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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AMANTE FINALMENTE
AMANTE FINALMENTE

 

 

 

                                                            Irmandade da "Adaga Negra"                                                                 

 

 

 

 

CAPÍTULO 69

A vida inteira de Qhuinn sofreu nova guinada cerca de quinze horas após ele perder a virgindade. Mais tarde, ele decidiria se aquilo de que as coisas aconteciam em trios era verdade mesmo. Quando a coisa ocorria, porém, tudo o que ele queria era sobreviver...

Em algum momento durante as horas do dia, ele e Blay acordaram, se separaram e seguiram seus caminhos.

Qhuinn teria preferido se eles voltassem para a casa principal juntos, mas ele tinha de parar para ver Luchas, e Blay estava ansioso para voltar para o quarto e tomar banho. E, de certa forma, isso não fora ruim, porque assim Qhuinn teve a oportunidade de também dar uma olhada em Layla.

No que se referia ao irmão e à Escolhida, tudo estava tranquilo. Os dois estiveram adormecidos em suas respectivas camas; a cor do rosto de Luchas estava melhor e, pela primeira vez, quando Qhuinn foi ao quarto de Layla, ele sentiu a gravidez. Os níveis de hormônio o atingiram assim que entrou, e ele ficou imóvel de tão forte que foi a sensação.

O que fora muito bom mesmo.

O que ele não gostara muito foi de passar diante da porta de Blay e querer bater, entrar e voltar a dormir.

Em vez disso, acabara dentro de suas quatro paredes completamente sozinho.

Na cama. No escuro. Indo e voltando da terra do REM pelas duas horas que antecediam a Primeira Refeição.

Portanto, quando a porta foi escancarada e uma fileira de homens altos em mantos negros entrou, seu passado e presente colidiram, os dois se tornando intercambiáveis – a tal ponto que o ataque da Guarda de Honra pulou para fora do túmulo da sua memória e aterrissou bem em seu quarto na mansão.

Sem saber se estava sonhando ou se aquilo era real, seu primeiro pensamento foi de alegria por Blay não estar com ele. O cara já o encontrara quase morto no acostamento da estrada uma vez. Ninguém precisava de um replay daquilo.

Seu segundo pensamento foi que abateria quantos pudesse antes que eles, finalmente, acabassem com ele.

Com um grito de guerra, Qhuinn explodiu para fora da cama, o corpo nu passando ao ataque com tal força que acabou derrubando os dois primeiros. Atacando com as pernas, ele chutou e socou tudo que dele se aproximava, e houve uma pequena satisfação quando seus alvos praguejaram e se afastaram do seu alcance...

Algo prendeu seu peito por trás, e o girou com tal força que seus pés se ergueram do chão e formaram um arco e...

Olá, parede.

O impacto valeu por três pontos em sua brilhante ideia de revide de luta, o rosto, o tronco, os quadris se chocando na parede com tanta força que, sem dúvida, ele deixara uma reprodução em 3D do seu corpo, ao estilo dos desenhos animados.

Instantaneamente, ele empurrou a superfície plana, preparado para se...

O braço que o empurrou pela nuca o prendia de tal forma que parecia ser de aço. Não havia, literalmente, espaço para se mexer, e mesmo assim ele tentou, pois seu corpo se recusava a ser dominado.

– Calma aí, sua besta. Apenas fique parado antes que eu seja forçado a machucá-lo.

O som da voz de Vishous não fazia sentido algum.

E, de repente, pelo canto do olho, ele percebeu que um círculo fora formado ao seu redor, todos aqueles mantos negros o cercando, assim como aquela chave de braço no seu pescoço.

Mas eles não estavam atacando.

– Apenas relaxe – disse V. em sua orelha. – Respire comigo, vamos lá... Apenas respire. Ninguém vai machucar você.

A fala ajudou, aquela voz calma, controlada atingindo sua reação de “lute ou fuja” e aplacando o rugido do seu pânico.

Logo em seguida, Qhuinn começou a tremer, os músculos processando toda a adrenalina.

– Vishous?

– Sim, sou eu, amigo. Você precisa continuar respirando.

– Quem... mais?

– Rhage.

– Butch.

– Phury.

– Zsadist.

– Tohr.

As vozes combinavam com os nomes, aqueles tons graves, sérios, sem sinais de bobeira, penetrando em seu cérebro, ajudando-o a perceber a realidade que não envolvia o passado.

E, então, o último foi o responsável por ele descer o derradeiro degrau do vórtice mental, regressando para o que era real.

– Wrath.

Qhuinn tentou virar a cabeça na direção do Rei, mas seu impulso não o levou a nada.

– Vou soltar você, ok, amigo? – disse V. – Vai se controlar?

– Sim.

– No três, então. Um. Dois. Três.

Vishous deu um salto para trás e parou numa pose de combate: braços erguidos, punhos prontos, posição equilibrada. Mesmo com o rosto do Irmão coberto pelo capuz, Qhuinn bem podia visualizar a expressão dele: sem dúvida se Qhuinn fizesse qualquer movimento, ele seria reapresentado à parede – e aquela amizade já fora travada, muito obrigado.

Ele se sentia uns quinze centímetros mais fino.

Com uma imprecação, Qhuinn se virou devagar, mantendo as mãos onde a Irmandade pudesse vê-lo.

– Estão me expulsando da mansão?

Ele não fazia ideia do que tinha feito, mas com seu histórico de irritar as pessoas, voluntariamente ou não? Podia ser qualquer coisa.

– Não, seu idiota – V. respondeu com uma risada.

Encarando a fila de silhuetas solenes cobertas por capuzes, ele procurou entender quem era quem, travando contato, lembrando-se de que aqueles eram os caras com quem ele lutava lado a lado, que sempre protegeram suas costas, que eles trabalhavam juntos.

Por isso, que diabos era aquilo...

A terceira figura a partir da esquerda levantou o braço, um dedo longo estendido e apontando para o meio do peito de Qhuinn.

Na mesma hora, Qhuinn se viu novamente na carcaça daquele Cessna, com o drama do voo concluído, Zsadist vivo e bem, o objetivo alcançado... aquele macho o destacando como fazia agora.

No Antigo Idioma, Wrath disse:

– Ser-lhe-á feita uma pergunta. E ela será feita apenas uma vez. A sua resposta será testada desde este instante até o resto de sua linhagem. Está pronto para responder a pergunta?

O coração de Qhuinn começou a bater forte. Os olhos voltando-se ao redor, ele não podia acreditar que aquilo...

A não ser... mas como era possível? Considerando-se a sua linhagem e o seu defeito, não seria legal alguém como ele...

Do nada, a imagem de Saxton trabalhando na biblioteca todas aquelas noites o acometeu.

Puta... merda.

Tantas perguntas: por que ele? Por que agora? E quanto a John Matthew, cujo peito, magicamente, já carregava a marca da Irmandade?

Enquanto a sua mente alucinava, sabia que tinha que responder, mas, cacete, ele não podia...

Com uma clareza absurda, ele pensou na filha, visualizando a imagem que vira na porta do Fade.

Qhuinn olhou para cada um dos capuzes de novo. Quanta ironia, pensou. Quase dois anos antes, uma Guarda de Honra em mantos negros fora enviada para deixar bem claro que a sua família não o queria. E agora, ali estavam aqueles machos, reunidos para levá-lo a um tipo diferente de família – que era tão ou mais forte que aquela de sangue.

– Pode crer, manda aí – foi a sua resposta.


A primeira pista de Blay de que algo grande estava acontecendo foram as passadas diante da porta do seu quarto: ele estava na frente do espelho, barbeando-se, quando as ouviu se aproximando pelo corredor das estátuas, muitas delas, pesadas e repetitivas.

Só podia ser a Irmandade.

Depois, enquanto ele se inclinava sobre a pia para retirar o resto do creme de barbear, algo pesado caiu no chão do quarto ao lado – ou foi lançado contra a parede. Parecia muito ter vindo do quarto de Qhuinn.

Desligando a torneira, ele pegou uma toalha e envolveu os quadris enquanto saía da suíte e seguia para...

Blay parou de pronto. O quarto de Qhuinn estava escuro, mas a luz do corredor caía sobre um círculo de mantos negros que cercava o cara. E ele estava sendo empurrado de cara contra a parede.

O único pensamento de Blay foi que uma segunda Guarda de Honra viera atrás do lutador – mesmo ele sabendo muito bem que era a Irmandade debaixo daqueles mantos. Só podia ser, certo?

A voz de Vishous resolveu essa questão, pois as palavras do macho se fizeram ouvir de modo claro e lento.

Em seguida, Qhuinn foi solto. Quando ele se virou, estava branco como um lençol, tremendo de pé nu no centro do círculo das figuras encapuzadas.

Wrath quebrou o silêncio, a voz grave de barítono do Rei preenchendo a escuridão:

– Ser-lhe-á feita uma pergunta. E ela será feita apenas uma vez. A sua resposta será testada desde este instante até o resto de sua linhagem. Está pronto para responder a pergunta?

Blay levou a mão da adaga para a boca quando ela se abriu. Aquilo não podia ser... podia? Eles o estavam iniciando na Irmandade da Adaga Negra?

Instantaneamente, ele juntou as peças: Saxton trabalhando duro todos aqueles meses; os atos de heroísmo de Qhuinn; John sendo informando de que o cara já não seria mais o seu ahstrux nohtrum.

Wrath devia ter alterado as Leis Antigas.

Puta que o pariu...

– Pode crer, manda aí...

Blay teve que sorrir quando recuou e voltou para o quarto. Só mesmo Qhuinn para ser tão direto.

Quando a porta se fechou, ele ficou grudado nela, esperando. Minutos depois, aquelas passadas pesadas retornaram, transitando diante do seu quarto, descendo para o vestíbulo, desaparecendo... mudando a história para sempre.

Em toda a existência da Irmandade, nunca houve ninguém iniciado que não fosse filho de um Irmão ou uma fêmea de sangue de Escolhida. Qhuinn, tecnicamente, era um aristocrata – mesmo tendo sido banido pela família, e com o seu “defeito”, a sua linhagem era aquilo que era. Mas não tinha as credenciais de DNA, ou o nome de guerreiro, que os outros tinham.

Contudo, desde que sobrevivesse à cerimônia, ele voltaria à mansão como um macho entre seus pares, para nunca mais ser desertado.

Era bom que Luchas estivesse vivo para presenciar aquilo. Seria muito importante.

Blay se vestiu, e quando verificou o celular, viu que havia uma mensagem para o grupo todo enviada por Tohr, informando que ninguém sairia a campo naquela noite e que iriam receber um par de novos hóspedes: os dois Sombras iriam morar na mansão.

Beleza. Em face à inquietação da aristocracia e ao atentado contra Wrath? Nada melhor do que ter aqueles dois assassinos debaixo do teto. Junto aos modos afetados de Lassiter, isso significava que o Rei dispunha de um trio com habilidades extras para protegê-lo.

Com um pouco de sorte, Trez e iAm se tornariam hóspedes permanentes.

Saindo do quarto, ele correu pelas escadas e não se surpreendeu ao encontrar os doggen se apressando para arrumar um banquete.

Quanto tempo levaria?, ele se perguntou.

Ah, como ele queria ter algo com que passar o tempo.

Indo até a sala de bilhar, pois sabia que de nada adiantaria abordar Fritz para oferecer ajuda para os preparativos, ele pegou um taco e o triângulo para formação das bolas. Enquanto passava giz na ponta, a campainha da porta da frente tocou.

– Pode deixar – ele exclamou enquanto levava o taco consigo até a tela da câmera de segurança.

Saxton estava ali, parecendo descansado e saudável.

Blay abriu a porta.

– Bem-vindo de volta.

Houve um momento de incerteza, pois não sabiam se se abraçavam ou se cumprimentavam com um aperto de mãos.

– Precisamos parar com essa estranheza – anunciou Saxton. – Venha cá.

– É mesmo, não?

Depois de um abraço rápido, Blay apanhou as malas combinadas da Gucci e os dois subiram o lance de escadas, lado a lado.

– Então, como foi de férias? – Blay perguntou.

– Foi maravilhoso. Fui para a casa da minha tia... aquela que ainda fala comigo, sabe? Ele tem uma propriedade na Flórida.

– Um lugar bem perigoso para vampiros. Não existem muitos porões.

– Ah, mas ela vive num castelo de pedra – Saxton indicou o vestíbulo. – Não como este. As noites são quentes, o oceano é maravilhoso, a vida noturna...

Quando Saxton parou abruptamente, Blay olhou para ele.

– Está tudo bem, sabe. Estou feliz que tenha se divertido. De verdade.

Saxton o observou atentamente e depois murmurou:

– Você também andou ocupado, não?

Maldita coloração de ruivo. Todo rubor ficava evidente e, naquele instante, seu rosto estava em fogo.

Quando viraram à esquerda depois do escritório de Wrath e seguiram pelo corredor das estátuas, Saxton riu de leve.

– Estou feliz por você. E não vou fazer nenhuma pergunta.

Ele sabia o “quem”, Blay concluiu.

– Bem. É isso.

– Que tal me pôr a par das novidades? – Saxton sugeriu ao entrarem em seu quarto. – Sinto como se estivesse longe há um século.

– Bem... prepare-se.

Luchas. Trez e iAm. Qhuinn e a iniciação.

Quando Blay terminou de falar, Saxton estava sentado na cama de boca aberta.

– Mas você sabia dessa do Qhuinn, não sabia? – disse Blay ao terminar seu relato.

– Sim, eu sabia – Saxton endireitou a gravata borboleta, mesmo o nó estando perfeitamente simétrico. – E tenho que lhe dizer que, apesar de não saber tudo o que você sabe sobre ele no campo de batalha, tudo o que ouvi sugere que é uma honra digna. Fiquei sabendo que ele teve um papel de muita importância no resgate de Wrath no dia da tentativa de assassinato.

– Ele é corajoso, isso é verdade.

Dentre tantas outras coisas.

Enquanto Blay olhava para o corredor e visualizava aquelas figuras encapuzadas ao redor do seu amigo, tudo em que pensava era... o que diabos vão fazer com ele?


CAPÍTULO 70

Qhuinn não tinha ideia de onde estava.

Antes de saírem do seu quarto, eles lhe deram um manto negro e o instruíram a colocar o capuz, fixar o olhar no chão e manter as mãos cruzadas às costas. Ele não podia falar a menos que o pedissem para falar e deixaram bem claro que o modo como ele agisse seria parte do seu julgamento.

Não podia ser nem cretino nem covarde.

Ele podia fazer isso.

A parada seguinte, depois de descerem a escadaria principal, foi o Escalade de V.; ele soube disso pelo cheiro do tabaco turco e pelo ronco do motor. Trajeto curto, executado lentamente. E depois lhe disseram para sair, o ar frio atingindo-o por debaixo do capuz e pela bainha do manto.

Os pés descalços cobriram um pedaço de terra batida e dura pelo frio, e depois um pedaço mais fofo, sem neve por cima. A julgar pela acústica, ficou claro que eles seguiam por um corredor ou talvez uma caverna...? Não demorou para que o fizessem parar, um tipo de portão foi aberto, e então ele se viu numa descida. Pouco depois, foi parado uma segunda vez, e houve uma espécie de sussurro, como se mais uma barreira fosse desimpedida.

Agora, mármore liso sob seus pés. E ele estava aquecido. Também havia uma fonte suave de luz – luzes de velas.

Deus, seu coração batia rápido em seus ouvidos.

Após alguns metros, ele foi parado novamente e ouviu o som de tecido sendo removido ao seu redor. Os Irmãos estavam retirando os mantos.

Ele quis olhar, ver onde estavam, descobrir o que estava acontecendo, mas não o fez. Como instruído, manteve a cabeça baixa e os olhos no...

Uma mão pesada pousou em sua nuca e a voz de Wrath ecoou no Antigo Idioma:

– Você não é digno de entrar aqui como está. Acene com a cabeça.

Qhuinn acenou.

– Diga que é indigno.

No Antigo Idioma, ele acatou:

– Sou indigno.

Ao seu redor, os Irmãos explodiram no Antigo Idioma, numa discordância que o fez querer agradecer a eles por apoiarem-no.

– Apesar de ser indigno – prosseguiu o Rei –, você deseja tornar-se digno esta noite. Acene com a cabeça.

Ele acenou.

– Diga que quer se tornar digno.

– Quero me tornar digno.

Dessa vez, o tremendo grito dos Irmãos foi de aprovação e apoio.

Wrath continuou:

– Só existe um modo de se tornar digno, e é o modo adequado e próprio. Corpo do corpo. Acene com a cabeça.

Qhuinn acenou.

– Diga que quer se tornar corpo do nosso corpo.

– Quero me tornar corpo do seu corpo.

Assim que a voz sumiu, um canto começou a ser entoado, as vozes graves da Irmandade se misturando até formarem um coro perfeito numa cadência perfeita. Ele não os acompanhou, porque não o ordenaram que o fizesse, mas, assim que alguém se postou diante dele, e alguém se colocou atrás, e logo o grupo todo passou a oscilar de um lado para o outro, seu corpo seguiu a liderança deles.

Movendo-se juntos, tornaram-se uma unidade, os ombros largos movendo-se para frente e para trás no ritmo do canto, o peso remexendo nos quadris – a fila começou a avançar.

Qhuinn começou a cantar. Não foi de propósito, apenas aconteceu. Seus lábios se partiram, os pulmões se encheram e a voz acompanhou a dos outros.

No instante em que começou a cantar, começou a chorar.

Ainda bem que estava de capuz.

Por toda a sua vida ele quis pertencer. Ser aceito. Estar entre tantos que eram respeitados. Ele o desejou com tanta avidez que a privação de toda e qualquer união quase o matara – e ele só sobrevivera ao se revoltar contra a autoridade, os costumes, as normas.

Ele nem mesmo se dera conta de ter desistido de um dia encontrar tal comunhão.

E lá estava ele agora, em algum lugar debaixo da terra, cercado por machos que... o escolheram. A Irmandade, os lutadores mais respeitados pela raça, os soldados mais poderosos, a elite da elite... escolhera a ele.

Aquilo não era um acidente de nascimento.

Ser considerado uma maldição para acabar sendo acolhido ali, naquele instante? De súbito, ele se sentiu inteiro como nunca antes em sua vida.

De repente, a acústica se alterou, o canto coletivo ricocheteando ao redor, como se tivessem entrado num grande espaço com teto alto.

Uma mão em seu ombro o fez parar.

Em seguida, o coro e o movimento cessaram, os acordes finais de suas vozes sumindo aos poucos.

Alguém o segurou pelo braço e o incitou a avançar.

– Escada – era a voz de Z.

Ele subiu cerca de seis degraus, depois chegou a um patamar. Quando parou, foi com o peito e os dedos dos pés contra o que parecia ser uma parede de mármore do mesmo tipo em que o piso parecia ser feito.

Zsadist se afastou, deixando-o onde ele estava.

Seu coração bateu forte contra o esterno.

A voz do Rei soou forte como um trovão:

– Quem indica esse macho?

– Eu – Zsadist respondeu.

– Eu – Tohr ecoou.

– Eu.

– Eu.

– Eu.

– Eu.

Qhuinn teve que piscar repetidamente enquanto, um a um, os Irmãos se pronunciavam. Cada um dos malditos Irmãos o indicava.

E então foi a vez do último.

A voz do Rei soou alta e clara:

– Eu.

Cacete, ele precisava piscar um pouco mais.

Quando Wrath prosseguiu, a inflexão aristocrática do Antigo Idioma foi acompanhada pela força de um guerreiro:

– Com base no testemunho dos membros reunidos da Irmandade da Adaga Negra, e com base na indicação de Zsadist e Phury, filhos do guerreiro da Adaga Negra Ahgony; Thorment, filho do guerreiro da Adaga Negra Hharm; Butch O’Neal, parente de sangue de minha própria linhagem; Rhage, filho do guerreiro da Adaga Negra Tohrture; Vishous, filho do guerreiro da Adaga Negra conhecido como Bloodletter; e na minha própria como Wrath, filho de Wrath, consideramos o macho diante de nós, Qhuinn, filho de ninguém, uma indicação adequada para a Irmandade da Adaga Negra. E como está em meu poder e juízo fazer tal coisa, e por ser adequado para a proteção da raça, e, além disso, pelas leis terem sido reconstruídas para guarnecer o que é de direito e adequado, eu dispenso toda e qualquer exigência de linhagem. Podemos agora dar início. Virem-no. Dispam-no.

Antes que alguém se aproximasse, Qhuinn aprumou os ombros e conseguiu esfregar os olhos rapidamente, assim voltava a ser um macho quando o giraram e retiraram seu manto.

Qhuinn arfou. Ele estava sobre um tablado, e a caverna que estava diante dele era iluminada por centenas de velas negras, as chamas criando uma sinfonia de luzes suaves e douradas que queimavam em paredes mal cortadas e refletiam o brilho do piso.

Mas não foi isso que chamou a sua atenção: bem diante dele, entre ele e o tremendo espaço bem iluminado, havia um altar.

No centro do qual jazia um crânio.

A coisa devia ser bem antiga, pois o osso não era branco como os dos recém-falecidos, mas trazia uma pátina escurecida de idade, de sacro, de venerável.

Aquele era o primeiro Irmão. Só podia.

Quando seus olhos se desviaram daquilo, ele se viu tomado por admiração: abaixo, olhando para ele, estavam os portadores vivos daquela tradição. A Irmandade estava ombro a ombro, os corpos nus dos guerreiros formando uma incrível parede de pele e músculos, a luz das velas cintilando sobre tanta força e poder.

Tohr segurou o braço de Wrath e conduziu o Rei pelas escadas que Qhuinn acabara de subir.

– Recoste-se na parede e segure as estacas – Wrath ordenou em inglês ao ser acompanhado até o altar.

Qhuinn obedeceu sem hesitação, sentindo as escápulas e o traseiro encostarem na pedra enquanto as mãos seguravam duas protuberâncias firmes em forma de cavilhas.

Quando o Rei levantou a mão, Qhuinn entendeu imediatamente como cada um dos Irmãos conseguira a cicatriz em forma de estrela no peitoral: uma antiga luva de prata estava na mão de Wrath, os espinhos marcando os nós dos dedos do objeto e, dentro do punho, havia o cabo de uma adaga negra.

Com um mínimo de espalhafato, Tohr estendeu o pulso de Wrath por cima do crânio.

– Meu senhor.

Enquanto o Rei aproximava a adaga, as tatuagens ritualísticas que delineavam a linhagem dele foram evidenciadas pela luz das velas – e depois, a lateral afiada marcou a pele.

Sangue vermelho vivo se avolumou e caiu sobre a taça de prata que estava incrustada na base do crânio.

– Meu corpo – proclamou o Rei.

Depois de um instante, Wrath lambeu a ferida para fechá-la. E depois, o macho imenso, com seu cabelo escuro longo até a cintura e em bico no alto da testa, e naqueles óculos escuros, foi conduzido até Qhuinn.

Mesmo sem o benefício da visão, Wrath, de algum modo, sabia exatamente onde seus corpos estavam posicionados, onde estava o rosto de Qhuinn, e qual era a altura...

Porque o Rei avançou até a garganta dele. Então, com força brutal, empurrou o rosto de Qhuinn para o lado, expondo-lhe a garganta.

Agora ele entendia para que serviam as cavilhas.

O sorriso cruel de Wrath expunha presas espantosas, do tipo que Qhuinn jamais vira.

– Seu corpo.

Com um ataque veloz como a luz, o Rei se segurou sem misericórdia, perfurando a veia de Qhuinn numa mordida brutal e depois tragando uma série de golfadas que eram engolidas uma a uma. Quando, por fim, retraiu os caninos, ele passou a língua sobre os lábios e sorriu como um chefe guerreiro.

E chegou a hora.

Qhuinn não precisou que lhe dissessem para se segurar firme. Abaixando as mãos, travou os ombros e as pernas, pronto para receber.

– Nosso corpo – rugiu Wrath.

O Rei não se conteve. Com a mesma acuidade certeira, ele cerrou o punho dentro da luva antiga e socou a coisa no peitoral de Qhuinn, o impacto das juntas com espinhos foi tão grande, que os lábios de Qhuinn se moveram na rajada que emanou de seus pulmões. A visão enxergou uma série de passarinhos por um momento, mas quando voltou, ela focalizou a expressão de Wrath.

Que era de respeito – e ausência absoluta de surpresa, como se Wrath tivesse antecipado que Qhuinn suportaria aquilo como um macho.

E assim continuou. Tohr foi o seguinte, aceitando a luva e a adaga, repetindo as palavras, cortando o braço, sangrando dentro do crânio, atacando a garganta de Qhuinn, depois atingindo com o máximo de sua força. E depois Rhage. Vishous. Butch. Phury. Zsadist.

Ao final, Qhuinn sangrava por causa das feridas no pescoço e no peito, o corpo estava coberto de suor, e o único motivo pelo qual não estava caído no chão eram aquelas cavilhas.

Mas ele não se importava com o que mais lhe fizessem; continuaria de pé não importando o que acontecesse. Desconhecia a história da Irmandade, mas estava disposto a apostar que nenhum daqueles caras caíra como um saco de batatas durante a iniciação deles – e ele não se importava em ser o primeiro de algumas maneiras, mas não devido à ausência de coragem.

Além disso, até ali, tudo bem. Os outros Irmãos estavam parados adiante, sorrindo de orelha a orelha para ele, como se aprovassem completamente o modo como ele vinha lidando com aquilo – e não é que isso só aumentava a sua determinação?

Com um aceno, como se tivesse recebido uma ordem, Tohr levou o Rei de volta ao altar e lhe entregou o crânio. Erguendo o sangue coletado, Wrath disse:

– Este é o primeiro de nós. Saúde o guerreiro que deu origem à Irmandade.

Um grito de guerra emanou dos Irmãos, a combinação das vozes trovejou pela caverna, e depois Wrath se aproximou de Qhuinn.

– Beba e junte-se a nós.

Entendido.

Com uma força renovada, ele pegou o crânio e olhou bem dentro das cavidades oculares ao levar a taça de prata aos lábios. Abrindo a boca, despejou o sangue pela garganta, aceitando os machos dentro de si, absorvendo-lhes a força... juntando-se a eles.

Ao seu redor, os Irmãos rugiram sua aprovação.

Quando terminou, voltou a colocar o crânio nas palmas de Wrath e limpou a boca.

Uma gargalhada se espalhou pelo peito amplo do Rei.

– Acho que vai querer se segurar nessas cavilhas, filho...

E foi essa a última coisa que ele ouviu.

Como um raio vindo dos céus e atingindo-o em cheio na cabeça, uma onda súbita de energia o atingiu, sobrepujando todos os seus sentidos. Ele deu um salto para trás, encontrando as cavilhas e segurando-se a elas bem quando seu corpo foi acometido por uma convulsão...

Ele tinha toda a intenção de permanecer consciente.

Mas, caramba... O redemoinho era poderoso demais.

Enquanto seu corpo tremia, e o coração palpitava, e a mente sibilava como um fogo de artifício, Bum!, as luzes se apagaram.


CAPÍTULO 71

– Sola, por que você não me contou que teríamos visita?

Sola fez uma pausa ao colocar a mochila sobre a bancada da cozinha. Embora sua avó estivesse claramente esperando uma resposta, ela não se viraria até que sua expressão não demonstrasse a surpresa que sentia.

Quando estava pronta, virou-se sobre uma bota.

A avó estava sentada na cadeira delicada à mesa, sua roupa de ficar em casa rosa e azul coordenando com os bobes na cabeça e as cortinas floridas logo atrás dela. Aos oitenta anos de idade, ela tinha o rosto graciosamente marcado de uma mulher que vivera no período de treze presidentes, numa Guerra Mundial, e com inúmeras dificuldades pessoais. Seus olhos, contudo, ardiam com a força de uma imortal.

– Quem veio aqui, vovó? – perguntou.

– O homem com o – a avó levantou a mão de juntas grossas e apontou para os bobes – ... cabelo escuro.

Bosta.

– Quando ele veio?

– Ele foi muito gentil.

– Ele deixou um nome?

– Então você esperava por ele?

Sola inspirou profundamente e rezou para que sua postura neutra continuasse a postos, apesar de sua irritação. Inferno, depois de viver anos com a avó era de se esperar que ela já estivesse acostumada ao fato de que a mulher nunca se desviava no que se referia a fazer perguntas.

– Não, eu não estava esperando por ninguém – e a ideia de que alguém aparecera à porta a fez enfiar a mão na bolsa. Havia uma .09 com visão a laser e um silenciador ali...o que era muito bom. – Como ele era?

– Muito grande. Cabelo escuro. Olhos profundos.

– De que cor? – a avó não enxergava muito bem, mas devia se lembrar disso. – Ele era...

– Como a gente. Ele falou comigo em espanhol.

Talvez aquele homem erótico que ela investigara fosse bilíngue. Ou trilíngue, a julgar pelo sotaque estranho.

– Então, ele deixou um nome? – não que isso fosse ajudar. Ela desconhecia o nome do homem que seguira.

– Ele disse que você o conhecia, e que vai voltar para ver você.

Sola olhou de relance para o relógio digital do micro-ondas. Passava pouco das dez.

– Quando ele veio?

– Não faz muito tempo – os olhos da avó se estreitaram. – Você tem visto ele, Marisol? Por que não me contou?

Naquele ponto, tudo escorregou para o português, as falas de sílabas destacadas se sobrepondo, todo tipo de “não estou namorando ninguém” misturado a “por que você não se casa”. Elas discutiram aquilo tantas vezes que basicamente retomavam as partes muito bem ensaiadas daquela peça de teatro já ultrapassada.

– Bem, eu gosto dele – anunciou a avó ao se levantar da mesa e bater na superfície com as palmas abertas. Enquanto o porta-guardanapos com sua pilha de Vanity Fair dava um salto, Sola quis praguejar. – Acho que você tem que trazer ele aqui para um jantar de família.

Eu até faria isso, vovó, mas não conheço o cara – e o que a senhora acharia se soubesse que ele é um criminoso? Um playboy?

– Ele é católico? – perguntou a avó a caminho da porta.

Ele é traficante de drogas, portanto, se é religioso, tem incríveis poderes de reconciliação.

– Ele parece um bom rapaz – a avó comentou por sobre o ombro. – Um bom rapaz católico – e aquilo foi tudo, por ora.

Enquanto os chinelos se arrastavam escada acima, sem dúvida o sinal da cruz era feito repetidamente pelo caminho. Sola bem conseguia visualizar isso.

Com uma imprecação, baixou a cabeça e fechou os olhos. De certa forma, ela não conseguia enxergar o homem sendo agradável e gentil só porque uma senhora de idade brasileira abrira a maldita porta. Católico, até parece.

– Maldição.

Em retrospecto, quem era ela para ser uma santa? Era uma criminosa. Há diversos anos. E o fato de ela sustentar a si e a avó não justificava tantas invasões de propriedade.

Quem seu homem misterioso sustentava, ela se perguntou quando o cachorro do vizinho começou a latir. Os gêmeos? Eles pareciam bastante autossuficientes. Será que ele tinha filhos? Uma esposa?

Por algum motivo, estremeceu.

Cruzando os braços diante do peito, ficou olhando o piso imaculado que a avó limpava todo santo dia.

Pensou que ele não tinha o direito de ir até lá.

Tudo bem, ela fora até a casa dele sem ser convidada, não é mesmo?

Sola franziu o cenho e levantou o olhar. A janela emoldurada pela cortina rosa rendada estava escura porque ela não acendera as luzes de fora ainda. Mas ela sabia que havia alguém ali fora.

E sabia muito bem quem era.

Com a respiração se tornando superficial e o coração começando a bater forte, ela levou a mão à garganta sem nenhum motivo.

Vire, ordenou-se. Fuja.

Mas... ela não fez isso.


Assail não tivera a intenção de ir até a casa da sua ladra. Mas o equipamento de rastreamento ainda estava acoplado ao Audi, e quando ele o informou de que ela havia retornado àquele endereço, viu-se incapaz de não se desmaterializar até ali.

No entanto, ele não queria ser visto. Então, escolheu o quintal dos fundos, e que sorte: quando a ladra entrara na cozinha, ele teve uma visão desobstruída dela, bem como de sua acompanhante.

A humana mais idosa era muito encantadora em seu modo mais ancião, o cabelo enrolado, o roupão vivaz como um dia de primavera, o rosto belo apesar da idade. Ela, porém, não parecia feliz, ao se sentar à mesa e olhar adiante, para o que Assail supunha, fosse a neta dela.

Palavras foram trocadas, e ele sorriu um pouco na escuridão. Havia muito amor entre elas; muito aborrecimento também. Como sempre acontecia com os parentes de mais idade, quer eles fossem humanos ou vampiros.

Ah, como se sentia aliviado em saber que ela não vivia com um macho.

A menos, claro, que aquele com quem ela se encontrara no restaurante também morasse naquela casinha.

Enquanto ele grunhia baixinho no escuro, o cachorro da casa vizinha começou a latir, avisando os humanos sobre aquilo que eles desconheciam.

Um momento depois, sua ladra foi deixada a sós na cozinha com uma expressão tanto de resignação quanto de frustração.

Enquanto ela continuava de pé, com os braços cruzados, balançando a cabeça, ele disse a si mesmo que deveria ir embora. Em vez disso, não foi: atravessou o vidro com a mente, e deixou seu desejo correr solto.

Ela reagiu imediatamente, o corpo delgado se enrijecendo contra a bancada, os olhos seguindo direto para a janela.

– Venha para mim – disse ele para o ar frio.

E foi o que ela fez.

A porta dos fundos rangeu quando ela a abriu com o quadril, forçando a parte inferior a raspar uma porção de neve acumulada no assoalho.

O cheiro dela era a sua ambrosia. E enquanto ele diminuía a distância entre eles, seu corpo foi inundado por um desejo predatório.

Assail não parou até estar a centímetros dela. Tão perto assim, quase peito contra peito, ela era muito menor do que ele; todavia, o efeito que ela surtia nele era monumental. Suas mãos se crisparam, as coxas endureceram, seu coração pulsava com sangue aquecido.

– Não pensei que fosse voltar a vê-lo – ela sussurrou.

O pau dele endureceu ainda mais, só de ouvir a voz dela.

– Parece que temos assuntos inacabados.

Que não envolviam nem dinheiro, nem drogas, tampouco informações.

– Falei sério – ela afastou os cabelos para trás, como se tivesse dificuldade para ficar parada. – Não vou mais espionar. Prometo.

– De fato, você me deu a sua palavra. Mas, ao que tudo leva a crer, sinto falta dos seus olhos sobre mim – o sibilo dela atravessou o ar frio entre eles. – Dentre outras coisas.

Ela desviou o olhar rapidamente. Voltou a fitá-lo.

– Isto não é uma boa ideia.

– Por quê? Por causa daquele humano com quem você jantou?

Sua ladra franziu o cenho, provavelmente pelo uso da palavra “humano”.

– Não. Não é por causa dele.

– Então ele não mora aqui.

– Não, somos somente a minha avó e eu.

– Aprovo isso.

– E por que você deveria ter uma opinião quanto a isso?

– É o que me pergunto todos os dias – ele murmurou. – Mas explique, se não é por causa daquele homem, por que não podemos nos encontrar?

Sua ladra empurrou os cabelos sobre os ombros mais uma vez e balançou a cabeça.

– Você... representa problemas.

– E quem diz isso é a mulher que anda sempre armada.

Ela empinou o queixo.

– Você acha que eu não vi aquela adaga ensanguentada no seu hall de entrada?

– Ah, aquilo – ele dispensou o comentário com um aceno da mão. – Eu só estava cuidando de alguns assuntos.

– Pensei que o tivesse matado.

– Quem?

– Mark, o meu amigo.

– Amigo – ele se ouviu grunhir. – Se é que ele é isso mesmo.

– Então, quem você matou?

Assail pegou um charuto para acender, mas ela o deteve.

– A minha avó sentiria o cheiro.

Ele olhou para as janelas fechadas do segundo andar.

– Como?

– Apenas não o faça, por favor. Não aqui.

Com uma inclinação de cabeça, ele cedeu – mesmo que não conseguisse se lembrar de um dia o ter feito em respeito a ninguém.

– Quem você matou?

A pergunta foi feita de modo prático, sem a histeria que haveria de se esperar de uma fêmea.

– Isso não tem nada a ver com você.

– Melhor eu não saber, hein?

Visto que ele era de uma espécie diferente da dela? Ah, sim, de fato.

– Não é ninguém que você um dia fosse conhecer. Eu lhe direi, contudo, que tive meus motivos. Ele me traiu.

– Portanto, mereceu – não era uma pergunta, mas apenas uma declaração de aprovação.

Ele não tinha como deixar de apreciar o modo como ela encarava os fatos.

– Sim, mereceu.

Houve um instante de silêncio, e depois ele teve que perguntar:

– Qual o seu nome?

Ela riu.

– Quer dizer que não sabe?

– Como eu descobriria?

– Bom argumento... E eu lhe direi, se você me explicar o que disse para a minha avó – ela abraçou o torso como se estivesse com frio. – Sabe, ela gostou de você.

– Quem gostou de mim?

– A minha avó.

– E como é que ela me conhece?

Sua ladra franziu o cenho.

– Quando você veio aqui antes. Ela disse que o considerou um bom rapaz, e quer convidá-lo para jantar – aqueles olhos incríveis se voltaram para ele. – Não que eu esteja defendendo isso... Ei, o que foi? Ai!

Assail forçou a mão para que relaxasse, pois nem percebera que segurara o braço dela.

– Eu não vim aqui antes. Tampouco falei com sua avó.

Sua ladra abriu a boca. Fechou-a. Abriu-a novamente.

– Não veio aqui hoje?

– Não.

– Então quem diabos está me procurando?

Enquanto um sentimento avassalador de protegê-la o assolou, suas presas se alongaram e o lábio superior começou a se retrair – mas ele se conteve, refreando a demonstração exterior das suas emoções interiores.

Abruptamente, ele indicou a direção da cozinha.

– Vamos entrar. Agora. E você vai me contar mais a respeito.

– Não preciso da sua ajuda.

Assail a fitou do alto de toda a sua altura.

– Mas você a terá mesmo assim.


CAPÍTULO 72

Trez não estava acostumado a andar de motorista. Gostava de dirigir. De estar no controle. De escolher a direita ou a esquerda. Esse tipo de escolha não constava do cardápio daquela noite, porém.

Naquele instante, ele era apenas um gostosão no banco de trás de uma Mercedes que era do tamanho de uma casa. Na frente, Fritz – esse era o nome dele – dirigia como um morcego saindo do inferno; não exatamente algo que se esperava de alguém que parecia ter uns sete mil anos de idade.

No entanto, visto que Trez ainda se sentia meio estranho após a dor de cabeça da noite anterior, ele achava uma boa ideia ser passageiro num caso como aquele. Mas se ele e iAm iriam morar lá, eles teriam de saber onde ficava a maldita propriedade.

Mas. Que. Merda.

Por algum motivo, seus sentidos captaram uma mudança na atmosfera, algo tintilava nos limites de sua consciência, um aviso. E, vejam só, do lado de fora da janela, o cenário iluminado pelo luar ficou ondulado, com uma distorção vital retorcendo sua visão.

Os olhos verificaram o interior da Mercedes. Tudo estava bem: o couro preto, a costura castanha, a divisória erguida entre os assentos estavam exatamente como deviam estar. Portanto, não era um desajuste dos seus nervos óticos.

Voltando os olhos para o exterior, ele entendeu que a distorção não era fruto de uma névoa. Nem de algum tipo de chuvisco. Não, aquilo não era provocado pelo tempo – era algo completamente diverso... como se o medo tivesse se cristalizado nas partículas do ar, e estivesse provocando a metamorfose do cenário.

Que belo escudo protetor...

E lá estava ele supondo que ele e o irmão eram os únicos com truques escondidos nas mangas.

– Estamos próximos – comentou.

– O que é isso, hein? – iAm murmurou ao olhar para fora da janela.

– Não sei. Mas precisamos conseguir um pouco disso para nós.

Abruptamente, o carro começou a subir, e com a aceleração do Homem Pé de Chumbo, mais parecia que eles subiam uma montanha-russa. No entanto, eles não despencaram uma vez no alto: do nada, uma imensa mansão de pedra se materializou, aparecendo tão repentinamente que Trez segurou o apoio na porta para se preparar para o impacto.

No entanto, o motorista sabia muito bem onde estavam, e qual a distância necessária para fazer o carro parar. Com a habilidade de um dublê de Hollywood, o mordomo girou o volante e pisou nos freios, fazendo-os estacionar entre um GTO que Trez imediatamente cobiçou... e um Hummer que parecia mais uma escultura abstrata do que algo dirigível.

– Talvez ele tenha feito alguma besteira com esse aí – Trez disse causticamente.

Quando as portas foram destrancadas, ele e iAm saíram ao mesmo tempo.

Puxa. Olha só essa casa, Trez pensou ao pender a cabeça para trás e olhar para cima, bem para cima. Em comparação à pilha gigantesca de pedras, ele se sentia do tamanho de um polegar.

Do polegar de uma criança de dois anos de idade.

Pairando bem no alto na noite escura, com gárgulas que observavam do beiral, e um par de alas de quatro andares muito sinistras que se estendiam para os dois lados, a construção parecia exatamente o que você esperaria do lugar em que vivia o rei dos vampiros: assombrada, arrepiante e ameaçadora.

Era a representação do Halloween, só que verdadeiro. As pessoas ali dentro mordiam mesmo, e não só quando lhes pediam.

– Maneiro – elogiou Trez, sentindo-se imediatamente em casa.

– Senhores, entrem, por favor – disse o mordomo amigavelmente. – Eu me empenharei em levar suas malas.

– Não, não – opôs-se Trez, já indo para o porta-malas. – Temos muitas tranq... quero dizer, coisas.

Era difícil se portar mal diante de alguém de fraque.

iAm concordou.

– Podemos fazer isso por você.

O mordomo olhou de um para outro, com um sorriso no devido lugar.

– Por favor, sigam para as festividades, senhores. Nós cuidamos desses assuntos mundanos.

– Ah, mas nós...

– Isto é, não vai ser...

Fritz pareceu confuso, depois, ligeiramente em pânico.

– Por favor, os senhores precisam se juntar aos outros. Eu cuido disto. Esta é a minha função na casa.

A aflição parecia tão despropositada, mas eles não teriam como argumentar sem causar ainda mais problemas; estava claro que o cara teria um chilique se eles mesmos levassem a bagagem até a porta de entrada.

Quando em Roma... Trez concluiu.

– Ok, certo, muito obrigado.

O sorriso agradável e franco reapareceu de pronto.

– Muito bem, senhores! Muito bem, mesmo.

Enquanto o mordomo indicava o caminho para a entrada, como se a imensa porta de catedral fosse um mistério, Trez deu de ombros e seguiu para as escadas.

– Acha que ele vai nos deixar limpar nossas bundas? – perguntou baixinho.

– Só se ele não nos vir ir ao banheiro.

Trez gargalhou e olhou para o irmão.

– Isso foi uma piada, iAm? Hum? Acho que foi...

Depois de dar uma cotovelada no irmão e obter um grunhido como resposta, ele esticou a mão e segurou a maçaneta pesada do portal. Ficou um tanto surpreso em ver que não estava trancado, mas, pensando bem, com... aquela coisa... ao redor, quem é que precisaria de chaves? Nenhum rangido ao entrar, e isso não foi nenhuma surpresa. O lugar era bem cuidado em cada centímetro, a neve retirada, sal espalhado no piso para evitar a formação de gelo, tudo absolutamente bem ordenado.

Mas também, com aquele mordomo encarregado? Uma sujeirinha que fosse devia ser uma emergência nacional.

Saindo do frio, ele se viu numa antessala com piso de mosaico e teto alto, de frente para uma recepção que incluía uma câmera de segurança. Ele sabia para que servia aquilo – e enquadrou a cara bem no campo de visão.

No mesmo instante, a porta interna, que se equiparava a de um cofre de banco, se abriu.

– Olá! – uma fêmea exclamou. – Vocês chegaram.

Trez mal notou Ehlena ao perceber o que estava por trás dela.

– Oi... como é que você está...

Ele não ouviu a resposta dela.

Puxa... vida. Uau... que cores lindas...

Trez nem percebeu que se adiantava, mas foi o que fez... andando em direção à maior maravilha arquitetônica que ele jamais vira. Imensas colunas de malaquita e mármore rosa subindo para um teto mais alto que os céus. Candelabros de cristal e arandelas douradas reluziam. Uma escadaria vermelho sangue tão grande quanto um parque se elevava a partir de um piso de mosaico que parecia a representação... de uma macieira carregada de frutos.

Por mais sombrio que o exterior parecesse, o interior era absolutamente resplandecente.

– Rivaliza com o palácio – iAm murmurou maravilhado. – Oh, olá, Ehlena.

Trez estava vagamente ciente do irmão abraçando a shellan de Rehvenge. E também havia outras pessoas por perto, fêmeas em sua maioria, mas ele também reconheceu Blay e um macho loiro junto a John Matthew e, claro, Rehv, que cruzava o piso com a ajuda de sua bengala.

– A festa não é para vocês dois, mas podem fingir que é.

iAm e Rehv se abraçaram, porém, mais uma vez, Trez não estava prestando a mínima atenção.

Na verdade, o arco-íris colorido também desaparecera por completo.

Parada na entrada do que parecia a porta de uma sala de jantar formal, a Escolhida que ele vira na casa de campo de Rehv falava com outra também de manto branco.

A visão de Trez se afunilou nela, seus olhos concentrando-se somente em sua imagem e lá ficando.

Olhe para mim, ele desejou. Olhe para mim.

Nesse instante, como se tivesse sentido o comando, a Escolhida olhou em sua direção.

Trez, imediatamente, ficou excitado, o corpo inchando com o desejo de seguir até aquela fêmea, tomá-la nos braços e levá-la para algum canto reservado.

Onde ele poderia marcá-la.

A voz de iAm era exatamente o que ele não precisava ouvir em seu ouvido:

– Ainda não é para o seu bico, irmão.

Ele precisava tê-la, mesmo que isso o matasse.

E se chegasse a esse ponto? Bem, sua vida não era uma festa no momento, era?


Quando Qhuinn recobrou os sentidos, estava deitado no altar. O crânio bem ao lado da sua cabeça, como se o Irmão o estivesse protegendo enquanto ele se recuperava após ter bebido o sangue. Piscando bem os olhos, ele percebeu que fitava um mural de nomes: cada centímetro da imensa pedra de mármore contra a qual estivera apoiado estava gravado com nomes no Antigo Idioma.

Exceto pela parte onde estavam as cavilhas.

Ao se sentar e deixar as pernas penderem, suas costas estalaram e a cabeça rodou um pouco... Esfregando o rosto, ele saiu num pulo e andou para a frente... até poder tocar nas gravuras.

– Você está bem no fim – Zsadist informou atrás dele.

Qhuinn se virou. A Irmandade mais uma vez estava parada embaixo, cada um deles sorrindo como filhos da mãe.

O sotaque de Boston soou:

– É emocionante ver seu nome escrito aí. Você precisa dar uma olhada.

Qhuinn voltou a olhar para frente. Depois de seguir para a direita, no fim, ele encontrou o nome do tira... e depois o seu.

Suas pernas ficaram bambas quando ele se abaixou, ajoelhando diante da fileira precisa de símbolos. Depois olhou para a parede, os nomes individuais desaparecendo, transformando-se num padrão coeso em todo o mármore. Assim como a Irmandade. Não indivíduos, mas um grupo.

E ele era parte daquilo.

Por Deus... ele estava ali.

Qhuinn se preparou para uma experiência transformadora – algo que seguisse a linha de um grande sino ecoando em seu peito “Você pertence”... ou, merda, um simples “Você é o cara” soando em sua mente.

Nada disso aconteceu. Sim, claro, ele estava feliz. Estava orgulhoso, porra. Pronto para sair dali e lutar como um desvairado.

Porém, ao se pôr de pé, ele percebeu que apesar da nova sensação de completude, uma parte sua permanecia separada. Em retrospecto, seus últimos dias foram tremendos – como se o destino tivesse jogado sua vida num liquidificador e estivesse preparando um molho com o seu traseiro.

Talvez fosse porque ele nunca fora muito bom nessa coisa de emoções? E nada mudaria aquilo.

Mas, pelo menos, ele não estava fugindo.

Indo para junto dos Irmãos, ele levou tantos tapas nos ombros e no peito que soube como os atacantes se sentiam no futebol americano depois dos treinos.

Mas logo ele se deu conta... iria para casa encontrar Blay.

Santa Maria Mãe de Deus, roubando uma expressão do tira, ele estava morrendo de vontade de ver o cara. Talvez dar uma escapada e contar o que tinha acontecido, mesmo que provavelmente ele não devesse fazer isso. Talvez subir para o quarto depois que a festa acabasse e... bem, por um tempo...

Ok, agora ele estava ficando excitado.

Rhage lhe lançou seu manto negro de volta.

– Portanto, bem-vindo ao hospício, seu pobre filho da mãe. Está preso a nós pelo resto da vida.

Qhuinn franziu a testa e pensou em John.

– Mas e a minha posição como ahstrux nohtrum?

– Já era – V. disse ao se vestir também. – Você é um homem livre.

– Então John sabia?

– Não que você estava recebendo este tipo de promoção. Mas ele foi informado que você já não poderia ser mais o segurança dele – quando Qhuinn tocou a tatuagem debaixo dos olhos, V. assentiu. – É. Vamos ter que mudar isso... É uma dispensa honorável, sabe, não é como uma morte ou demissão.

Beleza. Melhor do que um aviso prévio empurrado contra seu peito ou uma cova rasa.

Enquanto saíam, Qhuinn deu uma última olhada na caverna. Era tão estranho; sim, era a história acontecendo, mas aquilo também parecia o ápice de todas aquelas noites lutando com os Irmãos, uma lógica interna fazendo aquele evento extraordinário parecer... inevitável.

Refazendo o trajeto que percorreram anteriormente, Qhuinn se viu num corredor tomado por prateleiras do chão ao teto superalto.

– Jesus... Cristo... – ele sussurrou ao percebeu todos os jarros dos redutores.

Todos pararam.

– Os jarros? – Wrath perguntou.

– É – confirmou Tohr com uma risada. – Nosso garoto parece impressionado.

– E devia mesmo – murmurou Rhage ao ajeitar o cinto do manto. – Somos destemidos.

Múltiplos gemidos. Olhos se revirando.

– Pelo menos ele não veio com um daqueles “Somos incríveis!” – alguém murmurou.

– Esse é Lassiter – foi a resposta.

– Cara, esse filho da mãe tem que parar de assistir a maldita Nickelodeon...

– Dentre outras coisas.

– Foco, gente, foco – Rhage interrompeu. – Podemos ter um momento de seriedade aqui, por favor?

Grunhidos de aprovação substituíram as críticas, os sons se elevando e ecoando entre as lembranças dos seus inimigos mortos.

– Apenas pense – Tohr disse ao passar um braço ao redor dos ombros de Qhuinn –, agora você pode mandar os seus para cá.

– Legal – murmurou Qhuinn ao olhar para os diferentes tipos de contêineres. – Muito legal.

Saíram por portões que tanto eram velhos como pareciam necessitar de um maçarico por umas belas horas para serem transpostos. Depois havia outro obstáculo que foi empurrado, um que, de verdade, parecia a parede de uma caverna e, olhe só, eles saíram de um recesso raso na terra e chegaram ao Escalade. Levou um tempo para atravessarem a floresta, mas no instante em que a mansão pôde ser vista, ele começou a ficar tão excitado que o corpo se adiantou para a beira do banco e a mão procurou a maçaneta da porta.

O SUV mal tinha parado quando ele já estava abrindo a porta e saindo. Risadas emanaram da Irmandade quando eles saíram de modo mais civilizado, seguindo a liderança dele escada acima. No portal de entrada, ele o abriu e se postou no átrio, mostrando o rosto para a câmera de segurança.

Atrás dele, ele ouviu as vozes dos Irmãos...

Seus irmãos, agora. Não eram?

Seus irmãos tiravam sarro dele ao se aproximarem, e a porta interna foi aberta por Fritz.

Qhuinn quase derrubou o mordomo quando ele deu um passo para o lado. Muitos rostos sorrindo, as shellans da casa, a rainha, doggens por todos os lados... iAm, Trez, Rehv e Ehlena...

Ele procurava por cabelos ruivos, vasculhou a sala de jantar, depois olhou para a sala de bilhar. Onde ele est...

Qhuinn parou.

Do lado oposto da mesa de bilhar, no sofá diante da TV montada acima da lareira, Blay e Saxton estavam sentados lado a lado. Os rostos virados um para o outro, um par de gim e tônica nas mãos, os dois pareciam envolvidos numa conversa animada.

De repente, Blay começou a rir, inclinou a cabeça para trás...

E, nesse instante, olhou na direção de Qhuinn.

No mesmo momento, sua expressão endureceu.

– Parabéns!

O som da voz de Layla o confundiu, e ele se virou às cegas, a mente embaralhada de um jeito que não deveria estar: ele sabia o tempo inteiro que Saxton voltaria depois das férias.

– Estou tão feliz por você! – enquanto Layla o abraçava, ele passou os braços ao redor dela automaticamente.

– Obrigado – ele se afastou e passou as mãos pelos cabelos. – Então, como está se sentindo?

– Enjoada e maravilhosa!

Qhuinn se retraiu dentro da própria pele, tentando encontrar alegria pela gravidez.

– Fico feliz. Estou... muito feliz.


CAPÍTULO 73

Sola bateu contra o fogão ao levar o homem para dentro de sua casa. Em seguida, como parte da correção de curso, ela derrubou a cadeira em que a avó estivera sentada – mas, pelo menos, conseguiu reparar nisso segurando-a e sentando-se nela.

– Você também não me disse o seu nome – murmurou, ainda que nomes próprios fossem a última coisa em sua mente.

O homem se juntou a ela do lado oposto da mesa. Seu tamanho imenso e as roupas caras faziam com que tudo ali parecesse frágil, desde a tábua laminada que os separava até as cadeiras e a própria cozinha.

A casa inteira.

Ele esticou a mão por sobre a mesa. Naquela voz grave e carregada de um sotaque divino, ele disse:

– Sou Assail.

– Assail? – cautelosa, Sola esticou a mão, preparada para encontrá-lo no meio do caminho. – Nome diferente...

No instante em que o contato foi feito, um raio subiu pelo braço e terminou em seu coração, acelerando-o, fazendo-a corar.

– Não gosta? – ele sussurrou, como se conhecesse muito bem a reação dela.

Só que ele estava falando do nome, não? Sim, era isso.

– É... inesperado.

– Me diga o seu – ele deu o comando sem soltá-la. – Por favor.

Enquanto esperava, enquanto segurava a mão dela, enquanto respiravam juntos, ela percebeu que, às vezes, havia coisas que eram mais íntimas do que sexo.

– Marisol. Mas as pessoas me chamam de Sola.

Ele ronronou. Ronronou.

– Eu a chamarei de Marisol.

E não é que combinava? Deus, aquele sotaque... ele transformara aquilo pelo qual fora chamada a vida inteira num poema.

Sola puxou a mão da dele e a colocou sobre o colo. Mas os olhos continuaram cravados no homem: sua expressão era arrogante, e ela teve a impressão de que se tratava de um defeito inconsciente, que não se relacionava a ela. O cabelo parecia impossivelmente grosso, e, sem dúvida, devia ter recebido algum produto – nada meramente humano poderia manter aquela onda perfeita afastada da testa daquele modo. E o perfume? Esqueça. O que quer que fosse aquilo, ela estava ficando simplesmente embriagada só com o cheiro incrível.

Juntando a boa aparência, aquele corpo e a mente afiada? Ela seria capaz de apostar a casa que a vida dele era conduzida com base no lema “o mundo me pertence”.

– Então, fale-me desse seu visitante – ele pediu.

Enquanto aguardava, o queixo dele abaixou e ele a fitou por baixo das pálpebras.

Não era surpresa ele ter matado alguém.

Ela deu de ombros.

– Não tenho ideia de quem seja. A minha avó apenas me disse que um homem de cabelos escuros e olhos profundos... – ela fez uma careta, notando que as íris dele eram sempre de uma cor de luar, do tipo de coisa que parecia impossível na natureza. Lentes de contato? – Ela... Hum, ela não mencionou nenhum nome, mas ele deve ter sido educado, senão eu teria ouvido um belo sermão e muito mais. Ah, e ele conversou com ela em espanhol.

– Alguém poderia estar atrás de você?

Sola meneou a cabeça.

– Nunca menciono esta casa, jamais. A maioria das pessoas sequer sabe meu verdadeiro nome. Foi por isso que pensei que fosse você, quem mais... Quero dizer, ninguém mais veio aqui a não ser você.

– Não há ninguém em seu passado?

Expirando longamente, ela olhou pela cozinha; depois pegou os guardanapos e os rearranjou.

– Não sei...

Com a vida que ela levava? Podia ser qualquer pessoa.

– Você tem alarme de segurança aqui? – ele perguntou.

– Sim.

– Você tem que considerá-lo perigoso até que se prove o contrário.

– Concordo – quando o homem, isto é, Assail, colocou a mão dentro do casaco, ela balançou a cabeça. – Nada de charutos. Já disse que...

Ele fez um gesto exagerado ao retirar uma caneta dourada e mostrá-la. Depois, pegou um dos guardanapos que ela acabara de ajeitar e escreveu um número de sete algarismos.

– Você vai me ligar se ele voltar – ele passou o quadrado de papel pela mesa, mas manteve o indicador apoiado sobre os números. – E eu cuidarei disso.

Sola se levantou tão rápido, que a cadeira gemeu. Imediatamente, ela olhou para o teto. Quando nenhum som veio de cima, ela se lembrou de fazer menos barulho.

Caminhou até o fogão. Depois voltou. Foi até a porta de trás que dava para a varanda. Voltou novamente.

– Escute aqui, eu não preciso de ajuda. Agradeço...

Ao se virar para voltar para junto do fogão novamente, ele estava bem diante dela. Arfando, ela deu um pulo para trás – nem o ouvira se mexer...

A cadeira dele estava na mesma posição de quando ele esteve sentado.

Não como a dela, empurrada de lado.

– O que... – ela se calou, a mente rodopiando. Por certo ela não lhe perguntaria o que ele era...

Quando ele esticou a mão e amparou seu rosto, ela soube que teria dificuldades para dizer não para o que quer que ele sugerisse.

– Você vai me ligar – ele ordenou – e eu virei até você.

As palavras foram tão lentas que quase se deturparam, a voz grave... tão grave...

O orgulho formou um protesto em sua mente, mas sua boca se recusou a dizê-lo.

– Está bem – ela disse.

Agora ele sorria, os lábios se curvando para cima. Deus, os caninos dele eram bem afiados, e mais longos do que ela se lembrava.

– Marisol – ele ronronou. – Um lindo nome.

Enquanto ele começava a se inclinar sobre ela, a pressão sutil em sua mandíbula levantava-lhe o queixo. Ah, não, não, não, ela não podia estar fazendo aquilo. Não naquela casa. Não com um homem como aquele...

Que seja. Com um suspiro de rendição, ela fechou os olhos e levantou a boca para aceitar a dele...

– Sola! Sola, o que você está fazendo aí embaixo?!

Os dois ficaram imóveis e, no mesmo instante, Sola se viu com treze anos novamente.

– Nada! – respondeu alto.

– Quem está com você?

– Ninguém... É a televisão!

Três... Dois... Um...

– Isso não parece a TV!

– Vá – ela sussurrou ao empurrá-lo pelo peito largo. – Você tem que ir embora agora.

As pálpebras de Assail se abaixaram.

– Acho que quero conhecê-la.

– Não quer, não.

– Quero...

– Sola! Estou descendo!

– Vá – ela sibilou. – Por favor.

Assail passou o polegar por baixo do lábio inferior dela e se inclinou, falando diretamente ao seu ouvido:

– Tenho planos para retomar isto do ponto em que fomos interrompidos. Só para você saber.

Virando-se, ele se moveu com frustrante lentidão até a porta. E enquanto os chinelos da avó se aproximavam pela escada, ele ainda teve tempo de olhar para trás enquanto abria a porta.

O olhar ardente percorreu-lhe o corpo.

– Isso entre mim e você não acabou.

E logo ele se foi, graças ao bom Deus.

A avó fez a curva no segundo seguinte à tela da porta exterior voltar ao seu lugar.

– E então? – ela disse.

Sola olhou de relance pela janela além da mesa, certificando-se de que ainda estava escuro do lado de fora. Sim. Tudo bem.

– Viu? – disse ela, abrindo os braços para mostrar a cozinha vazia. – Não há ninguém aqui.

– A televisão não está ligada.

Por que, oh, por que sua avó não tinha a graciosidade de ficar de miolo mole como tantos outros anciões?

– Eu a desliguei porque ela estava incomodando a senhora.

– Ah – olhos cheios de suspeita vasculharam o cômodo.

Merda. Havia neve derretida no linóleo onde eles estiveram.

– Venha – disse Sola ao girar a senhora para o outro lado. – Chega de aventuras por uma noite. Vamos nos deitar.

– Estou de olho em você, Sola.

– Eu sei, vovó.

Enquanto subiam juntas, uma parte sua continuava intrigada com a pessoa que fora procurá-la e com o motivo da visita. E a outra metade? Bem, essa parte ainda estava na cozinha, prestes a beijar aquele homem.

Provavelmente foi muito melhor terem sido interrompidos.

Ela tinha a distinta impressão que seu protetor... também era um predador.


O telefonema que Xcor vinha aguardando chegou na hora mais oportuna. Ele acabara de perseguir e matar um assassino solitário debaixo das pontes do centro da cidade, e limpava sua adorada, o sangue negro na lâmina de sua foice saindo com facilidade enquanto ele passava um pedaço de camurça de cima a baixo.

Ele colocou sua fêmea de volta nas costas, e só depois pegou o celular. Ao responder, olhou para seus lutadores que se reuniram e conversavam sobre as lutas da noite no vento frio.

– Quem fala é Xcor, filho de Bloodletter?

Xcor cerrou os dentes, mas não se importou em corrigir a imprecisão. O nome de Bloodletter era de valia para a sua reputação.

– Sim. Quem é?

Houve uma longa pausa.

– Não sei se devo lhe dizer.

O tom era aristocrático e também lhe informava a identidade daquele que lhe telefonara.

– Você é associado de Elan.

Outra longa pausa e, pelos deuses, aquilo testava a sua paciência. Mas aquela era outra coisa que manteria para si.

– Sim, sou. Soube da novidade?

– Sobre?

Quando um terceiro momento de silêncio se fez, ele soube que aquilo demoraria um pouco. Assobiando para seus soldados, indicou que eles deveriam prosseguir para o arranha-céu deles, a alguns quarteirões dali.

Um momento depois, ele estava no telhado, as rajadas de vento tão mais fortes no ponto elevado de sua preferência. Uma vez que a ventania impedia a conversa, ele se refugiou no abrigo de algo mecânico.

– Novidade a respeito de quê? – ele instigou.

– Elan está morto.

Xcor expôs os dentes e sorriu.

– De fato.

– Não me parece surpreso.

– Não estou – Xcor revirou os olhos. – Ainda que esteja desolado.

O que era verdade: foi como perder uma arma útil. Ou, mais precisamente, uma chave de fenda. Mas essas coisas podem ser substituídas.

– Sabe quem foi o responsável? – o outro exigiu saber.

– Bem, acredito que você saiba, estou certo?

– Foi a Irmandade, claro.

Outro juízo falso, mas, novamente, Xcor achou melhor deixar de lado.

– Diga-me, está esperando que o ahvenge?

– Isso não me diz respeito – a fala afetada sugeria que o macho estava mais preocupado em não se deparar com o mesmo destino. – A família dele cuidará das remediações.

– Como de direito – quando nada mais foi dito, Xcor entendeu o que era esperado e necessário. – Posso lhe garantir duas coisas: a minha confidencialidade e a minha proteção. Deduzo que estivesse presente na reunião na casa de Elan no outono. Minha oposição ao Rei não mudou e estou deduzindo que este telefonema o coloque numa posição favorável a mim. Estou correto?

– Não busco poder político nem social.

Tolice.

– Claro que não.

– Estou... preocupado com o futuro da raça e Elan e eu concordávamos nisso. No entanto, eu não estava de acordo com a tática proposta. Homicídios são muito perigosos e, no fim, podem não resultar no que se deseja.

Au contraire, Xcor pensou. Uma bala na cabeça resolve muitas coisas...

– A lei é o meio para derrubar o Rei.

Xcor franziu o cenho.

– Não entendo.

– Com todo o respeito, a lei é mais forte que a espada. Parafraseando um ditado humano.

– As suas referências oblíquas são um desperdício de palavras comigo. Seja mais específico, se não se importar.

– As Leis Antigas suprem o poder que Wrath exerce. Elas explicam detalhadamente o domínio unilateral que ele tem sobre tudo o que diz respeito às nossas vidas e à nossa sociedade, concedendo-lhe rédeas soltas para que ele aja como quiser, sem ter que explicar nada a ninguém.

Motivo pelo qual Xcor desejava o posto, muito obrigado.

– Prossiga.

– Não existem restrições para o que ele pode fazer, que caminhos pode tomar... Na verdade, ele também pode mudar as Leis Antigas caso queira, e alterar a estrutura das nossas tradições e fundamentos.

– Estou bem ciente disso – consultou o relógio. Desde que não ficasse preso ali ao telefone pelas duas horas seguintes, haveria ainda muito tempo para lutar. – Talvez queira marcar um encontro para conversarmos amanhã à noite...

– Porém, existe um embargo.

Xcor ficou intrigado.

– Embargo?

– Ele deve ser capaz de procriar, e eu cito exatamente, “um herdeiro de sangue puro”.

– E como isso é relevante? Ele já está vinculado e, sem dúvida, no futuro...

– A shellan dele é mestiça.

Foi a vez de Xcor se calar – e o conselheiro de Elan se aproveitou desse silêncio.

– Sejamos bem francos um com o outro. Existe sangue humano na espécie. Ninguém pode dizer ser absolutamente de “sangue puro”. Há, porém, uma diferença vital entre um civil se misturando ao material genético humano e o Rei procriar um filho cuja mãe é mestiça... referido filho que herdará o trono após a sua morte.

Throe apareceu ao lado do motor do sistema de aquecimento e refrigeração.

– Tudo bem? – perguntou baixinho.

Xcor abafou o telefone com a mão.

– Leve os outros para as ruas. Estarei com vocês em seguida.

– Como preferir – Throe disse com uma breve mesura.


Enquanto o lutador se afastava, o aristocrata do outro lado continuava:

– Existe ansiedade entre os membros da classe dominante, como você bem sabe. E eu acredito que se alguém abordar essa questão, ela será muito mais eficiente em demover Wrath, filho de Wrath, do que qualquer atentado à sua vida. Ainda mais depois de ele ter feito a demonstração de poder na reunião do Conselho da noite passada.

De fato, muitos se apavoraram e se mostraram submissos em seguida, seus desejos subjugados pela força física, que foi bem férrea.

A mente de Xcor começou a repassar todas as possibilidades.

– Portanto, diga-me, cavalheiro, segundo seu parecer, quem deverá sucedê-lo, o senhor?

– Não – foi a resposta cortante. – Sou advogado e, como tal, valorizo a lógica acima de tudo. Neste clima de inquietação e guerra, somente um soldado poderia, e deveria, liderar a raça. Elan era um tolo com suas ambições, e você vinha tirando vantagem disso. Sei disso porque o observei na casa dele naquela noite durante o outono, você o colocou onde ele queria estar, mesmo ele acreditando que fosse o contrário. Quero mudanças, sim. E estou preparado para fazer isso acontecer. Porém, não tenho ilusões quanto à minha utilidade e não tenho interesse algum que o destino de Elan se torne o mesmo que o meu.

Xcor se voltou na direção do topo daquela montanha.

– Nenhum rei foi destronado dessa maneira.

– Nenhum rei jamais foi destronado.

Bela observação.

Enquanto ele fitava para o nordeste, onde uma estranha perturbação no cenário estava localizada, ele pensou no Rei com sua rainha... e na Escolhida grávida.

Houve um tempo em que ele preferiria o caminho mais sangrento, aquele que seria marcado com a satisfação de arrancar o trono de um moribundo Wrath. Mas aquela guerra de palavras era... mais segura. Para a sua fêmea.

A última coisa que ele queria era atacar o lugar em que ela comia, no qual ela dormia... onde seu estado era tratado.

Fechando os olhos, ele balançou a cabeça para si mesmo. Ah, como ele caíra... no entanto, ainda se ergueria, jurou.

– Como sugere que procedamos? – perguntou asperamente.

– Secretamente, a princípio. Preciso organizar os precedentes de modo que o “sangue puro” tenha sido mencionado em casos levados adiante para decisões. A vantagem é que existe discriminação contra os humanos há tempos, e ela era ainda pior no passado... quando era o pai de Wrath despachando proclamações e interpretando as leis. Essa será a chave. Quanto mais forte o precedente, mais bem-sucedido isto será.

Quanta ironia. A interpretação do próprio pai de Wrath seria a responsável pela derrocada do filho.

– O nosso problema será o próprio Rei. Ele tem que permanecer vivo... e não pode reconhecer a fraqueza inerente em seu reino para tentar consertá-la antes que possamos apresentar essa questão.

– Você enviará um e-mail para um associado meu com as passagens relevantes e depois se encontrará comigo.

– Isto levará alguns dias.

– Entendido. Mas espero que me ligue imediatamente.

Enquanto nomes eram trocados, e Xcor dava o endereço de e-mail de Throe, ele começou a sentir ânimo. E se aquele macho estivesse certo? O reinado de Wrath terminaria sem mais derramamento de sangue. E, então, Xcor estaria livre para determinar o futuro da raça: até onde ele sabia, Wrath não tinha parentes diretos, portanto, quando fosse deposto, ninguém reclamaria o trono. Ainda que isso não significasse que alguns poderiam se prontificar sabe-se lá de onde.

No entanto, ele saberia lidar com intrusos. E com o apoio do Conselho? Ele era capaz de apostar que seria um líder populista – desde que todos andassem na linha.

Wrath não era o único que poderia mudar as leis.

– Não perca tempo com isso – disse Xcor. – Você tem uma semana. Não mais do que isso.

A resposta que lhe foi dada foi gratificante:

– Agirei com a maior rapidez.

E ora se aquele não era um modo adorável de encerrar uma ligação.


CAPÍTULO 74

O túnel que ligava a mansão ao centro de treinamento era fresco, tranquilo, com luz suave.

Ao passar por ele, Qhuinn estava sozinho e contente por isso. Nada pior do que estar cercado por pessoas felizes quando você se sente morto por dentro.

Quando chegou à porta que dava para o fundo do armário do escritório, ele digitou um código, esperou até que a tranca abrisse, depois empurrou a porta para entrar. Uma passada rápida em meio a papéis e canetas, e por meio de outra porta, e ele dava a volta em uma mesa. Logo em seguida, estava no corredor diante da sala de levantamento de pesos, mas ele não estava em busca de se exercitar. Depois do que a Irmandade lhe fizera, ele se sentia duro e dolorido – especificamente nos braços, graças à força empregada para se sustentar agarrado àquelas cavilhas.

Caramba, as mãos ainda estavam dormentes e, quando as flexionou, soube o que era artrite pela primeira vez na vida.

Seguindo em frente, parou novamente ao chegar à área da clínica. Quando foi ajeitar as roupas, percebeu que ainda vestia somente o manto.

Não voltaria para se trocar, isso era certo.

Batendo à porta da sala de recuperação, ele chamou:

– Luchas? Está acordado?

– Pode entrar – foi a resposta rouca.

Ele teve que se preparar antes de entrar. E ficou contente por ter feito isso.

Deitado na cama com a cabeceira erguida, Luchas ainda parecia estar à beira da extinção. O rosto do qual Qhuinn se lembrava como sendo inteligente e jovem estava marcado e austero. O corpo, dolorosamente magro. E aquelas mãos...

Jesus Cristo, as mãos...

E ele achava que as suas doíam um pouco?

Pigarreou antes de falar:

– Oi.

– Olá.

– Então... hum... Como você está?

Que pergunta... O cara estava diante de semanas de recuperação na cama, e depois meses de fisioterapia – e teria sorte se um dia voltasse a segurar uma caneta.

Luchas fez uma careta ao tentar dar de ombros.

– Estou surpreso por você ter vindo.

– Bem, você é o meu... – Qhuinn se deteve. Na verdade, o cara não era mais um parente seu. – Quero dizer...

Luchas fechou os olhos.

– Sempre fui e sempre serei sangue do seu sangue. Nenhum pedaço de papel pode mudar isso.

Os olhos de Qhuinn pousaram para a mão com o anel de sinete.

– Acho que nosso pai discordaria disso.

– Ele está morto. Portanto, a opinião dele já não é mais relevante.

Qhuinn piscou.

Quando ele não disse nada, Luchas abriu os olhos.

– Você parece surpreso.

– Sem querer ofender, mas jamais pensei ouvir o que acaba de sair dos seus lábios.

O macho indicou o corpo alquebrado.

– Eu mudei.

Qhuinn se esticou para pegar uma cadeira; enquanto se acomodava, esfregou o rosto. Fora até ali porque visitar seu antes supostamente irmão morto era a única desculpa remotamente aceitável para sair de uma festa em sua homenagem.

E passar a noite vendo Blay e Saxton juntos? Isso não iria acontecer.

Só que agora que estava ali, ele não se achava capaz de sustentar qualquer tipo de conversa.

– O que aconteceu com a casa? – perguntou Luchas.

– Hum... nada. Quero dizer, depois... do que aconteceu lá, não a reivindicaram, e eu não tinha direito a ela. Quando ela passou para Wrath, ele a devolveu para mim, mas veja, ela é sua. Nunca entrei lá desde que fui expulso.

– Eu não a quero.

Ok, isso era uma surpresa. Enquanto crescia, seu irmão falava sem parar de tudo o que queria conquistar quando ficasse mais velho: a educação, a proeminência social, assumir do ponto em que o pai deixaria tudo.

Ele renegando aquilo era como alguém recusar um trono: inimaginável.

– Você já foi torturado? – Luchas murmurou.

A infância dele lhe veio à mente. Depois, a Guarda de Honra. Mas de jeito nenhum ele mencionaria nada daquilo.

– Já levei umas surras, sim.

– Aposto que sim. O que acontece depois?

– Como assim?

– Como você volta ao normal?

Qhuinn flexionou as mãos doloridas, olhando para os dedos perfeitos apesar de todas as dores que sentia. Seu irmão já não conseguiria mais contar até dez. Recuperar-se era uma coisa, mas regeneração era algo totalmente diferente.

– Não existe mais normalidade – ele se ouviu dizer. – Você... meio que... só segue adiante, porque isso é tudo o que lhe resta. A parte mais difícil é ficar perto das pessoas... É como se elas estivessem em outra frequência, mas só você sabe disso. Elas falam de suas vidas e o que há de errado com elas, e você... as deixa falar. É uma linguagem totalmente diferente, e você tem que se lembrar de que só pode lhes responder nesse idioma. É bem difícil se relacionar.

– É, é exatamente isso – Luchas disse devagar. – Você tem razão.

Qhuinn esfregou o rosto de novo.


– Nunca esperei ter nada em comum com você.

Mas eles tinham. E quando Luchas o encarou, aqueles olhos cinza perfeitamente combinados encontraram-se com os ferrados do irmão, e a conexão estava ali presente. Os dois atravessaram o inferno, e aquilo era mais poderoso do que o DNA que partilhavam.

Era tão estranho.

E engraçado; supôs que aquela parecia a noite para ele encontrar uma família em todas as partes.

Exceto onde mais queria.

Enquanto o silêncio se estendia, com nada além dos bipes das máquinas de monitoramento ao lado da cama para romper a quietude, Qhuinn ficou ali por um bom tempo. Ele e o irmão não conversaram muito, e estava tudo bem. Era aquilo o que ele queria. Ele não estava pronto para falar de Layla e do bebê deles, e ele deduzia que Luchas não lhe perguntar a respeito significava alguma coisa. E ele, certamente, não abordaria o seu assunto com Blay.

No entanto, era agradável estar ali sentado com o irmão. Havia algo a respeito das pessoas que cresciam juntas, aquelas com quem você partilhara a infância, as pessoas das quais você não se lembra de um tempo em que não as conhecia. Mesmo que o passado fosse somente uma complicação, conforme envelhece você apenas se sente contente pelos filhos da puta ainda habitarem o seu planeta.

Isso lhe dá a ilusão de que a vida não era tão frágil quanto na realidade é – e, de vez em quando, isso é a única coisa que o faz atravessar as noites.

– É melhor eu ir para você poder descansar – disse, esfregando os joelhos para acordar as pernas.

Luchas virou a cabeça no travesseiro hospitalar.

– Vestido estranho para você, não?

Qhuinn olhou para o manto negro.

– Ah, este trapo velho? Foi a primeira coisa que vi para vestir.

– Parece cerimonial.

– Precisa de alguma coisa? – Qhuinn se levantou. – Comida?

– Estou bem, obrigado.

– Bem, avise se precisar de algo, ok?

– Você é um rapaz decente, Qhuinn, sabia?

O coração de Qhuinn parou e depois bateu forte. Aquela era a frase que o pai sempre usava para descrever cavalheiros... era como um A+ no quesito elogio, o máximo de todos, o equivalente a um abraço de urso e um cumprimento com a palma erguida para um cara normal.

– Obrigado, cara – disse ele, rouco. – Você também é.

– Como pode dizer isso? – Luchas pigarreou. – Como, em nome da Virgem Escriba, pode dizer isso?

Qhuinn exalou fundo.

– Quer saber? Vou te contar como isso é possível. Você era o favorito. Eu, uma maldição. Estávamos em polos opostos na escala em nossa casa. Mas nenhum de nós teve escolha. Você não era mais livre do que eu. Você não teve escolha a respeito do seu futuro. Ele foi determinado no seu nascimento, e de certa forma, os meus olhos... eles foram o meu passaporte para sair da cadeia, porque significava que ele não se importava comigo. Ele acabou comigo? Sim, mas pelo menos eu pude decidir o que queria fazer e para onde queria ir. Você... nunca teve essa possibilidade. Você não passava de uma equação matemática já resolvida quando foi concebido, com todas as respostas predeterminadas.

Luchas fechou os olhos novamente e estremeceu.

– Eu fico lembrando tudo. Todos aqueles anos, desde a minha primeira lembrança... até a última coisa que eu vi naquela noite quando... – ele tossiu um pouco, como se seu peito doesse, ou como se o ritmo do seu coração tivesse vacilado um pouco. – Eu o odiava. Sabia disso?

– Não. Mas isso não me surpreende.

– Não quero voltar para aquela casa.

– Então não precisa. Mas se quiser... eu vou com você.

Luchas voltou a olhar para ele.

– Verdade?

Qhuinn balançou a cabeça. Mesmo não estando com pressa alguma de andar naqueles cômodos e dançar com os fantasmas do passado, ele iria lá se Luchas quisesse.

Dois sobreviventes de volta à cena dos crimes que os definiam.

– Sim, verdade.

Luchas deu um sorriso breve, a expressão em nada parecida com aquela que ele costumava ter. E isso estava ok. Qhuinn preferia essa àquela. Era honesta. Frágil, porém honesta.

– Vejo você em breve – disse Qhuinn.

– Isso seria... muito legal.

Virando-se, Qhuinn empurrou a porta e...

Blay estava à sua espera no corredor, fumando um cigarro enquanto estava sentado no chão.

Enquanto Qhuinn saía pela porta, Blay se pôs de pé e esmagou o Dunhill no copo em que estivera bebendo. Ele não sabia muito bem como o lutador estaria, mas, decerto, não assim: tão tenso e infeliz, apesar da incrível honra que lhe fora concedida. Pensando bem, passar um tempo ao lado do leito hospitalar do irmão não pode ser um evento muito feliz.

E Blay não era estúpido. Saxton estava de volta à casa.

– Pensei que o encontraria aqui – disse, quando o macho nem mesmo lhe disse um oi.

Na verdade, os olhos azul e verde de Qhuinn se ocupavam com o corredor, fitando para tudo quanto é lado, exceto para ele.

– Então... como está o seu irmão? – Blay o instigou a falar.

– Vivo.

Pelo visto aquilo era a única coisa que poderiam desejar por enquanto.

E, ao que tudo levava a crer, essa era a única coisa que Qhuinn estava disposto a dizer. Talvez ele não devesse ter ido até lá.

– Eu... hum... queria lhe desejar parabéns.

– Obrigado.

Ok, Qhuinn ainda não estava olhando para ele. Em vez disso, o cara estava concentrado na direção do escritório, como se, em sua mente, ele já estivesse caminhando para lá e fazendo bom uso daquela passagem no armário cheio de suprimentos de papel do escritório...

O som de Qhuinn estalando as juntas dos dedos era tão alto quanto tiros. Depois ele flexionou as mãos, esticando os dedos, como se eles estivessem doendo.

– Isso é histórico – Blay foi pegar mais um cigarro, mas se conteve. – Uma verdadeira primeira vez.

– Tem havido muito disso por aqui – Qhuinn disse com uma ponta de irritação.

– O que isso quer dizer?

– Nada. Não é nada importante.

Cristo, pensou Blay, ele não deveria fazer aquilo.

– Pode olhar para mim? Isto é, você vai morrer se olhar para mim?

Aqueles olhos descombinados se voltaram.

– Ora, mas eu vi você, pode ter certeza. Acho que o seu macho está em casa. Vai contar para ele que andou me fodendo enquanto ele esteve fora? Ou vai manter esse segredinho sujo? É, pssssiu, não diga nada ao meu primo.

Blay cerrou os dentes.

– Seu santarrão filho da puta.

– Desculpe, mas não sou eu quem tem namorado...

– Vai mesmo ficar aqui fingindo que foi muito franco ao nosso respeito? Como quando Vishous passou por aquela porta – ele apontou o dedo para o outro lado do corredor –, você não pulou como se o seu traseiro estivesse pegando fogo? Quer fingir que esteve todo orgulhoso por estar transando com um cara?

Qhuinn pareceu momentaneamente surpreso.

– Acha que foi por isso? E não, hum, deixe-me pensar, por tentar respeitar o fato de que você estava traindo o amor da sua vida!

Àquela altura, os dois estavam com os quadris empinados, as vozes se elevando e sendo transportadas pelo corredor.

– Ah, mas que idiotice! – Blay cortou o ar com a mão. – Isso é uma absoluta cretinice! Veja bem, esse sempre foi o seu problema. Você nunca quis sair do armário...

– Sair do armário? Por que, acha que sou gay?

– Você transa com homens! O que acha que isso significa, porra?

– Esse é você... Você transa com caras. Você não gosta de mulheres e de fêmeas...

– Você nunca foi capaz de aceitar quem você é – Blay gritou – porque tem medo do que as pessoas vão pensar! O grande iconoclasta, o senhor Piercing, ferrado pela família! A verdade é que você é um covarde e sempre foi!

A expressão de Qhuinn era de absoluta fúria, a ponto de Blay estar pronto para ser socado – e, inferno, ele queria levar um soco só para poder ter o prazer de esmurrar de volta.

– Vamos deixar as coisas bem claras – Qhuinn bradou. – Você fica com a sua merda do seu lado do corredor. E isso inclui o meu primo e o fato de você o ter traído.

Blay levou as mãos para o alto e teve que se conter antes de sair da própria pele.


– Não suporto mais isso. Não consigo mais fazer isso com você. Parece que passei a vida inteira lidando com as suas merdas...

– Se eu sou gay, por que você é o único macho com quem estive?

Blay parou no ato e só ficou olhando para o cara, com as imagens de todos aqueles homens nos banheiros se infiltrando em sua mente. Pelo amor do que existia de mais sagrado, ele se lembrava de cada um deles, mesmo que, sem dúvida, Qhuinn não se lembrasse. Dos seus rostos. Dos seus corpos. Dos seus orgasmos.

Todos recebendo o que ele desejara tão desesperadamente, e lhe fora negado.

– Como se atreve? – perguntou. – Mas que porra, como se atreve? Ou acha que eu não sei da sua história sexual? Tive que testemunhá-la por muito mais tempo do que eu queria. E, francamente, ela não é tão interessante assim... e nem você é.

Enquanto Qhuinn empalidecia, Blay começou a balançar a cabeça.

– Pra mim já chega. Não aguento mais... O fato de você não aceitar quem você é vai acabar com o que resta da sua vida, mas isso é problema seu, não meu.

Qhuinn praguejou.

– Nunca pensei que eu fosse dizer isso... mas você não me conhece.

– Eu não conheço você? Acho que o problema é outro, idiota. Você não se conhece.

E com isso, ele esperou algum tipo de explosão, alguma emoção teatral, absurda, excessiva emanando do cara.

Nada.

Qhuinn apenas aprumou os ombros, empinou o queixo e falou de modo controlado:

– Passei o último ano tentando descobrir quem sou, parando de mentir, tentando...

– Então você desperdiçou 365 noites. Mas, como todo o resto a esse repeito, o problema é seu.

Com um xingamento cruel, Blay se virou e começou a se afastar. E não olhou para trás. Não havia motivo. Não havia ninguém no corredor para quem ele quisesse olhar.

Caraca, se a definição de insanidade era fazer a mesma coisa repetidamente à espera de um resultado diferente, então ele perdera o juízo há muito tempo. Para a sua sanidade mental, seu bem-estar emocional e sua vida, ele precisava deixar tudo isso...

Qhuinn o girou, segurando-o pelo braço, o seu rosto furioso bem diante do dele.

– Não me deixe falando sozinho assim.

Blay sentiu uma onda de exaustão assolá-lo.

– Por quê? Porque você tem mais uma coisa para me dizer? Alguma ideia brilhante que acabou de ter a respeito de si mesmo que vai fazer todas as peças do quebra-cabeça se encaixarem? Alguma confissão que vá estabilizar o navio e fazer tudo ficar maravilhoso ao pôr do sol na praia? Você não tem esse tipo de vocabulário, e eu já não sou mais ingênuo.

– Quero que você se lembre de uma coisa – Qhuinn grunhiu. – Tentei fazer com que as coisas entre nós dessem certo. Eu nos dei uma chance.

Blay ficou de queixo caído.

– Você nos deu uma chance? Está de brincadeira comigo? Acha que fazer sexo comigo para se vingar do seu primo é um relacionamento? Acha que algumas sessões secretas consistem num caso amoroso?

– Era tudo de que eu dispunha – aqueles olhos descombinados perscrutaram o rosto de Blay. – Eu não estou dizendo que foi um tremendo de um romance, mas eu apareci porque eu queria estar com você do modo que fosse possível.

– Bem, parabéns. E agora que nós dois experimentamos, posso lhe garantir, com certeza, que não servimos um para o outro – e enquanto Qhuinn começava a discutir, Blay enfiou a mão no cabelo e quis arrancá-lo. – Preste atenção, se isso o ajudar a dormir durante o dia, e eu custo a acreditar que isso vá incomodá-lo por mais do que uma noite, diga a si mesmo que fez o que era possível, mas que não deu certo. Eu? Eu prefiro a realidade. O que aconteceu entre mim e você é exatamente a mesma coisa que você fez com todos aqueles aleatórios com quem esteve. Sexo... apenas sexo. E agora já chega.

Os olhos de Qhuinn ardiam.

– Você não me entendeu.

– Então você além de estar em negação está se iludindo.

– As pessoas mudam. Não sou mais assim, definitivamente não com você.

Deus... era um triste alívio sentir nada quando aquelas palavras se dirigiram a ele.

– Sabe... houve um tempo em que eu teria caído de joelhos na sua frente ao ouvir algo assim – murmurou. – Mas agora... tudo o que eu vejo é você pulando daquele chão no segundo em que alguém abriu a porta e nos viu juntos. Você diz que essa reação foi por causa de Saxton e do meu relacionamento? Tudo bem. Mas, estou quase certo... não, estou totalmente certo de que, se você olhar a fundo, vai descobrir que tem muito mais a ver com você do que com o seu primo. Você se odeia há tantos anos, que não acho que seja possível amar alguém ou sequer entender quem você é. Espero que, um dia, você descubra isso, mas eu não vou fazer parte disso; isso eu prometo.

Qhuinn meneou a cabeça, o franzir em sua testa tão profundo que era como se uma fenda tivesse se aberto entre as sobrancelhas.

– Acho que você já me decifrou direitinho, não?

– Não é tão difícil assim.

– Só para constar, eu estava apaixonado por você.

– Por três dias, Qhuinn. Três dias. Durante os quais houve drama suficiente para tornar Guerra e Paz um livro de comédia. Isso não é amor. É um sexo bom como distração para o fato de que a vida é uma merda.

– Eu não sou gay.

– Tudo bem. É bi. Bicurioso. Está experimentando. Tanto faz. Não me importo. Não mesmo. Eu sei quem eu sou e é assim que consigo viver a minha vida. O seu esquema é completamente diferente... e boa sorte com isso. Obviamente, está funcionando superbem para você.

Dito isso, ele se afastou novamente.

E, dessa vez... Qhuinn o deixou ir.


CONTINUA

CAPÍTULO 69

A vida inteira de Qhuinn sofreu nova guinada cerca de quinze horas após ele perder a virgindade. Mais tarde, ele decidiria se aquilo de que as coisas aconteciam em trios era verdade mesmo. Quando a coisa ocorria, porém, tudo o que ele queria era sobreviver...

Em algum momento durante as horas do dia, ele e Blay acordaram, se separaram e seguiram seus caminhos.

Qhuinn teria preferido se eles voltassem para a casa principal juntos, mas ele tinha de parar para ver Luchas, e Blay estava ansioso para voltar para o quarto e tomar banho. E, de certa forma, isso não fora ruim, porque assim Qhuinn teve a oportunidade de também dar uma olhada em Layla.

No que se referia ao irmão e à Escolhida, tudo estava tranquilo. Os dois estiveram adormecidos em suas respectivas camas; a cor do rosto de Luchas estava melhor e, pela primeira vez, quando Qhuinn foi ao quarto de Layla, ele sentiu a gravidez. Os níveis de hormônio o atingiram assim que entrou, e ele ficou imóvel de tão forte que foi a sensação.

O que fora muito bom mesmo.

O que ele não gostara muito foi de passar diante da porta de Blay e querer bater, entrar e voltar a dormir.

Em vez disso, acabara dentro de suas quatro paredes completamente sozinho.

Na cama. No escuro. Indo e voltando da terra do REM pelas duas horas que antecediam a Primeira Refeição.

Portanto, quando a porta foi escancarada e uma fileira de homens altos em mantos negros entrou, seu passado e presente colidiram, os dois se tornando intercambiáveis – a tal ponto que o ataque da Guarda de Honra pulou para fora do túmulo da sua memória e aterrissou bem em seu quarto na mansão.

Sem saber se estava sonhando ou se aquilo era real, seu primeiro pensamento foi de alegria por Blay não estar com ele. O cara já o encontrara quase morto no acostamento da estrada uma vez. Ninguém precisava de um replay daquilo.

Seu segundo pensamento foi que abateria quantos pudesse antes que eles, finalmente, acabassem com ele.

Com um grito de guerra, Qhuinn explodiu para fora da cama, o corpo nu passando ao ataque com tal força que acabou derrubando os dois primeiros. Atacando com as pernas, ele chutou e socou tudo que dele se aproximava, e houve uma pequena satisfação quando seus alvos praguejaram e se afastaram do seu alcance...

Algo prendeu seu peito por trás, e o girou com tal força que seus pés se ergueram do chão e formaram um arco e...

Olá, parede.

O impacto valeu por três pontos em sua brilhante ideia de revide de luta, o rosto, o tronco, os quadris se chocando na parede com tanta força que, sem dúvida, ele deixara uma reprodução em 3D do seu corpo, ao estilo dos desenhos animados.

Instantaneamente, ele empurrou a superfície plana, preparado para se...

O braço que o empurrou pela nuca o prendia de tal forma que parecia ser de aço. Não havia, literalmente, espaço para se mexer, e mesmo assim ele tentou, pois seu corpo se recusava a ser dominado.

– Calma aí, sua besta. Apenas fique parado antes que eu seja forçado a machucá-lo.

O som da voz de Vishous não fazia sentido algum.

E, de repente, pelo canto do olho, ele percebeu que um círculo fora formado ao seu redor, todos aqueles mantos negros o cercando, assim como aquela chave de braço no seu pescoço.

Mas eles não estavam atacando.

– Apenas relaxe – disse V. em sua orelha. – Respire comigo, vamos lá... Apenas respire. Ninguém vai machucar você.

A fala ajudou, aquela voz calma, controlada atingindo sua reação de “lute ou fuja” e aplacando o rugido do seu pânico.

Logo em seguida, Qhuinn começou a tremer, os músculos processando toda a adrenalina.

– Vishous?

– Sim, sou eu, amigo. Você precisa continuar respirando.

– Quem... mais?

– Rhage.

– Butch.

– Phury.

– Zsadist.

– Tohr.

As vozes combinavam com os nomes, aqueles tons graves, sérios, sem sinais de bobeira, penetrando em seu cérebro, ajudando-o a perceber a realidade que não envolvia o passado.

E, então, o último foi o responsável por ele descer o derradeiro degrau do vórtice mental, regressando para o que era real.

– Wrath.

Qhuinn tentou virar a cabeça na direção do Rei, mas seu impulso não o levou a nada.

– Vou soltar você, ok, amigo? – disse V. – Vai se controlar?

– Sim.

– No três, então. Um. Dois. Três.

Vishous deu um salto para trás e parou numa pose de combate: braços erguidos, punhos prontos, posição equilibrada. Mesmo com o rosto do Irmão coberto pelo capuz, Qhuinn bem podia visualizar a expressão dele: sem dúvida se Qhuinn fizesse qualquer movimento, ele seria reapresentado à parede – e aquela amizade já fora travada, muito obrigado.

Ele se sentia uns quinze centímetros mais fino.

Com uma imprecação, Qhuinn se virou devagar, mantendo as mãos onde a Irmandade pudesse vê-lo.

– Estão me expulsando da mansão?

Ele não fazia ideia do que tinha feito, mas com seu histórico de irritar as pessoas, voluntariamente ou não? Podia ser qualquer coisa.

– Não, seu idiota – V. respondeu com uma risada.

Encarando a fila de silhuetas solenes cobertas por capuzes, ele procurou entender quem era quem, travando contato, lembrando-se de que aqueles eram os caras com quem ele lutava lado a lado, que sempre protegeram suas costas, que eles trabalhavam juntos.

Por isso, que diabos era aquilo...

A terceira figura a partir da esquerda levantou o braço, um dedo longo estendido e apontando para o meio do peito de Qhuinn.

Na mesma hora, Qhuinn se viu novamente na carcaça daquele Cessna, com o drama do voo concluído, Zsadist vivo e bem, o objetivo alcançado... aquele macho o destacando como fazia agora.

No Antigo Idioma, Wrath disse:

– Ser-lhe-á feita uma pergunta. E ela será feita apenas uma vez. A sua resposta será testada desde este instante até o resto de sua linhagem. Está pronto para responder a pergunta?

O coração de Qhuinn começou a bater forte. Os olhos voltando-se ao redor, ele não podia acreditar que aquilo...

A não ser... mas como era possível? Considerando-se a sua linhagem e o seu defeito, não seria legal alguém como ele...

Do nada, a imagem de Saxton trabalhando na biblioteca todas aquelas noites o acometeu.

Puta... merda.

Tantas perguntas: por que ele? Por que agora? E quanto a John Matthew, cujo peito, magicamente, já carregava a marca da Irmandade?

Enquanto a sua mente alucinava, sabia que tinha que responder, mas, cacete, ele não podia...

Com uma clareza absurda, ele pensou na filha, visualizando a imagem que vira na porta do Fade.

Qhuinn olhou para cada um dos capuzes de novo. Quanta ironia, pensou. Quase dois anos antes, uma Guarda de Honra em mantos negros fora enviada para deixar bem claro que a sua família não o queria. E agora, ali estavam aqueles machos, reunidos para levá-lo a um tipo diferente de família – que era tão ou mais forte que aquela de sangue.

– Pode crer, manda aí – foi a sua resposta.


A primeira pista de Blay de que algo grande estava acontecendo foram as passadas diante da porta do seu quarto: ele estava na frente do espelho, barbeando-se, quando as ouviu se aproximando pelo corredor das estátuas, muitas delas, pesadas e repetitivas.

Só podia ser a Irmandade.

Depois, enquanto ele se inclinava sobre a pia para retirar o resto do creme de barbear, algo pesado caiu no chão do quarto ao lado – ou foi lançado contra a parede. Parecia muito ter vindo do quarto de Qhuinn.

Desligando a torneira, ele pegou uma toalha e envolveu os quadris enquanto saía da suíte e seguia para...

Blay parou de pronto. O quarto de Qhuinn estava escuro, mas a luz do corredor caía sobre um círculo de mantos negros que cercava o cara. E ele estava sendo empurrado de cara contra a parede.

O único pensamento de Blay foi que uma segunda Guarda de Honra viera atrás do lutador – mesmo ele sabendo muito bem que era a Irmandade debaixo daqueles mantos. Só podia ser, certo?

A voz de Vishous resolveu essa questão, pois as palavras do macho se fizeram ouvir de modo claro e lento.

Em seguida, Qhuinn foi solto. Quando ele se virou, estava branco como um lençol, tremendo de pé nu no centro do círculo das figuras encapuzadas.

Wrath quebrou o silêncio, a voz grave de barítono do Rei preenchendo a escuridão:

– Ser-lhe-á feita uma pergunta. E ela será feita apenas uma vez. A sua resposta será testada desde este instante até o resto de sua linhagem. Está pronto para responder a pergunta?

Blay levou a mão da adaga para a boca quando ela se abriu. Aquilo não podia ser... podia? Eles o estavam iniciando na Irmandade da Adaga Negra?

Instantaneamente, ele juntou as peças: Saxton trabalhando duro todos aqueles meses; os atos de heroísmo de Qhuinn; John sendo informando de que o cara já não seria mais o seu ahstrux nohtrum.

Wrath devia ter alterado as Leis Antigas.

Puta que o pariu...

– Pode crer, manda aí...

Blay teve que sorrir quando recuou e voltou para o quarto. Só mesmo Qhuinn para ser tão direto.

Quando a porta se fechou, ele ficou grudado nela, esperando. Minutos depois, aquelas passadas pesadas retornaram, transitando diante do seu quarto, descendo para o vestíbulo, desaparecendo... mudando a história para sempre.

Em toda a existência da Irmandade, nunca houve ninguém iniciado que não fosse filho de um Irmão ou uma fêmea de sangue de Escolhida. Qhuinn, tecnicamente, era um aristocrata – mesmo tendo sido banido pela família, e com o seu “defeito”, a sua linhagem era aquilo que era. Mas não tinha as credenciais de DNA, ou o nome de guerreiro, que os outros tinham.

Contudo, desde que sobrevivesse à cerimônia, ele voltaria à mansão como um macho entre seus pares, para nunca mais ser desertado.

Era bom que Luchas estivesse vivo para presenciar aquilo. Seria muito importante.

Blay se vestiu, e quando verificou o celular, viu que havia uma mensagem para o grupo todo enviada por Tohr, informando que ninguém sairia a campo naquela noite e que iriam receber um par de novos hóspedes: os dois Sombras iriam morar na mansão.

Beleza. Em face à inquietação da aristocracia e ao atentado contra Wrath? Nada melhor do que ter aqueles dois assassinos debaixo do teto. Junto aos modos afetados de Lassiter, isso significava que o Rei dispunha de um trio com habilidades extras para protegê-lo.

Com um pouco de sorte, Trez e iAm se tornariam hóspedes permanentes.

Saindo do quarto, ele correu pelas escadas e não se surpreendeu ao encontrar os doggen se apressando para arrumar um banquete.

Quanto tempo levaria?, ele se perguntou.

Ah, como ele queria ter algo com que passar o tempo.

Indo até a sala de bilhar, pois sabia que de nada adiantaria abordar Fritz para oferecer ajuda para os preparativos, ele pegou um taco e o triângulo para formação das bolas. Enquanto passava giz na ponta, a campainha da porta da frente tocou.

– Pode deixar – ele exclamou enquanto levava o taco consigo até a tela da câmera de segurança.

Saxton estava ali, parecendo descansado e saudável.

Blay abriu a porta.

– Bem-vindo de volta.

Houve um momento de incerteza, pois não sabiam se se abraçavam ou se cumprimentavam com um aperto de mãos.

– Precisamos parar com essa estranheza – anunciou Saxton. – Venha cá.

– É mesmo, não?

Depois de um abraço rápido, Blay apanhou as malas combinadas da Gucci e os dois subiram o lance de escadas, lado a lado.

– Então, como foi de férias? – Blay perguntou.

– Foi maravilhoso. Fui para a casa da minha tia... aquela que ainda fala comigo, sabe? Ele tem uma propriedade na Flórida.

– Um lugar bem perigoso para vampiros. Não existem muitos porões.

– Ah, mas ela vive num castelo de pedra – Saxton indicou o vestíbulo. – Não como este. As noites são quentes, o oceano é maravilhoso, a vida noturna...

Quando Saxton parou abruptamente, Blay olhou para ele.

– Está tudo bem, sabe. Estou feliz que tenha se divertido. De verdade.

Saxton o observou atentamente e depois murmurou:

– Você também andou ocupado, não?

Maldita coloração de ruivo. Todo rubor ficava evidente e, naquele instante, seu rosto estava em fogo.

Quando viraram à esquerda depois do escritório de Wrath e seguiram pelo corredor das estátuas, Saxton riu de leve.

– Estou feliz por você. E não vou fazer nenhuma pergunta.

Ele sabia o “quem”, Blay concluiu.

– Bem. É isso.

– Que tal me pôr a par das novidades? – Saxton sugeriu ao entrarem em seu quarto. – Sinto como se estivesse longe há um século.

– Bem... prepare-se.

Luchas. Trez e iAm. Qhuinn e a iniciação.

Quando Blay terminou de falar, Saxton estava sentado na cama de boca aberta.

– Mas você sabia dessa do Qhuinn, não sabia? – disse Blay ao terminar seu relato.

– Sim, eu sabia – Saxton endireitou a gravata borboleta, mesmo o nó estando perfeitamente simétrico. – E tenho que lhe dizer que, apesar de não saber tudo o que você sabe sobre ele no campo de batalha, tudo o que ouvi sugere que é uma honra digna. Fiquei sabendo que ele teve um papel de muita importância no resgate de Wrath no dia da tentativa de assassinato.

– Ele é corajoso, isso é verdade.

Dentre tantas outras coisas.

Enquanto Blay olhava para o corredor e visualizava aquelas figuras encapuzadas ao redor do seu amigo, tudo em que pensava era... o que diabos vão fazer com ele?


CAPÍTULO 70

Qhuinn não tinha ideia de onde estava.

Antes de saírem do seu quarto, eles lhe deram um manto negro e o instruíram a colocar o capuz, fixar o olhar no chão e manter as mãos cruzadas às costas. Ele não podia falar a menos que o pedissem para falar e deixaram bem claro que o modo como ele agisse seria parte do seu julgamento.

Não podia ser nem cretino nem covarde.

Ele podia fazer isso.

A parada seguinte, depois de descerem a escadaria principal, foi o Escalade de V.; ele soube disso pelo cheiro do tabaco turco e pelo ronco do motor. Trajeto curto, executado lentamente. E depois lhe disseram para sair, o ar frio atingindo-o por debaixo do capuz e pela bainha do manto.

Os pés descalços cobriram um pedaço de terra batida e dura pelo frio, e depois um pedaço mais fofo, sem neve por cima. A julgar pela acústica, ficou claro que eles seguiam por um corredor ou talvez uma caverna...? Não demorou para que o fizessem parar, um tipo de portão foi aberto, e então ele se viu numa descida. Pouco depois, foi parado uma segunda vez, e houve uma espécie de sussurro, como se mais uma barreira fosse desimpedida.

Agora, mármore liso sob seus pés. E ele estava aquecido. Também havia uma fonte suave de luz – luzes de velas.

Deus, seu coração batia rápido em seus ouvidos.

Após alguns metros, ele foi parado novamente e ouviu o som de tecido sendo removido ao seu redor. Os Irmãos estavam retirando os mantos.

Ele quis olhar, ver onde estavam, descobrir o que estava acontecendo, mas não o fez. Como instruído, manteve a cabeça baixa e os olhos no...

Uma mão pesada pousou em sua nuca e a voz de Wrath ecoou no Antigo Idioma:

– Você não é digno de entrar aqui como está. Acene com a cabeça.

Qhuinn acenou.

– Diga que é indigno.

No Antigo Idioma, ele acatou:

– Sou indigno.

Ao seu redor, os Irmãos explodiram no Antigo Idioma, numa discordância que o fez querer agradecer a eles por apoiarem-no.

– Apesar de ser indigno – prosseguiu o Rei –, você deseja tornar-se digno esta noite. Acene com a cabeça.

Ele acenou.

– Diga que quer se tornar digno.

– Quero me tornar digno.

Dessa vez, o tremendo grito dos Irmãos foi de aprovação e apoio.

Wrath continuou:

– Só existe um modo de se tornar digno, e é o modo adequado e próprio. Corpo do corpo. Acene com a cabeça.

Qhuinn acenou.

– Diga que quer se tornar corpo do nosso corpo.

– Quero me tornar corpo do seu corpo.

Assim que a voz sumiu, um canto começou a ser entoado, as vozes graves da Irmandade se misturando até formarem um coro perfeito numa cadência perfeita. Ele não os acompanhou, porque não o ordenaram que o fizesse, mas, assim que alguém se postou diante dele, e alguém se colocou atrás, e logo o grupo todo passou a oscilar de um lado para o outro, seu corpo seguiu a liderança deles.

Movendo-se juntos, tornaram-se uma unidade, os ombros largos movendo-se para frente e para trás no ritmo do canto, o peso remexendo nos quadris – a fila começou a avançar.

Qhuinn começou a cantar. Não foi de propósito, apenas aconteceu. Seus lábios se partiram, os pulmões se encheram e a voz acompanhou a dos outros.

No instante em que começou a cantar, começou a chorar.

Ainda bem que estava de capuz.

Por toda a sua vida ele quis pertencer. Ser aceito. Estar entre tantos que eram respeitados. Ele o desejou com tanta avidez que a privação de toda e qualquer união quase o matara – e ele só sobrevivera ao se revoltar contra a autoridade, os costumes, as normas.

Ele nem mesmo se dera conta de ter desistido de um dia encontrar tal comunhão.

E lá estava ele agora, em algum lugar debaixo da terra, cercado por machos que... o escolheram. A Irmandade, os lutadores mais respeitados pela raça, os soldados mais poderosos, a elite da elite... escolhera a ele.

Aquilo não era um acidente de nascimento.

Ser considerado uma maldição para acabar sendo acolhido ali, naquele instante? De súbito, ele se sentiu inteiro como nunca antes em sua vida.

De repente, a acústica se alterou, o canto coletivo ricocheteando ao redor, como se tivessem entrado num grande espaço com teto alto.

Uma mão em seu ombro o fez parar.

Em seguida, o coro e o movimento cessaram, os acordes finais de suas vozes sumindo aos poucos.

Alguém o segurou pelo braço e o incitou a avançar.

– Escada – era a voz de Z.

Ele subiu cerca de seis degraus, depois chegou a um patamar. Quando parou, foi com o peito e os dedos dos pés contra o que parecia ser uma parede de mármore do mesmo tipo em que o piso parecia ser feito.

Zsadist se afastou, deixando-o onde ele estava.

Seu coração bateu forte contra o esterno.

A voz do Rei soou forte como um trovão:

– Quem indica esse macho?

– Eu – Zsadist respondeu.

– Eu – Tohr ecoou.

– Eu.

– Eu.

– Eu.

– Eu.

Qhuinn teve que piscar repetidamente enquanto, um a um, os Irmãos se pronunciavam. Cada um dos malditos Irmãos o indicava.

E então foi a vez do último.

A voz do Rei soou alta e clara:

– Eu.

Cacete, ele precisava piscar um pouco mais.

Quando Wrath prosseguiu, a inflexão aristocrática do Antigo Idioma foi acompanhada pela força de um guerreiro:

– Com base no testemunho dos membros reunidos da Irmandade da Adaga Negra, e com base na indicação de Zsadist e Phury, filhos do guerreiro da Adaga Negra Ahgony; Thorment, filho do guerreiro da Adaga Negra Hharm; Butch O’Neal, parente de sangue de minha própria linhagem; Rhage, filho do guerreiro da Adaga Negra Tohrture; Vishous, filho do guerreiro da Adaga Negra conhecido como Bloodletter; e na minha própria como Wrath, filho de Wrath, consideramos o macho diante de nós, Qhuinn, filho de ninguém, uma indicação adequada para a Irmandade da Adaga Negra. E como está em meu poder e juízo fazer tal coisa, e por ser adequado para a proteção da raça, e, além disso, pelas leis terem sido reconstruídas para guarnecer o que é de direito e adequado, eu dispenso toda e qualquer exigência de linhagem. Podemos agora dar início. Virem-no. Dispam-no.

Antes que alguém se aproximasse, Qhuinn aprumou os ombros e conseguiu esfregar os olhos rapidamente, assim voltava a ser um macho quando o giraram e retiraram seu manto.

Qhuinn arfou. Ele estava sobre um tablado, e a caverna que estava diante dele era iluminada por centenas de velas negras, as chamas criando uma sinfonia de luzes suaves e douradas que queimavam em paredes mal cortadas e refletiam o brilho do piso.

Mas não foi isso que chamou a sua atenção: bem diante dele, entre ele e o tremendo espaço bem iluminado, havia um altar.

No centro do qual jazia um crânio.

A coisa devia ser bem antiga, pois o osso não era branco como os dos recém-falecidos, mas trazia uma pátina escurecida de idade, de sacro, de venerável.

Aquele era o primeiro Irmão. Só podia.

Quando seus olhos se desviaram daquilo, ele se viu tomado por admiração: abaixo, olhando para ele, estavam os portadores vivos daquela tradição. A Irmandade estava ombro a ombro, os corpos nus dos guerreiros formando uma incrível parede de pele e músculos, a luz das velas cintilando sobre tanta força e poder.

Tohr segurou o braço de Wrath e conduziu o Rei pelas escadas que Qhuinn acabara de subir.

– Recoste-se na parede e segure as estacas – Wrath ordenou em inglês ao ser acompanhado até o altar.

Qhuinn obedeceu sem hesitação, sentindo as escápulas e o traseiro encostarem na pedra enquanto as mãos seguravam duas protuberâncias firmes em forma de cavilhas.

Quando o Rei levantou a mão, Qhuinn entendeu imediatamente como cada um dos Irmãos conseguira a cicatriz em forma de estrela no peitoral: uma antiga luva de prata estava na mão de Wrath, os espinhos marcando os nós dos dedos do objeto e, dentro do punho, havia o cabo de uma adaga negra.

Com um mínimo de espalhafato, Tohr estendeu o pulso de Wrath por cima do crânio.

– Meu senhor.

Enquanto o Rei aproximava a adaga, as tatuagens ritualísticas que delineavam a linhagem dele foram evidenciadas pela luz das velas – e depois, a lateral afiada marcou a pele.

Sangue vermelho vivo se avolumou e caiu sobre a taça de prata que estava incrustada na base do crânio.

– Meu corpo – proclamou o Rei.

Depois de um instante, Wrath lambeu a ferida para fechá-la. E depois, o macho imenso, com seu cabelo escuro longo até a cintura e em bico no alto da testa, e naqueles óculos escuros, foi conduzido até Qhuinn.

Mesmo sem o benefício da visão, Wrath, de algum modo, sabia exatamente onde seus corpos estavam posicionados, onde estava o rosto de Qhuinn, e qual era a altura...

Porque o Rei avançou até a garganta dele. Então, com força brutal, empurrou o rosto de Qhuinn para o lado, expondo-lhe a garganta.

Agora ele entendia para que serviam as cavilhas.

O sorriso cruel de Wrath expunha presas espantosas, do tipo que Qhuinn jamais vira.

– Seu corpo.

Com um ataque veloz como a luz, o Rei se segurou sem misericórdia, perfurando a veia de Qhuinn numa mordida brutal e depois tragando uma série de golfadas que eram engolidas uma a uma. Quando, por fim, retraiu os caninos, ele passou a língua sobre os lábios e sorriu como um chefe guerreiro.

E chegou a hora.

Qhuinn não precisou que lhe dissessem para se segurar firme. Abaixando as mãos, travou os ombros e as pernas, pronto para receber.

– Nosso corpo – rugiu Wrath.

O Rei não se conteve. Com a mesma acuidade certeira, ele cerrou o punho dentro da luva antiga e socou a coisa no peitoral de Qhuinn, o impacto das juntas com espinhos foi tão grande, que os lábios de Qhuinn se moveram na rajada que emanou de seus pulmões. A visão enxergou uma série de passarinhos por um momento, mas quando voltou, ela focalizou a expressão de Wrath.

Que era de respeito – e ausência absoluta de surpresa, como se Wrath tivesse antecipado que Qhuinn suportaria aquilo como um macho.

E assim continuou. Tohr foi o seguinte, aceitando a luva e a adaga, repetindo as palavras, cortando o braço, sangrando dentro do crânio, atacando a garganta de Qhuinn, depois atingindo com o máximo de sua força. E depois Rhage. Vishous. Butch. Phury. Zsadist.

Ao final, Qhuinn sangrava por causa das feridas no pescoço e no peito, o corpo estava coberto de suor, e o único motivo pelo qual não estava caído no chão eram aquelas cavilhas.

Mas ele não se importava com o que mais lhe fizessem; continuaria de pé não importando o que acontecesse. Desconhecia a história da Irmandade, mas estava disposto a apostar que nenhum daqueles caras caíra como um saco de batatas durante a iniciação deles – e ele não se importava em ser o primeiro de algumas maneiras, mas não devido à ausência de coragem.

Além disso, até ali, tudo bem. Os outros Irmãos estavam parados adiante, sorrindo de orelha a orelha para ele, como se aprovassem completamente o modo como ele vinha lidando com aquilo – e não é que isso só aumentava a sua determinação?

Com um aceno, como se tivesse recebido uma ordem, Tohr levou o Rei de volta ao altar e lhe entregou o crânio. Erguendo o sangue coletado, Wrath disse:

– Este é o primeiro de nós. Saúde o guerreiro que deu origem à Irmandade.

Um grito de guerra emanou dos Irmãos, a combinação das vozes trovejou pela caverna, e depois Wrath se aproximou de Qhuinn.

– Beba e junte-se a nós.

Entendido.

Com uma força renovada, ele pegou o crânio e olhou bem dentro das cavidades oculares ao levar a taça de prata aos lábios. Abrindo a boca, despejou o sangue pela garganta, aceitando os machos dentro de si, absorvendo-lhes a força... juntando-se a eles.

Ao seu redor, os Irmãos rugiram sua aprovação.

Quando terminou, voltou a colocar o crânio nas palmas de Wrath e limpou a boca.

Uma gargalhada se espalhou pelo peito amplo do Rei.

– Acho que vai querer se segurar nessas cavilhas, filho...

E foi essa a última coisa que ele ouviu.

Como um raio vindo dos céus e atingindo-o em cheio na cabeça, uma onda súbita de energia o atingiu, sobrepujando todos os seus sentidos. Ele deu um salto para trás, encontrando as cavilhas e segurando-se a elas bem quando seu corpo foi acometido por uma convulsão...

Ele tinha toda a intenção de permanecer consciente.

Mas, caramba... O redemoinho era poderoso demais.

Enquanto seu corpo tremia, e o coração palpitava, e a mente sibilava como um fogo de artifício, Bum!, as luzes se apagaram.


CAPÍTULO 71

– Sola, por que você não me contou que teríamos visita?

Sola fez uma pausa ao colocar a mochila sobre a bancada da cozinha. Embora sua avó estivesse claramente esperando uma resposta, ela não se viraria até que sua expressão não demonstrasse a surpresa que sentia.

Quando estava pronta, virou-se sobre uma bota.

A avó estava sentada na cadeira delicada à mesa, sua roupa de ficar em casa rosa e azul coordenando com os bobes na cabeça e as cortinas floridas logo atrás dela. Aos oitenta anos de idade, ela tinha o rosto graciosamente marcado de uma mulher que vivera no período de treze presidentes, numa Guerra Mundial, e com inúmeras dificuldades pessoais. Seus olhos, contudo, ardiam com a força de uma imortal.

– Quem veio aqui, vovó? – perguntou.

– O homem com o – a avó levantou a mão de juntas grossas e apontou para os bobes – ... cabelo escuro.

Bosta.

– Quando ele veio?

– Ele foi muito gentil.

– Ele deixou um nome?

– Então você esperava por ele?

Sola inspirou profundamente e rezou para que sua postura neutra continuasse a postos, apesar de sua irritação. Inferno, depois de viver anos com a avó era de se esperar que ela já estivesse acostumada ao fato de que a mulher nunca se desviava no que se referia a fazer perguntas.

– Não, eu não estava esperando por ninguém – e a ideia de que alguém aparecera à porta a fez enfiar a mão na bolsa. Havia uma .09 com visão a laser e um silenciador ali...o que era muito bom. – Como ele era?

– Muito grande. Cabelo escuro. Olhos profundos.

– De que cor? – a avó não enxergava muito bem, mas devia se lembrar disso. – Ele era...

– Como a gente. Ele falou comigo em espanhol.

Talvez aquele homem erótico que ela investigara fosse bilíngue. Ou trilíngue, a julgar pelo sotaque estranho.

– Então, ele deixou um nome? – não que isso fosse ajudar. Ela desconhecia o nome do homem que seguira.

– Ele disse que você o conhecia, e que vai voltar para ver você.

Sola olhou de relance para o relógio digital do micro-ondas. Passava pouco das dez.

– Quando ele veio?

– Não faz muito tempo – os olhos da avó se estreitaram. – Você tem visto ele, Marisol? Por que não me contou?

Naquele ponto, tudo escorregou para o português, as falas de sílabas destacadas se sobrepondo, todo tipo de “não estou namorando ninguém” misturado a “por que você não se casa”. Elas discutiram aquilo tantas vezes que basicamente retomavam as partes muito bem ensaiadas daquela peça de teatro já ultrapassada.

– Bem, eu gosto dele – anunciou a avó ao se levantar da mesa e bater na superfície com as palmas abertas. Enquanto o porta-guardanapos com sua pilha de Vanity Fair dava um salto, Sola quis praguejar. – Acho que você tem que trazer ele aqui para um jantar de família.

Eu até faria isso, vovó, mas não conheço o cara – e o que a senhora acharia se soubesse que ele é um criminoso? Um playboy?

– Ele é católico? – perguntou a avó a caminho da porta.

Ele é traficante de drogas, portanto, se é religioso, tem incríveis poderes de reconciliação.

– Ele parece um bom rapaz – a avó comentou por sobre o ombro. – Um bom rapaz católico – e aquilo foi tudo, por ora.

Enquanto os chinelos se arrastavam escada acima, sem dúvida o sinal da cruz era feito repetidamente pelo caminho. Sola bem conseguia visualizar isso.

Com uma imprecação, baixou a cabeça e fechou os olhos. De certa forma, ela não conseguia enxergar o homem sendo agradável e gentil só porque uma senhora de idade brasileira abrira a maldita porta. Católico, até parece.

– Maldição.

Em retrospecto, quem era ela para ser uma santa? Era uma criminosa. Há diversos anos. E o fato de ela sustentar a si e a avó não justificava tantas invasões de propriedade.

Quem seu homem misterioso sustentava, ela se perguntou quando o cachorro do vizinho começou a latir. Os gêmeos? Eles pareciam bastante autossuficientes. Será que ele tinha filhos? Uma esposa?

Por algum motivo, estremeceu.

Cruzando os braços diante do peito, ficou olhando o piso imaculado que a avó limpava todo santo dia.

Pensou que ele não tinha o direito de ir até lá.

Tudo bem, ela fora até a casa dele sem ser convidada, não é mesmo?

Sola franziu o cenho e levantou o olhar. A janela emoldurada pela cortina rosa rendada estava escura porque ela não acendera as luzes de fora ainda. Mas ela sabia que havia alguém ali fora.

E sabia muito bem quem era.

Com a respiração se tornando superficial e o coração começando a bater forte, ela levou a mão à garganta sem nenhum motivo.

Vire, ordenou-se. Fuja.

Mas... ela não fez isso.


Assail não tivera a intenção de ir até a casa da sua ladra. Mas o equipamento de rastreamento ainda estava acoplado ao Audi, e quando ele o informou de que ela havia retornado àquele endereço, viu-se incapaz de não se desmaterializar até ali.

No entanto, ele não queria ser visto. Então, escolheu o quintal dos fundos, e que sorte: quando a ladra entrara na cozinha, ele teve uma visão desobstruída dela, bem como de sua acompanhante.

A humana mais idosa era muito encantadora em seu modo mais ancião, o cabelo enrolado, o roupão vivaz como um dia de primavera, o rosto belo apesar da idade. Ela, porém, não parecia feliz, ao se sentar à mesa e olhar adiante, para o que Assail supunha, fosse a neta dela.

Palavras foram trocadas, e ele sorriu um pouco na escuridão. Havia muito amor entre elas; muito aborrecimento também. Como sempre acontecia com os parentes de mais idade, quer eles fossem humanos ou vampiros.

Ah, como se sentia aliviado em saber que ela não vivia com um macho.

A menos, claro, que aquele com quem ela se encontrara no restaurante também morasse naquela casinha.

Enquanto ele grunhia baixinho no escuro, o cachorro da casa vizinha começou a latir, avisando os humanos sobre aquilo que eles desconheciam.

Um momento depois, sua ladra foi deixada a sós na cozinha com uma expressão tanto de resignação quanto de frustração.

Enquanto ela continuava de pé, com os braços cruzados, balançando a cabeça, ele disse a si mesmo que deveria ir embora. Em vez disso, não foi: atravessou o vidro com a mente, e deixou seu desejo correr solto.

Ela reagiu imediatamente, o corpo delgado se enrijecendo contra a bancada, os olhos seguindo direto para a janela.

– Venha para mim – disse ele para o ar frio.

E foi o que ela fez.

A porta dos fundos rangeu quando ela a abriu com o quadril, forçando a parte inferior a raspar uma porção de neve acumulada no assoalho.

O cheiro dela era a sua ambrosia. E enquanto ele diminuía a distância entre eles, seu corpo foi inundado por um desejo predatório.

Assail não parou até estar a centímetros dela. Tão perto assim, quase peito contra peito, ela era muito menor do que ele; todavia, o efeito que ela surtia nele era monumental. Suas mãos se crisparam, as coxas endureceram, seu coração pulsava com sangue aquecido.

– Não pensei que fosse voltar a vê-lo – ela sussurrou.

O pau dele endureceu ainda mais, só de ouvir a voz dela.

– Parece que temos assuntos inacabados.

Que não envolviam nem dinheiro, nem drogas, tampouco informações.

– Falei sério – ela afastou os cabelos para trás, como se tivesse dificuldade para ficar parada. – Não vou mais espionar. Prometo.

– De fato, você me deu a sua palavra. Mas, ao que tudo leva a crer, sinto falta dos seus olhos sobre mim – o sibilo dela atravessou o ar frio entre eles. – Dentre outras coisas.

Ela desviou o olhar rapidamente. Voltou a fitá-lo.

– Isto não é uma boa ideia.

– Por quê? Por causa daquele humano com quem você jantou?

Sua ladra franziu o cenho, provavelmente pelo uso da palavra “humano”.

– Não. Não é por causa dele.

– Então ele não mora aqui.

– Não, somos somente a minha avó e eu.

– Aprovo isso.

– E por que você deveria ter uma opinião quanto a isso?

– É o que me pergunto todos os dias – ele murmurou. – Mas explique, se não é por causa daquele homem, por que não podemos nos encontrar?

Sua ladra empurrou os cabelos sobre os ombros mais uma vez e balançou a cabeça.

– Você... representa problemas.

– E quem diz isso é a mulher que anda sempre armada.

Ela empinou o queixo.

– Você acha que eu não vi aquela adaga ensanguentada no seu hall de entrada?

– Ah, aquilo – ele dispensou o comentário com um aceno da mão. – Eu só estava cuidando de alguns assuntos.

– Pensei que o tivesse matado.

– Quem?

– Mark, o meu amigo.

– Amigo – ele se ouviu grunhir. – Se é que ele é isso mesmo.

– Então, quem você matou?

Assail pegou um charuto para acender, mas ela o deteve.

– A minha avó sentiria o cheiro.

Ele olhou para as janelas fechadas do segundo andar.

– Como?

– Apenas não o faça, por favor. Não aqui.

Com uma inclinação de cabeça, ele cedeu – mesmo que não conseguisse se lembrar de um dia o ter feito em respeito a ninguém.

– Quem você matou?

A pergunta foi feita de modo prático, sem a histeria que haveria de se esperar de uma fêmea.

– Isso não tem nada a ver com você.

– Melhor eu não saber, hein?

Visto que ele era de uma espécie diferente da dela? Ah, sim, de fato.

– Não é ninguém que você um dia fosse conhecer. Eu lhe direi, contudo, que tive meus motivos. Ele me traiu.

– Portanto, mereceu – não era uma pergunta, mas apenas uma declaração de aprovação.

Ele não tinha como deixar de apreciar o modo como ela encarava os fatos.

– Sim, mereceu.

Houve um instante de silêncio, e depois ele teve que perguntar:

– Qual o seu nome?

Ela riu.

– Quer dizer que não sabe?

– Como eu descobriria?

– Bom argumento... E eu lhe direi, se você me explicar o que disse para a minha avó – ela abraçou o torso como se estivesse com frio. – Sabe, ela gostou de você.

– Quem gostou de mim?

– A minha avó.

– E como é que ela me conhece?

Sua ladra franziu o cenho.

– Quando você veio aqui antes. Ela disse que o considerou um bom rapaz, e quer convidá-lo para jantar – aqueles olhos incríveis se voltaram para ele. – Não que eu esteja defendendo isso... Ei, o que foi? Ai!

Assail forçou a mão para que relaxasse, pois nem percebera que segurara o braço dela.

– Eu não vim aqui antes. Tampouco falei com sua avó.

Sua ladra abriu a boca. Fechou-a. Abriu-a novamente.

– Não veio aqui hoje?

– Não.

– Então quem diabos está me procurando?

Enquanto um sentimento avassalador de protegê-la o assolou, suas presas se alongaram e o lábio superior começou a se retrair – mas ele se conteve, refreando a demonstração exterior das suas emoções interiores.

Abruptamente, ele indicou a direção da cozinha.

– Vamos entrar. Agora. E você vai me contar mais a respeito.

– Não preciso da sua ajuda.

Assail a fitou do alto de toda a sua altura.

– Mas você a terá mesmo assim.


CAPÍTULO 72

Trez não estava acostumado a andar de motorista. Gostava de dirigir. De estar no controle. De escolher a direita ou a esquerda. Esse tipo de escolha não constava do cardápio daquela noite, porém.

Naquele instante, ele era apenas um gostosão no banco de trás de uma Mercedes que era do tamanho de uma casa. Na frente, Fritz – esse era o nome dele – dirigia como um morcego saindo do inferno; não exatamente algo que se esperava de alguém que parecia ter uns sete mil anos de idade.

No entanto, visto que Trez ainda se sentia meio estranho após a dor de cabeça da noite anterior, ele achava uma boa ideia ser passageiro num caso como aquele. Mas se ele e iAm iriam morar lá, eles teriam de saber onde ficava a maldita propriedade.

Mas. Que. Merda.

Por algum motivo, seus sentidos captaram uma mudança na atmosfera, algo tintilava nos limites de sua consciência, um aviso. E, vejam só, do lado de fora da janela, o cenário iluminado pelo luar ficou ondulado, com uma distorção vital retorcendo sua visão.

Os olhos verificaram o interior da Mercedes. Tudo estava bem: o couro preto, a costura castanha, a divisória erguida entre os assentos estavam exatamente como deviam estar. Portanto, não era um desajuste dos seus nervos óticos.

Voltando os olhos para o exterior, ele entendeu que a distorção não era fruto de uma névoa. Nem de algum tipo de chuvisco. Não, aquilo não era provocado pelo tempo – era algo completamente diverso... como se o medo tivesse se cristalizado nas partículas do ar, e estivesse provocando a metamorfose do cenário.

Que belo escudo protetor...

E lá estava ele supondo que ele e o irmão eram os únicos com truques escondidos nas mangas.

– Estamos próximos – comentou.

– O que é isso, hein? – iAm murmurou ao olhar para fora da janela.

– Não sei. Mas precisamos conseguir um pouco disso para nós.

Abruptamente, o carro começou a subir, e com a aceleração do Homem Pé de Chumbo, mais parecia que eles subiam uma montanha-russa. No entanto, eles não despencaram uma vez no alto: do nada, uma imensa mansão de pedra se materializou, aparecendo tão repentinamente que Trez segurou o apoio na porta para se preparar para o impacto.

No entanto, o motorista sabia muito bem onde estavam, e qual a distância necessária para fazer o carro parar. Com a habilidade de um dublê de Hollywood, o mordomo girou o volante e pisou nos freios, fazendo-os estacionar entre um GTO que Trez imediatamente cobiçou... e um Hummer que parecia mais uma escultura abstrata do que algo dirigível.

– Talvez ele tenha feito alguma besteira com esse aí – Trez disse causticamente.

Quando as portas foram destrancadas, ele e iAm saíram ao mesmo tempo.

Puxa. Olha só essa casa, Trez pensou ao pender a cabeça para trás e olhar para cima, bem para cima. Em comparação à pilha gigantesca de pedras, ele se sentia do tamanho de um polegar.

Do polegar de uma criança de dois anos de idade.

Pairando bem no alto na noite escura, com gárgulas que observavam do beiral, e um par de alas de quatro andares muito sinistras que se estendiam para os dois lados, a construção parecia exatamente o que você esperaria do lugar em que vivia o rei dos vampiros: assombrada, arrepiante e ameaçadora.

Era a representação do Halloween, só que verdadeiro. As pessoas ali dentro mordiam mesmo, e não só quando lhes pediam.

– Maneiro – elogiou Trez, sentindo-se imediatamente em casa.

– Senhores, entrem, por favor – disse o mordomo amigavelmente. – Eu me empenharei em levar suas malas.

– Não, não – opôs-se Trez, já indo para o porta-malas. – Temos muitas tranq... quero dizer, coisas.

Era difícil se portar mal diante de alguém de fraque.

iAm concordou.

– Podemos fazer isso por você.

O mordomo olhou de um para outro, com um sorriso no devido lugar.

– Por favor, sigam para as festividades, senhores. Nós cuidamos desses assuntos mundanos.

– Ah, mas nós...

– Isto é, não vai ser...

Fritz pareceu confuso, depois, ligeiramente em pânico.

– Por favor, os senhores precisam se juntar aos outros. Eu cuido disto. Esta é a minha função na casa.

A aflição parecia tão despropositada, mas eles não teriam como argumentar sem causar ainda mais problemas; estava claro que o cara teria um chilique se eles mesmos levassem a bagagem até a porta de entrada.

Quando em Roma... Trez concluiu.

– Ok, certo, muito obrigado.

O sorriso agradável e franco reapareceu de pronto.

– Muito bem, senhores! Muito bem, mesmo.

Enquanto o mordomo indicava o caminho para a entrada, como se a imensa porta de catedral fosse um mistério, Trez deu de ombros e seguiu para as escadas.

– Acha que ele vai nos deixar limpar nossas bundas? – perguntou baixinho.

– Só se ele não nos vir ir ao banheiro.

Trez gargalhou e olhou para o irmão.

– Isso foi uma piada, iAm? Hum? Acho que foi...

Depois de dar uma cotovelada no irmão e obter um grunhido como resposta, ele esticou a mão e segurou a maçaneta pesada do portal. Ficou um tanto surpreso em ver que não estava trancado, mas, pensando bem, com... aquela coisa... ao redor, quem é que precisaria de chaves? Nenhum rangido ao entrar, e isso não foi nenhuma surpresa. O lugar era bem cuidado em cada centímetro, a neve retirada, sal espalhado no piso para evitar a formação de gelo, tudo absolutamente bem ordenado.

Mas também, com aquele mordomo encarregado? Uma sujeirinha que fosse devia ser uma emergência nacional.

Saindo do frio, ele se viu numa antessala com piso de mosaico e teto alto, de frente para uma recepção que incluía uma câmera de segurança. Ele sabia para que servia aquilo – e enquadrou a cara bem no campo de visão.

No mesmo instante, a porta interna, que se equiparava a de um cofre de banco, se abriu.

– Olá! – uma fêmea exclamou. – Vocês chegaram.

Trez mal notou Ehlena ao perceber o que estava por trás dela.

– Oi... como é que você está...

Ele não ouviu a resposta dela.

Puxa... vida. Uau... que cores lindas...

Trez nem percebeu que se adiantava, mas foi o que fez... andando em direção à maior maravilha arquitetônica que ele jamais vira. Imensas colunas de malaquita e mármore rosa subindo para um teto mais alto que os céus. Candelabros de cristal e arandelas douradas reluziam. Uma escadaria vermelho sangue tão grande quanto um parque se elevava a partir de um piso de mosaico que parecia a representação... de uma macieira carregada de frutos.

Por mais sombrio que o exterior parecesse, o interior era absolutamente resplandecente.

– Rivaliza com o palácio – iAm murmurou maravilhado. – Oh, olá, Ehlena.

Trez estava vagamente ciente do irmão abraçando a shellan de Rehvenge. E também havia outras pessoas por perto, fêmeas em sua maioria, mas ele também reconheceu Blay e um macho loiro junto a John Matthew e, claro, Rehv, que cruzava o piso com a ajuda de sua bengala.

– A festa não é para vocês dois, mas podem fingir que é.

iAm e Rehv se abraçaram, porém, mais uma vez, Trez não estava prestando a mínima atenção.

Na verdade, o arco-íris colorido também desaparecera por completo.

Parada na entrada do que parecia a porta de uma sala de jantar formal, a Escolhida que ele vira na casa de campo de Rehv falava com outra também de manto branco.

A visão de Trez se afunilou nela, seus olhos concentrando-se somente em sua imagem e lá ficando.

Olhe para mim, ele desejou. Olhe para mim.

Nesse instante, como se tivesse sentido o comando, a Escolhida olhou em sua direção.

Trez, imediatamente, ficou excitado, o corpo inchando com o desejo de seguir até aquela fêmea, tomá-la nos braços e levá-la para algum canto reservado.

Onde ele poderia marcá-la.

A voz de iAm era exatamente o que ele não precisava ouvir em seu ouvido:

– Ainda não é para o seu bico, irmão.

Ele precisava tê-la, mesmo que isso o matasse.

E se chegasse a esse ponto? Bem, sua vida não era uma festa no momento, era?


Quando Qhuinn recobrou os sentidos, estava deitado no altar. O crânio bem ao lado da sua cabeça, como se o Irmão o estivesse protegendo enquanto ele se recuperava após ter bebido o sangue. Piscando bem os olhos, ele percebeu que fitava um mural de nomes: cada centímetro da imensa pedra de mármore contra a qual estivera apoiado estava gravado com nomes no Antigo Idioma.

Exceto pela parte onde estavam as cavilhas.

Ao se sentar e deixar as pernas penderem, suas costas estalaram e a cabeça rodou um pouco... Esfregando o rosto, ele saiu num pulo e andou para a frente... até poder tocar nas gravuras.

– Você está bem no fim – Zsadist informou atrás dele.

Qhuinn se virou. A Irmandade mais uma vez estava parada embaixo, cada um deles sorrindo como filhos da mãe.

O sotaque de Boston soou:

– É emocionante ver seu nome escrito aí. Você precisa dar uma olhada.

Qhuinn voltou a olhar para frente. Depois de seguir para a direita, no fim, ele encontrou o nome do tira... e depois o seu.

Suas pernas ficaram bambas quando ele se abaixou, ajoelhando diante da fileira precisa de símbolos. Depois olhou para a parede, os nomes individuais desaparecendo, transformando-se num padrão coeso em todo o mármore. Assim como a Irmandade. Não indivíduos, mas um grupo.

E ele era parte daquilo.

Por Deus... ele estava ali.

Qhuinn se preparou para uma experiência transformadora – algo que seguisse a linha de um grande sino ecoando em seu peito “Você pertence”... ou, merda, um simples “Você é o cara” soando em sua mente.

Nada disso aconteceu. Sim, claro, ele estava feliz. Estava orgulhoso, porra. Pronto para sair dali e lutar como um desvairado.

Porém, ao se pôr de pé, ele percebeu que apesar da nova sensação de completude, uma parte sua permanecia separada. Em retrospecto, seus últimos dias foram tremendos – como se o destino tivesse jogado sua vida num liquidificador e estivesse preparando um molho com o seu traseiro.

Talvez fosse porque ele nunca fora muito bom nessa coisa de emoções? E nada mudaria aquilo.

Mas, pelo menos, ele não estava fugindo.

Indo para junto dos Irmãos, ele levou tantos tapas nos ombros e no peito que soube como os atacantes se sentiam no futebol americano depois dos treinos.

Mas logo ele se deu conta... iria para casa encontrar Blay.

Santa Maria Mãe de Deus, roubando uma expressão do tira, ele estava morrendo de vontade de ver o cara. Talvez dar uma escapada e contar o que tinha acontecido, mesmo que provavelmente ele não devesse fazer isso. Talvez subir para o quarto depois que a festa acabasse e... bem, por um tempo...

Ok, agora ele estava ficando excitado.

Rhage lhe lançou seu manto negro de volta.

– Portanto, bem-vindo ao hospício, seu pobre filho da mãe. Está preso a nós pelo resto da vida.

Qhuinn franziu a testa e pensou em John.

– Mas e a minha posição como ahstrux nohtrum?

– Já era – V. disse ao se vestir também. – Você é um homem livre.

– Então John sabia?

– Não que você estava recebendo este tipo de promoção. Mas ele foi informado que você já não poderia ser mais o segurança dele – quando Qhuinn tocou a tatuagem debaixo dos olhos, V. assentiu. – É. Vamos ter que mudar isso... É uma dispensa honorável, sabe, não é como uma morte ou demissão.

Beleza. Melhor do que um aviso prévio empurrado contra seu peito ou uma cova rasa.

Enquanto saíam, Qhuinn deu uma última olhada na caverna. Era tão estranho; sim, era a história acontecendo, mas aquilo também parecia o ápice de todas aquelas noites lutando com os Irmãos, uma lógica interna fazendo aquele evento extraordinário parecer... inevitável.

Refazendo o trajeto que percorreram anteriormente, Qhuinn se viu num corredor tomado por prateleiras do chão ao teto superalto.

– Jesus... Cristo... – ele sussurrou ao percebeu todos os jarros dos redutores.

Todos pararam.

– Os jarros? – Wrath perguntou.

– É – confirmou Tohr com uma risada. – Nosso garoto parece impressionado.

– E devia mesmo – murmurou Rhage ao ajeitar o cinto do manto. – Somos destemidos.

Múltiplos gemidos. Olhos se revirando.

– Pelo menos ele não veio com um daqueles “Somos incríveis!” – alguém murmurou.

– Esse é Lassiter – foi a resposta.

– Cara, esse filho da mãe tem que parar de assistir a maldita Nickelodeon...

– Dentre outras coisas.

– Foco, gente, foco – Rhage interrompeu. – Podemos ter um momento de seriedade aqui, por favor?

Grunhidos de aprovação substituíram as críticas, os sons se elevando e ecoando entre as lembranças dos seus inimigos mortos.

– Apenas pense – Tohr disse ao passar um braço ao redor dos ombros de Qhuinn –, agora você pode mandar os seus para cá.

– Legal – murmurou Qhuinn ao olhar para os diferentes tipos de contêineres. – Muito legal.

Saíram por portões que tanto eram velhos como pareciam necessitar de um maçarico por umas belas horas para serem transpostos. Depois havia outro obstáculo que foi empurrado, um que, de verdade, parecia a parede de uma caverna e, olhe só, eles saíram de um recesso raso na terra e chegaram ao Escalade. Levou um tempo para atravessarem a floresta, mas no instante em que a mansão pôde ser vista, ele começou a ficar tão excitado que o corpo se adiantou para a beira do banco e a mão procurou a maçaneta da porta.

O SUV mal tinha parado quando ele já estava abrindo a porta e saindo. Risadas emanaram da Irmandade quando eles saíram de modo mais civilizado, seguindo a liderança dele escada acima. No portal de entrada, ele o abriu e se postou no átrio, mostrando o rosto para a câmera de segurança.

Atrás dele, ele ouviu as vozes dos Irmãos...

Seus irmãos, agora. Não eram?

Seus irmãos tiravam sarro dele ao se aproximarem, e a porta interna foi aberta por Fritz.

Qhuinn quase derrubou o mordomo quando ele deu um passo para o lado. Muitos rostos sorrindo, as shellans da casa, a rainha, doggens por todos os lados... iAm, Trez, Rehv e Ehlena...

Ele procurava por cabelos ruivos, vasculhou a sala de jantar, depois olhou para a sala de bilhar. Onde ele est...

Qhuinn parou.

Do lado oposto da mesa de bilhar, no sofá diante da TV montada acima da lareira, Blay e Saxton estavam sentados lado a lado. Os rostos virados um para o outro, um par de gim e tônica nas mãos, os dois pareciam envolvidos numa conversa animada.

De repente, Blay começou a rir, inclinou a cabeça para trás...

E, nesse instante, olhou na direção de Qhuinn.

No mesmo momento, sua expressão endureceu.

– Parabéns!

O som da voz de Layla o confundiu, e ele se virou às cegas, a mente embaralhada de um jeito que não deveria estar: ele sabia o tempo inteiro que Saxton voltaria depois das férias.

– Estou tão feliz por você! – enquanto Layla o abraçava, ele passou os braços ao redor dela automaticamente.

– Obrigado – ele se afastou e passou as mãos pelos cabelos. – Então, como está se sentindo?

– Enjoada e maravilhosa!

Qhuinn se retraiu dentro da própria pele, tentando encontrar alegria pela gravidez.

– Fico feliz. Estou... muito feliz.


CAPÍTULO 73

Sola bateu contra o fogão ao levar o homem para dentro de sua casa. Em seguida, como parte da correção de curso, ela derrubou a cadeira em que a avó estivera sentada – mas, pelo menos, conseguiu reparar nisso segurando-a e sentando-se nela.

– Você também não me disse o seu nome – murmurou, ainda que nomes próprios fossem a última coisa em sua mente.

O homem se juntou a ela do lado oposto da mesa. Seu tamanho imenso e as roupas caras faziam com que tudo ali parecesse frágil, desde a tábua laminada que os separava até as cadeiras e a própria cozinha.

A casa inteira.

Ele esticou a mão por sobre a mesa. Naquela voz grave e carregada de um sotaque divino, ele disse:

– Sou Assail.

– Assail? – cautelosa, Sola esticou a mão, preparada para encontrá-lo no meio do caminho. – Nome diferente...

No instante em que o contato foi feito, um raio subiu pelo braço e terminou em seu coração, acelerando-o, fazendo-a corar.

– Não gosta? – ele sussurrou, como se conhecesse muito bem a reação dela.

Só que ele estava falando do nome, não? Sim, era isso.

– É... inesperado.

– Me diga o seu – ele deu o comando sem soltá-la. – Por favor.

Enquanto esperava, enquanto segurava a mão dela, enquanto respiravam juntos, ela percebeu que, às vezes, havia coisas que eram mais íntimas do que sexo.

– Marisol. Mas as pessoas me chamam de Sola.

Ele ronronou. Ronronou.

– Eu a chamarei de Marisol.

E não é que combinava? Deus, aquele sotaque... ele transformara aquilo pelo qual fora chamada a vida inteira num poema.

Sola puxou a mão da dele e a colocou sobre o colo. Mas os olhos continuaram cravados no homem: sua expressão era arrogante, e ela teve a impressão de que se tratava de um defeito inconsciente, que não se relacionava a ela. O cabelo parecia impossivelmente grosso, e, sem dúvida, devia ter recebido algum produto – nada meramente humano poderia manter aquela onda perfeita afastada da testa daquele modo. E o perfume? Esqueça. O que quer que fosse aquilo, ela estava ficando simplesmente embriagada só com o cheiro incrível.

Juntando a boa aparência, aquele corpo e a mente afiada? Ela seria capaz de apostar a casa que a vida dele era conduzida com base no lema “o mundo me pertence”.

– Então, fale-me desse seu visitante – ele pediu.

Enquanto aguardava, o queixo dele abaixou e ele a fitou por baixo das pálpebras.

Não era surpresa ele ter matado alguém.

Ela deu de ombros.

– Não tenho ideia de quem seja. A minha avó apenas me disse que um homem de cabelos escuros e olhos profundos... – ela fez uma careta, notando que as íris dele eram sempre de uma cor de luar, do tipo de coisa que parecia impossível na natureza. Lentes de contato? – Ela... Hum, ela não mencionou nenhum nome, mas ele deve ter sido educado, senão eu teria ouvido um belo sermão e muito mais. Ah, e ele conversou com ela em espanhol.

– Alguém poderia estar atrás de você?

Sola meneou a cabeça.

– Nunca menciono esta casa, jamais. A maioria das pessoas sequer sabe meu verdadeiro nome. Foi por isso que pensei que fosse você, quem mais... Quero dizer, ninguém mais veio aqui a não ser você.

– Não há ninguém em seu passado?

Expirando longamente, ela olhou pela cozinha; depois pegou os guardanapos e os rearranjou.

– Não sei...

Com a vida que ela levava? Podia ser qualquer pessoa.

– Você tem alarme de segurança aqui? – ele perguntou.

– Sim.

– Você tem que considerá-lo perigoso até que se prove o contrário.

– Concordo – quando o homem, isto é, Assail, colocou a mão dentro do casaco, ela balançou a cabeça. – Nada de charutos. Já disse que...

Ele fez um gesto exagerado ao retirar uma caneta dourada e mostrá-la. Depois, pegou um dos guardanapos que ela acabara de ajeitar e escreveu um número de sete algarismos.

– Você vai me ligar se ele voltar – ele passou o quadrado de papel pela mesa, mas manteve o indicador apoiado sobre os números. – E eu cuidarei disso.

Sola se levantou tão rápido, que a cadeira gemeu. Imediatamente, ela olhou para o teto. Quando nenhum som veio de cima, ela se lembrou de fazer menos barulho.

Caminhou até o fogão. Depois voltou. Foi até a porta de trás que dava para a varanda. Voltou novamente.

– Escute aqui, eu não preciso de ajuda. Agradeço...

Ao se virar para voltar para junto do fogão novamente, ele estava bem diante dela. Arfando, ela deu um pulo para trás – nem o ouvira se mexer...

A cadeira dele estava na mesma posição de quando ele esteve sentado.

Não como a dela, empurrada de lado.

– O que... – ela se calou, a mente rodopiando. Por certo ela não lhe perguntaria o que ele era...

Quando ele esticou a mão e amparou seu rosto, ela soube que teria dificuldades para dizer não para o que quer que ele sugerisse.

– Você vai me ligar – ele ordenou – e eu virei até você.

As palavras foram tão lentas que quase se deturparam, a voz grave... tão grave...

O orgulho formou um protesto em sua mente, mas sua boca se recusou a dizê-lo.

– Está bem – ela disse.

Agora ele sorria, os lábios se curvando para cima. Deus, os caninos dele eram bem afiados, e mais longos do que ela se lembrava.

– Marisol – ele ronronou. – Um lindo nome.

Enquanto ele começava a se inclinar sobre ela, a pressão sutil em sua mandíbula levantava-lhe o queixo. Ah, não, não, não, ela não podia estar fazendo aquilo. Não naquela casa. Não com um homem como aquele...

Que seja. Com um suspiro de rendição, ela fechou os olhos e levantou a boca para aceitar a dele...

– Sola! Sola, o que você está fazendo aí embaixo?!

Os dois ficaram imóveis e, no mesmo instante, Sola se viu com treze anos novamente.

– Nada! – respondeu alto.

– Quem está com você?

– Ninguém... É a televisão!

Três... Dois... Um...

– Isso não parece a TV!

– Vá – ela sussurrou ao empurrá-lo pelo peito largo. – Você tem que ir embora agora.

As pálpebras de Assail se abaixaram.

– Acho que quero conhecê-la.

– Não quer, não.

– Quero...

– Sola! Estou descendo!

– Vá – ela sibilou. – Por favor.

Assail passou o polegar por baixo do lábio inferior dela e se inclinou, falando diretamente ao seu ouvido:

– Tenho planos para retomar isto do ponto em que fomos interrompidos. Só para você saber.

Virando-se, ele se moveu com frustrante lentidão até a porta. E enquanto os chinelos da avó se aproximavam pela escada, ele ainda teve tempo de olhar para trás enquanto abria a porta.

O olhar ardente percorreu-lhe o corpo.

– Isso entre mim e você não acabou.

E logo ele se foi, graças ao bom Deus.

A avó fez a curva no segundo seguinte à tela da porta exterior voltar ao seu lugar.

– E então? – ela disse.

Sola olhou de relance pela janela além da mesa, certificando-se de que ainda estava escuro do lado de fora. Sim. Tudo bem.

– Viu? – disse ela, abrindo os braços para mostrar a cozinha vazia. – Não há ninguém aqui.

– A televisão não está ligada.

Por que, oh, por que sua avó não tinha a graciosidade de ficar de miolo mole como tantos outros anciões?

– Eu a desliguei porque ela estava incomodando a senhora.

– Ah – olhos cheios de suspeita vasculharam o cômodo.

Merda. Havia neve derretida no linóleo onde eles estiveram.

– Venha – disse Sola ao girar a senhora para o outro lado. – Chega de aventuras por uma noite. Vamos nos deitar.

– Estou de olho em você, Sola.

– Eu sei, vovó.

Enquanto subiam juntas, uma parte sua continuava intrigada com a pessoa que fora procurá-la e com o motivo da visita. E a outra metade? Bem, essa parte ainda estava na cozinha, prestes a beijar aquele homem.

Provavelmente foi muito melhor terem sido interrompidos.

Ela tinha a distinta impressão que seu protetor... também era um predador.


O telefonema que Xcor vinha aguardando chegou na hora mais oportuna. Ele acabara de perseguir e matar um assassino solitário debaixo das pontes do centro da cidade, e limpava sua adorada, o sangue negro na lâmina de sua foice saindo com facilidade enquanto ele passava um pedaço de camurça de cima a baixo.

Ele colocou sua fêmea de volta nas costas, e só depois pegou o celular. Ao responder, olhou para seus lutadores que se reuniram e conversavam sobre as lutas da noite no vento frio.

– Quem fala é Xcor, filho de Bloodletter?

Xcor cerrou os dentes, mas não se importou em corrigir a imprecisão. O nome de Bloodletter era de valia para a sua reputação.

– Sim. Quem é?

Houve uma longa pausa.

– Não sei se devo lhe dizer.

O tom era aristocrático e também lhe informava a identidade daquele que lhe telefonara.

– Você é associado de Elan.

Outra longa pausa e, pelos deuses, aquilo testava a sua paciência. Mas aquela era outra coisa que manteria para si.

– Sim, sou. Soube da novidade?

– Sobre?

Quando um terceiro momento de silêncio se fez, ele soube que aquilo demoraria um pouco. Assobiando para seus soldados, indicou que eles deveriam prosseguir para o arranha-céu deles, a alguns quarteirões dali.

Um momento depois, ele estava no telhado, as rajadas de vento tão mais fortes no ponto elevado de sua preferência. Uma vez que a ventania impedia a conversa, ele se refugiou no abrigo de algo mecânico.

– Novidade a respeito de quê? – ele instigou.

– Elan está morto.

Xcor expôs os dentes e sorriu.

– De fato.

– Não me parece surpreso.

– Não estou – Xcor revirou os olhos. – Ainda que esteja desolado.

O que era verdade: foi como perder uma arma útil. Ou, mais precisamente, uma chave de fenda. Mas essas coisas podem ser substituídas.

– Sabe quem foi o responsável? – o outro exigiu saber.

– Bem, acredito que você saiba, estou certo?

– Foi a Irmandade, claro.

Outro juízo falso, mas, novamente, Xcor achou melhor deixar de lado.

– Diga-me, está esperando que o ahvenge?

– Isso não me diz respeito – a fala afetada sugeria que o macho estava mais preocupado em não se deparar com o mesmo destino. – A família dele cuidará das remediações.

– Como de direito – quando nada mais foi dito, Xcor entendeu o que era esperado e necessário. – Posso lhe garantir duas coisas: a minha confidencialidade e a minha proteção. Deduzo que estivesse presente na reunião na casa de Elan no outono. Minha oposição ao Rei não mudou e estou deduzindo que este telefonema o coloque numa posição favorável a mim. Estou correto?

– Não busco poder político nem social.

Tolice.

– Claro que não.

– Estou... preocupado com o futuro da raça e Elan e eu concordávamos nisso. No entanto, eu não estava de acordo com a tática proposta. Homicídios são muito perigosos e, no fim, podem não resultar no que se deseja.

Au contraire, Xcor pensou. Uma bala na cabeça resolve muitas coisas...

– A lei é o meio para derrubar o Rei.

Xcor franziu o cenho.

– Não entendo.

– Com todo o respeito, a lei é mais forte que a espada. Parafraseando um ditado humano.

– As suas referências oblíquas são um desperdício de palavras comigo. Seja mais específico, se não se importar.

– As Leis Antigas suprem o poder que Wrath exerce. Elas explicam detalhadamente o domínio unilateral que ele tem sobre tudo o que diz respeito às nossas vidas e à nossa sociedade, concedendo-lhe rédeas soltas para que ele aja como quiser, sem ter que explicar nada a ninguém.

Motivo pelo qual Xcor desejava o posto, muito obrigado.

– Prossiga.

– Não existem restrições para o que ele pode fazer, que caminhos pode tomar... Na verdade, ele também pode mudar as Leis Antigas caso queira, e alterar a estrutura das nossas tradições e fundamentos.

– Estou bem ciente disso – consultou o relógio. Desde que não ficasse preso ali ao telefone pelas duas horas seguintes, haveria ainda muito tempo para lutar. – Talvez queira marcar um encontro para conversarmos amanhã à noite...

– Porém, existe um embargo.

Xcor ficou intrigado.

– Embargo?

– Ele deve ser capaz de procriar, e eu cito exatamente, “um herdeiro de sangue puro”.

– E como isso é relevante? Ele já está vinculado e, sem dúvida, no futuro...

– A shellan dele é mestiça.

Foi a vez de Xcor se calar – e o conselheiro de Elan se aproveitou desse silêncio.

– Sejamos bem francos um com o outro. Existe sangue humano na espécie. Ninguém pode dizer ser absolutamente de “sangue puro”. Há, porém, uma diferença vital entre um civil se misturando ao material genético humano e o Rei procriar um filho cuja mãe é mestiça... referido filho que herdará o trono após a sua morte.

Throe apareceu ao lado do motor do sistema de aquecimento e refrigeração.

– Tudo bem? – perguntou baixinho.

Xcor abafou o telefone com a mão.

– Leve os outros para as ruas. Estarei com vocês em seguida.

– Como preferir – Throe disse com uma breve mesura.


Enquanto o lutador se afastava, o aristocrata do outro lado continuava:

– Existe ansiedade entre os membros da classe dominante, como você bem sabe. E eu acredito que se alguém abordar essa questão, ela será muito mais eficiente em demover Wrath, filho de Wrath, do que qualquer atentado à sua vida. Ainda mais depois de ele ter feito a demonstração de poder na reunião do Conselho da noite passada.

De fato, muitos se apavoraram e se mostraram submissos em seguida, seus desejos subjugados pela força física, que foi bem férrea.

A mente de Xcor começou a repassar todas as possibilidades.

– Portanto, diga-me, cavalheiro, segundo seu parecer, quem deverá sucedê-lo, o senhor?

– Não – foi a resposta cortante. – Sou advogado e, como tal, valorizo a lógica acima de tudo. Neste clima de inquietação e guerra, somente um soldado poderia, e deveria, liderar a raça. Elan era um tolo com suas ambições, e você vinha tirando vantagem disso. Sei disso porque o observei na casa dele naquela noite durante o outono, você o colocou onde ele queria estar, mesmo ele acreditando que fosse o contrário. Quero mudanças, sim. E estou preparado para fazer isso acontecer. Porém, não tenho ilusões quanto à minha utilidade e não tenho interesse algum que o destino de Elan se torne o mesmo que o meu.

Xcor se voltou na direção do topo daquela montanha.

– Nenhum rei foi destronado dessa maneira.

– Nenhum rei jamais foi destronado.

Bela observação.

Enquanto ele fitava para o nordeste, onde uma estranha perturbação no cenário estava localizada, ele pensou no Rei com sua rainha... e na Escolhida grávida.

Houve um tempo em que ele preferiria o caminho mais sangrento, aquele que seria marcado com a satisfação de arrancar o trono de um moribundo Wrath. Mas aquela guerra de palavras era... mais segura. Para a sua fêmea.

A última coisa que ele queria era atacar o lugar em que ela comia, no qual ela dormia... onde seu estado era tratado.

Fechando os olhos, ele balançou a cabeça para si mesmo. Ah, como ele caíra... no entanto, ainda se ergueria, jurou.

– Como sugere que procedamos? – perguntou asperamente.

– Secretamente, a princípio. Preciso organizar os precedentes de modo que o “sangue puro” tenha sido mencionado em casos levados adiante para decisões. A vantagem é que existe discriminação contra os humanos há tempos, e ela era ainda pior no passado... quando era o pai de Wrath despachando proclamações e interpretando as leis. Essa será a chave. Quanto mais forte o precedente, mais bem-sucedido isto será.

Quanta ironia. A interpretação do próprio pai de Wrath seria a responsável pela derrocada do filho.

– O nosso problema será o próprio Rei. Ele tem que permanecer vivo... e não pode reconhecer a fraqueza inerente em seu reino para tentar consertá-la antes que possamos apresentar essa questão.

– Você enviará um e-mail para um associado meu com as passagens relevantes e depois se encontrará comigo.

– Isto levará alguns dias.

– Entendido. Mas espero que me ligue imediatamente.

Enquanto nomes eram trocados, e Xcor dava o endereço de e-mail de Throe, ele começou a sentir ânimo. E se aquele macho estivesse certo? O reinado de Wrath terminaria sem mais derramamento de sangue. E, então, Xcor estaria livre para determinar o futuro da raça: até onde ele sabia, Wrath não tinha parentes diretos, portanto, quando fosse deposto, ninguém reclamaria o trono. Ainda que isso não significasse que alguns poderiam se prontificar sabe-se lá de onde.

No entanto, ele saberia lidar com intrusos. E com o apoio do Conselho? Ele era capaz de apostar que seria um líder populista – desde que todos andassem na linha.

Wrath não era o único que poderia mudar as leis.

– Não perca tempo com isso – disse Xcor. – Você tem uma semana. Não mais do que isso.

A resposta que lhe foi dada foi gratificante:

– Agirei com a maior rapidez.

E ora se aquele não era um modo adorável de encerrar uma ligação.


CAPÍTULO 74

O túnel que ligava a mansão ao centro de treinamento era fresco, tranquilo, com luz suave.

Ao passar por ele, Qhuinn estava sozinho e contente por isso. Nada pior do que estar cercado por pessoas felizes quando você se sente morto por dentro.

Quando chegou à porta que dava para o fundo do armário do escritório, ele digitou um código, esperou até que a tranca abrisse, depois empurrou a porta para entrar. Uma passada rápida em meio a papéis e canetas, e por meio de outra porta, e ele dava a volta em uma mesa. Logo em seguida, estava no corredor diante da sala de levantamento de pesos, mas ele não estava em busca de se exercitar. Depois do que a Irmandade lhe fizera, ele se sentia duro e dolorido – especificamente nos braços, graças à força empregada para se sustentar agarrado àquelas cavilhas.

Caramba, as mãos ainda estavam dormentes e, quando as flexionou, soube o que era artrite pela primeira vez na vida.

Seguindo em frente, parou novamente ao chegar à área da clínica. Quando foi ajeitar as roupas, percebeu que ainda vestia somente o manto.

Não voltaria para se trocar, isso era certo.

Batendo à porta da sala de recuperação, ele chamou:

– Luchas? Está acordado?

– Pode entrar – foi a resposta rouca.

Ele teve que se preparar antes de entrar. E ficou contente por ter feito isso.

Deitado na cama com a cabeceira erguida, Luchas ainda parecia estar à beira da extinção. O rosto do qual Qhuinn se lembrava como sendo inteligente e jovem estava marcado e austero. O corpo, dolorosamente magro. E aquelas mãos...

Jesus Cristo, as mãos...

E ele achava que as suas doíam um pouco?

Pigarreou antes de falar:

– Oi.

– Olá.

– Então... hum... Como você está?

Que pergunta... O cara estava diante de semanas de recuperação na cama, e depois meses de fisioterapia – e teria sorte se um dia voltasse a segurar uma caneta.

Luchas fez uma careta ao tentar dar de ombros.

– Estou surpreso por você ter vindo.

– Bem, você é o meu... – Qhuinn se deteve. Na verdade, o cara não era mais um parente seu. – Quero dizer...

Luchas fechou os olhos.

– Sempre fui e sempre serei sangue do seu sangue. Nenhum pedaço de papel pode mudar isso.

Os olhos de Qhuinn pousaram para a mão com o anel de sinete.

– Acho que nosso pai discordaria disso.

– Ele está morto. Portanto, a opinião dele já não é mais relevante.

Qhuinn piscou.

Quando ele não disse nada, Luchas abriu os olhos.

– Você parece surpreso.

– Sem querer ofender, mas jamais pensei ouvir o que acaba de sair dos seus lábios.

O macho indicou o corpo alquebrado.

– Eu mudei.

Qhuinn se esticou para pegar uma cadeira; enquanto se acomodava, esfregou o rosto. Fora até ali porque visitar seu antes supostamente irmão morto era a única desculpa remotamente aceitável para sair de uma festa em sua homenagem.

E passar a noite vendo Blay e Saxton juntos? Isso não iria acontecer.

Só que agora que estava ali, ele não se achava capaz de sustentar qualquer tipo de conversa.

– O que aconteceu com a casa? – perguntou Luchas.

– Hum... nada. Quero dizer, depois... do que aconteceu lá, não a reivindicaram, e eu não tinha direito a ela. Quando ela passou para Wrath, ele a devolveu para mim, mas veja, ela é sua. Nunca entrei lá desde que fui expulso.

– Eu não a quero.

Ok, isso era uma surpresa. Enquanto crescia, seu irmão falava sem parar de tudo o que queria conquistar quando ficasse mais velho: a educação, a proeminência social, assumir do ponto em que o pai deixaria tudo.

Ele renegando aquilo era como alguém recusar um trono: inimaginável.

– Você já foi torturado? – Luchas murmurou.

A infância dele lhe veio à mente. Depois, a Guarda de Honra. Mas de jeito nenhum ele mencionaria nada daquilo.

– Já levei umas surras, sim.

– Aposto que sim. O que acontece depois?

– Como assim?

– Como você volta ao normal?

Qhuinn flexionou as mãos doloridas, olhando para os dedos perfeitos apesar de todas as dores que sentia. Seu irmão já não conseguiria mais contar até dez. Recuperar-se era uma coisa, mas regeneração era algo totalmente diferente.

– Não existe mais normalidade – ele se ouviu dizer. – Você... meio que... só segue adiante, porque isso é tudo o que lhe resta. A parte mais difícil é ficar perto das pessoas... É como se elas estivessem em outra frequência, mas só você sabe disso. Elas falam de suas vidas e o que há de errado com elas, e você... as deixa falar. É uma linguagem totalmente diferente, e você tem que se lembrar de que só pode lhes responder nesse idioma. É bem difícil se relacionar.

– É, é exatamente isso – Luchas disse devagar. – Você tem razão.

Qhuinn esfregou o rosto de novo.


– Nunca esperei ter nada em comum com você.

Mas eles tinham. E quando Luchas o encarou, aqueles olhos cinza perfeitamente combinados encontraram-se com os ferrados do irmão, e a conexão estava ali presente. Os dois atravessaram o inferno, e aquilo era mais poderoso do que o DNA que partilhavam.

Era tão estranho.

E engraçado; supôs que aquela parecia a noite para ele encontrar uma família em todas as partes.

Exceto onde mais queria.

Enquanto o silêncio se estendia, com nada além dos bipes das máquinas de monitoramento ao lado da cama para romper a quietude, Qhuinn ficou ali por um bom tempo. Ele e o irmão não conversaram muito, e estava tudo bem. Era aquilo o que ele queria. Ele não estava pronto para falar de Layla e do bebê deles, e ele deduzia que Luchas não lhe perguntar a respeito significava alguma coisa. E ele, certamente, não abordaria o seu assunto com Blay.

No entanto, era agradável estar ali sentado com o irmão. Havia algo a respeito das pessoas que cresciam juntas, aquelas com quem você partilhara a infância, as pessoas das quais você não se lembra de um tempo em que não as conhecia. Mesmo que o passado fosse somente uma complicação, conforme envelhece você apenas se sente contente pelos filhos da puta ainda habitarem o seu planeta.

Isso lhe dá a ilusão de que a vida não era tão frágil quanto na realidade é – e, de vez em quando, isso é a única coisa que o faz atravessar as noites.

– É melhor eu ir para você poder descansar – disse, esfregando os joelhos para acordar as pernas.

Luchas virou a cabeça no travesseiro hospitalar.

– Vestido estranho para você, não?

Qhuinn olhou para o manto negro.

– Ah, este trapo velho? Foi a primeira coisa que vi para vestir.

– Parece cerimonial.

– Precisa de alguma coisa? – Qhuinn se levantou. – Comida?

– Estou bem, obrigado.

– Bem, avise se precisar de algo, ok?

– Você é um rapaz decente, Qhuinn, sabia?

O coração de Qhuinn parou e depois bateu forte. Aquela era a frase que o pai sempre usava para descrever cavalheiros... era como um A+ no quesito elogio, o máximo de todos, o equivalente a um abraço de urso e um cumprimento com a palma erguida para um cara normal.

– Obrigado, cara – disse ele, rouco. – Você também é.

– Como pode dizer isso? – Luchas pigarreou. – Como, em nome da Virgem Escriba, pode dizer isso?

Qhuinn exalou fundo.

– Quer saber? Vou te contar como isso é possível. Você era o favorito. Eu, uma maldição. Estávamos em polos opostos na escala em nossa casa. Mas nenhum de nós teve escolha. Você não era mais livre do que eu. Você não teve escolha a respeito do seu futuro. Ele foi determinado no seu nascimento, e de certa forma, os meus olhos... eles foram o meu passaporte para sair da cadeia, porque significava que ele não se importava comigo. Ele acabou comigo? Sim, mas pelo menos eu pude decidir o que queria fazer e para onde queria ir. Você... nunca teve essa possibilidade. Você não passava de uma equação matemática já resolvida quando foi concebido, com todas as respostas predeterminadas.

Luchas fechou os olhos novamente e estremeceu.

– Eu fico lembrando tudo. Todos aqueles anos, desde a minha primeira lembrança... até a última coisa que eu vi naquela noite quando... – ele tossiu um pouco, como se seu peito doesse, ou como se o ritmo do seu coração tivesse vacilado um pouco. – Eu o odiava. Sabia disso?

– Não. Mas isso não me surpreende.

– Não quero voltar para aquela casa.

– Então não precisa. Mas se quiser... eu vou com você.

Luchas voltou a olhar para ele.

– Verdade?

Qhuinn balançou a cabeça. Mesmo não estando com pressa alguma de andar naqueles cômodos e dançar com os fantasmas do passado, ele iria lá se Luchas quisesse.

Dois sobreviventes de volta à cena dos crimes que os definiam.

– Sim, verdade.

Luchas deu um sorriso breve, a expressão em nada parecida com aquela que ele costumava ter. E isso estava ok. Qhuinn preferia essa àquela. Era honesta. Frágil, porém honesta.

– Vejo você em breve – disse Qhuinn.

– Isso seria... muito legal.

Virando-se, Qhuinn empurrou a porta e...

Blay estava à sua espera no corredor, fumando um cigarro enquanto estava sentado no chão.

Enquanto Qhuinn saía pela porta, Blay se pôs de pé e esmagou o Dunhill no copo em que estivera bebendo. Ele não sabia muito bem como o lutador estaria, mas, decerto, não assim: tão tenso e infeliz, apesar da incrível honra que lhe fora concedida. Pensando bem, passar um tempo ao lado do leito hospitalar do irmão não pode ser um evento muito feliz.

E Blay não era estúpido. Saxton estava de volta à casa.

– Pensei que o encontraria aqui – disse, quando o macho nem mesmo lhe disse um oi.

Na verdade, os olhos azul e verde de Qhuinn se ocupavam com o corredor, fitando para tudo quanto é lado, exceto para ele.

– Então... como está o seu irmão? – Blay o instigou a falar.

– Vivo.

Pelo visto aquilo era a única coisa que poderiam desejar por enquanto.

E, ao que tudo levava a crer, essa era a única coisa que Qhuinn estava disposto a dizer. Talvez ele não devesse ter ido até lá.

– Eu... hum... queria lhe desejar parabéns.

– Obrigado.

Ok, Qhuinn ainda não estava olhando para ele. Em vez disso, o cara estava concentrado na direção do escritório, como se, em sua mente, ele já estivesse caminhando para lá e fazendo bom uso daquela passagem no armário cheio de suprimentos de papel do escritório...

O som de Qhuinn estalando as juntas dos dedos era tão alto quanto tiros. Depois ele flexionou as mãos, esticando os dedos, como se eles estivessem doendo.

– Isso é histórico – Blay foi pegar mais um cigarro, mas se conteve. – Uma verdadeira primeira vez.

– Tem havido muito disso por aqui – Qhuinn disse com uma ponta de irritação.

– O que isso quer dizer?

– Nada. Não é nada importante.

Cristo, pensou Blay, ele não deveria fazer aquilo.

– Pode olhar para mim? Isto é, você vai morrer se olhar para mim?

Aqueles olhos descombinados se voltaram.

– Ora, mas eu vi você, pode ter certeza. Acho que o seu macho está em casa. Vai contar para ele que andou me fodendo enquanto ele esteve fora? Ou vai manter esse segredinho sujo? É, pssssiu, não diga nada ao meu primo.

Blay cerrou os dentes.

– Seu santarrão filho da puta.

– Desculpe, mas não sou eu quem tem namorado...

– Vai mesmo ficar aqui fingindo que foi muito franco ao nosso respeito? Como quando Vishous passou por aquela porta – ele apontou o dedo para o outro lado do corredor –, você não pulou como se o seu traseiro estivesse pegando fogo? Quer fingir que esteve todo orgulhoso por estar transando com um cara?

Qhuinn pareceu momentaneamente surpreso.

– Acha que foi por isso? E não, hum, deixe-me pensar, por tentar respeitar o fato de que você estava traindo o amor da sua vida!

Àquela altura, os dois estavam com os quadris empinados, as vozes se elevando e sendo transportadas pelo corredor.

– Ah, mas que idiotice! – Blay cortou o ar com a mão. – Isso é uma absoluta cretinice! Veja bem, esse sempre foi o seu problema. Você nunca quis sair do armário...

– Sair do armário? Por que, acha que sou gay?

– Você transa com homens! O que acha que isso significa, porra?

– Esse é você... Você transa com caras. Você não gosta de mulheres e de fêmeas...

– Você nunca foi capaz de aceitar quem você é – Blay gritou – porque tem medo do que as pessoas vão pensar! O grande iconoclasta, o senhor Piercing, ferrado pela família! A verdade é que você é um covarde e sempre foi!

A expressão de Qhuinn era de absoluta fúria, a ponto de Blay estar pronto para ser socado – e, inferno, ele queria levar um soco só para poder ter o prazer de esmurrar de volta.

– Vamos deixar as coisas bem claras – Qhuinn bradou. – Você fica com a sua merda do seu lado do corredor. E isso inclui o meu primo e o fato de você o ter traído.

Blay levou as mãos para o alto e teve que se conter antes de sair da própria pele.


– Não suporto mais isso. Não consigo mais fazer isso com você. Parece que passei a vida inteira lidando com as suas merdas...

– Se eu sou gay, por que você é o único macho com quem estive?

Blay parou no ato e só ficou olhando para o cara, com as imagens de todos aqueles homens nos banheiros se infiltrando em sua mente. Pelo amor do que existia de mais sagrado, ele se lembrava de cada um deles, mesmo que, sem dúvida, Qhuinn não se lembrasse. Dos seus rostos. Dos seus corpos. Dos seus orgasmos.

Todos recebendo o que ele desejara tão desesperadamente, e lhe fora negado.

– Como se atreve? – perguntou. – Mas que porra, como se atreve? Ou acha que eu não sei da sua história sexual? Tive que testemunhá-la por muito mais tempo do que eu queria. E, francamente, ela não é tão interessante assim... e nem você é.

Enquanto Qhuinn empalidecia, Blay começou a balançar a cabeça.

– Pra mim já chega. Não aguento mais... O fato de você não aceitar quem você é vai acabar com o que resta da sua vida, mas isso é problema seu, não meu.

Qhuinn praguejou.

– Nunca pensei que eu fosse dizer isso... mas você não me conhece.

– Eu não conheço você? Acho que o problema é outro, idiota. Você não se conhece.

E com isso, ele esperou algum tipo de explosão, alguma emoção teatral, absurda, excessiva emanando do cara.

Nada.

Qhuinn apenas aprumou os ombros, empinou o queixo e falou de modo controlado:

– Passei o último ano tentando descobrir quem sou, parando de mentir, tentando...

– Então você desperdiçou 365 noites. Mas, como todo o resto a esse repeito, o problema é seu.

Com um xingamento cruel, Blay se virou e começou a se afastar. E não olhou para trás. Não havia motivo. Não havia ninguém no corredor para quem ele quisesse olhar.

Caraca, se a definição de insanidade era fazer a mesma coisa repetidamente à espera de um resultado diferente, então ele perdera o juízo há muito tempo. Para a sua sanidade mental, seu bem-estar emocional e sua vida, ele precisava deixar tudo isso...

Qhuinn o girou, segurando-o pelo braço, o seu rosto furioso bem diante do dele.

– Não me deixe falando sozinho assim.

Blay sentiu uma onda de exaustão assolá-lo.

– Por quê? Porque você tem mais uma coisa para me dizer? Alguma ideia brilhante que acabou de ter a respeito de si mesmo que vai fazer todas as peças do quebra-cabeça se encaixarem? Alguma confissão que vá estabilizar o navio e fazer tudo ficar maravilhoso ao pôr do sol na praia? Você não tem esse tipo de vocabulário, e eu já não sou mais ingênuo.

– Quero que você se lembre de uma coisa – Qhuinn grunhiu. – Tentei fazer com que as coisas entre nós dessem certo. Eu nos dei uma chance.

Blay ficou de queixo caído.

– Você nos deu uma chance? Está de brincadeira comigo? Acha que fazer sexo comigo para se vingar do seu primo é um relacionamento? Acha que algumas sessões secretas consistem num caso amoroso?

– Era tudo de que eu dispunha – aqueles olhos descombinados perscrutaram o rosto de Blay. – Eu não estou dizendo que foi um tremendo de um romance, mas eu apareci porque eu queria estar com você do modo que fosse possível.

– Bem, parabéns. E agora que nós dois experimentamos, posso lhe garantir, com certeza, que não servimos um para o outro – e enquanto Qhuinn começava a discutir, Blay enfiou a mão no cabelo e quis arrancá-lo. – Preste atenção, se isso o ajudar a dormir durante o dia, e eu custo a acreditar que isso vá incomodá-lo por mais do que uma noite, diga a si mesmo que fez o que era possível, mas que não deu certo. Eu? Eu prefiro a realidade. O que aconteceu entre mim e você é exatamente a mesma coisa que você fez com todos aqueles aleatórios com quem esteve. Sexo... apenas sexo. E agora já chega.

Os olhos de Qhuinn ardiam.

– Você não me entendeu.

– Então você além de estar em negação está se iludindo.

– As pessoas mudam. Não sou mais assim, definitivamente não com você.

Deus... era um triste alívio sentir nada quando aquelas palavras se dirigiram a ele.

– Sabe... houve um tempo em que eu teria caído de joelhos na sua frente ao ouvir algo assim – murmurou. – Mas agora... tudo o que eu vejo é você pulando daquele chão no segundo em que alguém abriu a porta e nos viu juntos. Você diz que essa reação foi por causa de Saxton e do meu relacionamento? Tudo bem. Mas, estou quase certo... não, estou totalmente certo de que, se você olhar a fundo, vai descobrir que tem muito mais a ver com você do que com o seu primo. Você se odeia há tantos anos, que não acho que seja possível amar alguém ou sequer entender quem você é. Espero que, um dia, você descubra isso, mas eu não vou fazer parte disso; isso eu prometo.

Qhuinn meneou a cabeça, o franzir em sua testa tão profundo que era como se uma fenda tivesse se aberto entre as sobrancelhas.

– Acho que você já me decifrou direitinho, não?

– Não é tão difícil assim.

– Só para constar, eu estava apaixonado por você.

– Por três dias, Qhuinn. Três dias. Durante os quais houve drama suficiente para tornar Guerra e Paz um livro de comédia. Isso não é amor. É um sexo bom como distração para o fato de que a vida é uma merda.

– Eu não sou gay.

– Tudo bem. É bi. Bicurioso. Está experimentando. Tanto faz. Não me importo. Não mesmo. Eu sei quem eu sou e é assim que consigo viver a minha vida. O seu esquema é completamente diferente... e boa sorte com isso. Obviamente, está funcionando superbem para você.

Dito isso, ele se afastou novamente.

E, dessa vez... Qhuinn o deixou ir.


CONTINUA

CAPÍTULO 69

A vida inteira de Qhuinn sofreu nova guinada cerca de quinze horas após ele perder a virgindade. Mais tarde, ele decidiria se aquilo de que as coisas aconteciam em trios era verdade mesmo. Quando a coisa ocorria, porém, tudo o que ele queria era sobreviver...

Em algum momento durante as horas do dia, ele e Blay acordaram, se separaram e seguiram seus caminhos.

Qhuinn teria preferido se eles voltassem para a casa principal juntos, mas ele tinha de parar para ver Luchas, e Blay estava ansioso para voltar para o quarto e tomar banho. E, de certa forma, isso não fora ruim, porque assim Qhuinn teve a oportunidade de também dar uma olhada em Layla.

No que se referia ao irmão e à Escolhida, tudo estava tranquilo. Os dois estiveram adormecidos em suas respectivas camas; a cor do rosto de Luchas estava melhor e, pela primeira vez, quando Qhuinn foi ao quarto de Layla, ele sentiu a gravidez. Os níveis de hormônio o atingiram assim que entrou, e ele ficou imóvel de tão forte que foi a sensação.

O que fora muito bom mesmo.

O que ele não gostara muito foi de passar diante da porta de Blay e querer bater, entrar e voltar a dormir.

Em vez disso, acabara dentro de suas quatro paredes completamente sozinho.

Na cama. No escuro. Indo e voltando da terra do REM pelas duas horas que antecediam a Primeira Refeição.

Portanto, quando a porta foi escancarada e uma fileira de homens altos em mantos negros entrou, seu passado e presente colidiram, os dois se tornando intercambiáveis – a tal ponto que o ataque da Guarda de Honra pulou para fora do túmulo da sua memória e aterrissou bem em seu quarto na mansão.

Sem saber se estava sonhando ou se aquilo era real, seu primeiro pensamento foi de alegria por Blay não estar com ele. O cara já o encontrara quase morto no acostamento da estrada uma vez. Ninguém precisava de um replay daquilo.

Seu segundo pensamento foi que abateria quantos pudesse antes que eles, finalmente, acabassem com ele.

Com um grito de guerra, Qhuinn explodiu para fora da cama, o corpo nu passando ao ataque com tal força que acabou derrubando os dois primeiros. Atacando com as pernas, ele chutou e socou tudo que dele se aproximava, e houve uma pequena satisfação quando seus alvos praguejaram e se afastaram do seu alcance...

Algo prendeu seu peito por trás, e o girou com tal força que seus pés se ergueram do chão e formaram um arco e...

Olá, parede.

O impacto valeu por três pontos em sua brilhante ideia de revide de luta, o rosto, o tronco, os quadris se chocando na parede com tanta força que, sem dúvida, ele deixara uma reprodução em 3D do seu corpo, ao estilo dos desenhos animados.

Instantaneamente, ele empurrou a superfície plana, preparado para se...

O braço que o empurrou pela nuca o prendia de tal forma que parecia ser de aço. Não havia, literalmente, espaço para se mexer, e mesmo assim ele tentou, pois seu corpo se recusava a ser dominado.

– Calma aí, sua besta. Apenas fique parado antes que eu seja forçado a machucá-lo.

O som da voz de Vishous não fazia sentido algum.

E, de repente, pelo canto do olho, ele percebeu que um círculo fora formado ao seu redor, todos aqueles mantos negros o cercando, assim como aquela chave de braço no seu pescoço.

Mas eles não estavam atacando.

– Apenas relaxe – disse V. em sua orelha. – Respire comigo, vamos lá... Apenas respire. Ninguém vai machucar você.

A fala ajudou, aquela voz calma, controlada atingindo sua reação de “lute ou fuja” e aplacando o rugido do seu pânico.

Logo em seguida, Qhuinn começou a tremer, os músculos processando toda a adrenalina.

– Vishous?

– Sim, sou eu, amigo. Você precisa continuar respirando.

– Quem... mais?

– Rhage.

– Butch.

– Phury.

– Zsadist.

– Tohr.

As vozes combinavam com os nomes, aqueles tons graves, sérios, sem sinais de bobeira, penetrando em seu cérebro, ajudando-o a perceber a realidade que não envolvia o passado.

E, então, o último foi o responsável por ele descer o derradeiro degrau do vórtice mental, regressando para o que era real.

– Wrath.

Qhuinn tentou virar a cabeça na direção do Rei, mas seu impulso não o levou a nada.

– Vou soltar você, ok, amigo? – disse V. – Vai se controlar?

– Sim.

– No três, então. Um. Dois. Três.

Vishous deu um salto para trás e parou numa pose de combate: braços erguidos, punhos prontos, posição equilibrada. Mesmo com o rosto do Irmão coberto pelo capuz, Qhuinn bem podia visualizar a expressão dele: sem dúvida se Qhuinn fizesse qualquer movimento, ele seria reapresentado à parede – e aquela amizade já fora travada, muito obrigado.

Ele se sentia uns quinze centímetros mais fino.

Com uma imprecação, Qhuinn se virou devagar, mantendo as mãos onde a Irmandade pudesse vê-lo.

– Estão me expulsando da mansão?

Ele não fazia ideia do que tinha feito, mas com seu histórico de irritar as pessoas, voluntariamente ou não? Podia ser qualquer coisa.

– Não, seu idiota – V. respondeu com uma risada.

Encarando a fila de silhuetas solenes cobertas por capuzes, ele procurou entender quem era quem, travando contato, lembrando-se de que aqueles eram os caras com quem ele lutava lado a lado, que sempre protegeram suas costas, que eles trabalhavam juntos.

Por isso, que diabos era aquilo...

A terceira figura a partir da esquerda levantou o braço, um dedo longo estendido e apontando para o meio do peito de Qhuinn.

Na mesma hora, Qhuinn se viu novamente na carcaça daquele Cessna, com o drama do voo concluído, Zsadist vivo e bem, o objetivo alcançado... aquele macho o destacando como fazia agora.

No Antigo Idioma, Wrath disse:

– Ser-lhe-á feita uma pergunta. E ela será feita apenas uma vez. A sua resposta será testada desde este instante até o resto de sua linhagem. Está pronto para responder a pergunta?

O coração de Qhuinn começou a bater forte. Os olhos voltando-se ao redor, ele não podia acreditar que aquilo...

A não ser... mas como era possível? Considerando-se a sua linhagem e o seu defeito, não seria legal alguém como ele...

Do nada, a imagem de Saxton trabalhando na biblioteca todas aquelas noites o acometeu.

Puta... merda.

Tantas perguntas: por que ele? Por que agora? E quanto a John Matthew, cujo peito, magicamente, já carregava a marca da Irmandade?

Enquanto a sua mente alucinava, sabia que tinha que responder, mas, cacete, ele não podia...

Com uma clareza absurda, ele pensou na filha, visualizando a imagem que vira na porta do Fade.

Qhuinn olhou para cada um dos capuzes de novo. Quanta ironia, pensou. Quase dois anos antes, uma Guarda de Honra em mantos negros fora enviada para deixar bem claro que a sua família não o queria. E agora, ali estavam aqueles machos, reunidos para levá-lo a um tipo diferente de família – que era tão ou mais forte que aquela de sangue.

– Pode crer, manda aí – foi a sua resposta.


A primeira pista de Blay de que algo grande estava acontecendo foram as passadas diante da porta do seu quarto: ele estava na frente do espelho, barbeando-se, quando as ouviu se aproximando pelo corredor das estátuas, muitas delas, pesadas e repetitivas.

Só podia ser a Irmandade.

Depois, enquanto ele se inclinava sobre a pia para retirar o resto do creme de barbear, algo pesado caiu no chão do quarto ao lado – ou foi lançado contra a parede. Parecia muito ter vindo do quarto de Qhuinn.

Desligando a torneira, ele pegou uma toalha e envolveu os quadris enquanto saía da suíte e seguia para...

Blay parou de pronto. O quarto de Qhuinn estava escuro, mas a luz do corredor caía sobre um círculo de mantos negros que cercava o cara. E ele estava sendo empurrado de cara contra a parede.

O único pensamento de Blay foi que uma segunda Guarda de Honra viera atrás do lutador – mesmo ele sabendo muito bem que era a Irmandade debaixo daqueles mantos. Só podia ser, certo?

A voz de Vishous resolveu essa questão, pois as palavras do macho se fizeram ouvir de modo claro e lento.

Em seguida, Qhuinn foi solto. Quando ele se virou, estava branco como um lençol, tremendo de pé nu no centro do círculo das figuras encapuzadas.

Wrath quebrou o silêncio, a voz grave de barítono do Rei preenchendo a escuridão:

– Ser-lhe-á feita uma pergunta. E ela será feita apenas uma vez. A sua resposta será testada desde este instante até o resto de sua linhagem. Está pronto para responder a pergunta?

Blay levou a mão da adaga para a boca quando ela se abriu. Aquilo não podia ser... podia? Eles o estavam iniciando na Irmandade da Adaga Negra?

Instantaneamente, ele juntou as peças: Saxton trabalhando duro todos aqueles meses; os atos de heroísmo de Qhuinn; John sendo informando de que o cara já não seria mais o seu ahstrux nohtrum.

Wrath devia ter alterado as Leis Antigas.

Puta que o pariu...

– Pode crer, manda aí...

Blay teve que sorrir quando recuou e voltou para o quarto. Só mesmo Qhuinn para ser tão direto.

Quando a porta se fechou, ele ficou grudado nela, esperando. Minutos depois, aquelas passadas pesadas retornaram, transitando diante do seu quarto, descendo para o vestíbulo, desaparecendo... mudando a história para sempre.

Em toda a existência da Irmandade, nunca houve ninguém iniciado que não fosse filho de um Irmão ou uma fêmea de sangue de Escolhida. Qhuinn, tecnicamente, era um aristocrata – mesmo tendo sido banido pela família, e com o seu “defeito”, a sua linhagem era aquilo que era. Mas não tinha as credenciais de DNA, ou o nome de guerreiro, que os outros tinham.

Contudo, desde que sobrevivesse à cerimônia, ele voltaria à mansão como um macho entre seus pares, para nunca mais ser desertado.

Era bom que Luchas estivesse vivo para presenciar aquilo. Seria muito importante.

Blay se vestiu, e quando verificou o celular, viu que havia uma mensagem para o grupo todo enviada por Tohr, informando que ninguém sairia a campo naquela noite e que iriam receber um par de novos hóspedes: os dois Sombras iriam morar na mansão.

Beleza. Em face à inquietação da aristocracia e ao atentado contra Wrath? Nada melhor do que ter aqueles dois assassinos debaixo do teto. Junto aos modos afetados de Lassiter, isso significava que o Rei dispunha de um trio com habilidades extras para protegê-lo.

Com um pouco de sorte, Trez e iAm se tornariam hóspedes permanentes.

Saindo do quarto, ele correu pelas escadas e não se surpreendeu ao encontrar os doggen se apressando para arrumar um banquete.

Quanto tempo levaria?, ele se perguntou.

Ah, como ele queria ter algo com que passar o tempo.

Indo até a sala de bilhar, pois sabia que de nada adiantaria abordar Fritz para oferecer ajuda para os preparativos, ele pegou um taco e o triângulo para formação das bolas. Enquanto passava giz na ponta, a campainha da porta da frente tocou.

– Pode deixar – ele exclamou enquanto levava o taco consigo até a tela da câmera de segurança.

Saxton estava ali, parecendo descansado e saudável.

Blay abriu a porta.

– Bem-vindo de volta.

Houve um momento de incerteza, pois não sabiam se se abraçavam ou se cumprimentavam com um aperto de mãos.

– Precisamos parar com essa estranheza – anunciou Saxton. – Venha cá.

– É mesmo, não?

Depois de um abraço rápido, Blay apanhou as malas combinadas da Gucci e os dois subiram o lance de escadas, lado a lado.

– Então, como foi de férias? – Blay perguntou.

– Foi maravilhoso. Fui para a casa da minha tia... aquela que ainda fala comigo, sabe? Ele tem uma propriedade na Flórida.

– Um lugar bem perigoso para vampiros. Não existem muitos porões.

– Ah, mas ela vive num castelo de pedra – Saxton indicou o vestíbulo. – Não como este. As noites são quentes, o oceano é maravilhoso, a vida noturna...

Quando Saxton parou abruptamente, Blay olhou para ele.

– Está tudo bem, sabe. Estou feliz que tenha se divertido. De verdade.

Saxton o observou atentamente e depois murmurou:

– Você também andou ocupado, não?

Maldita coloração de ruivo. Todo rubor ficava evidente e, naquele instante, seu rosto estava em fogo.

Quando viraram à esquerda depois do escritório de Wrath e seguiram pelo corredor das estátuas, Saxton riu de leve.

– Estou feliz por você. E não vou fazer nenhuma pergunta.

Ele sabia o “quem”, Blay concluiu.

– Bem. É isso.

– Que tal me pôr a par das novidades? – Saxton sugeriu ao entrarem em seu quarto. – Sinto como se estivesse longe há um século.

– Bem... prepare-se.

Luchas. Trez e iAm. Qhuinn e a iniciação.

Quando Blay terminou de falar, Saxton estava sentado na cama de boca aberta.

– Mas você sabia dessa do Qhuinn, não sabia? – disse Blay ao terminar seu relato.

– Sim, eu sabia – Saxton endireitou a gravata borboleta, mesmo o nó estando perfeitamente simétrico. – E tenho que lhe dizer que, apesar de não saber tudo o que você sabe sobre ele no campo de batalha, tudo o que ouvi sugere que é uma honra digna. Fiquei sabendo que ele teve um papel de muita importância no resgate de Wrath no dia da tentativa de assassinato.

– Ele é corajoso, isso é verdade.

Dentre tantas outras coisas.

Enquanto Blay olhava para o corredor e visualizava aquelas figuras encapuzadas ao redor do seu amigo, tudo em que pensava era... o que diabos vão fazer com ele?


CAPÍTULO 70

Qhuinn não tinha ideia de onde estava.

Antes de saírem do seu quarto, eles lhe deram um manto negro e o instruíram a colocar o capuz, fixar o olhar no chão e manter as mãos cruzadas às costas. Ele não podia falar a menos que o pedissem para falar e deixaram bem claro que o modo como ele agisse seria parte do seu julgamento.

Não podia ser nem cretino nem covarde.

Ele podia fazer isso.

A parada seguinte, depois de descerem a escadaria principal, foi o Escalade de V.; ele soube disso pelo cheiro do tabaco turco e pelo ronco do motor. Trajeto curto, executado lentamente. E depois lhe disseram para sair, o ar frio atingindo-o por debaixo do capuz e pela bainha do manto.

Os pés descalços cobriram um pedaço de terra batida e dura pelo frio, e depois um pedaço mais fofo, sem neve por cima. A julgar pela acústica, ficou claro que eles seguiam por um corredor ou talvez uma caverna...? Não demorou para que o fizessem parar, um tipo de portão foi aberto, e então ele se viu numa descida. Pouco depois, foi parado uma segunda vez, e houve uma espécie de sussurro, como se mais uma barreira fosse desimpedida.

Agora, mármore liso sob seus pés. E ele estava aquecido. Também havia uma fonte suave de luz – luzes de velas.

Deus, seu coração batia rápido em seus ouvidos.

Após alguns metros, ele foi parado novamente e ouviu o som de tecido sendo removido ao seu redor. Os Irmãos estavam retirando os mantos.

Ele quis olhar, ver onde estavam, descobrir o que estava acontecendo, mas não o fez. Como instruído, manteve a cabeça baixa e os olhos no...

Uma mão pesada pousou em sua nuca e a voz de Wrath ecoou no Antigo Idioma:

– Você não é digno de entrar aqui como está. Acene com a cabeça.

Qhuinn acenou.

– Diga que é indigno.

No Antigo Idioma, ele acatou:

– Sou indigno.

Ao seu redor, os Irmãos explodiram no Antigo Idioma, numa discordância que o fez querer agradecer a eles por apoiarem-no.

– Apesar de ser indigno – prosseguiu o Rei –, você deseja tornar-se digno esta noite. Acene com a cabeça.

Ele acenou.

– Diga que quer se tornar digno.

– Quero me tornar digno.

Dessa vez, o tremendo grito dos Irmãos foi de aprovação e apoio.

Wrath continuou:

– Só existe um modo de se tornar digno, e é o modo adequado e próprio. Corpo do corpo. Acene com a cabeça.

Qhuinn acenou.

– Diga que quer se tornar corpo do nosso corpo.

– Quero me tornar corpo do seu corpo.

Assim que a voz sumiu, um canto começou a ser entoado, as vozes graves da Irmandade se misturando até formarem um coro perfeito numa cadência perfeita. Ele não os acompanhou, porque não o ordenaram que o fizesse, mas, assim que alguém se postou diante dele, e alguém se colocou atrás, e logo o grupo todo passou a oscilar de um lado para o outro, seu corpo seguiu a liderança deles.

Movendo-se juntos, tornaram-se uma unidade, os ombros largos movendo-se para frente e para trás no ritmo do canto, o peso remexendo nos quadris – a fila começou a avançar.

Qhuinn começou a cantar. Não foi de propósito, apenas aconteceu. Seus lábios se partiram, os pulmões se encheram e a voz acompanhou a dos outros.

No instante em que começou a cantar, começou a chorar.

Ainda bem que estava de capuz.

Por toda a sua vida ele quis pertencer. Ser aceito. Estar entre tantos que eram respeitados. Ele o desejou com tanta avidez que a privação de toda e qualquer união quase o matara – e ele só sobrevivera ao se revoltar contra a autoridade, os costumes, as normas.

Ele nem mesmo se dera conta de ter desistido de um dia encontrar tal comunhão.

E lá estava ele agora, em algum lugar debaixo da terra, cercado por machos que... o escolheram. A Irmandade, os lutadores mais respeitados pela raça, os soldados mais poderosos, a elite da elite... escolhera a ele.

Aquilo não era um acidente de nascimento.

Ser considerado uma maldição para acabar sendo acolhido ali, naquele instante? De súbito, ele se sentiu inteiro como nunca antes em sua vida.

De repente, a acústica se alterou, o canto coletivo ricocheteando ao redor, como se tivessem entrado num grande espaço com teto alto.

Uma mão em seu ombro o fez parar.

Em seguida, o coro e o movimento cessaram, os acordes finais de suas vozes sumindo aos poucos.

Alguém o segurou pelo braço e o incitou a avançar.

– Escada – era a voz de Z.

Ele subiu cerca de seis degraus, depois chegou a um patamar. Quando parou, foi com o peito e os dedos dos pés contra o que parecia ser uma parede de mármore do mesmo tipo em que o piso parecia ser feito.

Zsadist se afastou, deixando-o onde ele estava.

Seu coração bateu forte contra o esterno.

A voz do Rei soou forte como um trovão:

– Quem indica esse macho?

– Eu – Zsadist respondeu.

– Eu – Tohr ecoou.

– Eu.

– Eu.

– Eu.

– Eu.

Qhuinn teve que piscar repetidamente enquanto, um a um, os Irmãos se pronunciavam. Cada um dos malditos Irmãos o indicava.

E então foi a vez do último.

A voz do Rei soou alta e clara:

– Eu.

Cacete, ele precisava piscar um pouco mais.

Quando Wrath prosseguiu, a inflexão aristocrática do Antigo Idioma foi acompanhada pela força de um guerreiro:

– Com base no testemunho dos membros reunidos da Irmandade da Adaga Negra, e com base na indicação de Zsadist e Phury, filhos do guerreiro da Adaga Negra Ahgony; Thorment, filho do guerreiro da Adaga Negra Hharm; Butch O’Neal, parente de sangue de minha própria linhagem; Rhage, filho do guerreiro da Adaga Negra Tohrture; Vishous, filho do guerreiro da Adaga Negra conhecido como Bloodletter; e na minha própria como Wrath, filho de Wrath, consideramos o macho diante de nós, Qhuinn, filho de ninguém, uma indicação adequada para a Irmandade da Adaga Negra. E como está em meu poder e juízo fazer tal coisa, e por ser adequado para a proteção da raça, e, além disso, pelas leis terem sido reconstruídas para guarnecer o que é de direito e adequado, eu dispenso toda e qualquer exigência de linhagem. Podemos agora dar início. Virem-no. Dispam-no.

Antes que alguém se aproximasse, Qhuinn aprumou os ombros e conseguiu esfregar os olhos rapidamente, assim voltava a ser um macho quando o giraram e retiraram seu manto.

Qhuinn arfou. Ele estava sobre um tablado, e a caverna que estava diante dele era iluminada por centenas de velas negras, as chamas criando uma sinfonia de luzes suaves e douradas que queimavam em paredes mal cortadas e refletiam o brilho do piso.

Mas não foi isso que chamou a sua atenção: bem diante dele, entre ele e o tremendo espaço bem iluminado, havia um altar.

No centro do qual jazia um crânio.

A coisa devia ser bem antiga, pois o osso não era branco como os dos recém-falecidos, mas trazia uma pátina escurecida de idade, de sacro, de venerável.

Aquele era o primeiro Irmão. Só podia.

Quando seus olhos se desviaram daquilo, ele se viu tomado por admiração: abaixo, olhando para ele, estavam os portadores vivos daquela tradição. A Irmandade estava ombro a ombro, os corpos nus dos guerreiros formando uma incrível parede de pele e músculos, a luz das velas cintilando sobre tanta força e poder.

Tohr segurou o braço de Wrath e conduziu o Rei pelas escadas que Qhuinn acabara de subir.

– Recoste-se na parede e segure as estacas – Wrath ordenou em inglês ao ser acompanhado até o altar.

Qhuinn obedeceu sem hesitação, sentindo as escápulas e o traseiro encostarem na pedra enquanto as mãos seguravam duas protuberâncias firmes em forma de cavilhas.

Quando o Rei levantou a mão, Qhuinn entendeu imediatamente como cada um dos Irmãos conseguira a cicatriz em forma de estrela no peitoral: uma antiga luva de prata estava na mão de Wrath, os espinhos marcando os nós dos dedos do objeto e, dentro do punho, havia o cabo de uma adaga negra.

Com um mínimo de espalhafato, Tohr estendeu o pulso de Wrath por cima do crânio.

– Meu senhor.

Enquanto o Rei aproximava a adaga, as tatuagens ritualísticas que delineavam a linhagem dele foram evidenciadas pela luz das velas – e depois, a lateral afiada marcou a pele.

Sangue vermelho vivo se avolumou e caiu sobre a taça de prata que estava incrustada na base do crânio.

– Meu corpo – proclamou o Rei.

Depois de um instante, Wrath lambeu a ferida para fechá-la. E depois, o macho imenso, com seu cabelo escuro longo até a cintura e em bico no alto da testa, e naqueles óculos escuros, foi conduzido até Qhuinn.

Mesmo sem o benefício da visão, Wrath, de algum modo, sabia exatamente onde seus corpos estavam posicionados, onde estava o rosto de Qhuinn, e qual era a altura...

Porque o Rei avançou até a garganta dele. Então, com força brutal, empurrou o rosto de Qhuinn para o lado, expondo-lhe a garganta.

Agora ele entendia para que serviam as cavilhas.

O sorriso cruel de Wrath expunha presas espantosas, do tipo que Qhuinn jamais vira.

– Seu corpo.

Com um ataque veloz como a luz, o Rei se segurou sem misericórdia, perfurando a veia de Qhuinn numa mordida brutal e depois tragando uma série de golfadas que eram engolidas uma a uma. Quando, por fim, retraiu os caninos, ele passou a língua sobre os lábios e sorriu como um chefe guerreiro.

E chegou a hora.

Qhuinn não precisou que lhe dissessem para se segurar firme. Abaixando as mãos, travou os ombros e as pernas, pronto para receber.

– Nosso corpo – rugiu Wrath.

O Rei não se conteve. Com a mesma acuidade certeira, ele cerrou o punho dentro da luva antiga e socou a coisa no peitoral de Qhuinn, o impacto das juntas com espinhos foi tão grande, que os lábios de Qhuinn se moveram na rajada que emanou de seus pulmões. A visão enxergou uma série de passarinhos por um momento, mas quando voltou, ela focalizou a expressão de Wrath.

Que era de respeito – e ausência absoluta de surpresa, como se Wrath tivesse antecipado que Qhuinn suportaria aquilo como um macho.

E assim continuou. Tohr foi o seguinte, aceitando a luva e a adaga, repetindo as palavras, cortando o braço, sangrando dentro do crânio, atacando a garganta de Qhuinn, depois atingindo com o máximo de sua força. E depois Rhage. Vishous. Butch. Phury. Zsadist.

Ao final, Qhuinn sangrava por causa das feridas no pescoço e no peito, o corpo estava coberto de suor, e o único motivo pelo qual não estava caído no chão eram aquelas cavilhas.

Mas ele não se importava com o que mais lhe fizessem; continuaria de pé não importando o que acontecesse. Desconhecia a história da Irmandade, mas estava disposto a apostar que nenhum daqueles caras caíra como um saco de batatas durante a iniciação deles – e ele não se importava em ser o primeiro de algumas maneiras, mas não devido à ausência de coragem.

Além disso, até ali, tudo bem. Os outros Irmãos estavam parados adiante, sorrindo de orelha a orelha para ele, como se aprovassem completamente o modo como ele vinha lidando com aquilo – e não é que isso só aumentava a sua determinação?

Com um aceno, como se tivesse recebido uma ordem, Tohr levou o Rei de volta ao altar e lhe entregou o crânio. Erguendo o sangue coletado, Wrath disse:

– Este é o primeiro de nós. Saúde o guerreiro que deu origem à Irmandade.

Um grito de guerra emanou dos Irmãos, a combinação das vozes trovejou pela caverna, e depois Wrath se aproximou de Qhuinn.

– Beba e junte-se a nós.

Entendido.

Com uma força renovada, ele pegou o crânio e olhou bem dentro das cavidades oculares ao levar a taça de prata aos lábios. Abrindo a boca, despejou o sangue pela garganta, aceitando os machos dentro de si, absorvendo-lhes a força... juntando-se a eles.

Ao seu redor, os Irmãos rugiram sua aprovação.

Quando terminou, voltou a colocar o crânio nas palmas de Wrath e limpou a boca.

Uma gargalhada se espalhou pelo peito amplo do Rei.

– Acho que vai querer se segurar nessas cavilhas, filho...

E foi essa a última coisa que ele ouviu.

Como um raio vindo dos céus e atingindo-o em cheio na cabeça, uma onda súbita de energia o atingiu, sobrepujando todos os seus sentidos. Ele deu um salto para trás, encontrando as cavilhas e segurando-se a elas bem quando seu corpo foi acometido por uma convulsão...

Ele tinha toda a intenção de permanecer consciente.

Mas, caramba... O redemoinho era poderoso demais.

Enquanto seu corpo tremia, e o coração palpitava, e a mente sibilava como um fogo de artifício, Bum!, as luzes se apagaram.


CAPÍTULO 71

– Sola, por que você não me contou que teríamos visita?

Sola fez uma pausa ao colocar a mochila sobre a bancada da cozinha. Embora sua avó estivesse claramente esperando uma resposta, ela não se viraria até que sua expressão não demonstrasse a surpresa que sentia.

Quando estava pronta, virou-se sobre uma bota.

A avó estava sentada na cadeira delicada à mesa, sua roupa de ficar em casa rosa e azul coordenando com os bobes na cabeça e as cortinas floridas logo atrás dela. Aos oitenta anos de idade, ela tinha o rosto graciosamente marcado de uma mulher que vivera no período de treze presidentes, numa Guerra Mundial, e com inúmeras dificuldades pessoais. Seus olhos, contudo, ardiam com a força de uma imortal.

– Quem veio aqui, vovó? – perguntou.

– O homem com o – a avó levantou a mão de juntas grossas e apontou para os bobes – ... cabelo escuro.

Bosta.

– Quando ele veio?

– Ele foi muito gentil.

– Ele deixou um nome?

– Então você esperava por ele?

Sola inspirou profundamente e rezou para que sua postura neutra continuasse a postos, apesar de sua irritação. Inferno, depois de viver anos com a avó era de se esperar que ela já estivesse acostumada ao fato de que a mulher nunca se desviava no que se referia a fazer perguntas.

– Não, eu não estava esperando por ninguém – e a ideia de que alguém aparecera à porta a fez enfiar a mão na bolsa. Havia uma .09 com visão a laser e um silenciador ali...o que era muito bom. – Como ele era?

– Muito grande. Cabelo escuro. Olhos profundos.

– De que cor? – a avó não enxergava muito bem, mas devia se lembrar disso. – Ele era...

– Como a gente. Ele falou comigo em espanhol.

Talvez aquele homem erótico que ela investigara fosse bilíngue. Ou trilíngue, a julgar pelo sotaque estranho.

– Então, ele deixou um nome? – não que isso fosse ajudar. Ela desconhecia o nome do homem que seguira.

– Ele disse que você o conhecia, e que vai voltar para ver você.

Sola olhou de relance para o relógio digital do micro-ondas. Passava pouco das dez.

– Quando ele veio?

– Não faz muito tempo – os olhos da avó se estreitaram. – Você tem visto ele, Marisol? Por que não me contou?

Naquele ponto, tudo escorregou para o português, as falas de sílabas destacadas se sobrepondo, todo tipo de “não estou namorando ninguém” misturado a “por que você não se casa”. Elas discutiram aquilo tantas vezes que basicamente retomavam as partes muito bem ensaiadas daquela peça de teatro já ultrapassada.

– Bem, eu gosto dele – anunciou a avó ao se levantar da mesa e bater na superfície com as palmas abertas. Enquanto o porta-guardanapos com sua pilha de Vanity Fair dava um salto, Sola quis praguejar. – Acho que você tem que trazer ele aqui para um jantar de família.

Eu até faria isso, vovó, mas não conheço o cara – e o que a senhora acharia se soubesse que ele é um criminoso? Um playboy?

– Ele é católico? – perguntou a avó a caminho da porta.

Ele é traficante de drogas, portanto, se é religioso, tem incríveis poderes de reconciliação.

– Ele parece um bom rapaz – a avó comentou por sobre o ombro. – Um bom rapaz católico – e aquilo foi tudo, por ora.

Enquanto os chinelos se arrastavam escada acima, sem dúvida o sinal da cruz era feito repetidamente pelo caminho. Sola bem conseguia visualizar isso.

Com uma imprecação, baixou a cabeça e fechou os olhos. De certa forma, ela não conseguia enxergar o homem sendo agradável e gentil só porque uma senhora de idade brasileira abrira a maldita porta. Católico, até parece.

– Maldição.

Em retrospecto, quem era ela para ser uma santa? Era uma criminosa. Há diversos anos. E o fato de ela sustentar a si e a avó não justificava tantas invasões de propriedade.

Quem seu homem misterioso sustentava, ela se perguntou quando o cachorro do vizinho começou a latir. Os gêmeos? Eles pareciam bastante autossuficientes. Será que ele tinha filhos? Uma esposa?

Por algum motivo, estremeceu.

Cruzando os braços diante do peito, ficou olhando o piso imaculado que a avó limpava todo santo dia.

Pensou que ele não tinha o direito de ir até lá.

Tudo bem, ela fora até a casa dele sem ser convidada, não é mesmo?

Sola franziu o cenho e levantou o olhar. A janela emoldurada pela cortina rosa rendada estava escura porque ela não acendera as luzes de fora ainda. Mas ela sabia que havia alguém ali fora.

E sabia muito bem quem era.

Com a respiração se tornando superficial e o coração começando a bater forte, ela levou a mão à garganta sem nenhum motivo.

Vire, ordenou-se. Fuja.

Mas... ela não fez isso.


Assail não tivera a intenção de ir até a casa da sua ladra. Mas o equipamento de rastreamento ainda estava acoplado ao Audi, e quando ele o informou de que ela havia retornado àquele endereço, viu-se incapaz de não se desmaterializar até ali.

No entanto, ele não queria ser visto. Então, escolheu o quintal dos fundos, e que sorte: quando a ladra entrara na cozinha, ele teve uma visão desobstruída dela, bem como de sua acompanhante.

A humana mais idosa era muito encantadora em seu modo mais ancião, o cabelo enrolado, o roupão vivaz como um dia de primavera, o rosto belo apesar da idade. Ela, porém, não parecia feliz, ao se sentar à mesa e olhar adiante, para o que Assail supunha, fosse a neta dela.

Palavras foram trocadas, e ele sorriu um pouco na escuridão. Havia muito amor entre elas; muito aborrecimento também. Como sempre acontecia com os parentes de mais idade, quer eles fossem humanos ou vampiros.

Ah, como se sentia aliviado em saber que ela não vivia com um macho.

A menos, claro, que aquele com quem ela se encontrara no restaurante também morasse naquela casinha.

Enquanto ele grunhia baixinho no escuro, o cachorro da casa vizinha começou a latir, avisando os humanos sobre aquilo que eles desconheciam.

Um momento depois, sua ladra foi deixada a sós na cozinha com uma expressão tanto de resignação quanto de frustração.

Enquanto ela continuava de pé, com os braços cruzados, balançando a cabeça, ele disse a si mesmo que deveria ir embora. Em vez disso, não foi: atravessou o vidro com a mente, e deixou seu desejo correr solto.

Ela reagiu imediatamente, o corpo delgado se enrijecendo contra a bancada, os olhos seguindo direto para a janela.

– Venha para mim – disse ele para o ar frio.

E foi o que ela fez.

A porta dos fundos rangeu quando ela a abriu com o quadril, forçando a parte inferior a raspar uma porção de neve acumulada no assoalho.

O cheiro dela era a sua ambrosia. E enquanto ele diminuía a distância entre eles, seu corpo foi inundado por um desejo predatório.

Assail não parou até estar a centímetros dela. Tão perto assim, quase peito contra peito, ela era muito menor do que ele; todavia, o efeito que ela surtia nele era monumental. Suas mãos se crisparam, as coxas endureceram, seu coração pulsava com sangue aquecido.

– Não pensei que fosse voltar a vê-lo – ela sussurrou.

O pau dele endureceu ainda mais, só de ouvir a voz dela.

– Parece que temos assuntos inacabados.

Que não envolviam nem dinheiro, nem drogas, tampouco informações.

– Falei sério – ela afastou os cabelos para trás, como se tivesse dificuldade para ficar parada. – Não vou mais espionar. Prometo.

– De fato, você me deu a sua palavra. Mas, ao que tudo leva a crer, sinto falta dos seus olhos sobre mim – o sibilo dela atravessou o ar frio entre eles. – Dentre outras coisas.

Ela desviou o olhar rapidamente. Voltou a fitá-lo.

– Isto não é uma boa ideia.

– Por quê? Por causa daquele humano com quem você jantou?

Sua ladra franziu o cenho, provavelmente pelo uso da palavra “humano”.

– Não. Não é por causa dele.

– Então ele não mora aqui.

– Não, somos somente a minha avó e eu.

– Aprovo isso.

– E por que você deveria ter uma opinião quanto a isso?

– É o que me pergunto todos os dias – ele murmurou. – Mas explique, se não é por causa daquele homem, por que não podemos nos encontrar?

Sua ladra empurrou os cabelos sobre os ombros mais uma vez e balançou a cabeça.

– Você... representa problemas.

– E quem diz isso é a mulher que anda sempre armada.

Ela empinou o queixo.

– Você acha que eu não vi aquela adaga ensanguentada no seu hall de entrada?

– Ah, aquilo – ele dispensou o comentário com um aceno da mão. – Eu só estava cuidando de alguns assuntos.

– Pensei que o tivesse matado.

– Quem?

– Mark, o meu amigo.

– Amigo – ele se ouviu grunhir. – Se é que ele é isso mesmo.

– Então, quem você matou?

Assail pegou um charuto para acender, mas ela o deteve.

– A minha avó sentiria o cheiro.

Ele olhou para as janelas fechadas do segundo andar.

– Como?

– Apenas não o faça, por favor. Não aqui.

Com uma inclinação de cabeça, ele cedeu – mesmo que não conseguisse se lembrar de um dia o ter feito em respeito a ninguém.

– Quem você matou?

A pergunta foi feita de modo prático, sem a histeria que haveria de se esperar de uma fêmea.

– Isso não tem nada a ver com você.

– Melhor eu não saber, hein?

Visto que ele era de uma espécie diferente da dela? Ah, sim, de fato.

– Não é ninguém que você um dia fosse conhecer. Eu lhe direi, contudo, que tive meus motivos. Ele me traiu.

– Portanto, mereceu – não era uma pergunta, mas apenas uma declaração de aprovação.

Ele não tinha como deixar de apreciar o modo como ela encarava os fatos.

– Sim, mereceu.

Houve um instante de silêncio, e depois ele teve que perguntar:

– Qual o seu nome?

Ela riu.

– Quer dizer que não sabe?

– Como eu descobriria?

– Bom argumento... E eu lhe direi, se você me explicar o que disse para a minha avó – ela abraçou o torso como se estivesse com frio. – Sabe, ela gostou de você.

– Quem gostou de mim?

– A minha avó.

– E como é que ela me conhece?

Sua ladra franziu o cenho.

– Quando você veio aqui antes. Ela disse que o considerou um bom rapaz, e quer convidá-lo para jantar – aqueles olhos incríveis se voltaram para ele. – Não que eu esteja defendendo isso... Ei, o que foi? Ai!

Assail forçou a mão para que relaxasse, pois nem percebera que segurara o braço dela.

– Eu não vim aqui antes. Tampouco falei com sua avó.

Sua ladra abriu a boca. Fechou-a. Abriu-a novamente.

– Não veio aqui hoje?

– Não.

– Então quem diabos está me procurando?

Enquanto um sentimento avassalador de protegê-la o assolou, suas presas se alongaram e o lábio superior começou a se retrair – mas ele se conteve, refreando a demonstração exterior das suas emoções interiores.

Abruptamente, ele indicou a direção da cozinha.

– Vamos entrar. Agora. E você vai me contar mais a respeito.

– Não preciso da sua ajuda.

Assail a fitou do alto de toda a sua altura.

– Mas você a terá mesmo assim.


CAPÍTULO 72

Trez não estava acostumado a andar de motorista. Gostava de dirigir. De estar no controle. De escolher a direita ou a esquerda. Esse tipo de escolha não constava do cardápio daquela noite, porém.

Naquele instante, ele era apenas um gostosão no banco de trás de uma Mercedes que era do tamanho de uma casa. Na frente, Fritz – esse era o nome dele – dirigia como um morcego saindo do inferno; não exatamente algo que se esperava de alguém que parecia ter uns sete mil anos de idade.

No entanto, visto que Trez ainda se sentia meio estranho após a dor de cabeça da noite anterior, ele achava uma boa ideia ser passageiro num caso como aquele. Mas se ele e iAm iriam morar lá, eles teriam de saber onde ficava a maldita propriedade.

Mas. Que. Merda.

Por algum motivo, seus sentidos captaram uma mudança na atmosfera, algo tintilava nos limites de sua consciência, um aviso. E, vejam só, do lado de fora da janela, o cenário iluminado pelo luar ficou ondulado, com uma distorção vital retorcendo sua visão.

Os olhos verificaram o interior da Mercedes. Tudo estava bem: o couro preto, a costura castanha, a divisória erguida entre os assentos estavam exatamente como deviam estar. Portanto, não era um desajuste dos seus nervos óticos.

Voltando os olhos para o exterior, ele entendeu que a distorção não era fruto de uma névoa. Nem de algum tipo de chuvisco. Não, aquilo não era provocado pelo tempo – era algo completamente diverso... como se o medo tivesse se cristalizado nas partículas do ar, e estivesse provocando a metamorfose do cenário.

Que belo escudo protetor...

E lá estava ele supondo que ele e o irmão eram os únicos com truques escondidos nas mangas.

– Estamos próximos – comentou.

– O que é isso, hein? – iAm murmurou ao olhar para fora da janela.

– Não sei. Mas precisamos conseguir um pouco disso para nós.

Abruptamente, o carro começou a subir, e com a aceleração do Homem Pé de Chumbo, mais parecia que eles subiam uma montanha-russa. No entanto, eles não despencaram uma vez no alto: do nada, uma imensa mansão de pedra se materializou, aparecendo tão repentinamente que Trez segurou o apoio na porta para se preparar para o impacto.

No entanto, o motorista sabia muito bem onde estavam, e qual a distância necessária para fazer o carro parar. Com a habilidade de um dublê de Hollywood, o mordomo girou o volante e pisou nos freios, fazendo-os estacionar entre um GTO que Trez imediatamente cobiçou... e um Hummer que parecia mais uma escultura abstrata do que algo dirigível.

– Talvez ele tenha feito alguma besteira com esse aí – Trez disse causticamente.

Quando as portas foram destrancadas, ele e iAm saíram ao mesmo tempo.

Puxa. Olha só essa casa, Trez pensou ao pender a cabeça para trás e olhar para cima, bem para cima. Em comparação à pilha gigantesca de pedras, ele se sentia do tamanho de um polegar.

Do polegar de uma criança de dois anos de idade.

Pairando bem no alto na noite escura, com gárgulas que observavam do beiral, e um par de alas de quatro andares muito sinistras que se estendiam para os dois lados, a construção parecia exatamente o que você esperaria do lugar em que vivia o rei dos vampiros: assombrada, arrepiante e ameaçadora.

Era a representação do Halloween, só que verdadeiro. As pessoas ali dentro mordiam mesmo, e não só quando lhes pediam.

– Maneiro – elogiou Trez, sentindo-se imediatamente em casa.

– Senhores, entrem, por favor – disse o mordomo amigavelmente. – Eu me empenharei em levar suas malas.

– Não, não – opôs-se Trez, já indo para o porta-malas. – Temos muitas tranq... quero dizer, coisas.

Era difícil se portar mal diante de alguém de fraque.

iAm concordou.

– Podemos fazer isso por você.

O mordomo olhou de um para outro, com um sorriso no devido lugar.

– Por favor, sigam para as festividades, senhores. Nós cuidamos desses assuntos mundanos.

– Ah, mas nós...

– Isto é, não vai ser...

Fritz pareceu confuso, depois, ligeiramente em pânico.

– Por favor, os senhores precisam se juntar aos outros. Eu cuido disto. Esta é a minha função na casa.

A aflição parecia tão despropositada, mas eles não teriam como argumentar sem causar ainda mais problemas; estava claro que o cara teria um chilique se eles mesmos levassem a bagagem até a porta de entrada.

Quando em Roma... Trez concluiu.

– Ok, certo, muito obrigado.

O sorriso agradável e franco reapareceu de pronto.

– Muito bem, senhores! Muito bem, mesmo.

Enquanto o mordomo indicava o caminho para a entrada, como se a imensa porta de catedral fosse um mistério, Trez deu de ombros e seguiu para as escadas.

– Acha que ele vai nos deixar limpar nossas bundas? – perguntou baixinho.

– Só se ele não nos vir ir ao banheiro.

Trez gargalhou e olhou para o irmão.

– Isso foi uma piada, iAm? Hum? Acho que foi...

Depois de dar uma cotovelada no irmão e obter um grunhido como resposta, ele esticou a mão e segurou a maçaneta pesada do portal. Ficou um tanto surpreso em ver que não estava trancado, mas, pensando bem, com... aquela coisa... ao redor, quem é que precisaria de chaves? Nenhum rangido ao entrar, e isso não foi nenhuma surpresa. O lugar era bem cuidado em cada centímetro, a neve retirada, sal espalhado no piso para evitar a formação de gelo, tudo absolutamente bem ordenado.

Mas também, com aquele mordomo encarregado? Uma sujeirinha que fosse devia ser uma emergência nacional.

Saindo do frio, ele se viu numa antessala com piso de mosaico e teto alto, de frente para uma recepção que incluía uma câmera de segurança. Ele sabia para que servia aquilo – e enquadrou a cara bem no campo de visão.

No mesmo instante, a porta interna, que se equiparava a de um cofre de banco, se abriu.

– Olá! – uma fêmea exclamou. – Vocês chegaram.

Trez mal notou Ehlena ao perceber o que estava por trás dela.

– Oi... como é que você está...

Ele não ouviu a resposta dela.

Puxa... vida. Uau... que cores lindas...

Trez nem percebeu que se adiantava, mas foi o que fez... andando em direção à maior maravilha arquitetônica que ele jamais vira. Imensas colunas de malaquita e mármore rosa subindo para um teto mais alto que os céus. Candelabros de cristal e arandelas douradas reluziam. Uma escadaria vermelho sangue tão grande quanto um parque se elevava a partir de um piso de mosaico que parecia a representação... de uma macieira carregada de frutos.

Por mais sombrio que o exterior parecesse, o interior era absolutamente resplandecente.

– Rivaliza com o palácio – iAm murmurou maravilhado. – Oh, olá, Ehlena.

Trez estava vagamente ciente do irmão abraçando a shellan de Rehvenge. E também havia outras pessoas por perto, fêmeas em sua maioria, mas ele também reconheceu Blay e um macho loiro junto a John Matthew e, claro, Rehv, que cruzava o piso com a ajuda de sua bengala.

– A festa não é para vocês dois, mas podem fingir que é.

iAm e Rehv se abraçaram, porém, mais uma vez, Trez não estava prestando a mínima atenção.

Na verdade, o arco-íris colorido também desaparecera por completo.

Parada na entrada do que parecia a porta de uma sala de jantar formal, a Escolhida que ele vira na casa de campo de Rehv falava com outra também de manto branco.

A visão de Trez se afunilou nela, seus olhos concentrando-se somente em sua imagem e lá ficando.

Olhe para mim, ele desejou. Olhe para mim.

Nesse instante, como se tivesse sentido o comando, a Escolhida olhou em sua direção.

Trez, imediatamente, ficou excitado, o corpo inchando com o desejo de seguir até aquela fêmea, tomá-la nos braços e levá-la para algum canto reservado.

Onde ele poderia marcá-la.

A voz de iAm era exatamente o que ele não precisava ouvir em seu ouvido:

– Ainda não é para o seu bico, irmão.

Ele precisava tê-la, mesmo que isso o matasse.

E se chegasse a esse ponto? Bem, sua vida não era uma festa no momento, era?


Quando Qhuinn recobrou os sentidos, estava deitado no altar. O crânio bem ao lado da sua cabeça, como se o Irmão o estivesse protegendo enquanto ele se recuperava após ter bebido o sangue. Piscando bem os olhos, ele percebeu que fitava um mural de nomes: cada centímetro da imensa pedra de mármore contra a qual estivera apoiado estava gravado com nomes no Antigo Idioma.

Exceto pela parte onde estavam as cavilhas.

Ao se sentar e deixar as pernas penderem, suas costas estalaram e a cabeça rodou um pouco... Esfregando o rosto, ele saiu num pulo e andou para a frente... até poder tocar nas gravuras.

– Você está bem no fim – Zsadist informou atrás dele.

Qhuinn se virou. A Irmandade mais uma vez estava parada embaixo, cada um deles sorrindo como filhos da mãe.

O sotaque de Boston soou:

– É emocionante ver seu nome escrito aí. Você precisa dar uma olhada.

Qhuinn voltou a olhar para frente. Depois de seguir para a direita, no fim, ele encontrou o nome do tira... e depois o seu.

Suas pernas ficaram bambas quando ele se abaixou, ajoelhando diante da fileira precisa de símbolos. Depois olhou para a parede, os nomes individuais desaparecendo, transformando-se num padrão coeso em todo o mármore. Assim como a Irmandade. Não indivíduos, mas um grupo.

E ele era parte daquilo.

Por Deus... ele estava ali.

Qhuinn se preparou para uma experiência transformadora – algo que seguisse a linha de um grande sino ecoando em seu peito “Você pertence”... ou, merda, um simples “Você é o cara” soando em sua mente.

Nada disso aconteceu. Sim, claro, ele estava feliz. Estava orgulhoso, porra. Pronto para sair dali e lutar como um desvairado.

Porém, ao se pôr de pé, ele percebeu que apesar da nova sensação de completude, uma parte sua permanecia separada. Em retrospecto, seus últimos dias foram tremendos – como se o destino tivesse jogado sua vida num liquidificador e estivesse preparando um molho com o seu traseiro.

Talvez fosse porque ele nunca fora muito bom nessa coisa de emoções? E nada mudaria aquilo.

Mas, pelo menos, ele não estava fugindo.

Indo para junto dos Irmãos, ele levou tantos tapas nos ombros e no peito que soube como os atacantes se sentiam no futebol americano depois dos treinos.

Mas logo ele se deu conta... iria para casa encontrar Blay.

Santa Maria Mãe de Deus, roubando uma expressão do tira, ele estava morrendo de vontade de ver o cara. Talvez dar uma escapada e contar o que tinha acontecido, mesmo que provavelmente ele não devesse fazer isso. Talvez subir para o quarto depois que a festa acabasse e... bem, por um tempo...

Ok, agora ele estava ficando excitado.

Rhage lhe lançou seu manto negro de volta.

– Portanto, bem-vindo ao hospício, seu pobre filho da mãe. Está preso a nós pelo resto da vida.

Qhuinn franziu a testa e pensou em John.

– Mas e a minha posição como ahstrux nohtrum?

– Já era – V. disse ao se vestir também. – Você é um homem livre.

– Então John sabia?

– Não que você estava recebendo este tipo de promoção. Mas ele foi informado que você já não poderia ser mais o segurança dele – quando Qhuinn tocou a tatuagem debaixo dos olhos, V. assentiu. – É. Vamos ter que mudar isso... É uma dispensa honorável, sabe, não é como uma morte ou demissão.

Beleza. Melhor do que um aviso prévio empurrado contra seu peito ou uma cova rasa.

Enquanto saíam, Qhuinn deu uma última olhada na caverna. Era tão estranho; sim, era a história acontecendo, mas aquilo também parecia o ápice de todas aquelas noites lutando com os Irmãos, uma lógica interna fazendo aquele evento extraordinário parecer... inevitável.

Refazendo o trajeto que percorreram anteriormente, Qhuinn se viu num corredor tomado por prateleiras do chão ao teto superalto.

– Jesus... Cristo... – ele sussurrou ao percebeu todos os jarros dos redutores.

Todos pararam.

– Os jarros? – Wrath perguntou.

– É – confirmou Tohr com uma risada. – Nosso garoto parece impressionado.

– E devia mesmo – murmurou Rhage ao ajeitar o cinto do manto. – Somos destemidos.

Múltiplos gemidos. Olhos se revirando.

– Pelo menos ele não veio com um daqueles “Somos incríveis!” – alguém murmurou.

– Esse é Lassiter – foi a resposta.

– Cara, esse filho da mãe tem que parar de assistir a maldita Nickelodeon...

– Dentre outras coisas.

– Foco, gente, foco – Rhage interrompeu. – Podemos ter um momento de seriedade aqui, por favor?

Grunhidos de aprovação substituíram as críticas, os sons se elevando e ecoando entre as lembranças dos seus inimigos mortos.

– Apenas pense – Tohr disse ao passar um braço ao redor dos ombros de Qhuinn –, agora você pode mandar os seus para cá.

– Legal – murmurou Qhuinn ao olhar para os diferentes tipos de contêineres. – Muito legal.

Saíram por portões que tanto eram velhos como pareciam necessitar de um maçarico por umas belas horas para serem transpostos. Depois havia outro obstáculo que foi empurrado, um que, de verdade, parecia a parede de uma caverna e, olhe só, eles saíram de um recesso raso na terra e chegaram ao Escalade. Levou um tempo para atravessarem a floresta, mas no instante em que a mansão pôde ser vista, ele começou a ficar tão excitado que o corpo se adiantou para a beira do banco e a mão procurou a maçaneta da porta.

O SUV mal tinha parado quando ele já estava abrindo a porta e saindo. Risadas emanaram da Irmandade quando eles saíram de modo mais civilizado, seguindo a liderança dele escada acima. No portal de entrada, ele o abriu e se postou no átrio, mostrando o rosto para a câmera de segurança.

Atrás dele, ele ouviu as vozes dos Irmãos...

Seus irmãos, agora. Não eram?

Seus irmãos tiravam sarro dele ao se aproximarem, e a porta interna foi aberta por Fritz.

Qhuinn quase derrubou o mordomo quando ele deu um passo para o lado. Muitos rostos sorrindo, as shellans da casa, a rainha, doggens por todos os lados... iAm, Trez, Rehv e Ehlena...

Ele procurava por cabelos ruivos, vasculhou a sala de jantar, depois olhou para a sala de bilhar. Onde ele est...

Qhuinn parou.

Do lado oposto da mesa de bilhar, no sofá diante da TV montada acima da lareira, Blay e Saxton estavam sentados lado a lado. Os rostos virados um para o outro, um par de gim e tônica nas mãos, os dois pareciam envolvidos numa conversa animada.

De repente, Blay começou a rir, inclinou a cabeça para trás...

E, nesse instante, olhou na direção de Qhuinn.

No mesmo momento, sua expressão endureceu.

– Parabéns!

O som da voz de Layla o confundiu, e ele se virou às cegas, a mente embaralhada de um jeito que não deveria estar: ele sabia o tempo inteiro que Saxton voltaria depois das férias.

– Estou tão feliz por você! – enquanto Layla o abraçava, ele passou os braços ao redor dela automaticamente.

– Obrigado – ele se afastou e passou as mãos pelos cabelos. – Então, como está se sentindo?

– Enjoada e maravilhosa!

Qhuinn se retraiu dentro da própria pele, tentando encontrar alegria pela gravidez.

– Fico feliz. Estou... muito feliz.


CAPÍTULO 73

Sola bateu contra o fogão ao levar o homem para dentro de sua casa. Em seguida, como parte da correção de curso, ela derrubou a cadeira em que a avó estivera sentada – mas, pelo menos, conseguiu reparar nisso segurando-a e sentando-se nela.

– Você também não me disse o seu nome – murmurou, ainda que nomes próprios fossem a última coisa em sua mente.

O homem se juntou a ela do lado oposto da mesa. Seu tamanho imenso e as roupas caras faziam com que tudo ali parecesse frágil, desde a tábua laminada que os separava até as cadeiras e a própria cozinha.

A casa inteira.

Ele esticou a mão por sobre a mesa. Naquela voz grave e carregada de um sotaque divino, ele disse:

– Sou Assail.

– Assail? – cautelosa, Sola esticou a mão, preparada para encontrá-lo no meio do caminho. – Nome diferente...

No instante em que o contato foi feito, um raio subiu pelo braço e terminou em seu coração, acelerando-o, fazendo-a corar.

– Não gosta? – ele sussurrou, como se conhecesse muito bem a reação dela.

Só que ele estava falando do nome, não? Sim, era isso.

– É... inesperado.

– Me diga o seu – ele deu o comando sem soltá-la. – Por favor.

Enquanto esperava, enquanto segurava a mão dela, enquanto respiravam juntos, ela percebeu que, às vezes, havia coisas que eram mais íntimas do que sexo.

– Marisol. Mas as pessoas me chamam de Sola.

Ele ronronou. Ronronou.

– Eu a chamarei de Marisol.

E não é que combinava? Deus, aquele sotaque... ele transformara aquilo pelo qual fora chamada a vida inteira num poema.

Sola puxou a mão da dele e a colocou sobre o colo. Mas os olhos continuaram cravados no homem: sua expressão era arrogante, e ela teve a impressão de que se tratava de um defeito inconsciente, que não se relacionava a ela. O cabelo parecia impossivelmente grosso, e, sem dúvida, devia ter recebido algum produto – nada meramente humano poderia manter aquela onda perfeita afastada da testa daquele modo. E o perfume? Esqueça. O que quer que fosse aquilo, ela estava ficando simplesmente embriagada só com o cheiro incrível.

Juntando a boa aparência, aquele corpo e a mente afiada? Ela seria capaz de apostar a casa que a vida dele era conduzida com base no lema “o mundo me pertence”.

– Então, fale-me desse seu visitante – ele pediu.

Enquanto aguardava, o queixo dele abaixou e ele a fitou por baixo das pálpebras.

Não era surpresa ele ter matado alguém.

Ela deu de ombros.

– Não tenho ideia de quem seja. A minha avó apenas me disse que um homem de cabelos escuros e olhos profundos... – ela fez uma careta, notando que as íris dele eram sempre de uma cor de luar, do tipo de coisa que parecia impossível na natureza. Lentes de contato? – Ela... Hum, ela não mencionou nenhum nome, mas ele deve ter sido educado, senão eu teria ouvido um belo sermão e muito mais. Ah, e ele conversou com ela em espanhol.

– Alguém poderia estar atrás de você?

Sola meneou a cabeça.

– Nunca menciono esta casa, jamais. A maioria das pessoas sequer sabe meu verdadeiro nome. Foi por isso que pensei que fosse você, quem mais... Quero dizer, ninguém mais veio aqui a não ser você.

– Não há ninguém em seu passado?

Expirando longamente, ela olhou pela cozinha; depois pegou os guardanapos e os rearranjou.

– Não sei...

Com a vida que ela levava? Podia ser qualquer pessoa.

– Você tem alarme de segurança aqui? – ele perguntou.

– Sim.

– Você tem que considerá-lo perigoso até que se prove o contrário.

– Concordo – quando o homem, isto é, Assail, colocou a mão dentro do casaco, ela balançou a cabeça. – Nada de charutos. Já disse que...

Ele fez um gesto exagerado ao retirar uma caneta dourada e mostrá-la. Depois, pegou um dos guardanapos que ela acabara de ajeitar e escreveu um número de sete algarismos.

– Você vai me ligar se ele voltar – ele passou o quadrado de papel pela mesa, mas manteve o indicador apoiado sobre os números. – E eu cuidarei disso.

Sola se levantou tão rápido, que a cadeira gemeu. Imediatamente, ela olhou para o teto. Quando nenhum som veio de cima, ela se lembrou de fazer menos barulho.

Caminhou até o fogão. Depois voltou. Foi até a porta de trás que dava para a varanda. Voltou novamente.

– Escute aqui, eu não preciso de ajuda. Agradeço...

Ao se virar para voltar para junto do fogão novamente, ele estava bem diante dela. Arfando, ela deu um pulo para trás – nem o ouvira se mexer...

A cadeira dele estava na mesma posição de quando ele esteve sentado.

Não como a dela, empurrada de lado.

– O que... – ela se calou, a mente rodopiando. Por certo ela não lhe perguntaria o que ele era...

Quando ele esticou a mão e amparou seu rosto, ela soube que teria dificuldades para dizer não para o que quer que ele sugerisse.

– Você vai me ligar – ele ordenou – e eu virei até você.

As palavras foram tão lentas que quase se deturparam, a voz grave... tão grave...

O orgulho formou um protesto em sua mente, mas sua boca se recusou a dizê-lo.

– Está bem – ela disse.

Agora ele sorria, os lábios se curvando para cima. Deus, os caninos dele eram bem afiados, e mais longos do que ela se lembrava.

– Marisol – ele ronronou. – Um lindo nome.

Enquanto ele começava a se inclinar sobre ela, a pressão sutil em sua mandíbula levantava-lhe o queixo. Ah, não, não, não, ela não podia estar fazendo aquilo. Não naquela casa. Não com um homem como aquele...

Que seja. Com um suspiro de rendição, ela fechou os olhos e levantou a boca para aceitar a dele...

– Sola! Sola, o que você está fazendo aí embaixo?!

Os dois ficaram imóveis e, no mesmo instante, Sola se viu com treze anos novamente.

– Nada! – respondeu alto.

– Quem está com você?

– Ninguém... É a televisão!

Três... Dois... Um...

– Isso não parece a TV!

– Vá – ela sussurrou ao empurrá-lo pelo peito largo. – Você tem que ir embora agora.

As pálpebras de Assail se abaixaram.

– Acho que quero conhecê-la.

– Não quer, não.

– Quero...

– Sola! Estou descendo!

– Vá – ela sibilou. – Por favor.

Assail passou o polegar por baixo do lábio inferior dela e se inclinou, falando diretamente ao seu ouvido:

– Tenho planos para retomar isto do ponto em que fomos interrompidos. Só para você saber.

Virando-se, ele se moveu com frustrante lentidão até a porta. E enquanto os chinelos da avó se aproximavam pela escada, ele ainda teve tempo de olhar para trás enquanto abria a porta.

O olhar ardente percorreu-lhe o corpo.

– Isso entre mim e você não acabou.

E logo ele se foi, graças ao bom Deus.

A avó fez a curva no segundo seguinte à tela da porta exterior voltar ao seu lugar.

– E então? – ela disse.

Sola olhou de relance pela janela além da mesa, certificando-se de que ainda estava escuro do lado de fora. Sim. Tudo bem.

– Viu? – disse ela, abrindo os braços para mostrar a cozinha vazia. – Não há ninguém aqui.

– A televisão não está ligada.

Por que, oh, por que sua avó não tinha a graciosidade de ficar de miolo mole como tantos outros anciões?

– Eu a desliguei porque ela estava incomodando a senhora.

– Ah – olhos cheios de suspeita vasculharam o cômodo.

Merda. Havia neve derretida no linóleo onde eles estiveram.

– Venha – disse Sola ao girar a senhora para o outro lado. – Chega de aventuras por uma noite. Vamos nos deitar.

– Estou de olho em você, Sola.

– Eu sei, vovó.

Enquanto subiam juntas, uma parte sua continuava intrigada com a pessoa que fora procurá-la e com o motivo da visita. E a outra metade? Bem, essa parte ainda estava na cozinha, prestes a beijar aquele homem.

Provavelmente foi muito melhor terem sido interrompidos.

Ela tinha a distinta impressão que seu protetor... também era um predador.


O telefonema que Xcor vinha aguardando chegou na hora mais oportuna. Ele acabara de perseguir e matar um assassino solitário debaixo das pontes do centro da cidade, e limpava sua adorada, o sangue negro na lâmina de sua foice saindo com facilidade enquanto ele passava um pedaço de camurça de cima a baixo.

Ele colocou sua fêmea de volta nas costas, e só depois pegou o celular. Ao responder, olhou para seus lutadores que se reuniram e conversavam sobre as lutas da noite no vento frio.

– Quem fala é Xcor, filho de Bloodletter?

Xcor cerrou os dentes, mas não se importou em corrigir a imprecisão. O nome de Bloodletter era de valia para a sua reputação.

– Sim. Quem é?

Houve uma longa pausa.

– Não sei se devo lhe dizer.

O tom era aristocrático e também lhe informava a identidade daquele que lhe telefonara.

– Você é associado de Elan.

Outra longa pausa e, pelos deuses, aquilo testava a sua paciência. Mas aquela era outra coisa que manteria para si.

– Sim, sou. Soube da novidade?

– Sobre?

Quando um terceiro momento de silêncio se fez, ele soube que aquilo demoraria um pouco. Assobiando para seus soldados, indicou que eles deveriam prosseguir para o arranha-céu deles, a alguns quarteirões dali.

Um momento depois, ele estava no telhado, as rajadas de vento tão mais fortes no ponto elevado de sua preferência. Uma vez que a ventania impedia a conversa, ele se refugiou no abrigo de algo mecânico.

– Novidade a respeito de quê? – ele instigou.

– Elan está morto.

Xcor expôs os dentes e sorriu.

– De fato.

– Não me parece surpreso.

– Não estou – Xcor revirou os olhos. – Ainda que esteja desolado.

O que era verdade: foi como perder uma arma útil. Ou, mais precisamente, uma chave de fenda. Mas essas coisas podem ser substituídas.

– Sabe quem foi o responsável? – o outro exigiu saber.

– Bem, acredito que você saiba, estou certo?

– Foi a Irmandade, claro.

Outro juízo falso, mas, novamente, Xcor achou melhor deixar de lado.

– Diga-me, está esperando que o ahvenge?

– Isso não me diz respeito – a fala afetada sugeria que o macho estava mais preocupado em não se deparar com o mesmo destino. – A família dele cuidará das remediações.

– Como de direito – quando nada mais foi dito, Xcor entendeu o que era esperado e necessário. – Posso lhe garantir duas coisas: a minha confidencialidade e a minha proteção. Deduzo que estivesse presente na reunião na casa de Elan no outono. Minha oposição ao Rei não mudou e estou deduzindo que este telefonema o coloque numa posição favorável a mim. Estou correto?

– Não busco poder político nem social.

Tolice.

– Claro que não.

– Estou... preocupado com o futuro da raça e Elan e eu concordávamos nisso. No entanto, eu não estava de acordo com a tática proposta. Homicídios são muito perigosos e, no fim, podem não resultar no que se deseja.

Au contraire, Xcor pensou. Uma bala na cabeça resolve muitas coisas...

– A lei é o meio para derrubar o Rei.

Xcor franziu o cenho.

– Não entendo.

– Com todo o respeito, a lei é mais forte que a espada. Parafraseando um ditado humano.

– As suas referências oblíquas são um desperdício de palavras comigo. Seja mais específico, se não se importar.

– As Leis Antigas suprem o poder que Wrath exerce. Elas explicam detalhadamente o domínio unilateral que ele tem sobre tudo o que diz respeito às nossas vidas e à nossa sociedade, concedendo-lhe rédeas soltas para que ele aja como quiser, sem ter que explicar nada a ninguém.

Motivo pelo qual Xcor desejava o posto, muito obrigado.

– Prossiga.

– Não existem restrições para o que ele pode fazer, que caminhos pode tomar... Na verdade, ele também pode mudar as Leis Antigas caso queira, e alterar a estrutura das nossas tradições e fundamentos.

– Estou bem ciente disso – consultou o relógio. Desde que não ficasse preso ali ao telefone pelas duas horas seguintes, haveria ainda muito tempo para lutar. – Talvez queira marcar um encontro para conversarmos amanhã à noite...

– Porém, existe um embargo.

Xcor ficou intrigado.

– Embargo?

– Ele deve ser capaz de procriar, e eu cito exatamente, “um herdeiro de sangue puro”.

– E como isso é relevante? Ele já está vinculado e, sem dúvida, no futuro...

– A shellan dele é mestiça.

Foi a vez de Xcor se calar – e o conselheiro de Elan se aproveitou desse silêncio.

– Sejamos bem francos um com o outro. Existe sangue humano na espécie. Ninguém pode dizer ser absolutamente de “sangue puro”. Há, porém, uma diferença vital entre um civil se misturando ao material genético humano e o Rei procriar um filho cuja mãe é mestiça... referido filho que herdará o trono após a sua morte.

Throe apareceu ao lado do motor do sistema de aquecimento e refrigeração.

– Tudo bem? – perguntou baixinho.

Xcor abafou o telefone com a mão.

– Leve os outros para as ruas. Estarei com vocês em seguida.

– Como preferir – Throe disse com uma breve mesura.


Enquanto o lutador se afastava, o aristocrata do outro lado continuava:

– Existe ansiedade entre os membros da classe dominante, como você bem sabe. E eu acredito que se alguém abordar essa questão, ela será muito mais eficiente em demover Wrath, filho de Wrath, do que qualquer atentado à sua vida. Ainda mais depois de ele ter feito a demonstração de poder na reunião do Conselho da noite passada.

De fato, muitos se apavoraram e se mostraram submissos em seguida, seus desejos subjugados pela força física, que foi bem férrea.

A mente de Xcor começou a repassar todas as possibilidades.

– Portanto, diga-me, cavalheiro, segundo seu parecer, quem deverá sucedê-lo, o senhor?

– Não – foi a resposta cortante. – Sou advogado e, como tal, valorizo a lógica acima de tudo. Neste clima de inquietação e guerra, somente um soldado poderia, e deveria, liderar a raça. Elan era um tolo com suas ambições, e você vinha tirando vantagem disso. Sei disso porque o observei na casa dele naquela noite durante o outono, você o colocou onde ele queria estar, mesmo ele acreditando que fosse o contrário. Quero mudanças, sim. E estou preparado para fazer isso acontecer. Porém, não tenho ilusões quanto à minha utilidade e não tenho interesse algum que o destino de Elan se torne o mesmo que o meu.

Xcor se voltou na direção do topo daquela montanha.

– Nenhum rei foi destronado dessa maneira.

– Nenhum rei jamais foi destronado.

Bela observação.

Enquanto ele fitava para o nordeste, onde uma estranha perturbação no cenário estava localizada, ele pensou no Rei com sua rainha... e na Escolhida grávida.

Houve um tempo em que ele preferiria o caminho mais sangrento, aquele que seria marcado com a satisfação de arrancar o trono de um moribundo Wrath. Mas aquela guerra de palavras era... mais segura. Para a sua fêmea.

A última coisa que ele queria era atacar o lugar em que ela comia, no qual ela dormia... onde seu estado era tratado.

Fechando os olhos, ele balançou a cabeça para si mesmo. Ah, como ele caíra... no entanto, ainda se ergueria, jurou.

– Como sugere que procedamos? – perguntou asperamente.

– Secretamente, a princípio. Preciso organizar os precedentes de modo que o “sangue puro” tenha sido mencionado em casos levados adiante para decisões. A vantagem é que existe discriminação contra os humanos há tempos, e ela era ainda pior no passado... quando era o pai de Wrath despachando proclamações e interpretando as leis. Essa será a chave. Quanto mais forte o precedente, mais bem-sucedido isto será.

Quanta ironia. A interpretação do próprio pai de Wrath seria a responsável pela derrocada do filho.

– O nosso problema será o próprio Rei. Ele tem que permanecer vivo... e não pode reconhecer a fraqueza inerente em seu reino para tentar consertá-la antes que possamos apresentar essa questão.

– Você enviará um e-mail para um associado meu com as passagens relevantes e depois se encontrará comigo.

– Isto levará alguns dias.

– Entendido. Mas espero que me ligue imediatamente.

Enquanto nomes eram trocados, e Xcor dava o endereço de e-mail de Throe, ele começou a sentir ânimo. E se aquele macho estivesse certo? O reinado de Wrath terminaria sem mais derramamento de sangue. E, então, Xcor estaria livre para determinar o futuro da raça: até onde ele sabia, Wrath não tinha parentes diretos, portanto, quando fosse deposto, ninguém reclamaria o trono. Ainda que isso não significasse que alguns poderiam se prontificar sabe-se lá de onde.

No entanto, ele saberia lidar com intrusos. E com o apoio do Conselho? Ele era capaz de apostar que seria um líder populista – desde que todos andassem na linha.

Wrath não era o único que poderia mudar as leis.

– Não perca tempo com isso – disse Xcor. – Você tem uma semana. Não mais do que isso.

A resposta que lhe foi dada foi gratificante:

– Agirei com a maior rapidez.

E ora se aquele não era um modo adorável de encerrar uma ligação.


CAPÍTULO 74

O túnel que ligava a mansão ao centro de treinamento era fresco, tranquilo, com luz suave.

Ao passar por ele, Qhuinn estava sozinho e contente por isso. Nada pior do que estar cercado por pessoas felizes quando você se sente morto por dentro.

Quando chegou à porta que dava para o fundo do armário do escritório, ele digitou um código, esperou até que a tranca abrisse, depois empurrou a porta para entrar. Uma passada rápida em meio a papéis e canetas, e por meio de outra porta, e ele dava a volta em uma mesa. Logo em seguida, estava no corredor diante da sala de levantamento de pesos, mas ele não estava em busca de se exercitar. Depois do que a Irmandade lhe fizera, ele se sentia duro e dolorido – especificamente nos braços, graças à força empregada para se sustentar agarrado àquelas cavilhas.

Caramba, as mãos ainda estavam dormentes e, quando as flexionou, soube o que era artrite pela primeira vez na vida.

Seguindo em frente, parou novamente ao chegar à área da clínica. Quando foi ajeitar as roupas, percebeu que ainda vestia somente o manto.

Não voltaria para se trocar, isso era certo.

Batendo à porta da sala de recuperação, ele chamou:

– Luchas? Está acordado?

– Pode entrar – foi a resposta rouca.

Ele teve que se preparar antes de entrar. E ficou contente por ter feito isso.

Deitado na cama com a cabeceira erguida, Luchas ainda parecia estar à beira da extinção. O rosto do qual Qhuinn se lembrava como sendo inteligente e jovem estava marcado e austero. O corpo, dolorosamente magro. E aquelas mãos...

Jesus Cristo, as mãos...

E ele achava que as suas doíam um pouco?

Pigarreou antes de falar:

– Oi.

– Olá.

– Então... hum... Como você está?

Que pergunta... O cara estava diante de semanas de recuperação na cama, e depois meses de fisioterapia – e teria sorte se um dia voltasse a segurar uma caneta.

Luchas fez uma careta ao tentar dar de ombros.

– Estou surpreso por você ter vindo.

– Bem, você é o meu... – Qhuinn se deteve. Na verdade, o cara não era mais um parente seu. – Quero dizer...

Luchas fechou os olhos.

– Sempre fui e sempre serei sangue do seu sangue. Nenhum pedaço de papel pode mudar isso.

Os olhos de Qhuinn pousaram para a mão com o anel de sinete.

– Acho que nosso pai discordaria disso.

– Ele está morto. Portanto, a opinião dele já não é mais relevante.

Qhuinn piscou.

Quando ele não disse nada, Luchas abriu os olhos.

– Você parece surpreso.

– Sem querer ofender, mas jamais pensei ouvir o que acaba de sair dos seus lábios.

O macho indicou o corpo alquebrado.

– Eu mudei.

Qhuinn se esticou para pegar uma cadeira; enquanto se acomodava, esfregou o rosto. Fora até ali porque visitar seu antes supostamente irmão morto era a única desculpa remotamente aceitável para sair de uma festa em sua homenagem.

E passar a noite vendo Blay e Saxton juntos? Isso não iria acontecer.

Só que agora que estava ali, ele não se achava capaz de sustentar qualquer tipo de conversa.

– O que aconteceu com a casa? – perguntou Luchas.

– Hum... nada. Quero dizer, depois... do que aconteceu lá, não a reivindicaram, e eu não tinha direito a ela. Quando ela passou para Wrath, ele a devolveu para mim, mas veja, ela é sua. Nunca entrei lá desde que fui expulso.

– Eu não a quero.

Ok, isso era uma surpresa. Enquanto crescia, seu irmão falava sem parar de tudo o que queria conquistar quando ficasse mais velho: a educação, a proeminência social, assumir do ponto em que o pai deixaria tudo.

Ele renegando aquilo era como alguém recusar um trono: inimaginável.

– Você já foi torturado? – Luchas murmurou.

A infância dele lhe veio à mente. Depois, a Guarda de Honra. Mas de jeito nenhum ele mencionaria nada daquilo.

– Já levei umas surras, sim.

– Aposto que sim. O que acontece depois?

– Como assim?

– Como você volta ao normal?

Qhuinn flexionou as mãos doloridas, olhando para os dedos perfeitos apesar de todas as dores que sentia. Seu irmão já não conseguiria mais contar até dez. Recuperar-se era uma coisa, mas regeneração era algo totalmente diferente.

– Não existe mais normalidade – ele se ouviu dizer. – Você... meio que... só segue adiante, porque isso é tudo o que lhe resta. A parte mais difícil é ficar perto das pessoas... É como se elas estivessem em outra frequência, mas só você sabe disso. Elas falam de suas vidas e o que há de errado com elas, e você... as deixa falar. É uma linguagem totalmente diferente, e você tem que se lembrar de que só pode lhes responder nesse idioma. É bem difícil se relacionar.

– É, é exatamente isso – Luchas disse devagar. – Você tem razão.

Qhuinn esfregou o rosto de novo.


– Nunca esperei ter nada em comum com você.

Mas eles tinham. E quando Luchas o encarou, aqueles olhos cinza perfeitamente combinados encontraram-se com os ferrados do irmão, e a conexão estava ali presente. Os dois atravessaram o inferno, e aquilo era mais poderoso do que o DNA que partilhavam.

Era tão estranho.

E engraçado; supôs que aquela parecia a noite para ele encontrar uma família em todas as partes.

Exceto onde mais queria.

Enquanto o silêncio se estendia, com nada além dos bipes das máquinas de monitoramento ao lado da cama para romper a quietude, Qhuinn ficou ali por um bom tempo. Ele e o irmão não conversaram muito, e estava tudo bem. Era aquilo o que ele queria. Ele não estava pronto para falar de Layla e do bebê deles, e ele deduzia que Luchas não lhe perguntar a respeito significava alguma coisa. E ele, certamente, não abordaria o seu assunto com Blay.

No entanto, era agradável estar ali sentado com o irmão. Havia algo a respeito das pessoas que cresciam juntas, aquelas com quem você partilhara a infância, as pessoas das quais você não se lembra de um tempo em que não as conhecia. Mesmo que o passado fosse somente uma complicação, conforme envelhece você apenas se sente contente pelos filhos da puta ainda habitarem o seu planeta.

Isso lhe dá a ilusão de que a vida não era tão frágil quanto na realidade é – e, de vez em quando, isso é a única coisa que o faz atravessar as noites.

– É melhor eu ir para você poder descansar – disse, esfregando os joelhos para acordar as pernas.

Luchas virou a cabeça no travesseiro hospitalar.

– Vestido estranho para você, não?

Qhuinn olhou para o manto negro.

– Ah, este trapo velho? Foi a primeira coisa que vi para vestir.

– Parece cerimonial.

– Precisa de alguma coisa? – Qhuinn se levantou. – Comida?

– Estou bem, obrigado.

– Bem, avise se precisar de algo, ok?

– Você é um rapaz decente, Qhuinn, sabia?

O coração de Qhuinn parou e depois bateu forte. Aquela era a frase que o pai sempre usava para descrever cavalheiros... era como um A+ no quesito elogio, o máximo de todos, o equivalente a um abraço de urso e um cumprimento com a palma erguida para um cara normal.

– Obrigado, cara – disse ele, rouco. – Você também é.

– Como pode dizer isso? – Luchas pigarreou. – Como, em nome da Virgem Escriba, pode dizer isso?

Qhuinn exalou fundo.

– Quer saber? Vou te contar como isso é possível. Você era o favorito. Eu, uma maldição. Estávamos em polos opostos na escala em nossa casa. Mas nenhum de nós teve escolha. Você não era mais livre do que eu. Você não teve escolha a respeito do seu futuro. Ele foi determinado no seu nascimento, e de certa forma, os meus olhos... eles foram o meu passaporte para sair da cadeia, porque significava que ele não se importava comigo. Ele acabou comigo? Sim, mas pelo menos eu pude decidir o que queria fazer e para onde queria ir. Você... nunca teve essa possibilidade. Você não passava de uma equação matemática já resolvida quando foi concebido, com todas as respostas predeterminadas.

Luchas fechou os olhos novamente e estremeceu.

– Eu fico lembrando tudo. Todos aqueles anos, desde a minha primeira lembrança... até a última coisa que eu vi naquela noite quando... – ele tossiu um pouco, como se seu peito doesse, ou como se o ritmo do seu coração tivesse vacilado um pouco. – Eu o odiava. Sabia disso?

– Não. Mas isso não me surpreende.

– Não quero voltar para aquela casa.

– Então não precisa. Mas se quiser... eu vou com você.

Luchas voltou a olhar para ele.

– Verdade?

Qhuinn balançou a cabeça. Mesmo não estando com pressa alguma de andar naqueles cômodos e dançar com os fantasmas do passado, ele iria lá se Luchas quisesse.

Dois sobreviventes de volta à cena dos crimes que os definiam.

– Sim, verdade.

Luchas deu um sorriso breve, a expressão em nada parecida com aquela que ele costumava ter. E isso estava ok. Qhuinn preferia essa àquela. Era honesta. Frágil, porém honesta.

– Vejo você em breve – disse Qhuinn.

– Isso seria... muito legal.

Virando-se, Qhuinn empurrou a porta e...

Blay estava à sua espera no corredor, fumando um cigarro enquanto estava sentado no chão.

Enquanto Qhuinn saía pela porta, Blay se pôs de pé e esmagou o Dunhill no copo em que estivera bebendo. Ele não sabia muito bem como o lutador estaria, mas, decerto, não assim: tão tenso e infeliz, apesar da incrível honra que lhe fora concedida. Pensando bem, passar um tempo ao lado do leito hospitalar do irmão não pode ser um evento muito feliz.

E Blay não era estúpido. Saxton estava de volta à casa.

– Pensei que o encontraria aqui – disse, quando o macho nem mesmo lhe disse um oi.

Na verdade, os olhos azul e verde de Qhuinn se ocupavam com o corredor, fitando para tudo quanto é lado, exceto para ele.

– Então... como está o seu irmão? – Blay o instigou a falar.

– Vivo.

Pelo visto aquilo era a única coisa que poderiam desejar por enquanto.

E, ao que tudo levava a crer, essa era a única coisa que Qhuinn estava disposto a dizer. Talvez ele não devesse ter ido até lá.

– Eu... hum... queria lhe desejar parabéns.

– Obrigado.

Ok, Qhuinn ainda não estava olhando para ele. Em vez disso, o cara estava concentrado na direção do escritório, como se, em sua mente, ele já estivesse caminhando para lá e fazendo bom uso daquela passagem no armário cheio de suprimentos de papel do escritório...

O som de Qhuinn estalando as juntas dos dedos era tão alto quanto tiros. Depois ele flexionou as mãos, esticando os dedos, como se eles estivessem doendo.

– Isso é histórico – Blay foi pegar mais um cigarro, mas se conteve. – Uma verdadeira primeira vez.

– Tem havido muito disso por aqui – Qhuinn disse com uma ponta de irritação.

– O que isso quer dizer?

– Nada. Não é nada importante.

Cristo, pensou Blay, ele não deveria fazer aquilo.

– Pode olhar para mim? Isto é, você vai morrer se olhar para mim?

Aqueles olhos descombinados se voltaram.

– Ora, mas eu vi você, pode ter certeza. Acho que o seu macho está em casa. Vai contar para ele que andou me fodendo enquanto ele esteve fora? Ou vai manter esse segredinho sujo? É, pssssiu, não diga nada ao meu primo.

Blay cerrou os dentes.

– Seu santarrão filho da puta.

– Desculpe, mas não sou eu quem tem namorado...

– Vai mesmo ficar aqui fingindo que foi muito franco ao nosso respeito? Como quando Vishous passou por aquela porta – ele apontou o dedo para o outro lado do corredor –, você não pulou como se o seu traseiro estivesse pegando fogo? Quer fingir que esteve todo orgulhoso por estar transando com um cara?

Qhuinn pareceu momentaneamente surpreso.

– Acha que foi por isso? E não, hum, deixe-me pensar, por tentar respeitar o fato de que você estava traindo o amor da sua vida!

Àquela altura, os dois estavam com os quadris empinados, as vozes se elevando e sendo transportadas pelo corredor.

– Ah, mas que idiotice! – Blay cortou o ar com a mão. – Isso é uma absoluta cretinice! Veja bem, esse sempre foi o seu problema. Você nunca quis sair do armário...

– Sair do armário? Por que, acha que sou gay?

– Você transa com homens! O que acha que isso significa, porra?

– Esse é você... Você transa com caras. Você não gosta de mulheres e de fêmeas...

– Você nunca foi capaz de aceitar quem você é – Blay gritou – porque tem medo do que as pessoas vão pensar! O grande iconoclasta, o senhor Piercing, ferrado pela família! A verdade é que você é um covarde e sempre foi!

A expressão de Qhuinn era de absoluta fúria, a ponto de Blay estar pronto para ser socado – e, inferno, ele queria levar um soco só para poder ter o prazer de esmurrar de volta.

– Vamos deixar as coisas bem claras – Qhuinn bradou. – Você fica com a sua merda do seu lado do corredor. E isso inclui o meu primo e o fato de você o ter traído.

Blay levou as mãos para o alto e teve que se conter antes de sair da própria pele.


– Não suporto mais isso. Não consigo mais fazer isso com você. Parece que passei a vida inteira lidando com as suas merdas...

– Se eu sou gay, por que você é o único macho com quem estive?

Blay parou no ato e só ficou olhando para o cara, com as imagens de todos aqueles homens nos banheiros se infiltrando em sua mente. Pelo amor do que existia de mais sagrado, ele se lembrava de cada um deles, mesmo que, sem dúvida, Qhuinn não se lembrasse. Dos seus rostos. Dos seus corpos. Dos seus orgasmos.

Todos recebendo o que ele desejara tão desesperadamente, e lhe fora negado.

– Como se atreve? – perguntou. – Mas que porra, como se atreve? Ou acha que eu não sei da sua história sexual? Tive que testemunhá-la por muito mais tempo do que eu queria. E, francamente, ela não é tão interessante assim... e nem você é.

Enquanto Qhuinn empalidecia, Blay começou a balançar a cabeça.

– Pra mim já chega. Não aguento mais... O fato de você não aceitar quem você é vai acabar com o que resta da sua vida, mas isso é problema seu, não meu.

Qhuinn praguejou.

– Nunca pensei que eu fosse dizer isso... mas você não me conhece.

– Eu não conheço você? Acho que o problema é outro, idiota. Você não se conhece.

E com isso, ele esperou algum tipo de explosão, alguma emoção teatral, absurda, excessiva emanando do cara.

Nada.

Qhuinn apenas aprumou os ombros, empinou o queixo e falou de modo controlado:

– Passei o último ano tentando descobrir quem sou, parando de mentir, tentando...

– Então você desperdiçou 365 noites. Mas, como todo o resto a esse repeito, o problema é seu.

Com um xingamento cruel, Blay se virou e começou a se afastar. E não olhou para trás. Não havia motivo. Não havia ninguém no corredor para quem ele quisesse olhar.

Caraca, se a definição de insanidade era fazer a mesma coisa repetidamente à espera de um resultado diferente, então ele perdera o juízo há muito tempo. Para a sua sanidade mental, seu bem-estar emocional e sua vida, ele precisava deixar tudo isso...

Qhuinn o girou, segurando-o pelo braço, o seu rosto furioso bem diante do dele.

– Não me deixe falando sozinho assim.

Blay sentiu uma onda de exaustão assolá-lo.

– Por quê? Porque você tem mais uma coisa para me dizer? Alguma ideia brilhante que acabou de ter a respeito de si mesmo que vai fazer todas as peças do quebra-cabeça se encaixarem? Alguma confissão que vá estabilizar o navio e fazer tudo ficar maravilhoso ao pôr do sol na praia? Você não tem esse tipo de vocabulário, e eu já não sou mais ingênuo.

– Quero que você se lembre de uma coisa – Qhuinn grunhiu. – Tentei fazer com que as coisas entre nós dessem certo. Eu nos dei uma chance.

Blay ficou de queixo caído.

– Você nos deu uma chance? Está de brincadeira comigo? Acha que fazer sexo comigo para se vingar do seu primo é um relacionamento? Acha que algumas sessões secretas consistem num caso amoroso?

– Era tudo de que eu dispunha – aqueles olhos descombinados perscrutaram o rosto de Blay. – Eu não estou dizendo que foi um tremendo de um romance, mas eu apareci porque eu queria estar com você do modo que fosse possível.

– Bem, parabéns. E agora que nós dois experimentamos, posso lhe garantir, com certeza, que não servimos um para o outro – e enquanto Qhuinn começava a discutir, Blay enfiou a mão no cabelo e quis arrancá-lo. – Preste atenção, se isso o ajudar a dormir durante o dia, e eu custo a acreditar que isso vá incomodá-lo por mais do que uma noite, diga a si mesmo que fez o que era possível, mas que não deu certo. Eu? Eu prefiro a realidade. O que aconteceu entre mim e você é exatamente a mesma coisa que você fez com todos aqueles aleatórios com quem esteve. Sexo... apenas sexo. E agora já chega.

Os olhos de Qhuinn ardiam.

– Você não me entendeu.

– Então você além de estar em negação está se iludindo.

– As pessoas mudam. Não sou mais assim, definitivamente não com você.

Deus... era um triste alívio sentir nada quando aquelas palavras se dirigiram a ele.

– Sabe... houve um tempo em que eu teria caído de joelhos na sua frente ao ouvir algo assim – murmurou. – Mas agora... tudo o que eu vejo é você pulando daquele chão no segundo em que alguém abriu a porta e nos viu juntos. Você diz que essa reação foi por causa de Saxton e do meu relacionamento? Tudo bem. Mas, estou quase certo... não, estou totalmente certo de que, se você olhar a fundo, vai descobrir que tem muito mais a ver com você do que com o seu primo. Você se odeia há tantos anos, que não acho que seja possível amar alguém ou sequer entender quem você é. Espero que, um dia, você descubra isso, mas eu não vou fazer parte disso; isso eu prometo.

Qhuinn meneou a cabeça, o franzir em sua testa tão profundo que era como se uma fenda tivesse se aberto entre as sobrancelhas.

– Acho que você já me decifrou direitinho, não?

– Não é tão difícil assim.

– Só para constar, eu estava apaixonado por você.

– Por três dias, Qhuinn. Três dias. Durante os quais houve drama suficiente para tornar Guerra e Paz um livro de comédia. Isso não é amor. É um sexo bom como distração para o fato de que a vida é uma merda.

– Eu não sou gay.

– Tudo bem. É bi. Bicurioso. Está experimentando. Tanto faz. Não me importo. Não mesmo. Eu sei quem eu sou e é assim que consigo viver a minha vida. O seu esquema é completamente diferente... e boa sorte com isso. Obviamente, está funcionando superbem para você.

Dito isso, ele se afastou novamente.

E, dessa vez... Qhuinn o deixou ir.


CONTINUA

CAPÍTULO 69

A vida inteira de Qhuinn sofreu nova guinada cerca de quinze horas após ele perder a virgindade. Mais tarde, ele decidiria se aquilo de que as coisas aconteciam em trios era verdade mesmo. Quando a coisa ocorria, porém, tudo o que ele queria era sobreviver...

Em algum momento durante as horas do dia, ele e Blay acordaram, se separaram e seguiram seus caminhos.

Qhuinn teria preferido se eles voltassem para a casa principal juntos, mas ele tinha de parar para ver Luchas, e Blay estava ansioso para voltar para o quarto e tomar banho. E, de certa forma, isso não fora ruim, porque assim Qhuinn teve a oportunidade de também dar uma olhada em Layla.

No que se referia ao irmão e à Escolhida, tudo estava tranquilo. Os dois estiveram adormecidos em suas respectivas camas; a cor do rosto de Luchas estava melhor e, pela primeira vez, quando Qhuinn foi ao quarto de Layla, ele sentiu a gravidez. Os níveis de hormônio o atingiram assim que entrou, e ele ficou imóvel de tão forte que foi a sensação.

O que fora muito bom mesmo.

O que ele não gostara muito foi de passar diante da porta de Blay e querer bater, entrar e voltar a dormir.

Em vez disso, acabara dentro de suas quatro paredes completamente sozinho.

Na cama. No escuro. Indo e voltando da terra do REM pelas duas horas que antecediam a Primeira Refeição.

Portanto, quando a porta foi escancarada e uma fileira de homens altos em mantos negros entrou, seu passado e presente colidiram, os dois se tornando intercambiáveis – a tal ponto que o ataque da Guarda de Honra pulou para fora do túmulo da sua memória e aterrissou bem em seu quarto na mansão.

Sem saber se estava sonhando ou se aquilo era real, seu primeiro pensamento foi de alegria por Blay não estar com ele. O cara já o encontrara quase morto no acostamento da estrada uma vez. Ninguém precisava de um replay daquilo.

Seu segundo pensamento foi que abateria quantos pudesse antes que eles, finalmente, acabassem com ele.

Com um grito de guerra, Qhuinn explodiu para fora da cama, o corpo nu passando ao ataque com tal força que acabou derrubando os dois primeiros. Atacando com as pernas, ele chutou e socou tudo que dele se aproximava, e houve uma pequena satisfação quando seus alvos praguejaram e se afastaram do seu alcance...

Algo prendeu seu peito por trás, e o girou com tal força que seus pés se ergueram do chão e formaram um arco e...

Olá, parede.

O impacto valeu por três pontos em sua brilhante ideia de revide de luta, o rosto, o tronco, os quadris se chocando na parede com tanta força que, sem dúvida, ele deixara uma reprodução em 3D do seu corpo, ao estilo dos desenhos animados.

Instantaneamente, ele empurrou a superfície plana, preparado para se...

O braço que o empurrou pela nuca o prendia de tal forma que parecia ser de aço. Não havia, literalmente, espaço para se mexer, e mesmo assim ele tentou, pois seu corpo se recusava a ser dominado.

– Calma aí, sua besta. Apenas fique parado antes que eu seja forçado a machucá-lo.

O som da voz de Vishous não fazia sentido algum.

E, de repente, pelo canto do olho, ele percebeu que um círculo fora formado ao seu redor, todos aqueles mantos negros o cercando, assim como aquela chave de braço no seu pescoço.

Mas eles não estavam atacando.

– Apenas relaxe – disse V. em sua orelha. – Respire comigo, vamos lá... Apenas respire. Ninguém vai machucar você.

A fala ajudou, aquela voz calma, controlada atingindo sua reação de “lute ou fuja” e aplacando o rugido do seu pânico.

Logo em seguida, Qhuinn começou a tremer, os músculos processando toda a adrenalina.

– Vishous?

– Sim, sou eu, amigo. Você precisa continuar respirando.

– Quem... mais?

– Rhage.

– Butch.

– Phury.

– Zsadist.

– Tohr.

As vozes combinavam com os nomes, aqueles tons graves, sérios, sem sinais de bobeira, penetrando em seu cérebro, ajudando-o a perceber a realidade que não envolvia o passado.

E, então, o último foi o responsável por ele descer o derradeiro degrau do vórtice mental, regressando para o que era real.

– Wrath.

Qhuinn tentou virar a cabeça na direção do Rei, mas seu impulso não o levou a nada.

– Vou soltar você, ok, amigo? – disse V. – Vai se controlar?

– Sim.

– No três, então. Um. Dois. Três.

Vishous deu um salto para trás e parou numa pose de combate: braços erguidos, punhos prontos, posição equilibrada. Mesmo com o rosto do Irmão coberto pelo capuz, Qhuinn bem podia visualizar a expressão dele: sem dúvida se Qhuinn fizesse qualquer movimento, ele seria reapresentado à parede – e aquela amizade já fora travada, muito obrigado.

Ele se sentia uns quinze centímetros mais fino.

Com uma imprecação, Qhuinn se virou devagar, mantendo as mãos onde a Irmandade pudesse vê-lo.

– Estão me expulsando da mansão?

Ele não fazia ideia do que tinha feito, mas com seu histórico de irritar as pessoas, voluntariamente ou não? Podia ser qualquer coisa.

– Não, seu idiota – V. respondeu com uma risada.

Encarando a fila de silhuetas solenes cobertas por capuzes, ele procurou entender quem era quem, travando contato, lembrando-se de que aqueles eram os caras com quem ele lutava lado a lado, que sempre protegeram suas costas, que eles trabalhavam juntos.

Por isso, que diabos era aquilo...

A terceira figura a partir da esquerda levantou o braço, um dedo longo estendido e apontando para o meio do peito de Qhuinn.

Na mesma hora, Qhuinn se viu novamente na carcaça daquele Cessna, com o drama do voo concluído, Zsadist vivo e bem, o objetivo alcançado... aquele macho o destacando como fazia agora.

No Antigo Idioma, Wrath disse:

– Ser-lhe-á feita uma pergunta. E ela será feita apenas uma vez. A sua resposta será testada desde este instante até o resto de sua linhagem. Está pronto para responder a pergunta?

O coração de Qhuinn começou a bater forte. Os olhos voltando-se ao redor, ele não podia acreditar que aquilo...

A não ser... mas como era possível? Considerando-se a sua linhagem e o seu defeito, não seria legal alguém como ele...

Do nada, a imagem de Saxton trabalhando na biblioteca todas aquelas noites o acometeu.

Puta... merda.

Tantas perguntas: por que ele? Por que agora? E quanto a John Matthew, cujo peito, magicamente, já carregava a marca da Irmandade?

Enquanto a sua mente alucinava, sabia que tinha que responder, mas, cacete, ele não podia...

Com uma clareza absurda, ele pensou na filha, visualizando a imagem que vira na porta do Fade.

Qhuinn olhou para cada um dos capuzes de novo. Quanta ironia, pensou. Quase dois anos antes, uma Guarda de Honra em mantos negros fora enviada para deixar bem claro que a sua família não o queria. E agora, ali estavam aqueles machos, reunidos para levá-lo a um tipo diferente de família – que era tão ou mais forte que aquela de sangue.

– Pode crer, manda aí – foi a sua resposta.


A primeira pista de Blay de que algo grande estava acontecendo foram as passadas diante da porta do seu quarto: ele estava na frente do espelho, barbeando-se, quando as ouviu se aproximando pelo corredor das estátuas, muitas delas, pesadas e repetitivas.

Só podia ser a Irmandade.

Depois, enquanto ele se inclinava sobre a pia para retirar o resto do creme de barbear, algo pesado caiu no chão do quarto ao lado – ou foi lançado contra a parede. Parecia muito ter vindo do quarto de Qhuinn.

Desligando a torneira, ele pegou uma toalha e envolveu os quadris enquanto saía da suíte e seguia para...

Blay parou de pronto. O quarto de Qhuinn estava escuro, mas a luz do corredor caía sobre um círculo de mantos negros que cercava o cara. E ele estava sendo empurrado de cara contra a parede.

O único pensamento de Blay foi que uma segunda Guarda de Honra viera atrás do lutador – mesmo ele sabendo muito bem que era a Irmandade debaixo daqueles mantos. Só podia ser, certo?

A voz de Vishous resolveu essa questão, pois as palavras do macho se fizeram ouvir de modo claro e lento.

Em seguida, Qhuinn foi solto. Quando ele se virou, estava branco como um lençol, tremendo de pé nu no centro do círculo das figuras encapuzadas.

Wrath quebrou o silêncio, a voz grave de barítono do Rei preenchendo a escuridão:

– Ser-lhe-á feita uma pergunta. E ela será feita apenas uma vez. A sua resposta será testada desde este instante até o resto de sua linhagem. Está pronto para responder a pergunta?

Blay levou a mão da adaga para a boca quando ela se abriu. Aquilo não podia ser... podia? Eles o estavam iniciando na Irmandade da Adaga Negra?

Instantaneamente, ele juntou as peças: Saxton trabalhando duro todos aqueles meses; os atos de heroísmo de Qhuinn; John sendo informando de que o cara já não seria mais o seu ahstrux nohtrum.

Wrath devia ter alterado as Leis Antigas.

Puta que o pariu...

– Pode crer, manda aí...

Blay teve que sorrir quando recuou e voltou para o quarto. Só mesmo Qhuinn para ser tão direto.

Quando a porta se fechou, ele ficou grudado nela, esperando. Minutos depois, aquelas passadas pesadas retornaram, transitando diante do seu quarto, descendo para o vestíbulo, desaparecendo... mudando a história para sempre.

Em toda a existência da Irmandade, nunca houve ninguém iniciado que não fosse filho de um Irmão ou uma fêmea de sangue de Escolhida. Qhuinn, tecnicamente, era um aristocrata – mesmo tendo sido banido pela família, e com o seu “defeito”, a sua linhagem era aquilo que era. Mas não tinha as credenciais de DNA, ou o nome de guerreiro, que os outros tinham.

Contudo, desde que sobrevivesse à cerimônia, ele voltaria à mansão como um macho entre seus pares, para nunca mais ser desertado.

Era bom que Luchas estivesse vivo para presenciar aquilo. Seria muito importante.

Blay se vestiu, e quando verificou o celular, viu que havia uma mensagem para o grupo todo enviada por Tohr, informando que ninguém sairia a campo naquela noite e que iriam receber um par de novos hóspedes: os dois Sombras iriam morar na mansão.

Beleza. Em face à inquietação da aristocracia e ao atentado contra Wrath? Nada melhor do que ter aqueles dois assassinos debaixo do teto. Junto aos modos afetados de Lassiter, isso significava que o Rei dispunha de um trio com habilidades extras para protegê-lo.

Com um pouco de sorte, Trez e iAm se tornariam hóspedes permanentes.

Saindo do quarto, ele correu pelas escadas e não se surpreendeu ao encontrar os doggen se apressando para arrumar um banquete.

Quanto tempo levaria?, ele se perguntou.

Ah, como ele queria ter algo com que passar o tempo.

Indo até a sala de bilhar, pois sabia que de nada adiantaria abordar Fritz para oferecer ajuda para os preparativos, ele pegou um taco e o triângulo para formação das bolas. Enquanto passava giz na ponta, a campainha da porta da frente tocou.

– Pode deixar – ele exclamou enquanto levava o taco consigo até a tela da câmera de segurança.

Saxton estava ali, parecendo descansado e saudável.

Blay abriu a porta.

– Bem-vindo de volta.

Houve um momento de incerteza, pois não sabiam se se abraçavam ou se cumprimentavam com um aperto de mãos.

– Precisamos parar com essa estranheza – anunciou Saxton. – Venha cá.

– É mesmo, não?

Depois de um abraço rápido, Blay apanhou as malas combinadas da Gucci e os dois subiram o lance de escadas, lado a lado.

– Então, como foi de férias? – Blay perguntou.

– Foi maravilhoso. Fui para a casa da minha tia... aquela que ainda fala comigo, sabe? Ele tem uma propriedade na Flórida.

– Um lugar bem perigoso para vampiros. Não existem muitos porões.

– Ah, mas ela vive num castelo de pedra – Saxton indicou o vestíbulo. – Não como este. As noites são quentes, o oceano é maravilhoso, a vida noturna...

Quando Saxton parou abruptamente, Blay olhou para ele.

– Está tudo bem, sabe. Estou feliz que tenha se divertido. De verdade.

Saxton o observou atentamente e depois murmurou:

– Você também andou ocupado, não?

Maldita coloração de ruivo. Todo rubor ficava evidente e, naquele instante, seu rosto estava em fogo.

Quando viraram à esquerda depois do escritório de Wrath e seguiram pelo corredor das estátuas, Saxton riu de leve.

– Estou feliz por você. E não vou fazer nenhuma pergunta.

Ele sabia o “quem”, Blay concluiu.

– Bem. É isso.

– Que tal me pôr a par das novidades? – Saxton sugeriu ao entrarem em seu quarto. – Sinto como se estivesse longe há um século.

– Bem... prepare-se.

Luchas. Trez e iAm. Qhuinn e a iniciação.

Quando Blay terminou de falar, Saxton estava sentado na cama de boca aberta.

– Mas você sabia dessa do Qhuinn, não sabia? – disse Blay ao terminar seu relato.

– Sim, eu sabia – Saxton endireitou a gravata borboleta, mesmo o nó estando perfeitamente simétrico. – E tenho que lhe dizer que, apesar de não saber tudo o que você sabe sobre ele no campo de batalha, tudo o que ouvi sugere que é uma honra digna. Fiquei sabendo que ele teve um papel de muita importância no resgate de Wrath no dia da tentativa de assassinato.

– Ele é corajoso, isso é verdade.

Dentre tantas outras coisas.

Enquanto Blay olhava para o corredor e visualizava aquelas figuras encapuzadas ao redor do seu amigo, tudo em que pensava era... o que diabos vão fazer com ele?


CAPÍTULO 70

Qhuinn não tinha ideia de onde estava.

Antes de saírem do seu quarto, eles lhe deram um manto negro e o instruíram a colocar o capuz, fixar o olhar no chão e manter as mãos cruzadas às costas. Ele não podia falar a menos que o pedissem para falar e deixaram bem claro que o modo como ele agisse seria parte do seu julgamento.

Não podia ser nem cretino nem covarde.

Ele podia fazer isso.

A parada seguinte, depois de descerem a escadaria principal, foi o Escalade de V.; ele soube disso pelo cheiro do tabaco turco e pelo ronco do motor. Trajeto curto, executado lentamente. E depois lhe disseram para sair, o ar frio atingindo-o por debaixo do capuz e pela bainha do manto.

Os pés descalços cobriram um pedaço de terra batida e dura pelo frio, e depois um pedaço mais fofo, sem neve por cima. A julgar pela acústica, ficou claro que eles seguiam por um corredor ou talvez uma caverna...? Não demorou para que o fizessem parar, um tipo de portão foi aberto, e então ele se viu numa descida. Pouco depois, foi parado uma segunda vez, e houve uma espécie de sussurro, como se mais uma barreira fosse desimpedida.

Agora, mármore liso sob seus pés. E ele estava aquecido. Também havia uma fonte suave de luz – luzes de velas.

Deus, seu coração batia rápido em seus ouvidos.

Após alguns metros, ele foi parado novamente e ouviu o som de tecido sendo removido ao seu redor. Os Irmãos estavam retirando os mantos.

Ele quis olhar, ver onde estavam, descobrir o que estava acontecendo, mas não o fez. Como instruído, manteve a cabeça baixa e os olhos no...

Uma mão pesada pousou em sua nuca e a voz de Wrath ecoou no Antigo Idioma:

– Você não é digno de entrar aqui como está. Acene com a cabeça.

Qhuinn acenou.

– Diga que é indigno.

No Antigo Idioma, ele acatou:

– Sou indigno.

Ao seu redor, os Irmãos explodiram no Antigo Idioma, numa discordância que o fez querer agradecer a eles por apoiarem-no.

– Apesar de ser indigno – prosseguiu o Rei –, você deseja tornar-se digno esta noite. Acene com a cabeça.

Ele acenou.

– Diga que quer se tornar digno.

– Quero me tornar digno.

Dessa vez, o tremendo grito dos Irmãos foi de aprovação e apoio.

Wrath continuou:

– Só existe um modo de se tornar digno, e é o modo adequado e próprio. Corpo do corpo. Acene com a cabeça.

Qhuinn acenou.

– Diga que quer se tornar corpo do nosso corpo.

– Quero me tornar corpo do seu corpo.

Assim que a voz sumiu, um canto começou a ser entoado, as vozes graves da Irmandade se misturando até formarem um coro perfeito numa cadência perfeita. Ele não os acompanhou, porque não o ordenaram que o fizesse, mas, assim que alguém se postou diante dele, e alguém se colocou atrás, e logo o grupo todo passou a oscilar de um lado para o outro, seu corpo seguiu a liderança deles.

Movendo-se juntos, tornaram-se uma unidade, os ombros largos movendo-se para frente e para trás no ritmo do canto, o peso remexendo nos quadris – a fila começou a avançar.

Qhuinn começou a cantar. Não foi de propósito, apenas aconteceu. Seus lábios se partiram, os pulmões se encheram e a voz acompanhou a dos outros.

No instante em que começou a cantar, começou a chorar.

Ainda bem que estava de capuz.

Por toda a sua vida ele quis pertencer. Ser aceito. Estar entre tantos que eram respeitados. Ele o desejou com tanta avidez que a privação de toda e qualquer união quase o matara – e ele só sobrevivera ao se revoltar contra a autoridade, os costumes, as normas.

Ele nem mesmo se dera conta de ter desistido de um dia encontrar tal comunhão.

E lá estava ele agora, em algum lugar debaixo da terra, cercado por machos que... o escolheram. A Irmandade, os lutadores mais respeitados pela raça, os soldados mais poderosos, a elite da elite... escolhera a ele.

Aquilo não era um acidente de nascimento.

Ser considerado uma maldição para acabar sendo acolhido ali, naquele instante? De súbito, ele se sentiu inteiro como nunca antes em sua vida.

De repente, a acústica se alterou, o canto coletivo ricocheteando ao redor, como se tivessem entrado num grande espaço com teto alto.

Uma mão em seu ombro o fez parar.

Em seguida, o coro e o movimento cessaram, os acordes finais de suas vozes sumindo aos poucos.

Alguém o segurou pelo braço e o incitou a avançar.

– Escada – era a voz de Z.

Ele subiu cerca de seis degraus, depois chegou a um patamar. Quando parou, foi com o peito e os dedos dos pés contra o que parecia ser uma parede de mármore do mesmo tipo em que o piso parecia ser feito.

Zsadist se afastou, deixando-o onde ele estava.

Seu coração bateu forte contra o esterno.

A voz do Rei soou forte como um trovão:

– Quem indica esse macho?

– Eu – Zsadist respondeu.

– Eu – Tohr ecoou.

– Eu.

– Eu.

– Eu.

– Eu.

Qhuinn teve que piscar repetidamente enquanto, um a um, os Irmãos se pronunciavam. Cada um dos malditos Irmãos o indicava.

E então foi a vez do último.

A voz do Rei soou alta e clara:

– Eu.

Cacete, ele precisava piscar um pouco mais.

Quando Wrath prosseguiu, a inflexão aristocrática do Antigo Idioma foi acompanhada pela força de um guerreiro:

– Com base no testemunho dos membros reunidos da Irmandade da Adaga Negra, e com base na indicação de Zsadist e Phury, filhos do guerreiro da Adaga Negra Ahgony; Thorment, filho do guerreiro da Adaga Negra Hharm; Butch O’Neal, parente de sangue de minha própria linhagem; Rhage, filho do guerreiro da Adaga Negra Tohrture; Vishous, filho do guerreiro da Adaga Negra conhecido como Bloodletter; e na minha própria como Wrath, filho de Wrath, consideramos o macho diante de nós, Qhuinn, filho de ninguém, uma indicação adequada para a Irmandade da Adaga Negra. E como está em meu poder e juízo fazer tal coisa, e por ser adequado para a proteção da raça, e, além disso, pelas leis terem sido reconstruídas para guarnecer o que é de direito e adequado, eu dispenso toda e qualquer exigência de linhagem. Podemos agora dar início. Virem-no. Dispam-no.

Antes que alguém se aproximasse, Qhuinn aprumou os ombros e conseguiu esfregar os olhos rapidamente, assim voltava a ser um macho quando o giraram e retiraram seu manto.

Qhuinn arfou. Ele estava sobre um tablado, e a caverna que estava diante dele era iluminada por centenas de velas negras, as chamas criando uma sinfonia de luzes suaves e douradas que queimavam em paredes mal cortadas e refletiam o brilho do piso.

Mas não foi isso que chamou a sua atenção: bem diante dele, entre ele e o tremendo espaço bem iluminado, havia um altar.

No centro do qual jazia um crânio.

A coisa devia ser bem antiga, pois o osso não era branco como os dos recém-falecidos, mas trazia uma pátina escurecida de idade, de sacro, de venerável.

Aquele era o primeiro Irmão. Só podia.

Quando seus olhos se desviaram daquilo, ele se viu tomado por admiração: abaixo, olhando para ele, estavam os portadores vivos daquela tradição. A Irmandade estava ombro a ombro, os corpos nus dos guerreiros formando uma incrível parede de pele e músculos, a luz das velas cintilando sobre tanta força e poder.

Tohr segurou o braço de Wrath e conduziu o Rei pelas escadas que Qhuinn acabara de subir.

– Recoste-se na parede e segure as estacas – Wrath ordenou em inglês ao ser acompanhado até o altar.

Qhuinn obedeceu sem hesitação, sentindo as escápulas e o traseiro encostarem na pedra enquanto as mãos seguravam duas protuberâncias firmes em forma de cavilhas.

Quando o Rei levantou a mão, Qhuinn entendeu imediatamente como cada um dos Irmãos conseguira a cicatriz em forma de estrela no peitoral: uma antiga luva de prata estava na mão de Wrath, os espinhos marcando os nós dos dedos do objeto e, dentro do punho, havia o cabo de uma adaga negra.

Com um mínimo de espalhafato, Tohr estendeu o pulso de Wrath por cima do crânio.

– Meu senhor.

Enquanto o Rei aproximava a adaga, as tatuagens ritualísticas que delineavam a linhagem dele foram evidenciadas pela luz das velas – e depois, a lateral afiada marcou a pele.

Sangue vermelho vivo se avolumou e caiu sobre a taça de prata que estava incrustada na base do crânio.

– Meu corpo – proclamou o Rei.

Depois de um instante, Wrath lambeu a ferida para fechá-la. E depois, o macho imenso, com seu cabelo escuro longo até a cintura e em bico no alto da testa, e naqueles óculos escuros, foi conduzido até Qhuinn.

Mesmo sem o benefício da visão, Wrath, de algum modo, sabia exatamente onde seus corpos estavam posicionados, onde estava o rosto de Qhuinn, e qual era a altura...

Porque o Rei avançou até a garganta dele. Então, com força brutal, empurrou o rosto de Qhuinn para o lado, expondo-lhe a garganta.

Agora ele entendia para que serviam as cavilhas.

O sorriso cruel de Wrath expunha presas espantosas, do tipo que Qhuinn jamais vira.

– Seu corpo.

Com um ataque veloz como a luz, o Rei se segurou sem misericórdia, perfurando a veia de Qhuinn numa mordida brutal e depois tragando uma série de golfadas que eram engolidas uma a uma. Quando, por fim, retraiu os caninos, ele passou a língua sobre os lábios e sorriu como um chefe guerreiro.

E chegou a hora.

Qhuinn não precisou que lhe dissessem para se segurar firme. Abaixando as mãos, travou os ombros e as pernas, pronto para receber.

– Nosso corpo – rugiu Wrath.

O Rei não se conteve. Com a mesma acuidade certeira, ele cerrou o punho dentro da luva antiga e socou a coisa no peitoral de Qhuinn, o impacto das juntas com espinhos foi tão grande, que os lábios de Qhuinn se moveram na rajada que emanou de seus pulmões. A visão enxergou uma série de passarinhos por um momento, mas quando voltou, ela focalizou a expressão de Wrath.

Que era de respeito – e ausência absoluta de surpresa, como se Wrath tivesse antecipado que Qhuinn suportaria aquilo como um macho.

E assim continuou. Tohr foi o seguinte, aceitando a luva e a adaga, repetindo as palavras, cortando o braço, sangrando dentro do crânio, atacando a garganta de Qhuinn, depois atingindo com o máximo de sua força. E depois Rhage. Vishous. Butch. Phury. Zsadist.

Ao final, Qhuinn sangrava por causa das feridas no pescoço e no peito, o corpo estava coberto de suor, e o único motivo pelo qual não estava caído no chão eram aquelas cavilhas.

Mas ele não se importava com o que mais lhe fizessem; continuaria de pé não importando o que acontecesse. Desconhecia a história da Irmandade, mas estava disposto a apostar que nenhum daqueles caras caíra como um saco de batatas durante a iniciação deles – e ele não se importava em ser o primeiro de algumas maneiras, mas não devido à ausência de coragem.

Além disso, até ali, tudo bem. Os outros Irmãos estavam parados adiante, sorrindo de orelha a orelha para ele, como se aprovassem completamente o modo como ele vinha lidando com aquilo – e não é que isso só aumentava a sua determinação?

Com um aceno, como se tivesse recebido uma ordem, Tohr levou o Rei de volta ao altar e lhe entregou o crânio. Erguendo o sangue coletado, Wrath disse:

– Este é o primeiro de nós. Saúde o guerreiro que deu origem à Irmandade.

Um grito de guerra emanou dos Irmãos, a combinação das vozes trovejou pela caverna, e depois Wrath se aproximou de Qhuinn.

– Beba e junte-se a nós.

Entendido.

Com uma força renovada, ele pegou o crânio e olhou bem dentro das cavidades oculares ao levar a taça de prata aos lábios. Abrindo a boca, despejou o sangue pela garganta, aceitando os machos dentro de si, absorvendo-lhes a força... juntando-se a eles.

Ao seu redor, os Irmãos rugiram sua aprovação.

Quando terminou, voltou a colocar o crânio nas palmas de Wrath e limpou a boca.

Uma gargalhada se espalhou pelo peito amplo do Rei.

– Acho que vai querer se segurar nessas cavilhas, filho...

E foi essa a última coisa que ele ouviu.

Como um raio vindo dos céus e atingindo-o em cheio na cabeça, uma onda súbita de energia o atingiu, sobrepujando todos os seus sentidos. Ele deu um salto para trás, encontrando as cavilhas e segurando-se a elas bem quando seu corpo foi acometido por uma convulsão...

Ele tinha toda a intenção de permanecer consciente.

Mas, caramba... O redemoinho era poderoso demais.

Enquanto seu corpo tremia, e o coração palpitava, e a mente sibilava como um fogo de artifício, Bum!, as luzes se apagaram.


CAPÍTULO 71

– Sola, por que você não me contou que teríamos visita?

Sola fez uma pausa ao colocar a mochila sobre a bancada da cozinha. Embora sua avó estivesse claramente esperando uma resposta, ela não se viraria até que sua expressão não demonstrasse a surpresa que sentia.

Quando estava pronta, virou-se sobre uma bota.

A avó estava sentada na cadeira delicada à mesa, sua roupa de ficar em casa rosa e azul coordenando com os bobes na cabeça e as cortinas floridas logo atrás dela. Aos oitenta anos de idade, ela tinha o rosto graciosamente marcado de uma mulher que vivera no período de treze presidentes, numa Guerra Mundial, e com inúmeras dificuldades pessoais. Seus olhos, contudo, ardiam com a força de uma imortal.

– Quem veio aqui, vovó? – perguntou.

– O homem com o – a avó levantou a mão de juntas grossas e apontou para os bobes – ... cabelo escuro.

Bosta.

– Quando ele veio?

– Ele foi muito gentil.

– Ele deixou um nome?

– Então você esperava por ele?

Sola inspirou profundamente e rezou para que sua postura neutra continuasse a postos, apesar de sua irritação. Inferno, depois de viver anos com a avó era de se esperar que ela já estivesse acostumada ao fato de que a mulher nunca se desviava no que se referia a fazer perguntas.

– Não, eu não estava esperando por ninguém – e a ideia de que alguém aparecera à porta a fez enfiar a mão na bolsa. Havia uma .09 com visão a laser e um silenciador ali...o que era muito bom. – Como ele era?

– Muito grande. Cabelo escuro. Olhos profundos.

– De que cor? – a avó não enxergava muito bem, mas devia se lembrar disso. – Ele era...

– Como a gente. Ele falou comigo em espanhol.

Talvez aquele homem erótico que ela investigara fosse bilíngue. Ou trilíngue, a julgar pelo sotaque estranho.

– Então, ele deixou um nome? – não que isso fosse ajudar. Ela desconhecia o nome do homem que seguira.

– Ele disse que você o conhecia, e que vai voltar para ver você.

Sola olhou de relance para o relógio digital do micro-ondas. Passava pouco das dez.

– Quando ele veio?

– Não faz muito tempo – os olhos da avó se estreitaram. – Você tem visto ele, Marisol? Por que não me contou?

Naquele ponto, tudo escorregou para o português, as falas de sílabas destacadas se sobrepondo, todo tipo de “não estou namorando ninguém” misturado a “por que você não se casa”. Elas discutiram aquilo tantas vezes que basicamente retomavam as partes muito bem ensaiadas daquela peça de teatro já ultrapassada.

– Bem, eu gosto dele – anunciou a avó ao se levantar da mesa e bater na superfície com as palmas abertas. Enquanto o porta-guardanapos com sua pilha de Vanity Fair dava um salto, Sola quis praguejar. – Acho que você tem que trazer ele aqui para um jantar de família.

Eu até faria isso, vovó, mas não conheço o cara – e o que a senhora acharia se soubesse que ele é um criminoso? Um playboy?

– Ele é católico? – perguntou a avó a caminho da porta.

Ele é traficante de drogas, portanto, se é religioso, tem incríveis poderes de reconciliação.

– Ele parece um bom rapaz – a avó comentou por sobre o ombro. – Um bom rapaz católico – e aquilo foi tudo, por ora.

Enquanto os chinelos se arrastavam escada acima, sem dúvida o sinal da cruz era feito repetidamente pelo caminho. Sola bem conseguia visualizar isso.

Com uma imprecação, baixou a cabeça e fechou os olhos. De certa forma, ela não conseguia enxergar o homem sendo agradável e gentil só porque uma senhora de idade brasileira abrira a maldita porta. Católico, até parece.

– Maldição.

Em retrospecto, quem era ela para ser uma santa? Era uma criminosa. Há diversos anos. E o fato de ela sustentar a si e a avó não justificava tantas invasões de propriedade.

Quem seu homem misterioso sustentava, ela se perguntou quando o cachorro do vizinho começou a latir. Os gêmeos? Eles pareciam bastante autossuficientes. Será que ele tinha filhos? Uma esposa?

Por algum motivo, estremeceu.

Cruzando os braços diante do peito, ficou olhando o piso imaculado que a avó limpava todo santo dia.

Pensou que ele não tinha o direito de ir até lá.

Tudo bem, ela fora até a casa dele sem ser convidada, não é mesmo?

Sola franziu o cenho e levantou o olhar. A janela emoldurada pela cortina rosa rendada estava escura porque ela não acendera as luzes de fora ainda. Mas ela sabia que havia alguém ali fora.

E sabia muito bem quem era.

Com a respiração se tornando superficial e o coração começando a bater forte, ela levou a mão à garganta sem nenhum motivo.

Vire, ordenou-se. Fuja.

Mas... ela não fez isso.


Assail não tivera a intenção de ir até a casa da sua ladra. Mas o equipamento de rastreamento ainda estava acoplado ao Audi, e quando ele o informou de que ela havia retornado àquele endereço, viu-se incapaz de não se desmaterializar até ali.

No entanto, ele não queria ser visto. Então, escolheu o quintal dos fundos, e que sorte: quando a ladra entrara na cozinha, ele teve uma visão desobstruída dela, bem como de sua acompanhante.

A humana mais idosa era muito encantadora em seu modo mais ancião, o cabelo enrolado, o roupão vivaz como um dia de primavera, o rosto belo apesar da idade. Ela, porém, não parecia feliz, ao se sentar à mesa e olhar adiante, para o que Assail supunha, fosse a neta dela.

Palavras foram trocadas, e ele sorriu um pouco na escuridão. Havia muito amor entre elas; muito aborrecimento também. Como sempre acontecia com os parentes de mais idade, quer eles fossem humanos ou vampiros.

Ah, como se sentia aliviado em saber que ela não vivia com um macho.

A menos, claro, que aquele com quem ela se encontrara no restaurante também morasse naquela casinha.

Enquanto ele grunhia baixinho no escuro, o cachorro da casa vizinha começou a latir, avisando os humanos sobre aquilo que eles desconheciam.

Um momento depois, sua ladra foi deixada a sós na cozinha com uma expressão tanto de resignação quanto de frustração.

Enquanto ela continuava de pé, com os braços cruzados, balançando a cabeça, ele disse a si mesmo que deveria ir embora. Em vez disso, não foi: atravessou o vidro com a mente, e deixou seu desejo correr solto.

Ela reagiu imediatamente, o corpo delgado se enrijecendo contra a bancada, os olhos seguindo direto para a janela.

– Venha para mim – disse ele para o ar frio.

E foi o que ela fez.

A porta dos fundos rangeu quando ela a abriu com o quadril, forçando a parte inferior a raspar uma porção de neve acumulada no assoalho.

O cheiro dela era a sua ambrosia. E enquanto ele diminuía a distância entre eles, seu corpo foi inundado por um desejo predatório.

Assail não parou até estar a centímetros dela. Tão perto assim, quase peito contra peito, ela era muito menor do que ele; todavia, o efeito que ela surtia nele era monumental. Suas mãos se crisparam, as coxas endureceram, seu coração pulsava com sangue aquecido.

– Não pensei que fosse voltar a vê-lo – ela sussurrou.

O pau dele endureceu ainda mais, só de ouvir a voz dela.

– Parece que temos assuntos inacabados.

Que não envolviam nem dinheiro, nem drogas, tampouco informações.

– Falei sério – ela afastou os cabelos para trás, como se tivesse dificuldade para ficar parada. – Não vou mais espionar. Prometo.

– De fato, você me deu a sua palavra. Mas, ao que tudo leva a crer, sinto falta dos seus olhos sobre mim – o sibilo dela atravessou o ar frio entre eles. – Dentre outras coisas.

Ela desviou o olhar rapidamente. Voltou a fitá-lo.

– Isto não é uma boa ideia.

– Por quê? Por causa daquele humano com quem você jantou?

Sua ladra franziu o cenho, provavelmente pelo uso da palavra “humano”.

– Não. Não é por causa dele.

– Então ele não mora aqui.

– Não, somos somente a minha avó e eu.

– Aprovo isso.

– E por que você deveria ter uma opinião quanto a isso?

– É o que me pergunto todos os dias – ele murmurou. – Mas explique, se não é por causa daquele homem, por que não podemos nos encontrar?

Sua ladra empurrou os cabelos sobre os ombros mais uma vez e balançou a cabeça.

– Você... representa problemas.

– E quem diz isso é a mulher que anda sempre armada.

Ela empinou o queixo.

– Você acha que eu não vi aquela adaga ensanguentada no seu hall de entrada?

– Ah, aquilo – ele dispensou o comentário com um aceno da mão. – Eu só estava cuidando de alguns assuntos.

– Pensei que o tivesse matado.

– Quem?

– Mark, o meu amigo.

– Amigo – ele se ouviu grunhir. – Se é que ele é isso mesmo.

– Então, quem você matou?

Assail pegou um charuto para acender, mas ela o deteve.

– A minha avó sentiria o cheiro.

Ele olhou para as janelas fechadas do segundo andar.

– Como?

– Apenas não o faça, por favor. Não aqui.

Com uma inclinação de cabeça, ele cedeu – mesmo que não conseguisse se lembrar de um dia o ter feito em respeito a ninguém.

– Quem você matou?

A pergunta foi feita de modo prático, sem a histeria que haveria de se esperar de uma fêmea.

– Isso não tem nada a ver com você.

– Melhor eu não saber, hein?

Visto que ele era de uma espécie diferente da dela? Ah, sim, de fato.

– Não é ninguém que você um dia fosse conhecer. Eu lhe direi, contudo, que tive meus motivos. Ele me traiu.

– Portanto, mereceu – não era uma pergunta, mas apenas uma declaração de aprovação.

Ele não tinha como deixar de apreciar o modo como ela encarava os fatos.

– Sim, mereceu.

Houve um instante de silêncio, e depois ele teve que perguntar:

– Qual o seu nome?

Ela riu.

– Quer dizer que não sabe?

– Como eu descobriria?

– Bom argumento... E eu lhe direi, se você me explicar o que disse para a minha avó – ela abraçou o torso como se estivesse com frio. – Sabe, ela gostou de você.

– Quem gostou de mim?

– A minha avó.

– E como é que ela me conhece?

Sua ladra franziu o cenho.

– Quando você veio aqui antes. Ela disse que o considerou um bom rapaz, e quer convidá-lo para jantar – aqueles olhos incríveis se voltaram para ele. – Não que eu esteja defendendo isso... Ei, o que foi? Ai!

Assail forçou a mão para que relaxasse, pois nem percebera que segurara o braço dela.

– Eu não vim aqui antes. Tampouco falei com sua avó.

Sua ladra abriu a boca. Fechou-a. Abriu-a novamente.

– Não veio aqui hoje?

– Não.

– Então quem diabos está me procurando?

Enquanto um sentimento avassalador de protegê-la o assolou, suas presas se alongaram e o lábio superior começou a se retrair – mas ele se conteve, refreando a demonstração exterior das suas emoções interiores.

Abruptamente, ele indicou a direção da cozinha.

– Vamos entrar. Agora. E você vai me contar mais a respeito.

– Não preciso da sua ajuda.

Assail a fitou do alto de toda a sua altura.

– Mas você a terá mesmo assim.


CAPÍTULO 72

Trez não estava acostumado a andar de motorista. Gostava de dirigir. De estar no controle. De escolher a direita ou a esquerda. Esse tipo de escolha não constava do cardápio daquela noite, porém.

Naquele instante, ele era apenas um gostosão no banco de trás de uma Mercedes que era do tamanho de uma casa. Na frente, Fritz – esse era o nome dele – dirigia como um morcego saindo do inferno; não exatamente algo que se esperava de alguém que parecia ter uns sete mil anos de idade.

No entanto, visto que Trez ainda se sentia meio estranho após a dor de cabeça da noite anterior, ele achava uma boa ideia ser passageiro num caso como aquele. Mas se ele e iAm iriam morar lá, eles teriam de saber onde ficava a maldita propriedade.

Mas. Que. Merda.

Por algum motivo, seus sentidos captaram uma mudança na atmosfera, algo tintilava nos limites de sua consciência, um aviso. E, vejam só, do lado de fora da janela, o cenário iluminado pelo luar ficou ondulado, com uma distorção vital retorcendo sua visão.

Os olhos verificaram o interior da Mercedes. Tudo estava bem: o couro preto, a costura castanha, a divisória erguida entre os assentos estavam exatamente como deviam estar. Portanto, não era um desajuste dos seus nervos óticos.

Voltando os olhos para o exterior, ele entendeu que a distorção não era fruto de uma névoa. Nem de algum tipo de chuvisco. Não, aquilo não era provocado pelo tempo – era algo completamente diverso... como se o medo tivesse se cristalizado nas partículas do ar, e estivesse provocando a metamorfose do cenário.

Que belo escudo protetor...

E lá estava ele supondo que ele e o irmão eram os únicos com truques escondidos nas mangas.

– Estamos próximos – comentou.

– O que é isso, hein? – iAm murmurou ao olhar para fora da janela.

– Não sei. Mas precisamos conseguir um pouco disso para nós.

Abruptamente, o carro começou a subir, e com a aceleração do Homem Pé de Chumbo, mais parecia que eles subiam uma montanha-russa. No entanto, eles não despencaram uma vez no alto: do nada, uma imensa mansão de pedra se materializou, aparecendo tão repentinamente que Trez segurou o apoio na porta para se preparar para o impacto.

No entanto, o motorista sabia muito bem onde estavam, e qual a distância necessária para fazer o carro parar. Com a habilidade de um dublê de Hollywood, o mordomo girou o volante e pisou nos freios, fazendo-os estacionar entre um GTO que Trez imediatamente cobiçou... e um Hummer que parecia mais uma escultura abstrata do que algo dirigível.

– Talvez ele tenha feito alguma besteira com esse aí – Trez disse causticamente.

Quando as portas foram destrancadas, ele e iAm saíram ao mesmo tempo.

Puxa. Olha só essa casa, Trez pensou ao pender a cabeça para trás e olhar para cima, bem para cima. Em comparação à pilha gigantesca de pedras, ele se sentia do tamanho de um polegar.

Do polegar de uma criança de dois anos de idade.

Pairando bem no alto na noite escura, com gárgulas que observavam do beiral, e um par de alas de quatro andares muito sinistras que se estendiam para os dois lados, a construção parecia exatamente o que você esperaria do lugar em que vivia o rei dos vampiros: assombrada, arrepiante e ameaçadora.

Era a representação do Halloween, só que verdadeiro. As pessoas ali dentro mordiam mesmo, e não só quando lhes pediam.

– Maneiro – elogiou Trez, sentindo-se imediatamente em casa.

– Senhores, entrem, por favor – disse o mordomo amigavelmente. – Eu me empenharei em levar suas malas.

– Não, não – opôs-se Trez, já indo para o porta-malas. – Temos muitas tranq... quero dizer, coisas.

Era difícil se portar mal diante de alguém de fraque.

iAm concordou.

– Podemos fazer isso por você.

O mordomo olhou de um para outro, com um sorriso no devido lugar.

– Por favor, sigam para as festividades, senhores. Nós cuidamos desses assuntos mundanos.

– Ah, mas nós...

– Isto é, não vai ser...

Fritz pareceu confuso, depois, ligeiramente em pânico.

– Por favor, os senhores precisam se juntar aos outros. Eu cuido disto. Esta é a minha função na casa.

A aflição parecia tão despropositada, mas eles não teriam como argumentar sem causar ainda mais problemas; estava claro que o cara teria um chilique se eles mesmos levassem a bagagem até a porta de entrada.

Quando em Roma... Trez concluiu.

– Ok, certo, muito obrigado.

O sorriso agradável e franco reapareceu de pronto.

– Muito bem, senhores! Muito bem, mesmo.

Enquanto o mordomo indicava o caminho para a entrada, como se a imensa porta de catedral fosse um mistério, Trez deu de ombros e seguiu para as escadas.

– Acha que ele vai nos deixar limpar nossas bundas? – perguntou baixinho.

– Só se ele não nos vir ir ao banheiro.

Trez gargalhou e olhou para o irmão.

– Isso foi uma piada, iAm? Hum? Acho que foi...

Depois de dar uma cotovelada no irmão e obter um grunhido como resposta, ele esticou a mão e segurou a maçaneta pesada do portal. Ficou um tanto surpreso em ver que não estava trancado, mas, pensando bem, com... aquela coisa... ao redor, quem é que precisaria de chaves? Nenhum rangido ao entrar, e isso não foi nenhuma surpresa. O lugar era bem cuidado em cada centímetro, a neve retirada, sal espalhado no piso para evitar a formação de gelo, tudo absolutamente bem ordenado.

Mas também, com aquele mordomo encarregado? Uma sujeirinha que fosse devia ser uma emergência nacional.

Saindo do frio, ele se viu numa antessala com piso de mosaico e teto alto, de frente para uma recepção que incluía uma câmera de segurança. Ele sabia para que servia aquilo – e enquadrou a cara bem no campo de visão.

No mesmo instante, a porta interna, que se equiparava a de um cofre de banco, se abriu.

– Olá! – uma fêmea exclamou. – Vocês chegaram.

Trez mal notou Ehlena ao perceber o que estava por trás dela.

– Oi... como é que você está...

Ele não ouviu a resposta dela.

Puxa... vida. Uau... que cores lindas...

Trez nem percebeu que se adiantava, mas foi o que fez... andando em direção à maior maravilha arquitetônica que ele jamais vira. Imensas colunas de malaquita e mármore rosa subindo para um teto mais alto que os céus. Candelabros de cristal e arandelas douradas reluziam. Uma escadaria vermelho sangue tão grande quanto um parque se elevava a partir de um piso de mosaico que parecia a representação... de uma macieira carregada de frutos.

Por mais sombrio que o exterior parecesse, o interior era absolutamente resplandecente.

– Rivaliza com o palácio – iAm murmurou maravilhado. – Oh, olá, Ehlena.

Trez estava vagamente ciente do irmão abraçando a shellan de Rehvenge. E também havia outras pessoas por perto, fêmeas em sua maioria, mas ele também reconheceu Blay e um macho loiro junto a John Matthew e, claro, Rehv, que cruzava o piso com a ajuda de sua bengala.

– A festa não é para vocês dois, mas podem fingir que é.

iAm e Rehv se abraçaram, porém, mais uma vez, Trez não estava prestando a mínima atenção.

Na verdade, o arco-íris colorido também desaparecera por completo.

Parada na entrada do que parecia a porta de uma sala de jantar formal, a Escolhida que ele vira na casa de campo de Rehv falava com outra também de manto branco.

A visão de Trez se afunilou nela, seus olhos concentrando-se somente em sua imagem e lá ficando.

Olhe para mim, ele desejou. Olhe para mim.

Nesse instante, como se tivesse sentido o comando, a Escolhida olhou em sua direção.

Trez, imediatamente, ficou excitado, o corpo inchando com o desejo de seguir até aquela fêmea, tomá-la nos braços e levá-la para algum canto reservado.

Onde ele poderia marcá-la.

A voz de iAm era exatamente o que ele não precisava ouvir em seu ouvido:

– Ainda não é para o seu bico, irmão.

Ele precisava tê-la, mesmo que isso o matasse.

E se chegasse a esse ponto? Bem, sua vida não era uma festa no momento, era?


Quando Qhuinn recobrou os sentidos, estava deitado no altar. O crânio bem ao lado da sua cabeça, como se o Irmão o estivesse protegendo enquanto ele se recuperava após ter bebido o sangue. Piscando bem os olhos, ele percebeu que fitava um mural de nomes: cada centímetro da imensa pedra de mármore contra a qual estivera apoiado estava gravado com nomes no Antigo Idioma.

Exceto pela parte onde estavam as cavilhas.

Ao se sentar e deixar as pernas penderem, suas costas estalaram e a cabeça rodou um pouco... Esfregando o rosto, ele saiu num pulo e andou para a frente... até poder tocar nas gravuras.

– Você está bem no fim – Zsadist informou atrás dele.

Qhuinn se virou. A Irmandade mais uma vez estava parada embaixo, cada um deles sorrindo como filhos da mãe.

O sotaque de Boston soou:

– É emocionante ver seu nome escrito aí. Você precisa dar uma olhada.

Qhuinn voltou a olhar para frente. Depois de seguir para a direita, no fim, ele encontrou o nome do tira... e depois o seu.

Suas pernas ficaram bambas quando ele se abaixou, ajoelhando diante da fileira precisa de símbolos. Depois olhou para a parede, os nomes individuais desaparecendo, transformando-se num padrão coeso em todo o mármore. Assim como a Irmandade. Não indivíduos, mas um grupo.

E ele era parte daquilo.

Por Deus... ele estava ali.

Qhuinn se preparou para uma experiência transformadora – algo que seguisse a linha de um grande sino ecoando em seu peito “Você pertence”... ou, merda, um simples “Você é o cara” soando em sua mente.

Nada disso aconteceu. Sim, claro, ele estava feliz. Estava orgulhoso, porra. Pronto para sair dali e lutar como um desvairado.

Porém, ao se pôr de pé, ele percebeu que apesar da nova sensação de completude, uma parte sua permanecia separada. Em retrospecto, seus últimos dias foram tremendos – como se o destino tivesse jogado sua vida num liquidificador e estivesse preparando um molho com o seu traseiro.

Talvez fosse porque ele nunca fora muito bom nessa coisa de emoções? E nada mudaria aquilo.

Mas, pelo menos, ele não estava fugindo.

Indo para junto dos Irmãos, ele levou tantos tapas nos ombros e no peito que soube como os atacantes se sentiam no futebol americano depois dos treinos.

Mas logo ele se deu conta... iria para casa encontrar Blay.

Santa Maria Mãe de Deus, roubando uma expressão do tira, ele estava morrendo de vontade de ver o cara. Talvez dar uma escapada e contar o que tinha acontecido, mesmo que provavelmente ele não devesse fazer isso. Talvez subir para o quarto depois que a festa acabasse e... bem, por um tempo...

Ok, agora ele estava ficando excitado.

Rhage lhe lançou seu manto negro de volta.

– Portanto, bem-vindo ao hospício, seu pobre filho da mãe. Está preso a nós pelo resto da vida.

Qhuinn franziu a testa e pensou em John.

– Mas e a minha posição como ahstrux nohtrum?

– Já era – V. disse ao se vestir também. – Você é um homem livre.

– Então John sabia?

– Não que você estava recebendo este tipo de promoção. Mas ele foi informado que você já não poderia ser mais o segurança dele – quando Qhuinn tocou a tatuagem debaixo dos olhos, V. assentiu. – É. Vamos ter que mudar isso... É uma dispensa honorável, sabe, não é como uma morte ou demissão.

Beleza. Melhor do que um aviso prévio empurrado contra seu peito ou uma cova rasa.

Enquanto saíam, Qhuinn deu uma última olhada na caverna. Era tão estranho; sim, era a história acontecendo, mas aquilo também parecia o ápice de todas aquelas noites lutando com os Irmãos, uma lógica interna fazendo aquele evento extraordinário parecer... inevitável.

Refazendo o trajeto que percorreram anteriormente, Qhuinn se viu num corredor tomado por prateleiras do chão ao teto superalto.

– Jesus... Cristo... – ele sussurrou ao percebeu todos os jarros dos redutores.

Todos pararam.

– Os jarros? – Wrath perguntou.

– É – confirmou Tohr com uma risada. – Nosso garoto parece impressionado.

– E devia mesmo – murmurou Rhage ao ajeitar o cinto do manto. – Somos destemidos.

Múltiplos gemidos. Olhos se revirando.

– Pelo menos ele não veio com um daqueles “Somos incríveis!” – alguém murmurou.

– Esse é Lassiter – foi a resposta.

– Cara, esse filho da mãe tem que parar de assistir a maldita Nickelodeon...

– Dentre outras coisas.

– Foco, gente, foco – Rhage interrompeu. – Podemos ter um momento de seriedade aqui, por favor?

Grunhidos de aprovação substituíram as críticas, os sons se elevando e ecoando entre as lembranças dos seus inimigos mortos.

– Apenas pense – Tohr disse ao passar um braço ao redor dos ombros de Qhuinn –, agora você pode mandar os seus para cá.

– Legal – murmurou Qhuinn ao olhar para os diferentes tipos de contêineres. – Muito legal.

Saíram por portões que tanto eram velhos como pareciam necessitar de um maçarico por umas belas horas para serem transpostos. Depois havia outro obstáculo que foi empurrado, um que, de verdade, parecia a parede de uma caverna e, olhe só, eles saíram de um recesso raso na terra e chegaram ao Escalade. Levou um tempo para atravessarem a floresta, mas no instante em que a mansão pôde ser vista, ele começou a ficar tão excitado que o corpo se adiantou para a beira do banco e a mão procurou a maçaneta da porta.

O SUV mal tinha parado quando ele já estava abrindo a porta e saindo. Risadas emanaram da Irmandade quando eles saíram de modo mais civilizado, seguindo a liderança dele escada acima. No portal de entrada, ele o abriu e se postou no átrio, mostrando o rosto para a câmera de segurança.

Atrás dele, ele ouviu as vozes dos Irmãos...

Seus irmãos, agora. Não eram?

Seus irmãos tiravam sarro dele ao se aproximarem, e a porta interna foi aberta por Fritz.

Qhuinn quase derrubou o mordomo quando ele deu um passo para o lado. Muitos rostos sorrindo, as shellans da casa, a rainha, doggens por todos os lados... iAm, Trez, Rehv e Ehlena...

Ele procurava por cabelos ruivos, vasculhou a sala de jantar, depois olhou para a sala de bilhar. Onde ele est...

Qhuinn parou.

Do lado oposto da mesa de bilhar, no sofá diante da TV montada acima da lareira, Blay e Saxton estavam sentados lado a lado. Os rostos virados um para o outro, um par de gim e tônica nas mãos, os dois pareciam envolvidos numa conversa animada.

De repente, Blay começou a rir, inclinou a cabeça para trás...

E, nesse instante, olhou na direção de Qhuinn.

No mesmo momento, sua expressão endureceu.

– Parabéns!

O som da voz de Layla o confundiu, e ele se virou às cegas, a mente embaralhada de um jeito que não deveria estar: ele sabia o tempo inteiro que Saxton voltaria depois das férias.

– Estou tão feliz por você! – enquanto Layla o abraçava, ele passou os braços ao redor dela automaticamente.

– Obrigado – ele se afastou e passou as mãos pelos cabelos. – Então, como está se sentindo?

– Enjoada e maravilhosa!

Qhuinn se retraiu dentro da própria pele, tentando encontrar alegria pela gravidez.

– Fico feliz. Estou... muito feliz.


CAPÍTULO 73

Sola bateu contra o fogão ao levar o homem para dentro de sua casa. Em seguida, como parte da correção de curso, ela derrubou a cadeira em que a avó estivera sentada – mas, pelo menos, conseguiu reparar nisso segurando-a e sentando-se nela.

– Você também não me disse o seu nome – murmurou, ainda que nomes próprios fossem a última coisa em sua mente.

O homem se juntou a ela do lado oposto da mesa. Seu tamanho imenso e as roupas caras faziam com que tudo ali parecesse frágil, desde a tábua laminada que os separava até as cadeiras e a própria cozinha.

A casa inteira.

Ele esticou a mão por sobre a mesa. Naquela voz grave e carregada de um sotaque divino, ele disse:

– Sou Assail.

– Assail? – cautelosa, Sola esticou a mão, preparada para encontrá-lo no meio do caminho. – Nome diferente...

No instante em que o contato foi feito, um raio subiu pelo braço e terminou em seu coração, acelerando-o, fazendo-a corar.

– Não gosta? – ele sussurrou, como se conhecesse muito bem a reação dela.

Só que ele estava falando do nome, não? Sim, era isso.

– É... inesperado.

– Me diga o seu – ele deu o comando sem soltá-la. – Por favor.

Enquanto esperava, enquanto segurava a mão dela, enquanto respiravam juntos, ela percebeu que, às vezes, havia coisas que eram mais íntimas do que sexo.

– Marisol. Mas as pessoas me chamam de Sola.

Ele ronronou. Ronronou.

– Eu a chamarei de Marisol.

E não é que combinava? Deus, aquele sotaque... ele transformara aquilo pelo qual fora chamada a vida inteira num poema.

Sola puxou a mão da dele e a colocou sobre o colo. Mas os olhos continuaram cravados no homem: sua expressão era arrogante, e ela teve a impressão de que se tratava de um defeito inconsciente, que não se relacionava a ela. O cabelo parecia impossivelmente grosso, e, sem dúvida, devia ter recebido algum produto – nada meramente humano poderia manter aquela onda perfeita afastada da testa daquele modo. E o perfume? Esqueça. O que quer que fosse aquilo, ela estava ficando simplesmente embriagada só com o cheiro incrível.

Juntando a boa aparência, aquele corpo e a mente afiada? Ela seria capaz de apostar a casa que a vida dele era conduzida com base no lema “o mundo me pertence”.

– Então, fale-me desse seu visitante – ele pediu.

Enquanto aguardava, o queixo dele abaixou e ele a fitou por baixo das pálpebras.

Não era surpresa ele ter matado alguém.

Ela deu de ombros.

– Não tenho ideia de quem seja. A minha avó apenas me disse que um homem de cabelos escuros e olhos profundos... – ela fez uma careta, notando que as íris dele eram sempre de uma cor de luar, do tipo de coisa que parecia impossível na natureza. Lentes de contato? – Ela... Hum, ela não mencionou nenhum nome, mas ele deve ter sido educado, senão eu teria ouvido um belo sermão e muito mais. Ah, e ele conversou com ela em espanhol.

– Alguém poderia estar atrás de você?

Sola meneou a cabeça.

– Nunca menciono esta casa, jamais. A maioria das pessoas sequer sabe meu verdadeiro nome. Foi por isso que pensei que fosse você, quem mais... Quero dizer, ninguém mais veio aqui a não ser você.

– Não há ninguém em seu passado?

Expirando longamente, ela olhou pela cozinha; depois pegou os guardanapos e os rearranjou.

– Não sei...

Com a vida que ela levava? Podia ser qualquer pessoa.

– Você tem alarme de segurança aqui? – ele perguntou.

– Sim.

– Você tem que considerá-lo perigoso até que se prove o contrário.

– Concordo – quando o homem, isto é, Assail, colocou a mão dentro do casaco, ela balançou a cabeça. – Nada de charutos. Já disse que...

Ele fez um gesto exagerado ao retirar uma caneta dourada e mostrá-la. Depois, pegou um dos guardanapos que ela acabara de ajeitar e escreveu um número de sete algarismos.

– Você vai me ligar se ele voltar – ele passou o quadrado de papel pela mesa, mas manteve o indicador apoiado sobre os números. – E eu cuidarei disso.

Sola se levantou tão rápido, que a cadeira gemeu. Imediatamente, ela olhou para o teto. Quando nenhum som veio de cima, ela se lembrou de fazer menos barulho.

Caminhou até o fogão. Depois voltou. Foi até a porta de trás que dava para a varanda. Voltou novamente.

– Escute aqui, eu não preciso de ajuda. Agradeço...

Ao se virar para voltar para junto do fogão novamente, ele estava bem diante dela. Arfando, ela deu um pulo para trás – nem o ouvira se mexer...

A cadeira dele estava na mesma posição de quando ele esteve sentado.

Não como a dela, empurrada de lado.

– O que... – ela se calou, a mente rodopiando. Por certo ela não lhe perguntaria o que ele era...

Quando ele esticou a mão e amparou seu rosto, ela soube que teria dificuldades para dizer não para o que quer que ele sugerisse.

– Você vai me ligar – ele ordenou – e eu virei até você.

As palavras foram tão lentas que quase se deturparam, a voz grave... tão grave...

O orgulho formou um protesto em sua mente, mas sua boca se recusou a dizê-lo.

– Está bem – ela disse.

Agora ele sorria, os lábios se curvando para cima. Deus, os caninos dele eram bem afiados, e mais longos do que ela se lembrava.

– Marisol – ele ronronou. – Um lindo nome.

Enquanto ele começava a se inclinar sobre ela, a pressão sutil em sua mandíbula levantava-lhe o queixo. Ah, não, não, não, ela não podia estar fazendo aquilo. Não naquela casa. Não com um homem como aquele...

Que seja. Com um suspiro de rendição, ela fechou os olhos e levantou a boca para aceitar a dele...

– Sola! Sola, o que você está fazendo aí embaixo?!

Os dois ficaram imóveis e, no mesmo instante, Sola se viu com treze anos novamente.

– Nada! – respondeu alto.

– Quem está com você?

– Ninguém... É a televisão!

Três... Dois... Um...

– Isso não parece a TV!

– Vá – ela sussurrou ao empurrá-lo pelo peito largo. – Você tem que ir embora agora.

As pálpebras de Assail se abaixaram.

– Acho que quero conhecê-la.

– Não quer, não.

– Quero...

– Sola! Estou descendo!

– Vá – ela sibilou. – Por favor.

Assail passou o polegar por baixo do lábio inferior dela e se inclinou, falando diretamente ao seu ouvido:

– Tenho planos para retomar isto do ponto em que fomos interrompidos. Só para você saber.

Virando-se, ele se moveu com frustrante lentidão até a porta. E enquanto os chinelos da avó se aproximavam pela escada, ele ainda teve tempo de olhar para trás enquanto abria a porta.

O olhar ardente percorreu-lhe o corpo.

– Isso entre mim e você não acabou.

E logo ele se foi, graças ao bom Deus.

A avó fez a curva no segundo seguinte à tela da porta exterior voltar ao seu lugar.

– E então? – ela disse.

Sola olhou de relance pela janela além da mesa, certificando-se de que ainda estava escuro do lado de fora. Sim. Tudo bem.

– Viu? – disse ela, abrindo os braços para mostrar a cozinha vazia. – Não há ninguém aqui.

– A televisão não está ligada.

Por que, oh, por que sua avó não tinha a graciosidade de ficar de miolo mole como tantos outros anciões?

– Eu a desliguei porque ela estava incomodando a senhora.

– Ah – olhos cheios de suspeita vasculharam o cômodo.

Merda. Havia neve derretida no linóleo onde eles estiveram.

– Venha – disse Sola ao girar a senhora para o outro lado. – Chega de aventuras por uma noite. Vamos nos deitar.

– Estou de olho em você, Sola.

– Eu sei, vovó.

Enquanto subiam juntas, uma parte sua continuava intrigada com a pessoa que fora procurá-la e com o motivo da visita. E a outra metade? Bem, essa parte ainda estava na cozinha, prestes a beijar aquele homem.

Provavelmente foi muito melhor terem sido interrompidos.

Ela tinha a distinta impressão que seu protetor... também era um predador.


O telefonema que Xcor vinha aguardando chegou na hora mais oportuna. Ele acabara de perseguir e matar um assassino solitário debaixo das pontes do centro da cidade, e limpava sua adorada, o sangue negro na lâmina de sua foice saindo com facilidade enquanto ele passava um pedaço de camurça de cima a baixo.

Ele colocou sua fêmea de volta nas costas, e só depois pegou o celular. Ao responder, olhou para seus lutadores que se reuniram e conversavam sobre as lutas da noite no vento frio.

– Quem fala é Xcor, filho de Bloodletter?

Xcor cerrou os dentes, mas não se importou em corrigir a imprecisão. O nome de Bloodletter era de valia para a sua reputação.

– Sim. Quem é?

Houve uma longa pausa.

– Não sei se devo lhe dizer.

O tom era aristocrático e também lhe informava a identidade daquele que lhe telefonara.

– Você é associado de Elan.

Outra longa pausa e, pelos deuses, aquilo testava a sua paciência. Mas aquela era outra coisa que manteria para si.

– Sim, sou. Soube da novidade?

– Sobre?

Quando um terceiro momento de silêncio se fez, ele soube que aquilo demoraria um pouco. Assobiando para seus soldados, indicou que eles deveriam prosseguir para o arranha-céu deles, a alguns quarteirões dali.

Um momento depois, ele estava no telhado, as rajadas de vento tão mais fortes no ponto elevado de sua preferência. Uma vez que a ventania impedia a conversa, ele se refugiou no abrigo de algo mecânico.

– Novidade a respeito de quê? – ele instigou.

– Elan está morto.

Xcor expôs os dentes e sorriu.

– De fato.

– Não me parece surpreso.

– Não estou – Xcor revirou os olhos. – Ainda que esteja desolado.

O que era verdade: foi como perder uma arma útil. Ou, mais precisamente, uma chave de fenda. Mas essas coisas podem ser substituídas.

– Sabe quem foi o responsável? – o outro exigiu saber.

– Bem, acredito que você saiba, estou certo?

– Foi a Irmandade, claro.

Outro juízo falso, mas, novamente, Xcor achou melhor deixar de lado.

– Diga-me, está esperando que o ahvenge?

– Isso não me diz respeito – a fala afetada sugeria que o macho estava mais preocupado em não se deparar com o mesmo destino. – A família dele cuidará das remediações.

– Como de direito – quando nada mais foi dito, Xcor entendeu o que era esperado e necessário. – Posso lhe garantir duas coisas: a minha confidencialidade e a minha proteção. Deduzo que estivesse presente na reunião na casa de Elan no outono. Minha oposição ao Rei não mudou e estou deduzindo que este telefonema o coloque numa posição favorável a mim. Estou correto?

– Não busco poder político nem social.

Tolice.

– Claro que não.

– Estou... preocupado com o futuro da raça e Elan e eu concordávamos nisso. No entanto, eu não estava de acordo com a tática proposta. Homicídios são muito perigosos e, no fim, podem não resultar no que se deseja.

Au contraire, Xcor pensou. Uma bala na cabeça resolve muitas coisas...

– A lei é o meio para derrubar o Rei.

Xcor franziu o cenho.

– Não entendo.

– Com todo o respeito, a lei é mais forte que a espada. Parafraseando um ditado humano.

– As suas referências oblíquas são um desperdício de palavras comigo. Seja mais específico, se não se importar.

– As Leis Antigas suprem o poder que Wrath exerce. Elas explicam detalhadamente o domínio unilateral que ele tem sobre tudo o que diz respeito às nossas vidas e à nossa sociedade, concedendo-lhe rédeas soltas para que ele aja como quiser, sem ter que explicar nada a ninguém.

Motivo pelo qual Xcor desejava o posto, muito obrigado.

– Prossiga.

– Não existem restrições para o que ele pode fazer, que caminhos pode tomar... Na verdade, ele também pode mudar as Leis Antigas caso queira, e alterar a estrutura das nossas tradições e fundamentos.

– Estou bem ciente disso – consultou o relógio. Desde que não ficasse preso ali ao telefone pelas duas horas seguintes, haveria ainda muito tempo para lutar. – Talvez queira marcar um encontro para conversarmos amanhã à noite...

– Porém, existe um embargo.

Xcor ficou intrigado.

– Embargo?

– Ele deve ser capaz de procriar, e eu cito exatamente, “um herdeiro de sangue puro”.

– E como isso é relevante? Ele já está vinculado e, sem dúvida, no futuro...

– A shellan dele é mestiça.

Foi a vez de Xcor se calar – e o conselheiro de Elan se aproveitou desse silêncio.

– Sejamos bem francos um com o outro. Existe sangue humano na espécie. Ninguém pode dizer ser absolutamente de “sangue puro”. Há, porém, uma diferença vital entre um civil se misturando ao material genético humano e o Rei procriar um filho cuja mãe é mestiça... referido filho que herdará o trono após a sua morte.

Throe apareceu ao lado do motor do sistema de aquecimento e refrigeração.

– Tudo bem? – perguntou baixinho.

Xcor abafou o telefone com a mão.

– Leve os outros para as ruas. Estarei com vocês em seguida.

– Como preferir – Throe disse com uma breve mesura.


Enquanto o lutador se afastava, o aristocrata do outro lado continuava:

– Existe ansiedade entre os membros da classe dominante, como você bem sabe. E eu acredito que se alguém abordar essa questão, ela será muito mais eficiente em demover Wrath, filho de Wrath, do que qualquer atentado à sua vida. Ainda mais depois de ele ter feito a demonstração de poder na reunião do Conselho da noite passada.

De fato, muitos se apavoraram e se mostraram submissos em seguida, seus desejos subjugados pela força física, que foi bem férrea.

A mente de Xcor começou a repassar todas as possibilidades.

– Portanto, diga-me, cavalheiro, segundo seu parecer, quem deverá sucedê-lo, o senhor?

– Não – foi a resposta cortante. – Sou advogado e, como tal, valorizo a lógica acima de tudo. Neste clima de inquietação e guerra, somente um soldado poderia, e deveria, liderar a raça. Elan era um tolo com suas ambições, e você vinha tirando vantagem disso. Sei disso porque o observei na casa dele naquela noite durante o outono, você o colocou onde ele queria estar, mesmo ele acreditando que fosse o contrário. Quero mudanças, sim. E estou preparado para fazer isso acontecer. Porém, não tenho ilusões quanto à minha utilidade e não tenho interesse algum que o destino de Elan se torne o mesmo que o meu.

Xcor se voltou na direção do topo daquela montanha.

– Nenhum rei foi destronado dessa maneira.

– Nenhum rei jamais foi destronado.

Bela observação.

Enquanto ele fitava para o nordeste, onde uma estranha perturbação no cenário estava localizada, ele pensou no Rei com sua rainha... e na Escolhida grávida.

Houve um tempo em que ele preferiria o caminho mais sangrento, aquele que seria marcado com a satisfação de arrancar o trono de um moribundo Wrath. Mas aquela guerra de palavras era... mais segura. Para a sua fêmea.

A última coisa que ele queria era atacar o lugar em que ela comia, no qual ela dormia... onde seu estado era tratado.

Fechando os olhos, ele balançou a cabeça para si mesmo. Ah, como ele caíra... no entanto, ainda se ergueria, jurou.

– Como sugere que procedamos? – perguntou asperamente.

– Secretamente, a princípio. Preciso organizar os precedentes de modo que o “sangue puro” tenha sido mencionado em casos levados adiante para decisões. A vantagem é que existe discriminação contra os humanos há tempos, e ela era ainda pior no passado... quando era o pai de Wrath despachando proclamações e interpretando as leis. Essa será a chave. Quanto mais forte o precedente, mais bem-sucedido isto será.

Quanta ironia. A interpretação do próprio pai de Wrath seria a responsável pela derrocada do filho.

– O nosso problema será o próprio Rei. Ele tem que permanecer vivo... e não pode reconhecer a fraqueza inerente em seu reino para tentar consertá-la antes que possamos apresentar essa questão.

– Você enviará um e-mail para um associado meu com as passagens relevantes e depois se encontrará comigo.

– Isto levará alguns dias.

– Entendido. Mas espero que me ligue imediatamente.

Enquanto nomes eram trocados, e Xcor dava o endereço de e-mail de Throe, ele começou a sentir ânimo. E se aquele macho estivesse certo? O reinado de Wrath terminaria sem mais derramamento de sangue. E, então, Xcor estaria livre para determinar o futuro da raça: até onde ele sabia, Wrath não tinha parentes diretos, portanto, quando fosse deposto, ninguém reclamaria o trono. Ainda que isso não significasse que alguns poderiam se prontificar sabe-se lá de onde.

No entanto, ele saberia lidar com intrusos. E com o apoio do Conselho? Ele era capaz de apostar que seria um líder populista – desde que todos andassem na linha.

Wrath não era o único que poderia mudar as leis.

– Não perca tempo com isso – disse Xcor. – Você tem uma semana. Não mais do que isso.

A resposta que lhe foi dada foi gratificante:

– Agirei com a maior rapidez.

E ora se aquele não era um modo adorável de encerrar uma ligação.


CAPÍTULO 74

O túnel que ligava a mansão ao centro de treinamento era fresco, tranquilo, com luz suave.

Ao passar por ele, Qhuinn estava sozinho e contente por isso. Nada pior do que estar cercado por pessoas felizes quando você se sente morto por dentro.

Quando chegou à porta que dava para o fundo do armário do escritório, ele digitou um código, esperou até que a tranca abrisse, depois empurrou a porta para entrar. Uma passada rápida em meio a papéis e canetas, e por meio de outra porta, e ele dava a volta em uma mesa. Logo em seguida, estava no corredor diante da sala de levantamento de pesos, mas ele não estava em busca de se exercitar. Depois do que a Irmandade lhe fizera, ele se sentia duro e dolorido – especificamente nos braços, graças à força empregada para se sustentar agarrado àquelas cavilhas.

Caramba, as mãos ainda estavam dormentes e, quando as flexionou, soube o que era artrite pela primeira vez na vida.

Seguindo em frente, parou novamente ao chegar à área da clínica. Quando foi ajeitar as roupas, percebeu que ainda vestia somente o manto.

Não voltaria para se trocar, isso era certo.

Batendo à porta da sala de recuperação, ele chamou:

– Luchas? Está acordado?

– Pode entrar – foi a resposta rouca.

Ele teve que se preparar antes de entrar. E ficou contente por ter feito isso.

Deitado na cama com a cabeceira erguida, Luchas ainda parecia estar à beira da extinção. O rosto do qual Qhuinn se lembrava como sendo inteligente e jovem estava marcado e austero. O corpo, dolorosamente magro. E aquelas mãos...

Jesus Cristo, as mãos...

E ele achava que as suas doíam um pouco?

Pigarreou antes de falar:

– Oi.

– Olá.

– Então... hum... Como você está?

Que pergunta... O cara estava diante de semanas de recuperação na cama, e depois meses de fisioterapia – e teria sorte se um dia voltasse a segurar uma caneta.

Luchas fez uma careta ao tentar dar de ombros.

– Estou surpreso por você ter vindo.

– Bem, você é o meu... – Qhuinn se deteve. Na verdade, o cara não era mais um parente seu. – Quero dizer...

Luchas fechou os olhos.

– Sempre fui e sempre serei sangue do seu sangue. Nenhum pedaço de papel pode mudar isso.

Os olhos de Qhuinn pousaram para a mão com o anel de sinete.

– Acho que nosso pai discordaria disso.

– Ele está morto. Portanto, a opinião dele já não é mais relevante.

Qhuinn piscou.

Quando ele não disse nada, Luchas abriu os olhos.

– Você parece surpreso.

– Sem querer ofender, mas jamais pensei ouvir o que acaba de sair dos seus lábios.

O macho indicou o corpo alquebrado.

– Eu mudei.

Qhuinn se esticou para pegar uma cadeira; enquanto se acomodava, esfregou o rosto. Fora até ali porque visitar seu antes supostamente irmão morto era a única desculpa remotamente aceitável para sair de uma festa em sua homenagem.

E passar a noite vendo Blay e Saxton juntos? Isso não iria acontecer.

Só que agora que estava ali, ele não se achava capaz de sustentar qualquer tipo de conversa.

– O que aconteceu com a casa? – perguntou Luchas.

– Hum... nada. Quero dizer, depois... do que aconteceu lá, não a reivindicaram, e eu não tinha direito a ela. Quando ela passou para Wrath, ele a devolveu para mim, mas veja, ela é sua. Nunca entrei lá desde que fui expulso.

– Eu não a quero.

Ok, isso era uma surpresa. Enquanto crescia, seu irmão falava sem parar de tudo o que queria conquistar quando ficasse mais velho: a educação, a proeminência social, assumir do ponto em que o pai deixaria tudo.

Ele renegando aquilo era como alguém recusar um trono: inimaginável.

– Você já foi torturado? – Luchas murmurou.

A infância dele lhe veio à mente. Depois, a Guarda de Honra. Mas de jeito nenhum ele mencionaria nada daquilo.

– Já levei umas surras, sim.

– Aposto que sim. O que acontece depois?

– Como assim?

– Como você volta ao normal?

Qhuinn flexionou as mãos doloridas, olhando para os dedos perfeitos apesar de todas as dores que sentia. Seu irmão já não conseguiria mais contar até dez. Recuperar-se era uma coisa, mas regeneração era algo totalmente diferente.

– Não existe mais normalidade – ele se ouviu dizer. – Você... meio que... só segue adiante, porque isso é tudo o que lhe resta. A parte mais difícil é ficar perto das pessoas... É como se elas estivessem em outra frequência, mas só você sabe disso. Elas falam de suas vidas e o que há de errado com elas, e você... as deixa falar. É uma linguagem totalmente diferente, e você tem que se lembrar de que só pode lhes responder nesse idioma. É bem difícil se relacionar.

– É, é exatamente isso – Luchas disse devagar. – Você tem razão.

Qhuinn esfregou o rosto de novo.


– Nunca esperei ter nada em comum com você.

Mas eles tinham. E quando Luchas o encarou, aqueles olhos cinza perfeitamente combinados encontraram-se com os ferrados do irmão, e a conexão estava ali presente. Os dois atravessaram o inferno, e aquilo era mais poderoso do que o DNA que partilhavam.

Era tão estranho.

E engraçado; supôs que aquela parecia a noite para ele encontrar uma família em todas as partes.

Exceto onde mais queria.

Enquanto o silêncio se estendia, com nada além dos bipes das máquinas de monitoramento ao lado da cama para romper a quietude, Qhuinn ficou ali por um bom tempo. Ele e o irmão não conversaram muito, e estava tudo bem. Era aquilo o que ele queria. Ele não estava pronto para falar de Layla e do bebê deles, e ele deduzia que Luchas não lhe perguntar a respeito significava alguma coisa. E ele, certamente, não abordaria o seu assunto com Blay.

No entanto, era agradável estar ali sentado com o irmão. Havia algo a respeito das pessoas que cresciam juntas, aquelas com quem você partilhara a infância, as pessoas das quais você não se lembra de um tempo em que não as conhecia. Mesmo que o passado fosse somente uma complicação, conforme envelhece você apenas se sente contente pelos filhos da puta ainda habitarem o seu planeta.

Isso lhe dá a ilusão de que a vida não era tão frágil quanto na realidade é – e, de vez em quando, isso é a única coisa que o faz atravessar as noites.

– É melhor eu ir para você poder descansar – disse, esfregando os joelhos para acordar as pernas.

Luchas virou a cabeça no travesseiro hospitalar.

– Vestido estranho para você, não?

Qhuinn olhou para o manto negro.

– Ah, este trapo velho? Foi a primeira coisa que vi para vestir.

– Parece cerimonial.

– Precisa de alguma coisa? – Qhuinn se levantou. – Comida?

– Estou bem, obrigado.

– Bem, avise se precisar de algo, ok?

– Você é um rapaz decente, Qhuinn, sabia?

O coração de Qhuinn parou e depois bateu forte. Aquela era a frase que o pai sempre usava para descrever cavalheiros... era como um A+ no quesito elogio, o máximo de todos, o equivalente a um abraço de urso e um cumprimento com a palma erguida para um cara normal.

– Obrigado, cara – disse ele, rouco. – Você também é.

– Como pode dizer isso? – Luchas pigarreou. – Como, em nome da Virgem Escriba, pode dizer isso?

Qhuinn exalou fundo.

– Quer saber? Vou te contar como isso é possível. Você era o favorito. Eu, uma maldição. Estávamos em polos opostos na escala em nossa casa. Mas nenhum de nós teve escolha. Você não era mais livre do que eu. Você não teve escolha a respeito do seu futuro. Ele foi determinado no seu nascimento, e de certa forma, os meus olhos... eles foram o meu passaporte para sair da cadeia, porque significava que ele não se importava comigo. Ele acabou comigo? Sim, mas pelo menos eu pude decidir o que queria fazer e para onde queria ir. Você... nunca teve essa possibilidade. Você não passava de uma equação matemática já resolvida quando foi concebido, com todas as respostas predeterminadas.

Luchas fechou os olhos novamente e estremeceu.

– Eu fico lembrando tudo. Todos aqueles anos, desde a minha primeira lembrança... até a última coisa que eu vi naquela noite quando... – ele tossiu um pouco, como se seu peito doesse, ou como se o ritmo do seu coração tivesse vacilado um pouco. – Eu o odiava. Sabia disso?

– Não. Mas isso não me surpreende.

– Não quero voltar para aquela casa.

– Então não precisa. Mas se quiser... eu vou com você.

Luchas voltou a olhar para ele.

– Verdade?

Qhuinn balançou a cabeça. Mesmo não estando com pressa alguma de andar naqueles cômodos e dançar com os fantasmas do passado, ele iria lá se Luchas quisesse.

Dois sobreviventes de volta à cena dos crimes que os definiam.

– Sim, verdade.

Luchas deu um sorriso breve, a expressão em nada parecida com aquela que ele costumava ter. E isso estava ok. Qhuinn preferia essa àquela. Era honesta. Frágil, porém honesta.

– Vejo você em breve – disse Qhuinn.

– Isso seria... muito legal.

Virando-se, Qhuinn empurrou a porta e...

Blay estava à sua espera no corredor, fumando um cigarro enquanto estava sentado no chão.

Enquanto Qhuinn saía pela porta, Blay se pôs de pé e esmagou o Dunhill no copo em que estivera bebendo. Ele não sabia muito bem como o lutador estaria, mas, decerto, não assim: tão tenso e infeliz, apesar da incrível honra que lhe fora concedida. Pensando bem, passar um tempo ao lado do leito hospitalar do irmão não pode ser um evento muito feliz.

E Blay não era estúpido. Saxton estava de volta à casa.

– Pensei que o encontraria aqui – disse, quando o macho nem mesmo lhe disse um oi.

Na verdade, os olhos azul e verde de Qhuinn se ocupavam com o corredor, fitando para tudo quanto é lado, exceto para ele.

– Então... como está o seu irmão? – Blay o instigou a falar.

– Vivo.

Pelo visto aquilo era a única coisa que poderiam desejar por enquanto.

E, ao que tudo levava a crer, essa era a única coisa que Qhuinn estava disposto a dizer. Talvez ele não devesse ter ido até lá.

– Eu... hum... queria lhe desejar parabéns.

– Obrigado.

Ok, Qhuinn ainda não estava olhando para ele. Em vez disso, o cara estava concentrado na direção do escritório, como se, em sua mente, ele já estivesse caminhando para lá e fazendo bom uso daquela passagem no armário cheio de suprimentos de papel do escritório...

O som de Qhuinn estalando as juntas dos dedos era tão alto quanto tiros. Depois ele flexionou as mãos, esticando os dedos, como se eles estivessem doendo.

– Isso é histórico – Blay foi pegar mais um cigarro, mas se conteve. – Uma verdadeira primeira vez.

– Tem havido muito disso por aqui – Qhuinn disse com uma ponta de irritação.

– O que isso quer dizer?

– Nada. Não é nada importante.

Cristo, pensou Blay, ele não deveria fazer aquilo.

– Pode olhar para mim? Isto é, você vai morrer se olhar para mim?

Aqueles olhos descombinados se voltaram.

– Ora, mas eu vi você, pode ter certeza. Acho que o seu macho está em casa. Vai contar para ele que andou me fodendo enquanto ele esteve fora? Ou vai manter esse segredinho sujo? É, pssssiu, não diga nada ao meu primo.

Blay cerrou os dentes.

– Seu santarrão filho da puta.

– Desculpe, mas não sou eu quem tem namorado...

– Vai mesmo ficar aqui fingindo que foi muito franco ao nosso respeito? Como quando Vishous passou por aquela porta – ele apontou o dedo para o outro lado do corredor –, você não pulou como se o seu traseiro estivesse pegando fogo? Quer fingir que esteve todo orgulhoso por estar transando com um cara?

Qhuinn pareceu momentaneamente surpreso.

– Acha que foi por isso? E não, hum, deixe-me pensar, por tentar respeitar o fato de que você estava traindo o amor da sua vida!

Àquela altura, os dois estavam com os quadris empinados, as vozes se elevando e sendo transportadas pelo corredor.

– Ah, mas que idiotice! – Blay cortou o ar com a mão. – Isso é uma absoluta cretinice! Veja bem, esse sempre foi o seu problema. Você nunca quis sair do armário...

– Sair do armário? Por que, acha que sou gay?

– Você transa com homens! O que acha que isso significa, porra?

– Esse é você... Você transa com caras. Você não gosta de mulheres e de fêmeas...

– Você nunca foi capaz de aceitar quem você é – Blay gritou – porque tem medo do que as pessoas vão pensar! O grande iconoclasta, o senhor Piercing, ferrado pela família! A verdade é que você é um covarde e sempre foi!

A expressão de Qhuinn era de absoluta fúria, a ponto de Blay estar pronto para ser socado – e, inferno, ele queria levar um soco só para poder ter o prazer de esmurrar de volta.

– Vamos deixar as coisas bem claras – Qhuinn bradou. – Você fica com a sua merda do seu lado do corredor. E isso inclui o meu primo e o fato de você o ter traído.

Blay levou as mãos para o alto e teve que se conter antes de sair da própria pele.


– Não suporto mais isso. Não consigo mais fazer isso com você. Parece que passei a vida inteira lidando com as suas merdas...

– Se eu sou gay, por que você é o único macho com quem estive?

Blay parou no ato e só ficou olhando para o cara, com as imagens de todos aqueles homens nos banheiros se infiltrando em sua mente. Pelo amor do que existia de mais sagrado, ele se lembrava de cada um deles, mesmo que, sem dúvida, Qhuinn não se lembrasse. Dos seus rostos. Dos seus corpos. Dos seus orgasmos.

Todos recebendo o que ele desejara tão desesperadamente, e lhe fora negado.

– Como se atreve? – perguntou. – Mas que porra, como se atreve? Ou acha que eu não sei da sua história sexual? Tive que testemunhá-la por muito mais tempo do que eu queria. E, francamente, ela não é tão interessante assim... e nem você é.

Enquanto Qhuinn empalidecia, Blay começou a balançar a cabeça.

– Pra mim já chega. Não aguento mais... O fato de você não aceitar quem você é vai acabar com o que resta da sua vida, mas isso é problema seu, não meu.

Qhuinn praguejou.

– Nunca pensei que eu fosse dizer isso... mas você não me conhece.

– Eu não conheço você? Acho que o problema é outro, idiota. Você não se conhece.

E com isso, ele esperou algum tipo de explosão, alguma emoção teatral, absurda, excessiva emanando do cara.

Nada.

Qhuinn apenas aprumou os ombros, empinou o queixo e falou de modo controlado:

– Passei o último ano tentando descobrir quem sou, parando de mentir, tentando...

– Então você desperdiçou 365 noites. Mas, como todo o resto a esse repeito, o problema é seu.

Com um xingamento cruel, Blay se virou e começou a se afastar. E não olhou para trás. Não havia motivo. Não havia ninguém no corredor para quem ele quisesse olhar.

Caraca, se a definição de insanidade era fazer a mesma coisa repetidamente à espera de um resultado diferente, então ele perdera o juízo há muito tempo. Para a sua sanidade mental, seu bem-estar emocional e sua vida, ele precisava deixar tudo isso...

Qhuinn o girou, segurando-o pelo braço, o seu rosto furioso bem diante do dele.

– Não me deixe falando sozinho assim.

Blay sentiu uma onda de exaustão assolá-lo.

– Por quê? Porque você tem mais uma coisa para me dizer? Alguma ideia brilhante que acabou de ter a respeito de si mesmo que vai fazer todas as peças do quebra-cabeça se encaixarem? Alguma confissão que vá estabilizar o navio e fazer tudo ficar maravilhoso ao pôr do sol na praia? Você não tem esse tipo de vocabulário, e eu já não sou mais ingênuo.

– Quero que você se lembre de uma coisa – Qhuinn grunhiu. – Tentei fazer com que as coisas entre nós dessem certo. Eu nos dei uma chance.

Blay ficou de queixo caído.

– Você nos deu uma chance? Está de brincadeira comigo? Acha que fazer sexo comigo para se vingar do seu primo é um relacionamento? Acha que algumas sessões secretas consistem num caso amoroso?

– Era tudo de que eu dispunha – aqueles olhos descombinados perscrutaram o rosto de Blay. – Eu não estou dizendo que foi um tremendo de um romance, mas eu apareci porque eu queria estar com você do modo que fosse possível.

– Bem, parabéns. E agora que nós dois experimentamos, posso lhe garantir, com certeza, que não servimos um para o outro – e enquanto Qhuinn começava a discutir, Blay enfiou a mão no cabelo e quis arrancá-lo. – Preste atenção, se isso o ajudar a dormir durante o dia, e eu custo a acreditar que isso vá incomodá-lo por mais do que uma noite, diga a si mesmo que fez o que era possível, mas que não deu certo. Eu? Eu prefiro a realidade. O que aconteceu entre mim e você é exatamente a mesma coisa que você fez com todos aqueles aleatórios com quem esteve. Sexo... apenas sexo. E agora já chega.

Os olhos de Qhuinn ardiam.

– Você não me entendeu.

– Então você além de estar em negação está se iludindo.

– As pessoas mudam. Não sou mais assim, definitivamente não com você.

Deus... era um triste alívio sentir nada quando aquelas palavras se dirigiram a ele.

– Sabe... houve um tempo em que eu teria caído de joelhos na sua frente ao ouvir algo assim – murmurou. – Mas agora... tudo o que eu vejo é você pulando daquele chão no segundo em que alguém abriu a porta e nos viu juntos. Você diz que essa reação foi por causa de Saxton e do meu relacionamento? Tudo bem. Mas, estou quase certo... não, estou totalmente certo de que, se você olhar a fundo, vai descobrir que tem muito mais a ver com você do que com o seu primo. Você se odeia há tantos anos, que não acho que seja possível amar alguém ou sequer entender quem você é. Espero que, um dia, você descubra isso, mas eu não vou fazer parte disso; isso eu prometo.

Qhuinn meneou a cabeça, o franzir em sua testa tão profundo que era como se uma fenda tivesse se aberto entre as sobrancelhas.

– Acho que você já me decifrou direitinho, não?

– Não é tão difícil assim.

– Só para constar, eu estava apaixonado por você.

– Por três dias, Qhuinn. Três dias. Durante os quais houve drama suficiente para tornar Guerra e Paz um livro de comédia. Isso não é amor. É um sexo bom como distração para o fato de que a vida é uma merda.

– Eu não sou gay.

– Tudo bem. É bi. Bicurioso. Está experimentando. Tanto faz. Não me importo. Não mesmo. Eu sei quem eu sou e é assim que consigo viver a minha vida. O seu esquema é completamente diferente... e boa sorte com isso. Obviamente, está funcionando superbem para você.

Dito isso, ele se afastou novamente.

E, dessa vez... Qhuinn o deixou ir.

 


                                          CONTINUA