Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AMANTE FINALMENTE
AMANTE FINALMENTE

 

 

 

                                                            Irmandade da "Adaga Negra"                                                                 

 

 

 

 

CAPÍTULO 54

Somando-se tudo, o encontro até que não foi tão ruim.

Enquanto Sola se levantava para vestir o casaco, Mark se aproximou por trás e a ajudou a ajeitar a lã nos ombros.

O modo como as mãos se demoraram sugeria que ele estava mais do que aberto a que aquele fosse o término do jantar, mas também apenas o início do resto da noite. No entanto, ele não se mostrou insistente. Deu um passo para trás e sorriu, indicando o caminho da saída com um gesto galante.

Movendo-se à frente dele, pareceu algum tipo de crime contra sua saúde mental que ele não conseguisse fazer seu sangue ferver... como aquele homem extremamente agressivo e dominante o fizera na noite anterior.

Ela precisaria ter uma conversinha com a sua libido. Ou talvez lhe desse uma surra...

Quem sabe daquele outro cara, uma parte sua sugeriu.

– Não – murmurou.

– Desculpe, o que disse?

Sola balançou a cabeça.

– Eu só estava falando comigo mesma.

Depois de abrirem caminho pela multidão, chegaram à porta do restaurante e, puxa, como era bom respirar ar fresco.

– Então... – disse Mark, enfiando as mãos nos bolsos dos jeans, fazendo com que seu torso bem desenvolvido ficasse ainda mais saliente... E ainda assim não conseguindo chegar perto do tamanho do...

Pare com isso.

– Obrigada pelo jantar, você não precisava ter pagado.

– Ora, este foi um encontro. Foi você quem disse – ele sorriu novamente. – E eu sou um cara do tipo tradicional.

Vá em frente, disse ela a si mesma. Pergunte a ele se pode ir até a casa dele.

Afinal, nenhum tipo de ação poderia acontecer na sua casa. Jamais. Não com sua avó no andar de cima – a surdez da mulher era altamente seletiva.

Apenas vá em frente.

Foi para isso que você o chamou...

– Tenho uma reunião bem cedo amanhã – ela deixou escapar. – Por isso, tenho que ir. Mas, obrigada mesmo... e vamos repetir um dia.

Para dar algum crédito a Mark, ele encobriu qualquer desapontamento que pudesse estar sentido com outro daqueles sorrisos campeões.

– É uma boa ideia. Foi bem legal.

– Eu estacionei logo ali – ela apontou o polegar para trás. – Então...

– Eu a acompanho até o carro.

– Obrigada.

Ficaram em silêncio enquanto as botas quebravam o sal que fora colocado por cima do gelo.

– Está uma noite agradável.

– É – ela concordou. – Está mesmo.

Por algum motivo, os sentidos da mulher começaram a lançar um alerta, e seus olhos vasculharam a escuridão do lado de fora do estacionamento iluminado.

Pensou que talvez fosse Benloise indo atrás dela. Sem dúvida, ele já devia ter percebido que alguém invadira sua casa e seu cofre, e também já devia ter notado a leve mudança na posição da estátua. Contudo, seria difícil saber se ele retaliaria. Apesar do ramo de negócio em que se envolvera, ele devia ter ciência de que o que fizera ao cancelar sua missão e suspender o seu pagamento fora errado.

Certamente, ele entenderia a mensagem.

Além disso, ela poderia ter levado tudo o que ele havia guardado.

Aproximando-se do Audi, ela desarmou o alarme. Em seguida, virou-se e levantou o olhar.

– Ligo para você?

– Sim, por favor – disse Mark.

Houve uma longa pausa. Em seguida, ela levantou a mão e a escorregou para trás do pescoço dele, e atraiu a boca dele para a sua. Mark aceitou o convite de pronto, mas não de modo dominador e insistente: enquanto ela pendia a cabeça para o lado, ele fez o mesmo, e seus lábios se partiram, resvalando-se de leve, e depois com um pouco mais de pressão. Ele não a esmagou contra o seu corpo, nem a encurralou contra o carro... não existiu a sensação de descontrole.

Tampouco de uma grande paixão.

Ela interrompeu o contato.

– Vejo você em breve.

Mark exalou profundamente, como se tivesse se excitado.

– Hum... Ok, espero que sim. E não só na academia.

Ele levantou a mão, deu um último sorriso, depois caminhou para a sua caminhonete.

Com uma imprecação leve, Sola foi para trás do volante, fechou a porta e deixou a cabeça cair contra o encosto. Pelo espelho retrovisor, ela observou as luzes traseiras se acenderem, ele dar meia-volta e sair do estacionamento.

Abaixando as pálpebras, ela não visualizou o sorriso radiante de Mark, nem imaginou os lábios dele contra os seus, ou as mãos dele percorrendo seu corpo.

Ela tinha voltado àquele chalé para espionar, testemunhando um par de olhos sensuais e ligeiramente maldosos olhando para ela por cima dos seios expostos daquela outra mulher.

– Ai, pelo amor de Deus...

Tentando se livrar dessa lembrança, ela temeu que, naquele caso, sua necessidade por, digamos, chocolate não seria facilmente saciada por um refrigerante diet. Ou uma bolacha saudável da Snackwell. Nem mesmo por um único chocolate Kiss da Hershey’s.

Se continuasse assim, ela teria que derreter uma caixa de trufas da Lindt e colocar num acesso direto em sua veia.

Colocando o pé no freio, ela apertou um botão no painel e ouviu o ronco do motor. Quando as luzes se acenderam...

Sola se recostou no banco assustada, emitindo um grito agudo.


Quando Qhuinn voltou para a mansão com os outros, ele se afastou tão logo passaram pela porta e entraram no átrio principal. Movendo-se num trote rápido, subiu as escadas e seguiu direto para o quarto de Layla. De acordo com as mensagens, ela decidira sair da clínica no fim das contas, e ele estava ansioso em descobrir como ela estava se sentindo.

Batendo à porta, ele começou a rezar. De novo.

Nada como uma gravidez para tornar um agnóstico religioso.

– Entre.

Ao som da voz dela, ele se preparou e entrou.

– Como está se sentindo?

Layla levantou o olhar da revista Us Weekly que lia deitada na cama.

– Olá!

Qhuinn se retraiu ante a alegria dela.

– Hum... olá?

Olhando ao redor, ele viu revistas Vogue, People e Vanity Fair no cobertor em volta dela e, à sua frente, a TV estava ligada e passava um comercial sobre desodorante seguido de um de pasta de dente Colgate. Havia latas de refrigerante e bolachas de água e sal na mesinha de cabeceira e, na outra mesinha, do lado oposto, uma embalagem vazia de Häagen-Dazs e algumas colheres sobre uma travessa de prata.

– Estou me sentindo bem enjoada – disse Layla com um sorriso. Como se aquilo fosse bom.

E ele deduziu que fosse.

– Hum... algum sinal de... você sabe.

– Nem um pouco. Nada mesmo. Também não estou mais vomitando. Só tenho que me lembrar de comer um pouco por vez. Se como demais, me sinto mal, e o mesmo acontece se fico muito tempo sem colocar alguma coisa aqui dentro.

Qhuinn se recostou no batente, as pernas ficando literalmente moles de alívio.

– Isso é... incrível.

– Quer se sentar? – era como se ele parecesse tão pálido quanto se sentia.

– Não, estou bem. Eu só... só estava muito preocupado com você.

– Bem, como você pode ver – ela indicou o próprio corpo – só estou fazendo o que tenho que fazer, graças à Virgem Escriba.

Enquanto Layla lhe sorria, ele realmente gostou da aparência dela, mas não de maneira sexual, nada disso. Era só que... ela parecia calma, relaxada e feliz, com o cabelo solto sobre os ombros, uma boa cor no rosto, as mãos e os olhos estáveis. Na verdade, ela parecia... muito saudável de repente, a palidez em sua aparência era perceptível apenas pela sua ausência.

– Então, suponho que tenha tido visitas – comentou, indicando as revistas e o pote vazio de sorvete.

– Ah, todos vieram. Beth acabou ficando mais tempo. Ela se deitou ao meu lado, e não falamos sobre nada em especial. Apenas lemos e olhamos fotografias e assistimos a uma maratona de Pesca Mortal. Adoro esse programa. É sobre aqueles humanos que saem em barcos em mar aberto, sabe? É muito excitante. Fez com que eu me sentisse bem quentinha em terra firme.

Qhuinn esfregou o rosto e rezou para que sua sensação de equilíbrio retornasse rapidamente: no fim, suas glândulas adrenais ainda tinham dificuldade para acompanhar a realidade, a ideia de que não havia mais nenhum drama, nenhuma emergência, nada horrendo ao qual reagir, ou com que lidar.

– Estou contente que as pessoas estejam vindo visitar você – murmurou, sentindo como se devesse dizer alguma coisa.

– Ah, elas estão vindo... – Layla desviou o olhar, uma expressão estranha contraindo suas feições –, muitas delas.

Qhuinn franziu o cenho.

– Mas nada estranho, não é?

Ele não conseguia imaginar que ninguém ali na casa mostrasse outra coisa que não apoio, mas ele tinha de perguntar.

– Não... nada estranho.

– O que foi? – enquanto Layla mexia na capa da revista que tinha no colo, o rosto de alguma morena de olhar vago se distorceu, depois voltou ao normal, se distorceu, voltou ao normal. – Layla. Conte para mim.

Para que ele pudesse estabelecer alguns limites, caso fosse necessário.

Layla afastou o cabelo para trás.

– Você vai pensar que eu sou louca, sei lá...

Ele se aproximou e se sentou ao lado dela.

– Ok, preste atenção. Não sei como dizer isso do modo certo, por isso só vou deixar as palavras saírem. Você e eu? Nós vamos enfrentar muita... sabe, muitas baboseiras pessoais com relação a... – oh, Deus, como ele desejava que ela mantivesse aquela gravidez. – Nós bem que podemos começar a ser completamente honestos um com o outro agora. O que foi? Não vou julgar. Depois de tudo o que aprontei na minha vida? Não vou julgar ninguém a respeito de nada.

Layla respirou fundo.

– Está bem... bem, Payne veio me ver na noite passada.

Ele franziu o cenho de novo.

– E?

– Bem, ela disse que talvez pudesse fazer alguma coisa quanto à gestação. Ela não sabia se daria certo, mas não pensava que pudesse me fazer mal.

O peito de Qhuinn se contraiu, uma punhalada de medo fez seu coração acelerar. V. e Payne tinham coisas neles que não eram deste mundo. E isso era legal. Mas não perto do seu bebê – pelo amor de Deus, a mão de V. era assassina...

– Ela esticou a mão e a pousou no meu ventre, bem onde o bebê está...

Uma sensação como se o toalete interior de Qhuinn tivesse dado a descarga de todo o seu sangue para fora da sua cabeça o assolou.

– Oh, Deus...

– Não, não – Layla o segurou. – Não foi ruim. Foi... agradável, na verdade. Eu estava... banhada em luz... Ela fluía de mim, me fortalecendo, me curando. A luz se concentrou em meu abdômen, mas se estendeu para além disso. Depois, porém, fiquei muito preocupada com ela. Ela caiu no chão ao lado da cama... – Layla apontou para baixo. – Mas eu perdi a consciência em seguida. Devo ter dormido por muito tempo. E depois, quando acordei? Foi quando me senti... diferente. No começo pensei que fosse porque o sangramento tinha parado... porque aquilo tinha... acabado. Saí correndo e encontrei Blay, e ele me levou até a clínica. Foi aí que você chegou e a doutora Jane nos contou que... – a mão elegante de Layla tocou o abdômen e ficou ali. – Foi aí que ela nos contou que o nosso bebê ainda estava conosco...

A voz dela se partiu nesse momento, e ela piscou rápido.

– Então, veja bem, acho que ela salvou a nossa gravidez.

Depois de um longo momento de choque, Qhuinn suspirou:

– Ai, caralho...


De volta ao estacionamento do restaurante, Assail pairava diante do capô do Audi de sua ladra, parado bem diante da luz dos faróis.

Bem como fizera na noite anterior, fixou o olhar no dela mais por instinto que por visão.

E, enquanto permanecia no frio, ele estava fervendo de raiva e de algo mais: enquanto o saco de excremento em duas pernas a acompanhara até o carro e teve a insanidade de beijá-la, Assail se viu confrontado por duas escolhas que eram rastrear o homem noite afora e seguir adiante com seu plano original de dilacerar-lhe a garganta, ou esperar até que o humano se fosse e...

Algo muito profundo dentro dele o fez decidir: ele se sentia incapaz de deixá-la.

Sua ladra abaixou a janela e o cheiro da excitação o deixou duro.

E também o fez sorrir. Era a primeira vez a noite inteira que ele percebia esse cheiro, e isso abrandou seu humor como nada mais poderia.

Bem, a não ser talvez arrancar a pele daquele homem ainda vivo.

– O que você quer? – ela rosnou.

Hum, uma excelente pergunta, não?

Ele se moveu para a lateral do carro.

– Você se divertiu?

– Como é?

– Acredito que tenha ouvido a pergunta.

Ela escancarou a porta do motorista e saiu do carro.

– Como ousa esperar qualquer tipo de explicação a respeito de qualquer coisa...

Ele mudou o peso em sua posição, inclinando-se na direção dela.

– Posso lembrá-la de que você invadiu a minha privacidade antes...

– Eu não pulei na frente do seu carro e...

– Gostou do que viu ontem à noite? – ele a calou. E quando o silêncio persistiu, sorriu um pouco. – Então, admite que esteve espionando.

– Você sabia muito bem que eu estava – ela retrucou.

– Então, responda à pergunta. Gostou do que viu? – ele perguntou numa voz que pareceu rouca até mesmo para os próprios ouvidos.

Ah, sim, ele pensou ao inalar profundamente. Ela gostou.

– Não importa – ele ronronou. – Você não precisa expressar isso em palavras. Eu já sei a resposta...

Ela o esbofeteou com tanta força e tão rápido que a cabeça dele virou de lado de verdade.

O primeiro instinto dele foi expor as presas e mordê-la, castigá-la, para se excitar, porque não havia melhor tempero para o prazer do que um pouco de dor. Ou muita.

Ele endireitou a cabeça e abaixou os olhos.

– Isso foi bom. Quer tentar de novo?

Quando um novo vigor emanou dela, ele riu com gosto e pensou, sim, essa reação dela era o que garantiria que aquele humano iria continuar vivo. Ou pelo menos morrer pelas mãos de outra pessoa.

Ela o desejava. E a nenhum outro.

Assail se aproximou ainda mais, até que os lábios parassem bem ao lado do ouvido dela.

– O que fez quando foi para casa? Ou não conseguiu esperar tanto tempo?

Ela, deliberadamente, deu um passo para trás.

– Quer saber? Pois muito bem. Troquei a caixa de areia do gato, preparei dois ovos mexidos para mim e uma bela torrada de canela, depois fui para a cama.

Ele, deliberadamente, deu um passo à frente.

– E o que fez quando se viu entre os lençóis?

Quando a essência dela o atingiu novamente, ele voltou a posicionar a boca onde ela esteve antes... perto, ah, tão perto.

– Acho que sei o que você fez. Mas quero que me conte.

– Vá se ferrar...

– Pensou no que viu? – quando uma rajada de vento soprou os cabelos dela para os olhos, ele os ajeitou. – Imaginou que era com você que eu estava transando?

A respiração dela começou a sair com mais força de dentro do peito, e – Santa Virgem do Fade – isso o fez querer tomá-la.

– Por quanto tempo você ficou? Até a fêmea gozar... ou eu?

As mãos dela o empurraram.

– Foda-se.

Num movimento rápido, ela passou pelo corpo dele e voltou a entrar no carro, batendo a porta.

Ele se moveu com a mesma rapidez.

Aparecendo em meio à janela aberta, ele virou a cabeça dela e a beijou com força, a boca assumindo o comando, a urgência de apagar qualquer traço daquele humano fazendo seu sexo latejar.

Ela retribuiu o beijo.

Com a mesma força.

Como os ombros dele eram grandes demais para caberem na janela, quis arrancar o metal. No entanto, teve que ficar onde estava e isso o tornou mais agressivo, o sangue rugindo em suas veias, o corpo se retesando enquanto a língua a invadia, a mão sorrateira indo para trás da cabeça dela, enterrando-se em seu cabelo.

Ela estava maleável e doce, e quente como o inferno.

A ponto de ele ter que se afastar para poder respirar ou correr o risco de desmaiar.

Quando se separaram, ele a encarou. Os dois arfavam, e quando a excitação dela permeou o ar, ele quis se enterrar nela.

Para marcá-la...

O som do telefone tocando foi um exemplo da coisa errada acontecendo no momento errado: o toque em seu casaco fez com que ela voltasse à realidade, os olhos se arregalando enquanto se afastavam, as mãos travando no volante como se ela tentasse voltar à Terra.

Ela não olhou para ele quando subiu a janela e ligou o motor, partindo em seguida.

Deixando Assail arfando no frio.


CAPÍTULO 55

Qhuinn saiu do quarto de Layla pouco depois, seus coturnos levando-o a um passo rápido por sobre a passadeira estreita do corredor até o alto das escadas. Ao passar pelo escritório de Wrath, teve a impressão de que alguém o chamava, mas não deu atenção.

No canto oposto do corredor das estátuas, além da suíte de Z. e de Bella, o quarto em que Payne e Manny ficavam estava com a porta fechada, mas o som da televisão murmurava baixinho do lado de dentro.

Qhuinn precisou de um segundo para recompor as peças em sua cabeça atordoada, e depois bateu.

– Entre – foi a resposta.

Ao entrar, viu que o quarto era banhado por uma luz azulada da tela de TV. Payne estava deitada na cama, a pele tão pálida que refletia as diferentes cenas projetadas nela.

– Saudações – disse ela numa voz cansada.

– Jesus... Cristo...

– Não, não chego a isso... – ela sorriu. Ou, pelo menos, meia boca dela o fez. – Perdoe-me se não me levanto para recebê-lo.

Ele fechou a porta com suavidade.

– O que aconteceu?

Ainda que ele suspeitasse.

– Ela está bem? – perguntou Payne. – A sua fêmea ainda está grávida?

– Os exames parecem indicar isso.

– Bom. Isso muito me agrada.

– Você está morrendo? – ele perguntou num rompante. E depois quis se dar um chute no traseiro.

Ela meio que riu.

– Acredito que não. No entanto, estou muito fraca.

Os pés de Qhuinn o carregaram através do quarto.

– Então... o que aconteceu?

Payne se esforçou para se erguer nos travesseiros, mas acabou desistindo.

– Acho que estou perdendo o meu dom – ela gemeu ao dobrar as pernas debaixo das cobertas. – Assim que cheguei aqui, eu conseguia postar as mãos e curar com pouco ou nenhum esforço. Toda vez que o faço, porém, o esforço parece me arrasar um pouco mais. E o que eu tentei com a sua fêmea e o seu bebê foi...

– Você quase se matou – ele completou por ela.

Ela deu de ombros.

– Despertei ao lado da cama dela. Arrastei-me aqui para baixo. Manny me tirou da cama há um tempo, e eu tinha um pouco de forças. Agora, parece que elas me abandonaram de novo.

– Posso fazer alguma coisa?

– Acho que preciso ir ao santuário de minha mãe – isso foi dito com total menosprezo. – Para me recarregar. Parece lógico, visto que lá pode ter sido a origem do meu dom. Só preciso me fortalecer o bastante para fazer a jornada, por assim dizer. Bem, isso e juntar vontade de fazê-lo. Eu preferiria continuar aqui. A decisão, contudo, parece ter sido tomada por mim. Não se pode negociar com o físico, depois de certo ponto.

É, ele sabia o que era isso.

– Eu não posso... – ele passou uma mão pelos cabelos. – Não sei como agradecer.

– Quando ela der à luz, então você poderá me agradecer. Há um caminho ainda desconhecido a ser atravessado.

Não mais, ele pensou. A sua visão, aquela à porta do Fade, mais uma vez estava em vias de acontecer.

E, desta vez, permaneceria assim.

Qhuinn desembainhou uma das adagas do peito e fez um corte na palma da mão. Quando o sangue se acumulou e começou a pingar, ele se ofereceu à fêmea.

– Com isto eu ofereço a minha... – ele se interrompeu. Ele não tinha uma linhagem para oferecer, não com a rejeição de sua família no passado. – Ofereço a minha honra a você e aos seus daqui até o fim enquanto o meu coração bater e a última respiração sair de meus pulmões. Qualquer coisa de que necessitar, poderá me solicitar e será seu, sem perguntas, nem hesitação.

De certo modo, parecia ridículo se oferecer dessa forma à filha da bendita divindade. Até parece que Payne precisaria de ajuda...

A mão da adaga de Payne segurou a dele com força.

– Prefiro aceitar a sua honra a qualquer linhagem na face da Terra.

Quando seus olhos se encontraram, ele teve ciência de que aquilo não era um assunto macho-fêmea, mas lutador-lutador, apesar da diferença dos sexos.

– Jamais conseguirei agradecer o suficiente – disse ele.

– Espero que ela supere isso. Ela e o bebê, quero dizer.

– Tenho a sensação de que conseguirão. Graças a você.

Pareceu estranho querer se curvar para aquela fêmea, mas algumas coisas você simplesmente faz, e foi o que ele fez. Depois se virou, pois não desejava atrapalhar o descanso dela.

Bem quando já segurava a maçaneta, Payne murmurou:

– Se quer agradecer a alguém, você deveria procurar Blaylock.

Qhuinn ficou imobilizado. Virou o pescoço para trás.

– O que... você disse?


Assail ficou parado enquanto o Audi derrapava para fora do estacionamento e chegava à rua à frente como se sua ladra tivesse plantado uma bomba no restaurante e tivesse acabado de acionar o detonador.

Seu corpo lhe dizia para ir atrás dela, parar o carro e arrastá-la para o banco de trás.

A mente, contudo, sabia que aquilo não seria uma boa ideia.

Ao sentir uma tensão trespassá-lo, ele soube que a extensão com que perdia controle perto dela era perigosa. Ele era um macho que se definia pelo seu autocontrole. Com aquela fêmea? Ainda mais se o sexo dela estivesse excitado?

Ele se sentia consumido pelo desejo de possuí-la.

Portanto, tinha que se controlar.

A bem da verdade, ele não tinha nada que perder tempo perseguindo uma humana qualquer, parado num canto escuro de uma espelunca qualquer, observando-a com um homem.

Também consumido pelo desejo premente de matar o acompanhante de cheeseburguer dela.

O que, em nome da Virgem Escriba, acontecera com ele?

A resposta, quando lhe veio, foi algo que rejeitou com veemência.

Numa tentativa de realocar suas energias, ele pegou o celular para ver quem telefonara para romper o encanto que precisava ter sido rompido.

Rehvenge.

Por muitos motivos, ele não tinha vontade alguma de falar com aquele macho. A última coisa que o interessava era a repetição de todos os motivos pelo quais ele tinha de participar da estagnação social e política que era o Conselho.

Mas isso seria melhor do que ir atrás de sua ladra...

E ele percebeu que nem sequer sabia o nome dela.

E seria muito melhor nunca vir a saber, disse a si mesmo.

Ao retornar a ligação, ele levou o aparelho ao ouvido e enfiou a mão livre no bolso do casaco de lã para mantê-la aquecida.

– Rehvenge – disse ele quando o macho atendeu. – Estou falando com você mais do que falo com minha mahmen.

– Pensei que a sua mãe estivesse morta.

– Ela está.

– O seu padrão de comunicação é muito baixo.

– O que posso fazer por você – aquilo não era uma pergunta, pois não havia motivos para encorajar uma resposta.

– Na verdade, trata-se do que eu posso fazer por você.

– Com o devido respeito, prefiro cuidar sozinho dos meus assuntos.

– Uma política muito boa. E por mais que eu saiba que você gosta dos seus “assuntos”, não foi por isso que telefonei. Pensei que gostaria de saber que o Conselho se reuniu com Wrath hoje à noite.

– Acredito que renunciei ao meu posto em nossa última conversa. Portanto, o que será que isso tem a ver comigo?

– O seu nome foi dito no fim. Depois que todos tinham se retirado.

Assail arqueou uma sobrancelha.

– De que modo?

– Um passarinho disse que você armou a armadilha para Wrath em favor do Bando de Bastardos em sua casa no outono passado.

Assail segurou o telefone com mais força. E durante a breve pausa que se seguiu, ele escolheu as palavras com extrema cautela.

– Wrath sabe que isso não é verdade. Fui eu quem forneceu o veículo para a fuga dele. Como já lhe disse antes, não estou, e nunca estive, ligado a nenhum tipo de insurreição. Na verdade, eu me retirei do Conselho exatamente porque não quis me envolver em nenhum tipo de dramalhão.

– Relaxe. Ele lhe fez um favor.

– De que modo, exatamente?

– O indivíduo disse isso na minha frente.

– E, mais uma vez, eu pergunto, como isso se...

– Eu sabia que ele estava mentindo.

Assail se calou. Claro que era bom que Rehvenge soubesse que tal declaração era falsa. Mas como?

– Antes que me pergunte – o macho murmurou sombrio –, não vou lhe contar exatamente por que estou tão certo disso. Todavia, eu lhe direi que estou preparado para recompensar a sua lealdade com um presente por parte do Rei.

– Um presente?

– Wrath faz jus ao seu nome.* Ele entende, por exemplo, como um indivíduo pode se sentir se ele for indevidamente acusado de traição. Ele sabe que se alguém tenta implicar outra pessoa com uma informação que não é de conhecimento público, provavelmente está tentando desviar a responsabilidade de suas próprias ações... Ainda mais se a pessoa falando tiver um... bem, como dizer, uma inclinação... que indicasse não apenas falsidade, mas também certo nível de maquinação. Como se ele estivesse lhe retribuindo por algo que considerasse deslealdade ou mau juízo.

– Quem é? – Assail perguntou. Mesmo sabendo de quem se tratava.

– Wrath não está lhe pedindo que faça nenhum tipo de trabalho sujo. Na verdade, se escolher não fazer nada, esse indivíduo estará morto dentro das próximas 24 horas. O Rei apenas acredita que, assim como eu, os seus interesses estejam não só alinhados aos nossos, mas que, neste caso, eles os suplantam.

Assail fechou os olhos, a vingança fervendo em seu sangue da mesma maneira com que seus instintos sexuais ferveram há pouco. O resultado, contudo, seria muito, mas muito diferente.

– Diga o nome.

– Elan, filho de Larex.

Assail fechou os olhos e expôs as presas.

– Diga ao seu Rei que eu cuidarei do assunto de boa vontade.

Rehvenge riu com malignidade.

– Farei isso. Eu prometo.

Wrath em inglês significa ira, fúria, raiva. (N.T.)


CAPÍTULO 56

Blay se sentia ansioso ao andar de um lado para o outro no quarto. Ainda que estivesse completamente vestido para lutar, ele não iria a parte alguma. Nenhum deles iria.

Depois da reunião do Conselho, Tohr ordenara à Irmandade que ficasse recolhida só para o caso. Rehv estava contatando os membros do Conselho, fora da mansão, para entender em que pé a glymera estava. Como o cara não podia aparecer com um grupo de seis Irmãos em sua retaguarda – não se quisesse manter ao menos uma fachada de civilidade –, eles tinham de aguardar. No entanto, devido ao clima político, era importante que a retaguarda estivesse a postos para o caso de o Reverendo precisar.

Não se ele ainda usasse esse nome...

A porta do seu quarto se abriu sem uma batida, um olá, um “ei, posso entrar?”.

Qhuinn parou debaixo da soleira, arfando, como se tivesse corrido pelo corredor das estátuas.

Maldição, será que no fim Layla perdera a gravidez?

Aqueles olhos descombinados vasculharam ao redor.

– Está sozinho?

Por que ele acharia que... Ah, Saxton. Certo.

– Sim...

O macho avançou três passos, esticou os braços e... lascou um beijo daqueles em Blay.

O beijo foi do tipo de que você se lembra pelo resto da vida, a ligação forjada com tamanha completude que tudo, desde a sensação do corpo contra o seu, do calor dos lábios nos seus, do poder assim como o controle, acabavam gravados em sua mente.

Blay não fez nenhuma pergunta.

Apenas continuou lá, os braços envolvendo o outro macho, aceitando a língua que o invadia, retribuindo o beijo mesmo que não entendesse o que motivara aquilo tudo.

Ele, provavelmente, deveria se importar com isso. Provavelmente deveria se afastar.

Deveria, poderia, teria...

Que seja.

Ele estava vagamente ciente de que a porta estava aberta, mas não se importou – mesmo que as coisas logo se tornassem bem indiscretas muito rapidamente.

Só que Qhuinn subitamente pisou no freio, colocando um fim no beijo e separando-os.

– Desculpe, não foi para isso que eu vim até aqui.

O lutador ainda arfava, e isso, junto ao ardor do olhar fixo, quase bastou para que Blay dissesse algo do tipo: “Tudo bem, mas podemos terminar isto antes?”.

Qhuinn voltou até a porta e a fechou. Depois enfiou as mãos nos bolsos das calças, como se a alternativa preocupante fosse voltar a agarrá-lo.

Ao inferno com os bolsos, Blay pensou enquanto, sutilmente, tentava ajeitar sua ereção.

– O que foi? – perguntou.

– Sei que procurou Payne.

As palavras foram pronunciadas clara e lentamente – e era exatamente isso o que Blay não tinha como lidar. Desviando o olhar, ele andou pelo quarto.

– Você salvou a gestação – anunciou Qhuinn, o tom de sua voz próximo demais de um estado de reverência para o seu conforto.

– Então, ela está bem?

– Você salvou a...

– Payne fez isso.

– A irmã de V. disse que não lhe teria ocorrido sequer tentar... até que você a procurou e falou com ela.

– Payne é muito talentosa...

Qhuinn subitamente ficou diante dele, uma parede sólida de músculos pela qual ele não teria como passar. Ainda mais depois de o macho esticar a mão e resvalar o rosto de Blay.

– Você salvou a minha filha.

No silêncio que se seguiu, Blay soube que devia dizer alguma coisa. Sim... estava na ponta da sua língua. Era...

Merda. Com Qhuinn olhando para ele daquele jeito, ele não se lembrava nem do próprio nome. Blaysox? Blacklock, Blabberfox? Quem é que sabia?...

– Você salvou a minha filha – sussurrou Qhuinn.

As palavras que saíram da boca de Blay foram as que, mais tarde, ele lamentaria – porque era especialmente importante, diante do sexo que parecia acontecer de tempos em tempos, manter a distância.

Mas ligados como estavam, olhos nos olhos, ele estava impotente para refrear a verdade.

– Como eu poderia não tentar... aquilo estava acabando com você. Eu não podia deixar de fazer alguma coisa. Qualquer coisa.

As pálpebras de Qhuinn se abaixaram por um tempo. E depois ele abraçou Blay de uma maneira que ficaram ligados da cabeça aos pés.

– Eu posso sempre contar com você, não é?

Uma doce amargura: a realidade de que aquele macho formaria uma família com outra pessoa, uma fêmea, Layla, atingiu o meio do peito de Blay.

Aquela era a sua sina, de tantas maneiras.

Ele se soltou dos braços de Qhuinn e recuou alguns passos.

– Bem, espero que...

Antes que conseguisse terminar, Qhuinn voltou a se postar diante dele, e seus olhos, um verde, um azul, estavam ardentes.

– O que foi? – disse Blay.

– Eu lhe devo... tudo.

Por algum motivo, aquilo doeu. Talvez porque após anos de tentativas de se entregar para o cara, a gratidão finalmente fora conquistada ao ajudá-lo a ter um filho com outra pessoa.

– O que é isso, você teria feito o mesmo por mim – disse ele, um tanto rouco.

E no instante em que disse isso, não teve tanta certeza. Se alguém o atacasse? Sim, claro que Qhuinn o protegeria. Mas, pensando bem, o filho da mãe adorava lutar e era um herói nato, isso não estaria nada relacionado a Blay.

Talvez aquela fosse a questão em todo esse vazio. Tudo sempre fora nos termos de Qhuinn. A amizade. A distância. Até mesmo o sexo.

– Por que está olhando para mim assim? – Qhuinn perguntou.

– Assim como?

– Como se eu fosse um desconhecido.

Blay esfregou o rosto.

– Desculpe. A noite está demorando a passar.

Houve um momento tenso e longo, durante o qual ele só conseguia sentir o olhar fixo de Qhuinn.

– Eu vou embora – o lutador disse depois de uma pausa. – Eu acho que só... queria...

O som dos coturnos dirigindo-se para a saída fizeram Blay praguejar...

E uma batida única e forte à porta: um Irmão.

A voz de Rhage atravessou com facilidade a madeira.

– Blay? Tohr convocou uma reunião para repassarmos o território a cobrir amanhã. Sabe onde Qhuinn está?

Blay olhou através do quarto para o cara.

– Não, não sei.


Ah, pelo amor de Deus, Qhuinn pensou ante a interrupção. Ainda que, na realidade, a conversa tivesse chegado ao fim.

A boa notícia era que, pelo menos, Rhage não entrara. Sem dúvida, Blay preferiria que os dois não fossem flagrados à toa em seu quarto.

Hollywood terminou a conversa dizendo:

– Se o vir, avise que, se ele pretende ir, temos que nos encontrar em cinco minutos. Entenderemos se ele preferir ficar com Layla.

– Entendido – disse Blay num tom apagado.

Enquanto Rhage seguia em frente para a porta de Z., Qhuinn esfregou o rosto. Ele não fazia ideia do que se passava pela cabeça de Blay naquele instante, mas o modo como os olhos azuis o encaravam o fez sentir como se um fantasma tivesse acabado de passar por cima de sua tumba.

Pensando bem, o que ele esperava? Invadira o quarto que o cara dividia com Saxton, tascara-lhe um beijo e depois se mostrara todo sentimental quanto àquela situação com Payne... Aquele era o espaço de Saxton. E não o seu.

Ele tinha o costume de tomar as coisas para si, não era mesmo?

– Não venho mais aqui – disse Qhuinn, tentando aplacar a situação. – Eu só queria que soubesse que... eu lhe devo muito...

Qhuinn foi até a porta e se inclinou, ouvindo a voz de Rhage, fechando os olhos, à espera que o corredor das estátuas estivesse vazio.

Jesus, como ele sabia ser egoísta às vezes, ele sabia mesmo ser...

– Qhuinn...

Seu corpo se virou no mesmo instante, como se a voz de Blay tivesse uma corda que o puxasse.

– Sim?

O macho andou para a frente. Quando estavam cara a cara, Blay disse:

– Ainda quero transar com você.

As sobrancelhas de Qhuinn estalaram tão alto que quase despencaram sobre o tapete. E, no mesmo instante, ele ficou excitado.

O problema era que Blay não parecia feliz com aquilo. Mas por que estaria? Ele não era do tipo de macho que traía com facilidade – ainda que a ausência de monogamia de Saxton o tivesse curado de sua fidelidade.

O que fez com que Qhuinn quisesse estrangular o primo novamente. E a única coisa que o impedia de ir atrás do cara era que, nesse caso, a situação estava a seu favor.

– Também quero estar com você – disse.

– Vou até o seu quarto depois do amanhecer.

Qhuinn não queria perguntar. Tinha que perguntar.

– E quanto a Saxton?

– Ele saiu de férias.

Mesmo?

– Por quanto tempo?

– Alguns dias apenas.

Pena. Alguma probabilidade de extensão... que tal por um ano ou dois? Quem sabe para sempre?

– Ok, então temos um... – Qhuinn se deteve antes de terminar dizendo “encontro”.

Não havia por que tentar se enganar. Saxton estava ausente. Blay queria transar. E Qhuinn estava mais do que disposto a fornecer ao macho aquilo que ele queria.

Não se tratava de um “encontro”. Mas, que se dane?

– Venha – disse num grunhido. – Estarei à sua espera.

Blay assentiu, como se tivessem feito um pacto, e depois saiu primeiro, o corpo com passadas agressivas enquanto se encaminhava para a porta e saía.

Qhuinn observou-o ir embora. Ficou para trás. Quase se trancou ali para poder se recuperar.

De repente, ficou todo confuso, apesar da promessa de que se encontrariam em poucas horas. A expressão no rosto de Blay o atormentava a ponto de ele sentir o peito começar a doer. Merda, talvez aquela série de encontros fosse apenas uma evolução dos maus momentos em que estiveram antes, uma nova faceta da infelicidade coletiva dos dois.

Nunca lhe ocorrera antes que eles não fossem bons um para o outro. Que não haveria, no futuro, algum tipo de encontro de mentes em que ele se abrisse depois de todos aqueles anos.

Cerrando um punho, ele socou o batente da porta, o contorno da guarnição retribuindo o golpe para as suas juntas.

Enquanto a dor surgia e latejava, por algum motivo, ele pensou no soco no painel do caminhão-guincho e no grito para sair de lá. Parecia ter acontecido em outra vida.

Mas ele não tinha como recuar. Se sexo era tudo o que teria, era o que receberia. Além disso, o que Blay fizera por Layla?

Aquilo devia significar alguma coisa. O cara se importara o bastante para mudar o curso da sua vida.

Não que Blay já não tivesse feito isso há muito tempo.


CAPÍTULO 57

Assail se materializou ao lado de um riacho que permanecia descongelado graças ao seu constante movimento.

Estivera naquela casa apenas uma vez antes: era uma construção vitoriana de tijolos com tema característico marcado pelas varandas e entradas. Tão pacato. Tão acolhedor. Ainda mais com aquelas janelas amplas de quatro vidraças feitas de vitral, e as nuvens de fumaça que saíam não de uma, mas de três das quatro chaminés.

O que indicava que o proprietário havia se recolhido para aquela noite.

Bem na hora: o amanhecer se aproximaria logo, portanto, era apenas lógico abaixar as escotilhas ante o sol. Proteger seu ambiente. Preparar-se para as horas em que seria necessário permanecer no interior para se proteger de danos.

Assail caminhou sobre a neve imaculada, deixando marcas de solados profundos. Nada de sapatos de couro para aquele trabalho. Tampouco um terno de negócios.

Nenhum Range Rover para a sua ladra perseguir.

Aproximando-se do gramado lateral, ele chegou à janela que ia do teto ao chão da sala na qual o dono da casa recebera, não muito tempo atrás, certos membros do Conselho... junto ao Bando de Bastardos.

Assail estivera entre os convidados da reunião. Pelo menos até que estivesse ficado claro que ele tinha de se retirar ou acabaria misturado ao tipo de discurso dramático pelo qual não se interessava.

Pelo vidro, espiou o interior.

Elan, filho de Larex, estava sentado à escrivaninha, um telefone fixo junto ao ouvido, uma taça de conhaque próxima ao cotovelo, um cigarro queimando num cinzeiro de cristal lapidado ao seu lado. Enquanto ele se recostava em sua poltrona de espaldar alto e cruzava os joelhos, parecia estar num estado de relaxamento e satisfação semelhante ao rejúbilo pós-coito.

Assail cerrou os punhos e as luvas de couro rangeram de leve.

Em seguida, ele se desmaterializou até a sala, voltando à sua forma exatamente atrás da poltrona do macho.

De certa forma, ele custava a acreditar que Elan não tivesse fortificado a casa com medidas de segurança – uma malha de aço fina sobre as janelas e dentro da parede, por exemplo. Pensando bem, ao aristocrata obviamente faltava a habilidade de julgar corretamente os perigos – assim como tinha uma arrogância que lhe garantiria uma sensação de segurança maior do que a que tinha efetivamente.

– ... e então Wrath partilhou uma história sobre o pai. Devo admitir que, pessoalmente, o Rei é bem... feroz. Ainda que não o bastante para mudar meu curso, obviamente.

Não. Assail cuidaria disso.

Elan se inclinou para a frente para pegar o cigarro. A coisa estava presa numa daquelas cigarrilhas antigas, do tipo que as fêmeas tendiam a usar, e levou a ponta aos lábios para tragar, a extremidade indo além do fim da cadeira.

Assail desembainhou uma lâmina de aço brilhante que era tão longa quanto o seu antebraço.

Sempre fora a sua arma predileta para aquele tipo de assunto.

Seus batimentos cardíacos estavam tão ritmados quanto a mão estava firme, a respiração uniforme e regular enquanto pairava atrás da poltrona. Com deliberação, foi para o lado, posicionando-se de modo que seu reflexo aparecesse na janela oposta à escrivaninha.

– Não sei se a Irmandade inteira estava presente. Quantos restaram? Sete ou oito? Essa é uma parte do problema. Não sabemos mais quem eles são – Elan bateu as cinzas no centro do cinzeiro. – Então, enquanto estávamos na reunião, instruí um colega meu a entrar em contato com você... Como disse? Claro que lhe dei o seu número, e ressinto-me do seu tom... Sim, ele esteve na reunião em minha casa. Ele vai... Não, não voltarei a fazer isso. Pode parar de me interromper? Acredito que sim.

Elan tragou novamente e exalou a fumaça no ar, seu aborrecimento manifestado em sua respiração.

– Posso continuar? Obrigado. Como eu dizia, esse meu colega entrará em contato a respeito de certos assuntos legais que podem nos ajudar. Ele me explicou, mas é tudo muito técnico, portanto, deduzi que você gostaria de falar diretamente com ele.

Houve uma pausa expressiva. E quando Elan voltou a falar, seu tom se mostrou mais calmo, como se palavras tranquilizadoras tivessem aplacado seu ego.

– Ah, sim, uma última coisa. Tratei de cuidar do nosso probleminha com certo cavalheiro “com mente apenas para os negócios”...

Assail deliberadamente cerrou um punho.

E quando o couro, mais uma vez, emitiu um suave som de protesto, Elan se endireitou na poltrona, a perna cruzada voltando a se apoiar no chão, a coluna se endireitando a tal ponto de sua cabeça aparecer por sobre o espaldar. Ele olhou para a esquerda. Para a direita.

– Preciso ir...

Nesse instante, os olhos de Elan pararam na janela diante dele e ele viu o reflexo do seu assassino no vidro.


Enquanto Xcor parava na sala protegida com calefação adequada, ele teve que admitir que a nova escolha de abrigo de Throe era muito superior ao porão do armazém em que previamente estiveram. Talvez ele devesse agradecer ao Sombra que invadira o local, se um dia seus caminhos voltassem a se cruzar.

Pensando bem, talvez o calor que ele sentia no corpo fosse seu humor se alterando e não o trabalho de um condutor de calor operante: o aristocrata do outro lado do seu celular estava testando seus nervos.

Ele não queria ser procurado por ninguém mais do Conselho. Lidar com um só membro da glymera já era o bastante.

Embora tipicamente ele assumisse uma abordagem pacífica com Elan, sua ira deu sinais.

– Não dê meu número a ninguém mais.

Elan e ele trocaram algumas palavras, a ira do aristocrata também se fazendo ver.

O que, na verdade, de nada serviria. Era sempre bom ter um instrumento utilizável nas mãos, não um de difícil trato.

– Minhas desculpas – Xcor murmurou depois de algum tempo. – Trata-se apenas de que prefiro lidar com os que tomam as decisões. É por isso que falo com você e somente com você. Não tenho interesse em ninguém mais. Só em você.

Como se Elan fosse uma fêmea e o relacionamento deles fosse romântico...

Xcor revirou os olhos quando o aristocrata caiu na sua, e voltou a falar:

– ... uma última coisa. Tratei de cuidar do nosso probleminha com certo cavalheiro “com mente apenas para os negócios”...

Instantaneamente, a atenção de Xcor se alterou. O que em nome do Fade o idiota fizera?

Na verdade, aquilo podia ser monstruosamente inconveniente. Podiam dizer o que quisessem por Assail se recusar a aceitar o destronamento de Wrath, mas aquele “cavalheiro” em especial não era feito da mesma seda frágil de Elan. Por mais que Xcor detestasse lidar com o filho de Larex, ele investira um bom tempo e recursos naquele relacionamento. Seria uma pena perder aquele canalha agora e ter de estabelecer outro elo com o Conselho.

– O que você disse? – Xcor exigiu saber.

O tom de Elan se alterou, revelando preocupação.

– Preciso ir...

O grito que reverberou pelo telefone foi tão alto e agudo que Xcor teve que afastar num rompante o celular do ouvido e mantê-lo longe.

Ante aquele som, seus lutadores, que estavam descansando na sala em várias posições, viraram as cabeças na sua direção, testemunhando, assim como ele, o assassinato de Elan.

Os gritos prosseguiram por um tempo, mas não houve nenhum pedido de clemência – ou porque o agressor agira rapidamente ou porque ficou bem claro, mesmo para o macho moribundo, que não haveria nenhuma.

– Que estrago – observou Zypher enquanto outro grito vibrava do telefone. – Uma verdadeira lambança.

– Ainda está respirando – outro comentou.

– Não por muito tempo – um terceiro opinou.

E eles tinham razão. Não mais do que um momento depois, algo atingiu o chão e esse foi o fim dos sons.

– Assail – Xcor disse alto. – Pegue o maldito telefone. Assail.

Houve um barulho como se o telefone no qual Elan estivera falando tivesse sido recuperado do lugar em que caíra. Em seguida, ouviu-se o som de uma respiração arfante.

O que sugeria que Elan podia muito bem estar despedaçado.

– Sei que é você, Assail – disse Xcor. – E só posso imaginar que Elan tenha dado um passo em falso e que tal indiscrição tenha chegado aos seus ouvidos. Todavia, você roubou um parceiro meu, e isso não pode passar em branco.

Foi uma surpresa quando o macho respondeu, com a voz grave e forte:

– No Antigo País, previdências eram tomadas perante afrontas à reputação das pessoas. Por certo, não deve se lembrar delas, mas não poderá me negar o meu direito à desforra no Novo Mundo.

Xcor expôs as presas, não por estar frustrado com aquele com quem falava. Maldito Elan. Se o idiota tivesse apenas sido um informante, ele ainda estaria vivo – e Xcor teria tido a satisfação de ele mesmo matá-lo ao fim daquilo.

Assail prosseguiu:

– Ele declarou a representantes do Rei que eu fui responsável pelo seu tiro de rifle, aquele que foi disparado em minha propriedade sem o meu conhecimento, tampouco a minha permissão... E... – ele interrompeu antes que Xcor pudesse falar – você sabe muito bem o pouco que me relacionei a esse ataque, não sabe?

Nos tempos de Bloodletter, aquela conversa jamais teria acontecido. Assail seria perseguido e caçado por ser um estorvo e eliminado tanto por necessidade como por prazer.

Mas Xcor aprendera a sua lição.

Enquanto os olhos pousavam em Throe, parado alto e elegante entre os outros, ele pensou, sim, aprendera que havia lugar e hora adequados para certas... regras...

– O que eu disse antes ainda vale, Xcor, filho de Bloodletter – quando Xcor se retraiu ante essa referência, mostrou-se contente por aquela conversa estar acontecendo pelo telefone. – Não me importo com os seus interesses nem com aqueles do Rei. Sou apenas um homem de negócios; desliguei-me do Conselho e não sou seu aliado. E Elan tentou fazer de mim um traidor... Algo que, como bem sabe, vem com um preço sobre a cabeça de uma pessoa. Tirei a vida de Elan porque ele tentou tirar a minha. Isso é perfeitamente legítimo.

Xcor praguejou. O macho tinha razão. E por mais que a neutralidade inflexível de Assail tivesse parecido inacreditável no início, agora Xcor começava a... bem, confiar não era uma palavra que ele costumava usar com outros que não os seus soldados.

– Diga-me uma coisa – disse Xcor de modo arrastado.

– O quê?

– A cabeça desse imbecil ainda está presa ao corpinho frágil dele?

Assail riu.

– Não.

– Sabe que esse é um dos meus métodos de assassinato prediletos?

– Um aviso para mim, Xcor?

Xcor olhou de relance para Throe e pensou novamente na virtude dos códigos de comportamento, mesmo entre os guerreiros.

– Não – declarou. – Apenas algo que temos em comum. Fique bem, Assail, pelo que lhe resta desta noite.

– Você também. E nas palavras de um conhecido em comum, preciso ir. Antes de ser forçado a matar o mordomo doggen que está batendo, neste instante, na porta que tranquei.

Xcor jogou a cabeça para trás e gargalhou ao concluir a ligação.

– Sabem – disse ele aos seus lutadores –, até que eu gosto dele.


CAPÍTULO 58

Na noite seguinte, enquanto as persianas se erguiam e um alarme que Blay não reconhecia começava a tocar, ele abriu os olhos.

Aquele não era o seu quarto. Mas ele sabia exatamente onde estava.

Ao seu lado, contra as suas costas, Qhuinn se espreguiçava, o corpo do macho se esticando contra o seu, a pele nua resvalando na sua pele nua – e não é que isso fez uma ereção latejar?

Qhuinn se esticou por sobre a cabeça de Blay, o braço pesado passando por cima para silenciar o alarme do relógio.

A fim de que não houvesse dúvidas quanto a ele querer uma rapidinha antes de todo o ritual de banho e a Primeira Refeição, Blay se arqueou, empurrando as nádegas contra a pélvis de Qhuinn. O gemido que o atingiu no ouvido o fez sorrir um pouco, mas as coisas ficaram sérias quando a mão da adaga de Qhuinn escorregou para baixo e encontrou o pau de Blay.

– Ai, cacete – murmurou Blay ao levantar a perna para abrir caminho.

– Preciso estar dentro de você.

Engraçado, era exatamente isso o que Blay estava pensando.

Enquanto Qhuinn montava nele, Blay se acomodou sobre a barriga, esmagando a palma de Qhuinn com seu mastro erguido.

Não demorou muito para o ritmo ficar intenso e rápido, e enquanto as bolas de Blay se contraíam em novo gozo, ele se maravilhou de tal maneira que seu desespero pelo cara só parecia aumentar – e haveria quem acreditasse que o número de vezes que os dois gozaram juntos, literalmente, durante o dia tivesse aplacado aquele fogo a uma mera ardência.

Não era o caso.

Entregando-se ao prazer, Blay cerrou os dentes quando seu clímax o atingiu ao mesmo tempo em que os quadris de Qhuinn se contraíram e o macho gemeu.

Não houve um segundo round. Não que Blay não quisesse, nem que Qhuinn fosse incapaz. O problema era o relógio.

Quando Blay voltou a abrir os olhos, os números digitais lhe disseram que o alarme de Qhuinn só concedia quinze minutos para que se aprontassem – tempo apenas para uma chuveirada e para se armarem, nada mais. O que o fez desejar que o lutador fosse mais do tipo lerdo que se barbeia duas vezes, passa colônia e escolhe a roupa que vai vestir...

Com mais um dos seus gemidos eróticos de marca registrada, Qhuinn deitou-se de lado, mantendo-os unidos. Enquanto o cara respirava fundo, Blay se deu conta que poderia ficar assim para sempre, apenas os dois em silêncio, no quarto em penumbra. Naquele instante de paz e tranquilidade, não havia nenhuma pendência do passado, ou qualquer coisa que precisasse ser dita mas não foi, ou terceiros elementos, reais ou imaginários, entre eles.

– No fim da noite – disse Qhuinn num tom grave –, você virá me procurar de novo.

– Sim, virei.

Não houve outro tipo de resposta que lhe ocorresse. Na verdade, ele estava se perguntando como esperaria as doze horas de escuridão e refeições e trabalho até poder escapar e voltar para ali.

Qhuinn murmurou algo muito parecido com “ainda bem”. Depois gemeu e se desencaixou, afastando-se. Em seguida, Blay ficou onde estava por um instante, mas, no fim, não tinha escolha a não ser se levantar, ir para a porta e voltar para o seu lugar.

Ainda bem que ninguém o viu.

Ele voltou para o quarto sem que ninguém testemunhasse a caminhada da vergonha, e sim, em quinze minutos, ele se lavou, vestiu-se e se armou. Saindo do quarto, ele...

Qhuinn apareceu na mesma hora.

Os dois pararam.

Normalmente, caminharem juntos seria apenas marginalmente estranho, e eles teriam de jogar conversa fora.

Mas agora...

Qhuinn abaixou o olhar.

– Você primeiro.

– Ok – Blay se virou para se afastar. – Obrigado.

Blay jogou o coldre de peito e a jaqueta de couro por sobre o ombro e saiu andando. Quando chegou às escadas, parecia que anos tinham se passado desde que estiveram deitados tão próximos. Será que aquele dia entre eles acontecera de fato?

Jesus, estava começando a enlouquecer.

Entrando na sala de jantar no andar de baixo, ele se sentou numa cadeira qualquer e pendurou suas coisas no espaldar como os outros – mesmo que Fritz detestasse ver armas próximas à comida. Depois, agradeceu ao doggen que lhe serviu um prato cheio e começou a comer. Ele não teria como dizer o que lhe fora servido nem quais conversas percorriam a mesa. Mas soube exatamente quando Qhuinn passou pela soleira da porta: seu âmago começou a zunir e foi impossível não olhar por cima do ombro.

Houve um impacto físico imediato ao ver aquele corpo imenso envolto em preto, carregado de armas – como se a bateria de um carro tivesse sido ligada em seu sistema nervoso.

E ele achou que foi até bom Qhuinn evitar olhar para ele. Os outros ao redor da mesa os conheciam muito bem, especialmente John, e as coisas já estavam bem complicadas sem a boataria de corredor ter a oportunidade de se fazer valer – não que alguém fosse dizer algo publicamente. Porém, em particular... Conversas de travesseiros corriam desenfreadamente naquela casa.

Algo a se invejar.

Qhuinn seguiu em frente, depois mudou de direção, e foi para o lado completamente oposto da mesa, para a única cadeira, além daquela ao lado de Blay, que estava desocupada.

Por algum motivo, Blay pensou na conversa que teve com a mãe pelo telefone, aquela em que admitira finalmente a um membro de sua família quem exatamente ele era.

Uma inquietação passou pela sua nuca. Qhuinn jamais faria algo como sair do armário, e não porque seus pais estavam mortos, ou porque, quando o casal estava vivo, eles odiavam o filho.

Eu me vejo com uma fêmea num relacionamento duradouro. Não sei explicar. É só assim que vai ser.

Blay afastou o prato.

– Blay? Alôoo?

Estremecendo, ele olhou para Rhage.

– O que foi?

– Eu perguntei se você está pronto para dar uma de Nanook, o Esquimó.

Ah, é mesmo. Eles voltariam para aquele pedaço de floresta onde encontraram os chalés e o redutor com poder especial de desaparecimento, além do avião que, no momento, acumulava neve no jardim dos fundos.

John, Rhage e ele estavam designados para aquela missão. E Qhuinn.

– Sim, sim... sem dúvida.

O mais belo membro da Irmandade franziu o cenho, os olhos azuis como o mar do Caribe se estreitando.

– Você está bem?

– Sim. Estou ótimo.

– Quando foi a última vez em que se alimentou?

Blay abriu a boca. Fechou. Tentou estimar.

– Uhum. Foi o que pensei – Rhage se inclinou para a frente e falou próximo ao peito de Z. – Ei, Phury? Acha que uma das Escolhidas pode vir aqui para assumir o lugar de Layla ao amanhecer? Temos algumas necessidades de sangue.

Ótimo. Era bem isso o que ele queria no fim da noite.

 


Cerca de uma hora mais tarde, Qhuinn inalou profundamente ao se materializar no frio. Flocos de neve rodopiavam ao redor do seu rosto, atingindo-o nos olhos e no nariz. Um a um, John, Rhage e Blay tomaram forma ao seu lado.

Enquanto ele encarava o hangar, a casca vazia lhe trouxe de volta as lembranças do maldito Cessna, da tentativa desesperadora daquela viagem e da aterrissagem forçada.

Quanta alegria...

– Pronto para ir? – perguntou a Rhage.

– Vamos em frente.

O plano era seguir em trechos de quatrocentos metros até chegarem aos primeiros chalés em que já estiveram. Depois disso, eles localizariam os demais chalés da propriedade, usando o mapa que encontraram anteriormente como um guia. Apenas um protocolo de reconhecimento e busca típicos.

Ele não fazia ideia do que encontrariam, mas aquela era a questão. Não se sabia até fazer o trabalho.

Enquanto avançava, Qhuinn estava muito ciente da localização de Blay. Mesmo assim, quando se materializou diante do primeiro chalé que localizaram, não olhou quando Blay apareceu uns dois metros mais distante. Não seria uma boa ideia. Mesmo estando trabalhando, tudo o que precisava fazer era fechar os olhos e sua mente era inundada por imagens de corpos nus entrelaçados na luz fraca do seu quarto.

Uma confirmação visual que o cara era sexy pra cacete não seria de nenhuma ajuda.

Ele tinha vergonha de admitir, mas, naquele instante, a única coisa que o mantinha são era a promessa de Blay de ir procurá-lo ao amanhecer. O estranhamento durante a Primeira Refeição só o fez desejar estarem juntos ainda mais, a ponto de se abalar ante a ideia de que algum dia, num futuro imediato, Saxton voltaria e Blay deixaria de se aproximar, vindo da porta ao lado – e aí, o que ele faria?

Maldita confusão.

Pelo menos Layla estava bem: ainda enjoada e sorrindo de felicidade.

Ainda grávida, graças à intervenção de Blay...

– Leste, nordeste – informou Rhage ao consultar o mapa.

– Entendido – respondeu Qhuinn.

E assim eles prosseguiram avançando no território, a floresta envolvendo-os por centenas e centenas de metros... depois um quilômetro. Em seguida, vários quilômetros.

Os chalés eram bem parecidos, quadrados de seis por seis, abertos no centro, sem banheiro, sem cozinha, apenas um teto e quatro paredes para afastar o pior do inverno. Quanto mais avançavam, mais dilapidadas as estruturas se mostravam – e todas estavam vazias. Lógico. A pé, aquela era uma distância imensa – e redutores, por mais fortes que fossem, não se desmaterializavam.

Pelo menos não a maioria deles.

Aquele só podia ter sido o Redutor Principal, ele pensou. Seria a única explicação para o fato de o assassino ferido ter simplesmente desaparecido daquele jeito.

O sétimo chalé estava diretamente numa trilha que devia ter sido bem frequentada a ponto de ainda se ver um caminho em meio à vegetação.

Naquele faltava uma janela e a porta estava escancarada, a neve entrando como uma invasora. Qhuinn atravessou um monte de neve, seus coturnos esmagando a superfície imaculada conforme ele se aproximava da varanda. Com uma lanterna na mão esquerda e uma .45 na direita, ele deu um salto para baixo do beiral e se inclinou.

Mesma merda, um espaço vazio diferente.

Ao perscrutar o interior, não havia absolutamente nada ali. Nenhuma mobília. Umas prateleiras embutidas vazias. Teias de aranha balançando na brisa que entrava pela janela quebrada.

– Tudo tranquilo – anunciou.

Virando-se, ele pensou que aquilo tudo era besteira. Ele queria estar chutando uns traseiros, e não estar ali, no meio do nada, perseguindo e caçando sem encontrar coisa alguma.

Rhage acomodou uma lanterna de bolso entre os lábios e abriu o mapa mais uma vez. Fazendo uma marca com uma caneta, ele bateu no papel grosso com um dedo.

– O último fica a cerca de quatrocentos metros para o leste.

Ainda bem. Já era hora.

Presumindo que tudo fosse entediante como até então, eles sairiam dali e se deparariam com o inimigo em becos em quinze minutos, talvez vinte.

Molezinha, molezinha.


CAPÍTULO 59

– Você parece verdadeiramente feliz.

Layla levantou o olhar. De certo modo, parecia inacreditável que a rainha da raça estivesse ao seu lado na cama, lendo revistas Us Weekly e People, e assistindo à TV. Mas, pensando bem, a não ser pelo imenso anel de rubi que cintilava em seu dedo, ela não poderia ser mais normal.

– Eu estou mesmo – Layla deixou de lado o artigo sobre a última temporada de The Bachelor e pousou a mão no ventre. – Estou radiante.

Ainda mais que Payne passara pouco antes e aparentava estar se sentindo bem. Mesmo que o desejo de que sua gravidez continuasse fosse quase patológico, a ideia de que essa bênção viesse à custa de outra fêmea não lhe caía bem.

– Você quer ter filhos? – Layla perguntou num rompante. E depois acrescentou: – Se a minha pergunta não a ofender...

Beth desconsiderou a preocupação dela com um gesto.

– Você pode me perguntar o que quiser. E respondendo, quero, sim. Quero muito. O engraçado é que antes da minha transformação, eu não tinha interesse algum em crianças. Elas eram apenas uma complicação descontrolada e barulhenta que eu, honestamente, não entendia por que as pessoas se davam ao trabalho de trazer ao mundo. Mas aí eu conheci Wrath – ela afastou o cabelo escuro e riu. – Desnecessário dizer como isso mudou tudo.

– Quantos cios você já teve?

– Ainda estou esperando. Rezando. Contando o tempo para que o primeiro venha.

Layla franziu o cenho e se ocupou em abrir mais uma embalagem de bolachas de água e sal. Era difícil lembrar muito sobre aquelas horas de loucura com Qhuinn, mas fora uma provação de proporções épicas.

Considerando-se o milagre que ainda repousava em seu corpo, tudo valera a pena.

Contudo, ela não poderia dizer que gostaria de passar pelo seu período fértil novamente. Não sem medicamentos.

– Bem, então desejo que seu cio venha logo – Layla mordiscou uma bolacha, o quadrado se partindo e derretendo em sua boca. – Não consigo acreditar que disse isso.

– É tão difícil quanto... isto é, não consegui falar com Wellsie sobre o período dela antes de ela falecer, e Bella nunca mencionou nada. – Beth baixou o olhar para seu anel de rainha, como se estivesse admirada por suas facetas captarem e refletirem a luz. – E não conheço Autumn tão bem assim; ela é adorável, mas dadas as circunstâncias pelas quais ela e Tohr acabaram de passar, não pareceu apropriado abordar esse assunto com ela.

– Tudo é muito obscuro, para ser bem honesta.

– Uma bênção, então, não?

Layla fez uma careta.

– Bem que eu gostaria de contradizê-la, mas sim, acredito que seja uma bênção.

– Mas deve valer a pena, não?

– Sem sombra de dúvida... Eu estava pensando exatamente nisso, para falar a verdade – Layla sorriu. – Sabe o que dizem a respeito de fêmeas grávidas, não?

– O quê?

– Se passar tempo com elas, isso encorajará seu cio a chegar.

– Verdade? – a rainha lançou um sorriso amplo. – Então você pode ser a resposta às minhas orações.

– Bem, não sei se isso é verdade. Do Outro Lado, somos sempre férteis. É só aqui na Terra que as fêmeas estão sujeitas às influências dos hormônios, mas eu li a respeito desse efeito na biblioteca.

– Então vamos fazer o nosso experimento, que tal? – Beth ofereceu a mão para um aperto. – Além disso, gosto de estar aqui. Você me inspira.

As sobrancelhas de Layla se ergueram com o que lhe foi dito.

– Inspiro? Ah, não. Não sei como.

– Pense pelo que passou.

– A gestação se ajeitou e...

– Não, não apenas isso. Você é a sobrevivente de um culto – quando Layla lhe lançou um olhar de quem não entendia, a rainha perguntou: – Nunca ouviu falar disso?

– Conheço a definição da palavra. Mas não sei se se aplica a mim.

A rainha desviou o olhar, como se não quisesse criar discórdia.

– Ei, posso estar errada, e você certamente deve saber melhor do que eu... Além disso, você está feliz agora, e é isso o que importa.

Layla se concentrou na tela de TV adiante. Pelo que entendia, um culto não era uma coisa boa, e sobrevivente era um termo normalmente associado a pessoas que passaram por algum tipo de trauma.

O Santuário fora como um dia de primavera tranquilo e temperado na face da Terra, todas as fêmeas na paz e tranquilidade do local sagrado com suas tarefas importantes para a mãe da raça.

Nenhuma coerção. Nenhuma contenda.

Por algum motivo, as palavras de Payne entraram em sua mente.

Você e eu somos irmãs da tirania de minha mãe, casualidades de seu plano maior de como as coisas devem ser. Estivemos as duas enjauladas em seus modos diversos, você como uma Escolhida; eu, como sua filha de sangue.

– Desculpe – disse a rainha, esticando a mão para tocar no braço de Layla. – Não tive a intenção de aborrecê-la. Honestamente, não sei que diabos eu estava falando.

Layla voltou-lhe a atenção.

– Ora, por favor, não se preocupe – ela segurou a mão da rainha. – Não me ofendi de maneira alguma. Mas agora, que tal falarmos de coisas mais alegres, tal como o seu hellren. Ele também deve estar impaciente para que seu período chegue.

Beth deu uma risada reservada.

– Ele ainda não está exatamente nesse ponto.

– Por certo ele deve desejar um herdeiro.– Acredito que ele me dará um. Mas só por eu desejar muito um filho.

– Ah...

– Isso mesmo, ah... – Beth apertou a mão de Layla. – Ele só se preocupa demais. Sou forte e saudável, e estou pronta para isso. Mas se ao menos eu conseguisse fazer com que meu corpo começasse a funcionar... Quem sabe, ele não segue o seu exemplo?

Layla sorriu e esfregou a barriga ainda lisa.

– Ouviu isso, meu pequeno? Você precisa ajudar a nossa rainha. É importante para a família real ter um filho.

– Não pelo trono – interveio Beth. – Não de minha parte. Eu só quero ser mãe e ter o filho do meu marido. No fundo, é simples assim.

Layla se calou. Ela estava feliz por ter Qhuinn ao seu lado naquela jornada, mas teria sido maravilhoso ter um parceiro de verdade para se deitar ao seu lado e acalentá-la durante o dia, para amá-la e segurá-la e lhe dizer que ela era preciosa não só pelo que o seu corpo era capaz de produzir, mas pelo que ela lhe inspirava em seu coração.

Uma imagem do rosto rústico de Xcor surgiu subitamente em sua mente.

Balançando a cabeça, ela concluiu que não, não poderia pensar naquilo. Ela tinha de se manter calma e relaxada pelo bebê, pois seu estresse poderia ser transmitido para aquilo que seu ventre nutria. Além disso, ela já fora abençoada com tanto, e se aquela gestação vingasse até o fim, e ela sobrevivesse ao parto?

Ela receberia um milagre verdadeiro e contínuo.

– Estou certa de que tudo dará certo com o Rei – declarou. – O destino tem seu modo de nos dar aquilo de que precisamos.

– Amém, irmã. Amém.

 


Sola parou o seu Audi exatamente no meio do caminho de carros da casa de vidro às margens do rio e estacionou bem na porta de trás da maldita construção.

Saindo, plantou as botas na neve, colocou a mão dentro da parca no cabo da pistola e fechou a porta com o quadril. Ao marchar para a entrada de trás, fez contato visual com o telhado.

Deveria haver uma câmera de segurança ali.

Ela não se deu ao trabalho de tocar a campainha ou bater à porta. Ele saberia que ela estava ali. E se ele não estivesse em casa? Bem, nesse caso ela pensaria em algum tipo de cartão de visitas para lhe deixar.

Talvez um alarme disparado? Ou uma janela ou armário abertos?

Talvez algo faltando dentro da casa...

A porta se abriu e lá estava ele, em carne e osso – exatamente como na noite anterior, e mesmo assim, de algum modo mais alto, mais perigoso, mais sexy do que ela se lembrava.

– Isso não é um pouco óbvio para você? – ele perguntou com lentidão.

Ele vestia um terno preto de algum tipo de designer, e a roupa só podia ter sido feita sob medida, porque o caimento era perfeito.

– Estou aqui para esclarecer uma coisa – disse ela.

– E, ao que parece, veio para estabelecer alguns termos – como se aquela fosse uma ideia intrigante. – Mais alguma coisa? Trouxe o jantar? Estou com fome.

– Vai me deixar entrar ou vamos fazer isto no frio mesmo?

– Por acaso, a sua mão está armada?

– Claro que sim.

– Nesse caso, por favor, entre.

Quando ele recuou, ela revirou os olhos. Por que o fato de ela poder atirar nele encorajaria o homem a permitir a sua entrada era um mistério...

Sola ficou imobilizada quando olhou para a cozinha moderna. Lado a lado estavam dois homens que eram a imagem idêntica um do outro. Também eram tão grandes quanto o homem a quem ela viera procurar – e ambos tinham uma arma na mão.

Só podiam ser aqueles que estiveram com ele debaixo daquela ponte.

A porta se fechou, e ainda que as glândulas adrenais dela tivessem lançado um sinal de alerta, ela escondeu tal reação.

Aquele a quem ela viera ver lançou-lhe um sorriso ao passar por ela.

– Estes são meus associados.

– Quero conversar a sós com você.

O homem se recostou contra uma bancada de granito, colocou um charuto entre os dentes e o acendeu com um isqueiro de ouro. Quando ele fechou a tampa, exalou uma baforada de fumaça azulada e olhou na sua direção.

– Cavalheiros, se nos derem licença por um minuto, por favor.

Os gêmeos senhores Felicidade não pareceram contentes com a dispensa. Pensando bem, mesmo que recebessem bilhetes premiados na loteria eles seriam capazes de arrancar sua mão até o pulso. Só por princípios.

No entanto, eles se encaminharam para longe dali, movendo-se de um modo sincronizado que era incrivelmente perturbador.

– Onde arranjou esses dois? – ela perguntou com aspereza. – Na internet?

– Incrível o que se pode adquirir no eBay...

Abruptamente, ela deixou de lado as amenidades.

– Quero que pare de me seguir.

O homem deu uma tragada no charuto, a ponta gorda brilhando alaranjada.

– Mesmo?

– Você não tem por que fazer isso. Não voltarei aqui novamente... por nenhum motivo.

– Verdade?

– Você tem a minha palavra.

Não havia nada que Sola detestasse mais do que admitir uma derrota – e deixar de lado a investigação desse homem e daquela propriedade era um tipo de renúncia. Mas a noite passada, enquanto ela esteve num encontro com um completo inocente, pelo amor de Deus, cerificou-a de que as coisas estavam se descontrolando. Ela era perfeitamente capaz de brincar de gato e rato; era o que fazia em sua vida profissional. Contudo, com aquele homem? Não havia um objetivo a ser conquistado; nenhum pagamento à sua espera quando informações fossem coletadas; nenhuma intenção de roubá-lo.

E os riscos só vinham aumentando.

Ainda mais se voltassem a se beijar, porque ela duvidava que fosse capaz de parar e a definição de estupidez seria ir para a cama com alguém como ele.

– A sua palavra? – ele repetiu. – E exatamente quanto isso vale?

– É tudo o que tenho a lhe oferecer.

Os olhos dele, aqueles raios laser, detiveram-se em sua boca.

– Não tenho tanta certeza disso.

O sotaque dele e aquela voz grave e deliciosa transformavam as sílabas em uma carícia, uma que ela quase sentia na pele.

Motivo pelo qual ela estava fazendo aquilo.

– Você não tem motivo para me seguir. A partir de agora.

– Talvez eu aprecie a vista – enquanto os olhos percorriam seu corpo, outra onda de choque a acometeu, mas não do tipo ansioso. – Sim, tenho certeza disso. Diga-me uma coisa, gostou do seu passeio ontem? A comida estava do seu agrado? A companhia...?

– Estou colocando um ponto-final nisso agora. Você não vai mais me ver.

Como aquilo era tudo o que ela tinha a dizer, deu-lhe as costas.

– Acha honestamente que isto entre eu e você acaba aqui?

A voz bela e sombria continha uma ameaça velada.

Sola olhou por cima do ombro.

– Você me pediu para não invadir, nem espionar, e eu não vou fazer nada disso.

– E eu lhe digo novamente, acha, honestamente, que isto termina assim?

– Estou lhe dando o que quer.

– Nem chega perto do que quero – ele rosnou.

Por um momento, aquela ligação que fora forjada no frio, enquanto seus lábios se tocavam no carro dela e os corpos enrijeceram, voltou à tona.

– É tarde demais para recuar – outra baforada. – A sua chance de sair veio... e foi embora.

Ela se virou de frente.

– Lamento lhe dizer isso, mas quanta besteira. Não tenho medo de você, nem de ninguém, então, venha me pegar. Mas saiba que vou machucá-lo para me defender...

Um som abrupto reverberou no ar entre eles.

Um ronronar? O homem estava mesmo ronronando?

Ele deu um passo à frente. Depois outro. E como um cavalheiro faria, manteve o charuto afastado, pois não queria queimá-la nem deixar que a fumaça a atingisse no rosto.

– Diga-me o seu nome – ele disse. Ou comandou?

– Acho difícil de acreditar que já não o saiba.

– Não sei – isso foi dito com um arquear de sobrancelha, como se buscar informações estivesse aquém dele. – Diga-me o seu nome e eu a deixarei ir, por ora.

Deus... aqueles olhos... eram o luar e as sombras, uma cor impossível, misto de prateado, violeta e azul-claro.

– Como nossos caminhos não se cruzarão mais, isso não é relevante...

– Só para sua informação... você se entregará a mim...

– Como é?

– Mas antes vai me implorar.

Sola se projetou para a frente, seu temperamento implodindo sua atitude de “vamos ser razoáveis”.

– Só por cima do meu cadáver.

– Lamento, isso não faz o meu tipo – ele deixou cair o queixo e a fitou por sob as pálpebras abaixadas. – Prefiro você quente... e molhada.

– Isso não vai acontecer – ela deu meia-volta e se dirigiu para a porta. – Estamos entendidos.

Assim que ela entrou na antessala, seus olhos captaram algo sobre um banco acomodado na parte baixa da parede oposta.

Sua cabeça virou para trás, e seus pés falsearam. Era uma adaga, uma adaga muito longa, tão longa que era quase uma espada.

Havia sangue fresco na lâmina.

– Reconsiderando a sua partida? – perguntou a voz sombria bem atrás dela.

– Não – ela se dirigiu para a porta e a abriu. – Já estou de saída.

Batendo a porta atrás de si, ela quis correr para o carro, mas se recusou a ceder ao pânico mesmo esperando que ele viesse atrás dela.

No entanto, o homem ficou parado, pairando no vidro da porta que ela acabara de utilizar, observando-a entrar no carro, dar a partida e passar a marcha no Audi.

Ao se recostar no banco do motorista, ela sentiu o coração disparar.

Ainda mais depois que um pensamento aterrador lhe ocorreu.

Enfiando a mão na bolsa, ela tateou em busca do celular e, quando o encontrou, procurou um nome na lista de contatos e selecionou um deles, apertando o botão da chamada. Tomada pelo medo, ela apoiou o celular na orelha, apesar do seu carro ter Bluetooth e ser ilegal, em Nova York, dirigir sem as duas mãos no volante.

Um toque.

Dois toques.

Três...

– Oi! Eu estava esperando que você me ligasse.

Sola se largou no banco, a cabeça batendo no encosto.

– Olá, Mark.

Deus, ouvir o som da voz do homem era um alívio.

– Você está bem? – seu professor de ginástica perguntou.

Ela pensou na lâmina ensanguentada.

– Estou, sim. Está saindo do trabalho?

Enquanto embarcavam numa conversa agradável, ela saiu dirigindo, o pé pesando no acelerador, o cenário passando às pressas. Neve branquinha. Estrada cheia de sal. Árvores em seus esqueletos. Chalezinho antigo com a luz acesa dentro. Espaço vazio à margem esquerda do rio.

Toda vez que ela piscava, via a silhueta no vidro daquela porta. Observando. Planejando. Esperando...

Por ela.

E, bom Deus, seu corpo estava desesperado para ser capturado por ele.


CAPÍTULO 60

Enquanto Qhuinn se materializava, a sua lanterna iluminava o último chalé. Dessa vez, ele não esperou pelos outros, simplesmente marchou adiante, direto para a porta, que estava intacta e fechada...

Sua primeira pista de que algo estava errado surgiu quando segurou a maçaneta antiga e gasta: um choquinho elétrico atravessou sua mão e subiu pelo braço.

Retirando a mão, ele sacudiu o braço, e seus instintos ficaram em alerta.

– O que foi? – Rhage perguntou ao subir na varanda baixa.

Qhuinn olhou ao redor, notando que Blay e John estavam nas imediações.

– Não sei.

Rhage foi até a porta e teve a mesma sensação, retraindo-se subitamente.

– Mas que merda...?

– É, não é... – murmurou Qhuinn ao recuar um passo e iluminar o exterior.

As duas janelas em cada lado da entrada haviam sido cobertas por tábuas, e quando ele andou ao redor da casa, viu que o mesmo fora feito com aquelas do outro lado.

– Que se foda – grunhiu Rhage. O Irmão recuou três passos e depois se lançou contra a porta, o ombro forte num ângulo como um aríete.

Com o impacto, a madeira da porta se estilhaçou...

Subitamente, uma luz ofuscante cruzou a noite, iluminando a floresta como se uma bomba tivesse explodido, lançando Rhage para trás.

Enquanto Blay e John corriam para verificar se o lutador se ferira, Qhuinn avançou, preparando-se enquanto atravessava o batente, esperando ser atingido por algumas centenas de volts de sabe-se lá o quê.

Em vez disso, ele só atingiu o ar, e seu impulso foi tão grande que ele teve que se recolher numa bola a fim de não cair de cara no chão. Uma respiração depois, ele se impulsionou no chão e aterrissou agachado, uma arma numa mão, a lanterna na outra.

Algo fedia muito ali.

– Atrás de você – avisou Blay, quando um segundo facho de luz se juntou ao seu.

O ar dentro do chalé estava estranhamente quente, como se houvesse um sistema de aquecimento ligado, só que isso não era possível. Não havia eletricidade, nem tanque de combustível. E já fazia um tempo que alguém estivera ali, a julgar pela camada de poeira imperturbável nas tábuas do chão e pelas teias de aranha, delicadas e verticais que se penduravam a partir do teto como cordas inertes.

– O que é isso? – perguntou Blay.

Ao girar seu facho de luz, Qhuinn franziu a testa. Havia um bom número do que pareciam ser tambores de óleo contra a parede oposta, todos juntos, como se tivessem sentido medo de algo e se arrumado em círculo para autoproteção.

Qhuinn andou até lá, sempre movendo a lanterna em círculos amplos, e franziu o cenho mais uma vez quando conseguiu olhar direito para os latões. Nenhum deles tinha tampa e sua luz parecia refletir algum tipo de óleo.

– Mas... que diabos é isso?

Inclinando-se sobre um deles, ele inspirou profundamente e sentiu as narinas queimarem com o fedor forte de assassinos. A julgar pelo modo como a sua luz não conseguia penetrar a superfície do líquido, ele soube que só podia ser uma coisa, e, por certo, aquilo não poderia ser usado como aquecedor ou gerador.

Era o sangue de Ômega.

– Atrás de vocês – disse Rhage ao entrar.

Um assobio suave anunciou que John também entrara.

– Isso é o que eu acho que é? – perguntou Blay ao parar ao lado de Qhuinn.

Qhuinn acomodou a lanterna entre os dentes e esticou a mão nua. Assim que fez contato com a viscosidade desagradável, algo subiu à superfície do barril...

– Cacete! – exclamou, pulando para trás.

Enquanto sua lanterna caía e rolava pelo chão, o facho de Blay iluminava o que quer que tivesse se movido.

Um braço.

Havia alguém dentro daquele tambor.

– Jesus Cristo – sussurrou Blay.

Atrás deles, a voz de Rhage soou alta:

– V.? Precisamos de assistência aqui. Agora.

Qhuinn se inclinou para baixo e apanhou a lanterna. Voltando a apontá-la para o líquido oleoso, ele observou quando o braço se movimentou novamente, mergulhando logo abaixo da superfície, o movimento elevando o pulso e o dorso da mão...

Algo reluziu, e esse fulgor breve atraiu a atenção de Qhuinn. Ajustando o ângulo do facho de luz, inclinou-se ainda mais sobre o tonel.

A mão não parecia bem, as juntas estavam deformadas, faltavam partes dos dedos ou eles inteiros, como se tivessem sido colocados dentro de um moedor...

Aquele brilho surgiu novamente na fossa do sangue de Ômega.

Seria... um anel?

– Espere, espere, Qhuinn... Você tem que recuar.

Qhuinn ignorou o comentário ao se inclinar ainda mais para a frente, aproximando-se, aproximando-se...

Aproximando-se...

A princípio, ele custava a acreditar no que via. Simplesmente não poderia estar vendo um anel de sinete.

Porém, o que mais poderia ser? Estava no indicador, o único dedo que não fora arrancado. E era de ouro – mesmo com todo aquele óleo preto, o brilho amarelado era evidente. E o anel em si tinha uma faceta larga na qual estava gravada...

– Qhuinn – disse Rhage com aspereza –, afaste-se imediatamente...

O braço se moveu novamente, a mão pálida rompendo a superfície do líquido, parecendo um espectro emergindo de uma tumba, esticando-se...

O sangue de Ômega escorreu da superfície do anel, revelando...

– Qhuinn, não estou brincando...

Um barulho explodiu dentro do chalé, preenchendo o ar.

Ele ignorou completamente que o grito saíra de sua boca.

 

A princípio, Blay pensou que o que quer que estivesse no tonel tivesse agarrado Qhuinn e o puxado para dentro e que foi por isso que Qhuinn gritou. Instintivamente, ele avançou e segurou a cintura de Qhuinn, como se lançasse uma âncora e a puxasse de volta.

O que saiu do tonel atormentaria os pesadelos de Blay durante anos... décadas.

Na verdade, o que estava dentro não se agarrara a Qhuinn; foi exatamente o contrário. Enquanto Blay puxava para trás, uma forma masculina saía do local apertado, o sangue de Ômega caindo pelas laterais em riachos, açoitando o piso frio de madeira do chalé, atingindo os coturnos e as calças de couro de Blay, encharcando Qhuinn.

Qhuinn teve que se esforçar para continuar segurando aquilo que escorregava de suas mãos, a arma e a lanterna esquecidas, as mãos enluvadas apalpando e arranhando para não perder o contato...

E quando eles içaram...

O barril de óleo caiu de lado enquanto o macho nu se estatelava aos seus pés.

Ninguém se moveu. Foi como se todos tivessem acabado de tomar suas posições num palco.

Blay reconheceu quem era imediatamente.

E não acreditou.

O morto voltando para o mundo dos vivos... por assim dizer.

Qhuinn se agachou e tocou no ombro do macho. Em seguida, pronunciou o nome do irmão com voz rouca:

– Luchas?

A resposta foi imediata. As mãos do irmão lentamente começaram a girar, as pernas machucadas a se debater, o corpo nu tentando se mover. A pele estava coberta de hematomas, a parca iluminação das lanternas revelava cada contusão, laceração e hematoma, a mancha do sangue de Ômega gradualmente sumindo da pele pálida.

Bom Deus, o que fizeram com ele? Um dos olhos estava fechado pelo inchaço, e a boca estava torta, como se ele tivesse sido socado ali. Quando ele se retorceu, pareceu que os dentes tinham permanecido intactos, mas aquele era o único sinal de misericórdia que pareceram ter para com ele.

– Luchas? – repetiu Qhuinn. – Consegue falar comigo?

Mais ao lado, Rhage estava novamente ao telefone.

– V.? Temos uma situação nas mãos... Quanto tempo vai demorar... o quê? Não, absolutamente, não. Preciso de você... Não, você. E Payne – Hollywood olhou de relance e articulou apenas com a boca “sabem quem ele é?”.

Blay teve que limpar a garganta, sua resposta saindo aos tropeços:

– É... o irmão dele.

Rhage piscou forte. Balançou a cabeça. Inclinou-se.

– Desculpe. O que você...

– O irmão dele – Blay repetiu alto e claro.

– Jesus... – sussurrou Rhage. E depois reagiu. – Agora, V. Agora.

– Luchas, consegue me ouvir? – perguntou Qhuinn.

Vishous invadiu o chalé uma fração de segundo mais tarde. O Irmão estava coberto em sangue de redutor e sangue vermelho graças a um corte no rosto – também respirava como um trem de carga e tinha uma adaga gotejante na mão.

No instante em que viu sobre o que eles estavam rodeados, ele parou.

– Mas que merda é essa?

Rhage rapidamente fez gestos perpendiculares à garganta, interrompendo qualquer outro comentário. Depois segurou o braço de V. e o arrastou para longe do alcance dos outros ouvidos. Quando os dois voltaram, V. não revelava emoção alguma.

– Deixe-me dar uma olhada nele – disse V.

Qhuinn apenas continuou falando com o irmão, as palavras saindo numa corrente contínua que não fazia muito sentido. Pensando bem, até onde todos sabiam, o macho fora assassinado nos ataques, junto ao pai, a mãe e a irmã de Qhuinn. Portanto, sim, aquilo era o bastante para fazer até Shakespeare sofrer de um caso de balbucios.

Só que... não era possível, Blay pensou. Havia quatro corpos na casa – e Luchas estivera entre eles.

Blay deveria saber disso. Fora ele a entrar lá para identificá-los.

Ele apoiou uma mão no ombro de Qhuinn.

– Ei.

As palavras de Qhuinn foram sumindo. Depois, ele fitou os olhos de Blay.

– Ele não está respondendo.

– Pode deixar o V. dar uma olhada nele? Precisamos de um parecer médico – e talvez muito mais para ter respostas quanto ao que acontecia ali. – Vamos, venha comigo até ali.

Qhuinn se endireitou e recuou, mas não se distanciou muito, e seu olhar nunca se despregou do irmão.

– Será que o transformaram? – ele cruzou os braços e se enrolou para a frente. – Acha que o transformaram?

Blay balançou a cabeça e desejou poder mentir.

– Eu não sei.


CAPÍTULO 61

Enquanto Qhuinn encarava o chão do chalé, seu cérebro resgatava todo tipo de lembranças desconexas, a noção concreta de que sua família inteira fora devastada colidindo com o que parecia ter sido uma realidade completamente diferente.

Ele continuava a voltar para aquela noite, há tanto tempo, quando passara pela porta de entrada da casa dos pais e encontrara a família toda reunida à mesa de jantar... e o irmão recebendo o anel de sinete que agora estava na mão destroçada.

Você haveria de pensar que um cara torturado, porém vivo, seria tudo em que alguém conseguiria se concentrar.

– O que está acontecendo, V.? – ele exigiu saber. – Como ele está?

– Vivo – o Irmão limpou a adaga na coxa coberta pelo couro da calça. – Filho? Filho, consegue me ouvir?

Luchas continuou olhando para Qhuinn, seus lindos olhos cinza injetados de sangue e arregalados. A boca se movia, porém nenhum som saía dela.

– Filho, vou ter que cortá-lo, está bem? Filho?

Qhuinn sabia exatamente o que V. procurava saber.

– Vá em frente.

O coração de Qhuinn começou a bater como um punho contra seu esterno enquanto o Irmão pegava a adaga negra e fazia um corte no lado externo do braço de Luchas. O cara não reagiu; pensando bem, com tudo o que lhe acontecera... Aquilo era apenas um pingo num tonel de água.

Por favor, seja vermelho, seja vermelho, seja vermelho...

Sangue vermelho se avolumou e escorreu, num contraste brilhante contra o óleo negro no qual ele estava coberto.

Todos emitiram um suspiro de alívio que nem sequer sabiam que estavam represando.

– Ok, filho, isso é bom, é muito bom...

Eles não o haviam transformado.

V. se levantou do chão e fez um gesto de lado com a cabeça, indicando que queria conversar reservadamente. Enquanto Qhuinn o seguia, puxou o braço de Blay e o levou consigo. Era o mais natural a ser feito. Aquilo era muito sério, e ele sabia que não estava acompanhando muito bem – e não havia ninguém mais que ele quisesse consigo.

– Não tenho o medidor de pressão nem um estetoscópio, mas posso lhe garantir uma coisa... a pulsação dele está fraca e irregular, e tenho quase certeza de que ele está em estado de choque. Não sei quanto tempo ele ficou ali dentro e nem o que lhe fizeram, mas ele está vivo no sentido convencional da palavra. O problema é que Payne está fora da jogada – os olhos de V. cintilaram. – E vocês sabem por quê.

Ah, então ele falara com a irmã.

– Ela não poderá ser capaz de usar a magia dela – o Irmão continuou – e estamos a um milhão de quilômetros de qualquer lugar.

– Ou seja – disse Qhuinn.

V. o encarou.

– Ele vai morrer nas próximas horas se...

– V.! – exclamou Rhage. – Venha aqui!

No chão, o corpo castigado de Luchas se erguia sozinho, as mãos quebradas se fechavam em suas palmas, os joelhos se retesavam, a coluna se curvava para o teto do chalé.

Qhuinn se lançou para a frente e se ajoelhou perto da cabeça do irmão.

– Fique comigo, Luchas. Vamos, lute...

Aqueles olhos cinzentos se fixaram nos de Qhuinn, e a agonia deles era tão esmagadora que Qhuinn mal notou V. se apressando para perto e removendo a luva da mão brilhante.

– Qhuinn! – o Irmão exclamou, como se já tivesse repetido o nome dele algumas vezes.

Ele não desviou o olhar do irmão.

– O quê?

– Isto pode matá-lo, mas talvez faça seu coração voltar a bater no ritmo certo. É arriscado, mas é a única chance dele.

Na fração de segundo antes da resposta, ele sentiu uma necessidade esmagadora de que o irmão superasse aquilo de algum modo. Mesmo mal conhecendo o cara, e tendo se ressentido dele por anos – e depois ter sido surrado por ele quando Luchas se juntara à Guarda de Honra –, ele não percebera até eles terem sumido o quanto é possível se sentir desorientado sendo o único ser no planeta sem que ninguém mais do seu sangue esteja com você.

Em retrospecto, esse vazio fora exatamente o que o motivara durante o cio de Layla. E o que o fizera procurar Blay instintivamente.

Ame-os ou odeie-os, por laços de sangue ou do coração, a família era um tipo de oxigênio.

Necessário aos seres vivos.

– Vá em frente – disse ele.

– Espere – Blay interrompeu, tirando o cinto e entregando-o a Qhuinn. – Para a boca dele.

Mais uma razão para amar o cara. Não que ele precisasse de mais uma.

Qhuinn posicionou a tira de couro na boca aberta do irmão e segurou-a no lugar ao assentir para V.

– Fique comigo, Luchas. Vamos... Fique comigo...

Pelo canto do olho, ele rastreou o brilho da luz branca se aproximando do esterno do irmão...

O peito de Luchas se ergueu, o corpo todo sofrendo um espasmo nas tábuas do chão enquanto uma luz brilhante o atravessava, afunilando-se pelos braços e pelas pernas, irradiando-se da cabeça. O som que ele produziu não foi humano, um gemido gutural que atingiu Qhuinn bem em sua medula.

Quando V. retraiu a mão, a palma irradiante erguida, Luchas caiu como o peso morto que era, o corpo rebatendo, os membros vibrando.

Ele piscou rapidamente, como se uma brisa o atingisse no rosto.

– Mais uma vez – exigiu Qhuinn. Quando V. não respondeu, ele o encarou. – Mais uma vez.

– Isso é loucura – murmurou Rhage.

V. avaliou o macho por um instante. Depois aproximou a mão letal novamente.

– Uma vez, é só o que você terá – ele disse a Luchas.

– Maldição – Rhage interveio. – Mais do que isso e ele vira churrasquinho.

O segundo choque foi tão ruim quanto o primeiro – o corpo judiado se contorcendo, Luchas emitindo aquele som horrendo antes de aterrissar num baque de ossos.

Mas ele respirou. Uma respiração profunda, grande, poderosa que expandiu a caixa torácica.

Qhuinn sentiu vontade de rezar e achou que estava mesmo quando entoou:

– Vamos, vamos, vamos...

A mão dilacerada, aquela do anel, esticou-se e segurou a camisa de Qhuinn. A pegada era fraca, mas Qhuinn se inclinou.

– O quê? – disse ele. – Fale devagar.

A mão escorregou para a jaqueta.

– Fale comigo.

A mão do irmão parou no cabo de uma de suas adagas.

– Mate... me...

Os olhos de Qhuinn se arregalaram.

A voz de Luchas não era nada parecida com o que um dia fora, não passava de um sussurro rouco.

– Mate... me... irmão... meu...


CAPÍTULO 62

– Como é que você está? – Blay perguntou.

Parado na varanda do chalé Qhuinn inspirou e percebeu cheiro de cigarro. Blay acendera outro, e por mais que Qhuinn detestasse esse hábito, ele não tinha como culpá-lo. Inferno, se ele curtisse aquilo, também se apoiaria naqueles pregos de caixão.

Olhou-o de relance. Blay o fitava com paciência, obviamente preparado para esperar pela resposta, mesmo se demorasse o resto da noite.

Qhuinn consultou o relógio. Uma da manhã.

Quanto tempo demoraria para que o resto da Irmandade chegasse ali? E será que o plano de evacuação que bolaram iria funcionar?– Sinto como se estivesse enlouquecendo – respondeu.

– Também sinto isso – Blay exalou a fumaça na direção oposta. – Não acredito que ele está...

Qhuinn fitou as árvores diante deles.

– Eu nunca lhe perguntei sobre aquela noite.

– Não. E, francamente, eu não o culpo.

Atrás deles, no chalé, Rhage, V. e John estavam com Luchas. Todos tinham tirado as jaquetas e o envolveram com elas numa tentativa de mantê-lo aquecido.

Parado apenas com a camiseta e as armas, Qhuinn não sentia o frio.

Pigarreou.

– Você o viu?

Fora Blay a entrar na mansão depois do ataque. Qhuinn simplesmente não teve coragem de identificar os corpos.

– Sim, eu o vi.

– Ele estava morto?

– Até onde eu sabia, sim. Ele estava... Sim, eu não achei que existisse qualquer chance de ele estar vivo.

– Sabe, não vendi a casa.

– Ouvi dizer.

Tecnicamente, como membro repudiado da família, ele não teria nenhum direito à propriedade. Contudo, tantos foram mortos que ninguém exigiu a propriedade, e ela, de acordo com as Leis Antigas, fora revertida para o Rei, depois do que Wrath imediatamente a passou para Qhuinn como propriedade alodial.

O que quer que isso significasse.

– Eu não sabia o que pensar quando me disseram que eles haviam sido assassinados – Qhuinn levantou o olhar para o céu. A previsão era de mais neve, portanto, não havia nenhuma estrela visível. – Eles me odiavam. Acho que eu também os odiava. E depois eles não estavam mais lá.

Atrás dele, Blay ficou imóvel.

Qhuinn sabia por que e um embaraço repentino o fez enfiar as mãos nos bolsos. Sim, ele absolutamente detestava falar de emoções e esse tipo de baboseira, mas não havia como calar aquilo. Não ali. Sozinho. Com Blay.

Limpando a garganta, ele continuou:

– Mais do que tudo, fiquei aliviado, para ser bem franco. Não tenho como explicar o que foi crescer naquela casa. Com todas aquelas pessoas olhando para mim como se eu fosse uma maldição viva para eles – balançou a cabeça. – Eu costumava evitá-los o quanto podia, usando as escadas dos criados, ficando naquela parte da casa. Mas então os doggen ameaçaram se demitir. Na verdade, o maior benefício da minha transição foi que eu podia me desmaterializar direto da janela do meu quarto. Assim ninguém tinha que lidar comigo.

Mesmo quando ouviu Blay praguejando baixinho, Qhuinn não conseguiu parar de falar.

– E sabe o que era pior? Eu via que o amor era possível quando o meu pai olhava para o meu irmão. Teria sido uma coisa se o bastardo nos odiasse a todos, mas não. E isso me fez perceber o quanto eu era excluído – Qhuinn o olhou de relance. Remexeu os pés. – Por que está olhando assim para mim?

– Desculpe. Hum... desculpe. É que você... você nunca falou deles. Nunca.

Qhuinn franziu o cenho e mediu o céu, visualizando as estrelas mesmo sem poder enxergá-las.

– Eu queria. Com você, isto é. Com ninguém mais.

– E por que não falou? – como se aquilo fosse algo que o cara estivesse se perguntando há algum tempo.

No silêncio que se seguiu, Qhuinn remexeu nas lembranças nas quais nunca se demorava, vendo a si mesmo. A sua família. Vendo... Blay.

– Eu adorava ficar na sua casa. Eu não tenho como dizer o que aquilo significava para mim. Lembro-me da primeira vez que me convidou. Eu estava certo de que os seus pais me expulsariam. Eu estava pronto para isso. Inferno, eu tinha que lidar com aquela merda na minha própria casa, por que, então, completos desconhecidos não o fariam também? Mas a sua mãe... – Qhuinn pigarreou novamente. – A sua mãe me fez sentar à mesa da cozinha e me deu comida.

– Ela ficou devastada por você ter se sentido mal. Logo depois, você correu para o banheiro e ficou vomitando por uma hora.

– Eu não estava vomitando.

A cabeça de Blay se virou de repente.

– Mas você disse...

– Eu estava chorando.

Quando Blay se retraiu, Qhuinn deu de ombros.

– Qual é, o que eu iria dizer? Que chorei como uma menininha no chão do banheiro? Deixei a torneira aberta para que ninguém me ouvisse e dava descarga de vez em quando.

– Nunca soube disso.

– Esse era o plano – Qhuinn o fitou. – O plano foi sempre esse. Eu não queria que você soubesse como era ruim ficar na minha casa, porque eu não queria que você sentisse pena. Eu não queria que você, ou os seus pais, sentissem a obrigação de me acolher. Eu queria que você fosse o meu amigo... e você foi. Sempre foi.

Blay desviou rápido o olhar. Depois esfregou o rosto com a mão que não segurava o cigarro.

– Foram vocês que me fizeram superar aquilo – Qhuinn se ouviu dizer. – Eu vivia para as noites, porque eu poderia sair da casa. Era a única coisa que me fazia seguir em frente. Você, na verdade, fazia com que eu seguisse em frente. Sempre foi... você.

Quando os olhos de Blay voltaram a pousar sobre os seus, ele teve a sensação de que o cara estava à procura de palavras.

E que Deus os ajudasse, pois, não fosse por Saxton, Qhuinn teria lançado a palavra que começa com “A” bem ali, apesar de ser uma péssima hora.

– Você pode, sabe – disse Blay, por fim. – Falar comigo.

Qhuinn bateu os pés no chão e curvou os ombros, esticando os músculos das costas.

– Cuidado. Posso cobrar essa promessa.

– Isso ajudaria – quando Qhuinn olhou novamente, era Blay quem balançava a cabeça. – Não sei o que estou dizendo.

Até parece, pensou Qhuinn...

Sem aviso, V. emergiu do chalé, acendendo um cigarro caseiro enquanto saía. Enquanto Qhuinn se calava, não sabia se sentia alívio por aquela conversa ser forçada a um final ou não.

Exalando fumaça, V. disse:

– Preciso me certificar de que você compreende as consequências.

Qhuinn assentiu.

– Já sei o que você vai dizer.

Aqueles olhos de diamante se fixaram nos seus.

– Bem, vamos deixar às claras assim mesmo, está bem? Não sinto a presença de Ômega nele, mas se ele surgir ou se eu tiver deixado passar algum sinal, vou ter que cuidar dele.

Mate-me, irmão meu. Mate-me.

– Faça o que precisar fazer.

– Ele não pode entrar na mansão.

– Aceito.

V. ergueu a mão não letal.

– Jure.

Parecia estranho segurar a palma do Irmão e vincular sua palavra com o contato – porque era o que parentes faziam em situações como aquela, e Deus bem sabia que ele não era próximo de ninguém a esse ponto: mesmo antes de ser repudiado pela família, ele fora a última pessoa a poder jurar baseado em linhagens.

No entanto, os tempos mudaram, não?

– Mais uma coisa – V. bateu as cinzas da ponta do cigarro. – Vai ser uma recuperação muito longa e difícil para ele. E eu não estou só falando da parte física. Você precisa estar preparado.

Como se antes ele tivesse tido algum tipo de relacionamento com o cara... Ele podia partilhar um pouco do seu DNA com o sujeito, mas, fora isso, Luchas era um completo estranho.

– Eu sei.

– Ok. Muito justo.

Ao longe, o som agudo de motores cruzou a escuridão.

– Ainda bem – Qhuinn disse ao entrar no chalé novamente.

No canto, onde o tonel fora derrubado, o irmão não passava de uma pilha de jaquetas, o corpo retorcido coberto pelas mantas improvisadas.

Qhuinn atravessou as tábuas do piso, acenando para John e para Rhage.

Ajoelhando-se ao lado do irmão, sentiu como se estivesse num sonho, e não na realidade.

– Luchas? Preste atenção, eis o que vai acontecer. Vamos levá-lo num trenó. Você vai para uma clínica de tratamento. Luchas? Está me ouvindo?

 

Enquanto dois snowmobiles se aproximavam do chalé, Blay acompanhava o progresso deles da varanda, observando os faróis crescerem e ficarem mais luminosos, o par de motores passando para um ronco baixo quando chegaram ao destino. Ah, muito bom, atrás de um deles, havia um trenó coberto, do tipo que se via nos Jogos Olímpicos de Inverno quando algum esquiador se machucava e no qual era transportado montanha abaixo.

Perfeito.

Manny e Butch desmontaram e correram.

– Eles estão aqui – disse Blay, saindo do caminho do médico.

– Luchas? Está comigo? – ele ouviu Qhuinn murmurar.

Espiando para dentro, Blay viu Manny se inclinar por sobre o corpo de Luchas. Caramba, que noite. E ele que pensara que o show aéreo de algumas noites atrás fora um dramalhão e tanto...

Sempre foi você.

Voltando a fitar a floresta, Blay esfregou o rosto novamente, como se isso pudesse ajudar. Ele queria acender outro Dunhill, mas quanto mais aquilo demorava, mais paranoico ele ficava. A última coisa que aquela situação precisava era de um esquadrão de redutores aparecendo antes que conseguissem transportar Luchas para um local seguro.

Melhor ter uma .40 do que um cigarro nas mãos.

Sempre foi você.

– Você está bem? – Butch perguntou.

Já que a noite parecia ter como tema a honestidade, ele balançou a cabeça.

– Nem um pouco.

O tira o segurou pelo ombro.

– Então você o conhecia.

– Pensei que sim – ah, não, espere, a pergunta era sobre Luchas. – Isto é, sim, eu o conhecia.

– Isso tudo deve ser dureza.

Blay olhou por sobre o ombro novamente e viu, mais uma vez, Qhuinn agachado ao lado do irmão. O rosto do seu velho amigo estava envelhecido naqueles fachos de luz, a ponto de Blay se perguntar se de fato o vira relaxado quando estiveram juntos... Ou se ele estivera equivocado.

Sempre foi... você.

– É duro – ele murmurou.

E estranho também.

Logo após a transição, ele procurou por algum sinal de que o modo como ele se sentia pelo amigo fosse recíproco, alguma pista quanto a em que ponto Qhuinn se encontrava. No entanto, ele não enxergara nada, nada além da lealdade incontestável, da amizade, das habilidades tremendas de lutador. Durante todos aqueles encontros com outras pessoas, e nos treinamentos, e nas noites no campo de batalha... ele sempre se sentiu do lado absolutamente oposto do que desejava, fitando um muro que ele não tinha como transpor.

Aquele tempo breve na varanda?

Foi a primeira vez em que ele teve um vislumbre daquilo que desejava ainda mais do que sexo.

Merda, por um momento traiçoeiro, ele se perguntou se, de fato, entre as palavras que Layla deixara escapar do lado de fora do seu quarto havia o “estar”.

– Eles vão levá-lo agora – Butch segurou o braço de Blay e o tirou do caminho. – Venha para cá.

Luchas estava adequadamente coberto agora, com uma manta térmica Mylar prateada envolvendo-o dos pés à cabeça, deixando apenas uma parte do seu rosto visível. Eles o acomodaram numa maca dobrável, com Qhuinn numa ponta e V. na outra; Manny caminhava ao lado, como se não estivesse bem certo se precisaria ressuscitá-lo a qualquer instante.

Perto do trenó, eles o transferiram e o amarraram.

– Eu o levo – anunciou Qhuinn ao montar no snowmobile e dar a partida.

– Vá devagar e não pare – avisou Manny. – Ele não passa de uma pilha de ossos quebrados.

Qhuinn olhou para Blay.

– Vem comigo?

Não havia motivo para responder. Ele marchou até lá e se acomodou atrás do cara.

Bem ao estilo de Qhuinn, ele nem se importou em esperar pelos outros. Apenas apertou o acelerador e partiu. No entanto, ele prestou atenção à recomendação médica: deu uma volta ampla e seguiu os rastros que eles deixaram antes, mantendo a velocidade rápida para ganharem tempo, mas não tanto a ponto de sacudir Luchas.

Blay mantinha as armas a postos.

Enquanto Manny e Butch seguiam no outro snowmobile ao lado deles, os Irmãos e John Matthew se materializavam em distâncias regulares, aparecendo ao lado das trilhas paralelas.

Pareceu demorar cem anos.

Blay literalmente pensou que nunca conseguiriam sair dali. Parecia que os rugidos agudos de lamentação dos motores, o borrão que era aquela floresta escura e as manchas brancas e brilhantes das clareiras seriam a última coisa que ele veria.

Ele rezou o percurso inteiro.

Quando a estrutura grande em forma de caixa do hangar finalmente ficou visível, ao seu lado, estacionado, estava a coisa mais linda que Blay já vira.

O Escalade de Butch e V.

As coisas se sucederam bem rápidas a partir dali: Qhuinn parando ao lado do SUV, Luchas sendo transferido para o banco de trás, os snowmobiles sendo carregados no reboque preso atrás, Qhuinn seguindo para o banco do passageiro.

– Quero que Blay dirija – disse antes de entrar.

Houve um segundo de pausa. Em seguida, Butch assentiu e jogou as chaves.

– Manny e eu vamos atrás.

Blay se acomodou detrás do volante, mexeu no assento para acomodar as pernas e acionou o motor. Com Qhuinn ao seu lado, ele olhou e disse:

– Coloque o cinto.

O macho o obedeceu, ajustando a faixa de nylon por sobre o peito. Depois, imediatamente, virou-se para trás para se concentrar no irmão.

Uma sensação de determinação única se acomodou sobre os ombros de Blay e ele apertou as mãos. Não se importava pelo que tivesse de passar por cima, atropelar ou deixar as marcas da grade do carro; ele levaria Qhuinn e o irmão dele para o centro de treinamento e para a clínica.

Pressionando o pedal do acelerador, não olhou para trás.


CAPÍTULO 63

Trez franziu para a calculadora na qual vinha inserindo números. Esticando a mão para pegar a lingueta longa de papel que se pendurava pelo outro lado da sua escrivaninha, ele tentou enxergar a coluna de números que acabara de produzir.

Piscou.

Esfregou os olhos. Abriu-os novamente.

Nada. O círculo pulsante no quadrante superior direito do seu campo de visão ainda estava ali, e isso não era resultado de um problema de visão.

– Merda.

Empurrando os recibos que vinha somando de lado, olhou para o relógio, depois apoiou a cabeça nas mãos. Ao apertar os olhos, a aura ainda estava no mesmo lugar, o padrão de formas geométricas entrelaçadas brilhando em todas as cores do arco-íris.

Ele tinha cerca de 25 minutos antes de o inferno acontecer na Terra – e não conseguiria se desmaterializar.

Pegando o telefone do escritório, apertou o botão do interfone. Dois segundos depois, a voz de Xhex se fez ouvir pelo alto-falante, mais aguda do que de costume. O que significava que a sua sensibilidade auditiva também estava sendo afetada.

– Ei, diz aí... – ela disse.

– Estou ficando com enxaqueca. Preciso ir embora.

– Puxa, cara, que merda. Não teve uma na semana passada?

Tanto faz. Isso não vinha ao caso.

– Pode assumir?

– Precisa de carona para casa?

Sim.

– Não. Eu consigo – ele começou a juntar a carteira, o celular, as chaves. – Ligue se precisar, ok?

– Pode deixar.

Trez inspirou fundo quando a ligação terminou e ele se levantou. Por enquanto, sentia-se perfeitamente bem. E a boa notícia era que ele não estava nem a quinze minutos de casa, mesmo se pegasse todos os faróis vermelhos. O que lhe daria dez para se trocar, pegar um cesto de lixo e deixar uma toalha ao lado da cama e se preparar para um colapso digestivo.

Dali a seis ou sete horas? Ele se sentiria bem melhor.

Infelizmente, entre o agora e o depois seria uma merda.

A caminho da porta do escritório, pegou a jaqueta, colocou-a por sobre os ombros e se preparou para a música do outro lado.

Quando saiu, deu de cara com a parede que era o peito considerável de iAm.

– Me passe as chaves – foi tudo o que o irmão disse.

– Você não tem que...

– Eu pedi a sua opinião?

– Maldita Xhex...

– Logo atrás do seu irmão – a fêmea o interrompeu. – E sei que você disse isso como uma forma de elogio.

– Estou bem – disse Trez, ao tentar mudar o campo de visão para enxergar sua chefe de segurança.

– Quantos minutos até que a dor piore? – Xhex sorriu, mostrando as presas. – Quer mesmo desperdiçar esse tempo discutindo comigo?

Trez abriu caminho pela boate e, no instante em que o frio o golpeou nas narinas, seu estômago protestou, como se estivesse prestes a agir.

Acomodando-se no assento do passageiro do seu BMW, ele fechou os olhos e recostou a cabeça. A aura estava se expandindo, a linha original de brilho se dividira em dois e se esticara, movendo-se lentamente para a margem da sua visão.

Durante o trajeto para casa, ele se sentiu grato por iAm não ser do tipo conversador.

Embora isso não significasse que ele não sabia no que o cara estava pensando.

Estresse demais. Dores de cabeça demais.

Ele, provavelmente, também precisava se alimentar, mas isso não aconteceria por um tempo.

Enquanto o irmão dirigia com atenção, Trez passou o tempo imaginando em que parte da cidade estavam, que faróis tinham passado ou nos quais paravam; que curvas faziam; onde estava o Commodore, com sua torre alta ficando cada vez maior conforme se aproximavam.

Uma inclinação súbita lhe disse que estavam entrando na garagem subterrânea e que ele se atrasara em sua visualização mental: até onde ele supunha, eles deviam estar alguns quarteirões mais para trás.

Diversas curvas à esquerda enquanto espiralavam três andares para baixo até uma das duas vagas que lhes pertenciam.

Quando entraram no elevador e iAm apertou o botão do décimo oitavo, a aura vagara para os confins da sua visão, desaparecendo como se jamais tivesse existido.

A calmaria antes da tempestade.

– Obrigado por me trazer para casa – disse com sinceridade. Ele detestava depender de qualquer pessoa para qualquer coisa, mas seria muito difícil não atingir nada enquanto flashes de neon pipocam atrás dos seus glóbulos.

– Achei que seria melhor assim.

– É...

Ele e o irmão não falaram da visita do sumo sacerdote desde que ela acontecera, entretanto aquela aparição cordial de AnsLai estava entre os dois, mas, pelo menos, iAm deixara de lado sua irritação para trazê-lo para casa.

A primeira indicação para Trez de que a dor de cabeça estava começando de fato foi o modo como a campainha sutil de aviso de chegada ao destino deles atravessara sua cabeça como uma bala.

Ele gemeu quando as portas se abriram.

– Isso vai ser ruim.

– Você não teve uma na semana passada?

E ele imaginou quantas pessoas poderiam lhe perguntar isso ainda.

iAm cuidou da trava na porta, e Trez largou a jaqueta dois metros depois da entrada. Despiu o suéter de cashmere preta a caminho do corredor e estava desabotoando a camisa de seda quando entrou...

Ao ficar imobilizado, a única coisa que lhe passou pela cabeça foi aquela cena do filme Trocando as bolas – quando Eddie Murphy entra no seu quarto do apartamento luxuoso e uma garota seminua se ergue de sua cama e diz: “Olá, Billy Ray”.

A diferença nesta situação era que a sua perseguidora, aquela do namorado valentão com problemas de confiança, era loira e não vestia o corpete justo dos anos 1980. Para falar a verdade, ela estava absoluta e completamente nua.

A arma que apareceu sobre o ombro dele estava firme e, como acessório, tinha um silenciador.

Portanto, iAm poderia matá-la, sem problemas.

– Pensei que ficaria feliz em me ver – a garota disse, olhando dele para o cano da arma do irmão.

Como se quisesse parecer mais sedutora, ela levantou um braço para mexer nos cabelos, mas se ela tinha esperanças de os seios o atiçarem, estava sem sorte: aquelas pedras falsas estavam tão imóveis quanto algo pregado na parede.

– Como entrou aqui? – Trez exigiu saber.

– Não está feliz em me ver? – quando não recebeu nenhuma resposta e o cano ainda estava mirado nela, ela fez beiço. – Fiz amizade com o segurança, está bem. O quê? Ah, ‘tá bom... eu chupei ele, ok?

Quanta classe.

E aquele policial contratado cretino ficaria desempregado.

Trez andou até a pilha de roupas no pé da cama.

– Vista-se e saia.

Deus, como estava cansado.

– Ora, vamos lá – ela se lamuriou quando as coisas dela caíram ao seu redor. – Eu só queria fazer uma surpresinha para quando você chegasse do trabalho. Pensei que isso fosse fazer você feliz.

– Vejamos... não fez. Você tem que sair daqui... – como ela abriu a boca como se fosse dar uma de louca para ele, ele balançou a cabeça e a interrompeu. – Nem pense nisso. Não estou a fim e o meu irmão aqui não se importa muito se você vai sair daqui andando ou num saco plástico. Vista-se. Saia.

A garota olhou de um para o outro.

– Você foi tão legal comigo na outra noite.

Trez fez uma careta quando a dor se apossou do lado direito da sua cabeça.

– Meu bem, vou ser bem franco com você. Nem sei o seu nome. Nós transamos duas vezes...

– Três vezes...

– Não me interessa quantas vezes foram. O que eu sei é que você vai se esquecer disso tudo hoje. Se você me procurar de novo ou vir até aqui, eu vou... – o Sombra dentro dele queria ser mais sangrento em sua explicação, mas ele se forçou a continuar em termos humanos que ela pudesse entender. – ... chamar a polícia. E você não vai querer isso, porque é viciada em drogas e também negocia paralelamente. E se eles vasculharem sua casa, seu carro, sua bolsa, vão encontrar muitas coisas bem interessantes. Eles vão pegar você e o idiota com quem está dormindo por posse de drogas com o intuito de distribuição, e vão mandar vocês para a cadeia.

A garota só piscou.

– Não me obrigue, benzinho – Trez disse numa voz exausta. – Você não vai gostar do que vai acontecer.

Digam o que quiserem a respeito da moça, mas ela era rápida quando devidamente motivada. Alguns minutos depois, após algumas poses de ioga para enfiar aqueles pesos plásticos dentro de uma “blusa” dois números menores, ela estava a caminho, bolsinha barata sobre o ombro, os saltos altos pendurados pelas alças.

Trez não disse nada. Apenas a seguiu até a porta, abriu... e fechou na cara dela quando ela se virou para dizer alguma coisa.

E fechou a trava manualmente.

iAm guardou a pistola.

– Temos que nos mudar. Este lugar não é confiável.

Seu irmão estava certo. Não que onde moravam fosse um grande segredo, mas ficar no Commodore dava a ideia de que o segurança não seria estúpido o bastante para deixar uma mulher subir sem a permissão dos proprietários.

Se isso podia acontecer uma vez, poderia acontecer novamente...

Abruptamente, a dor se intensificou, como se o volume do concerto infernal em seu crânio tivesse disparado de súbito.

– Vou vomitar por algum tempo – murmurou ao se arrastar dali. – Vamos começar a mudança assim que esta enxaqueca passar...

Ele ficou sem saber o que iAm respondera, ou até mesmo se o cara chegara a responder.

Cacete.


CAPÍTULO 64

Parado do lado de fora da sala de exames do centro de treinamento, Qhuinn tinha as mãos enfiadas nos bolsos da calça, os dentes cerrados com força, as sobrancelhas tão baixas que pareciam unidas.

Esperando... Esperando...

Ele concluiu que essa coisa médica era bem parecida com uma bela luta: longos períodos sem fazer nada, interpostos por muitos momentos de morte e vida.

Era o bastante para estampar um carimbo de louco na testa de alguém.

Ele olhou para a porta.

– Quanto tempo mais acha que vai demorar?

Do outro lado, Blay cruzou e descruzou as longas pernas. O cara se esticara no chão na última meia hora, mas aquela fora a única concessão para aquele buraco de minhoca em que foram tragados.

– Já deve estar terminando agora – ele respondeu.

– É. O corpo só tem determinado número de partes, certo?

Depois de um instante, Qhuinn se concentrou melhor no macho. Havia círculos escuros ao redor dos olhos de Blay e as faces estavam encovadas. Ele também estava mais pálido do que de costume, o rosto claro demais.

Qhuinn se aproximou, recostou-se contra a parede e deixou os coturnos deslizarem até que seu traseiro batesse no chão ao lado de Blay.

Blay olhou para ele e lançou um breve sorriso, depois voltou a fitar as pontas das botas.

Qhuinn observou quando a própria mão se esticou e resvalou o maxilar do amigo. E quando Blay se assustou e olhou para ele, Qhuinn descobriu que queria fazer muito mais – e não sexualmente. Ele queria trazer o macho para o colo e deixar Blay repousar sua cabeça ali. Queria afagar os ombros fortes e passar os dedos pelos cabelos ruivos curtos. Queria que algum passante lhe trouxesse uma coberta para que ele envolvesse e esquentasse o corpo poderoso que parecia enfraquecido.

Qhuinn se forçou a desviar os olhos e afastou a mão.

Deus, como ele se sentia... preso. Ainda que não houvesse algemas nele.

Olhando para baixo, verificou os pulsos. Os tornozelos. Sim, totalmente livres. Nada o segurava.

Abaixando as pálpebras, ele deixou a cabeça encostada na parede. Em sua mente, ele tocava em Blay – e, de novo, não de modo sexual. Apenas sentia a vitalidade debaixo da pele, o deslocamento dos músculos, a solidez dos ossos.

– Acho que você deveria procurar Selena – disse-lhe.

Blay exalou como se algo o tivesse atingido no peito.

– É, eu sei.

– Podemos ir juntos – Qhuinn se ouviu oferecendo.

Ele abriu os olhos a tempo de ver a cabeça de Blay virar rapidamente em sinal de surpresa.

– Ou você pode ir na frente, sozinho – Qhuinn estalou as juntas. – Como achar melhor.

Merda. Em face do que vinha acontecendo com Saxton, aquilo talvez fosse um pouco demais. Alimentar-se, afinal, podia ser um ato mais íntimo do que o sexo...

– É... – Blay respondeu com suavidade. – Vou fazer isso.

O coração de Qhuinn começou a bater com força. E, mais uma vez, não porque esperasse conseguir algo do cara. Ele só queria...

Partilhar. Ele achava que a palavra certa era essa.

Não, espere. Era mais do que isso. Ele queria cuidar do macho.

– Sabe, acho que nunca lhe agradeci – murmurou.

Quando os olhos azul bebê de Blay o encararam, quis desviar o olhar – o contato visual era quase demais para ele suportar. Mas logo pensou no irmão naquele leito hospitalar – e em todos os modos como as pessoas eram roubadas do tempo.

Jesus, ele manteve tantas coisas reservadas por tanto tempo – e todas lhe pareceram perfeitamente válidas. Mas isso não seria arrogância demais? Que tipo de relutância pressupunha que ele teria tempo para falar daquilo que desejava? Que a pessoa no fundo da sua mente sempre estaria por perto? Que ele mesmo estaria?

– Pelo quê? – perguntou Blay.

– Por nos trazer para casa. A mim e a Luchas – ele inspirou fundo e exalou o ar lentamente. – E por ficar aqui ao meu lado a noite inteira. Por procurar Payne e pedir a ajuda dela. Por cuidar da minha retaguarda no campo de batalha e durante os treinamentos. E também pela cerveja e pelos videogames. Pelas batatinhas e pelos M&M’s. Pelas roupas que peguei emprestado. Pelo chão em que dormi quando passava a noite na sua casa. Obrigado por me deixar abraçar a sua mãe e conversar com o seu pai. Obrigado... pelas milhares de coisas boas que fez para mim.

Do nada, mais uma vez se lembrou da noite em que chegara em casa a tempo de testemunhar o pai entregando o anel de sinete de ouro para o irmão.

– Obrigado por me telefonar naquela noite – disse roucamente.

As sobrancelhas de Blay se ergueram.

– Que noite?

Qhuinn pigarreou.

– Depois que Luchas passou pela transição e meu pai lhe entregou... você sabe, o anel – ele balançou a cabeça. – Subi para o meu quarto e pensei em fazer algo... hum, algo verdadeiramente estúpido. Você me telefonou. Você foi até lá. Lembra?

– Lembro.

– Não foi a única vez em que fez algo assim.

Enquanto Blay desviava o olhar, Qhuinn soube exatamente para onde a mente do cara tinha se voltado. Sim, aquela noite não fora a única em que quase pulara do precipício.

– Eu já disse que sentia muito – Qhuinn declarou. – Mas acho que nunca agradeci. Por isso... obrigado.

Antes de perceber o que estava fazendo, ele esticou a mão, oferecendo a palma. Pareceu-lhe apropriado marcar aquele momento, ali, naquele instante, naquele lugar, do lado de fora da sala de operações do seu irmão arrebentado, com algum tipo de contato solene.

– Apenas... obrigado.

 

Inacreditável.

Depois do que pareceram vidas ao lado de Qhuinn, Blay pensava que as surpresas tinham chegado ao fim. Que o macho não poderia arranjar nada mais que o deixasse sem fala.

Errado.

Jesus... de todas as conversas imaginárias que teve em sua cabeça com o cara, conversas nas quais fingia que Qhuinn se abria, ou dizia algo bem perto “da coisa certa”, nada nunca se tratara de gratidão. Mas aquilo... era exatamente o que ele precisava ouvir, mesmo sem saber disso.

E aquela palma ofertada lhe partiu o coração.

Ainda mais porque o irmão do cara estava às portas da morte na sala diante deles.

Blay não aceitou a mão oferecida.

Ele esticou o braço, segurou o rosto do lutador e aproximou Qhuinn para um beijo.

Que deveria ter durado apenas um segundo – como se os lábios se encontrando equivalessem a um aperto de mãos. Quando foi se afastar, porém, Qhuinn o capturou, e o segurou no lugar. As bocas se encontraram de novo... e de novo... e mais uma vez, as cabeças inclinadas para o lado, o contato se demorando.

– Não tem de quê – Blay disse rouco. Depois sorriu de leve. – Contudo, não garanto que tenha sido sempre um prazer.

Qhuinn riu.

– É. Imagino que emprestar as calças não tenha sido divertido – o macho ficou sério. – Por que, diabos, ficou sempre por perto?

Blay abriu a boca, a verdade pairava na ponta da língua.

– Ah... Merda. Desculpem, rapazes, não quis interromper.

Qhuinn se afastou com tanta rapidez que literalmente arrancou o rosto das mãos de Blay. Depois, num salto, se pôs de pé e encarou V., que acabara de sair da sala de operações.

– Sem problemas. Não estava acontecendo nada de mais.

Enquanto a expressão de V. registrava um “até parece”, Qhuinn apenas encarou o Irmão, como se desafiasse Vishous a ter uma opinião contrária à sua.

No silêncio entre os dois machos, Blay se levantou mais lentamente e descobriu que estava tonto, e não porque não havia se alimentado.

Sem problemas. Não estava acontecendo nada de mais.

Para ele, não foi bem assim. Maaaas, mais uma vez, Qhuinn se desvencilhara de qualquer proximidade, escondera-se atrás de um escudo, retraíra-se, desconectara-se.

Só que... Caramba, era a hora errada. O lugar errado. E V. era a última pessoa diante da qual você gostaria de demonstrar todo o seu amor.

No entanto, aquilo serviu de lembrete. Situações estressantes tinham um modo de tornar a mais rígida das personalidades maleáveis. Pelo menos por um tempo. Tristeza, choque, ansiedade extrema... tudo isso podia deixar alguém vulnerável e propenso a falar de modo que não falaria costumeiramente porque tinha suas defesas completamente inoperantes. O comportamento extraordinário não era um sinal da mudança da maré, porém. Não era um indicador de algum tipo de conversão religiosa segundo o qual, dali por diante, tudo ficaria diferente.

Qhuinn estava mexido pelo que acontecia com o irmão. E qualquer revelação ou declaração emotiva que saísse de sua boca, sem dúvida, seria o produto do estresse pelo qual passava.

E ponto.

Nada de “estar apaixonado” ali. Não mesmo. Não permanentemente. E, droga, ele tinha que se lembrar disso.

– ... os ossos vão ficar no lugar? – Qhuinn estava perguntando.

Blay procurou se concentrar enquanto V. acendia um dos seus cigarros e exalava a fumaça para longe deles.

– Primeiro, nós o estabilizamos. Selena vai alimentá-lo novamente e depois vamos abrir o abdômen dele numa cirurgia exploratória para descobrir de onde vem a hemorragia. Depois que virmos o que está acontecendo, consertamos os ossos.

– Vocês têm alguma ideia do que possa ter acontecido com ele?

– Ele não está falando no momento.

– Ok. Entendo.

– Por isso precisamos do seu consentimento. Ele não é capaz de entender os riscos e os benefícios.

Qhuinn passou os dedos pelos cabelos.

– Sim. Claro. Façam o que precisarem fazer.

V. exalou novamente, o cheiro do tabaco turco permeando o ar e lembrando a Blay exatamente quantas horas, minutos e segundos fazia que ele acendera seu último cigarro.

– Você tem Jane, Manny, Ehlena e a mim ali dentro. Não vamos deixar que nada aconteça com ele, está bem? – ele segurou Qhuinn pelo ombro. – Ele vai superar. Nem que nós quatro morramos tentando.

Qhuinn murmurou um agradecimento.

E V. olhou para Blay. Depois olhou para Qhuinn. Pigarreou.

Sim, o Irmão estava fazendo um tipo de cálculo mental. Perfeito.

– Por isso, fiquem por aqui. Eu volto com notícias assim que souber de alguma coisa. É isso aí.

As sobrancelhas do Irmão se ergueram bem alto na testa, as tatuagens na têmpora se distorcendo enquanto ele esmagava o toco do cigarro mal fumado com a sola do coturno.

– Volto daqui a pouco – disse antes de voltar a entrar.

Após a saída do Irmão, Qhuinn andou de um lado para o outro, os olhos fixos no piso de concreto, as mãos nos quadris estreitos, as armas que ele se esquecera de tirar captando a luz fluorescente do lugar e reluzindo.

– Vou sair para fumar – Blay informou. – Volto logo.

– Você pode fumar aqui – Qhuinn sugeriu. – A porta é selada.

– Preciso de um pouco de ar fresco. Mas não vou demorar.

– Ok.

Blay saiu apressado, indo direto para a porta no fim do corredor que se abria para o estacionamento. Quando chegou lá, abriu caminho com um soco e inspirou profundamente.

Ar fresco, o cacete. Tudo o que obteve foi um ar seco e carregado de concreto.

Mas pelo menos estava mais arejado ali.

Merda.

Deixara os cigarros na maldita jaqueta. No chão. Do lado de fora da sala de operações.

Enquanto praguejava e andava de um lado para o outro, ele se sentiu tentado a socar alguma coisa, mas juntas machucadas seriam apenas mais uma coisa que ele deveria explicar para as pessoas.

E o que V. testemunhara já era mais do que o bastante.

Enfiando as mãos nos bolsos das calças, ficou intrigado ao sentir que a direita resvalava em algo duro.

O isqueiro de Saxton. Aquele que o macho lhe dera em seu aniversário.

Pegando o objeto, ele o virou e revirou na mão, pensando em tudo o que fora dito no corredor.

Houve uma época em que ele teria pegado essas palavras e as colocado numa cornija em sua cabeça e em seu coração, dando-lhe um lugar de destaque para garantir que a sua preciosidade ficasse para sempre com ele pelo resto de sua vida.

Por tantos anos aqueles momentos no chalé e no chão duro e frio de agora há pouco teriam bastado para deixar de lado qualquer conflito, qualquer rusga e dor, deixando tudo tão imaculado que ele se relacionaria como um virgem para com Qhuinn.

Um começo do zero.

Tudo não só perdoado, como também esquecido.

Esse não era mais o caso.

Deus, ele provavelmente era jovem demais para se sentir tão velho, mas a vida se baseava mais em experiência e não em dias do calendário. E parado ali, sozinho, ele, definitivamente, sentia-se um ancião: estava absoluta e completamente livre da ingenuidade colorida e otimista que acompanhava a visão de vida de um jovem.

Quando se acreditava que os milagres não eram impossíveis... mas meramente ocasionais.

Ainda bem que V. aparecera naquela hora.

Senão, três palavrinhas teriam escapado da sua boca. E, sem dúvida, o condenariam de um modo que ele sequer poderia imaginar.

Hora errada. Local errado.

Para esse tipo de coisa.

Para sempre.


CAPÍTULO 65

Enquanto iAm andava de um lado para o outro no apartamento, ele mantinha a pistola sempre consigo – ainda que fosse altamente improvável que houvesse um segundo round com alguma vagabunda nua invadindo o “lar, doce lar” do seu irmão e dele.

Maldição, ele bem que precisava de uma fumaça vermelha. Só para se livrar dessa irritação.

Por que, naquele exato instante, ele estava à beira da violência.

Ele supunha que a boa notícia era que ele, de fato, não tinha um alvo, e era isso o que o mantinha estagnado. A enxaqueca estava acabando com seu irmão. E aquela pobre mulher desgastada que fora acompanhada até a porta da frente? Ela já estava sendo torturada em níveis demais para se contar. Agora, aquele segurança seria um excelente candidato, mas o filho da mãe já saíra do trabalho uma hora antes, e iAm não estava disposto a deixar Trez naquele estado vulnerável só para poder dar um corretivo no imbecil...

Ao longe, ele ouviu o sussurro dos canos de esgoto.

Era a descarga do vaso sanitário de Trez sendo acionada. De novo.

E logo se seguiu uma imprecação, o rangido da estrutura de madeira enquanto Trez se deitava na cama.

Pobre. Coitado.

iAm foi até as imensas janelas que davam vista para o rio e parou para fitar a margem oposta de Caldwell. Pousando as mãos nos quadris, ele examinou os lugares para onde poderiam se mudar. A lista era curta. Inferno, um dos principais benefícios do Commodore fora a sua segurança; com isso, eles nem se importavam em acionar o alarme.

O que se mostrara um erro.

Eles necessitavam de um lugar seguro. Protegido. Impenetrável.

Ainda mais se seu irmão continuasse com aquela mania de conquistar e abandonar, e se AnsLai mantivesse suas visitas “diplomáticas”.

iAm voltou a andar. Era impossível ignorar o fato de que seu irmão estava piorando. Aquela situação sexual vinha se arrastando há anos – e por um bom tempo, iAm apenas a catalogou como um impulso sexual saudável de um macho.

Algo que muitas vezes ele acreditou que lhe faltasse.

Pensando bem, seu irmão transara com fêmeas em número suficiente por eles dois.

Nos últimos meses, contudo, ficara evidente que o processo vinha se intensificando – e isso antes de o sumo sacerdote começar a aparecer. E agora que as coisas pareciam estar chegando ao fim com AnsLai? As maquinações do s’Hisbe simplesmente colocariam ainda mais pressão em seu irmão, o que o levaria a aprontar ainda mais.

Merda. iAm sentia como se estivesse diante de um entroncamento, computando a velocidade de uma locomotiva e da aproximação de um carro... e ver a carnificina seria o resultado. A metáfora também se aplicava por ele se sentir tão impotente, visto que não conseguiria deter nenhuma das forças: não estava atrás do volante, nem no assento do maquinista. Tudo o que lhe restava fazer era se acomodar e assistir à cena.

Ou, muito provavelmente, gritar ao lado da estrada.

Para onde diabos eles poderiam ir...

Franzindo o cenho, ergueu o olhar do cenário, subiu pela moldura de gesso e parou no teto.

Depois de um minuto, pegou o celular e fez um telefonema.

Quando desligou, foi até o quarto do irmão. Entreabrindo a porta, disse para o silêncio escuro e denso:

– Vou dar uma saída rápida. Volto logo.

O gemido de Trez poderia significar qualquer coisa, desde “Beleza” até “Ai, não tão alto” ou até “Bom divertimento, vou continuar vomitando mais um pouco”.

iAm andou rápido. Para fora do apartamento. Para dentro do elevador.

Dentro do qual, apertou o botão “C” de Cobertura.

Quando a porta deslizou se abrindo, havia duas escolhas: uma direção o levava para o apartamento do Irmão Vishous; a outra para o do seu velho amigo.

Ele se encaminhou para a campainha de Rehvenge.

Quando o sympatho abriu a porta, Rehv apareceu como de costume: com seu corte moicano, os olhos violeta e casaco de marta. Perigoso. Um tanto diabólico.

– Ei, cara, como está? – disse o macho ao se abraçarem e baterem no ombro um do outro. – Entre.

Enquanto iAm entrava no espaço privativo do Reverendo pela primeira vez em mais ou menos um ano, descobriu que nada havia mudado e, por algum motivo, isso era um alívio.

Rehvenge foi até o sofá de couro e se sentou, apoiando a bengala ao seu lado e cruzando as pernas.

– Do que precisa?

Enquanto iAm tentava juntar as palavras certas, Rehv imprecou.

– Caramba, eu sabia que esta não era uma visita social, mas não esperava que as suas emoções estivessem tão conturbadas.

Ah, sim, as características de devorador de pecados equivaliam a não esconder nada do macho.

Ainda assim, era difícil falar.

– Não sei bem se está a par do que está acontecendo com Trez?

Rehv franziu o cenho, as sobrancelhas escuras se unindo sobre aquele olhar violeta intenso.

– Pensei que o Iron Mask estivesse indo bem. Vocês estão com problemas? Tenho bastante dinheiro se precisarem...

– Os negócios estão ótimos. Temos mais dinheiro do que conseguimos gastar. O problema são as atividades extracurriculares do meu irmão.

– Ele não está metido com drogas, está? – Rehv perguntou com severidade.

– Mulheres.

Rehv gargalhou e dispensou essa preocupação com um gesto de lado da mão da adaga.

– Ah, se é só isso...

– Ele está completamente descontrolado, e uma delas apareceu do nada no nosso apartamento. Chegamos em casa e lá estava ela.

Rehv se recostou e franziu o cenho.

– No seu apartamento? Como é que ela conseguiu entrar?

– O menor denominador comum com um segurança – iAm se movimentou ao redor da sala moderna, notando de passagem que a vista, de fato, era melhor dali de cima. – Trez vem transando com tudo que se move há anos, mas, recentemente, ele tem sido negligente: não apaga as memórias, transa com a mesma mais de uma vez, não se preocupa com as consequências.

– Que diabos está havendo com ele?

iAm se virou e encarou o mestiço, que era a coisa mais perto de uma família que ele tinha, além da sua carne e do seu sangue. A bem da verdade, ele confiava mais naquele cara do que em 99% dos seus familiares de fato.

– Trez está comprometido.

Longo silêncio.

– Como que é?

iAm assentiu.

– Ele está comprometido.

Rehv se levantou do sofá.

– Desde quando?

– Desde o nascimento.

– Aaaahhhh... – Rehv emitiu um assobio suave. – Então é uma coisa do s’Hisbe.

– Ele foi prometido para a filha primogênita da rainha.

Rehv se calou por um instante. Depois esfregou a cabeça.

– Isso faria dele um maldito Rei, não faria?

– Isso mesmo. Embora sejamos uma sociedade matriarcal, isso não é uma irrelevância.

– Olha só – o macho murmurou. – Ele, eu e Wrath. Que trio.

– Bem, é diferente para o s’Hisbe, claro. É a rainha quem dita tudo para nós.

– Então o que ele está fazendo aqui fora? Com todos nós Desconhecidos?

– Ele não quer ligação alguma com o s’Hisbe.

– Ele tem poder de escolha?

– Não – iAm olhou para o bar num canto. – Importa-se se eu me servir de um drinque?

– ‘Tá de brincadeira? Eu já estaria bêbado se estivesse no seu lugar.

iAm foi até lá, pesou suas opções e acabou escolhendo uma garrafa com um pequeno rótulo no gargalo escrito Bourbon. Serviu sem gelo e, ao sorver um gole do copo de cristal, saboreou a queimação na língua.

– Gostoso.

– Coleção Parker’s Heritage, lote pequeno. O melhor.

– Não pensei que gostasse de beber.

– Isso não é desculpa para não conhecer aquilo que sirvo para os meus convidados.

– Ah.

– Então, qual é o plano?

iAm inclinou a cabeça para trás, esvaziou o copo e engoliu de uma vez.

– Precisamos de um lugar seguro para ficar. E não só por conta da situação com aquela mulher. Recebemos uma visita do sumo sacerdote na semana passada, isso significa que eles estão começando a levar a sério essa coisa de voltar para casa. Eles estão à procura dele, e se o encontrarem? Temo que ele mate o representante do s’Hisbe. E aí sim teremos um belo problema.

– Acha mesmo que ele chegaria a esse ponto?

– Sim, acho sim – iAm se serviu de outra dose. – Ele não vai voltar para lá. E eu preciso de tempo para encontrar uma maneira de resolver esse conflito antes que algo desastroso aconteça.

– Vocês querem se mudar para a minha casa no norte?

iAm secou o segundo copo de Bourbon de uma vez só.

– Não – ele o encarou. – Quero que nos mudemos para o complexo da Irmandade.

Enquanto Rehv praguejava longa e lentamente, iAm se serviu mais uma vez.

– É o lugar mais seguro para nós.

 

Xcor estava coberto de sangue de redutor e suor ao voltar para seu novo esconderijo. Seus lutadores ainda estavam no centro da cidade, enfrentando o inimigo, mas ele teve que sair e procurar refúgio.

Havia um belo corte em seu braço.

A casa que Throe arranjara para eles estava localizada num bairro modesto cheio de casas modestas com garagens para dois carros e balanços nos jardins. Dentre as suas vantagens, estava o fato de se localizar no fim de uma rua sem saída, e de haver um lote vazio de um lado e a unidade de processamento do Departamento de Esgoto de Caldwell do outro.

Eles teriam aquela casa por três meses com uma opção de compra ao fim do contrato.

Enquanto se desmaterializava pelas cortinas fechadas da sala de estar, ele lamentou o sofá macio em forma de L, suas almofadas cheias de borlas, com sua cor quase de cozido de carne.

Ainda que apreciasse a calefação existente, o fato de o lugar vir “decorado” o incomodava. No entanto, ele sentia estar sozinho nisso: nos últimos dias, flagrou um ou outro dos seus soldados reclinado no maldito monstro, as cabeças largadas para trás, as pernas bem esticadas e confortáveis.

O que viria em seguida? Mantinhas?

Partindo escada acima, sentiu saudades do castelo sombrio que ainda possuíam no Antigo País. Desejou o peso das pedras que os circundavam, a natureza impenetrável do projeto, com seu fosso e muros altos. Lamentou também a falta do divertimento de que desfrutavam assustando os aldeões, dando presença física ao mito.

Bons tempos, diriam aqui no Novo Mundo.

No segundo andar, ele se recusou a olhar os quartos. O rosa em um deles queimava seus olhos, e o verde-água de outro também era um ataque aos seus sentidos. E não havia alívio ao entrar na suíte principal. Papel de parede florido por todos os lados. Sobre a cama, diante das janelas e cobrindo toda a poltrona no canto.

Pelo menos suas botas de combate esmagavam o carpete fofo, deixando marcas fundas como hematomas em seu caminho até o banheiro.

Pelo amor de Deus, ele nem tinha como definir o esquema de cores dali.

Amora?

Estremecendo, desejou deixar as luzes de cima da pia desligadas, mas com as cortinas de florzinhas fechadas, a iluminação da rua abaixo estava completamente invisível, e ele precisava ver o que fazia...

Ah, pelos deuses.

Esquecera-se das cúpulas de renda dos abajures.

Na verdade, em qualquer outro ambiente, as iluminações gêmeas em vermelho sugeririam algo de natureza sexual. Mas não naquele antro excessivamente agradável e meigo. Ali, elas pareciam dois confeitos de goma brilhando na parede.

Ele quase engasgou por excesso de estrogênio.

Num ato de autopreservação, retirou as duas cúpulas ofensivas de cima das lâmpadas e as deixou na bancada entre as pias duplas. Depois, tirou o cabresto, o casaco, as adagas e as pistolas. A camiseta que usava estava manchada pelas longas noites de luta, mas era lavada regularmente – e seria usada mais uma vez. Roupas, afinal, não passavam de pele que os vampiros não recebiam ao nascer.

Não serviam como decoração pessoal – pelo menos não para ele.

Voltando-se para o espelho, resmungou.

O assassino com quem lutara mão a mão fora muito bom com uma adaga, provavelmente consequência de sua vida pregressa nas ruas, e que satisfação combater com alguém com tantas habilidades! Claro que, no fim, ele vencera, mas a batalha fora estimulante.

Infelizmente, porém, ele levara para casa um suvenir do conflito: um corte no bíceps que dava a volta e terminava no alto do ombro. Bem desagradável. Mas ele já estivera em situação pior.

E, por isso, ele sabia como se cuidar. Perfilados sobre a bancada estavam os vários itens que ele e seus lutadores necessitavam de tempos em tempos: um frasco de álcool CVS para desinfetar, um isqueiro BIC, diversas agulhas, um carretel de fio de náilon de pesca.

Xcor fez uma careta ao tirar a camiseta e quando a manga curta que fora rasgada passou raspando no corte, abrindo-o mais. Cerrando os dentes, ele ficou parado, a dor se intensificando a ponto de sua barriga se contrair como um punho fechado.

Respirando fundo, ele esperou até que as sensações diminuíssem, depois pegou o frasco de álcool. Retirou a tampa branca, inclinou-se sobre a pia, preparou-se e...

O som que escapou dos seus dentes cerrados era parte rugido, parte gemido. Enquanto sua visão formava quadriculados, ele fechou os olhos e apoiou o quadril na beira da pia.

Inspirando profundamente, suas narinas ardiam com o cheiro, mas não havia como recolocar a tampa: sua bela coordenação motora ainda estava comprometida.

Andando um pouco para clarear a cabeça, ele foi para o quarto e deu ao seu corpo um tempo para se recalibrar. Enquanto a dor o acompanhava, como se tivesse um cachorro atado ao braço que tentava comê-lo vivo, ele praguejou diversas vezes.

E acabou no andar de baixo. Onde a bebida estava.

Por nunca ser de se embebedar, vasculhou as sacolas de lona com bebidas que Zypher trouxera com eles do armazém. O soldado apreciava um drinque de tempos em tempos e, por mais que Xcor não aprovasse, há muito ele aprendera que se devia conceder certas liberdades no que se referia a lutadores agressivos e inquietos.

E numa noite como aquela, ele se viu grato.

Uísque? Gim? Vodca?

Não fazia diferença.

Pegou uma garrafa qualquer, quebrou o selo da tampa e inclinou a cabeça para trás. Abrindo a boca, ele derramou o que quer que aquilo fosse para dentro da garganta, engolindo a despeito de seu esôfago queimar como se estivesse pegando fogo.

Xcor continuou a beber enquanto subia. Tomou ainda mais enquanto andava de um lado para o outro à espera de sentir os primeiros efeitos.

E mais bebida.

Ele ficou sem saber quanto tempo levou, mas, no fim, voltou para o banheiro bem iluminado, passando uns sessenta centímetros da linha preta pela cabeça fina da agulha. Diante do amplo espelho retangular sobre as pias, ele se sentiu grato pelo fato de a adaga do redutor ter se deparado com o seu braço esquerdo. Isso significava que, como macho destro, ele poderia lidar com aquilo sozinho. Se tivesse sido do outro lado? Ele precisaria de ajuda.

A bebida ajudou imensamente. Ele mal percebeu quando perfurou a pele e fez um nó com a ajuda dos dentes.

De fato, o álcool era uma substância curiosa, ponderou ao começar a fileira de pontos. O entorpecimento que o abatera fazia com que ele se sentisse submerso em água quente, o corpo estava relaxado, a dor ainda presente, mas a intensidade da agonia estava bem menor.

Devagar. Preciso. Uniforme.

Quando chegou ao alto do ombro, deu mais um nó; depois liberou a agulha, guardou tudo o que usara e foi para o chuveiro.

Abaixando as calças, chutou as botas de combate e se colocou debaixo do jato de água.

Daquela vez o gemido foi de alívio: enquanto a água quente cobria seus ombros doloridos, as costas rígidas e as coxas duras, a sensação de conforto foi quase tão intensa quanto a agonia o fora.

E, só para variar, ele se permitiu ceder à sensação. Provavelmente porque estava embriagado.

Recostando-se na parede de ladrilhos, a água o atingiu primeiro no rosto, mas de modo gentil, como a chuva, antes de viajar pela frente do seu corpo, percorrendo o peito e seu abdômen enrijecido, passando pelos quadris até o sexo...

E do nada ele viu a sua Escolhida inclinada sobre ele, os olhos verdes reluzentes na luz do luar, a árvore acima parecendo um abrigo para ambos.

Ela o alimentava, o pulso fino e pálido em sua boca, a garganta dele engolindo ritmadamente.

No meio do seu torpor alcoólico, o desejo sexual o atingiu, parecendo desdobrar sua pélvis como uma mão aberta.

Ele ficou rijo.

Abrindo os olhos – e ele nem se dera conta de tê-los fechado –, fitou a si mesmo. A luz brilhante de cima da pia fora atenuada pela cortina opaca que evitava que a água se espalhasse pelo banheiro, mas havia mais do que iluminação suficiente para enxergar.

Ele desejou que estivesse completamente escuro... pois não se alegrava em ver sua excitação, aquele mastro erguido a partir do corpo tão estúpido e orgulhoso.

Não tinha como entender no que esteve pensando: se aquelas prostitutas queriam receber um adicional para acomodar os seus impulsos, ele dificilmente imaginava que a adorável Escolhida fizesse outra coisa que não gritar e correr na direção oposta...

De pronto, isso lhe pareceu deprimente, ainda mais quando o latejar entre as pernas se intensificou. Na verdade, seu corpo era apenas um triste instrumento, patético em seu desejo e permanecendo ignorante quanto ao fato de ser indesejado por todas.

Em especial, por aquela que ele desejava.

Virando-se, ele inclinou a cabeça para trás e passou as mãos pelos cabelos. Hora de parar de pensar e se lavar. O sabonete na saboneteira afixada na parede fez seu trabalho com entusiasmo em sua pele e seu cabelo...

E ele ainda estava ereto quando chegou a hora de sair.

O ar frio tomaria conta daquilo.

Pisando no tapete do banheiro, também de um horroroso tom de vermelho rosado, ele se secou com a toalha.

Ainda ereto.

Olhou para as roupas de luta, viu-se contrariado em vesti-las. Duras. Ásperas. Sujas.

Talvez o ambiente feminino o estivesse contaminando.

Xcor acabou na enorme cama, nu, deitado de costas.

Ainda ereto.

Uma espiada rápida no relógio de cabeceira lhe disse que não demoraria muito para que a casa fosse inundada pelos lutadores.

Aquilo teria de ser rápido.

Enfiando a mão debaixo dos lençóis e descendo pelo corpo, ele se segurou...

Os olhos de Xcor se fecharam e ele gemeu, o tronco se retorcendo pelo calor e o desejo que se avolumava na parte inferior do corpo. E quando o travesseiro veio receber seu rosto – logicamente, foi o contrário, ele supôs – começou a bombear para cima e para baixo.

Delicioso. Especialmente no topo, onde a cabeça lisa doía querendo atenção e a recebia a cada golpe. Mais rápido. Mais apertado.

E o tempo todo visualizando a sua Escolhida.

Na verdade, a imagem dela o satisfazia mais do que aquilo que executava ali embaixo. E quando as sensações se intensificaram, ele percebeu pela primeira vez por que os soldados faziam aquilo com tanta frequência. Tão bom. Tão, tão bom...

Ah, a sua fêmea era linda. Ao ponto em que, apesar da força que exercia em si mesmo, ele não se distraía da imagem dela. Em vez disso, ela se tornava cada vez mais clara para ele, dos cabelos loiros até os lábios rubros e o pescoço delicado – por todo o caminho do corpo elegante e longilíneo que tanto se escondia quanto se revelava pelo manto branco imaculado que ela vestira.

Como seria a sensação de ser desejado por tal criatura? Ser aceito dentro do seu corpo sagrado como um macho de valor...

Nesse instante, a realidade da gravidez dela o atingiu como um golpe físico. Mas, pelo menos, já era tarde demais. Mesmo que seu coração tivesse gelado e seu peito tivesse começado a doer com o conhecimento de que ela aceitara outro, seu corpo continuou sua corrida para a felicidade, a conclusão tão inevitável que...

O orgasmo que o assolou o fez gritar – e graças ao Fade que o travesseiro abafou a sua capitulação: naquele mesmo instante, no andar de baixo, ele ouviu os seus primeiros soldados andando pela casa, o rufo das botas de combate como um trovoar inconfundível que ele reconheceria em qualquer lugar.

O resultado do seu clímax foi desastroso de maneiras demais para se contar. Ele se virara por cima do ombro machucado; gozara sobre a mão e o abdômen assim como nos lençóis; a visão encantadora sumira de sua cabeça, e sua dura realidade era tudo o que lhe restava.

A dor dentro dele era ardida como um ferimento recente.

Mas, pelo menos, ninguém saberia dela.

Ele, acima de tudo, era um soldado.


CAPÍTULO 66

– Sim, você pode ir vê-lo. Ele está sonolento, mas acordado.

Enquanto a doutora Jane sorria para Qhuinn, ele ajeitava as calças nos quadris e enfiava a barra da camiseta para dentro. No entanto, conteve-se e não arrumou os cabelos, forçando os braços a ficarem ao longo do corpo mesmo que as suas palmas estivessem coçando para penteá-los.

– E ele vai ficar bem?

A médica assentiu ao começar a tirar a máscara cirúrgica que ainda estava pendurada ao redor do pescoço.

– Retiramos o equivalente vampírico ao baço dos humanos, e isso cuidou da hemorragia interna. Fizemos um pente-fino nele. Até onde sabemos, ele esteve num estado de estase dentro daquele tonel de óleo, o sangue de Ômega, de algum modo, preservando-o no estado em que estava apesar dos ferimentos. Se ele estivesse do lado de fora, tenho certeza de que teria morrido.

A maldição que causara um milagre, pensou Qhuinn.

– E ele não está contaminado?

Jane deu de ombros.

– Ele sangra vermelho, e ninguém percebeu nenhum sinal de Ômega nele... foi um caso de estar sobre e ao redor dele.

– Ok. Muito bem – Qhuinn olhou para a porta. – Ótimo.

Hora de entrar, ele se ordenou. Vá...

Seus olhos pararam em Blay. Durante as quatro horas de operação, o cara andara de um lado para o outro no corredor, saindo em intervalos regulares para o estacionamento para fumar. No entanto, ele sempre voltara.

Puxa, ele estava de cara fechada.

Desde que V. aparecera e os encontrara... é...

Cristo, que hora de chegar era aquela, hein?

– Vou entrar – disse ele.

Mas só depois que Blay acenou com a cabeça é que ele entrou na sala de cirurgia.

Empurrando a porta, a primeira coisa que o recebeu foi o cheiro antisséptico que ele associava com contusões pós-batalha. Em seguida, foi o bipe suave ao lado da maca no meio da sala, e o som de Ehlena digitando num computador.

– Vou deixar que fiquem a sós – ela disse num tom gentil, ao se levantar.

– Obrigado – ele respondeu baixinho.

Quando a porta se fechou atrás dela, Qhuinn voltou a ajeitar a camiseta ainda que ela não precisasse ser ajeitada.

– Luchas?

À espera que seu irmão respondesse, ele olhou ao redor. Os escombros da operação, as gazes ensanguentadas, os instrumentos usados, os tubos plásticos, tudo fora retirado; nada além do corpo inerte debaixo dos lençóis brancos e um saco biológico com conteúdo vermelho para indicar como aquelas horas tinham sido transcorridas.

– Luchas?

Qhuinn se aproximou e baixou o olhar. Caramba, ele normalmente não tinha problemas de pressão, mas quando olhou bem para o rosto machucado do irmão, as coisas meio que giraram, e a onda de tontura o fez perceber exatamente o quanto ele era alto e como o chão estava distante.

Os olhos de Luchas tremularam e se abriram.

Cinza. Os dois sempre foram cinza e ainda eram.

Qhuinn se esticou para trás e pegou uma banqueta com rodinhas. Ao sentar-se, não sabia o que fazer com os braços, com as mãos... com a voz.

– Como está se sentindo?

Que pergunta mais idiota.

– Ele... me... manteve...

Qhuinn se inclinou para a frente, mas, cacete, era difícil de entender aquela voz fraca.

– O que disse?

– Ele me... manteve... vivo...

– Quem?

– ... por sua causa.

– De quem você está falando? – difícil imaginar que Ômega quisesse se vingar de...

– Lash...

Ante esse nome, os lábios superiores de Qhuinn expuseram suas presas. Aquele safado do primo deles – que, no fim, relevou-se não ser parente deles, mas sim filho transplantado de Ômega. Quando criança, o filho da puta não passara de um exibido detestável. Como pré-trans no programa de treinamento ele tornara a vida de John Matthew um inferno. Depois da transição?

Seu pai verdadeiro o recebera de volta em seu rebanho, e a completa destruição fora o resultado. Lash fora o responsável por liderar os ataques. Depois de séculos em que a Sociedade Redutora teve que caçar e encontrar os enclaves dos vampiros, o maldito soube exatamente para onde mandar os assassinos – e por ter sido adotado por uma família aristocrática, ele dizimara a classe alta.

Mas, ao que tudo levava a crer, o papaizinho e o garoto de ouro tiveram uma desavença.

Merda, a ideia de Lash ter torturado o seu irmão só o fez desejar matá-lo mais uma vez.

Enquanto Luchas gemia e inspirava fundo, Qhuinn levantou uma mão para... lhe dar um tapinha no ombro ou algo assim. Mas não fez nada.

– Escute aqui, você não precisa falar.

Os olhos cinza injetados prenderam-se os seus.

– Ele me manteve vivo... por causa do que eu fiz... com você.

Ali na maca, lágrimas se avolumaram e começaram a rolar, as emoções do irmão escorrendo pelo rosto, o arrependimento com o que sem dúvida devia ser dor física além dos narcóticos usados para tratar dele.

Porque Qhuinn achava difícil de imaginar que aquele cara demonstraria qualquer coisa numa situação normal. Não foram criados assim. Etiqueta acima das emoções.

Sempre.

– A Guarda de Honra... – Luchas começou a chorar a valer. – Qhuinn... eu sinto... eu sinto muito.

Não devemos matá-lo!

Qhuinn piscou e regressou para a surra no acostamento daquela estrada, para aqueles machos em mantos negros cercando-o e atacando-o enquanto ele tentava proteger a cabeça e os testículos. Depois, às portas do Fade, onde encontrou sua filha.

Estranho como as coisas se completavam num círculo. E como algumas tragédias na verdade levavam a coisas boas.

Nessa hora, Qhuinn tocou no irmão, levando a mão da adaga para o ombro magro dele.

– Psssiu... está tudo bem. Nós estamos bem...

Ele não sabia ao certo se aquilo era verdade, mas o que mais ele poderia dizer enquanto o cara se desmanchava em lágrimas?

– Ele quis... me transformar... – Luchas respirou fundo. – Ele me... ressuscitou. Acordei na floresta... os machos dele bateram em mim... fizeram coisas comigo... me colocaram naquele... sangue. Esperei pela volta deles... Eles nunca voltaram.

– Você está a salvo aqui – foi tudo em que ele conseguiu pensar. – Não precisa se preocupar com nada, ninguém vai pegar você aqui.

– Onde... estou...

– No centro de treinamento da Irmandade.

Os olhos dele se arregalaram.

– Verdade?

– É.

– Puxa... – a expressão de Luchas se alterou, aquele belo rosto mais uma vez se crispando. – O que foi feito de mahmen? Papai e Solange?

Qhuinn apenas balançou a cabeça de um lado para o outro.

E, em resposta, uma força repentina surgiu naquela voz frágil.

– Tem certeza de que estão mortos? Tem certeza?

Como se ele não desejasse o sofrimento pelo qual passara para nenhum deles.

– Sim, tenho certeza.

Luchas suspirou e fechou os olhos.

Merda. Qhuinn se sentia mal em mentir, mas, apesar de as máquinas ao lado da cama indicarem que o estado do seu irmão era estável, se o cara piorasse, ele não queria mandar Luchas para o túmulo pensando que depois do que fizeram com ele, ninguém mais tinha certeza de quantos outros tinham sido levados ou quando.

No silêncio, Qhuinn baixou o olhar para a mão do irmão. Para o anel de sinete que fora deixado – talvez porque a junta acima dele estivesse tão inchada que eles teriam de ter cortado o dedo.

O timbre que fora gravado na faceta de ouro carregava os símbolos sagrados com os quais apenas as Famílias Fundadoras podiam marcar suas linhagens. Ah, sim, e como era completamente perturbador, e absolutamente inapropriado, cobiçar a maldita coisa. Depois de tudo o que acontecera, era de se pensar que ele se sentisse nauseado.

Pensando bem, talvez fosse apenas uma reação instintiva, um eco de todos aqueles anos de uma esperança vã de que poderia receber um para si.

– Qhuinn?

– Diga.

– Eu sinto muito...

Qhuinn balançou a cabeça, ainda que as pálpebras de Luchas estivessem abaixadas.

– Não se preocupe com nada. Você está seguro. Voltou. Tudo vai ficar bem.

Enquanto o peito do irmão subia e descia como se ele estivesse aliviado, Qhuinn esfregou o rosto e não se sentiu nada bem em relação a tudo aquilo. A respeito do estado do irmão... e do seu retorno.

Não que ele desejasse que o cara estivesse morto. Torturado. Congelado para sempre.

Contudo, ele fechara a porta ante toda aquela dinâmica familiar. Relegara-a para um armário mental bem no fundo da sua cabeça. Deixada para trás de uma vez por todas, para nunca mais olhar para ela.

Mas o que ele poderia fazer?

A vida era especialista em chacoalhões.

O triste era que eles, no fim, inevitavelmente acabavam atingindo-o bem no meio do saco.

 

Quando um assobio suave soou ao lado de Blay, ele se sobressaltou.

– Ah, oi, John.

John Matthew levantou a mão num aceno. Como estão as coisas?

Enquanto Blay dava de ombros, achou que seria uma boa ideia se levantar. A bunda já estava entorpecida, o que significava que estava na hora de mais uma das suas voltinhas.

Resmungando ao se levantar, esticou as costas.

– Acho que tudo bem. Luchas estava desperto o suficiente depois da cirurgia, portanto Qhuinn está lá dentro agora.

Caramba...

Enquanto Blay andava em círculos para fazer o sangue circular novamente, John se recostou à parede. Ele estava com roupa de ginástica e seu cabelo ainda estava úmido... e havia uma marca de mordida em seu pescoço.

Blay desviou o olhar. Abriu a boca para dizer alguma coisa. Ficou sem ter do que falar.

Pelo canto do olho, viu John sinalizar: Então, como está Saxton?

– Hum... bem. Ele está bem, saiu de férias por uns dias.

Ele tem trabalhado bastante.

– É, tem mesmo – ele esperava que o assunto terminasse ali, pois se sentia estranho em esconder algo de John. Além de Qhuinn, o cara fora seu amigo mais próximo, ainda que, no último ano, eles também tivessem se distanciado. – Mas ele vai voltar logo.

Você deve sentir saudades dele. John desviou o olhar como se estivesse forçando a barra.

Fazia sentido. Blay sempre evitou qualquer conversa a respeito do seu relacionamento, direcionando a conversa para outros assuntos.

– É.

Então, como está Qhuinn? Eu não quis me meter, mas...

Blay só pôde dar de ombros mais uma vez.

– Já faz um tempo que ele entrou. Acho que isso é bom.

E Luchas vai sobreviver?

– Só o tempo pode garantir isso – Blay pegou um dos seus Dunhills e o acendeu, exalando lentamente. Quando não restou nada além do silêncio, ele disse: – Escute, desculpe se estou meio estranho.

A verdade era que aquela marca de mordida era um lembrete do que aconteceria a ele, e ele não queria aquilo tão presente.

A voz de Qhuinn invadiu seus pensamentos: Podemos ir juntos.

Com o que acabara concordando?

Você está cansado, John gesticulou enquanto olhava para a porta. Todos estamos. Tudo isso é tão... desgastante.

Blay franziu o cenho ao perceber o humor do cara.

– Ei, você está bem?

Depois de um momento, John sinalizou:

Uma coisa muito estranha aconteceu na outra noite. Wrath me chamou no escritório dele e me disse que Qhuinn não era mais o meu ahstrux nohtrum. Quero dizer, tudo bem, sem problemas... Isso, na verdade, complicava muito as coisas. Mas Qhuinn nunca me disse nada, e eu não sei, devo falar com ele? Eu nem sabia que isso era possível. Quero dizer, quando tudo começou foi meio que “é assim que as coisas são”, sabe? Será que ele se demitiu? É por causa dessa situação com Layla? Pensei que eles não fossem se vincular.

Blay exalou uma imprecação, a fumaça subindo acima da sua cabeça.

– Não faço ideia.

Merda, essa coisa de eles se vincularem devia ter lhe ocorrido – e talvez, por isso, Qhuinn se afastou tão rapidamente quando V. aparecera.

Será que Qhuinn e Layla ficariam juntos agora que o bebê estava bem...?

A porta se abriu e Qhuinn saiu, parecendo ter levado um chute na cabeça.

– Ei, John, tudo bem?

Enquanto os dois se davam um tapinha nos ombros, Qhuinn olhou a vista, e então conversou um pouco com John.

E depois, ele e Qhuinn foram deixados a sós quando John partiu minutos mais tarde.

– Você está bem? – perguntou-lhe Qhuinn.

Pelo visto, essa era a pergunta do momento.

– Na verdade, eu ia perguntar isso mesmo para você. Como está Luchas? – Blay tragou o cigarro depois bateu as cinzas sobre o coturno.

Antes que Qhuinn pudesse responder, Selena saiu do escritório, como se tivesse sido convocada pela mansão. A Escolhida andou até eles com graciosidade, mas com um objetivo, e seu manto tradicional branco rodopiava por entre as pernas.

– Saudações, senhores – disse ela ao se aproximar. – A doutora Jane sugeriu que eu estava sendo requisitada?

Enquanto Blay exalava, ele sentiu vontade de se socar. Aquela era a última coisa que...

– Sim, por nós dois – respondeu Qhuinn.

Blay fechou os olhos quando um desejo súbito o acometeu. A ideia de presenciar Qhuinn se alimentar era como uma droga em sua circulação, relaxando-o e ameaçando sua excitação. Mas, sério, aquilo não...

– No fim do corredor seria perfeito – murmurou Qhuinn.

Bem, melhor do que num quarto. Certo? Mais profissional. Não?

E ele precisava mesmo se alimentar – e Qhuinn, sem dúvida, também, depois de todo aquele drama.

Blay descartou o toco do cigarro numa lata de lixo e seguiu Qhuinn que ia à frente. Andando, ele não acompanhou os movimentos da Escolhida. Não, nada disso. Seus olhos estavam colados nos movimentos de Qhuinn, desde aqueles ombros, até os quadris... e a bunda...

Ok, isso teria de parar ali. Naquele instante.

Ele só precisava se controlar, alimentar-se e arranjar uma desculpa para sair dali.

Quem sabe aquele plano acabasse funcionando?

Passando pela porta. Um pouco de conversa. Sorrisos educados, ainda que ele não soubesse o que fora perguntado nem respondido.

Ah, uma das salas do hospital. Muito bom, um ambiente clínico. Apenas tomar uma veia e seguir em frente, uma função biológica que não necessariamente levava à outra...

– O que disse? – perguntou a Escolhida, olhando-o abertamente.

Maravilha. Ele andou falando em voz alta de novo, mas não havia como saber o quanto partilhara.

– Desculpe – ele se justificou –, só estou morrendo de fome.

– Nesse caso, gostaria de ser o primeiro? – Selena perguntou.

– Sim, ele quer – Qhuinn respondeu ao se recostar na porta.

Bem, tudo certo, então, Blay pensou. Quando fosse a vez de Qhuinn, ele iria embora.

Dando um passo à frente, ele se questionou como, exatamente, aquilo se daria, mas Selena resolveu a questão levando uma cadeira e sentando perto do leito hospitalar. Ok. Blay subiu no colchão, seu peso deslocando o travesseiro da cabeceira ligeiramente elevada, as molas rangendo. Em seguida, sua mente se fechou, o que foi um alívio. Enquanto Selena esticava o braço e puxava a manga branca para trás, a fome dele tomou a frente, as presas se estendendo da mandíbula superior, a respiração se intensificando.

– Por favor, tome o tanto que precisar – ela ofereceu placidamente.

– Agradeço-lhe por este presente, Escolhida – ele respondeu num tom baixo.

Inclinando-se para baixo, ele atacou rapidamente, mas com o máximo de gentileza que conseguia, e na primeira golada, soube que já fazia muito tempo. Com um rugido profundo, seu estômago demonstrou sua necessidade, a sua civilidade se escoando para fora, os instintos assumindo o controle: ele sugou fundo, bebendo cada vez mais rápido, a força se derramando em seu interior e se espalhando a partir dali...

Seus olhos dispararam na direção de Qhuinn.

Vagamente, tomou ciência de que mais um dos seus planos logo sairia voando pela janela, completamente esquecido. Na verdade, aquela fora uma má ideia – desde que não quisesse mais transar com o cara: a lógica já era bem difícil quando se tratava apenas de um caso de emoções conflituosas. Uma necessidade sexual absoluta, incrementada pela alimentação?

Ele era um idiota de primeira; era mesmo.

E isso se revelou especialmente verdadeiro quando notou a ereção de Qhuinn inflar por debaixo de suas calças de lutador.

Merda.

Merda.

Cara, um dia desses, ele seria forte o bastante para se afastar. Seria, sim, de verdade.

Ah, MERDA.


CAPÍTULO 67

Enquanto Qhuinn assistia ao show, sua língua saiu da boca e lambeu os lábios.

Do outro lado do quarto estreito, Blay estava sentado na cama hospitalar, o torso perfeito num ângulo para frente para poder tomar a veia da Escolhida, as mãos, ah, as mãos tão hábeis, bem treinadas e fortes seguravam o pulso delicado contra a boca com cuidado – como se, mesmo no auge da sua sede, ele fosse um cavalheiro.

Enquanto continuava a beber, o torso se curvou ainda mais, a caixa torácica se flexionando e se acomodando a cada respiração, a cabeça sutilmente mudando de posição a cada deglutição.

Qhuinn mal conseguia permanecer parado. Ele desejava imensamente subir naquele colchão também, retorcendo o corpo para poder chegar por trás. Queria estar na garganta de Blay enquanto ele se alimentava da Escolhida. Queria transar com o cara de doze a quinze horas direto até que os dois caíssem de exaustão.

Depois do drama com Luchas, aquele breve e intenso descanso de todo o choque e dor era um alívio glorioso cheio de culpa: aquilo era simplesmente bom demais para que ele se concentrasse em algo assim – sua mente cansada e o corpo exaurido estavam prontos para serem revigorados para ele poder voltar forte uma vez mais à realidade de lutas.

Deus, seu irmão...

Balançando a cabeça, ele deliberadamente deu algo erótico com o que sua mente se ocupar: enquanto a mão de Blay escorregava sorrateira por entre as pernas e rearranjava algo atrás da braguilha, ficou bem claro que ele estava completamente excitado.

Como se seu cheiro delicioso já não tivesse deixado aquilo evidente.

Bem quando Qhuinn estava para perder o controle, Blay levantou a cabeça e emitiu um som de sucção e satisfação. Depois, o macho selou as feridas das presas que deixara.

Quer saber, Qhuinn pensou. A alimentação que se danasse. Ele precisa somente de Blay...

– Sua vez, senhor? – disse a Escolhida.

Merda. Ele provavelmente devia fazer isso.

Além disso, Blay, por certo, estava num estado de torpor pós-alimentação, o corpo letárgico, os olhos pesados... e Qhuinn tirou vantagem disso, colocando-se entre as pernas do lutador e a Escolhida, o traseiro se esfregando contra a coluna enrijecida da ereção de Blay ao subir na cama.

Enquanto Blay deixava um gemido escapar, Qhuinn se inclinou e pegou o outro pulso da fêmea. Segurando-o com uma mão, usou a outra para puxar a bainha da camiseta para fora – e depois empurrar a palma de Blay para a frente da sua calça.

Qhuinn conteve seu gemido sugando a veia da Escolhida, mas o sibilo de Blay foi ouvido.

Talvez a Escolhida deduzisse que...

Os olhos de Qhuinn reviraram por trás das órbitas enquanto Blay o afagava, a fricção ameaçando-o a gozar ali mesmo – uma coisa que ele não gostaria de fazer diante de Selena.

Mas, caraaaalho, aquilo era...

Ele pousou a própria mão ali, detendo o movimento.

Com isso, Blay lhe deu apenas um apertão em seus colhões.

Qhuinn gozou na sugada seguinte, o orgasmo escapando dele antes que conseguisse pensar em algo cansativo ou sem atrativos para distraí-lo, o prazer surgindo com tanta força que ele vergou-se em sua própria pele.

A risada de Blay foi erótica como o inferno.

Que seja, a vingança seria terrível, Qhuinn jurou a si mesmo.

E, como se viu em seguida, ele nem conseguia esperar mais por ela. Retraiu as presas e parou de beber antes de se saciar, porque a sua fome por outra coisa tinha assumido o controle completamente, e já passara da hora de despachar Selena.

Fazer a Escolhida sair de maneira educada, porém eficiente, foi uma manobra executada no piloto automático – ele não fazia ideia do que estava dizendo –, mas pelo menos ela estava sorrindo e parecia contente, portanto, ele devia ter dito a coisa certa.

No entanto, estava bem ciente de que trancara a porta.

Ao se virar, encontrou Blay deitado e cuidando de si, a mão subindo e descendo entre as pernas. As presas ainda estavam alongadas da alimentação e os olhos cintilavam por baixo das pálpebras pesadas e, puta merda, como estava sensual...

Qhuinn se livrou dos coturnos. Das calças. Da camiseta.

Blay atingiu o clímax antes de ele sequer chegar à cama, o macho se arqueando para o alto e gemendo com a cabeça contra o travesseiro fino, e os quadris elevados.

Como se ver Qhuinn nu em pelo tivesse sido demais para ele.

Melhor. Elogio. De. Todos. Os. Tempos.

Qhuinn atacou a cama, lançando-se sobre Blay, encontrando aquela boca aveludada e assumindo o controle. Roupas rasgadas – os botões da braguilha da calça de Blay voando para todos os lados e aterrissando como moedas jogadas sobre o linóleo, a camiseta dilacerada em pedaços. E logo estavam pele a pele. Vada os separava.

Enquanto se retorciam um contra o outro, Qhuinn soube o que queria. E estava desesperado e faminto demais para pedir com educação – ou sequer falar a respeito.

Tudo o que conseguiu fazer foi se afastar daquela boca, rolar para longe de Blay... esticar o braço para trás e puxar o macho para cima dele enquanto esticava uma perna.

Sem nem pensar, Blay assumiu a partir dali. E soube exatamente o que fazer.

Qhuinn se sentiu posicionado por mãos rudes – e, sem nem se dar conta, estava ajoelhado, o rosto no colchão, a respiração saindo com dificuldade pela boca. Tudo aquilo era muito desconhecido, deixar alguém assumir o controle – e ele também se sentiu vulnerável, por mais que quisesse...

– Ai, cacete! – ele gritou ao ser possuído, as sensações de dor e de prazer, de alongamento e de acomodação, misturando-se num coquetel que o deixou tão excitado a ponto de ver estrelas.

Em seguida, Blay começou a se movimentar.

Qhuinn se apoiou sobre os braços e empurrou para trás, e se segurou enquanto toda aquela coisa de virgindade ia para o espaço de uma maneira muito boa.

Ah, caramba, era uma torrente incrível, só que muito melhor. Enquanto o braço de Blay passava por baixo do seu peito e o abraçava, o ângulo mudou, as penetrações ficaram mais profundas, mais rápidas, a cama começou a balançar ao encontro da parede, o arquejo em seu ouvido ficando mais e mais rude...

O ápice foi a chama maior que ele já sentiu, o clímax não só do seu orgasmo, mas do de Blay, segurando-o por toda parte, as coxas unidas, as pélvis inclinadas para receber, os braços grandes segurando a ambos...

Quando Blay gozou, as investidas foram tão fortes que a cabeça de Qhuinn bateu na parede – não que ele tivesse notado ou se importado. Em seguida, aquele pau começou a produzir espasmos violentamente...

E Qhuinn se sentiu bem e verdadeiramente possuído pela primeira vez na vida.

Aquilo foi... nada menos que um milagre.


Naturalmente, Blay levou um tempo até se fartar. E, engraçado, Qhuinn estava totalmente à vontade com aquilo.

Quando, no fim, as coisas chegaram a uma pausa que durou mais de um minuto e meio, Qhuinn soltou a tensão nos braços e se afundou na cama, virando de lado. Blay também devia estar exausto, seu corpo seguiu a liderança e se esticou atrás dele.

O braço de Blay permaneceu fixo em seu lugar.

E o que importava agora, apesar de toda aquela experiência, era o peso forte e solto daquele braço. Largado como estava, tornava-os não apenas dois machos que acabaram de fazer sexo e estavam deitados lado a lado, mas sim, dois amantes.

Na verdade, ele nunca antes tivera um amante – e isso não pelo fato de ter sido a primeira vez em que ficara por baixo. Fizera muito sexo. Mas nunca antes tivera alguém a que quisesse que o abraçasse depois. Nunca alguém que ele quisesse retribuir o abraço.

Sim... Blay era o seu primeiro amante verdadeiro.

E por mais que ele tivesse perdido a oportunidade de ser isso para o cara, parecia lógico que Blay fosse o seu. Ninguém jamais lhe poderia tirar o seu primeiro – e ele se considerava sortudo. Muitas vezes ouvira boatos de que aquilo podia ser muito doloroso – para as fêmeas – ou simplesmente um ato confuso em que nada ficava gravado.

Ele lembraria daquilo para sempre.

Atrás dele, Blay ainda respirava profundamente, o calor irradiando dos corpos unidos.

E Qhuinn quis tirar vantagem dessa tranquilidade: muito lentamente – como se, caso ele não se movesse muito rápido, o cara não fosse notar – cobriu o antebraço de Blay com o seu e... pousou a mão sobre a do amigo.

Fechando os olhos, ele rezou para que aquilo fosse certo. Que pudessem ficar daquele jeito só por mais um pouquinho.

Merda, o medo repentino que sentiu não passava de uma tortura, e o fez pensar na verdadeira natureza da coragem.

Mais especificamente em quão pouco a possuía no que se referia a Blay.

Do nada, ele se lembrou de ter lhe dito que ele só se via a longo prazo com uma fêmea. De esse ser o motivo de não poder aceitar a oferta de Blay. Na época, ele acreditara nisso, ainda que não parecesse muito convincente.

Ele fora um covarde na época, não fora?

– Deus, eu me sinto em carne viva – sussurrou.

– O que foi? – Foi a resposta sonolenta.

– Eu me sinto... Exposto.

E se Blay se retraísse agora? Ele se estilhaçaria em mil pedaços que nunca mais se encaixariam.

Blay fungou e puxou o braço, atraindo Qhuinn para mais perto, em vez de afastá-lo.

– Está com frio? Você está tremendo.

– Pode me esquentar?

Houve um barulho de algo sendo puxado e depois uma coberta foi jogada em cima dos dois. E as luzes se apagaram.

Enquanto Blay respirava fundo parecendo contente naquele instante, Qhuinn fechou os olhos... e ousou entrelaçar os dedos nos do melhor amigo, lacrando as mãos.

– Você está bem? – Blay perguntou de um modo abafado. Como se não houvesse nada ligado além de uma luz piloto em seu cérebro, mas ele se importava.

– Sim. Só estou com frio.

Qhuinn abriu novamente os olhos ante a escuridão. A única coisa que enxergava era a faixa de luz que se formava debaixo da porta.

Enquanto Blay cochilava, a respiração se tornando mais lenta e mais ritmada, Qhuinn olhou adiante, mesmo sem conseguir enxergar nada.

Coragem.

Ele pensava que tinha toda de que precisava – que o modo como fora criado o tornara mais durão e forte do que qualquer outra pessoa. Que o modo como realizava seu trabalho, entrando em prédios em chamas ou pulando nos assentos de pilotos de aviões caindo aos pedaços, provasse isso. Que a maneira como levava a vida, essencialmente distante, significava que ele era forte. Que ele estava seguro.

No entanto, a verdadeira medida da sua coragem ainda estava por vir.

Depois de anos demais, ele finalmente dissera a Blay que sentia muito. E depois de drama demais, ele finalmente dissera ao cara que sentia gratidão.

Mas chegar lá e ser verdadeiro quanto ao fato de que estava apaixonado? Mesmo Blay estando com outra pessoa?

Aquele era o real divisor.

E que Deus o ajudasse, mas ele o faria.

Não para separar o casal – não, não era por isso. E nem para sobrecarregar Blay.

Naquele caso, a revanche, como se mostrou, foi, na verdade, uma promessa. Algo que seria feito sem expectativas nem reservas. Seria o salto sem paraquedas, o pulo para o desconhecido, o trajeto e a queda sem ninguém para segurá-lo.

Blay fizera isso não uma, mas diversas vezes – e, sim, claro, Qhuinn queria ter de volta um desses momentos de vulnerabilidade e socar tanto suas encarnações prévias até que sua mente clareasse e ele reconhecesse a oportunidade que lhe era concedida.

Infelizmente, não era assim que as coisas funcionavam.

Estava na hora de ele pagar aquela demonstração de força... de maneira equivalente, suportando a dor que viria quando ele fosse rejeitado de uma maneira infinitamente mais gentil do que ele dispensara.

Forçando as pálpebras a abaixarem, levou os nós dos dedos de Blay até a boca e resvalou-lhes um beijo. Depois se entregou ao sono, permitindo-se escorregar para a inconsciência, sabendo que, pelo menos pelas horas seguintes, ele estaria seguro nos braços do seu amado.


CAPÍTULO 68

Enquanto a noite seguinte caía, Assail estava sentado nu à escrivaninha, os olhos rastreando a tela do computador diante dele. A imagem do monitor era dividida em quatro quadrantes que estavam marcados como norte, sul, leste e oeste, e, de tempos em tempos, ele manipulava as câmeras, mudando-lhes o foco e a direção. Ou às vezes mudava para outras lentes ao redor da casa. Ou voltava para as que estivera observando.

Tendo tomado banho e se barbeado horas antes, ele sabia que devia se vestir para sair. Aquele redutor com grande apetite pelos seus produtos estava se armando, alegando que fora enganado num suprimento de cocaína. Mas os gêmeos haviam completado aquela transação em particular de acordo com as especificações do assassino – e a gravaram.

Apenas uma precauçãozinha que Assail iniciara.

Portanto, ele não entendia sobre o que aquilo se tratava, mas, por certo, iria descobrir: enviara a gravação para o celular do redutor cerca de uma hora antes e aguardava uma resposta.

Talvez aquilo envolveria outra reunião cara a cara.

E seu comprador descontente não era a única coisa pairando sobre ele. Estava chegando aquela época do mês em que Benloise e ele ajustavam as contas – uma complicada transferência de fundos que estava deixando a todos ansiosos, inclusive Assail. Ainda que ele realizasse pagamentos semanais regulares, eles totalizavam apenas um quarto das compras, e no dia trinta ele teria de acertar as contas.

Muita grana. E as pessoas eram capazes de tomar decisões muito ruins quando havia muito dinheiro em jogo.

Também havia a questão de que, pela primeira vez, ele queria levar os primos para acompanhá-lo. Ele não conseguia visualizar Benloise apreciando a companhia adicional, mas era apropriado que seus associados ficassem mais envolvidos nos negócios – e aquele seria o maior pagamento que ele iria realizar.

Um recorde que certamente seria quebrado se ele e aquele redutor continuassem a fazer negócios.

Assail mudou a posição do mouse. Clicou em um dos quadrantes. Virou a câmera de segurança, vasculhando a floresta atrás de sua casa.

Nada se mexia. Nenhuma sombra mudava de posição. Nem mesmo os ramos dos pinheiros se moviam sob algum tipo de vento existente.

Nenhuma marca de esquis. Nenhuma figura escondida espiando.

Ela poderia estar espionando-o por outro ângulo, pensou. Do outro lado do rio. Da estrada. Do final da rua.

Distraído, ele alcançou o frasco de pó que mantinha ao lado do teclado. Usara-o no fim da tarde, quando a luz minguante do dia o fizera mudar as câmeras para visão noturna. E também usara algumas vezes desde então, só para se manter acordado.

Àquela altura já fazia dois dias que ele não dormia.

Ou seriam três?

Enquanto mexia a minúscula colher, desenhando um círculo na base do frasco, tudo o que ele conseguiu foi o barulho do metal no vidro.

Olhou dentro do frasco.

Evidentemente, ele terminara aquele lote.

Irritado por absolutamente tudo em sua existência, Assail deixou o frasco de lado e se recostou na poltrona. Enquanto sua mente girava e a compulsão de ir de imagem para imagem o apertava tal qual uma forca em sua liberdade de escolha, ele estava vagamente ciente de que seu cérebro zumbia de uma maneira bem pouco saudável.

No entanto, ele estava trancado ali. Não iria a parte alguma tão rapidamente.

Onde estaria a sua bela ladra?

Por certo ela não devia ter falado sério.

Assail esfregou os olhos e odiou o modo como sua mente estava acelerada, os pensamentos transitando de um lado ao outro em seu cérebro.

Ele simplesmente não queria acreditar que ela se manteria afastada.

Enquanto seu telefone tocava, ele o apanhou com reflexos rápidos demais, ansiosos demais. Quando viu quem era, ordenou ao seu cérebro que se recompusesse.

– Recebeu o vídeo? – ele perguntou em vez de dizer “alô”.

A voz de seu maior cliente parecia descontente.

– Como posso saber quando isso foi gravado?

– Você deve saber o que os seus homens vestiam no dia.

– Então, onde está o meu produto?

– Isso não cabe a mim dizer. Uma vez que eu concluo o negócio com os seus representantes, a minha responsabilidade cessa. Entreguei a mercadoria requisitada na hora e no local acordados, e, portanto, cumpri a minha obrigação para com você. O que acontece dali por diante não é da minha alçada.

– Se eu o pegar me sacaneando, eu vou te matar.

Assail emitiu uma exalação carregada de enfado.

– Meu caro, eu não perderia tempo com algo assim. Como conseguiria o que necessita então? E para isso, permita-me lembrá-lo que não há nada que me leve a ser desonesto com você ou com a sua organização. O lucro que você representa é o que me interessa, e eu darei o melhor de mim para fazer com que os fundos continuem a vir na minha direção. Assim são os negócios.

Houve um longo silêncio, mas Assail sabia muito bem que isso não significava que o assassino do outro lado da conexão estava confuso ou perdido.

– Preciso de um novo suprimento – o redutor murmurou depois de um tempo.

– E eu o providenciarei com muito prazer.

– Preciso de um empréstimo – agora Assail franzia o cenho, porém o redutor prosseguiu antes que ele o interrompesse. – Você me empresta esse novo pedido e eu garanto que será pago.

– Não é assim que faço negócios.

– Eis o que sei a seu respeito. Você tem uma pequena operação que controla uma área imensa. Precisa de distribuidores, porque você matou todos os outros que estavam aqui antes. Sem mim e a minha organização? Sem ofensas, mas você está fodido. Você não tem como servir Caldwell inteira, e seu produto nada vale se não chega às mãos dos seus usuários – quando Assail não respondeu de imediato, o redutor riu de leve. – Ou você pensava que fosse desconhecido, meu amigo?

Assail segurou o telefone com força.

– Por isso, acho que você tem razão – o assassino concluiu. – Você e eu somos colegas. Eu não preciso lidar com o atacadista, quem quer que ele seja. Especialmente em minha atual... encarnação.

Sim, só o cheiro faria com que Benloise fechasse a porta na cara dele, pensou Assail.

– Preciso de você. Você precisa de mim. E é por isso que vai me entregar o meu pedido e me dar 48 horas para pagar. É como você mesmo disse. Não valemos nada um sem o outro.

Assail expôs as presas, o reflexo do seu rosto de fato medonho no vidro do monitor.

E mesmo assim ele manteve a voz tranquila e impassível:

– Onde gostaria de nos encontrarmos?

Enquanto o redutor ria novamente, como se estivesse gostando de tudo aquilo, Assail se concentrou na própria imagem, com as presas expostas. Seria desajuizado se o assassino se tornasse ganancioso, ou tomasse liberdades demais.

A única coisa sempre verdadeira nos negócios? Ninguém é insubstituível.


Quando Trez despertou, ele se sentiu como se estivesse flutuando numa nuvem – e, por uma fração de segundo, imaginou se não estava mesmo. Seu corpo parecia não pesar nada, a ponto de ele nem saber se estava deitado de frente ou de costas.

Um som estranho se infiltrou em seu torpor.

Shhhscht.

Ele levantou a cabeça, e a orientação lhe veio subitamente: a luz vermelha do seu rádio relógio lhe disse que estava deitado de barriga e em diagonal na cama.

Lá vinha o som novamente.

O que seria aquilo? Metal contra metal?

Ele conseguia sentir iAm se movimentando pelo corredor, a presença do irmão tão certa quanto a sua. Então, se houvesse outra pessoa no apartamento ou algum tipo de ameaça? iAm cuidaria disso.

Erguendo-se, saiu da cama e... Uau, o quarto girou ao seu redor. Pensando bem, não havia nada, absolutamente nada em seu estômago. A bem da verdade, era bem possível que ele tivesse vomitado o fígado, os rins e os pulmões durante a enxaqueca. A boa notícia era que a dor sumira, e que essa sensação não era tão ruim. Era como estar bêbado, só que com a ressaca vindo antes.

Quando entrou no banheiro, ele sabia que era melhor não acender a luz. Ainda era muito cedo para isso.

A chuveirada foi maravilhosa. Mas ele não se deu ao trabalho de se barbear – haveria tempo para isso mais tarde, depois que colocasse um pouco de combustível em seu tanque. O roupão foi agradável: quentinho, especialmente com as lapelas erguidas cobrindo-lhe o pescoço.

Os pés descalços não estavam tão agradáveis, ainda mais quando ele saiu do quarto e pisou no corredor de piso de mármore, mas ele precisava descobrir que diabos estava...

Trez parou diante da porta da suíte do irmão. iAm estava diante do armário, tirando as camisas que estavam nos cabides. Quando ele puxou uma nova braçada pelo cano de ferro, aquele shhhscht soou novamente.

Naturalmente, seu irmão não se surpreendeu quando ele apareceu. Apenas descarregou a carga sobre a cama.

Merda.

– Vai a algum lugar? – murmurou Trez, a voz alta demais para os próprios ouvidos.

– Sim.

Bosta.

– Escute, iAm, eu não pretendi...

– Também estou fazendo as suas malas.

Trez piscou algumas vezes.

– Hã?

Pelo menos o cara não estava indo embora sozinho. A menos que quisesse a satisfação de jogar as coisas de Trez pela varanda...

– Encontrei um lugar mais seguro para nós.

– Fica em Caldwell?

– Sim.

E entra a música tema de Jeopardy!.

– Quer me dar o CEP?

– Eu daria se soubesse.

Trez gemeu e se recostou contra o batente, esfregando os olhos.

– Você encontrou um lugar para irmos, mas não sabe onde fica?

– Não, não sei.

Ok, talvez aquilo não tivesse sido uma enxaqueca, mas sim um derrame.

– Desculpe, não estou entendendo...

– Nós temos – iAm consultou o relógio de pulso – três horas para fazermos as malas. Roupas e itens pessoais apenas.

– Então o lugar é mobiliado – Trez deduziu.

– Sim, é.

Trez passou um tempo observando o irmão sendo extraeficiente com a bagagem. Camisas tiradas dos cabides, dobradas com precisão, colocadas em malas de couro da Louis Vuitton. O mesmo com calças. Pistolas e adagas foram para maletas de aço combinando.

Naquele ritmo, o cara acabaria de empacotar seus pertences em meia hora.

– Você precisa me dizer para onde vamos.

iAm olhou para ele.

– Vamos nos mudar para a Irmandade.

O cérebro de Trez levou uma descarga, a névoa sumindo de uma vez só.

– Como é?

– Estamos nos mudando para lá.

Os olhos de Trez se arregalaram.

– Eu... hum... espere, acho que não ouvi direito.

– Ouviu, sim.

– Com a permissão de quem?

– De Wrath, filho de Wrath.

– Caceeeete. Como foi que conseguiu isso?

iAm deu de ombros, como se não tivesse feito nada além de uma reserva no Motel 6.

– Falei com Rehvenge.

– Eu não sabia que o macho tinha todo esse poder.

– Ele não tem. Mas procurou Wrath, que apreciou a nossa retaguarda na reunião do Conselho. O Rei acredita que seremos um bom acréscimo ao front da casa.

– Ele está preocupado com um possível ataque – Trez concluiu.

– Talvez esteja. Talvez não. Mas o que sei é que ninguém vai nos encontrar lá.

Trez expirou fundo. Então ali estava o motivo por trás daquilo. Seu irmão, assim como ele mesmo, não queria que ele fosse arrastado de volta para o s’Hisbe.

– Você é incrível – ele disse.

iAm só deu de ombros, como de hábito.

– Pode começar a fazer as suas malas ou devo cuidar disso?

– Não, pode deixar – ele deu uma batida no batente e se virou para sair. – Estou te devendo uma, irmão.

– Trez.

Ele olhou de relance por cima do ombro.

– O que foi?

Os olhos do irmão estavam sérios.

– Isso aqui não é uma liberdade permanente. Você não pode fugir da rainha. Só estou ganhando um tempo com isso.

Trez ficou olhando para os pés nus – e ficou se perguntando quão longe conseguiria ir se eles estivessem protegidos por seus Nikes.

Bem longe.

Seu irmão era o laço que ele não conseguia romper, a única coisa que ele não se sentia capaz de deixar para trás a fim de se livrar de uma vida de luxo como escravo sexual.

E, num momento como aquele, em que o cara mais uma vez se prontificava a ajudá-lo... ele se perguntava se seria impossível ir embora sem iAm.

Talvez ele tivesse que, no fim, ceder ao seu destino.

Maldita rainha. E sua maldita filha.

Os costumes não faziam sentido. Ele jamais vira a jovem princesa. Ninguém jamais a vira. Era assim que funcionava – a seguinte na linha sucessória ao trono era tão sagrada quanto a mãe, porque seria ela a liderá-los no futuro. E, tal qual uma rosa rara, ninguém tinha permissão para vê-la até que ela estivesse adequadamente comprometida.

Pureza e tal.

Blá-blá-blá.

Uma vez que ela estivesse comprometida, porém, estaria livre para sair na sociedade, livre para viver a sua vida – dentro do s’Hisbe. O coitado que se casasse com ela? Ficaria ao lado dela dentro das paredes do castelo, fazendo o que quer que ela quisesse, quando ela quisesse – desde que ele não estivesse aos pés da rainha, idolatrando-a.

Sim, quanta alegria.

E eles acharam que ele se sentiria honrado com essa união?

Mesmo?

Ele transformara o próprio corpo num latão de lixo na última década, transando com todas aquelas humanas e sabe o que era pior? Desejou ter sido capaz de pegar todas daquelas doenças dos Homo sapiens. Impossível. Ele fez sexo desprotegido o quanto pôde com a outra espécie e ainda estava tão saudável quanto um cavalo.

Uma pena.

– Trez? – iAm se endireitou. – Trez? Fale comigo. Para onde você foi?

Trez olhou para o irmão, memorizando aquele rosto orgulhoso e inteligente e os olhos penetrantes sem fim.

– Estou bem aqui – murmurou. – Vê?

Ele ergueu as mãos e fez um círculo sobre seus pés descalços, em seu roupão, naquele estado de torpor pós-enxaqueca.

– No que está pensando? – iAm perguntou.

– Em nada. Só acho incrível isso que você fez. Vou fazer as malas e me aprontar. Eles vão mandar um carro ou algo assim?

iAm estreitou o olhar, mas respondeu mesmo assim:

– Isso. Com um mordomo chamado Fred. Ou seria Foster?

– Estarei pronto.

Trez saiu dali, os restos da dor de cabeça se escoando conforme ele olhava para o futuro... e se preocupava com esse seu último laço.

Porém, aquela mudança era positiva. iAm tinha razão: ele passara estes últimos anos ciente de que a princesa estava crescendo, e que o tempo corria, e que o dia do acerto de contas estava se aproximando rapidamente.

Existiam coisas que se podiam postergar. Aquela não era uma delas.

Inferno, talvez ele devesse desaparecer. Mesmo que isso o matasse.

Além disso, se seu irmão estivesse com Rehv na mansão do Rei? iAm teria o tipo de apoio que precisaria caso Trez acabasse sumindo.

Quem sabe, depois de tanta merda acontecendo?

O cara ficaria aliviado por se ver livre dele.


CCONTINUA

CAPÍTULO 54

Somando-se tudo, o encontro até que não foi tão ruim.

Enquanto Sola se levantava para vestir o casaco, Mark se aproximou por trás e a ajudou a ajeitar a lã nos ombros.

O modo como as mãos se demoraram sugeria que ele estava mais do que aberto a que aquele fosse o término do jantar, mas também apenas o início do resto da noite. No entanto, ele não se mostrou insistente. Deu um passo para trás e sorriu, indicando o caminho da saída com um gesto galante.

Movendo-se à frente dele, pareceu algum tipo de crime contra sua saúde mental que ele não conseguisse fazer seu sangue ferver... como aquele homem extremamente agressivo e dominante o fizera na noite anterior.

Ela precisaria ter uma conversinha com a sua libido. Ou talvez lhe desse uma surra...

Quem sabe daquele outro cara, uma parte sua sugeriu.

– Não – murmurou.

– Desculpe, o que disse?

Sola balançou a cabeça.

– Eu só estava falando comigo mesma.

Depois de abrirem caminho pela multidão, chegaram à porta do restaurante e, puxa, como era bom respirar ar fresco.

– Então... – disse Mark, enfiando as mãos nos bolsos dos jeans, fazendo com que seu torso bem desenvolvido ficasse ainda mais saliente... E ainda assim não conseguindo chegar perto do tamanho do...

Pare com isso.

– Obrigada pelo jantar, você não precisava ter pagado.

– Ora, este foi um encontro. Foi você quem disse – ele sorriu novamente. – E eu sou um cara do tipo tradicional.

Vá em frente, disse ela a si mesma. Pergunte a ele se pode ir até a casa dele.

Afinal, nenhum tipo de ação poderia acontecer na sua casa. Jamais. Não com sua avó no andar de cima – a surdez da mulher era altamente seletiva.

Apenas vá em frente.

Foi para isso que você o chamou...

– Tenho uma reunião bem cedo amanhã – ela deixou escapar. – Por isso, tenho que ir. Mas, obrigada mesmo... e vamos repetir um dia.

Para dar algum crédito a Mark, ele encobriu qualquer desapontamento que pudesse estar sentido com outro daqueles sorrisos campeões.

– É uma boa ideia. Foi bem legal.

– Eu estacionei logo ali – ela apontou o polegar para trás. – Então...

– Eu a acompanho até o carro.

– Obrigada.

Ficaram em silêncio enquanto as botas quebravam o sal que fora colocado por cima do gelo.

– Está uma noite agradável.

– É – ela concordou. – Está mesmo.

Por algum motivo, os sentidos da mulher começaram a lançar um alerta, e seus olhos vasculharam a escuridão do lado de fora do estacionamento iluminado.

Pensou que talvez fosse Benloise indo atrás dela. Sem dúvida, ele já devia ter percebido que alguém invadira sua casa e seu cofre, e também já devia ter notado a leve mudança na posição da estátua. Contudo, seria difícil saber se ele retaliaria. Apesar do ramo de negócio em que se envolvera, ele devia ter ciência de que o que fizera ao cancelar sua missão e suspender o seu pagamento fora errado.

Certamente, ele entenderia a mensagem.

Além disso, ela poderia ter levado tudo o que ele havia guardado.

Aproximando-se do Audi, ela desarmou o alarme. Em seguida, virou-se e levantou o olhar.

– Ligo para você?

– Sim, por favor – disse Mark.

Houve uma longa pausa. Em seguida, ela levantou a mão e a escorregou para trás do pescoço dele, e atraiu a boca dele para a sua. Mark aceitou o convite de pronto, mas não de modo dominador e insistente: enquanto ela pendia a cabeça para o lado, ele fez o mesmo, e seus lábios se partiram, resvalando-se de leve, e depois com um pouco mais de pressão. Ele não a esmagou contra o seu corpo, nem a encurralou contra o carro... não existiu a sensação de descontrole.

Tampouco de uma grande paixão.

Ela interrompeu o contato.

– Vejo você em breve.

Mark exalou profundamente, como se tivesse se excitado.

– Hum... Ok, espero que sim. E não só na academia.

Ele levantou a mão, deu um último sorriso, depois caminhou para a sua caminhonete.

Com uma imprecação leve, Sola foi para trás do volante, fechou a porta e deixou a cabeça cair contra o encosto. Pelo espelho retrovisor, ela observou as luzes traseiras se acenderem, ele dar meia-volta e sair do estacionamento.

Abaixando as pálpebras, ela não visualizou o sorriso radiante de Mark, nem imaginou os lábios dele contra os seus, ou as mãos dele percorrendo seu corpo.

Ela tinha voltado àquele chalé para espionar, testemunhando um par de olhos sensuais e ligeiramente maldosos olhando para ela por cima dos seios expostos daquela outra mulher.

– Ai, pelo amor de Deus...

Tentando se livrar dessa lembrança, ela temeu que, naquele caso, sua necessidade por, digamos, chocolate não seria facilmente saciada por um refrigerante diet. Ou uma bolacha saudável da Snackwell. Nem mesmo por um único chocolate Kiss da Hershey’s.

Se continuasse assim, ela teria que derreter uma caixa de trufas da Lindt e colocar num acesso direto em sua veia.

Colocando o pé no freio, ela apertou um botão no painel e ouviu o ronco do motor. Quando as luzes se acenderam...

Sola se recostou no banco assustada, emitindo um grito agudo.


Quando Qhuinn voltou para a mansão com os outros, ele se afastou tão logo passaram pela porta e entraram no átrio principal. Movendo-se num trote rápido, subiu as escadas e seguiu direto para o quarto de Layla. De acordo com as mensagens, ela decidira sair da clínica no fim das contas, e ele estava ansioso em descobrir como ela estava se sentindo.

Batendo à porta, ele começou a rezar. De novo.

Nada como uma gravidez para tornar um agnóstico religioso.

– Entre.

Ao som da voz dela, ele se preparou e entrou.

– Como está se sentindo?

Layla levantou o olhar da revista Us Weekly que lia deitada na cama.

– Olá!

Qhuinn se retraiu ante a alegria dela.

– Hum... olá?

Olhando ao redor, ele viu revistas Vogue, People e Vanity Fair no cobertor em volta dela e, à sua frente, a TV estava ligada e passava um comercial sobre desodorante seguido de um de pasta de dente Colgate. Havia latas de refrigerante e bolachas de água e sal na mesinha de cabeceira e, na outra mesinha, do lado oposto, uma embalagem vazia de Häagen-Dazs e algumas colheres sobre uma travessa de prata.

– Estou me sentindo bem enjoada – disse Layla com um sorriso. Como se aquilo fosse bom.

E ele deduziu que fosse.

– Hum... algum sinal de... você sabe.

– Nem um pouco. Nada mesmo. Também não estou mais vomitando. Só tenho que me lembrar de comer um pouco por vez. Se como demais, me sinto mal, e o mesmo acontece se fico muito tempo sem colocar alguma coisa aqui dentro.

Qhuinn se recostou no batente, as pernas ficando literalmente moles de alívio.

– Isso é... incrível.

– Quer se sentar? – era como se ele parecesse tão pálido quanto se sentia.

– Não, estou bem. Eu só... só estava muito preocupado com você.

– Bem, como você pode ver – ela indicou o próprio corpo – só estou fazendo o que tenho que fazer, graças à Virgem Escriba.

Enquanto Layla lhe sorria, ele realmente gostou da aparência dela, mas não de maneira sexual, nada disso. Era só que... ela parecia calma, relaxada e feliz, com o cabelo solto sobre os ombros, uma boa cor no rosto, as mãos e os olhos estáveis. Na verdade, ela parecia... muito saudável de repente, a palidez em sua aparência era perceptível apenas pela sua ausência.

– Então, suponho que tenha tido visitas – comentou, indicando as revistas e o pote vazio de sorvete.

– Ah, todos vieram. Beth acabou ficando mais tempo. Ela se deitou ao meu lado, e não falamos sobre nada em especial. Apenas lemos e olhamos fotografias e assistimos a uma maratona de Pesca Mortal. Adoro esse programa. É sobre aqueles humanos que saem em barcos em mar aberto, sabe? É muito excitante. Fez com que eu me sentisse bem quentinha em terra firme.

Qhuinn esfregou o rosto e rezou para que sua sensação de equilíbrio retornasse rapidamente: no fim, suas glândulas adrenais ainda tinham dificuldade para acompanhar a realidade, a ideia de que não havia mais nenhum drama, nenhuma emergência, nada horrendo ao qual reagir, ou com que lidar.

– Estou contente que as pessoas estejam vindo visitar você – murmurou, sentindo como se devesse dizer alguma coisa.

– Ah, elas estão vindo... – Layla desviou o olhar, uma expressão estranha contraindo suas feições –, muitas delas.

Qhuinn franziu o cenho.

– Mas nada estranho, não é?

Ele não conseguia imaginar que ninguém ali na casa mostrasse outra coisa que não apoio, mas ele tinha de perguntar.

– Não... nada estranho.

– O que foi? – enquanto Layla mexia na capa da revista que tinha no colo, o rosto de alguma morena de olhar vago se distorceu, depois voltou ao normal, se distorceu, voltou ao normal. – Layla. Conte para mim.

Para que ele pudesse estabelecer alguns limites, caso fosse necessário.

Layla afastou o cabelo para trás.

– Você vai pensar que eu sou louca, sei lá...

Ele se aproximou e se sentou ao lado dela.

– Ok, preste atenção. Não sei como dizer isso do modo certo, por isso só vou deixar as palavras saírem. Você e eu? Nós vamos enfrentar muita... sabe, muitas baboseiras pessoais com relação a... – oh, Deus, como ele desejava que ela mantivesse aquela gravidez. – Nós bem que podemos começar a ser completamente honestos um com o outro agora. O que foi? Não vou julgar. Depois de tudo o que aprontei na minha vida? Não vou julgar ninguém a respeito de nada.

Layla respirou fundo.

– Está bem... bem, Payne veio me ver na noite passada.

Ele franziu o cenho de novo.

– E?

– Bem, ela disse que talvez pudesse fazer alguma coisa quanto à gestação. Ela não sabia se daria certo, mas não pensava que pudesse me fazer mal.

O peito de Qhuinn se contraiu, uma punhalada de medo fez seu coração acelerar. V. e Payne tinham coisas neles que não eram deste mundo. E isso era legal. Mas não perto do seu bebê – pelo amor de Deus, a mão de V. era assassina...

– Ela esticou a mão e a pousou no meu ventre, bem onde o bebê está...

Uma sensação como se o toalete interior de Qhuinn tivesse dado a descarga de todo o seu sangue para fora da sua cabeça o assolou.

– Oh, Deus...

– Não, não – Layla o segurou. – Não foi ruim. Foi... agradável, na verdade. Eu estava... banhada em luz... Ela fluía de mim, me fortalecendo, me curando. A luz se concentrou em meu abdômen, mas se estendeu para além disso. Depois, porém, fiquei muito preocupada com ela. Ela caiu no chão ao lado da cama... – Layla apontou para baixo. – Mas eu perdi a consciência em seguida. Devo ter dormido por muito tempo. E depois, quando acordei? Foi quando me senti... diferente. No começo pensei que fosse porque o sangramento tinha parado... porque aquilo tinha... acabado. Saí correndo e encontrei Blay, e ele me levou até a clínica. Foi aí que você chegou e a doutora Jane nos contou que... – a mão elegante de Layla tocou o abdômen e ficou ali. – Foi aí que ela nos contou que o nosso bebê ainda estava conosco...

A voz dela se partiu nesse momento, e ela piscou rápido.

– Então, veja bem, acho que ela salvou a nossa gravidez.

Depois de um longo momento de choque, Qhuinn suspirou:

– Ai, caralho...


De volta ao estacionamento do restaurante, Assail pairava diante do capô do Audi de sua ladra, parado bem diante da luz dos faróis.

Bem como fizera na noite anterior, fixou o olhar no dela mais por instinto que por visão.

E, enquanto permanecia no frio, ele estava fervendo de raiva e de algo mais: enquanto o saco de excremento em duas pernas a acompanhara até o carro e teve a insanidade de beijá-la, Assail se viu confrontado por duas escolhas que eram rastrear o homem noite afora e seguir adiante com seu plano original de dilacerar-lhe a garganta, ou esperar até que o humano se fosse e...

Algo muito profundo dentro dele o fez decidir: ele se sentia incapaz de deixá-la.

Sua ladra abaixou a janela e o cheiro da excitação o deixou duro.

E também o fez sorrir. Era a primeira vez a noite inteira que ele percebia esse cheiro, e isso abrandou seu humor como nada mais poderia.

Bem, a não ser talvez arrancar a pele daquele homem ainda vivo.

– O que você quer? – ela rosnou.

Hum, uma excelente pergunta, não?

Ele se moveu para a lateral do carro.

– Você se divertiu?

– Como é?

– Acredito que tenha ouvido a pergunta.

Ela escancarou a porta do motorista e saiu do carro.

– Como ousa esperar qualquer tipo de explicação a respeito de qualquer coisa...

Ele mudou o peso em sua posição, inclinando-se na direção dela.

– Posso lembrá-la de que você invadiu a minha privacidade antes...

– Eu não pulei na frente do seu carro e...

– Gostou do que viu ontem à noite? – ele a calou. E quando o silêncio persistiu, sorriu um pouco. – Então, admite que esteve espionando.

– Você sabia muito bem que eu estava – ela retrucou.

– Então, responda à pergunta. Gostou do que viu? – ele perguntou numa voz que pareceu rouca até mesmo para os próprios ouvidos.

Ah, sim, ele pensou ao inalar profundamente. Ela gostou.

– Não importa – ele ronronou. – Você não precisa expressar isso em palavras. Eu já sei a resposta...

Ela o esbofeteou com tanta força e tão rápido que a cabeça dele virou de lado de verdade.

O primeiro instinto dele foi expor as presas e mordê-la, castigá-la, para se excitar, porque não havia melhor tempero para o prazer do que um pouco de dor. Ou muita.

Ele endireitou a cabeça e abaixou os olhos.

– Isso foi bom. Quer tentar de novo?

Quando um novo vigor emanou dela, ele riu com gosto e pensou, sim, essa reação dela era o que garantiria que aquele humano iria continuar vivo. Ou pelo menos morrer pelas mãos de outra pessoa.

Ela o desejava. E a nenhum outro.

Assail se aproximou ainda mais, até que os lábios parassem bem ao lado do ouvido dela.

– O que fez quando foi para casa? Ou não conseguiu esperar tanto tempo?

Ela, deliberadamente, deu um passo para trás.

– Quer saber? Pois muito bem. Troquei a caixa de areia do gato, preparei dois ovos mexidos para mim e uma bela torrada de canela, depois fui para a cama.

Ele, deliberadamente, deu um passo à frente.

– E o que fez quando se viu entre os lençóis?

Quando a essência dela o atingiu novamente, ele voltou a posicionar a boca onde ela esteve antes... perto, ah, tão perto.

– Acho que sei o que você fez. Mas quero que me conte.

– Vá se ferrar...

– Pensou no que viu? – quando uma rajada de vento soprou os cabelos dela para os olhos, ele os ajeitou. – Imaginou que era com você que eu estava transando?

A respiração dela começou a sair com mais força de dentro do peito, e – Santa Virgem do Fade – isso o fez querer tomá-la.

– Por quanto tempo você ficou? Até a fêmea gozar... ou eu?

As mãos dela o empurraram.

– Foda-se.

Num movimento rápido, ela passou pelo corpo dele e voltou a entrar no carro, batendo a porta.

Ele se moveu com a mesma rapidez.

Aparecendo em meio à janela aberta, ele virou a cabeça dela e a beijou com força, a boca assumindo o comando, a urgência de apagar qualquer traço daquele humano fazendo seu sexo latejar.

Ela retribuiu o beijo.

Com a mesma força.

Como os ombros dele eram grandes demais para caberem na janela, quis arrancar o metal. No entanto, teve que ficar onde estava e isso o tornou mais agressivo, o sangue rugindo em suas veias, o corpo se retesando enquanto a língua a invadia, a mão sorrateira indo para trás da cabeça dela, enterrando-se em seu cabelo.

Ela estava maleável e doce, e quente como o inferno.

A ponto de ele ter que se afastar para poder respirar ou correr o risco de desmaiar.

Quando se separaram, ele a encarou. Os dois arfavam, e quando a excitação dela permeou o ar, ele quis se enterrar nela.

Para marcá-la...

O som do telefone tocando foi um exemplo da coisa errada acontecendo no momento errado: o toque em seu casaco fez com que ela voltasse à realidade, os olhos se arregalando enquanto se afastavam, as mãos travando no volante como se ela tentasse voltar à Terra.

Ela não olhou para ele quando subiu a janela e ligou o motor, partindo em seguida.

Deixando Assail arfando no frio.


CAPÍTULO 55

Qhuinn saiu do quarto de Layla pouco depois, seus coturnos levando-o a um passo rápido por sobre a passadeira estreita do corredor até o alto das escadas. Ao passar pelo escritório de Wrath, teve a impressão de que alguém o chamava, mas não deu atenção.

No canto oposto do corredor das estátuas, além da suíte de Z. e de Bella, o quarto em que Payne e Manny ficavam estava com a porta fechada, mas o som da televisão murmurava baixinho do lado de dentro.

Qhuinn precisou de um segundo para recompor as peças em sua cabeça atordoada, e depois bateu.

– Entre – foi a resposta.

Ao entrar, viu que o quarto era banhado por uma luz azulada da tela de TV. Payne estava deitada na cama, a pele tão pálida que refletia as diferentes cenas projetadas nela.

– Saudações – disse ela numa voz cansada.

– Jesus... Cristo...

– Não, não chego a isso... – ela sorriu. Ou, pelo menos, meia boca dela o fez. – Perdoe-me se não me levanto para recebê-lo.

Ele fechou a porta com suavidade.

– O que aconteceu?

Ainda que ele suspeitasse.

– Ela está bem? – perguntou Payne. – A sua fêmea ainda está grávida?

– Os exames parecem indicar isso.

– Bom. Isso muito me agrada.

– Você está morrendo? – ele perguntou num rompante. E depois quis se dar um chute no traseiro.

Ela meio que riu.

– Acredito que não. No entanto, estou muito fraca.

Os pés de Qhuinn o carregaram através do quarto.

– Então... o que aconteceu?

Payne se esforçou para se erguer nos travesseiros, mas acabou desistindo.

– Acho que estou perdendo o meu dom – ela gemeu ao dobrar as pernas debaixo das cobertas. – Assim que cheguei aqui, eu conseguia postar as mãos e curar com pouco ou nenhum esforço. Toda vez que o faço, porém, o esforço parece me arrasar um pouco mais. E o que eu tentei com a sua fêmea e o seu bebê foi...

– Você quase se matou – ele completou por ela.

Ela deu de ombros.

– Despertei ao lado da cama dela. Arrastei-me aqui para baixo. Manny me tirou da cama há um tempo, e eu tinha um pouco de forças. Agora, parece que elas me abandonaram de novo.

– Posso fazer alguma coisa?

– Acho que preciso ir ao santuário de minha mãe – isso foi dito com total menosprezo. – Para me recarregar. Parece lógico, visto que lá pode ter sido a origem do meu dom. Só preciso me fortalecer o bastante para fazer a jornada, por assim dizer. Bem, isso e juntar vontade de fazê-lo. Eu preferiria continuar aqui. A decisão, contudo, parece ter sido tomada por mim. Não se pode negociar com o físico, depois de certo ponto.

É, ele sabia o que era isso.

– Eu não posso... – ele passou uma mão pelos cabelos. – Não sei como agradecer.

– Quando ela der à luz, então você poderá me agradecer. Há um caminho ainda desconhecido a ser atravessado.

Não mais, ele pensou. A sua visão, aquela à porta do Fade, mais uma vez estava em vias de acontecer.

E, desta vez, permaneceria assim.

Qhuinn desembainhou uma das adagas do peito e fez um corte na palma da mão. Quando o sangue se acumulou e começou a pingar, ele se ofereceu à fêmea.

– Com isto eu ofereço a minha... – ele se interrompeu. Ele não tinha uma linhagem para oferecer, não com a rejeição de sua família no passado. – Ofereço a minha honra a você e aos seus daqui até o fim enquanto o meu coração bater e a última respiração sair de meus pulmões. Qualquer coisa de que necessitar, poderá me solicitar e será seu, sem perguntas, nem hesitação.

De certo modo, parecia ridículo se oferecer dessa forma à filha da bendita divindade. Até parece que Payne precisaria de ajuda...

A mão da adaga de Payne segurou a dele com força.

– Prefiro aceitar a sua honra a qualquer linhagem na face da Terra.

Quando seus olhos se encontraram, ele teve ciência de que aquilo não era um assunto macho-fêmea, mas lutador-lutador, apesar da diferença dos sexos.

– Jamais conseguirei agradecer o suficiente – disse ele.

– Espero que ela supere isso. Ela e o bebê, quero dizer.

– Tenho a sensação de que conseguirão. Graças a você.

Pareceu estranho querer se curvar para aquela fêmea, mas algumas coisas você simplesmente faz, e foi o que ele fez. Depois se virou, pois não desejava atrapalhar o descanso dela.

Bem quando já segurava a maçaneta, Payne murmurou:

– Se quer agradecer a alguém, você deveria procurar Blaylock.

Qhuinn ficou imobilizado. Virou o pescoço para trás.

– O que... você disse?


Assail ficou parado enquanto o Audi derrapava para fora do estacionamento e chegava à rua à frente como se sua ladra tivesse plantado uma bomba no restaurante e tivesse acabado de acionar o detonador.

Seu corpo lhe dizia para ir atrás dela, parar o carro e arrastá-la para o banco de trás.

A mente, contudo, sabia que aquilo não seria uma boa ideia.

Ao sentir uma tensão trespassá-lo, ele soube que a extensão com que perdia controle perto dela era perigosa. Ele era um macho que se definia pelo seu autocontrole. Com aquela fêmea? Ainda mais se o sexo dela estivesse excitado?

Ele se sentia consumido pelo desejo de possuí-la.

Portanto, tinha que se controlar.

A bem da verdade, ele não tinha nada que perder tempo perseguindo uma humana qualquer, parado num canto escuro de uma espelunca qualquer, observando-a com um homem.

Também consumido pelo desejo premente de matar o acompanhante de cheeseburguer dela.

O que, em nome da Virgem Escriba, acontecera com ele?

A resposta, quando lhe veio, foi algo que rejeitou com veemência.

Numa tentativa de realocar suas energias, ele pegou o celular para ver quem telefonara para romper o encanto que precisava ter sido rompido.

Rehvenge.

Por muitos motivos, ele não tinha vontade alguma de falar com aquele macho. A última coisa que o interessava era a repetição de todos os motivos pelo quais ele tinha de participar da estagnação social e política que era o Conselho.

Mas isso seria melhor do que ir atrás de sua ladra...

E ele percebeu que nem sequer sabia o nome dela.

E seria muito melhor nunca vir a saber, disse a si mesmo.

Ao retornar a ligação, ele levou o aparelho ao ouvido e enfiou a mão livre no bolso do casaco de lã para mantê-la aquecida.

– Rehvenge – disse ele quando o macho atendeu. – Estou falando com você mais do que falo com minha mahmen.

– Pensei que a sua mãe estivesse morta.

– Ela está.

– O seu padrão de comunicação é muito baixo.

– O que posso fazer por você – aquilo não era uma pergunta, pois não havia motivos para encorajar uma resposta.

– Na verdade, trata-se do que eu posso fazer por você.

– Com o devido respeito, prefiro cuidar sozinho dos meus assuntos.

– Uma política muito boa. E por mais que eu saiba que você gosta dos seus “assuntos”, não foi por isso que telefonei. Pensei que gostaria de saber que o Conselho se reuniu com Wrath hoje à noite.

– Acredito que renunciei ao meu posto em nossa última conversa. Portanto, o que será que isso tem a ver comigo?

– O seu nome foi dito no fim. Depois que todos tinham se retirado.

Assail arqueou uma sobrancelha.

– De que modo?

– Um passarinho disse que você armou a armadilha para Wrath em favor do Bando de Bastardos em sua casa no outono passado.

Assail segurou o telefone com mais força. E durante a breve pausa que se seguiu, ele escolheu as palavras com extrema cautela.

– Wrath sabe que isso não é verdade. Fui eu quem forneceu o veículo para a fuga dele. Como já lhe disse antes, não estou, e nunca estive, ligado a nenhum tipo de insurreição. Na verdade, eu me retirei do Conselho exatamente porque não quis me envolver em nenhum tipo de dramalhão.

– Relaxe. Ele lhe fez um favor.

– De que modo, exatamente?

– O indivíduo disse isso na minha frente.

– E, mais uma vez, eu pergunto, como isso se...

– Eu sabia que ele estava mentindo.

Assail se calou. Claro que era bom que Rehvenge soubesse que tal declaração era falsa. Mas como?

– Antes que me pergunte – o macho murmurou sombrio –, não vou lhe contar exatamente por que estou tão certo disso. Todavia, eu lhe direi que estou preparado para recompensar a sua lealdade com um presente por parte do Rei.

– Um presente?

– Wrath faz jus ao seu nome.* Ele entende, por exemplo, como um indivíduo pode se sentir se ele for indevidamente acusado de traição. Ele sabe que se alguém tenta implicar outra pessoa com uma informação que não é de conhecimento público, provavelmente está tentando desviar a responsabilidade de suas próprias ações... Ainda mais se a pessoa falando tiver um... bem, como dizer, uma inclinação... que indicasse não apenas falsidade, mas também certo nível de maquinação. Como se ele estivesse lhe retribuindo por algo que considerasse deslealdade ou mau juízo.

– Quem é? – Assail perguntou. Mesmo sabendo de quem se tratava.

– Wrath não está lhe pedindo que faça nenhum tipo de trabalho sujo. Na verdade, se escolher não fazer nada, esse indivíduo estará morto dentro das próximas 24 horas. O Rei apenas acredita que, assim como eu, os seus interesses estejam não só alinhados aos nossos, mas que, neste caso, eles os suplantam.

Assail fechou os olhos, a vingança fervendo em seu sangue da mesma maneira com que seus instintos sexuais ferveram há pouco. O resultado, contudo, seria muito, mas muito diferente.

– Diga o nome.

– Elan, filho de Larex.

Assail fechou os olhos e expôs as presas.

– Diga ao seu Rei que eu cuidarei do assunto de boa vontade.

Rehvenge riu com malignidade.

– Farei isso. Eu prometo.

Wrath em inglês significa ira, fúria, raiva. (N.T.)


CAPÍTULO 56

Blay se sentia ansioso ao andar de um lado para o outro no quarto. Ainda que estivesse completamente vestido para lutar, ele não iria a parte alguma. Nenhum deles iria.

Depois da reunião do Conselho, Tohr ordenara à Irmandade que ficasse recolhida só para o caso. Rehv estava contatando os membros do Conselho, fora da mansão, para entender em que pé a glymera estava. Como o cara não podia aparecer com um grupo de seis Irmãos em sua retaguarda – não se quisesse manter ao menos uma fachada de civilidade –, eles tinham de aguardar. No entanto, devido ao clima político, era importante que a retaguarda estivesse a postos para o caso de o Reverendo precisar.

Não se ele ainda usasse esse nome...

A porta do seu quarto se abriu sem uma batida, um olá, um “ei, posso entrar?”.

Qhuinn parou debaixo da soleira, arfando, como se tivesse corrido pelo corredor das estátuas.

Maldição, será que no fim Layla perdera a gravidez?

Aqueles olhos descombinados vasculharam ao redor.

– Está sozinho?

Por que ele acharia que... Ah, Saxton. Certo.

– Sim...

O macho avançou três passos, esticou os braços e... lascou um beijo daqueles em Blay.

O beijo foi do tipo de que você se lembra pelo resto da vida, a ligação forjada com tamanha completude que tudo, desde a sensação do corpo contra o seu, do calor dos lábios nos seus, do poder assim como o controle, acabavam gravados em sua mente.

Blay não fez nenhuma pergunta.

Apenas continuou lá, os braços envolvendo o outro macho, aceitando a língua que o invadia, retribuindo o beijo mesmo que não entendesse o que motivara aquilo tudo.

Ele, provavelmente, deveria se importar com isso. Provavelmente deveria se afastar.

Deveria, poderia, teria...

Que seja.

Ele estava vagamente ciente de que a porta estava aberta, mas não se importou – mesmo que as coisas logo se tornassem bem indiscretas muito rapidamente.

Só que Qhuinn subitamente pisou no freio, colocando um fim no beijo e separando-os.

– Desculpe, não foi para isso que eu vim até aqui.

O lutador ainda arfava, e isso, junto ao ardor do olhar fixo, quase bastou para que Blay dissesse algo do tipo: “Tudo bem, mas podemos terminar isto antes?”.

Qhuinn voltou até a porta e a fechou. Depois enfiou as mãos nos bolsos das calças, como se a alternativa preocupante fosse voltar a agarrá-lo.

Ao inferno com os bolsos, Blay pensou enquanto, sutilmente, tentava ajeitar sua ereção.

– O que foi? – perguntou.

– Sei que procurou Payne.

As palavras foram pronunciadas clara e lentamente – e era exatamente isso o que Blay não tinha como lidar. Desviando o olhar, ele andou pelo quarto.

– Você salvou a gestação – anunciou Qhuinn, o tom de sua voz próximo demais de um estado de reverência para o seu conforto.

– Então, ela está bem?

– Você salvou a...

– Payne fez isso.

– A irmã de V. disse que não lhe teria ocorrido sequer tentar... até que você a procurou e falou com ela.

– Payne é muito talentosa...

Qhuinn subitamente ficou diante dele, uma parede sólida de músculos pela qual ele não teria como passar. Ainda mais depois de o macho esticar a mão e resvalar o rosto de Blay.

– Você salvou a minha filha.

No silêncio que se seguiu, Blay soube que devia dizer alguma coisa. Sim... estava na ponta da sua língua. Era...

Merda. Com Qhuinn olhando para ele daquele jeito, ele não se lembrava nem do próprio nome. Blaysox? Blacklock, Blabberfox? Quem é que sabia?...

– Você salvou a minha filha – sussurrou Qhuinn.

As palavras que saíram da boca de Blay foram as que, mais tarde, ele lamentaria – porque era especialmente importante, diante do sexo que parecia acontecer de tempos em tempos, manter a distância.

Mas ligados como estavam, olhos nos olhos, ele estava impotente para refrear a verdade.

– Como eu poderia não tentar... aquilo estava acabando com você. Eu não podia deixar de fazer alguma coisa. Qualquer coisa.

As pálpebras de Qhuinn se abaixaram por um tempo. E depois ele abraçou Blay de uma maneira que ficaram ligados da cabeça aos pés.

– Eu posso sempre contar com você, não é?

Uma doce amargura: a realidade de que aquele macho formaria uma família com outra pessoa, uma fêmea, Layla, atingiu o meio do peito de Blay.

Aquela era a sua sina, de tantas maneiras.

Ele se soltou dos braços de Qhuinn e recuou alguns passos.

– Bem, espero que...

Antes que conseguisse terminar, Qhuinn voltou a se postar diante dele, e seus olhos, um verde, um azul, estavam ardentes.

– O que foi? – disse Blay.

– Eu lhe devo... tudo.

Por algum motivo, aquilo doeu. Talvez porque após anos de tentativas de se entregar para o cara, a gratidão finalmente fora conquistada ao ajudá-lo a ter um filho com outra pessoa.

– O que é isso, você teria feito o mesmo por mim – disse ele, um tanto rouco.

E no instante em que disse isso, não teve tanta certeza. Se alguém o atacasse? Sim, claro que Qhuinn o protegeria. Mas, pensando bem, o filho da mãe adorava lutar e era um herói nato, isso não estaria nada relacionado a Blay.

Talvez aquela fosse a questão em todo esse vazio. Tudo sempre fora nos termos de Qhuinn. A amizade. A distância. Até mesmo o sexo.

– Por que está olhando para mim assim? – Qhuinn perguntou.

– Assim como?

– Como se eu fosse um desconhecido.

Blay esfregou o rosto.

– Desculpe. A noite está demorando a passar.

Houve um momento tenso e longo, durante o qual ele só conseguia sentir o olhar fixo de Qhuinn.

– Eu vou embora – o lutador disse depois de uma pausa. – Eu acho que só... queria...

O som dos coturnos dirigindo-se para a saída fizeram Blay praguejar...

E uma batida única e forte à porta: um Irmão.

A voz de Rhage atravessou com facilidade a madeira.

– Blay? Tohr convocou uma reunião para repassarmos o território a cobrir amanhã. Sabe onde Qhuinn está?

Blay olhou através do quarto para o cara.

– Não, não sei.


Ah, pelo amor de Deus, Qhuinn pensou ante a interrupção. Ainda que, na realidade, a conversa tivesse chegado ao fim.

A boa notícia era que, pelo menos, Rhage não entrara. Sem dúvida, Blay preferiria que os dois não fossem flagrados à toa em seu quarto.

Hollywood terminou a conversa dizendo:

– Se o vir, avise que, se ele pretende ir, temos que nos encontrar em cinco minutos. Entenderemos se ele preferir ficar com Layla.

– Entendido – disse Blay num tom apagado.

Enquanto Rhage seguia em frente para a porta de Z., Qhuinn esfregou o rosto. Ele não fazia ideia do que se passava pela cabeça de Blay naquele instante, mas o modo como os olhos azuis o encaravam o fez sentir como se um fantasma tivesse acabado de passar por cima de sua tumba.

Pensando bem, o que ele esperava? Invadira o quarto que o cara dividia com Saxton, tascara-lhe um beijo e depois se mostrara todo sentimental quanto àquela situação com Payne... Aquele era o espaço de Saxton. E não o seu.

Ele tinha o costume de tomar as coisas para si, não era mesmo?

– Não venho mais aqui – disse Qhuinn, tentando aplacar a situação. – Eu só queria que soubesse que... eu lhe devo muito...

Qhuinn foi até a porta e se inclinou, ouvindo a voz de Rhage, fechando os olhos, à espera que o corredor das estátuas estivesse vazio.

Jesus, como ele sabia ser egoísta às vezes, ele sabia mesmo ser...

– Qhuinn...

Seu corpo se virou no mesmo instante, como se a voz de Blay tivesse uma corda que o puxasse.

– Sim?

O macho andou para a frente. Quando estavam cara a cara, Blay disse:

– Ainda quero transar com você.

As sobrancelhas de Qhuinn estalaram tão alto que quase despencaram sobre o tapete. E, no mesmo instante, ele ficou excitado.

O problema era que Blay não parecia feliz com aquilo. Mas por que estaria? Ele não era do tipo de macho que traía com facilidade – ainda que a ausência de monogamia de Saxton o tivesse curado de sua fidelidade.

O que fez com que Qhuinn quisesse estrangular o primo novamente. E a única coisa que o impedia de ir atrás do cara era que, nesse caso, a situação estava a seu favor.

– Também quero estar com você – disse.

– Vou até o seu quarto depois do amanhecer.

Qhuinn não queria perguntar. Tinha que perguntar.

– E quanto a Saxton?

– Ele saiu de férias.

Mesmo?

– Por quanto tempo?

– Alguns dias apenas.

Pena. Alguma probabilidade de extensão... que tal por um ano ou dois? Quem sabe para sempre?

– Ok, então temos um... – Qhuinn se deteve antes de terminar dizendo “encontro”.

Não havia por que tentar se enganar. Saxton estava ausente. Blay queria transar. E Qhuinn estava mais do que disposto a fornecer ao macho aquilo que ele queria.

Não se tratava de um “encontro”. Mas, que se dane?

– Venha – disse num grunhido. – Estarei à sua espera.

Blay assentiu, como se tivessem feito um pacto, e depois saiu primeiro, o corpo com passadas agressivas enquanto se encaminhava para a porta e saía.

Qhuinn observou-o ir embora. Ficou para trás. Quase se trancou ali para poder se recuperar.

De repente, ficou todo confuso, apesar da promessa de que se encontrariam em poucas horas. A expressão no rosto de Blay o atormentava a ponto de ele sentir o peito começar a doer. Merda, talvez aquela série de encontros fosse apenas uma evolução dos maus momentos em que estiveram antes, uma nova faceta da infelicidade coletiva dos dois.

Nunca lhe ocorrera antes que eles não fossem bons um para o outro. Que não haveria, no futuro, algum tipo de encontro de mentes em que ele se abrisse depois de todos aqueles anos.

Cerrando um punho, ele socou o batente da porta, o contorno da guarnição retribuindo o golpe para as suas juntas.

Enquanto a dor surgia e latejava, por algum motivo, ele pensou no soco no painel do caminhão-guincho e no grito para sair de lá. Parecia ter acontecido em outra vida.

Mas ele não tinha como recuar. Se sexo era tudo o que teria, era o que receberia. Além disso, o que Blay fizera por Layla?

Aquilo devia significar alguma coisa. O cara se importara o bastante para mudar o curso da sua vida.

Não que Blay já não tivesse feito isso há muito tempo.


CAPÍTULO 57

Assail se materializou ao lado de um riacho que permanecia descongelado graças ao seu constante movimento.

Estivera naquela casa apenas uma vez antes: era uma construção vitoriana de tijolos com tema característico marcado pelas varandas e entradas. Tão pacato. Tão acolhedor. Ainda mais com aquelas janelas amplas de quatro vidraças feitas de vitral, e as nuvens de fumaça que saíam não de uma, mas de três das quatro chaminés.

O que indicava que o proprietário havia se recolhido para aquela noite.

Bem na hora: o amanhecer se aproximaria logo, portanto, era apenas lógico abaixar as escotilhas ante o sol. Proteger seu ambiente. Preparar-se para as horas em que seria necessário permanecer no interior para se proteger de danos.

Assail caminhou sobre a neve imaculada, deixando marcas de solados profundos. Nada de sapatos de couro para aquele trabalho. Tampouco um terno de negócios.

Nenhum Range Rover para a sua ladra perseguir.

Aproximando-se do gramado lateral, ele chegou à janela que ia do teto ao chão da sala na qual o dono da casa recebera, não muito tempo atrás, certos membros do Conselho... junto ao Bando de Bastardos.

Assail estivera entre os convidados da reunião. Pelo menos até que estivesse ficado claro que ele tinha de se retirar ou acabaria misturado ao tipo de discurso dramático pelo qual não se interessava.

Pelo vidro, espiou o interior.

Elan, filho de Larex, estava sentado à escrivaninha, um telefone fixo junto ao ouvido, uma taça de conhaque próxima ao cotovelo, um cigarro queimando num cinzeiro de cristal lapidado ao seu lado. Enquanto ele se recostava em sua poltrona de espaldar alto e cruzava os joelhos, parecia estar num estado de relaxamento e satisfação semelhante ao rejúbilo pós-coito.

Assail cerrou os punhos e as luvas de couro rangeram de leve.

Em seguida, ele se desmaterializou até a sala, voltando à sua forma exatamente atrás da poltrona do macho.

De certa forma, ele custava a acreditar que Elan não tivesse fortificado a casa com medidas de segurança – uma malha de aço fina sobre as janelas e dentro da parede, por exemplo. Pensando bem, ao aristocrata obviamente faltava a habilidade de julgar corretamente os perigos – assim como tinha uma arrogância que lhe garantiria uma sensação de segurança maior do que a que tinha efetivamente.

– ... e então Wrath partilhou uma história sobre o pai. Devo admitir que, pessoalmente, o Rei é bem... feroz. Ainda que não o bastante para mudar meu curso, obviamente.

Não. Assail cuidaria disso.

Elan se inclinou para a frente para pegar o cigarro. A coisa estava presa numa daquelas cigarrilhas antigas, do tipo que as fêmeas tendiam a usar, e levou a ponta aos lábios para tragar, a extremidade indo além do fim da cadeira.

Assail desembainhou uma lâmina de aço brilhante que era tão longa quanto o seu antebraço.

Sempre fora a sua arma predileta para aquele tipo de assunto.

Seus batimentos cardíacos estavam tão ritmados quanto a mão estava firme, a respiração uniforme e regular enquanto pairava atrás da poltrona. Com deliberação, foi para o lado, posicionando-se de modo que seu reflexo aparecesse na janela oposta à escrivaninha.

– Não sei se a Irmandade inteira estava presente. Quantos restaram? Sete ou oito? Essa é uma parte do problema. Não sabemos mais quem eles são – Elan bateu as cinzas no centro do cinzeiro. – Então, enquanto estávamos na reunião, instruí um colega meu a entrar em contato com você... Como disse? Claro que lhe dei o seu número, e ressinto-me do seu tom... Sim, ele esteve na reunião em minha casa. Ele vai... Não, não voltarei a fazer isso. Pode parar de me interromper? Acredito que sim.

Elan tragou novamente e exalou a fumaça no ar, seu aborrecimento manifestado em sua respiração.

– Posso continuar? Obrigado. Como eu dizia, esse meu colega entrará em contato a respeito de certos assuntos legais que podem nos ajudar. Ele me explicou, mas é tudo muito técnico, portanto, deduzi que você gostaria de falar diretamente com ele.

Houve uma pausa expressiva. E quando Elan voltou a falar, seu tom se mostrou mais calmo, como se palavras tranquilizadoras tivessem aplacado seu ego.

– Ah, sim, uma última coisa. Tratei de cuidar do nosso probleminha com certo cavalheiro “com mente apenas para os negócios”...

Assail deliberadamente cerrou um punho.

E quando o couro, mais uma vez, emitiu um suave som de protesto, Elan se endireitou na poltrona, a perna cruzada voltando a se apoiar no chão, a coluna se endireitando a tal ponto de sua cabeça aparecer por sobre o espaldar. Ele olhou para a esquerda. Para a direita.

– Preciso ir...

Nesse instante, os olhos de Elan pararam na janela diante dele e ele viu o reflexo do seu assassino no vidro.


Enquanto Xcor parava na sala protegida com calefação adequada, ele teve que admitir que a nova escolha de abrigo de Throe era muito superior ao porão do armazém em que previamente estiveram. Talvez ele devesse agradecer ao Sombra que invadira o local, se um dia seus caminhos voltassem a se cruzar.

Pensando bem, talvez o calor que ele sentia no corpo fosse seu humor se alterando e não o trabalho de um condutor de calor operante: o aristocrata do outro lado do seu celular estava testando seus nervos.

Ele não queria ser procurado por ninguém mais do Conselho. Lidar com um só membro da glymera já era o bastante.

Embora tipicamente ele assumisse uma abordagem pacífica com Elan, sua ira deu sinais.

– Não dê meu número a ninguém mais.

Elan e ele trocaram algumas palavras, a ira do aristocrata também se fazendo ver.

O que, na verdade, de nada serviria. Era sempre bom ter um instrumento utilizável nas mãos, não um de difícil trato.

– Minhas desculpas – Xcor murmurou depois de algum tempo. – Trata-se apenas de que prefiro lidar com os que tomam as decisões. É por isso que falo com você e somente com você. Não tenho interesse em ninguém mais. Só em você.

Como se Elan fosse uma fêmea e o relacionamento deles fosse romântico...

Xcor revirou os olhos quando o aristocrata caiu na sua, e voltou a falar:

– ... uma última coisa. Tratei de cuidar do nosso probleminha com certo cavalheiro “com mente apenas para os negócios”...

Instantaneamente, a atenção de Xcor se alterou. O que em nome do Fade o idiota fizera?

Na verdade, aquilo podia ser monstruosamente inconveniente. Podiam dizer o que quisessem por Assail se recusar a aceitar o destronamento de Wrath, mas aquele “cavalheiro” em especial não era feito da mesma seda frágil de Elan. Por mais que Xcor detestasse lidar com o filho de Larex, ele investira um bom tempo e recursos naquele relacionamento. Seria uma pena perder aquele canalha agora e ter de estabelecer outro elo com o Conselho.

– O que você disse? – Xcor exigiu saber.

O tom de Elan se alterou, revelando preocupação.

– Preciso ir...

O grito que reverberou pelo telefone foi tão alto e agudo que Xcor teve que afastar num rompante o celular do ouvido e mantê-lo longe.

Ante aquele som, seus lutadores, que estavam descansando na sala em várias posições, viraram as cabeças na sua direção, testemunhando, assim como ele, o assassinato de Elan.

Os gritos prosseguiram por um tempo, mas não houve nenhum pedido de clemência – ou porque o agressor agira rapidamente ou porque ficou bem claro, mesmo para o macho moribundo, que não haveria nenhuma.

– Que estrago – observou Zypher enquanto outro grito vibrava do telefone. – Uma verdadeira lambança.

– Ainda está respirando – outro comentou.

– Não por muito tempo – um terceiro opinou.

E eles tinham razão. Não mais do que um momento depois, algo atingiu o chão e esse foi o fim dos sons.

– Assail – Xcor disse alto. – Pegue o maldito telefone. Assail.

Houve um barulho como se o telefone no qual Elan estivera falando tivesse sido recuperado do lugar em que caíra. Em seguida, ouviu-se o som de uma respiração arfante.

O que sugeria que Elan podia muito bem estar despedaçado.

– Sei que é você, Assail – disse Xcor. – E só posso imaginar que Elan tenha dado um passo em falso e que tal indiscrição tenha chegado aos seus ouvidos. Todavia, você roubou um parceiro meu, e isso não pode passar em branco.

Foi uma surpresa quando o macho respondeu, com a voz grave e forte:

– No Antigo País, previdências eram tomadas perante afrontas à reputação das pessoas. Por certo, não deve se lembrar delas, mas não poderá me negar o meu direito à desforra no Novo Mundo.

Xcor expôs as presas, não por estar frustrado com aquele com quem falava. Maldito Elan. Se o idiota tivesse apenas sido um informante, ele ainda estaria vivo – e Xcor teria tido a satisfação de ele mesmo matá-lo ao fim daquilo.

Assail prosseguiu:

– Ele declarou a representantes do Rei que eu fui responsável pelo seu tiro de rifle, aquele que foi disparado em minha propriedade sem o meu conhecimento, tampouco a minha permissão... E... – ele interrompeu antes que Xcor pudesse falar – você sabe muito bem o pouco que me relacionei a esse ataque, não sabe?

Nos tempos de Bloodletter, aquela conversa jamais teria acontecido. Assail seria perseguido e caçado por ser um estorvo e eliminado tanto por necessidade como por prazer.

Mas Xcor aprendera a sua lição.

Enquanto os olhos pousavam em Throe, parado alto e elegante entre os outros, ele pensou, sim, aprendera que havia lugar e hora adequados para certas... regras...

– O que eu disse antes ainda vale, Xcor, filho de Bloodletter – quando Xcor se retraiu ante essa referência, mostrou-se contente por aquela conversa estar acontecendo pelo telefone. – Não me importo com os seus interesses nem com aqueles do Rei. Sou apenas um homem de negócios; desliguei-me do Conselho e não sou seu aliado. E Elan tentou fazer de mim um traidor... Algo que, como bem sabe, vem com um preço sobre a cabeça de uma pessoa. Tirei a vida de Elan porque ele tentou tirar a minha. Isso é perfeitamente legítimo.

Xcor praguejou. O macho tinha razão. E por mais que a neutralidade inflexível de Assail tivesse parecido inacreditável no início, agora Xcor começava a... bem, confiar não era uma palavra que ele costumava usar com outros que não os seus soldados.

– Diga-me uma coisa – disse Xcor de modo arrastado.

– O quê?

– A cabeça desse imbecil ainda está presa ao corpinho frágil dele?

Assail riu.

– Não.

– Sabe que esse é um dos meus métodos de assassinato prediletos?

– Um aviso para mim, Xcor?

Xcor olhou de relance para Throe e pensou novamente na virtude dos códigos de comportamento, mesmo entre os guerreiros.

– Não – declarou. – Apenas algo que temos em comum. Fique bem, Assail, pelo que lhe resta desta noite.

– Você também. E nas palavras de um conhecido em comum, preciso ir. Antes de ser forçado a matar o mordomo doggen que está batendo, neste instante, na porta que tranquei.

Xcor jogou a cabeça para trás e gargalhou ao concluir a ligação.

– Sabem – disse ele aos seus lutadores –, até que eu gosto dele.


CAPÍTULO 58

Na noite seguinte, enquanto as persianas se erguiam e um alarme que Blay não reconhecia começava a tocar, ele abriu os olhos.

Aquele não era o seu quarto. Mas ele sabia exatamente onde estava.

Ao seu lado, contra as suas costas, Qhuinn se espreguiçava, o corpo do macho se esticando contra o seu, a pele nua resvalando na sua pele nua – e não é que isso fez uma ereção latejar?

Qhuinn se esticou por sobre a cabeça de Blay, o braço pesado passando por cima para silenciar o alarme do relógio.

A fim de que não houvesse dúvidas quanto a ele querer uma rapidinha antes de todo o ritual de banho e a Primeira Refeição, Blay se arqueou, empurrando as nádegas contra a pélvis de Qhuinn. O gemido que o atingiu no ouvido o fez sorrir um pouco, mas as coisas ficaram sérias quando a mão da adaga de Qhuinn escorregou para baixo e encontrou o pau de Blay.

– Ai, cacete – murmurou Blay ao levantar a perna para abrir caminho.

– Preciso estar dentro de você.

Engraçado, era exatamente isso o que Blay estava pensando.

Enquanto Qhuinn montava nele, Blay se acomodou sobre a barriga, esmagando a palma de Qhuinn com seu mastro erguido.

Não demorou muito para o ritmo ficar intenso e rápido, e enquanto as bolas de Blay se contraíam em novo gozo, ele se maravilhou de tal maneira que seu desespero pelo cara só parecia aumentar – e haveria quem acreditasse que o número de vezes que os dois gozaram juntos, literalmente, durante o dia tivesse aplacado aquele fogo a uma mera ardência.

Não era o caso.

Entregando-se ao prazer, Blay cerrou os dentes quando seu clímax o atingiu ao mesmo tempo em que os quadris de Qhuinn se contraíram e o macho gemeu.

Não houve um segundo round. Não que Blay não quisesse, nem que Qhuinn fosse incapaz. O problema era o relógio.

Quando Blay voltou a abrir os olhos, os números digitais lhe disseram que o alarme de Qhuinn só concedia quinze minutos para que se aprontassem – tempo apenas para uma chuveirada e para se armarem, nada mais. O que o fez desejar que o lutador fosse mais do tipo lerdo que se barbeia duas vezes, passa colônia e escolhe a roupa que vai vestir...

Com mais um dos seus gemidos eróticos de marca registrada, Qhuinn deitou-se de lado, mantendo-os unidos. Enquanto o cara respirava fundo, Blay se deu conta que poderia ficar assim para sempre, apenas os dois em silêncio, no quarto em penumbra. Naquele instante de paz e tranquilidade, não havia nenhuma pendência do passado, ou qualquer coisa que precisasse ser dita mas não foi, ou terceiros elementos, reais ou imaginários, entre eles.

– No fim da noite – disse Qhuinn num tom grave –, você virá me procurar de novo.

– Sim, virei.

Não houve outro tipo de resposta que lhe ocorresse. Na verdade, ele estava se perguntando como esperaria as doze horas de escuridão e refeições e trabalho até poder escapar e voltar para ali.

Qhuinn murmurou algo muito parecido com “ainda bem”. Depois gemeu e se desencaixou, afastando-se. Em seguida, Blay ficou onde estava por um instante, mas, no fim, não tinha escolha a não ser se levantar, ir para a porta e voltar para o seu lugar.

Ainda bem que ninguém o viu.

Ele voltou para o quarto sem que ninguém testemunhasse a caminhada da vergonha, e sim, em quinze minutos, ele se lavou, vestiu-se e se armou. Saindo do quarto, ele...

Qhuinn apareceu na mesma hora.

Os dois pararam.

Normalmente, caminharem juntos seria apenas marginalmente estranho, e eles teriam de jogar conversa fora.

Mas agora...

Qhuinn abaixou o olhar.

– Você primeiro.

– Ok – Blay se virou para se afastar. – Obrigado.

Blay jogou o coldre de peito e a jaqueta de couro por sobre o ombro e saiu andando. Quando chegou às escadas, parecia que anos tinham se passado desde que estiveram deitados tão próximos. Será que aquele dia entre eles acontecera de fato?

Jesus, estava começando a enlouquecer.

Entrando na sala de jantar no andar de baixo, ele se sentou numa cadeira qualquer e pendurou suas coisas no espaldar como os outros – mesmo que Fritz detestasse ver armas próximas à comida. Depois, agradeceu ao doggen que lhe serviu um prato cheio e começou a comer. Ele não teria como dizer o que lhe fora servido nem quais conversas percorriam a mesa. Mas soube exatamente quando Qhuinn passou pela soleira da porta: seu âmago começou a zunir e foi impossível não olhar por cima do ombro.

Houve um impacto físico imediato ao ver aquele corpo imenso envolto em preto, carregado de armas – como se a bateria de um carro tivesse sido ligada em seu sistema nervoso.

E ele achou que foi até bom Qhuinn evitar olhar para ele. Os outros ao redor da mesa os conheciam muito bem, especialmente John, e as coisas já estavam bem complicadas sem a boataria de corredor ter a oportunidade de se fazer valer – não que alguém fosse dizer algo publicamente. Porém, em particular... Conversas de travesseiros corriam desenfreadamente naquela casa.

Algo a se invejar.

Qhuinn seguiu em frente, depois mudou de direção, e foi para o lado completamente oposto da mesa, para a única cadeira, além daquela ao lado de Blay, que estava desocupada.

Por algum motivo, Blay pensou na conversa que teve com a mãe pelo telefone, aquela em que admitira finalmente a um membro de sua família quem exatamente ele era.

Uma inquietação passou pela sua nuca. Qhuinn jamais faria algo como sair do armário, e não porque seus pais estavam mortos, ou porque, quando o casal estava vivo, eles odiavam o filho.

Eu me vejo com uma fêmea num relacionamento duradouro. Não sei explicar. É só assim que vai ser.

Blay afastou o prato.

– Blay? Alôoo?

Estremecendo, ele olhou para Rhage.

– O que foi?

– Eu perguntei se você está pronto para dar uma de Nanook, o Esquimó.

Ah, é mesmo. Eles voltariam para aquele pedaço de floresta onde encontraram os chalés e o redutor com poder especial de desaparecimento, além do avião que, no momento, acumulava neve no jardim dos fundos.

John, Rhage e ele estavam designados para aquela missão. E Qhuinn.

– Sim, sim... sem dúvida.

O mais belo membro da Irmandade franziu o cenho, os olhos azuis como o mar do Caribe se estreitando.

– Você está bem?

– Sim. Estou ótimo.

– Quando foi a última vez em que se alimentou?

Blay abriu a boca. Fechou. Tentou estimar.

– Uhum. Foi o que pensei – Rhage se inclinou para a frente e falou próximo ao peito de Z. – Ei, Phury? Acha que uma das Escolhidas pode vir aqui para assumir o lugar de Layla ao amanhecer? Temos algumas necessidades de sangue.

Ótimo. Era bem isso o que ele queria no fim da noite.

 


Cerca de uma hora mais tarde, Qhuinn inalou profundamente ao se materializar no frio. Flocos de neve rodopiavam ao redor do seu rosto, atingindo-o nos olhos e no nariz. Um a um, John, Rhage e Blay tomaram forma ao seu lado.

Enquanto ele encarava o hangar, a casca vazia lhe trouxe de volta as lembranças do maldito Cessna, da tentativa desesperadora daquela viagem e da aterrissagem forçada.

Quanta alegria...

– Pronto para ir? – perguntou a Rhage.

– Vamos em frente.

O plano era seguir em trechos de quatrocentos metros até chegarem aos primeiros chalés em que já estiveram. Depois disso, eles localizariam os demais chalés da propriedade, usando o mapa que encontraram anteriormente como um guia. Apenas um protocolo de reconhecimento e busca típicos.

Ele não fazia ideia do que encontrariam, mas aquela era a questão. Não se sabia até fazer o trabalho.

Enquanto avançava, Qhuinn estava muito ciente da localização de Blay. Mesmo assim, quando se materializou diante do primeiro chalé que localizaram, não olhou quando Blay apareceu uns dois metros mais distante. Não seria uma boa ideia. Mesmo estando trabalhando, tudo o que precisava fazer era fechar os olhos e sua mente era inundada por imagens de corpos nus entrelaçados na luz fraca do seu quarto.

Uma confirmação visual que o cara era sexy pra cacete não seria de nenhuma ajuda.

Ele tinha vergonha de admitir, mas, naquele instante, a única coisa que o mantinha são era a promessa de Blay de ir procurá-lo ao amanhecer. O estranhamento durante a Primeira Refeição só o fez desejar estarem juntos ainda mais, a ponto de se abalar ante a ideia de que algum dia, num futuro imediato, Saxton voltaria e Blay deixaria de se aproximar, vindo da porta ao lado – e aí, o que ele faria?

Maldita confusão.

Pelo menos Layla estava bem: ainda enjoada e sorrindo de felicidade.

Ainda grávida, graças à intervenção de Blay...

– Leste, nordeste – informou Rhage ao consultar o mapa.

– Entendido – respondeu Qhuinn.

E assim eles prosseguiram avançando no território, a floresta envolvendo-os por centenas e centenas de metros... depois um quilômetro. Em seguida, vários quilômetros.

Os chalés eram bem parecidos, quadrados de seis por seis, abertos no centro, sem banheiro, sem cozinha, apenas um teto e quatro paredes para afastar o pior do inverno. Quanto mais avançavam, mais dilapidadas as estruturas se mostravam – e todas estavam vazias. Lógico. A pé, aquela era uma distância imensa – e redutores, por mais fortes que fossem, não se desmaterializavam.

Pelo menos não a maioria deles.

Aquele só podia ter sido o Redutor Principal, ele pensou. Seria a única explicação para o fato de o assassino ferido ter simplesmente desaparecido daquele jeito.

O sétimo chalé estava diretamente numa trilha que devia ter sido bem frequentada a ponto de ainda se ver um caminho em meio à vegetação.

Naquele faltava uma janela e a porta estava escancarada, a neve entrando como uma invasora. Qhuinn atravessou um monte de neve, seus coturnos esmagando a superfície imaculada conforme ele se aproximava da varanda. Com uma lanterna na mão esquerda e uma .45 na direita, ele deu um salto para baixo do beiral e se inclinou.

Mesma merda, um espaço vazio diferente.

Ao perscrutar o interior, não havia absolutamente nada ali. Nenhuma mobília. Umas prateleiras embutidas vazias. Teias de aranha balançando na brisa que entrava pela janela quebrada.

– Tudo tranquilo – anunciou.

Virando-se, ele pensou que aquilo tudo era besteira. Ele queria estar chutando uns traseiros, e não estar ali, no meio do nada, perseguindo e caçando sem encontrar coisa alguma.

Rhage acomodou uma lanterna de bolso entre os lábios e abriu o mapa mais uma vez. Fazendo uma marca com uma caneta, ele bateu no papel grosso com um dedo.

– O último fica a cerca de quatrocentos metros para o leste.

Ainda bem. Já era hora.

Presumindo que tudo fosse entediante como até então, eles sairiam dali e se deparariam com o inimigo em becos em quinze minutos, talvez vinte.

Molezinha, molezinha.


CAPÍTULO 59

– Você parece verdadeiramente feliz.

Layla levantou o olhar. De certo modo, parecia inacreditável que a rainha da raça estivesse ao seu lado na cama, lendo revistas Us Weekly e People, e assistindo à TV. Mas, pensando bem, a não ser pelo imenso anel de rubi que cintilava em seu dedo, ela não poderia ser mais normal.

– Eu estou mesmo – Layla deixou de lado o artigo sobre a última temporada de The Bachelor e pousou a mão no ventre. – Estou radiante.

Ainda mais que Payne passara pouco antes e aparentava estar se sentindo bem. Mesmo que o desejo de que sua gravidez continuasse fosse quase patológico, a ideia de que essa bênção viesse à custa de outra fêmea não lhe caía bem.

– Você quer ter filhos? – Layla perguntou num rompante. E depois acrescentou: – Se a minha pergunta não a ofender...

Beth desconsiderou a preocupação dela com um gesto.

– Você pode me perguntar o que quiser. E respondendo, quero, sim. Quero muito. O engraçado é que antes da minha transformação, eu não tinha interesse algum em crianças. Elas eram apenas uma complicação descontrolada e barulhenta que eu, honestamente, não entendia por que as pessoas se davam ao trabalho de trazer ao mundo. Mas aí eu conheci Wrath – ela afastou o cabelo escuro e riu. – Desnecessário dizer como isso mudou tudo.

– Quantos cios você já teve?

– Ainda estou esperando. Rezando. Contando o tempo para que o primeiro venha.

Layla franziu o cenho e se ocupou em abrir mais uma embalagem de bolachas de água e sal. Era difícil lembrar muito sobre aquelas horas de loucura com Qhuinn, mas fora uma provação de proporções épicas.

Considerando-se o milagre que ainda repousava em seu corpo, tudo valera a pena.

Contudo, ela não poderia dizer que gostaria de passar pelo seu período fértil novamente. Não sem medicamentos.

– Bem, então desejo que seu cio venha logo – Layla mordiscou uma bolacha, o quadrado se partindo e derretendo em sua boca. – Não consigo acreditar que disse isso.

– É tão difícil quanto... isto é, não consegui falar com Wellsie sobre o período dela antes de ela falecer, e Bella nunca mencionou nada. – Beth baixou o olhar para seu anel de rainha, como se estivesse admirada por suas facetas captarem e refletirem a luz. – E não conheço Autumn tão bem assim; ela é adorável, mas dadas as circunstâncias pelas quais ela e Tohr acabaram de passar, não pareceu apropriado abordar esse assunto com ela.

– Tudo é muito obscuro, para ser bem honesta.

– Uma bênção, então, não?

Layla fez uma careta.

– Bem que eu gostaria de contradizê-la, mas sim, acredito que seja uma bênção.

– Mas deve valer a pena, não?

– Sem sombra de dúvida... Eu estava pensando exatamente nisso, para falar a verdade – Layla sorriu. – Sabe o que dizem a respeito de fêmeas grávidas, não?

– O quê?

– Se passar tempo com elas, isso encorajará seu cio a chegar.

– Verdade? – a rainha lançou um sorriso amplo. – Então você pode ser a resposta às minhas orações.

– Bem, não sei se isso é verdade. Do Outro Lado, somos sempre férteis. É só aqui na Terra que as fêmeas estão sujeitas às influências dos hormônios, mas eu li a respeito desse efeito na biblioteca.

– Então vamos fazer o nosso experimento, que tal? – Beth ofereceu a mão para um aperto. – Além disso, gosto de estar aqui. Você me inspira.

As sobrancelhas de Layla se ergueram com o que lhe foi dito.

– Inspiro? Ah, não. Não sei como.

– Pense pelo que passou.

– A gestação se ajeitou e...

– Não, não apenas isso. Você é a sobrevivente de um culto – quando Layla lhe lançou um olhar de quem não entendia, a rainha perguntou: – Nunca ouviu falar disso?

– Conheço a definição da palavra. Mas não sei se se aplica a mim.

A rainha desviou o olhar, como se não quisesse criar discórdia.

– Ei, posso estar errada, e você certamente deve saber melhor do que eu... Além disso, você está feliz agora, e é isso o que importa.

Layla se concentrou na tela de TV adiante. Pelo que entendia, um culto não era uma coisa boa, e sobrevivente era um termo normalmente associado a pessoas que passaram por algum tipo de trauma.

O Santuário fora como um dia de primavera tranquilo e temperado na face da Terra, todas as fêmeas na paz e tranquilidade do local sagrado com suas tarefas importantes para a mãe da raça.

Nenhuma coerção. Nenhuma contenda.

Por algum motivo, as palavras de Payne entraram em sua mente.

Você e eu somos irmãs da tirania de minha mãe, casualidades de seu plano maior de como as coisas devem ser. Estivemos as duas enjauladas em seus modos diversos, você como uma Escolhida; eu, como sua filha de sangue.

– Desculpe – disse a rainha, esticando a mão para tocar no braço de Layla. – Não tive a intenção de aborrecê-la. Honestamente, não sei que diabos eu estava falando.

Layla voltou-lhe a atenção.

– Ora, por favor, não se preocupe – ela segurou a mão da rainha. – Não me ofendi de maneira alguma. Mas agora, que tal falarmos de coisas mais alegres, tal como o seu hellren. Ele também deve estar impaciente para que seu período chegue.

Beth deu uma risada reservada.

– Ele ainda não está exatamente nesse ponto.

– Por certo ele deve desejar um herdeiro.– Acredito que ele me dará um. Mas só por eu desejar muito um filho.

– Ah...

– Isso mesmo, ah... – Beth apertou a mão de Layla. – Ele só se preocupa demais. Sou forte e saudável, e estou pronta para isso. Mas se ao menos eu conseguisse fazer com que meu corpo começasse a funcionar... Quem sabe, ele não segue o seu exemplo?

Layla sorriu e esfregou a barriga ainda lisa.

– Ouviu isso, meu pequeno? Você precisa ajudar a nossa rainha. É importante para a família real ter um filho.

– Não pelo trono – interveio Beth. – Não de minha parte. Eu só quero ser mãe e ter o filho do meu marido. No fundo, é simples assim.

Layla se calou. Ela estava feliz por ter Qhuinn ao seu lado naquela jornada, mas teria sido maravilhoso ter um parceiro de verdade para se deitar ao seu lado e acalentá-la durante o dia, para amá-la e segurá-la e lhe dizer que ela era preciosa não só pelo que o seu corpo era capaz de produzir, mas pelo que ela lhe inspirava em seu coração.

Uma imagem do rosto rústico de Xcor surgiu subitamente em sua mente.

Balançando a cabeça, ela concluiu que não, não poderia pensar naquilo. Ela tinha de se manter calma e relaxada pelo bebê, pois seu estresse poderia ser transmitido para aquilo que seu ventre nutria. Além disso, ela já fora abençoada com tanto, e se aquela gestação vingasse até o fim, e ela sobrevivesse ao parto?

Ela receberia um milagre verdadeiro e contínuo.

– Estou certa de que tudo dará certo com o Rei – declarou. – O destino tem seu modo de nos dar aquilo de que precisamos.

– Amém, irmã. Amém.

 


Sola parou o seu Audi exatamente no meio do caminho de carros da casa de vidro às margens do rio e estacionou bem na porta de trás da maldita construção.

Saindo, plantou as botas na neve, colocou a mão dentro da parca no cabo da pistola e fechou a porta com o quadril. Ao marchar para a entrada de trás, fez contato visual com o telhado.

Deveria haver uma câmera de segurança ali.

Ela não se deu ao trabalho de tocar a campainha ou bater à porta. Ele saberia que ela estava ali. E se ele não estivesse em casa? Bem, nesse caso ela pensaria em algum tipo de cartão de visitas para lhe deixar.

Talvez um alarme disparado? Ou uma janela ou armário abertos?

Talvez algo faltando dentro da casa...

A porta se abriu e lá estava ele, em carne e osso – exatamente como na noite anterior, e mesmo assim, de algum modo mais alto, mais perigoso, mais sexy do que ela se lembrava.

– Isso não é um pouco óbvio para você? – ele perguntou com lentidão.

Ele vestia um terno preto de algum tipo de designer, e a roupa só podia ter sido feita sob medida, porque o caimento era perfeito.

– Estou aqui para esclarecer uma coisa – disse ela.

– E, ao que parece, veio para estabelecer alguns termos – como se aquela fosse uma ideia intrigante. – Mais alguma coisa? Trouxe o jantar? Estou com fome.

– Vai me deixar entrar ou vamos fazer isto no frio mesmo?

– Por acaso, a sua mão está armada?

– Claro que sim.

– Nesse caso, por favor, entre.

Quando ele recuou, ela revirou os olhos. Por que o fato de ela poder atirar nele encorajaria o homem a permitir a sua entrada era um mistério...

Sola ficou imobilizada quando olhou para a cozinha moderna. Lado a lado estavam dois homens que eram a imagem idêntica um do outro. Também eram tão grandes quanto o homem a quem ela viera procurar – e ambos tinham uma arma na mão.

Só podiam ser aqueles que estiveram com ele debaixo daquela ponte.

A porta se fechou, e ainda que as glândulas adrenais dela tivessem lançado um sinal de alerta, ela escondeu tal reação.

Aquele a quem ela viera ver lançou-lhe um sorriso ao passar por ela.

– Estes são meus associados.

– Quero conversar a sós com você.

O homem se recostou contra uma bancada de granito, colocou um charuto entre os dentes e o acendeu com um isqueiro de ouro. Quando ele fechou a tampa, exalou uma baforada de fumaça azulada e olhou na sua direção.

– Cavalheiros, se nos derem licença por um minuto, por favor.

Os gêmeos senhores Felicidade não pareceram contentes com a dispensa. Pensando bem, mesmo que recebessem bilhetes premiados na loteria eles seriam capazes de arrancar sua mão até o pulso. Só por princípios.

No entanto, eles se encaminharam para longe dali, movendo-se de um modo sincronizado que era incrivelmente perturbador.

– Onde arranjou esses dois? – ela perguntou com aspereza. – Na internet?

– Incrível o que se pode adquirir no eBay...

Abruptamente, ela deixou de lado as amenidades.

– Quero que pare de me seguir.

O homem deu uma tragada no charuto, a ponta gorda brilhando alaranjada.

– Mesmo?

– Você não tem por que fazer isso. Não voltarei aqui novamente... por nenhum motivo.

– Verdade?

– Você tem a minha palavra.

Não havia nada que Sola detestasse mais do que admitir uma derrota – e deixar de lado a investigação desse homem e daquela propriedade era um tipo de renúncia. Mas a noite passada, enquanto ela esteve num encontro com um completo inocente, pelo amor de Deus, cerificou-a de que as coisas estavam se descontrolando. Ela era perfeitamente capaz de brincar de gato e rato; era o que fazia em sua vida profissional. Contudo, com aquele homem? Não havia um objetivo a ser conquistado; nenhum pagamento à sua espera quando informações fossem coletadas; nenhuma intenção de roubá-lo.

E os riscos só vinham aumentando.

Ainda mais se voltassem a se beijar, porque ela duvidava que fosse capaz de parar e a definição de estupidez seria ir para a cama com alguém como ele.

– A sua palavra? – ele repetiu. – E exatamente quanto isso vale?

– É tudo o que tenho a lhe oferecer.

Os olhos dele, aqueles raios laser, detiveram-se em sua boca.

– Não tenho tanta certeza disso.

O sotaque dele e aquela voz grave e deliciosa transformavam as sílabas em uma carícia, uma que ela quase sentia na pele.

Motivo pelo qual ela estava fazendo aquilo.

– Você não tem motivo para me seguir. A partir de agora.

– Talvez eu aprecie a vista – enquanto os olhos percorriam seu corpo, outra onda de choque a acometeu, mas não do tipo ansioso. – Sim, tenho certeza disso. Diga-me uma coisa, gostou do seu passeio ontem? A comida estava do seu agrado? A companhia...?

– Estou colocando um ponto-final nisso agora. Você não vai mais me ver.

Como aquilo era tudo o que ela tinha a dizer, deu-lhe as costas.

– Acha honestamente que isto entre eu e você acaba aqui?

A voz bela e sombria continha uma ameaça velada.

Sola olhou por cima do ombro.

– Você me pediu para não invadir, nem espionar, e eu não vou fazer nada disso.

– E eu lhe digo novamente, acha, honestamente, que isto termina assim?

– Estou lhe dando o que quer.

– Nem chega perto do que quero – ele rosnou.

Por um momento, aquela ligação que fora forjada no frio, enquanto seus lábios se tocavam no carro dela e os corpos enrijeceram, voltou à tona.

– É tarde demais para recuar – outra baforada. – A sua chance de sair veio... e foi embora.

Ela se virou de frente.

– Lamento lhe dizer isso, mas quanta besteira. Não tenho medo de você, nem de ninguém, então, venha me pegar. Mas saiba que vou machucá-lo para me defender...

Um som abrupto reverberou no ar entre eles.

Um ronronar? O homem estava mesmo ronronando?

Ele deu um passo à frente. Depois outro. E como um cavalheiro faria, manteve o charuto afastado, pois não queria queimá-la nem deixar que a fumaça a atingisse no rosto.

– Diga-me o seu nome – ele disse. Ou comandou?

– Acho difícil de acreditar que já não o saiba.

– Não sei – isso foi dito com um arquear de sobrancelha, como se buscar informações estivesse aquém dele. – Diga-me o seu nome e eu a deixarei ir, por ora.

Deus... aqueles olhos... eram o luar e as sombras, uma cor impossível, misto de prateado, violeta e azul-claro.

– Como nossos caminhos não se cruzarão mais, isso não é relevante...

– Só para sua informação... você se entregará a mim...

– Como é?

– Mas antes vai me implorar.

Sola se projetou para a frente, seu temperamento implodindo sua atitude de “vamos ser razoáveis”.

– Só por cima do meu cadáver.

– Lamento, isso não faz o meu tipo – ele deixou cair o queixo e a fitou por sob as pálpebras abaixadas. – Prefiro você quente... e molhada.

– Isso não vai acontecer – ela deu meia-volta e se dirigiu para a porta. – Estamos entendidos.

Assim que ela entrou na antessala, seus olhos captaram algo sobre um banco acomodado na parte baixa da parede oposta.

Sua cabeça virou para trás, e seus pés falsearam. Era uma adaga, uma adaga muito longa, tão longa que era quase uma espada.

Havia sangue fresco na lâmina.

– Reconsiderando a sua partida? – perguntou a voz sombria bem atrás dela.

– Não – ela se dirigiu para a porta e a abriu. – Já estou de saída.

Batendo a porta atrás de si, ela quis correr para o carro, mas se recusou a ceder ao pânico mesmo esperando que ele viesse atrás dela.

No entanto, o homem ficou parado, pairando no vidro da porta que ela acabara de utilizar, observando-a entrar no carro, dar a partida e passar a marcha no Audi.

Ao se recostar no banco do motorista, ela sentiu o coração disparar.

Ainda mais depois que um pensamento aterrador lhe ocorreu.

Enfiando a mão na bolsa, ela tateou em busca do celular e, quando o encontrou, procurou um nome na lista de contatos e selecionou um deles, apertando o botão da chamada. Tomada pelo medo, ela apoiou o celular na orelha, apesar do seu carro ter Bluetooth e ser ilegal, em Nova York, dirigir sem as duas mãos no volante.

Um toque.

Dois toques.

Três...

– Oi! Eu estava esperando que você me ligasse.

Sola se largou no banco, a cabeça batendo no encosto.

– Olá, Mark.

Deus, ouvir o som da voz do homem era um alívio.

– Você está bem? – seu professor de ginástica perguntou.

Ela pensou na lâmina ensanguentada.

– Estou, sim. Está saindo do trabalho?

Enquanto embarcavam numa conversa agradável, ela saiu dirigindo, o pé pesando no acelerador, o cenário passando às pressas. Neve branquinha. Estrada cheia de sal. Árvores em seus esqueletos. Chalezinho antigo com a luz acesa dentro. Espaço vazio à margem esquerda do rio.

Toda vez que ela piscava, via a silhueta no vidro daquela porta. Observando. Planejando. Esperando...

Por ela.

E, bom Deus, seu corpo estava desesperado para ser capturado por ele.


CAPÍTULO 60

Enquanto Qhuinn se materializava, a sua lanterna iluminava o último chalé. Dessa vez, ele não esperou pelos outros, simplesmente marchou adiante, direto para a porta, que estava intacta e fechada...

Sua primeira pista de que algo estava errado surgiu quando segurou a maçaneta antiga e gasta: um choquinho elétrico atravessou sua mão e subiu pelo braço.

Retirando a mão, ele sacudiu o braço, e seus instintos ficaram em alerta.

– O que foi? – Rhage perguntou ao subir na varanda baixa.

Qhuinn olhou ao redor, notando que Blay e John estavam nas imediações.

– Não sei.

Rhage foi até a porta e teve a mesma sensação, retraindo-se subitamente.

– Mas que merda...?

– É, não é... – murmurou Qhuinn ao recuar um passo e iluminar o exterior.

As duas janelas em cada lado da entrada haviam sido cobertas por tábuas, e quando ele andou ao redor da casa, viu que o mesmo fora feito com aquelas do outro lado.

– Que se foda – grunhiu Rhage. O Irmão recuou três passos e depois se lançou contra a porta, o ombro forte num ângulo como um aríete.

Com o impacto, a madeira da porta se estilhaçou...

Subitamente, uma luz ofuscante cruzou a noite, iluminando a floresta como se uma bomba tivesse explodido, lançando Rhage para trás.

Enquanto Blay e John corriam para verificar se o lutador se ferira, Qhuinn avançou, preparando-se enquanto atravessava o batente, esperando ser atingido por algumas centenas de volts de sabe-se lá o quê.

Em vez disso, ele só atingiu o ar, e seu impulso foi tão grande que ele teve que se recolher numa bola a fim de não cair de cara no chão. Uma respiração depois, ele se impulsionou no chão e aterrissou agachado, uma arma numa mão, a lanterna na outra.

Algo fedia muito ali.

– Atrás de você – avisou Blay, quando um segundo facho de luz se juntou ao seu.

O ar dentro do chalé estava estranhamente quente, como se houvesse um sistema de aquecimento ligado, só que isso não era possível. Não havia eletricidade, nem tanque de combustível. E já fazia um tempo que alguém estivera ali, a julgar pela camada de poeira imperturbável nas tábuas do chão e pelas teias de aranha, delicadas e verticais que se penduravam a partir do teto como cordas inertes.

– O que é isso? – perguntou Blay.

Ao girar seu facho de luz, Qhuinn franziu a testa. Havia um bom número do que pareciam ser tambores de óleo contra a parede oposta, todos juntos, como se tivessem sentido medo de algo e se arrumado em círculo para autoproteção.

Qhuinn andou até lá, sempre movendo a lanterna em círculos amplos, e franziu o cenho mais uma vez quando conseguiu olhar direito para os latões. Nenhum deles tinha tampa e sua luz parecia refletir algum tipo de óleo.

– Mas... que diabos é isso?

Inclinando-se sobre um deles, ele inspirou profundamente e sentiu as narinas queimarem com o fedor forte de assassinos. A julgar pelo modo como a sua luz não conseguia penetrar a superfície do líquido, ele soube que só podia ser uma coisa, e, por certo, aquilo não poderia ser usado como aquecedor ou gerador.

Era o sangue de Ômega.

– Atrás de vocês – disse Rhage ao entrar.

Um assobio suave anunciou que John também entrara.

– Isso é o que eu acho que é? – perguntou Blay ao parar ao lado de Qhuinn.

Qhuinn acomodou a lanterna entre os dentes e esticou a mão nua. Assim que fez contato com a viscosidade desagradável, algo subiu à superfície do barril...

– Cacete! – exclamou, pulando para trás.

Enquanto sua lanterna caía e rolava pelo chão, o facho de Blay iluminava o que quer que tivesse se movido.

Um braço.

Havia alguém dentro daquele tambor.

– Jesus Cristo – sussurrou Blay.

Atrás deles, a voz de Rhage soou alta:

– V.? Precisamos de assistência aqui. Agora.

Qhuinn se inclinou para baixo e apanhou a lanterna. Voltando a apontá-la para o líquido oleoso, ele observou quando o braço se movimentou novamente, mergulhando logo abaixo da superfície, o movimento elevando o pulso e o dorso da mão...

Algo reluziu, e esse fulgor breve atraiu a atenção de Qhuinn. Ajustando o ângulo do facho de luz, inclinou-se ainda mais sobre o tonel.

A mão não parecia bem, as juntas estavam deformadas, faltavam partes dos dedos ou eles inteiros, como se tivessem sido colocados dentro de um moedor...

Aquele brilho surgiu novamente na fossa do sangue de Ômega.

Seria... um anel?

– Espere, espere, Qhuinn... Você tem que recuar.

Qhuinn ignorou o comentário ao se inclinar ainda mais para a frente, aproximando-se, aproximando-se...

Aproximando-se...

A princípio, ele custava a acreditar no que via. Simplesmente não poderia estar vendo um anel de sinete.

Porém, o que mais poderia ser? Estava no indicador, o único dedo que não fora arrancado. E era de ouro – mesmo com todo aquele óleo preto, o brilho amarelado era evidente. E o anel em si tinha uma faceta larga na qual estava gravada...

– Qhuinn – disse Rhage com aspereza –, afaste-se imediatamente...

O braço se moveu novamente, a mão pálida rompendo a superfície do líquido, parecendo um espectro emergindo de uma tumba, esticando-se...

O sangue de Ômega escorreu da superfície do anel, revelando...

– Qhuinn, não estou brincando...

Um barulho explodiu dentro do chalé, preenchendo o ar.

Ele ignorou completamente que o grito saíra de sua boca.

 

A princípio, Blay pensou que o que quer que estivesse no tonel tivesse agarrado Qhuinn e o puxado para dentro e que foi por isso que Qhuinn gritou. Instintivamente, ele avançou e segurou a cintura de Qhuinn, como se lançasse uma âncora e a puxasse de volta.

O que saiu do tonel atormentaria os pesadelos de Blay durante anos... décadas.

Na verdade, o que estava dentro não se agarrara a Qhuinn; foi exatamente o contrário. Enquanto Blay puxava para trás, uma forma masculina saía do local apertado, o sangue de Ômega caindo pelas laterais em riachos, açoitando o piso frio de madeira do chalé, atingindo os coturnos e as calças de couro de Blay, encharcando Qhuinn.

Qhuinn teve que se esforçar para continuar segurando aquilo que escorregava de suas mãos, a arma e a lanterna esquecidas, as mãos enluvadas apalpando e arranhando para não perder o contato...

E quando eles içaram...

O barril de óleo caiu de lado enquanto o macho nu se estatelava aos seus pés.

Ninguém se moveu. Foi como se todos tivessem acabado de tomar suas posições num palco.

Blay reconheceu quem era imediatamente.

E não acreditou.

O morto voltando para o mundo dos vivos... por assim dizer.

Qhuinn se agachou e tocou no ombro do macho. Em seguida, pronunciou o nome do irmão com voz rouca:

– Luchas?

A resposta foi imediata. As mãos do irmão lentamente começaram a girar, as pernas machucadas a se debater, o corpo nu tentando se mover. A pele estava coberta de hematomas, a parca iluminação das lanternas revelava cada contusão, laceração e hematoma, a mancha do sangue de Ômega gradualmente sumindo da pele pálida.

Bom Deus, o que fizeram com ele? Um dos olhos estava fechado pelo inchaço, e a boca estava torta, como se ele tivesse sido socado ali. Quando ele se retorceu, pareceu que os dentes tinham permanecido intactos, mas aquele era o único sinal de misericórdia que pareceram ter para com ele.

– Luchas? – repetiu Qhuinn. – Consegue falar comigo?

Mais ao lado, Rhage estava novamente ao telefone.

– V.? Temos uma situação nas mãos... Quanto tempo vai demorar... o quê? Não, absolutamente, não. Preciso de você... Não, você. E Payne – Hollywood olhou de relance e articulou apenas com a boca “sabem quem ele é?”.

Blay teve que limpar a garganta, sua resposta saindo aos tropeços:

– É... o irmão dele.

Rhage piscou forte. Balançou a cabeça. Inclinou-se.

– Desculpe. O que você...

– O irmão dele – Blay repetiu alto e claro.

– Jesus... – sussurrou Rhage. E depois reagiu. – Agora, V. Agora.

– Luchas, consegue me ouvir? – perguntou Qhuinn.

Vishous invadiu o chalé uma fração de segundo mais tarde. O Irmão estava coberto em sangue de redutor e sangue vermelho graças a um corte no rosto – também respirava como um trem de carga e tinha uma adaga gotejante na mão.

No instante em que viu sobre o que eles estavam rodeados, ele parou.

– Mas que merda é essa?

Rhage rapidamente fez gestos perpendiculares à garganta, interrompendo qualquer outro comentário. Depois segurou o braço de V. e o arrastou para longe do alcance dos outros ouvidos. Quando os dois voltaram, V. não revelava emoção alguma.

– Deixe-me dar uma olhada nele – disse V.

Qhuinn apenas continuou falando com o irmão, as palavras saindo numa corrente contínua que não fazia muito sentido. Pensando bem, até onde todos sabiam, o macho fora assassinado nos ataques, junto ao pai, a mãe e a irmã de Qhuinn. Portanto, sim, aquilo era o bastante para fazer até Shakespeare sofrer de um caso de balbucios.

Só que... não era possível, Blay pensou. Havia quatro corpos na casa – e Luchas estivera entre eles.

Blay deveria saber disso. Fora ele a entrar lá para identificá-los.

Ele apoiou uma mão no ombro de Qhuinn.

– Ei.

As palavras de Qhuinn foram sumindo. Depois, ele fitou os olhos de Blay.

– Ele não está respondendo.

– Pode deixar o V. dar uma olhada nele? Precisamos de um parecer médico – e talvez muito mais para ter respostas quanto ao que acontecia ali. – Vamos, venha comigo até ali.

Qhuinn se endireitou e recuou, mas não se distanciou muito, e seu olhar nunca se despregou do irmão.

– Será que o transformaram? – ele cruzou os braços e se enrolou para a frente. – Acha que o transformaram?

Blay balançou a cabeça e desejou poder mentir.

– Eu não sei.


CAPÍTULO 61

Enquanto Qhuinn encarava o chão do chalé, seu cérebro resgatava todo tipo de lembranças desconexas, a noção concreta de que sua família inteira fora devastada colidindo com o que parecia ter sido uma realidade completamente diferente.

Ele continuava a voltar para aquela noite, há tanto tempo, quando passara pela porta de entrada da casa dos pais e encontrara a família toda reunida à mesa de jantar... e o irmão recebendo o anel de sinete que agora estava na mão destroçada.

Você haveria de pensar que um cara torturado, porém vivo, seria tudo em que alguém conseguiria se concentrar.

– O que está acontecendo, V.? – ele exigiu saber. – Como ele está?

– Vivo – o Irmão limpou a adaga na coxa coberta pelo couro da calça. – Filho? Filho, consegue me ouvir?

Luchas continuou olhando para Qhuinn, seus lindos olhos cinza injetados de sangue e arregalados. A boca se movia, porém nenhum som saía dela.

– Filho, vou ter que cortá-lo, está bem? Filho?

Qhuinn sabia exatamente o que V. procurava saber.

– Vá em frente.

O coração de Qhuinn começou a bater como um punho contra seu esterno enquanto o Irmão pegava a adaga negra e fazia um corte no lado externo do braço de Luchas. O cara não reagiu; pensando bem, com tudo o que lhe acontecera... Aquilo era apenas um pingo num tonel de água.

Por favor, seja vermelho, seja vermelho, seja vermelho...

Sangue vermelho se avolumou e escorreu, num contraste brilhante contra o óleo negro no qual ele estava coberto.

Todos emitiram um suspiro de alívio que nem sequer sabiam que estavam represando.

– Ok, filho, isso é bom, é muito bom...

Eles não o haviam transformado.

V. se levantou do chão e fez um gesto de lado com a cabeça, indicando que queria conversar reservadamente. Enquanto Qhuinn o seguia, puxou o braço de Blay e o levou consigo. Era o mais natural a ser feito. Aquilo era muito sério, e ele sabia que não estava acompanhando muito bem – e não havia ninguém mais que ele quisesse consigo.

– Não tenho o medidor de pressão nem um estetoscópio, mas posso lhe garantir uma coisa... a pulsação dele está fraca e irregular, e tenho quase certeza de que ele está em estado de choque. Não sei quanto tempo ele ficou ali dentro e nem o que lhe fizeram, mas ele está vivo no sentido convencional da palavra. O problema é que Payne está fora da jogada – os olhos de V. cintilaram. – E vocês sabem por quê.

Ah, então ele falara com a irmã.

– Ela não poderá ser capaz de usar a magia dela – o Irmão continuou – e estamos a um milhão de quilômetros de qualquer lugar.

– Ou seja – disse Qhuinn.

V. o encarou.

– Ele vai morrer nas próximas horas se...

– V.! – exclamou Rhage. – Venha aqui!

No chão, o corpo castigado de Luchas se erguia sozinho, as mãos quebradas se fechavam em suas palmas, os joelhos se retesavam, a coluna se curvava para o teto do chalé.

Qhuinn se lançou para a frente e se ajoelhou perto da cabeça do irmão.

– Fique comigo, Luchas. Vamos, lute...

Aqueles olhos cinzentos se fixaram nos de Qhuinn, e a agonia deles era tão esmagadora que Qhuinn mal notou V. se apressando para perto e removendo a luva da mão brilhante.

– Qhuinn! – o Irmão exclamou, como se já tivesse repetido o nome dele algumas vezes.

Ele não desviou o olhar do irmão.

– O quê?

– Isto pode matá-lo, mas talvez faça seu coração voltar a bater no ritmo certo. É arriscado, mas é a única chance dele.

Na fração de segundo antes da resposta, ele sentiu uma necessidade esmagadora de que o irmão superasse aquilo de algum modo. Mesmo mal conhecendo o cara, e tendo se ressentido dele por anos – e depois ter sido surrado por ele quando Luchas se juntara à Guarda de Honra –, ele não percebera até eles terem sumido o quanto é possível se sentir desorientado sendo o único ser no planeta sem que ninguém mais do seu sangue esteja com você.

Em retrospecto, esse vazio fora exatamente o que o motivara durante o cio de Layla. E o que o fizera procurar Blay instintivamente.

Ame-os ou odeie-os, por laços de sangue ou do coração, a família era um tipo de oxigênio.

Necessário aos seres vivos.

– Vá em frente – disse ele.

– Espere – Blay interrompeu, tirando o cinto e entregando-o a Qhuinn. – Para a boca dele.

Mais uma razão para amar o cara. Não que ele precisasse de mais uma.

Qhuinn posicionou a tira de couro na boca aberta do irmão e segurou-a no lugar ao assentir para V.

– Fique comigo, Luchas. Vamos... Fique comigo...

Pelo canto do olho, ele rastreou o brilho da luz branca se aproximando do esterno do irmão...

O peito de Luchas se ergueu, o corpo todo sofrendo um espasmo nas tábuas do chão enquanto uma luz brilhante o atravessava, afunilando-se pelos braços e pelas pernas, irradiando-se da cabeça. O som que ele produziu não foi humano, um gemido gutural que atingiu Qhuinn bem em sua medula.

Quando V. retraiu a mão, a palma irradiante erguida, Luchas caiu como o peso morto que era, o corpo rebatendo, os membros vibrando.

Ele piscou rapidamente, como se uma brisa o atingisse no rosto.

– Mais uma vez – exigiu Qhuinn. Quando V. não respondeu, ele o encarou. – Mais uma vez.

– Isso é loucura – murmurou Rhage.

V. avaliou o macho por um instante. Depois aproximou a mão letal novamente.

– Uma vez, é só o que você terá – ele disse a Luchas.

– Maldição – Rhage interveio. – Mais do que isso e ele vira churrasquinho.

O segundo choque foi tão ruim quanto o primeiro – o corpo judiado se contorcendo, Luchas emitindo aquele som horrendo antes de aterrissar num baque de ossos.

Mas ele respirou. Uma respiração profunda, grande, poderosa que expandiu a caixa torácica.

Qhuinn sentiu vontade de rezar e achou que estava mesmo quando entoou:

– Vamos, vamos, vamos...

A mão dilacerada, aquela do anel, esticou-se e segurou a camisa de Qhuinn. A pegada era fraca, mas Qhuinn se inclinou.

– O quê? – disse ele. – Fale devagar.

A mão escorregou para a jaqueta.

– Fale comigo.

A mão do irmão parou no cabo de uma de suas adagas.

– Mate... me...

Os olhos de Qhuinn se arregalaram.

A voz de Luchas não era nada parecida com o que um dia fora, não passava de um sussurro rouco.

– Mate... me... irmão... meu...


CAPÍTULO 62

– Como é que você está? – Blay perguntou.

Parado na varanda do chalé Qhuinn inspirou e percebeu cheiro de cigarro. Blay acendera outro, e por mais que Qhuinn detestasse esse hábito, ele não tinha como culpá-lo. Inferno, se ele curtisse aquilo, também se apoiaria naqueles pregos de caixão.

Olhou-o de relance. Blay o fitava com paciência, obviamente preparado para esperar pela resposta, mesmo se demorasse o resto da noite.

Qhuinn consultou o relógio. Uma da manhã.

Quanto tempo demoraria para que o resto da Irmandade chegasse ali? E será que o plano de evacuação que bolaram iria funcionar?– Sinto como se estivesse enlouquecendo – respondeu.

– Também sinto isso – Blay exalou a fumaça na direção oposta. – Não acredito que ele está...

Qhuinn fitou as árvores diante deles.

– Eu nunca lhe perguntei sobre aquela noite.

– Não. E, francamente, eu não o culpo.

Atrás deles, no chalé, Rhage, V. e John estavam com Luchas. Todos tinham tirado as jaquetas e o envolveram com elas numa tentativa de mantê-lo aquecido.

Parado apenas com a camiseta e as armas, Qhuinn não sentia o frio.

Pigarreou.

– Você o viu?

Fora Blay a entrar na mansão depois do ataque. Qhuinn simplesmente não teve coragem de identificar os corpos.

– Sim, eu o vi.

– Ele estava morto?

– Até onde eu sabia, sim. Ele estava... Sim, eu não achei que existisse qualquer chance de ele estar vivo.

– Sabe, não vendi a casa.

– Ouvi dizer.

Tecnicamente, como membro repudiado da família, ele não teria nenhum direito à propriedade. Contudo, tantos foram mortos que ninguém exigiu a propriedade, e ela, de acordo com as Leis Antigas, fora revertida para o Rei, depois do que Wrath imediatamente a passou para Qhuinn como propriedade alodial.

O que quer que isso significasse.

– Eu não sabia o que pensar quando me disseram que eles haviam sido assassinados – Qhuinn levantou o olhar para o céu. A previsão era de mais neve, portanto, não havia nenhuma estrela visível. – Eles me odiavam. Acho que eu também os odiava. E depois eles não estavam mais lá.

Atrás dele, Blay ficou imóvel.

Qhuinn sabia por que e um embaraço repentino o fez enfiar as mãos nos bolsos. Sim, ele absolutamente detestava falar de emoções e esse tipo de baboseira, mas não havia como calar aquilo. Não ali. Sozinho. Com Blay.

Limpando a garganta, ele continuou:

– Mais do que tudo, fiquei aliviado, para ser bem franco. Não tenho como explicar o que foi crescer naquela casa. Com todas aquelas pessoas olhando para mim como se eu fosse uma maldição viva para eles – balançou a cabeça. – Eu costumava evitá-los o quanto podia, usando as escadas dos criados, ficando naquela parte da casa. Mas então os doggen ameaçaram se demitir. Na verdade, o maior benefício da minha transição foi que eu podia me desmaterializar direto da janela do meu quarto. Assim ninguém tinha que lidar comigo.

Mesmo quando ouviu Blay praguejando baixinho, Qhuinn não conseguiu parar de falar.

– E sabe o que era pior? Eu via que o amor era possível quando o meu pai olhava para o meu irmão. Teria sido uma coisa se o bastardo nos odiasse a todos, mas não. E isso me fez perceber o quanto eu era excluído – Qhuinn o olhou de relance. Remexeu os pés. – Por que está olhando assim para mim?

– Desculpe. Hum... desculpe. É que você... você nunca falou deles. Nunca.

Qhuinn franziu o cenho e mediu o céu, visualizando as estrelas mesmo sem poder enxergá-las.

– Eu queria. Com você, isto é. Com ninguém mais.

– E por que não falou? – como se aquilo fosse algo que o cara estivesse se perguntando há algum tempo.

No silêncio que se seguiu, Qhuinn remexeu nas lembranças nas quais nunca se demorava, vendo a si mesmo. A sua família. Vendo... Blay.

– Eu adorava ficar na sua casa. Eu não tenho como dizer o que aquilo significava para mim. Lembro-me da primeira vez que me convidou. Eu estava certo de que os seus pais me expulsariam. Eu estava pronto para isso. Inferno, eu tinha que lidar com aquela merda na minha própria casa, por que, então, completos desconhecidos não o fariam também? Mas a sua mãe... – Qhuinn pigarreou novamente. – A sua mãe me fez sentar à mesa da cozinha e me deu comida.

– Ela ficou devastada por você ter se sentido mal. Logo depois, você correu para o banheiro e ficou vomitando por uma hora.

– Eu não estava vomitando.

A cabeça de Blay se virou de repente.

– Mas você disse...

– Eu estava chorando.

Quando Blay se retraiu, Qhuinn deu de ombros.

– Qual é, o que eu iria dizer? Que chorei como uma menininha no chão do banheiro? Deixei a torneira aberta para que ninguém me ouvisse e dava descarga de vez em quando.

– Nunca soube disso.

– Esse era o plano – Qhuinn o fitou. – O plano foi sempre esse. Eu não queria que você soubesse como era ruim ficar na minha casa, porque eu não queria que você sentisse pena. Eu não queria que você, ou os seus pais, sentissem a obrigação de me acolher. Eu queria que você fosse o meu amigo... e você foi. Sempre foi.

Blay desviou rápido o olhar. Depois esfregou o rosto com a mão que não segurava o cigarro.

– Foram vocês que me fizeram superar aquilo – Qhuinn se ouviu dizer. – Eu vivia para as noites, porque eu poderia sair da casa. Era a única coisa que me fazia seguir em frente. Você, na verdade, fazia com que eu seguisse em frente. Sempre foi... você.

Quando os olhos de Blay voltaram a pousar sobre os seus, ele teve a sensação de que o cara estava à procura de palavras.

E que Deus os ajudasse, pois, não fosse por Saxton, Qhuinn teria lançado a palavra que começa com “A” bem ali, apesar de ser uma péssima hora.

– Você pode, sabe – disse Blay, por fim. – Falar comigo.

Qhuinn bateu os pés no chão e curvou os ombros, esticando os músculos das costas.

– Cuidado. Posso cobrar essa promessa.

– Isso ajudaria – quando Qhuinn olhou novamente, era Blay quem balançava a cabeça. – Não sei o que estou dizendo.

Até parece, pensou Qhuinn...

Sem aviso, V. emergiu do chalé, acendendo um cigarro caseiro enquanto saía. Enquanto Qhuinn se calava, não sabia se sentia alívio por aquela conversa ser forçada a um final ou não.

Exalando fumaça, V. disse:

– Preciso me certificar de que você compreende as consequências.

Qhuinn assentiu.

– Já sei o que você vai dizer.

Aqueles olhos de diamante se fixaram nos seus.

– Bem, vamos deixar às claras assim mesmo, está bem? Não sinto a presença de Ômega nele, mas se ele surgir ou se eu tiver deixado passar algum sinal, vou ter que cuidar dele.

Mate-me, irmão meu. Mate-me.

– Faça o que precisar fazer.

– Ele não pode entrar na mansão.

– Aceito.

V. ergueu a mão não letal.

– Jure.

Parecia estranho segurar a palma do Irmão e vincular sua palavra com o contato – porque era o que parentes faziam em situações como aquela, e Deus bem sabia que ele não era próximo de ninguém a esse ponto: mesmo antes de ser repudiado pela família, ele fora a última pessoa a poder jurar baseado em linhagens.

No entanto, os tempos mudaram, não?

– Mais uma coisa – V. bateu as cinzas da ponta do cigarro. – Vai ser uma recuperação muito longa e difícil para ele. E eu não estou só falando da parte física. Você precisa estar preparado.

Como se antes ele tivesse tido algum tipo de relacionamento com o cara... Ele podia partilhar um pouco do seu DNA com o sujeito, mas, fora isso, Luchas era um completo estranho.

– Eu sei.

– Ok. Muito justo.

Ao longe, o som agudo de motores cruzou a escuridão.

– Ainda bem – Qhuinn disse ao entrar no chalé novamente.

No canto, onde o tonel fora derrubado, o irmão não passava de uma pilha de jaquetas, o corpo retorcido coberto pelas mantas improvisadas.

Qhuinn atravessou as tábuas do piso, acenando para John e para Rhage.

Ajoelhando-se ao lado do irmão, sentiu como se estivesse num sonho, e não na realidade.

– Luchas? Preste atenção, eis o que vai acontecer. Vamos levá-lo num trenó. Você vai para uma clínica de tratamento. Luchas? Está me ouvindo?

 

Enquanto dois snowmobiles se aproximavam do chalé, Blay acompanhava o progresso deles da varanda, observando os faróis crescerem e ficarem mais luminosos, o par de motores passando para um ronco baixo quando chegaram ao destino. Ah, muito bom, atrás de um deles, havia um trenó coberto, do tipo que se via nos Jogos Olímpicos de Inverno quando algum esquiador se machucava e no qual era transportado montanha abaixo.

Perfeito.

Manny e Butch desmontaram e correram.

– Eles estão aqui – disse Blay, saindo do caminho do médico.

– Luchas? Está comigo? – ele ouviu Qhuinn murmurar.

Espiando para dentro, Blay viu Manny se inclinar por sobre o corpo de Luchas. Caramba, que noite. E ele que pensara que o show aéreo de algumas noites atrás fora um dramalhão e tanto...

Sempre foi você.

Voltando a fitar a floresta, Blay esfregou o rosto novamente, como se isso pudesse ajudar. Ele queria acender outro Dunhill, mas quanto mais aquilo demorava, mais paranoico ele ficava. A última coisa que aquela situação precisava era de um esquadrão de redutores aparecendo antes que conseguissem transportar Luchas para um local seguro.

Melhor ter uma .40 do que um cigarro nas mãos.

Sempre foi você.

– Você está bem? – Butch perguntou.

Já que a noite parecia ter como tema a honestidade, ele balançou a cabeça.

– Nem um pouco.

O tira o segurou pelo ombro.

– Então você o conhecia.

– Pensei que sim – ah, não, espere, a pergunta era sobre Luchas. – Isto é, sim, eu o conhecia.

– Isso tudo deve ser dureza.

Blay olhou por sobre o ombro novamente e viu, mais uma vez, Qhuinn agachado ao lado do irmão. O rosto do seu velho amigo estava envelhecido naqueles fachos de luz, a ponto de Blay se perguntar se de fato o vira relaxado quando estiveram juntos... Ou se ele estivera equivocado.

Sempre foi... você.

– É duro – ele murmurou.

E estranho também.

Logo após a transição, ele procurou por algum sinal de que o modo como ele se sentia pelo amigo fosse recíproco, alguma pista quanto a em que ponto Qhuinn se encontrava. No entanto, ele não enxergara nada, nada além da lealdade incontestável, da amizade, das habilidades tremendas de lutador. Durante todos aqueles encontros com outras pessoas, e nos treinamentos, e nas noites no campo de batalha... ele sempre se sentiu do lado absolutamente oposto do que desejava, fitando um muro que ele não tinha como transpor.

Aquele tempo breve na varanda?

Foi a primeira vez em que ele teve um vislumbre daquilo que desejava ainda mais do que sexo.

Merda, por um momento traiçoeiro, ele se perguntou se, de fato, entre as palavras que Layla deixara escapar do lado de fora do seu quarto havia o “estar”.

– Eles vão levá-lo agora – Butch segurou o braço de Blay e o tirou do caminho. – Venha para cá.

Luchas estava adequadamente coberto agora, com uma manta térmica Mylar prateada envolvendo-o dos pés à cabeça, deixando apenas uma parte do seu rosto visível. Eles o acomodaram numa maca dobrável, com Qhuinn numa ponta e V. na outra; Manny caminhava ao lado, como se não estivesse bem certo se precisaria ressuscitá-lo a qualquer instante.

Perto do trenó, eles o transferiram e o amarraram.

– Eu o levo – anunciou Qhuinn ao montar no snowmobile e dar a partida.

– Vá devagar e não pare – avisou Manny. – Ele não passa de uma pilha de ossos quebrados.

Qhuinn olhou para Blay.

– Vem comigo?

Não havia motivo para responder. Ele marchou até lá e se acomodou atrás do cara.

Bem ao estilo de Qhuinn, ele nem se importou em esperar pelos outros. Apenas apertou o acelerador e partiu. No entanto, ele prestou atenção à recomendação médica: deu uma volta ampla e seguiu os rastros que eles deixaram antes, mantendo a velocidade rápida para ganharem tempo, mas não tanto a ponto de sacudir Luchas.

Blay mantinha as armas a postos.

Enquanto Manny e Butch seguiam no outro snowmobile ao lado deles, os Irmãos e John Matthew se materializavam em distâncias regulares, aparecendo ao lado das trilhas paralelas.

Pareceu demorar cem anos.

Blay literalmente pensou que nunca conseguiriam sair dali. Parecia que os rugidos agudos de lamentação dos motores, o borrão que era aquela floresta escura e as manchas brancas e brilhantes das clareiras seriam a última coisa que ele veria.

Ele rezou o percurso inteiro.

Quando a estrutura grande em forma de caixa do hangar finalmente ficou visível, ao seu lado, estacionado, estava a coisa mais linda que Blay já vira.

O Escalade de Butch e V.

As coisas se sucederam bem rápidas a partir dali: Qhuinn parando ao lado do SUV, Luchas sendo transferido para o banco de trás, os snowmobiles sendo carregados no reboque preso atrás, Qhuinn seguindo para o banco do passageiro.

– Quero que Blay dirija – disse antes de entrar.

Houve um segundo de pausa. Em seguida, Butch assentiu e jogou as chaves.

– Manny e eu vamos atrás.

Blay se acomodou detrás do volante, mexeu no assento para acomodar as pernas e acionou o motor. Com Qhuinn ao seu lado, ele olhou e disse:

– Coloque o cinto.

O macho o obedeceu, ajustando a faixa de nylon por sobre o peito. Depois, imediatamente, virou-se para trás para se concentrar no irmão.

Uma sensação de determinação única se acomodou sobre os ombros de Blay e ele apertou as mãos. Não se importava pelo que tivesse de passar por cima, atropelar ou deixar as marcas da grade do carro; ele levaria Qhuinn e o irmão dele para o centro de treinamento e para a clínica.

Pressionando o pedal do acelerador, não olhou para trás.


CAPÍTULO 63

Trez franziu para a calculadora na qual vinha inserindo números. Esticando a mão para pegar a lingueta longa de papel que se pendurava pelo outro lado da sua escrivaninha, ele tentou enxergar a coluna de números que acabara de produzir.

Piscou.

Esfregou os olhos. Abriu-os novamente.

Nada. O círculo pulsante no quadrante superior direito do seu campo de visão ainda estava ali, e isso não era resultado de um problema de visão.

– Merda.

Empurrando os recibos que vinha somando de lado, olhou para o relógio, depois apoiou a cabeça nas mãos. Ao apertar os olhos, a aura ainda estava no mesmo lugar, o padrão de formas geométricas entrelaçadas brilhando em todas as cores do arco-íris.

Ele tinha cerca de 25 minutos antes de o inferno acontecer na Terra – e não conseguiria se desmaterializar.

Pegando o telefone do escritório, apertou o botão do interfone. Dois segundos depois, a voz de Xhex se fez ouvir pelo alto-falante, mais aguda do que de costume. O que significava que a sua sensibilidade auditiva também estava sendo afetada.

– Ei, diz aí... – ela disse.

– Estou ficando com enxaqueca. Preciso ir embora.

– Puxa, cara, que merda. Não teve uma na semana passada?

Tanto faz. Isso não vinha ao caso.

– Pode assumir?

– Precisa de carona para casa?

Sim.

– Não. Eu consigo – ele começou a juntar a carteira, o celular, as chaves. – Ligue se precisar, ok?

– Pode deixar.

Trez inspirou fundo quando a ligação terminou e ele se levantou. Por enquanto, sentia-se perfeitamente bem. E a boa notícia era que ele não estava nem a quinze minutos de casa, mesmo se pegasse todos os faróis vermelhos. O que lhe daria dez para se trocar, pegar um cesto de lixo e deixar uma toalha ao lado da cama e se preparar para um colapso digestivo.

Dali a seis ou sete horas? Ele se sentiria bem melhor.

Infelizmente, entre o agora e o depois seria uma merda.

A caminho da porta do escritório, pegou a jaqueta, colocou-a por sobre os ombros e se preparou para a música do outro lado.

Quando saiu, deu de cara com a parede que era o peito considerável de iAm.

– Me passe as chaves – foi tudo o que o irmão disse.

– Você não tem que...

– Eu pedi a sua opinião?

– Maldita Xhex...

– Logo atrás do seu irmão – a fêmea o interrompeu. – E sei que você disse isso como uma forma de elogio.

– Estou bem – disse Trez, ao tentar mudar o campo de visão para enxergar sua chefe de segurança.

– Quantos minutos até que a dor piore? – Xhex sorriu, mostrando as presas. – Quer mesmo desperdiçar esse tempo discutindo comigo?

Trez abriu caminho pela boate e, no instante em que o frio o golpeou nas narinas, seu estômago protestou, como se estivesse prestes a agir.

Acomodando-se no assento do passageiro do seu BMW, ele fechou os olhos e recostou a cabeça. A aura estava se expandindo, a linha original de brilho se dividira em dois e se esticara, movendo-se lentamente para a margem da sua visão.

Durante o trajeto para casa, ele se sentiu grato por iAm não ser do tipo conversador.

Embora isso não significasse que ele não sabia no que o cara estava pensando.

Estresse demais. Dores de cabeça demais.

Ele, provavelmente, também precisava se alimentar, mas isso não aconteceria por um tempo.

Enquanto o irmão dirigia com atenção, Trez passou o tempo imaginando em que parte da cidade estavam, que faróis tinham passado ou nos quais paravam; que curvas faziam; onde estava o Commodore, com sua torre alta ficando cada vez maior conforme se aproximavam.

Uma inclinação súbita lhe disse que estavam entrando na garagem subterrânea e que ele se atrasara em sua visualização mental: até onde ele supunha, eles deviam estar alguns quarteirões mais para trás.

Diversas curvas à esquerda enquanto espiralavam três andares para baixo até uma das duas vagas que lhes pertenciam.

Quando entraram no elevador e iAm apertou o botão do décimo oitavo, a aura vagara para os confins da sua visão, desaparecendo como se jamais tivesse existido.

A calmaria antes da tempestade.

– Obrigado por me trazer para casa – disse com sinceridade. Ele detestava depender de qualquer pessoa para qualquer coisa, mas seria muito difícil não atingir nada enquanto flashes de neon pipocam atrás dos seus glóbulos.

– Achei que seria melhor assim.

– É...

Ele e o irmão não falaram da visita do sumo sacerdote desde que ela acontecera, entretanto aquela aparição cordial de AnsLai estava entre os dois, mas, pelo menos, iAm deixara de lado sua irritação para trazê-lo para casa.

A primeira indicação para Trez de que a dor de cabeça estava começando de fato foi o modo como a campainha sutil de aviso de chegada ao destino deles atravessara sua cabeça como uma bala.

Ele gemeu quando as portas se abriram.

– Isso vai ser ruim.

– Você não teve uma na semana passada?

E ele imaginou quantas pessoas poderiam lhe perguntar isso ainda.

iAm cuidou da trava na porta, e Trez largou a jaqueta dois metros depois da entrada. Despiu o suéter de cashmere preta a caminho do corredor e estava desabotoando a camisa de seda quando entrou...

Ao ficar imobilizado, a única coisa que lhe passou pela cabeça foi aquela cena do filme Trocando as bolas – quando Eddie Murphy entra no seu quarto do apartamento luxuoso e uma garota seminua se ergue de sua cama e diz: “Olá, Billy Ray”.

A diferença nesta situação era que a sua perseguidora, aquela do namorado valentão com problemas de confiança, era loira e não vestia o corpete justo dos anos 1980. Para falar a verdade, ela estava absoluta e completamente nua.

A arma que apareceu sobre o ombro dele estava firme e, como acessório, tinha um silenciador.

Portanto, iAm poderia matá-la, sem problemas.

– Pensei que ficaria feliz em me ver – a garota disse, olhando dele para o cano da arma do irmão.

Como se quisesse parecer mais sedutora, ela levantou um braço para mexer nos cabelos, mas se ela tinha esperanças de os seios o atiçarem, estava sem sorte: aquelas pedras falsas estavam tão imóveis quanto algo pregado na parede.

– Como entrou aqui? – Trez exigiu saber.

– Não está feliz em me ver? – quando não recebeu nenhuma resposta e o cano ainda estava mirado nela, ela fez beiço. – Fiz amizade com o segurança, está bem. O quê? Ah, ‘tá bom... eu chupei ele, ok?

Quanta classe.

E aquele policial contratado cretino ficaria desempregado.

Trez andou até a pilha de roupas no pé da cama.

– Vista-se e saia.

Deus, como estava cansado.

– Ora, vamos lá – ela se lamuriou quando as coisas dela caíram ao seu redor. – Eu só queria fazer uma surpresinha para quando você chegasse do trabalho. Pensei que isso fosse fazer você feliz.

– Vejamos... não fez. Você tem que sair daqui... – como ela abriu a boca como se fosse dar uma de louca para ele, ele balançou a cabeça e a interrompeu. – Nem pense nisso. Não estou a fim e o meu irmão aqui não se importa muito se você vai sair daqui andando ou num saco plástico. Vista-se. Saia.

A garota olhou de um para o outro.

– Você foi tão legal comigo na outra noite.

Trez fez uma careta quando a dor se apossou do lado direito da sua cabeça.

– Meu bem, vou ser bem franco com você. Nem sei o seu nome. Nós transamos duas vezes...

– Três vezes...

– Não me interessa quantas vezes foram. O que eu sei é que você vai se esquecer disso tudo hoje. Se você me procurar de novo ou vir até aqui, eu vou... – o Sombra dentro dele queria ser mais sangrento em sua explicação, mas ele se forçou a continuar em termos humanos que ela pudesse entender. – ... chamar a polícia. E você não vai querer isso, porque é viciada em drogas e também negocia paralelamente. E se eles vasculharem sua casa, seu carro, sua bolsa, vão encontrar muitas coisas bem interessantes. Eles vão pegar você e o idiota com quem está dormindo por posse de drogas com o intuito de distribuição, e vão mandar vocês para a cadeia.

A garota só piscou.

– Não me obrigue, benzinho – Trez disse numa voz exausta. – Você não vai gostar do que vai acontecer.

Digam o que quiserem a respeito da moça, mas ela era rápida quando devidamente motivada. Alguns minutos depois, após algumas poses de ioga para enfiar aqueles pesos plásticos dentro de uma “blusa” dois números menores, ela estava a caminho, bolsinha barata sobre o ombro, os saltos altos pendurados pelas alças.

Trez não disse nada. Apenas a seguiu até a porta, abriu... e fechou na cara dela quando ela se virou para dizer alguma coisa.

E fechou a trava manualmente.

iAm guardou a pistola.

– Temos que nos mudar. Este lugar não é confiável.

Seu irmão estava certo. Não que onde moravam fosse um grande segredo, mas ficar no Commodore dava a ideia de que o segurança não seria estúpido o bastante para deixar uma mulher subir sem a permissão dos proprietários.

Se isso podia acontecer uma vez, poderia acontecer novamente...

Abruptamente, a dor se intensificou, como se o volume do concerto infernal em seu crânio tivesse disparado de súbito.

– Vou vomitar por algum tempo – murmurou ao se arrastar dali. – Vamos começar a mudança assim que esta enxaqueca passar...

Ele ficou sem saber o que iAm respondera, ou até mesmo se o cara chegara a responder.

Cacete.


CAPÍTULO 64

Parado do lado de fora da sala de exames do centro de treinamento, Qhuinn tinha as mãos enfiadas nos bolsos da calça, os dentes cerrados com força, as sobrancelhas tão baixas que pareciam unidas.

Esperando... Esperando...

Ele concluiu que essa coisa médica era bem parecida com uma bela luta: longos períodos sem fazer nada, interpostos por muitos momentos de morte e vida.

Era o bastante para estampar um carimbo de louco na testa de alguém.

Ele olhou para a porta.

– Quanto tempo mais acha que vai demorar?

Do outro lado, Blay cruzou e descruzou as longas pernas. O cara se esticara no chão na última meia hora, mas aquela fora a única concessão para aquele buraco de minhoca em que foram tragados.

– Já deve estar terminando agora – ele respondeu.

– É. O corpo só tem determinado número de partes, certo?

Depois de um instante, Qhuinn se concentrou melhor no macho. Havia círculos escuros ao redor dos olhos de Blay e as faces estavam encovadas. Ele também estava mais pálido do que de costume, o rosto claro demais.

Qhuinn se aproximou, recostou-se contra a parede e deixou os coturnos deslizarem até que seu traseiro batesse no chão ao lado de Blay.

Blay olhou para ele e lançou um breve sorriso, depois voltou a fitar as pontas das botas.

Qhuinn observou quando a própria mão se esticou e resvalou o maxilar do amigo. E quando Blay se assustou e olhou para ele, Qhuinn descobriu que queria fazer muito mais – e não sexualmente. Ele queria trazer o macho para o colo e deixar Blay repousar sua cabeça ali. Queria afagar os ombros fortes e passar os dedos pelos cabelos ruivos curtos. Queria que algum passante lhe trouxesse uma coberta para que ele envolvesse e esquentasse o corpo poderoso que parecia enfraquecido.

Qhuinn se forçou a desviar os olhos e afastou a mão.

Deus, como ele se sentia... preso. Ainda que não houvesse algemas nele.

Olhando para baixo, verificou os pulsos. Os tornozelos. Sim, totalmente livres. Nada o segurava.

Abaixando as pálpebras, ele deixou a cabeça encostada na parede. Em sua mente, ele tocava em Blay – e, de novo, não de modo sexual. Apenas sentia a vitalidade debaixo da pele, o deslocamento dos músculos, a solidez dos ossos.

– Acho que você deveria procurar Selena – disse-lhe.

Blay exalou como se algo o tivesse atingido no peito.

– É, eu sei.

– Podemos ir juntos – Qhuinn se ouviu oferecendo.

Ele abriu os olhos a tempo de ver a cabeça de Blay virar rapidamente em sinal de surpresa.

– Ou você pode ir na frente, sozinho – Qhuinn estalou as juntas. – Como achar melhor.

Merda. Em face do que vinha acontecendo com Saxton, aquilo talvez fosse um pouco demais. Alimentar-se, afinal, podia ser um ato mais íntimo do que o sexo...

– É... – Blay respondeu com suavidade. – Vou fazer isso.

O coração de Qhuinn começou a bater com força. E, mais uma vez, não porque esperasse conseguir algo do cara. Ele só queria...

Partilhar. Ele achava que a palavra certa era essa.

Não, espere. Era mais do que isso. Ele queria cuidar do macho.

– Sabe, acho que nunca lhe agradeci – murmurou.

Quando os olhos azul bebê de Blay o encararam, quis desviar o olhar – o contato visual era quase demais para ele suportar. Mas logo pensou no irmão naquele leito hospitalar – e em todos os modos como as pessoas eram roubadas do tempo.

Jesus, ele manteve tantas coisas reservadas por tanto tempo – e todas lhe pareceram perfeitamente válidas. Mas isso não seria arrogância demais? Que tipo de relutância pressupunha que ele teria tempo para falar daquilo que desejava? Que a pessoa no fundo da sua mente sempre estaria por perto? Que ele mesmo estaria?

– Pelo quê? – perguntou Blay.

– Por nos trazer para casa. A mim e a Luchas – ele inspirou fundo e exalou o ar lentamente. – E por ficar aqui ao meu lado a noite inteira. Por procurar Payne e pedir a ajuda dela. Por cuidar da minha retaguarda no campo de batalha e durante os treinamentos. E também pela cerveja e pelos videogames. Pelas batatinhas e pelos M&M’s. Pelas roupas que peguei emprestado. Pelo chão em que dormi quando passava a noite na sua casa. Obrigado por me deixar abraçar a sua mãe e conversar com o seu pai. Obrigado... pelas milhares de coisas boas que fez para mim.

Do nada, mais uma vez se lembrou da noite em que chegara em casa a tempo de testemunhar o pai entregando o anel de sinete de ouro para o irmão.

– Obrigado por me telefonar naquela noite – disse roucamente.

As sobrancelhas de Blay se ergueram.

– Que noite?

Qhuinn pigarreou.

– Depois que Luchas passou pela transição e meu pai lhe entregou... você sabe, o anel – ele balançou a cabeça. – Subi para o meu quarto e pensei em fazer algo... hum, algo verdadeiramente estúpido. Você me telefonou. Você foi até lá. Lembra?

– Lembro.

– Não foi a única vez em que fez algo assim.

Enquanto Blay desviava o olhar, Qhuinn soube exatamente para onde a mente do cara tinha se voltado. Sim, aquela noite não fora a única em que quase pulara do precipício.

– Eu já disse que sentia muito – Qhuinn declarou. – Mas acho que nunca agradeci. Por isso... obrigado.

Antes de perceber o que estava fazendo, ele esticou a mão, oferecendo a palma. Pareceu-lhe apropriado marcar aquele momento, ali, naquele instante, naquele lugar, do lado de fora da sala de operações do seu irmão arrebentado, com algum tipo de contato solene.

– Apenas... obrigado.

 

Inacreditável.

Depois do que pareceram vidas ao lado de Qhuinn, Blay pensava que as surpresas tinham chegado ao fim. Que o macho não poderia arranjar nada mais que o deixasse sem fala.

Errado.

Jesus... de todas as conversas imaginárias que teve em sua cabeça com o cara, conversas nas quais fingia que Qhuinn se abria, ou dizia algo bem perto “da coisa certa”, nada nunca se tratara de gratidão. Mas aquilo... era exatamente o que ele precisava ouvir, mesmo sem saber disso.

E aquela palma ofertada lhe partiu o coração.

Ainda mais porque o irmão do cara estava às portas da morte na sala diante deles.

Blay não aceitou a mão oferecida.

Ele esticou o braço, segurou o rosto do lutador e aproximou Qhuinn para um beijo.

Que deveria ter durado apenas um segundo – como se os lábios se encontrando equivalessem a um aperto de mãos. Quando foi se afastar, porém, Qhuinn o capturou, e o segurou no lugar. As bocas se encontraram de novo... e de novo... e mais uma vez, as cabeças inclinadas para o lado, o contato se demorando.

– Não tem de quê – Blay disse rouco. Depois sorriu de leve. – Contudo, não garanto que tenha sido sempre um prazer.

Qhuinn riu.

– É. Imagino que emprestar as calças não tenha sido divertido – o macho ficou sério. – Por que, diabos, ficou sempre por perto?

Blay abriu a boca, a verdade pairava na ponta da língua.

– Ah... Merda. Desculpem, rapazes, não quis interromper.

Qhuinn se afastou com tanta rapidez que literalmente arrancou o rosto das mãos de Blay. Depois, num salto, se pôs de pé e encarou V., que acabara de sair da sala de operações.

– Sem problemas. Não estava acontecendo nada de mais.

Enquanto a expressão de V. registrava um “até parece”, Qhuinn apenas encarou o Irmão, como se desafiasse Vishous a ter uma opinião contrária à sua.

No silêncio entre os dois machos, Blay se levantou mais lentamente e descobriu que estava tonto, e não porque não havia se alimentado.

Sem problemas. Não estava acontecendo nada de mais.

Para ele, não foi bem assim. Maaaas, mais uma vez, Qhuinn se desvencilhara de qualquer proximidade, escondera-se atrás de um escudo, retraíra-se, desconectara-se.

Só que... Caramba, era a hora errada. O lugar errado. E V. era a última pessoa diante da qual você gostaria de demonstrar todo o seu amor.

No entanto, aquilo serviu de lembrete. Situações estressantes tinham um modo de tornar a mais rígida das personalidades maleáveis. Pelo menos por um tempo. Tristeza, choque, ansiedade extrema... tudo isso podia deixar alguém vulnerável e propenso a falar de modo que não falaria costumeiramente porque tinha suas defesas completamente inoperantes. O comportamento extraordinário não era um sinal da mudança da maré, porém. Não era um indicador de algum tipo de conversão religiosa segundo o qual, dali por diante, tudo ficaria diferente.

Qhuinn estava mexido pelo que acontecia com o irmão. E qualquer revelação ou declaração emotiva que saísse de sua boca, sem dúvida, seria o produto do estresse pelo qual passava.

E ponto.

Nada de “estar apaixonado” ali. Não mesmo. Não permanentemente. E, droga, ele tinha que se lembrar disso.

– ... os ossos vão ficar no lugar? – Qhuinn estava perguntando.

Blay procurou se concentrar enquanto V. acendia um dos seus cigarros e exalava a fumaça para longe deles.

– Primeiro, nós o estabilizamos. Selena vai alimentá-lo novamente e depois vamos abrir o abdômen dele numa cirurgia exploratória para descobrir de onde vem a hemorragia. Depois que virmos o que está acontecendo, consertamos os ossos.

– Vocês têm alguma ideia do que possa ter acontecido com ele?

– Ele não está falando no momento.

– Ok. Entendo.

– Por isso precisamos do seu consentimento. Ele não é capaz de entender os riscos e os benefícios.

Qhuinn passou os dedos pelos cabelos.

– Sim. Claro. Façam o que precisarem fazer.

V. exalou novamente, o cheiro do tabaco turco permeando o ar e lembrando a Blay exatamente quantas horas, minutos e segundos fazia que ele acendera seu último cigarro.

– Você tem Jane, Manny, Ehlena e a mim ali dentro. Não vamos deixar que nada aconteça com ele, está bem? – ele segurou Qhuinn pelo ombro. – Ele vai superar. Nem que nós quatro morramos tentando.

Qhuinn murmurou um agradecimento.

E V. olhou para Blay. Depois olhou para Qhuinn. Pigarreou.

Sim, o Irmão estava fazendo um tipo de cálculo mental. Perfeito.

– Por isso, fiquem por aqui. Eu volto com notícias assim que souber de alguma coisa. É isso aí.

As sobrancelhas do Irmão se ergueram bem alto na testa, as tatuagens na têmpora se distorcendo enquanto ele esmagava o toco do cigarro mal fumado com a sola do coturno.

– Volto daqui a pouco – disse antes de voltar a entrar.

Após a saída do Irmão, Qhuinn andou de um lado para o outro, os olhos fixos no piso de concreto, as mãos nos quadris estreitos, as armas que ele se esquecera de tirar captando a luz fluorescente do lugar e reluzindo.

– Vou sair para fumar – Blay informou. – Volto logo.

– Você pode fumar aqui – Qhuinn sugeriu. – A porta é selada.

– Preciso de um pouco de ar fresco. Mas não vou demorar.

– Ok.

Blay saiu apressado, indo direto para a porta no fim do corredor que se abria para o estacionamento. Quando chegou lá, abriu caminho com um soco e inspirou profundamente.

Ar fresco, o cacete. Tudo o que obteve foi um ar seco e carregado de concreto.

Mas pelo menos estava mais arejado ali.

Merda.

Deixara os cigarros na maldita jaqueta. No chão. Do lado de fora da sala de operações.

Enquanto praguejava e andava de um lado para o outro, ele se sentiu tentado a socar alguma coisa, mas juntas machucadas seriam apenas mais uma coisa que ele deveria explicar para as pessoas.

E o que V. testemunhara já era mais do que o bastante.

Enfiando as mãos nos bolsos das calças, ficou intrigado ao sentir que a direita resvalava em algo duro.

O isqueiro de Saxton. Aquele que o macho lhe dera em seu aniversário.

Pegando o objeto, ele o virou e revirou na mão, pensando em tudo o que fora dito no corredor.

Houve uma época em que ele teria pegado essas palavras e as colocado numa cornija em sua cabeça e em seu coração, dando-lhe um lugar de destaque para garantir que a sua preciosidade ficasse para sempre com ele pelo resto de sua vida.

Por tantos anos aqueles momentos no chalé e no chão duro e frio de agora há pouco teriam bastado para deixar de lado qualquer conflito, qualquer rusga e dor, deixando tudo tão imaculado que ele se relacionaria como um virgem para com Qhuinn.

Um começo do zero.

Tudo não só perdoado, como também esquecido.

Esse não era mais o caso.

Deus, ele provavelmente era jovem demais para se sentir tão velho, mas a vida se baseava mais em experiência e não em dias do calendário. E parado ali, sozinho, ele, definitivamente, sentia-se um ancião: estava absoluta e completamente livre da ingenuidade colorida e otimista que acompanhava a visão de vida de um jovem.

Quando se acreditava que os milagres não eram impossíveis... mas meramente ocasionais.

Ainda bem que V. aparecera naquela hora.

Senão, três palavrinhas teriam escapado da sua boca. E, sem dúvida, o condenariam de um modo que ele sequer poderia imaginar.

Hora errada. Local errado.

Para esse tipo de coisa.

Para sempre.


CAPÍTULO 65

Enquanto iAm andava de um lado para o outro no apartamento, ele mantinha a pistola sempre consigo – ainda que fosse altamente improvável que houvesse um segundo round com alguma vagabunda nua invadindo o “lar, doce lar” do seu irmão e dele.

Maldição, ele bem que precisava de uma fumaça vermelha. Só para se livrar dessa irritação.

Por que, naquele exato instante, ele estava à beira da violência.

Ele supunha que a boa notícia era que ele, de fato, não tinha um alvo, e era isso o que o mantinha estagnado. A enxaqueca estava acabando com seu irmão. E aquela pobre mulher desgastada que fora acompanhada até a porta da frente? Ela já estava sendo torturada em níveis demais para se contar. Agora, aquele segurança seria um excelente candidato, mas o filho da mãe já saíra do trabalho uma hora antes, e iAm não estava disposto a deixar Trez naquele estado vulnerável só para poder dar um corretivo no imbecil...

Ao longe, ele ouviu o sussurro dos canos de esgoto.

Era a descarga do vaso sanitário de Trez sendo acionada. De novo.

E logo se seguiu uma imprecação, o rangido da estrutura de madeira enquanto Trez se deitava na cama.

Pobre. Coitado.

iAm foi até as imensas janelas que davam vista para o rio e parou para fitar a margem oposta de Caldwell. Pousando as mãos nos quadris, ele examinou os lugares para onde poderiam se mudar. A lista era curta. Inferno, um dos principais benefícios do Commodore fora a sua segurança; com isso, eles nem se importavam em acionar o alarme.

O que se mostrara um erro.

Eles necessitavam de um lugar seguro. Protegido. Impenetrável.

Ainda mais se seu irmão continuasse com aquela mania de conquistar e abandonar, e se AnsLai mantivesse suas visitas “diplomáticas”.

iAm voltou a andar. Era impossível ignorar o fato de que seu irmão estava piorando. Aquela situação sexual vinha se arrastando há anos – e por um bom tempo, iAm apenas a catalogou como um impulso sexual saudável de um macho.

Algo que muitas vezes ele acreditou que lhe faltasse.

Pensando bem, seu irmão transara com fêmeas em número suficiente por eles dois.

Nos últimos meses, contudo, ficara evidente que o processo vinha se intensificando – e isso antes de o sumo sacerdote começar a aparecer. E agora que as coisas pareciam estar chegando ao fim com AnsLai? As maquinações do s’Hisbe simplesmente colocariam ainda mais pressão em seu irmão, o que o levaria a aprontar ainda mais.

Merda. iAm sentia como se estivesse diante de um entroncamento, computando a velocidade de uma locomotiva e da aproximação de um carro... e ver a carnificina seria o resultado. A metáfora também se aplicava por ele se sentir tão impotente, visto que não conseguiria deter nenhuma das forças: não estava atrás do volante, nem no assento do maquinista. Tudo o que lhe restava fazer era se acomodar e assistir à cena.

Ou, muito provavelmente, gritar ao lado da estrada.

Para onde diabos eles poderiam ir...

Franzindo o cenho, ergueu o olhar do cenário, subiu pela moldura de gesso e parou no teto.

Depois de um minuto, pegou o celular e fez um telefonema.

Quando desligou, foi até o quarto do irmão. Entreabrindo a porta, disse para o silêncio escuro e denso:

– Vou dar uma saída rápida. Volto logo.

O gemido de Trez poderia significar qualquer coisa, desde “Beleza” até “Ai, não tão alto” ou até “Bom divertimento, vou continuar vomitando mais um pouco”.

iAm andou rápido. Para fora do apartamento. Para dentro do elevador.

Dentro do qual, apertou o botão “C” de Cobertura.

Quando a porta deslizou se abrindo, havia duas escolhas: uma direção o levava para o apartamento do Irmão Vishous; a outra para o do seu velho amigo.

Ele se encaminhou para a campainha de Rehvenge.

Quando o sympatho abriu a porta, Rehv apareceu como de costume: com seu corte moicano, os olhos violeta e casaco de marta. Perigoso. Um tanto diabólico.

– Ei, cara, como está? – disse o macho ao se abraçarem e baterem no ombro um do outro. – Entre.

Enquanto iAm entrava no espaço privativo do Reverendo pela primeira vez em mais ou menos um ano, descobriu que nada havia mudado e, por algum motivo, isso era um alívio.

Rehvenge foi até o sofá de couro e se sentou, apoiando a bengala ao seu lado e cruzando as pernas.

– Do que precisa?

Enquanto iAm tentava juntar as palavras certas, Rehv imprecou.

– Caramba, eu sabia que esta não era uma visita social, mas não esperava que as suas emoções estivessem tão conturbadas.

Ah, sim, as características de devorador de pecados equivaliam a não esconder nada do macho.

Ainda assim, era difícil falar.

– Não sei bem se está a par do que está acontecendo com Trez?

Rehv franziu o cenho, as sobrancelhas escuras se unindo sobre aquele olhar violeta intenso.

– Pensei que o Iron Mask estivesse indo bem. Vocês estão com problemas? Tenho bastante dinheiro se precisarem...

– Os negócios estão ótimos. Temos mais dinheiro do que conseguimos gastar. O problema são as atividades extracurriculares do meu irmão.

– Ele não está metido com drogas, está? – Rehv perguntou com severidade.

– Mulheres.

Rehv gargalhou e dispensou essa preocupação com um gesto de lado da mão da adaga.

– Ah, se é só isso...

– Ele está completamente descontrolado, e uma delas apareceu do nada no nosso apartamento. Chegamos em casa e lá estava ela.

Rehv se recostou e franziu o cenho.

– No seu apartamento? Como é que ela conseguiu entrar?

– O menor denominador comum com um segurança – iAm se movimentou ao redor da sala moderna, notando de passagem que a vista, de fato, era melhor dali de cima. – Trez vem transando com tudo que se move há anos, mas, recentemente, ele tem sido negligente: não apaga as memórias, transa com a mesma mais de uma vez, não se preocupa com as consequências.

– Que diabos está havendo com ele?

iAm se virou e encarou o mestiço, que era a coisa mais perto de uma família que ele tinha, além da sua carne e do seu sangue. A bem da verdade, ele confiava mais naquele cara do que em 99% dos seus familiares de fato.

– Trez está comprometido.

Longo silêncio.

– Como que é?

iAm assentiu.

– Ele está comprometido.

Rehv se levantou do sofá.

– Desde quando?

– Desde o nascimento.

– Aaaahhhh... – Rehv emitiu um assobio suave. – Então é uma coisa do s’Hisbe.

– Ele foi prometido para a filha primogênita da rainha.

Rehv se calou por um instante. Depois esfregou a cabeça.

– Isso faria dele um maldito Rei, não faria?

– Isso mesmo. Embora sejamos uma sociedade matriarcal, isso não é uma irrelevância.

– Olha só – o macho murmurou. – Ele, eu e Wrath. Que trio.

– Bem, é diferente para o s’Hisbe, claro. É a rainha quem dita tudo para nós.

– Então o que ele está fazendo aqui fora? Com todos nós Desconhecidos?

– Ele não quer ligação alguma com o s’Hisbe.

– Ele tem poder de escolha?

– Não – iAm olhou para o bar num canto. – Importa-se se eu me servir de um drinque?

– ‘Tá de brincadeira? Eu já estaria bêbado se estivesse no seu lugar.

iAm foi até lá, pesou suas opções e acabou escolhendo uma garrafa com um pequeno rótulo no gargalo escrito Bourbon. Serviu sem gelo e, ao sorver um gole do copo de cristal, saboreou a queimação na língua.

– Gostoso.

– Coleção Parker’s Heritage, lote pequeno. O melhor.

– Não pensei que gostasse de beber.

– Isso não é desculpa para não conhecer aquilo que sirvo para os meus convidados.

– Ah.

– Então, qual é o plano?

iAm inclinou a cabeça para trás, esvaziou o copo e engoliu de uma vez.

– Precisamos de um lugar seguro para ficar. E não só por conta da situação com aquela mulher. Recebemos uma visita do sumo sacerdote na semana passada, isso significa que eles estão começando a levar a sério essa coisa de voltar para casa. Eles estão à procura dele, e se o encontrarem? Temo que ele mate o representante do s’Hisbe. E aí sim teremos um belo problema.

– Acha mesmo que ele chegaria a esse ponto?

– Sim, acho sim – iAm se serviu de outra dose. – Ele não vai voltar para lá. E eu preciso de tempo para encontrar uma maneira de resolver esse conflito antes que algo desastroso aconteça.

– Vocês querem se mudar para a minha casa no norte?

iAm secou o segundo copo de Bourbon de uma vez só.

– Não – ele o encarou. – Quero que nos mudemos para o complexo da Irmandade.

Enquanto Rehv praguejava longa e lentamente, iAm se serviu mais uma vez.

– É o lugar mais seguro para nós.

 

Xcor estava coberto de sangue de redutor e suor ao voltar para seu novo esconderijo. Seus lutadores ainda estavam no centro da cidade, enfrentando o inimigo, mas ele teve que sair e procurar refúgio.

Havia um belo corte em seu braço.

A casa que Throe arranjara para eles estava localizada num bairro modesto cheio de casas modestas com garagens para dois carros e balanços nos jardins. Dentre as suas vantagens, estava o fato de se localizar no fim de uma rua sem saída, e de haver um lote vazio de um lado e a unidade de processamento do Departamento de Esgoto de Caldwell do outro.

Eles teriam aquela casa por três meses com uma opção de compra ao fim do contrato.

Enquanto se desmaterializava pelas cortinas fechadas da sala de estar, ele lamentou o sofá macio em forma de L, suas almofadas cheias de borlas, com sua cor quase de cozido de carne.

Ainda que apreciasse a calefação existente, o fato de o lugar vir “decorado” o incomodava. No entanto, ele sentia estar sozinho nisso: nos últimos dias, flagrou um ou outro dos seus soldados reclinado no maldito monstro, as cabeças largadas para trás, as pernas bem esticadas e confortáveis.

O que viria em seguida? Mantinhas?

Partindo escada acima, sentiu saudades do castelo sombrio que ainda possuíam no Antigo País. Desejou o peso das pedras que os circundavam, a natureza impenetrável do projeto, com seu fosso e muros altos. Lamentou também a falta do divertimento de que desfrutavam assustando os aldeões, dando presença física ao mito.

Bons tempos, diriam aqui no Novo Mundo.

No segundo andar, ele se recusou a olhar os quartos. O rosa em um deles queimava seus olhos, e o verde-água de outro também era um ataque aos seus sentidos. E não havia alívio ao entrar na suíte principal. Papel de parede florido por todos os lados. Sobre a cama, diante das janelas e cobrindo toda a poltrona no canto.

Pelo menos suas botas de combate esmagavam o carpete fofo, deixando marcas fundas como hematomas em seu caminho até o banheiro.

Pelo amor de Deus, ele nem tinha como definir o esquema de cores dali.

Amora?

Estremecendo, desejou deixar as luzes de cima da pia desligadas, mas com as cortinas de florzinhas fechadas, a iluminação da rua abaixo estava completamente invisível, e ele precisava ver o que fazia...

Ah, pelos deuses.

Esquecera-se das cúpulas de renda dos abajures.

Na verdade, em qualquer outro ambiente, as iluminações gêmeas em vermelho sugeririam algo de natureza sexual. Mas não naquele antro excessivamente agradável e meigo. Ali, elas pareciam dois confeitos de goma brilhando na parede.

Ele quase engasgou por excesso de estrogênio.

Num ato de autopreservação, retirou as duas cúpulas ofensivas de cima das lâmpadas e as deixou na bancada entre as pias duplas. Depois, tirou o cabresto, o casaco, as adagas e as pistolas. A camiseta que usava estava manchada pelas longas noites de luta, mas era lavada regularmente – e seria usada mais uma vez. Roupas, afinal, não passavam de pele que os vampiros não recebiam ao nascer.

Não serviam como decoração pessoal – pelo menos não para ele.

Voltando-se para o espelho, resmungou.

O assassino com quem lutara mão a mão fora muito bom com uma adaga, provavelmente consequência de sua vida pregressa nas ruas, e que satisfação combater com alguém com tantas habilidades! Claro que, no fim, ele vencera, mas a batalha fora estimulante.

Infelizmente, porém, ele levara para casa um suvenir do conflito: um corte no bíceps que dava a volta e terminava no alto do ombro. Bem desagradável. Mas ele já estivera em situação pior.

E, por isso, ele sabia como se cuidar. Perfilados sobre a bancada estavam os vários itens que ele e seus lutadores necessitavam de tempos em tempos: um frasco de álcool CVS para desinfetar, um isqueiro BIC, diversas agulhas, um carretel de fio de náilon de pesca.

Xcor fez uma careta ao tirar a camiseta e quando a manga curta que fora rasgada passou raspando no corte, abrindo-o mais. Cerrando os dentes, ele ficou parado, a dor se intensificando a ponto de sua barriga se contrair como um punho fechado.

Respirando fundo, ele esperou até que as sensações diminuíssem, depois pegou o frasco de álcool. Retirou a tampa branca, inclinou-se sobre a pia, preparou-se e...

O som que escapou dos seus dentes cerrados era parte rugido, parte gemido. Enquanto sua visão formava quadriculados, ele fechou os olhos e apoiou o quadril na beira da pia.

Inspirando profundamente, suas narinas ardiam com o cheiro, mas não havia como recolocar a tampa: sua bela coordenação motora ainda estava comprometida.

Andando um pouco para clarear a cabeça, ele foi para o quarto e deu ao seu corpo um tempo para se recalibrar. Enquanto a dor o acompanhava, como se tivesse um cachorro atado ao braço que tentava comê-lo vivo, ele praguejou diversas vezes.

E acabou no andar de baixo. Onde a bebida estava.

Por nunca ser de se embebedar, vasculhou as sacolas de lona com bebidas que Zypher trouxera com eles do armazém. O soldado apreciava um drinque de tempos em tempos e, por mais que Xcor não aprovasse, há muito ele aprendera que se devia conceder certas liberdades no que se referia a lutadores agressivos e inquietos.

E numa noite como aquela, ele se viu grato.

Uísque? Gim? Vodca?

Não fazia diferença.

Pegou uma garrafa qualquer, quebrou o selo da tampa e inclinou a cabeça para trás. Abrindo a boca, ele derramou o que quer que aquilo fosse para dentro da garganta, engolindo a despeito de seu esôfago queimar como se estivesse pegando fogo.

Xcor continuou a beber enquanto subia. Tomou ainda mais enquanto andava de um lado para o outro à espera de sentir os primeiros efeitos.

E mais bebida.

Ele ficou sem saber quanto tempo levou, mas, no fim, voltou para o banheiro bem iluminado, passando uns sessenta centímetros da linha preta pela cabeça fina da agulha. Diante do amplo espelho retangular sobre as pias, ele se sentiu grato pelo fato de a adaga do redutor ter se deparado com o seu braço esquerdo. Isso significava que, como macho destro, ele poderia lidar com aquilo sozinho. Se tivesse sido do outro lado? Ele precisaria de ajuda.

A bebida ajudou imensamente. Ele mal percebeu quando perfurou a pele e fez um nó com a ajuda dos dentes.

De fato, o álcool era uma substância curiosa, ponderou ao começar a fileira de pontos. O entorpecimento que o abatera fazia com que ele se sentisse submerso em água quente, o corpo estava relaxado, a dor ainda presente, mas a intensidade da agonia estava bem menor.

Devagar. Preciso. Uniforme.

Quando chegou ao alto do ombro, deu mais um nó; depois liberou a agulha, guardou tudo o que usara e foi para o chuveiro.

Abaixando as calças, chutou as botas de combate e se colocou debaixo do jato de água.

Daquela vez o gemido foi de alívio: enquanto a água quente cobria seus ombros doloridos, as costas rígidas e as coxas duras, a sensação de conforto foi quase tão intensa quanto a agonia o fora.

E, só para variar, ele se permitiu ceder à sensação. Provavelmente porque estava embriagado.

Recostando-se na parede de ladrilhos, a água o atingiu primeiro no rosto, mas de modo gentil, como a chuva, antes de viajar pela frente do seu corpo, percorrendo o peito e seu abdômen enrijecido, passando pelos quadris até o sexo...

E do nada ele viu a sua Escolhida inclinada sobre ele, os olhos verdes reluzentes na luz do luar, a árvore acima parecendo um abrigo para ambos.

Ela o alimentava, o pulso fino e pálido em sua boca, a garganta dele engolindo ritmadamente.

No meio do seu torpor alcoólico, o desejo sexual o atingiu, parecendo desdobrar sua pélvis como uma mão aberta.

Ele ficou rijo.

Abrindo os olhos – e ele nem se dera conta de tê-los fechado –, fitou a si mesmo. A luz brilhante de cima da pia fora atenuada pela cortina opaca que evitava que a água se espalhasse pelo banheiro, mas havia mais do que iluminação suficiente para enxergar.

Ele desejou que estivesse completamente escuro... pois não se alegrava em ver sua excitação, aquele mastro erguido a partir do corpo tão estúpido e orgulhoso.

Não tinha como entender no que esteve pensando: se aquelas prostitutas queriam receber um adicional para acomodar os seus impulsos, ele dificilmente imaginava que a adorável Escolhida fizesse outra coisa que não gritar e correr na direção oposta...

De pronto, isso lhe pareceu deprimente, ainda mais quando o latejar entre as pernas se intensificou. Na verdade, seu corpo era apenas um triste instrumento, patético em seu desejo e permanecendo ignorante quanto ao fato de ser indesejado por todas.

Em especial, por aquela que ele desejava.

Virando-se, ele inclinou a cabeça para trás e passou as mãos pelos cabelos. Hora de parar de pensar e se lavar. O sabonete na saboneteira afixada na parede fez seu trabalho com entusiasmo em sua pele e seu cabelo...

E ele ainda estava ereto quando chegou a hora de sair.

O ar frio tomaria conta daquilo.

Pisando no tapete do banheiro, também de um horroroso tom de vermelho rosado, ele se secou com a toalha.

Ainda ereto.

Olhou para as roupas de luta, viu-se contrariado em vesti-las. Duras. Ásperas. Sujas.

Talvez o ambiente feminino o estivesse contaminando.

Xcor acabou na enorme cama, nu, deitado de costas.

Ainda ereto.

Uma espiada rápida no relógio de cabeceira lhe disse que não demoraria muito para que a casa fosse inundada pelos lutadores.

Aquilo teria de ser rápido.

Enfiando a mão debaixo dos lençóis e descendo pelo corpo, ele se segurou...

Os olhos de Xcor se fecharam e ele gemeu, o tronco se retorcendo pelo calor e o desejo que se avolumava na parte inferior do corpo. E quando o travesseiro veio receber seu rosto – logicamente, foi o contrário, ele supôs – começou a bombear para cima e para baixo.

Delicioso. Especialmente no topo, onde a cabeça lisa doía querendo atenção e a recebia a cada golpe. Mais rápido. Mais apertado.

E o tempo todo visualizando a sua Escolhida.

Na verdade, a imagem dela o satisfazia mais do que aquilo que executava ali embaixo. E quando as sensações se intensificaram, ele percebeu pela primeira vez por que os soldados faziam aquilo com tanta frequência. Tão bom. Tão, tão bom...

Ah, a sua fêmea era linda. Ao ponto em que, apesar da força que exercia em si mesmo, ele não se distraía da imagem dela. Em vez disso, ela se tornava cada vez mais clara para ele, dos cabelos loiros até os lábios rubros e o pescoço delicado – por todo o caminho do corpo elegante e longilíneo que tanto se escondia quanto se revelava pelo manto branco imaculado que ela vestira.

Como seria a sensação de ser desejado por tal criatura? Ser aceito dentro do seu corpo sagrado como um macho de valor...

Nesse instante, a realidade da gravidez dela o atingiu como um golpe físico. Mas, pelo menos, já era tarde demais. Mesmo que seu coração tivesse gelado e seu peito tivesse começado a doer com o conhecimento de que ela aceitara outro, seu corpo continuou sua corrida para a felicidade, a conclusão tão inevitável que...

O orgasmo que o assolou o fez gritar – e graças ao Fade que o travesseiro abafou a sua capitulação: naquele mesmo instante, no andar de baixo, ele ouviu os seus primeiros soldados andando pela casa, o rufo das botas de combate como um trovoar inconfundível que ele reconheceria em qualquer lugar.

O resultado do seu clímax foi desastroso de maneiras demais para se contar. Ele se virara por cima do ombro machucado; gozara sobre a mão e o abdômen assim como nos lençóis; a visão encantadora sumira de sua cabeça, e sua dura realidade era tudo o que lhe restava.

A dor dentro dele era ardida como um ferimento recente.

Mas, pelo menos, ninguém saberia dela.

Ele, acima de tudo, era um soldado.


CAPÍTULO 66

– Sim, você pode ir vê-lo. Ele está sonolento, mas acordado.

Enquanto a doutora Jane sorria para Qhuinn, ele ajeitava as calças nos quadris e enfiava a barra da camiseta para dentro. No entanto, conteve-se e não arrumou os cabelos, forçando os braços a ficarem ao longo do corpo mesmo que as suas palmas estivessem coçando para penteá-los.

– E ele vai ficar bem?

A médica assentiu ao começar a tirar a máscara cirúrgica que ainda estava pendurada ao redor do pescoço.

– Retiramos o equivalente vampírico ao baço dos humanos, e isso cuidou da hemorragia interna. Fizemos um pente-fino nele. Até onde sabemos, ele esteve num estado de estase dentro daquele tonel de óleo, o sangue de Ômega, de algum modo, preservando-o no estado em que estava apesar dos ferimentos. Se ele estivesse do lado de fora, tenho certeza de que teria morrido.

A maldição que causara um milagre, pensou Qhuinn.

– E ele não está contaminado?

Jane deu de ombros.

– Ele sangra vermelho, e ninguém percebeu nenhum sinal de Ômega nele... foi um caso de estar sobre e ao redor dele.

– Ok. Muito bem – Qhuinn olhou para a porta. – Ótimo.

Hora de entrar, ele se ordenou. Vá...

Seus olhos pararam em Blay. Durante as quatro horas de operação, o cara andara de um lado para o outro no corredor, saindo em intervalos regulares para o estacionamento para fumar. No entanto, ele sempre voltara.

Puxa, ele estava de cara fechada.

Desde que V. aparecera e os encontrara... é...

Cristo, que hora de chegar era aquela, hein?

– Vou entrar – disse ele.

Mas só depois que Blay acenou com a cabeça é que ele entrou na sala de cirurgia.

Empurrando a porta, a primeira coisa que o recebeu foi o cheiro antisséptico que ele associava com contusões pós-batalha. Em seguida, foi o bipe suave ao lado da maca no meio da sala, e o som de Ehlena digitando num computador.

– Vou deixar que fiquem a sós – ela disse num tom gentil, ao se levantar.

– Obrigado – ele respondeu baixinho.

Quando a porta se fechou atrás dela, Qhuinn voltou a ajeitar a camiseta ainda que ela não precisasse ser ajeitada.

– Luchas?

À espera que seu irmão respondesse, ele olhou ao redor. Os escombros da operação, as gazes ensanguentadas, os instrumentos usados, os tubos plásticos, tudo fora retirado; nada além do corpo inerte debaixo dos lençóis brancos e um saco biológico com conteúdo vermelho para indicar como aquelas horas tinham sido transcorridas.

– Luchas?

Qhuinn se aproximou e baixou o olhar. Caramba, ele normalmente não tinha problemas de pressão, mas quando olhou bem para o rosto machucado do irmão, as coisas meio que giraram, e a onda de tontura o fez perceber exatamente o quanto ele era alto e como o chão estava distante.

Os olhos de Luchas tremularam e se abriram.

Cinza. Os dois sempre foram cinza e ainda eram.

Qhuinn se esticou para trás e pegou uma banqueta com rodinhas. Ao sentar-se, não sabia o que fazer com os braços, com as mãos... com a voz.

– Como está se sentindo?

Que pergunta mais idiota.

– Ele... me... manteve...

Qhuinn se inclinou para a frente, mas, cacete, era difícil de entender aquela voz fraca.

– O que disse?

– Ele me... manteve... vivo...

– Quem?

– ... por sua causa.

– De quem você está falando? – difícil imaginar que Ômega quisesse se vingar de...

– Lash...

Ante esse nome, os lábios superiores de Qhuinn expuseram suas presas. Aquele safado do primo deles – que, no fim, relevou-se não ser parente deles, mas sim filho transplantado de Ômega. Quando criança, o filho da puta não passara de um exibido detestável. Como pré-trans no programa de treinamento ele tornara a vida de John Matthew um inferno. Depois da transição?

Seu pai verdadeiro o recebera de volta em seu rebanho, e a completa destruição fora o resultado. Lash fora o responsável por liderar os ataques. Depois de séculos em que a Sociedade Redutora teve que caçar e encontrar os enclaves dos vampiros, o maldito soube exatamente para onde mandar os assassinos – e por ter sido adotado por uma família aristocrática, ele dizimara a classe alta.

Mas, ao que tudo levava a crer, o papaizinho e o garoto de ouro tiveram uma desavença.

Merda, a ideia de Lash ter torturado o seu irmão só o fez desejar matá-lo mais uma vez.

Enquanto Luchas gemia e inspirava fundo, Qhuinn levantou uma mão para... lhe dar um tapinha no ombro ou algo assim. Mas não fez nada.

– Escute aqui, você não precisa falar.

Os olhos cinza injetados prenderam-se os seus.

– Ele me manteve vivo... por causa do que eu fiz... com você.

Ali na maca, lágrimas se avolumaram e começaram a rolar, as emoções do irmão escorrendo pelo rosto, o arrependimento com o que sem dúvida devia ser dor física além dos narcóticos usados para tratar dele.

Porque Qhuinn achava difícil de imaginar que aquele cara demonstraria qualquer coisa numa situação normal. Não foram criados assim. Etiqueta acima das emoções.

Sempre.

– A Guarda de Honra... – Luchas começou a chorar a valer. – Qhuinn... eu sinto... eu sinto muito.

Não devemos matá-lo!

Qhuinn piscou e regressou para a surra no acostamento daquela estrada, para aqueles machos em mantos negros cercando-o e atacando-o enquanto ele tentava proteger a cabeça e os testículos. Depois, às portas do Fade, onde encontrou sua filha.

Estranho como as coisas se completavam num círculo. E como algumas tragédias na verdade levavam a coisas boas.

Nessa hora, Qhuinn tocou no irmão, levando a mão da adaga para o ombro magro dele.

– Psssiu... está tudo bem. Nós estamos bem...

Ele não sabia ao certo se aquilo era verdade, mas o que mais ele poderia dizer enquanto o cara se desmanchava em lágrimas?

– Ele quis... me transformar... – Luchas respirou fundo. – Ele me... ressuscitou. Acordei na floresta... os machos dele bateram em mim... fizeram coisas comigo... me colocaram naquele... sangue. Esperei pela volta deles... Eles nunca voltaram.

– Você está a salvo aqui – foi tudo em que ele conseguiu pensar. – Não precisa se preocupar com nada, ninguém vai pegar você aqui.

– Onde... estou...

– No centro de treinamento da Irmandade.

Os olhos dele se arregalaram.

– Verdade?

– É.

– Puxa... – a expressão de Luchas se alterou, aquele belo rosto mais uma vez se crispando. – O que foi feito de mahmen? Papai e Solange?

Qhuinn apenas balançou a cabeça de um lado para o outro.

E, em resposta, uma força repentina surgiu naquela voz frágil.

– Tem certeza de que estão mortos? Tem certeza?

Como se ele não desejasse o sofrimento pelo qual passara para nenhum deles.

– Sim, tenho certeza.

Luchas suspirou e fechou os olhos.

Merda. Qhuinn se sentia mal em mentir, mas, apesar de as máquinas ao lado da cama indicarem que o estado do seu irmão era estável, se o cara piorasse, ele não queria mandar Luchas para o túmulo pensando que depois do que fizeram com ele, ninguém mais tinha certeza de quantos outros tinham sido levados ou quando.

No silêncio, Qhuinn baixou o olhar para a mão do irmão. Para o anel de sinete que fora deixado – talvez porque a junta acima dele estivesse tão inchada que eles teriam de ter cortado o dedo.

O timbre que fora gravado na faceta de ouro carregava os símbolos sagrados com os quais apenas as Famílias Fundadoras podiam marcar suas linhagens. Ah, sim, e como era completamente perturbador, e absolutamente inapropriado, cobiçar a maldita coisa. Depois de tudo o que acontecera, era de se pensar que ele se sentisse nauseado.

Pensando bem, talvez fosse apenas uma reação instintiva, um eco de todos aqueles anos de uma esperança vã de que poderia receber um para si.

– Qhuinn?

– Diga.

– Eu sinto muito...

Qhuinn balançou a cabeça, ainda que as pálpebras de Luchas estivessem abaixadas.

– Não se preocupe com nada. Você está seguro. Voltou. Tudo vai ficar bem.

Enquanto o peito do irmão subia e descia como se ele estivesse aliviado, Qhuinn esfregou o rosto e não se sentiu nada bem em relação a tudo aquilo. A respeito do estado do irmão... e do seu retorno.

Não que ele desejasse que o cara estivesse morto. Torturado. Congelado para sempre.

Contudo, ele fechara a porta ante toda aquela dinâmica familiar. Relegara-a para um armário mental bem no fundo da sua cabeça. Deixada para trás de uma vez por todas, para nunca mais olhar para ela.

Mas o que ele poderia fazer?

A vida era especialista em chacoalhões.

O triste era que eles, no fim, inevitavelmente acabavam atingindo-o bem no meio do saco.

 

Quando um assobio suave soou ao lado de Blay, ele se sobressaltou.

– Ah, oi, John.

John Matthew levantou a mão num aceno. Como estão as coisas?

Enquanto Blay dava de ombros, achou que seria uma boa ideia se levantar. A bunda já estava entorpecida, o que significava que estava na hora de mais uma das suas voltinhas.

Resmungando ao se levantar, esticou as costas.

– Acho que tudo bem. Luchas estava desperto o suficiente depois da cirurgia, portanto Qhuinn está lá dentro agora.

Caramba...

Enquanto Blay andava em círculos para fazer o sangue circular novamente, John se recostou à parede. Ele estava com roupa de ginástica e seu cabelo ainda estava úmido... e havia uma marca de mordida em seu pescoço.

Blay desviou o olhar. Abriu a boca para dizer alguma coisa. Ficou sem ter do que falar.

Pelo canto do olho, viu John sinalizar: Então, como está Saxton?

– Hum... bem. Ele está bem, saiu de férias por uns dias.

Ele tem trabalhado bastante.

– É, tem mesmo – ele esperava que o assunto terminasse ali, pois se sentia estranho em esconder algo de John. Além de Qhuinn, o cara fora seu amigo mais próximo, ainda que, no último ano, eles também tivessem se distanciado. – Mas ele vai voltar logo.

Você deve sentir saudades dele. John desviou o olhar como se estivesse forçando a barra.

Fazia sentido. Blay sempre evitou qualquer conversa a respeito do seu relacionamento, direcionando a conversa para outros assuntos.

– É.

Então, como está Qhuinn? Eu não quis me meter, mas...

Blay só pôde dar de ombros mais uma vez.

– Já faz um tempo que ele entrou. Acho que isso é bom.

E Luchas vai sobreviver?

– Só o tempo pode garantir isso – Blay pegou um dos seus Dunhills e o acendeu, exalando lentamente. Quando não restou nada além do silêncio, ele disse: – Escute, desculpe se estou meio estranho.

A verdade era que aquela marca de mordida era um lembrete do que aconteceria a ele, e ele não queria aquilo tão presente.

A voz de Qhuinn invadiu seus pensamentos: Podemos ir juntos.

Com o que acabara concordando?

Você está cansado, John gesticulou enquanto olhava para a porta. Todos estamos. Tudo isso é tão... desgastante.

Blay franziu o cenho ao perceber o humor do cara.

– Ei, você está bem?

Depois de um momento, John sinalizou:

Uma coisa muito estranha aconteceu na outra noite. Wrath me chamou no escritório dele e me disse que Qhuinn não era mais o meu ahstrux nohtrum. Quero dizer, tudo bem, sem problemas... Isso, na verdade, complicava muito as coisas. Mas Qhuinn nunca me disse nada, e eu não sei, devo falar com ele? Eu nem sabia que isso era possível. Quero dizer, quando tudo começou foi meio que “é assim que as coisas são”, sabe? Será que ele se demitiu? É por causa dessa situação com Layla? Pensei que eles não fossem se vincular.

Blay exalou uma imprecação, a fumaça subindo acima da sua cabeça.

– Não faço ideia.

Merda, essa coisa de eles se vincularem devia ter lhe ocorrido – e talvez, por isso, Qhuinn se afastou tão rapidamente quando V. aparecera.

Será que Qhuinn e Layla ficariam juntos agora que o bebê estava bem...?

A porta se abriu e Qhuinn saiu, parecendo ter levado um chute na cabeça.

– Ei, John, tudo bem?

Enquanto os dois se davam um tapinha nos ombros, Qhuinn olhou a vista, e então conversou um pouco com John.

E depois, ele e Qhuinn foram deixados a sós quando John partiu minutos mais tarde.

– Você está bem? – perguntou-lhe Qhuinn.

Pelo visto, essa era a pergunta do momento.

– Na verdade, eu ia perguntar isso mesmo para você. Como está Luchas? – Blay tragou o cigarro depois bateu as cinzas sobre o coturno.

Antes que Qhuinn pudesse responder, Selena saiu do escritório, como se tivesse sido convocada pela mansão. A Escolhida andou até eles com graciosidade, mas com um objetivo, e seu manto tradicional branco rodopiava por entre as pernas.

– Saudações, senhores – disse ela ao se aproximar. – A doutora Jane sugeriu que eu estava sendo requisitada?

Enquanto Blay exalava, ele sentiu vontade de se socar. Aquela era a última coisa que...

– Sim, por nós dois – respondeu Qhuinn.

Blay fechou os olhos quando um desejo súbito o acometeu. A ideia de presenciar Qhuinn se alimentar era como uma droga em sua circulação, relaxando-o e ameaçando sua excitação. Mas, sério, aquilo não...

– No fim do corredor seria perfeito – murmurou Qhuinn.

Bem, melhor do que num quarto. Certo? Mais profissional. Não?

E ele precisava mesmo se alimentar – e Qhuinn, sem dúvida, também, depois de todo aquele drama.

Blay descartou o toco do cigarro numa lata de lixo e seguiu Qhuinn que ia à frente. Andando, ele não acompanhou os movimentos da Escolhida. Não, nada disso. Seus olhos estavam colados nos movimentos de Qhuinn, desde aqueles ombros, até os quadris... e a bunda...

Ok, isso teria de parar ali. Naquele instante.

Ele só precisava se controlar, alimentar-se e arranjar uma desculpa para sair dali.

Quem sabe aquele plano acabasse funcionando?

Passando pela porta. Um pouco de conversa. Sorrisos educados, ainda que ele não soubesse o que fora perguntado nem respondido.

Ah, uma das salas do hospital. Muito bom, um ambiente clínico. Apenas tomar uma veia e seguir em frente, uma função biológica que não necessariamente levava à outra...

– O que disse? – perguntou a Escolhida, olhando-o abertamente.

Maravilha. Ele andou falando em voz alta de novo, mas não havia como saber o quanto partilhara.

– Desculpe – ele se justificou –, só estou morrendo de fome.

– Nesse caso, gostaria de ser o primeiro? – Selena perguntou.

– Sim, ele quer – Qhuinn respondeu ao se recostar na porta.

Bem, tudo certo, então, Blay pensou. Quando fosse a vez de Qhuinn, ele iria embora.

Dando um passo à frente, ele se questionou como, exatamente, aquilo se daria, mas Selena resolveu a questão levando uma cadeira e sentando perto do leito hospitalar. Ok. Blay subiu no colchão, seu peso deslocando o travesseiro da cabeceira ligeiramente elevada, as molas rangendo. Em seguida, sua mente se fechou, o que foi um alívio. Enquanto Selena esticava o braço e puxava a manga branca para trás, a fome dele tomou a frente, as presas se estendendo da mandíbula superior, a respiração se intensificando.

– Por favor, tome o tanto que precisar – ela ofereceu placidamente.

– Agradeço-lhe por este presente, Escolhida – ele respondeu num tom baixo.

Inclinando-se para baixo, ele atacou rapidamente, mas com o máximo de gentileza que conseguia, e na primeira golada, soube que já fazia muito tempo. Com um rugido profundo, seu estômago demonstrou sua necessidade, a sua civilidade se escoando para fora, os instintos assumindo o controle: ele sugou fundo, bebendo cada vez mais rápido, a força se derramando em seu interior e se espalhando a partir dali...

Seus olhos dispararam na direção de Qhuinn.

Vagamente, tomou ciência de que mais um dos seus planos logo sairia voando pela janela, completamente esquecido. Na verdade, aquela fora uma má ideia – desde que não quisesse mais transar com o cara: a lógica já era bem difícil quando se tratava apenas de um caso de emoções conflituosas. Uma necessidade sexual absoluta, incrementada pela alimentação?

Ele era um idiota de primeira; era mesmo.

E isso se revelou especialmente verdadeiro quando notou a ereção de Qhuinn inflar por debaixo de suas calças de lutador.

Merda.

Merda.

Cara, um dia desses, ele seria forte o bastante para se afastar. Seria, sim, de verdade.

Ah, MERDA.


CAPÍTULO 67

Enquanto Qhuinn assistia ao show, sua língua saiu da boca e lambeu os lábios.

Do outro lado do quarto estreito, Blay estava sentado na cama hospitalar, o torso perfeito num ângulo para frente para poder tomar a veia da Escolhida, as mãos, ah, as mãos tão hábeis, bem treinadas e fortes seguravam o pulso delicado contra a boca com cuidado – como se, mesmo no auge da sua sede, ele fosse um cavalheiro.

Enquanto continuava a beber, o torso se curvou ainda mais, a caixa torácica se flexionando e se acomodando a cada respiração, a cabeça sutilmente mudando de posição a cada deglutição.

Qhuinn mal conseguia permanecer parado. Ele desejava imensamente subir naquele colchão também, retorcendo o corpo para poder chegar por trás. Queria estar na garganta de Blay enquanto ele se alimentava da Escolhida. Queria transar com o cara de doze a quinze horas direto até que os dois caíssem de exaustão.

Depois do drama com Luchas, aquele breve e intenso descanso de todo o choque e dor era um alívio glorioso cheio de culpa: aquilo era simplesmente bom demais para que ele se concentrasse em algo assim – sua mente cansada e o corpo exaurido estavam prontos para serem revigorados para ele poder voltar forte uma vez mais à realidade de lutas.

Deus, seu irmão...

Balançando a cabeça, ele deliberadamente deu algo erótico com o que sua mente se ocupar: enquanto a mão de Blay escorregava sorrateira por entre as pernas e rearranjava algo atrás da braguilha, ficou bem claro que ele estava completamente excitado.

Como se seu cheiro delicioso já não tivesse deixado aquilo evidente.

Bem quando Qhuinn estava para perder o controle, Blay levantou a cabeça e emitiu um som de sucção e satisfação. Depois, o macho selou as feridas das presas que deixara.

Quer saber, Qhuinn pensou. A alimentação que se danasse. Ele precisa somente de Blay...

– Sua vez, senhor? – disse a Escolhida.

Merda. Ele provavelmente devia fazer isso.

Além disso, Blay, por certo, estava num estado de torpor pós-alimentação, o corpo letárgico, os olhos pesados... e Qhuinn tirou vantagem disso, colocando-se entre as pernas do lutador e a Escolhida, o traseiro se esfregando contra a coluna enrijecida da ereção de Blay ao subir na cama.

Enquanto Blay deixava um gemido escapar, Qhuinn se inclinou e pegou o outro pulso da fêmea. Segurando-o com uma mão, usou a outra para puxar a bainha da camiseta para fora – e depois empurrar a palma de Blay para a frente da sua calça.

Qhuinn conteve seu gemido sugando a veia da Escolhida, mas o sibilo de Blay foi ouvido.

Talvez a Escolhida deduzisse que...

Os olhos de Qhuinn reviraram por trás das órbitas enquanto Blay o afagava, a fricção ameaçando-o a gozar ali mesmo – uma coisa que ele não gostaria de fazer diante de Selena.

Mas, caraaaalho, aquilo era...

Ele pousou a própria mão ali, detendo o movimento.

Com isso, Blay lhe deu apenas um apertão em seus colhões.

Qhuinn gozou na sugada seguinte, o orgasmo escapando dele antes que conseguisse pensar em algo cansativo ou sem atrativos para distraí-lo, o prazer surgindo com tanta força que ele vergou-se em sua própria pele.

A risada de Blay foi erótica como o inferno.

Que seja, a vingança seria terrível, Qhuinn jurou a si mesmo.

E, como se viu em seguida, ele nem conseguia esperar mais por ela. Retraiu as presas e parou de beber antes de se saciar, porque a sua fome por outra coisa tinha assumido o controle completamente, e já passara da hora de despachar Selena.

Fazer a Escolhida sair de maneira educada, porém eficiente, foi uma manobra executada no piloto automático – ele não fazia ideia do que estava dizendo –, mas pelo menos ela estava sorrindo e parecia contente, portanto, ele devia ter dito a coisa certa.

No entanto, estava bem ciente de que trancara a porta.

Ao se virar, encontrou Blay deitado e cuidando de si, a mão subindo e descendo entre as pernas. As presas ainda estavam alongadas da alimentação e os olhos cintilavam por baixo das pálpebras pesadas e, puta merda, como estava sensual...

Qhuinn se livrou dos coturnos. Das calças. Da camiseta.

Blay atingiu o clímax antes de ele sequer chegar à cama, o macho se arqueando para o alto e gemendo com a cabeça contra o travesseiro fino, e os quadris elevados.

Como se ver Qhuinn nu em pelo tivesse sido demais para ele.

Melhor. Elogio. De. Todos. Os. Tempos.

Qhuinn atacou a cama, lançando-se sobre Blay, encontrando aquela boca aveludada e assumindo o controle. Roupas rasgadas – os botões da braguilha da calça de Blay voando para todos os lados e aterrissando como moedas jogadas sobre o linóleo, a camiseta dilacerada em pedaços. E logo estavam pele a pele. Vada os separava.

Enquanto se retorciam um contra o outro, Qhuinn soube o que queria. E estava desesperado e faminto demais para pedir com educação – ou sequer falar a respeito.

Tudo o que conseguiu fazer foi se afastar daquela boca, rolar para longe de Blay... esticar o braço para trás e puxar o macho para cima dele enquanto esticava uma perna.

Sem nem pensar, Blay assumiu a partir dali. E soube exatamente o que fazer.

Qhuinn se sentiu posicionado por mãos rudes – e, sem nem se dar conta, estava ajoelhado, o rosto no colchão, a respiração saindo com dificuldade pela boca. Tudo aquilo era muito desconhecido, deixar alguém assumir o controle – e ele também se sentiu vulnerável, por mais que quisesse...

– Ai, cacete! – ele gritou ao ser possuído, as sensações de dor e de prazer, de alongamento e de acomodação, misturando-se num coquetel que o deixou tão excitado a ponto de ver estrelas.

Em seguida, Blay começou a se movimentar.

Qhuinn se apoiou sobre os braços e empurrou para trás, e se segurou enquanto toda aquela coisa de virgindade ia para o espaço de uma maneira muito boa.

Ah, caramba, era uma torrente incrível, só que muito melhor. Enquanto o braço de Blay passava por baixo do seu peito e o abraçava, o ângulo mudou, as penetrações ficaram mais profundas, mais rápidas, a cama começou a balançar ao encontro da parede, o arquejo em seu ouvido ficando mais e mais rude...

O ápice foi a chama maior que ele já sentiu, o clímax não só do seu orgasmo, mas do de Blay, segurando-o por toda parte, as coxas unidas, as pélvis inclinadas para receber, os braços grandes segurando a ambos...

Quando Blay gozou, as investidas foram tão fortes que a cabeça de Qhuinn bateu na parede – não que ele tivesse notado ou se importado. Em seguida, aquele pau começou a produzir espasmos violentamente...

E Qhuinn se sentiu bem e verdadeiramente possuído pela primeira vez na vida.

Aquilo foi... nada menos que um milagre.


Naturalmente, Blay levou um tempo até se fartar. E, engraçado, Qhuinn estava totalmente à vontade com aquilo.

Quando, no fim, as coisas chegaram a uma pausa que durou mais de um minuto e meio, Qhuinn soltou a tensão nos braços e se afundou na cama, virando de lado. Blay também devia estar exausto, seu corpo seguiu a liderança e se esticou atrás dele.

O braço de Blay permaneceu fixo em seu lugar.

E o que importava agora, apesar de toda aquela experiência, era o peso forte e solto daquele braço. Largado como estava, tornava-os não apenas dois machos que acabaram de fazer sexo e estavam deitados lado a lado, mas sim, dois amantes.

Na verdade, ele nunca antes tivera um amante – e isso não pelo fato de ter sido a primeira vez em que ficara por baixo. Fizera muito sexo. Mas nunca antes tivera alguém a que quisesse que o abraçasse depois. Nunca alguém que ele quisesse retribuir o abraço.

Sim... Blay era o seu primeiro amante verdadeiro.

E por mais que ele tivesse perdido a oportunidade de ser isso para o cara, parecia lógico que Blay fosse o seu. Ninguém jamais lhe poderia tirar o seu primeiro – e ele se considerava sortudo. Muitas vezes ouvira boatos de que aquilo podia ser muito doloroso – para as fêmeas – ou simplesmente um ato confuso em que nada ficava gravado.

Ele lembraria daquilo para sempre.

Atrás dele, Blay ainda respirava profundamente, o calor irradiando dos corpos unidos.

E Qhuinn quis tirar vantagem dessa tranquilidade: muito lentamente – como se, caso ele não se movesse muito rápido, o cara não fosse notar – cobriu o antebraço de Blay com o seu e... pousou a mão sobre a do amigo.

Fechando os olhos, ele rezou para que aquilo fosse certo. Que pudessem ficar daquele jeito só por mais um pouquinho.

Merda, o medo repentino que sentiu não passava de uma tortura, e o fez pensar na verdadeira natureza da coragem.

Mais especificamente em quão pouco a possuía no que se referia a Blay.

Do nada, ele se lembrou de ter lhe dito que ele só se via a longo prazo com uma fêmea. De esse ser o motivo de não poder aceitar a oferta de Blay. Na época, ele acreditara nisso, ainda que não parecesse muito convincente.

Ele fora um covarde na época, não fora?

– Deus, eu me sinto em carne viva – sussurrou.

– O que foi? – Foi a resposta sonolenta.

– Eu me sinto... Exposto.

E se Blay se retraísse agora? Ele se estilhaçaria em mil pedaços que nunca mais se encaixariam.

Blay fungou e puxou o braço, atraindo Qhuinn para mais perto, em vez de afastá-lo.

– Está com frio? Você está tremendo.

– Pode me esquentar?

Houve um barulho de algo sendo puxado e depois uma coberta foi jogada em cima dos dois. E as luzes se apagaram.

Enquanto Blay respirava fundo parecendo contente naquele instante, Qhuinn fechou os olhos... e ousou entrelaçar os dedos nos do melhor amigo, lacrando as mãos.

– Você está bem? – Blay perguntou de um modo abafado. Como se não houvesse nada ligado além de uma luz piloto em seu cérebro, mas ele se importava.

– Sim. Só estou com frio.

Qhuinn abriu novamente os olhos ante a escuridão. A única coisa que enxergava era a faixa de luz que se formava debaixo da porta.

Enquanto Blay cochilava, a respiração se tornando mais lenta e mais ritmada, Qhuinn olhou adiante, mesmo sem conseguir enxergar nada.

Coragem.

Ele pensava que tinha toda de que precisava – que o modo como fora criado o tornara mais durão e forte do que qualquer outra pessoa. Que o modo como realizava seu trabalho, entrando em prédios em chamas ou pulando nos assentos de pilotos de aviões caindo aos pedaços, provasse isso. Que a maneira como levava a vida, essencialmente distante, significava que ele era forte. Que ele estava seguro.

No entanto, a verdadeira medida da sua coragem ainda estava por vir.

Depois de anos demais, ele finalmente dissera a Blay que sentia muito. E depois de drama demais, ele finalmente dissera ao cara que sentia gratidão.

Mas chegar lá e ser verdadeiro quanto ao fato de que estava apaixonado? Mesmo Blay estando com outra pessoa?

Aquele era o real divisor.

E que Deus o ajudasse, mas ele o faria.

Não para separar o casal – não, não era por isso. E nem para sobrecarregar Blay.

Naquele caso, a revanche, como se mostrou, foi, na verdade, uma promessa. Algo que seria feito sem expectativas nem reservas. Seria o salto sem paraquedas, o pulo para o desconhecido, o trajeto e a queda sem ninguém para segurá-lo.

Blay fizera isso não uma, mas diversas vezes – e, sim, claro, Qhuinn queria ter de volta um desses momentos de vulnerabilidade e socar tanto suas encarnações prévias até que sua mente clareasse e ele reconhecesse a oportunidade que lhe era concedida.

Infelizmente, não era assim que as coisas funcionavam.

Estava na hora de ele pagar aquela demonstração de força... de maneira equivalente, suportando a dor que viria quando ele fosse rejeitado de uma maneira infinitamente mais gentil do que ele dispensara.

Forçando as pálpebras a abaixarem, levou os nós dos dedos de Blay até a boca e resvalou-lhes um beijo. Depois se entregou ao sono, permitindo-se escorregar para a inconsciência, sabendo que, pelo menos pelas horas seguintes, ele estaria seguro nos braços do seu amado.


CAPÍTULO 68

Enquanto a noite seguinte caía, Assail estava sentado nu à escrivaninha, os olhos rastreando a tela do computador diante dele. A imagem do monitor era dividida em quatro quadrantes que estavam marcados como norte, sul, leste e oeste, e, de tempos em tempos, ele manipulava as câmeras, mudando-lhes o foco e a direção. Ou às vezes mudava para outras lentes ao redor da casa. Ou voltava para as que estivera observando.

Tendo tomado banho e se barbeado horas antes, ele sabia que devia se vestir para sair. Aquele redutor com grande apetite pelos seus produtos estava se armando, alegando que fora enganado num suprimento de cocaína. Mas os gêmeos haviam completado aquela transação em particular de acordo com as especificações do assassino – e a gravaram.

Apenas uma precauçãozinha que Assail iniciara.

Portanto, ele não entendia sobre o que aquilo se tratava, mas, por certo, iria descobrir: enviara a gravação para o celular do redutor cerca de uma hora antes e aguardava uma resposta.

Talvez aquilo envolveria outra reunião cara a cara.

E seu comprador descontente não era a única coisa pairando sobre ele. Estava chegando aquela época do mês em que Benloise e ele ajustavam as contas – uma complicada transferência de fundos que estava deixando a todos ansiosos, inclusive Assail. Ainda que ele realizasse pagamentos semanais regulares, eles totalizavam apenas um quarto das compras, e no dia trinta ele teria de acertar as contas.

Muita grana. E as pessoas eram capazes de tomar decisões muito ruins quando havia muito dinheiro em jogo.

Também havia a questão de que, pela primeira vez, ele queria levar os primos para acompanhá-lo. Ele não conseguia visualizar Benloise apreciando a companhia adicional, mas era apropriado que seus associados ficassem mais envolvidos nos negócios – e aquele seria o maior pagamento que ele iria realizar.

Um recorde que certamente seria quebrado se ele e aquele redutor continuassem a fazer negócios.

Assail mudou a posição do mouse. Clicou em um dos quadrantes. Virou a câmera de segurança, vasculhando a floresta atrás de sua casa.

Nada se mexia. Nenhuma sombra mudava de posição. Nem mesmo os ramos dos pinheiros se moviam sob algum tipo de vento existente.

Nenhuma marca de esquis. Nenhuma figura escondida espiando.

Ela poderia estar espionando-o por outro ângulo, pensou. Do outro lado do rio. Da estrada. Do final da rua.

Distraído, ele alcançou o frasco de pó que mantinha ao lado do teclado. Usara-o no fim da tarde, quando a luz minguante do dia o fizera mudar as câmeras para visão noturna. E também usara algumas vezes desde então, só para se manter acordado.

Àquela altura já fazia dois dias que ele não dormia.

Ou seriam três?

Enquanto mexia a minúscula colher, desenhando um círculo na base do frasco, tudo o que ele conseguiu foi o barulho do metal no vidro.

Olhou dentro do frasco.

Evidentemente, ele terminara aquele lote.

Irritado por absolutamente tudo em sua existência, Assail deixou o frasco de lado e se recostou na poltrona. Enquanto sua mente girava e a compulsão de ir de imagem para imagem o apertava tal qual uma forca em sua liberdade de escolha, ele estava vagamente ciente de que seu cérebro zumbia de uma maneira bem pouco saudável.

No entanto, ele estava trancado ali. Não iria a parte alguma tão rapidamente.

Onde estaria a sua bela ladra?

Por certo ela não devia ter falado sério.

Assail esfregou os olhos e odiou o modo como sua mente estava acelerada, os pensamentos transitando de um lado ao outro em seu cérebro.

Ele simplesmente não queria acreditar que ela se manteria afastada.

Enquanto seu telefone tocava, ele o apanhou com reflexos rápidos demais, ansiosos demais. Quando viu quem era, ordenou ao seu cérebro que se recompusesse.

– Recebeu o vídeo? – ele perguntou em vez de dizer “alô”.

A voz de seu maior cliente parecia descontente.

– Como posso saber quando isso foi gravado?

– Você deve saber o que os seus homens vestiam no dia.

– Então, onde está o meu produto?

– Isso não cabe a mim dizer. Uma vez que eu concluo o negócio com os seus representantes, a minha responsabilidade cessa. Entreguei a mercadoria requisitada na hora e no local acordados, e, portanto, cumpri a minha obrigação para com você. O que acontece dali por diante não é da minha alçada.

– Se eu o pegar me sacaneando, eu vou te matar.

Assail emitiu uma exalação carregada de enfado.

– Meu caro, eu não perderia tempo com algo assim. Como conseguiria o que necessita então? E para isso, permita-me lembrá-lo que não há nada que me leve a ser desonesto com você ou com a sua organização. O lucro que você representa é o que me interessa, e eu darei o melhor de mim para fazer com que os fundos continuem a vir na minha direção. Assim são os negócios.

Houve um longo silêncio, mas Assail sabia muito bem que isso não significava que o assassino do outro lado da conexão estava confuso ou perdido.

– Preciso de um novo suprimento – o redutor murmurou depois de um tempo.

– E eu o providenciarei com muito prazer.

– Preciso de um empréstimo – agora Assail franzia o cenho, porém o redutor prosseguiu antes que ele o interrompesse. – Você me empresta esse novo pedido e eu garanto que será pago.

– Não é assim que faço negócios.

– Eis o que sei a seu respeito. Você tem uma pequena operação que controla uma área imensa. Precisa de distribuidores, porque você matou todos os outros que estavam aqui antes. Sem mim e a minha organização? Sem ofensas, mas você está fodido. Você não tem como servir Caldwell inteira, e seu produto nada vale se não chega às mãos dos seus usuários – quando Assail não respondeu de imediato, o redutor riu de leve. – Ou você pensava que fosse desconhecido, meu amigo?

Assail segurou o telefone com força.

– Por isso, acho que você tem razão – o assassino concluiu. – Você e eu somos colegas. Eu não preciso lidar com o atacadista, quem quer que ele seja. Especialmente em minha atual... encarnação.

Sim, só o cheiro faria com que Benloise fechasse a porta na cara dele, pensou Assail.

– Preciso de você. Você precisa de mim. E é por isso que vai me entregar o meu pedido e me dar 48 horas para pagar. É como você mesmo disse. Não valemos nada um sem o outro.

Assail expôs as presas, o reflexo do seu rosto de fato medonho no vidro do monitor.

E mesmo assim ele manteve a voz tranquila e impassível:

– Onde gostaria de nos encontrarmos?

Enquanto o redutor ria novamente, como se estivesse gostando de tudo aquilo, Assail se concentrou na própria imagem, com as presas expostas. Seria desajuizado se o assassino se tornasse ganancioso, ou tomasse liberdades demais.

A única coisa sempre verdadeira nos negócios? Ninguém é insubstituível.


Quando Trez despertou, ele se sentiu como se estivesse flutuando numa nuvem – e, por uma fração de segundo, imaginou se não estava mesmo. Seu corpo parecia não pesar nada, a ponto de ele nem saber se estava deitado de frente ou de costas.

Um som estranho se infiltrou em seu torpor.

Shhhscht.

Ele levantou a cabeça, e a orientação lhe veio subitamente: a luz vermelha do seu rádio relógio lhe disse que estava deitado de barriga e em diagonal na cama.

Lá vinha o som novamente.

O que seria aquilo? Metal contra metal?

Ele conseguia sentir iAm se movimentando pelo corredor, a presença do irmão tão certa quanto a sua. Então, se houvesse outra pessoa no apartamento ou algum tipo de ameaça? iAm cuidaria disso.

Erguendo-se, saiu da cama e... Uau, o quarto girou ao seu redor. Pensando bem, não havia nada, absolutamente nada em seu estômago. A bem da verdade, era bem possível que ele tivesse vomitado o fígado, os rins e os pulmões durante a enxaqueca. A boa notícia era que a dor sumira, e que essa sensação não era tão ruim. Era como estar bêbado, só que com a ressaca vindo antes.

Quando entrou no banheiro, ele sabia que era melhor não acender a luz. Ainda era muito cedo para isso.

A chuveirada foi maravilhosa. Mas ele não se deu ao trabalho de se barbear – haveria tempo para isso mais tarde, depois que colocasse um pouco de combustível em seu tanque. O roupão foi agradável: quentinho, especialmente com as lapelas erguidas cobrindo-lhe o pescoço.

Os pés descalços não estavam tão agradáveis, ainda mais quando ele saiu do quarto e pisou no corredor de piso de mármore, mas ele precisava descobrir que diabos estava...

Trez parou diante da porta da suíte do irmão. iAm estava diante do armário, tirando as camisas que estavam nos cabides. Quando ele puxou uma nova braçada pelo cano de ferro, aquele shhhscht soou novamente.

Naturalmente, seu irmão não se surpreendeu quando ele apareceu. Apenas descarregou a carga sobre a cama.

Merda.

– Vai a algum lugar? – murmurou Trez, a voz alta demais para os próprios ouvidos.

– Sim.

Bosta.

– Escute, iAm, eu não pretendi...

– Também estou fazendo as suas malas.

Trez piscou algumas vezes.

– Hã?

Pelo menos o cara não estava indo embora sozinho. A menos que quisesse a satisfação de jogar as coisas de Trez pela varanda...

– Encontrei um lugar mais seguro para nós.

– Fica em Caldwell?

– Sim.

E entra a música tema de Jeopardy!.

– Quer me dar o CEP?

– Eu daria se soubesse.

Trez gemeu e se recostou contra o batente, esfregando os olhos.

– Você encontrou um lugar para irmos, mas não sabe onde fica?

– Não, não sei.

Ok, talvez aquilo não tivesse sido uma enxaqueca, mas sim um derrame.

– Desculpe, não estou entendendo...

– Nós temos – iAm consultou o relógio de pulso – três horas para fazermos as malas. Roupas e itens pessoais apenas.

– Então o lugar é mobiliado – Trez deduziu.

– Sim, é.

Trez passou um tempo observando o irmão sendo extraeficiente com a bagagem. Camisas tiradas dos cabides, dobradas com precisão, colocadas em malas de couro da Louis Vuitton. O mesmo com calças. Pistolas e adagas foram para maletas de aço combinando.

Naquele ritmo, o cara acabaria de empacotar seus pertences em meia hora.

– Você precisa me dizer para onde vamos.

iAm olhou para ele.

– Vamos nos mudar para a Irmandade.

O cérebro de Trez levou uma descarga, a névoa sumindo de uma vez só.

– Como é?

– Estamos nos mudando para lá.

Os olhos de Trez se arregalaram.

– Eu... hum... espere, acho que não ouvi direito.

– Ouviu, sim.

– Com a permissão de quem?

– De Wrath, filho de Wrath.

– Caceeeete. Como foi que conseguiu isso?

iAm deu de ombros, como se não tivesse feito nada além de uma reserva no Motel 6.

– Falei com Rehvenge.

– Eu não sabia que o macho tinha todo esse poder.

– Ele não tem. Mas procurou Wrath, que apreciou a nossa retaguarda na reunião do Conselho. O Rei acredita que seremos um bom acréscimo ao front da casa.

– Ele está preocupado com um possível ataque – Trez concluiu.

– Talvez esteja. Talvez não. Mas o que sei é que ninguém vai nos encontrar lá.

Trez expirou fundo. Então ali estava o motivo por trás daquilo. Seu irmão, assim como ele mesmo, não queria que ele fosse arrastado de volta para o s’Hisbe.

– Você é incrível – ele disse.

iAm só deu de ombros, como de hábito.

– Pode começar a fazer as suas malas ou devo cuidar disso?

– Não, pode deixar – ele deu uma batida no batente e se virou para sair. – Estou te devendo uma, irmão.

– Trez.

Ele olhou de relance por cima do ombro.

– O que foi?

Os olhos do irmão estavam sérios.

– Isso aqui não é uma liberdade permanente. Você não pode fugir da rainha. Só estou ganhando um tempo com isso.

Trez ficou olhando para os pés nus – e ficou se perguntando quão longe conseguiria ir se eles estivessem protegidos por seus Nikes.

Bem longe.

Seu irmão era o laço que ele não conseguia romper, a única coisa que ele não se sentia capaz de deixar para trás a fim de se livrar de uma vida de luxo como escravo sexual.

E, num momento como aquele, em que o cara mais uma vez se prontificava a ajudá-lo... ele se perguntava se seria impossível ir embora sem iAm.

Talvez ele tivesse que, no fim, ceder ao seu destino.

Maldita rainha. E sua maldita filha.

Os costumes não faziam sentido. Ele jamais vira a jovem princesa. Ninguém jamais a vira. Era assim que funcionava – a seguinte na linha sucessória ao trono era tão sagrada quanto a mãe, porque seria ela a liderá-los no futuro. E, tal qual uma rosa rara, ninguém tinha permissão para vê-la até que ela estivesse adequadamente comprometida.

Pureza e tal.

Blá-blá-blá.

Uma vez que ela estivesse comprometida, porém, estaria livre para sair na sociedade, livre para viver a sua vida – dentro do s’Hisbe. O coitado que se casasse com ela? Ficaria ao lado dela dentro das paredes do castelo, fazendo o que quer que ela quisesse, quando ela quisesse – desde que ele não estivesse aos pés da rainha, idolatrando-a.

Sim, quanta alegria.

E eles acharam que ele se sentiria honrado com essa união?

Mesmo?

Ele transformara o próprio corpo num latão de lixo na última década, transando com todas aquelas humanas e sabe o que era pior? Desejou ter sido capaz de pegar todas daquelas doenças dos Homo sapiens. Impossível. Ele fez sexo desprotegido o quanto pôde com a outra espécie e ainda estava tão saudável quanto um cavalo.

Uma pena.

– Trez? – iAm se endireitou. – Trez? Fale comigo. Para onde você foi?

Trez olhou para o irmão, memorizando aquele rosto orgulhoso e inteligente e os olhos penetrantes sem fim.

– Estou bem aqui – murmurou. – Vê?

Ele ergueu as mãos e fez um círculo sobre seus pés descalços, em seu roupão, naquele estado de torpor pós-enxaqueca.

– No que está pensando? – iAm perguntou.

– Em nada. Só acho incrível isso que você fez. Vou fazer as malas e me aprontar. Eles vão mandar um carro ou algo assim?

iAm estreitou o olhar, mas respondeu mesmo assim:

– Isso. Com um mordomo chamado Fred. Ou seria Foster?

– Estarei pronto.

Trez saiu dali, os restos da dor de cabeça se escoando conforme ele olhava para o futuro... e se preocupava com esse seu último laço.

Porém, aquela mudança era positiva. iAm tinha razão: ele passara estes últimos anos ciente de que a princesa estava crescendo, e que o tempo corria, e que o dia do acerto de contas estava se aproximando rapidamente.

Existiam coisas que se podiam postergar. Aquela não era uma delas.

Inferno, talvez ele devesse desaparecer. Mesmo que isso o matasse.

Além disso, se seu irmão estivesse com Rehv na mansão do Rei? iAm teria o tipo de apoio que precisaria caso Trez acabasse sumindo.

Quem sabe, depois de tanta merda acontecendo?

O cara ficaria aliviado por se ver livre dele.


CCONTINUA

CAPÍTULO 54

Somando-se tudo, o encontro até que não foi tão ruim.

Enquanto Sola se levantava para vestir o casaco, Mark se aproximou por trás e a ajudou a ajeitar a lã nos ombros.

O modo como as mãos se demoraram sugeria que ele estava mais do que aberto a que aquele fosse o término do jantar, mas também apenas o início do resto da noite. No entanto, ele não se mostrou insistente. Deu um passo para trás e sorriu, indicando o caminho da saída com um gesto galante.

Movendo-se à frente dele, pareceu algum tipo de crime contra sua saúde mental que ele não conseguisse fazer seu sangue ferver... como aquele homem extremamente agressivo e dominante o fizera na noite anterior.

Ela precisaria ter uma conversinha com a sua libido. Ou talvez lhe desse uma surra...

Quem sabe daquele outro cara, uma parte sua sugeriu.

– Não – murmurou.

– Desculpe, o que disse?

Sola balançou a cabeça.

– Eu só estava falando comigo mesma.

Depois de abrirem caminho pela multidão, chegaram à porta do restaurante e, puxa, como era bom respirar ar fresco.

– Então... – disse Mark, enfiando as mãos nos bolsos dos jeans, fazendo com que seu torso bem desenvolvido ficasse ainda mais saliente... E ainda assim não conseguindo chegar perto do tamanho do...

Pare com isso.

– Obrigada pelo jantar, você não precisava ter pagado.

– Ora, este foi um encontro. Foi você quem disse – ele sorriu novamente. – E eu sou um cara do tipo tradicional.

Vá em frente, disse ela a si mesma. Pergunte a ele se pode ir até a casa dele.

Afinal, nenhum tipo de ação poderia acontecer na sua casa. Jamais. Não com sua avó no andar de cima – a surdez da mulher era altamente seletiva.

Apenas vá em frente.

Foi para isso que você o chamou...

– Tenho uma reunião bem cedo amanhã – ela deixou escapar. – Por isso, tenho que ir. Mas, obrigada mesmo... e vamos repetir um dia.

Para dar algum crédito a Mark, ele encobriu qualquer desapontamento que pudesse estar sentido com outro daqueles sorrisos campeões.

– É uma boa ideia. Foi bem legal.

– Eu estacionei logo ali – ela apontou o polegar para trás. – Então...

– Eu a acompanho até o carro.

– Obrigada.

Ficaram em silêncio enquanto as botas quebravam o sal que fora colocado por cima do gelo.

– Está uma noite agradável.

– É – ela concordou. – Está mesmo.

Por algum motivo, os sentidos da mulher começaram a lançar um alerta, e seus olhos vasculharam a escuridão do lado de fora do estacionamento iluminado.

Pensou que talvez fosse Benloise indo atrás dela. Sem dúvida, ele já devia ter percebido que alguém invadira sua casa e seu cofre, e também já devia ter notado a leve mudança na posição da estátua. Contudo, seria difícil saber se ele retaliaria. Apesar do ramo de negócio em que se envolvera, ele devia ter ciência de que o que fizera ao cancelar sua missão e suspender o seu pagamento fora errado.

Certamente, ele entenderia a mensagem.

Além disso, ela poderia ter levado tudo o que ele havia guardado.

Aproximando-se do Audi, ela desarmou o alarme. Em seguida, virou-se e levantou o olhar.

– Ligo para você?

– Sim, por favor – disse Mark.

Houve uma longa pausa. Em seguida, ela levantou a mão e a escorregou para trás do pescoço dele, e atraiu a boca dele para a sua. Mark aceitou o convite de pronto, mas não de modo dominador e insistente: enquanto ela pendia a cabeça para o lado, ele fez o mesmo, e seus lábios se partiram, resvalando-se de leve, e depois com um pouco mais de pressão. Ele não a esmagou contra o seu corpo, nem a encurralou contra o carro... não existiu a sensação de descontrole.

Tampouco de uma grande paixão.

Ela interrompeu o contato.

– Vejo você em breve.

Mark exalou profundamente, como se tivesse se excitado.

– Hum... Ok, espero que sim. E não só na academia.

Ele levantou a mão, deu um último sorriso, depois caminhou para a sua caminhonete.

Com uma imprecação leve, Sola foi para trás do volante, fechou a porta e deixou a cabeça cair contra o encosto. Pelo espelho retrovisor, ela observou as luzes traseiras se acenderem, ele dar meia-volta e sair do estacionamento.

Abaixando as pálpebras, ela não visualizou o sorriso radiante de Mark, nem imaginou os lábios dele contra os seus, ou as mãos dele percorrendo seu corpo.

Ela tinha voltado àquele chalé para espionar, testemunhando um par de olhos sensuais e ligeiramente maldosos olhando para ela por cima dos seios expostos daquela outra mulher.

– Ai, pelo amor de Deus...

Tentando se livrar dessa lembrança, ela temeu que, naquele caso, sua necessidade por, digamos, chocolate não seria facilmente saciada por um refrigerante diet. Ou uma bolacha saudável da Snackwell. Nem mesmo por um único chocolate Kiss da Hershey’s.

Se continuasse assim, ela teria que derreter uma caixa de trufas da Lindt e colocar num acesso direto em sua veia.

Colocando o pé no freio, ela apertou um botão no painel e ouviu o ronco do motor. Quando as luzes se acenderam...

Sola se recostou no banco assustada, emitindo um grito agudo.


Quando Qhuinn voltou para a mansão com os outros, ele se afastou tão logo passaram pela porta e entraram no átrio principal. Movendo-se num trote rápido, subiu as escadas e seguiu direto para o quarto de Layla. De acordo com as mensagens, ela decidira sair da clínica no fim das contas, e ele estava ansioso em descobrir como ela estava se sentindo.

Batendo à porta, ele começou a rezar. De novo.

Nada como uma gravidez para tornar um agnóstico religioso.

– Entre.

Ao som da voz dela, ele se preparou e entrou.

– Como está se sentindo?

Layla levantou o olhar da revista Us Weekly que lia deitada na cama.

– Olá!

Qhuinn se retraiu ante a alegria dela.

– Hum... olá?

Olhando ao redor, ele viu revistas Vogue, People e Vanity Fair no cobertor em volta dela e, à sua frente, a TV estava ligada e passava um comercial sobre desodorante seguido de um de pasta de dente Colgate. Havia latas de refrigerante e bolachas de água e sal na mesinha de cabeceira e, na outra mesinha, do lado oposto, uma embalagem vazia de Häagen-Dazs e algumas colheres sobre uma travessa de prata.

– Estou me sentindo bem enjoada – disse Layla com um sorriso. Como se aquilo fosse bom.

E ele deduziu que fosse.

– Hum... algum sinal de... você sabe.

– Nem um pouco. Nada mesmo. Também não estou mais vomitando. Só tenho que me lembrar de comer um pouco por vez. Se como demais, me sinto mal, e o mesmo acontece se fico muito tempo sem colocar alguma coisa aqui dentro.

Qhuinn se recostou no batente, as pernas ficando literalmente moles de alívio.

– Isso é... incrível.

– Quer se sentar? – era como se ele parecesse tão pálido quanto se sentia.

– Não, estou bem. Eu só... só estava muito preocupado com você.

– Bem, como você pode ver – ela indicou o próprio corpo – só estou fazendo o que tenho que fazer, graças à Virgem Escriba.

Enquanto Layla lhe sorria, ele realmente gostou da aparência dela, mas não de maneira sexual, nada disso. Era só que... ela parecia calma, relaxada e feliz, com o cabelo solto sobre os ombros, uma boa cor no rosto, as mãos e os olhos estáveis. Na verdade, ela parecia... muito saudável de repente, a palidez em sua aparência era perceptível apenas pela sua ausência.

– Então, suponho que tenha tido visitas – comentou, indicando as revistas e o pote vazio de sorvete.

– Ah, todos vieram. Beth acabou ficando mais tempo. Ela se deitou ao meu lado, e não falamos sobre nada em especial. Apenas lemos e olhamos fotografias e assistimos a uma maratona de Pesca Mortal. Adoro esse programa. É sobre aqueles humanos que saem em barcos em mar aberto, sabe? É muito excitante. Fez com que eu me sentisse bem quentinha em terra firme.

Qhuinn esfregou o rosto e rezou para que sua sensação de equilíbrio retornasse rapidamente: no fim, suas glândulas adrenais ainda tinham dificuldade para acompanhar a realidade, a ideia de que não havia mais nenhum drama, nenhuma emergência, nada horrendo ao qual reagir, ou com que lidar.

– Estou contente que as pessoas estejam vindo visitar você – murmurou, sentindo como se devesse dizer alguma coisa.

– Ah, elas estão vindo... – Layla desviou o olhar, uma expressão estranha contraindo suas feições –, muitas delas.

Qhuinn franziu o cenho.

– Mas nada estranho, não é?

Ele não conseguia imaginar que ninguém ali na casa mostrasse outra coisa que não apoio, mas ele tinha de perguntar.

– Não... nada estranho.

– O que foi? – enquanto Layla mexia na capa da revista que tinha no colo, o rosto de alguma morena de olhar vago se distorceu, depois voltou ao normal, se distorceu, voltou ao normal. – Layla. Conte para mim.

Para que ele pudesse estabelecer alguns limites, caso fosse necessário.

Layla afastou o cabelo para trás.

– Você vai pensar que eu sou louca, sei lá...

Ele se aproximou e se sentou ao lado dela.

– Ok, preste atenção. Não sei como dizer isso do modo certo, por isso só vou deixar as palavras saírem. Você e eu? Nós vamos enfrentar muita... sabe, muitas baboseiras pessoais com relação a... – oh, Deus, como ele desejava que ela mantivesse aquela gravidez. – Nós bem que podemos começar a ser completamente honestos um com o outro agora. O que foi? Não vou julgar. Depois de tudo o que aprontei na minha vida? Não vou julgar ninguém a respeito de nada.

Layla respirou fundo.

– Está bem... bem, Payne veio me ver na noite passada.

Ele franziu o cenho de novo.

– E?

– Bem, ela disse que talvez pudesse fazer alguma coisa quanto à gestação. Ela não sabia se daria certo, mas não pensava que pudesse me fazer mal.

O peito de Qhuinn se contraiu, uma punhalada de medo fez seu coração acelerar. V. e Payne tinham coisas neles que não eram deste mundo. E isso era legal. Mas não perto do seu bebê – pelo amor de Deus, a mão de V. era assassina...

– Ela esticou a mão e a pousou no meu ventre, bem onde o bebê está...

Uma sensação como se o toalete interior de Qhuinn tivesse dado a descarga de todo o seu sangue para fora da sua cabeça o assolou.

– Oh, Deus...

– Não, não – Layla o segurou. – Não foi ruim. Foi... agradável, na verdade. Eu estava... banhada em luz... Ela fluía de mim, me fortalecendo, me curando. A luz se concentrou em meu abdômen, mas se estendeu para além disso. Depois, porém, fiquei muito preocupada com ela. Ela caiu no chão ao lado da cama... – Layla apontou para baixo. – Mas eu perdi a consciência em seguida. Devo ter dormido por muito tempo. E depois, quando acordei? Foi quando me senti... diferente. No começo pensei que fosse porque o sangramento tinha parado... porque aquilo tinha... acabado. Saí correndo e encontrei Blay, e ele me levou até a clínica. Foi aí que você chegou e a doutora Jane nos contou que... – a mão elegante de Layla tocou o abdômen e ficou ali. – Foi aí que ela nos contou que o nosso bebê ainda estava conosco...

A voz dela se partiu nesse momento, e ela piscou rápido.

– Então, veja bem, acho que ela salvou a nossa gravidez.

Depois de um longo momento de choque, Qhuinn suspirou:

– Ai, caralho...


De volta ao estacionamento do restaurante, Assail pairava diante do capô do Audi de sua ladra, parado bem diante da luz dos faróis.

Bem como fizera na noite anterior, fixou o olhar no dela mais por instinto que por visão.

E, enquanto permanecia no frio, ele estava fervendo de raiva e de algo mais: enquanto o saco de excremento em duas pernas a acompanhara até o carro e teve a insanidade de beijá-la, Assail se viu confrontado por duas escolhas que eram rastrear o homem noite afora e seguir adiante com seu plano original de dilacerar-lhe a garganta, ou esperar até que o humano se fosse e...

Algo muito profundo dentro dele o fez decidir: ele se sentia incapaz de deixá-la.

Sua ladra abaixou a janela e o cheiro da excitação o deixou duro.

E também o fez sorrir. Era a primeira vez a noite inteira que ele percebia esse cheiro, e isso abrandou seu humor como nada mais poderia.

Bem, a não ser talvez arrancar a pele daquele homem ainda vivo.

– O que você quer? – ela rosnou.

Hum, uma excelente pergunta, não?

Ele se moveu para a lateral do carro.

– Você se divertiu?

– Como é?

– Acredito que tenha ouvido a pergunta.

Ela escancarou a porta do motorista e saiu do carro.

– Como ousa esperar qualquer tipo de explicação a respeito de qualquer coisa...

Ele mudou o peso em sua posição, inclinando-se na direção dela.

– Posso lembrá-la de que você invadiu a minha privacidade antes...

– Eu não pulei na frente do seu carro e...

– Gostou do que viu ontem à noite? – ele a calou. E quando o silêncio persistiu, sorriu um pouco. – Então, admite que esteve espionando.

– Você sabia muito bem que eu estava – ela retrucou.

– Então, responda à pergunta. Gostou do que viu? – ele perguntou numa voz que pareceu rouca até mesmo para os próprios ouvidos.

Ah, sim, ele pensou ao inalar profundamente. Ela gostou.

– Não importa – ele ronronou. – Você não precisa expressar isso em palavras. Eu já sei a resposta...

Ela o esbofeteou com tanta força e tão rápido que a cabeça dele virou de lado de verdade.

O primeiro instinto dele foi expor as presas e mordê-la, castigá-la, para se excitar, porque não havia melhor tempero para o prazer do que um pouco de dor. Ou muita.

Ele endireitou a cabeça e abaixou os olhos.

– Isso foi bom. Quer tentar de novo?

Quando um novo vigor emanou dela, ele riu com gosto e pensou, sim, essa reação dela era o que garantiria que aquele humano iria continuar vivo. Ou pelo menos morrer pelas mãos de outra pessoa.

Ela o desejava. E a nenhum outro.

Assail se aproximou ainda mais, até que os lábios parassem bem ao lado do ouvido dela.

– O que fez quando foi para casa? Ou não conseguiu esperar tanto tempo?

Ela, deliberadamente, deu um passo para trás.

– Quer saber? Pois muito bem. Troquei a caixa de areia do gato, preparei dois ovos mexidos para mim e uma bela torrada de canela, depois fui para a cama.

Ele, deliberadamente, deu um passo à frente.

– E o que fez quando se viu entre os lençóis?

Quando a essência dela o atingiu novamente, ele voltou a posicionar a boca onde ela esteve antes... perto, ah, tão perto.

– Acho que sei o que você fez. Mas quero que me conte.

– Vá se ferrar...

– Pensou no que viu? – quando uma rajada de vento soprou os cabelos dela para os olhos, ele os ajeitou. – Imaginou que era com você que eu estava transando?

A respiração dela começou a sair com mais força de dentro do peito, e – Santa Virgem do Fade – isso o fez querer tomá-la.

– Por quanto tempo você ficou? Até a fêmea gozar... ou eu?

As mãos dela o empurraram.

– Foda-se.

Num movimento rápido, ela passou pelo corpo dele e voltou a entrar no carro, batendo a porta.

Ele se moveu com a mesma rapidez.

Aparecendo em meio à janela aberta, ele virou a cabeça dela e a beijou com força, a boca assumindo o comando, a urgência de apagar qualquer traço daquele humano fazendo seu sexo latejar.

Ela retribuiu o beijo.

Com a mesma força.

Como os ombros dele eram grandes demais para caberem na janela, quis arrancar o metal. No entanto, teve que ficar onde estava e isso o tornou mais agressivo, o sangue rugindo em suas veias, o corpo se retesando enquanto a língua a invadia, a mão sorrateira indo para trás da cabeça dela, enterrando-se em seu cabelo.

Ela estava maleável e doce, e quente como o inferno.

A ponto de ele ter que se afastar para poder respirar ou correr o risco de desmaiar.

Quando se separaram, ele a encarou. Os dois arfavam, e quando a excitação dela permeou o ar, ele quis se enterrar nela.

Para marcá-la...

O som do telefone tocando foi um exemplo da coisa errada acontecendo no momento errado: o toque em seu casaco fez com que ela voltasse à realidade, os olhos se arregalando enquanto se afastavam, as mãos travando no volante como se ela tentasse voltar à Terra.

Ela não olhou para ele quando subiu a janela e ligou o motor, partindo em seguida.

Deixando Assail arfando no frio.


CAPÍTULO 55

Qhuinn saiu do quarto de Layla pouco depois, seus coturnos levando-o a um passo rápido por sobre a passadeira estreita do corredor até o alto das escadas. Ao passar pelo escritório de Wrath, teve a impressão de que alguém o chamava, mas não deu atenção.

No canto oposto do corredor das estátuas, além da suíte de Z. e de Bella, o quarto em que Payne e Manny ficavam estava com a porta fechada, mas o som da televisão murmurava baixinho do lado de dentro.

Qhuinn precisou de um segundo para recompor as peças em sua cabeça atordoada, e depois bateu.

– Entre – foi a resposta.

Ao entrar, viu que o quarto era banhado por uma luz azulada da tela de TV. Payne estava deitada na cama, a pele tão pálida que refletia as diferentes cenas projetadas nela.

– Saudações – disse ela numa voz cansada.

– Jesus... Cristo...

– Não, não chego a isso... – ela sorriu. Ou, pelo menos, meia boca dela o fez. – Perdoe-me se não me levanto para recebê-lo.

Ele fechou a porta com suavidade.

– O que aconteceu?

Ainda que ele suspeitasse.

– Ela está bem? – perguntou Payne. – A sua fêmea ainda está grávida?

– Os exames parecem indicar isso.

– Bom. Isso muito me agrada.

– Você está morrendo? – ele perguntou num rompante. E depois quis se dar um chute no traseiro.

Ela meio que riu.

– Acredito que não. No entanto, estou muito fraca.

Os pés de Qhuinn o carregaram através do quarto.

– Então... o que aconteceu?

Payne se esforçou para se erguer nos travesseiros, mas acabou desistindo.

– Acho que estou perdendo o meu dom – ela gemeu ao dobrar as pernas debaixo das cobertas. – Assim que cheguei aqui, eu conseguia postar as mãos e curar com pouco ou nenhum esforço. Toda vez que o faço, porém, o esforço parece me arrasar um pouco mais. E o que eu tentei com a sua fêmea e o seu bebê foi...

– Você quase se matou – ele completou por ela.

Ela deu de ombros.

– Despertei ao lado da cama dela. Arrastei-me aqui para baixo. Manny me tirou da cama há um tempo, e eu tinha um pouco de forças. Agora, parece que elas me abandonaram de novo.

– Posso fazer alguma coisa?

– Acho que preciso ir ao santuário de minha mãe – isso foi dito com total menosprezo. – Para me recarregar. Parece lógico, visto que lá pode ter sido a origem do meu dom. Só preciso me fortalecer o bastante para fazer a jornada, por assim dizer. Bem, isso e juntar vontade de fazê-lo. Eu preferiria continuar aqui. A decisão, contudo, parece ter sido tomada por mim. Não se pode negociar com o físico, depois de certo ponto.

É, ele sabia o que era isso.

– Eu não posso... – ele passou uma mão pelos cabelos. – Não sei como agradecer.

– Quando ela der à luz, então você poderá me agradecer. Há um caminho ainda desconhecido a ser atravessado.

Não mais, ele pensou. A sua visão, aquela à porta do Fade, mais uma vez estava em vias de acontecer.

E, desta vez, permaneceria assim.

Qhuinn desembainhou uma das adagas do peito e fez um corte na palma da mão. Quando o sangue se acumulou e começou a pingar, ele se ofereceu à fêmea.

– Com isto eu ofereço a minha... – ele se interrompeu. Ele não tinha uma linhagem para oferecer, não com a rejeição de sua família no passado. – Ofereço a minha honra a você e aos seus daqui até o fim enquanto o meu coração bater e a última respiração sair de meus pulmões. Qualquer coisa de que necessitar, poderá me solicitar e será seu, sem perguntas, nem hesitação.

De certo modo, parecia ridículo se oferecer dessa forma à filha da bendita divindade. Até parece que Payne precisaria de ajuda...

A mão da adaga de Payne segurou a dele com força.

– Prefiro aceitar a sua honra a qualquer linhagem na face da Terra.

Quando seus olhos se encontraram, ele teve ciência de que aquilo não era um assunto macho-fêmea, mas lutador-lutador, apesar da diferença dos sexos.

– Jamais conseguirei agradecer o suficiente – disse ele.

– Espero que ela supere isso. Ela e o bebê, quero dizer.

– Tenho a sensação de que conseguirão. Graças a você.

Pareceu estranho querer se curvar para aquela fêmea, mas algumas coisas você simplesmente faz, e foi o que ele fez. Depois se virou, pois não desejava atrapalhar o descanso dela.

Bem quando já segurava a maçaneta, Payne murmurou:

– Se quer agradecer a alguém, você deveria procurar Blaylock.

Qhuinn ficou imobilizado. Virou o pescoço para trás.

– O que... você disse?


Assail ficou parado enquanto o Audi derrapava para fora do estacionamento e chegava à rua à frente como se sua ladra tivesse plantado uma bomba no restaurante e tivesse acabado de acionar o detonador.

Seu corpo lhe dizia para ir atrás dela, parar o carro e arrastá-la para o banco de trás.

A mente, contudo, sabia que aquilo não seria uma boa ideia.

Ao sentir uma tensão trespassá-lo, ele soube que a extensão com que perdia controle perto dela era perigosa. Ele era um macho que se definia pelo seu autocontrole. Com aquela fêmea? Ainda mais se o sexo dela estivesse excitado?

Ele se sentia consumido pelo desejo de possuí-la.

Portanto, tinha que se controlar.

A bem da verdade, ele não tinha nada que perder tempo perseguindo uma humana qualquer, parado num canto escuro de uma espelunca qualquer, observando-a com um homem.

Também consumido pelo desejo premente de matar o acompanhante de cheeseburguer dela.

O que, em nome da Virgem Escriba, acontecera com ele?

A resposta, quando lhe veio, foi algo que rejeitou com veemência.

Numa tentativa de realocar suas energias, ele pegou o celular para ver quem telefonara para romper o encanto que precisava ter sido rompido.

Rehvenge.

Por muitos motivos, ele não tinha vontade alguma de falar com aquele macho. A última coisa que o interessava era a repetição de todos os motivos pelo quais ele tinha de participar da estagnação social e política que era o Conselho.

Mas isso seria melhor do que ir atrás de sua ladra...

E ele percebeu que nem sequer sabia o nome dela.

E seria muito melhor nunca vir a saber, disse a si mesmo.

Ao retornar a ligação, ele levou o aparelho ao ouvido e enfiou a mão livre no bolso do casaco de lã para mantê-la aquecida.

– Rehvenge – disse ele quando o macho atendeu. – Estou falando com você mais do que falo com minha mahmen.

– Pensei que a sua mãe estivesse morta.

– Ela está.

– O seu padrão de comunicação é muito baixo.

– O que posso fazer por você – aquilo não era uma pergunta, pois não havia motivos para encorajar uma resposta.

– Na verdade, trata-se do que eu posso fazer por você.

– Com o devido respeito, prefiro cuidar sozinho dos meus assuntos.

– Uma política muito boa. E por mais que eu saiba que você gosta dos seus “assuntos”, não foi por isso que telefonei. Pensei que gostaria de saber que o Conselho se reuniu com Wrath hoje à noite.

– Acredito que renunciei ao meu posto em nossa última conversa. Portanto, o que será que isso tem a ver comigo?

– O seu nome foi dito no fim. Depois que todos tinham se retirado.

Assail arqueou uma sobrancelha.

– De que modo?

– Um passarinho disse que você armou a armadilha para Wrath em favor do Bando de Bastardos em sua casa no outono passado.

Assail segurou o telefone com mais força. E durante a breve pausa que se seguiu, ele escolheu as palavras com extrema cautela.

– Wrath sabe que isso não é verdade. Fui eu quem forneceu o veículo para a fuga dele. Como já lhe disse antes, não estou, e nunca estive, ligado a nenhum tipo de insurreição. Na verdade, eu me retirei do Conselho exatamente porque não quis me envolver em nenhum tipo de dramalhão.

– Relaxe. Ele lhe fez um favor.

– De que modo, exatamente?

– O indivíduo disse isso na minha frente.

– E, mais uma vez, eu pergunto, como isso se...

– Eu sabia que ele estava mentindo.

Assail se calou. Claro que era bom que Rehvenge soubesse que tal declaração era falsa. Mas como?

– Antes que me pergunte – o macho murmurou sombrio –, não vou lhe contar exatamente por que estou tão certo disso. Todavia, eu lhe direi que estou preparado para recompensar a sua lealdade com um presente por parte do Rei.

– Um presente?

– Wrath faz jus ao seu nome.* Ele entende, por exemplo, como um indivíduo pode se sentir se ele for indevidamente acusado de traição. Ele sabe que se alguém tenta implicar outra pessoa com uma informação que não é de conhecimento público, provavelmente está tentando desviar a responsabilidade de suas próprias ações... Ainda mais se a pessoa falando tiver um... bem, como dizer, uma inclinação... que indicasse não apenas falsidade, mas também certo nível de maquinação. Como se ele estivesse lhe retribuindo por algo que considerasse deslealdade ou mau juízo.

– Quem é? – Assail perguntou. Mesmo sabendo de quem se tratava.

– Wrath não está lhe pedindo que faça nenhum tipo de trabalho sujo. Na verdade, se escolher não fazer nada, esse indivíduo estará morto dentro das próximas 24 horas. O Rei apenas acredita que, assim como eu, os seus interesses estejam não só alinhados aos nossos, mas que, neste caso, eles os suplantam.

Assail fechou os olhos, a vingança fervendo em seu sangue da mesma maneira com que seus instintos sexuais ferveram há pouco. O resultado, contudo, seria muito, mas muito diferente.

– Diga o nome.

– Elan, filho de Larex.

Assail fechou os olhos e expôs as presas.

– Diga ao seu Rei que eu cuidarei do assunto de boa vontade.

Rehvenge riu com malignidade.

– Farei isso. Eu prometo.

Wrath em inglês significa ira, fúria, raiva. (N.T.)


CAPÍTULO 56

Blay se sentia ansioso ao andar de um lado para o outro no quarto. Ainda que estivesse completamente vestido para lutar, ele não iria a parte alguma. Nenhum deles iria.

Depois da reunião do Conselho, Tohr ordenara à Irmandade que ficasse recolhida só para o caso. Rehv estava contatando os membros do Conselho, fora da mansão, para entender em que pé a glymera estava. Como o cara não podia aparecer com um grupo de seis Irmãos em sua retaguarda – não se quisesse manter ao menos uma fachada de civilidade –, eles tinham de aguardar. No entanto, devido ao clima político, era importante que a retaguarda estivesse a postos para o caso de o Reverendo precisar.

Não se ele ainda usasse esse nome...

A porta do seu quarto se abriu sem uma batida, um olá, um “ei, posso entrar?”.

Qhuinn parou debaixo da soleira, arfando, como se tivesse corrido pelo corredor das estátuas.

Maldição, será que no fim Layla perdera a gravidez?

Aqueles olhos descombinados vasculharam ao redor.

– Está sozinho?

Por que ele acharia que... Ah, Saxton. Certo.

– Sim...

O macho avançou três passos, esticou os braços e... lascou um beijo daqueles em Blay.

O beijo foi do tipo de que você se lembra pelo resto da vida, a ligação forjada com tamanha completude que tudo, desde a sensação do corpo contra o seu, do calor dos lábios nos seus, do poder assim como o controle, acabavam gravados em sua mente.

Blay não fez nenhuma pergunta.

Apenas continuou lá, os braços envolvendo o outro macho, aceitando a língua que o invadia, retribuindo o beijo mesmo que não entendesse o que motivara aquilo tudo.

Ele, provavelmente, deveria se importar com isso. Provavelmente deveria se afastar.

Deveria, poderia, teria...

Que seja.

Ele estava vagamente ciente de que a porta estava aberta, mas não se importou – mesmo que as coisas logo se tornassem bem indiscretas muito rapidamente.

Só que Qhuinn subitamente pisou no freio, colocando um fim no beijo e separando-os.

– Desculpe, não foi para isso que eu vim até aqui.

O lutador ainda arfava, e isso, junto ao ardor do olhar fixo, quase bastou para que Blay dissesse algo do tipo: “Tudo bem, mas podemos terminar isto antes?”.

Qhuinn voltou até a porta e a fechou. Depois enfiou as mãos nos bolsos das calças, como se a alternativa preocupante fosse voltar a agarrá-lo.

Ao inferno com os bolsos, Blay pensou enquanto, sutilmente, tentava ajeitar sua ereção.

– O que foi? – perguntou.

– Sei que procurou Payne.

As palavras foram pronunciadas clara e lentamente – e era exatamente isso o que Blay não tinha como lidar. Desviando o olhar, ele andou pelo quarto.

– Você salvou a gestação – anunciou Qhuinn, o tom de sua voz próximo demais de um estado de reverência para o seu conforto.

– Então, ela está bem?

– Você salvou a...

– Payne fez isso.

– A irmã de V. disse que não lhe teria ocorrido sequer tentar... até que você a procurou e falou com ela.

– Payne é muito talentosa...

Qhuinn subitamente ficou diante dele, uma parede sólida de músculos pela qual ele não teria como passar. Ainda mais depois de o macho esticar a mão e resvalar o rosto de Blay.

– Você salvou a minha filha.

No silêncio que se seguiu, Blay soube que devia dizer alguma coisa. Sim... estava na ponta da sua língua. Era...

Merda. Com Qhuinn olhando para ele daquele jeito, ele não se lembrava nem do próprio nome. Blaysox? Blacklock, Blabberfox? Quem é que sabia?...

– Você salvou a minha filha – sussurrou Qhuinn.

As palavras que saíram da boca de Blay foram as que, mais tarde, ele lamentaria – porque era especialmente importante, diante do sexo que parecia acontecer de tempos em tempos, manter a distância.

Mas ligados como estavam, olhos nos olhos, ele estava impotente para refrear a verdade.

– Como eu poderia não tentar... aquilo estava acabando com você. Eu não podia deixar de fazer alguma coisa. Qualquer coisa.

As pálpebras de Qhuinn se abaixaram por um tempo. E depois ele abraçou Blay de uma maneira que ficaram ligados da cabeça aos pés.

– Eu posso sempre contar com você, não é?

Uma doce amargura: a realidade de que aquele macho formaria uma família com outra pessoa, uma fêmea, Layla, atingiu o meio do peito de Blay.

Aquela era a sua sina, de tantas maneiras.

Ele se soltou dos braços de Qhuinn e recuou alguns passos.

– Bem, espero que...

Antes que conseguisse terminar, Qhuinn voltou a se postar diante dele, e seus olhos, um verde, um azul, estavam ardentes.

– O que foi? – disse Blay.

– Eu lhe devo... tudo.

Por algum motivo, aquilo doeu. Talvez porque após anos de tentativas de se entregar para o cara, a gratidão finalmente fora conquistada ao ajudá-lo a ter um filho com outra pessoa.

– O que é isso, você teria feito o mesmo por mim – disse ele, um tanto rouco.

E no instante em que disse isso, não teve tanta certeza. Se alguém o atacasse? Sim, claro que Qhuinn o protegeria. Mas, pensando bem, o filho da mãe adorava lutar e era um herói nato, isso não estaria nada relacionado a Blay.

Talvez aquela fosse a questão em todo esse vazio. Tudo sempre fora nos termos de Qhuinn. A amizade. A distância. Até mesmo o sexo.

– Por que está olhando para mim assim? – Qhuinn perguntou.

– Assim como?

– Como se eu fosse um desconhecido.

Blay esfregou o rosto.

– Desculpe. A noite está demorando a passar.

Houve um momento tenso e longo, durante o qual ele só conseguia sentir o olhar fixo de Qhuinn.

– Eu vou embora – o lutador disse depois de uma pausa. – Eu acho que só... queria...

O som dos coturnos dirigindo-se para a saída fizeram Blay praguejar...

E uma batida única e forte à porta: um Irmão.

A voz de Rhage atravessou com facilidade a madeira.

– Blay? Tohr convocou uma reunião para repassarmos o território a cobrir amanhã. Sabe onde Qhuinn está?

Blay olhou através do quarto para o cara.

– Não, não sei.


Ah, pelo amor de Deus, Qhuinn pensou ante a interrupção. Ainda que, na realidade, a conversa tivesse chegado ao fim.

A boa notícia era que, pelo menos, Rhage não entrara. Sem dúvida, Blay preferiria que os dois não fossem flagrados à toa em seu quarto.

Hollywood terminou a conversa dizendo:

– Se o vir, avise que, se ele pretende ir, temos que nos encontrar em cinco minutos. Entenderemos se ele preferir ficar com Layla.

– Entendido – disse Blay num tom apagado.

Enquanto Rhage seguia em frente para a porta de Z., Qhuinn esfregou o rosto. Ele não fazia ideia do que se passava pela cabeça de Blay naquele instante, mas o modo como os olhos azuis o encaravam o fez sentir como se um fantasma tivesse acabado de passar por cima de sua tumba.

Pensando bem, o que ele esperava? Invadira o quarto que o cara dividia com Saxton, tascara-lhe um beijo e depois se mostrara todo sentimental quanto àquela situação com Payne... Aquele era o espaço de Saxton. E não o seu.

Ele tinha o costume de tomar as coisas para si, não era mesmo?

– Não venho mais aqui – disse Qhuinn, tentando aplacar a situação. – Eu só queria que soubesse que... eu lhe devo muito...

Qhuinn foi até a porta e se inclinou, ouvindo a voz de Rhage, fechando os olhos, à espera que o corredor das estátuas estivesse vazio.

Jesus, como ele sabia ser egoísta às vezes, ele sabia mesmo ser...

– Qhuinn...

Seu corpo se virou no mesmo instante, como se a voz de Blay tivesse uma corda que o puxasse.

– Sim?

O macho andou para a frente. Quando estavam cara a cara, Blay disse:

– Ainda quero transar com você.

As sobrancelhas de Qhuinn estalaram tão alto que quase despencaram sobre o tapete. E, no mesmo instante, ele ficou excitado.

O problema era que Blay não parecia feliz com aquilo. Mas por que estaria? Ele não era do tipo de macho que traía com facilidade – ainda que a ausência de monogamia de Saxton o tivesse curado de sua fidelidade.

O que fez com que Qhuinn quisesse estrangular o primo novamente. E a única coisa que o impedia de ir atrás do cara era que, nesse caso, a situação estava a seu favor.

– Também quero estar com você – disse.

– Vou até o seu quarto depois do amanhecer.

Qhuinn não queria perguntar. Tinha que perguntar.

– E quanto a Saxton?

– Ele saiu de férias.

Mesmo?

– Por quanto tempo?

– Alguns dias apenas.

Pena. Alguma probabilidade de extensão... que tal por um ano ou dois? Quem sabe para sempre?

– Ok, então temos um... – Qhuinn se deteve antes de terminar dizendo “encontro”.

Não havia por que tentar se enganar. Saxton estava ausente. Blay queria transar. E Qhuinn estava mais do que disposto a fornecer ao macho aquilo que ele queria.

Não se tratava de um “encontro”. Mas, que se dane?

– Venha – disse num grunhido. – Estarei à sua espera.

Blay assentiu, como se tivessem feito um pacto, e depois saiu primeiro, o corpo com passadas agressivas enquanto se encaminhava para a porta e saía.

Qhuinn observou-o ir embora. Ficou para trás. Quase se trancou ali para poder se recuperar.

De repente, ficou todo confuso, apesar da promessa de que se encontrariam em poucas horas. A expressão no rosto de Blay o atormentava a ponto de ele sentir o peito começar a doer. Merda, talvez aquela série de encontros fosse apenas uma evolução dos maus momentos em que estiveram antes, uma nova faceta da infelicidade coletiva dos dois.

Nunca lhe ocorrera antes que eles não fossem bons um para o outro. Que não haveria, no futuro, algum tipo de encontro de mentes em que ele se abrisse depois de todos aqueles anos.

Cerrando um punho, ele socou o batente da porta, o contorno da guarnição retribuindo o golpe para as suas juntas.

Enquanto a dor surgia e latejava, por algum motivo, ele pensou no soco no painel do caminhão-guincho e no grito para sair de lá. Parecia ter acontecido em outra vida.

Mas ele não tinha como recuar. Se sexo era tudo o que teria, era o que receberia. Além disso, o que Blay fizera por Layla?

Aquilo devia significar alguma coisa. O cara se importara o bastante para mudar o curso da sua vida.

Não que Blay já não tivesse feito isso há muito tempo.


CAPÍTULO 57

Assail se materializou ao lado de um riacho que permanecia descongelado graças ao seu constante movimento.

Estivera naquela casa apenas uma vez antes: era uma construção vitoriana de tijolos com tema característico marcado pelas varandas e entradas. Tão pacato. Tão acolhedor. Ainda mais com aquelas janelas amplas de quatro vidraças feitas de vitral, e as nuvens de fumaça que saíam não de uma, mas de três das quatro chaminés.

O que indicava que o proprietário havia se recolhido para aquela noite.

Bem na hora: o amanhecer se aproximaria logo, portanto, era apenas lógico abaixar as escotilhas ante o sol. Proteger seu ambiente. Preparar-se para as horas em que seria necessário permanecer no interior para se proteger de danos.

Assail caminhou sobre a neve imaculada, deixando marcas de solados profundos. Nada de sapatos de couro para aquele trabalho. Tampouco um terno de negócios.

Nenhum Range Rover para a sua ladra perseguir.

Aproximando-se do gramado lateral, ele chegou à janela que ia do teto ao chão da sala na qual o dono da casa recebera, não muito tempo atrás, certos membros do Conselho... junto ao Bando de Bastardos.

Assail estivera entre os convidados da reunião. Pelo menos até que estivesse ficado claro que ele tinha de se retirar ou acabaria misturado ao tipo de discurso dramático pelo qual não se interessava.

Pelo vidro, espiou o interior.

Elan, filho de Larex, estava sentado à escrivaninha, um telefone fixo junto ao ouvido, uma taça de conhaque próxima ao cotovelo, um cigarro queimando num cinzeiro de cristal lapidado ao seu lado. Enquanto ele se recostava em sua poltrona de espaldar alto e cruzava os joelhos, parecia estar num estado de relaxamento e satisfação semelhante ao rejúbilo pós-coito.

Assail cerrou os punhos e as luvas de couro rangeram de leve.

Em seguida, ele se desmaterializou até a sala, voltando à sua forma exatamente atrás da poltrona do macho.

De certa forma, ele custava a acreditar que Elan não tivesse fortificado a casa com medidas de segurança – uma malha de aço fina sobre as janelas e dentro da parede, por exemplo. Pensando bem, ao aristocrata obviamente faltava a habilidade de julgar corretamente os perigos – assim como tinha uma arrogância que lhe garantiria uma sensação de segurança maior do que a que tinha efetivamente.

– ... e então Wrath partilhou uma história sobre o pai. Devo admitir que, pessoalmente, o Rei é bem... feroz. Ainda que não o bastante para mudar meu curso, obviamente.

Não. Assail cuidaria disso.

Elan se inclinou para a frente para pegar o cigarro. A coisa estava presa numa daquelas cigarrilhas antigas, do tipo que as fêmeas tendiam a usar, e levou a ponta aos lábios para tragar, a extremidade indo além do fim da cadeira.

Assail desembainhou uma lâmina de aço brilhante que era tão longa quanto o seu antebraço.

Sempre fora a sua arma predileta para aquele tipo de assunto.

Seus batimentos cardíacos estavam tão ritmados quanto a mão estava firme, a respiração uniforme e regular enquanto pairava atrás da poltrona. Com deliberação, foi para o lado, posicionando-se de modo que seu reflexo aparecesse na janela oposta à escrivaninha.

– Não sei se a Irmandade inteira estava presente. Quantos restaram? Sete ou oito? Essa é uma parte do problema. Não sabemos mais quem eles são – Elan bateu as cinzas no centro do cinzeiro. – Então, enquanto estávamos na reunião, instruí um colega meu a entrar em contato com você... Como disse? Claro que lhe dei o seu número, e ressinto-me do seu tom... Sim, ele esteve na reunião em minha casa. Ele vai... Não, não voltarei a fazer isso. Pode parar de me interromper? Acredito que sim.

Elan tragou novamente e exalou a fumaça no ar, seu aborrecimento manifestado em sua respiração.

– Posso continuar? Obrigado. Como eu dizia, esse meu colega entrará em contato a respeito de certos assuntos legais que podem nos ajudar. Ele me explicou, mas é tudo muito técnico, portanto, deduzi que você gostaria de falar diretamente com ele.

Houve uma pausa expressiva. E quando Elan voltou a falar, seu tom se mostrou mais calmo, como se palavras tranquilizadoras tivessem aplacado seu ego.

– Ah, sim, uma última coisa. Tratei de cuidar do nosso probleminha com certo cavalheiro “com mente apenas para os negócios”...

Assail deliberadamente cerrou um punho.

E quando o couro, mais uma vez, emitiu um suave som de protesto, Elan se endireitou na poltrona, a perna cruzada voltando a se apoiar no chão, a coluna se endireitando a tal ponto de sua cabeça aparecer por sobre o espaldar. Ele olhou para a esquerda. Para a direita.

– Preciso ir...

Nesse instante, os olhos de Elan pararam na janela diante dele e ele viu o reflexo do seu assassino no vidro.


Enquanto Xcor parava na sala protegida com calefação adequada, ele teve que admitir que a nova escolha de abrigo de Throe era muito superior ao porão do armazém em que previamente estiveram. Talvez ele devesse agradecer ao Sombra que invadira o local, se um dia seus caminhos voltassem a se cruzar.

Pensando bem, talvez o calor que ele sentia no corpo fosse seu humor se alterando e não o trabalho de um condutor de calor operante: o aristocrata do outro lado do seu celular estava testando seus nervos.

Ele não queria ser procurado por ninguém mais do Conselho. Lidar com um só membro da glymera já era o bastante.

Embora tipicamente ele assumisse uma abordagem pacífica com Elan, sua ira deu sinais.

– Não dê meu número a ninguém mais.

Elan e ele trocaram algumas palavras, a ira do aristocrata também se fazendo ver.

O que, na verdade, de nada serviria. Era sempre bom ter um instrumento utilizável nas mãos, não um de difícil trato.

– Minhas desculpas – Xcor murmurou depois de algum tempo. – Trata-se apenas de que prefiro lidar com os que tomam as decisões. É por isso que falo com você e somente com você. Não tenho interesse em ninguém mais. Só em você.

Como se Elan fosse uma fêmea e o relacionamento deles fosse romântico...

Xcor revirou os olhos quando o aristocrata caiu na sua, e voltou a falar:

– ... uma última coisa. Tratei de cuidar do nosso probleminha com certo cavalheiro “com mente apenas para os negócios”...

Instantaneamente, a atenção de Xcor se alterou. O que em nome do Fade o idiota fizera?

Na verdade, aquilo podia ser monstruosamente inconveniente. Podiam dizer o que quisessem por Assail se recusar a aceitar o destronamento de Wrath, mas aquele “cavalheiro” em especial não era feito da mesma seda frágil de Elan. Por mais que Xcor detestasse lidar com o filho de Larex, ele investira um bom tempo e recursos naquele relacionamento. Seria uma pena perder aquele canalha agora e ter de estabelecer outro elo com o Conselho.

– O que você disse? – Xcor exigiu saber.

O tom de Elan se alterou, revelando preocupação.

– Preciso ir...

O grito que reverberou pelo telefone foi tão alto e agudo que Xcor teve que afastar num rompante o celular do ouvido e mantê-lo longe.

Ante aquele som, seus lutadores, que estavam descansando na sala em várias posições, viraram as cabeças na sua direção, testemunhando, assim como ele, o assassinato de Elan.

Os gritos prosseguiram por um tempo, mas não houve nenhum pedido de clemência – ou porque o agressor agira rapidamente ou porque ficou bem claro, mesmo para o macho moribundo, que não haveria nenhuma.

– Que estrago – observou Zypher enquanto outro grito vibrava do telefone. – Uma verdadeira lambança.

– Ainda está respirando – outro comentou.

– Não por muito tempo – um terceiro opinou.

E eles tinham razão. Não mais do que um momento depois, algo atingiu o chão e esse foi o fim dos sons.

– Assail – Xcor disse alto. – Pegue o maldito telefone. Assail.

Houve um barulho como se o telefone no qual Elan estivera falando tivesse sido recuperado do lugar em que caíra. Em seguida, ouviu-se o som de uma respiração arfante.

O que sugeria que Elan podia muito bem estar despedaçado.

– Sei que é você, Assail – disse Xcor. – E só posso imaginar que Elan tenha dado um passo em falso e que tal indiscrição tenha chegado aos seus ouvidos. Todavia, você roubou um parceiro meu, e isso não pode passar em branco.

Foi uma surpresa quando o macho respondeu, com a voz grave e forte:

– No Antigo País, previdências eram tomadas perante afrontas à reputação das pessoas. Por certo, não deve se lembrar delas, mas não poderá me negar o meu direito à desforra no Novo Mundo.

Xcor expôs as presas, não por estar frustrado com aquele com quem falava. Maldito Elan. Se o idiota tivesse apenas sido um informante, ele ainda estaria vivo – e Xcor teria tido a satisfação de ele mesmo matá-lo ao fim daquilo.

Assail prosseguiu:

– Ele declarou a representantes do Rei que eu fui responsável pelo seu tiro de rifle, aquele que foi disparado em minha propriedade sem o meu conhecimento, tampouco a minha permissão... E... – ele interrompeu antes que Xcor pudesse falar – você sabe muito bem o pouco que me relacionei a esse ataque, não sabe?

Nos tempos de Bloodletter, aquela conversa jamais teria acontecido. Assail seria perseguido e caçado por ser um estorvo e eliminado tanto por necessidade como por prazer.

Mas Xcor aprendera a sua lição.

Enquanto os olhos pousavam em Throe, parado alto e elegante entre os outros, ele pensou, sim, aprendera que havia lugar e hora adequados para certas... regras...

– O que eu disse antes ainda vale, Xcor, filho de Bloodletter – quando Xcor se retraiu ante essa referência, mostrou-se contente por aquela conversa estar acontecendo pelo telefone. – Não me importo com os seus interesses nem com aqueles do Rei. Sou apenas um homem de negócios; desliguei-me do Conselho e não sou seu aliado. E Elan tentou fazer de mim um traidor... Algo que, como bem sabe, vem com um preço sobre a cabeça de uma pessoa. Tirei a vida de Elan porque ele tentou tirar a minha. Isso é perfeitamente legítimo.

Xcor praguejou. O macho tinha razão. E por mais que a neutralidade inflexível de Assail tivesse parecido inacreditável no início, agora Xcor começava a... bem, confiar não era uma palavra que ele costumava usar com outros que não os seus soldados.

– Diga-me uma coisa – disse Xcor de modo arrastado.

– O quê?

– A cabeça desse imbecil ainda está presa ao corpinho frágil dele?

Assail riu.

– Não.

– Sabe que esse é um dos meus métodos de assassinato prediletos?

– Um aviso para mim, Xcor?

Xcor olhou de relance para Throe e pensou novamente na virtude dos códigos de comportamento, mesmo entre os guerreiros.

– Não – declarou. – Apenas algo que temos em comum. Fique bem, Assail, pelo que lhe resta desta noite.

– Você também. E nas palavras de um conhecido em comum, preciso ir. Antes de ser forçado a matar o mordomo doggen que está batendo, neste instante, na porta que tranquei.

Xcor jogou a cabeça para trás e gargalhou ao concluir a ligação.

– Sabem – disse ele aos seus lutadores –, até que eu gosto dele.


CAPÍTULO 58

Na noite seguinte, enquanto as persianas se erguiam e um alarme que Blay não reconhecia começava a tocar, ele abriu os olhos.

Aquele não era o seu quarto. Mas ele sabia exatamente onde estava.

Ao seu lado, contra as suas costas, Qhuinn se espreguiçava, o corpo do macho se esticando contra o seu, a pele nua resvalando na sua pele nua – e não é que isso fez uma ereção latejar?

Qhuinn se esticou por sobre a cabeça de Blay, o braço pesado passando por cima para silenciar o alarme do relógio.

A fim de que não houvesse dúvidas quanto a ele querer uma rapidinha antes de todo o ritual de banho e a Primeira Refeição, Blay se arqueou, empurrando as nádegas contra a pélvis de Qhuinn. O gemido que o atingiu no ouvido o fez sorrir um pouco, mas as coisas ficaram sérias quando a mão da adaga de Qhuinn escorregou para baixo e encontrou o pau de Blay.

– Ai, cacete – murmurou Blay ao levantar a perna para abrir caminho.

– Preciso estar dentro de você.

Engraçado, era exatamente isso o que Blay estava pensando.

Enquanto Qhuinn montava nele, Blay se acomodou sobre a barriga, esmagando a palma de Qhuinn com seu mastro erguido.

Não demorou muito para o ritmo ficar intenso e rápido, e enquanto as bolas de Blay se contraíam em novo gozo, ele se maravilhou de tal maneira que seu desespero pelo cara só parecia aumentar – e haveria quem acreditasse que o número de vezes que os dois gozaram juntos, literalmente, durante o dia tivesse aplacado aquele fogo a uma mera ardência.

Não era o caso.

Entregando-se ao prazer, Blay cerrou os dentes quando seu clímax o atingiu ao mesmo tempo em que os quadris de Qhuinn se contraíram e o macho gemeu.

Não houve um segundo round. Não que Blay não quisesse, nem que Qhuinn fosse incapaz. O problema era o relógio.

Quando Blay voltou a abrir os olhos, os números digitais lhe disseram que o alarme de Qhuinn só concedia quinze minutos para que se aprontassem – tempo apenas para uma chuveirada e para se armarem, nada mais. O que o fez desejar que o lutador fosse mais do tipo lerdo que se barbeia duas vezes, passa colônia e escolhe a roupa que vai vestir...

Com mais um dos seus gemidos eróticos de marca registrada, Qhuinn deitou-se de lado, mantendo-os unidos. Enquanto o cara respirava fundo, Blay se deu conta que poderia ficar assim para sempre, apenas os dois em silêncio, no quarto em penumbra. Naquele instante de paz e tranquilidade, não havia nenhuma pendência do passado, ou qualquer coisa que precisasse ser dita mas não foi, ou terceiros elementos, reais ou imaginários, entre eles.

– No fim da noite – disse Qhuinn num tom grave –, você virá me procurar de novo.

– Sim, virei.

Não houve outro tipo de resposta que lhe ocorresse. Na verdade, ele estava se perguntando como esperaria as doze horas de escuridão e refeições e trabalho até poder escapar e voltar para ali.

Qhuinn murmurou algo muito parecido com “ainda bem”. Depois gemeu e se desencaixou, afastando-se. Em seguida, Blay ficou onde estava por um instante, mas, no fim, não tinha escolha a não ser se levantar, ir para a porta e voltar para o seu lugar.

Ainda bem que ninguém o viu.

Ele voltou para o quarto sem que ninguém testemunhasse a caminhada da vergonha, e sim, em quinze minutos, ele se lavou, vestiu-se e se armou. Saindo do quarto, ele...

Qhuinn apareceu na mesma hora.

Os dois pararam.

Normalmente, caminharem juntos seria apenas marginalmente estranho, e eles teriam de jogar conversa fora.

Mas agora...

Qhuinn abaixou o olhar.

– Você primeiro.

– Ok – Blay se virou para se afastar. – Obrigado.

Blay jogou o coldre de peito e a jaqueta de couro por sobre o ombro e saiu andando. Quando chegou às escadas, parecia que anos tinham se passado desde que estiveram deitados tão próximos. Será que aquele dia entre eles acontecera de fato?

Jesus, estava começando a enlouquecer.

Entrando na sala de jantar no andar de baixo, ele se sentou numa cadeira qualquer e pendurou suas coisas no espaldar como os outros – mesmo que Fritz detestasse ver armas próximas à comida. Depois, agradeceu ao doggen que lhe serviu um prato cheio e começou a comer. Ele não teria como dizer o que lhe fora servido nem quais conversas percorriam a mesa. Mas soube exatamente quando Qhuinn passou pela soleira da porta: seu âmago começou a zunir e foi impossível não olhar por cima do ombro.

Houve um impacto físico imediato ao ver aquele corpo imenso envolto em preto, carregado de armas – como se a bateria de um carro tivesse sido ligada em seu sistema nervoso.

E ele achou que foi até bom Qhuinn evitar olhar para ele. Os outros ao redor da mesa os conheciam muito bem, especialmente John, e as coisas já estavam bem complicadas sem a boataria de corredor ter a oportunidade de se fazer valer – não que alguém fosse dizer algo publicamente. Porém, em particular... Conversas de travesseiros corriam desenfreadamente naquela casa.

Algo a se invejar.

Qhuinn seguiu em frente, depois mudou de direção, e foi para o lado completamente oposto da mesa, para a única cadeira, além daquela ao lado de Blay, que estava desocupada.

Por algum motivo, Blay pensou na conversa que teve com a mãe pelo telefone, aquela em que admitira finalmente a um membro de sua família quem exatamente ele era.

Uma inquietação passou pela sua nuca. Qhuinn jamais faria algo como sair do armário, e não porque seus pais estavam mortos, ou porque, quando o casal estava vivo, eles odiavam o filho.

Eu me vejo com uma fêmea num relacionamento duradouro. Não sei explicar. É só assim que vai ser.

Blay afastou o prato.

– Blay? Alôoo?

Estremecendo, ele olhou para Rhage.

– O que foi?

– Eu perguntei se você está pronto para dar uma de Nanook, o Esquimó.

Ah, é mesmo. Eles voltariam para aquele pedaço de floresta onde encontraram os chalés e o redutor com poder especial de desaparecimento, além do avião que, no momento, acumulava neve no jardim dos fundos.

John, Rhage e ele estavam designados para aquela missão. E Qhuinn.

– Sim, sim... sem dúvida.

O mais belo membro da Irmandade franziu o cenho, os olhos azuis como o mar do Caribe se estreitando.

– Você está bem?

– Sim. Estou ótimo.

– Quando foi a última vez em que se alimentou?

Blay abriu a boca. Fechou. Tentou estimar.

– Uhum. Foi o que pensei – Rhage se inclinou para a frente e falou próximo ao peito de Z. – Ei, Phury? Acha que uma das Escolhidas pode vir aqui para assumir o lugar de Layla ao amanhecer? Temos algumas necessidades de sangue.

Ótimo. Era bem isso o que ele queria no fim da noite.

 


Cerca de uma hora mais tarde, Qhuinn inalou profundamente ao se materializar no frio. Flocos de neve rodopiavam ao redor do seu rosto, atingindo-o nos olhos e no nariz. Um a um, John, Rhage e Blay tomaram forma ao seu lado.

Enquanto ele encarava o hangar, a casca vazia lhe trouxe de volta as lembranças do maldito Cessna, da tentativa desesperadora daquela viagem e da aterrissagem forçada.

Quanta alegria...

– Pronto para ir? – perguntou a Rhage.

– Vamos em frente.

O plano era seguir em trechos de quatrocentos metros até chegarem aos primeiros chalés em que já estiveram. Depois disso, eles localizariam os demais chalés da propriedade, usando o mapa que encontraram anteriormente como um guia. Apenas um protocolo de reconhecimento e busca típicos.

Ele não fazia ideia do que encontrariam, mas aquela era a questão. Não se sabia até fazer o trabalho.

Enquanto avançava, Qhuinn estava muito ciente da localização de Blay. Mesmo assim, quando se materializou diante do primeiro chalé que localizaram, não olhou quando Blay apareceu uns dois metros mais distante. Não seria uma boa ideia. Mesmo estando trabalhando, tudo o que precisava fazer era fechar os olhos e sua mente era inundada por imagens de corpos nus entrelaçados na luz fraca do seu quarto.

Uma confirmação visual que o cara era sexy pra cacete não seria de nenhuma ajuda.

Ele tinha vergonha de admitir, mas, naquele instante, a única coisa que o mantinha são era a promessa de Blay de ir procurá-lo ao amanhecer. O estranhamento durante a Primeira Refeição só o fez desejar estarem juntos ainda mais, a ponto de se abalar ante a ideia de que algum dia, num futuro imediato, Saxton voltaria e Blay deixaria de se aproximar, vindo da porta ao lado – e aí, o que ele faria?

Maldita confusão.

Pelo menos Layla estava bem: ainda enjoada e sorrindo de felicidade.

Ainda grávida, graças à intervenção de Blay...

– Leste, nordeste – informou Rhage ao consultar o mapa.

– Entendido – respondeu Qhuinn.

E assim eles prosseguiram avançando no território, a floresta envolvendo-os por centenas e centenas de metros... depois um quilômetro. Em seguida, vários quilômetros.

Os chalés eram bem parecidos, quadrados de seis por seis, abertos no centro, sem banheiro, sem cozinha, apenas um teto e quatro paredes para afastar o pior do inverno. Quanto mais avançavam, mais dilapidadas as estruturas se mostravam – e todas estavam vazias. Lógico. A pé, aquela era uma distância imensa – e redutores, por mais fortes que fossem, não se desmaterializavam.

Pelo menos não a maioria deles.

Aquele só podia ter sido o Redutor Principal, ele pensou. Seria a única explicação para o fato de o assassino ferido ter simplesmente desaparecido daquele jeito.

O sétimo chalé estava diretamente numa trilha que devia ter sido bem frequentada a ponto de ainda se ver um caminho em meio à vegetação.

Naquele faltava uma janela e a porta estava escancarada, a neve entrando como uma invasora. Qhuinn atravessou um monte de neve, seus coturnos esmagando a superfície imaculada conforme ele se aproximava da varanda. Com uma lanterna na mão esquerda e uma .45 na direita, ele deu um salto para baixo do beiral e se inclinou.

Mesma merda, um espaço vazio diferente.

Ao perscrutar o interior, não havia absolutamente nada ali. Nenhuma mobília. Umas prateleiras embutidas vazias. Teias de aranha balançando na brisa que entrava pela janela quebrada.

– Tudo tranquilo – anunciou.

Virando-se, ele pensou que aquilo tudo era besteira. Ele queria estar chutando uns traseiros, e não estar ali, no meio do nada, perseguindo e caçando sem encontrar coisa alguma.

Rhage acomodou uma lanterna de bolso entre os lábios e abriu o mapa mais uma vez. Fazendo uma marca com uma caneta, ele bateu no papel grosso com um dedo.

– O último fica a cerca de quatrocentos metros para o leste.

Ainda bem. Já era hora.

Presumindo que tudo fosse entediante como até então, eles sairiam dali e se deparariam com o inimigo em becos em quinze minutos, talvez vinte.

Molezinha, molezinha.


CAPÍTULO 59

– Você parece verdadeiramente feliz.

Layla levantou o olhar. De certo modo, parecia inacreditável que a rainha da raça estivesse ao seu lado na cama, lendo revistas Us Weekly e People, e assistindo à TV. Mas, pensando bem, a não ser pelo imenso anel de rubi que cintilava em seu dedo, ela não poderia ser mais normal.

– Eu estou mesmo – Layla deixou de lado o artigo sobre a última temporada de The Bachelor e pousou a mão no ventre. – Estou radiante.

Ainda mais que Payne passara pouco antes e aparentava estar se sentindo bem. Mesmo que o desejo de que sua gravidez continuasse fosse quase patológico, a ideia de que essa bênção viesse à custa de outra fêmea não lhe caía bem.

– Você quer ter filhos? – Layla perguntou num rompante. E depois acrescentou: – Se a minha pergunta não a ofender...

Beth desconsiderou a preocupação dela com um gesto.

– Você pode me perguntar o que quiser. E respondendo, quero, sim. Quero muito. O engraçado é que antes da minha transformação, eu não tinha interesse algum em crianças. Elas eram apenas uma complicação descontrolada e barulhenta que eu, honestamente, não entendia por que as pessoas se davam ao trabalho de trazer ao mundo. Mas aí eu conheci Wrath – ela afastou o cabelo escuro e riu. – Desnecessário dizer como isso mudou tudo.

– Quantos cios você já teve?

– Ainda estou esperando. Rezando. Contando o tempo para que o primeiro venha.

Layla franziu o cenho e se ocupou em abrir mais uma embalagem de bolachas de água e sal. Era difícil lembrar muito sobre aquelas horas de loucura com Qhuinn, mas fora uma provação de proporções épicas.

Considerando-se o milagre que ainda repousava em seu corpo, tudo valera a pena.

Contudo, ela não poderia dizer que gostaria de passar pelo seu período fértil novamente. Não sem medicamentos.

– Bem, então desejo que seu cio venha logo – Layla mordiscou uma bolacha, o quadrado se partindo e derretendo em sua boca. – Não consigo acreditar que disse isso.

– É tão difícil quanto... isto é, não consegui falar com Wellsie sobre o período dela antes de ela falecer, e Bella nunca mencionou nada. – Beth baixou o olhar para seu anel de rainha, como se estivesse admirada por suas facetas captarem e refletirem a luz. – E não conheço Autumn tão bem assim; ela é adorável, mas dadas as circunstâncias pelas quais ela e Tohr acabaram de passar, não pareceu apropriado abordar esse assunto com ela.

– Tudo é muito obscuro, para ser bem honesta.

– Uma bênção, então, não?

Layla fez uma careta.

– Bem que eu gostaria de contradizê-la, mas sim, acredito que seja uma bênção.

– Mas deve valer a pena, não?

– Sem sombra de dúvida... Eu estava pensando exatamente nisso, para falar a verdade – Layla sorriu. – Sabe o que dizem a respeito de fêmeas grávidas, não?

– O quê?

– Se passar tempo com elas, isso encorajará seu cio a chegar.

– Verdade? – a rainha lançou um sorriso amplo. – Então você pode ser a resposta às minhas orações.

– Bem, não sei se isso é verdade. Do Outro Lado, somos sempre férteis. É só aqui na Terra que as fêmeas estão sujeitas às influências dos hormônios, mas eu li a respeito desse efeito na biblioteca.

– Então vamos fazer o nosso experimento, que tal? – Beth ofereceu a mão para um aperto. – Além disso, gosto de estar aqui. Você me inspira.

As sobrancelhas de Layla se ergueram com o que lhe foi dito.

– Inspiro? Ah, não. Não sei como.

– Pense pelo que passou.

– A gestação se ajeitou e...

– Não, não apenas isso. Você é a sobrevivente de um culto – quando Layla lhe lançou um olhar de quem não entendia, a rainha perguntou: – Nunca ouviu falar disso?

– Conheço a definição da palavra. Mas não sei se se aplica a mim.

A rainha desviou o olhar, como se não quisesse criar discórdia.

– Ei, posso estar errada, e você certamente deve saber melhor do que eu... Além disso, você está feliz agora, e é isso o que importa.

Layla se concentrou na tela de TV adiante. Pelo que entendia, um culto não era uma coisa boa, e sobrevivente era um termo normalmente associado a pessoas que passaram por algum tipo de trauma.

O Santuário fora como um dia de primavera tranquilo e temperado na face da Terra, todas as fêmeas na paz e tranquilidade do local sagrado com suas tarefas importantes para a mãe da raça.

Nenhuma coerção. Nenhuma contenda.

Por algum motivo, as palavras de Payne entraram em sua mente.

Você e eu somos irmãs da tirania de minha mãe, casualidades de seu plano maior de como as coisas devem ser. Estivemos as duas enjauladas em seus modos diversos, você como uma Escolhida; eu, como sua filha de sangue.

– Desculpe – disse a rainha, esticando a mão para tocar no braço de Layla. – Não tive a intenção de aborrecê-la. Honestamente, não sei que diabos eu estava falando.

Layla voltou-lhe a atenção.

– Ora, por favor, não se preocupe – ela segurou a mão da rainha. – Não me ofendi de maneira alguma. Mas agora, que tal falarmos de coisas mais alegres, tal como o seu hellren. Ele também deve estar impaciente para que seu período chegue.

Beth deu uma risada reservada.

– Ele ainda não está exatamente nesse ponto.

– Por certo ele deve desejar um herdeiro.– Acredito que ele me dará um. Mas só por eu desejar muito um filho.

– Ah...

– Isso mesmo, ah... – Beth apertou a mão de Layla. – Ele só se preocupa demais. Sou forte e saudável, e estou pronta para isso. Mas se ao menos eu conseguisse fazer com que meu corpo começasse a funcionar... Quem sabe, ele não segue o seu exemplo?

Layla sorriu e esfregou a barriga ainda lisa.

– Ouviu isso, meu pequeno? Você precisa ajudar a nossa rainha. É importante para a família real ter um filho.

– Não pelo trono – interveio Beth. – Não de minha parte. Eu só quero ser mãe e ter o filho do meu marido. No fundo, é simples assim.

Layla se calou. Ela estava feliz por ter Qhuinn ao seu lado naquela jornada, mas teria sido maravilhoso ter um parceiro de verdade para se deitar ao seu lado e acalentá-la durante o dia, para amá-la e segurá-la e lhe dizer que ela era preciosa não só pelo que o seu corpo era capaz de produzir, mas pelo que ela lhe inspirava em seu coração.

Uma imagem do rosto rústico de Xcor surgiu subitamente em sua mente.

Balançando a cabeça, ela concluiu que não, não poderia pensar naquilo. Ela tinha de se manter calma e relaxada pelo bebê, pois seu estresse poderia ser transmitido para aquilo que seu ventre nutria. Além disso, ela já fora abençoada com tanto, e se aquela gestação vingasse até o fim, e ela sobrevivesse ao parto?

Ela receberia um milagre verdadeiro e contínuo.

– Estou certa de que tudo dará certo com o Rei – declarou. – O destino tem seu modo de nos dar aquilo de que precisamos.

– Amém, irmã. Amém.

 


Sola parou o seu Audi exatamente no meio do caminho de carros da casa de vidro às margens do rio e estacionou bem na porta de trás da maldita construção.

Saindo, plantou as botas na neve, colocou a mão dentro da parca no cabo da pistola e fechou a porta com o quadril. Ao marchar para a entrada de trás, fez contato visual com o telhado.

Deveria haver uma câmera de segurança ali.

Ela não se deu ao trabalho de tocar a campainha ou bater à porta. Ele saberia que ela estava ali. E se ele não estivesse em casa? Bem, nesse caso ela pensaria em algum tipo de cartão de visitas para lhe deixar.

Talvez um alarme disparado? Ou uma janela ou armário abertos?

Talvez algo faltando dentro da casa...

A porta se abriu e lá estava ele, em carne e osso – exatamente como na noite anterior, e mesmo assim, de algum modo mais alto, mais perigoso, mais sexy do que ela se lembrava.

– Isso não é um pouco óbvio para você? – ele perguntou com lentidão.

Ele vestia um terno preto de algum tipo de designer, e a roupa só podia ter sido feita sob medida, porque o caimento era perfeito.

– Estou aqui para esclarecer uma coisa – disse ela.

– E, ao que parece, veio para estabelecer alguns termos – como se aquela fosse uma ideia intrigante. – Mais alguma coisa? Trouxe o jantar? Estou com fome.

– Vai me deixar entrar ou vamos fazer isto no frio mesmo?

– Por acaso, a sua mão está armada?

– Claro que sim.

– Nesse caso, por favor, entre.

Quando ele recuou, ela revirou os olhos. Por que o fato de ela poder atirar nele encorajaria o homem a permitir a sua entrada era um mistério...

Sola ficou imobilizada quando olhou para a cozinha moderna. Lado a lado estavam dois homens que eram a imagem idêntica um do outro. Também eram tão grandes quanto o homem a quem ela viera procurar – e ambos tinham uma arma na mão.

Só podiam ser aqueles que estiveram com ele debaixo daquela ponte.

A porta se fechou, e ainda que as glândulas adrenais dela tivessem lançado um sinal de alerta, ela escondeu tal reação.

Aquele a quem ela viera ver lançou-lhe um sorriso ao passar por ela.

– Estes são meus associados.

– Quero conversar a sós com você.

O homem se recostou contra uma bancada de granito, colocou um charuto entre os dentes e o acendeu com um isqueiro de ouro. Quando ele fechou a tampa, exalou uma baforada de fumaça azulada e olhou na sua direção.

– Cavalheiros, se nos derem licença por um minuto, por favor.

Os gêmeos senhores Felicidade não pareceram contentes com a dispensa. Pensando bem, mesmo que recebessem bilhetes premiados na loteria eles seriam capazes de arrancar sua mão até o pulso. Só por princípios.

No entanto, eles se encaminharam para longe dali, movendo-se de um modo sincronizado que era incrivelmente perturbador.

– Onde arranjou esses dois? – ela perguntou com aspereza. – Na internet?

– Incrível o que se pode adquirir no eBay...

Abruptamente, ela deixou de lado as amenidades.

– Quero que pare de me seguir.

O homem deu uma tragada no charuto, a ponta gorda brilhando alaranjada.

– Mesmo?

– Você não tem por que fazer isso. Não voltarei aqui novamente... por nenhum motivo.

– Verdade?

– Você tem a minha palavra.

Não havia nada que Sola detestasse mais do que admitir uma derrota – e deixar de lado a investigação desse homem e daquela propriedade era um tipo de renúncia. Mas a noite passada, enquanto ela esteve num encontro com um completo inocente, pelo amor de Deus, cerificou-a de que as coisas estavam se descontrolando. Ela era perfeitamente capaz de brincar de gato e rato; era o que fazia em sua vida profissional. Contudo, com aquele homem? Não havia um objetivo a ser conquistado; nenhum pagamento à sua espera quando informações fossem coletadas; nenhuma intenção de roubá-lo.

E os riscos só vinham aumentando.

Ainda mais se voltassem a se beijar, porque ela duvidava que fosse capaz de parar e a definição de estupidez seria ir para a cama com alguém como ele.

– A sua palavra? – ele repetiu. – E exatamente quanto isso vale?

– É tudo o que tenho a lhe oferecer.

Os olhos dele, aqueles raios laser, detiveram-se em sua boca.

– Não tenho tanta certeza disso.

O sotaque dele e aquela voz grave e deliciosa transformavam as sílabas em uma carícia, uma que ela quase sentia na pele.

Motivo pelo qual ela estava fazendo aquilo.

– Você não tem motivo para me seguir. A partir de agora.

– Talvez eu aprecie a vista – enquanto os olhos percorriam seu corpo, outra onda de choque a acometeu, mas não do tipo ansioso. – Sim, tenho certeza disso. Diga-me uma coisa, gostou do seu passeio ontem? A comida estava do seu agrado? A companhia...?

– Estou colocando um ponto-final nisso agora. Você não vai mais me ver.

Como aquilo era tudo o que ela tinha a dizer, deu-lhe as costas.

– Acha honestamente que isto entre eu e você acaba aqui?

A voz bela e sombria continha uma ameaça velada.

Sola olhou por cima do ombro.

– Você me pediu para não invadir, nem espionar, e eu não vou fazer nada disso.

– E eu lhe digo novamente, acha, honestamente, que isto termina assim?

– Estou lhe dando o que quer.

– Nem chega perto do que quero – ele rosnou.

Por um momento, aquela ligação que fora forjada no frio, enquanto seus lábios se tocavam no carro dela e os corpos enrijeceram, voltou à tona.

– É tarde demais para recuar – outra baforada. – A sua chance de sair veio... e foi embora.

Ela se virou de frente.

– Lamento lhe dizer isso, mas quanta besteira. Não tenho medo de você, nem de ninguém, então, venha me pegar. Mas saiba que vou machucá-lo para me defender...

Um som abrupto reverberou no ar entre eles.

Um ronronar? O homem estava mesmo ronronando?

Ele deu um passo à frente. Depois outro. E como um cavalheiro faria, manteve o charuto afastado, pois não queria queimá-la nem deixar que a fumaça a atingisse no rosto.

– Diga-me o seu nome – ele disse. Ou comandou?

– Acho difícil de acreditar que já não o saiba.

– Não sei – isso foi dito com um arquear de sobrancelha, como se buscar informações estivesse aquém dele. – Diga-me o seu nome e eu a deixarei ir, por ora.

Deus... aqueles olhos... eram o luar e as sombras, uma cor impossível, misto de prateado, violeta e azul-claro.

– Como nossos caminhos não se cruzarão mais, isso não é relevante...

– Só para sua informação... você se entregará a mim...

– Como é?

– Mas antes vai me implorar.

Sola se projetou para a frente, seu temperamento implodindo sua atitude de “vamos ser razoáveis”.

– Só por cima do meu cadáver.

– Lamento, isso não faz o meu tipo – ele deixou cair o queixo e a fitou por sob as pálpebras abaixadas. – Prefiro você quente... e molhada.

– Isso não vai acontecer – ela deu meia-volta e se dirigiu para a porta. – Estamos entendidos.

Assim que ela entrou na antessala, seus olhos captaram algo sobre um banco acomodado na parte baixa da parede oposta.

Sua cabeça virou para trás, e seus pés falsearam. Era uma adaga, uma adaga muito longa, tão longa que era quase uma espada.

Havia sangue fresco na lâmina.

– Reconsiderando a sua partida? – perguntou a voz sombria bem atrás dela.

– Não – ela se dirigiu para a porta e a abriu. – Já estou de saída.

Batendo a porta atrás de si, ela quis correr para o carro, mas se recusou a ceder ao pânico mesmo esperando que ele viesse atrás dela.

No entanto, o homem ficou parado, pairando no vidro da porta que ela acabara de utilizar, observando-a entrar no carro, dar a partida e passar a marcha no Audi.

Ao se recostar no banco do motorista, ela sentiu o coração disparar.

Ainda mais depois que um pensamento aterrador lhe ocorreu.

Enfiando a mão na bolsa, ela tateou em busca do celular e, quando o encontrou, procurou um nome na lista de contatos e selecionou um deles, apertando o botão da chamada. Tomada pelo medo, ela apoiou o celular na orelha, apesar do seu carro ter Bluetooth e ser ilegal, em Nova York, dirigir sem as duas mãos no volante.

Um toque.

Dois toques.

Três...

– Oi! Eu estava esperando que você me ligasse.

Sola se largou no banco, a cabeça batendo no encosto.

– Olá, Mark.

Deus, ouvir o som da voz do homem era um alívio.

– Você está bem? – seu professor de ginástica perguntou.

Ela pensou na lâmina ensanguentada.

– Estou, sim. Está saindo do trabalho?

Enquanto embarcavam numa conversa agradável, ela saiu dirigindo, o pé pesando no acelerador, o cenário passando às pressas. Neve branquinha. Estrada cheia de sal. Árvores em seus esqueletos. Chalezinho antigo com a luz acesa dentro. Espaço vazio à margem esquerda do rio.

Toda vez que ela piscava, via a silhueta no vidro daquela porta. Observando. Planejando. Esperando...

Por ela.

E, bom Deus, seu corpo estava desesperado para ser capturado por ele.


CAPÍTULO 60

Enquanto Qhuinn se materializava, a sua lanterna iluminava o último chalé. Dessa vez, ele não esperou pelos outros, simplesmente marchou adiante, direto para a porta, que estava intacta e fechada...

Sua primeira pista de que algo estava errado surgiu quando segurou a maçaneta antiga e gasta: um choquinho elétrico atravessou sua mão e subiu pelo braço.

Retirando a mão, ele sacudiu o braço, e seus instintos ficaram em alerta.

– O que foi? – Rhage perguntou ao subir na varanda baixa.

Qhuinn olhou ao redor, notando que Blay e John estavam nas imediações.

– Não sei.

Rhage foi até a porta e teve a mesma sensação, retraindo-se subitamente.

– Mas que merda...?

– É, não é... – murmurou Qhuinn ao recuar um passo e iluminar o exterior.

As duas janelas em cada lado da entrada haviam sido cobertas por tábuas, e quando ele andou ao redor da casa, viu que o mesmo fora feito com aquelas do outro lado.

– Que se foda – grunhiu Rhage. O Irmão recuou três passos e depois se lançou contra a porta, o ombro forte num ângulo como um aríete.

Com o impacto, a madeira da porta se estilhaçou...

Subitamente, uma luz ofuscante cruzou a noite, iluminando a floresta como se uma bomba tivesse explodido, lançando Rhage para trás.

Enquanto Blay e John corriam para verificar se o lutador se ferira, Qhuinn avançou, preparando-se enquanto atravessava o batente, esperando ser atingido por algumas centenas de volts de sabe-se lá o quê.

Em vez disso, ele só atingiu o ar, e seu impulso foi tão grande que ele teve que se recolher numa bola a fim de não cair de cara no chão. Uma respiração depois, ele se impulsionou no chão e aterrissou agachado, uma arma numa mão, a lanterna na outra.

Algo fedia muito ali.

– Atrás de você – avisou Blay, quando um segundo facho de luz se juntou ao seu.

O ar dentro do chalé estava estranhamente quente, como se houvesse um sistema de aquecimento ligado, só que isso não era possível. Não havia eletricidade, nem tanque de combustível. E já fazia um tempo que alguém estivera ali, a julgar pela camada de poeira imperturbável nas tábuas do chão e pelas teias de aranha, delicadas e verticais que se penduravam a partir do teto como cordas inertes.

– O que é isso? – perguntou Blay.

Ao girar seu facho de luz, Qhuinn franziu a testa. Havia um bom número do que pareciam ser tambores de óleo contra a parede oposta, todos juntos, como se tivessem sentido medo de algo e se arrumado em círculo para autoproteção.

Qhuinn andou até lá, sempre movendo a lanterna em círculos amplos, e franziu o cenho mais uma vez quando conseguiu olhar direito para os latões. Nenhum deles tinha tampa e sua luz parecia refletir algum tipo de óleo.

– Mas... que diabos é isso?

Inclinando-se sobre um deles, ele inspirou profundamente e sentiu as narinas queimarem com o fedor forte de assassinos. A julgar pelo modo como a sua luz não conseguia penetrar a superfície do líquido, ele soube que só podia ser uma coisa, e, por certo, aquilo não poderia ser usado como aquecedor ou gerador.

Era o sangue de Ômega.

– Atrás de vocês – disse Rhage ao entrar.

Um assobio suave anunciou que John também entrara.

– Isso é o que eu acho que é? – perguntou Blay ao parar ao lado de Qhuinn.

Qhuinn acomodou a lanterna entre os dentes e esticou a mão nua. Assim que fez contato com a viscosidade desagradável, algo subiu à superfície do barril...

– Cacete! – exclamou, pulando para trás.

Enquanto sua lanterna caía e rolava pelo chão, o facho de Blay iluminava o que quer que tivesse se movido.

Um braço.

Havia alguém dentro daquele tambor.

– Jesus Cristo – sussurrou Blay.

Atrás deles, a voz de Rhage soou alta:

– V.? Precisamos de assistência aqui. Agora.

Qhuinn se inclinou para baixo e apanhou a lanterna. Voltando a apontá-la para o líquido oleoso, ele observou quando o braço se movimentou novamente, mergulhando logo abaixo da superfície, o movimento elevando o pulso e o dorso da mão...

Algo reluziu, e esse fulgor breve atraiu a atenção de Qhuinn. Ajustando o ângulo do facho de luz, inclinou-se ainda mais sobre o tonel.

A mão não parecia bem, as juntas estavam deformadas, faltavam partes dos dedos ou eles inteiros, como se tivessem sido colocados dentro de um moedor...

Aquele brilho surgiu novamente na fossa do sangue de Ômega.

Seria... um anel?

– Espere, espere, Qhuinn... Você tem que recuar.

Qhuinn ignorou o comentário ao se inclinar ainda mais para a frente, aproximando-se, aproximando-se...

Aproximando-se...

A princípio, ele custava a acreditar no que via. Simplesmente não poderia estar vendo um anel de sinete.

Porém, o que mais poderia ser? Estava no indicador, o único dedo que não fora arrancado. E era de ouro – mesmo com todo aquele óleo preto, o brilho amarelado era evidente. E o anel em si tinha uma faceta larga na qual estava gravada...

– Qhuinn – disse Rhage com aspereza –, afaste-se imediatamente...

O braço se moveu novamente, a mão pálida rompendo a superfície do líquido, parecendo um espectro emergindo de uma tumba, esticando-se...

O sangue de Ômega escorreu da superfície do anel, revelando...

– Qhuinn, não estou brincando...

Um barulho explodiu dentro do chalé, preenchendo o ar.

Ele ignorou completamente que o grito saíra de sua boca.

 

A princípio, Blay pensou que o que quer que estivesse no tonel tivesse agarrado Qhuinn e o puxado para dentro e que foi por isso que Qhuinn gritou. Instintivamente, ele avançou e segurou a cintura de Qhuinn, como se lançasse uma âncora e a puxasse de volta.

O que saiu do tonel atormentaria os pesadelos de Blay durante anos... décadas.

Na verdade, o que estava dentro não se agarrara a Qhuinn; foi exatamente o contrário. Enquanto Blay puxava para trás, uma forma masculina saía do local apertado, o sangue de Ômega caindo pelas laterais em riachos, açoitando o piso frio de madeira do chalé, atingindo os coturnos e as calças de couro de Blay, encharcando Qhuinn.

Qhuinn teve que se esforçar para continuar segurando aquilo que escorregava de suas mãos, a arma e a lanterna esquecidas, as mãos enluvadas apalpando e arranhando para não perder o contato...

E quando eles içaram...

O barril de óleo caiu de lado enquanto o macho nu se estatelava aos seus pés.

Ninguém se moveu. Foi como se todos tivessem acabado de tomar suas posições num palco.

Blay reconheceu quem era imediatamente.

E não acreditou.

O morto voltando para o mundo dos vivos... por assim dizer.

Qhuinn se agachou e tocou no ombro do macho. Em seguida, pronunciou o nome do irmão com voz rouca:

– Luchas?

A resposta foi imediata. As mãos do irmão lentamente começaram a girar, as pernas machucadas a se debater, o corpo nu tentando se mover. A pele estava coberta de hematomas, a parca iluminação das lanternas revelava cada contusão, laceração e hematoma, a mancha do sangue de Ômega gradualmente sumindo da pele pálida.

Bom Deus, o que fizeram com ele? Um dos olhos estava fechado pelo inchaço, e a boca estava torta, como se ele tivesse sido socado ali. Quando ele se retorceu, pareceu que os dentes tinham permanecido intactos, mas aquele era o único sinal de misericórdia que pareceram ter para com ele.

– Luchas? – repetiu Qhuinn. – Consegue falar comigo?

Mais ao lado, Rhage estava novamente ao telefone.

– V.? Temos uma situação nas mãos... Quanto tempo vai demorar... o quê? Não, absolutamente, não. Preciso de você... Não, você. E Payne – Hollywood olhou de relance e articulou apenas com a boca “sabem quem ele é?”.

Blay teve que limpar a garganta, sua resposta saindo aos tropeços:

– É... o irmão dele.

Rhage piscou forte. Balançou a cabeça. Inclinou-se.

– Desculpe. O que você...

– O irmão dele – Blay repetiu alto e claro.

– Jesus... – sussurrou Rhage. E depois reagiu. – Agora, V. Agora.

– Luchas, consegue me ouvir? – perguntou Qhuinn.

Vishous invadiu o chalé uma fração de segundo mais tarde. O Irmão estava coberto em sangue de redutor e sangue vermelho graças a um corte no rosto – também respirava como um trem de carga e tinha uma adaga gotejante na mão.

No instante em que viu sobre o que eles estavam rodeados, ele parou.

– Mas que merda é essa?

Rhage rapidamente fez gestos perpendiculares à garganta, interrompendo qualquer outro comentário. Depois segurou o braço de V. e o arrastou para longe do alcance dos outros ouvidos. Quando os dois voltaram, V. não revelava emoção alguma.

– Deixe-me dar uma olhada nele – disse V.

Qhuinn apenas continuou falando com o irmão, as palavras saindo numa corrente contínua que não fazia muito sentido. Pensando bem, até onde todos sabiam, o macho fora assassinado nos ataques, junto ao pai, a mãe e a irmã de Qhuinn. Portanto, sim, aquilo era o bastante para fazer até Shakespeare sofrer de um caso de balbucios.

Só que... não era possível, Blay pensou. Havia quatro corpos na casa – e Luchas estivera entre eles.

Blay deveria saber disso. Fora ele a entrar lá para identificá-los.

Ele apoiou uma mão no ombro de Qhuinn.

– Ei.

As palavras de Qhuinn foram sumindo. Depois, ele fitou os olhos de Blay.

– Ele não está respondendo.

– Pode deixar o V. dar uma olhada nele? Precisamos de um parecer médico – e talvez muito mais para ter respostas quanto ao que acontecia ali. – Vamos, venha comigo até ali.

Qhuinn se endireitou e recuou, mas não se distanciou muito, e seu olhar nunca se despregou do irmão.

– Será que o transformaram? – ele cruzou os braços e se enrolou para a frente. – Acha que o transformaram?

Blay balançou a cabeça e desejou poder mentir.

– Eu não sei.


CAPÍTULO 61

Enquanto Qhuinn encarava o chão do chalé, seu cérebro resgatava todo tipo de lembranças desconexas, a noção concreta de que sua família inteira fora devastada colidindo com o que parecia ter sido uma realidade completamente diferente.

Ele continuava a voltar para aquela noite, há tanto tempo, quando passara pela porta de entrada da casa dos pais e encontrara a família toda reunida à mesa de jantar... e o irmão recebendo o anel de sinete que agora estava na mão destroçada.

Você haveria de pensar que um cara torturado, porém vivo, seria tudo em que alguém conseguiria se concentrar.

– O que está acontecendo, V.? – ele exigiu saber. – Como ele está?

– Vivo – o Irmão limpou a adaga na coxa coberta pelo couro da calça. – Filho? Filho, consegue me ouvir?

Luchas continuou olhando para Qhuinn, seus lindos olhos cinza injetados de sangue e arregalados. A boca se movia, porém nenhum som saía dela.

– Filho, vou ter que cortá-lo, está bem? Filho?

Qhuinn sabia exatamente o que V. procurava saber.

– Vá em frente.

O coração de Qhuinn começou a bater como um punho contra seu esterno enquanto o Irmão pegava a adaga negra e fazia um corte no lado externo do braço de Luchas. O cara não reagiu; pensando bem, com tudo o que lhe acontecera... Aquilo era apenas um pingo num tonel de água.

Por favor, seja vermelho, seja vermelho, seja vermelho...

Sangue vermelho se avolumou e escorreu, num contraste brilhante contra o óleo negro no qual ele estava coberto.

Todos emitiram um suspiro de alívio que nem sequer sabiam que estavam represando.

– Ok, filho, isso é bom, é muito bom...

Eles não o haviam transformado.

V. se levantou do chão e fez um gesto de lado com a cabeça, indicando que queria conversar reservadamente. Enquanto Qhuinn o seguia, puxou o braço de Blay e o levou consigo. Era o mais natural a ser feito. Aquilo era muito sério, e ele sabia que não estava acompanhando muito bem – e não havia ninguém mais que ele quisesse consigo.

– Não tenho o medidor de pressão nem um estetoscópio, mas posso lhe garantir uma coisa... a pulsação dele está fraca e irregular, e tenho quase certeza de que ele está em estado de choque. Não sei quanto tempo ele ficou ali dentro e nem o que lhe fizeram, mas ele está vivo no sentido convencional da palavra. O problema é que Payne está fora da jogada – os olhos de V. cintilaram. – E vocês sabem por quê.

Ah, então ele falara com a irmã.

– Ela não poderá ser capaz de usar a magia dela – o Irmão continuou – e estamos a um milhão de quilômetros de qualquer lugar.

– Ou seja – disse Qhuinn.

V. o encarou.

– Ele vai morrer nas próximas horas se...

– V.! – exclamou Rhage. – Venha aqui!

No chão, o corpo castigado de Luchas se erguia sozinho, as mãos quebradas se fechavam em suas palmas, os joelhos se retesavam, a coluna se curvava para o teto do chalé.

Qhuinn se lançou para a frente e se ajoelhou perto da cabeça do irmão.

– Fique comigo, Luchas. Vamos, lute...

Aqueles olhos cinzentos se fixaram nos de Qhuinn, e a agonia deles era tão esmagadora que Qhuinn mal notou V. se apressando para perto e removendo a luva da mão brilhante.

– Qhuinn! – o Irmão exclamou, como se já tivesse repetido o nome dele algumas vezes.

Ele não desviou o olhar do irmão.

– O quê?

– Isto pode matá-lo, mas talvez faça seu coração voltar a bater no ritmo certo. É arriscado, mas é a única chance dele.

Na fração de segundo antes da resposta, ele sentiu uma necessidade esmagadora de que o irmão superasse aquilo de algum modo. Mesmo mal conhecendo o cara, e tendo se ressentido dele por anos – e depois ter sido surrado por ele quando Luchas se juntara à Guarda de Honra –, ele não percebera até eles terem sumido o quanto é possível se sentir desorientado sendo o único ser no planeta sem que ninguém mais do seu sangue esteja com você.

Em retrospecto, esse vazio fora exatamente o que o motivara durante o cio de Layla. E o que o fizera procurar Blay instintivamente.

Ame-os ou odeie-os, por laços de sangue ou do coração, a família era um tipo de oxigênio.

Necessário aos seres vivos.

– Vá em frente – disse ele.

– Espere – Blay interrompeu, tirando o cinto e entregando-o a Qhuinn. – Para a boca dele.

Mais uma razão para amar o cara. Não que ele precisasse de mais uma.

Qhuinn posicionou a tira de couro na boca aberta do irmão e segurou-a no lugar ao assentir para V.

– Fique comigo, Luchas. Vamos... Fique comigo...

Pelo canto do olho, ele rastreou o brilho da luz branca se aproximando do esterno do irmão...

O peito de Luchas se ergueu, o corpo todo sofrendo um espasmo nas tábuas do chão enquanto uma luz brilhante o atravessava, afunilando-se pelos braços e pelas pernas, irradiando-se da cabeça. O som que ele produziu não foi humano, um gemido gutural que atingiu Qhuinn bem em sua medula.

Quando V. retraiu a mão, a palma irradiante erguida, Luchas caiu como o peso morto que era, o corpo rebatendo, os membros vibrando.

Ele piscou rapidamente, como se uma brisa o atingisse no rosto.

– Mais uma vez – exigiu Qhuinn. Quando V. não respondeu, ele o encarou. – Mais uma vez.

– Isso é loucura – murmurou Rhage.

V. avaliou o macho por um instante. Depois aproximou a mão letal novamente.

– Uma vez, é só o que você terá – ele disse a Luchas.

– Maldição – Rhage interveio. – Mais do que isso e ele vira churrasquinho.

O segundo choque foi tão ruim quanto o primeiro – o corpo judiado se contorcendo, Luchas emitindo aquele som horrendo antes de aterrissar num baque de ossos.

Mas ele respirou. Uma respiração profunda, grande, poderosa que expandiu a caixa torácica.

Qhuinn sentiu vontade de rezar e achou que estava mesmo quando entoou:

– Vamos, vamos, vamos...

A mão dilacerada, aquela do anel, esticou-se e segurou a camisa de Qhuinn. A pegada era fraca, mas Qhuinn se inclinou.

– O quê? – disse ele. – Fale devagar.

A mão escorregou para a jaqueta.

– Fale comigo.

A mão do irmão parou no cabo de uma de suas adagas.

– Mate... me...

Os olhos de Qhuinn se arregalaram.

A voz de Luchas não era nada parecida com o que um dia fora, não passava de um sussurro rouco.

– Mate... me... irmão... meu...


CAPÍTULO 62

– Como é que você está? – Blay perguntou.

Parado na varanda do chalé Qhuinn inspirou e percebeu cheiro de cigarro. Blay acendera outro, e por mais que Qhuinn detestasse esse hábito, ele não tinha como culpá-lo. Inferno, se ele curtisse aquilo, também se apoiaria naqueles pregos de caixão.

Olhou-o de relance. Blay o fitava com paciência, obviamente preparado para esperar pela resposta, mesmo se demorasse o resto da noite.

Qhuinn consultou o relógio. Uma da manhã.

Quanto tempo demoraria para que o resto da Irmandade chegasse ali? E será que o plano de evacuação que bolaram iria funcionar?– Sinto como se estivesse enlouquecendo – respondeu.

– Também sinto isso – Blay exalou a fumaça na direção oposta. – Não acredito que ele está...

Qhuinn fitou as árvores diante deles.

– Eu nunca lhe perguntei sobre aquela noite.

– Não. E, francamente, eu não o culpo.

Atrás deles, no chalé, Rhage, V. e John estavam com Luchas. Todos tinham tirado as jaquetas e o envolveram com elas numa tentativa de mantê-lo aquecido.

Parado apenas com a camiseta e as armas, Qhuinn não sentia o frio.

Pigarreou.

– Você o viu?

Fora Blay a entrar na mansão depois do ataque. Qhuinn simplesmente não teve coragem de identificar os corpos.

– Sim, eu o vi.

– Ele estava morto?

– Até onde eu sabia, sim. Ele estava... Sim, eu não achei que existisse qualquer chance de ele estar vivo.

– Sabe, não vendi a casa.

– Ouvi dizer.

Tecnicamente, como membro repudiado da família, ele não teria nenhum direito à propriedade. Contudo, tantos foram mortos que ninguém exigiu a propriedade, e ela, de acordo com as Leis Antigas, fora revertida para o Rei, depois do que Wrath imediatamente a passou para Qhuinn como propriedade alodial.

O que quer que isso significasse.

– Eu não sabia o que pensar quando me disseram que eles haviam sido assassinados – Qhuinn levantou o olhar para o céu. A previsão era de mais neve, portanto, não havia nenhuma estrela visível. – Eles me odiavam. Acho que eu também os odiava. E depois eles não estavam mais lá.

Atrás dele, Blay ficou imóvel.

Qhuinn sabia por que e um embaraço repentino o fez enfiar as mãos nos bolsos. Sim, ele absolutamente detestava falar de emoções e esse tipo de baboseira, mas não havia como calar aquilo. Não ali. Sozinho. Com Blay.

Limpando a garganta, ele continuou:

– Mais do que tudo, fiquei aliviado, para ser bem franco. Não tenho como explicar o que foi crescer naquela casa. Com todas aquelas pessoas olhando para mim como se eu fosse uma maldição viva para eles – balançou a cabeça. – Eu costumava evitá-los o quanto podia, usando as escadas dos criados, ficando naquela parte da casa. Mas então os doggen ameaçaram se demitir. Na verdade, o maior benefício da minha transição foi que eu podia me desmaterializar direto da janela do meu quarto. Assim ninguém tinha que lidar comigo.

Mesmo quando ouviu Blay praguejando baixinho, Qhuinn não conseguiu parar de falar.

– E sabe o que era pior? Eu via que o amor era possível quando o meu pai olhava para o meu irmão. Teria sido uma coisa se o bastardo nos odiasse a todos, mas não. E isso me fez perceber o quanto eu era excluído – Qhuinn o olhou de relance. Remexeu os pés. – Por que está olhando assim para mim?

– Desculpe. Hum... desculpe. É que você... você nunca falou deles. Nunca.

Qhuinn franziu o cenho e mediu o céu, visualizando as estrelas mesmo sem poder enxergá-las.

– Eu queria. Com você, isto é. Com ninguém mais.

– E por que não falou? – como se aquilo fosse algo que o cara estivesse se perguntando há algum tempo.

No silêncio que se seguiu, Qhuinn remexeu nas lembranças nas quais nunca se demorava, vendo a si mesmo. A sua família. Vendo... Blay.

– Eu adorava ficar na sua casa. Eu não tenho como dizer o que aquilo significava para mim. Lembro-me da primeira vez que me convidou. Eu estava certo de que os seus pais me expulsariam. Eu estava pronto para isso. Inferno, eu tinha que lidar com aquela merda na minha própria casa, por que, então, completos desconhecidos não o fariam também? Mas a sua mãe... – Qhuinn pigarreou novamente. – A sua mãe me fez sentar à mesa da cozinha e me deu comida.

– Ela ficou devastada por você ter se sentido mal. Logo depois, você correu para o banheiro e ficou vomitando por uma hora.

– Eu não estava vomitando.

A cabeça de Blay se virou de repente.

– Mas você disse...

– Eu estava chorando.

Quando Blay se retraiu, Qhuinn deu de ombros.

– Qual é, o que eu iria dizer? Que chorei como uma menininha no chão do banheiro? Deixei a torneira aberta para que ninguém me ouvisse e dava descarga de vez em quando.

– Nunca soube disso.

– Esse era o plano – Qhuinn o fitou. – O plano foi sempre esse. Eu não queria que você soubesse como era ruim ficar na minha casa, porque eu não queria que você sentisse pena. Eu não queria que você, ou os seus pais, sentissem a obrigação de me acolher. Eu queria que você fosse o meu amigo... e você foi. Sempre foi.

Blay desviou rápido o olhar. Depois esfregou o rosto com a mão que não segurava o cigarro.

– Foram vocês que me fizeram superar aquilo – Qhuinn se ouviu dizer. – Eu vivia para as noites, porque eu poderia sair da casa. Era a única coisa que me fazia seguir em frente. Você, na verdade, fazia com que eu seguisse em frente. Sempre foi... você.

Quando os olhos de Blay voltaram a pousar sobre os seus, ele teve a sensação de que o cara estava à procura de palavras.

E que Deus os ajudasse, pois, não fosse por Saxton, Qhuinn teria lançado a palavra que começa com “A” bem ali, apesar de ser uma péssima hora.

– Você pode, sabe – disse Blay, por fim. – Falar comigo.

Qhuinn bateu os pés no chão e curvou os ombros, esticando os músculos das costas.

– Cuidado. Posso cobrar essa promessa.

– Isso ajudaria – quando Qhuinn olhou novamente, era Blay quem balançava a cabeça. – Não sei o que estou dizendo.

Até parece, pensou Qhuinn...

Sem aviso, V. emergiu do chalé, acendendo um cigarro caseiro enquanto saía. Enquanto Qhuinn se calava, não sabia se sentia alívio por aquela conversa ser forçada a um final ou não.

Exalando fumaça, V. disse:

– Preciso me certificar de que você compreende as consequências.

Qhuinn assentiu.

– Já sei o que você vai dizer.

Aqueles olhos de diamante se fixaram nos seus.

– Bem, vamos deixar às claras assim mesmo, está bem? Não sinto a presença de Ômega nele, mas se ele surgir ou se eu tiver deixado passar algum sinal, vou ter que cuidar dele.

Mate-me, irmão meu. Mate-me.

– Faça o que precisar fazer.

– Ele não pode entrar na mansão.

– Aceito.

V. ergueu a mão não letal.

– Jure.

Parecia estranho segurar a palma do Irmão e vincular sua palavra com o contato – porque era o que parentes faziam em situações como aquela, e Deus bem sabia que ele não era próximo de ninguém a esse ponto: mesmo antes de ser repudiado pela família, ele fora a última pessoa a poder jurar baseado em linhagens.

No entanto, os tempos mudaram, não?

– Mais uma coisa – V. bateu as cinzas da ponta do cigarro. – Vai ser uma recuperação muito longa e difícil para ele. E eu não estou só falando da parte física. Você precisa estar preparado.

Como se antes ele tivesse tido algum tipo de relacionamento com o cara... Ele podia partilhar um pouco do seu DNA com o sujeito, mas, fora isso, Luchas era um completo estranho.

– Eu sei.

– Ok. Muito justo.

Ao longe, o som agudo de motores cruzou a escuridão.

– Ainda bem – Qhuinn disse ao entrar no chalé novamente.

No canto, onde o tonel fora derrubado, o irmão não passava de uma pilha de jaquetas, o corpo retorcido coberto pelas mantas improvisadas.

Qhuinn atravessou as tábuas do piso, acenando para John e para Rhage.

Ajoelhando-se ao lado do irmão, sentiu como se estivesse num sonho, e não na realidade.

– Luchas? Preste atenção, eis o que vai acontecer. Vamos levá-lo num trenó. Você vai para uma clínica de tratamento. Luchas? Está me ouvindo?

 

Enquanto dois snowmobiles se aproximavam do chalé, Blay acompanhava o progresso deles da varanda, observando os faróis crescerem e ficarem mais luminosos, o par de motores passando para um ronco baixo quando chegaram ao destino. Ah, muito bom, atrás de um deles, havia um trenó coberto, do tipo que se via nos Jogos Olímpicos de Inverno quando algum esquiador se machucava e no qual era transportado montanha abaixo.

Perfeito.

Manny e Butch desmontaram e correram.

– Eles estão aqui – disse Blay, saindo do caminho do médico.

– Luchas? Está comigo? – ele ouviu Qhuinn murmurar.

Espiando para dentro, Blay viu Manny se inclinar por sobre o corpo de Luchas. Caramba, que noite. E ele que pensara que o show aéreo de algumas noites atrás fora um dramalhão e tanto...

Sempre foi você.

Voltando a fitar a floresta, Blay esfregou o rosto novamente, como se isso pudesse ajudar. Ele queria acender outro Dunhill, mas quanto mais aquilo demorava, mais paranoico ele ficava. A última coisa que aquela situação precisava era de um esquadrão de redutores aparecendo antes que conseguissem transportar Luchas para um local seguro.

Melhor ter uma .40 do que um cigarro nas mãos.

Sempre foi você.

– Você está bem? – Butch perguntou.

Já que a noite parecia ter como tema a honestidade, ele balançou a cabeça.

– Nem um pouco.

O tira o segurou pelo ombro.

– Então você o conhecia.

– Pensei que sim – ah, não, espere, a pergunta era sobre Luchas. – Isto é, sim, eu o conhecia.

– Isso tudo deve ser dureza.

Blay olhou por sobre o ombro novamente e viu, mais uma vez, Qhuinn agachado ao lado do irmão. O rosto do seu velho amigo estava envelhecido naqueles fachos de luz, a ponto de Blay se perguntar se de fato o vira relaxado quando estiveram juntos... Ou se ele estivera equivocado.

Sempre foi... você.

– É duro – ele murmurou.

E estranho também.

Logo após a transição, ele procurou por algum sinal de que o modo como ele se sentia pelo amigo fosse recíproco, alguma pista quanto a em que ponto Qhuinn se encontrava. No entanto, ele não enxergara nada, nada além da lealdade incontestável, da amizade, das habilidades tremendas de lutador. Durante todos aqueles encontros com outras pessoas, e nos treinamentos, e nas noites no campo de batalha... ele sempre se sentiu do lado absolutamente oposto do que desejava, fitando um muro que ele não tinha como transpor.

Aquele tempo breve na varanda?

Foi a primeira vez em que ele teve um vislumbre daquilo que desejava ainda mais do que sexo.

Merda, por um momento traiçoeiro, ele se perguntou se, de fato, entre as palavras que Layla deixara escapar do lado de fora do seu quarto havia o “estar”.

– Eles vão levá-lo agora – Butch segurou o braço de Blay e o tirou do caminho. – Venha para cá.

Luchas estava adequadamente coberto agora, com uma manta térmica Mylar prateada envolvendo-o dos pés à cabeça, deixando apenas uma parte do seu rosto visível. Eles o acomodaram numa maca dobrável, com Qhuinn numa ponta e V. na outra; Manny caminhava ao lado, como se não estivesse bem certo se precisaria ressuscitá-lo a qualquer instante.

Perto do trenó, eles o transferiram e o amarraram.

– Eu o levo – anunciou Qhuinn ao montar no snowmobile e dar a partida.

– Vá devagar e não pare – avisou Manny. – Ele não passa de uma pilha de ossos quebrados.

Qhuinn olhou para Blay.

– Vem comigo?

Não havia motivo para responder. Ele marchou até lá e se acomodou atrás do cara.

Bem ao estilo de Qhuinn, ele nem se importou em esperar pelos outros. Apenas apertou o acelerador e partiu. No entanto, ele prestou atenção à recomendação médica: deu uma volta ampla e seguiu os rastros que eles deixaram antes, mantendo a velocidade rápida para ganharem tempo, mas não tanto a ponto de sacudir Luchas.

Blay mantinha as armas a postos.

Enquanto Manny e Butch seguiam no outro snowmobile ao lado deles, os Irmãos e John Matthew se materializavam em distâncias regulares, aparecendo ao lado das trilhas paralelas.

Pareceu demorar cem anos.

Blay literalmente pensou que nunca conseguiriam sair dali. Parecia que os rugidos agudos de lamentação dos motores, o borrão que era aquela floresta escura e as manchas brancas e brilhantes das clareiras seriam a última coisa que ele veria.

Ele rezou o percurso inteiro.

Quando a estrutura grande em forma de caixa do hangar finalmente ficou visível, ao seu lado, estacionado, estava a coisa mais linda que Blay já vira.

O Escalade de Butch e V.

As coisas se sucederam bem rápidas a partir dali: Qhuinn parando ao lado do SUV, Luchas sendo transferido para o banco de trás, os snowmobiles sendo carregados no reboque preso atrás, Qhuinn seguindo para o banco do passageiro.

– Quero que Blay dirija – disse antes de entrar.

Houve um segundo de pausa. Em seguida, Butch assentiu e jogou as chaves.

– Manny e eu vamos atrás.

Blay se acomodou detrás do volante, mexeu no assento para acomodar as pernas e acionou o motor. Com Qhuinn ao seu lado, ele olhou e disse:

– Coloque o cinto.

O macho o obedeceu, ajustando a faixa de nylon por sobre o peito. Depois, imediatamente, virou-se para trás para se concentrar no irmão.

Uma sensação de determinação única se acomodou sobre os ombros de Blay e ele apertou as mãos. Não se importava pelo que tivesse de passar por cima, atropelar ou deixar as marcas da grade do carro; ele levaria Qhuinn e o irmão dele para o centro de treinamento e para a clínica.

Pressionando o pedal do acelerador, não olhou para trás.


CAPÍTULO 63

Trez franziu para a calculadora na qual vinha inserindo números. Esticando a mão para pegar a lingueta longa de papel que se pendurava pelo outro lado da sua escrivaninha, ele tentou enxergar a coluna de números que acabara de produzir.

Piscou.

Esfregou os olhos. Abriu-os novamente.

Nada. O círculo pulsante no quadrante superior direito do seu campo de visão ainda estava ali, e isso não era resultado de um problema de visão.

– Merda.

Empurrando os recibos que vinha somando de lado, olhou para o relógio, depois apoiou a cabeça nas mãos. Ao apertar os olhos, a aura ainda estava no mesmo lugar, o padrão de formas geométricas entrelaçadas brilhando em todas as cores do arco-íris.

Ele tinha cerca de 25 minutos antes de o inferno acontecer na Terra – e não conseguiria se desmaterializar.

Pegando o telefone do escritório, apertou o botão do interfone. Dois segundos depois, a voz de Xhex se fez ouvir pelo alto-falante, mais aguda do que de costume. O que significava que a sua sensibilidade auditiva também estava sendo afetada.

– Ei, diz aí... – ela disse.

– Estou ficando com enxaqueca. Preciso ir embora.

– Puxa, cara, que merda. Não teve uma na semana passada?

Tanto faz. Isso não vinha ao caso.

– Pode assumir?

– Precisa de carona para casa?

Sim.

– Não. Eu consigo – ele começou a juntar a carteira, o celular, as chaves. – Ligue se precisar, ok?

– Pode deixar.

Trez inspirou fundo quando a ligação terminou e ele se levantou. Por enquanto, sentia-se perfeitamente bem. E a boa notícia era que ele não estava nem a quinze minutos de casa, mesmo se pegasse todos os faróis vermelhos. O que lhe daria dez para se trocar, pegar um cesto de lixo e deixar uma toalha ao lado da cama e se preparar para um colapso digestivo.

Dali a seis ou sete horas? Ele se sentiria bem melhor.

Infelizmente, entre o agora e o depois seria uma merda.

A caminho da porta do escritório, pegou a jaqueta, colocou-a por sobre os ombros e se preparou para a música do outro lado.

Quando saiu, deu de cara com a parede que era o peito considerável de iAm.

– Me passe as chaves – foi tudo o que o irmão disse.

– Você não tem que...

– Eu pedi a sua opinião?

– Maldita Xhex...

– Logo atrás do seu irmão – a fêmea o interrompeu. – E sei que você disse isso como uma forma de elogio.

– Estou bem – disse Trez, ao tentar mudar o campo de visão para enxergar sua chefe de segurança.

– Quantos minutos até que a dor piore? – Xhex sorriu, mostrando as presas. – Quer mesmo desperdiçar esse tempo discutindo comigo?

Trez abriu caminho pela boate e, no instante em que o frio o golpeou nas narinas, seu estômago protestou, como se estivesse prestes a agir.

Acomodando-se no assento do passageiro do seu BMW, ele fechou os olhos e recostou a cabeça. A aura estava se expandindo, a linha original de brilho se dividira em dois e se esticara, movendo-se lentamente para a margem da sua visão.

Durante o trajeto para casa, ele se sentiu grato por iAm não ser do tipo conversador.

Embora isso não significasse que ele não sabia no que o cara estava pensando.

Estresse demais. Dores de cabeça demais.

Ele, provavelmente, também precisava se alimentar, mas isso não aconteceria por um tempo.

Enquanto o irmão dirigia com atenção, Trez passou o tempo imaginando em que parte da cidade estavam, que faróis tinham passado ou nos quais paravam; que curvas faziam; onde estava o Commodore, com sua torre alta ficando cada vez maior conforme se aproximavam.

Uma inclinação súbita lhe disse que estavam entrando na garagem subterrânea e que ele se atrasara em sua visualização mental: até onde ele supunha, eles deviam estar alguns quarteirões mais para trás.

Diversas curvas à esquerda enquanto espiralavam três andares para baixo até uma das duas vagas que lhes pertenciam.

Quando entraram no elevador e iAm apertou o botão do décimo oitavo, a aura vagara para os confins da sua visão, desaparecendo como se jamais tivesse existido.

A calmaria antes da tempestade.

– Obrigado por me trazer para casa – disse com sinceridade. Ele detestava depender de qualquer pessoa para qualquer coisa, mas seria muito difícil não atingir nada enquanto flashes de neon pipocam atrás dos seus glóbulos.

– Achei que seria melhor assim.

– É...

Ele e o irmão não falaram da visita do sumo sacerdote desde que ela acontecera, entretanto aquela aparição cordial de AnsLai estava entre os dois, mas, pelo menos, iAm deixara de lado sua irritação para trazê-lo para casa.

A primeira indicação para Trez de que a dor de cabeça estava começando de fato foi o modo como a campainha sutil de aviso de chegada ao destino deles atravessara sua cabeça como uma bala.

Ele gemeu quando as portas se abriram.

– Isso vai ser ruim.

– Você não teve uma na semana passada?

E ele imaginou quantas pessoas poderiam lhe perguntar isso ainda.

iAm cuidou da trava na porta, e Trez largou a jaqueta dois metros depois da entrada. Despiu o suéter de cashmere preta a caminho do corredor e estava desabotoando a camisa de seda quando entrou...

Ao ficar imobilizado, a única coisa que lhe passou pela cabeça foi aquela cena do filme Trocando as bolas – quando Eddie Murphy entra no seu quarto do apartamento luxuoso e uma garota seminua se ergue de sua cama e diz: “Olá, Billy Ray”.

A diferença nesta situação era que a sua perseguidora, aquela do namorado valentão com problemas de confiança, era loira e não vestia o corpete justo dos anos 1980. Para falar a verdade, ela estava absoluta e completamente nua.

A arma que apareceu sobre o ombro dele estava firme e, como acessório, tinha um silenciador.

Portanto, iAm poderia matá-la, sem problemas.

– Pensei que ficaria feliz em me ver – a garota disse, olhando dele para o cano da arma do irmão.

Como se quisesse parecer mais sedutora, ela levantou um braço para mexer nos cabelos, mas se ela tinha esperanças de os seios o atiçarem, estava sem sorte: aquelas pedras falsas estavam tão imóveis quanto algo pregado na parede.

– Como entrou aqui? – Trez exigiu saber.

– Não está feliz em me ver? – quando não recebeu nenhuma resposta e o cano ainda estava mirado nela, ela fez beiço. – Fiz amizade com o segurança, está bem. O quê? Ah, ‘tá bom... eu chupei ele, ok?

Quanta classe.

E aquele policial contratado cretino ficaria desempregado.

Trez andou até a pilha de roupas no pé da cama.

– Vista-se e saia.

Deus, como estava cansado.

– Ora, vamos lá – ela se lamuriou quando as coisas dela caíram ao seu redor. – Eu só queria fazer uma surpresinha para quando você chegasse do trabalho. Pensei que isso fosse fazer você feliz.

– Vejamos... não fez. Você tem que sair daqui... – como ela abriu a boca como se fosse dar uma de louca para ele, ele balançou a cabeça e a interrompeu. – Nem pense nisso. Não estou a fim e o meu irmão aqui não se importa muito se você vai sair daqui andando ou num saco plástico. Vista-se. Saia.

A garota olhou de um para o outro.

– Você foi tão legal comigo na outra noite.

Trez fez uma careta quando a dor se apossou do lado direito da sua cabeça.

– Meu bem, vou ser bem franco com você. Nem sei o seu nome. Nós transamos duas vezes...

– Três vezes...

– Não me interessa quantas vezes foram. O que eu sei é que você vai se esquecer disso tudo hoje. Se você me procurar de novo ou vir até aqui, eu vou... – o Sombra dentro dele queria ser mais sangrento em sua explicação, mas ele se forçou a continuar em termos humanos que ela pudesse entender. – ... chamar a polícia. E você não vai querer isso, porque é viciada em drogas e também negocia paralelamente. E se eles vasculharem sua casa, seu carro, sua bolsa, vão encontrar muitas coisas bem interessantes. Eles vão pegar você e o idiota com quem está dormindo por posse de drogas com o intuito de distribuição, e vão mandar vocês para a cadeia.

A garota só piscou.

– Não me obrigue, benzinho – Trez disse numa voz exausta. – Você não vai gostar do que vai acontecer.

Digam o que quiserem a respeito da moça, mas ela era rápida quando devidamente motivada. Alguns minutos depois, após algumas poses de ioga para enfiar aqueles pesos plásticos dentro de uma “blusa” dois números menores, ela estava a caminho, bolsinha barata sobre o ombro, os saltos altos pendurados pelas alças.

Trez não disse nada. Apenas a seguiu até a porta, abriu... e fechou na cara dela quando ela se virou para dizer alguma coisa.

E fechou a trava manualmente.

iAm guardou a pistola.

– Temos que nos mudar. Este lugar não é confiável.

Seu irmão estava certo. Não que onde moravam fosse um grande segredo, mas ficar no Commodore dava a ideia de que o segurança não seria estúpido o bastante para deixar uma mulher subir sem a permissão dos proprietários.

Se isso podia acontecer uma vez, poderia acontecer novamente...

Abruptamente, a dor se intensificou, como se o volume do concerto infernal em seu crânio tivesse disparado de súbito.

– Vou vomitar por algum tempo – murmurou ao se arrastar dali. – Vamos começar a mudança assim que esta enxaqueca passar...

Ele ficou sem saber o que iAm respondera, ou até mesmo se o cara chegara a responder.

Cacete.


CAPÍTULO 64

Parado do lado de fora da sala de exames do centro de treinamento, Qhuinn tinha as mãos enfiadas nos bolsos da calça, os dentes cerrados com força, as sobrancelhas tão baixas que pareciam unidas.

Esperando... Esperando...

Ele concluiu que essa coisa médica era bem parecida com uma bela luta: longos períodos sem fazer nada, interpostos por muitos momentos de morte e vida.

Era o bastante para estampar um carimbo de louco na testa de alguém.

Ele olhou para a porta.

– Quanto tempo mais acha que vai demorar?

Do outro lado, Blay cruzou e descruzou as longas pernas. O cara se esticara no chão na última meia hora, mas aquela fora a única concessão para aquele buraco de minhoca em que foram tragados.

– Já deve estar terminando agora – ele respondeu.

– É. O corpo só tem determinado número de partes, certo?

Depois de um instante, Qhuinn se concentrou melhor no macho. Havia círculos escuros ao redor dos olhos de Blay e as faces estavam encovadas. Ele também estava mais pálido do que de costume, o rosto claro demais.

Qhuinn se aproximou, recostou-se contra a parede e deixou os coturnos deslizarem até que seu traseiro batesse no chão ao lado de Blay.

Blay olhou para ele e lançou um breve sorriso, depois voltou a fitar as pontas das botas.

Qhuinn observou quando a própria mão se esticou e resvalou o maxilar do amigo. E quando Blay se assustou e olhou para ele, Qhuinn descobriu que queria fazer muito mais – e não sexualmente. Ele queria trazer o macho para o colo e deixar Blay repousar sua cabeça ali. Queria afagar os ombros fortes e passar os dedos pelos cabelos ruivos curtos. Queria que algum passante lhe trouxesse uma coberta para que ele envolvesse e esquentasse o corpo poderoso que parecia enfraquecido.

Qhuinn se forçou a desviar os olhos e afastou a mão.

Deus, como ele se sentia... preso. Ainda que não houvesse algemas nele.

Olhando para baixo, verificou os pulsos. Os tornozelos. Sim, totalmente livres. Nada o segurava.

Abaixando as pálpebras, ele deixou a cabeça encostada na parede. Em sua mente, ele tocava em Blay – e, de novo, não de modo sexual. Apenas sentia a vitalidade debaixo da pele, o deslocamento dos músculos, a solidez dos ossos.

– Acho que você deveria procurar Selena – disse-lhe.

Blay exalou como se algo o tivesse atingido no peito.

– É, eu sei.

– Podemos ir juntos – Qhuinn se ouviu oferecendo.

Ele abriu os olhos a tempo de ver a cabeça de Blay virar rapidamente em sinal de surpresa.

– Ou você pode ir na frente, sozinho – Qhuinn estalou as juntas. – Como achar melhor.

Merda. Em face do que vinha acontecendo com Saxton, aquilo talvez fosse um pouco demais. Alimentar-se, afinal, podia ser um ato mais íntimo do que o sexo...

– É... – Blay respondeu com suavidade. – Vou fazer isso.

O coração de Qhuinn começou a bater com força. E, mais uma vez, não porque esperasse conseguir algo do cara. Ele só queria...

Partilhar. Ele achava que a palavra certa era essa.

Não, espere. Era mais do que isso. Ele queria cuidar do macho.

– Sabe, acho que nunca lhe agradeci – murmurou.

Quando os olhos azul bebê de Blay o encararam, quis desviar o olhar – o contato visual era quase demais para ele suportar. Mas logo pensou no irmão naquele leito hospitalar – e em todos os modos como as pessoas eram roubadas do tempo.

Jesus, ele manteve tantas coisas reservadas por tanto tempo – e todas lhe pareceram perfeitamente válidas. Mas isso não seria arrogância demais? Que tipo de relutância pressupunha que ele teria tempo para falar daquilo que desejava? Que a pessoa no fundo da sua mente sempre estaria por perto? Que ele mesmo estaria?

– Pelo quê? – perguntou Blay.

– Por nos trazer para casa. A mim e a Luchas – ele inspirou fundo e exalou o ar lentamente. – E por ficar aqui ao meu lado a noite inteira. Por procurar Payne e pedir a ajuda dela. Por cuidar da minha retaguarda no campo de batalha e durante os treinamentos. E também pela cerveja e pelos videogames. Pelas batatinhas e pelos M&M’s. Pelas roupas que peguei emprestado. Pelo chão em que dormi quando passava a noite na sua casa. Obrigado por me deixar abraçar a sua mãe e conversar com o seu pai. Obrigado... pelas milhares de coisas boas que fez para mim.

Do nada, mais uma vez se lembrou da noite em que chegara em casa a tempo de testemunhar o pai entregando o anel de sinete de ouro para o irmão.

– Obrigado por me telefonar naquela noite – disse roucamente.

As sobrancelhas de Blay se ergueram.

– Que noite?

Qhuinn pigarreou.

– Depois que Luchas passou pela transição e meu pai lhe entregou... você sabe, o anel – ele balançou a cabeça. – Subi para o meu quarto e pensei em fazer algo... hum, algo verdadeiramente estúpido. Você me telefonou. Você foi até lá. Lembra?

– Lembro.

– Não foi a única vez em que fez algo assim.

Enquanto Blay desviava o olhar, Qhuinn soube exatamente para onde a mente do cara tinha se voltado. Sim, aquela noite não fora a única em que quase pulara do precipício.

– Eu já disse que sentia muito – Qhuinn declarou. – Mas acho que nunca agradeci. Por isso... obrigado.

Antes de perceber o que estava fazendo, ele esticou a mão, oferecendo a palma. Pareceu-lhe apropriado marcar aquele momento, ali, naquele instante, naquele lugar, do lado de fora da sala de operações do seu irmão arrebentado, com algum tipo de contato solene.

– Apenas... obrigado.

 

Inacreditável.

Depois do que pareceram vidas ao lado de Qhuinn, Blay pensava que as surpresas tinham chegado ao fim. Que o macho não poderia arranjar nada mais que o deixasse sem fala.

Errado.

Jesus... de todas as conversas imaginárias que teve em sua cabeça com o cara, conversas nas quais fingia que Qhuinn se abria, ou dizia algo bem perto “da coisa certa”, nada nunca se tratara de gratidão. Mas aquilo... era exatamente o que ele precisava ouvir, mesmo sem saber disso.

E aquela palma ofertada lhe partiu o coração.

Ainda mais porque o irmão do cara estava às portas da morte na sala diante deles.

Blay não aceitou a mão oferecida.

Ele esticou o braço, segurou o rosto do lutador e aproximou Qhuinn para um beijo.

Que deveria ter durado apenas um segundo – como se os lábios se encontrando equivalessem a um aperto de mãos. Quando foi se afastar, porém, Qhuinn o capturou, e o segurou no lugar. As bocas se encontraram de novo... e de novo... e mais uma vez, as cabeças inclinadas para o lado, o contato se demorando.

– Não tem de quê – Blay disse rouco. Depois sorriu de leve. – Contudo, não garanto que tenha sido sempre um prazer.

Qhuinn riu.

– É. Imagino que emprestar as calças não tenha sido divertido – o macho ficou sério. – Por que, diabos, ficou sempre por perto?

Blay abriu a boca, a verdade pairava na ponta da língua.

– Ah... Merda. Desculpem, rapazes, não quis interromper.

Qhuinn se afastou com tanta rapidez que literalmente arrancou o rosto das mãos de Blay. Depois, num salto, se pôs de pé e encarou V., que acabara de sair da sala de operações.

– Sem problemas. Não estava acontecendo nada de mais.

Enquanto a expressão de V. registrava um “até parece”, Qhuinn apenas encarou o Irmão, como se desafiasse Vishous a ter uma opinião contrária à sua.

No silêncio entre os dois machos, Blay se levantou mais lentamente e descobriu que estava tonto, e não porque não havia se alimentado.

Sem problemas. Não estava acontecendo nada de mais.

Para ele, não foi bem assim. Maaaas, mais uma vez, Qhuinn se desvencilhara de qualquer proximidade, escondera-se atrás de um escudo, retraíra-se, desconectara-se.

Só que... Caramba, era a hora errada. O lugar errado. E V. era a última pessoa diante da qual você gostaria de demonstrar todo o seu amor.

No entanto, aquilo serviu de lembrete. Situações estressantes tinham um modo de tornar a mais rígida das personalidades maleáveis. Pelo menos por um tempo. Tristeza, choque, ansiedade extrema... tudo isso podia deixar alguém vulnerável e propenso a falar de modo que não falaria costumeiramente porque tinha suas defesas completamente inoperantes. O comportamento extraordinário não era um sinal da mudança da maré, porém. Não era um indicador de algum tipo de conversão religiosa segundo o qual, dali por diante, tudo ficaria diferente.

Qhuinn estava mexido pelo que acontecia com o irmão. E qualquer revelação ou declaração emotiva que saísse de sua boca, sem dúvida, seria o produto do estresse pelo qual passava.

E ponto.

Nada de “estar apaixonado” ali. Não mesmo. Não permanentemente. E, droga, ele tinha que se lembrar disso.

– ... os ossos vão ficar no lugar? – Qhuinn estava perguntando.

Blay procurou se concentrar enquanto V. acendia um dos seus cigarros e exalava a fumaça para longe deles.

– Primeiro, nós o estabilizamos. Selena vai alimentá-lo novamente e depois vamos abrir o abdômen dele numa cirurgia exploratória para descobrir de onde vem a hemorragia. Depois que virmos o que está acontecendo, consertamos os ossos.

– Vocês têm alguma ideia do que possa ter acontecido com ele?

– Ele não está falando no momento.

– Ok. Entendo.

– Por isso precisamos do seu consentimento. Ele não é capaz de entender os riscos e os benefícios.

Qhuinn passou os dedos pelos cabelos.

– Sim. Claro. Façam o que precisarem fazer.

V. exalou novamente, o cheiro do tabaco turco permeando o ar e lembrando a Blay exatamente quantas horas, minutos e segundos fazia que ele acendera seu último cigarro.

– Você tem Jane, Manny, Ehlena e a mim ali dentro. Não vamos deixar que nada aconteça com ele, está bem? – ele segurou Qhuinn pelo ombro. – Ele vai superar. Nem que nós quatro morramos tentando.

Qhuinn murmurou um agradecimento.

E V. olhou para Blay. Depois olhou para Qhuinn. Pigarreou.

Sim, o Irmão estava fazendo um tipo de cálculo mental. Perfeito.

– Por isso, fiquem por aqui. Eu volto com notícias assim que souber de alguma coisa. É isso aí.

As sobrancelhas do Irmão se ergueram bem alto na testa, as tatuagens na têmpora se distorcendo enquanto ele esmagava o toco do cigarro mal fumado com a sola do coturno.

– Volto daqui a pouco – disse antes de voltar a entrar.

Após a saída do Irmão, Qhuinn andou de um lado para o outro, os olhos fixos no piso de concreto, as mãos nos quadris estreitos, as armas que ele se esquecera de tirar captando a luz fluorescente do lugar e reluzindo.

– Vou sair para fumar – Blay informou. – Volto logo.

– Você pode fumar aqui – Qhuinn sugeriu. – A porta é selada.

– Preciso de um pouco de ar fresco. Mas não vou demorar.

– Ok.

Blay saiu apressado, indo direto para a porta no fim do corredor que se abria para o estacionamento. Quando chegou lá, abriu caminho com um soco e inspirou profundamente.

Ar fresco, o cacete. Tudo o que obteve foi um ar seco e carregado de concreto.

Mas pelo menos estava mais arejado ali.

Merda.

Deixara os cigarros na maldita jaqueta. No chão. Do lado de fora da sala de operações.

Enquanto praguejava e andava de um lado para o outro, ele se sentiu tentado a socar alguma coisa, mas juntas machucadas seriam apenas mais uma coisa que ele deveria explicar para as pessoas.

E o que V. testemunhara já era mais do que o bastante.

Enfiando as mãos nos bolsos das calças, ficou intrigado ao sentir que a direita resvalava em algo duro.

O isqueiro de Saxton. Aquele que o macho lhe dera em seu aniversário.

Pegando o objeto, ele o virou e revirou na mão, pensando em tudo o que fora dito no corredor.

Houve uma época em que ele teria pegado essas palavras e as colocado numa cornija em sua cabeça e em seu coração, dando-lhe um lugar de destaque para garantir que a sua preciosidade ficasse para sempre com ele pelo resto de sua vida.

Por tantos anos aqueles momentos no chalé e no chão duro e frio de agora há pouco teriam bastado para deixar de lado qualquer conflito, qualquer rusga e dor, deixando tudo tão imaculado que ele se relacionaria como um virgem para com Qhuinn.

Um começo do zero.

Tudo não só perdoado, como também esquecido.

Esse não era mais o caso.

Deus, ele provavelmente era jovem demais para se sentir tão velho, mas a vida se baseava mais em experiência e não em dias do calendário. E parado ali, sozinho, ele, definitivamente, sentia-se um ancião: estava absoluta e completamente livre da ingenuidade colorida e otimista que acompanhava a visão de vida de um jovem.

Quando se acreditava que os milagres não eram impossíveis... mas meramente ocasionais.

Ainda bem que V. aparecera naquela hora.

Senão, três palavrinhas teriam escapado da sua boca. E, sem dúvida, o condenariam de um modo que ele sequer poderia imaginar.

Hora errada. Local errado.

Para esse tipo de coisa.

Para sempre.


CAPÍTULO 65

Enquanto iAm andava de um lado para o outro no apartamento, ele mantinha a pistola sempre consigo – ainda que fosse altamente improvável que houvesse um segundo round com alguma vagabunda nua invadindo o “lar, doce lar” do seu irmão e dele.

Maldição, ele bem que precisava de uma fumaça vermelha. Só para se livrar dessa irritação.

Por que, naquele exato instante, ele estava à beira da violência.

Ele supunha que a boa notícia era que ele, de fato, não tinha um alvo, e era isso o que o mantinha estagnado. A enxaqueca estava acabando com seu irmão. E aquela pobre mulher desgastada que fora acompanhada até a porta da frente? Ela já estava sendo torturada em níveis demais para se contar. Agora, aquele segurança seria um excelente candidato, mas o filho da mãe já saíra do trabalho uma hora antes, e iAm não estava disposto a deixar Trez naquele estado vulnerável só para poder dar um corretivo no imbecil...

Ao longe, ele ouviu o sussurro dos canos de esgoto.

Era a descarga do vaso sanitário de Trez sendo acionada. De novo.

E logo se seguiu uma imprecação, o rangido da estrutura de madeira enquanto Trez se deitava na cama.

Pobre. Coitado.

iAm foi até as imensas janelas que davam vista para o rio e parou para fitar a margem oposta de Caldwell. Pousando as mãos nos quadris, ele examinou os lugares para onde poderiam se mudar. A lista era curta. Inferno, um dos principais benefícios do Commodore fora a sua segurança; com isso, eles nem se importavam em acionar o alarme.

O que se mostrara um erro.

Eles necessitavam de um lugar seguro. Protegido. Impenetrável.

Ainda mais se seu irmão continuasse com aquela mania de conquistar e abandonar, e se AnsLai mantivesse suas visitas “diplomáticas”.

iAm voltou a andar. Era impossível ignorar o fato de que seu irmão estava piorando. Aquela situação sexual vinha se arrastando há anos – e por um bom tempo, iAm apenas a catalogou como um impulso sexual saudável de um macho.

Algo que muitas vezes ele acreditou que lhe faltasse.

Pensando bem, seu irmão transara com fêmeas em número suficiente por eles dois.

Nos últimos meses, contudo, ficara evidente que o processo vinha se intensificando – e isso antes de o sumo sacerdote começar a aparecer. E agora que as coisas pareciam estar chegando ao fim com AnsLai? As maquinações do s’Hisbe simplesmente colocariam ainda mais pressão em seu irmão, o que o levaria a aprontar ainda mais.

Merda. iAm sentia como se estivesse diante de um entroncamento, computando a velocidade de uma locomotiva e da aproximação de um carro... e ver a carnificina seria o resultado. A metáfora também se aplicava por ele se sentir tão impotente, visto que não conseguiria deter nenhuma das forças: não estava atrás do volante, nem no assento do maquinista. Tudo o que lhe restava fazer era se acomodar e assistir à cena.

Ou, muito provavelmente, gritar ao lado da estrada.

Para onde diabos eles poderiam ir...

Franzindo o cenho, ergueu o olhar do cenário, subiu pela moldura de gesso e parou no teto.

Depois de um minuto, pegou o celular e fez um telefonema.

Quando desligou, foi até o quarto do irmão. Entreabrindo a porta, disse para o silêncio escuro e denso:

– Vou dar uma saída rápida. Volto logo.

O gemido de Trez poderia significar qualquer coisa, desde “Beleza” até “Ai, não tão alto” ou até “Bom divertimento, vou continuar vomitando mais um pouco”.

iAm andou rápido. Para fora do apartamento. Para dentro do elevador.

Dentro do qual, apertou o botão “C” de Cobertura.

Quando a porta deslizou se abrindo, havia duas escolhas: uma direção o levava para o apartamento do Irmão Vishous; a outra para o do seu velho amigo.

Ele se encaminhou para a campainha de Rehvenge.

Quando o sympatho abriu a porta, Rehv apareceu como de costume: com seu corte moicano, os olhos violeta e casaco de marta. Perigoso. Um tanto diabólico.

– Ei, cara, como está? – disse o macho ao se abraçarem e baterem no ombro um do outro. – Entre.

Enquanto iAm entrava no espaço privativo do Reverendo pela primeira vez em mais ou menos um ano, descobriu que nada havia mudado e, por algum motivo, isso era um alívio.

Rehvenge foi até o sofá de couro e se sentou, apoiando a bengala ao seu lado e cruzando as pernas.

– Do que precisa?

Enquanto iAm tentava juntar as palavras certas, Rehv imprecou.

– Caramba, eu sabia que esta não era uma visita social, mas não esperava que as suas emoções estivessem tão conturbadas.

Ah, sim, as características de devorador de pecados equivaliam a não esconder nada do macho.

Ainda assim, era difícil falar.

– Não sei bem se está a par do que está acontecendo com Trez?

Rehv franziu o cenho, as sobrancelhas escuras se unindo sobre aquele olhar violeta intenso.

– Pensei que o Iron Mask estivesse indo bem. Vocês estão com problemas? Tenho bastante dinheiro se precisarem...

– Os negócios estão ótimos. Temos mais dinheiro do que conseguimos gastar. O problema são as atividades extracurriculares do meu irmão.

– Ele não está metido com drogas, está? – Rehv perguntou com severidade.

– Mulheres.

Rehv gargalhou e dispensou essa preocupação com um gesto de lado da mão da adaga.

– Ah, se é só isso...

– Ele está completamente descontrolado, e uma delas apareceu do nada no nosso apartamento. Chegamos em casa e lá estava ela.

Rehv se recostou e franziu o cenho.

– No seu apartamento? Como é que ela conseguiu entrar?

– O menor denominador comum com um segurança – iAm se movimentou ao redor da sala moderna, notando de passagem que a vista, de fato, era melhor dali de cima. – Trez vem transando com tudo que se move há anos, mas, recentemente, ele tem sido negligente: não apaga as memórias, transa com a mesma mais de uma vez, não se preocupa com as consequências.

– Que diabos está havendo com ele?

iAm se virou e encarou o mestiço, que era a coisa mais perto de uma família que ele tinha, além da sua carne e do seu sangue. A bem da verdade, ele confiava mais naquele cara do que em 99% dos seus familiares de fato.

– Trez está comprometido.

Longo silêncio.

– Como que é?

iAm assentiu.

– Ele está comprometido.

Rehv se levantou do sofá.

– Desde quando?

– Desde o nascimento.

– Aaaahhhh... – Rehv emitiu um assobio suave. – Então é uma coisa do s’Hisbe.

– Ele foi prometido para a filha primogênita da rainha.

Rehv se calou por um instante. Depois esfregou a cabeça.

– Isso faria dele um maldito Rei, não faria?

– Isso mesmo. Embora sejamos uma sociedade matriarcal, isso não é uma irrelevância.

– Olha só – o macho murmurou. – Ele, eu e Wrath. Que trio.

– Bem, é diferente para o s’Hisbe, claro. É a rainha quem dita tudo para nós.

– Então o que ele está fazendo aqui fora? Com todos nós Desconhecidos?

– Ele não quer ligação alguma com o s’Hisbe.

– Ele tem poder de escolha?

– Não – iAm olhou para o bar num canto. – Importa-se se eu me servir de um drinque?

– ‘Tá de brincadeira? Eu já estaria bêbado se estivesse no seu lugar.

iAm foi até lá, pesou suas opções e acabou escolhendo uma garrafa com um pequeno rótulo no gargalo escrito Bourbon. Serviu sem gelo e, ao sorver um gole do copo de cristal, saboreou a queimação na língua.

– Gostoso.

– Coleção Parker’s Heritage, lote pequeno. O melhor.

– Não pensei que gostasse de beber.

– Isso não é desculpa para não conhecer aquilo que sirvo para os meus convidados.

– Ah.

– Então, qual é o plano?

iAm inclinou a cabeça para trás, esvaziou o copo e engoliu de uma vez.

– Precisamos de um lugar seguro para ficar. E não só por conta da situação com aquela mulher. Recebemos uma visita do sumo sacerdote na semana passada, isso significa que eles estão começando a levar a sério essa coisa de voltar para casa. Eles estão à procura dele, e se o encontrarem? Temo que ele mate o representante do s’Hisbe. E aí sim teremos um belo problema.

– Acha mesmo que ele chegaria a esse ponto?

– Sim, acho sim – iAm se serviu de outra dose. – Ele não vai voltar para lá. E eu preciso de tempo para encontrar uma maneira de resolver esse conflito antes que algo desastroso aconteça.

– Vocês querem se mudar para a minha casa no norte?

iAm secou o segundo copo de Bourbon de uma vez só.

– Não – ele o encarou. – Quero que nos mudemos para o complexo da Irmandade.

Enquanto Rehv praguejava longa e lentamente, iAm se serviu mais uma vez.

– É o lugar mais seguro para nós.

 

Xcor estava coberto de sangue de redutor e suor ao voltar para seu novo esconderijo. Seus lutadores ainda estavam no centro da cidade, enfrentando o inimigo, mas ele teve que sair e procurar refúgio.

Havia um belo corte em seu braço.

A casa que Throe arranjara para eles estava localizada num bairro modesto cheio de casas modestas com garagens para dois carros e balanços nos jardins. Dentre as suas vantagens, estava o fato de se localizar no fim de uma rua sem saída, e de haver um lote vazio de um lado e a unidade de processamento do Departamento de Esgoto de Caldwell do outro.

Eles teriam aquela casa por três meses com uma opção de compra ao fim do contrato.

Enquanto se desmaterializava pelas cortinas fechadas da sala de estar, ele lamentou o sofá macio em forma de L, suas almofadas cheias de borlas, com sua cor quase de cozido de carne.

Ainda que apreciasse a calefação existente, o fato de o lugar vir “decorado” o incomodava. No entanto, ele sentia estar sozinho nisso: nos últimos dias, flagrou um ou outro dos seus soldados reclinado no maldito monstro, as cabeças largadas para trás, as pernas bem esticadas e confortáveis.

O que viria em seguida? Mantinhas?

Partindo escada acima, sentiu saudades do castelo sombrio que ainda possuíam no Antigo País. Desejou o peso das pedras que os circundavam, a natureza impenetrável do projeto, com seu fosso e muros altos. Lamentou também a falta do divertimento de que desfrutavam assustando os aldeões, dando presença física ao mito.

Bons tempos, diriam aqui no Novo Mundo.

No segundo andar, ele se recusou a olhar os quartos. O rosa em um deles queimava seus olhos, e o verde-água de outro também era um ataque aos seus sentidos. E não havia alívio ao entrar na suíte principal. Papel de parede florido por todos os lados. Sobre a cama, diante das janelas e cobrindo toda a poltrona no canto.

Pelo menos suas botas de combate esmagavam o carpete fofo, deixando marcas fundas como hematomas em seu caminho até o banheiro.

Pelo amor de Deus, ele nem tinha como definir o esquema de cores dali.

Amora?

Estremecendo, desejou deixar as luzes de cima da pia desligadas, mas com as cortinas de florzinhas fechadas, a iluminação da rua abaixo estava completamente invisível, e ele precisava ver o que fazia...

Ah, pelos deuses.

Esquecera-se das cúpulas de renda dos abajures.

Na verdade, em qualquer outro ambiente, as iluminações gêmeas em vermelho sugeririam algo de natureza sexual. Mas não naquele antro excessivamente agradável e meigo. Ali, elas pareciam dois confeitos de goma brilhando na parede.

Ele quase engasgou por excesso de estrogênio.

Num ato de autopreservação, retirou as duas cúpulas ofensivas de cima das lâmpadas e as deixou na bancada entre as pias duplas. Depois, tirou o cabresto, o casaco, as adagas e as pistolas. A camiseta que usava estava manchada pelas longas noites de luta, mas era lavada regularmente – e seria usada mais uma vez. Roupas, afinal, não passavam de pele que os vampiros não recebiam ao nascer.

Não serviam como decoração pessoal – pelo menos não para ele.

Voltando-se para o espelho, resmungou.

O assassino com quem lutara mão a mão fora muito bom com uma adaga, provavelmente consequência de sua vida pregressa nas ruas, e que satisfação combater com alguém com tantas habilidades! Claro que, no fim, ele vencera, mas a batalha fora estimulante.

Infelizmente, porém, ele levara para casa um suvenir do conflito: um corte no bíceps que dava a volta e terminava no alto do ombro. Bem desagradável. Mas ele já estivera em situação pior.

E, por isso, ele sabia como se cuidar. Perfilados sobre a bancada estavam os vários itens que ele e seus lutadores necessitavam de tempos em tempos: um frasco de álcool CVS para desinfetar, um isqueiro BIC, diversas agulhas, um carretel de fio de náilon de pesca.

Xcor fez uma careta ao tirar a camiseta e quando a manga curta que fora rasgada passou raspando no corte, abrindo-o mais. Cerrando os dentes, ele ficou parado, a dor se intensificando a ponto de sua barriga se contrair como um punho fechado.

Respirando fundo, ele esperou até que as sensações diminuíssem, depois pegou o frasco de álcool. Retirou a tampa branca, inclinou-se sobre a pia, preparou-se e...

O som que escapou dos seus dentes cerrados era parte rugido, parte gemido. Enquanto sua visão formava quadriculados, ele fechou os olhos e apoiou o quadril na beira da pia.

Inspirando profundamente, suas narinas ardiam com o cheiro, mas não havia como recolocar a tampa: sua bela coordenação motora ainda estava comprometida.

Andando um pouco para clarear a cabeça, ele foi para o quarto e deu ao seu corpo um tempo para se recalibrar. Enquanto a dor o acompanhava, como se tivesse um cachorro atado ao braço que tentava comê-lo vivo, ele praguejou diversas vezes.

E acabou no andar de baixo. Onde a bebida estava.

Por nunca ser de se embebedar, vasculhou as sacolas de lona com bebidas que Zypher trouxera com eles do armazém. O soldado apreciava um drinque de tempos em tempos e, por mais que Xcor não aprovasse, há muito ele aprendera que se devia conceder certas liberdades no que se referia a lutadores agressivos e inquietos.

E numa noite como aquela, ele se viu grato.

Uísque? Gim? Vodca?

Não fazia diferença.

Pegou uma garrafa qualquer, quebrou o selo da tampa e inclinou a cabeça para trás. Abrindo a boca, ele derramou o que quer que aquilo fosse para dentro da garganta, engolindo a despeito de seu esôfago queimar como se estivesse pegando fogo.

Xcor continuou a beber enquanto subia. Tomou ainda mais enquanto andava de um lado para o outro à espera de sentir os primeiros efeitos.

E mais bebida.

Ele ficou sem saber quanto tempo levou, mas, no fim, voltou para o banheiro bem iluminado, passando uns sessenta centímetros da linha preta pela cabeça fina da agulha. Diante do amplo espelho retangular sobre as pias, ele se sentiu grato pelo fato de a adaga do redutor ter se deparado com o seu braço esquerdo. Isso significava que, como macho destro, ele poderia lidar com aquilo sozinho. Se tivesse sido do outro lado? Ele precisaria de ajuda.

A bebida ajudou imensamente. Ele mal percebeu quando perfurou a pele e fez um nó com a ajuda dos dentes.

De fato, o álcool era uma substância curiosa, ponderou ao começar a fileira de pontos. O entorpecimento que o abatera fazia com que ele se sentisse submerso em água quente, o corpo estava relaxado, a dor ainda presente, mas a intensidade da agonia estava bem menor.

Devagar. Preciso. Uniforme.

Quando chegou ao alto do ombro, deu mais um nó; depois liberou a agulha, guardou tudo o que usara e foi para o chuveiro.

Abaixando as calças, chutou as botas de combate e se colocou debaixo do jato de água.

Daquela vez o gemido foi de alívio: enquanto a água quente cobria seus ombros doloridos, as costas rígidas e as coxas duras, a sensação de conforto foi quase tão intensa quanto a agonia o fora.

E, só para variar, ele se permitiu ceder à sensação. Provavelmente porque estava embriagado.

Recostando-se na parede de ladrilhos, a água o atingiu primeiro no rosto, mas de modo gentil, como a chuva, antes de viajar pela frente do seu corpo, percorrendo o peito e seu abdômen enrijecido, passando pelos quadris até o sexo...

E do nada ele viu a sua Escolhida inclinada sobre ele, os olhos verdes reluzentes na luz do luar, a árvore acima parecendo um abrigo para ambos.

Ela o alimentava, o pulso fino e pálido em sua boca, a garganta dele engolindo ritmadamente.

No meio do seu torpor alcoólico, o desejo sexual o atingiu, parecendo desdobrar sua pélvis como uma mão aberta.

Ele ficou rijo.

Abrindo os olhos – e ele nem se dera conta de tê-los fechado –, fitou a si mesmo. A luz brilhante de cima da pia fora atenuada pela cortina opaca que evitava que a água se espalhasse pelo banheiro, mas havia mais do que iluminação suficiente para enxergar.

Ele desejou que estivesse completamente escuro... pois não se alegrava em ver sua excitação, aquele mastro erguido a partir do corpo tão estúpido e orgulhoso.

Não tinha como entender no que esteve pensando: se aquelas prostitutas queriam receber um adicional para acomodar os seus impulsos, ele dificilmente imaginava que a adorável Escolhida fizesse outra coisa que não gritar e correr na direção oposta...

De pronto, isso lhe pareceu deprimente, ainda mais quando o latejar entre as pernas se intensificou. Na verdade, seu corpo era apenas um triste instrumento, patético em seu desejo e permanecendo ignorante quanto ao fato de ser indesejado por todas.

Em especial, por aquela que ele desejava.

Virando-se, ele inclinou a cabeça para trás e passou as mãos pelos cabelos. Hora de parar de pensar e se lavar. O sabonete na saboneteira afixada na parede fez seu trabalho com entusiasmo em sua pele e seu cabelo...

E ele ainda estava ereto quando chegou a hora de sair.

O ar frio tomaria conta daquilo.

Pisando no tapete do banheiro, também de um horroroso tom de vermelho rosado, ele se secou com a toalha.

Ainda ereto.

Olhou para as roupas de luta, viu-se contrariado em vesti-las. Duras. Ásperas. Sujas.

Talvez o ambiente feminino o estivesse contaminando.

Xcor acabou na enorme cama, nu, deitado de costas.

Ainda ereto.

Uma espiada rápida no relógio de cabeceira lhe disse que não demoraria muito para que a casa fosse inundada pelos lutadores.

Aquilo teria de ser rápido.

Enfiando a mão debaixo dos lençóis e descendo pelo corpo, ele se segurou...

Os olhos de Xcor se fecharam e ele gemeu, o tronco se retorcendo pelo calor e o desejo que se avolumava na parte inferior do corpo. E quando o travesseiro veio receber seu rosto – logicamente, foi o contrário, ele supôs – começou a bombear para cima e para baixo.

Delicioso. Especialmente no topo, onde a cabeça lisa doía querendo atenção e a recebia a cada golpe. Mais rápido. Mais apertado.

E o tempo todo visualizando a sua Escolhida.

Na verdade, a imagem dela o satisfazia mais do que aquilo que executava ali embaixo. E quando as sensações se intensificaram, ele percebeu pela primeira vez por que os soldados faziam aquilo com tanta frequência. Tão bom. Tão, tão bom...

Ah, a sua fêmea era linda. Ao ponto em que, apesar da força que exercia em si mesmo, ele não se distraía da imagem dela. Em vez disso, ela se tornava cada vez mais clara para ele, dos cabelos loiros até os lábios rubros e o pescoço delicado – por todo o caminho do corpo elegante e longilíneo que tanto se escondia quanto se revelava pelo manto branco imaculado que ela vestira.

Como seria a sensação de ser desejado por tal criatura? Ser aceito dentro do seu corpo sagrado como um macho de valor...

Nesse instante, a realidade da gravidez dela o atingiu como um golpe físico. Mas, pelo menos, já era tarde demais. Mesmo que seu coração tivesse gelado e seu peito tivesse começado a doer com o conhecimento de que ela aceitara outro, seu corpo continuou sua corrida para a felicidade, a conclusão tão inevitável que...

O orgasmo que o assolou o fez gritar – e graças ao Fade que o travesseiro abafou a sua capitulação: naquele mesmo instante, no andar de baixo, ele ouviu os seus primeiros soldados andando pela casa, o rufo das botas de combate como um trovoar inconfundível que ele reconheceria em qualquer lugar.

O resultado do seu clímax foi desastroso de maneiras demais para se contar. Ele se virara por cima do ombro machucado; gozara sobre a mão e o abdômen assim como nos lençóis; a visão encantadora sumira de sua cabeça, e sua dura realidade era tudo o que lhe restava.

A dor dentro dele era ardida como um ferimento recente.

Mas, pelo menos, ninguém saberia dela.

Ele, acima de tudo, era um soldado.


CAPÍTULO 66

– Sim, você pode ir vê-lo. Ele está sonolento, mas acordado.

Enquanto a doutora Jane sorria para Qhuinn, ele ajeitava as calças nos quadris e enfiava a barra da camiseta para dentro. No entanto, conteve-se e não arrumou os cabelos, forçando os braços a ficarem ao longo do corpo mesmo que as suas palmas estivessem coçando para penteá-los.

– E ele vai ficar bem?

A médica assentiu ao começar a tirar a máscara cirúrgica que ainda estava pendurada ao redor do pescoço.

– Retiramos o equivalente vampírico ao baço dos humanos, e isso cuidou da hemorragia interna. Fizemos um pente-fino nele. Até onde sabemos, ele esteve num estado de estase dentro daquele tonel de óleo, o sangue de Ômega, de algum modo, preservando-o no estado em que estava apesar dos ferimentos. Se ele estivesse do lado de fora, tenho certeza de que teria morrido.

A maldição que causara um milagre, pensou Qhuinn.

– E ele não está contaminado?

Jane deu de ombros.

– Ele sangra vermelho, e ninguém percebeu nenhum sinal de Ômega nele... foi um caso de estar sobre e ao redor dele.

– Ok. Muito bem – Qhuinn olhou para a porta. – Ótimo.

Hora de entrar, ele se ordenou. Vá...

Seus olhos pararam em Blay. Durante as quatro horas de operação, o cara andara de um lado para o outro no corredor, saindo em intervalos regulares para o estacionamento para fumar. No entanto, ele sempre voltara.

Puxa, ele estava de cara fechada.

Desde que V. aparecera e os encontrara... é...

Cristo, que hora de chegar era aquela, hein?

– Vou entrar – disse ele.

Mas só depois que Blay acenou com a cabeça é que ele entrou na sala de cirurgia.

Empurrando a porta, a primeira coisa que o recebeu foi o cheiro antisséptico que ele associava com contusões pós-batalha. Em seguida, foi o bipe suave ao lado da maca no meio da sala, e o som de Ehlena digitando num computador.

– Vou deixar que fiquem a sós – ela disse num tom gentil, ao se levantar.

– Obrigado – ele respondeu baixinho.

Quando a porta se fechou atrás dela, Qhuinn voltou a ajeitar a camiseta ainda que ela não precisasse ser ajeitada.

– Luchas?

À espera que seu irmão respondesse, ele olhou ao redor. Os escombros da operação, as gazes ensanguentadas, os instrumentos usados, os tubos plásticos, tudo fora retirado; nada além do corpo inerte debaixo dos lençóis brancos e um saco biológico com conteúdo vermelho para indicar como aquelas horas tinham sido transcorridas.

– Luchas?

Qhuinn se aproximou e baixou o olhar. Caramba, ele normalmente não tinha problemas de pressão, mas quando olhou bem para o rosto machucado do irmão, as coisas meio que giraram, e a onda de tontura o fez perceber exatamente o quanto ele era alto e como o chão estava distante.

Os olhos de Luchas tremularam e se abriram.

Cinza. Os dois sempre foram cinza e ainda eram.

Qhuinn se esticou para trás e pegou uma banqueta com rodinhas. Ao sentar-se, não sabia o que fazer com os braços, com as mãos... com a voz.

– Como está se sentindo?

Que pergunta mais idiota.

– Ele... me... manteve...

Qhuinn se inclinou para a frente, mas, cacete, era difícil de entender aquela voz fraca.

– O que disse?

– Ele me... manteve... vivo...

– Quem?

– ... por sua causa.

– De quem você está falando? – difícil imaginar que Ômega quisesse se vingar de...

– Lash...

Ante esse nome, os lábios superiores de Qhuinn expuseram suas presas. Aquele safado do primo deles – que, no fim, relevou-se não ser parente deles, mas sim filho transplantado de Ômega. Quando criança, o filho da puta não passara de um exibido detestável. Como pré-trans no programa de treinamento ele tornara a vida de John Matthew um inferno. Depois da transição?

Seu pai verdadeiro o recebera de volta em seu rebanho, e a completa destruição fora o resultado. Lash fora o responsável por liderar os ataques. Depois de séculos em que a Sociedade Redutora teve que caçar e encontrar os enclaves dos vampiros, o maldito soube exatamente para onde mandar os assassinos – e por ter sido adotado por uma família aristocrática, ele dizimara a classe alta.

Mas, ao que tudo levava a crer, o papaizinho e o garoto de ouro tiveram uma desavença.

Merda, a ideia de Lash ter torturado o seu irmão só o fez desejar matá-lo mais uma vez.

Enquanto Luchas gemia e inspirava fundo, Qhuinn levantou uma mão para... lhe dar um tapinha no ombro ou algo assim. Mas não fez nada.

– Escute aqui, você não precisa falar.

Os olhos cinza injetados prenderam-se os seus.

– Ele me manteve vivo... por causa do que eu fiz... com você.

Ali na maca, lágrimas se avolumaram e começaram a rolar, as emoções do irmão escorrendo pelo rosto, o arrependimento com o que sem dúvida devia ser dor física além dos narcóticos usados para tratar dele.

Porque Qhuinn achava difícil de imaginar que aquele cara demonstraria qualquer coisa numa situação normal. Não foram criados assim. Etiqueta acima das emoções.

Sempre.

– A Guarda de Honra... – Luchas começou a chorar a valer. – Qhuinn... eu sinto... eu sinto muito.

Não devemos matá-lo!

Qhuinn piscou e regressou para a surra no acostamento daquela estrada, para aqueles machos em mantos negros cercando-o e atacando-o enquanto ele tentava proteger a cabeça e os testículos. Depois, às portas do Fade, onde encontrou sua filha.

Estranho como as coisas se completavam num círculo. E como algumas tragédias na verdade levavam a coisas boas.

Nessa hora, Qhuinn tocou no irmão, levando a mão da adaga para o ombro magro dele.

– Psssiu... está tudo bem. Nós estamos bem...

Ele não sabia ao certo se aquilo era verdade, mas o que mais ele poderia dizer enquanto o cara se desmanchava em lágrimas?

– Ele quis... me transformar... – Luchas respirou fundo. – Ele me... ressuscitou. Acordei na floresta... os machos dele bateram em mim... fizeram coisas comigo... me colocaram naquele... sangue. Esperei pela volta deles... Eles nunca voltaram.

– Você está a salvo aqui – foi tudo em que ele conseguiu pensar. – Não precisa se preocupar com nada, ninguém vai pegar você aqui.

– Onde... estou...

– No centro de treinamento da Irmandade.

Os olhos dele se arregalaram.

– Verdade?

– É.

– Puxa... – a expressão de Luchas se alterou, aquele belo rosto mais uma vez se crispando. – O que foi feito de mahmen? Papai e Solange?

Qhuinn apenas balançou a cabeça de um lado para o outro.

E, em resposta, uma força repentina surgiu naquela voz frágil.

– Tem certeza de que estão mortos? Tem certeza?

Como se ele não desejasse o sofrimento pelo qual passara para nenhum deles.

– Sim, tenho certeza.

Luchas suspirou e fechou os olhos.

Merda. Qhuinn se sentia mal em mentir, mas, apesar de as máquinas ao lado da cama indicarem que o estado do seu irmão era estável, se o cara piorasse, ele não queria mandar Luchas para o túmulo pensando que depois do que fizeram com ele, ninguém mais tinha certeza de quantos outros tinham sido levados ou quando.

No silêncio, Qhuinn baixou o olhar para a mão do irmão. Para o anel de sinete que fora deixado – talvez porque a junta acima dele estivesse tão inchada que eles teriam de ter cortado o dedo.

O timbre que fora gravado na faceta de ouro carregava os símbolos sagrados com os quais apenas as Famílias Fundadoras podiam marcar suas linhagens. Ah, sim, e como era completamente perturbador, e absolutamente inapropriado, cobiçar a maldita coisa. Depois de tudo o que acontecera, era de se pensar que ele se sentisse nauseado.

Pensando bem, talvez fosse apenas uma reação instintiva, um eco de todos aqueles anos de uma esperança vã de que poderia receber um para si.

– Qhuinn?

– Diga.

– Eu sinto muito...

Qhuinn balançou a cabeça, ainda que as pálpebras de Luchas estivessem abaixadas.

– Não se preocupe com nada. Você está seguro. Voltou. Tudo vai ficar bem.

Enquanto o peito do irmão subia e descia como se ele estivesse aliviado, Qhuinn esfregou o rosto e não se sentiu nada bem em relação a tudo aquilo. A respeito do estado do irmão... e do seu retorno.

Não que ele desejasse que o cara estivesse morto. Torturado. Congelado para sempre.

Contudo, ele fechara a porta ante toda aquela dinâmica familiar. Relegara-a para um armário mental bem no fundo da sua cabeça. Deixada para trás de uma vez por todas, para nunca mais olhar para ela.

Mas o que ele poderia fazer?

A vida era especialista em chacoalhões.

O triste era que eles, no fim, inevitavelmente acabavam atingindo-o bem no meio do saco.

 

Quando um assobio suave soou ao lado de Blay, ele se sobressaltou.

– Ah, oi, John.

John Matthew levantou a mão num aceno. Como estão as coisas?

Enquanto Blay dava de ombros, achou que seria uma boa ideia se levantar. A bunda já estava entorpecida, o que significava que estava na hora de mais uma das suas voltinhas.

Resmungando ao se levantar, esticou as costas.

– Acho que tudo bem. Luchas estava desperto o suficiente depois da cirurgia, portanto Qhuinn está lá dentro agora.

Caramba...

Enquanto Blay andava em círculos para fazer o sangue circular novamente, John se recostou à parede. Ele estava com roupa de ginástica e seu cabelo ainda estava úmido... e havia uma marca de mordida em seu pescoço.

Blay desviou o olhar. Abriu a boca para dizer alguma coisa. Ficou sem ter do que falar.

Pelo canto do olho, viu John sinalizar: Então, como está Saxton?

– Hum... bem. Ele está bem, saiu de férias por uns dias.

Ele tem trabalhado bastante.

– É, tem mesmo – ele esperava que o assunto terminasse ali, pois se sentia estranho em esconder algo de John. Além de Qhuinn, o cara fora seu amigo mais próximo, ainda que, no último ano, eles também tivessem se distanciado. – Mas ele vai voltar logo.

Você deve sentir saudades dele. John desviou o olhar como se estivesse forçando a barra.

Fazia sentido. Blay sempre evitou qualquer conversa a respeito do seu relacionamento, direcionando a conversa para outros assuntos.

– É.

Então, como está Qhuinn? Eu não quis me meter, mas...

Blay só pôde dar de ombros mais uma vez.

– Já faz um tempo que ele entrou. Acho que isso é bom.

E Luchas vai sobreviver?

– Só o tempo pode garantir isso – Blay pegou um dos seus Dunhills e o acendeu, exalando lentamente. Quando não restou nada além do silêncio, ele disse: – Escute, desculpe se estou meio estranho.

A verdade era que aquela marca de mordida era um lembrete do que aconteceria a ele, e ele não queria aquilo tão presente.

A voz de Qhuinn invadiu seus pensamentos: Podemos ir juntos.

Com o que acabara concordando?

Você está cansado, John gesticulou enquanto olhava para a porta. Todos estamos. Tudo isso é tão... desgastante.

Blay franziu o cenho ao perceber o humor do cara.

– Ei, você está bem?

Depois de um momento, John sinalizou:

Uma coisa muito estranha aconteceu na outra noite. Wrath me chamou no escritório dele e me disse que Qhuinn não era mais o meu ahstrux nohtrum. Quero dizer, tudo bem, sem problemas... Isso, na verdade, complicava muito as coisas. Mas Qhuinn nunca me disse nada, e eu não sei, devo falar com ele? Eu nem sabia que isso era possível. Quero dizer, quando tudo começou foi meio que “é assim que as coisas são”, sabe? Será que ele se demitiu? É por causa dessa situação com Layla? Pensei que eles não fossem se vincular.

Blay exalou uma imprecação, a fumaça subindo acima da sua cabeça.

– Não faço ideia.

Merda, essa coisa de eles se vincularem devia ter lhe ocorrido – e talvez, por isso, Qhuinn se afastou tão rapidamente quando V. aparecera.

Será que Qhuinn e Layla ficariam juntos agora que o bebê estava bem...?

A porta se abriu e Qhuinn saiu, parecendo ter levado um chute na cabeça.

– Ei, John, tudo bem?

Enquanto os dois se davam um tapinha nos ombros, Qhuinn olhou a vista, e então conversou um pouco com John.

E depois, ele e Qhuinn foram deixados a sós quando John partiu minutos mais tarde.

– Você está bem? – perguntou-lhe Qhuinn.

Pelo visto, essa era a pergunta do momento.

– Na verdade, eu ia perguntar isso mesmo para você. Como está Luchas? – Blay tragou o cigarro depois bateu as cinzas sobre o coturno.

Antes que Qhuinn pudesse responder, Selena saiu do escritório, como se tivesse sido convocada pela mansão. A Escolhida andou até eles com graciosidade, mas com um objetivo, e seu manto tradicional branco rodopiava por entre as pernas.

– Saudações, senhores – disse ela ao se aproximar. – A doutora Jane sugeriu que eu estava sendo requisitada?

Enquanto Blay exalava, ele sentiu vontade de se socar. Aquela era a última coisa que...

– Sim, por nós dois – respondeu Qhuinn.

Blay fechou os olhos quando um desejo súbito o acometeu. A ideia de presenciar Qhuinn se alimentar era como uma droga em sua circulação, relaxando-o e ameaçando sua excitação. Mas, sério, aquilo não...

– No fim do corredor seria perfeito – murmurou Qhuinn.

Bem, melhor do que num quarto. Certo? Mais profissional. Não?

E ele precisava mesmo se alimentar – e Qhuinn, sem dúvida, também, depois de todo aquele drama.

Blay descartou o toco do cigarro numa lata de lixo e seguiu Qhuinn que ia à frente. Andando, ele não acompanhou os movimentos da Escolhida. Não, nada disso. Seus olhos estavam colados nos movimentos de Qhuinn, desde aqueles ombros, até os quadris... e a bunda...

Ok, isso teria de parar ali. Naquele instante.

Ele só precisava se controlar, alimentar-se e arranjar uma desculpa para sair dali.

Quem sabe aquele plano acabasse funcionando?

Passando pela porta. Um pouco de conversa. Sorrisos educados, ainda que ele não soubesse o que fora perguntado nem respondido.

Ah, uma das salas do hospital. Muito bom, um ambiente clínico. Apenas tomar uma veia e seguir em frente, uma função biológica que não necessariamente levava à outra...

– O que disse? – perguntou a Escolhida, olhando-o abertamente.

Maravilha. Ele andou falando em voz alta de novo, mas não havia como saber o quanto partilhara.

– Desculpe – ele se justificou –, só estou morrendo de fome.

– Nesse caso, gostaria de ser o primeiro? – Selena perguntou.

– Sim, ele quer – Qhuinn respondeu ao se recostar na porta.

Bem, tudo certo, então, Blay pensou. Quando fosse a vez de Qhuinn, ele iria embora.

Dando um passo à frente, ele se questionou como, exatamente, aquilo se daria, mas Selena resolveu a questão levando uma cadeira e sentando perto do leito hospitalar. Ok. Blay subiu no colchão, seu peso deslocando o travesseiro da cabeceira ligeiramente elevada, as molas rangendo. Em seguida, sua mente se fechou, o que foi um alívio. Enquanto Selena esticava o braço e puxava a manga branca para trás, a fome dele tomou a frente, as presas se estendendo da mandíbula superior, a respiração se intensificando.

– Por favor, tome o tanto que precisar – ela ofereceu placidamente.

– Agradeço-lhe por este presente, Escolhida – ele respondeu num tom baixo.

Inclinando-se para baixo, ele atacou rapidamente, mas com o máximo de gentileza que conseguia, e na primeira golada, soube que já fazia muito tempo. Com um rugido profundo, seu estômago demonstrou sua necessidade, a sua civilidade se escoando para fora, os instintos assumindo o controle: ele sugou fundo, bebendo cada vez mais rápido, a força se derramando em seu interior e se espalhando a partir dali...

Seus olhos dispararam na direção de Qhuinn.

Vagamente, tomou ciência de que mais um dos seus planos logo sairia voando pela janela, completamente esquecido. Na verdade, aquela fora uma má ideia – desde que não quisesse mais transar com o cara: a lógica já era bem difícil quando se tratava apenas de um caso de emoções conflituosas. Uma necessidade sexual absoluta, incrementada pela alimentação?

Ele era um idiota de primeira; era mesmo.

E isso se revelou especialmente verdadeiro quando notou a ereção de Qhuinn inflar por debaixo de suas calças de lutador.

Merda.

Merda.

Cara, um dia desses, ele seria forte o bastante para se afastar. Seria, sim, de verdade.

Ah, MERDA.


CAPÍTULO 67

Enquanto Qhuinn assistia ao show, sua língua saiu da boca e lambeu os lábios.

Do outro lado do quarto estreito, Blay estava sentado na cama hospitalar, o torso perfeito num ângulo para frente para poder tomar a veia da Escolhida, as mãos, ah, as mãos tão hábeis, bem treinadas e fortes seguravam o pulso delicado contra a boca com cuidado – como se, mesmo no auge da sua sede, ele fosse um cavalheiro.

Enquanto continuava a beber, o torso se curvou ainda mais, a caixa torácica se flexionando e se acomodando a cada respiração, a cabeça sutilmente mudando de posição a cada deglutição.

Qhuinn mal conseguia permanecer parado. Ele desejava imensamente subir naquele colchão também, retorcendo o corpo para poder chegar por trás. Queria estar na garganta de Blay enquanto ele se alimentava da Escolhida. Queria transar com o cara de doze a quinze horas direto até que os dois caíssem de exaustão.

Depois do drama com Luchas, aquele breve e intenso descanso de todo o choque e dor era um alívio glorioso cheio de culpa: aquilo era simplesmente bom demais para que ele se concentrasse em algo assim – sua mente cansada e o corpo exaurido estavam prontos para serem revigorados para ele poder voltar forte uma vez mais à realidade de lutas.

Deus, seu irmão...

Balançando a cabeça, ele deliberadamente deu algo erótico com o que sua mente se ocupar: enquanto a mão de Blay escorregava sorrateira por entre as pernas e rearranjava algo atrás da braguilha, ficou bem claro que ele estava completamente excitado.

Como se seu cheiro delicioso já não tivesse deixado aquilo evidente.

Bem quando Qhuinn estava para perder o controle, Blay levantou a cabeça e emitiu um som de sucção e satisfação. Depois, o macho selou as feridas das presas que deixara.

Quer saber, Qhuinn pensou. A alimentação que se danasse. Ele precisa somente de Blay...

– Sua vez, senhor? – disse a Escolhida.

Merda. Ele provavelmente devia fazer isso.

Além disso, Blay, por certo, estava num estado de torpor pós-alimentação, o corpo letárgico, os olhos pesados... e Qhuinn tirou vantagem disso, colocando-se entre as pernas do lutador e a Escolhida, o traseiro se esfregando contra a coluna enrijecida da ereção de Blay ao subir na cama.

Enquanto Blay deixava um gemido escapar, Qhuinn se inclinou e pegou o outro pulso da fêmea. Segurando-o com uma mão, usou a outra para puxar a bainha da camiseta para fora – e depois empurrar a palma de Blay para a frente da sua calça.

Qhuinn conteve seu gemido sugando a veia da Escolhida, mas o sibilo de Blay foi ouvido.

Talvez a Escolhida deduzisse que...

Os olhos de Qhuinn reviraram por trás das órbitas enquanto Blay o afagava, a fricção ameaçando-o a gozar ali mesmo – uma coisa que ele não gostaria de fazer diante de Selena.

Mas, caraaaalho, aquilo era...

Ele pousou a própria mão ali, detendo o movimento.

Com isso, Blay lhe deu apenas um apertão em seus colhões.

Qhuinn gozou na sugada seguinte, o orgasmo escapando dele antes que conseguisse pensar em algo cansativo ou sem atrativos para distraí-lo, o prazer surgindo com tanta força que ele vergou-se em sua própria pele.

A risada de Blay foi erótica como o inferno.

Que seja, a vingança seria terrível, Qhuinn jurou a si mesmo.

E, como se viu em seguida, ele nem conseguia esperar mais por ela. Retraiu as presas e parou de beber antes de se saciar, porque a sua fome por outra coisa tinha assumido o controle completamente, e já passara da hora de despachar Selena.

Fazer a Escolhida sair de maneira educada, porém eficiente, foi uma manobra executada no piloto automático – ele não fazia ideia do que estava dizendo –, mas pelo menos ela estava sorrindo e parecia contente, portanto, ele devia ter dito a coisa certa.

No entanto, estava bem ciente de que trancara a porta.

Ao se virar, encontrou Blay deitado e cuidando de si, a mão subindo e descendo entre as pernas. As presas ainda estavam alongadas da alimentação e os olhos cintilavam por baixo das pálpebras pesadas e, puta merda, como estava sensual...

Qhuinn se livrou dos coturnos. Das calças. Da camiseta.

Blay atingiu o clímax antes de ele sequer chegar à cama, o macho se arqueando para o alto e gemendo com a cabeça contra o travesseiro fino, e os quadris elevados.

Como se ver Qhuinn nu em pelo tivesse sido demais para ele.

Melhor. Elogio. De. Todos. Os. Tempos.

Qhuinn atacou a cama, lançando-se sobre Blay, encontrando aquela boca aveludada e assumindo o controle. Roupas rasgadas – os botões da braguilha da calça de Blay voando para todos os lados e aterrissando como moedas jogadas sobre o linóleo, a camiseta dilacerada em pedaços. E logo estavam pele a pele. Vada os separava.

Enquanto se retorciam um contra o outro, Qhuinn soube o que queria. E estava desesperado e faminto demais para pedir com educação – ou sequer falar a respeito.

Tudo o que conseguiu fazer foi se afastar daquela boca, rolar para longe de Blay... esticar o braço para trás e puxar o macho para cima dele enquanto esticava uma perna.

Sem nem pensar, Blay assumiu a partir dali. E soube exatamente o que fazer.

Qhuinn se sentiu posicionado por mãos rudes – e, sem nem se dar conta, estava ajoelhado, o rosto no colchão, a respiração saindo com dificuldade pela boca. Tudo aquilo era muito desconhecido, deixar alguém assumir o controle – e ele também se sentiu vulnerável, por mais que quisesse...

– Ai, cacete! – ele gritou ao ser possuído, as sensações de dor e de prazer, de alongamento e de acomodação, misturando-se num coquetel que o deixou tão excitado a ponto de ver estrelas.

Em seguida, Blay começou a se movimentar.

Qhuinn se apoiou sobre os braços e empurrou para trás, e se segurou enquanto toda aquela coisa de virgindade ia para o espaço de uma maneira muito boa.

Ah, caramba, era uma torrente incrível, só que muito melhor. Enquanto o braço de Blay passava por baixo do seu peito e o abraçava, o ângulo mudou, as penetrações ficaram mais profundas, mais rápidas, a cama começou a balançar ao encontro da parede, o arquejo em seu ouvido ficando mais e mais rude...

O ápice foi a chama maior que ele já sentiu, o clímax não só do seu orgasmo, mas do de Blay, segurando-o por toda parte, as coxas unidas, as pélvis inclinadas para receber, os braços grandes segurando a ambos...

Quando Blay gozou, as investidas foram tão fortes que a cabeça de Qhuinn bateu na parede – não que ele tivesse notado ou se importado. Em seguida, aquele pau começou a produzir espasmos violentamente...

E Qhuinn se sentiu bem e verdadeiramente possuído pela primeira vez na vida.

Aquilo foi... nada menos que um milagre.


Naturalmente, Blay levou um tempo até se fartar. E, engraçado, Qhuinn estava totalmente à vontade com aquilo.

Quando, no fim, as coisas chegaram a uma pausa que durou mais de um minuto e meio, Qhuinn soltou a tensão nos braços e se afundou na cama, virando de lado. Blay também devia estar exausto, seu corpo seguiu a liderança e se esticou atrás dele.

O braço de Blay permaneceu fixo em seu lugar.

E o que importava agora, apesar de toda aquela experiência, era o peso forte e solto daquele braço. Largado como estava, tornava-os não apenas dois machos que acabaram de fazer sexo e estavam deitados lado a lado, mas sim, dois amantes.

Na verdade, ele nunca antes tivera um amante – e isso não pelo fato de ter sido a primeira vez em que ficara por baixo. Fizera muito sexo. Mas nunca antes tivera alguém a que quisesse que o abraçasse depois. Nunca alguém que ele quisesse retribuir o abraço.

Sim... Blay era o seu primeiro amante verdadeiro.

E por mais que ele tivesse perdido a oportunidade de ser isso para o cara, parecia lógico que Blay fosse o seu. Ninguém jamais lhe poderia tirar o seu primeiro – e ele se considerava sortudo. Muitas vezes ouvira boatos de que aquilo podia ser muito doloroso – para as fêmeas – ou simplesmente um ato confuso em que nada ficava gravado.

Ele lembraria daquilo para sempre.

Atrás dele, Blay ainda respirava profundamente, o calor irradiando dos corpos unidos.

E Qhuinn quis tirar vantagem dessa tranquilidade: muito lentamente – como se, caso ele não se movesse muito rápido, o cara não fosse notar – cobriu o antebraço de Blay com o seu e... pousou a mão sobre a do amigo.

Fechando os olhos, ele rezou para que aquilo fosse certo. Que pudessem ficar daquele jeito só por mais um pouquinho.

Merda, o medo repentino que sentiu não passava de uma tortura, e o fez pensar na verdadeira natureza da coragem.

Mais especificamente em quão pouco a possuía no que se referia a Blay.

Do nada, ele se lembrou de ter lhe dito que ele só se via a longo prazo com uma fêmea. De esse ser o motivo de não poder aceitar a oferta de Blay. Na época, ele acreditara nisso, ainda que não parecesse muito convincente.

Ele fora um covarde na época, não fora?

– Deus, eu me sinto em carne viva – sussurrou.

– O que foi? – Foi a resposta sonolenta.

– Eu me sinto... Exposto.

E se Blay se retraísse agora? Ele se estilhaçaria em mil pedaços que nunca mais se encaixariam.

Blay fungou e puxou o braço, atraindo Qhuinn para mais perto, em vez de afastá-lo.

– Está com frio? Você está tremendo.

– Pode me esquentar?

Houve um barulho de algo sendo puxado e depois uma coberta foi jogada em cima dos dois. E as luzes se apagaram.

Enquanto Blay respirava fundo parecendo contente naquele instante, Qhuinn fechou os olhos... e ousou entrelaçar os dedos nos do melhor amigo, lacrando as mãos.

– Você está bem? – Blay perguntou de um modo abafado. Como se não houvesse nada ligado além de uma luz piloto em seu cérebro, mas ele se importava.

– Sim. Só estou com frio.

Qhuinn abriu novamente os olhos ante a escuridão. A única coisa que enxergava era a faixa de luz que se formava debaixo da porta.

Enquanto Blay cochilava, a respiração se tornando mais lenta e mais ritmada, Qhuinn olhou adiante, mesmo sem conseguir enxergar nada.

Coragem.

Ele pensava que tinha toda de que precisava – que o modo como fora criado o tornara mais durão e forte do que qualquer outra pessoa. Que o modo como realizava seu trabalho, entrando em prédios em chamas ou pulando nos assentos de pilotos de aviões caindo aos pedaços, provasse isso. Que a maneira como levava a vida, essencialmente distante, significava que ele era forte. Que ele estava seguro.

No entanto, a verdadeira medida da sua coragem ainda estava por vir.

Depois de anos demais, ele finalmente dissera a Blay que sentia muito. E depois de drama demais, ele finalmente dissera ao cara que sentia gratidão.

Mas chegar lá e ser verdadeiro quanto ao fato de que estava apaixonado? Mesmo Blay estando com outra pessoa?

Aquele era o real divisor.

E que Deus o ajudasse, mas ele o faria.

Não para separar o casal – não, não era por isso. E nem para sobrecarregar Blay.

Naquele caso, a revanche, como se mostrou, foi, na verdade, uma promessa. Algo que seria feito sem expectativas nem reservas. Seria o salto sem paraquedas, o pulo para o desconhecido, o trajeto e a queda sem ninguém para segurá-lo.

Blay fizera isso não uma, mas diversas vezes – e, sim, claro, Qhuinn queria ter de volta um desses momentos de vulnerabilidade e socar tanto suas encarnações prévias até que sua mente clareasse e ele reconhecesse a oportunidade que lhe era concedida.

Infelizmente, não era assim que as coisas funcionavam.

Estava na hora de ele pagar aquela demonstração de força... de maneira equivalente, suportando a dor que viria quando ele fosse rejeitado de uma maneira infinitamente mais gentil do que ele dispensara.

Forçando as pálpebras a abaixarem, levou os nós dos dedos de Blay até a boca e resvalou-lhes um beijo. Depois se entregou ao sono, permitindo-se escorregar para a inconsciência, sabendo que, pelo menos pelas horas seguintes, ele estaria seguro nos braços do seu amado.


CAPÍTULO 68

Enquanto a noite seguinte caía, Assail estava sentado nu à escrivaninha, os olhos rastreando a tela do computador diante dele. A imagem do monitor era dividida em quatro quadrantes que estavam marcados como norte, sul, leste e oeste, e, de tempos em tempos, ele manipulava as câmeras, mudando-lhes o foco e a direção. Ou às vezes mudava para outras lentes ao redor da casa. Ou voltava para as que estivera observando.

Tendo tomado banho e se barbeado horas antes, ele sabia que devia se vestir para sair. Aquele redutor com grande apetite pelos seus produtos estava se armando, alegando que fora enganado num suprimento de cocaína. Mas os gêmeos haviam completado aquela transação em particular de acordo com as especificações do assassino – e a gravaram.

Apenas uma precauçãozinha que Assail iniciara.

Portanto, ele não entendia sobre o que aquilo se tratava, mas, por certo, iria descobrir: enviara a gravação para o celular do redutor cerca de uma hora antes e aguardava uma resposta.

Talvez aquilo envolveria outra reunião cara a cara.

E seu comprador descontente não era a única coisa pairando sobre ele. Estava chegando aquela época do mês em que Benloise e ele ajustavam as contas – uma complicada transferência de fundos que estava deixando a todos ansiosos, inclusive Assail. Ainda que ele realizasse pagamentos semanais regulares, eles totalizavam apenas um quarto das compras, e no dia trinta ele teria de acertar as contas.

Muita grana. E as pessoas eram capazes de tomar decisões muito ruins quando havia muito dinheiro em jogo.

Também havia a questão de que, pela primeira vez, ele queria levar os primos para acompanhá-lo. Ele não conseguia visualizar Benloise apreciando a companhia adicional, mas era apropriado que seus associados ficassem mais envolvidos nos negócios – e aquele seria o maior pagamento que ele iria realizar.

Um recorde que certamente seria quebrado se ele e aquele redutor continuassem a fazer negócios.

Assail mudou a posição do mouse. Clicou em um dos quadrantes. Virou a câmera de segurança, vasculhando a floresta atrás de sua casa.

Nada se mexia. Nenhuma sombra mudava de posição. Nem mesmo os ramos dos pinheiros se moviam sob algum tipo de vento existente.

Nenhuma marca de esquis. Nenhuma figura escondida espiando.

Ela poderia estar espionando-o por outro ângulo, pensou. Do outro lado do rio. Da estrada. Do final da rua.

Distraído, ele alcançou o frasco de pó que mantinha ao lado do teclado. Usara-o no fim da tarde, quando a luz minguante do dia o fizera mudar as câmeras para visão noturna. E também usara algumas vezes desde então, só para se manter acordado.

Àquela altura já fazia dois dias que ele não dormia.

Ou seriam três?

Enquanto mexia a minúscula colher, desenhando um círculo na base do frasco, tudo o que ele conseguiu foi o barulho do metal no vidro.

Olhou dentro do frasco.

Evidentemente, ele terminara aquele lote.

Irritado por absolutamente tudo em sua existência, Assail deixou o frasco de lado e se recostou na poltrona. Enquanto sua mente girava e a compulsão de ir de imagem para imagem o apertava tal qual uma forca em sua liberdade de escolha, ele estava vagamente ciente de que seu cérebro zumbia de uma maneira bem pouco saudável.

No entanto, ele estava trancado ali. Não iria a parte alguma tão rapidamente.

Onde estaria a sua bela ladra?

Por certo ela não devia ter falado sério.

Assail esfregou os olhos e odiou o modo como sua mente estava acelerada, os pensamentos transitando de um lado ao outro em seu cérebro.

Ele simplesmente não queria acreditar que ela se manteria afastada.

Enquanto seu telefone tocava, ele o apanhou com reflexos rápidos demais, ansiosos demais. Quando viu quem era, ordenou ao seu cérebro que se recompusesse.

– Recebeu o vídeo? – ele perguntou em vez de dizer “alô”.

A voz de seu maior cliente parecia descontente.

– Como posso saber quando isso foi gravado?

– Você deve saber o que os seus homens vestiam no dia.

– Então, onde está o meu produto?

– Isso não cabe a mim dizer. Uma vez que eu concluo o negócio com os seus representantes, a minha responsabilidade cessa. Entreguei a mercadoria requisitada na hora e no local acordados, e, portanto, cumpri a minha obrigação para com você. O que acontece dali por diante não é da minha alçada.

– Se eu o pegar me sacaneando, eu vou te matar.

Assail emitiu uma exalação carregada de enfado.

– Meu caro, eu não perderia tempo com algo assim. Como conseguiria o que necessita então? E para isso, permita-me lembrá-lo que não há nada que me leve a ser desonesto com você ou com a sua organização. O lucro que você representa é o que me interessa, e eu darei o melhor de mim para fazer com que os fundos continuem a vir na minha direção. Assim são os negócios.

Houve um longo silêncio, mas Assail sabia muito bem que isso não significava que o assassino do outro lado da conexão estava confuso ou perdido.

– Preciso de um novo suprimento – o redutor murmurou depois de um tempo.

– E eu o providenciarei com muito prazer.

– Preciso de um empréstimo – agora Assail franzia o cenho, porém o redutor prosseguiu antes que ele o interrompesse. – Você me empresta esse novo pedido e eu garanto que será pago.

– Não é assim que faço negócios.

– Eis o que sei a seu respeito. Você tem uma pequena operação que controla uma área imensa. Precisa de distribuidores, porque você matou todos os outros que estavam aqui antes. Sem mim e a minha organização? Sem ofensas, mas você está fodido. Você não tem como servir Caldwell inteira, e seu produto nada vale se não chega às mãos dos seus usuários – quando Assail não respondeu de imediato, o redutor riu de leve. – Ou você pensava que fosse desconhecido, meu amigo?

Assail segurou o telefone com força.

– Por isso, acho que você tem razão – o assassino concluiu. – Você e eu somos colegas. Eu não preciso lidar com o atacadista, quem quer que ele seja. Especialmente em minha atual... encarnação.

Sim, só o cheiro faria com que Benloise fechasse a porta na cara dele, pensou Assail.

– Preciso de você. Você precisa de mim. E é por isso que vai me entregar o meu pedido e me dar 48 horas para pagar. É como você mesmo disse. Não valemos nada um sem o outro.

Assail expôs as presas, o reflexo do seu rosto de fato medonho no vidro do monitor.

E mesmo assim ele manteve a voz tranquila e impassível:

– Onde gostaria de nos encontrarmos?

Enquanto o redutor ria novamente, como se estivesse gostando de tudo aquilo, Assail se concentrou na própria imagem, com as presas expostas. Seria desajuizado se o assassino se tornasse ganancioso, ou tomasse liberdades demais.

A única coisa sempre verdadeira nos negócios? Ninguém é insubstituível.


Quando Trez despertou, ele se sentiu como se estivesse flutuando numa nuvem – e, por uma fração de segundo, imaginou se não estava mesmo. Seu corpo parecia não pesar nada, a ponto de ele nem saber se estava deitado de frente ou de costas.

Um som estranho se infiltrou em seu torpor.

Shhhscht.

Ele levantou a cabeça, e a orientação lhe veio subitamente: a luz vermelha do seu rádio relógio lhe disse que estava deitado de barriga e em diagonal na cama.

Lá vinha o som novamente.

O que seria aquilo? Metal contra metal?

Ele conseguia sentir iAm se movimentando pelo corredor, a presença do irmão tão certa quanto a sua. Então, se houvesse outra pessoa no apartamento ou algum tipo de ameaça? iAm cuidaria disso.

Erguendo-se, saiu da cama e... Uau, o quarto girou ao seu redor. Pensando bem, não havia nada, absolutamente nada em seu estômago. A bem da verdade, era bem possível que ele tivesse vomitado o fígado, os rins e os pulmões durante a enxaqueca. A boa notícia era que a dor sumira, e que essa sensação não era tão ruim. Era como estar bêbado, só que com a ressaca vindo antes.

Quando entrou no banheiro, ele sabia que era melhor não acender a luz. Ainda era muito cedo para isso.

A chuveirada foi maravilhosa. Mas ele não se deu ao trabalho de se barbear – haveria tempo para isso mais tarde, depois que colocasse um pouco de combustível em seu tanque. O roupão foi agradável: quentinho, especialmente com as lapelas erguidas cobrindo-lhe o pescoço.

Os pés descalços não estavam tão agradáveis, ainda mais quando ele saiu do quarto e pisou no corredor de piso de mármore, mas ele precisava descobrir que diabos estava...

Trez parou diante da porta da suíte do irmão. iAm estava diante do armário, tirando as camisas que estavam nos cabides. Quando ele puxou uma nova braçada pelo cano de ferro, aquele shhhscht soou novamente.

Naturalmente, seu irmão não se surpreendeu quando ele apareceu. Apenas descarregou a carga sobre a cama.

Merda.

– Vai a algum lugar? – murmurou Trez, a voz alta demais para os próprios ouvidos.

– Sim.

Bosta.

– Escute, iAm, eu não pretendi...

– Também estou fazendo as suas malas.

Trez piscou algumas vezes.

– Hã?

Pelo menos o cara não estava indo embora sozinho. A menos que quisesse a satisfação de jogar as coisas de Trez pela varanda...

– Encontrei um lugar mais seguro para nós.

– Fica em Caldwell?

– Sim.

E entra a música tema de Jeopardy!.

– Quer me dar o CEP?

– Eu daria se soubesse.

Trez gemeu e se recostou contra o batente, esfregando os olhos.

– Você encontrou um lugar para irmos, mas não sabe onde fica?

– Não, não sei.

Ok, talvez aquilo não tivesse sido uma enxaqueca, mas sim um derrame.

– Desculpe, não estou entendendo...

– Nós temos – iAm consultou o relógio de pulso – três horas para fazermos as malas. Roupas e itens pessoais apenas.

– Então o lugar é mobiliado – Trez deduziu.

– Sim, é.

Trez passou um tempo observando o irmão sendo extraeficiente com a bagagem. Camisas tiradas dos cabides, dobradas com precisão, colocadas em malas de couro da Louis Vuitton. O mesmo com calças. Pistolas e adagas foram para maletas de aço combinando.

Naquele ritmo, o cara acabaria de empacotar seus pertences em meia hora.

– Você precisa me dizer para onde vamos.

iAm olhou para ele.

– Vamos nos mudar para a Irmandade.

O cérebro de Trez levou uma descarga, a névoa sumindo de uma vez só.

– Como é?

– Estamos nos mudando para lá.

Os olhos de Trez se arregalaram.

– Eu... hum... espere, acho que não ouvi direito.

– Ouviu, sim.

– Com a permissão de quem?

– De Wrath, filho de Wrath.

– Caceeeete. Como foi que conseguiu isso?

iAm deu de ombros, como se não tivesse feito nada além de uma reserva no Motel 6.

– Falei com Rehvenge.

– Eu não sabia que o macho tinha todo esse poder.

– Ele não tem. Mas procurou Wrath, que apreciou a nossa retaguarda na reunião do Conselho. O Rei acredita que seremos um bom acréscimo ao front da casa.

– Ele está preocupado com um possível ataque – Trez concluiu.

– Talvez esteja. Talvez não. Mas o que sei é que ninguém vai nos encontrar lá.

Trez expirou fundo. Então ali estava o motivo por trás daquilo. Seu irmão, assim como ele mesmo, não queria que ele fosse arrastado de volta para o s’Hisbe.

– Você é incrível – ele disse.

iAm só deu de ombros, como de hábito.

– Pode começar a fazer as suas malas ou devo cuidar disso?

– Não, pode deixar – ele deu uma batida no batente e se virou para sair. – Estou te devendo uma, irmão.

– Trez.

Ele olhou de relance por cima do ombro.

– O que foi?

Os olhos do irmão estavam sérios.

– Isso aqui não é uma liberdade permanente. Você não pode fugir da rainha. Só estou ganhando um tempo com isso.

Trez ficou olhando para os pés nus – e ficou se perguntando quão longe conseguiria ir se eles estivessem protegidos por seus Nikes.

Bem longe.

Seu irmão era o laço que ele não conseguia romper, a única coisa que ele não se sentia capaz de deixar para trás a fim de se livrar de uma vida de luxo como escravo sexual.

E, num momento como aquele, em que o cara mais uma vez se prontificava a ajudá-lo... ele se perguntava se seria impossível ir embora sem iAm.

Talvez ele tivesse que, no fim, ceder ao seu destino.

Maldita rainha. E sua maldita filha.

Os costumes não faziam sentido. Ele jamais vira a jovem princesa. Ninguém jamais a vira. Era assim que funcionava – a seguinte na linha sucessória ao trono era tão sagrada quanto a mãe, porque seria ela a liderá-los no futuro. E, tal qual uma rosa rara, ninguém tinha permissão para vê-la até que ela estivesse adequadamente comprometida.

Pureza e tal.

Blá-blá-blá.

Uma vez que ela estivesse comprometida, porém, estaria livre para sair na sociedade, livre para viver a sua vida – dentro do s’Hisbe. O coitado que se casasse com ela? Ficaria ao lado dela dentro das paredes do castelo, fazendo o que quer que ela quisesse, quando ela quisesse – desde que ele não estivesse aos pés da rainha, idolatrando-a.

Sim, quanta alegria.

E eles acharam que ele se sentiria honrado com essa união?

Mesmo?

Ele transformara o próprio corpo num latão de lixo na última década, transando com todas aquelas humanas e sabe o que era pior? Desejou ter sido capaz de pegar todas daquelas doenças dos Homo sapiens. Impossível. Ele fez sexo desprotegido o quanto pôde com a outra espécie e ainda estava tão saudável quanto um cavalo.

Uma pena.

– Trez? – iAm se endireitou. – Trez? Fale comigo. Para onde você foi?

Trez olhou para o irmão, memorizando aquele rosto orgulhoso e inteligente e os olhos penetrantes sem fim.

– Estou bem aqui – murmurou. – Vê?

Ele ergueu as mãos e fez um círculo sobre seus pés descalços, em seu roupão, naquele estado de torpor pós-enxaqueca.

– No que está pensando? – iAm perguntou.

– Em nada. Só acho incrível isso que você fez. Vou fazer as malas e me aprontar. Eles vão mandar um carro ou algo assim?

iAm estreitou o olhar, mas respondeu mesmo assim:

– Isso. Com um mordomo chamado Fred. Ou seria Foster?

– Estarei pronto.

Trez saiu dali, os restos da dor de cabeça se escoando conforme ele olhava para o futuro... e se preocupava com esse seu último laço.

Porém, aquela mudança era positiva. iAm tinha razão: ele passara estes últimos anos ciente de que a princesa estava crescendo, e que o tempo corria, e que o dia do acerto de contas estava se aproximando rapidamente.

Existiam coisas que se podiam postergar. Aquela não era uma delas.

Inferno, talvez ele devesse desaparecer. Mesmo que isso o matasse.

Além disso, se seu irmão estivesse com Rehv na mansão do Rei? iAm teria o tipo de apoio que precisaria caso Trez acabasse sumindo.

Quem sabe, depois de tanta merda acontecendo?

O cara ficaria aliviado por se ver livre dele.


CCONTINUA

CAPÍTULO 54

Somando-se tudo, o encontro até que não foi tão ruim.

Enquanto Sola se levantava para vestir o casaco, Mark se aproximou por trás e a ajudou a ajeitar a lã nos ombros.

O modo como as mãos se demoraram sugeria que ele estava mais do que aberto a que aquele fosse o término do jantar, mas também apenas o início do resto da noite. No entanto, ele não se mostrou insistente. Deu um passo para trás e sorriu, indicando o caminho da saída com um gesto galante.

Movendo-se à frente dele, pareceu algum tipo de crime contra sua saúde mental que ele não conseguisse fazer seu sangue ferver... como aquele homem extremamente agressivo e dominante o fizera na noite anterior.

Ela precisaria ter uma conversinha com a sua libido. Ou talvez lhe desse uma surra...

Quem sabe daquele outro cara, uma parte sua sugeriu.

– Não – murmurou.

– Desculpe, o que disse?

Sola balançou a cabeça.

– Eu só estava falando comigo mesma.

Depois de abrirem caminho pela multidão, chegaram à porta do restaurante e, puxa, como era bom respirar ar fresco.

– Então... – disse Mark, enfiando as mãos nos bolsos dos jeans, fazendo com que seu torso bem desenvolvido ficasse ainda mais saliente... E ainda assim não conseguindo chegar perto do tamanho do...

Pare com isso.

– Obrigada pelo jantar, você não precisava ter pagado.

– Ora, este foi um encontro. Foi você quem disse – ele sorriu novamente. – E eu sou um cara do tipo tradicional.

Vá em frente, disse ela a si mesma. Pergunte a ele se pode ir até a casa dele.

Afinal, nenhum tipo de ação poderia acontecer na sua casa. Jamais. Não com sua avó no andar de cima – a surdez da mulher era altamente seletiva.

Apenas vá em frente.

Foi para isso que você o chamou...

– Tenho uma reunião bem cedo amanhã – ela deixou escapar. – Por isso, tenho que ir. Mas, obrigada mesmo... e vamos repetir um dia.

Para dar algum crédito a Mark, ele encobriu qualquer desapontamento que pudesse estar sentido com outro daqueles sorrisos campeões.

– É uma boa ideia. Foi bem legal.

– Eu estacionei logo ali – ela apontou o polegar para trás. – Então...

– Eu a acompanho até o carro.

– Obrigada.

Ficaram em silêncio enquanto as botas quebravam o sal que fora colocado por cima do gelo.

– Está uma noite agradável.

– É – ela concordou. – Está mesmo.

Por algum motivo, os sentidos da mulher começaram a lançar um alerta, e seus olhos vasculharam a escuridão do lado de fora do estacionamento iluminado.

Pensou que talvez fosse Benloise indo atrás dela. Sem dúvida, ele já devia ter percebido que alguém invadira sua casa e seu cofre, e também já devia ter notado a leve mudança na posição da estátua. Contudo, seria difícil saber se ele retaliaria. Apesar do ramo de negócio em que se envolvera, ele devia ter ciência de que o que fizera ao cancelar sua missão e suspender o seu pagamento fora errado.

Certamente, ele entenderia a mensagem.

Além disso, ela poderia ter levado tudo o que ele havia guardado.

Aproximando-se do Audi, ela desarmou o alarme. Em seguida, virou-se e levantou o olhar.

– Ligo para você?

– Sim, por favor – disse Mark.

Houve uma longa pausa. Em seguida, ela levantou a mão e a escorregou para trás do pescoço dele, e atraiu a boca dele para a sua. Mark aceitou o convite de pronto, mas não de modo dominador e insistente: enquanto ela pendia a cabeça para o lado, ele fez o mesmo, e seus lábios se partiram, resvalando-se de leve, e depois com um pouco mais de pressão. Ele não a esmagou contra o seu corpo, nem a encurralou contra o carro... não existiu a sensação de descontrole.

Tampouco de uma grande paixão.

Ela interrompeu o contato.

– Vejo você em breve.

Mark exalou profundamente, como se tivesse se excitado.

– Hum... Ok, espero que sim. E não só na academia.

Ele levantou a mão, deu um último sorriso, depois caminhou para a sua caminhonete.

Com uma imprecação leve, Sola foi para trás do volante, fechou a porta e deixou a cabeça cair contra o encosto. Pelo espelho retrovisor, ela observou as luzes traseiras se acenderem, ele dar meia-volta e sair do estacionamento.

Abaixando as pálpebras, ela não visualizou o sorriso radiante de Mark, nem imaginou os lábios dele contra os seus, ou as mãos dele percorrendo seu corpo.

Ela tinha voltado àquele chalé para espionar, testemunhando um par de olhos sensuais e ligeiramente maldosos olhando para ela por cima dos seios expostos daquela outra mulher.

– Ai, pelo amor de Deus...

Tentando se livrar dessa lembrança, ela temeu que, naquele caso, sua necessidade por, digamos, chocolate não seria facilmente saciada por um refrigerante diet. Ou uma bolacha saudável da Snackwell. Nem mesmo por um único chocolate Kiss da Hershey’s.

Se continuasse assim, ela teria que derreter uma caixa de trufas da Lindt e colocar num acesso direto em sua veia.

Colocando o pé no freio, ela apertou um botão no painel e ouviu o ronco do motor. Quando as luzes se acenderam...

Sola se recostou no banco assustada, emitindo um grito agudo.


Quando Qhuinn voltou para a mansão com os outros, ele se afastou tão logo passaram pela porta e entraram no átrio principal. Movendo-se num trote rápido, subiu as escadas e seguiu direto para o quarto de Layla. De acordo com as mensagens, ela decidira sair da clínica no fim das contas, e ele estava ansioso em descobrir como ela estava se sentindo.

Batendo à porta, ele começou a rezar. De novo.

Nada como uma gravidez para tornar um agnóstico religioso.

– Entre.

Ao som da voz dela, ele se preparou e entrou.

– Como está se sentindo?

Layla levantou o olhar da revista Us Weekly que lia deitada na cama.

– Olá!

Qhuinn se retraiu ante a alegria dela.

– Hum... olá?

Olhando ao redor, ele viu revistas Vogue, People e Vanity Fair no cobertor em volta dela e, à sua frente, a TV estava ligada e passava um comercial sobre desodorante seguido de um de pasta de dente Colgate. Havia latas de refrigerante e bolachas de água e sal na mesinha de cabeceira e, na outra mesinha, do lado oposto, uma embalagem vazia de Häagen-Dazs e algumas colheres sobre uma travessa de prata.

– Estou me sentindo bem enjoada – disse Layla com um sorriso. Como se aquilo fosse bom.

E ele deduziu que fosse.

– Hum... algum sinal de... você sabe.

– Nem um pouco. Nada mesmo. Também não estou mais vomitando. Só tenho que me lembrar de comer um pouco por vez. Se como demais, me sinto mal, e o mesmo acontece se fico muito tempo sem colocar alguma coisa aqui dentro.

Qhuinn se recostou no batente, as pernas ficando literalmente moles de alívio.

– Isso é... incrível.

– Quer se sentar? – era como se ele parecesse tão pálido quanto se sentia.

– Não, estou bem. Eu só... só estava muito preocupado com você.

– Bem, como você pode ver – ela indicou o próprio corpo – só estou fazendo o que tenho que fazer, graças à Virgem Escriba.

Enquanto Layla lhe sorria, ele realmente gostou da aparência dela, mas não de maneira sexual, nada disso. Era só que... ela parecia calma, relaxada e feliz, com o cabelo solto sobre os ombros, uma boa cor no rosto, as mãos e os olhos estáveis. Na verdade, ela parecia... muito saudável de repente, a palidez em sua aparência era perceptível apenas pela sua ausência.

– Então, suponho que tenha tido visitas – comentou, indicando as revistas e o pote vazio de sorvete.

– Ah, todos vieram. Beth acabou ficando mais tempo. Ela se deitou ao meu lado, e não falamos sobre nada em especial. Apenas lemos e olhamos fotografias e assistimos a uma maratona de Pesca Mortal. Adoro esse programa. É sobre aqueles humanos que saem em barcos em mar aberto, sabe? É muito excitante. Fez com que eu me sentisse bem quentinha em terra firme.

Qhuinn esfregou o rosto e rezou para que sua sensação de equilíbrio retornasse rapidamente: no fim, suas glândulas adrenais ainda tinham dificuldade para acompanhar a realidade, a ideia de que não havia mais nenhum drama, nenhuma emergência, nada horrendo ao qual reagir, ou com que lidar.

– Estou contente que as pessoas estejam vindo visitar você – murmurou, sentindo como se devesse dizer alguma coisa.

– Ah, elas estão vindo... – Layla desviou o olhar, uma expressão estranha contraindo suas feições –, muitas delas.

Qhuinn franziu o cenho.

– Mas nada estranho, não é?

Ele não conseguia imaginar que ninguém ali na casa mostrasse outra coisa que não apoio, mas ele tinha de perguntar.

– Não... nada estranho.

– O que foi? – enquanto Layla mexia na capa da revista que tinha no colo, o rosto de alguma morena de olhar vago se distorceu, depois voltou ao normal, se distorceu, voltou ao normal. – Layla. Conte para mim.

Para que ele pudesse estabelecer alguns limites, caso fosse necessário.

Layla afastou o cabelo para trás.

– Você vai pensar que eu sou louca, sei lá...

Ele se aproximou e se sentou ao lado dela.

– Ok, preste atenção. Não sei como dizer isso do modo certo, por isso só vou deixar as palavras saírem. Você e eu? Nós vamos enfrentar muita... sabe, muitas baboseiras pessoais com relação a... – oh, Deus, como ele desejava que ela mantivesse aquela gravidez. – Nós bem que podemos começar a ser completamente honestos um com o outro agora. O que foi? Não vou julgar. Depois de tudo o que aprontei na minha vida? Não vou julgar ninguém a respeito de nada.

Layla respirou fundo.

– Está bem... bem, Payne veio me ver na noite passada.

Ele franziu o cenho de novo.

– E?

– Bem, ela disse que talvez pudesse fazer alguma coisa quanto à gestação. Ela não sabia se daria certo, mas não pensava que pudesse me fazer mal.

O peito de Qhuinn se contraiu, uma punhalada de medo fez seu coração acelerar. V. e Payne tinham coisas neles que não eram deste mundo. E isso era legal. Mas não perto do seu bebê – pelo amor de Deus, a mão de V. era assassina...

– Ela esticou a mão e a pousou no meu ventre, bem onde o bebê está...

Uma sensação como se o toalete interior de Qhuinn tivesse dado a descarga de todo o seu sangue para fora da sua cabeça o assolou.

– Oh, Deus...

– Não, não – Layla o segurou. – Não foi ruim. Foi... agradável, na verdade. Eu estava... banhada em luz... Ela fluía de mim, me fortalecendo, me curando. A luz se concentrou em meu abdômen, mas se estendeu para além disso. Depois, porém, fiquei muito preocupada com ela. Ela caiu no chão ao lado da cama... – Layla apontou para baixo. – Mas eu perdi a consciência em seguida. Devo ter dormido por muito tempo. E depois, quando acordei? Foi quando me senti... diferente. No começo pensei que fosse porque o sangramento tinha parado... porque aquilo tinha... acabado. Saí correndo e encontrei Blay, e ele me levou até a clínica. Foi aí que você chegou e a doutora Jane nos contou que... – a mão elegante de Layla tocou o abdômen e ficou ali. – Foi aí que ela nos contou que o nosso bebê ainda estava conosco...

A voz dela se partiu nesse momento, e ela piscou rápido.

– Então, veja bem, acho que ela salvou a nossa gravidez.

Depois de um longo momento de choque, Qhuinn suspirou:

– Ai, caralho...


De volta ao estacionamento do restaurante, Assail pairava diante do capô do Audi de sua ladra, parado bem diante da luz dos faróis.

Bem como fizera na noite anterior, fixou o olhar no dela mais por instinto que por visão.

E, enquanto permanecia no frio, ele estava fervendo de raiva e de algo mais: enquanto o saco de excremento em duas pernas a acompanhara até o carro e teve a insanidade de beijá-la, Assail se viu confrontado por duas escolhas que eram rastrear o homem noite afora e seguir adiante com seu plano original de dilacerar-lhe a garganta, ou esperar até que o humano se fosse e...

Algo muito profundo dentro dele o fez decidir: ele se sentia incapaz de deixá-la.

Sua ladra abaixou a janela e o cheiro da excitação o deixou duro.

E também o fez sorrir. Era a primeira vez a noite inteira que ele percebia esse cheiro, e isso abrandou seu humor como nada mais poderia.

Bem, a não ser talvez arrancar a pele daquele homem ainda vivo.

– O que você quer? – ela rosnou.

Hum, uma excelente pergunta, não?

Ele se moveu para a lateral do carro.

– Você se divertiu?

– Como é?

– Acredito que tenha ouvido a pergunta.

Ela escancarou a porta do motorista e saiu do carro.

– Como ousa esperar qualquer tipo de explicação a respeito de qualquer coisa...

Ele mudou o peso em sua posição, inclinando-se na direção dela.

– Posso lembrá-la de que você invadiu a minha privacidade antes...

– Eu não pulei na frente do seu carro e...

– Gostou do que viu ontem à noite? – ele a calou. E quando o silêncio persistiu, sorriu um pouco. – Então, admite que esteve espionando.

– Você sabia muito bem que eu estava – ela retrucou.

– Então, responda à pergunta. Gostou do que viu? – ele perguntou numa voz que pareceu rouca até mesmo para os próprios ouvidos.

Ah, sim, ele pensou ao inalar profundamente. Ela gostou.

– Não importa – ele ronronou. – Você não precisa expressar isso em palavras. Eu já sei a resposta...

Ela o esbofeteou com tanta força e tão rápido que a cabeça dele virou de lado de verdade.

O primeiro instinto dele foi expor as presas e mordê-la, castigá-la, para se excitar, porque não havia melhor tempero para o prazer do que um pouco de dor. Ou muita.

Ele endireitou a cabeça e abaixou os olhos.

– Isso foi bom. Quer tentar de novo?

Quando um novo vigor emanou dela, ele riu com gosto e pensou, sim, essa reação dela era o que garantiria que aquele humano iria continuar vivo. Ou pelo menos morrer pelas mãos de outra pessoa.

Ela o desejava. E a nenhum outro.

Assail se aproximou ainda mais, até que os lábios parassem bem ao lado do ouvido dela.

– O que fez quando foi para casa? Ou não conseguiu esperar tanto tempo?

Ela, deliberadamente, deu um passo para trás.

– Quer saber? Pois muito bem. Troquei a caixa de areia do gato, preparei dois ovos mexidos para mim e uma bela torrada de canela, depois fui para a cama.

Ele, deliberadamente, deu um passo à frente.

– E o que fez quando se viu entre os lençóis?

Quando a essência dela o atingiu novamente, ele voltou a posicionar a boca onde ela esteve antes... perto, ah, tão perto.

– Acho que sei o que você fez. Mas quero que me conte.

– Vá se ferrar...

– Pensou no que viu? – quando uma rajada de vento soprou os cabelos dela para os olhos, ele os ajeitou. – Imaginou que era com você que eu estava transando?

A respiração dela começou a sair com mais força de dentro do peito, e – Santa Virgem do Fade – isso o fez querer tomá-la.

– Por quanto tempo você ficou? Até a fêmea gozar... ou eu?

As mãos dela o empurraram.

– Foda-se.

Num movimento rápido, ela passou pelo corpo dele e voltou a entrar no carro, batendo a porta.

Ele se moveu com a mesma rapidez.

Aparecendo em meio à janela aberta, ele virou a cabeça dela e a beijou com força, a boca assumindo o comando, a urgência de apagar qualquer traço daquele humano fazendo seu sexo latejar.

Ela retribuiu o beijo.

Com a mesma força.

Como os ombros dele eram grandes demais para caberem na janela, quis arrancar o metal. No entanto, teve que ficar onde estava e isso o tornou mais agressivo, o sangue rugindo em suas veias, o corpo se retesando enquanto a língua a invadia, a mão sorrateira indo para trás da cabeça dela, enterrando-se em seu cabelo.

Ela estava maleável e doce, e quente como o inferno.

A ponto de ele ter que se afastar para poder respirar ou correr o risco de desmaiar.

Quando se separaram, ele a encarou. Os dois arfavam, e quando a excitação dela permeou o ar, ele quis se enterrar nela.

Para marcá-la...

O som do telefone tocando foi um exemplo da coisa errada acontecendo no momento errado: o toque em seu casaco fez com que ela voltasse à realidade, os olhos se arregalando enquanto se afastavam, as mãos travando no volante como se ela tentasse voltar à Terra.

Ela não olhou para ele quando subiu a janela e ligou o motor, partindo em seguida.

Deixando Assail arfando no frio.


CAPÍTULO 55

Qhuinn saiu do quarto de Layla pouco depois, seus coturnos levando-o a um passo rápido por sobre a passadeira estreita do corredor até o alto das escadas. Ao passar pelo escritório de Wrath, teve a impressão de que alguém o chamava, mas não deu atenção.

No canto oposto do corredor das estátuas, além da suíte de Z. e de Bella, o quarto em que Payne e Manny ficavam estava com a porta fechada, mas o som da televisão murmurava baixinho do lado de dentro.

Qhuinn precisou de um segundo para recompor as peças em sua cabeça atordoada, e depois bateu.

– Entre – foi a resposta.

Ao entrar, viu que o quarto era banhado por uma luz azulada da tela de TV. Payne estava deitada na cama, a pele tão pálida que refletia as diferentes cenas projetadas nela.

– Saudações – disse ela numa voz cansada.

– Jesus... Cristo...

– Não, não chego a isso... – ela sorriu. Ou, pelo menos, meia boca dela o fez. – Perdoe-me se não me levanto para recebê-lo.

Ele fechou a porta com suavidade.

– O que aconteceu?

Ainda que ele suspeitasse.

– Ela está bem? – perguntou Payne. – A sua fêmea ainda está grávida?

– Os exames parecem indicar isso.

– Bom. Isso muito me agrada.

– Você está morrendo? – ele perguntou num rompante. E depois quis se dar um chute no traseiro.

Ela meio que riu.

– Acredito que não. No entanto, estou muito fraca.

Os pés de Qhuinn o carregaram através do quarto.

– Então... o que aconteceu?

Payne se esforçou para se erguer nos travesseiros, mas acabou desistindo.

– Acho que estou perdendo o meu dom – ela gemeu ao dobrar as pernas debaixo das cobertas. – Assim que cheguei aqui, eu conseguia postar as mãos e curar com pouco ou nenhum esforço. Toda vez que o faço, porém, o esforço parece me arrasar um pouco mais. E o que eu tentei com a sua fêmea e o seu bebê foi...

– Você quase se matou – ele completou por ela.

Ela deu de ombros.

– Despertei ao lado da cama dela. Arrastei-me aqui para baixo. Manny me tirou da cama há um tempo, e eu tinha um pouco de forças. Agora, parece que elas me abandonaram de novo.

– Posso fazer alguma coisa?

– Acho que preciso ir ao santuário de minha mãe – isso foi dito com total menosprezo. – Para me recarregar. Parece lógico, visto que lá pode ter sido a origem do meu dom. Só preciso me fortalecer o bastante para fazer a jornada, por assim dizer. Bem, isso e juntar vontade de fazê-lo. Eu preferiria continuar aqui. A decisão, contudo, parece ter sido tomada por mim. Não se pode negociar com o físico, depois de certo ponto.

É, ele sabia o que era isso.

– Eu não posso... – ele passou uma mão pelos cabelos. – Não sei como agradecer.

– Quando ela der à luz, então você poderá me agradecer. Há um caminho ainda desconhecido a ser atravessado.

Não mais, ele pensou. A sua visão, aquela à porta do Fade, mais uma vez estava em vias de acontecer.

E, desta vez, permaneceria assim.

Qhuinn desembainhou uma das adagas do peito e fez um corte na palma da mão. Quando o sangue se acumulou e começou a pingar, ele se ofereceu à fêmea.

– Com isto eu ofereço a minha... – ele se interrompeu. Ele não tinha uma linhagem para oferecer, não com a rejeição de sua família no passado. – Ofereço a minha honra a você e aos seus daqui até o fim enquanto o meu coração bater e a última respiração sair de meus pulmões. Qualquer coisa de que necessitar, poderá me solicitar e será seu, sem perguntas, nem hesitação.

De certo modo, parecia ridículo se oferecer dessa forma à filha da bendita divindade. Até parece que Payne precisaria de ajuda...

A mão da adaga de Payne segurou a dele com força.

– Prefiro aceitar a sua honra a qualquer linhagem na face da Terra.

Quando seus olhos se encontraram, ele teve ciência de que aquilo não era um assunto macho-fêmea, mas lutador-lutador, apesar da diferença dos sexos.

– Jamais conseguirei agradecer o suficiente – disse ele.

– Espero que ela supere isso. Ela e o bebê, quero dizer.

– Tenho a sensação de que conseguirão. Graças a você.

Pareceu estranho querer se curvar para aquela fêmea, mas algumas coisas você simplesmente faz, e foi o que ele fez. Depois se virou, pois não desejava atrapalhar o descanso dela.

Bem quando já segurava a maçaneta, Payne murmurou:

– Se quer agradecer a alguém, você deveria procurar Blaylock.

Qhuinn ficou imobilizado. Virou o pescoço para trás.

– O que... você disse?


Assail ficou parado enquanto o Audi derrapava para fora do estacionamento e chegava à rua à frente como se sua ladra tivesse plantado uma bomba no restaurante e tivesse acabado de acionar o detonador.

Seu corpo lhe dizia para ir atrás dela, parar o carro e arrastá-la para o banco de trás.

A mente, contudo, sabia que aquilo não seria uma boa ideia.

Ao sentir uma tensão trespassá-lo, ele soube que a extensão com que perdia controle perto dela era perigosa. Ele era um macho que se definia pelo seu autocontrole. Com aquela fêmea? Ainda mais se o sexo dela estivesse excitado?

Ele se sentia consumido pelo desejo de possuí-la.

Portanto, tinha que se controlar.

A bem da verdade, ele não tinha nada que perder tempo perseguindo uma humana qualquer, parado num canto escuro de uma espelunca qualquer, observando-a com um homem.

Também consumido pelo desejo premente de matar o acompanhante de cheeseburguer dela.

O que, em nome da Virgem Escriba, acontecera com ele?

A resposta, quando lhe veio, foi algo que rejeitou com veemência.

Numa tentativa de realocar suas energias, ele pegou o celular para ver quem telefonara para romper o encanto que precisava ter sido rompido.

Rehvenge.

Por muitos motivos, ele não tinha vontade alguma de falar com aquele macho. A última coisa que o interessava era a repetição de todos os motivos pelo quais ele tinha de participar da estagnação social e política que era o Conselho.

Mas isso seria melhor do que ir atrás de sua ladra...

E ele percebeu que nem sequer sabia o nome dela.

E seria muito melhor nunca vir a saber, disse a si mesmo.

Ao retornar a ligação, ele levou o aparelho ao ouvido e enfiou a mão livre no bolso do casaco de lã para mantê-la aquecida.

– Rehvenge – disse ele quando o macho atendeu. – Estou falando com você mais do que falo com minha mahmen.

– Pensei que a sua mãe estivesse morta.

– Ela está.

– O seu padrão de comunicação é muito baixo.

– O que posso fazer por você – aquilo não era uma pergunta, pois não havia motivos para encorajar uma resposta.

– Na verdade, trata-se do que eu posso fazer por você.

– Com o devido respeito, prefiro cuidar sozinho dos meus assuntos.

– Uma política muito boa. E por mais que eu saiba que você gosta dos seus “assuntos”, não foi por isso que telefonei. Pensei que gostaria de saber que o Conselho se reuniu com Wrath hoje à noite.

– Acredito que renunciei ao meu posto em nossa última conversa. Portanto, o que será que isso tem a ver comigo?

– O seu nome foi dito no fim. Depois que todos tinham se retirado.

Assail arqueou uma sobrancelha.

– De que modo?

– Um passarinho disse que você armou a armadilha para Wrath em favor do Bando de Bastardos em sua casa no outono passado.

Assail segurou o telefone com mais força. E durante a breve pausa que se seguiu, ele escolheu as palavras com extrema cautela.

– Wrath sabe que isso não é verdade. Fui eu quem forneceu o veículo para a fuga dele. Como já lhe disse antes, não estou, e nunca estive, ligado a nenhum tipo de insurreição. Na verdade, eu me retirei do Conselho exatamente porque não quis me envolver em nenhum tipo de dramalhão.

– Relaxe. Ele lhe fez um favor.

– De que modo, exatamente?

– O indivíduo disse isso na minha frente.

– E, mais uma vez, eu pergunto, como isso se...

– Eu sabia que ele estava mentindo.

Assail se calou. Claro que era bom que Rehvenge soubesse que tal declaração era falsa. Mas como?

– Antes que me pergunte – o macho murmurou sombrio –, não vou lhe contar exatamente por que estou tão certo disso. Todavia, eu lhe direi que estou preparado para recompensar a sua lealdade com um presente por parte do Rei.

– Um presente?

– Wrath faz jus ao seu nome.* Ele entende, por exemplo, como um indivíduo pode se sentir se ele for indevidamente acusado de traição. Ele sabe que se alguém tenta implicar outra pessoa com uma informação que não é de conhecimento público, provavelmente está tentando desviar a responsabilidade de suas próprias ações... Ainda mais se a pessoa falando tiver um... bem, como dizer, uma inclinação... que indicasse não apenas falsidade, mas também certo nível de maquinação. Como se ele estivesse lhe retribuindo por algo que considerasse deslealdade ou mau juízo.

– Quem é? – Assail perguntou. Mesmo sabendo de quem se tratava.

– Wrath não está lhe pedindo que faça nenhum tipo de trabalho sujo. Na verdade, se escolher não fazer nada, esse indivíduo estará morto dentro das próximas 24 horas. O Rei apenas acredita que, assim como eu, os seus interesses estejam não só alinhados aos nossos, mas que, neste caso, eles os suplantam.

Assail fechou os olhos, a vingança fervendo em seu sangue da mesma maneira com que seus instintos sexuais ferveram há pouco. O resultado, contudo, seria muito, mas muito diferente.

– Diga o nome.

– Elan, filho de Larex.

Assail fechou os olhos e expôs as presas.

– Diga ao seu Rei que eu cuidarei do assunto de boa vontade.

Rehvenge riu com malignidade.

– Farei isso. Eu prometo.

Wrath em inglês significa ira, fúria, raiva. (N.T.)


CAPÍTULO 56

Blay se sentia ansioso ao andar de um lado para o outro no quarto. Ainda que estivesse completamente vestido para lutar, ele não iria a parte alguma. Nenhum deles iria.

Depois da reunião do Conselho, Tohr ordenara à Irmandade que ficasse recolhida só para o caso. Rehv estava contatando os membros do Conselho, fora da mansão, para entender em que pé a glymera estava. Como o cara não podia aparecer com um grupo de seis Irmãos em sua retaguarda – não se quisesse manter ao menos uma fachada de civilidade –, eles tinham de aguardar. No entanto, devido ao clima político, era importante que a retaguarda estivesse a postos para o caso de o Reverendo precisar.

Não se ele ainda usasse esse nome...

A porta do seu quarto se abriu sem uma batida, um olá, um “ei, posso entrar?”.

Qhuinn parou debaixo da soleira, arfando, como se tivesse corrido pelo corredor das estátuas.

Maldição, será que no fim Layla perdera a gravidez?

Aqueles olhos descombinados vasculharam ao redor.

– Está sozinho?

Por que ele acharia que... Ah, Saxton. Certo.

– Sim...

O macho avançou três passos, esticou os braços e... lascou um beijo daqueles em Blay.

O beijo foi do tipo de que você se lembra pelo resto da vida, a ligação forjada com tamanha completude que tudo, desde a sensação do corpo contra o seu, do calor dos lábios nos seus, do poder assim como o controle, acabavam gravados em sua mente.

Blay não fez nenhuma pergunta.

Apenas continuou lá, os braços envolvendo o outro macho, aceitando a língua que o invadia, retribuindo o beijo mesmo que não entendesse o que motivara aquilo tudo.

Ele, provavelmente, deveria se importar com isso. Provavelmente deveria se afastar.

Deveria, poderia, teria...

Que seja.

Ele estava vagamente ciente de que a porta estava aberta, mas não se importou – mesmo que as coisas logo se tornassem bem indiscretas muito rapidamente.

Só que Qhuinn subitamente pisou no freio, colocando um fim no beijo e separando-os.

– Desculpe, não foi para isso que eu vim até aqui.

O lutador ainda arfava, e isso, junto ao ardor do olhar fixo, quase bastou para que Blay dissesse algo do tipo: “Tudo bem, mas podemos terminar isto antes?”.

Qhuinn voltou até a porta e a fechou. Depois enfiou as mãos nos bolsos das calças, como se a alternativa preocupante fosse voltar a agarrá-lo.

Ao inferno com os bolsos, Blay pensou enquanto, sutilmente, tentava ajeitar sua ereção.

– O que foi? – perguntou.

– Sei que procurou Payne.

As palavras foram pronunciadas clara e lentamente – e era exatamente isso o que Blay não tinha como lidar. Desviando o olhar, ele andou pelo quarto.

– Você salvou a gestação – anunciou Qhuinn, o tom de sua voz próximo demais de um estado de reverência para o seu conforto.

– Então, ela está bem?

– Você salvou a...

– Payne fez isso.

– A irmã de V. disse que não lhe teria ocorrido sequer tentar... até que você a procurou e falou com ela.

– Payne é muito talentosa...

Qhuinn subitamente ficou diante dele, uma parede sólida de músculos pela qual ele não teria como passar. Ainda mais depois de o macho esticar a mão e resvalar o rosto de Blay.

– Você salvou a minha filha.

No silêncio que se seguiu, Blay soube que devia dizer alguma coisa. Sim... estava na ponta da sua língua. Era...

Merda. Com Qhuinn olhando para ele daquele jeito, ele não se lembrava nem do próprio nome. Blaysox? Blacklock, Blabberfox? Quem é que sabia?...

– Você salvou a minha filha – sussurrou Qhuinn.

As palavras que saíram da boca de Blay foram as que, mais tarde, ele lamentaria – porque era especialmente importante, diante do sexo que parecia acontecer de tempos em tempos, manter a distância.

Mas ligados como estavam, olhos nos olhos, ele estava impotente para refrear a verdade.

– Como eu poderia não tentar... aquilo estava acabando com você. Eu não podia deixar de fazer alguma coisa. Qualquer coisa.

As pálpebras de Qhuinn se abaixaram por um tempo. E depois ele abraçou Blay de uma maneira que ficaram ligados da cabeça aos pés.

– Eu posso sempre contar com você, não é?

Uma doce amargura: a realidade de que aquele macho formaria uma família com outra pessoa, uma fêmea, Layla, atingiu o meio do peito de Blay.

Aquela era a sua sina, de tantas maneiras.

Ele se soltou dos braços de Qhuinn e recuou alguns passos.

– Bem, espero que...

Antes que conseguisse terminar, Qhuinn voltou a se postar diante dele, e seus olhos, um verde, um azul, estavam ardentes.

– O que foi? – disse Blay.

– Eu lhe devo... tudo.

Por algum motivo, aquilo doeu. Talvez porque após anos de tentativas de se entregar para o cara, a gratidão finalmente fora conquistada ao ajudá-lo a ter um filho com outra pessoa.

– O que é isso, você teria feito o mesmo por mim – disse ele, um tanto rouco.

E no instante em que disse isso, não teve tanta certeza. Se alguém o atacasse? Sim, claro que Qhuinn o protegeria. Mas, pensando bem, o filho da mãe adorava lutar e era um herói nato, isso não estaria nada relacionado a Blay.

Talvez aquela fosse a questão em todo esse vazio. Tudo sempre fora nos termos de Qhuinn. A amizade. A distância. Até mesmo o sexo.

– Por que está olhando para mim assim? – Qhuinn perguntou.

– Assim como?

– Como se eu fosse um desconhecido.

Blay esfregou o rosto.

– Desculpe. A noite está demorando a passar.

Houve um momento tenso e longo, durante o qual ele só conseguia sentir o olhar fixo de Qhuinn.

– Eu vou embora – o lutador disse depois de uma pausa. – Eu acho que só... queria...

O som dos coturnos dirigindo-se para a saída fizeram Blay praguejar...

E uma batida única e forte à porta: um Irmão.

A voz de Rhage atravessou com facilidade a madeira.

– Blay? Tohr convocou uma reunião para repassarmos o território a cobrir amanhã. Sabe onde Qhuinn está?

Blay olhou através do quarto para o cara.

– Não, não sei.


Ah, pelo amor de Deus, Qhuinn pensou ante a interrupção. Ainda que, na realidade, a conversa tivesse chegado ao fim.

A boa notícia era que, pelo menos, Rhage não entrara. Sem dúvida, Blay preferiria que os dois não fossem flagrados à toa em seu quarto.

Hollywood terminou a conversa dizendo:

– Se o vir, avise que, se ele pretende ir, temos que nos encontrar em cinco minutos. Entenderemos se ele preferir ficar com Layla.

– Entendido – disse Blay num tom apagado.

Enquanto Rhage seguia em frente para a porta de Z., Qhuinn esfregou o rosto. Ele não fazia ideia do que se passava pela cabeça de Blay naquele instante, mas o modo como os olhos azuis o encaravam o fez sentir como se um fantasma tivesse acabado de passar por cima de sua tumba.

Pensando bem, o que ele esperava? Invadira o quarto que o cara dividia com Saxton, tascara-lhe um beijo e depois se mostrara todo sentimental quanto àquela situação com Payne... Aquele era o espaço de Saxton. E não o seu.

Ele tinha o costume de tomar as coisas para si, não era mesmo?

– Não venho mais aqui – disse Qhuinn, tentando aplacar a situação. – Eu só queria que soubesse que... eu lhe devo muito...

Qhuinn foi até a porta e se inclinou, ouvindo a voz de Rhage, fechando os olhos, à espera que o corredor das estátuas estivesse vazio.

Jesus, como ele sabia ser egoísta às vezes, ele sabia mesmo ser...

– Qhuinn...

Seu corpo se virou no mesmo instante, como se a voz de Blay tivesse uma corda que o puxasse.

– Sim?

O macho andou para a frente. Quando estavam cara a cara, Blay disse:

– Ainda quero transar com você.

As sobrancelhas de Qhuinn estalaram tão alto que quase despencaram sobre o tapete. E, no mesmo instante, ele ficou excitado.

O problema era que Blay não parecia feliz com aquilo. Mas por que estaria? Ele não era do tipo de macho que traía com facilidade – ainda que a ausência de monogamia de Saxton o tivesse curado de sua fidelidade.

O que fez com que Qhuinn quisesse estrangular o primo novamente. E a única coisa que o impedia de ir atrás do cara era que, nesse caso, a situação estava a seu favor.

– Também quero estar com você – disse.

– Vou até o seu quarto depois do amanhecer.

Qhuinn não queria perguntar. Tinha que perguntar.

– E quanto a Saxton?

– Ele saiu de férias.

Mesmo?

– Por quanto tempo?

– Alguns dias apenas.

Pena. Alguma probabilidade de extensão... que tal por um ano ou dois? Quem sabe para sempre?

– Ok, então temos um... – Qhuinn se deteve antes de terminar dizendo “encontro”.

Não havia por que tentar se enganar. Saxton estava ausente. Blay queria transar. E Qhuinn estava mais do que disposto a fornecer ao macho aquilo que ele queria.

Não se tratava de um “encontro”. Mas, que se dane?

– Venha – disse num grunhido. – Estarei à sua espera.

Blay assentiu, como se tivessem feito um pacto, e depois saiu primeiro, o corpo com passadas agressivas enquanto se encaminhava para a porta e saía.

Qhuinn observou-o ir embora. Ficou para trás. Quase se trancou ali para poder se recuperar.

De repente, ficou todo confuso, apesar da promessa de que se encontrariam em poucas horas. A expressão no rosto de Blay o atormentava a ponto de ele sentir o peito começar a doer. Merda, talvez aquela série de encontros fosse apenas uma evolução dos maus momentos em que estiveram antes, uma nova faceta da infelicidade coletiva dos dois.

Nunca lhe ocorrera antes que eles não fossem bons um para o outro. Que não haveria, no futuro, algum tipo de encontro de mentes em que ele se abrisse depois de todos aqueles anos.

Cerrando um punho, ele socou o batente da porta, o contorno da guarnição retribuindo o golpe para as suas juntas.

Enquanto a dor surgia e latejava, por algum motivo, ele pensou no soco no painel do caminhão-guincho e no grito para sair de lá. Parecia ter acontecido em outra vida.

Mas ele não tinha como recuar. Se sexo era tudo o que teria, era o que receberia. Além disso, o que Blay fizera por Layla?

Aquilo devia significar alguma coisa. O cara se importara o bastante para mudar o curso da sua vida.

Não que Blay já não tivesse feito isso há muito tempo.


CAPÍTULO 57

Assail se materializou ao lado de um riacho que permanecia descongelado graças ao seu constante movimento.

Estivera naquela casa apenas uma vez antes: era uma construção vitoriana de tijolos com tema característico marcado pelas varandas e entradas. Tão pacato. Tão acolhedor. Ainda mais com aquelas janelas amplas de quatro vidraças feitas de vitral, e as nuvens de fumaça que saíam não de uma, mas de três das quatro chaminés.

O que indicava que o proprietário havia se recolhido para aquela noite.

Bem na hora: o amanhecer se aproximaria logo, portanto, era apenas lógico abaixar as escotilhas ante o sol. Proteger seu ambiente. Preparar-se para as horas em que seria necessário permanecer no interior para se proteger de danos.

Assail caminhou sobre a neve imaculada, deixando marcas de solados profundos. Nada de sapatos de couro para aquele trabalho. Tampouco um terno de negócios.

Nenhum Range Rover para a sua ladra perseguir.

Aproximando-se do gramado lateral, ele chegou à janela que ia do teto ao chão da sala na qual o dono da casa recebera, não muito tempo atrás, certos membros do Conselho... junto ao Bando de Bastardos.

Assail estivera entre os convidados da reunião. Pelo menos até que estivesse ficado claro que ele tinha de se retirar ou acabaria misturado ao tipo de discurso dramático pelo qual não se interessava.

Pelo vidro, espiou o interior.

Elan, filho de Larex, estava sentado à escrivaninha, um telefone fixo junto ao ouvido, uma taça de conhaque próxima ao cotovelo, um cigarro queimando num cinzeiro de cristal lapidado ao seu lado. Enquanto ele se recostava em sua poltrona de espaldar alto e cruzava os joelhos, parecia estar num estado de relaxamento e satisfação semelhante ao rejúbilo pós-coito.

Assail cerrou os punhos e as luvas de couro rangeram de leve.

Em seguida, ele se desmaterializou até a sala, voltando à sua forma exatamente atrás da poltrona do macho.

De certa forma, ele custava a acreditar que Elan não tivesse fortificado a casa com medidas de segurança – uma malha de aço fina sobre as janelas e dentro da parede, por exemplo. Pensando bem, ao aristocrata obviamente faltava a habilidade de julgar corretamente os perigos – assim como tinha uma arrogância que lhe garantiria uma sensação de segurança maior do que a que tinha efetivamente.

– ... e então Wrath partilhou uma história sobre o pai. Devo admitir que, pessoalmente, o Rei é bem... feroz. Ainda que não o bastante para mudar meu curso, obviamente.

Não. Assail cuidaria disso.

Elan se inclinou para a frente para pegar o cigarro. A coisa estava presa numa daquelas cigarrilhas antigas, do tipo que as fêmeas tendiam a usar, e levou a ponta aos lábios para tragar, a extremidade indo além do fim da cadeira.

Assail desembainhou uma lâmina de aço brilhante que era tão longa quanto o seu antebraço.

Sempre fora a sua arma predileta para aquele tipo de assunto.

Seus batimentos cardíacos estavam tão ritmados quanto a mão estava firme, a respiração uniforme e regular enquanto pairava atrás da poltrona. Com deliberação, foi para o lado, posicionando-se de modo que seu reflexo aparecesse na janela oposta à escrivaninha.

– Não sei se a Irmandade inteira estava presente. Quantos restaram? Sete ou oito? Essa é uma parte do problema. Não sabemos mais quem eles são – Elan bateu as cinzas no centro do cinzeiro. – Então, enquanto estávamos na reunião, instruí um colega meu a entrar em contato com você... Como disse? Claro que lhe dei o seu número, e ressinto-me do seu tom... Sim, ele esteve na reunião em minha casa. Ele vai... Não, não voltarei a fazer isso. Pode parar de me interromper? Acredito que sim.

Elan tragou novamente e exalou a fumaça no ar, seu aborrecimento manifestado em sua respiração.

– Posso continuar? Obrigado. Como eu dizia, esse meu colega entrará em contato a respeito de certos assuntos legais que podem nos ajudar. Ele me explicou, mas é tudo muito técnico, portanto, deduzi que você gostaria de falar diretamente com ele.

Houve uma pausa expressiva. E quando Elan voltou a falar, seu tom se mostrou mais calmo, como se palavras tranquilizadoras tivessem aplacado seu ego.

– Ah, sim, uma última coisa. Tratei de cuidar do nosso probleminha com certo cavalheiro “com mente apenas para os negócios”...

Assail deliberadamente cerrou um punho.

E quando o couro, mais uma vez, emitiu um suave som de protesto, Elan se endireitou na poltrona, a perna cruzada voltando a se apoiar no chão, a coluna se endireitando a tal ponto de sua cabeça aparecer por sobre o espaldar. Ele olhou para a esquerda. Para a direita.

– Preciso ir...

Nesse instante, os olhos de Elan pararam na janela diante dele e ele viu o reflexo do seu assassino no vidro.


Enquanto Xcor parava na sala protegida com calefação adequada, ele teve que admitir que a nova escolha de abrigo de Throe era muito superior ao porão do armazém em que previamente estiveram. Talvez ele devesse agradecer ao Sombra que invadira o local, se um dia seus caminhos voltassem a se cruzar.

Pensando bem, talvez o calor que ele sentia no corpo fosse seu humor se alterando e não o trabalho de um condutor de calor operante: o aristocrata do outro lado do seu celular estava testando seus nervos.

Ele não queria ser procurado por ninguém mais do Conselho. Lidar com um só membro da glymera já era o bastante.

Embora tipicamente ele assumisse uma abordagem pacífica com Elan, sua ira deu sinais.

– Não dê meu número a ninguém mais.

Elan e ele trocaram algumas palavras, a ira do aristocrata também se fazendo ver.

O que, na verdade, de nada serviria. Era sempre bom ter um instrumento utilizável nas mãos, não um de difícil trato.

– Minhas desculpas – Xcor murmurou depois de algum tempo. – Trata-se apenas de que prefiro lidar com os que tomam as decisões. É por isso que falo com você e somente com você. Não tenho interesse em ninguém mais. Só em você.

Como se Elan fosse uma fêmea e o relacionamento deles fosse romântico...

Xcor revirou os olhos quando o aristocrata caiu na sua, e voltou a falar:

– ... uma última coisa. Tratei de cuidar do nosso probleminha com certo cavalheiro “com mente apenas para os negócios”...

Instantaneamente, a atenção de Xcor se alterou. O que em nome do Fade o idiota fizera?

Na verdade, aquilo podia ser monstruosamente inconveniente. Podiam dizer o que quisessem por Assail se recusar a aceitar o destronamento de Wrath, mas aquele “cavalheiro” em especial não era feito da mesma seda frágil de Elan. Por mais que Xcor detestasse lidar com o filho de Larex, ele investira um bom tempo e recursos naquele relacionamento. Seria uma pena perder aquele canalha agora e ter de estabelecer outro elo com o Conselho.

– O que você disse? – Xcor exigiu saber.

O tom de Elan se alterou, revelando preocupação.

– Preciso ir...

O grito que reverberou pelo telefone foi tão alto e agudo que Xcor teve que afastar num rompante o celular do ouvido e mantê-lo longe.

Ante aquele som, seus lutadores, que estavam descansando na sala em várias posições, viraram as cabeças na sua direção, testemunhando, assim como ele, o assassinato de Elan.

Os gritos prosseguiram por um tempo, mas não houve nenhum pedido de clemência – ou porque o agressor agira rapidamente ou porque ficou bem claro, mesmo para o macho moribundo, que não haveria nenhuma.

– Que estrago – observou Zypher enquanto outro grito vibrava do telefone. – Uma verdadeira lambança.

– Ainda está respirando – outro comentou.

– Não por muito tempo – um terceiro opinou.

E eles tinham razão. Não mais do que um momento depois, algo atingiu o chão e esse foi o fim dos sons.

– Assail – Xcor disse alto. – Pegue o maldito telefone. Assail.

Houve um barulho como se o telefone no qual Elan estivera falando tivesse sido recuperado do lugar em que caíra. Em seguida, ouviu-se o som de uma respiração arfante.

O que sugeria que Elan podia muito bem estar despedaçado.

– Sei que é você, Assail – disse Xcor. – E só posso imaginar que Elan tenha dado um passo em falso e que tal indiscrição tenha chegado aos seus ouvidos. Todavia, você roubou um parceiro meu, e isso não pode passar em branco.

Foi uma surpresa quando o macho respondeu, com a voz grave e forte:

– No Antigo País, previdências eram tomadas perante afrontas à reputação das pessoas. Por certo, não deve se lembrar delas, mas não poderá me negar o meu direito à desforra no Novo Mundo.

Xcor expôs as presas, não por estar frustrado com aquele com quem falava. Maldito Elan. Se o idiota tivesse apenas sido um informante, ele ainda estaria vivo – e Xcor teria tido a satisfação de ele mesmo matá-lo ao fim daquilo.

Assail prosseguiu:

– Ele declarou a representantes do Rei que eu fui responsável pelo seu tiro de rifle, aquele que foi disparado em minha propriedade sem o meu conhecimento, tampouco a minha permissão... E... – ele interrompeu antes que Xcor pudesse falar – você sabe muito bem o pouco que me relacionei a esse ataque, não sabe?

Nos tempos de Bloodletter, aquela conversa jamais teria acontecido. Assail seria perseguido e caçado por ser um estorvo e eliminado tanto por necessidade como por prazer.

Mas Xcor aprendera a sua lição.

Enquanto os olhos pousavam em Throe, parado alto e elegante entre os outros, ele pensou, sim, aprendera que havia lugar e hora adequados para certas... regras...

– O que eu disse antes ainda vale, Xcor, filho de Bloodletter – quando Xcor se retraiu ante essa referência, mostrou-se contente por aquela conversa estar acontecendo pelo telefone. – Não me importo com os seus interesses nem com aqueles do Rei. Sou apenas um homem de negócios; desliguei-me do Conselho e não sou seu aliado. E Elan tentou fazer de mim um traidor... Algo que, como bem sabe, vem com um preço sobre a cabeça de uma pessoa. Tirei a vida de Elan porque ele tentou tirar a minha. Isso é perfeitamente legítimo.

Xcor praguejou. O macho tinha razão. E por mais que a neutralidade inflexível de Assail tivesse parecido inacreditável no início, agora Xcor começava a... bem, confiar não era uma palavra que ele costumava usar com outros que não os seus soldados.

– Diga-me uma coisa – disse Xcor de modo arrastado.

– O quê?

– A cabeça desse imbecil ainda está presa ao corpinho frágil dele?

Assail riu.

– Não.

– Sabe que esse é um dos meus métodos de assassinato prediletos?

– Um aviso para mim, Xcor?

Xcor olhou de relance para Throe e pensou novamente na virtude dos códigos de comportamento, mesmo entre os guerreiros.

– Não – declarou. – Apenas algo que temos em comum. Fique bem, Assail, pelo que lhe resta desta noite.

– Você também. E nas palavras de um conhecido em comum, preciso ir. Antes de ser forçado a matar o mordomo doggen que está batendo, neste instante, na porta que tranquei.

Xcor jogou a cabeça para trás e gargalhou ao concluir a ligação.

– Sabem – disse ele aos seus lutadores –, até que eu gosto dele.


CAPÍTULO 58

Na noite seguinte, enquanto as persianas se erguiam e um alarme que Blay não reconhecia começava a tocar, ele abriu os olhos.

Aquele não era o seu quarto. Mas ele sabia exatamente onde estava.

Ao seu lado, contra as suas costas, Qhuinn se espreguiçava, o corpo do macho se esticando contra o seu, a pele nua resvalando na sua pele nua – e não é que isso fez uma ereção latejar?

Qhuinn se esticou por sobre a cabeça de Blay, o braço pesado passando por cima para silenciar o alarme do relógio.

A fim de que não houvesse dúvidas quanto a ele querer uma rapidinha antes de todo o ritual de banho e a Primeira Refeição, Blay se arqueou, empurrando as nádegas contra a pélvis de Qhuinn. O gemido que o atingiu no ouvido o fez sorrir um pouco, mas as coisas ficaram sérias quando a mão da adaga de Qhuinn escorregou para baixo e encontrou o pau de Blay.

– Ai, cacete – murmurou Blay ao levantar a perna para abrir caminho.

– Preciso estar dentro de você.

Engraçado, era exatamente isso o que Blay estava pensando.

Enquanto Qhuinn montava nele, Blay se acomodou sobre a barriga, esmagando a palma de Qhuinn com seu mastro erguido.

Não demorou muito para o ritmo ficar intenso e rápido, e enquanto as bolas de Blay se contraíam em novo gozo, ele se maravilhou de tal maneira que seu desespero pelo cara só parecia aumentar – e haveria quem acreditasse que o número de vezes que os dois gozaram juntos, literalmente, durante o dia tivesse aplacado aquele fogo a uma mera ardência.

Não era o caso.

Entregando-se ao prazer, Blay cerrou os dentes quando seu clímax o atingiu ao mesmo tempo em que os quadris de Qhuinn se contraíram e o macho gemeu.

Não houve um segundo round. Não que Blay não quisesse, nem que Qhuinn fosse incapaz. O problema era o relógio.

Quando Blay voltou a abrir os olhos, os números digitais lhe disseram que o alarme de Qhuinn só concedia quinze minutos para que se aprontassem – tempo apenas para uma chuveirada e para se armarem, nada mais. O que o fez desejar que o lutador fosse mais do tipo lerdo que se barbeia duas vezes, passa colônia e escolhe a roupa que vai vestir...

Com mais um dos seus gemidos eróticos de marca registrada, Qhuinn deitou-se de lado, mantendo-os unidos. Enquanto o cara respirava fundo, Blay se deu conta que poderia ficar assim para sempre, apenas os dois em silêncio, no quarto em penumbra. Naquele instante de paz e tranquilidade, não havia nenhuma pendência do passado, ou qualquer coisa que precisasse ser dita mas não foi, ou terceiros elementos, reais ou imaginários, entre eles.

– No fim da noite – disse Qhuinn num tom grave –, você virá me procurar de novo.

– Sim, virei.

Não houve outro tipo de resposta que lhe ocorresse. Na verdade, ele estava se perguntando como esperaria as doze horas de escuridão e refeições e trabalho até poder escapar e voltar para ali.

Qhuinn murmurou algo muito parecido com “ainda bem”. Depois gemeu e se desencaixou, afastando-se. Em seguida, Blay ficou onde estava por um instante, mas, no fim, não tinha escolha a não ser se levantar, ir para a porta e voltar para o seu lugar.

Ainda bem que ninguém o viu.

Ele voltou para o quarto sem que ninguém testemunhasse a caminhada da vergonha, e sim, em quinze minutos, ele se lavou, vestiu-se e se armou. Saindo do quarto, ele...

Qhuinn apareceu na mesma hora.

Os dois pararam.

Normalmente, caminharem juntos seria apenas marginalmente estranho, e eles teriam de jogar conversa fora.

Mas agora...

Qhuinn abaixou o olhar.

– Você primeiro.

– Ok – Blay se virou para se afastar. – Obrigado.

Blay jogou o coldre de peito e a jaqueta de couro por sobre o ombro e saiu andando. Quando chegou às escadas, parecia que anos tinham se passado desde que estiveram deitados tão próximos. Será que aquele dia entre eles acontecera de fato?

Jesus, estava começando a enlouquecer.

Entrando na sala de jantar no andar de baixo, ele se sentou numa cadeira qualquer e pendurou suas coisas no espaldar como os outros – mesmo que Fritz detestasse ver armas próximas à comida. Depois, agradeceu ao doggen que lhe serviu um prato cheio e começou a comer. Ele não teria como dizer o que lhe fora servido nem quais conversas percorriam a mesa. Mas soube exatamente quando Qhuinn passou pela soleira da porta: seu âmago começou a zunir e foi impossível não olhar por cima do ombro.

Houve um impacto físico imediato ao ver aquele corpo imenso envolto em preto, carregado de armas – como se a bateria de um carro tivesse sido ligada em seu sistema nervoso.

E ele achou que foi até bom Qhuinn evitar olhar para ele. Os outros ao redor da mesa os conheciam muito bem, especialmente John, e as coisas já estavam bem complicadas sem a boataria de corredor ter a oportunidade de se fazer valer – não que alguém fosse dizer algo publicamente. Porém, em particular... Conversas de travesseiros corriam desenfreadamente naquela casa.

Algo a se invejar.

Qhuinn seguiu em frente, depois mudou de direção, e foi para o lado completamente oposto da mesa, para a única cadeira, além daquela ao lado de Blay, que estava desocupada.

Por algum motivo, Blay pensou na conversa que teve com a mãe pelo telefone, aquela em que admitira finalmente a um membro de sua família quem exatamente ele era.

Uma inquietação passou pela sua nuca. Qhuinn jamais faria algo como sair do armário, e não porque seus pais estavam mortos, ou porque, quando o casal estava vivo, eles odiavam o filho.

Eu me vejo com uma fêmea num relacionamento duradouro. Não sei explicar. É só assim que vai ser.

Blay afastou o prato.

– Blay? Alôoo?

Estremecendo, ele olhou para Rhage.

– O que foi?

– Eu perguntei se você está pronto para dar uma de Nanook, o Esquimó.

Ah, é mesmo. Eles voltariam para aquele pedaço de floresta onde encontraram os chalés e o redutor com poder especial de desaparecimento, além do avião que, no momento, acumulava neve no jardim dos fundos.

John, Rhage e ele estavam designados para aquela missão. E Qhuinn.

– Sim, sim... sem dúvida.

O mais belo membro da Irmandade franziu o cenho, os olhos azuis como o mar do Caribe se estreitando.

– Você está bem?

– Sim. Estou ótimo.

– Quando foi a última vez em que se alimentou?

Blay abriu a boca. Fechou. Tentou estimar.

– Uhum. Foi o que pensei – Rhage se inclinou para a frente e falou próximo ao peito de Z. – Ei, Phury? Acha que uma das Escolhidas pode vir aqui para assumir o lugar de Layla ao amanhecer? Temos algumas necessidades de sangue.

Ótimo. Era bem isso o que ele queria no fim da noite.

 


Cerca de uma hora mais tarde, Qhuinn inalou profundamente ao se materializar no frio. Flocos de neve rodopiavam ao redor do seu rosto, atingindo-o nos olhos e no nariz. Um a um, John, Rhage e Blay tomaram forma ao seu lado.

Enquanto ele encarava o hangar, a casca vazia lhe trouxe de volta as lembranças do maldito Cessna, da tentativa desesperadora daquela viagem e da aterrissagem forçada.

Quanta alegria...

– Pronto para ir? – perguntou a Rhage.

– Vamos em frente.

O plano era seguir em trechos de quatrocentos metros até chegarem aos primeiros chalés em que já estiveram. Depois disso, eles localizariam os demais chalés da propriedade, usando o mapa que encontraram anteriormente como um guia. Apenas um protocolo de reconhecimento e busca típicos.

Ele não fazia ideia do que encontrariam, mas aquela era a questão. Não se sabia até fazer o trabalho.

Enquanto avançava, Qhuinn estava muito ciente da localização de Blay. Mesmo assim, quando se materializou diante do primeiro chalé que localizaram, não olhou quando Blay apareceu uns dois metros mais distante. Não seria uma boa ideia. Mesmo estando trabalhando, tudo o que precisava fazer era fechar os olhos e sua mente era inundada por imagens de corpos nus entrelaçados na luz fraca do seu quarto.

Uma confirmação visual que o cara era sexy pra cacete não seria de nenhuma ajuda.

Ele tinha vergonha de admitir, mas, naquele instante, a única coisa que o mantinha são era a promessa de Blay de ir procurá-lo ao amanhecer. O estranhamento durante a Primeira Refeição só o fez desejar estarem juntos ainda mais, a ponto de se abalar ante a ideia de que algum dia, num futuro imediato, Saxton voltaria e Blay deixaria de se aproximar, vindo da porta ao lado – e aí, o que ele faria?

Maldita confusão.

Pelo menos Layla estava bem: ainda enjoada e sorrindo de felicidade.

Ainda grávida, graças à intervenção de Blay...

– Leste, nordeste – informou Rhage ao consultar o mapa.

– Entendido – respondeu Qhuinn.

E assim eles prosseguiram avançando no território, a floresta envolvendo-os por centenas e centenas de metros... depois um quilômetro. Em seguida, vários quilômetros.

Os chalés eram bem parecidos, quadrados de seis por seis, abertos no centro, sem banheiro, sem cozinha, apenas um teto e quatro paredes para afastar o pior do inverno. Quanto mais avançavam, mais dilapidadas as estruturas se mostravam – e todas estavam vazias. Lógico. A pé, aquela era uma distância imensa – e redutores, por mais fortes que fossem, não se desmaterializavam.

Pelo menos não a maioria deles.

Aquele só podia ter sido o Redutor Principal, ele pensou. Seria a única explicação para o fato de o assassino ferido ter simplesmente desaparecido daquele jeito.

O sétimo chalé estava diretamente numa trilha que devia ter sido bem frequentada a ponto de ainda se ver um caminho em meio à vegetação.

Naquele faltava uma janela e a porta estava escancarada, a neve entrando como uma invasora. Qhuinn atravessou um monte de neve, seus coturnos esmagando a superfície imaculada conforme ele se aproximava da varanda. Com uma lanterna na mão esquerda e uma .45 na direita, ele deu um salto para baixo do beiral e se inclinou.

Mesma merda, um espaço vazio diferente.

Ao perscrutar o interior, não havia absolutamente nada ali. Nenhuma mobília. Umas prateleiras embutidas vazias. Teias de aranha balançando na brisa que entrava pela janela quebrada.

– Tudo tranquilo – anunciou.

Virando-se, ele pensou que aquilo tudo era besteira. Ele queria estar chutando uns traseiros, e não estar ali, no meio do nada, perseguindo e caçando sem encontrar coisa alguma.

Rhage acomodou uma lanterna de bolso entre os lábios e abriu o mapa mais uma vez. Fazendo uma marca com uma caneta, ele bateu no papel grosso com um dedo.

– O último fica a cerca de quatrocentos metros para o leste.

Ainda bem. Já era hora.

Presumindo que tudo fosse entediante como até então, eles sairiam dali e se deparariam com o inimigo em becos em quinze minutos, talvez vinte.

Molezinha, molezinha.


CAPÍTULO 59

– Você parece verdadeiramente feliz.

Layla levantou o olhar. De certo modo, parecia inacreditável que a rainha da raça estivesse ao seu lado na cama, lendo revistas Us Weekly e People, e assistindo à TV. Mas, pensando bem, a não ser pelo imenso anel de rubi que cintilava em seu dedo, ela não poderia ser mais normal.

– Eu estou mesmo – Layla deixou de lado o artigo sobre a última temporada de The Bachelor e pousou a mão no ventre. – Estou radiante.

Ainda mais que Payne passara pouco antes e aparentava estar se sentindo bem. Mesmo que o desejo de que sua gravidez continuasse fosse quase patológico, a ideia de que essa bênção viesse à custa de outra fêmea não lhe caía bem.

– Você quer ter filhos? – Layla perguntou num rompante. E depois acrescentou: – Se a minha pergunta não a ofender...

Beth desconsiderou a preocupação dela com um gesto.

– Você pode me perguntar o que quiser. E respondendo, quero, sim. Quero muito. O engraçado é que antes da minha transformação, eu não tinha interesse algum em crianças. Elas eram apenas uma complicação descontrolada e barulhenta que eu, honestamente, não entendia por que as pessoas se davam ao trabalho de trazer ao mundo. Mas aí eu conheci Wrath – ela afastou o cabelo escuro e riu. – Desnecessário dizer como isso mudou tudo.

– Quantos cios você já teve?

– Ainda estou esperando. Rezando. Contando o tempo para que o primeiro venha.

Layla franziu o cenho e se ocupou em abrir mais uma embalagem de bolachas de água e sal. Era difícil lembrar muito sobre aquelas horas de loucura com Qhuinn, mas fora uma provação de proporções épicas.

Considerando-se o milagre que ainda repousava em seu corpo, tudo valera a pena.

Contudo, ela não poderia dizer que gostaria de passar pelo seu período fértil novamente. Não sem medicamentos.

– Bem, então desejo que seu cio venha logo – Layla mordiscou uma bolacha, o quadrado se partindo e derretendo em sua boca. – Não consigo acreditar que disse isso.

– É tão difícil quanto... isto é, não consegui falar com Wellsie sobre o período dela antes de ela falecer, e Bella nunca mencionou nada. – Beth baixou o olhar para seu anel de rainha, como se estivesse admirada por suas facetas captarem e refletirem a luz. – E não conheço Autumn tão bem assim; ela é adorável, mas dadas as circunstâncias pelas quais ela e Tohr acabaram de passar, não pareceu apropriado abordar esse assunto com ela.

– Tudo é muito obscuro, para ser bem honesta.

– Uma bênção, então, não?

Layla fez uma careta.

– Bem que eu gostaria de contradizê-la, mas sim, acredito que seja uma bênção.

– Mas deve valer a pena, não?

– Sem sombra de dúvida... Eu estava pensando exatamente nisso, para falar a verdade – Layla sorriu. – Sabe o que dizem a respeito de fêmeas grávidas, não?

– O quê?

– Se passar tempo com elas, isso encorajará seu cio a chegar.

– Verdade? – a rainha lançou um sorriso amplo. – Então você pode ser a resposta às minhas orações.

– Bem, não sei se isso é verdade. Do Outro Lado, somos sempre férteis. É só aqui na Terra que as fêmeas estão sujeitas às influências dos hormônios, mas eu li a respeito desse efeito na biblioteca.

– Então vamos fazer o nosso experimento, que tal? – Beth ofereceu a mão para um aperto. – Além disso, gosto de estar aqui. Você me inspira.

As sobrancelhas de Layla se ergueram com o que lhe foi dito.

– Inspiro? Ah, não. Não sei como.

– Pense pelo que passou.

– A gestação se ajeitou e...

– Não, não apenas isso. Você é a sobrevivente de um culto – quando Layla lhe lançou um olhar de quem não entendia, a rainha perguntou: – Nunca ouviu falar disso?

– Conheço a definição da palavra. Mas não sei se se aplica a mim.

A rainha desviou o olhar, como se não quisesse criar discórdia.

– Ei, posso estar errada, e você certamente deve saber melhor do que eu... Além disso, você está feliz agora, e é isso o que importa.

Layla se concentrou na tela de TV adiante. Pelo que entendia, um culto não era uma coisa boa, e sobrevivente era um termo normalmente associado a pessoas que passaram por algum tipo de trauma.

O Santuário fora como um dia de primavera tranquilo e temperado na face da Terra, todas as fêmeas na paz e tranquilidade do local sagrado com suas tarefas importantes para a mãe da raça.

Nenhuma coerção. Nenhuma contenda.

Por algum motivo, as palavras de Payne entraram em sua mente.

Você e eu somos irmãs da tirania de minha mãe, casualidades de seu plano maior de como as coisas devem ser. Estivemos as duas enjauladas em seus modos diversos, você como uma Escolhida; eu, como sua filha de sangue.

– Desculpe – disse a rainha, esticando a mão para tocar no braço de Layla. – Não tive a intenção de aborrecê-la. Honestamente, não sei que diabos eu estava falando.

Layla voltou-lhe a atenção.

– Ora, por favor, não se preocupe – ela segurou a mão da rainha. – Não me ofendi de maneira alguma. Mas agora, que tal falarmos de coisas mais alegres, tal como o seu hellren. Ele também deve estar impaciente para que seu período chegue.

Beth deu uma risada reservada.

– Ele ainda não está exatamente nesse ponto.

– Por certo ele deve desejar um herdeiro.– Acredito que ele me dará um. Mas só por eu desejar muito um filho.

– Ah...

– Isso mesmo, ah... – Beth apertou a mão de Layla. – Ele só se preocupa demais. Sou forte e saudável, e estou pronta para isso. Mas se ao menos eu conseguisse fazer com que meu corpo começasse a funcionar... Quem sabe, ele não segue o seu exemplo?

Layla sorriu e esfregou a barriga ainda lisa.

– Ouviu isso, meu pequeno? Você precisa ajudar a nossa rainha. É importante para a família real ter um filho.

– Não pelo trono – interveio Beth. – Não de minha parte. Eu só quero ser mãe e ter o filho do meu marido. No fundo, é simples assim.

Layla se calou. Ela estava feliz por ter Qhuinn ao seu lado naquela jornada, mas teria sido maravilhoso ter um parceiro de verdade para se deitar ao seu lado e acalentá-la durante o dia, para amá-la e segurá-la e lhe dizer que ela era preciosa não só pelo que o seu corpo era capaz de produzir, mas pelo que ela lhe inspirava em seu coração.

Uma imagem do rosto rústico de Xcor surgiu subitamente em sua mente.

Balançando a cabeça, ela concluiu que não, não poderia pensar naquilo. Ela tinha de se manter calma e relaxada pelo bebê, pois seu estresse poderia ser transmitido para aquilo que seu ventre nutria. Além disso, ela já fora abençoada com tanto, e se aquela gestação vingasse até o fim, e ela sobrevivesse ao parto?

Ela receberia um milagre verdadeiro e contínuo.

– Estou certa de que tudo dará certo com o Rei – declarou. – O destino tem seu modo de nos dar aquilo de que precisamos.

– Amém, irmã. Amém.

 


Sola parou o seu Audi exatamente no meio do caminho de carros da casa de vidro às margens do rio e estacionou bem na porta de trás da maldita construção.

Saindo, plantou as botas na neve, colocou a mão dentro da parca no cabo da pistola e fechou a porta com o quadril. Ao marchar para a entrada de trás, fez contato visual com o telhado.

Deveria haver uma câmera de segurança ali.

Ela não se deu ao trabalho de tocar a campainha ou bater à porta. Ele saberia que ela estava ali. E se ele não estivesse em casa? Bem, nesse caso ela pensaria em algum tipo de cartão de visitas para lhe deixar.

Talvez um alarme disparado? Ou uma janela ou armário abertos?

Talvez algo faltando dentro da casa...

A porta se abriu e lá estava ele, em carne e osso – exatamente como na noite anterior, e mesmo assim, de algum modo mais alto, mais perigoso, mais sexy do que ela se lembrava.

– Isso não é um pouco óbvio para você? – ele perguntou com lentidão.

Ele vestia um terno preto de algum tipo de designer, e a roupa só podia ter sido feita sob medida, porque o caimento era perfeito.

– Estou aqui para esclarecer uma coisa – disse ela.

– E, ao que parece, veio para estabelecer alguns termos – como se aquela fosse uma ideia intrigante. – Mais alguma coisa? Trouxe o jantar? Estou com fome.

– Vai me deixar entrar ou vamos fazer isto no frio mesmo?

– Por acaso, a sua mão está armada?

– Claro que sim.

– Nesse caso, por favor, entre.

Quando ele recuou, ela revirou os olhos. Por que o fato de ela poder atirar nele encorajaria o homem a permitir a sua entrada era um mistério...

Sola ficou imobilizada quando olhou para a cozinha moderna. Lado a lado estavam dois homens que eram a imagem idêntica um do outro. Também eram tão grandes quanto o homem a quem ela viera procurar – e ambos tinham uma arma na mão.

Só podiam ser aqueles que estiveram com ele debaixo daquela ponte.

A porta se fechou, e ainda que as glândulas adrenais dela tivessem lançado um sinal de alerta, ela escondeu tal reação.

Aquele a quem ela viera ver lançou-lhe um sorriso ao passar por ela.

– Estes são meus associados.

– Quero conversar a sós com você.

O homem se recostou contra uma bancada de granito, colocou um charuto entre os dentes e o acendeu com um isqueiro de ouro. Quando ele fechou a tampa, exalou uma baforada de fumaça azulada e olhou na sua direção.

– Cavalheiros, se nos derem licença por um minuto, por favor.

Os gêmeos senhores Felicidade não pareceram contentes com a dispensa. Pensando bem, mesmo que recebessem bilhetes premiados na loteria eles seriam capazes de arrancar sua mão até o pulso. Só por princípios.

No entanto, eles se encaminharam para longe dali, movendo-se de um modo sincronizado que era incrivelmente perturbador.

– Onde arranjou esses dois? – ela perguntou com aspereza. – Na internet?

– Incrível o que se pode adquirir no eBay...

Abruptamente, ela deixou de lado as amenidades.

– Quero que pare de me seguir.

O homem deu uma tragada no charuto, a ponta gorda brilhando alaranjada.

– Mesmo?

– Você não tem por que fazer isso. Não voltarei aqui novamente... por nenhum motivo.

– Verdade?

– Você tem a minha palavra.

Não havia nada que Sola detestasse mais do que admitir uma derrota – e deixar de lado a investigação desse homem e daquela propriedade era um tipo de renúncia. Mas a noite passada, enquanto ela esteve num encontro com um completo inocente, pelo amor de Deus, cerificou-a de que as coisas estavam se descontrolando. Ela era perfeitamente capaz de brincar de gato e rato; era o que fazia em sua vida profissional. Contudo, com aquele homem? Não havia um objetivo a ser conquistado; nenhum pagamento à sua espera quando informações fossem coletadas; nenhuma intenção de roubá-lo.

E os riscos só vinham aumentando.

Ainda mais se voltassem a se beijar, porque ela duvidava que fosse capaz de parar e a definição de estupidez seria ir para a cama com alguém como ele.

– A sua palavra? – ele repetiu. – E exatamente quanto isso vale?

– É tudo o que tenho a lhe oferecer.

Os olhos dele, aqueles raios laser, detiveram-se em sua boca.

– Não tenho tanta certeza disso.

O sotaque dele e aquela voz grave e deliciosa transformavam as sílabas em uma carícia, uma que ela quase sentia na pele.

Motivo pelo qual ela estava fazendo aquilo.

– Você não tem motivo para me seguir. A partir de agora.

– Talvez eu aprecie a vista – enquanto os olhos percorriam seu corpo, outra onda de choque a acometeu, mas não do tipo ansioso. – Sim, tenho certeza disso. Diga-me uma coisa, gostou do seu passeio ontem? A comida estava do seu agrado? A companhia...?

– Estou colocando um ponto-final nisso agora. Você não vai mais me ver.

Como aquilo era tudo o que ela tinha a dizer, deu-lhe as costas.

– Acha honestamente que isto entre eu e você acaba aqui?

A voz bela e sombria continha uma ameaça velada.

Sola olhou por cima do ombro.

– Você me pediu para não invadir, nem espionar, e eu não vou fazer nada disso.

– E eu lhe digo novamente, acha, honestamente, que isto termina assim?

– Estou lhe dando o que quer.

– Nem chega perto do que quero – ele rosnou.

Por um momento, aquela ligação que fora forjada no frio, enquanto seus lábios se tocavam no carro dela e os corpos enrijeceram, voltou à tona.

– É tarde demais para recuar – outra baforada. – A sua chance de sair veio... e foi embora.

Ela se virou de frente.

– Lamento lhe dizer isso, mas quanta besteira. Não tenho medo de você, nem de ninguém, então, venha me pegar. Mas saiba que vou machucá-lo para me defender...

Um som abrupto reverberou no ar entre eles.

Um ronronar? O homem estava mesmo ronronando?

Ele deu um passo à frente. Depois outro. E como um cavalheiro faria, manteve o charuto afastado, pois não queria queimá-la nem deixar que a fumaça a atingisse no rosto.

– Diga-me o seu nome – ele disse. Ou comandou?

– Acho difícil de acreditar que já não o saiba.

– Não sei – isso foi dito com um arquear de sobrancelha, como se buscar informações estivesse aquém dele. – Diga-me o seu nome e eu a deixarei ir, por ora.

Deus... aqueles olhos... eram o luar e as sombras, uma cor impossível, misto de prateado, violeta e azul-claro.

– Como nossos caminhos não se cruzarão mais, isso não é relevante...

– Só para sua informação... você se entregará a mim...

– Como é?

– Mas antes vai me implorar.

Sola se projetou para a frente, seu temperamento implodindo sua atitude de “vamos ser razoáveis”.

– Só por cima do meu cadáver.

– Lamento, isso não faz o meu tipo – ele deixou cair o queixo e a fitou por sob as pálpebras abaixadas. – Prefiro você quente... e molhada.

– Isso não vai acontecer – ela deu meia-volta e se dirigiu para a porta. – Estamos entendidos.

Assim que ela entrou na antessala, seus olhos captaram algo sobre um banco acomodado na parte baixa da parede oposta.

Sua cabeça virou para trás, e seus pés falsearam. Era uma adaga, uma adaga muito longa, tão longa que era quase uma espada.

Havia sangue fresco na lâmina.

– Reconsiderando a sua partida? – perguntou a voz sombria bem atrás dela.

– Não – ela se dirigiu para a porta e a abriu. – Já estou de saída.

Batendo a porta atrás de si, ela quis correr para o carro, mas se recusou a ceder ao pânico mesmo esperando que ele viesse atrás dela.

No entanto, o homem ficou parado, pairando no vidro da porta que ela acabara de utilizar, observando-a entrar no carro, dar a partida e passar a marcha no Audi.

Ao se recostar no banco do motorista, ela sentiu o coração disparar.

Ainda mais depois que um pensamento aterrador lhe ocorreu.

Enfiando a mão na bolsa, ela tateou em busca do celular e, quando o encontrou, procurou um nome na lista de contatos e selecionou um deles, apertando o botão da chamada. Tomada pelo medo, ela apoiou o celular na orelha, apesar do seu carro ter Bluetooth e ser ilegal, em Nova York, dirigir sem as duas mãos no volante.

Um toque.

Dois toques.

Três...

– Oi! Eu estava esperando que você me ligasse.

Sola se largou no banco, a cabeça batendo no encosto.

– Olá, Mark.

Deus, ouvir o som da voz do homem era um alívio.

– Você está bem? – seu professor de ginástica perguntou.

Ela pensou na lâmina ensanguentada.

– Estou, sim. Está saindo do trabalho?

Enquanto embarcavam numa conversa agradável, ela saiu dirigindo, o pé pesando no acelerador, o cenário passando às pressas. Neve branquinha. Estrada cheia de sal. Árvores em seus esqueletos. Chalezinho antigo com a luz acesa dentro. Espaço vazio à margem esquerda do rio.

Toda vez que ela piscava, via a silhueta no vidro daquela porta. Observando. Planejando. Esperando...

Por ela.

E, bom Deus, seu corpo estava desesperado para ser capturado por ele.


CAPÍTULO 60

Enquanto Qhuinn se materializava, a sua lanterna iluminava o último chalé. Dessa vez, ele não esperou pelos outros, simplesmente marchou adiante, direto para a porta, que estava intacta e fechada...

Sua primeira pista de que algo estava errado surgiu quando segurou a maçaneta antiga e gasta: um choquinho elétrico atravessou sua mão e subiu pelo braço.

Retirando a mão, ele sacudiu o braço, e seus instintos ficaram em alerta.

– O que foi? – Rhage perguntou ao subir na varanda baixa.

Qhuinn olhou ao redor, notando que Blay e John estavam nas imediações.

– Não sei.

Rhage foi até a porta e teve a mesma sensação, retraindo-se subitamente.

– Mas que merda...?

– É, não é... – murmurou Qhuinn ao recuar um passo e iluminar o exterior.

As duas janelas em cada lado da entrada haviam sido cobertas por tábuas, e quando ele andou ao redor da casa, viu que o mesmo fora feito com aquelas do outro lado.

– Que se foda – grunhiu Rhage. O Irmão recuou três passos e depois se lançou contra a porta, o ombro forte num ângulo como um aríete.

Com o impacto, a madeira da porta se estilhaçou...

Subitamente, uma luz ofuscante cruzou a noite, iluminando a floresta como se uma bomba tivesse explodido, lançando Rhage para trás.

Enquanto Blay e John corriam para verificar se o lutador se ferira, Qhuinn avançou, preparando-se enquanto atravessava o batente, esperando ser atingido por algumas centenas de volts de sabe-se lá o quê.

Em vez disso, ele só atingiu o ar, e seu impulso foi tão grande que ele teve que se recolher numa bola a fim de não cair de cara no chão. Uma respiração depois, ele se impulsionou no chão e aterrissou agachado, uma arma numa mão, a lanterna na outra.

Algo fedia muito ali.

– Atrás de você – avisou Blay, quando um segundo facho de luz se juntou ao seu.

O ar dentro do chalé estava estranhamente quente, como se houvesse um sistema de aquecimento ligado, só que isso não era possível. Não havia eletricidade, nem tanque de combustível. E já fazia um tempo que alguém estivera ali, a julgar pela camada de poeira imperturbável nas tábuas do chão e pelas teias de aranha, delicadas e verticais que se penduravam a partir do teto como cordas inertes.

– O que é isso? – perguntou Blay.

Ao girar seu facho de luz, Qhuinn franziu a testa. Havia um bom número do que pareciam ser tambores de óleo contra a parede oposta, todos juntos, como se tivessem sentido medo de algo e se arrumado em círculo para autoproteção.

Qhuinn andou até lá, sempre movendo a lanterna em círculos amplos, e franziu o cenho mais uma vez quando conseguiu olhar direito para os latões. Nenhum deles tinha tampa e sua luz parecia refletir algum tipo de óleo.

– Mas... que diabos é isso?

Inclinando-se sobre um deles, ele inspirou profundamente e sentiu as narinas queimarem com o fedor forte de assassinos. A julgar pelo modo como a sua luz não conseguia penetrar a superfície do líquido, ele soube que só podia ser uma coisa, e, por certo, aquilo não poderia ser usado como aquecedor ou gerador.

Era o sangue de Ômega.

– Atrás de vocês – disse Rhage ao entrar.

Um assobio suave anunciou que John também entrara.

– Isso é o que eu acho que é? – perguntou Blay ao parar ao lado de Qhuinn.

Qhuinn acomodou a lanterna entre os dentes e esticou a mão nua. Assim que fez contato com a viscosidade desagradável, algo subiu à superfície do barril...

– Cacete! – exclamou, pulando para trás.

Enquanto sua lanterna caía e rolava pelo chão, o facho de Blay iluminava o que quer que tivesse se movido.

Um braço.

Havia alguém dentro daquele tambor.

– Jesus Cristo – sussurrou Blay.

Atrás deles, a voz de Rhage soou alta:

– V.? Precisamos de assistência aqui. Agora.

Qhuinn se inclinou para baixo e apanhou a lanterna. Voltando a apontá-la para o líquido oleoso, ele observou quando o braço se movimentou novamente, mergulhando logo abaixo da superfície, o movimento elevando o pulso e o dorso da mão...

Algo reluziu, e esse fulgor breve atraiu a atenção de Qhuinn. Ajustando o ângulo do facho de luz, inclinou-se ainda mais sobre o tonel.

A mão não parecia bem, as juntas estavam deformadas, faltavam partes dos dedos ou eles inteiros, como se tivessem sido colocados dentro de um moedor...

Aquele brilho surgiu novamente na fossa do sangue de Ômega.

Seria... um anel?

– Espere, espere, Qhuinn... Você tem que recuar.

Qhuinn ignorou o comentário ao se inclinar ainda mais para a frente, aproximando-se, aproximando-se...

Aproximando-se...

A princípio, ele custava a acreditar no que via. Simplesmente não poderia estar vendo um anel de sinete.

Porém, o que mais poderia ser? Estava no indicador, o único dedo que não fora arrancado. E era de ouro – mesmo com todo aquele óleo preto, o brilho amarelado era evidente. E o anel em si tinha uma faceta larga na qual estava gravada...

– Qhuinn – disse Rhage com aspereza –, afaste-se imediatamente...

O braço se moveu novamente, a mão pálida rompendo a superfície do líquido, parecendo um espectro emergindo de uma tumba, esticando-se...

O sangue de Ômega escorreu da superfície do anel, revelando...

– Qhuinn, não estou brincando...

Um barulho explodiu dentro do chalé, preenchendo o ar.

Ele ignorou completamente que o grito saíra de sua boca.

 

A princípio, Blay pensou que o que quer que estivesse no tonel tivesse agarrado Qhuinn e o puxado para dentro e que foi por isso que Qhuinn gritou. Instintivamente, ele avançou e segurou a cintura de Qhuinn, como se lançasse uma âncora e a puxasse de volta.

O que saiu do tonel atormentaria os pesadelos de Blay durante anos... décadas.

Na verdade, o que estava dentro não se agarrara a Qhuinn; foi exatamente o contrário. Enquanto Blay puxava para trás, uma forma masculina saía do local apertado, o sangue de Ômega caindo pelas laterais em riachos, açoitando o piso frio de madeira do chalé, atingindo os coturnos e as calças de couro de Blay, encharcando Qhuinn.

Qhuinn teve que se esforçar para continuar segurando aquilo que escorregava de suas mãos, a arma e a lanterna esquecidas, as mãos enluvadas apalpando e arranhando para não perder o contato...

E quando eles içaram...

O barril de óleo caiu de lado enquanto o macho nu se estatelava aos seus pés.

Ninguém se moveu. Foi como se todos tivessem acabado de tomar suas posições num palco.

Blay reconheceu quem era imediatamente.

E não acreditou.

O morto voltando para o mundo dos vivos... por assim dizer.

Qhuinn se agachou e tocou no ombro do macho. Em seguida, pronunciou o nome do irmão com voz rouca:

– Luchas?

A resposta foi imediata. As mãos do irmão lentamente começaram a girar, as pernas machucadas a se debater, o corpo nu tentando se mover. A pele estava coberta de hematomas, a parca iluminação das lanternas revelava cada contusão, laceração e hematoma, a mancha do sangue de Ômega gradualmente sumindo da pele pálida.

Bom Deus, o que fizeram com ele? Um dos olhos estava fechado pelo inchaço, e a boca estava torta, como se ele tivesse sido socado ali. Quando ele se retorceu, pareceu que os dentes tinham permanecido intactos, mas aquele era o único sinal de misericórdia que pareceram ter para com ele.

– Luchas? – repetiu Qhuinn. – Consegue falar comigo?

Mais ao lado, Rhage estava novamente ao telefone.

– V.? Temos uma situação nas mãos... Quanto tempo vai demorar... o quê? Não, absolutamente, não. Preciso de você... Não, você. E Payne – Hollywood olhou de relance e articulou apenas com a boca “sabem quem ele é?”.

Blay teve que limpar a garganta, sua resposta saindo aos tropeços:

– É... o irmão dele.

Rhage piscou forte. Balançou a cabeça. Inclinou-se.

– Desculpe. O que você...

– O irmão dele – Blay repetiu alto e claro.

– Jesus... – sussurrou Rhage. E depois reagiu. – Agora, V. Agora.

– Luchas, consegue me ouvir? – perguntou Qhuinn.

Vishous invadiu o chalé uma fração de segundo mais tarde. O Irmão estava coberto em sangue de redutor e sangue vermelho graças a um corte no rosto – também respirava como um trem de carga e tinha uma adaga gotejante na mão.

No instante em que viu sobre o que eles estavam rodeados, ele parou.

– Mas que merda é essa?

Rhage rapidamente fez gestos perpendiculares à garganta, interrompendo qualquer outro comentário. Depois segurou o braço de V. e o arrastou para longe do alcance dos outros ouvidos. Quando os dois voltaram, V. não revelava emoção alguma.

– Deixe-me dar uma olhada nele – disse V.

Qhuinn apenas continuou falando com o irmão, as palavras saindo numa corrente contínua que não fazia muito sentido. Pensando bem, até onde todos sabiam, o macho fora assassinado nos ataques, junto ao pai, a mãe e a irmã de Qhuinn. Portanto, sim, aquilo era o bastante para fazer até Shakespeare sofrer de um caso de balbucios.

Só que... não era possível, Blay pensou. Havia quatro corpos na casa – e Luchas estivera entre eles.

Blay deveria saber disso. Fora ele a entrar lá para identificá-los.

Ele apoiou uma mão no ombro de Qhuinn.

– Ei.

As palavras de Qhuinn foram sumindo. Depois, ele fitou os olhos de Blay.

– Ele não está respondendo.

– Pode deixar o V. dar uma olhada nele? Precisamos de um parecer médico – e talvez muito mais para ter respostas quanto ao que acontecia ali. – Vamos, venha comigo até ali.

Qhuinn se endireitou e recuou, mas não se distanciou muito, e seu olhar nunca se despregou do irmão.

– Será que o transformaram? – ele cruzou os braços e se enrolou para a frente. – Acha que o transformaram?

Blay balançou a cabeça e desejou poder mentir.

– Eu não sei.


CAPÍTULO 61

Enquanto Qhuinn encarava o chão do chalé, seu cérebro resgatava todo tipo de lembranças desconexas, a noção concreta de que sua família inteira fora devastada colidindo com o que parecia ter sido uma realidade completamente diferente.

Ele continuava a voltar para aquela noite, há tanto tempo, quando passara pela porta de entrada da casa dos pais e encontrara a família toda reunida à mesa de jantar... e o irmão recebendo o anel de sinete que agora estava na mão destroçada.

Você haveria de pensar que um cara torturado, porém vivo, seria tudo em que alguém conseguiria se concentrar.

– O que está acontecendo, V.? – ele exigiu saber. – Como ele está?

– Vivo – o Irmão limpou a adaga na coxa coberta pelo couro da calça. – Filho? Filho, consegue me ouvir?

Luchas continuou olhando para Qhuinn, seus lindos olhos cinza injetados de sangue e arregalados. A boca se movia, porém nenhum som saía dela.

– Filho, vou ter que cortá-lo, está bem? Filho?

Qhuinn sabia exatamente o que V. procurava saber.

– Vá em frente.

O coração de Qhuinn começou a bater como um punho contra seu esterno enquanto o Irmão pegava a adaga negra e fazia um corte no lado externo do braço de Luchas. O cara não reagiu; pensando bem, com tudo o que lhe acontecera... Aquilo era apenas um pingo num tonel de água.

Por favor, seja vermelho, seja vermelho, seja vermelho...

Sangue vermelho se avolumou e escorreu, num contraste brilhante contra o óleo negro no qual ele estava coberto.

Todos emitiram um suspiro de alívio que nem sequer sabiam que estavam represando.

– Ok, filho, isso é bom, é muito bom...

Eles não o haviam transformado.

V. se levantou do chão e fez um gesto de lado com a cabeça, indicando que queria conversar reservadamente. Enquanto Qhuinn o seguia, puxou o braço de Blay e o levou consigo. Era o mais natural a ser feito. Aquilo era muito sério, e ele sabia que não estava acompanhando muito bem – e não havia ninguém mais que ele quisesse consigo.

– Não tenho o medidor de pressão nem um estetoscópio, mas posso lhe garantir uma coisa... a pulsação dele está fraca e irregular, e tenho quase certeza de que ele está em estado de choque. Não sei quanto tempo ele ficou ali dentro e nem o que lhe fizeram, mas ele está vivo no sentido convencional da palavra. O problema é que Payne está fora da jogada – os olhos de V. cintilaram. – E vocês sabem por quê.

Ah, então ele falara com a irmã.

– Ela não poderá ser capaz de usar a magia dela – o Irmão continuou – e estamos a um milhão de quilômetros de qualquer lugar.

– Ou seja – disse Qhuinn.

V. o encarou.

– Ele vai morrer nas próximas horas se...

– V.! – exclamou Rhage. – Venha aqui!

No chão, o corpo castigado de Luchas se erguia sozinho, as mãos quebradas se fechavam em suas palmas, os joelhos se retesavam, a coluna se curvava para o teto do chalé.

Qhuinn se lançou para a frente e se ajoelhou perto da cabeça do irmão.

– Fique comigo, Luchas. Vamos, lute...

Aqueles olhos cinzentos se fixaram nos de Qhuinn, e a agonia deles era tão esmagadora que Qhuinn mal notou V. se apressando para perto e removendo a luva da mão brilhante.

– Qhuinn! – o Irmão exclamou, como se já tivesse repetido o nome dele algumas vezes.

Ele não desviou o olhar do irmão.

– O quê?

– Isto pode matá-lo, mas talvez faça seu coração voltar a bater no ritmo certo. É arriscado, mas é a única chance dele.

Na fração de segundo antes da resposta, ele sentiu uma necessidade esmagadora de que o irmão superasse aquilo de algum modo. Mesmo mal conhecendo o cara, e tendo se ressentido dele por anos – e depois ter sido surrado por ele quando Luchas se juntara à Guarda de Honra –, ele não percebera até eles terem sumido o quanto é possível se sentir desorientado sendo o único ser no planeta sem que ninguém mais do seu sangue esteja com você.

Em retrospecto, esse vazio fora exatamente o que o motivara durante o cio de Layla. E o que o fizera procurar Blay instintivamente.

Ame-os ou odeie-os, por laços de sangue ou do coração, a família era um tipo de oxigênio.

Necessário aos seres vivos.

– Vá em frente – disse ele.

– Espere – Blay interrompeu, tirando o cinto e entregando-o a Qhuinn. – Para a boca dele.

Mais uma razão para amar o cara. Não que ele precisasse de mais uma.

Qhuinn posicionou a tira de couro na boca aberta do irmão e segurou-a no lugar ao assentir para V.

– Fique comigo, Luchas. Vamos... Fique comigo...

Pelo canto do olho, ele rastreou o brilho da luz branca se aproximando do esterno do irmão...

O peito de Luchas se ergueu, o corpo todo sofrendo um espasmo nas tábuas do chão enquanto uma luz brilhante o atravessava, afunilando-se pelos braços e pelas pernas, irradiando-se da cabeça. O som que ele produziu não foi humano, um gemido gutural que atingiu Qhuinn bem em sua medula.

Quando V. retraiu a mão, a palma irradiante erguida, Luchas caiu como o peso morto que era, o corpo rebatendo, os membros vibrando.

Ele piscou rapidamente, como se uma brisa o atingisse no rosto.

– Mais uma vez – exigiu Qhuinn. Quando V. não respondeu, ele o encarou. – Mais uma vez.

– Isso é loucura – murmurou Rhage.

V. avaliou o macho por um instante. Depois aproximou a mão letal novamente.

– Uma vez, é só o que você terá – ele disse a Luchas.

– Maldição – Rhage interveio. – Mais do que isso e ele vira churrasquinho.

O segundo choque foi tão ruim quanto o primeiro – o corpo judiado se contorcendo, Luchas emitindo aquele som horrendo antes de aterrissar num baque de ossos.

Mas ele respirou. Uma respiração profunda, grande, poderosa que expandiu a caixa torácica.

Qhuinn sentiu vontade de rezar e achou que estava mesmo quando entoou:

– Vamos, vamos, vamos...

A mão dilacerada, aquela do anel, esticou-se e segurou a camisa de Qhuinn. A pegada era fraca, mas Qhuinn se inclinou.

– O quê? – disse ele. – Fale devagar.

A mão escorregou para a jaqueta.

– Fale comigo.

A mão do irmão parou no cabo de uma de suas adagas.

– Mate... me...

Os olhos de Qhuinn se arregalaram.

A voz de Luchas não era nada parecida com o que um dia fora, não passava de um sussurro rouco.

– Mate... me... irmão... meu...


CAPÍTULO 62

– Como é que você está? – Blay perguntou.

Parado na varanda do chalé Qhuinn inspirou e percebeu cheiro de cigarro. Blay acendera outro, e por mais que Qhuinn detestasse esse hábito, ele não tinha como culpá-lo. Inferno, se ele curtisse aquilo, também se apoiaria naqueles pregos de caixão.

Olhou-o de relance. Blay o fitava com paciência, obviamente preparado para esperar pela resposta, mesmo se demorasse o resto da noite.

Qhuinn consultou o relógio. Uma da manhã.

Quanto tempo demoraria para que o resto da Irmandade chegasse ali? E será que o plano de evacuação que bolaram iria funcionar?– Sinto como se estivesse enlouquecendo – respondeu.

– Também sinto isso – Blay exalou a fumaça na direção oposta. – Não acredito que ele está...

Qhuinn fitou as árvores diante deles.

– Eu nunca lhe perguntei sobre aquela noite.

– Não. E, francamente, eu não o culpo.

Atrás deles, no chalé, Rhage, V. e John estavam com Luchas. Todos tinham tirado as jaquetas e o envolveram com elas numa tentativa de mantê-lo aquecido.

Parado apenas com a camiseta e as armas, Qhuinn não sentia o frio.

Pigarreou.

– Você o viu?

Fora Blay a entrar na mansão depois do ataque. Qhuinn simplesmente não teve coragem de identificar os corpos.

– Sim, eu o vi.

– Ele estava morto?

– Até onde eu sabia, sim. Ele estava... Sim, eu não achei que existisse qualquer chance de ele estar vivo.

– Sabe, não vendi a casa.

– Ouvi dizer.

Tecnicamente, como membro repudiado da família, ele não teria nenhum direito à propriedade. Contudo, tantos foram mortos que ninguém exigiu a propriedade, e ela, de acordo com as Leis Antigas, fora revertida para o Rei, depois do que Wrath imediatamente a passou para Qhuinn como propriedade alodial.

O que quer que isso significasse.

– Eu não sabia o que pensar quando me disseram que eles haviam sido assassinados – Qhuinn levantou o olhar para o céu. A previsão era de mais neve, portanto, não havia nenhuma estrela visível. – Eles me odiavam. Acho que eu também os odiava. E depois eles não estavam mais lá.

Atrás dele, Blay ficou imóvel.

Qhuinn sabia por que e um embaraço repentino o fez enfiar as mãos nos bolsos. Sim, ele absolutamente detestava falar de emoções e esse tipo de baboseira, mas não havia como calar aquilo. Não ali. Sozinho. Com Blay.

Limpando a garganta, ele continuou:

– Mais do que tudo, fiquei aliviado, para ser bem franco. Não tenho como explicar o que foi crescer naquela casa. Com todas aquelas pessoas olhando para mim como se eu fosse uma maldição viva para eles – balançou a cabeça. – Eu costumava evitá-los o quanto podia, usando as escadas dos criados, ficando naquela parte da casa. Mas então os doggen ameaçaram se demitir. Na verdade, o maior benefício da minha transição foi que eu podia me desmaterializar direto da janela do meu quarto. Assim ninguém tinha que lidar comigo.

Mesmo quando ouviu Blay praguejando baixinho, Qhuinn não conseguiu parar de falar.

– E sabe o que era pior? Eu via que o amor era possível quando o meu pai olhava para o meu irmão. Teria sido uma coisa se o bastardo nos odiasse a todos, mas não. E isso me fez perceber o quanto eu era excluído – Qhuinn o olhou de relance. Remexeu os pés. – Por que está olhando assim para mim?

– Desculpe. Hum... desculpe. É que você... você nunca falou deles. Nunca.

Qhuinn franziu o cenho e mediu o céu, visualizando as estrelas mesmo sem poder enxergá-las.

– Eu queria. Com você, isto é. Com ninguém mais.

– E por que não falou? – como se aquilo fosse algo que o cara estivesse se perguntando há algum tempo.

No silêncio que se seguiu, Qhuinn remexeu nas lembranças nas quais nunca se demorava, vendo a si mesmo. A sua família. Vendo... Blay.

– Eu adorava ficar na sua casa. Eu não tenho como dizer o que aquilo significava para mim. Lembro-me da primeira vez que me convidou. Eu estava certo de que os seus pais me expulsariam. Eu estava pronto para isso. Inferno, eu tinha que lidar com aquela merda na minha própria casa, por que, então, completos desconhecidos não o fariam também? Mas a sua mãe... – Qhuinn pigarreou novamente. – A sua mãe me fez sentar à mesa da cozinha e me deu comida.

– Ela ficou devastada por você ter se sentido mal. Logo depois, você correu para o banheiro e ficou vomitando por uma hora.

– Eu não estava vomitando.

A cabeça de Blay se virou de repente.

– Mas você disse...

– Eu estava chorando.

Quando Blay se retraiu, Qhuinn deu de ombros.

– Qual é, o que eu iria dizer? Que chorei como uma menininha no chão do banheiro? Deixei a torneira aberta para que ninguém me ouvisse e dava descarga de vez em quando.

– Nunca soube disso.

– Esse era o plano – Qhuinn o fitou. – O plano foi sempre esse. Eu não queria que você soubesse como era ruim ficar na minha casa, porque eu não queria que você sentisse pena. Eu não queria que você, ou os seus pais, sentissem a obrigação de me acolher. Eu queria que você fosse o meu amigo... e você foi. Sempre foi.

Blay desviou rápido o olhar. Depois esfregou o rosto com a mão que não segurava o cigarro.

– Foram vocês que me fizeram superar aquilo – Qhuinn se ouviu dizer. – Eu vivia para as noites, porque eu poderia sair da casa. Era a única coisa que me fazia seguir em frente. Você, na verdade, fazia com que eu seguisse em frente. Sempre foi... você.

Quando os olhos de Blay voltaram a pousar sobre os seus, ele teve a sensação de que o cara estava à procura de palavras.

E que Deus os ajudasse, pois, não fosse por Saxton, Qhuinn teria lançado a palavra que começa com “A” bem ali, apesar de ser uma péssima hora.

– Você pode, sabe – disse Blay, por fim. – Falar comigo.

Qhuinn bateu os pés no chão e curvou os ombros, esticando os músculos das costas.

– Cuidado. Posso cobrar essa promessa.

– Isso ajudaria – quando Qhuinn olhou novamente, era Blay quem balançava a cabeça. – Não sei o que estou dizendo.

Até parece, pensou Qhuinn...

Sem aviso, V. emergiu do chalé, acendendo um cigarro caseiro enquanto saía. Enquanto Qhuinn se calava, não sabia se sentia alívio por aquela conversa ser forçada a um final ou não.

Exalando fumaça, V. disse:

– Preciso me certificar de que você compreende as consequências.

Qhuinn assentiu.

– Já sei o que você vai dizer.

Aqueles olhos de diamante se fixaram nos seus.

– Bem, vamos deixar às claras assim mesmo, está bem? Não sinto a presença de Ômega nele, mas se ele surgir ou se eu tiver deixado passar algum sinal, vou ter que cuidar dele.

Mate-me, irmão meu. Mate-me.

– Faça o que precisar fazer.

– Ele não pode entrar na mansão.

– Aceito.

V. ergueu a mão não letal.

– Jure.

Parecia estranho segurar a palma do Irmão e vincular sua palavra com o contato – porque era o que parentes faziam em situações como aquela, e Deus bem sabia que ele não era próximo de ninguém a esse ponto: mesmo antes de ser repudiado pela família, ele fora a última pessoa a poder jurar baseado em linhagens.

No entanto, os tempos mudaram, não?

– Mais uma coisa – V. bateu as cinzas da ponta do cigarro. – Vai ser uma recuperação muito longa e difícil para ele. E eu não estou só falando da parte física. Você precisa estar preparado.

Como se antes ele tivesse tido algum tipo de relacionamento com o cara... Ele podia partilhar um pouco do seu DNA com o sujeito, mas, fora isso, Luchas era um completo estranho.

– Eu sei.

– Ok. Muito justo.

Ao longe, o som agudo de motores cruzou a escuridão.

– Ainda bem – Qhuinn disse ao entrar no chalé novamente.

No canto, onde o tonel fora derrubado, o irmão não passava de uma pilha de jaquetas, o corpo retorcido coberto pelas mantas improvisadas.

Qhuinn atravessou as tábuas do piso, acenando para John e para Rhage.

Ajoelhando-se ao lado do irmão, sentiu como se estivesse num sonho, e não na realidade.

– Luchas? Preste atenção, eis o que vai acontecer. Vamos levá-lo num trenó. Você vai para uma clínica de tratamento. Luchas? Está me ouvindo?

 

Enquanto dois snowmobiles se aproximavam do chalé, Blay acompanhava o progresso deles da varanda, observando os faróis crescerem e ficarem mais luminosos, o par de motores passando para um ronco baixo quando chegaram ao destino. Ah, muito bom, atrás de um deles, havia um trenó coberto, do tipo que se via nos Jogos Olímpicos de Inverno quando algum esquiador se machucava e no qual era transportado montanha abaixo.

Perfeito.

Manny e Butch desmontaram e correram.

– Eles estão aqui – disse Blay, saindo do caminho do médico.

– Luchas? Está comigo? – ele ouviu Qhuinn murmurar.

Espiando para dentro, Blay viu Manny se inclinar por sobre o corpo de Luchas. Caramba, que noite. E ele que pensara que o show aéreo de algumas noites atrás fora um dramalhão e tanto...

Sempre foi você.

Voltando a fitar a floresta, Blay esfregou o rosto novamente, como se isso pudesse ajudar. Ele queria acender outro Dunhill, mas quanto mais aquilo demorava, mais paranoico ele ficava. A última coisa que aquela situação precisava era de um esquadrão de redutores aparecendo antes que conseguissem transportar Luchas para um local seguro.

Melhor ter uma .40 do que um cigarro nas mãos.

Sempre foi você.

– Você está bem? – Butch perguntou.

Já que a noite parecia ter como tema a honestidade, ele balançou a cabeça.

– Nem um pouco.

O tira o segurou pelo ombro.

– Então você o conhecia.

– Pensei que sim – ah, não, espere, a pergunta era sobre Luchas. – Isto é, sim, eu o conhecia.

– Isso tudo deve ser dureza.

Blay olhou por sobre o ombro novamente e viu, mais uma vez, Qhuinn agachado ao lado do irmão. O rosto do seu velho amigo estava envelhecido naqueles fachos de luz, a ponto de Blay se perguntar se de fato o vira relaxado quando estiveram juntos... Ou se ele estivera equivocado.

Sempre foi... você.

– É duro – ele murmurou.

E estranho também.

Logo após a transição, ele procurou por algum sinal de que o modo como ele se sentia pelo amigo fosse recíproco, alguma pista quanto a em que ponto Qhuinn se encontrava. No entanto, ele não enxergara nada, nada além da lealdade incontestável, da amizade, das habilidades tremendas de lutador. Durante todos aqueles encontros com outras pessoas, e nos treinamentos, e nas noites no campo de batalha... ele sempre se sentiu do lado absolutamente oposto do que desejava, fitando um muro que ele não tinha como transpor.

Aquele tempo breve na varanda?

Foi a primeira vez em que ele teve um vislumbre daquilo que desejava ainda mais do que sexo.

Merda, por um momento traiçoeiro, ele se perguntou se, de fato, entre as palavras que Layla deixara escapar do lado de fora do seu quarto havia o “estar”.

– Eles vão levá-lo agora – Butch segurou o braço de Blay e o tirou do caminho. – Venha para cá.

Luchas estava adequadamente coberto agora, com uma manta térmica Mylar prateada envolvendo-o dos pés à cabeça, deixando apenas uma parte do seu rosto visível. Eles o acomodaram numa maca dobrável, com Qhuinn numa ponta e V. na outra; Manny caminhava ao lado, como se não estivesse bem certo se precisaria ressuscitá-lo a qualquer instante.

Perto do trenó, eles o transferiram e o amarraram.

– Eu o levo – anunciou Qhuinn ao montar no snowmobile e dar a partida.

– Vá devagar e não pare – avisou Manny. – Ele não passa de uma pilha de ossos quebrados.

Qhuinn olhou para Blay.

– Vem comigo?

Não havia motivo para responder. Ele marchou até lá e se acomodou atrás do cara.

Bem ao estilo de Qhuinn, ele nem se importou em esperar pelos outros. Apenas apertou o acelerador e partiu. No entanto, ele prestou atenção à recomendação médica: deu uma volta ampla e seguiu os rastros que eles deixaram antes, mantendo a velocidade rápida para ganharem tempo, mas não tanto a ponto de sacudir Luchas.

Blay mantinha as armas a postos.

Enquanto Manny e Butch seguiam no outro snowmobile ao lado deles, os Irmãos e John Matthew se materializavam em distâncias regulares, aparecendo ao lado das trilhas paralelas.

Pareceu demorar cem anos.

Blay literalmente pensou que nunca conseguiriam sair dali. Parecia que os rugidos agudos de lamentação dos motores, o borrão que era aquela floresta escura e as manchas brancas e brilhantes das clareiras seriam a última coisa que ele veria.

Ele rezou o percurso inteiro.

Quando a estrutura grande em forma de caixa do hangar finalmente ficou visível, ao seu lado, estacionado, estava a coisa mais linda que Blay já vira.

O Escalade de Butch e V.

As coisas se sucederam bem rápidas a partir dali: Qhuinn parando ao lado do SUV, Luchas sendo transferido para o banco de trás, os snowmobiles sendo carregados no reboque preso atrás, Qhuinn seguindo para o banco do passageiro.

– Quero que Blay dirija – disse antes de entrar.

Houve um segundo de pausa. Em seguida, Butch assentiu e jogou as chaves.

– Manny e eu vamos atrás.

Blay se acomodou detrás do volante, mexeu no assento para acomodar as pernas e acionou o motor. Com Qhuinn ao seu lado, ele olhou e disse:

– Coloque o cinto.

O macho o obedeceu, ajustando a faixa de nylon por sobre o peito. Depois, imediatamente, virou-se para trás para se concentrar no irmão.

Uma sensação de determinação única se acomodou sobre os ombros de Blay e ele apertou as mãos. Não se importava pelo que tivesse de passar por cima, atropelar ou deixar as marcas da grade do carro; ele levaria Qhuinn e o irmão dele para o centro de treinamento e para a clínica.

Pressionando o pedal do acelerador, não olhou para trás.


CAPÍTULO 63

Trez franziu para a calculadora na qual vinha inserindo números. Esticando a mão para pegar a lingueta longa de papel que se pendurava pelo outro lado da sua escrivaninha, ele tentou enxergar a coluna de números que acabara de produzir.

Piscou.

Esfregou os olhos. Abriu-os novamente.

Nada. O círculo pulsante no quadrante superior direito do seu campo de visão ainda estava ali, e isso não era resultado de um problema de visão.

– Merda.

Empurrando os recibos que vinha somando de lado, olhou para o relógio, depois apoiou a cabeça nas mãos. Ao apertar os olhos, a aura ainda estava no mesmo lugar, o padrão de formas geométricas entrelaçadas brilhando em todas as cores do arco-íris.

Ele tinha cerca de 25 minutos antes de o inferno acontecer na Terra – e não conseguiria se desmaterializar.

Pegando o telefone do escritório, apertou o botão do interfone. Dois segundos depois, a voz de Xhex se fez ouvir pelo alto-falante, mais aguda do que de costume. O que significava que a sua sensibilidade auditiva também estava sendo afetada.

– Ei, diz aí... – ela disse.

– Estou ficando com enxaqueca. Preciso ir embora.

– Puxa, cara, que merda. Não teve uma na semana passada?

Tanto faz. Isso não vinha ao caso.

– Pode assumir?

– Precisa de carona para casa?

Sim.

– Não. Eu consigo – ele começou a juntar a carteira, o celular, as chaves. – Ligue se precisar, ok?

– Pode deixar.

Trez inspirou fundo quando a ligação terminou e ele se levantou. Por enquanto, sentia-se perfeitamente bem. E a boa notícia era que ele não estava nem a quinze minutos de casa, mesmo se pegasse todos os faróis vermelhos. O que lhe daria dez para se trocar, pegar um cesto de lixo e deixar uma toalha ao lado da cama e se preparar para um colapso digestivo.

Dali a seis ou sete horas? Ele se sentiria bem melhor.

Infelizmente, entre o agora e o depois seria uma merda.

A caminho da porta do escritório, pegou a jaqueta, colocou-a por sobre os ombros e se preparou para a música do outro lado.

Quando saiu, deu de cara com a parede que era o peito considerável de iAm.

– Me passe as chaves – foi tudo o que o irmão disse.

– Você não tem que...

– Eu pedi a sua opinião?

– Maldita Xhex...

– Logo atrás do seu irmão – a fêmea o interrompeu. – E sei que você disse isso como uma forma de elogio.

– Estou bem – disse Trez, ao tentar mudar o campo de visão para enxergar sua chefe de segurança.

– Quantos minutos até que a dor piore? – Xhex sorriu, mostrando as presas. – Quer mesmo desperdiçar esse tempo discutindo comigo?

Trez abriu caminho pela boate e, no instante em que o frio o golpeou nas narinas, seu estômago protestou, como se estivesse prestes a agir.

Acomodando-se no assento do passageiro do seu BMW, ele fechou os olhos e recostou a cabeça. A aura estava se expandindo, a linha original de brilho se dividira em dois e se esticara, movendo-se lentamente para a margem da sua visão.

Durante o trajeto para casa, ele se sentiu grato por iAm não ser do tipo conversador.

Embora isso não significasse que ele não sabia no que o cara estava pensando.

Estresse demais. Dores de cabeça demais.

Ele, provavelmente, também precisava se alimentar, mas isso não aconteceria por um tempo.

Enquanto o irmão dirigia com atenção, Trez passou o tempo imaginando em que parte da cidade estavam, que faróis tinham passado ou nos quais paravam; que curvas faziam; onde estava o Commodore, com sua torre alta ficando cada vez maior conforme se aproximavam.

Uma inclinação súbita lhe disse que estavam entrando na garagem subterrânea e que ele se atrasara em sua visualização mental: até onde ele supunha, eles deviam estar alguns quarteirões mais para trás.

Diversas curvas à esquerda enquanto espiralavam três andares para baixo até uma das duas vagas que lhes pertenciam.

Quando entraram no elevador e iAm apertou o botão do décimo oitavo, a aura vagara para os confins da sua visão, desaparecendo como se jamais tivesse existido.

A calmaria antes da tempestade.

– Obrigado por me trazer para casa – disse com sinceridade. Ele detestava depender de qualquer pessoa para qualquer coisa, mas seria muito difícil não atingir nada enquanto flashes de neon pipocam atrás dos seus glóbulos.

– Achei que seria melhor assim.

– É...

Ele e o irmão não falaram da visita do sumo sacerdote desde que ela acontecera, entretanto aquela aparição cordial de AnsLai estava entre os dois, mas, pelo menos, iAm deixara de lado sua irritação para trazê-lo para casa.

A primeira indicação para Trez de que a dor de cabeça estava começando de fato foi o modo como a campainha sutil de aviso de chegada ao destino deles atravessara sua cabeça como uma bala.

Ele gemeu quando as portas se abriram.

– Isso vai ser ruim.

– Você não teve uma na semana passada?

E ele imaginou quantas pessoas poderiam lhe perguntar isso ainda.

iAm cuidou da trava na porta, e Trez largou a jaqueta dois metros depois da entrada. Despiu o suéter de cashmere preta a caminho do corredor e estava desabotoando a camisa de seda quando entrou...

Ao ficar imobilizado, a única coisa que lhe passou pela cabeça foi aquela cena do filme Trocando as bolas – quando Eddie Murphy entra no seu quarto do apartamento luxuoso e uma garota seminua se ergue de sua cama e diz: “Olá, Billy Ray”.

A diferença nesta situação era que a sua perseguidora, aquela do namorado valentão com problemas de confiança, era loira e não vestia o corpete justo dos anos 1980. Para falar a verdade, ela estava absoluta e completamente nua.

A arma que apareceu sobre o ombro dele estava firme e, como acessório, tinha um silenciador.

Portanto, iAm poderia matá-la, sem problemas.

– Pensei que ficaria feliz em me ver – a garota disse, olhando dele para o cano da arma do irmão.

Como se quisesse parecer mais sedutora, ela levantou um braço para mexer nos cabelos, mas se ela tinha esperanças de os seios o atiçarem, estava sem sorte: aquelas pedras falsas estavam tão imóveis quanto algo pregado na parede.

– Como entrou aqui? – Trez exigiu saber.

– Não está feliz em me ver? – quando não recebeu nenhuma resposta e o cano ainda estava mirado nela, ela fez beiço. – Fiz amizade com o segurança, está bem. O quê? Ah, ‘tá bom... eu chupei ele, ok?

Quanta classe.

E aquele policial contratado cretino ficaria desempregado.

Trez andou até a pilha de roupas no pé da cama.

– Vista-se e saia.

Deus, como estava cansado.

– Ora, vamos lá – ela se lamuriou quando as coisas dela caíram ao seu redor. – Eu só queria fazer uma surpresinha para quando você chegasse do trabalho. Pensei que isso fosse fazer você feliz.

– Vejamos... não fez. Você tem que sair daqui... – como ela abriu a boca como se fosse dar uma de louca para ele, ele balançou a cabeça e a interrompeu. – Nem pense nisso. Não estou a fim e o meu irmão aqui não se importa muito se você vai sair daqui andando ou num saco plástico. Vista-se. Saia.

A garota olhou de um para o outro.

– Você foi tão legal comigo na outra noite.

Trez fez uma careta quando a dor se apossou do lado direito da sua cabeça.

– Meu bem, vou ser bem franco com você. Nem sei o seu nome. Nós transamos duas vezes...

– Três vezes...

– Não me interessa quantas vezes foram. O que eu sei é que você vai se esquecer disso tudo hoje. Se você me procurar de novo ou vir até aqui, eu vou... – o Sombra dentro dele queria ser mais sangrento em sua explicação, mas ele se forçou a continuar em termos humanos que ela pudesse entender. – ... chamar a polícia. E você não vai querer isso, porque é viciada em drogas e também negocia paralelamente. E se eles vasculharem sua casa, seu carro, sua bolsa, vão encontrar muitas coisas bem interessantes. Eles vão pegar você e o idiota com quem está dormindo por posse de drogas com o intuito de distribuição, e vão mandar vocês para a cadeia.

A garota só piscou.

– Não me obrigue, benzinho – Trez disse numa voz exausta. – Você não vai gostar do que vai acontecer.

Digam o que quiserem a respeito da moça, mas ela era rápida quando devidamente motivada. Alguns minutos depois, após algumas poses de ioga para enfiar aqueles pesos plásticos dentro de uma “blusa” dois números menores, ela estava a caminho, bolsinha barata sobre o ombro, os saltos altos pendurados pelas alças.

Trez não disse nada. Apenas a seguiu até a porta, abriu... e fechou na cara dela quando ela se virou para dizer alguma coisa.

E fechou a trava manualmente.

iAm guardou a pistola.

– Temos que nos mudar. Este lugar não é confiável.

Seu irmão estava certo. Não que onde moravam fosse um grande segredo, mas ficar no Commodore dava a ideia de que o segurança não seria estúpido o bastante para deixar uma mulher subir sem a permissão dos proprietários.

Se isso podia acontecer uma vez, poderia acontecer novamente...

Abruptamente, a dor se intensificou, como se o volume do concerto infernal em seu crânio tivesse disparado de súbito.

– Vou vomitar por algum tempo – murmurou ao se arrastar dali. – Vamos começar a mudança assim que esta enxaqueca passar...

Ele ficou sem saber o que iAm respondera, ou até mesmo se o cara chegara a responder.

Cacete.


CAPÍTULO 64

Parado do lado de fora da sala de exames do centro de treinamento, Qhuinn tinha as mãos enfiadas nos bolsos da calça, os dentes cerrados com força, as sobrancelhas tão baixas que pareciam unidas.

Esperando... Esperando...

Ele concluiu que essa coisa médica era bem parecida com uma bela luta: longos períodos sem fazer nada, interpostos por muitos momentos de morte e vida.

Era o bastante para estampar um carimbo de louco na testa de alguém.

Ele olhou para a porta.

– Quanto tempo mais acha que vai demorar?

Do outro lado, Blay cruzou e descruzou as longas pernas. O cara se esticara no chão na última meia hora, mas aquela fora a única concessão para aquele buraco de minhoca em que foram tragados.

– Já deve estar terminando agora – ele respondeu.

– É. O corpo só tem determinado número de partes, certo?

Depois de um instante, Qhuinn se concentrou melhor no macho. Havia círculos escuros ao redor dos olhos de Blay e as faces estavam encovadas. Ele também estava mais pálido do que de costume, o rosto claro demais.

Qhuinn se aproximou, recostou-se contra a parede e deixou os coturnos deslizarem até que seu traseiro batesse no chão ao lado de Blay.

Blay olhou para ele e lançou um breve sorriso, depois voltou a fitar as pontas das botas.

Qhuinn observou quando a própria mão se esticou e resvalou o maxilar do amigo. E quando Blay se assustou e olhou para ele, Qhuinn descobriu que queria fazer muito mais – e não sexualmente. Ele queria trazer o macho para o colo e deixar Blay repousar sua cabeça ali. Queria afagar os ombros fortes e passar os dedos pelos cabelos ruivos curtos. Queria que algum passante lhe trouxesse uma coberta para que ele envolvesse e esquentasse o corpo poderoso que parecia enfraquecido.

Qhuinn se forçou a desviar os olhos e afastou a mão.

Deus, como ele se sentia... preso. Ainda que não houvesse algemas nele.

Olhando para baixo, verificou os pulsos. Os tornozelos. Sim, totalmente livres. Nada o segurava.

Abaixando as pálpebras, ele deixou a cabeça encostada na parede. Em sua mente, ele tocava em Blay – e, de novo, não de modo sexual. Apenas sentia a vitalidade debaixo da pele, o deslocamento dos músculos, a solidez dos ossos.

– Acho que você deveria procurar Selena – disse-lhe.

Blay exalou como se algo o tivesse atingido no peito.

– É, eu sei.

– Podemos ir juntos – Qhuinn se ouviu oferecendo.

Ele abriu os olhos a tempo de ver a cabeça de Blay virar rapidamente em sinal de surpresa.

– Ou você pode ir na frente, sozinho – Qhuinn estalou as juntas. – Como achar melhor.

Merda. Em face do que vinha acontecendo com Saxton, aquilo talvez fosse um pouco demais. Alimentar-se, afinal, podia ser um ato mais íntimo do que o sexo...

– É... – Blay respondeu com suavidade. – Vou fazer isso.

O coração de Qhuinn começou a bater com força. E, mais uma vez, não porque esperasse conseguir algo do cara. Ele só queria...

Partilhar. Ele achava que a palavra certa era essa.

Não, espere. Era mais do que isso. Ele queria cuidar do macho.

– Sabe, acho que nunca lhe agradeci – murmurou.

Quando os olhos azul bebê de Blay o encararam, quis desviar o olhar – o contato visual era quase demais para ele suportar. Mas logo pensou no irmão naquele leito hospitalar – e em todos os modos como as pessoas eram roubadas do tempo.

Jesus, ele manteve tantas coisas reservadas por tanto tempo – e todas lhe pareceram perfeitamente válidas. Mas isso não seria arrogância demais? Que tipo de relutância pressupunha que ele teria tempo para falar daquilo que desejava? Que a pessoa no fundo da sua mente sempre estaria por perto? Que ele mesmo estaria?

– Pelo quê? – perguntou Blay.

– Por nos trazer para casa. A mim e a Luchas – ele inspirou fundo e exalou o ar lentamente. – E por ficar aqui ao meu lado a noite inteira. Por procurar Payne e pedir a ajuda dela. Por cuidar da minha retaguarda no campo de batalha e durante os treinamentos. E também pela cerveja e pelos videogames. Pelas batatinhas e pelos M&M’s. Pelas roupas que peguei emprestado. Pelo chão em que dormi quando passava a noite na sua casa. Obrigado por me deixar abraçar a sua mãe e conversar com o seu pai. Obrigado... pelas milhares de coisas boas que fez para mim.

Do nada, mais uma vez se lembrou da noite em que chegara em casa a tempo de testemunhar o pai entregando o anel de sinete de ouro para o irmão.

– Obrigado por me telefonar naquela noite – disse roucamente.

As sobrancelhas de Blay se ergueram.

– Que noite?

Qhuinn pigarreou.

– Depois que Luchas passou pela transição e meu pai lhe entregou... você sabe, o anel – ele balançou a cabeça. – Subi para o meu quarto e pensei em fazer algo... hum, algo verdadeiramente estúpido. Você me telefonou. Você foi até lá. Lembra?

– Lembro.

– Não foi a única vez em que fez algo assim.

Enquanto Blay desviava o olhar, Qhuinn soube exatamente para onde a mente do cara tinha se voltado. Sim, aquela noite não fora a única em que quase pulara do precipício.

– Eu já disse que sentia muito – Qhuinn declarou. – Mas acho que nunca agradeci. Por isso... obrigado.

Antes de perceber o que estava fazendo, ele esticou a mão, oferecendo a palma. Pareceu-lhe apropriado marcar aquele momento, ali, naquele instante, naquele lugar, do lado de fora da sala de operações do seu irmão arrebentado, com algum tipo de contato solene.

– Apenas... obrigado.

 

Inacreditável.

Depois do que pareceram vidas ao lado de Qhuinn, Blay pensava que as surpresas tinham chegado ao fim. Que o macho não poderia arranjar nada mais que o deixasse sem fala.

Errado.

Jesus... de todas as conversas imaginárias que teve em sua cabeça com o cara, conversas nas quais fingia que Qhuinn se abria, ou dizia algo bem perto “da coisa certa”, nada nunca se tratara de gratidão. Mas aquilo... era exatamente o que ele precisava ouvir, mesmo sem saber disso.

E aquela palma ofertada lhe partiu o coração.

Ainda mais porque o irmão do cara estava às portas da morte na sala diante deles.

Blay não aceitou a mão oferecida.

Ele esticou o braço, segurou o rosto do lutador e aproximou Qhuinn para um beijo.

Que deveria ter durado apenas um segundo – como se os lábios se encontrando equivalessem a um aperto de mãos. Quando foi se afastar, porém, Qhuinn o capturou, e o segurou no lugar. As bocas se encontraram de novo... e de novo... e mais uma vez, as cabeças inclinadas para o lado, o contato se demorando.

– Não tem de quê – Blay disse rouco. Depois sorriu de leve. – Contudo, não garanto que tenha sido sempre um prazer.

Qhuinn riu.

– É. Imagino que emprestar as calças não tenha sido divertido – o macho ficou sério. – Por que, diabos, ficou sempre por perto?

Blay abriu a boca, a verdade pairava na ponta da língua.

– Ah... Merda. Desculpem, rapazes, não quis interromper.

Qhuinn se afastou com tanta rapidez que literalmente arrancou o rosto das mãos de Blay. Depois, num salto, se pôs de pé e encarou V., que acabara de sair da sala de operações.

– Sem problemas. Não estava acontecendo nada de mais.

Enquanto a expressão de V. registrava um “até parece”, Qhuinn apenas encarou o Irmão, como se desafiasse Vishous a ter uma opinião contrária à sua.

No silêncio entre os dois machos, Blay se levantou mais lentamente e descobriu que estava tonto, e não porque não havia se alimentado.

Sem problemas. Não estava acontecendo nada de mais.

Para ele, não foi bem assim. Maaaas, mais uma vez, Qhuinn se desvencilhara de qualquer proximidade, escondera-se atrás de um escudo, retraíra-se, desconectara-se.

Só que... Caramba, era a hora errada. O lugar errado. E V. era a última pessoa diante da qual você gostaria de demonstrar todo o seu amor.

No entanto, aquilo serviu de lembrete. Situações estressantes tinham um modo de tornar a mais rígida das personalidades maleáveis. Pelo menos por um tempo. Tristeza, choque, ansiedade extrema... tudo isso podia deixar alguém vulnerável e propenso a falar de modo que não falaria costumeiramente porque tinha suas defesas completamente inoperantes. O comportamento extraordinário não era um sinal da mudança da maré, porém. Não era um indicador de algum tipo de conversão religiosa segundo o qual, dali por diante, tudo ficaria diferente.

Qhuinn estava mexido pelo que acontecia com o irmão. E qualquer revelação ou declaração emotiva que saísse de sua boca, sem dúvida, seria o produto do estresse pelo qual passava.

E ponto.

Nada de “estar apaixonado” ali. Não mesmo. Não permanentemente. E, droga, ele tinha que se lembrar disso.

– ... os ossos vão ficar no lugar? – Qhuinn estava perguntando.

Blay procurou se concentrar enquanto V. acendia um dos seus cigarros e exalava a fumaça para longe deles.

– Primeiro, nós o estabilizamos. Selena vai alimentá-lo novamente e depois vamos abrir o abdômen dele numa cirurgia exploratória para descobrir de onde vem a hemorragia. Depois que virmos o que está acontecendo, consertamos os ossos.

– Vocês têm alguma ideia do que possa ter acontecido com ele?

– Ele não está falando no momento.

– Ok. Entendo.

– Por isso precisamos do seu consentimento. Ele não é capaz de entender os riscos e os benefícios.

Qhuinn passou os dedos pelos cabelos.

– Sim. Claro. Façam o que precisarem fazer.

V. exalou novamente, o cheiro do tabaco turco permeando o ar e lembrando a Blay exatamente quantas horas, minutos e segundos fazia que ele acendera seu último cigarro.

– Você tem Jane, Manny, Ehlena e a mim ali dentro. Não vamos deixar que nada aconteça com ele, está bem? – ele segurou Qhuinn pelo ombro. – Ele vai superar. Nem que nós quatro morramos tentando.

Qhuinn murmurou um agradecimento.

E V. olhou para Blay. Depois olhou para Qhuinn. Pigarreou.

Sim, o Irmão estava fazendo um tipo de cálculo mental. Perfeito.

– Por isso, fiquem por aqui. Eu volto com notícias assim que souber de alguma coisa. É isso aí.

As sobrancelhas do Irmão se ergueram bem alto na testa, as tatuagens na têmpora se distorcendo enquanto ele esmagava o toco do cigarro mal fumado com a sola do coturno.

– Volto daqui a pouco – disse antes de voltar a entrar.

Após a saída do Irmão, Qhuinn andou de um lado para o outro, os olhos fixos no piso de concreto, as mãos nos quadris estreitos, as armas que ele se esquecera de tirar captando a luz fluorescente do lugar e reluzindo.

– Vou sair para fumar – Blay informou. – Volto logo.

– Você pode fumar aqui – Qhuinn sugeriu. – A porta é selada.

– Preciso de um pouco de ar fresco. Mas não vou demorar.

– Ok.

Blay saiu apressado, indo direto para a porta no fim do corredor que se abria para o estacionamento. Quando chegou lá, abriu caminho com um soco e inspirou profundamente.

Ar fresco, o cacete. Tudo o que obteve foi um ar seco e carregado de concreto.

Mas pelo menos estava mais arejado ali.

Merda.

Deixara os cigarros na maldita jaqueta. No chão. Do lado de fora da sala de operações.

Enquanto praguejava e andava de um lado para o outro, ele se sentiu tentado a socar alguma coisa, mas juntas machucadas seriam apenas mais uma coisa que ele deveria explicar para as pessoas.

E o que V. testemunhara já era mais do que o bastante.

Enfiando as mãos nos bolsos das calças, ficou intrigado ao sentir que a direita resvalava em algo duro.

O isqueiro de Saxton. Aquele que o macho lhe dera em seu aniversário.

Pegando o objeto, ele o virou e revirou na mão, pensando em tudo o que fora dito no corredor.

Houve uma época em que ele teria pegado essas palavras e as colocado numa cornija em sua cabeça e em seu coração, dando-lhe um lugar de destaque para garantir que a sua preciosidade ficasse para sempre com ele pelo resto de sua vida.

Por tantos anos aqueles momentos no chalé e no chão duro e frio de agora há pouco teriam bastado para deixar de lado qualquer conflito, qualquer rusga e dor, deixando tudo tão imaculado que ele se relacionaria como um virgem para com Qhuinn.

Um começo do zero.

Tudo não só perdoado, como também esquecido.

Esse não era mais o caso.

Deus, ele provavelmente era jovem demais para se sentir tão velho, mas a vida se baseava mais em experiência e não em dias do calendário. E parado ali, sozinho, ele, definitivamente, sentia-se um ancião: estava absoluta e completamente livre da ingenuidade colorida e otimista que acompanhava a visão de vida de um jovem.

Quando se acreditava que os milagres não eram impossíveis... mas meramente ocasionais.

Ainda bem que V. aparecera naquela hora.

Senão, três palavrinhas teriam escapado da sua boca. E, sem dúvida, o condenariam de um modo que ele sequer poderia imaginar.

Hora errada. Local errado.

Para esse tipo de coisa.

Para sempre.


CAPÍTULO 65

Enquanto iAm andava de um lado para o outro no apartamento, ele mantinha a pistola sempre consigo – ainda que fosse altamente improvável que houvesse um segundo round com alguma vagabunda nua invadindo o “lar, doce lar” do seu irmão e dele.

Maldição, ele bem que precisava de uma fumaça vermelha. Só para se livrar dessa irritação.

Por que, naquele exato instante, ele estava à beira da violência.

Ele supunha que a boa notícia era que ele, de fato, não tinha um alvo, e era isso o que o mantinha estagnado. A enxaqueca estava acabando com seu irmão. E aquela pobre mulher desgastada que fora acompanhada até a porta da frente? Ela já estava sendo torturada em níveis demais para se contar. Agora, aquele segurança seria um excelente candidato, mas o filho da mãe já saíra do trabalho uma hora antes, e iAm não estava disposto a deixar Trez naquele estado vulnerável só para poder dar um corretivo no imbecil...

Ao longe, ele ouviu o sussurro dos canos de esgoto.

Era a descarga do vaso sanitário de Trez sendo acionada. De novo.

E logo se seguiu uma imprecação, o rangido da estrutura de madeira enquanto Trez se deitava na cama.

Pobre. Coitado.

iAm foi até as imensas janelas que davam vista para o rio e parou para fitar a margem oposta de Caldwell. Pousando as mãos nos quadris, ele examinou os lugares para onde poderiam se mudar. A lista era curta. Inferno, um dos principais benefícios do Commodore fora a sua segurança; com isso, eles nem se importavam em acionar o alarme.

O que se mostrara um erro.

Eles necessitavam de um lugar seguro. Protegido. Impenetrável.

Ainda mais se seu irmão continuasse com aquela mania de conquistar e abandonar, e se AnsLai mantivesse suas visitas “diplomáticas”.

iAm voltou a andar. Era impossível ignorar o fato de que seu irmão estava piorando. Aquela situação sexual vinha se arrastando há anos – e por um bom tempo, iAm apenas a catalogou como um impulso sexual saudável de um macho.

Algo que muitas vezes ele acreditou que lhe faltasse.

Pensando bem, seu irmão transara com fêmeas em número suficiente por eles dois.

Nos últimos meses, contudo, ficara evidente que o processo vinha se intensificando – e isso antes de o sumo sacerdote começar a aparecer. E agora que as coisas pareciam estar chegando ao fim com AnsLai? As maquinações do s’Hisbe simplesmente colocariam ainda mais pressão em seu irmão, o que o levaria a aprontar ainda mais.

Merda. iAm sentia como se estivesse diante de um entroncamento, computando a velocidade de uma locomotiva e da aproximação de um carro... e ver a carnificina seria o resultado. A metáfora também se aplicava por ele se sentir tão impotente, visto que não conseguiria deter nenhuma das forças: não estava atrás do volante, nem no assento do maquinista. Tudo o que lhe restava fazer era se acomodar e assistir à cena.

Ou, muito provavelmente, gritar ao lado da estrada.

Para onde diabos eles poderiam ir...

Franzindo o cenho, ergueu o olhar do cenário, subiu pela moldura de gesso e parou no teto.

Depois de um minuto, pegou o celular e fez um telefonema.

Quando desligou, foi até o quarto do irmão. Entreabrindo a porta, disse para o silêncio escuro e denso:

– Vou dar uma saída rápida. Volto logo.

O gemido de Trez poderia significar qualquer coisa, desde “Beleza” até “Ai, não tão alto” ou até “Bom divertimento, vou continuar vomitando mais um pouco”.

iAm andou rápido. Para fora do apartamento. Para dentro do elevador.

Dentro do qual, apertou o botão “C” de Cobertura.

Quando a porta deslizou se abrindo, havia duas escolhas: uma direção o levava para o apartamento do Irmão Vishous; a outra para o do seu velho amigo.

Ele se encaminhou para a campainha de Rehvenge.

Quando o sympatho abriu a porta, Rehv apareceu como de costume: com seu corte moicano, os olhos violeta e casaco de marta. Perigoso. Um tanto diabólico.

– Ei, cara, como está? – disse o macho ao se abraçarem e baterem no ombro um do outro. – Entre.

Enquanto iAm entrava no espaço privativo do Reverendo pela primeira vez em mais ou menos um ano, descobriu que nada havia mudado e, por algum motivo, isso era um alívio.

Rehvenge foi até o sofá de couro e se sentou, apoiando a bengala ao seu lado e cruzando as pernas.

– Do que precisa?

Enquanto iAm tentava juntar as palavras certas, Rehv imprecou.

– Caramba, eu sabia que esta não era uma visita social, mas não esperava que as suas emoções estivessem tão conturbadas.

Ah, sim, as características de devorador de pecados equivaliam a não esconder nada do macho.

Ainda assim, era difícil falar.

– Não sei bem se está a par do que está acontecendo com Trez?

Rehv franziu o cenho, as sobrancelhas escuras se unindo sobre aquele olhar violeta intenso.

– Pensei que o Iron Mask estivesse indo bem. Vocês estão com problemas? Tenho bastante dinheiro se precisarem...

– Os negócios estão ótimos. Temos mais dinheiro do que conseguimos gastar. O problema são as atividades extracurriculares do meu irmão.

– Ele não está metido com drogas, está? – Rehv perguntou com severidade.

– Mulheres.

Rehv gargalhou e dispensou essa preocupação com um gesto de lado da mão da adaga.

– Ah, se é só isso...

– Ele está completamente descontrolado, e uma delas apareceu do nada no nosso apartamento. Chegamos em casa e lá estava ela.

Rehv se recostou e franziu o cenho.

– No seu apartamento? Como é que ela conseguiu entrar?

– O menor denominador comum com um segurança – iAm se movimentou ao redor da sala moderna, notando de passagem que a vista, de fato, era melhor dali de cima. – Trez vem transando com tudo que se move há anos, mas, recentemente, ele tem sido negligente: não apaga as memórias, transa com a mesma mais de uma vez, não se preocupa com as consequências.

– Que diabos está havendo com ele?

iAm se virou e encarou o mestiço, que era a coisa mais perto de uma família que ele tinha, além da sua carne e do seu sangue. A bem da verdade, ele confiava mais naquele cara do que em 99% dos seus familiares de fato.

– Trez está comprometido.

Longo silêncio.

– Como que é?

iAm assentiu.

– Ele está comprometido.

Rehv se levantou do sofá.

– Desde quando?

– Desde o nascimento.

– Aaaahhhh... – Rehv emitiu um assobio suave. – Então é uma coisa do s’Hisbe.

– Ele foi prometido para a filha primogênita da rainha.

Rehv se calou por um instante. Depois esfregou a cabeça.

– Isso faria dele um maldito Rei, não faria?

– Isso mesmo. Embora sejamos uma sociedade matriarcal, isso não é uma irrelevância.

– Olha só – o macho murmurou. – Ele, eu e Wrath. Que trio.

– Bem, é diferente para o s’Hisbe, claro. É a rainha quem dita tudo para nós.

– Então o que ele está fazendo aqui fora? Com todos nós Desconhecidos?

– Ele não quer ligação alguma com o s’Hisbe.

– Ele tem poder de escolha?

– Não – iAm olhou para o bar num canto. – Importa-se se eu me servir de um drinque?

– ‘Tá de brincadeira? Eu já estaria bêbado se estivesse no seu lugar.

iAm foi até lá, pesou suas opções e acabou escolhendo uma garrafa com um pequeno rótulo no gargalo escrito Bourbon. Serviu sem gelo e, ao sorver um gole do copo de cristal, saboreou a queimação na língua.

– Gostoso.

– Coleção Parker’s Heritage, lote pequeno. O melhor.

– Não pensei que gostasse de beber.

– Isso não é desculpa para não conhecer aquilo que sirvo para os meus convidados.

– Ah.

– Então, qual é o plano?

iAm inclinou a cabeça para trás, esvaziou o copo e engoliu de uma vez.

– Precisamos de um lugar seguro para ficar. E não só por conta da situação com aquela mulher. Recebemos uma visita do sumo sacerdote na semana passada, isso significa que eles estão começando a levar a sério essa coisa de voltar para casa. Eles estão à procura dele, e se o encontrarem? Temo que ele mate o representante do s’Hisbe. E aí sim teremos um belo problema.

– Acha mesmo que ele chegaria a esse ponto?

– Sim, acho sim – iAm se serviu de outra dose. – Ele não vai voltar para lá. E eu preciso de tempo para encontrar uma maneira de resolver esse conflito antes que algo desastroso aconteça.

– Vocês querem se mudar para a minha casa no norte?

iAm secou o segundo copo de Bourbon de uma vez só.

– Não – ele o encarou. – Quero que nos mudemos para o complexo da Irmandade.

Enquanto Rehv praguejava longa e lentamente, iAm se serviu mais uma vez.

– É o lugar mais seguro para nós.

 

Xcor estava coberto de sangue de redutor e suor ao voltar para seu novo esconderijo. Seus lutadores ainda estavam no centro da cidade, enfrentando o inimigo, mas ele teve que sair e procurar refúgio.

Havia um belo corte em seu braço.

A casa que Throe arranjara para eles estava localizada num bairro modesto cheio de casas modestas com garagens para dois carros e balanços nos jardins. Dentre as suas vantagens, estava o fato de se localizar no fim de uma rua sem saída, e de haver um lote vazio de um lado e a unidade de processamento do Departamento de Esgoto de Caldwell do outro.

Eles teriam aquela casa por três meses com uma opção de compra ao fim do contrato.

Enquanto se desmaterializava pelas cortinas fechadas da sala de estar, ele lamentou o sofá macio em forma de L, suas almofadas cheias de borlas, com sua cor quase de cozido de carne.

Ainda que apreciasse a calefação existente, o fato de o lugar vir “decorado” o incomodava. No entanto, ele sentia estar sozinho nisso: nos últimos dias, flagrou um ou outro dos seus soldados reclinado no maldito monstro, as cabeças largadas para trás, as pernas bem esticadas e confortáveis.

O que viria em seguida? Mantinhas?

Partindo escada acima, sentiu saudades do castelo sombrio que ainda possuíam no Antigo País. Desejou o peso das pedras que os circundavam, a natureza impenetrável do projeto, com seu fosso e muros altos. Lamentou também a falta do divertimento de que desfrutavam assustando os aldeões, dando presença física ao mito.

Bons tempos, diriam aqui no Novo Mundo.

No segundo andar, ele se recusou a olhar os quartos. O rosa em um deles queimava seus olhos, e o verde-água de outro também era um ataque aos seus sentidos. E não havia alívio ao entrar na suíte principal. Papel de parede florido por todos os lados. Sobre a cama, diante das janelas e cobrindo toda a poltrona no canto.

Pelo menos suas botas de combate esmagavam o carpete fofo, deixando marcas fundas como hematomas em seu caminho até o banheiro.

Pelo amor de Deus, ele nem tinha como definir o esquema de cores dali.

Amora?

Estremecendo, desejou deixar as luzes de cima da pia desligadas, mas com as cortinas de florzinhas fechadas, a iluminação da rua abaixo estava completamente invisível, e ele precisava ver o que fazia...

Ah, pelos deuses.

Esquecera-se das cúpulas de renda dos abajures.

Na verdade, em qualquer outro ambiente, as iluminações gêmeas em vermelho sugeririam algo de natureza sexual. Mas não naquele antro excessivamente agradável e meigo. Ali, elas pareciam dois confeitos de goma brilhando na parede.

Ele quase engasgou por excesso de estrogênio.

Num ato de autopreservação, retirou as duas cúpulas ofensivas de cima das lâmpadas e as deixou na bancada entre as pias duplas. Depois, tirou o cabresto, o casaco, as adagas e as pistolas. A camiseta que usava estava manchada pelas longas noites de luta, mas era lavada regularmente – e seria usada mais uma vez. Roupas, afinal, não passavam de pele que os vampiros não recebiam ao nascer.

Não serviam como decoração pessoal – pelo menos não para ele.

Voltando-se para o espelho, resmungou.

O assassino com quem lutara mão a mão fora muito bom com uma adaga, provavelmente consequência de sua vida pregressa nas ruas, e que satisfação combater com alguém com tantas habilidades! Claro que, no fim, ele vencera, mas a batalha fora estimulante.

Infelizmente, porém, ele levara para casa um suvenir do conflito: um corte no bíceps que dava a volta e terminava no alto do ombro. Bem desagradável. Mas ele já estivera em situação pior.

E, por isso, ele sabia como se cuidar. Perfilados sobre a bancada estavam os vários itens que ele e seus lutadores necessitavam de tempos em tempos: um frasco de álcool CVS para desinfetar, um isqueiro BIC, diversas agulhas, um carretel de fio de náilon de pesca.

Xcor fez uma careta ao tirar a camiseta e quando a manga curta que fora rasgada passou raspando no corte, abrindo-o mais. Cerrando os dentes, ele ficou parado, a dor se intensificando a ponto de sua barriga se contrair como um punho fechado.

Respirando fundo, ele esperou até que as sensações diminuíssem, depois pegou o frasco de álcool. Retirou a tampa branca, inclinou-se sobre a pia, preparou-se e...

O som que escapou dos seus dentes cerrados era parte rugido, parte gemido. Enquanto sua visão formava quadriculados, ele fechou os olhos e apoiou o quadril na beira da pia.

Inspirando profundamente, suas narinas ardiam com o cheiro, mas não havia como recolocar a tampa: sua bela coordenação motora ainda estava comprometida.

Andando um pouco para clarear a cabeça, ele foi para o quarto e deu ao seu corpo um tempo para se recalibrar. Enquanto a dor o acompanhava, como se tivesse um cachorro atado ao braço que tentava comê-lo vivo, ele praguejou diversas vezes.

E acabou no andar de baixo. Onde a bebida estava.

Por nunca ser de se embebedar, vasculhou as sacolas de lona com bebidas que Zypher trouxera com eles do armazém. O soldado apreciava um drinque de tempos em tempos e, por mais que Xcor não aprovasse, há muito ele aprendera que se devia conceder certas liberdades no que se referia a lutadores agressivos e inquietos.

E numa noite como aquela, ele se viu grato.

Uísque? Gim? Vodca?

Não fazia diferença.

Pegou uma garrafa qualquer, quebrou o selo da tampa e inclinou a cabeça para trás. Abrindo a boca, ele derramou o que quer que aquilo fosse para dentro da garganta, engolindo a despeito de seu esôfago queimar como se estivesse pegando fogo.

Xcor continuou a beber enquanto subia. Tomou ainda mais enquanto andava de um lado para o outro à espera de sentir os primeiros efeitos.

E mais bebida.

Ele ficou sem saber quanto tempo levou, mas, no fim, voltou para o banheiro bem iluminado, passando uns sessenta centímetros da linha preta pela cabeça fina da agulha. Diante do amplo espelho retangular sobre as pias, ele se sentiu grato pelo fato de a adaga do redutor ter se deparado com o seu braço esquerdo. Isso significava que, como macho destro, ele poderia lidar com aquilo sozinho. Se tivesse sido do outro lado? Ele precisaria de ajuda.

A bebida ajudou imensamente. Ele mal percebeu quando perfurou a pele e fez um nó com a ajuda dos dentes.

De fato, o álcool era uma substância curiosa, ponderou ao começar a fileira de pontos. O entorpecimento que o abatera fazia com que ele se sentisse submerso em água quente, o corpo estava relaxado, a dor ainda presente, mas a intensidade da agonia estava bem menor.

Devagar. Preciso. Uniforme.

Quando chegou ao alto do ombro, deu mais um nó; depois liberou a agulha, guardou tudo o que usara e foi para o chuveiro.

Abaixando as calças, chutou as botas de combate e se colocou debaixo do jato de água.

Daquela vez o gemido foi de alívio: enquanto a água quente cobria seus ombros doloridos, as costas rígidas e as coxas duras, a sensação de conforto foi quase tão intensa quanto a agonia o fora.

E, só para variar, ele se permitiu ceder à sensação. Provavelmente porque estava embriagado.

Recostando-se na parede de ladrilhos, a água o atingiu primeiro no rosto, mas de modo gentil, como a chuva, antes de viajar pela frente do seu corpo, percorrendo o peito e seu abdômen enrijecido, passando pelos quadris até o sexo...

E do nada ele viu a sua Escolhida inclinada sobre ele, os olhos verdes reluzentes na luz do luar, a árvore acima parecendo um abrigo para ambos.

Ela o alimentava, o pulso fino e pálido em sua boca, a garganta dele engolindo ritmadamente.

No meio do seu torpor alcoólico, o desejo sexual o atingiu, parecendo desdobrar sua pélvis como uma mão aberta.

Ele ficou rijo.

Abrindo os olhos – e ele nem se dera conta de tê-los fechado –, fitou a si mesmo. A luz brilhante de cima da pia fora atenuada pela cortina opaca que evitava que a água se espalhasse pelo banheiro, mas havia mais do que iluminação suficiente para enxergar.

Ele desejou que estivesse completamente escuro... pois não se alegrava em ver sua excitação, aquele mastro erguido a partir do corpo tão estúpido e orgulhoso.

Não tinha como entender no que esteve pensando: se aquelas prostitutas queriam receber um adicional para acomodar os seus impulsos, ele dificilmente imaginava que a adorável Escolhida fizesse outra coisa que não gritar e correr na direção oposta...

De pronto, isso lhe pareceu deprimente, ainda mais quando o latejar entre as pernas se intensificou. Na verdade, seu corpo era apenas um triste instrumento, patético em seu desejo e permanecendo ignorante quanto ao fato de ser indesejado por todas.

Em especial, por aquela que ele desejava.

Virando-se, ele inclinou a cabeça para trás e passou as mãos pelos cabelos. Hora de parar de pensar e se lavar. O sabonete na saboneteira afixada na parede fez seu trabalho com entusiasmo em sua pele e seu cabelo...

E ele ainda estava ereto quando chegou a hora de sair.

O ar frio tomaria conta daquilo.

Pisando no tapete do banheiro, também de um horroroso tom de vermelho rosado, ele se secou com a toalha.

Ainda ereto.

Olhou para as roupas de luta, viu-se contrariado em vesti-las. Duras. Ásperas. Sujas.

Talvez o ambiente feminino o estivesse contaminando.

Xcor acabou na enorme cama, nu, deitado de costas.

Ainda ereto.

Uma espiada rápida no relógio de cabeceira lhe disse que não demoraria muito para que a casa fosse inundada pelos lutadores.

Aquilo teria de ser rápido.

Enfiando a mão debaixo dos lençóis e descendo pelo corpo, ele se segurou...

Os olhos de Xcor se fecharam e ele gemeu, o tronco se retorcendo pelo calor e o desejo que se avolumava na parte inferior do corpo. E quando o travesseiro veio receber seu rosto – logicamente, foi o contrário, ele supôs – começou a bombear para cima e para baixo.

Delicioso. Especialmente no topo, onde a cabeça lisa doía querendo atenção e a recebia a cada golpe. Mais rápido. Mais apertado.

E o tempo todo visualizando a sua Escolhida.

Na verdade, a imagem dela o satisfazia mais do que aquilo que executava ali embaixo. E quando as sensações se intensificaram, ele percebeu pela primeira vez por que os soldados faziam aquilo com tanta frequência. Tão bom. Tão, tão bom...

Ah, a sua fêmea era linda. Ao ponto em que, apesar da força que exercia em si mesmo, ele não se distraía da imagem dela. Em vez disso, ela se tornava cada vez mais clara para ele, dos cabelos loiros até os lábios rubros e o pescoço delicado – por todo o caminho do corpo elegante e longilíneo que tanto se escondia quanto se revelava pelo manto branco imaculado que ela vestira.

Como seria a sensação de ser desejado por tal criatura? Ser aceito dentro do seu corpo sagrado como um macho de valor...

Nesse instante, a realidade da gravidez dela o atingiu como um golpe físico. Mas, pelo menos, já era tarde demais. Mesmo que seu coração tivesse gelado e seu peito tivesse começado a doer com o conhecimento de que ela aceitara outro, seu corpo continuou sua corrida para a felicidade, a conclusão tão inevitável que...

O orgasmo que o assolou o fez gritar – e graças ao Fade que o travesseiro abafou a sua capitulação: naquele mesmo instante, no andar de baixo, ele ouviu os seus primeiros soldados andando pela casa, o rufo das botas de combate como um trovoar inconfundível que ele reconheceria em qualquer lugar.

O resultado do seu clímax foi desastroso de maneiras demais para se contar. Ele se virara por cima do ombro machucado; gozara sobre a mão e o abdômen assim como nos lençóis; a visão encantadora sumira de sua cabeça, e sua dura realidade era tudo o que lhe restava.

A dor dentro dele era ardida como um ferimento recente.

Mas, pelo menos, ninguém saberia dela.

Ele, acima de tudo, era um soldado.


CAPÍTULO 66

– Sim, você pode ir vê-lo. Ele está sonolento, mas acordado.

Enquanto a doutora Jane sorria para Qhuinn, ele ajeitava as calças nos quadris e enfiava a barra da camiseta para dentro. No entanto, conteve-se e não arrumou os cabelos, forçando os braços a ficarem ao longo do corpo mesmo que as suas palmas estivessem coçando para penteá-los.

– E ele vai ficar bem?

A médica assentiu ao começar a tirar a máscara cirúrgica que ainda estava pendurada ao redor do pescoço.

– Retiramos o equivalente vampírico ao baço dos humanos, e isso cuidou da hemorragia interna. Fizemos um pente-fino nele. Até onde sabemos, ele esteve num estado de estase dentro daquele tonel de óleo, o sangue de Ômega, de algum modo, preservando-o no estado em que estava apesar dos ferimentos. Se ele estivesse do lado de fora, tenho certeza de que teria morrido.

A maldição que causara um milagre, pensou Qhuinn.

– E ele não está contaminado?

Jane deu de ombros.

– Ele sangra vermelho, e ninguém percebeu nenhum sinal de Ômega nele... foi um caso de estar sobre e ao redor dele.

– Ok. Muito bem – Qhuinn olhou para a porta. – Ótimo.

Hora de entrar, ele se ordenou. Vá...

Seus olhos pararam em Blay. Durante as quatro horas de operação, o cara andara de um lado para o outro no corredor, saindo em intervalos regulares para o estacionamento para fumar. No entanto, ele sempre voltara.

Puxa, ele estava de cara fechada.

Desde que V. aparecera e os encontrara... é...

Cristo, que hora de chegar era aquela, hein?

– Vou entrar – disse ele.

Mas só depois que Blay acenou com a cabeça é que ele entrou na sala de cirurgia.

Empurrando a porta, a primeira coisa que o recebeu foi o cheiro antisséptico que ele associava com contusões pós-batalha. Em seguida, foi o bipe suave ao lado da maca no meio da sala, e o som de Ehlena digitando num computador.

– Vou deixar que fiquem a sós – ela disse num tom gentil, ao se levantar.

– Obrigado – ele respondeu baixinho.

Quando a porta se fechou atrás dela, Qhuinn voltou a ajeitar a camiseta ainda que ela não precisasse ser ajeitada.

– Luchas?

À espera que seu irmão respondesse, ele olhou ao redor. Os escombros da operação, as gazes ensanguentadas, os instrumentos usados, os tubos plásticos, tudo fora retirado; nada além do corpo inerte debaixo dos lençóis brancos e um saco biológico com conteúdo vermelho para indicar como aquelas horas tinham sido transcorridas.

– Luchas?

Qhuinn se aproximou e baixou o olhar. Caramba, ele normalmente não tinha problemas de pressão, mas quando olhou bem para o rosto machucado do irmão, as coisas meio que giraram, e a onda de tontura o fez perceber exatamente o quanto ele era alto e como o chão estava distante.

Os olhos de Luchas tremularam e se abriram.

Cinza. Os dois sempre foram cinza e ainda eram.

Qhuinn se esticou para trás e pegou uma banqueta com rodinhas. Ao sentar-se, não sabia o que fazer com os braços, com as mãos... com a voz.

– Como está se sentindo?

Que pergunta mais idiota.

– Ele... me... manteve...

Qhuinn se inclinou para a frente, mas, cacete, era difícil de entender aquela voz fraca.

– O que disse?

– Ele me... manteve... vivo...

– Quem?

– ... por sua causa.

– De quem você está falando? – difícil imaginar que Ômega quisesse se vingar de...

– Lash...

Ante esse nome, os lábios superiores de Qhuinn expuseram suas presas. Aquele safado do primo deles – que, no fim, relevou-se não ser parente deles, mas sim filho transplantado de Ômega. Quando criança, o filho da puta não passara de um exibido detestável. Como pré-trans no programa de treinamento ele tornara a vida de John Matthew um inferno. Depois da transição?

Seu pai verdadeiro o recebera de volta em seu rebanho, e a completa destruição fora o resultado. Lash fora o responsável por liderar os ataques. Depois de séculos em que a Sociedade Redutora teve que caçar e encontrar os enclaves dos vampiros, o maldito soube exatamente para onde mandar os assassinos – e por ter sido adotado por uma família aristocrática, ele dizimara a classe alta.

Mas, ao que tudo levava a crer, o papaizinho e o garoto de ouro tiveram uma desavença.

Merda, a ideia de Lash ter torturado o seu irmão só o fez desejar matá-lo mais uma vez.

Enquanto Luchas gemia e inspirava fundo, Qhuinn levantou uma mão para... lhe dar um tapinha no ombro ou algo assim. Mas não fez nada.

– Escute aqui, você não precisa falar.

Os olhos cinza injetados prenderam-se os seus.

– Ele me manteve vivo... por causa do que eu fiz... com você.

Ali na maca, lágrimas se avolumaram e começaram a rolar, as emoções do irmão escorrendo pelo rosto, o arrependimento com o que sem dúvida devia ser dor física além dos narcóticos usados para tratar dele.

Porque Qhuinn achava difícil de imaginar que aquele cara demonstraria qualquer coisa numa situação normal. Não foram criados assim. Etiqueta acima das emoções.

Sempre.

– A Guarda de Honra... – Luchas começou a chorar a valer. – Qhuinn... eu sinto... eu sinto muito.

Não devemos matá-lo!

Qhuinn piscou e regressou para a surra no acostamento daquela estrada, para aqueles machos em mantos negros cercando-o e atacando-o enquanto ele tentava proteger a cabeça e os testículos. Depois, às portas do Fade, onde encontrou sua filha.

Estranho como as coisas se completavam num círculo. E como algumas tragédias na verdade levavam a coisas boas.

Nessa hora, Qhuinn tocou no irmão, levando a mão da adaga para o ombro magro dele.

– Psssiu... está tudo bem. Nós estamos bem...

Ele não sabia ao certo se aquilo era verdade, mas o que mais ele poderia dizer enquanto o cara se desmanchava em lágrimas?

– Ele quis... me transformar... – Luchas respirou fundo. – Ele me... ressuscitou. Acordei na floresta... os machos dele bateram em mim... fizeram coisas comigo... me colocaram naquele... sangue. Esperei pela volta deles... Eles nunca voltaram.

– Você está a salvo aqui – foi tudo em que ele conseguiu pensar. – Não precisa se preocupar com nada, ninguém vai pegar você aqui.

– Onde... estou...

– No centro de treinamento da Irmandade.

Os olhos dele se arregalaram.

– Verdade?

– É.

– Puxa... – a expressão de Luchas se alterou, aquele belo rosto mais uma vez se crispando. – O que foi feito de mahmen? Papai e Solange?

Qhuinn apenas balançou a cabeça de um lado para o outro.

E, em resposta, uma força repentina surgiu naquela voz frágil.

– Tem certeza de que estão mortos? Tem certeza?

Como se ele não desejasse o sofrimento pelo qual passara para nenhum deles.

– Sim, tenho certeza.

Luchas suspirou e fechou os olhos.

Merda. Qhuinn se sentia mal em mentir, mas, apesar de as máquinas ao lado da cama indicarem que o estado do seu irmão era estável, se o cara piorasse, ele não queria mandar Luchas para o túmulo pensando que depois do que fizeram com ele, ninguém mais tinha certeza de quantos outros tinham sido levados ou quando.

No silêncio, Qhuinn baixou o olhar para a mão do irmão. Para o anel de sinete que fora deixado – talvez porque a junta acima dele estivesse tão inchada que eles teriam de ter cortado o dedo.

O timbre que fora gravado na faceta de ouro carregava os símbolos sagrados com os quais apenas as Famílias Fundadoras podiam marcar suas linhagens. Ah, sim, e como era completamente perturbador, e absolutamente inapropriado, cobiçar a maldita coisa. Depois de tudo o que acontecera, era de se pensar que ele se sentisse nauseado.

Pensando bem, talvez fosse apenas uma reação instintiva, um eco de todos aqueles anos de uma esperança vã de que poderia receber um para si.

– Qhuinn?

– Diga.

– Eu sinto muito...

Qhuinn balançou a cabeça, ainda que as pálpebras de Luchas estivessem abaixadas.

– Não se preocupe com nada. Você está seguro. Voltou. Tudo vai ficar bem.

Enquanto o peito do irmão subia e descia como se ele estivesse aliviado, Qhuinn esfregou o rosto e não se sentiu nada bem em relação a tudo aquilo. A respeito do estado do irmão... e do seu retorno.

Não que ele desejasse que o cara estivesse morto. Torturado. Congelado para sempre.

Contudo, ele fechara a porta ante toda aquela dinâmica familiar. Relegara-a para um armário mental bem no fundo da sua cabeça. Deixada para trás de uma vez por todas, para nunca mais olhar para ela.

Mas o que ele poderia fazer?

A vida era especialista em chacoalhões.

O triste era que eles, no fim, inevitavelmente acabavam atingindo-o bem no meio do saco.

 

Quando um assobio suave soou ao lado de Blay, ele se sobressaltou.

– Ah, oi, John.

John Matthew levantou a mão num aceno. Como estão as coisas?

Enquanto Blay dava de ombros, achou que seria uma boa ideia se levantar. A bunda já estava entorpecida, o que significava que estava na hora de mais uma das suas voltinhas.

Resmungando ao se levantar, esticou as costas.

– Acho que tudo bem. Luchas estava desperto o suficiente depois da cirurgia, portanto Qhuinn está lá dentro agora.

Caramba...

Enquanto Blay andava em círculos para fazer o sangue circular novamente, John se recostou à parede. Ele estava com roupa de ginástica e seu cabelo ainda estava úmido... e havia uma marca de mordida em seu pescoço.

Blay desviou o olhar. Abriu a boca para dizer alguma coisa. Ficou sem ter do que falar.

Pelo canto do olho, viu John sinalizar: Então, como está Saxton?

– Hum... bem. Ele está bem, saiu de férias por uns dias.

Ele tem trabalhado bastante.

– É, tem mesmo – ele esperava que o assunto terminasse ali, pois se sentia estranho em esconder algo de John. Além de Qhuinn, o cara fora seu amigo mais próximo, ainda que, no último ano, eles também tivessem se distanciado. – Mas ele vai voltar logo.

Você deve sentir saudades dele. John desviou o olhar como se estivesse forçando a barra.

Fazia sentido. Blay sempre evitou qualquer conversa a respeito do seu relacionamento, direcionando a conversa para outros assuntos.

– É.

Então, como está Qhuinn? Eu não quis me meter, mas...

Blay só pôde dar de ombros mais uma vez.

– Já faz um tempo que ele entrou. Acho que isso é bom.

E Luchas vai sobreviver?

– Só o tempo pode garantir isso – Blay pegou um dos seus Dunhills e o acendeu, exalando lentamente. Quando não restou nada além do silêncio, ele disse: – Escute, desculpe se estou meio estranho.

A verdade era que aquela marca de mordida era um lembrete do que aconteceria a ele, e ele não queria aquilo tão presente.

A voz de Qhuinn invadiu seus pensamentos: Podemos ir juntos.

Com o que acabara concordando?

Você está cansado, John gesticulou enquanto olhava para a porta. Todos estamos. Tudo isso é tão... desgastante.

Blay franziu o cenho ao perceber o humor do cara.

– Ei, você está bem?

Depois de um momento, John sinalizou:

Uma coisa muito estranha aconteceu na outra noite. Wrath me chamou no escritório dele e me disse que Qhuinn não era mais o meu ahstrux nohtrum. Quero dizer, tudo bem, sem problemas... Isso, na verdade, complicava muito as coisas. Mas Qhuinn nunca me disse nada, e eu não sei, devo falar com ele? Eu nem sabia que isso era possível. Quero dizer, quando tudo começou foi meio que “é assim que as coisas são”, sabe? Será que ele se demitiu? É por causa dessa situação com Layla? Pensei que eles não fossem se vincular.

Blay exalou uma imprecação, a fumaça subindo acima da sua cabeça.

– Não faço ideia.

Merda, essa coisa de eles se vincularem devia ter lhe ocorrido – e talvez, por isso, Qhuinn se afastou tão rapidamente quando V. aparecera.

Será que Qhuinn e Layla ficariam juntos agora que o bebê estava bem...?

A porta se abriu e Qhuinn saiu, parecendo ter levado um chute na cabeça.

– Ei, John, tudo bem?

Enquanto os dois se davam um tapinha nos ombros, Qhuinn olhou a vista, e então conversou um pouco com John.

E depois, ele e Qhuinn foram deixados a sós quando John partiu minutos mais tarde.

– Você está bem? – perguntou-lhe Qhuinn.

Pelo visto, essa era a pergunta do momento.

– Na verdade, eu ia perguntar isso mesmo para você. Como está Luchas? – Blay tragou o cigarro depois bateu as cinzas sobre o coturno.

Antes que Qhuinn pudesse responder, Selena saiu do escritório, como se tivesse sido convocada pela mansão. A Escolhida andou até eles com graciosidade, mas com um objetivo, e seu manto tradicional branco rodopiava por entre as pernas.

– Saudações, senhores – disse ela ao se aproximar. – A doutora Jane sugeriu que eu estava sendo requisitada?

Enquanto Blay exalava, ele sentiu vontade de se socar. Aquela era a última coisa que...

– Sim, por nós dois – respondeu Qhuinn.

Blay fechou os olhos quando um desejo súbito o acometeu. A ideia de presenciar Qhuinn se alimentar era como uma droga em sua circulação, relaxando-o e ameaçando sua excitação. Mas, sério, aquilo não...

– No fim do corredor seria perfeito – murmurou Qhuinn.

Bem, melhor do que num quarto. Certo? Mais profissional. Não?

E ele precisava mesmo se alimentar – e Qhuinn, sem dúvida, também, depois de todo aquele drama.

Blay descartou o toco do cigarro numa lata de lixo e seguiu Qhuinn que ia à frente. Andando, ele não acompanhou os movimentos da Escolhida. Não, nada disso. Seus olhos estavam colados nos movimentos de Qhuinn, desde aqueles ombros, até os quadris... e a bunda...

Ok, isso teria de parar ali. Naquele instante.

Ele só precisava se controlar, alimentar-se e arranjar uma desculpa para sair dali.

Quem sabe aquele plano acabasse funcionando?

Passando pela porta. Um pouco de conversa. Sorrisos educados, ainda que ele não soubesse o que fora perguntado nem respondido.

Ah, uma das salas do hospital. Muito bom, um ambiente clínico. Apenas tomar uma veia e seguir em frente, uma função biológica que não necessariamente levava à outra...

– O que disse? – perguntou a Escolhida, olhando-o abertamente.

Maravilha. Ele andou falando em voz alta de novo, mas não havia como saber o quanto partilhara.

– Desculpe – ele se justificou –, só estou morrendo de fome.

– Nesse caso, gostaria de ser o primeiro? – Selena perguntou.

– Sim, ele quer – Qhuinn respondeu ao se recostar na porta.

Bem, tudo certo, então, Blay pensou. Quando fosse a vez de Qhuinn, ele iria embora.

Dando um passo à frente, ele se questionou como, exatamente, aquilo se daria, mas Selena resolveu a questão levando uma cadeira e sentando perto do leito hospitalar. Ok. Blay subiu no colchão, seu peso deslocando o travesseiro da cabeceira ligeiramente elevada, as molas rangendo. Em seguida, sua mente se fechou, o que foi um alívio. Enquanto Selena esticava o braço e puxava a manga branca para trás, a fome dele tomou a frente, as presas se estendendo da mandíbula superior, a respiração se intensificando.

– Por favor, tome o tanto que precisar – ela ofereceu placidamente.

– Agradeço-lhe por este presente, Escolhida – ele respondeu num tom baixo.

Inclinando-se para baixo, ele atacou rapidamente, mas com o máximo de gentileza que conseguia, e na primeira golada, soube que já fazia muito tempo. Com um rugido profundo, seu estômago demonstrou sua necessidade, a sua civilidade se escoando para fora, os instintos assumindo o controle: ele sugou fundo, bebendo cada vez mais rápido, a força se derramando em seu interior e se espalhando a partir dali...

Seus olhos dispararam na direção de Qhuinn.

Vagamente, tomou ciência de que mais um dos seus planos logo sairia voando pela janela, completamente esquecido. Na verdade, aquela fora uma má ideia – desde que não quisesse mais transar com o cara: a lógica já era bem difícil quando se tratava apenas de um caso de emoções conflituosas. Uma necessidade sexual absoluta, incrementada pela alimentação?

Ele era um idiota de primeira; era mesmo.

E isso se revelou especialmente verdadeiro quando notou a ereção de Qhuinn inflar por debaixo de suas calças de lutador.

Merda.

Merda.

Cara, um dia desses, ele seria forte o bastante para se afastar. Seria, sim, de verdade.

Ah, MERDA.


CAPÍTULO 67

Enquanto Qhuinn assistia ao show, sua língua saiu da boca e lambeu os lábios.

Do outro lado do quarto estreito, Blay estava sentado na cama hospitalar, o torso perfeito num ângulo para frente para poder tomar a veia da Escolhida, as mãos, ah, as mãos tão hábeis, bem treinadas e fortes seguravam o pulso delicado contra a boca com cuidado – como se, mesmo no auge da sua sede, ele fosse um cavalheiro.

Enquanto continuava a beber, o torso se curvou ainda mais, a caixa torácica se flexionando e se acomodando a cada respiração, a cabeça sutilmente mudando de posição a cada deglutição.

Qhuinn mal conseguia permanecer parado. Ele desejava imensamente subir naquele colchão também, retorcendo o corpo para poder chegar por trás. Queria estar na garganta de Blay enquanto ele se alimentava da Escolhida. Queria transar com o cara de doze a quinze horas direto até que os dois caíssem de exaustão.

Depois do drama com Luchas, aquele breve e intenso descanso de todo o choque e dor era um alívio glorioso cheio de culpa: aquilo era simplesmente bom demais para que ele se concentrasse em algo assim – sua mente cansada e o corpo exaurido estavam prontos para serem revigorados para ele poder voltar forte uma vez mais à realidade de lutas.

Deus, seu irmão...

Balançando a cabeça, ele deliberadamente deu algo erótico com o que sua mente se ocupar: enquanto a mão de Blay escorregava sorrateira por entre as pernas e rearranjava algo atrás da braguilha, ficou bem claro que ele estava completamente excitado.

Como se seu cheiro delicioso já não tivesse deixado aquilo evidente.

Bem quando Qhuinn estava para perder o controle, Blay levantou a cabeça e emitiu um som de sucção e satisfação. Depois, o macho selou as feridas das presas que deixara.

Quer saber, Qhuinn pensou. A alimentação que se danasse. Ele precisa somente de Blay...

– Sua vez, senhor? – disse a Escolhida.

Merda. Ele provavelmente devia fazer isso.

Além disso, Blay, por certo, estava num estado de torpor pós-alimentação, o corpo letárgico, os olhos pesados... e Qhuinn tirou vantagem disso, colocando-se entre as pernas do lutador e a Escolhida, o traseiro se esfregando contra a coluna enrijecida da ereção de Blay ao subir na cama.

Enquanto Blay deixava um gemido escapar, Qhuinn se inclinou e pegou o outro pulso da fêmea. Segurando-o com uma mão, usou a outra para puxar a bainha da camiseta para fora – e depois empurrar a palma de Blay para a frente da sua calça.

Qhuinn conteve seu gemido sugando a veia da Escolhida, mas o sibilo de Blay foi ouvido.

Talvez a Escolhida deduzisse que...

Os olhos de Qhuinn reviraram por trás das órbitas enquanto Blay o afagava, a fricção ameaçando-o a gozar ali mesmo – uma coisa que ele não gostaria de fazer diante de Selena.

Mas, caraaaalho, aquilo era...

Ele pousou a própria mão ali, detendo o movimento.

Com isso, Blay lhe deu apenas um apertão em seus colhões.

Qhuinn gozou na sugada seguinte, o orgasmo escapando dele antes que conseguisse pensar em algo cansativo ou sem atrativos para distraí-lo, o prazer surgindo com tanta força que ele vergou-se em sua própria pele.

A risada de Blay foi erótica como o inferno.

Que seja, a vingança seria terrível, Qhuinn jurou a si mesmo.

E, como se viu em seguida, ele nem conseguia esperar mais por ela. Retraiu as presas e parou de beber antes de se saciar, porque a sua fome por outra coisa tinha assumido o controle completamente, e já passara da hora de despachar Selena.

Fazer a Escolhida sair de maneira educada, porém eficiente, foi uma manobra executada no piloto automático – ele não fazia ideia do que estava dizendo –, mas pelo menos ela estava sorrindo e parecia contente, portanto, ele devia ter dito a coisa certa.

No entanto, estava bem ciente de que trancara a porta.

Ao se virar, encontrou Blay deitado e cuidando de si, a mão subindo e descendo entre as pernas. As presas ainda estavam alongadas da alimentação e os olhos cintilavam por baixo das pálpebras pesadas e, puta merda, como estava sensual...

Qhuinn se livrou dos coturnos. Das calças. Da camiseta.

Blay atingiu o clímax antes de ele sequer chegar à cama, o macho se arqueando para o alto e gemendo com a cabeça contra o travesseiro fino, e os quadris elevados.

Como se ver Qhuinn nu em pelo tivesse sido demais para ele.

Melhor. Elogio. De. Todos. Os. Tempos.

Qhuinn atacou a cama, lançando-se sobre Blay, encontrando aquela boca aveludada e assumindo o controle. Roupas rasgadas – os botões da braguilha da calça de Blay voando para todos os lados e aterrissando como moedas jogadas sobre o linóleo, a camiseta dilacerada em pedaços. E logo estavam pele a pele. Vada os separava.

Enquanto se retorciam um contra o outro, Qhuinn soube o que queria. E estava desesperado e faminto demais para pedir com educação – ou sequer falar a respeito.

Tudo o que conseguiu fazer foi se afastar daquela boca, rolar para longe de Blay... esticar o braço para trás e puxar o macho para cima dele enquanto esticava uma perna.

Sem nem pensar, Blay assumiu a partir dali. E soube exatamente o que fazer.

Qhuinn se sentiu posicionado por mãos rudes – e, sem nem se dar conta, estava ajoelhado, o rosto no colchão, a respiração saindo com dificuldade pela boca. Tudo aquilo era muito desconhecido, deixar alguém assumir o controle – e ele também se sentiu vulnerável, por mais que quisesse...

– Ai, cacete! – ele gritou ao ser possuído, as sensações de dor e de prazer, de alongamento e de acomodação, misturando-se num coquetel que o deixou tão excitado a ponto de ver estrelas.

Em seguida, Blay começou a se movimentar.

Qhuinn se apoiou sobre os braços e empurrou para trás, e se segurou enquanto toda aquela coisa de virgindade ia para o espaço de uma maneira muito boa.

Ah, caramba, era uma torrente incrível, só que muito melhor. Enquanto o braço de Blay passava por baixo do seu peito e o abraçava, o ângulo mudou, as penetrações ficaram mais profundas, mais rápidas, a cama começou a balançar ao encontro da parede, o arquejo em seu ouvido ficando mais e mais rude...

O ápice foi a chama maior que ele já sentiu, o clímax não só do seu orgasmo, mas do de Blay, segurando-o por toda parte, as coxas unidas, as pélvis inclinadas para receber, os braços grandes segurando a ambos...

Quando Blay gozou, as investidas foram tão fortes que a cabeça de Qhuinn bateu na parede – não que ele tivesse notado ou se importado. Em seguida, aquele pau começou a produzir espasmos violentamente...

E Qhuinn se sentiu bem e verdadeiramente possuído pela primeira vez na vida.

Aquilo foi... nada menos que um milagre.


Naturalmente, Blay levou um tempo até se fartar. E, engraçado, Qhuinn estava totalmente à vontade com aquilo.

Quando, no fim, as coisas chegaram a uma pausa que durou mais de um minuto e meio, Qhuinn soltou a tensão nos braços e se afundou na cama, virando de lado. Blay também devia estar exausto, seu corpo seguiu a liderança e se esticou atrás dele.

O braço de Blay permaneceu fixo em seu lugar.

E o que importava agora, apesar de toda aquela experiência, era o peso forte e solto daquele braço. Largado como estava, tornava-os não apenas dois machos que acabaram de fazer sexo e estavam deitados lado a lado, mas sim, dois amantes.

Na verdade, ele nunca antes tivera um amante – e isso não pelo fato de ter sido a primeira vez em que ficara por baixo. Fizera muito sexo. Mas nunca antes tivera alguém a que quisesse que o abraçasse depois. Nunca alguém que ele quisesse retribuir o abraço.

Sim... Blay era o seu primeiro amante verdadeiro.

E por mais que ele tivesse perdido a oportunidade de ser isso para o cara, parecia lógico que Blay fosse o seu. Ninguém jamais lhe poderia tirar o seu primeiro – e ele se considerava sortudo. Muitas vezes ouvira boatos de que aquilo podia ser muito doloroso – para as fêmeas – ou simplesmente um ato confuso em que nada ficava gravado.

Ele lembraria daquilo para sempre.

Atrás dele, Blay ainda respirava profundamente, o calor irradiando dos corpos unidos.

E Qhuinn quis tirar vantagem dessa tranquilidade: muito lentamente – como se, caso ele não se movesse muito rápido, o cara não fosse notar – cobriu o antebraço de Blay com o seu e... pousou a mão sobre a do amigo.

Fechando os olhos, ele rezou para que aquilo fosse certo. Que pudessem ficar daquele jeito só por mais um pouquinho.

Merda, o medo repentino que sentiu não passava de uma tortura, e o fez pensar na verdadeira natureza da coragem.

Mais especificamente em quão pouco a possuía no que se referia a Blay.

Do nada, ele se lembrou de ter lhe dito que ele só se via a longo prazo com uma fêmea. De esse ser o motivo de não poder aceitar a oferta de Blay. Na época, ele acreditara nisso, ainda que não parecesse muito convincente.

Ele fora um covarde na época, não fora?

– Deus, eu me sinto em carne viva – sussurrou.

– O que foi? – Foi a resposta sonolenta.

– Eu me sinto... Exposto.

E se Blay se retraísse agora? Ele se estilhaçaria em mil pedaços que nunca mais se encaixariam.

Blay fungou e puxou o braço, atraindo Qhuinn para mais perto, em vez de afastá-lo.

– Está com frio? Você está tremendo.

– Pode me esquentar?

Houve um barulho de algo sendo puxado e depois uma coberta foi jogada em cima dos dois. E as luzes se apagaram.

Enquanto Blay respirava fundo parecendo contente naquele instante, Qhuinn fechou os olhos... e ousou entrelaçar os dedos nos do melhor amigo, lacrando as mãos.

– Você está bem? – Blay perguntou de um modo abafado. Como se não houvesse nada ligado além de uma luz piloto em seu cérebro, mas ele se importava.

– Sim. Só estou com frio.

Qhuinn abriu novamente os olhos ante a escuridão. A única coisa que enxergava era a faixa de luz que se formava debaixo da porta.

Enquanto Blay cochilava, a respiração se tornando mais lenta e mais ritmada, Qhuinn olhou adiante, mesmo sem conseguir enxergar nada.

Coragem.

Ele pensava que tinha toda de que precisava – que o modo como fora criado o tornara mais durão e forte do que qualquer outra pessoa. Que o modo como realizava seu trabalho, entrando em prédios em chamas ou pulando nos assentos de pilotos de aviões caindo aos pedaços, provasse isso. Que a maneira como levava a vida, essencialmente distante, significava que ele era forte. Que ele estava seguro.

No entanto, a verdadeira medida da sua coragem ainda estava por vir.

Depois de anos demais, ele finalmente dissera a Blay que sentia muito. E depois de drama demais, ele finalmente dissera ao cara que sentia gratidão.

Mas chegar lá e ser verdadeiro quanto ao fato de que estava apaixonado? Mesmo Blay estando com outra pessoa?

Aquele era o real divisor.

E que Deus o ajudasse, mas ele o faria.

Não para separar o casal – não, não era por isso. E nem para sobrecarregar Blay.

Naquele caso, a revanche, como se mostrou, foi, na verdade, uma promessa. Algo que seria feito sem expectativas nem reservas. Seria o salto sem paraquedas, o pulo para o desconhecido, o trajeto e a queda sem ninguém para segurá-lo.

Blay fizera isso não uma, mas diversas vezes – e, sim, claro, Qhuinn queria ter de volta um desses momentos de vulnerabilidade e socar tanto suas encarnações prévias até que sua mente clareasse e ele reconhecesse a oportunidade que lhe era concedida.

Infelizmente, não era assim que as coisas funcionavam.

Estava na hora de ele pagar aquela demonstração de força... de maneira equivalente, suportando a dor que viria quando ele fosse rejeitado de uma maneira infinitamente mais gentil do que ele dispensara.

Forçando as pálpebras a abaixarem, levou os nós dos dedos de Blay até a boca e resvalou-lhes um beijo. Depois se entregou ao sono, permitindo-se escorregar para a inconsciência, sabendo que, pelo menos pelas horas seguintes, ele estaria seguro nos braços do seu amado.


CAPÍTULO 68

Enquanto a noite seguinte caía, Assail estava sentado nu à escrivaninha, os olhos rastreando a tela do computador diante dele. A imagem do monitor era dividida em quatro quadrantes que estavam marcados como norte, sul, leste e oeste, e, de tempos em tempos, ele manipulava as câmeras, mudando-lhes o foco e a direção. Ou às vezes mudava para outras lentes ao redor da casa. Ou voltava para as que estivera observando.

Tendo tomado banho e se barbeado horas antes, ele sabia que devia se vestir para sair. Aquele redutor com grande apetite pelos seus produtos estava se armando, alegando que fora enganado num suprimento de cocaína. Mas os gêmeos haviam completado aquela transação em particular de acordo com as especificações do assassino – e a gravaram.

Apenas uma precauçãozinha que Assail iniciara.

Portanto, ele não entendia sobre o que aquilo se tratava, mas, por certo, iria descobrir: enviara a gravação para o celular do redutor cerca de uma hora antes e aguardava uma resposta.

Talvez aquilo envolveria outra reunião cara a cara.

E seu comprador descontente não era a única coisa pairando sobre ele. Estava chegando aquela época do mês em que Benloise e ele ajustavam as contas – uma complicada transferência de fundos que estava deixando a todos ansiosos, inclusive Assail. Ainda que ele realizasse pagamentos semanais regulares, eles totalizavam apenas um quarto das compras, e no dia trinta ele teria de acertar as contas.

Muita grana. E as pessoas eram capazes de tomar decisões muito ruins quando havia muito dinheiro em jogo.

Também havia a questão de que, pela primeira vez, ele queria levar os primos para acompanhá-lo. Ele não conseguia visualizar Benloise apreciando a companhia adicional, mas era apropriado que seus associados ficassem mais envolvidos nos negócios – e aquele seria o maior pagamento que ele iria realizar.

Um recorde que certamente seria quebrado se ele e aquele redutor continuassem a fazer negócios.

Assail mudou a posição do mouse. Clicou em um dos quadrantes. Virou a câmera de segurança, vasculhando a floresta atrás de sua casa.

Nada se mexia. Nenhuma sombra mudava de posição. Nem mesmo os ramos dos pinheiros se moviam sob algum tipo de vento existente.

Nenhuma marca de esquis. Nenhuma figura escondida espiando.

Ela poderia estar espionando-o por outro ângulo, pensou. Do outro lado do rio. Da estrada. Do final da rua.

Distraído, ele alcançou o frasco de pó que mantinha ao lado do teclado. Usara-o no fim da tarde, quando a luz minguante do dia o fizera mudar as câmeras para visão noturna. E também usara algumas vezes desde então, só para se manter acordado.

Àquela altura já fazia dois dias que ele não dormia.

Ou seriam três?

Enquanto mexia a minúscula colher, desenhando um círculo na base do frasco, tudo o que ele conseguiu foi o barulho do metal no vidro.

Olhou dentro do frasco.

Evidentemente, ele terminara aquele lote.

Irritado por absolutamente tudo em sua existência, Assail deixou o frasco de lado e se recostou na poltrona. Enquanto sua mente girava e a compulsão de ir de imagem para imagem o apertava tal qual uma forca em sua liberdade de escolha, ele estava vagamente ciente de que seu cérebro zumbia de uma maneira bem pouco saudável.

No entanto, ele estava trancado ali. Não iria a parte alguma tão rapidamente.

Onde estaria a sua bela ladra?

Por certo ela não devia ter falado sério.

Assail esfregou os olhos e odiou o modo como sua mente estava acelerada, os pensamentos transitando de um lado ao outro em seu cérebro.

Ele simplesmente não queria acreditar que ela se manteria afastada.

Enquanto seu telefone tocava, ele o apanhou com reflexos rápidos demais, ansiosos demais. Quando viu quem era, ordenou ao seu cérebro que se recompusesse.

– Recebeu o vídeo? – ele perguntou em vez de dizer “alô”.

A voz de seu maior cliente parecia descontente.

– Como posso saber quando isso foi gravado?

– Você deve saber o que os seus homens vestiam no dia.

– Então, onde está o meu produto?

– Isso não cabe a mim dizer. Uma vez que eu concluo o negócio com os seus representantes, a minha responsabilidade cessa. Entreguei a mercadoria requisitada na hora e no local acordados, e, portanto, cumpri a minha obrigação para com você. O que acontece dali por diante não é da minha alçada.

– Se eu o pegar me sacaneando, eu vou te matar.

Assail emitiu uma exalação carregada de enfado.

– Meu caro, eu não perderia tempo com algo assim. Como conseguiria o que necessita então? E para isso, permita-me lembrá-lo que não há nada que me leve a ser desonesto com você ou com a sua organização. O lucro que você representa é o que me interessa, e eu darei o melhor de mim para fazer com que os fundos continuem a vir na minha direção. Assim são os negócios.

Houve um longo silêncio, mas Assail sabia muito bem que isso não significava que o assassino do outro lado da conexão estava confuso ou perdido.

– Preciso de um novo suprimento – o redutor murmurou depois de um tempo.

– E eu o providenciarei com muito prazer.

– Preciso de um empréstimo – agora Assail franzia o cenho, porém o redutor prosseguiu antes que ele o interrompesse. – Você me empresta esse novo pedido e eu garanto que será pago.

– Não é assim que faço negócios.

– Eis o que sei a seu respeito. Você tem uma pequena operação que controla uma área imensa. Precisa de distribuidores, porque você matou todos os outros que estavam aqui antes. Sem mim e a minha organização? Sem ofensas, mas você está fodido. Você não tem como servir Caldwell inteira, e seu produto nada vale se não chega às mãos dos seus usuários – quando Assail não respondeu de imediato, o redutor riu de leve. – Ou você pensava que fosse desconhecido, meu amigo?

Assail segurou o telefone com força.

– Por isso, acho que você tem razão – o assassino concluiu. – Você e eu somos colegas. Eu não preciso lidar com o atacadista, quem quer que ele seja. Especialmente em minha atual... encarnação.

Sim, só o cheiro faria com que Benloise fechasse a porta na cara dele, pensou Assail.

– Preciso de você. Você precisa de mim. E é por isso que vai me entregar o meu pedido e me dar 48 horas para pagar. É como você mesmo disse. Não valemos nada um sem o outro.

Assail expôs as presas, o reflexo do seu rosto de fato medonho no vidro do monitor.

E mesmo assim ele manteve a voz tranquila e impassível:

– Onde gostaria de nos encontrarmos?

Enquanto o redutor ria novamente, como se estivesse gostando de tudo aquilo, Assail se concentrou na própria imagem, com as presas expostas. Seria desajuizado se o assassino se tornasse ganancioso, ou tomasse liberdades demais.

A única coisa sempre verdadeira nos negócios? Ninguém é insubstituível.


Quando Trez despertou, ele se sentiu como se estivesse flutuando numa nuvem – e, por uma fração de segundo, imaginou se não estava mesmo. Seu corpo parecia não pesar nada, a ponto de ele nem saber se estava deitado de frente ou de costas.

Um som estranho se infiltrou em seu torpor.

Shhhscht.

Ele levantou a cabeça, e a orientação lhe veio subitamente: a luz vermelha do seu rádio relógio lhe disse que estava deitado de barriga e em diagonal na cama.

Lá vinha o som novamente.

O que seria aquilo? Metal contra metal?

Ele conseguia sentir iAm se movimentando pelo corredor, a presença do irmão tão certa quanto a sua. Então, se houvesse outra pessoa no apartamento ou algum tipo de ameaça? iAm cuidaria disso.

Erguendo-se, saiu da cama e... Uau, o quarto girou ao seu redor. Pensando bem, não havia nada, absolutamente nada em seu estômago. A bem da verdade, era bem possível que ele tivesse vomitado o fígado, os rins e os pulmões durante a enxaqueca. A boa notícia era que a dor sumira, e que essa sensação não era tão ruim. Era como estar bêbado, só que com a ressaca vindo antes.

Quando entrou no banheiro, ele sabia que era melhor não acender a luz. Ainda era muito cedo para isso.

A chuveirada foi maravilhosa. Mas ele não se deu ao trabalho de se barbear – haveria tempo para isso mais tarde, depois que colocasse um pouco de combustível em seu tanque. O roupão foi agradável: quentinho, especialmente com as lapelas erguidas cobrindo-lhe o pescoço.

Os pés descalços não estavam tão agradáveis, ainda mais quando ele saiu do quarto e pisou no corredor de piso de mármore, mas ele precisava descobrir que diabos estava...

Trez parou diante da porta da suíte do irmão. iAm estava diante do armário, tirando as camisas que estavam nos cabides. Quando ele puxou uma nova braçada pelo cano de ferro, aquele shhhscht soou novamente.

Naturalmente, seu irmão não se surpreendeu quando ele apareceu. Apenas descarregou a carga sobre a cama.

Merda.

– Vai a algum lugar? – murmurou Trez, a voz alta demais para os próprios ouvidos.

– Sim.

Bosta.

– Escute, iAm, eu não pretendi...

– Também estou fazendo as suas malas.

Trez piscou algumas vezes.

– Hã?

Pelo menos o cara não estava indo embora sozinho. A menos que quisesse a satisfação de jogar as coisas de Trez pela varanda...

– Encontrei um lugar mais seguro para nós.

– Fica em Caldwell?

– Sim.

E entra a música tema de Jeopardy!.

– Quer me dar o CEP?

– Eu daria se soubesse.

Trez gemeu e se recostou contra o batente, esfregando os olhos.

– Você encontrou um lugar para irmos, mas não sabe onde fica?

– Não, não sei.

Ok, talvez aquilo não tivesse sido uma enxaqueca, mas sim um derrame.

– Desculpe, não estou entendendo...

– Nós temos – iAm consultou o relógio de pulso – três horas para fazermos as malas. Roupas e itens pessoais apenas.

– Então o lugar é mobiliado – Trez deduziu.

– Sim, é.

Trez passou um tempo observando o irmão sendo extraeficiente com a bagagem. Camisas tiradas dos cabides, dobradas com precisão, colocadas em malas de couro da Louis Vuitton. O mesmo com calças. Pistolas e adagas foram para maletas de aço combinando.

Naquele ritmo, o cara acabaria de empacotar seus pertences em meia hora.

– Você precisa me dizer para onde vamos.

iAm olhou para ele.

– Vamos nos mudar para a Irmandade.

O cérebro de Trez levou uma descarga, a névoa sumindo de uma vez só.

– Como é?

– Estamos nos mudando para lá.

Os olhos de Trez se arregalaram.

– Eu... hum... espere, acho que não ouvi direito.

– Ouviu, sim.

– Com a permissão de quem?

– De Wrath, filho de Wrath.

– Caceeeete. Como foi que conseguiu isso?

iAm deu de ombros, como se não tivesse feito nada além de uma reserva no Motel 6.

– Falei com Rehvenge.

– Eu não sabia que o macho tinha todo esse poder.

– Ele não tem. Mas procurou Wrath, que apreciou a nossa retaguarda na reunião do Conselho. O Rei acredita que seremos um bom acréscimo ao front da casa.

– Ele está preocupado com um possível ataque – Trez concluiu.

– Talvez esteja. Talvez não. Mas o que sei é que ninguém vai nos encontrar lá.

Trez expirou fundo. Então ali estava o motivo por trás daquilo. Seu irmão, assim como ele mesmo, não queria que ele fosse arrastado de volta para o s’Hisbe.

– Você é incrível – ele disse.

iAm só deu de ombros, como de hábito.

– Pode começar a fazer as suas malas ou devo cuidar disso?

– Não, pode deixar – ele deu uma batida no batente e se virou para sair. – Estou te devendo uma, irmão.

– Trez.

Ele olhou de relance por cima do ombro.

– O que foi?

Os olhos do irmão estavam sérios.

– Isso aqui não é uma liberdade permanente. Você não pode fugir da rainha. Só estou ganhando um tempo com isso.

Trez ficou olhando para os pés nus – e ficou se perguntando quão longe conseguiria ir se eles estivessem protegidos por seus Nikes.

Bem longe.

Seu irmão era o laço que ele não conseguia romper, a única coisa que ele não se sentia capaz de deixar para trás a fim de se livrar de uma vida de luxo como escravo sexual.

E, num momento como aquele, em que o cara mais uma vez se prontificava a ajudá-lo... ele se perguntava se seria impossível ir embora sem iAm.

Talvez ele tivesse que, no fim, ceder ao seu destino.

Maldita rainha. E sua maldita filha.

Os costumes não faziam sentido. Ele jamais vira a jovem princesa. Ninguém jamais a vira. Era assim que funcionava – a seguinte na linha sucessória ao trono era tão sagrada quanto a mãe, porque seria ela a liderá-los no futuro. E, tal qual uma rosa rara, ninguém tinha permissão para vê-la até que ela estivesse adequadamente comprometida.

Pureza e tal.

Blá-blá-blá.

Uma vez que ela estivesse comprometida, porém, estaria livre para sair na sociedade, livre para viver a sua vida – dentro do s’Hisbe. O coitado que se casasse com ela? Ficaria ao lado dela dentro das paredes do castelo, fazendo o que quer que ela quisesse, quando ela quisesse – desde que ele não estivesse aos pés da rainha, idolatrando-a.

Sim, quanta alegria.

E eles acharam que ele se sentiria honrado com essa união?

Mesmo?

Ele transformara o próprio corpo num latão de lixo na última década, transando com todas aquelas humanas e sabe o que era pior? Desejou ter sido capaz de pegar todas daquelas doenças dos Homo sapiens. Impossível. Ele fez sexo desprotegido o quanto pôde com a outra espécie e ainda estava tão saudável quanto um cavalo.

Uma pena.

– Trez? – iAm se endireitou. – Trez? Fale comigo. Para onde você foi?

Trez olhou para o irmão, memorizando aquele rosto orgulhoso e inteligente e os olhos penetrantes sem fim.

– Estou bem aqui – murmurou. – Vê?

Ele ergueu as mãos e fez um círculo sobre seus pés descalços, em seu roupão, naquele estado de torpor pós-enxaqueca.

– No que está pensando? – iAm perguntou.

– Em nada. Só acho incrível isso que você fez. Vou fazer as malas e me aprontar. Eles vão mandar um carro ou algo assim?

iAm estreitou o olhar, mas respondeu mesmo assim:

– Isso. Com um mordomo chamado Fred. Ou seria Foster?

– Estarei pronto.

Trez saiu dali, os restos da dor de cabeça se escoando conforme ele olhava para o futuro... e se preocupava com esse seu último laço.

Porém, aquela mudança era positiva. iAm tinha razão: ele passara estes últimos anos ciente de que a princesa estava crescendo, e que o tempo corria, e que o dia do acerto de contas estava se aproximando rapidamente.

Existiam coisas que se podiam postergar. Aquela não era uma delas.

Inferno, talvez ele devesse desaparecer. Mesmo que isso o matasse.

Além disso, se seu irmão estivesse com Rehv na mansão do Rei? iAm teria o tipo de apoio que precisaria caso Trez acabasse sumindo.

Quem sabe, depois de tanta merda acontecendo?

O cara ficaria aliviado por se ver livre dele.

 


                           CONTINUA