhando para ele. Isso é mais importante do que o nosso relacionamento.

O olhar de Saxton abaixou.

– Suspeito que isso seja mais fácil para você dizer.

– Não é verdade – rebateu Blay inflexível. – Deus, eu... sinto muito.

– Você não fez nada errado. Você tem que saber que não sinto raiva de você, nem amargura. Você sempre foi honesto, e eu sempre soube que terminaria assim entre nós. Eu só não sabia quando. Não sabia... até chegar ao fim. Que é agora.

Ai, droga.

Mesmo sabendo que Saxton estava certo, Blay sentiu uma necessidade compulsiva de lutar por ele.

– Preste atenção, tenho estado distraído na última semana, e eu sinto muito. Mas as coisas vão acabar se ajeitando, e você e eu vamos voltar ao normal...

– Eu te amo.

Blay fechou a boca de súbito.

– Por isso, veja – Saxton continuou rouco –, não foi você quem mudou. Fui eu... e eu sinto que as minhas emoções tolas nos distanciaram.

Blay se colocou de pé e avançou pelo carpete de bela textura até o outro macho.

Ao chegar ao seu destino, ficou aliviado a ponto de sentir lágrimas nos olhos por Saxton aceitar o seu abraço. Ao segurar o seu primeiro amante verdadeiro contra si, sentindo a diferença familiar em suas alturas e o perfume maravilhoso da sua colônia, uma parte dele queria discutir aquele rompimento até que os dois desistissem e continuassem tentando.

Mas não seria justo.

Como Saxton, ele tivera a vaga noção de que as coisas terminariam em algum momento. E, tal qual seu amante, também se surpreendia por ser agora.

O que, claro, não alterava o resultado.

Saxton recuou um passo.

– Nunca tive a intenção de me envolver emocionalmente.

– Desculpe... Eu sinto muito – merda, isso era tudo o que saía da sua boca. – Eu daria tudo para que fosse diferente. Eu queria... ser diferente.

– Eu sei – Saxton esticou a mão e resvalou-a na lateral do rosto dele. – Eu perdoo você... e você tem que se perdoar.

Ele não tinha certeza se poderia fazer isso; ainda mais agora, nesse momento, e como sempre, quando uma ligação emocional que não queria, e que não poderia mudar, mais uma vez o impedia de ter algo que desejava.

Qhuinn era uma tremenda maldição para ele, era isso o que o cara era.

Cerca de 25 quilômetros ao sul da montanha do complexo da Irmandade, Assail despertou em sua cama redonda na suíte principal da sua mansão às margens do Hudson. Acima dele, painéis espelhados cobriam o teto e seu corpo nu estava iluminado com o brilho suave das luzes instaladas ao redor da base do colchão. O quarto octogonal estava escuro fora isso, as cortinas fechadas, a noite escondida.

Ao pensar em todo o vidro da casa, sabia que muitos vampiros considerariam as acomodações inadequadas. Muitos evitariam a mansão por completo.

Risco demais durante o dia.

Assail, contudo, nunca se sentira preso a convenções, e o perigo inerente de morar numa construção com tanto acesso à luz era algo que podia ser administrado, e não evitado.

Levantando-se, foi para a escrivaninha, ligou o computador e acessou o sistema de segurança que monitorava não apenas a casa, mas toda a propriedade. Alertas soaram várias vezes nas primeiras horas do dia, avisos não de ataques iminentes, mas de algum tipo de atividade que fora detectado pelo programa de filtragem do sistema de segurança.

Na verdade, faltava-lhe a energia para se preocupar demais, um sinal indesejável de que precisava se alimentar...

Assail franziu o cenho ao receber o relatório.

Ora, se aquilo não era interessante.

E era exatamente por isso que ele instalara todo aquele equipamento.

Nas imagens produzidas pelas câmeras de trás, ele viu uma figura vestida com uma roupa camuflada de neve passeando em esquis de cross-country pelo meio da floresta, aproximando-se da casa pelo norte. Quem quer que fosse, permaneceu escondido entre os pinheiros grande parte do tempo, e vigiou a casa por diversos ângulos por aproximadamente dezenove minutos... antes de atravessar o limite de pinheiros a oeste, atravessando a propriedade vizinha, e descendo pelo gelo. Duzentos metros mais à frente, o homem parou, pegou os binóculos novamente, e encarou a casa de Assail. Depois, circundou a península que se projetava do rio, voltou a entrar na floresta e desapareceu.

Aproximando-se da tela, Assail repetiu a gravação, aumentando o zoom para identificar a expressão facial, se possível. Mas não foi. A cabeça estava coberta por uma máscara de esqui, com abertura apenas para os olhos, o nariz e a boca. Junto à parca e às calças de esqui, o homem estava coberto dos pés à cabeça.

Recostando-se, Assail sorriu para si mesmo, as presas formigando numa reação territorial.

Só existiam dois grupos que poderiam se interessar em suas atividades, e a julgar pela luz solar que reinara durante aquele reconhecimento, ficou claro que a curiosidade não se originara da Irmandade: Wrath jamais usaria humanos para qualquer outra coisa que não fosse uma fonte derradeira de alimentação, e nenhum vampiro suportaria aquela intensidade de luz solar sem se incendiar.

Restava, então, alguém do mundo humano. E só havia um homem com interesse e recursos para tentar atacar a ele e ao seu território.

– Entre – disse ele pouco antes de uma batida soar à porta.

Enquanto um par de machos entrava, ele não se deu ao trabalho de desviar a vista da tela do computador.

– Como dormiram?

Uma voz conhecida e grave respondeu:

– Como os mortos.

– Que bom para você. Mudança de fuso horário pode ser uma inconveniência, pelo que sei. A propósito, tivemos um visitante esta manhã.

Assail inclinou-se para um lado a fim de que seus dois associados vissem a filmagem.

Era estranho ter gente morando com ele, mas teria que se acostumar à presença deles. Quando chegara ao Novo Mundo, fora uma viagem solitária, e ele tivera a intenção de manter essa situação por inúmeros motivos. O sucesso no ramo escolhido, todavia, exigira que ele chamasse uma retaguarda – e as únicas pessoas nas quais poderia confiar parcialmente eram da família.

E aqueles dois ofereciam um benefício sem igual.

Seus dois primos eram uma raridade na espécie vampiresca: eram gêmeos idênticos. Quando totalmente vestidos, o único modo de distingui-los era por uma única pinta atrás do lóbulo da orelha; fora isso, desde as vozes até os olhos negros e desconfiados, incluindo os corpos musculosos, eram o reflexo perfeito um do outro.

– Vou sair – anunciou Assail. – Se o nosso visitante aparecer novamente, sejam hospitaleiros, sim?

Ehric, o mais velho por questão de minutos, olhou de relance, o rosto destacado pela iluminação da base da cama. Tanta maldade naquela bela combinação de feições... a ponto de alguém quase sentir pena do intruso.

– Será um prazer, eu garanto.

– Mantenha-o vivo.

– Claro.

– Essa é uma divisória um tanto sutil que vocês dois às vezes gostaram de apreciar.

– Confie em mim.

– Não é você quem me preocupa – Assail olhou para o outro. – Entendeu?

O gêmeo de Ehric permaneceu calado, apesar de concordar com a cabeça uma vez.

Era precisamente por essa reação contrariada que Assail preferiria ter mantido a sua vida nova simples. Mas era impossível estar em mais de um lugar ao mesmo tempo. E aquela violação de privacidade era a prova de que ele não poderia fazer tudo sozinho.

– Sabem como me encontrar – disse antes de dispensá-los do quarto.

Vinte minutos mais tarde, saiu da casa de banho tomado, vestido e atrás do volante do seu Range Rover blindado.

O centro da cidade de Caldwell à noite era belo de longe, especialmente ao passar pela ponte de acesso. Só depois que ele penetrou no sistema viário que o esgoto da cidade ficou evidente: os becos com neve suja acumulada, as latas de lixo transbordando e os humanos sem-teto descartados, meio congelados, contavam a triste verdade sobre a desprotegida municipalidade.

Seu local de trabalho, evidentemente.

Ao chegar à Galeria de Arte Benloise, estacionou nos fundos, em uma das vagas que era paralela à construção atrás do estabelecimento. Ao sair do carro, o vento frio açoitou o casaco de pelo de camelo e ele teve que segurar as duas pontas juntas ao atravessar a calçada, aproximando-se da porta de tamanho industrial.

Não teve que bater. Ricardo Benloise tinha muitas pessoas trabalhando para ele e nem todos eram do tipo que se associava aos negociantes das artes. Um macho humano do tamanho de um parque de diversões abriu a porta e ficou de lado.

– Ele o está aguardando?

– Não, não está.

Disneylândia assentiu.

– Quer esperar na galeria?

– Seria bom.

– Quer beber alguma coisa?

– Não, obrigado.

Ao atravessarem a parte do escritório e seguirem para o espaço de exibições, a deferência agora concedida a Assail era algo novo, merecido tanto pelos enormes pedidos de mercadoria que ele vinha fazendo quanto pelo sangue derramado de incontáveis humanos. Graças a ele, a taxa de suicídio entre os machos desprivilegiados entre os 18 e os 29 anos com registros criminais em drogas aumentou como nunca na cidade, chegando ao noticiário nacional.

Imagine só.

Enquanto âncoras de TV e repórteres tentavam entender essas tragédias, ele simplesmente continuava a expandir os negócios usando qualquer meio necessário. As mentes humanas eram tremendamente sugestionáveis; praticamente nenhum esforço era necessário para fazer com que os traficantes intermediários levassem as pistolas às têmporas e apertassem os gatilhos. E, do mesmo modo como a natureza abominava um vácuo, o mesmo acontecia com a demanda de suplementos químicos.

Assail tinha as drogas. Os viciados tinham o dinheiro.

O sistema econômico mais do que sobrevivia à reorganização forçada.

– Vou subir – disse o homem na porta camuflada – para avisar da sua chegada.

– Leve o tempo de que precisar.

Deixado só, Assail passeou pelo espaço aberto de teto alto, entrelaçando as mãos às costas. De vez em quando, parava para ver a “arte” pendurada nas paredes e nas divisórias e foi lembrado do motivo pelo qual os humanos deviam ser erradicados, preferencialmente com métodos lentos e dolorosos.

Pratos de papel usados colados a tábuas de compensados baratas recobertas com citações de comerciais de TV escritas à mão? Um autorretrato feito com creme dental? E igualmente ofensivas eram as placas enaltecedoras ao lado das porcarias declarando que aquela tolice era a nova onda do Expressionismo Americano.

Tamanha explicação sobre a cultura de tantas maneiras.

– Ele pode recebê-lo agora.

Assail sorriu para si mesmo e se virou.

– Quanta gentileza.

Ao passar pela porta escondida e subir até o terceiro andar, Assail não condenou seu fornecedor por ser desconfiado e querer mais informações a respeito do seu maior cliente. Afinal, num espaço muito curto de tempo, o tráfico de drogas da cidade fora remanejado, redefinido e controlado por um completo desconhecido.

Há que se respeitar a posição do homem.

Mas as investigações terminariam ali.

No topo das escadas, outros dois homenzarrões estavam diante da porta, tão sólidos quanto vigas de sustentação. Assim como o segurança do primeiro andar, logo abriram a porta e acenaram em sua direção respeitosamente.

Do lado oposto, Benloise estava sentado no fundo de uma sala estreita com janelas em um dos lados e apenas três peças de mobiliário: sua escrivaninha elevada, que não passava de uma prancha grossa de teca com um abajur moderno e um cinzeiro por cima; a cadeira dele, com um estilo moderno; e um segundo assento no lado oposto para apenas um visitante.

O homem em si era como o seu ambiente: limpo, oficioso e despojado em seu modo de pensar. Na verdade, ele provou que, por mais ilícito que fosse o tráfico de drogas, os princípios de gerenciamento e as habilidades interpessoais de um CEO importavam muito se você quisesse faturar milhões com isso e manter o dinheiro.

– Assail. Como vai? – o homem baixinho se levantou e esticou a mão. – É um prazer inesperado.

Assail atravessou a sala, apertou o que lhe foi estendido e não esperou pelo convite para se sentar.

– O que posso fazer por você? – perguntou Benloise ao voltar a se sentar.

Assail pegou um charuto cubano de dentro do bolso. Cortando a ponta, inclinou-se para frente e colocou a ponta desprezada sobre o tampo da mesa.

Enquanto Benloise franzia o cenho como se alguém tivesse defecado em sua cama, Assail sorriu o suficiente para exibir rapidamente suas presas.

– Trata-se do que eu posso fazer por você.

– Ah.

– Sempre fui um homem reservado, levando uma vida privada por livre escolha – guardou o cortador e pegou um isqueiro de ouro. Acendendo a chama, inclinou-se e tragou até o charuto sustentar a ponta queimada. – Contudo, mais importante do que isso, sou um homem de negócios envolvido num ramo perigoso. Dessa forma, considero qualquer invasão na minha propriedade ou intrusão no meu anonimato como um ato direto de agressão.

Benloise sorriu com suavidade e se recostou na cadeira em forma de trono.

– Respeito-o por isso, claro, todavia estou confuso quanto aos motivos de você sentir a necessidade de explicitar isso para mim.

– Você e eu entramos num relacionamento mutuamente benéfico, e é meu desejo continuar com essa associação – Assail bafejou o charuto, soltando uma nuvem de fumaça azul francês. – Portanto, quero lhe mostrar o devido respeito e deixar isso claro antes de agir, pois se eu descobrir qualquer pessoa na minha propriedade a quem eu não tenha convidado, eu não só o erradicarei, como também descobrirei a origem das investigações – e bafejou novamente – e farei o que for necessário para defender a minha privacidade. Estou sendo bem claro?

As sobrancelhas de Benloise se abaixaram, os olhos escuros se zangando.

– Estou? – murmurou Assail.

Havia, obviamente, apenas uma resposta. Levando-se em consideração que o humano desejava viver mais do que até aquele final de semana.

– Sabe, você me lembra o seu predecessor – Benloise disse num sotaque britânico. – Conheceu o Reverendo?

– Sim, frequentamos alguns dos mesmos círculos.

– Ele foi assassinado de modo bem violento. Cerca de um ano atrás, não? A boate dele foi explodida.

– Acidentes acontecem.

– Normalmente em casa, pelo que ouvi dizer.

– Algo de que deve sempre se lembrar.

Enquanto Assail sustentava aquele olhar, Benloise desviou o dele primeiro. Pigarreando, o maior importador de drogas da costa leste passou a palma da mão sobre o tampo lustroso da mesa, como se sentisse os veios da madeira.

– Os nossos negócios – disse Benloise – têm um delicado ecossistema que, por conta de toda a sua robustez financeira, deve ser mantido cuidadosamente. A estabilidade é rara e muito desejável para homens como você e eu.

– Concordo. E para que isso aconteça, pretendo retornar à conclusão da noite com o meu pagamento desse ínterim, conforme planejado. Como sempre, venho a você em boa fé, e não lhe dou motivos para duvidar das minhas intenções.

Benloise lhe ofereceu outro sorriso suave.

– Você faz parecer como se eu estivesse por trás – ele moveu a mão num gesto aleatório de dispensa no ar – do que quer que o tenha incomodado.

Inclinando-se para frente, Assail deixou o queixo cair e o encarou.

– Não estou incomodado. Ainda.

Uma das mãos de Benloise sub-repticiamente saiu do campo de visão. Uma fração de segundo depois, Assail ouviu a porta do outro lado do cômodo se abrir.

Mantendo a voz baixa, Assail disse:

– Isto foi uma cortesia para você. Da próxima vez que eu encontrar alguém na minha propriedade, quer você o tenha enviado ou não, não demonstrarei nem metade dessa educação.

Dito isso, levantou-se e enterrou o charuto no tampo da mesa.

– Desejo-lhe uma boa noite – disse antes de sair.


CAPÍTULO 14

Aquilo sim é que era começar tarde.

Enquanto Qhuinn se desmaterializava para longe da mansão, ele custava a acreditar que já fosse dez da noite e eles estavam apenas começando. Pensando bem, a Irmandade ficou enfiada no escritório de Wrath pelo que pareceu uma eternidade e quando ele e John, por fim, foram admitidos, o anúncio de V. de que a prova contra o Bando de Bastardos era concreta levou a mais uma bela meia hora de excomunhão de Xcor e dos comparsas.

Diferentes usos criativos para a palavra arregaçar, bem como excelentes sugestões de onde se enfiar objetos inanimados.

Ele jamais pensara em fazer aquilo com um rastelo, por exemplo. Divertido. Muito divertido.

E Blay perdera aquilo tudo.

Retomando forma numa área florestal a sudoeste do complexo, Qhuinn evitou pensar em que tipo de interferências o pudesse ter retardado, ainda que a verdade fosse que o lutador subira para o quarto e não voltara. E por mais que a maioria dos acidentes acontecesse em casa, seria um bom palpite deduzir que ele não escorregara e caíra.

A menos que Saxton estivesse brincando com o tapete no piso de mármore do banheiro.

Sentindo como se quisesse se estapear, vasculhou o cenário coberto de neve enquanto John, Rhage e Z. surgiam ao seu lado. As coordenadas daquela localização foram encontradas nos telefones dos ladrões de carro da noite anterior, a propriedade aparentemente abandonada cerca de quinze a vinte quilômetros além do local em que ele encontrara o Hummer roubado.

– Que diabos é isso?

Enquanto alguém falava, ele olhou por sobre o ombro. “Que diabos” estava certo: assomando-se atrás deles estava uma construção tão alta quanto um campanário de igreja e tão simples quanto uma lata de lixo reciclável.

– Hangar de aviões – anunciou Zsadist ao começar a andar naquela direção. – Só pode ser.

Qhuinn o seguiu, tomando a retaguarda caso alguém resolvesse fazer uma surpresa.

Do nada, Blay apareceu, todo coberto em couro e tão armado quanto o resto deles. Em reação, os pés de Qhuinn diminuíram de velocidade, depois pararam na neve, em boa parte porque não queria tropeçar e parecer um tolo.

Puxa, ele parecia bem sério. Haveria problemas no paraíso?

Ainda que não existisse nenhum contato visual entre eles, Qhuinn se sentiu compelido a dizer algo:

– O que...

Não concluiu a frase. Por que se importar? O cara passou por ele como se ele nem estivesse ali.

– Estou bem – murmurou Qhuinn, voltando a avançar pela neve compacta. – Obrigado por perguntar. Ah, está tendo problemas com Saxton? Mesmo? Que tal sairmos para tomar um drinque e conversar a respeito? É? Perfeito. Posso ser a sua menta pós-jantar e...

Ele interrompeu o monólogo fantasioso quando a brisa mudou de direção e seu nariz captou algo adocicado e desagradável.

Todos sacaram as armas e se concentraram no hangar.

– Estamos a favor do vento – observou Rhage –, portanto, a bagunça aí dentro deve ser incrível.

Os cinco se aproximaram da construção com cautela, espalhando-se e vasculhando o ambiente iluminado pelo luar à procura de algo que se movesse.

O hangar tinha duas entradas, uma bipartida e grande o bastante para deixar passar a envergadura de uma asa, e a outra supostamente para pessoas, que, em comparação, parecia do tamanho de uma Barbie. E Rhage tinha razão: apesar de o vento gélido os atingir pelas costas, o cheiro era forte o bastante para aguçar as narinas, e não no bom sentido.

Caramba, o frio costumava aplacar o fedor.

Comunicando-se por gestos, dividiram-se em dois grupos, com ele e John ficando num dos lados das portas duplas gigantes, e Rhage, Blay e Z. na entrada menor.

Rhage, como era de se esperar, tentou a maçaneta enquanto todos se preparavam para um confronto. Se houvesse o equivalente a um time de futebol de redutores ali, fazia sentido enviar o Irmão primeiro, porque ele tinha o tipo de retaguarda que ninguém tinha: a besta amava assassinos, e não no sentido de ter um relacionamento com eles.

Quem tinha falado em menta mesmo?

Hollywood levou a mão acima da cabeça. Três... dois... um...

O Irmão penetrou no silêncio absoluto, empurrando a porta e entrando sorrateiramente. Z. foi em seguida e Blay o acompanhou.

Qhuinn sentiu um segundo de puro terror quando o macho saltou para o desconhecido com nada além de um par de pistolas .40 para protegê-lo. Deus, a ideia de que Blay pudesse morrer naquela noite, bem na sua frente, naquela missão comum, fez com que ele quisesse parar com toda aquela tolice de defender a raça e transformar o lutador num bibliotecário. Ou modelo de mãos. Ou cabeleireiro...

O assobio que surgiu menos de sessenta segundos depois foi uma dádiva de Deus. O sinal de Z. de que estava tudo bem para que ele e John se reposicionassem, indo para a lateral da agora porta aberta e passando por...

Ok. Uau.

Falando em fedor. Nota máxima...

Os três que entraram antes ligaram as lanternas, e os fachos de luz cortaram o espaço cavernoso, atravessando a escuridão, iluminando o que a princípio não parecia ser nada além de uma camada de gelo negro. A não ser pelo fato de não ser preto e de não estar congelado. Era sangue humano engrossado – uns mil litros da coisa. Misturado com uma boa quantidade de Ômega.

O hangar foi o local de uma iniciação em massa, numa escala que tornava o que acontecia há um tempo naquela casa de campo nada mais do que uma brincadeira de criança.

– Acho que os garotos que você castigou estavam vindo para uma festa e tanto – comentou Rhage.

– Bem observado – murmurou Z.

Enquanto fachos de luz destacavam um velho e decrépito avião no fundo, e absolutamente nada mais, Z. balançou a cabeça.

– Vamos vasculhar o exterior. Não há nada aqui.

Visto que o chalé não prometia muito pelo lado de fora, apenas uma típica cabana de caçador/pescador no meio da floresta, o Sr. C. sentiu-se tentado a ignorar a maldita coisa. A perfeição tinha as suas virtudes, contudo, e a localização do chalé, cerca de uns dois ou três quilômetros para dentro daquele pedaço de terra, sugeria que ele podia ter sido usado como um quartel-general a certa altura.

Levando-se tudo em consideração, teria sido mais inteligente verificar a propriedade antes de ele ter usado o hangar para a maior iniciação da história da Sociedade Redutora. Mas as prioridades se apresentaram daquele modo. Primeiro, ele teve que se colocar no controle; segundo, de justificar a promoção; e terceiro, de lidar com todos aqueles novos redutores.

E isso significava que ele precisava de recursos. Rápido.

Seguindo a cerimônia grande e suja de Ômega, e o período nauseante que durou algumas horas depois, o Sr. C. ordenara que os novos recrutas subissem num ônibus escolar que ele roubara de uma loja de veículos usados uma semana antes. Devido à exaustão e ao desconforto físico em que se encontravam, portaram-se como garotinhos obedientes, entrando e sentando-se dois a dois como se estivessem numa porra de uma Arca de Noé.

Dali, ele mesmo dirigira (por não confiar esse tipo de bem a qualquer um) para a Escola para Garotas de Brownswick. A extinta escola preparatória ficava no subúrbio em 35 acres de propriedades ignoradas, dilapidadas e cobertas de mato, e os boatos de ser assombrada mantinham afastadas as pessoas normais.

Por enquanto, a Sociedade Redutora estava desabrigada, mas a placa “Vende-se” na curva perto da estrada significava que ele poderia dar um jeito nisso. Tão logo arranjasse algum dinheiro.

Com os rapazes terminando de se recuperar na escola, e os assassinos atuais no centro à procura da Irmandade, ele estava por conta catalogando as poucas propriedades restantes da Sociedade – inclusive aquele pedaço praticamente deserto de floresta ao norte da cidade.

Embora começasse a acreditar que estivesse perdendo tempo.

Subindo na varanda do chalé, iluminou o interior com uma lanterna. Fogão antigo. Mesa de madeira tosca com duas cadeiras. Três camas sem colchão, nem lençóis. Quitinete.

Dando a volta para os fundos, ele encontrou um gerador sem combustível e um tanque de diesel enferrujado, o que sugeria que o lugar teve algum tipo de aquecimento em alguma época.

Voltando para a frente, tentou a porta e descobriu-a trancada.

Não fazia diferença. Não havia muita coisa ali.

Pegando um mapa de dentro da jaqueta de aviador, desdobrou-o e encontrou sua localização. Verificando o quadradinho, pegou a bússola, ajustou a direção e começou a caminhar para o noroeste.

De acordo com aquele mapa, que ele havia encontrado no antro de drogas do Redutor Principal, aquele pedaço de propriedade totalizava cinco acres e tinha esse tipo de chalé espalhado em intervalos randômicos. Ele imaginava que o lugar devia ter sido algum tipo de acampamento com proprietários múltiplos, um tipo de reserva de caça moderna que se perdera para a carga tributária do Estado de Nova York e depois comprada pela Sociedade nos anos oitenta.

Pelo menos era isso o que estava escrito à mão no canto, embora só Deus soubesse se a Sociedade ainda era a proprietária daquilo. Considerando-se a situação financeira da organização, o bom e velho Estado de Nova York poderia bem ter o penhor da propriedade a esta altura, ou até mesmo tê-la reempossado.

Ele parou e verificou a bússola novamente. Caramba, sendo urbano, ele detestava vagar pela floresta à noite, superando a neve com dificuldade, verificando aquele tipo de merda como se fosse algum tipo de guarda florestal. Mas ele tinha de ver com seus próprios olhos aquilo com que tinha que trabalhar, e só havia um modo de fazer isso.

Ao menos tinha um fluxo de receita preparado.

Nas próximas 24 horas, quando aqueles garotos estivessem finalmente de pé, ele voltaria a preencher os cofres. Aquele era o primeiro passo rumo à recuperação.

Passo número dois?

A dominação do mundo.


CAPÍTULO 15

Ela estava sangrando.

Quando Layla olhou para o papel higiênico na mão, a mancha vermelha em todo aquele branco era o equivalente visual de um grito.

Esticando a mão para trás, deu a descarga, e teve que usar a parede para se equilibrar ao se levantar. Com uma mão no baixo ventre e a outra sobre a bancada da pia e depois na maçaneta, ela tropicou para o quarto e foi direto para o telefone.

Seu primeiro instinto foi ligar para a doutora Jane, mas decidiu não fazer isso. Concluindo que estava sofrendo um aborto espontâneo, existia a possibilidade de poupar Qhuinn da ira do Primale. Desde que ela deixasse aquilo debaixo dos panos. E usar a clínica geral da Irmandade provavelmente não seria o melhor modo de assegurar privacidade.

Afinal, só havia um motivo para uma fêmea sangrar. E perguntas a respeito do seu cio e de como ela lidara com isso inevitavelmente se seguiriam.

Na mesinha de cabeceira, ela abriu uma gaveta e retirou um caderninho preto. Encontrando o número da clínica da raça, ela discou com mãos trêmulas.

Quando desligou pouco depois, tinha um horário marcado para dali a trinta minutos.

Mas como sairia dali? Não poderia se desmaterializar, estava ansiosa demais e, de qualquer modo, fêmeas grávidas eram desencorajadas a fazer isso. E ela também não se sentia forte o bastante para dirigir até lá. As aulas de Qhuinn foram bem abrangentes, mas ela não conseguia se imaginar, em seu estado, pegando a autoestrada e tentando acompanhar o fluxo do tráfego humano.

Fritz Perlmutter era a sua única resposta.

Indo até o armário, pegou uma camisola macia, torceu-a numa corda espessa e colocou-a entre as pernas com a ajuda de diversos pares de calcinha. A solução para o seu problema de sangramento mostrou-se incrivelmente volumosa e dificultou o andar, mas esse era o menor dos seus problemas.

Um telefonema para a cozinha garantiu que o mordomo a levaria.

Agora ela só precisava descer as escadas, sair pelo vestíbulo e entrar inteira no enorme sedã. Tudo isso sem se deparar com nenhum macho da casa.

Bem quando estava para sair do quarto, viu seu reflexo no espelho na parede. O manto branco e seu penteado formal anunciavam seu status de Escolhida como nenhuma outra coisa. Ninguém além das fêmeas sagradas da Virgem Escriba da espécie se vestia daquela forma.

Mesmo se aparecesse sob o nome fictício que fornecera à recepcionista, todos adivinhariam sua afiliação sobrenatural.

Tirando o manto, tentou entrar num par de calças de ioga, mas o enchimento que ajustara em si impossibilitou isso. E os jeans que ela e Qhuinn compraram juntos também não estavam dando certo.

Tirando a camisola, ela usou papel higiênico do banheiro para lidar com o problema e conseguiu entrar nos jeans. Um suéter pesado a esquentaria e uma bela escovada nos cabelos e um rabo de cavalo faria com que ela parecesse... quase normal.

Saindo do quarto, ela segurou o tal do celular que Qhuinn lhe dera. Passou pela sua cabeça telefonar para ele, mas, na verdade, o que diria? Ele tinha tanto controle sobre aquele processo quanto ela...

Ah, santa Virgem Escriba, ela estava perdendo o bebê.

O pensamento lhe ocorreu bem quando ela chegou ao topo da escadaria principal. Ela estava perdendo o bebê deles. Naquele instante. Ali do lado de fora do escritório do Rei.

De repente, o teto caiu sobre a sua cabeça e as paredes do vestíbulo grande e espaçoso a apertaram tanto que ela não conseguia respirar.

– Sua Graça?

Estremecendo, ela olhou para baixo para a passadeira vermelha. Fritz estava ao pé das escadas, vestido em seu costumeiro uniforme, e sua adorável e anciã expressão carregada de preocupação.

– Sua Graça, vamos agora? – perguntou ele.

Quando ela assentiu e desceu com cuidado, não conseguia crer que tudo aquilo fora para nada, todas aquelas horas de esforço com Qhuinn... os gélidos momentos seguintes nos quais ela não conseguia se mover... a espera e antecipação de uma esperança quieta e traiçoeira.

O fato de ter cedido o presente de sua virgindade a troco de nada.

Qhuinn sofreria tanto, e o fracasso que ela impingiria a ele só aumentava imensamente o seu próprio sofrimento. Ele sacrificara o corpo durante o cio dela, o desejo dele de ter um laço de sangue incitando-o a fazer algo que ele não teria, de outro modo, escolhido fazer.

O fato de a biologia ter suas vontades não a aliviava.

A perda... ainda parecia ser culpa sua.

Tomar outra dose para acabar com a ressaca.

Saxton acreditava que esse adágio era grosseiro, no entanto, verdadeiro.

Parado nu diante do espelho do banheiro, abaixou o secador e passou os dedos pelos cabelos. As ondas se assentaram em seu estado normal, os fios loiros encontrando uma disposição perfeita para complementar o rosto quadrado e equilibrado.

A imagem que ele via era exatamente aquela da noite anterior, e da anterior àquela, contudo, por mais familiar que seu reflexo fosse, ele se sentia como se pertencesse a uma pessoa diferente, à parte.

Seu corpo mudara tanto por dentro, parecia bem razoável deduzir que a transformação se ecoaria na aparência. Deus, não era assim!

Virando e saindo para o closet, imaginou que não deveria se surpreender, tanto pelo seu íntimo perturbado quanto pelo seu exterior de falsa compostura.

Depois que ele e Blay conversaram, ele precisou de uma hora para tirar tudo do quarto em que ficara com o antigo amante e voltar para a suíte no fim do corredor. Ele recebera aquelas acomodações quando fora morar na mansão, porém, conforme as coisas progrediram com Blay, seus pertences gradualmente migraram para o outro quarto.

Esse processo migratório fora crescente, assim como o seu amor: um caso de uma camisa aqui e um par de sapatos acolá, uma escova de cabelos uma noite e meias na seguinte... uma conversa de valores partilhados seguida por uma maratona de sete horas de sexo acompanhada por um pote de sorvete de café Breyers com apenas uma colher.

Ele não percebera a distância transposta pelo seu coração, do mesmo modo como um andarilho se vê perdido em meio à selva. Contudo, quinze quilômetros e um determinado número de bifurcações em seu caminho mais tarde e não havia como voltar. Àquela altura, não restava alternativa a não ser organizar seus recursos para construir um abrigo e criar raízes novas.

Ele deduzira que construiria seu novo espaço pessoal com Blay.

Sim, deduzira. Afinal, por quanto tempo poderia sobreviver um amor não correspondido? Como o fogo precisa de oxigênio para queimar, assim é com as emoções.

Não no que se referia a Qhuinn, ao que tudo levava a crer. Não para Blay.

Saxton estava decidido a não sair da mansão real, porém. Quanto a isso, Blay tinha razão: Wrath, o Rei, precisava dele, e, mais do que isso, ele gostava do seu trabalho ali. Era ágil, desafiador... e a parte egoísta que havia dentro de si queria ser o advogado que reformaria a lei da maneira correta.

Deduzindo-se que o trono não seria tomado e que ele não fosse decapitado num novo regime.

Mas não se podia viver preocupado com coisas como essa.

Pegando um terno de xadrez escocês do closet, escolheu uma camisa e um colete e estendeu tudo sobre a cama.

Era um clichê triste, bem desestimulante, sair para procurar algo núbil e espiritual para aplacar a dor, mas ele preferia ter um orgasmo a se embriagar. Além disso, o “finja até encontrar um propósito novamente” parecia dar certo.

E parecia especialmente verdadeiro quando ele se olhou arrumado no espelho de corpo inteiro do banheiro, e isso ajudava.

Antes de sair, verificou o celular novamente. As Leis Antigas foram remodeladas seguindo as ordens de Wrath, e agora ele estava de prontidão, à espera da nova tarefa.

Deduziu que logo descobriria o que seria.

Wrath era notoriamente exigente, mas nunca irracional.

Nesse ínterim, ele afogaria sua tristeza no único tipo de “loira gelada” que o apetecia... algo com vinte e poucos anos, lá pelos seus um e oitenta de altura, atlético...

E preferivelmente moreno. Ou loiro.


CAPÍTULO 16

– Alguém já passou por aqui.

Enquanto Rhage falava, Qhuinn pegou sua lanterna de bolso e apontou o discreto facho de luz para o chão. E lá estavam pegadas na neve fresca, sem nenhuma cobertura de flocos... que partiam diretamente para a clareira da floresta. Desligando a luz, ele se concentrou no chalé de caça mais à frente que parecia estar abandonado ao clima frio: nenhuma fumaça subindo pela chaminé, nenhuma iluminação interna e, mais importante, nenhum rastro de cheiro.

Os cinco se aproximaram, circundando a clareira e se movimentando sorrateiramente num ângulo amplo. Como não houve nenhuma ação defensiva de parte alguma, todos subiram na varanda e espiaram o interior pelas janelas estreitas.

– Nada – murmurou Rhage ao ir para a porta.

Uma tentativa rápida na maçaneta. Fechada.

Com um empurrão, o Irmão esmagou o ombro imenso contra o batente e mandou a coisa pelos ares, fragmentos da tranca caindo espalhados bem como lascas de madeira.

– Olá, querida, cheguei – gritou Hollywood ao marchar para dentro.

Qhuinn e John seguiram o protocolo e ficaram na varanda enquanto Blay e Z. entravam e vasculhavam.

A floresta estava quieta ao redor deles, mas seus olhos aguçados acompanharam aquelas pegadas... que, depois de uma passeada pelo chalé, seguiam para o noroeste.

Por certo era indício de que alguém estava ali com eles, vasculhando a propriedade ao mesmo tempo.

Humano? Redutor?

Ele acreditava mais na última opção, devido a toda aquela bagunça no hangar, e também por aquele lugar ser remoto e relativamente seguro por conta disso.

Ainda que houvessem de querer trazer a Stanley Steemer* para aquela construção para uma bela limpeza antes.

A voz de Blay surgiu através da porta aberta.

– Achei uma coisa.

Qhuinn teve que recorrer a todo o seu treinamento a fim de não parar de inspecionar o cenário e olhar para dentro. Não porque ele se importasse particularmente com o que fora encontrado. Durante todo aquele processo, ele vinha checando Blay constantemente, só para ver se o humor dele mudara.

Se mudara, fora para pior.

Vozes baixas se fizeram ouvir dentro do chalé, e depois os três emergiram.

– Encontramos uma caixa trancada a chave – anunciou Rhage ao baixar o zíper da jaqueta e enfiar o contêiner longo e estreito de metal junto ao peito. – Abriremos mais tarde. Primeiro, vamos encontrar o dono dessas botas, rapazes.

Desmaterializando-se rapidamente a cada quinze ou vinte metros, eles se espalharam pelas árvores, rastreando as pegadas na neve, seguindo em silêncio.

Depararam-se com o redutor um quilômetro adiante.

O assassino solitário marchava pela floresta coberta de neve num passo que somente um humano com treinamento olímpico teria conseguido sustentar por algumas centenas de metros. As roupas eram escuras, havia uma mochila nas costas e o fato de ele estar se movimentando apenas com a própria visão eram indicadores de que se tratava do inimigo: a maioria dos Homo sapiens não conseguiria se mover com aquela rapidez com tão pouca iluminação sem a ajuda de uma luz artificial.

Gesticulando em código, Rhage orientou o grupo a fazer uma formação de triângulo reverso que dava a volta ao redor do rastro do redutor. Continuando a avançar junto a ele, observaram-no por uma área mais ou menos do tamanho de um campo de futebol e, em seguida, todos de uma vez aproximaram-se, circundando o assassino, e bloquearam-no em pontos cardinais opostos na mira das armas.

O redutor parou de andar.

Ele era um recruta mais jovem, o cabelo escuro e a pele oliva sugeriam que tivesse descendência mexicana ou italiana, e mereceu pontos por não demonstrar medo. Mesmo tendo caído numa cilada, ele só olhou tranquilamente por sobre o ombro, como que para confirmar que, de fato, fora emboscado.

– Como tem passado? – Rhage perguntou com a fala arrastada.

O redutor não se deu ao trabalho de responder, o que era o oposto do que vinham presenciando nos últimos tempos. Diferentemente dos outros, aquele não era um garotinho metido a esperto cheio de falatório. Calmo, perspicaz... Controlado, ele era o tipo de inimigo que melhorava o seu desempenho no trabalho.

Não exatamente algo ruim...

E, como era de se esperar, a mão dele desapareceu para dentro do casaco.

– Não seja idiota, cara – exclamou Qhuinn, preparado para meter uma bala no bastardo sem nenhum aviso adicional.

O redutor não deteve o movimento.

Tudo bem.

Ele apertou o maldito gatilho e derrubou o merdinha.

No segundo em que o redutor caiu na neve, Blay ficou imobilizado com a arma ainda apontada. Os outros fizeram o mesmo.

Segundos silenciosos se passaram, eles continuaram a encarar o assassino caído. Nenhum movimento. Nenhuma reação da área periférica. Qhuinn o incapacitara, e ele parecia estar trabalhando sozinho.

Engraçado, mesmo se Blay não tivesse ouvido o tiro à esquerda do seu ouvido, ele teria sabido que o atirador fora Qhuinn: qualquer outro teria dado ao inimigo outra chance para reconsiderar.

O sinal para que se aproximasse foi o assobio de Rhage. Os cinco se moveram como uma matilha de lobos ao redor de sua presa, rápidos e confiantes, cruzando a neve com as armas erguidas. O assassino permaneceu absolutamente imóvel, mas não houvera uma morte na família, por assim dizer. Para isso, seria preciso que uma adaga de aço lhe atravessasse o peito.

Porém, aquele era o estado desejável. Queriam que ele fosse capaz de falar.

Ou, pelo menos, que estivesse em condições de ser forçado a falar...

Mais tarde, quando repassou o que aconteceu em seguida... quando sua mente ardeu obsessivamente a respeito dos fatos... quando ficou acordado tentando entender como as peças se encaixaram na esperança de adivinhar uma mudança de procedimento que garantisse que algo semelhante nunca mais acontecesse... Blay se demoraria naquela mudança de eventos.

Aquele leve tremor no braço. Apenas uma contração muscular aparentemente desconectada de qualquer pensamento consciente ou vontade. Nada perigoso. Nenhum sinal do que estava por vir.

Apenas uma contração.

A não ser pelo fato de que, com um movimento mais rápido que um piscar de olhos, o assassino sacou uma arma sabe-se lá de onde. Foi sem precedentes. Num segundo ele estava como morto no chão; no seguinte, estava atirando de modo controlado num raio amplo.

E mesmo antes de os sons dos tiros pararem, Blay percebeu a imagem horripilante de Zsadist levando chumbo bem no coração, um impacto tão forte que foi capaz de deter o avanço do Irmão, o torso catapultando para trás, os braços se abrindo enquanto ele caía no chão.

No mesmo instante, a dinâmica mudou. Ninguém mais queria interrogar o maldito.

Quatro adagas foram desembainhadas. Quatro corpos se adiantaram. Quatro braços talharam com lâminas afiadas e frias. Quatro impactos, um após o outro.

Tarde demais, porém.

O assassino desaparecera bem diante deles, as armas golpeando a neve manchada onde o inimigo estivera deitado, em vez de atingirem uma cavidade torácica vazia.

Que seja. Haveria tempo para se perguntarem quanto ao desaparecimento improcedente mais tarde. No momento, eles tinham um soldado caído.

Rhage praticamente se lançou sobre o Irmão, colocando o corpo diante de tudo e todos.

– Z.? Z.? Ai, mãe da raça...

Blay sacou o telefone e discou. Quando Manny Manello atendeu, não havia tempo a perder.

– Temos um Irmão ferido. Tiro no peito...

– Espere!

A voz de Z. foi uma surpresa. Assim como o braço do Irmão levantando e empurrando Rhage para o lado.

– Saia de cima de mim!

– Mas estou tentando fazer ressuscitação cardio...

– Prefiro morrer antes de beijar você, Hollywood – Z. tentou se sentar, estava com a respiração pesada. – Nem pense nisso.

– Alô? – a voz de Manello disse ao telefone. – Blay?

– Espere...

Qhuinn se ajoelhou perto de Zsadist, e apesar do fato de o Irmão não gostar de ser tocado, segurou-o por debaixo do braço e ajudou o macho a suspender o torso do chão.

– Estou com a clínica na linha – disse Blay. – Qual o seu estado?

Em resposta, Z. levou a mão até a bainha da adaga e a puxou. Depois, abaixou o zíper da jaqueta de couro e rasgou a camiseta ao meio.

Para revelar o mais lindo colete à prova de balas que Blay jamais vira.

Rhage se curvou em sinal de alívio, a ponto de Qhuinn ter que segurá-lo com a mão livre para que o cara também não caísse no chão.

– Kevlar – Blay murmurou para Manello. – Ah, graças a Deus, ele está usando um Kevlar.

– Que ótimo, mas escute, preciso que você tire o colete e verifique se ele deteve a bala, ok?

– Entendido – olhou de relance para John, contente em ver que ele estava de pé, com as duas armas adiante, os olhos vasculhando o ambiente enquanto o resto deles avaliava a situação. – Vou cuidar disso.

Blay se aproximou e se agachou na frente do Irmão. Qhuinn podia ter tido a coragem de fazer contato com Zsadist, mas ele não faria isso sem permissão expressa.

– O doutor Manello quer saber se você pode tirar o colete para que possamos ver se existe algum ferimento.

Z. moveu os braços e depois franziu o cenho. Tentou novamente. Depois da terceira tentativa, o Irmão conseguiu levantar as mãos até as tiras de velcro, mas elas não conseguiam fazer muita coisa.

Blay engoliu com força.

– Posso cuidar disso? Prometo não tocar em você o quanto for possível.

Ótima gramática ali. Mas ele falava sério.

Os olhos de Z. se levantaram para ele. Estavam negros de dor, e não amarelos.

– Faça o que tem que fazer, filho. Vou aguentar.

O Irmão desviou o olhar, o rosto contraído numa careta, a cicatriz que formava o S do alto do nariz até o canto da boca destacando-se num relevo alto.

Com um sermão severo, Blay ordenou às suas mãos que ficassem firmes, e a mensagem de algum modo foi levada adiante: ele puxou as tiras que o prendiam nos ombros, o barulho mais alto do que o grito em sua cabeça, e depois retirou o colete, aterrorizado pelo que descobriria.

Havia uma grande marca redonda bem no meio do peito musculoso de Z. Bem onde ficava o coração.

Mas era apenas um hematoma. Não um buraco.

Apenas um hematoma.

– Somente ferimento superficial – Blay afundou o dedo no preenchimento denso do colete e encontrou a bala. – Estou sentindo a bala dentro do colete.

– Então por que não consigo mexer meu...

O cheiro de sangue fresco do Irmão pareceu atingir todos os narizes ao mesmo tempo. Alguém praguejou, e Blay se inclinou.

– Você também foi alvejado debaixo do braço.

– É ruim? – Z. perguntou.

Pelo telefone, Manello disse:

– Dê uma olhada e veja o que consegue descobrir.

Blay suspendeu o braço pesado e iluminou a parte interna com uma lanterna de bolso. Aparentemente, uma bala entrara no torso pela pequena parte desprotegida nas axilas – um tiro em um milhão que se você tentasse recriar, não conseguiria repetir.

Merda.

– Não vejo o buraco da saída. É bem na lateral das costelas, no alto.

– Ele está respirando bem? – perguntou Manello.

– Com dificuldade, mas regular.

– Reanimação cardiorrespiratória foi administrada?

– Ele ameaçou castrar Hollywood se houvesse qualquer contato labial.

– Escute aqui, deixe eu me desmaterializar – Z. tossiu um pouco. – Me dê um pouco de espaço...

Todos ofereceram uma variedade de opiniões a essa altura, mas Zsadist não aceitou nenhuma delas. Empurrando-os, o Irmão fechou os olhos e...

Blay soube que estavam com problemas sérios quando nada aconteceu. Sim, Zsadist não fora morto, e estava muito melhor do que estaria se estivesse sem o colete. Mas não conseguia se movimentar – e eles estavam no meio do nada, tão floresta adentro que mesmo que chamassem por reforços, ninguém conseguiria levar um carro até quilômetros de onde estavam.

E o pior? Blay tinha a sensação de que o assassino que derrubaram era algo consideravelmente pior do que um redutor qualquer.

Não havia como saber quando os reforços chegariam.

O som de uma mensagem de texto chegando ao celular de um deles soou, e Rhage a leu.

– Merda. Os outros estão presos no centro da cidade. Teremos que cuidar disso sozinhos.

– Maldição – Zsadist murmurou entredentes.

Sim. A situação era mais ou menos essa.

* Empresa americana especializada em limpeza residencial usando máquina a vapor. (N.T.)


CAPÍTULO 17

Xcor não esperara aquilo.

Enquanto ele e seus soldados se materializavam na localização da alimentação comunal arranjada, ele esperara uma propriedade decaída ou, quem sabe, à beira da condenação, um lugar num estado tão deplorável que uma fêmea seria forçada a vender suas veias e seu sexo para sobreviver.

Nada disso.

A propriedade alcançava os padrões da glymera, a imensa mansão no alto da colina se destacava em sua iluminação, os jardins impecavelmente bem podados, o chalé menor da criadagem perto dos portões em perfeito estado apesar da idade óbvia.

Talvez ela fosse uma prima distante de alguém de linhagem mais importante?

– Quem é essa fêmea? – ele perguntou a Throe.

Seu tenente deu de ombros.

– Não sei nada de sua família. Mas verifiquei a filiação dela com uma linhagem de valor.

Ao redor deles, os soldados estavam ansiosos, os coturnos de combate socando a neve compacta aos seus pés enquanto andavam no mesmo lugar, a respiração escapando dos narizes como se eles fossem cavalos de corrida prestes a explodirem para fora dos portões da pista.

– Há que se perguntar se ela sabe para o que se ofereceu – murmurou Xcor, nem um pouco preocupado se a fêmea sabia ou não.

– Vamos? – perguntou Throe.

– Sim, antes que os outros se descontrolem e invadam aquele chalé dela.

Throe se desmaterializou até a porta singular, com seu topo arqueado e com uma lamparina que se esperaria ver do lado de fora de uma casa de bonecas. Porém, seu braço direito não foi persuadido pelo charme. A iluminação acima de sua cabeça logo foi cortada, certamente ao comando de Throe, e a batida à porta do soldado foi rápida e severa, uma exigência, não um pedido.

Momentos depois, a porta se abriu. A luz de uma lareira escapou para a noite, o brilho dourado das labaredas tão intenso que sugeria que elas conseguiriam derreter a camada de neve – e bem no meio daquela iluminação adorável, a figura de uma fêmea destacava uma silhueta escura e curvilínea.

Ela estava nua. E o cheiro que foi carregado pela brisa gélida indicava que ela estava pronta.

Zypher rosnou baixinho.

– Contenha-se – exigiu Xcor. – Não deixe que a sua avidez seja usada como uma arma contra nós.

Throe falou com ela e depois enfiou a mão no bolso para pegar o dinheiro. A fêmea aceitou o que lhe foi dado e depois esticou um braço no batente, angulando o corpo de modo a fazer com que um seio farto fosse iluminado por aquele brilho suave.

Throe olhou de relance sobre o ombro e acenou com a cabeça.

Os outros não esperaram por um segundo convite. Os lutadores de Xcor convergiram para a entrada, os corpos másculos tão grandes e tão numerosos, que a fêmea logo ficou invisível.

Praguejando, ele também se aproximou andando.

Zypher naturalmente foi o primeiro, tomando-a nos lábios e apalpando os seios, mas ele não foi o único. Os três primos brigaram por suas posições, um indo para trás e arqueando os quadris, como se estivesse esfregando o pau contra o traseiro dela, os outros dois alcançando os mamilos e o sexo dela, as mãos serpenteando conforme ela foi envolvida.

Throe falou acima dos gemidos crescentes.

– Vou montar guarda do lado de fora.

Xcor abriu a boca para ordenar o contrário, e depois percebeu que pareceria como se ele estivesse evitando a cena, e isso dificilmente seria algo másculo.

– Faça isso – murmurou. – Monto guarda no interior.

Seus machos pegaram a fêmea, as mãos das adagas segurando-a pelos braços, coxas e cintura, e, em conjunto, carregaram-na para o interior aconchegante do chalé. Foi Xcor quem fechou a porta e se certificou de que não havia nenhuma tranca para confiná-los. Também foi ele quem vasculhou o interior do chalé. Enquanto seus bastardos carregavam seu alimento para a frente da lareira, onde um tapete de peles recobria o chão, ele se inclinou em uma janela fechada, levantou a cortina e verificou os vitrôs. Antigos e chumbados, com suportes de madeira, não de aço.

Nada seguros. Ótimo.


– Alguém entre em mim – a fêmea gemeu numa voz profunda.

Xcor não se preocupou em ver se a obedeceram ou não, ainda que o gemido ofegante sugerisse que o fora. Em vez disso, olhou ao redor, procurando outras portas e lugares nos quais uma emboscada poderia ser armada. Aparentemente, não existia nenhum. O chalé não tinha um segundo andar, o esqueleto do teto formava um arco acima da sua cabeça e só havia um banheiro pequeno, cuja porta estava entreaberta e a luz acesa revelava um pé em forma de garra da banheira e uma pia em estilo antigo. A cozinha aberta não passava de uma bancada com alguns poucos eletrodomésticos modestos.

Xcor olhou para a ação. A fêmea estava deitada de costas, com os braços abertos formando um T, o pescoço exposto, as pernas escancaradas. Zypher montara nela e a penetrava ritmadamente, fazendo com que a cabeça subisse e descesse no tapete branco fofo enquanto ela absorvia os impactos. Dois dos primos se agarraram aos seus pulsos, e o terceiro tirara o pênis para fora e a fodia na boca. Na verdade, havia pouco dela que não estivesse coberto por machos vampiros, e seu êxtase por estar sendo usada era óbvio não somente aos olhos, mas também aos ouvidos: ao redor da ereção que entrava e saía dos lábios abundantes, a respiração pesada e os gemidos eróticos escapavam para a atmosfera carregada de sexo.

Xcor caminhou até a bancada da cozinha. Não havia nada ali, nenhum resto de comida, nenhum copo abandonado meio cheio. Havia pratos nos armários, contudo, e quando ele abriu a grande geladeira de estilo europeu, garrafas de vinho branco estavam organizadas horizontalmente nas prateleiras.

Uma imprecação masculina atraiu seu olhar para a diversão. Zypher estava gozando, os corpos se arqueando para frente enquanto a cabeça pendia para trás e, em meio ao seu orgasmo, um dos primos o afastava, assumindo seu posto, levantando os quadris da fêmea e se afundando no sexo rosado e molhado. Pelo menos Zypher parecia completamente satisfeito de trocar de lugar; ele expôs as presas, afundou a cabeça debaixo do peito agora arfante do seu camarada e beliscou o seio da fêmea para poder se alimentar perto do mamilo.

Aquele que estava na boca também gozou, e ela sorveu todo o sêmen, sugando a cabeça do pênis do lutador, soltando-a em seguida e lambendo os lábios úmidos como se ainda estivesse com fome. Alguém logo a atendeu, outra ereção bombeando seus lábios, os ritmos contrários das investidas do que acontecia em sua cabeça e entre as pernas balançando-a para frente e para trás num modo que ela parecia apreciar.

Xcor voltou a verificar o banheiro, mas sua primeira avaliação estava correta: não havia onde se esconder naquele confinamento diminuto.

Tendo garantido o interior, ele não pensou em nada mais para fazer a não ser se recostar num canto que lhe oferecia a melhor visão de acesso e testemunhar a refeição. Conforme as coisas se intensificaram, seus lutadores perderam a aparente civilização que tinham, trocando de posição como leões sobre carniça fresca, as presas se revelando, os olhos selvagens de agressão enquanto eles lutavam por suas posições. No entanto, eles não perderam completamente as cabeças. Cuidaram da fêmea.

Não demorou e alguém cortou a própria veia, aproximando-a dos lábios dela.

Xcor baixou o olhar para as botas e permitiu que sua visão periférica monitorasse o ambiente.

Houve uma época em que se excitaria com aquilo. E não por se interessar particularmente pelo sexo, mas do mesmo modo como seu estômago roncava quando via comida. Dessa forma, no passado, quando sentia a necessidade de tomar uma fêmea, era o que teria feito. Normalmente no escuro, claro, para que a pobre garota não sentisse nem repulsa nem medo.

Ele bem podia imaginar que as expressões de excitação que os machos exibiam em seus rompantes eróticos pouco melhoraram sua aparência.

Mas agora? De maneira curiosa, sentia-se desligado de tudo aquilo, como se estivesse assistindo os machos carregando mobília de um lado para o outro ou, quem sabe, limpando as folhas em um jardim.

O motivo era a sua Escolhida, claro.

Tendo tido os lábios pressionados contra a pele pura, tendo olhando dentro dos olhos verdes luminosos, tendo sentido o perfume delicado dela, ele estava completamente desinteressado pelos charmes bem utilizados daquela fêmea diante da lareira.

Ah, a sua Escolhida... ele jamais soube que tal graça existisse e, além disso, não teria como imaginar que se sentiria tão completamente tocado por aquilo que era tão antitético para ele. Ela era o seu oposto, gentil e generosa, enquanto ele era brutal e impiedoso, bela para a sua feiura, etérea para a sua depravação.

E ela o marcara. Do mesmo modo como se o tivesse golpeado e deixado uma cicatriz em sua carne, ele estava ferido e enfraquecido por ela.

Não havia nada a ser feito.

Deus, mesmo as lembranças dos momentos que partilhara com ela, quando estivera completamente vestida, e ele, tão gravemente ferido, bastavam para excitá-lo, seu pobre sexo endurecendo por nenhum motivo aparente: mesmo que não estivessem em lados opostos na guerra pelo trono, ela jamais permitiria que ele a abordasse como um macho faz ao se enfeitiçar por uma fêmea de valor. Naquela noite outonal quando se encontraram debaixo daquela árvore, ela executara um ato válido segundo seus preceitos. Não tivera nada a ver com ele em particular.

Mas, ah, como ele a desejava mesmo assim...

Abruptamente, a fêmea diante da lareira se arqueou debaixo dos pesos orgásmicos que mudavam sobre ela, e ele voltou-lhe sua atenção. Como se ela percebesse sua excitação, o olhar enevoado e extasiado focalizou nele, e uma surpresa repentina cruzou sua expressão – ou o pouco que ele conseguia distinguir por cima do antebraço grosso que lhe oferecia alimento.

O choque arregalou seu olhar. Evidentemente, ela não notara a presença dele, mas agora que o fazia, o medo, e não a paixão, fez-se óbvio dentro dela.

Sem querer atrapalhar toda aquela ação, ele balançou a cabeça e estendeu a palma num gesto de “pare”, para garantir a ela que não teria de suportar sua mordida – ou pior, seu sexo.

A mensagem aparentemente funcionou, porque o medo abandonou sua expressão, e quando um dos soldados apresentou o pau pedindo atenção, ela o apanhou e começou a massageá-lo acima da sua cabeça.

Xcor sorriu para si mesmo de modo horripilante. Aquela prostituta não o queria, e mesmo assim, seu corpo, em toda a sua estupidez, insistia em reagir àquela Escolhida, como se a fêmea sagrada um dia fosse olhar para ele.

Tão tolo.

Consultando o relógio, surpreendeu-se ao ver que a refeição já vinha acontecendo há mais de uma hora. Que seja. Desde que seus machos obedecessem com suas duas regras básicas, ele não se importava em deixá-los continuar: tinham de permanecer substancialmente vestidos e as armas deveriam estar nos coldres com as travas desarmadas.

Dessa forma, se o clima mudasse, eles poderiam se defender rapidamente.

Ele estava mais do que disposto a lhes conceder aquele passatempo.

Depois daquele interlúdio? Muitos estariam no máximo de suas forças, e pelo modo como as coisas estavam com a Irmandade... eles precisariam estar assim.


CAPÍTULO 18

– Não. De jeito nenhum.

Qhuinn teve que concordar com a opinião de Z. quanto à ideia brilhante de Rhage.

O grupo já se esforçara na floresta, com Rhage suportando boa parte do peso de Z., enquanto os demais os circundavam aos pares, a postos para apanhar qualquer um ou qualquer coisa que os ameaçasse pelas margens. Agora estavam de volta ao hangar e a solução de Hollywood para o problema de mobilidade parecia uma complicação com implicações mortais, e não exatamente algo que de fato ajudasse.

– Pilotar não deve ser tão difícil – enquanto todos, inclusive Z., apenas o encaravam, Rhage deu de ombros. – O que foi? Os humanos o fazem o tempo todo.

Z. esfregou o peito e lentamente se deixou cair no chão. Depois de respirar, balançou a cabeça.

– Primeiro, você não sabe se... a maldita coisa... pode subir. Provavelmente... está sem combustível... e você nunca pilotou antes.

– Quer me contar a nossa outra opção? Ainda estamos a quilômetros de um ponto plausível para que nos busquem, você não está melhorando e podemos ser encurralados. Deixe-me pelo menos entrar lá para ver se consigo fazer o motor pegar.

– Não é uma decisão inteligente.

No silêncio que se seguiu, Qhuinn raciocinou e olhou para o hangar. Depois de um instante, disse:

– Eu dou cobertura. Vamos fazer isso.

No fim, Rhage estava certo. Aquela evacuação a pé estava demorando demais e o redutor desaparecera antes que o apunhalassem, e não o contrário.

Será que Ômega dera poderes especiais aos seus garotos?

Tanto faz. Um soldado inteligente jamais subestimava o inimigo, ainda mais quando um dos seus estava abatido. Precisavam levar Z. para um lugar seguro e se isso significava ir pelo ar, que assim fosse.

Ele e Rhage entraram no hangar e ligaram as lanternas. O avião estava onde o tinham deixado no canto do fundo, como se fosse o filho adotivo feio de algum outro tipo de transporte muito mais bonito que há muito saíra de cena. Aproximando-se, Qhuinn viu que a hélice parecia estar inteira, e apesar de as asas estarem empoeiradas, conseguiu sustentar seu peso nelas.

O fato de a porta ter rangido como o diabo quando Rhage a abriu não foi uma notícia tão promissora.

– Nossa! – murmurou Rhage ao se encolher. – Parece que há algo morto ali dentro.


Caramba, o fedor devia ser tremendo se o Irmão conseguia distingui-lo do resto do cheiro que permeava o hangar.

Talvez a ideia não fosse tão boa assim.

Antes que Qhuinn conseguisse emitir uma segunda opinião a respeito do fedor, Rhage se espremeu como um pretzel e passou pela abertura oval.

– Puta merda... Chaves! As chaves estão aqui, dá pra acreditar?

– E quanto ao combustível? – murmurou Qhuinn, ao lançar o facho da lanterna de bolso num círculo amplo. Nada além de chão imundo.

– Acho bom recuar um pouco, filho – Rhage berrou de dentro da cabine. – Vou tentar ligar essa máquina velha.

Qhuinn se afastou, mas oras, se a coisa fosse explodir, poucos metros não fariam muita diferença...

A explosão foi alta, a fumaça, espessa, e o motor parecia estar sofrendo com um acesso de tosse mecânica. Mas a merda se estabilizou. Quanto mais deixaram o motor esquentar, mais equilibrado o ritmo se tornou.

– Temos que sair daqui antes de nos asfixiarmos – Qhuinn gritou de dentro do avião.

Bem nessa hora, Rhage deve ter colocado a coisa para se mexer ou algo assim, porque o avião se lançou para a frente com um gemido, como se cada prego e parafuso da sua fuselagem doesse.

E aquela coisa voaria?

Qhuinn correu na frente e chegou à porta dupla. Segurando de um lado, usou toda a sua força para puxar e afastou as portas, lançando diversas trincas e travas para todos os lados.

Ele só esperava que o avião não se inspirasse naqueles fragmentos.

Sob o luar, as expressões de John e Blay não tinham preço ao darem uma bela olhada para o plano de fuga – e ele bem sabia de onde elas vinham.

Rhage pressionou o freio e se espremeu de novo para sair.

– Vamos trazê-lo para dentro.

Silêncio. Bem, a não ser pelo avião ofegante atrás deles.

– Você não vai levá-lo – disse Qhuinn, quase para si mesmo.

Rhage olhou sério para ele.

– O que disse?

– Você é valioso demais. Se esta coisa cair, não podemos perder dois Irmãos. Isso não vai acontecer. Eu sou dispensável, você não.

Rhage abriu a boca como se fosse argumentar. Mas quando a fechou, uma expressão estranha atravessou seu belo rosto.

– Ele tem razão – disse Z. sério. – Não posso colocar você em perigo, Hollywood.

– Que se foda, posso me desmaterializar para fora da cabine...

– E acha que vai conseguir fazer isso quando estiverem num espiral? Tolice...

Uma saraivada de balas irrompeu das margens das árvores, atingindo a neve, o zumbido passando pelos ouvidos.

Todos reagiram. Qhuinn mergulhou dentro do avião, posicionou-se atrás do assento do piloto e tentou entender... puta merda, havia botões demais. A única coisa que o salvava era que...

Rá-tá-tá!

... ele assistira a um número suficiente de filmes para saber que a alavanca com a manopla era o acelerador e que a direção em forma de gravata borboleta era a coisa que você puxava para subir, e abaixava para descer.

– Cacete – murmurou ao ficar abaixado o máximo que podia.

Considerando-se os sons explosivos que se seguiram, John e Blay também atiravam, por isso Qhuinn se sentou um pouco mais elevado e olhou para a fileira de instrumentos. Deduziu que aquele com um tanquezinho de combustível era o que ele estava procurando.

Um quarto de tanque disponível. E metade daquela coisa só devia ser condensação.

Aquela era uma ideia bem ruim.

– Traga-o aqui! – Qhuinn berrou, olhando para o campo aberto e reto à sua esquerda.

Rhage logo o atendeu, jogando Zsadist no avião com toda a gentileza de um estivador. O Irmão aterrissou como uma pilha amontoada, mas ao menos praguejava, o que significava que ainda estava bom o bastante para sentir dor.

Qhuinn não esperou pela tolice de fechar as portas. Soltou o pedal do freio, apertou o acelerador e rezou para não derrapar na neve...

Metade do para-brisa se estilhaçou na sua frente; a bala que causara o estrago ricocheteou pela cabine, o “fuuu” do assento ao lado do seu, sugerindo que o encosto de cabeça tivesse sido atingido. O que era melhor do que o seu braço. Ou o crânio.

A única notícia boa era que o avião parecia pronto para sair dali também, o motor enferrujado girando a hélice rapidamente como se soubesse que sair do chão era a única saída para a segurança. Ao lado das janelas, o cenário começava a passar e ele se orientou no meio da “pista” mantendo as duas fileiras de árvores equidistantes.

– Segure-se – gritou acima do estrondo.

O vento entrava na cabine como se houvesse um ventilador industrial preenchendo o espaço onde o vidro estivera, mas ele não pretendia subir o bastante para que necessitassem de pressurização.

Àquela altura, ele só queria passar por cima da floresta logo adiante.

– Vamos, meu bem, você consegue... Vamos, vamos...

Ele já estava com a alavanca toda puxada e teve que ordenar ao braço que relaxasse um pouco. Não havia mais para onde puxar, e quebrar a maldita coisa era a garantia de acabar com tudo ali mesmo.

O barulho aumentou ainda mais.

As árvores se agitaram cada vez mais.

A trepidação ficou cada vez mais violenta, até seus dentes batiam uns nos outros, e ele se convenceu de que uma ou as duas asas se partiriam e cairiam pelas laterais.

Concluindo que não havia tempo a perder, Qhuinn puxou o manche para trás o máximo que pôde, segurando firme, como se isso, de alguma forma, fosse se traduzir à fuselagem do avião e se mantivesse junto no lugar...

Algo caiu do teto e voou na direção de Z.

Um mapa? O manual do proprietário? Quem diabos haveria de saber...?

Caramba, as árvores na ponta extrema estavam se aproximando...

Qhuinn puxou ainda mais, apesar de o manche estar o mais próximo possível dele, o que era uma pena, porque estavam ficando sem pista e ainda colados no chão...

Sons de arranhados vinham da barriga do avião, como se a vegetação rasteira estivesse se esticando e tentando segurar as placas de aço.

As árvores estavam cada vez mais perto.

Seu primeiro pensamento ao enfrentar a morte era que jamais conheceria a filha. Pelo menos não neste lado do Fade.

O segundo e último era que não acreditava que nunca tivesse dito a Blay que o amava. Em todos os minutos e horas e noites de sua vida, em todas as palavras ditas ao macho no decorrer dos anos em que se conheciam, ele somente o afastara.

E agora era tarde demais.

Idiota. Que tremendo cretino que ele era.

Porque parecia bem evidente que seu cartão de biblioteca ficaria inutilizado aquela noite.

Endireitando-se e fazendo com que as lufadas o atingissem em cheio no rosto, Qhuinn encarou aquela arremetida, imaginando todos aqueles pinheiros logo adiante, já que não conseguia enxergá-los pelo fato de os olhos estarem lacrimejando devido ao vento. Abrindo a boca, ele gritou, acrescentando voz à confusão.

Maldição, não morreria como um covarde. Não mergulharia no chão, nada de frases patéticas implorando para que Deus o salvasse. Ao diabo com isso. Enfrentaria a morte com as presas expostas, o corpo preparado e o coração acelerado não de medo, mas com uma tremenda descarga de...

– Morte, vá se foder!

Enquanto Qhuinn tentava levantar voo, Blay tinha o cano da pistola apontado para a borda das árvores e descarregava balas como se tivesse um suprimento infindável... o que não era verdade.

Aquilo era horrível. Ele, John e Rhage não tinham cobertura; não havia como saber quantos assassinos estavam na floresta; e, pelo amor de Deus, só o que aquele avião antigo fazia era expelir uma nuvem de fumaça tóxica em seu rastro enquanto passava como se estivesse num desfile dominical.

Ah, e a máquina estava longe de ser blindada, mas, evidentemente, tinha combustível no tanque.

Qhuinn e Z. não conseguiriam. Colidiriam na floresta ao fim da pista. Isso se não explodissem antes.

Nesse instante, quando soube que uma bola de fogo era iminente de um ou outro modo, ele se partiu ao meio. A parte física permanecia concentrada em combater o ataque, os braços esticados, os indicadores apertando os gatilhos, os olhos e ouvidos rastreando os sons e as aparições de flashes de pistolas e os movimentos do inimigo.

A sua outra parte estava naquele avião.

Era como se estivesse assistindo à própria morte. Imaginava com nitidez a vibração violenta do avião, os saltos descontrolados no chão e a vista da margem sólida das árvores que se aproximavam dele, como se estivesse enxergando através dos olhos de Qhuinn e não dos seus.

Filho da puta imprudente.

Tantas vezes Blay pensou “ele vai se matar”.

Tantas vezes no campo de batalha e fora dele.

Mas aquela era a vez em que isso aconteceria...

Uma bala o atingiu na coxa e a dor que subiu pela perna até o coração indicava que sua total atenção precisava voltar ao combate: se quisesse viver, teria de se concentrar completamente.

Contudo, quando essa convicção o acometeu, houve uma fração de segundo em que ele pensou: vamos acabar com isso aqui. Vamos acabar com essa tolice de vida de castigos, de “quase lá”, de “e se?”, da agonia crônica e infindável em que sempre esteve... e da qual estava tão cansado...

Ele não entendeu o que o fez atingir a neve.

Num minuto, estava olhando para o avião esperando que ele explodisse em chamas. No minuto seguinte, estava de peito no chão, com os cotovelos enfiados na terra congelada e obstinada, a perna machucada latejando.

Flap! Flap! Flap!...

O rugido que interrompeu o som das balas era tão alto que ele abaixou a cabeça, como se isso o ajudasse a evitar a bola de fogo crônica do avião.

Só que não houve nem luz nem calor. E o som vinha de cima...

Planando. O fardo de parafusos estava mesmo voando. Acima deles.

Blay despendeu um segundo olhando para cima, só para o caso de ter sido alvejado e a sua percepção da realidade ter sido afetada. Mas não. Aquela antiguidade de pulverização de plantações estava no céu, fazendo uma curva larga e seguindo na direção que, se é que conseguiria permanecer suspenso, levaria Qhuinn e Z. para o complexo da Irmandade.

Se tivessem sorte.

Caramba, aquele voo não seria fácil. Nada parecido com uma águia voando segura e decidida pelo céu noturno. Mais parecido com uma andorinha recém-saída do ninho com uma asa quebrada.

De um lado para o outro. Para cima e para baixo, inclinando-se de lado a lado.

Ao ponto em que parecia ter realizado o impossível saindo do chão... só para cair e queimar no meio da floresta...

Do nada, algo o atingiu na lateral do rosto, golpeando-o com tanta força que ele caiu de costas e quase perdeu as pistolas. Uma mão – fora uma mão que o espalmara como se ele fosse uma bola de basquete.

Em seguida, um peso absurdo o atingiu no peito, esticando-o no chão coberto de neve, fazendo-o exalar com tanta força que ele se perguntou se não deveria olhar ao redor para procurar o fígado.

– Porra, vai ficar abaixado ou não? – Rhage sibilou em seu ouvido. – Está tentando levar bala... de novo?

Enquanto a calmaria do tiroteio se estendia de segundos até completar um minuto, os redutores emergiram pela linha de árvores adiante, o quarteto de assassinos caminhando pela neve com as armadas suspensas e prontas.

– Não se mexa – sussurrou Rhage. – Dois podem brincar nesse jogo.

Blay fez seu melhor para não inspirar tão fundo quanto a queimação em seus pulmões lhe dizia que precisava. Também tentou não espirrar já que flocos soltos coçavam em seu nariz toda vez que ele respirava.

Espera.

Espera.

Espera.

John estava a um metro de distância, deitado numa posição contorcida que fez o coração de Blay se apertar...

O cara sutilmente levantou o polegar, como se estivesse lendo a mente de Blay.

Graças a Deus. Cacete.

Blay desviou o olhar sem mudar a posição estranha da cabeça, e depois discretamente trocou uma das pistolas por uma das suas adagas.

Enquanto um zumbido desengonçado começou a vibrar em sua cabeça, ele calculou os movimentos dos redutores, suas trajetórias, suas armas. Ele estava quase sem munição e não havia tempo para recarregar as pistolas. E ele sabia que tanto Rhage quanto John estavam na mesma condição.

As adagas que V. fizera à mão para todos eles eram o único recurso.

Mais perto... mais perto...

Quando os quatro assassinos finalmente estavam ao alcance, sua cronometragem foi perfeita. Assim como a dos outros.

Com um movimento coordenado perfeito, ele saltou e começou a apunhalar os dois mais próximos a ele. John e Rhage atacaram os outros...

Quase imediatamente, mais assassinos surgiram das árvores, mas, por algum motivo, talvez porque a Sociedade Redutora não estivesse armando seus alistados muito bem, não havia balas. O segundo round se passou pela neve com o tipo de armas que se esperaria ver numa briga de beco: tacos de baseball, pés-de-cabra, chaves de rodas e correntes.

Por ele, tudo bem.

Estava tão pilhado e furioso, que lhe faria bem sair na mão.


CAPÍTULO 19

Sentada na mesa de exames, com uma camisola frágil de papel cobrindo-a e os pés descalços pendurados da orla acolchoada, Layla sentiu como se estivesse cercada por instrumentos de tortura. E devia ser isso mesmo. Todo tipo de utensílios de aço inoxidável estava enfileirado na bancada da pia, com as embalagens plásticas transparentes indicando que estavam estéreis e prontos para serem usados.

Já fazia uma eternidade que estava na clínica de Havers. Ou, pelo menos, era o que parecia.

Em contraste com o trajeto apressado para atravessar o rio, quando o mordomo dirigira como se soubesse que a pressa era essencial, desde que ali chegara só acontecera um retardo após o outro. Desde a burocracia até a sala de espera, o aguardo pela enfermeira, a demora para que Havers apresentasse o resultado do seu exame de sangue.

Era o suficiente para enlouquecer alguém.

Do lado oposto ao que ela estava sentada, havia uma imagem emoldurada pendurada na parede, e há tempos ela havia memorizado suas pinceladas e cores, o buquê de flores pintadas em azuis e amarelos vibrantes. O nome embaixo dizia: van Gogh.

Àquela altura, ela nunca mais queria ver uma íris novamente.

Mudando de posição, fez uma careta. A enfermeira lhe entregara um objeto apropriado para o sangramento e ela ficou horrorizada ao perceber que logo precisaria de outro...

A porta se abriu com uma batida e seu instinto imediato foi correr, o que era ridículo. Era ali que precisava estar.

Só que tratava-se apenas da enfermeira que a levara até ali, tirara a amostra de sangue para o exame e seus sinais vitais, e tomara notas no computador.

– Sinto muito, houve outra emergência. Só quis certificá-la de que será a próxima.

– Obrigada – Layla se ouviu dizer.

A fêmea se aproximou e pôs uma mão em seu ombro.

– Como está se sentindo?

A gentileza a fez piscar rápido.

– Acho que vou precisar de outro... – ela apontou para o quadril.

A enfermeira assentiu e deu um leve apertão antes de seguir para a bancada e apanhar uma embalagem quadrada cor de pêssego.

– Temos mais aqui. Gostaria que eu a acompanhasse até o banheiro no final do corredor?

– Sim, por favor...

– Espere, não se levante ainda. Deixe-me pegar algo para que se cubra melhor.

Layla baixou o olhar para as mãos, aquelas que estavam enroscadas uma na outra e que não conseguiam ficar quietas.

– Obrigada.

– Aqui está – algo macio a envolveu. – Ok, agora vamos colocá-la de pé.

Escorregando para fora da mesa, ela se desequilibrou um pouco e a enfermeira estava logo ali, segurando-a pelo cotovelo para estabilizá-la.

– Vamos bem devagar.

E foi o que fizeram. No corredor, havia enfermeiras se apressando de quarto em quarto, e pessoas entrando e saindo das suas consultas, e outras equipes correndo... e Layla não conseguia acreditar que um dia fora rápida como eles. Para se afastarem do tráfego, ela e a gentil acompanhante ficaram próximas da parede, a fim de evitar serem atropeladas, mas os outros eram verdadeiramente gentis. Como se todos soubessem que ela estava sofrendo seriamente.

– Vou entrar com você – disse a enfermeira quando chegaram ao banheiro. – A sua pressão está muito baixa e fico preocupada que possa desmaiar, está bem?

Enquanto Layla assentia, elas entraram e trancaram a porta. A enfermeira retirou-lhe a coberta, e ela, desconcertada, afastou o papel do caminho.

Sentando-se, ela...

– Ah, santa Virgem Escriba.

– Psiu, está tudo bem, tudo bem – a enfermeira se inclinou e lhe estendeu o absorvente. – Vamos cuidar disso. Você está bem... aqui, não, você precisa me dar isso. Temos que encaminhar para o laboratório. Existe a possibilidade de ser usado para determinar o que está acontecendo e você há de querer ter essa informação quando tentar novamente.

Tentar novamente. Como se a perda já tivesse ocorrido.

A enfermeira colocou as luvas e pegou um saco plástico de um suporte. Ela cuidou de tudo com discrição e diligência, e Layla viu quando o nome que havia dado foi escrito do lado de fora do saco com uma caneta preta.

– Ah, querida, está tudo bem.

A enfermeira retirou as luvas, arrancou um pedaço de papel higiênico de um suporte na parede e se ajoelhou. Segurando o queixo de Layla com uma mão gentil, cuidadosamente enxugou as faces que se molharam de lágrimas.

– Sei bem pelo que está passando. Também perdi um – o rosto da enfermeira se tornou belo pela compaixão. – Tem certeza de que não podemos chamar o seu hellren?

Layla apenas balançou a cabeça.

– Bem, avise-me se mudar de ideia. Sei que é difícil vê-los tristes e preocupados, mas não acha que ele gostaria de estar aqui com você?

Ah, como contaria a Qhuinn? Ele parecera tão certo de tudo, como se já tivesse visto o futuro e encarado os olhos do filho deles. Aquilo seria um choque.

– Saberei se estive mesmo grávida? – murmurou Layla.

A enfermeira hesitou.

– O exame de sangue pode revelar isso, mas tudo depende de quanto tempo você está se sentindo assim.

Layla fitou as mãos novamente. As juntas estavam brancas.

– Preciso saber se estou tendo um aborto ou se isto é apenas um sangramento normal que acontece quando não se engravida. Isso é importante.

– Lamento muito, mas não sou eu quem pode lhe garantir isso.

– Mas você sabe, não sabe? – Layla levantou a cabeça para fitá-la nos olhos. – Não sabe?

– Repito, não sou eu quem pode lhe garantir, mas... com esse tanto de sangue?

– Eu estava grávida.

A enfermeira fez um movimento amplo com as mãos, os lábios se contraindo.

– Não conte a Havers que eu lhe disse isso, mas... sim, provavelmente. E você precisa saber, não há nada que você possa fazer para deter o processo. Não é culpa sua, e você não fez nada errado. É só que, às vezes, essas coisas simplesmente acontecem.

Layla deixou a cabeça pender.


– Obrigada por ser honesta comigo. E... na verdade, é isso o que acho que está acontecendo.

– Uma fêmea sabe. Bem, vamos levá-la de volta.

– Sim, muito obrigada.

Mas Layla teve dificuldade para suspender a calcinha ao se levantar. Quando ficou claro que não conseguia coordenar as mãos, a enfermeira se adiantou e a ajudou com facilidade invejável, e tudo foi tão vergonhoso e assustador. Ficar fraca e à mercê de outra pessoa para uma coisa tão simples...

– Você tem um sotaque maravilhoso – disse a enfermeira ao voltarem para o tráfego do corredor, retornando mais uma vez para a faixa mais lenta. – É tão Velho Mundo... minha avó aprovaria. Ela odeia o fato de o inglês ter se tornado a língua dominante aqui. Acredita que isso será a derrocada da nossa espécie.

A conversa a respeito de nada em especial ajudou, dando a Layla algo em que se concentrar em vez de pensar em quanto tempo aguentaria até ter de refazer aquele percurso... e se as coisas estavam piorando nesse aborto... e como seria quando fosse forçada a encarar Qhuinn para lhe dizer que fracassara...

De algum modo, chegaram à sala de exames.

– Não deve demorar muito mais. Prometo.

– Obrigada.

A enfermeira parou à porta e, ao se imobilizar, sombras cruzaram o fundo do seu olhar, como se ela estivesse revivendo partes de seu próprio passado. E no silêncio entre elas, um momento de comunicação ocorreu, e embora fosse raro ter algo em comum com uma fêmea da Terra, a conexão foi um alívio.

Ela se sentira tão sozinha naquilo tudo.

– Temos pessoas com quem você pode conversar – disse a fêmea. – Às vezes, conversar depois de tudo pode ajudar de verdade.

– Obrigada.

– Use esse botão branco se precisar de ajuda ou se sentir-se tonta, está bem? Não vou estar longe.

– Sim, farei isso, obrigada.

Enquanto a porta se fechava, lágrimas embaraçam sua visão, e mesmo sentindo uma dor profunda, a sensação esmagadora de perda era desproporcional à realidade. A gestação estava apenas bem no comecinho e, logicamente, não havia muito a perder.

No entanto, para ela, aquilo era o seu filho.

Aquilo era a morte do seu filho...

Houve uma batida suave à porta e depois uma voz masculina.

– Posso entrar?

Layla apertou os olhos e engoliu com força.

– Por favor.

O médico da raça era alto e distinto, com óculos de aro de tartaruga e uma gravata borboleta. Com um estetoscópio ao redor do pescoço e aquele longo jaleco branco, ele era a figura perfeita de um curador, calmo e competente.

Ele fechou a porta e sorriu de leve para ela.

– Como está se sentindo?

– Bem, obrigada.

Ele a fitou do outro lado da sala, como se estivesse avaliando seu estado clínico, embora não a tocasse ou usasse instrumento algum.

– Posso ser franco?

– Sim, por favor.

Ele assentiu e puxou um banquinho com rodinhas. Sentando-se, equilibrou o prontuário no colo e a encarou.

– Vejo que você não indicou o nome do seu hellren... nem do seu pai.

– É preciso?

O médico hesitou.

– Não tem nenhum parente, minha querida? – quando ela negou com a cabeça, os olhos dele registraram tristeza profunda. – Lamento muito pelas suas perdas. Então, não há ninguém que possa estar aqui com você? Ninguém?

Como ela simplesmente continuou ali, sem dizer nada, ele inspirou fundo.

– Muito bem...

– Mas posso pagar – ela deixou escapar de supetão. Ela não sabia muito bem onde arranjaria o dinheiro, mas...

– Ah, meu bem, não se preocupe com isso. Não preciso receber se não puder pagar – ele abriu o prontuário e afastou uma página. – Vejamos, vejo aqui que passou pelo seu cio.

Layla apenas concordou, como se isso fosse tudo o que pudesse fazer para não gritar: Qual é o resultado do exame?

– Bem, verifiquei o resultado do seu exame de sangue e ele mostrou algumas... coisas que eu não esperava. Portanto, se permitir, eu gostaria de coletar mais uma amostra e enviá-la para o laboratório para mais alguns exames. Com isso, espero ser capaz de entender o que está acontecendo... e também farei um ultrassom, se não se importar. É um exame padrão que me dará uma ideia de como as coisas estão progredindo.

– Como, por exemplo, quanto tempo sangrarei até que termine tudo? – disse com severidade.

O médico da raça esticou a mão para segurar a dela.

– Primeiro vamos ver como você está, certo?

Layla respirou fundo e concordou mais uma vez.

– Certo.

Havers foi até a porta e chamou a enfermeira. Quando a fêmea entrou no quarto, ela trouxe consigo o que parecia ser um computador de mesa montado num carrinho: havia um teclado, um monitor e umas varetas erguidas nas laterais do equipamento.

– Vou deixar que a enfermeira tire o sangue... as mãos dela são muito mais competentes que as minhas nesse quesito – ele sorriu de maneira gentil. – Nesse meio-tempo, vou verificar outro paciente. Volto em seguida.

A segunda picada de agulha foi muito melhor do que a primeira, pois ela sabia o que esperar, e ela foi deixada a sós por um curto tempo quando a enfermeira saiu para levar a amostra ao laboratório – o que quer que fosse ele e onde quer que estivesse localizado. Ambos voltaram em seguida.

– Pronta? – Havers perguntou.

Quando Layla fez que sim, ele e a enfermeira trocaram algumas palavras e o equipamento foi disposto perto de onde ela estava sentada. O médico, então, acomodou-se novamente no banquinho e puxou dois tipos de extensões das laterais da mesa de exame. Abrindo o que pareciam ser um par de estribos, ele fez um gesto para a enfermeira que reduziu a iluminação e se aproximou para apoiar uma mão no ombro de Layla.

– Deite-se, por favor – pediu Havers. – E desça até chegar ao fim da mesa. Você vai colocar os pés aqui depois de despir a roupa de baixo.

Enquanto ele indicava os dois estribos, os olhos de Layla se arregalaram. Ela não fazia ideia de que o exame seria...

– Nunca antes fez um exame interno? – perguntou Havers com hesitação. Quando ela começou a balançar a cabeça, ele assentiu. – Bem, isso não é incomum, ainda mais se esse foi o seu primeiro cio.

– Mas não posso tirar... – ela se interrompeu. – Estou sangrando.

– Cuidaremos disso – o médico parecia cem por cento confiante. – Vamos começar?

Layla fechou os olhos e se inclinou para trás para se deitar, o papel fino que cobria a superfície acolchoada rangendo debaixo do seu peso. Elevando os quadris e mudando um pouco de posição, ela se desfez do que a cobria.

– Cuido disso para você – disse a enfermeira baixinho.

Os joelhos de Layla se encontraram enquanto ela foi tateando com os pés à procura dos malditos estribos.

– Isso mesmo – o banquinho de rodinhas guinchou quando o médico se aproximou. – Mas vá mais para baixo.

Por uma fração de segundo, ela pensou que não conseguiria.

Curvando os braços ao redor do baixo ventre, apertou-os, como se pudesse, de algum modo, segurar o bebê dentro dela ao mesmo tempo em que tentava se controlar. Mas não havia nada que pudesse fazer, nenhuma conversa que pudesse ter com seu corpo para acalmá-lo e segurar o que fora implantado, nenhum papo amoroso que pudesse ter com o filho para que ele tentasse sobreviver, nenhum fluxo de palavras para acalmá-la do seu pânico absoluto.

Por um momento, ela desejou a vida enclausurada que um dia considerou tão sufocante. Lá no Santuário da Virgem Escriba, a natureza plácida da sua existência fora algo que ela dera como certo. De fato, desde que descera para a Terra e tentara encontrar um propósito aqui, fora atingida por um trauma atrás do outro.

Isso fez com que respeitasse os machos e as fêmeas de quem lhe disseram ser inferiores a ela.

Ali embaixo, todos pareciam estar à mercê de forças além do controle deles.

– Está pronta? – perguntou o médico.

Enquanto lágrimas corriam pelos cantos dos olhos, ela se concentrou no teto e agarrou a beira da mesa.

– Sim. Pode começar.


CAPÍTULO 20

Puta merda, Qhuinn estava completamente sem controle.

Quase nenhuma visibilidade. O avião balançando de um lado para o outro como se estivesse sofrendo delirium tremens. Motor ligando e desligando.

E ele nem podia dar uma olhada em Z. O vento estava forte demais para gritar, e não pretendia despregar os olhos do que quer que viesse pela frente – ou melhor dizendo, daquilo no que bateriam de frente – mesmo sem conseguir enxergar nada...

O que o fizera pensar que aquilo era uma boa ideia?

A única coisa que parecia estar funcionando era a bússola, portanto, ao menos ele conseguia se orientar quanto à localização da base: o complexo da Irmandade ficava ao norte, um tantinho ao leste, no topo de uma montanha circundada pelo mhis de V., a divisa defensiva invisível. Com isso, em relação ao direcionamento, ele estava certo, desde que o mostrador de N – S – L – O estivesse mais operacional do que, digamos, todo o resto daquele caixote.

Ao olhar para a direita, o vento incessante que passava pelo vidro parcialmente quebrado atingiu seu canal auditivo. Pela janela lateral, ele via... uma imensidão negra. O que ele interpretou como indício de eles terem passado pelo subúrbio e estarem sobrevoando as fazendas. Talvez já estivessem sobre as colinas que, no fim, transformariam-se na montanha...

Um som como o do escapamento de um carro explodindo chamou sua atenção negativamente, mas o que foi pior?

O silêncio repentino que se seguiu.

Nada de motor roncando. Apenas o vento soprando para dentro da cabine.

Ok, agora sim estavam em apuros.

Por um átimo, ele pensou em se desmaterializar. Era forte o bastante, estava consciente, mas jamais abandonaria Z...

Uma mão forte pousou em seu ombro, assustando-o tremendamente.

Z. se arrastara para a frente e, baseando-se em sua expressão, estava tendo dificuldades para se manter de pé. E não só pelos solavancos.

O Irmão falou, sua voz grossa superando todo aquele barulho.

– Hora de você ir embora.

– Nem a pau – berrou Qhuinn em resposta. Esticando o braço, tentou a ignição. Não faria mal tentar, não é mesmo?

– Não me obrigue a jogá-lo para fora.

– Tente.

– Qhuinn...

O motor voltou a pegar, o barulho se intensificando. Boas novas. A questão era que, se o maldito desligara uma vez, era bem possível que o fizesse novamente.

Qhuinn enfiou a mão na jaqueta. Ao apanhar o celular, pensou em todos que os dois estavam deixando para trás e passou o objeto para o Irmão.

Se existia uma hierarquia nessa coisa de se despedir, Z. estava no topo da lista. Ele tinha uma shellan e uma filha. Se alguém tinha de fazer uma ligação, esse alguém era ele.

– Para que isso? – Zsadist perguntou sombrio.

– Descubra você mesmo.

– E você pode ir...

– Não vou a parte alguma. Vou pilotar esta armadilha até batermos em alguma coisa.

Houve certa discussão depois disso, mas ele não sairia do assento do piloto, e por mais forte que o Irmão fosse em circunstâncias normais, Z. não estava em condições de suspender nada além de uma fatia de pão. E a conversa não durou muito. Depois que a discussão terminou, Z. desapareceu, sem dúvida indo para os fundos para fazer o último contato com as pessoas amadas.

Decisão inteligente.

Deixado a sós com seus equipamentos, Qhuinn fechou os olhos e lançou uma oração para quem pudesse ouvir. E visualizou o rosto de Blay...

– Pegue.

Ele abriu os olhos. O celular estava bem na sua frente, firme na mão de Z. E o mapa de GPS estava sendo mostrado, as pequenas setas piscantes indicando onde exatamente eles estavam.

– Mais uns cinco quilômetros – exclamou o Irmão acima do barulho ensurdecedor. – É tudo de que precisamos...

Houve um estouro, um assobio e mais uma rodada daquele silêncio terrível. Praguejando, Qhuinn concentrou-se naquela tela sempre desejando que as coisas voltassem a funcionar. Mais para o norte, obviamente, porém, mais para o leste. Muito mais. Seus cálculos estavam certos, mas não exatos.

Sem o telefone? Estariam fritos.

Bem, isso e toda aquela situação do motor.

Verificando a localização precisa, ele fez alguns cálculos mentalmente e virou para a direita, tentando chegar àquela indicação no mapa que levava diretamente para a montanha. Em seguida, seria a vez de tentar religar o motor.

Estavam perdendo altitude. Não espiralando, situação na qual haveria um close-up no altímetro e a coisa estaria acelerada do modo como você desejaria que as hélices estivessem. Mas lentamente, inexoravelmente indo para baixo... e se perdessem a aceleração, o que era o que aquela máquina de costura insegura debaixo do teto seria capaz de prover, acabariam caindo como uma pedra.

Tentando a ignição repetidas vezes, murmurou:

– Vamos, vamos, vamos...

Era difícil tentar manter o nariz empinado com apenas uma mão; e bem quando ele ia passar a devotar toda sua atenção ao manche, o braço de Z. se esticou, afastou a mão dele, e assumiu o controle sobre o botão da ignição.

Por um segundo, Qhuinn vislumbrou a marca de escravo para fora dos punhos da jaqueta do Irmão, mas logo voltou a se concentrar.

Deus, seus ombros estavam em chamas por puxar o manche para trás.

E pensar que ele estava morrendo de vontade de ouvir aquela barulheira do...

De uma só vez, o motor engasgou de volta à vida, e a mudança de altitude foi imediata. No instante em que os plugues e pistões começaram a rugir novamente, os números começaram a subir.

Mantendo a alavanca puxada, verificou o nível de combustível. Estava no vazio. Talvez estivessem apenas sem combustível, e não se tratasse de um problema mecânico?

Uma tolice, certo?

– Só mais um pouquinho, meu bem... um pouco mais, vamos lá, querida, você consegue...

Enquanto um fluxo interminável de encorajamento escapava dos seus lábios, as palavras impotentes eram abafadas pela única coisa que importava – mas, espere, como se o Cessna falasse inglês...!

Caramba, parecia que aquilo duraria uma eternidade, a esperança e as orações, seu cérebro num jogo de pingue-pongue entre os melhores e os piores cenários enquanto quilômetros eram atravessados num ritmo agonizantemente lento.

– Diga que telefonou para as suas fêmeas – berrou Qhuinn.

– Diga que consegue nos manter acima do solo.

– Não vou mentir.

– Leve-nos mais para o leste.

– O quê?

– Leste! Vá para o leste!

Z. aumentou o zoom do mapa e começou a correr o dedo em uma direção, de leste a oeste.

– Você vai precisar aterrissar neste ponto... atrás da mansão!

Qhuinn deduziu que deveria tomar como um bom sinal que o cara estava fazendo planos de aterrissagem que não envolviam bolas de fogo. E a sugestão era boa. Se conseguissem se orientar ao longo da mansão, do lado oposto à piscina, eles poderiam acabar com algumas árvores frutíferas... porém, teriam mais ou menos o mesmo tanto de pista que tiveram para decolar.

Muito melhor do que bater no muro que cercava a propriedade...

Daquela vez, o motor não emitiu nenhum aviso. Simplesmente morreu, como se estivesse cansado de brincar de pega-pega e houvesse decidido tirar uma folga permanente.

Ao menos já estavam próximos da aterrissagem.

Uma chance. Era tudo de que dispunham.

Uma única tentativa de aterrissar que, desde que ele conseguisse levá-los até as cercanias da propriedade, penetrar o mhis, e conseguir não colidir na mansão, no ginásio, nas construções, nos portões nem em nada que fosse real ou algum tipo de propriedade... resultaria nele entregando o orgulhoso pai e amoroso hellren, e soberbo lutador... de volta aos braços da família.

Mas não era só em Z. que ele estava pensando.

O Primale cuidaria da saúde e do bem-estar de Layla. Blay tinha os pais amorosos e Sax. John tinha a sua Xhex.

Todos eles ficariam bem.

Qhuinn se virou.

– Sente-se! Lá atrás! Sente-se e prenda o cinto de segurança...

O Irmão abriu a boca e Qhuinn fez o impensável. Cobriu os lábios do macho com a mão.

– Sente-se de uma vez e se amarre! Chegamos até aqui... não vamos estragar tudo!

E pegou o celular de volta.

– Vá! Deixe comigo!

Os olhos de Z. se conectaram aos seus e, por um breve segundo, Qhuinn se perguntou se seria lançado para fora da cabine. Mas então, o milagre aconteceu: um instante de conexão se estendeu entre eles, uma corrente de elos tão grossos quanto coxas ligando-os um ao outro.


Z. levantou o indicador e apontou direto no rosto de Qhuinn. Depois de acenar uma vez com a cabeça, desapareceu na parte traseira.

Qhuinn voltou a se concentrar.

A navegação os mantinha no alto, e graças às orientações de Z., aquela guinada extra à direita os colocara na direção certa. De acordo com o GPS, estavam se aproximando da junção de estradas que dava a volta na base da montanha, centímetro a centímetro. Centímetro... a centímetro...

Ele estava bem certo de que localizavam-se acima da propriedade agora.

Enquanto o avião abaixava mais, ele se preparou, continuando a puxar o manche com força até que os ombros cravassem no assento atrás dele. Não havia trem de pouso para puxar. Ele esteve abaixado o tempo todo...

Um assobio repentino penetrou na cabine, e isso, junto a uma abrupta mudança de angulação, anunciou que a gravidade começara a vencer a batalha, exigindo a construção de fibra de vidro e metal e tendo um par de vidas como seu prêmio.

Eles não conseguiriam... era cedo demais...

Uma vibração selvagem se seguiu e, por um momento, ele se perguntou se não tinham atingido o chão sem que ele percebesse. Copas de árvores, talvez? Não. Algo...

O mhis?

O amortecedor repentino parecia se estender para cima, e, ora essa, o avião reagiu de modo diferente, o bico se nivelando sem nenhum esforço da parte de Qhuinn ou ajuda do peso morto que era aquele motor. Até mesmo o sacolejo de um lado para o outro cessou.

Aparentemente, a defesa invisível de V. não só mantinha afastados humanos e redutores, como também sustentava um Cessna no ar.

Só que tinham um problema. Aquela elevação vital parecia não acabar.

Do modo como iam as coisas, era como se ele fosse flutuar ali para sempre, ultrapassando a única pista de aterrissagem que tinham...

Abruptamente, o barulho retornou, e ele verificou o altímetro. Tinham descido cerca de sete metros, e ele teve que se perguntar se tinham penetrado a barreira.

Luzes. Ah, bom Jesus amado. Luzes.

Do lado de fora da janela, abaixo, ele via o brilho da mansão e o pátio. Estava distante demais para distinguir os detalhes, mas só podia ser – sim, a pequena ramificação só podia ser o ginásio.

Instantaneamente, seu cérebro dimensionou e reorientou tudo.

Merda. O ângulo estava errado. Se continuasse assim, aterrissaria de frente para a propriedade e não ao longo dela. E a porcaria era que não tinha altitude suficiente para executar um círculo grande para apontá-lo para a direção certa.

Quando não se tem opções, a única alternativa é fazer dar certo.

Seu maior problema era deixar passar o gramado. Só havia uma clareira na montanha. O resto? Árvores que os devorariam.

Ele precisava descer mais. Imediatamente.

– Segure-se!

Mesmo sendo um contrassenso, ele arremessou o manche para frente, e os direcionou para o chão. Houve uma mudança de velocidade imediata, e ele rezou que se recuperasse disso quando chegasse à zona de impacto. E merda, a intensa trepidação ficou ainda pior, ao ponto de ele ficar tonto, e os braços doerem por segurar firme o manche.

Mais rápido. Mais próximo. Mais rápido. Mais barulhento. Mais próximo.

E, então, chegou a hora. A casa e os jardins estavam logo à frente, indo ao encontro deles numa velocidade de matar.

Ele puxou com força, e a nova velocidade os fez levantar um pouco. Por cima da casa...

– Prepare-se! – exclamou a plenos pulmões.

Enquanto a câmera lenta assumia o comando, tudo se ampliou: a propriedade, os segundos, a dor nos olhos enquanto ele se esforçava para olhar adiante, a sensação do seu corpo sendo empurrado para trás no assento...

Merda. Ele estava sem o cinto de segurança.

Nem se preocupara com isso. Coisas demais em que pensar.

Idiota...

Nesse mesmo instante, fizeram contato com algo. Com força. O avião pulou, bateu em outra coisa, ricocheteou e pulou novamente. Nesse meio-tempo, sua cabeça bateu no painel acima dele, e seu traseiro ficou estatelado no assento, e seu...

Deixa para um mix de dores.

A fase seguinte da aterrissagem dos infernos foi um misto de desliza-chacoalha-rola que quase o lançou para fora da cabine. Aquilo era o chão – só podia ser – e, maldição, como iam rápido. As luzes corriam pelas janelas, tudo parecendo o Studio 54* até ele ficar praticamente cego. E por causa do lado em que o estroboscópio estava, ele deduziu que estavam no jardim – mas estavam ficando sem espaço.

Segurando o manche, ele os fez dar um cavalo de pau, na esperança que as mesmas leis da física que se aplicavam a carros desgovernados funcionassem ali: sem freios, espaço limitado e o único modo de diminuir a velocidade era mudar o coeficiente aerodinâmico.

A força centrífuga o fez bater na lateral da cabine e a neve bombardeou seu rosto; depois, algo afiado.

Merda, eles não estavam desacelerando em nada.

E aquele muro de proteção de seis metros de altura e 45 centímetros de espessura estava se aproximando com rapidez.

E por falar em paradas abruptas...

* Lendária discoteca em Manhattan que funcionou entre 1977 e 1986. (N.T.)


CAPÍTULO 21

Blay se desmaterializou para a mansão no instante em que o último assassino naquela clareira foi enviado de volta a Ômega. Como Qhuinn ainda estava no ar com Z., não havia razão para perder mais tempo à espera de mais um esquadrão.

Mesmo por que não havia nada que alguém pudesse fazer para ajudar aqueles dois.

Reaparecendo no pátio, ele...

Diretamente acima dele, sem produzir som algum, aquele maldito avião bloqueava a luz da lua.

Puta merda, eles conseguiram e, caramba, estavam tão próximos que ele pensou que, caso se esticasse, conseguiria tocar a fuselagem do Cessna.

O silêncio sepulcral, porém, não era um bom sinal...

O primeiro impacto veio do alto das cercas vivas que delimitavam o jardim. O avião saltou das pontas, pegou uma corrente de ar, depois sumiu de vista.

Blay se desmaterializou ao redor da varanda bem a tempo de ver o Cessna bater na neve, caindo como um homem obeso mergulhando de barriga numa piscina, criando grandes ondas brancas para todos os lados. E então a aeronave se transformou no maior cortador de grama jamais visto pelo homem, a combinação de seu corpo de aço e a velocidade acelerada demais, destruindo fileiras de árvores frutíferas e de moitas de flores que foram protegidas do inverno, e caramba, até mesmo a fileira de bebedouros para os pássaros.

Mas ao inferno com tudo isso. Ele pouco se importava se tivessem de replantar o lugar inteiro, desde que o avião parasse... antes do muro de contenção.

Por uma fração de segundo, ele chegou a pensar em se materializar diante da coisa e detê-la com as mãos, mas isso seria loucura. Se o Cessna não parecia se incomodar com as estátuas de mármore que ele agora destruía, pouco se importaria com um macho vivo e respirando diante dele...

Por nenhum motivo aparente, todo aquele descontrole começou a girar, a asa encarando Blay como se Qhuinn estivesse tentando virar. A derrapagem foi o movimento perfeito. Nem precisava ser dito que não havia freios, e desde que o espiral se sustentasse, eles teriam mais área para perder velocidade.

Merda, eles estavam mesmo perto demais do muro de contenção...

Centelhas de luz iluminaram a noite, além do grito de metal contra pedra que anunciava que “o perto demais do muro” fora substituído por “bem contra ele”, mas, graças à manobra de Qhuinn, eles se colocaram numa posição paralela em vez de irem de frente.

Blay começou a correr na direção do show de luzes, e outros o acompanharam quando ele assim o fez, um verdadeiro bloco de pessoas em fila. Não havia como deter aquilo, mas eles bem podiam estar a postos quando as coisas...

Tum!

... terminassem.

O avião finalmente encontrou um objeto inanimado que não conseguiu superar: o barracão usado para guardar alguns dos equipamentos e produtos de jardinagem bem no fim do jardim.

Parada completa.

E tudo estava silencioso demais. Tudo o que Blay ouviu foi o suissssh dos coturnos trafegando pela neve, e sua respiração arfando no ar frio, e a pressa dos outros atrás de si.

Ele foi o primeiro a chegar à aeronave e se dirigiu à porta que, como por milagre, estava livre e não imprensada ao muro de concreto. Abrindo-a e sacando a lanterna de bolso, ele não sabia o que esperava encontrar. Fumaça? Gases? Sangue e partes de corpos?

Zsadist estava sentado rígido no assento de frente para os fundos, com o corpo amarrado, ambas as mãos travadas nos apoios de braços. O Irmão encarava à frente, sem piscar.

– Paramos de nos mexer? – perguntou rouco.

Ok, ao que tudo levava a crer, até mesmo um Irmão podia ficar em estado de choque.

– Sim, pararam – Blay não queria ser rude, mas agora que estava certo de que um deles sobrevivera, ele queria ver se Qhuinn...

O macho cambaleou para fora da cabine. No facho de luz da lanterna de Blay, ele parecia ter estado num brinquedo radical de um parque de diversões, com o cabelo todo para trás da testa queimada pela ação do vento, os olhos, um verde e outro azul, arregalados num rosto completamente pálido, cada membro do corpo trêmulo.

– Você está bem? – exclamou ele, como se os ouvidos estivessem surdos depois de expostos a muito barulho. – Z., diga alguma coisa...

– Estou aqui – respondeu o Irmão, fazendo uma careta de dor ao soltar uma das garras dos apoios de braço. – Estou bem, filho... Estou bem.

Qhuinn se agarrou ao que estava saliente e foi então que seus joelhos se dobraram. Ele apenas caiu entre as mãos estendidas, a voz entrecortada a ponto de ele mal conseguir falar.

– Eu só... queria que você... estivesse bem... Só queria... que você... ficasse bem, oh Deus... para a sua filha... Só queria que você ficasse ok...

Zsadist, o Irmão que nunca tocava em ninguém, esticou-se e pousou uma mão livre na cabeça inclinada de Qhuinn. Erguendo os olhos, ele disse suavemente:

– Não deixe ninguém entrar aqui. Dê um minuto a ele, ok?

Blay assentiu e se virou, bloqueando a entrada com o corpo.

– Eles estão bem, eles estão bem...

Enquanto falava com a multidão, um bom número de pessoas fitava-no como se ele fosse um enviado de Deus, mas Bella não estava entre eles. Ela estava...

– Zsadist! Zsaaaaadist!

O grito se transportou por todo o caminho do gramado quando, do alto da varanda, uma figura solitária partiu em disparada em meio à neve.

Muitas pessoas responderam a Bella, mas ele duvidava de que ela tivesse ouvido qualquer coisa.

– Zsaaaadist!

Quando ela escorregou já perto dele, Blay imediatamente se esticou para pegá-la, preocupado que ela acabasse se chocando com a lateral do avião. Ah, Deus, ele jamais se esqueceria da expressão no rosto dela: era mais terrível do que qualquer atrocidade que já vira, como se ela estivesse sendo esfolada viva, como se os braços e pernas estivessem amarrados, e a pele estivesse sendo arrancada de seu corpo.

Qhuinn saiu do avião.

– Ele está bem, ele está bem, prometo... Ele está bem.

Bella se imobilizou, como se aquela fosse a última coisa que ela esperasse ouvir.

– Minha nalla, entre – disse Z. no mesmo tom baixo que usara com Qhuinn. – Entre aqui.

A fêmea chegou a olhar para Blay como se precisasse de uma garantia para saber se aquilo que ouvia estava correto. Em resposta, ele simplesmente a levou pelo cotovelo e a ajudou a passar pela portinhola.

Depois, mais uma vez virou de frente para bloquear a passagem. Enquanto os sons da fêmea chorando livremente em sinal de alívio emanavam, ele viu Qhuinn passar as mãos sobre os olhos como se o macho estivesse se livrando de lágrimas.

– Caramba, filho, eu não sabia que você sabia pilotar – alguém disse.

Enquanto Qhuinn levantava a cabeça, aparentemente olhando de relance para o cenário, Blay fez o mesmo. Pense numa cena apocalíptica: havia um rastro em toda a extensão pela qual o avião passara, como se o dedo de Deus tivesse feito uma linha em todo o jardim.

– Na verdade... eu não sei – murmurou Qhuinn.

V. levou o cigarro aos lábios e estendeu a palma.

– Você trouxe o meu Irmão de volta em um só pedaço. Que se foda o resto.

– Verdade...

– Sim, graças a Deus...

– Diabos, é isso aí...

– Amém...

Um a um, a Irmandade se adiantou, cada um deles erguendo a mão da adaga. A procissão levou um tempo, mas ninguém parecia se importar com o frio.

Blay, por certo, não o sentia. A ponto de ficar paranoico...

Colocando a mão dentro da jaqueta, encontrou o tórax e se deu um beliscão bem forte.

Ai.

Fechando os olhos, fez uma prece silenciosa para que aquilo fosse mesmo verdade... e não o horror que poderia ter sido.

Toda aquela atenção estava deixando Qhuinn nervoso.

E o seu pequeno voo nem fora uma experiência tão zen assim. A queimadura no rosto por causa de todo aquele vento, as dores nos ombros e nas costas, as pernas trêmulas... Ele sentia como se ainda estivesse lá em cima, ainda rezando para nada em que acreditava existir, parado e para sempre no limiar.

Da morte.

Além disso, estava tremendamente envergonhado. Deixar-se abater daquele jeito diante de Z.? Ora essa... Que covarde.

– Importam-se se eu der uma olhada? – a doutora Jane disse ao se aproximar da multidão.

Sim, uma boa ideia. O objetivo de tudo aquilo foi Z. estar ferido tão gravemente que não conseguia se desmaterializar.

– Qhuinn? – disse a fêmea.

– Como disse? – ah, ele estava atrapalhando. – Ok, deixe-me sair da frente...

– Não, não o Zsadist. Você.

– Hum?

– Você está sangrando.

– Estou?

A médica virou a mão dele.

– Vê? – e, como era de se esperar, escorriam gotas vermelhas de suas palmas. – Você acabou de esfregar o rosto. Está com um corte feio na cabeça.

– Ah, ok – talvez por isso se sentisse tão aéreo? – E quanto a Z.?

– Manny já está lá dentro.

Hum. Devia ter perdido aquela parte.

– Quer dar uma olhada em mim aqui?

Ela deu uma risada de leve.

– Que tal levarmos você de volta para a casa? Se conseguir andar.

– Eu cuido dele...

– Pode deixar que eu levo...

– Eu levo...

– Já peguei...

O coro de voluntários foi uma surpresa, bem como todos os braços solícitos que apareceram de todos os lados: ele, literalmente, foi envolvido por braços fortes de lutadores, e todos quase a carregá-lo do lugar como se estivesse fazendo stage diving num show de rock.

Ele olhou para trás, esperando ver Blay, rezando para se deparar com os olhos dele, mesmo isso sendo loucura...

Mas Blay estava lá.

O lindo olhar azul estava logo ali, tão firme e certo ao sustentar o seu que ele quase desmoronou novamente. E ele retirou forças daquele olhar, assim como o fizera na época em que passavam tanto tempo juntos. A verdade era que ele desejava que fosse Blay a levá-lo de volta à mansão, mas ninguém se arriscava a dizer nada à Irmandade quando ela aparecia em massa assim. Além disso, sem dúvida o cara pensaria que estariam próximos demais.

Qhuinn se concentrou no caminho à frente. Puta... merda...

O jardim fora completamente dizimado, metade da cerca viva de três metros de altura próxima à casa fora cortada, todos os tipos de árvore arrancados, arbustos aparados, os restos da colisão espalhados por todos os lados como estilhaços de uma metralha.

Caramba, muito do entulho se parecia com partes de avião.

Ah, olhe ali um painel de aço.

– Esperem – disse, libertando-se. Inclinando-se, pegou um fragmento afiado do chão no lugar em que derretera a neve. Ele podia jurar que a coisa ainda estava quente. – Eu sinto muito mesmo... disse para ninguém em especial.

A voz do Rei rebumbou diante dele:

– Por manter o meu Irmão vivo?

Qhuinn levantou a cabeça. Wrath saíra da biblioteca com George de um lado e a rainha do outro. O macho parecia tão grande e forte quanto a mansão atrás dele: mesmo cego, ele se parecia com um super-herói com aqueles óculos escuros encobrindo os olhos.

– Eu destruí o seu jardim – murmurou Qhuinn ao se aproximar do macho real. – Quero dizer... mudei o paisagismo de um modo muito ruim.

– Isso dará a Fritz algo para fazer na primavera. Você sabe o quanto ele adora arrancar ervas daninhas.

– Esse é o último dos seus problemas. Tenho quase certeza de que vai precisar de uma escavadeira.

Wrath se adiantou, encontrando-o no meio da varanda.

– Esta é a segunda vez, filho.

– Que eu arruinei algo mecânico nas últimas 24 horas? É, eu sei... Da próxima vez, é provável que eu destrua um navio de guerra.

As sobrancelhas negras se abaixaram.

– Não é disso que estou falando.

Ok, aquilo tinha de terminar logo. Ele realmente detestava ter as atenções voltadas para si.

Deliberadamente ignorando a afirmação do Rei, ele disse:

– Bem, a boa notícia é, meu Rei, que não estou pensando numa terceira rodada. Por isso, acho que vamos estar seguros daqui por diante.

Houve um murmúrio coletivo de concordância.

– Posso levá-lo para a clínica agora? – a doutora Jane interrompeu.

Wrath sorriu, as presas refletindo o luar.

– Faça isso.

Graças a Deus... a noite chegava ao fim.

– Onde está Layla? – a médica perguntou quando entraram no calor da biblioteca. – Acho que você precisa se alimentar.

Merda.

Enquanto a legião em roupas de couro atrás deles concordava com a ideia, os olhos de Qhuinn reviraram. Uma crise por noite era mais do que o suficiente. A última coisa na qual ele estava interessado era explicar por que, exatamente, a Escolhida não poderia ser usada como fonte de sangue.

– Você parece tonto – alguém comentou.

– Acho que ele vai...

E essa foi a última coisa que ele ouviu por um tempo.


CONTINUA

CAPÍTULO 11

Blay baixou a cabeça com uma imprecação enquanto a porta da academia se fechava. E claro, daquele ângulo, tudo o que enxergava era a sua ereção.

O que não ajudou.

Levantando o olhar, viu a barra fixa, e soube que tinha de fazer alguma coisa. Ficar sentado ali meio embriagado com uma festa armada entre as pernas dificilmente era uma posição na qual queria ser flagrado. Se um Irmão como Rhage entrasse e visse aquilo? Blay teria de aguentar a gozação pelo resto da vida. Além disso, estava com roupas de ginástica, cercado por equipamentos, portanto, só lhe restava se ocupar, puxar um pouco de ferro, e esperar que o senhor Alegria afundasse em depressão por falta de atenção.

Um bom plano.

Mesmo.

Claro.

Quando, um pouco depois, olhou para o relógio, percebeu que uns quinze minutos haviam se passado e ele não estava mais próximo de movimentos repetitivos e construtivos, a menos que se considerasse a respiração.

Sua ereção tinha uma sugestão para esse tipo de objetivo.

E sua palma se preparou, indo para o meio das pernas, encontrando a rigidez...

Blay levantou do assento num pulo e seguiu para a porta. Chega de idiotice. Iria para o banheiro do vestiário na esperança de reciclar um pouco do álcool no seu sistema. Depois voltaria para a esteira e suaria o resto da bebida.

Depois disso, seria hora de ir para a cama, onde, se precisasse de uma válvula de descarga do tipo erótico, ele a encontraria no local apropriado.

O primeiro sinal de que seu novo plano poderia levá-lo para mais confusão surgiu quando empurrou a porta do vestiário: o som de água corrente significava que alguém estava atarefado com o ritual do xampu e sabonete. Ele estava tão concentrado em se chutar no traseiro, porém, que nem se preocupou com qualquer conclusão.

O que o teria feito parar, virar e encontrar outro banheiro o mais rápido possível.

Em vez disso, passou pelos armários e foi fazer o que tinha de ser feito. Só quando estava lavando as mãos que os cálculos começaram a ser computados.

Por vontade própria, a cabeça girou na direção dos chuveiros.

Você tem que sair, ele se ordenou.

Ao desligar a torneira, o rangido sutil pareceu mais alto que um grito, e ele se recusou a se olhar no espelho. Não queria enxergar o que havia em seu olhar.

Volte para a porta. Apenas volte para a porta. Apenas...

O fracasso do seu corpo em seguir esse simples comando não foi apenas um exercício de rebelião física. Era, tragicamente, um padrão.

E ele se lamentaria mais tarde.

No momento, contudo, quando ele tomou a decisão de se aproximar e se esgueirar ao redor da parede de azulejos para os chuveiros, onde se manteve praticamente escondido, e espiou o macho que não deveria... a tresloucada onda de emoção que era tão dolorosamente familiar, era um conjunto de roupas feito sob medida para a sua insanidade.

Qhuinn estava de frente para o chuveiro com uma mão contra a parede escorregadia, a cabeça morena pensa debaixo do jato. A água corria pelos ombros e pelos acres de pele flexível que recobria as costas poderosas... depois descia pelo traseiro magnífico... e seguia em frente, passando pelas pernas longas e musculosas.

Durante o último ano, o lutador encorpara muito. Qhuinn ficara grande depois da transição e crescera ainda mais durante os primeiros meses de alimentação intensa. Mas já fazia um tempo desde que Blay não o via sem roupas... e, caramba, a rotina de puxar ferro à qual ele se submetera mostrava os resultados em todos aqueles músculos definidos...

Abruptamente, Qhuinn mudou de posição, virando, jogando a cabeça para trás, fazendo a água correr pelo cabelo escuro, aquele corpo incrível arqueando.

Ele manteve o piercing no pênis.

E, puta merda, estava excitado...

Um orgasmo imediatamente ameaçou a cabeça do pênis de Blay, os testículos ficando duros como punhos cerrados.

Dando meia-volta, ele saiu do vestiário como se tivesse sido lançado de um canhão, empurrando a porta, saindo em disparada no corredor.

– Ai, merda... cacete... puta que o...

Andando o mais rápido que podia, ele tentou tirar aquela imagem da cabeça, lembrando-se de que tinha um amante, que tocara a vida, que era possível se autodestruir a respeito da mesma coisa apenas uma limitada quantidade de vezes e que depois se chegava ao fim.

Quando nada disso funcionou, ele repetiu o discurso que fizera para Qhuinn no guincho...

Inferno, onde ficava o escritório?

Parando, olhou ao redor. Ah, fantástico. Tomara a direção oposta daquela que pretendia ter tomado, e agora tinha passado pela clínica e estava na ala de salas de aula do centro de treinamento.

A quilômetros de distância da entrada do túnel.

– ... laceração tão profunda. Mas ele não teve nada disso.

A voz grave de Manny Manello precedeu o homem que vinha pelo corredor saindo da sala de exames. Um segundo depois, a doutora Jane apareceu bem ao lado dele, com um prontuário aberto na mão, a ponta do dedo descendo pela página.

Blay se enfiou na primeira porta que encontrou...

E se deparou com uma parede de escuridão. Apalpando para encontrar um interruptor, visto que estava abalado demais para acender qualquer luz mentalmente, encontrou um, apertou e ficou momentaneamente cego.

– Ai!

A dor aguda que subiu da canela para o cérebro lhe disse que ele colidira com algo grande.

Ah, uma escrivaninha.

Estava num daqueles miniescritórios satélites das salas de aula, e isso era uma notícia muito boa. Com o programa de treinamento ainda suspenso por causa dos ataques, não havia ninguém ali embaixo, e provavelmente ninguém teria motivo para estar naquela saleta vazia.

Ele poderia ter um pouco de privacidade por um tempo, o que era uma bênção. Deus bem sabia que ele não tentaria voltar para a mansão agora. Com a sua sorte, acabaria se deparando com Qhuinn, e a última coisa de que ele precisava era estar perto do cara.

Indo para trás da escrivaninha, sentou-se na cadeira de escritório acolchoada e levantou as pernas, esticando-as sobre a superfície que deveria conter um computador, uma planta, um pote cheio de canetas. Em vez disso, estava vazia, ainda que não estivesse empoeirada. Fritz jamais permitiria isso mesmo num cômodo desocupado.

Esfregando a parte dolorida na canela, ficou evidente que produziria um belo hematoma. Mas ao menos a dor o distraíra daquilo que o motivara até ali.

Entretanto, isso não durou muito.

Ao inclinar a cadeira para trás e fechar os olhos, sua mente retornou ao vestiário.

E ele pensou se a tortura nunca teria um fim.

Deus, seu pênis estava latejando.

Considerando suas opções, ele ordenou que as luzes se apagassem, fechou os olhos e comandou que seu cérebro se desligasse para ele poder dormir. Se, ao menos, ele conseguisse cochilar uma ou duas horas ali, acordaria mais sóbrio, flácido e pronto para enfrentar as pessoas novamente.

Bem, esse era um bom plano, e também o ambiente era perfeito. Escuro, fresquinho, bem tranquilo do modo como somente as instalações subterrâneas podem ser.

Ajeitando o corpo ainda mais para baixo na cadeira, cruzou os braços sobre o peito e se preparou para o trem do sono REM chegar à estação.

Quando isso não funcionou, ele começou a imaginar todo tipo de situação “de desligamento”, como aspiradores de pó sendo puxados da tomada e incêndios sendo apagados com água e telas de TV escurecendo...

Qhuinn estava tão altamente “transável” daquele jeito, o corpo macio e liso entalhado em músculos, o sexo grosso e orgulhoso. Toda aquela água o deixara escorregadio e sensual... e, santa Virgem Escriba, Blay teria dado praticamente qualquer coisa para se aproximar, se ajoelhar e tomar o sexo dele na boca, sentindo aquela cabeça com suas investidas penetrantes em sua língua ao entrar e sair...

O som desgostoso que emitiu ecoou, parecendo mais alto do que provavelmente fora.

Abrindo os olhos, tentou tirar da cabeça qualquer fantasia que envolvesse chupar. Mas a escuridão completa não ajudou; apenas formou a tela perfeita para ele continuar a projetar as imagens.

Praguejando, deu uma chance para o lance de ioga, com o qual você relaxa a tensão em cada parte do corpo, começando pela prega sempre presente entre as sobrancelhas, depois as cordas rígidas que desciam pelos ombros até a base do crânio. O peito também estava apertado, os peitorais contraídos sem nenhum motivo aparente, os bíceps afundando nos antebraços.

Em seguida, ele deveria focar no abdômen, depois nas nádegas e coxas, nos joelhos e panturrilhas... até a pontinha do pé.

Ele não chegou tão longe.

Pensando bem, tentar convencer sua excitação sobre qualquer tipo de maleabilidade demandaria poderes de persuasão que seu cérebro parcialmente embriagado não possuía.

Infelizmente, só havia um modo seguro de se livrar do senhor Alegria. E, no escuro, sozinho, com a garantia de que “ninguém nunca vai ficar sabendo”, por que ele não podia simplesmente cuidar daquilo, apagar o fogo e desmaiar? Não era muito diferente de despertar no meio da noite com uma ereção – porque Deus bem sabia que não havia nenhuma emoção envolvida. E ele estava alcoolizado, certo? Então isso era mais uma razão.

Repetiu a si mesmo que não estava traindo Saxton. Não estava com Qhuinn – e era Saxton quem ele queria...

Por um instante, ele continuou a pesar os prós e os contras, mas, no fim, sua mão tomou a decisão por ele. Antes de se dar conta, a palma se escondia debaixo do cós folgado e...

O sibilo que emitiu ao se segurar foi como um tiro no silêncio, assim como o rangido da cadeira quando a investida dos quadris empurrou os ombros contra o estofamento de couro. Quente e duro, grosso e longo, seu pênis clamava por atenção, mas a angulação estava errada, e não havia espaço para mexer dentro dos malditos shorts.

Por algum motivo, a ideia de se despir da cintura para baixo o fez se sentir sujo, mas seu senso de decoro foi para o espaço bem rápido quando tudo o que ele conseguia fazer era apertar. Elevando o traseiro, abaixou os shorts, depois percebeu que precisaria de alguma coisa para limpar a bagunça.

A camiseta foi retirada em seguida.

Nu no escuro, esticado da cadeira para a escrivaninha, ele se entregou, afastando as pernas, bombeando para cima e para baixo. A fricção fez seus olhos revirarem, morder o lábio inferior. Deus, as sensações eram tão boas, fluindo pelo corpo...

Droga.

Qhuinn estava na sua cabeça, Qhuinn estava na sua boca... Qhuinn estava dentro dele, os dois se movendo juntos...

Isso era errado.

Congelou. Parou de pronto.

– Merda.

Blay soltou o pênis, ainda que o simples processo de desistir da traição o fizesse cerrar os molares.

Abrindo os olhos, fitou a escuridão. O som da sua respiração entrando e saindo do peito o fez praguejar novamente. Assim como a necessidade pulsante de um orgasmo – ao qual ele se recusava a ceder.

Não daria continuidade àquilo...

Do nada, a imagem de Qhuinn arqueado debaixo do jato de água golpeou sua mente, assumindo o controle. Contrariando seu raciocínio, sua lealdade, seu senso de justiça... seu corpo se sobrecarregou, o orgasmo atingindo o pênis antes que ele o conseguisse detê-lo, antes que ele conseguisse negar, pois aquilo não era certo... antes que ele conseguisse dizer “De novo, não. Nunca mais”.

Ah, Deus. A sensação doce e penetrante, repetida uma vez depois da outra até ele se perguntar se aquilo um dia terminaria, mesmo ele não tendo ajudado.

Aquela reação física podia estar além do seu controle. Sua reação a ela não.

Quando ele se aquietou por fim, a respiração estava agitada e o frio na pele nua do peito sugeria que ele suara... e enquanto o corpo se recuperava, sua consciência retornava, e a ereção murchando era como um barômetro do seu humor.

Esticando-se, apalpou a mesa até encontrar a camiseta; depois esfregou-a e pressionou-a na junção das coxas.

O resto da confusão em que se metera não seria tão fácil de limpar.

Do outro lado da cidade, no 18o andar do Commodore, Trez estava sentado numa cadeira lustrosa de aço e couro que ficava de frente para a parede envidraçada dando para o rio Hudson. O sol do meio-dia brilhava mais por causa da neve fresca que caíra nas margens durante a noite.

– Sei que está aqui – disse secamente, sorvendo um gole da caneca de café.

Quando não houve resposta, ele rodopiou a cadeira em sua base giratória. Como esperado, iAm viera do quarto e estava sentado no sofá, com o iPad no colo, o indicador deslizando pela tela. Ele devia estar lendo a edição online do The New York Times, claro; era o que fazia toda manhã ao acordar.

– Então – disse Trez. – Manda ver.

A única resposta que teve foi uma das sobrancelhas de iAm se erguendo. Por, digamos, meio segundo.

O bastardo presunçoso nem olhava para ele.

– Deve ser um artigo fascinante. Sobre o que é? Irmãos teimosos?

Trez passou algum tempo segurando a caneca de café quente.

– iAm. Sério. Que bobagem.

Depois de um momento, o olhar escuro do irmão se ergueu. Os olhos que sustentaram os seus estavam, como sempre, completamente livres de emoção, dúvida e todas as asneiras com que os mortais lidavam. iAm era sensível de maneira sobrenatural... como uma cobra: atenta, inteligente, pronta a atacar, mas relutante em desperdiçar força até que fosse necessário.

– O que foi? – resmungou Trez.

– Seria redundante lhe dizer o que você já sabe.

– Faça isso por mim – ele sorveu mais um gole e se perguntou por que diabos estava se oferecendo para aquilo. – Vá em frente.

Os lábios de iAm se contraíram como sempre quando ele pensava numa resposta. Depois ele fechou a capa do iPad, cada uma das quatro seções descendo como pegadas na tela. Então ele pôs de lado o equipamento, descruzou as pernas e se inclinou para frente para equilibrar os cotovelos sobre os joelhos. Os bíceps dele eram tão grossos que as mangas da camisa pareciam que se rasgariam.

– Sua vida sexual está fora de controle – enquanto Trez revirava os olhos, o irmão continuou a falar. – Está transando com três ou quatro mulheres por noite, às vezes mais. Não se trata de alimentar-se, portanto não perca o nosso tempo tentando usar essa desculpa. Você está comprometendo os padrões profissionais do...

– Eu lido com bebidas e prostitutas. Não acha que isso parece um pouco intelectual...

iAm pegou o iPad e o balançou.

– Devo voltar a ler?

– Só estou dizendo...

– Você me pediu para falar. Se isto é um problema, a solução não é ficar na defensiva porque não gosta do que está ouvindo. A resposta é não me convidar a falar.

Trez cerrou os dentes. Veja, era esse o problema com o maldito irmão. Ele era sensato demais.

Levantando-se num rompante, atravessou a sala ampla. A cozinha era como todo o resto do apartamento: moderna, arejada e despojada. O que significava que se ele se servisse de um pouco mais de cafeína, conseguiria enxergar o irmão em sua visão periférica.

Caramba, às vezes ele detestava aquele lugar. A menos que estivesse no quarto com a porta fechada, não conseguia se livrar daqueles olhos.

– Devo ler ou falar? – perguntou iAm com tranquilidade, como se isso lhe fosse indiferente.

Caramba, como Trez queria falar para o cara enfiar o nariz no jornal, mas isso seria o mesmo que admitir uma derrota.

– Continue – Trez voltou à poltrona e se preparou para uma surra.

– Você não está se comportando de maneira profissional.

– Você come no Sal’s.

– O meu linguini com molho de mariscos não requer uma ordem judicial quando decido que na noite seguinte quero o Fra Diavolo.

Bem observado. E, de alguma forma, isso o fez se sentir quase violento.

– Sei o que está fazendo – disse iAm. – E por quê.

– Você não é virgem, portanto é claro que...

– Sei o que lhe enviaram.

Trez parou.

– Como?

– Quando você não atendeu, recebi um telefonema.

Trez empurrou o tapete debaixo dos pés e girou a cadeira para ficar de frente para o rio. Merda. Ele imaginou que acalmaria a situação com aquilo, do tipo, dar ao irmão uma sessão de sermão para que os dois pudessem voltar ao normal. Eles costumavam ser como pele e osso, e o bom relacionamento era essencial.

Ele conseguia lidar com quase tudo, exceto com um desentendimento com o irmão.

Infelizmente, os problemas sobre os quais se referiam ali eram a única coisa no “quase tudo”.

– Ignorar não vai fazer isso desaparecer, Trez.

Isso foi dito com uma certa medida de gentileza, como se o cara lamentasse por ele.

Enquanto Trez fitava o rio, imaginou estar em seu clube, com humanos cercando-o, o dinheiro trocando de mãos e as mulheres que trabalhavam lá fazendo o que faziam nos fundos. Legal. Normal. Controlado e confortável.

– Você tem responsabilidades.

Trez segurou a caneca com mais força.

– Não me apresentei como voluntário a eles.

– Não importa.

Ele virou com tanta rapidez que derramou café na coxa. Ignorou o ardor.

– Deveria. O cacete como deveria. Não sou um objeto inanimado que eles podem dar a quem quiserem. A coisa toda é uma tolice.

– Alguns considerariam uma honra.

– Bem, eu não. Não vou me amarrar àquela fêmea. Não me importo quem ela seja ou quem armou isso ou quão “importante” isso é para o s’Hisbe.

Trez se preparou para a enxurrada do “ah, sim, você vai”. Em vez disso, seu irmão pareceu triste, como se ele também não quisesse aquela maldição.

– Vou repetir, Trez. Isso não vai desaparecer num passe de mágica. E tentar sair dessa transando por aí? Não só é fútil, como potencialmente perigoso.

Trez esfregou o rosto.

– As mulheres são apenas humanas. Elas não têm importância – ele voltou a olhar para o rio. – E, francamente, se eu não fizer alguma coisa, vou enlouquecer. Um punhado de orgasmos tem que ser melhor do que isso, certo?

Enquanto o silêncio retornava, ele soube que o irmão discordava dele. Mas a prova de que sua vida estava na mais absoluta merda era que a conversa terminara ali.

iAm, pelo visto, não era o tipo de homem que chuta um cara caído.

Tanto faz. Ele não se importava com o que se esperava dele. Ele não voltaria para ser condenado a uma vida de serviços forçados.

Pouco se importava se era para a filha da rainha.


CAPÍTULO 12

Era fim de tarde quando Wrath chegou a um beco sem saída. Estava à mesa, sentado no trono do pai, os dedos percorrendo um relatório escrito em braille, quando, de repente, não conseguia ler nem mais uma maldita palavra do texto.

Empurrando os papéis para o lado, praguejou e arrancou os óculos escuros do rosto. Bem na hora em que estava para lançá-los contra a parede, sentiu um focinho no cotovelo.

Passando o braço ao redor do golden retriever, pressionou a mão no pelo macio que crescia nos flancos do cachorro.

– Você sempre sabe, não é?

George se aninhou, pressionando o peito na perna de Wrath – a dica de que “alguém” queria ser erguido.

Wrath se inclinou e apanhou todos os quarenta quilos nos braços. Enquanto acomodava as quatro patas, a juba de leão e o rabo volante para que tudo coubesse, ele concluiu que era bom que fosse tão alto. Coisas grandes ofereciam um colo grande.

E o ato de afagar todo aquele pelo o acalmou, mesmo que não lhe tranquilizasse a mente.

Seu pai fora um Rei notável, capaz de suportar inúmeras horas de cerimônias, noites infindáveis nos esboços de proclamações e convocações, meses e anos inteiros de protocolo e tradição. E isso antes de ser inundado pelo fluxo perene de reclamações que vinham de todos os lados: cartas, telefonemas, e-mails – ainda que, obviamente, os últimos estivessem fora de questão na época do seu pai.

Wrath, um dia, fora um lutador. Um excelente lutador.

Levantando a mão, sentiu a lateral do pescoço, o lugar por onde a bala entrara...

A batida à porta foi decidida, direta ao ponto, mais uma exigência do que uma solicitação respeitosa para entrar.

– Pode entrar, V. – respondeu.

O odor adstringente da hamamélis que precedeu o Irmão foi uma pista evidente de que alguém estava irritado. E, com toda certeza, sua voz grave tinha uma ponta de descontentamento.

– Finalmente terminei os testes de balística. Malditos fragmentos sempre tomam tempo demais.

– E? – Wrath o instigou.

– É uma combinação perfeita. Cem por cento – enquanto Vishous se sentava na cadeira oposta à mesa, a peça de mobília rangeu debaixo do peso. – Nós os pegamos.

Wrath exalou longamente, parte do zumbido impotente escorrendo de sua mente.

– Bom – ele correu a mão pela cabeça grande de George, descendo até as costelas. – Então, esta é a nossa munição.

– Exato. O que aconteceria de qualquer maneira agora toma uma forma legal.

A Irmandade soubera o tempo todo quem estivera por trás do tiro que quase matara o Rei no outono, e a tarefa de acabar com o Bando de Bastardos um a um era algo que eles encaravam muito mais como uma tarefa sagrada para a raça.

– Olha aqui, eu preciso ser franco, certo?

– E quando não foi? – Wrath argumentou.

– Por que diabos está atando as nossas mãos?

– Eu não sabia que estava fazendo isso.

– Com Tohr.

Wrath reposicionou George a fim de que o fluxo sanguíneo da perna esquerda não ficasse completamente bloqueado pelo peso do cão.

– Ele solicitou o decreto.

– Todos nós temos o direito de acabar com Xcor. O cretino é o prêmio que todos nós queremos. Isso não deveria estar restrito somente a ele.

– Ele pediu.

– Isso só faz com que seja muito mais difícil matar o bastardo. E se um de nós o encontrar, e Tohr não estiver conosco?

– Vocês o trazem para cá – houve uma longa pausa, um silêncio tenso. – Você me ouviu, V.? Traga aquele monte de merda para cá e deixe Tohr fazer o serviço.

– O objetivo é eliminar o Bando de Bastardos.

– E como isso o impede de fazer o seu trabalho? – quando não houve resposta, Wrath balançou a cabeça. – Tohr estava naquela van comigo, meu Irmão. Ele salvou a minha vida. Sem ele...

Enquanto a frase não foi finalizada, V. praguejou baixinho, como se estivesse fazendo os cálculos sobre aquela lembrança e chegando à conclusão de que o Irmão que teve que cortar o tubo plástico da sua garrafa CamelBak e executar uma traqueotomia no seu Rei num veículo em movimento a quilômetros de distância de qualquer ajuda médica deveria ter um tantinho só a mais de direito de matar o criminoso.

Wrath sorriu de leve.

– Que tal se, só porque eu sou um cara legal, eu deixar que cada um de vocês dê um soco nele antes que Tohr mate o filho da puta com as próprias mãos? Fechado?

V. riu.

– Isso alivia um pouco.

A batida que os interrompeu foi baixa e respeitosa, uma sequência de batidinhas leves que parecia sugerir que quem quer que fosse ficaria feliz em ser mandado embora, satisfeito em aguardar, ou esperava por uma audiência imediata, tudo ao mesmo tempo.

– Pois não? – chamou Wrath.

Uma colônia cara anunciou a chegada do advogado: Saxton sempre cheirava bem, e isso se encaixava em sua personalidade. Pelo que Wrath lembrava, além da excelente educação do cara e da qualidade do seu raciocínio, ele sempre se vestia de acordo com a moda como um filho bem nascido da glymera. Isso é, com perfeição.

Não que Wrath tivesse visto isso recentemente.

Ele recolocou os óculos num movimento rápido. Uma coisa era se expor na frente de V.; isso não aconteceria diante do macho jovem e eficiente que passava pela porta, não importando o quanto Sax fosse confiável e profissional.

– O que tem para mim? – perguntou Wrath enquanto o rabo de George se movia de um lado para o outro à guisa de um cumprimento.

Houve uma longa pausa.

– Talvez seja melhor eu voltar mais tarde?

– Você pode dizer qualquer coisa na frente do meu Irmão.

Outra pausa longa, durante a qual V. provavelmente encarava o advogado como se quisesse tirar um naco do traseiro do garoto bonito e bem-vestido por sugerir que havia uma divisa de informações que precisava ser respeitada.

– Mesmo que seja sobre a Irmandade? – Saxton perguntou com franqueza.

Wrath praticamente sentia os olhos gélidos de V. virando de direção. E, como esperado, o Irmão bradou:

– O que há conosco?

Quando Saxton permaneceu calado, Wrath deduziu sobre o que se tratava.

– Pode nos dar um minuto, V.?

– Está de brincadeira?

Wrath pegou George e o colocou no chão.

– Só preciso de cinco minutos.

– Tudo bem. Divirta-se, meu senhor – grasnou V. ao se levantar. – Merda.

Um instante depois, a porta bateu.

Saxton pigarreou.

– Eu poderia ter voltado depois.

– Se eu quisesse isso, eu teria lhe dito. Agora fale.

Uma inspiração profunda, seguida de uma expiração, como se o civil estivesse olhando para a saída e se perguntando se a partida intempestiva de V. poderia ser a causa de ele acordar morto mais tarde.

– Hum... a auditoria das Leis Antigas está completa, e eu posso lhe fornecer uma lista completa das seções que necessitam de emendas, além de reformulações propostas, e um cronograma para que as mudanças possam ser implementadas se...

– Sim ou não. É tudo o que me interessa.

A julgar pelo sussurro dos sapatos resvalando o tapete Aubusson, Wrath deduziu que o advogado estava andando de um lado para o outro. De cabeça, ele visualizou o escritório, desde as paredes azul-claras até as cornijas em arabesco e toda a mobília francesa antiga e frágil.

Saxton fazia mais sentido naquele cômodo do que Wrath com seu couro e camiseta justa.

Mas a lei prescrevia quem deveria ser o Rei.

– Você precisa começar a mexer os lábios, Saxton. Garanto que não será demitido se falar comigo francamente. Se tentar editar a verdade ou suavizá-la? Isso sim o fará cair, pouco importando com quem está dormindo.

Houve um novo pigarrear. E então, a voz aculturada chegou até ele diretamente do outro lado da escrivaninha.

– Sim, pode fazer o que desejar. No entanto, preocupo-me quanto ao momento.

– Por quê? Porque vai precisar de dois anos para fazer as emendas?

– O senhor está fazendo uma mudança fundamental na seção da sociedade que protege a espécie – e isso pode desestabilizar ainda mais o seu governo. Estou a par das pressões que tem sofrido, e seria negligente de minha parte se eu não apontasse o óbvio. Se o senhor alterar a prescrição sobre quem pode entrar na Irmandade da Adaga Negra, isso poderá provocar ainda mais abertura para dissensão... isso não se parece com nada que tenha tentado em seu reinado, e virá numa época de extremo distúrbio social.

Wrath inspirou profundamente pelo nariz – e não captou vibração negativa; não havia evidências de que o homem estivesse sendo fraudulento ou que não estivesse disposto a realizar o trabalho.

E ele tinha razão.

– Agradeço sua opinião – disse Wrath. – Mas não vou me curvar ante o passado. Recuso-me. E se eu tivesse dúvidas a respeito do macho em questão, eu não estaria fazendo isso.

– Como os outros Irmãos se sentem a esse respeito?

– Isso não é da sua conta – na verdade, não tocara no assunto com eles ainda. Afinal, por que se importar se não houvesse possibilidade de seguir adiante? Tohr e Beth eram os únicos que sabiam exatamente até onde ele estava preparado para levar aquilo. – Quanto tempo vai levar para que você torne isso oficial?

– Posso deixar tudo preparado para o alvorecer de amanhã, no máximo ao anoitecer.

– Faça isso – Wrath cerrou um punho e o bateu no braço do trono. – Faça isso agora.

– Como desejar, meu senhor.

Houve uma movimentação de tecidos finos, como se o macho estivesse se inclinando, e depois mais passos antes que uma das portas duplas se abrisse e se fechasse.

Wrath fitou o vazio produzido pelos seus olhos cegos.

Tempos perigosos por certo. E francamente, o sensato a fazer era ter mais Irmãos, e não pensar em motivos para não os ter, ainda que a contra-argumentação fosse: se aqueles três garotos estavam dispostos a lutar ao lado deles sem serem iniciados, por que se importar?

Foda-se. Era costume antigo querer honrar alguém que tivesse colocado a própria vida em risco só para que a dele pudesse continuar.

A real questão, contudo, tirando as leis... era: o que os outros pensariam?

Muito provavelmente seria isso a colocar um freio na questão mais do que qualquer detalhe legal.

Quando a noite caiu horas mais tarde, Qhuinn estava deitado nu na cama. Ele dormia, mas nem seu corpo nem sua mente estavam descansando.

Em seu sonho, ele tinha voltado para o acostamento da estrada, tendo saído a pé da casa da família. Carregava no ombro uma bolsa de lona, a proclamação de deserdação enfiada na cintura e uma carteira que, a não ser por onze dólares, estava vazia.

Tudo estava bem nítido. Nada fora modificado devido a um erro de reprodução de memória: desde a noite úmida de verão e o som dos seus New Rocks no pedregulho do acostamento... até o fato de ele ter ciência de que não havia nada em seu futuro.

Não tinha para onde ir. Nenhum lar para onde voltar.

Nenhuma perspectiva. Nem mesmo um passado.

Quando o carro parou atrás dele, ele sabia que só podia ser John ou Blay...

Mas, não. Não foram seus amigos. Era a morte na forma de quatro machos em mantos negros que saíram por quatro portas e convergiram ao seu redor.

Uma Guarda de Honra. Enviada pelo seu pai para surrá-lo por desonrar o nome da família.

Quanta ironia. Alguém haveria de deduzir que esfaquear um sociopata que tentara estuprar seu colega seria uma coisa boa. Mas não quando o agressor era o seu perfeito primo de primeiro grau.

Em câmera lenta, Qhuinn se colocou em postura de luta, preparado para enfrentar o ataque. Não havia olhos para encarar, nenhum rosto em que reparar – e não havia motivo para tal: o fato de os mantos esconderem suas identidades supostamente faria com que a pessoa que transgredira sentisse como se toda a sociedade desaprovasse as ações que ele executara.

Circundando, circundando, aproximando-se... No fim, conseguiriam derrubá-lo, mas ele os feriria no processo.

E foi o que fez.

Mas ele também teve razão: depois do que pareceram serem horas de defesa, ele acabou de costas, e foi nesse momento que a surra de fato aconteceu. Deitado no asfalto, ele cobriu a cabeça e o escroto o melhor que pôde, os golpes chovendo sobre ele, mantos negros voando como asas de corvos conforme era golpeado e surrado.

Depois de um tempo, não sentiu dor.

Iria morrer ali no acostamento da estrada...

– Pare! Não devemos matá-lo!

A voz do irmão atravessou tudo aquilo, atingindo-o de um modo como nenhum golpe podia mais...

Qhuinn despertou com um grito, levando as mãos ao rosto, as coxas se elevando para proteger a virilha...

Nenhum punho, nenhum taco vindo em sua direção.

E ele não estava no acostamento da estrada.

Fazendo com que as luzes se acendessem, olhou ao redor do quarto no qual vinha ficando desde que fora expulso da casa da própria família. Não combinava em nada com ele, o papel de parede de seda e os objetos eram algo que a sua mãe escolheria – ainda assim, naquele momento, a visão de toda aquela quinquilharia que outra pessoa escolhera, comprara e pendurara, fez com que ele se acalmasse.

Mesmo enquanto a lembrança pairava.

Deus, o som da voz do irmão.

Seu próprio irmão fizera parte da Guarda de Honra enviada atrás dele. Em retrospecto, isso enviava uma mensagem ainda mais poderosa para a glymera sobre a seriedade com que a família cuidava dos seus assuntos. E não era como se o cara não tivesse sido treinado. Ele aprendera artes marciais, embora, naturalmente, não lhe permitissem lutar. Inferno, mal permitiram que ele brigasse nos treinos.

Valioso demais para a linhagem. E se ele se ferisse? Aquele que seguiria os passos do pai e um dia se tornaria lídher do Conselho poderia ficar exposto.

Risco pequeno de um dano catastrófico para a família.

Qhuinn, por sua vez... Antes de ser renegado, fora colocado no programa de treinamento, talvez com a esperança de que sofresse algum ferimento mortal no campo de batalha e fizesse o favor a todos de morrer com honra.

Pare! Não devemos matá-lo!

Essa fora a última vez em que ouvira a voz do irmão. Pouco depois de Qhuinn ter sido expulso de casa, a Sociedade Redutora conduzira uma onda de ataques e matara a todos, o pai, a mãe, a irmã – e Luchas.

Todos morreram. E mesmo que uma parte sua os odiasse pelo que lhe fizeram, ele não desejaria esse tipo de morte a ninguém.

Qhuinn esfregou o rosto.

Hora de uma chuveirada. Era tudo o que ele sabia.

Pondo-se de pé, espreguiçou-se até as costas estalarem e verificou o celular. Uma mensagem de texto para o grupo anunciava que haveria uma reunião no escritório de Wrath; e uma espiada rápida no relógio lhe informou que ele tinha pouco tempo.

O que não era ruim. Ao passar para velocidade acelerada e se apressar para o banheiro, era um alívio se concentrar em coisas reais em vez de no passado maldito.

Não havia nada que ele pudesse fazer a respeito desse último a não ser amaldiçoá-lo. E ele bem sabia que já fizera isso o suficiente para doze vidas.

Hora de acordar, pensou.

Hora de ir trabalhar.


CAPÍTULO 13

Lá pela mesma hora em que Qhuinn tomava banho na casa principal, Blay despertou na cadeira daquele escritoriozinho no subterrâneo. A dor de cabeça que lhe serviu como despertador não se originava do vinho do Porto, mas pelo fato de ter pulado a Última Refeição. Mas, caramba, bem que ele queria que a bebida estivesse por trás do latejar em seu crânio. Ele poderia se valer disso para justificar o estado absolutamente deplorável com que fora parar ali.

Praguejando, abaixou as pernas da escrivaninha e se sentou melhor. O corpo estava duro como uma tábua, as dores brotavam em todo tipo de lugar enquanto ele fez as luzes se acenderem.

Merda. Ainda estava nu.

Mas até parece que os elfos recatados entrariam sorrateiramente ali para vesti-lo enquanto dormia... só para que ele não se lembrasse do que havia feito?

Vestindo os shorts, enfiou os pés nos tênis e se esticou para pegar a camiseta antes mesmo de se lembrar para o que a usara.

Ao olhar para as dobras amarrotadas do algodão e sentir os pontos endurecidos no tecido macio, deu-se conta de que nenhuma quantidade de racionalização mudaria o fato de ele ter traído Saxton. Contato físico com alguém era apenas uma das medidas da infidelidade – e, sim, isso era o maior divisor. O que fizera na noite anterior, porém, fora uma violação do relacionamento deles, mesmo que o orgasmo tivesse sido causado pelo cérebro e não pela sua mão.

Pondo-se de pé, sentiu-se meio morto ao se encaminhar para a porta e entreabri-la. Se houvesse alguém nas imediações, ele voltaria para dentro e esperaria até que o corredor estivesse vazio. Ele absolutamente não queria ser apanhado saindo daquele escritório vazio, meio despido e com aquela aparência lastimável. O lado bom de viver no complexo era que você estava sempre cercado por gente que se preocupava com você; o lado ruim era que todos tinham olhos e ouvidos, e nenhum assunto particular era totalmente particular.

Quando não ouviu nem vozes nem passos, explodiu para o corredor e começou a caminhar numa passada rápida, como se estivesse estado em algum lugar com determinado propósito e estivesse se dirigindo para o quarto com uma finalidade igualmente importante. Teve a sensação de ter se safado ao chegar ao túnel. Claro, não costumava andar por aí sem camisa, mas muitos dos outros Irmãos e machos faziam isso quando saíam da academia, não era nada extraordinário.

E ele realmente sentiu como se tivesse ganhado na loteria quando saiu de baixo da grande escadaria da mansão e foi recebido por mais uma bela dose de corredor vazio. O único problema era que, pelo som da louça sendo levada da sala de jantar, devia ser mais tarde do que ele imaginava. Obviamente, perdera a Primeira Refeição – notícia ruim para a sua cabeça, mas, pelo menos, ele tinha umas barras de proteína no quarto.

Sua sorte chegou ao fim quando ele subiu as escadas para o segundo andar. Parados diante das portas fechadas do escritório de Wrath, Qhuinn e John estavam vestidos para o combate, com as armas a postos e os corpos cobertos por couro preto.

De jeito nenhum ele olharia para Qhuinn. Só o fato de tê-lo em sua visão periférica era ruim o bastante.

– O que está acontecendo? – perguntou.

Temos uma reunião agora, sinalizou John. Ou, pelo menos, era para termos. Não recebeu a mensagem?

Merda, ele não fazia ideia de onde estava seu telefone. No quarto? Tomara.

– Vou tomar uma chuveirada e volto já.

Talvez tenha de se apressar. Os Irmãos estão a portas fechadas há meia hora. Não sei o que está acontecendo.

Ao lado dele, Qhuinn se balançava para frente e para trás nos coturnos, a oscilação do peso fazendo parecer que estava andando, mesmo ele não indo a parte alguma.

– Cinco minutos – murmurou Blay. – Só preciso disso.

Ele esperava que a Irmandade abrisse as portas até lá, a última coisa que queria era ficar sem fazer nada ao lado de Qhuinn.

Praguejando ao andar, Blay correu até o quarto. Normalmente, ele demorava para se aprontar, ainda mais se Sax estivesse a fim, mas dessa vez seria entrar, chuveiro e...

Ao abrir a porta, parou.

Mas o quê...?

Malas. Na cama. Tantas que ele não conseguia ver mais do que alguns centímetros do edredom. E ele sabia a quem elas pertenciam. Guccis combinando, brancas com o logo azul-marinho e as alças de tecido em azul e vermelho, porque, segundo Saxton, o tradicional marrom sobre marrom com vermelho e verde eram “óbvios demais”.

Blay fechou a porta em silêncio. Seu primeiro pensamento foi “puta merda, Saxton sabe”. De algum modo, ele soube o que aconteceu no centro de treinamento.

O macho em questão apareceu do banheiro com os braços cheios de frascos de xampu, condicionador e outros produtos. E parou no ato.

– Oi – disse Blay. – Vai sair de férias?

Depois de um momento tenso, Saxton se aproximou, colocou os produtos numa mala e se virou. Como sempre, seu lindo cabelo loiro estava afastado da testa em ondas espessas. E ele estava perfeitamente bem vestido, em outro terno de tweed com colete combinando, uma gravata vermelha e um lencinho de bolso também vermelho só para dar o toque certo de cor.

– Acho que você sabe o que vou dizer – Saxton sorriu triste. – Porque você não é nenhum idiota, assim como eu não sou.

Blay foi se sentar na cama, mas teve que mudar de ideia, pois não havia onde se acomodar. Acabou na chaise-longue e, com uma inclinação discreta para o lado, enfiou a camiseta suja debaixo do tecido do saiote. Longe dos olhos. Era o mínimo que podia fazer.

Deus, aquilo estaria mesmo acontecendo?

– Não quero que você vá – Blay se ouviu dizendo com voz grave.

– Acredito nisso.

Blay olhou para além das malas.

– Por que agora?

Pensou nos dois no dia anterior, debaixo dos lençóis, fazendo sexo selvagem. Estiveram tão próximos... Ainda que, sendo brutalmente honesto, talvez aquilo tivesse sido apenas físico.

Retire o talvez.

– Venho enganando a mim mesmo – Saxton balançou a cabeça. – Pensei que poderia continuar com você assim, mas não posso. Isto está me matando.

Blay fechou os olhos.

– Sei que tenho ficado muito tempo fora...

– Não é disso que estou falando.

Enquanto Qhuinn tomava todo o espaço entre eles, Blay quis gritar. Mas que bem aquilo faria? Parecia que ele e Saxton chegaram ao mesmo beco sem saída no mesmo momento lamentável.

Seu amante o fitou por cima da bagagem.

– Acabei aquela missão para Wrath. É uma boa hora para terminarmos, para eu me mudar e encontrar outro emprego...

– Espere, quer dizer que está abandonando o Rei também? – Blay franziu o rosto. – Não importa como estejam as coisas entre nós, você precisa continuar trabalhando para ele. Isso é mais importante do que o nosso relacionamento.

O olhar de Saxton abaixou.

– Suspeito que isso seja mais fácil para você dizer.

– Não é verdade – rebateu Blay inflexível. – Deus, eu... sinto muito.

– Você não fez nada errado. Você tem que saber que não sinto raiva de você, nem amargura. Você sempre foi honesto, e eu sempre soube que terminaria assim entre nós. Eu só não sabia quando. Não sabia... até chegar ao fim. Que é agora.

Ai, droga.

Mesmo sabendo que Saxton estava certo, Blay sentiu uma necessidade compulsiva de lutar por ele.

– Preste atenção, tenho estado distraído na última semana, e eu sinto muito. Mas as coisas vão acabar se ajeitando, e você e eu vamos voltar ao normal...

– Eu te amo.

Blay fechou a boca de súbito.

– Por isso, veja – Saxton continuou rouco –, não foi você quem mudou. Fui eu... e eu sinto que as minhas emoções tolas nos distanciaram.

Blay se colocou de pé e avançou pelo carpete de bela textura até o outro macho.

Ao chegar ao seu destino, ficou aliviado a ponto de sentir lágrimas nos olhos por Saxton aceitar o seu abraço. Ao segurar o seu primeiro amante verdadeiro contra si, sentindo a diferença familiar em suas alturas e o perfume maravilhoso da sua colônia, uma parte dele queria discutir aquele rompimento até que os dois desistissem e continuassem tentando.

Mas não seria justo.

Como Saxton, ele tivera a vaga noção de que as coisas terminariam em algum momento. E, tal qual seu amante, também se surpreendia por ser agora.

O que, claro, não alterava o resultado.

Saxton recuou um passo.

– Nunca tive a intenção de me envolver emocionalmente.

– Desculpe... Eu sinto muito – merda, isso era tudo o que saía da sua boca. – Eu daria tudo para que fosse diferente. Eu queria... ser diferente.

– Eu sei – Saxton esticou a mão e resvalou-a na lateral do rosto dele. – Eu perdoo você... e você tem que se perdoar.

Ele não tinha certeza se poderia fazer isso; ainda mais agora, nesse momento, e como sempre, quando uma ligação emocional que não queria, e que não poderia mudar, mais uma vez o impedia de ter algo que desejava.

Qhuinn era uma tremenda maldição para ele, era isso o que o cara era.

Cerca de 25 quilômetros ao sul da montanha do complexo da Irmandade, Assail despertou em sua cama redonda na suíte principal da sua mansão às margens do Hudson. Acima dele, painéis espelhados cobriam o teto e seu corpo nu estava iluminado com o brilho suave das luzes instaladas ao redor da base do colchão. O quarto octogonal estava escuro fora isso, as cortinas fechadas, a noite escondida.

Ao pensar em todo o vidro da casa, sabia que muitos vampiros considerariam as acomodações inadequadas. Muitos evitariam a mansão por completo.

Risco demais durante o dia.

Assail, contudo, nunca se sentira preso a convenções, e o perigo inerente de morar numa construção com tanto acesso à luz era algo que podia ser administrado, e não evitado.

Levantando-se, foi para a escrivaninha, ligou o computador e acessou o sistema de segurança que monitorava não apenas a casa, mas toda a propriedade. Alertas soaram várias vezes nas primeiras horas do dia, avisos não de ataques iminentes, mas de algum tipo de atividade que fora detectado pelo programa de filtragem do sistema de segurança.

Na verdade, faltava-lhe a energia para se preocupar demais, um sinal indesejável de que precisava se alimentar...

Assail franziu o cenho ao receber o relatório.

Ora, se aquilo não era interessante.

E era exatamente por isso que ele instalara todo aquele equipamento.

Nas imagens produzidas pelas câmeras de trás, ele viu uma figura vestida com uma roupa camuflada de neve passeando em esquis de cross-country pelo meio da floresta, aproximando-se da casa pelo norte. Quem quer que fosse, permaneceu escondido entre os pinheiros grande parte do tempo, e vigiou a casa por diversos ângulos por aproximadamente dezenove minutos... antes de atravessar o limite de pinheiros a oeste, atravessando a propriedade vizinha, e descendo pelo gelo. Duzentos metros mais à frente, o homem parou, pegou os binóculos novamente, e encarou a casa de Assail. Depois, circundou a península que se projetava do rio, voltou a entrar na floresta e desapareceu.

Aproximando-se da tela, Assail repetiu a gravação, aumentando o zoom para identificar a expressão facial, se possível. Mas não foi. A cabeça estava coberta por uma máscara de esqui, com abertura apenas para os olhos, o nariz e a boca. Junto à parca e às calças de esqui, o homem estava coberto dos pés à cabeça.

Recostando-se, Assail sorriu para si mesmo, as presas formigando numa reação territorial.

Só existiam dois grupos que poderiam se interessar em suas atividades, e a julgar pela luz solar que reinara durante aquele reconhecimento, ficou claro que a curiosidade não se originara da Irmandade: Wrath jamais usaria humanos para qualquer outra coisa que não fosse uma fonte derradeira de alimentação, e nenhum vampiro suportaria aquela intensidade de luz solar sem se incendiar.

Restava, então, alguém do mundo humano. E só havia um homem com interesse e recursos para tentar atacar a ele e ao seu território.

– Entre – disse ele pouco antes de uma batida soar à porta.

Enquanto um par de machos entrava, ele não se deu ao trabalho de desviar a vista da tela do computador.

– Como dormiram?

Uma voz conhecida e grave respondeu:

– Como os mortos.

– Que bom para você. Mudança de fuso horário pode ser uma inconveniência, pelo que sei. A propósito, tivemos um visitante esta manhã.

Assail inclinou-se para um lado a fim de que seus dois associados vissem a filmagem.

Era estranho ter gente morando com ele, mas teria que se acostumar à presença deles. Quando chegara ao Novo Mundo, fora uma viagem solitária, e ele tivera a intenção de manter essa situação por inúmeros motivos. O sucesso no ramo escolhido, todavia, exigira que ele chamasse uma retaguarda – e as únicas pessoas nas quais poderia confiar parcialmente eram da família.

E aqueles dois ofereciam um benefício sem igual.

Seus dois primos eram uma raridade na espécie vampiresca: eram gêmeos idênticos. Quando totalmente vestidos, o único modo de distingui-los era por uma única pinta atrás do lóbulo da orelha; fora isso, desde as vozes até os olhos negros e desconfiados, incluindo os corpos musculosos, eram o reflexo perfeito um do outro.

– Vou sair – anunciou Assail. – Se o nosso visitante aparecer novamente, sejam hospitaleiros, sim?

Ehric, o mais velho por questão de minutos, olhou de relance, o rosto destacado pela iluminação da base da cama. Tanta maldade naquela bela combinação de feições... a ponto de alguém quase sentir pena do intruso.

– Será um prazer, eu garanto.

– Mantenha-o vivo.

– Claro.

– Essa é uma divisória um tanto sutil que vocês dois às vezes gostaram de apreciar.

– Confie em mim.

– Não é você quem me preocupa – Assail olhou para o outro. – Entendeu?

O gêmeo de Ehric permaneceu calado, apesar de concordar com a cabeça uma vez.

Era precisamente por essa reação contrariada que Assail preferiria ter mantido a sua vida nova simples. Mas era impossível estar em mais de um lugar ao mesmo tempo. E aquela violação de privacidade era a prova de que ele não poderia fazer tudo sozinho.

– Sabem como me encontrar – disse antes de dispensá-los do quarto.

Vinte minutos mais tarde, saiu da casa de banho tomado, vestido e atrás do volante do seu Range Rover blindado.

O centro da cidade de Caldwell à noite era belo de longe, especialmente ao passar pela ponte de acesso. Só depois que ele penetrou no sistema viário que o esgoto da cidade ficou evidente: os becos com neve suja acumulada, as latas de lixo transbordando e os humanos sem-teto descartados, meio congelados, contavam a triste verdade sobre a desprotegida municipalidade.

Seu local de trabalho, evidentemente.

Ao chegar à Galeria de Arte Benloise, estacionou nos fundos, em uma das vagas que era paralela à construção atrás do estabelecimento. Ao sair do carro, o vento frio açoitou o casaco de pelo de camelo e ele teve que segurar as duas pontas juntas ao atravessar a calçada, aproximando-se da porta de tamanho industrial.

Não teve que bater. Ricardo Benloise tinha muitas pessoas trabalhando para ele e nem todos eram do tipo que se associava aos negociantes das artes. Um macho humano do tamanho de um parque de diversões abriu a porta e ficou de lado.

– Ele o está aguardando?

– Não, não está.

Disneylândia assentiu.

– Quer esperar na galeria?

– Seria bom.

– Quer beber alguma coisa?

– Não, obrigado.

Ao atravessarem a parte do escritório e seguirem para o espaço de exibições, a deferência agora concedida a Assail era algo novo, merecido tanto pelos enormes pedidos de mercadoria que ele vinha fazendo quanto pelo sangue derramado de incontáveis humanos. Graças a ele, a taxa de suicídio entre os machos desprivilegiados entre os 18 e os 29 anos com registros criminais em drogas aumentou como nunca na cidade, chegando ao noticiário nacional.

Imagine só.

Enquanto âncoras de TV e repórteres tentavam entender essas tragédias, ele simplesmente continuava a expandir os negócios usando qualquer meio necessário. As mentes humanas eram tremendamente sugestionáveis; praticamente nenhum esforço era necessário para fazer com que os traficantes intermediários levassem as pistolas às têmporas e apertassem os gatilhos. E, do mesmo modo como a natureza abominava um vácuo, o mesmo acontecia com a demanda de suplementos químicos.

Assail tinha as drogas. Os viciados tinham o dinheiro.

O sistema econômico mais do que sobrevivia à reorganização forçada.

– Vou subir – disse o homem na porta camuflada – para avisar da sua chegada.

– Leve o tempo de que precisar.

Deixado só, Assail passeou pelo espaço aberto de teto alto, entrelaçando as mãos às costas. De vez em quando, parava para ver a “arte” pendurada nas paredes e nas divisórias e foi lembrado do motivo pelo qual os humanos deviam ser erradicados, preferencialmente com métodos lentos e dolorosos.

Pratos de papel usados colados a tábuas de compensados baratas recobertas com citações de comerciais de TV escritas à mão? Um autorretrato feito com creme dental? E igualmente ofensivas eram as placas enaltecedoras ao lado das porcarias declarando que aquela tolice era a nova onda do Expressionismo Americano.

Tamanha explicação sobre a cultura de tantas maneiras.

– Ele pode recebê-lo agora.

Assail sorriu para si mesmo e se virou.

– Quanta gentileza.

Ao passar pela porta escondida e subir até o terceiro andar, Assail não condenou seu fornecedor por ser desconfiado e querer mais informações a respeito do seu maior cliente. Afinal, num espaço muito curto de tempo, o tráfico de drogas da cidade fora remanejado, redefinido e controlado por um completo desconhecido.

Há que se respeitar a posição do homem.

Mas as investigações terminariam ali.

No topo das escadas, outros dois homenzarrões estavam diante da porta, tão sólidos quanto vigas de sustentação. Assim como o segurança do primeiro andar, logo abriram a porta e acenaram em sua direção respeitosamente.

Do lado oposto, Benloise estava sentado no fundo de uma sala estreita com janelas em um dos lados e apenas três peças de mobiliário: sua escrivaninha elevada, que não passava de uma prancha grossa de teca com um abajur moderno e um cinzeiro por cima; a cadeira dele, com um estilo moderno; e um segundo assento no lado oposto para apenas um visitante.

O homem em si era como o seu ambiente: limpo, oficioso e despojado em seu modo de pensar. Na verdade, ele provou que, por mais ilícito que fosse o tráfico de drogas, os princípios de gerenciamento e as habilidades interpessoais de um CEO importavam muito se você quisesse faturar milhões com isso e manter o dinheiro.

– Assail. Como vai? – o homem baixinho se levantou e esticou a mão. – É um prazer inesperado.

Assail atravessou a sala, apertou o que lhe foi estendido e não esperou pelo convite para se sentar.

– O que posso fazer por você? – perguntou Benloise ao voltar a se sentar.

Assail pegou um charuto cubano de dentro do bolso. Cortando a ponta, inclinou-se para frente e colocou a ponta desprezada sobre o tampo da mesa.

Enquanto Benloise franzia o cenho como se alguém tivesse defecado em sua cama, Assail sorriu o suficiente para exibir rapidamente suas presas.

– Trata-se do que eu posso fazer por você.

– Ah.

– Sempre fui um homem reservado, levando uma vida privada por livre escolha – guardou o cortador e pegou um isqueiro de ouro. Acendendo a chama, inclinou-se e tragou até o charuto sustentar a ponta queimada. – Contudo, mais importante do que isso, sou um homem de negócios envolvido num ramo perigoso. Dessa forma, considero qualquer invasão na minha propriedade ou intrusão no meu anonimato como um ato direto de agressão.

Benloise sorriu com suavidade e se recostou na cadeira em forma de trono.

– Respeito-o por isso, claro, todavia estou confuso quanto aos motivos de você sentir a necessidade de explicitar isso para mim.

– Você e eu entramos num relacionamento mutuamente benéfico, e é meu desejo continuar com essa associação – Assail bafejou o charuto, soltando uma nuvem de fumaça azul francês. – Portanto, quero lhe mostrar o devido respeito e deixar isso claro antes de agir, pois se eu descobrir qualquer pessoa na minha propriedade a quem eu não tenha convidado, eu não só o erradicarei, como também descobrirei a origem das investigações – e bafejou novamente – e farei o que for necessário para defender a minha privacidade. Estou sendo bem claro?

As sobrancelhas de Benloise se abaixaram, os olhos escuros se zangando.

– Estou? – murmurou Assail.

Havia, obviamente, apenas uma resposta. Levando-se em consideração que o humano desejava viver mais do que até aquele final de semana.

– Sabe, você me lembra o seu predecessor – Benloise disse num sotaque britânico. – Conheceu o Reverendo?

– Sim, frequentamos alguns dos mesmos círculos.

– Ele foi assassinado de modo bem violento. Cerca de um ano atrás, não? A boate dele foi explodida.

– Acidentes acontecem.

– Normalmente em casa, pelo que ouvi dizer.

– Algo de que deve sempre se lembrar.

Enquanto Assail sustentava aquele olhar, Benloise desviou o dele primeiro. Pigarreando, o maior importador de drogas da costa leste passou a palma da mão sobre o tampo lustroso da mesa, como se sentisse os veios da madeira.

– Os nossos negócios – disse Benloise – têm um delicado ecossistema que, por conta de toda a sua robustez financeira, deve ser mantido cuidadosamente. A estabilidade é rara e muito desejável para homens como você e eu.

– Concordo. E para que isso aconteça, pretendo retornar à conclusão da noite com o meu pagamento desse ínterim, conforme planejado. Como sempre, venho a você em boa fé, e não lhe dou motivos para duvidar das minhas intenções.

Benloise lhe ofereceu outro sorriso suave.

– Você faz parecer como se eu estivesse por trás – ele moveu a mão num gesto aleatório de dispensa no ar – do que quer que o tenha incomodado.

Inclinando-se para frente, Assail deixou o queixo cair e o encarou.

– Não estou incomodado. Ainda.

Uma das mãos de Benloise sub-repticiamente saiu do campo de visão. Uma fração de segundo depois, Assail ouviu a porta do outro lado do cômodo se abrir.

Mantendo a voz baixa, Assail disse:

– Isto foi uma cortesia para você. Da próxima vez que eu encontrar alguém na minha propriedade, quer você o tenha enviado ou não, não demonstrarei nem metade dessa educação.

Dito isso, levantou-se e enterrou o charuto no tampo da mesa.

– Desejo-lhe uma boa noite – disse antes de sair.


CAPÍTULO 14

Aquilo sim é que era começar tarde.

Enquanto Qhuinn se desmaterializava para longe da mansão, ele custava a acreditar que já fosse dez da noite e eles estavam apenas começando. Pensando bem, a Irmandade ficou enfiada no escritório de Wrath pelo que pareceu uma eternidade e quando ele e John, por fim, foram admitidos, o anúncio de V. de que a prova contra o Bando de Bastardos era concreta levou a mais uma bela meia hora de excomunhão de Xcor e dos comparsas.

Diferentes usos criativos para a palavra arregaçar, bem como excelentes sugestões de onde se enfiar objetos inanimados.

Ele jamais pensara em fazer aquilo com um rastelo, por exemplo. Divertido. Muito divertido.

E Blay perdera aquilo tudo.

Retomando forma numa área florestal a sudoeste do complexo, Qhuinn evitou pensar em que tipo de interferências o pudesse ter retardado, ainda que a verdade fosse que o lutador subira para o quarto e não voltara. E por mais que a maioria dos acidentes acontecesse em casa, seria um bom palpite deduzir que ele não escorregara e caíra.

A menos que Saxton estivesse brincando com o tapete no piso de mármore do banheiro.

Sentindo como se quisesse se estapear, vasculhou o cenário coberto de neve enquanto John, Rhage e Z. surgiam ao seu lado. As coordenadas daquela localização foram encontradas nos telefones dos ladrões de carro da noite anterior, a propriedade aparentemente abandonada cerca de quinze a vinte quilômetros além do local em que ele encontrara o Hummer roubado.

– Que diabos é isso?

Enquanto alguém falava, ele olhou por sobre o ombro. “Que diabos” estava certo: assomando-se atrás deles estava uma construção tão alta quanto um campanário de igreja e tão simples quanto uma lata de lixo reciclável.

– Hangar de aviões – anunciou Zsadist ao começar a andar naquela direção. – Só pode ser.

Qhuinn o seguiu, tomando a retaguarda caso alguém resolvesse fazer uma surpresa.

Do nada, Blay apareceu, todo coberto em couro e tão armado quanto o resto deles. Em reação, os pés de Qhuinn diminuíram de velocidade, depois pararam na neve, em boa parte porque não queria tropeçar e parecer um tolo.

Puxa, ele parecia bem sério. Haveria problemas no paraíso?

Ainda que não existisse nenhum contato visual entre eles, Qhuinn se sentiu compelido a dizer algo:

– O que...

Não concluiu a frase. Por que se importar? O cara passou por ele como se ele nem estivesse ali.

– Estou bem – murmurou Qhuinn, voltando a avançar pela neve compacta. – Obrigado por perguntar. Ah, está tendo problemas com Saxton? Mesmo? Que tal sairmos para tomar um drinque e conversar a respeito? É? Perfeito. Posso ser a sua menta pós-jantar e...

Ele interrompeu o monólogo fantasioso quando a brisa mudou de direção e seu nariz captou algo adocicado e desagradável.

Todos sacaram as armas e se concentraram no hangar.

– Estamos a favor do vento – observou Rhage –, portanto, a bagunça aí dentro deve ser incrível.

Os cinco se aproximaram da construção com cautela, espalhando-se e vasculhando o ambiente iluminado pelo luar à procura de algo que se movesse.

O hangar tinha duas entradas, uma bipartida e grande o bastante para deixar passar a envergadura de uma asa, e a outra supostamente para pessoas, que, em comparação, parecia do tamanho de uma Barbie. E Rhage tinha razão: apesar de o vento gélido os atingir pelas costas, o cheiro era forte o bastante para aguçar as narinas, e não no bom sentido.

Caramba, o frio costumava aplacar o fedor.

Comunicando-se por gestos, dividiram-se em dois grupos, com ele e John ficando num dos lados das portas duplas gigantes, e Rhage, Blay e Z. na entrada menor.

Rhage, como era de se esperar, tentou a maçaneta enquanto todos se preparavam para um confronto. Se houvesse o equivalente a um time de futebol de redutores ali, fazia sentido enviar o Irmão primeiro, porque ele tinha o tipo de retaguarda que ninguém tinha: a besta amava assassinos, e não no sentido de ter um relacionamento com eles.

Quem tinha falado em menta mesmo?

Hollywood levou a mão acima da cabeça. Três... dois... um...

O Irmão penetrou no silêncio absoluto, empurrando a porta e entrando sorrateiramente. Z. foi em seguida e Blay o acompanhou.

Qhuinn sentiu um segundo de puro terror quando o macho saltou para o desconhecido com nada além de um par de pistolas .40 para protegê-lo. Deus, a ideia de que Blay pudesse morrer naquela noite, bem na sua frente, naquela missão comum, fez com que ele quisesse parar com toda aquela tolice de defender a raça e transformar o lutador num bibliotecário. Ou modelo de mãos. Ou cabeleireiro...

O assobio que surgiu menos de sessenta segundos depois foi uma dádiva de Deus. O sinal de Z. de que estava tudo bem para que ele e John se reposicionassem, indo para a lateral da agora porta aberta e passando por...

Ok. Uau.

Falando em fedor. Nota máxima...

Os três que entraram antes ligaram as lanternas, e os fachos de luz cortaram o espaço cavernoso, atravessando a escuridão, iluminando o que a princípio não parecia ser nada além de uma camada de gelo negro. A não ser pelo fato de não ser preto e de não estar congelado. Era sangue humano engrossado – uns mil litros da coisa. Misturado com uma boa quantidade de Ômega.

O hangar foi o local de uma iniciação em massa, numa escala que tornava o que acontecia há um tempo naquela casa de campo nada mais do que uma brincadeira de criança.

– Acho que os garotos que você castigou estavam vindo para uma festa e tanto – comentou Rhage.

– Bem observado – murmurou Z.

Enquanto fachos de luz destacavam um velho e decrépito avião no fundo, e absolutamente nada mais, Z. balançou a cabeça.

– Vamos vasculhar o exterior. Não há nada aqui.

Visto que o chalé não prometia muito pelo lado de fora, apenas uma típica cabana de caçador/pescador no meio da floresta, o Sr. C. sentiu-se tentado a ignorar a maldita coisa. A perfeição tinha as suas virtudes, contudo, e a localização do chalé, cerca de uns dois ou três quilômetros para dentro daquele pedaço de terra, sugeria que ele podia ter sido usado como um quartel-general a certa altura.

Levando-se tudo em consideração, teria sido mais inteligente verificar a propriedade antes de ele ter usado o hangar para a maior iniciação da história da Sociedade Redutora. Mas as prioridades se apresentaram daquele modo. Primeiro, ele teve que se colocar no controle; segundo, de justificar a promoção; e terceiro, de lidar com todos aqueles novos redutores.

E isso significava que ele precisava de recursos. Rápido.

Seguindo a cerimônia grande e suja de Ômega, e o período nauseante que durou algumas horas depois, o Sr. C. ordenara que os novos recrutas subissem num ônibus escolar que ele roubara de uma loja de veículos usados uma semana antes. Devido à exaustão e ao desconforto físico em que se encontravam, portaram-se como garotinhos obedientes, entrando e sentando-se dois a dois como se estivessem numa porra de uma Arca de Noé.

Dali, ele mesmo dirigira (por não confiar esse tipo de bem a qualquer um) para a Escola para Garotas de Brownswick. A extinta escola preparatória ficava no subúrbio em 35 acres de propriedades ignoradas, dilapidadas e cobertas de mato, e os boatos de ser assombrada mantinham afastadas as pessoas normais.

Por enquanto, a Sociedade Redutora estava desabrigada, mas a placa “Vende-se” na curva perto da estrada significava que ele poderia dar um jeito nisso. Tão logo arranjasse algum dinheiro.

Com os rapazes terminando de se recuperar na escola, e os assassinos atuais no centro à procura da Irmandade, ele estava por conta catalogando as poucas propriedades restantes da Sociedade – inclusive aquele pedaço praticamente deserto de floresta ao norte da cidade.

Embora começasse a acreditar que estivesse perdendo tempo.

Subindo na varanda do chalé, iluminou o interior com uma lanterna. Fogão antigo. Mesa de madeira tosca com duas cadeiras. Três camas sem colchão, nem lençóis. Quitinete.

Dando a volta para os fundos, ele encontrou um gerador sem combustível e um tanque de diesel enferrujado, o que sugeria que o lugar teve algum tipo de aquecimento em alguma época.

Voltando para a frente, tentou a porta e descobriu-a trancada.

Não fazia diferença. Não havia muita coisa ali.

Pegando um mapa de dentro da jaqueta de aviador, desdobrou-o e encontrou sua localização. Verificando o quadradinho, pegou a bússola, ajustou a direção e começou a caminhar para o noroeste.

De acordo com aquele mapa, que ele havia encontrado no antro de drogas do Redutor Principal, aquele pedaço de propriedade totalizava cinco acres e tinha esse tipo de chalé espalhado em intervalos randômicos. Ele imaginava que o lugar devia ter sido algum tipo de acampamento com proprietários múltiplos, um tipo de reserva de caça moderna que se perdera para a carga tributária do Estado de Nova York e depois comprada pela Sociedade nos anos oitenta.

Pelo menos era isso o que estava escrito à mão no canto, embora só Deus soubesse se a Sociedade ainda era a proprietária daquilo. Considerando-se a situação financeira da organização, o bom e velho Estado de Nova York poderia bem ter o penhor da propriedade a esta altura, ou até mesmo tê-la reempossado.

Ele parou e verificou a bússola novamente. Caramba, sendo urbano, ele detestava vagar pela floresta à noite, superando a neve com dificuldade, verificando aquele tipo de merda como se fosse algum tipo de guarda florestal. Mas ele tinha de ver com seus próprios olhos aquilo com que tinha que trabalhar, e só havia um modo de fazer isso.

Ao menos tinha um fluxo de receita preparado.

Nas próximas 24 horas, quando aqueles garotos estivessem finalmente de pé, ele voltaria a preencher os cofres. Aquele era o primeiro passo rumo à recuperação.

Passo número dois?

A dominação do mundo.


CAPÍTULO 15

Ela estava sangrando.

Quando Layla olhou para o papel higiênico na mão, a mancha vermelha em todo aquele branco era o equivalente visual de um grito.

Esticando a mão para trás, deu a descarga, e teve que usar a parede para se equilibrar ao se levantar. Com uma mão no baixo ventre e a outra sobre a bancada da pia e depois na maçaneta, ela tropicou para o quarto e foi direto para o telefone.

Seu primeiro instinto foi ligar para a doutora Jane, mas decidiu não fazer isso. Concluindo que estava sofrendo um aborto espontâneo, existia a possibilidade de poupar Qhuinn da ira do Primale. Desde que ela deixasse aquilo debaixo dos panos. E usar a clínica geral da Irmandade provavelmente não seria o melhor modo de assegurar privacidade.

Afinal, só havia um motivo para uma fêmea sangrar. E perguntas a respeito do seu cio e de como ela lidara com isso inevitavelmente se seguiriam.

Na mesinha de cabeceira, ela abriu uma gaveta e retirou um caderninho preto. Encontrando o número da clínica da raça, ela discou com mãos trêmulas.

Quando desligou pouco depois, tinha um horário marcado para dali a trinta minutos.

Mas como sairia dali? Não poderia se desmaterializar, estava ansiosa demais e, de qualquer modo, fêmeas grávidas eram desencorajadas a fazer isso. E ela também não se sentia forte o bastante para dirigir até lá. As aulas de Qhuinn foram bem abrangentes, mas ela não conseguia se imaginar, em seu estado, pegando a autoestrada e tentando acompanhar o fluxo do tráfego humano.

Fritz Perlmutter era a sua única resposta.

Indo até o armário, pegou uma camisola macia, torceu-a numa corda espessa e colocou-a entre as pernas com a ajuda de diversos pares de calcinha. A solução para o seu problema de sangramento mostrou-se incrivelmente volumosa e dificultou o andar, mas esse era o menor dos seus problemas.

Um telefonema para a cozinha garantiu que o mordomo a levaria.

Agora ela só precisava descer as escadas, sair pelo vestíbulo e entrar inteira no enorme sedã. Tudo isso sem se deparar com nenhum macho da casa.

Bem quando estava para sair do quarto, viu seu reflexo no espelho na parede. O manto branco e seu penteado formal anunciavam seu status de Escolhida como nenhuma outra coisa. Ninguém além das fêmeas sagradas da Virgem Escriba da espécie se vestia daquela forma.

Mesmo se aparecesse sob o nome fictício que fornecera à recepcionista, todos adivinhariam sua afiliação sobrenatural.

Tirando o manto, tentou entrar num par de calças de ioga, mas o enchimento que ajustara em si impossibilitou isso. E os jeans que ela e Qhuinn compraram juntos também não estavam dando certo.

Tirando a camisola, ela usou papel higiênico do banheiro para lidar com o problema e conseguiu entrar nos jeans. Um suéter pesado a esquentaria e uma bela escovada nos cabelos e um rabo de cavalo faria com que ela parecesse... quase normal.

Saindo do quarto, ela segurou o tal do celular que Qhuinn lhe dera. Passou pela sua cabeça telefonar para ele, mas, na verdade, o que diria? Ele tinha tanto controle sobre aquele processo quanto ela...

Ah, santa Virgem Escriba, ela estava perdendo o bebê.

O pensamento lhe ocorreu bem quando ela chegou ao topo da escadaria principal. Ela estava perdendo o bebê deles. Naquele instante. Ali do lado de fora do escritório do Rei.

De repente, o teto caiu sobre a sua cabeça e as paredes do vestíbulo grande e espaçoso a apertaram tanto que ela não conseguia respirar.

– Sua Graça?

Estremecendo, ela olhou para baixo para a passadeira vermelha. Fritz estava ao pé das escadas, vestido em seu costumeiro uniforme, e sua adorável e anciã expressão carregada de preocupação.

– Sua Graça, vamos agora? – perguntou ele.

Quando ela assentiu e desceu com cuidado, não conseguia crer que tudo aquilo fora para nada, todas aquelas horas de esforço com Qhuinn... os gélidos momentos seguintes nos quais ela não conseguia se mover... a espera e antecipação de uma esperança quieta e traiçoeira.

O fato de ter cedido o presente de sua virgindade a troco de nada.

Qhuinn sofreria tanto, e o fracasso que ela impingiria a ele só aumentava imensamente o seu próprio sofrimento. Ele sacrificara o corpo durante o cio dela, o desejo dele de ter um laço de sangue incitando-o a fazer algo que ele não teria, de outro modo, escolhido fazer.

O fato de a biologia ter suas vontades não a aliviava.

A perda... ainda parecia ser culpa sua.

Tomar outra dose para acabar com a ressaca.

Saxton acreditava que esse adágio era grosseiro, no entanto, verdadeiro.

Parado nu diante do espelho do banheiro, abaixou o secador e passou os dedos pelos cabelos. As ondas se assentaram em seu estado normal, os fios loiros encontrando uma disposição perfeita para complementar o rosto quadrado e equilibrado.

A imagem que ele via era exatamente aquela da noite anterior, e da anterior àquela, contudo, por mais familiar que seu reflexo fosse, ele se sentia como se pertencesse a uma pessoa diferente, à parte.

Seu corpo mudara tanto por dentro, parecia bem razoável deduzir que a transformação se ecoaria na aparência. Deus, não era assim!

Virando e saindo para o closet, imaginou que não deveria se surpreender, tanto pelo seu íntimo perturbado quanto pelo seu exterior de falsa compostura.

Depois que ele e Blay conversaram, ele precisou de uma hora para tirar tudo do quarto em que ficara com o antigo amante e voltar para a suíte no fim do corredor. Ele recebera aquelas acomodações quando fora morar na mansão, porém, conforme as coisas progrediram com Blay, seus pertences gradualmente migraram para o outro quarto.

Esse processo migratório fora crescente, assim como o seu amor: um caso de uma camisa aqui e um par de sapatos acolá, uma escova de cabelos uma noite e meias na seguinte... uma conversa de valores partilhados seguida por uma maratona de sete horas de sexo acompanhada por um pote de sorvete de café Breyers com apenas uma colher.

Ele não percebera a distância transposta pelo seu coração, do mesmo modo como um andarilho se vê perdido em meio à selva. Contudo, quinze quilômetros e um determinado número de bifurcações em seu caminho mais tarde e não havia como voltar. Àquela altura, não restava alternativa a não ser organizar seus recursos para construir um abrigo e criar raízes novas.

Ele deduzira que construiria seu novo espaço pessoal com Blay.

Sim, deduzira. Afinal, por quanto tempo poderia sobreviver um amor não correspondido? Como o fogo precisa de oxigênio para queimar, assim é com as emoções.

Não no que se referia a Qhuinn, ao que tudo levava a crer. Não para Blay.

Saxton estava decidido a não sair da mansão real, porém. Quanto a isso, Blay tinha razão: Wrath, o Rei, precisava dele, e, mais do que isso, ele gostava do seu trabalho ali. Era ágil, desafiador... e a parte egoísta que havia dentro de si queria ser o advogado que reformaria a lei da maneira correta.

Deduzindo-se que o trono não seria tomado e que ele não fosse decapitado num novo regime.

Mas não se podia viver preocupado com coisas como essa.

Pegando um terno de xadrez escocês do closet, escolheu uma camisa e um colete e estendeu tudo sobre a cama.

Era um clichê triste, bem desestimulante, sair para procurar algo núbil e espiritual para aplacar a dor, mas ele preferia ter um orgasmo a se embriagar. Além disso, o “finja até encontrar um propósito novamente” parecia dar certo.

E parecia especialmente verdadeiro quando ele se olhou arrumado no espelho de corpo inteiro do banheiro, e isso ajudava.

Antes de sair, verificou o celular novamente. As Leis Antigas foram remodeladas seguindo as ordens de Wrath, e agora ele estava de prontidão, à espera da nova tarefa.

Deduziu que logo descobriria o que seria.

Wrath era notoriamente exigente, mas nunca irracional.

Nesse ínterim, ele afogaria sua tristeza no único tipo de “loira gelada” que o apetecia... algo com vinte e poucos anos, lá pelos seus um e oitenta de altura, atlético...

E preferivelmente moreno. Ou loiro.


CAPÍTULO 16

– Alguém já passou por aqui.

Enquanto Rhage falava, Qhuinn pegou sua lanterna de bolso e apontou o discreto facho de luz para o chão. E lá estavam pegadas na neve fresca, sem nenhuma cobertura de flocos... que partiam diretamente para a clareira da floresta. Desligando a luz, ele se concentrou no chalé de caça mais à frente que parecia estar abandonado ao clima frio: nenhuma fumaça subindo pela chaminé, nenhuma iluminação interna e, mais importante, nenhum rastro de cheiro.

Os cinco se aproximaram, circundando a clareira e se movimentando sorrateiramente num ângulo amplo. Como não houve nenhuma ação defensiva de parte alguma, todos subiram na varanda e espiaram o interior pelas janelas estreitas.

– Nada – murmurou Rhage ao ir para a porta.

Uma tentativa rápida na maçaneta. Fechada.

Com um empurrão, o Irmão esmagou o ombro imenso contra o batente e mandou a coisa pelos ares, fragmentos da tranca caindo espalhados bem como lascas de madeira.

– Olá, querida, cheguei – gritou Hollywood ao marchar para dentro.

Qhuinn e John seguiram o protocolo e ficaram na varanda enquanto Blay e Z. entravam e vasculhavam.

A floresta estava quieta ao redor deles, mas seus olhos aguçados acompanharam aquelas pegadas... que, depois de uma passeada pelo chalé, seguiam para o noroeste.

Por certo era indício de que alguém estava ali com eles, vasculhando a propriedade ao mesmo tempo.

Humano? Redutor?

Ele acreditava mais na última opção, devido a toda aquela bagunça no hangar, e também por aquele lugar ser remoto e relativamente seguro por conta disso.

Ainda que houvessem de querer trazer a Stanley Steemer* para aquela construção para uma bela limpeza antes.

A voz de Blay surgiu através da porta aberta.

– Achei uma coisa.

Qhuinn teve que recorrer a todo o seu treinamento a fim de não parar de inspecionar o cenário e olhar para dentro. Não porque ele se importasse particularmente com o que fora encontrado. Durante todo aquele processo, ele vinha checando Blay constantemente, só para ver se o humor dele mudara.

Se mudara, fora para pior.

Vozes baixas se fizeram ouvir dentro do chalé, e depois os três emergiram.

– Encontramos uma caixa trancada a chave – anunciou Rhage ao baixar o zíper da jaqueta e enfiar o contêiner longo e estreito de metal junto ao peito. – Abriremos mais tarde. Primeiro, vamos encontrar o dono dessas botas, rapazes.

Desmaterializando-se rapidamente a cada quinze ou vinte metros, eles se espalharam pelas árvores, rastreando as pegadas na neve, seguindo em silêncio.

Depararam-se com o redutor um quilômetro adiante.

O assassino solitário marchava pela floresta coberta de neve num passo que somente um humano com treinamento olímpico teria conseguido sustentar por algumas centenas de metros. As roupas eram escuras, havia uma mochila nas costas e o fato de ele estar se movimentando apenas com a própria visão eram indicadores de que se tratava do inimigo: a maioria dos Homo sapiens não conseguiria se mover com aquela rapidez com tão pouca iluminação sem a ajuda de uma luz artificial.

Gesticulando em código, Rhage orientou o grupo a fazer uma formação de triângulo reverso que dava a volta ao redor do rastro do redutor. Continuando a avançar junto a ele, observaram-no por uma área mais ou menos do tamanho de um campo de futebol e, em seguida, todos de uma vez aproximaram-se, circundando o assassino, e bloquearam-no em pontos cardinais opostos na mira das armas.

O redutor parou de andar.

Ele era um recruta mais jovem, o cabelo escuro e a pele oliva sugeriam que tivesse descendência mexicana ou italiana, e mereceu pontos por não demonstrar medo. Mesmo tendo caído numa cilada, ele só olhou tranquilamente por sobre o ombro, como que para confirmar que, de fato, fora emboscado.

– Como tem passado? – Rhage perguntou com a fala arrastada.

O redutor não se deu ao trabalho de responder, o que era o oposto do que vinham presenciando nos últimos tempos. Diferentemente dos outros, aquele não era um garotinho metido a esperto cheio de falatório. Calmo, perspicaz... Controlado, ele era o tipo de inimigo que melhorava o seu desempenho no trabalho.

Não exatamente algo ruim...

E, como era de se esperar, a mão dele desapareceu para dentro do casaco.

– Não seja idiota, cara – exclamou Qhuinn, preparado para meter uma bala no bastardo sem nenhum aviso adicional.

O redutor não deteve o movimento.

Tudo bem.

Ele apertou o maldito gatilho e derrubou o merdinha.

No segundo em que o redutor caiu na neve, Blay ficou imobilizado com a arma ainda apontada. Os outros fizeram o mesmo.

Segundos silenciosos se passaram, eles continuaram a encarar o assassino caído. Nenhum movimento. Nenhuma reação da área periférica. Qhuinn o incapacitara, e ele parecia estar trabalhando sozinho.

Engraçado, mesmo se Blay não tivesse ouvido o tiro à esquerda do seu ouvido, ele teria sabido que o atirador fora Qhuinn: qualquer outro teria dado ao inimigo outra chance para reconsiderar.

O sinal para que se aproximasse foi o assobio de Rhage. Os cinco se moveram como uma matilha de lobos ao redor de sua presa, rápidos e confiantes, cruzando a neve com as armas erguidas. O assassino permaneceu absolutamente imóvel, mas não houvera uma morte na família, por assim dizer. Para isso, seria preciso que uma adaga de aço lhe atravessasse o peito.

Porém, aquele era o estado desejável. Queriam que ele fosse capaz de falar.

Ou, pelo menos, que estivesse em condições de ser forçado a falar...

Mais tarde, quando repassou o que aconteceu em seguida... quando sua mente ardeu obsessivamente a respeito dos fatos... quando ficou acordado tentando entender como as peças se encaixaram na esperança de adivinhar uma mudança de procedimento que garantisse que algo semelhante nunca mais acontecesse... Blay se demoraria naquela mudança de eventos.

Aquele leve tremor no braço. Apenas uma contração muscular aparentemente desconectada de qualquer pensamento consciente ou vontade. Nada perigoso. Nenhum sinal do que estava por vir.

Apenas uma contração.

A não ser pelo fato de que, com um movimento mais rápido que um piscar de olhos, o assassino sacou uma arma sabe-se lá de onde. Foi sem precedentes. Num segundo ele estava como morto no chão; no seguinte, estava atirando de modo controlado num raio amplo.

E mesmo antes de os sons dos tiros pararem, Blay percebeu a imagem horripilante de Zsadist levando chumbo bem no coração, um impacto tão forte que foi capaz de deter o avanço do Irmão, o torso catapultando para trás, os braços se abrindo enquanto ele caía no chão.

No mesmo instante, a dinâmica mudou. Ninguém mais queria interrogar o maldito.

Quatro adagas foram desembainhadas. Quatro corpos se adiantaram. Quatro braços talharam com lâminas afiadas e frias. Quatro impactos, um após o outro.

Tarde demais, porém.

O assassino desaparecera bem diante deles, as armas golpeando a neve manchada onde o inimigo estivera deitado, em vez de atingirem uma cavidade torácica vazia.

Que seja. Haveria tempo para se perguntarem quanto ao desaparecimento improcedente mais tarde. No momento, eles tinham um soldado caído.

Rhage praticamente se lançou sobre o Irmão, colocando o corpo diante de tudo e todos.

– Z.? Z.? Ai, mãe da raça...

Blay sacou o telefone e discou. Quando Manny Manello atendeu, não havia tempo a perder.

– Temos um Irmão ferido. Tiro no peito...

– Espere!

A voz de Z. foi uma surpresa. Assim como o braço do Irmão levantando e empurrando Rhage para o lado.

– Saia de cima de mim!

– Mas estou tentando fazer ressuscitação cardio...

– Prefiro morrer antes de beijar você, Hollywood – Z. tentou se sentar, estava com a respiração pesada. – Nem pense nisso.

– Alô? – a voz de Manello disse ao telefone. – Blay?

– Espere...

Qhuinn se ajoelhou perto de Zsadist, e apesar do fato de o Irmão não gostar de ser tocado, segurou-o por debaixo do braço e ajudou o macho a suspender o torso do chão.

– Estou com a clínica na linha – disse Blay. – Qual o seu estado?

Em resposta, Z. levou a mão até a bainha da adaga e a puxou. Depois, abaixou o zíper da jaqueta de couro e rasgou a camiseta ao meio.

Para revelar o mais lindo colete à prova de balas que Blay jamais vira.

Rhage se curvou em sinal de alívio, a ponto de Qhuinn ter que segurá-lo com a mão livre para que o cara também não caísse no chão.

– Kevlar – Blay murmurou para Manello. – Ah, graças a Deus, ele está usando um Kevlar.

– Que ótimo, mas escute, preciso que você tire o colete e verifique se ele deteve a bala, ok?

– Entendido – olhou de relance para John, contente em ver que ele estava de pé, com as duas armas adiante, os olhos vasculhando o ambiente enquanto o resto deles avaliava a situação. – Vou cuidar disso.

Blay se aproximou e se agachou na frente do Irmão. Qhuinn podia ter tido a coragem de fazer contato com Zsadist, mas ele não faria isso sem permissão expressa.

– O doutor Manello quer saber se você pode tirar o colete para que possamos ver se existe algum ferimento.

Z. moveu os braços e depois franziu o cenho. Tentou novamente. Depois da terceira tentativa, o Irmão conseguiu levantar as mãos até as tiras de velcro, mas elas não conseguiam fazer muita coisa.

Blay engoliu com força.

– Posso cuidar disso? Prometo não tocar em você o quanto for possível.

Ótima gramática ali. Mas ele falava sério.

Os olhos de Z. se levantaram para ele. Estavam negros de dor, e não amarelos.

– Faça o que tem que fazer, filho. Vou aguentar.

O Irmão desviou o olhar, o rosto contraído numa careta, a cicatriz que formava o S do alto do nariz até o canto da boca destacando-se num relevo alto.

Com um sermão severo, Blay ordenou às suas mãos que ficassem firmes, e a mensagem de algum modo foi levada adiante: ele puxou as tiras que o prendiam nos ombros, o barulho mais alto do que o grito em sua cabeça, e depois retirou o colete, aterrorizado pelo que descobriria.

Havia uma grande marca redonda bem no meio do peito musculoso de Z. Bem onde ficava o coração.

Mas era apenas um hematoma. Não um buraco.

Apenas um hematoma.

– Somente ferimento superficial – Blay afundou o dedo no preenchimento denso do colete e encontrou a bala. – Estou sentindo a bala dentro do colete.

– Então por que não consigo mexer meu...

O cheiro de sangue fresco do Irmão pareceu atingir todos os narizes ao mesmo tempo. Alguém praguejou, e Blay se inclinou.

– Você também foi alvejado debaixo do braço.

– É ruim? – Z. perguntou.

Pelo telefone, Manello disse:

– Dê uma olhada e veja o que consegue descobrir.

Blay suspendeu o braço pesado e iluminou a parte interna com uma lanterna de bolso. Aparentemente, uma bala entrara no torso pela pequena parte desprotegida nas axilas – um tiro em um milhão que se você tentasse recriar, não conseguiria repetir.

Merda.

– Não vejo o buraco da saída. É bem na lateral das costelas, no alto.

– Ele está respirando bem? – perguntou Manello.

– Com dificuldade, mas regular.

– Reanimação cardiorrespiratória foi administrada?

– Ele ameaçou castrar Hollywood se houvesse qualquer contato labial.

– Escute aqui, deixe eu me desmaterializar – Z. tossiu um pouco. – Me dê um pouco de espaço...

Todos ofereceram uma variedade de opiniões a essa altura, mas Zsadist não aceitou nenhuma delas. Empurrando-os, o Irmão fechou os olhos e...

Blay soube que estavam com problemas sérios quando nada aconteceu. Sim, Zsadist não fora morto, e estava muito melhor do que estaria se estivesse sem o colete. Mas não conseguia se movimentar – e eles estavam no meio do nada, tão floresta adentro que mesmo que chamassem por reforços, ninguém conseguiria levar um carro até quilômetros de onde estavam.

E o pior? Blay tinha a sensação de que o assassino que derrubaram era algo consideravelmente pior do que um redutor qualquer.

Não havia como saber quando os reforços chegariam.

O som de uma mensagem de texto chegando ao celular de um deles soou, e Rhage a leu.

– Merda. Os outros estão presos no centro da cidade. Teremos que cuidar disso sozinhos.

– Maldição – Zsadist murmurou entredentes.

Sim. A situação era mais ou menos essa.

* Empresa americana especializada em limpeza residencial usando máquina a vapor. (N.T.)


CAPÍTULO 17

Xcor não esperara aquilo.

Enquanto ele e seus soldados se materializavam na localização da alimentação comunal arranjada, ele esperara uma propriedade decaída ou, quem sabe, à beira da condenação, um lugar num estado tão deplorável que uma fêmea seria forçada a vender suas veias e seu sexo para sobreviver.

Nada disso.

A propriedade alcançava os padrões da glymera, a imensa mansão no alto da colina se destacava em sua iluminação, os jardins impecavelmente bem podados, o chalé menor da criadagem perto dos portões em perfeito estado apesar da idade óbvia.

Talvez ela fosse uma prima distante de alguém de linhagem mais importante?

– Quem é essa fêmea? – ele perguntou a Throe.

Seu tenente deu de ombros.

– Não sei nada de sua família. Mas verifiquei a filiação dela com uma linhagem de valor.

Ao redor deles, os soldados estavam ansiosos, os coturnos de combate socando a neve compacta aos seus pés enquanto andavam no mesmo lugar, a respiração escapando dos narizes como se eles fossem cavalos de corrida prestes a explodirem para fora dos portões da pista.

– Há que se perguntar se ela sabe para o que se ofereceu – murmurou Xcor, nem um pouco preocupado se a fêmea sabia ou não.

– Vamos? – perguntou Throe.

– Sim, antes que os outros se descontrolem e invadam aquele chalé dela.

Throe se desmaterializou até a porta singular, com seu topo arqueado e com uma lamparina que se esperaria ver do lado de fora de uma casa de bonecas. Porém, seu braço direito não foi persuadido pelo charme. A iluminação acima de sua cabeça logo foi cortada, certamente ao comando de Throe, e a batida à porta do soldado foi rápida e severa, uma exigência, não um pedido.

Momentos depois, a porta se abriu. A luz de uma lareira escapou para a noite, o brilho dourado das labaredas tão intenso que sugeria que elas conseguiriam derreter a camada de neve – e bem no meio daquela iluminação adorável, a figura de uma fêmea destacava uma silhueta escura e curvilínea.

Ela estava nua. E o cheiro que foi carregado pela brisa gélida indicava que ela estava pronta.

Zypher rosnou baixinho.

– Contenha-se – exigiu Xcor. – Não deixe que a sua avidez seja usada como uma arma contra nós.

Throe falou com ela e depois enfiou a mão no bolso para pegar o dinheiro. A fêmea aceitou o que lhe foi dado e depois esticou um braço no batente, angulando o corpo de modo a fazer com que um seio farto fosse iluminado por aquele brilho suave.

Throe olhou de relance sobre o ombro e acenou com a cabeça.

Os outros não esperaram por um segundo convite. Os lutadores de Xcor convergiram para a entrada, os corpos másculos tão grandes e tão numerosos, que a fêmea logo ficou invisível.

Praguejando, ele também se aproximou andando.

Zypher naturalmente foi o primeiro, tomando-a nos lábios e apalpando os seios, mas ele não foi o único. Os três primos brigaram por suas posições, um indo para trás e arqueando os quadris, como se estivesse esfregando o pau contra o traseiro dela, os outros dois alcançando os mamilos e o sexo dela, as mãos serpenteando conforme ela foi envolvida.

Throe falou acima dos gemidos crescentes.

– Vou montar guarda do lado de fora.

Xcor abriu a boca para ordenar o contrário, e depois percebeu que pareceria como se ele estivesse evitando a cena, e isso dificilmente seria algo másculo.

– Faça isso – murmurou. – Monto guarda no interior.

Seus machos pegaram a fêmea, as mãos das adagas segurando-a pelos braços, coxas e cintura, e, em conjunto, carregaram-na para o interior aconchegante do chalé. Foi Xcor quem fechou a porta e se certificou de que não havia nenhuma tranca para confiná-los. Também foi ele quem vasculhou o interior do chalé. Enquanto seus bastardos carregavam seu alimento para a frente da lareira, onde um tapete de peles recobria o chão, ele se inclinou em uma janela fechada, levantou a cortina e verificou os vitrôs. Antigos e chumbados, com suportes de madeira, não de aço.

Nada seguros. Ótimo.


– Alguém entre em mim – a fêmea gemeu numa voz profunda.

Xcor não se preocupou em ver se a obedeceram ou não, ainda que o gemido ofegante sugerisse que o fora. Em vez disso, olhou ao redor, procurando outras portas e lugares nos quais uma emboscada poderia ser armada. Aparentemente, não existia nenhum. O chalé não tinha um segundo andar, o esqueleto do teto formava um arco acima da sua cabeça e só havia um banheiro pequeno, cuja porta estava entreaberta e a luz acesa revelava um pé em forma de garra da banheira e uma pia em estilo antigo. A cozinha aberta não passava de uma bancada com alguns poucos eletrodomésticos modestos.

Xcor olhou para a ação. A fêmea estava deitada de costas, com os braços abertos formando um T, o pescoço exposto, as pernas escancaradas. Zypher montara nela e a penetrava ritmadamente, fazendo com que a cabeça subisse e descesse no tapete branco fofo enquanto ela absorvia os impactos. Dois dos primos se agarraram aos seus pulsos, e o terceiro tirara o pênis para fora e a fodia na boca. Na verdade, havia pouco dela que não estivesse coberto por machos vampiros, e seu êxtase por estar sendo usada era óbvio não somente aos olhos, mas também aos ouvidos: ao redor da ereção que entrava e saía dos lábios abundantes, a respiração pesada e os gemidos eróticos escapavam para a atmosfera carregada de sexo.

Xcor caminhou até a bancada da cozinha. Não havia nada ali, nenhum resto de comida, nenhum copo abandonado meio cheio. Havia pratos nos armários, contudo, e quando ele abriu a grande geladeira de estilo europeu, garrafas de vinho branco estavam organizadas horizontalmente nas prateleiras.

Uma imprecação masculina atraiu seu olhar para a diversão. Zypher estava gozando, os corpos se arqueando para frente enquanto a cabeça pendia para trás e, em meio ao seu orgasmo, um dos primos o afastava, assumindo seu posto, levantando os quadris da fêmea e se afundando no sexo rosado e molhado. Pelo menos Zypher parecia completamente satisfeito de trocar de lugar; ele expôs as presas, afundou a cabeça debaixo do peito agora arfante do seu camarada e beliscou o seio da fêmea para poder se alimentar perto do mamilo.

Aquele que estava na boca também gozou, e ela sorveu todo o sêmen, sugando a cabeça do pênis do lutador, soltando-a em seguida e lambendo os lábios úmidos como se ainda estivesse com fome. Alguém logo a atendeu, outra ereção bombeando seus lábios, os ritmos contrários das investidas do que acontecia em sua cabeça e entre as pernas balançando-a para frente e para trás num modo que ela parecia apreciar.

Xcor voltou a verificar o banheiro, mas sua primeira avaliação estava correta: não havia onde se esconder naquele confinamento diminuto.

Tendo garantido o interior, ele não pensou em nada mais para fazer a não ser se recostar num canto que lhe oferecia a melhor visão de acesso e testemunhar a refeição. Conforme as coisas se intensificaram, seus lutadores perderam a aparente civilização que tinham, trocando de posição como leões sobre carniça fresca, as presas se revelando, os olhos selvagens de agressão enquanto eles lutavam por suas posições. No entanto, eles não perderam completamente as cabeças. Cuidaram da fêmea.

Não demorou e alguém cortou a própria veia, aproximando-a dos lábios dela.

Xcor baixou o olhar para as botas e permitiu que sua visão periférica monitorasse o ambiente.

Houve uma época em que se excitaria com aquilo. E não por se interessar particularmente pelo sexo, mas do mesmo modo como seu estômago roncava quando via comida. Dessa forma, no passado, quando sentia a necessidade de tomar uma fêmea, era o que teria feito. Normalmente no escuro, claro, para que a pobre garota não sentisse nem repulsa nem medo.

Ele bem podia imaginar que as expressões de excitação que os machos exibiam em seus rompantes eróticos pouco melhoraram sua aparência.

Mas agora? De maneira curiosa, sentia-se desligado de tudo aquilo, como se estivesse assistindo os machos carregando mobília de um lado para o outro ou, quem sabe, limpando as folhas em um jardim.

O motivo era a sua Escolhida, claro.

Tendo tido os lábios pressionados contra a pele pura, tendo olhando dentro dos olhos verdes luminosos, tendo sentido o perfume delicado dela, ele estava completamente desinteressado pelos charmes bem utilizados daquela fêmea diante da lareira.

Ah, a sua Escolhida... ele jamais soube que tal graça existisse e, além disso, não teria como imaginar que se sentiria tão completamente tocado por aquilo que era tão antitético para ele. Ela era o seu oposto, gentil e generosa, enquanto ele era brutal e impiedoso, bela para a sua feiura, etérea para a sua depravação.

E ela o marcara. Do mesmo modo como se o tivesse golpeado e deixado uma cicatriz em sua carne, ele estava ferido e enfraquecido por ela.

Não havia nada a ser feito.

Deus, mesmo as lembranças dos momentos que partilhara com ela, quando estivera completamente vestida, e ele, tão gravemente ferido, bastavam para excitá-lo, seu pobre sexo endurecendo por nenhum motivo aparente: mesmo que não estivessem em lados opostos na guerra pelo trono, ela jamais permitiria que ele a abordasse como um macho faz ao se enfeitiçar por uma fêmea de valor. Naquela noite outonal quando se encontraram debaixo daquela árvore, ela executara um ato válido segundo seus preceitos. Não tivera nada a ver com ele em particular.

Mas, ah, como ele a desejava mesmo assim...

Abruptamente, a fêmea diante da lareira se arqueou debaixo dos pesos orgásmicos que mudavam sobre ela, e ele voltou-lhe sua atenção. Como se ela percebesse sua excitação, o olhar enevoado e extasiado focalizou nele, e uma surpresa repentina cruzou sua expressão – ou o pouco que ele conseguia distinguir por cima do antebraço grosso que lhe oferecia alimento.

O choque arregalou seu olhar. Evidentemente, ela não notara a presença dele, mas agora que o fazia, o medo, e não a paixão, fez-se óbvio dentro dela.

Sem querer atrapalhar toda aquela ação, ele balançou a cabeça e estendeu a palma num gesto de “pare”, para garantir a ela que não teria de suportar sua mordida – ou pior, seu sexo.

A mensagem aparentemente funcionou, porque o medo abandonou sua expressão, e quando um dos soldados apresentou o pau pedindo atenção, ela o apanhou e começou a massageá-lo acima da sua cabeça.

Xcor sorriu para si mesmo de modo horripilante. Aquela prostituta não o queria, e mesmo assim, seu corpo, em toda a sua estupidez, insistia em reagir àquela Escolhida, como se a fêmea sagrada um dia fosse olhar para ele.

Tão tolo.

Consultando o relógio, surpreendeu-se ao ver que a refeição já vinha acontecendo há mais de uma hora. Que seja. Desde que seus machos obedecessem com suas duas regras básicas, ele não se importava em deixá-los continuar: tinham de permanecer substancialmente vestidos e as armas deveriam estar nos coldres com as travas desarmadas.

Dessa forma, se o clima mudasse, eles poderiam se defender rapidamente.

Ele estava mais do que disposto a lhes conceder aquele passatempo.

Depois daquele interlúdio? Muitos estariam no máximo de suas forças, e pelo modo como as coisas estavam com a Irmandade... eles precisariam estar assim.


CAPÍTULO 18

– Não. De jeito nenhum.

Qhuinn teve que concordar com a opinião de Z. quanto à ideia brilhante de Rhage.

O grupo já se esforçara na floresta, com Rhage suportando boa parte do peso de Z., enquanto os demais os circundavam aos pares, a postos para apanhar qualquer um ou qualquer coisa que os ameaçasse pelas margens. Agora estavam de volta ao hangar e a solução de Hollywood para o problema de mobilidade parecia uma complicação com implicações mortais, e não exatamente algo que de fato ajudasse.

– Pilotar não deve ser tão difícil – enquanto todos, inclusive Z., apenas o encaravam, Rhage deu de ombros. – O que foi? Os humanos o fazem o tempo todo.

Z. esfregou o peito e lentamente se deixou cair no chão. Depois de respirar, balançou a cabeça.

– Primeiro, você não sabe se... a maldita coisa... pode subir. Provavelmente... está sem combustível... e você nunca pilotou antes.

– Quer me contar a nossa outra opção? Ainda estamos a quilômetros de um ponto plausível para que nos busquem, você não está melhorando e podemos ser encurralados. Deixe-me pelo menos entrar lá para ver se consigo fazer o motor pegar.

– Não é uma decisão inteligente.

No silêncio que se seguiu, Qhuinn raciocinou e olhou para o hangar. Depois de um instante, disse:

– Eu dou cobertura. Vamos fazer isso.

No fim, Rhage estava certo. Aquela evacuação a pé estava demorando demais e o redutor desaparecera antes que o apunhalassem, e não o contrário.

Será que Ômega dera poderes especiais aos seus garotos?

Tanto faz. Um soldado inteligente jamais subestimava o inimigo, ainda mais quando um dos seus estava abatido. Precisavam levar Z. para um lugar seguro e se isso significava ir pelo ar, que assim fosse.

Ele e Rhage entraram no hangar e ligaram as lanternas. O avião estava onde o tinham deixado no canto do fundo, como se fosse o filho adotivo feio de algum outro tipo de transporte muito mais bonito que há muito saíra de cena. Aproximando-se, Qhuinn viu que a hélice parecia estar inteira, e apesar de as asas estarem empoeiradas, conseguiu sustentar seu peso nelas.

O fato de a porta ter rangido como o diabo quando Rhage a abriu não foi uma notícia tão promissora.

– Nossa! – murmurou Rhage ao se encolher. – Parece que há algo morto ali dentro.


Caramba, o fedor devia ser tremendo se o Irmão conseguia distingui-lo do resto do cheiro que permeava o hangar.

Talvez a ideia não fosse tão boa assim.

Antes que Qhuinn conseguisse emitir uma segunda opinião a respeito do fedor, Rhage se espremeu como um pretzel e passou pela abertura oval.

– Puta merda... Chaves! As chaves estão aqui, dá pra acreditar?

– E quanto ao combustível? – murmurou Qhuinn, ao lançar o facho da lanterna de bolso num círculo amplo. Nada além de chão imundo.

– Acho bom recuar um pouco, filho – Rhage berrou de dentro da cabine. – Vou tentar ligar essa máquina velha.

Qhuinn se afastou, mas oras, se a coisa fosse explodir, poucos metros não fariam muita diferença...

A explosão foi alta, a fumaça, espessa, e o motor parecia estar sofrendo com um acesso de tosse mecânica. Mas a merda se estabilizou. Quanto mais deixaram o motor esquentar, mais equilibrado o ritmo se tornou.

– Temos que sair daqui antes de nos asfixiarmos – Qhuinn gritou de dentro do avião.

Bem nessa hora, Rhage deve ter colocado a coisa para se mexer ou algo assim, porque o avião se lançou para a frente com um gemido, como se cada prego e parafuso da sua fuselagem doesse.

E aquela coisa voaria?

Qhuinn correu na frente e chegou à porta dupla. Segurando de um lado, usou toda a sua força para puxar e afastou as portas, lançando diversas trincas e travas para todos os lados.

Ele só esperava que o avião não se inspirasse naqueles fragmentos.

Sob o luar, as expressões de John e Blay não tinham preço ao darem uma bela olhada para o plano de fuga – e ele bem sabia de onde elas vinham.

Rhage pressionou o freio e se espremeu de novo para sair.

– Vamos trazê-lo para dentro.

Silêncio. Bem, a não ser pelo avião ofegante atrás deles.

– Você não vai levá-lo – disse Qhuinn, quase para si mesmo.

Rhage olhou sério para ele.

– O que disse?

– Você é valioso demais. Se esta coisa cair, não podemos perder dois Irmãos. Isso não vai acontecer. Eu sou dispensável, você não.

Rhage abriu a boca como se fosse argumentar. Mas quando a fechou, uma expressão estranha atravessou seu belo rosto.

– Ele tem razão – disse Z. sério. – Não posso colocar você em perigo, Hollywood.

– Que se foda, posso me desmaterializar para fora da cabine...

– E acha que vai conseguir fazer isso quando estiverem num espiral? Tolice...

Uma saraivada de balas irrompeu das margens das árvores, atingindo a neve, o zumbido passando pelos ouvidos.

Todos reagiram. Qhuinn mergulhou dentro do avião, posicionou-se atrás do assento do piloto e tentou entender... puta merda, havia botões demais. A única coisa que o salvava era que...

Rá-tá-tá!

... ele assistira a um número suficiente de filmes para saber que a alavanca com a manopla era o acelerador e que a direção em forma de gravata borboleta era a coisa que você puxava para subir, e abaixava para descer.

– Cacete – murmurou ao ficar abaixado o máximo que podia.

Considerando-se os sons explosivos que se seguiram, John e Blay também atiravam, por isso Qhuinn se sentou um pouco mais elevado e olhou para a fileira de instrumentos. Deduziu que aquele com um tanquezinho de combustível era o que ele estava procurando.

Um quarto de tanque disponível. E metade daquela coisa só devia ser condensação.

Aquela era uma ideia bem ruim.

– Traga-o aqui! – Qhuinn berrou, olhando para o campo aberto e reto à sua esquerda.

Rhage logo o atendeu, jogando Zsadist no avião com toda a gentileza de um estivador. O Irmão aterrissou como uma pilha amontoada, mas ao menos praguejava, o que significava que ainda estava bom o bastante para sentir dor.

Qhuinn não esperou pela tolice de fechar as portas. Soltou o pedal do freio, apertou o acelerador e rezou para não derrapar na neve...

Metade do para-brisa se estilhaçou na sua frente; a bala que causara o estrago ricocheteou pela cabine, o “fuuu” do assento ao lado do seu, sugerindo que o encosto de cabeça tivesse sido atingido. O que era melhor do que o seu braço. Ou o crânio.

A única notícia boa era que o avião parecia pronto para sair dali também, o motor enferrujado girando a hélice rapidamente como se soubesse que sair do chão era a única saída para a segurança. Ao lado das janelas, o cenário começava a passar e ele se orientou no meio da “pista” mantendo as duas fileiras de árvores equidistantes.

– Segure-se – gritou acima do estrondo.

O vento entrava na cabine como se houvesse um ventilador industrial preenchendo o espaço onde o vidro estivera, mas ele não pretendia subir o bastante para que necessitassem de pressurização.

Àquela altura, ele só queria passar por cima da floresta logo adiante.

– Vamos, meu bem, você consegue... Vamos, vamos...

Ele já estava com a alavanca toda puxada e teve que ordenar ao braço que relaxasse um pouco. Não havia mais para onde puxar, e quebrar a maldita coisa era a garantia de acabar com tudo ali mesmo.

O barulho aumentou ainda mais.

As árvores se agitaram cada vez mais.

A trepidação ficou cada vez mais violenta, até seus dentes batiam uns nos outros, e ele se convenceu de que uma ou as duas asas se partiriam e cairiam pelas laterais.

Concluindo que não havia tempo a perder, Qhuinn puxou o manche para trás o máximo que pôde, segurando firme, como se isso, de alguma forma, fosse se traduzir à fuselagem do avião e se mantivesse junto no lugar...

Algo caiu do teto e voou na direção de Z.

Um mapa? O manual do proprietário? Quem diabos haveria de saber...?

Caramba, as árvores na ponta extrema estavam se aproximando...

Qhuinn puxou ainda mais, apesar de o manche estar o mais próximo possível dele, o que era uma pena, porque estavam ficando sem pista e ainda colados no chão...

Sons de arranhados vinham da barriga do avião, como se a vegetação rasteira estivesse se esticando e tentando segurar as placas de aço.

As árvores estavam cada vez mais perto.

Seu primeiro pensamento ao enfrentar a morte era que jamais conheceria a filha. Pelo menos não neste lado do Fade.

O segundo e último era que não acreditava que nunca tivesse dito a Blay que o amava. Em todos os minutos e horas e noites de sua vida, em todas as palavras ditas ao macho no decorrer dos anos em que se conheciam, ele somente o afastara.

E agora era tarde demais.

Idiota. Que tremendo cretino que ele era.

Porque parecia bem evidente que seu cartão de biblioteca ficaria inutilizado aquela noite.

Endireitando-se e fazendo com que as lufadas o atingissem em cheio no rosto, Qhuinn encarou aquela arremetida, imaginando todos aqueles pinheiros logo adiante, já que não conseguia enxergá-los pelo fato de os olhos estarem lacrimejando devido ao vento. Abrindo a boca, ele gritou, acrescentando voz à confusão.

Maldição, não morreria como um covarde. Não mergulharia no chão, nada de frases patéticas implorando para que Deus o salvasse. Ao diabo com isso. Enfrentaria a morte com as presas expostas, o corpo preparado e o coração acelerado não de medo, mas com uma tremenda descarga de...

– Morte, vá se foder!

Enquanto Qhuinn tentava levantar voo, Blay tinha o cano da pistola apontado para a borda das árvores e descarregava balas como se tivesse um suprimento infindável... o que não era verdade.

Aquilo era horrível. Ele, John e Rhage não tinham cobertura; não havia como saber quantos assassinos estavam na floresta; e, pelo amor de Deus, só o que aquele avião antigo fazia era expelir uma nuvem de fumaça tóxica em seu rastro enquanto passava como se estivesse num desfile dominical.

Ah, e a máquina estava longe de ser blindada, mas, evidentemente, tinha combustível no tanque.

Qhuinn e Z. não conseguiriam. Colidiriam na floresta ao fim da pista. Isso se não explodissem antes.

Nesse instante, quando soube que uma bola de fogo era iminente de um ou outro modo, ele se partiu ao meio. A parte física permanecia concentrada em combater o ataque, os braços esticados, os indicadores apertando os gatilhos, os olhos e ouvidos rastreando os sons e as aparições de flashes de pistolas e os movimentos do inimigo.

A sua outra parte estava naquele avião.

Era como se estivesse assistindo à própria morte. Imaginava com nitidez a vibração violenta do avião, os saltos descontrolados no chão e a vista da margem sólida das árvores que se aproximavam dele, como se estivesse enxergando através dos olhos de Qhuinn e não dos seus.

Filho da puta imprudente.

Tantas vezes Blay pensou “ele vai se matar”.

Tantas vezes no campo de batalha e fora dele.

Mas aquela era a vez em que isso aconteceria...

Uma bala o atingiu na coxa e a dor que subiu pela perna até o coração indicava que sua total atenção precisava voltar ao combate: se quisesse viver, teria de se concentrar completamente.

Contudo, quando essa convicção o acometeu, houve uma fração de segundo em que ele pensou: vamos acabar com isso aqui. Vamos acabar com essa tolice de vida de castigos, de “quase lá”, de “e se?”, da agonia crônica e infindável em que sempre esteve... e da qual estava tão cansado...

Ele não entendeu o que o fez atingir a neve.

Num minuto, estava olhando para o avião esperando que ele explodisse em chamas. No minuto seguinte, estava de peito no chão, com os cotovelos enfiados na terra congelada e obstinada, a perna machucada latejando.

Flap! Flap! Flap!...

O rugido que interrompeu o som das balas era tão alto que ele abaixou a cabeça, como se isso o ajudasse a evitar a bola de fogo crônica do avião.

Só que não houve nem luz nem calor. E o som vinha de cima...

Planando. O fardo de parafusos estava mesmo voando. Acima deles.

Blay despendeu um segundo olhando para cima, só para o caso de ter sido alvejado e a sua percepção da realidade ter sido afetada. Mas não. Aquela antiguidade de pulverização de plantações estava no céu, fazendo uma curva larga e seguindo na direção que, se é que conseguiria permanecer suspenso, levaria Qhuinn e Z. para o complexo da Irmandade.

Se tivessem sorte.

Caramba, aquele voo não seria fácil. Nada parecido com uma águia voando segura e decidida pelo céu noturno. Mais parecido com uma andorinha recém-saída do ninho com uma asa quebrada.

De um lado para o outro. Para cima e para baixo, inclinando-se de lado a lado.

Ao ponto em que parecia ter realizado o impossível saindo do chão... só para cair e queimar no meio da floresta...

Do nada, algo o atingiu na lateral do rosto, golpeando-o com tanta força que ele caiu de costas e quase perdeu as pistolas. Uma mão – fora uma mão que o espalmara como se ele fosse uma bola de basquete.

Em seguida, um peso absurdo o atingiu no peito, esticando-o no chão coberto de neve, fazendo-o exalar com tanta força que ele se perguntou se não deveria olhar ao redor para procurar o fígado.

– Porra, vai ficar abaixado ou não? – Rhage sibilou em seu ouvido. – Está tentando levar bala... de novo?

Enquanto a calmaria do tiroteio se estendia de segundos até completar um minuto, os redutores emergiram pela linha de árvores adiante, o quarteto de assassinos caminhando pela neve com as armadas suspensas e prontas.

– Não se mexa – sussurrou Rhage. – Dois podem brincar nesse jogo.

Blay fez seu melhor para não inspirar tão fundo quanto a queimação em seus pulmões lhe dizia que precisava. Também tentou não espirrar já que flocos soltos coçavam em seu nariz toda vez que ele respirava.

Espera.

Espera.

Espera.

John estava a um metro de distância, deitado numa posição contorcida que fez o coração de Blay se apertar...

O cara sutilmente levantou o polegar, como se estivesse lendo a mente de Blay.

Graças a Deus. Cacete.

Blay desviou o olhar sem mudar a posição estranha da cabeça, e depois discretamente trocou uma das pistolas por uma das suas adagas.

Enquanto um zumbido desengonçado começou a vibrar em sua cabeça, ele calculou os movimentos dos redutores, suas trajetórias, suas armas. Ele estava quase sem munição e não havia tempo para recarregar as pistolas. E ele sabia que tanto Rhage quanto John estavam na mesma condição.

As adagas que V. fizera à mão para todos eles eram o único recurso.

Mais perto... mais perto...

Quando os quatro assassinos finalmente estavam ao alcance, sua cronometragem foi perfeita. Assim como a dos outros.

Com um movimento coordenado perfeito, ele saltou e começou a apunhalar os dois mais próximos a ele. John e Rhage atacaram os outros...

Quase imediatamente, mais assassinos surgiram das árvores, mas, por algum motivo, talvez porque a Sociedade Redutora não estivesse armando seus alistados muito bem, não havia balas. O segundo round se passou pela neve com o tipo de armas que se esperaria ver numa briga de beco: tacos de baseball, pés-de-cabra, chaves de rodas e correntes.

Por ele, tudo bem.

Estava tão pilhado e furioso, que lhe faria bem sair na mão.


CAPÍTULO 19

Sentada na mesa de exames, com uma camisola frágil de papel cobrindo-a e os pés descalços pendurados da orla acolchoada, Layla sentiu como se estivesse cercada por instrumentos de tortura. E devia ser isso mesmo. Todo tipo de utensílios de aço inoxidável estava enfileirado na bancada da pia, com as embalagens plásticas transparentes indicando que estavam estéreis e prontos para serem usados.

Já fazia uma eternidade que estava na clínica de Havers. Ou, pelo menos, era o que parecia.

Em contraste com o trajeto apressado para atravessar o rio, quando o mordomo dirigira como se soubesse que a pressa era essencial, desde que ali chegara só acontecera um retardo após o outro. Desde a burocracia até a sala de espera, o aguardo pela enfermeira, a demora para que Havers apresentasse o resultado do seu exame de sangue.

Era o suficiente para enlouquecer alguém.

Do lado oposto ao que ela estava sentada, havia uma imagem emoldurada pendurada na parede, e há tempos ela havia memorizado suas pinceladas e cores, o buquê de flores pintadas em azuis e amarelos vibrantes. O nome embaixo dizia: van Gogh.

Àquela altura, ela nunca mais queria ver uma íris novamente.

Mudando de posição, fez uma careta. A enfermeira lhe entregara um objeto apropriado para o sangramento e ela ficou horrorizada ao perceber que logo precisaria de outro...

A porta se abriu com uma batida e seu instinto imediato foi correr, o que era ridículo. Era ali que precisava estar.

Só que tratava-se apenas da enfermeira que a levara até ali, tirara a amostra de sangue para o exame e seus sinais vitais, e tomara notas no computador.

– Sinto muito, houve outra emergência. Só quis certificá-la de que será a próxima.

– Obrigada – Layla se ouviu dizer.

A fêmea se aproximou e pôs uma mão em seu ombro.

– Como está se sentindo?

A gentileza a fez piscar rápido.

– Acho que vou precisar de outro... – ela apontou para o quadril.

A enfermeira assentiu e deu um leve apertão antes de seguir para a bancada e apanhar uma embalagem quadrada cor de pêssego.

– Temos mais aqui. Gostaria que eu a acompanhasse até o banheiro no final do corredor?

– Sim, por favor...

– Espere, não se levante ainda. Deixe-me pegar algo para que se cubra melhor.

Layla baixou o olhar para as mãos, aquelas que estavam enroscadas uma na outra e que não conseguiam ficar quietas.

– Obrigada.

– Aqui está – algo macio a envolveu. – Ok, agora vamos colocá-la de pé.

Escorregando para fora da mesa, ela se desequilibrou um pouco e a enfermeira estava logo ali, segurando-a pelo cotovelo para estabilizá-la.

– Vamos bem devagar.

E foi o que fizeram. No corredor, havia enfermeiras se apressando de quarto em quarto, e pessoas entrando e saindo das suas consultas, e outras equipes correndo... e Layla não conseguia acreditar que um dia fora rápida como eles. Para se afastarem do tráfego, ela e a gentil acompanhante ficaram próximas da parede, a fim de evitar serem atropeladas, mas os outros eram verdadeiramente gentis. Como se todos soubessem que ela estava sofrendo seriamente.

– Vou entrar com você – disse a enfermeira quando chegaram ao banheiro. – A sua pressão está muito baixa e fico preocupada que possa desmaiar, está bem?

Enquanto Layla assentia, elas entraram e trancaram a porta. A enfermeira retirou-lhe a coberta, e ela, desconcertada, afastou o papel do caminho.

Sentando-se, ela...

– Ah, santa Virgem Escriba.

– Psiu, está tudo bem, tudo bem – a enfermeira se inclinou e lhe estendeu o absorvente. – Vamos cuidar disso. Você está bem... aqui, não, você precisa me dar isso. Temos que encaminhar para o laboratório. Existe a possibilidade de ser usado para determinar o que está acontecendo e você há de querer ter essa informação quando tentar novamente.

Tentar novamente. Como se a perda já tivesse ocorrido.

A enfermeira colocou as luvas e pegou um saco plástico de um suporte. Ela cuidou de tudo com discrição e diligência, e Layla viu quando o nome que havia dado foi escrito do lado de fora do saco com uma caneta preta.

– Ah, querida, está tudo bem.

A enfermeira retirou as luvas, arrancou um pedaço de papel higiênico de um suporte na parede e se ajoelhou. Segurando o queixo de Layla com uma mão gentil, cuidadosamente enxugou as faces que se molharam de lágrimas.

– Sei bem pelo que está passando. Também perdi um – o rosto da enfermeira se tornou belo pela compaixão. – Tem certeza de que não podemos chamar o seu hellren?

Layla apenas balançou a cabeça.

– Bem, avise-me se mudar de ideia. Sei que é difícil vê-los tristes e preocupados, mas não acha que ele gostaria de estar aqui com você?

Ah, como contaria a Qhuinn? Ele parecera tão certo de tudo, como se já tivesse visto o futuro e encarado os olhos do filho deles. Aquilo seria um choque.

– Saberei se estive mesmo grávida? – murmurou Layla.

A enfermeira hesitou.

– O exame de sangue pode revelar isso, mas tudo depende de quanto tempo você está se sentindo assim.

Layla fitou as mãos novamente. As juntas estavam brancas.

– Preciso saber se estou tendo um aborto ou se isto é apenas um sangramento normal que acontece quando não se engravida. Isso é importante.

– Lamento muito, mas não sou eu quem pode lhe garantir isso.

– Mas você sabe, não sabe? – Layla levantou a cabeça para fitá-la nos olhos. – Não sabe?

– Repito, não sou eu quem pode lhe garantir, mas... com esse tanto de sangue?

– Eu estava grávida.

A enfermeira fez um movimento amplo com as mãos, os lábios se contraindo.

– Não conte a Havers que eu lhe disse isso, mas... sim, provavelmente. E você precisa saber, não há nada que você possa fazer para deter o processo. Não é culpa sua, e você não fez nada errado. É só que, às vezes, essas coisas simplesmente acontecem.

Layla deixou a cabeça pender.


– Obrigada por ser honesta comigo. E... na verdade, é isso o que acho que está acontecendo.

– Uma fêmea sabe. Bem, vamos levá-la de volta.

– Sim, muito obrigada.

Mas Layla teve dificuldade para suspender a calcinha ao se levantar. Quando ficou claro que não conseguia coordenar as mãos, a enfermeira se adiantou e a ajudou com facilidade invejável, e tudo foi tão vergonhoso e assustador. Ficar fraca e à mercê de outra pessoa para uma coisa tão simples...

– Você tem um sotaque maravilhoso – disse a enfermeira ao voltarem para o tráfego do corredor, retornando mais uma vez para a faixa mais lenta. – É tão Velho Mundo... minha avó aprovaria. Ela odeia o fato de o inglês ter se tornado a língua dominante aqui. Acredita que isso será a derrocada da nossa espécie.

A conversa a respeito de nada em especial ajudou, dando a Layla algo em que se concentrar em vez de pensar em quanto tempo aguentaria até ter de refazer aquele percurso... e se as coisas estavam piorando nesse aborto... e como seria quando fosse forçada a encarar Qhuinn para lhe dizer que fracassara...

De algum modo, chegaram à sala de exames.

– Não deve demorar muito mais. Prometo.

– Obrigada.

A enfermeira parou à porta e, ao se imobilizar, sombras cruzaram o fundo do seu olhar, como se ela estivesse revivendo partes de seu próprio passado. E no silêncio entre elas, um momento de comunicação ocorreu, e embora fosse raro ter algo em comum com uma fêmea da Terra, a conexão foi um alívio.

Ela se sentira tão sozinha naquilo tudo.

– Temos pessoas com quem você pode conversar – disse a fêmea. – Às vezes, conversar depois de tudo pode ajudar de verdade.

– Obrigada.

– Use esse botão branco se precisar de ajuda ou se sentir-se tonta, está bem? Não vou estar longe.

– Sim, farei isso, obrigada.

Enquanto a porta se fechava, lágrimas embaraçam sua visão, e mesmo sentindo uma dor profunda, a sensação esmagadora de perda era desproporcional à realidade. A gestação estava apenas bem no comecinho e, logicamente, não havia muito a perder.

No entanto, para ela, aquilo era o seu filho.

Aquilo era a morte do seu filho...

Houve uma batida suave à porta e depois uma voz masculina.

– Posso entrar?

Layla apertou os olhos e engoliu com força.

– Por favor.

O médico da raça era alto e distinto, com óculos de aro de tartaruga e uma gravata borboleta. Com um estetoscópio ao redor do pescoço e aquele longo jaleco branco, ele era a figura perfeita de um curador, calmo e competente.

Ele fechou a porta e sorriu de leve para ela.

– Como está se sentindo?

– Bem, obrigada.

Ele a fitou do outro lado da sala, como se estivesse avaliando seu estado clínico, embora não a tocasse ou usasse instrumento algum.

– Posso ser franco?

– Sim, por favor.

Ele assentiu e puxou um banquinho com rodinhas. Sentando-se, equilibrou o prontuário no colo e a encarou.

– Vejo que você não indicou o nome do seu hellren... nem do seu pai.

– É preciso?

O médico hesitou.

– Não tem nenhum parente, minha querida? – quando ela negou com a cabeça, os olhos dele registraram tristeza profunda. – Lamento muito pelas suas perdas. Então, não há ninguém que possa estar aqui com você? Ninguém?

Como ela simplesmente continuou ali, sem dizer nada, ele inspirou fundo.

– Muito bem...

– Mas posso pagar – ela deixou escapar de supetão. Ela não sabia muito bem onde arranjaria o dinheiro, mas...

– Ah, meu bem, não se preocupe com isso. Não preciso receber se não puder pagar – ele abriu o prontuário e afastou uma página. – Vejamos, vejo aqui que passou pelo seu cio.

Layla apenas concordou, como se isso fosse tudo o que pudesse fazer para não gritar: Qual é o resultado do exame?

– Bem, verifiquei o resultado do seu exame de sangue e ele mostrou algumas... coisas que eu não esperava. Portanto, se permitir, eu gostaria de coletar mais uma amostra e enviá-la para o laboratório para mais alguns exames. Com isso, espero ser capaz de entender o que está acontecendo... e também farei um ultrassom, se não se importar. É um exame padrão que me dará uma ideia de como as coisas estão progredindo.

– Como, por exemplo, quanto tempo sangrarei até que termine tudo? – disse com severidade.

O médico da raça esticou a mão para segurar a dela.

– Primeiro vamos ver como você está, certo?

Layla respirou fundo e concordou mais uma vez.

– Certo.

Havers foi até a porta e chamou a enfermeira. Quando a fêmea entrou no quarto, ela trouxe consigo o que parecia ser um computador de mesa montado num carrinho: havia um teclado, um monitor e umas varetas erguidas nas laterais do equipamento.

– Vou deixar que a enfermeira tire o sangue... as mãos dela são muito mais competentes que as minhas nesse quesito – ele sorriu de maneira gentil. – Nesse meio-tempo, vou verificar outro paciente. Volto em seguida.

A segunda picada de agulha foi muito melhor do que a primeira, pois ela sabia o que esperar, e ela foi deixada a sós por um curto tempo quando a enfermeira saiu para levar a amostra ao laboratório – o que quer que fosse ele e onde quer que estivesse localizado. Ambos voltaram em seguida.

– Pronta? – Havers perguntou.

Quando Layla fez que sim, ele e a enfermeira trocaram algumas palavras e o equipamento foi disposto perto de onde ela estava sentada. O médico, então, acomodou-se novamente no banquinho e puxou dois tipos de extensões das laterais da mesa de exame. Abrindo o que pareciam ser um par de estribos, ele fez um gesto para a enfermeira que reduziu a iluminação e se aproximou para apoiar uma mão no ombro de Layla.

– Deite-se, por favor – pediu Havers. – E desça até chegar ao fim da mesa. Você vai colocar os pés aqui depois de despir a roupa de baixo.

Enquanto ele indicava os dois estribos, os olhos de Layla se arregalaram. Ela não fazia ideia de que o exame seria...

– Nunca antes fez um exame interno? – perguntou Havers com hesitação. Quando ela começou a balançar a cabeça, ele assentiu. – Bem, isso não é incomum, ainda mais se esse foi o seu primeiro cio.

– Mas não posso tirar... – ela se interrompeu. – Estou sangrando.

– Cuidaremos disso – o médico parecia cem por cento confiante. – Vamos começar?

Layla fechou os olhos e se inclinou para trás para se deitar, o papel fino que cobria a superfície acolchoada rangendo debaixo do seu peso. Elevando os quadris e mudando um pouco de posição, ela se desfez do que a cobria.

– Cuido disso para você – disse a enfermeira baixinho.

Os joelhos de Layla se encontraram enquanto ela foi tateando com os pés à procura dos malditos estribos.

– Isso mesmo – o banquinho de rodinhas guinchou quando o médico se aproximou. – Mas vá mais para baixo.

Por uma fração de segundo, ela pensou que não conseguiria.

Curvando os braços ao redor do baixo ventre, apertou-os, como se pudesse, de algum modo, segurar o bebê dentro dela ao mesmo tempo em que tentava se controlar. Mas não havia nada que pudesse fazer, nenhuma conversa que pudesse ter com seu corpo para acalmá-lo e segurar o que fora implantado, nenhum papo amoroso que pudesse ter com o filho para que ele tentasse sobreviver, nenhum fluxo de palavras para acalmá-la do seu pânico absoluto.

Por um momento, ela desejou a vida enclausurada que um dia considerou tão sufocante. Lá no Santuário da Virgem Escriba, a natureza plácida da sua existência fora algo que ela dera como certo. De fato, desde que descera para a Terra e tentara encontrar um propósito aqui, fora atingida por um trauma atrás do outro.

Isso fez com que respeitasse os machos e as fêmeas de quem lhe disseram ser inferiores a ela.

Ali embaixo, todos pareciam estar à mercê de forças além do controle deles.

– Está pronta? – perguntou o médico.

Enquanto lágrimas corriam pelos cantos dos olhos, ela se concentrou no teto e agarrou a beira da mesa.

– Sim. Pode começar.


CAPÍTULO 20

Puta merda, Qhuinn estava completamente sem controle.

Quase nenhuma visibilidade. O avião balançando de um lado para o outro como se estivesse sofrendo delirium tremens. Motor ligando e desligando.

E ele nem podia dar uma olhada em Z. O vento estava forte demais para gritar, e não pretendia despregar os olhos do que quer que viesse pela frente – ou melhor dizendo, daquilo no que bateriam de frente – mesmo sem conseguir enxergar nada...

O que o fizera pensar que aquilo era uma boa ideia?

A única coisa que parecia estar funcionando era a bússola, portanto, ao menos ele conseguia se orientar quanto à localização da base: o complexo da Irmandade ficava ao norte, um tantinho ao leste, no topo de uma montanha circundada pelo mhis de V., a divisa defensiva invisível. Com isso, em relação ao direcionamento, ele estava certo, desde que o mostrador de N – S – L – O estivesse mais operacional do que, digamos, todo o resto daquele caixote.

Ao olhar para a direita, o vento incessante que passava pelo vidro parcialmente quebrado atingiu seu canal auditivo. Pela janela lateral, ele via... uma imensidão negra. O que ele interpretou como indício de eles terem passado pelo subúrbio e estarem sobrevoando as fazendas. Talvez já estivessem sobre as colinas que, no fim, transformariam-se na montanha...

Um som como o do escapamento de um carro explodindo chamou sua atenção negativamente, mas o que foi pior?

O silêncio repentino que se seguiu.

Nada de motor roncando. Apenas o vento soprando para dentro da cabine.

Ok, agora sim estavam em apuros.

Por um átimo, ele pensou em se desmaterializar. Era forte o bastante, estava consciente, mas jamais abandonaria Z...

Uma mão forte pousou em seu ombro, assustando-o tremendamente.

Z. se arrastara para a frente e, baseando-se em sua expressão, estava tendo dificuldades para se manter de pé. E não só pelos solavancos.

O Irmão falou, sua voz grossa superando todo aquele barulho.

– Hora de você ir embora.

– Nem a pau – berrou Qhuinn em resposta. Esticando o braço, tentou a ignição. Não faria mal tentar, não é mesmo?

– Não me obrigue a jogá-lo para fora.

– Tente.

– Qhuinn...

O motor voltou a pegar, o barulho se intensificando. Boas novas. A questão era que, se o maldito desligara uma vez, era bem possível que o fizesse novamente.

Qhuinn enfiou a mão na jaqueta. Ao apanhar o celular, pensou em todos que os dois estavam deixando para trás e passou o objeto para o Irmão.

Se existia uma hierarquia nessa coisa de se despedir, Z. estava no topo da lista. Ele tinha uma shellan e uma filha. Se alguém tinha de fazer uma ligação, esse alguém era ele.

– Para que isso? – Zsadist perguntou sombrio.

– Descubra você mesmo.

– E você pode ir...

– Não vou a parte alguma. Vou pilotar esta armadilha até batermos em alguma coisa.

Houve certa discussão depois disso, mas ele não sairia do assento do piloto, e por mais forte que o Irmão fosse em circunstâncias normais, Z. não estava em condições de suspender nada além de uma fatia de pão. E a conversa não durou muito. Depois que a discussão terminou, Z. desapareceu, sem dúvida indo para os fundos para fazer o último contato com as pessoas amadas.

Decisão inteligente.

Deixado a sós com seus equipamentos, Qhuinn fechou os olhos e lançou uma oração para quem pudesse ouvir. E visualizou o rosto de Blay...

– Pegue.

Ele abriu os olhos. O celular estava bem na sua frente, firme na mão de Z. E o mapa de GPS estava sendo mostrado, as pequenas setas piscantes indicando onde exatamente eles estavam.

– Mais uns cinco quilômetros – exclamou o Irmão acima do barulho ensurdecedor. – É tudo de que precisamos...

Houve um estouro, um assobio e mais uma rodada daquele silêncio terrível. Praguejando, Qhuinn concentrou-se naquela tela sempre desejando que as coisas voltassem a funcionar. Mais para o norte, obviamente, porém, mais para o leste. Muito mais. Seus cálculos estavam certos, mas não exatos.

Sem o telefone? Estariam fritos.

Bem, isso e toda aquela situação do motor.

Verificando a localização precisa, ele fez alguns cálculos mentalmente e virou para a direita, tentando chegar àquela indicação no mapa que levava diretamente para a montanha. Em seguida, seria a vez de tentar religar o motor.

Estavam perdendo altitude. Não espiralando, situação na qual haveria um close-up no altímetro e a coisa estaria acelerada do modo como você desejaria que as hélices estivessem. Mas lentamente, inexoravelmente indo para baixo... e se perdessem a aceleração, o que era o que aquela máquina de costura insegura debaixo do teto seria capaz de prover, acabariam caindo como uma pedra.

Tentando a ignição repetidas vezes, murmurou:

– Vamos, vamos, vamos...

Era difícil tentar manter o nariz empinado com apenas uma mão; e bem quando ele ia passar a devotar toda sua atenção ao manche, o braço de Z. se esticou, afastou a mão dele, e assumiu o controle sobre o botão da ignição.

Por um segundo, Qhuinn vislumbrou a marca de escravo para fora dos punhos da jaqueta do Irmão, mas logo voltou a se concentrar.

Deus, seus ombros estavam em chamas por puxar o manche para trás.

E pensar que ele estava morrendo de vontade de ouvir aquela barulheira do...

De uma só vez, o motor engasgou de volta à vida, e a mudança de altitude foi imediata. No instante em que os plugues e pistões começaram a rugir novamente, os números começaram a subir.

Mantendo a alavanca puxada, verificou o nível de combustível. Estava no vazio. Talvez estivessem apenas sem combustível, e não se tratasse de um problema mecânico?

Uma tolice, certo?

– Só mais um pouquinho, meu bem... um pouco mais, vamos lá, querida, você consegue...

Enquanto um fluxo interminável de encorajamento escapava dos seus lábios, as palavras impotentes eram abafadas pela única coisa que importava – mas, espere, como se o Cessna falasse inglês...!

Caramba, parecia que aquilo duraria uma eternidade, a esperança e as orações, seu cérebro num jogo de pingue-pongue entre os melhores e os piores cenários enquanto quilômetros eram atravessados num ritmo agonizantemente lento.

– Diga que telefonou para as suas fêmeas – berrou Qhuinn.

– Diga que consegue nos manter acima do solo.

– Não vou mentir.

– Leve-nos mais para o leste.

– O quê?

– Leste! Vá para o leste!

Z. aumentou o zoom do mapa e começou a correr o dedo em uma direção, de leste a oeste.

– Você vai precisar aterrissar neste ponto... atrás da mansão!

Qhuinn deduziu que deveria tomar como um bom sinal que o cara estava fazendo planos de aterrissagem que não envolviam bolas de fogo. E a sugestão era boa. Se conseguissem se orientar ao longo da mansão, do lado oposto à piscina, eles poderiam acabar com algumas árvores frutíferas... porém, teriam mais ou menos o mesmo tanto de pista que tiveram para decolar.

Muito melhor do que bater no muro que cercava a propriedade...

Daquela vez, o motor não emitiu nenhum aviso. Simplesmente morreu, como se estivesse cansado de brincar de pega-pega e houvesse decidido tirar uma folga permanente.

Ao menos já estavam próximos da aterrissagem.

Uma chance. Era tudo de que dispunham.

Uma única tentativa de aterrissar que, desde que ele conseguisse levá-los até as cercanias da propriedade, penetrar o mhis, e conseguir não colidir na mansão, no ginásio, nas construções, nos portões nem em nada que fosse real ou algum tipo de propriedade... resultaria nele entregando o orgulhoso pai e amoroso hellren, e soberbo lutador... de volta aos braços da família.

Mas não era só em Z. que ele estava pensando.

O Primale cuidaria da saúde e do bem-estar de Layla. Blay tinha os pais amorosos e Sax. John tinha a sua Xhex.

Todos eles ficariam bem.

Qhuinn se virou.

– Sente-se! Lá atrás! Sente-se e prenda o cinto de segurança...

O Irmão abriu a boca e Qhuinn fez o impensável. Cobriu os lábios do macho com a mão.

– Sente-se de uma vez e se amarre! Chegamos até aqui... não vamos estragar tudo!

E pegou o celular de volta.

– Vá! Deixe comigo!

Os olhos de Z. se conectaram aos seus e, por um breve segundo, Qhuinn se perguntou se seria lançado para fora da cabine. Mas então, o milagre aconteceu: um instante de conexão se estendeu entre eles, uma corrente de elos tão grossos quanto coxas ligando-os um ao outro.


Z. levantou o indicador e apontou direto no rosto de Qhuinn. Depois de acenar uma vez com a cabeça, desapareceu na parte traseira.

Qhuinn voltou a se concentrar.

A navegação os mantinha no alto, e graças às orientações de Z., aquela guinada extra à direita os colocara na direção certa. De acordo com o GPS, estavam se aproximando da junção de estradas que dava a volta na base da montanha, centímetro a centímetro. Centímetro... a centímetro...

Ele estava bem certo de que localizavam-se acima da propriedade agora.

Enquanto o avião abaixava mais, ele se preparou, continuando a puxar o manche com força até que os ombros cravassem no assento atrás dele. Não havia trem de pouso para puxar. Ele esteve abaixado o tempo todo...

Um assobio repentino penetrou na cabine, e isso, junto a uma abrupta mudança de angulação, anunciou que a gravidade começara a vencer a batalha, exigindo a construção de fibra de vidro e metal e tendo um par de vidas como seu prêmio.

Eles não conseguiriam... era cedo demais...

Uma vibração selvagem se seguiu e, por um momento, ele se perguntou se não tinham atingido o chão sem que ele percebesse. Copas de árvores, talvez? Não. Algo...

O mhis?

O amortecedor repentino parecia se estender para cima, e, ora essa, o avião reagiu de modo diferente, o bico se nivelando sem nenhum esforço da parte de Qhuinn ou ajuda do peso morto que era aquele motor. Até mesmo o sacolejo de um lado para o outro cessou.

Aparentemente, a defesa invisível de V. não só mantinha afastados humanos e redutores, como também sustentava um Cessna no ar.

Só que tinham um problema. Aquela elevação vital parecia não acabar.

Do modo como iam as coisas, era como se ele fosse flutuar ali para sempre, ultrapassando a única pista de aterrissagem que tinham...

Abruptamente, o barulho retornou, e ele verificou o altímetro. Tinham descido cerca de sete metros, e ele teve que se perguntar se tinham penetrado a barreira.

Luzes. Ah, bom Jesus amado. Luzes.

Do lado de fora da janela, abaixo, ele via o brilho da mansão e o pátio. Estava distante demais para distinguir os detalhes, mas só podia ser – sim, a pequena ramificação só podia ser o ginásio.

Instantaneamente, seu cérebro dimensionou e reorientou tudo.

Merda. O ângulo estava errado. Se continuasse assim, aterrissaria de frente para a propriedade e não ao longo dela. E a porcaria era que não tinha altitude suficiente para executar um círculo grande para apontá-lo para a direção certa.

Quando não se tem opções, a única alternativa é fazer dar certo.

Seu maior problema era deixar passar o gramado. Só havia uma clareira na montanha. O resto? Árvores que os devorariam.

Ele precisava descer mais. Imediatamente.

– Segure-se!

Mesmo sendo um contrassenso, ele arremessou o manche para frente, e os direcionou para o chão. Houve uma mudança de velocidade imediata, e ele rezou que se recuperasse disso quando chegasse à zona de impacto. E merda, a intensa trepidação ficou ainda pior, ao ponto de ele ficar tonto, e os braços doerem por segurar firme o manche.

Mais rápido. Mais próximo. Mais rápido. Mais barulhento. Mais próximo.

E, então, chegou a hora. A casa e os jardins estavam logo à frente, indo ao encontro deles numa velocidade de matar.

Ele puxou com força, e a nova velocidade os fez levantar um pouco. Por cima da casa...

– Prepare-se! – exclamou a plenos pulmões.

Enquanto a câmera lenta assumia o comando, tudo se ampliou: a propriedade, os segundos, a dor nos olhos enquanto ele se esforçava para olhar adiante, a sensação do seu corpo sendo empurrado para trás no assento...

Merda. Ele estava sem o cinto de segurança.

Nem se preocupara com isso. Coisas demais em que pensar.

Idiota...

Nesse mesmo instante, fizeram contato com algo. Com força. O avião pulou, bateu em outra coisa, ricocheteou e pulou novamente. Nesse meio-tempo, sua cabeça bateu no painel acima dele, e seu traseiro ficou estatelado no assento, e seu...

Deixa para um mix de dores.

A fase seguinte da aterrissagem dos infernos foi um misto de desliza-chacoalha-rola que quase o lançou para fora da cabine. Aquilo era o chão – só podia ser – e, maldição, como iam rápido. As luzes corriam pelas janelas, tudo parecendo o Studio 54* até ele ficar praticamente cego. E por causa do lado em que o estroboscópio estava, ele deduziu que estavam no jardim – mas estavam ficando sem espaço.

Segurando o manche, ele os fez dar um cavalo de pau, na esperança que as mesmas leis da física que se aplicavam a carros desgovernados funcionassem ali: sem freios, espaço limitado e o único modo de diminuir a velocidade era mudar o coeficiente aerodinâmico.

A força centrífuga o fez bater na lateral da cabine e a neve bombardeou seu rosto; depois, algo afiado.

Merda, eles não estavam desacelerando em nada.

E aquele muro de proteção de seis metros de altura e 45 centímetros de espessura estava se aproximando com rapidez.

E por falar em paradas abruptas...

* Lendária discoteca em Manhattan que funcionou entre 1977 e 1986. (N.T.)


CAPÍTULO 21

Blay se desmaterializou para a mansão no instante em que o último assassino naquela clareira foi enviado de volta a Ômega. Como Qhuinn ainda estava no ar com Z., não havia razão para perder mais tempo à espera de mais um esquadrão.

Mesmo por que não havia nada que alguém pudesse fazer para ajudar aqueles dois.

Reaparecendo no pátio, ele...

Diretamente acima dele, sem produzir som algum, aquele maldito avião bloqueava a luz da lua.

Puta merda, eles conseguiram e, caramba, estavam tão próximos que ele pensou que, caso se esticasse, conseguiria tocar a fuselagem do Cessna.

O silêncio sepulcral, porém, não era um bom sinal...

O primeiro impacto veio do alto das cercas vivas que delimitavam o jardim. O avião saltou das pontas, pegou uma corrente de ar, depois sumiu de vista.

Blay se desmaterializou ao redor da varanda bem a tempo de ver o Cessna bater na neve, caindo como um homem obeso mergulhando de barriga numa piscina, criando grandes ondas brancas para todos os lados. E então a aeronave se transformou no maior cortador de grama jamais visto pelo homem, a combinação de seu corpo de aço e a velocidade acelerada demais, destruindo fileiras de árvores frutíferas e de moitas de flores que foram protegidas do inverno, e caramba, até mesmo a fileira de bebedouros para os pássaros.

Mas ao inferno com tudo isso. Ele pouco se importava se tivessem de replantar o lugar inteiro, desde que o avião parasse... antes do muro de contenção.

Por uma fração de segundo, ele chegou a pensar em se materializar diante da coisa e detê-la com as mãos, mas isso seria loucura. Se o Cessna não parecia se incomodar com as estátuas de mármore que ele agora destruía, pouco se importaria com um macho vivo e respirando diante dele...

Por nenhum motivo aparente, todo aquele descontrole começou a girar, a asa encarando Blay como se Qhuinn estivesse tentando virar. A derrapagem foi o movimento perfeito. Nem precisava ser dito que não havia freios, e desde que o espiral se sustentasse, eles teriam mais área para perder velocidade.

Merda, eles estavam mesmo perto demais do muro de contenção...

Centelhas de luz iluminaram a noite, além do grito de metal contra pedra que anunciava que “o perto demais do muro” fora substituído por “bem contra ele”, mas, graças à manobra de Qhuinn, eles se colocaram numa posição paralela em vez de irem de frente.

Blay começou a correr na direção do show de luzes, e outros o acompanharam quando ele assim o fez, um verdadeiro bloco de pessoas em fila. Não havia como deter aquilo, mas eles bem podiam estar a postos quando as coisas...

Tum!

... terminassem.

O avião finalmente encontrou um objeto inanimado que não conseguiu superar: o barracão usado para guardar alguns dos equipamentos e produtos de jardinagem bem no fim do jardim.

Parada completa.

E tudo estava silencioso demais. Tudo o que Blay ouviu foi o suissssh dos coturnos trafegando pela neve, e sua respiração arfando no ar frio, e a pressa dos outros atrás de si.

Ele foi o primeiro a chegar à aeronave e se dirigiu à porta que, como por milagre, estava livre e não imprensada ao muro de concreto. Abrindo-a e sacando a lanterna de bolso, ele não sabia o que esperava encontrar. Fumaça? Gases? Sangue e partes de corpos?

Zsadist estava sentado rígido no assento de frente para os fundos, com o corpo amarrado, ambas as mãos travadas nos apoios de braços. O Irmão encarava à frente, sem piscar.

– Paramos de nos mexer? – perguntou rouco.

Ok, ao que tudo levava a crer, até mesmo um Irmão podia ficar em estado de choque.

– Sim, pararam – Blay não queria ser rude, mas agora que estava certo de que um deles sobrevivera, ele queria ver se Qhuinn...

O macho cambaleou para fora da cabine. No facho de luz da lanterna de Blay, ele parecia ter estado num brinquedo radical de um parque de diversões, com o cabelo todo para trás da testa queimada pela ação do vento, os olhos, um verde e outro azul, arregalados num rosto completamente pálido, cada membro do corpo trêmulo.

– Você está bem? – exclamou ele, como se os ouvidos estivessem surdos depois de expostos a muito barulho. – Z., diga alguma coisa...

– Estou aqui – respondeu o Irmão, fazendo uma careta de dor ao soltar uma das garras dos apoios de braço. – Estou bem, filho... Estou bem.

Qhuinn se agarrou ao que estava saliente e foi então que seus joelhos se dobraram. Ele apenas caiu entre as mãos estendidas, a voz entrecortada a ponto de ele mal conseguir falar.

– Eu só... queria que você... estivesse bem... Só queria... que você... ficasse bem, oh Deus... para a sua filha... Só queria que você ficasse ok...

Zsadist, o Irmão que nunca tocava em ninguém, esticou-se e pousou uma mão livre na cabeça inclinada de Qhuinn. Erguendo os olhos, ele disse suavemente:

– Não deixe ninguém entrar aqui. Dê um minuto a ele, ok?

Blay assentiu e se virou, bloqueando a entrada com o corpo.

– Eles estão bem, eles estão bem...

Enquanto falava com a multidão, um bom número de pessoas fitava-no como se ele fosse um enviado de Deus, mas Bella não estava entre eles. Ela estava...

– Zsadist! Zsaaaaadist!

O grito se transportou por todo o caminho do gramado quando, do alto da varanda, uma figura solitária partiu em disparada em meio à neve.

Muitas pessoas responderam a Bella, mas ele duvidava de que ela tivesse ouvido qualquer coisa.

– Zsaaaadist!

Quando ela escorregou já perto dele, Blay imediatamente se esticou para pegá-la, preocupado que ela acabasse se chocando com a lateral do avião. Ah, Deus, ele jamais se esqueceria da expressão no rosto dela: era mais terrível do que qualquer atrocidade que já vira, como se ela estivesse sendo esfolada viva, como se os braços e pernas estivessem amarrados, e a pele estivesse sendo arrancada de seu corpo.

Qhuinn saiu do avião.

– Ele está bem, ele está bem, prometo... Ele está bem.

Bella se imobilizou, como se aquela fosse a última coisa que ela esperasse ouvir.

– Minha nalla, entre – disse Z. no mesmo tom baixo que usara com Qhuinn. – Entre aqui.

A fêmea chegou a olhar para Blay como se precisasse de uma garantia para saber se aquilo que ouvia estava correto. Em resposta, ele simplesmente a levou pelo cotovelo e a ajudou a passar pela portinhola.

Depois, mais uma vez virou de frente para bloquear a passagem. Enquanto os sons da fêmea chorando livremente em sinal de alívio emanavam, ele viu Qhuinn passar as mãos sobre os olhos como se o macho estivesse se livrando de lágrimas.

– Caramba, filho, eu não sabia que você sabia pilotar – alguém disse.

Enquanto Qhuinn levantava a cabeça, aparentemente olhando de relance para o cenário, Blay fez o mesmo. Pense numa cena apocalíptica: havia um rastro em toda a extensão pela qual o avião passara, como se o dedo de Deus tivesse feito uma linha em todo o jardim.

– Na verdade... eu não sei – murmurou Qhuinn.

V. levou o cigarro aos lábios e estendeu a palma.

– Você trouxe o meu Irmão de volta em um só pedaço. Que se foda o resto.

– Verdade...

– Sim, graças a Deus...

– Diabos, é isso aí...

– Amém...

Um a um, a Irmandade se adiantou, cada um deles erguendo a mão da adaga. A procissão levou um tempo, mas ninguém parecia se importar com o frio.

Blay, por certo, não o sentia. A ponto de ficar paranoico...

Colocando a mão dentro da jaqueta, encontrou o tórax e se deu um beliscão bem forte.

Ai.

Fechando os olhos, fez uma prece silenciosa para que aquilo fosse mesmo verdade... e não o horror que poderia ter sido.

Toda aquela atenção estava deixando Qhuinn nervoso.

E o seu pequeno voo nem fora uma experiência tão zen assim. A queimadura no rosto por causa de todo aquele vento, as dores nos ombros e nas costas, as pernas trêmulas... Ele sentia como se ainda estivesse lá em cima, ainda rezando para nada em que acreditava existir, parado e para sempre no limiar.

Da morte.

Além disso, estava tremendamente envergonhado. Deixar-se abater daquele jeito diante de Z.? Ora essa... Que covarde.

– Importam-se se eu der uma olhada? – a doutora Jane disse ao se aproximar da multidão.

Sim, uma boa ideia. O objetivo de tudo aquilo foi Z. estar ferido tão gravemente que não conseguia se desmaterializar.

– Qhuinn? – disse a fêmea.

– Como disse? – ah, ele estava atrapalhando. – Ok, deixe-me sair da frente...

– Não, não o Zsadist. Você.

– Hum?

– Você está sangrando.

– Estou?

A médica virou a mão dele.

– Vê? – e, como era de se esperar, escorriam gotas vermelhas de suas palmas. – Você acabou de esfregar o rosto. Está com um corte feio na cabeça.

– Ah, ok – talvez por isso se sentisse tão aéreo? – E quanto a Z.?

– Manny já está lá dentro.

Hum. Devia ter perdido aquela parte.

– Quer dar uma olhada em mim aqui?

Ela deu uma risada de leve.

– Que tal levarmos você de volta para a casa? Se conseguir andar.

– Eu cuido dele...

– Pode deixar que eu levo...

– Eu levo...

– Já peguei...

O coro de voluntários foi uma surpresa, bem como todos os braços solícitos que apareceram de todos os lados: ele, literalmente, foi envolvido por braços fortes de lutadores, e todos quase a carregá-lo do lugar como se estivesse fazendo stage diving num show de rock.

Ele olhou para trás, esperando ver Blay, rezando para se deparar com os olhos dele, mesmo isso sendo loucura...

Mas Blay estava lá.

O lindo olhar azul estava logo ali, tão firme e certo ao sustentar o seu que ele quase desmoronou novamente. E ele retirou forças daquele olhar, assim como o fizera na época em que passavam tanto tempo juntos. A verdade era que ele desejava que fosse Blay a levá-lo de volta à mansão, mas ninguém se arriscava a dizer nada à Irmandade quando ela aparecia em massa assim. Além disso, sem dúvida o cara pensaria que estariam próximos demais.

Qhuinn se concentrou no caminho à frente. Puta... merda...

O jardim fora completamente dizimado, metade da cerca viva de três metros de altura próxima à casa fora cortada, todos os tipos de árvore arrancados, arbustos aparados, os restos da colisão espalhados por todos os lados como estilhaços de uma metralha.

Caramba, muito do entulho se parecia com partes de avião.

Ah, olhe ali um painel de aço.

– Esperem – disse, libertando-se. Inclinando-se, pegou um fragmento afiado do chão no lugar em que derretera a neve. Ele podia jurar que a coisa ainda estava quente. – Eu sinto muito mesmo... disse para ninguém em especial.

A voz do Rei rebumbou diante dele:

– Por manter o meu Irmão vivo?

Qhuinn levantou a cabeça. Wrath saíra da biblioteca com George de um lado e a rainha do outro. O macho parecia tão grande e forte quanto a mansão atrás dele: mesmo cego, ele se parecia com um super-herói com aqueles óculos escuros encobrindo os olhos.

– Eu destruí o seu jardim – murmurou Qhuinn ao se aproximar do macho real. – Quero dizer... mudei o paisagismo de um modo muito ruim.

– Isso dará a Fritz algo para fazer na primavera. Você sabe o quanto ele adora arrancar ervas daninhas.

– Esse é o último dos seus problemas. Tenho quase certeza de que vai precisar de uma escavadeira.

Wrath se adiantou, encontrando-o no meio da varanda.

– Esta é a segunda vez, filho.

– Que eu arruinei algo mecânico nas últimas 24 horas? É, eu sei... Da próxima vez, é provável que eu destrua um navio de guerra.

As sobrancelhas negras se abaixaram.

– Não é disso que estou falando.

Ok, aquilo tinha de terminar logo. Ele realmente detestava ter as atenções voltadas para si.

Deliberadamente ignorando a afirmação do Rei, ele disse:

– Bem, a boa notícia é, meu Rei, que não estou pensando numa terceira rodada. Por isso, acho que vamos estar seguros daqui por diante.

Houve um murmúrio coletivo de concordância.

– Posso levá-lo para a clínica agora? – a doutora Jane interrompeu.

Wrath sorriu, as presas refletindo o luar.

– Faça isso.

Graças a Deus... a noite chegava ao fim.

– Onde está Layla? – a médica perguntou quando entraram no calor da biblioteca. – Acho que você precisa se alimentar.

Merda.

Enquanto a legião em roupas de couro atrás deles concordava com a ideia, os olhos de Qhuinn reviraram. Uma crise por noite era mais do que o suficiente. A última coisa na qual ele estava interessado era explicar por que, exatamente, a Escolhida não poderia ser usada como fonte de sangue.

– Você parece tonto – alguém comentou.

– Acho que ele vai...

E essa foi a última coisa que ele ouviu por um tempo.


CONTINUA

CAPÍTULO 11

Blay baixou a cabeça com uma imprecação enquanto a porta da academia se fechava. E claro, daquele ângulo, tudo o que enxergava era a sua ereção.

O que não ajudou.

Levantando o olhar, viu a barra fixa, e soube que tinha de fazer alguma coisa. Ficar sentado ali meio embriagado com uma festa armada entre as pernas dificilmente era uma posição na qual queria ser flagrado. Se um Irmão como Rhage entrasse e visse aquilo? Blay teria de aguentar a gozação pelo resto da vida. Além disso, estava com roupas de ginástica, cercado por equipamentos, portanto, só lhe restava se ocupar, puxar um pouco de ferro, e esperar que o senhor Alegria afundasse em depressão por falta de atenção.

Um bom plano.

Mesmo.

Claro.

Quando, um pouco depois, olhou para o relógio, percebeu que uns quinze minutos haviam se passado e ele não estava mais próximo de movimentos repetitivos e construtivos, a menos que se considerasse a respiração.

Sua ereção tinha uma sugestão para esse tipo de objetivo.

E sua palma se preparou, indo para o meio das pernas, encontrando a rigidez...

Blay levantou do assento num pulo e seguiu para a porta. Chega de idiotice. Iria para o banheiro do vestiário na esperança de reciclar um pouco do álcool no seu sistema. Depois voltaria para a esteira e suaria o resto da bebida.

Depois disso, seria hora de ir para a cama, onde, se precisasse de uma válvula de descarga do tipo erótico, ele a encontraria no local apropriado.

O primeiro sinal de que seu novo plano poderia levá-lo para mais confusão surgiu quando empurrou a porta do vestiário: o som de água corrente significava que alguém estava atarefado com o ritual do xampu e sabonete. Ele estava tão concentrado em se chutar no traseiro, porém, que nem se preocupou com qualquer conclusão.

O que o teria feito parar, virar e encontrar outro banheiro o mais rápido possível.

Em vez disso, passou pelos armários e foi fazer o que tinha de ser feito. Só quando estava lavando as mãos que os cálculos começaram a ser computados.

Por vontade própria, a cabeça girou na direção dos chuveiros.

Você tem que sair, ele se ordenou.

Ao desligar a torneira, o rangido sutil pareceu mais alto que um grito, e ele se recusou a se olhar no espelho. Não queria enxergar o que havia em seu olhar.

Volte para a porta. Apenas volte para a porta. Apenas...

O fracasso do seu corpo em seguir esse simples comando não foi apenas um exercício de rebelião física. Era, tragicamente, um padrão.

E ele se lamentaria mais tarde.

No momento, contudo, quando ele tomou a decisão de se aproximar e se esgueirar ao redor da parede de azulejos para os chuveiros, onde se manteve praticamente escondido, e espiou o macho que não deveria... a tresloucada onda de emoção que era tão dolorosamente familiar, era um conjunto de roupas feito sob medida para a sua insanidade.

Qhuinn estava de frente para o chuveiro com uma mão contra a parede escorregadia, a cabeça morena pensa debaixo do jato. A água corria pelos ombros e pelos acres de pele flexível que recobria as costas poderosas... depois descia pelo traseiro magnífico... e seguia em frente, passando pelas pernas longas e musculosas.

Durante o último ano, o lutador encorpara muito. Qhuinn ficara grande depois da transição e crescera ainda mais durante os primeiros meses de alimentação intensa. Mas já fazia um tempo desde que Blay não o via sem roupas... e, caramba, a rotina de puxar ferro à qual ele se submetera mostrava os resultados em todos aqueles músculos definidos...

Abruptamente, Qhuinn mudou de posição, virando, jogando a cabeça para trás, fazendo a água correr pelo cabelo escuro, aquele corpo incrível arqueando.

Ele manteve o piercing no pênis.

E, puta merda, estava excitado...

Um orgasmo imediatamente ameaçou a cabeça do pênis de Blay, os testículos ficando duros como punhos cerrados.

Dando meia-volta, ele saiu do vestiário como se tivesse sido lançado de um canhão, empurrando a porta, saindo em disparada no corredor.

– Ai, merda... cacete... puta que o...

Andando o mais rápido que podia, ele tentou tirar aquela imagem da cabeça, lembrando-se de que tinha um amante, que tocara a vida, que era possível se autodestruir a respeito da mesma coisa apenas uma limitada quantidade de vezes e que depois se chegava ao fim.

Quando nada disso funcionou, ele repetiu o discurso que fizera para Qhuinn no guincho...

Inferno, onde ficava o escritório?

Parando, olhou ao redor. Ah, fantástico. Tomara a direção oposta daquela que pretendia ter tomado, e agora tinha passado pela clínica e estava na ala de salas de aula do centro de treinamento.

A quilômetros de distância da entrada do túnel.

– ... laceração tão profunda. Mas ele não teve nada disso.

A voz grave de Manny Manello precedeu o homem que vinha pelo corredor saindo da sala de exames. Um segundo depois, a doutora Jane apareceu bem ao lado dele, com um prontuário aberto na mão, a ponta do dedo descendo pela página.

Blay se enfiou na primeira porta que encontrou...

E se deparou com uma parede de escuridão. Apalpando para encontrar um interruptor, visto que estava abalado demais para acender qualquer luz mentalmente, encontrou um, apertou e ficou momentaneamente cego.

– Ai!

A dor aguda que subiu da canela para o cérebro lhe disse que ele colidira com algo grande.

Ah, uma escrivaninha.

Estava num daqueles miniescritórios satélites das salas de aula, e isso era uma notícia muito boa. Com o programa de treinamento ainda suspenso por causa dos ataques, não havia ninguém ali embaixo, e provavelmente ninguém teria motivo para estar naquela saleta vazia.

Ele poderia ter um pouco de privacidade por um tempo, o que era uma bênção. Deus bem sabia que ele não tentaria voltar para a mansão agora. Com a sua sorte, acabaria se deparando com Qhuinn, e a última coisa de que ele precisava era estar perto do cara.

Indo para trás da escrivaninha, sentou-se na cadeira de escritório acolchoada e levantou as pernas, esticando-as sobre a superfície que deveria conter um computador, uma planta, um pote cheio de canetas. Em vez disso, estava vazia, ainda que não estivesse empoeirada. Fritz jamais permitiria isso mesmo num cômodo desocupado.

Esfregando a parte dolorida na canela, ficou evidente que produziria um belo hematoma. Mas ao menos a dor o distraíra daquilo que o motivara até ali.

Entretanto, isso não durou muito.

Ao inclinar a cadeira para trás e fechar os olhos, sua mente retornou ao vestiário.

E ele pensou se a tortura nunca teria um fim.

Deus, seu pênis estava latejando.

Considerando suas opções, ele ordenou que as luzes se apagassem, fechou os olhos e comandou que seu cérebro se desligasse para ele poder dormir. Se, ao menos, ele conseguisse cochilar uma ou duas horas ali, acordaria mais sóbrio, flácido e pronto para enfrentar as pessoas novamente.

Bem, esse era um bom plano, e também o ambiente era perfeito. Escuro, fresquinho, bem tranquilo do modo como somente as instalações subterrâneas podem ser.

Ajeitando o corpo ainda mais para baixo na cadeira, cruzou os braços sobre o peito e se preparou para o trem do sono REM chegar à estação.

Quando isso não funcionou, ele começou a imaginar todo tipo de situação “de desligamento”, como aspiradores de pó sendo puxados da tomada e incêndios sendo apagados com água e telas de TV escurecendo...

Qhuinn estava tão altamente “transável” daquele jeito, o corpo macio e liso entalhado em músculos, o sexo grosso e orgulhoso. Toda aquela água o deixara escorregadio e sensual... e, santa Virgem Escriba, Blay teria dado praticamente qualquer coisa para se aproximar, se ajoelhar e tomar o sexo dele na boca, sentindo aquela cabeça com suas investidas penetrantes em sua língua ao entrar e sair...

O som desgostoso que emitiu ecoou, parecendo mais alto do que provavelmente fora.

Abrindo os olhos, tentou tirar da cabeça qualquer fantasia que envolvesse chupar. Mas a escuridão completa não ajudou; apenas formou a tela perfeita para ele continuar a projetar as imagens.

Praguejando, deu uma chance para o lance de ioga, com o qual você relaxa a tensão em cada parte do corpo, começando pela prega sempre presente entre as sobrancelhas, depois as cordas rígidas que desciam pelos ombros até a base do crânio. O peito também estava apertado, os peitorais contraídos sem nenhum motivo aparente, os bíceps afundando nos antebraços.

Em seguida, ele deveria focar no abdômen, depois nas nádegas e coxas, nos joelhos e panturrilhas... até a pontinha do pé.

Ele não chegou tão longe.

Pensando bem, tentar convencer sua excitação sobre qualquer tipo de maleabilidade demandaria poderes de persuasão que seu cérebro parcialmente embriagado não possuía.

Infelizmente, só havia um modo seguro de se livrar do senhor Alegria. E, no escuro, sozinho, com a garantia de que “ninguém nunca vai ficar sabendo”, por que ele não podia simplesmente cuidar daquilo, apagar o fogo e desmaiar? Não era muito diferente de despertar no meio da noite com uma ereção – porque Deus bem sabia que não havia nenhuma emoção envolvida. E ele estava alcoolizado, certo? Então isso era mais uma razão.

Repetiu a si mesmo que não estava traindo Saxton. Não estava com Qhuinn – e era Saxton quem ele queria...

Por um instante, ele continuou a pesar os prós e os contras, mas, no fim, sua mão tomou a decisão por ele. Antes de se dar conta, a palma se escondia debaixo do cós folgado e...

O sibilo que emitiu ao se segurar foi como um tiro no silêncio, assim como o rangido da cadeira quando a investida dos quadris empurrou os ombros contra o estofamento de couro. Quente e duro, grosso e longo, seu pênis clamava por atenção, mas a angulação estava errada, e não havia espaço para mexer dentro dos malditos shorts.

Por algum motivo, a ideia de se despir da cintura para baixo o fez se sentir sujo, mas seu senso de decoro foi para o espaço bem rápido quando tudo o que ele conseguia fazer era apertar. Elevando o traseiro, abaixou os shorts, depois percebeu que precisaria de alguma coisa para limpar a bagunça.

A camiseta foi retirada em seguida.

Nu no escuro, esticado da cadeira para a escrivaninha, ele se entregou, afastando as pernas, bombeando para cima e para baixo. A fricção fez seus olhos revirarem, morder o lábio inferior. Deus, as sensações eram tão boas, fluindo pelo corpo...

Droga.

Qhuinn estava na sua cabeça, Qhuinn estava na sua boca... Qhuinn estava dentro dele, os dois se movendo juntos...

Isso era errado.

Congelou. Parou de pronto.

– Merda.

Blay soltou o pênis, ainda que o simples processo de desistir da traição o fizesse cerrar os molares.

Abrindo os olhos, fitou a escuridão. O som da sua respiração entrando e saindo do peito o fez praguejar novamente. Assim como a necessidade pulsante de um orgasmo – ao qual ele se recusava a ceder.

Não daria continuidade àquilo...

Do nada, a imagem de Qhuinn arqueado debaixo do jato de água golpeou sua mente, assumindo o controle. Contrariando seu raciocínio, sua lealdade, seu senso de justiça... seu corpo se sobrecarregou, o orgasmo atingindo o pênis antes que ele o conseguisse detê-lo, antes que ele conseguisse negar, pois aquilo não era certo... antes que ele conseguisse dizer “De novo, não. Nunca mais”.

Ah, Deus. A sensação doce e penetrante, repetida uma vez depois da outra até ele se perguntar se aquilo um dia terminaria, mesmo ele não tendo ajudado.

Aquela reação física podia estar além do seu controle. Sua reação a ela não.

Quando ele se aquietou por fim, a respiração estava agitada e o frio na pele nua do peito sugeria que ele suara... e enquanto o corpo se recuperava, sua consciência retornava, e a ereção murchando era como um barômetro do seu humor.

Esticando-se, apalpou a mesa até encontrar a camiseta; depois esfregou-a e pressionou-a na junção das coxas.

O resto da confusão em que se metera não seria tão fácil de limpar.

Do outro lado da cidade, no 18o andar do Commodore, Trez estava sentado numa cadeira lustrosa de aço e couro que ficava de frente para a parede envidraçada dando para o rio Hudson. O sol do meio-dia brilhava mais por causa da neve fresca que caíra nas margens durante a noite.

– Sei que está aqui – disse secamente, sorvendo um gole da caneca de café.

Quando não houve resposta, ele rodopiou a cadeira em sua base giratória. Como esperado, iAm viera do quarto e estava sentado no sofá, com o iPad no colo, o indicador deslizando pela tela. Ele devia estar lendo a edição online do The New York Times, claro; era o que fazia toda manhã ao acordar.

– Então – disse Trez. – Manda ver.

A única resposta que teve foi uma das sobrancelhas de iAm se erguendo. Por, digamos, meio segundo.

O bastardo presunçoso nem olhava para ele.

– Deve ser um artigo fascinante. Sobre o que é? Irmãos teimosos?

Trez passou algum tempo segurando a caneca de café quente.

– iAm. Sério. Que bobagem.

Depois de um momento, o olhar escuro do irmão se ergueu. Os olhos que sustentaram os seus estavam, como sempre, completamente livres de emoção, dúvida e todas as asneiras com que os mortais lidavam. iAm era sensível de maneira sobrenatural... como uma cobra: atenta, inteligente, pronta a atacar, mas relutante em desperdiçar força até que fosse necessário.

– O que foi? – resmungou Trez.

– Seria redundante lhe dizer o que você já sabe.

– Faça isso por mim – ele sorveu mais um gole e se perguntou por que diabos estava se oferecendo para aquilo. – Vá em frente.

Os lábios de iAm se contraíram como sempre quando ele pensava numa resposta. Depois ele fechou a capa do iPad, cada uma das quatro seções descendo como pegadas na tela. Então ele pôs de lado o equipamento, descruzou as pernas e se inclinou para frente para equilibrar os cotovelos sobre os joelhos. Os bíceps dele eram tão grossos que as mangas da camisa pareciam que se rasgariam.

– Sua vida sexual está fora de controle – enquanto Trez revirava os olhos, o irmão continuou a falar. – Está transando com três ou quatro mulheres por noite, às vezes mais. Não se trata de alimentar-se, portanto não perca o nosso tempo tentando usar essa desculpa. Você está comprometendo os padrões profissionais do...

– Eu lido com bebidas e prostitutas. Não acha que isso parece um pouco intelectual...

iAm pegou o iPad e o balançou.

– Devo voltar a ler?

– Só estou dizendo...

– Você me pediu para falar. Se isto é um problema, a solução não é ficar na defensiva porque não gosta do que está ouvindo. A resposta é não me convidar a falar.

Trez cerrou os dentes. Veja, era esse o problema com o maldito irmão. Ele era sensato demais.

Levantando-se num rompante, atravessou a sala ampla. A cozinha era como todo o resto do apartamento: moderna, arejada e despojada. O que significava que se ele se servisse de um pouco mais de cafeína, conseguiria enxergar o irmão em sua visão periférica.

Caramba, às vezes ele detestava aquele lugar. A menos que estivesse no quarto com a porta fechada, não conseguia se livrar daqueles olhos.

– Devo ler ou falar? – perguntou iAm com tranquilidade, como se isso lhe fosse indiferente.

Caramba, como Trez queria falar para o cara enfiar o nariz no jornal, mas isso seria o mesmo que admitir uma derrota.

– Continue – Trez voltou à poltrona e se preparou para uma surra.

– Você não está se comportando de maneira profissional.

– Você come no Sal’s.

– O meu linguini com molho de mariscos não requer uma ordem judicial quando decido que na noite seguinte quero o Fra Diavolo.

Bem observado. E, de alguma forma, isso o fez se sentir quase violento.

– Sei o que está fazendo – disse iAm. – E por quê.

– Você não é virgem, portanto é claro que...

– Sei o que lhe enviaram.

Trez parou.

– Como?

– Quando você não atendeu, recebi um telefonema.

Trez empurrou o tapete debaixo dos pés e girou a cadeira para ficar de frente para o rio. Merda. Ele imaginou que acalmaria a situação com aquilo, do tipo, dar ao irmão uma sessão de sermão para que os dois pudessem voltar ao normal. Eles costumavam ser como pele e osso, e o bom relacionamento era essencial.

Ele conseguia lidar com quase tudo, exceto com um desentendimento com o irmão.

Infelizmente, os problemas sobre os quais se referiam ali eram a única coisa no “quase tudo”.

– Ignorar não vai fazer isso desaparecer, Trez.

Isso foi dito com uma certa medida de gentileza, como se o cara lamentasse por ele.

Enquanto Trez fitava o rio, imaginou estar em seu clube, com humanos cercando-o, o dinheiro trocando de mãos e as mulheres que trabalhavam lá fazendo o que faziam nos fundos. Legal. Normal. Controlado e confortável.

– Você tem responsabilidades.

Trez segurou a caneca com mais força.

– Não me apresentei como voluntário a eles.

– Não importa.

Ele virou com tanta rapidez que derramou café na coxa. Ignorou o ardor.

– Deveria. O cacete como deveria. Não sou um objeto inanimado que eles podem dar a quem quiserem. A coisa toda é uma tolice.

– Alguns considerariam uma honra.

– Bem, eu não. Não vou me amarrar àquela fêmea. Não me importo quem ela seja ou quem armou isso ou quão “importante” isso é para o s’Hisbe.

Trez se preparou para a enxurrada do “ah, sim, você vai”. Em vez disso, seu irmão pareceu triste, como se ele também não quisesse aquela maldição.

– Vou repetir, Trez. Isso não vai desaparecer num passe de mágica. E tentar sair dessa transando por aí? Não só é fútil, como potencialmente perigoso.

Trez esfregou o rosto.

– As mulheres são apenas humanas. Elas não têm importância – ele voltou a olhar para o rio. – E, francamente, se eu não fizer alguma coisa, vou enlouquecer. Um punhado de orgasmos tem que ser melhor do que isso, certo?

Enquanto o silêncio retornava, ele soube que o irmão discordava dele. Mas a prova de que sua vida estava na mais absoluta merda era que a conversa terminara ali.

iAm, pelo visto, não era o tipo de homem que chuta um cara caído.

Tanto faz. Ele não se importava com o que se esperava dele. Ele não voltaria para ser condenado a uma vida de serviços forçados.

Pouco se importava se era para a filha da rainha.


CAPÍTULO 12

Era fim de tarde quando Wrath chegou a um beco sem saída. Estava à mesa, sentado no trono do pai, os dedos percorrendo um relatório escrito em braille, quando, de repente, não conseguia ler nem mais uma maldita palavra do texto.

Empurrando os papéis para o lado, praguejou e arrancou os óculos escuros do rosto. Bem na hora em que estava para lançá-los contra a parede, sentiu um focinho no cotovelo.

Passando o braço ao redor do golden retriever, pressionou a mão no pelo macio que crescia nos flancos do cachorro.

– Você sempre sabe, não é?

George se aninhou, pressionando o peito na perna de Wrath – a dica de que “alguém” queria ser erguido.

Wrath se inclinou e apanhou todos os quarenta quilos nos braços. Enquanto acomodava as quatro patas, a juba de leão e o rabo volante para que tudo coubesse, ele concluiu que era bom que fosse tão alto. Coisas grandes ofereciam um colo grande.

E o ato de afagar todo aquele pelo o acalmou, mesmo que não lhe tranquilizasse a mente.

Seu pai fora um Rei notável, capaz de suportar inúmeras horas de cerimônias, noites infindáveis nos esboços de proclamações e convocações, meses e anos inteiros de protocolo e tradição. E isso antes de ser inundado pelo fluxo perene de reclamações que vinham de todos os lados: cartas, telefonemas, e-mails – ainda que, obviamente, os últimos estivessem fora de questão na época do seu pai.

Wrath, um dia, fora um lutador. Um excelente lutador.

Levantando a mão, sentiu a lateral do pescoço, o lugar por onde a bala entrara...

A batida à porta foi decidida, direta ao ponto, mais uma exigência do que uma solicitação respeitosa para entrar.

– Pode entrar, V. – respondeu.

O odor adstringente da hamamélis que precedeu o Irmão foi uma pista evidente de que alguém estava irritado. E, com toda certeza, sua voz grave tinha uma ponta de descontentamento.

– Finalmente terminei os testes de balística. Malditos fragmentos sempre tomam tempo demais.

– E? – Wrath o instigou.

– É uma combinação perfeita. Cem por cento – enquanto Vishous se sentava na cadeira oposta à mesa, a peça de mobília rangeu debaixo do peso. – Nós os pegamos.

Wrath exalou longamente, parte do zumbido impotente escorrendo de sua mente.

– Bom – ele correu a mão pela cabeça grande de George, descendo até as costelas. – Então, esta é a nossa munição.

– Exato. O que aconteceria de qualquer maneira agora toma uma forma legal.

A Irmandade soubera o tempo todo quem estivera por trás do tiro que quase matara o Rei no outono, e a tarefa de acabar com o Bando de Bastardos um a um era algo que eles encaravam muito mais como uma tarefa sagrada para a raça.

– Olha aqui, eu preciso ser franco, certo?

– E quando não foi? – Wrath argumentou.

– Por que diabos está atando as nossas mãos?

– Eu não sabia que estava fazendo isso.

– Com Tohr.

Wrath reposicionou George a fim de que o fluxo sanguíneo da perna esquerda não ficasse completamente bloqueado pelo peso do cão.

– Ele solicitou o decreto.

– Todos nós temos o direito de acabar com Xcor. O cretino é o prêmio que todos nós queremos. Isso não deveria estar restrito somente a ele.

– Ele pediu.

– Isso só faz com que seja muito mais difícil matar o bastardo. E se um de nós o encontrar, e Tohr não estiver conosco?

– Vocês o trazem para cá – houve uma longa pausa, um silêncio tenso. – Você me ouviu, V.? Traga aquele monte de merda para cá e deixe Tohr fazer o serviço.

– O objetivo é eliminar o Bando de Bastardos.

– E como isso o impede de fazer o seu trabalho? – quando não houve resposta, Wrath balançou a cabeça. – Tohr estava naquela van comigo, meu Irmão. Ele salvou a minha vida. Sem ele...

Enquanto a frase não foi finalizada, V. praguejou baixinho, como se estivesse fazendo os cálculos sobre aquela lembrança e chegando à conclusão de que o Irmão que teve que cortar o tubo plástico da sua garrafa CamelBak e executar uma traqueotomia no seu Rei num veículo em movimento a quilômetros de distância de qualquer ajuda médica deveria ter um tantinho só a mais de direito de matar o criminoso.

Wrath sorriu de leve.

– Que tal se, só porque eu sou um cara legal, eu deixar que cada um de vocês dê um soco nele antes que Tohr mate o filho da puta com as próprias mãos? Fechado?

V. riu.

– Isso alivia um pouco.

A batida que os interrompeu foi baixa e respeitosa, uma sequência de batidinhas leves que parecia sugerir que quem quer que fosse ficaria feliz em ser mandado embora, satisfeito em aguardar, ou esperava por uma audiência imediata, tudo ao mesmo tempo.

– Pois não? – chamou Wrath.

Uma colônia cara anunciou a chegada do advogado: Saxton sempre cheirava bem, e isso se encaixava em sua personalidade. Pelo que Wrath lembrava, além da excelente educação do cara e da qualidade do seu raciocínio, ele sempre se vestia de acordo com a moda como um filho bem nascido da glymera. Isso é, com perfeição.

Não que Wrath tivesse visto isso recentemente.

Ele recolocou os óculos num movimento rápido. Uma coisa era se expor na frente de V.; isso não aconteceria diante do macho jovem e eficiente que passava pela porta, não importando o quanto Sax fosse confiável e profissional.

– O que tem para mim? – perguntou Wrath enquanto o rabo de George se movia de um lado para o outro à guisa de um cumprimento.

Houve uma longa pausa.

– Talvez seja melhor eu voltar mais tarde?

– Você pode dizer qualquer coisa na frente do meu Irmão.

Outra pausa longa, durante a qual V. provavelmente encarava o advogado como se quisesse tirar um naco do traseiro do garoto bonito e bem-vestido por sugerir que havia uma divisa de informações que precisava ser respeitada.

– Mesmo que seja sobre a Irmandade? – Saxton perguntou com franqueza.

Wrath praticamente sentia os olhos gélidos de V. virando de direção. E, como esperado, o Irmão bradou:

– O que há conosco?

Quando Saxton permaneceu calado, Wrath deduziu sobre o que se tratava.

– Pode nos dar um minuto, V.?

– Está de brincadeira?

Wrath pegou George e o colocou no chão.

– Só preciso de cinco minutos.

– Tudo bem. Divirta-se, meu senhor – grasnou V. ao se levantar. – Merda.

Um instante depois, a porta bateu.

Saxton pigarreou.

– Eu poderia ter voltado depois.

– Se eu quisesse isso, eu teria lhe dito. Agora fale.

Uma inspiração profunda, seguida de uma expiração, como se o civil estivesse olhando para a saída e se perguntando se a partida intempestiva de V. poderia ser a causa de ele acordar morto mais tarde.

– Hum... a auditoria das Leis Antigas está completa, e eu posso lhe fornecer uma lista completa das seções que necessitam de emendas, além de reformulações propostas, e um cronograma para que as mudanças possam ser implementadas se...

– Sim ou não. É tudo o que me interessa.

A julgar pelo sussurro dos sapatos resvalando o tapete Aubusson, Wrath deduziu que o advogado estava andando de um lado para o outro. De cabeça, ele visualizou o escritório, desde as paredes azul-claras até as cornijas em arabesco e toda a mobília francesa antiga e frágil.

Saxton fazia mais sentido naquele cômodo do que Wrath com seu couro e camiseta justa.

Mas a lei prescrevia quem deveria ser o Rei.

– Você precisa começar a mexer os lábios, Saxton. Garanto que não será demitido se falar comigo francamente. Se tentar editar a verdade ou suavizá-la? Isso sim o fará cair, pouco importando com quem está dormindo.

Houve um novo pigarrear. E então, a voz aculturada chegou até ele diretamente do outro lado da escrivaninha.

– Sim, pode fazer o que desejar. No entanto, preocupo-me quanto ao momento.

– Por quê? Porque vai precisar de dois anos para fazer as emendas?

– O senhor está fazendo uma mudança fundamental na seção da sociedade que protege a espécie – e isso pode desestabilizar ainda mais o seu governo. Estou a par das pressões que tem sofrido, e seria negligente de minha parte se eu não apontasse o óbvio. Se o senhor alterar a prescrição sobre quem pode entrar na Irmandade da Adaga Negra, isso poderá provocar ainda mais abertura para dissensão... isso não se parece com nada que tenha tentado em seu reinado, e virá numa época de extremo distúrbio social.

Wrath inspirou profundamente pelo nariz – e não captou vibração negativa; não havia evidências de que o homem estivesse sendo fraudulento ou que não estivesse disposto a realizar o trabalho.

E ele tinha razão.

– Agradeço sua opinião – disse Wrath. – Mas não vou me curvar ante o passado. Recuso-me. E se eu tivesse dúvidas a respeito do macho em questão, eu não estaria fazendo isso.

– Como os outros Irmãos se sentem a esse respeito?

– Isso não é da sua conta – na verdade, não tocara no assunto com eles ainda. Afinal, por que se importar se não houvesse possibilidade de seguir adiante? Tohr e Beth eram os únicos que sabiam exatamente até onde ele estava preparado para levar aquilo. – Quanto tempo vai levar para que você torne isso oficial?

– Posso deixar tudo preparado para o alvorecer de amanhã, no máximo ao anoitecer.

– Faça isso – Wrath cerrou um punho e o bateu no braço do trono. – Faça isso agora.

– Como desejar, meu senhor.

Houve uma movimentação de tecidos finos, como se o macho estivesse se inclinando, e depois mais passos antes que uma das portas duplas se abrisse e se fechasse.

Wrath fitou o vazio produzido pelos seus olhos cegos.

Tempos perigosos por certo. E francamente, o sensato a fazer era ter mais Irmãos, e não pensar em motivos para não os ter, ainda que a contra-argumentação fosse: se aqueles três garotos estavam dispostos a lutar ao lado deles sem serem iniciados, por que se importar?

Foda-se. Era costume antigo querer honrar alguém que tivesse colocado a própria vida em risco só para que a dele pudesse continuar.

A real questão, contudo, tirando as leis... era: o que os outros pensariam?

Muito provavelmente seria isso a colocar um freio na questão mais do que qualquer detalhe legal.

Quando a noite caiu horas mais tarde, Qhuinn estava deitado nu na cama. Ele dormia, mas nem seu corpo nem sua mente estavam descansando.

Em seu sonho, ele tinha voltado para o acostamento da estrada, tendo saído a pé da casa da família. Carregava no ombro uma bolsa de lona, a proclamação de deserdação enfiada na cintura e uma carteira que, a não ser por onze dólares, estava vazia.

Tudo estava bem nítido. Nada fora modificado devido a um erro de reprodução de memória: desde a noite úmida de verão e o som dos seus New Rocks no pedregulho do acostamento... até o fato de ele ter ciência de que não havia nada em seu futuro.

Não tinha para onde ir. Nenhum lar para onde voltar.

Nenhuma perspectiva. Nem mesmo um passado.

Quando o carro parou atrás dele, ele sabia que só podia ser John ou Blay...

Mas, não. Não foram seus amigos. Era a morte na forma de quatro machos em mantos negros que saíram por quatro portas e convergiram ao seu redor.

Uma Guarda de Honra. Enviada pelo seu pai para surrá-lo por desonrar o nome da família.

Quanta ironia. Alguém haveria de deduzir que esfaquear um sociopata que tentara estuprar seu colega seria uma coisa boa. Mas não quando o agressor era o seu perfeito primo de primeiro grau.

Em câmera lenta, Qhuinn se colocou em postura de luta, preparado para enfrentar o ataque. Não havia olhos para encarar, nenhum rosto em que reparar – e não havia motivo para tal: o fato de os mantos esconderem suas identidades supostamente faria com que a pessoa que transgredira sentisse como se toda a sociedade desaprovasse as ações que ele executara.

Circundando, circundando, aproximando-se... No fim, conseguiriam derrubá-lo, mas ele os feriria no processo.

E foi o que fez.

Mas ele também teve razão: depois do que pareceram serem horas de defesa, ele acabou de costas, e foi nesse momento que a surra de fato aconteceu. Deitado no asfalto, ele cobriu a cabeça e o escroto o melhor que pôde, os golpes chovendo sobre ele, mantos negros voando como asas de corvos conforme era golpeado e surrado.

Depois de um tempo, não sentiu dor.

Iria morrer ali no acostamento da estrada...

– Pare! Não devemos matá-lo!

A voz do irmão atravessou tudo aquilo, atingindo-o de um modo como nenhum golpe podia mais...

Qhuinn despertou com um grito, levando as mãos ao rosto, as coxas se elevando para proteger a virilha...

Nenhum punho, nenhum taco vindo em sua direção.

E ele não estava no acostamento da estrada.

Fazendo com que as luzes se acendessem, olhou ao redor do quarto no qual vinha ficando desde que fora expulso da casa da própria família. Não combinava em nada com ele, o papel de parede de seda e os objetos eram algo que a sua mãe escolheria – ainda assim, naquele momento, a visão de toda aquela quinquilharia que outra pessoa escolhera, comprara e pendurara, fez com que ele se acalmasse.

Mesmo enquanto a lembrança pairava.

Deus, o som da voz do irmão.

Seu próprio irmão fizera parte da Guarda de Honra enviada atrás dele. Em retrospecto, isso enviava uma mensagem ainda mais poderosa para a glymera sobre a seriedade com que a família cuidava dos seus assuntos. E não era como se o cara não tivesse sido treinado. Ele aprendera artes marciais, embora, naturalmente, não lhe permitissem lutar. Inferno, mal permitiram que ele brigasse nos treinos.

Valioso demais para a linhagem. E se ele se ferisse? Aquele que seguiria os passos do pai e um dia se tornaria lídher do Conselho poderia ficar exposto.

Risco pequeno de um dano catastrófico para a família.

Qhuinn, por sua vez... Antes de ser renegado, fora colocado no programa de treinamento, talvez com a esperança de que sofresse algum ferimento mortal no campo de batalha e fizesse o favor a todos de morrer com honra.

Pare! Não devemos matá-lo!

Essa fora a última vez em que ouvira a voz do irmão. Pouco depois de Qhuinn ter sido expulso de casa, a Sociedade Redutora conduzira uma onda de ataques e matara a todos, o pai, a mãe, a irmã – e Luchas.

Todos morreram. E mesmo que uma parte sua os odiasse pelo que lhe fizeram, ele não desejaria esse tipo de morte a ninguém.

Qhuinn esfregou o rosto.

Hora de uma chuveirada. Era tudo o que ele sabia.

Pondo-se de pé, espreguiçou-se até as costas estalarem e verificou o celular. Uma mensagem de texto para o grupo anunciava que haveria uma reunião no escritório de Wrath; e uma espiada rápida no relógio lhe informou que ele tinha pouco tempo.

O que não era ruim. Ao passar para velocidade acelerada e se apressar para o banheiro, era um alívio se concentrar em coisas reais em vez de no passado maldito.

Não havia nada que ele pudesse fazer a respeito desse último a não ser amaldiçoá-lo. E ele bem sabia que já fizera isso o suficiente para doze vidas.

Hora de acordar, pensou.

Hora de ir trabalhar.


CAPÍTULO 13

Lá pela mesma hora em que Qhuinn tomava banho na casa principal, Blay despertou na cadeira daquele escritoriozinho no subterrâneo. A dor de cabeça que lhe serviu como despertador não se originava do vinho do Porto, mas pelo fato de ter pulado a Última Refeição. Mas, caramba, bem que ele queria que a bebida estivesse por trás do latejar em seu crânio. Ele poderia se valer disso para justificar o estado absolutamente deplorável com que fora parar ali.

Praguejando, abaixou as pernas da escrivaninha e se sentou melhor. O corpo estava duro como uma tábua, as dores brotavam em todo tipo de lugar enquanto ele fez as luzes se acenderem.

Merda. Ainda estava nu.

Mas até parece que os elfos recatados entrariam sorrateiramente ali para vesti-lo enquanto dormia... só para que ele não se lembrasse do que havia feito?

Vestindo os shorts, enfiou os pés nos tênis e se esticou para pegar a camiseta antes mesmo de se lembrar para o que a usara.

Ao olhar para as dobras amarrotadas do algodão e sentir os pontos endurecidos no tecido macio, deu-se conta de que nenhuma quantidade de racionalização mudaria o fato de ele ter traído Saxton. Contato físico com alguém era apenas uma das medidas da infidelidade – e, sim, isso era o maior divisor. O que fizera na noite anterior, porém, fora uma violação do relacionamento deles, mesmo que o orgasmo tivesse sido causado pelo cérebro e não pela sua mão.

Pondo-se de pé, sentiu-se meio morto ao se encaminhar para a porta e entreabri-la. Se houvesse alguém nas imediações, ele voltaria para dentro e esperaria até que o corredor estivesse vazio. Ele absolutamente não queria ser apanhado saindo daquele escritório vazio, meio despido e com aquela aparência lastimável. O lado bom de viver no complexo era que você estava sempre cercado por gente que se preocupava com você; o lado ruim era que todos tinham olhos e ouvidos, e nenhum assunto particular era totalmente particular.

Quando não ouviu nem vozes nem passos, explodiu para o corredor e começou a caminhar numa passada rápida, como se estivesse estado em algum lugar com determinado propósito e estivesse se dirigindo para o quarto com uma finalidade igualmente importante. Teve a sensação de ter se safado ao chegar ao túnel. Claro, não costumava andar por aí sem camisa, mas muitos dos outros Irmãos e machos faziam isso quando saíam da academia, não era nada extraordinário.

E ele realmente sentiu como se tivesse ganhado na loteria quando saiu de baixo da grande escadaria da mansão e foi recebido por mais uma bela dose de corredor vazio. O único problema era que, pelo som da louça sendo levada da sala de jantar, devia ser mais tarde do que ele imaginava. Obviamente, perdera a Primeira Refeição – notícia ruim para a sua cabeça, mas, pelo menos, ele tinha umas barras de proteína no quarto.

Sua sorte chegou ao fim quando ele subiu as escadas para o segundo andar. Parados diante das portas fechadas do escritório de Wrath, Qhuinn e John estavam vestidos para o combate, com as armas a postos e os corpos cobertos por couro preto.

De jeito nenhum ele olharia para Qhuinn. Só o fato de tê-lo em sua visão periférica era ruim o bastante.

– O que está acontecendo? – perguntou.

Temos uma reunião agora, sinalizou John. Ou, pelo menos, era para termos. Não recebeu a mensagem?

Merda, ele não fazia ideia de onde estava seu telefone. No quarto? Tomara.

– Vou tomar uma chuveirada e volto já.

Talvez tenha de se apressar. Os Irmãos estão a portas fechadas há meia hora. Não sei o que está acontecendo.

Ao lado dele, Qhuinn se balançava para frente e para trás nos coturnos, a oscilação do peso fazendo parecer que estava andando, mesmo ele não indo a parte alguma.

– Cinco minutos – murmurou Blay. – Só preciso disso.

Ele esperava que a Irmandade abrisse as portas até lá, a última coisa que queria era ficar sem fazer nada ao lado de Qhuinn.

Praguejando ao andar, Blay correu até o quarto. Normalmente, ele demorava para se aprontar, ainda mais se Sax estivesse a fim, mas dessa vez seria entrar, chuveiro e...

Ao abrir a porta, parou.

Mas o quê...?

Malas. Na cama. Tantas que ele não conseguia ver mais do que alguns centímetros do edredom. E ele sabia a quem elas pertenciam. Guccis combinando, brancas com o logo azul-marinho e as alças de tecido em azul e vermelho, porque, segundo Saxton, o tradicional marrom sobre marrom com vermelho e verde eram “óbvios demais”.

Blay fechou a porta em silêncio. Seu primeiro pensamento foi “puta merda, Saxton sabe”. De algum modo, ele soube o que aconteceu no centro de treinamento.

O macho em questão apareceu do banheiro com os braços cheios de frascos de xampu, condicionador e outros produtos. E parou no ato.

– Oi – disse Blay. – Vai sair de férias?

Depois de um momento tenso, Saxton se aproximou, colocou os produtos numa mala e se virou. Como sempre, seu lindo cabelo loiro estava afastado da testa em ondas espessas. E ele estava perfeitamente bem vestido, em outro terno de tweed com colete combinando, uma gravata vermelha e um lencinho de bolso também vermelho só para dar o toque certo de cor.

– Acho que você sabe o que vou dizer – Saxton sorriu triste. – Porque você não é nenhum idiota, assim como eu não sou.

Blay foi se sentar na cama, mas teve que mudar de ideia, pois não havia onde se acomodar. Acabou na chaise-longue e, com uma inclinação discreta para o lado, enfiou a camiseta suja debaixo do tecido do saiote. Longe dos olhos. Era o mínimo que podia fazer.

Deus, aquilo estaria mesmo acontecendo?

– Não quero que você vá – Blay se ouviu dizendo com voz grave.

– Acredito nisso.

Blay olhou para além das malas.

– Por que agora?

Pensou nos dois no dia anterior, debaixo dos lençóis, fazendo sexo selvagem. Estiveram tão próximos... Ainda que, sendo brutalmente honesto, talvez aquilo tivesse sido apenas físico.

Retire o talvez.

– Venho enganando a mim mesmo – Saxton balançou a cabeça. – Pensei que poderia continuar com você assim, mas não posso. Isto está me matando.

Blay fechou os olhos.

– Sei que tenho ficado muito tempo fora...

– Não é disso que estou falando.

Enquanto Qhuinn tomava todo o espaço entre eles, Blay quis gritar. Mas que bem aquilo faria? Parecia que ele e Saxton chegaram ao mesmo beco sem saída no mesmo momento lamentável.

Seu amante o fitou por cima da bagagem.

– Acabei aquela missão para Wrath. É uma boa hora para terminarmos, para eu me mudar e encontrar outro emprego...

– Espere, quer dizer que está abandonando o Rei também? – Blay franziu o rosto. – Não importa como estejam as coisas entre nós, você precisa continuar trabalhando para ele. Isso é mais importante do que o nosso relacionamento.

O olhar de Saxton abaixou.

– Suspeito que isso seja mais fácil para você dizer.

– Não é verdade – rebateu Blay inflexível. – Deus, eu... sinto muito.

– Você não fez nada errado. Você tem que saber que não sinto raiva de você, nem amargura. Você sempre foi honesto, e eu sempre soube que terminaria assim entre nós. Eu só não sabia quando. Não sabia... até chegar ao fim. Que é agora.

Ai, droga.

Mesmo sabendo que Saxton estava certo, Blay sentiu uma necessidade compulsiva de lutar por ele.

– Preste atenção, tenho estado distraído na última semana, e eu sinto muito. Mas as coisas vão acabar se ajeitando, e você e eu vamos voltar ao normal...

– Eu te amo.

Blay fechou a boca de súbito.

– Por isso, veja – Saxton continuou rouco –, não foi você quem mudou. Fui eu... e eu sinto que as minhas emoções tolas nos distanciaram.

Blay se colocou de pé e avançou pelo carpete de bela textura até o outro macho.

Ao chegar ao seu destino, ficou aliviado a ponto de sentir lágrimas nos olhos por Saxton aceitar o seu abraço. Ao segurar o seu primeiro amante verdadeiro contra si, sentindo a diferença familiar em suas alturas e o perfume maravilhoso da sua colônia, uma parte dele queria discutir aquele rompimento até que os dois desistissem e continuassem tentando.

Mas não seria justo.

Como Saxton, ele tivera a vaga noção de que as coisas terminariam em algum momento. E, tal qual seu amante, também se surpreendia por ser agora.

O que, claro, não alterava o resultado.

Saxton recuou um passo.

– Nunca tive a intenção de me envolver emocionalmente.

– Desculpe... Eu sinto muito – merda, isso era tudo o que saía da sua boca. – Eu daria tudo para que fosse diferente. Eu queria... ser diferente.

– Eu sei – Saxton esticou a mão e resvalou-a na lateral do rosto dele. – Eu perdoo você... e você tem que se perdoar.

Ele não tinha certeza se poderia fazer isso; ainda mais agora, nesse momento, e como sempre, quando uma ligação emocional que não queria, e que não poderia mudar, mais uma vez o impedia de ter algo que desejava.

Qhuinn era uma tremenda maldição para ele, era isso o que o cara era.

Cerca de 25 quilômetros ao sul da montanha do complexo da Irmandade, Assail despertou em sua cama redonda na suíte principal da sua mansão às margens do Hudson. Acima dele, painéis espelhados cobriam o teto e seu corpo nu estava iluminado com o brilho suave das luzes instaladas ao redor da base do colchão. O quarto octogonal estava escuro fora isso, as cortinas fechadas, a noite escondida.

Ao pensar em todo o vidro da casa, sabia que muitos vampiros considerariam as acomodações inadequadas. Muitos evitariam a mansão por completo.

Risco demais durante o dia.

Assail, contudo, nunca se sentira preso a convenções, e o perigo inerente de morar numa construção com tanto acesso à luz era algo que podia ser administrado, e não evitado.

Levantando-se, foi para a escrivaninha, ligou o computador e acessou o sistema de segurança que monitorava não apenas a casa, mas toda a propriedade. Alertas soaram várias vezes nas primeiras horas do dia, avisos não de ataques iminentes, mas de algum tipo de atividade que fora detectado pelo programa de filtragem do sistema de segurança.

Na verdade, faltava-lhe a energia para se preocupar demais, um sinal indesejável de que precisava se alimentar...

Assail franziu o cenho ao receber o relatório.

Ora, se aquilo não era interessante.

E era exatamente por isso que ele instalara todo aquele equipamento.

Nas imagens produzidas pelas câmeras de trás, ele viu uma figura vestida com uma roupa camuflada de neve passeando em esquis de cross-country pelo meio da floresta, aproximando-se da casa pelo norte. Quem quer que fosse, permaneceu escondido entre os pinheiros grande parte do tempo, e vigiou a casa por diversos ângulos por aproximadamente dezenove minutos... antes de atravessar o limite de pinheiros a oeste, atravessando a propriedade vizinha, e descendo pelo gelo. Duzentos metros mais à frente, o homem parou, pegou os binóculos novamente, e encarou a casa de Assail. Depois, circundou a península que se projetava do rio, voltou a entrar na floresta e desapareceu.

Aproximando-se da tela, Assail repetiu a gravação, aumentando o zoom para identificar a expressão facial, se possível. Mas não foi. A cabeça estava coberta por uma máscara de esqui, com abertura apenas para os olhos, o nariz e a boca. Junto à parca e às calças de esqui, o homem estava coberto dos pés à cabeça.

Recostando-se, Assail sorriu para si mesmo, as presas formigando numa reação territorial.

Só existiam dois grupos que poderiam se interessar em suas atividades, e a julgar pela luz solar que reinara durante aquele reconhecimento, ficou claro que a curiosidade não se originara da Irmandade: Wrath jamais usaria humanos para qualquer outra coisa que não fosse uma fonte derradeira de alimentação, e nenhum vampiro suportaria aquela intensidade de luz solar sem se incendiar.

Restava, então, alguém do mundo humano. E só havia um homem com interesse e recursos para tentar atacar a ele e ao seu território.

– Entre – disse ele pouco antes de uma batida soar à porta.

Enquanto um par de machos entrava, ele não se deu ao trabalho de desviar a vista da tela do computador.

– Como dormiram?

Uma voz conhecida e grave respondeu:

– Como os mortos.

– Que bom para você. Mudança de fuso horário pode ser uma inconveniência, pelo que sei. A propósito, tivemos um visitante esta manhã.

Assail inclinou-se para um lado a fim de que seus dois associados vissem a filmagem.

Era estranho ter gente morando com ele, mas teria que se acostumar à presença deles. Quando chegara ao Novo Mundo, fora uma viagem solitária, e ele tivera a intenção de manter essa situação por inúmeros motivos. O sucesso no ramo escolhido, todavia, exigira que ele chamasse uma retaguarda – e as únicas pessoas nas quais poderia confiar parcialmente eram da família.

E aqueles dois ofereciam um benefício sem igual.

Seus dois primos eram uma raridade na espécie vampiresca: eram gêmeos idênticos. Quando totalmente vestidos, o único modo de distingui-los era por uma única pinta atrás do lóbulo da orelha; fora isso, desde as vozes até os olhos negros e desconfiados, incluindo os corpos musculosos, eram o reflexo perfeito um do outro.

– Vou sair – anunciou Assail. – Se o nosso visitante aparecer novamente, sejam hospitaleiros, sim?

Ehric, o mais velho por questão de minutos, olhou de relance, o rosto destacado pela iluminação da base da cama. Tanta maldade naquela bela combinação de feições... a ponto de alguém quase sentir pena do intruso.

– Será um prazer, eu garanto.

– Mantenha-o vivo.

– Claro.

– Essa é uma divisória um tanto sutil que vocês dois às vezes gostaram de apreciar.

– Confie em mim.

– Não é você quem me preocupa – Assail olhou para o outro. – Entendeu?

O gêmeo de Ehric permaneceu calado, apesar de concordar com a cabeça uma vez.

Era precisamente por essa reação contrariada que Assail preferiria ter mantido a sua vida nova simples. Mas era impossível estar em mais de um lugar ao mesmo tempo. E aquela violação de privacidade era a prova de que ele não poderia fazer tudo sozinho.

– Sabem como me encontrar – disse antes de dispensá-los do quarto.

Vinte minutos mais tarde, saiu da casa de banho tomado, vestido e atrás do volante do seu Range Rover blindado.

O centro da cidade de Caldwell à noite era belo de longe, especialmente ao passar pela ponte de acesso. Só depois que ele penetrou no sistema viário que o esgoto da cidade ficou evidente: os becos com neve suja acumulada, as latas de lixo transbordando e os humanos sem-teto descartados, meio congelados, contavam a triste verdade sobre a desprotegida municipalidade.

Seu local de trabalho, evidentemente.

Ao chegar à Galeria de Arte Benloise, estacionou nos fundos, em uma das vagas que era paralela à construção atrás do estabelecimento. Ao sair do carro, o vento frio açoitou o casaco de pelo de camelo e ele teve que segurar as duas pontas juntas ao atravessar a calçada, aproximando-se da porta de tamanho industrial.

Não teve que bater. Ricardo Benloise tinha muitas pessoas trabalhando para ele e nem todos eram do tipo que se associava aos negociantes das artes. Um macho humano do tamanho de um parque de diversões abriu a porta e ficou de lado.

– Ele o está aguardando?

– Não, não está.

Disneylândia assentiu.

– Quer esperar na galeria?

– Seria bom.

– Quer beber alguma coisa?

– Não, obrigado.

Ao atravessarem a parte do escritório e seguirem para o espaço de exibições, a deferência agora concedida a Assail era algo novo, merecido tanto pelos enormes pedidos de mercadoria que ele vinha fazendo quanto pelo sangue derramado de incontáveis humanos. Graças a ele, a taxa de suicídio entre os machos desprivilegiados entre os 18 e os 29 anos com registros criminais em drogas aumentou como nunca na cidade, chegando ao noticiário nacional.

Imagine só.

Enquanto âncoras de TV e repórteres tentavam entender essas tragédias, ele simplesmente continuava a expandir os negócios usando qualquer meio necessário. As mentes humanas eram tremendamente sugestionáveis; praticamente nenhum esforço era necessário para fazer com que os traficantes intermediários levassem as pistolas às têmporas e apertassem os gatilhos. E, do mesmo modo como a natureza abominava um vácuo, o mesmo acontecia com a demanda de suplementos químicos.

Assail tinha as drogas. Os viciados tinham o dinheiro.

O sistema econômico mais do que sobrevivia à reorganização forçada.

– Vou subir – disse o homem na porta camuflada – para avisar da sua chegada.

– Leve o tempo de que precisar.

Deixado só, Assail passeou pelo espaço aberto de teto alto, entrelaçando as mãos às costas. De vez em quando, parava para ver a “arte” pendurada nas paredes e nas divisórias e foi lembrado do motivo pelo qual os humanos deviam ser erradicados, preferencialmente com métodos lentos e dolorosos.

Pratos de papel usados colados a tábuas de compensados baratas recobertas com citações de comerciais de TV escritas à mão? Um autorretrato feito com creme dental? E igualmente ofensivas eram as placas enaltecedoras ao lado das porcarias declarando que aquela tolice era a nova onda do Expressionismo Americano.

Tamanha explicação sobre a cultura de tantas maneiras.

– Ele pode recebê-lo agora.

Assail sorriu para si mesmo e se virou.

– Quanta gentileza.

Ao passar pela porta escondida e subir até o terceiro andar, Assail não condenou seu fornecedor por ser desconfiado e querer mais informações a respeito do seu maior cliente. Afinal, num espaço muito curto de tempo, o tráfico de drogas da cidade fora remanejado, redefinido e controlado por um completo desconhecido.

Há que se respeitar a posição do homem.

Mas as investigações terminariam ali.

No topo das escadas, outros dois homenzarrões estavam diante da porta, tão sólidos quanto vigas de sustentação. Assim como o segurança do primeiro andar, logo abriram a porta e acenaram em sua direção respeitosamente.

Do lado oposto, Benloise estava sentado no fundo de uma sala estreita com janelas em um dos lados e apenas três peças de mobiliário: sua escrivaninha elevada, que não passava de uma prancha grossa de teca com um abajur moderno e um cinzeiro por cima; a cadeira dele, com um estilo moderno; e um segundo assento no lado oposto para apenas um visitante.

O homem em si era como o seu ambiente: limpo, oficioso e despojado em seu modo de pensar. Na verdade, ele provou que, por mais ilícito que fosse o tráfico de drogas, os princípios de gerenciamento e as habilidades interpessoais de um CEO importavam muito se você quisesse faturar milhões com isso e manter o dinheiro.

– Assail. Como vai? – o homem baixinho se levantou e esticou a mão. – É um prazer inesperado.

Assail atravessou a sala, apertou o que lhe foi estendido e não esperou pelo convite para se sentar.

– O que posso fazer por você? – perguntou Benloise ao voltar a se sentar.

Assail pegou um charuto cubano de dentro do bolso. Cortando a ponta, inclinou-se para frente e colocou a ponta desprezada sobre o tampo da mesa.

Enquanto Benloise franzia o cenho como se alguém tivesse defecado em sua cama, Assail sorriu o suficiente para exibir rapidamente suas presas.

– Trata-se do que eu posso fazer por você.

– Ah.

– Sempre fui um homem reservado, levando uma vida privada por livre escolha – guardou o cortador e pegou um isqueiro de ouro. Acendendo a chama, inclinou-se e tragou até o charuto sustentar a ponta queimada. – Contudo, mais importante do que isso, sou um homem de negócios envolvido num ramo perigoso. Dessa forma, considero qualquer invasão na minha propriedade ou intrusão no meu anonimato como um ato direto de agressão.

Benloise sorriu com suavidade e se recostou na cadeira em forma de trono.

– Respeito-o por isso, claro, todavia estou confuso quanto aos motivos de você sentir a necessidade de explicitar isso para mim.

– Você e eu entramos num relacionamento mutuamente benéfico, e é meu desejo continuar com essa associação – Assail bafejou o charuto, soltando uma nuvem de fumaça azul francês. – Portanto, quero lhe mostrar o devido respeito e deixar isso claro antes de agir, pois se eu descobrir qualquer pessoa na minha propriedade a quem eu não tenha convidado, eu não só o erradicarei, como também descobrirei a origem das investigações – e bafejou novamente – e farei o que for necessário para defender a minha privacidade. Estou sendo bem claro?

As sobrancelhas de Benloise se abaixaram, os olhos escuros se zangando.

– Estou? – murmurou Assail.

Havia, obviamente, apenas uma resposta. Levando-se em consideração que o humano desejava viver mais do que até aquele final de semana.

– Sabe, você me lembra o seu predecessor – Benloise disse num sotaque britânico. – Conheceu o Reverendo?

– Sim, frequentamos alguns dos mesmos círculos.

– Ele foi assassinado de modo bem violento. Cerca de um ano atrás, não? A boate dele foi explodida.

– Acidentes acontecem.

– Normalmente em casa, pelo que ouvi dizer.

– Algo de que deve sempre se lembrar.

Enquanto Assail sustentava aquele olhar, Benloise desviou o dele primeiro. Pigarreando, o maior importador de drogas da costa leste passou a palma da mão sobre o tampo lustroso da mesa, como se sentisse os veios da madeira.

– Os nossos negócios – disse Benloise – têm um delicado ecossistema que, por conta de toda a sua robustez financeira, deve ser mantido cuidadosamente. A estabilidade é rara e muito desejável para homens como você e eu.

– Concordo. E para que isso aconteça, pretendo retornar à conclusão da noite com o meu pagamento desse ínterim, conforme planejado. Como sempre, venho a você em boa fé, e não lhe dou motivos para duvidar das minhas intenções.

Benloise lhe ofereceu outro sorriso suave.

– Você faz parecer como se eu estivesse por trás – ele moveu a mão num gesto aleatório de dispensa no ar – do que quer que o tenha incomodado.

Inclinando-se para frente, Assail deixou o queixo cair e o encarou.

– Não estou incomodado. Ainda.

Uma das mãos de Benloise sub-repticiamente saiu do campo de visão. Uma fração de segundo depois, Assail ouviu a porta do outro lado do cômodo se abrir.

Mantendo a voz baixa, Assail disse:

– Isto foi uma cortesia para você. Da próxima vez que eu encontrar alguém na minha propriedade, quer você o tenha enviado ou não, não demonstrarei nem metade dessa educação.

Dito isso, levantou-se e enterrou o charuto no tampo da mesa.

– Desejo-lhe uma boa noite – disse antes de sair.


CAPÍTULO 14

Aquilo sim é que era começar tarde.

Enquanto Qhuinn se desmaterializava para longe da mansão, ele custava a acreditar que já fosse dez da noite e eles estavam apenas começando. Pensando bem, a Irmandade ficou enfiada no escritório de Wrath pelo que pareceu uma eternidade e quando ele e John, por fim, foram admitidos, o anúncio de V. de que a prova contra o Bando de Bastardos era concreta levou a mais uma bela meia hora de excomunhão de Xcor e dos comparsas.

Diferentes usos criativos para a palavra arregaçar, bem como excelentes sugestões de onde se enfiar objetos inanimados.

Ele jamais pensara em fazer aquilo com um rastelo, por exemplo. Divertido. Muito divertido.

E Blay perdera aquilo tudo.

Retomando forma numa área florestal a sudoeste do complexo, Qhuinn evitou pensar em que tipo de interferências o pudesse ter retardado, ainda que a verdade fosse que o lutador subira para o quarto e não voltara. E por mais que a maioria dos acidentes acontecesse em casa, seria um bom palpite deduzir que ele não escorregara e caíra.

A menos que Saxton estivesse brincando com o tapete no piso de mármore do banheiro.

Sentindo como se quisesse se estapear, vasculhou o cenário coberto de neve enquanto John, Rhage e Z. surgiam ao seu lado. As coordenadas daquela localização foram encontradas nos telefones dos ladrões de carro da noite anterior, a propriedade aparentemente abandonada cerca de quinze a vinte quilômetros além do local em que ele encontrara o Hummer roubado.

– Que diabos é isso?

Enquanto alguém falava, ele olhou por sobre o ombro. “Que diabos” estava certo: assomando-se atrás deles estava uma construção tão alta quanto um campanário de igreja e tão simples quanto uma lata de lixo reciclável.

– Hangar de aviões – anunciou Zsadist ao começar a andar naquela direção. – Só pode ser.

Qhuinn o seguiu, tomando a retaguarda caso alguém resolvesse fazer uma surpresa.

Do nada, Blay apareceu, todo coberto em couro e tão armado quanto o resto deles. Em reação, os pés de Qhuinn diminuíram de velocidade, depois pararam na neve, em boa parte porque não queria tropeçar e parecer um tolo.

Puxa, ele parecia bem sério. Haveria problemas no paraíso?

Ainda que não existisse nenhum contato visual entre eles, Qhuinn se sentiu compelido a dizer algo:

– O que...

Não concluiu a frase. Por que se importar? O cara passou por ele como se ele nem estivesse ali.

– Estou bem – murmurou Qhuinn, voltando a avançar pela neve compacta. – Obrigado por perguntar. Ah, está tendo problemas com Saxton? Mesmo? Que tal sairmos para tomar um drinque e conversar a respeito? É? Perfeito. Posso ser a sua menta pós-jantar e...

Ele interrompeu o monólogo fantasioso quando a brisa mudou de direção e seu nariz captou algo adocicado e desagradável.

Todos sacaram as armas e se concentraram no hangar.

– Estamos a favor do vento – observou Rhage –, portanto, a bagunça aí dentro deve ser incrível.

Os cinco se aproximaram da construção com cautela, espalhando-se e vasculhando o ambiente iluminado pelo luar à procura de algo que se movesse.

O hangar tinha duas entradas, uma bipartida e grande o bastante para deixar passar a envergadura de uma asa, e a outra supostamente para pessoas, que, em comparação, parecia do tamanho de uma Barbie. E Rhage tinha razão: apesar de o vento gélido os atingir pelas costas, o cheiro era forte o bastante para aguçar as narinas, e não no bom sentido.

Caramba, o frio costumava aplacar o fedor.

Comunicando-se por gestos, dividiram-se em dois grupos, com ele e John ficando num dos lados das portas duplas gigantes, e Rhage, Blay e Z. na entrada menor.

Rhage, como era de se esperar, tentou a maçaneta enquanto todos se preparavam para um confronto. Se houvesse o equivalente a um time de futebol de redutores ali, fazia sentido enviar o Irmão primeiro, porque ele tinha o tipo de retaguarda que ninguém tinha: a besta amava assassinos, e não no sentido de ter um relacionamento com eles.

Quem tinha falado em menta mesmo?

Hollywood levou a mão acima da cabeça. Três... dois... um...

O Irmão penetrou no silêncio absoluto, empurrando a porta e entrando sorrateiramente. Z. foi em seguida e Blay o acompanhou.

Qhuinn sentiu um segundo de puro terror quando o macho saltou para o desconhecido com nada além de um par de pistolas .40 para protegê-lo. Deus, a ideia de que Blay pudesse morrer naquela noite, bem na sua frente, naquela missão comum, fez com que ele quisesse parar com toda aquela tolice de defender a raça e transformar o lutador num bibliotecário. Ou modelo de mãos. Ou cabeleireiro...

O assobio que surgiu menos de sessenta segundos depois foi uma dádiva de Deus. O sinal de Z. de que estava tudo bem para que ele e John se reposicionassem, indo para a lateral da agora porta aberta e passando por...

Ok. Uau.

Falando em fedor. Nota máxima...

Os três que entraram antes ligaram as lanternas, e os fachos de luz cortaram o espaço cavernoso, atravessando a escuridão, iluminando o que a princípio não parecia ser nada além de uma camada de gelo negro. A não ser pelo fato de não ser preto e de não estar congelado. Era sangue humano engrossado – uns mil litros da coisa. Misturado com uma boa quantidade de Ômega.

O hangar foi o local de uma iniciação em massa, numa escala que tornava o que acontecia há um tempo naquela casa de campo nada mais do que uma brincadeira de criança.

– Acho que os garotos que você castigou estavam vindo para uma festa e tanto – comentou Rhage.

– Bem observado – murmurou Z.

Enquanto fachos de luz destacavam um velho e decrépito avião no fundo, e absolutamente nada mais, Z. balançou a cabeça.

– Vamos vasculhar o exterior. Não há nada aqui.

Visto que o chalé não prometia muito pelo lado de fora, apenas uma típica cabana de caçador/pescador no meio da floresta, o Sr. C. sentiu-se tentado a ignorar a maldita coisa. A perfeição tinha as suas virtudes, contudo, e a localização do chalé, cerca de uns dois ou três quilômetros para dentro daquele pedaço de terra, sugeria que ele podia ter sido usado como um quartel-general a certa altura.

Levando-se tudo em consideração, teria sido mais inteligente verificar a propriedade antes de ele ter usado o hangar para a maior iniciação da história da Sociedade Redutora. Mas as prioridades se apresentaram daquele modo. Primeiro, ele teve que se colocar no controle; segundo, de justificar a promoção; e terceiro, de lidar com todos aqueles novos redutores.

E isso significava que ele precisava de recursos. Rápido.

Seguindo a cerimônia grande e suja de Ômega, e o período nauseante que durou algumas horas depois, o Sr. C. ordenara que os novos recrutas subissem num ônibus escolar que ele roubara de uma loja de veículos usados uma semana antes. Devido à exaustão e ao desconforto físico em que se encontravam, portaram-se como garotinhos obedientes, entrando e sentando-se dois a dois como se estivessem numa porra de uma Arca de Noé.

Dali, ele mesmo dirigira (por não confiar esse tipo de bem a qualquer um) para a Escola para Garotas de Brownswick. A extinta escola preparatória ficava no subúrbio em 35 acres de propriedades ignoradas, dilapidadas e cobertas de mato, e os boatos de ser assombrada mantinham afastadas as pessoas normais.

Por enquanto, a Sociedade Redutora estava desabrigada, mas a placa “Vende-se” na curva perto da estrada significava que ele poderia dar um jeito nisso. Tão logo arranjasse algum dinheiro.

Com os rapazes terminando de se recuperar na escola, e os assassinos atuais no centro à procura da Irmandade, ele estava por conta catalogando as poucas propriedades restantes da Sociedade – inclusive aquele pedaço praticamente deserto de floresta ao norte da cidade.

Embora começasse a acreditar que estivesse perdendo tempo.

Subindo na varanda do chalé, iluminou o interior com uma lanterna. Fogão antigo. Mesa de madeira tosca com duas cadeiras. Três camas sem colchão, nem lençóis. Quitinete.

Dando a volta para os fundos, ele encontrou um gerador sem combustível e um tanque de diesel enferrujado, o que sugeria que o lugar teve algum tipo de aquecimento em alguma época.

Voltando para a frente, tentou a porta e descobriu-a trancada.

Não fazia diferença. Não havia muita coisa ali.

Pegando um mapa de dentro da jaqueta de aviador, desdobrou-o e encontrou sua localização. Verificando o quadradinho, pegou a bússola, ajustou a direção e começou a caminhar para o noroeste.

De acordo com aquele mapa, que ele havia encontrado no antro de drogas do Redutor Principal, aquele pedaço de propriedade totalizava cinco acres e tinha esse tipo de chalé espalhado em intervalos randômicos. Ele imaginava que o lugar devia ter sido algum tipo de acampamento com proprietários múltiplos, um tipo de reserva de caça moderna que se perdera para a carga tributária do Estado de Nova York e depois comprada pela Sociedade nos anos oitenta.

Pelo menos era isso o que estava escrito à mão no canto, embora só Deus soubesse se a Sociedade ainda era a proprietária daquilo. Considerando-se a situação financeira da organização, o bom e velho Estado de Nova York poderia bem ter o penhor da propriedade a esta altura, ou até mesmo tê-la reempossado.

Ele parou e verificou a bússola novamente. Caramba, sendo urbano, ele detestava vagar pela floresta à noite, superando a neve com dificuldade, verificando aquele tipo de merda como se fosse algum tipo de guarda florestal. Mas ele tinha de ver com seus próprios olhos aquilo com que tinha que trabalhar, e só havia um modo de fazer isso.

Ao menos tinha um fluxo de receita preparado.

Nas próximas 24 horas, quando aqueles garotos estivessem finalmente de pé, ele voltaria a preencher os cofres. Aquele era o primeiro passo rumo à recuperação.

Passo número dois?

A dominação do mundo.


CAPÍTULO 15

Ela estava sangrando.

Quando Layla olhou para o papel higiênico na mão, a mancha vermelha em todo aquele branco era o equivalente visual de um grito.

Esticando a mão para trás, deu a descarga, e teve que usar a parede para se equilibrar ao se levantar. Com uma mão no baixo ventre e a outra sobre a bancada da pia e depois na maçaneta, ela tropicou para o quarto e foi direto para o telefone.

Seu primeiro instinto foi ligar para a doutora Jane, mas decidiu não fazer isso. Concluindo que estava sofrendo um aborto espontâneo, existia a possibilidade de poupar Qhuinn da ira do Primale. Desde que ela deixasse aquilo debaixo dos panos. E usar a clínica geral da Irmandade provavelmente não seria o melhor modo de assegurar privacidade.

Afinal, só havia um motivo para uma fêmea sangrar. E perguntas a respeito do seu cio e de como ela lidara com isso inevitavelmente se seguiriam.

Na mesinha de cabeceira, ela abriu uma gaveta e retirou um caderninho preto. Encontrando o número da clínica da raça, ela discou com mãos trêmulas.

Quando desligou pouco depois, tinha um horário marcado para dali a trinta minutos.

Mas como sairia dali? Não poderia se desmaterializar, estava ansiosa demais e, de qualquer modo, fêmeas grávidas eram desencorajadas a fazer isso. E ela também não se sentia forte o bastante para dirigir até lá. As aulas de Qhuinn foram bem abrangentes, mas ela não conseguia se imaginar, em seu estado, pegando a autoestrada e tentando acompanhar o fluxo do tráfego humano.

Fritz Perlmutter era a sua única resposta.

Indo até o armário, pegou uma camisola macia, torceu-a numa corda espessa e colocou-a entre as pernas com a ajuda de diversos pares de calcinha. A solução para o seu problema de sangramento mostrou-se incrivelmente volumosa e dificultou o andar, mas esse era o menor dos seus problemas.

Um telefonema para a cozinha garantiu que o mordomo a levaria.

Agora ela só precisava descer as escadas, sair pelo vestíbulo e entrar inteira no enorme sedã. Tudo isso sem se deparar com nenhum macho da casa.

Bem quando estava para sair do quarto, viu seu reflexo no espelho na parede. O manto branco e seu penteado formal anunciavam seu status de Escolhida como nenhuma outra coisa. Ninguém além das fêmeas sagradas da Virgem Escriba da espécie se vestia daquela forma.

Mesmo se aparecesse sob o nome fictício que fornecera à recepcionista, todos adivinhariam sua afiliação sobrenatural.

Tirando o manto, tentou entrar num par de calças de ioga, mas o enchimento que ajustara em si impossibilitou isso. E os jeans que ela e Qhuinn compraram juntos também não estavam dando certo.

Tirando a camisola, ela usou papel higiênico do banheiro para lidar com o problema e conseguiu entrar nos jeans. Um suéter pesado a esquentaria e uma bela escovada nos cabelos e um rabo de cavalo faria com que ela parecesse... quase normal.

Saindo do quarto, ela segurou o tal do celular que Qhuinn lhe dera. Passou pela sua cabeça telefonar para ele, mas, na verdade, o que diria? Ele tinha tanto controle sobre aquele processo quanto ela...

Ah, santa Virgem Escriba, ela estava perdendo o bebê.

O pensamento lhe ocorreu bem quando ela chegou ao topo da escadaria principal. Ela estava perdendo o bebê deles. Naquele instante. Ali do lado de fora do escritório do Rei.

De repente, o teto caiu sobre a sua cabeça e as paredes do vestíbulo grande e espaçoso a apertaram tanto que ela não conseguia respirar.

– Sua Graça?

Estremecendo, ela olhou para baixo para a passadeira vermelha. Fritz estava ao pé das escadas, vestido em seu costumeiro uniforme, e sua adorável e anciã expressão carregada de preocupação.

– Sua Graça, vamos agora? – perguntou ele.

Quando ela assentiu e desceu com cuidado, não conseguia crer que tudo aquilo fora para nada, todas aquelas horas de esforço com Qhuinn... os gélidos momentos seguintes nos quais ela não conseguia se mover... a espera e antecipação de uma esperança quieta e traiçoeira.

O fato de ter cedido o presente de sua virgindade a troco de nada.

Qhuinn sofreria tanto, e o fracasso que ela impingiria a ele só aumentava imensamente o seu próprio sofrimento. Ele sacrificara o corpo durante o cio dela, o desejo dele de ter um laço de sangue incitando-o a fazer algo que ele não teria, de outro modo, escolhido fazer.

O fato de a biologia ter suas vontades não a aliviava.

A perda... ainda parecia ser culpa sua.

Tomar outra dose para acabar com a ressaca.

Saxton acreditava que esse adágio era grosseiro, no entanto, verdadeiro.

Parado nu diante do espelho do banheiro, abaixou o secador e passou os dedos pelos cabelos. As ondas se assentaram em seu estado normal, os fios loiros encontrando uma disposição perfeita para complementar o rosto quadrado e equilibrado.

A imagem que ele via era exatamente aquela da noite anterior, e da anterior àquela, contudo, por mais familiar que seu reflexo fosse, ele se sentia como se pertencesse a uma pessoa diferente, à parte.

Seu corpo mudara tanto por dentro, parecia bem razoável deduzir que a transformação se ecoaria na aparência. Deus, não era assim!

Virando e saindo para o closet, imaginou que não deveria se surpreender, tanto pelo seu íntimo perturbado quanto pelo seu exterior de falsa compostura.

Depois que ele e Blay conversaram, ele precisou de uma hora para tirar tudo do quarto em que ficara com o antigo amante e voltar para a suíte no fim do corredor. Ele recebera aquelas acomodações quando fora morar na mansão, porém, conforme as coisas progrediram com Blay, seus pertences gradualmente migraram para o outro quarto.

Esse processo migratório fora crescente, assim como o seu amor: um caso de uma camisa aqui e um par de sapatos acolá, uma escova de cabelos uma noite e meias na seguinte... uma conversa de valores partilhados seguida por uma maratona de sete horas de sexo acompanhada por um pote de sorvete de café Breyers com apenas uma colher.

Ele não percebera a distância transposta pelo seu coração, do mesmo modo como um andarilho se vê perdido em meio à selva. Contudo, quinze quilômetros e um determinado número de bifurcações em seu caminho mais tarde e não havia como voltar. Àquela altura, não restava alternativa a não ser organizar seus recursos para construir um abrigo e criar raízes novas.

Ele deduzira que construiria seu novo espaço pessoal com Blay.

Sim, deduzira. Afinal, por quanto tempo poderia sobreviver um amor não correspondido? Como o fogo precisa de oxigênio para queimar, assim é com as emoções.

Não no que se referia a Qhuinn, ao que tudo levava a crer. Não para Blay.

Saxton estava decidido a não sair da mansão real, porém. Quanto a isso, Blay tinha razão: Wrath, o Rei, precisava dele, e, mais do que isso, ele gostava do seu trabalho ali. Era ágil, desafiador... e a parte egoísta que havia dentro de si queria ser o advogado que reformaria a lei da maneira correta.

Deduzindo-se que o trono não seria tomado e que ele não fosse decapitado num novo regime.

Mas não se podia viver preocupado com coisas como essa.

Pegando um terno de xadrez escocês do closet, escolheu uma camisa e um colete e estendeu tudo sobre a cama.

Era um clichê triste, bem desestimulante, sair para procurar algo núbil e espiritual para aplacar a dor, mas ele preferia ter um orgasmo a se embriagar. Além disso, o “finja até encontrar um propósito novamente” parecia dar certo.

E parecia especialmente verdadeiro quando ele se olhou arrumado no espelho de corpo inteiro do banheiro, e isso ajudava.

Antes de sair, verificou o celular novamente. As Leis Antigas foram remodeladas seguindo as ordens de Wrath, e agora ele estava de prontidão, à espera da nova tarefa.

Deduziu que logo descobriria o que seria.

Wrath era notoriamente exigente, mas nunca irracional.

Nesse ínterim, ele afogaria sua tristeza no único tipo de “loira gelada” que o apetecia... algo com vinte e poucos anos, lá pelos seus um e oitenta de altura, atlético...

E preferivelmente moreno. Ou loiro.


CAPÍTULO 16

– Alguém já passou por aqui.

Enquanto Rhage falava, Qhuinn pegou sua lanterna de bolso e apontou o discreto facho de luz para o chão. E lá estavam pegadas na neve fresca, sem nenhuma cobertura de flocos... que partiam diretamente para a clareira da floresta. Desligando a luz, ele se concentrou no chalé de caça mais à frente que parecia estar abandonado ao clima frio: nenhuma fumaça subindo pela chaminé, nenhuma iluminação interna e, mais importante, nenhum rastro de cheiro.

Os cinco se aproximaram, circundando a clareira e se movimentando sorrateiramente num ângulo amplo. Como não houve nenhuma ação defensiva de parte alguma, todos subiram na varanda e espiaram o interior pelas janelas estreitas.

– Nada – murmurou Rhage ao ir para a porta.

Uma tentativa rápida na maçaneta. Fechada.

Com um empurrão, o Irmão esmagou o ombro imenso contra o batente e mandou a coisa pelos ares, fragmentos da tranca caindo espalhados bem como lascas de madeira.

– Olá, querida, cheguei – gritou Hollywood ao marchar para dentro.

Qhuinn e John seguiram o protocolo e ficaram na varanda enquanto Blay e Z. entravam e vasculhavam.

A floresta estava quieta ao redor deles, mas seus olhos aguçados acompanharam aquelas pegadas... que, depois de uma passeada pelo chalé, seguiam para o noroeste.

Por certo era indício de que alguém estava ali com eles, vasculhando a propriedade ao mesmo tempo.

Humano? Redutor?

Ele acreditava mais na última opção, devido a toda aquela bagunça no hangar, e também por aquele lugar ser remoto e relativamente seguro por conta disso.

Ainda que houvessem de querer trazer a Stanley Steemer* para aquela construção para uma bela limpeza antes.

A voz de Blay surgiu através da porta aberta.

– Achei uma coisa.

Qhuinn teve que recorrer a todo o seu treinamento a fim de não parar de inspecionar o cenário e olhar para dentro. Não porque ele se importasse particularmente com o que fora encontrado. Durante todo aquele processo, ele vinha checando Blay constantemente, só para ver se o humor dele mudara.

Se mudara, fora para pior.

Vozes baixas se fizeram ouvir dentro do chalé, e depois os três emergiram.

– Encontramos uma caixa trancada a chave – anunciou Rhage ao baixar o zíper da jaqueta e enfiar o contêiner longo e estreito de metal junto ao peito. – Abriremos mais tarde. Primeiro, vamos encontrar o dono dessas botas, rapazes.

Desmaterializando-se rapidamente a cada quinze ou vinte metros, eles se espalharam pelas árvores, rastreando as pegadas na neve, seguindo em silêncio.

Depararam-se com o redutor um quilômetro adiante.

O assassino solitário marchava pela floresta coberta de neve num passo que somente um humano com treinamento olímpico teria conseguido sustentar por algumas centenas de metros. As roupas eram escuras, havia uma mochila nas costas e o fato de ele estar se movimentando apenas com a própria visão eram indicadores de que se tratava do inimigo: a maioria dos Homo sapiens não conseguiria se mover com aquela rapidez com tão pouca iluminação sem a ajuda de uma luz artificial.

Gesticulando em código, Rhage orientou o grupo a fazer uma formação de triângulo reverso que dava a volta ao redor do rastro do redutor. Continuando a avançar junto a ele, observaram-no por uma área mais ou menos do tamanho de um campo de futebol e, em seguida, todos de uma vez aproximaram-se, circundando o assassino, e bloquearam-no em pontos cardinais opostos na mira das armas.

O redutor parou de andar.

Ele era um recruta mais jovem, o cabelo escuro e a pele oliva sugeriam que tivesse descendência mexicana ou italiana, e mereceu pontos por não demonstrar medo. Mesmo tendo caído numa cilada, ele só olhou tranquilamente por sobre o ombro, como que para confirmar que, de fato, fora emboscado.

– Como tem passado? – Rhage perguntou com a fala arrastada.

O redutor não se deu ao trabalho de responder, o que era o oposto do que vinham presenciando nos últimos tempos. Diferentemente dos outros, aquele não era um garotinho metido a esperto cheio de falatório. Calmo, perspicaz... Controlado, ele era o tipo de inimigo que melhorava o seu desempenho no trabalho.

Não exatamente algo ruim...

E, como era de se esperar, a mão dele desapareceu para dentro do casaco.

– Não seja idiota, cara – exclamou Qhuinn, preparado para meter uma bala no bastardo sem nenhum aviso adicional.

O redutor não deteve o movimento.

Tudo bem.

Ele apertou o maldito gatilho e derrubou o merdinha.

No segundo em que o redutor caiu na neve, Blay ficou imobilizado com a arma ainda apontada. Os outros fizeram o mesmo.

Segundos silenciosos se passaram, eles continuaram a encarar o assassino caído. Nenhum movimento. Nenhuma reação da área periférica. Qhuinn o incapacitara, e ele parecia estar trabalhando sozinho.

Engraçado, mesmo se Blay não tivesse ouvido o tiro à esquerda do seu ouvido, ele teria sabido que o atirador fora Qhuinn: qualquer outro teria dado ao inimigo outra chance para reconsiderar.

O sinal para que se aproximasse foi o assobio de Rhage. Os cinco se moveram como uma matilha de lobos ao redor de sua presa, rápidos e confiantes, cruzando a neve com as armas erguidas. O assassino permaneceu absolutamente imóvel, mas não houvera uma morte na família, por assim dizer. Para isso, seria preciso que uma adaga de aço lhe atravessasse o peito.

Porém, aquele era o estado desejável. Queriam que ele fosse capaz de falar.

Ou, pelo menos, que estivesse em condições de ser forçado a falar...

Mais tarde, quando repassou o que aconteceu em seguida... quando sua mente ardeu obsessivamente a respeito dos fatos... quando ficou acordado tentando entender como as peças se encaixaram na esperança de adivinhar uma mudança de procedimento que garantisse que algo semelhante nunca mais acontecesse... Blay se demoraria naquela mudança de eventos.

Aquele leve tremor no braço. Apenas uma contração muscular aparentemente desconectada de qualquer pensamento consciente ou vontade. Nada perigoso. Nenhum sinal do que estava por vir.

Apenas uma contração.

A não ser pelo fato de que, com um movimento mais rápido que um piscar de olhos, o assassino sacou uma arma sabe-se lá de onde. Foi sem precedentes. Num segundo ele estava como morto no chão; no seguinte, estava atirando de modo controlado num raio amplo.

E mesmo antes de os sons dos tiros pararem, Blay percebeu a imagem horripilante de Zsadist levando chumbo bem no coração, um impacto tão forte que foi capaz de deter o avanço do Irmão, o torso catapultando para trás, os braços se abrindo enquanto ele caía no chão.

No mesmo instante, a dinâmica mudou. Ninguém mais queria interrogar o maldito.

Quatro adagas foram desembainhadas. Quatro corpos se adiantaram. Quatro braços talharam com lâminas afiadas e frias. Quatro impactos, um após o outro.

Tarde demais, porém.

O assassino desaparecera bem diante deles, as armas golpeando a neve manchada onde o inimigo estivera deitado, em vez de atingirem uma cavidade torácica vazia.

Que seja. Haveria tempo para se perguntarem quanto ao desaparecimento improcedente mais tarde. No momento, eles tinham um soldado caído.

Rhage praticamente se lançou sobre o Irmão, colocando o corpo diante de tudo e todos.

– Z.? Z.? Ai, mãe da raça...

Blay sacou o telefone e discou. Quando Manny Manello atendeu, não havia tempo a perder.

– Temos um Irmão ferido. Tiro no peito...

– Espere!

A voz de Z. foi uma surpresa. Assim como o braço do Irmão levantando e empurrando Rhage para o lado.

– Saia de cima de mim!

– Mas estou tentando fazer ressuscitação cardio...

– Prefiro morrer antes de beijar você, Hollywood – Z. tentou se sentar, estava com a respiração pesada. – Nem pense nisso.

– Alô? – a voz de Manello disse ao telefone. – Blay?

– Espere...

Qhuinn se ajoelhou perto de Zsadist, e apesar do fato de o Irmão não gostar de ser tocado, segurou-o por debaixo do braço e ajudou o macho a suspender o torso do chão.

– Estou com a clínica na linha – disse Blay. – Qual o seu estado?

Em resposta, Z. levou a mão até a bainha da adaga e a puxou. Depois, abaixou o zíper da jaqueta de couro e rasgou a camiseta ao meio.

Para revelar o mais lindo colete à prova de balas que Blay jamais vira.

Rhage se curvou em sinal de alívio, a ponto de Qhuinn ter que segurá-lo com a mão livre para que o cara também não caísse no chão.

– Kevlar – Blay murmurou para Manello. – Ah, graças a Deus, ele está usando um Kevlar.

– Que ótimo, mas escute, preciso que você tire o colete e verifique se ele deteve a bala, ok?

– Entendido – olhou de relance para John, contente em ver que ele estava de pé, com as duas armas adiante, os olhos vasculhando o ambiente enquanto o resto deles avaliava a situação. – Vou cuidar disso.

Blay se aproximou e se agachou na frente do Irmão. Qhuinn podia ter tido a coragem de fazer contato com Zsadist, mas ele não faria isso sem permissão expressa.

– O doutor Manello quer saber se você pode tirar o colete para que possamos ver se existe algum ferimento.

Z. moveu os braços e depois franziu o cenho. Tentou novamente. Depois da terceira tentativa, o Irmão conseguiu levantar as mãos até as tiras de velcro, mas elas não conseguiam fazer muita coisa.

Blay engoliu com força.

– Posso cuidar disso? Prometo não tocar em você o quanto for possível.

Ótima gramática ali. Mas ele falava sério.

Os olhos de Z. se levantaram para ele. Estavam negros de dor, e não amarelos.

– Faça o que tem que fazer, filho. Vou aguentar.

O Irmão desviou o olhar, o rosto contraído numa careta, a cicatriz que formava o S do alto do nariz até o canto da boca destacando-se num relevo alto.

Com um sermão severo, Blay ordenou às suas mãos que ficassem firmes, e a mensagem de algum modo foi levada adiante: ele puxou as tiras que o prendiam nos ombros, o barulho mais alto do que o grito em sua cabeça, e depois retirou o colete, aterrorizado pelo que descobriria.

Havia uma grande marca redonda bem no meio do peito musculoso de Z. Bem onde ficava o coração.

Mas era apenas um hematoma. Não um buraco.

Apenas um hematoma.

– Somente ferimento superficial – Blay afundou o dedo no preenchimento denso do colete e encontrou a bala. – Estou sentindo a bala dentro do colete.

– Então por que não consigo mexer meu...

O cheiro de sangue fresco do Irmão pareceu atingir todos os narizes ao mesmo tempo. Alguém praguejou, e Blay se inclinou.

– Você também foi alvejado debaixo do braço.

– É ruim? – Z. perguntou.

Pelo telefone, Manello disse:

– Dê uma olhada e veja o que consegue descobrir.

Blay suspendeu o braço pesado e iluminou a parte interna com uma lanterna de bolso. Aparentemente, uma bala entrara no torso pela pequena parte desprotegida nas axilas – um tiro em um milhão que se você tentasse recriar, não conseguiria repetir.

Merda.

– Não vejo o buraco da saída. É bem na lateral das costelas, no alto.

– Ele está respirando bem? – perguntou Manello.

– Com dificuldade, mas regular.

– Reanimação cardiorrespiratória foi administrada?

– Ele ameaçou castrar Hollywood se houvesse qualquer contato labial.

– Escute aqui, deixe eu me desmaterializar – Z. tossiu um pouco. – Me dê um pouco de espaço...

Todos ofereceram uma variedade de opiniões a essa altura, mas Zsadist não aceitou nenhuma delas. Empurrando-os, o Irmão fechou os olhos e...

Blay soube que estavam com problemas sérios quando nada aconteceu. Sim, Zsadist não fora morto, e estava muito melhor do que estaria se estivesse sem o colete. Mas não conseguia se movimentar – e eles estavam no meio do nada, tão floresta adentro que mesmo que chamassem por reforços, ninguém conseguiria levar um carro até quilômetros de onde estavam.

E o pior? Blay tinha a sensação de que o assassino que derrubaram era algo consideravelmente pior do que um redutor qualquer.

Não havia como saber quando os reforços chegariam.

O som de uma mensagem de texto chegando ao celular de um deles soou, e Rhage a leu.

– Merda. Os outros estão presos no centro da cidade. Teremos que cuidar disso sozinhos.

– Maldição – Zsadist murmurou entredentes.

Sim. A situação era mais ou menos essa.

* Empresa americana especializada em limpeza residencial usando máquina a vapor. (N.T.)


CAPÍTULO 17

Xcor não esperara aquilo.

Enquanto ele e seus soldados se materializavam na localização da alimentação comunal arranjada, ele esperara uma propriedade decaída ou, quem sabe, à beira da condenação, um lugar num estado tão deplorável que uma fêmea seria forçada a vender suas veias e seu sexo para sobreviver.

Nada disso.

A propriedade alcançava os padrões da glymera, a imensa mansão no alto da colina se destacava em sua iluminação, os jardins impecavelmente bem podados, o chalé menor da criadagem perto dos portões em perfeito estado apesar da idade óbvia.

Talvez ela fosse uma prima distante de alguém de linhagem mais importante?

– Quem é essa fêmea? – ele perguntou a Throe.

Seu tenente deu de ombros.

– Não sei nada de sua família. Mas verifiquei a filiação dela com uma linhagem de valor.

Ao redor deles, os soldados estavam ansiosos, os coturnos de combate socando a neve compacta aos seus pés enquanto andavam no mesmo lugar, a respiração escapando dos narizes como se eles fossem cavalos de corrida prestes a explodirem para fora dos portões da pista.

– Há que se perguntar se ela sabe para o que se ofereceu – murmurou Xcor, nem um pouco preocupado se a fêmea sabia ou não.

– Vamos? – perguntou Throe.

– Sim, antes que os outros se descontrolem e invadam aquele chalé dela.

Throe se desmaterializou até a porta singular, com seu topo arqueado e com uma lamparina que se esperaria ver do lado de fora de uma casa de bonecas. Porém, seu braço direito não foi persuadido pelo charme. A iluminação acima de sua cabeça logo foi cortada, certamente ao comando de Throe, e a batida à porta do soldado foi rápida e severa, uma exigência, não um pedido.

Momentos depois, a porta se abriu. A luz de uma lareira escapou para a noite, o brilho dourado das labaredas tão intenso que sugeria que elas conseguiriam derreter a camada de neve – e bem no meio daquela iluminação adorável, a figura de uma fêmea destacava uma silhueta escura e curvilínea.

Ela estava nua. E o cheiro que foi carregado pela brisa gélida indicava que ela estava pronta.

Zypher rosnou baixinho.

– Contenha-se – exigiu Xcor. – Não deixe que a sua avidez seja usada como uma arma contra nós.

Throe falou com ela e depois enfiou a mão no bolso para pegar o dinheiro. A fêmea aceitou o que lhe foi dado e depois esticou um braço no batente, angulando o corpo de modo a fazer com que um seio farto fosse iluminado por aquele brilho suave.

Throe olhou de relance sobre o ombro e acenou com a cabeça.

Os outros não esperaram por um segundo convite. Os lutadores de Xcor convergiram para a entrada, os corpos másculos tão grandes e tão numerosos, que a fêmea logo ficou invisível.

Praguejando, ele também se aproximou andando.

Zypher naturalmente foi o primeiro, tomando-a nos lábios e apalpando os seios, mas ele não foi o único. Os três primos brigaram por suas posições, um indo para trás e arqueando os quadris, como se estivesse esfregando o pau contra o traseiro dela, os outros dois alcançando os mamilos e o sexo dela, as mãos serpenteando conforme ela foi envolvida.

Throe falou acima dos gemidos crescentes.

– Vou montar guarda do lado de fora.

Xcor abriu a boca para ordenar o contrário, e depois percebeu que pareceria como se ele estivesse evitando a cena, e isso dificilmente seria algo másculo.

– Faça isso – murmurou. – Monto guarda no interior.

Seus machos pegaram a fêmea, as mãos das adagas segurando-a pelos braços, coxas e cintura, e, em conjunto, carregaram-na para o interior aconchegante do chalé. Foi Xcor quem fechou a porta e se certificou de que não havia nenhuma tranca para confiná-los. Também foi ele quem vasculhou o interior do chalé. Enquanto seus bastardos carregavam seu alimento para a frente da lareira, onde um tapete de peles recobria o chão, ele se inclinou em uma janela fechada, levantou a cortina e verificou os vitrôs. Antigos e chumbados, com suportes de madeira, não de aço.

Nada seguros. Ótimo.


– Alguém entre em mim – a fêmea gemeu numa voz profunda.

Xcor não se preocupou em ver se a obedeceram ou não, ainda que o gemido ofegante sugerisse que o fora. Em vez disso, olhou ao redor, procurando outras portas e lugares nos quais uma emboscada poderia ser armada. Aparentemente, não existia nenhum. O chalé não tinha um segundo andar, o esqueleto do teto formava um arco acima da sua cabeça e só havia um banheiro pequeno, cuja porta estava entreaberta e a luz acesa revelava um pé em forma de garra da banheira e uma pia em estilo antigo. A cozinha aberta não passava de uma bancada com alguns poucos eletrodomésticos modestos.

Xcor olhou para a ação. A fêmea estava deitada de costas, com os braços abertos formando um T, o pescoço exposto, as pernas escancaradas. Zypher montara nela e a penetrava ritmadamente, fazendo com que a cabeça subisse e descesse no tapete branco fofo enquanto ela absorvia os impactos. Dois dos primos se agarraram aos seus pulsos, e o terceiro tirara o pênis para fora e a fodia na boca. Na verdade, havia pouco dela que não estivesse coberto por machos vampiros, e seu êxtase por estar sendo usada era óbvio não somente aos olhos, mas também aos ouvidos: ao redor da ereção que entrava e saía dos lábios abundantes, a respiração pesada e os gemidos eróticos escapavam para a atmosfera carregada de sexo.

Xcor caminhou até a bancada da cozinha. Não havia nada ali, nenhum resto de comida, nenhum copo abandonado meio cheio. Havia pratos nos armários, contudo, e quando ele abriu a grande geladeira de estilo europeu, garrafas de vinho branco estavam organizadas horizontalmente nas prateleiras.

Uma imprecação masculina atraiu seu olhar para a diversão. Zypher estava gozando, os corpos se arqueando para frente enquanto a cabeça pendia para trás e, em meio ao seu orgasmo, um dos primos o afastava, assumindo seu posto, levantando os quadris da fêmea e se afundando no sexo rosado e molhado. Pelo menos Zypher parecia completamente satisfeito de trocar de lugar; ele expôs as presas, afundou a cabeça debaixo do peito agora arfante do seu camarada e beliscou o seio da fêmea para poder se alimentar perto do mamilo.

Aquele que estava na boca também gozou, e ela sorveu todo o sêmen, sugando a cabeça do pênis do lutador, soltando-a em seguida e lambendo os lábios úmidos como se ainda estivesse com fome. Alguém logo a atendeu, outra ereção bombeando seus lábios, os ritmos contrários das investidas do que acontecia em sua cabeça e entre as pernas balançando-a para frente e para trás num modo que ela parecia apreciar.

Xcor voltou a verificar o banheiro, mas sua primeira avaliação estava correta: não havia onde se esconder naquele confinamento diminuto.

Tendo garantido o interior, ele não pensou em nada mais para fazer a não ser se recostar num canto que lhe oferecia a melhor visão de acesso e testemunhar a refeição. Conforme as coisas se intensificaram, seus lutadores perderam a aparente civilização que tinham, trocando de posição como leões sobre carniça fresca, as presas se revelando, os olhos selvagens de agressão enquanto eles lutavam por suas posições. No entanto, eles não perderam completamente as cabeças. Cuidaram da fêmea.

Não demorou e alguém cortou a própria veia, aproximando-a dos lábios dela.

Xcor baixou o olhar para as botas e permitiu que sua visão periférica monitorasse o ambiente.

Houve uma época em que se excitaria com aquilo. E não por se interessar particularmente pelo sexo, mas do mesmo modo como seu estômago roncava quando via comida. Dessa forma, no passado, quando sentia a necessidade de tomar uma fêmea, era o que teria feito. Normalmente no escuro, claro, para que a pobre garota não sentisse nem repulsa nem medo.

Ele bem podia imaginar que as expressões de excitação que os machos exibiam em seus rompantes eróticos pouco melhoraram sua aparência.

Mas agora? De maneira curiosa, sentia-se desligado de tudo aquilo, como se estivesse assistindo os machos carregando mobília de um lado para o outro ou, quem sabe, limpando as folhas em um jardim.

O motivo era a sua Escolhida, claro.

Tendo tido os lábios pressionados contra a pele pura, tendo olhando dentro dos olhos verdes luminosos, tendo sentido o perfume delicado dela, ele estava completamente desinteressado pelos charmes bem utilizados daquela fêmea diante da lareira.

Ah, a sua Escolhida... ele jamais soube que tal graça existisse e, além disso, não teria como imaginar que se sentiria tão completamente tocado por aquilo que era tão antitético para ele. Ela era o seu oposto, gentil e generosa, enquanto ele era brutal e impiedoso, bela para a sua feiura, etérea para a sua depravação.

E ela o marcara. Do mesmo modo como se o tivesse golpeado e deixado uma cicatriz em sua carne, ele estava ferido e enfraquecido por ela.

Não havia nada a ser feito.

Deus, mesmo as lembranças dos momentos que partilhara com ela, quando estivera completamente vestida, e ele, tão gravemente ferido, bastavam para excitá-lo, seu pobre sexo endurecendo por nenhum motivo aparente: mesmo que não estivessem em lados opostos na guerra pelo trono, ela jamais permitiria que ele a abordasse como um macho faz ao se enfeitiçar por uma fêmea de valor. Naquela noite outonal quando se encontraram debaixo daquela árvore, ela executara um ato válido segundo seus preceitos. Não tivera nada a ver com ele em particular.

Mas, ah, como ele a desejava mesmo assim...

Abruptamente, a fêmea diante da lareira se arqueou debaixo dos pesos orgásmicos que mudavam sobre ela, e ele voltou-lhe sua atenção. Como se ela percebesse sua excitação, o olhar enevoado e extasiado focalizou nele, e uma surpresa repentina cruzou sua expressão – ou o pouco que ele conseguia distinguir por cima do antebraço grosso que lhe oferecia alimento.

O choque arregalou seu olhar. Evidentemente, ela não notara a presença dele, mas agora que o fazia, o medo, e não a paixão, fez-se óbvio dentro dela.

Sem querer atrapalhar toda aquela ação, ele balançou a cabeça e estendeu a palma num gesto de “pare”, para garantir a ela que não teria de suportar sua mordida – ou pior, seu sexo.

A mensagem aparentemente funcionou, porque o medo abandonou sua expressão, e quando um dos soldados apresentou o pau pedindo atenção, ela o apanhou e começou a massageá-lo acima da sua cabeça.

Xcor sorriu para si mesmo de modo horripilante. Aquela prostituta não o queria, e mesmo assim, seu corpo, em toda a sua estupidez, insistia em reagir àquela Escolhida, como se a fêmea sagrada um dia fosse olhar para ele.

Tão tolo.

Consultando o relógio, surpreendeu-se ao ver que a refeição já vinha acontecendo há mais de uma hora. Que seja. Desde que seus machos obedecessem com suas duas regras básicas, ele não se importava em deixá-los continuar: tinham de permanecer substancialmente vestidos e as armas deveriam estar nos coldres com as travas desarmadas.

Dessa forma, se o clima mudasse, eles poderiam se defender rapidamente.

Ele estava mais do que disposto a lhes conceder aquele passatempo.

Depois daquele interlúdio? Muitos estariam no máximo de suas forças, e pelo modo como as coisas estavam com a Irmandade... eles precisariam estar assim.


CAPÍTULO 18

– Não. De jeito nenhum.

Qhuinn teve que concordar com a opinião de Z. quanto à ideia brilhante de Rhage.

O grupo já se esforçara na floresta, com Rhage suportando boa parte do peso de Z., enquanto os demais os circundavam aos pares, a postos para apanhar qualquer um ou qualquer coisa que os ameaçasse pelas margens. Agora estavam de volta ao hangar e a solução de Hollywood para o problema de mobilidade parecia uma complicação com implicações mortais, e não exatamente algo que de fato ajudasse.

– Pilotar não deve ser tão difícil – enquanto todos, inclusive Z., apenas o encaravam, Rhage deu de ombros. – O que foi? Os humanos o fazem o tempo todo.

Z. esfregou o peito e lentamente se deixou cair no chão. Depois de respirar, balançou a cabeça.

– Primeiro, você não sabe se... a maldita coisa... pode subir. Provavelmente... está sem combustível... e você nunca pilotou antes.

– Quer me contar a nossa outra opção? Ainda estamos a quilômetros de um ponto plausível para que nos busquem, você não está melhorando e podemos ser encurralados. Deixe-me pelo menos entrar lá para ver se consigo fazer o motor pegar.

– Não é uma decisão inteligente.

No silêncio que se seguiu, Qhuinn raciocinou e olhou para o hangar. Depois de um instante, disse:

– Eu dou cobertura. Vamos fazer isso.

No fim, Rhage estava certo. Aquela evacuação a pé estava demorando demais e o redutor desaparecera antes que o apunhalassem, e não o contrário.

Será que Ômega dera poderes especiais aos seus garotos?

Tanto faz. Um soldado inteligente jamais subestimava o inimigo, ainda mais quando um dos seus estava abatido. Precisavam levar Z. para um lugar seguro e se isso significava ir pelo ar, que assim fosse.

Ele e Rhage entraram no hangar e ligaram as lanternas. O avião estava onde o tinham deixado no canto do fundo, como se fosse o filho adotivo feio de algum outro tipo de transporte muito mais bonito que há muito saíra de cena. Aproximando-se, Qhuinn viu que a hélice parecia estar inteira, e apesar de as asas estarem empoeiradas, conseguiu sustentar seu peso nelas.

O fato de a porta ter rangido como o diabo quando Rhage a abriu não foi uma notícia tão promissora.

– Nossa! – murmurou Rhage ao se encolher. – Parece que há algo morto ali dentro.


Caramba, o fedor devia ser tremendo se o Irmão conseguia distingui-lo do resto do cheiro que permeava o hangar.

Talvez a ideia não fosse tão boa assim.

Antes que Qhuinn conseguisse emitir uma segunda opinião a respeito do fedor, Rhage se espremeu como um pretzel e passou pela abertura oval.

– Puta merda... Chaves! As chaves estão aqui, dá pra acreditar?

– E quanto ao combustível? – murmurou Qhuinn, ao lançar o facho da lanterna de bolso num círculo amplo. Nada além de chão imundo.

– Acho bom recuar um pouco, filho – Rhage berrou de dentro da cabine. – Vou tentar ligar essa máquina velha.

Qhuinn se afastou, mas oras, se a coisa fosse explodir, poucos metros não fariam muita diferença...

A explosão foi alta, a fumaça, espessa, e o motor parecia estar sofrendo com um acesso de tosse mecânica. Mas a merda se estabilizou. Quanto mais deixaram o motor esquentar, mais equilibrado o ritmo se tornou.

– Temos que sair daqui antes de nos asfixiarmos – Qhuinn gritou de dentro do avião.

Bem nessa hora, Rhage deve ter colocado a coisa para se mexer ou algo assim, porque o avião se lançou para a frente com um gemido, como se cada prego e parafuso da sua fuselagem doesse.

E aquela coisa voaria?

Qhuinn correu na frente e chegou à porta dupla. Segurando de um lado, usou toda a sua força para puxar e afastou as portas, lançando diversas trincas e travas para todos os lados.

Ele só esperava que o avião não se inspirasse naqueles fragmentos.

Sob o luar, as expressões de John e Blay não tinham preço ao darem uma bela olhada para o plano de fuga – e ele bem sabia de onde elas vinham.

Rhage pressionou o freio e se espremeu de novo para sair.

– Vamos trazê-lo para dentro.

Silêncio. Bem, a não ser pelo avião ofegante atrás deles.

– Você não vai levá-lo – disse Qhuinn, quase para si mesmo.

Rhage olhou sério para ele.

– O que disse?

– Você é valioso demais. Se esta coisa cair, não podemos perder dois Irmãos. Isso não vai acontecer. Eu sou dispensável, você não.

Rhage abriu a boca como se fosse argumentar. Mas quando a fechou, uma expressão estranha atravessou seu belo rosto.

– Ele tem razão – disse Z. sério. – Não posso colocar você em perigo, Hollywood.

– Que se foda, posso me desmaterializar para fora da cabine...

– E acha que vai conseguir fazer isso quando estiverem num espiral? Tolice...

Uma saraivada de balas irrompeu das margens das árvores, atingindo a neve, o zumbido passando pelos ouvidos.

Todos reagiram. Qhuinn mergulhou dentro do avião, posicionou-se atrás do assento do piloto e tentou entender... puta merda, havia botões demais. A única coisa que o salvava era que...

Rá-tá-tá!

... ele assistira a um número suficiente de filmes para saber que a alavanca com a manopla era o acelerador e que a direção em forma de gravata borboleta era a coisa que você puxava para subir, e abaixava para descer.

– Cacete – murmurou ao ficar abaixado o máximo que podia.

Considerando-se os sons explosivos que se seguiram, John e Blay também atiravam, por isso Qhuinn se sentou um pouco mais elevado e olhou para a fileira de instrumentos. Deduziu que aquele com um tanquezinho de combustível era o que ele estava procurando.

Um quarto de tanque disponível. E metade daquela coisa só devia ser condensação.

Aquela era uma ideia bem ruim.

– Traga-o aqui! – Qhuinn berrou, olhando para o campo aberto e reto à sua esquerda.

Rhage logo o atendeu, jogando Zsadist no avião com toda a gentileza de um estivador. O Irmão aterrissou como uma pilha amontoada, mas ao menos praguejava, o que significava que ainda estava bom o bastante para sentir dor.

Qhuinn não esperou pela tolice de fechar as portas. Soltou o pedal do freio, apertou o acelerador e rezou para não derrapar na neve...

Metade do para-brisa se estilhaçou na sua frente; a bala que causara o estrago ricocheteou pela cabine, o “fuuu” do assento ao lado do seu, sugerindo que o encosto de cabeça tivesse sido atingido. O que era melhor do que o seu braço. Ou o crânio.

A única notícia boa era que o avião parecia pronto para sair dali também, o motor enferrujado girando a hélice rapidamente como se soubesse que sair do chão era a única saída para a segurança. Ao lado das janelas, o cenário começava a passar e ele se orientou no meio da “pista” mantendo as duas fileiras de árvores equidistantes.

– Segure-se – gritou acima do estrondo.

O vento entrava na cabine como se houvesse um ventilador industrial preenchendo o espaço onde o vidro estivera, mas ele não pretendia subir o bastante para que necessitassem de pressurização.

Àquela altura, ele só queria passar por cima da floresta logo adiante.

– Vamos, meu bem, você consegue... Vamos, vamos...

Ele já estava com a alavanca toda puxada e teve que ordenar ao braço que relaxasse um pouco. Não havia mais para onde puxar, e quebrar a maldita coisa era a garantia de acabar com tudo ali mesmo.

O barulho aumentou ainda mais.

As árvores se agitaram cada vez mais.

A trepidação ficou cada vez mais violenta, até seus dentes batiam uns nos outros, e ele se convenceu de que uma ou as duas asas se partiriam e cairiam pelas laterais.

Concluindo que não havia tempo a perder, Qhuinn puxou o manche para trás o máximo que pôde, segurando firme, como se isso, de alguma forma, fosse se traduzir à fuselagem do avião e se mantivesse junto no lugar...

Algo caiu do teto e voou na direção de Z.

Um mapa? O manual do proprietário? Quem diabos haveria de saber...?

Caramba, as árvores na ponta extrema estavam se aproximando...

Qhuinn puxou ainda mais, apesar de o manche estar o mais próximo possível dele, o que era uma pena, porque estavam ficando sem pista e ainda colados no chão...

Sons de arranhados vinham da barriga do avião, como se a vegetação rasteira estivesse se esticando e tentando segurar as placas de aço.

As árvores estavam cada vez mais perto.

Seu primeiro pensamento ao enfrentar a morte era que jamais conheceria a filha. Pelo menos não neste lado do Fade.

O segundo e último era que não acreditava que nunca tivesse dito a Blay que o amava. Em todos os minutos e horas e noites de sua vida, em todas as palavras ditas ao macho no decorrer dos anos em que se conheciam, ele somente o afastara.

E agora era tarde demais.

Idiota. Que tremendo cretino que ele era.

Porque parecia bem evidente que seu cartão de biblioteca ficaria inutilizado aquela noite.

Endireitando-se e fazendo com que as lufadas o atingissem em cheio no rosto, Qhuinn encarou aquela arremetida, imaginando todos aqueles pinheiros logo adiante, já que não conseguia enxergá-los pelo fato de os olhos estarem lacrimejando devido ao vento. Abrindo a boca, ele gritou, acrescentando voz à confusão.

Maldição, não morreria como um covarde. Não mergulharia no chão, nada de frases patéticas implorando para que Deus o salvasse. Ao diabo com isso. Enfrentaria a morte com as presas expostas, o corpo preparado e o coração acelerado não de medo, mas com uma tremenda descarga de...

– Morte, vá se foder!

Enquanto Qhuinn tentava levantar voo, Blay tinha o cano da pistola apontado para a borda das árvores e descarregava balas como se tivesse um suprimento infindável... o que não era verdade.

Aquilo era horrível. Ele, John e Rhage não tinham cobertura; não havia como saber quantos assassinos estavam na floresta; e, pelo amor de Deus, só o que aquele avião antigo fazia era expelir uma nuvem de fumaça tóxica em seu rastro enquanto passava como se estivesse num desfile dominical.

Ah, e a máquina estava longe de ser blindada, mas, evidentemente, tinha combustível no tanque.

Qhuinn e Z. não conseguiriam. Colidiriam na floresta ao fim da pista. Isso se não explodissem antes.

Nesse instante, quando soube que uma bola de fogo era iminente de um ou outro modo, ele se partiu ao meio. A parte física permanecia concentrada em combater o ataque, os braços esticados, os indicadores apertando os gatilhos, os olhos e ouvidos rastreando os sons e as aparições de flashes de pistolas e os movimentos do inimigo.

A sua outra parte estava naquele avião.

Era como se estivesse assistindo à própria morte. Imaginava com nitidez a vibração violenta do avião, os saltos descontrolados no chão e a vista da margem sólida das árvores que se aproximavam dele, como se estivesse enxergando através dos olhos de Qhuinn e não dos seus.

Filho da puta imprudente.

Tantas vezes Blay pensou “ele vai se matar”.

Tantas vezes no campo de batalha e fora dele.

Mas aquela era a vez em que isso aconteceria...

Uma bala o atingiu na coxa e a dor que subiu pela perna até o coração indicava que sua total atenção precisava voltar ao combate: se quisesse viver, teria de se concentrar completamente.

Contudo, quando essa convicção o acometeu, houve uma fração de segundo em que ele pensou: vamos acabar com isso aqui. Vamos acabar com essa tolice de vida de castigos, de “quase lá”, de “e se?”, da agonia crônica e infindável em que sempre esteve... e da qual estava tão cansado...

Ele não entendeu o que o fez atingir a neve.

Num minuto, estava olhando para o avião esperando que ele explodisse em chamas. No minuto seguinte, estava de peito no chão, com os cotovelos enfiados na terra congelada e obstinada, a perna machucada latejando.

Flap! Flap! Flap!...

O rugido que interrompeu o som das balas era tão alto que ele abaixou a cabeça, como se isso o ajudasse a evitar a bola de fogo crônica do avião.

Só que não houve nem luz nem calor. E o som vinha de cima...

Planando. O fardo de parafusos estava mesmo voando. Acima deles.

Blay despendeu um segundo olhando para cima, só para o caso de ter sido alvejado e a sua percepção da realidade ter sido afetada. Mas não. Aquela antiguidade de pulverização de plantações estava no céu, fazendo uma curva larga e seguindo na direção que, se é que conseguiria permanecer suspenso, levaria Qhuinn e Z. para o complexo da Irmandade.

Se tivessem sorte.

Caramba, aquele voo não seria fácil. Nada parecido com uma águia voando segura e decidida pelo céu noturno. Mais parecido com uma andorinha recém-saída do ninho com uma asa quebrada.

De um lado para o outro. Para cima e para baixo, inclinando-se de lado a lado.

Ao ponto em que parecia ter realizado o impossível saindo do chão... só para cair e queimar no meio da floresta...

Do nada, algo o atingiu na lateral do rosto, golpeando-o com tanta força que ele caiu de costas e quase perdeu as pistolas. Uma mão – fora uma mão que o espalmara como se ele fosse uma bola de basquete.

Em seguida, um peso absurdo o atingiu no peito, esticando-o no chão coberto de neve, fazendo-o exalar com tanta força que ele se perguntou se não deveria olhar ao redor para procurar o fígado.

– Porra, vai ficar abaixado ou não? – Rhage sibilou em seu ouvido. – Está tentando levar bala... de novo?

Enquanto a calmaria do tiroteio se estendia de segundos até completar um minuto, os redutores emergiram pela linha de árvores adiante, o quarteto de assassinos caminhando pela neve com as armadas suspensas e prontas.

– Não se mexa – sussurrou Rhage. – Dois podem brincar nesse jogo.

Blay fez seu melhor para não inspirar tão fundo quanto a queimação em seus pulmões lhe dizia que precisava. Também tentou não espirrar já que flocos soltos coçavam em seu nariz toda vez que ele respirava.

Espera.

Espera.

Espera.

John estava a um metro de distância, deitado numa posição contorcida que fez o coração de Blay se apertar...

O cara sutilmente levantou o polegar, como se estivesse lendo a mente de Blay.

Graças a Deus. Cacete.

Blay desviou o olhar sem mudar a posição estranha da cabeça, e depois discretamente trocou uma das pistolas por uma das suas adagas.

Enquanto um zumbido desengonçado começou a vibrar em sua cabeça, ele calculou os movimentos dos redutores, suas trajetórias, suas armas. Ele estava quase sem munição e não havia tempo para recarregar as pistolas. E ele sabia que tanto Rhage quanto John estavam na mesma condição.

As adagas que V. fizera à mão para todos eles eram o único recurso.

Mais perto... mais perto...

Quando os quatro assassinos finalmente estavam ao alcance, sua cronometragem foi perfeita. Assim como a dos outros.

Com um movimento coordenado perfeito, ele saltou e começou a apunhalar os dois mais próximos a ele. John e Rhage atacaram os outros...

Quase imediatamente, mais assassinos surgiram das árvores, mas, por algum motivo, talvez porque a Sociedade Redutora não estivesse armando seus alistados muito bem, não havia balas. O segundo round se passou pela neve com o tipo de armas que se esperaria ver numa briga de beco: tacos de baseball, pés-de-cabra, chaves de rodas e correntes.

Por ele, tudo bem.

Estava tão pilhado e furioso, que lhe faria bem sair na mão.


CAPÍTULO 19

Sentada na mesa de exames, com uma camisola frágil de papel cobrindo-a e os pés descalços pendurados da orla acolchoada, Layla sentiu como se estivesse cercada por instrumentos de tortura. E devia ser isso mesmo. Todo tipo de utensílios de aço inoxidável estava enfileirado na bancada da pia, com as embalagens plásticas transparentes indicando que estavam estéreis e prontos para serem usados.

Já fazia uma eternidade que estava na clínica de Havers. Ou, pelo menos, era o que parecia.

Em contraste com o trajeto apressado para atravessar o rio, quando o mordomo dirigira como se soubesse que a pressa era essencial, desde que ali chegara só acontecera um retardo após o outro. Desde a burocracia até a sala de espera, o aguardo pela enfermeira, a demora para que Havers apresentasse o resultado do seu exame de sangue.

Era o suficiente para enlouquecer alguém.

Do lado oposto ao que ela estava sentada, havia uma imagem emoldurada pendurada na parede, e há tempos ela havia memorizado suas pinceladas e cores, o buquê de flores pintadas em azuis e amarelos vibrantes. O nome embaixo dizia: van Gogh.

Àquela altura, ela nunca mais queria ver uma íris novamente.

Mudando de posição, fez uma careta. A enfermeira lhe entregara um objeto apropriado para o sangramento e ela ficou horrorizada ao perceber que logo precisaria de outro...

A porta se abriu com uma batida e seu instinto imediato foi correr, o que era ridículo. Era ali que precisava estar.

Só que tratava-se apenas da enfermeira que a levara até ali, tirara a amostra de sangue para o exame e seus sinais vitais, e tomara notas no computador.

– Sinto muito, houve outra emergência. Só quis certificá-la de que será a próxima.

– Obrigada – Layla se ouviu dizer.

A fêmea se aproximou e pôs uma mão em seu ombro.

– Como está se sentindo?

A gentileza a fez piscar rápido.

– Acho que vou precisar de outro... – ela apontou para o quadril.

A enfermeira assentiu e deu um leve apertão antes de seguir para a bancada e apanhar uma embalagem quadrada cor de pêssego.

– Temos mais aqui. Gostaria que eu a acompanhasse até o banheiro no final do corredor?

– Sim, por favor...

– Espere, não se levante ainda. Deixe-me pegar algo para que se cubra melhor.

Layla baixou o olhar para as mãos, aquelas que estavam enroscadas uma na outra e que não conseguiam ficar quietas.

– Obrigada.

– Aqui está – algo macio a envolveu. – Ok, agora vamos colocá-la de pé.

Escorregando para fora da mesa, ela se desequilibrou um pouco e a enfermeira estava logo ali, segurando-a pelo cotovelo para estabilizá-la.

– Vamos bem devagar.

E foi o que fizeram. No corredor, havia enfermeiras se apressando de quarto em quarto, e pessoas entrando e saindo das suas consultas, e outras equipes correndo... e Layla não conseguia acreditar que um dia fora rápida como eles. Para se afastarem do tráfego, ela e a gentil acompanhante ficaram próximas da parede, a fim de evitar serem atropeladas, mas os outros eram verdadeiramente gentis. Como se todos soubessem que ela estava sofrendo seriamente.

– Vou entrar com você – disse a enfermeira quando chegaram ao banheiro. – A sua pressão está muito baixa e fico preocupada que possa desmaiar, está bem?

Enquanto Layla assentia, elas entraram e trancaram a porta. A enfermeira retirou-lhe a coberta, e ela, desconcertada, afastou o papel do caminho.

Sentando-se, ela...

– Ah, santa Virgem Escriba.

– Psiu, está tudo bem, tudo bem – a enfermeira se inclinou e lhe estendeu o absorvente. – Vamos cuidar disso. Você está bem... aqui, não, você precisa me dar isso. Temos que encaminhar para o laboratório. Existe a possibilidade de ser usado para determinar o que está acontecendo e você há de querer ter essa informação quando tentar novamente.

Tentar novamente. Como se a perda já tivesse ocorrido.

A enfermeira colocou as luvas e pegou um saco plástico de um suporte. Ela cuidou de tudo com discrição e diligência, e Layla viu quando o nome que havia dado foi escrito do lado de fora do saco com uma caneta preta.

– Ah, querida, está tudo bem.

A enfermeira retirou as luvas, arrancou um pedaço de papel higiênico de um suporte na parede e se ajoelhou. Segurando o queixo de Layla com uma mão gentil, cuidadosamente enxugou as faces que se molharam de lágrimas.

– Sei bem pelo que está passando. Também perdi um – o rosto da enfermeira se tornou belo pela compaixão. – Tem certeza de que não podemos chamar o seu hellren?

Layla apenas balançou a cabeça.

– Bem, avise-me se mudar de ideia. Sei que é difícil vê-los tristes e preocupados, mas não acha que ele gostaria de estar aqui com você?

Ah, como contaria a Qhuinn? Ele parecera tão certo de tudo, como se já tivesse visto o futuro e encarado os olhos do filho deles. Aquilo seria um choque.

– Saberei se estive mesmo grávida? – murmurou Layla.

A enfermeira hesitou.

– O exame de sangue pode revelar isso, mas tudo depende de quanto tempo você está se sentindo assim.

Layla fitou as mãos novamente. As juntas estavam brancas.

– Preciso saber se estou tendo um aborto ou se isto é apenas um sangramento normal que acontece quando não se engravida. Isso é importante.

– Lamento muito, mas não sou eu quem pode lhe garantir isso.

– Mas você sabe, não sabe? – Layla levantou a cabeça para fitá-la nos olhos. – Não sabe?

– Repito, não sou eu quem pode lhe garantir, mas... com esse tanto de sangue?

– Eu estava grávida.

A enfermeira fez um movimento amplo com as mãos, os lábios se contraindo.

– Não conte a Havers que eu lhe disse isso, mas... sim, provavelmente. E você precisa saber, não há nada que você possa fazer para deter o processo. Não é culpa sua, e você não fez nada errado. É só que, às vezes, essas coisas simplesmente acontecem.

Layla deixou a cabeça pender.


– Obrigada por ser honesta comigo. E... na verdade, é isso o que acho que está acontecendo.

– Uma fêmea sabe. Bem, vamos levá-la de volta.

– Sim, muito obrigada.

Mas Layla teve dificuldade para suspender a calcinha ao se levantar. Quando ficou claro que não conseguia coordenar as mãos, a enfermeira se adiantou e a ajudou com facilidade invejável, e tudo foi tão vergonhoso e assustador. Ficar fraca e à mercê de outra pessoa para uma coisa tão simples...

– Você tem um sotaque maravilhoso – disse a enfermeira ao voltarem para o tráfego do corredor, retornando mais uma vez para a faixa mais lenta. – É tão Velho Mundo... minha avó aprovaria. Ela odeia o fato de o inglês ter se tornado a língua dominante aqui. Acredita que isso será a derrocada da nossa espécie.

A conversa a respeito de nada em especial ajudou, dando a Layla algo em que se concentrar em vez de pensar em quanto tempo aguentaria até ter de refazer aquele percurso... e se as coisas estavam piorando nesse aborto... e como seria quando fosse forçada a encarar Qhuinn para lhe dizer que fracassara...

De algum modo, chegaram à sala de exames.

– Não deve demorar muito mais. Prometo.

– Obrigada.

A enfermeira parou à porta e, ao se imobilizar, sombras cruzaram o fundo do seu olhar, como se ela estivesse revivendo partes de seu próprio passado. E no silêncio entre elas, um momento de comunicação ocorreu, e embora fosse raro ter algo em comum com uma fêmea da Terra, a conexão foi um alívio.

Ela se sentira tão sozinha naquilo tudo.

– Temos pessoas com quem você pode conversar – disse a fêmea. – Às vezes, conversar depois de tudo pode ajudar de verdade.

– Obrigada.

– Use esse botão branco se precisar de ajuda ou se sentir-se tonta, está bem? Não vou estar longe.

– Sim, farei isso, obrigada.

Enquanto a porta se fechava, lágrimas embaraçam sua visão, e mesmo sentindo uma dor profunda, a sensação esmagadora de perda era desproporcional à realidade. A gestação estava apenas bem no comecinho e, logicamente, não havia muito a perder.

No entanto, para ela, aquilo era o seu filho.

Aquilo era a morte do seu filho...

Houve uma batida suave à porta e depois uma voz masculina.

– Posso entrar?

Layla apertou os olhos e engoliu com força.

– Por favor.

O médico da raça era alto e distinto, com óculos de aro de tartaruga e uma gravata borboleta. Com um estetoscópio ao redor do pescoço e aquele longo jaleco branco, ele era a figura perfeita de um curador, calmo e competente.

Ele fechou a porta e sorriu de leve para ela.

– Como está se sentindo?

– Bem, obrigada.

Ele a fitou do outro lado da sala, como se estivesse avaliando seu estado clínico, embora não a tocasse ou usasse instrumento algum.

– Posso ser franco?

– Sim, por favor.

Ele assentiu e puxou um banquinho com rodinhas. Sentando-se, equilibrou o prontuário no colo e a encarou.

– Vejo que você não indicou o nome do seu hellren... nem do seu pai.

– É preciso?

O médico hesitou.

– Não tem nenhum parente, minha querida? – quando ela negou com a cabeça, os olhos dele registraram tristeza profunda. – Lamento muito pelas suas perdas. Então, não há ninguém que possa estar aqui com você? Ninguém?

Como ela simplesmente continuou ali, sem dizer nada, ele inspirou fundo.

– Muito bem...

– Mas posso pagar – ela deixou escapar de supetão. Ela não sabia muito bem onde arranjaria o dinheiro, mas...

– Ah, meu bem, não se preocupe com isso. Não preciso receber se não puder pagar – ele abriu o prontuário e afastou uma página. – Vejamos, vejo aqui que passou pelo seu cio.

Layla apenas concordou, como se isso fosse tudo o que pudesse fazer para não gritar: Qual é o resultado do exame?

– Bem, verifiquei o resultado do seu exame de sangue e ele mostrou algumas... coisas que eu não esperava. Portanto, se permitir, eu gostaria de coletar mais uma amostra e enviá-la para o laboratório para mais alguns exames. Com isso, espero ser capaz de entender o que está acontecendo... e também farei um ultrassom, se não se importar. É um exame padrão que me dará uma ideia de como as coisas estão progredindo.

– Como, por exemplo, quanto tempo sangrarei até que termine tudo? – disse com severidade.

O médico da raça esticou a mão para segurar a dela.

– Primeiro vamos ver como você está, certo?

Layla respirou fundo e concordou mais uma vez.

– Certo.

Havers foi até a porta e chamou a enfermeira. Quando a fêmea entrou no quarto, ela trouxe consigo o que parecia ser um computador de mesa montado num carrinho: havia um teclado, um monitor e umas varetas erguidas nas laterais do equipamento.

– Vou deixar que a enfermeira tire o sangue... as mãos dela são muito mais competentes que as minhas nesse quesito – ele sorriu de maneira gentil. – Nesse meio-tempo, vou verificar outro paciente. Volto em seguida.

A segunda picada de agulha foi muito melhor do que a primeira, pois ela sabia o que esperar, e ela foi deixada a sós por um curto tempo quando a enfermeira saiu para levar a amostra ao laboratório – o que quer que fosse ele e onde quer que estivesse localizado. Ambos voltaram em seguida.

– Pronta? – Havers perguntou.

Quando Layla fez que sim, ele e a enfermeira trocaram algumas palavras e o equipamento foi disposto perto de onde ela estava sentada. O médico, então, acomodou-se novamente no banquinho e puxou dois tipos de extensões das laterais da mesa de exame. Abrindo o que pareciam ser um par de estribos, ele fez um gesto para a enfermeira que reduziu a iluminação e se aproximou para apoiar uma mão no ombro de Layla.

– Deite-se, por favor – pediu Havers. – E desça até chegar ao fim da mesa. Você vai colocar os pés aqui depois de despir a roupa de baixo.

Enquanto ele indicava os dois estribos, os olhos de Layla se arregalaram. Ela não fazia ideia de que o exame seria...

– Nunca antes fez um exame interno? – perguntou Havers com hesitação. Quando ela começou a balançar a cabeça, ele assentiu. – Bem, isso não é incomum, ainda mais se esse foi o seu primeiro cio.

– Mas não posso tirar... – ela se interrompeu. – Estou sangrando.

– Cuidaremos disso – o médico parecia cem por cento confiante. – Vamos começar?

Layla fechou os olhos e se inclinou para trás para se deitar, o papel fino que cobria a superfície acolchoada rangendo debaixo do seu peso. Elevando os quadris e mudando um pouco de posição, ela se desfez do que a cobria.

– Cuido disso para você – disse a enfermeira baixinho.

Os joelhos de Layla se encontraram enquanto ela foi tateando com os pés à procura dos malditos estribos.

– Isso mesmo – o banquinho de rodinhas guinchou quando o médico se aproximou. – Mas vá mais para baixo.

Por uma fração de segundo, ela pensou que não conseguiria.

Curvando os braços ao redor do baixo ventre, apertou-os, como se pudesse, de algum modo, segurar o bebê dentro dela ao mesmo tempo em que tentava se controlar. Mas não havia nada que pudesse fazer, nenhuma conversa que pudesse ter com seu corpo para acalmá-lo e segurar o que fora implantado, nenhum papo amoroso que pudesse ter com o filho para que ele tentasse sobreviver, nenhum fluxo de palavras para acalmá-la do seu pânico absoluto.

Por um momento, ela desejou a vida enclausurada que um dia considerou tão sufocante. Lá no Santuário da Virgem Escriba, a natureza plácida da sua existência fora algo que ela dera como certo. De fato, desde que descera para a Terra e tentara encontrar um propósito aqui, fora atingida por um trauma atrás do outro.

Isso fez com que respeitasse os machos e as fêmeas de quem lhe disseram ser inferiores a ela.

Ali embaixo, todos pareciam estar à mercê de forças além do controle deles.

– Está pronta? – perguntou o médico.

Enquanto lágrimas corriam pelos cantos dos olhos, ela se concentrou no teto e agarrou a beira da mesa.

– Sim. Pode começar.


CAPÍTULO 20

Puta merda, Qhuinn estava completamente sem controle.

Quase nenhuma visibilidade. O avião balançando de um lado para o outro como se estivesse sofrendo delirium tremens. Motor ligando e desligando.

E ele nem podia dar uma olhada em Z. O vento estava forte demais para gritar, e não pretendia despregar os olhos do que quer que viesse pela frente – ou melhor dizendo, daquilo no que bateriam de frente – mesmo sem conseguir enxergar nada...

O que o fizera pensar que aquilo era uma boa ideia?

A única coisa que parecia estar funcionando era a bússola, portanto, ao menos ele conseguia se orientar quanto à localização da base: o complexo da Irmandade ficava ao norte, um tantinho ao leste, no topo de uma montanha circundada pelo mhis de V., a divisa defensiva invisível. Com isso, em relação ao direcionamento, ele estava certo, desde que o mostrador de N – S – L – O estivesse mais operacional do que, digamos, todo o resto daquele caixote.

Ao olhar para a direita, o vento incessante que passava pelo vidro parcialmente quebrado atingiu seu canal auditivo. Pela janela lateral, ele via... uma imensidão negra. O que ele interpretou como indício de eles terem passado pelo subúrbio e estarem sobrevoando as fazendas. Talvez já estivessem sobre as colinas que, no fim, transformariam-se na montanha...

Um som como o do escapamento de um carro explodindo chamou sua atenção negativamente, mas o que foi pior?

O silêncio repentino que se seguiu.

Nada de motor roncando. Apenas o vento soprando para dentro da cabine.

Ok, agora sim estavam em apuros.

Por um átimo, ele pensou em se desmaterializar. Era forte o bastante, estava consciente, mas jamais abandonaria Z...

Uma mão forte pousou em seu ombro, assustando-o tremendamente.

Z. se arrastara para a frente e, baseando-se em sua expressão, estava tendo dificuldades para se manter de pé. E não só pelos solavancos.

O Irmão falou, sua voz grossa superando todo aquele barulho.

– Hora de você ir embora.

– Nem a pau – berrou Qhuinn em resposta. Esticando o braço, tentou a ignição. Não faria mal tentar, não é mesmo?

– Não me obrigue a jogá-lo para fora.

– Tente.

– Qhuinn...

O motor voltou a pegar, o barulho se intensificando. Boas novas. A questão era que, se o maldito desligara uma vez, era bem possível que o fizesse novamente.

Qhuinn enfiou a mão na jaqueta. Ao apanhar o celular, pensou em todos que os dois estavam deixando para trás e passou o objeto para o Irmão.

Se existia uma hierarquia nessa coisa de se despedir, Z. estava no topo da lista. Ele tinha uma shellan e uma filha. Se alguém tinha de fazer uma ligação, esse alguém era ele.

– Para que isso? – Zsadist perguntou sombrio.

– Descubra você mesmo.

– E você pode ir...

– Não vou a parte alguma. Vou pilotar esta armadilha até batermos em alguma coisa.

Houve certa discussão depois disso, mas ele não sairia do assento do piloto, e por mais forte que o Irmão fosse em circunstâncias normais, Z. não estava em condições de suspender nada além de uma fatia de pão. E a conversa não durou muito. Depois que a discussão terminou, Z. desapareceu, sem dúvida indo para os fundos para fazer o último contato com as pessoas amadas.

Decisão inteligente.

Deixado a sós com seus equipamentos, Qhuinn fechou os olhos e lançou uma oração para quem pudesse ouvir. E visualizou o rosto de Blay...

– Pegue.

Ele abriu os olhos. O celular estava bem na sua frente, firme na mão de Z. E o mapa de GPS estava sendo mostrado, as pequenas setas piscantes indicando onde exatamente eles estavam.

– Mais uns cinco quilômetros – exclamou o Irmão acima do barulho ensurdecedor. – É tudo de que precisamos...

Houve um estouro, um assobio e mais uma rodada daquele silêncio terrível. Praguejando, Qhuinn concentrou-se naquela tela sempre desejando que as coisas voltassem a funcionar. Mais para o norte, obviamente, porém, mais para o leste. Muito mais. Seus cálculos estavam certos, mas não exatos.

Sem o telefone? Estariam fritos.

Bem, isso e toda aquela situação do motor.

Verificando a localização precisa, ele fez alguns cálculos mentalmente e virou para a direita, tentando chegar àquela indicação no mapa que levava diretamente para a montanha. Em seguida, seria a vez de tentar religar o motor.

Estavam perdendo altitude. Não espiralando, situação na qual haveria um close-up no altímetro e a coisa estaria acelerada do modo como você desejaria que as hélices estivessem. Mas lentamente, inexoravelmente indo para baixo... e se perdessem a aceleração, o que era o que aquela máquina de costura insegura debaixo do teto seria capaz de prover, acabariam caindo como uma pedra.

Tentando a ignição repetidas vezes, murmurou:

– Vamos, vamos, vamos...

Era difícil tentar manter o nariz empinado com apenas uma mão; e bem quando ele ia passar a devotar toda sua atenção ao manche, o braço de Z. se esticou, afastou a mão dele, e assumiu o controle sobre o botão da ignição.

Por um segundo, Qhuinn vislumbrou a marca de escravo para fora dos punhos da jaqueta do Irmão, mas logo voltou a se concentrar.

Deus, seus ombros estavam em chamas por puxar o manche para trás.

E pensar que ele estava morrendo de vontade de ouvir aquela barulheira do...

De uma só vez, o motor engasgou de volta à vida, e a mudança de altitude foi imediata. No instante em que os plugues e pistões começaram a rugir novamente, os números começaram a subir.

Mantendo a alavanca puxada, verificou o nível de combustível. Estava no vazio. Talvez estivessem apenas sem combustível, e não se tratasse de um problema mecânico?

Uma tolice, certo?

– Só mais um pouquinho, meu bem... um pouco mais, vamos lá, querida, você consegue...

Enquanto um fluxo interminável de encorajamento escapava dos seus lábios, as palavras impotentes eram abafadas pela única coisa que importava – mas, espere, como se o Cessna falasse inglês...!

Caramba, parecia que aquilo duraria uma eternidade, a esperança e as orações, seu cérebro num jogo de pingue-pongue entre os melhores e os piores cenários enquanto quilômetros eram atravessados num ritmo agonizantemente lento.

– Diga que telefonou para as suas fêmeas – berrou Qhuinn.

– Diga que consegue nos manter acima do solo.

– Não vou mentir.

– Leve-nos mais para o leste.

– O quê?

– Leste! Vá para o leste!

Z. aumentou o zoom do mapa e começou a correr o dedo em uma direção, de leste a oeste.

– Você vai precisar aterrissar neste ponto... atrás da mansão!

Qhuinn deduziu que deveria tomar como um bom sinal que o cara estava fazendo planos de aterrissagem que não envolviam bolas de fogo. E a sugestão era boa. Se conseguissem se orientar ao longo da mansão, do lado oposto à piscina, eles poderiam acabar com algumas árvores frutíferas... porém, teriam mais ou menos o mesmo tanto de pista que tiveram para decolar.

Muito melhor do que bater no muro que cercava a propriedade...

Daquela vez, o motor não emitiu nenhum aviso. Simplesmente morreu, como se estivesse cansado de brincar de pega-pega e houvesse decidido tirar uma folga permanente.

Ao menos já estavam próximos da aterrissagem.

Uma chance. Era tudo de que dispunham.

Uma única tentativa de aterrissar que, desde que ele conseguisse levá-los até as cercanias da propriedade, penetrar o mhis, e conseguir não colidir na mansão, no ginásio, nas construções, nos portões nem em nada que fosse real ou algum tipo de propriedade... resultaria nele entregando o orgulhoso pai e amoroso hellren, e soberbo lutador... de volta aos braços da família.

Mas não era só em Z. que ele estava pensando.

O Primale cuidaria da saúde e do bem-estar de Layla. Blay tinha os pais amorosos e Sax. John tinha a sua Xhex.

Todos eles ficariam bem.

Qhuinn se virou.

– Sente-se! Lá atrás! Sente-se e prenda o cinto de segurança...

O Irmão abriu a boca e Qhuinn fez o impensável. Cobriu os lábios do macho com a mão.

– Sente-se de uma vez e se amarre! Chegamos até aqui... não vamos estragar tudo!

E pegou o celular de volta.

– Vá! Deixe comigo!

Os olhos de Z. se conectaram aos seus e, por um breve segundo, Qhuinn se perguntou se seria lançado para fora da cabine. Mas então, o milagre aconteceu: um instante de conexão se estendeu entre eles, uma corrente de elos tão grossos quanto coxas ligando-os um ao outro.


Z. levantou o indicador e apontou direto no rosto de Qhuinn. Depois de acenar uma vez com a cabeça, desapareceu na parte traseira.

Qhuinn voltou a se concentrar.

A navegação os mantinha no alto, e graças às orientações de Z., aquela guinada extra à direita os colocara na direção certa. De acordo com o GPS, estavam se aproximando da junção de estradas que dava a volta na base da montanha, centímetro a centímetro. Centímetro... a centímetro...

Ele estava bem certo de que localizavam-se acima da propriedade agora.

Enquanto o avião abaixava mais, ele se preparou, continuando a puxar o manche com força até que os ombros cravassem no assento atrás dele. Não havia trem de pouso para puxar. Ele esteve abaixado o tempo todo...

Um assobio repentino penetrou na cabine, e isso, junto a uma abrupta mudança de angulação, anunciou que a gravidade começara a vencer a batalha, exigindo a construção de fibra de vidro e metal e tendo um par de vidas como seu prêmio.

Eles não conseguiriam... era cedo demais...

Uma vibração selvagem se seguiu e, por um momento, ele se perguntou se não tinham atingido o chão sem que ele percebesse. Copas de árvores, talvez? Não. Algo...

O mhis?

O amortecedor repentino parecia se estender para cima, e, ora essa, o avião reagiu de modo diferente, o bico se nivelando sem nenhum esforço da parte de Qhuinn ou ajuda do peso morto que era aquele motor. Até mesmo o sacolejo de um lado para o outro cessou.

Aparentemente, a defesa invisível de V. não só mantinha afastados humanos e redutores, como também sustentava um Cessna no ar.

Só que tinham um problema. Aquela elevação vital parecia não acabar.

Do modo como iam as coisas, era como se ele fosse flutuar ali para sempre, ultrapassando a única pista de aterrissagem que tinham...

Abruptamente, o barulho retornou, e ele verificou o altímetro. Tinham descido cerca de sete metros, e ele teve que se perguntar se tinham penetrado a barreira.

Luzes. Ah, bom Jesus amado. Luzes.

Do lado de fora da janela, abaixo, ele via o brilho da mansão e o pátio. Estava distante demais para distinguir os detalhes, mas só podia ser – sim, a pequena ramificação só podia ser o ginásio.

Instantaneamente, seu cérebro dimensionou e reorientou tudo.

Merda. O ângulo estava errado. Se continuasse assim, aterrissaria de frente para a propriedade e não ao longo dela. E a porcaria era que não tinha altitude suficiente para executar um círculo grande para apontá-lo para a direção certa.

Quando não se tem opções, a única alternativa é fazer dar certo.

Seu maior problema era deixar passar o gramado. Só havia uma clareira na montanha. O resto? Árvores que os devorariam.

Ele precisava descer mais. Imediatamente.

– Segure-se!

Mesmo sendo um contrassenso, ele arremessou o manche para frente, e os direcionou para o chão. Houve uma mudança de velocidade imediata, e ele rezou que se recuperasse disso quando chegasse à zona de impacto. E merda, a intensa trepidação ficou ainda pior, ao ponto de ele ficar tonto, e os braços doerem por segurar firme o manche.

Mais rápido. Mais próximo. Mais rápido. Mais barulhento. Mais próximo.

E, então, chegou a hora. A casa e os jardins estavam logo à frente, indo ao encontro deles numa velocidade de matar.

Ele puxou com força, e a nova velocidade os fez levantar um pouco. Por cima da casa...

– Prepare-se! – exclamou a plenos pulmões.

Enquanto a câmera lenta assumia o comando, tudo se ampliou: a propriedade, os segundos, a dor nos olhos enquanto ele se esforçava para olhar adiante, a sensação do seu corpo sendo empurrado para trás no assento...

Merda. Ele estava sem o cinto de segurança.

Nem se preocupara com isso. Coisas demais em que pensar.

Idiota...

Nesse mesmo instante, fizeram contato com algo. Com força. O avião pulou, bateu em outra coisa, ricocheteou e pulou novamente. Nesse meio-tempo, sua cabeça bateu no painel acima dele, e seu traseiro ficou estatelado no assento, e seu...

Deixa para um mix de dores.

A fase seguinte da aterrissagem dos infernos foi um misto de desliza-chacoalha-rola que quase o lançou para fora da cabine. Aquilo era o chão – só podia ser – e, maldição, como iam rápido. As luzes corriam pelas janelas, tudo parecendo o Studio 54* até ele ficar praticamente cego. E por causa do lado em que o estroboscópio estava, ele deduziu que estavam no jardim – mas estavam ficando sem espaço.

Segurando o manche, ele os fez dar um cavalo de pau, na esperança que as mesmas leis da física que se aplicavam a carros desgovernados funcionassem ali: sem freios, espaço limitado e o único modo de diminuir a velocidade era mudar o coeficiente aerodinâmico.

A força centrífuga o fez bater na lateral da cabine e a neve bombardeou seu rosto; depois, algo afiado.

Merda, eles não estavam desacelerando em nada.

E aquele muro de proteção de seis metros de altura e 45 centímetros de espessura estava se aproximando com rapidez.

E por falar em paradas abruptas...

* Lendária discoteca em Manhattan que funcionou entre 1977 e 1986. (N.T.)


CAPÍTULO 21

Blay se desmaterializou para a mansão no instante em que o último assassino naquela clareira foi enviado de volta a Ômega. Como Qhuinn ainda estava no ar com Z., não havia razão para perder mais tempo à espera de mais um esquadrão.

Mesmo por que não havia nada que alguém pudesse fazer para ajudar aqueles dois.

Reaparecendo no pátio, ele...

Diretamente acima dele, sem produzir som algum, aquele maldito avião bloqueava a luz da lua.

Puta merda, eles conseguiram e, caramba, estavam tão próximos que ele pensou que, caso se esticasse, conseguiria tocar a fuselagem do Cessna.

O silêncio sepulcral, porém, não era um bom sinal...

O primeiro impacto veio do alto das cercas vivas que delimitavam o jardim. O avião saltou das pontas, pegou uma corrente de ar, depois sumiu de vista.

Blay se desmaterializou ao redor da varanda bem a tempo de ver o Cessna bater na neve, caindo como um homem obeso mergulhando de barriga numa piscina, criando grandes ondas brancas para todos os lados. E então a aeronave se transformou no maior cortador de grama jamais visto pelo homem, a combinação de seu corpo de aço e a velocidade acelerada demais, destruindo fileiras de árvores frutíferas e de moitas de flores que foram protegidas do inverno, e caramba, até mesmo a fileira de bebedouros para os pássaros.

Mas ao inferno com tudo isso. Ele pouco se importava se tivessem de replantar o lugar inteiro, desde que o avião parasse... antes do muro de contenção.

Por uma fração de segundo, ele chegou a pensar em se materializar diante da coisa e detê-la com as mãos, mas isso seria loucura. Se o Cessna não parecia se incomodar com as estátuas de mármore que ele agora destruía, pouco se importaria com um macho vivo e respirando diante dele...

Por nenhum motivo aparente, todo aquele descontrole começou a girar, a asa encarando Blay como se Qhuinn estivesse tentando virar. A derrapagem foi o movimento perfeito. Nem precisava ser dito que não havia freios, e desde que o espiral se sustentasse, eles teriam mais área para perder velocidade.

Merda, eles estavam mesmo perto demais do muro de contenção...

Centelhas de luz iluminaram a noite, além do grito de metal contra pedra que anunciava que “o perto demais do muro” fora substituído por “bem contra ele”, mas, graças à manobra de Qhuinn, eles se colocaram numa posição paralela em vez de irem de frente.

Blay começou a correr na direção do show de luzes, e outros o acompanharam quando ele assim o fez, um verdadeiro bloco de pessoas em fila. Não havia como deter aquilo, mas eles bem podiam estar a postos quando as coisas...

Tum!

... terminassem.

O avião finalmente encontrou um objeto inanimado que não conseguiu superar: o barracão usado para guardar alguns dos equipamentos e produtos de jardinagem bem no fim do jardim.

Parada completa.

E tudo estava silencioso demais. Tudo o que Blay ouviu foi o suissssh dos coturnos trafegando pela neve, e sua respiração arfando no ar frio, e a pressa dos outros atrás de si.

Ele foi o primeiro a chegar à aeronave e se dirigiu à porta que, como por milagre, estava livre e não imprensada ao muro de concreto. Abrindo-a e sacando a lanterna de bolso, ele não sabia o que esperava encontrar. Fumaça? Gases? Sangue e partes de corpos?

Zsadist estava sentado rígido no assento de frente para os fundos, com o corpo amarrado, ambas as mãos travadas nos apoios de braços. O Irmão encarava à frente, sem piscar.

– Paramos de nos mexer? – perguntou rouco.

Ok, ao que tudo levava a crer, até mesmo um Irmão podia ficar em estado de choque.

– Sim, pararam – Blay não queria ser rude, mas agora que estava certo de que um deles sobrevivera, ele queria ver se Qhuinn...

O macho cambaleou para fora da cabine. No facho de luz da lanterna de Blay, ele parecia ter estado num brinquedo radical de um parque de diversões, com o cabelo todo para trás da testa queimada pela ação do vento, os olhos, um verde e outro azul, arregalados num rosto completamente pálido, cada membro do corpo trêmulo.

– Você está bem? – exclamou ele, como se os ouvidos estivessem surdos depois de expostos a muito barulho. – Z., diga alguma coisa...

– Estou aqui – respondeu o Irmão, fazendo uma careta de dor ao soltar uma das garras dos apoios de braço. – Estou bem, filho... Estou bem.

Qhuinn se agarrou ao que estava saliente e foi então que seus joelhos se dobraram. Ele apenas caiu entre as mãos estendidas, a voz entrecortada a ponto de ele mal conseguir falar.

– Eu só... queria que você... estivesse bem... Só queria... que você... ficasse bem, oh Deus... para a sua filha... Só queria que você ficasse ok...

Zsadist, o Irmão que nunca tocava em ninguém, esticou-se e pousou uma mão livre na cabeça inclinada de Qhuinn. Erguendo os olhos, ele disse suavemente:

– Não deixe ninguém entrar aqui. Dê um minuto a ele, ok?

Blay assentiu e se virou, bloqueando a entrada com o corpo.

– Eles estão bem, eles estão bem...

Enquanto falava com a multidão, um bom número de pessoas fitava-no como se ele fosse um enviado de Deus, mas Bella não estava entre eles. Ela estava...

– Zsadist! Zsaaaaadist!

O grito se transportou por todo o caminho do gramado quando, do alto da varanda, uma figura solitária partiu em disparada em meio à neve.

Muitas pessoas responderam a Bella, mas ele duvidava de que ela tivesse ouvido qualquer coisa.

– Zsaaaadist!

Quando ela escorregou já perto dele, Blay imediatamente se esticou para pegá-la, preocupado que ela acabasse se chocando com a lateral do avião. Ah, Deus, ele jamais se esqueceria da expressão no rosto dela: era mais terrível do que qualquer atrocidade que já vira, como se ela estivesse sendo esfolada viva, como se os braços e pernas estivessem amarrados, e a pele estivesse sendo arrancada de seu corpo.

Qhuinn saiu do avião.

– Ele está bem, ele está bem, prometo... Ele está bem.

Bella se imobilizou, como se aquela fosse a última coisa que ela esperasse ouvir.

– Minha nalla, entre – disse Z. no mesmo tom baixo que usara com Qhuinn. – Entre aqui.

A fêmea chegou a olhar para Blay como se precisasse de uma garantia para saber se aquilo que ouvia estava correto. Em resposta, ele simplesmente a levou pelo cotovelo e a ajudou a passar pela portinhola.

Depois, mais uma vez virou de frente para bloquear a passagem. Enquanto os sons da fêmea chorando livremente em sinal de alívio emanavam, ele viu Qhuinn passar as mãos sobre os olhos como se o macho estivesse se livrando de lágrimas.

– Caramba, filho, eu não sabia que você sabia pilotar – alguém disse.

Enquanto Qhuinn levantava a cabeça, aparentemente olhando de relance para o cenário, Blay fez o mesmo. Pense numa cena apocalíptica: havia um rastro em toda a extensão pela qual o avião passara, como se o dedo de Deus tivesse feito uma linha em todo o jardim.

– Na verdade... eu não sei – murmurou Qhuinn.

V. levou o cigarro aos lábios e estendeu a palma.

– Você trouxe o meu Irmão de volta em um só pedaço. Que se foda o resto.

– Verdade...

– Sim, graças a Deus...

– Diabos, é isso aí...

– Amém...

Um a um, a Irmandade se adiantou, cada um deles erguendo a mão da adaga. A procissão levou um tempo, mas ninguém parecia se importar com o frio.

Blay, por certo, não o sentia. A ponto de ficar paranoico...

Colocando a mão dentro da jaqueta, encontrou o tórax e se deu um beliscão bem forte.

Ai.

Fechando os olhos, fez uma prece silenciosa para que aquilo fosse mesmo verdade... e não o horror que poderia ter sido.

Toda aquela atenção estava deixando Qhuinn nervoso.

E o seu pequeno voo nem fora uma experiência tão zen assim. A queimadura no rosto por causa de todo aquele vento, as dores nos ombros e nas costas, as pernas trêmulas... Ele sentia como se ainda estivesse lá em cima, ainda rezando para nada em que acreditava existir, parado e para sempre no limiar.

Da morte.

Além disso, estava tremendamente envergonhado. Deixar-se abater daquele jeito diante de Z.? Ora essa... Que covarde.

– Importam-se se eu der uma olhada? – a doutora Jane disse ao se aproximar da multidão.

Sim, uma boa ideia. O objetivo de tudo aquilo foi Z. estar ferido tão gravemente que não conseguia se desmaterializar.

– Qhuinn? – disse a fêmea.

– Como disse? – ah, ele estava atrapalhando. – Ok, deixe-me sair da frente...

– Não, não o Zsadist. Você.

– Hum?

– Você está sangrando.

– Estou?

A médica virou a mão dele.

– Vê? – e, como era de se esperar, escorriam gotas vermelhas de suas palmas. – Você acabou de esfregar o rosto. Está com um corte feio na cabeça.

– Ah, ok – talvez por isso se sentisse tão aéreo? – E quanto a Z.?

– Manny já está lá dentro.

Hum. Devia ter perdido aquela parte.

– Quer dar uma olhada em mim aqui?

Ela deu uma risada de leve.

– Que tal levarmos você de volta para a casa? Se conseguir andar.

– Eu cuido dele...

– Pode deixar que eu levo...

– Eu levo...

– Já peguei...

O coro de voluntários foi uma surpresa, bem como todos os braços solícitos que apareceram de todos os lados: ele, literalmente, foi envolvido por braços fortes de lutadores, e todos quase a carregá-lo do lugar como se estivesse fazendo stage diving num show de rock.

Ele olhou para trás, esperando ver Blay, rezando para se deparar com os olhos dele, mesmo isso sendo loucura...

Mas Blay estava lá.

O lindo olhar azul estava logo ali, tão firme e certo ao sustentar o seu que ele quase desmoronou novamente. E ele retirou forças daquele olhar, assim como o fizera na época em que passavam tanto tempo juntos. A verdade era que ele desejava que fosse Blay a levá-lo de volta à mansão, mas ninguém se arriscava a dizer nada à Irmandade quando ela aparecia em massa assim. Além disso, sem dúvida o cara pensaria que estariam próximos demais.

Qhuinn se concentrou no caminho à frente. Puta... merda...

O jardim fora completamente dizimado, metade da cerca viva de três metros de altura próxima à casa fora cortada, todos os tipos de árvore arrancados, arbustos aparados, os restos da colisão espalhados por todos os lados como estilhaços de uma metralha.

Caramba, muito do entulho se parecia com partes de avião.

Ah, olhe ali um painel de aço.

– Esperem – disse, libertando-se. Inclinando-se, pegou um fragmento afiado do chão no lugar em que derretera a neve. Ele podia jurar que a coisa ainda estava quente. – Eu sinto muito mesmo... disse para ninguém em especial.

A voz do Rei rebumbou diante dele:

– Por manter o meu Irmão vivo?

Qhuinn levantou a cabeça. Wrath saíra da biblioteca com George de um lado e a rainha do outro. O macho parecia tão grande e forte quanto a mansão atrás dele: mesmo cego, ele se parecia com um super-herói com aqueles óculos escuros encobrindo os olhos.

– Eu destruí o seu jardim – murmurou Qhuinn ao se aproximar do macho real. – Quero dizer... mudei o paisagismo de um modo muito ruim.

– Isso dará a Fritz algo para fazer na primavera. Você sabe o quanto ele adora arrancar ervas daninhas.

– Esse é o último dos seus problemas. Tenho quase certeza de que vai precisar de uma escavadeira.

Wrath se adiantou, encontrando-o no meio da varanda.

– Esta é a segunda vez, filho.

– Que eu arruinei algo mecânico nas últimas 24 horas? É, eu sei... Da próxima vez, é provável que eu destrua um navio de guerra.

As sobrancelhas negras se abaixaram.

– Não é disso que estou falando.

Ok, aquilo tinha de terminar logo. Ele realmente detestava ter as atenções voltadas para si.

Deliberadamente ignorando a afirmação do Rei, ele disse:

– Bem, a boa notícia é, meu Rei, que não estou pensando numa terceira rodada. Por isso, acho que vamos estar seguros daqui por diante.

Houve um murmúrio coletivo de concordância.

– Posso levá-lo para a clínica agora? – a doutora Jane interrompeu.

Wrath sorriu, as presas refletindo o luar.

– Faça isso.

Graças a Deus... a noite chegava ao fim.

– Onde está Layla? – a médica perguntou quando entraram no calor da biblioteca. – Acho que você precisa se alimentar.

Merda.

Enquanto a legião em roupas de couro atrás deles concordava com a ideia, os olhos de Qhuinn reviraram. Uma crise por noite era mais do que o suficiente. A última coisa na qual ele estava interessado era explicar por que, exatamente, a Escolhida não poderia ser usada como fonte de sangue.

– Você parece tonto – alguém comentou.

– Acho que ele vai...

E essa foi a última coisa que ele ouviu por um tempo.


CONTINUA

CAPÍTULO 11

Blay baixou a cabeça com uma imprecação enquanto a porta da academia se fechava. E claro, daquele ângulo, tudo o que enxergava era a sua ereção.

O que não ajudou.

Levantando o olhar, viu a barra fixa, e soube que tinha de fazer alguma coisa. Ficar sentado ali meio embriagado com uma festa armada entre as pernas dificilmente era uma posição na qual queria ser flagrado. Se um Irmão como Rhage entrasse e visse aquilo? Blay teria de aguentar a gozação pelo resto da vida. Além disso, estava com roupas de ginástica, cercado por equipamentos, portanto, só lhe restava se ocupar, puxar um pouco de ferro, e esperar que o senhor Alegria afundasse em depressão por falta de atenção.

Um bom plano.

Mesmo.

Claro.

Quando, um pouco depois, olhou para o relógio, percebeu que uns quinze minutos haviam se passado e ele não estava mais próximo de movimentos repetitivos e construtivos, a menos que se considerasse a respiração.

Sua ereção tinha uma sugestão para esse tipo de objetivo.

E sua palma se preparou, indo para o meio das pernas, encontrando a rigidez...

Blay levantou do assento num pulo e seguiu para a porta. Chega de idiotice. Iria para o banheiro do vestiário na esperança de reciclar um pouco do álcool no seu sistema. Depois voltaria para a esteira e suaria o resto da bebida.

Depois disso, seria hora de ir para a cama, onde, se precisasse de uma válvula de descarga do tipo erótico, ele a encontraria no local apropriado.

O primeiro sinal de que seu novo plano poderia levá-lo para mais confusão surgiu quando empurrou a porta do vestiário: o som de água corrente significava que alguém estava atarefado com o ritual do xampu e sabonete. Ele estava tão concentrado em se chutar no traseiro, porém, que nem se preocupou com qualquer conclusão.

O que o teria feito parar, virar e encontrar outro banheiro o mais rápido possível.

Em vez disso, passou pelos armários e foi fazer o que tinha de ser feito. Só quando estava lavando as mãos que os cálculos começaram a ser computados.

Por vontade própria, a cabeça girou na direção dos chuveiros.

Você tem que sair, ele se ordenou.

Ao desligar a torneira, o rangido sutil pareceu mais alto que um grito, e ele se recusou a se olhar no espelho. Não queria enxergar o que havia em seu olhar.

Volte para a porta. Apenas volte para a porta. Apenas...

O fracasso do seu corpo em seguir esse simples comando não foi apenas um exercício de rebelião física. Era, tragicamente, um padrão.

E ele se lamentaria mais tarde.

No momento, contudo, quando ele tomou a decisão de se aproximar e se esgueirar ao redor da parede de azulejos para os chuveiros, onde se manteve praticamente escondido, e espiou o macho que não deveria... a tresloucada onda de emoção que era tão dolorosamente familiar, era um conjunto de roupas feito sob medida para a sua insanidade.

Qhuinn estava de frente para o chuveiro com uma mão contra a parede escorregadia, a cabeça morena pensa debaixo do jato. A água corria pelos ombros e pelos acres de pele flexível que recobria as costas poderosas... depois descia pelo traseiro magnífico... e seguia em frente, passando pelas pernas longas e musculosas.

Durante o último ano, o lutador encorpara muito. Qhuinn ficara grande depois da transição e crescera ainda mais durante os primeiros meses de alimentação intensa. Mas já fazia um tempo desde que Blay não o via sem roupas... e, caramba, a rotina de puxar ferro à qual ele se submetera mostrava os resultados em todos aqueles músculos definidos...

Abruptamente, Qhuinn mudou de posição, virando, jogando a cabeça para trás, fazendo a água correr pelo cabelo escuro, aquele corpo incrível arqueando.

Ele manteve o piercing no pênis.

E, puta merda, estava excitado...

Um orgasmo imediatamente ameaçou a cabeça do pênis de Blay, os testículos ficando duros como punhos cerrados.

Dando meia-volta, ele saiu do vestiário como se tivesse sido lançado de um canhão, empurrando a porta, saindo em disparada no corredor.

– Ai, merda... cacete... puta que o...

Andando o mais rápido que podia, ele tentou tirar aquela imagem da cabeça, lembrando-se de que tinha um amante, que tocara a vida, que era possível se autodestruir a respeito da mesma coisa apenas uma limitada quantidade de vezes e que depois se chegava ao fim.

Quando nada disso funcionou, ele repetiu o discurso que fizera para Qhuinn no guincho...

Inferno, onde ficava o escritório?

Parando, olhou ao redor. Ah, fantástico. Tomara a direção oposta daquela que pretendia ter tomado, e agora tinha passado pela clínica e estava na ala de salas de aula do centro de treinamento.

A quilômetros de distância da entrada do túnel.

– ... laceração tão profunda. Mas ele não teve nada disso.

A voz grave de Manny Manello precedeu o homem que vinha pelo corredor saindo da sala de exames. Um segundo depois, a doutora Jane apareceu bem ao lado dele, com um prontuário aberto na mão, a ponta do dedo descendo pela página.

Blay se enfiou na primeira porta que encontrou...

E se deparou com uma parede de escuridão. Apalpando para encontrar um interruptor, visto que estava abalado demais para acender qualquer luz mentalmente, encontrou um, apertou e ficou momentaneamente cego.

– Ai!

A dor aguda que subiu da canela para o cérebro lhe disse que ele colidira com algo grande.

Ah, uma escrivaninha.

Estava num daqueles miniescritórios satélites das salas de aula, e isso era uma notícia muito boa. Com o programa de treinamento ainda suspenso por causa dos ataques, não havia ninguém ali embaixo, e provavelmente ninguém teria motivo para estar naquela saleta vazia.

Ele poderia ter um pouco de privacidade por um tempo, o que era uma bênção. Deus bem sabia que ele não tentaria voltar para a mansão agora. Com a sua sorte, acabaria se deparando com Qhuinn, e a última coisa de que ele precisava era estar perto do cara.

Indo para trás da escrivaninha, sentou-se na cadeira de escritório acolchoada e levantou as pernas, esticando-as sobre a superfície que deveria conter um computador, uma planta, um pote cheio de canetas. Em vez disso, estava vazia, ainda que não estivesse empoeirada. Fritz jamais permitiria isso mesmo num cômodo desocupado.

Esfregando a parte dolorida na canela, ficou evidente que produziria um belo hematoma. Mas ao menos a dor o distraíra daquilo que o motivara até ali.

Entretanto, isso não durou muito.

Ao inclinar a cadeira para trás e fechar os olhos, sua mente retornou ao vestiário.

E ele pensou se a tortura nunca teria um fim.

Deus, seu pênis estava latejando.

Considerando suas opções, ele ordenou que as luzes se apagassem, fechou os olhos e comandou que seu cérebro se desligasse para ele poder dormir. Se, ao menos, ele conseguisse cochilar uma ou duas horas ali, acordaria mais sóbrio, flácido e pronto para enfrentar as pessoas novamente.

Bem, esse era um bom plano, e também o ambiente era perfeito. Escuro, fresquinho, bem tranquilo do modo como somente as instalações subterrâneas podem ser.

Ajeitando o corpo ainda mais para baixo na cadeira, cruzou os braços sobre o peito e se preparou para o trem do sono REM chegar à estação.

Quando isso não funcionou, ele começou a imaginar todo tipo de situação “de desligamento”, como aspiradores de pó sendo puxados da tomada e incêndios sendo apagados com água e telas de TV escurecendo...

Qhuinn estava tão altamente “transável” daquele jeito, o corpo macio e liso entalhado em músculos, o sexo grosso e orgulhoso. Toda aquela água o deixara escorregadio e sensual... e, santa Virgem Escriba, Blay teria dado praticamente qualquer coisa para se aproximar, se ajoelhar e tomar o sexo dele na boca, sentindo aquela cabeça com suas investidas penetrantes em sua língua ao entrar e sair...

O som desgostoso que emitiu ecoou, parecendo mais alto do que provavelmente fora.

Abrindo os olhos, tentou tirar da cabeça qualquer fantasia que envolvesse chupar. Mas a escuridão completa não ajudou; apenas formou a tela perfeita para ele continuar a projetar as imagens.

Praguejando, deu uma chance para o lance de ioga, com o qual você relaxa a tensão em cada parte do corpo, começando pela prega sempre presente entre as sobrancelhas, depois as cordas rígidas que desciam pelos ombros até a base do crânio. O peito também estava apertado, os peitorais contraídos sem nenhum motivo aparente, os bíceps afundando nos antebraços.

Em seguida, ele deveria focar no abdômen, depois nas nádegas e coxas, nos joelhos e panturrilhas... até a pontinha do pé.

Ele não chegou tão longe.

Pensando bem, tentar convencer sua excitação sobre qualquer tipo de maleabilidade demandaria poderes de persuasão que seu cérebro parcialmente embriagado não possuía.

Infelizmente, só havia um modo seguro de se livrar do senhor Alegria. E, no escuro, sozinho, com a garantia de que “ninguém nunca vai ficar sabendo”, por que ele não podia simplesmente cuidar daquilo, apagar o fogo e desmaiar? Não era muito diferente de despertar no meio da noite com uma ereção – porque Deus bem sabia que não havia nenhuma emoção envolvida. E ele estava alcoolizado, certo? Então isso era mais uma razão.

Repetiu a si mesmo que não estava traindo Saxton. Não estava com Qhuinn – e era Saxton quem ele queria...

Por um instante, ele continuou a pesar os prós e os contras, mas, no fim, sua mão tomou a decisão por ele. Antes de se dar conta, a palma se escondia debaixo do cós folgado e...

O sibilo que emitiu ao se segurar foi como um tiro no silêncio, assim como o rangido da cadeira quando a investida dos quadris empurrou os ombros contra o estofamento de couro. Quente e duro, grosso e longo, seu pênis clamava por atenção, mas a angulação estava errada, e não havia espaço para mexer dentro dos malditos shorts.

Por algum motivo, a ideia de se despir da cintura para baixo o fez se sentir sujo, mas seu senso de decoro foi para o espaço bem rápido quando tudo o que ele conseguia fazer era apertar. Elevando o traseiro, abaixou os shorts, depois percebeu que precisaria de alguma coisa para limpar a bagunça.

A camiseta foi retirada em seguida.

Nu no escuro, esticado da cadeira para a escrivaninha, ele se entregou, afastando as pernas, bombeando para cima e para baixo. A fricção fez seus olhos revirarem, morder o lábio inferior. Deus, as sensações eram tão boas, fluindo pelo corpo...

Droga.

Qhuinn estava na sua cabeça, Qhuinn estava na sua boca... Qhuinn estava dentro dele, os dois se movendo juntos...

Isso era errado.

Congelou. Parou de pronto.

– Merda.

Blay soltou o pênis, ainda que o simples processo de desistir da traição o fizesse cerrar os molares.

Abrindo os olhos, fitou a escuridão. O som da sua respiração entrando e saindo do peito o fez praguejar novamente. Assim como a necessidade pulsante de um orgasmo – ao qual ele se recusava a ceder.

Não daria continuidade àquilo...

Do nada, a imagem de Qhuinn arqueado debaixo do jato de água golpeou sua mente, assumindo o controle. Contrariando seu raciocínio, sua lealdade, seu senso de justiça... seu corpo se sobrecarregou, o orgasmo atingindo o pênis antes que ele o conseguisse detê-lo, antes que ele conseguisse negar, pois aquilo não era certo... antes que ele conseguisse dizer “De novo, não. Nunca mais”.

Ah, Deus. A sensação doce e penetrante, repetida uma vez depois da outra até ele se perguntar se aquilo um dia terminaria, mesmo ele não tendo ajudado.

Aquela reação física podia estar além do seu controle. Sua reação a ela não.

Quando ele se aquietou por fim, a respiração estava agitada e o frio na pele nua do peito sugeria que ele suara... e enquanto o corpo se recuperava, sua consciência retornava, e a ereção murchando era como um barômetro do seu humor.

Esticando-se, apalpou a mesa até encontrar a camiseta; depois esfregou-a e pressionou-a na junção das coxas.

O resto da confusão em que se metera não seria tão fácil de limpar.

Do outro lado da cidade, no 18o andar do Commodore, Trez estava sentado numa cadeira lustrosa de aço e couro que ficava de frente para a parede envidraçada dando para o rio Hudson. O sol do meio-dia brilhava mais por causa da neve fresca que caíra nas margens durante a noite.

– Sei que está aqui – disse secamente, sorvendo um gole da caneca de café.

Quando não houve resposta, ele rodopiou a cadeira em sua base giratória. Como esperado, iAm viera do quarto e estava sentado no sofá, com o iPad no colo, o indicador deslizando pela tela. Ele devia estar lendo a edição online do The New York Times, claro; era o que fazia toda manhã ao acordar.

– Então – disse Trez. – Manda ver.

A única resposta que teve foi uma das sobrancelhas de iAm se erguendo. Por, digamos, meio segundo.

O bastardo presunçoso nem olhava para ele.

– Deve ser um artigo fascinante. Sobre o que é? Irmãos teimosos?

Trez passou algum tempo segurando a caneca de café quente.

– iAm. Sério. Que bobagem.

Depois de um momento, o olhar escuro do irmão se ergueu. Os olhos que sustentaram os seus estavam, como sempre, completamente livres de emoção, dúvida e todas as asneiras com que os mortais lidavam. iAm era sensível de maneira sobrenatural... como uma cobra: atenta, inteligente, pronta a atacar, mas relutante em desperdiçar força até que fosse necessário.

– O que foi? – resmungou Trez.

– Seria redundante lhe dizer o que você já sabe.

– Faça isso por mim – ele sorveu mais um gole e se perguntou por que diabos estava se oferecendo para aquilo. – Vá em frente.

Os lábios de iAm se contraíram como sempre quando ele pensava numa resposta. Depois ele fechou a capa do iPad, cada uma das quatro seções descendo como pegadas na tela. Então ele pôs de lado o equipamento, descruzou as pernas e se inclinou para frente para equilibrar os cotovelos sobre os joelhos. Os bíceps dele eram tão grossos que as mangas da camisa pareciam que se rasgariam.

– Sua vida sexual está fora de controle – enquanto Trez revirava os olhos, o irmão continuou a falar. – Está transando com três ou quatro mulheres por noite, às vezes mais. Não se trata de alimentar-se, portanto não perca o nosso tempo tentando usar essa desculpa. Você está comprometendo os padrões profissionais do...

– Eu lido com bebidas e prostitutas. Não acha que isso parece um pouco intelectual...

iAm pegou o iPad e o balançou.

– Devo voltar a ler?

– Só estou dizendo...

– Você me pediu para falar. Se isto é um problema, a solução não é ficar na defensiva porque não gosta do que está ouvindo. A resposta é não me convidar a falar.

Trez cerrou os dentes. Veja, era esse o problema com o maldito irmão. Ele era sensato demais.

Levantando-se num rompante, atravessou a sala ampla. A cozinha era como todo o resto do apartamento: moderna, arejada e despojada. O que significava que se ele se servisse de um pouco mais de cafeína, conseguiria enxergar o irmão em sua visão periférica.

Caramba, às vezes ele detestava aquele lugar. A menos que estivesse no quarto com a porta fechada, não conseguia se livrar daqueles olhos.

– Devo ler ou falar? – perguntou iAm com tranquilidade, como se isso lhe fosse indiferente.

Caramba, como Trez queria falar para o cara enfiar o nariz no jornal, mas isso seria o mesmo que admitir uma derrota.

– Continue – Trez voltou à poltrona e se preparou para uma surra.

– Você não está se comportando de maneira profissional.

– Você come no Sal’s.

– O meu linguini com molho de mariscos não requer uma ordem judicial quando decido que na noite seguinte quero o Fra Diavolo.

Bem observado. E, de alguma forma, isso o fez se sentir quase violento.

– Sei o que está fazendo – disse iAm. – E por quê.

– Você não é virgem, portanto é claro que...

– Sei o que lhe enviaram.

Trez parou.

– Como?

– Quando você não atendeu, recebi um telefonema.

Trez empurrou o tapete debaixo dos pés e girou a cadeira para ficar de frente para o rio. Merda. Ele imaginou que acalmaria a situação com aquilo, do tipo, dar ao irmão uma sessão de sermão para que os dois pudessem voltar ao normal. Eles costumavam ser como pele e osso, e o bom relacionamento era essencial.

Ele conseguia lidar com quase tudo, exceto com um desentendimento com o irmão.

Infelizmente, os problemas sobre os quais se referiam ali eram a única coisa no “quase tudo”.

– Ignorar não vai fazer isso desaparecer, Trez.

Isso foi dito com uma certa medida de gentileza, como se o cara lamentasse por ele.

Enquanto Trez fitava o rio, imaginou estar em seu clube, com humanos cercando-o, o dinheiro trocando de mãos e as mulheres que trabalhavam lá fazendo o que faziam nos fundos. Legal. Normal. Controlado e confortável.

– Você tem responsabilidades.

Trez segurou a caneca com mais força.

– Não me apresentei como voluntário a eles.

– Não importa.

Ele virou com tanta rapidez que derramou café na coxa. Ignorou o ardor.

– Deveria. O cacete como deveria. Não sou um objeto inanimado que eles podem dar a quem quiserem. A coisa toda é uma tolice.

– Alguns considerariam uma honra.

– Bem, eu não. Não vou me amarrar àquela fêmea. Não me importo quem ela seja ou quem armou isso ou quão “importante” isso é para o s’Hisbe.

Trez se preparou para a enxurrada do “ah, sim, você vai”. Em vez disso, seu irmão pareceu triste, como se ele também não quisesse aquela maldição.

– Vou repetir, Trez. Isso não vai desaparecer num passe de mágica. E tentar sair dessa transando por aí? Não só é fútil, como potencialmente perigoso.

Trez esfregou o rosto.

– As mulheres são apenas humanas. Elas não têm importância – ele voltou a olhar para o rio. – E, francamente, se eu não fizer alguma coisa, vou enlouquecer. Um punhado de orgasmos tem que ser melhor do que isso, certo?

Enquanto o silêncio retornava, ele soube que o irmão discordava dele. Mas a prova de que sua vida estava na mais absoluta merda era que a conversa terminara ali.

iAm, pelo visto, não era o tipo de homem que chuta um cara caído.

Tanto faz. Ele não se importava com o que se esperava dele. Ele não voltaria para ser condenado a uma vida de serviços forçados.

Pouco se importava se era para a filha da rainha.


CAPÍTULO 12

Era fim de tarde quando Wrath chegou a um beco sem saída. Estava à mesa, sentado no trono do pai, os dedos percorrendo um relatório escrito em braille, quando, de repente, não conseguia ler nem mais uma maldita palavra do texto.

Empurrando os papéis para o lado, praguejou e arrancou os óculos escuros do rosto. Bem na hora em que estava para lançá-los contra a parede, sentiu um focinho no cotovelo.

Passando o braço ao redor do golden retriever, pressionou a mão no pelo macio que crescia nos flancos do cachorro.

– Você sempre sabe, não é?

George se aninhou, pressionando o peito na perna de Wrath – a dica de que “alguém” queria ser erguido.

Wrath se inclinou e apanhou todos os quarenta quilos nos braços. Enquanto acomodava as quatro patas, a juba de leão e o rabo volante para que tudo coubesse, ele concluiu que era bom que fosse tão alto. Coisas grandes ofereciam um colo grande.

E o ato de afagar todo aquele pelo o acalmou, mesmo que não lhe tranquilizasse a mente.

Seu pai fora um Rei notável, capaz de suportar inúmeras horas de cerimônias, noites infindáveis nos esboços de proclamações e convocações, meses e anos inteiros de protocolo e tradição. E isso antes de ser inundado pelo fluxo perene de reclamações que vinham de todos os lados: cartas, telefonemas, e-mails – ainda que, obviamente, os últimos estivessem fora de questão na época do seu pai.

Wrath, um dia, fora um lutador. Um excelente lutador.

Levantando a mão, sentiu a lateral do pescoço, o lugar por onde a bala entrara...

A batida à porta foi decidida, direta ao ponto, mais uma exigência do que uma solicitação respeitosa para entrar.

– Pode entrar, V. – respondeu.

O odor adstringente da hamamélis que precedeu o Irmão foi uma pista evidente de que alguém estava irritado. E, com toda certeza, sua voz grave tinha uma ponta de descontentamento.

– Finalmente terminei os testes de balística. Malditos fragmentos sempre tomam tempo demais.

– E? – Wrath o instigou.

– É uma combinação perfeita. Cem por cento – enquanto Vishous se sentava na cadeira oposta à mesa, a peça de mobília rangeu debaixo do peso. – Nós os pegamos.

Wrath exalou longamente, parte do zumbido impotente escorrendo de sua mente.

– Bom – ele correu a mão pela cabeça grande de George, descendo até as costelas. – Então, esta é a nossa munição.

– Exato. O que aconteceria de qualquer maneira agora toma uma forma legal.

A Irmandade soubera o tempo todo quem estivera por trás do tiro que quase matara o Rei no outono, e a tarefa de acabar com o Bando de Bastardos um a um era algo que eles encaravam muito mais como uma tarefa sagrada para a raça.

– Olha aqui, eu preciso ser franco, certo?

– E quando não foi? – Wrath argumentou.

– Por que diabos está atando as nossas mãos?

– Eu não sabia que estava fazendo isso.

– Com Tohr.

Wrath reposicionou George a fim de que o fluxo sanguíneo da perna esquerda não ficasse completamente bloqueado pelo peso do cão.

– Ele solicitou o decreto.

– Todos nós temos o direito de acabar com Xcor. O cretino é o prêmio que todos nós queremos. Isso não deveria estar restrito somente a ele.

– Ele pediu.

– Isso só faz com que seja muito mais difícil matar o bastardo. E se um de nós o encontrar, e Tohr não estiver conosco?

– Vocês o trazem para cá – houve uma longa pausa, um silêncio tenso. – Você me ouviu, V.? Traga aquele monte de merda para cá e deixe Tohr fazer o serviço.

– O objetivo é eliminar o Bando de Bastardos.

– E como isso o impede de fazer o seu trabalho? – quando não houve resposta, Wrath balançou a cabeça. – Tohr estava naquela van comigo, meu Irmão. Ele salvou a minha vida. Sem ele...

Enquanto a frase não foi finalizada, V. praguejou baixinho, como se estivesse fazendo os cálculos sobre aquela lembrança e chegando à conclusão de que o Irmão que teve que cortar o tubo plástico da sua garrafa CamelBak e executar uma traqueotomia no seu Rei num veículo em movimento a quilômetros de distância de qualquer ajuda médica deveria ter um tantinho só a mais de direito de matar o criminoso.

Wrath sorriu de leve.

– Que tal se, só porque eu sou um cara legal, eu deixar que cada um de vocês dê um soco nele antes que Tohr mate o filho da puta com as próprias mãos? Fechado?

V. riu.

– Isso alivia um pouco.

A batida que os interrompeu foi baixa e respeitosa, uma sequência de batidinhas leves que parecia sugerir que quem quer que fosse ficaria feliz em ser mandado embora, satisfeito em aguardar, ou esperava por uma audiência imediata, tudo ao mesmo tempo.

– Pois não? – chamou Wrath.

Uma colônia cara anunciou a chegada do advogado: Saxton sempre cheirava bem, e isso se encaixava em sua personalidade. Pelo que Wrath lembrava, além da excelente educação do cara e da qualidade do seu raciocínio, ele sempre se vestia de acordo com a moda como um filho bem nascido da glymera. Isso é, com perfeição.

Não que Wrath tivesse visto isso recentemente.

Ele recolocou os óculos num movimento rápido. Uma coisa era se expor na frente de V.; isso não aconteceria diante do macho jovem e eficiente que passava pela porta, não importando o quanto Sax fosse confiável e profissional.

– O que tem para mim? – perguntou Wrath enquanto o rabo de George se movia de um lado para o outro à guisa de um cumprimento.

Houve uma longa pausa.

– Talvez seja melhor eu voltar mais tarde?

– Você pode dizer qualquer coisa na frente do meu Irmão.

Outra pausa longa, durante a qual V. provavelmente encarava o advogado como se quisesse tirar um naco do traseiro do garoto bonito e bem-vestido por sugerir que havia uma divisa de informações que precisava ser respeitada.

– Mesmo que seja sobre a Irmandade? – Saxton perguntou com franqueza.

Wrath praticamente sentia os olhos gélidos de V. virando de direção. E, como esperado, o Irmão bradou:

– O que há conosco?

Quando Saxton permaneceu calado, Wrath deduziu sobre o que se tratava.

– Pode nos dar um minuto, V.?

– Está de brincadeira?

Wrath pegou George e o colocou no chão.

– Só preciso de cinco minutos.

– Tudo bem. Divirta-se, meu senhor – grasnou V. ao se levantar. – Merda.

Um instante depois, a porta bateu.

Saxton pigarreou.

– Eu poderia ter voltado depois.

– Se eu quisesse isso, eu teria lhe dito. Agora fale.

Uma inspiração profunda, seguida de uma expiração, como se o civil estivesse olhando para a saída e se perguntando se a partida intempestiva de V. poderia ser a causa de ele acordar morto mais tarde.

– Hum... a auditoria das Leis Antigas está completa, e eu posso lhe fornecer uma lista completa das seções que necessitam de emendas, além de reformulações propostas, e um cronograma para que as mudanças possam ser implementadas se...

– Sim ou não. É tudo o que me interessa.

A julgar pelo sussurro dos sapatos resvalando o tapete Aubusson, Wrath deduziu que o advogado estava andando de um lado para o outro. De cabeça, ele visualizou o escritório, desde as paredes azul-claras até as cornijas em arabesco e toda a mobília francesa antiga e frágil.

Saxton fazia mais sentido naquele cômodo do que Wrath com seu couro e camiseta justa.

Mas a lei prescrevia quem deveria ser o Rei.

– Você precisa começar a mexer os lábios, Saxton. Garanto que não será demitido se falar comigo francamente. Se tentar editar a verdade ou suavizá-la? Isso sim o fará cair, pouco importando com quem está dormindo.

Houve um novo pigarrear. E então, a voz aculturada chegou até ele diretamente do outro lado da escrivaninha.

– Sim, pode fazer o que desejar. No entanto, preocupo-me quanto ao momento.

– Por quê? Porque vai precisar de dois anos para fazer as emendas?

– O senhor está fazendo uma mudança fundamental na seção da sociedade que protege a espécie – e isso pode desestabilizar ainda mais o seu governo. Estou a par das pressões que tem sofrido, e seria negligente de minha parte se eu não apontasse o óbvio. Se o senhor alterar a prescrição sobre quem pode entrar na Irmandade da Adaga Negra, isso poderá provocar ainda mais abertura para dissensão... isso não se parece com nada que tenha tentado em seu reinado, e virá numa época de extremo distúrbio social.

Wrath inspirou profundamente pelo nariz – e não captou vibração negativa; não havia evidências de que o homem estivesse sendo fraudulento ou que não estivesse disposto a realizar o trabalho.

E ele tinha razão.

– Agradeço sua opinião – disse Wrath. – Mas não vou me curvar ante o passado. Recuso-me. E se eu tivesse dúvidas a respeito do macho em questão, eu não estaria fazendo isso.

– Como os outros Irmãos se sentem a esse respeito?

– Isso não é da sua conta – na verdade, não tocara no assunto com eles ainda. Afinal, por que se importar se não houvesse possibilidade de seguir adiante? Tohr e Beth eram os únicos que sabiam exatamente até onde ele estava preparado para levar aquilo. – Quanto tempo vai levar para que você torne isso oficial?

– Posso deixar tudo preparado para o alvorecer de amanhã, no máximo ao anoitecer.

– Faça isso – Wrath cerrou um punho e o bateu no braço do trono. – Faça isso agora.

– Como desejar, meu senhor.

Houve uma movimentação de tecidos finos, como se o macho estivesse se inclinando, e depois mais passos antes que uma das portas duplas se abrisse e se fechasse.

Wrath fitou o vazio produzido pelos seus olhos cegos.

Tempos perigosos por certo. E francamente, o sensato a fazer era ter mais Irmãos, e não pensar em motivos para não os ter, ainda que a contra-argumentação fosse: se aqueles três garotos estavam dispostos a lutar ao lado deles sem serem iniciados, por que se importar?

Foda-se. Era costume antigo querer honrar alguém que tivesse colocado a própria vida em risco só para que a dele pudesse continuar.

A real questão, contudo, tirando as leis... era: o que os outros pensariam?

Muito provavelmente seria isso a colocar um freio na questão mais do que qualquer detalhe legal.

Quando a noite caiu horas mais tarde, Qhuinn estava deitado nu na cama. Ele dormia, mas nem seu corpo nem sua mente estavam descansando.

Em seu sonho, ele tinha voltado para o acostamento da estrada, tendo saído a pé da casa da família. Carregava no ombro uma bolsa de lona, a proclamação de deserdação enfiada na cintura e uma carteira que, a não ser por onze dólares, estava vazia.

Tudo estava bem nítido. Nada fora modificado devido a um erro de reprodução de memória: desde a noite úmida de verão e o som dos seus New Rocks no pedregulho do acostamento... até o fato de ele ter ciência de que não havia nada em seu futuro.

Não tinha para onde ir. Nenhum lar para onde voltar.

Nenhuma perspectiva. Nem mesmo um passado.

Quando o carro parou atrás dele, ele sabia que só podia ser John ou Blay...

Mas, não. Não foram seus amigos. Era a morte na forma de quatro machos em mantos negros que saíram por quatro portas e convergiram ao seu redor.

Uma Guarda de Honra. Enviada pelo seu pai para surrá-lo por desonrar o nome da família.

Quanta ironia. Alguém haveria de deduzir que esfaquear um sociopata que tentara estuprar seu colega seria uma coisa boa. Mas não quando o agressor era o seu perfeito primo de primeiro grau.

Em câmera lenta, Qhuinn se colocou em postura de luta, preparado para enfrentar o ataque. Não havia olhos para encarar, nenhum rosto em que reparar – e não havia motivo para tal: o fato de os mantos esconderem suas identidades supostamente faria com que a pessoa que transgredira sentisse como se toda a sociedade desaprovasse as ações que ele executara.

Circundando, circundando, aproximando-se... No fim, conseguiriam derrubá-lo, mas ele os feriria no processo.

E foi o que fez.

Mas ele também teve razão: depois do que pareceram serem horas de defesa, ele acabou de costas, e foi nesse momento que a surra de fato aconteceu. Deitado no asfalto, ele cobriu a cabeça e o escroto o melhor que pôde, os golpes chovendo sobre ele, mantos negros voando como asas de corvos conforme era golpeado e surrado.

Depois de um tempo, não sentiu dor.

Iria morrer ali no acostamento da estrada...

– Pare! Não devemos matá-lo!

A voz do irmão atravessou tudo aquilo, atingindo-o de um modo como nenhum golpe podia mais...

Qhuinn despertou com um grito, levando as mãos ao rosto, as coxas se elevando para proteger a virilha...

Nenhum punho, nenhum taco vindo em sua direção.

E ele não estava no acostamento da estrada.

Fazendo com que as luzes se acendessem, olhou ao redor do quarto no qual vinha ficando desde que fora expulso da casa da própria família. Não combinava em nada com ele, o papel de parede de seda e os objetos eram algo que a sua mãe escolheria – ainda assim, naquele momento, a visão de toda aquela quinquilharia que outra pessoa escolhera, comprara e pendurara, fez com que ele se acalmasse.

Mesmo enquanto a lembrança pairava.

Deus, o som da voz do irmão.

Seu próprio irmão fizera parte da Guarda de Honra enviada atrás dele. Em retrospecto, isso enviava uma mensagem ainda mais poderosa para a glymera sobre a seriedade com que a família cuidava dos seus assuntos. E não era como se o cara não tivesse sido treinado. Ele aprendera artes marciais, embora, naturalmente, não lhe permitissem lutar. Inferno, mal permitiram que ele brigasse nos treinos.

Valioso demais para a linhagem. E se ele se ferisse? Aquele que seguiria os passos do pai e um dia se tornaria lídher do Conselho poderia ficar exposto.

Risco pequeno de um dano catastrófico para a família.

Qhuinn, por sua vez... Antes de ser renegado, fora colocado no programa de treinamento, talvez com a esperança de que sofresse algum ferimento mortal no campo de batalha e fizesse o favor a todos de morrer com honra.

Pare! Não devemos matá-lo!

Essa fora a última vez em que ouvira a voz do irmão. Pouco depois de Qhuinn ter sido expulso de casa, a Sociedade Redutora conduzira uma onda de ataques e matara a todos, o pai, a mãe, a irmã – e Luchas.

Todos morreram. E mesmo que uma parte sua os odiasse pelo que lhe fizeram, ele não desejaria esse tipo de morte a ninguém.

Qhuinn esfregou o rosto.

Hora de uma chuveirada. Era tudo o que ele sabia.

Pondo-se de pé, espreguiçou-se até as costas estalarem e verificou o celular. Uma mensagem de texto para o grupo anunciava que haveria uma reunião no escritório de Wrath; e uma espiada rápida no relógio lhe informou que ele tinha pouco tempo.

O que não era ruim. Ao passar para velocidade acelerada e se apressar para o banheiro, era um alívio se concentrar em coisas reais em vez de no passado maldito.

Não havia nada que ele pudesse fazer a respeito desse último a não ser amaldiçoá-lo. E ele bem sabia que já fizera isso o suficiente para doze vidas.

Hora de acordar, pensou.

Hora de ir trabalhar.


CAPÍTULO 13

Lá pela mesma hora em que Qhuinn tomava banho na casa principal, Blay despertou na cadeira daquele escritoriozinho no subterrâneo. A dor de cabeça que lhe serviu como despertador não se originava do vinho do Porto, mas pelo fato de ter pulado a Última Refeição. Mas, caramba, bem que ele queria que a bebida estivesse por trás do latejar em seu crânio. Ele poderia se valer disso para justificar o estado absolutamente deplorável com que fora parar ali.

Praguejando, abaixou as pernas da escrivaninha e se sentou melhor. O corpo estava duro como uma tábua, as dores brotavam em todo tipo de lugar enquanto ele fez as luzes se acenderem.

Merda. Ainda estava nu.

Mas até parece que os elfos recatados entrariam sorrateiramente ali para vesti-lo enquanto dormia... só para que ele não se lembrasse do que havia feito?

Vestindo os shorts, enfiou os pés nos tênis e se esticou para pegar a camiseta antes mesmo de se lembrar para o que a usara.

Ao olhar para as dobras amarrotadas do algodão e sentir os pontos endurecidos no tecido macio, deu-se conta de que nenhuma quantidade de racionalização mudaria o fato de ele ter traído Saxton. Contato físico com alguém era apenas uma das medidas da infidelidade – e, sim, isso era o maior divisor. O que fizera na noite anterior, porém, fora uma violação do relacionamento deles, mesmo que o orgasmo tivesse sido causado pelo cérebro e não pela sua mão.

Pondo-se de pé, sentiu-se meio morto ao se encaminhar para a porta e entreabri-la. Se houvesse alguém nas imediações, ele voltaria para dentro e esperaria até que o corredor estivesse vazio. Ele absolutamente não queria ser apanhado saindo daquele escritório vazio, meio despido e com aquela aparência lastimável. O lado bom de viver no complexo era que você estava sempre cercado por gente que se preocupava com você; o lado ruim era que todos tinham olhos e ouvidos, e nenhum assunto particular era totalmente particular.

Quando não ouviu nem vozes nem passos, explodiu para o corredor e começou a caminhar numa passada rápida, como se estivesse estado em algum lugar com determinado propósito e estivesse se dirigindo para o quarto com uma finalidade igualmente importante. Teve a sensação de ter se safado ao chegar ao túnel. Claro, não costumava andar por aí sem camisa, mas muitos dos outros Irmãos e machos faziam isso quando saíam da academia, não era nada extraordinário.

E ele realmente sentiu como se tivesse ganhado na loteria quando saiu de baixo da grande escadaria da mansão e foi recebido por mais uma bela dose de corredor vazio. O único problema era que, pelo som da louça sendo levada da sala de jantar, devia ser mais tarde do que ele imaginava. Obviamente, perdera a Primeira Refeição – notícia ruim para a sua cabeça, mas, pelo menos, ele tinha umas barras de proteína no quarto.

Sua sorte chegou ao fim quando ele subiu as escadas para o segundo andar. Parados diante das portas fechadas do escritório de Wrath, Qhuinn e John estavam vestidos para o combate, com as armas a postos e os corpos cobertos por couro preto.

De jeito nenhum ele olharia para Qhuinn. Só o fato de tê-lo em sua visão periférica era ruim o bastante.

– O que está acontecendo? – perguntou.

Temos uma reunião agora, sinalizou John. Ou, pelo menos, era para termos. Não recebeu a mensagem?

Merda, ele não fazia ideia de onde estava seu telefone. No quarto? Tomara.

– Vou tomar uma chuveirada e volto já.

Talvez tenha de se apressar. Os Irmãos estão a portas fechadas há meia hora. Não sei o que está acontecendo.

Ao lado dele, Qhuinn se balançava para frente e para trás nos coturnos, a oscilação do peso fazendo parecer que estava andando, mesmo ele não indo a parte alguma.

– Cinco minutos – murmurou Blay. – Só preciso disso.

Ele esperava que a Irmandade abrisse as portas até lá, a última coisa que queria era ficar sem fazer nada ao lado de Qhuinn.

Praguejando ao andar, Blay correu até o quarto. Normalmente, ele demorava para se aprontar, ainda mais se Sax estivesse a fim, mas dessa vez seria entrar, chuveiro e...

Ao abrir a porta, parou.

Mas o quê...?

Malas. Na cama. Tantas que ele não conseguia ver mais do que alguns centímetros do edredom. E ele sabia a quem elas pertenciam. Guccis combinando, brancas com o logo azul-marinho e as alças de tecido em azul e vermelho, porque, segundo Saxton, o tradicional marrom sobre marrom com vermelho e verde eram “óbvios demais”.

Blay fechou a porta em silêncio. Seu primeiro pensamento foi “puta merda, Saxton sabe”. De algum modo, ele soube o que aconteceu no centro de treinamento.

O macho em questão apareceu do banheiro com os braços cheios de frascos de xampu, condicionador e outros produtos. E parou no ato.

– Oi – disse Blay. – Vai sair de férias?

Depois de um momento tenso, Saxton se aproximou, colocou os produtos numa mala e se virou. Como sempre, seu lindo cabelo loiro estava afastado da testa em ondas espessas. E ele estava perfeitamente bem vestido, em outro terno de tweed com colete combinando, uma gravata vermelha e um lencinho de bolso também vermelho só para dar o toque certo de cor.

– Acho que você sabe o que vou dizer – Saxton sorriu triste. – Porque você não é nenhum idiota, assim como eu não sou.

Blay foi se sentar na cama, mas teve que mudar de ideia, pois não havia onde se acomodar. Acabou na chaise-longue e, com uma inclinação discreta para o lado, enfiou a camiseta suja debaixo do tecido do saiote. Longe dos olhos. Era o mínimo que podia fazer.

Deus, aquilo estaria mesmo acontecendo?

– Não quero que você vá – Blay se ouviu dizendo com voz grave.

– Acredito nisso.

Blay olhou para além das malas.

– Por que agora?

Pensou nos dois no dia anterior, debaixo dos lençóis, fazendo sexo selvagem. Estiveram tão próximos... Ainda que, sendo brutalmente honesto, talvez aquilo tivesse sido apenas físico.

Retire o talvez.

– Venho enganando a mim mesmo – Saxton balançou a cabeça. – Pensei que poderia continuar com você assim, mas não posso. Isto está me matando.

Blay fechou os olhos.

– Sei que tenho ficado muito tempo fora...

– Não é disso que estou falando.

Enquanto Qhuinn tomava todo o espaço entre eles, Blay quis gritar. Mas que bem aquilo faria? Parecia que ele e Saxton chegaram ao mesmo beco sem saída no mesmo momento lamentável.

Seu amante o fitou por cima da bagagem.

– Acabei aquela missão para Wrath. É uma boa hora para terminarmos, para eu me mudar e encontrar outro emprego...

– Espere, quer dizer que está abandonando o Rei também? – Blay franziu o rosto. – Não importa como estejam as coisas entre nós, você precisa continuar trabalhando para ele. Isso é mais importante do que o nosso relacionamento.

O olhar de Saxton abaixou.

– Suspeito que isso seja mais fácil para você dizer.

– Não é verdade – rebateu Blay inflexível. – Deus, eu... sinto muito.

– Você não fez nada errado. Você tem que saber que não sinto raiva de você, nem amargura. Você sempre foi honesto, e eu sempre soube que terminaria assim entre nós. Eu só não sabia quando. Não sabia... até chegar ao fim. Que é agora.

Ai, droga.

Mesmo sabendo que Saxton estava certo, Blay sentiu uma necessidade compulsiva de lutar por ele.

– Preste atenção, tenho estado distraído na última semana, e eu sinto muito. Mas as coisas vão acabar se ajeitando, e você e eu vamos voltar ao normal...

– Eu te amo.

Blay fechou a boca de súbito.

– Por isso, veja – Saxton continuou rouco –, não foi você quem mudou. Fui eu... e eu sinto que as minhas emoções tolas nos distanciaram.

Blay se colocou de pé e avançou pelo carpete de bela textura até o outro macho.

Ao chegar ao seu destino, ficou aliviado a ponto de sentir lágrimas nos olhos por Saxton aceitar o seu abraço. Ao segurar o seu primeiro amante verdadeiro contra si, sentindo a diferença familiar em suas alturas e o perfume maravilhoso da sua colônia, uma parte dele queria discutir aquele rompimento até que os dois desistissem e continuassem tentando.

Mas não seria justo.

Como Saxton, ele tivera a vaga noção de que as coisas terminariam em algum momento. E, tal qual seu amante, também se surpreendia por ser agora.

O que, claro, não alterava o resultado.

Saxton recuou um passo.

– Nunca tive a intenção de me envolver emocionalmente.

– Desculpe... Eu sinto muito – merda, isso era tudo o que saía da sua boca. – Eu daria tudo para que fosse diferente. Eu queria... ser diferente.

– Eu sei – Saxton esticou a mão e resvalou-a na lateral do rosto dele. – Eu perdoo você... e você tem que se perdoar.

Ele não tinha certeza se poderia fazer isso; ainda mais agora, nesse momento, e como sempre, quando uma ligação emocional que não queria, e que não poderia mudar, mais uma vez o impedia de ter algo que desejava.

Qhuinn era uma tremenda maldição para ele, era isso o que o cara era.

Cerca de 25 quilômetros ao sul da montanha do complexo da Irmandade, Assail despertou em sua cama redonda na suíte principal da sua mansão às margens do Hudson. Acima dele, painéis espelhados cobriam o teto e seu corpo nu estava iluminado com o brilho suave das luzes instaladas ao redor da base do colchão. O quarto octogonal estava escuro fora isso, as cortinas fechadas, a noite escondida.

Ao pensar em todo o vidro da casa, sabia que muitos vampiros considerariam as acomodações inadequadas. Muitos evitariam a mansão por completo.

Risco demais durante o dia.

Assail, contudo, nunca se sentira preso a convenções, e o perigo inerente de morar numa construção com tanto acesso à luz era algo que podia ser administrado, e não evitado.

Levantando-se, foi para a escrivaninha, ligou o computador e acessou o sistema de segurança que monitorava não apenas a casa, mas toda a propriedade. Alertas soaram várias vezes nas primeiras horas do dia, avisos não de ataques iminentes, mas de algum tipo de atividade que fora detectado pelo programa de filtragem do sistema de segurança.

Na verdade, faltava-lhe a energia para se preocupar demais, um sinal indesejável de que precisava se alimentar...

Assail franziu o cenho ao receber o relatório.

Ora, se aquilo não era interessante.

E era exatamente por isso que ele instalara todo aquele equipamento.

Nas imagens produzidas pelas câmeras de trás, ele viu uma figura vestida com uma roupa camuflada de neve passeando em esquis de cross-country pelo meio da floresta, aproximando-se da casa pelo norte. Quem quer que fosse, permaneceu escondido entre os pinheiros grande parte do tempo, e vigiou a casa por diversos ângulos por aproximadamente dezenove minutos... antes de atravessar o limite de pinheiros a oeste, atravessando a propriedade vizinha, e descendo pelo gelo. Duzentos metros mais à frente, o homem parou, pegou os binóculos novamente, e encarou a casa de Assail. Depois, circundou a península que se projetava do rio, voltou a entrar na floresta e desapareceu.

Aproximando-se da tela, Assail repetiu a gravação, aumentando o zoom para identificar a expressão facial, se possível. Mas não foi. A cabeça estava coberta por uma máscara de esqui, com abertura apenas para os olhos, o nariz e a boca. Junto à parca e às calças de esqui, o homem estava coberto dos pés à cabeça.

Recostando-se, Assail sorriu para si mesmo, as presas formigando numa reação territorial.

Só existiam dois grupos que poderiam se interessar em suas atividades, e a julgar pela luz solar que reinara durante aquele reconhecimento, ficou claro que a curiosidade não se originara da Irmandade: Wrath jamais usaria humanos para qualquer outra coisa que não fosse uma fonte derradeira de alimentação, e nenhum vampiro suportaria aquela intensidade de luz solar sem se incendiar.

Restava, então, alguém do mundo humano. E só havia um homem com interesse e recursos para tentar atacar a ele e ao seu território.

– Entre – disse ele pouco antes de uma batida soar à porta.

Enquanto um par de machos entrava, ele não se deu ao trabalho de desviar a vista da tela do computador.

– Como dormiram?

Uma voz conhecida e grave respondeu:

– Como os mortos.

– Que bom para você. Mudança de fuso horário pode ser uma inconveniência, pelo que sei. A propósito, tivemos um visitante esta manhã.

Assail inclinou-se para um lado a fim de que seus dois associados vissem a filmagem.

Era estranho ter gente morando com ele, mas teria que se acostumar à presença deles. Quando chegara ao Novo Mundo, fora uma viagem solitária, e ele tivera a intenção de manter essa situação por inúmeros motivos. O sucesso no ramo escolhido, todavia, exigira que ele chamasse uma retaguarda – e as únicas pessoas nas quais poderia confiar parcialmente eram da família.

E aqueles dois ofereciam um benefício sem igual.

Seus dois primos eram uma raridade na espécie vampiresca: eram gêmeos idênticos. Quando totalmente vestidos, o único modo de distingui-los era por uma única pinta atrás do lóbulo da orelha; fora isso, desde as vozes até os olhos negros e desconfiados, incluindo os corpos musculosos, eram o reflexo perfeito um do outro.

– Vou sair – anunciou Assail. – Se o nosso visitante aparecer novamente, sejam hospitaleiros, sim?

Ehric, o mais velho por questão de minutos, olhou de relance, o rosto destacado pela iluminação da base da cama. Tanta maldade naquela bela combinação de feições... a ponto de alguém quase sentir pena do intruso.

– Será um prazer, eu garanto.

– Mantenha-o vivo.

– Claro.

– Essa é uma divisória um tanto sutil que vocês dois às vezes gostaram de apreciar.

– Confie em mim.

– Não é você quem me preocupa – Assail olhou para o outro. – Entendeu?

O gêmeo de Ehric permaneceu calado, apesar de concordar com a cabeça uma vez.

Era precisamente por essa reação contrariada que Assail preferiria ter mantido a sua vida nova simples. Mas era impossível estar em mais de um lugar ao mesmo tempo. E aquela violação de privacidade era a prova de que ele não poderia fazer tudo sozinho.

– Sabem como me encontrar – disse antes de dispensá-los do quarto.

Vinte minutos mais tarde, saiu da casa de banho tomado, vestido e atrás do volante do seu Range Rover blindado.

O centro da cidade de Caldwell à noite era belo de longe, especialmente ao passar pela ponte de acesso. Só depois que ele penetrou no sistema viário que o esgoto da cidade ficou evidente: os becos com neve suja acumulada, as latas de lixo transbordando e os humanos sem-teto descartados, meio congelados, contavam a triste verdade sobre a desprotegida municipalidade.

Seu local de trabalho, evidentemente.

Ao chegar à Galeria de Arte Benloise, estacionou nos fundos, em uma das vagas que era paralela à construção atrás do estabelecimento. Ao sair do carro, o vento frio açoitou o casaco de pelo de camelo e ele teve que segurar as duas pontas juntas ao atravessar a calçada, aproximando-se da porta de tamanho industrial.

Não teve que bater. Ricardo Benloise tinha muitas pessoas trabalhando para ele e nem todos eram do tipo que se associava aos negociantes das artes. Um macho humano do tamanho de um parque de diversões abriu a porta e ficou de lado.

– Ele o está aguardando?

– Não, não está.

Disneylândia assentiu.

– Quer esperar na galeria?

– Seria bom.

– Quer beber alguma coisa?

– Não, obrigado.

Ao atravessarem a parte do escritório e seguirem para o espaço de exibições, a deferência agora concedida a Assail era algo novo, merecido tanto pelos enormes pedidos de mercadoria que ele vinha fazendo quanto pelo sangue derramado de incontáveis humanos. Graças a ele, a taxa de suicídio entre os machos desprivilegiados entre os 18 e os 29 anos com registros criminais em drogas aumentou como nunca na cidade, chegando ao noticiário nacional.

Imagine só.

Enquanto âncoras de TV e repórteres tentavam entender essas tragédias, ele simplesmente continuava a expandir os negócios usando qualquer meio necessário. As mentes humanas eram tremendamente sugestionáveis; praticamente nenhum esforço era necessário para fazer com que os traficantes intermediários levassem as pistolas às têmporas e apertassem os gatilhos. E, do mesmo modo como a natureza abominava um vácuo, o mesmo acontecia com a demanda de suplementos químicos.

Assail tinha as drogas. Os viciados tinham o dinheiro.

O sistema econômico mais do que sobrevivia à reorganização forçada.

– Vou subir – disse o homem na porta camuflada – para avisar da sua chegada.

– Leve o tempo de que precisar.

Deixado só, Assail passeou pelo espaço aberto de teto alto, entrelaçando as mãos às costas. De vez em quando, parava para ver a “arte” pendurada nas paredes e nas divisórias e foi lembrado do motivo pelo qual os humanos deviam ser erradicados, preferencialmente com métodos lentos e dolorosos.

Pratos de papel usados colados a tábuas de compensados baratas recobertas com citações de comerciais de TV escritas à mão? Um autorretrato feito com creme dental? E igualmente ofensivas eram as placas enaltecedoras ao lado das porcarias declarando que aquela tolice era a nova onda do Expressionismo Americano.

Tamanha explicação sobre a cultura de tantas maneiras.

– Ele pode recebê-lo agora.

Assail sorriu para si mesmo e se virou.

– Quanta gentileza.

Ao passar pela porta escondida e subir até o terceiro andar, Assail não condenou seu fornecedor por ser desconfiado e querer mais informações a respeito do seu maior cliente. Afinal, num espaço muito curto de tempo, o tráfico de drogas da cidade fora remanejado, redefinido e controlado por um completo desconhecido.

Há que se respeitar a posição do homem.

Mas as investigações terminariam ali.

No topo das escadas, outros dois homenzarrões estavam diante da porta, tão sólidos quanto vigas de sustentação. Assim como o segurança do primeiro andar, logo abriram a porta e acenaram em sua direção respeitosamente.

Do lado oposto, Benloise estava sentado no fundo de uma sala estreita com janelas em um dos lados e apenas três peças de mobiliário: sua escrivaninha elevada, que não passava de uma prancha grossa de teca com um abajur moderno e um cinzeiro por cima; a cadeira dele, com um estilo moderno; e um segundo assento no lado oposto para apenas um visitante.

O homem em si era como o seu ambiente: limpo, oficioso e despojado em seu modo de pensar. Na verdade, ele provou que, por mais ilícito que fosse o tráfico de drogas, os princípios de gerenciamento e as habilidades interpessoais de um CEO importavam muito se você quisesse faturar milhões com isso e manter o dinheiro.

– Assail. Como vai? – o homem baixinho se levantou e esticou a mão. – É um prazer inesperado.

Assail atravessou a sala, apertou o que lhe foi estendido e não esperou pelo convite para se sentar.

– O que posso fazer por você? – perguntou Benloise ao voltar a se sentar.

Assail pegou um charuto cubano de dentro do bolso. Cortando a ponta, inclinou-se para frente e colocou a ponta desprezada sobre o tampo da mesa.

Enquanto Benloise franzia o cenho como se alguém tivesse defecado em sua cama, Assail sorriu o suficiente para exibir rapidamente suas presas.

– Trata-se do que eu posso fazer por você.

– Ah.

– Sempre fui um homem reservado, levando uma vida privada por livre escolha – guardou o cortador e pegou um isqueiro de ouro. Acendendo a chama, inclinou-se e tragou até o charuto sustentar a ponta queimada. – Contudo, mais importante do que isso, sou um homem de negócios envolvido num ramo perigoso. Dessa forma, considero qualquer invasão na minha propriedade ou intrusão no meu anonimato como um ato direto de agressão.

Benloise sorriu com suavidade e se recostou na cadeira em forma de trono.

– Respeito-o por isso, claro, todavia estou confuso quanto aos motivos de você sentir a necessidade de explicitar isso para mim.

– Você e eu entramos num relacionamento mutuamente benéfico, e é meu desejo continuar com essa associação – Assail bafejou o charuto, soltando uma nuvem de fumaça azul francês. – Portanto, quero lhe mostrar o devido respeito e deixar isso claro antes de agir, pois se eu descobrir qualquer pessoa na minha propriedade a quem eu não tenha convidado, eu não só o erradicarei, como também descobrirei a origem das investigações – e bafejou novamente – e farei o que for necessário para defender a minha privacidade. Estou sendo bem claro?

As sobrancelhas de Benloise se abaixaram, os olhos escuros se zangando.

– Estou? – murmurou Assail.

Havia, obviamente, apenas uma resposta. Levando-se em consideração que o humano desejava viver mais do que até aquele final de semana.

– Sabe, você me lembra o seu predecessor – Benloise disse num sotaque britânico. – Conheceu o Reverendo?

– Sim, frequentamos alguns dos mesmos círculos.

– Ele foi assassinado de modo bem violento. Cerca de um ano atrás, não? A boate dele foi explodida.

– Acidentes acontecem.

– Normalmente em casa, pelo que ouvi dizer.

– Algo de que deve sempre se lembrar.

Enquanto Assail sustentava aquele olhar, Benloise desviou o dele primeiro. Pigarreando, o maior importador de drogas da costa leste passou a palma da mão sobre o tampo lustroso da mesa, como se sentisse os veios da madeira.

– Os nossos negócios – disse Benloise – têm um delicado ecossistema que, por conta de toda a sua robustez financeira, deve ser mantido cuidadosamente. A estabilidade é rara e muito desejável para homens como você e eu.

– Concordo. E para que isso aconteça, pretendo retornar à conclusão da noite com o meu pagamento desse ínterim, conforme planejado. Como sempre, venho a você em boa fé, e não lhe dou motivos para duvidar das minhas intenções.

Benloise lhe ofereceu outro sorriso suave.

– Você faz parecer como se eu estivesse por trás – ele moveu a mão num gesto aleatório de dispensa no ar – do que quer que o tenha incomodado.

Inclinando-se para frente, Assail deixou o queixo cair e o encarou.

– Não estou incomodado. Ainda.

Uma das mãos de Benloise sub-repticiamente saiu do campo de visão. Uma fração de segundo depois, Assail ouviu a porta do outro lado do cômodo se abrir.

Mantendo a voz baixa, Assail disse:

– Isto foi uma cortesia para você. Da próxima vez que eu encontrar alguém na minha propriedade, quer você o tenha enviado ou não, não demonstrarei nem metade dessa educação.

Dito isso, levantou-se e enterrou o charuto no tampo da mesa.

– Desejo-lhe uma boa noite – disse antes de sair.


CAPÍTULO 14

Aquilo sim é que era começar tarde.

Enquanto Qhuinn se desmaterializava para longe da mansão, ele custava a acreditar que já fosse dez da noite e eles estavam apenas começando. Pensando bem, a Irmandade ficou enfiada no escritório de Wrath pelo que pareceu uma eternidade e quando ele e John, por fim, foram admitidos, o anúncio de V. de que a prova contra o Bando de Bastardos era concreta levou a mais uma bela meia hora de excomunhão de Xcor e dos comparsas.

Diferentes usos criativos para a palavra arregaçar, bem como excelentes sugestões de onde se enfiar objetos inanimados.

Ele jamais pensara em fazer aquilo com um rastelo, por exemplo. Divertido. Muito divertido.

E Blay perdera aquilo tudo.

Retomando forma numa área florestal a sudoeste do complexo, Qhuinn evitou pensar em que tipo de interferências o pudesse ter retardado, ainda que a verdade fosse que o lutador subira para o quarto e não voltara. E por mais que a maioria dos acidentes acontecesse em casa, seria um bom palpite deduzir que ele não escorregara e caíra.

A menos que Saxton estivesse brincando com o tapete no piso de mármore do banheiro.

Sentindo como se quisesse se estapear, vasculhou o cenário coberto de neve enquanto John, Rhage e Z. surgiam ao seu lado. As coordenadas daquela localização foram encontradas nos telefones dos ladrões de carro da noite anterior, a propriedade aparentemente abandonada cerca de quinze a vinte quilômetros além do local em que ele encontrara o Hummer roubado.

– Que diabos é isso?

Enquanto alguém falava, ele olhou por sobre o ombro. “Que diabos” estava certo: assomando-se atrás deles estava uma construção tão alta quanto um campanário de igreja e tão simples quanto uma lata de lixo reciclável.

– Hangar de aviões – anunciou Zsadist ao começar a andar naquela direção. – Só pode ser.

Qhuinn o seguiu, tomando a retaguarda caso alguém resolvesse fazer uma surpresa.

Do nada, Blay apareceu, todo coberto em couro e tão armado quanto o resto deles. Em reação, os pés de Qhuinn diminuíram de velocidade, depois pararam na neve, em boa parte porque não queria tropeçar e parecer um tolo.

Puxa, ele parecia bem sério. Haveria problemas no paraíso?

Ainda que não existisse nenhum contato visual entre eles, Qhuinn se sentiu compelido a dizer algo:

– O que...

Não concluiu a frase. Por que se importar? O cara passou por ele como se ele nem estivesse ali.

– Estou bem – murmurou Qhuinn, voltando a avançar pela neve compacta. – Obrigado por perguntar. Ah, está tendo problemas com Saxton? Mesmo? Que tal sairmos para tomar um drinque e conversar a respeito? É? Perfeito. Posso ser a sua menta pós-jantar e...

Ele interrompeu o monólogo fantasioso quando a brisa mudou de direção e seu nariz captou algo adocicado e desagradável.

Todos sacaram as armas e se concentraram no hangar.

– Estamos a favor do vento – observou Rhage –, portanto, a bagunça aí dentro deve ser incrível.

Os cinco se aproximaram da construção com cautela, espalhando-se e vasculhando o ambiente iluminado pelo luar à procura de algo que se movesse.

O hangar tinha duas entradas, uma bipartida e grande o bastante para deixar passar a envergadura de uma asa, e a outra supostamente para pessoas, que, em comparação, parecia do tamanho de uma Barbie. E Rhage tinha razão: apesar de o vento gélido os atingir pelas costas, o cheiro era forte o bastante para aguçar as narinas, e não no bom sentido.

Caramba, o frio costumava aplacar o fedor.

Comunicando-se por gestos, dividiram-se em dois grupos, com ele e John ficando num dos lados das portas duplas gigantes, e Rhage, Blay e Z. na entrada menor.

Rhage, como era de se esperar, tentou a maçaneta enquanto todos se preparavam para um confronto. Se houvesse o equivalente a um time de futebol de redutores ali, fazia sentido enviar o Irmão primeiro, porque ele tinha o tipo de retaguarda que ninguém tinha: a besta amava assassinos, e não no sentido de ter um relacionamento com eles.

Quem tinha falado em menta mesmo?

Hollywood levou a mão acima da cabeça. Três... dois... um...

O Irmão penetrou no silêncio absoluto, empurrando a porta e entrando sorrateiramente. Z. foi em seguida e Blay o acompanhou.

Qhuinn sentiu um segundo de puro terror quando o macho saltou para o desconhecido com nada além de um par de pistolas .40 para protegê-lo. Deus, a ideia de que Blay pudesse morrer naquela noite, bem na sua frente, naquela missão comum, fez com que ele quisesse parar com toda aquela tolice de defender a raça e transformar o lutador num bibliotecário. Ou modelo de mãos. Ou cabeleireiro...

O assobio que surgiu menos de sessenta segundos depois foi uma dádiva de Deus. O sinal de Z. de que estava tudo bem para que ele e John se reposicionassem, indo para a lateral da agora porta aberta e passando por...

Ok. Uau.

Falando em fedor. Nota máxima...

Os três que entraram antes ligaram as lanternas, e os fachos de luz cortaram o espaço cavernoso, atravessando a escuridão, iluminando o que a princípio não parecia ser nada além de uma camada de gelo negro. A não ser pelo fato de não ser preto e de não estar congelado. Era sangue humano engrossado – uns mil litros da coisa. Misturado com uma boa quantidade de Ômega.

O hangar foi o local de uma iniciação em massa, numa escala que tornava o que acontecia há um tempo naquela casa de campo nada mais do que uma brincadeira de criança.

– Acho que os garotos que você castigou estavam vindo para uma festa e tanto – comentou Rhage.

– Bem observado – murmurou Z.

Enquanto fachos de luz destacavam um velho e decrépito avião no fundo, e absolutamente nada mais, Z. balançou a cabeça.

– Vamos vasculhar o exterior. Não há nada aqui.

Visto que o chalé não prometia muito pelo lado de fora, apenas uma típica cabana de caçador/pescador no meio da floresta, o Sr. C. sentiu-se tentado a ignorar a maldita coisa. A perfeição tinha as suas virtudes, contudo, e a localização do chalé, cerca de uns dois ou três quilômetros para dentro daquele pedaço de terra, sugeria que ele podia ter sido usado como um quartel-general a certa altura.

Levando-se tudo em consideração, teria sido mais inteligente verificar a propriedade antes de ele ter usado o hangar para a maior iniciação da história da Sociedade Redutora. Mas as prioridades se apresentaram daquele modo. Primeiro, ele teve que se colocar no controle; segundo, de justificar a promoção; e terceiro, de lidar com todos aqueles novos redutores.

E isso significava que ele precisava de recursos. Rápido.

Seguindo a cerimônia grande e suja de Ômega, e o período nauseante que durou algumas horas depois, o Sr. C. ordenara que os novos recrutas subissem num ônibus escolar que ele roubara de uma loja de veículos usados uma semana antes. Devido à exaustão e ao desconforto físico em que se encontravam, portaram-se como garotinhos obedientes, entrando e sentando-se dois a dois como se estivessem numa porra de uma Arca de Noé.

Dali, ele mesmo dirigira (por não confiar esse tipo de bem a qualquer um) para a Escola para Garotas de Brownswick. A extinta escola preparatória ficava no subúrbio em 35 acres de propriedades ignoradas, dilapidadas e cobertas de mato, e os boatos de ser assombrada mantinham afastadas as pessoas normais.

Por enquanto, a Sociedade Redutora estava desabrigada, mas a placa “Vende-se” na curva perto da estrada significava que ele poderia dar um jeito nisso. Tão logo arranjasse algum dinheiro.

Com os rapazes terminando de se recuperar na escola, e os assassinos atuais no centro à procura da Irmandade, ele estava por conta catalogando as poucas propriedades restantes da Sociedade – inclusive aquele pedaço praticamente deserto de floresta ao norte da cidade.

Embora começasse a acreditar que estivesse perdendo tempo.

Subindo na varanda do chalé, iluminou o interior com uma lanterna. Fogão antigo. Mesa de madeira tosca com duas cadeiras. Três camas sem colchão, nem lençóis. Quitinete.

Dando a volta para os fundos, ele encontrou um gerador sem combustível e um tanque de diesel enferrujado, o que sugeria que o lugar teve algum tipo de aquecimento em alguma época.

Voltando para a frente, tentou a porta e descobriu-a trancada.

Não fazia diferença. Não havia muita coisa ali.

Pegando um mapa de dentro da jaqueta de aviador, desdobrou-o e encontrou sua localização. Verificando o quadradinho, pegou a bússola, ajustou a direção e começou a caminhar para o noroeste.

De acordo com aquele mapa, que ele havia encontrado no antro de drogas do Redutor Principal, aquele pedaço de propriedade totalizava cinco acres e tinha esse tipo de chalé espalhado em intervalos randômicos. Ele imaginava que o lugar devia ter sido algum tipo de acampamento com proprietários múltiplos, um tipo de reserva de caça moderna que se perdera para a carga tributária do Estado de Nova York e depois comprada pela Sociedade nos anos oitenta.

Pelo menos era isso o que estava escrito à mão no canto, embora só Deus soubesse se a Sociedade ainda era a proprietária daquilo. Considerando-se a situação financeira da organização, o bom e velho Estado de Nova York poderia bem ter o penhor da propriedade a esta altura, ou até mesmo tê-la reempossado.

Ele parou e verificou a bússola novamente. Caramba, sendo urbano, ele detestava vagar pela floresta à noite, superando a neve com dificuldade, verificando aquele tipo de merda como se fosse algum tipo de guarda florestal. Mas ele tinha de ver com seus próprios olhos aquilo com que tinha que trabalhar, e só havia um modo de fazer isso.

Ao menos tinha um fluxo de receita preparado.

Nas próximas 24 horas, quando aqueles garotos estivessem finalmente de pé, ele voltaria a preencher os cofres. Aquele era o primeiro passo rumo à recuperação.

Passo número dois?

A dominação do mundo.


CAPÍTULO 15

Ela estava sangrando.

Quando Layla olhou para o papel higiênico na mão, a mancha vermelha em todo aquele branco era o equivalente visual de um grito.

Esticando a mão para trás, deu a descarga, e teve que usar a parede para se equilibrar ao se levantar. Com uma mão no baixo ventre e a outra sobre a bancada da pia e depois na maçaneta, ela tropicou para o quarto e foi direto para o telefone.

Seu primeiro instinto foi ligar para a doutora Jane, mas decidiu não fazer isso. Concluindo que estava sofrendo um aborto espontâneo, existia a possibilidade de poupar Qhuinn da ira do Primale. Desde que ela deixasse aquilo debaixo dos panos. E usar a clínica geral da Irmandade provavelmente não seria o melhor modo de assegurar privacidade.

Afinal, só havia um motivo para uma fêmea sangrar. E perguntas a respeito do seu cio e de como ela lidara com isso inevitavelmente se seguiriam.

Na mesinha de cabeceira, ela abriu uma gaveta e retirou um caderninho preto. Encontrando o número da clínica da raça, ela discou com mãos trêmulas.

Quando desligou pouco depois, tinha um horário marcado para dali a trinta minutos.

Mas como sairia dali? Não poderia se desmaterializar, estava ansiosa demais e, de qualquer modo, fêmeas grávidas eram desencorajadas a fazer isso. E ela também não se sentia forte o bastante para dirigir até lá. As aulas de Qhuinn foram bem abrangentes, mas ela não conseguia se imaginar, em seu estado, pegando a autoestrada e tentando acompanhar o fluxo do tráfego humano.

Fritz Perlmutter era a sua única resposta.

Indo até o armário, pegou uma camisola macia, torceu-a numa corda espessa e colocou-a entre as pernas com a ajuda de diversos pares de calcinha. A solução para o seu problema de sangramento mostrou-se incrivelmente volumosa e dificultou o andar, mas esse era o menor dos seus problemas.

Um telefonema para a cozinha garantiu que o mordomo a levaria.

Agora ela só precisava descer as escadas, sair pelo vestíbulo e entrar inteira no enorme sedã. Tudo isso sem se deparar com nenhum macho da casa.

Bem quando estava para sair do quarto, viu seu reflexo no espelho na parede. O manto branco e seu penteado formal anunciavam seu status de Escolhida como nenhuma outra coisa. Ninguém além das fêmeas sagradas da Virgem Escriba da espécie se vestia daquela forma.

Mesmo se aparecesse sob o nome fictício que fornecera à recepcionista, todos adivinhariam sua afiliação sobrenatural.

Tirando o manto, tentou entrar num par de calças de ioga, mas o enchimento que ajustara em si impossibilitou isso. E os jeans que ela e Qhuinn compraram juntos também não estavam dando certo.

Tirando a camisola, ela usou papel higiênico do banheiro para lidar com o problema e conseguiu entrar nos jeans. Um suéter pesado a esquentaria e uma bela escovada nos cabelos e um rabo de cavalo faria com que ela parecesse... quase normal.

Saindo do quarto, ela segurou o tal do celular que Qhuinn lhe dera. Passou pela sua cabeça telefonar para ele, mas, na verdade, o que diria? Ele tinha tanto controle sobre aquele processo quanto ela...

Ah, santa Virgem Escriba, ela estava perdendo o bebê.

O pensamento lhe ocorreu bem quando ela chegou ao topo da escadaria principal. Ela estava perdendo o bebê deles. Naquele instante. Ali do lado de fora do escritório do Rei.

De repente, o teto caiu sobre a sua cabeça e as paredes do vestíbulo grande e espaçoso a apertaram tanto que ela não conseguia respirar.

– Sua Graça?

Estremecendo, ela olhou para baixo para a passadeira vermelha. Fritz estava ao pé das escadas, vestido em seu costumeiro uniforme, e sua adorável e anciã expressão carregada de preocupação.

– Sua Graça, vamos agora? – perguntou ele.

Quando ela assentiu e desceu com cuidado, não conseguia crer que tudo aquilo fora para nada, todas aquelas horas de esforço com Qhuinn... os gélidos momentos seguintes nos quais ela não conseguia se mover... a espera e antecipação de uma esperança quieta e traiçoeira.

O fato de ter cedido o presente de sua virgindade a troco de nada.

Qhuinn sofreria tanto, e o fracasso que ela impingiria a ele só aumentava imensamente o seu próprio sofrimento. Ele sacrificara o corpo durante o cio dela, o desejo dele de ter um laço de sangue incitando-o a fazer algo que ele não teria, de outro modo, escolhido fazer.

O fato de a biologia ter suas vontades não a aliviava.

A perda... ainda parecia ser culpa sua.

Tomar outra dose para acabar com a ressaca.

Saxton acreditava que esse adágio era grosseiro, no entanto, verdadeiro.

Parado nu diante do espelho do banheiro, abaixou o secador e passou os dedos pelos cabelos. As ondas se assentaram em seu estado normal, os fios loiros encontrando uma disposição perfeita para complementar o rosto quadrado e equilibrado.

A imagem que ele via era exatamente aquela da noite anterior, e da anterior àquela, contudo, por mais familiar que seu reflexo fosse, ele se sentia como se pertencesse a uma pessoa diferente, à parte.

Seu corpo mudara tanto por dentro, parecia bem razoável deduzir que a transformação se ecoaria na aparência. Deus, não era assim!

Virando e saindo para o closet, imaginou que não deveria se surpreender, tanto pelo seu íntimo perturbado quanto pelo seu exterior de falsa compostura.

Depois que ele e Blay conversaram, ele precisou de uma hora para tirar tudo do quarto em que ficara com o antigo amante e voltar para a suíte no fim do corredor. Ele recebera aquelas acomodações quando fora morar na mansão, porém, conforme as coisas progrediram com Blay, seus pertences gradualmente migraram para o outro quarto.

Esse processo migratório fora crescente, assim como o seu amor: um caso de uma camisa aqui e um par de sapatos acolá, uma escova de cabelos uma noite e meias na seguinte... uma conversa de valores partilhados seguida por uma maratona de sete horas de sexo acompanhada por um pote de sorvete de café Breyers com apenas uma colher.

Ele não percebera a distância transposta pelo seu coração, do mesmo modo como um andarilho se vê perdido em meio à selva. Contudo, quinze quilômetros e um determinado número de bifurcações em seu caminho mais tarde e não havia como voltar. Àquela altura, não restava alternativa a não ser organizar seus recursos para construir um abrigo e criar raízes novas.

Ele deduzira que construiria seu novo espaço pessoal com Blay.

Sim, deduzira. Afinal, por quanto tempo poderia sobreviver um amor não correspondido? Como o fogo precisa de oxigênio para queimar, assim é com as emoções.

Não no que se referia a Qhuinn, ao que tudo levava a crer. Não para Blay.

Saxton estava decidido a não sair da mansão real, porém. Quanto a isso, Blay tinha razão: Wrath, o Rei, precisava dele, e, mais do que isso, ele gostava do seu trabalho ali. Era ágil, desafiador... e a parte egoísta que havia dentro de si queria ser o advogado que reformaria a lei da maneira correta.

Deduzindo-se que o trono não seria tomado e que ele não fosse decapitado num novo regime.

Mas não se podia viver preocupado com coisas como essa.

Pegando um terno de xadrez escocês do closet, escolheu uma camisa e um colete e estendeu tudo sobre a cama.

Era um clichê triste, bem desestimulante, sair para procurar algo núbil e espiritual para aplacar a dor, mas ele preferia ter um orgasmo a se embriagar. Além disso, o “finja até encontrar um propósito novamente” parecia dar certo.

E parecia especialmente verdadeiro quando ele se olhou arrumado no espelho de corpo inteiro do banheiro, e isso ajudava.

Antes de sair, verificou o celular novamente. As Leis Antigas foram remodeladas seguindo as ordens de Wrath, e agora ele estava de prontidão, à espera da nova tarefa.

Deduziu que logo descobriria o que seria.

Wrath era notoriamente exigente, mas nunca irracional.

Nesse ínterim, ele afogaria sua tristeza no único tipo de “loira gelada” que o apetecia... algo com vinte e poucos anos, lá pelos seus um e oitenta de altura, atlético...

E preferivelmente moreno. Ou loiro.


CAPÍTULO 16

– Alguém já passou por aqui.

Enquanto Rhage falava, Qhuinn pegou sua lanterna de bolso e apontou o discreto facho de luz para o chão. E lá estavam pegadas na neve fresca, sem nenhuma cobertura de flocos... que partiam diretamente para a clareira da floresta. Desligando a luz, ele se concentrou no chalé de caça mais à frente que parecia estar abandonado ao clima frio: nenhuma fumaça subindo pela chaminé, nenhuma iluminação interna e, mais importante, nenhum rastro de cheiro.

Os cinco se aproximaram, circundando a clareira e se movimentando sorrateiramente num ângulo amplo. Como não houve nenhuma ação defensiva de parte alguma, todos subiram na varanda e espiaram o interior pelas janelas estreitas.

– Nada – murmurou Rhage ao ir para a porta.

Uma tentativa rápida na maçaneta. Fechada.

Com um empurrão, o Irmão esmagou o ombro imenso contra o batente e mandou a coisa pelos ares, fragmentos da tranca caindo espalhados bem como lascas de madeira.

– Olá, querida, cheguei – gritou Hollywood ao marchar para dentro.

Qhuinn e John seguiram o protocolo e ficaram na varanda enquanto Blay e Z. entravam e vasculhavam.

A floresta estava quieta ao redor deles, mas seus olhos aguçados acompanharam aquelas pegadas... que, depois de uma passeada pelo chalé, seguiam para o noroeste.

Por certo era indício de que alguém estava ali com eles, vasculhando a propriedade ao mesmo tempo.

Humano? Redutor?

Ele acreditava mais na última opção, devido a toda aquela bagunça no hangar, e também por aquele lugar ser remoto e relativamente seguro por conta disso.

Ainda que houvessem de querer trazer a Stanley Steemer* para aquela construção para uma bela limpeza antes.

A voz de Blay surgiu através da porta aberta.

– Achei uma coisa.

Qhuinn teve que recorrer a todo o seu treinamento a fim de não parar de inspecionar o cenário e olhar para dentro. Não porque ele se importasse particularmente com o que fora encontrado. Durante todo aquele processo, ele vinha checando Blay constantemente, só para ver se o humor dele mudara.

Se mudara, fora para pior.

Vozes baixas se fizeram ouvir dentro do chalé, e depois os três emergiram.

– Encontramos uma caixa trancada a chave – anunciou Rhage ao baixar o zíper da jaqueta e enfiar o contêiner longo e estreito de metal junto ao peito. – Abriremos mais tarde. Primeiro, vamos encontrar o dono dessas botas, rapazes.

Desmaterializando-se rapidamente a cada quinze ou vinte metros, eles se espalharam pelas árvores, rastreando as pegadas na neve, seguindo em silêncio.

Depararam-se com o redutor um quilômetro adiante.

O assassino solitário marchava pela floresta coberta de neve num passo que somente um humano com treinamento olímpico teria conseguido sustentar por algumas centenas de metros. As roupas eram escuras, havia uma mochila nas costas e o fato de ele estar se movimentando apenas com a própria visão eram indicadores de que se tratava do inimigo: a maioria dos Homo sapiens não conseguiria se mover com aquela rapidez com tão pouca iluminação sem a ajuda de uma luz artificial.

Gesticulando em código, Rhage orientou o grupo a fazer uma formação de triângulo reverso que dava a volta ao redor do rastro do redutor. Continuando a avançar junto a ele, observaram-no por uma área mais ou menos do tamanho de um campo de futebol e, em seguida, todos de uma vez aproximaram-se, circundando o assassino, e bloquearam-no em pontos cardinais opostos na mira das armas.

O redutor parou de andar.

Ele era um recruta mais jovem, o cabelo escuro e a pele oliva sugeriam que tivesse descendência mexicana ou italiana, e mereceu pontos por não demonstrar medo. Mesmo tendo caído numa cilada, ele só olhou tranquilamente por sobre o ombro, como que para confirmar que, de fato, fora emboscado.

– Como tem passado? – Rhage perguntou com a fala arrastada.

O redutor não se deu ao trabalho de responder, o que era o oposto do que vinham presenciando nos últimos tempos. Diferentemente dos outros, aquele não era um garotinho metido a esperto cheio de falatório. Calmo, perspicaz... Controlado, ele era o tipo de inimigo que melhorava o seu desempenho no trabalho.

Não exatamente algo ruim...

E, como era de se esperar, a mão dele desapareceu para dentro do casaco.

– Não seja idiota, cara – exclamou Qhuinn, preparado para meter uma bala no bastardo sem nenhum aviso adicional.

O redutor não deteve o movimento.

Tudo bem.

Ele apertou o maldito gatilho e derrubou o merdinha.

No segundo em que o redutor caiu na neve, Blay ficou imobilizado com a arma ainda apontada. Os outros fizeram o mesmo.

Segundos silenciosos se passaram, eles continuaram a encarar o assassino caído. Nenhum movimento. Nenhuma reação da área periférica. Qhuinn o incapacitara, e ele parecia estar trabalhando sozinho.

Engraçado, mesmo se Blay não tivesse ouvido o tiro à esquerda do seu ouvido, ele teria sabido que o atirador fora Qhuinn: qualquer outro teria dado ao inimigo outra chance para reconsiderar.

O sinal para que se aproximasse foi o assobio de Rhage. Os cinco se moveram como uma matilha de lobos ao redor de sua presa, rápidos e confiantes, cruzando a neve com as armas erguidas. O assassino permaneceu absolutamente imóvel, mas não houvera uma morte na família, por assim dizer. Para isso, seria preciso que uma adaga de aço lhe atravessasse o peito.

Porém, aquele era o estado desejável. Queriam que ele fosse capaz de falar.

Ou, pelo menos, que estivesse em condições de ser forçado a falar...

Mais tarde, quando repassou o que aconteceu em seguida... quando sua mente ardeu obsessivamente a respeito dos fatos... quando ficou acordado tentando entender como as peças se encaixaram na esperança de adivinhar uma mudança de procedimento que garantisse que algo semelhante nunca mais acontecesse... Blay se demoraria naquela mudança de eventos.

Aquele leve tremor no braço. Apenas uma contração muscular aparentemente desconectada de qualquer pensamento consciente ou vontade. Nada perigoso. Nenhum sinal do que estava por vir.

Apenas uma contração.

A não ser pelo fato de que, com um movimento mais rápido que um piscar de olhos, o assassino sacou uma arma sabe-se lá de onde. Foi sem precedentes. Num segundo ele estava como morto no chão; no seguinte, estava atirando de modo controlado num raio amplo.

E mesmo antes de os sons dos tiros pararem, Blay percebeu a imagem horripilante de Zsadist levando chumbo bem no coração, um impacto tão forte que foi capaz de deter o avanço do Irmão, o torso catapultando para trás, os braços se abrindo enquanto ele caía no chão.

No mesmo instante, a dinâmica mudou. Ninguém mais queria interrogar o maldito.

Quatro adagas foram desembainhadas. Quatro corpos se adiantaram. Quatro braços talharam com lâminas afiadas e frias. Quatro impactos, um após o outro.

Tarde demais, porém.

O assassino desaparecera bem diante deles, as armas golpeando a neve manchada onde o inimigo estivera deitado, em vez de atingirem uma cavidade torácica vazia.

Que seja. Haveria tempo para se perguntarem quanto ao desaparecimento improcedente mais tarde. No momento, eles tinham um soldado caído.

Rhage praticamente se lançou sobre o Irmão, colocando o corpo diante de tudo e todos.

– Z.? Z.? Ai, mãe da raça...

Blay sacou o telefone e discou. Quando Manny Manello atendeu, não havia tempo a perder.

– Temos um Irmão ferido. Tiro no peito...

– Espere!

A voz de Z. foi uma surpresa. Assim como o braço do Irmão levantando e empurrando Rhage para o lado.

– Saia de cima de mim!

– Mas estou tentando fazer ressuscitação cardio...

– Prefiro morrer antes de beijar você, Hollywood – Z. tentou se sentar, estava com a respiração pesada. – Nem pense nisso.

– Alô? – a voz de Manello disse ao telefone. – Blay?

– Espere...

Qhuinn se ajoelhou perto de Zsadist, e apesar do fato de o Irmão não gostar de ser tocado, segurou-o por debaixo do braço e ajudou o macho a suspender o torso do chão.

– Estou com a clínica na linha – disse Blay. – Qual o seu estado?

Em resposta, Z. levou a mão até a bainha da adaga e a puxou. Depois, abaixou o zíper da jaqueta de couro e rasgou a camiseta ao meio.

Para revelar o mais lindo colete à prova de balas que Blay jamais vira.

Rhage se curvou em sinal de alívio, a ponto de Qhuinn ter que segurá-lo com a mão livre para que o cara também não caísse no chão.

– Kevlar – Blay murmurou para Manello. – Ah, graças a Deus, ele está usando um Kevlar.

– Que ótimo, mas escute, preciso que você tire o colete e verifique se ele deteve a bala, ok?

– Entendido – olhou de relance para John, contente em ver que ele estava de pé, com as duas armas adiante, os olhos vasculhando o ambiente enquanto o resto deles avaliava a situação. – Vou cuidar disso.

Blay se aproximou e se agachou na frente do Irmão. Qhuinn podia ter tido a coragem de fazer contato com Zsadist, mas ele não faria isso sem permissão expressa.

– O doutor Manello quer saber se você pode tirar o colete para que possamos ver se existe algum ferimento.

Z. moveu os braços e depois franziu o cenho. Tentou novamente. Depois da terceira tentativa, o Irmão conseguiu levantar as mãos até as tiras de velcro, mas elas não conseguiam fazer muita coisa.

Blay engoliu com força.

– Posso cuidar disso? Prometo não tocar em você o quanto for possível.

Ótima gramática ali. Mas ele falava sério.

Os olhos de Z. se levantaram para ele. Estavam negros de dor, e não amarelos.

– Faça o que tem que fazer, filho. Vou aguentar.

O Irmão desviou o olhar, o rosto contraído numa careta, a cicatriz que formava o S do alto do nariz até o canto da boca destacando-se num relevo alto.

Com um sermão severo, Blay ordenou às suas mãos que ficassem firmes, e a mensagem de algum modo foi levada adiante: ele puxou as tiras que o prendiam nos ombros, o barulho mais alto do que o grito em sua cabeça, e depois retirou o colete, aterrorizado pelo que descobriria.

Havia uma grande marca redonda bem no meio do peito musculoso de Z. Bem onde ficava o coração.

Mas era apenas um hematoma. Não um buraco.

Apenas um hematoma.

– Somente ferimento superficial – Blay afundou o dedo no preenchimento denso do colete e encontrou a bala. – Estou sentindo a bala dentro do colete.

– Então por que não consigo mexer meu...

O cheiro de sangue fresco do Irmão pareceu atingir todos os narizes ao mesmo tempo. Alguém praguejou, e Blay se inclinou.

– Você também foi alvejado debaixo do braço.

– É ruim? – Z. perguntou.

Pelo telefone, Manello disse:

– Dê uma olhada e veja o que consegue descobrir.

Blay suspendeu o braço pesado e iluminou a parte interna com uma lanterna de bolso. Aparentemente, uma bala entrara no torso pela pequena parte desprotegida nas axilas – um tiro em um milhão que se você tentasse recriar, não conseguiria repetir.

Merda.

– Não vejo o buraco da saída. É bem na lateral das costelas, no alto.

– Ele está respirando bem? – perguntou Manello.

– Com dificuldade, mas regular.

– Reanimação cardiorrespiratória foi administrada?

– Ele ameaçou castrar Hollywood se houvesse qualquer contato labial.

– Escute aqui, deixe eu me desmaterializar – Z. tossiu um pouco. – Me dê um pouco de espaço...

Todos ofereceram uma variedade de opiniões a essa altura, mas Zsadist não aceitou nenhuma delas. Empurrando-os, o Irmão fechou os olhos e...

Blay soube que estavam com problemas sérios quando nada aconteceu. Sim, Zsadist não fora morto, e estava muito melhor do que estaria se estivesse sem o colete. Mas não conseguia se movimentar – e eles estavam no meio do nada, tão floresta adentro que mesmo que chamassem por reforços, ninguém conseguiria levar um carro até quilômetros de onde estavam.

E o pior? Blay tinha a sensação de que o assassino que derrubaram era algo consideravelmente pior do que um redutor qualquer.

Não havia como saber quando os reforços chegariam.

O som de uma mensagem de texto chegando ao celular de um deles soou, e Rhage a leu.

– Merda. Os outros estão presos no centro da cidade. Teremos que cuidar disso sozinhos.

– Maldição – Zsadist murmurou entredentes.

Sim. A situação era mais ou menos essa.

* Empresa americana especializada em limpeza residencial usando máquina a vapor. (N.T.)


CAPÍTULO 17

Xcor não esperara aquilo.

Enquanto ele e seus soldados se materializavam na localização da alimentação comunal arranjada, ele esperara uma propriedade decaída ou, quem sabe, à beira da condenação, um lugar num estado tão deplorável que uma fêmea seria forçada a vender suas veias e seu sexo para sobreviver.

Nada disso.

A propriedade alcançava os padrões da glymera, a imensa mansão no alto da colina se destacava em sua iluminação, os jardins impecavelmente bem podados, o chalé menor da criadagem perto dos portões em perfeito estado apesar da idade óbvia.

Talvez ela fosse uma prima distante de alguém de linhagem mais importante?

– Quem é essa fêmea? – ele perguntou a Throe.

Seu tenente deu de ombros.

– Não sei nada de sua família. Mas verifiquei a filiação dela com uma linhagem de valor.

Ao redor deles, os soldados estavam ansiosos, os coturnos de combate socando a neve compacta aos seus pés enquanto andavam no mesmo lugar, a respiração escapando dos narizes como se eles fossem cavalos de corrida prestes a explodirem para fora dos portões da pista.

– Há que se perguntar se ela sabe para o que se ofereceu – murmurou Xcor, nem um pouco preocupado se a fêmea sabia ou não.

– Vamos? – perguntou Throe.

– Sim, antes que os outros se descontrolem e invadam aquele chalé dela.

Throe se desmaterializou até a porta singular, com seu topo arqueado e com uma lamparina que se esperaria ver do lado de fora de uma casa de bonecas. Porém, seu braço direito não foi persuadido pelo charme. A iluminação acima de sua cabeça logo foi cortada, certamente ao comando de Throe, e a batida à porta do soldado foi rápida e severa, uma exigência, não um pedido.

Momentos depois, a porta se abriu. A luz de uma lareira escapou para a noite, o brilho dourado das labaredas tão intenso que sugeria que elas conseguiriam derreter a camada de neve – e bem no meio daquela iluminação adorável, a figura de uma fêmea destacava uma silhueta escura e curvilínea.

Ela estava nua. E o cheiro que foi carregado pela brisa gélida indicava que ela estava pronta.

Zypher rosnou baixinho.

– Contenha-se – exigiu Xcor. – Não deixe que a sua avidez seja usada como uma arma contra nós.

Throe falou com ela e depois enfiou a mão no bolso para pegar o dinheiro. A fêmea aceitou o que lhe foi dado e depois esticou um braço no batente, angulando o corpo de modo a fazer com que um seio farto fosse iluminado por aquele brilho suave.

Throe olhou de relance sobre o ombro e acenou com a cabeça.

Os outros não esperaram por um segundo convite. Os lutadores de Xcor convergiram para a entrada, os corpos másculos tão grandes e tão numerosos, que a fêmea logo ficou invisível.

Praguejando, ele também se aproximou andando.

Zypher naturalmente foi o primeiro, tomando-a nos lábios e apalpando os seios, mas ele não foi o único. Os três primos brigaram por suas posições, um indo para trás e arqueando os quadris, como se estivesse esfregando o pau contra o traseiro dela, os outros dois alcançando os mamilos e o sexo dela, as mãos serpenteando conforme ela foi envolvida.

Throe falou acima dos gemidos crescentes.

– Vou montar guarda do lado de fora.

Xcor abriu a boca para ordenar o contrário, e depois percebeu que pareceria como se ele estivesse evitando a cena, e isso dificilmente seria algo másculo.

– Faça isso – murmurou. – Monto guarda no interior.

Seus machos pegaram a fêmea, as mãos das adagas segurando-a pelos braços, coxas e cintura, e, em conjunto, carregaram-na para o interior aconchegante do chalé. Foi Xcor quem fechou a porta e se certificou de que não havia nenhuma tranca para confiná-los. Também foi ele quem vasculhou o interior do chalé. Enquanto seus bastardos carregavam seu alimento para a frente da lareira, onde um tapete de peles recobria o chão, ele se inclinou em uma janela fechada, levantou a cortina e verificou os vitrôs. Antigos e chumbados, com suportes de madeira, não de aço.

Nada seguros. Ótimo.


– Alguém entre em mim – a fêmea gemeu numa voz profunda.

Xcor não se preocupou em ver se a obedeceram ou não, ainda que o gemido ofegante sugerisse que o fora. Em vez disso, olhou ao redor, procurando outras portas e lugares nos quais uma emboscada poderia ser armada. Aparentemente, não existia nenhum. O chalé não tinha um segundo andar, o esqueleto do teto formava um arco acima da sua cabeça e só havia um banheiro pequeno, cuja porta estava entreaberta e a luz acesa revelava um pé em forma de garra da banheira e uma pia em estilo antigo. A cozinha aberta não passava de uma bancada com alguns poucos eletrodomésticos modestos.

Xcor olhou para a ação. A fêmea estava deitada de costas, com os braços abertos formando um T, o pescoço exposto, as pernas escancaradas. Zypher montara nela e a penetrava ritmadamente, fazendo com que a cabeça subisse e descesse no tapete branco fofo enquanto ela absorvia os impactos. Dois dos primos se agarraram aos seus pulsos, e o terceiro tirara o pênis para fora e a fodia na boca. Na verdade, havia pouco dela que não estivesse coberto por machos vampiros, e seu êxtase por estar sendo usada era óbvio não somente aos olhos, mas também aos ouvidos: ao redor da ereção que entrava e saía dos lábios abundantes, a respiração pesada e os gemidos eróticos escapavam para a atmosfera carregada de sexo.

Xcor caminhou até a bancada da cozinha. Não havia nada ali, nenhum resto de comida, nenhum copo abandonado meio cheio. Havia pratos nos armários, contudo, e quando ele abriu a grande geladeira de estilo europeu, garrafas de vinho branco estavam organizadas horizontalmente nas prateleiras.

Uma imprecação masculina atraiu seu olhar para a diversão. Zypher estava gozando, os corpos se arqueando para frente enquanto a cabeça pendia para trás e, em meio ao seu orgasmo, um dos primos o afastava, assumindo seu posto, levantando os quadris da fêmea e se afundando no sexo rosado e molhado. Pelo menos Zypher parecia completamente satisfeito de trocar de lugar; ele expôs as presas, afundou a cabeça debaixo do peito agora arfante do seu camarada e beliscou o seio da fêmea para poder se alimentar perto do mamilo.

Aquele que estava na boca também gozou, e ela sorveu todo o sêmen, sugando a cabeça do pênis do lutador, soltando-a em seguida e lambendo os lábios úmidos como se ainda estivesse com fome. Alguém logo a atendeu, outra ereção bombeando seus lábios, os ritmos contrários das investidas do que acontecia em sua cabeça e entre as pernas balançando-a para frente e para trás num modo que ela parecia apreciar.

Xcor voltou a verificar o banheiro, mas sua primeira avaliação estava correta: não havia onde se esconder naquele confinamento diminuto.

Tendo garantido o interior, ele não pensou em nada mais para fazer a não ser se recostar num canto que lhe oferecia a melhor visão de acesso e testemunhar a refeição. Conforme as coisas se intensificaram, seus lutadores perderam a aparente civilização que tinham, trocando de posição como leões sobre carniça fresca, as presas se revelando, os olhos selvagens de agressão enquanto eles lutavam por suas posições. No entanto, eles não perderam completamente as cabeças. Cuidaram da fêmea.

Não demorou e alguém cortou a própria veia, aproximando-a dos lábios dela.

Xcor baixou o olhar para as botas e permitiu que sua visão periférica monitorasse o ambiente.

Houve uma época em que se excitaria com aquilo. E não por se interessar particularmente pelo sexo, mas do mesmo modo como seu estômago roncava quando via comida. Dessa forma, no passado, quando sentia a necessidade de tomar uma fêmea, era o que teria feito. Normalmente no escuro, claro, para que a pobre garota não sentisse nem repulsa nem medo.

Ele bem podia imaginar que as expressões de excitação que os machos exibiam em seus rompantes eróticos pouco melhoraram sua aparência.

Mas agora? De maneira curiosa, sentia-se desligado de tudo aquilo, como se estivesse assistindo os machos carregando mobília de um lado para o outro ou, quem sabe, limpando as folhas em um jardim.

O motivo era a sua Escolhida, claro.

Tendo tido os lábios pressionados contra a pele pura, tendo olhando dentro dos olhos verdes luminosos, tendo sentido o perfume delicado dela, ele estava completamente desinteressado pelos charmes bem utilizados daquela fêmea diante da lareira.

Ah, a sua Escolhida... ele jamais soube que tal graça existisse e, além disso, não teria como imaginar que se sentiria tão completamente tocado por aquilo que era tão antitético para ele. Ela era o seu oposto, gentil e generosa, enquanto ele era brutal e impiedoso, bela para a sua feiura, etérea para a sua depravação.

E ela o marcara. Do mesmo modo como se o tivesse golpeado e deixado uma cicatriz em sua carne, ele estava ferido e enfraquecido por ela.

Não havia nada a ser feito.

Deus, mesmo as lembranças dos momentos que partilhara com ela, quando estivera completamente vestida, e ele, tão gravemente ferido, bastavam para excitá-lo, seu pobre sexo endurecendo por nenhum motivo aparente: mesmo que não estivessem em lados opostos na guerra pelo trono, ela jamais permitiria que ele a abordasse como um macho faz ao se enfeitiçar por uma fêmea de valor. Naquela noite outonal quando se encontraram debaixo daquela árvore, ela executara um ato válido segundo seus preceitos. Não tivera nada a ver com ele em particular.

Mas, ah, como ele a desejava mesmo assim...

Abruptamente, a fêmea diante da lareira se arqueou debaixo dos pesos orgásmicos que mudavam sobre ela, e ele voltou-lhe sua atenção. Como se ela percebesse sua excitação, o olhar enevoado e extasiado focalizou nele, e uma surpresa repentina cruzou sua expressão – ou o pouco que ele conseguia distinguir por cima do antebraço grosso que lhe oferecia alimento.

O choque arregalou seu olhar. Evidentemente, ela não notara a presença dele, mas agora que o fazia, o medo, e não a paixão, fez-se óbvio dentro dela.

Sem querer atrapalhar toda aquela ação, ele balançou a cabeça e estendeu a palma num gesto de “pare”, para garantir a ela que não teria de suportar sua mordida – ou pior, seu sexo.

A mensagem aparentemente funcionou, porque o medo abandonou sua expressão, e quando um dos soldados apresentou o pau pedindo atenção, ela o apanhou e começou a massageá-lo acima da sua cabeça.

Xcor sorriu para si mesmo de modo horripilante. Aquela prostituta não o queria, e mesmo assim, seu corpo, em toda a sua estupidez, insistia em reagir àquela Escolhida, como se a fêmea sagrada um dia fosse olhar para ele.

Tão tolo.

Consultando o relógio, surpreendeu-se ao ver que a refeição já vinha acontecendo há mais de uma hora. Que seja. Desde que seus machos obedecessem com suas duas regras básicas, ele não se importava em deixá-los continuar: tinham de permanecer substancialmente vestidos e as armas deveriam estar nos coldres com as travas desarmadas.

Dessa forma, se o clima mudasse, eles poderiam se defender rapidamente.

Ele estava mais do que disposto a lhes conceder aquele passatempo.

Depois daquele interlúdio? Muitos estariam no máximo de suas forças, e pelo modo como as coisas estavam com a Irmandade... eles precisariam estar assim.


CAPÍTULO 18

– Não. De jeito nenhum.

Qhuinn teve que concordar com a opinião de Z. quanto à ideia brilhante de Rhage.

O grupo já se esforçara na floresta, com Rhage suportando boa parte do peso de Z., enquanto os demais os circundavam aos pares, a postos para apanhar qualquer um ou qualquer coisa que os ameaçasse pelas margens. Agora estavam de volta ao hangar e a solução de Hollywood para o problema de mobilidade parecia uma complicação com implicações mortais, e não exatamente algo que de fato ajudasse.

– Pilotar não deve ser tão difícil – enquanto todos, inclusive Z., apenas o encaravam, Rhage deu de ombros. – O que foi? Os humanos o fazem o tempo todo.

Z. esfregou o peito e lentamente se deixou cair no chão. Depois de respirar, balançou a cabeça.

– Primeiro, você não sabe se... a maldita coisa... pode subir. Provavelmente... está sem combustível... e você nunca pilotou antes.

– Quer me contar a nossa outra opção? Ainda estamos a quilômetros de um ponto plausível para que nos busquem, você não está melhorando e podemos ser encurralados. Deixe-me pelo menos entrar lá para ver se consigo fazer o motor pegar.

– Não é uma decisão inteligente.

No silêncio que se seguiu, Qhuinn raciocinou e olhou para o hangar. Depois de um instante, disse:

– Eu dou cobertura. Vamos fazer isso.

No fim, Rhage estava certo. Aquela evacuação a pé estava demorando demais e o redutor desaparecera antes que o apunhalassem, e não o contrário.

Será que Ômega dera poderes especiais aos seus garotos?

Tanto faz. Um soldado inteligente jamais subestimava o inimigo, ainda mais quando um dos seus estava abatido. Precisavam levar Z. para um lugar seguro e se isso significava ir pelo ar, que assim fosse.

Ele e Rhage entraram no hangar e ligaram as lanternas. O avião estava onde o tinham deixado no canto do fundo, como se fosse o filho adotivo feio de algum outro tipo de transporte muito mais bonito que há muito saíra de cena. Aproximando-se, Qhuinn viu que a hélice parecia estar inteira, e apesar de as asas estarem empoeiradas, conseguiu sustentar seu peso nelas.

O fato de a porta ter rangido como o diabo quando Rhage a abriu não foi uma notícia tão promissora.

– Nossa! – murmurou Rhage ao se encolher. – Parece que há algo morto ali dentro.


Caramba, o fedor devia ser tremendo se o Irmão conseguia distingui-lo do resto do cheiro que permeava o hangar.

Talvez a ideia não fosse tão boa assim.

Antes que Qhuinn conseguisse emitir uma segunda opinião a respeito do fedor, Rhage se espremeu como um pretzel e passou pela abertura oval.

– Puta merda... Chaves! As chaves estão aqui, dá pra acreditar?

– E quanto ao combustível? – murmurou Qhuinn, ao lançar o facho da lanterna de bolso num círculo amplo. Nada além de chão imundo.

– Acho bom recuar um pouco, filho – Rhage berrou de dentro da cabine. – Vou tentar ligar essa máquina velha.

Qhuinn se afastou, mas oras, se a coisa fosse explodir, poucos metros não fariam muita diferença...

A explosão foi alta, a fumaça, espessa, e o motor parecia estar sofrendo com um acesso de tosse mecânica. Mas a merda se estabilizou. Quanto mais deixaram o motor esquentar, mais equilibrado o ritmo se tornou.

– Temos que sair daqui antes de nos asfixiarmos – Qhuinn gritou de dentro do avião.

Bem nessa hora, Rhage deve ter colocado a coisa para se mexer ou algo assim, porque o avião se lançou para a frente com um gemido, como se cada prego e parafuso da sua fuselagem doesse.

E aquela coisa voaria?

Qhuinn correu na frente e chegou à porta dupla. Segurando de um lado, usou toda a sua força para puxar e afastou as portas, lançando diversas trincas e travas para todos os lados.

Ele só esperava que o avião não se inspirasse naqueles fragmentos.

Sob o luar, as expressões de John e Blay não tinham preço ao darem uma bela olhada para o plano de fuga – e ele bem sabia de onde elas vinham.

Rhage pressionou o freio e se espremeu de novo para sair.

– Vamos trazê-lo para dentro.

Silêncio. Bem, a não ser pelo avião ofegante atrás deles.

– Você não vai levá-lo – disse Qhuinn, quase para si mesmo.

Rhage olhou sério para ele.

– O que disse?

– Você é valioso demais. Se esta coisa cair, não podemos perder dois Irmãos. Isso não vai acontecer. Eu sou dispensável, você não.

Rhage abriu a boca como se fosse argumentar. Mas quando a fechou, uma expressão estranha atravessou seu belo rosto.

– Ele tem razão – disse Z. sério. – Não posso colocar você em perigo, Hollywood.

– Que se foda, posso me desmaterializar para fora da cabine...

– E acha que vai conseguir fazer isso quando estiverem num espiral? Tolice...

Uma saraivada de balas irrompeu das margens das árvores, atingindo a neve, o zumbido passando pelos ouvidos.

Todos reagiram. Qhuinn mergulhou dentro do avião, posicionou-se atrás do assento do piloto e tentou entender... puta merda, havia botões demais. A única coisa que o salvava era que...

Rá-tá-tá!

... ele assistira a um número suficiente de filmes para saber que a alavanca com a manopla era o acelerador e que a direção em forma de gravata borboleta era a coisa que você puxava para subir, e abaixava para descer.

– Cacete – murmurou ao ficar abaixado o máximo que podia.

Considerando-se os sons explosivos que se seguiram, John e Blay também atiravam, por isso Qhuinn se sentou um pouco mais elevado e olhou para a fileira de instrumentos. Deduziu que aquele com um tanquezinho de combustível era o que ele estava procurando.

Um quarto de tanque disponível. E metade daquela coisa só devia ser condensação.

Aquela era uma ideia bem ruim.

– Traga-o aqui! – Qhuinn berrou, olhando para o campo aberto e reto à sua esquerda.

Rhage logo o atendeu, jogando Zsadist no avião com toda a gentileza de um estivador. O Irmão aterrissou como uma pilha amontoada, mas ao menos praguejava, o que significava que ainda estava bom o bastante para sentir dor.

Qhuinn não esperou pela tolice de fechar as portas. Soltou o pedal do freio, apertou o acelerador e rezou para não derrapar na neve...

Metade do para-brisa se estilhaçou na sua frente; a bala que causara o estrago ricocheteou pela cabine, o “fuuu” do assento ao lado do seu, sugerindo que o encosto de cabeça tivesse sido atingido. O que era melhor do que o seu braço. Ou o crânio.

A única notícia boa era que o avião parecia pronto para sair dali também, o motor enferrujado girando a hélice rapidamente como se soubesse que sair do chão era a única saída para a segurança. Ao lado das janelas, o cenário começava a passar e ele se orientou no meio da “pista” mantendo as duas fileiras de árvores equidistantes.

– Segure-se – gritou acima do estrondo.

O vento entrava na cabine como se houvesse um ventilador industrial preenchendo o espaço onde o vidro estivera, mas ele não pretendia subir o bastante para que necessitassem de pressurização.

Àquela altura, ele só queria passar por cima da floresta logo adiante.

– Vamos, meu bem, você consegue... Vamos, vamos...

Ele já estava com a alavanca toda puxada e teve que ordenar ao braço que relaxasse um pouco. Não havia mais para onde puxar, e quebrar a maldita coisa era a garantia de acabar com tudo ali mesmo.

O barulho aumentou ainda mais.

As árvores se agitaram cada vez mais.

A trepidação ficou cada vez mais violenta, até seus dentes batiam uns nos outros, e ele se convenceu de que uma ou as duas asas se partiriam e cairiam pelas laterais.

Concluindo que não havia tempo a perder, Qhuinn puxou o manche para trás o máximo que pôde, segurando firme, como se isso, de alguma forma, fosse se traduzir à fuselagem do avião e se mantivesse junto no lugar...

Algo caiu do teto e voou na direção de Z.

Um mapa? O manual do proprietário? Quem diabos haveria de saber...?

Caramba, as árvores na ponta extrema estavam se aproximando...

Qhuinn puxou ainda mais, apesar de o manche estar o mais próximo possível dele, o que era uma pena, porque estavam ficando sem pista e ainda colados no chão...

Sons de arranhados vinham da barriga do avião, como se a vegetação rasteira estivesse se esticando e tentando segurar as placas de aço.

As árvores estavam cada vez mais perto.

Seu primeiro pensamento ao enfrentar a morte era que jamais conheceria a filha. Pelo menos não neste lado do Fade.

O segundo e último era que não acreditava que nunca tivesse dito a Blay que o amava. Em todos os minutos e horas e noites de sua vida, em todas as palavras ditas ao macho no decorrer dos anos em que se conheciam, ele somente o afastara.

E agora era tarde demais.

Idiota. Que tremendo cretino que ele era.

Porque parecia bem evidente que seu cartão de biblioteca ficaria inutilizado aquela noite.

Endireitando-se e fazendo com que as lufadas o atingissem em cheio no rosto, Qhuinn encarou aquela arremetida, imaginando todos aqueles pinheiros logo adiante, já que não conseguia enxergá-los pelo fato de os olhos estarem lacrimejando devido ao vento. Abrindo a boca, ele gritou, acrescentando voz à confusão.

Maldição, não morreria como um covarde. Não mergulharia no chão, nada de frases patéticas implorando para que Deus o salvasse. Ao diabo com isso. Enfrentaria a morte com as presas expostas, o corpo preparado e o coração acelerado não de medo, mas com uma tremenda descarga de...

– Morte, vá se foder!

Enquanto Qhuinn tentava levantar voo, Blay tinha o cano da pistola apontado para a borda das árvores e descarregava balas como se tivesse um suprimento infindável... o que não era verdade.

Aquilo era horrível. Ele, John e Rhage não tinham cobertura; não havia como saber quantos assassinos estavam na floresta; e, pelo amor de Deus, só o que aquele avião antigo fazia era expelir uma nuvem de fumaça tóxica em seu rastro enquanto passava como se estivesse num desfile dominical.

Ah, e a máquina estava longe de ser blindada, mas, evidentemente, tinha combustível no tanque.

Qhuinn e Z. não conseguiriam. Colidiriam na floresta ao fim da pista. Isso se não explodissem antes.

Nesse instante, quando soube que uma bola de fogo era iminente de um ou outro modo, ele se partiu ao meio. A parte física permanecia concentrada em combater o ataque, os braços esticados, os indicadores apertando os gatilhos, os olhos e ouvidos rastreando os sons e as aparições de flashes de pistolas e os movimentos do inimigo.

A sua outra parte estava naquele avião.

Era como se estivesse assistindo à própria morte. Imaginava com nitidez a vibração violenta do avião, os saltos descontrolados no chão e a vista da margem sólida das árvores que se aproximavam dele, como se estivesse enxergando através dos olhos de Qhuinn e não dos seus.

Filho da puta imprudente.

Tantas vezes Blay pensou “ele vai se matar”.

Tantas vezes no campo de batalha e fora dele.

Mas aquela era a vez em que isso aconteceria...

Uma bala o atingiu na coxa e a dor que subiu pela perna até o coração indicava que sua total atenção precisava voltar ao combate: se quisesse viver, teria de se concentrar completamente.

Contudo, quando essa convicção o acometeu, houve uma fração de segundo em que ele pensou: vamos acabar com isso aqui. Vamos acabar com essa tolice de vida de castigos, de “quase lá”, de “e se?”, da agonia crônica e infindável em que sempre esteve... e da qual estava tão cansado...

Ele não entendeu o que o fez atingir a neve.

Num minuto, estava olhando para o avião esperando que ele explodisse em chamas. No minuto seguinte, estava de peito no chão, com os cotovelos enfiados na terra congelada e obstinada, a perna machucada latejando.

Flap! Flap! Flap!...

O rugido que interrompeu o som das balas era tão alto que ele abaixou a cabeça, como se isso o ajudasse a evitar a bola de fogo crônica do avião.

Só que não houve nem luz nem calor. E o som vinha de cima...

Planando. O fardo de parafusos estava mesmo voando. Acima deles.

Blay despendeu um segundo olhando para cima, só para o caso de ter sido alvejado e a sua percepção da realidade ter sido afetada. Mas não. Aquela antiguidade de pulverização de plantações estava no céu, fazendo uma curva larga e seguindo na direção que, se é que conseguiria permanecer suspenso, levaria Qhuinn e Z. para o complexo da Irmandade.

Se tivessem sorte.

Caramba, aquele voo não seria fácil. Nada parecido com uma águia voando segura e decidida pelo céu noturno. Mais parecido com uma andorinha recém-saída do ninho com uma asa quebrada.

De um lado para o outro. Para cima e para baixo, inclinando-se de lado a lado.

Ao ponto em que parecia ter realizado o impossível saindo do chão... só para cair e queimar no meio da floresta...

Do nada, algo o atingiu na lateral do rosto, golpeando-o com tanta força que ele caiu de costas e quase perdeu as pistolas. Uma mão – fora uma mão que o espalmara como se ele fosse uma bola de basquete.

Em seguida, um peso absurdo o atingiu no peito, esticando-o no chão coberto de neve, fazendo-o exalar com tanta força que ele se perguntou se não deveria olhar ao redor para procurar o fígado.

– Porra, vai ficar abaixado ou não? – Rhage sibilou em seu ouvido. – Está tentando levar bala... de novo?

Enquanto a calmaria do tiroteio se estendia de segundos até completar um minuto, os redutores emergiram pela linha de árvores adiante, o quarteto de assassinos caminhando pela neve com as armadas suspensas e prontas.

– Não se mexa – sussurrou Rhage. – Dois podem brincar nesse jogo.

Blay fez seu melhor para não inspirar tão fundo quanto a queimação em seus pulmões lhe dizia que precisava. Também tentou não espirrar já que flocos soltos coçavam em seu nariz toda vez que ele respirava.

Espera.

Espera.

Espera.

John estava a um metro de distância, deitado numa posição contorcida que fez o coração de Blay se apertar...

O cara sutilmente levantou o polegar, como se estivesse lendo a mente de Blay.

Graças a Deus. Cacete.

Blay desviou o olhar sem mudar a posição estranha da cabeça, e depois discretamente trocou uma das pistolas por uma das suas adagas.

Enquanto um zumbido desengonçado começou a vibrar em sua cabeça, ele calculou os movimentos dos redutores, suas trajetórias, suas armas. Ele estava quase sem munição e não havia tempo para recarregar as pistolas. E ele sabia que tanto Rhage quanto John estavam na mesma condição.

As adagas que V. fizera à mão para todos eles eram o único recurso.

Mais perto... mais perto...

Quando os quatro assassinos finalmente estavam ao alcance, sua cronometragem foi perfeita. Assim como a dos outros.

Com um movimento coordenado perfeito, ele saltou e começou a apunhalar os dois mais próximos a ele. John e Rhage atacaram os outros...

Quase imediatamente, mais assassinos surgiram das árvores, mas, por algum motivo, talvez porque a Sociedade Redutora não estivesse armando seus alistados muito bem, não havia balas. O segundo round se passou pela neve com o tipo de armas que se esperaria ver numa briga de beco: tacos de baseball, pés-de-cabra, chaves de rodas e correntes.

Por ele, tudo bem.

Estava tão pilhado e furioso, que lhe faria bem sair na mão.


CAPÍTULO 19

Sentada na mesa de exames, com uma camisola frágil de papel cobrindo-a e os pés descalços pendurados da orla acolchoada, Layla sentiu como se estivesse cercada por instrumentos de tortura. E devia ser isso mesmo. Todo tipo de utensílios de aço inoxidável estava enfileirado na bancada da pia, com as embalagens plásticas transparentes indicando que estavam estéreis e prontos para serem usados.

Já fazia uma eternidade que estava na clínica de Havers. Ou, pelo menos, era o que parecia.

Em contraste com o trajeto apressado para atravessar o rio, quando o mordomo dirigira como se soubesse que a pressa era essencial, desde que ali chegara só acontecera um retardo após o outro. Desde a burocracia até a sala de espera, o aguardo pela enfermeira, a demora para que Havers apresentasse o resultado do seu exame de sangue.

Era o suficiente para enlouquecer alguém.

Do lado oposto ao que ela estava sentada, havia uma imagem emoldurada pendurada na parede, e há tempos ela havia memorizado suas pinceladas e cores, o buquê de flores pintadas em azuis e amarelos vibrantes. O nome embaixo dizia: van Gogh.

Àquela altura, ela nunca mais queria ver uma íris novamente.

Mudando de posição, fez uma careta. A enfermeira lhe entregara um objeto apropriado para o sangramento e ela ficou horrorizada ao perceber que logo precisaria de outro...

A porta se abriu com uma batida e seu instinto imediato foi correr, o que era ridículo. Era ali que precisava estar.

Só que tratava-se apenas da enfermeira que a levara até ali, tirara a amostra de sangue para o exame e seus sinais vitais, e tomara notas no computador.

– Sinto muito, houve outra emergência. Só quis certificá-la de que será a próxima.

– Obrigada – Layla se ouviu dizer.

A fêmea se aproximou e pôs uma mão em seu ombro.

– Como está se sentindo?

A gentileza a fez piscar rápido.

– Acho que vou precisar de outro... – ela apontou para o quadril.

A enfermeira assentiu e deu um leve apertão antes de seguir para a bancada e apanhar uma embalagem quadrada cor de pêssego.

– Temos mais aqui. Gostaria que eu a acompanhasse até o banheiro no final do corredor?

– Sim, por favor...

– Espere, não se levante ainda. Deixe-me pegar algo para que se cubra melhor.

Layla baixou o olhar para as mãos, aquelas que estavam enroscadas uma na outra e que não conseguiam ficar quietas.

– Obrigada.

– Aqui está – algo macio a envolveu. – Ok, agora vamos colocá-la de pé.

Escorregando para fora da mesa, ela se desequilibrou um pouco e a enfermeira estava logo ali, segurando-a pelo cotovelo para estabilizá-la.

– Vamos bem devagar.

E foi o que fizeram. No corredor, havia enfermeiras se apressando de quarto em quarto, e pessoas entrando e saindo das suas consultas, e outras equipes correndo... e Layla não conseguia acreditar que um dia fora rápida como eles. Para se afastarem do tráfego, ela e a gentil acompanhante ficaram próximas da parede, a fim de evitar serem atropeladas, mas os outros eram verdadeiramente gentis. Como se todos soubessem que ela estava sofrendo seriamente.

– Vou entrar com você – disse a enfermeira quando chegaram ao banheiro. – A sua pressão está muito baixa e fico preocupada que possa desmaiar, está bem?

Enquanto Layla assentia, elas entraram e trancaram a porta. A enfermeira retirou-lhe a coberta, e ela, desconcertada, afastou o papel do caminho.

Sentando-se, ela...

– Ah, santa Virgem Escriba.

– Psiu, está tudo bem, tudo bem – a enfermeira se inclinou e lhe estendeu o absorvente. – Vamos cuidar disso. Você está bem... aqui, não, você precisa me dar isso. Temos que encaminhar para o laboratório. Existe a possibilidade de ser usado para determinar o que está acontecendo e você há de querer ter essa informação quando tentar novamente.

Tentar novamente. Como se a perda já tivesse ocorrido.

A enfermeira colocou as luvas e pegou um saco plástico de um suporte. Ela cuidou de tudo com discrição e diligência, e Layla viu quando o nome que havia dado foi escrito do lado de fora do saco com uma caneta preta.

– Ah, querida, está tudo bem.

A enfermeira retirou as luvas, arrancou um pedaço de papel higiênico de um suporte na parede e se ajoelhou. Segurando o queixo de Layla com uma mão gentil, cuidadosamente enxugou as faces que se molharam de lágrimas.

– Sei bem pelo que está passando. Também perdi um – o rosto da enfermeira se tornou belo pela compaixão. – Tem certeza de que não podemos chamar o seu hellren?

Layla apenas balançou a cabeça.

– Bem, avise-me se mudar de ideia. Sei que é difícil vê-los tristes e preocupados, mas não acha que ele gostaria de estar aqui com você?

Ah, como contaria a Qhuinn? Ele parecera tão certo de tudo, como se já tivesse visto o futuro e encarado os olhos do filho deles. Aquilo seria um choque.

– Saberei se estive mesmo grávida? – murmurou Layla.

A enfermeira hesitou.

– O exame de sangue pode revelar isso, mas tudo depende de quanto tempo você está se sentindo assim.

Layla fitou as mãos novamente. As juntas estavam brancas.

– Preciso saber se estou tendo um aborto ou se isto é apenas um sangramento normal que acontece quando não se engravida. Isso é importante.

– Lamento muito, mas não sou eu quem pode lhe garantir isso.

– Mas você sabe, não sabe? – Layla levantou a cabeça para fitá-la nos olhos. – Não sabe?

– Repito, não sou eu quem pode lhe garantir, mas... com esse tanto de sangue?

– Eu estava grávida.

A enfermeira fez um movimento amplo com as mãos, os lábios se contraindo.

– Não conte a Havers que eu lhe disse isso, mas... sim, provavelmente. E você precisa saber, não há nada que você possa fazer para deter o processo. Não é culpa sua, e você não fez nada errado. É só que, às vezes, essas coisas simplesmente acontecem.

Layla deixou a cabeça pender.


– Obrigada por ser honesta comigo. E... na verdade, é isso o que acho que está acontecendo.

– Uma fêmea sabe. Bem, vamos levá-la de volta.

– Sim, muito obrigada.

Mas Layla teve dificuldade para suspender a calcinha ao se levantar. Quando ficou claro que não conseguia coordenar as mãos, a enfermeira se adiantou e a ajudou com facilidade invejável, e tudo foi tão vergonhoso e assustador. Ficar fraca e à mercê de outra pessoa para uma coisa tão simples...

– Você tem um sotaque maravilhoso – disse a enfermeira ao voltarem para o tráfego do corredor, retornando mais uma vez para a faixa mais lenta. – É tão Velho Mundo... minha avó aprovaria. Ela odeia o fato de o inglês ter se tornado a língua dominante aqui. Acredita que isso será a derrocada da nossa espécie.

A conversa a respeito de nada em especial ajudou, dando a Layla algo em que se concentrar em vez de pensar em quanto tempo aguentaria até ter de refazer aquele percurso... e se as coisas estavam piorando nesse aborto... e como seria quando fosse forçada a encarar Qhuinn para lhe dizer que fracassara...

De algum modo, chegaram à sala de exames.

– Não deve demorar muito mais. Prometo.

– Obrigada.

A enfermeira parou à porta e, ao se imobilizar, sombras cruzaram o fundo do seu olhar, como se ela estivesse revivendo partes de seu próprio passado. E no silêncio entre elas, um momento de comunicação ocorreu, e embora fosse raro ter algo em comum com uma fêmea da Terra, a conexão foi um alívio.

Ela se sentira tão sozinha naquilo tudo.

– Temos pessoas com quem você pode conversar – disse a fêmea. – Às vezes, conversar depois de tudo pode ajudar de verdade.

– Obrigada.

– Use esse botão branco se precisar de ajuda ou se sentir-se tonta, está bem? Não vou estar longe.

– Sim, farei isso, obrigada.

Enquanto a porta se fechava, lágrimas embaraçam sua visão, e mesmo sentindo uma dor profunda, a sensação esmagadora de perda era desproporcional à realidade. A gestação estava apenas bem no comecinho e, logicamente, não havia muito a perder.

No entanto, para ela, aquilo era o seu filho.

Aquilo era a morte do seu filho...

Houve uma batida suave à porta e depois uma voz masculina.

– Posso entrar?

Layla apertou os olhos e engoliu com força.

– Por favor.

O médico da raça era alto e distinto, com óculos de aro de tartaruga e uma gravata borboleta. Com um estetoscópio ao redor do pescoço e aquele longo jaleco branco, ele era a figura perfeita de um curador, calmo e competente.

Ele fechou a porta e sorriu de leve para ela.

– Como está se sentindo?

– Bem, obrigada.

Ele a fitou do outro lado da sala, como se estivesse avaliando seu estado clínico, embora não a tocasse ou usasse instrumento algum.

– Posso ser franco?

– Sim, por favor.

Ele assentiu e puxou um banquinho com rodinhas. Sentando-se, equilibrou o prontuário no colo e a encarou.

– Vejo que você não indicou o nome do seu hellren... nem do seu pai.

– É preciso?

O médico hesitou.

– Não tem nenhum parente, minha querida? – quando ela negou com a cabeça, os olhos dele registraram tristeza profunda. – Lamento muito pelas suas perdas. Então, não há ninguém que possa estar aqui com você? Ninguém?

Como ela simplesmente continuou ali, sem dizer nada, ele inspirou fundo.

– Muito bem...

– Mas posso pagar – ela deixou escapar de supetão. Ela não sabia muito bem onde arranjaria o dinheiro, mas...

– Ah, meu bem, não se preocupe com isso. Não preciso receber se não puder pagar – ele abriu o prontuário e afastou uma página. – Vejamos, vejo aqui que passou pelo seu cio.

Layla apenas concordou, como se isso fosse tudo o que pudesse fazer para não gritar: Qual é o resultado do exame?

– Bem, verifiquei o resultado do seu exame de sangue e ele mostrou algumas... coisas que eu não esperava. Portanto, se permitir, eu gostaria de coletar mais uma amostra e enviá-la para o laboratório para mais alguns exames. Com isso, espero ser capaz de entender o que está acontecendo... e também farei um ultrassom, se não se importar. É um exame padrão que me dará uma ideia de como as coisas estão progredindo.

– Como, por exemplo, quanto tempo sangrarei até que termine tudo? – disse com severidade.

O médico da raça esticou a mão para segurar a dela.

– Primeiro vamos ver como você está, certo?

Layla respirou fundo e concordou mais uma vez.

– Certo.

Havers foi até a porta e chamou a enfermeira. Quando a fêmea entrou no quarto, ela trouxe consigo o que parecia ser um computador de mesa montado num carrinho: havia um teclado, um monitor e umas varetas erguidas nas laterais do equipamento.

– Vou deixar que a enfermeira tire o sangue... as mãos dela são muito mais competentes que as minhas nesse quesito – ele sorriu de maneira gentil. – Nesse meio-tempo, vou verificar outro paciente. Volto em seguida.

A segunda picada de agulha foi muito melhor do que a primeira, pois ela sabia o que esperar, e ela foi deixada a sós por um curto tempo quando a enfermeira saiu para levar a amostra ao laboratório – o que quer que fosse ele e onde quer que estivesse localizado. Ambos voltaram em seguida.

– Pronta? – Havers perguntou.

Quando Layla fez que sim, ele e a enfermeira trocaram algumas palavras e o equipamento foi disposto perto de onde ela estava sentada. O médico, então, acomodou-se novamente no banquinho e puxou dois tipos de extensões das laterais da mesa de exame. Abrindo o que pareciam ser um par de estribos, ele fez um gesto para a enfermeira que reduziu a iluminação e se aproximou para apoiar uma mão no ombro de Layla.

– Deite-se, por favor – pediu Havers. – E desça até chegar ao fim da mesa. Você vai colocar os pés aqui depois de despir a roupa de baixo.

Enquanto ele indicava os dois estribos, os olhos de Layla se arregalaram. Ela não fazia ideia de que o exame seria...

– Nunca antes fez um exame interno? – perguntou Havers com hesitação. Quando ela começou a balançar a cabeça, ele assentiu. – Bem, isso não é incomum, ainda mais se esse foi o seu primeiro cio.

– Mas não posso tirar... – ela se interrompeu. – Estou sangrando.

– Cuidaremos disso – o médico parecia cem por cento confiante. – Vamos começar?

Layla fechou os olhos e se inclinou para trás para se deitar, o papel fino que cobria a superfície acolchoada rangendo debaixo do seu peso. Elevando os quadris e mudando um pouco de posição, ela se desfez do que a cobria.

– Cuido disso para você – disse a enfermeira baixinho.

Os joelhos de Layla se encontraram enquanto ela foi tateando com os pés à procura dos malditos estribos.

– Isso mesmo – o banquinho de rodinhas guinchou quando o médico se aproximou. – Mas vá mais para baixo.

Por uma fração de segundo, ela pensou que não conseguiria.

Curvando os braços ao redor do baixo ventre, apertou-os, como se pudesse, de algum modo, segurar o bebê dentro dela ao mesmo tempo em que tentava se controlar. Mas não havia nada que pudesse fazer, nenhuma conversa que pudesse ter com seu corpo para acalmá-lo e segurar o que fora implantado, nenhum papo amoroso que pudesse ter com o filho para que ele tentasse sobreviver, nenhum fluxo de palavras para acalmá-la do seu pânico absoluto.

Por um momento, ela desejou a vida enclausurada que um dia considerou tão sufocante. Lá no Santuário da Virgem Escriba, a natureza plácida da sua existência fora algo que ela dera como certo. De fato, desde que descera para a Terra e tentara encontrar um propósito aqui, fora atingida por um trauma atrás do outro.

Isso fez com que respeitasse os machos e as fêmeas de quem lhe disseram ser inferiores a ela.

Ali embaixo, todos pareciam estar à mercê de forças além do controle deles.

– Está pronta? – perguntou o médico.

Enquanto lágrimas corriam pelos cantos dos olhos, ela se concentrou no teto e agarrou a beira da mesa.

– Sim. Pode começar.


CAPÍTULO 20

Puta merda, Qhuinn estava completamente sem controle.

Quase nenhuma visibilidade. O avião balançando de um lado para o outro como se estivesse sofrendo delirium tremens. Motor ligando e desligando.

E ele nem podia dar uma olhada em Z. O vento estava forte demais para gritar, e não pretendia despregar os olhos do que quer que viesse pela frente – ou melhor dizendo, daquilo no que bateriam de frente – mesmo sem conseguir enxergar nada...

O que o fizera pensar que aquilo era uma boa ideia?

A única coisa que parecia estar funcionando era a bússola, portanto, ao menos ele conseguia se orientar quanto à localização da base: o complexo da Irmandade ficava ao norte, um tantinho ao leste, no topo de uma montanha circundada pelo mhis de V., a divisa defensiva invisível. Com isso, em relação ao direcionamento, ele estava certo, desde que o mostrador de N – S – L – O estivesse mais operacional do que, digamos, todo o resto daquele caixote.

Ao olhar para a direita, o vento incessante que passava pelo vidro parcialmente quebrado atingiu seu canal auditivo. Pela janela lateral, ele via... uma imensidão negra. O que ele interpretou como indício de eles terem passado pelo subúrbio e estarem sobrevoando as fazendas. Talvez já estivessem sobre as colinas que, no fim, transformariam-se na montanha...

Um som como o do escapamento de um carro explodindo chamou sua atenção negativamente, mas o que foi pior?

O silêncio repentino que se seguiu.

Nada de motor roncando. Apenas o vento soprando para dentro da cabine.

Ok, agora sim estavam em apuros.

Por um átimo, ele pensou em se desmaterializar. Era forte o bastante, estava consciente, mas jamais abandonaria Z...

Uma mão forte pousou em seu ombro, assustando-o tremendamente.

Z. se arrastara para a frente e, baseando-se em sua expressão, estava tendo dificuldades para se manter de pé. E não só pelos solavancos.

O Irmão falou, sua voz grossa superando todo aquele barulho.

– Hora de você ir embora.

– Nem a pau – berrou Qhuinn em resposta. Esticando o braço, tentou a ignição. Não faria mal tentar, não é mesmo?

– Não me obrigue a jogá-lo para fora.

– Tente.

– Qhuinn...

O motor voltou a pegar, o barulho se intensificando. Boas novas. A questão era que, se o maldito desligara uma vez, era bem possível que o fizesse novamente.

Qhuinn enfiou a mão na jaqueta. Ao apanhar o celular, pensou em todos que os dois estavam deixando para trás e passou o objeto para o Irmão.

Se existia uma hierarquia nessa coisa de se despedir, Z. estava no topo da lista. Ele tinha uma shellan e uma filha. Se alguém tinha de fazer uma ligação, esse alguém era ele.

– Para que isso? – Zsadist perguntou sombrio.

– Descubra você mesmo.

– E você pode ir...

– Não vou a parte alguma. Vou pilotar esta armadilha até batermos em alguma coisa.

Houve certa discussão depois disso, mas ele não sairia do assento do piloto, e por mais forte que o Irmão fosse em circunstâncias normais, Z. não estava em condições de suspender nada além de uma fatia de pão. E a conversa não durou muito. Depois que a discussão terminou, Z. desapareceu, sem dúvida indo para os fundos para fazer o último contato com as pessoas amadas.

Decisão inteligente.

Deixado a sós com seus equipamentos, Qhuinn fechou os olhos e lançou uma oração para quem pudesse ouvir. E visualizou o rosto de Blay...

– Pegue.

Ele abriu os olhos. O celular estava bem na sua frente, firme na mão de Z. E o mapa de GPS estava sendo mostrado, as pequenas setas piscantes indicando onde exatamente eles estavam.

– Mais uns cinco quilômetros – exclamou o Irmão acima do barulho ensurdecedor. – É tudo de que precisamos...

Houve um estouro, um assobio e mais uma rodada daquele silêncio terrível. Praguejando, Qhuinn concentrou-se naquela tela sempre desejando que as coisas voltassem a funcionar. Mais para o norte, obviamente, porém, mais para o leste. Muito mais. Seus cálculos estavam certos, mas não exatos.

Sem o telefone? Estariam fritos.

Bem, isso e toda aquela situação do motor.

Verificando a localização precisa, ele fez alguns cálculos mentalmente e virou para a direita, tentando chegar àquela indicação no mapa que levava diretamente para a montanha. Em seguida, seria a vez de tentar religar o motor.

Estavam perdendo altitude. Não espiralando, situação na qual haveria um close-up no altímetro e a coisa estaria acelerada do modo como você desejaria que as hélices estivessem. Mas lentamente, inexoravelmente indo para baixo... e se perdessem a aceleração, o que era o que aquela máquina de costura insegura debaixo do teto seria capaz de prover, acabariam caindo como uma pedra.

Tentando a ignição repetidas vezes, murmurou:

– Vamos, vamos, vamos...

Era difícil tentar manter o nariz empinado com apenas uma mão; e bem quando ele ia passar a devotar toda sua atenção ao manche, o braço de Z. se esticou, afastou a mão dele, e assumiu o controle sobre o botão da ignição.

Por um segundo, Qhuinn vislumbrou a marca de escravo para fora dos punhos da jaqueta do Irmão, mas logo voltou a se concentrar.

Deus, seus ombros estavam em chamas por puxar o manche para trás.

E pensar que ele estava morrendo de vontade de ouvir aquela barulheira do...

De uma só vez, o motor engasgou de volta à vida, e a mudança de altitude foi imediata. No instante em que os plugues e pistões começaram a rugir novamente, os números começaram a subir.

Mantendo a alavanca puxada, verificou o nível de combustível. Estava no vazio. Talvez estivessem apenas sem combustível, e não se tratasse de um problema mecânico?

Uma tolice, certo?

– Só mais um pouquinho, meu bem... um pouco mais, vamos lá, querida, você consegue...

Enquanto um fluxo interminável de encorajamento escapava dos seus lábios, as palavras impotentes eram abafadas pela única coisa que importava – mas, espere, como se o Cessna falasse inglês...!

Caramba, parecia que aquilo duraria uma eternidade, a esperança e as orações, seu cérebro num jogo de pingue-pongue entre os melhores e os piores cenários enquanto quilômetros eram atravessados num ritmo agonizantemente lento.

– Diga que telefonou para as suas fêmeas – berrou Qhuinn.

– Diga que consegue nos manter acima do solo.

– Não vou mentir.

– Leve-nos mais para o leste.

– O quê?

– Leste! Vá para o leste!

Z. aumentou o zoom do mapa e começou a correr o dedo em uma direção, de leste a oeste.

– Você vai precisar aterrissar neste ponto... atrás da mansão!

Qhuinn deduziu que deveria tomar como um bom sinal que o cara estava fazendo planos de aterrissagem que não envolviam bolas de fogo. E a sugestão era boa. Se conseguissem se orientar ao longo da mansão, do lado oposto à piscina, eles poderiam acabar com algumas árvores frutíferas... porém, teriam mais ou menos o mesmo tanto de pista que tiveram para decolar.

Muito melhor do que bater no muro que cercava a propriedade...

Daquela vez, o motor não emitiu nenhum aviso. Simplesmente morreu, como se estivesse cansado de brincar de pega-pega e houvesse decidido tirar uma folga permanente.

Ao menos já estavam próximos da aterrissagem.

Uma chance. Era tudo de que dispunham.

Uma única tentativa de aterrissar que, desde que ele conseguisse levá-los até as cercanias da propriedade, penetrar o mhis, e conseguir não colidir na mansão, no ginásio, nas construções, nos portões nem em nada que fosse real ou algum tipo de propriedade... resultaria nele entregando o orgulhoso pai e amoroso hellren, e soberbo lutador... de volta aos braços da família.

Mas não era só em Z. que ele estava pensando.

O Primale cuidaria da saúde e do bem-estar de Layla. Blay tinha os pais amorosos e Sax. John tinha a sua Xhex.

Todos eles ficariam bem.

Qhuinn se virou.

– Sente-se! Lá atrás! Sente-se e prenda o cinto de segurança...

O Irmão abriu a boca e Qhuinn fez o impensável. Cobriu os lábios do macho com a mão.

– Sente-se de uma vez e se amarre! Chegamos até aqui... não vamos estragar tudo!

E pegou o celular de volta.

– Vá! Deixe comigo!

Os olhos de Z. se conectaram aos seus e, por um breve segundo, Qhuinn se perguntou se seria lançado para fora da cabine. Mas então, o milagre aconteceu: um instante de conexão se estendeu entre eles, uma corrente de elos tão grossos quanto coxas ligando-os um ao outro.


Z. levantou o indicador e apontou direto no rosto de Qhuinn. Depois de acenar uma vez com a cabeça, desapareceu na parte traseira.

Qhuinn voltou a se concentrar.

A navegação os mantinha no alto, e graças às orientações de Z., aquela guinada extra à direita os colocara na direção certa. De acordo com o GPS, estavam se aproximando da junção de estradas que dava a volta na base da montanha, centímetro a centímetro. Centímetro... a centímetro...

Ele estava bem certo de que localizavam-se acima da propriedade agora.

Enquanto o avião abaixava mais, ele se preparou, continuando a puxar o manche com força até que os ombros cravassem no assento atrás dele. Não havia trem de pouso para puxar. Ele esteve abaixado o tempo todo...

Um assobio repentino penetrou na cabine, e isso, junto a uma abrupta mudança de angulação, anunciou que a gravidade começara a vencer a batalha, exigindo a construção de fibra de vidro e metal e tendo um par de vidas como seu prêmio.

Eles não conseguiriam... era cedo demais...

Uma vibração selvagem se seguiu e, por um momento, ele se perguntou se não tinham atingido o chão sem que ele percebesse. Copas de árvores, talvez? Não. Algo...

O mhis?

O amortecedor repentino parecia se estender para cima, e, ora essa, o avião reagiu de modo diferente, o bico se nivelando sem nenhum esforço da parte de Qhuinn ou ajuda do peso morto que era aquele motor. Até mesmo o sacolejo de um lado para o outro cessou.

Aparentemente, a defesa invisível de V. não só mantinha afastados humanos e redutores, como também sustentava um Cessna no ar.

Só que tinham um problema. Aquela elevação vital parecia não acabar.

Do modo como iam as coisas, era como se ele fosse flutuar ali para sempre, ultrapassando a única pista de aterrissagem que tinham...

Abruptamente, o barulho retornou, e ele verificou o altímetro. Tinham descido cerca de sete metros, e ele teve que se perguntar se tinham penetrado a barreira.

Luzes. Ah, bom Jesus amado. Luzes.

Do lado de fora da janela, abaixo, ele via o brilho da mansão e o pátio. Estava distante demais para distinguir os detalhes, mas só podia ser – sim, a pequena ramificação só podia ser o ginásio.

Instantaneamente, seu cérebro dimensionou e reorientou tudo.

Merda. O ângulo estava errado. Se continuasse assim, aterrissaria de frente para a propriedade e não ao longo dela. E a porcaria era que não tinha altitude suficiente para executar um círculo grande para apontá-lo para a direção certa.

Quando não se tem opções, a única alternativa é fazer dar certo.

Seu maior problema era deixar passar o gramado. Só havia uma clareira na montanha. O resto? Árvores que os devorariam.

Ele precisava descer mais. Imediatamente.

– Segure-se!

Mesmo sendo um contrassenso, ele arremessou o manche para frente, e os direcionou para o chão. Houve uma mudança de velocidade imediata, e ele rezou que se recuperasse disso quando chegasse à zona de impacto. E merda, a intensa trepidação ficou ainda pior, ao ponto de ele ficar tonto, e os braços doerem por segurar firme o manche.

Mais rápido. Mais próximo. Mais rápido. Mais barulhento. Mais próximo.

E, então, chegou a hora. A casa e os jardins estavam logo à frente, indo ao encontro deles numa velocidade de matar.

Ele puxou com força, e a nova velocidade os fez levantar um pouco. Por cima da casa...

– Prepare-se! – exclamou a plenos pulmões.

Enquanto a câmera lenta assumia o comando, tudo se ampliou: a propriedade, os segundos, a dor nos olhos enquanto ele se esforçava para olhar adiante, a sensação do seu corpo sendo empurrado para trás no assento...

Merda. Ele estava sem o cinto de segurança.

Nem se preocupara com isso. Coisas demais em que pensar.

Idiota...

Nesse mesmo instante, fizeram contato com algo. Com força. O avião pulou, bateu em outra coisa, ricocheteou e pulou novamente. Nesse meio-tempo, sua cabeça bateu no painel acima dele, e seu traseiro ficou estatelado no assento, e seu...

Deixa para um mix de dores.

A fase seguinte da aterrissagem dos infernos foi um misto de desliza-chacoalha-rola que quase o lançou para fora da cabine. Aquilo era o chão – só podia ser – e, maldição, como iam rápido. As luzes corriam pelas janelas, tudo parecendo o Studio 54* até ele ficar praticamente cego. E por causa do lado em que o estroboscópio estava, ele deduziu que estavam no jardim – mas estavam ficando sem espaço.

Segurando o manche, ele os fez dar um cavalo de pau, na esperança que as mesmas leis da física que se aplicavam a carros desgovernados funcionassem ali: sem freios, espaço limitado e o único modo de diminuir a velocidade era mudar o coeficiente aerodinâmico.

A força centrífuga o fez bater na lateral da cabine e a neve bombardeou seu rosto; depois, algo afiado.

Merda, eles não estavam desacelerando em nada.

E aquele muro de proteção de seis metros de altura e 45 centímetros de espessura estava se aproximando com rapidez.

E por falar em paradas abruptas...

* Lendária discoteca em Manhattan que funcionou entre 1977 e 1986. (N.T.)


CAPÍTULO 21

Blay se desmaterializou para a mansão no instante em que o último assassino naquela clareira foi enviado de volta a Ômega. Como Qhuinn ainda estava no ar com Z., não havia razão para perder mais tempo à espera de mais um esquadrão.

Mesmo por que não havia nada que alguém pudesse fazer para ajudar aqueles dois.

Reaparecendo no pátio, ele...

Diretamente acima dele, sem produzir som algum, aquele maldito avião bloqueava a luz da lua.

Puta merda, eles conseguiram e, caramba, estavam tão próximos que ele pensou que, caso se esticasse, conseguiria tocar a fuselagem do Cessna.

O silêncio sepulcral, porém, não era um bom sinal...

O primeiro impacto veio do alto das cercas vivas que delimitavam o jardim. O avião saltou das pontas, pegou uma corrente de ar, depois sumiu de vista.

Blay se desmaterializou ao redor da varanda bem a tempo de ver o Cessna bater na neve, caindo como um homem obeso mergulhando de barriga numa piscina, criando grandes ondas brancas para todos os lados. E então a aeronave se transformou no maior cortador de grama jamais visto pelo homem, a combinação de seu corpo de aço e a velocidade acelerada demais, destruindo fileiras de árvores frutíferas e de moitas de flores que foram protegidas do inverno, e caramba, até mesmo a fileira de bebedouros para os pássaros.

Mas ao inferno com tudo isso. Ele pouco se importava se tivessem de replantar o lugar inteiro, desde que o avião parasse... antes do muro de contenção.

Por uma fração de segundo, ele chegou a pensar em se materializar diante da coisa e detê-la com as mãos, mas isso seria loucura. Se o Cessna não parecia se incomodar com as estátuas de mármore que ele agora destruía, pouco se importaria com um macho vivo e respirando diante dele...

Por nenhum motivo aparente, todo aquele descontrole começou a girar, a asa encarando Blay como se Qhuinn estivesse tentando virar. A derrapagem foi o movimento perfeito. Nem precisava ser dito que não havia freios, e desde que o espiral se sustentasse, eles teriam mais área para perder velocidade.

Merda, eles estavam mesmo perto demais do muro de contenção...

Centelhas de luz iluminaram a noite, além do grito de metal contra pedra que anunciava que “o perto demais do muro” fora substituído por “bem contra ele”, mas, graças à manobra de Qhuinn, eles se colocaram numa posição paralela em vez de irem de frente.

Blay começou a correr na direção do show de luzes, e outros o acompanharam quando ele assim o fez, um verdadeiro bloco de pessoas em fila. Não havia como deter aquilo, mas eles bem podiam estar a postos quando as coisas...

Tum!

... terminassem.

O avião finalmente encontrou um objeto inanimado que não conseguiu superar: o barracão usado para guardar alguns dos equipamentos e produtos de jardinagem bem no fim do jardim.

Parada completa.

E tudo estava silencioso demais. Tudo o que Blay ouviu foi o suissssh dos coturnos trafegando pela neve, e sua respiração arfando no ar frio, e a pressa dos outros atrás de si.

Ele foi o primeiro a chegar à aeronave e se dirigiu à porta que, como por milagre, estava livre e não imprensada ao muro de concreto. Abrindo-a e sacando a lanterna de bolso, ele não sabia o que esperava encontrar. Fumaça? Gases? Sangue e partes de corpos?

Zsadist estava sentado rígido no assento de frente para os fundos, com o corpo amarrado, ambas as mãos travadas nos apoios de braços. O Irmão encarava à frente, sem piscar.

– Paramos de nos mexer? – perguntou rouco.

Ok, ao que tudo levava a crer, até mesmo um Irmão podia ficar em estado de choque.

– Sim, pararam – Blay não queria ser rude, mas agora que estava certo de que um deles sobrevivera, ele queria ver se Qhuinn...

O macho cambaleou para fora da cabine. No facho de luz da lanterna de Blay, ele parecia ter estado num brinquedo radical de um parque de diversões, com o cabelo todo para trás da testa queimada pela ação do vento, os olhos, um verde e outro azul, arregalados num rosto completamente pálido, cada membro do corpo trêmulo.

– Você está bem? – exclamou ele, como se os ouvidos estivessem surdos depois de expostos a muito barulho. – Z., diga alguma coisa...

– Estou aqui – respondeu o Irmão, fazendo uma careta de dor ao soltar uma das garras dos apoios de braço. – Estou bem, filho... Estou bem.

Qhuinn se agarrou ao que estava saliente e foi então que seus joelhos se dobraram. Ele apenas caiu entre as mãos estendidas, a voz entrecortada a ponto de ele mal conseguir falar.

– Eu só... queria que você... estivesse bem... Só queria... que você... ficasse bem, oh Deus... para a sua filha... Só queria que você ficasse ok...

Zsadist, o Irmão que nunca tocava em ninguém, esticou-se e pousou uma mão livre na cabeça inclinada de Qhuinn. Erguendo os olhos, ele disse suavemente:

– Não deixe ninguém entrar aqui. Dê um minuto a ele, ok?

Blay assentiu e se virou, bloqueando a entrada com o corpo.

– Eles estão bem, eles estão bem...

Enquanto falava com a multidão, um bom número de pessoas fitava-no como se ele fosse um enviado de Deus, mas Bella não estava entre eles. Ela estava...

– Zsadist! Zsaaaaadist!

O grito se transportou por todo o caminho do gramado quando, do alto da varanda, uma figura solitária partiu em disparada em meio à neve.

Muitas pessoas responderam a Bella, mas ele duvidava de que ela tivesse ouvido qualquer coisa.

– Zsaaaadist!

Quando ela escorregou já perto dele, Blay imediatamente se esticou para pegá-la, preocupado que ela acabasse se chocando com a lateral do avião. Ah, Deus, ele jamais se esqueceria da expressão no rosto dela: era mais terrível do que qualquer atrocidade que já vira, como se ela estivesse sendo esfolada viva, como se os braços e pernas estivessem amarrados, e a pele estivesse sendo arrancada de seu corpo.

Qhuinn saiu do avião.

– Ele está bem, ele está bem, prometo... Ele está bem.

Bella se imobilizou, como se aquela fosse a última coisa que ela esperasse ouvir.

– Minha nalla, entre – disse Z. no mesmo tom baixo que usara com Qhuinn. – Entre aqui.

A fêmea chegou a olhar para Blay como se precisasse de uma garantia para saber se aquilo que ouvia estava correto. Em resposta, ele simplesmente a levou pelo cotovelo e a ajudou a passar pela portinhola.

Depois, mais uma vez virou de frente para bloquear a passagem. Enquanto os sons da fêmea chorando livremente em sinal de alívio emanavam, ele viu Qhuinn passar as mãos sobre os olhos como se o macho estivesse se livrando de lágrimas.

– Caramba, filho, eu não sabia que você sabia pilotar – alguém disse.

Enquanto Qhuinn levantava a cabeça, aparentemente olhando de relance para o cenário, Blay fez o mesmo. Pense numa cena apocalíptica: havia um rastro em toda a extensão pela qual o avião passara, como se o dedo de Deus tivesse feito uma linha em todo o jardim.

– Na verdade... eu não sei – murmurou Qhuinn.

V. levou o cigarro aos lábios e estendeu a palma.

– Você trouxe o meu Irmão de volta em um só pedaço. Que se foda o resto.

– Verdade...

– Sim, graças a Deus...

– Diabos, é isso aí...

– Amém...

Um a um, a Irmandade se adiantou, cada um deles erguendo a mão da adaga. A procissão levou um tempo, mas ninguém parecia se importar com o frio.

Blay, por certo, não o sentia. A ponto de ficar paranoico...

Colocando a mão dentro da jaqueta, encontrou o tórax e se deu um beliscão bem forte.

Ai.

Fechando os olhos, fez uma prece silenciosa para que aquilo fosse mesmo verdade... e não o horror que poderia ter sido.

Toda aquela atenção estava deixando Qhuinn nervoso.

E o seu pequeno voo nem fora uma experiência tão zen assim. A queimadura no rosto por causa de todo aquele vento, as dores nos ombros e nas costas, as pernas trêmulas... Ele sentia como se ainda estivesse lá em cima, ainda rezando para nada em que acreditava existir, parado e para sempre no limiar.

Da morte.

Além disso, estava tremendamente envergonhado. Deixar-se abater daquele jeito diante de Z.? Ora essa... Que covarde.

– Importam-se se eu der uma olhada? – a doutora Jane disse ao se aproximar da multidão.

Sim, uma boa ideia. O objetivo de tudo aquilo foi Z. estar ferido tão gravemente que não conseguia se desmaterializar.

– Qhuinn? – disse a fêmea.

– Como disse? – ah, ele estava atrapalhando. – Ok, deixe-me sair da frente...

– Não, não o Zsadist. Você.

– Hum?

– Você está sangrando.

– Estou?

A médica virou a mão dele.

– Vê? – e, como era de se esperar, escorriam gotas vermelhas de suas palmas. – Você acabou de esfregar o rosto. Está com um corte feio na cabeça.

– Ah, ok – talvez por isso se sentisse tão aéreo? – E quanto a Z.?

– Manny já está lá dentro.

Hum. Devia ter perdido aquela parte.

– Quer dar uma olhada em mim aqui?

Ela deu uma risada de leve.

– Que tal levarmos você de volta para a casa? Se conseguir andar.

– Eu cuido dele...

– Pode deixar que eu levo...

– Eu levo...

– Já peguei...

O coro de voluntários foi uma surpresa, bem como todos os braços solícitos que apareceram de todos os lados: ele, literalmente, foi envolvido por braços fortes de lutadores, e todos quase a carregá-lo do lugar como se estivesse fazendo stage diving num show de rock.

Ele olhou para trás, esperando ver Blay, rezando para se deparar com os olhos dele, mesmo isso sendo loucura...

Mas Blay estava lá.

O lindo olhar azul estava logo ali, tão firme e certo ao sustentar o seu que ele quase desmoronou novamente. E ele retirou forças daquele olhar, assim como o fizera na época em que passavam tanto tempo juntos. A verdade era que ele desejava que fosse Blay a levá-lo de volta à mansão, mas ninguém se arriscava a dizer nada à Irmandade quando ela aparecia em massa assim. Além disso, sem dúvida o cara pensaria que estariam próximos demais.

Qhuinn se concentrou no caminho à frente. Puta... merda...

O jardim fora completamente dizimado, metade da cerca viva de três metros de altura próxima à casa fora cortada, todos os tipos de árvore arrancados, arbustos aparados, os restos da colisão espalhados por todos os lados como estilhaços de uma metralha.

Caramba, muito do entulho se parecia com partes de avião.

Ah, olhe ali um painel de aço.

– Esperem – disse, libertando-se. Inclinando-se, pegou um fragmento afiado do chão no lugar em que derretera a neve. Ele podia jurar que a coisa ainda estava quente. – Eu sinto muito mesmo... disse para ninguém em especial.

A voz do Rei rebumbou diante dele:

– Por manter o meu Irmão vivo?

Qhuinn levantou a cabeça. Wrath saíra da biblioteca com George de um lado e a rainha do outro. O macho parecia tão grande e forte quanto a mansão atrás dele: mesmo cego, ele se parecia com um super-herói com aqueles óculos escuros encobrindo os olhos.

– Eu destruí o seu jardim – murmurou Qhuinn ao se aproximar do macho real. – Quero dizer... mudei o paisagismo de um modo muito ruim.

– Isso dará a Fritz algo para fazer na primavera. Você sabe o quanto ele adora arrancar ervas daninhas.

– Esse é o último dos seus problemas. Tenho quase certeza de que vai precisar de uma escavadeira.

Wrath se adiantou, encontrando-o no meio da varanda.

– Esta é a segunda vez, filho.

– Que eu arruinei algo mecânico nas últimas 24 horas? É, eu sei... Da próxima vez, é provável que eu destrua um navio de guerra.

As sobrancelhas negras se abaixaram.

– Não é disso que estou falando.

Ok, aquilo tinha de terminar logo. Ele realmente detestava ter as atenções voltadas para si.

Deliberadamente ignorando a afirmação do Rei, ele disse:

– Bem, a boa notícia é, meu Rei, que não estou pensando numa terceira rodada. Por isso, acho que vamos estar seguros daqui por diante.

Houve um murmúrio coletivo de concordância.

– Posso levá-lo para a clínica agora? – a doutora Jane interrompeu.

Wrath sorriu, as presas refletindo o luar.

– Faça isso.

Graças a Deus... a noite chegava ao fim.

– Onde está Layla? – a médica perguntou quando entraram no calor da biblioteca. – Acho que você precisa se alimentar.

Merda.

Enquanto a legião em roupas de couro atrás deles concordava com a ideia, os olhos de Qhuinn reviraram. Uma crise por noite era mais do que o suficiente. A última coisa na qual ele estava interessado era explicar por que, exatamente, a Escolhida não poderia ser usada como fonte de sangue.

– Você parece tonto – alguém comentou.

– Acho que ele vai...

E essa foi a última coisa que ele ouviu por um tempo.


CONTINUA

CAPÍTULO 11

Blay baixou a cabeça com uma imprecação enquanto a porta da academia se fechava. E claro, daquele ângulo, tudo o que enxergava era a sua ereção.

O que não ajudou.

Levantando o olhar, viu a barra fixa, e soube que tinha de fazer alguma coisa. Ficar sentado ali meio embriagado com uma festa armada entre as pernas dificilmente era uma posição na qual queria ser flagrado. Se um Irmão como Rhage entrasse e visse aquilo? Blay teria de aguentar a gozação pelo resto da vida. Além disso, estava com roupas de ginástica, cercado por equipamentos, portanto, só lhe restava se ocupar, puxar um pouco de ferro, e esperar que o senhor Alegria afundasse em depressão por falta de atenção.

Um bom plano.

Mesmo.

Claro.

Quando, um pouco depois, olhou para o relógio, percebeu que uns quinze minutos haviam se passado e ele não estava mais próximo de movimentos repetitivos e construtivos, a menos que se considerasse a respiração.

Sua ereção tinha uma sugestão para esse tipo de objetivo.

E sua palma se preparou, indo para o meio das pernas, encontrando a rigidez...

Blay levantou do assento num pulo e seguiu para a porta. Chega de idiotice. Iria para o banheiro do vestiário na esperança de reciclar um pouco do álcool no seu sistema. Depois voltaria para a esteira e suaria o resto da bebida.

Depois disso, seria hora de ir para a cama, onde, se precisasse de uma válvula de descarga do tipo erótico, ele a encontraria no local apropriado.

O primeiro sinal de que seu novo plano poderia levá-lo para mais confusão surgiu quando empurrou a porta do vestiário: o som de água corrente significava que alguém estava atarefado com o ritual do xampu e sabonete. Ele estava tão concentrado em se chutar no traseiro, porém, que nem se preocupou com qualquer conclusão.

O que o teria feito parar, virar e encontrar outro banheiro o mais rápido possível.

Em vez disso, passou pelos armários e foi fazer o que tinha de ser feito. Só quando estava lavando as mãos que os cálculos começaram a ser computados.

Por vontade própria, a cabeça girou na direção dos chuveiros.

Você tem que sair, ele se ordenou.

Ao desligar a torneira, o rangido sutil pareceu mais alto que um grito, e ele se recusou a se olhar no espelho. Não queria enxergar o que havia em seu olhar.

Volte para a porta. Apenas volte para a porta. Apenas...

O fracasso do seu corpo em seguir esse simples comando não foi apenas um exercício de rebelião física. Era, tragicamente, um padrão.

E ele se lamentaria mais tarde.

No momento, contudo, quando ele tomou a decisão de se aproximar e se esgueirar ao redor da parede de azulejos para os chuveiros, onde se manteve praticamente escondido, e espiou o macho que não deveria... a tresloucada onda de emoção que era tão dolorosamente familiar, era um conjunto de roupas feito sob medida para a sua insanidade.

Qhuinn estava de frente para o chuveiro com uma mão contra a parede escorregadia, a cabeça morena pensa debaixo do jato. A água corria pelos ombros e pelos acres de pele flexível que recobria as costas poderosas... depois descia pelo traseiro magnífico... e seguia em frente, passando pelas pernas longas e musculosas.

Durante o último ano, o lutador encorpara muito. Qhuinn ficara grande depois da transição e crescera ainda mais durante os primeiros meses de alimentação intensa. Mas já fazia um tempo desde que Blay não o via sem roupas... e, caramba, a rotina de puxar ferro à qual ele se submetera mostrava os resultados em todos aqueles músculos definidos...

Abruptamente, Qhuinn mudou de posição, virando, jogando a cabeça para trás, fazendo a água correr pelo cabelo escuro, aquele corpo incrível arqueando.

Ele manteve o piercing no pênis.

E, puta merda, estava excitado...

Um orgasmo imediatamente ameaçou a cabeça do pênis de Blay, os testículos ficando duros como punhos cerrados.

Dando meia-volta, ele saiu do vestiário como se tivesse sido lançado de um canhão, empurrando a porta, saindo em disparada no corredor.

– Ai, merda... cacete... puta que o...

Andando o mais rápido que podia, ele tentou tirar aquela imagem da cabeça, lembrando-se de que tinha um amante, que tocara a vida, que era possível se autodestruir a respeito da mesma coisa apenas uma limitada quantidade de vezes e que depois se chegava ao fim.

Quando nada disso funcionou, ele repetiu o discurso que fizera para Qhuinn no guincho...

Inferno, onde ficava o escritório?

Parando, olhou ao redor. Ah, fantástico. Tomara a direção oposta daquela que pretendia ter tomado, e agora tinha passado pela clínica e estava na ala de salas de aula do centro de treinamento.

A quilômetros de distância da entrada do túnel.

– ... laceração tão profunda. Mas ele não teve nada disso.

A voz grave de Manny Manello precedeu o homem que vinha pelo corredor saindo da sala de exames. Um segundo depois, a doutora Jane apareceu bem ao lado dele, com um prontuário aberto na mão, a ponta do dedo descendo pela página.

Blay se enfiou na primeira porta que encontrou...

E se deparou com uma parede de escuridão. Apalpando para encontrar um interruptor, visto que estava abalado demais para acender qualquer luz mentalmente, encontrou um, apertou e ficou momentaneamente cego.

– Ai!

A dor aguda que subiu da canela para o cérebro lhe disse que ele colidira com algo grande.

Ah, uma escrivaninha.

Estava num daqueles miniescritórios satélites das salas de aula, e isso era uma notícia muito boa. Com o programa de treinamento ainda suspenso por causa dos ataques, não havia ninguém ali embaixo, e provavelmente ninguém teria motivo para estar naquela saleta vazia.

Ele poderia ter um pouco de privacidade por um tempo, o que era uma bênção. Deus bem sabia que ele não tentaria voltar para a mansão agora. Com a sua sorte, acabaria se deparando com Qhuinn, e a última coisa de que ele precisava era estar perto do cara.

Indo para trás da escrivaninha, sentou-se na cadeira de escritório acolchoada e levantou as pernas, esticando-as sobre a superfície que deveria conter um computador, uma planta, um pote cheio de canetas. Em vez disso, estava vazia, ainda que não estivesse empoeirada. Fritz jamais permitiria isso mesmo num cômodo desocupado.

Esfregando a parte dolorida na canela, ficou evidente que produziria um belo hematoma. Mas ao menos a dor o distraíra daquilo que o motivara até ali.

Entretanto, isso não durou muito.

Ao inclinar a cadeira para trás e fechar os olhos, sua mente retornou ao vestiário.

E ele pensou se a tortura nunca teria um fim.

Deus, seu pênis estava latejando.

Considerando suas opções, ele ordenou que as luzes se apagassem, fechou os olhos e comandou que seu cérebro se desligasse para ele poder dormir. Se, ao menos, ele conseguisse cochilar uma ou duas horas ali, acordaria mais sóbrio, flácido e pronto para enfrentar as pessoas novamente.

Bem, esse era um bom plano, e também o ambiente era perfeito. Escuro, fresquinho, bem tranquilo do modo como somente as instalações subterrâneas podem ser.

Ajeitando o corpo ainda mais para baixo na cadeira, cruzou os braços sobre o peito e se preparou para o trem do sono REM chegar à estação.

Quando isso não funcionou, ele começou a imaginar todo tipo de situação “de desligamento”, como aspiradores de pó sendo puxados da tomada e incêndios sendo apagados com água e telas de TV escurecendo...

Qhuinn estava tão altamente “transável” daquele jeito, o corpo macio e liso entalhado em músculos, o sexo grosso e orgulhoso. Toda aquela água o deixara escorregadio e sensual... e, santa Virgem Escriba, Blay teria dado praticamente qualquer coisa para se aproximar, se ajoelhar e tomar o sexo dele na boca, sentindo aquela cabeça com suas investidas penetrantes em sua língua ao entrar e sair...

O som desgostoso que emitiu ecoou, parecendo mais alto do que provavelmente fora.

Abrindo os olhos, tentou tirar da cabeça qualquer fantasia que envolvesse chupar. Mas a escuridão completa não ajudou; apenas formou a tela perfeita para ele continuar a projetar as imagens.

Praguejando, deu uma chance para o lance de ioga, com o qual você relaxa a tensão em cada parte do corpo, começando pela prega sempre presente entre as sobrancelhas, depois as cordas rígidas que desciam pelos ombros até a base do crânio. O peito também estava apertado, os peitorais contraídos sem nenhum motivo aparente, os bíceps afundando nos antebraços.

Em seguida, ele deveria focar no abdômen, depois nas nádegas e coxas, nos joelhos e panturrilhas... até a pontinha do pé.

Ele não chegou tão longe.

Pensando bem, tentar convencer sua excitação sobre qualquer tipo de maleabilidade demandaria poderes de persuasão que seu cérebro parcialmente embriagado não possuía.

Infelizmente, só havia um modo seguro de se livrar do senhor Alegria. E, no escuro, sozinho, com a garantia de que “ninguém nunca vai ficar sabendo”, por que ele não podia simplesmente cuidar daquilo, apagar o fogo e desmaiar? Não era muito diferente de despertar no meio da noite com uma ereção – porque Deus bem sabia que não havia nenhuma emoção envolvida. E ele estava alcoolizado, certo? Então isso era mais uma razão.

Repetiu a si mesmo que não estava traindo Saxton. Não estava com Qhuinn – e era Saxton quem ele queria...

Por um instante, ele continuou a pesar os prós e os contras, mas, no fim, sua mão tomou a decisão por ele. Antes de se dar conta, a palma se escondia debaixo do cós folgado e...

O sibilo que emitiu ao se segurar foi como um tiro no silêncio, assim como o rangido da cadeira quando a investida dos quadris empurrou os ombros contra o estofamento de couro. Quente e duro, grosso e longo, seu pênis clamava por atenção, mas a angulação estava errada, e não havia espaço para mexer dentro dos malditos shorts.

Por algum motivo, a ideia de se despir da cintura para baixo o fez se sentir sujo, mas seu senso de decoro foi para o espaço bem rápido quando tudo o que ele conseguia fazer era apertar. Elevando o traseiro, abaixou os shorts, depois percebeu que precisaria de alguma coisa para limpar a bagunça.

A camiseta foi retirada em seguida.

Nu no escuro, esticado da cadeira para a escrivaninha, ele se entregou, afastando as pernas, bombeando para cima e para baixo. A fricção fez seus olhos revirarem, morder o lábio inferior. Deus, as sensações eram tão boas, fluindo pelo corpo...

Droga.

Qhuinn estava na sua cabeça, Qhuinn estava na sua boca... Qhuinn estava dentro dele, os dois se movendo juntos...

Isso era errado.

Congelou. Parou de pronto.

– Merda.

Blay soltou o pênis, ainda que o simples processo de desistir da traição o fizesse cerrar os molares.

Abrindo os olhos, fitou a escuridão. O som da sua respiração entrando e saindo do peito o fez praguejar novamente. Assim como a necessidade pulsante de um orgasmo – ao qual ele se recusava a ceder.

Não daria continuidade àquilo...

Do nada, a imagem de Qhuinn arqueado debaixo do jato de água golpeou sua mente, assumindo o controle. Contrariando seu raciocínio, sua lealdade, seu senso de justiça... seu corpo se sobrecarregou, o orgasmo atingindo o pênis antes que ele o conseguisse detê-lo, antes que ele conseguisse negar, pois aquilo não era certo... antes que ele conseguisse dizer “De novo, não. Nunca mais”.

Ah, Deus. A sensação doce e penetrante, repetida uma vez depois da outra até ele se perguntar se aquilo um dia terminaria, mesmo ele não tendo ajudado.

Aquela reação física podia estar além do seu controle. Sua reação a ela não.

Quando ele se aquietou por fim, a respiração estava agitada e o frio na pele nua do peito sugeria que ele suara... e enquanto o corpo se recuperava, sua consciência retornava, e a ereção murchando era como um barômetro do seu humor.

Esticando-se, apalpou a mesa até encontrar a camiseta; depois esfregou-a e pressionou-a na junção das coxas.

O resto da confusão em que se metera não seria tão fácil de limpar.

Do outro lado da cidade, no 18o andar do Commodore, Trez estava sentado numa cadeira lustrosa de aço e couro que ficava de frente para a parede envidraçada dando para o rio Hudson. O sol do meio-dia brilhava mais por causa da neve fresca que caíra nas margens durante a noite.

– Sei que está aqui – disse secamente, sorvendo um gole da caneca de café.

Quando não houve resposta, ele rodopiou a cadeira em sua base giratória. Como esperado, iAm viera do quarto e estava sentado no sofá, com o iPad no colo, o indicador deslizando pela tela. Ele devia estar lendo a edição online do The New York Times, claro; era o que fazia toda manhã ao acordar.

– Então – disse Trez. – Manda ver.

A única resposta que teve foi uma das sobrancelhas de iAm se erguendo. Por, digamos, meio segundo.

O bastardo presunçoso nem olhava para ele.

– Deve ser um artigo fascinante. Sobre o que é? Irmãos teimosos?

Trez passou algum tempo segurando a caneca de café quente.

– iAm. Sério. Que bobagem.

Depois de um momento, o olhar escuro do irmão se ergueu. Os olhos que sustentaram os seus estavam, como sempre, completamente livres de emoção, dúvida e todas as asneiras com que os mortais lidavam. iAm era sensível de maneira sobrenatural... como uma cobra: atenta, inteligente, pronta a atacar, mas relutante em desperdiçar força até que fosse necessário.

– O que foi? – resmungou Trez.

– Seria redundante lhe dizer o que você já sabe.

– Faça isso por mim – ele sorveu mais um gole e se perguntou por que diabos estava se oferecendo para aquilo. – Vá em frente.

Os lábios de iAm se contraíram como sempre quando ele pensava numa resposta. Depois ele fechou a capa do iPad, cada uma das quatro seções descendo como pegadas na tela. Então ele pôs de lado o equipamento, descruzou as pernas e se inclinou para frente para equilibrar os cotovelos sobre os joelhos. Os bíceps dele eram tão grossos que as mangas da camisa pareciam que se rasgariam.

– Sua vida sexual está fora de controle – enquanto Trez revirava os olhos, o irmão continuou a falar. – Está transando com três ou quatro mulheres por noite, às vezes mais. Não se trata de alimentar-se, portanto não perca o nosso tempo tentando usar essa desculpa. Você está comprometendo os padrões profissionais do...

– Eu lido com bebidas e prostitutas. Não acha que isso parece um pouco intelectual...

iAm pegou o iPad e o balançou.

– Devo voltar a ler?

– Só estou dizendo...

– Você me pediu para falar. Se isto é um problema, a solução não é ficar na defensiva porque não gosta do que está ouvindo. A resposta é não me convidar a falar.

Trez cerrou os dentes. Veja, era esse o problema com o maldito irmão. Ele era sensato demais.

Levantando-se num rompante, atravessou a sala ampla. A cozinha era como todo o resto do apartamento: moderna, arejada e despojada. O que significava que se ele se servisse de um pouco mais de cafeína, conseguiria enxergar o irmão em sua visão periférica.

Caramba, às vezes ele detestava aquele lugar. A menos que estivesse no quarto com a porta fechada, não conseguia se livrar daqueles olhos.

– Devo ler ou falar? – perguntou iAm com tranquilidade, como se isso lhe fosse indiferente.

Caramba, como Trez queria falar para o cara enfiar o nariz no jornal, mas isso seria o mesmo que admitir uma derrota.

– Continue – Trez voltou à poltrona e se preparou para uma surra.

– Você não está se comportando de maneira profissional.

– Você come no Sal’s.

– O meu linguini com molho de mariscos não requer uma ordem judicial quando decido que na noite seguinte quero o Fra Diavolo.

Bem observado. E, de alguma forma, isso o fez se sentir quase violento.

– Sei o que está fazendo – disse iAm. – E por quê.

– Você não é virgem, portanto é claro que...

– Sei o que lhe enviaram.

Trez parou.

– Como?

– Quando você não atendeu, recebi um telefonema.

Trez empurrou o tapete debaixo dos pés e girou a cadeira para ficar de frente para o rio. Merda. Ele imaginou que acalmaria a situação com aquilo, do tipo, dar ao irmão uma sessão de sermão para que os dois pudessem voltar ao normal. Eles costumavam ser como pele e osso, e o bom relacionamento era essencial.

Ele conseguia lidar com quase tudo, exceto com um desentendimento com o irmão.

Infelizmente, os problemas sobre os quais se referiam ali eram a única coisa no “quase tudo”.

– Ignorar não vai fazer isso desaparecer, Trez.

Isso foi dito com uma certa medida de gentileza, como se o cara lamentasse por ele.

Enquanto Trez fitava o rio, imaginou estar em seu clube, com humanos cercando-o, o dinheiro trocando de mãos e as mulheres que trabalhavam lá fazendo o que faziam nos fundos. Legal. Normal. Controlado e confortável.

– Você tem responsabilidades.

Trez segurou a caneca com mais força.

– Não me apresentei como voluntário a eles.

– Não importa.

Ele virou com tanta rapidez que derramou café na coxa. Ignorou o ardor.

– Deveria. O cacete como deveria. Não sou um objeto inanimado que eles podem dar a quem quiserem. A coisa toda é uma tolice.

– Alguns considerariam uma honra.

– Bem, eu não. Não vou me amarrar àquela fêmea. Não me importo quem ela seja ou quem armou isso ou quão “importante” isso é para o s’Hisbe.

Trez se preparou para a enxurrada do “ah, sim, você vai”. Em vez disso, seu irmão pareceu triste, como se ele também não quisesse aquela maldição.

– Vou repetir, Trez. Isso não vai desaparecer num passe de mágica. E tentar sair dessa transando por aí? Não só é fútil, como potencialmente perigoso.

Trez esfregou o rosto.

– As mulheres são apenas humanas. Elas não têm importância – ele voltou a olhar para o rio. – E, francamente, se eu não fizer alguma coisa, vou enlouquecer. Um punhado de orgasmos tem que ser melhor do que isso, certo?

Enquanto o silêncio retornava, ele soube que o irmão discordava dele. Mas a prova de que sua vida estava na mais absoluta merda era que a conversa terminara ali.

iAm, pelo visto, não era o tipo de homem que chuta um cara caído.

Tanto faz. Ele não se importava com o que se esperava dele. Ele não voltaria para ser condenado a uma vida de serviços forçados.

Pouco se importava se era para a filha da rainha.


CAPÍTULO 12

Era fim de tarde quando Wrath chegou a um beco sem saída. Estava à mesa, sentado no trono do pai, os dedos percorrendo um relatório escrito em braille, quando, de repente, não conseguia ler nem mais uma maldita palavra do texto.

Empurrando os papéis para o lado, praguejou e arrancou os óculos escuros do rosto. Bem na hora em que estava para lançá-los contra a parede, sentiu um focinho no cotovelo.

Passando o braço ao redor do golden retriever, pressionou a mão no pelo macio que crescia nos flancos do cachorro.

– Você sempre sabe, não é?

George se aninhou, pressionando o peito na perna de Wrath – a dica de que “alguém” queria ser erguido.

Wrath se inclinou e apanhou todos os quarenta quilos nos braços. Enquanto acomodava as quatro patas, a juba de leão e o rabo volante para que tudo coubesse, ele concluiu que era bom que fosse tão alto. Coisas grandes ofereciam um colo grande.

E o ato de afagar todo aquele pelo o acalmou, mesmo que não lhe tranquilizasse a mente.

Seu pai fora um Rei notável, capaz de suportar inúmeras horas de cerimônias, noites infindáveis nos esboços de proclamações e convocações, meses e anos inteiros de protocolo e tradição. E isso antes de ser inundado pelo fluxo perene de reclamações que vinham de todos os lados: cartas, telefonemas, e-mails – ainda que, obviamente, os últimos estivessem fora de questão na época do seu pai.

Wrath, um dia, fora um lutador. Um excelente lutador.

Levantando a mão, sentiu a lateral do pescoço, o lugar por onde a bala entrara...

A batida à porta foi decidida, direta ao ponto, mais uma exigência do que uma solicitação respeitosa para entrar.

– Pode entrar, V. – respondeu.

O odor adstringente da hamamélis que precedeu o Irmão foi uma pista evidente de que alguém estava irritado. E, com toda certeza, sua voz grave tinha uma ponta de descontentamento.

– Finalmente terminei os testes de balística. Malditos fragmentos sempre tomam tempo demais.

– E? – Wrath o instigou.

– É uma combinação perfeita. Cem por cento – enquanto Vishous se sentava na cadeira oposta à mesa, a peça de mobília rangeu debaixo do peso. – Nós os pegamos.

Wrath exalou longamente, parte do zumbido impotente escorrendo de sua mente.

– Bom – ele correu a mão pela cabeça grande de George, descendo até as costelas. – Então, esta é a nossa munição.

– Exato. O que aconteceria de qualquer maneira agora toma uma forma legal.

A Irmandade soubera o tempo todo quem estivera por trás do tiro que quase matara o Rei no outono, e a tarefa de acabar com o Bando de Bastardos um a um era algo que eles encaravam muito mais como uma tarefa sagrada para a raça.

– Olha aqui, eu preciso ser franco, certo?

– E quando não foi? – Wrath argumentou.

– Por que diabos está atando as nossas mãos?

– Eu não sabia que estava fazendo isso.

– Com Tohr.

Wrath reposicionou George a fim de que o fluxo sanguíneo da perna esquerda não ficasse completamente bloqueado pelo peso do cão.

– Ele solicitou o decreto.

– Todos nós temos o direito de acabar com Xcor. O cretino é o prêmio que todos nós queremos. Isso não deveria estar restrito somente a ele.

– Ele pediu.

– Isso só faz com que seja muito mais difícil matar o bastardo. E se um de nós o encontrar, e Tohr não estiver conosco?

– Vocês o trazem para cá – houve uma longa pausa, um silêncio tenso. – Você me ouviu, V.? Traga aquele monte de merda para cá e deixe Tohr fazer o serviço.

– O objetivo é eliminar o Bando de Bastardos.

– E como isso o impede de fazer o seu trabalho? – quando não houve resposta, Wrath balançou a cabeça. – Tohr estava naquela van comigo, meu Irmão. Ele salvou a minha vida. Sem ele...

Enquanto a frase não foi finalizada, V. praguejou baixinho, como se estivesse fazendo os cálculos sobre aquela lembrança e chegando à conclusão de que o Irmão que teve que cortar o tubo plástico da sua garrafa CamelBak e executar uma traqueotomia no seu Rei num veículo em movimento a quilômetros de distância de qualquer ajuda médica deveria ter um tantinho só a mais de direito de matar o criminoso.

Wrath sorriu de leve.

– Que tal se, só porque eu sou um cara legal, eu deixar que cada um de vocês dê um soco nele antes que Tohr mate o filho da puta com as próprias mãos? Fechado?

V. riu.

– Isso alivia um pouco.

A batida que os interrompeu foi baixa e respeitosa, uma sequência de batidinhas leves que parecia sugerir que quem quer que fosse ficaria feliz em ser mandado embora, satisfeito em aguardar, ou esperava por uma audiência imediata, tudo ao mesmo tempo.

– Pois não? – chamou Wrath.

Uma colônia cara anunciou a chegada do advogado: Saxton sempre cheirava bem, e isso se encaixava em sua personalidade. Pelo que Wrath lembrava, além da excelente educação do cara e da qualidade do seu raciocínio, ele sempre se vestia de acordo com a moda como um filho bem nascido da glymera. Isso é, com perfeição.

Não que Wrath tivesse visto isso recentemente.

Ele recolocou os óculos num movimento rápido. Uma coisa era se expor na frente de V.; isso não aconteceria diante do macho jovem e eficiente que passava pela porta, não importando o quanto Sax fosse confiável e profissional.

– O que tem para mim? – perguntou Wrath enquanto o rabo de George se movia de um lado para o outro à guisa de um cumprimento.

Houve uma longa pausa.

– Talvez seja melhor eu voltar mais tarde?

– Você pode dizer qualquer coisa na frente do meu Irmão.

Outra pausa longa, durante a qual V. provavelmente encarava o advogado como se quisesse tirar um naco do traseiro do garoto bonito e bem-vestido por sugerir que havia uma divisa de informações que precisava ser respeitada.

– Mesmo que seja sobre a Irmandade? – Saxton perguntou com franqueza.

Wrath praticamente sentia os olhos gélidos de V. virando de direção. E, como esperado, o Irmão bradou:

– O que há conosco?

Quando Saxton permaneceu calado, Wrath deduziu sobre o que se tratava.

– Pode nos dar um minuto, V.?

– Está de brincadeira?

Wrath pegou George e o colocou no chão.

– Só preciso de cinco minutos.

– Tudo bem. Divirta-se, meu senhor – grasnou V. ao se levantar. – Merda.

Um instante depois, a porta bateu.

Saxton pigarreou.

– Eu poderia ter voltado depois.

– Se eu quisesse isso, eu teria lhe dito. Agora fale.

Uma inspiração profunda, seguida de uma expiração, como se o civil estivesse olhando para a saída e se perguntando se a partida intempestiva de V. poderia ser a causa de ele acordar morto mais tarde.

– Hum... a auditoria das Leis Antigas está completa, e eu posso lhe fornecer uma lista completa das seções que necessitam de emendas, além de reformulações propostas, e um cronograma para que as mudanças possam ser implementadas se...

– Sim ou não. É tudo o que me interessa.

A julgar pelo sussurro dos sapatos resvalando o tapete Aubusson, Wrath deduziu que o advogado estava andando de um lado para o outro. De cabeça, ele visualizou o escritório, desde as paredes azul-claras até as cornijas em arabesco e toda a mobília francesa antiga e frágil.

Saxton fazia mais sentido naquele cômodo do que Wrath com seu couro e camiseta justa.

Mas a lei prescrevia quem deveria ser o Rei.

– Você precisa começar a mexer os lábios, Saxton. Garanto que não será demitido se falar comigo francamente. Se tentar editar a verdade ou suavizá-la? Isso sim o fará cair, pouco importando com quem está dormindo.

Houve um novo pigarrear. E então, a voz aculturada chegou até ele diretamente do outro lado da escrivaninha.

– Sim, pode fazer o que desejar. No entanto, preocupo-me quanto ao momento.

– Por quê? Porque vai precisar de dois anos para fazer as emendas?

– O senhor está fazendo uma mudança fundamental na seção da sociedade que protege a espécie – e isso pode desestabilizar ainda mais o seu governo. Estou a par das pressões que tem sofrido, e seria negligente de minha parte se eu não apontasse o óbvio. Se o senhor alterar a prescrição sobre quem pode entrar na Irmandade da Adaga Negra, isso poderá provocar ainda mais abertura para dissensão... isso não se parece com nada que tenha tentado em seu reinado, e virá numa época de extremo distúrbio social.

Wrath inspirou profundamente pelo nariz – e não captou vibração negativa; não havia evidências de que o homem estivesse sendo fraudulento ou que não estivesse disposto a realizar o trabalho.

E ele tinha razão.

– Agradeço sua opinião – disse Wrath. – Mas não vou me curvar ante o passado. Recuso-me. E se eu tivesse dúvidas a respeito do macho em questão, eu não estaria fazendo isso.

– Como os outros Irmãos se sentem a esse respeito?

– Isso não é da sua conta – na verdade, não tocara no assunto com eles ainda. Afinal, por que se importar se não houvesse possibilidade de seguir adiante? Tohr e Beth eram os únicos que sabiam exatamente até onde ele estava preparado para levar aquilo. – Quanto tempo vai levar para que você torne isso oficial?

– Posso deixar tudo preparado para o alvorecer de amanhã, no máximo ao anoitecer.

– Faça isso – Wrath cerrou um punho e o bateu no braço do trono. – Faça isso agora.

– Como desejar, meu senhor.

Houve uma movimentação de tecidos finos, como se o macho estivesse se inclinando, e depois mais passos antes que uma das portas duplas se abrisse e se fechasse.

Wrath fitou o vazio produzido pelos seus olhos cegos.

Tempos perigosos por certo. E francamente, o sensato a fazer era ter mais Irmãos, e não pensar em motivos para não os ter, ainda que a contra-argumentação fosse: se aqueles três garotos estavam dispostos a lutar ao lado deles sem serem iniciados, por que se importar?

Foda-se. Era costume antigo querer honrar alguém que tivesse colocado a própria vida em risco só para que a dele pudesse continuar.

A real questão, contudo, tirando as leis... era: o que os outros pensariam?

Muito provavelmente seria isso a colocar um freio na questão mais do que qualquer detalhe legal.

Quando a noite caiu horas mais tarde, Qhuinn estava deitado nu na cama. Ele dormia, mas nem seu corpo nem sua mente estavam descansando.

Em seu sonho, ele tinha voltado para o acostamento da estrada, tendo saído a pé da casa da família. Carregava no ombro uma bolsa de lona, a proclamação de deserdação enfiada na cintura e uma carteira que, a não ser por onze dólares, estava vazia.

Tudo estava bem nítido. Nada fora modificado devido a um erro de reprodução de memória: desde a noite úmida de verão e o som dos seus New Rocks no pedregulho do acostamento... até o fato de ele ter ciência de que não havia nada em seu futuro.

Não tinha para onde ir. Nenhum lar para onde voltar.

Nenhuma perspectiva. Nem mesmo um passado.

Quando o carro parou atrás dele, ele sabia que só podia ser John ou Blay...

Mas, não. Não foram seus amigos. Era a morte na forma de quatro machos em mantos negros que saíram por quatro portas e convergiram ao seu redor.

Uma Guarda de Honra. Enviada pelo seu pai para surrá-lo por desonrar o nome da família.

Quanta ironia. Alguém haveria de deduzir que esfaquear um sociopata que tentara estuprar seu colega seria uma coisa boa. Mas não quando o agressor era o seu perfeito primo de primeiro grau.

Em câmera lenta, Qhuinn se colocou em postura de luta, preparado para enfrentar o ataque. Não havia olhos para encarar, nenhum rosto em que reparar – e não havia motivo para tal: o fato de os mantos esconderem suas identidades supostamente faria com que a pessoa que transgredira sentisse como se toda a sociedade desaprovasse as ações que ele executara.

Circundando, circundando, aproximando-se... No fim, conseguiriam derrubá-lo, mas ele os feriria no processo.

E foi o que fez.

Mas ele também teve razão: depois do que pareceram serem horas de defesa, ele acabou de costas, e foi nesse momento que a surra de fato aconteceu. Deitado no asfalto, ele cobriu a cabeça e o escroto o melhor que pôde, os golpes chovendo sobre ele, mantos negros voando como asas de corvos conforme era golpeado e surrado.

Depois de um tempo, não sentiu dor.

Iria morrer ali no acostamento da estrada...

– Pare! Não devemos matá-lo!

A voz do irmão atravessou tudo aquilo, atingindo-o de um modo como nenhum golpe podia mais...

Qhuinn despertou com um grito, levando as mãos ao rosto, as coxas se elevando para proteger a virilha...

Nenhum punho, nenhum taco vindo em sua direção.

E ele não estava no acostamento da estrada.

Fazendo com que as luzes se acendessem, olhou ao redor do quarto no qual vinha ficando desde que fora expulso da casa da própria família. Não combinava em nada com ele, o papel de parede de seda e os objetos eram algo que a sua mãe escolheria – ainda assim, naquele momento, a visão de toda aquela quinquilharia que outra pessoa escolhera, comprara e pendurara, fez com que ele se acalmasse.

Mesmo enquanto a lembrança pairava.

Deus, o som da voz do irmão.

Seu próprio irmão fizera parte da Guarda de Honra enviada atrás dele. Em retrospecto, isso enviava uma mensagem ainda mais poderosa para a glymera sobre a seriedade com que a família cuidava dos seus assuntos. E não era como se o cara não tivesse sido treinado. Ele aprendera artes marciais, embora, naturalmente, não lhe permitissem lutar. Inferno, mal permitiram que ele brigasse nos treinos.

Valioso demais para a linhagem. E se ele se ferisse? Aquele que seguiria os passos do pai e um dia se tornaria lídher do Conselho poderia ficar exposto.

Risco pequeno de um dano catastrófico para a família.

Qhuinn, por sua vez... Antes de ser renegado, fora colocado no programa de treinamento, talvez com a esperança de que sofresse algum ferimento mortal no campo de batalha e fizesse o favor a todos de morrer com honra.

Pare! Não devemos matá-lo!

Essa fora a última vez em que ouvira a voz do irmão. Pouco depois de Qhuinn ter sido expulso de casa, a Sociedade Redutora conduzira uma onda de ataques e matara a todos, o pai, a mãe, a irmã – e Luchas.

Todos morreram. E mesmo que uma parte sua os odiasse pelo que lhe fizeram, ele não desejaria esse tipo de morte a ninguém.

Qhuinn esfregou o rosto.

Hora de uma chuveirada. Era tudo o que ele sabia.

Pondo-se de pé, espreguiçou-se até as costas estalarem e verificou o celular. Uma mensagem de texto para o grupo anunciava que haveria uma reunião no escritório de Wrath; e uma espiada rápida no relógio lhe informou que ele tinha pouco tempo.

O que não era ruim. Ao passar para velocidade acelerada e se apressar para o banheiro, era um alívio se concentrar em coisas reais em vez de no passado maldito.

Não havia nada que ele pudesse fazer a respeito desse último a não ser amaldiçoá-lo. E ele bem sabia que já fizera isso o suficiente para doze vidas.

Hora de acordar, pensou.

Hora de ir trabalhar.


CAPÍTULO 13

Lá pela mesma hora em que Qhuinn tomava banho na casa principal, Blay despertou na cadeira daquele escritoriozinho no subterrâneo. A dor de cabeça que lhe serviu como despertador não se originava do vinho do Porto, mas pelo fato de ter pulado a Última Refeição. Mas, caramba, bem que ele queria que a bebida estivesse por trás do latejar em seu crânio. Ele poderia se valer disso para justificar o estado absolutamente deplorável com que fora parar ali.

Praguejando, abaixou as pernas da escrivaninha e se sentou melhor. O corpo estava duro como uma tábua, as dores brotavam em todo tipo de lugar enquanto ele fez as luzes se acenderem.

Merda. Ainda estava nu.

Mas até parece que os elfos recatados entrariam sorrateiramente ali para vesti-lo enquanto dormia... só para que ele não se lembrasse do que havia feito?

Vestindo os shorts, enfiou os pés nos tênis e se esticou para pegar a camiseta antes mesmo de se lembrar para o que a usara.

Ao olhar para as dobras amarrotadas do algodão e sentir os pontos endurecidos no tecido macio, deu-se conta de que nenhuma quantidade de racionalização mudaria o fato de ele ter traído Saxton. Contato físico com alguém era apenas uma das medidas da infidelidade – e, sim, isso era o maior divisor. O que fizera na noite anterior, porém, fora uma violação do relacionamento deles, mesmo que o orgasmo tivesse sido causado pelo cérebro e não pela sua mão.

Pondo-se de pé, sentiu-se meio morto ao se encaminhar para a porta e entreabri-la. Se houvesse alguém nas imediações, ele voltaria para dentro e esperaria até que o corredor estivesse vazio. Ele absolutamente não queria ser apanhado saindo daquele escritório vazio, meio despido e com aquela aparência lastimável. O lado bom de viver no complexo era que você estava sempre cercado por gente que se preocupava com você; o lado ruim era que todos tinham olhos e ouvidos, e nenhum assunto particular era totalmente particular.

Quando não ouviu nem vozes nem passos, explodiu para o corredor e começou a caminhar numa passada rápida, como se estivesse estado em algum lugar com determinado propósito e estivesse se dirigindo para o quarto com uma finalidade igualmente importante. Teve a sensação de ter se safado ao chegar ao túnel. Claro, não costumava andar por aí sem camisa, mas muitos dos outros Irmãos e machos faziam isso quando saíam da academia, não era nada extraordinário.

E ele realmente sentiu como se tivesse ganhado na loteria quando saiu de baixo da grande escadaria da mansão e foi recebido por mais uma bela dose de corredor vazio. O único problema era que, pelo som da louça sendo levada da sala de jantar, devia ser mais tarde do que ele imaginava. Obviamente, perdera a Primeira Refeição – notícia ruim para a sua cabeça, mas, pelo menos, ele tinha umas barras de proteína no quarto.

Sua sorte chegou ao fim quando ele subiu as escadas para o segundo andar. Parados diante das portas fechadas do escritório de Wrath, Qhuinn e John estavam vestidos para o combate, com as armas a postos e os corpos cobertos por couro preto.

De jeito nenhum ele olharia para Qhuinn. Só o fato de tê-lo em sua visão periférica era ruim o bastante.

– O que está acontecendo? – perguntou.

Temos uma reunião agora, sinalizou John. Ou, pelo menos, era para termos. Não recebeu a mensagem?

Merda, ele não fazia ideia de onde estava seu telefone. No quarto? Tomara.

– Vou tomar uma chuveirada e volto já.

Talvez tenha de se apressar. Os Irmãos estão a portas fechadas há meia hora. Não sei o que está acontecendo.

Ao lado dele, Qhuinn se balançava para frente e para trás nos coturnos, a oscilação do peso fazendo parecer que estava andando, mesmo ele não indo a parte alguma.

– Cinco minutos – murmurou Blay. – Só preciso disso.

Ele esperava que a Irmandade abrisse as portas até lá, a última coisa que queria era ficar sem fazer nada ao lado de Qhuinn.

Praguejando ao andar, Blay correu até o quarto. Normalmente, ele demorava para se aprontar, ainda mais se Sax estivesse a fim, mas dessa vez seria entrar, chuveiro e...

Ao abrir a porta, parou.

Mas o quê...?

Malas. Na cama. Tantas que ele não conseguia ver mais do que alguns centímetros do edredom. E ele sabia a quem elas pertenciam. Guccis combinando, brancas com o logo azul-marinho e as alças de tecido em azul e vermelho, porque, segundo Saxton, o tradicional marrom sobre marrom com vermelho e verde eram “óbvios demais”.

Blay fechou a porta em silêncio. Seu primeiro pensamento foi “puta merda, Saxton sabe”. De algum modo, ele soube o que aconteceu no centro de treinamento.

O macho em questão apareceu do banheiro com os braços cheios de frascos de xampu, condicionador e outros produtos. E parou no ato.

– Oi – disse Blay. – Vai sair de férias?

Depois de um momento tenso, Saxton se aproximou, colocou os produtos numa mala e se virou. Como sempre, seu lindo cabelo loiro estava afastado da testa em ondas espessas. E ele estava perfeitamente bem vestido, em outro terno de tweed com colete combinando, uma gravata vermelha e um lencinho de bolso também vermelho só para dar o toque certo de cor.

– Acho que você sabe o que vou dizer – Saxton sorriu triste. – Porque você não é nenhum idiota, assim como eu não sou.

Blay foi se sentar na cama, mas teve que mudar de ideia, pois não havia onde se acomodar. Acabou na chaise-longue e, com uma inclinação discreta para o lado, enfiou a camiseta suja debaixo do tecido do saiote. Longe dos olhos. Era o mínimo que podia fazer.

Deus, aquilo estaria mesmo acontecendo?

– Não quero que você vá – Blay se ouviu dizendo com voz grave.

– Acredito nisso.

Blay olhou para além das malas.

– Por que agora?

Pensou nos dois no dia anterior, debaixo dos lençóis, fazendo sexo selvagem. Estiveram tão próximos... Ainda que, sendo brutalmente honesto, talvez aquilo tivesse sido apenas físico.

Retire o talvez.

– Venho enganando a mim mesmo – Saxton balançou a cabeça. – Pensei que poderia continuar com você assim, mas não posso. Isto está me matando.

Blay fechou os olhos.

– Sei que tenho ficado muito tempo fora...

– Não é disso que estou falando.

Enquanto Qhuinn tomava todo o espaço entre eles, Blay quis gritar. Mas que bem aquilo faria? Parecia que ele e Saxton chegaram ao mesmo beco sem saída no mesmo momento lamentável.

Seu amante o fitou por cima da bagagem.

– Acabei aquela missão para Wrath. É uma boa hora para terminarmos, para eu me mudar e encontrar outro emprego...

– Espere, quer dizer que está abandonando o Rei também? – Blay franziu o rosto. – Não importa como estejam as coisas entre nós, você precisa continuar trabalhando para ele. Isso é mais importante do que o nosso relacionamento.

O olhar de Saxton abaixou.

– Suspeito que isso seja mais fácil para você dizer.

– Não é verdade – rebateu Blay inflexível. – Deus, eu... sinto muito.

– Você não fez nada errado. Você tem que saber que não sinto raiva de você, nem amargura. Você sempre foi honesto, e eu sempre soube que terminaria assim entre nós. Eu só não sabia quando. Não sabia... até chegar ao fim. Que é agora.

Ai, droga.

Mesmo sabendo que Saxton estava certo, Blay sentiu uma necessidade compulsiva de lutar por ele.

– Preste atenção, tenho estado distraído na última semana, e eu sinto muito. Mas as coisas vão acabar se ajeitando, e você e eu vamos voltar ao normal...

– Eu te amo.

Blay fechou a boca de súbito.

– Por isso, veja – Saxton continuou rouco –, não foi você quem mudou. Fui eu... e eu sinto que as minhas emoções tolas nos distanciaram.

Blay se colocou de pé e avançou pelo carpete de bela textura até o outro macho.

Ao chegar ao seu destino, ficou aliviado a ponto de sentir lágrimas nos olhos por Saxton aceitar o seu abraço. Ao segurar o seu primeiro amante verdadeiro contra si, sentindo a diferença familiar em suas alturas e o perfume maravilhoso da sua colônia, uma parte dele queria discutir aquele rompimento até que os dois desistissem e continuassem tentando.

Mas não seria justo.

Como Saxton, ele tivera a vaga noção de que as coisas terminariam em algum momento. E, tal qual seu amante, também se surpreendia por ser agora.

O que, claro, não alterava o resultado.

Saxton recuou um passo.

– Nunca tive a intenção de me envolver emocionalmente.

– Desculpe... Eu sinto muito – merda, isso era tudo o que saía da sua boca. – Eu daria tudo para que fosse diferente. Eu queria... ser diferente.

– Eu sei – Saxton esticou a mão e resvalou-a na lateral do rosto dele. – Eu perdoo você... e você tem que se perdoar.

Ele não tinha certeza se poderia fazer isso; ainda mais agora, nesse momento, e como sempre, quando uma ligação emocional que não queria, e que não poderia mudar, mais uma vez o impedia de ter algo que desejava.

Qhuinn era uma tremenda maldição para ele, era isso o que o cara era.

Cerca de 25 quilômetros ao sul da montanha do complexo da Irmandade, Assail despertou em sua cama redonda na suíte principal da sua mansão às margens do Hudson. Acima dele, painéis espelhados cobriam o teto e seu corpo nu estava iluminado com o brilho suave das luzes instaladas ao redor da base do colchão. O quarto octogonal estava escuro fora isso, as cortinas fechadas, a noite escondida.

Ao pensar em todo o vidro da casa, sabia que muitos vampiros considerariam as acomodações inadequadas. Muitos evitariam a mansão por completo.

Risco demais durante o dia.

Assail, contudo, nunca se sentira preso a convenções, e o perigo inerente de morar numa construção com tanto acesso à luz era algo que podia ser administrado, e não evitado.

Levantando-se, foi para a escrivaninha, ligou o computador e acessou o sistema de segurança que monitorava não apenas a casa, mas toda a propriedade. Alertas soaram várias vezes nas primeiras horas do dia, avisos não de ataques iminentes, mas de algum tipo de atividade que fora detectado pelo programa de filtragem do sistema de segurança.

Na verdade, faltava-lhe a energia para se preocupar demais, um sinal indesejável de que precisava se alimentar...

Assail franziu o cenho ao receber o relatório.

Ora, se aquilo não era interessante.

E era exatamente por isso que ele instalara todo aquele equipamento.

Nas imagens produzidas pelas câmeras de trás, ele viu uma figura vestida com uma roupa camuflada de neve passeando em esquis de cross-country pelo meio da floresta, aproximando-se da casa pelo norte. Quem quer que fosse, permaneceu escondido entre os pinheiros grande parte do tempo, e vigiou a casa por diversos ângulos por aproximadamente dezenove minutos... antes de atravessar o limite de pinheiros a oeste, atravessando a propriedade vizinha, e descendo pelo gelo. Duzentos metros mais à frente, o homem parou, pegou os binóculos novamente, e encarou a casa de Assail. Depois, circundou a península que se projetava do rio, voltou a entrar na floresta e desapareceu.

Aproximando-se da tela, Assail repetiu a gravação, aumentando o zoom para identificar a expressão facial, se possível. Mas não foi. A cabeça estava coberta por uma máscara de esqui, com abertura apenas para os olhos, o nariz e a boca. Junto à parca e às calças de esqui, o homem estava coberto dos pés à cabeça.

Recostando-se, Assail sorriu para si mesmo, as presas formigando numa reação territorial.

Só existiam dois grupos que poderiam se interessar em suas atividades, e a julgar pela luz solar que reinara durante aquele reconhecimento, ficou claro que a curiosidade não se originara da Irmandade: Wrath jamais usaria humanos para qualquer outra coisa que não fosse uma fonte derradeira de alimentação, e nenhum vampiro suportaria aquela intensidade de luz solar sem se incendiar.

Restava, então, alguém do mundo humano. E só havia um homem com interesse e recursos para tentar atacar a ele e ao seu território.

– Entre – disse ele pouco antes de uma batida soar à porta.

Enquanto um par de machos entrava, ele não se deu ao trabalho de desviar a vista da tela do computador.

– Como dormiram?

Uma voz conhecida e grave respondeu:

– Como os mortos.

– Que bom para você. Mudança de fuso horário pode ser uma inconveniência, pelo que sei. A propósito, tivemos um visitante esta manhã.

Assail inclinou-se para um lado a fim de que seus dois associados vissem a filmagem.

Era estranho ter gente morando com ele, mas teria que se acostumar à presença deles. Quando chegara ao Novo Mundo, fora uma viagem solitária, e ele tivera a intenção de manter essa situação por inúmeros motivos. O sucesso no ramo escolhido, todavia, exigira que ele chamasse uma retaguarda – e as únicas pessoas nas quais poderia confiar parcialmente eram da família.

E aqueles dois ofereciam um benefício sem igual.

Seus dois primos eram uma raridade na espécie vampiresca: eram gêmeos idênticos. Quando totalmente vestidos, o único modo de distingui-los era por uma única pinta atrás do lóbulo da orelha; fora isso, desde as vozes até os olhos negros e desconfiados, incluindo os corpos musculosos, eram o reflexo perfeito um do outro.

– Vou sair – anunciou Assail. – Se o nosso visitante aparecer novamente, sejam hospitaleiros, sim?

Ehric, o mais velho por questão de minutos, olhou de relance, o rosto destacado pela iluminação da base da cama. Tanta maldade naquela bela combinação de feições... a ponto de alguém quase sentir pena do intruso.

– Será um prazer, eu garanto.

– Mantenha-o vivo.

– Claro.

– Essa é uma divisória um tanto sutil que vocês dois às vezes gostaram de apreciar.

– Confie em mim.

– Não é você quem me preocupa – Assail olhou para o outro. – Entendeu?

O gêmeo de Ehric permaneceu calado, apesar de concordar com a cabeça uma vez.

Era precisamente por essa reação contrariada que Assail preferiria ter mantido a sua vida nova simples. Mas era impossível estar em mais de um lugar ao mesmo tempo. E aquela violação de privacidade era a prova de que ele não poderia fazer tudo sozinho.

– Sabem como me encontrar – disse antes de dispensá-los do quarto.

Vinte minutos mais tarde, saiu da casa de banho tomado, vestido e atrás do volante do seu Range Rover blindado.

O centro da cidade de Caldwell à noite era belo de longe, especialmente ao passar pela ponte de acesso. Só depois que ele penetrou no sistema viário que o esgoto da cidade ficou evidente: os becos com neve suja acumulada, as latas de lixo transbordando e os humanos sem-teto descartados, meio congelados, contavam a triste verdade sobre a desprotegida municipalidade.

Seu local de trabalho, evidentemente.

Ao chegar à Galeria de Arte Benloise, estacionou nos fundos, em uma das vagas que era paralela à construção atrás do estabelecimento. Ao sair do carro, o vento frio açoitou o casaco de pelo de camelo e ele teve que segurar as duas pontas juntas ao atravessar a calçada, aproximando-se da porta de tamanho industrial.

Não teve que bater. Ricardo Benloise tinha muitas pessoas trabalhando para ele e nem todos eram do tipo que se associava aos negociantes das artes. Um macho humano do tamanho de um parque de diversões abriu a porta e ficou de lado.

– Ele o está aguardando?

– Não, não está.

Disneylândia assentiu.

– Quer esperar na galeria?

– Seria bom.

– Quer beber alguma coisa?

– Não, obrigado.

Ao atravessarem a parte do escritório e seguirem para o espaço de exibições, a deferência agora concedida a Assail era algo novo, merecido tanto pelos enormes pedidos de mercadoria que ele vinha fazendo quanto pelo sangue derramado de incontáveis humanos. Graças a ele, a taxa de suicídio entre os machos desprivilegiados entre os 18 e os 29 anos com registros criminais em drogas aumentou como nunca na cidade, chegando ao noticiário nacional.

Imagine só.

Enquanto âncoras de TV e repórteres tentavam entender essas tragédias, ele simplesmente continuava a expandir os negócios usando qualquer meio necessário. As mentes humanas eram tremendamente sugestionáveis; praticamente nenhum esforço era necessário para fazer com que os traficantes intermediários levassem as pistolas às têmporas e apertassem os gatilhos. E, do mesmo modo como a natureza abominava um vácuo, o mesmo acontecia com a demanda de suplementos químicos.

Assail tinha as drogas. Os viciados tinham o dinheiro.

O sistema econômico mais do que sobrevivia à reorganização forçada.

– Vou subir – disse o homem na porta camuflada – para avisar da sua chegada.

– Leve o tempo de que precisar.

Deixado só, Assail passeou pelo espaço aberto de teto alto, entrelaçando as mãos às costas. De vez em quando, parava para ver a “arte” pendurada nas paredes e nas divisórias e foi lembrado do motivo pelo qual os humanos deviam ser erradicados, preferencialmente com métodos lentos e dolorosos.

Pratos de papel usados colados a tábuas de compensados baratas recobertas com citações de comerciais de TV escritas à mão? Um autorretrato feito com creme dental? E igualmente ofensivas eram as placas enaltecedoras ao lado das porcarias declarando que aquela tolice era a nova onda do Expressionismo Americano.

Tamanha explicação sobre a cultura de tantas maneiras.

– Ele pode recebê-lo agora.

Assail sorriu para si mesmo e se virou.

– Quanta gentileza.

Ao passar pela porta escondida e subir até o terceiro andar, Assail não condenou seu fornecedor por ser desconfiado e querer mais informações a respeito do seu maior cliente. Afinal, num espaço muito curto de tempo, o tráfico de drogas da cidade fora remanejado, redefinido e controlado por um completo desconhecido.

Há que se respeitar a posição do homem.

Mas as investigações terminariam ali.

No topo das escadas, outros dois homenzarrões estavam diante da porta, tão sólidos quanto vigas de sustentação. Assim como o segurança do primeiro andar, logo abriram a porta e acenaram em sua direção respeitosamente.

Do lado oposto, Benloise estava sentado no fundo de uma sala estreita com janelas em um dos lados e apenas três peças de mobiliário: sua escrivaninha elevada, que não passava de uma prancha grossa de teca com um abajur moderno e um cinzeiro por cima; a cadeira dele, com um estilo moderno; e um segundo assento no lado oposto para apenas um visitante.

O homem em si era como o seu ambiente: limpo, oficioso e despojado em seu modo de pensar. Na verdade, ele provou que, por mais ilícito que fosse o tráfico de drogas, os princípios de gerenciamento e as habilidades interpessoais de um CEO importavam muito se você quisesse faturar milhões com isso e manter o dinheiro.

– Assail. Como vai? – o homem baixinho se levantou e esticou a mão. – É um prazer inesperado.

Assail atravessou a sala, apertou o que lhe foi estendido e não esperou pelo convite para se sentar.

– O que posso fazer por você? – perguntou Benloise ao voltar a se sentar.

Assail pegou um charuto cubano de dentro do bolso. Cortando a ponta, inclinou-se para frente e colocou a ponta desprezada sobre o tampo da mesa.

Enquanto Benloise franzia o cenho como se alguém tivesse defecado em sua cama, Assail sorriu o suficiente para exibir rapidamente suas presas.

– Trata-se do que eu posso fazer por você.

– Ah.

– Sempre fui um homem reservado, levando uma vida privada por livre escolha – guardou o cortador e pegou um isqueiro de ouro. Acendendo a chama, inclinou-se e tragou até o charuto sustentar a ponta queimada. – Contudo, mais importante do que isso, sou um homem de negócios envolvido num ramo perigoso. Dessa forma, considero qualquer invasão na minha propriedade ou intrusão no meu anonimato como um ato direto de agressão.

Benloise sorriu com suavidade e se recostou na cadeira em forma de trono.

– Respeito-o por isso, claro, todavia estou confuso quanto aos motivos de você sentir a necessidade de explicitar isso para mim.

– Você e eu entramos num relacionamento mutuamente benéfico, e é meu desejo continuar com essa associação – Assail bafejou o charuto, soltando uma nuvem de fumaça azul francês. – Portanto, quero lhe mostrar o devido respeito e deixar isso claro antes de agir, pois se eu descobrir qualquer pessoa na minha propriedade a quem eu não tenha convidado, eu não só o erradicarei, como também descobrirei a origem das investigações – e bafejou novamente – e farei o que for necessário para defender a minha privacidade. Estou sendo bem claro?

As sobrancelhas de Benloise se abaixaram, os olhos escuros se zangando.

– Estou? – murmurou Assail.

Havia, obviamente, apenas uma resposta. Levando-se em consideração que o humano desejava viver mais do que até aquele final de semana.

– Sabe, você me lembra o seu predecessor – Benloise disse num sotaque britânico. – Conheceu o Reverendo?

– Sim, frequentamos alguns dos mesmos círculos.

– Ele foi assassinado de modo bem violento. Cerca de um ano atrás, não? A boate dele foi explodida.

– Acidentes acontecem.

– Normalmente em casa, pelo que ouvi dizer.

– Algo de que deve sempre se lembrar.

Enquanto Assail sustentava aquele olhar, Benloise desviou o dele primeiro. Pigarreando, o maior importador de drogas da costa leste passou a palma da mão sobre o tampo lustroso da mesa, como se sentisse os veios da madeira.

– Os nossos negócios – disse Benloise – têm um delicado ecossistema que, por conta de toda a sua robustez financeira, deve ser mantido cuidadosamente. A estabilidade é rara e muito desejável para homens como você e eu.

– Concordo. E para que isso aconteça, pretendo retornar à conclusão da noite com o meu pagamento desse ínterim, conforme planejado. Como sempre, venho a você em boa fé, e não lhe dou motivos para duvidar das minhas intenções.

Benloise lhe ofereceu outro sorriso suave.

– Você faz parecer como se eu estivesse por trás – ele moveu a mão num gesto aleatório de dispensa no ar – do que quer que o tenha incomodado.

Inclinando-se para frente, Assail deixou o queixo cair e o encarou.

– Não estou incomodado. Ainda.

Uma das mãos de Benloise sub-repticiamente saiu do campo de visão. Uma fração de segundo depois, Assail ouviu a porta do outro lado do cômodo se abrir.

Mantendo a voz baixa, Assail disse:

– Isto foi uma cortesia para você. Da próxima vez que eu encontrar alguém na minha propriedade, quer você o tenha enviado ou não, não demonstrarei nem metade dessa educação.

Dito isso, levantou-se e enterrou o charuto no tampo da mesa.

– Desejo-lhe uma boa noite – disse antes de sair.


CAPÍTULO 14

Aquilo sim é que era começar tarde.

Enquanto Qhuinn se desmaterializava para longe da mansão, ele custava a acreditar que já fosse dez da noite e eles estavam apenas começando. Pensando bem, a Irmandade ficou enfiada no escritório de Wrath pelo que pareceu uma eternidade e quando ele e John, por fim, foram admitidos, o anúncio de V. de que a prova contra o Bando de Bastardos era concreta levou a mais uma bela meia hora de excomunhão de Xcor e dos comparsas.

Diferentes usos criativos para a palavra arregaçar, bem como excelentes sugestões de onde se enfiar objetos inanimados.

Ele jamais pensara em fazer aquilo com um rastelo, por exemplo. Divertido. Muito divertido.

E Blay perdera aquilo tudo.

Retomando forma numa área florestal a sudoeste do complexo, Qhuinn evitou pensar em que tipo de interferências o pudesse ter retardado, ainda que a verdade fosse que o lutador subira para o quarto e não voltara. E por mais que a maioria dos acidentes acontecesse em casa, seria um bom palpite deduzir que ele não escorregara e caíra.

A menos que Saxton estivesse brincando com o tapete no piso de mármore do banheiro.

Sentindo como se quisesse se estapear, vasculhou o cenário coberto de neve enquanto John, Rhage e Z. surgiam ao seu lado. As coordenadas daquela localização foram encontradas nos telefones dos ladrões de carro da noite anterior, a propriedade aparentemente abandonada cerca de quinze a vinte quilômetros além do local em que ele encontrara o Hummer roubado.

– Que diabos é isso?

Enquanto alguém falava, ele olhou por sobre o ombro. “Que diabos” estava certo: assomando-se atrás deles estava uma construção tão alta quanto um campanário de igreja e tão simples quanto uma lata de lixo reciclável.

– Hangar de aviões – anunciou Zsadist ao começar a andar naquela direção. – Só pode ser.

Qhuinn o seguiu, tomando a retaguarda caso alguém resolvesse fazer uma surpresa.

Do nada, Blay apareceu, todo coberto em couro e tão armado quanto o resto deles. Em reação, os pés de Qhuinn diminuíram de velocidade, depois pararam na neve, em boa parte porque não queria tropeçar e parecer um tolo.

Puxa, ele parecia bem sério. Haveria problemas no paraíso?

Ainda que não existisse nenhum contato visual entre eles, Qhuinn se sentiu compelido a dizer algo:

– O que...

Não concluiu a frase. Por que se importar? O cara passou por ele como se ele nem estivesse ali.

– Estou bem – murmurou Qhuinn, voltando a avançar pela neve compacta. – Obrigado por perguntar. Ah, está tendo problemas com Saxton? Mesmo? Que tal sairmos para tomar um drinque e conversar a respeito? É? Perfeito. Posso ser a sua menta pós-jantar e...

Ele interrompeu o monólogo fantasioso quando a brisa mudou de direção e seu nariz captou algo adocicado e desagradável.

Todos sacaram as armas e se concentraram no hangar.

– Estamos a favor do vento – observou Rhage –, portanto, a bagunça aí dentro deve ser incrível.

Os cinco se aproximaram da construção com cautela, espalhando-se e vasculhando o ambiente iluminado pelo luar à procura de algo que se movesse.

O hangar tinha duas entradas, uma bipartida e grande o bastante para deixar passar a envergadura de uma asa, e a outra supostamente para pessoas, que, em comparação, parecia do tamanho de uma Barbie. E Rhage tinha razão: apesar de o vento gélido os atingir pelas costas, o cheiro era forte o bastante para aguçar as narinas, e não no bom sentido.

Caramba, o frio costumava aplacar o fedor.

Comunicando-se por gestos, dividiram-se em dois grupos, com ele e John ficando num dos lados das portas duplas gigantes, e Rhage, Blay e Z. na entrada menor.

Rhage, como era de se esperar, tentou a maçaneta enquanto todos se preparavam para um confronto. Se houvesse o equivalente a um time de futebol de redutores ali, fazia sentido enviar o Irmão primeiro, porque ele tinha o tipo de retaguarda que ninguém tinha: a besta amava assassinos, e não no sentido de ter um relacionamento com eles.

Quem tinha falado em menta mesmo?

Hollywood levou a mão acima da cabeça. Três... dois... um...

O Irmão penetrou no silêncio absoluto, empurrando a porta e entrando sorrateiramente. Z. foi em seguida e Blay o acompanhou.

Qhuinn sentiu um segundo de puro terror quando o macho saltou para o desconhecido com nada além de um par de pistolas .40 para protegê-lo. Deus, a ideia de que Blay pudesse morrer naquela noite, bem na sua frente, naquela missão comum, fez com que ele quisesse parar com toda aquela tolice de defender a raça e transformar o lutador num bibliotecário. Ou modelo de mãos. Ou cabeleireiro...

O assobio que surgiu menos de sessenta segundos depois foi uma dádiva de Deus. O sinal de Z. de que estava tudo bem para que ele e John se reposicionassem, indo para a lateral da agora porta aberta e passando por...

Ok. Uau.

Falando em fedor. Nota máxima...

Os três que entraram antes ligaram as lanternas, e os fachos de luz cortaram o espaço cavernoso, atravessando a escuridão, iluminando o que a princípio não parecia ser nada além de uma camada de gelo negro. A não ser pelo fato de não ser preto e de não estar congelado. Era sangue humano engrossado – uns mil litros da coisa. Misturado com uma boa quantidade de Ômega.

O hangar foi o local de uma iniciação em massa, numa escala que tornava o que acontecia há um tempo naquela casa de campo nada mais do que uma brincadeira de criança.

– Acho que os garotos que você castigou estavam vindo para uma festa e tanto – comentou Rhage.

– Bem observado – murmurou Z.

Enquanto fachos de luz destacavam um velho e decrépito avião no fundo, e absolutamente nada mais, Z. balançou a cabeça.

– Vamos vasculhar o exterior. Não há nada aqui.

Visto que o chalé não prometia muito pelo lado de fora, apenas uma típica cabana de caçador/pescador no meio da floresta, o Sr. C. sentiu-se tentado a ignorar a maldita coisa. A perfeição tinha as suas virtudes, contudo, e a localização do chalé, cerca de uns dois ou três quilômetros para dentro daquele pedaço de terra, sugeria que ele podia ter sido usado como um quartel-general a certa altura.

Levando-se tudo em consideração, teria sido mais inteligente verificar a propriedade antes de ele ter usado o hangar para a maior iniciação da história da Sociedade Redutora. Mas as prioridades se apresentaram daquele modo. Primeiro, ele teve que se colocar no controle; segundo, de justificar a promoção; e terceiro, de lidar com todos aqueles novos redutores.

E isso significava que ele precisava de recursos. Rápido.

Seguindo a cerimônia grande e suja de Ômega, e o período nauseante que durou algumas horas depois, o Sr. C. ordenara que os novos recrutas subissem num ônibus escolar que ele roubara de uma loja de veículos usados uma semana antes. Devido à exaustão e ao desconforto físico em que se encontravam, portaram-se como garotinhos obedientes, entrando e sentando-se dois a dois como se estivessem numa porra de uma Arca de Noé.

Dali, ele mesmo dirigira (por não confiar esse tipo de bem a qualquer um) para a Escola para Garotas de Brownswick. A extinta escola preparatória ficava no subúrbio em 35 acres de propriedades ignoradas, dilapidadas e cobertas de mato, e os boatos de ser assombrada mantinham afastadas as pessoas normais.

Por enquanto, a Sociedade Redutora estava desabrigada, mas a placa “Vende-se” na curva perto da estrada significava que ele poderia dar um jeito nisso. Tão logo arranjasse algum dinheiro.

Com os rapazes terminando de se recuperar na escola, e os assassinos atuais no centro à procura da Irmandade, ele estava por conta catalogando as poucas propriedades restantes da Sociedade – inclusive aquele pedaço praticamente deserto de floresta ao norte da cidade.

Embora começasse a acreditar que estivesse perdendo tempo.

Subindo na varanda do chalé, iluminou o interior com uma lanterna. Fogão antigo. Mesa de madeira tosca com duas cadeiras. Três camas sem colchão, nem lençóis. Quitinete.

Dando a volta para os fundos, ele encontrou um gerador sem combustível e um tanque de diesel enferrujado, o que sugeria que o lugar teve algum tipo de aquecimento em alguma época.

Voltando para a frente, tentou a porta e descobriu-a trancada.

Não fazia diferença. Não havia muita coisa ali.

Pegando um mapa de dentro da jaqueta de aviador, desdobrou-o e encontrou sua localização. Verificando o quadradinho, pegou a bússola, ajustou a direção e começou a caminhar para o noroeste.

De acordo com aquele mapa, que ele havia encontrado no antro de drogas do Redutor Principal, aquele pedaço de propriedade totalizava cinco acres e tinha esse tipo de chalé espalhado em intervalos randômicos. Ele imaginava que o lugar devia ter sido algum tipo de acampamento com proprietários múltiplos, um tipo de reserva de caça moderna que se perdera para a carga tributária do Estado de Nova York e depois comprada pela Sociedade nos anos oitenta.

Pelo menos era isso o que estava escrito à mão no canto, embora só Deus soubesse se a Sociedade ainda era a proprietária daquilo. Considerando-se a situação financeira da organização, o bom e velho Estado de Nova York poderia bem ter o penhor da propriedade a esta altura, ou até mesmo tê-la reempossado.

Ele parou e verificou a bússola novamente. Caramba, sendo urbano, ele detestava vagar pela floresta à noite, superando a neve com dificuldade, verificando aquele tipo de merda como se fosse algum tipo de guarda florestal. Mas ele tinha de ver com seus próprios olhos aquilo com que tinha que trabalhar, e só havia um modo de fazer isso.

Ao menos tinha um fluxo de receita preparado.

Nas próximas 24 horas, quando aqueles garotos estivessem finalmente de pé, ele voltaria a preencher os cofres. Aquele era o primeiro passo rumo à recuperação.

Passo número dois?

A dominação do mundo.


CAPÍTULO 15

Ela estava sangrando.

Quando Layla olhou para o papel higiênico na mão, a mancha vermelha em todo aquele branco era o equivalente visual de um grito.

Esticando a mão para trás, deu a descarga, e teve que usar a parede para se equilibrar ao se levantar. Com uma mão no baixo ventre e a outra sobre a bancada da pia e depois na maçaneta, ela tropicou para o quarto e foi direto para o telefone.

Seu primeiro instinto foi ligar para a doutora Jane, mas decidiu não fazer isso. Concluindo que estava sofrendo um aborto espontâneo, existia a possibilidade de poupar Qhuinn da ira do Primale. Desde que ela deixasse aquilo debaixo dos panos. E usar a clínica geral da Irmandade provavelmente não seria o melhor modo de assegurar privacidade.

Afinal, só havia um motivo para uma fêmea sangrar. E perguntas a respeito do seu cio e de como ela lidara com isso inevitavelmente se seguiriam.

Na mesinha de cabeceira, ela abriu uma gaveta e retirou um caderninho preto. Encontrando o número da clínica da raça, ela discou com mãos trêmulas.

Quando desligou pouco depois, tinha um horário marcado para dali a trinta minutos.

Mas como sairia dali? Não poderia se desmaterializar, estava ansiosa demais e, de qualquer modo, fêmeas grávidas eram desencorajadas a fazer isso. E ela também não se sentia forte o bastante para dirigir até lá. As aulas de Qhuinn foram bem abrangentes, mas ela não conseguia se imaginar, em seu estado, pegando a autoestrada e tentando acompanhar o fluxo do tráfego humano.

Fritz Perlmutter era a sua única resposta.

Indo até o armário, pegou uma camisola macia, torceu-a numa corda espessa e colocou-a entre as pernas com a ajuda de diversos pares de calcinha. A solução para o seu problema de sangramento mostrou-se incrivelmente volumosa e dificultou o andar, mas esse era o menor dos seus problemas.

Um telefonema para a cozinha garantiu que o mordomo a levaria.

Agora ela só precisava descer as escadas, sair pelo vestíbulo e entrar inteira no enorme sedã. Tudo isso sem se deparar com nenhum macho da casa.

Bem quando estava para sair do quarto, viu seu reflexo no espelho na parede. O manto branco e seu penteado formal anunciavam seu status de Escolhida como nenhuma outra coisa. Ninguém além das fêmeas sagradas da Virgem Escriba da espécie se vestia daquela forma.

Mesmo se aparecesse sob o nome fictício que fornecera à recepcionista, todos adivinhariam sua afiliação sobrenatural.

Tirando o manto, tentou entrar num par de calças de ioga, mas o enchimento que ajustara em si impossibilitou isso. E os jeans que ela e Qhuinn compraram juntos também não estavam dando certo.

Tirando a camisola, ela usou papel higiênico do banheiro para lidar com o problema e conseguiu entrar nos jeans. Um suéter pesado a esquentaria e uma bela escovada nos cabelos e um rabo de cavalo faria com que ela parecesse... quase normal.

Saindo do quarto, ela segurou o tal do celular que Qhuinn lhe dera. Passou pela sua cabeça telefonar para ele, mas, na verdade, o que diria? Ele tinha tanto controle sobre aquele processo quanto ela...

Ah, santa Virgem Escriba, ela estava perdendo o bebê.

O pensamento lhe ocorreu bem quando ela chegou ao topo da escadaria principal. Ela estava perdendo o bebê deles. Naquele instante. Ali do lado de fora do escritório do Rei.

De repente, o teto caiu sobre a sua cabeça e as paredes do vestíbulo grande e espaçoso a apertaram tanto que ela não conseguia respirar.

– Sua Graça?

Estremecendo, ela olhou para baixo para a passadeira vermelha. Fritz estava ao pé das escadas, vestido em seu costumeiro uniforme, e sua adorável e anciã expressão carregada de preocupação.

– Sua Graça, vamos agora? – perguntou ele.

Quando ela assentiu e desceu com cuidado, não conseguia crer que tudo aquilo fora para nada, todas aquelas horas de esforço com Qhuinn... os gélidos momentos seguintes nos quais ela não conseguia se mover... a espera e antecipação de uma esperança quieta e traiçoeira.

O fato de ter cedido o presente de sua virgindade a troco de nada.

Qhuinn sofreria tanto, e o fracasso que ela impingiria a ele só aumentava imensamente o seu próprio sofrimento. Ele sacrificara o corpo durante o cio dela, o desejo dele de ter um laço de sangue incitando-o a fazer algo que ele não teria, de outro modo, escolhido fazer.

O fato de a biologia ter suas vontades não a aliviava.

A perda... ainda parecia ser culpa sua.

Tomar outra dose para acabar com a ressaca.

Saxton acreditava que esse adágio era grosseiro, no entanto, verdadeiro.

Parado nu diante do espelho do banheiro, abaixou o secador e passou os dedos pelos cabelos. As ondas se assentaram em seu estado normal, os fios loiros encontrando uma disposição perfeita para complementar o rosto quadrado e equilibrado.

A imagem que ele via era exatamente aquela da noite anterior, e da anterior àquela, contudo, por mais familiar que seu reflexo fosse, ele se sentia como se pertencesse a uma pessoa diferente, à parte.

Seu corpo mudara tanto por dentro, parecia bem razoável deduzir que a transformação se ecoaria na aparência. Deus, não era assim!

Virando e saindo para o closet, imaginou que não deveria se surpreender, tanto pelo seu íntimo perturbado quanto pelo seu exterior de falsa compostura.

Depois que ele e Blay conversaram, ele precisou de uma hora para tirar tudo do quarto em que ficara com o antigo amante e voltar para a suíte no fim do corredor. Ele recebera aquelas acomodações quando fora morar na mansão, porém, conforme as coisas progrediram com Blay, seus pertences gradualmente migraram para o outro quarto.

Esse processo migratório fora crescente, assim como o seu amor: um caso de uma camisa aqui e um par de sapatos acolá, uma escova de cabelos uma noite e meias na seguinte... uma conversa de valores partilhados seguida por uma maratona de sete horas de sexo acompanhada por um pote de sorvete de café Breyers com apenas uma colher.

Ele não percebera a distância transposta pelo seu coração, do mesmo modo como um andarilho se vê perdido em meio à selva. Contudo, quinze quilômetros e um determinado número de bifurcações em seu caminho mais tarde e não havia como voltar. Àquela altura, não restava alternativa a não ser organizar seus recursos para construir um abrigo e criar raízes novas.

Ele deduzira que construiria seu novo espaço pessoal com Blay.

Sim, deduzira. Afinal, por quanto tempo poderia sobreviver um amor não correspondido? Como o fogo precisa de oxigênio para queimar, assim é com as emoções.

Não no que se referia a Qhuinn, ao que tudo levava a crer. Não para Blay.

Saxton estava decidido a não sair da mansão real, porém. Quanto a isso, Blay tinha razão: Wrath, o Rei, precisava dele, e, mais do que isso, ele gostava do seu trabalho ali. Era ágil, desafiador... e a parte egoísta que havia dentro de si queria ser o advogado que reformaria a lei da maneira correta.

Deduzindo-se que o trono não seria tomado e que ele não fosse decapitado num novo regime.

Mas não se podia viver preocupado com coisas como essa.

Pegando um terno de xadrez escocês do closet, escolheu uma camisa e um colete e estendeu tudo sobre a cama.

Era um clichê triste, bem desestimulante, sair para procurar algo núbil e espiritual para aplacar a dor, mas ele preferia ter um orgasmo a se embriagar. Além disso, o “finja até encontrar um propósito novamente” parecia dar certo.

E parecia especialmente verdadeiro quando ele se olhou arrumado no espelho de corpo inteiro do banheiro, e isso ajudava.

Antes de sair, verificou o celular novamente. As Leis Antigas foram remodeladas seguindo as ordens de Wrath, e agora ele estava de prontidão, à espera da nova tarefa.

Deduziu que logo descobriria o que seria.

Wrath era notoriamente exigente, mas nunca irracional.

Nesse ínterim, ele afogaria sua tristeza no único tipo de “loira gelada” que o apetecia... algo com vinte e poucos anos, lá pelos seus um e oitenta de altura, atlético...

E preferivelmente moreno. Ou loiro.


CAPÍTULO 16

– Alguém já passou por aqui.

Enquanto Rhage falava, Qhuinn pegou sua lanterna de bolso e apontou o discreto facho de luz para o chão. E lá estavam pegadas na neve fresca, sem nenhuma cobertura de flocos... que partiam diretamente para a clareira da floresta. Desligando a luz, ele se concentrou no chalé de caça mais à frente que parecia estar abandonado ao clima frio: nenhuma fumaça subindo pela chaminé, nenhuma iluminação interna e, mais importante, nenhum rastro de cheiro.

Os cinco se aproximaram, circundando a clareira e se movimentando sorrateiramente num ângulo amplo. Como não houve nenhuma ação defensiva de parte alguma, todos subiram na varanda e espiaram o interior pelas janelas estreitas.

– Nada – murmurou Rhage ao ir para a porta.

Uma tentativa rápida na maçaneta. Fechada.

Com um empurrão, o Irmão esmagou o ombro imenso contra o batente e mandou a coisa pelos ares, fragmentos da tranca caindo espalhados bem como lascas de madeira.

– Olá, querida, cheguei – gritou Hollywood ao marchar para dentro.

Qhuinn e John seguiram o protocolo e ficaram na varanda enquanto Blay e Z. entravam e vasculhavam.

A floresta estava quieta ao redor deles, mas seus olhos aguçados acompanharam aquelas pegadas... que, depois de uma passeada pelo chalé, seguiam para o noroeste.

Por certo era indício de que alguém estava ali com eles, vasculhando a propriedade ao mesmo tempo.

Humano? Redutor?

Ele acreditava mais na última opção, devido a toda aquela bagunça no hangar, e também por aquele lugar ser remoto e relativamente seguro por conta disso.

Ainda que houvessem de querer trazer a Stanley Steemer* para aquela construção para uma bela limpeza antes.

A voz de Blay surgiu através da porta aberta.

– Achei uma coisa.

Qhuinn teve que recorrer a todo o seu treinamento a fim de não parar de inspecionar o cenário e olhar para dentro. Não porque ele se importasse particularmente com o que fora encontrado. Durante todo aquele processo, ele vinha checando Blay constantemente, só para ver se o humor dele mudara.

Se mudara, fora para pior.

Vozes baixas se fizeram ouvir dentro do chalé, e depois os três emergiram.

– Encontramos uma caixa trancada a chave – anunciou Rhage ao baixar o zíper da jaqueta e enfiar o contêiner longo e estreito de metal junto ao peito. – Abriremos mais tarde. Primeiro, vamos encontrar o dono dessas botas, rapazes.

Desmaterializando-se rapidamente a cada quinze ou vinte metros, eles se espalharam pelas árvores, rastreando as pegadas na neve, seguindo em silêncio.

Depararam-se com o redutor um quilômetro adiante.

O assassino solitário marchava pela floresta coberta de neve num passo que somente um humano com treinamento olímpico teria conseguido sustentar por algumas centenas de metros. As roupas eram escuras, havia uma mochila nas costas e o fato de ele estar se movimentando apenas com a própria visão eram indicadores de que se tratava do inimigo: a maioria dos Homo sapiens não conseguiria se mover com aquela rapidez com tão pouca iluminação sem a ajuda de uma luz artificial.

Gesticulando em código, Rhage orientou o grupo a fazer uma formação de triângulo reverso que dava a volta ao redor do rastro do redutor. Continuando a avançar junto a ele, observaram-no por uma área mais ou menos do tamanho de um campo de futebol e, em seguida, todos de uma vez aproximaram-se, circundando o assassino, e bloquearam-no em pontos cardinais opostos na mira das armas.

O redutor parou de andar.

Ele era um recruta mais jovem, o cabelo escuro e a pele oliva sugeriam que tivesse descendência mexicana ou italiana, e mereceu pontos por não demonstrar medo. Mesmo tendo caído numa cilada, ele só olhou tranquilamente por sobre o ombro, como que para confirmar que, de fato, fora emboscado.

– Como tem passado? – Rhage perguntou com a fala arrastada.

O redutor não se deu ao trabalho de responder, o que era o oposto do que vinham presenciando nos últimos tempos. Diferentemente dos outros, aquele não era um garotinho metido a esperto cheio de falatório. Calmo, perspicaz... Controlado, ele era o tipo de inimigo que melhorava o seu desempenho no trabalho.

Não exatamente algo ruim...

E, como era de se esperar, a mão dele desapareceu para dentro do casaco.

– Não seja idiota, cara – exclamou Qhuinn, preparado para meter uma bala no bastardo sem nenhum aviso adicional.

O redutor não deteve o movimento.

Tudo bem.

Ele apertou o maldito gatilho e derrubou o merdinha.

No segundo em que o redutor caiu na neve, Blay ficou imobilizado com a arma ainda apontada. Os outros fizeram o mesmo.

Segundos silenciosos se passaram, eles continuaram a encarar o assassino caído. Nenhum movimento. Nenhuma reação da área periférica. Qhuinn o incapacitara, e ele parecia estar trabalhando sozinho.

Engraçado, mesmo se Blay não tivesse ouvido o tiro à esquerda do seu ouvido, ele teria sabido que o atirador fora Qhuinn: qualquer outro teria dado ao inimigo outra chance para reconsiderar.

O sinal para que se aproximasse foi o assobio de Rhage. Os cinco se moveram como uma matilha de lobos ao redor de sua presa, rápidos e confiantes, cruzando a neve com as armas erguidas. O assassino permaneceu absolutamente imóvel, mas não houvera uma morte na família, por assim dizer. Para isso, seria preciso que uma adaga de aço lhe atravessasse o peito.

Porém, aquele era o estado desejável. Queriam que ele fosse capaz de falar.

Ou, pelo menos, que estivesse em condições de ser forçado a falar...

Mais tarde, quando repassou o que aconteceu em seguida... quando sua mente ardeu obsessivamente a respeito dos fatos... quando ficou acordado tentando entender como as peças se encaixaram na esperança de adivinhar uma mudança de procedimento que garantisse que algo semelhante nunca mais acontecesse... Blay se demoraria naquela mudança de eventos.

Aquele leve tremor no braço. Apenas uma contração muscular aparentemente desconectada de qualquer pensamento consciente ou vontade. Nada perigoso. Nenhum sinal do que estava por vir.

Apenas uma contração.

A não ser pelo fato de que, com um movimento mais rápido que um piscar de olhos, o assassino sacou uma arma sabe-se lá de onde. Foi sem precedentes. Num segundo ele estava como morto no chão; no seguinte, estava atirando de modo controlado num raio amplo.

E mesmo antes de os sons dos tiros pararem, Blay percebeu a imagem horripilante de Zsadist levando chumbo bem no coração, um impacto tão forte que foi capaz de deter o avanço do Irmão, o torso catapultando para trás, os braços se abrindo enquanto ele caía no chão.

No mesmo instante, a dinâmica mudou. Ninguém mais queria interrogar o maldito.

Quatro adagas foram desembainhadas. Quatro corpos se adiantaram. Quatro braços talharam com lâminas afiadas e frias. Quatro impactos, um após o outro.

Tarde demais, porém.

O assassino desaparecera bem diante deles, as armas golpeando a neve manchada onde o inimigo estivera deitado, em vez de atingirem uma cavidade torácica vazia.

Que seja. Haveria tempo para se perguntarem quanto ao desaparecimento improcedente mais tarde. No momento, eles tinham um soldado caído.

Rhage praticamente se lançou sobre o Irmão, colocando o corpo diante de tudo e todos.

– Z.? Z.? Ai, mãe da raça...

Blay sacou o telefone e discou. Quando Manny Manello atendeu, não havia tempo a perder.

– Temos um Irmão ferido. Tiro no peito...

– Espere!

A voz de Z. foi uma surpresa. Assim como o braço do Irmão levantando e empurrando Rhage para o lado.

– Saia de cima de mim!

– Mas estou tentando fazer ressuscitação cardio...

– Prefiro morrer antes de beijar você, Hollywood – Z. tentou se sentar, estava com a respiração pesada. – Nem pense nisso.

– Alô? – a voz de Manello disse ao telefone. – Blay?

– Espere...

Qhuinn se ajoelhou perto de Zsadist, e apesar do fato de o Irmão não gostar de ser tocado, segurou-o por debaixo do braço e ajudou o macho a suspender o torso do chão.

– Estou com a clínica na linha – disse Blay. – Qual o seu estado?

Em resposta, Z. levou a mão até a bainha da adaga e a puxou. Depois, abaixou o zíper da jaqueta de couro e rasgou a camiseta ao meio.

Para revelar o mais lindo colete à prova de balas que Blay jamais vira.

Rhage se curvou em sinal de alívio, a ponto de Qhuinn ter que segurá-lo com a mão livre para que o cara também não caísse no chão.

– Kevlar – Blay murmurou para Manello. – Ah, graças a Deus, ele está usando um Kevlar.

– Que ótimo, mas escute, preciso que você tire o colete e verifique se ele deteve a bala, ok?

– Entendido – olhou de relance para John, contente em ver que ele estava de pé, com as duas armas adiante, os olhos vasculhando o ambiente enquanto o resto deles avaliava a situação. – Vou cuidar disso.

Blay se aproximou e se agachou na frente do Irmão. Qhuinn podia ter tido a coragem de fazer contato com Zsadist, mas ele não faria isso sem permissão expressa.

– O doutor Manello quer saber se você pode tirar o colete para que possamos ver se existe algum ferimento.

Z. moveu os braços e depois franziu o cenho. Tentou novamente. Depois da terceira tentativa, o Irmão conseguiu levantar as mãos até as tiras de velcro, mas elas não conseguiam fazer muita coisa.

Blay engoliu com força.

– Posso cuidar disso? Prometo não tocar em você o quanto for possível.

Ótima gramática ali. Mas ele falava sério.

Os olhos de Z. se levantaram para ele. Estavam negros de dor, e não amarelos.

– Faça o que tem que fazer, filho. Vou aguentar.

O Irmão desviou o olhar, o rosto contraído numa careta, a cicatriz que formava o S do alto do nariz até o canto da boca destacando-se num relevo alto.

Com um sermão severo, Blay ordenou às suas mãos que ficassem firmes, e a mensagem de algum modo foi levada adiante: ele puxou as tiras que o prendiam nos ombros, o barulho mais alto do que o grito em sua cabeça, e depois retirou o colete, aterrorizado pelo que descobriria.

Havia uma grande marca redonda bem no meio do peito musculoso de Z. Bem onde ficava o coração.

Mas era apenas um hematoma. Não um buraco.

Apenas um hematoma.

– Somente ferimento superficial – Blay afundou o dedo no preenchimento denso do colete e encontrou a bala. – Estou sentindo a bala dentro do colete.

– Então por que não consigo mexer meu...

O cheiro de sangue fresco do Irmão pareceu atingir todos os narizes ao mesmo tempo. Alguém praguejou, e Blay se inclinou.

– Você também foi alvejado debaixo do braço.

– É ruim? – Z. perguntou.

Pelo telefone, Manello disse:

– Dê uma olhada e veja o que consegue descobrir.

Blay suspendeu o braço pesado e iluminou a parte interna com uma lanterna de bolso. Aparentemente, uma bala entrara no torso pela pequena parte desprotegida nas axilas – um tiro em um milhão que se você tentasse recriar, não conseguiria repetir.

Merda.

– Não vejo o buraco da saída. É bem na lateral das costelas, no alto.

– Ele está respirando bem? – perguntou Manello.

– Com dificuldade, mas regular.

– Reanimação cardiorrespiratória foi administrada?

– Ele ameaçou castrar Hollywood se houvesse qualquer contato labial.

– Escute aqui, deixe eu me desmaterializar – Z. tossiu um pouco. – Me dê um pouco de espaço...

Todos ofereceram uma variedade de opiniões a essa altura, mas Zsadist não aceitou nenhuma delas. Empurrando-os, o Irmão fechou os olhos e...

Blay soube que estavam com problemas sérios quando nada aconteceu. Sim, Zsadist não fora morto, e estava muito melhor do que estaria se estivesse sem o colete. Mas não conseguia se movimentar – e eles estavam no meio do nada, tão floresta adentro que mesmo que chamassem por reforços, ninguém conseguiria levar um carro até quilômetros de onde estavam.

E o pior? Blay tinha a sensação de que o assassino que derrubaram era algo consideravelmente pior do que um redutor qualquer.

Não havia como saber quando os reforços chegariam.

O som de uma mensagem de texto chegando ao celular de um deles soou, e Rhage a leu.

– Merda. Os outros estão presos no centro da cidade. Teremos que cuidar disso sozinhos.

– Maldição – Zsadist murmurou entredentes.

Sim. A situação era mais ou menos essa.

* Empresa americana especializada em limpeza residencial usando máquina a vapor. (N.T.)


CAPÍTULO 17

Xcor não esperara aquilo.

Enquanto ele e seus soldados se materializavam na localização da alimentação comunal arranjada, ele esperara uma propriedade decaída ou, quem sabe, à beira da condenação, um lugar num estado tão deplorável que uma fêmea seria forçada a vender suas veias e seu sexo para sobreviver.

Nada disso.

A propriedade alcançava os padrões da glymera, a imensa mansão no alto da colina se destacava em sua iluminação, os jardins impecavelmente bem podados, o chalé menor da criadagem perto dos portões em perfeito estado apesar da idade óbvia.

Talvez ela fosse uma prima distante de alguém de linhagem mais importante?

– Quem é essa fêmea? – ele perguntou a Throe.

Seu tenente deu de ombros.

– Não sei nada de sua família. Mas verifiquei a filiação dela com uma linhagem de valor.

Ao redor deles, os soldados estavam ansiosos, os coturnos de combate socando a neve compacta aos seus pés enquanto andavam no mesmo lugar, a respiração escapando dos narizes como se eles fossem cavalos de corrida prestes a explodirem para fora dos portões da pista.

– Há que se perguntar se ela sabe para o que se ofereceu – murmurou Xcor, nem um pouco preocupado se a fêmea sabia ou não.

– Vamos? – perguntou Throe.

– Sim, antes que os outros se descontrolem e invadam aquele chalé dela.

Throe se desmaterializou até a porta singular, com seu topo arqueado e com uma lamparina que se esperaria ver do lado de fora de uma casa de bonecas. Porém, seu braço direito não foi persuadido pelo charme. A iluminação acima de sua cabeça logo foi cortada, certamente ao comando de Throe, e a batida à porta do soldado foi rápida e severa, uma exigência, não um pedido.

Momentos depois, a porta se abriu. A luz de uma lareira escapou para a noite, o brilho dourado das labaredas tão intenso que sugeria que elas conseguiriam derreter a camada de neve – e bem no meio daquela iluminação adorável, a figura de uma fêmea destacava uma silhueta escura e curvilínea.

Ela estava nua. E o cheiro que foi carregado pela brisa gélida indicava que ela estava pronta.

Zypher rosnou baixinho.

– Contenha-se – exigiu Xcor. – Não deixe que a sua avidez seja usada como uma arma contra nós.

Throe falou com ela e depois enfiou a mão no bolso para pegar o dinheiro. A fêmea aceitou o que lhe foi dado e depois esticou um braço no batente, angulando o corpo de modo a fazer com que um seio farto fosse iluminado por aquele brilho suave.

Throe olhou de relance sobre o ombro e acenou com a cabeça.

Os outros não esperaram por um segundo convite. Os lutadores de Xcor convergiram para a entrada, os corpos másculos tão grandes e tão numerosos, que a fêmea logo ficou invisível.

Praguejando, ele também se aproximou andando.

Zypher naturalmente foi o primeiro, tomando-a nos lábios e apalpando os seios, mas ele não foi o único. Os três primos brigaram por suas posições, um indo para trás e arqueando os quadris, como se estivesse esfregando o pau contra o traseiro dela, os outros dois alcançando os mamilos e o sexo dela, as mãos serpenteando conforme ela foi envolvida.

Throe falou acima dos gemidos crescentes.

– Vou montar guarda do lado de fora.

Xcor abriu a boca para ordenar o contrário, e depois percebeu que pareceria como se ele estivesse evitando a cena, e isso dificilmente seria algo másculo.

– Faça isso – murmurou. – Monto guarda no interior.

Seus machos pegaram a fêmea, as mãos das adagas segurando-a pelos braços, coxas e cintura, e, em conjunto, carregaram-na para o interior aconchegante do chalé. Foi Xcor quem fechou a porta e se certificou de que não havia nenhuma tranca para confiná-los. Também foi ele quem vasculhou o interior do chalé. Enquanto seus bastardos carregavam seu alimento para a frente da lareira, onde um tapete de peles recobria o chão, ele se inclinou em uma janela fechada, levantou a cortina e verificou os vitrôs. Antigos e chumbados, com suportes de madeira, não de aço.

Nada seguros. Ótimo.


– Alguém entre em mim – a fêmea gemeu numa voz profunda.

Xcor não se preocupou em ver se a obedeceram ou não, ainda que o gemido ofegante sugerisse que o fora. Em vez disso, olhou ao redor, procurando outras portas e lugares nos quais uma emboscada poderia ser armada. Aparentemente, não existia nenhum. O chalé não tinha um segundo andar, o esqueleto do teto formava um arco acima da sua cabeça e só havia um banheiro pequeno, cuja porta estava entreaberta e a luz acesa revelava um pé em forma de garra da banheira e uma pia em estilo antigo. A cozinha aberta não passava de uma bancada com alguns poucos eletrodomésticos modestos.

Xcor olhou para a ação. A fêmea estava deitada de costas, com os braços abertos formando um T, o pescoço exposto, as pernas escancaradas. Zypher montara nela e a penetrava ritmadamente, fazendo com que a cabeça subisse e descesse no tapete branco fofo enquanto ela absorvia os impactos. Dois dos primos se agarraram aos seus pulsos, e o terceiro tirara o pênis para fora e a fodia na boca. Na verdade, havia pouco dela que não estivesse coberto por machos vampiros, e seu êxtase por estar sendo usada era óbvio não somente aos olhos, mas também aos ouvidos: ao redor da ereção que entrava e saía dos lábios abundantes, a respiração pesada e os gemidos eróticos escapavam para a atmosfera carregada de sexo.

Xcor caminhou até a bancada da cozinha. Não havia nada ali, nenhum resto de comida, nenhum copo abandonado meio cheio. Havia pratos nos armários, contudo, e quando ele abriu a grande geladeira de estilo europeu, garrafas de vinho branco estavam organizadas horizontalmente nas prateleiras.

Uma imprecação masculina atraiu seu olhar para a diversão. Zypher estava gozando, os corpos se arqueando para frente enquanto a cabeça pendia para trás e, em meio ao seu orgasmo, um dos primos o afastava, assumindo seu posto, levantando os quadris da fêmea e se afundando no sexo rosado e molhado. Pelo menos Zypher parecia completamente satisfeito de trocar de lugar; ele expôs as presas, afundou a cabeça debaixo do peito agora arfante do seu camarada e beliscou o seio da fêmea para poder se alimentar perto do mamilo.

Aquele que estava na boca também gozou, e ela sorveu todo o sêmen, sugando a cabeça do pênis do lutador, soltando-a em seguida e lambendo os lábios úmidos como se ainda estivesse com fome. Alguém logo a atendeu, outra ereção bombeando seus lábios, os ritmos contrários das investidas do que acontecia em sua cabeça e entre as pernas balançando-a para frente e para trás num modo que ela parecia apreciar.

Xcor voltou a verificar o banheiro, mas sua primeira avaliação estava correta: não havia onde se esconder naquele confinamento diminuto.

Tendo garantido o interior, ele não pensou em nada mais para fazer a não ser se recostar num canto que lhe oferecia a melhor visão de acesso e testemunhar a refeição. Conforme as coisas se intensificaram, seus lutadores perderam a aparente civilização que tinham, trocando de posição como leões sobre carniça fresca, as presas se revelando, os olhos selvagens de agressão enquanto eles lutavam por suas posições. No entanto, eles não perderam completamente as cabeças. Cuidaram da fêmea.

Não demorou e alguém cortou a própria veia, aproximando-a dos lábios dela.

Xcor baixou o olhar para as botas e permitiu que sua visão periférica monitorasse o ambiente.

Houve uma época em que se excitaria com aquilo. E não por se interessar particularmente pelo sexo, mas do mesmo modo como seu estômago roncava quando via comida. Dessa forma, no passado, quando sentia a necessidade de tomar uma fêmea, era o que teria feito. Normalmente no escuro, claro, para que a pobre garota não sentisse nem repulsa nem medo.

Ele bem podia imaginar que as expressões de excitação que os machos exibiam em seus rompantes eróticos pouco melhoraram sua aparência.

Mas agora? De maneira curiosa, sentia-se desligado de tudo aquilo, como se estivesse assistindo os machos carregando mobília de um lado para o outro ou, quem sabe, limpando as folhas em um jardim.

O motivo era a sua Escolhida, claro.

Tendo tido os lábios pressionados contra a pele pura, tendo olhando dentro dos olhos verdes luminosos, tendo sentido o perfume delicado dela, ele estava completamente desinteressado pelos charmes bem utilizados daquela fêmea diante da lareira.

Ah, a sua Escolhida... ele jamais soube que tal graça existisse e, além disso, não teria como imaginar que se sentiria tão completamente tocado por aquilo que era tão antitético para ele. Ela era o seu oposto, gentil e generosa, enquanto ele era brutal e impiedoso, bela para a sua feiura, etérea para a sua depravação.

E ela o marcara. Do mesmo modo como se o tivesse golpeado e deixado uma cicatriz em sua carne, ele estava ferido e enfraquecido por ela.

Não havia nada a ser feito.

Deus, mesmo as lembranças dos momentos que partilhara com ela, quando estivera completamente vestida, e ele, tão gravemente ferido, bastavam para excitá-lo, seu pobre sexo endurecendo por nenhum motivo aparente: mesmo que não estivessem em lados opostos na guerra pelo trono, ela jamais permitiria que ele a abordasse como um macho faz ao se enfeitiçar por uma fêmea de valor. Naquela noite outonal quando se encontraram debaixo daquela árvore, ela executara um ato válido segundo seus preceitos. Não tivera nada a ver com ele em particular.

Mas, ah, como ele a desejava mesmo assim...

Abruptamente, a fêmea diante da lareira se arqueou debaixo dos pesos orgásmicos que mudavam sobre ela, e ele voltou-lhe sua atenção. Como se ela percebesse sua excitação, o olhar enevoado e extasiado focalizou nele, e uma surpresa repentina cruzou sua expressão – ou o pouco que ele conseguia distinguir por cima do antebraço grosso que lhe oferecia alimento.

O choque arregalou seu olhar. Evidentemente, ela não notara a presença dele, mas agora que o fazia, o medo, e não a paixão, fez-se óbvio dentro dela.

Sem querer atrapalhar toda aquela ação, ele balançou a cabeça e estendeu a palma num gesto de “pare”, para garantir a ela que não teria de suportar sua mordida – ou pior, seu sexo.

A mensagem aparentemente funcionou, porque o medo abandonou sua expressão, e quando um dos soldados apresentou o pau pedindo atenção, ela o apanhou e começou a massageá-lo acima da sua cabeça.

Xcor sorriu para si mesmo de modo horripilante. Aquela prostituta não o queria, e mesmo assim, seu corpo, em toda a sua estupidez, insistia em reagir àquela Escolhida, como se a fêmea sagrada um dia fosse olhar para ele.

Tão tolo.

Consultando o relógio, surpreendeu-se ao ver que a refeição já vinha acontecendo há mais de uma hora. Que seja. Desde que seus machos obedecessem com suas duas regras básicas, ele não se importava em deixá-los continuar: tinham de permanecer substancialmente vestidos e as armas deveriam estar nos coldres com as travas desarmadas.

Dessa forma, se o clima mudasse, eles poderiam se defender rapidamente.

Ele estava mais do que disposto a lhes conceder aquele passatempo.

Depois daquele interlúdio? Muitos estariam no máximo de suas forças, e pelo modo como as coisas estavam com a Irmandade... eles precisariam estar assim.


CAPÍTULO 18

– Não. De jeito nenhum.

Qhuinn teve que concordar com a opinião de Z. quanto à ideia brilhante de Rhage.

O grupo já se esforçara na floresta, com Rhage suportando boa parte do peso de Z., enquanto os demais os circundavam aos pares, a postos para apanhar qualquer um ou qualquer coisa que os ameaçasse pelas margens. Agora estavam de volta ao hangar e a solução de Hollywood para o problema de mobilidade parecia uma complicação com implicações mortais, e não exatamente algo que de fato ajudasse.

– Pilotar não deve ser tão difícil – enquanto todos, inclusive Z., apenas o encaravam, Rhage deu de ombros. – O que foi? Os humanos o fazem o tempo todo.

Z. esfregou o peito e lentamente se deixou cair no chão. Depois de respirar, balançou a cabeça.

– Primeiro, você não sabe se... a maldita coisa... pode subir. Provavelmente... está sem combustível... e você nunca pilotou antes.

– Quer me contar a nossa outra opção? Ainda estamos a quilômetros de um ponto plausível para que nos busquem, você não está melhorando e podemos ser encurralados. Deixe-me pelo menos entrar lá para ver se consigo fazer o motor pegar.

– Não é uma decisão inteligente.

No silêncio que se seguiu, Qhuinn raciocinou e olhou para o hangar. Depois de um instante, disse:

– Eu dou cobertura. Vamos fazer isso.

No fim, Rhage estava certo. Aquela evacuação a pé estava demorando demais e o redutor desaparecera antes que o apunhalassem, e não o contrário.

Será que Ômega dera poderes especiais aos seus garotos?

Tanto faz. Um soldado inteligente jamais subestimava o inimigo, ainda mais quando um dos seus estava abatido. Precisavam levar Z. para um lugar seguro e se isso significava ir pelo ar, que assim fosse.

Ele e Rhage entraram no hangar e ligaram as lanternas. O avião estava onde o tinham deixado no canto do fundo, como se fosse o filho adotivo feio de algum outro tipo de transporte muito mais bonito que há muito saíra de cena. Aproximando-se, Qhuinn viu que a hélice parecia estar inteira, e apesar de as asas estarem empoeiradas, conseguiu sustentar seu peso nelas.

O fato de a porta ter rangido como o diabo quando Rhage a abriu não foi uma notícia tão promissora.

– Nossa! – murmurou Rhage ao se encolher. – Parece que há algo morto ali dentro.


Caramba, o fedor devia ser tremendo se o Irmão conseguia distingui-lo do resto do cheiro que permeava o hangar.

Talvez a ideia não fosse tão boa assim.

Antes que Qhuinn conseguisse emitir uma segunda opinião a respeito do fedor, Rhage se espremeu como um pretzel e passou pela abertura oval.

– Puta merda... Chaves! As chaves estão aqui, dá pra acreditar?

– E quanto ao combustível? – murmurou Qhuinn, ao lançar o facho da lanterna de bolso num círculo amplo. Nada além de chão imundo.

– Acho bom recuar um pouco, filho – Rhage berrou de dentro da cabine. – Vou tentar ligar essa máquina velha.

Qhuinn se afastou, mas oras, se a coisa fosse explodir, poucos metros não fariam muita diferença...

A explosão foi alta, a fumaça, espessa, e o motor parecia estar sofrendo com um acesso de tosse mecânica. Mas a merda se estabilizou. Quanto mais deixaram o motor esquentar, mais equilibrado o ritmo se tornou.

– Temos que sair daqui antes de nos asfixiarmos – Qhuinn gritou de dentro do avião.

Bem nessa hora, Rhage deve ter colocado a coisa para se mexer ou algo assim, porque o avião se lançou para a frente com um gemido, como se cada prego e parafuso da sua fuselagem doesse.

E aquela coisa voaria?

Qhuinn correu na frente e chegou à porta dupla. Segurando de um lado, usou toda a sua força para puxar e afastou as portas, lançando diversas trincas e travas para todos os lados.

Ele só esperava que o avião não se inspirasse naqueles fragmentos.

Sob o luar, as expressões de John e Blay não tinham preço ao darem uma bela olhada para o plano de fuga – e ele bem sabia de onde elas vinham.

Rhage pressionou o freio e se espremeu de novo para sair.

– Vamos trazê-lo para dentro.

Silêncio. Bem, a não ser pelo avião ofegante atrás deles.

– Você não vai levá-lo – disse Qhuinn, quase para si mesmo.

Rhage olhou sério para ele.

– O que disse?

– Você é valioso demais. Se esta coisa cair, não podemos perder dois Irmãos. Isso não vai acontecer. Eu sou dispensável, você não.

Rhage abriu a boca como se fosse argumentar. Mas quando a fechou, uma expressão estranha atravessou seu belo rosto.

– Ele tem razão – disse Z. sério. – Não posso colocar você em perigo, Hollywood.

– Que se foda, posso me desmaterializar para fora da cabine...

– E acha que vai conseguir fazer isso quando estiverem num espiral? Tolice...

Uma saraivada de balas irrompeu das margens das árvores, atingindo a neve, o zumbido passando pelos ouvidos.

Todos reagiram. Qhuinn mergulhou dentro do avião, posicionou-se atrás do assento do piloto e tentou entender... puta merda, havia botões demais. A única coisa que o salvava era que...

Rá-tá-tá!

... ele assistira a um número suficiente de filmes para saber que a alavanca com a manopla era o acelerador e que a direção em forma de gravata borboleta era a coisa que você puxava para subir, e abaixava para descer.

– Cacete – murmurou ao ficar abaixado o máximo que podia.

Considerando-se os sons explosivos que se seguiram, John e Blay também atiravam, por isso Qhuinn se sentou um pouco mais elevado e olhou para a fileira de instrumentos. Deduziu que aquele com um tanquezinho de combustível era o que ele estava procurando.

Um quarto de tanque disponível. E metade daquela coisa só devia ser condensação.

Aquela era uma ideia bem ruim.

– Traga-o aqui! – Qhuinn berrou, olhando para o campo aberto e reto à sua esquerda.

Rhage logo o atendeu, jogando Zsadist no avião com toda a gentileza de um estivador. O Irmão aterrissou como uma pilha amontoada, mas ao menos praguejava, o que significava que ainda estava bom o bastante para sentir dor.

Qhuinn não esperou pela tolice de fechar as portas. Soltou o pedal do freio, apertou o acelerador e rezou para não derrapar na neve...

Metade do para-brisa se estilhaçou na sua frente; a bala que causara o estrago ricocheteou pela cabine, o “fuuu” do assento ao lado do seu, sugerindo que o encosto de cabeça tivesse sido atingido. O que era melhor do que o seu braço. Ou o crânio.

A única notícia boa era que o avião parecia pronto para sair dali também, o motor enferrujado girando a hélice rapidamente como se soubesse que sair do chão era a única saída para a segurança. Ao lado das janelas, o cenário começava a passar e ele se orientou no meio da “pista” mantendo as duas fileiras de árvores equidistantes.

– Segure-se – gritou acima do estrondo.

O vento entrava na cabine como se houvesse um ventilador industrial preenchendo o espaço onde o vidro estivera, mas ele não pretendia subir o bastante para que necessitassem de pressurização.

Àquela altura, ele só queria passar por cima da floresta logo adiante.

– Vamos, meu bem, você consegue... Vamos, vamos...

Ele já estava com a alavanca toda puxada e teve que ordenar ao braço que relaxasse um pouco. Não havia mais para onde puxar, e quebrar a maldita coisa era a garantia de acabar com tudo ali mesmo.

O barulho aumentou ainda mais.

As árvores se agitaram cada vez mais.

A trepidação ficou cada vez mais violenta, até seus dentes batiam uns nos outros, e ele se convenceu de que uma ou as duas asas se partiriam e cairiam pelas laterais.

Concluindo que não havia tempo a perder, Qhuinn puxou o manche para trás o máximo que pôde, segurando firme, como se isso, de alguma forma, fosse se traduzir à fuselagem do avião e se mantivesse junto no lugar...

Algo caiu do teto e voou na direção de Z.

Um mapa? O manual do proprietário? Quem diabos haveria de saber...?

Caramba, as árvores na ponta extrema estavam se aproximando...

Qhuinn puxou ainda mais, apesar de o manche estar o mais próximo possível dele, o que era uma pena, porque estavam ficando sem pista e ainda colados no chão...

Sons de arranhados vinham da barriga do avião, como se a vegetação rasteira estivesse se esticando e tentando segurar as placas de aço.

As árvores estavam cada vez mais perto.

Seu primeiro pensamento ao enfrentar a morte era que jamais conheceria a filha. Pelo menos não neste lado do Fade.

O segundo e último era que não acreditava que nunca tivesse dito a Blay que o amava. Em todos os minutos e horas e noites de sua vida, em todas as palavras ditas ao macho no decorrer dos anos em que se conheciam, ele somente o afastara.

E agora era tarde demais.

Idiota. Que tremendo cretino que ele era.

Porque parecia bem evidente que seu cartão de biblioteca ficaria inutilizado aquela noite.

Endireitando-se e fazendo com que as lufadas o atingissem em cheio no rosto, Qhuinn encarou aquela arremetida, imaginando todos aqueles pinheiros logo adiante, já que não conseguia enxergá-los pelo fato de os olhos estarem lacrimejando devido ao vento. Abrindo a boca, ele gritou, acrescentando voz à confusão.

Maldição, não morreria como um covarde. Não mergulharia no chão, nada de frases patéticas implorando para que Deus o salvasse. Ao diabo com isso. Enfrentaria a morte com as presas expostas, o corpo preparado e o coração acelerado não de medo, mas com uma tremenda descarga de...

– Morte, vá se foder!

Enquanto Qhuinn tentava levantar voo, Blay tinha o cano da pistola apontado para a borda das árvores e descarregava balas como se tivesse um suprimento infindável... o que não era verdade.

Aquilo era horrível. Ele, John e Rhage não tinham cobertura; não havia como saber quantos assassinos estavam na floresta; e, pelo amor de Deus, só o que aquele avião antigo fazia era expelir uma nuvem de fumaça tóxica em seu rastro enquanto passava como se estivesse num desfile dominical.

Ah, e a máquina estava longe de ser blindada, mas, evidentemente, tinha combustível no tanque.

Qhuinn e Z. não conseguiriam. Colidiriam na floresta ao fim da pista. Isso se não explodissem antes.

Nesse instante, quando soube que uma bola de fogo era iminente de um ou outro modo, ele se partiu ao meio. A parte física permanecia concentrada em combater o ataque, os braços esticados, os indicadores apertando os gatilhos, os olhos e ouvidos rastreando os sons e as aparições de flashes de pistolas e os movimentos do inimigo.

A sua outra parte estava naquele avião.

Era como se estivesse assistindo à própria morte. Imaginava com nitidez a vibração violenta do avião, os saltos descontrolados no chão e a vista da margem sólida das árvores que se aproximavam dele, como se estivesse enxergando através dos olhos de Qhuinn e não dos seus.

Filho da puta imprudente.

Tantas vezes Blay pensou “ele vai se matar”.

Tantas vezes no campo de batalha e fora dele.

Mas aquela era a vez em que isso aconteceria...

Uma bala o atingiu na coxa e a dor que subiu pela perna até o coração indicava que sua total atenção precisava voltar ao combate: se quisesse viver, teria de se concentrar completamente.

Contudo, quando essa convicção o acometeu, houve uma fração de segundo em que ele pensou: vamos acabar com isso aqui. Vamos acabar com essa tolice de vida de castigos, de “quase lá”, de “e se?”, da agonia crônica e infindável em que sempre esteve... e da qual estava tão cansado...

Ele não entendeu o que o fez atingir a neve.

Num minuto, estava olhando para o avião esperando que ele explodisse em chamas. No minuto seguinte, estava de peito no chão, com os cotovelos enfiados na terra congelada e obstinada, a perna machucada latejando.

Flap! Flap! Flap!...

O rugido que interrompeu o som das balas era tão alto que ele abaixou a cabeça, como se isso o ajudasse a evitar a bola de fogo crônica do avião.

Só que não houve nem luz nem calor. E o som vinha de cima...

Planando. O fardo de parafusos estava mesmo voando. Acima deles.

Blay despendeu um segundo olhando para cima, só para o caso de ter sido alvejado e a sua percepção da realidade ter sido afetada. Mas não. Aquela antiguidade de pulverização de plantações estava no céu, fazendo uma curva larga e seguindo na direção que, se é que conseguiria permanecer suspenso, levaria Qhuinn e Z. para o complexo da Irmandade.

Se tivessem sorte.

Caramba, aquele voo não seria fácil. Nada parecido com uma águia voando segura e decidida pelo céu noturno. Mais parecido com uma andorinha recém-saída do ninho com uma asa quebrada.

De um lado para o outro. Para cima e para baixo, inclinando-se de lado a lado.

Ao ponto em que parecia ter realizado o impossível saindo do chão... só para cair e queimar no meio da floresta...

Do nada, algo o atingiu na lateral do rosto, golpeando-o com tanta força que ele caiu de costas e quase perdeu as pistolas. Uma mão – fora uma mão que o espalmara como se ele fosse uma bola de basquete.

Em seguida, um peso absurdo o atingiu no peito, esticando-o no chão coberto de neve, fazendo-o exalar com tanta força que ele se perguntou se não deveria olhar ao redor para procurar o fígado.

– Porra, vai ficar abaixado ou não? – Rhage sibilou em seu ouvido. – Está tentando levar bala... de novo?

Enquanto a calmaria do tiroteio se estendia de segundos até completar um minuto, os redutores emergiram pela linha de árvores adiante, o quarteto de assassinos caminhando pela neve com as armadas suspensas e prontas.

– Não se mexa – sussurrou Rhage. – Dois podem brincar nesse jogo.

Blay fez seu melhor para não inspirar tão fundo quanto a queimação em seus pulmões lhe dizia que precisava. Também tentou não espirrar já que flocos soltos coçavam em seu nariz toda vez que ele respirava.

Espera.

Espera.

Espera.

John estava a um metro de distância, deitado numa posição contorcida que fez o coração de Blay se apertar...

O cara sutilmente levantou o polegar, como se estivesse lendo a mente de Blay.

Graças a Deus. Cacete.

Blay desviou o olhar sem mudar a posição estranha da cabeça, e depois discretamente trocou uma das pistolas por uma das suas adagas.

Enquanto um zumbido desengonçado começou a vibrar em sua cabeça, ele calculou os movimentos dos redutores, suas trajetórias, suas armas. Ele estava quase sem munição e não havia tempo para recarregar as pistolas. E ele sabia que tanto Rhage quanto John estavam na mesma condição.

As adagas que V. fizera à mão para todos eles eram o único recurso.

Mais perto... mais perto...

Quando os quatro assassinos finalmente estavam ao alcance, sua cronometragem foi perfeita. Assim como a dos outros.

Com um movimento coordenado perfeito, ele saltou e começou a apunhalar os dois mais próximos a ele. John e Rhage atacaram os outros...

Quase imediatamente, mais assassinos surgiram das árvores, mas, por algum motivo, talvez porque a Sociedade Redutora não estivesse armando seus alistados muito bem, não havia balas. O segundo round se passou pela neve com o tipo de armas que se esperaria ver numa briga de beco: tacos de baseball, pés-de-cabra, chaves de rodas e correntes.

Por ele, tudo bem.

Estava tão pilhado e furioso, que lhe faria bem sair na mão.


CAPÍTULO 19

Sentada na mesa de exames, com uma camisola frágil de papel cobrindo-a e os pés descalços pendurados da orla acolchoada, Layla sentiu como se estivesse cercada por instrumentos de tortura. E devia ser isso mesmo. Todo tipo de utensílios de aço inoxidável estava enfileirado na bancada da pia, com as embalagens plásticas transparentes indicando que estavam estéreis e prontos para serem usados.

Já fazia uma eternidade que estava na clínica de Havers. Ou, pelo menos, era o que parecia.

Em contraste com o trajeto apressado para atravessar o rio, quando o mordomo dirigira como se soubesse que a pressa era essencial, desde que ali chegara só acontecera um retardo após o outro. Desde a burocracia até a sala de espera, o aguardo pela enfermeira, a demora para que Havers apresentasse o resultado do seu exame de sangue.

Era o suficiente para enlouquecer alguém.

Do lado oposto ao que ela estava sentada, havia uma imagem emoldurada pendurada na parede, e há tempos ela havia memorizado suas pinceladas e cores, o buquê de flores pintadas em azuis e amarelos vibrantes. O nome embaixo dizia: van Gogh.

Àquela altura, ela nunca mais queria ver uma íris novamente.

Mudando de posição, fez uma careta. A enfermeira lhe entregara um objeto apropriado para o sangramento e ela ficou horrorizada ao perceber que logo precisaria de outro...

A porta se abriu com uma batida e seu instinto imediato foi correr, o que era ridículo. Era ali que precisava estar.

Só que tratava-se apenas da enfermeira que a levara até ali, tirara a amostra de sangue para o exame e seus sinais vitais, e tomara notas no computador.

– Sinto muito, houve outra emergência. Só quis certificá-la de que será a próxima.

– Obrigada – Layla se ouviu dizer.

A fêmea se aproximou e pôs uma mão em seu ombro.

– Como está se sentindo?

A gentileza a fez piscar rápido.

– Acho que vou precisar de outro... – ela apontou para o quadril.

A enfermeira assentiu e deu um leve apertão antes de seguir para a bancada e apanhar uma embalagem quadrada cor de pêssego.

– Temos mais aqui. Gostaria que eu a acompanhasse até o banheiro no final do corredor?

– Sim, por favor...

– Espere, não se levante ainda. Deixe-me pegar algo para que se cubra melhor.

Layla baixou o olhar para as mãos, aquelas que estavam enroscadas uma na outra e que não conseguiam ficar quietas.

– Obrigada.

– Aqui está – algo macio a envolveu. – Ok, agora vamos colocá-la de pé.

Escorregando para fora da mesa, ela se desequilibrou um pouco e a enfermeira estava logo ali, segurando-a pelo cotovelo para estabilizá-la.

– Vamos bem devagar.

E foi o que fizeram. No corredor, havia enfermeiras se apressando de quarto em quarto, e pessoas entrando e saindo das suas consultas, e outras equipes correndo... e Layla não conseguia acreditar que um dia fora rápida como eles. Para se afastarem do tráfego, ela e a gentil acompanhante ficaram próximas da parede, a fim de evitar serem atropeladas, mas os outros eram verdadeiramente gentis. Como se todos soubessem que ela estava sofrendo seriamente.

– Vou entrar com você – disse a enfermeira quando chegaram ao banheiro. – A sua pressão está muito baixa e fico preocupada que possa desmaiar, está bem?

Enquanto Layla assentia, elas entraram e trancaram a porta. A enfermeira retirou-lhe a coberta, e ela, desconcertada, afastou o papel do caminho.

Sentando-se, ela...

– Ah, santa Virgem Escriba.

– Psiu, está tudo bem, tudo bem – a enfermeira se inclinou e lhe estendeu o absorvente. – Vamos cuidar disso. Você está bem... aqui, não, você precisa me dar isso. Temos que encaminhar para o laboratório. Existe a possibilidade de ser usado para determinar o que está acontecendo e você há de querer ter essa informação quando tentar novamente.

Tentar novamente. Como se a perda já tivesse ocorrido.

A enfermeira colocou as luvas e pegou um saco plástico de um suporte. Ela cuidou de tudo com discrição e diligência, e Layla viu quando o nome que havia dado foi escrito do lado de fora do saco com uma caneta preta.

– Ah, querida, está tudo bem.

A enfermeira retirou as luvas, arrancou um pedaço de papel higiênico de um suporte na parede e se ajoelhou. Segurando o queixo de Layla com uma mão gentil, cuidadosamente enxugou as faces que se molharam de lágrimas.

– Sei bem pelo que está passando. Também perdi um – o rosto da enfermeira se tornou belo pela compaixão. – Tem certeza de que não podemos chamar o seu hellren?

Layla apenas balançou a cabeça.

– Bem, avise-me se mudar de ideia. Sei que é difícil vê-los tristes e preocupados, mas não acha que ele gostaria de estar aqui com você?

Ah, como contaria a Qhuinn? Ele parecera tão certo de tudo, como se já tivesse visto o futuro e encarado os olhos do filho deles. Aquilo seria um choque.

– Saberei se estive mesmo grávida? – murmurou Layla.

A enfermeira hesitou.

– O exame de sangue pode revelar isso, mas tudo depende de quanto tempo você está se sentindo assim.

Layla fitou as mãos novamente. As juntas estavam brancas.

– Preciso saber se estou tendo um aborto ou se isto é apenas um sangramento normal que acontece quando não se engravida. Isso é importante.

– Lamento muito, mas não sou eu quem pode lhe garantir isso.

– Mas você sabe, não sabe? – Layla levantou a cabeça para fitá-la nos olhos. – Não sabe?

– Repito, não sou eu quem pode lhe garantir, mas... com esse tanto de sangue?

– Eu estava grávida.

A enfermeira fez um movimento amplo com as mãos, os lábios se contraindo.

– Não conte a Havers que eu lhe disse isso, mas... sim, provavelmente. E você precisa saber, não há nada que você possa fazer para deter o processo. Não é culpa sua, e você não fez nada errado. É só que, às vezes, essas coisas simplesmente acontecem.

Layla deixou a cabeça pender.


– Obrigada por ser honesta comigo. E... na verdade, é isso o que acho que está acontecendo.

– Uma fêmea sabe. Bem, vamos levá-la de volta.

– Sim, muito obrigada.

Mas Layla teve dificuldade para suspender a calcinha ao se levantar. Quando ficou claro que não conseguia coordenar as mãos, a enfermeira se adiantou e a ajudou com facilidade invejável, e tudo foi tão vergonhoso e assustador. Ficar fraca e à mercê de outra pessoa para uma coisa tão simples...

– Você tem um sotaque maravilhoso – disse a enfermeira ao voltarem para o tráfego do corredor, retornando mais uma vez para a faixa mais lenta. – É tão Velho Mundo... minha avó aprovaria. Ela odeia o fato de o inglês ter se tornado a língua dominante aqui. Acredita que isso será a derrocada da nossa espécie.

A conversa a respeito de nada em especial ajudou, dando a Layla algo em que se concentrar em vez de pensar em quanto tempo aguentaria até ter de refazer aquele percurso... e se as coisas estavam piorando nesse aborto... e como seria quando fosse forçada a encarar Qhuinn para lhe dizer que fracassara...

De algum modo, chegaram à sala de exames.

– Não deve demorar muito mais. Prometo.

– Obrigada.

A enfermeira parou à porta e, ao se imobilizar, sombras cruzaram o fundo do seu olhar, como se ela estivesse revivendo partes de seu próprio passado. E no silêncio entre elas, um momento de comunicação ocorreu, e embora fosse raro ter algo em comum com uma fêmea da Terra, a conexão foi um alívio.

Ela se sentira tão sozinha naquilo tudo.

– Temos pessoas com quem você pode conversar – disse a fêmea. – Às vezes, conversar depois de tudo pode ajudar de verdade.

– Obrigada.

– Use esse botão branco se precisar de ajuda ou se sentir-se tonta, está bem? Não vou estar longe.

– Sim, farei isso, obrigada.

Enquanto a porta se fechava, lágrimas embaraçam sua visão, e mesmo sentindo uma dor profunda, a sensação esmagadora de perda era desproporcional à realidade. A gestação estava apenas bem no comecinho e, logicamente, não havia muito a perder.

No entanto, para ela, aquilo era o seu filho.

Aquilo era a morte do seu filho...

Houve uma batida suave à porta e depois uma voz masculina.

– Posso entrar?

Layla apertou os olhos e engoliu com força.

– Por favor.

O médico da raça era alto e distinto, com óculos de aro de tartaruga e uma gravata borboleta. Com um estetoscópio ao redor do pescoço e aquele longo jaleco branco, ele era a figura perfeita de um curador, calmo e competente.

Ele fechou a porta e sorriu de leve para ela.

– Como está se sentindo?

– Bem, obrigada.

Ele a fitou do outro lado da sala, como se estivesse avaliando seu estado clínico, embora não a tocasse ou usasse instrumento algum.

– Posso ser franco?

– Sim, por favor.

Ele assentiu e puxou um banquinho com rodinhas. Sentando-se, equilibrou o prontuário no colo e a encarou.

– Vejo que você não indicou o nome do seu hellren... nem do seu pai.

– É preciso?

O médico hesitou.

– Não tem nenhum parente, minha querida? – quando ela negou com a cabeça, os olhos dele registraram tristeza profunda. – Lamento muito pelas suas perdas. Então, não há ninguém que possa estar aqui com você? Ninguém?

Como ela simplesmente continuou ali, sem dizer nada, ele inspirou fundo.

– Muito bem...

– Mas posso pagar – ela deixou escapar de supetão. Ela não sabia muito bem onde arranjaria o dinheiro, mas...

– Ah, meu bem, não se preocupe com isso. Não preciso receber se não puder pagar – ele abriu o prontuário e afastou uma página. – Vejamos, vejo aqui que passou pelo seu cio.

Layla apenas concordou, como se isso fosse tudo o que pudesse fazer para não gritar: Qual é o resultado do exame?

– Bem, verifiquei o resultado do seu exame de sangue e ele mostrou algumas... coisas que eu não esperava. Portanto, se permitir, eu gostaria de coletar mais uma amostra e enviá-la para o laboratório para mais alguns exames. Com isso, espero ser capaz de entender o que está acontecendo... e também farei um ultrassom, se não se importar. É um exame padrão que me dará uma ideia de como as coisas estão progredindo.

– Como, por exemplo, quanto tempo sangrarei até que termine tudo? – disse com severidade.

O médico da raça esticou a mão para segurar a dela.

– Primeiro vamos ver como você está, certo?

Layla respirou fundo e concordou mais uma vez.

– Certo.

Havers foi até a porta e chamou a enfermeira. Quando a fêmea entrou no quarto, ela trouxe consigo o que parecia ser um computador de mesa montado num carrinho: havia um teclado, um monitor e umas varetas erguidas nas laterais do equipamento.

– Vou deixar que a enfermeira tire o sangue... as mãos dela são muito mais competentes que as minhas nesse quesito – ele sorriu de maneira gentil. – Nesse meio-tempo, vou verificar outro paciente. Volto em seguida.

A segunda picada de agulha foi muito melhor do que a primeira, pois ela sabia o que esperar, e ela foi deixada a sós por um curto tempo quando a enfermeira saiu para levar a amostra ao laboratório – o que quer que fosse ele e onde quer que estivesse localizado. Ambos voltaram em seguida.

– Pronta? – Havers perguntou.

Quando Layla fez que sim, ele e a enfermeira trocaram algumas palavras e o equipamento foi disposto perto de onde ela estava sentada. O médico, então, acomodou-se novamente no banquinho e puxou dois tipos de extensões das laterais da mesa de exame. Abrindo o que pareciam ser um par de estribos, ele fez um gesto para a enfermeira que reduziu a iluminação e se aproximou para apoiar uma mão no ombro de Layla.

– Deite-se, por favor – pediu Havers. – E desça até chegar ao fim da mesa. Você vai colocar os pés aqui depois de despir a roupa de baixo.

Enquanto ele indicava os dois estribos, os olhos de Layla se arregalaram. Ela não fazia ideia de que o exame seria...

– Nunca antes fez um exame interno? – perguntou Havers com hesitação. Quando ela começou a balançar a cabeça, ele assentiu. – Bem, isso não é incomum, ainda mais se esse foi o seu primeiro cio.

– Mas não posso tirar... – ela se interrompeu. – Estou sangrando.

– Cuidaremos disso – o médico parecia cem por cento confiante. – Vamos começar?

Layla fechou os olhos e se inclinou para trás para se deitar, o papel fino que cobria a superfície acolchoada rangendo debaixo do seu peso. Elevando os quadris e mudando um pouco de posição, ela se desfez do que a cobria.

– Cuido disso para você – disse a enfermeira baixinho.

Os joelhos de Layla se encontraram enquanto ela foi tateando com os pés à procura dos malditos estribos.

– Isso mesmo – o banquinho de rodinhas guinchou quando o médico se aproximou. – Mas vá mais para baixo.

Por uma fração de segundo, ela pensou que não conseguiria.

Curvando os braços ao redor do baixo ventre, apertou-os, como se pudesse, de algum modo, segurar o bebê dentro dela ao mesmo tempo em que tentava se controlar. Mas não havia nada que pudesse fazer, nenhuma conversa que pudesse ter com seu corpo para acalmá-lo e segurar o que fora implantado, nenhum papo amoroso que pudesse ter com o filho para que ele tentasse sobreviver, nenhum fluxo de palavras para acalmá-la do seu pânico absoluto.

Por um momento, ela desejou a vida enclausurada que um dia considerou tão sufocante. Lá no Santuário da Virgem Escriba, a natureza plácida da sua existência fora algo que ela dera como certo. De fato, desde que descera para a Terra e tentara encontrar um propósito aqui, fora atingida por um trauma atrás do outro.

Isso fez com que respeitasse os machos e as fêmeas de quem lhe disseram ser inferiores a ela.

Ali embaixo, todos pareciam estar à mercê de forças além do controle deles.

– Está pronta? – perguntou o médico.

Enquanto lágrimas corriam pelos cantos dos olhos, ela se concentrou no teto e agarrou a beira da mesa.

– Sim. Pode começar.


CAPÍTULO 20

Puta merda, Qhuinn estava completamente sem controle.

Quase nenhuma visibilidade. O avião balançando de um lado para o outro como se estivesse sofrendo delirium tremens. Motor ligando e desligando.

E ele nem podia dar uma olhada em Z. O vento estava forte demais para gritar, e não pretendia despregar os olhos do que quer que viesse pela frente – ou melhor dizendo, daquilo no que bateriam de frente – mesmo sem conseguir enxergar nada...

O que o fizera pensar que aquilo era uma boa ideia?

A única coisa que parecia estar funcionando era a bússola, portanto, ao menos ele conseguia se orientar quanto à localização da base: o complexo da Irmandade ficava ao norte, um tantinho ao leste, no topo de uma montanha circundada pelo mhis de V., a divisa defensiva invisível. Com isso, em relação ao direcionamento, ele estava certo, desde que o mostrador de N – S – L – O estivesse mais operacional do que, digamos, todo o resto daquele caixote.

Ao olhar para a direita, o vento incessante que passava pelo vidro parcialmente quebrado atingiu seu canal auditivo. Pela janela lateral, ele via... uma imensidão negra. O que ele interpretou como indício de eles terem passado pelo subúrbio e estarem sobrevoando as fazendas. Talvez já estivessem sobre as colinas que, no fim, transformariam-se na montanha...

Um som como o do escapamento de um carro explodindo chamou sua atenção negativamente, mas o que foi pior?

O silêncio repentino que se seguiu.

Nada de motor roncando. Apenas o vento soprando para dentro da cabine.

Ok, agora sim estavam em apuros.

Por um átimo, ele pensou em se desmaterializar. Era forte o bastante, estava consciente, mas jamais abandonaria Z...

Uma mão forte pousou em seu ombro, assustando-o tremendamente.

Z. se arrastara para a frente e, baseando-se em sua expressão, estava tendo dificuldades para se manter de pé. E não só pelos solavancos.

O Irmão falou, sua voz grossa superando todo aquele barulho.

– Hora de você ir embora.

– Nem a pau – berrou Qhuinn em resposta. Esticando o braço, tentou a ignição. Não faria mal tentar, não é mesmo?

– Não me obrigue a jogá-lo para fora.

– Tente.

– Qhuinn...

O motor voltou a pegar, o barulho se intensificando. Boas novas. A questão era que, se o maldito desligara uma vez, era bem possível que o fizesse novamente.

Qhuinn enfiou a mão na jaqueta. Ao apanhar o celular, pensou em todos que os dois estavam deixando para trás e passou o objeto para o Irmão.

Se existia uma hierarquia nessa coisa de se despedir, Z. estava no topo da lista. Ele tinha uma shellan e uma filha. Se alguém tinha de fazer uma ligação, esse alguém era ele.

– Para que isso? – Zsadist perguntou sombrio.

– Descubra você mesmo.

– E você pode ir...

– Não vou a parte alguma. Vou pilotar esta armadilha até batermos em alguma coisa.

Houve certa discussão depois disso, mas ele não sairia do assento do piloto, e por mais forte que o Irmão fosse em circunstâncias normais, Z. não estava em condições de suspender nada além de uma fatia de pão. E a conversa não durou muito. Depois que a discussão terminou, Z. desapareceu, sem dúvida indo para os fundos para fazer o último contato com as pessoas amadas.

Decisão inteligente.

Deixado a sós com seus equipamentos, Qhuinn fechou os olhos e lançou uma oração para quem pudesse ouvir. E visualizou o rosto de Blay...

– Pegue.

Ele abriu os olhos. O celular estava bem na sua frente, firme na mão de Z. E o mapa de GPS estava sendo mostrado, as pequenas setas piscantes indicando onde exatamente eles estavam.

– Mais uns cinco quilômetros – exclamou o Irmão acima do barulho ensurdecedor. – É tudo de que precisamos...

Houve um estouro, um assobio e mais uma rodada daquele silêncio terrível. Praguejando, Qhuinn concentrou-se naquela tela sempre desejando que as coisas voltassem a funcionar. Mais para o norte, obviamente, porém, mais para o leste. Muito mais. Seus cálculos estavam certos, mas não exatos.

Sem o telefone? Estariam fritos.

Bem, isso e toda aquela situação do motor.

Verificando a localização precisa, ele fez alguns cálculos mentalmente e virou para a direita, tentando chegar àquela indicação no mapa que levava diretamente para a montanha. Em seguida, seria a vez de tentar religar o motor.

Estavam perdendo altitude. Não espiralando, situação na qual haveria um close-up no altímetro e a coisa estaria acelerada do modo como você desejaria que as hélices estivessem. Mas lentamente, inexoravelmente indo para baixo... e se perdessem a aceleração, o que era o que aquela máquina de costura insegura debaixo do teto seria capaz de prover, acabariam caindo como uma pedra.

Tentando a ignição repetidas vezes, murmurou:

– Vamos, vamos, vamos...

Era difícil tentar manter o nariz empinado com apenas uma mão; e bem quando ele ia passar a devotar toda sua atenção ao manche, o braço de Z. se esticou, afastou a mão dele, e assumiu o controle sobre o botão da ignição.

Por um segundo, Qhuinn vislumbrou a marca de escravo para fora dos punhos da jaqueta do Irmão, mas logo voltou a se concentrar.

Deus, seus ombros estavam em chamas por puxar o manche para trás.

E pensar que ele estava morrendo de vontade de ouvir aquela barulheira do...

De uma só vez, o motor engasgou de volta à vida, e a mudança de altitude foi imediata. No instante em que os plugues e pistões começaram a rugir novamente, os números começaram a subir.

Mantendo a alavanca puxada, verificou o nível de combustível. Estava no vazio. Talvez estivessem apenas sem combustível, e não se tratasse de um problema mecânico?

Uma tolice, certo?

– Só mais um pouquinho, meu bem... um pouco mais, vamos lá, querida, você consegue...

Enquanto um fluxo interminável de encorajamento escapava dos seus lábios, as palavras impotentes eram abafadas pela única coisa que importava – mas, espere, como se o Cessna falasse inglês...!

Caramba, parecia que aquilo duraria uma eternidade, a esperança e as orações, seu cérebro num jogo de pingue-pongue entre os melhores e os piores cenários enquanto quilômetros eram atravessados num ritmo agonizantemente lento.

– Diga que telefonou para as suas fêmeas – berrou Qhuinn.

– Diga que consegue nos manter acima do solo.

– Não vou mentir.

– Leve-nos mais para o leste.

– O quê?

– Leste! Vá para o leste!

Z. aumentou o zoom do mapa e começou a correr o dedo em uma direção, de leste a oeste.

– Você vai precisar aterrissar neste ponto... atrás da mansão!

Qhuinn deduziu que deveria tomar como um bom sinal que o cara estava fazendo planos de aterrissagem que não envolviam bolas de fogo. E a sugestão era boa. Se conseguissem se orientar ao longo da mansão, do lado oposto à piscina, eles poderiam acabar com algumas árvores frutíferas... porém, teriam mais ou menos o mesmo tanto de pista que tiveram para decolar.

Muito melhor do que bater no muro que cercava a propriedade...

Daquela vez, o motor não emitiu nenhum aviso. Simplesmente morreu, como se estivesse cansado de brincar de pega-pega e houvesse decidido tirar uma folga permanente.

Ao menos já estavam próximos da aterrissagem.

Uma chance. Era tudo de que dispunham.

Uma única tentativa de aterrissar que, desde que ele conseguisse levá-los até as cercanias da propriedade, penetrar o mhis, e conseguir não colidir na mansão, no ginásio, nas construções, nos portões nem em nada que fosse real ou algum tipo de propriedade... resultaria nele entregando o orgulhoso pai e amoroso hellren, e soberbo lutador... de volta aos braços da família.

Mas não era só em Z. que ele estava pensando.

O Primale cuidaria da saúde e do bem-estar de Layla. Blay tinha os pais amorosos e Sax. John tinha a sua Xhex.

Todos eles ficariam bem.

Qhuinn se virou.

– Sente-se! Lá atrás! Sente-se e prenda o cinto de segurança...

O Irmão abriu a boca e Qhuinn fez o impensável. Cobriu os lábios do macho com a mão.

– Sente-se de uma vez e se amarre! Chegamos até aqui... não vamos estragar tudo!

E pegou o celular de volta.

– Vá! Deixe comigo!

Os olhos de Z. se conectaram aos seus e, por um breve segundo, Qhuinn se perguntou se seria lançado para fora da cabine. Mas então, o milagre aconteceu: um instante de conexão se estendeu entre eles, uma corrente de elos tão grossos quanto coxas ligando-os um ao outro.


Z. levantou o indicador e apontou direto no rosto de Qhuinn. Depois de acenar uma vez com a cabeça, desapareceu na parte traseira.

Qhuinn voltou a se concentrar.

A navegação os mantinha no alto, e graças às orientações de Z., aquela guinada extra à direita os colocara na direção certa. De acordo com o GPS, estavam se aproximando da junção de estradas que dava a volta na base da montanha, centímetro a centímetro. Centímetro... a centímetro...

Ele estava bem certo de que localizavam-se acima da propriedade agora.

Enquanto o avião abaixava mais, ele se preparou, continuando a puxar o manche com força até que os ombros cravassem no assento atrás dele. Não havia trem de pouso para puxar. Ele esteve abaixado o tempo todo...

Um assobio repentino penetrou na cabine, e isso, junto a uma abrupta mudança de angulação, anunciou que a gravidade começara a vencer a batalha, exigindo a construção de fibra de vidro e metal e tendo um par de vidas como seu prêmio.

Eles não conseguiriam... era cedo demais...

Uma vibração selvagem se seguiu e, por um momento, ele se perguntou se não tinham atingido o chão sem que ele percebesse. Copas de árvores, talvez? Não. Algo...

O mhis?

O amortecedor repentino parecia se estender para cima, e, ora essa, o avião reagiu de modo diferente, o bico se nivelando sem nenhum esforço da parte de Qhuinn ou ajuda do peso morto que era aquele motor. Até mesmo o sacolejo de um lado para o outro cessou.

Aparentemente, a defesa invisível de V. não só mantinha afastados humanos e redutores, como também sustentava um Cessna no ar.

Só que tinham um problema. Aquela elevação vital parecia não acabar.

Do modo como iam as coisas, era como se ele fosse flutuar ali para sempre, ultrapassando a única pista de aterrissagem que tinham...

Abruptamente, o barulho retornou, e ele verificou o altímetro. Tinham descido cerca de sete metros, e ele teve que se perguntar se tinham penetrado a barreira.

Luzes. Ah, bom Jesus amado. Luzes.

Do lado de fora da janela, abaixo, ele via o brilho da mansão e o pátio. Estava distante demais para distinguir os detalhes, mas só podia ser – sim, a pequena ramificação só podia ser o ginásio.

Instantaneamente, seu cérebro dimensionou e reorientou tudo.

Merda. O ângulo estava errado. Se continuasse assim, aterrissaria de frente para a propriedade e não ao longo dela. E a porcaria era que não tinha altitude suficiente para executar um círculo grande para apontá-lo para a direção certa.

Quando não se tem opções, a única alternativa é fazer dar certo.

Seu maior problema era deixar passar o gramado. Só havia uma clareira na montanha. O resto? Árvores que os devorariam.

Ele precisava descer mais. Imediatamente.

– Segure-se!

Mesmo sendo um contrassenso, ele arremessou o manche para frente, e os direcionou para o chão. Houve uma mudança de velocidade imediata, e ele rezou que se recuperasse disso quando chegasse à zona de impacto. E merda, a intensa trepidação ficou ainda pior, ao ponto de ele ficar tonto, e os braços doerem por segurar firme o manche.

Mais rápido. Mais próximo. Mais rápido. Mais barulhento. Mais próximo.

E, então, chegou a hora. A casa e os jardins estavam logo à frente, indo ao encontro deles numa velocidade de matar.

Ele puxou com força, e a nova velocidade os fez levantar um pouco. Por cima da casa...

– Prepare-se! – exclamou a plenos pulmões.

Enquanto a câmera lenta assumia o comando, tudo se ampliou: a propriedade, os segundos, a dor nos olhos enquanto ele se esforçava para olhar adiante, a sensação do seu corpo sendo empurrado para trás no assento...

Merda. Ele estava sem o cinto de segurança.

Nem se preocupara com isso. Coisas demais em que pensar.

Idiota...

Nesse mesmo instante, fizeram contato com algo. Com força. O avião pulou, bateu em outra coisa, ricocheteou e pulou novamente. Nesse meio-tempo, sua cabeça bateu no painel acima dele, e seu traseiro ficou estatelado no assento, e seu...

Deixa para um mix de dores.

A fase seguinte da aterrissagem dos infernos foi um misto de desliza-chacoalha-rola que quase o lançou para fora da cabine. Aquilo era o chão – só podia ser – e, maldição, como iam rápido. As luzes corriam pelas janelas, tudo parecendo o Studio 54* até ele ficar praticamente cego. E por causa do lado em que o estroboscópio estava, ele deduziu que estavam no jardim – mas estavam ficando sem espaço.

Segurando o manche, ele os fez dar um cavalo de pau, na esperança que as mesmas leis da física que se aplicavam a carros desgovernados funcionassem ali: sem freios, espaço limitado e o único modo de diminuir a velocidade era mudar o coeficiente aerodinâmico.

A força centrífuga o fez bater na lateral da cabine e a neve bombardeou seu rosto; depois, algo afiado.

Merda, eles não estavam desacelerando em nada.

E aquele muro de proteção de seis metros de altura e 45 centímetros de espessura estava se aproximando com rapidez.

E por falar em paradas abruptas...

* Lendária discoteca em Manhattan que funcionou entre 1977 e 1986. (N.T.)


CAPÍTULO 21

Blay se desmaterializou para a mansão no instante em que o último assassino naquela clareira foi enviado de volta a Ômega. Como Qhuinn ainda estava no ar com Z., não havia razão para perder mais tempo à espera de mais um esquadrão.

Mesmo por que não havia nada que alguém pudesse fazer para ajudar aqueles dois.

Reaparecendo no pátio, ele...

Diretamente acima dele, sem produzir som algum, aquele maldito avião bloqueava a luz da lua.

Puta merda, eles conseguiram e, caramba, estavam tão próximos que ele pensou que, caso se esticasse, conseguiria tocar a fuselagem do Cessna.

O silêncio sepulcral, porém, não era um bom sinal...

O primeiro impacto veio do alto das cercas vivas que delimitavam o jardim. O avião saltou das pontas, pegou uma corrente de ar, depois sumiu de vista.

Blay se desmaterializou ao redor da varanda bem a tempo de ver o Cessna bater na neve, caindo como um homem obeso mergulhando de barriga numa piscina, criando grandes ondas brancas para todos os lados. E então a aeronave se transformou no maior cortador de grama jamais visto pelo homem, a combinação de seu corpo de aço e a velocidade acelerada demais, destruindo fileiras de árvores frutíferas e de moitas de flores que foram protegidas do inverno, e caramba, até mesmo a fileira de bebedouros para os pássaros.

Mas ao inferno com tudo isso. Ele pouco se importava se tivessem de replantar o lugar inteiro, desde que o avião parasse... antes do muro de contenção.

Por uma fração de segundo, ele chegou a pensar em se materializar diante da coisa e detê-la com as mãos, mas isso seria loucura. Se o Cessna não parecia se incomodar com as estátuas de mármore que ele agora destruía, pouco se importaria com um macho vivo e respirando diante dele...

Por nenhum motivo aparente, todo aquele descontrole começou a girar, a asa encarando Blay como se Qhuinn estivesse tentando virar. A derrapagem foi o movimento perfeito. Nem precisava ser dito que não havia freios, e desde que o espiral se sustentasse, eles teriam mais área para perder velocidade.

Merda, eles estavam mesmo perto demais do muro de contenção...

Centelhas de luz iluminaram a noite, além do grito de metal contra pedra que anunciava que “o perto demais do muro” fora substituído por “bem contra ele”, mas, graças à manobra de Qhuinn, eles se colocaram numa posição paralela em vez de irem de frente.

Blay começou a correr na direção do show de luzes, e outros o acompanharam quando ele assim o fez, um verdadeiro bloco de pessoas em fila. Não havia como deter aquilo, mas eles bem podiam estar a postos quando as coisas...

Tum!

... terminassem.

O avião finalmente encontrou um objeto inanimado que não conseguiu superar: o barracão usado para guardar alguns dos equipamentos e produtos de jardinagem bem no fim do jardim.

Parada completa.

E tudo estava silencioso demais. Tudo o que Blay ouviu foi o suissssh dos coturnos trafegando pela neve, e sua respiração arfando no ar frio, e a pressa dos outros atrás de si.

Ele foi o primeiro a chegar à aeronave e se dirigiu à porta que, como por milagre, estava livre e não imprensada ao muro de concreto. Abrindo-a e sacando a lanterna de bolso, ele não sabia o que esperava encontrar. Fumaça? Gases? Sangue e partes de corpos?

Zsadist estava sentado rígido no assento de frente para os fundos, com o corpo amarrado, ambas as mãos travadas nos apoios de braços. O Irmão encarava à frente, sem piscar.

– Paramos de nos mexer? – perguntou rouco.

Ok, ao que tudo levava a crer, até mesmo um Irmão podia ficar em estado de choque.

– Sim, pararam – Blay não queria ser rude, mas agora que estava certo de que um deles sobrevivera, ele queria ver se Qhuinn...

O macho cambaleou para fora da cabine. No facho de luz da lanterna de Blay, ele parecia ter estado num brinquedo radical de um parque de diversões, com o cabelo todo para trás da testa queimada pela ação do vento, os olhos, um verde e outro azul, arregalados num rosto completamente pálido, cada membro do corpo trêmulo.

– Você está bem? – exclamou ele, como se os ouvidos estivessem surdos depois de expostos a muito barulho. – Z., diga alguma coisa...

– Estou aqui – respondeu o Irmão, fazendo uma careta de dor ao soltar uma das garras dos apoios de braço. – Estou bem, filho... Estou bem.

Qhuinn se agarrou ao que estava saliente e foi então que seus joelhos se dobraram. Ele apenas caiu entre as mãos estendidas, a voz entrecortada a ponto de ele mal conseguir falar.

– Eu só... queria que você... estivesse bem... Só queria... que você... ficasse bem, oh Deus... para a sua filha... Só queria que você ficasse ok...

Zsadist, o Irmão que nunca tocava em ninguém, esticou-se e pousou uma mão livre na cabeça inclinada de Qhuinn. Erguendo os olhos, ele disse suavemente:

– Não deixe ninguém entrar aqui. Dê um minuto a ele, ok?

Blay assentiu e se virou, bloqueando a entrada com o corpo.

– Eles estão bem, eles estão bem...

Enquanto falava com a multidão, um bom número de pessoas fitava-no como se ele fosse um enviado de Deus, mas Bella não estava entre eles. Ela estava...

– Zsadist! Zsaaaaadist!

O grito se transportou por todo o caminho do gramado quando, do alto da varanda, uma figura solitária partiu em disparada em meio à neve.

Muitas pessoas responderam a Bella, mas ele duvidava de que ela tivesse ouvido qualquer coisa.

– Zsaaaadist!

Quando ela escorregou já perto dele, Blay imediatamente se esticou para pegá-la, preocupado que ela acabasse se chocando com a lateral do avião. Ah, Deus, ele jamais se esqueceria da expressão no rosto dela: era mais terrível do que qualquer atrocidade que já vira, como se ela estivesse sendo esfolada viva, como se os braços e pernas estivessem amarrados, e a pele estivesse sendo arrancada de seu corpo.

Qhuinn saiu do avião.

– Ele está bem, ele está bem, prometo... Ele está bem.

Bella se imobilizou, como se aquela fosse a última coisa que ela esperasse ouvir.

– Minha nalla, entre – disse Z. no mesmo tom baixo que usara com Qhuinn. – Entre aqui.

A fêmea chegou a olhar para Blay como se precisasse de uma garantia para saber se aquilo que ouvia estava correto. Em resposta, ele simplesmente a levou pelo cotovelo e a ajudou a passar pela portinhola.

Depois, mais uma vez virou de frente para bloquear a passagem. Enquanto os sons da fêmea chorando livremente em sinal de alívio emanavam, ele viu Qhuinn passar as mãos sobre os olhos como se o macho estivesse se livrando de lágrimas.

– Caramba, filho, eu não sabia que você sabia pilotar – alguém disse.

Enquanto Qhuinn levantava a cabeça, aparentemente olhando de relance para o cenário, Blay fez o mesmo. Pense numa cena apocalíptica: havia um rastro em toda a extensão pela qual o avião passara, como se o dedo de Deus tivesse feito uma linha em todo o jardim.

– Na verdade... eu não sei – murmurou Qhuinn.

V. levou o cigarro aos lábios e estendeu a palma.

– Você trouxe o meu Irmão de volta em um só pedaço. Que se foda o resto.

– Verdade...

– Sim, graças a Deus...

– Diabos, é isso aí...

– Amém...

Um a um, a Irmandade se adiantou, cada um deles erguendo a mão da adaga. A procissão levou um tempo, mas ninguém parecia se importar com o frio.

Blay, por certo, não o sentia. A ponto de ficar paranoico...

Colocando a mão dentro da jaqueta, encontrou o tórax e se deu um beliscão bem forte.

Ai.

Fechando os olhos, fez uma prece silenciosa para que aquilo fosse mesmo verdade... e não o horror que poderia ter sido.

Toda aquela atenção estava deixando Qhuinn nervoso.

E o seu pequeno voo nem fora uma experiência tão zen assim. A queimadura no rosto por causa de todo aquele vento, as dores nos ombros e nas costas, as pernas trêmulas... Ele sentia como se ainda estivesse lá em cima, ainda rezando para nada em que acreditava existir, parado e para sempre no limiar.

Da morte.

Além disso, estava tremendamente envergonhado. Deixar-se abater daquele jeito diante de Z.? Ora essa... Que covarde.

– Importam-se se eu der uma olhada? – a doutora Jane disse ao se aproximar da multidão.

Sim, uma boa ideia. O objetivo de tudo aquilo foi Z. estar ferido tão gravemente que não conseguia se desmaterializar.

– Qhuinn? – disse a fêmea.

– Como disse? – ah, ele estava atrapalhando. – Ok, deixe-me sair da frente...

– Não, não o Zsadist. Você.

– Hum?

– Você está sangrando.

– Estou?

A médica virou a mão dele.

– Vê? – e, como era de se esperar, escorriam gotas vermelhas de suas palmas. – Você acabou de esfregar o rosto. Está com um corte feio na cabeça.

– Ah, ok – talvez por isso se sentisse tão aéreo? – E quanto a Z.?

– Manny já está lá dentro.

Hum. Devia ter perdido aquela parte.

– Quer dar uma olhada em mim aqui?

Ela deu uma risada de leve.

– Que tal levarmos você de volta para a casa? Se conseguir andar.

– Eu cuido dele...

– Pode deixar que eu levo...

– Eu levo...

– Já peguei...

O coro de voluntários foi uma surpresa, bem como todos os braços solícitos que apareceram de todos os lados: ele, literalmente, foi envolvido por braços fortes de lutadores, e todos quase a carregá-lo do lugar como se estivesse fazendo stage diving num show de rock.

Ele olhou para trás, esperando ver Blay, rezando para se deparar com os olhos dele, mesmo isso sendo loucura...

Mas Blay estava lá.

O lindo olhar azul estava logo ali, tão firme e certo ao sustentar o seu que ele quase desmoronou novamente. E ele retirou forças daquele olhar, assim como o fizera na época em que passavam tanto tempo juntos. A verdade era que ele desejava que fosse Blay a levá-lo de volta à mansão, mas ninguém se arriscava a dizer nada à Irmandade quando ela aparecia em massa assim. Além disso, sem dúvida o cara pensaria que estariam próximos demais.

Qhuinn se concentrou no caminho à frente. Puta... merda...

O jardim fora completamente dizimado, metade da cerca viva de três metros de altura próxima à casa fora cortada, todos os tipos de árvore arrancados, arbustos aparados, os restos da colisão espalhados por todos os lados como estilhaços de uma metralha.

Caramba, muito do entulho se parecia com partes de avião.

Ah, olhe ali um painel de aço.

– Esperem – disse, libertando-se. Inclinando-se, pegou um fragmento afiado do chão no lugar em que derretera a neve. Ele podia jurar que a coisa ainda estava quente. – Eu sinto muito mesmo... disse para ninguém em especial.

A voz do Rei rebumbou diante dele:

– Por manter o meu Irmão vivo?

Qhuinn levantou a cabeça. Wrath saíra da biblioteca com George de um lado e a rainha do outro. O macho parecia tão grande e forte quanto a mansão atrás dele: mesmo cego, ele se parecia com um super-herói com aqueles óculos escuros encobrindo os olhos.

– Eu destruí o seu jardim – murmurou Qhuinn ao se aproximar do macho real. – Quero dizer... mudei o paisagismo de um modo muito ruim.

– Isso dará a Fritz algo para fazer na primavera. Você sabe o quanto ele adora arrancar ervas daninhas.

– Esse é o último dos seus problemas. Tenho quase certeza de que vai precisar de uma escavadeira.

Wrath se adiantou, encontrando-o no meio da varanda.

– Esta é a segunda vez, filho.

– Que eu arruinei algo mecânico nas últimas 24 horas? É, eu sei... Da próxima vez, é provável que eu destrua um navio de guerra.

As sobrancelhas negras se abaixaram.

– Não é disso que estou falando.

Ok, aquilo tinha de terminar logo. Ele realmente detestava ter as atenções voltadas para si.

Deliberadamente ignorando a afirmação do Rei, ele disse:

– Bem, a boa notícia é, meu Rei, que não estou pensando numa terceira rodada. Por isso, acho que vamos estar seguros daqui por diante.

Houve um murmúrio coletivo de concordância.

– Posso levá-lo para a clínica agora? – a doutora Jane interrompeu.

Wrath sorriu, as presas refletindo o luar.

– Faça isso.

Graças a Deus... a noite chegava ao fim.

– Onde está Layla? – a médica perguntou quando entraram no calor da biblioteca. – Acho que você precisa se alimentar.

Merda.

Enquanto a legião em roupas de couro atrás deles concordava com a ideia, os olhos de Qhuinn reviraram. Uma crise por noite era mais do que o suficiente. A última coisa na qual ele estava interessado era explicar por que, exatamente, a Escolhida não poderia ser usada como fonte de sangue.

– Você parece tonto – alguém comentou.

– Acho que ele vai...

E essa foi a última coisa que ele ouviu por um tempo.


CONTINUA

CAPÍTULO 11

Blay baixou a cabeça com uma imprecação enquanto a porta da academia se fechava. E claro, daquele ângulo, tudo o que enxergava era a sua ereção.

O que não ajudou.

Levantando o olhar, viu a barra fixa, e soube que tinha de fazer alguma coisa. Ficar sentado ali meio embriagado com uma festa armada entre as pernas dificilmente era uma posição na qual queria ser flagrado. Se um Irmão como Rhage entrasse e visse aquilo? Blay teria de aguentar a gozação pelo resto da vida. Além disso, estava com roupas de ginástica, cercado por equipamentos, portanto, só lhe restava se ocupar, puxar um pouco de ferro, e esperar que o senhor Alegria afundasse em depressão por falta de atenção.

Um bom plano.

Mesmo.

Claro.

Quando, um pouco depois, olhou para o relógio, percebeu que uns quinze minutos haviam se passado e ele não estava mais próximo de movimentos repetitivos e construtivos, a menos que se considerasse a respiração.

Sua ereção tinha uma sugestão para esse tipo de objetivo.

E sua palma se preparou, indo para o meio das pernas, encontrando a rigidez...

Blay levantou do assento num pulo e seguiu para a porta. Chega de idiotice. Iria para o banheiro do vestiário na esperança de reciclar um pouco do álcool no seu sistema. Depois voltaria para a esteira e suaria o resto da bebida.

Depois disso, seria hora de ir para a cama, onde, se precisasse de uma válvula de descarga do tipo erótico, ele a encontraria no local apropriado.

O primeiro sinal de que seu novo plano poderia levá-lo para mais confusão surgiu quando empurrou a porta do vestiário: o som de água corrente significava que alguém estava atarefado com o ritual do xampu e sabonete. Ele estava tão concentrado em se chutar no traseiro, porém, que nem se preocupou com qualquer conclusão.

O que o teria feito parar, virar e encontrar outro banheiro o mais rápido possível.

Em vez disso, passou pelos armários e foi fazer o que tinha de ser feito. Só quando estava lavando as mãos que os cálculos começaram a ser computados.

Por vontade própria, a cabeça girou na direção dos chuveiros.

Você tem que sair, ele se ordenou.

Ao desligar a torneira, o rangido sutil pareceu mais alto que um grito, e ele se recusou a se olhar no espelho. Não queria enxergar o que havia em seu olhar.

Volte para a porta. Apenas volte para a porta. Apenas...

O fracasso do seu corpo em seguir esse simples comando não foi apenas um exercício de rebelião física. Era, tragicamente, um padrão.

E ele se lamentaria mais tarde.

No momento, contudo, quando ele tomou a decisão de se aproximar e se esgueirar ao redor da parede de azulejos para os chuveiros, onde se manteve praticamente escondido, e espiou o macho que não deveria... a tresloucada onda de emoção que era tão dolorosamente familiar, era um conjunto de roupas feito sob medida para a sua insanidade.

Qhuinn estava de frente para o chuveiro com uma mão contra a parede escorregadia, a cabeça morena pensa debaixo do jato. A água corria pelos ombros e pelos acres de pele flexível que recobria as costas poderosas... depois descia pelo traseiro magnífico... e seguia em frente, passando pelas pernas longas e musculosas.

Durante o último ano, o lutador encorpara muito. Qhuinn ficara grande depois da transição e crescera ainda mais durante os primeiros meses de alimentação intensa. Mas já fazia um tempo desde que Blay não o via sem roupas... e, caramba, a rotina de puxar ferro à qual ele se submetera mostrava os resultados em todos aqueles músculos definidos...

Abruptamente, Qhuinn mudou de posição, virando, jogando a cabeça para trás, fazendo a água correr pelo cabelo escuro, aquele corpo incrível arqueando.

Ele manteve o piercing no pênis.

E, puta merda, estava excitado...

Um orgasmo imediatamente ameaçou a cabeça do pênis de Blay, os testículos ficando duros como punhos cerrados.

Dando meia-volta, ele saiu do vestiário como se tivesse sido lançado de um canhão, empurrando a porta, saindo em disparada no corredor.

– Ai, merda... cacete... puta que o...

Andando o mais rápido que podia, ele tentou tirar aquela imagem da cabeça, lembrando-se de que tinha um amante, que tocara a vida, que era possível se autodestruir a respeito da mesma coisa apenas uma limitada quantidade de vezes e que depois se chegava ao fim.

Quando nada disso funcionou, ele repetiu o discurso que fizera para Qhuinn no guincho...

Inferno, onde ficava o escritório?

Parando, olhou ao redor. Ah, fantástico. Tomara a direção oposta daquela que pretendia ter tomado, e agora tinha passado pela clínica e estava na ala de salas de aula do centro de treinamento.

A quilômetros de distância da entrada do túnel.

– ... laceração tão profunda. Mas ele não teve nada disso.

A voz grave de Manny Manello precedeu o homem que vinha pelo corredor saindo da sala de exames. Um segundo depois, a doutora Jane apareceu bem ao lado dele, com um prontuário aberto na mão, a ponta do dedo descendo pela página.

Blay se enfiou na primeira porta que encontrou...

E se deparou com uma parede de escuridão. Apalpando para encontrar um interruptor, visto que estava abalado demais para acender qualquer luz mentalmente, encontrou um, apertou e ficou momentaneamente cego.

– Ai!

A dor aguda que subiu da canela para o cérebro lhe disse que ele colidira com algo grande.

Ah, uma escrivaninha.

Estava num daqueles miniescritórios satélites das salas de aula, e isso era uma notícia muito boa. Com o programa de treinamento ainda suspenso por causa dos ataques, não havia ninguém ali embaixo, e provavelmente ninguém teria motivo para estar naquela saleta vazia.

Ele poderia ter um pouco de privacidade por um tempo, o que era uma bênção. Deus bem sabia que ele não tentaria voltar para a mansão agora. Com a sua sorte, acabaria se deparando com Qhuinn, e a última coisa de que ele precisava era estar perto do cara.

Indo para trás da escrivaninha, sentou-se na cadeira de escritório acolchoada e levantou as pernas, esticando-as sobre a superfície que deveria conter um computador, uma planta, um pote cheio de canetas. Em vez disso, estava vazia, ainda que não estivesse empoeirada. Fritz jamais permitiria isso mesmo num cômodo desocupado.

Esfregando a parte dolorida na canela, ficou evidente que produziria um belo hematoma. Mas ao menos a dor o distraíra daquilo que o motivara até ali.

Entretanto, isso não durou muito.

Ao inclinar a cadeira para trás e fechar os olhos, sua mente retornou ao vestiário.

E ele pensou se a tortura nunca teria um fim.

Deus, seu pênis estava latejando.

Considerando suas opções, ele ordenou que as luzes se apagassem, fechou os olhos e comandou que seu cérebro se desligasse para ele poder dormir. Se, ao menos, ele conseguisse cochilar uma ou duas horas ali, acordaria mais sóbrio, flácido e pronto para enfrentar as pessoas novamente.

Bem, esse era um bom plano, e também o ambiente era perfeito. Escuro, fresquinho, bem tranquilo do modo como somente as instalações subterrâneas podem ser.

Ajeitando o corpo ainda mais para baixo na cadeira, cruzou os braços sobre o peito e se preparou para o trem do sono REM chegar à estação.

Quando isso não funcionou, ele começou a imaginar todo tipo de situação “de desligamento”, como aspiradores de pó sendo puxados da tomada e incêndios sendo apagados com água e telas de TV escurecendo...

Qhuinn estava tão altamente “transável” daquele jeito, o corpo macio e liso entalhado em músculos, o sexo grosso e orgulhoso. Toda aquela água o deixara escorregadio e sensual... e, santa Virgem Escriba, Blay teria dado praticamente qualquer coisa para se aproximar, se ajoelhar e tomar o sexo dele na boca, sentindo aquela cabeça com suas investidas penetrantes em sua língua ao entrar e sair...

O som desgostoso que emitiu ecoou, parecendo mais alto do que provavelmente fora.

Abrindo os olhos, tentou tirar da cabeça qualquer fantasia que envolvesse chupar. Mas a escuridão completa não ajudou; apenas formou a tela perfeita para ele continuar a projetar as imagens.

Praguejando, deu uma chance para o lance de ioga, com o qual você relaxa a tensão em cada parte do corpo, começando pela prega sempre presente entre as sobrancelhas, depois as cordas rígidas que desciam pelos ombros até a base do crânio. O peito também estava apertado, os peitorais contraídos sem nenhum motivo aparente, os bíceps afundando nos antebraços.

Em seguida, ele deveria focar no abdômen, depois nas nádegas e coxas, nos joelhos e panturrilhas... até a pontinha do pé.

Ele não chegou tão longe.

Pensando bem, tentar convencer sua excitação sobre qualquer tipo de maleabilidade demandaria poderes de persuasão que seu cérebro parcialmente embriagado não possuía.

Infelizmente, só havia um modo seguro de se livrar do senhor Alegria. E, no escuro, sozinho, com a garantia de que “ninguém nunca vai ficar sabendo”, por que ele não podia simplesmente cuidar daquilo, apagar o fogo e desmaiar? Não era muito diferente de despertar no meio da noite com uma ereção – porque Deus bem sabia que não havia nenhuma emoção envolvida. E ele estava alcoolizado, certo? Então isso era mais uma razão.

Repetiu a si mesmo que não estava traindo Saxton. Não estava com Qhuinn – e era Saxton quem ele queria...

Por um instante, ele continuou a pesar os prós e os contras, mas, no fim, sua mão tomou a decisão por ele. Antes de se dar conta, a palma se escondia debaixo do cós folgado e...

O sibilo que emitiu ao se segurar foi como um tiro no silêncio, assim como o rangido da cadeira quando a investida dos quadris empurrou os ombros contra o estofamento de couro. Quente e duro, grosso e longo, seu pênis clamava por atenção, mas a angulação estava errada, e não havia espaço para mexer dentro dos malditos shorts.

Por algum motivo, a ideia de se despir da cintura para baixo o fez se sentir sujo, mas seu senso de decoro foi para o espaço bem rápido quando tudo o que ele conseguia fazer era apertar. Elevando o traseiro, abaixou os shorts, depois percebeu que precisaria de alguma coisa para limpar a bagunça.

A camiseta foi retirada em seguida.

Nu no escuro, esticado da cadeira para a escrivaninha, ele se entregou, afastando as pernas, bombeando para cima e para baixo. A fricção fez seus olhos revirarem, morder o lábio inferior. Deus, as sensações eram tão boas, fluindo pelo corpo...

Droga.

Qhuinn estava na sua cabeça, Qhuinn estava na sua boca... Qhuinn estava dentro dele, os dois se movendo juntos...

Isso era errado.

Congelou. Parou de pronto.

– Merda.

Blay soltou o pênis, ainda que o simples processo de desistir da traição o fizesse cerrar os molares.

Abrindo os olhos, fitou a escuridão. O som da sua respiração entrando e saindo do peito o fez praguejar novamente. Assim como a necessidade pulsante de um orgasmo – ao qual ele se recusava a ceder.

Não daria continuidade àquilo...

Do nada, a imagem de Qhuinn arqueado debaixo do jato de água golpeou sua mente, assumindo o controle. Contrariando seu raciocínio, sua lealdade, seu senso de justiça... seu corpo se sobrecarregou, o orgasmo atingindo o pênis antes que ele o conseguisse detê-lo, antes que ele conseguisse negar, pois aquilo não era certo... antes que ele conseguisse dizer “De novo, não. Nunca mais”.

Ah, Deus. A sensação doce e penetrante, repetida uma vez depois da outra até ele se perguntar se aquilo um dia terminaria, mesmo ele não tendo ajudado.

Aquela reação física podia estar além do seu controle. Sua reação a ela não.

Quando ele se aquietou por fim, a respiração estava agitada e o frio na pele nua do peito sugeria que ele suara... e enquanto o corpo se recuperava, sua consciência retornava, e a ereção murchando era como um barômetro do seu humor.

Esticando-se, apalpou a mesa até encontrar a camiseta; depois esfregou-a e pressionou-a na junção das coxas.

O resto da confusão em que se metera não seria tão fácil de limpar.

Do outro lado da cidade, no 18o andar do Commodore, Trez estava sentado numa cadeira lustrosa de aço e couro que ficava de frente para a parede envidraçada dando para o rio Hudson. O sol do meio-dia brilhava mais por causa da neve fresca que caíra nas margens durante a noite.

– Sei que está aqui – disse secamente, sorvendo um gole da caneca de café.

Quando não houve resposta, ele rodopiou a cadeira em sua base giratória. Como esperado, iAm viera do quarto e estava sentado no sofá, com o iPad no colo, o indicador deslizando pela tela. Ele devia estar lendo a edição online do The New York Times, claro; era o que fazia toda manhã ao acordar.

– Então – disse Trez. – Manda ver.

A única resposta que teve foi uma das sobrancelhas de iAm se erguendo. Por, digamos, meio segundo.

O bastardo presunçoso nem olhava para ele.

– Deve ser um artigo fascinante. Sobre o que é? Irmãos teimosos?

Trez passou algum tempo segurando a caneca de café quente.

– iAm. Sério. Que bobagem.

Depois de um momento, o olhar escuro do irmão se ergueu. Os olhos que sustentaram os seus estavam, como sempre, completamente livres de emoção, dúvida e todas as asneiras com que os mortais lidavam. iAm era sensível de maneira sobrenatural... como uma cobra: atenta, inteligente, pronta a atacar, mas relutante em desperdiçar força até que fosse necessário.

– O que foi? – resmungou Trez.

– Seria redundante lhe dizer o que você já sabe.

– Faça isso por mim – ele sorveu mais um gole e se perguntou por que diabos estava se oferecendo para aquilo. – Vá em frente.

Os lábios de iAm se contraíram como sempre quando ele pensava numa resposta. Depois ele fechou a capa do iPad, cada uma das quatro seções descendo como pegadas na tela. Então ele pôs de lado o equipamento, descruzou as pernas e se inclinou para frente para equilibrar os cotovelos sobre os joelhos. Os bíceps dele eram tão grossos que as mangas da camisa pareciam que se rasgariam.

– Sua vida sexual está fora de controle – enquanto Trez revirava os olhos, o irmão continuou a falar. – Está transando com três ou quatro mulheres por noite, às vezes mais. Não se trata de alimentar-se, portanto não perca o nosso tempo tentando usar essa desculpa. Você está comprometendo os padrões profissionais do...

– Eu lido com bebidas e prostitutas. Não acha que isso parece um pouco intelectual...

iAm pegou o iPad e o balançou.

– Devo voltar a ler?

– Só estou dizendo...

– Você me pediu para falar. Se isto é um problema, a solução não é ficar na defensiva porque não gosta do que está ouvindo. A resposta é não me convidar a falar.

Trez cerrou os dentes. Veja, era esse o problema com o maldito irmão. Ele era sensato demais.

Levantando-se num rompante, atravessou a sala ampla. A cozinha era como todo o resto do apartamento: moderna, arejada e despojada. O que significava que se ele se servisse de um pouco mais de cafeína, conseguiria enxergar o irmão em sua visão periférica.

Caramba, às vezes ele detestava aquele lugar. A menos que estivesse no quarto com a porta fechada, não conseguia se livrar daqueles olhos.

– Devo ler ou falar? – perguntou iAm com tranquilidade, como se isso lhe fosse indiferente.

Caramba, como Trez queria falar para o cara enfiar o nariz no jornal, mas isso seria o mesmo que admitir uma derrota.

– Continue – Trez voltou à poltrona e se preparou para uma surra.

– Você não está se comportando de maneira profissional.

– Você come no Sal’s.

– O meu linguini com molho de mariscos não requer uma ordem judicial quando decido que na noite seguinte quero o Fra Diavolo.

Bem observado. E, de alguma forma, isso o fez se sentir quase violento.

– Sei o que está fazendo – disse iAm. – E por quê.

– Você não é virgem, portanto é claro que...

– Sei o que lhe enviaram.

Trez parou.

– Como?

– Quando você não atendeu, recebi um telefonema.

Trez empurrou o tapete debaixo dos pés e girou a cadeira para ficar de frente para o rio. Merda. Ele imaginou que acalmaria a situação com aquilo, do tipo, dar ao irmão uma sessão de sermão para que os dois pudessem voltar ao normal. Eles costumavam ser como pele e osso, e o bom relacionamento era essencial.

Ele conseguia lidar com quase tudo, exceto com um desentendimento com o irmão.

Infelizmente, os problemas sobre os quais se referiam ali eram a única coisa no “quase tudo”.

– Ignorar não vai fazer isso desaparecer, Trez.

Isso foi dito com uma certa medida de gentileza, como se o cara lamentasse por ele.

Enquanto Trez fitava o rio, imaginou estar em seu clube, com humanos cercando-o, o dinheiro trocando de mãos e as mulheres que trabalhavam lá fazendo o que faziam nos fundos. Legal. Normal. Controlado e confortável.

– Você tem responsabilidades.

Trez segurou a caneca com mais força.

– Não me apresentei como voluntário a eles.

– Não importa.

Ele virou com tanta rapidez que derramou café na coxa. Ignorou o ardor.

– Deveria. O cacete como deveria. Não sou um objeto inanimado que eles podem dar a quem quiserem. A coisa toda é uma tolice.

– Alguns considerariam uma honra.

– Bem, eu não. Não vou me amarrar àquela fêmea. Não me importo quem ela seja ou quem armou isso ou quão “importante” isso é para o s’Hisbe.

Trez se preparou para a enxurrada do “ah, sim, você vai”. Em vez disso, seu irmão pareceu triste, como se ele também não quisesse aquela maldição.

– Vou repetir, Trez. Isso não vai desaparecer num passe de mágica. E tentar sair dessa transando por aí? Não só é fútil, como potencialmente perigoso.

Trez esfregou o rosto.

– As mulheres são apenas humanas. Elas não têm importância – ele voltou a olhar para o rio. – E, francamente, se eu não fizer alguma coisa, vou enlouquecer. Um punhado de orgasmos tem que ser melhor do que isso, certo?

Enquanto o silêncio retornava, ele soube que o irmão discordava dele. Mas a prova de que sua vida estava na mais absoluta merda era que a conversa terminara ali.

iAm, pelo visto, não era o tipo de homem que chuta um cara caído.

Tanto faz. Ele não se importava com o que se esperava dele. Ele não voltaria para ser condenado a uma vida de serviços forçados.

Pouco se importava se era para a filha da rainha.


CAPÍTULO 12

Era fim de tarde quando Wrath chegou a um beco sem saída. Estava à mesa, sentado no trono do pai, os dedos percorrendo um relatório escrito em braille, quando, de repente, não conseguia ler nem mais uma maldita palavra do texto.

Empurrando os papéis para o lado, praguejou e arrancou os óculos escuros do rosto. Bem na hora em que estava para lançá-los contra a parede, sentiu um focinho no cotovelo.

Passando o braço ao redor do golden retriever, pressionou a mão no pelo macio que crescia nos flancos do cachorro.

– Você sempre sabe, não é?

George se aninhou, pressionando o peito na perna de Wrath – a dica de que “alguém” queria ser erguido.

Wrath se inclinou e apanhou todos os quarenta quilos nos braços. Enquanto acomodava as quatro patas, a juba de leão e o rabo volante para que tudo coubesse, ele concluiu que era bom que fosse tão alto. Coisas grandes ofereciam um colo grande.

E o ato de afagar todo aquele pelo o acalmou, mesmo que não lhe tranquilizasse a mente.

Seu pai fora um Rei notável, capaz de suportar inúmeras horas de cerimônias, noites infindáveis nos esboços de proclamações e convocações, meses e anos inteiros de protocolo e tradição. E isso antes de ser inundado pelo fluxo perene de reclamações que vinham de todos os lados: cartas, telefonemas, e-mails – ainda que, obviamente, os últimos estivessem fora de questão na época do seu pai.

Wrath, um dia, fora um lutador. Um excelente lutador.

Levantando a mão, sentiu a lateral do pescoço, o lugar por onde a bala entrara...

A batida à porta foi decidida, direta ao ponto, mais uma exigência do que uma solicitação respeitosa para entrar.

– Pode entrar, V. – respondeu.

O odor adstringente da hamamélis que precedeu o Irmão foi uma pista evidente de que alguém estava irritado. E, com toda certeza, sua voz grave tinha uma ponta de descontentamento.

– Finalmente terminei os testes de balística. Malditos fragmentos sempre tomam tempo demais.

– E? – Wrath o instigou.

– É uma combinação perfeita. Cem por cento – enquanto Vishous se sentava na cadeira oposta à mesa, a peça de mobília rangeu debaixo do peso. – Nós os pegamos.

Wrath exalou longamente, parte do zumbido impotente escorrendo de sua mente.

– Bom – ele correu a mão pela cabeça grande de George, descendo até as costelas. – Então, esta é a nossa munição.

– Exato. O que aconteceria de qualquer maneira agora toma uma forma legal.

A Irmandade soubera o tempo todo quem estivera por trás do tiro que quase matara o Rei no outono, e a tarefa de acabar com o Bando de Bastardos um a um era algo que eles encaravam muito mais como uma tarefa sagrada para a raça.

– Olha aqui, eu preciso ser franco, certo?

– E quando não foi? – Wrath argumentou.

– Por que diabos está atando as nossas mãos?

– Eu não sabia que estava fazendo isso.

– Com Tohr.

Wrath reposicionou George a fim de que o fluxo sanguíneo da perna esquerda não ficasse completamente bloqueado pelo peso do cão.

– Ele solicitou o decreto.

– Todos nós temos o direito de acabar com Xcor. O cretino é o prêmio que todos nós queremos. Isso não deveria estar restrito somente a ele.

– Ele pediu.

– Isso só faz com que seja muito mais difícil matar o bastardo. E se um de nós o encontrar, e Tohr não estiver conosco?

– Vocês o trazem para cá – houve uma longa pausa, um silêncio tenso. – Você me ouviu, V.? Traga aquele monte de merda para cá e deixe Tohr fazer o serviço.

– O objetivo é eliminar o Bando de Bastardos.

– E como isso o impede de fazer o seu trabalho? – quando não houve resposta, Wrath balançou a cabeça. – Tohr estava naquela van comigo, meu Irmão. Ele salvou a minha vida. Sem ele...

Enquanto a frase não foi finalizada, V. praguejou baixinho, como se estivesse fazendo os cálculos sobre aquela lembrança e chegando à conclusão de que o Irmão que teve que cortar o tubo plástico da sua garrafa CamelBak e executar uma traqueotomia no seu Rei num veículo em movimento a quilômetros de distância de qualquer ajuda médica deveria ter um tantinho só a mais de direito de matar o criminoso.

Wrath sorriu de leve.

– Que tal se, só porque eu sou um cara legal, eu deixar que cada um de vocês dê um soco nele antes que Tohr mate o filho da puta com as próprias mãos? Fechado?

V. riu.

– Isso alivia um pouco.

A batida que os interrompeu foi baixa e respeitosa, uma sequência de batidinhas leves que parecia sugerir que quem quer que fosse ficaria feliz em ser mandado embora, satisfeito em aguardar, ou esperava por uma audiência imediata, tudo ao mesmo tempo.

– Pois não? – chamou Wrath.

Uma colônia cara anunciou a chegada do advogado: Saxton sempre cheirava bem, e isso se encaixava em sua personalidade. Pelo que Wrath lembrava, além da excelente educação do cara e da qualidade do seu raciocínio, ele sempre se vestia de acordo com a moda como um filho bem nascido da glymera. Isso é, com perfeição.

Não que Wrath tivesse visto isso recentemente.

Ele recolocou os óculos num movimento rápido. Uma coisa era se expor na frente de V.; isso não aconteceria diante do macho jovem e eficiente que passava pela porta, não importando o quanto Sax fosse confiável e profissional.

– O que tem para mim? – perguntou Wrath enquanto o rabo de George se movia de um lado para o outro à guisa de um cumprimento.

Houve uma longa pausa.

– Talvez seja melhor eu voltar mais tarde?

– Você pode dizer qualquer coisa na frente do meu Irmão.

Outra pausa longa, durante a qual V. provavelmente encarava o advogado como se quisesse tirar um naco do traseiro do garoto bonito e bem-vestido por sugerir que havia uma divisa de informações que precisava ser respeitada.

– Mesmo que seja sobre a Irmandade? – Saxton perguntou com franqueza.

Wrath praticamente sentia os olhos gélidos de V. virando de direção. E, como esperado, o Irmão bradou:

– O que há conosco?

Quando Saxton permaneceu calado, Wrath deduziu sobre o que se tratava.

– Pode nos dar um minuto, V.?

– Está de brincadeira?

Wrath pegou George e o colocou no chão.

– Só preciso de cinco minutos.

– Tudo bem. Divirta-se, meu senhor – grasnou V. ao se levantar. – Merda.

Um instante depois, a porta bateu.

Saxton pigarreou.

– Eu poderia ter voltado depois.

– Se eu quisesse isso, eu teria lhe dito. Agora fale.

Uma inspiração profunda, seguida de uma expiração, como se o civil estivesse olhando para a saída e se perguntando se a partida intempestiva de V. poderia ser a causa de ele acordar morto mais tarde.

– Hum... a auditoria das Leis Antigas está completa, e eu posso lhe fornecer uma lista completa das seções que necessitam de emendas, além de reformulações propostas, e um cronograma para que as mudanças possam ser implementadas se...

– Sim ou não. É tudo o que me interessa.

A julgar pelo sussurro dos sapatos resvalando o tapete Aubusson, Wrath deduziu que o advogado estava andando de um lado para o outro. De cabeça, ele visualizou o escritório, desde as paredes azul-claras até as cornijas em arabesco e toda a mobília francesa antiga e frágil.

Saxton fazia mais sentido naquele cômodo do que Wrath com seu couro e camiseta justa.

Mas a lei prescrevia quem deveria ser o Rei.

– Você precisa começar a mexer os lábios, Saxton. Garanto que não será demitido se falar comigo francamente. Se tentar editar a verdade ou suavizá-la? Isso sim o fará cair, pouco importando com quem está dormindo.

Houve um novo pigarrear. E então, a voz aculturada chegou até ele diretamente do outro lado da escrivaninha.

– Sim, pode fazer o que desejar. No entanto, preocupo-me quanto ao momento.

– Por quê? Porque vai precisar de dois anos para fazer as emendas?

– O senhor está fazendo uma mudança fundamental na seção da sociedade que protege a espécie – e isso pode desestabilizar ainda mais o seu governo. Estou a par das pressões que tem sofrido, e seria negligente de minha parte se eu não apontasse o óbvio. Se o senhor alterar a prescrição sobre quem pode entrar na Irmandade da Adaga Negra, isso poderá provocar ainda mais abertura para dissensão... isso não se parece com nada que tenha tentado em seu reinado, e virá numa época de extremo distúrbio social.

Wrath inspirou profundamente pelo nariz – e não captou vibração negativa; não havia evidências de que o homem estivesse sendo fraudulento ou que não estivesse disposto a realizar o trabalho.

E ele tinha razão.

– Agradeço sua opinião – disse Wrath. – Mas não vou me curvar ante o passado. Recuso-me. E se eu tivesse dúvidas a respeito do macho em questão, eu não estaria fazendo isso.

– Como os outros Irmãos se sentem a esse respeito?

– Isso não é da sua conta – na verdade, não tocara no assunto com eles ainda. Afinal, por que se importar se não houvesse possibilidade de seguir adiante? Tohr e Beth eram os únicos que sabiam exatamente até onde ele estava preparado para levar aquilo. – Quanto tempo vai levar para que você torne isso oficial?

– Posso deixar tudo preparado para o alvorecer de amanhã, no máximo ao anoitecer.

– Faça isso – Wrath cerrou um punho e o bateu no braço do trono. – Faça isso agora.

– Como desejar, meu senhor.

Houve uma movimentação de tecidos finos, como se o macho estivesse se inclinando, e depois mais passos antes que uma das portas duplas se abrisse e se fechasse.

Wrath fitou o vazio produzido pelos seus olhos cegos.

Tempos perigosos por certo. E francamente, o sensato a fazer era ter mais Irmãos, e não pensar em motivos para não os ter, ainda que a contra-argumentação fosse: se aqueles três garotos estavam dispostos a lutar ao lado deles sem serem iniciados, por que se importar?

Foda-se. Era costume antigo querer honrar alguém que tivesse colocado a própria vida em risco só para que a dele pudesse continuar.

A real questão, contudo, tirando as leis... era: o que os outros pensariam?

Muito provavelmente seria isso a colocar um freio na questão mais do que qualquer detalhe legal.

Quando a noite caiu horas mais tarde, Qhuinn estava deitado nu na cama. Ele dormia, mas nem seu corpo nem sua mente estavam descansando.

Em seu sonho, ele tinha voltado para o acostamento da estrada, tendo saído a pé da casa da família. Carregava no ombro uma bolsa de lona, a proclamação de deserdação enfiada na cintura e uma carteira que, a não ser por onze dólares, estava vazia.

Tudo estava bem nítido. Nada fora modificado devido a um erro de reprodução de memória: desde a noite úmida de verão e o som dos seus New Rocks no pedregulho do acostamento... até o fato de ele ter ciência de que não havia nada em seu futuro.

Não tinha para onde ir. Nenhum lar para onde voltar.

Nenhuma perspectiva. Nem mesmo um passado.

Quando o carro parou atrás dele, ele sabia que só podia ser John ou Blay...

Mas, não. Não foram seus amigos. Era a morte na forma de quatro machos em mantos negros que saíram por quatro portas e convergiram ao seu redor.

Uma Guarda de Honra. Enviada pelo seu pai para surrá-lo por desonrar o nome da família.

Quanta ironia. Alguém haveria de deduzir que esfaquear um sociopata que tentara estuprar seu colega seria uma coisa boa. Mas não quando o agressor era o seu perfeito primo de primeiro grau.

Em câmera lenta, Qhuinn se colocou em postura de luta, preparado para enfrentar o ataque. Não havia olhos para encarar, nenhum rosto em que reparar – e não havia motivo para tal: o fato de os mantos esconderem suas identidades supostamente faria com que a pessoa que transgredira sentisse como se toda a sociedade desaprovasse as ações que ele executara.

Circundando, circundando, aproximando-se... No fim, conseguiriam derrubá-lo, mas ele os feriria no processo.

E foi o que fez.

Mas ele também teve razão: depois do que pareceram serem horas de defesa, ele acabou de costas, e foi nesse momento que a surra de fato aconteceu. Deitado no asfalto, ele cobriu a cabeça e o escroto o melhor que pôde, os golpes chovendo sobre ele, mantos negros voando como asas de corvos conforme era golpeado e surrado.

Depois de um tempo, não sentiu dor.

Iria morrer ali no acostamento da estrada...

– Pare! Não devemos matá-lo!

A voz do irmão atravessou tudo aquilo, atingindo-o de um modo como nenhum golpe podia mais...

Qhuinn despertou com um grito, levando as mãos ao rosto, as coxas se elevando para proteger a virilha...

Nenhum punho, nenhum taco vindo em sua direção.

E ele não estava no acostamento da estrada.

Fazendo com que as luzes se acendessem, olhou ao redor do quarto no qual vinha ficando desde que fora expulso da casa da própria família. Não combinava em nada com ele, o papel de parede de seda e os objetos eram algo que a sua mãe escolheria – ainda assim, naquele momento, a visão de toda aquela quinquilharia que outra pessoa escolhera, comprara e pendurara, fez com que ele se acalmasse.

Mesmo enquanto a lembrança pairava.

Deus, o som da voz do irmão.

Seu próprio irmão fizera parte da Guarda de Honra enviada atrás dele. Em retrospecto, isso enviava uma mensagem ainda mais poderosa para a glymera sobre a seriedade com que a família cuidava dos seus assuntos. E não era como se o cara não tivesse sido treinado. Ele aprendera artes marciais, embora, naturalmente, não lhe permitissem lutar. Inferno, mal permitiram que ele brigasse nos treinos.

Valioso demais para a linhagem. E se ele se ferisse? Aquele que seguiria os passos do pai e um dia se tornaria lídher do Conselho poderia ficar exposto.

Risco pequeno de um dano catastrófico para a família.

Qhuinn, por sua vez... Antes de ser renegado, fora colocado no programa de treinamento, talvez com a esperança de que sofresse algum ferimento mortal no campo de batalha e fizesse o favor a todos de morrer com honra.

Pare! Não devemos matá-lo!

Essa fora a última vez em que ouvira a voz do irmão. Pouco depois de Qhuinn ter sido expulso de casa, a Sociedade Redutora conduzira uma onda de ataques e matara a todos, o pai, a mãe, a irmã – e Luchas.

Todos morreram. E mesmo que uma parte sua os odiasse pelo que lhe fizeram, ele não desejaria esse tipo de morte a ninguém.

Qhuinn esfregou o rosto.

Hora de uma chuveirada. Era tudo o que ele sabia.

Pondo-se de pé, espreguiçou-se até as costas estalarem e verificou o celular. Uma mensagem de texto para o grupo anunciava que haveria uma reunião no escritório de Wrath; e uma espiada rápida no relógio lhe informou que ele tinha pouco tempo.

O que não era ruim. Ao passar para velocidade acelerada e se apressar para o banheiro, era um alívio se concentrar em coisas reais em vez de no passado maldito.

Não havia nada que ele pudesse fazer a respeito desse último a não ser amaldiçoá-lo. E ele bem sabia que já fizera isso o suficiente para doze vidas.

Hora de acordar, pensou.

Hora de ir trabalhar.


CAPÍTULO 13

Lá pela mesma hora em que Qhuinn tomava banho na casa principal, Blay despertou na cadeira daquele escritoriozinho no subterrâneo. A dor de cabeça que lhe serviu como despertador não se originava do vinho do Porto, mas pelo fato de ter pulado a Última Refeição. Mas, caramba, bem que ele queria que a bebida estivesse por trás do latejar em seu crânio. Ele poderia se valer disso para justificar o estado absolutamente deplorável com que fora parar ali.

Praguejando, abaixou as pernas da escrivaninha e se sentou melhor. O corpo estava duro como uma tábua, as dores brotavam em todo tipo de lugar enquanto ele fez as luzes se acenderem.

Merda. Ainda estava nu.

Mas até parece que os elfos recatados entrariam sorrateiramente ali para vesti-lo enquanto dormia... só para que ele não se lembrasse do que havia feito?

Vestindo os shorts, enfiou os pés nos tênis e se esticou para pegar a camiseta antes mesmo de se lembrar para o que a usara.

Ao olhar para as dobras amarrotadas do algodão e sentir os pontos endurecidos no tecido macio, deu-se conta de que nenhuma quantidade de racionalização mudaria o fato de ele ter traído Saxton. Contato físico com alguém era apenas uma das medidas da infidelidade – e, sim, isso era o maior divisor. O que fizera na noite anterior, porém, fora uma violação do relacionamento deles, mesmo que o orgasmo tivesse sido causado pelo cérebro e não pela sua mão.

Pondo-se de pé, sentiu-se meio morto ao se encaminhar para a porta e entreabri-la. Se houvesse alguém nas imediações, ele voltaria para dentro e esperaria até que o corredor estivesse vazio. Ele absolutamente não queria ser apanhado saindo daquele escritório vazio, meio despido e com aquela aparência lastimável. O lado bom de viver no complexo era que você estava sempre cercado por gente que se preocupava com você; o lado ruim era que todos tinham olhos e ouvidos, e nenhum assunto particular era totalmente particular.

Quando não ouviu nem vozes nem passos, explodiu para o corredor e começou a caminhar numa passada rápida, como se estivesse estado em algum lugar com determinado propósito e estivesse se dirigindo para o quarto com uma finalidade igualmente importante. Teve a sensação de ter se safado ao chegar ao túnel. Claro, não costumava andar por aí sem camisa, mas muitos dos outros Irmãos e machos faziam isso quando saíam da academia, não era nada extraordinário.

E ele realmente sentiu como se tivesse ganhado na loteria quando saiu de baixo da grande escadaria da mansão e foi recebido por mais uma bela dose de corredor vazio. O único problema era que, pelo som da louça sendo levada da sala de jantar, devia ser mais tarde do que ele imaginava. Obviamente, perdera a Primeira Refeição – notícia ruim para a sua cabeça, mas, pelo menos, ele tinha umas barras de proteína no quarto.

Sua sorte chegou ao fim quando ele subiu as escadas para o segundo andar. Parados diante das portas fechadas do escritório de Wrath, Qhuinn e John estavam vestidos para o combate, com as armas a postos e os corpos cobertos por couro preto.

De jeito nenhum ele olharia para Qhuinn. Só o fato de tê-lo em sua visão periférica era ruim o bastante.

– O que está acontecendo? – perguntou.

Temos uma reunião agora, sinalizou John. Ou, pelo menos, era para termos. Não recebeu a mensagem?

Merda, ele não fazia ideia de onde estava seu telefone. No quarto? Tomara.

– Vou tomar uma chuveirada e volto já.

Talvez tenha de se apressar. Os Irmãos estão a portas fechadas há meia hora. Não sei o que está acontecendo.

Ao lado dele, Qhuinn se balançava para frente e para trás nos coturnos, a oscilação do peso fazendo parecer que estava andando, mesmo ele não indo a parte alguma.

– Cinco minutos – murmurou Blay. – Só preciso disso.

Ele esperava que a Irmandade abrisse as portas até lá, a última coisa que queria era ficar sem fazer nada ao lado de Qhuinn.

Praguejando ao andar, Blay correu até o quarto. Normalmente, ele demorava para se aprontar, ainda mais se Sax estivesse a fim, mas dessa vez seria entrar, chuveiro e...

Ao abrir a porta, parou.

Mas o quê...?

Malas. Na cama. Tantas que ele não conseguia ver mais do que alguns centímetros do edredom. E ele sabia a quem elas pertenciam. Guccis combinando, brancas com o logo azul-marinho e as alças de tecido em azul e vermelho, porque, segundo Saxton, o tradicional marrom sobre marrom com vermelho e verde eram “óbvios demais”.

Blay fechou a porta em silêncio. Seu primeiro pensamento foi “puta merda, Saxton sabe”. De algum modo, ele soube o que aconteceu no centro de treinamento.

O macho em questão apareceu do banheiro com os braços cheios de frascos de xampu, condicionador e outros produtos. E parou no ato.

– Oi – disse Blay. – Vai sair de férias?

Depois de um momento tenso, Saxton se aproximou, colocou os produtos numa mala e se virou. Como sempre, seu lindo cabelo loiro estava afastado da testa em ondas espessas. E ele estava perfeitamente bem vestido, em outro terno de tweed com colete combinando, uma gravata vermelha e um lencinho de bolso também vermelho só para dar o toque certo de cor.

– Acho que você sabe o que vou dizer – Saxton sorriu triste. – Porque você não é nenhum idiota, assim como eu não sou.

Blay foi se sentar na cama, mas teve que mudar de ideia, pois não havia onde se acomodar. Acabou na chaise-longue e, com uma inclinação discreta para o lado, enfiou a camiseta suja debaixo do tecido do saiote. Longe dos olhos. Era o mínimo que podia fazer.

Deus, aquilo estaria mesmo acontecendo?

– Não quero que você vá – Blay se ouviu dizendo com voz grave.

– Acredito nisso.

Blay olhou para além das malas.

– Por que agora?

Pensou nos dois no dia anterior, debaixo dos lençóis, fazendo sexo selvagem. Estiveram tão próximos... Ainda que, sendo brutalmente honesto, talvez aquilo tivesse sido apenas físico.

Retire o talvez.

– Venho enganando a mim mesmo – Saxton balançou a cabeça. – Pensei que poderia continuar com você assim, mas não posso. Isto está me matando.

Blay fechou os olhos.

– Sei que tenho ficado muito tempo fora...

– Não é disso que estou falando.

Enquanto Qhuinn tomava todo o espaço entre eles, Blay quis gritar. Mas que bem aquilo faria? Parecia que ele e Saxton chegaram ao mesmo beco sem saída no mesmo momento lamentável.

Seu amante o fitou por cima da bagagem.

– Acabei aquela missão para Wrath. É uma boa hora para terminarmos, para eu me mudar e encontrar outro emprego...

– Espere, quer dizer que está abandonando o Rei também? – Blay franziu o rosto. – Não importa como estejam as coisas entre nós, você precisa continuar trabalhando para ele. Isso é mais importante do que o nosso relacionamento.

O olhar de Saxton abaixou.

– Suspeito que isso seja mais fácil para você dizer.

– Não é verdade – rebateu Blay inflexível. – Deus, eu... sinto muito.

– Você não fez nada errado. Você tem que saber que não sinto raiva de você, nem amargura. Você sempre foi honesto, e eu sempre soube que terminaria assim entre nós. Eu só não sabia quando. Não sabia... até chegar ao fim. Que é agora.

Ai, droga.

Mesmo sabendo que Saxton estava certo, Blay sentiu uma necessidade compulsiva de lutar por ele.

– Preste atenção, tenho estado distraído na última semana, e eu sinto muito. Mas as coisas vão acabar se ajeitando, e você e eu vamos voltar ao normal...

– Eu te amo.

Blay fechou a boca de súbito.

– Por isso, veja – Saxton continuou rouco –, não foi você quem mudou. Fui eu... e eu sinto que as minhas emoções tolas nos distanciaram.

Blay se colocou de pé e avançou pelo carpete de bela textura até o outro macho.

Ao chegar ao seu destino, ficou aliviado a ponto de sentir lágrimas nos olhos por Saxton aceitar o seu abraço. Ao segurar o seu primeiro amante verdadeiro contra si, sentindo a diferença familiar em suas alturas e o perfume maravilhoso da sua colônia, uma parte dele queria discutir aquele rompimento até que os dois desistissem e continuassem tentando.

Mas não seria justo.

Como Saxton, ele tivera a vaga noção de que as coisas terminariam em algum momento. E, tal qual seu amante, também se surpreendia por ser agora.

O que, claro, não alterava o resultado.

Saxton recuou um passo.

– Nunca tive a intenção de me envolver emocionalmente.

– Desculpe... Eu sinto muito – merda, isso era tudo o que saía da sua boca. – Eu daria tudo para que fosse diferente. Eu queria... ser diferente.

– Eu sei – Saxton esticou a mão e resvalou-a na lateral do rosto dele. – Eu perdoo você... e você tem que se perdoar.

Ele não tinha certeza se poderia fazer isso; ainda mais agora, nesse momento, e como sempre, quando uma ligação emocional que não queria, e que não poderia mudar, mais uma vez o impedia de ter algo que desejava.

Qhuinn era uma tremenda maldição para ele, era isso o que o cara era.

Cerca de 25 quilômetros ao sul da montanha do complexo da Irmandade, Assail despertou em sua cama redonda na suíte principal da sua mansão às margens do Hudson. Acima dele, painéis espelhados cobriam o teto e seu corpo nu estava iluminado com o brilho suave das luzes instaladas ao redor da base do colchão. O quarto octogonal estava escuro fora isso, as cortinas fechadas, a noite escondida.

Ao pensar em todo o vidro da casa, sabia que muitos vampiros considerariam as acomodações inadequadas. Muitos evitariam a mansão por completo.

Risco demais durante o dia.

Assail, contudo, nunca se sentira preso a convenções, e o perigo inerente de morar numa construção com tanto acesso à luz era algo que podia ser administrado, e não evitado.

Levantando-se, foi para a escrivaninha, ligou o computador e acessou o sistema de segurança que monitorava não apenas a casa, mas toda a propriedade. Alertas soaram várias vezes nas primeiras horas do dia, avisos não de ataques iminentes, mas de algum tipo de atividade que fora detectado pelo programa de filtragem do sistema de segurança.

Na verdade, faltava-lhe a energia para se preocupar demais, um sinal indesejável de que precisava se alimentar...

Assail franziu o cenho ao receber o relatório.

Ora, se aquilo não era interessante.

E era exatamente por isso que ele instalara todo aquele equipamento.

Nas imagens produzidas pelas câmeras de trás, ele viu uma figura vestida com uma roupa camuflada de neve passeando em esquis de cross-country pelo meio da floresta, aproximando-se da casa pelo norte. Quem quer que fosse, permaneceu escondido entre os pinheiros grande parte do tempo, e vigiou a casa por diversos ângulos por aproximadamente dezenove minutos... antes de atravessar o limite de pinheiros a oeste, atravessando a propriedade vizinha, e descendo pelo gelo. Duzentos metros mais à frente, o homem parou, pegou os binóculos novamente, e encarou a casa de Assail. Depois, circundou a península que se projetava do rio, voltou a entrar na floresta e desapareceu.

Aproximando-se da tela, Assail repetiu a gravação, aumentando o zoom para identificar a expressão facial, se possível. Mas não foi. A cabeça estava coberta por uma máscara de esqui, com abertura apenas para os olhos, o nariz e a boca. Junto à parca e às calças de esqui, o homem estava coberto dos pés à cabeça.

Recostando-se, Assail sorriu para si mesmo, as presas formigando numa reação territorial.

Só existiam dois grupos que poderiam se interessar em suas atividades, e a julgar pela luz solar que reinara durante aquele reconhecimento, ficou claro que a curiosidade não se originara da Irmandade: Wrath jamais usaria humanos para qualquer outra coisa que não fosse uma fonte derradeira de alimentação, e nenhum vampiro suportaria aquela intensidade de luz solar sem se incendiar.

Restava, então, alguém do mundo humano. E só havia um homem com interesse e recursos para tentar atacar a ele e ao seu território.

– Entre – disse ele pouco antes de uma batida soar à porta.

Enquanto um par de machos entrava, ele não se deu ao trabalho de desviar a vista da tela do computador.

– Como dormiram?

Uma voz conhecida e grave respondeu:

– Como os mortos.

– Que bom para você. Mudança de fuso horário pode ser uma inconveniência, pelo que sei. A propósito, tivemos um visitante esta manhã.

Assail inclinou-se para um lado a fim de que seus dois associados vissem a filmagem.

Era estranho ter gente morando com ele, mas teria que se acostumar à presença deles. Quando chegara ao Novo Mundo, fora uma viagem solitária, e ele tivera a intenção de manter essa situação por inúmeros motivos. O sucesso no ramo escolhido, todavia, exigira que ele chamasse uma retaguarda – e as únicas pessoas nas quais poderia confiar parcialmente eram da família.

E aqueles dois ofereciam um benefício sem igual.

Seus dois primos eram uma raridade na espécie vampiresca: eram gêmeos idênticos. Quando totalmente vestidos, o único modo de distingui-los era por uma única pinta atrás do lóbulo da orelha; fora isso, desde as vozes até os olhos negros e desconfiados, incluindo os corpos musculosos, eram o reflexo perfeito um do outro.

– Vou sair – anunciou Assail. – Se o nosso visitante aparecer novamente, sejam hospitaleiros, sim?

Ehric, o mais velho por questão de minutos, olhou de relance, o rosto destacado pela iluminação da base da cama. Tanta maldade naquela bela combinação de feições... a ponto de alguém quase sentir pena do intruso.

– Será um prazer, eu garanto.

– Mantenha-o vivo.

– Claro.

– Essa é uma divisória um tanto sutil que vocês dois às vezes gostaram de apreciar.

– Confie em mim.

– Não é você quem me preocupa – Assail olhou para o outro. – Entendeu?

O gêmeo de Ehric permaneceu calado, apesar de concordar com a cabeça uma vez.

Era precisamente por essa reação contrariada que Assail preferiria ter mantido a sua vida nova simples. Mas era impossível estar em mais de um lugar ao mesmo tempo. E aquela violação de privacidade era a prova de que ele não poderia fazer tudo sozinho.

– Sabem como me encontrar – disse antes de dispensá-los do quarto.

Vinte minutos mais tarde, saiu da casa de banho tomado, vestido e atrás do volante do seu Range Rover blindado.

O centro da cidade de Caldwell à noite era belo de longe, especialmente ao passar pela ponte de acesso. Só depois que ele penetrou no sistema viário que o esgoto da cidade ficou evidente: os becos com neve suja acumulada, as latas de lixo transbordando e os humanos sem-teto descartados, meio congelados, contavam a triste verdade sobre a desprotegida municipalidade.

Seu local de trabalho, evidentemente.

Ao chegar à Galeria de Arte Benloise, estacionou nos fundos, em uma das vagas que era paralela à construção atrás do estabelecimento. Ao sair do carro, o vento frio açoitou o casaco de pelo de camelo e ele teve que segurar as duas pontas juntas ao atravessar a calçada, aproximando-se da porta de tamanho industrial.

Não teve que bater. Ricardo Benloise tinha muitas pessoas trabalhando para ele e nem todos eram do tipo que se associava aos negociantes das artes. Um macho humano do tamanho de um parque de diversões abriu a porta e ficou de lado.

– Ele o está aguardando?

– Não, não está.

Disneylândia assentiu.

– Quer esperar na galeria?

– Seria bom.

– Quer beber alguma coisa?

– Não, obrigado.

Ao atravessarem a parte do escritório e seguirem para o espaço de exibições, a deferência agora concedida a Assail era algo novo, merecido tanto pelos enormes pedidos de mercadoria que ele vinha fazendo quanto pelo sangue derramado de incontáveis humanos. Graças a ele, a taxa de suicídio entre os machos desprivilegiados entre os 18 e os 29 anos com registros criminais em drogas aumentou como nunca na cidade, chegando ao noticiário nacional.

Imagine só.

Enquanto âncoras de TV e repórteres tentavam entender essas tragédias, ele simplesmente continuava a expandir os negócios usando qualquer meio necessário. As mentes humanas eram tremendamente sugestionáveis; praticamente nenhum esforço era necessário para fazer com que os traficantes intermediários levassem as pistolas às têmporas e apertassem os gatilhos. E, do mesmo modo como a natureza abominava um vácuo, o mesmo acontecia com a demanda de suplementos químicos.

Assail tinha as drogas. Os viciados tinham o dinheiro.

O sistema econômico mais do que sobrevivia à reorganização forçada.

– Vou subir – disse o homem na porta camuflada – para avisar da sua chegada.

– Leve o tempo de que precisar.

Deixado só, Assail passeou pelo espaço aberto de teto alto, entrelaçando as mãos às costas. De vez em quando, parava para ver a “arte” pendurada nas paredes e nas divisórias e foi lembrado do motivo pelo qual os humanos deviam ser erradicados, preferencialmente com métodos lentos e dolorosos.

Pratos de papel usados colados a tábuas de compensados baratas recobertas com citações de comerciais de TV escritas à mão? Um autorretrato feito com creme dental? E igualmente ofensivas eram as placas enaltecedoras ao lado das porcarias declarando que aquela tolice era a nova onda do Expressionismo Americano.

Tamanha explicação sobre a cultura de tantas maneiras.

– Ele pode recebê-lo agora.

Assail sorriu para si mesmo e se virou.

– Quanta gentileza.

Ao passar pela porta escondida e subir até o terceiro andar, Assail não condenou seu fornecedor por ser desconfiado e querer mais informações a respeito do seu maior cliente. Afinal, num espaço muito curto de tempo, o tráfico de drogas da cidade fora remanejado, redefinido e controlado por um completo desconhecido.

Há que se respeitar a posição do homem.

Mas as investigações terminariam ali.

No topo das escadas, outros dois homenzarrões estavam diante da porta, tão sólidos quanto vigas de sustentação. Assim como o segurança do primeiro andar, logo abriram a porta e acenaram em sua direção respeitosamente.

Do lado oposto, Benloise estava sentado no fundo de uma sala estreita com janelas em um dos lados e apenas três peças de mobiliário: sua escrivaninha elevada, que não passava de uma prancha grossa de teca com um abajur moderno e um cinzeiro por cima; a cadeira dele, com um estilo moderno; e um segundo assento no lado oposto para apenas um visitante.

O homem em si era como o seu ambiente: limpo, oficioso e despojado em seu modo de pensar. Na verdade, ele provou que, por mais ilícito que fosse o tráfico de drogas, os princípios de gerenciamento e as habilidades interpessoais de um CEO importavam muito se você quisesse faturar milhões com isso e manter o dinheiro.

– Assail. Como vai? – o homem baixinho se levantou e esticou a mão. – É um prazer inesperado.

Assail atravessou a sala, apertou o que lhe foi estendido e não esperou pelo convite para se sentar.

– O que posso fazer por você? – perguntou Benloise ao voltar a se sentar.

Assail pegou um charuto cubano de dentro do bolso. Cortando a ponta, inclinou-se para frente e colocou a ponta desprezada sobre o tampo da mesa.

Enquanto Benloise franzia o cenho como se alguém tivesse defecado em sua cama, Assail sorriu o suficiente para exibir rapidamente suas presas.

– Trata-se do que eu posso fazer por você.

– Ah.

– Sempre fui um homem reservado, levando uma vida privada por livre escolha – guardou o cortador e pegou um isqueiro de ouro. Acendendo a chama, inclinou-se e tragou até o charuto sustentar a ponta queimada. – Contudo, mais importante do que isso, sou um homem de negócios envolvido num ramo perigoso. Dessa forma, considero qualquer invasão na minha propriedade ou intrusão no meu anonimato como um ato direto de agressão.

Benloise sorriu com suavidade e se recostou na cadeira em forma de trono.

– Respeito-o por isso, claro, todavia estou confuso quanto aos motivos de você sentir a necessidade de explicitar isso para mim.

– Você e eu entramos num relacionamento mutuamente benéfico, e é meu desejo continuar com essa associação – Assail bafejou o charuto, soltando uma nuvem de fumaça azul francês. – Portanto, quero lhe mostrar o devido respeito e deixar isso claro antes de agir, pois se eu descobrir qualquer pessoa na minha propriedade a quem eu não tenha convidado, eu não só o erradicarei, como também descobrirei a origem das investigações – e bafejou novamente – e farei o que for necessário para defender a minha privacidade. Estou sendo bem claro?

As sobrancelhas de Benloise se abaixaram, os olhos escuros se zangando.

– Estou? – murmurou Assail.

Havia, obviamente, apenas uma resposta. Levando-se em consideração que o humano desejava viver mais do que até aquele final de semana.

– Sabe, você me lembra o seu predecessor – Benloise disse num sotaque britânico. – Conheceu o Reverendo?

– Sim, frequentamos alguns dos mesmos círculos.

– Ele foi assassinado de modo bem violento. Cerca de um ano atrás, não? A boate dele foi explodida.

– Acidentes acontecem.

– Normalmente em casa, pelo que ouvi dizer.

– Algo de que deve sempre se lembrar.

Enquanto Assail sustentava aquele olhar, Benloise desviou o dele primeiro. Pigarreando, o maior importador de drogas da costa leste passou a palma da mão sobre o tampo lustroso da mesa, como se sentisse os veios da madeira.

– Os nossos negócios – disse Benloise – têm um delicado ecossistema que, por conta de toda a sua robustez financeira, deve ser mantido cuidadosamente. A estabilidade é rara e muito desejável para homens como você e eu.

– Concordo. E para que isso aconteça, pretendo retornar à conclusão da noite com o meu pagamento desse ínterim, conforme planejado. Como sempre, venho a você em boa fé, e não lhe dou motivos para duvidar das minhas intenções.

Benloise lhe ofereceu outro sorriso suave.

– Você faz parecer como se eu estivesse por trás – ele moveu a mão num gesto aleatório de dispensa no ar – do que quer que o tenha incomodado.

Inclinando-se para frente, Assail deixou o queixo cair e o encarou.

– Não estou incomodado. Ainda.

Uma das mãos de Benloise sub-repticiamente saiu do campo de visão. Uma fração de segundo depois, Assail ouviu a porta do outro lado do cômodo se abrir.

Mantendo a voz baixa, Assail disse:

– Isto foi uma cortesia para você. Da próxima vez que eu encontrar alguém na minha propriedade, quer você o tenha enviado ou não, não demonstrarei nem metade dessa educação.

Dito isso, levantou-se e enterrou o charuto no tampo da mesa.

– Desejo-lhe uma boa noite – disse antes de sair.


CAPÍTULO 14

Aquilo sim é que era começar tarde.

Enquanto Qhuinn se desmaterializava para longe da mansão, ele custava a acreditar que já fosse dez da noite e eles estavam apenas começando. Pensando bem, a Irmandade ficou enfiada no escritório de Wrath pelo que pareceu uma eternidade e quando ele e John, por fim, foram admitidos, o anúncio de V. de que a prova contra o Bando de Bastardos era concreta levou a mais uma bela meia hora de excomunhão de Xcor e dos comparsas.

Diferentes usos criativos para a palavra arregaçar, bem como excelentes sugestões de onde se enfiar objetos inanimados.

Ele jamais pensara em fazer aquilo com um rastelo, por exemplo. Divertido. Muito divertido.

E Blay perdera aquilo tudo.

Retomando forma numa área florestal a sudoeste do complexo, Qhuinn evitou pensar em que tipo de interferências o pudesse ter retardado, ainda que a verdade fosse que o lutador subira para o quarto e não voltara. E por mais que a maioria dos acidentes acontecesse em casa, seria um bom palpite deduzir que ele não escorregara e caíra.

A menos que Saxton estivesse brincando com o tapete no piso de mármore do banheiro.

Sentindo como se quisesse se estapear, vasculhou o cenário coberto de neve enquanto John, Rhage e Z. surgiam ao seu lado. As coordenadas daquela localização foram encontradas nos telefones dos ladrões de carro da noite anterior, a propriedade aparentemente abandonada cerca de quinze a vinte quilômetros além do local em que ele encontrara o Hummer roubado.

– Que diabos é isso?

Enquanto alguém falava, ele olhou por sobre o ombro. “Que diabos” estava certo: assomando-se atrás deles estava uma construção tão alta quanto um campanário de igreja e tão simples quanto uma lata de lixo reciclável.

– Hangar de aviões – anunciou Zsadist ao começar a andar naquela direção. – Só pode ser.

Qhuinn o seguiu, tomando a retaguarda caso alguém resolvesse fazer uma surpresa.

Do nada, Blay apareceu, todo coberto em couro e tão armado quanto o resto deles. Em reação, os pés de Qhuinn diminuíram de velocidade, depois pararam na neve, em boa parte porque não queria tropeçar e parecer um tolo.

Puxa, ele parecia bem sério. Haveria problemas no paraíso?

Ainda que não existisse nenhum contato visual entre eles, Qhuinn se sentiu compelido a dizer algo:

– O que...

Não concluiu a frase. Por que se importar? O cara passou por ele como se ele nem estivesse ali.

– Estou bem – murmurou Qhuinn, voltando a avançar pela neve compacta. – Obrigado por perguntar. Ah, está tendo problemas com Saxton? Mesmo? Que tal sairmos para tomar um drinque e conversar a respeito? É? Perfeito. Posso ser a sua menta pós-jantar e...

Ele interrompeu o monólogo fantasioso quando a brisa mudou de direção e seu nariz captou algo adocicado e desagradável.

Todos sacaram as armas e se concentraram no hangar.

– Estamos a favor do vento – observou Rhage –, portanto, a bagunça aí dentro deve ser incrível.

Os cinco se aproximaram da construção com cautela, espalhando-se e vasculhando o ambiente iluminado pelo luar à procura de algo que se movesse.

O hangar tinha duas entradas, uma bipartida e grande o bastante para deixar passar a envergadura de uma asa, e a outra supostamente para pessoas, que, em comparação, parecia do tamanho de uma Barbie. E Rhage tinha razão: apesar de o vento gélido os atingir pelas costas, o cheiro era forte o bastante para aguçar as narinas, e não no bom sentido.

Caramba, o frio costumava aplacar o fedor.

Comunicando-se por gestos, dividiram-se em dois grupos, com ele e John ficando num dos lados das portas duplas gigantes, e Rhage, Blay e Z. na entrada menor.

Rhage, como era de se esperar, tentou a maçaneta enquanto todos se preparavam para um confronto. Se houvesse o equivalente a um time de futebol de redutores ali, fazia sentido enviar o Irmão primeiro, porque ele tinha o tipo de retaguarda que ninguém tinha: a besta amava assassinos, e não no sentido de ter um relacionamento com eles.

Quem tinha falado em menta mesmo?

Hollywood levou a mão acima da cabeça. Três... dois... um...

O Irmão penetrou no silêncio absoluto, empurrando a porta e entrando sorrateiramente. Z. foi em seguida e Blay o acompanhou.

Qhuinn sentiu um segundo de puro terror quando o macho saltou para o desconhecido com nada além de um par de pistolas .40 para protegê-lo. Deus, a ideia de que Blay pudesse morrer naquela noite, bem na sua frente, naquela missão comum, fez com que ele quisesse parar com toda aquela tolice de defender a raça e transformar o lutador num bibliotecário. Ou modelo de mãos. Ou cabeleireiro...

O assobio que surgiu menos de sessenta segundos depois foi uma dádiva de Deus. O sinal de Z. de que estava tudo bem para que ele e John se reposicionassem, indo para a lateral da agora porta aberta e passando por...

Ok. Uau.

Falando em fedor. Nota máxima...

Os três que entraram antes ligaram as lanternas, e os fachos de luz cortaram o espaço cavernoso, atravessando a escuridão, iluminando o que a princípio não parecia ser nada além de uma camada de gelo negro. A não ser pelo fato de não ser preto e de não estar congelado. Era sangue humano engrossado – uns mil litros da coisa. Misturado com uma boa quantidade de Ômega.

O hangar foi o local de uma iniciação em massa, numa escala que tornava o que acontecia há um tempo naquela casa de campo nada mais do que uma brincadeira de criança.

– Acho que os garotos que você castigou estavam vindo para uma festa e tanto – comentou Rhage.

– Bem observado – murmurou Z.

Enquanto fachos de luz destacavam um velho e decrépito avião no fundo, e absolutamente nada mais, Z. balançou a cabeça.

– Vamos vasculhar o exterior. Não há nada aqui.

Visto que o chalé não prometia muito pelo lado de fora, apenas uma típica cabana de caçador/pescador no meio da floresta, o Sr. C. sentiu-se tentado a ignorar a maldita coisa. A perfeição tinha as suas virtudes, contudo, e a localização do chalé, cerca de uns dois ou três quilômetros para dentro daquele pedaço de terra, sugeria que ele podia ter sido usado como um quartel-general a certa altura.

Levando-se tudo em consideração, teria sido mais inteligente verificar a propriedade antes de ele ter usado o hangar para a maior iniciação da história da Sociedade Redutora. Mas as prioridades se apresentaram daquele modo. Primeiro, ele teve que se colocar no controle; segundo, de justificar a promoção; e terceiro, de lidar com todos aqueles novos redutores.

E isso significava que ele precisava de recursos. Rápido.

Seguindo a cerimônia grande e suja de Ômega, e o período nauseante que durou algumas horas depois, o Sr. C. ordenara que os novos recrutas subissem num ônibus escolar que ele roubara de uma loja de veículos usados uma semana antes. Devido à exaustão e ao desconforto físico em que se encontravam, portaram-se como garotinhos obedientes, entrando e sentando-se dois a dois como se estivessem numa porra de uma Arca de Noé.

Dali, ele mesmo dirigira (por não confiar esse tipo de bem a qualquer um) para a Escola para Garotas de Brownswick. A extinta escola preparatória ficava no subúrbio em 35 acres de propriedades ignoradas, dilapidadas e cobertas de mato, e os boatos de ser assombrada mantinham afastadas as pessoas normais.

Por enquanto, a Sociedade Redutora estava desabrigada, mas a placa “Vende-se” na curva perto da estrada significava que ele poderia dar um jeito nisso. Tão logo arranjasse algum dinheiro.

Com os rapazes terminando de se recuperar na escola, e os assassinos atuais no centro à procura da Irmandade, ele estava por conta catalogando as poucas propriedades restantes da Sociedade – inclusive aquele pedaço praticamente deserto de floresta ao norte da cidade.

Embora começasse a acreditar que estivesse perdendo tempo.

Subindo na varanda do chalé, iluminou o interior com uma lanterna. Fogão antigo. Mesa de madeira tosca com duas cadeiras. Três camas sem colchão, nem lençóis. Quitinete.

Dando a volta para os fundos, ele encontrou um gerador sem combustível e um tanque de diesel enferrujado, o que sugeria que o lugar teve algum tipo de aquecimento em alguma época.

Voltando para a frente, tentou a porta e descobriu-a trancada.

Não fazia diferença. Não havia muita coisa ali.

Pegando um mapa de dentro da jaqueta de aviador, desdobrou-o e encontrou sua localização. Verificando o quadradinho, pegou a bússola, ajustou a direção e começou a caminhar para o noroeste.

De acordo com aquele mapa, que ele havia encontrado no antro de drogas do Redutor Principal, aquele pedaço de propriedade totalizava cinco acres e tinha esse tipo de chalé espalhado em intervalos randômicos. Ele imaginava que o lugar devia ter sido algum tipo de acampamento com proprietários múltiplos, um tipo de reserva de caça moderna que se perdera para a carga tributária do Estado de Nova York e depois comprada pela Sociedade nos anos oitenta.

Pelo menos era isso o que estava escrito à mão no canto, embora só Deus soubesse se a Sociedade ainda era a proprietária daquilo. Considerando-se a situação financeira da organização, o bom e velho Estado de Nova York poderia bem ter o penhor da propriedade a esta altura, ou até mesmo tê-la reempossado.

Ele parou e verificou a bússola novamente. Caramba, sendo urbano, ele detestava vagar pela floresta à noite, superando a neve com dificuldade, verificando aquele tipo de merda como se fosse algum tipo de guarda florestal. Mas ele tinha de ver com seus próprios olhos aquilo com que tinha que trabalhar, e só havia um modo de fazer isso.

Ao menos tinha um fluxo de receita preparado.

Nas próximas 24 horas, quando aqueles garotos estivessem finalmente de pé, ele voltaria a preencher os cofres. Aquele era o primeiro passo rumo à recuperação.

Passo número dois?

A dominação do mundo.


CAPÍTULO 15

Ela estava sangrando.

Quando Layla olhou para o papel higiênico na mão, a mancha vermelha em todo aquele branco era o equivalente visual de um grito.

Esticando a mão para trás, deu a descarga, e teve que usar a parede para se equilibrar ao se levantar. Com uma mão no baixo ventre e a outra sobre a bancada da pia e depois na maçaneta, ela tropicou para o quarto e foi direto para o telefone.

Seu primeiro instinto foi ligar para a doutora Jane, mas decidiu não fazer isso. Concluindo que estava sofrendo um aborto espontâneo, existia a possibilidade de poupar Qhuinn da ira do Primale. Desde que ela deixasse aquilo debaixo dos panos. E usar a clínica geral da Irmandade provavelmente não seria o melhor modo de assegurar privacidade.

Afinal, só havia um motivo para uma fêmea sangrar. E perguntas a respeito do seu cio e de como ela lidara com isso inevitavelmente se seguiriam.

Na mesinha de cabeceira, ela abriu uma gaveta e retirou um caderninho preto. Encontrando o número da clínica da raça, ela discou com mãos trêmulas.

Quando desligou pouco depois, tinha um horário marcado para dali a trinta minutos.

Mas como sairia dali? Não poderia se desmaterializar, estava ansiosa demais e, de qualquer modo, fêmeas grávidas eram desencorajadas a fazer isso. E ela também não se sentia forte o bastante para dirigir até lá. As aulas de Qhuinn foram bem abrangentes, mas ela não conseguia se imaginar, em seu estado, pegando a autoestrada e tentando acompanhar o fluxo do tráfego humano.

Fritz Perlmutter era a sua única resposta.

Indo até o armário, pegou uma camisola macia, torceu-a numa corda espessa e colocou-a entre as pernas com a ajuda de diversos pares de calcinha. A solução para o seu problema de sangramento mostrou-se incrivelmente volumosa e dificultou o andar, mas esse era o menor dos seus problemas.

Um telefonema para a cozinha garantiu que o mordomo a levaria.

Agora ela só precisava descer as escadas, sair pelo vestíbulo e entrar inteira no enorme sedã. Tudo isso sem se deparar com nenhum macho da casa.

Bem quando estava para sair do quarto, viu seu reflexo no espelho na parede. O manto branco e seu penteado formal anunciavam seu status de Escolhida como nenhuma outra coisa. Ninguém além das fêmeas sagradas da Virgem Escriba da espécie se vestia daquela forma.

Mesmo se aparecesse sob o nome fictício que fornecera à recepcionista, todos adivinhariam sua afiliação sobrenatural.

Tirando o manto, tentou entrar num par de calças de ioga, mas o enchimento que ajustara em si impossibilitou isso. E os jeans que ela e Qhuinn compraram juntos também não estavam dando certo.

Tirando a camisola, ela usou papel higiênico do banheiro para lidar com o problema e conseguiu entrar nos jeans. Um suéter pesado a esquentaria e uma bela escovada nos cabelos e um rabo de cavalo faria com que ela parecesse... quase normal.

Saindo do quarto, ela segurou o tal do celular que Qhuinn lhe dera. Passou pela sua cabeça telefonar para ele, mas, na verdade, o que diria? Ele tinha tanto controle sobre aquele processo quanto ela...

Ah, santa Virgem Escriba, ela estava perdendo o bebê.

O pensamento lhe ocorreu bem quando ela chegou ao topo da escadaria principal. Ela estava perdendo o bebê deles. Naquele instante. Ali do lado de fora do escritório do Rei.

De repente, o teto caiu sobre a sua cabeça e as paredes do vestíbulo grande e espaçoso a apertaram tanto que ela não conseguia respirar.

– Sua Graça?

Estremecendo, ela olhou para baixo para a passadeira vermelha. Fritz estava ao pé das escadas, vestido em seu costumeiro uniforme, e sua adorável e anciã expressão carregada de preocupação.

– Sua Graça, vamos agora? – perguntou ele.

Quando ela assentiu e desceu com cuidado, não conseguia crer que tudo aquilo fora para nada, todas aquelas horas de esforço com Qhuinn... os gélidos momentos seguintes nos quais ela não conseguia se mover... a espera e antecipação de uma esperança quieta e traiçoeira.

O fato de ter cedido o presente de sua virgindade a troco de nada.

Qhuinn sofreria tanto, e o fracasso que ela impingiria a ele só aumentava imensamente o seu próprio sofrimento. Ele sacrificara o corpo durante o cio dela, o desejo dele de ter um laço de sangue incitando-o a fazer algo que ele não teria, de outro modo, escolhido fazer.

O fato de a biologia ter suas vontades não a aliviava.

A perda... ainda parecia ser culpa sua.

Tomar outra dose para acabar com a ressaca.

Saxton acreditava que esse adágio era grosseiro, no entanto, verdadeiro.

Parado nu diante do espelho do banheiro, abaixou o secador e passou os dedos pelos cabelos. As ondas se assentaram em seu estado normal, os fios loiros encontrando uma disposição perfeita para complementar o rosto quadrado e equilibrado.

A imagem que ele via era exatamente aquela da noite anterior, e da anterior àquela, contudo, por mais familiar que seu reflexo fosse, ele se sentia como se pertencesse a uma pessoa diferente, à parte.

Seu corpo mudara tanto por dentro, parecia bem razoável deduzir que a transformação se ecoaria na aparência. Deus, não era assim!

Virando e saindo para o closet, imaginou que não deveria se surpreender, tanto pelo seu íntimo perturbado quanto pelo seu exterior de falsa compostura.

Depois que ele e Blay conversaram, ele precisou de uma hora para tirar tudo do quarto em que ficara com o antigo amante e voltar para a suíte no fim do corredor. Ele recebera aquelas acomodações quando fora morar na mansão, porém, conforme as coisas progrediram com Blay, seus pertences gradualmente migraram para o outro quarto.

Esse processo migratório fora crescente, assim como o seu amor: um caso de uma camisa aqui e um par de sapatos acolá, uma escova de cabelos uma noite e meias na seguinte... uma conversa de valores partilhados seguida por uma maratona de sete horas de sexo acompanhada por um pote de sorvete de café Breyers com apenas uma colher.

Ele não percebera a distância transposta pelo seu coração, do mesmo modo como um andarilho se vê perdido em meio à selva. Contudo, quinze quilômetros e um determinado número de bifurcações em seu caminho mais tarde e não havia como voltar. Àquela altura, não restava alternativa a não ser organizar seus recursos para construir um abrigo e criar raízes novas.

Ele deduzira que construiria seu novo espaço pessoal com Blay.

Sim, deduzira. Afinal, por quanto tempo poderia sobreviver um amor não correspondido? Como o fogo precisa de oxigênio para queimar, assim é com as emoções.

Não no que se referia a Qhuinn, ao que tudo levava a crer. Não para Blay.

Saxton estava decidido a não sair da mansão real, porém. Quanto a isso, Blay tinha razão: Wrath, o Rei, precisava dele, e, mais do que isso, ele gostava do seu trabalho ali. Era ágil, desafiador... e a parte egoísta que havia dentro de si queria ser o advogado que reformaria a lei da maneira correta.

Deduzindo-se que o trono não seria tomado e que ele não fosse decapitado num novo regime.

Mas não se podia viver preocupado com coisas como essa.

Pegando um terno de xadrez escocês do closet, escolheu uma camisa e um colete e estendeu tudo sobre a cama.

Era um clichê triste, bem desestimulante, sair para procurar algo núbil e espiritual para aplacar a dor, mas ele preferia ter um orgasmo a se embriagar. Além disso, o “finja até encontrar um propósito novamente” parecia dar certo.

E parecia especialmente verdadeiro quando ele se olhou arrumado no espelho de corpo inteiro do banheiro, e isso ajudava.

Antes de sair, verificou o celular novamente. As Leis Antigas foram remodeladas seguindo as ordens de Wrath, e agora ele estava de prontidão, à espera da nova tarefa.

Deduziu que logo descobriria o que seria.

Wrath era notoriamente exigente, mas nunca irracional.

Nesse ínterim, ele afogaria sua tristeza no único tipo de “loira gelada” que o apetecia... algo com vinte e poucos anos, lá pelos seus um e oitenta de altura, atlético...

E preferivelmente moreno. Ou loiro.


CAPÍTULO 16

– Alguém já passou por aqui.

Enquanto Rhage falava, Qhuinn pegou sua lanterna de bolso e apontou o discreto facho de luz para o chão. E lá estavam pegadas na neve fresca, sem nenhuma cobertura de flocos... que partiam diretamente para a clareira da floresta. Desligando a luz, ele se concentrou no chalé de caça mais à frente que parecia estar abandonado ao clima frio: nenhuma fumaça subindo pela chaminé, nenhuma iluminação interna e, mais importante, nenhum rastro de cheiro.

Os cinco se aproximaram, circundando a clareira e se movimentando sorrateiramente num ângulo amplo. Como não houve nenhuma ação defensiva de parte alguma, todos subiram na varanda e espiaram o interior pelas janelas estreitas.

– Nada – murmurou Rhage ao ir para a porta.

Uma tentativa rápida na maçaneta. Fechada.

Com um empurrão, o Irmão esmagou o ombro imenso contra o batente e mandou a coisa pelos ares, fragmentos da tranca caindo espalhados bem como lascas de madeira.

– Olá, querida, cheguei – gritou Hollywood ao marchar para dentro.

Qhuinn e John seguiram o protocolo e ficaram na varanda enquanto Blay e Z. entravam e vasculhavam.

A floresta estava quieta ao redor deles, mas seus olhos aguçados acompanharam aquelas pegadas... que, depois de uma passeada pelo chalé, seguiam para o noroeste.

Por certo era indício de que alguém estava ali com eles, vasculhando a propriedade ao mesmo tempo.

Humano? Redutor?

Ele acreditava mais na última opção, devido a toda aquela bagunça no hangar, e também por aquele lugar ser remoto e relativamente seguro por conta disso.

Ainda que houvessem de querer trazer a Stanley Steemer* para aquela construção para uma bela limpeza antes.

A voz de Blay surgiu através da porta aberta.

– Achei uma coisa.

Qhuinn teve que recorrer a todo o seu treinamento a fim de não parar de inspecionar o cenário e olhar para dentro. Não porque ele se importasse particularmente com o que fora encontrado. Durante todo aquele processo, ele vinha checando Blay constantemente, só para ver se o humor dele mudara.

Se mudara, fora para pior.

Vozes baixas se fizeram ouvir dentro do chalé, e depois os três emergiram.

– Encontramos uma caixa trancada a chave – anunciou Rhage ao baixar o zíper da jaqueta e enfiar o contêiner longo e estreito de metal junto ao peito. – Abriremos mais tarde. Primeiro, vamos encontrar o dono dessas botas, rapazes.

Desmaterializando-se rapidamente a cada quinze ou vinte metros, eles se espalharam pelas árvores, rastreando as pegadas na neve, seguindo em silêncio.

Depararam-se com o redutor um quilômetro adiante.

O assassino solitário marchava pela floresta coberta de neve num passo que somente um humano com treinamento olímpico teria conseguido sustentar por algumas centenas de metros. As roupas eram escuras, havia uma mochila nas costas e o fato de ele estar se movimentando apenas com a própria visão eram indicadores de que se tratava do inimigo: a maioria dos Homo sapiens não conseguiria se mover com aquela rapidez com tão pouca iluminação sem a ajuda de uma luz artificial.

Gesticulando em código, Rhage orientou o grupo a fazer uma formação de triângulo reverso que dava a volta ao redor do rastro do redutor. Continuando a avançar junto a ele, observaram-no por uma área mais ou menos do tamanho de um campo de futebol e, em seguida, todos de uma vez aproximaram-se, circundando o assassino, e bloquearam-no em pontos cardinais opostos na mira das armas.

O redutor parou de andar.

Ele era um recruta mais jovem, o cabelo escuro e a pele oliva sugeriam que tivesse descendência mexicana ou italiana, e mereceu pontos por não demonstrar medo. Mesmo tendo caído numa cilada, ele só olhou tranquilamente por sobre o ombro, como que para confirmar que, de fato, fora emboscado.

– Como tem passado? – Rhage perguntou com a fala arrastada.

O redutor não se deu ao trabalho de responder, o que era o oposto do que vinham presenciando nos últimos tempos. Diferentemente dos outros, aquele não era um garotinho metido a esperto cheio de falatório. Calmo, perspicaz... Controlado, ele era o tipo de inimigo que melhorava o seu desempenho no trabalho.

Não exatamente algo ruim...

E, como era de se esperar, a mão dele desapareceu para dentro do casaco.

– Não seja idiota, cara – exclamou Qhuinn, preparado para meter uma bala no bastardo sem nenhum aviso adicional.

O redutor não deteve o movimento.

Tudo bem.

Ele apertou o maldito gatilho e derrubou o merdinha.

No segundo em que o redutor caiu na neve, Blay ficou imobilizado com a arma ainda apontada. Os outros fizeram o mesmo.

Segundos silenciosos se passaram, eles continuaram a encarar o assassino caído. Nenhum movimento. Nenhuma reação da área periférica. Qhuinn o incapacitara, e ele parecia estar trabalhando sozinho.

Engraçado, mesmo se Blay não tivesse ouvido o tiro à esquerda do seu ouvido, ele teria sabido que o atirador fora Qhuinn: qualquer outro teria dado ao inimigo outra chance para reconsiderar.

O sinal para que se aproximasse foi o assobio de Rhage. Os cinco se moveram como uma matilha de lobos ao redor de sua presa, rápidos e confiantes, cruzando a neve com as armas erguidas. O assassino permaneceu absolutamente imóvel, mas não houvera uma morte na família, por assim dizer. Para isso, seria preciso que uma adaga de aço lhe atravessasse o peito.

Porém, aquele era o estado desejável. Queriam que ele fosse capaz de falar.

Ou, pelo menos, que estivesse em condições de ser forçado a falar...

Mais tarde, quando repassou o que aconteceu em seguida... quando sua mente ardeu obsessivamente a respeito dos fatos... quando ficou acordado tentando entender como as peças se encaixaram na esperança de adivinhar uma mudança de procedimento que garantisse que algo semelhante nunca mais acontecesse... Blay se demoraria naquela mudança de eventos.

Aquele leve tremor no braço. Apenas uma contração muscular aparentemente desconectada de qualquer pensamento consciente ou vontade. Nada perigoso. Nenhum sinal do que estava por vir.

Apenas uma contração.

A não ser pelo fato de que, com um movimento mais rápido que um piscar de olhos, o assassino sacou uma arma sabe-se lá de onde. Foi sem precedentes. Num segundo ele estava como morto no chão; no seguinte, estava atirando de modo controlado num raio amplo.

E mesmo antes de os sons dos tiros pararem, Blay percebeu a imagem horripilante de Zsadist levando chumbo bem no coração, um impacto tão forte que foi capaz de deter o avanço do Irmão, o torso catapultando para trás, os braços se abrindo enquanto ele caía no chão.

No mesmo instante, a dinâmica mudou. Ninguém mais queria interrogar o maldito.

Quatro adagas foram desembainhadas. Quatro corpos se adiantaram. Quatro braços talharam com lâminas afiadas e frias. Quatro impactos, um após o outro.

Tarde demais, porém.

O assassino desaparecera bem diante deles, as armas golpeando a neve manchada onde o inimigo estivera deitado, em vez de atingirem uma cavidade torácica vazia.

Que seja. Haveria tempo para se perguntarem quanto ao desaparecimento improcedente mais tarde. No momento, eles tinham um soldado caído.

Rhage praticamente se lançou sobre o Irmão, colocando o corpo diante de tudo e todos.

– Z.? Z.? Ai, mãe da raça...

Blay sacou o telefone e discou. Quando Manny Manello atendeu, não havia tempo a perder.

– Temos um Irmão ferido. Tiro no peito...

– Espere!

A voz de Z. foi uma surpresa. Assim como o braço do Irmão levantando e empurrando Rhage para o lado.

– Saia de cima de mim!

– Mas estou tentando fazer ressuscitação cardio...

– Prefiro morrer antes de beijar você, Hollywood – Z. tentou se sentar, estava com a respiração pesada. – Nem pense nisso.

– Alô? – a voz de Manello disse ao telefone. – Blay?

– Espere...

Qhuinn se ajoelhou perto de Zsadist, e apesar do fato de o Irmão não gostar de ser tocado, segurou-o por debaixo do braço e ajudou o macho a suspender o torso do chão.

– Estou com a clínica na linha – disse Blay. – Qual o seu estado?

Em resposta, Z. levou a mão até a bainha da adaga e a puxou. Depois, abaixou o zíper da jaqueta de couro e rasgou a camiseta ao meio.

Para revelar o mais lindo colete à prova de balas que Blay jamais vira.

Rhage se curvou em sinal de alívio, a ponto de Qhuinn ter que segurá-lo com a mão livre para que o cara também não caísse no chão.

– Kevlar – Blay murmurou para Manello. – Ah, graças a Deus, ele está usando um Kevlar.

– Que ótimo, mas escute, preciso que você tire o colete e verifique se ele deteve a bala, ok?

– Entendido – olhou de relance para John, contente em ver que ele estava de pé, com as duas armas adiante, os olhos vasculhando o ambiente enquanto o resto deles avaliava a situação. – Vou cuidar disso.

Blay se aproximou e se agachou na frente do Irmão. Qhuinn podia ter tido a coragem de fazer contato com Zsadist, mas ele não faria isso sem permissão expressa.

– O doutor Manello quer saber se você pode tirar o colete para que possamos ver se existe algum ferimento.

Z. moveu os braços e depois franziu o cenho. Tentou novamente. Depois da terceira tentativa, o Irmão conseguiu levantar as mãos até as tiras de velcro, mas elas não conseguiam fazer muita coisa.

Blay engoliu com força.

– Posso cuidar disso? Prometo não tocar em você o quanto for possível.

Ótima gramática ali. Mas ele falava sério.

Os olhos de Z. se levantaram para ele. Estavam negros de dor, e não amarelos.

– Faça o que tem que fazer, filho. Vou aguentar.

O Irmão desviou o olhar, o rosto contraído numa careta, a cicatriz que formava o S do alto do nariz até o canto da boca destacando-se num relevo alto.

Com um sermão severo, Blay ordenou às suas mãos que ficassem firmes, e a mensagem de algum modo foi levada adiante: ele puxou as tiras que o prendiam nos ombros, o barulho mais alto do que o grito em sua cabeça, e depois retirou o colete, aterrorizado pelo que descobriria.

Havia uma grande marca redonda bem no meio do peito musculoso de Z. Bem onde ficava o coração.

Mas era apenas um hematoma. Não um buraco.

Apenas um hematoma.

– Somente ferimento superficial – Blay afundou o dedo no preenchimento denso do colete e encontrou a bala. – Estou sentindo a bala dentro do colete.

– Então por que não consigo mexer meu...

O cheiro de sangue fresco do Irmão pareceu atingir todos os narizes ao mesmo tempo. Alguém praguejou, e Blay se inclinou.

– Você também foi alvejado debaixo do braço.

– É ruim? – Z. perguntou.

Pelo telefone, Manello disse:

– Dê uma olhada e veja o que consegue descobrir.

Blay suspendeu o braço pesado e iluminou a parte interna com uma lanterna de bolso. Aparentemente, uma bala entrara no torso pela pequena parte desprotegida nas axilas – um tiro em um milhão que se você tentasse recriar, não conseguiria repetir.

Merda.

– Não vejo o buraco da saída. É bem na lateral das costelas, no alto.

– Ele está respirando bem? – perguntou Manello.

– Com dificuldade, mas regular.

– Reanimação cardiorrespiratória foi administrada?

– Ele ameaçou castrar Hollywood se houvesse qualquer contato labial.

– Escute aqui, deixe eu me desmaterializar – Z. tossiu um pouco. – Me dê um pouco de espaço...

Todos ofereceram uma variedade de opiniões a essa altura, mas Zsadist não aceitou nenhuma delas. Empurrando-os, o Irmão fechou os olhos e...

Blay soube que estavam com problemas sérios quando nada aconteceu. Sim, Zsadist não fora morto, e estava muito melhor do que estaria se estivesse sem o colete. Mas não conseguia se movimentar – e eles estavam no meio do nada, tão floresta adentro que mesmo que chamassem por reforços, ninguém conseguiria levar um carro até quilômetros de onde estavam.

E o pior? Blay tinha a sensação de que o assassino que derrubaram era algo consideravelmente pior do que um redutor qualquer.

Não havia como saber quando os reforços chegariam.

O som de uma mensagem de texto chegando ao celular de um deles soou, e Rhage a leu.

– Merda. Os outros estão presos no centro da cidade. Teremos que cuidar disso sozinhos.

– Maldição – Zsadist murmurou entredentes.

Sim. A situação era mais ou menos essa.

* Empresa americana especializada em limpeza residencial usando máquina a vapor. (N.T.)


CAPÍTULO 17

Xcor não esperara aquilo.

Enquanto ele e seus soldados se materializavam na localização da alimentação comunal arranjada, ele esperara uma propriedade decaída ou, quem sabe, à beira da condenação, um lugar num estado tão deplorável que uma fêmea seria forçada a vender suas veias e seu sexo para sobreviver.

Nada disso.

A propriedade alcançava os padrões da glymera, a imensa mansão no alto da colina se destacava em sua iluminação, os jardins impecavelmente bem podados, o chalé menor da criadagem perto dos portões em perfeito estado apesar da idade óbvia.

Talvez ela fosse uma prima distante de alguém de linhagem mais importante?

– Quem é essa fêmea? – ele perguntou a Throe.

Seu tenente deu de ombros.

– Não sei nada de sua família. Mas verifiquei a filiação dela com uma linhagem de valor.

Ao redor deles, os soldados estavam ansiosos, os coturnos de combate socando a neve compacta aos seus pés enquanto andavam no mesmo lugar, a respiração escapando dos narizes como se eles fossem cavalos de corrida prestes a explodirem para fora dos portões da pista.

– Há que se perguntar se ela sabe para o que se ofereceu – murmurou Xcor, nem um pouco preocupado se a fêmea sabia ou não.

– Vamos? – perguntou Throe.

– Sim, antes que os outros se descontrolem e invadam aquele chalé dela.

Throe se desmaterializou até a porta singular, com seu topo arqueado e com uma lamparina que se esperaria ver do lado de fora de uma casa de bonecas. Porém, seu braço direito não foi persuadido pelo charme. A iluminação acima de sua cabeça logo foi cortada, certamente ao comando de Throe, e a batida à porta do soldado foi rápida e severa, uma exigência, não um pedido.

Momentos depois, a porta se abriu. A luz de uma lareira escapou para a noite, o brilho dourado das labaredas tão intenso que sugeria que elas conseguiriam derreter a camada de neve – e bem no meio daquela iluminação adorável, a figura de uma fêmea destacava uma silhueta escura e curvilínea.

Ela estava nua. E o cheiro que foi carregado pela brisa gélida indicava que ela estava pronta.

Zypher rosnou baixinho.

– Contenha-se – exigiu Xcor. – Não deixe que a sua avidez seja usada como uma arma contra nós.

Throe falou com ela e depois enfiou a mão no bolso para pegar o dinheiro. A fêmea aceitou o que lhe foi dado e depois esticou um braço no batente, angulando o corpo de modo a fazer com que um seio farto fosse iluminado por aquele brilho suave.

Throe olhou de relance sobre o ombro e acenou com a cabeça.

Os outros não esperaram por um segundo convite. Os lutadores de Xcor convergiram para a entrada, os corpos másculos tão grandes e tão numerosos, que a fêmea logo ficou invisível.

Praguejando, ele também se aproximou andando.

Zypher naturalmente foi o primeiro, tomando-a nos lábios e apalpando os seios, mas ele não foi o único. Os três primos brigaram por suas posições, um indo para trás e arqueando os quadris, como se estivesse esfregando o pau contra o traseiro dela, os outros dois alcançando os mamilos e o sexo dela, as mãos serpenteando conforme ela foi envolvida.

Throe falou acima dos gemidos crescentes.

– Vou montar guarda do lado de fora.

Xcor abriu a boca para ordenar o contrário, e depois percebeu que pareceria como se ele estivesse evitando a cena, e isso dificilmente seria algo másculo.

– Faça isso – murmurou. – Monto guarda no interior.

Seus machos pegaram a fêmea, as mãos das adagas segurando-a pelos braços, coxas e cintura, e, em conjunto, carregaram-na para o interior aconchegante do chalé. Foi Xcor quem fechou a porta e se certificou de que não havia nenhuma tranca para confiná-los. Também foi ele quem vasculhou o interior do chalé. Enquanto seus bastardos carregavam seu alimento para a frente da lareira, onde um tapete de peles recobria o chão, ele se inclinou em uma janela fechada, levantou a cortina e verificou os vitrôs. Antigos e chumbados, com suportes de madeira, não de aço.

Nada seguros. Ótimo.


– Alguém entre em mim – a fêmea gemeu numa voz profunda.

Xcor não se preocupou em ver se a obedeceram ou não, ainda que o gemido ofegante sugerisse que o fora. Em vez disso, olhou ao redor, procurando outras portas e lugares nos quais uma emboscada poderia ser armada. Aparentemente, não existia nenhum. O chalé não tinha um segundo andar, o esqueleto do teto formava um arco acima da sua cabeça e só havia um banheiro pequeno, cuja porta estava entreaberta e a luz acesa revelava um pé em forma de garra da banheira e uma pia em estilo antigo. A cozinha aberta não passava de uma bancada com alguns poucos eletrodomésticos modestos.

Xcor olhou para a ação. A fêmea estava deitada de costas, com os braços abertos formando um T, o pescoço exposto, as pernas escancaradas. Zypher montara nela e a penetrava ritmadamente, fazendo com que a cabeça subisse e descesse no tapete branco fofo enquanto ela absorvia os impactos. Dois dos primos se agarraram aos seus pulsos, e o terceiro tirara o pênis para fora e a fodia na boca. Na verdade, havia pouco dela que não estivesse coberto por machos vampiros, e seu êxtase por estar sendo usada era óbvio não somente aos olhos, mas também aos ouvidos: ao redor da ereção que entrava e saía dos lábios abundantes, a respiração pesada e os gemidos eróticos escapavam para a atmosfera carregada de sexo.

Xcor caminhou até a bancada da cozinha. Não havia nada ali, nenhum resto de comida, nenhum copo abandonado meio cheio. Havia pratos nos armários, contudo, e quando ele abriu a grande geladeira de estilo europeu, garrafas de vinho branco estavam organizadas horizontalmente nas prateleiras.

Uma imprecação masculina atraiu seu olhar para a diversão. Zypher estava gozando, os corpos se arqueando para frente enquanto a cabeça pendia para trás e, em meio ao seu orgasmo, um dos primos o afastava, assumindo seu posto, levantando os quadris da fêmea e se afundando no sexo rosado e molhado. Pelo menos Zypher parecia completamente satisfeito de trocar de lugar; ele expôs as presas, afundou a cabeça debaixo do peito agora arfante do seu camarada e beliscou o seio da fêmea para poder se alimentar perto do mamilo.

Aquele que estava na boca também gozou, e ela sorveu todo o sêmen, sugando a cabeça do pênis do lutador, soltando-a em seguida e lambendo os lábios úmidos como se ainda estivesse com fome. Alguém logo a atendeu, outra ereção bombeando seus lábios, os ritmos contrários das investidas do que acontecia em sua cabeça e entre as pernas balançando-a para frente e para trás num modo que ela parecia apreciar.

Xcor voltou a verificar o banheiro, mas sua primeira avaliação estava correta: não havia onde se esconder naquele confinamento diminuto.

Tendo garantido o interior, ele não pensou em nada mais para fazer a não ser se recostar num canto que lhe oferecia a melhor visão de acesso e testemunhar a refeição. Conforme as coisas se intensificaram, seus lutadores perderam a aparente civilização que tinham, trocando de posição como leões sobre carniça fresca, as presas se revelando, os olhos selvagens de agressão enquanto eles lutavam por suas posições. No entanto, eles não perderam completamente as cabeças. Cuidaram da fêmea.

Não demorou e alguém cortou a própria veia, aproximando-a dos lábios dela.

Xcor baixou o olhar para as botas e permitiu que sua visão periférica monitorasse o ambiente.

Houve uma época em que se excitaria com aquilo. E não por se interessar particularmente pelo sexo, mas do mesmo modo como seu estômago roncava quando via comida. Dessa forma, no passado, quando sentia a necessidade de tomar uma fêmea, era o que teria feito. Normalmente no escuro, claro, para que a pobre garota não sentisse nem repulsa nem medo.

Ele bem podia imaginar que as expressões de excitação que os machos exibiam em seus rompantes eróticos pouco melhoraram sua aparência.

Mas agora? De maneira curiosa, sentia-se desligado de tudo aquilo, como se estivesse assistindo os machos carregando mobília de um lado para o outro ou, quem sabe, limpando as folhas em um jardim.

O motivo era a sua Escolhida, claro.

Tendo tido os lábios pressionados contra a pele pura, tendo olhando dentro dos olhos verdes luminosos, tendo sentido o perfume delicado dela, ele estava completamente desinteressado pelos charmes bem utilizados daquela fêmea diante da lareira.

Ah, a sua Escolhida... ele jamais soube que tal graça existisse e, além disso, não teria como imaginar que se sentiria tão completamente tocado por aquilo que era tão antitético para ele. Ela era o seu oposto, gentil e generosa, enquanto ele era brutal e impiedoso, bela para a sua feiura, etérea para a sua depravação.

E ela o marcara. Do mesmo modo como se o tivesse golpeado e deixado uma cicatriz em sua carne, ele estava ferido e enfraquecido por ela.

Não havia nada a ser feito.

Deus, mesmo as lembranças dos momentos que partilhara com ela, quando estivera completamente vestida, e ele, tão gravemente ferido, bastavam para excitá-lo, seu pobre sexo endurecendo por nenhum motivo aparente: mesmo que não estivessem em lados opostos na guerra pelo trono, ela jamais permitiria que ele a abordasse como um macho faz ao se enfeitiçar por uma fêmea de valor. Naquela noite outonal quando se encontraram debaixo daquela árvore, ela executara um ato válido segundo seus preceitos. Não tivera nada a ver com ele em particular.

Mas, ah, como ele a desejava mesmo assim...

Abruptamente, a fêmea diante da lareira se arqueou debaixo dos pesos orgásmicos que mudavam sobre ela, e ele voltou-lhe sua atenção. Como se ela percebesse sua excitação, o olhar enevoado e extasiado focalizou nele, e uma surpresa repentina cruzou sua expressão – ou o pouco que ele conseguia distinguir por cima do antebraço grosso que lhe oferecia alimento.

O choque arregalou seu olhar. Evidentemente, ela não notara a presença dele, mas agora que o fazia, o medo, e não a paixão, fez-se óbvio dentro dela.

Sem querer atrapalhar toda aquela ação, ele balançou a cabeça e estendeu a palma num gesto de “pare”, para garantir a ela que não teria de suportar sua mordida – ou pior, seu sexo.

A mensagem aparentemente funcionou, porque o medo abandonou sua expressão, e quando um dos soldados apresentou o pau pedindo atenção, ela o apanhou e começou a massageá-lo acima da sua cabeça.

Xcor sorriu para si mesmo de modo horripilante. Aquela prostituta não o queria, e mesmo assim, seu corpo, em toda a sua estupidez, insistia em reagir àquela Escolhida, como se a fêmea sagrada um dia fosse olhar para ele.

Tão tolo.

Consultando o relógio, surpreendeu-se ao ver que a refeição já vinha acontecendo há mais de uma hora. Que seja. Desde que seus machos obedecessem com suas duas regras básicas, ele não se importava em deixá-los continuar: tinham de permanecer substancialmente vestidos e as armas deveriam estar nos coldres com as travas desarmadas.

Dessa forma, se o clima mudasse, eles poderiam se defender rapidamente.

Ele estava mais do que disposto a lhes conceder aquele passatempo.

Depois daquele interlúdio? Muitos estariam no máximo de suas forças, e pelo modo como as coisas estavam com a Irmandade... eles precisariam estar assim.


CAPÍTULO 18

– Não. De jeito nenhum.

Qhuinn teve que concordar com a opinião de Z. quanto à ideia brilhante de Rhage.

O grupo já se esforçara na floresta, com Rhage suportando boa parte do peso de Z., enquanto os demais os circundavam aos pares, a postos para apanhar qualquer um ou qualquer coisa que os ameaçasse pelas margens. Agora estavam de volta ao hangar e a solução de Hollywood para o problema de mobilidade parecia uma complicação com implicações mortais, e não exatamente algo que de fato ajudasse.

– Pilotar não deve ser tão difícil – enquanto todos, inclusive Z., apenas o encaravam, Rhage deu de ombros. – O que foi? Os humanos o fazem o tempo todo.

Z. esfregou o peito e lentamente se deixou cair no chão. Depois de respirar, balançou a cabeça.

– Primeiro, você não sabe se... a maldita coisa... pode subir. Provavelmente... está sem combustível... e você nunca pilotou antes.

– Quer me contar a nossa outra opção? Ainda estamos a quilômetros de um ponto plausível para que nos busquem, você não está melhorando e podemos ser encurralados. Deixe-me pelo menos entrar lá para ver se consigo fazer o motor pegar.

– Não é uma decisão inteligente.

No silêncio que se seguiu, Qhuinn raciocinou e olhou para o hangar. Depois de um instante, disse:

– Eu dou cobertura. Vamos fazer isso.

No fim, Rhage estava certo. Aquela evacuação a pé estava demorando demais e o redutor desaparecera antes que o apunhalassem, e não o contrário.

Será que Ômega dera poderes especiais aos seus garotos?

Tanto faz. Um soldado inteligente jamais subestimava o inimigo, ainda mais quando um dos seus estava abatido. Precisavam levar Z. para um lugar seguro e se isso significava ir pelo ar, que assim fosse.

Ele e Rhage entraram no hangar e ligaram as lanternas. O avião estava onde o tinham deixado no canto do fundo, como se fosse o filho adotivo feio de algum outro tipo de transporte muito mais bonito que há muito saíra de cena. Aproximando-se, Qhuinn viu que a hélice parecia estar inteira, e apesar de as asas estarem empoeiradas, conseguiu sustentar seu peso nelas.

O fato de a porta ter rangido como o diabo quando Rhage a abriu não foi uma notícia tão promissora.

– Nossa! – murmurou Rhage ao se encolher. – Parece que há algo morto ali dentro.


Caramba, o fedor devia ser tremendo se o Irmão conseguia distingui-lo do resto do cheiro que permeava o hangar.

Talvez a ideia não fosse tão boa assim.

Antes que Qhuinn conseguisse emitir uma segunda opinião a respeito do fedor, Rhage se espremeu como um pretzel e passou pela abertura oval.

– Puta merda... Chaves! As chaves estão aqui, dá pra acreditar?

– E quanto ao combustível? – murmurou Qhuinn, ao lançar o facho da lanterna de bolso num círculo amplo. Nada além de chão imundo.

– Acho bom recuar um pouco, filho – Rhage berrou de dentro da cabine. – Vou tentar ligar essa máquina velha.

Qhuinn se afastou, mas oras, se a coisa fosse explodir, poucos metros não fariam muita diferença...

A explosão foi alta, a fumaça, espessa, e o motor parecia estar sofrendo com um acesso de tosse mecânica. Mas a merda se estabilizou. Quanto mais deixaram o motor esquentar, mais equilibrado o ritmo se tornou.

– Temos que sair daqui antes de nos asfixiarmos – Qhuinn gritou de dentro do avião.

Bem nessa hora, Rhage deve ter colocado a coisa para se mexer ou algo assim, porque o avião se lançou para a frente com um gemido, como se cada prego e parafuso da sua fuselagem doesse.

E aquela coisa voaria?

Qhuinn correu na frente e chegou à porta dupla. Segurando de um lado, usou toda a sua força para puxar e afastou as portas, lançando diversas trincas e travas para todos os lados.

Ele só esperava que o avião não se inspirasse naqueles fragmentos.

Sob o luar, as expressões de John e Blay não tinham preço ao darem uma bela olhada para o plano de fuga – e ele bem sabia de onde elas vinham.

Rhage pressionou o freio e se espremeu de novo para sair.

– Vamos trazê-lo para dentro.

Silêncio. Bem, a não ser pelo avião ofegante atrás deles.

– Você não vai levá-lo – disse Qhuinn, quase para si mesmo.

Rhage olhou sério para ele.

– O que disse?

– Você é valioso demais. Se esta coisa cair, não podemos perder dois Irmãos. Isso não vai acontecer. Eu sou dispensável, você não.

Rhage abriu a boca como se fosse argumentar. Mas quando a fechou, uma expressão estranha atravessou seu belo rosto.

– Ele tem razão – disse Z. sério. – Não posso colocar você em perigo, Hollywood.

– Que se foda, posso me desmaterializar para fora da cabine...

– E acha que vai conseguir fazer isso quando estiverem num espiral? Tolice...

Uma saraivada de balas irrompeu das margens das árvores, atingindo a neve, o zumbido passando pelos ouvidos.

Todos reagiram. Qhuinn mergulhou dentro do avião, posicionou-se atrás do assento do piloto e tentou entender... puta merda, havia botões demais. A única coisa que o salvava era que...

Rá-tá-tá!

... ele assistira a um número suficiente de filmes para saber que a alavanca com a manopla era o acelerador e que a direção em forma de gravata borboleta era a coisa que você puxava para subir, e abaixava para descer.

– Cacete – murmurou ao ficar abaixado o máximo que podia.

Considerando-se os sons explosivos que se seguiram, John e Blay também atiravam, por isso Qhuinn se sentou um pouco mais elevado e olhou para a fileira de instrumentos. Deduziu que aquele com um tanquezinho de combustível era o que ele estava procurando.

Um quarto de tanque disponível. E metade daquela coisa só devia ser condensação.

Aquela era uma ideia bem ruim.

– Traga-o aqui! – Qhuinn berrou, olhando para o campo aberto e reto à sua esquerda.

Rhage logo o atendeu, jogando Zsadist no avião com toda a gentileza de um estivador. O Irmão aterrissou como uma pilha amontoada, mas ao menos praguejava, o que significava que ainda estava bom o bastante para sentir dor.

Qhuinn não esperou pela tolice de fechar as portas. Soltou o pedal do freio, apertou o acelerador e rezou para não derrapar na neve...

Metade do para-brisa se estilhaçou na sua frente; a bala que causara o estrago ricocheteou pela cabine, o “fuuu” do assento ao lado do seu, sugerindo que o encosto de cabeça tivesse sido atingido. O que era melhor do que o seu braço. Ou o crânio.

A única notícia boa era que o avião parecia pronto para sair dali também, o motor enferrujado girando a hélice rapidamente como se soubesse que sair do chão era a única saída para a segurança. Ao lado das janelas, o cenário começava a passar e ele se orientou no meio da “pista” mantendo as duas fileiras de árvores equidistantes.

– Segure-se – gritou acima do estrondo.

O vento entrava na cabine como se houvesse um ventilador industrial preenchendo o espaço onde o vidro estivera, mas ele não pretendia subir o bastante para que necessitassem de pressurização.

Àquela altura, ele só queria passar por cima da floresta logo adiante.

– Vamos, meu bem, você consegue... Vamos, vamos...

Ele já estava com a alavanca toda puxada e teve que ordenar ao braço que relaxasse um pouco. Não havia mais para onde puxar, e quebrar a maldita coisa era a garantia de acabar com tudo ali mesmo.

O barulho aumentou ainda mais.

As árvores se agitaram cada vez mais.

A trepidação ficou cada vez mais violenta, até seus dentes batiam uns nos outros, e ele se convenceu de que uma ou as duas asas se partiriam e cairiam pelas laterais.

Concluindo que não havia tempo a perder, Qhuinn puxou o manche para trás o máximo que pôde, segurando firme, como se isso, de alguma forma, fosse se traduzir à fuselagem do avião e se mantivesse junto no lugar...

Algo caiu do teto e voou na direção de Z.

Um mapa? O manual do proprietário? Quem diabos haveria de saber...?

Caramba, as árvores na ponta extrema estavam se aproximando...

Qhuinn puxou ainda mais, apesar de o manche estar o mais próximo possível dele, o que era uma pena, porque estavam ficando sem pista e ainda colados no chão...

Sons de arranhados vinham da barriga do avião, como se a vegetação rasteira estivesse se esticando e tentando segurar as placas de aço.

As árvores estavam cada vez mais perto.

Seu primeiro pensamento ao enfrentar a morte era que jamais conheceria a filha. Pelo menos não neste lado do Fade.

O segundo e último era que não acreditava que nunca tivesse dito a Blay que o amava. Em todos os minutos e horas e noites de sua vida, em todas as palavras ditas ao macho no decorrer dos anos em que se conheciam, ele somente o afastara.

E agora era tarde demais.

Idiota. Que tremendo cretino que ele era.

Porque parecia bem evidente que seu cartão de biblioteca ficaria inutilizado aquela noite.

Endireitando-se e fazendo com que as lufadas o atingissem em cheio no rosto, Qhuinn encarou aquela arremetida, imaginando todos aqueles pinheiros logo adiante, já que não conseguia enxergá-los pelo fato de os olhos estarem lacrimejando devido ao vento. Abrindo a boca, ele gritou, acrescentando voz à confusão.

Maldição, não morreria como um covarde. Não mergulharia no chão, nada de frases patéticas implorando para que Deus o salvasse. Ao diabo com isso. Enfrentaria a morte com as presas expostas, o corpo preparado e o coração acelerado não de medo, mas com uma tremenda descarga de...

– Morte, vá se foder!

Enquanto Qhuinn tentava levantar voo, Blay tinha o cano da pistola apontado para a borda das árvores e descarregava balas como se tivesse um suprimento infindável... o que não era verdade.

Aquilo era horrível. Ele, John e Rhage não tinham cobertura; não havia como saber quantos assassinos estavam na floresta; e, pelo amor de Deus, só o que aquele avião antigo fazia era expelir uma nuvem de fumaça tóxica em seu rastro enquanto passava como se estivesse num desfile dominical.

Ah, e a máquina estava longe de ser blindada, mas, evidentemente, tinha combustível no tanque.

Qhuinn e Z. não conseguiriam. Colidiriam na floresta ao fim da pista. Isso se não explodissem antes.

Nesse instante, quando soube que uma bola de fogo era iminente de um ou outro modo, ele se partiu ao meio. A parte física permanecia concentrada em combater o ataque, os braços esticados, os indicadores apertando os gatilhos, os olhos e ouvidos rastreando os sons e as aparições de flashes de pistolas e os movimentos do inimigo.

A sua outra parte estava naquele avião.

Era como se estivesse assistindo à própria morte. Imaginava com nitidez a vibração violenta do avião, os saltos descontrolados no chão e a vista da margem sólida das árvores que se aproximavam dele, como se estivesse enxergando através dos olhos de Qhuinn e não dos seus.

Filho da puta imprudente.

Tantas vezes Blay pensou “ele vai se matar”.

Tantas vezes no campo de batalha e fora dele.

Mas aquela era a vez em que isso aconteceria...

Uma bala o atingiu na coxa e a dor que subiu pela perna até o coração indicava que sua total atenção precisava voltar ao combate: se quisesse viver, teria de se concentrar completamente.

Contudo, quando essa convicção o acometeu, houve uma fração de segundo em que ele pensou: vamos acabar com isso aqui. Vamos acabar com essa tolice de vida de castigos, de “quase lá”, de “e se?”, da agonia crônica e infindável em que sempre esteve... e da qual estava tão cansado...

Ele não entendeu o que o fez atingir a neve.

Num minuto, estava olhando para o avião esperando que ele explodisse em chamas. No minuto seguinte, estava de peito no chão, com os cotovelos enfiados na terra congelada e obstinada, a perna machucada latejando.

Flap! Flap! Flap!...

O rugido que interrompeu o som das balas era tão alto que ele abaixou a cabeça, como se isso o ajudasse a evitar a bola de fogo crônica do avião.

Só que não houve nem luz nem calor. E o som vinha de cima...

Planando. O fardo de parafusos estava mesmo voando. Acima deles.

Blay despendeu um segundo olhando para cima, só para o caso de ter sido alvejado e a sua percepção da realidade ter sido afetada. Mas não. Aquela antiguidade de pulverização de plantações estava no céu, fazendo uma curva larga e seguindo na direção que, se é que conseguiria permanecer suspenso, levaria Qhuinn e Z. para o complexo da Irmandade.

Se tivessem sorte.

Caramba, aquele voo não seria fácil. Nada parecido com uma águia voando segura e decidida pelo céu noturno. Mais parecido com uma andorinha recém-saída do ninho com uma asa quebrada.

De um lado para o outro. Para cima e para baixo, inclinando-se de lado a lado.

Ao ponto em que parecia ter realizado o impossível saindo do chão... só para cair e queimar no meio da floresta...

Do nada, algo o atingiu na lateral do rosto, golpeando-o com tanta força que ele caiu de costas e quase perdeu as pistolas. Uma mão – fora uma mão que o espalmara como se ele fosse uma bola de basquete.

Em seguida, um peso absurdo o atingiu no peito, esticando-o no chão coberto de neve, fazendo-o exalar com tanta força que ele se perguntou se não deveria olhar ao redor para procurar o fígado.

– Porra, vai ficar abaixado ou não? – Rhage sibilou em seu ouvido. – Está tentando levar bala... de novo?

Enquanto a calmaria do tiroteio se estendia de segundos até completar um minuto, os redutores emergiram pela linha de árvores adiante, o quarteto de assassinos caminhando pela neve com as armadas suspensas e prontas.

– Não se mexa – sussurrou Rhage. – Dois podem brincar nesse jogo.

Blay fez seu melhor para não inspirar tão fundo quanto a queimação em seus pulmões lhe dizia que precisava. Também tentou não espirrar já que flocos soltos coçavam em seu nariz toda vez que ele respirava.

Espera.

Espera.

Espera.

John estava a um metro de distância, deitado numa posição contorcida que fez o coração de Blay se apertar...

O cara sutilmente levantou o polegar, como se estivesse lendo a mente de Blay.

Graças a Deus. Cacete.

Blay desviou o olhar sem mudar a posição estranha da cabeça, e depois discretamente trocou uma das pistolas por uma das suas adagas.

Enquanto um zumbido desengonçado começou a vibrar em sua cabeça, ele calculou os movimentos dos redutores, suas trajetórias, suas armas. Ele estava quase sem munição e não havia tempo para recarregar as pistolas. E ele sabia que tanto Rhage quanto John estavam na mesma condição.

As adagas que V. fizera à mão para todos eles eram o único recurso.

Mais perto... mais perto...

Quando os quatro assassinos finalmente estavam ao alcance, sua cronometragem foi perfeita. Assim como a dos outros.

Com um movimento coordenado perfeito, ele saltou e começou a apunhalar os dois mais próximos a ele. John e Rhage atacaram os outros...

Quase imediatamente, mais assassinos surgiram das árvores, mas, por algum motivo, talvez porque a Sociedade Redutora não estivesse armando seus alistados muito bem, não havia balas. O segundo round se passou pela neve com o tipo de armas que se esperaria ver numa briga de beco: tacos de baseball, pés-de-cabra, chaves de rodas e correntes.

Por ele, tudo bem.

Estava tão pilhado e furioso, que lhe faria bem sair na mão.


CAPÍTULO 19

Sentada na mesa de exames, com uma camisola frágil de papel cobrindo-a e os pés descalços pendurados da orla acolchoada, Layla sentiu como se estivesse cercada por instrumentos de tortura. E devia ser isso mesmo. Todo tipo de utensílios de aço inoxidável estava enfileirado na bancada da pia, com as embalagens plásticas transparentes indicando que estavam estéreis e prontos para serem usados.

Já fazia uma eternidade que estava na clínica de Havers. Ou, pelo menos, era o que parecia.

Em contraste com o trajeto apressado para atravessar o rio, quando o mordomo dirigira como se soubesse que a pressa era essencial, desde que ali chegara só acontecera um retardo após o outro. Desde a burocracia até a sala de espera, o aguardo pela enfermeira, a demora para que Havers apresentasse o resultado do seu exame de sangue.

Era o suficiente para enlouquecer alguém.

Do lado oposto ao que ela estava sentada, havia uma imagem emoldurada pendurada na parede, e há tempos ela havia memorizado suas pinceladas e cores, o buquê de flores pintadas em azuis e amarelos vibrantes. O nome embaixo dizia: van Gogh.

Àquela altura, ela nunca mais queria ver uma íris novamente.

Mudando de posição, fez uma careta. A enfermeira lhe entregara um objeto apropriado para o sangramento e ela ficou horrorizada ao perceber que logo precisaria de outro...

A porta se abriu com uma batida e seu instinto imediato foi correr, o que era ridículo. Era ali que precisava estar.

Só que tratava-se apenas da enfermeira que a levara até ali, tirara a amostra de sangue para o exame e seus sinais vitais, e tomara notas no computador.

– Sinto muito, houve outra emergência. Só quis certificá-la de que será a próxima.

– Obrigada – Layla se ouviu dizer.

A fêmea se aproximou e pôs uma mão em seu ombro.

– Como está se sentindo?

A gentileza a fez piscar rápido.

– Acho que vou precisar de outro... – ela apontou para o quadril.

A enfermeira assentiu e deu um leve apertão antes de seguir para a bancada e apanhar uma embalagem quadrada cor de pêssego.

– Temos mais aqui. Gostaria que eu a acompanhasse até o banheiro no final do corredor?

– Sim, por favor...

– Espere, não se levante ainda. Deixe-me pegar algo para que se cubra melhor.

Layla baixou o olhar para as mãos, aquelas que estavam enroscadas uma na outra e que não conseguiam ficar quietas.

– Obrigada.

– Aqui está – algo macio a envolveu. – Ok, agora vamos colocá-la de pé.

Escorregando para fora da mesa, ela se desequilibrou um pouco e a enfermeira estava logo ali, segurando-a pelo cotovelo para estabilizá-la.

– Vamos bem devagar.

E foi o que fizeram. No corredor, havia enfermeiras se apressando de quarto em quarto, e pessoas entrando e saindo das suas consultas, e outras equipes correndo... e Layla não conseguia acreditar que um dia fora rápida como eles. Para se afastarem do tráfego, ela e a gentil acompanhante ficaram próximas da parede, a fim de evitar serem atropeladas, mas os outros eram verdadeiramente gentis. Como se todos soubessem que ela estava sofrendo seriamente.

– Vou entrar com você – disse a enfermeira quando chegaram ao banheiro. – A sua pressão está muito baixa e fico preocupada que possa desmaiar, está bem?

Enquanto Layla assentia, elas entraram e trancaram a porta. A enfermeira retirou-lhe a coberta, e ela, desconcertada, afastou o papel do caminho.

Sentando-se, ela...

– Ah, santa Virgem Escriba.

– Psiu, está tudo bem, tudo bem – a enfermeira se inclinou e lhe estendeu o absorvente. – Vamos cuidar disso. Você está bem... aqui, não, você precisa me dar isso. Temos que encaminhar para o laboratório. Existe a possibilidade de ser usado para determinar o que está acontecendo e você há de querer ter essa informação quando tentar novamente.

Tentar novamente. Como se a perda já tivesse ocorrido.

A enfermeira colocou as luvas e pegou um saco plástico de um suporte. Ela cuidou de tudo com discrição e diligência, e Layla viu quando o nome que havia dado foi escrito do lado de fora do saco com uma caneta preta.

– Ah, querida, está tudo bem.

A enfermeira retirou as luvas, arrancou um pedaço de papel higiênico de um suporte na parede e se ajoelhou. Segurando o queixo de Layla com uma mão gentil, cuidadosamente enxugou as faces que se molharam de lágrimas.

– Sei bem pelo que está passando. Também perdi um – o rosto da enfermeira se tornou belo pela compaixão. – Tem certeza de que não podemos chamar o seu hellren?

Layla apenas balançou a cabeça.

– Bem, avise-me se mudar de ideia. Sei que é difícil vê-los tristes e preocupados, mas não acha que ele gostaria de estar aqui com você?

Ah, como contaria a Qhuinn? Ele parecera tão certo de tudo, como se já tivesse visto o futuro e encarado os olhos do filho deles. Aquilo seria um choque.

– Saberei se estive mesmo grávida? – murmurou Layla.

A enfermeira hesitou.

– O exame de sangue pode revelar isso, mas tudo depende de quanto tempo você está se sentindo assim.

Layla fitou as mãos novamente. As juntas estavam brancas.

– Preciso saber se estou tendo um aborto ou se isto é apenas um sangramento normal que acontece quando não se engravida. Isso é importante.

– Lamento muito, mas não sou eu quem pode lhe garantir isso.

– Mas você sabe, não sabe? – Layla levantou a cabeça para fitá-la nos olhos. – Não sabe?

– Repito, não sou eu quem pode lhe garantir, mas... com esse tanto de sangue?

– Eu estava grávida.

A enfermeira fez um movimento amplo com as mãos, os lábios se contraindo.

– Não conte a Havers que eu lhe disse isso, mas... sim, provavelmente. E você precisa saber, não há nada que você possa fazer para deter o processo. Não é culpa sua, e você não fez nada errado. É só que, às vezes, essas coisas simplesmente acontecem.

Layla deixou a cabeça pender.


– Obrigada por ser honesta comigo. E... na verdade, é isso o que acho que está acontecendo.

– Uma fêmea sabe. Bem, vamos levá-la de volta.

– Sim, muito obrigada.

Mas Layla teve dificuldade para suspender a calcinha ao se levantar. Quando ficou claro que não conseguia coordenar as mãos, a enfermeira se adiantou e a ajudou com facilidade invejável, e tudo foi tão vergonhoso e assustador. Ficar fraca e à mercê de outra pessoa para uma coisa tão simples...

– Você tem um sotaque maravilhoso – disse a enfermeira ao voltarem para o tráfego do corredor, retornando mais uma vez para a faixa mais lenta. – É tão Velho Mundo... minha avó aprovaria. Ela odeia o fato de o inglês ter se tornado a língua dominante aqui. Acredita que isso será a derrocada da nossa espécie.

A conversa a respeito de nada em especial ajudou, dando a Layla algo em que se concentrar em vez de pensar em quanto tempo aguentaria até ter de refazer aquele percurso... e se as coisas estavam piorando nesse aborto... e como seria quando fosse forçada a encarar Qhuinn para lhe dizer que fracassara...

De algum modo, chegaram à sala de exames.

– Não deve demorar muito mais. Prometo.

– Obrigada.

A enfermeira parou à porta e, ao se imobilizar, sombras cruzaram o fundo do seu olhar, como se ela estivesse revivendo partes de seu próprio passado. E no silêncio entre elas, um momento de comunicação ocorreu, e embora fosse raro ter algo em comum com uma fêmea da Terra, a conexão foi um alívio.

Ela se sentira tão sozinha naquilo tudo.

– Temos pessoas com quem você pode conversar – disse a fêmea. – Às vezes, conversar depois de tudo pode ajudar de verdade.

– Obrigada.

– Use esse botão branco se precisar de ajuda ou se sentir-se tonta, está bem? Não vou estar longe.

– Sim, farei isso, obrigada.

Enquanto a porta se fechava, lágrimas embaraçam sua visão, e mesmo sentindo uma dor profunda, a sensação esmagadora de perda era desproporcional à realidade. A gestação estava apenas bem no comecinho e, logicamente, não havia muito a perder.

No entanto, para ela, aquilo era o seu filho.

Aquilo era a morte do seu filho...

Houve uma batida suave à porta e depois uma voz masculina.

– Posso entrar?

Layla apertou os olhos e engoliu com força.

– Por favor.

O médico da raça era alto e distinto, com óculos de aro de tartaruga e uma gravata borboleta. Com um estetoscópio ao redor do pescoço e aquele longo jaleco branco, ele era a figura perfeita de um curador, calmo e competente.

Ele fechou a porta e sorriu de leve para ela.

– Como está se sentindo?

– Bem, obrigada.

Ele a fitou do outro lado da sala, como se estivesse avaliando seu estado clínico, embora não a tocasse ou usasse instrumento algum.

– Posso ser franco?

– Sim, por favor.

Ele assentiu e puxou um banquinho com rodinhas. Sentando-se, equilibrou o prontuário no colo e a encarou.

– Vejo que você não indicou o nome do seu hellren... nem do seu pai.

– É preciso?

O médico hesitou.

– Não tem nenhum parente, minha querida? – quando ela negou com a cabeça, os olhos dele registraram tristeza profunda. – Lamento muito pelas suas perdas. Então, não há ninguém que possa estar aqui com você? Ninguém?

Como ela simplesmente continuou ali, sem dizer nada, ele inspirou fundo.

– Muito bem...

– Mas posso pagar – ela deixou escapar de supetão. Ela não sabia muito bem onde arranjaria o dinheiro, mas...

– Ah, meu bem, não se preocupe com isso. Não preciso receber se não puder pagar – ele abriu o prontuário e afastou uma página. – Vejamos, vejo aqui que passou pelo seu cio.

Layla apenas concordou, como se isso fosse tudo o que pudesse fazer para não gritar: Qual é o resultado do exame?

– Bem, verifiquei o resultado do seu exame de sangue e ele mostrou algumas... coisas que eu não esperava. Portanto, se permitir, eu gostaria de coletar mais uma amostra e enviá-la para o laboratório para mais alguns exames. Com isso, espero ser capaz de entender o que está acontecendo... e também farei um ultrassom, se não se importar. É um exame padrão que me dará uma ideia de como as coisas estão progredindo.

– Como, por exemplo, quanto tempo sangrarei até que termine tudo? – disse com severidade.

O médico da raça esticou a mão para segurar a dela.

– Primeiro vamos ver como você está, certo?

Layla respirou fundo e concordou mais uma vez.

– Certo.

Havers foi até a porta e chamou a enfermeira. Quando a fêmea entrou no quarto, ela trouxe consigo o que parecia ser um computador de mesa montado num carrinho: havia um teclado, um monitor e umas varetas erguidas nas laterais do equipamento.

– Vou deixar que a enfermeira tire o sangue... as mãos dela são muito mais competentes que as minhas nesse quesito – ele sorriu de maneira gentil. – Nesse meio-tempo, vou verificar outro paciente. Volto em seguida.

A segunda picada de agulha foi muito melhor do que a primeira, pois ela sabia o que esperar, e ela foi deixada a sós por um curto tempo quando a enfermeira saiu para levar a amostra ao laboratório – o que quer que fosse ele e onde quer que estivesse localizado. Ambos voltaram em seguida.

– Pronta? – Havers perguntou.

Quando Layla fez que sim, ele e a enfermeira trocaram algumas palavras e o equipamento foi disposto perto de onde ela estava sentada. O médico, então, acomodou-se novamente no banquinho e puxou dois tipos de extensões das laterais da mesa de exame. Abrindo o que pareciam ser um par de estribos, ele fez um gesto para a enfermeira que reduziu a iluminação e se aproximou para apoiar uma mão no ombro de Layla.

– Deite-se, por favor – pediu Havers. – E desça até chegar ao fim da mesa. Você vai colocar os pés aqui depois de despir a roupa de baixo.

Enquanto ele indicava os dois estribos, os olhos de Layla se arregalaram. Ela não fazia ideia de que o exame seria...

– Nunca antes fez um exame interno? – perguntou Havers com hesitação. Quando ela começou a balançar a cabeça, ele assentiu. – Bem, isso não é incomum, ainda mais se esse foi o seu primeiro cio.

– Mas não posso tirar... – ela se interrompeu. – Estou sangrando.

– Cuidaremos disso – o médico parecia cem por cento confiante. – Vamos começar?

Layla fechou os olhos e se inclinou para trás para se deitar, o papel fino que cobria a superfície acolchoada rangendo debaixo do seu peso. Elevando os quadris e mudando um pouco de posição, ela se desfez do que a cobria.

– Cuido disso para você – disse a enfermeira baixinho.

Os joelhos de Layla se encontraram enquanto ela foi tateando com os pés à procura dos malditos estribos.

– Isso mesmo – o banquinho de rodinhas guinchou quando o médico se aproximou. – Mas vá mais para baixo.

Por uma fração de segundo, ela pensou que não conseguiria.

Curvando os braços ao redor do baixo ventre, apertou-os, como se pudesse, de algum modo, segurar o bebê dentro dela ao mesmo tempo em que tentava se controlar. Mas não havia nada que pudesse fazer, nenhuma conversa que pudesse ter com seu corpo para acalmá-lo e segurar o que fora implantado, nenhum papo amoroso que pudesse ter com o filho para que ele tentasse sobreviver, nenhum fluxo de palavras para acalmá-la do seu pânico absoluto.

Por um momento, ela desejou a vida enclausurada que um dia considerou tão sufocante. Lá no Santuário da Virgem Escriba, a natureza plácida da sua existência fora algo que ela dera como certo. De fato, desde que descera para a Terra e tentara encontrar um propósito aqui, fora atingida por um trauma atrás do outro.

Isso fez com que respeitasse os machos e as fêmeas de quem lhe disseram ser inferiores a ela.

Ali embaixo, todos pareciam estar à mercê de forças além do controle deles.

– Está pronta? – perguntou o médico.

Enquanto lágrimas corriam pelos cantos dos olhos, ela se concentrou no teto e agarrou a beira da mesa.

– Sim. Pode começar.


CAPÍTULO 20

Puta merda, Qhuinn estava completamente sem controle.

Quase nenhuma visibilidade. O avião balançando de um lado para o outro como se estivesse sofrendo delirium tremens. Motor ligando e desligando.

E ele nem podia dar uma olhada em Z. O vento estava forte demais para gritar, e não pretendia despregar os olhos do que quer que viesse pela frente – ou melhor dizendo, daquilo no que bateriam de frente – mesmo sem conseguir enxergar nada...

O que o fizera pensar que aquilo era uma boa ideia?

A única coisa que parecia estar funcionando era a bússola, portanto, ao menos ele conseguia se orientar quanto à localização da base: o complexo da Irmandade ficava ao norte, um tantinho ao leste, no topo de uma montanha circundada pelo mhis de V., a divisa defensiva invisível. Com isso, em relação ao direcionamento, ele estava certo, desde que o mostrador de N – S – L – O estivesse mais operacional do que, digamos, todo o resto daquele caixote.

Ao olhar para a direita, o vento incessante que passava pelo vidro parcialmente quebrado atingiu seu canal auditivo. Pela janela lateral, ele via... uma imensidão negra. O que ele interpretou como indício de eles terem passado pelo subúrbio e estarem sobrevoando as fazendas. Talvez já estivessem sobre as colinas que, no fim, transformariam-se na montanha...

Um som como o do escapamento de um carro explodindo chamou sua atenção negativamente, mas o que foi pior?

O silêncio repentino que se seguiu.

Nada de motor roncando. Apenas o vento soprando para dentro da cabine.

Ok, agora sim estavam em apuros.

Por um átimo, ele pensou em se desmaterializar. Era forte o bastante, estava consciente, mas jamais abandonaria Z...

Uma mão forte pousou em seu ombro, assustando-o tremendamente.

Z. se arrastara para a frente e, baseando-se em sua expressão, estava tendo dificuldades para se manter de pé. E não só pelos solavancos.

O Irmão falou, sua voz grossa superando todo aquele barulho.

– Hora de você ir embora.

– Nem a pau – berrou Qhuinn em resposta. Esticando o braço, tentou a ignição. Não faria mal tentar, não é mesmo?

– Não me obrigue a jogá-lo para fora.

– Tente.

– Qhuinn...

O motor voltou a pegar, o barulho se intensificando. Boas novas. A questão era que, se o maldito desligara uma vez, era bem possível que o fizesse novamente.

Qhuinn enfiou a mão na jaqueta. Ao apanhar o celular, pensou em todos que os dois estavam deixando para trás e passou o objeto para o Irmão.

Se existia uma hierarquia nessa coisa de se despedir, Z. estava no topo da lista. Ele tinha uma shellan e uma filha. Se alguém tinha de fazer uma ligação, esse alguém era ele.

– Para que isso? – Zsadist perguntou sombrio.

– Descubra você mesmo.

– E você pode ir...

– Não vou a parte alguma. Vou pilotar esta armadilha até batermos em alguma coisa.

Houve certa discussão depois disso, mas ele não sairia do assento do piloto, e por mais forte que o Irmão fosse em circunstâncias normais, Z. não estava em condições de suspender nada além de uma fatia de pão. E a conversa não durou muito. Depois que a discussão terminou, Z. desapareceu, sem dúvida indo para os fundos para fazer o último contato com as pessoas amadas.

Decisão inteligente.

Deixado a sós com seus equipamentos, Qhuinn fechou os olhos e lançou uma oração para quem pudesse ouvir. E visualizou o rosto de Blay...

– Pegue.

Ele abriu os olhos. O celular estava bem na sua frente, firme na mão de Z. E o mapa de GPS estava sendo mostrado, as pequenas setas piscantes indicando onde exatamente eles estavam.

– Mais uns cinco quilômetros – exclamou o Irmão acima do barulho ensurdecedor. – É tudo de que precisamos...

Houve um estouro, um assobio e mais uma rodada daquele silêncio terrível. Praguejando, Qhuinn concentrou-se naquela tela sempre desejando que as coisas voltassem a funcionar. Mais para o norte, obviamente, porém, mais para o leste. Muito mais. Seus cálculos estavam certos, mas não exatos.

Sem o telefone? Estariam fritos.

Bem, isso e toda aquela situação do motor.

Verificando a localização precisa, ele fez alguns cálculos mentalmente e virou para a direita, tentando chegar àquela indicação no mapa que levava diretamente para a montanha. Em seguida, seria a vez de tentar religar o motor.

Estavam perdendo altitude. Não espiralando, situação na qual haveria um close-up no altímetro e a coisa estaria acelerada do modo como você desejaria que as hélices estivessem. Mas lentamente, inexoravelmente indo para baixo... e se perdessem a aceleração, o que era o que aquela máquina de costura insegura debaixo do teto seria capaz de prover, acabariam caindo como uma pedra.

Tentando a ignição repetidas vezes, murmurou:

– Vamos, vamos, vamos...

Era difícil tentar manter o nariz empinado com apenas uma mão; e bem quando ele ia passar a devotar toda sua atenção ao manche, o braço de Z. se esticou, afastou a mão dele, e assumiu o controle sobre o botão da ignição.

Por um segundo, Qhuinn vislumbrou a marca de escravo para fora dos punhos da jaqueta do Irmão, mas logo voltou a se concentrar.

Deus, seus ombros estavam em chamas por puxar o manche para trás.

E pensar que ele estava morrendo de vontade de ouvir aquela barulheira do...

De uma só vez, o motor engasgou de volta à vida, e a mudança de altitude foi imediata. No instante em que os plugues e pistões começaram a rugir novamente, os números começaram a subir.

Mantendo a alavanca puxada, verificou o nível de combustível. Estava no vazio. Talvez estivessem apenas sem combustível, e não se tratasse de um problema mecânico?

Uma tolice, certo?

– Só mais um pouquinho, meu bem... um pouco mais, vamos lá, querida, você consegue...

Enquanto um fluxo interminável de encorajamento escapava dos seus lábios, as palavras impotentes eram abafadas pela única coisa que importava – mas, espere, como se o Cessna falasse inglês...!

Caramba, parecia que aquilo duraria uma eternidade, a esperança e as orações, seu cérebro num jogo de pingue-pongue entre os melhores e os piores cenários enquanto quilômetros eram atravessados num ritmo agonizantemente lento.

– Diga que telefonou para as suas fêmeas – berrou Qhuinn.

– Diga que consegue nos manter acima do solo.

– Não vou mentir.

– Leve-nos mais para o leste.

– O quê?

– Leste! Vá para o leste!

Z. aumentou o zoom do mapa e começou a correr o dedo em uma direção, de leste a oeste.

– Você vai precisar aterrissar neste ponto... atrás da mansão!

Qhuinn deduziu que deveria tomar como um bom sinal que o cara estava fazendo planos de aterrissagem que não envolviam bolas de fogo. E a sugestão era boa. Se conseguissem se orientar ao longo da mansão, do lado oposto à piscina, eles poderiam acabar com algumas árvores frutíferas... porém, teriam mais ou menos o mesmo tanto de pista que tiveram para decolar.

Muito melhor do que bater no muro que cercava a propriedade...

Daquela vez, o motor não emitiu nenhum aviso. Simplesmente morreu, como se estivesse cansado de brincar de pega-pega e houvesse decidido tirar uma folga permanente.

Ao menos já estavam próximos da aterrissagem.

Uma chance. Era tudo de que dispunham.

Uma única tentativa de aterrissar que, desde que ele conseguisse levá-los até as cercanias da propriedade, penetrar o mhis, e conseguir não colidir na mansão, no ginásio, nas construções, nos portões nem em nada que fosse real ou algum tipo de propriedade... resultaria nele entregando o orgulhoso pai e amoroso hellren, e soberbo lutador... de volta aos braços da família.

Mas não era só em Z. que ele estava pensando.

O Primale cuidaria da saúde e do bem-estar de Layla. Blay tinha os pais amorosos e Sax. John tinha a sua Xhex.

Todos eles ficariam bem.

Qhuinn se virou.

– Sente-se! Lá atrás! Sente-se e prenda o cinto de segurança...

O Irmão abriu a boca e Qhuinn fez o impensável. Cobriu os lábios do macho com a mão.

– Sente-se de uma vez e se amarre! Chegamos até aqui... não vamos estragar tudo!

E pegou o celular de volta.

– Vá! Deixe comigo!

Os olhos de Z. se conectaram aos seus e, por um breve segundo, Qhuinn se perguntou se seria lançado para fora da cabine. Mas então, o milagre aconteceu: um instante de conexão se estendeu entre eles, uma corrente de elos tão grossos quanto coxas ligando-os um ao outro.


Z. levantou o indicador e apontou direto no rosto de Qhuinn. Depois de acenar uma vez com a cabeça, desapareceu na parte traseira.

Qhuinn voltou a se concentrar.

A navegação os mantinha no alto, e graças às orientações de Z., aquela guinada extra à direita os colocara na direção certa. De acordo com o GPS, estavam se aproximando da junção de estradas que dava a volta na base da montanha, centímetro a centímetro. Centímetro... a centímetro...

Ele estava bem certo de que localizavam-se acima da propriedade agora.

Enquanto o avião abaixava mais, ele se preparou, continuando a puxar o manche com força até que os ombros cravassem no assento atrás dele. Não havia trem de pouso para puxar. Ele esteve abaixado o tempo todo...

Um assobio repentino penetrou na cabine, e isso, junto a uma abrupta mudança de angulação, anunciou que a gravidade começara a vencer a batalha, exigindo a construção de fibra de vidro e metal e tendo um par de vidas como seu prêmio.

Eles não conseguiriam... era cedo demais...

Uma vibração selvagem se seguiu e, por um momento, ele se perguntou se não tinham atingido o chão sem que ele percebesse. Copas de árvores, talvez? Não. Algo...

O mhis?

O amortecedor repentino parecia se estender para cima, e, ora essa, o avião reagiu de modo diferente, o bico se nivelando sem nenhum esforço da parte de Qhuinn ou ajuda do peso morto que era aquele motor. Até mesmo o sacolejo de um lado para o outro cessou.

Aparentemente, a defesa invisível de V. não só mantinha afastados humanos e redutores, como também sustentava um Cessna no ar.

Só que tinham um problema. Aquela elevação vital parecia não acabar.

Do modo como iam as coisas, era como se ele fosse flutuar ali para sempre, ultrapassando a única pista de aterrissagem que tinham...

Abruptamente, o barulho retornou, e ele verificou o altímetro. Tinham descido cerca de sete metros, e ele teve que se perguntar se tinham penetrado a barreira.

Luzes. Ah, bom Jesus amado. Luzes.

Do lado de fora da janela, abaixo, ele via o brilho da mansão e o pátio. Estava distante demais para distinguir os detalhes, mas só podia ser – sim, a pequena ramificação só podia ser o ginásio.

Instantaneamente, seu cérebro dimensionou e reorientou tudo.

Merda. O ângulo estava errado. Se continuasse assim, aterrissaria de frente para a propriedade e não ao longo dela. E a porcaria era que não tinha altitude suficiente para executar um círculo grande para apontá-lo para a direção certa.

Quando não se tem opções, a única alternativa é fazer dar certo.

Seu maior problema era deixar passar o gramado. Só havia uma clareira na montanha. O resto? Árvores que os devorariam.

Ele precisava descer mais. Imediatamente.

– Segure-se!

Mesmo sendo um contrassenso, ele arremessou o manche para frente, e os direcionou para o chão. Houve uma mudança de velocidade imediata, e ele rezou que se recuperasse disso quando chegasse à zona de impacto. E merda, a intensa trepidação ficou ainda pior, ao ponto de ele ficar tonto, e os braços doerem por segurar firme o manche.

Mais rápido. Mais próximo. Mais rápido. Mais barulhento. Mais próximo.

E, então, chegou a hora. A casa e os jardins estavam logo à frente, indo ao encontro deles numa velocidade de matar.

Ele puxou com força, e a nova velocidade os fez levantar um pouco. Por cima da casa...

– Prepare-se! – exclamou a plenos pulmões.

Enquanto a câmera lenta assumia o comando, tudo se ampliou: a propriedade, os segundos, a dor nos olhos enquanto ele se esforçava para olhar adiante, a sensação do seu corpo sendo empurrado para trás no assento...

Merda. Ele estava sem o cinto de segurança.

Nem se preocupara com isso. Coisas demais em que pensar.

Idiota...

Nesse mesmo instante, fizeram contato com algo. Com força. O avião pulou, bateu em outra coisa, ricocheteou e pulou novamente. Nesse meio-tempo, sua cabeça bateu no painel acima dele, e seu traseiro ficou estatelado no assento, e seu...

Deixa para um mix de dores.

A fase seguinte da aterrissagem dos infernos foi um misto de desliza-chacoalha-rola que quase o lançou para fora da cabine. Aquilo era o chão – só podia ser – e, maldição, como iam rápido. As luzes corriam pelas janelas, tudo parecendo o Studio 54* até ele ficar praticamente cego. E por causa do lado em que o estroboscópio estava, ele deduziu que estavam no jardim – mas estavam ficando sem espaço.

Segurando o manche, ele os fez dar um cavalo de pau, na esperança que as mesmas leis da física que se aplicavam a carros desgovernados funcionassem ali: sem freios, espaço limitado e o único modo de diminuir a velocidade era mudar o coeficiente aerodinâmico.

A força centrífuga o fez bater na lateral da cabine e a neve bombardeou seu rosto; depois, algo afiado.

Merda, eles não estavam desacelerando em nada.

E aquele muro de proteção de seis metros de altura e 45 centímetros de espessura estava se aproximando com rapidez.

E por falar em paradas abruptas...

* Lendária discoteca em Manhattan que funcionou entre 1977 e 1986. (N.T.)


CAPÍTULO 21

Blay se desmaterializou para a mansão no instante em que o último assassino naquela clareira foi enviado de volta a Ômega. Como Qhuinn ainda estava no ar com Z., não havia razão para perder mais tempo à espera de mais um esquadrão.

Mesmo por que não havia nada que alguém pudesse fazer para ajudar aqueles dois.

Reaparecendo no pátio, ele...

Diretamente acima dele, sem produzir som algum, aquele maldito avião bloqueava a luz da lua.

Puta merda, eles conseguiram e, caramba, estavam tão próximos que ele pensou que, caso se esticasse, conseguiria tocar a fuselagem do Cessna.

O silêncio sepulcral, porém, não era um bom sinal...

O primeiro impacto veio do alto das cercas vivas que delimitavam o jardim. O avião saltou das pontas, pegou uma corrente de ar, depois sumiu de vista.

Blay se desmaterializou ao redor da varanda bem a tempo de ver o Cessna bater na neve, caindo como um homem obeso mergulhando de barriga numa piscina, criando grandes ondas brancas para todos os lados. E então a aeronave se transformou no maior cortador de grama jamais visto pelo homem, a combinação de seu corpo de aço e a velocidade acelerada demais, destruindo fileiras de árvores frutíferas e de moitas de flores que foram protegidas do inverno, e caramba, até mesmo a fileira de bebedouros para os pássaros.

Mas ao inferno com tudo isso. Ele pouco se importava se tivessem de replantar o lugar inteiro, desde que o avião parasse... antes do muro de contenção.

Por uma fração de segundo, ele chegou a pensar em se materializar diante da coisa e detê-la com as mãos, mas isso seria loucura. Se o Cessna não parecia se incomodar com as estátuas de mármore que ele agora destruía, pouco se importaria com um macho vivo e respirando diante dele...

Por nenhum motivo aparente, todo aquele descontrole começou a girar, a asa encarando Blay como se Qhuinn estivesse tentando virar. A derrapagem foi o movimento perfeito. Nem precisava ser dito que não havia freios, e desde que o espiral se sustentasse, eles teriam mais área para perder velocidade.

Merda, eles estavam mesmo perto demais do muro de contenção...

Centelhas de luz iluminaram a noite, além do grito de metal contra pedra que anunciava que “o perto demais do muro” fora substituído por “bem contra ele”, mas, graças à manobra de Qhuinn, eles se colocaram numa posição paralela em vez de irem de frente.

Blay começou a correr na direção do show de luzes, e outros o acompanharam quando ele assim o fez, um verdadeiro bloco de pessoas em fila. Não havia como deter aquilo, mas eles bem podiam estar a postos quando as coisas...

Tum!

... terminassem.

O avião finalmente encontrou um objeto inanimado que não conseguiu superar: o barracão usado para guardar alguns dos equipamentos e produtos de jardinagem bem no fim do jardim.

Parada completa.

E tudo estava silencioso demais. Tudo o que Blay ouviu foi o suissssh dos coturnos trafegando pela neve, e sua respiração arfando no ar frio, e a pressa dos outros atrás de si.

Ele foi o primeiro a chegar à aeronave e se dirigiu à porta que, como por milagre, estava livre e não imprensada ao muro de concreto. Abrindo-a e sacando a lanterna de bolso, ele não sabia o que esperava encontrar. Fumaça? Gases? Sangue e partes de corpos?

Zsadist estava sentado rígido no assento de frente para os fundos, com o corpo amarrado, ambas as mãos travadas nos apoios de braços. O Irmão encarava à frente, sem piscar.

– Paramos de nos mexer? – perguntou rouco.

Ok, ao que tudo levava a crer, até mesmo um Irmão podia ficar em estado de choque.

– Sim, pararam – Blay não queria ser rude, mas agora que estava certo de que um deles sobrevivera, ele queria ver se Qhuinn...

O macho cambaleou para fora da cabine. No facho de luz da lanterna de Blay, ele parecia ter estado num brinquedo radical de um parque de diversões, com o cabelo todo para trás da testa queimada pela ação do vento, os olhos, um verde e outro azul, arregalados num rosto completamente pálido, cada membro do corpo trêmulo.

– Você está bem? – exclamou ele, como se os ouvidos estivessem surdos depois de expostos a muito barulho. – Z., diga alguma coisa...

– Estou aqui – respondeu o Irmão, fazendo uma careta de dor ao soltar uma das garras dos apoios de braço. – Estou bem, filho... Estou bem.

Qhuinn se agarrou ao que estava saliente e foi então que seus joelhos se dobraram. Ele apenas caiu entre as mãos estendidas, a voz entrecortada a ponto de ele mal conseguir falar.

– Eu só... queria que você... estivesse bem... Só queria... que você... ficasse bem, oh Deus... para a sua filha... Só queria que você ficasse ok...

Zsadist, o Irmão que nunca tocava em ninguém, esticou-se e pousou uma mão livre na cabeça inclinada de Qhuinn. Erguendo os olhos, ele disse suavemente:

– Não deixe ninguém entrar aqui. Dê um minuto a ele, ok?

Blay assentiu e se virou, bloqueando a entrada com o corpo.

– Eles estão bem, eles estão bem...

Enquanto falava com a multidão, um bom número de pessoas fitava-no como se ele fosse um enviado de Deus, mas Bella não estava entre eles. Ela estava...

– Zsadist! Zsaaaaadist!

O grito se transportou por todo o caminho do gramado quando, do alto da varanda, uma figura solitária partiu em disparada em meio à neve.

Muitas pessoas responderam a Bella, mas ele duvidava de que ela tivesse ouvido qualquer coisa.

– Zsaaaadist!

Quando ela escorregou já perto dele, Blay imediatamente se esticou para pegá-la, preocupado que ela acabasse se chocando com a lateral do avião. Ah, Deus, ele jamais se esqueceria da expressão no rosto dela: era mais terrível do que qualquer atrocidade que já vira, como se ela estivesse sendo esfolada viva, como se os braços e pernas estivessem amarrados, e a pele estivesse sendo arrancada de seu corpo.

Qhuinn saiu do avião.

– Ele está bem, ele está bem, prometo... Ele está bem.

Bella se imobilizou, como se aquela fosse a última coisa que ela esperasse ouvir.

– Minha nalla, entre – disse Z. no mesmo tom baixo que usara com Qhuinn. – Entre aqui.

A fêmea chegou a olhar para Blay como se precisasse de uma garantia para saber se aquilo que ouvia estava correto. Em resposta, ele simplesmente a levou pelo cotovelo e a ajudou a passar pela portinhola.

Depois, mais uma vez virou de frente para bloquear a passagem. Enquanto os sons da fêmea chorando livremente em sinal de alívio emanavam, ele viu Qhuinn passar as mãos sobre os olhos como se o macho estivesse se livrando de lágrimas.

– Caramba, filho, eu não sabia que você sabia pilotar – alguém disse.

Enquanto Qhuinn levantava a cabeça, aparentemente olhando de relance para o cenário, Blay fez o mesmo. Pense numa cena apocalíptica: havia um rastro em toda a extensão pela qual o avião passara, como se o dedo de Deus tivesse feito uma linha em todo o jardim.

– Na verdade... eu não sei – murmurou Qhuinn.

V. levou o cigarro aos lábios e estendeu a palma.

– Você trouxe o meu Irmão de volta em um só pedaço. Que se foda o resto.

– Verdade...

– Sim, graças a Deus...

– Diabos, é isso aí...

– Amém...

Um a um, a Irmandade se adiantou, cada um deles erguendo a mão da adaga. A procissão levou um tempo, mas ninguém parecia se importar com o frio.

Blay, por certo, não o sentia. A ponto de ficar paranoico...

Colocando a mão dentro da jaqueta, encontrou o tórax e se deu um beliscão bem forte.

Ai.

Fechando os olhos, fez uma prece silenciosa para que aquilo fosse mesmo verdade... e não o horror que poderia ter sido.

Toda aquela atenção estava deixando Qhuinn nervoso.

E o seu pequeno voo nem fora uma experiência tão zen assim. A queimadura no rosto por causa de todo aquele vento, as dores nos ombros e nas costas, as pernas trêmulas... Ele sentia como se ainda estivesse lá em cima, ainda rezando para nada em que acreditava existir, parado e para sempre no limiar.

Da morte.

Além disso, estava tremendamente envergonhado. Deixar-se abater daquele jeito diante de Z.? Ora essa... Que covarde.

– Importam-se se eu der uma olhada? – a doutora Jane disse ao se aproximar da multidão.

Sim, uma boa ideia. O objetivo de tudo aquilo foi Z. estar ferido tão gravemente que não conseguia se desmaterializar.

– Qhuinn? – disse a fêmea.

– Como disse? – ah, ele estava atrapalhando. – Ok, deixe-me sair da frente...

– Não, não o Zsadist. Você.

– Hum?

– Você está sangrando.

– Estou?

A médica virou a mão dele.

– Vê? – e, como era de se esperar, escorriam gotas vermelhas de suas palmas. – Você acabou de esfregar o rosto. Está com um corte feio na cabeça.

– Ah, ok – talvez por isso se sentisse tão aéreo? – E quanto a Z.?

– Manny já está lá dentro.

Hum. Devia ter perdido aquela parte.

– Quer dar uma olhada em mim aqui?

Ela deu uma risada de leve.

– Que tal levarmos você de volta para a casa? Se conseguir andar.

– Eu cuido dele...

– Pode deixar que eu levo...

– Eu levo...

– Já peguei...

O coro de voluntários foi uma surpresa, bem como todos os braços solícitos que apareceram de todos os lados: ele, literalmente, foi envolvido por braços fortes de lutadores, e todos quase a carregá-lo do lugar como se estivesse fazendo stage diving num show de rock.

Ele olhou para trás, esperando ver Blay, rezando para se deparar com os olhos dele, mesmo isso sendo loucura...

Mas Blay estava lá.

O lindo olhar azul estava logo ali, tão firme e certo ao sustentar o seu que ele quase desmoronou novamente. E ele retirou forças daquele olhar, assim como o fizera na época em que passavam tanto tempo juntos. A verdade era que ele desejava que fosse Blay a levá-lo de volta à mansão, mas ninguém se arriscava a dizer nada à Irmandade quando ela aparecia em massa assim. Além disso, sem dúvida o cara pensaria que estariam próximos demais.

Qhuinn se concentrou no caminho à frente. Puta... merda...

O jardim fora completamente dizimado, metade da cerca viva de três metros de altura próxima à casa fora cortada, todos os tipos de árvore arrancados, arbustos aparados, os restos da colisão espalhados por todos os lados como estilhaços de uma metralha.

Caramba, muito do entulho se parecia com partes de avião.

Ah, olhe ali um painel de aço.

– Esperem – disse, libertando-se. Inclinando-se, pegou um fragmento afiado do chão no lugar em que derretera a neve. Ele podia jurar que a coisa ainda estava quente. – Eu sinto muito mesmo... disse para ninguém em especial.

A voz do Rei rebumbou diante dele:

– Por manter o meu Irmão vivo?

Qhuinn levantou a cabeça. Wrath saíra da biblioteca com George de um lado e a rainha do outro. O macho parecia tão grande e forte quanto a mansão atrás dele: mesmo cego, ele se parecia com um super-herói com aqueles óculos escuros encobrindo os olhos.

– Eu destruí o seu jardim – murmurou Qhuinn ao se aproximar do macho real. – Quero dizer... mudei o paisagismo de um modo muito ruim.

– Isso dará a Fritz algo para fazer na primavera. Você sabe o quanto ele adora arrancar ervas daninhas.

– Esse é o último dos seus problemas. Tenho quase certeza de que vai precisar de uma escavadeira.

Wrath se adiantou, encontrando-o no meio da varanda.

– Esta é a segunda vez, filho.

– Que eu arruinei algo mecânico nas últimas 24 horas? É, eu sei... Da próxima vez, é provável que eu destrua um navio de guerra.

As sobrancelhas negras se abaixaram.

– Não é disso que estou falando.

Ok, aquilo tinha de terminar logo. Ele realmente detestava ter as atenções voltadas para si.

Deliberadamente ignorando a afirmação do Rei, ele disse:

– Bem, a boa notícia é, meu Rei, que não estou pensando numa terceira rodada. Por isso, acho que vamos estar seguros daqui por diante.

Houve um murmúrio coletivo de concordância.

– Posso levá-lo para a clínica agora? – a doutora Jane interrompeu.

Wrath sorriu, as presas refletindo o luar.

– Faça isso.

Graças a Deus... a noite chegava ao fim.

– Onde está Layla? – a médica perguntou quando entraram no calor da biblioteca. – Acho que você precisa se alimentar.

Merda.

Enquanto a legião em roupas de couro atrás deles concordava com a ideia, os olhos de Qhuinn reviraram. Uma crise por noite era mais do que o suficiente. A última coisa na qual ele estava interessado era explicar por que, exatamente, a Escolhida não poderia ser usada como fonte de sangue.

– Você parece tonto – alguém comentou.

– Acho que ele vai...

E essa foi a última coisa que ele ouviu por um tempo.


CONTINUA

CAPÍTULO 11

Blay baixou a cabeça com uma imprecação enquanto a porta da academia se fechava. E claro, daquele ângulo, tudo o que enxergava era a sua ereção.

O que não ajudou.

Levantando o olhar, viu a barra fixa, e soube que tinha de fazer alguma coisa. Ficar sentado ali meio embriagado com uma festa armada entre as pernas dificilmente era uma posição na qual queria ser flagrado. Se um Irmão como Rhage entrasse e visse aquilo? Blay teria de aguentar a gozação pelo resto da vida. Além disso, estava com roupas de ginástica, cercado por equipamentos, portanto, só lhe restava se ocupar, puxar um pouco de ferro, e esperar que o senhor Alegria afundasse em depressão por falta de atenção.

Um bom plano.

Mesmo.

Claro.

Quando, um pouco depois, olhou para o relógio, percebeu que uns quinze minutos haviam se passado e ele não estava mais próximo de movimentos repetitivos e construtivos, a menos que se considerasse a respiração.

Sua ereção tinha uma sugestão para esse tipo de objetivo.

E sua palma se preparou, indo para o meio das pernas, encontrando a rigidez...

Blay levantou do assento num pulo e seguiu para a porta. Chega de idiotice. Iria para o banheiro do vestiário na esperança de reciclar um pouco do álcool no seu sistema. Depois voltaria para a esteira e suaria o resto da bebida.

Depois disso, seria hora de ir para a cama, onde, se precisasse de uma válvula de descarga do tipo erótico, ele a encontraria no local apropriado.

O primeiro sinal de que seu novo plano poderia levá-lo para mais confusão surgiu quando empurrou a porta do vestiário: o som de água corrente significava que alguém estava atarefado com o ritual do xampu e sabonete. Ele estava tão concentrado em se chutar no traseiro, porém, que nem se preocupou com qualquer conclusão.

O que o teria feito parar, virar e encontrar outro banheiro o mais rápido possível.

Em vez disso, passou pelos armários e foi fazer o que tinha de ser feito. Só quando estava lavando as mãos que os cálculos começaram a ser computados.

Por vontade própria, a cabeça girou na direção dos chuveiros.

Você tem que sair, ele se ordenou.

Ao desligar a torneira, o rangido sutil pareceu mais alto que um grito, e ele se recusou a se olhar no espelho. Não queria enxergar o que havia em seu olhar.

Volte para a porta. Apenas volte para a porta. Apenas...

O fracasso do seu corpo em seguir esse simples comando não foi apenas um exercício de rebelião física. Era, tragicamente, um padrão.

E ele se lamentaria mais tarde.

No momento, contudo, quando ele tomou a decisão de se aproximar e se esgueirar ao redor da parede de azulejos para os chuveiros, onde se manteve praticamente escondido, e espiou o macho que não deveria... a tresloucada onda de emoção que era tão dolorosamente familiar, era um conjunto de roupas feito sob medida para a sua insanidade.

Qhuinn estava de frente para o chuveiro com uma mão contra a parede escorregadia, a cabeça morena pensa debaixo do jato. A água corria pelos ombros e pelos acres de pele flexível que recobria as costas poderosas... depois descia pelo traseiro magnífico... e seguia em frente, passando pelas pernas longas e musculosas.

Durante o último ano, o lutador encorpara muito. Qhuinn ficara grande depois da transição e crescera ainda mais durante os primeiros meses de alimentação intensa. Mas já fazia um tempo desde que Blay não o via sem roupas... e, caramba, a rotina de puxar ferro à qual ele se submetera mostrava os resultados em todos aqueles músculos definidos...

Abruptamente, Qhuinn mudou de posição, virando, jogando a cabeça para trás, fazendo a água correr pelo cabelo escuro, aquele corpo incrível arqueando.

Ele manteve o piercing no pênis.

E, puta merda, estava excitado...

Um orgasmo imediatamente ameaçou a cabeça do pênis de Blay, os testículos ficando duros como punhos cerrados.

Dando meia-volta, ele saiu do vestiário como se tivesse sido lançado de um canhão, empurrando a porta, saindo em disparada no corredor.

– Ai, merda... cacete... puta que o...

Andando o mais rápido que podia, ele tentou tirar aquela imagem da cabeça, lembrando-se de que tinha um amante, que tocara a vida, que era possível se autodestruir a respeito da mesma coisa apenas uma limitada quantidade de vezes e que depois se chegava ao fim.

Quando nada disso funcionou, ele repetiu o discurso que fizera para Qhuinn no guincho...

Inferno, onde ficava o escritório?

Parando, olhou ao redor. Ah, fantástico. Tomara a direção oposta daquela que pretendia ter tomado, e agora tinha passado pela clínica e estava na ala de salas de aula do centro de treinamento.

A quilômetros de distância da entrada do túnel.

– ... laceração tão profunda. Mas ele não teve nada disso.

A voz grave de Manny Manello precedeu o homem que vinha pelo corredor saindo da sala de exames. Um segundo depois, a doutora Jane apareceu bem ao lado dele, com um prontuário aberto na mão, a ponta do dedo descendo pela página.

Blay se enfiou na primeira porta que encontrou...

E se deparou com uma parede de escuridão. Apalpando para encontrar um interruptor, visto que estava abalado demais para acender qualquer luz mentalmente, encontrou um, apertou e ficou momentaneamente cego.

– Ai!

A dor aguda que subiu da canela para o cérebro lhe disse que ele colidira com algo grande.

Ah, uma escrivaninha.

Estava num daqueles miniescritórios satélites das salas de aula, e isso era uma notícia muito boa. Com o programa de treinamento ainda suspenso por causa dos ataques, não havia ninguém ali embaixo, e provavelmente ninguém teria motivo para estar naquela saleta vazia.

Ele poderia ter um pouco de privacidade por um tempo, o que era uma bênção. Deus bem sabia que ele não tentaria voltar para a mansão agora. Com a sua sorte, acabaria se deparando com Qhuinn, e a última coisa de que ele precisava era estar perto do cara.

Indo para trás da escrivaninha, sentou-se na cadeira de escritório acolchoada e levantou as pernas, esticando-as sobre a superfície que deveria conter um computador, uma planta, um pote cheio de canetas. Em vez disso, estava vazia, ainda que não estivesse empoeirada. Fritz jamais permitiria isso mesmo num cômodo desocupado.

Esfregando a parte dolorida na canela, ficou evidente que produziria um belo hematoma. Mas ao menos a dor o distraíra daquilo que o motivara até ali.

Entretanto, isso não durou muito.

Ao inclinar a cadeira para trás e fechar os olhos, sua mente retornou ao vestiário.

E ele pensou se a tortura nunca teria um fim.

Deus, seu pênis estava latejando.

Considerando suas opções, ele ordenou que as luzes se apagassem, fechou os olhos e comandou que seu cérebro se desligasse para ele poder dormir. Se, ao menos, ele conseguisse cochilar uma ou duas horas ali, acordaria mais sóbrio, flácido e pronto para enfrentar as pessoas novamente.

Bem, esse era um bom plano, e também o ambiente era perfeito. Escuro, fresquinho, bem tranquilo do modo como somente as instalações subterrâneas podem ser.

Ajeitando o corpo ainda mais para baixo na cadeira, cruzou os braços sobre o peito e se preparou para o trem do sono REM chegar à estação.

Quando isso não funcionou, ele começou a imaginar todo tipo de situação “de desligamento”, como aspiradores de pó sendo puxados da tomada e incêndios sendo apagados com água e telas de TV escurecendo...

Qhuinn estava tão altamente “transável” daquele jeito, o corpo macio e liso entalhado em músculos, o sexo grosso e orgulhoso. Toda aquela água o deixara escorregadio e sensual... e, santa Virgem Escriba, Blay teria dado praticamente qualquer coisa para se aproximar, se ajoelhar e tomar o sexo dele na boca, sentindo aquela cabeça com suas investidas penetrantes em sua língua ao entrar e sair...

O som desgostoso que emitiu ecoou, parecendo mais alto do que provavelmente fora.

Abrindo os olhos, tentou tirar da cabeça qualquer fantasia que envolvesse chupar. Mas a escuridão completa não ajudou; apenas formou a tela perfeita para ele continuar a projetar as imagens.

Praguejando, deu uma chance para o lance de ioga, com o qual você relaxa a tensão em cada parte do corpo, começando pela prega sempre presente entre as sobrancelhas, depois as cordas rígidas que desciam pelos ombros até a base do crânio. O peito também estava apertado, os peitorais contraídos sem nenhum motivo aparente, os bíceps afundando nos antebraços.

Em seguida, ele deveria focar no abdômen, depois nas nádegas e coxas, nos joelhos e panturrilhas... até a pontinha do pé.

Ele não chegou tão longe.

Pensando bem, tentar convencer sua excitação sobre qualquer tipo de maleabilidade demandaria poderes de persuasão que seu cérebro parcialmente embriagado não possuía.

Infelizmente, só havia um modo seguro de se livrar do senhor Alegria. E, no escuro, sozinho, com a garantia de que “ninguém nunca vai ficar sabendo”, por que ele não podia simplesmente cuidar daquilo, apagar o fogo e desmaiar? Não era muito diferente de despertar no meio da noite com uma ereção – porque Deus bem sabia que não havia nenhuma emoção envolvida. E ele estava alcoolizado, certo? Então isso era mais uma razão.

Repetiu a si mesmo que não estava traindo Saxton. Não estava com Qhuinn – e era Saxton quem ele queria...

Por um instante, ele continuou a pesar os prós e os contras, mas, no fim, sua mão tomou a decisão por ele. Antes de se dar conta, a palma se escondia debaixo do cós folgado e...

O sibilo que emitiu ao se segurar foi como um tiro no silêncio, assim como o rangido da cadeira quando a investida dos quadris empurrou os ombros contra o estofamento de couro. Quente e duro, grosso e longo, seu pênis clamava por atenção, mas a angulação estava errada, e não havia espaço para mexer dentro dos malditos shorts.

Por algum motivo, a ideia de se despir da cintura para baixo o fez se sentir sujo, mas seu senso de decoro foi para o espaço bem rápido quando tudo o que ele conseguia fazer era apertar. Elevando o traseiro, abaixou os shorts, depois percebeu que precisaria de alguma coisa para limpar a bagunça.

A camiseta foi retirada em seguida.

Nu no escuro, esticado da cadeira para a escrivaninha, ele se entregou, afastando as pernas, bombeando para cima e para baixo. A fricção fez seus olhos revirarem, morder o lábio inferior. Deus, as sensações eram tão boas, fluindo pelo corpo...

Droga.

Qhuinn estava na sua cabeça, Qhuinn estava na sua boca... Qhuinn estava dentro dele, os dois se movendo juntos...

Isso era errado.

Congelou. Parou de pronto.

– Merda.

Blay soltou o pênis, ainda que o simples processo de desistir da traição o fizesse cerrar os molares.

Abrindo os olhos, fitou a escuridão. O som da sua respiração entrando e saindo do peito o fez praguejar novamente. Assim como a necessidade pulsante de um orgasmo – ao qual ele se recusava a ceder.

Não daria continuidade àquilo...

Do nada, a imagem de Qhuinn arqueado debaixo do jato de água golpeou sua mente, assumindo o controle. Contrariando seu raciocínio, sua lealdade, seu senso de justiça... seu corpo se sobrecarregou, o orgasmo atingindo o pênis antes que ele o conseguisse detê-lo, antes que ele conseguisse negar, pois aquilo não era certo... antes que ele conseguisse dizer “De novo, não. Nunca mais”.

Ah, Deus. A sensação doce e penetrante, repetida uma vez depois da outra até ele se perguntar se aquilo um dia terminaria, mesmo ele não tendo ajudado.

Aquela reação física podia estar além do seu controle. Sua reação a ela não.

Quando ele se aquietou por fim, a respiração estava agitada e o frio na pele nua do peito sugeria que ele suara... e enquanto o corpo se recuperava, sua consciência retornava, e a ereção murchando era como um barômetro do seu humor.

Esticando-se, apalpou a mesa até encontrar a camiseta; depois esfregou-a e pressionou-a na junção das coxas.

O resto da confusão em que se metera não seria tão fácil de limpar.

Do outro lado da cidade, no 18o andar do Commodore, Trez estava sentado numa cadeira lustrosa de aço e couro que ficava de frente para a parede envidraçada dando para o rio Hudson. O sol do meio-dia brilhava mais por causa da neve fresca que caíra nas margens durante a noite.

– Sei que está aqui – disse secamente, sorvendo um gole da caneca de café.

Quando não houve resposta, ele rodopiou a cadeira em sua base giratória. Como esperado, iAm viera do quarto e estava sentado no sofá, com o iPad no colo, o indicador deslizando pela tela. Ele devia estar lendo a edição online do The New York Times, claro; era o que fazia toda manhã ao acordar.

– Então – disse Trez. – Manda ver.

A única resposta que teve foi uma das sobrancelhas de iAm se erguendo. Por, digamos, meio segundo.

O bastardo presunçoso nem olhava para ele.

– Deve ser um artigo fascinante. Sobre o que é? Irmãos teimosos?

Trez passou algum tempo segurando a caneca de café quente.

– iAm. Sério. Que bobagem.

Depois de um momento, o olhar escuro do irmão se ergueu. Os olhos que sustentaram os seus estavam, como sempre, completamente livres de emoção, dúvida e todas as asneiras com que os mortais lidavam. iAm era sensível de maneira sobrenatural... como uma cobra: atenta, inteligente, pronta a atacar, mas relutante em desperdiçar força até que fosse necessário.

– O que foi? – resmungou Trez.

– Seria redundante lhe dizer o que você já sabe.

– Faça isso por mim – ele sorveu mais um gole e se perguntou por que diabos estava se oferecendo para aquilo. – Vá em frente.

Os lábios de iAm se contraíram como sempre quando ele pensava numa resposta. Depois ele fechou a capa do iPad, cada uma das quatro seções descendo como pegadas na tela. Então ele pôs de lado o equipamento, descruzou as pernas e se inclinou para frente para equilibrar os cotovelos sobre os joelhos. Os bíceps dele eram tão grossos que as mangas da camisa pareciam que se rasgariam.

– Sua vida sexual está fora de controle – enquanto Trez revirava os olhos, o irmão continuou a falar. – Está transando com três ou quatro mulheres por noite, às vezes mais. Não se trata de alimentar-se, portanto não perca o nosso tempo tentando usar essa desculpa. Você está comprometendo os padrões profissionais do...

– Eu lido com bebidas e prostitutas. Não acha que isso parece um pouco intelectual...

iAm pegou o iPad e o balançou.

– Devo voltar a ler?

– Só estou dizendo...

– Você me pediu para falar. Se isto é um problema, a solução não é ficar na defensiva porque não gosta do que está ouvindo. A resposta é não me convidar a falar.

Trez cerrou os dentes. Veja, era esse o problema com o maldito irmão. Ele era sensato demais.

Levantando-se num rompante, atravessou a sala ampla. A cozinha era como todo o resto do apartamento: moderna, arejada e despojada. O que significava que se ele se servisse de um pouco mais de cafeína, conseguiria enxergar o irmão em sua visão periférica.

Caramba, às vezes ele detestava aquele lugar. A menos que estivesse no quarto com a porta fechada, não conseguia se livrar daqueles olhos.

– Devo ler ou falar? – perguntou iAm com tranquilidade, como se isso lhe fosse indiferente.

Caramba, como Trez queria falar para o cara enfiar o nariz no jornal, mas isso seria o mesmo que admitir uma derrota.

– Continue – Trez voltou à poltrona e se preparou para uma surra.

– Você não está se comportando de maneira profissional.

– Você come no Sal’s.

– O meu linguini com molho de mariscos não requer uma ordem judicial quando decido que na noite seguinte quero o Fra Diavolo.

Bem observado. E, de alguma forma, isso o fez se sentir quase violento.

– Sei o que está fazendo – disse iAm. – E por quê.

– Você não é virgem, portanto é claro que...

– Sei o que lhe enviaram.

Trez parou.

– Como?

– Quando você não atendeu, recebi um telefonema.

Trez empurrou o tapete debaixo dos pés e girou a cadeira para ficar de frente para o rio. Merda. Ele imaginou que acalmaria a situação com aquilo, do tipo, dar ao irmão uma sessão de sermão para que os dois pudessem voltar ao normal. Eles costumavam ser como pele e osso, e o bom relacionamento era essencial.

Ele conseguia lidar com quase tudo, exceto com um desentendimento com o irmão.

Infelizmente, os problemas sobre os quais se referiam ali eram a única coisa no “quase tudo”.

– Ignorar não vai fazer isso desaparecer, Trez.

Isso foi dito com uma certa medida de gentileza, como se o cara lamentasse por ele.

Enquanto Trez fitava o rio, imaginou estar em seu clube, com humanos cercando-o, o dinheiro trocando de mãos e as mulheres que trabalhavam lá fazendo o que faziam nos fundos. Legal. Normal. Controlado e confortável.

– Você tem responsabilidades.

Trez segurou a caneca com mais força.

– Não me apresentei como voluntário a eles.

– Não importa.

Ele virou com tanta rapidez que derramou café na coxa. Ignorou o ardor.

– Deveria. O cacete como deveria. Não sou um objeto inanimado que eles podem dar a quem quiserem. A coisa toda é uma tolice.

– Alguns considerariam uma honra.

– Bem, eu não. Não vou me amarrar àquela fêmea. Não me importo quem ela seja ou quem armou isso ou quão “importante” isso é para o s’Hisbe.

Trez se preparou para a enxurrada do “ah, sim, você vai”. Em vez disso, seu irmão pareceu triste, como se ele também não quisesse aquela maldição.

– Vou repetir, Trez. Isso não vai desaparecer num passe de mágica. E tentar sair dessa transando por aí? Não só é fútil, como potencialmente perigoso.

Trez esfregou o rosto.

– As mulheres são apenas humanas. Elas não têm importância – ele voltou a olhar para o rio. – E, francamente, se eu não fizer alguma coisa, vou enlouquecer. Um punhado de orgasmos tem que ser melhor do que isso, certo?

Enquanto o silêncio retornava, ele soube que o irmão discordava dele. Mas a prova de que sua vida estava na mais absoluta merda era que a conversa terminara ali.

iAm, pelo visto, não era o tipo de homem que chuta um cara caído.

Tanto faz. Ele não se importava com o que se esperava dele. Ele não voltaria para ser condenado a uma vida de serviços forçados.

Pouco se importava se era para a filha da rainha.


CAPÍTULO 12

Era fim de tarde quando Wrath chegou a um beco sem saída. Estava à mesa, sentado no trono do pai, os dedos percorrendo um relatório escrito em braille, quando, de repente, não conseguia ler nem mais uma maldita palavra do texto.

Empurrando os papéis para o lado, praguejou e arrancou os óculos escuros do rosto. Bem na hora em que estava para lançá-los contra a parede, sentiu um focinho no cotovelo.

Passando o braço ao redor do golden retriever, pressionou a mão no pelo macio que crescia nos flancos do cachorro.

– Você sempre sabe, não é?

George se aninhou, pressionando o peito na perna de Wrath – a dica de que “alguém” queria ser erguido.

Wrath se inclinou e apanhou todos os quarenta quilos nos braços. Enquanto acomodava as quatro patas, a juba de leão e o rabo volante para que tudo coubesse, ele concluiu que era bom que fosse tão alto. Coisas grandes ofereciam um colo grande.

E o ato de afagar todo aquele pelo o acalmou, mesmo que não lhe tranquilizasse a mente.

Seu pai fora um Rei notável, capaz de suportar inúmeras horas de cerimônias, noites infindáveis nos esboços de proclamações e convocações, meses e anos inteiros de protocolo e tradição. E isso antes de ser inundado pelo fluxo perene de reclamações que vinham de todos os lados: cartas, telefonemas, e-mails – ainda que, obviamente, os últimos estivessem fora de questão na época do seu pai.

Wrath, um dia, fora um lutador. Um excelente lutador.

Levantando a mão, sentiu a lateral do pescoço, o lugar por onde a bala entrara...

A batida à porta foi decidida, direta ao ponto, mais uma exigência do que uma solicitação respeitosa para entrar.

– Pode entrar, V. – respondeu.

O odor adstringente da hamamélis que precedeu o Irmão foi uma pista evidente de que alguém estava irritado. E, com toda certeza, sua voz grave tinha uma ponta de descontentamento.

– Finalmente terminei os testes de balística. Malditos fragmentos sempre tomam tempo demais.

– E? – Wrath o instigou.

– É uma combinação perfeita. Cem por cento – enquanto Vishous se sentava na cadeira oposta à mesa, a peça de mobília rangeu debaixo do peso. – Nós os pegamos.

Wrath exalou longamente, parte do zumbido impotente escorrendo de sua mente.

– Bom – ele correu a mão pela cabeça grande de George, descendo até as costelas. – Então, esta é a nossa munição.

– Exato. O que aconteceria de qualquer maneira agora toma uma forma legal.

A Irmandade soubera o tempo todo quem estivera por trás do tiro que quase matara o Rei no outono, e a tarefa de acabar com o Bando de Bastardos um a um era algo que eles encaravam muito mais como uma tarefa sagrada para a raça.

– Olha aqui, eu preciso ser franco, certo?

– E quando não foi? – Wrath argumentou.

– Por que diabos está atando as nossas mãos?

– Eu não sabia que estava fazendo isso.

– Com Tohr.

Wrath reposicionou George a fim de que o fluxo sanguíneo da perna esquerda não ficasse completamente bloqueado pelo peso do cão.

– Ele solicitou o decreto.

– Todos nós temos o direito de acabar com Xcor. O cretino é o prêmio que todos nós queremos. Isso não deveria estar restrito somente a ele.

– Ele pediu.

– Isso só faz com que seja muito mais difícil matar o bastardo. E se um de nós o encontrar, e Tohr não estiver conosco?

– Vocês o trazem para cá – houve uma longa pausa, um silêncio tenso. – Você me ouviu, V.? Traga aquele monte de merda para cá e deixe Tohr fazer o serviço.

– O objetivo é eliminar o Bando de Bastardos.

– E como isso o impede de fazer o seu trabalho? – quando não houve resposta, Wrath balançou a cabeça. – Tohr estava naquela van comigo, meu Irmão. Ele salvou a minha vida. Sem ele...

Enquanto a frase não foi finalizada, V. praguejou baixinho, como se estivesse fazendo os cálculos sobre aquela lembrança e chegando à conclusão de que o Irmão que teve que cortar o tubo plástico da sua garrafa CamelBak e executar uma traqueotomia no seu Rei num veículo em movimento a quilômetros de distância de qualquer ajuda médica deveria ter um tantinho só a mais de direito de matar o criminoso.

Wrath sorriu de leve.

– Que tal se, só porque eu sou um cara legal, eu deixar que cada um de vocês dê um soco nele antes que Tohr mate o filho da puta com as próprias mãos? Fechado?

V. riu.

– Isso alivia um pouco.

A batida que os interrompeu foi baixa e respeitosa, uma sequência de batidinhas leves que parecia sugerir que quem quer que fosse ficaria feliz em ser mandado embora, satisfeito em aguardar, ou esperava por uma audiência imediata, tudo ao mesmo tempo.

– Pois não? – chamou Wrath.

Uma colônia cara anunciou a chegada do advogado: Saxton sempre cheirava bem, e isso se encaixava em sua personalidade. Pelo que Wrath lembrava, além da excelente educação do cara e da qualidade do seu raciocínio, ele sempre se vestia de acordo com a moda como um filho bem nascido da glymera. Isso é, com perfeição.

Não que Wrath tivesse visto isso recentemente.

Ele recolocou os óculos num movimento rápido. Uma coisa era se expor na frente de V.; isso não aconteceria diante do macho jovem e eficiente que passava pela porta, não importando o quanto Sax fosse confiável e profissional.

– O que tem para mim? – perguntou Wrath enquanto o rabo de George se movia de um lado para o outro à guisa de um cumprimento.

Houve uma longa pausa.

– Talvez seja melhor eu voltar mais tarde?

– Você pode dizer qualquer coisa na frente do meu Irmão.

Outra pausa longa, durante a qual V. provavelmente encarava o advogado como se quisesse tirar um naco do traseiro do garoto bonito e bem-vestido por sugerir que havia uma divisa de informações que precisava ser respeitada.

– Mesmo que seja sobre a Irmandade? – Saxton perguntou com franqueza.

Wrath praticamente sentia os olhos gélidos de V. virando de direção. E, como esperado, o Irmão bradou:

– O que há conosco?

Quando Saxton permaneceu calado, Wrath deduziu sobre o que se tratava.

– Pode nos dar um minuto, V.?

– Está de brincadeira?

Wrath pegou George e o colocou no chão.

– Só preciso de cinco minutos.

– Tudo bem. Divirta-se, meu senhor – grasnou V. ao se levantar. – Merda.

Um instante depois, a porta bateu.

Saxton pigarreou.

– Eu poderia ter voltado depois.

– Se eu quisesse isso, eu teria lhe dito. Agora fale.

Uma inspiração profunda, seguida de uma expiração, como se o civil estivesse olhando para a saída e se perguntando se a partida intempestiva de V. poderia ser a causa de ele acordar morto mais tarde.

– Hum... a auditoria das Leis Antigas está completa, e eu posso lhe fornecer uma lista completa das seções que necessitam de emendas, além de reformulações propostas, e um cronograma para que as mudanças possam ser implementadas se...

– Sim ou não. É tudo o que me interessa.

A julgar pelo sussurro dos sapatos resvalando o tapete Aubusson, Wrath deduziu que o advogado estava andando de um lado para o outro. De cabeça, ele visualizou o escritório, desde as paredes azul-claras até as cornijas em arabesco e toda a mobília francesa antiga e frágil.

Saxton fazia mais sentido naquele cômodo do que Wrath com seu couro e camiseta justa.

Mas a lei prescrevia quem deveria ser o Rei.

– Você precisa começar a mexer os lábios, Saxton. Garanto que não será demitido se falar comigo francamente. Se tentar editar a verdade ou suavizá-la? Isso sim o fará cair, pouco importando com quem está dormindo.

Houve um novo pigarrear. E então, a voz aculturada chegou até ele diretamente do outro lado da escrivaninha.

– Sim, pode fazer o que desejar. No entanto, preocupo-me quanto ao momento.

– Por quê? Porque vai precisar de dois anos para fazer as emendas?

– O senhor está fazendo uma mudança fundamental na seção da sociedade que protege a espécie – e isso pode desestabilizar ainda mais o seu governo. Estou a par das pressões que tem sofrido, e seria negligente de minha parte se eu não apontasse o óbvio. Se o senhor alterar a prescrição sobre quem pode entrar na Irmandade da Adaga Negra, isso poderá provocar ainda mais abertura para dissensão... isso não se parece com nada que tenha tentado em seu reinado, e virá numa época de extremo distúrbio social.

Wrath inspirou profundamente pelo nariz – e não captou vibração negativa; não havia evidências de que o homem estivesse sendo fraudulento ou que não estivesse disposto a realizar o trabalho.

E ele tinha razão.

– Agradeço sua opinião – disse Wrath. – Mas não vou me curvar ante o passado. Recuso-me. E se eu tivesse dúvidas a respeito do macho em questão, eu não estaria fazendo isso.

– Como os outros Irmãos se sentem a esse respeito?

– Isso não é da sua conta – na verdade, não tocara no assunto com eles ainda. Afinal, por que se importar se não houvesse possibilidade de seguir adiante? Tohr e Beth eram os únicos que sabiam exatamente até onde ele estava preparado para levar aquilo. – Quanto tempo vai levar para que você torne isso oficial?

– Posso deixar tudo preparado para o alvorecer de amanhã, no máximo ao anoitecer.

– Faça isso – Wrath cerrou um punho e o bateu no braço do trono. – Faça isso agora.

– Como desejar, meu senhor.

Houve uma movimentação de tecidos finos, como se o macho estivesse se inclinando, e depois mais passos antes que uma das portas duplas se abrisse e se fechasse.

Wrath fitou o vazio produzido pelos seus olhos cegos.

Tempos perigosos por certo. E francamente, o sensato a fazer era ter mais Irmãos, e não pensar em motivos para não os ter, ainda que a contra-argumentação fosse: se aqueles três garotos estavam dispostos a lutar ao lado deles sem serem iniciados, por que se importar?

Foda-se. Era costume antigo querer honrar alguém que tivesse colocado a própria vida em risco só para que a dele pudesse continuar.

A real questão, contudo, tirando as leis... era: o que os outros pensariam?

Muito provavelmente seria isso a colocar um freio na questão mais do que qualquer detalhe legal.

Quando a noite caiu horas mais tarde, Qhuinn estava deitado nu na cama. Ele dormia, mas nem seu corpo nem sua mente estavam descansando.

Em seu sonho, ele tinha voltado para o acostamento da estrada, tendo saído a pé da casa da família. Carregava no ombro uma bolsa de lona, a proclamação de deserdação enfiada na cintura e uma carteira que, a não ser por onze dólares, estava vazia.

Tudo estava bem nítido. Nada fora modificado devido a um erro de reprodução de memória: desde a noite úmida de verão e o som dos seus New Rocks no pedregulho do acostamento... até o fato de ele ter ciência de que não havia nada em seu futuro.

Não tinha para onde ir. Nenhum lar para onde voltar.

Nenhuma perspectiva. Nem mesmo um passado.

Quando o carro parou atrás dele, ele sabia que só podia ser John ou Blay...

Mas, não. Não foram seus amigos. Era a morte na forma de quatro machos em mantos negros que saíram por quatro portas e convergiram ao seu redor.

Uma Guarda de Honra. Enviada pelo seu pai para surrá-lo por desonrar o nome da família.

Quanta ironia. Alguém haveria de deduzir que esfaquear um sociopata que tentara estuprar seu colega seria uma coisa boa. Mas não quando o agressor era o seu perfeito primo de primeiro grau.

Em câmera lenta, Qhuinn se colocou em postura de luta, preparado para enfrentar o ataque. Não havia olhos para encarar, nenhum rosto em que reparar – e não havia motivo para tal: o fato de os mantos esconderem suas identidades supostamente faria com que a pessoa que transgredira sentisse como se toda a sociedade desaprovasse as ações que ele executara.

Circundando, circundando, aproximando-se... No fim, conseguiriam derrubá-lo, mas ele os feriria no processo.

E foi o que fez.

Mas ele também teve razão: depois do que pareceram serem horas de defesa, ele acabou de costas, e foi nesse momento que a surra de fato aconteceu. Deitado no asfalto, ele cobriu a cabeça e o escroto o melhor que pôde, os golpes chovendo sobre ele, mantos negros voando como asas de corvos conforme era golpeado e surrado.

Depois de um tempo, não sentiu dor.

Iria morrer ali no acostamento da estrada...

– Pare! Não devemos matá-lo!

A voz do irmão atravessou tudo aquilo, atingindo-o de um modo como nenhum golpe podia mais...

Qhuinn despertou com um grito, levando as mãos ao rosto, as coxas se elevando para proteger a virilha...

Nenhum punho, nenhum taco vindo em sua direção.

E ele não estava no acostamento da estrada.

Fazendo com que as luzes se acendessem, olhou ao redor do quarto no qual vinha ficando desde que fora expulso da casa da própria família. Não combinava em nada com ele, o papel de parede de seda e os objetos eram algo que a sua mãe escolheria – ainda assim, naquele momento, a visão de toda aquela quinquilharia que outra pessoa escolhera, comprara e pendurara, fez com que ele se acalmasse.

Mesmo enquanto a lembrança pairava.

Deus, o som da voz do irmão.

Seu próprio irmão fizera parte da Guarda de Honra enviada atrás dele. Em retrospecto, isso enviava uma mensagem ainda mais poderosa para a glymera sobre a seriedade com que a família cuidava dos seus assuntos. E não era como se o cara não tivesse sido treinado. Ele aprendera artes marciais, embora, naturalmente, não lhe permitissem lutar. Inferno, mal permitiram que ele brigasse nos treinos.

Valioso demais para a linhagem. E se ele se ferisse? Aquele que seguiria os passos do pai e um dia se tornaria lídher do Conselho poderia ficar exposto.

Risco pequeno de um dano catastrófico para a família.

Qhuinn, por sua vez... Antes de ser renegado, fora colocado no programa de treinamento, talvez com a esperança de que sofresse algum ferimento mortal no campo de batalha e fizesse o favor a todos de morrer com honra.

Pare! Não devemos matá-lo!

Essa fora a última vez em que ouvira a voz do irmão. Pouco depois de Qhuinn ter sido expulso de casa, a Sociedade Redutora conduzira uma onda de ataques e matara a todos, o pai, a mãe, a irmã – e Luchas.

Todos morreram. E mesmo que uma parte sua os odiasse pelo que lhe fizeram, ele não desejaria esse tipo de morte a ninguém.

Qhuinn esfregou o rosto.

Hora de uma chuveirada. Era tudo o que ele sabia.

Pondo-se de pé, espreguiçou-se até as costas estalarem e verificou o celular. Uma mensagem de texto para o grupo anunciava que haveria uma reunião no escritório de Wrath; e uma espiada rápida no relógio lhe informou que ele tinha pouco tempo.

O que não era ruim. Ao passar para velocidade acelerada e se apressar para o banheiro, era um alívio se concentrar em coisas reais em vez de no passado maldito.

Não havia nada que ele pudesse fazer a respeito desse último a não ser amaldiçoá-lo. E ele bem sabia que já fizera isso o suficiente para doze vidas.

Hora de acordar, pensou.

Hora de ir trabalhar.


CAPÍTULO 13

Lá pela mesma hora em que Qhuinn tomava banho na casa principal, Blay despertou na cadeira daquele escritoriozinho no subterrâneo. A dor de cabeça que lhe serviu como despertador não se originava do vinho do Porto, mas pelo fato de ter pulado a Última Refeição. Mas, caramba, bem que ele queria que a bebida estivesse por trás do latejar em seu crânio. Ele poderia se valer disso para justificar o estado absolutamente deplorável com que fora parar ali.

Praguejando, abaixou as pernas da escrivaninha e se sentou melhor. O corpo estava duro como uma tábua, as dores brotavam em todo tipo de lugar enquanto ele fez as luzes se acenderem.

Merda. Ainda estava nu.

Mas até parece que os elfos recatados entrariam sorrateiramente ali para vesti-lo enquanto dormia... só para que ele não se lembrasse do que havia feito?

Vestindo os shorts, enfiou os pés nos tênis e se esticou para pegar a camiseta antes mesmo de se lembrar para o que a usara.

Ao olhar para as dobras amarrotadas do algodão e sentir os pontos endurecidos no tecido macio, deu-se conta de que nenhuma quantidade de racionalização mudaria o fato de ele ter traído Saxton. Contato físico com alguém era apenas uma das medidas da infidelidade – e, sim, isso era o maior divisor. O que fizera na noite anterior, porém, fora uma violação do relacionamento deles, mesmo que o orgasmo tivesse sido causado pelo cérebro e não pela sua mão.

Pondo-se de pé, sentiu-se meio morto ao se encaminhar para a porta e entreabri-la. Se houvesse alguém nas imediações, ele voltaria para dentro e esperaria até que o corredor estivesse vazio. Ele absolutamente não queria ser apanhado saindo daquele escritório vazio, meio despido e com aquela aparência lastimável. O lado bom de viver no complexo era que você estava sempre cercado por gente que se preocupava com você; o lado ruim era que todos tinham olhos e ouvidos, e nenhum assunto particular era totalmente particular.

Quando não ouviu nem vozes nem passos, explodiu para o corredor e começou a caminhar numa passada rápida, como se estivesse estado em algum lugar com determinado propósito e estivesse se dirigindo para o quarto com uma finalidade igualmente importante. Teve a sensação de ter se safado ao chegar ao túnel. Claro, não costumava andar por aí sem camisa, mas muitos dos outros Irmãos e machos faziam isso quando saíam da academia, não era nada extraordinário.

E ele realmente sentiu como se tivesse ganhado na loteria quando saiu de baixo da grande escadaria da mansão e foi recebido por mais uma bela dose de corredor vazio. O único problema era que, pelo som da louça sendo levada da sala de jantar, devia ser mais tarde do que ele imaginava. Obviamente, perdera a Primeira Refeição – notícia ruim para a sua cabeça, mas, pelo menos, ele tinha umas barras de proteína no quarto.

Sua sorte chegou ao fim quando ele subiu as escadas para o segundo andar. Parados diante das portas fechadas do escritório de Wrath, Qhuinn e John estavam vestidos para o combate, com as armas a postos e os corpos cobertos por couro preto.

De jeito nenhum ele olharia para Qhuinn. Só o fato de tê-lo em sua visão periférica era ruim o bastante.

– O que está acontecendo? – perguntou.

Temos uma reunião agora, sinalizou John. Ou, pelo menos, era para termos. Não recebeu a mensagem?

Merda, ele não fazia ideia de onde estava seu telefone. No quarto? Tomara.

– Vou tomar uma chuveirada e volto já.

Talvez tenha de se apressar. Os Irmãos estão a portas fechadas há meia hora. Não sei o que está acontecendo.

Ao lado dele, Qhuinn se balançava para frente e para trás nos coturnos, a oscilação do peso fazendo parecer que estava andando, mesmo ele não indo a parte alguma.

– Cinco minutos – murmurou Blay. – Só preciso disso.

Ele esperava que a Irmandade abrisse as portas até lá, a última coisa que queria era ficar sem fazer nada ao lado de Qhuinn.

Praguejando ao andar, Blay correu até o quarto. Normalmente, ele demorava para se aprontar, ainda mais se Sax estivesse a fim, mas dessa vez seria entrar, chuveiro e...

Ao abrir a porta, parou.

Mas o quê...?

Malas. Na cama. Tantas que ele não conseguia ver mais do que alguns centímetros do edredom. E ele sabia a quem elas pertenciam. Guccis combinando, brancas com o logo azul-marinho e as alças de tecido em azul e vermelho, porque, segundo Saxton, o tradicional marrom sobre marrom com vermelho e verde eram “óbvios demais”.

Blay fechou a porta em silêncio. Seu primeiro pensamento foi “puta merda, Saxton sabe”. De algum modo, ele soube o que aconteceu no centro de treinamento.

O macho em questão apareceu do banheiro com os braços cheios de frascos de xampu, condicionador e outros produtos. E parou no ato.

– Oi – disse Blay. – Vai sair de férias?

Depois de um momento tenso, Saxton se aproximou, colocou os produtos numa mala e se virou. Como sempre, seu lindo cabelo loiro estava afastado da testa em ondas espessas. E ele estava perfeitamente bem vestido, em outro terno de tweed com colete combinando, uma gravata vermelha e um lencinho de bolso também vermelho só para dar o toque certo de cor.

– Acho que você sabe o que vou dizer – Saxton sorriu triste. – Porque você não é nenhum idiota, assim como eu não sou.

Blay foi se sentar na cama, mas teve que mudar de ideia, pois não havia onde se acomodar. Acabou na chaise-longue e, com uma inclinação discreta para o lado, enfiou a camiseta suja debaixo do tecido do saiote. Longe dos olhos. Era o mínimo que podia fazer.

Deus, aquilo estaria mesmo acontecendo?

– Não quero que você vá – Blay se ouviu dizendo com voz grave.

– Acredito nisso.

Blay olhou para além das malas.

– Por que agora?

Pensou nos dois no dia anterior, debaixo dos lençóis, fazendo sexo selvagem. Estiveram tão próximos... Ainda que, sendo brutalmente honesto, talvez aquilo tivesse sido apenas físico.

Retire o talvez.

– Venho enganando a mim mesmo – Saxton balançou a cabeça. – Pensei que poderia continuar com você assim, mas não posso. Isto está me matando.

Blay fechou os olhos.

– Sei que tenho ficado muito tempo fora...

– Não é disso que estou falando.

Enquanto Qhuinn tomava todo o espaço entre eles, Blay quis gritar. Mas que bem aquilo faria? Parecia que ele e Saxton chegaram ao mesmo beco sem saída no mesmo momento lamentável.

Seu amante o fitou por cima da bagagem.

– Acabei aquela missão para Wrath. É uma boa hora para terminarmos, para eu me mudar e encontrar outro emprego...

– Espere, quer dizer que está abandonando o Rei também? – Blay franziu o rosto. – Não importa como estejam as coisas entre nós, você precisa continuar trabalhando para ele. Isso é mais importante do que o nosso relacionamento.

O olhar de Saxton abaixou.

– Suspeito que isso seja mais fácil para você dizer.

– Não é verdade – rebateu Blay inflexível. – Deus, eu... sinto muito.

– Você não fez nada errado. Você tem que saber que não sinto raiva de você, nem amargura. Você sempre foi honesto, e eu sempre soube que terminaria assim entre nós. Eu só não sabia quando. Não sabia... até chegar ao fim. Que é agora.

Ai, droga.

Mesmo sabendo que Saxton estava certo, Blay sentiu uma necessidade compulsiva de lutar por ele.

– Preste atenção, tenho estado distraído na última semana, e eu sinto muito. Mas as coisas vão acabar se ajeitando, e você e eu vamos voltar ao normal...

– Eu te amo.

Blay fechou a boca de súbito.

– Por isso, veja – Saxton continuou rouco –, não foi você quem mudou. Fui eu... e eu sinto que as minhas emoções tolas nos distanciaram.

Blay se colocou de pé e avançou pelo carpete de bela textura até o outro macho.

Ao chegar ao seu destino, ficou aliviado a ponto de sentir lágrimas nos olhos por Saxton aceitar o seu abraço. Ao segurar o seu primeiro amante verdadeiro contra si, sentindo a diferença familiar em suas alturas e o perfume maravilhoso da sua colônia, uma parte dele queria discutir aquele rompimento até que os dois desistissem e continuassem tentando.

Mas não seria justo.

Como Saxton, ele tivera a vaga noção de que as coisas terminariam em algum momento. E, tal qual seu amante, também se surpreendia por ser agora.

O que, claro, não alterava o resultado.

Saxton recuou um passo.

– Nunca tive a intenção de me envolver emocionalmente.

– Desculpe... Eu sinto muito – merda, isso era tudo o que saía da sua boca. – Eu daria tudo para que fosse diferente. Eu queria... ser diferente.

– Eu sei – Saxton esticou a mão e resvalou-a na lateral do rosto dele. – Eu perdoo você... e você tem que se perdoar.

Ele não tinha certeza se poderia fazer isso; ainda mais agora, nesse momento, e como sempre, quando uma ligação emocional que não queria, e que não poderia mudar, mais uma vez o impedia de ter algo que desejava.

Qhuinn era uma tremenda maldição para ele, era isso o que o cara era.

Cerca de 25 quilômetros ao sul da montanha do complexo da Irmandade, Assail despertou em sua cama redonda na suíte principal da sua mansão às margens do Hudson. Acima dele, painéis espelhados cobriam o teto e seu corpo nu estava iluminado com o brilho suave das luzes instaladas ao redor da base do colchão. O quarto octogonal estava escuro fora isso, as cortinas fechadas, a noite escondida.

Ao pensar em todo o vidro da casa, sabia que muitos vampiros considerariam as acomodações inadequadas. Muitos evitariam a mansão por completo.

Risco demais durante o dia.

Assail, contudo, nunca se sentira preso a convenções, e o perigo inerente de morar numa construção com tanto acesso à luz era algo que podia ser administrado, e não evitado.

Levantando-se, foi para a escrivaninha, ligou o computador e acessou o sistema de segurança que monitorava não apenas a casa, mas toda a propriedade. Alertas soaram várias vezes nas primeiras horas do dia, avisos não de ataques iminentes, mas de algum tipo de atividade que fora detectado pelo programa de filtragem do sistema de segurança.

Na verdade, faltava-lhe a energia para se preocupar demais, um sinal indesejável de que precisava se alimentar...

Assail franziu o cenho ao receber o relatório.

Ora, se aquilo não era interessante.

E era exatamente por isso que ele instalara todo aquele equipamento.

Nas imagens produzidas pelas câmeras de trás, ele viu uma figura vestida com uma roupa camuflada de neve passeando em esquis de cross-country pelo meio da floresta, aproximando-se da casa pelo norte. Quem quer que fosse, permaneceu escondido entre os pinheiros grande parte do tempo, e vigiou a casa por diversos ângulos por aproximadamente dezenove minutos... antes de atravessar o limite de pinheiros a oeste, atravessando a propriedade vizinha, e descendo pelo gelo. Duzentos metros mais à frente, o homem parou, pegou os binóculos novamente, e encarou a casa de Assail. Depois, circundou a península que se projetava do rio, voltou a entrar na floresta e desapareceu.

Aproximando-se da tela, Assail repetiu a gravação, aumentando o zoom para identificar a expressão facial, se possível. Mas não foi. A cabeça estava coberta por uma máscara de esqui, com abertura apenas para os olhos, o nariz e a boca. Junto à parca e às calças de esqui, o homem estava coberto dos pés à cabeça.

Recostando-se, Assail sorriu para si mesmo, as presas formigando numa reação territorial.

Só existiam dois grupos que poderiam se interessar em suas atividades, e a julgar pela luz solar que reinara durante aquele reconhecimento, ficou claro que a curiosidade não se originara da Irmandade: Wrath jamais usaria humanos para qualquer outra coisa que não fosse uma fonte derradeira de alimentação, e nenhum vampiro suportaria aquela intensidade de luz solar sem se incendiar.

Restava, então, alguém do mundo humano. E só havia um homem com interesse e recursos para tentar atacar a ele e ao seu território.

– Entre – disse ele pouco antes de uma batida soar à porta.

Enquanto um par de machos entrava, ele não se deu ao trabalho de desviar a vista da tela do computador.

– Como dormiram?

Uma voz conhecida e grave respondeu:

– Como os mortos.

– Que bom para você. Mudança de fuso horário pode ser uma inconveniência, pelo que sei. A propósito, tivemos um visitante esta manhã.

Assail inclinou-se para um lado a fim de que seus dois associados vissem a filmagem.

Era estranho ter gente morando com ele, mas teria que se acostumar à presença deles. Quando chegara ao Novo Mundo, fora uma viagem solitária, e ele tivera a intenção de manter essa situação por inúmeros motivos. O sucesso no ramo escolhido, todavia, exigira que ele chamasse uma retaguarda – e as únicas pessoas nas quais poderia confiar parcialmente eram da família.

E aqueles dois ofereciam um benefício sem igual.

Seus dois primos eram uma raridade na espécie vampiresca: eram gêmeos idênticos. Quando totalmente vestidos, o único modo de distingui-los era por uma única pinta atrás do lóbulo da orelha; fora isso, desde as vozes até os olhos negros e desconfiados, incluindo os corpos musculosos, eram o reflexo perfeito um do outro.

– Vou sair – anunciou Assail. – Se o nosso visitante aparecer novamente, sejam hospitaleiros, sim?

Ehric, o mais velho por questão de minutos, olhou de relance, o rosto destacado pela iluminação da base da cama. Tanta maldade naquela bela combinação de feições... a ponto de alguém quase sentir pena do intruso.

– Será um prazer, eu garanto.

– Mantenha-o vivo.

– Claro.

– Essa é uma divisória um tanto sutil que vocês dois às vezes gostaram de apreciar.

– Confie em mim.

– Não é você quem me preocupa – Assail olhou para o outro. – Entendeu?

O gêmeo de Ehric permaneceu calado, apesar de concordar com a cabeça uma vez.

Era precisamente por essa reação contrariada que Assail preferiria ter mantido a sua vida nova simples. Mas era impossível estar em mais de um lugar ao mesmo tempo. E aquela violação de privacidade era a prova de que ele não poderia fazer tudo sozinho.

– Sabem como me encontrar – disse antes de dispensá-los do quarto.

Vinte minutos mais tarde, saiu da casa de banho tomado, vestido e atrás do volante do seu Range Rover blindado.

O centro da cidade de Caldwell à noite era belo de longe, especialmente ao passar pela ponte de acesso. Só depois que ele penetrou no sistema viário que o esgoto da cidade ficou evidente: os becos com neve suja acumulada, as latas de lixo transbordando e os humanos sem-teto descartados, meio congelados, contavam a triste verdade sobre a desprotegida municipalidade.

Seu local de trabalho, evidentemente.

Ao chegar à Galeria de Arte Benloise, estacionou nos fundos, em uma das vagas que era paralela à construção atrás do estabelecimento. Ao sair do carro, o vento frio açoitou o casaco de pelo de camelo e ele teve que segurar as duas pontas juntas ao atravessar a calçada, aproximando-se da porta de tamanho industrial.

Não teve que bater. Ricardo Benloise tinha muitas pessoas trabalhando para ele e nem todos eram do tipo que se associava aos negociantes das artes. Um macho humano do tamanho de um parque de diversões abriu a porta e ficou de lado.

– Ele o está aguardando?

– Não, não está.

Disneylândia assentiu.

– Quer esperar na galeria?

– Seria bom.

– Quer beber alguma coisa?

– Não, obrigado.

Ao atravessarem a parte do escritório e seguirem para o espaço de exibições, a deferência agora concedida a Assail era algo novo, merecido tanto pelos enormes pedidos de mercadoria que ele vinha fazendo quanto pelo sangue derramado de incontáveis humanos. Graças a ele, a taxa de suicídio entre os machos desprivilegiados entre os 18 e os 29 anos com registros criminais em drogas aumentou como nunca na cidade, chegando ao noticiário nacional.

Imagine só.

Enquanto âncoras de TV e repórteres tentavam entender essas tragédias, ele simplesmente continuava a expandir os negócios usando qualquer meio necessário. As mentes humanas eram tremendamente sugestionáveis; praticamente nenhum esforço era necessário para fazer com que os traficantes intermediários levassem as pistolas às têmporas e apertassem os gatilhos. E, do mesmo modo como a natureza abominava um vácuo, o mesmo acontecia com a demanda de suplementos químicos.

Assail tinha as drogas. Os viciados tinham o dinheiro.

O sistema econômico mais do que sobrevivia à reorganização forçada.

– Vou subir – disse o homem na porta camuflada – para avisar da sua chegada.

– Leve o tempo de que precisar.

Deixado só, Assail passeou pelo espaço aberto de teto alto, entrelaçando as mãos às costas. De vez em quando, parava para ver a “arte” pendurada nas paredes e nas divisórias e foi lembrado do motivo pelo qual os humanos deviam ser erradicados, preferencialmente com métodos lentos e dolorosos.

Pratos de papel usados colados a tábuas de compensados baratas recobertas com citações de comerciais de TV escritas à mão? Um autorretrato feito com creme dental? E igualmente ofensivas eram as placas enaltecedoras ao lado das porcarias declarando que aquela tolice era a nova onda do Expressionismo Americano.

Tamanha explicação sobre a cultura de tantas maneiras.

– Ele pode recebê-lo agora.

Assail sorriu para si mesmo e se virou.

– Quanta gentileza.

Ao passar pela porta escondida e subir até o terceiro andar, Assail não condenou seu fornecedor por ser desconfiado e querer mais informações a respeito do seu maior cliente. Afinal, num espaço muito curto de tempo, o tráfico de drogas da cidade fora remanejado, redefinido e controlado por um completo desconhecido.

Há que se respeitar a posição do homem.

Mas as investigações terminariam ali.

No topo das escadas, outros dois homenzarrões estavam diante da porta, tão sólidos quanto vigas de sustentação. Assim como o segurança do primeiro andar, logo abriram a porta e acenaram em sua direção respeitosamente.

Do lado oposto, Benloise estava sentado no fundo de uma sala estreita com janelas em um dos lados e apenas três peças de mobiliário: sua escrivaninha elevada, que não passava de uma prancha grossa de teca com um abajur moderno e um cinzeiro por cima; a cadeira dele, com um estilo moderno; e um segundo assento no lado oposto para apenas um visitante.

O homem em si era como o seu ambiente: limpo, oficioso e despojado em seu modo de pensar. Na verdade, ele provou que, por mais ilícito que fosse o tráfico de drogas, os princípios de gerenciamento e as habilidades interpessoais de um CEO importavam muito se você quisesse faturar milhões com isso e manter o dinheiro.

– Assail. Como vai? – o homem baixinho se levantou e esticou a mão. – É um prazer inesperado.

Assail atravessou a sala, apertou o que lhe foi estendido e não esperou pelo convite para se sentar.

– O que posso fazer por você? – perguntou Benloise ao voltar a se sentar.

Assail pegou um charuto cubano de dentro do bolso. Cortando a ponta, inclinou-se para frente e colocou a ponta desprezada sobre o tampo da mesa.

Enquanto Benloise franzia o cenho como se alguém tivesse defecado em sua cama, Assail sorriu o suficiente para exibir rapidamente suas presas.

– Trata-se do que eu posso fazer por você.

– Ah.

– Sempre fui um homem reservado, levando uma vida privada por livre escolha – guardou o cortador e pegou um isqueiro de ouro. Acendendo a chama, inclinou-se e tragou até o charuto sustentar a ponta queimada. – Contudo, mais importante do que isso, sou um homem de negócios envolvido num ramo perigoso. Dessa forma, considero qualquer invasão na minha propriedade ou intrusão no meu anonimato como um ato direto de agressão.

Benloise sorriu com suavidade e se recostou na cadeira em forma de trono.

– Respeito-o por isso, claro, todavia estou confuso quanto aos motivos de você sentir a necessidade de explicitar isso para mim.

– Você e eu entramos num relacionamento mutuamente benéfico, e é meu desejo continuar com essa associação – Assail bafejou o charuto, soltando uma nuvem de fumaça azul francês. – Portanto, quero lhe mostrar o devido respeito e deixar isso claro antes de agir, pois se eu descobrir qualquer pessoa na minha propriedade a quem eu não tenha convidado, eu não só o erradicarei, como também descobrirei a origem das investigações – e bafejou novamente – e farei o que for necessário para defender a minha privacidade. Estou sendo bem claro?

As sobrancelhas de Benloise se abaixaram, os olhos escuros se zangando.

– Estou? – murmurou Assail.

Havia, obviamente, apenas uma resposta. Levando-se em consideração que o humano desejava viver mais do que até aquele final de semana.

– Sabe, você me lembra o seu predecessor – Benloise disse num sotaque britânico. – Conheceu o Reverendo?

– Sim, frequentamos alguns dos mesmos círculos.

– Ele foi assassinado de modo bem violento. Cerca de um ano atrás, não? A boate dele foi explodida.

– Acidentes acontecem.

– Normalmente em casa, pelo que ouvi dizer.

– Algo de que deve sempre se lembrar.

Enquanto Assail sustentava aquele olhar, Benloise desviou o dele primeiro. Pigarreando, o maior importador de drogas da costa leste passou a palma da mão sobre o tampo lustroso da mesa, como se sentisse os veios da madeira.

– Os nossos negócios – disse Benloise – têm um delicado ecossistema que, por conta de toda a sua robustez financeira, deve ser mantido cuidadosamente. A estabilidade é rara e muito desejável para homens como você e eu.

– Concordo. E para que isso aconteça, pretendo retornar à conclusão da noite com o meu pagamento desse ínterim, conforme planejado. Como sempre, venho a você em boa fé, e não lhe dou motivos para duvidar das minhas intenções.

Benloise lhe ofereceu outro sorriso suave.

– Você faz parecer como se eu estivesse por trás – ele moveu a mão num gesto aleatório de dispensa no ar – do que quer que o tenha incomodado.

Inclinando-se para frente, Assail deixou o queixo cair e o encarou.

– Não estou incomodado. Ainda.

Uma das mãos de Benloise sub-repticiamente saiu do campo de visão. Uma fração de segundo depois, Assail ouviu a porta do outro lado do cômodo se abrir.

Mantendo a voz baixa, Assail disse:

– Isto foi uma cortesia para você. Da próxima vez que eu encontrar alguém na minha propriedade, quer você o tenha enviado ou não, não demonstrarei nem metade dessa educação.

Dito isso, levantou-se e enterrou o charuto no tampo da mesa.

– Desejo-lhe uma boa noite – disse antes de sair.


CAPÍTULO 14

Aquilo sim é que era começar tarde.

Enquanto Qhuinn se desmaterializava para longe da mansão, ele custava a acreditar que já fosse dez da noite e eles estavam apenas começando. Pensando bem, a Irmandade ficou enfiada no escritório de Wrath pelo que pareceu uma eternidade e quando ele e John, por fim, foram admitidos, o anúncio de V. de que a prova contra o Bando de Bastardos era concreta levou a mais uma bela meia hora de excomunhão de Xcor e dos comparsas.

Diferentes usos criativos para a palavra arregaçar, bem como excelentes sugestões de onde se enfiar objetos inanimados.

Ele jamais pensara em fazer aquilo com um rastelo, por exemplo. Divertido. Muito divertido.

E Blay perdera aquilo tudo.

Retomando forma numa área florestal a sudoeste do complexo, Qhuinn evitou pensar em que tipo de interferências o pudesse ter retardado, ainda que a verdade fosse que o lutador subira para o quarto e não voltara. E por mais que a maioria dos acidentes acontecesse em casa, seria um bom palpite deduzir que ele não escorregara e caíra.

A menos que Saxton estivesse brincando com o tapete no piso de mármore do banheiro.

Sentindo como se quisesse se estapear, vasculhou o cenário coberto de neve enquanto John, Rhage e Z. surgiam ao seu lado. As coordenadas daquela localização foram encontradas nos telefones dos ladrões de carro da noite anterior, a propriedade aparentemente abandonada cerca de quinze a vinte quilômetros além do local em que ele encontrara o Hummer roubado.

– Que diabos é isso?

Enquanto alguém falava, ele olhou por sobre o ombro. “Que diabos” estava certo: assomando-se atrás deles estava uma construção tão alta quanto um campanário de igreja e tão simples quanto uma lata de lixo reciclável.

– Hangar de aviões – anunciou Zsadist ao começar a andar naquela direção. – Só pode ser.

Qhuinn o seguiu, tomando a retaguarda caso alguém resolvesse fazer uma surpresa.

Do nada, Blay apareceu, todo coberto em couro e tão armado quanto o resto deles. Em reação, os pés de Qhuinn diminuíram de velocidade, depois pararam na neve, em boa parte porque não queria tropeçar e parecer um tolo.

Puxa, ele parecia bem sério. Haveria problemas no paraíso?

Ainda que não existisse nenhum contato visual entre eles, Qhuinn se sentiu compelido a dizer algo:

– O que...

Não concluiu a frase. Por que se importar? O cara passou por ele como se ele nem estivesse ali.

– Estou bem – murmurou Qhuinn, voltando a avançar pela neve compacta. – Obrigado por perguntar. Ah, está tendo problemas com Saxton? Mesmo? Que tal sairmos para tomar um drinque e conversar a respeito? É? Perfeito. Posso ser a sua menta pós-jantar e...

Ele interrompeu o monólogo fantasioso quando a brisa mudou de direção e seu nariz captou algo adocicado e desagradável.

Todos sacaram as armas e se concentraram no hangar.

– Estamos a favor do vento – observou Rhage –, portanto, a bagunça aí dentro deve ser incrível.

Os cinco se aproximaram da construção com cautela, espalhando-se e vasculhando o ambiente iluminado pelo luar à procura de algo que se movesse.

O hangar tinha duas entradas, uma bipartida e grande o bastante para deixar passar a envergadura de uma asa, e a outra supostamente para pessoas, que, em comparação, parecia do tamanho de uma Barbie. E Rhage tinha razão: apesar de o vento gélido os atingir pelas costas, o cheiro era forte o bastante para aguçar as narinas, e não no bom sentido.

Caramba, o frio costumava aplacar o fedor.

Comunicando-se por gestos, dividiram-se em dois grupos, com ele e John ficando num dos lados das portas duplas gigantes, e Rhage, Blay e Z. na entrada menor.

Rhage, como era de se esperar, tentou a maçaneta enquanto todos se preparavam para um confronto. Se houvesse o equivalente a um time de futebol de redutores ali, fazia sentido enviar o Irmão primeiro, porque ele tinha o tipo de retaguarda que ninguém tinha: a besta amava assassinos, e não no sentido de ter um relacionamento com eles.

Quem tinha falado em menta mesmo?

Hollywood levou a mão acima da cabeça. Três... dois... um...

O Irmão penetrou no silêncio absoluto, empurrando a porta e entrando sorrateiramente. Z. foi em seguida e Blay o acompanhou.

Qhuinn sentiu um segundo de puro terror quando o macho saltou para o desconhecido com nada além de um par de pistolas .40 para protegê-lo. Deus, a ideia de que Blay pudesse morrer naquela noite, bem na sua frente, naquela missão comum, fez com que ele quisesse parar com toda aquela tolice de defender a raça e transformar o lutador num bibliotecário. Ou modelo de mãos. Ou cabeleireiro...

O assobio que surgiu menos de sessenta segundos depois foi uma dádiva de Deus. O sinal de Z. de que estava tudo bem para que ele e John se reposicionassem, indo para a lateral da agora porta aberta e passando por...

Ok. Uau.

Falando em fedor. Nota máxima...

Os três que entraram antes ligaram as lanternas, e os fachos de luz cortaram o espaço cavernoso, atravessando a escuridão, iluminando o que a princípio não parecia ser nada além de uma camada de gelo negro. A não ser pelo fato de não ser preto e de não estar congelado. Era sangue humano engrossado – uns mil litros da coisa. Misturado com uma boa quantidade de Ômega.

O hangar foi o local de uma iniciação em massa, numa escala que tornava o que acontecia há um tempo naquela casa de campo nada mais do que uma brincadeira de criança.

– Acho que os garotos que você castigou estavam vindo para uma festa e tanto – comentou Rhage.

– Bem observado – murmurou Z.

Enquanto fachos de luz destacavam um velho e decrépito avião no fundo, e absolutamente nada mais, Z. balançou a cabeça.

– Vamos vasculhar o exterior. Não há nada aqui.

Visto que o chalé não prometia muito pelo lado de fora, apenas uma típica cabana de caçador/pescador no meio da floresta, o Sr. C. sentiu-se tentado a ignorar a maldita coisa. A perfeição tinha as suas virtudes, contudo, e a localização do chalé, cerca de uns dois ou três quilômetros para dentro daquele pedaço de terra, sugeria que ele podia ter sido usado como um quartel-general a certa altura.

Levando-se tudo em consideração, teria sido mais inteligente verificar a propriedade antes de ele ter usado o hangar para a maior iniciação da história da Sociedade Redutora. Mas as prioridades se apresentaram daquele modo. Primeiro, ele teve que se colocar no controle; segundo, de justificar a promoção; e terceiro, de lidar com todos aqueles novos redutores.

E isso significava que ele precisava de recursos. Rápido.

Seguindo a cerimônia grande e suja de Ômega, e o período nauseante que durou algumas horas depois, o Sr. C. ordenara que os novos recrutas subissem num ônibus escolar que ele roubara de uma loja de veículos usados uma semana antes. Devido à exaustão e ao desconforto físico em que se encontravam, portaram-se como garotinhos obedientes, entrando e sentando-se dois a dois como se estivessem numa porra de uma Arca de Noé.

Dali, ele mesmo dirigira (por não confiar esse tipo de bem a qualquer um) para a Escola para Garotas de Brownswick. A extinta escola preparatória ficava no subúrbio em 35 acres de propriedades ignoradas, dilapidadas e cobertas de mato, e os boatos de ser assombrada mantinham afastadas as pessoas normais.

Por enquanto, a Sociedade Redutora estava desabrigada, mas a placa “Vende-se” na curva perto da estrada significava que ele poderia dar um jeito nisso. Tão logo arranjasse algum dinheiro.

Com os rapazes terminando de se recuperar na escola, e os assassinos atuais no centro à procura da Irmandade, ele estava por conta catalogando as poucas propriedades restantes da Sociedade – inclusive aquele pedaço praticamente deserto de floresta ao norte da cidade.

Embora começasse a acreditar que estivesse perdendo tempo.

Subindo na varanda do chalé, iluminou o interior com uma lanterna. Fogão antigo. Mesa de madeira tosca com duas cadeiras. Três camas sem colchão, nem lençóis. Quitinete.

Dando a volta para os fundos, ele encontrou um gerador sem combustível e um tanque de diesel enferrujado, o que sugeria que o lugar teve algum tipo de aquecimento em alguma época.

Voltando para a frente, tentou a porta e descobriu-a trancada.

Não fazia diferença. Não havia muita coisa ali.

Pegando um mapa de dentro da jaqueta de aviador, desdobrou-o e encontrou sua localização. Verificando o quadradinho, pegou a bússola, ajustou a direção e começou a caminhar para o noroeste.

De acordo com aquele mapa, que ele havia encontrado no antro de drogas do Redutor Principal, aquele pedaço de propriedade totalizava cinco acres e tinha esse tipo de chalé espalhado em intervalos randômicos. Ele imaginava que o lugar devia ter sido algum tipo de acampamento com proprietários múltiplos, um tipo de reserva de caça moderna que se perdera para a carga tributária do Estado de Nova York e depois comprada pela Sociedade nos anos oitenta.

Pelo menos era isso o que estava escrito à mão no canto, embora só Deus soubesse se a Sociedade ainda era a proprietária daquilo. Considerando-se a situação financeira da organização, o bom e velho Estado de Nova York poderia bem ter o penhor da propriedade a esta altura, ou até mesmo tê-la reempossado.

Ele parou e verificou a bússola novamente. Caramba, sendo urbano, ele detestava vagar pela floresta à noite, superando a neve com dificuldade, verificando aquele tipo de merda como se fosse algum tipo de guarda florestal. Mas ele tinha de ver com seus próprios olhos aquilo com que tinha que trabalhar, e só havia um modo de fazer isso.

Ao menos tinha um fluxo de receita preparado.

Nas próximas 24 horas, quando aqueles garotos estivessem finalmente de pé, ele voltaria a preencher os cofres. Aquele era o primeiro passo rumo à recuperação.

Passo número dois?

A dominação do mundo.


CAPÍTULO 15

Ela estava sangrando.

Quando Layla olhou para o papel higiênico na mão, a mancha vermelha em todo aquele branco era o equivalente visual de um grito.

Esticando a mão para trás, deu a descarga, e teve que usar a parede para se equilibrar ao se levantar. Com uma mão no baixo ventre e a outra sobre a bancada da pia e depois na maçaneta, ela tropicou para o quarto e foi direto para o telefone.

Seu primeiro instinto foi ligar para a doutora Jane, mas decidiu não fazer isso. Concluindo que estava sofrendo um aborto espontâneo, existia a possibilidade de poupar Qhuinn da ira do Primale. Desde que ela deixasse aquilo debaixo dos panos. E usar a clínica geral da Irmandade provavelmente não seria o melhor modo de assegurar privacidade.

Afinal, só havia um motivo para uma fêmea sangrar. E perguntas a respeito do seu cio e de como ela lidara com isso inevitavelmente se seguiriam.

Na mesinha de cabeceira, ela abriu uma gaveta e retirou um caderninho preto. Encontrando o número da clínica da raça, ela discou com mãos trêmulas.

Quando desligou pouco depois, tinha um horário marcado para dali a trinta minutos.

Mas como sairia dali? Não poderia se desmaterializar, estava ansiosa demais e, de qualquer modo, fêmeas grávidas eram desencorajadas a fazer isso. E ela também não se sentia forte o bastante para dirigir até lá. As aulas de Qhuinn foram bem abrangentes, mas ela não conseguia se imaginar, em seu estado, pegando a autoestrada e tentando acompanhar o fluxo do tráfego humano.

Fritz Perlmutter era a sua única resposta.

Indo até o armário, pegou uma camisola macia, torceu-a numa corda espessa e colocou-a entre as pernas com a ajuda de diversos pares de calcinha. A solução para o seu problema de sangramento mostrou-se incrivelmente volumosa e dificultou o andar, mas esse era o menor dos seus problemas.

Um telefonema para a cozinha garantiu que o mordomo a levaria.

Agora ela só precisava descer as escadas, sair pelo vestíbulo e entrar inteira no enorme sedã. Tudo isso sem se deparar com nenhum macho da casa.

Bem quando estava para sair do quarto, viu seu reflexo no espelho na parede. O manto branco e seu penteado formal anunciavam seu status de Escolhida como nenhuma outra coisa. Ninguém além das fêmeas sagradas da Virgem Escriba da espécie se vestia daquela forma.

Mesmo se aparecesse sob o nome fictício que fornecera à recepcionista, todos adivinhariam sua afiliação sobrenatural.

Tirando o manto, tentou entrar num par de calças de ioga, mas o enchimento que ajustara em si impossibilitou isso. E os jeans que ela e Qhuinn compraram juntos também não estavam dando certo.

Tirando a camisola, ela usou papel higiênico do banheiro para lidar com o problema e conseguiu entrar nos jeans. Um suéter pesado a esquentaria e uma bela escovada nos cabelos e um rabo de cavalo faria com que ela parecesse... quase normal.

Saindo do quarto, ela segurou o tal do celular que Qhuinn lhe dera. Passou pela sua cabeça telefonar para ele, mas, na verdade, o que diria? Ele tinha tanto controle sobre aquele processo quanto ela...

Ah, santa Virgem Escriba, ela estava perdendo o bebê.

O pensamento lhe ocorreu bem quando ela chegou ao topo da escadaria principal. Ela estava perdendo o bebê deles. Naquele instante. Ali do lado de fora do escritório do Rei.

De repente, o teto caiu sobre a sua cabeça e as paredes do vestíbulo grande e espaçoso a apertaram tanto que ela não conseguia respirar.

– Sua Graça?

Estremecendo, ela olhou para baixo para a passadeira vermelha. Fritz estava ao pé das escadas, vestido em seu costumeiro uniforme, e sua adorável e anciã expressão carregada de preocupação.

– Sua Graça, vamos agora? – perguntou ele.

Quando ela assentiu e desceu com cuidado, não conseguia crer que tudo aquilo fora para nada, todas aquelas horas de esforço com Qhuinn... os gélidos momentos seguintes nos quais ela não conseguia se mover... a espera e antecipação de uma esperança quieta e traiçoeira.

O fato de ter cedido o presente de sua virgindade a troco de nada.

Qhuinn sofreria tanto, e o fracasso que ela impingiria a ele só aumentava imensamente o seu próprio sofrimento. Ele sacrificara o corpo durante o cio dela, o desejo dele de ter um laço de sangue incitando-o a fazer algo que ele não teria, de outro modo, escolhido fazer.

O fato de a biologia ter suas vontades não a aliviava.

A perda... ainda parecia ser culpa sua.

Tomar outra dose para acabar com a ressaca.

Saxton acreditava que esse adágio era grosseiro, no entanto, verdadeiro.

Parado nu diante do espelho do banheiro, abaixou o secador e passou os dedos pelos cabelos. As ondas se assentaram em seu estado normal, os fios loiros encontrando uma disposição perfeita para complementar o rosto quadrado e equilibrado.

A imagem que ele via era exatamente aquela da noite anterior, e da anterior àquela, contudo, por mais familiar que seu reflexo fosse, ele se sentia como se pertencesse a uma pessoa diferente, à parte.

Seu corpo mudara tanto por dentro, parecia bem razoável deduzir que a transformação se ecoaria na aparência. Deus, não era assim!

Virando e saindo para o closet, imaginou que não deveria se surpreender, tanto pelo seu íntimo perturbado quanto pelo seu exterior de falsa compostura.

Depois que ele e Blay conversaram, ele precisou de uma hora para tirar tudo do quarto em que ficara com o antigo amante e voltar para a suíte no fim do corredor. Ele recebera aquelas acomodações quando fora morar na mansão, porém, conforme as coisas progrediram com Blay, seus pertences gradualmente migraram para o outro quarto.

Esse processo migratório fora crescente, assim como o seu amor: um caso de uma camisa aqui e um par de sapatos acolá, uma escova de cabelos uma noite e meias na seguinte... uma conversa de valores partilhados seguida por uma maratona de sete horas de sexo acompanhada por um pote de sorvete de café Breyers com apenas uma colher.

Ele não percebera a distância transposta pelo seu coração, do mesmo modo como um andarilho se vê perdido em meio à selva. Contudo, quinze quilômetros e um determinado número de bifurcações em seu caminho mais tarde e não havia como voltar. Àquela altura, não restava alternativa a não ser organizar seus recursos para construir um abrigo e criar raízes novas.

Ele deduzira que construiria seu novo espaço pessoal com Blay.

Sim, deduzira. Afinal, por quanto tempo poderia sobreviver um amor não correspondido? Como o fogo precisa de oxigênio para queimar, assim é com as emoções.

Não no que se referia a Qhuinn, ao que tudo levava a crer. Não para Blay.

Saxton estava decidido a não sair da mansão real, porém. Quanto a isso, Blay tinha razão: Wrath, o Rei, precisava dele, e, mais do que isso, ele gostava do seu trabalho ali. Era ágil, desafiador... e a parte egoísta que havia dentro de si queria ser o advogado que reformaria a lei da maneira correta.

Deduzindo-se que o trono não seria tomado e que ele não fosse decapitado num novo regime.

Mas não se podia viver preocupado com coisas como essa.

Pegando um terno de xadrez escocês do closet, escolheu uma camisa e um colete e estendeu tudo sobre a cama.

Era um clichê triste, bem desestimulante, sair para procurar algo núbil e espiritual para aplacar a dor, mas ele preferia ter um orgasmo a se embriagar. Além disso, o “finja até encontrar um propósito novamente” parecia dar certo.

E parecia especialmente verdadeiro quando ele se olhou arrumado no espelho de corpo inteiro do banheiro, e isso ajudava.

Antes de sair, verificou o celular novamente. As Leis Antigas foram remodeladas seguindo as ordens de Wrath, e agora ele estava de prontidão, à espera da nova tarefa.

Deduziu que logo descobriria o que seria.

Wrath era notoriamente exigente, mas nunca irracional.

Nesse ínterim, ele afogaria sua tristeza no único tipo de “loira gelada” que o apetecia... algo com vinte e poucos anos, lá pelos seus um e oitenta de altura, atlético...

E preferivelmente moreno. Ou loiro.


CAPÍTULO 16

– Alguém já passou por aqui.

Enquanto Rhage falava, Qhuinn pegou sua lanterna de bolso e apontou o discreto facho de luz para o chão. E lá estavam pegadas na neve fresca, sem nenhuma cobertura de flocos... que partiam diretamente para a clareira da floresta. Desligando a luz, ele se concentrou no chalé de caça mais à frente que parecia estar abandonado ao clima frio: nenhuma fumaça subindo pela chaminé, nenhuma iluminação interna e, mais importante, nenhum rastro de cheiro.

Os cinco se aproximaram, circundando a clareira e se movimentando sorrateiramente num ângulo amplo. Como não houve nenhuma ação defensiva de parte alguma, todos subiram na varanda e espiaram o interior pelas janelas estreitas.

– Nada – murmurou Rhage ao ir para a porta.

Uma tentativa rápida na maçaneta. Fechada.

Com um empurrão, o Irmão esmagou o ombro imenso contra o batente e mandou a coisa pelos ares, fragmentos da tranca caindo espalhados bem como lascas de madeira.

– Olá, querida, cheguei – gritou Hollywood ao marchar para dentro.

Qhuinn e John seguiram o protocolo e ficaram na varanda enquanto Blay e Z. entravam e vasculhavam.

A floresta estava quieta ao redor deles, mas seus olhos aguçados acompanharam aquelas pegadas... que, depois de uma passeada pelo chalé, seguiam para o noroeste.

Por certo era indício de que alguém estava ali com eles, vasculhando a propriedade ao mesmo tempo.

Humano? Redutor?

Ele acreditava mais na última opção, devido a toda aquela bagunça no hangar, e também por aquele lugar ser remoto e relativamente seguro por conta disso.

Ainda que houvessem de querer trazer a Stanley Steemer* para aquela construção para uma bela limpeza antes.

A voz de Blay surgiu através da porta aberta.

– Achei uma coisa.

Qhuinn teve que recorrer a todo o seu treinamento a fim de não parar de inspecionar o cenário e olhar para dentro. Não porque ele se importasse particularmente com o que fora encontrado. Durante todo aquele processo, ele vinha checando Blay constantemente, só para ver se o humor dele mudara.

Se mudara, fora para pior.

Vozes baixas se fizeram ouvir dentro do chalé, e depois os três emergiram.

– Encontramos uma caixa trancada a chave – anunciou Rhage ao baixar o zíper da jaqueta e enfiar o contêiner longo e estreito de metal junto ao peito. – Abriremos mais tarde. Primeiro, vamos encontrar o dono dessas botas, rapazes.

Desmaterializando-se rapidamente a cada quinze ou vinte metros, eles se espalharam pelas árvores, rastreando as pegadas na neve, seguindo em silêncio.

Depararam-se com o redutor um quilômetro adiante.

O assassino solitário marchava pela floresta coberta de neve num passo que somente um humano com treinamento olímpico teria conseguido sustentar por algumas centenas de metros. As roupas eram escuras, havia uma mochila nas costas e o fato de ele estar se movimentando apenas com a própria visão eram indicadores de que se tratava do inimigo: a maioria dos Homo sapiens não conseguiria se mover com aquela rapidez com tão pouca iluminação sem a ajuda de uma luz artificial.

Gesticulando em código, Rhage orientou o grupo a fazer uma formação de triângulo reverso que dava a volta ao redor do rastro do redutor. Continuando a avançar junto a ele, observaram-no por uma área mais ou menos do tamanho de um campo de futebol e, em seguida, todos de uma vez aproximaram-se, circundando o assassino, e bloquearam-no em pontos cardinais opostos na mira das armas.

O redutor parou de andar.

Ele era um recruta mais jovem, o cabelo escuro e a pele oliva sugeriam que tivesse descendência mexicana ou italiana, e mereceu pontos por não demonstrar medo. Mesmo tendo caído numa cilada, ele só olhou tranquilamente por sobre o ombro, como que para confirmar que, de fato, fora emboscado.

– Como tem passado? – Rhage perguntou com a fala arrastada.

O redutor não se deu ao trabalho de responder, o que era o oposto do que vinham presenciando nos últimos tempos. Diferentemente dos outros, aquele não era um garotinho metido a esperto cheio de falatório. Calmo, perspicaz... Controlado, ele era o tipo de inimigo que melhorava o seu desempenho no trabalho.

Não exatamente algo ruim...

E, como era de se esperar, a mão dele desapareceu para dentro do casaco.

– Não seja idiota, cara – exclamou Qhuinn, preparado para meter uma bala no bastardo sem nenhum aviso adicional.

O redutor não deteve o movimento.

Tudo bem.

Ele apertou o maldito gatilho e derrubou o merdinha.

No segundo em que o redutor caiu na neve, Blay ficou imobilizado com a arma ainda apontada. Os outros fizeram o mesmo.

Segundos silenciosos se passaram, eles continuaram a encarar o assassino caído. Nenhum movimento. Nenhuma reação da área periférica. Qhuinn o incapacitara, e ele parecia estar trabalhando sozinho.

Engraçado, mesmo se Blay não tivesse ouvido o tiro à esquerda do seu ouvido, ele teria sabido que o atirador fora Qhuinn: qualquer outro teria dado ao inimigo outra chance para reconsiderar.

O sinal para que se aproximasse foi o assobio de Rhage. Os cinco se moveram como uma matilha de lobos ao redor de sua presa, rápidos e confiantes, cruzando a neve com as armas erguidas. O assassino permaneceu absolutamente imóvel, mas não houvera uma morte na família, por assim dizer. Para isso, seria preciso que uma adaga de aço lhe atravessasse o peito.

Porém, aquele era o estado desejável. Queriam que ele fosse capaz de falar.

Ou, pelo menos, que estivesse em condições de ser forçado a falar...

Mais tarde, quando repassou o que aconteceu em seguida... quando sua mente ardeu obsessivamente a respeito dos fatos... quando ficou acordado tentando entender como as peças se encaixaram na esperança de adivinhar uma mudança de procedimento que garantisse que algo semelhante nunca mais acontecesse... Blay se demoraria naquela mudança de eventos.

Aquele leve tremor no braço. Apenas uma contração muscular aparentemente desconectada de qualquer pensamento consciente ou vontade. Nada perigoso. Nenhum sinal do que estava por vir.

Apenas uma contração.

A não ser pelo fato de que, com um movimento mais rápido que um piscar de olhos, o assassino sacou uma arma sabe-se lá de onde. Foi sem precedentes. Num segundo ele estava como morto no chão; no seguinte, estava atirando de modo controlado num raio amplo.

E mesmo antes de os sons dos tiros pararem, Blay percebeu a imagem horripilante de Zsadist levando chumbo bem no coração, um impacto tão forte que foi capaz de deter o avanço do Irmão, o torso catapultando para trás, os braços se abrindo enquanto ele caía no chão.

No mesmo instante, a dinâmica mudou. Ninguém mais queria interrogar o maldito.

Quatro adagas foram desembainhadas. Quatro corpos se adiantaram. Quatro braços talharam com lâminas afiadas e frias. Quatro impactos, um após o outro.

Tarde demais, porém.

O assassino desaparecera bem diante deles, as armas golpeando a neve manchada onde o inimigo estivera deitado, em vez de atingirem uma cavidade torácica vazia.

Que seja. Haveria tempo para se perguntarem quanto ao desaparecimento improcedente mais tarde. No momento, eles tinham um soldado caído.

Rhage praticamente se lançou sobre o Irmão, colocando o corpo diante de tudo e todos.

– Z.? Z.? Ai, mãe da raça...

Blay sacou o telefone e discou. Quando Manny Manello atendeu, não havia tempo a perder.

– Temos um Irmão ferido. Tiro no peito...

– Espere!

A voz de Z. foi uma surpresa. Assim como o braço do Irmão levantando e empurrando Rhage para o lado.

– Saia de cima de mim!

– Mas estou tentando fazer ressuscitação cardio...

– Prefiro morrer antes de beijar você, Hollywood – Z. tentou se sentar, estava com a respiração pesada. – Nem pense nisso.

– Alô? – a voz de Manello disse ao telefone. – Blay?

– Espere...

Qhuinn se ajoelhou perto de Zsadist, e apesar do fato de o Irmão não gostar de ser tocado, segurou-o por debaixo do braço e ajudou o macho a suspender o torso do chão.

– Estou com a clínica na linha – disse Blay. – Qual o seu estado?

Em resposta, Z. levou a mão até a bainha da adaga e a puxou. Depois, abaixou o zíper da jaqueta de couro e rasgou a camiseta ao meio.

Para revelar o mais lindo colete à prova de balas que Blay jamais vira.

Rhage se curvou em sinal de alívio, a ponto de Qhuinn ter que segurá-lo com a mão livre para que o cara também não caísse no chão.

– Kevlar – Blay murmurou para Manello. – Ah, graças a Deus, ele está usando um Kevlar.

– Que ótimo, mas escute, preciso que você tire o colete e verifique se ele deteve a bala, ok?

– Entendido – olhou de relance para John, contente em ver que ele estava de pé, com as duas armas adiante, os olhos vasculhando o ambiente enquanto o resto deles avaliava a situação. – Vou cuidar disso.

Blay se aproximou e se agachou na frente do Irmão. Qhuinn podia ter tido a coragem de fazer contato com Zsadist, mas ele não faria isso sem permissão expressa.

– O doutor Manello quer saber se você pode tirar o colete para que possamos ver se existe algum ferimento.

Z. moveu os braços e depois franziu o cenho. Tentou novamente. Depois da terceira tentativa, o Irmão conseguiu levantar as mãos até as tiras de velcro, mas elas não conseguiam fazer muita coisa.

Blay engoliu com força.

– Posso cuidar disso? Prometo não tocar em você o quanto for possível.

Ótima gramática ali. Mas ele falava sério.

Os olhos de Z. se levantaram para ele. Estavam negros de dor, e não amarelos.

– Faça o que tem que fazer, filho. Vou aguentar.

O Irmão desviou o olhar, o rosto contraído numa careta, a cicatriz que formava o S do alto do nariz até o canto da boca destacando-se num relevo alto.

Com um sermão severo, Blay ordenou às suas mãos que ficassem firmes, e a mensagem de algum modo foi levada adiante: ele puxou as tiras que o prendiam nos ombros, o barulho mais alto do que o grito em sua cabeça, e depois retirou o colete, aterrorizado pelo que descobriria.

Havia uma grande marca redonda bem no meio do peito musculoso de Z. Bem onde ficava o coração.

Mas era apenas um hematoma. Não um buraco.

Apenas um hematoma.

– Somente ferimento superficial – Blay afundou o dedo no preenchimento denso do colete e encontrou a bala. – Estou sentindo a bala dentro do colete.

– Então por que não consigo mexer meu...

O cheiro de sangue fresco do Irmão pareceu atingir todos os narizes ao mesmo tempo. Alguém praguejou, e Blay se inclinou.

– Você também foi alvejado debaixo do braço.

– É ruim? – Z. perguntou.

Pelo telefone, Manello disse:

– Dê uma olhada e veja o que consegue descobrir.

Blay suspendeu o braço pesado e iluminou a parte interna com uma lanterna de bolso. Aparentemente, uma bala entrara no torso pela pequena parte desprotegida nas axilas – um tiro em um milhão que se você tentasse recriar, não conseguiria repetir.

Merda.

– Não vejo o buraco da saída. É bem na lateral das costelas, no alto.

– Ele está respirando bem? – perguntou Manello.

– Com dificuldade, mas regular.

– Reanimação cardiorrespiratória foi administrada?

– Ele ameaçou castrar Hollywood se houvesse qualquer contato labial.

– Escute aqui, deixe eu me desmaterializar – Z. tossiu um pouco. – Me dê um pouco de espaço...

Todos ofereceram uma variedade de opiniões a essa altura, mas Zsadist não aceitou nenhuma delas. Empurrando-os, o Irmão fechou os olhos e...

Blay soube que estavam com problemas sérios quando nada aconteceu. Sim, Zsadist não fora morto, e estava muito melhor do que estaria se estivesse sem o colete. Mas não conseguia se movimentar – e eles estavam no meio do nada, tão floresta adentro que mesmo que chamassem por reforços, ninguém conseguiria levar um carro até quilômetros de onde estavam.

E o pior? Blay tinha a sensação de que o assassino que derrubaram era algo consideravelmente pior do que um redutor qualquer.

Não havia como saber quando os reforços chegariam.

O som de uma mensagem de texto chegando ao celular de um deles soou, e Rhage a leu.

– Merda. Os outros estão presos no centro da cidade. Teremos que cuidar disso sozinhos.

– Maldição – Zsadist murmurou entredentes.

Sim. A situação era mais ou menos essa.

* Empresa americana especializada em limpeza residencial usando máquina a vapor. (N.T.)


CAPÍTULO 17

Xcor não esperara aquilo.

Enquanto ele e seus soldados se materializavam na localização da alimentação comunal arranjada, ele esperara uma propriedade decaída ou, quem sabe, à beira da condenação, um lugar num estado tão deplorável que uma fêmea seria forçada a vender suas veias e seu sexo para sobreviver.

Nada disso.

A propriedade alcançava os padrões da glymera, a imensa mansão no alto da colina se destacava em sua iluminação, os jardins impecavelmente bem podados, o chalé menor da criadagem perto dos portões em perfeito estado apesar da idade óbvia.

Talvez ela fosse uma prima distante de alguém de linhagem mais importante?

– Quem é essa fêmea? – ele perguntou a Throe.

Seu tenente deu de ombros.

– Não sei nada de sua família. Mas verifiquei a filiação dela com uma linhagem de valor.

Ao redor deles, os soldados estavam ansiosos, os coturnos de combate socando a neve compacta aos seus pés enquanto andavam no mesmo lugar, a respiração escapando dos narizes como se eles fossem cavalos de corrida prestes a explodirem para fora dos portões da pista.

– Há que se perguntar se ela sabe para o que se ofereceu – murmurou Xcor, nem um pouco preocupado se a fêmea sabia ou não.

– Vamos? – perguntou Throe.

– Sim, antes que os outros se descontrolem e invadam aquele chalé dela.

Throe se desmaterializou até a porta singular, com seu topo arqueado e com uma lamparina que se esperaria ver do lado de fora de uma casa de bonecas. Porém, seu braço direito não foi persuadido pelo charme. A iluminação acima de sua cabeça logo foi cortada, certamente ao comando de Throe, e a batida à porta do soldado foi rápida e severa, uma exigência, não um pedido.

Momentos depois, a porta se abriu. A luz de uma lareira escapou para a noite, o brilho dourado das labaredas tão intenso que sugeria que elas conseguiriam derreter a camada de neve – e bem no meio daquela iluminação adorável, a figura de uma fêmea destacava uma silhueta escura e curvilínea.

Ela estava nua. E o cheiro que foi carregado pela brisa gélida indicava que ela estava pronta.

Zypher rosnou baixinho.

– Contenha-se – exigiu Xcor. – Não deixe que a sua avidez seja usada como uma arma contra nós.

Throe falou com ela e depois enfiou a mão no bolso para pegar o dinheiro. A fêmea aceitou o que lhe foi dado e depois esticou um braço no batente, angulando o corpo de modo a fazer com que um seio farto fosse iluminado por aquele brilho suave.

Throe olhou de relance sobre o ombro e acenou com a cabeça.

Os outros não esperaram por um segundo convite. Os lutadores de Xcor convergiram para a entrada, os corpos másculos tão grandes e tão numerosos, que a fêmea logo ficou invisível.

Praguejando, ele também se aproximou andando.

Zypher naturalmente foi o primeiro, tomando-a nos lábios e apalpando os seios, mas ele não foi o único. Os três primos brigaram por suas posições, um indo para trás e arqueando os quadris, como se estivesse esfregando o pau contra o traseiro dela, os outros dois alcançando os mamilos e o sexo dela, as mãos serpenteando conforme ela foi envolvida.

Throe falou acima dos gemidos crescentes.

– Vou montar guarda do lado de fora.

Xcor abriu a boca para ordenar o contrário, e depois percebeu que pareceria como se ele estivesse evitando a cena, e isso dificilmente seria algo másculo.

– Faça isso – murmurou. – Monto guarda no interior.

Seus machos pegaram a fêmea, as mãos das adagas segurando-a pelos braços, coxas e cintura, e, em conjunto, carregaram-na para o interior aconchegante do chalé. Foi Xcor quem fechou a porta e se certificou de que não havia nenhuma tranca para confiná-los. Também foi ele quem vasculhou o interior do chalé. Enquanto seus bastardos carregavam seu alimento para a frente da lareira, onde um tapete de peles recobria o chão, ele se inclinou em uma janela fechada, levantou a cortina e verificou os vitrôs. Antigos e chumbados, com suportes de madeira, não de aço.

Nada seguros. Ótimo.


– Alguém entre em mim – a fêmea gemeu numa voz profunda.

Xcor não se preocupou em ver se a obedeceram ou não, ainda que o gemido ofegante sugerisse que o fora. Em vez disso, olhou ao redor, procurando outras portas e lugares nos quais uma emboscada poderia ser armada. Aparentemente, não existia nenhum. O chalé não tinha um segundo andar, o esqueleto do teto formava um arco acima da sua cabeça e só havia um banheiro pequeno, cuja porta estava entreaberta e a luz acesa revelava um pé em forma de garra da banheira e uma pia em estilo antigo. A cozinha aberta não passava de uma bancada com alguns poucos eletrodomésticos modestos.

Xcor olhou para a ação. A fêmea estava deitada de costas, com os braços abertos formando um T, o pescoço exposto, as pernas escancaradas. Zypher montara nela e a penetrava ritmadamente, fazendo com que a cabeça subisse e descesse no tapete branco fofo enquanto ela absorvia os impactos. Dois dos primos se agarraram aos seus pulsos, e o terceiro tirara o pênis para fora e a fodia na boca. Na verdade, havia pouco dela que não estivesse coberto por machos vampiros, e seu êxtase por estar sendo usada era óbvio não somente aos olhos, mas também aos ouvidos: ao redor da ereção que entrava e saía dos lábios abundantes, a respiração pesada e os gemidos eróticos escapavam para a atmosfera carregada de sexo.

Xcor caminhou até a bancada da cozinha. Não havia nada ali, nenhum resto de comida, nenhum copo abandonado meio cheio. Havia pratos nos armários, contudo, e quando ele abriu a grande geladeira de estilo europeu, garrafas de vinho branco estavam organizadas horizontalmente nas prateleiras.

Uma imprecação masculina atraiu seu olhar para a diversão. Zypher estava gozando, os corpos se arqueando para frente enquanto a cabeça pendia para trás e, em meio ao seu orgasmo, um dos primos o afastava, assumindo seu posto, levantando os quadris da fêmea e se afundando no sexo rosado e molhado. Pelo menos Zypher parecia completamente satisfeito de trocar de lugar; ele expôs as presas, afundou a cabeça debaixo do peito agora arfante do seu camarada e beliscou o seio da fêmea para poder se alimentar perto do mamilo.

Aquele que estava na boca também gozou, e ela sorveu todo o sêmen, sugando a cabeça do pênis do lutador, soltando-a em seguida e lambendo os lábios úmidos como se ainda estivesse com fome. Alguém logo a atendeu, outra ereção bombeando seus lábios, os ritmos contrários das investidas do que acontecia em sua cabeça e entre as pernas balançando-a para frente e para trás num modo que ela parecia apreciar.

Xcor voltou a verificar o banheiro, mas sua primeira avaliação estava correta: não havia onde se esconder naquele confinamento diminuto.

Tendo garantido o interior, ele não pensou em nada mais para fazer a não ser se recostar num canto que lhe oferecia a melhor visão de acesso e testemunhar a refeição. Conforme as coisas se intensificaram, seus lutadores perderam a aparente civilização que tinham, trocando de posição como leões sobre carniça fresca, as presas se revelando, os olhos selvagens de agressão enquanto eles lutavam por suas posições. No entanto, eles não perderam completamente as cabeças. Cuidaram da fêmea.

Não demorou e alguém cortou a própria veia, aproximando-a dos lábios dela.

Xcor baixou o olhar para as botas e permitiu que sua visão periférica monitorasse o ambiente.

Houve uma época em que se excitaria com aquilo. E não por se interessar particularmente pelo sexo, mas do mesmo modo como seu estômago roncava quando via comida. Dessa forma, no passado, quando sentia a necessidade de tomar uma fêmea, era o que teria feito. Normalmente no escuro, claro, para que a pobre garota não sentisse nem repulsa nem medo.

Ele bem podia imaginar que as expressões de excitação que os machos exibiam em seus rompantes eróticos pouco melhoraram sua aparência.

Mas agora? De maneira curiosa, sentia-se desligado de tudo aquilo, como se estivesse assistindo os machos carregando mobília de um lado para o outro ou, quem sabe, limpando as folhas em um jardim.

O motivo era a sua Escolhida, claro.

Tendo tido os lábios pressionados contra a pele pura, tendo olhando dentro dos olhos verdes luminosos, tendo sentido o perfume delicado dela, ele estava completamente desinteressado pelos charmes bem utilizados daquela fêmea diante da lareira.

Ah, a sua Escolhida... ele jamais soube que tal graça existisse e, além disso, não teria como imaginar que se sentiria tão completamente tocado por aquilo que era tão antitético para ele. Ela era o seu oposto, gentil e generosa, enquanto ele era brutal e impiedoso, bela para a sua feiura, etérea para a sua depravação.

E ela o marcara. Do mesmo modo como se o tivesse golpeado e deixado uma cicatriz em sua carne, ele estava ferido e enfraquecido por ela.

Não havia nada a ser feito.

Deus, mesmo as lembranças dos momentos que partilhara com ela, quando estivera completamente vestida, e ele, tão gravemente ferido, bastavam para excitá-lo, seu pobre sexo endurecendo por nenhum motivo aparente: mesmo que não estivessem em lados opostos na guerra pelo trono, ela jamais permitiria que ele a abordasse como um macho faz ao se enfeitiçar por uma fêmea de valor. Naquela noite outonal quando se encontraram debaixo daquela árvore, ela executara um ato válido segundo seus preceitos. Não tivera nada a ver com ele em particular.

Mas, ah, como ele a desejava mesmo assim...

Abruptamente, a fêmea diante da lareira se arqueou debaixo dos pesos orgásmicos que mudavam sobre ela, e ele voltou-lhe sua atenção. Como se ela percebesse sua excitação, o olhar enevoado e extasiado focalizou nele, e uma surpresa repentina cruzou sua expressão – ou o pouco que ele conseguia distinguir por cima do antebraço grosso que lhe oferecia alimento.

O choque arregalou seu olhar. Evidentemente, ela não notara a presença dele, mas agora que o fazia, o medo, e não a paixão, fez-se óbvio dentro dela.

Sem querer atrapalhar toda aquela ação, ele balançou a cabeça e estendeu a palma num gesto de “pare”, para garantir a ela que não teria de suportar sua mordida – ou pior, seu sexo.

A mensagem aparentemente funcionou, porque o medo abandonou sua expressão, e quando um dos soldados apresentou o pau pedindo atenção, ela o apanhou e começou a massageá-lo acima da sua cabeça.

Xcor sorriu para si mesmo de modo horripilante. Aquela prostituta não o queria, e mesmo assim, seu corpo, em toda a sua estupidez, insistia em reagir àquela Escolhida, como se a fêmea sagrada um dia fosse olhar para ele.

Tão tolo.

Consultando o relógio, surpreendeu-se ao ver que a refeição já vinha acontecendo há mais de uma hora. Que seja. Desde que seus machos obedecessem com suas duas regras básicas, ele não se importava em deixá-los continuar: tinham de permanecer substancialmente vestidos e as armas deveriam estar nos coldres com as travas desarmadas.

Dessa forma, se o clima mudasse, eles poderiam se defender rapidamente.

Ele estava mais do que disposto a lhes conceder aquele passatempo.

Depois daquele interlúdio? Muitos estariam no máximo de suas forças, e pelo modo como as coisas estavam com a Irmandade... eles precisariam estar assim.


CAPÍTULO 18

– Não. De jeito nenhum.

Qhuinn teve que concordar com a opinião de Z. quanto à ideia brilhante de Rhage.

O grupo já se esforçara na floresta, com Rhage suportando boa parte do peso de Z., enquanto os demais os circundavam aos pares, a postos para apanhar qualquer um ou qualquer coisa que os ameaçasse pelas margens. Agora estavam de volta ao hangar e a solução de Hollywood para o problema de mobilidade parecia uma complicação com implicações mortais, e não exatamente algo que de fato ajudasse.

– Pilotar não deve ser tão difícil – enquanto todos, inclusive Z., apenas o encaravam, Rhage deu de ombros. – O que foi? Os humanos o fazem o tempo todo.

Z. esfregou o peito e lentamente se deixou cair no chão. Depois de respirar, balançou a cabeça.

– Primeiro, você não sabe se... a maldita coisa... pode subir. Provavelmente... está sem combustível... e você nunca pilotou antes.

– Quer me contar a nossa outra opção? Ainda estamos a quilômetros de um ponto plausível para que nos busquem, você não está melhorando e podemos ser encurralados. Deixe-me pelo menos entrar lá para ver se consigo fazer o motor pegar.

– Não é uma decisão inteligente.

No silêncio que se seguiu, Qhuinn raciocinou e olhou para o hangar. Depois de um instante, disse:

– Eu dou cobertura. Vamos fazer isso.

No fim, Rhage estava certo. Aquela evacuação a pé estava demorando demais e o redutor desaparecera antes que o apunhalassem, e não o contrário.

Será que Ômega dera poderes especiais aos seus garotos?

Tanto faz. Um soldado inteligente jamais subestimava o inimigo, ainda mais quando um dos seus estava abatido. Precisavam levar Z. para um lugar seguro e se isso significava ir pelo ar, que assim fosse.

Ele e Rhage entraram no hangar e ligaram as lanternas. O avião estava onde o tinham deixado no canto do fundo, como se fosse o filho adotivo feio de algum outro tipo de transporte muito mais bonito que há muito saíra de cena. Aproximando-se, Qhuinn viu que a hélice parecia estar inteira, e apesar de as asas estarem empoeiradas, conseguiu sustentar seu peso nelas.

O fato de a porta ter rangido como o diabo quando Rhage a abriu não foi uma notícia tão promissora.

– Nossa! – murmurou Rhage ao se encolher. – Parece que há algo morto ali dentro.


Caramba, o fedor devia ser tremendo se o Irmão conseguia distingui-lo do resto do cheiro que permeava o hangar.

Talvez a ideia não fosse tão boa assim.

Antes que Qhuinn conseguisse emitir uma segunda opinião a respeito do fedor, Rhage se espremeu como um pretzel e passou pela abertura oval.

– Puta merda... Chaves! As chaves estão aqui, dá pra acreditar?

– E quanto ao combustível? – murmurou Qhuinn, ao lançar o facho da lanterna de bolso num círculo amplo. Nada além de chão imundo.

– Acho bom recuar um pouco, filho – Rhage berrou de dentro da cabine. – Vou tentar ligar essa máquina velha.

Qhuinn se afastou, mas oras, se a coisa fosse explodir, poucos metros não fariam muita diferença...

A explosão foi alta, a fumaça, espessa, e o motor parecia estar sofrendo com um acesso de tosse mecânica. Mas a merda se estabilizou. Quanto mais deixaram o motor esquentar, mais equilibrado o ritmo se tornou.

– Temos que sair daqui antes de nos asfixiarmos – Qhuinn gritou de dentro do avião.

Bem nessa hora, Rhage deve ter colocado a coisa para se mexer ou algo assim, porque o avião se lançou para a frente com um gemido, como se cada prego e parafuso da sua fuselagem doesse.

E aquela coisa voaria?

Qhuinn correu na frente e chegou à porta dupla. Segurando de um lado, usou toda a sua força para puxar e afastou as portas, lançando diversas trincas e travas para todos os lados.

Ele só esperava que o avião não se inspirasse naqueles fragmentos.

Sob o luar, as expressões de John e Blay não tinham preço ao darem uma bela olhada para o plano de fuga – e ele bem sabia de onde elas vinham.

Rhage pressionou o freio e se espremeu de novo para sair.

– Vamos trazê-lo para dentro.

Silêncio. Bem, a não ser pelo avião ofegante atrás deles.

– Você não vai levá-lo – disse Qhuinn, quase para si mesmo.

Rhage olhou sério para ele.

– O que disse?

– Você é valioso demais. Se esta coisa cair, não podemos perder dois Irmãos. Isso não vai acontecer. Eu sou dispensável, você não.

Rhage abriu a boca como se fosse argumentar. Mas quando a fechou, uma expressão estranha atravessou seu belo rosto.

– Ele tem razão – disse Z. sério. – Não posso colocar você em perigo, Hollywood.

– Que se foda, posso me desmaterializar para fora da cabine...

– E acha que vai conseguir fazer isso quando estiverem num espiral? Tolice...

Uma saraivada de balas irrompeu das margens das árvores, atingindo a neve, o zumbido passando pelos ouvidos.

Todos reagiram. Qhuinn mergulhou dentro do avião, posicionou-se atrás do assento do piloto e tentou entender... puta merda, havia botões demais. A única coisa que o salvava era que...

Rá-tá-tá!

... ele assistira a um número suficiente de filmes para saber que a alavanca com a manopla era o acelerador e que a direção em forma de gravata borboleta era a coisa que você puxava para subir, e abaixava para descer.

– Cacete – murmurou ao ficar abaixado o máximo que podia.

Considerando-se os sons explosivos que se seguiram, John e Blay também atiravam, por isso Qhuinn se sentou um pouco mais elevado e olhou para a fileira de instrumentos. Deduziu que aquele com um tanquezinho de combustível era o que ele estava procurando.

Um quarto de tanque disponível. E metade daquela coisa só devia ser condensação.

Aquela era uma ideia bem ruim.

– Traga-o aqui! – Qhuinn berrou, olhando para o campo aberto e reto à sua esquerda.

Rhage logo o atendeu, jogando Zsadist no avião com toda a gentileza de um estivador. O Irmão aterrissou como uma pilha amontoada, mas ao menos praguejava, o que significava que ainda estava bom o bastante para sentir dor.

Qhuinn não esperou pela tolice de fechar as portas. Soltou o pedal do freio, apertou o acelerador e rezou para não derrapar na neve...

Metade do para-brisa se estilhaçou na sua frente; a bala que causara o estrago ricocheteou pela cabine, o “fuuu” do assento ao lado do seu, sugerindo que o encosto de cabeça tivesse sido atingido. O que era melhor do que o seu braço. Ou o crânio.

A única notícia boa era que o avião parecia pronto para sair dali também, o motor enferrujado girando a hélice rapidamente como se soubesse que sair do chão era a única saída para a segurança. Ao lado das janelas, o cenário começava a passar e ele se orientou no meio da “pista” mantendo as duas fileiras de árvores equidistantes.

– Segure-se – gritou acima do estrondo.

O vento entrava na cabine como se houvesse um ventilador industrial preenchendo o espaço onde o vidro estivera, mas ele não pretendia subir o bastante para que necessitassem de pressurização.

Àquela altura, ele só queria passar por cima da floresta logo adiante.

– Vamos, meu bem, você consegue... Vamos, vamos...

Ele já estava com a alavanca toda puxada e teve que ordenar ao braço que relaxasse um pouco. Não havia mais para onde puxar, e quebrar a maldita coisa era a garantia de acabar com tudo ali mesmo.

O barulho aumentou ainda mais.

As árvores se agitaram cada vez mais.

A trepidação ficou cada vez mais violenta, até seus dentes batiam uns nos outros, e ele se convenceu de que uma ou as duas asas se partiriam e cairiam pelas laterais.

Concluindo que não havia tempo a perder, Qhuinn puxou o manche para trás o máximo que pôde, segurando firme, como se isso, de alguma forma, fosse se traduzir à fuselagem do avião e se mantivesse junto no lugar...

Algo caiu do teto e voou na direção de Z.

Um mapa? O manual do proprietário? Quem diabos haveria de saber...?

Caramba, as árvores na ponta extrema estavam se aproximando...

Qhuinn puxou ainda mais, apesar de o manche estar o mais próximo possível dele, o que era uma pena, porque estavam ficando sem pista e ainda colados no chão...

Sons de arranhados vinham da barriga do avião, como se a vegetação rasteira estivesse se esticando e tentando segurar as placas de aço.

As árvores estavam cada vez mais perto.

Seu primeiro pensamento ao enfrentar a morte era que jamais conheceria a filha. Pelo menos não neste lado do Fade.

O segundo e último era que não acreditava que nunca tivesse dito a Blay que o amava. Em todos os minutos e horas e noites de sua vida, em todas as palavras ditas ao macho no decorrer dos anos em que se conheciam, ele somente o afastara.

E agora era tarde demais.

Idiota. Que tremendo cretino que ele era.

Porque parecia bem evidente que seu cartão de biblioteca ficaria inutilizado aquela noite.

Endireitando-se e fazendo com que as lufadas o atingissem em cheio no rosto, Qhuinn encarou aquela arremetida, imaginando todos aqueles pinheiros logo adiante, já que não conseguia enxergá-los pelo fato de os olhos estarem lacrimejando devido ao vento. Abrindo a boca, ele gritou, acrescentando voz à confusão.

Maldição, não morreria como um covarde. Não mergulharia no chão, nada de frases patéticas implorando para que Deus o salvasse. Ao diabo com isso. Enfrentaria a morte com as presas expostas, o corpo preparado e o coração acelerado não de medo, mas com uma tremenda descarga de...

– Morte, vá se foder!

Enquanto Qhuinn tentava levantar voo, Blay tinha o cano da pistola apontado para a borda das árvores e descarregava balas como se tivesse um suprimento infindável... o que não era verdade.

Aquilo era horrível. Ele, John e Rhage não tinham cobertura; não havia como saber quantos assassinos estavam na floresta; e, pelo amor de Deus, só o que aquele avião antigo fazia era expelir uma nuvem de fumaça tóxica em seu rastro enquanto passava como se estivesse num desfile dominical.

Ah, e a máquina estava longe de ser blindada, mas, evidentemente, tinha combustível no tanque.

Qhuinn e Z. não conseguiriam. Colidiriam na floresta ao fim da pista. Isso se não explodissem antes.

Nesse instante, quando soube que uma bola de fogo era iminente de um ou outro modo, ele se partiu ao meio. A parte física permanecia concentrada em combater o ataque, os braços esticados, os indicadores apertando os gatilhos, os olhos e ouvidos rastreando os sons e as aparições de flashes de pistolas e os movimentos do inimigo.

A sua outra parte estava naquele avião.

Era como se estivesse assistindo à própria morte. Imaginava com nitidez a vibração violenta do avião, os saltos descontrolados no chão e a vista da margem sólida das árvores que se aproximavam dele, como se estivesse enxergando através dos olhos de Qhuinn e não dos seus.

Filho da puta imprudente.

Tantas vezes Blay pensou “ele vai se matar”.

Tantas vezes no campo de batalha e fora dele.

Mas aquela era a vez em que isso aconteceria...

Uma bala o atingiu na coxa e a dor que subiu pela perna até o coração indicava que sua total atenção precisava voltar ao combate: se quisesse viver, teria de se concentrar completamente.

Contudo, quando essa convicção o acometeu, houve uma fração de segundo em que ele pensou: vamos acabar com isso aqui. Vamos acabar com essa tolice de vida de castigos, de “quase lá”, de “e se?”, da agonia crônica e infindável em que sempre esteve... e da qual estava tão cansado...

Ele não entendeu o que o fez atingir a neve.

Num minuto, estava olhando para o avião esperando que ele explodisse em chamas. No minuto seguinte, estava de peito no chão, com os cotovelos enfiados na terra congelada e obstinada, a perna machucada latejando.

Flap! Flap! Flap!...

O rugido que interrompeu o som das balas era tão alto que ele abaixou a cabeça, como se isso o ajudasse a evitar a bola de fogo crônica do avião.

Só que não houve nem luz nem calor. E o som vinha de cima...

Planando. O fardo de parafusos estava mesmo voando. Acima deles.

Blay despendeu um segundo olhando para cima, só para o caso de ter sido alvejado e a sua percepção da realidade ter sido afetada. Mas não. Aquela antiguidade de pulverização de plantações estava no céu, fazendo uma curva larga e seguindo na direção que, se é que conseguiria permanecer suspenso, levaria Qhuinn e Z. para o complexo da Irmandade.

Se tivessem sorte.

Caramba, aquele voo não seria fácil. Nada parecido com uma águia voando segura e decidida pelo céu noturno. Mais parecido com uma andorinha recém-saída do ninho com uma asa quebrada.

De um lado para o outro. Para cima e para baixo, inclinando-se de lado a lado.

Ao ponto em que parecia ter realizado o impossível saindo do chão... só para cair e queimar no meio da floresta...

Do nada, algo o atingiu na lateral do rosto, golpeando-o com tanta força que ele caiu de costas e quase perdeu as pistolas. Uma mão – fora uma mão que o espalmara como se ele fosse uma bola de basquete.

Em seguida, um peso absurdo o atingiu no peito, esticando-o no chão coberto de neve, fazendo-o exalar com tanta força que ele se perguntou se não deveria olhar ao redor para procurar o fígado.

– Porra, vai ficar abaixado ou não? – Rhage sibilou em seu ouvido. – Está tentando levar bala... de novo?

Enquanto a calmaria do tiroteio se estendia de segundos até completar um minuto, os redutores emergiram pela linha de árvores adiante, o quarteto de assassinos caminhando pela neve com as armadas suspensas e prontas.

– Não se mexa – sussurrou Rhage. – Dois podem brincar nesse jogo.

Blay fez seu melhor para não inspirar tão fundo quanto a queimação em seus pulmões lhe dizia que precisava. Também tentou não espirrar já que flocos soltos coçavam em seu nariz toda vez que ele respirava.

Espera.

Espera.

Espera.

John estava a um metro de distância, deitado numa posição contorcida que fez o coração de Blay se apertar...

O cara sutilmente levantou o polegar, como se estivesse lendo a mente de Blay.

Graças a Deus. Cacete.

Blay desviou o olhar sem mudar a posição estranha da cabeça, e depois discretamente trocou uma das pistolas por uma das suas adagas.

Enquanto um zumbido desengonçado começou a vibrar em sua cabeça, ele calculou os movimentos dos redutores, suas trajetórias, suas armas. Ele estava quase sem munição e não havia tempo para recarregar as pistolas. E ele sabia que tanto Rhage quanto John estavam na mesma condição.

As adagas que V. fizera à mão para todos eles eram o único recurso.

Mais perto... mais perto...

Quando os quatro assassinos finalmente estavam ao alcance, sua cronometragem foi perfeita. Assim como a dos outros.

Com um movimento coordenado perfeito, ele saltou e começou a apunhalar os dois mais próximos a ele. John e Rhage atacaram os outros...

Quase imediatamente, mais assassinos surgiram das árvores, mas, por algum motivo, talvez porque a Sociedade Redutora não estivesse armando seus alistados muito bem, não havia balas. O segundo round se passou pela neve com o tipo de armas que se esperaria ver numa briga de beco: tacos de baseball, pés-de-cabra, chaves de rodas e correntes.

Por ele, tudo bem.

Estava tão pilhado e furioso, que lhe faria bem sair na mão.


CAPÍTULO 19

Sentada na mesa de exames, com uma camisola frágil de papel cobrindo-a e os pés descalços pendurados da orla acolchoada, Layla sentiu como se estivesse cercada por instrumentos de tortura. E devia ser isso mesmo. Todo tipo de utensílios de aço inoxidável estava enfileirado na bancada da pia, com as embalagens plásticas transparentes indicando que estavam estéreis e prontos para serem usados.

Já fazia uma eternidade que estava na clínica de Havers. Ou, pelo menos, era o que parecia.

Em contraste com o trajeto apressado para atravessar o rio, quando o mordomo dirigira como se soubesse que a pressa era essencial, desde que ali chegara só acontecera um retardo após o outro. Desde a burocracia até a sala de espera, o aguardo pela enfermeira, a demora para que Havers apresentasse o resultado do seu exame de sangue.

Era o suficiente para enlouquecer alguém.

Do lado oposto ao que ela estava sentada, havia uma imagem emoldurada pendurada na parede, e há tempos ela havia memorizado suas pinceladas e cores, o buquê de flores pintadas em azuis e amarelos vibrantes. O nome embaixo dizia: van Gogh.

Àquela altura, ela nunca mais queria ver uma íris novamente.

Mudando de posição, fez uma careta. A enfermeira lhe entregara um objeto apropriado para o sangramento e ela ficou horrorizada ao perceber que logo precisaria de outro...

A porta se abriu com uma batida e seu instinto imediato foi correr, o que era ridículo. Era ali que precisava estar.

Só que tratava-se apenas da enfermeira que a levara até ali, tirara a amostra de sangue para o exame e seus sinais vitais, e tomara notas no computador.

– Sinto muito, houve outra emergência. Só quis certificá-la de que será a próxima.

– Obrigada – Layla se ouviu dizer.

A fêmea se aproximou e pôs uma mão em seu ombro.

– Como está se sentindo?

A gentileza a fez piscar rápido.

– Acho que vou precisar de outro... – ela apontou para o quadril.

A enfermeira assentiu e deu um leve apertão antes de seguir para a bancada e apanhar uma embalagem quadrada cor de pêssego.

– Temos mais aqui. Gostaria que eu a acompanhasse até o banheiro no final do corredor?

– Sim, por favor...

– Espere, não se levante ainda. Deixe-me pegar algo para que se cubra melhor.

Layla baixou o olhar para as mãos, aquelas que estavam enroscadas uma na outra e que não conseguiam ficar quietas.

– Obrigada.

– Aqui está – algo macio a envolveu. – Ok, agora vamos colocá-la de pé.

Escorregando para fora da mesa, ela se desequilibrou um pouco e a enfermeira estava logo ali, segurando-a pelo cotovelo para estabilizá-la.

– Vamos bem devagar.

E foi o que fizeram. No corredor, havia enfermeiras se apressando de quarto em quarto, e pessoas entrando e saindo das suas consultas, e outras equipes correndo... e Layla não conseguia acreditar que um dia fora rápida como eles. Para se afastarem do tráfego, ela e a gentil acompanhante ficaram próximas da parede, a fim de evitar serem atropeladas, mas os outros eram verdadeiramente gentis. Como se todos soubessem que ela estava sofrendo seriamente.

– Vou entrar com você – disse a enfermeira quando chegaram ao banheiro. – A sua pressão está muito baixa e fico preocupada que possa desmaiar, está bem?

Enquanto Layla assentia, elas entraram e trancaram a porta. A enfermeira retirou-lhe a coberta, e ela, desconcertada, afastou o papel do caminho.

Sentando-se, ela...

– Ah, santa Virgem Escriba.

– Psiu, está tudo bem, tudo bem – a enfermeira se inclinou e lhe estendeu o absorvente. – Vamos cuidar disso. Você está bem... aqui, não, você precisa me dar isso. Temos que encaminhar para o laboratório. Existe a possibilidade de ser usado para determinar o que está acontecendo e você há de querer ter essa informação quando tentar novamente.

Tentar novamente. Como se a perda já tivesse ocorrido.

A enfermeira colocou as luvas e pegou um saco plástico de um suporte. Ela cuidou de tudo com discrição e diligência, e Layla viu quando o nome que havia dado foi escrito do lado de fora do saco com uma caneta preta.

– Ah, querida, está tudo bem.

A enfermeira retirou as luvas, arrancou um pedaço de papel higiênico de um suporte na parede e se ajoelhou. Segurando o queixo de Layla com uma mão gentil, cuidadosamente enxugou as faces que se molharam de lágrimas.

– Sei bem pelo que está passando. Também perdi um – o rosto da enfermeira se tornou belo pela compaixão. – Tem certeza de que não podemos chamar o seu hellren?

Layla apenas balançou a cabeça.

– Bem, avise-me se mudar de ideia. Sei que é difícil vê-los tristes e preocupados, mas não acha que ele gostaria de estar aqui com você?

Ah, como contaria a Qhuinn? Ele parecera tão certo de tudo, como se já tivesse visto o futuro e encarado os olhos do filho deles. Aquilo seria um choque.

– Saberei se estive mesmo grávida? – murmurou Layla.

A enfermeira hesitou.

– O exame de sangue pode revelar isso, mas tudo depende de quanto tempo você está se sentindo assim.

Layla fitou as mãos novamente. As juntas estavam brancas.

– Preciso saber se estou tendo um aborto ou se isto é apenas um sangramento normal que acontece quando não se engravida. Isso é importante.

– Lamento muito, mas não sou eu quem pode lhe garantir isso.

– Mas você sabe, não sabe? – Layla levantou a cabeça para fitá-la nos olhos. – Não sabe?

– Repito, não sou eu quem pode lhe garantir, mas... com esse tanto de sangue?

– Eu estava grávida.

A enfermeira fez um movimento amplo com as mãos, os lábios se contraindo.

– Não conte a Havers que eu lhe disse isso, mas... sim, provavelmente. E você precisa saber, não há nada que você possa fazer para deter o processo. Não é culpa sua, e você não fez nada errado. É só que, às vezes, essas coisas simplesmente acontecem.

Layla deixou a cabeça pender.


– Obrigada por ser honesta comigo. E... na verdade, é isso o que acho que está acontecendo.

– Uma fêmea sabe. Bem, vamos levá-la de volta.

– Sim, muito obrigada.

Mas Layla teve dificuldade para suspender a calcinha ao se levantar. Quando ficou claro que não conseguia coordenar as mãos, a enfermeira se adiantou e a ajudou com facilidade invejável, e tudo foi tão vergonhoso e assustador. Ficar fraca e à mercê de outra pessoa para uma coisa tão simples...

– Você tem um sotaque maravilhoso – disse a enfermeira ao voltarem para o tráfego do corredor, retornando mais uma vez para a faixa mais lenta. – É tão Velho Mundo... minha avó aprovaria. Ela odeia o fato de o inglês ter se tornado a língua dominante aqui. Acredita que isso será a derrocada da nossa espécie.

A conversa a respeito de nada em especial ajudou, dando a Layla algo em que se concentrar em vez de pensar em quanto tempo aguentaria até ter de refazer aquele percurso... e se as coisas estavam piorando nesse aborto... e como seria quando fosse forçada a encarar Qhuinn para lhe dizer que fracassara...

De algum modo, chegaram à sala de exames.

– Não deve demorar muito mais. Prometo.

– Obrigada.

A enfermeira parou à porta e, ao se imobilizar, sombras cruzaram o fundo do seu olhar, como se ela estivesse revivendo partes de seu próprio passado. E no silêncio entre elas, um momento de comunicação ocorreu, e embora fosse raro ter algo em comum com uma fêmea da Terra, a conexão foi um alívio.

Ela se sentira tão sozinha naquilo tudo.

– Temos pessoas com quem você pode conversar – disse a fêmea. – Às vezes, conversar depois de tudo pode ajudar de verdade.

– Obrigada.

– Use esse botão branco se precisar de ajuda ou se sentir-se tonta, está bem? Não vou estar longe.

– Sim, farei isso, obrigada.

Enquanto a porta se fechava, lágrimas embaraçam sua visão, e mesmo sentindo uma dor profunda, a sensação esmagadora de perda era desproporcional à realidade. A gestação estava apenas bem no comecinho e, logicamente, não havia muito a perder.

No entanto, para ela, aquilo era o seu filho.

Aquilo era a morte do seu filho...

Houve uma batida suave à porta e depois uma voz masculina.

– Posso entrar?

Layla apertou os olhos e engoliu com força.

– Por favor.

O médico da raça era alto e distinto, com óculos de aro de tartaruga e uma gravata borboleta. Com um estetoscópio ao redor do pescoço e aquele longo jaleco branco, ele era a figura perfeita de um curador, calmo e competente.

Ele fechou a porta e sorriu de leve para ela.

– Como está se sentindo?

– Bem, obrigada.

Ele a fitou do outro lado da sala, como se estivesse avaliando seu estado clínico, embora não a tocasse ou usasse instrumento algum.

– Posso ser franco?

– Sim, por favor.

Ele assentiu e puxou um banquinho com rodinhas. Sentando-se, equilibrou o prontuário no colo e a encarou.

– Vejo que você não indicou o nome do seu hellren... nem do seu pai.

– É preciso?

O médico hesitou.

– Não tem nenhum parente, minha querida? – quando ela negou com a cabeça, os olhos dele registraram tristeza profunda. – Lamento muito pelas suas perdas. Então, não há ninguém que possa estar aqui com você? Ninguém?

Como ela simplesmente continuou ali, sem dizer nada, ele inspirou fundo.

– Muito bem...

– Mas posso pagar – ela deixou escapar de supetão. Ela não sabia muito bem onde arranjaria o dinheiro, mas...

– Ah, meu bem, não se preocupe com isso. Não preciso receber se não puder pagar – ele abriu o prontuário e afastou uma página. – Vejamos, vejo aqui que passou pelo seu cio.

Layla apenas concordou, como se isso fosse tudo o que pudesse fazer para não gritar: Qual é o resultado do exame?

– Bem, verifiquei o resultado do seu exame de sangue e ele mostrou algumas... coisas que eu não esperava. Portanto, se permitir, eu gostaria de coletar mais uma amostra e enviá-la para o laboratório para mais alguns exames. Com isso, espero ser capaz de entender o que está acontecendo... e também farei um ultrassom, se não se importar. É um exame padrão que me dará uma ideia de como as coisas estão progredindo.

– Como, por exemplo, quanto tempo sangrarei até que termine tudo? – disse com severidade.

O médico da raça esticou a mão para segurar a dela.

– Primeiro vamos ver como você está, certo?

Layla respirou fundo e concordou mais uma vez.

– Certo.

Havers foi até a porta e chamou a enfermeira. Quando a fêmea entrou no quarto, ela trouxe consigo o que parecia ser um computador de mesa montado num carrinho: havia um teclado, um monitor e umas varetas erguidas nas laterais do equipamento.

– Vou deixar que a enfermeira tire o sangue... as mãos dela são muito mais competentes que as minhas nesse quesito – ele sorriu de maneira gentil. – Nesse meio-tempo, vou verificar outro paciente. Volto em seguida.

A segunda picada de agulha foi muito melhor do que a primeira, pois ela sabia o que esperar, e ela foi deixada a sós por um curto tempo quando a enfermeira saiu para levar a amostra ao laboratório – o que quer que fosse ele e onde quer que estivesse localizado. Ambos voltaram em seguida.

– Pronta? – Havers perguntou.

Quando Layla fez que sim, ele e a enfermeira trocaram algumas palavras e o equipamento foi disposto perto de onde ela estava sentada. O médico, então, acomodou-se novamente no banquinho e puxou dois tipos de extensões das laterais da mesa de exame. Abrindo o que pareciam ser um par de estribos, ele fez um gesto para a enfermeira que reduziu a iluminação e se aproximou para apoiar uma mão no ombro de Layla.

– Deite-se, por favor – pediu Havers. – E desça até chegar ao fim da mesa. Você vai colocar os pés aqui depois de despir a roupa de baixo.

Enquanto ele indicava os dois estribos, os olhos de Layla se arregalaram. Ela não fazia ideia de que o exame seria...

– Nunca antes fez um exame interno? – perguntou Havers com hesitação. Quando ela começou a balançar a cabeça, ele assentiu. – Bem, isso não é incomum, ainda mais se esse foi o seu primeiro cio.

– Mas não posso tirar... – ela se interrompeu. – Estou sangrando.

– Cuidaremos disso – o médico parecia cem por cento confiante. – Vamos começar?

Layla fechou os olhos e se inclinou para trás para se deitar, o papel fino que cobria a superfície acolchoada rangendo debaixo do seu peso. Elevando os quadris e mudando um pouco de posição, ela se desfez do que a cobria.

– Cuido disso para você – disse a enfermeira baixinho.

Os joelhos de Layla se encontraram enquanto ela foi tateando com os pés à procura dos malditos estribos.

– Isso mesmo – o banquinho de rodinhas guinchou quando o médico se aproximou. – Mas vá mais para baixo.

Por uma fração de segundo, ela pensou que não conseguiria.

Curvando os braços ao redor do baixo ventre, apertou-os, como se pudesse, de algum modo, segurar o bebê dentro dela ao mesmo tempo em que tentava se controlar. Mas não havia nada que pudesse fazer, nenhuma conversa que pudesse ter com seu corpo para acalmá-lo e segurar o que fora implantado, nenhum papo amoroso que pudesse ter com o filho para que ele tentasse sobreviver, nenhum fluxo de palavras para acalmá-la do seu pânico absoluto.

Por um momento, ela desejou a vida enclausurada que um dia considerou tão sufocante. Lá no Santuário da Virgem Escriba, a natureza plácida da sua existência fora algo que ela dera como certo. De fato, desde que descera para a Terra e tentara encontrar um propósito aqui, fora atingida por um trauma atrás do outro.

Isso fez com que respeitasse os machos e as fêmeas de quem lhe disseram ser inferiores a ela.

Ali embaixo, todos pareciam estar à mercê de forças além do controle deles.

– Está pronta? – perguntou o médico.

Enquanto lágrimas corriam pelos cantos dos olhos, ela se concentrou no teto e agarrou a beira da mesa.

– Sim. Pode começar.


CAPÍTULO 20

Puta merda, Qhuinn estava completamente sem controle.

Quase nenhuma visibilidade. O avião balançando de um lado para o outro como se estivesse sofrendo delirium tremens. Motor ligando e desligando.

E ele nem podia dar uma olhada em Z. O vento estava forte demais para gritar, e não pretendia despregar os olhos do que quer que viesse pela frente – ou melhor dizendo, daquilo no que bateriam de frente – mesmo sem conseguir enxergar nada...

O que o fizera pensar que aquilo era uma boa ideia?

A única coisa que parecia estar funcionando era a bússola, portanto, ao menos ele conseguia se orientar quanto à localização da base: o complexo da Irmandade ficava ao norte, um tantinho ao leste, no topo de uma montanha circundada pelo mhis de V., a divisa defensiva invisível. Com isso, em relação ao direcionamento, ele estava certo, desde que o mostrador de N – S – L – O estivesse mais operacional do que, digamos, todo o resto daquele caixote.

Ao olhar para a direita, o vento incessante que passava pelo vidro parcialmente quebrado atingiu seu canal auditivo. Pela janela lateral, ele via... uma imensidão negra. O que ele interpretou como indício de eles terem passado pelo subúrbio e estarem sobrevoando as fazendas. Talvez já estivessem sobre as colinas que, no fim, transformariam-se na montanha...

Um som como o do escapamento de um carro explodindo chamou sua atenção negativamente, mas o que foi pior?

O silêncio repentino que se seguiu.

Nada de motor roncando. Apenas o vento soprando para dentro da cabine.

Ok, agora sim estavam em apuros.

Por um átimo, ele pensou em se desmaterializar. Era forte o bastante, estava consciente, mas jamais abandonaria Z...

Uma mão forte pousou em seu ombro, assustando-o tremendamente.

Z. se arrastara para a frente e, baseando-se em sua expressão, estava tendo dificuldades para se manter de pé. E não só pelos solavancos.

O Irmão falou, sua voz grossa superando todo aquele barulho.

– Hora de você ir embora.

– Nem a pau – berrou Qhuinn em resposta. Esticando o braço, tentou a ignição. Não faria mal tentar, não é mesmo?

– Não me obrigue a jogá-lo para fora.

– Tente.

– Qhuinn...

O motor voltou a pegar, o barulho se intensificando. Boas novas. A questão era que, se o maldito desligara uma vez, era bem possível que o fizesse novamente.

Qhuinn enfiou a mão na jaqueta. Ao apanhar o celular, pensou em todos que os dois estavam deixando para trás e passou o objeto para o Irmão.

Se existia uma hierarquia nessa coisa de se despedir, Z. estava no topo da lista. Ele tinha uma shellan e uma filha. Se alguém tinha de fazer uma ligação, esse alguém era ele.

– Para que isso? – Zsadist perguntou sombrio.

– Descubra você mesmo.

– E você pode ir...

– Não vou a parte alguma. Vou pilotar esta armadilha até batermos em alguma coisa.

Houve certa discussão depois disso, mas ele não sairia do assento do piloto, e por mais forte que o Irmão fosse em circunstâncias normais, Z. não estava em condições de suspender nada além de uma fatia de pão. E a conversa não durou muito. Depois que a discussão terminou, Z. desapareceu, sem dúvida indo para os fundos para fazer o último contato com as pessoas amadas.

Decisão inteligente.

Deixado a sós com seus equipamentos, Qhuinn fechou os olhos e lançou uma oração para quem pudesse ouvir. E visualizou o rosto de Blay...

– Pegue.

Ele abriu os olhos. O celular estava bem na sua frente, firme na mão de Z. E o mapa de GPS estava sendo mostrado, as pequenas setas piscantes indicando onde exatamente eles estavam.

– Mais uns cinco quilômetros – exclamou o Irmão acima do barulho ensurdecedor. – É tudo de que precisamos...

Houve um estouro, um assobio e mais uma rodada daquele silêncio terrível. Praguejando, Qhuinn concentrou-se naquela tela sempre desejando que as coisas voltassem a funcionar. Mais para o norte, obviamente, porém, mais para o leste. Muito mais. Seus cálculos estavam certos, mas não exatos.

Sem o telefone? Estariam fritos.

Bem, isso e toda aquela situação do motor.

Verificando a localização precisa, ele fez alguns cálculos mentalmente e virou para a direita, tentando chegar àquela indicação no mapa que levava diretamente para a montanha. Em seguida, seria a vez de tentar religar o motor.

Estavam perdendo altitude. Não espiralando, situação na qual haveria um close-up no altímetro e a coisa estaria acelerada do modo como você desejaria que as hélices estivessem. Mas lentamente, inexoravelmente indo para baixo... e se perdessem a aceleração, o que era o que aquela máquina de costura insegura debaixo do teto seria capaz de prover, acabariam caindo como uma pedra.

Tentando a ignição repetidas vezes, murmurou:

– Vamos, vamos, vamos...

Era difícil tentar manter o nariz empinado com apenas uma mão; e bem quando ele ia passar a devotar toda sua atenção ao manche, o braço de Z. se esticou, afastou a mão dele, e assumiu o controle sobre o botão da ignição.

Por um segundo, Qhuinn vislumbrou a marca de escravo para fora dos punhos da jaqueta do Irmão, mas logo voltou a se concentrar.

Deus, seus ombros estavam em chamas por puxar o manche para trás.

E pensar que ele estava morrendo de vontade de ouvir aquela barulheira do...

De uma só vez, o motor engasgou de volta à vida, e a mudança de altitude foi imediata. No instante em que os plugues e pistões começaram a rugir novamente, os números começaram a subir.

Mantendo a alavanca puxada, verificou o nível de combustível. Estava no vazio. Talvez estivessem apenas sem combustível, e não se tratasse de um problema mecânico?

Uma tolice, certo?

– Só mais um pouquinho, meu bem... um pouco mais, vamos lá, querida, você consegue...

Enquanto um fluxo interminável de encorajamento escapava dos seus lábios, as palavras impotentes eram abafadas pela única coisa que importava – mas, espere, como se o Cessna falasse inglês...!

Caramba, parecia que aquilo duraria uma eternidade, a esperança e as orações, seu cérebro num jogo de pingue-pongue entre os melhores e os piores cenários enquanto quilômetros eram atravessados num ritmo agonizantemente lento.

– Diga que telefonou para as suas fêmeas – berrou Qhuinn.

– Diga que consegue nos manter acima do solo.

– Não vou mentir.

– Leve-nos mais para o leste.

– O quê?

– Leste! Vá para o leste!

Z. aumentou o zoom do mapa e começou a correr o dedo em uma direção, de leste a oeste.

– Você vai precisar aterrissar neste ponto... atrás da mansão!

Qhuinn deduziu que deveria tomar como um bom sinal que o cara estava fazendo planos de aterrissagem que não envolviam bolas de fogo. E a sugestão era boa. Se conseguissem se orientar ao longo da mansão, do lado oposto à piscina, eles poderiam acabar com algumas árvores frutíferas... porém, teriam mais ou menos o mesmo tanto de pista que tiveram para decolar.

Muito melhor do que bater no muro que cercava a propriedade...

Daquela vez, o motor não emitiu nenhum aviso. Simplesmente morreu, como se estivesse cansado de brincar de pega-pega e houvesse decidido tirar uma folga permanente.

Ao menos já estavam próximos da aterrissagem.

Uma chance. Era tudo de que dispunham.

Uma única tentativa de aterrissar que, desde que ele conseguisse levá-los até as cercanias da propriedade, penetrar o mhis, e conseguir não colidir na mansão, no ginásio, nas construções, nos portões nem em nada que fosse real ou algum tipo de propriedade... resultaria nele entregando o orgulhoso pai e amoroso hellren, e soberbo lutador... de volta aos braços da família.

Mas não era só em Z. que ele estava pensando.

O Primale cuidaria da saúde e do bem-estar de Layla. Blay tinha os pais amorosos e Sax. John tinha a sua Xhex.

Todos eles ficariam bem.

Qhuinn se virou.

– Sente-se! Lá atrás! Sente-se e prenda o cinto de segurança...

O Irmão abriu a boca e Qhuinn fez o impensável. Cobriu os lábios do macho com a mão.

– Sente-se de uma vez e se amarre! Chegamos até aqui... não vamos estragar tudo!

E pegou o celular de volta.

– Vá! Deixe comigo!

Os olhos de Z. se conectaram aos seus e, por um breve segundo, Qhuinn se perguntou se seria lançado para fora da cabine. Mas então, o milagre aconteceu: um instante de conexão se estendeu entre eles, uma corrente de elos tão grossos quanto coxas ligando-os um ao outro.


Z. levantou o indicador e apontou direto no rosto de Qhuinn. Depois de acenar uma vez com a cabeça, desapareceu na parte traseira.

Qhuinn voltou a se concentrar.

A navegação os mantinha no alto, e graças às orientações de Z., aquela guinada extra à direita os colocara na direção certa. De acordo com o GPS, estavam se aproximando da junção de estradas que dava a volta na base da montanha, centímetro a centímetro. Centímetro... a centímetro...

Ele estava bem certo de que localizavam-se acima da propriedade agora.

Enquanto o avião abaixava mais, ele se preparou, continuando a puxar o manche com força até que os ombros cravassem no assento atrás dele. Não havia trem de pouso para puxar. Ele esteve abaixado o tempo todo...

Um assobio repentino penetrou na cabine, e isso, junto a uma abrupta mudança de angulação, anunciou que a gravidade começara a vencer a batalha, exigindo a construção de fibra de vidro e metal e tendo um par de vidas como seu prêmio.

Eles não conseguiriam... era cedo demais...

Uma vibração selvagem se seguiu e, por um momento, ele se perguntou se não tinham atingido o chão sem que ele percebesse. Copas de árvores, talvez? Não. Algo...

O mhis?

O amortecedor repentino parecia se estender para cima, e, ora essa, o avião reagiu de modo diferente, o bico se nivelando sem nenhum esforço da parte de Qhuinn ou ajuda do peso morto que era aquele motor. Até mesmo o sacolejo de um lado para o outro cessou.

Aparentemente, a defesa invisível de V. não só mantinha afastados humanos e redutores, como também sustentava um Cessna no ar.

Só que tinham um problema. Aquela elevação vital parecia não acabar.

Do modo como iam as coisas, era como se ele fosse flutuar ali para sempre, ultrapassando a única pista de aterrissagem que tinham...

Abruptamente, o barulho retornou, e ele verificou o altímetro. Tinham descido cerca de sete metros, e ele teve que se perguntar se tinham penetrado a barreira.

Luzes. Ah, bom Jesus amado. Luzes.

Do lado de fora da janela, abaixo, ele via o brilho da mansão e o pátio. Estava distante demais para distinguir os detalhes, mas só podia ser – sim, a pequena ramificação só podia ser o ginásio.

Instantaneamente, seu cérebro dimensionou e reorientou tudo.

Merda. O ângulo estava errado. Se continuasse assim, aterrissaria de frente para a propriedade e não ao longo dela. E a porcaria era que não tinha altitude suficiente para executar um círculo grande para apontá-lo para a direção certa.

Quando não se tem opções, a única alternativa é fazer dar certo.

Seu maior problema era deixar passar o gramado. Só havia uma clareira na montanha. O resto? Árvores que os devorariam.

Ele precisava descer mais. Imediatamente.

– Segure-se!

Mesmo sendo um contrassenso, ele arremessou o manche para frente, e os direcionou para o chão. Houve uma mudança de velocidade imediata, e ele rezou que se recuperasse disso quando chegasse à zona de impacto. E merda, a intensa trepidação ficou ainda pior, ao ponto de ele ficar tonto, e os braços doerem por segurar firme o manche.

Mais rápido. Mais próximo. Mais rápido. Mais barulhento. Mais próximo.

E, então, chegou a hora. A casa e os jardins estavam logo à frente, indo ao encontro deles numa velocidade de matar.

Ele puxou com força, e a nova velocidade os fez levantar um pouco. Por cima da casa...

– Prepare-se! – exclamou a plenos pulmões.

Enquanto a câmera lenta assumia o comando, tudo se ampliou: a propriedade, os segundos, a dor nos olhos enquanto ele se esforçava para olhar adiante, a sensação do seu corpo sendo empurrado para trás no assento...

Merda. Ele estava sem o cinto de segurança.

Nem se preocupara com isso. Coisas demais em que pensar.

Idiota...

Nesse mesmo instante, fizeram contato com algo. Com força. O avião pulou, bateu em outra coisa, ricocheteou e pulou novamente. Nesse meio-tempo, sua cabeça bateu no painel acima dele, e seu traseiro ficou estatelado no assento, e seu...

Deixa para um mix de dores.

A fase seguinte da aterrissagem dos infernos foi um misto de desliza-chacoalha-rola que quase o lançou para fora da cabine. Aquilo era o chão – só podia ser – e, maldição, como iam rápido. As luzes corriam pelas janelas, tudo parecendo o Studio 54* até ele ficar praticamente cego. E por causa do lado em que o estroboscópio estava, ele deduziu que estavam no jardim – mas estavam ficando sem espaço.

Segurando o manche, ele os fez dar um cavalo de pau, na esperança que as mesmas leis da física que se aplicavam a carros desgovernados funcionassem ali: sem freios, espaço limitado e o único modo de diminuir a velocidade era mudar o coeficiente aerodinâmico.

A força centrífuga o fez bater na lateral da cabine e a neve bombardeou seu rosto; depois, algo afiado.

Merda, eles não estavam desacelerando em nada.

E aquele muro de proteção de seis metros de altura e 45 centímetros de espessura estava se aproximando com rapidez.

E por falar em paradas abruptas...

* Lendária discoteca em Manhattan que funcionou entre 1977 e 1986. (N.T.)


CAPÍTULO 21

Blay se desmaterializou para a mansão no instante em que o último assassino naquela clareira foi enviado de volta a Ômega. Como Qhuinn ainda estava no ar com Z., não havia razão para perder mais tempo à espera de mais um esquadrão.

Mesmo por que não havia nada que alguém pudesse fazer para ajudar aqueles dois.

Reaparecendo no pátio, ele...

Diretamente acima dele, sem produzir som algum, aquele maldito avião bloqueava a luz da lua.

Puta merda, eles conseguiram e, caramba, estavam tão próximos que ele pensou que, caso se esticasse, conseguiria tocar a fuselagem do Cessna.

O silêncio sepulcral, porém, não era um bom sinal...

O primeiro impacto veio do alto das cercas vivas que delimitavam o jardim. O avião saltou das pontas, pegou uma corrente de ar, depois sumiu de vista.

Blay se desmaterializou ao redor da varanda bem a tempo de ver o Cessna bater na neve, caindo como um homem obeso mergulhando de barriga numa piscina, criando grandes ondas brancas para todos os lados. E então a aeronave se transformou no maior cortador de grama jamais visto pelo homem, a combinação de seu corpo de aço e a velocidade acelerada demais, destruindo fileiras de árvores frutíferas e de moitas de flores que foram protegidas do inverno, e caramba, até mesmo a fileira de bebedouros para os pássaros.

Mas ao inferno com tudo isso. Ele pouco se importava se tivessem de replantar o lugar inteiro, desde que o avião parasse... antes do muro de contenção.

Por uma fração de segundo, ele chegou a pensar em se materializar diante da coisa e detê-la com as mãos, mas isso seria loucura. Se o Cessna não parecia se incomodar com as estátuas de mármore que ele agora destruía, pouco se importaria com um macho vivo e respirando diante dele...

Por nenhum motivo aparente, todo aquele descontrole começou a girar, a asa encarando Blay como se Qhuinn estivesse tentando virar. A derrapagem foi o movimento perfeito. Nem precisava ser dito que não havia freios, e desde que o espiral se sustentasse, eles teriam mais área para perder velocidade.

Merda, eles estavam mesmo perto demais do muro de contenção...

Centelhas de luz iluminaram a noite, além do grito de metal contra pedra que anunciava que “o perto demais do muro” fora substituído por “bem contra ele”, mas, graças à manobra de Qhuinn, eles se colocaram numa posição paralela em vez de irem de frente.

Blay começou a correr na direção do show de luzes, e outros o acompanharam quando ele assim o fez, um verdadeiro bloco de pessoas em fila. Não havia como deter aquilo, mas eles bem podiam estar a postos quando as coisas...

Tum!

... terminassem.

O avião finalmente encontrou um objeto inanimado que não conseguiu superar: o barracão usado para guardar alguns dos equipamentos e produtos de jardinagem bem no fim do jardim.

Parada completa.

E tudo estava silencioso demais. Tudo o que Blay ouviu foi o suissssh dos coturnos trafegando pela neve, e sua respiração arfando no ar frio, e a pressa dos outros atrás de si.

Ele foi o primeiro a chegar à aeronave e se dirigiu à porta que, como por milagre, estava livre e não imprensada ao muro de concreto. Abrindo-a e sacando a lanterna de bolso, ele não sabia o que esperava encontrar. Fumaça? Gases? Sangue e partes de corpos?

Zsadist estava sentado rígido no assento de frente para os fundos, com o corpo amarrado, ambas as mãos travadas nos apoios de braços. O Irmão encarava à frente, sem piscar.

– Paramos de nos mexer? – perguntou rouco.

Ok, ao que tudo levava a crer, até mesmo um Irmão podia ficar em estado de choque.

– Sim, pararam – Blay não queria ser rude, mas agora que estava certo de que um deles sobrevivera, ele queria ver se Qhuinn...

O macho cambaleou para fora da cabine. No facho de luz da lanterna de Blay, ele parecia ter estado num brinquedo radical de um parque de diversões, com o cabelo todo para trás da testa queimada pela ação do vento, os olhos, um verde e outro azul, arregalados num rosto completamente pálido, cada membro do corpo trêmulo.

– Você está bem? – exclamou ele, como se os ouvidos estivessem surdos depois de expostos a muito barulho. – Z., diga alguma coisa...

– Estou aqui – respondeu o Irmão, fazendo uma careta de dor ao soltar uma das garras dos apoios de braço. – Estou bem, filho... Estou bem.

Qhuinn se agarrou ao que estava saliente e foi então que seus joelhos se dobraram. Ele apenas caiu entre as mãos estendidas, a voz entrecortada a ponto de ele mal conseguir falar.

– Eu só... queria que você... estivesse bem... Só queria... que você... ficasse bem, oh Deus... para a sua filha... Só queria que você ficasse ok...

Zsadist, o Irmão que nunca tocava em ninguém, esticou-se e pousou uma mão livre na cabeça inclinada de Qhuinn. Erguendo os olhos, ele disse suavemente:

– Não deixe ninguém entrar aqui. Dê um minuto a ele, ok?

Blay assentiu e se virou, bloqueando a entrada com o corpo.

– Eles estão bem, eles estão bem...

Enquanto falava com a multidão, um bom número de pessoas fitava-no como se ele fosse um enviado de Deus, mas Bella não estava entre eles. Ela estava...

– Zsadist! Zsaaaaadist!

O grito se transportou por todo o caminho do gramado quando, do alto da varanda, uma figura solitária partiu em disparada em meio à neve.

Muitas pessoas responderam a Bella, mas ele duvidava de que ela tivesse ouvido qualquer coisa.

– Zsaaaadist!

Quando ela escorregou já perto dele, Blay imediatamente se esticou para pegá-la, preocupado que ela acabasse se chocando com a lateral do avião. Ah, Deus, ele jamais se esqueceria da expressão no rosto dela: era mais terrível do que qualquer atrocidade que já vira, como se ela estivesse sendo esfolada viva, como se os braços e pernas estivessem amarrados, e a pele estivesse sendo arrancada de seu corpo.

Qhuinn saiu do avião.

– Ele está bem, ele está bem, prometo... Ele está bem.

Bella se imobilizou, como se aquela fosse a última coisa que ela esperasse ouvir.

– Minha nalla, entre – disse Z. no mesmo tom baixo que usara com Qhuinn. – Entre aqui.

A fêmea chegou a olhar para Blay como se precisasse de uma garantia para saber se aquilo que ouvia estava correto. Em resposta, ele simplesmente a levou pelo cotovelo e a ajudou a passar pela portinhola.

Depois, mais uma vez virou de frente para bloquear a passagem. Enquanto os sons da fêmea chorando livremente em sinal de alívio emanavam, ele viu Qhuinn passar as mãos sobre os olhos como se o macho estivesse se livrando de lágrimas.

– Caramba, filho, eu não sabia que você sabia pilotar – alguém disse.

Enquanto Qhuinn levantava a cabeça, aparentemente olhando de relance para o cenário, Blay fez o mesmo. Pense numa cena apocalíptica: havia um rastro em toda a extensão pela qual o avião passara, como se o dedo de Deus tivesse feito uma linha em todo o jardim.

– Na verdade... eu não sei – murmurou Qhuinn.

V. levou o cigarro aos lábios e estendeu a palma.

– Você trouxe o meu Irmão de volta em um só pedaço. Que se foda o resto.

– Verdade...

– Sim, graças a Deus...

– Diabos, é isso aí...

– Amém...

Um a um, a Irmandade se adiantou, cada um deles erguendo a mão da adaga. A procissão levou um tempo, mas ninguém parecia se importar com o frio.

Blay, por certo, não o sentia. A ponto de ficar paranoico...

Colocando a mão dentro da jaqueta, encontrou o tórax e se deu um beliscão bem forte.

Ai.

Fechando os olhos, fez uma prece silenciosa para que aquilo fosse mesmo verdade... e não o horror que poderia ter sido.

Toda aquela atenção estava deixando Qhuinn nervoso.

E o seu pequeno voo nem fora uma experiência tão zen assim. A queimadura no rosto por causa de todo aquele vento, as dores nos ombros e nas costas, as pernas trêmulas... Ele sentia como se ainda estivesse lá em cima, ainda rezando para nada em que acreditava existir, parado e para sempre no limiar.

Da morte.

Além disso, estava tremendamente envergonhado. Deixar-se abater daquele jeito diante de Z.? Ora essa... Que covarde.

– Importam-se se eu der uma olhada? – a doutora Jane disse ao se aproximar da multidão.

Sim, uma boa ideia. O objetivo de tudo aquilo foi Z. estar ferido tão gravemente que não conseguia se desmaterializar.

– Qhuinn? – disse a fêmea.

– Como disse? – ah, ele estava atrapalhando. – Ok, deixe-me sair da frente...

– Não, não o Zsadist. Você.

– Hum?

– Você está sangrando.

– Estou?

A médica virou a mão dele.

– Vê? – e, como era de se esperar, escorriam gotas vermelhas de suas palmas. – Você acabou de esfregar o rosto. Está com um corte feio na cabeça.

– Ah, ok – talvez por isso se sentisse tão aéreo? – E quanto a Z.?

– Manny já está lá dentro.

Hum. Devia ter perdido aquela parte.

– Quer dar uma olhada em mim aqui?

Ela deu uma risada de leve.

– Que tal levarmos você de volta para a casa? Se conseguir andar.

– Eu cuido dele...

– Pode deixar que eu levo...

– Eu levo...

– Já peguei...

O coro de voluntários foi uma surpresa, bem como todos os braços solícitos que apareceram de todos os lados: ele, literalmente, foi envolvido por braços fortes de lutadores, e todos quase a carregá-lo do lugar como se estivesse fazendo stage diving num show de rock.

Ele olhou para trás, esperando ver Blay, rezando para se deparar com os olhos dele, mesmo isso sendo loucura...

Mas Blay estava lá.

O lindo olhar azul estava logo ali, tão firme e certo ao sustentar o seu que ele quase desmoronou novamente. E ele retirou forças daquele olhar, assim como o fizera na época em que passavam tanto tempo juntos. A verdade era que ele desejava que fosse Blay a levá-lo de volta à mansão, mas ninguém se arriscava a dizer nada à Irmandade quando ela aparecia em massa assim. Além disso, sem dúvida o cara pensaria que estariam próximos demais.

Qhuinn se concentrou no caminho à frente. Puta... merda...

O jardim fora completamente dizimado, metade da cerca viva de três metros de altura próxima à casa fora cortada, todos os tipos de árvore arrancados, arbustos aparados, os restos da colisão espalhados por todos os lados como estilhaços de uma metralha.

Caramba, muito do entulho se parecia com partes de avião.

Ah, olhe ali um painel de aço.

– Esperem – disse, libertando-se. Inclinando-se, pegou um fragmento afiado do chão no lugar em que derretera a neve. Ele podia jurar que a coisa ainda estava quente. – Eu sinto muito mesmo... disse para ninguém em especial.

A voz do Rei rebumbou diante dele:

– Por manter o meu Irmão vivo?

Qhuinn levantou a cabeça. Wrath saíra da biblioteca com George de um lado e a rainha do outro. O macho parecia tão grande e forte quanto a mansão atrás dele: mesmo cego, ele se parecia com um super-herói com aqueles óculos escuros encobrindo os olhos.

– Eu destruí o seu jardim – murmurou Qhuinn ao se aproximar do macho real. – Quero dizer... mudei o paisagismo de um modo muito ruim.

– Isso dará a Fritz algo para fazer na primavera. Você sabe o quanto ele adora arrancar ervas daninhas.

– Esse é o último dos seus problemas. Tenho quase certeza de que vai precisar de uma escavadeira.

Wrath se adiantou, encontrando-o no meio da varanda.

– Esta é a segunda vez, filho.

– Que eu arruinei algo mecânico nas últimas 24 horas? É, eu sei... Da próxima vez, é provável que eu destrua um navio de guerra.

As sobrancelhas negras se abaixaram.

– Não é disso que estou falando.

Ok, aquilo tinha de terminar logo. Ele realmente detestava ter as atenções voltadas para si.

Deliberadamente ignorando a afirmação do Rei, ele disse:

– Bem, a boa notícia é, meu Rei, que não estou pensando numa terceira rodada. Por isso, acho que vamos estar seguros daqui por diante.

Houve um murmúrio coletivo de concordância.

– Posso levá-lo para a clínica agora? – a doutora Jane interrompeu.

Wrath sorriu, as presas refletindo o luar.

– Faça isso.

Graças a Deus... a noite chegava ao fim.

– Onde está Layla? – a médica perguntou quando entraram no calor da biblioteca. – Acho que você precisa se alimentar.

Merda.

Enquanto a legião em roupas de couro atrás deles concordava com a ideia, os olhos de Qhuinn reviraram. Uma crise por noite era mais do que o suficiente. A última coisa na qual ele estava interessado era explicar por que, exatamente, a Escolhida não poderia ser usada como fonte de sangue.

– Você parece tonto – alguém comentou.

– Acho que ele vai...

E essa foi a última coisa que ele ouviu por um tempo.

 


                                   CONTINUA