Irmandade da "Adaga Negra"
CAPÍTULO 45
A ausência de alimentação de Assail finalmente o atingiu cerca de cinco horas após o anoitecer. Ele vestia uma camisa social azul-clara com punhos franceses, quando suas mãos começaram a tremer tão violentamente que não havia como ele abotoar a maldita coisa sobre o peito. Em seguida, a exaustão o acometeu, tão forte que ele cambaleou.
Praguejando, foi até a cômoda. Sobre o tampo de mogno polido, seu frasco e colher o esperavam, e ele cuidou do assunto em duas rápidas inaladas, uma para cada narina.
Hábito hediondo – e um ao qual recorria somente quando de fato necessitava.
Pelo menos a fungada cuidou do cansaço. Contudo, ele teria de encontrar uma fêmea. Logo. De fato, era um milagre que ele tivesse suportado por tanto tempo. A última vez em que tomara uma veia fora meses atrás, e a experiência havia sido menos que cativante, uma rapidinha com uma fêmea da espécie bem versada em fornecer alimento para os machos necessitados. A um preço.
Que estorvo.
Depois de se armar e pegar o casaco de cashmere preto, desceu as escadas e destrancou a porta de correr de aço. Ao abrir a passagem para o primeiro andar, foi recebido pelo som de pistolas sendo travadas.
Na cozinha, os gêmeos verificavam várias pistolas .40.
– Fez a ligação? – Assail perguntou a Ehric.
– Como você pediu.
– E?
– Ele vai estar lá e vai sozinho. Precisa de armas?
– Já as tenho – ele pegou as chaves do Range Rover de uma travessa de prata na bancada. – Vamos no meu carro. Para o caso de nos ferirmos.
Afinal, só um idiota aceitava a palavra de um inimigo, e seu SUV era equipado com um instrumento sob a carenagem que poderia ser muito útil se houvesse um ataque em massa.
Bum.
Quinze minutos mais tarde, os três cruzavam a ponte para Caldwell e, enquanto Assail seguia em frente, ele se lembrou do motivo pelo qual trazer os primos para ali fora uma ideia inspirada: não só eram uma boa retaguarda, como também eles não se mostravam inclinados a desperdiçar tempo com conversas inúteis.
O silêncio era um quarto passageiro muito bem-vindo no trajeto.
No centro além do rio Hudson, ele pegou uma saída que fazia uma curva e acabava debaixo da Northway. Avançado paralelo ao rio, ele entrou numa floresta de pilares que sustentavam a estrada, o cenário era insignificante, sombrio e, essencialmente, deserto.
– Estacione ali à direita, mais uns cem metros – disse Ehric na parte de trás do carro.
Assail foi para o meio-fio e parou.
Os três emergiram no frio, com os casacos abertos, as armas empunhadas, os olhos à espreita. Conforme caminhavam, o gêmeo de Ehric tomava a retaguarda, com os três sacos da garagem em uma das mãos, os plásticos produzindo um roçar à medida que eles andavam.
Acima deles, o trânsito rugia, os carros se deslocando a um ritmo constante, a sirene de uma ambulância berrando um grito estridente, um caminhão pesado ribombando sobre as vigas. Quando Assail inspirou fundo, o ar entrou gélido em seus seios nasais, e qualquer odor de sujeira ou de peixes mortos fora subjugado pelo frio.
– Logo em frente – orientou Ehric.
Eles cruzaram o asfalto calma e ritmadamente, seguindo por um caminho de terra batida congelada e dura. Com as enormes placas de concreto da estrada bloqueando o sol, nada crescia ali, mas havia vida – de certa forma. Humanos sem teto em abrigos improvisados com papelões e encerados permaneciam acocorados para se protegerem do inverno, os corpos tão enrolados que não se podia dizer para que lado olhavam.
Considerando o interesse em permanecerem vivos, ele não se preocupou com uma interferência da parte deles. Além disso, eles estavam acostumados a ficarem na periferia daquele tipo de negociata e sabiam que não deveriam se meter.
E se o fizessem? Ele não hesitaria em acabar com a vida miserável deles.
O primeiro sinal de que o inimigo aparecera foi o fedor carregado pelo vento. Assail não era muito versado quanto à Sociedade Redutora e os seus membros, mas seu olfato apurado não era capaz de discernir muitas nuances entre os maus odores. Portanto, ele deduziu que suas instruções foram seguidas e que aquele não era um caso de milhares chegando ao ponto de encontro – conquanto fosse possível que os seguidores de Ômega tivessem apenas um buquê.
Logo ele descobriria.
Assail e seus machos pararam. E esperaram.
Um momento depois, um único redutor saiu de trás de um poste.
Ah, interessante. Aquele já fora um cliente antes, aparecendo com dinheiro para aceitar porções de ecstasy ou de heroína. Ele esteve muito perto de ser eliminado, seu volume de compra pouco abaixo da qualificação de um intermediário.
Único motivo pelo qual ele ainda respirava... e, portanto, a certa altura, transformara-se num assassino. Pensando bem, o camarada não vinha circulando muito ultimamente, logo, era possível se deduzir que ele estivesse se ajustando à nova vida. Ou não vida, como parecia ser o caso.
– Jesus... Cristo – disse o redutor, obviamente captando os cheiros deles.
– Falei sério quando disse que eu era o seu inimigo – Assail comentou com fala arrastada.
– Vampiros?
– O que nos coloca numa posição curiosa, não? – Assail acenou para os gêmeos. – Meus parceiros vieram aqui em boa-fé. Surpreenderam-se do mesmo modo com o que descobriram quando seus homens chegaram. Certos... comportamentos violentos... por parte nossa foram demonstrados antes que a situação fosse esclarecida. Mil perdões.
Quando Assail indicou, os três sacos foram lançados para a frente.
A voz de Ehric foi seca:
– Estamos dispostos a lhe informar onde está o resto deles.
– Dependendo do resultado desta transação – acrescentou Assail.
O redutor olhou para baixo, mas, fora isso, não demonstrou reação alguma. O que sugeria que ele era profissional.
– Trouxe a mercadoria?
– Você pagou por ela.
Os olhos do assassino se estreitaram.
– Vai fazer negócios comigo.
– Garanto que não estou aqui pelo prazer da sua companhia – quando Assail gesticulou, Ehric puxou um pacote embrulhado. – Primeiro, algumas regras básicas. Você entrará em contato comigo diretamente. Não aceitarei ligações de mais ninguém de sua organização. Você poderá delegar o pagamento e o recebimento da mercadoria a quem desejar, desde que me informe a identidade e o número de representantes que estiver enviando. Se houver qualquer tipo de cilada, ou se houver qualquer desvio das minhas duas regras, eu cessarei minhas transações com você. São essas as minhas únicas condições.
O redutor olhou de Assail para os primos.
– E se eu quiser comprar mais do que isto?
Assail já considerara essa possibilidade. Não passara os últimos doze meses fazendo com que os intermediários estourassem seus miolos à toa – e não estava disposto a ceder seu poder duramente conquistado a ninguém. Contudo, aquela era uma oportunidade única. Se a Sociedade Redutora queria ganhar dinheiro nas ruas, ele concordava em lhes fornecer as drogas para tal. Não que aquele fedido filho da puta conseguisse chegar até Benloise porque Assail se certificaria de impedir isso. Mais precisamente, Assail tinha um racionamento estipulado inerente ao seu modelo de negócios – com apenas eles três, tinha mais produtos do que vendedores.
Portanto, era hora de começar a delegar. Seu controle sobre a cidade estava completo, a fase seguinte era escolher a dedo alguns intermediários para contratos de trabalho, por assim dizer.
– Vamos começar devagar e veremos como nos saímos – murmurou Assail. – Você precisa de mim. Eu sou a fonte. Portanto, a escolha é sua sobre como procederemos. Certamente, eu não estou... como dizer... “desinclinado” a aumentar os seus pedidos. Com o tempo.
– Como posso saber que você não está trabalhando com a Irmandade?
– Caso eu estivesse, já teria providenciado para que eles tivessem armado uma emboscada agora – ele indicou os sacos plásticos aos pés do assassino. – Além do que, como gesto de boa-fé, e em reconhecimento pelas suas perdas, eu lhe dei um crédito de três mil dólares nesta entrega. Mil para cada um dos nossos, digamos, mal-entendidos da noite passada.
As sobrancelhas do assassino se ergueram.
No silêncio que se seguiu, o vento rodopiou ao redor deles, os casacos revirando-se, o colarinho da jaqueta do redutor tremulando.
Assail ficou tranquilo no aguardo de uma resposta. Existiam duas possibilidades: sim, e nesse caso Ehric jogaria o pacote para ele. Ou não, o que os faria abrir fogo no maldito, neutralizá-lo, e apunhalá-lo de volta a Ômega.
As duas opções eram-lhe aceitáveis. Mas ele esperava que fosse a primeira.
Dinheiro precisava ser produzido. Para ambos os lados.
Sola manteve distância do quarteto de homens que se juntaram sob a ponte: detendo-se à margem, ela usava os binóculos para focalizar a reunião.
O senhor Misterioso, também conhecido como Houdini do Acostamento, estava protegido por dois imensos guarda-costas que eram o espelho um do outro. Pelo que podia perceber, ele comandava a reunião, e isso não era surpresa alguma – e ela podia adivinhar o assunto em pauta.
Como esperado, o gêmeo da esquerda deu um passo à frente e lhe deu um pacote do tamanho de uma lancheira de criança para o homem que estava sozinho.
Enquanto ela aguardava que a reunião chegasse ao fim, soube que estava ariscando a vida com aquilo – e não por estar debaixo de uma ponte no meio da noite.
Levando-se em consideração o encontro que teve com o homem na noite anterior, era bem duvidoso que ele apreciasse o fato de ela o seguir até ali, testemunhando suas atividades ilegais. Contudo, passara boa parte das últimas 24 horas pensando nele – e se irritando. Aquele era um maldito país livre, e caso ela quisesse estar ali, numa propriedade pública, tinha esse direito.
Ele queria privacidade? Então que cuidasse dos seus negócios em outro lugar que não no meio da rua.
Enquanto sua irritação ressurgia, ela cerrou os dentes... e entendeu que esse era o seu pior defeito no trabalho.
A vida inteira foi do tipo que fez exatamente aquilo que lhe diziam para não fazer. Claro, quando isso envolvia coisas como “Não, você não pode comer uma bolacha antes do jantar” ou “Não, você não pode sair de carro, está de castigo” ou “Não, você não deve ir visitar seu pai no presídio”... as implicações eram muito diferentes daquilo que se desenrolava logo adiante.
Não, você não pode voltar para aquela casa.
Não, você não pode mais me espionar.
Ah, ‘tá bom, chefão. Ela decidiria quando estaria satisfeita, muito obrigada. E naquele instante? Ela ainda não estava satisfeita.
Além disso, havia outro ângulo em sua tenacidade: ela não gostava de se acovardar e fora isso o que acontecera na noite anterior. Ao se afastar do confronto com aquele homem, fora por causa do medo – e aquele não seria o modo como ela conduziria sua vida. Desde aquela tragédia, ah, há tanto tempo, quando as coisas mudaram para sempre, ela decidira – não, jurara – que nunca mais teria medo de nada.
Não da dor. Não da morte. Não do desconhecido.
E certamente não de um homem.
Sola ajustou o foco, fechando-o no rosto do homem. Graças à iluminação urbana, havia luz suficiente para enxergá-lo adequadamente, e sim, ele era exatamente como ela lembrava. Deus, o cabelo era tão negro, quase como se ele o tivesse tingido. E os olhos – estreitos, agressivos. A sua expressão, tão orgulhosa e controlada.
Francamente, ele parecia ter classe demais para ser o que era. Pensando bem, talvez ele fosse feito do mesmo estofo de traficante de Benloise.
Pouco depois, as duas partes se separaram: o homem só se virou e caminhou na direção de que surgira, com um punhado de sacos de lixo quase vazios por sobre o ombro; os outros três retornando até o Range Rover.
Sola trotou até seu carro alugado, o body preto e a máscara de esqui ajudando-a a se misturar à escuridão. Colocando-se atrás do volante do Ford, ela se abaixou e usou um espelho para monitorar a via de mão única que passava por debaixo da ponte.
A rua era a única saída disponível. A menos que o homem estivesse disposto a arriscar uma abordagem da polícia por trafegar na contramão.
Momentos depois, o Range Rover passou por ela. Permitindo que ele se adiantasse um pouco, ela acelerou e se posicionou cerca de um quarteirão para trás.
Quando Benloise lhe dera aquela missão, fornecera-lhe o modelo do SUV do homem, além do endereço da casa à margem do Hudson. Porém, nenhum nome.
Tudo o que ela sabia era aquele fundo de investimento e seu único curador.
Enquanto perseguia o trio, memorizou a placa do carro. Um dos seus amigos no departamento de polícia talvez pudesse ajudá-la com isso; apesar de que, se a propriedade era de uma entidade legal, ela deduzia que ele fizera o mesmo com o carro.
Que seja. Só havia uma coisa de que tinha certeza.
Onde quer que ele fosse, ela estaria logo atrás.
CAPÍTULO 46
O grito ecoou pelo quarto em penumbra, alto, agudo, inesperado.
Conforme ele reverberava em seus ouvidos, Layla não entendeu de imediato o que a acordara. O que tinha...
Relanceando para baixo, ela viu que estava sentada ereta, os lençóis amassados em suas mãos, o coração acelerado, a caixa torácica bombeando.
Olhando ao redor, viu que sua boca estava aberta...
Fechando-a, entendeu quem produzira aquele som. Não havia mais ninguém no quarto. E a porta estava cerrada.
Erguendo as mãos, ela girou os pulsos, fazendo as palmas se voltarem para cima e para baixo. A iluminação do quarto, que era pouca, não vinha mais do seu corpo, mas sim do banheiro.
Virando-se de lado, espiou por cima da beirada da cama.
Payne já não estava mais caída no chão. A fêmea devia ter saído – ou fora carregada para fora?
Seu primeiro pensamento foi sair para procurar a irmã de Vishous, simplesmente levantar num pulo e começar a procurar. Embora não tivesse entendido exatamente o que se sucedera entre ambas, não restavam dúvidas de que aquilo custara imensamente à lutadora.
Layla, porém, deteve-se, conforme a preocupação com o seu próprio bem-estar surgiu: sua consciência passou do externo para o interno, a mente se concentrando no corpo, buscando e esperando encontrar as cólicas, a poça quente entre as pernas, as estranhas dores debilitantes em seus ossos.
Nada.
Assim como um quarto ficava em silêncio quando todos os que estavam dentro permaneciam em silêncio, as partes corpóreas também agiam da mesma forma quando todos os seus componentes não tinham queixas.
Tirando as cobertas de cima do corpo, ela moveu as pernas até que ficassem penduradas na lateral do colchão alto. Subconscientemente, preparou-se para a horrível sensação do sangue descendo do seu ventre. Quando nada desse tipo aconteceu, ela se perguntou se o aborto não chegara ao fim. Mas Havers não lhe dissera que duraria mais uma semana?
Foi preciso coragem para se levantar. Ainda que ela considerasse isso ridículo.
Nada ainda.
Layla foi até o banheiro devagar, esperando que o assalto dos sintomas retornasse a qualquer instante, fazendo-a cair de joelhos. Esperou que a dor atacasse, que aquelas cólicas ritmadas voltassem, que aquele processo mais uma vez estabelecesse o domínio sobre seu corpo e sua mente.
Não sei se funcionará, mas, se permitir, eu gostaria de ver o que posso fazer.
Faltou pouco para que Layla rasgasse as roupas, despindo-se do que a cobria num acesso insano. E logo estava no vaso sanitário.
Nenhum sangramento.
Nenhuma cólica.
Uma parte sua afundou numa tristeza tão grande, que ela temia que não houvesse fim para tal emoção – de modo estranho, durante o processo do aborto, ela sentiu como se tivesse uma espécie de conexão com o filho. E se estivesse tudo acabado? Então, a morte estava completa – mesmo que, logicamente, ela soubesse que não havia coisa alguma que tivesse vivido ou fosse capaz de sobreviver; de outro modo, a gestação não teria chegado ao fim.
Sua outra metade estava tomada por uma esperança ressonante.
E se...
Tomou uma chuveirada rápida, apesar de não saber exatamente por que estava se apressando, ou para onde iria.
Baixando o olhar para o abdômen, percorreu as mãos ensaboadas sobre a faixa reta de pele.
– Por favor... qualquer coisa que quiser, pegue o que quiser... me dê esta vida dentro de mim e pode ficar com qualquer outra coisa...
Ela falava com a Virgem Escriba, claro – não que a mãe da raça a ouvisse mais.
– Conceda-me o meu filho... deixe-me ficar com ele... por favor.
O desespero que ela sentia era quase tão ruim quanto os problemas físicos de antes, e ela saiu cambaleando para fora do box, secando-se rapidamente e vestindo-se com qualquer coisa.
Pelo que vira na televisão, as mulheres humanas tinham testes que podiam fazer sozinhas, umas espécies de varetas que lhes diziam se seus corpos estavam procriando seus mistérios. As vampiras não dispunham dessas coisas – pelo menos não que ela soubesse.
Mas os machos sabiam. Eles sempre sabiam.
Saindo apressada do quarto, ela disparou na direção do corredor das estátuas, rezando para se deparar com alguém, qualquer um...
Exceto Qhuinn.
Não, ela não queria que fosse ele a descobrir se aquele milagre acontecera ou... se nada havia mudado. Aquilo seria simplesmente cruel demais.
A primeira porta que viu foi a de Blaylock e ela bateu nela depois de um segundo de hesitação. Blay soube da situação desde o início. E, em seu cerne, ele era um bom macho, um macho bom e forte.
Quando não houve resposta, ela praguejou e deu as costas. Não verificara as horas, mas já que as persianas estavam erguidas e não havia o aroma da refeição sendo servida, provavelmente já estavam no meio da noite. Sem dúvida ele saíra para lutar...
– Layla?
Ela se virou. Blay estava inclinado para fora do quarto com uma expressão de surpresa.
– Desculpe... – quando a voz dela se partiu, ela teve que pigarrear – E-eu...
– O que aconteceu? Você está... Epa, vá com calma. Venha, vamos acomodá-la aqui.
Quando algo se aproximou e a segurou por trás, ela percebeu que ele a agarrara e a levara até o banquinho folheado a ouro bem do lado de fora do quarto dele.
Ele se ajoelhou diante dela e a tomou pelas mãos.
– Quer que eu vá chamar Qhuinn para você? Acho que ele está...
– Diga-me se eu ainda estou grávida – quando os olhos dele se arregalaram, ela apertou suas mãos. – Preciso saber. Alguma coisa... – ela não sabia se Payne queria que ela contasse o que acontecera entre as duas. – Eu só preciso saber se acabou ou não. Pode... por favor, eu preciso saber...
Quando ela começou a balbuciar, ele apoiou a mão no braço dela e o apertou.
– Acalme-se. Apenas respire fundo... isso, respire comigo. Isso mesmo, assim está bom.
Ela fez o que pôde para obedecer, concentrando-se no tom de voz grave e firme.
– Quero chamar a doutora Jane, está bem? – quando ela se mostrou disposta a discutir, ele balançou a cabeça com firmeza. – Fique aqui. Prometo que não vou a parte alguma. Só preciso ir buscar meu telefone. Fique aqui.
Por algum motivo, os dentes dela começaram a tiritar. Estranho, pois não estava frio.
Um segundo depois, o soldado estava de volta e se ajoelhava mais uma vez. Ele estava com o celular pregado ao ouvido e falava.
– Ok, Jane já está vindo – informou ele, desligando o aparelho. – Vou ficar aqui, esperando com você.
– Mas você sabe, não sabe? Você tem que saber, consegue sentir o cheiro...
– Psiiiu.
– Desculpe – ela desviou o rosto, abaixando a cabeça. – Não tive a intenção de envolvê-lo nisso. Eu só... desculpe.
– Está tudo bem. Não se preocupe com isso. Vamos só esperar pela doutora Jane. Ei, Layla, olhe para mim. Olhe para mim.
Quando ela finalmente encarou os olhos azuis, ficou pasma com a bondade neles. Ainda mais quando o macho sorriu com gentileza.
– Estou contente que tenha vindo me procurar – disse ele. – O que quer que esteja acontecendo, nós vamos cuidar disso.
Fitando o rosto belo e forte, sentindo a segurança que ele oferecia com tanta generosidade, percebendo a decência profunda do lutador, ela pensou em Qhuinn.
– Agora entendo por que ele está apaixonado por você – disse ela sem querer.
Blay empalideceu de uma vez, toda a cor do seu rosto sumindo da face.
– O que... você disse?
– Cheguei – disse a doutora Jane do alto das escadas. – Estou aqui! Enquanto a doutora Jane se aproximava correndo, Layla fechou os olhos.
Droga. O que acabara de escapar da sua boca?
No centro da cidade, no armazém em que Xcor passara o dia, o líder do Bando de Bastardos por fim emergiu na escuridão fria da noite.
Ele tinha as armas no corpo e o celular na mão.
Em algum ponto durante as horas iluminadas do dia, a sensação de que ele se esquecera de algo finalmente cessara, e ele se lembrara de que dissera aos soldados para abandonar aquele local. O que explicava por que nenhum deles aparecera antes do amanhecer.
O novo esconderijo não era no centro. E, após um pouco de reflexão, fora um erro de sua parte tentar estabelecer o QG naquela parte da cidade, mesmo se as coisas pareciam desertas: muito risco de descoberta, circunstâncias complicadas ou comprometedoras.
Como bem ficaram sabendo na noite anterior com a visita daquele Sombra.
Fechando os olhos brevemente, ele pensou como era estranho que os eventos podiam se suceder muito além das intenções originais de alguém. Se não por aquela intromissão do Sombra, ele se perguntava se um dia teria conseguido rastrear a sua Escolhida. E se ele não a tivesse seguido até a clínica, não teria descoberto que ela estava grávida... tampouco teria descoberto a respeito da Irmandade.
Lançando-se no vento impiedoso, materializou-se no teto do mais alto arranha-céu da cidade. As rajadas de vento eram cruéis naquela altitude, açoitando seu casaco ao redor do corpo, o coldre da foice era tudo o que mantinha nas costas. O cabelo, que crescia cada vez mais, emaranhava-se, obscurecendo a sua visão da cidade que se estendia aos seus pés.
Ele se virou na direção da montanha do Rei, a grande elevação no horizonte.
– Pensávamos que estivesse morto.
Xcor girou sobre as botas de combate, o vento afastando o cabelo do rosto.
Throe e os outros formavam um semicírculo ao redor dele.
– Ai de mim! Ainda vivo e respiro – mas, na verdade, ele só se sentia morto. – Como são as novas acomodações?
– Onde esteve? – Throe exigiu saber.
– Por aí – ao piscar, ele se lembrou de ter vasculhado aquele cenário estranho e enevoado, circundando a base da montanha. – As novas acomodações, como elas são?
– Boas – murmurou Throe. – Posso falar com você?
Xcor levantou uma sobrancelha.
– De fato, você parece ansioso em fazer isso.
Os dois se afastaram um pouco, deixando os outros ao vento e, sem querer, ele acabou ficando de frente para a direção do complexo da Irmandade.
– Você não pode fazer isso – disse Throe acima das rajadas enregelantes. – Não pode simplesmente desaparecer durante o dia inteiro. Não neste cenário político... nós deduzimos que você tivesse sido morto, ou pior, capturado.
Houve uma época em que Xcor teria rebatido essa censura com uma repulsa afiada ou algo mais físico. Mas seu soldado estava certo. As coisas estavam diferentes no grupo deles – desde que enviara Throe para o covil do lobo, ele começara a sentir uma ligação recíproca com aqueles machos.
– Eu lhe garanto, não foi intencional.
– Então, o que aconteceu? Onde esteve?
Naquele instante, Xcor viu uma encruzilhada à sua frente. Uma direção levava ele e seus soldados à Irmandade, para um conflito sangrento que mudariam suas vidas para sempre para o bem ou para o mal. A outra?
Ele pensou em sua Escolhida sendo sustentada por aqueles dois lutadores, com tanto cuidado como se fosse de vidro.
Optou por essa direção.
– Estive no armazém – ouviu-se dizer após um momento. – Passei o dia lá. Voltei para lá distraído, e já era tarde demais para ir para qualquer outra parte. Passei as horas do dia no subterrâneo, e meu telefone não tinha sinal. Vim para cá assim que saí do prédio.
Throe franziu o cenho.
– Já faz tempo que o sol se pôs.
– Perdi a noção do tempo.
Aquilo era tudo o que estava disposto a informar. Nada mais. E seus soldados devem ter sentido esse limite de demarcação e, ainda que as sobrancelhas de Throe permanecessem tensas, ele não disse nada mais.
– Só preciso resolver um detalhe aqui e depois partiremos para encontrar nossos inimigos – declarou Xcor.
Ao pegar o celular, ele não teria como ler a tela, mas sabia como acessar a caixa de mensagens. Havia algumas ligações não recebidas – muito provavelmente de Throe e dos outros. E depois houve uma mensagem de alguém de quem ele esperava notícias.
– Sou eu – anunciou Elan, filho de Larex. Houve uma pausa, como se em sua mente estivesse ouvindo uma fanfarra de trompetes. – O Conselho vai se reunir amanhã à meia-noite. Pensei que você deveria saber. O local é uma propriedade aqui na cidade, cujos donos recentemente retornaram de sua casa segura. Rehvenge foi bem insistente quanto ao agendamento, portanto só posso deduzir que nosso caro lídher esteja trazendo uma mensagem do Rei. Eu o manterei informado quanto ao que se suceder, mas não espero vê-lo lá. Fique em paz, meu aliado.
Quando ele apertou o botão de apagar a mensagem, Xcor expôs as presas, e o ressurgimento da sua raiva foi bom – uma volta à normalidade.
Como aquele aristocratazinho afetado ousava lhe dizer o que fazer?
– O Conselho irá se reunir amanhã – disse ele ao guardar o telefone.
– Onde? Quando? – perguntou Throe.
Xcor olhou por sobre a cidade até a montanha. Depois deu as costas para aquele ponto cardinal.
– O caro Elan determinou que não devemos estar lá. O que ele falha em perceber é que isso será escolha minha. Não dele.
Como se deixar de informar o endereço o impedisse de ir caso ele assim o desejasse?
– Chega de conversa – ele caminhou até o restante dos seus soldados. – Vamos descer às ruas e nos engajar como fazem os soldados.
Entre as suas omoplatas, a foice começou a falar com ele mais uma vez, a voz clara em sua mente, suas palavras sedentas por sangue como a súplica de uma amante.
Seu silêncio fora por demais perturbador.
Não foi com pouco alívio que ele se desmaterializou do alto de arranha-céu, o seu desejo férreo direcionando suas moléculas na direção do chão e no campo de batalha. De tantas maneiras, as 24 horas anteriores se passaram como se tivessem sido vividas por outra pessoa.
Todavia, ele voltava para a sua boa e velha pele.
E pronto para matar.
CAPÍTULO 47
Qhuinn estava a dezessete quilômetros por hora numa corrida de 32 quilômetros na esteira quando a porta da academia do centro de treinamento se abriu.
No segundo em que ele viu quem era, pôs-se nas barras laterais da máquina e apertou o botão de parar: Blay estava parado na soleira, com os olhos arregalados e o rosto todo abatido – e não porque alguém o tivesse surrado ou algo assim.
– O que aconteceu? – Qhuinn exigiu saber.
Blay enfiou uma mão nos cabelos ruivos.
– Hum... Layla está na clínica...
– Merda – ele saltou da máquina e seguiu para a porta. – O que aconteceu...
– Não, não, nada. Ela só está lá para um consulta de rotina. É só isso – o cara deu um passo para o lado, deixando a saída livre. – Imaginei que você quisesse saber.
Qhuinn franziu o cenho e parou bem onde estava. Ao perscrutar a expressão do macho, chegou a uma conclusão que o deixou ansioso: Blay estava escondendo alguma coisa. Difícil determinar como ele sabia disso, mas, pensando bem, depois de uma amizade desde a infância, você aprende a ler nas entrelinhas.
– Você está bem? – perguntou-lhe.
Blay indicou a direção da clínica.
– Sim. Claro. Ela está na sala de exames neste instante.
Certo, obviamente o assunto estava encerrado.
Reagindo, Qhuinn trotou pelo corredor e quase explodiu porta adentro. No último segundo, porém, um senso de decoro o impediu de fazer isso. Alguns exames em fêmeas grávidas envolviam lugares privados – e por mais que ele e Layla tivessem feito sexo, eles certamente não eram íntimos a esse ponto.
Por isso, bateu à porta.
– Layla? Você está aí?
Houve uma pausa e depois a doutora Jane abriu a porta.
– Olá, pode entrar. Estou contente que Blay o tenha encontrado.
O rosto da médica nada revelava – e isso o deixou psicótico. De modo geral, quando os médicos agiam daquele modo cortês e profissional, as notícias não eram boas.
Olhando além da fêmea de V., ele se concentrou em Layla, mas foi Blay quem ele segurou, agarrando-o pelo braço.
– Fique, se puder? – Qhuinn disse pelo canto da boca.
Blay pareceu surpreso, mas atendeu ao pedido dele, fechando a porta atrás de si após entrar.
– O que está aconteceu? – Qhuinn quis saber.
Consulta de rotina o seu rabo. Os olhos de Layla estavam arregalados e um pouco perturbados, as mãos irrequietas remexendo no cabelo longo.
– Houve uma mudança – disse a doutora Jane com hesitação.
Pausa.
Qhuinn quase gritou.
– Ok, preste atenção, se ninguém me disser que merda está acontecendo, vou perder a cabeça no meio desta sala...
– Estou grávida – Layla deixou escapar.
E como isso representava uma mudança?, ele se perguntou com a cabeça começando a zumbir.
– Isto é, o aborto parece ter parado – explicitou Jane. – E ela continua grávida.
Qhuinn piscou. Depois balançou a cabeça – mas não de um lado para o outro, mas sim como se alguém estivesse masturbando um globo de neve.
– Não entendi.
A doutora Jane se sentou numa banqueta de rodinhas, e abriu o prontuário no colo.
– Eu mesma fiz o exame de sangue. Há uma pequena alteração no equilíbrio dos hormônios gestacionais...
– Vou vomitar – Layla interrompeu. – Agora...
Todos se apressaram para a pobre fêmea, mas Blay foi o mais esperto. Ele pegou um cesto de lixo e foi isso o que a Escolhida usou.
Enquanto ela vomitava, Qhuinn amparou sua cabeça e se sentiu meio tonto.
– Ela não está bem – disse à médica.
Jane sustentou o olhar dele por sobre a cabeça de Layla.
– Essa é uma parte normal da gestação. Pelo visto, para as vampiras também...
– Mas ela está sangrando...
– Não está mais. E eu fiz um ultrassom. Posso ver o saco gestacional. Ela ainda está grávida...
– Ai, merda! – Blay exclamou.
Por uma fração de segundo, Qhuinn não conseguiu entender por que o cara estava praguejando. Mas logo percebeu que... hum, o teto mudara de lugar com a parede.
Não, espere.
Ele estava desmaiando.
Seu último pensamento consciente foi o de que foi muito bom Blay o amparar enquanto ele despencava como uma árvore cortada na floresta.
No contexto dos idiomas, existiam palavras muito mais importantes do que “estar”. Existiam palavras elegantes, palavras históricas, palavras que valiam a vida ou a morte. Havia trava-línguas com polissílabas que exigiam esforço para serem pronunciadas, e missões críticas essenciais que começavam e terminavam guerras... e mesmo poesias sem sentido que pareciam sinfonias ao saírem dos lábios.
De modo geral, “estar” não era usado por garotos crescidos. Na verdade, mal tinha uma definição e, no decorrer de sua vida, não passava de uma ponte, um conduíte de outras palavras mais importantes em qualquer sentença.
Havia, no entanto, um contexto em que tal palavrinha de cinco letras e de apenas duas sílabas era de arrasar quarteirão.
No que se referia ao amor.
A diferença de “amar” em comparação com “estar amando, estar apaixonado” era a uma freada ante o Grand Canyon. A cabeça de um alfinete em todo o Meio-Oeste. Uma expiração ante um furacão.
Agora entendo por que ele...
Enquanto Blay permanecia no chão da sala de exames com o corpo mole de Qhuinn em seu colo, ele não conseguia, nem que sua vida dependesse disso, lembrar-se o que Layla dissera em seguida. Teria sido “ama você”? Bem, nesse caso, sim, ele sabia que o cara o amava como um amigo há décadas. E isso não mudava nada.
Ou teria sido com o acréscimo do “estar”?
Nesse caso, ele estava meio que considerando imitar Qhuinn e dar um tempo no piso de ladrilhos.
– Como vai o meu outro paciente? – a doutora Jane perguntou enquanto Layla se largava de novo na maca.
– Respirando – respondeu Blay.
– Ele vai melhorar.
Era de se esperar, Blay pensou ao se concentrar no rosto de Qhuinn – como se aquelas feições conhecidas, mesmo ele estando apagado, pudessem lhe dar a resposta para sua pergunta de um ou outro modo.
A Escolhida não poderia ter dito “está apaixonado”.
Não podia ser isso. Ele simplesmente se recusava a deixar que duas sessões de sexo excelente reescrevessem as palavras de alguém.
– Tem certeza de que isso é normal? – ele ouviu Layla perguntar à médica.
– O vômito? De acordo com o que Ehlena me contou antes, por certo pode ser parte dos sintomas de uma gestação bem-sucedida. Na verdade, é um sinal claro de que as coisas estão progredindo bem. São os hormônios.
– Eu não tenho que voltar ao consultório de Havers, tenho?
– Bem, Ehlena está voltando da visita ao pai hoje à noite. Por isso, precisamos ver o quanto ela se sente à vontade tratando-a... e depois nós veremos em que ponto você está. Não vou mentir... considero isto um milagre.
– Concordo.
Enquanto as fêmeas conversavam, Blay manteve o olhar nas pálpebras fechadas de Qhuinn. Era um milagre, podem acreditar.
Como se estivesse programado, o cara recuperou os sentidos naquele instante, os cílios escuros se mexendo como se tentassem decidir se ele falava sério quanto a essa coisa de ficar consciente.
– Layla! – ele exclamou ao se erguer de pronto.
Blay se empurrou para trás, soltando-se dele. Sentindo-se um pouco idiota.
Ainda mais quando Qhuinn se pôs de pé e foi para perto da fêmea.
Blay ficou onde estava, recostando-se no armário debaixo da pia, com os joelhos erguidos, as mãos sobre as coxas. Mesmo que isso o estivesse dilacerando, ele não conseguiu deixar de olhar os dois juntos, a mão da adaga de Qhuinn impossivelmente gentil enquanto afastava os cabelos loiros de Layla do rosto.
Ele dizia algo a ela, algo suave e reconfortante.
Antes de Blay se dar conta, ele já estava no corredor, andando para algum lugar, qualquer lugar. Por mais difícil que fosse aceitar a compaixão de Qhuinn... era simplesmente impossível testemunhá-la sendo dada a outra pessoa – mesmo que essa pessoa fosse merecedora. A ideia de que Layla tivesse recebido em seu cio exatamente o que ele tivera nos dois últimos dias fazia seu peito doer, mas o que era pior? Ao que tudo levava a crer, o esforço físico com ela servira a um propósito biológico. Ela estava grávida – e, graças a Payne, ele tinha a sensação de que ela continuaria desse modo.
Apesar de tudo, ele fizera a coisa certa ao procurar a irmã de V. no dia anterior. Deduzindo que isso tivesse sido a causa da incrível reviravolta. Mas, ainda assim, e mesmo que não fizesse sentido, ele sentia como se...
– Você está bem?
Ele parou de súbito com o choque de ouvir a voz de Qhuinn. Pensara que o cara ficaria com Layla.
Preparando-se, enfiou as mãos nos bolsos e respirou fundo antes de se virar.
– Sim, estou bem. Só imaginei que vocês dois quisessem um pouco de privacidade.
– Obrigado por ir me amparar – ele ergueu as mãos. – Não sei o que aconteceu ali dentro.
– Alívio.
– Pode ser.
Houve um instante embaraçoso. Mas, pensando bem, eles eram especialistas nisso, não?
– Bem, vou voltar para a casa – Blay forçou um sorriso, na esperança de que o cara acreditasse. – É bom ter uma noite de folga.
– Ah, é. Saxton deve estar à sua espera.
Blay abriu a boca, mas se segurou antes que um “por quê?” escapasse dos seus lábios.
– É, ele está. Cuide de sua garota. Eu o vejo na Última Refeição, talvez.
Ao sair andando e entrar na recepção, ele sabia que estava sendo um covarde por se esconder atrás de uma relação inexistente. Mas, quando você se corta, você precisa de um Band-Aid.
Cristo, não era de se admirar que Saxton tivesse rompido com ele.
Que romântico...
CAPÍTULO 48
Enquanto Assail passava pelos enormes portões da propriedade na parte abastada de Caldwell, ele se sentia aborrecido. Irritado. E não só porque vinha se drogando com cocaína com regularidade sem se alimentar.
O chalé ficara à esquerda, e ele estacionou o Range Rover de frente, debaixo de uma das janelinhas alegres. Ele preferiria ter se desmaterializado até lá – tão menos complicado. Mas, depois de ter deixado os gêmeos numa boate gótica, o Iron Mask, ele se deparou com a realidade de que, caso não se alimentasse, não seria capaz de continuar em frente.
Ele odiava aquilo. Não que ele se importasse com o custo. O problema era que ele não se sentia atraído pela fêmea – e não apreciava as tentativas dela de modificar a situação.
Abrindo a porta, ele saiu, e o ar frio que o atingiu no rosto lhe deu um chacoalhão, fazendo-o perceber o quão lento estivera.
Naquele mesmo instante, um carro passou pela rua da frente, um tipo de sedã nacional.
E foi quando a portinhola do chalé se abriu.
As presas de Assail formigaram quando a fêmea na soleira foi percebida pelos seus sentidos. Vestida em uma roupa sensual preta, ela estava pronta para ele, o cheiro inebriante da sua excitação marcava o ar, embora não fosse isso o que provocou a sua luxúria. Era a veia dela, nada mais, nada menos...
Assail franziu o cenho e olhou para além do chalé, para a floresta que margeava a propriedade.
Em meio às arvores esqueléticas, as luzes traseiras do carro que acabara de passar ficaram vermelhas. Então, quem quer que estivesse ali, fez uma curva, formando um círculo com os faróis dianteiros – e depois eles se apagaram.
Imediatamente, Assail procurou a pistola.
– Entre. Não estamos sozinhos.
A fêmea guardou as boas-vindas e desapareceu dentro do chalé, fechando a porta com um baque.
Desmaterializar-se na floresta seria a melhor tática, mas claro, ele estava faminto demais para isso.
Abruptamente, o vento mudou de direção e veio a seu encontro, e suas narinas se dilataram.
Assail grunhiu baixinho – e não como um alerta. Mais como um tipo de cumprimento.
Como se um dia ele conseguisse se esquecer daquela combinação específica de feromônios.
Sua ladrazinha invertera as posições, fazendo com ele exatamente aquilo que ele fizera com ela na noite anterior. Há quanto tempo ela estava no seu rastro?, ele se perguntou com uma medida de respeito crescendo em seu peito ao mesmo tempo em que ficava frustrado.
Ele não gostou da ideia de que talvez ela o tivesse visto debaixo da ponte. Conhecendo-a, porém, não tinha como excluir essa possibilidade.
Inspirando profundamente, ele não percebeu nada de significativo. O que significava que ela estava sozinha.
Coletando informações? Para quem?
Assail virou-se de volta para o chalé e sorriu sombriamente. Sem dúvida, uma vez que ele entrasse, ela se aproximaria... e quem era ele para não lhe propiciar um espetáculo?
Ele bateu uma vez, e a fêmea abriu a porta novamente.
– Está tudo bem? – perguntou ela.
Seus olhos percorreram o rosto dela, demorando-se nos cabelos. Eram escuros. Espessos. Parecidos com os de sua ladrazinha.
– Tudo certo. Era somente um humano com problemas no carro.
– Então, não há nada com que se preocupar?
– Absolutamente nada.
Enquanto o alívio abrandava a expressão dela, ele fechava e trancava a porta.
– Estou tão contente que tenha vindo me procurar novamente – disse a fêmea, deixando as duas aberturas de renda do robe de cetim se afastarem.
Esta noite ela vestia uma camisola preta que elevava os seios e apertava a cintura a ponto de ele pensar que poderia envolvê-la com apenas uma mão. O cheiro dela era exagerado: excesso de creme para mãos, para o corpo, xampu, condicionador e perfume marcando seu corpo.
Ele bem que queria que ela não se desse a esse trabalho.
Movendo rapidamente os olhos, Assail verificou a posição das janelas. Naturalmente, nada havia mudado: havia duas estreitas em cada lado da lareira. Três peças de vidro sobre a pia. E o parapeito da bay window à esquerda sobre o qual havia um assento embutido com diversas almofadas e almofadinhas bordadas em ponto cruz.
Sua ladra escolheria a janela à direita da lareira. Ela ficava longe da iluminação da porta de entrada, e sob o abrigo da chaminé.
– Está pronto para mim? – a fêmea ronronou.
Assail enfiou a mão dentro da jaqueta. Os mil dólares em dinheiro vivo estavam dobrados uma vez, as dez notas de cem formando um livrinho fino.
Movendo-se sinuosamente, ele ficou de costas para a bay window e para a lareira. Por algum motivo, não queria que a sua ladra o visse fazendo o pagamento.
O resto do que estava para acontecer, todavia, ele bem queria que ela testemunhasse.
– Aqui está.
Quando a fêmea apanhou o dinheiro, ele desejou que ela não contasse. E ela não o fez.
– Obrigada – ela recuou e colocou as notas num pote de cerâmica vermelha. – Vamos?
– Sim. Vamos.
Assail se aproximou e assumiu o controle, segurando o rosto da fêmea entre as mãos, inclinando a cabeça dela para trás e beijando-a com avidez. Em resposta, ela gemeu, como se o avanço inesperado fosse algo que ela não só acolhia como não ousara esperar.
Ele ficou satisfeito que ela tivesse apreciado. Mas o prazer dela não era o que ele buscava.
Movendo-a, ele a levou até o sofá que estava na parede oposta do chalé, empurrando-a com o corpo, usando sua força para deitá-la com a cabeça na direção da lareira. Enquanto ela se reclinava, abriu os braços para as laterais, fazendo os seios subirem até brigarem com a barreira de cetim que os cobria.
Assail deitou-se por cima dela completamente vestido, ainda de casaco, o joelho separando os dela, uma das mãos descendo para subir a camisola...
– Não, não – disse ele quando ela tentou segurá-lo pelo pescoço. – Quero ver você.
Tolice. Ele queria que ela fosse vista pela janela.
Enquanto ela o obedecia prontamente, ele voltou a beijá-la e a afastar a longa saia do caminho – e no segundo que em que ela foi afastada, a fêmea abriu bem as pernas.
– Entre em mim – disse ela, arqueando-se debaixo dele.
Bem, aquilo não seria possível. Ele não estava excitado.
Mas ninguém precisava saber aquilo.
A fim de parecer fervoroso, ele tirou o casaco dos ombros, e com uma mordida leve das presas, rasgou as alças da camisola, expondo os seios da fêmea à luz da lareira, os mamilos instantaneamente enrijecendo como picos sobre a pele alva.
Assail fez uma pausa, como se embevecido pelo que via. Depois, esticou a língua e abaixou a cabeça.
No último instante, antes que começasse a lamber e a sugar, ele ergueu os olhos, concentrando-se na janela escura da direita, encontrando o olhar fixo da mulher que ele sabia que estava nas sombras, observando-o...
Um golpe de lascívia pura e simples atravessou seu corpo, tomando conta, substituindo seu juízo como motivador das suas ações. A fêmea debaixo dele deixou de ser uma de sua própria espécie que ele comprava por um tempo breve.
Ela se tornou a sua ladra.
E isso mudou tudo. Com um rompante, ele atacou a garganta da fêmea, tomando sua veia, sugando aquilo que ele tanto precisava...
E imaginando, o tempo inteiro, que a mulher humana estava debaixo dele.
Sola arfou...
E se afastou da janela do chalé.
Quando as costas bateram na lateral dura da chaminé de pedra, ela fechou os olhos, seu coração começou a bombear contras as costelas, os pulmões tragando o ar frio.
Atrás de suas pálpebras, tudo o que ela via eram os seios nus expostos diante dele, a cabeça escura descendo, a língua se projetando para fora da boca... e os olhos dele se erguendo para encará-la.
Oh, Jesus, como ele soubera que ela estava ali?
Ah, merda, ela nunca esqueceria a imagem da mulher estendida debaixo dele, o casaco deixado de lado, o corpo dele subindo para se encaixar entre aqueles quadris esbeltos. Ela conseguia imaginar o calor da lareira ao lado deles, e o calor ainda maior surgindo de dentro dele – a sensação da pele contra a pele, da promessa do êxtase.
Não olhe de novo, ela disse a si mesma. Ele sabe que você está aqui...
O grito agudo do orgasmo da mulher vibrou por todo o chalé, perturbando a aparência pacata do lugar.
Sola se inclinou sobre a janela novamente, espiando pelo vidro... mesmo sabendo que não deveria fazer isso.
Ele estava dentro da mulher, a parte baixa do corpo bombeando, o rosto aninhado no pescoço dela, os braços afastados para ancorar o peso da parte de cima do corpo.
Ele não olhou mais para cima. E continuou ocupado por um bom tempo.
Agora era a hora de recuar.
Além disso, será que ela precisava mesmo ver aquilo?
Com uma imprecação, Sola se afastou sorrateiramente dali, passando pelo gramado rasteiro, esquivando-se das árvores baixas sem folhas. Quando chegou ao carro alugado, entrou, trancou as portas e deu a partida.
Fechando os olhos uma vez mais, rememorou toda a cena: a sua aproximação do chalé, da janela, ficando nas sombras lançadas pela chaminé.
Ele do outro lado da sala, a mulher de frente para ele, o corpo gracioso coberto pelo cetim preto, o cabelo escuro que cobria as costas inteiras. Ele amparando o rosto dela e beijando-a, os ombros se curvando ao se inclinar para manter contato com uma expressão profundamente erótica...
E depois ele levou a mulher até o sofá.
Ainda que ficasse mortificada por admitir, Sola sentiu uma pontada de ciúme irracional. Mas isso não foi o pior: seu próprio corpo reagira, seu sexo florescendo entre as pernas como se a sua boca tivesse sido beijada, a sua cintura fosse aquela segurada por ele, seus seios comprimidos contra o peito dele. E essa reação só se intensificara quando ele posicionara a mulher no sofá, o rosto dele marcado por uma avidez sombria, os olhos cintilando como se debaixo dele houvesse uma refeição a ser degustada.
Observar era errado. Assistir era errado.
Mas mesmo a ameaça à sua segurança pessoal – e, discutivelmente, sua saúde mental – não bastaram para afastá-la daquele vidro. Ainda mais quando ele recuara para tirar o casaco dos ombros. Fora impossível não visualizá-lo nu, vendo o peito largo exposto na luz da lareira, imaginando como seu abdômen se curvaria sob a pele... E depois, pareceu que ele a tivesse mordido – mordido, pelo amor de Deus –, arrancando as alças finas do corpete da camisola.
E bem quando os malditos seios perfeitos da mulher ficaram expostos... ele teve que olhar para ela.
Sem nenhum tipo de aviso, aqueles olhos cintilantes e predatórios se elevaram e cravaram diretamente nela, um sorriso furtivo surgindo no canto da boca.
Como se o show fosse para ela.
– Merda. Merda.
Uma coisa estava clara: se o que ele quis foi lhe ensinar uma lição sobre espionagem, era difícil pensar num modo melhor – além de fazê-la comer a ponta do cano de uma .40.
Sola saiu do acostamento e tomou a estrada. Enquanto o Ford Taurus demorou dezesseis quilômetros para chegar ao limite de setenta quilômetros por hora, ela desejou estar em seu Audi: com o sangue ainda correndo rápido nas veias, ela precisava de uma forma exterior de expressar o rugido preso em seu corpo.
Algum tipo de vazão.
Como... sexo, por exemplo.
E não consigo mesma.
CAPÍTULO 49
No que se referia aos padrões dos Grandes Campos de Andirondack, a casa de Rehv tinha tudo: uma enorme mansão rústica ladeada por cedros e recoberta por varandas. Um sem-número de construções externas, inclusive chalés para hóspedes. Vista para o lago. Muitos quartos.
Depois que Trez e iAm se materializaram no jardim lateral, eles deram a volta pela neve até a entrada dos fundos pela cozinha. Mesmo no inverno, o lugar emanava boas vibrações, com aquele brilho cálido atravessando os vidros cortados em forma de diamante. Mas nem tudo era do Mundo do Faz de Conta: os abastados vitorianos que construíram aquele complexo como um escape ao calor e das cidades industrializadas durante os verões muito provavelmente não o equiparam com detectores de movimento a laser, travas de última geração nas portas e janelas, e não uma, mas várias placas-mães diferentes para controlar um sistema de alarme multiface e completamente integrado.
Uau.
A impressão digital de Trez no painel discretamente colocado à esquerda da porta permitiu a entrada ao interior da casa – para uma cozinha de tamanho industrial que estava guarnecida com equipamentos de aço inoxidável no mesmo nível dos do Sal’s.
Algo estava assando no forno imenso. Pelo cheiro, parecia pão.
– Estou com fome – observou Trez ao fechar a porta. O mecanismo de tranca fechou a porta por si só, mas ele verificou se ela estava trancada mesmo assim por força do hábito.
Ao longe, alguém passava o aspirador – provavelmente uma Escolhida. Desde que Phury assumira o posto de Primale e basicamente libertara o grupo enclausurado de fêmeas do Outro Lado, Rehv as deixava ficar nos Grandes Campos. Fazia sentido. Muita privacidade, especialmente fora da alta temporada, além de que o distanciamento com a cidade propiciava uma transição suave da uniformidade plácida do santuário para a natureza frenética, se é que Trez entendera corretamente, e por vezes traumática da vida na Terra.
Fazia tempo que ele não ia até a casa – não desde que as Escolhidas foram morar ali, para falar a verdade. Pensando bem, quando Rehv explodira o Zero Sum e pusera um fim ao seu papel de rei das drogas, aquela dívida entre eles perdera um pouco da sua força de retribuição.
Além disso, agora que o cara não tinha mais de fazer entregas de garotas e sexo para a princesa, não havia muitos motivos para ir para o norte.
Ao que tudo levava a crer, porém, aquilo mudara.
– Ei, Rehv, você está aí? – Trez chamou com a voz ecoando.
Por mais que seu estômago protestasse, ele e o irmão saíram para o átrio principal. Objetos vitorianos estavam por toda a parte, desde os tapetes orientais multicoloridos no chão até os bancos cobertos de tapeçaria, incluindo as cabeças de bisão, de cervo, de alce e de lince empalhadas e montadas ao redor da lareira.
– Rehv! – ele chamou novamente.
Caramba, aquele abajur de guaxinim sempre o aterrorizara. Assim como a coruja empalhada com óculos de sol.
– Ele já vai descer.
Trez se virou para a voz feminina.
E, naquele instante, o curso de sua vida mudava para sempre.
A escada que vinha do segundo andar era reta, os degraus baixos e a grade simples emergindo de cima sem nenhum artifício arquitetônico.
A fêmea em seu manto branco parada à base a transformava na escadaria do paraíso. Ela era alta e magra, mas as curvas estavam presentes nos lugares certos; o vestido solto não conseguia esconder o busto alto e a graciosidade das curvas dos quadris. A pele era lisa e da cor de café com leite, o cabelo escuro estava amarrado num coque no alto da cabeça. Os olhos eram claros emoldurados por cílios espessos. Os lábios eram cheios e rosados.
Ele quis beijá-los.
Especialmente quando eles se moveram, enunciando alguma coisa que ela dizia com precisão intoxicante...
O cotovelo pontudo de iAm o atingiu nas costelas e o fez dar um pulo.
– Ai! Mas que mer... digo, que droga. Cacete, quero dizer, caramba.
Belo modo de parecer calmo e controlado, cretino.
– Ela perguntou se queremos comer – iAm murmurou. – Eu agradeci, mas recusei. Agora é a sua vez.
Ah, como ele queria comer uma coisa... Queria cair de joelhos aos pés dela e se enfiar debaixo da...
Trez fechou os olhos e se sentiu como um absoluto idiota.
– Não, estou bem.
– Pensei que você tivesse dito que estava com fome.
Trez arregalou os olhos e encarou o irmão. O cara estava tentando fazer com que ele fizesse papel de idiota?
O brilho no olhar de iAm sugeria que sim.
– Não. Estou bem – ele resmungou. Entrelinhas: Não force a barra, babaca.
– Eu estava indo verificar o meu pão.
Os olhos de Trez se fecharam novamente, a voz da Escolhida tilintando em seus ouvidos, o som tanto elevando a sua pressão sanguínea quanto o acalmando ao mesmo tempo.
– Sabe – ele se ouviu dizer –, talvez eu vá dar uma olhada para ver se arranjo alguma coisa para comer.
Ela sorriu para ele.
– Siga-me. Estou certa de que posso encontrar algo do seu gosto.
Enquanto ela seguia para a porta pela qual eles tinham acabado de sair, Trez piscou como o idiota que era.
Fazia muito, muito tempo desde que uma fêmea lhe dizia algo sem um sentido duplo... mas até onde ele podia afirmar, aquelas palavras, que discutivelmente podiam ser consideradas uma cantada – pelo menos para o seu filtro de luxúria – não carregavam nenhuma promessa de um boquete ou de sexo carnal. Nem mesmo de uma simples atração.
Naturalmente, isso fez com que ele a desejasse ainda mais.
Seus pés partiram naquela direção, o corpo seguindo como um cão seguiria seu dono, sem um segundo pensamento a não ser ir atrás do caminho escolhido por ela para ele...
iAm o agarrou pelo braço e o puxou de volta.
– Nem pense nisso.
O primeiro impulso de Trez foi se soltar, mesmo se isso significasse deixar o braço para trás nas mãos do irmão.
– Não sei do que está falando...
– Não me obrigue a segurar a sua ereção para provar o que estou dizendo – iAm sibilou.
Entorpecido, Trez olhou para baixo. Ótimo. Olha ali.
– Eu não vou... – fodê-la era o que lhe vinha à mente, mas, por Deus, ele não podia usar essa palavra ao redor daquela fêmea, mesmo que hipoteticamente. – Sabe, fazer nada.
– Você espera mesmo que eu acredite nisso?
Os olhos de Trez partiram para a porta pela qual ela desaparecera. Merda. Ele não tinha credibilidade nenhuma no quesito abstinência.
– Ela não está disponível para você, veja se me entende – iAm disse, rangendo os dentes. – Isso não seria justo para alguém como ela; mais especificamente, se você fizer isso, Phury vai atrás de você com uma adaga negra. A dele, não a sua.
Por uma fração de segundo, Trez ficou indignado com isso – não porque seu lado feminista interior se opusesse ao fato de as fêmeas serem tratadas como propriedade, ainda que isso fosse errado. Não, era porque...
Minha.
De algum lugar em seu cerne, Trez arrancou seu subconsciente do precipício no qual, inesperadamente, ele se via caindo.
O rei sympatho descia pela mesma escada que a Escolhida utilizara, a bengala equilibrando-o, o casaco de marta preto mantendo seu corpo aquecido.
Enquanto iAm dizia algo e Rehv respondia, Trez voltou a olhar para a porta da cozinha. Ah, o que será que ela estava fazendo ali... Puxa... Provavelmente se inclinando para espiar o pão...
Um grunhido sutil emanou de sua garganta.
– O que disse? – Rehv perguntou com o olhar se estreitando.
Outra cotovela em suas costelas trouxe Trez de volta à realidade.
– Desculpe. Indigestão. Como vai?
Rehv ergueu uma sobrancelha, depois deu de ombros.
– Preciso da ajuda de vocês.
– Pode falar – respondeu Trez com sinceridade.
– Haverá uma reunião do Conselho amanhã à noite. Wrath estará presente. A Irmandade lhe dará proteção, mas quero que vocês dois também estejam presentes.
Trez se retraiu. O Conselho se reunia com regularidade antes da onda de ataques de alguns anos atrás, e Rehv jamais precisou de reforços.
– O que está acontecendo?
– Wrath foi alvejado no outono passado.
Mas. Que. Merda.
Trez cerrou o maxilar.
– Quem foi o responsável? – afinal, ele gostava do Rei.
– O Bando de Bastardos. Vocês não o conhecem, mas podem encontrá-los amanhã à noite... se concordarem em ir.
– Claro que iremos – quando iAm assentiu em concordância, Trez cruzou os braços sobre o peito. – Onde?
– Estou organizando tudo numa propriedade em Caldwell à meia-noite. É uma das poucas que não foi infiltrada pela Sociedade Redutora... De qualquer forma, a família foi quase que completamente dizimada, pois visitavam um parente na cidade quando o ataque ocorreu – Rehv prosseguiu e se sentou no sofá de tapeçaria, girando a bengala no chão entre as pernas. – Deixe-me lhes dizer como vai ser. Wrath agora está completamente cego, mas a glymera não sabe disso. Quero que ele esteja sentado na sala principal quando todos aqueles aristocratas chegarem a fim de que não o vejam se apoiando em ninguém para encontrar seu posto. Então...
Enquanto Rehv continuava a explicar o plano, Trez se acomodou diante da lareira e assentiu nos momentos certos.
Em sua mente, porém, ele estava na cozinha, com aquela fêmea...
Qual seria o nome dela?
E mais importante do que isso...
Quando voltaria a vê-la?
CAPÍTULO 50
Lá embaixo, na sala de exames da clínica, Qhuinn se sentia como se estivesse flutuando bem alto. E não do mesmo modo como se sentiu antes do impacto do maldito Cessna com um Irmão ferido nos fundos.
– Desculpe, pode repetir?
A doutora Jane sorriu ao trazer a mesinha móvel para junto da cama. De modo vago, o que havia em cima ficou registrado, mas ele estava mais concentrado no que poderia sair da boca da médica.
– Vocês ainda estão grávidos. Os níveis de hormônios dela estão se duplicando exatamente como o esperado, a pressão está perfeita, os batimentos cardíacos também. E nada mais de sangramentos, certo?
Quando a médica olhou para Layla, a Escolhida assentiu com a cabeça, sua expressão tão assustada quanto ele por certo se sentia.
– Nenhum.
Qhuinn deu alguns passos, passou a mão pelos cabelos, o cérebro dando um nó.
– Não entendo isso... Quero dizer, é o que eu quero... o que nós queremos... mas não entendo como ela...
Depois de descer de montanha-russa para o inferno, era completamente inesperado chegar a uma elevação súbita de volta à Terra.
A doutora Jane apenas balançou a cabeça.
– Isso provavelmente não será de nenhuma ajuda, mas Ehlena também nunca viu nada parecido. Portanto, entendo a confusão de vocês, e, mais do que isso, entendo mais do que podem imaginar como a esperança pode ser traiçoeira. É difícil se entregar ao otimismo depois do que vocês passaram.
Caramba, a shellan de V. não era nenhuma idiota.
Qhuinn se concentrou em Layla. A Escolhida estava vestindo um robe branco, não do tipo que ela usava como membro da seita secreta das fêmeas da Virgem Escriba. Era mais um roupão de todo dia e, por baixo, uma camisola hospitalar com coraçõezinhos rosa e vermelhos sobre um fundo branco. E aquela mesa de rodinhas? Ali estava um pacote de bolachas de água e sal e seis latas de refrigerante.
Que espécie de remédios de balcão de farmácia, hein?
A doutora Jane abriu o pacote.
– Sei que a última coisa em que está pensando é comida – ela estendeu um dos quadrados salgados. – Mas se comer isto e tomar um pouco de refrigerante, talvez as coisas se acomodem melhor por aí.
E sabe que adiantou? Layla acabou comendo metade do pacote e tomou duas latinhas.
– Ajuda mesmo, hein? – Qhuinn murmurou quando a Escolhida se recostou com um suspiro de alívio.
– Você não faz ideia – Layla pousou a mão no ventre. – O que for preciso, eu faço, eu como, eu bebo.
– A náusea é tão ruim assim?
– Não se trata de mim. Não me importo se vomitar por dezoito meses, contanto que o bebê esteja bem. Só temo que se eu vomitar, eu possa... perder... sabe?
Ok, quem disse que as fêmeas eram o sexo frágil não sabia o que estava falando.
Ele olhou para a doutora Jane.
– E o que fazemos agora?
A médica deu de ombros.
– Meu conselho? Confie nos sintomas e nos resultados dos testes, ou vão acabar enlouquecendo. O corpo de Layla está, como sempre esteve, no controle disso tudo. Se neste instante não há nenhum indício de um aborto, mas, na verdade, só motivos para acreditar que a gestação se concluirá com um resultado positivo? Respire fundo e siga em frente, noite após noite. Se ficarem pensando muito no futuro ou no que aconteceu nos últimos dias? Não vão conseguir chegar ao fim disto inteiros.
Verdade, Qhuinn pensou.
O telefone da médica tocou.
– Espere um segundo... Puxa... Tenho que ir dar uma olhada naquele doggen que cortou a mão ontem à noite. Layla, no que me diz respeito, não há motivos médicos para que você fique aqui. Contudo, não quero que saia do complexo nas próximas noites. Vamos dar tempo ao tempo, ok?
– Sim, claro.
A doutora Jane saiu pouco depois, e Qhuinn se sentiu perdido. Ele queria ajudar Layla a voltar para casa, mas ela não estava aleijada, pelo amor de Deus. Ainda assim, sentia vontade de carregá-la pelo resto da bendita gestação.
Ele se recostou no armário de aço inoxidável.
– Eu me pego querendo perguntar como você está a cada dois segundos.
Layla deu uma risada de leve.
– Então somos dois.
– Quer voltar para casa?
– Sabe... não quero, não. Eu me sinto... – ela olhou ao redor – mais segura aqui, para ser bem franca.
– Faz sentido para mim. Precisa de alguma coisa?
Ela indicou a bandeja com itens contra enjoo.
– Contanto que eu tenha isto, estarei bem. E você deve se sentir livre para sair e lutar.
Qhuinn franziu o cenho.
– Pensei em ficar...
– E fazer o quê? Veja bem, não o estou expulsando, mas tenho a sensação de que só vou ficar aqui de molho sem fazer nada. Se alguma coisa acontecer, eu ligo e você pode voltar direto para casa.
Qhuinn pensou para onde a Irmandade e os lutadores se dirigiriam aquela noite: a reunião do Conselho.
Se fosse apenas uma noite normal no campo de batalha, ele provavelmente ficaria ali. Mas com Wrath exposto ao mundo, encontrando-se com aqueles idiotas da glymera?
– Ok – disse devagar. – Vou estar sempre com o telefone e deixarei claro para os outros que se você telefonar, sairei de lá.
Layla tomou um gole de refrigerante e depois ficou olhando para o copo, como se estivesse observando as bolhas emergindo ao redor dos cubos de gelo.
Ele pensou na noite em que estiveram no consultório de Havers – descontrolados, aterrorizados, pesarosos.
Ainda podiam voltar a se sentir assim, ele lembrou. Era cedo demais para se apegar.
E mesmo assim ele não tinha como evitar. Parado no meio da sala coberta de azulejos, com o cheiro de desinfetante Lysol no nariz e a beirada da bancada cutucando-o nas nádegas... ele percebeu que naquele instante começava a amar seu filho.
Ali, naquele momento.
Assim como um macho vinculado a uma fêmea, um pai também se sentia unido ao filho – e, sendo assim, seu coração se abriu e recebeu tudo aquilo de braços abertos: o comprometimento que acompanhava a tentativa de ter um filho, o terror de perdê-lo que nunca se dissiparia, a alegria de existir algo seu na face da Terra depois que você se fosse, a impaciência por conhecê-lo pessoalmente, o desejo desesperado de segurá-lo em seus braços e olhar em seus olhos e lhe dar todo o seu amor.
– Tudo bem se... se eu tocar na sua barriga? – ele perguntou baixinho.
– Claro! Você não tem que pedir – Layla se recostou com um sorriso. – O que está aqui dentro é metade seu, sabia?
Qhuinn esfregou as mãos, nervoso, ao se aproximar da mesa. Obviamente ele tocara em Layla durante o cio e, depois, de maneira obsequiosa quando a situação se fez necessária.
Ele jamais pensara em tocar em seu bebê.
Qhuinn observou de longe sua mão de adaga se esticar. Jesus, as pontas dos dedos estavam trêmulas.
Mas se estabilizaram no momento em que fizeram contato.
– Estou bem aqui – disse ele. – Papai está aqui. Não vou a parte alguma. Vou só esperar até que você esteja pronto para vir ao mundo, e depois a sua mãe e eu vamos cuidar de você. Por isso, aguente firme, estamos combinados? Faça o que for preciso aí, e nós esperaremos o tempo que for preciso.
Com a mão livre, segurou a de Layla e a colocou sobre a sua.
– A sua família está bem aqui. Esperando por você... e nós te amamos.
Era uma tolice falar com o que, sem dúvida, era apenas um montinho de células. Mas ele não teve como evitar. As palavras, as ações... eram, de súbito, todas suas, e mesmo assim vinham de um lugar que lhe era desconhecido.
Contudo, parecia certo.
Parecia... com o que um pai deveria fazer.
Mão esquerda, .40. Confere.
Direita, .40. Confere.
Munição extra no coldre sobre o peito. Confere.
Adagas um e dois no coldre do peito. Confere.
Jaqueta de couro...
Uma batida na porta do quarto de Blay e ele se inclinou para fora do closet.
– Pode entrar.
Quando Saxton entrou, ele ajeitou a jaqueta nos ombros e se virou.
– Oi. Tudo bem?
Alguma coisa estava acontecendo.
Os olhos do macho deram um giro de 360 graus no “guarda-roupa de trabalho” de Blay, como o chamavam. O desconforto fez com que as sobrancelhas de Saxton se unissem no alto; pensando bem, ele nunca se sentira completamente à vontade com armas.
– Vai para o campo de batalha, parece-me... – o macho murmurou.
– Na verdade, para uma reunião do Conselho.
– Não sabia que isso requeria tantas armas como acessórios.
– Nova era.
– Sim, de fato.
Uma pausa longa.
– Como você está?
Os olhos de Saxton percorreram o quarto.
– Eu queria lhe contar pessoalmente.
Ah, droga. E agora, o que seria?
Blay engoliu em seco.
– O quê?
– Vou sair da casa por um tempo... em férias, na verdade – ele mostrou a palma da mão para deter qualquer discussão. – Não, não é algo permanente. Já organizei tudo com Wrath, e não há nada que eu precise fazer nos próximos dias. Naturalmente, se ele precisar, volto imediatamente. Vou ficar com um velho amigo. Preciso mesmo de um pouco de descanso e relaxamento... e, antes que se preocupe, juro que vou voltar, e isto, honestamente, não tem nada a ver com a gente. Faz meses que trabalho sem folga e só quero ficar livre de compromissos, isso faz sentido?
Blay respirou fundo.
– Sim, faz. Onde você... – ele se deteve ao se lembrar de que aquilo não era mais da sua conta. – Se precisar de alguma coisa, é só avisar, certo?
– Prometo.
Num impulso, Blay se aproximou e passou os braços ao redor do ex-amante, a conexão platônica tão natural quanto a antiga apaixonada o fora. Abraçado ao macho, virou o rosto para dentro.
– Obrigado – disse Blay. – Por vir me contar...
Naquele instante, alguém passou no corredor, as passadas hesitando.
Era Qhuinn; Blay soube pelo cheiro antes mesmo de a figura alta e imponente ser registrada visualmente. E na breve hesitação antes de o cara continuar a andar, seus olhos se encontraram por sobre os ombros de Saxton.
O rosto de Qhuinn se fechou numa máscara instantaneamente, as feições congelando, não revelando nada.
E logo o lutador se foi, suas pernas longas afastando-o do batente da porta.
Blay deu um passo para trás e se forçou a se concentrar na despedida.
– Quando vai voltar?
– Em alguns dias, no máximo uma semana.
– Ok.
Saxton olhou de relance pelo quarto novamente, e quando o fez, ficou claro que ele estava se lembrando.
– Fique bem e se cuide. Não tente bancar o herói.
O primeiro pensamento de Blay foi... bem, já que Qhuinn normalmente era o primeiro a fazer isso, era bem improvável que ele tivesse de vestir sua roupa de Super-Homem.
– Prometo.
Quando Saxton saiu, Blay ficou olhando para o vazio. Não enxergou o que havia diante dele, nem se lembrou do que Saxton lhe dissera. Em vez disso, sua mente foi para o quarto ao lado, para Qhuinn e para as coisas de Qhuinn... e para as lembranças daquela sua sessão com Qhuinn.
Merda.
Olhando para o relógio, ele colocou o celular no bolso da jaqueta e saiu. Ao se apressar pela escada, as vozes do vestíbulo ecoaram, num sinal de que a Irmandade já se reunira e estava esperando para o sinal de partida.
Como esperado, todos estavam lá. Z. e Phury. V. e Butch. Rhage, Tohr e John Matthew.
Enquanto descia, viu-se desejando que Qhuinn os acompanhasse, mas, certamente, o macho ficaria em casa, devido à situação de Layla.
Onde estava Payne?, ele se perguntou ao parar ao lado de John Matthew.
Tohr acenou na direção de Blay.
– Ok, só estamos esperando mais um e, em seguida, podemos nos encaminhar. A primeira leva vai até o local do encontro. Quando o “ok” for dado, eu me desmaterializarei com Wrath para a casa com o apoio e...
Lassiter derrapou na porta da sala de bilhar, o anjo caído brilhando desde os cabelos loiros e negros e olhos brancos até os coturnos. Pensando bem, talvez a iluminação não fosse de sua natureza, mas sim de todo aquele ouro que ele insistia em usar.
Ele parecia uma árvore de joias viva.
– Estou aqui. Onde está o meu chapéu de motorista?
– Tome, use o meu – ofereceu Butch, mostrando e lançando um boné com um B. Sox bordado. – Isso vai ajudar com esses seus cabelos.
O anjo pegou o objeto no ar e olhou fixamente para o S vermelho.
– Desculpe, mas não posso.
– Não me diga que é fã dos Yankees? – V. disse de modo arrastado. – Terei que matar você e, francamente, hoje precisamos de todos os reforços de que dispomos.
Lassiter devolveu o boné. Assobiou. Olhou de lado parecendo casual.
– Está falando a verdade? – disse Butch. Como se o cara tivesse se voluntariado a uma lobotomia. Ou a amputação de um membro. Ou a uma pedicure.
– Nem fodendo – ecoou V. – Quando e onde você se tornou amigo do inimigo...
O anjo ergueu as mãos.
– Não é culpa minha se vocês não são de nada...
Tohr teve, de verdade, de se colocar diante de Lassiter, como se estivesse preocupado que algo mais do que simples insultos verbais pudessem acontecer. E o triste era que ele tinha razão em se preocupar. Com exceção de suas shellans, Butch e V. amavam os Sox acima de qualquer outra coisa... inclusive a sanidade.
– Ok, ok – interveio Tohr. – Temos coisas mais importantes com que nos preocupar...
– Uma hora ele vai ter que dormir – Butch murmurou para seu colega.
– Isso aí, olha por onde anda, anjo – V. zombou. – Não gostamos do seu tipo.
Lassiter deu de ombros, como se os Irmãos não passassem de cachorrinhos ganindo ao redor dos seus calcanhares.
– Tem alguém falando comigo? Ou será apenas o som dos perdedores...
Muita gritaria àquela altura.
– Duas palavras, queridos – Lassiter espicaçou. – Johnny. Damon. Ah, espere, Kevin. Youkilis. Ou Wade. Boggs. Roger. Clemens. Será que só a comida é ruim em Boston? Ou também o jogo?
Butch avançou nessa hora, obviamente preparado para acender o cara como a uma árvore de Natal...
– Que merda está acontecendo aqui?!
A voz gritando do alto da escada abafou a disputa Sox versus Yankees.
Enquanto Tohr afastava o tira, todos acompanharam com os olhos a descida do Rei com sua rainha. A presença de Wrath fez com que todos ficassem sérios, profissionais. Até mesmo Lassiter.
Bem, exceto Butch. Mas, pensando bem, ele se mostrava em “alerta máximo”, como ele mesmo dizia, nas últimas 24 horas e tinha bons motivos para estar rabugento: sua shellan participaria da reunião do Conselho. O que, de acordo com o modo de pensar do Irmão, era como ter dois Wraths ali. A questão era que Marissa era a mais velha de sua linhagem, e como Rehv exigia quorum completo, ela tinha de estar presente.
Pobre desgraçado.
Na calmaria que se seguiu, a adaga de Blay começou a formigar, e ele sentiu uma necessidade quase irresistível de pousar a mão em uma arma. Tudo o que ele conseguia pensar era que aquilo era quase idêntico ao prelúdio ao atentado contra Wrath no outono anterior – naquela noite, eles todos se reuniram ali, e Wrath descera com Beth... e uma bala acabara sendo disparada por um rifle, terminando sua trajetória na garganta do Rei.
Aparentemente, ele não era o único a pensar naquilo. Um determinado número de mãos partiu para os coldres em alerta.
– Ah, que bom, aqui está você – disse Tohr.
Blay se voltou com um franzido e teve que engolir a sua reação. Não era Payne que se juntava a eles; mas Qhuinn. E, caramba, o macho parecia mais do que pronto a dar umas pancadas por aí, com os olhos sérios, o corpo tenso como a corda de um arco em seu couro negro.
Por um instante, uma fissura de percepção pura e sexual atravessou Blay.
A ponto de uma fantasia totalmente inapropriada lhe ocorrer: ou seja, ele e Qhuinn se enfiando no depósito para uma rapidinha de roupa e tudo.
Com um gemido, ele voltou a se concentrar no Rei. O que era o mais apropriado. O importante era Wrath, e não a sua maldita vida amorosa...
Uma sensação de desconforto substituiu o tesão.
Será que ele e Qhuinn voltariam a se encontrar algum dia?
Deus, que pensamento estranho. O sexo não era uma boa ideia emocionalmente. De fato, era uma ideia extremamente ruim.
Mas ele queria mais. E que Deus o ajudasse.
– Ok, prontos – anunciou Tohr. – Todos sabem para onde vamos?
Foi um alívio desconcertante ter a natureza séria da missão diante dele para clarear seus pensamentos de tudo que não fosse o comprometimento em manter a vida de Wrath a salvo... mesmo que à custa da sua.
Só que isso era melhor do que se preocupar com a sua situação com Qhuinn.
Não havia dúvidas.
CAPÍTULO 51
Qhuinn se materializou num terraço coberto de neve, e quando todos da Irmandade, exceto Butch, materializaram-se ao seu lado, ele não se surpreendeu com toda aquela pompa. A propriedade em que o Conselho se reuniria estava dentro dos padrões da glymera: um enorme terreno que fora limpo e ajardinado. Um pequeno chalé próximo à entrada que mais parecia pertencer a um cartão postal de Cotswalds. Uma enorme mansão que, neste caso, era feita de pedras com cornijas de dentículos, venezianas lustrosas e telhado de ardósia.
– Vamos em frente – disse V., seguindo para uma porta lateral.
No instante em que ele bateu, a porta se abriu, como se, junto a todo o resto, aquilo tivesse sido pré-arranjado. Mas, hum... aquela era a anfitriã? A fêmea parada na entrada trajava um vestido longo com decote até o umbigo, e ela tinha uma gargantilha de diamantes do tamanho da coleira de um Doberman. O perfume era tão intenso que foi como um golpe nas narinas – apesar de ele ainda estar do lado de fora.
– Estou pronta para vocês – disse ela num tom baixo e intimista.
Qhuinn franziu o cenho, pensando que quem quer que fosse o designer fazia a moça ali parecer uma prostituta. Mas isso não era problema seu.
Enquanto ele caminhava em fila atrás dos outros, o cômodo em que entraram parecia um tipo de conservatório, os vasos imensos e o enorme piano de cauda sugeriam que muitas noites com convidados começavam com um cantor de ópera berrando no canto.
Credo.
– Por aqui – instruiu a fêmea com um floreio de uma mão que reluzia.
Em seu rastro, aquele perfume – talvez fossem sprays de diversas fontes, como camadas de todo tipo de tranqueira? – quase coloria o ar atrás dela, e os quadris trabalhavam duplamente a cada passada, como se ela tivesse esperança de que eles olhassem para o seu traseiro, desejando ter um pedaço daquilo.
Nada disso. Assim como os outros, ele olhava cada canto e refúgio, pronto para atirar e depois fazer perguntas para o corpo estirado no chão.
Só foi quando chegaram ao átrio principal, com todas as pinturas a óleo iluminadas pelo teto, e seus tapetes orientais escuros e...
Puta merda, aquele espelho era exatamente igual ao que estivera pendurado na casa dos seus pais. Na mesma posição, do teto ao chão, a mesma moldura rebuscada em ouro.
Sim, aquilo lhe dava arrepios. Dos grandes.
A casa inteira o lembrava da mansão em que ele crescera, tudo em seu devido lugar, a decoração muito longe da classe média, mas nem um pouco afetada ao estilo de Trump. Não, aquela porcaria toda era uma sutil mistura da fortuna antiga com o senso clássico de estilo que só se tinha com o nascimento, não era algo ensinado.
Seus olhos procuraram Blay.
O cara estava fazendo seu trabalho, sério, verificando o lugar.
O pai e a mãe de Blay não eram ricos daquele modo. Mas a casa deles sempre fora mais confortável de tantas maneiras. Mais quente – e isso não tinha nada a ver com o sistema de aquecimento central.
Como estariam os pais de Blay?, ele se perguntou abruptamente. Passara quase mais tempo debaixo do teto deles, em vez de sob o seu. A última vez em que os vira... puxa, fazia tanto tempo. Talvez na noite dos ataques, quando o pai de Blay passou de senhor Contador de Terno para um assassino impiedoso. Depois daquilo, o casal se mudara para a casa segura, e, em seguida, ele e Blay tinham se afastado.
Desejou que eles estivessem bem...
A imagem de Blay e Saxton de pé, peito contra peito, quadril contra quadril no quarto de Blay invadiu seu cérebro.
Puta que... o pariu... como aquilo doeu.
Ah, cacete, o carma era bom em seu trabalho...
Voltando à realidade, ele seguiu as pélvis móveis e a Irmandade até a sala de jantar gigante que fora arranjada segundo as especificações de Tohr: todas as cortinas foram puxadas ante as janelas que davam para o jardim dos fundos, e a porta em vaivém que ele deduzia dar para a cozinha fora obstruída por um aparador antigo e pesado. A mesa que devia pertencer ao centro da sala fora retirada, e 25 cadeiras de mogno combinando com assento em seda vermelha estavam perfiladas diante da lareira.
Wrath ficaria de frente à cornija da lareira para fazer seu discurso, e Qhuinn foi até lá para verificar se a chaminé estava fechada. Estava.
Em ambos os lados da lareira, havia duas portas que davam para uma antiga sala de recepção. Ele, John Matthew e Rhage vasculharam a sala, depois a fecharam, em seguida ele se postou diante da entrada à esquerda, com John à direita.
– Está tudo do seu agrado? – perguntou a fêmea.
Rehv foi até a lareira e se virou de frente para as cadeiras vazias.
– Onde está o seu hellren?
– No andar de cima.
– Traga-o para cá. Agora. De outro modo, se ele andar pela casa, é possível que acabe com um tiro no peito.
Os olhos da fêmea se arregalaram, e dessa vez, quando ela andou, não houve exagero nos quadris, nem o “olhem para mim” com uma jogada de cabelos por cima do ombro. Obviamente a mensagem de que não estavam para brincadeira fora recebida, e ela queria que, quem quer que fosse seu parceiro, permanecesse vivo naquela noite.
Na espera que se seguiu, Qhuinn manteve a arma empunhada, os olhos na sala, os ouvidos aguçados para o caso de alguma coisa, qualquer coisa parecer estranha.
Nada.
O que sugeria que seus anfitriões tinham seguido as ordens...
Uma sensação de formigamento estranha subiu pela sua espinha, fazendo-o franzir o cenho e ficar absolutamente alerta. Do outro lado da lareira, John pareceu captar o mesmo sinal, levantando a arma e estreitando o olhar.
Em seguida, uma névoa fria atingiu os tornozelos de Qhuinn.
– Pedi que dois convidados especiais se juntassem a nós – anunciou Rehv.
Nesse instante, duas colunas de fumaça subiram do chão, as moléculas dispersas voltando às formas... que Qhuinn reconheceu instantaneamente.
Ainda bem.
Com Payne fora de combate por sabe-se lá qual motivo, ele se sentira como se estivessem com pouca retaguarda, mesmo reconhecendo toda a habilidade da Irmandade. No entanto, quando iAm e Trez surgiram, ele suspirou de alívio.
Aquele sim era um par de assassinos impiedosos, do tipo que você não gostaria de ter do lado oposto brigando com você. A boa notícia era que fazia tempo que Rehv se aliara aos Sombras, e a ligação de Rehv com a Irmandade e o Rei significava que os irmãos obviamente estavam dispostos a ajudar na retaguarda.
Qhuinn deu um passo à frente para cumprimentá-los, como os outros, juntando as palmas, uma puxada rápida, um tapinha nas costas.
– Ei, cara...
– Como vai?
– Tudo bom?
Depois que todos os ois e olás foram distribuídos, Trez olhou ao redor.
– Certo, então vamos ficar fora de vista a menos que vocês precisem de nós. Mas fiquem tranquilos, estamos aqui.
Depois de uma rodada de agradecimentos da parte dos Irmãos, Rehv trocou algumas palavras em particular com os Sombras... e depois os dois sumiram, desaparecendo de sua forma física, descendo pelas tábuas do piso; a brisa gélida era apenas uma garantia de segurança.
Bem na hora. Menos de um minuto depois, a anfitriã voltou com um ancião pequeno ao seu lado. À medida que os vampiros envelheciam, com um rápido declínio de sua força física mais para o fim da vida, Qhuinn estimou que restava àquele cara mais uns cinco anos. Uns dez, no máximo.
Fizeram-se as apresentações, mas Qhuinn não se importava com aquela baboseira. Estava mais preocupado em saber se o resto da casa estava desocupado.
– Há algum doggen aqui? – Rehv perguntou à fêmea enquanto ela acomodava o esquisitão numa das cadeiras.
– Como foi pedido, todos foram dispensados a partir de agora.
V. acenou para Phury e Z.
– Nós três vamos vasculhar a propriedade para ver se está tudo bem.
Mesmo que Blay confiasse em si, na Irmandade, em John Matthew e em Qhuinn, ele se sentiu melhor sabendo que os Sombras estavam por perto. Trez e iAm não só eram excepcionais lutadores e inerentemente perigosos para qualquer um a quem declarassem guerra; eles tinham uma vantagem admirável sobre a Irmandade.
Invisibilidade.
Ele não sabia se eles podiam, de fato, lutar dessa maneira, mas isso pouco importava. Qualquer um que ali entrasse – como digamos, o maldito Bando de Bastardos – julgaria a situação apenas contando com os presentes visíveis no recinto.
Não com aqueles dois irmãos.
Portanto, isso era muito bom.
Naquele instante, V. voltou com Phury e Z. de sua patrulha – e Butch estava com eles, indicando que o Irmão acabara de chegar de carro.
– Tudo certo.
Houve uma breve pausa. Em, seguida, como pré-arranjado, Tohr foi para a porta da frente e abriu caminho para Wrath.
Hora do espetáculo, pensou Blay, com os olhos disparando na direção de Qhuinn antes de voltar a se concentrar.
Tohr e o Rei entraram na sala de jantar lado a lado, as cabeças unidas como se estivessem envolvidos numa conversa séria sobre algo importante, a mão do Irmão sobre o antebraço de Wrath como se o cara estivesse tentando enfatizar algum ponto importante.
Tudo aquilo, porém, não passava de uma encenação para os anfitriões.
Tohr, na verdade, estava conduzindo Wrath pelo braço, levando-o até a lareira, posicionando-o bem no meio da cornija. E a conversa? Era sobre onde os dois aristocratas estavam sentados, onde as cadeiras estavam perfiladas, onde os Irmãos e lutadores estavam a postos – bem como os dois Sombras.
Enquanto assentia, o Rei, deliberadamente, movia a cabeça de um lado para o outro como se seus olhos estivessem captando os detalhes da sala. E, depois, ele cumprimentou os anfitriões quando estes foram levados à frente para beijar o imenso anel de diamante negro.
Depois disso, la crème de la crème da glymera começou a chegar.
De seu posto designado no fundo da sala na parede das janelas, Blay conseguiu olhar muito bem para cada um. Jesus, ele se lembrava de alguns deles de sua vida anterior aos ataques, antes de ele começar a morar na mansão e a lutar com os Irmãos. Seus pais não estavam no mesmo nível social daqueles machos e fêmeas, ficando mais à margem – ainda assim, a linhagem da sua família era boa e eles foram incluídos em muitas celebrações festivas nas grandes mansões.
Portanto, aquele povo não lhe era desconhecido.
Mas, por certo, ele não tinha como dizer que sentia saudades deles.
Na verdade, teve que rir consigo mesmo enquanto uma bela quantidade de fêmeas franzia o cenho e olhava para baixo para os pés delicadamente envolvidos em sapatos finos, Laboutins sendo erguidos e sacudidos... como se o frio dos Sombras estivesse sendo notado.
Quando Havers chegou, o curandeiro da raça pareceu um pouco desentrosado. Sem dúvida estava nervoso em rever a irmã e tinha bons motivos para tal. Até onde Blay sabia, Marissa acabara com ele na última reunião formal do Conselho.
Blay lamentava muito ter perdido aquilo.
Marissa chegou pouco depois do irmão, e Butch se aproximou dela, recebendo-a com um beijo demorado antes de conduzi-la, com um braço orgulhoso e protetor, para um assento no canto direito, perto de onde ele estava situado. Depois que o tira ajudou-a a se sentar, ele ficou de pé ao lado dela, grande, forte, e com um olhar ameaçador... especialmente quando seus olhos se encontraram com os de Havers e sorriu com as presas expostas.
Blay se viu invejando um pouquinho o casal. Não por conta do estranhamento familiar, isso não. Mas Deus... ser capaz de estar em público com seu parceiro, demonstrar seu amor, ter seu relacionamento respeitado por todos os outros? Casais heterossexuais consideravam aquilo como coisa certa porque nunca conheceram nada diferente daquilo. Suas uniões eram santificadas pela glymera, mesmo que os casais não estivessem apaixonados, ou se traíssem, ou fossem, de todo modo, uma fraude.
Dois machos?
Rá.
Apenas mais um motivo para se ressentir da aristocracia, segundo seu ponto de vista. Ainda que, na realidade, ele tinha a sensação de que jamais teria de se preocupar em sofrer discriminação. O macho que ele queria nunca ficaria ao seu lado em público, e não porque Qhuinn se importasse com a opinião alheia. Um, o cara não era do tipo que demonstrava afeto. Dois, sexo não formava casais.
Se assim fosse, o cara estaria comprometido com metade de Caldwell, pelo amor de Deus.
Ah, no que ele estava pensando...
Já fazia tempos que superara aquele sonho impossível com Qhuinn.
De verdade.
Absolutamente...
– Chega – ele murmurou para si mesmo quando o último integrante do Conselho chegou.
Rehv não perdeu tempo. A cada segundo que Wrath ficava diante do grupo, o Rei não só se expunha mortalmente, mas também corria o risco de que sua cegueira fosse descoberta.
O rei sympatho se dirigiu ao Conselho, com o olhar violeta perscrutando a assembleia, com um sorriso enviesado no rosto – como se apreciasse o fato de que o grupo de sabichões não fizesse a mínima ideia de que um devorador de pecados os liderava.
– Declaro aberta a sessão do Conselho. O dia e a hora são...
Enquanto a introdução prosseguia, Blay manteve o olhar ocupado, verificando as costas dos machos e das fêmeas, onde os braços e as mãos estavam, se alguém se mostrava ansioso. Naturalmente, o grupo se apresentara em black-tie e veludo, e joias para as mulheres e relógios de bolso de ouro para os homens. Pensando bem, fazia um bom tempo desde que se reuniram formalmente, e isso significava que o desejo deles de competir uns com os outros para mostrar quem valia mais sem dúvida vinha sendo estrangulado.
– ... nosso líder, Wrath, filho de Wrath.
Aplausos educados se seguiram, e depois eles se ajeitaram em suas cadeiras quando Wrath deu um único passo à frente.
Caramba, cego ou não, ele certamente parecia uma força da natureza: mesmo não trajando algum tipo de manto com borda de arminho, o Rei parecia irrefutavelmente no comando, o corpo imenso e os cabelos negros longos, e os óculos escuros, fazendo-o parecer mais uma ameaça do que um monarca.
E a ideia era essa mesmo.
Liderança, especialmente quando se tratava da glymera, baseava-se em parte nessa percepção – e ninguém tinha como negar que Wrath parecia a representação viva do poder e da autoridade.
E aquela voz grave e profunda também não atrapalhava em nada.
– Admito que faz um bom tempo que não os vejo. Os ataques de quase dois anos atrás dizimaram muitos em suas famílias e eu partilho de sua dor. Eu, também, perdi meus familiares num ataque de redutores, portanto, sei exatamente o que vocês têm passado enquanto tentam voltar a colocar a vida nos trilhos.
Um macho na fila da frente se mexeu...
Mas foi só para mudar de posição, não o prelúdio de uma arma sendo sacada.
Blay voltou à sua posição, como alguns outros. Maldição, ele mal podia esperar para que aquela reunião acabasse e eles pudessem levar Wrath de volta para a segurança.
– Muitos de vocês conheceram bem meu pai e se lembram de seu reinado no Antigo País. Meu pai era um líder sábio e de temperamento moderado, um cavalheiro de pensamento lógico e educação real, que se ocupava somente da melhoria desta raça e dos cidadãos – Wrath fez uma pausa, os óculos percorrendo em arco a sala. – Partilho de algumas das características de meu pai... mas não de todas. De fato, não sou temperado. Não sou clemente. Sou um homem da guerra, não da paz.
Nisso, Wrath desembainhou uma de suas adagas, a lâmina negra refletindo a luz do candelabro de cristal acima deles. Diante do Rei, a assembleia reagiu com um tremor coletivo.
– Fico muito à vontade num conflito, seja ele do tipo legal ou letal. Meu pai era um mediador, um construtor de pontes. Eu construo túmulos. Meu pai era persuasivo. Eu sou um conquistador. Meu pai era um Rei que se sentava de boa vontade às suas mesas de jantar para debater minúcias. Não sou assim.
Epa, epa. Sem dúvida, nunca se dirigiram ao Conselho daquele modo. Mas Blay não discordava da abordagem. A fraqueza não era respeitada. Mais do que isso, com aquele grupo, a lei provavelmente não asseguraria a estabilidade do trono de Wrath.
Medo, por sua vez?
Tinha chances muito melhores.
– Meu pai e eu, todavia, temos uma coisa em comum – Wrath inclinou a cabeça num ângulo como se estivesse olhando para a adaga negra. – Meu pai provocou a morte de oito dos seus parentes.
Houve um arfar coletivo. Mas Wrath não permitiu que isso o detivesse.
– No decorrer do seu reinado, ocorreram oito atentados à vida dele, e, não importasse o quanto demorasse, se dias, semanas ou meses, ele tratou de descobrir quem esteve por trás de cada um deles... e caçou pessoalmente cada um dos indivíduos, matando-os. Podem não ter ficado sabendo das histórias verdadeiras, mas sabem dessas mortes... Os criminosos foram decapitados e suas línguas foram cortadas. Por certo, se pensarem no passado, irão se lembrar de alguém em suas linhagens que tiveram esse fim?
Inquietação. Muita inquietação. O que sugeria que as lembranças estavam se avivando.
– Também devem se lembrar de que essas mortes foram atribuídas à Sociedade Redutora. Eu lhes digo, conheço esses nomes, como também sei onde estão esses túmulos, porque meu pai me fez memorizá-los. Foi a primeira lição de reinado que ele me ensinou. Meus cidadãos devem ser honrados, protegidos e bem servidos. Os traidores, por sua vez, são uma doença para qualquer sociedade legítima e precisam ser erradicados – Wrath sorriu de um modo puramente malévolo. – Digam o que quiserem a meu respeito, estudei muito bem aos pés de meu pai. E sejamos bem claros, foi o meu pai, e não a Irmandade, quem cuidou dessas mortes. Sei disso porque ele decapitou quatro deles diante de mim. Eis a importância dessa lição.
Muitas das fêmeas se aproximaram de qualquer que fosse o macho que estivesse sentado ao seu lado.
Wrath prosseguiu:
– Não hesitarei em seguir a liderança de meu pai quanto a isso. Reconheço tudo o que vocês sofreram. Respeito suas provações e quero liderá-los. Todavia, eu não hesitarei em tratar qualquer tipo de insurreição contra mim e os meus como um ato de traição.
O Rei abaixou o queixo e pareceu encará-los por detrás dos óculos, a ponto de até Blay sentir uma pontada de adrenalina.
– E se pensam que meu pai foi violento, não viram nada ainda. Farei com que aquelas mortes pareçam misericordiosas. Juro pela minha linhagem.
CAPÍTULO 52
De alguma forma, Assail não conseguia acreditar que estivesse entrando em um restaurante. Primeiro porque ele não costumava, via de regra, frequentar locais humanos, e, segundo, ele não tinha interesse algum em comer ali: o ar rescendia a batata frita e cerveja, e pelo que viu nas bandejas das garçonetes, ele não estava muito certo se as entradas eram consideradas seguras para consumo não animal.
Ora, veja. Do lado oposto, havia um palco que tinha uma parede de tela de arame para galinheiros.
Quanta classe.
– Olá, tudo bem? – alguém ronronou em sua direção.
Assail levantou uma sobrancelha e olhou por sobre o ombro. A mulher humana usava uma camisa apertada e um par de jeans que, obviamente, fora-lhe costurado no corpo. O cabelo era loiro e muito liso. A maquilagem era pesada, com o batom tão brilhante que mais parecia pintura a óleo.
Ele preferiria arrancar os olhos com uma colher a ter qualquer tipo de envolvimento com alguém como ela.
Obrigou-a a se esquecer de que o vira e virou de costas. O lugar estava cheio, havia mais pessoas que mesas e cadeiras, portanto havia uma boa cobertura enquanto ele seguia para um canto e procurava...
Lá estava ela.
A sua ladrazinha.
Praguejando baixinho, ele vagamente reconheceu o quanto aquilo era uma perda de tempo – considerando-se, ainda mais, que seus primos estavam negociando de novo com aquele redutor. Infelizmente, porém, assim que ele recebera o alerta de que o Audi dela estava se mexendo, sentira-se compelido a encontrá-lo e segui-lo.
Não estivera preparado para aquilo.
O que ela fazia ali? E por que estava vestida daquela maneira?
Enquanto ela encontrava uma das poucas mesas vazias e se sentava sozinha, ele se viu desaprovando o modo como o cabelo dela estava solto por sobre os ombros, o volume escuro se curvando ao redor do rosto. Ou a saia justa que foi revelada assim que ela despiu o casaco. Ou... ela também estava maquilada, pelo amor de Deus. Mas não da forma carregada daquela mulher que acabara de abordá-lo. A sua ladra deixara as coisas bem leves, de modo a apenas acentuar suas feições...
Ela era tão linda.
Linda demais.
Todos os homens no restaurante olhavam para ela. E isso fez com que ele quisesse matar cada um deles arrancando-lhe as gargantas com os dentes...
Como se estivessem de acordo com seu plano, suas presas formigaram e começaram a se alongar dentro da boca, seu corpo ficando tenso.
Mas ainda não, ele se ordenou. Ele tinha de descobrir o motivo de ela estar ali. Depois de tê-la seguido até a mansão de Benloise, ele esperara qualquer tipo de destino... embora não aquele. O que ela estaria...
A cabeça dela se voltou e, por um instante, ele pensou que, de alguma maneira, ela o tivesse sentido, mesmo não sendo uma vampira.
Mas então, um humano muito alto e bem estruturado aproximou-se da mesa.
Sua ladra fitou o cara. Sorriu para ele. Levantou-se e passou os braços ao redor dos ombros amplos.
A mão de Assail entrou no casaco à procura de sua arma.
De fato, ele se viu indo até lá e despejando uma bala entre os olhos do homem.
– Ei, já esteve aqui antes?
A cabeça de Assail virou para trás. Um humano bem grande o abordara e o fitava com uma expressão um tanto agressiva.
– Eu lhe fiz uma pergunta.
Existiam duas respostas, Assail resolveu. Ele poderia responder verbalmente, o que o colocaria em algum tipo de diálogo que consumiria a sua atenção, não sendo uma boa ideia, portanto, visto que sua mão continuava segurando a arma e seus impulsos não haviam mudado em sua inclinação homicida.
– Estou falando com você.
Ou ele poderia...
Assail expôs as presas estendidas e grunhiu profundamente da garganta, redirecionando sua ira da cena com a sua ladra com aquele tolo para quem ela se vestira e se enfeitara.
O cara cheio de perguntas levantou as mãos e deu um passo para trás.
– Ei, está tudo bem, tanto faz. Desculpe. Tudo bem.
O homem desapareceu no meio da multidão, provando que em certas circunstâncias ratos sem rabo também conseguiam se desmaterializar.
Os olhos de Assail voltaram a se fixar na mesa. O “cavalheiro” que se sentara diante de sua ladra estava se inclinando na direção dela, os olhos fixos em seu rosto enquanto ela examinava o cardápio e olhava ao redor.
Algo teria de ser feito a respeito daquilo.
Sola fechou o cardápio e riu.
– Eu nunca disse isso.
– Disse sim – Mark Sanchez sorriu. – Você me disse que eu tinha olhos bonitos.
Mark era exatamente o que ela precisava numa noite como aquela. Ele era bonito de se olhar, supercharmoso, e contanto que ele não a fizesse se abaixar para fazer mil abdominais, ela não tinha com que se preocupar: como seu professor de ginástica particular? Ele era um demônio, ela bem sabia.
– Então, este é um jeito de me amaciar? – ele se recostou quando a garçonete lhes trouxe as cervejas. – Está tentando fazer com que eu pegue leve na academia?
– Sei que isso jamais funcionaria – Sola deu uns goles da bebida gelada em sua caneca. – Você não dá mole. É a sua regra.
– Bem, para ser justo, você nunca pediu tratamento especial. – Houve uma pausa. – Não que em seu caso eu não estivesse disposto em ceder um pouco... em algumas áreas.
Sola desviou do olhar que lhe era lançado.
– Quer dizer que você não sai com clientes?
– Não. Normalmente não.
– Conflito de interesses.
– Pode acabar em confusão... Mas, em certos casos, o risco vale a pena.
Sola olhou de relance pelo bar. Muitas pessoas. Muita conversa. E o ambiente estava abafado.
Ela franziu o cenho e se enrijeceu. No canto extremo, alguma coisa... alguém...
– Está tudo bem?
Ela tentou se livrar da sua paranoia.
– Sim, desculpe... Ah, sim, queremos fazer o pedido – ela disse quando a garçonete voltou. – Vou querer um cheeseburguer. Desde que o meu treinador não tenha uma embolia em sinal de desaprovação.
Mark riu.
– São dois, então. Mas não coloque fritas. Em nenhum dos dois pratos.
Enquanto a garçonete se afastava, Sola tentou não olhar para o canto escuro ao fundo.
– Então...
– Nunca imaginei que fosse aceitar meu convite. Quanto tempo faz que eu a chamei para sair?
Enquanto Mark sorria, ela notou que ele tinha dentes fantásticos, retos e bem brancos.
– Acho que já faz um tempo. Tenho estado ocupada.
– Então, o que faz para viver?
– Isso e aquilo.
– Em que ramo?
Normalmente, ela se irritava quando as pessoas começavam a ficar curiosas. Mas a postura dele era calma e relaxada, portanto aquela era apenas uma conversa normal de um encontro de um casal.
– Acho que posso chamar de justiça criminal.
– Ah, então lida com leis.
– Sim, eu as conheço.
– Que bacana – Mark pigarreou. – Então... nossa, você está realmente linda.
– Obrigada. Acho que é por causa do meu professor.
– Ah, sabe, de algum modo acho que você se sairia bem sem mim.
Enquanto se envolvia numa conversa descomplicada, ela começou a relaxar de verdade e quando os sanduíches chegaram, eles pediram mais uma rodada de cerveja. Era tão... normal estar num bar, conversando e conhecendo outra pessoa.
O exato oposto do que ela testemunhara na noite anterior.
Sola estremeceu quando as imagens lhe voltaram... a luz de velas, aquele homem de cabelos negros pairando acima da mulher seminua como se estivesse para devorá-la, os dois se soltando com desinibição... Então, aqueles olhos reluzentes se ergueram e se encontraram com os dela através da janela como se ele soubesse o tempo todo que ela estivera espionando.
– Você está bem?
Sola forçou-se a se concentrar.
– Desculpe, sim, estou. O que você estava dizendo?
Enquanto Mark voltava a falar do seu treinamento para o Ironman, ela se viu novamente no frio do lado de fora daquele chalé, observando aquele homem e aquela mulher.
Droga. Ela orquestrara aquele encontro somente porque queria relaxar. Não porque gostasse particularmente de Mark, por mais legal que ele fosse.
Na verdade, talvez ela tivesse feito aquilo porque, coincidentemente, seu professor era bem alto, de boa constituição física, e cabelos muito escuros e olhos bem claros.
Quando a culpa lhe enviou um aviso, ela pensou, ora, pelo amor de Deus. Era uma mulher adulta. Mark era um homem adulto. As pessoas faziam sexo por diferentes motivos – não era porque não queria se casar com o cara que ela estivesse quebrando alguma regra sagrada... a não ser, droga. Deixando de lado a moral da avó, e os dentes brancos e brilhantes e os ombros largos dizendo o contrário, ela não se sentia de fato atraída por Mark.
Ela estava atraída pelo homem de quem Mark a fazia se lembrar.
E era isso o que tornava tudo aquilo muito errado.
CAPÍTULO 53
Mesmo que Qhuinn dificilmente fosse um bom árbitro de aprovação no que se referia às reuniões do Conselho, ficou bem claro para ele que o grupo reunido fora até aquela casa esperando uma coisa só para receber algo completamente diferente.
Wrath não desperdiçava nem atenuava as palavras e, depois de despejar seu discurso, concluiu tudo em cinco, dez minutos.
Na verdade, aquilo era muito bom. Quanto antes ele terminasse, mais rápido o tirariam dali.
– Concluindo – disse o Rei em sua voz grave –, agradeço a oportunidade de me dirigir a este grupo respeitável.
Naquele caso, “respeitável” obviamente significava “idiota”.
– Tenho outro compromisso agora – isto é, permanecer vivo. – Portanto, preciso ir. Contudo, se tiverem algum comentário, por favor, dirija-os a Tohrment, filho de Hharm.
Menos de um segundo depois, o Rei deixava a casa com V. e Zsadist.
Após a saída dele, todos os empoados na sala de jantar permaneceram sentados em suas cadeiras, chocados, suas expressões dizendo “e agora?”. Obviamente, eles esperavam mais... mas também menos. Como crianças que forçam demais os limites com os pais até finalmente levarem uma colherada de pau na bunda.
Pela perspectiva de Qhuinn, aquilo tudo era muito engraçado, de verdade.
A festa finalmente começou a se dissipar depois que a anfitriã se levantou e disse a todos como fora uma honra recebê-los e blá-blá-blá.
Qhuinn só se importava com uma coisa.
A mensagem que chegou em seu celular um minuto mais tarde: Wrath estava a salvo em casa.
Exalando lentamente, ele guardou o celular no bolso interno da jaqueta de couro e considerou a ideia de dar umas guinadas no piso só para ver se animava aquele bando de empertigados a dançar um pouco. Porém, ele muito provavelmente se meteria em apuros com isso.
Que pena.
O grupo começou a sair logo em seguida, para óbvio descontentamento da anfitriã, como se ela tivesse se arrumado e reorganizado sua casa na antecipação de um evento social que durasse a noite toda – só para descobrir que conquistara seus dois segundos de celebridade e um balde gigante de KFC para comer.
Desculpe, dona.
Tohrment comandou o êxodo, parado diante da lareira, acenando com a cabeça, dizendo algumas poucas palavras. Wrath fizera uma boa escolha. O Irmão tinha a aparência de um guerreiro, com todas as suas armas, mas sempre se mostrou disposto e internamente inclinado a ser um pacificador, e isso não era diferente aquela noite.
Ele se mostrou especialmente agradável quando Marissa e Butch saíram, o rosto demonstrando uma centelha genuína de afeto ao abraçá-la e ao acenar para o tira que acompanhou para fora. Contudo, esse fragmento de realidade foi imediatamente substituído pela sua máscara profissional.
No fim, a anfitriã auxiliou seu hellren ancião a se levantar e comentou alguma coisa a respeito de ajudá-lo a subir.
E assim restou apenas um.
Elan, filho de Larex, demorava-se perto do acortinado das janelas.
Qhuinn observara o cara o tempo todo, contando exatamente quantos membros do Conselho se aproximaram dele, tomando-lhe a mão e murmurando algo em seu ouvido.
Cada um deles.
Portanto, não foi uma surpresa quando em vez de simplesmente ir embora como um bom garoto, ele se encaminhou até a lareira como se desejasse uma audiência.
Maravilha.
Enquanto Elan se aproximava de Tohr, quanto mais perto ficava, mais tinha de levantar o queixo para manter contato visual com o Irmão.
– Foi uma honra muito grande ter uma audiência com o seu Rei – o cavalheiro disse com seriedade. – Ouvi atentamente cada palavra.
Tohr murmurou algo em resposta.
– E venho me remoendo com algo – o aristocrata comentou. – Eu tinha esperanças de falar diretamente com ele a respeito, mas...
Bem, não prenda a respiração enquanto espera por isso, amigo.
Tohr se prontificou a preencher o silêncio:
– Qualquer coisa que me disser chegará diretamente aos ouvidos do Rei, sem filtro nem interpretação. E os lutadores neste recinto juraram segredo. Eles são capazes de morrer antes de repetir sequer uma palavra.
Elan olhou na direção de Rehv, obviamente esperando uma jura semelhante por parte do macho.
– O mesmo se aplica a mim – murmurou Rehv ao se apoiar na bengala.
Abruptamente, o peito de Elan estufou como se aquele tipo de atenção personalizada fosse mais do que ele esperava obter naquela reunião.
– Bem, isso tem pesado muito em meu peito.
Certamente não nos peitorais, Qhuinn pensou. Você tem o físico de um moleque de dez anos.
– E isso seria... – Tohr deu a deixa.
Elan cruzou os braços atrás das costas e andou um pouco – como se estivesse refletindo sobre suas palavras. Algo garantia a Qhuinn, porém, que elas já tinham sido ensaiadas, ainda que não pudesse dizer como sabia disso.
– Eu esperava que seu Rei se referisse a certo boato que ouvi.
– Que seria? – perguntou Tohr num tom neutro.
Elan parou. Virou-se. Falou com clareza:
– Que ele foi alvejado no outono.
Ninguém emitiu reação alguma. Nem Tohr, nem Rehv. Tampouco os Irmãos restantes na sala. E por certo nem Qhuinn e seus garotos.
– Qual a fonte desse boato? – questionou Tohr.
– Bem, para ser franco, pensei que ele estaria aqui.
– Verdade? – Tohr olhou para as cadeiras desocupadas e deu de ombros. – Quer me contar o que ouviu?
– O macho fez referência à visita do Rei. Semelhante à que Wrath me fez em minha residência durante o verão – isso foi relatado com grande importância, como se aquele tivesse sido o ponto alto do ano de Wrath. – Ele disse que o Bando de Bastardos atirou no Rei enquanto ele estava em sua propriedade.
Mais uma vez, nenhuma reação.
– Mas, obviamente, o seu Rei sobreviveu – a pausa sugeria que Elan estava esperando por detalhes. – De fato, ele parece ótimo.
O silêncio se alongou como se as duas partes na conversa esperassem que a outra fizesse bom uso da quietude.
Tohr ergueu uma sobrancelha.
– Com o devido respeito, você não nos informou muita coisa, e boatos acontecem desde o início dos tempos.
– Mas eis o mais estranho. Ele também falou comigo antes que isso acontecesse. No entanto, não acreditei nele. Quem tramaria uma tentativa de homicídio? Parecia... mais a ostentação de um macho que, de outro modo, estava insatisfeito com a maneira como as coisas estavam sendo conduzidas. Só que, uma semana mais tarde, ele disse que o Bando de Bastardos deu seguimento aos planos, e que Wrath fora atingido. Eu não sabia o que fazer. Eu não tinha como entrar em contato com o Rei pessoalmente, e nenhum modo de verificar se o que esse indivíduo dizia era verdade. Deixei estar... até esta reunião ser marcada. Fiquei me perguntando se talvez... bem. Obviamente nada aconteceu, mas fiquei me perguntando por que ele não estava aqui.
Tohr baixou o olhar em direção ao macho menor.
– Ajudaria bastante se você nos desse um nome.
Foi a vez de Elan franzir o cenho.
– Quer dizer que não sabe quem está no Conselho?
Enquanto Rehv revirava os olhos, Tohr dava de ombros.
– Temos mais coisas com que nos preocupar do que com os associados de Rehv.
– No Antigo País, a Irmandade sabia quem éramos.
– Há um oceano entre nós e a mãe terra.
– Uma pena.
– Essa é a sua opinião.
Qhuinn deu um passo à frente, com a intenção de interferir, para o caso de o Irmão resolver segurar o pescoço do filho da puta: alguém provavelmente teria de agarrar a cabeça antes que ela caísse no tapete da anfitriã. E o peso morto do corpo também.
Parecia o mais hospitaleiro a se fazer.
– Então, sobre quem está falando? – Tohr o pressionou.
Elan olhou para os machos imóveis e letais que se concentravam nele.
– Assail. Seu nome é Assail.
No centro de Caldwell, onde as ruas escuras formavam um labirinto de ratos e os humanos sóbrios eram raros e esparsos, Xcor balançou a foice num círculo amplo de uns dois metros além do piso escorregadio manchado de preto.
O redutor foi golpeado no pescoço, e a cabeça, agora liberta da medula espinhal, pendeu do queixo para a têmpora, em meio ao vento frio e implacável. Sangue negro desceu das artérias partidas enquanto o corpo desgovernado despencava no chão num tombo.
Só isso.
Bem desapontador, na verdade.
Virando de costas, ele segurou sua amada foice sobre o ombro para que ela se curvasse atrás dele de modo protetor, vigiando-lhe as costas enquanto ele se preparava para o que viria em seguida. O beco em que ele entrara para perseguir aquele agora incapacitado assassino era aberto na ponta oposta, e atrás dele, os três primos estavam posicionados ombro a ombro para o caso de alguém mais vir daquela direção.
Algo se aproximava.
Algo vinha... em alta velocidade, o ronco do motor aumentando cada vez mais...
O SUV derrapou no beco, os pneus encontrando pouca ou nenhuma tração na rua coberta de gelo. Como resultado da ausência de atrito, o veículo bateu na parede, os faróis cegando Xcor.
Quem quer que estivesse atrás daquele volante não pressionou o freio.
O motor rugiu.
Xcor ficou de frente para o carro e fechou os olhos. Não havia motivo para mantê-los abertos já que não estava enxergando nada. Não se importava se o motorista fosse um assassino, um vampiro ou um humano.
Eles vinham em sua direção, e ele colocaria um fim naquilo. Mesmo que talvez fosse mais fácil simplesmente sair do caminho.
Entretanto, ele nunca gostou de saídas fáceis.
– Xcor! – alguém exclamou.
Inspirando profundamente o ar gelado, ele emitiu um grito de guerra ao acompanhar a aproximação, seus sentidos se aguçando e posicionando o SUV em sua trajetória. A foice desapareceu um instante, e suas pistolas, ansiosas em participar, surgiram em ambas as mãos.
Ele aguardou mais uns cinco metros.
Em seguida, começou a apertar os gatilhos.
Com os silenciadores colocados, as balas só emitiam os sons do impacto ao quebrarem o para-brisa, sibilarem na grade, perfurarem um pneu...
E nessa hora os faróis que o cegavam se viraram, a traseira do veículo rodopiando, toda a trajetória imutável graças à tremenda aceleração – mesmo quando todo o resto se confundia.
Pouco antes de a lataria lateral o atingir, Xcor pulou do chão, as botas impulsionando-o para cima, o teto do carro quase resvalando no solado enquanto uma tonelada e meia desgovernada passava por baixo do seu corpo flutuante.
Quando os coturnos de combate de Xcor aterrissaram, o avanço do carro foi interrompido à custa de um latão de lixo, o receptáculo detendo o veículo melhor do que qualquer freio seria capaz.
Xcor não perdeu tempo para se aproximar, com as duas pistolas erguidas, os gatilhos prontos. Embora tivesse dado alguns tiros, ele sabia que ainda possuía pelo menos umas quatro balas em cada uma. E, mais uma vez, seus soldados o apoiaram por trás.
Aproximando-se para olhar o interior, ele não se preocupava com o que encontraria: um de sua espécie, um homem ou uma mulher, um redutor, pouco importava.
O cheiro de carne estragada e melaço o informaram qual dos seus inimigos ele confrontara e, de fato, enquanto se inclinava sobre o para-brisa estilhaçado, dois novos recrutas, que ainda apresentavam cabelos escuros e pele rosada, balançavam nos bancos da frente.
Mesmo com os cintos de segurança a postos, eles estavam em mau estado. Além de terem sido atingidos pelas balas, os rostos demonstravam todos os estragos feitos pelas batidas tanto nas laterais do carro, como no painel e no vidro quebrado: sangue negro escorria pelos narizes e queixos e faces lacerados, a meleca pingando nos peitos como água de um chuveiro.
Nada de air bags. Talvez um caso de mal funcionamento.
– Não pensei que fosse conseguir – murmurou Balthazar.
– É mesmo – o outro concordou.
Xcor desconsiderou a preocupação ao guardar as armas, depois segurou a porta do motorista e a arrancou da dobradiça. Enquanto o guincho metálico ecoava muito alto no beco, ele largou a placa de metal, pegou a adaga de aço e se inclinou.
Como com todos os redutores, aqueles afiliados a Ômega ainda se mexiam e piscavam apesar dos ferimentos catastróficos – e continuariam assim eternamente se deixados nesse estado, mesmo que suas formas apodrecessem com o tempo.
Só havia um modo de matá-los.
Xcor aproximou o braço do ombro esquerdo e enterrou a lâmina de sua adaga no peito daquele que estava atrás do volante. Virando a cabeça de lado e fechando os olhos para não se cegar novamente, ele esperou pelo som e pelo flash diminuir antes de se inclinar sobre o assento e fazer o mesmo com o passageiro.
Depois se virou para despachar o corpo decapitado e contorcido... que tinha marcas de pneus sobre o peito, graças à trajetória do carro no beco.
Caminhando pelo piso sujo e lamacento, ele levantou a adaga acima do ombro e enterrou a lâmina no esterno com tanta força que a arma ficou encravada no asfalto.
Quando se pôs de pé novamente, sua respiração emitia sopros de fumaça pelo nariz, como uma locomotiva.
– Vasculhem o veículo, depois temos que ir.
Ele consultou o relógio. A polícia de Caldwell era desapontadoramente atuante, mesmo naquela parte da cidade – e a ameaça constante de envolvimento humano sob a qual ele vivia era sempre um aborrecimento. Mas, com sorte, em questão de minutos, eles iriam embora e seria como se jamais estivessem estado ali.
Embainhando a adaga, ele olhou para o céu, estalando o pescoço e relaxando os ombros.
Era impossível não pensar na reunião do Conselho que fora marcada; aquilo esteve em sua mente a noite inteira. Será que Wrath aparecera? Ou teria sido apenas Rehvenge e os representantes da Irmandade? Se o Rei tivesse de fato aparecido, Xcor podia muito bem imaginar a pauta: demonstração de força, avisos, depois uma partida rápida.
Por mais poderosa que fosse a Irmandade, e por mais que Wrath conseguisse forçar sua vontade sobre aquele grupo de aristocratas traiçoeiros e bajuladores, era difícil imaginar que um macho que recentemente quase fora assassinado fosse se arriscar: mesmo que apenas por interesse próprio, a Irmandade o queria vivo, visto que aquilo também era seu lugar de poder.
E foi por isso que ele escolhera ficar afastado.
Não havia mal algum em permitir que Wrath tentasse recuperar um pouco de seu prestígio perdido, e muito a perder num confronto direto com a Irmandade diante daquele público específico: o potencial de um dano colateral era grande demais. A última coisa que ele queria era assustar a glymera a ponto de afastá-los... ou matá-los de uma vez no processo de acabar com o Rei.
Mas ele descobrira, graças aos contatos de Throe, a hora e o local exatos daquele encontro. Que seria naquele instante... e na propriedade daquela fêmea de quem seus soldados se alimentaram no pequeno chalé.
Evidentemente, ela estava disposta a permitir que outros usassem não só o jardim dela, mas também suas salas.
E, muito em breve, ele teria uma transcrição do que acontecera graças ao porta-voz que era Elan – senão por outro motivo que não de o macho desejar apenas se gabar do acesso a que tivera.
Um assobio de apreciação vindo da parte de trás do carro arruinado fez com que ele virasse a cabeça.
Zypher estava parado diante do porta-malas aberto, com as sobrancelhas erguidas enquanto ele se curvava e apanhava... um tijolo de algo branco coberto de celofane.
– Que belo prêmio conseguimos – disse ele, erguendo-o no alto.
Xcor andou até lá. Havia mais três daqueles, apenas jogados na parte traseira, como se o par de assassinos estivesse mais preocupado com a sua segurança física do que com a disposição das drogas.
Naquele instante, as sirenes começaram a gritar vindo do leste, talvez relacionadas àquela batida, talvez não.
– Pegue os pacotes – ordenou Xcor. – Vamos embora agora.
CONTINUA
CAPÍTULO 45
A ausência de alimentação de Assail finalmente o atingiu cerca de cinco horas após o anoitecer. Ele vestia uma camisa social azul-clara com punhos franceses, quando suas mãos começaram a tremer tão violentamente que não havia como ele abotoar a maldita coisa sobre o peito. Em seguida, a exaustão o acometeu, tão forte que ele cambaleou.
Praguejando, foi até a cômoda. Sobre o tampo de mogno polido, seu frasco e colher o esperavam, e ele cuidou do assunto em duas rápidas inaladas, uma para cada narina.
Hábito hediondo – e um ao qual recorria somente quando de fato necessitava.
Pelo menos a fungada cuidou do cansaço. Contudo, ele teria de encontrar uma fêmea. Logo. De fato, era um milagre que ele tivesse suportado por tanto tempo. A última vez em que tomara uma veia fora meses atrás, e a experiência havia sido menos que cativante, uma rapidinha com uma fêmea da espécie bem versada em fornecer alimento para os machos necessitados. A um preço.
Que estorvo.
Depois de se armar e pegar o casaco de cashmere preto, desceu as escadas e destrancou a porta de correr de aço. Ao abrir a passagem para o primeiro andar, foi recebido pelo som de pistolas sendo travadas.
Na cozinha, os gêmeos verificavam várias pistolas .40.
– Fez a ligação? – Assail perguntou a Ehric.
– Como você pediu.
– E?
– Ele vai estar lá e vai sozinho. Precisa de armas?
– Já as tenho – ele pegou as chaves do Range Rover de uma travessa de prata na bancada. – Vamos no meu carro. Para o caso de nos ferirmos.
Afinal, só um idiota aceitava a palavra de um inimigo, e seu SUV era equipado com um instrumento sob a carenagem que poderia ser muito útil se houvesse um ataque em massa.
Bum.
Quinze minutos mais tarde, os três cruzavam a ponte para Caldwell e, enquanto Assail seguia em frente, ele se lembrou do motivo pelo qual trazer os primos para ali fora uma ideia inspirada: não só eram uma boa retaguarda, como também eles não se mostravam inclinados a desperdiçar tempo com conversas inúteis.
O silêncio era um quarto passageiro muito bem-vindo no trajeto.
No centro além do rio Hudson, ele pegou uma saída que fazia uma curva e acabava debaixo da Northway. Avançado paralelo ao rio, ele entrou numa floresta de pilares que sustentavam a estrada, o cenário era insignificante, sombrio e, essencialmente, deserto.
– Estacione ali à direita, mais uns cem metros – disse Ehric na parte de trás do carro.
Assail foi para o meio-fio e parou.
Os três emergiram no frio, com os casacos abertos, as armas empunhadas, os olhos à espreita. Conforme caminhavam, o gêmeo de Ehric tomava a retaguarda, com os três sacos da garagem em uma das mãos, os plásticos produzindo um roçar à medida que eles andavam.
Acima deles, o trânsito rugia, os carros se deslocando a um ritmo constante, a sirene de uma ambulância berrando um grito estridente, um caminhão pesado ribombando sobre as vigas. Quando Assail inspirou fundo, o ar entrou gélido em seus seios nasais, e qualquer odor de sujeira ou de peixes mortos fora subjugado pelo frio.
– Logo em frente – orientou Ehric.
Eles cruzaram o asfalto calma e ritmadamente, seguindo por um caminho de terra batida congelada e dura. Com as enormes placas de concreto da estrada bloqueando o sol, nada crescia ali, mas havia vida – de certa forma. Humanos sem teto em abrigos improvisados com papelões e encerados permaneciam acocorados para se protegerem do inverno, os corpos tão enrolados que não se podia dizer para que lado olhavam.
Considerando o interesse em permanecerem vivos, ele não se preocupou com uma interferência da parte deles. Além disso, eles estavam acostumados a ficarem na periferia daquele tipo de negociata e sabiam que não deveriam se meter.
E se o fizessem? Ele não hesitaria em acabar com a vida miserável deles.
O primeiro sinal de que o inimigo aparecera foi o fedor carregado pelo vento. Assail não era muito versado quanto à Sociedade Redutora e os seus membros, mas seu olfato apurado não era capaz de discernir muitas nuances entre os maus odores. Portanto, ele deduziu que suas instruções foram seguidas e que aquele não era um caso de milhares chegando ao ponto de encontro – conquanto fosse possível que os seguidores de Ômega tivessem apenas um buquê.
Logo ele descobriria.
Assail e seus machos pararam. E esperaram.
Um momento depois, um único redutor saiu de trás de um poste.
Ah, interessante. Aquele já fora um cliente antes, aparecendo com dinheiro para aceitar porções de ecstasy ou de heroína. Ele esteve muito perto de ser eliminado, seu volume de compra pouco abaixo da qualificação de um intermediário.
Único motivo pelo qual ele ainda respirava... e, portanto, a certa altura, transformara-se num assassino. Pensando bem, o camarada não vinha circulando muito ultimamente, logo, era possível se deduzir que ele estivesse se ajustando à nova vida. Ou não vida, como parecia ser o caso.
– Jesus... Cristo – disse o redutor, obviamente captando os cheiros deles.
– Falei sério quando disse que eu era o seu inimigo – Assail comentou com fala arrastada.
– Vampiros?
– O que nos coloca numa posição curiosa, não? – Assail acenou para os gêmeos. – Meus parceiros vieram aqui em boa-fé. Surpreenderam-se do mesmo modo com o que descobriram quando seus homens chegaram. Certos... comportamentos violentos... por parte nossa foram demonstrados antes que a situação fosse esclarecida. Mil perdões.
Quando Assail indicou, os três sacos foram lançados para a frente.
A voz de Ehric foi seca:
– Estamos dispostos a lhe informar onde está o resto deles.
– Dependendo do resultado desta transação – acrescentou Assail.
O redutor olhou para baixo, mas, fora isso, não demonstrou reação alguma. O que sugeria que ele era profissional.
– Trouxe a mercadoria?
– Você pagou por ela.
Os olhos do assassino se estreitaram.
– Vai fazer negócios comigo.
– Garanto que não estou aqui pelo prazer da sua companhia – quando Assail gesticulou, Ehric puxou um pacote embrulhado. – Primeiro, algumas regras básicas. Você entrará em contato comigo diretamente. Não aceitarei ligações de mais ninguém de sua organização. Você poderá delegar o pagamento e o recebimento da mercadoria a quem desejar, desde que me informe a identidade e o número de representantes que estiver enviando. Se houver qualquer tipo de cilada, ou se houver qualquer desvio das minhas duas regras, eu cessarei minhas transações com você. São essas as minhas únicas condições.
O redutor olhou de Assail para os primos.
– E se eu quiser comprar mais do que isto?
Assail já considerara essa possibilidade. Não passara os últimos doze meses fazendo com que os intermediários estourassem seus miolos à toa – e não estava disposto a ceder seu poder duramente conquistado a ninguém. Contudo, aquela era uma oportunidade única. Se a Sociedade Redutora queria ganhar dinheiro nas ruas, ele concordava em lhes fornecer as drogas para tal. Não que aquele fedido filho da puta conseguisse chegar até Benloise porque Assail se certificaria de impedir isso. Mais precisamente, Assail tinha um racionamento estipulado inerente ao seu modelo de negócios – com apenas eles três, tinha mais produtos do que vendedores.
Portanto, era hora de começar a delegar. Seu controle sobre a cidade estava completo, a fase seguinte era escolher a dedo alguns intermediários para contratos de trabalho, por assim dizer.
– Vamos começar devagar e veremos como nos saímos – murmurou Assail. – Você precisa de mim. Eu sou a fonte. Portanto, a escolha é sua sobre como procederemos. Certamente, eu não estou... como dizer... “desinclinado” a aumentar os seus pedidos. Com o tempo.
– Como posso saber que você não está trabalhando com a Irmandade?
– Caso eu estivesse, já teria providenciado para que eles tivessem armado uma emboscada agora – ele indicou os sacos plásticos aos pés do assassino. – Além do que, como gesto de boa-fé, e em reconhecimento pelas suas perdas, eu lhe dei um crédito de três mil dólares nesta entrega. Mil para cada um dos nossos, digamos, mal-entendidos da noite passada.
As sobrancelhas do assassino se ergueram.
No silêncio que se seguiu, o vento rodopiou ao redor deles, os casacos revirando-se, o colarinho da jaqueta do redutor tremulando.
Assail ficou tranquilo no aguardo de uma resposta. Existiam duas possibilidades: sim, e nesse caso Ehric jogaria o pacote para ele. Ou não, o que os faria abrir fogo no maldito, neutralizá-lo, e apunhalá-lo de volta a Ômega.
As duas opções eram-lhe aceitáveis. Mas ele esperava que fosse a primeira.
Dinheiro precisava ser produzido. Para ambos os lados.
Sola manteve distância do quarteto de homens que se juntaram sob a ponte: detendo-se à margem, ela usava os binóculos para focalizar a reunião.
O senhor Misterioso, também conhecido como Houdini do Acostamento, estava protegido por dois imensos guarda-costas que eram o espelho um do outro. Pelo que podia perceber, ele comandava a reunião, e isso não era surpresa alguma – e ela podia adivinhar o assunto em pauta.
Como esperado, o gêmeo da esquerda deu um passo à frente e lhe deu um pacote do tamanho de uma lancheira de criança para o homem que estava sozinho.
Enquanto ela aguardava que a reunião chegasse ao fim, soube que estava ariscando a vida com aquilo – e não por estar debaixo de uma ponte no meio da noite.
Levando-se em consideração o encontro que teve com o homem na noite anterior, era bem duvidoso que ele apreciasse o fato de ela o seguir até ali, testemunhando suas atividades ilegais. Contudo, passara boa parte das últimas 24 horas pensando nele – e se irritando. Aquele era um maldito país livre, e caso ela quisesse estar ali, numa propriedade pública, tinha esse direito.
Ele queria privacidade? Então que cuidasse dos seus negócios em outro lugar que não no meio da rua.
Enquanto sua irritação ressurgia, ela cerrou os dentes... e entendeu que esse era o seu pior defeito no trabalho.
A vida inteira foi do tipo que fez exatamente aquilo que lhe diziam para não fazer. Claro, quando isso envolvia coisas como “Não, você não pode comer uma bolacha antes do jantar” ou “Não, você não pode sair de carro, está de castigo” ou “Não, você não deve ir visitar seu pai no presídio”... as implicações eram muito diferentes daquilo que se desenrolava logo adiante.
Não, você não pode voltar para aquela casa.
Não, você não pode mais me espionar.
Ah, ‘tá bom, chefão. Ela decidiria quando estaria satisfeita, muito obrigada. E naquele instante? Ela ainda não estava satisfeita.
Além disso, havia outro ângulo em sua tenacidade: ela não gostava de se acovardar e fora isso o que acontecera na noite anterior. Ao se afastar do confronto com aquele homem, fora por causa do medo – e aquele não seria o modo como ela conduziria sua vida. Desde aquela tragédia, ah, há tanto tempo, quando as coisas mudaram para sempre, ela decidira – não, jurara – que nunca mais teria medo de nada.
Não da dor. Não da morte. Não do desconhecido.
E certamente não de um homem.
Sola ajustou o foco, fechando-o no rosto do homem. Graças à iluminação urbana, havia luz suficiente para enxergá-lo adequadamente, e sim, ele era exatamente como ela lembrava. Deus, o cabelo era tão negro, quase como se ele o tivesse tingido. E os olhos – estreitos, agressivos. A sua expressão, tão orgulhosa e controlada.
Francamente, ele parecia ter classe demais para ser o que era. Pensando bem, talvez ele fosse feito do mesmo estofo de traficante de Benloise.
Pouco depois, as duas partes se separaram: o homem só se virou e caminhou na direção de que surgira, com um punhado de sacos de lixo quase vazios por sobre o ombro; os outros três retornando até o Range Rover.
Sola trotou até seu carro alugado, o body preto e a máscara de esqui ajudando-a a se misturar à escuridão. Colocando-se atrás do volante do Ford, ela se abaixou e usou um espelho para monitorar a via de mão única que passava por debaixo da ponte.
A rua era a única saída disponível. A menos que o homem estivesse disposto a arriscar uma abordagem da polícia por trafegar na contramão.
Momentos depois, o Range Rover passou por ela. Permitindo que ele se adiantasse um pouco, ela acelerou e se posicionou cerca de um quarteirão para trás.
Quando Benloise lhe dera aquela missão, fornecera-lhe o modelo do SUV do homem, além do endereço da casa à margem do Hudson. Porém, nenhum nome.
Tudo o que ela sabia era aquele fundo de investimento e seu único curador.
Enquanto perseguia o trio, memorizou a placa do carro. Um dos seus amigos no departamento de polícia talvez pudesse ajudá-la com isso; apesar de que, se a propriedade era de uma entidade legal, ela deduzia que ele fizera o mesmo com o carro.
Que seja. Só havia uma coisa de que tinha certeza.
Onde quer que ele fosse, ela estaria logo atrás.
CAPÍTULO 46
O grito ecoou pelo quarto em penumbra, alto, agudo, inesperado.
Conforme ele reverberava em seus ouvidos, Layla não entendeu de imediato o que a acordara. O que tinha...
Relanceando para baixo, ela viu que estava sentada ereta, os lençóis amassados em suas mãos, o coração acelerado, a caixa torácica bombeando.
Olhando ao redor, viu que sua boca estava aberta...
Fechando-a, entendeu quem produzira aquele som. Não havia mais ninguém no quarto. E a porta estava cerrada.
Erguendo as mãos, ela girou os pulsos, fazendo as palmas se voltarem para cima e para baixo. A iluminação do quarto, que era pouca, não vinha mais do seu corpo, mas sim do banheiro.
Virando-se de lado, espiou por cima da beirada da cama.
Payne já não estava mais caída no chão. A fêmea devia ter saído – ou fora carregada para fora?
Seu primeiro pensamento foi sair para procurar a irmã de Vishous, simplesmente levantar num pulo e começar a procurar. Embora não tivesse entendido exatamente o que se sucedera entre ambas, não restavam dúvidas de que aquilo custara imensamente à lutadora.
Layla, porém, deteve-se, conforme a preocupação com o seu próprio bem-estar surgiu: sua consciência passou do externo para o interno, a mente se concentrando no corpo, buscando e esperando encontrar as cólicas, a poça quente entre as pernas, as estranhas dores debilitantes em seus ossos.
Nada.
Assim como um quarto ficava em silêncio quando todos os que estavam dentro permaneciam em silêncio, as partes corpóreas também agiam da mesma forma quando todos os seus componentes não tinham queixas.
Tirando as cobertas de cima do corpo, ela moveu as pernas até que ficassem penduradas na lateral do colchão alto. Subconscientemente, preparou-se para a horrível sensação do sangue descendo do seu ventre. Quando nada desse tipo aconteceu, ela se perguntou se o aborto não chegara ao fim. Mas Havers não lhe dissera que duraria mais uma semana?
Foi preciso coragem para se levantar. Ainda que ela considerasse isso ridículo.
Nada ainda.
Layla foi até o banheiro devagar, esperando que o assalto dos sintomas retornasse a qualquer instante, fazendo-a cair de joelhos. Esperou que a dor atacasse, que aquelas cólicas ritmadas voltassem, que aquele processo mais uma vez estabelecesse o domínio sobre seu corpo e sua mente.
Não sei se funcionará, mas, se permitir, eu gostaria de ver o que posso fazer.
Faltou pouco para que Layla rasgasse as roupas, despindo-se do que a cobria num acesso insano. E logo estava no vaso sanitário.
Nenhum sangramento.
Nenhuma cólica.
Uma parte sua afundou numa tristeza tão grande, que ela temia que não houvesse fim para tal emoção – de modo estranho, durante o processo do aborto, ela sentiu como se tivesse uma espécie de conexão com o filho. E se estivesse tudo acabado? Então, a morte estava completa – mesmo que, logicamente, ela soubesse que não havia coisa alguma que tivesse vivido ou fosse capaz de sobreviver; de outro modo, a gestação não teria chegado ao fim.
Sua outra metade estava tomada por uma esperança ressonante.
E se...
Tomou uma chuveirada rápida, apesar de não saber exatamente por que estava se apressando, ou para onde iria.
Baixando o olhar para o abdômen, percorreu as mãos ensaboadas sobre a faixa reta de pele.
– Por favor... qualquer coisa que quiser, pegue o que quiser... me dê esta vida dentro de mim e pode ficar com qualquer outra coisa...
Ela falava com a Virgem Escriba, claro – não que a mãe da raça a ouvisse mais.
– Conceda-me o meu filho... deixe-me ficar com ele... por favor.
O desespero que ela sentia era quase tão ruim quanto os problemas físicos de antes, e ela saiu cambaleando para fora do box, secando-se rapidamente e vestindo-se com qualquer coisa.
Pelo que vira na televisão, as mulheres humanas tinham testes que podiam fazer sozinhas, umas espécies de varetas que lhes diziam se seus corpos estavam procriando seus mistérios. As vampiras não dispunham dessas coisas – pelo menos não que ela soubesse.
Mas os machos sabiam. Eles sempre sabiam.
Saindo apressada do quarto, ela disparou na direção do corredor das estátuas, rezando para se deparar com alguém, qualquer um...
Exceto Qhuinn.
Não, ela não queria que fosse ele a descobrir se aquele milagre acontecera ou... se nada havia mudado. Aquilo seria simplesmente cruel demais.
A primeira porta que viu foi a de Blaylock e ela bateu nela depois de um segundo de hesitação. Blay soube da situação desde o início. E, em seu cerne, ele era um bom macho, um macho bom e forte.
Quando não houve resposta, ela praguejou e deu as costas. Não verificara as horas, mas já que as persianas estavam erguidas e não havia o aroma da refeição sendo servida, provavelmente já estavam no meio da noite. Sem dúvida ele saíra para lutar...
– Layla?
Ela se virou. Blay estava inclinado para fora do quarto com uma expressão de surpresa.
– Desculpe... – quando a voz dela se partiu, ela teve que pigarrear – E-eu...
– O que aconteceu? Você está... Epa, vá com calma. Venha, vamos acomodá-la aqui.
Quando algo se aproximou e a segurou por trás, ela percebeu que ele a agarrara e a levara até o banquinho folheado a ouro bem do lado de fora do quarto dele.
Ele se ajoelhou diante dela e a tomou pelas mãos.
– Quer que eu vá chamar Qhuinn para você? Acho que ele está...
– Diga-me se eu ainda estou grávida – quando os olhos dele se arregalaram, ela apertou suas mãos. – Preciso saber. Alguma coisa... – ela não sabia se Payne queria que ela contasse o que acontecera entre as duas. – Eu só preciso saber se acabou ou não. Pode... por favor, eu preciso saber...
Quando ela começou a balbuciar, ele apoiou a mão no braço dela e o apertou.
– Acalme-se. Apenas respire fundo... isso, respire comigo. Isso mesmo, assim está bom.
Ela fez o que pôde para obedecer, concentrando-se no tom de voz grave e firme.
– Quero chamar a doutora Jane, está bem? – quando ela se mostrou disposta a discutir, ele balançou a cabeça com firmeza. – Fique aqui. Prometo que não vou a parte alguma. Só preciso ir buscar meu telefone. Fique aqui.
Por algum motivo, os dentes dela começaram a tiritar. Estranho, pois não estava frio.
Um segundo depois, o soldado estava de volta e se ajoelhava mais uma vez. Ele estava com o celular pregado ao ouvido e falava.
– Ok, Jane já está vindo – informou ele, desligando o aparelho. – Vou ficar aqui, esperando com você.
– Mas você sabe, não sabe? Você tem que saber, consegue sentir o cheiro...
– Psiiiu.
– Desculpe – ela desviou o rosto, abaixando a cabeça. – Não tive a intenção de envolvê-lo nisso. Eu só... desculpe.
– Está tudo bem. Não se preocupe com isso. Vamos só esperar pela doutora Jane. Ei, Layla, olhe para mim. Olhe para mim.
Quando ela finalmente encarou os olhos azuis, ficou pasma com a bondade neles. Ainda mais quando o macho sorriu com gentileza.
– Estou contente que tenha vindo me procurar – disse ele. – O que quer que esteja acontecendo, nós vamos cuidar disso.
Fitando o rosto belo e forte, sentindo a segurança que ele oferecia com tanta generosidade, percebendo a decência profunda do lutador, ela pensou em Qhuinn.
– Agora entendo por que ele está apaixonado por você – disse ela sem querer.
Blay empalideceu de uma vez, toda a cor do seu rosto sumindo da face.
– O que... você disse?
– Cheguei – disse a doutora Jane do alto das escadas. – Estou aqui! Enquanto a doutora Jane se aproximava correndo, Layla fechou os olhos.
Droga. O que acabara de escapar da sua boca?
No centro da cidade, no armazém em que Xcor passara o dia, o líder do Bando de Bastardos por fim emergiu na escuridão fria da noite.
Ele tinha as armas no corpo e o celular na mão.
Em algum ponto durante as horas iluminadas do dia, a sensação de que ele se esquecera de algo finalmente cessara, e ele se lembrara de que dissera aos soldados para abandonar aquele local. O que explicava por que nenhum deles aparecera antes do amanhecer.
O novo esconderijo não era no centro. E, após um pouco de reflexão, fora um erro de sua parte tentar estabelecer o QG naquela parte da cidade, mesmo se as coisas pareciam desertas: muito risco de descoberta, circunstâncias complicadas ou comprometedoras.
Como bem ficaram sabendo na noite anterior com a visita daquele Sombra.
Fechando os olhos brevemente, ele pensou como era estranho que os eventos podiam se suceder muito além das intenções originais de alguém. Se não por aquela intromissão do Sombra, ele se perguntava se um dia teria conseguido rastrear a sua Escolhida. E se ele não a tivesse seguido até a clínica, não teria descoberto que ela estava grávida... tampouco teria descoberto a respeito da Irmandade.
Lançando-se no vento impiedoso, materializou-se no teto do mais alto arranha-céu da cidade. As rajadas de vento eram cruéis naquela altitude, açoitando seu casaco ao redor do corpo, o coldre da foice era tudo o que mantinha nas costas. O cabelo, que crescia cada vez mais, emaranhava-se, obscurecendo a sua visão da cidade que se estendia aos seus pés.
Ele se virou na direção da montanha do Rei, a grande elevação no horizonte.
– Pensávamos que estivesse morto.
Xcor girou sobre as botas de combate, o vento afastando o cabelo do rosto.
Throe e os outros formavam um semicírculo ao redor dele.
– Ai de mim! Ainda vivo e respiro – mas, na verdade, ele só se sentia morto. – Como são as novas acomodações?
– Onde esteve? – Throe exigiu saber.
– Por aí – ao piscar, ele se lembrou de ter vasculhado aquele cenário estranho e enevoado, circundando a base da montanha. – As novas acomodações, como elas são?
– Boas – murmurou Throe. – Posso falar com você?
Xcor levantou uma sobrancelha.
– De fato, você parece ansioso em fazer isso.
Os dois se afastaram um pouco, deixando os outros ao vento e, sem querer, ele acabou ficando de frente para a direção do complexo da Irmandade.
– Você não pode fazer isso – disse Throe acima das rajadas enregelantes. – Não pode simplesmente desaparecer durante o dia inteiro. Não neste cenário político... nós deduzimos que você tivesse sido morto, ou pior, capturado.
Houve uma época em que Xcor teria rebatido essa censura com uma repulsa afiada ou algo mais físico. Mas seu soldado estava certo. As coisas estavam diferentes no grupo deles – desde que enviara Throe para o covil do lobo, ele começara a sentir uma ligação recíproca com aqueles machos.
– Eu lhe garanto, não foi intencional.
– Então, o que aconteceu? Onde esteve?
Naquele instante, Xcor viu uma encruzilhada à sua frente. Uma direção levava ele e seus soldados à Irmandade, para um conflito sangrento que mudariam suas vidas para sempre para o bem ou para o mal. A outra?
Ele pensou em sua Escolhida sendo sustentada por aqueles dois lutadores, com tanto cuidado como se fosse de vidro.
Optou por essa direção.
– Estive no armazém – ouviu-se dizer após um momento. – Passei o dia lá. Voltei para lá distraído, e já era tarde demais para ir para qualquer outra parte. Passei as horas do dia no subterrâneo, e meu telefone não tinha sinal. Vim para cá assim que saí do prédio.
Throe franziu o cenho.
– Já faz tempo que o sol se pôs.
– Perdi a noção do tempo.
Aquilo era tudo o que estava disposto a informar. Nada mais. E seus soldados devem ter sentido esse limite de demarcação e, ainda que as sobrancelhas de Throe permanecessem tensas, ele não disse nada mais.
– Só preciso resolver um detalhe aqui e depois partiremos para encontrar nossos inimigos – declarou Xcor.
Ao pegar o celular, ele não teria como ler a tela, mas sabia como acessar a caixa de mensagens. Havia algumas ligações não recebidas – muito provavelmente de Throe e dos outros. E depois houve uma mensagem de alguém de quem ele esperava notícias.
– Sou eu – anunciou Elan, filho de Larex. Houve uma pausa, como se em sua mente estivesse ouvindo uma fanfarra de trompetes. – O Conselho vai se reunir amanhã à meia-noite. Pensei que você deveria saber. O local é uma propriedade aqui na cidade, cujos donos recentemente retornaram de sua casa segura. Rehvenge foi bem insistente quanto ao agendamento, portanto só posso deduzir que nosso caro lídher esteja trazendo uma mensagem do Rei. Eu o manterei informado quanto ao que se suceder, mas não espero vê-lo lá. Fique em paz, meu aliado.
Quando ele apertou o botão de apagar a mensagem, Xcor expôs as presas, e o ressurgimento da sua raiva foi bom – uma volta à normalidade.
Como aquele aristocratazinho afetado ousava lhe dizer o que fazer?
– O Conselho irá se reunir amanhã – disse ele ao guardar o telefone.
– Onde? Quando? – perguntou Throe.
Xcor olhou por sobre a cidade até a montanha. Depois deu as costas para aquele ponto cardinal.
– O caro Elan determinou que não devemos estar lá. O que ele falha em perceber é que isso será escolha minha. Não dele.
Como se deixar de informar o endereço o impedisse de ir caso ele assim o desejasse?
– Chega de conversa – ele caminhou até o restante dos seus soldados. – Vamos descer às ruas e nos engajar como fazem os soldados.
Entre as suas omoplatas, a foice começou a falar com ele mais uma vez, a voz clara em sua mente, suas palavras sedentas por sangue como a súplica de uma amante.
Seu silêncio fora por demais perturbador.
Não foi com pouco alívio que ele se desmaterializou do alto de arranha-céu, o seu desejo férreo direcionando suas moléculas na direção do chão e no campo de batalha. De tantas maneiras, as 24 horas anteriores se passaram como se tivessem sido vividas por outra pessoa.
Todavia, ele voltava para a sua boa e velha pele.
E pronto para matar.
CAPÍTULO 47
Qhuinn estava a dezessete quilômetros por hora numa corrida de 32 quilômetros na esteira quando a porta da academia do centro de treinamento se abriu.
No segundo em que ele viu quem era, pôs-se nas barras laterais da máquina e apertou o botão de parar: Blay estava parado na soleira, com os olhos arregalados e o rosto todo abatido – e não porque alguém o tivesse surrado ou algo assim.
– O que aconteceu? – Qhuinn exigiu saber.
Blay enfiou uma mão nos cabelos ruivos.
– Hum... Layla está na clínica...
– Merda – ele saltou da máquina e seguiu para a porta. – O que aconteceu...
– Não, não, nada. Ela só está lá para um consulta de rotina. É só isso – o cara deu um passo para o lado, deixando a saída livre. – Imaginei que você quisesse saber.
Qhuinn franziu o cenho e parou bem onde estava. Ao perscrutar a expressão do macho, chegou a uma conclusão que o deixou ansioso: Blay estava escondendo alguma coisa. Difícil determinar como ele sabia disso, mas, pensando bem, depois de uma amizade desde a infância, você aprende a ler nas entrelinhas.
– Você está bem? – perguntou-lhe.
Blay indicou a direção da clínica.
– Sim. Claro. Ela está na sala de exames neste instante.
Certo, obviamente o assunto estava encerrado.
Reagindo, Qhuinn trotou pelo corredor e quase explodiu porta adentro. No último segundo, porém, um senso de decoro o impediu de fazer isso. Alguns exames em fêmeas grávidas envolviam lugares privados – e por mais que ele e Layla tivessem feito sexo, eles certamente não eram íntimos a esse ponto.
Por isso, bateu à porta.
– Layla? Você está aí?
Houve uma pausa e depois a doutora Jane abriu a porta.
– Olá, pode entrar. Estou contente que Blay o tenha encontrado.
O rosto da médica nada revelava – e isso o deixou psicótico. De modo geral, quando os médicos agiam daquele modo cortês e profissional, as notícias não eram boas.
Olhando além da fêmea de V., ele se concentrou em Layla, mas foi Blay quem ele segurou, agarrando-o pelo braço.
– Fique, se puder? – Qhuinn disse pelo canto da boca.
Blay pareceu surpreso, mas atendeu ao pedido dele, fechando a porta atrás de si após entrar.
– O que está aconteceu? – Qhuinn quis saber.
Consulta de rotina o seu rabo. Os olhos de Layla estavam arregalados e um pouco perturbados, as mãos irrequietas remexendo no cabelo longo.
– Houve uma mudança – disse a doutora Jane com hesitação.
Pausa.
Qhuinn quase gritou.
– Ok, preste atenção, se ninguém me disser que merda está acontecendo, vou perder a cabeça no meio desta sala...
– Estou grávida – Layla deixou escapar.
E como isso representava uma mudança?, ele se perguntou com a cabeça começando a zumbir.
– Isto é, o aborto parece ter parado – explicitou Jane. – E ela continua grávida.
Qhuinn piscou. Depois balançou a cabeça – mas não de um lado para o outro, mas sim como se alguém estivesse masturbando um globo de neve.
– Não entendi.
A doutora Jane se sentou numa banqueta de rodinhas, e abriu o prontuário no colo.
– Eu mesma fiz o exame de sangue. Há uma pequena alteração no equilíbrio dos hormônios gestacionais...
– Vou vomitar – Layla interrompeu. – Agora...
Todos se apressaram para a pobre fêmea, mas Blay foi o mais esperto. Ele pegou um cesto de lixo e foi isso o que a Escolhida usou.
Enquanto ela vomitava, Qhuinn amparou sua cabeça e se sentiu meio tonto.
– Ela não está bem – disse à médica.
Jane sustentou o olhar dele por sobre a cabeça de Layla.
– Essa é uma parte normal da gestação. Pelo visto, para as vampiras também...
– Mas ela está sangrando...
– Não está mais. E eu fiz um ultrassom. Posso ver o saco gestacional. Ela ainda está grávida...
– Ai, merda! – Blay exclamou.
Por uma fração de segundo, Qhuinn não conseguiu entender por que o cara estava praguejando. Mas logo percebeu que... hum, o teto mudara de lugar com a parede.
Não, espere.
Ele estava desmaiando.
Seu último pensamento consciente foi o de que foi muito bom Blay o amparar enquanto ele despencava como uma árvore cortada na floresta.
No contexto dos idiomas, existiam palavras muito mais importantes do que “estar”. Existiam palavras elegantes, palavras históricas, palavras que valiam a vida ou a morte. Havia trava-línguas com polissílabas que exigiam esforço para serem pronunciadas, e missões críticas essenciais que começavam e terminavam guerras... e mesmo poesias sem sentido que pareciam sinfonias ao saírem dos lábios.
De modo geral, “estar” não era usado por garotos crescidos. Na verdade, mal tinha uma definição e, no decorrer de sua vida, não passava de uma ponte, um conduíte de outras palavras mais importantes em qualquer sentença.
Havia, no entanto, um contexto em que tal palavrinha de cinco letras e de apenas duas sílabas era de arrasar quarteirão.
No que se referia ao amor.
A diferença de “amar” em comparação com “estar amando, estar apaixonado” era a uma freada ante o Grand Canyon. A cabeça de um alfinete em todo o Meio-Oeste. Uma expiração ante um furacão.
Agora entendo por que ele...
Enquanto Blay permanecia no chão da sala de exames com o corpo mole de Qhuinn em seu colo, ele não conseguia, nem que sua vida dependesse disso, lembrar-se o que Layla dissera em seguida. Teria sido “ama você”? Bem, nesse caso, sim, ele sabia que o cara o amava como um amigo há décadas. E isso não mudava nada.
Ou teria sido com o acréscimo do “estar”?
Nesse caso, ele estava meio que considerando imitar Qhuinn e dar um tempo no piso de ladrilhos.
– Como vai o meu outro paciente? – a doutora Jane perguntou enquanto Layla se largava de novo na maca.
– Respirando – respondeu Blay.
– Ele vai melhorar.
Era de se esperar, Blay pensou ao se concentrar no rosto de Qhuinn – como se aquelas feições conhecidas, mesmo ele estando apagado, pudessem lhe dar a resposta para sua pergunta de um ou outro modo.
A Escolhida não poderia ter dito “está apaixonado”.
Não podia ser isso. Ele simplesmente se recusava a deixar que duas sessões de sexo excelente reescrevessem as palavras de alguém.
– Tem certeza de que isso é normal? – ele ouviu Layla perguntar à médica.
– O vômito? De acordo com o que Ehlena me contou antes, por certo pode ser parte dos sintomas de uma gestação bem-sucedida. Na verdade, é um sinal claro de que as coisas estão progredindo bem. São os hormônios.
– Eu não tenho que voltar ao consultório de Havers, tenho?
– Bem, Ehlena está voltando da visita ao pai hoje à noite. Por isso, precisamos ver o quanto ela se sente à vontade tratando-a... e depois nós veremos em que ponto você está. Não vou mentir... considero isto um milagre.
– Concordo.
Enquanto as fêmeas conversavam, Blay manteve o olhar nas pálpebras fechadas de Qhuinn. Era um milagre, podem acreditar.
Como se estivesse programado, o cara recuperou os sentidos naquele instante, os cílios escuros se mexendo como se tentassem decidir se ele falava sério quanto a essa coisa de ficar consciente.
– Layla! – ele exclamou ao se erguer de pronto.
Blay se empurrou para trás, soltando-se dele. Sentindo-se um pouco idiota.
Ainda mais quando Qhuinn se pôs de pé e foi para perto da fêmea.
Blay ficou onde estava, recostando-se no armário debaixo da pia, com os joelhos erguidos, as mãos sobre as coxas. Mesmo que isso o estivesse dilacerando, ele não conseguiu deixar de olhar os dois juntos, a mão da adaga de Qhuinn impossivelmente gentil enquanto afastava os cabelos loiros de Layla do rosto.
Ele dizia algo a ela, algo suave e reconfortante.
Antes de Blay se dar conta, ele já estava no corredor, andando para algum lugar, qualquer lugar. Por mais difícil que fosse aceitar a compaixão de Qhuinn... era simplesmente impossível testemunhá-la sendo dada a outra pessoa – mesmo que essa pessoa fosse merecedora. A ideia de que Layla tivesse recebido em seu cio exatamente o que ele tivera nos dois últimos dias fazia seu peito doer, mas o que era pior? Ao que tudo levava a crer, o esforço físico com ela servira a um propósito biológico. Ela estava grávida – e, graças a Payne, ele tinha a sensação de que ela continuaria desse modo.
Apesar de tudo, ele fizera a coisa certa ao procurar a irmã de V. no dia anterior. Deduzindo que isso tivesse sido a causa da incrível reviravolta. Mas, ainda assim, e mesmo que não fizesse sentido, ele sentia como se...
– Você está bem?
Ele parou de súbito com o choque de ouvir a voz de Qhuinn. Pensara que o cara ficaria com Layla.
Preparando-se, enfiou as mãos nos bolsos e respirou fundo antes de se virar.
– Sim, estou bem. Só imaginei que vocês dois quisessem um pouco de privacidade.
– Obrigado por ir me amparar – ele ergueu as mãos. – Não sei o que aconteceu ali dentro.
– Alívio.
– Pode ser.
Houve um instante embaraçoso. Mas, pensando bem, eles eram especialistas nisso, não?
– Bem, vou voltar para a casa – Blay forçou um sorriso, na esperança de que o cara acreditasse. – É bom ter uma noite de folga.
– Ah, é. Saxton deve estar à sua espera.
Blay abriu a boca, mas se segurou antes que um “por quê?” escapasse dos seus lábios.
– É, ele está. Cuide de sua garota. Eu o vejo na Última Refeição, talvez.
Ao sair andando e entrar na recepção, ele sabia que estava sendo um covarde por se esconder atrás de uma relação inexistente. Mas, quando você se corta, você precisa de um Band-Aid.
Cristo, não era de se admirar que Saxton tivesse rompido com ele.
Que romântico...
CAPÍTULO 48
Enquanto Assail passava pelos enormes portões da propriedade na parte abastada de Caldwell, ele se sentia aborrecido. Irritado. E não só porque vinha se drogando com cocaína com regularidade sem se alimentar.
O chalé ficara à esquerda, e ele estacionou o Range Rover de frente, debaixo de uma das janelinhas alegres. Ele preferiria ter se desmaterializado até lá – tão menos complicado. Mas, depois de ter deixado os gêmeos numa boate gótica, o Iron Mask, ele se deparou com a realidade de que, caso não se alimentasse, não seria capaz de continuar em frente.
Ele odiava aquilo. Não que ele se importasse com o custo. O problema era que ele não se sentia atraído pela fêmea – e não apreciava as tentativas dela de modificar a situação.
Abrindo a porta, ele saiu, e o ar frio que o atingiu no rosto lhe deu um chacoalhão, fazendo-o perceber o quão lento estivera.
Naquele mesmo instante, um carro passou pela rua da frente, um tipo de sedã nacional.
E foi quando a portinhola do chalé se abriu.
As presas de Assail formigaram quando a fêmea na soleira foi percebida pelos seus sentidos. Vestida em uma roupa sensual preta, ela estava pronta para ele, o cheiro inebriante da sua excitação marcava o ar, embora não fosse isso o que provocou a sua luxúria. Era a veia dela, nada mais, nada menos...
Assail franziu o cenho e olhou para além do chalé, para a floresta que margeava a propriedade.
Em meio às arvores esqueléticas, as luzes traseiras do carro que acabara de passar ficaram vermelhas. Então, quem quer que estivesse ali, fez uma curva, formando um círculo com os faróis dianteiros – e depois eles se apagaram.
Imediatamente, Assail procurou a pistola.
– Entre. Não estamos sozinhos.
A fêmea guardou as boas-vindas e desapareceu dentro do chalé, fechando a porta com um baque.
Desmaterializar-se na floresta seria a melhor tática, mas claro, ele estava faminto demais para isso.
Abruptamente, o vento mudou de direção e veio a seu encontro, e suas narinas se dilataram.
Assail grunhiu baixinho – e não como um alerta. Mais como um tipo de cumprimento.
Como se um dia ele conseguisse se esquecer daquela combinação específica de feromônios.
Sua ladrazinha invertera as posições, fazendo com ele exatamente aquilo que ele fizera com ela na noite anterior. Há quanto tempo ela estava no seu rastro?, ele se perguntou com uma medida de respeito crescendo em seu peito ao mesmo tempo em que ficava frustrado.
Ele não gostou da ideia de que talvez ela o tivesse visto debaixo da ponte. Conhecendo-a, porém, não tinha como excluir essa possibilidade.
Inspirando profundamente, ele não percebeu nada de significativo. O que significava que ela estava sozinha.
Coletando informações? Para quem?
Assail virou-se de volta para o chalé e sorriu sombriamente. Sem dúvida, uma vez que ele entrasse, ela se aproximaria... e quem era ele para não lhe propiciar um espetáculo?
Ele bateu uma vez, e a fêmea abriu a porta novamente.
– Está tudo bem? – perguntou ela.
Seus olhos percorreram o rosto dela, demorando-se nos cabelos. Eram escuros. Espessos. Parecidos com os de sua ladrazinha.
– Tudo certo. Era somente um humano com problemas no carro.
– Então, não há nada com que se preocupar?
– Absolutamente nada.
Enquanto o alívio abrandava a expressão dela, ele fechava e trancava a porta.
– Estou tão contente que tenha vindo me procurar novamente – disse a fêmea, deixando as duas aberturas de renda do robe de cetim se afastarem.
Esta noite ela vestia uma camisola preta que elevava os seios e apertava a cintura a ponto de ele pensar que poderia envolvê-la com apenas uma mão. O cheiro dela era exagerado: excesso de creme para mãos, para o corpo, xampu, condicionador e perfume marcando seu corpo.
Ele bem que queria que ela não se desse a esse trabalho.
Movendo rapidamente os olhos, Assail verificou a posição das janelas. Naturalmente, nada havia mudado: havia duas estreitas em cada lado da lareira. Três peças de vidro sobre a pia. E o parapeito da bay window à esquerda sobre o qual havia um assento embutido com diversas almofadas e almofadinhas bordadas em ponto cruz.
Sua ladra escolheria a janela à direita da lareira. Ela ficava longe da iluminação da porta de entrada, e sob o abrigo da chaminé.
– Está pronto para mim? – a fêmea ronronou.
Assail enfiou a mão dentro da jaqueta. Os mil dólares em dinheiro vivo estavam dobrados uma vez, as dez notas de cem formando um livrinho fino.
Movendo-se sinuosamente, ele ficou de costas para a bay window e para a lareira. Por algum motivo, não queria que a sua ladra o visse fazendo o pagamento.
O resto do que estava para acontecer, todavia, ele bem queria que ela testemunhasse.
– Aqui está.
Quando a fêmea apanhou o dinheiro, ele desejou que ela não contasse. E ela não o fez.
– Obrigada – ela recuou e colocou as notas num pote de cerâmica vermelha. – Vamos?
– Sim. Vamos.
Assail se aproximou e assumiu o controle, segurando o rosto da fêmea entre as mãos, inclinando a cabeça dela para trás e beijando-a com avidez. Em resposta, ela gemeu, como se o avanço inesperado fosse algo que ela não só acolhia como não ousara esperar.
Ele ficou satisfeito que ela tivesse apreciado. Mas o prazer dela não era o que ele buscava.
Movendo-a, ele a levou até o sofá que estava na parede oposta do chalé, empurrando-a com o corpo, usando sua força para deitá-la com a cabeça na direção da lareira. Enquanto ela se reclinava, abriu os braços para as laterais, fazendo os seios subirem até brigarem com a barreira de cetim que os cobria.
Assail deitou-se por cima dela completamente vestido, ainda de casaco, o joelho separando os dela, uma das mãos descendo para subir a camisola...
– Não, não – disse ele quando ela tentou segurá-lo pelo pescoço. – Quero ver você.
Tolice. Ele queria que ela fosse vista pela janela.
Enquanto ela o obedecia prontamente, ele voltou a beijá-la e a afastar a longa saia do caminho – e no segundo que em que ela foi afastada, a fêmea abriu bem as pernas.
– Entre em mim – disse ela, arqueando-se debaixo dele.
Bem, aquilo não seria possível. Ele não estava excitado.
Mas ninguém precisava saber aquilo.
A fim de parecer fervoroso, ele tirou o casaco dos ombros, e com uma mordida leve das presas, rasgou as alças da camisola, expondo os seios da fêmea à luz da lareira, os mamilos instantaneamente enrijecendo como picos sobre a pele alva.
Assail fez uma pausa, como se embevecido pelo que via. Depois, esticou a língua e abaixou a cabeça.
No último instante, antes que começasse a lamber e a sugar, ele ergueu os olhos, concentrando-se na janela escura da direita, encontrando o olhar fixo da mulher que ele sabia que estava nas sombras, observando-o...
Um golpe de lascívia pura e simples atravessou seu corpo, tomando conta, substituindo seu juízo como motivador das suas ações. A fêmea debaixo dele deixou de ser uma de sua própria espécie que ele comprava por um tempo breve.
Ela se tornou a sua ladra.
E isso mudou tudo. Com um rompante, ele atacou a garganta da fêmea, tomando sua veia, sugando aquilo que ele tanto precisava...
E imaginando, o tempo inteiro, que a mulher humana estava debaixo dele.
Sola arfou...
E se afastou da janela do chalé.
Quando as costas bateram na lateral dura da chaminé de pedra, ela fechou os olhos, seu coração começou a bombear contras as costelas, os pulmões tragando o ar frio.
Atrás de suas pálpebras, tudo o que ela via eram os seios nus expostos diante dele, a cabeça escura descendo, a língua se projetando para fora da boca... e os olhos dele se erguendo para encará-la.
Oh, Jesus, como ele soubera que ela estava ali?
Ah, merda, ela nunca esqueceria a imagem da mulher estendida debaixo dele, o casaco deixado de lado, o corpo dele subindo para se encaixar entre aqueles quadris esbeltos. Ela conseguia imaginar o calor da lareira ao lado deles, e o calor ainda maior surgindo de dentro dele – a sensação da pele contra a pele, da promessa do êxtase.
Não olhe de novo, ela disse a si mesma. Ele sabe que você está aqui...
O grito agudo do orgasmo da mulher vibrou por todo o chalé, perturbando a aparência pacata do lugar.
Sola se inclinou sobre a janela novamente, espiando pelo vidro... mesmo sabendo que não deveria fazer isso.
Ele estava dentro da mulher, a parte baixa do corpo bombeando, o rosto aninhado no pescoço dela, os braços afastados para ancorar o peso da parte de cima do corpo.
Ele não olhou mais para cima. E continuou ocupado por um bom tempo.
Agora era a hora de recuar.
Além disso, será que ela precisava mesmo ver aquilo?
Com uma imprecação, Sola se afastou sorrateiramente dali, passando pelo gramado rasteiro, esquivando-se das árvores baixas sem folhas. Quando chegou ao carro alugado, entrou, trancou as portas e deu a partida.
Fechando os olhos uma vez mais, rememorou toda a cena: a sua aproximação do chalé, da janela, ficando nas sombras lançadas pela chaminé.
Ele do outro lado da sala, a mulher de frente para ele, o corpo gracioso coberto pelo cetim preto, o cabelo escuro que cobria as costas inteiras. Ele amparando o rosto dela e beijando-a, os ombros se curvando ao se inclinar para manter contato com uma expressão profundamente erótica...
E depois ele levou a mulher até o sofá.
Ainda que ficasse mortificada por admitir, Sola sentiu uma pontada de ciúme irracional. Mas isso não foi o pior: seu próprio corpo reagira, seu sexo florescendo entre as pernas como se a sua boca tivesse sido beijada, a sua cintura fosse aquela segurada por ele, seus seios comprimidos contra o peito dele. E essa reação só se intensificara quando ele posicionara a mulher no sofá, o rosto dele marcado por uma avidez sombria, os olhos cintilando como se debaixo dele houvesse uma refeição a ser degustada.
Observar era errado. Assistir era errado.
Mas mesmo a ameaça à sua segurança pessoal – e, discutivelmente, sua saúde mental – não bastaram para afastá-la daquele vidro. Ainda mais quando ele recuara para tirar o casaco dos ombros. Fora impossível não visualizá-lo nu, vendo o peito largo exposto na luz da lareira, imaginando como seu abdômen se curvaria sob a pele... E depois, pareceu que ele a tivesse mordido – mordido, pelo amor de Deus –, arrancando as alças finas do corpete da camisola.
E bem quando os malditos seios perfeitos da mulher ficaram expostos... ele teve que olhar para ela.
Sem nenhum tipo de aviso, aqueles olhos cintilantes e predatórios se elevaram e cravaram diretamente nela, um sorriso furtivo surgindo no canto da boca.
Como se o show fosse para ela.
– Merda. Merda.
Uma coisa estava clara: se o que ele quis foi lhe ensinar uma lição sobre espionagem, era difícil pensar num modo melhor – além de fazê-la comer a ponta do cano de uma .40.
Sola saiu do acostamento e tomou a estrada. Enquanto o Ford Taurus demorou dezesseis quilômetros para chegar ao limite de setenta quilômetros por hora, ela desejou estar em seu Audi: com o sangue ainda correndo rápido nas veias, ela precisava de uma forma exterior de expressar o rugido preso em seu corpo.
Algum tipo de vazão.
Como... sexo, por exemplo.
E não consigo mesma.
CAPÍTULO 49
No que se referia aos padrões dos Grandes Campos de Andirondack, a casa de Rehv tinha tudo: uma enorme mansão rústica ladeada por cedros e recoberta por varandas. Um sem-número de construções externas, inclusive chalés para hóspedes. Vista para o lago. Muitos quartos.
Depois que Trez e iAm se materializaram no jardim lateral, eles deram a volta pela neve até a entrada dos fundos pela cozinha. Mesmo no inverno, o lugar emanava boas vibrações, com aquele brilho cálido atravessando os vidros cortados em forma de diamante. Mas nem tudo era do Mundo do Faz de Conta: os abastados vitorianos que construíram aquele complexo como um escape ao calor e das cidades industrializadas durante os verões muito provavelmente não o equiparam com detectores de movimento a laser, travas de última geração nas portas e janelas, e não uma, mas várias placas-mães diferentes para controlar um sistema de alarme multiface e completamente integrado.
Uau.
A impressão digital de Trez no painel discretamente colocado à esquerda da porta permitiu a entrada ao interior da casa – para uma cozinha de tamanho industrial que estava guarnecida com equipamentos de aço inoxidável no mesmo nível dos do Sal’s.
Algo estava assando no forno imenso. Pelo cheiro, parecia pão.
– Estou com fome – observou Trez ao fechar a porta. O mecanismo de tranca fechou a porta por si só, mas ele verificou se ela estava trancada mesmo assim por força do hábito.
Ao longe, alguém passava o aspirador – provavelmente uma Escolhida. Desde que Phury assumira o posto de Primale e basicamente libertara o grupo enclausurado de fêmeas do Outro Lado, Rehv as deixava ficar nos Grandes Campos. Fazia sentido. Muita privacidade, especialmente fora da alta temporada, além de que o distanciamento com a cidade propiciava uma transição suave da uniformidade plácida do santuário para a natureza frenética, se é que Trez entendera corretamente, e por vezes traumática da vida na Terra.
Fazia tempo que ele não ia até a casa – não desde que as Escolhidas foram morar ali, para falar a verdade. Pensando bem, quando Rehv explodira o Zero Sum e pusera um fim ao seu papel de rei das drogas, aquela dívida entre eles perdera um pouco da sua força de retribuição.
Além disso, agora que o cara não tinha mais de fazer entregas de garotas e sexo para a princesa, não havia muitos motivos para ir para o norte.
Ao que tudo levava a crer, porém, aquilo mudara.
– Ei, Rehv, você está aí? – Trez chamou com a voz ecoando.
Por mais que seu estômago protestasse, ele e o irmão saíram para o átrio principal. Objetos vitorianos estavam por toda a parte, desde os tapetes orientais multicoloridos no chão até os bancos cobertos de tapeçaria, incluindo as cabeças de bisão, de cervo, de alce e de lince empalhadas e montadas ao redor da lareira.
– Rehv! – ele chamou novamente.
Caramba, aquele abajur de guaxinim sempre o aterrorizara. Assim como a coruja empalhada com óculos de sol.
– Ele já vai descer.
Trez se virou para a voz feminina.
E, naquele instante, o curso de sua vida mudava para sempre.
A escada que vinha do segundo andar era reta, os degraus baixos e a grade simples emergindo de cima sem nenhum artifício arquitetônico.
A fêmea em seu manto branco parada à base a transformava na escadaria do paraíso. Ela era alta e magra, mas as curvas estavam presentes nos lugares certos; o vestido solto não conseguia esconder o busto alto e a graciosidade das curvas dos quadris. A pele era lisa e da cor de café com leite, o cabelo escuro estava amarrado num coque no alto da cabeça. Os olhos eram claros emoldurados por cílios espessos. Os lábios eram cheios e rosados.
Ele quis beijá-los.
Especialmente quando eles se moveram, enunciando alguma coisa que ela dizia com precisão intoxicante...
O cotovelo pontudo de iAm o atingiu nas costelas e o fez dar um pulo.
– Ai! Mas que mer... digo, que droga. Cacete, quero dizer, caramba.
Belo modo de parecer calmo e controlado, cretino.
– Ela perguntou se queremos comer – iAm murmurou. – Eu agradeci, mas recusei. Agora é a sua vez.
Ah, como ele queria comer uma coisa... Queria cair de joelhos aos pés dela e se enfiar debaixo da...
Trez fechou os olhos e se sentiu como um absoluto idiota.
– Não, estou bem.
– Pensei que você tivesse dito que estava com fome.
Trez arregalou os olhos e encarou o irmão. O cara estava tentando fazer com que ele fizesse papel de idiota?
O brilho no olhar de iAm sugeria que sim.
– Não. Estou bem – ele resmungou. Entrelinhas: Não force a barra, babaca.
– Eu estava indo verificar o meu pão.
Os olhos de Trez se fecharam novamente, a voz da Escolhida tilintando em seus ouvidos, o som tanto elevando a sua pressão sanguínea quanto o acalmando ao mesmo tempo.
– Sabe – ele se ouviu dizer –, talvez eu vá dar uma olhada para ver se arranjo alguma coisa para comer.
Ela sorriu para ele.
– Siga-me. Estou certa de que posso encontrar algo do seu gosto.
Enquanto ela seguia para a porta pela qual eles tinham acabado de sair, Trez piscou como o idiota que era.
Fazia muito, muito tempo desde que uma fêmea lhe dizia algo sem um sentido duplo... mas até onde ele podia afirmar, aquelas palavras, que discutivelmente podiam ser consideradas uma cantada – pelo menos para o seu filtro de luxúria – não carregavam nenhuma promessa de um boquete ou de sexo carnal. Nem mesmo de uma simples atração.
Naturalmente, isso fez com que ele a desejasse ainda mais.
Seus pés partiram naquela direção, o corpo seguindo como um cão seguiria seu dono, sem um segundo pensamento a não ser ir atrás do caminho escolhido por ela para ele...
iAm o agarrou pelo braço e o puxou de volta.
– Nem pense nisso.
O primeiro impulso de Trez foi se soltar, mesmo se isso significasse deixar o braço para trás nas mãos do irmão.
– Não sei do que está falando...
– Não me obrigue a segurar a sua ereção para provar o que estou dizendo – iAm sibilou.
Entorpecido, Trez olhou para baixo. Ótimo. Olha ali.
– Eu não vou... – fodê-la era o que lhe vinha à mente, mas, por Deus, ele não podia usar essa palavra ao redor daquela fêmea, mesmo que hipoteticamente. – Sabe, fazer nada.
– Você espera mesmo que eu acredite nisso?
Os olhos de Trez partiram para a porta pela qual ela desaparecera. Merda. Ele não tinha credibilidade nenhuma no quesito abstinência.
– Ela não está disponível para você, veja se me entende – iAm disse, rangendo os dentes. – Isso não seria justo para alguém como ela; mais especificamente, se você fizer isso, Phury vai atrás de você com uma adaga negra. A dele, não a sua.
Por uma fração de segundo, Trez ficou indignado com isso – não porque seu lado feminista interior se opusesse ao fato de as fêmeas serem tratadas como propriedade, ainda que isso fosse errado. Não, era porque...
Minha.
De algum lugar em seu cerne, Trez arrancou seu subconsciente do precipício no qual, inesperadamente, ele se via caindo.
O rei sympatho descia pela mesma escada que a Escolhida utilizara, a bengala equilibrando-o, o casaco de marta preto mantendo seu corpo aquecido.
Enquanto iAm dizia algo e Rehv respondia, Trez voltou a olhar para a porta da cozinha. Ah, o que será que ela estava fazendo ali... Puxa... Provavelmente se inclinando para espiar o pão...
Um grunhido sutil emanou de sua garganta.
– O que disse? – Rehv perguntou com o olhar se estreitando.
Outra cotovela em suas costelas trouxe Trez de volta à realidade.
– Desculpe. Indigestão. Como vai?
Rehv ergueu uma sobrancelha, depois deu de ombros.
– Preciso da ajuda de vocês.
– Pode falar – respondeu Trez com sinceridade.
– Haverá uma reunião do Conselho amanhã à noite. Wrath estará presente. A Irmandade lhe dará proteção, mas quero que vocês dois também estejam presentes.
Trez se retraiu. O Conselho se reunia com regularidade antes da onda de ataques de alguns anos atrás, e Rehv jamais precisou de reforços.
– O que está acontecendo?
– Wrath foi alvejado no outono passado.
Mas. Que. Merda.
Trez cerrou o maxilar.
– Quem foi o responsável? – afinal, ele gostava do Rei.
– O Bando de Bastardos. Vocês não o conhecem, mas podem encontrá-los amanhã à noite... se concordarem em ir.
– Claro que iremos – quando iAm assentiu em concordância, Trez cruzou os braços sobre o peito. – Onde?
– Estou organizando tudo numa propriedade em Caldwell à meia-noite. É uma das poucas que não foi infiltrada pela Sociedade Redutora... De qualquer forma, a família foi quase que completamente dizimada, pois visitavam um parente na cidade quando o ataque ocorreu – Rehv prosseguiu e se sentou no sofá de tapeçaria, girando a bengala no chão entre as pernas. – Deixe-me lhes dizer como vai ser. Wrath agora está completamente cego, mas a glymera não sabe disso. Quero que ele esteja sentado na sala principal quando todos aqueles aristocratas chegarem a fim de que não o vejam se apoiando em ninguém para encontrar seu posto. Então...
Enquanto Rehv continuava a explicar o plano, Trez se acomodou diante da lareira e assentiu nos momentos certos.
Em sua mente, porém, ele estava na cozinha, com aquela fêmea...
Qual seria o nome dela?
E mais importante do que isso...
Quando voltaria a vê-la?
CAPÍTULO 50
Lá embaixo, na sala de exames da clínica, Qhuinn se sentia como se estivesse flutuando bem alto. E não do mesmo modo como se sentiu antes do impacto do maldito Cessna com um Irmão ferido nos fundos.
– Desculpe, pode repetir?
A doutora Jane sorriu ao trazer a mesinha móvel para junto da cama. De modo vago, o que havia em cima ficou registrado, mas ele estava mais concentrado no que poderia sair da boca da médica.
– Vocês ainda estão grávidos. Os níveis de hormônios dela estão se duplicando exatamente como o esperado, a pressão está perfeita, os batimentos cardíacos também. E nada mais de sangramentos, certo?
Quando a médica olhou para Layla, a Escolhida assentiu com a cabeça, sua expressão tão assustada quanto ele por certo se sentia.
– Nenhum.
Qhuinn deu alguns passos, passou a mão pelos cabelos, o cérebro dando um nó.
– Não entendo isso... Quero dizer, é o que eu quero... o que nós queremos... mas não entendo como ela...
Depois de descer de montanha-russa para o inferno, era completamente inesperado chegar a uma elevação súbita de volta à Terra.
A doutora Jane apenas balançou a cabeça.
– Isso provavelmente não será de nenhuma ajuda, mas Ehlena também nunca viu nada parecido. Portanto, entendo a confusão de vocês, e, mais do que isso, entendo mais do que podem imaginar como a esperança pode ser traiçoeira. É difícil se entregar ao otimismo depois do que vocês passaram.
Caramba, a shellan de V. não era nenhuma idiota.
Qhuinn se concentrou em Layla. A Escolhida estava vestindo um robe branco, não do tipo que ela usava como membro da seita secreta das fêmeas da Virgem Escriba. Era mais um roupão de todo dia e, por baixo, uma camisola hospitalar com coraçõezinhos rosa e vermelhos sobre um fundo branco. E aquela mesa de rodinhas? Ali estava um pacote de bolachas de água e sal e seis latas de refrigerante.
Que espécie de remédios de balcão de farmácia, hein?
A doutora Jane abriu o pacote.
– Sei que a última coisa em que está pensando é comida – ela estendeu um dos quadrados salgados. – Mas se comer isto e tomar um pouco de refrigerante, talvez as coisas se acomodem melhor por aí.
E sabe que adiantou? Layla acabou comendo metade do pacote e tomou duas latinhas.
– Ajuda mesmo, hein? – Qhuinn murmurou quando a Escolhida se recostou com um suspiro de alívio.
– Você não faz ideia – Layla pousou a mão no ventre. – O que for preciso, eu faço, eu como, eu bebo.
– A náusea é tão ruim assim?
– Não se trata de mim. Não me importo se vomitar por dezoito meses, contanto que o bebê esteja bem. Só temo que se eu vomitar, eu possa... perder... sabe?
Ok, quem disse que as fêmeas eram o sexo frágil não sabia o que estava falando.
Ele olhou para a doutora Jane.
– E o que fazemos agora?
A médica deu de ombros.
– Meu conselho? Confie nos sintomas e nos resultados dos testes, ou vão acabar enlouquecendo. O corpo de Layla está, como sempre esteve, no controle disso tudo. Se neste instante não há nenhum indício de um aborto, mas, na verdade, só motivos para acreditar que a gestação se concluirá com um resultado positivo? Respire fundo e siga em frente, noite após noite. Se ficarem pensando muito no futuro ou no que aconteceu nos últimos dias? Não vão conseguir chegar ao fim disto inteiros.
Verdade, Qhuinn pensou.
O telefone da médica tocou.
– Espere um segundo... Puxa... Tenho que ir dar uma olhada naquele doggen que cortou a mão ontem à noite. Layla, no que me diz respeito, não há motivos médicos para que você fique aqui. Contudo, não quero que saia do complexo nas próximas noites. Vamos dar tempo ao tempo, ok?
– Sim, claro.
A doutora Jane saiu pouco depois, e Qhuinn se sentiu perdido. Ele queria ajudar Layla a voltar para casa, mas ela não estava aleijada, pelo amor de Deus. Ainda assim, sentia vontade de carregá-la pelo resto da bendita gestação.
Ele se recostou no armário de aço inoxidável.
– Eu me pego querendo perguntar como você está a cada dois segundos.
Layla deu uma risada de leve.
– Então somos dois.
– Quer voltar para casa?
– Sabe... não quero, não. Eu me sinto... – ela olhou ao redor – mais segura aqui, para ser bem franca.
– Faz sentido para mim. Precisa de alguma coisa?
Ela indicou a bandeja com itens contra enjoo.
– Contanto que eu tenha isto, estarei bem. E você deve se sentir livre para sair e lutar.
Qhuinn franziu o cenho.
– Pensei em ficar...
– E fazer o quê? Veja bem, não o estou expulsando, mas tenho a sensação de que só vou ficar aqui de molho sem fazer nada. Se alguma coisa acontecer, eu ligo e você pode voltar direto para casa.
Qhuinn pensou para onde a Irmandade e os lutadores se dirigiriam aquela noite: a reunião do Conselho.
Se fosse apenas uma noite normal no campo de batalha, ele provavelmente ficaria ali. Mas com Wrath exposto ao mundo, encontrando-se com aqueles idiotas da glymera?
– Ok – disse devagar. – Vou estar sempre com o telefone e deixarei claro para os outros que se você telefonar, sairei de lá.
Layla tomou um gole de refrigerante e depois ficou olhando para o copo, como se estivesse observando as bolhas emergindo ao redor dos cubos de gelo.
Ele pensou na noite em que estiveram no consultório de Havers – descontrolados, aterrorizados, pesarosos.
Ainda podiam voltar a se sentir assim, ele lembrou. Era cedo demais para se apegar.
E mesmo assim ele não tinha como evitar. Parado no meio da sala coberta de azulejos, com o cheiro de desinfetante Lysol no nariz e a beirada da bancada cutucando-o nas nádegas... ele percebeu que naquele instante começava a amar seu filho.
Ali, naquele momento.
Assim como um macho vinculado a uma fêmea, um pai também se sentia unido ao filho – e, sendo assim, seu coração se abriu e recebeu tudo aquilo de braços abertos: o comprometimento que acompanhava a tentativa de ter um filho, o terror de perdê-lo que nunca se dissiparia, a alegria de existir algo seu na face da Terra depois que você se fosse, a impaciência por conhecê-lo pessoalmente, o desejo desesperado de segurá-lo em seus braços e olhar em seus olhos e lhe dar todo o seu amor.
– Tudo bem se... se eu tocar na sua barriga? – ele perguntou baixinho.
– Claro! Você não tem que pedir – Layla se recostou com um sorriso. – O que está aqui dentro é metade seu, sabia?
Qhuinn esfregou as mãos, nervoso, ao se aproximar da mesa. Obviamente ele tocara em Layla durante o cio e, depois, de maneira obsequiosa quando a situação se fez necessária.
Ele jamais pensara em tocar em seu bebê.
Qhuinn observou de longe sua mão de adaga se esticar. Jesus, as pontas dos dedos estavam trêmulas.
Mas se estabilizaram no momento em que fizeram contato.
– Estou bem aqui – disse ele. – Papai está aqui. Não vou a parte alguma. Vou só esperar até que você esteja pronto para vir ao mundo, e depois a sua mãe e eu vamos cuidar de você. Por isso, aguente firme, estamos combinados? Faça o que for preciso aí, e nós esperaremos o tempo que for preciso.
Com a mão livre, segurou a de Layla e a colocou sobre a sua.
– A sua família está bem aqui. Esperando por você... e nós te amamos.
Era uma tolice falar com o que, sem dúvida, era apenas um montinho de células. Mas ele não teve como evitar. As palavras, as ações... eram, de súbito, todas suas, e mesmo assim vinham de um lugar que lhe era desconhecido.
Contudo, parecia certo.
Parecia... com o que um pai deveria fazer.
Mão esquerda, .40. Confere.
Direita, .40. Confere.
Munição extra no coldre sobre o peito. Confere.
Adagas um e dois no coldre do peito. Confere.
Jaqueta de couro...
Uma batida na porta do quarto de Blay e ele se inclinou para fora do closet.
– Pode entrar.
Quando Saxton entrou, ele ajeitou a jaqueta nos ombros e se virou.
– Oi. Tudo bem?
Alguma coisa estava acontecendo.
Os olhos do macho deram um giro de 360 graus no “guarda-roupa de trabalho” de Blay, como o chamavam. O desconforto fez com que as sobrancelhas de Saxton se unissem no alto; pensando bem, ele nunca se sentira completamente à vontade com armas.
– Vai para o campo de batalha, parece-me... – o macho murmurou.
– Na verdade, para uma reunião do Conselho.
– Não sabia que isso requeria tantas armas como acessórios.
– Nova era.
– Sim, de fato.
Uma pausa longa.
– Como você está?
Os olhos de Saxton percorreram o quarto.
– Eu queria lhe contar pessoalmente.
Ah, droga. E agora, o que seria?
Blay engoliu em seco.
– O quê?
– Vou sair da casa por um tempo... em férias, na verdade – ele mostrou a palma da mão para deter qualquer discussão. – Não, não é algo permanente. Já organizei tudo com Wrath, e não há nada que eu precise fazer nos próximos dias. Naturalmente, se ele precisar, volto imediatamente. Vou ficar com um velho amigo. Preciso mesmo de um pouco de descanso e relaxamento... e, antes que se preocupe, juro que vou voltar, e isto, honestamente, não tem nada a ver com a gente. Faz meses que trabalho sem folga e só quero ficar livre de compromissos, isso faz sentido?
Blay respirou fundo.
– Sim, faz. Onde você... – ele se deteve ao se lembrar de que aquilo não era mais da sua conta. – Se precisar de alguma coisa, é só avisar, certo?
– Prometo.
Num impulso, Blay se aproximou e passou os braços ao redor do ex-amante, a conexão platônica tão natural quanto a antiga apaixonada o fora. Abraçado ao macho, virou o rosto para dentro.
– Obrigado – disse Blay. – Por vir me contar...
Naquele instante, alguém passou no corredor, as passadas hesitando.
Era Qhuinn; Blay soube pelo cheiro antes mesmo de a figura alta e imponente ser registrada visualmente. E na breve hesitação antes de o cara continuar a andar, seus olhos se encontraram por sobre os ombros de Saxton.
O rosto de Qhuinn se fechou numa máscara instantaneamente, as feições congelando, não revelando nada.
E logo o lutador se foi, suas pernas longas afastando-o do batente da porta.
Blay deu um passo para trás e se forçou a se concentrar na despedida.
– Quando vai voltar?
– Em alguns dias, no máximo uma semana.
– Ok.
Saxton olhou de relance pelo quarto novamente, e quando o fez, ficou claro que ele estava se lembrando.
– Fique bem e se cuide. Não tente bancar o herói.
O primeiro pensamento de Blay foi... bem, já que Qhuinn normalmente era o primeiro a fazer isso, era bem improvável que ele tivesse de vestir sua roupa de Super-Homem.
– Prometo.
Quando Saxton saiu, Blay ficou olhando para o vazio. Não enxergou o que havia diante dele, nem se lembrou do que Saxton lhe dissera. Em vez disso, sua mente foi para o quarto ao lado, para Qhuinn e para as coisas de Qhuinn... e para as lembranças daquela sua sessão com Qhuinn.
Merda.
Olhando para o relógio, ele colocou o celular no bolso da jaqueta e saiu. Ao se apressar pela escada, as vozes do vestíbulo ecoaram, num sinal de que a Irmandade já se reunira e estava esperando para o sinal de partida.
Como esperado, todos estavam lá. Z. e Phury. V. e Butch. Rhage, Tohr e John Matthew.
Enquanto descia, viu-se desejando que Qhuinn os acompanhasse, mas, certamente, o macho ficaria em casa, devido à situação de Layla.
Onde estava Payne?, ele se perguntou ao parar ao lado de John Matthew.
Tohr acenou na direção de Blay.
– Ok, só estamos esperando mais um e, em seguida, podemos nos encaminhar. A primeira leva vai até o local do encontro. Quando o “ok” for dado, eu me desmaterializarei com Wrath para a casa com o apoio e...
Lassiter derrapou na porta da sala de bilhar, o anjo caído brilhando desde os cabelos loiros e negros e olhos brancos até os coturnos. Pensando bem, talvez a iluminação não fosse de sua natureza, mas sim de todo aquele ouro que ele insistia em usar.
Ele parecia uma árvore de joias viva.
– Estou aqui. Onde está o meu chapéu de motorista?
– Tome, use o meu – ofereceu Butch, mostrando e lançando um boné com um B. Sox bordado. – Isso vai ajudar com esses seus cabelos.
O anjo pegou o objeto no ar e olhou fixamente para o S vermelho.
– Desculpe, mas não posso.
– Não me diga que é fã dos Yankees? – V. disse de modo arrastado. – Terei que matar você e, francamente, hoje precisamos de todos os reforços de que dispomos.
Lassiter devolveu o boné. Assobiou. Olhou de lado parecendo casual.
– Está falando a verdade? – disse Butch. Como se o cara tivesse se voluntariado a uma lobotomia. Ou a amputação de um membro. Ou a uma pedicure.
– Nem fodendo – ecoou V. – Quando e onde você se tornou amigo do inimigo...
O anjo ergueu as mãos.
– Não é culpa minha se vocês não são de nada...
Tohr teve, de verdade, de se colocar diante de Lassiter, como se estivesse preocupado que algo mais do que simples insultos verbais pudessem acontecer. E o triste era que ele tinha razão em se preocupar. Com exceção de suas shellans, Butch e V. amavam os Sox acima de qualquer outra coisa... inclusive a sanidade.
– Ok, ok – interveio Tohr. – Temos coisas mais importantes com que nos preocupar...
– Uma hora ele vai ter que dormir – Butch murmurou para seu colega.
– Isso aí, olha por onde anda, anjo – V. zombou. – Não gostamos do seu tipo.
Lassiter deu de ombros, como se os Irmãos não passassem de cachorrinhos ganindo ao redor dos seus calcanhares.
– Tem alguém falando comigo? Ou será apenas o som dos perdedores...
Muita gritaria àquela altura.
– Duas palavras, queridos – Lassiter espicaçou. – Johnny. Damon. Ah, espere, Kevin. Youkilis. Ou Wade. Boggs. Roger. Clemens. Será que só a comida é ruim em Boston? Ou também o jogo?
Butch avançou nessa hora, obviamente preparado para acender o cara como a uma árvore de Natal...
– Que merda está acontecendo aqui?!
A voz gritando do alto da escada abafou a disputa Sox versus Yankees.
Enquanto Tohr afastava o tira, todos acompanharam com os olhos a descida do Rei com sua rainha. A presença de Wrath fez com que todos ficassem sérios, profissionais. Até mesmo Lassiter.
Bem, exceto Butch. Mas, pensando bem, ele se mostrava em “alerta máximo”, como ele mesmo dizia, nas últimas 24 horas e tinha bons motivos para estar rabugento: sua shellan participaria da reunião do Conselho. O que, de acordo com o modo de pensar do Irmão, era como ter dois Wraths ali. A questão era que Marissa era a mais velha de sua linhagem, e como Rehv exigia quorum completo, ela tinha de estar presente.
Pobre desgraçado.
Na calmaria que se seguiu, a adaga de Blay começou a formigar, e ele sentiu uma necessidade quase irresistível de pousar a mão em uma arma. Tudo o que ele conseguia pensar era que aquilo era quase idêntico ao prelúdio ao atentado contra Wrath no outono anterior – naquela noite, eles todos se reuniram ali, e Wrath descera com Beth... e uma bala acabara sendo disparada por um rifle, terminando sua trajetória na garganta do Rei.
Aparentemente, ele não era o único a pensar naquilo. Um determinado número de mãos partiu para os coldres em alerta.
– Ah, que bom, aqui está você – disse Tohr.
Blay se voltou com um franzido e teve que engolir a sua reação. Não era Payne que se juntava a eles; mas Qhuinn. E, caramba, o macho parecia mais do que pronto a dar umas pancadas por aí, com os olhos sérios, o corpo tenso como a corda de um arco em seu couro negro.
Por um instante, uma fissura de percepção pura e sexual atravessou Blay.
A ponto de uma fantasia totalmente inapropriada lhe ocorrer: ou seja, ele e Qhuinn se enfiando no depósito para uma rapidinha de roupa e tudo.
Com um gemido, ele voltou a se concentrar no Rei. O que era o mais apropriado. O importante era Wrath, e não a sua maldita vida amorosa...
Uma sensação de desconforto substituiu o tesão.
Será que ele e Qhuinn voltariam a se encontrar algum dia?
Deus, que pensamento estranho. O sexo não era uma boa ideia emocionalmente. De fato, era uma ideia extremamente ruim.
Mas ele queria mais. E que Deus o ajudasse.
– Ok, prontos – anunciou Tohr. – Todos sabem para onde vamos?
Foi um alívio desconcertante ter a natureza séria da missão diante dele para clarear seus pensamentos de tudo que não fosse o comprometimento em manter a vida de Wrath a salvo... mesmo que à custa da sua.
Só que isso era melhor do que se preocupar com a sua situação com Qhuinn.
Não havia dúvidas.
CAPÍTULO 51
Qhuinn se materializou num terraço coberto de neve, e quando todos da Irmandade, exceto Butch, materializaram-se ao seu lado, ele não se surpreendeu com toda aquela pompa. A propriedade em que o Conselho se reuniria estava dentro dos padrões da glymera: um enorme terreno que fora limpo e ajardinado. Um pequeno chalé próximo à entrada que mais parecia pertencer a um cartão postal de Cotswalds. Uma enorme mansão que, neste caso, era feita de pedras com cornijas de dentículos, venezianas lustrosas e telhado de ardósia.
– Vamos em frente – disse V., seguindo para uma porta lateral.
No instante em que ele bateu, a porta se abriu, como se, junto a todo o resto, aquilo tivesse sido pré-arranjado. Mas, hum... aquela era a anfitriã? A fêmea parada na entrada trajava um vestido longo com decote até o umbigo, e ela tinha uma gargantilha de diamantes do tamanho da coleira de um Doberman. O perfume era tão intenso que foi como um golpe nas narinas – apesar de ele ainda estar do lado de fora.
– Estou pronta para vocês – disse ela num tom baixo e intimista.
Qhuinn franziu o cenho, pensando que quem quer que fosse o designer fazia a moça ali parecer uma prostituta. Mas isso não era problema seu.
Enquanto ele caminhava em fila atrás dos outros, o cômodo em que entraram parecia um tipo de conservatório, os vasos imensos e o enorme piano de cauda sugeriam que muitas noites com convidados começavam com um cantor de ópera berrando no canto.
Credo.
– Por aqui – instruiu a fêmea com um floreio de uma mão que reluzia.
Em seu rastro, aquele perfume – talvez fossem sprays de diversas fontes, como camadas de todo tipo de tranqueira? – quase coloria o ar atrás dela, e os quadris trabalhavam duplamente a cada passada, como se ela tivesse esperança de que eles olhassem para o seu traseiro, desejando ter um pedaço daquilo.
Nada disso. Assim como os outros, ele olhava cada canto e refúgio, pronto para atirar e depois fazer perguntas para o corpo estirado no chão.
Só foi quando chegaram ao átrio principal, com todas as pinturas a óleo iluminadas pelo teto, e seus tapetes orientais escuros e...
Puta merda, aquele espelho era exatamente igual ao que estivera pendurado na casa dos seus pais. Na mesma posição, do teto ao chão, a mesma moldura rebuscada em ouro.
Sim, aquilo lhe dava arrepios. Dos grandes.
A casa inteira o lembrava da mansão em que ele crescera, tudo em seu devido lugar, a decoração muito longe da classe média, mas nem um pouco afetada ao estilo de Trump. Não, aquela porcaria toda era uma sutil mistura da fortuna antiga com o senso clássico de estilo que só se tinha com o nascimento, não era algo ensinado.
Seus olhos procuraram Blay.
O cara estava fazendo seu trabalho, sério, verificando o lugar.
O pai e a mãe de Blay não eram ricos daquele modo. Mas a casa deles sempre fora mais confortável de tantas maneiras. Mais quente – e isso não tinha nada a ver com o sistema de aquecimento central.
Como estariam os pais de Blay?, ele se perguntou abruptamente. Passara quase mais tempo debaixo do teto deles, em vez de sob o seu. A última vez em que os vira... puxa, fazia tanto tempo. Talvez na noite dos ataques, quando o pai de Blay passou de senhor Contador de Terno para um assassino impiedoso. Depois daquilo, o casal se mudara para a casa segura, e, em seguida, ele e Blay tinham se afastado.
Desejou que eles estivessem bem...
A imagem de Blay e Saxton de pé, peito contra peito, quadril contra quadril no quarto de Blay invadiu seu cérebro.
Puta que... o pariu... como aquilo doeu.
Ah, cacete, o carma era bom em seu trabalho...
Voltando à realidade, ele seguiu as pélvis móveis e a Irmandade até a sala de jantar gigante que fora arranjada segundo as especificações de Tohr: todas as cortinas foram puxadas ante as janelas que davam para o jardim dos fundos, e a porta em vaivém que ele deduzia dar para a cozinha fora obstruída por um aparador antigo e pesado. A mesa que devia pertencer ao centro da sala fora retirada, e 25 cadeiras de mogno combinando com assento em seda vermelha estavam perfiladas diante da lareira.
Wrath ficaria de frente à cornija da lareira para fazer seu discurso, e Qhuinn foi até lá para verificar se a chaminé estava fechada. Estava.
Em ambos os lados da lareira, havia duas portas que davam para uma antiga sala de recepção. Ele, John Matthew e Rhage vasculharam a sala, depois a fecharam, em seguida ele se postou diante da entrada à esquerda, com John à direita.
– Está tudo do seu agrado? – perguntou a fêmea.
Rehv foi até a lareira e se virou de frente para as cadeiras vazias.
– Onde está o seu hellren?
– No andar de cima.
– Traga-o para cá. Agora. De outro modo, se ele andar pela casa, é possível que acabe com um tiro no peito.
Os olhos da fêmea se arregalaram, e dessa vez, quando ela andou, não houve exagero nos quadris, nem o “olhem para mim” com uma jogada de cabelos por cima do ombro. Obviamente a mensagem de que não estavam para brincadeira fora recebida, e ela queria que, quem quer que fosse seu parceiro, permanecesse vivo naquela noite.
Na espera que se seguiu, Qhuinn manteve a arma empunhada, os olhos na sala, os ouvidos aguçados para o caso de alguma coisa, qualquer coisa parecer estranha.
Nada.
O que sugeria que seus anfitriões tinham seguido as ordens...
Uma sensação de formigamento estranha subiu pela sua espinha, fazendo-o franzir o cenho e ficar absolutamente alerta. Do outro lado da lareira, John pareceu captar o mesmo sinal, levantando a arma e estreitando o olhar.
Em seguida, uma névoa fria atingiu os tornozelos de Qhuinn.
– Pedi que dois convidados especiais se juntassem a nós – anunciou Rehv.
Nesse instante, duas colunas de fumaça subiram do chão, as moléculas dispersas voltando às formas... que Qhuinn reconheceu instantaneamente.
Ainda bem.
Com Payne fora de combate por sabe-se lá qual motivo, ele se sentira como se estivessem com pouca retaguarda, mesmo reconhecendo toda a habilidade da Irmandade. No entanto, quando iAm e Trez surgiram, ele suspirou de alívio.
Aquele sim era um par de assassinos impiedosos, do tipo que você não gostaria de ter do lado oposto brigando com você. A boa notícia era que fazia tempo que Rehv se aliara aos Sombras, e a ligação de Rehv com a Irmandade e o Rei significava que os irmãos obviamente estavam dispostos a ajudar na retaguarda.
Qhuinn deu um passo à frente para cumprimentá-los, como os outros, juntando as palmas, uma puxada rápida, um tapinha nas costas.
– Ei, cara...
– Como vai?
– Tudo bom?
Depois que todos os ois e olás foram distribuídos, Trez olhou ao redor.
– Certo, então vamos ficar fora de vista a menos que vocês precisem de nós. Mas fiquem tranquilos, estamos aqui.
Depois de uma rodada de agradecimentos da parte dos Irmãos, Rehv trocou algumas palavras em particular com os Sombras... e depois os dois sumiram, desaparecendo de sua forma física, descendo pelas tábuas do piso; a brisa gélida era apenas uma garantia de segurança.
Bem na hora. Menos de um minuto depois, a anfitriã voltou com um ancião pequeno ao seu lado. À medida que os vampiros envelheciam, com um rápido declínio de sua força física mais para o fim da vida, Qhuinn estimou que restava àquele cara mais uns cinco anos. Uns dez, no máximo.
Fizeram-se as apresentações, mas Qhuinn não se importava com aquela baboseira. Estava mais preocupado em saber se o resto da casa estava desocupado.
– Há algum doggen aqui? – Rehv perguntou à fêmea enquanto ela acomodava o esquisitão numa das cadeiras.
– Como foi pedido, todos foram dispensados a partir de agora.
V. acenou para Phury e Z.
– Nós três vamos vasculhar a propriedade para ver se está tudo bem.
Mesmo que Blay confiasse em si, na Irmandade, em John Matthew e em Qhuinn, ele se sentiu melhor sabendo que os Sombras estavam por perto. Trez e iAm não só eram excepcionais lutadores e inerentemente perigosos para qualquer um a quem declarassem guerra; eles tinham uma vantagem admirável sobre a Irmandade.
Invisibilidade.
Ele não sabia se eles podiam, de fato, lutar dessa maneira, mas isso pouco importava. Qualquer um que ali entrasse – como digamos, o maldito Bando de Bastardos – julgaria a situação apenas contando com os presentes visíveis no recinto.
Não com aqueles dois irmãos.
Portanto, isso era muito bom.
Naquele instante, V. voltou com Phury e Z. de sua patrulha – e Butch estava com eles, indicando que o Irmão acabara de chegar de carro.
– Tudo certo.
Houve uma breve pausa. Em, seguida, como pré-arranjado, Tohr foi para a porta da frente e abriu caminho para Wrath.
Hora do espetáculo, pensou Blay, com os olhos disparando na direção de Qhuinn antes de voltar a se concentrar.
Tohr e o Rei entraram na sala de jantar lado a lado, as cabeças unidas como se estivessem envolvidos numa conversa séria sobre algo importante, a mão do Irmão sobre o antebraço de Wrath como se o cara estivesse tentando enfatizar algum ponto importante.
Tudo aquilo, porém, não passava de uma encenação para os anfitriões.
Tohr, na verdade, estava conduzindo Wrath pelo braço, levando-o até a lareira, posicionando-o bem no meio da cornija. E a conversa? Era sobre onde os dois aristocratas estavam sentados, onde as cadeiras estavam perfiladas, onde os Irmãos e lutadores estavam a postos – bem como os dois Sombras.
Enquanto assentia, o Rei, deliberadamente, movia a cabeça de um lado para o outro como se seus olhos estivessem captando os detalhes da sala. E, depois, ele cumprimentou os anfitriões quando estes foram levados à frente para beijar o imenso anel de diamante negro.
Depois disso, la crème de la crème da glymera começou a chegar.
De seu posto designado no fundo da sala na parede das janelas, Blay conseguiu olhar muito bem para cada um. Jesus, ele se lembrava de alguns deles de sua vida anterior aos ataques, antes de ele começar a morar na mansão e a lutar com os Irmãos. Seus pais não estavam no mesmo nível social daqueles machos e fêmeas, ficando mais à margem – ainda assim, a linhagem da sua família era boa e eles foram incluídos em muitas celebrações festivas nas grandes mansões.
Portanto, aquele povo não lhe era desconhecido.
Mas, por certo, ele não tinha como dizer que sentia saudades deles.
Na verdade, teve que rir consigo mesmo enquanto uma bela quantidade de fêmeas franzia o cenho e olhava para baixo para os pés delicadamente envolvidos em sapatos finos, Laboutins sendo erguidos e sacudidos... como se o frio dos Sombras estivesse sendo notado.
Quando Havers chegou, o curandeiro da raça pareceu um pouco desentrosado. Sem dúvida estava nervoso em rever a irmã e tinha bons motivos para tal. Até onde Blay sabia, Marissa acabara com ele na última reunião formal do Conselho.
Blay lamentava muito ter perdido aquilo.
Marissa chegou pouco depois do irmão, e Butch se aproximou dela, recebendo-a com um beijo demorado antes de conduzi-la, com um braço orgulhoso e protetor, para um assento no canto direito, perto de onde ele estava situado. Depois que o tira ajudou-a a se sentar, ele ficou de pé ao lado dela, grande, forte, e com um olhar ameaçador... especialmente quando seus olhos se encontraram com os de Havers e sorriu com as presas expostas.
Blay se viu invejando um pouquinho o casal. Não por conta do estranhamento familiar, isso não. Mas Deus... ser capaz de estar em público com seu parceiro, demonstrar seu amor, ter seu relacionamento respeitado por todos os outros? Casais heterossexuais consideravam aquilo como coisa certa porque nunca conheceram nada diferente daquilo. Suas uniões eram santificadas pela glymera, mesmo que os casais não estivessem apaixonados, ou se traíssem, ou fossem, de todo modo, uma fraude.
Dois machos?
Rá.
Apenas mais um motivo para se ressentir da aristocracia, segundo seu ponto de vista. Ainda que, na realidade, ele tinha a sensação de que jamais teria de se preocupar em sofrer discriminação. O macho que ele queria nunca ficaria ao seu lado em público, e não porque Qhuinn se importasse com a opinião alheia. Um, o cara não era do tipo que demonstrava afeto. Dois, sexo não formava casais.
Se assim fosse, o cara estaria comprometido com metade de Caldwell, pelo amor de Deus.
Ah, no que ele estava pensando...
Já fazia tempos que superara aquele sonho impossível com Qhuinn.
De verdade.
Absolutamente...
– Chega – ele murmurou para si mesmo quando o último integrante do Conselho chegou.
Rehv não perdeu tempo. A cada segundo que Wrath ficava diante do grupo, o Rei não só se expunha mortalmente, mas também corria o risco de que sua cegueira fosse descoberta.
O rei sympatho se dirigiu ao Conselho, com o olhar violeta perscrutando a assembleia, com um sorriso enviesado no rosto – como se apreciasse o fato de que o grupo de sabichões não fizesse a mínima ideia de que um devorador de pecados os liderava.
– Declaro aberta a sessão do Conselho. O dia e a hora são...
Enquanto a introdução prosseguia, Blay manteve o olhar ocupado, verificando as costas dos machos e das fêmeas, onde os braços e as mãos estavam, se alguém se mostrava ansioso. Naturalmente, o grupo se apresentara em black-tie e veludo, e joias para as mulheres e relógios de bolso de ouro para os homens. Pensando bem, fazia um bom tempo desde que se reuniram formalmente, e isso significava que o desejo deles de competir uns com os outros para mostrar quem valia mais sem dúvida vinha sendo estrangulado.
– ... nosso líder, Wrath, filho de Wrath.
Aplausos educados se seguiram, e depois eles se ajeitaram em suas cadeiras quando Wrath deu um único passo à frente.
Caramba, cego ou não, ele certamente parecia uma força da natureza: mesmo não trajando algum tipo de manto com borda de arminho, o Rei parecia irrefutavelmente no comando, o corpo imenso e os cabelos negros longos, e os óculos escuros, fazendo-o parecer mais uma ameaça do que um monarca.
E a ideia era essa mesmo.
Liderança, especialmente quando se tratava da glymera, baseava-se em parte nessa percepção – e ninguém tinha como negar que Wrath parecia a representação viva do poder e da autoridade.
E aquela voz grave e profunda também não atrapalhava em nada.
– Admito que faz um bom tempo que não os vejo. Os ataques de quase dois anos atrás dizimaram muitos em suas famílias e eu partilho de sua dor. Eu, também, perdi meus familiares num ataque de redutores, portanto, sei exatamente o que vocês têm passado enquanto tentam voltar a colocar a vida nos trilhos.
Um macho na fila da frente se mexeu...
Mas foi só para mudar de posição, não o prelúdio de uma arma sendo sacada.
Blay voltou à sua posição, como alguns outros. Maldição, ele mal podia esperar para que aquela reunião acabasse e eles pudessem levar Wrath de volta para a segurança.
– Muitos de vocês conheceram bem meu pai e se lembram de seu reinado no Antigo País. Meu pai era um líder sábio e de temperamento moderado, um cavalheiro de pensamento lógico e educação real, que se ocupava somente da melhoria desta raça e dos cidadãos – Wrath fez uma pausa, os óculos percorrendo em arco a sala. – Partilho de algumas das características de meu pai... mas não de todas. De fato, não sou temperado. Não sou clemente. Sou um homem da guerra, não da paz.
Nisso, Wrath desembainhou uma de suas adagas, a lâmina negra refletindo a luz do candelabro de cristal acima deles. Diante do Rei, a assembleia reagiu com um tremor coletivo.
– Fico muito à vontade num conflito, seja ele do tipo legal ou letal. Meu pai era um mediador, um construtor de pontes. Eu construo túmulos. Meu pai era persuasivo. Eu sou um conquistador. Meu pai era um Rei que se sentava de boa vontade às suas mesas de jantar para debater minúcias. Não sou assim.
Epa, epa. Sem dúvida, nunca se dirigiram ao Conselho daquele modo. Mas Blay não discordava da abordagem. A fraqueza não era respeitada. Mais do que isso, com aquele grupo, a lei provavelmente não asseguraria a estabilidade do trono de Wrath.
Medo, por sua vez?
Tinha chances muito melhores.
– Meu pai e eu, todavia, temos uma coisa em comum – Wrath inclinou a cabeça num ângulo como se estivesse olhando para a adaga negra. – Meu pai provocou a morte de oito dos seus parentes.
Houve um arfar coletivo. Mas Wrath não permitiu que isso o detivesse.
– No decorrer do seu reinado, ocorreram oito atentados à vida dele, e, não importasse o quanto demorasse, se dias, semanas ou meses, ele tratou de descobrir quem esteve por trás de cada um deles... e caçou pessoalmente cada um dos indivíduos, matando-os. Podem não ter ficado sabendo das histórias verdadeiras, mas sabem dessas mortes... Os criminosos foram decapitados e suas línguas foram cortadas. Por certo, se pensarem no passado, irão se lembrar de alguém em suas linhagens que tiveram esse fim?
Inquietação. Muita inquietação. O que sugeria que as lembranças estavam se avivando.
– Também devem se lembrar de que essas mortes foram atribuídas à Sociedade Redutora. Eu lhes digo, conheço esses nomes, como também sei onde estão esses túmulos, porque meu pai me fez memorizá-los. Foi a primeira lição de reinado que ele me ensinou. Meus cidadãos devem ser honrados, protegidos e bem servidos. Os traidores, por sua vez, são uma doença para qualquer sociedade legítima e precisam ser erradicados – Wrath sorriu de um modo puramente malévolo. – Digam o que quiserem a meu respeito, estudei muito bem aos pés de meu pai. E sejamos bem claros, foi o meu pai, e não a Irmandade, quem cuidou dessas mortes. Sei disso porque ele decapitou quatro deles diante de mim. Eis a importância dessa lição.
Muitas das fêmeas se aproximaram de qualquer que fosse o macho que estivesse sentado ao seu lado.
Wrath prosseguiu:
– Não hesitarei em seguir a liderança de meu pai quanto a isso. Reconheço tudo o que vocês sofreram. Respeito suas provações e quero liderá-los. Todavia, eu não hesitarei em tratar qualquer tipo de insurreição contra mim e os meus como um ato de traição.
O Rei abaixou o queixo e pareceu encará-los por detrás dos óculos, a ponto de até Blay sentir uma pontada de adrenalina.
– E se pensam que meu pai foi violento, não viram nada ainda. Farei com que aquelas mortes pareçam misericordiosas. Juro pela minha linhagem.
CAPÍTULO 52
De alguma forma, Assail não conseguia acreditar que estivesse entrando em um restaurante. Primeiro porque ele não costumava, via de regra, frequentar locais humanos, e, segundo, ele não tinha interesse algum em comer ali: o ar rescendia a batata frita e cerveja, e pelo que viu nas bandejas das garçonetes, ele não estava muito certo se as entradas eram consideradas seguras para consumo não animal.
Ora, veja. Do lado oposto, havia um palco que tinha uma parede de tela de arame para galinheiros.
Quanta classe.
– Olá, tudo bem? – alguém ronronou em sua direção.
Assail levantou uma sobrancelha e olhou por sobre o ombro. A mulher humana usava uma camisa apertada e um par de jeans que, obviamente, fora-lhe costurado no corpo. O cabelo era loiro e muito liso. A maquilagem era pesada, com o batom tão brilhante que mais parecia pintura a óleo.
Ele preferiria arrancar os olhos com uma colher a ter qualquer tipo de envolvimento com alguém como ela.
Obrigou-a a se esquecer de que o vira e virou de costas. O lugar estava cheio, havia mais pessoas que mesas e cadeiras, portanto havia uma boa cobertura enquanto ele seguia para um canto e procurava...
Lá estava ela.
A sua ladrazinha.
Praguejando baixinho, ele vagamente reconheceu o quanto aquilo era uma perda de tempo – considerando-se, ainda mais, que seus primos estavam negociando de novo com aquele redutor. Infelizmente, porém, assim que ele recebera o alerta de que o Audi dela estava se mexendo, sentira-se compelido a encontrá-lo e segui-lo.
Não estivera preparado para aquilo.
O que ela fazia ali? E por que estava vestida daquela maneira?
Enquanto ela encontrava uma das poucas mesas vazias e se sentava sozinha, ele se viu desaprovando o modo como o cabelo dela estava solto por sobre os ombros, o volume escuro se curvando ao redor do rosto. Ou a saia justa que foi revelada assim que ela despiu o casaco. Ou... ela também estava maquilada, pelo amor de Deus. Mas não da forma carregada daquela mulher que acabara de abordá-lo. A sua ladra deixara as coisas bem leves, de modo a apenas acentuar suas feições...
Ela era tão linda.
Linda demais.
Todos os homens no restaurante olhavam para ela. E isso fez com que ele quisesse matar cada um deles arrancando-lhe as gargantas com os dentes...
Como se estivessem de acordo com seu plano, suas presas formigaram e começaram a se alongar dentro da boca, seu corpo ficando tenso.
Mas ainda não, ele se ordenou. Ele tinha de descobrir o motivo de ela estar ali. Depois de tê-la seguido até a mansão de Benloise, ele esperara qualquer tipo de destino... embora não aquele. O que ela estaria...
A cabeça dela se voltou e, por um instante, ele pensou que, de alguma maneira, ela o tivesse sentido, mesmo não sendo uma vampira.
Mas então, um humano muito alto e bem estruturado aproximou-se da mesa.
Sua ladra fitou o cara. Sorriu para ele. Levantou-se e passou os braços ao redor dos ombros amplos.
A mão de Assail entrou no casaco à procura de sua arma.
De fato, ele se viu indo até lá e despejando uma bala entre os olhos do homem.
– Ei, já esteve aqui antes?
A cabeça de Assail virou para trás. Um humano bem grande o abordara e o fitava com uma expressão um tanto agressiva.
– Eu lhe fiz uma pergunta.
Existiam duas respostas, Assail resolveu. Ele poderia responder verbalmente, o que o colocaria em algum tipo de diálogo que consumiria a sua atenção, não sendo uma boa ideia, portanto, visto que sua mão continuava segurando a arma e seus impulsos não haviam mudado em sua inclinação homicida.
– Estou falando com você.
Ou ele poderia...
Assail expôs as presas estendidas e grunhiu profundamente da garganta, redirecionando sua ira da cena com a sua ladra com aquele tolo para quem ela se vestira e se enfeitara.
O cara cheio de perguntas levantou as mãos e deu um passo para trás.
– Ei, está tudo bem, tanto faz. Desculpe. Tudo bem.
O homem desapareceu no meio da multidão, provando que em certas circunstâncias ratos sem rabo também conseguiam se desmaterializar.
Os olhos de Assail voltaram a se fixar na mesa. O “cavalheiro” que se sentara diante de sua ladra estava se inclinando na direção dela, os olhos fixos em seu rosto enquanto ela examinava o cardápio e olhava ao redor.
Algo teria de ser feito a respeito daquilo.
Sola fechou o cardápio e riu.
– Eu nunca disse isso.
– Disse sim – Mark Sanchez sorriu. – Você me disse que eu tinha olhos bonitos.
Mark era exatamente o que ela precisava numa noite como aquela. Ele era bonito de se olhar, supercharmoso, e contanto que ele não a fizesse se abaixar para fazer mil abdominais, ela não tinha com que se preocupar: como seu professor de ginástica particular? Ele era um demônio, ela bem sabia.
– Então, este é um jeito de me amaciar? – ele se recostou quando a garçonete lhes trouxe as cervejas. – Está tentando fazer com que eu pegue leve na academia?
– Sei que isso jamais funcionaria – Sola deu uns goles da bebida gelada em sua caneca. – Você não dá mole. É a sua regra.
– Bem, para ser justo, você nunca pediu tratamento especial. – Houve uma pausa. – Não que em seu caso eu não estivesse disposto em ceder um pouco... em algumas áreas.
Sola desviou do olhar que lhe era lançado.
– Quer dizer que você não sai com clientes?
– Não. Normalmente não.
– Conflito de interesses.
– Pode acabar em confusão... Mas, em certos casos, o risco vale a pena.
Sola olhou de relance pelo bar. Muitas pessoas. Muita conversa. E o ambiente estava abafado.
Ela franziu o cenho e se enrijeceu. No canto extremo, alguma coisa... alguém...
– Está tudo bem?
Ela tentou se livrar da sua paranoia.
– Sim, desculpe... Ah, sim, queremos fazer o pedido – ela disse quando a garçonete voltou. – Vou querer um cheeseburguer. Desde que o meu treinador não tenha uma embolia em sinal de desaprovação.
Mark riu.
– São dois, então. Mas não coloque fritas. Em nenhum dos dois pratos.
Enquanto a garçonete se afastava, Sola tentou não olhar para o canto escuro ao fundo.
– Então...
– Nunca imaginei que fosse aceitar meu convite. Quanto tempo faz que eu a chamei para sair?
Enquanto Mark sorria, ela notou que ele tinha dentes fantásticos, retos e bem brancos.
– Acho que já faz um tempo. Tenho estado ocupada.
– Então, o que faz para viver?
– Isso e aquilo.
– Em que ramo?
Normalmente, ela se irritava quando as pessoas começavam a ficar curiosas. Mas a postura dele era calma e relaxada, portanto aquela era apenas uma conversa normal de um encontro de um casal.
– Acho que posso chamar de justiça criminal.
– Ah, então lida com leis.
– Sim, eu as conheço.
– Que bacana – Mark pigarreou. – Então... nossa, você está realmente linda.
– Obrigada. Acho que é por causa do meu professor.
– Ah, sabe, de algum modo acho que você se sairia bem sem mim.
Enquanto se envolvia numa conversa descomplicada, ela começou a relaxar de verdade e quando os sanduíches chegaram, eles pediram mais uma rodada de cerveja. Era tão... normal estar num bar, conversando e conhecendo outra pessoa.
O exato oposto do que ela testemunhara na noite anterior.
Sola estremeceu quando as imagens lhe voltaram... a luz de velas, aquele homem de cabelos negros pairando acima da mulher seminua como se estivesse para devorá-la, os dois se soltando com desinibição... Então, aqueles olhos reluzentes se ergueram e se encontraram com os dela através da janela como se ele soubesse o tempo todo que ela estivera espionando.
– Você está bem?
Sola forçou-se a se concentrar.
– Desculpe, sim, estou. O que você estava dizendo?
Enquanto Mark voltava a falar do seu treinamento para o Ironman, ela se viu novamente no frio do lado de fora daquele chalé, observando aquele homem e aquela mulher.
Droga. Ela orquestrara aquele encontro somente porque queria relaxar. Não porque gostasse particularmente de Mark, por mais legal que ele fosse.
Na verdade, talvez ela tivesse feito aquilo porque, coincidentemente, seu professor era bem alto, de boa constituição física, e cabelos muito escuros e olhos bem claros.
Quando a culpa lhe enviou um aviso, ela pensou, ora, pelo amor de Deus. Era uma mulher adulta. Mark era um homem adulto. As pessoas faziam sexo por diferentes motivos – não era porque não queria se casar com o cara que ela estivesse quebrando alguma regra sagrada... a não ser, droga. Deixando de lado a moral da avó, e os dentes brancos e brilhantes e os ombros largos dizendo o contrário, ela não se sentia de fato atraída por Mark.
Ela estava atraída pelo homem de quem Mark a fazia se lembrar.
E era isso o que tornava tudo aquilo muito errado.
CAPÍTULO 53
Mesmo que Qhuinn dificilmente fosse um bom árbitro de aprovação no que se referia às reuniões do Conselho, ficou bem claro para ele que o grupo reunido fora até aquela casa esperando uma coisa só para receber algo completamente diferente.
Wrath não desperdiçava nem atenuava as palavras e, depois de despejar seu discurso, concluiu tudo em cinco, dez minutos.
Na verdade, aquilo era muito bom. Quanto antes ele terminasse, mais rápido o tirariam dali.
– Concluindo – disse o Rei em sua voz grave –, agradeço a oportunidade de me dirigir a este grupo respeitável.
Naquele caso, “respeitável” obviamente significava “idiota”.
– Tenho outro compromisso agora – isto é, permanecer vivo. – Portanto, preciso ir. Contudo, se tiverem algum comentário, por favor, dirija-os a Tohrment, filho de Hharm.
Menos de um segundo depois, o Rei deixava a casa com V. e Zsadist.
Após a saída dele, todos os empoados na sala de jantar permaneceram sentados em suas cadeiras, chocados, suas expressões dizendo “e agora?”. Obviamente, eles esperavam mais... mas também menos. Como crianças que forçam demais os limites com os pais até finalmente levarem uma colherada de pau na bunda.
Pela perspectiva de Qhuinn, aquilo tudo era muito engraçado, de verdade.
A festa finalmente começou a se dissipar depois que a anfitriã se levantou e disse a todos como fora uma honra recebê-los e blá-blá-blá.
Qhuinn só se importava com uma coisa.
A mensagem que chegou em seu celular um minuto mais tarde: Wrath estava a salvo em casa.
Exalando lentamente, ele guardou o celular no bolso interno da jaqueta de couro e considerou a ideia de dar umas guinadas no piso só para ver se animava aquele bando de empertigados a dançar um pouco. Porém, ele muito provavelmente se meteria em apuros com isso.
Que pena.
O grupo começou a sair logo em seguida, para óbvio descontentamento da anfitriã, como se ela tivesse se arrumado e reorganizado sua casa na antecipação de um evento social que durasse a noite toda – só para descobrir que conquistara seus dois segundos de celebridade e um balde gigante de KFC para comer.
Desculpe, dona.
Tohrment comandou o êxodo, parado diante da lareira, acenando com a cabeça, dizendo algumas poucas palavras. Wrath fizera uma boa escolha. O Irmão tinha a aparência de um guerreiro, com todas as suas armas, mas sempre se mostrou disposto e internamente inclinado a ser um pacificador, e isso não era diferente aquela noite.
Ele se mostrou especialmente agradável quando Marissa e Butch saíram, o rosto demonstrando uma centelha genuína de afeto ao abraçá-la e ao acenar para o tira que acompanhou para fora. Contudo, esse fragmento de realidade foi imediatamente substituído pela sua máscara profissional.
No fim, a anfitriã auxiliou seu hellren ancião a se levantar e comentou alguma coisa a respeito de ajudá-lo a subir.
E assim restou apenas um.
Elan, filho de Larex, demorava-se perto do acortinado das janelas.
Qhuinn observara o cara o tempo todo, contando exatamente quantos membros do Conselho se aproximaram dele, tomando-lhe a mão e murmurando algo em seu ouvido.
Cada um deles.
Portanto, não foi uma surpresa quando em vez de simplesmente ir embora como um bom garoto, ele se encaminhou até a lareira como se desejasse uma audiência.
Maravilha.
Enquanto Elan se aproximava de Tohr, quanto mais perto ficava, mais tinha de levantar o queixo para manter contato visual com o Irmão.
– Foi uma honra muito grande ter uma audiência com o seu Rei – o cavalheiro disse com seriedade. – Ouvi atentamente cada palavra.
Tohr murmurou algo em resposta.
– E venho me remoendo com algo – o aristocrata comentou. – Eu tinha esperanças de falar diretamente com ele a respeito, mas...
Bem, não prenda a respiração enquanto espera por isso, amigo.
Tohr se prontificou a preencher o silêncio:
– Qualquer coisa que me disser chegará diretamente aos ouvidos do Rei, sem filtro nem interpretação. E os lutadores neste recinto juraram segredo. Eles são capazes de morrer antes de repetir sequer uma palavra.
Elan olhou na direção de Rehv, obviamente esperando uma jura semelhante por parte do macho.
– O mesmo se aplica a mim – murmurou Rehv ao se apoiar na bengala.
Abruptamente, o peito de Elan estufou como se aquele tipo de atenção personalizada fosse mais do que ele esperava obter naquela reunião.
– Bem, isso tem pesado muito em meu peito.
Certamente não nos peitorais, Qhuinn pensou. Você tem o físico de um moleque de dez anos.
– E isso seria... – Tohr deu a deixa.
Elan cruzou os braços atrás das costas e andou um pouco – como se estivesse refletindo sobre suas palavras. Algo garantia a Qhuinn, porém, que elas já tinham sido ensaiadas, ainda que não pudesse dizer como sabia disso.
– Eu esperava que seu Rei se referisse a certo boato que ouvi.
– Que seria? – perguntou Tohr num tom neutro.
Elan parou. Virou-se. Falou com clareza:
– Que ele foi alvejado no outono.
Ninguém emitiu reação alguma. Nem Tohr, nem Rehv. Tampouco os Irmãos restantes na sala. E por certo nem Qhuinn e seus garotos.
– Qual a fonte desse boato? – questionou Tohr.
– Bem, para ser franco, pensei que ele estaria aqui.
– Verdade? – Tohr olhou para as cadeiras desocupadas e deu de ombros. – Quer me contar o que ouviu?
– O macho fez referência à visita do Rei. Semelhante à que Wrath me fez em minha residência durante o verão – isso foi relatado com grande importância, como se aquele tivesse sido o ponto alto do ano de Wrath. – Ele disse que o Bando de Bastardos atirou no Rei enquanto ele estava em sua propriedade.
Mais uma vez, nenhuma reação.
– Mas, obviamente, o seu Rei sobreviveu – a pausa sugeria que Elan estava esperando por detalhes. – De fato, ele parece ótimo.
O silêncio se alongou como se as duas partes na conversa esperassem que a outra fizesse bom uso da quietude.
Tohr ergueu uma sobrancelha.
– Com o devido respeito, você não nos informou muita coisa, e boatos acontecem desde o início dos tempos.
– Mas eis o mais estranho. Ele também falou comigo antes que isso acontecesse. No entanto, não acreditei nele. Quem tramaria uma tentativa de homicídio? Parecia... mais a ostentação de um macho que, de outro modo, estava insatisfeito com a maneira como as coisas estavam sendo conduzidas. Só que, uma semana mais tarde, ele disse que o Bando de Bastardos deu seguimento aos planos, e que Wrath fora atingido. Eu não sabia o que fazer. Eu não tinha como entrar em contato com o Rei pessoalmente, e nenhum modo de verificar se o que esse indivíduo dizia era verdade. Deixei estar... até esta reunião ser marcada. Fiquei me perguntando se talvez... bem. Obviamente nada aconteceu, mas fiquei me perguntando por que ele não estava aqui.
Tohr baixou o olhar em direção ao macho menor.
– Ajudaria bastante se você nos desse um nome.
Foi a vez de Elan franzir o cenho.
– Quer dizer que não sabe quem está no Conselho?
Enquanto Rehv revirava os olhos, Tohr dava de ombros.
– Temos mais coisas com que nos preocupar do que com os associados de Rehv.
– No Antigo País, a Irmandade sabia quem éramos.
– Há um oceano entre nós e a mãe terra.
– Uma pena.
– Essa é a sua opinião.
Qhuinn deu um passo à frente, com a intenção de interferir, para o caso de o Irmão resolver segurar o pescoço do filho da puta: alguém provavelmente teria de agarrar a cabeça antes que ela caísse no tapete da anfitriã. E o peso morto do corpo também.
Parecia o mais hospitaleiro a se fazer.
– Então, sobre quem está falando? – Tohr o pressionou.
Elan olhou para os machos imóveis e letais que se concentravam nele.
– Assail. Seu nome é Assail.
No centro de Caldwell, onde as ruas escuras formavam um labirinto de ratos e os humanos sóbrios eram raros e esparsos, Xcor balançou a foice num círculo amplo de uns dois metros além do piso escorregadio manchado de preto.
O redutor foi golpeado no pescoço, e a cabeça, agora liberta da medula espinhal, pendeu do queixo para a têmpora, em meio ao vento frio e implacável. Sangue negro desceu das artérias partidas enquanto o corpo desgovernado despencava no chão num tombo.
Só isso.
Bem desapontador, na verdade.
Virando de costas, ele segurou sua amada foice sobre o ombro para que ela se curvasse atrás dele de modo protetor, vigiando-lhe as costas enquanto ele se preparava para o que viria em seguida. O beco em que ele entrara para perseguir aquele agora incapacitado assassino era aberto na ponta oposta, e atrás dele, os três primos estavam posicionados ombro a ombro para o caso de alguém mais vir daquela direção.
Algo se aproximava.
Algo vinha... em alta velocidade, o ronco do motor aumentando cada vez mais...
O SUV derrapou no beco, os pneus encontrando pouca ou nenhuma tração na rua coberta de gelo. Como resultado da ausência de atrito, o veículo bateu na parede, os faróis cegando Xcor.
Quem quer que estivesse atrás daquele volante não pressionou o freio.
O motor rugiu.
Xcor ficou de frente para o carro e fechou os olhos. Não havia motivo para mantê-los abertos já que não estava enxergando nada. Não se importava se o motorista fosse um assassino, um vampiro ou um humano.
Eles vinham em sua direção, e ele colocaria um fim naquilo. Mesmo que talvez fosse mais fácil simplesmente sair do caminho.
Entretanto, ele nunca gostou de saídas fáceis.
– Xcor! – alguém exclamou.
Inspirando profundamente o ar gelado, ele emitiu um grito de guerra ao acompanhar a aproximação, seus sentidos se aguçando e posicionando o SUV em sua trajetória. A foice desapareceu um instante, e suas pistolas, ansiosas em participar, surgiram em ambas as mãos.
Ele aguardou mais uns cinco metros.
Em seguida, começou a apertar os gatilhos.
Com os silenciadores colocados, as balas só emitiam os sons do impacto ao quebrarem o para-brisa, sibilarem na grade, perfurarem um pneu...
E nessa hora os faróis que o cegavam se viraram, a traseira do veículo rodopiando, toda a trajetória imutável graças à tremenda aceleração – mesmo quando todo o resto se confundia.
Pouco antes de a lataria lateral o atingir, Xcor pulou do chão, as botas impulsionando-o para cima, o teto do carro quase resvalando no solado enquanto uma tonelada e meia desgovernada passava por baixo do seu corpo flutuante.
Quando os coturnos de combate de Xcor aterrissaram, o avanço do carro foi interrompido à custa de um latão de lixo, o receptáculo detendo o veículo melhor do que qualquer freio seria capaz.
Xcor não perdeu tempo para se aproximar, com as duas pistolas erguidas, os gatilhos prontos. Embora tivesse dado alguns tiros, ele sabia que ainda possuía pelo menos umas quatro balas em cada uma. E, mais uma vez, seus soldados o apoiaram por trás.
Aproximando-se para olhar o interior, ele não se preocupava com o que encontraria: um de sua espécie, um homem ou uma mulher, um redutor, pouco importava.
O cheiro de carne estragada e melaço o informaram qual dos seus inimigos ele confrontara e, de fato, enquanto se inclinava sobre o para-brisa estilhaçado, dois novos recrutas, que ainda apresentavam cabelos escuros e pele rosada, balançavam nos bancos da frente.
Mesmo com os cintos de segurança a postos, eles estavam em mau estado. Além de terem sido atingidos pelas balas, os rostos demonstravam todos os estragos feitos pelas batidas tanto nas laterais do carro, como no painel e no vidro quebrado: sangue negro escorria pelos narizes e queixos e faces lacerados, a meleca pingando nos peitos como água de um chuveiro.
Nada de air bags. Talvez um caso de mal funcionamento.
– Não pensei que fosse conseguir – murmurou Balthazar.
– É mesmo – o outro concordou.
Xcor desconsiderou a preocupação ao guardar as armas, depois segurou a porta do motorista e a arrancou da dobradiça. Enquanto o guincho metálico ecoava muito alto no beco, ele largou a placa de metal, pegou a adaga de aço e se inclinou.
Como com todos os redutores, aqueles afiliados a Ômega ainda se mexiam e piscavam apesar dos ferimentos catastróficos – e continuariam assim eternamente se deixados nesse estado, mesmo que suas formas apodrecessem com o tempo.
Só havia um modo de matá-los.
Xcor aproximou o braço do ombro esquerdo e enterrou a lâmina de sua adaga no peito daquele que estava atrás do volante. Virando a cabeça de lado e fechando os olhos para não se cegar novamente, ele esperou pelo som e pelo flash diminuir antes de se inclinar sobre o assento e fazer o mesmo com o passageiro.
Depois se virou para despachar o corpo decapitado e contorcido... que tinha marcas de pneus sobre o peito, graças à trajetória do carro no beco.
Caminhando pelo piso sujo e lamacento, ele levantou a adaga acima do ombro e enterrou a lâmina no esterno com tanta força que a arma ficou encravada no asfalto.
Quando se pôs de pé novamente, sua respiração emitia sopros de fumaça pelo nariz, como uma locomotiva.
– Vasculhem o veículo, depois temos que ir.
Ele consultou o relógio. A polícia de Caldwell era desapontadoramente atuante, mesmo naquela parte da cidade – e a ameaça constante de envolvimento humano sob a qual ele vivia era sempre um aborrecimento. Mas, com sorte, em questão de minutos, eles iriam embora e seria como se jamais estivessem estado ali.
Embainhando a adaga, ele olhou para o céu, estalando o pescoço e relaxando os ombros.
Era impossível não pensar na reunião do Conselho que fora marcada; aquilo esteve em sua mente a noite inteira. Será que Wrath aparecera? Ou teria sido apenas Rehvenge e os representantes da Irmandade? Se o Rei tivesse de fato aparecido, Xcor podia muito bem imaginar a pauta: demonstração de força, avisos, depois uma partida rápida.
Por mais poderosa que fosse a Irmandade, e por mais que Wrath conseguisse forçar sua vontade sobre aquele grupo de aristocratas traiçoeiros e bajuladores, era difícil imaginar que um macho que recentemente quase fora assassinado fosse se arriscar: mesmo que apenas por interesse próprio, a Irmandade o queria vivo, visto que aquilo também era seu lugar de poder.
E foi por isso que ele escolhera ficar afastado.
Não havia mal algum em permitir que Wrath tentasse recuperar um pouco de seu prestígio perdido, e muito a perder num confronto direto com a Irmandade diante daquele público específico: o potencial de um dano colateral era grande demais. A última coisa que ele queria era assustar a glymera a ponto de afastá-los... ou matá-los de uma vez no processo de acabar com o Rei.
Mas ele descobrira, graças aos contatos de Throe, a hora e o local exatos daquele encontro. Que seria naquele instante... e na propriedade daquela fêmea de quem seus soldados se alimentaram no pequeno chalé.
Evidentemente, ela estava disposta a permitir que outros usassem não só o jardim dela, mas também suas salas.
E, muito em breve, ele teria uma transcrição do que acontecera graças ao porta-voz que era Elan – senão por outro motivo que não de o macho desejar apenas se gabar do acesso a que tivera.
Um assobio de apreciação vindo da parte de trás do carro arruinado fez com que ele virasse a cabeça.
Zypher estava parado diante do porta-malas aberto, com as sobrancelhas erguidas enquanto ele se curvava e apanhava... um tijolo de algo branco coberto de celofane.
– Que belo prêmio conseguimos – disse ele, erguendo-o no alto.
Xcor andou até lá. Havia mais três daqueles, apenas jogados na parte traseira, como se o par de assassinos estivesse mais preocupado com a sua segurança física do que com a disposição das drogas.
Naquele instante, as sirenes começaram a gritar vindo do leste, talvez relacionadas àquela batida, talvez não.
– Pegue os pacotes – ordenou Xcor. – Vamos embora agora.
CONTINUA
CAPÍTULO 45
A ausência de alimentação de Assail finalmente o atingiu cerca de cinco horas após o anoitecer. Ele vestia uma camisa social azul-clara com punhos franceses, quando suas mãos começaram a tremer tão violentamente que não havia como ele abotoar a maldita coisa sobre o peito. Em seguida, a exaustão o acometeu, tão forte que ele cambaleou.
Praguejando, foi até a cômoda. Sobre o tampo de mogno polido, seu frasco e colher o esperavam, e ele cuidou do assunto em duas rápidas inaladas, uma para cada narina.
Hábito hediondo – e um ao qual recorria somente quando de fato necessitava.
Pelo menos a fungada cuidou do cansaço. Contudo, ele teria de encontrar uma fêmea. Logo. De fato, era um milagre que ele tivesse suportado por tanto tempo. A última vez em que tomara uma veia fora meses atrás, e a experiência havia sido menos que cativante, uma rapidinha com uma fêmea da espécie bem versada em fornecer alimento para os machos necessitados. A um preço.
Que estorvo.
Depois de se armar e pegar o casaco de cashmere preto, desceu as escadas e destrancou a porta de correr de aço. Ao abrir a passagem para o primeiro andar, foi recebido pelo som de pistolas sendo travadas.
Na cozinha, os gêmeos verificavam várias pistolas .40.
– Fez a ligação? – Assail perguntou a Ehric.
– Como você pediu.
– E?
– Ele vai estar lá e vai sozinho. Precisa de armas?
– Já as tenho – ele pegou as chaves do Range Rover de uma travessa de prata na bancada. – Vamos no meu carro. Para o caso de nos ferirmos.
Afinal, só um idiota aceitava a palavra de um inimigo, e seu SUV era equipado com um instrumento sob a carenagem que poderia ser muito útil se houvesse um ataque em massa.
Bum.
Quinze minutos mais tarde, os três cruzavam a ponte para Caldwell e, enquanto Assail seguia em frente, ele se lembrou do motivo pelo qual trazer os primos para ali fora uma ideia inspirada: não só eram uma boa retaguarda, como também eles não se mostravam inclinados a desperdiçar tempo com conversas inúteis.
O silêncio era um quarto passageiro muito bem-vindo no trajeto.
No centro além do rio Hudson, ele pegou uma saída que fazia uma curva e acabava debaixo da Northway. Avançado paralelo ao rio, ele entrou numa floresta de pilares que sustentavam a estrada, o cenário era insignificante, sombrio e, essencialmente, deserto.
– Estacione ali à direita, mais uns cem metros – disse Ehric na parte de trás do carro.
Assail foi para o meio-fio e parou.
Os três emergiram no frio, com os casacos abertos, as armas empunhadas, os olhos à espreita. Conforme caminhavam, o gêmeo de Ehric tomava a retaguarda, com os três sacos da garagem em uma das mãos, os plásticos produzindo um roçar à medida que eles andavam.
Acima deles, o trânsito rugia, os carros se deslocando a um ritmo constante, a sirene de uma ambulância berrando um grito estridente, um caminhão pesado ribombando sobre as vigas. Quando Assail inspirou fundo, o ar entrou gélido em seus seios nasais, e qualquer odor de sujeira ou de peixes mortos fora subjugado pelo frio.
– Logo em frente – orientou Ehric.
Eles cruzaram o asfalto calma e ritmadamente, seguindo por um caminho de terra batida congelada e dura. Com as enormes placas de concreto da estrada bloqueando o sol, nada crescia ali, mas havia vida – de certa forma. Humanos sem teto em abrigos improvisados com papelões e encerados permaneciam acocorados para se protegerem do inverno, os corpos tão enrolados que não se podia dizer para que lado olhavam.
Considerando o interesse em permanecerem vivos, ele não se preocupou com uma interferência da parte deles. Além disso, eles estavam acostumados a ficarem na periferia daquele tipo de negociata e sabiam que não deveriam se meter.
E se o fizessem? Ele não hesitaria em acabar com a vida miserável deles.
O primeiro sinal de que o inimigo aparecera foi o fedor carregado pelo vento. Assail não era muito versado quanto à Sociedade Redutora e os seus membros, mas seu olfato apurado não era capaz de discernir muitas nuances entre os maus odores. Portanto, ele deduziu que suas instruções foram seguidas e que aquele não era um caso de milhares chegando ao ponto de encontro – conquanto fosse possível que os seguidores de Ômega tivessem apenas um buquê.
Logo ele descobriria.
Assail e seus machos pararam. E esperaram.
Um momento depois, um único redutor saiu de trás de um poste.
Ah, interessante. Aquele já fora um cliente antes, aparecendo com dinheiro para aceitar porções de ecstasy ou de heroína. Ele esteve muito perto de ser eliminado, seu volume de compra pouco abaixo da qualificação de um intermediário.
Único motivo pelo qual ele ainda respirava... e, portanto, a certa altura, transformara-se num assassino. Pensando bem, o camarada não vinha circulando muito ultimamente, logo, era possível se deduzir que ele estivesse se ajustando à nova vida. Ou não vida, como parecia ser o caso.
– Jesus... Cristo – disse o redutor, obviamente captando os cheiros deles.
– Falei sério quando disse que eu era o seu inimigo – Assail comentou com fala arrastada.
– Vampiros?
– O que nos coloca numa posição curiosa, não? – Assail acenou para os gêmeos. – Meus parceiros vieram aqui em boa-fé. Surpreenderam-se do mesmo modo com o que descobriram quando seus homens chegaram. Certos... comportamentos violentos... por parte nossa foram demonstrados antes que a situação fosse esclarecida. Mil perdões.
Quando Assail indicou, os três sacos foram lançados para a frente.
A voz de Ehric foi seca:
– Estamos dispostos a lhe informar onde está o resto deles.
– Dependendo do resultado desta transação – acrescentou Assail.
O redutor olhou para baixo, mas, fora isso, não demonstrou reação alguma. O que sugeria que ele era profissional.
– Trouxe a mercadoria?
– Você pagou por ela.
Os olhos do assassino se estreitaram.
– Vai fazer negócios comigo.
– Garanto que não estou aqui pelo prazer da sua companhia – quando Assail gesticulou, Ehric puxou um pacote embrulhado. – Primeiro, algumas regras básicas. Você entrará em contato comigo diretamente. Não aceitarei ligações de mais ninguém de sua organização. Você poderá delegar o pagamento e o recebimento da mercadoria a quem desejar, desde que me informe a identidade e o número de representantes que estiver enviando. Se houver qualquer tipo de cilada, ou se houver qualquer desvio das minhas duas regras, eu cessarei minhas transações com você. São essas as minhas únicas condições.
O redutor olhou de Assail para os primos.
– E se eu quiser comprar mais do que isto?
Assail já considerara essa possibilidade. Não passara os últimos doze meses fazendo com que os intermediários estourassem seus miolos à toa – e não estava disposto a ceder seu poder duramente conquistado a ninguém. Contudo, aquela era uma oportunidade única. Se a Sociedade Redutora queria ganhar dinheiro nas ruas, ele concordava em lhes fornecer as drogas para tal. Não que aquele fedido filho da puta conseguisse chegar até Benloise porque Assail se certificaria de impedir isso. Mais precisamente, Assail tinha um racionamento estipulado inerente ao seu modelo de negócios – com apenas eles três, tinha mais produtos do que vendedores.
Portanto, era hora de começar a delegar. Seu controle sobre a cidade estava completo, a fase seguinte era escolher a dedo alguns intermediários para contratos de trabalho, por assim dizer.
– Vamos começar devagar e veremos como nos saímos – murmurou Assail. – Você precisa de mim. Eu sou a fonte. Portanto, a escolha é sua sobre como procederemos. Certamente, eu não estou... como dizer... “desinclinado” a aumentar os seus pedidos. Com o tempo.
– Como posso saber que você não está trabalhando com a Irmandade?
– Caso eu estivesse, já teria providenciado para que eles tivessem armado uma emboscada agora – ele indicou os sacos plásticos aos pés do assassino. – Além do que, como gesto de boa-fé, e em reconhecimento pelas suas perdas, eu lhe dei um crédito de três mil dólares nesta entrega. Mil para cada um dos nossos, digamos, mal-entendidos da noite passada.
As sobrancelhas do assassino se ergueram.
No silêncio que se seguiu, o vento rodopiou ao redor deles, os casacos revirando-se, o colarinho da jaqueta do redutor tremulando.
Assail ficou tranquilo no aguardo de uma resposta. Existiam duas possibilidades: sim, e nesse caso Ehric jogaria o pacote para ele. Ou não, o que os faria abrir fogo no maldito, neutralizá-lo, e apunhalá-lo de volta a Ômega.
As duas opções eram-lhe aceitáveis. Mas ele esperava que fosse a primeira.
Dinheiro precisava ser produzido. Para ambos os lados.
Sola manteve distância do quarteto de homens que se juntaram sob a ponte: detendo-se à margem, ela usava os binóculos para focalizar a reunião.
O senhor Misterioso, também conhecido como Houdini do Acostamento, estava protegido por dois imensos guarda-costas que eram o espelho um do outro. Pelo que podia perceber, ele comandava a reunião, e isso não era surpresa alguma – e ela podia adivinhar o assunto em pauta.
Como esperado, o gêmeo da esquerda deu um passo à frente e lhe deu um pacote do tamanho de uma lancheira de criança para o homem que estava sozinho.
Enquanto ela aguardava que a reunião chegasse ao fim, soube que estava ariscando a vida com aquilo – e não por estar debaixo de uma ponte no meio da noite.
Levando-se em consideração o encontro que teve com o homem na noite anterior, era bem duvidoso que ele apreciasse o fato de ela o seguir até ali, testemunhando suas atividades ilegais. Contudo, passara boa parte das últimas 24 horas pensando nele – e se irritando. Aquele era um maldito país livre, e caso ela quisesse estar ali, numa propriedade pública, tinha esse direito.
Ele queria privacidade? Então que cuidasse dos seus negócios em outro lugar que não no meio da rua.
Enquanto sua irritação ressurgia, ela cerrou os dentes... e entendeu que esse era o seu pior defeito no trabalho.
A vida inteira foi do tipo que fez exatamente aquilo que lhe diziam para não fazer. Claro, quando isso envolvia coisas como “Não, você não pode comer uma bolacha antes do jantar” ou “Não, você não pode sair de carro, está de castigo” ou “Não, você não deve ir visitar seu pai no presídio”... as implicações eram muito diferentes daquilo que se desenrolava logo adiante.
Não, você não pode voltar para aquela casa.
Não, você não pode mais me espionar.
Ah, ‘tá bom, chefão. Ela decidiria quando estaria satisfeita, muito obrigada. E naquele instante? Ela ainda não estava satisfeita.
Além disso, havia outro ângulo em sua tenacidade: ela não gostava de se acovardar e fora isso o que acontecera na noite anterior. Ao se afastar do confronto com aquele homem, fora por causa do medo – e aquele não seria o modo como ela conduziria sua vida. Desde aquela tragédia, ah, há tanto tempo, quando as coisas mudaram para sempre, ela decidira – não, jurara – que nunca mais teria medo de nada.
Não da dor. Não da morte. Não do desconhecido.
E certamente não de um homem.
Sola ajustou o foco, fechando-o no rosto do homem. Graças à iluminação urbana, havia luz suficiente para enxergá-lo adequadamente, e sim, ele era exatamente como ela lembrava. Deus, o cabelo era tão negro, quase como se ele o tivesse tingido. E os olhos – estreitos, agressivos. A sua expressão, tão orgulhosa e controlada.
Francamente, ele parecia ter classe demais para ser o que era. Pensando bem, talvez ele fosse feito do mesmo estofo de traficante de Benloise.
Pouco depois, as duas partes se separaram: o homem só se virou e caminhou na direção de que surgira, com um punhado de sacos de lixo quase vazios por sobre o ombro; os outros três retornando até o Range Rover.
Sola trotou até seu carro alugado, o body preto e a máscara de esqui ajudando-a a se misturar à escuridão. Colocando-se atrás do volante do Ford, ela se abaixou e usou um espelho para monitorar a via de mão única que passava por debaixo da ponte.
A rua era a única saída disponível. A menos que o homem estivesse disposto a arriscar uma abordagem da polícia por trafegar na contramão.
Momentos depois, o Range Rover passou por ela. Permitindo que ele se adiantasse um pouco, ela acelerou e se posicionou cerca de um quarteirão para trás.
Quando Benloise lhe dera aquela missão, fornecera-lhe o modelo do SUV do homem, além do endereço da casa à margem do Hudson. Porém, nenhum nome.
Tudo o que ela sabia era aquele fundo de investimento e seu único curador.
Enquanto perseguia o trio, memorizou a placa do carro. Um dos seus amigos no departamento de polícia talvez pudesse ajudá-la com isso; apesar de que, se a propriedade era de uma entidade legal, ela deduzia que ele fizera o mesmo com o carro.
Que seja. Só havia uma coisa de que tinha certeza.
Onde quer que ele fosse, ela estaria logo atrás.
CAPÍTULO 46
O grito ecoou pelo quarto em penumbra, alto, agudo, inesperado.
Conforme ele reverberava em seus ouvidos, Layla não entendeu de imediato o que a acordara. O que tinha...
Relanceando para baixo, ela viu que estava sentada ereta, os lençóis amassados em suas mãos, o coração acelerado, a caixa torácica bombeando.
Olhando ao redor, viu que sua boca estava aberta...
Fechando-a, entendeu quem produzira aquele som. Não havia mais ninguém no quarto. E a porta estava cerrada.
Erguendo as mãos, ela girou os pulsos, fazendo as palmas se voltarem para cima e para baixo. A iluminação do quarto, que era pouca, não vinha mais do seu corpo, mas sim do banheiro.
Virando-se de lado, espiou por cima da beirada da cama.
Payne já não estava mais caída no chão. A fêmea devia ter saído – ou fora carregada para fora?
Seu primeiro pensamento foi sair para procurar a irmã de Vishous, simplesmente levantar num pulo e começar a procurar. Embora não tivesse entendido exatamente o que se sucedera entre ambas, não restavam dúvidas de que aquilo custara imensamente à lutadora.
Layla, porém, deteve-se, conforme a preocupação com o seu próprio bem-estar surgiu: sua consciência passou do externo para o interno, a mente se concentrando no corpo, buscando e esperando encontrar as cólicas, a poça quente entre as pernas, as estranhas dores debilitantes em seus ossos.
Nada.
Assim como um quarto ficava em silêncio quando todos os que estavam dentro permaneciam em silêncio, as partes corpóreas também agiam da mesma forma quando todos os seus componentes não tinham queixas.
Tirando as cobertas de cima do corpo, ela moveu as pernas até que ficassem penduradas na lateral do colchão alto. Subconscientemente, preparou-se para a horrível sensação do sangue descendo do seu ventre. Quando nada desse tipo aconteceu, ela se perguntou se o aborto não chegara ao fim. Mas Havers não lhe dissera que duraria mais uma semana?
Foi preciso coragem para se levantar. Ainda que ela considerasse isso ridículo.
Nada ainda.
Layla foi até o banheiro devagar, esperando que o assalto dos sintomas retornasse a qualquer instante, fazendo-a cair de joelhos. Esperou que a dor atacasse, que aquelas cólicas ritmadas voltassem, que aquele processo mais uma vez estabelecesse o domínio sobre seu corpo e sua mente.
Não sei se funcionará, mas, se permitir, eu gostaria de ver o que posso fazer.
Faltou pouco para que Layla rasgasse as roupas, despindo-se do que a cobria num acesso insano. E logo estava no vaso sanitário.
Nenhum sangramento.
Nenhuma cólica.
Uma parte sua afundou numa tristeza tão grande, que ela temia que não houvesse fim para tal emoção – de modo estranho, durante o processo do aborto, ela sentiu como se tivesse uma espécie de conexão com o filho. E se estivesse tudo acabado? Então, a morte estava completa – mesmo que, logicamente, ela soubesse que não havia coisa alguma que tivesse vivido ou fosse capaz de sobreviver; de outro modo, a gestação não teria chegado ao fim.
Sua outra metade estava tomada por uma esperança ressonante.
E se...
Tomou uma chuveirada rápida, apesar de não saber exatamente por que estava se apressando, ou para onde iria.
Baixando o olhar para o abdômen, percorreu as mãos ensaboadas sobre a faixa reta de pele.
– Por favor... qualquer coisa que quiser, pegue o que quiser... me dê esta vida dentro de mim e pode ficar com qualquer outra coisa...
Ela falava com a Virgem Escriba, claro – não que a mãe da raça a ouvisse mais.
– Conceda-me o meu filho... deixe-me ficar com ele... por favor.
O desespero que ela sentia era quase tão ruim quanto os problemas físicos de antes, e ela saiu cambaleando para fora do box, secando-se rapidamente e vestindo-se com qualquer coisa.
Pelo que vira na televisão, as mulheres humanas tinham testes que podiam fazer sozinhas, umas espécies de varetas que lhes diziam se seus corpos estavam procriando seus mistérios. As vampiras não dispunham dessas coisas – pelo menos não que ela soubesse.
Mas os machos sabiam. Eles sempre sabiam.
Saindo apressada do quarto, ela disparou na direção do corredor das estátuas, rezando para se deparar com alguém, qualquer um...
Exceto Qhuinn.
Não, ela não queria que fosse ele a descobrir se aquele milagre acontecera ou... se nada havia mudado. Aquilo seria simplesmente cruel demais.
A primeira porta que viu foi a de Blaylock e ela bateu nela depois de um segundo de hesitação. Blay soube da situação desde o início. E, em seu cerne, ele era um bom macho, um macho bom e forte.
Quando não houve resposta, ela praguejou e deu as costas. Não verificara as horas, mas já que as persianas estavam erguidas e não havia o aroma da refeição sendo servida, provavelmente já estavam no meio da noite. Sem dúvida ele saíra para lutar...
– Layla?
Ela se virou. Blay estava inclinado para fora do quarto com uma expressão de surpresa.
– Desculpe... – quando a voz dela se partiu, ela teve que pigarrear – E-eu...
– O que aconteceu? Você está... Epa, vá com calma. Venha, vamos acomodá-la aqui.
Quando algo se aproximou e a segurou por trás, ela percebeu que ele a agarrara e a levara até o banquinho folheado a ouro bem do lado de fora do quarto dele.
Ele se ajoelhou diante dela e a tomou pelas mãos.
– Quer que eu vá chamar Qhuinn para você? Acho que ele está...
– Diga-me se eu ainda estou grávida – quando os olhos dele se arregalaram, ela apertou suas mãos. – Preciso saber. Alguma coisa... – ela não sabia se Payne queria que ela contasse o que acontecera entre as duas. – Eu só preciso saber se acabou ou não. Pode... por favor, eu preciso saber...
Quando ela começou a balbuciar, ele apoiou a mão no braço dela e o apertou.
– Acalme-se. Apenas respire fundo... isso, respire comigo. Isso mesmo, assim está bom.
Ela fez o que pôde para obedecer, concentrando-se no tom de voz grave e firme.
– Quero chamar a doutora Jane, está bem? – quando ela se mostrou disposta a discutir, ele balançou a cabeça com firmeza. – Fique aqui. Prometo que não vou a parte alguma. Só preciso ir buscar meu telefone. Fique aqui.
Por algum motivo, os dentes dela começaram a tiritar. Estranho, pois não estava frio.
Um segundo depois, o soldado estava de volta e se ajoelhava mais uma vez. Ele estava com o celular pregado ao ouvido e falava.
– Ok, Jane já está vindo – informou ele, desligando o aparelho. – Vou ficar aqui, esperando com você.
– Mas você sabe, não sabe? Você tem que saber, consegue sentir o cheiro...
– Psiiiu.
– Desculpe – ela desviou o rosto, abaixando a cabeça. – Não tive a intenção de envolvê-lo nisso. Eu só... desculpe.
– Está tudo bem. Não se preocupe com isso. Vamos só esperar pela doutora Jane. Ei, Layla, olhe para mim. Olhe para mim.
Quando ela finalmente encarou os olhos azuis, ficou pasma com a bondade neles. Ainda mais quando o macho sorriu com gentileza.
– Estou contente que tenha vindo me procurar – disse ele. – O que quer que esteja acontecendo, nós vamos cuidar disso.
Fitando o rosto belo e forte, sentindo a segurança que ele oferecia com tanta generosidade, percebendo a decência profunda do lutador, ela pensou em Qhuinn.
– Agora entendo por que ele está apaixonado por você – disse ela sem querer.
Blay empalideceu de uma vez, toda a cor do seu rosto sumindo da face.
– O que... você disse?
– Cheguei – disse a doutora Jane do alto das escadas. – Estou aqui! Enquanto a doutora Jane se aproximava correndo, Layla fechou os olhos.
Droga. O que acabara de escapar da sua boca?
No centro da cidade, no armazém em que Xcor passara o dia, o líder do Bando de Bastardos por fim emergiu na escuridão fria da noite.
Ele tinha as armas no corpo e o celular na mão.
Em algum ponto durante as horas iluminadas do dia, a sensação de que ele se esquecera de algo finalmente cessara, e ele se lembrara de que dissera aos soldados para abandonar aquele local. O que explicava por que nenhum deles aparecera antes do amanhecer.
O novo esconderijo não era no centro. E, após um pouco de reflexão, fora um erro de sua parte tentar estabelecer o QG naquela parte da cidade, mesmo se as coisas pareciam desertas: muito risco de descoberta, circunstâncias complicadas ou comprometedoras.
Como bem ficaram sabendo na noite anterior com a visita daquele Sombra.
Fechando os olhos brevemente, ele pensou como era estranho que os eventos podiam se suceder muito além das intenções originais de alguém. Se não por aquela intromissão do Sombra, ele se perguntava se um dia teria conseguido rastrear a sua Escolhida. E se ele não a tivesse seguido até a clínica, não teria descoberto que ela estava grávida... tampouco teria descoberto a respeito da Irmandade.
Lançando-se no vento impiedoso, materializou-se no teto do mais alto arranha-céu da cidade. As rajadas de vento eram cruéis naquela altitude, açoitando seu casaco ao redor do corpo, o coldre da foice era tudo o que mantinha nas costas. O cabelo, que crescia cada vez mais, emaranhava-se, obscurecendo a sua visão da cidade que se estendia aos seus pés.
Ele se virou na direção da montanha do Rei, a grande elevação no horizonte.
– Pensávamos que estivesse morto.
Xcor girou sobre as botas de combate, o vento afastando o cabelo do rosto.
Throe e os outros formavam um semicírculo ao redor dele.
– Ai de mim! Ainda vivo e respiro – mas, na verdade, ele só se sentia morto. – Como são as novas acomodações?
– Onde esteve? – Throe exigiu saber.
– Por aí – ao piscar, ele se lembrou de ter vasculhado aquele cenário estranho e enevoado, circundando a base da montanha. – As novas acomodações, como elas são?
– Boas – murmurou Throe. – Posso falar com você?
Xcor levantou uma sobrancelha.
– De fato, você parece ansioso em fazer isso.
Os dois se afastaram um pouco, deixando os outros ao vento e, sem querer, ele acabou ficando de frente para a direção do complexo da Irmandade.
– Você não pode fazer isso – disse Throe acima das rajadas enregelantes. – Não pode simplesmente desaparecer durante o dia inteiro. Não neste cenário político... nós deduzimos que você tivesse sido morto, ou pior, capturado.
Houve uma época em que Xcor teria rebatido essa censura com uma repulsa afiada ou algo mais físico. Mas seu soldado estava certo. As coisas estavam diferentes no grupo deles – desde que enviara Throe para o covil do lobo, ele começara a sentir uma ligação recíproca com aqueles machos.
– Eu lhe garanto, não foi intencional.
– Então, o que aconteceu? Onde esteve?
Naquele instante, Xcor viu uma encruzilhada à sua frente. Uma direção levava ele e seus soldados à Irmandade, para um conflito sangrento que mudariam suas vidas para sempre para o bem ou para o mal. A outra?
Ele pensou em sua Escolhida sendo sustentada por aqueles dois lutadores, com tanto cuidado como se fosse de vidro.
Optou por essa direção.
– Estive no armazém – ouviu-se dizer após um momento. – Passei o dia lá. Voltei para lá distraído, e já era tarde demais para ir para qualquer outra parte. Passei as horas do dia no subterrâneo, e meu telefone não tinha sinal. Vim para cá assim que saí do prédio.
Throe franziu o cenho.
– Já faz tempo que o sol se pôs.
– Perdi a noção do tempo.
Aquilo era tudo o que estava disposto a informar. Nada mais. E seus soldados devem ter sentido esse limite de demarcação e, ainda que as sobrancelhas de Throe permanecessem tensas, ele não disse nada mais.
– Só preciso resolver um detalhe aqui e depois partiremos para encontrar nossos inimigos – declarou Xcor.
Ao pegar o celular, ele não teria como ler a tela, mas sabia como acessar a caixa de mensagens. Havia algumas ligações não recebidas – muito provavelmente de Throe e dos outros. E depois houve uma mensagem de alguém de quem ele esperava notícias.
– Sou eu – anunciou Elan, filho de Larex. Houve uma pausa, como se em sua mente estivesse ouvindo uma fanfarra de trompetes. – O Conselho vai se reunir amanhã à meia-noite. Pensei que você deveria saber. O local é uma propriedade aqui na cidade, cujos donos recentemente retornaram de sua casa segura. Rehvenge foi bem insistente quanto ao agendamento, portanto só posso deduzir que nosso caro lídher esteja trazendo uma mensagem do Rei. Eu o manterei informado quanto ao que se suceder, mas não espero vê-lo lá. Fique em paz, meu aliado.
Quando ele apertou o botão de apagar a mensagem, Xcor expôs as presas, e o ressurgimento da sua raiva foi bom – uma volta à normalidade.
Como aquele aristocratazinho afetado ousava lhe dizer o que fazer?
– O Conselho irá se reunir amanhã – disse ele ao guardar o telefone.
– Onde? Quando? – perguntou Throe.
Xcor olhou por sobre a cidade até a montanha. Depois deu as costas para aquele ponto cardinal.
– O caro Elan determinou que não devemos estar lá. O que ele falha em perceber é que isso será escolha minha. Não dele.
Como se deixar de informar o endereço o impedisse de ir caso ele assim o desejasse?
– Chega de conversa – ele caminhou até o restante dos seus soldados. – Vamos descer às ruas e nos engajar como fazem os soldados.
Entre as suas omoplatas, a foice começou a falar com ele mais uma vez, a voz clara em sua mente, suas palavras sedentas por sangue como a súplica de uma amante.
Seu silêncio fora por demais perturbador.
Não foi com pouco alívio que ele se desmaterializou do alto de arranha-céu, o seu desejo férreo direcionando suas moléculas na direção do chão e no campo de batalha. De tantas maneiras, as 24 horas anteriores se passaram como se tivessem sido vividas por outra pessoa.
Todavia, ele voltava para a sua boa e velha pele.
E pronto para matar.
CAPÍTULO 47
Qhuinn estava a dezessete quilômetros por hora numa corrida de 32 quilômetros na esteira quando a porta da academia do centro de treinamento se abriu.
No segundo em que ele viu quem era, pôs-se nas barras laterais da máquina e apertou o botão de parar: Blay estava parado na soleira, com os olhos arregalados e o rosto todo abatido – e não porque alguém o tivesse surrado ou algo assim.
– O que aconteceu? – Qhuinn exigiu saber.
Blay enfiou uma mão nos cabelos ruivos.
– Hum... Layla está na clínica...
– Merda – ele saltou da máquina e seguiu para a porta. – O que aconteceu...
– Não, não, nada. Ela só está lá para um consulta de rotina. É só isso – o cara deu um passo para o lado, deixando a saída livre. – Imaginei que você quisesse saber.
Qhuinn franziu o cenho e parou bem onde estava. Ao perscrutar a expressão do macho, chegou a uma conclusão que o deixou ansioso: Blay estava escondendo alguma coisa. Difícil determinar como ele sabia disso, mas, pensando bem, depois de uma amizade desde a infância, você aprende a ler nas entrelinhas.
– Você está bem? – perguntou-lhe.
Blay indicou a direção da clínica.
– Sim. Claro. Ela está na sala de exames neste instante.
Certo, obviamente o assunto estava encerrado.
Reagindo, Qhuinn trotou pelo corredor e quase explodiu porta adentro. No último segundo, porém, um senso de decoro o impediu de fazer isso. Alguns exames em fêmeas grávidas envolviam lugares privados – e por mais que ele e Layla tivessem feito sexo, eles certamente não eram íntimos a esse ponto.
Por isso, bateu à porta.
– Layla? Você está aí?
Houve uma pausa e depois a doutora Jane abriu a porta.
– Olá, pode entrar. Estou contente que Blay o tenha encontrado.
O rosto da médica nada revelava – e isso o deixou psicótico. De modo geral, quando os médicos agiam daquele modo cortês e profissional, as notícias não eram boas.
Olhando além da fêmea de V., ele se concentrou em Layla, mas foi Blay quem ele segurou, agarrando-o pelo braço.
– Fique, se puder? – Qhuinn disse pelo canto da boca.
Blay pareceu surpreso, mas atendeu ao pedido dele, fechando a porta atrás de si após entrar.
– O que está aconteceu? – Qhuinn quis saber.
Consulta de rotina o seu rabo. Os olhos de Layla estavam arregalados e um pouco perturbados, as mãos irrequietas remexendo no cabelo longo.
– Houve uma mudança – disse a doutora Jane com hesitação.
Pausa.
Qhuinn quase gritou.
– Ok, preste atenção, se ninguém me disser que merda está acontecendo, vou perder a cabeça no meio desta sala...
– Estou grávida – Layla deixou escapar.
E como isso representava uma mudança?, ele se perguntou com a cabeça começando a zumbir.
– Isto é, o aborto parece ter parado – explicitou Jane. – E ela continua grávida.
Qhuinn piscou. Depois balançou a cabeça – mas não de um lado para o outro, mas sim como se alguém estivesse masturbando um globo de neve.
– Não entendi.
A doutora Jane se sentou numa banqueta de rodinhas, e abriu o prontuário no colo.
– Eu mesma fiz o exame de sangue. Há uma pequena alteração no equilíbrio dos hormônios gestacionais...
– Vou vomitar – Layla interrompeu. – Agora...
Todos se apressaram para a pobre fêmea, mas Blay foi o mais esperto. Ele pegou um cesto de lixo e foi isso o que a Escolhida usou.
Enquanto ela vomitava, Qhuinn amparou sua cabeça e se sentiu meio tonto.
– Ela não está bem – disse à médica.
Jane sustentou o olhar dele por sobre a cabeça de Layla.
– Essa é uma parte normal da gestação. Pelo visto, para as vampiras também...
– Mas ela está sangrando...
– Não está mais. E eu fiz um ultrassom. Posso ver o saco gestacional. Ela ainda está grávida...
– Ai, merda! – Blay exclamou.
Por uma fração de segundo, Qhuinn não conseguiu entender por que o cara estava praguejando. Mas logo percebeu que... hum, o teto mudara de lugar com a parede.
Não, espere.
Ele estava desmaiando.
Seu último pensamento consciente foi o de que foi muito bom Blay o amparar enquanto ele despencava como uma árvore cortada na floresta.
No contexto dos idiomas, existiam palavras muito mais importantes do que “estar”. Existiam palavras elegantes, palavras históricas, palavras que valiam a vida ou a morte. Havia trava-línguas com polissílabas que exigiam esforço para serem pronunciadas, e missões críticas essenciais que começavam e terminavam guerras... e mesmo poesias sem sentido que pareciam sinfonias ao saírem dos lábios.
De modo geral, “estar” não era usado por garotos crescidos. Na verdade, mal tinha uma definição e, no decorrer de sua vida, não passava de uma ponte, um conduíte de outras palavras mais importantes em qualquer sentença.
Havia, no entanto, um contexto em que tal palavrinha de cinco letras e de apenas duas sílabas era de arrasar quarteirão.
No que se referia ao amor.
A diferença de “amar” em comparação com “estar amando, estar apaixonado” era a uma freada ante o Grand Canyon. A cabeça de um alfinete em todo o Meio-Oeste. Uma expiração ante um furacão.
Agora entendo por que ele...
Enquanto Blay permanecia no chão da sala de exames com o corpo mole de Qhuinn em seu colo, ele não conseguia, nem que sua vida dependesse disso, lembrar-se o que Layla dissera em seguida. Teria sido “ama você”? Bem, nesse caso, sim, ele sabia que o cara o amava como um amigo há décadas. E isso não mudava nada.
Ou teria sido com o acréscimo do “estar”?
Nesse caso, ele estava meio que considerando imitar Qhuinn e dar um tempo no piso de ladrilhos.
– Como vai o meu outro paciente? – a doutora Jane perguntou enquanto Layla se largava de novo na maca.
– Respirando – respondeu Blay.
– Ele vai melhorar.
Era de se esperar, Blay pensou ao se concentrar no rosto de Qhuinn – como se aquelas feições conhecidas, mesmo ele estando apagado, pudessem lhe dar a resposta para sua pergunta de um ou outro modo.
A Escolhida não poderia ter dito “está apaixonado”.
Não podia ser isso. Ele simplesmente se recusava a deixar que duas sessões de sexo excelente reescrevessem as palavras de alguém.
– Tem certeza de que isso é normal? – ele ouviu Layla perguntar à médica.
– O vômito? De acordo com o que Ehlena me contou antes, por certo pode ser parte dos sintomas de uma gestação bem-sucedida. Na verdade, é um sinal claro de que as coisas estão progredindo bem. São os hormônios.
– Eu não tenho que voltar ao consultório de Havers, tenho?
– Bem, Ehlena está voltando da visita ao pai hoje à noite. Por isso, precisamos ver o quanto ela se sente à vontade tratando-a... e depois nós veremos em que ponto você está. Não vou mentir... considero isto um milagre.
– Concordo.
Enquanto as fêmeas conversavam, Blay manteve o olhar nas pálpebras fechadas de Qhuinn. Era um milagre, podem acreditar.
Como se estivesse programado, o cara recuperou os sentidos naquele instante, os cílios escuros se mexendo como se tentassem decidir se ele falava sério quanto a essa coisa de ficar consciente.
– Layla! – ele exclamou ao se erguer de pronto.
Blay se empurrou para trás, soltando-se dele. Sentindo-se um pouco idiota.
Ainda mais quando Qhuinn se pôs de pé e foi para perto da fêmea.
Blay ficou onde estava, recostando-se no armário debaixo da pia, com os joelhos erguidos, as mãos sobre as coxas. Mesmo que isso o estivesse dilacerando, ele não conseguiu deixar de olhar os dois juntos, a mão da adaga de Qhuinn impossivelmente gentil enquanto afastava os cabelos loiros de Layla do rosto.
Ele dizia algo a ela, algo suave e reconfortante.
Antes de Blay se dar conta, ele já estava no corredor, andando para algum lugar, qualquer lugar. Por mais difícil que fosse aceitar a compaixão de Qhuinn... era simplesmente impossível testemunhá-la sendo dada a outra pessoa – mesmo que essa pessoa fosse merecedora. A ideia de que Layla tivesse recebido em seu cio exatamente o que ele tivera nos dois últimos dias fazia seu peito doer, mas o que era pior? Ao que tudo levava a crer, o esforço físico com ela servira a um propósito biológico. Ela estava grávida – e, graças a Payne, ele tinha a sensação de que ela continuaria desse modo.
Apesar de tudo, ele fizera a coisa certa ao procurar a irmã de V. no dia anterior. Deduzindo que isso tivesse sido a causa da incrível reviravolta. Mas, ainda assim, e mesmo que não fizesse sentido, ele sentia como se...
– Você está bem?
Ele parou de súbito com o choque de ouvir a voz de Qhuinn. Pensara que o cara ficaria com Layla.
Preparando-se, enfiou as mãos nos bolsos e respirou fundo antes de se virar.
– Sim, estou bem. Só imaginei que vocês dois quisessem um pouco de privacidade.
– Obrigado por ir me amparar – ele ergueu as mãos. – Não sei o que aconteceu ali dentro.
– Alívio.
– Pode ser.
Houve um instante embaraçoso. Mas, pensando bem, eles eram especialistas nisso, não?
– Bem, vou voltar para a casa – Blay forçou um sorriso, na esperança de que o cara acreditasse. – É bom ter uma noite de folga.
– Ah, é. Saxton deve estar à sua espera.
Blay abriu a boca, mas se segurou antes que um “por quê?” escapasse dos seus lábios.
– É, ele está. Cuide de sua garota. Eu o vejo na Última Refeição, talvez.
Ao sair andando e entrar na recepção, ele sabia que estava sendo um covarde por se esconder atrás de uma relação inexistente. Mas, quando você se corta, você precisa de um Band-Aid.
Cristo, não era de se admirar que Saxton tivesse rompido com ele.
Que romântico...
CAPÍTULO 48
Enquanto Assail passava pelos enormes portões da propriedade na parte abastada de Caldwell, ele se sentia aborrecido. Irritado. E não só porque vinha se drogando com cocaína com regularidade sem se alimentar.
O chalé ficara à esquerda, e ele estacionou o Range Rover de frente, debaixo de uma das janelinhas alegres. Ele preferiria ter se desmaterializado até lá – tão menos complicado. Mas, depois de ter deixado os gêmeos numa boate gótica, o Iron Mask, ele se deparou com a realidade de que, caso não se alimentasse, não seria capaz de continuar em frente.
Ele odiava aquilo. Não que ele se importasse com o custo. O problema era que ele não se sentia atraído pela fêmea – e não apreciava as tentativas dela de modificar a situação.
Abrindo a porta, ele saiu, e o ar frio que o atingiu no rosto lhe deu um chacoalhão, fazendo-o perceber o quão lento estivera.
Naquele mesmo instante, um carro passou pela rua da frente, um tipo de sedã nacional.
E foi quando a portinhola do chalé se abriu.
As presas de Assail formigaram quando a fêmea na soleira foi percebida pelos seus sentidos. Vestida em uma roupa sensual preta, ela estava pronta para ele, o cheiro inebriante da sua excitação marcava o ar, embora não fosse isso o que provocou a sua luxúria. Era a veia dela, nada mais, nada menos...
Assail franziu o cenho e olhou para além do chalé, para a floresta que margeava a propriedade.
Em meio às arvores esqueléticas, as luzes traseiras do carro que acabara de passar ficaram vermelhas. Então, quem quer que estivesse ali, fez uma curva, formando um círculo com os faróis dianteiros – e depois eles se apagaram.
Imediatamente, Assail procurou a pistola.
– Entre. Não estamos sozinhos.
A fêmea guardou as boas-vindas e desapareceu dentro do chalé, fechando a porta com um baque.
Desmaterializar-se na floresta seria a melhor tática, mas claro, ele estava faminto demais para isso.
Abruptamente, o vento mudou de direção e veio a seu encontro, e suas narinas se dilataram.
Assail grunhiu baixinho – e não como um alerta. Mais como um tipo de cumprimento.
Como se um dia ele conseguisse se esquecer daquela combinação específica de feromônios.
Sua ladrazinha invertera as posições, fazendo com ele exatamente aquilo que ele fizera com ela na noite anterior. Há quanto tempo ela estava no seu rastro?, ele se perguntou com uma medida de respeito crescendo em seu peito ao mesmo tempo em que ficava frustrado.
Ele não gostou da ideia de que talvez ela o tivesse visto debaixo da ponte. Conhecendo-a, porém, não tinha como excluir essa possibilidade.
Inspirando profundamente, ele não percebeu nada de significativo. O que significava que ela estava sozinha.
Coletando informações? Para quem?
Assail virou-se de volta para o chalé e sorriu sombriamente. Sem dúvida, uma vez que ele entrasse, ela se aproximaria... e quem era ele para não lhe propiciar um espetáculo?
Ele bateu uma vez, e a fêmea abriu a porta novamente.
– Está tudo bem? – perguntou ela.
Seus olhos percorreram o rosto dela, demorando-se nos cabelos. Eram escuros. Espessos. Parecidos com os de sua ladrazinha.
– Tudo certo. Era somente um humano com problemas no carro.
– Então, não há nada com que se preocupar?
– Absolutamente nada.
Enquanto o alívio abrandava a expressão dela, ele fechava e trancava a porta.
– Estou tão contente que tenha vindo me procurar novamente – disse a fêmea, deixando as duas aberturas de renda do robe de cetim se afastarem.
Esta noite ela vestia uma camisola preta que elevava os seios e apertava a cintura a ponto de ele pensar que poderia envolvê-la com apenas uma mão. O cheiro dela era exagerado: excesso de creme para mãos, para o corpo, xampu, condicionador e perfume marcando seu corpo.
Ele bem que queria que ela não se desse a esse trabalho.
Movendo rapidamente os olhos, Assail verificou a posição das janelas. Naturalmente, nada havia mudado: havia duas estreitas em cada lado da lareira. Três peças de vidro sobre a pia. E o parapeito da bay window à esquerda sobre o qual havia um assento embutido com diversas almofadas e almofadinhas bordadas em ponto cruz.
Sua ladra escolheria a janela à direita da lareira. Ela ficava longe da iluminação da porta de entrada, e sob o abrigo da chaminé.
– Está pronto para mim? – a fêmea ronronou.
Assail enfiou a mão dentro da jaqueta. Os mil dólares em dinheiro vivo estavam dobrados uma vez, as dez notas de cem formando um livrinho fino.
Movendo-se sinuosamente, ele ficou de costas para a bay window e para a lareira. Por algum motivo, não queria que a sua ladra o visse fazendo o pagamento.
O resto do que estava para acontecer, todavia, ele bem queria que ela testemunhasse.
– Aqui está.
Quando a fêmea apanhou o dinheiro, ele desejou que ela não contasse. E ela não o fez.
– Obrigada – ela recuou e colocou as notas num pote de cerâmica vermelha. – Vamos?
– Sim. Vamos.
Assail se aproximou e assumiu o controle, segurando o rosto da fêmea entre as mãos, inclinando a cabeça dela para trás e beijando-a com avidez. Em resposta, ela gemeu, como se o avanço inesperado fosse algo que ela não só acolhia como não ousara esperar.
Ele ficou satisfeito que ela tivesse apreciado. Mas o prazer dela não era o que ele buscava.
Movendo-a, ele a levou até o sofá que estava na parede oposta do chalé, empurrando-a com o corpo, usando sua força para deitá-la com a cabeça na direção da lareira. Enquanto ela se reclinava, abriu os braços para as laterais, fazendo os seios subirem até brigarem com a barreira de cetim que os cobria.
Assail deitou-se por cima dela completamente vestido, ainda de casaco, o joelho separando os dela, uma das mãos descendo para subir a camisola...
– Não, não – disse ele quando ela tentou segurá-lo pelo pescoço. – Quero ver você.
Tolice. Ele queria que ela fosse vista pela janela.
Enquanto ela o obedecia prontamente, ele voltou a beijá-la e a afastar a longa saia do caminho – e no segundo que em que ela foi afastada, a fêmea abriu bem as pernas.
– Entre em mim – disse ela, arqueando-se debaixo dele.
Bem, aquilo não seria possível. Ele não estava excitado.
Mas ninguém precisava saber aquilo.
A fim de parecer fervoroso, ele tirou o casaco dos ombros, e com uma mordida leve das presas, rasgou as alças da camisola, expondo os seios da fêmea à luz da lareira, os mamilos instantaneamente enrijecendo como picos sobre a pele alva.
Assail fez uma pausa, como se embevecido pelo que via. Depois, esticou a língua e abaixou a cabeça.
No último instante, antes que começasse a lamber e a sugar, ele ergueu os olhos, concentrando-se na janela escura da direita, encontrando o olhar fixo da mulher que ele sabia que estava nas sombras, observando-o...
Um golpe de lascívia pura e simples atravessou seu corpo, tomando conta, substituindo seu juízo como motivador das suas ações. A fêmea debaixo dele deixou de ser uma de sua própria espécie que ele comprava por um tempo breve.
Ela se tornou a sua ladra.
E isso mudou tudo. Com um rompante, ele atacou a garganta da fêmea, tomando sua veia, sugando aquilo que ele tanto precisava...
E imaginando, o tempo inteiro, que a mulher humana estava debaixo dele.
Sola arfou...
E se afastou da janela do chalé.
Quando as costas bateram na lateral dura da chaminé de pedra, ela fechou os olhos, seu coração começou a bombear contras as costelas, os pulmões tragando o ar frio.
Atrás de suas pálpebras, tudo o que ela via eram os seios nus expostos diante dele, a cabeça escura descendo, a língua se projetando para fora da boca... e os olhos dele se erguendo para encará-la.
Oh, Jesus, como ele soubera que ela estava ali?
Ah, merda, ela nunca esqueceria a imagem da mulher estendida debaixo dele, o casaco deixado de lado, o corpo dele subindo para se encaixar entre aqueles quadris esbeltos. Ela conseguia imaginar o calor da lareira ao lado deles, e o calor ainda maior surgindo de dentro dele – a sensação da pele contra a pele, da promessa do êxtase.
Não olhe de novo, ela disse a si mesma. Ele sabe que você está aqui...
O grito agudo do orgasmo da mulher vibrou por todo o chalé, perturbando a aparência pacata do lugar.
Sola se inclinou sobre a janela novamente, espiando pelo vidro... mesmo sabendo que não deveria fazer isso.
Ele estava dentro da mulher, a parte baixa do corpo bombeando, o rosto aninhado no pescoço dela, os braços afastados para ancorar o peso da parte de cima do corpo.
Ele não olhou mais para cima. E continuou ocupado por um bom tempo.
Agora era a hora de recuar.
Além disso, será que ela precisava mesmo ver aquilo?
Com uma imprecação, Sola se afastou sorrateiramente dali, passando pelo gramado rasteiro, esquivando-se das árvores baixas sem folhas. Quando chegou ao carro alugado, entrou, trancou as portas e deu a partida.
Fechando os olhos uma vez mais, rememorou toda a cena: a sua aproximação do chalé, da janela, ficando nas sombras lançadas pela chaminé.
Ele do outro lado da sala, a mulher de frente para ele, o corpo gracioso coberto pelo cetim preto, o cabelo escuro que cobria as costas inteiras. Ele amparando o rosto dela e beijando-a, os ombros se curvando ao se inclinar para manter contato com uma expressão profundamente erótica...
E depois ele levou a mulher até o sofá.
Ainda que ficasse mortificada por admitir, Sola sentiu uma pontada de ciúme irracional. Mas isso não foi o pior: seu próprio corpo reagira, seu sexo florescendo entre as pernas como se a sua boca tivesse sido beijada, a sua cintura fosse aquela segurada por ele, seus seios comprimidos contra o peito dele. E essa reação só se intensificara quando ele posicionara a mulher no sofá, o rosto dele marcado por uma avidez sombria, os olhos cintilando como se debaixo dele houvesse uma refeição a ser degustada.
Observar era errado. Assistir era errado.
Mas mesmo a ameaça à sua segurança pessoal – e, discutivelmente, sua saúde mental – não bastaram para afastá-la daquele vidro. Ainda mais quando ele recuara para tirar o casaco dos ombros. Fora impossível não visualizá-lo nu, vendo o peito largo exposto na luz da lareira, imaginando como seu abdômen se curvaria sob a pele... E depois, pareceu que ele a tivesse mordido – mordido, pelo amor de Deus –, arrancando as alças finas do corpete da camisola.
E bem quando os malditos seios perfeitos da mulher ficaram expostos... ele teve que olhar para ela.
Sem nenhum tipo de aviso, aqueles olhos cintilantes e predatórios se elevaram e cravaram diretamente nela, um sorriso furtivo surgindo no canto da boca.
Como se o show fosse para ela.
– Merda. Merda.
Uma coisa estava clara: se o que ele quis foi lhe ensinar uma lição sobre espionagem, era difícil pensar num modo melhor – além de fazê-la comer a ponta do cano de uma .40.
Sola saiu do acostamento e tomou a estrada. Enquanto o Ford Taurus demorou dezesseis quilômetros para chegar ao limite de setenta quilômetros por hora, ela desejou estar em seu Audi: com o sangue ainda correndo rápido nas veias, ela precisava de uma forma exterior de expressar o rugido preso em seu corpo.
Algum tipo de vazão.
Como... sexo, por exemplo.
E não consigo mesma.
CAPÍTULO 49
No que se referia aos padrões dos Grandes Campos de Andirondack, a casa de Rehv tinha tudo: uma enorme mansão rústica ladeada por cedros e recoberta por varandas. Um sem-número de construções externas, inclusive chalés para hóspedes. Vista para o lago. Muitos quartos.
Depois que Trez e iAm se materializaram no jardim lateral, eles deram a volta pela neve até a entrada dos fundos pela cozinha. Mesmo no inverno, o lugar emanava boas vibrações, com aquele brilho cálido atravessando os vidros cortados em forma de diamante. Mas nem tudo era do Mundo do Faz de Conta: os abastados vitorianos que construíram aquele complexo como um escape ao calor e das cidades industrializadas durante os verões muito provavelmente não o equiparam com detectores de movimento a laser, travas de última geração nas portas e janelas, e não uma, mas várias placas-mães diferentes para controlar um sistema de alarme multiface e completamente integrado.
Uau.
A impressão digital de Trez no painel discretamente colocado à esquerda da porta permitiu a entrada ao interior da casa – para uma cozinha de tamanho industrial que estava guarnecida com equipamentos de aço inoxidável no mesmo nível dos do Sal’s.
Algo estava assando no forno imenso. Pelo cheiro, parecia pão.
– Estou com fome – observou Trez ao fechar a porta. O mecanismo de tranca fechou a porta por si só, mas ele verificou se ela estava trancada mesmo assim por força do hábito.
Ao longe, alguém passava o aspirador – provavelmente uma Escolhida. Desde que Phury assumira o posto de Primale e basicamente libertara o grupo enclausurado de fêmeas do Outro Lado, Rehv as deixava ficar nos Grandes Campos. Fazia sentido. Muita privacidade, especialmente fora da alta temporada, além de que o distanciamento com a cidade propiciava uma transição suave da uniformidade plácida do santuário para a natureza frenética, se é que Trez entendera corretamente, e por vezes traumática da vida na Terra.
Fazia tempo que ele não ia até a casa – não desde que as Escolhidas foram morar ali, para falar a verdade. Pensando bem, quando Rehv explodira o Zero Sum e pusera um fim ao seu papel de rei das drogas, aquela dívida entre eles perdera um pouco da sua força de retribuição.
Além disso, agora que o cara não tinha mais de fazer entregas de garotas e sexo para a princesa, não havia muitos motivos para ir para o norte.
Ao que tudo levava a crer, porém, aquilo mudara.
– Ei, Rehv, você está aí? – Trez chamou com a voz ecoando.
Por mais que seu estômago protestasse, ele e o irmão saíram para o átrio principal. Objetos vitorianos estavam por toda a parte, desde os tapetes orientais multicoloridos no chão até os bancos cobertos de tapeçaria, incluindo as cabeças de bisão, de cervo, de alce e de lince empalhadas e montadas ao redor da lareira.
– Rehv! – ele chamou novamente.
Caramba, aquele abajur de guaxinim sempre o aterrorizara. Assim como a coruja empalhada com óculos de sol.
– Ele já vai descer.
Trez se virou para a voz feminina.
E, naquele instante, o curso de sua vida mudava para sempre.
A escada que vinha do segundo andar era reta, os degraus baixos e a grade simples emergindo de cima sem nenhum artifício arquitetônico.
A fêmea em seu manto branco parada à base a transformava na escadaria do paraíso. Ela era alta e magra, mas as curvas estavam presentes nos lugares certos; o vestido solto não conseguia esconder o busto alto e a graciosidade das curvas dos quadris. A pele era lisa e da cor de café com leite, o cabelo escuro estava amarrado num coque no alto da cabeça. Os olhos eram claros emoldurados por cílios espessos. Os lábios eram cheios e rosados.
Ele quis beijá-los.
Especialmente quando eles se moveram, enunciando alguma coisa que ela dizia com precisão intoxicante...
O cotovelo pontudo de iAm o atingiu nas costelas e o fez dar um pulo.
– Ai! Mas que mer... digo, que droga. Cacete, quero dizer, caramba.
Belo modo de parecer calmo e controlado, cretino.
– Ela perguntou se queremos comer – iAm murmurou. – Eu agradeci, mas recusei. Agora é a sua vez.
Ah, como ele queria comer uma coisa... Queria cair de joelhos aos pés dela e se enfiar debaixo da...
Trez fechou os olhos e se sentiu como um absoluto idiota.
– Não, estou bem.
– Pensei que você tivesse dito que estava com fome.
Trez arregalou os olhos e encarou o irmão. O cara estava tentando fazer com que ele fizesse papel de idiota?
O brilho no olhar de iAm sugeria que sim.
– Não. Estou bem – ele resmungou. Entrelinhas: Não force a barra, babaca.
– Eu estava indo verificar o meu pão.
Os olhos de Trez se fecharam novamente, a voz da Escolhida tilintando em seus ouvidos, o som tanto elevando a sua pressão sanguínea quanto o acalmando ao mesmo tempo.
– Sabe – ele se ouviu dizer –, talvez eu vá dar uma olhada para ver se arranjo alguma coisa para comer.
Ela sorriu para ele.
– Siga-me. Estou certa de que posso encontrar algo do seu gosto.
Enquanto ela seguia para a porta pela qual eles tinham acabado de sair, Trez piscou como o idiota que era.
Fazia muito, muito tempo desde que uma fêmea lhe dizia algo sem um sentido duplo... mas até onde ele podia afirmar, aquelas palavras, que discutivelmente podiam ser consideradas uma cantada – pelo menos para o seu filtro de luxúria – não carregavam nenhuma promessa de um boquete ou de sexo carnal. Nem mesmo de uma simples atração.
Naturalmente, isso fez com que ele a desejasse ainda mais.
Seus pés partiram naquela direção, o corpo seguindo como um cão seguiria seu dono, sem um segundo pensamento a não ser ir atrás do caminho escolhido por ela para ele...
iAm o agarrou pelo braço e o puxou de volta.
– Nem pense nisso.
O primeiro impulso de Trez foi se soltar, mesmo se isso significasse deixar o braço para trás nas mãos do irmão.
– Não sei do que está falando...
– Não me obrigue a segurar a sua ereção para provar o que estou dizendo – iAm sibilou.
Entorpecido, Trez olhou para baixo. Ótimo. Olha ali.
– Eu não vou... – fodê-la era o que lhe vinha à mente, mas, por Deus, ele não podia usar essa palavra ao redor daquela fêmea, mesmo que hipoteticamente. – Sabe, fazer nada.
– Você espera mesmo que eu acredite nisso?
Os olhos de Trez partiram para a porta pela qual ela desaparecera. Merda. Ele não tinha credibilidade nenhuma no quesito abstinência.
– Ela não está disponível para você, veja se me entende – iAm disse, rangendo os dentes. – Isso não seria justo para alguém como ela; mais especificamente, se você fizer isso, Phury vai atrás de você com uma adaga negra. A dele, não a sua.
Por uma fração de segundo, Trez ficou indignado com isso – não porque seu lado feminista interior se opusesse ao fato de as fêmeas serem tratadas como propriedade, ainda que isso fosse errado. Não, era porque...
Minha.
De algum lugar em seu cerne, Trez arrancou seu subconsciente do precipício no qual, inesperadamente, ele se via caindo.
O rei sympatho descia pela mesma escada que a Escolhida utilizara, a bengala equilibrando-o, o casaco de marta preto mantendo seu corpo aquecido.
Enquanto iAm dizia algo e Rehv respondia, Trez voltou a olhar para a porta da cozinha. Ah, o que será que ela estava fazendo ali... Puxa... Provavelmente se inclinando para espiar o pão...
Um grunhido sutil emanou de sua garganta.
– O que disse? – Rehv perguntou com o olhar se estreitando.
Outra cotovela em suas costelas trouxe Trez de volta à realidade.
– Desculpe. Indigestão. Como vai?
Rehv ergueu uma sobrancelha, depois deu de ombros.
– Preciso da ajuda de vocês.
– Pode falar – respondeu Trez com sinceridade.
– Haverá uma reunião do Conselho amanhã à noite. Wrath estará presente. A Irmandade lhe dará proteção, mas quero que vocês dois também estejam presentes.
Trez se retraiu. O Conselho se reunia com regularidade antes da onda de ataques de alguns anos atrás, e Rehv jamais precisou de reforços.
– O que está acontecendo?
– Wrath foi alvejado no outono passado.
Mas. Que. Merda.
Trez cerrou o maxilar.
– Quem foi o responsável? – afinal, ele gostava do Rei.
– O Bando de Bastardos. Vocês não o conhecem, mas podem encontrá-los amanhã à noite... se concordarem em ir.
– Claro que iremos – quando iAm assentiu em concordância, Trez cruzou os braços sobre o peito. – Onde?
– Estou organizando tudo numa propriedade em Caldwell à meia-noite. É uma das poucas que não foi infiltrada pela Sociedade Redutora... De qualquer forma, a família foi quase que completamente dizimada, pois visitavam um parente na cidade quando o ataque ocorreu – Rehv prosseguiu e se sentou no sofá de tapeçaria, girando a bengala no chão entre as pernas. – Deixe-me lhes dizer como vai ser. Wrath agora está completamente cego, mas a glymera não sabe disso. Quero que ele esteja sentado na sala principal quando todos aqueles aristocratas chegarem a fim de que não o vejam se apoiando em ninguém para encontrar seu posto. Então...
Enquanto Rehv continuava a explicar o plano, Trez se acomodou diante da lareira e assentiu nos momentos certos.
Em sua mente, porém, ele estava na cozinha, com aquela fêmea...
Qual seria o nome dela?
E mais importante do que isso...
Quando voltaria a vê-la?
CAPÍTULO 50
Lá embaixo, na sala de exames da clínica, Qhuinn se sentia como se estivesse flutuando bem alto. E não do mesmo modo como se sentiu antes do impacto do maldito Cessna com um Irmão ferido nos fundos.
– Desculpe, pode repetir?
A doutora Jane sorriu ao trazer a mesinha móvel para junto da cama. De modo vago, o que havia em cima ficou registrado, mas ele estava mais concentrado no que poderia sair da boca da médica.
– Vocês ainda estão grávidos. Os níveis de hormônios dela estão se duplicando exatamente como o esperado, a pressão está perfeita, os batimentos cardíacos também. E nada mais de sangramentos, certo?
Quando a médica olhou para Layla, a Escolhida assentiu com a cabeça, sua expressão tão assustada quanto ele por certo se sentia.
– Nenhum.
Qhuinn deu alguns passos, passou a mão pelos cabelos, o cérebro dando um nó.
– Não entendo isso... Quero dizer, é o que eu quero... o que nós queremos... mas não entendo como ela...
Depois de descer de montanha-russa para o inferno, era completamente inesperado chegar a uma elevação súbita de volta à Terra.
A doutora Jane apenas balançou a cabeça.
– Isso provavelmente não será de nenhuma ajuda, mas Ehlena também nunca viu nada parecido. Portanto, entendo a confusão de vocês, e, mais do que isso, entendo mais do que podem imaginar como a esperança pode ser traiçoeira. É difícil se entregar ao otimismo depois do que vocês passaram.
Caramba, a shellan de V. não era nenhuma idiota.
Qhuinn se concentrou em Layla. A Escolhida estava vestindo um robe branco, não do tipo que ela usava como membro da seita secreta das fêmeas da Virgem Escriba. Era mais um roupão de todo dia e, por baixo, uma camisola hospitalar com coraçõezinhos rosa e vermelhos sobre um fundo branco. E aquela mesa de rodinhas? Ali estava um pacote de bolachas de água e sal e seis latas de refrigerante.
Que espécie de remédios de balcão de farmácia, hein?
A doutora Jane abriu o pacote.
– Sei que a última coisa em que está pensando é comida – ela estendeu um dos quadrados salgados. – Mas se comer isto e tomar um pouco de refrigerante, talvez as coisas se acomodem melhor por aí.
E sabe que adiantou? Layla acabou comendo metade do pacote e tomou duas latinhas.
– Ajuda mesmo, hein? – Qhuinn murmurou quando a Escolhida se recostou com um suspiro de alívio.
– Você não faz ideia – Layla pousou a mão no ventre. – O que for preciso, eu faço, eu como, eu bebo.
– A náusea é tão ruim assim?
– Não se trata de mim. Não me importo se vomitar por dezoito meses, contanto que o bebê esteja bem. Só temo que se eu vomitar, eu possa... perder... sabe?
Ok, quem disse que as fêmeas eram o sexo frágil não sabia o que estava falando.
Ele olhou para a doutora Jane.
– E o que fazemos agora?
A médica deu de ombros.
– Meu conselho? Confie nos sintomas e nos resultados dos testes, ou vão acabar enlouquecendo. O corpo de Layla está, como sempre esteve, no controle disso tudo. Se neste instante não há nenhum indício de um aborto, mas, na verdade, só motivos para acreditar que a gestação se concluirá com um resultado positivo? Respire fundo e siga em frente, noite após noite. Se ficarem pensando muito no futuro ou no que aconteceu nos últimos dias? Não vão conseguir chegar ao fim disto inteiros.
Verdade, Qhuinn pensou.
O telefone da médica tocou.
– Espere um segundo... Puxa... Tenho que ir dar uma olhada naquele doggen que cortou a mão ontem à noite. Layla, no que me diz respeito, não há motivos médicos para que você fique aqui. Contudo, não quero que saia do complexo nas próximas noites. Vamos dar tempo ao tempo, ok?
– Sim, claro.
A doutora Jane saiu pouco depois, e Qhuinn se sentiu perdido. Ele queria ajudar Layla a voltar para casa, mas ela não estava aleijada, pelo amor de Deus. Ainda assim, sentia vontade de carregá-la pelo resto da bendita gestação.
Ele se recostou no armário de aço inoxidável.
– Eu me pego querendo perguntar como você está a cada dois segundos.
Layla deu uma risada de leve.
– Então somos dois.
– Quer voltar para casa?
– Sabe... não quero, não. Eu me sinto... – ela olhou ao redor – mais segura aqui, para ser bem franca.
– Faz sentido para mim. Precisa de alguma coisa?
Ela indicou a bandeja com itens contra enjoo.
– Contanto que eu tenha isto, estarei bem. E você deve se sentir livre para sair e lutar.
Qhuinn franziu o cenho.
– Pensei em ficar...
– E fazer o quê? Veja bem, não o estou expulsando, mas tenho a sensação de que só vou ficar aqui de molho sem fazer nada. Se alguma coisa acontecer, eu ligo e você pode voltar direto para casa.
Qhuinn pensou para onde a Irmandade e os lutadores se dirigiriam aquela noite: a reunião do Conselho.
Se fosse apenas uma noite normal no campo de batalha, ele provavelmente ficaria ali. Mas com Wrath exposto ao mundo, encontrando-se com aqueles idiotas da glymera?
– Ok – disse devagar. – Vou estar sempre com o telefone e deixarei claro para os outros que se você telefonar, sairei de lá.
Layla tomou um gole de refrigerante e depois ficou olhando para o copo, como se estivesse observando as bolhas emergindo ao redor dos cubos de gelo.
Ele pensou na noite em que estiveram no consultório de Havers – descontrolados, aterrorizados, pesarosos.
Ainda podiam voltar a se sentir assim, ele lembrou. Era cedo demais para se apegar.
E mesmo assim ele não tinha como evitar. Parado no meio da sala coberta de azulejos, com o cheiro de desinfetante Lysol no nariz e a beirada da bancada cutucando-o nas nádegas... ele percebeu que naquele instante começava a amar seu filho.
Ali, naquele momento.
Assim como um macho vinculado a uma fêmea, um pai também se sentia unido ao filho – e, sendo assim, seu coração se abriu e recebeu tudo aquilo de braços abertos: o comprometimento que acompanhava a tentativa de ter um filho, o terror de perdê-lo que nunca se dissiparia, a alegria de existir algo seu na face da Terra depois que você se fosse, a impaciência por conhecê-lo pessoalmente, o desejo desesperado de segurá-lo em seus braços e olhar em seus olhos e lhe dar todo o seu amor.
– Tudo bem se... se eu tocar na sua barriga? – ele perguntou baixinho.
– Claro! Você não tem que pedir – Layla se recostou com um sorriso. – O que está aqui dentro é metade seu, sabia?
Qhuinn esfregou as mãos, nervoso, ao se aproximar da mesa. Obviamente ele tocara em Layla durante o cio e, depois, de maneira obsequiosa quando a situação se fez necessária.
Ele jamais pensara em tocar em seu bebê.
Qhuinn observou de longe sua mão de adaga se esticar. Jesus, as pontas dos dedos estavam trêmulas.
Mas se estabilizaram no momento em que fizeram contato.
– Estou bem aqui – disse ele. – Papai está aqui. Não vou a parte alguma. Vou só esperar até que você esteja pronto para vir ao mundo, e depois a sua mãe e eu vamos cuidar de você. Por isso, aguente firme, estamos combinados? Faça o que for preciso aí, e nós esperaremos o tempo que for preciso.
Com a mão livre, segurou a de Layla e a colocou sobre a sua.
– A sua família está bem aqui. Esperando por você... e nós te amamos.
Era uma tolice falar com o que, sem dúvida, era apenas um montinho de células. Mas ele não teve como evitar. As palavras, as ações... eram, de súbito, todas suas, e mesmo assim vinham de um lugar que lhe era desconhecido.
Contudo, parecia certo.
Parecia... com o que um pai deveria fazer.
Mão esquerda, .40. Confere.
Direita, .40. Confere.
Munição extra no coldre sobre o peito. Confere.
Adagas um e dois no coldre do peito. Confere.
Jaqueta de couro...
Uma batida na porta do quarto de Blay e ele se inclinou para fora do closet.
– Pode entrar.
Quando Saxton entrou, ele ajeitou a jaqueta nos ombros e se virou.
– Oi. Tudo bem?
Alguma coisa estava acontecendo.
Os olhos do macho deram um giro de 360 graus no “guarda-roupa de trabalho” de Blay, como o chamavam. O desconforto fez com que as sobrancelhas de Saxton se unissem no alto; pensando bem, ele nunca se sentira completamente à vontade com armas.
– Vai para o campo de batalha, parece-me... – o macho murmurou.
– Na verdade, para uma reunião do Conselho.
– Não sabia que isso requeria tantas armas como acessórios.
– Nova era.
– Sim, de fato.
Uma pausa longa.
– Como você está?
Os olhos de Saxton percorreram o quarto.
– Eu queria lhe contar pessoalmente.
Ah, droga. E agora, o que seria?
Blay engoliu em seco.
– O quê?
– Vou sair da casa por um tempo... em férias, na verdade – ele mostrou a palma da mão para deter qualquer discussão. – Não, não é algo permanente. Já organizei tudo com Wrath, e não há nada que eu precise fazer nos próximos dias. Naturalmente, se ele precisar, volto imediatamente. Vou ficar com um velho amigo. Preciso mesmo de um pouco de descanso e relaxamento... e, antes que se preocupe, juro que vou voltar, e isto, honestamente, não tem nada a ver com a gente. Faz meses que trabalho sem folga e só quero ficar livre de compromissos, isso faz sentido?
Blay respirou fundo.
– Sim, faz. Onde você... – ele se deteve ao se lembrar de que aquilo não era mais da sua conta. – Se precisar de alguma coisa, é só avisar, certo?
– Prometo.
Num impulso, Blay se aproximou e passou os braços ao redor do ex-amante, a conexão platônica tão natural quanto a antiga apaixonada o fora. Abraçado ao macho, virou o rosto para dentro.
– Obrigado – disse Blay. – Por vir me contar...
Naquele instante, alguém passou no corredor, as passadas hesitando.
Era Qhuinn; Blay soube pelo cheiro antes mesmo de a figura alta e imponente ser registrada visualmente. E na breve hesitação antes de o cara continuar a andar, seus olhos se encontraram por sobre os ombros de Saxton.
O rosto de Qhuinn se fechou numa máscara instantaneamente, as feições congelando, não revelando nada.
E logo o lutador se foi, suas pernas longas afastando-o do batente da porta.
Blay deu um passo para trás e se forçou a se concentrar na despedida.
– Quando vai voltar?
– Em alguns dias, no máximo uma semana.
– Ok.
Saxton olhou de relance pelo quarto novamente, e quando o fez, ficou claro que ele estava se lembrando.
– Fique bem e se cuide. Não tente bancar o herói.
O primeiro pensamento de Blay foi... bem, já que Qhuinn normalmente era o primeiro a fazer isso, era bem improvável que ele tivesse de vestir sua roupa de Super-Homem.
– Prometo.
Quando Saxton saiu, Blay ficou olhando para o vazio. Não enxergou o que havia diante dele, nem se lembrou do que Saxton lhe dissera. Em vez disso, sua mente foi para o quarto ao lado, para Qhuinn e para as coisas de Qhuinn... e para as lembranças daquela sua sessão com Qhuinn.
Merda.
Olhando para o relógio, ele colocou o celular no bolso da jaqueta e saiu. Ao se apressar pela escada, as vozes do vestíbulo ecoaram, num sinal de que a Irmandade já se reunira e estava esperando para o sinal de partida.
Como esperado, todos estavam lá. Z. e Phury. V. e Butch. Rhage, Tohr e John Matthew.
Enquanto descia, viu-se desejando que Qhuinn os acompanhasse, mas, certamente, o macho ficaria em casa, devido à situação de Layla.
Onde estava Payne?, ele se perguntou ao parar ao lado de John Matthew.
Tohr acenou na direção de Blay.
– Ok, só estamos esperando mais um e, em seguida, podemos nos encaminhar. A primeira leva vai até o local do encontro. Quando o “ok” for dado, eu me desmaterializarei com Wrath para a casa com o apoio e...
Lassiter derrapou na porta da sala de bilhar, o anjo caído brilhando desde os cabelos loiros e negros e olhos brancos até os coturnos. Pensando bem, talvez a iluminação não fosse de sua natureza, mas sim de todo aquele ouro que ele insistia em usar.
Ele parecia uma árvore de joias viva.
– Estou aqui. Onde está o meu chapéu de motorista?
– Tome, use o meu – ofereceu Butch, mostrando e lançando um boné com um B. Sox bordado. – Isso vai ajudar com esses seus cabelos.
O anjo pegou o objeto no ar e olhou fixamente para o S vermelho.
– Desculpe, mas não posso.
– Não me diga que é fã dos Yankees? – V. disse de modo arrastado. – Terei que matar você e, francamente, hoje precisamos de todos os reforços de que dispomos.
Lassiter devolveu o boné. Assobiou. Olhou de lado parecendo casual.
– Está falando a verdade? – disse Butch. Como se o cara tivesse se voluntariado a uma lobotomia. Ou a amputação de um membro. Ou a uma pedicure.
– Nem fodendo – ecoou V. – Quando e onde você se tornou amigo do inimigo...
O anjo ergueu as mãos.
– Não é culpa minha se vocês não são de nada...
Tohr teve, de verdade, de se colocar diante de Lassiter, como se estivesse preocupado que algo mais do que simples insultos verbais pudessem acontecer. E o triste era que ele tinha razão em se preocupar. Com exceção de suas shellans, Butch e V. amavam os Sox acima de qualquer outra coisa... inclusive a sanidade.
– Ok, ok – interveio Tohr. – Temos coisas mais importantes com que nos preocupar...
– Uma hora ele vai ter que dormir – Butch murmurou para seu colega.
– Isso aí, olha por onde anda, anjo – V. zombou. – Não gostamos do seu tipo.
Lassiter deu de ombros, como se os Irmãos não passassem de cachorrinhos ganindo ao redor dos seus calcanhares.
– Tem alguém falando comigo? Ou será apenas o som dos perdedores...
Muita gritaria àquela altura.
– Duas palavras, queridos – Lassiter espicaçou. – Johnny. Damon. Ah, espere, Kevin. Youkilis. Ou Wade. Boggs. Roger. Clemens. Será que só a comida é ruim em Boston? Ou também o jogo?
Butch avançou nessa hora, obviamente preparado para acender o cara como a uma árvore de Natal...
– Que merda está acontecendo aqui?!
A voz gritando do alto da escada abafou a disputa Sox versus Yankees.
Enquanto Tohr afastava o tira, todos acompanharam com os olhos a descida do Rei com sua rainha. A presença de Wrath fez com que todos ficassem sérios, profissionais. Até mesmo Lassiter.
Bem, exceto Butch. Mas, pensando bem, ele se mostrava em “alerta máximo”, como ele mesmo dizia, nas últimas 24 horas e tinha bons motivos para estar rabugento: sua shellan participaria da reunião do Conselho. O que, de acordo com o modo de pensar do Irmão, era como ter dois Wraths ali. A questão era que Marissa era a mais velha de sua linhagem, e como Rehv exigia quorum completo, ela tinha de estar presente.
Pobre desgraçado.
Na calmaria que se seguiu, a adaga de Blay começou a formigar, e ele sentiu uma necessidade quase irresistível de pousar a mão em uma arma. Tudo o que ele conseguia pensar era que aquilo era quase idêntico ao prelúdio ao atentado contra Wrath no outono anterior – naquela noite, eles todos se reuniram ali, e Wrath descera com Beth... e uma bala acabara sendo disparada por um rifle, terminando sua trajetória na garganta do Rei.
Aparentemente, ele não era o único a pensar naquilo. Um determinado número de mãos partiu para os coldres em alerta.
– Ah, que bom, aqui está você – disse Tohr.
Blay se voltou com um franzido e teve que engolir a sua reação. Não era Payne que se juntava a eles; mas Qhuinn. E, caramba, o macho parecia mais do que pronto a dar umas pancadas por aí, com os olhos sérios, o corpo tenso como a corda de um arco em seu couro negro.
Por um instante, uma fissura de percepção pura e sexual atravessou Blay.
A ponto de uma fantasia totalmente inapropriada lhe ocorrer: ou seja, ele e Qhuinn se enfiando no depósito para uma rapidinha de roupa e tudo.
Com um gemido, ele voltou a se concentrar no Rei. O que era o mais apropriado. O importante era Wrath, e não a sua maldita vida amorosa...
Uma sensação de desconforto substituiu o tesão.
Será que ele e Qhuinn voltariam a se encontrar algum dia?
Deus, que pensamento estranho. O sexo não era uma boa ideia emocionalmente. De fato, era uma ideia extremamente ruim.
Mas ele queria mais. E que Deus o ajudasse.
– Ok, prontos – anunciou Tohr. – Todos sabem para onde vamos?
Foi um alívio desconcertante ter a natureza séria da missão diante dele para clarear seus pensamentos de tudo que não fosse o comprometimento em manter a vida de Wrath a salvo... mesmo que à custa da sua.
Só que isso era melhor do que se preocupar com a sua situação com Qhuinn.
Não havia dúvidas.
CAPÍTULO 51
Qhuinn se materializou num terraço coberto de neve, e quando todos da Irmandade, exceto Butch, materializaram-se ao seu lado, ele não se surpreendeu com toda aquela pompa. A propriedade em que o Conselho se reuniria estava dentro dos padrões da glymera: um enorme terreno que fora limpo e ajardinado. Um pequeno chalé próximo à entrada que mais parecia pertencer a um cartão postal de Cotswalds. Uma enorme mansão que, neste caso, era feita de pedras com cornijas de dentículos, venezianas lustrosas e telhado de ardósia.
– Vamos em frente – disse V., seguindo para uma porta lateral.
No instante em que ele bateu, a porta se abriu, como se, junto a todo o resto, aquilo tivesse sido pré-arranjado. Mas, hum... aquela era a anfitriã? A fêmea parada na entrada trajava um vestido longo com decote até o umbigo, e ela tinha uma gargantilha de diamantes do tamanho da coleira de um Doberman. O perfume era tão intenso que foi como um golpe nas narinas – apesar de ele ainda estar do lado de fora.
– Estou pronta para vocês – disse ela num tom baixo e intimista.
Qhuinn franziu o cenho, pensando que quem quer que fosse o designer fazia a moça ali parecer uma prostituta. Mas isso não era problema seu.
Enquanto ele caminhava em fila atrás dos outros, o cômodo em que entraram parecia um tipo de conservatório, os vasos imensos e o enorme piano de cauda sugeriam que muitas noites com convidados começavam com um cantor de ópera berrando no canto.
Credo.
– Por aqui – instruiu a fêmea com um floreio de uma mão que reluzia.
Em seu rastro, aquele perfume – talvez fossem sprays de diversas fontes, como camadas de todo tipo de tranqueira? – quase coloria o ar atrás dela, e os quadris trabalhavam duplamente a cada passada, como se ela tivesse esperança de que eles olhassem para o seu traseiro, desejando ter um pedaço daquilo.
Nada disso. Assim como os outros, ele olhava cada canto e refúgio, pronto para atirar e depois fazer perguntas para o corpo estirado no chão.
Só foi quando chegaram ao átrio principal, com todas as pinturas a óleo iluminadas pelo teto, e seus tapetes orientais escuros e...
Puta merda, aquele espelho era exatamente igual ao que estivera pendurado na casa dos seus pais. Na mesma posição, do teto ao chão, a mesma moldura rebuscada em ouro.
Sim, aquilo lhe dava arrepios. Dos grandes.
A casa inteira o lembrava da mansão em que ele crescera, tudo em seu devido lugar, a decoração muito longe da classe média, mas nem um pouco afetada ao estilo de Trump. Não, aquela porcaria toda era uma sutil mistura da fortuna antiga com o senso clássico de estilo que só se tinha com o nascimento, não era algo ensinado.
Seus olhos procuraram Blay.
O cara estava fazendo seu trabalho, sério, verificando o lugar.
O pai e a mãe de Blay não eram ricos daquele modo. Mas a casa deles sempre fora mais confortável de tantas maneiras. Mais quente – e isso não tinha nada a ver com o sistema de aquecimento central.
Como estariam os pais de Blay?, ele se perguntou abruptamente. Passara quase mais tempo debaixo do teto deles, em vez de sob o seu. A última vez em que os vira... puxa, fazia tanto tempo. Talvez na noite dos ataques, quando o pai de Blay passou de senhor Contador de Terno para um assassino impiedoso. Depois daquilo, o casal se mudara para a casa segura, e, em seguida, ele e Blay tinham se afastado.
Desejou que eles estivessem bem...
A imagem de Blay e Saxton de pé, peito contra peito, quadril contra quadril no quarto de Blay invadiu seu cérebro.
Puta que... o pariu... como aquilo doeu.
Ah, cacete, o carma era bom em seu trabalho...
Voltando à realidade, ele seguiu as pélvis móveis e a Irmandade até a sala de jantar gigante que fora arranjada segundo as especificações de Tohr: todas as cortinas foram puxadas ante as janelas que davam para o jardim dos fundos, e a porta em vaivém que ele deduzia dar para a cozinha fora obstruída por um aparador antigo e pesado. A mesa que devia pertencer ao centro da sala fora retirada, e 25 cadeiras de mogno combinando com assento em seda vermelha estavam perfiladas diante da lareira.
Wrath ficaria de frente à cornija da lareira para fazer seu discurso, e Qhuinn foi até lá para verificar se a chaminé estava fechada. Estava.
Em ambos os lados da lareira, havia duas portas que davam para uma antiga sala de recepção. Ele, John Matthew e Rhage vasculharam a sala, depois a fecharam, em seguida ele se postou diante da entrada à esquerda, com John à direita.
– Está tudo do seu agrado? – perguntou a fêmea.
Rehv foi até a lareira e se virou de frente para as cadeiras vazias.
– Onde está o seu hellren?
– No andar de cima.
– Traga-o para cá. Agora. De outro modo, se ele andar pela casa, é possível que acabe com um tiro no peito.
Os olhos da fêmea se arregalaram, e dessa vez, quando ela andou, não houve exagero nos quadris, nem o “olhem para mim” com uma jogada de cabelos por cima do ombro. Obviamente a mensagem de que não estavam para brincadeira fora recebida, e ela queria que, quem quer que fosse seu parceiro, permanecesse vivo naquela noite.
Na espera que se seguiu, Qhuinn manteve a arma empunhada, os olhos na sala, os ouvidos aguçados para o caso de alguma coisa, qualquer coisa parecer estranha.
Nada.
O que sugeria que seus anfitriões tinham seguido as ordens...
Uma sensação de formigamento estranha subiu pela sua espinha, fazendo-o franzir o cenho e ficar absolutamente alerta. Do outro lado da lareira, John pareceu captar o mesmo sinal, levantando a arma e estreitando o olhar.
Em seguida, uma névoa fria atingiu os tornozelos de Qhuinn.
– Pedi que dois convidados especiais se juntassem a nós – anunciou Rehv.
Nesse instante, duas colunas de fumaça subiram do chão, as moléculas dispersas voltando às formas... que Qhuinn reconheceu instantaneamente.
Ainda bem.
Com Payne fora de combate por sabe-se lá qual motivo, ele se sentira como se estivessem com pouca retaguarda, mesmo reconhecendo toda a habilidade da Irmandade. No entanto, quando iAm e Trez surgiram, ele suspirou de alívio.
Aquele sim era um par de assassinos impiedosos, do tipo que você não gostaria de ter do lado oposto brigando com você. A boa notícia era que fazia tempo que Rehv se aliara aos Sombras, e a ligação de Rehv com a Irmandade e o Rei significava que os irmãos obviamente estavam dispostos a ajudar na retaguarda.
Qhuinn deu um passo à frente para cumprimentá-los, como os outros, juntando as palmas, uma puxada rápida, um tapinha nas costas.
– Ei, cara...
– Como vai?
– Tudo bom?
Depois que todos os ois e olás foram distribuídos, Trez olhou ao redor.
– Certo, então vamos ficar fora de vista a menos que vocês precisem de nós. Mas fiquem tranquilos, estamos aqui.
Depois de uma rodada de agradecimentos da parte dos Irmãos, Rehv trocou algumas palavras em particular com os Sombras... e depois os dois sumiram, desaparecendo de sua forma física, descendo pelas tábuas do piso; a brisa gélida era apenas uma garantia de segurança.
Bem na hora. Menos de um minuto depois, a anfitriã voltou com um ancião pequeno ao seu lado. À medida que os vampiros envelheciam, com um rápido declínio de sua força física mais para o fim da vida, Qhuinn estimou que restava àquele cara mais uns cinco anos. Uns dez, no máximo.
Fizeram-se as apresentações, mas Qhuinn não se importava com aquela baboseira. Estava mais preocupado em saber se o resto da casa estava desocupado.
– Há algum doggen aqui? – Rehv perguntou à fêmea enquanto ela acomodava o esquisitão numa das cadeiras.
– Como foi pedido, todos foram dispensados a partir de agora.
V. acenou para Phury e Z.
– Nós três vamos vasculhar a propriedade para ver se está tudo bem.
Mesmo que Blay confiasse em si, na Irmandade, em John Matthew e em Qhuinn, ele se sentiu melhor sabendo que os Sombras estavam por perto. Trez e iAm não só eram excepcionais lutadores e inerentemente perigosos para qualquer um a quem declarassem guerra; eles tinham uma vantagem admirável sobre a Irmandade.
Invisibilidade.
Ele não sabia se eles podiam, de fato, lutar dessa maneira, mas isso pouco importava. Qualquer um que ali entrasse – como digamos, o maldito Bando de Bastardos – julgaria a situação apenas contando com os presentes visíveis no recinto.
Não com aqueles dois irmãos.
Portanto, isso era muito bom.
Naquele instante, V. voltou com Phury e Z. de sua patrulha – e Butch estava com eles, indicando que o Irmão acabara de chegar de carro.
– Tudo certo.
Houve uma breve pausa. Em, seguida, como pré-arranjado, Tohr foi para a porta da frente e abriu caminho para Wrath.
Hora do espetáculo, pensou Blay, com os olhos disparando na direção de Qhuinn antes de voltar a se concentrar.
Tohr e o Rei entraram na sala de jantar lado a lado, as cabeças unidas como se estivessem envolvidos numa conversa séria sobre algo importante, a mão do Irmão sobre o antebraço de Wrath como se o cara estivesse tentando enfatizar algum ponto importante.
Tudo aquilo, porém, não passava de uma encenação para os anfitriões.
Tohr, na verdade, estava conduzindo Wrath pelo braço, levando-o até a lareira, posicionando-o bem no meio da cornija. E a conversa? Era sobre onde os dois aristocratas estavam sentados, onde as cadeiras estavam perfiladas, onde os Irmãos e lutadores estavam a postos – bem como os dois Sombras.
Enquanto assentia, o Rei, deliberadamente, movia a cabeça de um lado para o outro como se seus olhos estivessem captando os detalhes da sala. E, depois, ele cumprimentou os anfitriões quando estes foram levados à frente para beijar o imenso anel de diamante negro.
Depois disso, la crème de la crème da glymera começou a chegar.
De seu posto designado no fundo da sala na parede das janelas, Blay conseguiu olhar muito bem para cada um. Jesus, ele se lembrava de alguns deles de sua vida anterior aos ataques, antes de ele começar a morar na mansão e a lutar com os Irmãos. Seus pais não estavam no mesmo nível social daqueles machos e fêmeas, ficando mais à margem – ainda assim, a linhagem da sua família era boa e eles foram incluídos em muitas celebrações festivas nas grandes mansões.
Portanto, aquele povo não lhe era desconhecido.
Mas, por certo, ele não tinha como dizer que sentia saudades deles.
Na verdade, teve que rir consigo mesmo enquanto uma bela quantidade de fêmeas franzia o cenho e olhava para baixo para os pés delicadamente envolvidos em sapatos finos, Laboutins sendo erguidos e sacudidos... como se o frio dos Sombras estivesse sendo notado.
Quando Havers chegou, o curandeiro da raça pareceu um pouco desentrosado. Sem dúvida estava nervoso em rever a irmã e tinha bons motivos para tal. Até onde Blay sabia, Marissa acabara com ele na última reunião formal do Conselho.
Blay lamentava muito ter perdido aquilo.
Marissa chegou pouco depois do irmão, e Butch se aproximou dela, recebendo-a com um beijo demorado antes de conduzi-la, com um braço orgulhoso e protetor, para um assento no canto direito, perto de onde ele estava situado. Depois que o tira ajudou-a a se sentar, ele ficou de pé ao lado dela, grande, forte, e com um olhar ameaçador... especialmente quando seus olhos se encontraram com os de Havers e sorriu com as presas expostas.
Blay se viu invejando um pouquinho o casal. Não por conta do estranhamento familiar, isso não. Mas Deus... ser capaz de estar em público com seu parceiro, demonstrar seu amor, ter seu relacionamento respeitado por todos os outros? Casais heterossexuais consideravam aquilo como coisa certa porque nunca conheceram nada diferente daquilo. Suas uniões eram santificadas pela glymera, mesmo que os casais não estivessem apaixonados, ou se traíssem, ou fossem, de todo modo, uma fraude.
Dois machos?
Rá.
Apenas mais um motivo para se ressentir da aristocracia, segundo seu ponto de vista. Ainda que, na realidade, ele tinha a sensação de que jamais teria de se preocupar em sofrer discriminação. O macho que ele queria nunca ficaria ao seu lado em público, e não porque Qhuinn se importasse com a opinião alheia. Um, o cara não era do tipo que demonstrava afeto. Dois, sexo não formava casais.
Se assim fosse, o cara estaria comprometido com metade de Caldwell, pelo amor de Deus.
Ah, no que ele estava pensando...
Já fazia tempos que superara aquele sonho impossível com Qhuinn.
De verdade.
Absolutamente...
– Chega – ele murmurou para si mesmo quando o último integrante do Conselho chegou.
Rehv não perdeu tempo. A cada segundo que Wrath ficava diante do grupo, o Rei não só se expunha mortalmente, mas também corria o risco de que sua cegueira fosse descoberta.
O rei sympatho se dirigiu ao Conselho, com o olhar violeta perscrutando a assembleia, com um sorriso enviesado no rosto – como se apreciasse o fato de que o grupo de sabichões não fizesse a mínima ideia de que um devorador de pecados os liderava.
– Declaro aberta a sessão do Conselho. O dia e a hora são...
Enquanto a introdução prosseguia, Blay manteve o olhar ocupado, verificando as costas dos machos e das fêmeas, onde os braços e as mãos estavam, se alguém se mostrava ansioso. Naturalmente, o grupo se apresentara em black-tie e veludo, e joias para as mulheres e relógios de bolso de ouro para os homens. Pensando bem, fazia um bom tempo desde que se reuniram formalmente, e isso significava que o desejo deles de competir uns com os outros para mostrar quem valia mais sem dúvida vinha sendo estrangulado.
– ... nosso líder, Wrath, filho de Wrath.
Aplausos educados se seguiram, e depois eles se ajeitaram em suas cadeiras quando Wrath deu um único passo à frente.
Caramba, cego ou não, ele certamente parecia uma força da natureza: mesmo não trajando algum tipo de manto com borda de arminho, o Rei parecia irrefutavelmente no comando, o corpo imenso e os cabelos negros longos, e os óculos escuros, fazendo-o parecer mais uma ameaça do que um monarca.
E a ideia era essa mesmo.
Liderança, especialmente quando se tratava da glymera, baseava-se em parte nessa percepção – e ninguém tinha como negar que Wrath parecia a representação viva do poder e da autoridade.
E aquela voz grave e profunda também não atrapalhava em nada.
– Admito que faz um bom tempo que não os vejo. Os ataques de quase dois anos atrás dizimaram muitos em suas famílias e eu partilho de sua dor. Eu, também, perdi meus familiares num ataque de redutores, portanto, sei exatamente o que vocês têm passado enquanto tentam voltar a colocar a vida nos trilhos.
Um macho na fila da frente se mexeu...
Mas foi só para mudar de posição, não o prelúdio de uma arma sendo sacada.
Blay voltou à sua posição, como alguns outros. Maldição, ele mal podia esperar para que aquela reunião acabasse e eles pudessem levar Wrath de volta para a segurança.
– Muitos de vocês conheceram bem meu pai e se lembram de seu reinado no Antigo País. Meu pai era um líder sábio e de temperamento moderado, um cavalheiro de pensamento lógico e educação real, que se ocupava somente da melhoria desta raça e dos cidadãos – Wrath fez uma pausa, os óculos percorrendo em arco a sala. – Partilho de algumas das características de meu pai... mas não de todas. De fato, não sou temperado. Não sou clemente. Sou um homem da guerra, não da paz.
Nisso, Wrath desembainhou uma de suas adagas, a lâmina negra refletindo a luz do candelabro de cristal acima deles. Diante do Rei, a assembleia reagiu com um tremor coletivo.
– Fico muito à vontade num conflito, seja ele do tipo legal ou letal. Meu pai era um mediador, um construtor de pontes. Eu construo túmulos. Meu pai era persuasivo. Eu sou um conquistador. Meu pai era um Rei que se sentava de boa vontade às suas mesas de jantar para debater minúcias. Não sou assim.
Epa, epa. Sem dúvida, nunca se dirigiram ao Conselho daquele modo. Mas Blay não discordava da abordagem. A fraqueza não era respeitada. Mais do que isso, com aquele grupo, a lei provavelmente não asseguraria a estabilidade do trono de Wrath.
Medo, por sua vez?
Tinha chances muito melhores.
– Meu pai e eu, todavia, temos uma coisa em comum – Wrath inclinou a cabeça num ângulo como se estivesse olhando para a adaga negra. – Meu pai provocou a morte de oito dos seus parentes.
Houve um arfar coletivo. Mas Wrath não permitiu que isso o detivesse.
– No decorrer do seu reinado, ocorreram oito atentados à vida dele, e, não importasse o quanto demorasse, se dias, semanas ou meses, ele tratou de descobrir quem esteve por trás de cada um deles... e caçou pessoalmente cada um dos indivíduos, matando-os. Podem não ter ficado sabendo das histórias verdadeiras, mas sabem dessas mortes... Os criminosos foram decapitados e suas línguas foram cortadas. Por certo, se pensarem no passado, irão se lembrar de alguém em suas linhagens que tiveram esse fim?
Inquietação. Muita inquietação. O que sugeria que as lembranças estavam se avivando.
– Também devem se lembrar de que essas mortes foram atribuídas à Sociedade Redutora. Eu lhes digo, conheço esses nomes, como também sei onde estão esses túmulos, porque meu pai me fez memorizá-los. Foi a primeira lição de reinado que ele me ensinou. Meus cidadãos devem ser honrados, protegidos e bem servidos. Os traidores, por sua vez, são uma doença para qualquer sociedade legítima e precisam ser erradicados – Wrath sorriu de um modo puramente malévolo. – Digam o que quiserem a meu respeito, estudei muito bem aos pés de meu pai. E sejamos bem claros, foi o meu pai, e não a Irmandade, quem cuidou dessas mortes. Sei disso porque ele decapitou quatro deles diante de mim. Eis a importância dessa lição.
Muitas das fêmeas se aproximaram de qualquer que fosse o macho que estivesse sentado ao seu lado.
Wrath prosseguiu:
– Não hesitarei em seguir a liderança de meu pai quanto a isso. Reconheço tudo o que vocês sofreram. Respeito suas provações e quero liderá-los. Todavia, eu não hesitarei em tratar qualquer tipo de insurreição contra mim e os meus como um ato de traição.
O Rei abaixou o queixo e pareceu encará-los por detrás dos óculos, a ponto de até Blay sentir uma pontada de adrenalina.
– E se pensam que meu pai foi violento, não viram nada ainda. Farei com que aquelas mortes pareçam misericordiosas. Juro pela minha linhagem.
CAPÍTULO 52
De alguma forma, Assail não conseguia acreditar que estivesse entrando em um restaurante. Primeiro porque ele não costumava, via de regra, frequentar locais humanos, e, segundo, ele não tinha interesse algum em comer ali: o ar rescendia a batata frita e cerveja, e pelo que viu nas bandejas das garçonetes, ele não estava muito certo se as entradas eram consideradas seguras para consumo não animal.
Ora, veja. Do lado oposto, havia um palco que tinha uma parede de tela de arame para galinheiros.
Quanta classe.
– Olá, tudo bem? – alguém ronronou em sua direção.
Assail levantou uma sobrancelha e olhou por sobre o ombro. A mulher humana usava uma camisa apertada e um par de jeans que, obviamente, fora-lhe costurado no corpo. O cabelo era loiro e muito liso. A maquilagem era pesada, com o batom tão brilhante que mais parecia pintura a óleo.
Ele preferiria arrancar os olhos com uma colher a ter qualquer tipo de envolvimento com alguém como ela.
Obrigou-a a se esquecer de que o vira e virou de costas. O lugar estava cheio, havia mais pessoas que mesas e cadeiras, portanto havia uma boa cobertura enquanto ele seguia para um canto e procurava...
Lá estava ela.
A sua ladrazinha.
Praguejando baixinho, ele vagamente reconheceu o quanto aquilo era uma perda de tempo – considerando-se, ainda mais, que seus primos estavam negociando de novo com aquele redutor. Infelizmente, porém, assim que ele recebera o alerta de que o Audi dela estava se mexendo, sentira-se compelido a encontrá-lo e segui-lo.
Não estivera preparado para aquilo.
O que ela fazia ali? E por que estava vestida daquela maneira?
Enquanto ela encontrava uma das poucas mesas vazias e se sentava sozinha, ele se viu desaprovando o modo como o cabelo dela estava solto por sobre os ombros, o volume escuro se curvando ao redor do rosto. Ou a saia justa que foi revelada assim que ela despiu o casaco. Ou... ela também estava maquilada, pelo amor de Deus. Mas não da forma carregada daquela mulher que acabara de abordá-lo. A sua ladra deixara as coisas bem leves, de modo a apenas acentuar suas feições...
Ela era tão linda.
Linda demais.
Todos os homens no restaurante olhavam para ela. E isso fez com que ele quisesse matar cada um deles arrancando-lhe as gargantas com os dentes...
Como se estivessem de acordo com seu plano, suas presas formigaram e começaram a se alongar dentro da boca, seu corpo ficando tenso.
Mas ainda não, ele se ordenou. Ele tinha de descobrir o motivo de ela estar ali. Depois de tê-la seguido até a mansão de Benloise, ele esperara qualquer tipo de destino... embora não aquele. O que ela estaria...
A cabeça dela se voltou e, por um instante, ele pensou que, de alguma maneira, ela o tivesse sentido, mesmo não sendo uma vampira.
Mas então, um humano muito alto e bem estruturado aproximou-se da mesa.
Sua ladra fitou o cara. Sorriu para ele. Levantou-se e passou os braços ao redor dos ombros amplos.
A mão de Assail entrou no casaco à procura de sua arma.
De fato, ele se viu indo até lá e despejando uma bala entre os olhos do homem.
– Ei, já esteve aqui antes?
A cabeça de Assail virou para trás. Um humano bem grande o abordara e o fitava com uma expressão um tanto agressiva.
– Eu lhe fiz uma pergunta.
Existiam duas respostas, Assail resolveu. Ele poderia responder verbalmente, o que o colocaria em algum tipo de diálogo que consumiria a sua atenção, não sendo uma boa ideia, portanto, visto que sua mão continuava segurando a arma e seus impulsos não haviam mudado em sua inclinação homicida.
– Estou falando com você.
Ou ele poderia...
Assail expôs as presas estendidas e grunhiu profundamente da garganta, redirecionando sua ira da cena com a sua ladra com aquele tolo para quem ela se vestira e se enfeitara.
O cara cheio de perguntas levantou as mãos e deu um passo para trás.
– Ei, está tudo bem, tanto faz. Desculpe. Tudo bem.
O homem desapareceu no meio da multidão, provando que em certas circunstâncias ratos sem rabo também conseguiam se desmaterializar.
Os olhos de Assail voltaram a se fixar na mesa. O “cavalheiro” que se sentara diante de sua ladra estava se inclinando na direção dela, os olhos fixos em seu rosto enquanto ela examinava o cardápio e olhava ao redor.
Algo teria de ser feito a respeito daquilo.
Sola fechou o cardápio e riu.
– Eu nunca disse isso.
– Disse sim – Mark Sanchez sorriu. – Você me disse que eu tinha olhos bonitos.
Mark era exatamente o que ela precisava numa noite como aquela. Ele era bonito de se olhar, supercharmoso, e contanto que ele não a fizesse se abaixar para fazer mil abdominais, ela não tinha com que se preocupar: como seu professor de ginástica particular? Ele era um demônio, ela bem sabia.
– Então, este é um jeito de me amaciar? – ele se recostou quando a garçonete lhes trouxe as cervejas. – Está tentando fazer com que eu pegue leve na academia?
– Sei que isso jamais funcionaria – Sola deu uns goles da bebida gelada em sua caneca. – Você não dá mole. É a sua regra.
– Bem, para ser justo, você nunca pediu tratamento especial. – Houve uma pausa. – Não que em seu caso eu não estivesse disposto em ceder um pouco... em algumas áreas.
Sola desviou do olhar que lhe era lançado.
– Quer dizer que você não sai com clientes?
– Não. Normalmente não.
– Conflito de interesses.
– Pode acabar em confusão... Mas, em certos casos, o risco vale a pena.
Sola olhou de relance pelo bar. Muitas pessoas. Muita conversa. E o ambiente estava abafado.
Ela franziu o cenho e se enrijeceu. No canto extremo, alguma coisa... alguém...
– Está tudo bem?
Ela tentou se livrar da sua paranoia.
– Sim, desculpe... Ah, sim, queremos fazer o pedido – ela disse quando a garçonete voltou. – Vou querer um cheeseburguer. Desde que o meu treinador não tenha uma embolia em sinal de desaprovação.
Mark riu.
– São dois, então. Mas não coloque fritas. Em nenhum dos dois pratos.
Enquanto a garçonete se afastava, Sola tentou não olhar para o canto escuro ao fundo.
– Então...
– Nunca imaginei que fosse aceitar meu convite. Quanto tempo faz que eu a chamei para sair?
Enquanto Mark sorria, ela notou que ele tinha dentes fantásticos, retos e bem brancos.
– Acho que já faz um tempo. Tenho estado ocupada.
– Então, o que faz para viver?
– Isso e aquilo.
– Em que ramo?
Normalmente, ela se irritava quando as pessoas começavam a ficar curiosas. Mas a postura dele era calma e relaxada, portanto aquela era apenas uma conversa normal de um encontro de um casal.
– Acho que posso chamar de justiça criminal.
– Ah, então lida com leis.
– Sim, eu as conheço.
– Que bacana – Mark pigarreou. – Então... nossa, você está realmente linda.
– Obrigada. Acho que é por causa do meu professor.
– Ah, sabe, de algum modo acho que você se sairia bem sem mim.
Enquanto se envolvia numa conversa descomplicada, ela começou a relaxar de verdade e quando os sanduíches chegaram, eles pediram mais uma rodada de cerveja. Era tão... normal estar num bar, conversando e conhecendo outra pessoa.
O exato oposto do que ela testemunhara na noite anterior.
Sola estremeceu quando as imagens lhe voltaram... a luz de velas, aquele homem de cabelos negros pairando acima da mulher seminua como se estivesse para devorá-la, os dois se soltando com desinibição... Então, aqueles olhos reluzentes se ergueram e se encontraram com os dela através da janela como se ele soubesse o tempo todo que ela estivera espionando.
– Você está bem?
Sola forçou-se a se concentrar.
– Desculpe, sim, estou. O que você estava dizendo?
Enquanto Mark voltava a falar do seu treinamento para o Ironman, ela se viu novamente no frio do lado de fora daquele chalé, observando aquele homem e aquela mulher.
Droga. Ela orquestrara aquele encontro somente porque queria relaxar. Não porque gostasse particularmente de Mark, por mais legal que ele fosse.
Na verdade, talvez ela tivesse feito aquilo porque, coincidentemente, seu professor era bem alto, de boa constituição física, e cabelos muito escuros e olhos bem claros.
Quando a culpa lhe enviou um aviso, ela pensou, ora, pelo amor de Deus. Era uma mulher adulta. Mark era um homem adulto. As pessoas faziam sexo por diferentes motivos – não era porque não queria se casar com o cara que ela estivesse quebrando alguma regra sagrada... a não ser, droga. Deixando de lado a moral da avó, e os dentes brancos e brilhantes e os ombros largos dizendo o contrário, ela não se sentia de fato atraída por Mark.
Ela estava atraída pelo homem de quem Mark a fazia se lembrar.
E era isso o que tornava tudo aquilo muito errado.
CAPÍTULO 53
Mesmo que Qhuinn dificilmente fosse um bom árbitro de aprovação no que se referia às reuniões do Conselho, ficou bem claro para ele que o grupo reunido fora até aquela casa esperando uma coisa só para receber algo completamente diferente.
Wrath não desperdiçava nem atenuava as palavras e, depois de despejar seu discurso, concluiu tudo em cinco, dez minutos.
Na verdade, aquilo era muito bom. Quanto antes ele terminasse, mais rápido o tirariam dali.
– Concluindo – disse o Rei em sua voz grave –, agradeço a oportunidade de me dirigir a este grupo respeitável.
Naquele caso, “respeitável” obviamente significava “idiota”.
– Tenho outro compromisso agora – isto é, permanecer vivo. – Portanto, preciso ir. Contudo, se tiverem algum comentário, por favor, dirija-os a Tohrment, filho de Hharm.
Menos de um segundo depois, o Rei deixava a casa com V. e Zsadist.
Após a saída dele, todos os empoados na sala de jantar permaneceram sentados em suas cadeiras, chocados, suas expressões dizendo “e agora?”. Obviamente, eles esperavam mais... mas também menos. Como crianças que forçam demais os limites com os pais até finalmente levarem uma colherada de pau na bunda.
Pela perspectiva de Qhuinn, aquilo tudo era muito engraçado, de verdade.
A festa finalmente começou a se dissipar depois que a anfitriã se levantou e disse a todos como fora uma honra recebê-los e blá-blá-blá.
Qhuinn só se importava com uma coisa.
A mensagem que chegou em seu celular um minuto mais tarde: Wrath estava a salvo em casa.
Exalando lentamente, ele guardou o celular no bolso interno da jaqueta de couro e considerou a ideia de dar umas guinadas no piso só para ver se animava aquele bando de empertigados a dançar um pouco. Porém, ele muito provavelmente se meteria em apuros com isso.
Que pena.
O grupo começou a sair logo em seguida, para óbvio descontentamento da anfitriã, como se ela tivesse se arrumado e reorganizado sua casa na antecipação de um evento social que durasse a noite toda – só para descobrir que conquistara seus dois segundos de celebridade e um balde gigante de KFC para comer.
Desculpe, dona.
Tohrment comandou o êxodo, parado diante da lareira, acenando com a cabeça, dizendo algumas poucas palavras. Wrath fizera uma boa escolha. O Irmão tinha a aparência de um guerreiro, com todas as suas armas, mas sempre se mostrou disposto e internamente inclinado a ser um pacificador, e isso não era diferente aquela noite.
Ele se mostrou especialmente agradável quando Marissa e Butch saíram, o rosto demonstrando uma centelha genuína de afeto ao abraçá-la e ao acenar para o tira que acompanhou para fora. Contudo, esse fragmento de realidade foi imediatamente substituído pela sua máscara profissional.
No fim, a anfitriã auxiliou seu hellren ancião a se levantar e comentou alguma coisa a respeito de ajudá-lo a subir.
E assim restou apenas um.
Elan, filho de Larex, demorava-se perto do acortinado das janelas.
Qhuinn observara o cara o tempo todo, contando exatamente quantos membros do Conselho se aproximaram dele, tomando-lhe a mão e murmurando algo em seu ouvido.
Cada um deles.
Portanto, não foi uma surpresa quando em vez de simplesmente ir embora como um bom garoto, ele se encaminhou até a lareira como se desejasse uma audiência.
Maravilha.
Enquanto Elan se aproximava de Tohr, quanto mais perto ficava, mais tinha de levantar o queixo para manter contato visual com o Irmão.
– Foi uma honra muito grande ter uma audiência com o seu Rei – o cavalheiro disse com seriedade. – Ouvi atentamente cada palavra.
Tohr murmurou algo em resposta.
– E venho me remoendo com algo – o aristocrata comentou. – Eu tinha esperanças de falar diretamente com ele a respeito, mas...
Bem, não prenda a respiração enquanto espera por isso, amigo.
Tohr se prontificou a preencher o silêncio:
– Qualquer coisa que me disser chegará diretamente aos ouvidos do Rei, sem filtro nem interpretação. E os lutadores neste recinto juraram segredo. Eles são capazes de morrer antes de repetir sequer uma palavra.
Elan olhou na direção de Rehv, obviamente esperando uma jura semelhante por parte do macho.
– O mesmo se aplica a mim – murmurou Rehv ao se apoiar na bengala.
Abruptamente, o peito de Elan estufou como se aquele tipo de atenção personalizada fosse mais do que ele esperava obter naquela reunião.
– Bem, isso tem pesado muito em meu peito.
Certamente não nos peitorais, Qhuinn pensou. Você tem o físico de um moleque de dez anos.
– E isso seria... – Tohr deu a deixa.
Elan cruzou os braços atrás das costas e andou um pouco – como se estivesse refletindo sobre suas palavras. Algo garantia a Qhuinn, porém, que elas já tinham sido ensaiadas, ainda que não pudesse dizer como sabia disso.
– Eu esperava que seu Rei se referisse a certo boato que ouvi.
– Que seria? – perguntou Tohr num tom neutro.
Elan parou. Virou-se. Falou com clareza:
– Que ele foi alvejado no outono.
Ninguém emitiu reação alguma. Nem Tohr, nem Rehv. Tampouco os Irmãos restantes na sala. E por certo nem Qhuinn e seus garotos.
– Qual a fonte desse boato? – questionou Tohr.
– Bem, para ser franco, pensei que ele estaria aqui.
– Verdade? – Tohr olhou para as cadeiras desocupadas e deu de ombros. – Quer me contar o que ouviu?
– O macho fez referência à visita do Rei. Semelhante à que Wrath me fez em minha residência durante o verão – isso foi relatado com grande importância, como se aquele tivesse sido o ponto alto do ano de Wrath. – Ele disse que o Bando de Bastardos atirou no Rei enquanto ele estava em sua propriedade.
Mais uma vez, nenhuma reação.
– Mas, obviamente, o seu Rei sobreviveu – a pausa sugeria que Elan estava esperando por detalhes. – De fato, ele parece ótimo.
O silêncio se alongou como se as duas partes na conversa esperassem que a outra fizesse bom uso da quietude.
Tohr ergueu uma sobrancelha.
– Com o devido respeito, você não nos informou muita coisa, e boatos acontecem desde o início dos tempos.
– Mas eis o mais estranho. Ele também falou comigo antes que isso acontecesse. No entanto, não acreditei nele. Quem tramaria uma tentativa de homicídio? Parecia... mais a ostentação de um macho que, de outro modo, estava insatisfeito com a maneira como as coisas estavam sendo conduzidas. Só que, uma semana mais tarde, ele disse que o Bando de Bastardos deu seguimento aos planos, e que Wrath fora atingido. Eu não sabia o que fazer. Eu não tinha como entrar em contato com o Rei pessoalmente, e nenhum modo de verificar se o que esse indivíduo dizia era verdade. Deixei estar... até esta reunião ser marcada. Fiquei me perguntando se talvez... bem. Obviamente nada aconteceu, mas fiquei me perguntando por que ele não estava aqui.
Tohr baixou o olhar em direção ao macho menor.
– Ajudaria bastante se você nos desse um nome.
Foi a vez de Elan franzir o cenho.
– Quer dizer que não sabe quem está no Conselho?
Enquanto Rehv revirava os olhos, Tohr dava de ombros.
– Temos mais coisas com que nos preocupar do que com os associados de Rehv.
– No Antigo País, a Irmandade sabia quem éramos.
– Há um oceano entre nós e a mãe terra.
– Uma pena.
– Essa é a sua opinião.
Qhuinn deu um passo à frente, com a intenção de interferir, para o caso de o Irmão resolver segurar o pescoço do filho da puta: alguém provavelmente teria de agarrar a cabeça antes que ela caísse no tapete da anfitriã. E o peso morto do corpo também.
Parecia o mais hospitaleiro a se fazer.
– Então, sobre quem está falando? – Tohr o pressionou.
Elan olhou para os machos imóveis e letais que se concentravam nele.
– Assail. Seu nome é Assail.
No centro de Caldwell, onde as ruas escuras formavam um labirinto de ratos e os humanos sóbrios eram raros e esparsos, Xcor balançou a foice num círculo amplo de uns dois metros além do piso escorregadio manchado de preto.
O redutor foi golpeado no pescoço, e a cabeça, agora liberta da medula espinhal, pendeu do queixo para a têmpora, em meio ao vento frio e implacável. Sangue negro desceu das artérias partidas enquanto o corpo desgovernado despencava no chão num tombo.
Só isso.
Bem desapontador, na verdade.
Virando de costas, ele segurou sua amada foice sobre o ombro para que ela se curvasse atrás dele de modo protetor, vigiando-lhe as costas enquanto ele se preparava para o que viria em seguida. O beco em que ele entrara para perseguir aquele agora incapacitado assassino era aberto na ponta oposta, e atrás dele, os três primos estavam posicionados ombro a ombro para o caso de alguém mais vir daquela direção.
Algo se aproximava.
Algo vinha... em alta velocidade, o ronco do motor aumentando cada vez mais...
O SUV derrapou no beco, os pneus encontrando pouca ou nenhuma tração na rua coberta de gelo. Como resultado da ausência de atrito, o veículo bateu na parede, os faróis cegando Xcor.
Quem quer que estivesse atrás daquele volante não pressionou o freio.
O motor rugiu.
Xcor ficou de frente para o carro e fechou os olhos. Não havia motivo para mantê-los abertos já que não estava enxergando nada. Não se importava se o motorista fosse um assassino, um vampiro ou um humano.
Eles vinham em sua direção, e ele colocaria um fim naquilo. Mesmo que talvez fosse mais fácil simplesmente sair do caminho.
Entretanto, ele nunca gostou de saídas fáceis.
– Xcor! – alguém exclamou.
Inspirando profundamente o ar gelado, ele emitiu um grito de guerra ao acompanhar a aproximação, seus sentidos se aguçando e posicionando o SUV em sua trajetória. A foice desapareceu um instante, e suas pistolas, ansiosas em participar, surgiram em ambas as mãos.
Ele aguardou mais uns cinco metros.
Em seguida, começou a apertar os gatilhos.
Com os silenciadores colocados, as balas só emitiam os sons do impacto ao quebrarem o para-brisa, sibilarem na grade, perfurarem um pneu...
E nessa hora os faróis que o cegavam se viraram, a traseira do veículo rodopiando, toda a trajetória imutável graças à tremenda aceleração – mesmo quando todo o resto se confundia.
Pouco antes de a lataria lateral o atingir, Xcor pulou do chão, as botas impulsionando-o para cima, o teto do carro quase resvalando no solado enquanto uma tonelada e meia desgovernada passava por baixo do seu corpo flutuante.
Quando os coturnos de combate de Xcor aterrissaram, o avanço do carro foi interrompido à custa de um latão de lixo, o receptáculo detendo o veículo melhor do que qualquer freio seria capaz.
Xcor não perdeu tempo para se aproximar, com as duas pistolas erguidas, os gatilhos prontos. Embora tivesse dado alguns tiros, ele sabia que ainda possuía pelo menos umas quatro balas em cada uma. E, mais uma vez, seus soldados o apoiaram por trás.
Aproximando-se para olhar o interior, ele não se preocupava com o que encontraria: um de sua espécie, um homem ou uma mulher, um redutor, pouco importava.
O cheiro de carne estragada e melaço o informaram qual dos seus inimigos ele confrontara e, de fato, enquanto se inclinava sobre o para-brisa estilhaçado, dois novos recrutas, que ainda apresentavam cabelos escuros e pele rosada, balançavam nos bancos da frente.
Mesmo com os cintos de segurança a postos, eles estavam em mau estado. Além de terem sido atingidos pelas balas, os rostos demonstravam todos os estragos feitos pelas batidas tanto nas laterais do carro, como no painel e no vidro quebrado: sangue negro escorria pelos narizes e queixos e faces lacerados, a meleca pingando nos peitos como água de um chuveiro.
Nada de air bags. Talvez um caso de mal funcionamento.
– Não pensei que fosse conseguir – murmurou Balthazar.
– É mesmo – o outro concordou.
Xcor desconsiderou a preocupação ao guardar as armas, depois segurou a porta do motorista e a arrancou da dobradiça. Enquanto o guincho metálico ecoava muito alto no beco, ele largou a placa de metal, pegou a adaga de aço e se inclinou.
Como com todos os redutores, aqueles afiliados a Ômega ainda se mexiam e piscavam apesar dos ferimentos catastróficos – e continuariam assim eternamente se deixados nesse estado, mesmo que suas formas apodrecessem com o tempo.
Só havia um modo de matá-los.
Xcor aproximou o braço do ombro esquerdo e enterrou a lâmina de sua adaga no peito daquele que estava atrás do volante. Virando a cabeça de lado e fechando os olhos para não se cegar novamente, ele esperou pelo som e pelo flash diminuir antes de se inclinar sobre o assento e fazer o mesmo com o passageiro.
Depois se virou para despachar o corpo decapitado e contorcido... que tinha marcas de pneus sobre o peito, graças à trajetória do carro no beco.
Caminhando pelo piso sujo e lamacento, ele levantou a adaga acima do ombro e enterrou a lâmina no esterno com tanta força que a arma ficou encravada no asfalto.
Quando se pôs de pé novamente, sua respiração emitia sopros de fumaça pelo nariz, como uma locomotiva.
– Vasculhem o veículo, depois temos que ir.
Ele consultou o relógio. A polícia de Caldwell era desapontadoramente atuante, mesmo naquela parte da cidade – e a ameaça constante de envolvimento humano sob a qual ele vivia era sempre um aborrecimento. Mas, com sorte, em questão de minutos, eles iriam embora e seria como se jamais estivessem estado ali.
Embainhando a adaga, ele olhou para o céu, estalando o pescoço e relaxando os ombros.
Era impossível não pensar na reunião do Conselho que fora marcada; aquilo esteve em sua mente a noite inteira. Será que Wrath aparecera? Ou teria sido apenas Rehvenge e os representantes da Irmandade? Se o Rei tivesse de fato aparecido, Xcor podia muito bem imaginar a pauta: demonstração de força, avisos, depois uma partida rápida.
Por mais poderosa que fosse a Irmandade, e por mais que Wrath conseguisse forçar sua vontade sobre aquele grupo de aristocratas traiçoeiros e bajuladores, era difícil imaginar que um macho que recentemente quase fora assassinado fosse se arriscar: mesmo que apenas por interesse próprio, a Irmandade o queria vivo, visto que aquilo também era seu lugar de poder.
E foi por isso que ele escolhera ficar afastado.
Não havia mal algum em permitir que Wrath tentasse recuperar um pouco de seu prestígio perdido, e muito a perder num confronto direto com a Irmandade diante daquele público específico: o potencial de um dano colateral era grande demais. A última coisa que ele queria era assustar a glymera a ponto de afastá-los... ou matá-los de uma vez no processo de acabar com o Rei.
Mas ele descobrira, graças aos contatos de Throe, a hora e o local exatos daquele encontro. Que seria naquele instante... e na propriedade daquela fêmea de quem seus soldados se alimentaram no pequeno chalé.
Evidentemente, ela estava disposta a permitir que outros usassem não só o jardim dela, mas também suas salas.
E, muito em breve, ele teria uma transcrição do que acontecera graças ao porta-voz que era Elan – senão por outro motivo que não de o macho desejar apenas se gabar do acesso a que tivera.
Um assobio de apreciação vindo da parte de trás do carro arruinado fez com que ele virasse a cabeça.
Zypher estava parado diante do porta-malas aberto, com as sobrancelhas erguidas enquanto ele se curvava e apanhava... um tijolo de algo branco coberto de celofane.
– Que belo prêmio conseguimos – disse ele, erguendo-o no alto.
Xcor andou até lá. Havia mais três daqueles, apenas jogados na parte traseira, como se o par de assassinos estivesse mais preocupado com a sua segurança física do que com a disposição das drogas.
Naquele instante, as sirenes começaram a gritar vindo do leste, talvez relacionadas àquela batida, talvez não.
– Pegue os pacotes – ordenou Xcor. – Vamos embora agora.
CONTINUA
CAPÍTULO 45
A ausência de alimentação de Assail finalmente o atingiu cerca de cinco horas após o anoitecer. Ele vestia uma camisa social azul-clara com punhos franceses, quando suas mãos começaram a tremer tão violentamente que não havia como ele abotoar a maldita coisa sobre o peito. Em seguida, a exaustão o acometeu, tão forte que ele cambaleou.
Praguejando, foi até a cômoda. Sobre o tampo de mogno polido, seu frasco e colher o esperavam, e ele cuidou do assunto em duas rápidas inaladas, uma para cada narina.
Hábito hediondo – e um ao qual recorria somente quando de fato necessitava.
Pelo menos a fungada cuidou do cansaço. Contudo, ele teria de encontrar uma fêmea. Logo. De fato, era um milagre que ele tivesse suportado por tanto tempo. A última vez em que tomara uma veia fora meses atrás, e a experiência havia sido menos que cativante, uma rapidinha com uma fêmea da espécie bem versada em fornecer alimento para os machos necessitados. A um preço.
Que estorvo.
Depois de se armar e pegar o casaco de cashmere preto, desceu as escadas e destrancou a porta de correr de aço. Ao abrir a passagem para o primeiro andar, foi recebido pelo som de pistolas sendo travadas.
Na cozinha, os gêmeos verificavam várias pistolas .40.
– Fez a ligação? – Assail perguntou a Ehric.
– Como você pediu.
– E?
– Ele vai estar lá e vai sozinho. Precisa de armas?
– Já as tenho – ele pegou as chaves do Range Rover de uma travessa de prata na bancada. – Vamos no meu carro. Para o caso de nos ferirmos.
Afinal, só um idiota aceitava a palavra de um inimigo, e seu SUV era equipado com um instrumento sob a carenagem que poderia ser muito útil se houvesse um ataque em massa.
Bum.
Quinze minutos mais tarde, os três cruzavam a ponte para Caldwell e, enquanto Assail seguia em frente, ele se lembrou do motivo pelo qual trazer os primos para ali fora uma ideia inspirada: não só eram uma boa retaguarda, como também eles não se mostravam inclinados a desperdiçar tempo com conversas inúteis.
O silêncio era um quarto passageiro muito bem-vindo no trajeto.
No centro além do rio Hudson, ele pegou uma saída que fazia uma curva e acabava debaixo da Northway. Avançado paralelo ao rio, ele entrou numa floresta de pilares que sustentavam a estrada, o cenário era insignificante, sombrio e, essencialmente, deserto.
– Estacione ali à direita, mais uns cem metros – disse Ehric na parte de trás do carro.
Assail foi para o meio-fio e parou.
Os três emergiram no frio, com os casacos abertos, as armas empunhadas, os olhos à espreita. Conforme caminhavam, o gêmeo de Ehric tomava a retaguarda, com os três sacos da garagem em uma das mãos, os plásticos produzindo um roçar à medida que eles andavam.
Acima deles, o trânsito rugia, os carros se deslocando a um ritmo constante, a sirene de uma ambulância berrando um grito estridente, um caminhão pesado ribombando sobre as vigas. Quando Assail inspirou fundo, o ar entrou gélido em seus seios nasais, e qualquer odor de sujeira ou de peixes mortos fora subjugado pelo frio.
– Logo em frente – orientou Ehric.
Eles cruzaram o asfalto calma e ritmadamente, seguindo por um caminho de terra batida congelada e dura. Com as enormes placas de concreto da estrada bloqueando o sol, nada crescia ali, mas havia vida – de certa forma. Humanos sem teto em abrigos improvisados com papelões e encerados permaneciam acocorados para se protegerem do inverno, os corpos tão enrolados que não se podia dizer para que lado olhavam.
Considerando o interesse em permanecerem vivos, ele não se preocupou com uma interferência da parte deles. Além disso, eles estavam acostumados a ficarem na periferia daquele tipo de negociata e sabiam que não deveriam se meter.
E se o fizessem? Ele não hesitaria em acabar com a vida miserável deles.
O primeiro sinal de que o inimigo aparecera foi o fedor carregado pelo vento. Assail não era muito versado quanto à Sociedade Redutora e os seus membros, mas seu olfato apurado não era capaz de discernir muitas nuances entre os maus odores. Portanto, ele deduziu que suas instruções foram seguidas e que aquele não era um caso de milhares chegando ao ponto de encontro – conquanto fosse possível que os seguidores de Ômega tivessem apenas um buquê.
Logo ele descobriria.
Assail e seus machos pararam. E esperaram.
Um momento depois, um único redutor saiu de trás de um poste.
Ah, interessante. Aquele já fora um cliente antes, aparecendo com dinheiro para aceitar porções de ecstasy ou de heroína. Ele esteve muito perto de ser eliminado, seu volume de compra pouco abaixo da qualificação de um intermediário.
Único motivo pelo qual ele ainda respirava... e, portanto, a certa altura, transformara-se num assassino. Pensando bem, o camarada não vinha circulando muito ultimamente, logo, era possível se deduzir que ele estivesse se ajustando à nova vida. Ou não vida, como parecia ser o caso.
– Jesus... Cristo – disse o redutor, obviamente captando os cheiros deles.
– Falei sério quando disse que eu era o seu inimigo – Assail comentou com fala arrastada.
– Vampiros?
– O que nos coloca numa posição curiosa, não? – Assail acenou para os gêmeos. – Meus parceiros vieram aqui em boa-fé. Surpreenderam-se do mesmo modo com o que descobriram quando seus homens chegaram. Certos... comportamentos violentos... por parte nossa foram demonstrados antes que a situação fosse esclarecida. Mil perdões.
Quando Assail indicou, os três sacos foram lançados para a frente.
A voz de Ehric foi seca:
– Estamos dispostos a lhe informar onde está o resto deles.
– Dependendo do resultado desta transação – acrescentou Assail.
O redutor olhou para baixo, mas, fora isso, não demonstrou reação alguma. O que sugeria que ele era profissional.
– Trouxe a mercadoria?
– Você pagou por ela.
Os olhos do assassino se estreitaram.
– Vai fazer negócios comigo.
– Garanto que não estou aqui pelo prazer da sua companhia – quando Assail gesticulou, Ehric puxou um pacote embrulhado. – Primeiro, algumas regras básicas. Você entrará em contato comigo diretamente. Não aceitarei ligações de mais ninguém de sua organização. Você poderá delegar o pagamento e o recebimento da mercadoria a quem desejar, desde que me informe a identidade e o número de representantes que estiver enviando. Se houver qualquer tipo de cilada, ou se houver qualquer desvio das minhas duas regras, eu cessarei minhas transações com você. São essas as minhas únicas condições.
O redutor olhou de Assail para os primos.
– E se eu quiser comprar mais do que isto?
Assail já considerara essa possibilidade. Não passara os últimos doze meses fazendo com que os intermediários estourassem seus miolos à toa – e não estava disposto a ceder seu poder duramente conquistado a ninguém. Contudo, aquela era uma oportunidade única. Se a Sociedade Redutora queria ganhar dinheiro nas ruas, ele concordava em lhes fornecer as drogas para tal. Não que aquele fedido filho da puta conseguisse chegar até Benloise porque Assail se certificaria de impedir isso. Mais precisamente, Assail tinha um racionamento estipulado inerente ao seu modelo de negócios – com apenas eles três, tinha mais produtos do que vendedores.
Portanto, era hora de começar a delegar. Seu controle sobre a cidade estava completo, a fase seguinte era escolher a dedo alguns intermediários para contratos de trabalho, por assim dizer.
– Vamos começar devagar e veremos como nos saímos – murmurou Assail. – Você precisa de mim. Eu sou a fonte. Portanto, a escolha é sua sobre como procederemos. Certamente, eu não estou... como dizer... “desinclinado” a aumentar os seus pedidos. Com o tempo.
– Como posso saber que você não está trabalhando com a Irmandade?
– Caso eu estivesse, já teria providenciado para que eles tivessem armado uma emboscada agora – ele indicou os sacos plásticos aos pés do assassino. – Além do que, como gesto de boa-fé, e em reconhecimento pelas suas perdas, eu lhe dei um crédito de três mil dólares nesta entrega. Mil para cada um dos nossos, digamos, mal-entendidos da noite passada.
As sobrancelhas do assassino se ergueram.
No silêncio que se seguiu, o vento rodopiou ao redor deles, os casacos revirando-se, o colarinho da jaqueta do redutor tremulando.
Assail ficou tranquilo no aguardo de uma resposta. Existiam duas possibilidades: sim, e nesse caso Ehric jogaria o pacote para ele. Ou não, o que os faria abrir fogo no maldito, neutralizá-lo, e apunhalá-lo de volta a Ômega.
As duas opções eram-lhe aceitáveis. Mas ele esperava que fosse a primeira.
Dinheiro precisava ser produzido. Para ambos os lados.
Sola manteve distância do quarteto de homens que se juntaram sob a ponte: detendo-se à margem, ela usava os binóculos para focalizar a reunião.
O senhor Misterioso, também conhecido como Houdini do Acostamento, estava protegido por dois imensos guarda-costas que eram o espelho um do outro. Pelo que podia perceber, ele comandava a reunião, e isso não era surpresa alguma – e ela podia adivinhar o assunto em pauta.
Como esperado, o gêmeo da esquerda deu um passo à frente e lhe deu um pacote do tamanho de uma lancheira de criança para o homem que estava sozinho.
Enquanto ela aguardava que a reunião chegasse ao fim, soube que estava ariscando a vida com aquilo – e não por estar debaixo de uma ponte no meio da noite.
Levando-se em consideração o encontro que teve com o homem na noite anterior, era bem duvidoso que ele apreciasse o fato de ela o seguir até ali, testemunhando suas atividades ilegais. Contudo, passara boa parte das últimas 24 horas pensando nele – e se irritando. Aquele era um maldito país livre, e caso ela quisesse estar ali, numa propriedade pública, tinha esse direito.
Ele queria privacidade? Então que cuidasse dos seus negócios em outro lugar que não no meio da rua.
Enquanto sua irritação ressurgia, ela cerrou os dentes... e entendeu que esse era o seu pior defeito no trabalho.
A vida inteira foi do tipo que fez exatamente aquilo que lhe diziam para não fazer. Claro, quando isso envolvia coisas como “Não, você não pode comer uma bolacha antes do jantar” ou “Não, você não pode sair de carro, está de castigo” ou “Não, você não deve ir visitar seu pai no presídio”... as implicações eram muito diferentes daquilo que se desenrolava logo adiante.
Não, você não pode voltar para aquela casa.
Não, você não pode mais me espionar.
Ah, ‘tá bom, chefão. Ela decidiria quando estaria satisfeita, muito obrigada. E naquele instante? Ela ainda não estava satisfeita.
Além disso, havia outro ângulo em sua tenacidade: ela não gostava de se acovardar e fora isso o que acontecera na noite anterior. Ao se afastar do confronto com aquele homem, fora por causa do medo – e aquele não seria o modo como ela conduziria sua vida. Desde aquela tragédia, ah, há tanto tempo, quando as coisas mudaram para sempre, ela decidira – não, jurara – que nunca mais teria medo de nada.
Não da dor. Não da morte. Não do desconhecido.
E certamente não de um homem.
Sola ajustou o foco, fechando-o no rosto do homem. Graças à iluminação urbana, havia luz suficiente para enxergá-lo adequadamente, e sim, ele era exatamente como ela lembrava. Deus, o cabelo era tão negro, quase como se ele o tivesse tingido. E os olhos – estreitos, agressivos. A sua expressão, tão orgulhosa e controlada.
Francamente, ele parecia ter classe demais para ser o que era. Pensando bem, talvez ele fosse feito do mesmo estofo de traficante de Benloise.
Pouco depois, as duas partes se separaram: o homem só se virou e caminhou na direção de que surgira, com um punhado de sacos de lixo quase vazios por sobre o ombro; os outros três retornando até o Range Rover.
Sola trotou até seu carro alugado, o body preto e a máscara de esqui ajudando-a a se misturar à escuridão. Colocando-se atrás do volante do Ford, ela se abaixou e usou um espelho para monitorar a via de mão única que passava por debaixo da ponte.
A rua era a única saída disponível. A menos que o homem estivesse disposto a arriscar uma abordagem da polícia por trafegar na contramão.
Momentos depois, o Range Rover passou por ela. Permitindo que ele se adiantasse um pouco, ela acelerou e se posicionou cerca de um quarteirão para trás.
Quando Benloise lhe dera aquela missão, fornecera-lhe o modelo do SUV do homem, além do endereço da casa à margem do Hudson. Porém, nenhum nome.
Tudo o que ela sabia era aquele fundo de investimento e seu único curador.
Enquanto perseguia o trio, memorizou a placa do carro. Um dos seus amigos no departamento de polícia talvez pudesse ajudá-la com isso; apesar de que, se a propriedade era de uma entidade legal, ela deduzia que ele fizera o mesmo com o carro.
Que seja. Só havia uma coisa de que tinha certeza.
Onde quer que ele fosse, ela estaria logo atrás.
CAPÍTULO 46
O grito ecoou pelo quarto em penumbra, alto, agudo, inesperado.
Conforme ele reverberava em seus ouvidos, Layla não entendeu de imediato o que a acordara. O que tinha...
Relanceando para baixo, ela viu que estava sentada ereta, os lençóis amassados em suas mãos, o coração acelerado, a caixa torácica bombeando.
Olhando ao redor, viu que sua boca estava aberta...
Fechando-a, entendeu quem produzira aquele som. Não havia mais ninguém no quarto. E a porta estava cerrada.
Erguendo as mãos, ela girou os pulsos, fazendo as palmas se voltarem para cima e para baixo. A iluminação do quarto, que era pouca, não vinha mais do seu corpo, mas sim do banheiro.
Virando-se de lado, espiou por cima da beirada da cama.
Payne já não estava mais caída no chão. A fêmea devia ter saído – ou fora carregada para fora?
Seu primeiro pensamento foi sair para procurar a irmã de Vishous, simplesmente levantar num pulo e começar a procurar. Embora não tivesse entendido exatamente o que se sucedera entre ambas, não restavam dúvidas de que aquilo custara imensamente à lutadora.
Layla, porém, deteve-se, conforme a preocupação com o seu próprio bem-estar surgiu: sua consciência passou do externo para o interno, a mente se concentrando no corpo, buscando e esperando encontrar as cólicas, a poça quente entre as pernas, as estranhas dores debilitantes em seus ossos.
Nada.
Assim como um quarto ficava em silêncio quando todos os que estavam dentro permaneciam em silêncio, as partes corpóreas também agiam da mesma forma quando todos os seus componentes não tinham queixas.
Tirando as cobertas de cima do corpo, ela moveu as pernas até que ficassem penduradas na lateral do colchão alto. Subconscientemente, preparou-se para a horrível sensação do sangue descendo do seu ventre. Quando nada desse tipo aconteceu, ela se perguntou se o aborto não chegara ao fim. Mas Havers não lhe dissera que duraria mais uma semana?
Foi preciso coragem para se levantar. Ainda que ela considerasse isso ridículo.
Nada ainda.
Layla foi até o banheiro devagar, esperando que o assalto dos sintomas retornasse a qualquer instante, fazendo-a cair de joelhos. Esperou que a dor atacasse, que aquelas cólicas ritmadas voltassem, que aquele processo mais uma vez estabelecesse o domínio sobre seu corpo e sua mente.
Não sei se funcionará, mas, se permitir, eu gostaria de ver o que posso fazer.
Faltou pouco para que Layla rasgasse as roupas, despindo-se do que a cobria num acesso insano. E logo estava no vaso sanitário.
Nenhum sangramento.
Nenhuma cólica.
Uma parte sua afundou numa tristeza tão grande, que ela temia que não houvesse fim para tal emoção – de modo estranho, durante o processo do aborto, ela sentiu como se tivesse uma espécie de conexão com o filho. E se estivesse tudo acabado? Então, a morte estava completa – mesmo que, logicamente, ela soubesse que não havia coisa alguma que tivesse vivido ou fosse capaz de sobreviver; de outro modo, a gestação não teria chegado ao fim.
Sua outra metade estava tomada por uma esperança ressonante.
E se...
Tomou uma chuveirada rápida, apesar de não saber exatamente por que estava se apressando, ou para onde iria.
Baixando o olhar para o abdômen, percorreu as mãos ensaboadas sobre a faixa reta de pele.
– Por favor... qualquer coisa que quiser, pegue o que quiser... me dê esta vida dentro de mim e pode ficar com qualquer outra coisa...
Ela falava com a Virgem Escriba, claro – não que a mãe da raça a ouvisse mais.
– Conceda-me o meu filho... deixe-me ficar com ele... por favor.
O desespero que ela sentia era quase tão ruim quanto os problemas físicos de antes, e ela saiu cambaleando para fora do box, secando-se rapidamente e vestindo-se com qualquer coisa.
Pelo que vira na televisão, as mulheres humanas tinham testes que podiam fazer sozinhas, umas espécies de varetas que lhes diziam se seus corpos estavam procriando seus mistérios. As vampiras não dispunham dessas coisas – pelo menos não que ela soubesse.
Mas os machos sabiam. Eles sempre sabiam.
Saindo apressada do quarto, ela disparou na direção do corredor das estátuas, rezando para se deparar com alguém, qualquer um...
Exceto Qhuinn.
Não, ela não queria que fosse ele a descobrir se aquele milagre acontecera ou... se nada havia mudado. Aquilo seria simplesmente cruel demais.
A primeira porta que viu foi a de Blaylock e ela bateu nela depois de um segundo de hesitação. Blay soube da situação desde o início. E, em seu cerne, ele era um bom macho, um macho bom e forte.
Quando não houve resposta, ela praguejou e deu as costas. Não verificara as horas, mas já que as persianas estavam erguidas e não havia o aroma da refeição sendo servida, provavelmente já estavam no meio da noite. Sem dúvida ele saíra para lutar...
– Layla?
Ela se virou. Blay estava inclinado para fora do quarto com uma expressão de surpresa.
– Desculpe... – quando a voz dela se partiu, ela teve que pigarrear – E-eu...
– O que aconteceu? Você está... Epa, vá com calma. Venha, vamos acomodá-la aqui.
Quando algo se aproximou e a segurou por trás, ela percebeu que ele a agarrara e a levara até o banquinho folheado a ouro bem do lado de fora do quarto dele.
Ele se ajoelhou diante dela e a tomou pelas mãos.
– Quer que eu vá chamar Qhuinn para você? Acho que ele está...
– Diga-me se eu ainda estou grávida – quando os olhos dele se arregalaram, ela apertou suas mãos. – Preciso saber. Alguma coisa... – ela não sabia se Payne queria que ela contasse o que acontecera entre as duas. – Eu só preciso saber se acabou ou não. Pode... por favor, eu preciso saber...
Quando ela começou a balbuciar, ele apoiou a mão no braço dela e o apertou.
– Acalme-se. Apenas respire fundo... isso, respire comigo. Isso mesmo, assim está bom.
Ela fez o que pôde para obedecer, concentrando-se no tom de voz grave e firme.
– Quero chamar a doutora Jane, está bem? – quando ela se mostrou disposta a discutir, ele balançou a cabeça com firmeza. – Fique aqui. Prometo que não vou a parte alguma. Só preciso ir buscar meu telefone. Fique aqui.
Por algum motivo, os dentes dela começaram a tiritar. Estranho, pois não estava frio.
Um segundo depois, o soldado estava de volta e se ajoelhava mais uma vez. Ele estava com o celular pregado ao ouvido e falava.
– Ok, Jane já está vindo – informou ele, desligando o aparelho. – Vou ficar aqui, esperando com você.
– Mas você sabe, não sabe? Você tem que saber, consegue sentir o cheiro...
– Psiiiu.
– Desculpe – ela desviou o rosto, abaixando a cabeça. – Não tive a intenção de envolvê-lo nisso. Eu só... desculpe.
– Está tudo bem. Não se preocupe com isso. Vamos só esperar pela doutora Jane. Ei, Layla, olhe para mim. Olhe para mim.
Quando ela finalmente encarou os olhos azuis, ficou pasma com a bondade neles. Ainda mais quando o macho sorriu com gentileza.
– Estou contente que tenha vindo me procurar – disse ele. – O que quer que esteja acontecendo, nós vamos cuidar disso.
Fitando o rosto belo e forte, sentindo a segurança que ele oferecia com tanta generosidade, percebendo a decência profunda do lutador, ela pensou em Qhuinn.
– Agora entendo por que ele está apaixonado por você – disse ela sem querer.
Blay empalideceu de uma vez, toda a cor do seu rosto sumindo da face.
– O que... você disse?
– Cheguei – disse a doutora Jane do alto das escadas. – Estou aqui! Enquanto a doutora Jane se aproximava correndo, Layla fechou os olhos.
Droga. O que acabara de escapar da sua boca?
No centro da cidade, no armazém em que Xcor passara o dia, o líder do Bando de Bastardos por fim emergiu na escuridão fria da noite.
Ele tinha as armas no corpo e o celular na mão.
Em algum ponto durante as horas iluminadas do dia, a sensação de que ele se esquecera de algo finalmente cessara, e ele se lembrara de que dissera aos soldados para abandonar aquele local. O que explicava por que nenhum deles aparecera antes do amanhecer.
O novo esconderijo não era no centro. E, após um pouco de reflexão, fora um erro de sua parte tentar estabelecer o QG naquela parte da cidade, mesmo se as coisas pareciam desertas: muito risco de descoberta, circunstâncias complicadas ou comprometedoras.
Como bem ficaram sabendo na noite anterior com a visita daquele Sombra.
Fechando os olhos brevemente, ele pensou como era estranho que os eventos podiam se suceder muito além das intenções originais de alguém. Se não por aquela intromissão do Sombra, ele se perguntava se um dia teria conseguido rastrear a sua Escolhida. E se ele não a tivesse seguido até a clínica, não teria descoberto que ela estava grávida... tampouco teria descoberto a respeito da Irmandade.
Lançando-se no vento impiedoso, materializou-se no teto do mais alto arranha-céu da cidade. As rajadas de vento eram cruéis naquela altitude, açoitando seu casaco ao redor do corpo, o coldre da foice era tudo o que mantinha nas costas. O cabelo, que crescia cada vez mais, emaranhava-se, obscurecendo a sua visão da cidade que se estendia aos seus pés.
Ele se virou na direção da montanha do Rei, a grande elevação no horizonte.
– Pensávamos que estivesse morto.
Xcor girou sobre as botas de combate, o vento afastando o cabelo do rosto.
Throe e os outros formavam um semicírculo ao redor dele.
– Ai de mim! Ainda vivo e respiro – mas, na verdade, ele só se sentia morto. – Como são as novas acomodações?
– Onde esteve? – Throe exigiu saber.
– Por aí – ao piscar, ele se lembrou de ter vasculhado aquele cenário estranho e enevoado, circundando a base da montanha. – As novas acomodações, como elas são?
– Boas – murmurou Throe. – Posso falar com você?
Xcor levantou uma sobrancelha.
– De fato, você parece ansioso em fazer isso.
Os dois se afastaram um pouco, deixando os outros ao vento e, sem querer, ele acabou ficando de frente para a direção do complexo da Irmandade.
– Você não pode fazer isso – disse Throe acima das rajadas enregelantes. – Não pode simplesmente desaparecer durante o dia inteiro. Não neste cenário político... nós deduzimos que você tivesse sido morto, ou pior, capturado.
Houve uma época em que Xcor teria rebatido essa censura com uma repulsa afiada ou algo mais físico. Mas seu soldado estava certo. As coisas estavam diferentes no grupo deles – desde que enviara Throe para o covil do lobo, ele começara a sentir uma ligação recíproca com aqueles machos.
– Eu lhe garanto, não foi intencional.
– Então, o que aconteceu? Onde esteve?
Naquele instante, Xcor viu uma encruzilhada à sua frente. Uma direção levava ele e seus soldados à Irmandade, para um conflito sangrento que mudariam suas vidas para sempre para o bem ou para o mal. A outra?
Ele pensou em sua Escolhida sendo sustentada por aqueles dois lutadores, com tanto cuidado como se fosse de vidro.
Optou por essa direção.
– Estive no armazém – ouviu-se dizer após um momento. – Passei o dia lá. Voltei para lá distraído, e já era tarde demais para ir para qualquer outra parte. Passei as horas do dia no subterrâneo, e meu telefone não tinha sinal. Vim para cá assim que saí do prédio.
Throe franziu o cenho.
– Já faz tempo que o sol se pôs.
– Perdi a noção do tempo.
Aquilo era tudo o que estava disposto a informar. Nada mais. E seus soldados devem ter sentido esse limite de demarcação e, ainda que as sobrancelhas de Throe permanecessem tensas, ele não disse nada mais.
– Só preciso resolver um detalhe aqui e depois partiremos para encontrar nossos inimigos – declarou Xcor.
Ao pegar o celular, ele não teria como ler a tela, mas sabia como acessar a caixa de mensagens. Havia algumas ligações não recebidas – muito provavelmente de Throe e dos outros. E depois houve uma mensagem de alguém de quem ele esperava notícias.
– Sou eu – anunciou Elan, filho de Larex. Houve uma pausa, como se em sua mente estivesse ouvindo uma fanfarra de trompetes. – O Conselho vai se reunir amanhã à meia-noite. Pensei que você deveria saber. O local é uma propriedade aqui na cidade, cujos donos recentemente retornaram de sua casa segura. Rehvenge foi bem insistente quanto ao agendamento, portanto só posso deduzir que nosso caro lídher esteja trazendo uma mensagem do Rei. Eu o manterei informado quanto ao que se suceder, mas não espero vê-lo lá. Fique em paz, meu aliado.
Quando ele apertou o botão de apagar a mensagem, Xcor expôs as presas, e o ressurgimento da sua raiva foi bom – uma volta à normalidade.
Como aquele aristocratazinho afetado ousava lhe dizer o que fazer?
– O Conselho irá se reunir amanhã – disse ele ao guardar o telefone.
– Onde? Quando? – perguntou Throe.
Xcor olhou por sobre a cidade até a montanha. Depois deu as costas para aquele ponto cardinal.
– O caro Elan determinou que não devemos estar lá. O que ele falha em perceber é que isso será escolha minha. Não dele.
Como se deixar de informar o endereço o impedisse de ir caso ele assim o desejasse?
– Chega de conversa – ele caminhou até o restante dos seus soldados. – Vamos descer às ruas e nos engajar como fazem os soldados.
Entre as suas omoplatas, a foice começou a falar com ele mais uma vez, a voz clara em sua mente, suas palavras sedentas por sangue como a súplica de uma amante.
Seu silêncio fora por demais perturbador.
Não foi com pouco alívio que ele se desmaterializou do alto de arranha-céu, o seu desejo férreo direcionando suas moléculas na direção do chão e no campo de batalha. De tantas maneiras, as 24 horas anteriores se passaram como se tivessem sido vividas por outra pessoa.
Todavia, ele voltava para a sua boa e velha pele.
E pronto para matar.
CAPÍTULO 47
Qhuinn estava a dezessete quilômetros por hora numa corrida de 32 quilômetros na esteira quando a porta da academia do centro de treinamento se abriu.
No segundo em que ele viu quem era, pôs-se nas barras laterais da máquina e apertou o botão de parar: Blay estava parado na soleira, com os olhos arregalados e o rosto todo abatido – e não porque alguém o tivesse surrado ou algo assim.
– O que aconteceu? – Qhuinn exigiu saber.
Blay enfiou uma mão nos cabelos ruivos.
– Hum... Layla está na clínica...
– Merda – ele saltou da máquina e seguiu para a porta. – O que aconteceu...
– Não, não, nada. Ela só está lá para um consulta de rotina. É só isso – o cara deu um passo para o lado, deixando a saída livre. – Imaginei que você quisesse saber.
Qhuinn franziu o cenho e parou bem onde estava. Ao perscrutar a expressão do macho, chegou a uma conclusão que o deixou ansioso: Blay estava escondendo alguma coisa. Difícil determinar como ele sabia disso, mas, pensando bem, depois de uma amizade desde a infância, você aprende a ler nas entrelinhas.
– Você está bem? – perguntou-lhe.
Blay indicou a direção da clínica.
– Sim. Claro. Ela está na sala de exames neste instante.
Certo, obviamente o assunto estava encerrado.
Reagindo, Qhuinn trotou pelo corredor e quase explodiu porta adentro. No último segundo, porém, um senso de decoro o impediu de fazer isso. Alguns exames em fêmeas grávidas envolviam lugares privados – e por mais que ele e Layla tivessem feito sexo, eles certamente não eram íntimos a esse ponto.
Por isso, bateu à porta.
– Layla? Você está aí?
Houve uma pausa e depois a doutora Jane abriu a porta.
– Olá, pode entrar. Estou contente que Blay o tenha encontrado.
O rosto da médica nada revelava – e isso o deixou psicótico. De modo geral, quando os médicos agiam daquele modo cortês e profissional, as notícias não eram boas.
Olhando além da fêmea de V., ele se concentrou em Layla, mas foi Blay quem ele segurou, agarrando-o pelo braço.
– Fique, se puder? – Qhuinn disse pelo canto da boca.
Blay pareceu surpreso, mas atendeu ao pedido dele, fechando a porta atrás de si após entrar.
– O que está aconteceu? – Qhuinn quis saber.
Consulta de rotina o seu rabo. Os olhos de Layla estavam arregalados e um pouco perturbados, as mãos irrequietas remexendo no cabelo longo.
– Houve uma mudança – disse a doutora Jane com hesitação.
Pausa.
Qhuinn quase gritou.
– Ok, preste atenção, se ninguém me disser que merda está acontecendo, vou perder a cabeça no meio desta sala...
– Estou grávida – Layla deixou escapar.
E como isso representava uma mudança?, ele se perguntou com a cabeça começando a zumbir.
– Isto é, o aborto parece ter parado – explicitou Jane. – E ela continua grávida.
Qhuinn piscou. Depois balançou a cabeça – mas não de um lado para o outro, mas sim como se alguém estivesse masturbando um globo de neve.
– Não entendi.
A doutora Jane se sentou numa banqueta de rodinhas, e abriu o prontuário no colo.
– Eu mesma fiz o exame de sangue. Há uma pequena alteração no equilíbrio dos hormônios gestacionais...
– Vou vomitar – Layla interrompeu. – Agora...
Todos se apressaram para a pobre fêmea, mas Blay foi o mais esperto. Ele pegou um cesto de lixo e foi isso o que a Escolhida usou.
Enquanto ela vomitava, Qhuinn amparou sua cabeça e se sentiu meio tonto.
– Ela não está bem – disse à médica.
Jane sustentou o olhar dele por sobre a cabeça de Layla.
– Essa é uma parte normal da gestação. Pelo visto, para as vampiras também...
– Mas ela está sangrando...
– Não está mais. E eu fiz um ultrassom. Posso ver o saco gestacional. Ela ainda está grávida...
– Ai, merda! – Blay exclamou.
Por uma fração de segundo, Qhuinn não conseguiu entender por que o cara estava praguejando. Mas logo percebeu que... hum, o teto mudara de lugar com a parede.
Não, espere.
Ele estava desmaiando.
Seu último pensamento consciente foi o de que foi muito bom Blay o amparar enquanto ele despencava como uma árvore cortada na floresta.
No contexto dos idiomas, existiam palavras muito mais importantes do que “estar”. Existiam palavras elegantes, palavras históricas, palavras que valiam a vida ou a morte. Havia trava-línguas com polissílabas que exigiam esforço para serem pronunciadas, e missões críticas essenciais que começavam e terminavam guerras... e mesmo poesias sem sentido que pareciam sinfonias ao saírem dos lábios.
De modo geral, “estar” não era usado por garotos crescidos. Na verdade, mal tinha uma definição e, no decorrer de sua vida, não passava de uma ponte, um conduíte de outras palavras mais importantes em qualquer sentença.
Havia, no entanto, um contexto em que tal palavrinha de cinco letras e de apenas duas sílabas era de arrasar quarteirão.
No que se referia ao amor.
A diferença de “amar” em comparação com “estar amando, estar apaixonado” era a uma freada ante o Grand Canyon. A cabeça de um alfinete em todo o Meio-Oeste. Uma expiração ante um furacão.
Agora entendo por que ele...
Enquanto Blay permanecia no chão da sala de exames com o corpo mole de Qhuinn em seu colo, ele não conseguia, nem que sua vida dependesse disso, lembrar-se o que Layla dissera em seguida. Teria sido “ama você”? Bem, nesse caso, sim, ele sabia que o cara o amava como um amigo há décadas. E isso não mudava nada.
Ou teria sido com o acréscimo do “estar”?
Nesse caso, ele estava meio que considerando imitar Qhuinn e dar um tempo no piso de ladrilhos.
– Como vai o meu outro paciente? – a doutora Jane perguntou enquanto Layla se largava de novo na maca.
– Respirando – respondeu Blay.
– Ele vai melhorar.
Era de se esperar, Blay pensou ao se concentrar no rosto de Qhuinn – como se aquelas feições conhecidas, mesmo ele estando apagado, pudessem lhe dar a resposta para sua pergunta de um ou outro modo.
A Escolhida não poderia ter dito “está apaixonado”.
Não podia ser isso. Ele simplesmente se recusava a deixar que duas sessões de sexo excelente reescrevessem as palavras de alguém.
– Tem certeza de que isso é normal? – ele ouviu Layla perguntar à médica.
– O vômito? De acordo com o que Ehlena me contou antes, por certo pode ser parte dos sintomas de uma gestação bem-sucedida. Na verdade, é um sinal claro de que as coisas estão progredindo bem. São os hormônios.
– Eu não tenho que voltar ao consultório de Havers, tenho?
– Bem, Ehlena está voltando da visita ao pai hoje à noite. Por isso, precisamos ver o quanto ela se sente à vontade tratando-a... e depois nós veremos em que ponto você está. Não vou mentir... considero isto um milagre.
– Concordo.
Enquanto as fêmeas conversavam, Blay manteve o olhar nas pálpebras fechadas de Qhuinn. Era um milagre, podem acreditar.
Como se estivesse programado, o cara recuperou os sentidos naquele instante, os cílios escuros se mexendo como se tentassem decidir se ele falava sério quanto a essa coisa de ficar consciente.
– Layla! – ele exclamou ao se erguer de pronto.
Blay se empurrou para trás, soltando-se dele. Sentindo-se um pouco idiota.
Ainda mais quando Qhuinn se pôs de pé e foi para perto da fêmea.
Blay ficou onde estava, recostando-se no armário debaixo da pia, com os joelhos erguidos, as mãos sobre as coxas. Mesmo que isso o estivesse dilacerando, ele não conseguiu deixar de olhar os dois juntos, a mão da adaga de Qhuinn impossivelmente gentil enquanto afastava os cabelos loiros de Layla do rosto.
Ele dizia algo a ela, algo suave e reconfortante.
Antes de Blay se dar conta, ele já estava no corredor, andando para algum lugar, qualquer lugar. Por mais difícil que fosse aceitar a compaixão de Qhuinn... era simplesmente impossível testemunhá-la sendo dada a outra pessoa – mesmo que essa pessoa fosse merecedora. A ideia de que Layla tivesse recebido em seu cio exatamente o que ele tivera nos dois últimos dias fazia seu peito doer, mas o que era pior? Ao que tudo levava a crer, o esforço físico com ela servira a um propósito biológico. Ela estava grávida – e, graças a Payne, ele tinha a sensação de que ela continuaria desse modo.
Apesar de tudo, ele fizera a coisa certa ao procurar a irmã de V. no dia anterior. Deduzindo que isso tivesse sido a causa da incrível reviravolta. Mas, ainda assim, e mesmo que não fizesse sentido, ele sentia como se...
– Você está bem?
Ele parou de súbito com o choque de ouvir a voz de Qhuinn. Pensara que o cara ficaria com Layla.
Preparando-se, enfiou as mãos nos bolsos e respirou fundo antes de se virar.
– Sim, estou bem. Só imaginei que vocês dois quisessem um pouco de privacidade.
– Obrigado por ir me amparar – ele ergueu as mãos. – Não sei o que aconteceu ali dentro.
– Alívio.
– Pode ser.
Houve um instante embaraçoso. Mas, pensando bem, eles eram especialistas nisso, não?
– Bem, vou voltar para a casa – Blay forçou um sorriso, na esperança de que o cara acreditasse. – É bom ter uma noite de folga.
– Ah, é. Saxton deve estar à sua espera.
Blay abriu a boca, mas se segurou antes que um “por quê?” escapasse dos seus lábios.
– É, ele está. Cuide de sua garota. Eu o vejo na Última Refeição, talvez.
Ao sair andando e entrar na recepção, ele sabia que estava sendo um covarde por se esconder atrás de uma relação inexistente. Mas, quando você se corta, você precisa de um Band-Aid.
Cristo, não era de se admirar que Saxton tivesse rompido com ele.
Que romântico...
CAPÍTULO 48
Enquanto Assail passava pelos enormes portões da propriedade na parte abastada de Caldwell, ele se sentia aborrecido. Irritado. E não só porque vinha se drogando com cocaína com regularidade sem se alimentar.
O chalé ficara à esquerda, e ele estacionou o Range Rover de frente, debaixo de uma das janelinhas alegres. Ele preferiria ter se desmaterializado até lá – tão menos complicado. Mas, depois de ter deixado os gêmeos numa boate gótica, o Iron Mask, ele se deparou com a realidade de que, caso não se alimentasse, não seria capaz de continuar em frente.
Ele odiava aquilo. Não que ele se importasse com o custo. O problema era que ele não se sentia atraído pela fêmea – e não apreciava as tentativas dela de modificar a situação.
Abrindo a porta, ele saiu, e o ar frio que o atingiu no rosto lhe deu um chacoalhão, fazendo-o perceber o quão lento estivera.
Naquele mesmo instante, um carro passou pela rua da frente, um tipo de sedã nacional.
E foi quando a portinhola do chalé se abriu.
As presas de Assail formigaram quando a fêmea na soleira foi percebida pelos seus sentidos. Vestida em uma roupa sensual preta, ela estava pronta para ele, o cheiro inebriante da sua excitação marcava o ar, embora não fosse isso o que provocou a sua luxúria. Era a veia dela, nada mais, nada menos...
Assail franziu o cenho e olhou para além do chalé, para a floresta que margeava a propriedade.
Em meio às arvores esqueléticas, as luzes traseiras do carro que acabara de passar ficaram vermelhas. Então, quem quer que estivesse ali, fez uma curva, formando um círculo com os faróis dianteiros – e depois eles se apagaram.
Imediatamente, Assail procurou a pistola.
– Entre. Não estamos sozinhos.
A fêmea guardou as boas-vindas e desapareceu dentro do chalé, fechando a porta com um baque.
Desmaterializar-se na floresta seria a melhor tática, mas claro, ele estava faminto demais para isso.
Abruptamente, o vento mudou de direção e veio a seu encontro, e suas narinas se dilataram.
Assail grunhiu baixinho – e não como um alerta. Mais como um tipo de cumprimento.
Como se um dia ele conseguisse se esquecer daquela combinação específica de feromônios.
Sua ladrazinha invertera as posições, fazendo com ele exatamente aquilo que ele fizera com ela na noite anterior. Há quanto tempo ela estava no seu rastro?, ele se perguntou com uma medida de respeito crescendo em seu peito ao mesmo tempo em que ficava frustrado.
Ele não gostou da ideia de que talvez ela o tivesse visto debaixo da ponte. Conhecendo-a, porém, não tinha como excluir essa possibilidade.
Inspirando profundamente, ele não percebeu nada de significativo. O que significava que ela estava sozinha.
Coletando informações? Para quem?
Assail virou-se de volta para o chalé e sorriu sombriamente. Sem dúvida, uma vez que ele entrasse, ela se aproximaria... e quem era ele para não lhe propiciar um espetáculo?
Ele bateu uma vez, e a fêmea abriu a porta novamente.
– Está tudo bem? – perguntou ela.
Seus olhos percorreram o rosto dela, demorando-se nos cabelos. Eram escuros. Espessos. Parecidos com os de sua ladrazinha.
– Tudo certo. Era somente um humano com problemas no carro.
– Então, não há nada com que se preocupar?
– Absolutamente nada.
Enquanto o alívio abrandava a expressão dela, ele fechava e trancava a porta.
– Estou tão contente que tenha vindo me procurar novamente – disse a fêmea, deixando as duas aberturas de renda do robe de cetim se afastarem.
Esta noite ela vestia uma camisola preta que elevava os seios e apertava a cintura a ponto de ele pensar que poderia envolvê-la com apenas uma mão. O cheiro dela era exagerado: excesso de creme para mãos, para o corpo, xampu, condicionador e perfume marcando seu corpo.
Ele bem que queria que ela não se desse a esse trabalho.
Movendo rapidamente os olhos, Assail verificou a posição das janelas. Naturalmente, nada havia mudado: havia duas estreitas em cada lado da lareira. Três peças de vidro sobre a pia. E o parapeito da bay window à esquerda sobre o qual havia um assento embutido com diversas almofadas e almofadinhas bordadas em ponto cruz.
Sua ladra escolheria a janela à direita da lareira. Ela ficava longe da iluminação da porta de entrada, e sob o abrigo da chaminé.
– Está pronto para mim? – a fêmea ronronou.
Assail enfiou a mão dentro da jaqueta. Os mil dólares em dinheiro vivo estavam dobrados uma vez, as dez notas de cem formando um livrinho fino.
Movendo-se sinuosamente, ele ficou de costas para a bay window e para a lareira. Por algum motivo, não queria que a sua ladra o visse fazendo o pagamento.
O resto do que estava para acontecer, todavia, ele bem queria que ela testemunhasse.
– Aqui está.
Quando a fêmea apanhou o dinheiro, ele desejou que ela não contasse. E ela não o fez.
– Obrigada – ela recuou e colocou as notas num pote de cerâmica vermelha. – Vamos?
– Sim. Vamos.
Assail se aproximou e assumiu o controle, segurando o rosto da fêmea entre as mãos, inclinando a cabeça dela para trás e beijando-a com avidez. Em resposta, ela gemeu, como se o avanço inesperado fosse algo que ela não só acolhia como não ousara esperar.
Ele ficou satisfeito que ela tivesse apreciado. Mas o prazer dela não era o que ele buscava.
Movendo-a, ele a levou até o sofá que estava na parede oposta do chalé, empurrando-a com o corpo, usando sua força para deitá-la com a cabeça na direção da lareira. Enquanto ela se reclinava, abriu os braços para as laterais, fazendo os seios subirem até brigarem com a barreira de cetim que os cobria.
Assail deitou-se por cima dela completamente vestido, ainda de casaco, o joelho separando os dela, uma das mãos descendo para subir a camisola...
– Não, não – disse ele quando ela tentou segurá-lo pelo pescoço. – Quero ver você.
Tolice. Ele queria que ela fosse vista pela janela.
Enquanto ela o obedecia prontamente, ele voltou a beijá-la e a afastar a longa saia do caminho – e no segundo que em que ela foi afastada, a fêmea abriu bem as pernas.
– Entre em mim – disse ela, arqueando-se debaixo dele.
Bem, aquilo não seria possível. Ele não estava excitado.
Mas ninguém precisava saber aquilo.
A fim de parecer fervoroso, ele tirou o casaco dos ombros, e com uma mordida leve das presas, rasgou as alças da camisola, expondo os seios da fêmea à luz da lareira, os mamilos instantaneamente enrijecendo como picos sobre a pele alva.
Assail fez uma pausa, como se embevecido pelo que via. Depois, esticou a língua e abaixou a cabeça.
No último instante, antes que começasse a lamber e a sugar, ele ergueu os olhos, concentrando-se na janela escura da direita, encontrando o olhar fixo da mulher que ele sabia que estava nas sombras, observando-o...
Um golpe de lascívia pura e simples atravessou seu corpo, tomando conta, substituindo seu juízo como motivador das suas ações. A fêmea debaixo dele deixou de ser uma de sua própria espécie que ele comprava por um tempo breve.
Ela se tornou a sua ladra.
E isso mudou tudo. Com um rompante, ele atacou a garganta da fêmea, tomando sua veia, sugando aquilo que ele tanto precisava...
E imaginando, o tempo inteiro, que a mulher humana estava debaixo dele.
Sola arfou...
E se afastou da janela do chalé.
Quando as costas bateram na lateral dura da chaminé de pedra, ela fechou os olhos, seu coração começou a bombear contras as costelas, os pulmões tragando o ar frio.
Atrás de suas pálpebras, tudo o que ela via eram os seios nus expostos diante dele, a cabeça escura descendo, a língua se projetando para fora da boca... e os olhos dele se erguendo para encará-la.
Oh, Jesus, como ele soubera que ela estava ali?
Ah, merda, ela nunca esqueceria a imagem da mulher estendida debaixo dele, o casaco deixado de lado, o corpo dele subindo para se encaixar entre aqueles quadris esbeltos. Ela conseguia imaginar o calor da lareira ao lado deles, e o calor ainda maior surgindo de dentro dele – a sensação da pele contra a pele, da promessa do êxtase.
Não olhe de novo, ela disse a si mesma. Ele sabe que você está aqui...
O grito agudo do orgasmo da mulher vibrou por todo o chalé, perturbando a aparência pacata do lugar.
Sola se inclinou sobre a janela novamente, espiando pelo vidro... mesmo sabendo que não deveria fazer isso.
Ele estava dentro da mulher, a parte baixa do corpo bombeando, o rosto aninhado no pescoço dela, os braços afastados para ancorar o peso da parte de cima do corpo.
Ele não olhou mais para cima. E continuou ocupado por um bom tempo.
Agora era a hora de recuar.
Além disso, será que ela precisava mesmo ver aquilo?
Com uma imprecação, Sola se afastou sorrateiramente dali, passando pelo gramado rasteiro, esquivando-se das árvores baixas sem folhas. Quando chegou ao carro alugado, entrou, trancou as portas e deu a partida.
Fechando os olhos uma vez mais, rememorou toda a cena: a sua aproximação do chalé, da janela, ficando nas sombras lançadas pela chaminé.
Ele do outro lado da sala, a mulher de frente para ele, o corpo gracioso coberto pelo cetim preto, o cabelo escuro que cobria as costas inteiras. Ele amparando o rosto dela e beijando-a, os ombros se curvando ao se inclinar para manter contato com uma expressão profundamente erótica...
E depois ele levou a mulher até o sofá.
Ainda que ficasse mortificada por admitir, Sola sentiu uma pontada de ciúme irracional. Mas isso não foi o pior: seu próprio corpo reagira, seu sexo florescendo entre as pernas como se a sua boca tivesse sido beijada, a sua cintura fosse aquela segurada por ele, seus seios comprimidos contra o peito dele. E essa reação só se intensificara quando ele posicionara a mulher no sofá, o rosto dele marcado por uma avidez sombria, os olhos cintilando como se debaixo dele houvesse uma refeição a ser degustada.
Observar era errado. Assistir era errado.
Mas mesmo a ameaça à sua segurança pessoal – e, discutivelmente, sua saúde mental – não bastaram para afastá-la daquele vidro. Ainda mais quando ele recuara para tirar o casaco dos ombros. Fora impossível não visualizá-lo nu, vendo o peito largo exposto na luz da lareira, imaginando como seu abdômen se curvaria sob a pele... E depois, pareceu que ele a tivesse mordido – mordido, pelo amor de Deus –, arrancando as alças finas do corpete da camisola.
E bem quando os malditos seios perfeitos da mulher ficaram expostos... ele teve que olhar para ela.
Sem nenhum tipo de aviso, aqueles olhos cintilantes e predatórios se elevaram e cravaram diretamente nela, um sorriso furtivo surgindo no canto da boca.
Como se o show fosse para ela.
– Merda. Merda.
Uma coisa estava clara: se o que ele quis foi lhe ensinar uma lição sobre espionagem, era difícil pensar num modo melhor – além de fazê-la comer a ponta do cano de uma .40.
Sola saiu do acostamento e tomou a estrada. Enquanto o Ford Taurus demorou dezesseis quilômetros para chegar ao limite de setenta quilômetros por hora, ela desejou estar em seu Audi: com o sangue ainda correndo rápido nas veias, ela precisava de uma forma exterior de expressar o rugido preso em seu corpo.
Algum tipo de vazão.
Como... sexo, por exemplo.
E não consigo mesma.
CAPÍTULO 49
No que se referia aos padrões dos Grandes Campos de Andirondack, a casa de Rehv tinha tudo: uma enorme mansão rústica ladeada por cedros e recoberta por varandas. Um sem-número de construções externas, inclusive chalés para hóspedes. Vista para o lago. Muitos quartos.
Depois que Trez e iAm se materializaram no jardim lateral, eles deram a volta pela neve até a entrada dos fundos pela cozinha. Mesmo no inverno, o lugar emanava boas vibrações, com aquele brilho cálido atravessando os vidros cortados em forma de diamante. Mas nem tudo era do Mundo do Faz de Conta: os abastados vitorianos que construíram aquele complexo como um escape ao calor e das cidades industrializadas durante os verões muito provavelmente não o equiparam com detectores de movimento a laser, travas de última geração nas portas e janelas, e não uma, mas várias placas-mães diferentes para controlar um sistema de alarme multiface e completamente integrado.
Uau.
A impressão digital de Trez no painel discretamente colocado à esquerda da porta permitiu a entrada ao interior da casa – para uma cozinha de tamanho industrial que estava guarnecida com equipamentos de aço inoxidável no mesmo nível dos do Sal’s.
Algo estava assando no forno imenso. Pelo cheiro, parecia pão.
– Estou com fome – observou Trez ao fechar a porta. O mecanismo de tranca fechou a porta por si só, mas ele verificou se ela estava trancada mesmo assim por força do hábito.
Ao longe, alguém passava o aspirador – provavelmente uma Escolhida. Desde que Phury assumira o posto de Primale e basicamente libertara o grupo enclausurado de fêmeas do Outro Lado, Rehv as deixava ficar nos Grandes Campos. Fazia sentido. Muita privacidade, especialmente fora da alta temporada, além de que o distanciamento com a cidade propiciava uma transição suave da uniformidade plácida do santuário para a natureza frenética, se é que Trez entendera corretamente, e por vezes traumática da vida na Terra.
Fazia tempo que ele não ia até a casa – não desde que as Escolhidas foram morar ali, para falar a verdade. Pensando bem, quando Rehv explodira o Zero Sum e pusera um fim ao seu papel de rei das drogas, aquela dívida entre eles perdera um pouco da sua força de retribuição.
Além disso, agora que o cara não tinha mais de fazer entregas de garotas e sexo para a princesa, não havia muitos motivos para ir para o norte.
Ao que tudo levava a crer, porém, aquilo mudara.
– Ei, Rehv, você está aí? – Trez chamou com a voz ecoando.
Por mais que seu estômago protestasse, ele e o irmão saíram para o átrio principal. Objetos vitorianos estavam por toda a parte, desde os tapetes orientais multicoloridos no chão até os bancos cobertos de tapeçaria, incluindo as cabeças de bisão, de cervo, de alce e de lince empalhadas e montadas ao redor da lareira.
– Rehv! – ele chamou novamente.
Caramba, aquele abajur de guaxinim sempre o aterrorizara. Assim como a coruja empalhada com óculos de sol.
– Ele já vai descer.
Trez se virou para a voz feminina.
E, naquele instante, o curso de sua vida mudava para sempre.
A escada que vinha do segundo andar era reta, os degraus baixos e a grade simples emergindo de cima sem nenhum artifício arquitetônico.
A fêmea em seu manto branco parada à base a transformava na escadaria do paraíso. Ela era alta e magra, mas as curvas estavam presentes nos lugares certos; o vestido solto não conseguia esconder o busto alto e a graciosidade das curvas dos quadris. A pele era lisa e da cor de café com leite, o cabelo escuro estava amarrado num coque no alto da cabeça. Os olhos eram claros emoldurados por cílios espessos. Os lábios eram cheios e rosados.
Ele quis beijá-los.
Especialmente quando eles se moveram, enunciando alguma coisa que ela dizia com precisão intoxicante...
O cotovelo pontudo de iAm o atingiu nas costelas e o fez dar um pulo.
– Ai! Mas que mer... digo, que droga. Cacete, quero dizer, caramba.
Belo modo de parecer calmo e controlado, cretino.
– Ela perguntou se queremos comer – iAm murmurou. – Eu agradeci, mas recusei. Agora é a sua vez.
Ah, como ele queria comer uma coisa... Queria cair de joelhos aos pés dela e se enfiar debaixo da...
Trez fechou os olhos e se sentiu como um absoluto idiota.
– Não, estou bem.
– Pensei que você tivesse dito que estava com fome.
Trez arregalou os olhos e encarou o irmão. O cara estava tentando fazer com que ele fizesse papel de idiota?
O brilho no olhar de iAm sugeria que sim.
– Não. Estou bem – ele resmungou. Entrelinhas: Não force a barra, babaca.
– Eu estava indo verificar o meu pão.
Os olhos de Trez se fecharam novamente, a voz da Escolhida tilintando em seus ouvidos, o som tanto elevando a sua pressão sanguínea quanto o acalmando ao mesmo tempo.
– Sabe – ele se ouviu dizer –, talvez eu vá dar uma olhada para ver se arranjo alguma coisa para comer.
Ela sorriu para ele.
– Siga-me. Estou certa de que posso encontrar algo do seu gosto.
Enquanto ela seguia para a porta pela qual eles tinham acabado de sair, Trez piscou como o idiota que era.
Fazia muito, muito tempo desde que uma fêmea lhe dizia algo sem um sentido duplo... mas até onde ele podia afirmar, aquelas palavras, que discutivelmente podiam ser consideradas uma cantada – pelo menos para o seu filtro de luxúria – não carregavam nenhuma promessa de um boquete ou de sexo carnal. Nem mesmo de uma simples atração.
Naturalmente, isso fez com que ele a desejasse ainda mais.
Seus pés partiram naquela direção, o corpo seguindo como um cão seguiria seu dono, sem um segundo pensamento a não ser ir atrás do caminho escolhido por ela para ele...
iAm o agarrou pelo braço e o puxou de volta.
– Nem pense nisso.
O primeiro impulso de Trez foi se soltar, mesmo se isso significasse deixar o braço para trás nas mãos do irmão.
– Não sei do que está falando...
– Não me obrigue a segurar a sua ereção para provar o que estou dizendo – iAm sibilou.
Entorpecido, Trez olhou para baixo. Ótimo. Olha ali.
– Eu não vou... – fodê-la era o que lhe vinha à mente, mas, por Deus, ele não podia usar essa palavra ao redor daquela fêmea, mesmo que hipoteticamente. – Sabe, fazer nada.
– Você espera mesmo que eu acredite nisso?
Os olhos de Trez partiram para a porta pela qual ela desaparecera. Merda. Ele não tinha credibilidade nenhuma no quesito abstinência.
– Ela não está disponível para você, veja se me entende – iAm disse, rangendo os dentes. – Isso não seria justo para alguém como ela; mais especificamente, se você fizer isso, Phury vai atrás de você com uma adaga negra. A dele, não a sua.
Por uma fração de segundo, Trez ficou indignado com isso – não porque seu lado feminista interior se opusesse ao fato de as fêmeas serem tratadas como propriedade, ainda que isso fosse errado. Não, era porque...
Minha.
De algum lugar em seu cerne, Trez arrancou seu subconsciente do precipício no qual, inesperadamente, ele se via caindo.
O rei sympatho descia pela mesma escada que a Escolhida utilizara, a bengala equilibrando-o, o casaco de marta preto mantendo seu corpo aquecido.
Enquanto iAm dizia algo e Rehv respondia, Trez voltou a olhar para a porta da cozinha. Ah, o que será que ela estava fazendo ali... Puxa... Provavelmente se inclinando para espiar o pão...
Um grunhido sutil emanou de sua garganta.
– O que disse? – Rehv perguntou com o olhar se estreitando.
Outra cotovela em suas costelas trouxe Trez de volta à realidade.
– Desculpe. Indigestão. Como vai?
Rehv ergueu uma sobrancelha, depois deu de ombros.
– Preciso da ajuda de vocês.
– Pode falar – respondeu Trez com sinceridade.
– Haverá uma reunião do Conselho amanhã à noite. Wrath estará presente. A Irmandade lhe dará proteção, mas quero que vocês dois também estejam presentes.
Trez se retraiu. O Conselho se reunia com regularidade antes da onda de ataques de alguns anos atrás, e Rehv jamais precisou de reforços.
– O que está acontecendo?
– Wrath foi alvejado no outono passado.
Mas. Que. Merda.
Trez cerrou o maxilar.
– Quem foi o responsável? – afinal, ele gostava do Rei.
– O Bando de Bastardos. Vocês não o conhecem, mas podem encontrá-los amanhã à noite... se concordarem em ir.
– Claro que iremos – quando iAm assentiu em concordância, Trez cruzou os braços sobre o peito. – Onde?
– Estou organizando tudo numa propriedade em Caldwell à meia-noite. É uma das poucas que não foi infiltrada pela Sociedade Redutora... De qualquer forma, a família foi quase que completamente dizimada, pois visitavam um parente na cidade quando o ataque ocorreu – Rehv prosseguiu e se sentou no sofá de tapeçaria, girando a bengala no chão entre as pernas. – Deixe-me lhes dizer como vai ser. Wrath agora está completamente cego, mas a glymera não sabe disso. Quero que ele esteja sentado na sala principal quando todos aqueles aristocratas chegarem a fim de que não o vejam se apoiando em ninguém para encontrar seu posto. Então...
Enquanto Rehv continuava a explicar o plano, Trez se acomodou diante da lareira e assentiu nos momentos certos.
Em sua mente, porém, ele estava na cozinha, com aquela fêmea...
Qual seria o nome dela?
E mais importante do que isso...
Quando voltaria a vê-la?
CAPÍTULO 50
Lá embaixo, na sala de exames da clínica, Qhuinn se sentia como se estivesse flutuando bem alto. E não do mesmo modo como se sentiu antes do impacto do maldito Cessna com um Irmão ferido nos fundos.
– Desculpe, pode repetir?
A doutora Jane sorriu ao trazer a mesinha móvel para junto da cama. De modo vago, o que havia em cima ficou registrado, mas ele estava mais concentrado no que poderia sair da boca da médica.
– Vocês ainda estão grávidos. Os níveis de hormônios dela estão se duplicando exatamente como o esperado, a pressão está perfeita, os batimentos cardíacos também. E nada mais de sangramentos, certo?
Quando a médica olhou para Layla, a Escolhida assentiu com a cabeça, sua expressão tão assustada quanto ele por certo se sentia.
– Nenhum.
Qhuinn deu alguns passos, passou a mão pelos cabelos, o cérebro dando um nó.
– Não entendo isso... Quero dizer, é o que eu quero... o que nós queremos... mas não entendo como ela...
Depois de descer de montanha-russa para o inferno, era completamente inesperado chegar a uma elevação súbita de volta à Terra.
A doutora Jane apenas balançou a cabeça.
– Isso provavelmente não será de nenhuma ajuda, mas Ehlena também nunca viu nada parecido. Portanto, entendo a confusão de vocês, e, mais do que isso, entendo mais do que podem imaginar como a esperança pode ser traiçoeira. É difícil se entregar ao otimismo depois do que vocês passaram.
Caramba, a shellan de V. não era nenhuma idiota.
Qhuinn se concentrou em Layla. A Escolhida estava vestindo um robe branco, não do tipo que ela usava como membro da seita secreta das fêmeas da Virgem Escriba. Era mais um roupão de todo dia e, por baixo, uma camisola hospitalar com coraçõezinhos rosa e vermelhos sobre um fundo branco. E aquela mesa de rodinhas? Ali estava um pacote de bolachas de água e sal e seis latas de refrigerante.
Que espécie de remédios de balcão de farmácia, hein?
A doutora Jane abriu o pacote.
– Sei que a última coisa em que está pensando é comida – ela estendeu um dos quadrados salgados. – Mas se comer isto e tomar um pouco de refrigerante, talvez as coisas se acomodem melhor por aí.
E sabe que adiantou? Layla acabou comendo metade do pacote e tomou duas latinhas.
– Ajuda mesmo, hein? – Qhuinn murmurou quando a Escolhida se recostou com um suspiro de alívio.
– Você não faz ideia – Layla pousou a mão no ventre. – O que for preciso, eu faço, eu como, eu bebo.
– A náusea é tão ruim assim?
– Não se trata de mim. Não me importo se vomitar por dezoito meses, contanto que o bebê esteja bem. Só temo que se eu vomitar, eu possa... perder... sabe?
Ok, quem disse que as fêmeas eram o sexo frágil não sabia o que estava falando.
Ele olhou para a doutora Jane.
– E o que fazemos agora?
A médica deu de ombros.
– Meu conselho? Confie nos sintomas e nos resultados dos testes, ou vão acabar enlouquecendo. O corpo de Layla está, como sempre esteve, no controle disso tudo. Se neste instante não há nenhum indício de um aborto, mas, na verdade, só motivos para acreditar que a gestação se concluirá com um resultado positivo? Respire fundo e siga em frente, noite após noite. Se ficarem pensando muito no futuro ou no que aconteceu nos últimos dias? Não vão conseguir chegar ao fim disto inteiros.
Verdade, Qhuinn pensou.
O telefone da médica tocou.
– Espere um segundo... Puxa... Tenho que ir dar uma olhada naquele doggen que cortou a mão ontem à noite. Layla, no que me diz respeito, não há motivos médicos para que você fique aqui. Contudo, não quero que saia do complexo nas próximas noites. Vamos dar tempo ao tempo, ok?
– Sim, claro.
A doutora Jane saiu pouco depois, e Qhuinn se sentiu perdido. Ele queria ajudar Layla a voltar para casa, mas ela não estava aleijada, pelo amor de Deus. Ainda assim, sentia vontade de carregá-la pelo resto da bendita gestação.
Ele se recostou no armário de aço inoxidável.
– Eu me pego querendo perguntar como você está a cada dois segundos.
Layla deu uma risada de leve.
– Então somos dois.
– Quer voltar para casa?
– Sabe... não quero, não. Eu me sinto... – ela olhou ao redor – mais segura aqui, para ser bem franca.
– Faz sentido para mim. Precisa de alguma coisa?
Ela indicou a bandeja com itens contra enjoo.
– Contanto que eu tenha isto, estarei bem. E você deve se sentir livre para sair e lutar.
Qhuinn franziu o cenho.
– Pensei em ficar...
– E fazer o quê? Veja bem, não o estou expulsando, mas tenho a sensação de que só vou ficar aqui de molho sem fazer nada. Se alguma coisa acontecer, eu ligo e você pode voltar direto para casa.
Qhuinn pensou para onde a Irmandade e os lutadores se dirigiriam aquela noite: a reunião do Conselho.
Se fosse apenas uma noite normal no campo de batalha, ele provavelmente ficaria ali. Mas com Wrath exposto ao mundo, encontrando-se com aqueles idiotas da glymera?
– Ok – disse devagar. – Vou estar sempre com o telefone e deixarei claro para os outros que se você telefonar, sairei de lá.
Layla tomou um gole de refrigerante e depois ficou olhando para o copo, como se estivesse observando as bolhas emergindo ao redor dos cubos de gelo.
Ele pensou na noite em que estiveram no consultório de Havers – descontrolados, aterrorizados, pesarosos.
Ainda podiam voltar a se sentir assim, ele lembrou. Era cedo demais para se apegar.
E mesmo assim ele não tinha como evitar. Parado no meio da sala coberta de azulejos, com o cheiro de desinfetante Lysol no nariz e a beirada da bancada cutucando-o nas nádegas... ele percebeu que naquele instante começava a amar seu filho.
Ali, naquele momento.
Assim como um macho vinculado a uma fêmea, um pai também se sentia unido ao filho – e, sendo assim, seu coração se abriu e recebeu tudo aquilo de braços abertos: o comprometimento que acompanhava a tentativa de ter um filho, o terror de perdê-lo que nunca se dissiparia, a alegria de existir algo seu na face da Terra depois que você se fosse, a impaciência por conhecê-lo pessoalmente, o desejo desesperado de segurá-lo em seus braços e olhar em seus olhos e lhe dar todo o seu amor.
– Tudo bem se... se eu tocar na sua barriga? – ele perguntou baixinho.
– Claro! Você não tem que pedir – Layla se recostou com um sorriso. – O que está aqui dentro é metade seu, sabia?
Qhuinn esfregou as mãos, nervoso, ao se aproximar da mesa. Obviamente ele tocara em Layla durante o cio e, depois, de maneira obsequiosa quando a situação se fez necessária.
Ele jamais pensara em tocar em seu bebê.
Qhuinn observou de longe sua mão de adaga se esticar. Jesus, as pontas dos dedos estavam trêmulas.
Mas se estabilizaram no momento em que fizeram contato.
– Estou bem aqui – disse ele. – Papai está aqui. Não vou a parte alguma. Vou só esperar até que você esteja pronto para vir ao mundo, e depois a sua mãe e eu vamos cuidar de você. Por isso, aguente firme, estamos combinados? Faça o que for preciso aí, e nós esperaremos o tempo que for preciso.
Com a mão livre, segurou a de Layla e a colocou sobre a sua.
– A sua família está bem aqui. Esperando por você... e nós te amamos.
Era uma tolice falar com o que, sem dúvida, era apenas um montinho de células. Mas ele não teve como evitar. As palavras, as ações... eram, de súbito, todas suas, e mesmo assim vinham de um lugar que lhe era desconhecido.
Contudo, parecia certo.
Parecia... com o que um pai deveria fazer.
Mão esquerda, .40. Confere.
Direita, .40. Confere.
Munição extra no coldre sobre o peito. Confere.
Adagas um e dois no coldre do peito. Confere.
Jaqueta de couro...
Uma batida na porta do quarto de Blay e ele se inclinou para fora do closet.
– Pode entrar.
Quando Saxton entrou, ele ajeitou a jaqueta nos ombros e se virou.
– Oi. Tudo bem?
Alguma coisa estava acontecendo.
Os olhos do macho deram um giro de 360 graus no “guarda-roupa de trabalho” de Blay, como o chamavam. O desconforto fez com que as sobrancelhas de Saxton se unissem no alto; pensando bem, ele nunca se sentira completamente à vontade com armas.
– Vai para o campo de batalha, parece-me... – o macho murmurou.
– Na verdade, para uma reunião do Conselho.
– Não sabia que isso requeria tantas armas como acessórios.
– Nova era.
– Sim, de fato.
Uma pausa longa.
– Como você está?
Os olhos de Saxton percorreram o quarto.
– Eu queria lhe contar pessoalmente.
Ah, droga. E agora, o que seria?
Blay engoliu em seco.
– O quê?
– Vou sair da casa por um tempo... em férias, na verdade – ele mostrou a palma da mão para deter qualquer discussão. – Não, não é algo permanente. Já organizei tudo com Wrath, e não há nada que eu precise fazer nos próximos dias. Naturalmente, se ele precisar, volto imediatamente. Vou ficar com um velho amigo. Preciso mesmo de um pouco de descanso e relaxamento... e, antes que se preocupe, juro que vou voltar, e isto, honestamente, não tem nada a ver com a gente. Faz meses que trabalho sem folga e só quero ficar livre de compromissos, isso faz sentido?
Blay respirou fundo.
– Sim, faz. Onde você... – ele se deteve ao se lembrar de que aquilo não era mais da sua conta. – Se precisar de alguma coisa, é só avisar, certo?
– Prometo.
Num impulso, Blay se aproximou e passou os braços ao redor do ex-amante, a conexão platônica tão natural quanto a antiga apaixonada o fora. Abraçado ao macho, virou o rosto para dentro.
– Obrigado – disse Blay. – Por vir me contar...
Naquele instante, alguém passou no corredor, as passadas hesitando.
Era Qhuinn; Blay soube pelo cheiro antes mesmo de a figura alta e imponente ser registrada visualmente. E na breve hesitação antes de o cara continuar a andar, seus olhos se encontraram por sobre os ombros de Saxton.
O rosto de Qhuinn se fechou numa máscara instantaneamente, as feições congelando, não revelando nada.
E logo o lutador se foi, suas pernas longas afastando-o do batente da porta.
Blay deu um passo para trás e se forçou a se concentrar na despedida.
– Quando vai voltar?
– Em alguns dias, no máximo uma semana.
– Ok.
Saxton olhou de relance pelo quarto novamente, e quando o fez, ficou claro que ele estava se lembrando.
– Fique bem e se cuide. Não tente bancar o herói.
O primeiro pensamento de Blay foi... bem, já que Qhuinn normalmente era o primeiro a fazer isso, era bem improvável que ele tivesse de vestir sua roupa de Super-Homem.
– Prometo.
Quando Saxton saiu, Blay ficou olhando para o vazio. Não enxergou o que havia diante dele, nem se lembrou do que Saxton lhe dissera. Em vez disso, sua mente foi para o quarto ao lado, para Qhuinn e para as coisas de Qhuinn... e para as lembranças daquela sua sessão com Qhuinn.
Merda.
Olhando para o relógio, ele colocou o celular no bolso da jaqueta e saiu. Ao se apressar pela escada, as vozes do vestíbulo ecoaram, num sinal de que a Irmandade já se reunira e estava esperando para o sinal de partida.
Como esperado, todos estavam lá. Z. e Phury. V. e Butch. Rhage, Tohr e John Matthew.
Enquanto descia, viu-se desejando que Qhuinn os acompanhasse, mas, certamente, o macho ficaria em casa, devido à situação de Layla.
Onde estava Payne?, ele se perguntou ao parar ao lado de John Matthew.
Tohr acenou na direção de Blay.
– Ok, só estamos esperando mais um e, em seguida, podemos nos encaminhar. A primeira leva vai até o local do encontro. Quando o “ok” for dado, eu me desmaterializarei com Wrath para a casa com o apoio e...
Lassiter derrapou na porta da sala de bilhar, o anjo caído brilhando desde os cabelos loiros e negros e olhos brancos até os coturnos. Pensando bem, talvez a iluminação não fosse de sua natureza, mas sim de todo aquele ouro que ele insistia em usar.
Ele parecia uma árvore de joias viva.
– Estou aqui. Onde está o meu chapéu de motorista?
– Tome, use o meu – ofereceu Butch, mostrando e lançando um boné com um B. Sox bordado. – Isso vai ajudar com esses seus cabelos.
O anjo pegou o objeto no ar e olhou fixamente para o S vermelho.
– Desculpe, mas não posso.
– Não me diga que é fã dos Yankees? – V. disse de modo arrastado. – Terei que matar você e, francamente, hoje precisamos de todos os reforços de que dispomos.
Lassiter devolveu o boné. Assobiou. Olhou de lado parecendo casual.
– Está falando a verdade? – disse Butch. Como se o cara tivesse se voluntariado a uma lobotomia. Ou a amputação de um membro. Ou a uma pedicure.
– Nem fodendo – ecoou V. – Quando e onde você se tornou amigo do inimigo...
O anjo ergueu as mãos.
– Não é culpa minha se vocês não são de nada...
Tohr teve, de verdade, de se colocar diante de Lassiter, como se estivesse preocupado que algo mais do que simples insultos verbais pudessem acontecer. E o triste era que ele tinha razão em se preocupar. Com exceção de suas shellans, Butch e V. amavam os Sox acima de qualquer outra coisa... inclusive a sanidade.
– Ok, ok – interveio Tohr. – Temos coisas mais importantes com que nos preocupar...
– Uma hora ele vai ter que dormir – Butch murmurou para seu colega.
– Isso aí, olha por onde anda, anjo – V. zombou. – Não gostamos do seu tipo.
Lassiter deu de ombros, como se os Irmãos não passassem de cachorrinhos ganindo ao redor dos seus calcanhares.
– Tem alguém falando comigo? Ou será apenas o som dos perdedores...
Muita gritaria àquela altura.
– Duas palavras, queridos – Lassiter espicaçou. – Johnny. Damon. Ah, espere, Kevin. Youkilis. Ou Wade. Boggs. Roger. Clemens. Será que só a comida é ruim em Boston? Ou também o jogo?
Butch avançou nessa hora, obviamente preparado para acender o cara como a uma árvore de Natal...
– Que merda está acontecendo aqui?!
A voz gritando do alto da escada abafou a disputa Sox versus Yankees.
Enquanto Tohr afastava o tira, todos acompanharam com os olhos a descida do Rei com sua rainha. A presença de Wrath fez com que todos ficassem sérios, profissionais. Até mesmo Lassiter.
Bem, exceto Butch. Mas, pensando bem, ele se mostrava em “alerta máximo”, como ele mesmo dizia, nas últimas 24 horas e tinha bons motivos para estar rabugento: sua shellan participaria da reunião do Conselho. O que, de acordo com o modo de pensar do Irmão, era como ter dois Wraths ali. A questão era que Marissa era a mais velha de sua linhagem, e como Rehv exigia quorum completo, ela tinha de estar presente.
Pobre desgraçado.
Na calmaria que se seguiu, a adaga de Blay começou a formigar, e ele sentiu uma necessidade quase irresistível de pousar a mão em uma arma. Tudo o que ele conseguia pensar era que aquilo era quase idêntico ao prelúdio ao atentado contra Wrath no outono anterior – naquela noite, eles todos se reuniram ali, e Wrath descera com Beth... e uma bala acabara sendo disparada por um rifle, terminando sua trajetória na garganta do Rei.
Aparentemente, ele não era o único a pensar naquilo. Um determinado número de mãos partiu para os coldres em alerta.
– Ah, que bom, aqui está você – disse Tohr.
Blay se voltou com um franzido e teve que engolir a sua reação. Não era Payne que se juntava a eles; mas Qhuinn. E, caramba, o macho parecia mais do que pronto a dar umas pancadas por aí, com os olhos sérios, o corpo tenso como a corda de um arco em seu couro negro.
Por um instante, uma fissura de percepção pura e sexual atravessou Blay.
A ponto de uma fantasia totalmente inapropriada lhe ocorrer: ou seja, ele e Qhuinn se enfiando no depósito para uma rapidinha de roupa e tudo.
Com um gemido, ele voltou a se concentrar no Rei. O que era o mais apropriado. O importante era Wrath, e não a sua maldita vida amorosa...
Uma sensação de desconforto substituiu o tesão.
Será que ele e Qhuinn voltariam a se encontrar algum dia?
Deus, que pensamento estranho. O sexo não era uma boa ideia emocionalmente. De fato, era uma ideia extremamente ruim.
Mas ele queria mais. E que Deus o ajudasse.
– Ok, prontos – anunciou Tohr. – Todos sabem para onde vamos?
Foi um alívio desconcertante ter a natureza séria da missão diante dele para clarear seus pensamentos de tudo que não fosse o comprometimento em manter a vida de Wrath a salvo... mesmo que à custa da sua.
Só que isso era melhor do que se preocupar com a sua situação com Qhuinn.
Não havia dúvidas.
CAPÍTULO 51
Qhuinn se materializou num terraço coberto de neve, e quando todos da Irmandade, exceto Butch, materializaram-se ao seu lado, ele não se surpreendeu com toda aquela pompa. A propriedade em que o Conselho se reuniria estava dentro dos padrões da glymera: um enorme terreno que fora limpo e ajardinado. Um pequeno chalé próximo à entrada que mais parecia pertencer a um cartão postal de Cotswalds. Uma enorme mansão que, neste caso, era feita de pedras com cornijas de dentículos, venezianas lustrosas e telhado de ardósia.
– Vamos em frente – disse V., seguindo para uma porta lateral.
No instante em que ele bateu, a porta se abriu, como se, junto a todo o resto, aquilo tivesse sido pré-arranjado. Mas, hum... aquela era a anfitriã? A fêmea parada na entrada trajava um vestido longo com decote até o umbigo, e ela tinha uma gargantilha de diamantes do tamanho da coleira de um Doberman. O perfume era tão intenso que foi como um golpe nas narinas – apesar de ele ainda estar do lado de fora.
– Estou pronta para vocês – disse ela num tom baixo e intimista.
Qhuinn franziu o cenho, pensando que quem quer que fosse o designer fazia a moça ali parecer uma prostituta. Mas isso não era problema seu.
Enquanto ele caminhava em fila atrás dos outros, o cômodo em que entraram parecia um tipo de conservatório, os vasos imensos e o enorme piano de cauda sugeriam que muitas noites com convidados começavam com um cantor de ópera berrando no canto.
Credo.
– Por aqui – instruiu a fêmea com um floreio de uma mão que reluzia.
Em seu rastro, aquele perfume – talvez fossem sprays de diversas fontes, como camadas de todo tipo de tranqueira? – quase coloria o ar atrás dela, e os quadris trabalhavam duplamente a cada passada, como se ela tivesse esperança de que eles olhassem para o seu traseiro, desejando ter um pedaço daquilo.
Nada disso. Assim como os outros, ele olhava cada canto e refúgio, pronto para atirar e depois fazer perguntas para o corpo estirado no chão.
Só foi quando chegaram ao átrio principal, com todas as pinturas a óleo iluminadas pelo teto, e seus tapetes orientais escuros e...
Puta merda, aquele espelho era exatamente igual ao que estivera pendurado na casa dos seus pais. Na mesma posição, do teto ao chão, a mesma moldura rebuscada em ouro.
Sim, aquilo lhe dava arrepios. Dos grandes.
A casa inteira o lembrava da mansão em que ele crescera, tudo em seu devido lugar, a decoração muito longe da classe média, mas nem um pouco afetada ao estilo de Trump. Não, aquela porcaria toda era uma sutil mistura da fortuna antiga com o senso clássico de estilo que só se tinha com o nascimento, não era algo ensinado.
Seus olhos procuraram Blay.
O cara estava fazendo seu trabalho, sério, verificando o lugar.
O pai e a mãe de Blay não eram ricos daquele modo. Mas a casa deles sempre fora mais confortável de tantas maneiras. Mais quente – e isso não tinha nada a ver com o sistema de aquecimento central.
Como estariam os pais de Blay?, ele se perguntou abruptamente. Passara quase mais tempo debaixo do teto deles, em vez de sob o seu. A última vez em que os vira... puxa, fazia tanto tempo. Talvez na noite dos ataques, quando o pai de Blay passou de senhor Contador de Terno para um assassino impiedoso. Depois daquilo, o casal se mudara para a casa segura, e, em seguida, ele e Blay tinham se afastado.
Desejou que eles estivessem bem...
A imagem de Blay e Saxton de pé, peito contra peito, quadril contra quadril no quarto de Blay invadiu seu cérebro.
Puta que... o pariu... como aquilo doeu.
Ah, cacete, o carma era bom em seu trabalho...
Voltando à realidade, ele seguiu as pélvis móveis e a Irmandade até a sala de jantar gigante que fora arranjada segundo as especificações de Tohr: todas as cortinas foram puxadas ante as janelas que davam para o jardim dos fundos, e a porta em vaivém que ele deduzia dar para a cozinha fora obstruída por um aparador antigo e pesado. A mesa que devia pertencer ao centro da sala fora retirada, e 25 cadeiras de mogno combinando com assento em seda vermelha estavam perfiladas diante da lareira.
Wrath ficaria de frente à cornija da lareira para fazer seu discurso, e Qhuinn foi até lá para verificar se a chaminé estava fechada. Estava.
Em ambos os lados da lareira, havia duas portas que davam para uma antiga sala de recepção. Ele, John Matthew e Rhage vasculharam a sala, depois a fecharam, em seguida ele se postou diante da entrada à esquerda, com John à direita.
– Está tudo do seu agrado? – perguntou a fêmea.
Rehv foi até a lareira e se virou de frente para as cadeiras vazias.
– Onde está o seu hellren?
– No andar de cima.
– Traga-o para cá. Agora. De outro modo, se ele andar pela casa, é possível que acabe com um tiro no peito.
Os olhos da fêmea se arregalaram, e dessa vez, quando ela andou, não houve exagero nos quadris, nem o “olhem para mim” com uma jogada de cabelos por cima do ombro. Obviamente a mensagem de que não estavam para brincadeira fora recebida, e ela queria que, quem quer que fosse seu parceiro, permanecesse vivo naquela noite.
Na espera que se seguiu, Qhuinn manteve a arma empunhada, os olhos na sala, os ouvidos aguçados para o caso de alguma coisa, qualquer coisa parecer estranha.
Nada.
O que sugeria que seus anfitriões tinham seguido as ordens...
Uma sensação de formigamento estranha subiu pela sua espinha, fazendo-o franzir o cenho e ficar absolutamente alerta. Do outro lado da lareira, John pareceu captar o mesmo sinal, levantando a arma e estreitando o olhar.
Em seguida, uma névoa fria atingiu os tornozelos de Qhuinn.
– Pedi que dois convidados especiais se juntassem a nós – anunciou Rehv.
Nesse instante, duas colunas de fumaça subiram do chão, as moléculas dispersas voltando às formas... que Qhuinn reconheceu instantaneamente.
Ainda bem.
Com Payne fora de combate por sabe-se lá qual motivo, ele se sentira como se estivessem com pouca retaguarda, mesmo reconhecendo toda a habilidade da Irmandade. No entanto, quando iAm e Trez surgiram, ele suspirou de alívio.
Aquele sim era um par de assassinos impiedosos, do tipo que você não gostaria de ter do lado oposto brigando com você. A boa notícia era que fazia tempo que Rehv se aliara aos Sombras, e a ligação de Rehv com a Irmandade e o Rei significava que os irmãos obviamente estavam dispostos a ajudar na retaguarda.
Qhuinn deu um passo à frente para cumprimentá-los, como os outros, juntando as palmas, uma puxada rápida, um tapinha nas costas.
– Ei, cara...
– Como vai?
– Tudo bom?
Depois que todos os ois e olás foram distribuídos, Trez olhou ao redor.
– Certo, então vamos ficar fora de vista a menos que vocês precisem de nós. Mas fiquem tranquilos, estamos aqui.
Depois de uma rodada de agradecimentos da parte dos Irmãos, Rehv trocou algumas palavras em particular com os Sombras... e depois os dois sumiram, desaparecendo de sua forma física, descendo pelas tábuas do piso; a brisa gélida era apenas uma garantia de segurança.
Bem na hora. Menos de um minuto depois, a anfitriã voltou com um ancião pequeno ao seu lado. À medida que os vampiros envelheciam, com um rápido declínio de sua força física mais para o fim da vida, Qhuinn estimou que restava àquele cara mais uns cinco anos. Uns dez, no máximo.
Fizeram-se as apresentações, mas Qhuinn não se importava com aquela baboseira. Estava mais preocupado em saber se o resto da casa estava desocupado.
– Há algum doggen aqui? – Rehv perguntou à fêmea enquanto ela acomodava o esquisitão numa das cadeiras.
– Como foi pedido, todos foram dispensados a partir de agora.
V. acenou para Phury e Z.
– Nós três vamos vasculhar a propriedade para ver se está tudo bem.
Mesmo que Blay confiasse em si, na Irmandade, em John Matthew e em Qhuinn, ele se sentiu melhor sabendo que os Sombras estavam por perto. Trez e iAm não só eram excepcionais lutadores e inerentemente perigosos para qualquer um a quem declarassem guerra; eles tinham uma vantagem admirável sobre a Irmandade.
Invisibilidade.
Ele não sabia se eles podiam, de fato, lutar dessa maneira, mas isso pouco importava. Qualquer um que ali entrasse – como digamos, o maldito Bando de Bastardos – julgaria a situação apenas contando com os presentes visíveis no recinto.
Não com aqueles dois irmãos.
Portanto, isso era muito bom.
Naquele instante, V. voltou com Phury e Z. de sua patrulha – e Butch estava com eles, indicando que o Irmão acabara de chegar de carro.
– Tudo certo.
Houve uma breve pausa. Em, seguida, como pré-arranjado, Tohr foi para a porta da frente e abriu caminho para Wrath.
Hora do espetáculo, pensou Blay, com os olhos disparando na direção de Qhuinn antes de voltar a se concentrar.
Tohr e o Rei entraram na sala de jantar lado a lado, as cabeças unidas como se estivessem envolvidos numa conversa séria sobre algo importante, a mão do Irmão sobre o antebraço de Wrath como se o cara estivesse tentando enfatizar algum ponto importante.
Tudo aquilo, porém, não passava de uma encenação para os anfitriões.
Tohr, na verdade, estava conduzindo Wrath pelo braço, levando-o até a lareira, posicionando-o bem no meio da cornija. E a conversa? Era sobre onde os dois aristocratas estavam sentados, onde as cadeiras estavam perfiladas, onde os Irmãos e lutadores estavam a postos – bem como os dois Sombras.
Enquanto assentia, o Rei, deliberadamente, movia a cabeça de um lado para o outro como se seus olhos estivessem captando os detalhes da sala. E, depois, ele cumprimentou os anfitriões quando estes foram levados à frente para beijar o imenso anel de diamante negro.
Depois disso, la crème de la crème da glymera começou a chegar.
De seu posto designado no fundo da sala na parede das janelas, Blay conseguiu olhar muito bem para cada um. Jesus, ele se lembrava de alguns deles de sua vida anterior aos ataques, antes de ele começar a morar na mansão e a lutar com os Irmãos. Seus pais não estavam no mesmo nível social daqueles machos e fêmeas, ficando mais à margem – ainda assim, a linhagem da sua família era boa e eles foram incluídos em muitas celebrações festivas nas grandes mansões.
Portanto, aquele povo não lhe era desconhecido.
Mas, por certo, ele não tinha como dizer que sentia saudades deles.
Na verdade, teve que rir consigo mesmo enquanto uma bela quantidade de fêmeas franzia o cenho e olhava para baixo para os pés delicadamente envolvidos em sapatos finos, Laboutins sendo erguidos e sacudidos... como se o frio dos Sombras estivesse sendo notado.
Quando Havers chegou, o curandeiro da raça pareceu um pouco desentrosado. Sem dúvida estava nervoso em rever a irmã e tinha bons motivos para tal. Até onde Blay sabia, Marissa acabara com ele na última reunião formal do Conselho.
Blay lamentava muito ter perdido aquilo.
Marissa chegou pouco depois do irmão, e Butch se aproximou dela, recebendo-a com um beijo demorado antes de conduzi-la, com um braço orgulhoso e protetor, para um assento no canto direito, perto de onde ele estava situado. Depois que o tira ajudou-a a se sentar, ele ficou de pé ao lado dela, grande, forte, e com um olhar ameaçador... especialmente quando seus olhos se encontraram com os de Havers e sorriu com as presas expostas.
Blay se viu invejando um pouquinho o casal. Não por conta do estranhamento familiar, isso não. Mas Deus... ser capaz de estar em público com seu parceiro, demonstrar seu amor, ter seu relacionamento respeitado por todos os outros? Casais heterossexuais consideravam aquilo como coisa certa porque nunca conheceram nada diferente daquilo. Suas uniões eram santificadas pela glymera, mesmo que os casais não estivessem apaixonados, ou se traíssem, ou fossem, de todo modo, uma fraude.
Dois machos?
Rá.
Apenas mais um motivo para se ressentir da aristocracia, segundo seu ponto de vista. Ainda que, na realidade, ele tinha a sensação de que jamais teria de se preocupar em sofrer discriminação. O macho que ele queria nunca ficaria ao seu lado em público, e não porque Qhuinn se importasse com a opinião alheia. Um, o cara não era do tipo que demonstrava afeto. Dois, sexo não formava casais.
Se assim fosse, o cara estaria comprometido com metade de Caldwell, pelo amor de Deus.
Ah, no que ele estava pensando...
Já fazia tempos que superara aquele sonho impossível com Qhuinn.
De verdade.
Absolutamente...
– Chega – ele murmurou para si mesmo quando o último integrante do Conselho chegou.
Rehv não perdeu tempo. A cada segundo que Wrath ficava diante do grupo, o Rei não só se expunha mortalmente, mas também corria o risco de que sua cegueira fosse descoberta.
O rei sympatho se dirigiu ao Conselho, com o olhar violeta perscrutando a assembleia, com um sorriso enviesado no rosto – como se apreciasse o fato de que o grupo de sabichões não fizesse a mínima ideia de que um devorador de pecados os liderava.
– Declaro aberta a sessão do Conselho. O dia e a hora são...
Enquanto a introdução prosseguia, Blay manteve o olhar ocupado, verificando as costas dos machos e das fêmeas, onde os braços e as mãos estavam, se alguém se mostrava ansioso. Naturalmente, o grupo se apresentara em black-tie e veludo, e joias para as mulheres e relógios de bolso de ouro para os homens. Pensando bem, fazia um bom tempo desde que se reuniram formalmente, e isso significava que o desejo deles de competir uns com os outros para mostrar quem valia mais sem dúvida vinha sendo estrangulado.
– ... nosso líder, Wrath, filho de Wrath.
Aplausos educados se seguiram, e depois eles se ajeitaram em suas cadeiras quando Wrath deu um único passo à frente.
Caramba, cego ou não, ele certamente parecia uma força da natureza: mesmo não trajando algum tipo de manto com borda de arminho, o Rei parecia irrefutavelmente no comando, o corpo imenso e os cabelos negros longos, e os óculos escuros, fazendo-o parecer mais uma ameaça do que um monarca.
E a ideia era essa mesmo.
Liderança, especialmente quando se tratava da glymera, baseava-se em parte nessa percepção – e ninguém tinha como negar que Wrath parecia a representação viva do poder e da autoridade.
E aquela voz grave e profunda também não atrapalhava em nada.
– Admito que faz um bom tempo que não os vejo. Os ataques de quase dois anos atrás dizimaram muitos em suas famílias e eu partilho de sua dor. Eu, também, perdi meus familiares num ataque de redutores, portanto, sei exatamente o que vocês têm passado enquanto tentam voltar a colocar a vida nos trilhos.
Um macho na fila da frente se mexeu...
Mas foi só para mudar de posição, não o prelúdio de uma arma sendo sacada.
Blay voltou à sua posição, como alguns outros. Maldição, ele mal podia esperar para que aquela reunião acabasse e eles pudessem levar Wrath de volta para a segurança.
– Muitos de vocês conheceram bem meu pai e se lembram de seu reinado no Antigo País. Meu pai era um líder sábio e de temperamento moderado, um cavalheiro de pensamento lógico e educação real, que se ocupava somente da melhoria desta raça e dos cidadãos – Wrath fez uma pausa, os óculos percorrendo em arco a sala. – Partilho de algumas das características de meu pai... mas não de todas. De fato, não sou temperado. Não sou clemente. Sou um homem da guerra, não da paz.
Nisso, Wrath desembainhou uma de suas adagas, a lâmina negra refletindo a luz do candelabro de cristal acima deles. Diante do Rei, a assembleia reagiu com um tremor coletivo.
– Fico muito à vontade num conflito, seja ele do tipo legal ou letal. Meu pai era um mediador, um construtor de pontes. Eu construo túmulos. Meu pai era persuasivo. Eu sou um conquistador. Meu pai era um Rei que se sentava de boa vontade às suas mesas de jantar para debater minúcias. Não sou assim.
Epa, epa. Sem dúvida, nunca se dirigiram ao Conselho daquele modo. Mas Blay não discordava da abordagem. A fraqueza não era respeitada. Mais do que isso, com aquele grupo, a lei provavelmente não asseguraria a estabilidade do trono de Wrath.
Medo, por sua vez?
Tinha chances muito melhores.
– Meu pai e eu, todavia, temos uma coisa em comum – Wrath inclinou a cabeça num ângulo como se estivesse olhando para a adaga negra. – Meu pai provocou a morte de oito dos seus parentes.
Houve um arfar coletivo. Mas Wrath não permitiu que isso o detivesse.
– No decorrer do seu reinado, ocorreram oito atentados à vida dele, e, não importasse o quanto demorasse, se dias, semanas ou meses, ele tratou de descobrir quem esteve por trás de cada um deles... e caçou pessoalmente cada um dos indivíduos, matando-os. Podem não ter ficado sabendo das histórias verdadeiras, mas sabem dessas mortes... Os criminosos foram decapitados e suas línguas foram cortadas. Por certo, se pensarem no passado, irão se lembrar de alguém em suas linhagens que tiveram esse fim?
Inquietação. Muita inquietação. O que sugeria que as lembranças estavam se avivando.
– Também devem se lembrar de que essas mortes foram atribuídas à Sociedade Redutora. Eu lhes digo, conheço esses nomes, como também sei onde estão esses túmulos, porque meu pai me fez memorizá-los. Foi a primeira lição de reinado que ele me ensinou. Meus cidadãos devem ser honrados, protegidos e bem servidos. Os traidores, por sua vez, são uma doença para qualquer sociedade legítima e precisam ser erradicados – Wrath sorriu de um modo puramente malévolo. – Digam o que quiserem a meu respeito, estudei muito bem aos pés de meu pai. E sejamos bem claros, foi o meu pai, e não a Irmandade, quem cuidou dessas mortes. Sei disso porque ele decapitou quatro deles diante de mim. Eis a importância dessa lição.
Muitas das fêmeas se aproximaram de qualquer que fosse o macho que estivesse sentado ao seu lado.
Wrath prosseguiu:
– Não hesitarei em seguir a liderança de meu pai quanto a isso. Reconheço tudo o que vocês sofreram. Respeito suas provações e quero liderá-los. Todavia, eu não hesitarei em tratar qualquer tipo de insurreição contra mim e os meus como um ato de traição.
O Rei abaixou o queixo e pareceu encará-los por detrás dos óculos, a ponto de até Blay sentir uma pontada de adrenalina.
– E se pensam que meu pai foi violento, não viram nada ainda. Farei com que aquelas mortes pareçam misericordiosas. Juro pela minha linhagem.
CAPÍTULO 52
De alguma forma, Assail não conseguia acreditar que estivesse entrando em um restaurante. Primeiro porque ele não costumava, via de regra, frequentar locais humanos, e, segundo, ele não tinha interesse algum em comer ali: o ar rescendia a batata frita e cerveja, e pelo que viu nas bandejas das garçonetes, ele não estava muito certo se as entradas eram consideradas seguras para consumo não animal.
Ora, veja. Do lado oposto, havia um palco que tinha uma parede de tela de arame para galinheiros.
Quanta classe.
– Olá, tudo bem? – alguém ronronou em sua direção.
Assail levantou uma sobrancelha e olhou por sobre o ombro. A mulher humana usava uma camisa apertada e um par de jeans que, obviamente, fora-lhe costurado no corpo. O cabelo era loiro e muito liso. A maquilagem era pesada, com o batom tão brilhante que mais parecia pintura a óleo.
Ele preferiria arrancar os olhos com uma colher a ter qualquer tipo de envolvimento com alguém como ela.
Obrigou-a a se esquecer de que o vira e virou de costas. O lugar estava cheio, havia mais pessoas que mesas e cadeiras, portanto havia uma boa cobertura enquanto ele seguia para um canto e procurava...
Lá estava ela.
A sua ladrazinha.
Praguejando baixinho, ele vagamente reconheceu o quanto aquilo era uma perda de tempo – considerando-se, ainda mais, que seus primos estavam negociando de novo com aquele redutor. Infelizmente, porém, assim que ele recebera o alerta de que o Audi dela estava se mexendo, sentira-se compelido a encontrá-lo e segui-lo.
Não estivera preparado para aquilo.
O que ela fazia ali? E por que estava vestida daquela maneira?
Enquanto ela encontrava uma das poucas mesas vazias e se sentava sozinha, ele se viu desaprovando o modo como o cabelo dela estava solto por sobre os ombros, o volume escuro se curvando ao redor do rosto. Ou a saia justa que foi revelada assim que ela despiu o casaco. Ou... ela também estava maquilada, pelo amor de Deus. Mas não da forma carregada daquela mulher que acabara de abordá-lo. A sua ladra deixara as coisas bem leves, de modo a apenas acentuar suas feições...
Ela era tão linda.
Linda demais.
Todos os homens no restaurante olhavam para ela. E isso fez com que ele quisesse matar cada um deles arrancando-lhe as gargantas com os dentes...
Como se estivessem de acordo com seu plano, suas presas formigaram e começaram a se alongar dentro da boca, seu corpo ficando tenso.
Mas ainda não, ele se ordenou. Ele tinha de descobrir o motivo de ela estar ali. Depois de tê-la seguido até a mansão de Benloise, ele esperara qualquer tipo de destino... embora não aquele. O que ela estaria...
A cabeça dela se voltou e, por um instante, ele pensou que, de alguma maneira, ela o tivesse sentido, mesmo não sendo uma vampira.
Mas então, um humano muito alto e bem estruturado aproximou-se da mesa.
Sua ladra fitou o cara. Sorriu para ele. Levantou-se e passou os braços ao redor dos ombros amplos.
A mão de Assail entrou no casaco à procura de sua arma.
De fato, ele se viu indo até lá e despejando uma bala entre os olhos do homem.
– Ei, já esteve aqui antes?
A cabeça de Assail virou para trás. Um humano bem grande o abordara e o fitava com uma expressão um tanto agressiva.
– Eu lhe fiz uma pergunta.
Existiam duas respostas, Assail resolveu. Ele poderia responder verbalmente, o que o colocaria em algum tipo de diálogo que consumiria a sua atenção, não sendo uma boa ideia, portanto, visto que sua mão continuava segurando a arma e seus impulsos não haviam mudado em sua inclinação homicida.
– Estou falando com você.
Ou ele poderia...
Assail expôs as presas estendidas e grunhiu profundamente da garganta, redirecionando sua ira da cena com a sua ladra com aquele tolo para quem ela se vestira e se enfeitara.
O cara cheio de perguntas levantou as mãos e deu um passo para trás.
– Ei, está tudo bem, tanto faz. Desculpe. Tudo bem.
O homem desapareceu no meio da multidão, provando que em certas circunstâncias ratos sem rabo também conseguiam se desmaterializar.
Os olhos de Assail voltaram a se fixar na mesa. O “cavalheiro” que se sentara diante de sua ladra estava se inclinando na direção dela, os olhos fixos em seu rosto enquanto ela examinava o cardápio e olhava ao redor.
Algo teria de ser feito a respeito daquilo.
Sola fechou o cardápio e riu.
– Eu nunca disse isso.
– Disse sim – Mark Sanchez sorriu. – Você me disse que eu tinha olhos bonitos.
Mark era exatamente o que ela precisava numa noite como aquela. Ele era bonito de se olhar, supercharmoso, e contanto que ele não a fizesse se abaixar para fazer mil abdominais, ela não tinha com que se preocupar: como seu professor de ginástica particular? Ele era um demônio, ela bem sabia.
– Então, este é um jeito de me amaciar? – ele se recostou quando a garçonete lhes trouxe as cervejas. – Está tentando fazer com que eu pegue leve na academia?
– Sei que isso jamais funcionaria – Sola deu uns goles da bebida gelada em sua caneca. – Você não dá mole. É a sua regra.
– Bem, para ser justo, você nunca pediu tratamento especial. – Houve uma pausa. – Não que em seu caso eu não estivesse disposto em ceder um pouco... em algumas áreas.
Sola desviou do olhar que lhe era lançado.
– Quer dizer que você não sai com clientes?
– Não. Normalmente não.
– Conflito de interesses.
– Pode acabar em confusão... Mas, em certos casos, o risco vale a pena.
Sola olhou de relance pelo bar. Muitas pessoas. Muita conversa. E o ambiente estava abafado.
Ela franziu o cenho e se enrijeceu. No canto extremo, alguma coisa... alguém...
– Está tudo bem?
Ela tentou se livrar da sua paranoia.
– Sim, desculpe... Ah, sim, queremos fazer o pedido – ela disse quando a garçonete voltou. – Vou querer um cheeseburguer. Desde que o meu treinador não tenha uma embolia em sinal de desaprovação.
Mark riu.
– São dois, então. Mas não coloque fritas. Em nenhum dos dois pratos.
Enquanto a garçonete se afastava, Sola tentou não olhar para o canto escuro ao fundo.
– Então...
– Nunca imaginei que fosse aceitar meu convite. Quanto tempo faz que eu a chamei para sair?
Enquanto Mark sorria, ela notou que ele tinha dentes fantásticos, retos e bem brancos.
– Acho que já faz um tempo. Tenho estado ocupada.
– Então, o que faz para viver?
– Isso e aquilo.
– Em que ramo?
Normalmente, ela se irritava quando as pessoas começavam a ficar curiosas. Mas a postura dele era calma e relaxada, portanto aquela era apenas uma conversa normal de um encontro de um casal.
– Acho que posso chamar de justiça criminal.
– Ah, então lida com leis.
– Sim, eu as conheço.
– Que bacana – Mark pigarreou. – Então... nossa, você está realmente linda.
– Obrigada. Acho que é por causa do meu professor.
– Ah, sabe, de algum modo acho que você se sairia bem sem mim.
Enquanto se envolvia numa conversa descomplicada, ela começou a relaxar de verdade e quando os sanduíches chegaram, eles pediram mais uma rodada de cerveja. Era tão... normal estar num bar, conversando e conhecendo outra pessoa.
O exato oposto do que ela testemunhara na noite anterior.
Sola estremeceu quando as imagens lhe voltaram... a luz de velas, aquele homem de cabelos negros pairando acima da mulher seminua como se estivesse para devorá-la, os dois se soltando com desinibição... Então, aqueles olhos reluzentes se ergueram e se encontraram com os dela através da janela como se ele soubesse o tempo todo que ela estivera espionando.
– Você está bem?
Sola forçou-se a se concentrar.
– Desculpe, sim, estou. O que você estava dizendo?
Enquanto Mark voltava a falar do seu treinamento para o Ironman, ela se viu novamente no frio do lado de fora daquele chalé, observando aquele homem e aquela mulher.
Droga. Ela orquestrara aquele encontro somente porque queria relaxar. Não porque gostasse particularmente de Mark, por mais legal que ele fosse.
Na verdade, talvez ela tivesse feito aquilo porque, coincidentemente, seu professor era bem alto, de boa constituição física, e cabelos muito escuros e olhos bem claros.
Quando a culpa lhe enviou um aviso, ela pensou, ora, pelo amor de Deus. Era uma mulher adulta. Mark era um homem adulto. As pessoas faziam sexo por diferentes motivos – não era porque não queria se casar com o cara que ela estivesse quebrando alguma regra sagrada... a não ser, droga. Deixando de lado a moral da avó, e os dentes brancos e brilhantes e os ombros largos dizendo o contrário, ela não se sentia de fato atraída por Mark.
Ela estava atraída pelo homem de quem Mark a fazia se lembrar.
E era isso o que tornava tudo aquilo muito errado.
CAPÍTULO 53
Mesmo que Qhuinn dificilmente fosse um bom árbitro de aprovação no que se referia às reuniões do Conselho, ficou bem claro para ele que o grupo reunido fora até aquela casa esperando uma coisa só para receber algo completamente diferente.
Wrath não desperdiçava nem atenuava as palavras e, depois de despejar seu discurso, concluiu tudo em cinco, dez minutos.
Na verdade, aquilo era muito bom. Quanto antes ele terminasse, mais rápido o tirariam dali.
– Concluindo – disse o Rei em sua voz grave –, agradeço a oportunidade de me dirigir a este grupo respeitável.
Naquele caso, “respeitável” obviamente significava “idiota”.
– Tenho outro compromisso agora – isto é, permanecer vivo. – Portanto, preciso ir. Contudo, se tiverem algum comentário, por favor, dirija-os a Tohrment, filho de Hharm.
Menos de um segundo depois, o Rei deixava a casa com V. e Zsadist.
Após a saída dele, todos os empoados na sala de jantar permaneceram sentados em suas cadeiras, chocados, suas expressões dizendo “e agora?”. Obviamente, eles esperavam mais... mas também menos. Como crianças que forçam demais os limites com os pais até finalmente levarem uma colherada de pau na bunda.
Pela perspectiva de Qhuinn, aquilo tudo era muito engraçado, de verdade.
A festa finalmente começou a se dissipar depois que a anfitriã se levantou e disse a todos como fora uma honra recebê-los e blá-blá-blá.
Qhuinn só se importava com uma coisa.
A mensagem que chegou em seu celular um minuto mais tarde: Wrath estava a salvo em casa.
Exalando lentamente, ele guardou o celular no bolso interno da jaqueta de couro e considerou a ideia de dar umas guinadas no piso só para ver se animava aquele bando de empertigados a dançar um pouco. Porém, ele muito provavelmente se meteria em apuros com isso.
Que pena.
O grupo começou a sair logo em seguida, para óbvio descontentamento da anfitriã, como se ela tivesse se arrumado e reorganizado sua casa na antecipação de um evento social que durasse a noite toda – só para descobrir que conquistara seus dois segundos de celebridade e um balde gigante de KFC para comer.
Desculpe, dona.
Tohrment comandou o êxodo, parado diante da lareira, acenando com a cabeça, dizendo algumas poucas palavras. Wrath fizera uma boa escolha. O Irmão tinha a aparência de um guerreiro, com todas as suas armas, mas sempre se mostrou disposto e internamente inclinado a ser um pacificador, e isso não era diferente aquela noite.
Ele se mostrou especialmente agradável quando Marissa e Butch saíram, o rosto demonstrando uma centelha genuína de afeto ao abraçá-la e ao acenar para o tira que acompanhou para fora. Contudo, esse fragmento de realidade foi imediatamente substituído pela sua máscara profissional.
No fim, a anfitriã auxiliou seu hellren ancião a se levantar e comentou alguma coisa a respeito de ajudá-lo a subir.
E assim restou apenas um.
Elan, filho de Larex, demorava-se perto do acortinado das janelas.
Qhuinn observara o cara o tempo todo, contando exatamente quantos membros do Conselho se aproximaram dele, tomando-lhe a mão e murmurando algo em seu ouvido.
Cada um deles.
Portanto, não foi uma surpresa quando em vez de simplesmente ir embora como um bom garoto, ele se encaminhou até a lareira como se desejasse uma audiência.
Maravilha.
Enquanto Elan se aproximava de Tohr, quanto mais perto ficava, mais tinha de levantar o queixo para manter contato visual com o Irmão.
– Foi uma honra muito grande ter uma audiência com o seu Rei – o cavalheiro disse com seriedade. – Ouvi atentamente cada palavra.
Tohr murmurou algo em resposta.
– E venho me remoendo com algo – o aristocrata comentou. – Eu tinha esperanças de falar diretamente com ele a respeito, mas...
Bem, não prenda a respiração enquanto espera por isso, amigo.
Tohr se prontificou a preencher o silêncio:
– Qualquer coisa que me disser chegará diretamente aos ouvidos do Rei, sem filtro nem interpretação. E os lutadores neste recinto juraram segredo. Eles são capazes de morrer antes de repetir sequer uma palavra.
Elan olhou na direção de Rehv, obviamente esperando uma jura semelhante por parte do macho.
– O mesmo se aplica a mim – murmurou Rehv ao se apoiar na bengala.
Abruptamente, o peito de Elan estufou como se aquele tipo de atenção personalizada fosse mais do que ele esperava obter naquela reunião.
– Bem, isso tem pesado muito em meu peito.
Certamente não nos peitorais, Qhuinn pensou. Você tem o físico de um moleque de dez anos.
– E isso seria... – Tohr deu a deixa.
Elan cruzou os braços atrás das costas e andou um pouco – como se estivesse refletindo sobre suas palavras. Algo garantia a Qhuinn, porém, que elas já tinham sido ensaiadas, ainda que não pudesse dizer como sabia disso.
– Eu esperava que seu Rei se referisse a certo boato que ouvi.
– Que seria? – perguntou Tohr num tom neutro.
Elan parou. Virou-se. Falou com clareza:
– Que ele foi alvejado no outono.
Ninguém emitiu reação alguma. Nem Tohr, nem Rehv. Tampouco os Irmãos restantes na sala. E por certo nem Qhuinn e seus garotos.
– Qual a fonte desse boato? – questionou Tohr.
– Bem, para ser franco, pensei que ele estaria aqui.
– Verdade? – Tohr olhou para as cadeiras desocupadas e deu de ombros. – Quer me contar o que ouviu?
– O macho fez referência à visita do Rei. Semelhante à que Wrath me fez em minha residência durante o verão – isso foi relatado com grande importância, como se aquele tivesse sido o ponto alto do ano de Wrath. – Ele disse que o Bando de Bastardos atirou no Rei enquanto ele estava em sua propriedade.
Mais uma vez, nenhuma reação.
– Mas, obviamente, o seu Rei sobreviveu – a pausa sugeria que Elan estava esperando por detalhes. – De fato, ele parece ótimo.
O silêncio se alongou como se as duas partes na conversa esperassem que a outra fizesse bom uso da quietude.
Tohr ergueu uma sobrancelha.
– Com o devido respeito, você não nos informou muita coisa, e boatos acontecem desde o início dos tempos.
– Mas eis o mais estranho. Ele também falou comigo antes que isso acontecesse. No entanto, não acreditei nele. Quem tramaria uma tentativa de homicídio? Parecia... mais a ostentação de um macho que, de outro modo, estava insatisfeito com a maneira como as coisas estavam sendo conduzidas. Só que, uma semana mais tarde, ele disse que o Bando de Bastardos deu seguimento aos planos, e que Wrath fora atingido. Eu não sabia o que fazer. Eu não tinha como entrar em contato com o Rei pessoalmente, e nenhum modo de verificar se o que esse indivíduo dizia era verdade. Deixei estar... até esta reunião ser marcada. Fiquei me perguntando se talvez... bem. Obviamente nada aconteceu, mas fiquei me perguntando por que ele não estava aqui.
Tohr baixou o olhar em direção ao macho menor.
– Ajudaria bastante se você nos desse um nome.
Foi a vez de Elan franzir o cenho.
– Quer dizer que não sabe quem está no Conselho?
Enquanto Rehv revirava os olhos, Tohr dava de ombros.
– Temos mais coisas com que nos preocupar do que com os associados de Rehv.
– No Antigo País, a Irmandade sabia quem éramos.
– Há um oceano entre nós e a mãe terra.
– Uma pena.
– Essa é a sua opinião.
Qhuinn deu um passo à frente, com a intenção de interferir, para o caso de o Irmão resolver segurar o pescoço do filho da puta: alguém provavelmente teria de agarrar a cabeça antes que ela caísse no tapete da anfitriã. E o peso morto do corpo também.
Parecia o mais hospitaleiro a se fazer.
– Então, sobre quem está falando? – Tohr o pressionou.
Elan olhou para os machos imóveis e letais que se concentravam nele.
– Assail. Seu nome é Assail.
No centro de Caldwell, onde as ruas escuras formavam um labirinto de ratos e os humanos sóbrios eram raros e esparsos, Xcor balançou a foice num círculo amplo de uns dois metros além do piso escorregadio manchado de preto.
O redutor foi golpeado no pescoço, e a cabeça, agora liberta da medula espinhal, pendeu do queixo para a têmpora, em meio ao vento frio e implacável. Sangue negro desceu das artérias partidas enquanto o corpo desgovernado despencava no chão num tombo.
Só isso.
Bem desapontador, na verdade.
Virando de costas, ele segurou sua amada foice sobre o ombro para que ela se curvasse atrás dele de modo protetor, vigiando-lhe as costas enquanto ele se preparava para o que viria em seguida. O beco em que ele entrara para perseguir aquele agora incapacitado assassino era aberto na ponta oposta, e atrás dele, os três primos estavam posicionados ombro a ombro para o caso de alguém mais vir daquela direção.
Algo se aproximava.
Algo vinha... em alta velocidade, o ronco do motor aumentando cada vez mais...
O SUV derrapou no beco, os pneus encontrando pouca ou nenhuma tração na rua coberta de gelo. Como resultado da ausência de atrito, o veículo bateu na parede, os faróis cegando Xcor.
Quem quer que estivesse atrás daquele volante não pressionou o freio.
O motor rugiu.
Xcor ficou de frente para o carro e fechou os olhos. Não havia motivo para mantê-los abertos já que não estava enxergando nada. Não se importava se o motorista fosse um assassino, um vampiro ou um humano.
Eles vinham em sua direção, e ele colocaria um fim naquilo. Mesmo que talvez fosse mais fácil simplesmente sair do caminho.
Entretanto, ele nunca gostou de saídas fáceis.
– Xcor! – alguém exclamou.
Inspirando profundamente o ar gelado, ele emitiu um grito de guerra ao acompanhar a aproximação, seus sentidos se aguçando e posicionando o SUV em sua trajetória. A foice desapareceu um instante, e suas pistolas, ansiosas em participar, surgiram em ambas as mãos.
Ele aguardou mais uns cinco metros.
Em seguida, começou a apertar os gatilhos.
Com os silenciadores colocados, as balas só emitiam os sons do impacto ao quebrarem o para-brisa, sibilarem na grade, perfurarem um pneu...
E nessa hora os faróis que o cegavam se viraram, a traseira do veículo rodopiando, toda a trajetória imutável graças à tremenda aceleração – mesmo quando todo o resto se confundia.
Pouco antes de a lataria lateral o atingir, Xcor pulou do chão, as botas impulsionando-o para cima, o teto do carro quase resvalando no solado enquanto uma tonelada e meia desgovernada passava por baixo do seu corpo flutuante.
Quando os coturnos de combate de Xcor aterrissaram, o avanço do carro foi interrompido à custa de um latão de lixo, o receptáculo detendo o veículo melhor do que qualquer freio seria capaz.
Xcor não perdeu tempo para se aproximar, com as duas pistolas erguidas, os gatilhos prontos. Embora tivesse dado alguns tiros, ele sabia que ainda possuía pelo menos umas quatro balas em cada uma. E, mais uma vez, seus soldados o apoiaram por trás.
Aproximando-se para olhar o interior, ele não se preocupava com o que encontraria: um de sua espécie, um homem ou uma mulher, um redutor, pouco importava.
O cheiro de carne estragada e melaço o informaram qual dos seus inimigos ele confrontara e, de fato, enquanto se inclinava sobre o para-brisa estilhaçado, dois novos recrutas, que ainda apresentavam cabelos escuros e pele rosada, balançavam nos bancos da frente.
Mesmo com os cintos de segurança a postos, eles estavam em mau estado. Além de terem sido atingidos pelas balas, os rostos demonstravam todos os estragos feitos pelas batidas tanto nas laterais do carro, como no painel e no vidro quebrado: sangue negro escorria pelos narizes e queixos e faces lacerados, a meleca pingando nos peitos como água de um chuveiro.
Nada de air bags. Talvez um caso de mal funcionamento.
– Não pensei que fosse conseguir – murmurou Balthazar.
– É mesmo – o outro concordou.
Xcor desconsiderou a preocupação ao guardar as armas, depois segurou a porta do motorista e a arrancou da dobradiça. Enquanto o guincho metálico ecoava muito alto no beco, ele largou a placa de metal, pegou a adaga de aço e se inclinou.
Como com todos os redutores, aqueles afiliados a Ômega ainda se mexiam e piscavam apesar dos ferimentos catastróficos – e continuariam assim eternamente se deixados nesse estado, mesmo que suas formas apodrecessem com o tempo.
Só havia um modo de matá-los.
Xcor aproximou o braço do ombro esquerdo e enterrou a lâmina de sua adaga no peito daquele que estava atrás do volante. Virando a cabeça de lado e fechando os olhos para não se cegar novamente, ele esperou pelo som e pelo flash diminuir antes de se inclinar sobre o assento e fazer o mesmo com o passageiro.
Depois se virou para despachar o corpo decapitado e contorcido... que tinha marcas de pneus sobre o peito, graças à trajetória do carro no beco.
Caminhando pelo piso sujo e lamacento, ele levantou a adaga acima do ombro e enterrou a lâmina no esterno com tanta força que a arma ficou encravada no asfalto.
Quando se pôs de pé novamente, sua respiração emitia sopros de fumaça pelo nariz, como uma locomotiva.
– Vasculhem o veículo, depois temos que ir.
Ele consultou o relógio. A polícia de Caldwell era desapontadoramente atuante, mesmo naquela parte da cidade – e a ameaça constante de envolvimento humano sob a qual ele vivia era sempre um aborrecimento. Mas, com sorte, em questão de minutos, eles iriam embora e seria como se jamais estivessem estado ali.
Embainhando a adaga, ele olhou para o céu, estalando o pescoço e relaxando os ombros.
Era impossível não pensar na reunião do Conselho que fora marcada; aquilo esteve em sua mente a noite inteira. Será que Wrath aparecera? Ou teria sido apenas Rehvenge e os representantes da Irmandade? Se o Rei tivesse de fato aparecido, Xcor podia muito bem imaginar a pauta: demonstração de força, avisos, depois uma partida rápida.
Por mais poderosa que fosse a Irmandade, e por mais que Wrath conseguisse forçar sua vontade sobre aquele grupo de aristocratas traiçoeiros e bajuladores, era difícil imaginar que um macho que recentemente quase fora assassinado fosse se arriscar: mesmo que apenas por interesse próprio, a Irmandade o queria vivo, visto que aquilo também era seu lugar de poder.
E foi por isso que ele escolhera ficar afastado.
Não havia mal algum em permitir que Wrath tentasse recuperar um pouco de seu prestígio perdido, e muito a perder num confronto direto com a Irmandade diante daquele público específico: o potencial de um dano colateral era grande demais. A última coisa que ele queria era assustar a glymera a ponto de afastá-los... ou matá-los de uma vez no processo de acabar com o Rei.
Mas ele descobrira, graças aos contatos de Throe, a hora e o local exatos daquele encontro. Que seria naquele instante... e na propriedade daquela fêmea de quem seus soldados se alimentaram no pequeno chalé.
Evidentemente, ela estava disposta a permitir que outros usassem não só o jardim dela, mas também suas salas.
E, muito em breve, ele teria uma transcrição do que acontecera graças ao porta-voz que era Elan – senão por outro motivo que não de o macho desejar apenas se gabar do acesso a que tivera.
Um assobio de apreciação vindo da parte de trás do carro arruinado fez com que ele virasse a cabeça.
Zypher estava parado diante do porta-malas aberto, com as sobrancelhas erguidas enquanto ele se curvava e apanhava... um tijolo de algo branco coberto de celofane.
– Que belo prêmio conseguimos – disse ele, erguendo-o no alto.
Xcor andou até lá. Havia mais três daqueles, apenas jogados na parte traseira, como se o par de assassinos estivesse mais preocupado com a sua segurança física do que com a disposição das drogas.
Naquele instante, as sirenes começaram a gritar vindo do leste, talvez relacionadas àquela batida, talvez não.
– Pegue os pacotes – ordenou Xcor. – Vamos embora agora.