Irmandade da "Adaga Negra"
CAPÍTULO 37
Enquanto Blay girava o anel de sinete da família no dedo, seu cigarro aceso queimava lentamente na outra mão, e seu traseiro ficava adormecido... e ninguém passava pelas portas do átrio.
Sentado no degrau de baixo da grande escadaria da mansão, ele não respeitaria a promessa feita à mãe de ir para casa. Não naquela noite, pelo menos. Depois da loucura da noite anterior, do pouso forçado do avião e do drama subsequente, Wrath ordenara que a Irmandade e os lutadores tirassem 24 horas de folga. Por isso, tecnicamente, ele deveria ligar para os pais e dizer à mãe que caprichasse na mussarela e no molho à bolonhesa.
Mas de jeito nenhum ele sairia daquela casa. Não depois de ouvir os gritos vindos do quarto de Layla, e de vê-la praticamente sendo carregada escadaria abaixo.
Naturalmente, Qhuinn esteve ao lado dela.
John Matthew não.
Portanto, o quer que estivesse acontecendo, pelo visto superava o ahstrux nohtrum, e isso significava que... ela só podia estar perdendo o filho. Somente algo sério assim possibilitaria um passe livre.
Enquanto ele continuava parado como uma porta, sem nada além da sua preocupação para lhe fazer companhia, naturalmente sua mente resolveu seguir o caminho errado: merda, fora mesmo para a cama com Qhuinn na noite passada?
Dando uma tragada em seu Dunhill, ele expeliu uma imprecação.
Acontecera mesmo?
Deus, essa pergunta vinha martelando a sua cabeça desde o minuto em que despertou de um sonho sensual, com uma ereção que parecia fazer pensar que o outro macho dormia ao seu lado.
Revendo as cenas pela centésima vez, só no que ele conseguia pensar era... como um plano podia fracassar. Depois de ter rejeitado Qhuinn quando ele se pôs de joelhos, voltara para o próprio quarto e andara de um lado para o outro, um debate que não interessava ter consigo mesmo transformando seu cérebro em fois gras.
Ele tomara a decisão correta ao sair. Mesmo. Tinha sim.
O problema foi que a decisão não se sustentou. Enquanto as horas do dia passavam, tudo o que ele conseguia pensar foi a vez em que o pai o flagrou roubando uma caixa de cigarros do doggen da família. Na época, ele era um jovem pré-trans e, como castigo, seu pai o obrigou a se sentar do lado de fora e fumar cada um daqueles Camels sem filtro. Ele se sentiu muito mal e demorou mais de dois anos para sequer tolerar fumo passivo.
Portanto, esse fora o seu segundo plano.
Fazia tempo demais que era louco por Qhuinn, mas tudo não passava de algo hipotético, dividido em fantasias de modo que ele conseguisse suportar. Nada de uma vez só, nada da coisa sobrecarregada, absoluta e arrasadora – e ele sabia muito bem que na vida real, Qhuinn não se conteria nem relaxaria. O “plano” fora ter a experiência concreta, e descobrir que aquilo não passava de apenas sexo brutal. Ou, inferno, descobrir que não era nem sexo bom.
Não era de se esperar que você fumasse um maço inteiro de cigarros... só para querer mais.
Deus todo-poderoso, foi a primeira vez em que a realidade foi muito melhor do que uma fantasia, a absolutamente melhor experiência erótica de toda a sua vida.
Depois, porém, a gentileza que Qhuinn demonstrara fora insuportável.
Na verdade, enquanto Blay rememorava aquela ternura, ele deu um salto de onde estava e começou a marchar ao redor do mosaico de macieira – não tinha para onde ir.
Naquele instante a porta se abriu. Porém, não a de entrada.
A da biblioteca.
Enquanto olhava de relance por sobre o ombro, Saxton surgiu de lá. Ele parecia saído do inferno, e não só porque, por mais veloz que fosse a sua recuperação, ele ainda tinha um inchaço residual na mandíbula graças ao ataque de Qhuinn.
Que lindo, Blay pensou. Bela maneira de expressar seu desapontamento quanto ao comportamento de alguém: deixe-o transar com você depois que ele tentou estrangular seu ex.
Quaaanta classe.
– Como você está? – Blay perguntou, e não por convenção social.
Foi um alívio Saxton se aproximar. E encará-lo. E sorrir-lhe um pouco como se estivesse determinado a fazer um esforço.
– Estou exausto. E faminto. E agitado.
– Gostaria de comer comigo? – sugeriu Blay num rompante. – Também estou me sentindo assim, e a única coisa em que posso dar jeito é a fome.
Saxton assentiu com a cabeça e enfiou as mãos nos bolsos da calça.
– Ideia brilhante.
Os dois acabaram na cozinha, sentados ante a castigada mesa de carvalho, lado a lado, de frente para o resto do cômodo. Com um sorriso contente, Fritz imediatamente passou para o seu modo “provedor de alimentos” e, veja só, dez minutos mais tarde, o mordomo servia uma tigela de cozido de carne para cada um, além de uma baguete para dividirem, uma garrafa de vinho tinto e uma porção de manteiga num pratinho ao lado.
– Volto em seguida, meus senhores – disse o mordomo com uma reverência. E depois ele prosseguiu expulsando todos da cozinha, desde o doggen que descascava legumes até os que poliam a prataria e os que limpavam as janelas de uma alcova logo além dali.
Quando a porta se fechou após a saída do último criado, Saxton disse:
– Tudo o que nos falta é uma vela, aí isto seria um encontro – o macho se inclinou para a frente e começou a comer com modos impecáveis. – Bem, suponho que precisaríamos de mais algumas coisas, não?
Blay olhou de esguelha enquanto apagava o cigarro. Mesmo com as olheiras e o hematoma desvanecendo no pescoço, o advogado era muito bonito de se olhar.
Por que ele não poderia simplesmente...
– Não repita, de novo, que sente muito – Saxton limpou a boca com o guardanapo e sorriu. – Não é necessário, nem apropriado.
Assim, sentado ao lado dele, não parecia que tinham acabado de romper, nem que ele estivera com Qhuinn. Será que as últimas noites aconteceram mesmo?
Até parece... O que ocorreu com Qhuinn não teria acontecido se ele e Sax ainda estivessem juntos. Isso era bem claro para ele: uma coisa era se masturbar secretamente, e isso já era ruim o bastante. Aquilo tudo? De jeito nenhum.
Droga, apesar do fato de ele e Saxton terem rompido, ele ainda sentia que devia confessar sua transgressão... mesmo que Qhuinn estivesse certo e que Saxton já tivesse seguido em frente, por assim dizer.
Enquanto comiam em silêncio, Blay balançou a cabeça, ainda que não tivessem lhe feito nenhuma pergunta e nem estivessem conversando. Ele só não sabia o que fazer. Às vezes, as mudanças da vida surgiam com tanta rapidez, e com tamanha impetuosidade, que não havia como acompanhar a realidade. Levava tempo para as coisas se assentarem, um novo equilíbrio se reestabelecia só depois de algum tempo em que seu cérebro batia de um lado contra o outro das paredes da sua cabeça.
Ele ainda estava na fase de balançar.
– Já sentiu alguma vez como se as horas fossem medidas em anos? – perguntou Saxton.
– Ou décadas. Sim. Absolutamente – Blay olhou de novo. – Na verdade, eu também estava pensando nisso.
– Que par de mórbidos nós somos.
– Talvez devêssemos vestir preto.
– Braçadeiras? – sugeriu Saxton.
– Não, preto dos pés à cabeça.
– E o que eu faço com o meu gosto por cores? – Saxton apontou para o lenço laranja Hermès no bolso da sua lapela. – Bem, pode-se muito bem usar todo tipo de acessórios.
– Certamente isso explica a teoria por trás dos aparelhos ortodônticos.
– Flamingos de plástico rosa.
– A franquia da Hello Kitty.
Juntos, os dois explodiram numa gargalhada. Nem era assim tão engraçado, mas o humor não era a questão ali. Mas quebrar o gelo. Voltar ao que era antes. Aprender a se relacionarem de um modo diverso.
Quando convergiram para um riso mais contido, Blay passou o braço ao redor dos ombros do macho e lhe deu um abraço rápido. Foi bom que Saxton tivesse relaxado um pouco, aceitando aquilo que lhe era oferecido. Não que Blay acreditasse que por estarem sentados juntos, partilhando uma refeição e uma bela risada, tudo, de repente, seria um navegar suave. Nada disso. Era estranho pensar que Saxton estivera com outra pessoa, e ainda mais incrível saber que ele fizera o mesmo – principalmente com quem o fizera.
Não se passava de amantes de quase um ano para companheiros de risadas em um ou dois dias.
Podia-se, porém, começar a forjar um novo caminho.
E colocar um pé na frente do outro.
Sempre haveria um lugar em seu coração para Saxton. O relacionamento que tiveram foi o seu primeiro não só com um macho, mas com qualquer um. E muitas coisas boas aconteceram, coisas que ele carregaria consigo como lembranças que valiam o espaço em sua mente.
– Deu uma olhada nos jardins de trás? – Saxton perguntou ao lhe oferecer o pão.
Blay partiu um pedaço e depois espalhou manteiga por cima enquanto Saxton também pegava um pouco.
– Estão bem ruins, não?
– Lembre-me de nunca tentar cortar grama com um Cessna.
– Você não curte jardinagem.
– Bem, para o caso de um dia eu tentar – Saxton se serviu de vinho. – Aceita?
– Sim, por favor.
E foi assim que as coisas aconteceram. Durante o cozido de carne até a torta de pêssegos, que milagrosamente apareceu diante deles graças à impecabilidade de Fritz. Quando a última garfada e a última limpada com guardanapo foram dadas, Blay se reclinou contra o encosto acolchoado do banco embutido e inspirou fundo.
Que se referia a muito mais do que uma simples barriga cheia.
– Bem – disse Saxton, ao apoiar o guardanapo ao lado do prato de sobremesa –, acredito que finalmente vou poder tomar o banho de banheira que você me sugeriu há algumas noites.
Blay abriu a boca para observar que os sais de banho que o macho preferia ainda estavam em seu banheiro. Ele os vira no gabinete quando fora pegar o creme de barbear reserva ao cair da noite.
Só que... ele não sabia se devia mencionar isso. E se Saxton pensasse que ele estava lhe pedindo para ir à sua banheira? Seria um lembrete muito grande de como as coisas tinham mudado e do por quê? E se...
– Tenho esse novo tratamento à base de óleos que estou morrendo de vontade de experimentar – explicou Saxton ao deslizar pelo banco. – Ele finalmente chegou do exterior hoje. Faz séculos que espero por ele.
– Parece maravilhoso.
– Mal posso esperar – Saxton ajustou o paletó nos ombros, ajeitou os punhos e depois acenou com a mão, saindo sem nenhum indício de complicações ou de tensão em seu rosto.
O que, de fato, ajudava muito.
Dobrando o próprio guardanapo, deixou-o de lado, e saiu de trás da mesa, esticando os braços acima da cabeça e curvando-se para trás, estalando muito bem a coluna.
A sua tensão voltou no segundo em que pisou no átrio novamente.
Que diabos estava acontecendo com Layla?
Maldição, ele nem podia ligar para Qhuinn. Aquele drama não era seu, nem estava ligado a ele de modo algum. Quando se tratava de uma gestação, ele não era diferente de nenhum outro macho daquela casa que também ouvira ou vira o show e, sem dúvida, estava tão preocupado quanto ele. Mas também não tinha direito a nenhuma notícia antecipada.
Uma pena que sua barriga, agora cheia, não concordasse com isso. Pensar em Qhuinn perdendo o filho o fez considerar seriamente a localização do banheiro mais próximo da porta de entrada, só para o caso de uma evacuação rápida ser ordenada pelo fundo da sua garganta.
No fim, ele se viu subindo para a sala de estar do segundo andar. Daquele lugar, ele não teria dificuldade em ouvir a porta da frente, e não estaria esperando abertamente...
As portas do escritório de Wrath se abriram, e John Matthew emergiu do santuário do Rei.
Imediatamente, Blay atravessou a sala de espera, pronto para ver se, talvez, o cara sabia de alguma coisa, mas se conteve ante a expressão de John.
Perdido em pensamentos. Como se tivesse recebido notícias pessoais do tipo perturbador.
Blay ficou para trás enquanto o camarada seguia no caminho contrário, na direção do corredor das estátuas, sem dúvida para desaparecer no próprio quarto.
Parecia que as coisas não andavam bem nas vidas dos outros também.
Maravilha.
Com uma imprecação baixa, Blay deixou o amigo em paz e voltou a caminhar e... a esperar.
Muito mais ao sul, na cidade de West Point, Sola estava pronta para entrar no segundo andar da casa de Ricardo Benloise, através da janela ao fim do corredor principal. Fazia meses desde que estivera lá dentro, mas ela contava com o fato de que seu contato na segurança por ela cuidadosamente manipulado ainda fosse o seu amigo.
Havia dois fatores-chave para invadir com sucesso qualquer casa, prédio, hotel ou instalação: planejamento e velocidade.
Ela possuía os dois.
Pendurada no cabo que lançara no telhado, ela tirou um instrumento de dentro do bolso da parca, segurando-o no canto direito da janela dupla. Iniciado o sinal, ela esperou, olhando fixamente para a luzinha vermelha que brilhava na tela à sua frente. Se por algum motivo ela não mudasse, ela teria de entrar por uma das águas-furtadas que dava para o jardim, o que seria um pé no saco...
A luz ficou verde com um sinal, e ela sorriu ao pegar mais instrumentos.
Pegando um copo de sucção, ela o empurrou no meio do painel, imediatamente abaixo da tranca e depois girou a coisa com o cortador de vidro. Um empurrão rápido e o espaço que possibilitava a entrada do seu braço foi criado.
Depois de deixar o círculo de vidro cair com suavidade na passadeira oriental, ela enfiou o braço e o virou, para soltar a trava de latão que mantinha a janela fechada.
O ar quente lhe deu boas-vindas, como se a casa estivesse contente por vê-la mais uma vez.
Antes de entrar, ela olhou ao redor. Relanceou para o caminho de carros. Inclinou-se para fora para ver o que conseguia encontrar nos jardins escuros.
Sentia como se alguém a estivesse observando... não tanto no caminho de carro até a cidade, mas depois que parara no estacionamento e colocara os esquis. Todavia, não havia ninguém por perto – pelo menos, ninguém que ela conseguisse enxergar – e por mais que a atenção fosse essencial em seu ramo de trabalho, a paranoia era uma perda de tempo perigosa.
Ela precisava deixar isso de lado.
Voltando a se concentrar no jogo, esticou as mãos enluvadas e suspendeu o traseiro e as pernas por cima e através da janela. Ao mesmo tempo, relaxou a tensão do cabo para que ele ficasse folgado e permitisse a sua entrada. Aterrissou sem nenhum som, graças não só ao tapete que cobria o longo corredor como também aos seus calçados de solas macias.
O silêncio era outro critério importante no tocante a realizar um trabalho com sucesso.
Ela parou onde estava por um breve momento. Nenhum som na casa, mas isso não significava nada necessariamente. Ela tinha quase certeza de que o alarme de Benloise fosse silencioso, e mais certeza ainda de que o sinal não iria para a força policial, nem a local, tampouco a estadual: ele gostava de cuidar das coisas particulares de modo privado. E Deus bem sabia, com o tipo de força braçal que ele contratava, havia poder suficiente para tal.
Felizmente, contudo, ela era boa no que fazia, e Benloise e seus capangas não estariam em casa até perto do nascer do sol, afinal, ele vivia a vida de um vampiro.
Por algum motivo, a palavra que começava com “v” a fez pensar no homem que aparecera ao lado do seu carro e que desaparecera como num passe de mágica.
Loucura. E a única vez em sua lembrança recente que alguém a fazia parar para pensar. Na verdade, depois de ser confrontada daquela forma, ela estava realmente considerando não voltar à casa de vidro no rio, embora houvesse motivos mais do que válidos para isso. Não por ela se preocupar em se machucar fisicamente. Deus bem sabia que ela era perfeitamente capaz de se defender.
Era a atração.
Mais perigosa do que qualquer pistola, faca, ou punho, em sua opinião.
Com passadas ágeis, Sola trotou pelo tapete, saltitando na ponta dos pés, seguindo para a suíte principal que dava para o jardim dos fundos. A casa ainda tinha o mesmo cheiro de que se lembrava: mobília antiga e lustra-móveis, e ela conhecia o bastante para se ater ao lado esquerdo da passadeira. Nenhum rangido daquele lado.
Quando chegou à suíte principal, a porta pesada de madeira estava fechada, e ela pegou a chave micha antes mesmo de testar a maçaneta. Benloise tinha duas patologias: limpeza e segurança. A impressão dela, entretanto, era que a segunda era mais crítica na galeria no centro de Caldwell do que em seu lar. Afinal, Benloise não mantinha debaixo do seu teto nada além de objetos de arte com seguros até o último centavo, e a ele próprio durante o dia – quando estava cercado por diversos seguranças e armas.
Na verdade, devia ser por isso que ele era uma coruja no centro da cidade. Isso significava que a galeria nunca ficava sem supervisão: ele aparecia depois do expediente e sua equipe de trabalho legítima estava lá durante o dia.
Como uma gatuna, ela certamente preferia entrar em lugares vazios.
Dito isso, mexeu no mecanismo de tranca da porta, abrindo-a, e entrou no quarto. Inspirou profundamente, o ar estava permeado com a fumaça do tabaco e da colônia refrescante de Benloise.
A combinação a fez pensar nos filmes em preto e branco de Clark Gable por algum motivo.
Com as cortinas puxadas e nenhuma luz acesa, ali estava absolutamente escuro, mas ela tirara fotografias dos quartos quando fora a uma festa ali, e Benloise não era o tipo de homem que mudava as coisas de lugar. Inferno, toda vez que uma nova exibição era instalada na galeria de arte, ela praticamente sentia o tremor debaixo da pele dele.
Medo de mudança era uma fraqueza, sua avó sempre dizia.
Obviamente facilitava as coisas para ela.
Mais devagar, ela avançou dez passos até o meio do quarto. A cama estaria à esquerda encostada na parede comprida. À sua frente estavam as janelas altas que davam para o jardim. À direita, haveria uma cômoda, uma escrivaninha e algumas cadeiras, e a lareira que nunca era usada porque Benloise detestava o cheiro de madeira queimada.
O alarme de segurança se localizava entre a entrada do banheiro e a cabeceira ornamentada da cama, ao lado do abajur que se elevava noventa centímetros do criado-mudo.
Sola deu um giro ao redor de si mesma. Deu quatro passos. Tentou encontrar o pé da cama... e o encontrou.
Passo lateral, um, dois, três. De frente para o flanco do colchão king-size. Outro passo lateral para desviar da mesinha de cabeceira e do abajur.
Sola esticou o braço esquerdo...
E lá estava o painel de segurança, bem onde deveria.
Abrindo a portinhola, usou uma lanterna de bolso que prendeu entre os dentes para iluminar o circuito. Pegando outro instrumento da mochila, conectou fios a fios, interceptando sinais, e com a ajuda de um laptop em miniatura e de um programa que um amigo seu desenvolvera, criou um circuito fechado dentro do sistema de alarme de modo que, enquanto o roteador estivesse no lugar, os detectores de movimento que ela estava para disparar não seriam registrados.
No que se referia à placa-mãe, nada pareceria anormal.
Deixando o laptop pendurado pelos fios, saiu do quarto, chegou ao corredor, e tomou as escadas para o primeiro andar.
O lugar estava perfeitamente decorado, pronto para uma foto de revista – ainda que, claro, Benloise protegesse demais a sua privacidade para permitir que suas coisas fossem fotografadas para o consumo público. Com passos rápidos, ela passou pelo hall de entrada, pela sala à esquerda e entrou no escritório.
Andando em meio à penumbra, ela bem que preferiria tirar a parca de camuflagem branca e as calças para neve: fazer aquilo em seu body preto seria um clichê que, entretanto, seria bem prático. Não havia tempo, porém, e ela estava mais preocupada em não ser vista do lado de fora do que ali, na casa vazia.
O espaço de trabalho pessoal de Benloise era, como todo o resto debaixo daquele teto, mais um cenário montado do que algo funcional. Ele, na verdade, não usava a imensa escrivaninha, nem se sentava no minitrono, tampouco lia qualquer um dos livros em capa de couro das prateleiras.
Todavia, ele transitava por aquele cômodo. Uma vez ao dia.
Certa vez, num momento de tranquilidade, ele lhe dissera que antes de sair, todas as noites, passeava pela casa olhando seus pertences, lembrando a si mesmo da beleza das suas coleções e de sua casa.
Como resultado dessa informação e de algumas outras coisas, Sola há muito deduzira que o homem crescera na pobreza. Primeiro porque, quando conversavam em espanhol ou em português, seu sotaque pertencia à classe baixa, mesmo que de modo sutil. Segundo, os ricos não valorizavam seus pertences como ele o fazia.
Nada era raro aos ricos, e isso significava que eles davam como certas todas as coisas.
O cofre estava escondido atrás da escrivaninha numa seção de estandes que era liberada por um botão localizado na gaveta inferior do lado direito.
Ela descobrira isso graças a uma minúscula câmera escondida que colocara do lado oposto durante aquela festa.
Após a abertura do mecanismo, um corte de sessenta por noventa centímetros na prateleira rolou para a frente e deslizou para o lado. E lá estava ela: uma caixa grossa de aço, cujo fabricante ela reconhecia.
Pensando bem, depois de invadir centenas de espaços, você acaba conhecendo intimamente os fabricantes. E ela aprovava aquela escolha. Se precisasse ter um cofre, era daquele tipo que ela pegaria e, sim, ele o prendera ao chão.
O maçarico que trouxera na mochila era pequeno, mas poderoso, e enquanto ela acendia a ponta, a chama chamuscou com um sibilo substancial e um brilho branco e azul.
Aquilo levaria tempo.
A fumaça do metal queimado irritava seus olhos, o nariz e a garganta, mas ela manteve a mão firme enquanto produzia um quadrado na frente do painel. Ela conseguia explodir a porta de alguns cofres, mas o único jeito com um daqueles era do modo antigo.
Que levava uma eternidade.
No entanto, ela conseguiu.
Deixando a pesada seção da porta de lado, ela mordeu a ponta da lanterna mais uma vez e se inclinou. Uma prateleira continha joias, cautelas de ações e alguns relógios de ouro que ele deixara à mão. Havia uma pistola que ela seria capaz de apostar que estaria carregada. Nenhum dinheiro.
Pensando bem, com Benloise sempre havia tanto dinheiro disponível que fazia sentido ele não se dar ao trabalho de colocá-lo no cofre.
Maldição. Não havia nada ali que valesse apenas cinco mil dólares.
Afinal, naquele trabalho, ela só estava atrás daquilo que lhe era devido por direito.
Com uma imprecação, ela se apoiou nos calcanhares. Na verdade, não havia nada no cofre que valesse menos do que vinte e cinco mil dólares. E não tinha como ela partir a metade da pulseira de um relógio de ouro – porque, como diabos conseguiria revender a coisa?
Um minuto se passou.
O segundo.
Ao diabo com aquilo, ela pensou ao recolocar o painel que cortara contra o cofre e deslizar a prateleira de volta ao seu lugar. Levantando-se, olhou ao redor da sala com a lanterna de bolso. Os livros eram todos edições de colecionadores de primeiras edições de antiguidades. A arte nas paredes e sobre as mesas não era somente muito cara, como difícil de transformar em dinheiro sem ser debaixo dos panos... para as pessoas intimamente ligadas a Benloise.
Mas, que droga, ela não sairia sem seu dinheiro, maldição...
Abruptamente, sorriu para si mesma, a solução se tornando muito clara.
Por vários anos no curso da civilização humana, o comércio só existira e sobrevivera na base da troca. Ou seja, um indivíduo trocava bens ou serviços por outros de mesmo valor.
Em todos os trabalhos que realizara, ela jamais considerara acrescentar os custos auxiliares aos seus alvos: novos cofres, novos sistemas de segurança, novos protocolos de segurança. Ela podia apostar que isso era caro – ainda que não tão caro quanto o que ela costumava tomar. E ela entrara ali deduzindo que esses custos adicionais seriam arcados por Benloise – um tipo de prejuízo monetário pelo que ele roubara dela.
No entanto, eles agora eram a questão.
No caminho de volta à escada, observou as oportunidades disponíveis... e, no fim, foi até uma escultura de Degas de uma pequena bailarina que fora colocada na lateral de um nicho. A figura em bronze da garotinha era o tipo de coisa que sua avó teria adorado, e talvez por isso, dentre tantas peças, foi aquela a lhe chamar a atenção.
A luz que fora colocada no teto acima da estátua estava desligada, mas a obra-prima ainda assim parecia brilhar. Sola adorou especialmente a saia em tutu, a delicada ainda que rígida explosão de tule delineada por metal entrelaçado que capturava perfeitamente o que deveria ser maleável.
Sola se aproximou da base da escultura, passou os braços ao redor dela, e concentrou toda a sua força em girar a sua posição não mais do que cinco centímetros.
Depois correu para as escadas, retirou os clipes do roteador e do laptop do painel de alarme na suíte principal, trancou novamente a porta e seguiu para a janela na qual cortara um buraco.
Estava de volta nos esquis, deslizando na neve não mais do que quatro minutos mais tarde.
Apesar do fato de não ter nada nos bolsos, ela sorria ao deixar a propriedade.
CAPÍTULO 38
Quando a Mercedes finalmente parou na entrada da mansão da Irmandade, Qhuinn saiu primeiro e foi para a porta em que Layla estava. Quando a abriu, os olhos dela encontraram os dele.
Ele soube que jamais se esqueceria da aparência dela. A tez estava branca como um papel e parecia tão fina quanto um, a bela estrutura óssea se esticando sobre a cobertura de pele. Os olhos estavam encovados no crânio. Os lábios, finos e inexpressivos.
Naquele instante, ele teve um vislumbre de como ela ficaria ao morrer, não importando quantas décadas e séculos isso fosse levar para acontecer.
– Eu carrego você – disse ele, inclinando-se para pegá-la no colo.
O modo como ela não discutiu lhe contou exatamente o pouco que restava dela.
Quando as portas de entrada foram abertas por Fritz, como se o mordomo estivesse esperando pela chegada deles, Qhuinn se arrependeu de tudo: do sonho que acalentara por um instante durante o cio dela. A esperança desperdiçada. A dor física pela qual ela passava. A angústia emocional que ambos atravessavam.
Você fez isso com ela.
Na época, quando a servira, ele só se concentrara no resultado positivo do qual esteve tão certo.
Agora, depois de tudo, com os coturnos fincados na realidade sólida e fétida? Não valia a pena. Mesmo a possibilidade de um filho saudável não valia aquele sacrifício.
O pior de tudo era testemunhar o sofrimento dela.
Ao carregá-la para dentro da casa, rezou para que não houvesse uma grande plateia. Ele só gostaria de poupá-la de tudo, de qualquer coisa, mesmo do simples fato de desfilar diante de rostos tristes e preocupados.
Não havia ninguém por perto.
Qhuinn subiu os degraus dois de cada vez e, ao chegar ao segundo andar, as grandes portas duplas do escritório de Wrath abertas o fizeram praguejar.
Pensando bem, o Rei era cego.
Enquanto George emitiu um latido de boas-vindas, Qhuinn apenas passou pela frente, indo direto para o quarto de Layla. Abrindo a porta com um chute, descobriu que o doggen estivera ali e limpara tudo, arrumando a cama, decerto tendo até trocado os lençóis, e também havia um vaso de flores frescas.
Ao que tudo levava a crer, ele não era o único disposto a ajudar em qualquer coisa que pudesse.
– Quer trocar de roupa? – perguntou ao fechar a porta com outro chute.
– Quero tomar banho...
– Vamos providenciar isso.
– ... mas estou com muito medo. Eu não quero... ver, se é que me entende.
Ele a deitou e se sentou ao seu lado na cama. Colocando uma mão em sua perna, esfregou-lhe o joelho com o polegar, de um lado para o outro.
– Sinto muito – disse ela com pesar.
– Droga... Não, não faça isso. Jamais pense nem diga isso, está bem? Isto não é culpa sua.
– De quem mais é?
– Isso não vem ao caso.
Merda, ele não conseguia acreditar que o processo do aborto duraria mais ou menos uma semana. Como podia ser possível...
A careta que contraiu o rosto de Layla revelou a ele que uma cólica a assolava novamente. Olhando de relance para trás, esperando ver a doutora Jane, descobriu que estavam sozinhos.
O que garantiu, mais do que tudo, que não havia nada a ser feito.
Qhuinn deixou a cabeça pensa e segurou a mão dela.
Aquilo começara com os dois.
E estava terminando com os dois.
– Acho que gostaria de dormir um pouco – disse Layla ao apertar a mão dele. – Você também parece estar precisando...
Ele olhou para a chaise-longue do outro lado.
– Você não precisa ficar comigo – murmurou ela.
– Onde mais eu ficaria?
Uma breve visão mental de Blay abrindo os braços cruzou sua mente. Que fantasia, hein...
Nunca mais me toque assim.
Qhuinn sacudiu a cabeça para que tais pensamentos sumissem.
– Vou dormir ali.
– Você não pode ficar aqui por sete noites seguidas.
– Vou repetir mais uma vez. Onde mais eu...
– Qhuinn – a voz dela soou estridente. – Você tem o seu trabalho. E você ouviu Havers. Isto vai levar o tempo que for preciso e, provavelmente, vai demorar um pouco. Não corro o risco de ter uma hemorragia e, francamente, sinto como se devesse ser forte na sua frente, e não tenho a energia necessária para isso. Por favor, volte aqui para me ver o quanto quiser. Mas vou enlouquecer se você montar acampamento aqui até isso tudo terminar.
Desespero comedido.
Era tudo o que Qhuinn tinha enquanto permanecia sentado na beira da cama, segurando a mão de Layla.
Ele acabou se levantando pouco depois. Claro, ela estava certa. Ela precisava descansar o máximo possível e, de fato, além de ficar olhando para ela e fazendo com que ela se sentisse fraca, não havia nada que ele pudesse fazer.
– Não estarei longe.
– Sei disso – ela suspendeu o punho dele para os seus lábios, e ele ficou chocado ao perceber o quanto eles estavam frios. – Você tem se mostrado... mais do que eu seria capaz de pedir.
– Não... Não fiz nada de...
– Você fez o que era certo e apropriado. Sempre.
Aquilo era uma questão de opinião.
– Preste atenção. Vou estar sempre com meu telefone por perto. Volto em algumas horas para ver como você está. Se estiver dormindo, eu não a incomodarei.
– Obrigada.
Qhuinn assentiu com a cabeça e andou de lado até a porta. Certa vez ouvira que não se devia dar as costas a uma Escolhida, e ele imaginou que demonstrar um pouco de protocolo não faria mal.
Fechando a porta atrás de si, ele se recostou nela. A única pessoa que ele queria ver era o único cara naquela casa que não tinha interesse algum em...
– O que está acontecendo?
A voz de Blay foi um choque tão grande que ele pensou que a tivesse imaginado. A não ser pelo fato de que o macho em pessoa acabara de passar pela porta da sala de estar do segundo andar. Como se estivesse ali esperando o tempo inteiro.
Qhuinn esfregou os olhos e depois começou a andar, o corpo procurando a única coisa pela qual ele vinha rezando.
– Ela está abortando – Qhuinn se ouviu dizer numa voz morta.
Blay murmurou algo em resposta, mas que não ficou registrado.
Engraçado, o aborto não lhe parecera real até aquele momento. Não até contar a Blay.
– O que disse? – perguntou Qhuinn, ciente de que o cara esperava por uma resposta.
– Posso fazer alguma coisa?
Tão engraçado. Qhuinn sempre achou que saíra do ventre da mãe já como um adulto. Pensando bem, nunca houve nenhum agradinho materno, nada de abraços quando ele se machucava, nenhum amparo quando ele tinha medo. Como resultado, quer fosse um aspecto do seu caráter, ou o modo como fora criado, ele nunca regredira. Não havia para o que voltar.
Todavia, foi com a voz de uma criança que disse:
– Faz isso parar?
Como se só Blay tivesse o poder de operar um milagre.
E então... foi o que o macho fez.
Blay abriu os braços, oferecendo o único refúgio que Qhuinn sempre conheceu.
– Faz isso parar?
O corpo de Blay começou a tremer quando Qhuinn enunciou essas palavras: depois de todos esses anos, ele vira o cara em diferentes estados de humor dependendo da circunstância. Porém, jamais assim. Nunca... tão completa e absolutamente devastado.
Nunca perdido como uma criança.
A despeito da sua necessidade de se manter verdadeiramente afastado de qualquer vínculo emocional, seus braços se abriram por vontade própria.
Enquanto Qhuinn avançava para ele, o corpo do guerreiro parecia menor e mais frágil do que de fato era. E os braços que passaram ao redor da cintura de Blay simplesmente ficaram lá, como se não tivessem força nos músculos.
Blay sustentou a ambos.
E antecipou que Qhuinn recuaria rapidamente. Normalmente, o cara não suportava nenhum tipo de conexão intensa além da sexual por mais tempo do que um segundo e meio.
Qhuinn não o fez, porém. Ele parecia preparado para ficar parado na entrada da sala de estar para sempre.
– Venha – disse Blay, levando o macho para dentro e fechando a porta. – Vamos para o sofá.
Qhuinn o seguiu, os coturnos se arrastando em vez de marcharem.
Quando chegaram ao sofá, sentaram-se de frente, os joelhos se tocando. Quando Blay o fitou, a tristeza ressonante o tocou tão profundamente, que não pôde evitar que a mão se esticasse e afagasse o cabelo escuro...
Sem aviso, Qhuinn se enroscou ao seu encontro, simplesmente se deixou cair, o corpo se dobrando ao meio, quase se desmanchando no colo de Blay.
Uma parte de Blay reconhecia que aquele era um terreno perigoso. Sexo era uma coisa, e já bem difícil de lidar, ora essa. Aquele momento tranquilo? Era potencialmente devastador.
Motivo pelo qual saíra num rompante daquele quarto na noite anterior.
A diferença desta noite, porém, era que ele estava no controle. Era Qhuinn quem buscava conforto, e Blay podia negar ou oferecer, dependendo de como se sentisse. Ser o depositário da confiança de alguém era absolutamente diferente de recebê-la... ou necessitá-la.
Blay era bom nisso. Havia uma medida de segurança, de controle. Não era o mesmo que cair num abismo. E, inferno, se alguém devia saber isso, esse alguém era ele. Deus bem sabia que ele passara anos lá embaixo.
– Eu faria qualquer coisa para mudar isso – disse Blay, afagando as costas de Qhuinn. – Odeio o que você está passando...
Ah, as palavras eram tão inúteis...
Ficaram ali por um tempo enorme, a tranquilidade da sala formando uma espécie de casulo. Periodicamente, o relógio antigo sobre a lareira tocava, e depois de um bom tempo, as persianas começaram a baixar sobre as janelas.
– Gostaria que existisse algo que eu pudesse fazer – disse Blay quando os painéis de aço chegaram ao fim com um baque.
– Deve estar na hora de você ir.
Blay deixou aquela passar. A verdade não era algo que ele quisesse partilhar: nem cavalos selvagens, ou armas carregadas, pés-de-cabra, mangueiras de incêndio, estouro de elefantes... nem mesmo uma ordem do Rei em pessoa o teria tirado dali.
E havia uma parte sua que ficava zangada com isso. Não com Qhuinn, mas com seu próprio coração. A questão era que não se pode lutar contra a sua natureza, e era isso o que ele vinha aprendendo. No rompimento com Saxton. Em se revelar à mãe. Naquele exato instante.
Qhuinn gemeu ao suspender o tronco e depois esfregar o rosto. Quando abaixou as mãos, as faces estavam vermelhas, bem como os olhos, mas não porque ele estivesse chorando.
Indubitavelmente, a sua cota de lágrimas da década fora derramada na noite anterior quando ele chorara de alívio por ter salvado a vida de um pai.
E se soubesse que Layla não estava bem naquele instante?
– Sabe o que é pior? – perguntou Qhuinn, parecendo um pouco mais consigo mesmo.
– O quê? – Deus bem sabia que a gama de opções era vasta.
– Eu vi a criança.
Os pelos da nuca de Blay se eriçaram.
– Do que está falando?
– Na noite em que a Guarda de Honra veio atrás de mim e que quase morri, lembra?
Blay deu uma tossidela, a lembrança era tão vívida e visceral como se tivesse acontecido uma hora antes. E mesmo assim a voz de Qhuinn era calma e tranquila, como se ele estivesse se referindo a uma noite numa boate ou algo assim.
– Sim, eu me lembro.
E pensou, eu fiz boca a boca em você no acostamento da estrada, porra.
– Eu fui até o Fade... – Qhuinn franziu o cenho. – Você está bem?
Ah, sim, claro, uma maravilha.
– Desculpe. Pode continuar.
– Fui até lá. Quero dizer, é como... a gente ouviu falar. Branco – Qhuinn esfregou o rosto de novo. – Tão branco. Tudo. Havia uma porta, e eu caminhei até ela... Eu sabia que se girasse a maçaneta, entraria e não sairia mais. Eu estava prestes a tocá-la quando... foi então que eu a vi. Na porta.
– Layla – interpôs Blay, sentindo como se o peito tivesse sido apunhalado.
– A minha filha.
A respiração de Blay ficou presa.
– A sua...
Qhuinn o encarou.
– Ela era... loira. Como Layla. Mas os olhos... – ele levou a mão próxima aos seus. – Eram como os meus. Parei de andar quando a vi e depois, de repente, eu estava de volta no chão, no acostamento da estrada. Depois disso, fiquei sem saber o que foi tudo aquilo. Mas depois, muito tempo depois, Layla entrou no cio e me procurou, e tudo se encaixou. Era como se aquilo... tivesse que acontecer. Pareceu o destino, sabe. De outro modo, eu jamais teria me deitado com Layla. Só fiz isso porque eu sabia que teríamos uma garotinha.
– Jesus.
– Mas eu estava errado – ele esfregou o rosto pela terceira vez. – Errei feio... E o que eu mais queria era não ter tomado esse caminho. O maior arrependimento da minha vida... Bem, o segundo maior, na verdade.
A Blay só restou imaginar o que poderia ser pior do que aquilo pelo que ele passava.
O que posso fazer?, Blay se perguntou.
Os olhos de Qhuinn procuraram os dele.
– Quer mesmo que eu responda a isso?
Pelo visto, ele pensara em voz alta.
– Sim, claro.
A mão da adaga de Qhuinn se levantou e amparou a lateral do rosto de Blay.
– Certeza?
O clima mudou de pronto. A tragédia ainda estava com eles, mas a poderosa ressaca sexual os abateu entre uma pulsação e a seguinte.
O olhar de Qhuinn começou a queimar, as pálpebras pesaram.
– Preciso... de uma âncora agora. Não sei explicar de modo melhor.
O corpo de Blay reagiu instantaneamente, o sangue fervendo, o membro engrossando e esticando.
– Deixe-me beijar você – Qhuinn gemeu ao se inclinar. – Sei que não mereço, mas, por favor... é isso o que você pode fazer por mim. Deixe-me senti-lo...
A boca de Qhuinn resvalou a dele. Voltou para um pouco mais. Demorou-se.
– Vou implorar – mais carícias daquela boca devastadora. – Se for preciso. Estou pouco me importando, eu vou implorar...
De algum modo, isso não seria necessário.
Blay deixou a cabeça ser inclinada para abrir caminho para mais manobras, a mão de Qhuinn em seu rosto tanto gentil quanto no comando. E, então, houve mais boca a boca, lento, arrastando-se, inexorável.
– Deixe-me estar dentro de você de novo, Blay...
CAPÍTULO 39
Assail voltou para casa cerca de meia hora antes do amanhecer. Ao estacionar o Range Rover na garagem, ele teve que esperar a porta abaixar para sair.
Sempre se considerara um intelectual – e não no sentido atribuído pela glymera, onde um se sentia importante ao discorrer sobre literatura, filosofia ou assuntos espirituais. Era mais pelo fato de existirem poucas coisas na vida na qual ele não podia aplicar seu raciocínio e entender a sua totalidade.
O que diabos aquela mulher fizera na casa de Benloise?
Obviamente ela era uma profissional, com tanto equipamento quanto técnica, e uma abordagem de infiltração muito praticada. Ele também suspeitava que ou ela tivesse a planta da casa ou estivera lá previamente. Tão eficiente. Tão decidida. E ele estava qualificado para julgar: seguira-a o tempo inteiro em que ela esteve dentro da casa, penetrando como um fantasma pela janela que ela abrira, atendo-se às sombras.
Seguindo o rastro dela por trás.
Mas aquilo ele não entendia: que tipo de ladrão se dá ao trabalho de invadir uma casa segura, encontra um cofre, queima-o para abri-lo, descobre muitas riquezas portáteis... mas não leva nada? Porque ele vira muito bem ao que ela teve acesso; assim que ela saiu do escritório, ele permanecera lá, soltando a prateleira como ela fizera antes, e usara a própria lanterna para dar uma espiada no cofre.
Só para descobrir o que ela deixara para trás, se é que tinha deixado algo.
Quando ele voltou para a casa em si, evitando qualquer fonte de luz, observara-a parada um instante no hall de entrada, com as mãos nos quadris, a cabeça virando lentamente, como se ela estivesse considerando suas opções.
E então ela se aproximou de uma estátua que só podia ser de Degas... e a girara apenas alguns centímetros para a esquerda.
Isso não fazia sentido.
Bem, era possível que ela tivesse invadido o cofre procurando por algo específico que, na verdade, não estava lá. Um anel, uma bugiganga, um colar. Um chip de computador, um pendrive, um documento como um testamento ou apólice de seguro. Mas a demora no hall não estava de acordo com a diligência anterior... e depois ela só moveu uma estátua?
A única explicação era que aquilo fora uma violação deliberada da propriedade de Benloise.
O problema era que, no que se referia a vinganças contra objetos inanimados, era difícil encontrar muita significância nos atos dela. Derrubasse a estátua, então. Levasse a maldita coisa. Danificasse-a com obscenidades em tinta spray. Batesse nela com um pé-de-cabra para que ficasse destruída. Mas uma leve virada que mal se podia perceber?
A única conclusão a que ele conseguia chegar era que aquilo fora um tipo de mensagem. E ele não gostava nem um pouco disso.
Pois sugeria que talvez ela conhecesse Benloise pessoalmente.
Assail abriu a porta do motorista...
– Oh, meu Deus... – sibilou, retraindo-se.
– Ficamos imaginando quanto tempo você ainda ficaria aí.
Enquanto uma voz ríspida se pronunciava, Assail saiu do carro e olhou ao redor da garagem para cinco carros. O fedor estava num meio-termo entre um atropelamento de três dias, maionese estragada e perfume barato.
– Isso é o que eu estou pensando? – perguntou aos primos, que estavam parados na soleira da antessala.
Graças à Virgem Escriba, eles avançaram e fecharam a porta que dava para a casa; caso contrário, aquele fedor horrendo invadiria o resto da construção.
– São os seus traficantes. Bem, parte deles, na verdade.
Que. Merda. Era. Aquela?
As passadas longas de Assail o levaram na direção que Ehric apontava: o canto oposto, onde três sacos plásticos verdes-escuro foram jogados de lado sem cuidado algum. Agachando-se, ele afrouxou a tira amarela de um deles, puxou a beirada e...
Deparou-se com os olhos sem vida de um humano que ele reconhecia.
A cabeça inanimada fora arrancada da coluna uns dez centímetros abaixo da mandíbula, e estava virada de modo a fitar para fora de seu caixão frouxo. O cabelo escuro e a pele vermelha estavam marcados por sangue preto e brilhante, e se o cheiro esteve ruim próximo ao carro, ali, bem perto, fez seus olhos lacrimejarem e a garganta se contrair num protesto.
Não que ele se importasse.
Abriu os outros dois sacos e, usando o plástico como “luva”, virou as outras cabeças na mesma posição.
Depois se sentou e ficou olhando para as três, observando as bocas escancaradas e impotentes em busca de ar.
– Contem o que aconteceu – ordenou sombriamente.
– Aparecemos na hora combinada.
– Rinque de patinação, na margem do rio ou debaixo da ponte?
– Ponte. Chegamos – Ehric apontou para o irmão gêmeo, que estava parado em silêncio ao seu lado – na hora com o produto. Uns cinco minutos depois, esses três apareceram.
– Como redutores.
– Eles tinham o dinheiro. Estavam prontos para fazer a transação.
Assail girou a cabeça na direção dele.
– Eles não foram lá para atacá-los?
– Não, mas só descobrimos isso quando já era tarde demais – Ehric deu de ombros. – Eram assassinos que apareceram do nada. Não sabíamos quantos havia, e não queríamos nos arriscar. Foi só depois que vasculhamos os bolsos e encontramos o montante certo de dinheiro que percebemos que eles só foram lá para fazer negócios.
Redutores no tráfico? Aquilo era novidade.
– Vocês apunhalaram os corpos?
– Pegamos as cabeças e escondemos o que restou. O dinheiro estava na mochila desse da esquerda e, naturalmente, nós o trouxemos para casa.
– Celulares?
– Peguei.
Assail começou a acender um charuto, mas não queria desperdiçar o sabor. Fechando os sacos, levantou-se acima da carnificina.
– Tem certeza de que não foram agressivos?
– Estavam mal preparados para se defenderem.
– Estar mal armado não significa que eles não estivessem lá para matá-los.
– Por que levar o dinheiro?
– Eles podiam estar negociando em outro lugar.
– Como já disse, era a quantia correta e nem um centavo a mais.
Abruptamente, Assail gesticulou para que o seguissem para o interior da casa e, ah, que alívio quando chegaram ao ar limpo. Com as telas descendo lentamente sobre as janelas de vidro, e com o alvorecer se completando, ele foi para o bar, pegou um galão de Bouchard Père et Fils, Montrachet, 2006 e estalou a rolha.
– Querem me acompanhar?
– Sim, claro.
Na mesa redonda na cozinha, ele se sentou com três taças e a garrafa. Servindo os três, dividiu o chardonnay com os dois sócios.
Porém, não lhes ofereceu seus cubanos. Eram valiosos demais.
Felizmente, cigarros apareceram e todos se sentaram juntos, fumando e saboreando goladas sublimes da beira afiada do seu Baccarat.
– Nenhuma agressão por parte dos assassinos – murmurou, inclinando a cabeça para trás para baforar, a fumaça azulada se elevando sobre sua cabeça.
– E a quantia exata.
Depois de um momento, ele voltou a olhar para eles.
– Será possível que a Sociedade Redutora esteja tentando entrar no meu ramo de negócios?
Xcor estava à luz de velas, sozinho.
O armazém estava tranquilo, seus soldados ainda não tinham retornado, nenhum humano, nenhum Sombra, nada caminhava sobre ele. O ar estava frio; o mesmo com o concreto abaixo dele. A escuridão o envolvia, a não ser pela fraca fonte de luz perto da qual ele estava sentado.
Algo no fundo de sua mente lhe dizia que estava perigosamente perto de amanhecer. Também havia outra coisa, algo de que ele deveria ter se lembrado.
Mas não havia a mínima chance de que algo transpusesse seu torpor.
Com os olhos fixos na única chama diante dele, Xcor repassou os eventos da noite em sua cabeça.
Dizer que ele encontrara a localização da Irmandade seria talvez aumentar um pouco a verdade, mas não uma falácia completa. Seguira aquela Mercedes para o interior, quilômetro após quilômetro, sem nenhum plano real do que deveria ou poderia fazer quando ela parasse... quando, do nada, o sinal do sangue no corpo de sua Escolhida não só se perdeu, mas foi totalmente redirecionado, como se uma bola lançada contra um muro tivesse alterado repentinamente a sua trajetória.
Confuso, ele vasculhou os arredores, desmaterializando aqui, acolá, para cima e para baixo e, durante o tempo todo, uma sensação de horror se abatendo sobre ele. Recuando, ele se viu na base de uma montanha, com seus contornos, mesmo sob o luar claro, registrados de maneira estranha, indistinta, pouco nítida.
O lugar em que eles ficavam só podia ser ali.
Talvez no alto da montanha. Talvez do outro lado.
Não havia outra explicação – afinal, a Irmandade vivia com o Rei para protegê-lo... portanto, indubitavelmente, eles tomariam precauções do tipo que ninguém mais conseguiria tomar, ou quem sabe, tivessem ao seu dispor tecnologias e provisões místicas que seriam, de outro modo, indisponíveis.
Em frenesi, ele circundou os arredores, dando a volta na base algumas vezes, pressentindo nada além da refração do sinal dela e aquela sensação de horror. Sua conclusão era de que ela deveria estar em algum lugar daquela imensidão: ele teria pressentido se ela tivesse atravessado para o outro lado, e seria razoável concluir que se tivesse ido para o seu templo sagrado, até um plano alternativo de existência, ou – que o destino não permitisse – morrido, aquele eco ressonante dentro dele teria desaparecido.
A sua Escolhida estava ali em algum lugar.
Retornando para o armazém, para o presente, para onde ele estava agora, Xcor esfregou as palmas para frente e para trás lentamente, o raspar dos calos interrompendo a quietude. À esquerda, no limiar da luz de velas, suas armas estavam dispostas lado a lado, as adagas, as pistolas, e sua adorada foice cuidadosamente organizadas ao lado de uma pilha confusa de roupas de sair que ele retirara assim que escolhera aquele lugar específico no chão.
Concentrou-se na foice e esperou que ela lhe falasse: ela o fazia com frequência, com seus modos sedentos de sangue em compasso com a agressividade que fluía em suas veias e que definia seus pensamentos e motivava suas ações.
Aguardou que ela lhe dissesse para atacar a Irmandade onde eles ficavam. Onde as fêmeas moravam. Onde as crianças dormiam.
O silêncio era preocupante.
De fato, sua chegada ao Novo Mundo fora baseada no desejo de ganhar poder, a expressão maior e mais arrojada desse desejo era tomar o trono, portanto, naturalmente, esse era o curso que ele escolhera. E estava progredindo. A tentativa de assassinato no outono, que, sem sombra de dúvida, lançara uma sentença de morte sobre a sua cabeça e a dos seus soldados, fora uma medida tática que quase colocara um ponto final na guerra inteira antes mesmo de ela começar. E seus esforços contínuos com Elan e com a glymera estavam promovendo seus objetivos e reforçando seu apoio dentro da aristocracia.
Mas aquilo que ele descobrira naquela noite...
Deuses, quase um ano de trabalho, sacrifício, planejamento e combate perdiam importância em comparação com a sua descoberta.
Se seu palpite estivesse correto – e como não podia estar? –, tudo o que ele tinha de fazer era marchar com seus soldados e começar um cerco assim que a noite caísse. A batalha seria épica, e a Irmandade e o lar da Primeira Família seriam permanentemente comprometidos, independentemente do resultado.
Seria um conflito digno dos livros de História – afinal, a primeira vez em que a propriedade real fora atingida foi quando o progenitor e a mahmen de Wrath foram assassinados antes da transição dele.
A história se repetia.
E ele e seus soldados tinham uma séria vantagem em relação àqueles assassinos que, na época, não possuíram: a Irmandade agora tinha muitos machos vinculados. Na verdade, ele acreditava que todos eles estivessem vinculados, e isso dividiria as atenções e as lealdades dos machos como nada mais conseguiria fazer. Ainda que a diretriz principal deles como guarda pessoal do Rei fosse proteger Wrath, seus cernes estariam divididos, e mesmo o mais forte dos lutadores com as melhores armas estaria enfraquecido se suas prioridades estivessem em dois lugares distintos.
Além disso, se Xcor ou um dos seus soldados conseguisse apanhar uma daquelas shellans, a Irmandade esmoreceria, porque a outra coisa verdadeira a respeito deles era que a dor de um dos Irmãos era a própria agonia.
Só bastaria uma fêmea de qualquer um deles, a arma derradeira.
Ele sabia disso em sua alma.
Sentado à luz da vela, Xcor esfregou a lâmina da adaga na palma de sua mão, de um lado para o outro, de um lado para o outro.
Uma fêmea.
Era só disso que ele precisava.
E ele conseguiria não só reivindicar sua própria fêmea... mas também o trono.
CAPÍTULO 40
Qhuinn sabia que acabara de colocar Blay numa posição totalmente injusta.
Transa por pena, hein? Mas, ah, Deus, encarando aqueles olhos azuis, aqueles malditos olhos azuis sem fundo que estavam francos para ele do mesmo modo que um dia estiveram... era só no que conseguia pensar. E, sim, tecnicamente era sexo em termos de onde ele queria suas diversas partes – bem, uma mais especificamente. No entanto, havia muito mais do que apenas isso.
Ele não sabia expressar em palavras; simplesmente não era bom em juntar as sílabas. Mas seu desejo de conexão foi o que o levou ao beijo. Ele quis mostrar a Blay o que estava querendo dizer, do que ele precisava, por que aquilo era importante: seu mundo inteiro parecia estar desmoronando e a perda que acontecia na porta ao lado doeria por um bom tempo.
No entanto, estar com Blay, sentir o seu calor, fazer contato, era como uma promessa de cura. Mesmo se durasse apenas o tempo em que estivessem ali naquela sala, ele aceitaria, e guardaria aquilo para si... para relembrar quando precisasse.
– Por favor – sussurrou.
Só que ele não deu chance para o cara responder. Sua língua saiu sorrateira e lambeu aquela boca, escorregando para dentro, assumindo o controle.
E a resposta de Blay foi o modo como ele se permitiu ser empurrado para trás nas almofadas do sofá.
Qhuinn teve dois pensamentos vagos: um, a porta só estava fechada, não trancada – e ele cuidou disso desejando que a trava de latão ficasse no lugar certo. E o segundo pensamento momentâneo era que eles não poderiam destruir aquele lugar. Explodir tudo em seu quarto era uma coisa. A sala de estar era propriedade pública, e muito bem decorada, com as almofadas de seda e as cortinas luxuosas, e um monte de outras coisas que pareciam facilmente rasgáveis, amassáveis, Deus, mancháveis...
Além disso, ele já destruíra seu Hummer, acabara com o jardim e sacudira o quarto. Portanto, sua cota de Destruidor já ultrapassara, e muito, o calendário anual...
Naturalmente, a solução mais prática para não dar nenhuma preocupação adicional a Fritz seria percorrer o corredor rapidamente até o seu quarto, mas enquanto as mãos talentosas de Blay estavam na frente do quadril de Qhuinn, já abaixando seu zíper, ele lançou essa ideia brilhante no cesto de lixo.
– Ai, Deus, toque-me – gemeu, empurrando a pélvis para a frente.
Ele só teria de ser comportado e bem limpinho com aquilo.
Presumindo que isso fosse possível.
Quando a palma de Blay se enfiou em sua calça de couro, o corpo de Qhuinn se arqueou, o torso curvando-se para trás enquanto o outro iniciava os trabalhos. O ângulo estava meio errado, por isso não havia muita fricção, e suas bolas estavam sendo beliscadas pela costura da calça, mas santo inferno, ele não se importava. O fato de que aquele era Blay bastava.
Cacete, depois de anos de chupadas, punhetas e transas, aquela parecia a primeira vez que alguém tocava nele.
Ele precisava retribuir o favor.
Entrando em ação, elevou o peito e aproximou os rostos. Caramba, ele adorava a expressão daqueles olhos azuis enquanto Blay o encarava, quente, selvagem, sensual.
Com tesão.
Qhuinn o segurou com força e aproximou as bocas, agarrando-se àqueles lábios, lançando a língua, tomando tudo como um desvairado...
– Espere, espere – Blay retrocedeu. – Vamos quebrar o sofá.
– O quê...? – o cara parecia estar falando inglês, mas pro inferno se ele conseguia traduzir. – Sofá?
E então ele percebeu que empurrara tanto Blay no braço do móvel, que a coisa estava começando a se inclinar. Que era mais do que duzentos quilos de sexo poderiam fazer em uma peça de mobília.
– Ai, merda, desculpe.
Ele estava começando a recuar quando Blay assumiu o controle e Qhuinn, de repente, viu-se fora do sofá, de costas no chão, as pernas unidas, as calças sendo empurradas para os tornozelos.
Ideia. Genial.
Graças ao fato de ele não usar cuecas, seu pau estava todo exposto, grosso e tenso, ao ser lançado para cima, dolorido e inchado por sobre a barriga. Abaixando a mão, ele deu umas puxadas enquanto Blay arrancava seus coturnos que estavam atrapalhando, largando-os de lado. As calças foram as próximas a darem adeus, e, com Deus como testemunha, Qhuinn nunca antes ficou tão contente em ver um par de couro voar por cima do ombro em toda a sua vida.
Em seguida, Blay voltou ao trabalho.
Qhuinn teve que fechar os olhos quando sentiu as coxas sendo afastadas e um par de mãos de lutador puxar o interior de suas pernas. Imediatamente ele soltou a ereção, afinal, porque ter a palma atrapalhando quando Blay poderia...
Não foram as mãos do cara que o seguraram.
Foi a boca quente e úmida que Qhuinn beijara pra cacete pouco antes.
Por uma fração de segundo, enquanto a sucção abocanhava a ponta e o mastro, ele teve o pensamento maldito de que Saxton ensinara Blay a fazer aquilo: seu maldito primo fizera aquilo com o cara, e fizera com que ele...
Pare, ordenou-se. Quaisquer lições aprendidas e a história por detrás delas não importavam, era a sua ereção que recebia atenção naquele instante. Por isso, que se dane essa merda.
Para deixar isso bem claro, forçou seus olhos a se abrirem. Inferno... do céu...
A cabeça de Blay subia e descia em seus quadris, o punho segurava a base do pau de Qhuinn, a outra mão se ocupava com as bolas. Mas então, como se estivesse esperando por contato visual, o cara parou no alto, libertou a cabeça e lambeu os lábios.
– Eu não gostaria que você fizesse uma lambança nesta linda sala – Blay disse com fala arrastada.
E então, estendeu a ponta da língua para açoitar o piercing no pênis de Qhuinn, a carne rosada brincando com a argola cinza de metal e a bolinha...
– Caralho. Vou gozar agora – grunhiu Qhuinn, com uma onda fervente se avolumando. – Eu vou...
Ele estava impotente para deter as coisas, muito mais até do que alguém que tivesse se lançado de um precipício e que, depois de metros de queda livre, quisesse desistir.
Só que ele não queria pisar no freio.
E não pisou.
Com um rugido potente, que provavelmente foi ouvido em outros lugares, a espinha de Qhuinn se afastou do chão, o traseiro ficou rígido, as bolas explodiram, a excitação esguichando com força na boca de Blay. E não foi só o seu sexo que foi afetado. O orgasmo o atingiu em todo o corpo, uma energia latente emergindo por ele enquanto cravava as unhas no tapete em que estava deitado, os dentes cerrados... e gozando como um animal selvagem.
Felizmente, Blay se mostrou mais do que eficiente na limpeza. E se isso não o fez gozar ainda mais... Também lhe deu muito para o que olhar: pelo resto dos seus dias, Qhuinn jamais se esqueceria da visão da boca do macho o envolvendo, as bochechas sugando enquanto ele libertava seu gozo e ele absorvia tudo. De novo e de novo e de novo.
Normalmente, Qhuinn ficava pronto para outra em seguida, mas quando as ondas tumultuadas finalmente se quebraram sobre ele, ele ficou completamente inerte, os braços largados no chão, os joelhos moles, a cabeça pensa.
– Não consigo me mexer – murmurou.
O riso de Blay foi profundo e sensual.
– Você parece um pouco cansado.
– Posso retribuir o favor?
– Você consegue levantar a cabeça?
– Ela ainda está grudada no meu corpo?
– Pelo que vejo, sim, está.
Enquanto Blay ria de novo, Qhuinn soube o que queria fazer e isso o surpreendeu. Em todas as suas explorações sexuais, ele nunca se permitiu ser enrabado. Não era assim que as coisas aconteciam. Ele era o conquistador, o que tomava, o que estabelecia o controle e conservava a superioridade.
Ficar por baixo simplesmente não o interessava.
E agora era o que queria.
O único problema era que, literalmente, não conseguia se mexer. Ah, sim, e havia uma coisinha a mais: como contar a Blay que ele era virgem?
Porque ele desejava. Se um dia chegasse àquilo, ele queria que Blay soubesse. Por algum motivo, isso era importante.
De repente, o rosto de Blay apareceu em seu campo de visão, e, Deus, como o lutador era lindo, o rosto afogueado, os olhos reluzentes, aqueles ombros largos bloqueando tudo.
E, ah, sim, aquele sorriso sexy como o inferno, tão satisfeito consigo e autossuficiente, como se o fato de Blay ter provocado tanto prazer em alguém fosse o bastante para que ele não precisasse do próprio alívio.
Mas isso não seria justo, seria?
– Não acho que você vai voltar a se mexer tão cedo – comentou Blay.
– Talvez. Mas posso abrir a boca – foi a resposta misteriosa. – Tanto quanto você.
Certo, tudo bem, a ideia de que provocava um orgasmo daquele em Qhuinn foi tão ratificadora que Blay se esquecera por completo do seu corpo.
A questão era que após tantos anos de rejeição, era uma emoção sem igual sentir poder em relação ao cara, ser aquele quem comandava o ritmo... a pessoa que levava Qhuinn a um lugar vulnerável e erótico muito mais intenso do que qualquer outro antes. E foi isso o que aconteceu. Ele sabia exatamente como Qhuinn ficava e como soava quando gozava, e Blay podia afirmar, sem nenhum traço de dúvida, que ele jamais vira seu camarada tão prostrado como agora, largado no tapete, os músculos do pescoço esticados, os abdominais contraídos, os quadris bombeando com força.
Qhuinn gozara praticamente vinte minutos direto.
E agora, no pós-coito, uma estranha revelação: até aquele instante, Blay jamais reconhecera o cinismo que Qhuinn carregava no rosto o tempo inteiro... as sobrancelhas caídas, o canto da boca perpetuamente repuxado para cima... o maxilar nunca, jamais relaxado.
Era como se toda a torpeza que a família lhe fizera tivesse permanentemente esculpido suas feições.
Mas não era verdade, não é mesmo? Durante o orgasmo, e agora, enquanto as coisas se acalmavam, nada daquela tensão era visível em lugar algum. O rosto de Qhuinn estava... livre de toda reserva, parecendo tão mais jovem, e Blay teve que se perguntar por que nunca percebera a idade dele antes.
– Então, vai me dar algo para eu chupar enquanto me recupero? – Qhuinn perguntou.
– O quê...?
– Estou com sede. E preciso chupar alguma coisa – dito isso, Qhuinn mordeu o lábio inferior, as presas brancas brilhantes afundando na pele. – Vai me ajudar?
Os olhos de Blay reviraram em suas órbitas.
– É... acho que posso fazer isso.
– Então me deixe tirar suas calças.
As pernas de Blay se levantaram com tanta rapidez que ele teve um insight novo sobre as leis da física, e enquanto ele chutava os sapatos, as mãos tremiam ao desabotoar a calça. As coisas foram bem rápidas a partir dali. E durante o tempo todo em que se despia, ele estava absolutamente ciente de tudo o que havia na sala – especialmente Qhuinn. O macho estava ficando rígido novamente, o sexo engrossando apesar de tudo pelo que acabara de passar... as coxas pesadas se contraindo e a pélvis rolando... a parte baixa do tronco tão delgada que cada sutil mudança do torso era refletida na pele esticada e bronzeada.
– Isso aí... – Qhuinn sibilou, as presas se estendendo do maxilar superior, as mãos procurando, e encontrando, o sexo, apalpando-o em movimentos longos e lentos. – Isso mesmo.
A respiração de Blay começou a acelerar, os batimentos cardíacos subindo até o telhado enquanto os olhos descombinados de Qhuinn se prendiam ao seu sexo.
– É isso o que eu quero – o macho grunhiu, soltando-se e esticando as duas mãos.
Por uma fração de segundo, Blay não teve muita certeza como as partes trabalhariam. Qhuinn estava diante do sofá, paralelo ao móvel, por isso não havia muito espaço para...
Um grunhido sutil perpassou o ar enquanto Qhuinn flexionava os dedos como se mal conseguisse esperar para segurar aquilo que desejava.
O planejamento que fosse para o inferno.
Os joelhos de Blay atenderam ao chamado, dobrando para a frente, levando seu peso ao chão perto da cabeça de Qhuinn.
Qhuinn assumiu o controle a partir daí. As palmas escorregaram e se prenderam, atraindo Blay de modo que, sem nem se dar conta, ele tinha um joelho atrás da cabeça do cara e a outra perna estendida ao longo do corpo até o quadril de Qhuinn.
– Ai... cacete... – Blay gemeu ao sentir o sexo entrar entre os lábios de Qhuinn.
O corpo pendeu para a frente até ele acabar derramando o torso nas almofadas do sofá, e foi nesse momento que ele se viu com uma excelente alavancagem. Apoiando os braços no sofá, distribuiu o peso entre os joelhos, os pés e as palmas... e depois se pôs a foder a boca adorável de Qhuinn.
O cara aceitou tudo, mesmo quando os quadris descontrolados de Blay empurraram com tudo o que ele tinha.
Com os dedos de Qhuinn cravados em seu traseiro, e aquela incrível sucção, e... Cristo, o piercing da língua, com a bolinha resvalando seu mastro a cada estocada... Blay estava se dirigindo exatamente para o mesmo tipo de orgasmo que Qhuinn acabara de ter.
Mesmo assim, no fundo da sua mente, ele se questionava se não estava machucando o cara. Do jeito como as coisas seguiam, ele acabaria gozando no estômago dele.
Tarde demais para se preocupar com isso.
Seu corpo assumiu, enrijecendo numa série de espasmos torturantes que corriam do alto da coluna até as pernas.
E bem quando as sensações descontroladas estavam começando a diminuir, o mundo entortou ao seu redor, como se seu senso de equilíbrio tivesse explodido junto de seu...
Não, o mundo estava no lugar. Qhuinn acabara de se levantar do chão, saindo de baixo e se posicionando atrás...
Enquanto Qhuinn penetrava com uma estocada na velocidade da luz, Blay emitiu um gemido que com certeza seria ouvido no Canadá...
O rangido que se fez ouvir na sala o deixou intrigado, mesmo em meio à pressão e ao prazer.
Ah. Eles estavam empurrando o sofá.
Que seja. Ele compraria um novo para a casa se quebrassem a maldita porcaria; ele não iria parar.
O ritmo foi tão punitivo quanto fora o seu e, nesse caso, a revanche não era só o que ele merecia, mas exatamente o que ele queria. A cada estocada, seu rosto era empurrado contra as almofadas do sofá; a cada recuada, ele respirava; só para ser empurrado novamente, num círculo que recomeçava sempre.
Reposicionando as pernas para que Qhuinn alcançasse ainda mais fundo, Blay teve a vaga noção de que eles, definitivamente, mudavam o sofá de posição, mas quem é que se importava com isso, contanto que eles não acabassem no corredor?
No último instante, pouco antes de ele gozar, teve a presença de espírito de pegar as calças. Puxando as cuecas, ele...
A mão de Qhuinn se esticou, apanhou a Calvin Klein e fez o que era preciso, garantindo que houvesse algo para conter o seu gozo. Então, um instante depois, seu peito se deslocou do sofá e ele estava ereto sobre os joelhos. Qhuinn cuidou de tudo, segurando o pau de Blay enquanto cobria a cabeça – penetrando, ainda penetrando, sempre penetrando...
Gozaram ao mesmo tempo, dois pares de gritos ecoando pela sala.
No meio do orgasmo, Blay, sem querer, levantou o olhar. No enorme espelho antigo que estava pendurado entre as duas janelas do lado oposto, ele viu os dois, soube que estavam ligados... e isso o fez gozar novamente.
No fim, as investidas desaceleraram. Os batimentos cardíacos começaram a diminuir. As respirações foram se acalmando.
No vidro chumbado, ele viu Qhuinn fechar os olhos e abaixar a cabeça. Na lateral do seu pescoço, Blay sentiu um resvalar suave.
Os lábios de Qhuinn.
E então a mão livre do macho subiu, parando para afagar Blay no peitoral...
Qhuinn congelou. Recuou. Afastou os lábios, seu toque.
– Desculpe. Desculpe, eu... sei que não quer isso de mim.
A mudança no rosto do cara, o regresso ao cinismo costumeiro, era como ser roubado.
E mesmo assim Blay não podia dizer a ele que voltasse a se aproximar. Qhuinn estava certo; no instante em que a ternura aparecia, ele começava a entrar em pânico.
A retirada foi rápida, rápida demais, e Blay sentiu falta da sensação de estar completo e de ser possuído. Mas estava na hora de acabar com aquilo.
Qhuinn pigarreou.
– Hum... você quer que eu...
– Cuido disso – murmurou Blay, substituindo a mão de Qhuinn sobre as cuecas amassadas em seu quadril.
Durante o sexo, o silêncio na sala equivalia à privacidade. Agora, eram apenas os sons amplificados de Qhuinn subindo as calças de couro.
Droga.
Voltavam ao caos e à confusão. E enquanto as coisas aconteciam, as sensações eram tão intensas e esmagadoras que não houve nenhum pensamento além do sexo. Depois, porém, o corpo de Blay estava frio demais no ambiente climatizado, diferentes partes pulsavam por terem sido usadas, as pernas estavam moles e cambaleantes, a mente, enevoada...
Nada parecia seguro ou garantido. Nem um pouco.
Forçando-se a se vestir, colocou as roupas o mais rápido que conseguiu, inclusive os sapatos. Nesse meio-tempo, foi Qhuinn quem devolveu o sofá ao seu lugar, cuidadosamente colocando os pés nas marcas do tapete. Também ajeitara as almofadas. Endireitara o tapete oriental.
Foi como se nada tivesse acontecido. A não ser pelas cuecas de Blay amassadas em sua mão fechada.
– Obrigado – disse Qhuinn baixinho. – Eu, hum...
– Tudo bem.
– Então... acho que eu vou agora.
– Ok.
E foi isso.
Bem, além de a porta se fechar.
Deixado a sós, Blay resolveu que precisava de uma chuveirada. Mais comida. Dormir.
Em vez disso tudo, ele ficou na sala de estar do segundo andar, olhando para aquele espelho, lembrando-se do que vira nele. Em sua mente, teve a vaga noção de que eles não podiam continuar fazendo aquilo. Emocionalmente, não era seguro para ele; na verdade, era o equivalente a manter a palma da mão sobre uma chama uma vez após a outra, só que a cada vez que você voltava a colocar a mão, você diminuía a distância entre a sua carne e o calor. Cedo ou tarde? Queimaduras de terceiro grau seriam o menor dos seus problemas, porque o braço inteiro estaria em chamas.
Depois de um tempo, contudo, não ficou só pensando naquela coisa de autopreservação.
Mas sim no que dera início àquilo tudo.
Faz isso parar.
Blay passou a mão pelo cabelo. Depois olhou para a porta fechada e franziu o cenho, a mente trabalhando, trabalhando, trabalhando...
Um minuto depois, saiu apressado, andando rapidamente.
Antes de partir num trote.
E acabar correndo como um louco.
CAPÍTULO 41
Eram mais ou menos dez da manhã quando Trez seguiu para o Restaurante Sal’s. O trajeto do apartamento no Commodore para o belo estabelecimento do irmão não demorou, levando apenas dez minutos, e havia diversos espaços disponíveis para estacionar quando ele chegou lá.
De fato, o lugar não abria antes da uma da tarde, nem mesmo para o pessoal da cozinha iniciar a preparação.
Enquanto se encaminhava para a entrada, suas botas esmagando a neve, ele esperou que o código de abertura pelo lado externo não funcionasse: iAm não voltara para casa na noite anterior e, supondo que os cretinos do s’Hisbe não o tivessem levado embora como dano colateral, só havia um lugar em que seu irmão poderia estar. Depois de dois bules de café e muitas consultas ao relógio de pulso, Trez entendeu que, se queria fazer as pazes, ele teria de atravessar a cidade.
Legal. A combinação não fora mudada.
Ainda.
Do lado de dentro, o lugar parecia uma réplica do Rat Pack, numa interpretação moderna de uma era que gerara tipos como Peter Lawford e Frank Sinatra: uma entrada com papel de parede de algodão preto e vermelho o levava até a recepção, onde a chapelaria, a mesinha retrô da recepcionista e o caixa ficavam. À esquerda e também à direita, estavam os dois salões principais, ambos decorados em veludo e couro preto e vermelho, mas não eram onde os políticos e os endinheirados locais ficavam. O lugar predileto era o bar mais à frente, um salão com painéis de madeira que tinha bancos estofados quadrados de couro vermelho perto das paredes e, durante o expediente, um barman de smoking atrás de uma bancada de carvalho servindo nada que não fosse o melhor.
Atravessando a extensão do bar, Trez seguiu para o outro lado das cinco prateleiras de garrafas à mostra e passou pelas portas em vaivém. Ao entrar na cozinha, o cheiro de manjericão, cebola, orégano e vinho tinto lhe denunciou exatamente onde iAm estava.
Como esperado, o cara estava diante do enorme fogão industrial de dezesseis bocas na parede oposta, com cinco panelas imensas borbulhando diante dele – e você gostaria de apostar que também havia alguma coisa no forno? Nesse meio-tempo, tábuas de madeira de corte estavam enfileiradas nas bancadas de aço inoxidável, as cabeças mortas de diferentes tipos de pimentão deixadas ao lado das facas afiadas que foram usadas.
Dez pratas para adivinhar em quem o cara estava pensando enquanto picava aquilo tudo.
– Vai ou não falar comigo? – Trez disse para as costas do irmão.
iAm seguiu para a panela seguinte, levantando a tampa com um pano de prato branco, uma imensa escumadeira entrando e mexendo lentamente.
Trez se inclinou para o lado e puxou um banquinho de aço inoxidável. Sentando-se, esfregou as coxas para cima e para baixo.
– Oi? Alguém aí?
iAm foi para a panela seguinte. E depois a outra. Cada uma delas tinha uma colher diferente para evitar a mistura de sabores, e seu irmão tomava muito cuidado com isso.
– Escute, eu sinto muito se não estava quando você foi à boate ontem à noite – todas as noites, iAm ia para o Iron Mask para dar uma olhada depois que o Sal’s fechava. – Tive que cuidar de uns assuntos.
Merda, se teve. A garota do namorado grosseiro levou uma eternidade para sair do seu carro quando ele a levou para a casa dela. No fim, ele a acompanhou até a porta, abriu e só faltou empurrá-la para dentro. De volta ao carro, ele acelerou como se tivesse plantado uma bomba na calçada e, enquanto seguia para o Iron Mask, tudo o que ouvia em sua cabeça era a voz de iAm.
Você não pode continuar a fazer isso.
A essa altura, iAm se virou, cruzou os braços sobre o peito e se recostou ao fogão. Os bíceps já eram grandes, mas com os braços cruzados daquele jeito, forçavam a borda da camiseta preta que ele vestia.
Os olhos amendoados estavam semicerrados.
– Você acha mesmo que eu estou bravo porque você não estava quando fui ao clube? Sério? E não por que você me deixou para lidar com AnsLai ou qualquer asneira do tipo...
Eeeee estavam todos a postos.
– Sabe que não posso me encontrar com o cara – Trez levantou as mãos como se quisesse dizer que não havia nada que ele pudesse fazer. – Eles tentariam me forçar a voltar com eles e, então, quais seriam as minhas opções? Brigar? Eu acabaria lutando com o filho da puta e onde eu iria parar com isso?
iAm esfregou os olhos como se estivesse com dor de cabeça.
– Neste instante, parece que eles estão tomando uma abordagem diplomática. Pelo menos comigo.
– Quando vão voltar?
– Não sei. É isso o que está me deixando nervoso.
Trez enrijeceu. A ideia de que seu irmão frio como peixe estivesse ansioso o fez sentir como se estivesse com uma faca no pescoço.
Pensando bem, ele sabia muito bem o quanto o seu povo podia ser perigoso. O s’Hisbe era conhecido como uma tribo pacífica, satisfeita em se manter ao largo das lutas contra a Sociedade Redutora e dos desagradáveis humanos. Educados, muito inteligentes e espirituais, eles eram, como um todo, um grupo agradável. Desde que você não estivesse na lista negra deles.
Trez olhou para as panelas e se perguntou qual seria a carne no molho.
– Ainda estou em débito com Rehv – ele observou. – Portanto, essa obrigação deve vir em primeiro lugar.
– Não para o s’Hisbe. AnsLai disse, e vou citar suas palavras: “Chegou a hora”.
– Não vou voltar – ele fitou os olhos do irmão. – Isso não vai acontecer.
iAm voltou para as panelas, mexendo em cada uma com a colher designada.
– Sei disso. E é por isso que estou cozinhando. Estou tentando encontrar uma saída.
Deus, como ele amava o irmão. Mesmo irritado, o cara tentava ajudar.
– Desculpe-me por ter desaparecido e ter feito você cuidar disso. Sinto muito mesmo. Não foi justo... Eu só... bem, não achei seguro estar no mesmo cômodo que aquele cara. Sinto muito.
O peito largo de iAm subiu e desceu.
– Sei que sente.
– Eu poderia simplesmente desaparecer e o problema estaria resolvido.
Ainda que deixar iAm para trás o matasse. A questão era que, caso ele fugisse do s’Hisbe, ele jamais teria contato com o macho novamente. Nunca mais.
– Para onde você iria? – iAm observou.
– Não faço ideia.
A boa notícia é que o s’Hisbe não gostava de ter nenhum contato com os Desconhecidos. Sem dúvida, só aparecer no apartamento dele e de iAm fora traumático, mesmo se o sumo sacerdote tivesse se desmaterializado até a varanda. Lidar diretamente com humanos? Estar ao lado deles? A cabeça de AnsLai explodiria.
– Então, qual era o seu assunto? – perguntou iAm.
Maravilha. Mais um assunto igualmente feliz.
– Fui ver aquele armazém – ele desviou. Mas, cacete, até parece que ele tocaria no assunto da garota com o namorado espontaneamente.
– A uma da manhã?
– Fiz uma oferta.
– De quanto?
– Um milhão e quatrocentos. O preço pedido era de dois milhões e meio, mas não vão conseguir esse montante de jeito nenhum. O lugar está vazio há anos e demonstra isso – embora, ao dizer isso em voz alta, ele teve que admitir que sentira presenças lá. Pensando bem, talvez fosse apenas o seu estresse o responsável por isso. – Meu palpite é que vão dar uma contraoferta de dois milhões, eu subo para um e seiscentos e acabamos acordando em um e setecentos.
– Tem certeza de que quer iniciar esse projeto agora? A menos que apareça no território com o seu mastro matrimonial pronto para ser usado, esta questão com o s’Hisbe só vai piorar.
– Se as coisas chegarem a esse ponto, eu cuido disso na hora certa.
– Quando – iAm o corrigiu. – A questão é “quando”. E sei o que aconteceu no estacionamento, Trez. Com aquele cara e a mulher.
Claaaaro que sim.
– Viu as fitas ou algo assim?
Maldita câmera de segurança.
– Sim.
– Eu cuidei daquilo.
– Assim como está cuidando do s’Hisbe. Perfeito.
Com o humor afetado, Trez se inclinou.
– Quer calçar os meus sapatos, irmãozinho? Eu bem que gostaria de saber como você lidaria com essa merda toda.
– Eu não estaria fodendo putas, isso eu garanto. O que me faz pensar... o nosso corretor é uma fêmea, não?
– Foda-se, iAm. De verdade.
Trez se levantou do banquinho e marchou para fora da cozinha. Ele já tinha problemas suficientes, pelo amor de Deus, não precisava do senhor Superior com habilidades de Julia Child palpitando sobre o assunto com doze tipos de panelas...
– Você não pode continuar postergando esse assunto – iAm chamou de lá de trás. – Ou tentando enterrá-lo entre as pernas das mulheres.
Trez parou, mas manteve o olhar fixo na saída.
– Simplesmente não pode – o irmão afirmou com franqueza.
Trez girou. iAm estava perto do bar, a porta em vaivém mexendo atrás dele formando um efeito de estroboscópio de luz, escuro, luz, escuro. Toda vez que a luz surgia, parecia que seu irmão tinha um halo ao redor de todo o corpo.
Trez praguejou.
– Só preciso que me deixem em paz.
– Eu sei – iAm esfregou a cabeça. – E, honestamente, não sei que porra fazer a respeito. Não consigo me imaginar vivendo sem você, e também não quero voltar para lá. Só que também não encontrei alternativas.
– Aquelas mulheres... sabe, as que eu... – Trez hesitou. – Não acha que elas me excitam?
– Se elas não fazem isso – iAm disse secamente –, não sei porque perde tempo com elas.
Trez teve que dar um sorriso.
– Não, estou falando do s’Hisbe. Estou bem longe de ser virgem a esta altura – pelo menos ele ainda não se rebaixara a animais de fazenda. – E o que é pior? Todas eram Desconhecidos, a maioria humanas. Isso deve enojá-los. Estamos falando da filha da rainha!
Enquanto iAm franzia o cenho como se estivesse considerando a ideia, Trez sentiu uma centelha de esperança.
– Não sei, não – veio a resposta. – Talvez isso funcione, mas ainda assim você negou a Sua Alteza o que ela quer e precisa. Se eles o considerarem desonrado, podem muito bem decidir matá-lo como castigo.
Que seja. Eles teriam que encontrá-lo primeiro.
Numa onda de agressão, Trez abaixou o queixo e olhou fixo por debaixo das sobrancelhas.
– Se esse for o caso, eles vão ter que lutar comigo. E eu garanto que isso não vai acabar bem para eles.
Na mansão da Irmandade, Wrath entendeu que sua rainha estava aborrecida no instante em que ela passou pelas portas do escritório. Seu cheiro atraente estava maculado por uma pontada de acidez: ansiedade.
– O que foi, leelan? – ele quis saber, estendendo os braços.
Mesmo não enxergando, suas lembranças lhe davam uma imagem mental dela cruzando o tapete Aubusson, com o corpo longo e atlético se movendo com graciosidade, os cabelos escuros soltos sobre os ombros, o lindo rosto marcado por tensão.
Naturalmente, o macho vinculado dentro dele desejou perseguir e matar o que quer que a tivesse perturbado.
– Olá, George – disse ela ao cão. Pelo barulho de batidas ritmadas no chão, ele supôs que o cachorro tivesse recebido uma dose de amor antes.
E então foi a vez do dono.
Beth subiu no colo de Wrath, o peso próximo de nada, o corpo quente e vivo enquanto ele passava os braços ao seu redor e a beijava nas laterais do pescoço e depois na boca.
– Jesus – grunhiu ele, sentindo a rigidez no corpo dela –, você está aborrecida mesmo. Que merda está acontecendo?
Deus do céu, ela estava tremendo. Sua rainha estava, de fato, tremendo.
– Fale comigo, leelan – insistiu, esfregando-lhe as costas. E se preparando para se armar e sair em plena luz do sol se preciso fosse.
– Bem, você sabe sobre Layla – disse ela com voz rouca.
Ahhhh.
– Sim, sei. Phury me contou.
Enquanto a cabeça dela se posicionava em seu ombro, ele a ajeitou, aninhando-a em seu peito – e isso era bom. Havia vezes – não muitas, mas ocasionais – em que ele se sentia menos macho por conta de sua falta de visão: no passado, um lutador, agora, preso atrás daquela mesa. Um dia livre para ir aonde bem quisesse, agora, dependendo de um navegador canino. Certa vez absolutamente autossuficiente, agora, precisando de ajuda.
Não muito bom para os colhões de um macho.
Mas em momentos como aquele, quando aquela fêmea maravilhosa estava incomodada e o procurava, e somente a ele, para conforto e segurança, ele se sentia mais forte que uma maldita montanha. Afinal, machos vinculados protegiam suas fêmeas com tudo o que tinham, e mesmo com o fardo do seu direito de nascimento e aquele trono em que era obrigado a se sentar, ele, em seu cerne, permanecia o hellren daquela fêmea.
Ela era a sua primeira prioridade, acima inclusive daquela coisa toda de reinado. A sua Beth era o seu coração atrás das costelas, o tutano dentro de seus ossos, a alma em seu corpo físico.
– É tudo tão triste – disse ela. – Tão triste.
– Você foi vê-la?
– Acabei de ir. Ela está descansando. Quero dizer... de certa forma, custo a acreditar que não haja nada a ser feito.
– Falou com a doutora Jane?
– Assim que eles voltaram da clínica.
Enquanto a sua shellan chorava um pouco, o cheiro das lágrimas frescas de sua amada era como uma adaga em seu peito, e ele não estava surpreso com a reação dela. Ouvira dizer que as fêmeas lidavam muito mal com a perda da gravidez de outra fêmea – e como não ser assim? Ele, por certo, conseguia se colocar no lugar de Qhuinn.
E, ah, Deus... a ideia de Beth sofrer daquele modo? Ou pior, de conseguir levar adiante a gestação e depois...
Ótimo. Agora era ele quem tremia.
Wrath abaixou o rosto para os cabelos de Beth, inspirando, acalmando-se. A boa notícia era que eles jamais teriam um filho, portanto, ele não tinha com que se preocupar.
– Eu sinto muito – sussurrou.
– Eu também. Odeio o que eles estão passando.
Bem, na verdade, ele estava se desculpando por outra coisa completamente diferente.
Não que ele quisesse que uma merda daquelas acontecesse com Qhuinn, Layla e o filho deles. Mas talvez se Beth enxergasse a triste realidade, ela se lembraria de todos os riscos que se apresentavam a eles em todas as etapas de uma gestação.
Porra. Aquilo soava horrível. Era horrível. Pelo amor de Deus, ele não queria mesmo nada daquilo para Qhuinn, e tampouco queria ver sua shellan triste. Infelizmente, porém, a triste realidade era que ele não tinha absolutamente interesse algum em plantar sua semente nela daquele jeito – jamais.
E esse tipo de desespero fazia com que um cara pensasse em coisas imperdoáveis.
Numa onda de paranoia, ele calculou mentalmente os anos desde a transição dela – um pouco mais do que dois. Pelo que sabia, as fêmeas vampiras, em média, passavam pelo primeiro cio uns cinco anos após a transformação, e a cada dez anos depois disso. Portanto, eles tinham um bom tempo antes de terem de se preocupar com tudo isso...
Pensando bem, como mestiça, não havia garantias no caso de Beth. Quando os humanos e os vampiros se misturavam, qualquer coisa podia acontecer... E ele tinha motivos para se preocupar. Afinal, ela já mencionara filhos uma ou duas vezes.
Mas, obviamente, aquilo só podia ser hipoteticamente.
– E então, você vai postergar a iniciação de Qhuinn? – ela perguntou.
– Sim. Saxton já atualizou a lei, mas Layla estando assim? Não é o momento de trazê-lo para a Irmandade.
– Foi o que pensei.
Os dois se calaram, e enquanto Wrath guardava aquele momento em seu coração, não conseguiu imaginar sua vida sem ela.
– Sabe de uma coisa? – perguntou.
– O quê? – havia um sorriso na voz dela, do tipo que dizia a ele que ela sabia para onde a conversa estava indo.
– Eu amo você mais do que tudo.
Sua rainha deu uma leve risada, e o afagou no rosto.
– Eu jamais teria imaginado isso.
Inferno, até ele captava a onda de seu odor de vinculação.
Em resposta, Wrath segurou o rosto dela entre as palmas e se inclinou, encontrando seus lábios e depositando um beijo suave, que não permaneceu assim. Caramba, era sempre assim com ela. Qualquer contato e, antes que se desse conta, já estava rígido e pronto.
Deus, não sabia como os homens humanos lidavam com isso. Pelo que entendia, eles tinham de adivinhar se seus pares estavam férteis toda vez que faziam sexo – evidentemente, eles não tinham como captar a alteração nos odores de suas fêmeas.
Ele enlouqueceria. Pelo menos quando uma vampira estava no cio, todos sabiam.
Beth mudou de posição em seu colo, apertando a sua ereção e fazendo-o gemer. E, normalmente, essa era a dica para George ser levado para o outro lado das portas duplas, banido temporariamente. Mas não naquela noite. Por mais que Wrath a desejasse, a tristeza presente na casa aplacava até mesmo a sua libido.
E também havia a questão do cio de Autumn. E de Layla.
Ele não iria mentir; aquela merda o estava deixando ansioso. Sabia-se que hormônios no ar tinham um efeito ricochete numa casa cheia de fêmeas, influenciando umas às outras ao cio, desde que seu período estivesse próximo.
Wrath afagou os cabelos de Beth e voltou a acomodar a cabeça dela em seu ombro.
– Você não quer...
Enquanto ela deixava a frase inacabada, ele pegou a sua mão e a levantou, sentindo o peso do anel de rubi que a rainha da raça sempre usava.
– Só quero abraçar você – disse ele. – Isso basta para mim agora.
Aninhando-se, ela se encaixou ainda mais perto dele.
– Bem, isto também é gostoso.
Sim. Era.
E curiosamente aterrador.
– Wrath?
– Sim?
– Você está bem?
Demorou um pouco para ele confiar na voz e responder:
– Sim, estou bem. Tudo bem.
Ao alisar o braço dela, para cima e para baixo, ele rezou para que ela acreditasse... e jurou que o que acontecia no quarto no fim do corredor nunca, jamais, aconteceria com eles.
Não. Os dois não teriam de lidar com aquele tipo de crise.
Graças à Virgem Escriba.
CAPÍTULO 42
Claro que Layla não estava dormindo.
Quando pediu a Qhuinn que saísse, ela falou sério quanto a não querer sustentar uma fachada de força diante dele. Mas o mais engraçado era que mesmo sem ninguém por perto, ela não ficou histérica. Não chorou. Não praguejou.
Apenas ficou deitada de lado com os braços e as pernas enroscados, a mente recuada para dentro do corpo e monitorando constantemente cada dor e cólica numa compulsão que a enlouquecia. No entanto, não havia como mudar aquilo. Era como se uma parte dela estivesse convencida de que se ao menos ela soubesse em que estágio estava, ela poderia, de algum modo, monitorar o processo.
O que, na verdade, era uma tremenda tolice. Como Qhuinn bem diria.
A imagem dele na clínica, com a adaga no pescoço do médico, era algo saído de um dos livros da biblioteca do Santuário – um episódio dramático que era parte da vida de outra pessoa.
Sua posição na cama, porém, fazia com que ela lembrasse que o caso não era bem esse...
A batida à porta foi suave, sugerindo se tratar de uma fêmea.
Layla fechou os olhos. Por mais que apreciasse qualquer tipo de gentileza que aguardava uma resposta, ela preferiria que quem quer que estivesse no corredor, continuasse lá. A breve visita da rainha fora uma provação, mesmo ela tendo apreciado.
– Sim – quando sua voz mal soou em seus ouvidos, ela pigarreou e repetiu: – Sim?
A porta abriu e, a princípio, ela não reconheceu quem era na sombra que preenchia o espaço entre os batentes da porta. Alta. Forte. Porém, não um macho...
– Payne? – perguntou.
– Posso entrar?
– Sim, claro.
Enquanto Layla tentava se sentar, a fêmea guerreira gesticulou para que ela continuasse deitada, e depois fechou a porta.
– Não, não... por favor, fique à vontade.
Um abajur fora deixado aceso sobre a cômoda e, na luz suave, a irmã de sangue de Vishous da Irmandade da Adaga Negra parecia temerária, com os olhos de diamante parecendo reluzir para fora dos ângulos fortes do rosto dela.
– Como você está? – a fêmea perguntou com suavidade.
– Estou bem, obrigada. E você?
A lutadora deu um passo à frente.
– Eu sinto muito quanto... à sua condição.
Ah, como Layla desejava que aquilo fosse algo que Phury e os outros não tivessem partilhado com ninguém. Em retrospecto, a saída da casa fora um tanto dramática, o tipo de evento que causaria perguntas preocupadas. Ainda assim, sua privacidade preferia evitar esse tipo de invasão indesejável, ainda que misericordiosa.
– Agradeço as suas palavras gentis – sussurrou.
– Posso me sentar?
– Sim, claro.
Ela imaginou que a fêmea fosse se sentar numa das cadeiras dispostas mais ao longe. Não foi o que Payne fez. Ela se aproximou da cama e abaixou o peso ao lado de Layla.
Compelida a, pelo menos, parecer uma boa anfitriã, Layla tentou se suspender, fazendo uma careta quando uma nova onda de cólicas a imobilizou no meio do caminho.
Enquanto Payne praguejava baixinho, Layla teve que voltar a se deitar. Com voz rouca, disse:
– Perdoe-me, mas não posso receber visitas agora, por mais que me queira bem. Obrigada por expressar a sua empatia...
– Você sabe quem é a minha mãe – Payne a interrompeu.
Layla balançou a cabeça ao encontro do travesseiro.
– Por favor, saia...
– Sabe? – a fêmea perguntou com rispidez.
Abruptamente, Layla quis chorar. Simplesmente não tinha forças para qualquer tipo de conversa, ainda mais a respeito de mahmens. Não enquanto perdia o filho.
– Por favor.
– Sou filha da Virgem Escriba.
Layla franziu o cenho, as palavras sendo compreendidas mesmo em meio à dor, tanto física quanto mental.
– O que disse?
Payne inspirou profundamente, como se a revelação não fosse algo com que se alegrasse, mas como se fosse um tipo de maldição.
– Sou da carne da Virgem Escriba, nascida há muito tempo, e ocultada dos registros das Escolhidas e dos olhos de outrem.
Layla piscou em estado de choque. A aparição da fêmea fora um tipo de mistério, mas ela certamente não fizera nenhuma pergunta, pois isso não cabia a ela. A única coisa que sabia com convicção é que jamais houve registro algum da mãe sagrada da raça um dia ter dado à luz uma criança.
Na verdade, a estrutura completa do sistema de crença era prevista no fato de isso não ter ocorrido.
– Como isso é possível? – arfou Layla.
Os olhos brilhantes de Payne estavam sérios.
– Não era o que eu desejaria. E não é algo de que fale a respeito.
No momento tenso que se seguiu, Layla considerou impossível não ver a verdade naquilo que a fêmea falava. Tampouco a raiva, cuja causa ela apenas podia supor.
– Você é sagrada – disse Layla maravilhada.
– Nem um pouco, eu lhe garanto. Mas minha linhagem me concedeu um tipo de... como posso explicar? Habilidade.
Layla se enrijeceu.
– Que seria...?
Os olhos de diamante de Payne não se desviaram.
– Quero ajudá-la.
As mãos de Layla foram para o baixo ventre.
– Se quer abreviar isto... não.
Ela tinha seu filho por um tempo curto demais. Não importava a dor que tivesse que passar, ela não sacrificaria um minuto sequer daquilo que, sem dúvida, seria sua única gestação.
Ela jamais se colocaria à mercê de outro sofrimento assim. No futuro, quando seu cio chegasse, ela seria sedada e pronto.
Aquele tipo de perda uma vez na vida já era demais.
– E se acredita que pode deter isto – Layla continuou –, isso não é possível. Não há nada que ninguém possa fazer.
– Não estou tão certa disso – o olhar de Payne era enlevado. – Eu gostaria de ver se posso salvar esta gestação. Se me permitir.
No campus abandonado da Escola para Moças Brownswick, o Sr. C. se acomodou no que um dia fora o escritório da diretora.
Era o que estava escrito na placa rachada do lado de fora da sala.
Como não havia calefação, a temperatura ambiente não estava muito maior do que a do lado de fora, mas graças ao sangue de Ômega, o frio não era um problema. Ainda bem: do outro lado do gramado crescido coberto de neve, no dormitório principal sobre uma colina, quase cinquenta redutores dormiam o sono dos mortos.
Se aqueles malditos necessitassem de aquecimento ou de comida, ele estaria sem sorte alguma.
Mas não, tudo o que ele tinha de fazer era providenciar um abrigo. A iniciação cuidaria do resto – e o fato de que precisavam desligar a consciência a cada 24 horas era um alívio.
Ele precisava de tempo para pensar.
Jesus Cristo, que confusão.
Compelido pela necessidade de se mexer, ele empurrou a cadeira para trás e se lembrou de que estava se sentando sobre um balde de argamassa virado ao contrário.
– Maldição.
Olhando ao redor da sala decrépita, ele mediu as placas de gesso penduradas das vigas do teto, as janelas cobertas por tábuas de madeira, e o buraco em uma das tábuas do piso no canto. O lugar era igual à conta bancária que ele encontrara.
Nenhum dinheiro em lugar algum. Munição zero. Armas que podiam ser usadas em combate à força, e só.
Depois de sua promoção, ele se viu cheio de energia, de planos. Agora encontrava-se diante de nenhum dinheiro, nenhum recurso, nada.
Ômega, por outro lado, esperava todo tipo de resultado. Como deixara bem claro no “encontro” deles na noite anterior.
E também havia outro problema. Ele odiava aquela merda.
Pelo menos ele podia fazer algo a respeito de todo o resto.
Esticando os braços acima da cabeça e estalando os ombros, agradeceu a Deus por duas coisas: uma, os celulares não tinham sido desligados, por isso ele podia se comunicar com seus homens no campo de batalha. E dois, todos aqueles anos na rua lhe deram os punhos de ferro no que se referia a controlar o bando de idiotas do tráfico de drogas.
Tinha de arranjar dinheiro. Logo.
Ele teve uma porra de um plano para isso também, mandando os últimos nove mil dólares com aqueles três garotos no meio da noite. Tudo o que os malditos tinham de fazer era pagar, pegar a droga e trazer para ali, onde dividiriam a merda, depois distribuiriam entre os novos recrutas para que eles vendessem nas ruas.
O problema era que ele ainda estava esperando pela porra da entrega.
E estava ficando puto de tanto esperar para descobrir se as drogas e o dinheiro tinham sumido.
Era bem possível que aqueles merdinhas tivessem fugido com um ou com o outro, mas, nesse caso, ele os caçaria como cachorros para mostrar aos outros o que acontecia quando você...
Quando seu celular tocou, ele o pegou, viu quem era e apertou o botão de chamada.
– Já era hora. Onde diabos você está e cadê minha mercadoria?
Houve uma pausa. Depois, a voz que se ouviu pela conexão não era nada parecida com a do traficante cheio de espinhas para quem ele entregara o celular e a última pistola da Sociedade que funcionava.
– Tenho uma coisa que você quer.
O Sr. C. franziu a testa. Voz grave. Envolta numa impaciência que ele reconhecia das ruas, e um sotaque que ele não sabia de onde vinha.
– Não é essa merda com a qual você está falando comigo – disse o Sr. C. com fala arrastada. – Tenho um monte desses.
Afinal de contas, quando você não tem nada na mão, no coldre ou na carteira, blefar era a sua única opção.
– Ora, que bom para você. Também tem muito do que me mandou? Dinheiro? Soldados?
– Quem diabos está falando?
– Sou seu inimigo.
– Se você ficou com a porra da minha grana, pode apostar que sim.
– Na verdade, essa é uma resposta bem simplista para um problema um tanto complexo.
O Sr. C. se pôs de pé, derrubando o balde.
– Onde está a porra do meu dinheiro e o que fez com os meus homens?
– Lamento, mas eles não podem mais atender ao telefone. É por isso que estou ligando.
– Você não faz ideia com quem está lidando – o Sr. C. ameaçou.
– Pelo contrário, é você quem está em desvantagem, bem como tantos outros – quando o Sr. C. estava pronto para rebater, o cara o interrompeu. – Eis o que vamos fazer. Vou telefonar à noite para lhe dar uma localização. Você, e apenas você, vai me encontrar lá. Se alguém o acompanhar, eu saberei, e você nunca mais vai saber de mim.
O Sr. C. estava acostumado a sentir desdém pelos outros, isso era parte do trabalho uma vez que você só lida com ladrões de merda e malditos viciados. Mas esse cara do outro lado da conexão? Controlado. Calmo.
Um profissional.
O Sr. C. controlou seu humor.
– Não preciso de nenhum joguinho...
– Sim, precisa. Porque se você quiser drogas para vender, terá que vir a mim.
O Sr. C. ficou calado. Ou aquele era um lunático cheio de ilusões de grandeza ou... era alguém com poder de verdade. Talvez o tipo que matou os intermediários do cartel de drogas em Caldwell um ano antes.
– Quando e onde? – disse de má vontade.
Houve uma risada sombria.
– Atenda o seu telefone ao cair da noite e você descobrirá.
CAPÍTULO 43
Layla não conseguiu falar enquanto tentava compreender as palavras de Payne.
– Não – disse à outra fêmea. – Não, Havers me disse que... não havia nada que pudesse ser feito.
– Na medicina, isso pode ser verdade. Eu posso ter outro modo, porém. Não sei se funcionará, mas, se permitir, eu gostaria de ver o que posso fazer.
Por um instante, Layla só conseguiu respirar.
– Eu não... – pôs a mão no abdômen liso. – O que fará comigo?
– Não sei bem, para ser sincera – Payne deu de ombros. – Na verdade, nem me passou pela cabeça que eu poderia ajudar nesta situação. Mas sou conhecida por curar aquilo que precisa ser curado. Repito, não sei se isso se aplica neste caso. Contudo, podemos tentar... e isso não a machucará. Isso eu posso prometer.
Layla perscrutou a expressão da lutadora.
– Por que... faria uma coisa dessas por mim?
Payne franziu o cenho e desviou o olhar.
– Você não precisa saber os motivos.
– Sim, preciso.
O perfil dela se tornou absolutamente frio.
– Você e eu somos irmãs da tirania de minha mãe, casualidades de seu plano maior de como as coisas devem ser. Estivemos as duas enjauladas em seus modos diversos, você como uma Escolhida; eu, como sua filha de sangue. Não há nada que eu não faça para ajudá-la.
Layla se recostou. Jamais se considerara uma desventura da mãe da raça. A não ser... ao pensar em seu desespero em ter uma família, seu senso de não ter raízes, sua absoluta falta de identidade além do trabalho de uma Escolhida... ela teve o que pensar. O livre-arbítrio a levava àquela situação horrenda, mas, pelo menos, ela escolhera a rota e os meios. Como membro da classe especial da Virgem Escriba, não tivera muitas escolhas, a respeito de nada em sua vida.
A respeito de nada mesmo.
Ela estava perdendo aquela gravidez, aquilo era óbvio. E se Payne achava que existia uma chance de...
– Faça o que precisar fazer – disse com voz rouca. – E obrigada, não importando o resultado.
Payne assentiu uma vez. Depois esticou as mãos, flexionando e afastando os dedos.
– Posso tocar no seu abdômen?
Layla abaixou as cobertas.
– Devo tirar a camisa?
– Não.
Melhor assim. A simples retirada da colcha lhe provocara uma nova onda de dor, a mínima mudança de peso era causa de...
– Você está sofrendo muito – murmurou a outra fêmea.
Layla não respondeu ao expor a pele do abdômen. Obviamente, sua expressão já dizia o bastante.
– Apenas relaxe. Isso não deverá lhe causar nenhum desconforto...
Quando o contato foi feito, Layla levantou a cabeça. As mãos da lutadora estavam quentes como a água de uma banheira. E igualmente calmas. Estranhamente calmas, para falar a verdade.
– Isto dói? – Payne perguntou.
– Não. Parece... – quando uma nova onda de dor se avolumava, ela agarrou os lençóis, se preparando...
Só que o pico da dor não se elevou como antes, como se a sensação fosse uma montanha íngreme, cujo topo fora arrancado.
Era o primeiro alívio que sentia desde que tudo aquilo começara.
Com um gemido de submissão, ela deixou a cabeça pender, o travesseiro amparando o repentino cansaço que a abateu pelo tanto de desconforto pelo qual seu corpo passara.
– E agora nós começamos.
De repente, a luz do abajur tremulou... e depois se apagou.
Sua iluminação, contudo, logo foi substituída.
Das mãos pálidas de Payne um brilho suave começou a ser lançado. O calor de seu toque se intensificou, o abrandamento estranho e maravilhoso parecia penetrar em sua pele, nos músculos, em cada osso que estava no caminho... indo direto para o ventre de Layla.
E, então, houve um tipo de explosão.
Com um sibilo, ela se entregou à grande onda de energia que abruptamente surgiu dentro dela, um calor que não queimava, mas fervia afastando a dor, suspendendo a agonia e arrancando-a de sua carne, como se o vapor de uma panela se dissipasse.
Mas não acabou ali. Uma grande sensação de euforia em seu corpo inteiro, com cachos dourados pulsando para fora de sua região pélvica e fluindo pelo torso até a mente e também em sua alma, e pernas e braços formigando.
Ah, que alívio pungente.
Ah, que poder incrível.
Ah, graça salvadora gentil.
A cura, contudo, não estava completa.
No meio do turbilhão, Layla sentiu... o que era aquilo? Um movimento em seu útero. Uma contração, talvez? Mas não uma cólica, não, nada disso. Mais como se o que estivesse defasado tivesse recuperado as forças.
Ela, gradualmente, deu-se conta de que batia os dentes.
Olhando para baixo, para seu corpo, ela viu que tudo tremia, e não só isso.
Sua forma física estava brilhando. Cada centímetro de sua pele era como uma cúpula de um abajur, revelando a luz que jazia por baixo, as roupas agindo como barreiras frágeis daquilo que fervia lentamente dentro dela.
Na iluminação, o rosto de Payne estava contraído, como se fosse um custo alto transferir a cura maravilhosa para outra pessoa. E Layla teria se distanciado, colocado um fim naquilo, se pudesse – porque a outra fêmea começava a parecer muito cansada. No entanto, não havia como romper a ligação. Ela não tinha o controle dos seus membros, não tinha como falar.
Aquela comunhão vital entre as duas pareceu durar uma eternidade.
Quando Payne finalmente se afastou, rompendo o elo, ela caiu da cama, formando uma pilha no chão.
Layla abriu a boca para gritar. Tentou segurar sua salvadora. Lutou contra o peso morto do corpo ainda iluminado.
Todavia, não havia nada que ela pudesse fazer.
A última coisa que ficou registrada antes que perdesse a consciência era a sua preocupação com a outra fêmea. E, depois, tudo ficou escuro.
CAPÍTULO 44
Qhuinn despertou com o pênis duro.
Estava deitado de costas e seus quadris se mexiam por conta própria, o movimento contínuo resvalava a ereção contra o peso dos lençóis e da colcha. Por um instante, enquanto se demorava naquele estado meio dormente antes de a consciência chegar, ele imaginou que era Blay criando aquela fricção, as palmas do macho subindo e descendo... num preâmbulo de mais ação oral.
Foi quando abaixou a mão para enterrar os dedos nos cabelos ruivos que percebeu estar sozinho: a mão encontrou apenas os lençóis.
Numa atitude otimista, lançou o braço para o lado, tateando o lugar ao seu lado, pronto para encontrar o corpo quente do macho.
Apenas mais lençóis. E estavam frios.
– Cacete – inspirou.
Abrindo os olhos, a realidade de onde estava o atingiu com força, murchando a sua ereção. Apesar dos encontros, aqueles dois interlúdios maravilhosos e extremamente sensuais, Blay estava, naquele exato instante, acordando ao lado de Saxton.
Provavelmente fazendo sexo com o cara.
Ah, Deus, ele ia vomitar.
A ideia de Blay tocando em outro, cavalgando em outro, lambendo e afagando outro – seu maldito primo, para ser bem claro – era quase tão insuportável quanto a maldita situação de Layla. A verdade era que, graças ao que acontecera, qualquer atração que Qhuinn sentisse pelo cara aumentara em vez de diminuir.
Maravilha. Outra rodada de boas notícias.
Foi sem nenhum entusiasmo que Qhuinn se arrastou para fora da cama e entrou no banheiro. Não acendeu a luz, não tinha interesse algum em ver que sua aparência era a mesma da merda de um cachorro, mas barbear-se só pelo toque não era a melhor das ideias.
Ao apertar o interruptor, piscou com força, e uma dor de cabeça começou a latejar atrás de ambos os olhos. Sem dúvida precisava comer de novo, mas que merda, as exigências constantes de seu corpo estavam acabando com ele.
Abrindo a torneira, ele pegou o gel de barbear e colocou um punhado na palma. Esfregou as mãos para criar espuma e pensou em seu primo. Ele tinha a impressão, embora não soubesse com certeza, de que Saxton usaria um daqueles pincéis antigos para espalhar a espuma no rosto. E nada de lâminas Gilette para ele. Muito provavelmente ele tinha um daqueles instrumentos de barbeiro com cabo em madrepérola.
O pai de Qhuinn tinha um desses. E seu irmão recebera um com suas iniciais após sua transição.
Junto ao anel de sinete.
Bem, ótimo para eles. Além do que, já que ambos estavam mortos, não era como eles continuassem se barbeando.
Quando o rosto ficou coberto de branco, como o cenário lá de fora, ele pegou sua lâmina comum Mach 3 com cabeça descartável...
Sem nem saber por que, achou que devia pegar uma lâmina nova.
Sim, uma supernova e ultracortante.
Qhuinn revirou os olhos para si mesmo. Nada como se concentrar em três pequenas lâminas e uma tira umidificadora. Algo bem lógico.
Depois de se admoestar, ele começou a vasculhar as gavetas do gabinete, puxando-as uma a uma, inventariando os itens de tolices de higiene que nunca usava, nem jamais sequer perdia tempo olhando-as.
Puxando a última, a mais próxima do chão, parou. Franziu o cenho. Agachou.
Havia uma caixinha preta de veludo ali, do tipo em que se colocam joias. Só que ele não tinha nenhuma, e muito menos da Reinhardt, aquela loja esnobe no centro. Como ninguém mais ficava em seu quarto, ele se perguntou se, talvez, aquilo estivesse ali desde que ele se mudara e ele simplesmente nunca o vira.
Tirando a caixinha, levantou a tampa e...
– Filho da mãe.
Dentro, como se valesse muita coisa, estavam todos os seus brincos de argola, bem como o piercing que costumava usar no lábio inferior.
Fritz deve tê-los juntado ao limpar o quarto uma noite e guardado na caixinha. Única explicação possível, porque Qhuinn não se importara com eles depois de tirá-los, um a um. Simplesmente os jogara no fundo de uma das gavetas do banheiro.
Qhuinn mexeu nas argolas de aço, relembrando quando as comprara e colocara. Seu pai ficara mortificado; a mãe também – ao ponto de se retirar da Última Refeição e ficar trancada no quarto por 24 horas seguidas depois de ele entrar flanando na sala de jantar usando-as.
O colocador de piercings lhe dissera para não usá-los até que as tachas utilizadas para perfurar tivessem a chance de cicatrizar. Mas esse conselho era para humanos. Em poucas horas, estava tudo perfeito e ele fizera a troca.
No banheiro de Blay, para falar a verdade.
Qhuinn franziu a testa, lembrando-se do momento em que pisara no quarto do cara. Blay estava na cama, acalentando uma Corona, assistindo TV. A cabeça dele se virou, com sua expressão franca e relaxada... até dar uma olhada em Qhuinn.
Seu rosto se contraiu mesmo que minimamente. De um jeito que, a menos que você conhecesse bem, muito bem uma pessoa, jamais teria percebido. Mas Qhuinn notara.
Naquela época, deduzira que seu estilo obviamente gótico fosse um tantinho demais para o senhor Conservador. Mas agora, em retrospecto, ele se lembrou de algo mais. Blay voltara a se concentrar na TV de plasma... e, casualmente, cobrira o colo com uma almofada.
Ele deve ter ficado excitado.
Enquanto Qhuinn repassava a cena inteira na mente, seu próprio sexo voltava a engrossar.
Só que aquilo era uma completa perda de tempo, não era?
Fitando as malditas argolas, pensou em sua rebeldia, na raiva e na ideia sem noção do que precisava ter para ser feliz.
Uma fêmea. Se encontrasse uma que o aceitasse.
Que... mentira... fora aquilo.
Engraçado, a covardia aparecia em muitas formas, não é? Não era necessário se encolher num canto, tremendo e choramingando como um gatinho. Inferno, não. Você pode ser um grandalhão barulhento cheio de marra e com o rosto cheio de piercings e um rosnado para mostrar para o mundo... e ainda assim não passar de um covarde filho da puta. Afinal, Saxton podia vestir ternos de três peças e gravatas e sapatos, mas o macho sabia quem era, e não tinha medo de ter aquilo que desejava.
E, olha só, Blay estava acordando ao lado do cara.
Qhuinn fechou a tampa e recolocou os piercings onde os encontrara. Depois se olhou no espelho. O que estava fazendo mesmo?, pensou ao fitar seu reflexo.
Ah, sim. Barbeando-se.
Era isso mesmo.
Cerca de vinte minutos mais tarde, Qhuinn saiu do quarto. Andou pelo corredor das estátuas, passou pelas portas fechadas do escritório de Wrath e continuou em frente.
Enquanto avançava, foi difícil olhar para a sala de estar do segundo andar, difícil permanecer controlado quando aquele sofá surgiu no seu campo de visão.
Nunca mais olharia para aquela peça de mobília do mesmo modo. Inferno, talvez todos os sofás estivessem perdidos para ele, para sempre.
À porta de Layla, ele se inclinou encostando o ouvido na madeira. Quando não ouviu nada, perguntou-se exatamente o que achava que descobriria daquele modo.
Deu uma batida suave. Quando não houve resposta, sentiu um aperto de medo irracional na garganta e, sem pensar duas vezes, abriu a porta.
A luz invadiu a escuridão.
Seu primeiro pensamento foi que ela tivesse morrido; que Havers, o filho da puta, tivesse mentido, e que o aborto tivesse saído do controle e a matado: Layla estava imóvel ao encontro dos travesseiros, a boca ligeiramente entreaberta, as mãos cruzadas sobre o peito como se ela tivesse sido arrumada por um agente funerário com respeito pelos mortos.
Só que... algo estava diferente, e ele precisou de um minuto para perceber o que era.
Não havia mais o cheiro sobrepujante do sangue. Na realidade, somente a fragrância delicada de canela marcava o ar, refrescando-o de um modo que iluminava o quarto inteiro.
Será que o aborto finalmente chegara ao fim?
– Layla? – ele a chamou, mesmo tendo dito que se a encontrasse dormindo, não a perturbaria.
Foi um alívio ver as sobrancelhas se mexendo quando seu nome foi captado pelo cérebro, mesmo sob o véu do sono.
Ele teve a sensação de que se a chamasse de novo, ela acordaria.
Parecia cruel forçar-lhe a consciência. O que ela teria para recebê-la quando acordasse? A dor que sentia? A sensação de perda?
Cacete.
Qhuinn saiu silenciosamente, fechou a porta atrás de si e continuou ali. Não sabia o que fazer. Wrath lhe dissera para ficar em casa, mesmo se John Matthew saísse – ele deduziu que aquilo fosse uma espécie de folga misericordiosa de seus deveres de ahstrux nohtrum. E estava grato por isso. Havia tão pouco que pudesse fazer por Layla – pelo menos podia ficar por perto caso ela precisasse de alguma coisa. Um refrigerante. Uma aspirina. Um ombro para chorar.
Você fez isso a ela.
A julgar pelo toque que saía da maldita sala de estar, ele deduziu que perdera a Primeira Refeição. Nove horas. Isso mesmo. Acabara dormindo demais, e isso era bom. Se ele tivesse de se sentar à mesa e passar 45 minutos na companhia de quase duas dúzias de pessoas que tentariam não encará-lo, ele teria perdido a porra da cabeça.
O som de alguém andando no vestíbulo logo abaixo fez com que ele levantasse a cabeça.
Sem nenhum plano ou pensamento específico, ele se aproximou da balaustrada e olhou para baixo.
Payne, a irmã valentona de V., estava saindo da sala de jantar.
Ele não conhecia muito bem aquela fêmea, mas a respeitava imensamente. Seria impossível não admirar, dado o modo como se portava no campo de batalha... Durona, verdadeiramente durona. Naquele instante, porém, a shellan do doutor Manello parecia ter levado uma surra de bar: caminhava lentamente, os pés se arrastando pelo piso de mosaico, o corpo encurvado, a pegada no braço de seu par parecendo ser a única coisa que a sustentava.
Será que ela se machucara em alguma luta corpo a corpo?
Não havia cheiro de sangue.
O doutor Manello disse algo para ela que ele não conseguiu ouvir, mas depois o cara indicou a direção da sala de bilhar com a cabeça – como se ele estivesse perguntando se ela queria ir para lá.
Tomaram aquela direção a passos de caramujo.
Já que não gostava quando as pessoas o encaravam, Qhuinn recuou da grade e esperou até que o caminho estivesse livre. Depois correu escada abaixo.
Comida. Exercícios. Voltar a ver Layla.
Aquela seria a sua noite.
Seguindo para a cozinha, ele se viu imaginando onde Blay estaria. O que estaria fazendo. Se tinha saído para lutar ou se tinha ficado em casa e...
Visto que não sabia onde Saxton estava, ele pôs um ponto final naquela linha de questionamentos.
Se Qhuinn não tivesse de fazer seu turno e pudesse passar um tempo com o cara, ele sabia muito bem o que Blay estaria fazendo.
E Saxton, seu primo filho da puta, não era nenhum tolo.
CONTINUA
CAPÍTULO 37
Enquanto Blay girava o anel de sinete da família no dedo, seu cigarro aceso queimava lentamente na outra mão, e seu traseiro ficava adormecido... e ninguém passava pelas portas do átrio.
Sentado no degrau de baixo da grande escadaria da mansão, ele não respeitaria a promessa feita à mãe de ir para casa. Não naquela noite, pelo menos. Depois da loucura da noite anterior, do pouso forçado do avião e do drama subsequente, Wrath ordenara que a Irmandade e os lutadores tirassem 24 horas de folga. Por isso, tecnicamente, ele deveria ligar para os pais e dizer à mãe que caprichasse na mussarela e no molho à bolonhesa.
Mas de jeito nenhum ele sairia daquela casa. Não depois de ouvir os gritos vindos do quarto de Layla, e de vê-la praticamente sendo carregada escadaria abaixo.
Naturalmente, Qhuinn esteve ao lado dela.
John Matthew não.
Portanto, o quer que estivesse acontecendo, pelo visto superava o ahstrux nohtrum, e isso significava que... ela só podia estar perdendo o filho. Somente algo sério assim possibilitaria um passe livre.
Enquanto ele continuava parado como uma porta, sem nada além da sua preocupação para lhe fazer companhia, naturalmente sua mente resolveu seguir o caminho errado: merda, fora mesmo para a cama com Qhuinn na noite passada?
Dando uma tragada em seu Dunhill, ele expeliu uma imprecação.
Acontecera mesmo?
Deus, essa pergunta vinha martelando a sua cabeça desde o minuto em que despertou de um sonho sensual, com uma ereção que parecia fazer pensar que o outro macho dormia ao seu lado.
Revendo as cenas pela centésima vez, só no que ele conseguia pensar era... como um plano podia fracassar. Depois de ter rejeitado Qhuinn quando ele se pôs de joelhos, voltara para o próprio quarto e andara de um lado para o outro, um debate que não interessava ter consigo mesmo transformando seu cérebro em fois gras.
Ele tomara a decisão correta ao sair. Mesmo. Tinha sim.
O problema foi que a decisão não se sustentou. Enquanto as horas do dia passavam, tudo o que ele conseguia pensar foi a vez em que o pai o flagrou roubando uma caixa de cigarros do doggen da família. Na época, ele era um jovem pré-trans e, como castigo, seu pai o obrigou a se sentar do lado de fora e fumar cada um daqueles Camels sem filtro. Ele se sentiu muito mal e demorou mais de dois anos para sequer tolerar fumo passivo.
Portanto, esse fora o seu segundo plano.
Fazia tempo demais que era louco por Qhuinn, mas tudo não passava de algo hipotético, dividido em fantasias de modo que ele conseguisse suportar. Nada de uma vez só, nada da coisa sobrecarregada, absoluta e arrasadora – e ele sabia muito bem que na vida real, Qhuinn não se conteria nem relaxaria. O “plano” fora ter a experiência concreta, e descobrir que aquilo não passava de apenas sexo brutal. Ou, inferno, descobrir que não era nem sexo bom.
Não era de se esperar que você fumasse um maço inteiro de cigarros... só para querer mais.
Deus todo-poderoso, foi a primeira vez em que a realidade foi muito melhor do que uma fantasia, a absolutamente melhor experiência erótica de toda a sua vida.
Depois, porém, a gentileza que Qhuinn demonstrara fora insuportável.
Na verdade, enquanto Blay rememorava aquela ternura, ele deu um salto de onde estava e começou a marchar ao redor do mosaico de macieira – não tinha para onde ir.
Naquele instante a porta se abriu. Porém, não a de entrada.
A da biblioteca.
Enquanto olhava de relance por sobre o ombro, Saxton surgiu de lá. Ele parecia saído do inferno, e não só porque, por mais veloz que fosse a sua recuperação, ele ainda tinha um inchaço residual na mandíbula graças ao ataque de Qhuinn.
Que lindo, Blay pensou. Bela maneira de expressar seu desapontamento quanto ao comportamento de alguém: deixe-o transar com você depois que ele tentou estrangular seu ex.
Quaaanta classe.
– Como você está? – Blay perguntou, e não por convenção social.
Foi um alívio Saxton se aproximar. E encará-lo. E sorrir-lhe um pouco como se estivesse determinado a fazer um esforço.
– Estou exausto. E faminto. E agitado.
– Gostaria de comer comigo? – sugeriu Blay num rompante. – Também estou me sentindo assim, e a única coisa em que posso dar jeito é a fome.
Saxton assentiu com a cabeça e enfiou as mãos nos bolsos da calça.
– Ideia brilhante.
Os dois acabaram na cozinha, sentados ante a castigada mesa de carvalho, lado a lado, de frente para o resto do cômodo. Com um sorriso contente, Fritz imediatamente passou para o seu modo “provedor de alimentos” e, veja só, dez minutos mais tarde, o mordomo servia uma tigela de cozido de carne para cada um, além de uma baguete para dividirem, uma garrafa de vinho tinto e uma porção de manteiga num pratinho ao lado.
– Volto em seguida, meus senhores – disse o mordomo com uma reverência. E depois ele prosseguiu expulsando todos da cozinha, desde o doggen que descascava legumes até os que poliam a prataria e os que limpavam as janelas de uma alcova logo além dali.
Quando a porta se fechou após a saída do último criado, Saxton disse:
– Tudo o que nos falta é uma vela, aí isto seria um encontro – o macho se inclinou para a frente e começou a comer com modos impecáveis. – Bem, suponho que precisaríamos de mais algumas coisas, não?
Blay olhou de esguelha enquanto apagava o cigarro. Mesmo com as olheiras e o hematoma desvanecendo no pescoço, o advogado era muito bonito de se olhar.
Por que ele não poderia simplesmente...
– Não repita, de novo, que sente muito – Saxton limpou a boca com o guardanapo e sorriu. – Não é necessário, nem apropriado.
Assim, sentado ao lado dele, não parecia que tinham acabado de romper, nem que ele estivera com Qhuinn. Será que as últimas noites aconteceram mesmo?
Até parece... O que ocorreu com Qhuinn não teria acontecido se ele e Sax ainda estivessem juntos. Isso era bem claro para ele: uma coisa era se masturbar secretamente, e isso já era ruim o bastante. Aquilo tudo? De jeito nenhum.
Droga, apesar do fato de ele e Saxton terem rompido, ele ainda sentia que devia confessar sua transgressão... mesmo que Qhuinn estivesse certo e que Saxton já tivesse seguido em frente, por assim dizer.
Enquanto comiam em silêncio, Blay balançou a cabeça, ainda que não tivessem lhe feito nenhuma pergunta e nem estivessem conversando. Ele só não sabia o que fazer. Às vezes, as mudanças da vida surgiam com tanta rapidez, e com tamanha impetuosidade, que não havia como acompanhar a realidade. Levava tempo para as coisas se assentarem, um novo equilíbrio se reestabelecia só depois de algum tempo em que seu cérebro batia de um lado contra o outro das paredes da sua cabeça.
Ele ainda estava na fase de balançar.
– Já sentiu alguma vez como se as horas fossem medidas em anos? – perguntou Saxton.
– Ou décadas. Sim. Absolutamente – Blay olhou de novo. – Na verdade, eu também estava pensando nisso.
– Que par de mórbidos nós somos.
– Talvez devêssemos vestir preto.
– Braçadeiras? – sugeriu Saxton.
– Não, preto dos pés à cabeça.
– E o que eu faço com o meu gosto por cores? – Saxton apontou para o lenço laranja Hermès no bolso da sua lapela. – Bem, pode-se muito bem usar todo tipo de acessórios.
– Certamente isso explica a teoria por trás dos aparelhos ortodônticos.
– Flamingos de plástico rosa.
– A franquia da Hello Kitty.
Juntos, os dois explodiram numa gargalhada. Nem era assim tão engraçado, mas o humor não era a questão ali. Mas quebrar o gelo. Voltar ao que era antes. Aprender a se relacionarem de um modo diverso.
Quando convergiram para um riso mais contido, Blay passou o braço ao redor dos ombros do macho e lhe deu um abraço rápido. Foi bom que Saxton tivesse relaxado um pouco, aceitando aquilo que lhe era oferecido. Não que Blay acreditasse que por estarem sentados juntos, partilhando uma refeição e uma bela risada, tudo, de repente, seria um navegar suave. Nada disso. Era estranho pensar que Saxton estivera com outra pessoa, e ainda mais incrível saber que ele fizera o mesmo – principalmente com quem o fizera.
Não se passava de amantes de quase um ano para companheiros de risadas em um ou dois dias.
Podia-se, porém, começar a forjar um novo caminho.
E colocar um pé na frente do outro.
Sempre haveria um lugar em seu coração para Saxton. O relacionamento que tiveram foi o seu primeiro não só com um macho, mas com qualquer um. E muitas coisas boas aconteceram, coisas que ele carregaria consigo como lembranças que valiam o espaço em sua mente.
– Deu uma olhada nos jardins de trás? – Saxton perguntou ao lhe oferecer o pão.
Blay partiu um pedaço e depois espalhou manteiga por cima enquanto Saxton também pegava um pouco.
– Estão bem ruins, não?
– Lembre-me de nunca tentar cortar grama com um Cessna.
– Você não curte jardinagem.
– Bem, para o caso de um dia eu tentar – Saxton se serviu de vinho. – Aceita?
– Sim, por favor.
E foi assim que as coisas aconteceram. Durante o cozido de carne até a torta de pêssegos, que milagrosamente apareceu diante deles graças à impecabilidade de Fritz. Quando a última garfada e a última limpada com guardanapo foram dadas, Blay se reclinou contra o encosto acolchoado do banco embutido e inspirou fundo.
Que se referia a muito mais do que uma simples barriga cheia.
– Bem – disse Saxton, ao apoiar o guardanapo ao lado do prato de sobremesa –, acredito que finalmente vou poder tomar o banho de banheira que você me sugeriu há algumas noites.
Blay abriu a boca para observar que os sais de banho que o macho preferia ainda estavam em seu banheiro. Ele os vira no gabinete quando fora pegar o creme de barbear reserva ao cair da noite.
Só que... ele não sabia se devia mencionar isso. E se Saxton pensasse que ele estava lhe pedindo para ir à sua banheira? Seria um lembrete muito grande de como as coisas tinham mudado e do por quê? E se...
– Tenho esse novo tratamento à base de óleos que estou morrendo de vontade de experimentar – explicou Saxton ao deslizar pelo banco. – Ele finalmente chegou do exterior hoje. Faz séculos que espero por ele.
– Parece maravilhoso.
– Mal posso esperar – Saxton ajustou o paletó nos ombros, ajeitou os punhos e depois acenou com a mão, saindo sem nenhum indício de complicações ou de tensão em seu rosto.
O que, de fato, ajudava muito.
Dobrando o próprio guardanapo, deixou-o de lado, e saiu de trás da mesa, esticando os braços acima da cabeça e curvando-se para trás, estalando muito bem a coluna.
A sua tensão voltou no segundo em que pisou no átrio novamente.
Que diabos estava acontecendo com Layla?
Maldição, ele nem podia ligar para Qhuinn. Aquele drama não era seu, nem estava ligado a ele de modo algum. Quando se tratava de uma gestação, ele não era diferente de nenhum outro macho daquela casa que também ouvira ou vira o show e, sem dúvida, estava tão preocupado quanto ele. Mas também não tinha direito a nenhuma notícia antecipada.
Uma pena que sua barriga, agora cheia, não concordasse com isso. Pensar em Qhuinn perdendo o filho o fez considerar seriamente a localização do banheiro mais próximo da porta de entrada, só para o caso de uma evacuação rápida ser ordenada pelo fundo da sua garganta.
No fim, ele se viu subindo para a sala de estar do segundo andar. Daquele lugar, ele não teria dificuldade em ouvir a porta da frente, e não estaria esperando abertamente...
As portas do escritório de Wrath se abriram, e John Matthew emergiu do santuário do Rei.
Imediatamente, Blay atravessou a sala de espera, pronto para ver se, talvez, o cara sabia de alguma coisa, mas se conteve ante a expressão de John.
Perdido em pensamentos. Como se tivesse recebido notícias pessoais do tipo perturbador.
Blay ficou para trás enquanto o camarada seguia no caminho contrário, na direção do corredor das estátuas, sem dúvida para desaparecer no próprio quarto.
Parecia que as coisas não andavam bem nas vidas dos outros também.
Maravilha.
Com uma imprecação baixa, Blay deixou o amigo em paz e voltou a caminhar e... a esperar.
Muito mais ao sul, na cidade de West Point, Sola estava pronta para entrar no segundo andar da casa de Ricardo Benloise, através da janela ao fim do corredor principal. Fazia meses desde que estivera lá dentro, mas ela contava com o fato de que seu contato na segurança por ela cuidadosamente manipulado ainda fosse o seu amigo.
Havia dois fatores-chave para invadir com sucesso qualquer casa, prédio, hotel ou instalação: planejamento e velocidade.
Ela possuía os dois.
Pendurada no cabo que lançara no telhado, ela tirou um instrumento de dentro do bolso da parca, segurando-o no canto direito da janela dupla. Iniciado o sinal, ela esperou, olhando fixamente para a luzinha vermelha que brilhava na tela à sua frente. Se por algum motivo ela não mudasse, ela teria de entrar por uma das águas-furtadas que dava para o jardim, o que seria um pé no saco...
A luz ficou verde com um sinal, e ela sorriu ao pegar mais instrumentos.
Pegando um copo de sucção, ela o empurrou no meio do painel, imediatamente abaixo da tranca e depois girou a coisa com o cortador de vidro. Um empurrão rápido e o espaço que possibilitava a entrada do seu braço foi criado.
Depois de deixar o círculo de vidro cair com suavidade na passadeira oriental, ela enfiou o braço e o virou, para soltar a trava de latão que mantinha a janela fechada.
O ar quente lhe deu boas-vindas, como se a casa estivesse contente por vê-la mais uma vez.
Antes de entrar, ela olhou ao redor. Relanceou para o caminho de carros. Inclinou-se para fora para ver o que conseguia encontrar nos jardins escuros.
Sentia como se alguém a estivesse observando... não tanto no caminho de carro até a cidade, mas depois que parara no estacionamento e colocara os esquis. Todavia, não havia ninguém por perto – pelo menos, ninguém que ela conseguisse enxergar – e por mais que a atenção fosse essencial em seu ramo de trabalho, a paranoia era uma perda de tempo perigosa.
Ela precisava deixar isso de lado.
Voltando a se concentrar no jogo, esticou as mãos enluvadas e suspendeu o traseiro e as pernas por cima e através da janela. Ao mesmo tempo, relaxou a tensão do cabo para que ele ficasse folgado e permitisse a sua entrada. Aterrissou sem nenhum som, graças não só ao tapete que cobria o longo corredor como também aos seus calçados de solas macias.
O silêncio era outro critério importante no tocante a realizar um trabalho com sucesso.
Ela parou onde estava por um breve momento. Nenhum som na casa, mas isso não significava nada necessariamente. Ela tinha quase certeza de que o alarme de Benloise fosse silencioso, e mais certeza ainda de que o sinal não iria para a força policial, nem a local, tampouco a estadual: ele gostava de cuidar das coisas particulares de modo privado. E Deus bem sabia, com o tipo de força braçal que ele contratava, havia poder suficiente para tal.
Felizmente, contudo, ela era boa no que fazia, e Benloise e seus capangas não estariam em casa até perto do nascer do sol, afinal, ele vivia a vida de um vampiro.
Por algum motivo, a palavra que começava com “v” a fez pensar no homem que aparecera ao lado do seu carro e que desaparecera como num passe de mágica.
Loucura. E a única vez em sua lembrança recente que alguém a fazia parar para pensar. Na verdade, depois de ser confrontada daquela forma, ela estava realmente considerando não voltar à casa de vidro no rio, embora houvesse motivos mais do que válidos para isso. Não por ela se preocupar em se machucar fisicamente. Deus bem sabia que ela era perfeitamente capaz de se defender.
Era a atração.
Mais perigosa do que qualquer pistola, faca, ou punho, em sua opinião.
Com passadas ágeis, Sola trotou pelo tapete, saltitando na ponta dos pés, seguindo para a suíte principal que dava para o jardim dos fundos. A casa ainda tinha o mesmo cheiro de que se lembrava: mobília antiga e lustra-móveis, e ela conhecia o bastante para se ater ao lado esquerdo da passadeira. Nenhum rangido daquele lado.
Quando chegou à suíte principal, a porta pesada de madeira estava fechada, e ela pegou a chave micha antes mesmo de testar a maçaneta. Benloise tinha duas patologias: limpeza e segurança. A impressão dela, entretanto, era que a segunda era mais crítica na galeria no centro de Caldwell do que em seu lar. Afinal, Benloise não mantinha debaixo do seu teto nada além de objetos de arte com seguros até o último centavo, e a ele próprio durante o dia – quando estava cercado por diversos seguranças e armas.
Na verdade, devia ser por isso que ele era uma coruja no centro da cidade. Isso significava que a galeria nunca ficava sem supervisão: ele aparecia depois do expediente e sua equipe de trabalho legítima estava lá durante o dia.
Como uma gatuna, ela certamente preferia entrar em lugares vazios.
Dito isso, mexeu no mecanismo de tranca da porta, abrindo-a, e entrou no quarto. Inspirou profundamente, o ar estava permeado com a fumaça do tabaco e da colônia refrescante de Benloise.
A combinação a fez pensar nos filmes em preto e branco de Clark Gable por algum motivo.
Com as cortinas puxadas e nenhuma luz acesa, ali estava absolutamente escuro, mas ela tirara fotografias dos quartos quando fora a uma festa ali, e Benloise não era o tipo de homem que mudava as coisas de lugar. Inferno, toda vez que uma nova exibição era instalada na galeria de arte, ela praticamente sentia o tremor debaixo da pele dele.
Medo de mudança era uma fraqueza, sua avó sempre dizia.
Obviamente facilitava as coisas para ela.
Mais devagar, ela avançou dez passos até o meio do quarto. A cama estaria à esquerda encostada na parede comprida. À sua frente estavam as janelas altas que davam para o jardim. À direita, haveria uma cômoda, uma escrivaninha e algumas cadeiras, e a lareira que nunca era usada porque Benloise detestava o cheiro de madeira queimada.
O alarme de segurança se localizava entre a entrada do banheiro e a cabeceira ornamentada da cama, ao lado do abajur que se elevava noventa centímetros do criado-mudo.
Sola deu um giro ao redor de si mesma. Deu quatro passos. Tentou encontrar o pé da cama... e o encontrou.
Passo lateral, um, dois, três. De frente para o flanco do colchão king-size. Outro passo lateral para desviar da mesinha de cabeceira e do abajur.
Sola esticou o braço esquerdo...
E lá estava o painel de segurança, bem onde deveria.
Abrindo a portinhola, usou uma lanterna de bolso que prendeu entre os dentes para iluminar o circuito. Pegando outro instrumento da mochila, conectou fios a fios, interceptando sinais, e com a ajuda de um laptop em miniatura e de um programa que um amigo seu desenvolvera, criou um circuito fechado dentro do sistema de alarme de modo que, enquanto o roteador estivesse no lugar, os detectores de movimento que ela estava para disparar não seriam registrados.
No que se referia à placa-mãe, nada pareceria anormal.
Deixando o laptop pendurado pelos fios, saiu do quarto, chegou ao corredor, e tomou as escadas para o primeiro andar.
O lugar estava perfeitamente decorado, pronto para uma foto de revista – ainda que, claro, Benloise protegesse demais a sua privacidade para permitir que suas coisas fossem fotografadas para o consumo público. Com passos rápidos, ela passou pelo hall de entrada, pela sala à esquerda e entrou no escritório.
Andando em meio à penumbra, ela bem que preferiria tirar a parca de camuflagem branca e as calças para neve: fazer aquilo em seu body preto seria um clichê que, entretanto, seria bem prático. Não havia tempo, porém, e ela estava mais preocupada em não ser vista do lado de fora do que ali, na casa vazia.
O espaço de trabalho pessoal de Benloise era, como todo o resto debaixo daquele teto, mais um cenário montado do que algo funcional. Ele, na verdade, não usava a imensa escrivaninha, nem se sentava no minitrono, tampouco lia qualquer um dos livros em capa de couro das prateleiras.
Todavia, ele transitava por aquele cômodo. Uma vez ao dia.
Certa vez, num momento de tranquilidade, ele lhe dissera que antes de sair, todas as noites, passeava pela casa olhando seus pertences, lembrando a si mesmo da beleza das suas coleções e de sua casa.
Como resultado dessa informação e de algumas outras coisas, Sola há muito deduzira que o homem crescera na pobreza. Primeiro porque, quando conversavam em espanhol ou em português, seu sotaque pertencia à classe baixa, mesmo que de modo sutil. Segundo, os ricos não valorizavam seus pertences como ele o fazia.
Nada era raro aos ricos, e isso significava que eles davam como certas todas as coisas.
O cofre estava escondido atrás da escrivaninha numa seção de estandes que era liberada por um botão localizado na gaveta inferior do lado direito.
Ela descobrira isso graças a uma minúscula câmera escondida que colocara do lado oposto durante aquela festa.
Após a abertura do mecanismo, um corte de sessenta por noventa centímetros na prateleira rolou para a frente e deslizou para o lado. E lá estava ela: uma caixa grossa de aço, cujo fabricante ela reconhecia.
Pensando bem, depois de invadir centenas de espaços, você acaba conhecendo intimamente os fabricantes. E ela aprovava aquela escolha. Se precisasse ter um cofre, era daquele tipo que ela pegaria e, sim, ele o prendera ao chão.
O maçarico que trouxera na mochila era pequeno, mas poderoso, e enquanto ela acendia a ponta, a chama chamuscou com um sibilo substancial e um brilho branco e azul.
Aquilo levaria tempo.
A fumaça do metal queimado irritava seus olhos, o nariz e a garganta, mas ela manteve a mão firme enquanto produzia um quadrado na frente do painel. Ela conseguia explodir a porta de alguns cofres, mas o único jeito com um daqueles era do modo antigo.
Que levava uma eternidade.
No entanto, ela conseguiu.
Deixando a pesada seção da porta de lado, ela mordeu a ponta da lanterna mais uma vez e se inclinou. Uma prateleira continha joias, cautelas de ações e alguns relógios de ouro que ele deixara à mão. Havia uma pistola que ela seria capaz de apostar que estaria carregada. Nenhum dinheiro.
Pensando bem, com Benloise sempre havia tanto dinheiro disponível que fazia sentido ele não se dar ao trabalho de colocá-lo no cofre.
Maldição. Não havia nada ali que valesse apenas cinco mil dólares.
Afinal, naquele trabalho, ela só estava atrás daquilo que lhe era devido por direito.
Com uma imprecação, ela se apoiou nos calcanhares. Na verdade, não havia nada no cofre que valesse menos do que vinte e cinco mil dólares. E não tinha como ela partir a metade da pulseira de um relógio de ouro – porque, como diabos conseguiria revender a coisa?
Um minuto se passou.
O segundo.
Ao diabo com aquilo, ela pensou ao recolocar o painel que cortara contra o cofre e deslizar a prateleira de volta ao seu lugar. Levantando-se, olhou ao redor da sala com a lanterna de bolso. Os livros eram todos edições de colecionadores de primeiras edições de antiguidades. A arte nas paredes e sobre as mesas não era somente muito cara, como difícil de transformar em dinheiro sem ser debaixo dos panos... para as pessoas intimamente ligadas a Benloise.
Mas, que droga, ela não sairia sem seu dinheiro, maldição...
Abruptamente, sorriu para si mesma, a solução se tornando muito clara.
Por vários anos no curso da civilização humana, o comércio só existira e sobrevivera na base da troca. Ou seja, um indivíduo trocava bens ou serviços por outros de mesmo valor.
Em todos os trabalhos que realizara, ela jamais considerara acrescentar os custos auxiliares aos seus alvos: novos cofres, novos sistemas de segurança, novos protocolos de segurança. Ela podia apostar que isso era caro – ainda que não tão caro quanto o que ela costumava tomar. E ela entrara ali deduzindo que esses custos adicionais seriam arcados por Benloise – um tipo de prejuízo monetário pelo que ele roubara dela.
No entanto, eles agora eram a questão.
No caminho de volta à escada, observou as oportunidades disponíveis... e, no fim, foi até uma escultura de Degas de uma pequena bailarina que fora colocada na lateral de um nicho. A figura em bronze da garotinha era o tipo de coisa que sua avó teria adorado, e talvez por isso, dentre tantas peças, foi aquela a lhe chamar a atenção.
A luz que fora colocada no teto acima da estátua estava desligada, mas a obra-prima ainda assim parecia brilhar. Sola adorou especialmente a saia em tutu, a delicada ainda que rígida explosão de tule delineada por metal entrelaçado que capturava perfeitamente o que deveria ser maleável.
Sola se aproximou da base da escultura, passou os braços ao redor dela, e concentrou toda a sua força em girar a sua posição não mais do que cinco centímetros.
Depois correu para as escadas, retirou os clipes do roteador e do laptop do painel de alarme na suíte principal, trancou novamente a porta e seguiu para a janela na qual cortara um buraco.
Estava de volta nos esquis, deslizando na neve não mais do que quatro minutos mais tarde.
Apesar do fato de não ter nada nos bolsos, ela sorria ao deixar a propriedade.
CAPÍTULO 38
Quando a Mercedes finalmente parou na entrada da mansão da Irmandade, Qhuinn saiu primeiro e foi para a porta em que Layla estava. Quando a abriu, os olhos dela encontraram os dele.
Ele soube que jamais se esqueceria da aparência dela. A tez estava branca como um papel e parecia tão fina quanto um, a bela estrutura óssea se esticando sobre a cobertura de pele. Os olhos estavam encovados no crânio. Os lábios, finos e inexpressivos.
Naquele instante, ele teve um vislumbre de como ela ficaria ao morrer, não importando quantas décadas e séculos isso fosse levar para acontecer.
– Eu carrego você – disse ele, inclinando-se para pegá-la no colo.
O modo como ela não discutiu lhe contou exatamente o pouco que restava dela.
Quando as portas de entrada foram abertas por Fritz, como se o mordomo estivesse esperando pela chegada deles, Qhuinn se arrependeu de tudo: do sonho que acalentara por um instante durante o cio dela. A esperança desperdiçada. A dor física pela qual ela passava. A angústia emocional que ambos atravessavam.
Você fez isso com ela.
Na época, quando a servira, ele só se concentrara no resultado positivo do qual esteve tão certo.
Agora, depois de tudo, com os coturnos fincados na realidade sólida e fétida? Não valia a pena. Mesmo a possibilidade de um filho saudável não valia aquele sacrifício.
O pior de tudo era testemunhar o sofrimento dela.
Ao carregá-la para dentro da casa, rezou para que não houvesse uma grande plateia. Ele só gostaria de poupá-la de tudo, de qualquer coisa, mesmo do simples fato de desfilar diante de rostos tristes e preocupados.
Não havia ninguém por perto.
Qhuinn subiu os degraus dois de cada vez e, ao chegar ao segundo andar, as grandes portas duplas do escritório de Wrath abertas o fizeram praguejar.
Pensando bem, o Rei era cego.
Enquanto George emitiu um latido de boas-vindas, Qhuinn apenas passou pela frente, indo direto para o quarto de Layla. Abrindo a porta com um chute, descobriu que o doggen estivera ali e limpara tudo, arrumando a cama, decerto tendo até trocado os lençóis, e também havia um vaso de flores frescas.
Ao que tudo levava a crer, ele não era o único disposto a ajudar em qualquer coisa que pudesse.
– Quer trocar de roupa? – perguntou ao fechar a porta com outro chute.
– Quero tomar banho...
– Vamos providenciar isso.
– ... mas estou com muito medo. Eu não quero... ver, se é que me entende.
Ele a deitou e se sentou ao seu lado na cama. Colocando uma mão em sua perna, esfregou-lhe o joelho com o polegar, de um lado para o outro.
– Sinto muito – disse ela com pesar.
– Droga... Não, não faça isso. Jamais pense nem diga isso, está bem? Isto não é culpa sua.
– De quem mais é?
– Isso não vem ao caso.
Merda, ele não conseguia acreditar que o processo do aborto duraria mais ou menos uma semana. Como podia ser possível...
A careta que contraiu o rosto de Layla revelou a ele que uma cólica a assolava novamente. Olhando de relance para trás, esperando ver a doutora Jane, descobriu que estavam sozinhos.
O que garantiu, mais do que tudo, que não havia nada a ser feito.
Qhuinn deixou a cabeça pensa e segurou a mão dela.
Aquilo começara com os dois.
E estava terminando com os dois.
– Acho que gostaria de dormir um pouco – disse Layla ao apertar a mão dele. – Você também parece estar precisando...
Ele olhou para a chaise-longue do outro lado.
– Você não precisa ficar comigo – murmurou ela.
– Onde mais eu ficaria?
Uma breve visão mental de Blay abrindo os braços cruzou sua mente. Que fantasia, hein...
Nunca mais me toque assim.
Qhuinn sacudiu a cabeça para que tais pensamentos sumissem.
– Vou dormir ali.
– Você não pode ficar aqui por sete noites seguidas.
– Vou repetir mais uma vez. Onde mais eu...
– Qhuinn – a voz dela soou estridente. – Você tem o seu trabalho. E você ouviu Havers. Isto vai levar o tempo que for preciso e, provavelmente, vai demorar um pouco. Não corro o risco de ter uma hemorragia e, francamente, sinto como se devesse ser forte na sua frente, e não tenho a energia necessária para isso. Por favor, volte aqui para me ver o quanto quiser. Mas vou enlouquecer se você montar acampamento aqui até isso tudo terminar.
Desespero comedido.
Era tudo o que Qhuinn tinha enquanto permanecia sentado na beira da cama, segurando a mão de Layla.
Ele acabou se levantando pouco depois. Claro, ela estava certa. Ela precisava descansar o máximo possível e, de fato, além de ficar olhando para ela e fazendo com que ela se sentisse fraca, não havia nada que ele pudesse fazer.
– Não estarei longe.
– Sei disso – ela suspendeu o punho dele para os seus lábios, e ele ficou chocado ao perceber o quanto eles estavam frios. – Você tem se mostrado... mais do que eu seria capaz de pedir.
– Não... Não fiz nada de...
– Você fez o que era certo e apropriado. Sempre.
Aquilo era uma questão de opinião.
– Preste atenção. Vou estar sempre com meu telefone por perto. Volto em algumas horas para ver como você está. Se estiver dormindo, eu não a incomodarei.
– Obrigada.
Qhuinn assentiu com a cabeça e andou de lado até a porta. Certa vez ouvira que não se devia dar as costas a uma Escolhida, e ele imaginou que demonstrar um pouco de protocolo não faria mal.
Fechando a porta atrás de si, ele se recostou nela. A única pessoa que ele queria ver era o único cara naquela casa que não tinha interesse algum em...
– O que está acontecendo?
A voz de Blay foi um choque tão grande que ele pensou que a tivesse imaginado. A não ser pelo fato de que o macho em pessoa acabara de passar pela porta da sala de estar do segundo andar. Como se estivesse ali esperando o tempo inteiro.
Qhuinn esfregou os olhos e depois começou a andar, o corpo procurando a única coisa pela qual ele vinha rezando.
– Ela está abortando – Qhuinn se ouviu dizer numa voz morta.
Blay murmurou algo em resposta, mas que não ficou registrado.
Engraçado, o aborto não lhe parecera real até aquele momento. Não até contar a Blay.
– O que disse? – perguntou Qhuinn, ciente de que o cara esperava por uma resposta.
– Posso fazer alguma coisa?
Tão engraçado. Qhuinn sempre achou que saíra do ventre da mãe já como um adulto. Pensando bem, nunca houve nenhum agradinho materno, nada de abraços quando ele se machucava, nenhum amparo quando ele tinha medo. Como resultado, quer fosse um aspecto do seu caráter, ou o modo como fora criado, ele nunca regredira. Não havia para o que voltar.
Todavia, foi com a voz de uma criança que disse:
– Faz isso parar?
Como se só Blay tivesse o poder de operar um milagre.
E então... foi o que o macho fez.
Blay abriu os braços, oferecendo o único refúgio que Qhuinn sempre conheceu.
– Faz isso parar?
O corpo de Blay começou a tremer quando Qhuinn enunciou essas palavras: depois de todos esses anos, ele vira o cara em diferentes estados de humor dependendo da circunstância. Porém, jamais assim. Nunca... tão completa e absolutamente devastado.
Nunca perdido como uma criança.
A despeito da sua necessidade de se manter verdadeiramente afastado de qualquer vínculo emocional, seus braços se abriram por vontade própria.
Enquanto Qhuinn avançava para ele, o corpo do guerreiro parecia menor e mais frágil do que de fato era. E os braços que passaram ao redor da cintura de Blay simplesmente ficaram lá, como se não tivessem força nos músculos.
Blay sustentou a ambos.
E antecipou que Qhuinn recuaria rapidamente. Normalmente, o cara não suportava nenhum tipo de conexão intensa além da sexual por mais tempo do que um segundo e meio.
Qhuinn não o fez, porém. Ele parecia preparado para ficar parado na entrada da sala de estar para sempre.
– Venha – disse Blay, levando o macho para dentro e fechando a porta. – Vamos para o sofá.
Qhuinn o seguiu, os coturnos se arrastando em vez de marcharem.
Quando chegaram ao sofá, sentaram-se de frente, os joelhos se tocando. Quando Blay o fitou, a tristeza ressonante o tocou tão profundamente, que não pôde evitar que a mão se esticasse e afagasse o cabelo escuro...
Sem aviso, Qhuinn se enroscou ao seu encontro, simplesmente se deixou cair, o corpo se dobrando ao meio, quase se desmanchando no colo de Blay.
Uma parte de Blay reconhecia que aquele era um terreno perigoso. Sexo era uma coisa, e já bem difícil de lidar, ora essa. Aquele momento tranquilo? Era potencialmente devastador.
Motivo pelo qual saíra num rompante daquele quarto na noite anterior.
A diferença desta noite, porém, era que ele estava no controle. Era Qhuinn quem buscava conforto, e Blay podia negar ou oferecer, dependendo de como se sentisse. Ser o depositário da confiança de alguém era absolutamente diferente de recebê-la... ou necessitá-la.
Blay era bom nisso. Havia uma medida de segurança, de controle. Não era o mesmo que cair num abismo. E, inferno, se alguém devia saber isso, esse alguém era ele. Deus bem sabia que ele passara anos lá embaixo.
– Eu faria qualquer coisa para mudar isso – disse Blay, afagando as costas de Qhuinn. – Odeio o que você está passando...
Ah, as palavras eram tão inúteis...
Ficaram ali por um tempo enorme, a tranquilidade da sala formando uma espécie de casulo. Periodicamente, o relógio antigo sobre a lareira tocava, e depois de um bom tempo, as persianas começaram a baixar sobre as janelas.
– Gostaria que existisse algo que eu pudesse fazer – disse Blay quando os painéis de aço chegaram ao fim com um baque.
– Deve estar na hora de você ir.
Blay deixou aquela passar. A verdade não era algo que ele quisesse partilhar: nem cavalos selvagens, ou armas carregadas, pés-de-cabra, mangueiras de incêndio, estouro de elefantes... nem mesmo uma ordem do Rei em pessoa o teria tirado dali.
E havia uma parte sua que ficava zangada com isso. Não com Qhuinn, mas com seu próprio coração. A questão era que não se pode lutar contra a sua natureza, e era isso o que ele vinha aprendendo. No rompimento com Saxton. Em se revelar à mãe. Naquele exato instante.
Qhuinn gemeu ao suspender o tronco e depois esfregar o rosto. Quando abaixou as mãos, as faces estavam vermelhas, bem como os olhos, mas não porque ele estivesse chorando.
Indubitavelmente, a sua cota de lágrimas da década fora derramada na noite anterior quando ele chorara de alívio por ter salvado a vida de um pai.
E se soubesse que Layla não estava bem naquele instante?
– Sabe o que é pior? – perguntou Qhuinn, parecendo um pouco mais consigo mesmo.
– O quê? – Deus bem sabia que a gama de opções era vasta.
– Eu vi a criança.
Os pelos da nuca de Blay se eriçaram.
– Do que está falando?
– Na noite em que a Guarda de Honra veio atrás de mim e que quase morri, lembra?
Blay deu uma tossidela, a lembrança era tão vívida e visceral como se tivesse acontecido uma hora antes. E mesmo assim a voz de Qhuinn era calma e tranquila, como se ele estivesse se referindo a uma noite numa boate ou algo assim.
– Sim, eu me lembro.
E pensou, eu fiz boca a boca em você no acostamento da estrada, porra.
– Eu fui até o Fade... – Qhuinn franziu o cenho. – Você está bem?
Ah, sim, claro, uma maravilha.
– Desculpe. Pode continuar.
– Fui até lá. Quero dizer, é como... a gente ouviu falar. Branco – Qhuinn esfregou o rosto de novo. – Tão branco. Tudo. Havia uma porta, e eu caminhei até ela... Eu sabia que se girasse a maçaneta, entraria e não sairia mais. Eu estava prestes a tocá-la quando... foi então que eu a vi. Na porta.
– Layla – interpôs Blay, sentindo como se o peito tivesse sido apunhalado.
– A minha filha.
A respiração de Blay ficou presa.
– A sua...
Qhuinn o encarou.
– Ela era... loira. Como Layla. Mas os olhos... – ele levou a mão próxima aos seus. – Eram como os meus. Parei de andar quando a vi e depois, de repente, eu estava de volta no chão, no acostamento da estrada. Depois disso, fiquei sem saber o que foi tudo aquilo. Mas depois, muito tempo depois, Layla entrou no cio e me procurou, e tudo se encaixou. Era como se aquilo... tivesse que acontecer. Pareceu o destino, sabe. De outro modo, eu jamais teria me deitado com Layla. Só fiz isso porque eu sabia que teríamos uma garotinha.
– Jesus.
– Mas eu estava errado – ele esfregou o rosto pela terceira vez. – Errei feio... E o que eu mais queria era não ter tomado esse caminho. O maior arrependimento da minha vida... Bem, o segundo maior, na verdade.
A Blay só restou imaginar o que poderia ser pior do que aquilo pelo que ele passava.
O que posso fazer?, Blay se perguntou.
Os olhos de Qhuinn procuraram os dele.
– Quer mesmo que eu responda a isso?
Pelo visto, ele pensara em voz alta.
– Sim, claro.
A mão da adaga de Qhuinn se levantou e amparou a lateral do rosto de Blay.
– Certeza?
O clima mudou de pronto. A tragédia ainda estava com eles, mas a poderosa ressaca sexual os abateu entre uma pulsação e a seguinte.
O olhar de Qhuinn começou a queimar, as pálpebras pesaram.
– Preciso... de uma âncora agora. Não sei explicar de modo melhor.
O corpo de Blay reagiu instantaneamente, o sangue fervendo, o membro engrossando e esticando.
– Deixe-me beijar você – Qhuinn gemeu ao se inclinar. – Sei que não mereço, mas, por favor... é isso o que você pode fazer por mim. Deixe-me senti-lo...
A boca de Qhuinn resvalou a dele. Voltou para um pouco mais. Demorou-se.
– Vou implorar – mais carícias daquela boca devastadora. – Se for preciso. Estou pouco me importando, eu vou implorar...
De algum modo, isso não seria necessário.
Blay deixou a cabeça ser inclinada para abrir caminho para mais manobras, a mão de Qhuinn em seu rosto tanto gentil quanto no comando. E, então, houve mais boca a boca, lento, arrastando-se, inexorável.
– Deixe-me estar dentro de você de novo, Blay...
CAPÍTULO 39
Assail voltou para casa cerca de meia hora antes do amanhecer. Ao estacionar o Range Rover na garagem, ele teve que esperar a porta abaixar para sair.
Sempre se considerara um intelectual – e não no sentido atribuído pela glymera, onde um se sentia importante ao discorrer sobre literatura, filosofia ou assuntos espirituais. Era mais pelo fato de existirem poucas coisas na vida na qual ele não podia aplicar seu raciocínio e entender a sua totalidade.
O que diabos aquela mulher fizera na casa de Benloise?
Obviamente ela era uma profissional, com tanto equipamento quanto técnica, e uma abordagem de infiltração muito praticada. Ele também suspeitava que ou ela tivesse a planta da casa ou estivera lá previamente. Tão eficiente. Tão decidida. E ele estava qualificado para julgar: seguira-a o tempo inteiro em que ela esteve dentro da casa, penetrando como um fantasma pela janela que ela abrira, atendo-se às sombras.
Seguindo o rastro dela por trás.
Mas aquilo ele não entendia: que tipo de ladrão se dá ao trabalho de invadir uma casa segura, encontra um cofre, queima-o para abri-lo, descobre muitas riquezas portáteis... mas não leva nada? Porque ele vira muito bem ao que ela teve acesso; assim que ela saiu do escritório, ele permanecera lá, soltando a prateleira como ela fizera antes, e usara a própria lanterna para dar uma espiada no cofre.
Só para descobrir o que ela deixara para trás, se é que tinha deixado algo.
Quando ele voltou para a casa em si, evitando qualquer fonte de luz, observara-a parada um instante no hall de entrada, com as mãos nos quadris, a cabeça virando lentamente, como se ela estivesse considerando suas opções.
E então ela se aproximou de uma estátua que só podia ser de Degas... e a girara apenas alguns centímetros para a esquerda.
Isso não fazia sentido.
Bem, era possível que ela tivesse invadido o cofre procurando por algo específico que, na verdade, não estava lá. Um anel, uma bugiganga, um colar. Um chip de computador, um pendrive, um documento como um testamento ou apólice de seguro. Mas a demora no hall não estava de acordo com a diligência anterior... e depois ela só moveu uma estátua?
A única explicação era que aquilo fora uma violação deliberada da propriedade de Benloise.
O problema era que, no que se referia a vinganças contra objetos inanimados, era difícil encontrar muita significância nos atos dela. Derrubasse a estátua, então. Levasse a maldita coisa. Danificasse-a com obscenidades em tinta spray. Batesse nela com um pé-de-cabra para que ficasse destruída. Mas uma leve virada que mal se podia perceber?
A única conclusão a que ele conseguia chegar era que aquilo fora um tipo de mensagem. E ele não gostava nem um pouco disso.
Pois sugeria que talvez ela conhecesse Benloise pessoalmente.
Assail abriu a porta do motorista...
– Oh, meu Deus... – sibilou, retraindo-se.
– Ficamos imaginando quanto tempo você ainda ficaria aí.
Enquanto uma voz ríspida se pronunciava, Assail saiu do carro e olhou ao redor da garagem para cinco carros. O fedor estava num meio-termo entre um atropelamento de três dias, maionese estragada e perfume barato.
– Isso é o que eu estou pensando? – perguntou aos primos, que estavam parados na soleira da antessala.
Graças à Virgem Escriba, eles avançaram e fecharam a porta que dava para a casa; caso contrário, aquele fedor horrendo invadiria o resto da construção.
– São os seus traficantes. Bem, parte deles, na verdade.
Que. Merda. Era. Aquela?
As passadas longas de Assail o levaram na direção que Ehric apontava: o canto oposto, onde três sacos plásticos verdes-escuro foram jogados de lado sem cuidado algum. Agachando-se, ele afrouxou a tira amarela de um deles, puxou a beirada e...
Deparou-se com os olhos sem vida de um humano que ele reconhecia.
A cabeça inanimada fora arrancada da coluna uns dez centímetros abaixo da mandíbula, e estava virada de modo a fitar para fora de seu caixão frouxo. O cabelo escuro e a pele vermelha estavam marcados por sangue preto e brilhante, e se o cheiro esteve ruim próximo ao carro, ali, bem perto, fez seus olhos lacrimejarem e a garganta se contrair num protesto.
Não que ele se importasse.
Abriu os outros dois sacos e, usando o plástico como “luva”, virou as outras cabeças na mesma posição.
Depois se sentou e ficou olhando para as três, observando as bocas escancaradas e impotentes em busca de ar.
– Contem o que aconteceu – ordenou sombriamente.
– Aparecemos na hora combinada.
– Rinque de patinação, na margem do rio ou debaixo da ponte?
– Ponte. Chegamos – Ehric apontou para o irmão gêmeo, que estava parado em silêncio ao seu lado – na hora com o produto. Uns cinco minutos depois, esses três apareceram.
– Como redutores.
– Eles tinham o dinheiro. Estavam prontos para fazer a transação.
Assail girou a cabeça na direção dele.
– Eles não foram lá para atacá-los?
– Não, mas só descobrimos isso quando já era tarde demais – Ehric deu de ombros. – Eram assassinos que apareceram do nada. Não sabíamos quantos havia, e não queríamos nos arriscar. Foi só depois que vasculhamos os bolsos e encontramos o montante certo de dinheiro que percebemos que eles só foram lá para fazer negócios.
Redutores no tráfico? Aquilo era novidade.
– Vocês apunhalaram os corpos?
– Pegamos as cabeças e escondemos o que restou. O dinheiro estava na mochila desse da esquerda e, naturalmente, nós o trouxemos para casa.
– Celulares?
– Peguei.
Assail começou a acender um charuto, mas não queria desperdiçar o sabor. Fechando os sacos, levantou-se acima da carnificina.
– Tem certeza de que não foram agressivos?
– Estavam mal preparados para se defenderem.
– Estar mal armado não significa que eles não estivessem lá para matá-los.
– Por que levar o dinheiro?
– Eles podiam estar negociando em outro lugar.
– Como já disse, era a quantia correta e nem um centavo a mais.
Abruptamente, Assail gesticulou para que o seguissem para o interior da casa e, ah, que alívio quando chegaram ao ar limpo. Com as telas descendo lentamente sobre as janelas de vidro, e com o alvorecer se completando, ele foi para o bar, pegou um galão de Bouchard Père et Fils, Montrachet, 2006 e estalou a rolha.
– Querem me acompanhar?
– Sim, claro.
Na mesa redonda na cozinha, ele se sentou com três taças e a garrafa. Servindo os três, dividiu o chardonnay com os dois sócios.
Porém, não lhes ofereceu seus cubanos. Eram valiosos demais.
Felizmente, cigarros apareceram e todos se sentaram juntos, fumando e saboreando goladas sublimes da beira afiada do seu Baccarat.
– Nenhuma agressão por parte dos assassinos – murmurou, inclinando a cabeça para trás para baforar, a fumaça azulada se elevando sobre sua cabeça.
– E a quantia exata.
Depois de um momento, ele voltou a olhar para eles.
– Será possível que a Sociedade Redutora esteja tentando entrar no meu ramo de negócios?
Xcor estava à luz de velas, sozinho.
O armazém estava tranquilo, seus soldados ainda não tinham retornado, nenhum humano, nenhum Sombra, nada caminhava sobre ele. O ar estava frio; o mesmo com o concreto abaixo dele. A escuridão o envolvia, a não ser pela fraca fonte de luz perto da qual ele estava sentado.
Algo no fundo de sua mente lhe dizia que estava perigosamente perto de amanhecer. Também havia outra coisa, algo de que ele deveria ter se lembrado.
Mas não havia a mínima chance de que algo transpusesse seu torpor.
Com os olhos fixos na única chama diante dele, Xcor repassou os eventos da noite em sua cabeça.
Dizer que ele encontrara a localização da Irmandade seria talvez aumentar um pouco a verdade, mas não uma falácia completa. Seguira aquela Mercedes para o interior, quilômetro após quilômetro, sem nenhum plano real do que deveria ou poderia fazer quando ela parasse... quando, do nada, o sinal do sangue no corpo de sua Escolhida não só se perdeu, mas foi totalmente redirecionado, como se uma bola lançada contra um muro tivesse alterado repentinamente a sua trajetória.
Confuso, ele vasculhou os arredores, desmaterializando aqui, acolá, para cima e para baixo e, durante o tempo todo, uma sensação de horror se abatendo sobre ele. Recuando, ele se viu na base de uma montanha, com seus contornos, mesmo sob o luar claro, registrados de maneira estranha, indistinta, pouco nítida.
O lugar em que eles ficavam só podia ser ali.
Talvez no alto da montanha. Talvez do outro lado.
Não havia outra explicação – afinal, a Irmandade vivia com o Rei para protegê-lo... portanto, indubitavelmente, eles tomariam precauções do tipo que ninguém mais conseguiria tomar, ou quem sabe, tivessem ao seu dispor tecnologias e provisões místicas que seriam, de outro modo, indisponíveis.
Em frenesi, ele circundou os arredores, dando a volta na base algumas vezes, pressentindo nada além da refração do sinal dela e aquela sensação de horror. Sua conclusão era de que ela deveria estar em algum lugar daquela imensidão: ele teria pressentido se ela tivesse atravessado para o outro lado, e seria razoável concluir que se tivesse ido para o seu templo sagrado, até um plano alternativo de existência, ou – que o destino não permitisse – morrido, aquele eco ressonante dentro dele teria desaparecido.
A sua Escolhida estava ali em algum lugar.
Retornando para o armazém, para o presente, para onde ele estava agora, Xcor esfregou as palmas para frente e para trás lentamente, o raspar dos calos interrompendo a quietude. À esquerda, no limiar da luz de velas, suas armas estavam dispostas lado a lado, as adagas, as pistolas, e sua adorada foice cuidadosamente organizadas ao lado de uma pilha confusa de roupas de sair que ele retirara assim que escolhera aquele lugar específico no chão.
Concentrou-se na foice e esperou que ela lhe falasse: ela o fazia com frequência, com seus modos sedentos de sangue em compasso com a agressividade que fluía em suas veias e que definia seus pensamentos e motivava suas ações.
Aguardou que ela lhe dissesse para atacar a Irmandade onde eles ficavam. Onde as fêmeas moravam. Onde as crianças dormiam.
O silêncio era preocupante.
De fato, sua chegada ao Novo Mundo fora baseada no desejo de ganhar poder, a expressão maior e mais arrojada desse desejo era tomar o trono, portanto, naturalmente, esse era o curso que ele escolhera. E estava progredindo. A tentativa de assassinato no outono, que, sem sombra de dúvida, lançara uma sentença de morte sobre a sua cabeça e a dos seus soldados, fora uma medida tática que quase colocara um ponto final na guerra inteira antes mesmo de ela começar. E seus esforços contínuos com Elan e com a glymera estavam promovendo seus objetivos e reforçando seu apoio dentro da aristocracia.
Mas aquilo que ele descobrira naquela noite...
Deuses, quase um ano de trabalho, sacrifício, planejamento e combate perdiam importância em comparação com a sua descoberta.
Se seu palpite estivesse correto – e como não podia estar? –, tudo o que ele tinha de fazer era marchar com seus soldados e começar um cerco assim que a noite caísse. A batalha seria épica, e a Irmandade e o lar da Primeira Família seriam permanentemente comprometidos, independentemente do resultado.
Seria um conflito digno dos livros de História – afinal, a primeira vez em que a propriedade real fora atingida foi quando o progenitor e a mahmen de Wrath foram assassinados antes da transição dele.
A história se repetia.
E ele e seus soldados tinham uma séria vantagem em relação àqueles assassinos que, na época, não possuíram: a Irmandade agora tinha muitos machos vinculados. Na verdade, ele acreditava que todos eles estivessem vinculados, e isso dividiria as atenções e as lealdades dos machos como nada mais conseguiria fazer. Ainda que a diretriz principal deles como guarda pessoal do Rei fosse proteger Wrath, seus cernes estariam divididos, e mesmo o mais forte dos lutadores com as melhores armas estaria enfraquecido se suas prioridades estivessem em dois lugares distintos.
Além disso, se Xcor ou um dos seus soldados conseguisse apanhar uma daquelas shellans, a Irmandade esmoreceria, porque a outra coisa verdadeira a respeito deles era que a dor de um dos Irmãos era a própria agonia.
Só bastaria uma fêmea de qualquer um deles, a arma derradeira.
Ele sabia disso em sua alma.
Sentado à luz da vela, Xcor esfregou a lâmina da adaga na palma de sua mão, de um lado para o outro, de um lado para o outro.
Uma fêmea.
Era só disso que ele precisava.
E ele conseguiria não só reivindicar sua própria fêmea... mas também o trono.
CAPÍTULO 40
Qhuinn sabia que acabara de colocar Blay numa posição totalmente injusta.
Transa por pena, hein? Mas, ah, Deus, encarando aqueles olhos azuis, aqueles malditos olhos azuis sem fundo que estavam francos para ele do mesmo modo que um dia estiveram... era só no que conseguia pensar. E, sim, tecnicamente era sexo em termos de onde ele queria suas diversas partes – bem, uma mais especificamente. No entanto, havia muito mais do que apenas isso.
Ele não sabia expressar em palavras; simplesmente não era bom em juntar as sílabas. Mas seu desejo de conexão foi o que o levou ao beijo. Ele quis mostrar a Blay o que estava querendo dizer, do que ele precisava, por que aquilo era importante: seu mundo inteiro parecia estar desmoronando e a perda que acontecia na porta ao lado doeria por um bom tempo.
No entanto, estar com Blay, sentir o seu calor, fazer contato, era como uma promessa de cura. Mesmo se durasse apenas o tempo em que estivessem ali naquela sala, ele aceitaria, e guardaria aquilo para si... para relembrar quando precisasse.
– Por favor – sussurrou.
Só que ele não deu chance para o cara responder. Sua língua saiu sorrateira e lambeu aquela boca, escorregando para dentro, assumindo o controle.
E a resposta de Blay foi o modo como ele se permitiu ser empurrado para trás nas almofadas do sofá.
Qhuinn teve dois pensamentos vagos: um, a porta só estava fechada, não trancada – e ele cuidou disso desejando que a trava de latão ficasse no lugar certo. E o segundo pensamento momentâneo era que eles não poderiam destruir aquele lugar. Explodir tudo em seu quarto era uma coisa. A sala de estar era propriedade pública, e muito bem decorada, com as almofadas de seda e as cortinas luxuosas, e um monte de outras coisas que pareciam facilmente rasgáveis, amassáveis, Deus, mancháveis...
Além disso, ele já destruíra seu Hummer, acabara com o jardim e sacudira o quarto. Portanto, sua cota de Destruidor já ultrapassara, e muito, o calendário anual...
Naturalmente, a solução mais prática para não dar nenhuma preocupação adicional a Fritz seria percorrer o corredor rapidamente até o seu quarto, mas enquanto as mãos talentosas de Blay estavam na frente do quadril de Qhuinn, já abaixando seu zíper, ele lançou essa ideia brilhante no cesto de lixo.
– Ai, Deus, toque-me – gemeu, empurrando a pélvis para a frente.
Ele só teria de ser comportado e bem limpinho com aquilo.
Presumindo que isso fosse possível.
Quando a palma de Blay se enfiou em sua calça de couro, o corpo de Qhuinn se arqueou, o torso curvando-se para trás enquanto o outro iniciava os trabalhos. O ângulo estava meio errado, por isso não havia muita fricção, e suas bolas estavam sendo beliscadas pela costura da calça, mas santo inferno, ele não se importava. O fato de que aquele era Blay bastava.
Cacete, depois de anos de chupadas, punhetas e transas, aquela parecia a primeira vez que alguém tocava nele.
Ele precisava retribuir o favor.
Entrando em ação, elevou o peito e aproximou os rostos. Caramba, ele adorava a expressão daqueles olhos azuis enquanto Blay o encarava, quente, selvagem, sensual.
Com tesão.
Qhuinn o segurou com força e aproximou as bocas, agarrando-se àqueles lábios, lançando a língua, tomando tudo como um desvairado...
– Espere, espere – Blay retrocedeu. – Vamos quebrar o sofá.
– O quê...? – o cara parecia estar falando inglês, mas pro inferno se ele conseguia traduzir. – Sofá?
E então ele percebeu que empurrara tanto Blay no braço do móvel, que a coisa estava começando a se inclinar. Que era mais do que duzentos quilos de sexo poderiam fazer em uma peça de mobília.
– Ai, merda, desculpe.
Ele estava começando a recuar quando Blay assumiu o controle e Qhuinn, de repente, viu-se fora do sofá, de costas no chão, as pernas unidas, as calças sendo empurradas para os tornozelos.
Ideia. Genial.
Graças ao fato de ele não usar cuecas, seu pau estava todo exposto, grosso e tenso, ao ser lançado para cima, dolorido e inchado por sobre a barriga. Abaixando a mão, ele deu umas puxadas enquanto Blay arrancava seus coturnos que estavam atrapalhando, largando-os de lado. As calças foram as próximas a darem adeus, e, com Deus como testemunha, Qhuinn nunca antes ficou tão contente em ver um par de couro voar por cima do ombro em toda a sua vida.
Em seguida, Blay voltou ao trabalho.
Qhuinn teve que fechar os olhos quando sentiu as coxas sendo afastadas e um par de mãos de lutador puxar o interior de suas pernas. Imediatamente ele soltou a ereção, afinal, porque ter a palma atrapalhando quando Blay poderia...
Não foram as mãos do cara que o seguraram.
Foi a boca quente e úmida que Qhuinn beijara pra cacete pouco antes.
Por uma fração de segundo, enquanto a sucção abocanhava a ponta e o mastro, ele teve o pensamento maldito de que Saxton ensinara Blay a fazer aquilo: seu maldito primo fizera aquilo com o cara, e fizera com que ele...
Pare, ordenou-se. Quaisquer lições aprendidas e a história por detrás delas não importavam, era a sua ereção que recebia atenção naquele instante. Por isso, que se dane essa merda.
Para deixar isso bem claro, forçou seus olhos a se abrirem. Inferno... do céu...
A cabeça de Blay subia e descia em seus quadris, o punho segurava a base do pau de Qhuinn, a outra mão se ocupava com as bolas. Mas então, como se estivesse esperando por contato visual, o cara parou no alto, libertou a cabeça e lambeu os lábios.
– Eu não gostaria que você fizesse uma lambança nesta linda sala – Blay disse com fala arrastada.
E então, estendeu a ponta da língua para açoitar o piercing no pênis de Qhuinn, a carne rosada brincando com a argola cinza de metal e a bolinha...
– Caralho. Vou gozar agora – grunhiu Qhuinn, com uma onda fervente se avolumando. – Eu vou...
Ele estava impotente para deter as coisas, muito mais até do que alguém que tivesse se lançado de um precipício e que, depois de metros de queda livre, quisesse desistir.
Só que ele não queria pisar no freio.
E não pisou.
Com um rugido potente, que provavelmente foi ouvido em outros lugares, a espinha de Qhuinn se afastou do chão, o traseiro ficou rígido, as bolas explodiram, a excitação esguichando com força na boca de Blay. E não foi só o seu sexo que foi afetado. O orgasmo o atingiu em todo o corpo, uma energia latente emergindo por ele enquanto cravava as unhas no tapete em que estava deitado, os dentes cerrados... e gozando como um animal selvagem.
Felizmente, Blay se mostrou mais do que eficiente na limpeza. E se isso não o fez gozar ainda mais... Também lhe deu muito para o que olhar: pelo resto dos seus dias, Qhuinn jamais se esqueceria da visão da boca do macho o envolvendo, as bochechas sugando enquanto ele libertava seu gozo e ele absorvia tudo. De novo e de novo e de novo.
Normalmente, Qhuinn ficava pronto para outra em seguida, mas quando as ondas tumultuadas finalmente se quebraram sobre ele, ele ficou completamente inerte, os braços largados no chão, os joelhos moles, a cabeça pensa.
– Não consigo me mexer – murmurou.
O riso de Blay foi profundo e sensual.
– Você parece um pouco cansado.
– Posso retribuir o favor?
– Você consegue levantar a cabeça?
– Ela ainda está grudada no meu corpo?
– Pelo que vejo, sim, está.
Enquanto Blay ria de novo, Qhuinn soube o que queria fazer e isso o surpreendeu. Em todas as suas explorações sexuais, ele nunca se permitiu ser enrabado. Não era assim que as coisas aconteciam. Ele era o conquistador, o que tomava, o que estabelecia o controle e conservava a superioridade.
Ficar por baixo simplesmente não o interessava.
E agora era o que queria.
O único problema era que, literalmente, não conseguia se mexer. Ah, sim, e havia uma coisinha a mais: como contar a Blay que ele era virgem?
Porque ele desejava. Se um dia chegasse àquilo, ele queria que Blay soubesse. Por algum motivo, isso era importante.
De repente, o rosto de Blay apareceu em seu campo de visão, e, Deus, como o lutador era lindo, o rosto afogueado, os olhos reluzentes, aqueles ombros largos bloqueando tudo.
E, ah, sim, aquele sorriso sexy como o inferno, tão satisfeito consigo e autossuficiente, como se o fato de Blay ter provocado tanto prazer em alguém fosse o bastante para que ele não precisasse do próprio alívio.
Mas isso não seria justo, seria?
– Não acho que você vai voltar a se mexer tão cedo – comentou Blay.
– Talvez. Mas posso abrir a boca – foi a resposta misteriosa. – Tanto quanto você.
Certo, tudo bem, a ideia de que provocava um orgasmo daquele em Qhuinn foi tão ratificadora que Blay se esquecera por completo do seu corpo.
A questão era que após tantos anos de rejeição, era uma emoção sem igual sentir poder em relação ao cara, ser aquele quem comandava o ritmo... a pessoa que levava Qhuinn a um lugar vulnerável e erótico muito mais intenso do que qualquer outro antes. E foi isso o que aconteceu. Ele sabia exatamente como Qhuinn ficava e como soava quando gozava, e Blay podia afirmar, sem nenhum traço de dúvida, que ele jamais vira seu camarada tão prostrado como agora, largado no tapete, os músculos do pescoço esticados, os abdominais contraídos, os quadris bombeando com força.
Qhuinn gozara praticamente vinte minutos direto.
E agora, no pós-coito, uma estranha revelação: até aquele instante, Blay jamais reconhecera o cinismo que Qhuinn carregava no rosto o tempo inteiro... as sobrancelhas caídas, o canto da boca perpetuamente repuxado para cima... o maxilar nunca, jamais relaxado.
Era como se toda a torpeza que a família lhe fizera tivesse permanentemente esculpido suas feições.
Mas não era verdade, não é mesmo? Durante o orgasmo, e agora, enquanto as coisas se acalmavam, nada daquela tensão era visível em lugar algum. O rosto de Qhuinn estava... livre de toda reserva, parecendo tão mais jovem, e Blay teve que se perguntar por que nunca percebera a idade dele antes.
– Então, vai me dar algo para eu chupar enquanto me recupero? – Qhuinn perguntou.
– O quê...?
– Estou com sede. E preciso chupar alguma coisa – dito isso, Qhuinn mordeu o lábio inferior, as presas brancas brilhantes afundando na pele. – Vai me ajudar?
Os olhos de Blay reviraram em suas órbitas.
– É... acho que posso fazer isso.
– Então me deixe tirar suas calças.
As pernas de Blay se levantaram com tanta rapidez que ele teve um insight novo sobre as leis da física, e enquanto ele chutava os sapatos, as mãos tremiam ao desabotoar a calça. As coisas foram bem rápidas a partir dali. E durante o tempo todo em que se despia, ele estava absolutamente ciente de tudo o que havia na sala – especialmente Qhuinn. O macho estava ficando rígido novamente, o sexo engrossando apesar de tudo pelo que acabara de passar... as coxas pesadas se contraindo e a pélvis rolando... a parte baixa do tronco tão delgada que cada sutil mudança do torso era refletida na pele esticada e bronzeada.
– Isso aí... – Qhuinn sibilou, as presas se estendendo do maxilar superior, as mãos procurando, e encontrando, o sexo, apalpando-o em movimentos longos e lentos. – Isso mesmo.
A respiração de Blay começou a acelerar, os batimentos cardíacos subindo até o telhado enquanto os olhos descombinados de Qhuinn se prendiam ao seu sexo.
– É isso o que eu quero – o macho grunhiu, soltando-se e esticando as duas mãos.
Por uma fração de segundo, Blay não teve muita certeza como as partes trabalhariam. Qhuinn estava diante do sofá, paralelo ao móvel, por isso não havia muito espaço para...
Um grunhido sutil perpassou o ar enquanto Qhuinn flexionava os dedos como se mal conseguisse esperar para segurar aquilo que desejava.
O planejamento que fosse para o inferno.
Os joelhos de Blay atenderam ao chamado, dobrando para a frente, levando seu peso ao chão perto da cabeça de Qhuinn.
Qhuinn assumiu o controle a partir daí. As palmas escorregaram e se prenderam, atraindo Blay de modo que, sem nem se dar conta, ele tinha um joelho atrás da cabeça do cara e a outra perna estendida ao longo do corpo até o quadril de Qhuinn.
– Ai... cacete... – Blay gemeu ao sentir o sexo entrar entre os lábios de Qhuinn.
O corpo pendeu para a frente até ele acabar derramando o torso nas almofadas do sofá, e foi nesse momento que ele se viu com uma excelente alavancagem. Apoiando os braços no sofá, distribuiu o peso entre os joelhos, os pés e as palmas... e depois se pôs a foder a boca adorável de Qhuinn.
O cara aceitou tudo, mesmo quando os quadris descontrolados de Blay empurraram com tudo o que ele tinha.
Com os dedos de Qhuinn cravados em seu traseiro, e aquela incrível sucção, e... Cristo, o piercing da língua, com a bolinha resvalando seu mastro a cada estocada... Blay estava se dirigindo exatamente para o mesmo tipo de orgasmo que Qhuinn acabara de ter.
Mesmo assim, no fundo da sua mente, ele se questionava se não estava machucando o cara. Do jeito como as coisas seguiam, ele acabaria gozando no estômago dele.
Tarde demais para se preocupar com isso.
Seu corpo assumiu, enrijecendo numa série de espasmos torturantes que corriam do alto da coluna até as pernas.
E bem quando as sensações descontroladas estavam começando a diminuir, o mundo entortou ao seu redor, como se seu senso de equilíbrio tivesse explodido junto de seu...
Não, o mundo estava no lugar. Qhuinn acabara de se levantar do chão, saindo de baixo e se posicionando atrás...
Enquanto Qhuinn penetrava com uma estocada na velocidade da luz, Blay emitiu um gemido que com certeza seria ouvido no Canadá...
O rangido que se fez ouvir na sala o deixou intrigado, mesmo em meio à pressão e ao prazer.
Ah. Eles estavam empurrando o sofá.
Que seja. Ele compraria um novo para a casa se quebrassem a maldita porcaria; ele não iria parar.
O ritmo foi tão punitivo quanto fora o seu e, nesse caso, a revanche não era só o que ele merecia, mas exatamente o que ele queria. A cada estocada, seu rosto era empurrado contra as almofadas do sofá; a cada recuada, ele respirava; só para ser empurrado novamente, num círculo que recomeçava sempre.
Reposicionando as pernas para que Qhuinn alcançasse ainda mais fundo, Blay teve a vaga noção de que eles, definitivamente, mudavam o sofá de posição, mas quem é que se importava com isso, contanto que eles não acabassem no corredor?
No último instante, pouco antes de ele gozar, teve a presença de espírito de pegar as calças. Puxando as cuecas, ele...
A mão de Qhuinn se esticou, apanhou a Calvin Klein e fez o que era preciso, garantindo que houvesse algo para conter o seu gozo. Então, um instante depois, seu peito se deslocou do sofá e ele estava ereto sobre os joelhos. Qhuinn cuidou de tudo, segurando o pau de Blay enquanto cobria a cabeça – penetrando, ainda penetrando, sempre penetrando...
Gozaram ao mesmo tempo, dois pares de gritos ecoando pela sala.
No meio do orgasmo, Blay, sem querer, levantou o olhar. No enorme espelho antigo que estava pendurado entre as duas janelas do lado oposto, ele viu os dois, soube que estavam ligados... e isso o fez gozar novamente.
No fim, as investidas desaceleraram. Os batimentos cardíacos começaram a diminuir. As respirações foram se acalmando.
No vidro chumbado, ele viu Qhuinn fechar os olhos e abaixar a cabeça. Na lateral do seu pescoço, Blay sentiu um resvalar suave.
Os lábios de Qhuinn.
E então a mão livre do macho subiu, parando para afagar Blay no peitoral...
Qhuinn congelou. Recuou. Afastou os lábios, seu toque.
– Desculpe. Desculpe, eu... sei que não quer isso de mim.
A mudança no rosto do cara, o regresso ao cinismo costumeiro, era como ser roubado.
E mesmo assim Blay não podia dizer a ele que voltasse a se aproximar. Qhuinn estava certo; no instante em que a ternura aparecia, ele começava a entrar em pânico.
A retirada foi rápida, rápida demais, e Blay sentiu falta da sensação de estar completo e de ser possuído. Mas estava na hora de acabar com aquilo.
Qhuinn pigarreou.
– Hum... você quer que eu...
– Cuido disso – murmurou Blay, substituindo a mão de Qhuinn sobre as cuecas amassadas em seu quadril.
Durante o sexo, o silêncio na sala equivalia à privacidade. Agora, eram apenas os sons amplificados de Qhuinn subindo as calças de couro.
Droga.
Voltavam ao caos e à confusão. E enquanto as coisas aconteciam, as sensações eram tão intensas e esmagadoras que não houve nenhum pensamento além do sexo. Depois, porém, o corpo de Blay estava frio demais no ambiente climatizado, diferentes partes pulsavam por terem sido usadas, as pernas estavam moles e cambaleantes, a mente, enevoada...
Nada parecia seguro ou garantido. Nem um pouco.
Forçando-se a se vestir, colocou as roupas o mais rápido que conseguiu, inclusive os sapatos. Nesse meio-tempo, foi Qhuinn quem devolveu o sofá ao seu lugar, cuidadosamente colocando os pés nas marcas do tapete. Também ajeitara as almofadas. Endireitara o tapete oriental.
Foi como se nada tivesse acontecido. A não ser pelas cuecas de Blay amassadas em sua mão fechada.
– Obrigado – disse Qhuinn baixinho. – Eu, hum...
– Tudo bem.
– Então... acho que eu vou agora.
– Ok.
E foi isso.
Bem, além de a porta se fechar.
Deixado a sós, Blay resolveu que precisava de uma chuveirada. Mais comida. Dormir.
Em vez disso tudo, ele ficou na sala de estar do segundo andar, olhando para aquele espelho, lembrando-se do que vira nele. Em sua mente, teve a vaga noção de que eles não podiam continuar fazendo aquilo. Emocionalmente, não era seguro para ele; na verdade, era o equivalente a manter a palma da mão sobre uma chama uma vez após a outra, só que a cada vez que você voltava a colocar a mão, você diminuía a distância entre a sua carne e o calor. Cedo ou tarde? Queimaduras de terceiro grau seriam o menor dos seus problemas, porque o braço inteiro estaria em chamas.
Depois de um tempo, contudo, não ficou só pensando naquela coisa de autopreservação.
Mas sim no que dera início àquilo tudo.
Faz isso parar.
Blay passou a mão pelo cabelo. Depois olhou para a porta fechada e franziu o cenho, a mente trabalhando, trabalhando, trabalhando...
Um minuto depois, saiu apressado, andando rapidamente.
Antes de partir num trote.
E acabar correndo como um louco.
CAPÍTULO 41
Eram mais ou menos dez da manhã quando Trez seguiu para o Restaurante Sal’s. O trajeto do apartamento no Commodore para o belo estabelecimento do irmão não demorou, levando apenas dez minutos, e havia diversos espaços disponíveis para estacionar quando ele chegou lá.
De fato, o lugar não abria antes da uma da tarde, nem mesmo para o pessoal da cozinha iniciar a preparação.
Enquanto se encaminhava para a entrada, suas botas esmagando a neve, ele esperou que o código de abertura pelo lado externo não funcionasse: iAm não voltara para casa na noite anterior e, supondo que os cretinos do s’Hisbe não o tivessem levado embora como dano colateral, só havia um lugar em que seu irmão poderia estar. Depois de dois bules de café e muitas consultas ao relógio de pulso, Trez entendeu que, se queria fazer as pazes, ele teria de atravessar a cidade.
Legal. A combinação não fora mudada.
Ainda.
Do lado de dentro, o lugar parecia uma réplica do Rat Pack, numa interpretação moderna de uma era que gerara tipos como Peter Lawford e Frank Sinatra: uma entrada com papel de parede de algodão preto e vermelho o levava até a recepção, onde a chapelaria, a mesinha retrô da recepcionista e o caixa ficavam. À esquerda e também à direita, estavam os dois salões principais, ambos decorados em veludo e couro preto e vermelho, mas não eram onde os políticos e os endinheirados locais ficavam. O lugar predileto era o bar mais à frente, um salão com painéis de madeira que tinha bancos estofados quadrados de couro vermelho perto das paredes e, durante o expediente, um barman de smoking atrás de uma bancada de carvalho servindo nada que não fosse o melhor.
Atravessando a extensão do bar, Trez seguiu para o outro lado das cinco prateleiras de garrafas à mostra e passou pelas portas em vaivém. Ao entrar na cozinha, o cheiro de manjericão, cebola, orégano e vinho tinto lhe denunciou exatamente onde iAm estava.
Como esperado, o cara estava diante do enorme fogão industrial de dezesseis bocas na parede oposta, com cinco panelas imensas borbulhando diante dele – e você gostaria de apostar que também havia alguma coisa no forno? Nesse meio-tempo, tábuas de madeira de corte estavam enfileiradas nas bancadas de aço inoxidável, as cabeças mortas de diferentes tipos de pimentão deixadas ao lado das facas afiadas que foram usadas.
Dez pratas para adivinhar em quem o cara estava pensando enquanto picava aquilo tudo.
– Vai ou não falar comigo? – Trez disse para as costas do irmão.
iAm seguiu para a panela seguinte, levantando a tampa com um pano de prato branco, uma imensa escumadeira entrando e mexendo lentamente.
Trez se inclinou para o lado e puxou um banquinho de aço inoxidável. Sentando-se, esfregou as coxas para cima e para baixo.
– Oi? Alguém aí?
iAm foi para a panela seguinte. E depois a outra. Cada uma delas tinha uma colher diferente para evitar a mistura de sabores, e seu irmão tomava muito cuidado com isso.
– Escute, eu sinto muito se não estava quando você foi à boate ontem à noite – todas as noites, iAm ia para o Iron Mask para dar uma olhada depois que o Sal’s fechava. – Tive que cuidar de uns assuntos.
Merda, se teve. A garota do namorado grosseiro levou uma eternidade para sair do seu carro quando ele a levou para a casa dela. No fim, ele a acompanhou até a porta, abriu e só faltou empurrá-la para dentro. De volta ao carro, ele acelerou como se tivesse plantado uma bomba na calçada e, enquanto seguia para o Iron Mask, tudo o que ouvia em sua cabeça era a voz de iAm.
Você não pode continuar a fazer isso.
A essa altura, iAm se virou, cruzou os braços sobre o peito e se recostou ao fogão. Os bíceps já eram grandes, mas com os braços cruzados daquele jeito, forçavam a borda da camiseta preta que ele vestia.
Os olhos amendoados estavam semicerrados.
– Você acha mesmo que eu estou bravo porque você não estava quando fui ao clube? Sério? E não por que você me deixou para lidar com AnsLai ou qualquer asneira do tipo...
Eeeee estavam todos a postos.
– Sabe que não posso me encontrar com o cara – Trez levantou as mãos como se quisesse dizer que não havia nada que ele pudesse fazer. – Eles tentariam me forçar a voltar com eles e, então, quais seriam as minhas opções? Brigar? Eu acabaria lutando com o filho da puta e onde eu iria parar com isso?
iAm esfregou os olhos como se estivesse com dor de cabeça.
– Neste instante, parece que eles estão tomando uma abordagem diplomática. Pelo menos comigo.
– Quando vão voltar?
– Não sei. É isso o que está me deixando nervoso.
Trez enrijeceu. A ideia de que seu irmão frio como peixe estivesse ansioso o fez sentir como se estivesse com uma faca no pescoço.
Pensando bem, ele sabia muito bem o quanto o seu povo podia ser perigoso. O s’Hisbe era conhecido como uma tribo pacífica, satisfeita em se manter ao largo das lutas contra a Sociedade Redutora e dos desagradáveis humanos. Educados, muito inteligentes e espirituais, eles eram, como um todo, um grupo agradável. Desde que você não estivesse na lista negra deles.
Trez olhou para as panelas e se perguntou qual seria a carne no molho.
– Ainda estou em débito com Rehv – ele observou. – Portanto, essa obrigação deve vir em primeiro lugar.
– Não para o s’Hisbe. AnsLai disse, e vou citar suas palavras: “Chegou a hora”.
– Não vou voltar – ele fitou os olhos do irmão. – Isso não vai acontecer.
iAm voltou para as panelas, mexendo em cada uma com a colher designada.
– Sei disso. E é por isso que estou cozinhando. Estou tentando encontrar uma saída.
Deus, como ele amava o irmão. Mesmo irritado, o cara tentava ajudar.
– Desculpe-me por ter desaparecido e ter feito você cuidar disso. Sinto muito mesmo. Não foi justo... Eu só... bem, não achei seguro estar no mesmo cômodo que aquele cara. Sinto muito.
O peito largo de iAm subiu e desceu.
– Sei que sente.
– Eu poderia simplesmente desaparecer e o problema estaria resolvido.
Ainda que deixar iAm para trás o matasse. A questão era que, caso ele fugisse do s’Hisbe, ele jamais teria contato com o macho novamente. Nunca mais.
– Para onde você iria? – iAm observou.
– Não faço ideia.
A boa notícia é que o s’Hisbe não gostava de ter nenhum contato com os Desconhecidos. Sem dúvida, só aparecer no apartamento dele e de iAm fora traumático, mesmo se o sumo sacerdote tivesse se desmaterializado até a varanda. Lidar diretamente com humanos? Estar ao lado deles? A cabeça de AnsLai explodiria.
– Então, qual era o seu assunto? – perguntou iAm.
Maravilha. Mais um assunto igualmente feliz.
– Fui ver aquele armazém – ele desviou. Mas, cacete, até parece que ele tocaria no assunto da garota com o namorado espontaneamente.
– A uma da manhã?
– Fiz uma oferta.
– De quanto?
– Um milhão e quatrocentos. O preço pedido era de dois milhões e meio, mas não vão conseguir esse montante de jeito nenhum. O lugar está vazio há anos e demonstra isso – embora, ao dizer isso em voz alta, ele teve que admitir que sentira presenças lá. Pensando bem, talvez fosse apenas o seu estresse o responsável por isso. – Meu palpite é que vão dar uma contraoferta de dois milhões, eu subo para um e seiscentos e acabamos acordando em um e setecentos.
– Tem certeza de que quer iniciar esse projeto agora? A menos que apareça no território com o seu mastro matrimonial pronto para ser usado, esta questão com o s’Hisbe só vai piorar.
– Se as coisas chegarem a esse ponto, eu cuido disso na hora certa.
– Quando – iAm o corrigiu. – A questão é “quando”. E sei o que aconteceu no estacionamento, Trez. Com aquele cara e a mulher.
Claaaaro que sim.
– Viu as fitas ou algo assim?
Maldita câmera de segurança.
– Sim.
– Eu cuidei daquilo.
– Assim como está cuidando do s’Hisbe. Perfeito.
Com o humor afetado, Trez se inclinou.
– Quer calçar os meus sapatos, irmãozinho? Eu bem que gostaria de saber como você lidaria com essa merda toda.
– Eu não estaria fodendo putas, isso eu garanto. O que me faz pensar... o nosso corretor é uma fêmea, não?
– Foda-se, iAm. De verdade.
Trez se levantou do banquinho e marchou para fora da cozinha. Ele já tinha problemas suficientes, pelo amor de Deus, não precisava do senhor Superior com habilidades de Julia Child palpitando sobre o assunto com doze tipos de panelas...
– Você não pode continuar postergando esse assunto – iAm chamou de lá de trás. – Ou tentando enterrá-lo entre as pernas das mulheres.
Trez parou, mas manteve o olhar fixo na saída.
– Simplesmente não pode – o irmão afirmou com franqueza.
Trez girou. iAm estava perto do bar, a porta em vaivém mexendo atrás dele formando um efeito de estroboscópio de luz, escuro, luz, escuro. Toda vez que a luz surgia, parecia que seu irmão tinha um halo ao redor de todo o corpo.
Trez praguejou.
– Só preciso que me deixem em paz.
– Eu sei – iAm esfregou a cabeça. – E, honestamente, não sei que porra fazer a respeito. Não consigo me imaginar vivendo sem você, e também não quero voltar para lá. Só que também não encontrei alternativas.
– Aquelas mulheres... sabe, as que eu... – Trez hesitou. – Não acha que elas me excitam?
– Se elas não fazem isso – iAm disse secamente –, não sei porque perde tempo com elas.
Trez teve que dar um sorriso.
– Não, estou falando do s’Hisbe. Estou bem longe de ser virgem a esta altura – pelo menos ele ainda não se rebaixara a animais de fazenda. – E o que é pior? Todas eram Desconhecidos, a maioria humanas. Isso deve enojá-los. Estamos falando da filha da rainha!
Enquanto iAm franzia o cenho como se estivesse considerando a ideia, Trez sentiu uma centelha de esperança.
– Não sei, não – veio a resposta. – Talvez isso funcione, mas ainda assim você negou a Sua Alteza o que ela quer e precisa. Se eles o considerarem desonrado, podem muito bem decidir matá-lo como castigo.
Que seja. Eles teriam que encontrá-lo primeiro.
Numa onda de agressão, Trez abaixou o queixo e olhou fixo por debaixo das sobrancelhas.
– Se esse for o caso, eles vão ter que lutar comigo. E eu garanto que isso não vai acabar bem para eles.
Na mansão da Irmandade, Wrath entendeu que sua rainha estava aborrecida no instante em que ela passou pelas portas do escritório. Seu cheiro atraente estava maculado por uma pontada de acidez: ansiedade.
– O que foi, leelan? – ele quis saber, estendendo os braços.
Mesmo não enxergando, suas lembranças lhe davam uma imagem mental dela cruzando o tapete Aubusson, com o corpo longo e atlético se movendo com graciosidade, os cabelos escuros soltos sobre os ombros, o lindo rosto marcado por tensão.
Naturalmente, o macho vinculado dentro dele desejou perseguir e matar o que quer que a tivesse perturbado.
– Olá, George – disse ela ao cão. Pelo barulho de batidas ritmadas no chão, ele supôs que o cachorro tivesse recebido uma dose de amor antes.
E então foi a vez do dono.
Beth subiu no colo de Wrath, o peso próximo de nada, o corpo quente e vivo enquanto ele passava os braços ao seu redor e a beijava nas laterais do pescoço e depois na boca.
– Jesus – grunhiu ele, sentindo a rigidez no corpo dela –, você está aborrecida mesmo. Que merda está acontecendo?
Deus do céu, ela estava tremendo. Sua rainha estava, de fato, tremendo.
– Fale comigo, leelan – insistiu, esfregando-lhe as costas. E se preparando para se armar e sair em plena luz do sol se preciso fosse.
– Bem, você sabe sobre Layla – disse ela com voz rouca.
Ahhhh.
– Sim, sei. Phury me contou.
Enquanto a cabeça dela se posicionava em seu ombro, ele a ajeitou, aninhando-a em seu peito – e isso era bom. Havia vezes – não muitas, mas ocasionais – em que ele se sentia menos macho por conta de sua falta de visão: no passado, um lutador, agora, preso atrás daquela mesa. Um dia livre para ir aonde bem quisesse, agora, dependendo de um navegador canino. Certa vez absolutamente autossuficiente, agora, precisando de ajuda.
Não muito bom para os colhões de um macho.
Mas em momentos como aquele, quando aquela fêmea maravilhosa estava incomodada e o procurava, e somente a ele, para conforto e segurança, ele se sentia mais forte que uma maldita montanha. Afinal, machos vinculados protegiam suas fêmeas com tudo o que tinham, e mesmo com o fardo do seu direito de nascimento e aquele trono em que era obrigado a se sentar, ele, em seu cerne, permanecia o hellren daquela fêmea.
Ela era a sua primeira prioridade, acima inclusive daquela coisa toda de reinado. A sua Beth era o seu coração atrás das costelas, o tutano dentro de seus ossos, a alma em seu corpo físico.
– É tudo tão triste – disse ela. – Tão triste.
– Você foi vê-la?
– Acabei de ir. Ela está descansando. Quero dizer... de certa forma, custo a acreditar que não haja nada a ser feito.
– Falou com a doutora Jane?
– Assim que eles voltaram da clínica.
Enquanto a sua shellan chorava um pouco, o cheiro das lágrimas frescas de sua amada era como uma adaga em seu peito, e ele não estava surpreso com a reação dela. Ouvira dizer que as fêmeas lidavam muito mal com a perda da gravidez de outra fêmea – e como não ser assim? Ele, por certo, conseguia se colocar no lugar de Qhuinn.
E, ah, Deus... a ideia de Beth sofrer daquele modo? Ou pior, de conseguir levar adiante a gestação e depois...
Ótimo. Agora era ele quem tremia.
Wrath abaixou o rosto para os cabelos de Beth, inspirando, acalmando-se. A boa notícia era que eles jamais teriam um filho, portanto, ele não tinha com que se preocupar.
– Eu sinto muito – sussurrou.
– Eu também. Odeio o que eles estão passando.
Bem, na verdade, ele estava se desculpando por outra coisa completamente diferente.
Não que ele quisesse que uma merda daquelas acontecesse com Qhuinn, Layla e o filho deles. Mas talvez se Beth enxergasse a triste realidade, ela se lembraria de todos os riscos que se apresentavam a eles em todas as etapas de uma gestação.
Porra. Aquilo soava horrível. Era horrível. Pelo amor de Deus, ele não queria mesmo nada daquilo para Qhuinn, e tampouco queria ver sua shellan triste. Infelizmente, porém, a triste realidade era que ele não tinha absolutamente interesse algum em plantar sua semente nela daquele jeito – jamais.
E esse tipo de desespero fazia com que um cara pensasse em coisas imperdoáveis.
Numa onda de paranoia, ele calculou mentalmente os anos desde a transição dela – um pouco mais do que dois. Pelo que sabia, as fêmeas vampiras, em média, passavam pelo primeiro cio uns cinco anos após a transformação, e a cada dez anos depois disso. Portanto, eles tinham um bom tempo antes de terem de se preocupar com tudo isso...
Pensando bem, como mestiça, não havia garantias no caso de Beth. Quando os humanos e os vampiros se misturavam, qualquer coisa podia acontecer... E ele tinha motivos para se preocupar. Afinal, ela já mencionara filhos uma ou duas vezes.
Mas, obviamente, aquilo só podia ser hipoteticamente.
– E então, você vai postergar a iniciação de Qhuinn? – ela perguntou.
– Sim. Saxton já atualizou a lei, mas Layla estando assim? Não é o momento de trazê-lo para a Irmandade.
– Foi o que pensei.
Os dois se calaram, e enquanto Wrath guardava aquele momento em seu coração, não conseguiu imaginar sua vida sem ela.
– Sabe de uma coisa? – perguntou.
– O quê? – havia um sorriso na voz dela, do tipo que dizia a ele que ela sabia para onde a conversa estava indo.
– Eu amo você mais do que tudo.
Sua rainha deu uma leve risada, e o afagou no rosto.
– Eu jamais teria imaginado isso.
Inferno, até ele captava a onda de seu odor de vinculação.
Em resposta, Wrath segurou o rosto dela entre as palmas e se inclinou, encontrando seus lábios e depositando um beijo suave, que não permaneceu assim. Caramba, era sempre assim com ela. Qualquer contato e, antes que se desse conta, já estava rígido e pronto.
Deus, não sabia como os homens humanos lidavam com isso. Pelo que entendia, eles tinham de adivinhar se seus pares estavam férteis toda vez que faziam sexo – evidentemente, eles não tinham como captar a alteração nos odores de suas fêmeas.
Ele enlouqueceria. Pelo menos quando uma vampira estava no cio, todos sabiam.
Beth mudou de posição em seu colo, apertando a sua ereção e fazendo-o gemer. E, normalmente, essa era a dica para George ser levado para o outro lado das portas duplas, banido temporariamente. Mas não naquela noite. Por mais que Wrath a desejasse, a tristeza presente na casa aplacava até mesmo a sua libido.
E também havia a questão do cio de Autumn. E de Layla.
Ele não iria mentir; aquela merda o estava deixando ansioso. Sabia-se que hormônios no ar tinham um efeito ricochete numa casa cheia de fêmeas, influenciando umas às outras ao cio, desde que seu período estivesse próximo.
Wrath afagou os cabelos de Beth e voltou a acomodar a cabeça dela em seu ombro.
– Você não quer...
Enquanto ela deixava a frase inacabada, ele pegou a sua mão e a levantou, sentindo o peso do anel de rubi que a rainha da raça sempre usava.
– Só quero abraçar você – disse ele. – Isso basta para mim agora.
Aninhando-se, ela se encaixou ainda mais perto dele.
– Bem, isto também é gostoso.
Sim. Era.
E curiosamente aterrador.
– Wrath?
– Sim?
– Você está bem?
Demorou um pouco para ele confiar na voz e responder:
– Sim, estou bem. Tudo bem.
Ao alisar o braço dela, para cima e para baixo, ele rezou para que ela acreditasse... e jurou que o que acontecia no quarto no fim do corredor nunca, jamais, aconteceria com eles.
Não. Os dois não teriam de lidar com aquele tipo de crise.
Graças à Virgem Escriba.
CAPÍTULO 42
Claro que Layla não estava dormindo.
Quando pediu a Qhuinn que saísse, ela falou sério quanto a não querer sustentar uma fachada de força diante dele. Mas o mais engraçado era que mesmo sem ninguém por perto, ela não ficou histérica. Não chorou. Não praguejou.
Apenas ficou deitada de lado com os braços e as pernas enroscados, a mente recuada para dentro do corpo e monitorando constantemente cada dor e cólica numa compulsão que a enlouquecia. No entanto, não havia como mudar aquilo. Era como se uma parte dela estivesse convencida de que se ao menos ela soubesse em que estágio estava, ela poderia, de algum modo, monitorar o processo.
O que, na verdade, era uma tremenda tolice. Como Qhuinn bem diria.
A imagem dele na clínica, com a adaga no pescoço do médico, era algo saído de um dos livros da biblioteca do Santuário – um episódio dramático que era parte da vida de outra pessoa.
Sua posição na cama, porém, fazia com que ela lembrasse que o caso não era bem esse...
A batida à porta foi suave, sugerindo se tratar de uma fêmea.
Layla fechou os olhos. Por mais que apreciasse qualquer tipo de gentileza que aguardava uma resposta, ela preferiria que quem quer que estivesse no corredor, continuasse lá. A breve visita da rainha fora uma provação, mesmo ela tendo apreciado.
– Sim – quando sua voz mal soou em seus ouvidos, ela pigarreou e repetiu: – Sim?
A porta abriu e, a princípio, ela não reconheceu quem era na sombra que preenchia o espaço entre os batentes da porta. Alta. Forte. Porém, não um macho...
– Payne? – perguntou.
– Posso entrar?
– Sim, claro.
Enquanto Layla tentava se sentar, a fêmea guerreira gesticulou para que ela continuasse deitada, e depois fechou a porta.
– Não, não... por favor, fique à vontade.
Um abajur fora deixado aceso sobre a cômoda e, na luz suave, a irmã de sangue de Vishous da Irmandade da Adaga Negra parecia temerária, com os olhos de diamante parecendo reluzir para fora dos ângulos fortes do rosto dela.
– Como você está? – a fêmea perguntou com suavidade.
– Estou bem, obrigada. E você?
A lutadora deu um passo à frente.
– Eu sinto muito quanto... à sua condição.
Ah, como Layla desejava que aquilo fosse algo que Phury e os outros não tivessem partilhado com ninguém. Em retrospecto, a saída da casa fora um tanto dramática, o tipo de evento que causaria perguntas preocupadas. Ainda assim, sua privacidade preferia evitar esse tipo de invasão indesejável, ainda que misericordiosa.
– Agradeço as suas palavras gentis – sussurrou.
– Posso me sentar?
– Sim, claro.
Ela imaginou que a fêmea fosse se sentar numa das cadeiras dispostas mais ao longe. Não foi o que Payne fez. Ela se aproximou da cama e abaixou o peso ao lado de Layla.
Compelida a, pelo menos, parecer uma boa anfitriã, Layla tentou se suspender, fazendo uma careta quando uma nova onda de cólicas a imobilizou no meio do caminho.
Enquanto Payne praguejava baixinho, Layla teve que voltar a se deitar. Com voz rouca, disse:
– Perdoe-me, mas não posso receber visitas agora, por mais que me queira bem. Obrigada por expressar a sua empatia...
– Você sabe quem é a minha mãe – Payne a interrompeu.
Layla balançou a cabeça ao encontro do travesseiro.
– Por favor, saia...
– Sabe? – a fêmea perguntou com rispidez.
Abruptamente, Layla quis chorar. Simplesmente não tinha forças para qualquer tipo de conversa, ainda mais a respeito de mahmens. Não enquanto perdia o filho.
– Por favor.
– Sou filha da Virgem Escriba.
Layla franziu o cenho, as palavras sendo compreendidas mesmo em meio à dor, tanto física quanto mental.
– O que disse?
Payne inspirou profundamente, como se a revelação não fosse algo com que se alegrasse, mas como se fosse um tipo de maldição.
– Sou da carne da Virgem Escriba, nascida há muito tempo, e ocultada dos registros das Escolhidas e dos olhos de outrem.
Layla piscou em estado de choque. A aparição da fêmea fora um tipo de mistério, mas ela certamente não fizera nenhuma pergunta, pois isso não cabia a ela. A única coisa que sabia com convicção é que jamais houve registro algum da mãe sagrada da raça um dia ter dado à luz uma criança.
Na verdade, a estrutura completa do sistema de crença era prevista no fato de isso não ter ocorrido.
– Como isso é possível? – arfou Layla.
Os olhos brilhantes de Payne estavam sérios.
– Não era o que eu desejaria. E não é algo de que fale a respeito.
No momento tenso que se seguiu, Layla considerou impossível não ver a verdade naquilo que a fêmea falava. Tampouco a raiva, cuja causa ela apenas podia supor.
– Você é sagrada – disse Layla maravilhada.
– Nem um pouco, eu lhe garanto. Mas minha linhagem me concedeu um tipo de... como posso explicar? Habilidade.
Layla se enrijeceu.
– Que seria...?
Os olhos de diamante de Payne não se desviaram.
– Quero ajudá-la.
As mãos de Layla foram para o baixo ventre.
– Se quer abreviar isto... não.
Ela tinha seu filho por um tempo curto demais. Não importava a dor que tivesse que passar, ela não sacrificaria um minuto sequer daquilo que, sem dúvida, seria sua única gestação.
Ela jamais se colocaria à mercê de outro sofrimento assim. No futuro, quando seu cio chegasse, ela seria sedada e pronto.
Aquele tipo de perda uma vez na vida já era demais.
– E se acredita que pode deter isto – Layla continuou –, isso não é possível. Não há nada que ninguém possa fazer.
– Não estou tão certa disso – o olhar de Payne era enlevado. – Eu gostaria de ver se posso salvar esta gestação. Se me permitir.
No campus abandonado da Escola para Moças Brownswick, o Sr. C. se acomodou no que um dia fora o escritório da diretora.
Era o que estava escrito na placa rachada do lado de fora da sala.
Como não havia calefação, a temperatura ambiente não estava muito maior do que a do lado de fora, mas graças ao sangue de Ômega, o frio não era um problema. Ainda bem: do outro lado do gramado crescido coberto de neve, no dormitório principal sobre uma colina, quase cinquenta redutores dormiam o sono dos mortos.
Se aqueles malditos necessitassem de aquecimento ou de comida, ele estaria sem sorte alguma.
Mas não, tudo o que ele tinha de fazer era providenciar um abrigo. A iniciação cuidaria do resto – e o fato de que precisavam desligar a consciência a cada 24 horas era um alívio.
Ele precisava de tempo para pensar.
Jesus Cristo, que confusão.
Compelido pela necessidade de se mexer, ele empurrou a cadeira para trás e se lembrou de que estava se sentando sobre um balde de argamassa virado ao contrário.
– Maldição.
Olhando ao redor da sala decrépita, ele mediu as placas de gesso penduradas das vigas do teto, as janelas cobertas por tábuas de madeira, e o buraco em uma das tábuas do piso no canto. O lugar era igual à conta bancária que ele encontrara.
Nenhum dinheiro em lugar algum. Munição zero. Armas que podiam ser usadas em combate à força, e só.
Depois de sua promoção, ele se viu cheio de energia, de planos. Agora encontrava-se diante de nenhum dinheiro, nenhum recurso, nada.
Ômega, por outro lado, esperava todo tipo de resultado. Como deixara bem claro no “encontro” deles na noite anterior.
E também havia outro problema. Ele odiava aquela merda.
Pelo menos ele podia fazer algo a respeito de todo o resto.
Esticando os braços acima da cabeça e estalando os ombros, agradeceu a Deus por duas coisas: uma, os celulares não tinham sido desligados, por isso ele podia se comunicar com seus homens no campo de batalha. E dois, todos aqueles anos na rua lhe deram os punhos de ferro no que se referia a controlar o bando de idiotas do tráfico de drogas.
Tinha de arranjar dinheiro. Logo.
Ele teve uma porra de um plano para isso também, mandando os últimos nove mil dólares com aqueles três garotos no meio da noite. Tudo o que os malditos tinham de fazer era pagar, pegar a droga e trazer para ali, onde dividiriam a merda, depois distribuiriam entre os novos recrutas para que eles vendessem nas ruas.
O problema era que ele ainda estava esperando pela porra da entrega.
E estava ficando puto de tanto esperar para descobrir se as drogas e o dinheiro tinham sumido.
Era bem possível que aqueles merdinhas tivessem fugido com um ou com o outro, mas, nesse caso, ele os caçaria como cachorros para mostrar aos outros o que acontecia quando você...
Quando seu celular tocou, ele o pegou, viu quem era e apertou o botão de chamada.
– Já era hora. Onde diabos você está e cadê minha mercadoria?
Houve uma pausa. Depois, a voz que se ouviu pela conexão não era nada parecida com a do traficante cheio de espinhas para quem ele entregara o celular e a última pistola da Sociedade que funcionava.
– Tenho uma coisa que você quer.
O Sr. C. franziu a testa. Voz grave. Envolta numa impaciência que ele reconhecia das ruas, e um sotaque que ele não sabia de onde vinha.
– Não é essa merda com a qual você está falando comigo – disse o Sr. C. com fala arrastada. – Tenho um monte desses.
Afinal de contas, quando você não tem nada na mão, no coldre ou na carteira, blefar era a sua única opção.
– Ora, que bom para você. Também tem muito do que me mandou? Dinheiro? Soldados?
– Quem diabos está falando?
– Sou seu inimigo.
– Se você ficou com a porra da minha grana, pode apostar que sim.
– Na verdade, essa é uma resposta bem simplista para um problema um tanto complexo.
O Sr. C. se pôs de pé, derrubando o balde.
– Onde está a porra do meu dinheiro e o que fez com os meus homens?
– Lamento, mas eles não podem mais atender ao telefone. É por isso que estou ligando.
– Você não faz ideia com quem está lidando – o Sr. C. ameaçou.
– Pelo contrário, é você quem está em desvantagem, bem como tantos outros – quando o Sr. C. estava pronto para rebater, o cara o interrompeu. – Eis o que vamos fazer. Vou telefonar à noite para lhe dar uma localização. Você, e apenas você, vai me encontrar lá. Se alguém o acompanhar, eu saberei, e você nunca mais vai saber de mim.
O Sr. C. estava acostumado a sentir desdém pelos outros, isso era parte do trabalho uma vez que você só lida com ladrões de merda e malditos viciados. Mas esse cara do outro lado da conexão? Controlado. Calmo.
Um profissional.
O Sr. C. controlou seu humor.
– Não preciso de nenhum joguinho...
– Sim, precisa. Porque se você quiser drogas para vender, terá que vir a mim.
O Sr. C. ficou calado. Ou aquele era um lunático cheio de ilusões de grandeza ou... era alguém com poder de verdade. Talvez o tipo que matou os intermediários do cartel de drogas em Caldwell um ano antes.
– Quando e onde? – disse de má vontade.
Houve uma risada sombria.
– Atenda o seu telefone ao cair da noite e você descobrirá.
CAPÍTULO 43
Layla não conseguiu falar enquanto tentava compreender as palavras de Payne.
– Não – disse à outra fêmea. – Não, Havers me disse que... não havia nada que pudesse ser feito.
– Na medicina, isso pode ser verdade. Eu posso ter outro modo, porém. Não sei se funcionará, mas, se permitir, eu gostaria de ver o que posso fazer.
Por um instante, Layla só conseguiu respirar.
– Eu não... – pôs a mão no abdômen liso. – O que fará comigo?
– Não sei bem, para ser sincera – Payne deu de ombros. – Na verdade, nem me passou pela cabeça que eu poderia ajudar nesta situação. Mas sou conhecida por curar aquilo que precisa ser curado. Repito, não sei se isso se aplica neste caso. Contudo, podemos tentar... e isso não a machucará. Isso eu posso prometer.
Layla perscrutou a expressão da lutadora.
– Por que... faria uma coisa dessas por mim?
Payne franziu o cenho e desviou o olhar.
– Você não precisa saber os motivos.
– Sim, preciso.
O perfil dela se tornou absolutamente frio.
– Você e eu somos irmãs da tirania de minha mãe, casualidades de seu plano maior de como as coisas devem ser. Estivemos as duas enjauladas em seus modos diversos, você como uma Escolhida; eu, como sua filha de sangue. Não há nada que eu não faça para ajudá-la.
Layla se recostou. Jamais se considerara uma desventura da mãe da raça. A não ser... ao pensar em seu desespero em ter uma família, seu senso de não ter raízes, sua absoluta falta de identidade além do trabalho de uma Escolhida... ela teve o que pensar. O livre-arbítrio a levava àquela situação horrenda, mas, pelo menos, ela escolhera a rota e os meios. Como membro da classe especial da Virgem Escriba, não tivera muitas escolhas, a respeito de nada em sua vida.
A respeito de nada mesmo.
Ela estava perdendo aquela gravidez, aquilo era óbvio. E se Payne achava que existia uma chance de...
– Faça o que precisar fazer – disse com voz rouca. – E obrigada, não importando o resultado.
Payne assentiu uma vez. Depois esticou as mãos, flexionando e afastando os dedos.
– Posso tocar no seu abdômen?
Layla abaixou as cobertas.
– Devo tirar a camisa?
– Não.
Melhor assim. A simples retirada da colcha lhe provocara uma nova onda de dor, a mínima mudança de peso era causa de...
– Você está sofrendo muito – murmurou a outra fêmea.
Layla não respondeu ao expor a pele do abdômen. Obviamente, sua expressão já dizia o bastante.
– Apenas relaxe. Isso não deverá lhe causar nenhum desconforto...
Quando o contato foi feito, Layla levantou a cabeça. As mãos da lutadora estavam quentes como a água de uma banheira. E igualmente calmas. Estranhamente calmas, para falar a verdade.
– Isto dói? – Payne perguntou.
– Não. Parece... – quando uma nova onda de dor se avolumava, ela agarrou os lençóis, se preparando...
Só que o pico da dor não se elevou como antes, como se a sensação fosse uma montanha íngreme, cujo topo fora arrancado.
Era o primeiro alívio que sentia desde que tudo aquilo começara.
Com um gemido de submissão, ela deixou a cabeça pender, o travesseiro amparando o repentino cansaço que a abateu pelo tanto de desconforto pelo qual seu corpo passara.
– E agora nós começamos.
De repente, a luz do abajur tremulou... e depois se apagou.
Sua iluminação, contudo, logo foi substituída.
Das mãos pálidas de Payne um brilho suave começou a ser lançado. O calor de seu toque se intensificou, o abrandamento estranho e maravilhoso parecia penetrar em sua pele, nos músculos, em cada osso que estava no caminho... indo direto para o ventre de Layla.
E, então, houve um tipo de explosão.
Com um sibilo, ela se entregou à grande onda de energia que abruptamente surgiu dentro dela, um calor que não queimava, mas fervia afastando a dor, suspendendo a agonia e arrancando-a de sua carne, como se o vapor de uma panela se dissipasse.
Mas não acabou ali. Uma grande sensação de euforia em seu corpo inteiro, com cachos dourados pulsando para fora de sua região pélvica e fluindo pelo torso até a mente e também em sua alma, e pernas e braços formigando.
Ah, que alívio pungente.
Ah, que poder incrível.
Ah, graça salvadora gentil.
A cura, contudo, não estava completa.
No meio do turbilhão, Layla sentiu... o que era aquilo? Um movimento em seu útero. Uma contração, talvez? Mas não uma cólica, não, nada disso. Mais como se o que estivesse defasado tivesse recuperado as forças.
Ela, gradualmente, deu-se conta de que batia os dentes.
Olhando para baixo, para seu corpo, ela viu que tudo tremia, e não só isso.
Sua forma física estava brilhando. Cada centímetro de sua pele era como uma cúpula de um abajur, revelando a luz que jazia por baixo, as roupas agindo como barreiras frágeis daquilo que fervia lentamente dentro dela.
Na iluminação, o rosto de Payne estava contraído, como se fosse um custo alto transferir a cura maravilhosa para outra pessoa. E Layla teria se distanciado, colocado um fim naquilo, se pudesse – porque a outra fêmea começava a parecer muito cansada. No entanto, não havia como romper a ligação. Ela não tinha o controle dos seus membros, não tinha como falar.
Aquela comunhão vital entre as duas pareceu durar uma eternidade.
Quando Payne finalmente se afastou, rompendo o elo, ela caiu da cama, formando uma pilha no chão.
Layla abriu a boca para gritar. Tentou segurar sua salvadora. Lutou contra o peso morto do corpo ainda iluminado.
Todavia, não havia nada que ela pudesse fazer.
A última coisa que ficou registrada antes que perdesse a consciência era a sua preocupação com a outra fêmea. E, depois, tudo ficou escuro.
CAPÍTULO 44
Qhuinn despertou com o pênis duro.
Estava deitado de costas e seus quadris se mexiam por conta própria, o movimento contínuo resvalava a ereção contra o peso dos lençóis e da colcha. Por um instante, enquanto se demorava naquele estado meio dormente antes de a consciência chegar, ele imaginou que era Blay criando aquela fricção, as palmas do macho subindo e descendo... num preâmbulo de mais ação oral.
Foi quando abaixou a mão para enterrar os dedos nos cabelos ruivos que percebeu estar sozinho: a mão encontrou apenas os lençóis.
Numa atitude otimista, lançou o braço para o lado, tateando o lugar ao seu lado, pronto para encontrar o corpo quente do macho.
Apenas mais lençóis. E estavam frios.
– Cacete – inspirou.
Abrindo os olhos, a realidade de onde estava o atingiu com força, murchando a sua ereção. Apesar dos encontros, aqueles dois interlúdios maravilhosos e extremamente sensuais, Blay estava, naquele exato instante, acordando ao lado de Saxton.
Provavelmente fazendo sexo com o cara.
Ah, Deus, ele ia vomitar.
A ideia de Blay tocando em outro, cavalgando em outro, lambendo e afagando outro – seu maldito primo, para ser bem claro – era quase tão insuportável quanto a maldita situação de Layla. A verdade era que, graças ao que acontecera, qualquer atração que Qhuinn sentisse pelo cara aumentara em vez de diminuir.
Maravilha. Outra rodada de boas notícias.
Foi sem nenhum entusiasmo que Qhuinn se arrastou para fora da cama e entrou no banheiro. Não acendeu a luz, não tinha interesse algum em ver que sua aparência era a mesma da merda de um cachorro, mas barbear-se só pelo toque não era a melhor das ideias.
Ao apertar o interruptor, piscou com força, e uma dor de cabeça começou a latejar atrás de ambos os olhos. Sem dúvida precisava comer de novo, mas que merda, as exigências constantes de seu corpo estavam acabando com ele.
Abrindo a torneira, ele pegou o gel de barbear e colocou um punhado na palma. Esfregou as mãos para criar espuma e pensou em seu primo. Ele tinha a impressão, embora não soubesse com certeza, de que Saxton usaria um daqueles pincéis antigos para espalhar a espuma no rosto. E nada de lâminas Gilette para ele. Muito provavelmente ele tinha um daqueles instrumentos de barbeiro com cabo em madrepérola.
O pai de Qhuinn tinha um desses. E seu irmão recebera um com suas iniciais após sua transição.
Junto ao anel de sinete.
Bem, ótimo para eles. Além do que, já que ambos estavam mortos, não era como eles continuassem se barbeando.
Quando o rosto ficou coberto de branco, como o cenário lá de fora, ele pegou sua lâmina comum Mach 3 com cabeça descartável...
Sem nem saber por que, achou que devia pegar uma lâmina nova.
Sim, uma supernova e ultracortante.
Qhuinn revirou os olhos para si mesmo. Nada como se concentrar em três pequenas lâminas e uma tira umidificadora. Algo bem lógico.
Depois de se admoestar, ele começou a vasculhar as gavetas do gabinete, puxando-as uma a uma, inventariando os itens de tolices de higiene que nunca usava, nem jamais sequer perdia tempo olhando-as.
Puxando a última, a mais próxima do chão, parou. Franziu o cenho. Agachou.
Havia uma caixinha preta de veludo ali, do tipo em que se colocam joias. Só que ele não tinha nenhuma, e muito menos da Reinhardt, aquela loja esnobe no centro. Como ninguém mais ficava em seu quarto, ele se perguntou se, talvez, aquilo estivesse ali desde que ele se mudara e ele simplesmente nunca o vira.
Tirando a caixinha, levantou a tampa e...
– Filho da mãe.
Dentro, como se valesse muita coisa, estavam todos os seus brincos de argola, bem como o piercing que costumava usar no lábio inferior.
Fritz deve tê-los juntado ao limpar o quarto uma noite e guardado na caixinha. Única explicação possível, porque Qhuinn não se importara com eles depois de tirá-los, um a um. Simplesmente os jogara no fundo de uma das gavetas do banheiro.
Qhuinn mexeu nas argolas de aço, relembrando quando as comprara e colocara. Seu pai ficara mortificado; a mãe também – ao ponto de se retirar da Última Refeição e ficar trancada no quarto por 24 horas seguidas depois de ele entrar flanando na sala de jantar usando-as.
O colocador de piercings lhe dissera para não usá-los até que as tachas utilizadas para perfurar tivessem a chance de cicatrizar. Mas esse conselho era para humanos. Em poucas horas, estava tudo perfeito e ele fizera a troca.
No banheiro de Blay, para falar a verdade.
Qhuinn franziu a testa, lembrando-se do momento em que pisara no quarto do cara. Blay estava na cama, acalentando uma Corona, assistindo TV. A cabeça dele se virou, com sua expressão franca e relaxada... até dar uma olhada em Qhuinn.
Seu rosto se contraiu mesmo que minimamente. De um jeito que, a menos que você conhecesse bem, muito bem uma pessoa, jamais teria percebido. Mas Qhuinn notara.
Naquela época, deduzira que seu estilo obviamente gótico fosse um tantinho demais para o senhor Conservador. Mas agora, em retrospecto, ele se lembrou de algo mais. Blay voltara a se concentrar na TV de plasma... e, casualmente, cobrira o colo com uma almofada.
Ele deve ter ficado excitado.
Enquanto Qhuinn repassava a cena inteira na mente, seu próprio sexo voltava a engrossar.
Só que aquilo era uma completa perda de tempo, não era?
Fitando as malditas argolas, pensou em sua rebeldia, na raiva e na ideia sem noção do que precisava ter para ser feliz.
Uma fêmea. Se encontrasse uma que o aceitasse.
Que... mentira... fora aquilo.
Engraçado, a covardia aparecia em muitas formas, não é? Não era necessário se encolher num canto, tremendo e choramingando como um gatinho. Inferno, não. Você pode ser um grandalhão barulhento cheio de marra e com o rosto cheio de piercings e um rosnado para mostrar para o mundo... e ainda assim não passar de um covarde filho da puta. Afinal, Saxton podia vestir ternos de três peças e gravatas e sapatos, mas o macho sabia quem era, e não tinha medo de ter aquilo que desejava.
E, olha só, Blay estava acordando ao lado do cara.
Qhuinn fechou a tampa e recolocou os piercings onde os encontrara. Depois se olhou no espelho. O que estava fazendo mesmo?, pensou ao fitar seu reflexo.
Ah, sim. Barbeando-se.
Era isso mesmo.
Cerca de vinte minutos mais tarde, Qhuinn saiu do quarto. Andou pelo corredor das estátuas, passou pelas portas fechadas do escritório de Wrath e continuou em frente.
Enquanto avançava, foi difícil olhar para a sala de estar do segundo andar, difícil permanecer controlado quando aquele sofá surgiu no seu campo de visão.
Nunca mais olharia para aquela peça de mobília do mesmo modo. Inferno, talvez todos os sofás estivessem perdidos para ele, para sempre.
À porta de Layla, ele se inclinou encostando o ouvido na madeira. Quando não ouviu nada, perguntou-se exatamente o que achava que descobriria daquele modo.
Deu uma batida suave. Quando não houve resposta, sentiu um aperto de medo irracional na garganta e, sem pensar duas vezes, abriu a porta.
A luz invadiu a escuridão.
Seu primeiro pensamento foi que ela tivesse morrido; que Havers, o filho da puta, tivesse mentido, e que o aborto tivesse saído do controle e a matado: Layla estava imóvel ao encontro dos travesseiros, a boca ligeiramente entreaberta, as mãos cruzadas sobre o peito como se ela tivesse sido arrumada por um agente funerário com respeito pelos mortos.
Só que... algo estava diferente, e ele precisou de um minuto para perceber o que era.
Não havia mais o cheiro sobrepujante do sangue. Na realidade, somente a fragrância delicada de canela marcava o ar, refrescando-o de um modo que iluminava o quarto inteiro.
Será que o aborto finalmente chegara ao fim?
– Layla? – ele a chamou, mesmo tendo dito que se a encontrasse dormindo, não a perturbaria.
Foi um alívio ver as sobrancelhas se mexendo quando seu nome foi captado pelo cérebro, mesmo sob o véu do sono.
Ele teve a sensação de que se a chamasse de novo, ela acordaria.
Parecia cruel forçar-lhe a consciência. O que ela teria para recebê-la quando acordasse? A dor que sentia? A sensação de perda?
Cacete.
Qhuinn saiu silenciosamente, fechou a porta atrás de si e continuou ali. Não sabia o que fazer. Wrath lhe dissera para ficar em casa, mesmo se John Matthew saísse – ele deduziu que aquilo fosse uma espécie de folga misericordiosa de seus deveres de ahstrux nohtrum. E estava grato por isso. Havia tão pouco que pudesse fazer por Layla – pelo menos podia ficar por perto caso ela precisasse de alguma coisa. Um refrigerante. Uma aspirina. Um ombro para chorar.
Você fez isso a ela.
A julgar pelo toque que saía da maldita sala de estar, ele deduziu que perdera a Primeira Refeição. Nove horas. Isso mesmo. Acabara dormindo demais, e isso era bom. Se ele tivesse de se sentar à mesa e passar 45 minutos na companhia de quase duas dúzias de pessoas que tentariam não encará-lo, ele teria perdido a porra da cabeça.
O som de alguém andando no vestíbulo logo abaixo fez com que ele levantasse a cabeça.
Sem nenhum plano ou pensamento específico, ele se aproximou da balaustrada e olhou para baixo.
Payne, a irmã valentona de V., estava saindo da sala de jantar.
Ele não conhecia muito bem aquela fêmea, mas a respeitava imensamente. Seria impossível não admirar, dado o modo como se portava no campo de batalha... Durona, verdadeiramente durona. Naquele instante, porém, a shellan do doutor Manello parecia ter levado uma surra de bar: caminhava lentamente, os pés se arrastando pelo piso de mosaico, o corpo encurvado, a pegada no braço de seu par parecendo ser a única coisa que a sustentava.
Será que ela se machucara em alguma luta corpo a corpo?
Não havia cheiro de sangue.
O doutor Manello disse algo para ela que ele não conseguiu ouvir, mas depois o cara indicou a direção da sala de bilhar com a cabeça – como se ele estivesse perguntando se ela queria ir para lá.
Tomaram aquela direção a passos de caramujo.
Já que não gostava quando as pessoas o encaravam, Qhuinn recuou da grade e esperou até que o caminho estivesse livre. Depois correu escada abaixo.
Comida. Exercícios. Voltar a ver Layla.
Aquela seria a sua noite.
Seguindo para a cozinha, ele se viu imaginando onde Blay estaria. O que estaria fazendo. Se tinha saído para lutar ou se tinha ficado em casa e...
Visto que não sabia onde Saxton estava, ele pôs um ponto final naquela linha de questionamentos.
Se Qhuinn não tivesse de fazer seu turno e pudesse passar um tempo com o cara, ele sabia muito bem o que Blay estaria fazendo.
E Saxton, seu primo filho da puta, não era nenhum tolo.
CONTINUA
CAPÍTULO 37
Enquanto Blay girava o anel de sinete da família no dedo, seu cigarro aceso queimava lentamente na outra mão, e seu traseiro ficava adormecido... e ninguém passava pelas portas do átrio.
Sentado no degrau de baixo da grande escadaria da mansão, ele não respeitaria a promessa feita à mãe de ir para casa. Não naquela noite, pelo menos. Depois da loucura da noite anterior, do pouso forçado do avião e do drama subsequente, Wrath ordenara que a Irmandade e os lutadores tirassem 24 horas de folga. Por isso, tecnicamente, ele deveria ligar para os pais e dizer à mãe que caprichasse na mussarela e no molho à bolonhesa.
Mas de jeito nenhum ele sairia daquela casa. Não depois de ouvir os gritos vindos do quarto de Layla, e de vê-la praticamente sendo carregada escadaria abaixo.
Naturalmente, Qhuinn esteve ao lado dela.
John Matthew não.
Portanto, o quer que estivesse acontecendo, pelo visto superava o ahstrux nohtrum, e isso significava que... ela só podia estar perdendo o filho. Somente algo sério assim possibilitaria um passe livre.
Enquanto ele continuava parado como uma porta, sem nada além da sua preocupação para lhe fazer companhia, naturalmente sua mente resolveu seguir o caminho errado: merda, fora mesmo para a cama com Qhuinn na noite passada?
Dando uma tragada em seu Dunhill, ele expeliu uma imprecação.
Acontecera mesmo?
Deus, essa pergunta vinha martelando a sua cabeça desde o minuto em que despertou de um sonho sensual, com uma ereção que parecia fazer pensar que o outro macho dormia ao seu lado.
Revendo as cenas pela centésima vez, só no que ele conseguia pensar era... como um plano podia fracassar. Depois de ter rejeitado Qhuinn quando ele se pôs de joelhos, voltara para o próprio quarto e andara de um lado para o outro, um debate que não interessava ter consigo mesmo transformando seu cérebro em fois gras.
Ele tomara a decisão correta ao sair. Mesmo. Tinha sim.
O problema foi que a decisão não se sustentou. Enquanto as horas do dia passavam, tudo o que ele conseguia pensar foi a vez em que o pai o flagrou roubando uma caixa de cigarros do doggen da família. Na época, ele era um jovem pré-trans e, como castigo, seu pai o obrigou a se sentar do lado de fora e fumar cada um daqueles Camels sem filtro. Ele se sentiu muito mal e demorou mais de dois anos para sequer tolerar fumo passivo.
Portanto, esse fora o seu segundo plano.
Fazia tempo demais que era louco por Qhuinn, mas tudo não passava de algo hipotético, dividido em fantasias de modo que ele conseguisse suportar. Nada de uma vez só, nada da coisa sobrecarregada, absoluta e arrasadora – e ele sabia muito bem que na vida real, Qhuinn não se conteria nem relaxaria. O “plano” fora ter a experiência concreta, e descobrir que aquilo não passava de apenas sexo brutal. Ou, inferno, descobrir que não era nem sexo bom.
Não era de se esperar que você fumasse um maço inteiro de cigarros... só para querer mais.
Deus todo-poderoso, foi a primeira vez em que a realidade foi muito melhor do que uma fantasia, a absolutamente melhor experiência erótica de toda a sua vida.
Depois, porém, a gentileza que Qhuinn demonstrara fora insuportável.
Na verdade, enquanto Blay rememorava aquela ternura, ele deu um salto de onde estava e começou a marchar ao redor do mosaico de macieira – não tinha para onde ir.
Naquele instante a porta se abriu. Porém, não a de entrada.
A da biblioteca.
Enquanto olhava de relance por sobre o ombro, Saxton surgiu de lá. Ele parecia saído do inferno, e não só porque, por mais veloz que fosse a sua recuperação, ele ainda tinha um inchaço residual na mandíbula graças ao ataque de Qhuinn.
Que lindo, Blay pensou. Bela maneira de expressar seu desapontamento quanto ao comportamento de alguém: deixe-o transar com você depois que ele tentou estrangular seu ex.
Quaaanta classe.
– Como você está? – Blay perguntou, e não por convenção social.
Foi um alívio Saxton se aproximar. E encará-lo. E sorrir-lhe um pouco como se estivesse determinado a fazer um esforço.
– Estou exausto. E faminto. E agitado.
– Gostaria de comer comigo? – sugeriu Blay num rompante. – Também estou me sentindo assim, e a única coisa em que posso dar jeito é a fome.
Saxton assentiu com a cabeça e enfiou as mãos nos bolsos da calça.
– Ideia brilhante.
Os dois acabaram na cozinha, sentados ante a castigada mesa de carvalho, lado a lado, de frente para o resto do cômodo. Com um sorriso contente, Fritz imediatamente passou para o seu modo “provedor de alimentos” e, veja só, dez minutos mais tarde, o mordomo servia uma tigela de cozido de carne para cada um, além de uma baguete para dividirem, uma garrafa de vinho tinto e uma porção de manteiga num pratinho ao lado.
– Volto em seguida, meus senhores – disse o mordomo com uma reverência. E depois ele prosseguiu expulsando todos da cozinha, desde o doggen que descascava legumes até os que poliam a prataria e os que limpavam as janelas de uma alcova logo além dali.
Quando a porta se fechou após a saída do último criado, Saxton disse:
– Tudo o que nos falta é uma vela, aí isto seria um encontro – o macho se inclinou para a frente e começou a comer com modos impecáveis. – Bem, suponho que precisaríamos de mais algumas coisas, não?
Blay olhou de esguelha enquanto apagava o cigarro. Mesmo com as olheiras e o hematoma desvanecendo no pescoço, o advogado era muito bonito de se olhar.
Por que ele não poderia simplesmente...
– Não repita, de novo, que sente muito – Saxton limpou a boca com o guardanapo e sorriu. – Não é necessário, nem apropriado.
Assim, sentado ao lado dele, não parecia que tinham acabado de romper, nem que ele estivera com Qhuinn. Será que as últimas noites aconteceram mesmo?
Até parece... O que ocorreu com Qhuinn não teria acontecido se ele e Sax ainda estivessem juntos. Isso era bem claro para ele: uma coisa era se masturbar secretamente, e isso já era ruim o bastante. Aquilo tudo? De jeito nenhum.
Droga, apesar do fato de ele e Saxton terem rompido, ele ainda sentia que devia confessar sua transgressão... mesmo que Qhuinn estivesse certo e que Saxton já tivesse seguido em frente, por assim dizer.
Enquanto comiam em silêncio, Blay balançou a cabeça, ainda que não tivessem lhe feito nenhuma pergunta e nem estivessem conversando. Ele só não sabia o que fazer. Às vezes, as mudanças da vida surgiam com tanta rapidez, e com tamanha impetuosidade, que não havia como acompanhar a realidade. Levava tempo para as coisas se assentarem, um novo equilíbrio se reestabelecia só depois de algum tempo em que seu cérebro batia de um lado contra o outro das paredes da sua cabeça.
Ele ainda estava na fase de balançar.
– Já sentiu alguma vez como se as horas fossem medidas em anos? – perguntou Saxton.
– Ou décadas. Sim. Absolutamente – Blay olhou de novo. – Na verdade, eu também estava pensando nisso.
– Que par de mórbidos nós somos.
– Talvez devêssemos vestir preto.
– Braçadeiras? – sugeriu Saxton.
– Não, preto dos pés à cabeça.
– E o que eu faço com o meu gosto por cores? – Saxton apontou para o lenço laranja Hermès no bolso da sua lapela. – Bem, pode-se muito bem usar todo tipo de acessórios.
– Certamente isso explica a teoria por trás dos aparelhos ortodônticos.
– Flamingos de plástico rosa.
– A franquia da Hello Kitty.
Juntos, os dois explodiram numa gargalhada. Nem era assim tão engraçado, mas o humor não era a questão ali. Mas quebrar o gelo. Voltar ao que era antes. Aprender a se relacionarem de um modo diverso.
Quando convergiram para um riso mais contido, Blay passou o braço ao redor dos ombros do macho e lhe deu um abraço rápido. Foi bom que Saxton tivesse relaxado um pouco, aceitando aquilo que lhe era oferecido. Não que Blay acreditasse que por estarem sentados juntos, partilhando uma refeição e uma bela risada, tudo, de repente, seria um navegar suave. Nada disso. Era estranho pensar que Saxton estivera com outra pessoa, e ainda mais incrível saber que ele fizera o mesmo – principalmente com quem o fizera.
Não se passava de amantes de quase um ano para companheiros de risadas em um ou dois dias.
Podia-se, porém, começar a forjar um novo caminho.
E colocar um pé na frente do outro.
Sempre haveria um lugar em seu coração para Saxton. O relacionamento que tiveram foi o seu primeiro não só com um macho, mas com qualquer um. E muitas coisas boas aconteceram, coisas que ele carregaria consigo como lembranças que valiam o espaço em sua mente.
– Deu uma olhada nos jardins de trás? – Saxton perguntou ao lhe oferecer o pão.
Blay partiu um pedaço e depois espalhou manteiga por cima enquanto Saxton também pegava um pouco.
– Estão bem ruins, não?
– Lembre-me de nunca tentar cortar grama com um Cessna.
– Você não curte jardinagem.
– Bem, para o caso de um dia eu tentar – Saxton se serviu de vinho. – Aceita?
– Sim, por favor.
E foi assim que as coisas aconteceram. Durante o cozido de carne até a torta de pêssegos, que milagrosamente apareceu diante deles graças à impecabilidade de Fritz. Quando a última garfada e a última limpada com guardanapo foram dadas, Blay se reclinou contra o encosto acolchoado do banco embutido e inspirou fundo.
Que se referia a muito mais do que uma simples barriga cheia.
– Bem – disse Saxton, ao apoiar o guardanapo ao lado do prato de sobremesa –, acredito que finalmente vou poder tomar o banho de banheira que você me sugeriu há algumas noites.
Blay abriu a boca para observar que os sais de banho que o macho preferia ainda estavam em seu banheiro. Ele os vira no gabinete quando fora pegar o creme de barbear reserva ao cair da noite.
Só que... ele não sabia se devia mencionar isso. E se Saxton pensasse que ele estava lhe pedindo para ir à sua banheira? Seria um lembrete muito grande de como as coisas tinham mudado e do por quê? E se...
– Tenho esse novo tratamento à base de óleos que estou morrendo de vontade de experimentar – explicou Saxton ao deslizar pelo banco. – Ele finalmente chegou do exterior hoje. Faz séculos que espero por ele.
– Parece maravilhoso.
– Mal posso esperar – Saxton ajustou o paletó nos ombros, ajeitou os punhos e depois acenou com a mão, saindo sem nenhum indício de complicações ou de tensão em seu rosto.
O que, de fato, ajudava muito.
Dobrando o próprio guardanapo, deixou-o de lado, e saiu de trás da mesa, esticando os braços acima da cabeça e curvando-se para trás, estalando muito bem a coluna.
A sua tensão voltou no segundo em que pisou no átrio novamente.
Que diabos estava acontecendo com Layla?
Maldição, ele nem podia ligar para Qhuinn. Aquele drama não era seu, nem estava ligado a ele de modo algum. Quando se tratava de uma gestação, ele não era diferente de nenhum outro macho daquela casa que também ouvira ou vira o show e, sem dúvida, estava tão preocupado quanto ele. Mas também não tinha direito a nenhuma notícia antecipada.
Uma pena que sua barriga, agora cheia, não concordasse com isso. Pensar em Qhuinn perdendo o filho o fez considerar seriamente a localização do banheiro mais próximo da porta de entrada, só para o caso de uma evacuação rápida ser ordenada pelo fundo da sua garganta.
No fim, ele se viu subindo para a sala de estar do segundo andar. Daquele lugar, ele não teria dificuldade em ouvir a porta da frente, e não estaria esperando abertamente...
As portas do escritório de Wrath se abriram, e John Matthew emergiu do santuário do Rei.
Imediatamente, Blay atravessou a sala de espera, pronto para ver se, talvez, o cara sabia de alguma coisa, mas se conteve ante a expressão de John.
Perdido em pensamentos. Como se tivesse recebido notícias pessoais do tipo perturbador.
Blay ficou para trás enquanto o camarada seguia no caminho contrário, na direção do corredor das estátuas, sem dúvida para desaparecer no próprio quarto.
Parecia que as coisas não andavam bem nas vidas dos outros também.
Maravilha.
Com uma imprecação baixa, Blay deixou o amigo em paz e voltou a caminhar e... a esperar.
Muito mais ao sul, na cidade de West Point, Sola estava pronta para entrar no segundo andar da casa de Ricardo Benloise, através da janela ao fim do corredor principal. Fazia meses desde que estivera lá dentro, mas ela contava com o fato de que seu contato na segurança por ela cuidadosamente manipulado ainda fosse o seu amigo.
Havia dois fatores-chave para invadir com sucesso qualquer casa, prédio, hotel ou instalação: planejamento e velocidade.
Ela possuía os dois.
Pendurada no cabo que lançara no telhado, ela tirou um instrumento de dentro do bolso da parca, segurando-o no canto direito da janela dupla. Iniciado o sinal, ela esperou, olhando fixamente para a luzinha vermelha que brilhava na tela à sua frente. Se por algum motivo ela não mudasse, ela teria de entrar por uma das águas-furtadas que dava para o jardim, o que seria um pé no saco...
A luz ficou verde com um sinal, e ela sorriu ao pegar mais instrumentos.
Pegando um copo de sucção, ela o empurrou no meio do painel, imediatamente abaixo da tranca e depois girou a coisa com o cortador de vidro. Um empurrão rápido e o espaço que possibilitava a entrada do seu braço foi criado.
Depois de deixar o círculo de vidro cair com suavidade na passadeira oriental, ela enfiou o braço e o virou, para soltar a trava de latão que mantinha a janela fechada.
O ar quente lhe deu boas-vindas, como se a casa estivesse contente por vê-la mais uma vez.
Antes de entrar, ela olhou ao redor. Relanceou para o caminho de carros. Inclinou-se para fora para ver o que conseguia encontrar nos jardins escuros.
Sentia como se alguém a estivesse observando... não tanto no caminho de carro até a cidade, mas depois que parara no estacionamento e colocara os esquis. Todavia, não havia ninguém por perto – pelo menos, ninguém que ela conseguisse enxergar – e por mais que a atenção fosse essencial em seu ramo de trabalho, a paranoia era uma perda de tempo perigosa.
Ela precisava deixar isso de lado.
Voltando a se concentrar no jogo, esticou as mãos enluvadas e suspendeu o traseiro e as pernas por cima e através da janela. Ao mesmo tempo, relaxou a tensão do cabo para que ele ficasse folgado e permitisse a sua entrada. Aterrissou sem nenhum som, graças não só ao tapete que cobria o longo corredor como também aos seus calçados de solas macias.
O silêncio era outro critério importante no tocante a realizar um trabalho com sucesso.
Ela parou onde estava por um breve momento. Nenhum som na casa, mas isso não significava nada necessariamente. Ela tinha quase certeza de que o alarme de Benloise fosse silencioso, e mais certeza ainda de que o sinal não iria para a força policial, nem a local, tampouco a estadual: ele gostava de cuidar das coisas particulares de modo privado. E Deus bem sabia, com o tipo de força braçal que ele contratava, havia poder suficiente para tal.
Felizmente, contudo, ela era boa no que fazia, e Benloise e seus capangas não estariam em casa até perto do nascer do sol, afinal, ele vivia a vida de um vampiro.
Por algum motivo, a palavra que começava com “v” a fez pensar no homem que aparecera ao lado do seu carro e que desaparecera como num passe de mágica.
Loucura. E a única vez em sua lembrança recente que alguém a fazia parar para pensar. Na verdade, depois de ser confrontada daquela forma, ela estava realmente considerando não voltar à casa de vidro no rio, embora houvesse motivos mais do que válidos para isso. Não por ela se preocupar em se machucar fisicamente. Deus bem sabia que ela era perfeitamente capaz de se defender.
Era a atração.
Mais perigosa do que qualquer pistola, faca, ou punho, em sua opinião.
Com passadas ágeis, Sola trotou pelo tapete, saltitando na ponta dos pés, seguindo para a suíte principal que dava para o jardim dos fundos. A casa ainda tinha o mesmo cheiro de que se lembrava: mobília antiga e lustra-móveis, e ela conhecia o bastante para se ater ao lado esquerdo da passadeira. Nenhum rangido daquele lado.
Quando chegou à suíte principal, a porta pesada de madeira estava fechada, e ela pegou a chave micha antes mesmo de testar a maçaneta. Benloise tinha duas patologias: limpeza e segurança. A impressão dela, entretanto, era que a segunda era mais crítica na galeria no centro de Caldwell do que em seu lar. Afinal, Benloise não mantinha debaixo do seu teto nada além de objetos de arte com seguros até o último centavo, e a ele próprio durante o dia – quando estava cercado por diversos seguranças e armas.
Na verdade, devia ser por isso que ele era uma coruja no centro da cidade. Isso significava que a galeria nunca ficava sem supervisão: ele aparecia depois do expediente e sua equipe de trabalho legítima estava lá durante o dia.
Como uma gatuna, ela certamente preferia entrar em lugares vazios.
Dito isso, mexeu no mecanismo de tranca da porta, abrindo-a, e entrou no quarto. Inspirou profundamente, o ar estava permeado com a fumaça do tabaco e da colônia refrescante de Benloise.
A combinação a fez pensar nos filmes em preto e branco de Clark Gable por algum motivo.
Com as cortinas puxadas e nenhuma luz acesa, ali estava absolutamente escuro, mas ela tirara fotografias dos quartos quando fora a uma festa ali, e Benloise não era o tipo de homem que mudava as coisas de lugar. Inferno, toda vez que uma nova exibição era instalada na galeria de arte, ela praticamente sentia o tremor debaixo da pele dele.
Medo de mudança era uma fraqueza, sua avó sempre dizia.
Obviamente facilitava as coisas para ela.
Mais devagar, ela avançou dez passos até o meio do quarto. A cama estaria à esquerda encostada na parede comprida. À sua frente estavam as janelas altas que davam para o jardim. À direita, haveria uma cômoda, uma escrivaninha e algumas cadeiras, e a lareira que nunca era usada porque Benloise detestava o cheiro de madeira queimada.
O alarme de segurança se localizava entre a entrada do banheiro e a cabeceira ornamentada da cama, ao lado do abajur que se elevava noventa centímetros do criado-mudo.
Sola deu um giro ao redor de si mesma. Deu quatro passos. Tentou encontrar o pé da cama... e o encontrou.
Passo lateral, um, dois, três. De frente para o flanco do colchão king-size. Outro passo lateral para desviar da mesinha de cabeceira e do abajur.
Sola esticou o braço esquerdo...
E lá estava o painel de segurança, bem onde deveria.
Abrindo a portinhola, usou uma lanterna de bolso que prendeu entre os dentes para iluminar o circuito. Pegando outro instrumento da mochila, conectou fios a fios, interceptando sinais, e com a ajuda de um laptop em miniatura e de um programa que um amigo seu desenvolvera, criou um circuito fechado dentro do sistema de alarme de modo que, enquanto o roteador estivesse no lugar, os detectores de movimento que ela estava para disparar não seriam registrados.
No que se referia à placa-mãe, nada pareceria anormal.
Deixando o laptop pendurado pelos fios, saiu do quarto, chegou ao corredor, e tomou as escadas para o primeiro andar.
O lugar estava perfeitamente decorado, pronto para uma foto de revista – ainda que, claro, Benloise protegesse demais a sua privacidade para permitir que suas coisas fossem fotografadas para o consumo público. Com passos rápidos, ela passou pelo hall de entrada, pela sala à esquerda e entrou no escritório.
Andando em meio à penumbra, ela bem que preferiria tirar a parca de camuflagem branca e as calças para neve: fazer aquilo em seu body preto seria um clichê que, entretanto, seria bem prático. Não havia tempo, porém, e ela estava mais preocupada em não ser vista do lado de fora do que ali, na casa vazia.
O espaço de trabalho pessoal de Benloise era, como todo o resto debaixo daquele teto, mais um cenário montado do que algo funcional. Ele, na verdade, não usava a imensa escrivaninha, nem se sentava no minitrono, tampouco lia qualquer um dos livros em capa de couro das prateleiras.
Todavia, ele transitava por aquele cômodo. Uma vez ao dia.
Certa vez, num momento de tranquilidade, ele lhe dissera que antes de sair, todas as noites, passeava pela casa olhando seus pertences, lembrando a si mesmo da beleza das suas coleções e de sua casa.
Como resultado dessa informação e de algumas outras coisas, Sola há muito deduzira que o homem crescera na pobreza. Primeiro porque, quando conversavam em espanhol ou em português, seu sotaque pertencia à classe baixa, mesmo que de modo sutil. Segundo, os ricos não valorizavam seus pertences como ele o fazia.
Nada era raro aos ricos, e isso significava que eles davam como certas todas as coisas.
O cofre estava escondido atrás da escrivaninha numa seção de estandes que era liberada por um botão localizado na gaveta inferior do lado direito.
Ela descobrira isso graças a uma minúscula câmera escondida que colocara do lado oposto durante aquela festa.
Após a abertura do mecanismo, um corte de sessenta por noventa centímetros na prateleira rolou para a frente e deslizou para o lado. E lá estava ela: uma caixa grossa de aço, cujo fabricante ela reconhecia.
Pensando bem, depois de invadir centenas de espaços, você acaba conhecendo intimamente os fabricantes. E ela aprovava aquela escolha. Se precisasse ter um cofre, era daquele tipo que ela pegaria e, sim, ele o prendera ao chão.
O maçarico que trouxera na mochila era pequeno, mas poderoso, e enquanto ela acendia a ponta, a chama chamuscou com um sibilo substancial e um brilho branco e azul.
Aquilo levaria tempo.
A fumaça do metal queimado irritava seus olhos, o nariz e a garganta, mas ela manteve a mão firme enquanto produzia um quadrado na frente do painel. Ela conseguia explodir a porta de alguns cofres, mas o único jeito com um daqueles era do modo antigo.
Que levava uma eternidade.
No entanto, ela conseguiu.
Deixando a pesada seção da porta de lado, ela mordeu a ponta da lanterna mais uma vez e se inclinou. Uma prateleira continha joias, cautelas de ações e alguns relógios de ouro que ele deixara à mão. Havia uma pistola que ela seria capaz de apostar que estaria carregada. Nenhum dinheiro.
Pensando bem, com Benloise sempre havia tanto dinheiro disponível que fazia sentido ele não se dar ao trabalho de colocá-lo no cofre.
Maldição. Não havia nada ali que valesse apenas cinco mil dólares.
Afinal, naquele trabalho, ela só estava atrás daquilo que lhe era devido por direito.
Com uma imprecação, ela se apoiou nos calcanhares. Na verdade, não havia nada no cofre que valesse menos do que vinte e cinco mil dólares. E não tinha como ela partir a metade da pulseira de um relógio de ouro – porque, como diabos conseguiria revender a coisa?
Um minuto se passou.
O segundo.
Ao diabo com aquilo, ela pensou ao recolocar o painel que cortara contra o cofre e deslizar a prateleira de volta ao seu lugar. Levantando-se, olhou ao redor da sala com a lanterna de bolso. Os livros eram todos edições de colecionadores de primeiras edições de antiguidades. A arte nas paredes e sobre as mesas não era somente muito cara, como difícil de transformar em dinheiro sem ser debaixo dos panos... para as pessoas intimamente ligadas a Benloise.
Mas, que droga, ela não sairia sem seu dinheiro, maldição...
Abruptamente, sorriu para si mesma, a solução se tornando muito clara.
Por vários anos no curso da civilização humana, o comércio só existira e sobrevivera na base da troca. Ou seja, um indivíduo trocava bens ou serviços por outros de mesmo valor.
Em todos os trabalhos que realizara, ela jamais considerara acrescentar os custos auxiliares aos seus alvos: novos cofres, novos sistemas de segurança, novos protocolos de segurança. Ela podia apostar que isso era caro – ainda que não tão caro quanto o que ela costumava tomar. E ela entrara ali deduzindo que esses custos adicionais seriam arcados por Benloise – um tipo de prejuízo monetário pelo que ele roubara dela.
No entanto, eles agora eram a questão.
No caminho de volta à escada, observou as oportunidades disponíveis... e, no fim, foi até uma escultura de Degas de uma pequena bailarina que fora colocada na lateral de um nicho. A figura em bronze da garotinha era o tipo de coisa que sua avó teria adorado, e talvez por isso, dentre tantas peças, foi aquela a lhe chamar a atenção.
A luz que fora colocada no teto acima da estátua estava desligada, mas a obra-prima ainda assim parecia brilhar. Sola adorou especialmente a saia em tutu, a delicada ainda que rígida explosão de tule delineada por metal entrelaçado que capturava perfeitamente o que deveria ser maleável.
Sola se aproximou da base da escultura, passou os braços ao redor dela, e concentrou toda a sua força em girar a sua posição não mais do que cinco centímetros.
Depois correu para as escadas, retirou os clipes do roteador e do laptop do painel de alarme na suíte principal, trancou novamente a porta e seguiu para a janela na qual cortara um buraco.
Estava de volta nos esquis, deslizando na neve não mais do que quatro minutos mais tarde.
Apesar do fato de não ter nada nos bolsos, ela sorria ao deixar a propriedade.
CAPÍTULO 38
Quando a Mercedes finalmente parou na entrada da mansão da Irmandade, Qhuinn saiu primeiro e foi para a porta em que Layla estava. Quando a abriu, os olhos dela encontraram os dele.
Ele soube que jamais se esqueceria da aparência dela. A tez estava branca como um papel e parecia tão fina quanto um, a bela estrutura óssea se esticando sobre a cobertura de pele. Os olhos estavam encovados no crânio. Os lábios, finos e inexpressivos.
Naquele instante, ele teve um vislumbre de como ela ficaria ao morrer, não importando quantas décadas e séculos isso fosse levar para acontecer.
– Eu carrego você – disse ele, inclinando-se para pegá-la no colo.
O modo como ela não discutiu lhe contou exatamente o pouco que restava dela.
Quando as portas de entrada foram abertas por Fritz, como se o mordomo estivesse esperando pela chegada deles, Qhuinn se arrependeu de tudo: do sonho que acalentara por um instante durante o cio dela. A esperança desperdiçada. A dor física pela qual ela passava. A angústia emocional que ambos atravessavam.
Você fez isso com ela.
Na época, quando a servira, ele só se concentrara no resultado positivo do qual esteve tão certo.
Agora, depois de tudo, com os coturnos fincados na realidade sólida e fétida? Não valia a pena. Mesmo a possibilidade de um filho saudável não valia aquele sacrifício.
O pior de tudo era testemunhar o sofrimento dela.
Ao carregá-la para dentro da casa, rezou para que não houvesse uma grande plateia. Ele só gostaria de poupá-la de tudo, de qualquer coisa, mesmo do simples fato de desfilar diante de rostos tristes e preocupados.
Não havia ninguém por perto.
Qhuinn subiu os degraus dois de cada vez e, ao chegar ao segundo andar, as grandes portas duplas do escritório de Wrath abertas o fizeram praguejar.
Pensando bem, o Rei era cego.
Enquanto George emitiu um latido de boas-vindas, Qhuinn apenas passou pela frente, indo direto para o quarto de Layla. Abrindo a porta com um chute, descobriu que o doggen estivera ali e limpara tudo, arrumando a cama, decerto tendo até trocado os lençóis, e também havia um vaso de flores frescas.
Ao que tudo levava a crer, ele não era o único disposto a ajudar em qualquer coisa que pudesse.
– Quer trocar de roupa? – perguntou ao fechar a porta com outro chute.
– Quero tomar banho...
– Vamos providenciar isso.
– ... mas estou com muito medo. Eu não quero... ver, se é que me entende.
Ele a deitou e se sentou ao seu lado na cama. Colocando uma mão em sua perna, esfregou-lhe o joelho com o polegar, de um lado para o outro.
– Sinto muito – disse ela com pesar.
– Droga... Não, não faça isso. Jamais pense nem diga isso, está bem? Isto não é culpa sua.
– De quem mais é?
– Isso não vem ao caso.
Merda, ele não conseguia acreditar que o processo do aborto duraria mais ou menos uma semana. Como podia ser possível...
A careta que contraiu o rosto de Layla revelou a ele que uma cólica a assolava novamente. Olhando de relance para trás, esperando ver a doutora Jane, descobriu que estavam sozinhos.
O que garantiu, mais do que tudo, que não havia nada a ser feito.
Qhuinn deixou a cabeça pensa e segurou a mão dela.
Aquilo começara com os dois.
E estava terminando com os dois.
– Acho que gostaria de dormir um pouco – disse Layla ao apertar a mão dele. – Você também parece estar precisando...
Ele olhou para a chaise-longue do outro lado.
– Você não precisa ficar comigo – murmurou ela.
– Onde mais eu ficaria?
Uma breve visão mental de Blay abrindo os braços cruzou sua mente. Que fantasia, hein...
Nunca mais me toque assim.
Qhuinn sacudiu a cabeça para que tais pensamentos sumissem.
– Vou dormir ali.
– Você não pode ficar aqui por sete noites seguidas.
– Vou repetir mais uma vez. Onde mais eu...
– Qhuinn – a voz dela soou estridente. – Você tem o seu trabalho. E você ouviu Havers. Isto vai levar o tempo que for preciso e, provavelmente, vai demorar um pouco. Não corro o risco de ter uma hemorragia e, francamente, sinto como se devesse ser forte na sua frente, e não tenho a energia necessária para isso. Por favor, volte aqui para me ver o quanto quiser. Mas vou enlouquecer se você montar acampamento aqui até isso tudo terminar.
Desespero comedido.
Era tudo o que Qhuinn tinha enquanto permanecia sentado na beira da cama, segurando a mão de Layla.
Ele acabou se levantando pouco depois. Claro, ela estava certa. Ela precisava descansar o máximo possível e, de fato, além de ficar olhando para ela e fazendo com que ela se sentisse fraca, não havia nada que ele pudesse fazer.
– Não estarei longe.
– Sei disso – ela suspendeu o punho dele para os seus lábios, e ele ficou chocado ao perceber o quanto eles estavam frios. – Você tem se mostrado... mais do que eu seria capaz de pedir.
– Não... Não fiz nada de...
– Você fez o que era certo e apropriado. Sempre.
Aquilo era uma questão de opinião.
– Preste atenção. Vou estar sempre com meu telefone por perto. Volto em algumas horas para ver como você está. Se estiver dormindo, eu não a incomodarei.
– Obrigada.
Qhuinn assentiu com a cabeça e andou de lado até a porta. Certa vez ouvira que não se devia dar as costas a uma Escolhida, e ele imaginou que demonstrar um pouco de protocolo não faria mal.
Fechando a porta atrás de si, ele se recostou nela. A única pessoa que ele queria ver era o único cara naquela casa que não tinha interesse algum em...
– O que está acontecendo?
A voz de Blay foi um choque tão grande que ele pensou que a tivesse imaginado. A não ser pelo fato de que o macho em pessoa acabara de passar pela porta da sala de estar do segundo andar. Como se estivesse ali esperando o tempo inteiro.
Qhuinn esfregou os olhos e depois começou a andar, o corpo procurando a única coisa pela qual ele vinha rezando.
– Ela está abortando – Qhuinn se ouviu dizer numa voz morta.
Blay murmurou algo em resposta, mas que não ficou registrado.
Engraçado, o aborto não lhe parecera real até aquele momento. Não até contar a Blay.
– O que disse? – perguntou Qhuinn, ciente de que o cara esperava por uma resposta.
– Posso fazer alguma coisa?
Tão engraçado. Qhuinn sempre achou que saíra do ventre da mãe já como um adulto. Pensando bem, nunca houve nenhum agradinho materno, nada de abraços quando ele se machucava, nenhum amparo quando ele tinha medo. Como resultado, quer fosse um aspecto do seu caráter, ou o modo como fora criado, ele nunca regredira. Não havia para o que voltar.
Todavia, foi com a voz de uma criança que disse:
– Faz isso parar?
Como se só Blay tivesse o poder de operar um milagre.
E então... foi o que o macho fez.
Blay abriu os braços, oferecendo o único refúgio que Qhuinn sempre conheceu.
– Faz isso parar?
O corpo de Blay começou a tremer quando Qhuinn enunciou essas palavras: depois de todos esses anos, ele vira o cara em diferentes estados de humor dependendo da circunstância. Porém, jamais assim. Nunca... tão completa e absolutamente devastado.
Nunca perdido como uma criança.
A despeito da sua necessidade de se manter verdadeiramente afastado de qualquer vínculo emocional, seus braços se abriram por vontade própria.
Enquanto Qhuinn avançava para ele, o corpo do guerreiro parecia menor e mais frágil do que de fato era. E os braços que passaram ao redor da cintura de Blay simplesmente ficaram lá, como se não tivessem força nos músculos.
Blay sustentou a ambos.
E antecipou que Qhuinn recuaria rapidamente. Normalmente, o cara não suportava nenhum tipo de conexão intensa além da sexual por mais tempo do que um segundo e meio.
Qhuinn não o fez, porém. Ele parecia preparado para ficar parado na entrada da sala de estar para sempre.
– Venha – disse Blay, levando o macho para dentro e fechando a porta. – Vamos para o sofá.
Qhuinn o seguiu, os coturnos se arrastando em vez de marcharem.
Quando chegaram ao sofá, sentaram-se de frente, os joelhos se tocando. Quando Blay o fitou, a tristeza ressonante o tocou tão profundamente, que não pôde evitar que a mão se esticasse e afagasse o cabelo escuro...
Sem aviso, Qhuinn se enroscou ao seu encontro, simplesmente se deixou cair, o corpo se dobrando ao meio, quase se desmanchando no colo de Blay.
Uma parte de Blay reconhecia que aquele era um terreno perigoso. Sexo era uma coisa, e já bem difícil de lidar, ora essa. Aquele momento tranquilo? Era potencialmente devastador.
Motivo pelo qual saíra num rompante daquele quarto na noite anterior.
A diferença desta noite, porém, era que ele estava no controle. Era Qhuinn quem buscava conforto, e Blay podia negar ou oferecer, dependendo de como se sentisse. Ser o depositário da confiança de alguém era absolutamente diferente de recebê-la... ou necessitá-la.
Blay era bom nisso. Havia uma medida de segurança, de controle. Não era o mesmo que cair num abismo. E, inferno, se alguém devia saber isso, esse alguém era ele. Deus bem sabia que ele passara anos lá embaixo.
– Eu faria qualquer coisa para mudar isso – disse Blay, afagando as costas de Qhuinn. – Odeio o que você está passando...
Ah, as palavras eram tão inúteis...
Ficaram ali por um tempo enorme, a tranquilidade da sala formando uma espécie de casulo. Periodicamente, o relógio antigo sobre a lareira tocava, e depois de um bom tempo, as persianas começaram a baixar sobre as janelas.
– Gostaria que existisse algo que eu pudesse fazer – disse Blay quando os painéis de aço chegaram ao fim com um baque.
– Deve estar na hora de você ir.
Blay deixou aquela passar. A verdade não era algo que ele quisesse partilhar: nem cavalos selvagens, ou armas carregadas, pés-de-cabra, mangueiras de incêndio, estouro de elefantes... nem mesmo uma ordem do Rei em pessoa o teria tirado dali.
E havia uma parte sua que ficava zangada com isso. Não com Qhuinn, mas com seu próprio coração. A questão era que não se pode lutar contra a sua natureza, e era isso o que ele vinha aprendendo. No rompimento com Saxton. Em se revelar à mãe. Naquele exato instante.
Qhuinn gemeu ao suspender o tronco e depois esfregar o rosto. Quando abaixou as mãos, as faces estavam vermelhas, bem como os olhos, mas não porque ele estivesse chorando.
Indubitavelmente, a sua cota de lágrimas da década fora derramada na noite anterior quando ele chorara de alívio por ter salvado a vida de um pai.
E se soubesse que Layla não estava bem naquele instante?
– Sabe o que é pior? – perguntou Qhuinn, parecendo um pouco mais consigo mesmo.
– O quê? – Deus bem sabia que a gama de opções era vasta.
– Eu vi a criança.
Os pelos da nuca de Blay se eriçaram.
– Do que está falando?
– Na noite em que a Guarda de Honra veio atrás de mim e que quase morri, lembra?
Blay deu uma tossidela, a lembrança era tão vívida e visceral como se tivesse acontecido uma hora antes. E mesmo assim a voz de Qhuinn era calma e tranquila, como se ele estivesse se referindo a uma noite numa boate ou algo assim.
– Sim, eu me lembro.
E pensou, eu fiz boca a boca em você no acostamento da estrada, porra.
– Eu fui até o Fade... – Qhuinn franziu o cenho. – Você está bem?
Ah, sim, claro, uma maravilha.
– Desculpe. Pode continuar.
– Fui até lá. Quero dizer, é como... a gente ouviu falar. Branco – Qhuinn esfregou o rosto de novo. – Tão branco. Tudo. Havia uma porta, e eu caminhei até ela... Eu sabia que se girasse a maçaneta, entraria e não sairia mais. Eu estava prestes a tocá-la quando... foi então que eu a vi. Na porta.
– Layla – interpôs Blay, sentindo como se o peito tivesse sido apunhalado.
– A minha filha.
A respiração de Blay ficou presa.
– A sua...
Qhuinn o encarou.
– Ela era... loira. Como Layla. Mas os olhos... – ele levou a mão próxima aos seus. – Eram como os meus. Parei de andar quando a vi e depois, de repente, eu estava de volta no chão, no acostamento da estrada. Depois disso, fiquei sem saber o que foi tudo aquilo. Mas depois, muito tempo depois, Layla entrou no cio e me procurou, e tudo se encaixou. Era como se aquilo... tivesse que acontecer. Pareceu o destino, sabe. De outro modo, eu jamais teria me deitado com Layla. Só fiz isso porque eu sabia que teríamos uma garotinha.
– Jesus.
– Mas eu estava errado – ele esfregou o rosto pela terceira vez. – Errei feio... E o que eu mais queria era não ter tomado esse caminho. O maior arrependimento da minha vida... Bem, o segundo maior, na verdade.
A Blay só restou imaginar o que poderia ser pior do que aquilo pelo que ele passava.
O que posso fazer?, Blay se perguntou.
Os olhos de Qhuinn procuraram os dele.
– Quer mesmo que eu responda a isso?
Pelo visto, ele pensara em voz alta.
– Sim, claro.
A mão da adaga de Qhuinn se levantou e amparou a lateral do rosto de Blay.
– Certeza?
O clima mudou de pronto. A tragédia ainda estava com eles, mas a poderosa ressaca sexual os abateu entre uma pulsação e a seguinte.
O olhar de Qhuinn começou a queimar, as pálpebras pesaram.
– Preciso... de uma âncora agora. Não sei explicar de modo melhor.
O corpo de Blay reagiu instantaneamente, o sangue fervendo, o membro engrossando e esticando.
– Deixe-me beijar você – Qhuinn gemeu ao se inclinar. – Sei que não mereço, mas, por favor... é isso o que você pode fazer por mim. Deixe-me senti-lo...
A boca de Qhuinn resvalou a dele. Voltou para um pouco mais. Demorou-se.
– Vou implorar – mais carícias daquela boca devastadora. – Se for preciso. Estou pouco me importando, eu vou implorar...
De algum modo, isso não seria necessário.
Blay deixou a cabeça ser inclinada para abrir caminho para mais manobras, a mão de Qhuinn em seu rosto tanto gentil quanto no comando. E, então, houve mais boca a boca, lento, arrastando-se, inexorável.
– Deixe-me estar dentro de você de novo, Blay...
CAPÍTULO 39
Assail voltou para casa cerca de meia hora antes do amanhecer. Ao estacionar o Range Rover na garagem, ele teve que esperar a porta abaixar para sair.
Sempre se considerara um intelectual – e não no sentido atribuído pela glymera, onde um se sentia importante ao discorrer sobre literatura, filosofia ou assuntos espirituais. Era mais pelo fato de existirem poucas coisas na vida na qual ele não podia aplicar seu raciocínio e entender a sua totalidade.
O que diabos aquela mulher fizera na casa de Benloise?
Obviamente ela era uma profissional, com tanto equipamento quanto técnica, e uma abordagem de infiltração muito praticada. Ele também suspeitava que ou ela tivesse a planta da casa ou estivera lá previamente. Tão eficiente. Tão decidida. E ele estava qualificado para julgar: seguira-a o tempo inteiro em que ela esteve dentro da casa, penetrando como um fantasma pela janela que ela abrira, atendo-se às sombras.
Seguindo o rastro dela por trás.
Mas aquilo ele não entendia: que tipo de ladrão se dá ao trabalho de invadir uma casa segura, encontra um cofre, queima-o para abri-lo, descobre muitas riquezas portáteis... mas não leva nada? Porque ele vira muito bem ao que ela teve acesso; assim que ela saiu do escritório, ele permanecera lá, soltando a prateleira como ela fizera antes, e usara a própria lanterna para dar uma espiada no cofre.
Só para descobrir o que ela deixara para trás, se é que tinha deixado algo.
Quando ele voltou para a casa em si, evitando qualquer fonte de luz, observara-a parada um instante no hall de entrada, com as mãos nos quadris, a cabeça virando lentamente, como se ela estivesse considerando suas opções.
E então ela se aproximou de uma estátua que só podia ser de Degas... e a girara apenas alguns centímetros para a esquerda.
Isso não fazia sentido.
Bem, era possível que ela tivesse invadido o cofre procurando por algo específico que, na verdade, não estava lá. Um anel, uma bugiganga, um colar. Um chip de computador, um pendrive, um documento como um testamento ou apólice de seguro. Mas a demora no hall não estava de acordo com a diligência anterior... e depois ela só moveu uma estátua?
A única explicação era que aquilo fora uma violação deliberada da propriedade de Benloise.
O problema era que, no que se referia a vinganças contra objetos inanimados, era difícil encontrar muita significância nos atos dela. Derrubasse a estátua, então. Levasse a maldita coisa. Danificasse-a com obscenidades em tinta spray. Batesse nela com um pé-de-cabra para que ficasse destruída. Mas uma leve virada que mal se podia perceber?
A única conclusão a que ele conseguia chegar era que aquilo fora um tipo de mensagem. E ele não gostava nem um pouco disso.
Pois sugeria que talvez ela conhecesse Benloise pessoalmente.
Assail abriu a porta do motorista...
– Oh, meu Deus... – sibilou, retraindo-se.
– Ficamos imaginando quanto tempo você ainda ficaria aí.
Enquanto uma voz ríspida se pronunciava, Assail saiu do carro e olhou ao redor da garagem para cinco carros. O fedor estava num meio-termo entre um atropelamento de três dias, maionese estragada e perfume barato.
– Isso é o que eu estou pensando? – perguntou aos primos, que estavam parados na soleira da antessala.
Graças à Virgem Escriba, eles avançaram e fecharam a porta que dava para a casa; caso contrário, aquele fedor horrendo invadiria o resto da construção.
– São os seus traficantes. Bem, parte deles, na verdade.
Que. Merda. Era. Aquela?
As passadas longas de Assail o levaram na direção que Ehric apontava: o canto oposto, onde três sacos plásticos verdes-escuro foram jogados de lado sem cuidado algum. Agachando-se, ele afrouxou a tira amarela de um deles, puxou a beirada e...
Deparou-se com os olhos sem vida de um humano que ele reconhecia.
A cabeça inanimada fora arrancada da coluna uns dez centímetros abaixo da mandíbula, e estava virada de modo a fitar para fora de seu caixão frouxo. O cabelo escuro e a pele vermelha estavam marcados por sangue preto e brilhante, e se o cheiro esteve ruim próximo ao carro, ali, bem perto, fez seus olhos lacrimejarem e a garganta se contrair num protesto.
Não que ele se importasse.
Abriu os outros dois sacos e, usando o plástico como “luva”, virou as outras cabeças na mesma posição.
Depois se sentou e ficou olhando para as três, observando as bocas escancaradas e impotentes em busca de ar.
– Contem o que aconteceu – ordenou sombriamente.
– Aparecemos na hora combinada.
– Rinque de patinação, na margem do rio ou debaixo da ponte?
– Ponte. Chegamos – Ehric apontou para o irmão gêmeo, que estava parado em silêncio ao seu lado – na hora com o produto. Uns cinco minutos depois, esses três apareceram.
– Como redutores.
– Eles tinham o dinheiro. Estavam prontos para fazer a transação.
Assail girou a cabeça na direção dele.
– Eles não foram lá para atacá-los?
– Não, mas só descobrimos isso quando já era tarde demais – Ehric deu de ombros. – Eram assassinos que apareceram do nada. Não sabíamos quantos havia, e não queríamos nos arriscar. Foi só depois que vasculhamos os bolsos e encontramos o montante certo de dinheiro que percebemos que eles só foram lá para fazer negócios.
Redutores no tráfico? Aquilo era novidade.
– Vocês apunhalaram os corpos?
– Pegamos as cabeças e escondemos o que restou. O dinheiro estava na mochila desse da esquerda e, naturalmente, nós o trouxemos para casa.
– Celulares?
– Peguei.
Assail começou a acender um charuto, mas não queria desperdiçar o sabor. Fechando os sacos, levantou-se acima da carnificina.
– Tem certeza de que não foram agressivos?
– Estavam mal preparados para se defenderem.
– Estar mal armado não significa que eles não estivessem lá para matá-los.
– Por que levar o dinheiro?
– Eles podiam estar negociando em outro lugar.
– Como já disse, era a quantia correta e nem um centavo a mais.
Abruptamente, Assail gesticulou para que o seguissem para o interior da casa e, ah, que alívio quando chegaram ao ar limpo. Com as telas descendo lentamente sobre as janelas de vidro, e com o alvorecer se completando, ele foi para o bar, pegou um galão de Bouchard Père et Fils, Montrachet, 2006 e estalou a rolha.
– Querem me acompanhar?
– Sim, claro.
Na mesa redonda na cozinha, ele se sentou com três taças e a garrafa. Servindo os três, dividiu o chardonnay com os dois sócios.
Porém, não lhes ofereceu seus cubanos. Eram valiosos demais.
Felizmente, cigarros apareceram e todos se sentaram juntos, fumando e saboreando goladas sublimes da beira afiada do seu Baccarat.
– Nenhuma agressão por parte dos assassinos – murmurou, inclinando a cabeça para trás para baforar, a fumaça azulada se elevando sobre sua cabeça.
– E a quantia exata.
Depois de um momento, ele voltou a olhar para eles.
– Será possível que a Sociedade Redutora esteja tentando entrar no meu ramo de negócios?
Xcor estava à luz de velas, sozinho.
O armazém estava tranquilo, seus soldados ainda não tinham retornado, nenhum humano, nenhum Sombra, nada caminhava sobre ele. O ar estava frio; o mesmo com o concreto abaixo dele. A escuridão o envolvia, a não ser pela fraca fonte de luz perto da qual ele estava sentado.
Algo no fundo de sua mente lhe dizia que estava perigosamente perto de amanhecer. Também havia outra coisa, algo de que ele deveria ter se lembrado.
Mas não havia a mínima chance de que algo transpusesse seu torpor.
Com os olhos fixos na única chama diante dele, Xcor repassou os eventos da noite em sua cabeça.
Dizer que ele encontrara a localização da Irmandade seria talvez aumentar um pouco a verdade, mas não uma falácia completa. Seguira aquela Mercedes para o interior, quilômetro após quilômetro, sem nenhum plano real do que deveria ou poderia fazer quando ela parasse... quando, do nada, o sinal do sangue no corpo de sua Escolhida não só se perdeu, mas foi totalmente redirecionado, como se uma bola lançada contra um muro tivesse alterado repentinamente a sua trajetória.
Confuso, ele vasculhou os arredores, desmaterializando aqui, acolá, para cima e para baixo e, durante o tempo todo, uma sensação de horror se abatendo sobre ele. Recuando, ele se viu na base de uma montanha, com seus contornos, mesmo sob o luar claro, registrados de maneira estranha, indistinta, pouco nítida.
O lugar em que eles ficavam só podia ser ali.
Talvez no alto da montanha. Talvez do outro lado.
Não havia outra explicação – afinal, a Irmandade vivia com o Rei para protegê-lo... portanto, indubitavelmente, eles tomariam precauções do tipo que ninguém mais conseguiria tomar, ou quem sabe, tivessem ao seu dispor tecnologias e provisões místicas que seriam, de outro modo, indisponíveis.
Em frenesi, ele circundou os arredores, dando a volta na base algumas vezes, pressentindo nada além da refração do sinal dela e aquela sensação de horror. Sua conclusão era de que ela deveria estar em algum lugar daquela imensidão: ele teria pressentido se ela tivesse atravessado para o outro lado, e seria razoável concluir que se tivesse ido para o seu templo sagrado, até um plano alternativo de existência, ou – que o destino não permitisse – morrido, aquele eco ressonante dentro dele teria desaparecido.
A sua Escolhida estava ali em algum lugar.
Retornando para o armazém, para o presente, para onde ele estava agora, Xcor esfregou as palmas para frente e para trás lentamente, o raspar dos calos interrompendo a quietude. À esquerda, no limiar da luz de velas, suas armas estavam dispostas lado a lado, as adagas, as pistolas, e sua adorada foice cuidadosamente organizadas ao lado de uma pilha confusa de roupas de sair que ele retirara assim que escolhera aquele lugar específico no chão.
Concentrou-se na foice e esperou que ela lhe falasse: ela o fazia com frequência, com seus modos sedentos de sangue em compasso com a agressividade que fluía em suas veias e que definia seus pensamentos e motivava suas ações.
Aguardou que ela lhe dissesse para atacar a Irmandade onde eles ficavam. Onde as fêmeas moravam. Onde as crianças dormiam.
O silêncio era preocupante.
De fato, sua chegada ao Novo Mundo fora baseada no desejo de ganhar poder, a expressão maior e mais arrojada desse desejo era tomar o trono, portanto, naturalmente, esse era o curso que ele escolhera. E estava progredindo. A tentativa de assassinato no outono, que, sem sombra de dúvida, lançara uma sentença de morte sobre a sua cabeça e a dos seus soldados, fora uma medida tática que quase colocara um ponto final na guerra inteira antes mesmo de ela começar. E seus esforços contínuos com Elan e com a glymera estavam promovendo seus objetivos e reforçando seu apoio dentro da aristocracia.
Mas aquilo que ele descobrira naquela noite...
Deuses, quase um ano de trabalho, sacrifício, planejamento e combate perdiam importância em comparação com a sua descoberta.
Se seu palpite estivesse correto – e como não podia estar? –, tudo o que ele tinha de fazer era marchar com seus soldados e começar um cerco assim que a noite caísse. A batalha seria épica, e a Irmandade e o lar da Primeira Família seriam permanentemente comprometidos, independentemente do resultado.
Seria um conflito digno dos livros de História – afinal, a primeira vez em que a propriedade real fora atingida foi quando o progenitor e a mahmen de Wrath foram assassinados antes da transição dele.
A história se repetia.
E ele e seus soldados tinham uma séria vantagem em relação àqueles assassinos que, na época, não possuíram: a Irmandade agora tinha muitos machos vinculados. Na verdade, ele acreditava que todos eles estivessem vinculados, e isso dividiria as atenções e as lealdades dos machos como nada mais conseguiria fazer. Ainda que a diretriz principal deles como guarda pessoal do Rei fosse proteger Wrath, seus cernes estariam divididos, e mesmo o mais forte dos lutadores com as melhores armas estaria enfraquecido se suas prioridades estivessem em dois lugares distintos.
Além disso, se Xcor ou um dos seus soldados conseguisse apanhar uma daquelas shellans, a Irmandade esmoreceria, porque a outra coisa verdadeira a respeito deles era que a dor de um dos Irmãos era a própria agonia.
Só bastaria uma fêmea de qualquer um deles, a arma derradeira.
Ele sabia disso em sua alma.
Sentado à luz da vela, Xcor esfregou a lâmina da adaga na palma de sua mão, de um lado para o outro, de um lado para o outro.
Uma fêmea.
Era só disso que ele precisava.
E ele conseguiria não só reivindicar sua própria fêmea... mas também o trono.
CAPÍTULO 40
Qhuinn sabia que acabara de colocar Blay numa posição totalmente injusta.
Transa por pena, hein? Mas, ah, Deus, encarando aqueles olhos azuis, aqueles malditos olhos azuis sem fundo que estavam francos para ele do mesmo modo que um dia estiveram... era só no que conseguia pensar. E, sim, tecnicamente era sexo em termos de onde ele queria suas diversas partes – bem, uma mais especificamente. No entanto, havia muito mais do que apenas isso.
Ele não sabia expressar em palavras; simplesmente não era bom em juntar as sílabas. Mas seu desejo de conexão foi o que o levou ao beijo. Ele quis mostrar a Blay o que estava querendo dizer, do que ele precisava, por que aquilo era importante: seu mundo inteiro parecia estar desmoronando e a perda que acontecia na porta ao lado doeria por um bom tempo.
No entanto, estar com Blay, sentir o seu calor, fazer contato, era como uma promessa de cura. Mesmo se durasse apenas o tempo em que estivessem ali naquela sala, ele aceitaria, e guardaria aquilo para si... para relembrar quando precisasse.
– Por favor – sussurrou.
Só que ele não deu chance para o cara responder. Sua língua saiu sorrateira e lambeu aquela boca, escorregando para dentro, assumindo o controle.
E a resposta de Blay foi o modo como ele se permitiu ser empurrado para trás nas almofadas do sofá.
Qhuinn teve dois pensamentos vagos: um, a porta só estava fechada, não trancada – e ele cuidou disso desejando que a trava de latão ficasse no lugar certo. E o segundo pensamento momentâneo era que eles não poderiam destruir aquele lugar. Explodir tudo em seu quarto era uma coisa. A sala de estar era propriedade pública, e muito bem decorada, com as almofadas de seda e as cortinas luxuosas, e um monte de outras coisas que pareciam facilmente rasgáveis, amassáveis, Deus, mancháveis...
Além disso, ele já destruíra seu Hummer, acabara com o jardim e sacudira o quarto. Portanto, sua cota de Destruidor já ultrapassara, e muito, o calendário anual...
Naturalmente, a solução mais prática para não dar nenhuma preocupação adicional a Fritz seria percorrer o corredor rapidamente até o seu quarto, mas enquanto as mãos talentosas de Blay estavam na frente do quadril de Qhuinn, já abaixando seu zíper, ele lançou essa ideia brilhante no cesto de lixo.
– Ai, Deus, toque-me – gemeu, empurrando a pélvis para a frente.
Ele só teria de ser comportado e bem limpinho com aquilo.
Presumindo que isso fosse possível.
Quando a palma de Blay se enfiou em sua calça de couro, o corpo de Qhuinn se arqueou, o torso curvando-se para trás enquanto o outro iniciava os trabalhos. O ângulo estava meio errado, por isso não havia muita fricção, e suas bolas estavam sendo beliscadas pela costura da calça, mas santo inferno, ele não se importava. O fato de que aquele era Blay bastava.
Cacete, depois de anos de chupadas, punhetas e transas, aquela parecia a primeira vez que alguém tocava nele.
Ele precisava retribuir o favor.
Entrando em ação, elevou o peito e aproximou os rostos. Caramba, ele adorava a expressão daqueles olhos azuis enquanto Blay o encarava, quente, selvagem, sensual.
Com tesão.
Qhuinn o segurou com força e aproximou as bocas, agarrando-se àqueles lábios, lançando a língua, tomando tudo como um desvairado...
– Espere, espere – Blay retrocedeu. – Vamos quebrar o sofá.
– O quê...? – o cara parecia estar falando inglês, mas pro inferno se ele conseguia traduzir. – Sofá?
E então ele percebeu que empurrara tanto Blay no braço do móvel, que a coisa estava começando a se inclinar. Que era mais do que duzentos quilos de sexo poderiam fazer em uma peça de mobília.
– Ai, merda, desculpe.
Ele estava começando a recuar quando Blay assumiu o controle e Qhuinn, de repente, viu-se fora do sofá, de costas no chão, as pernas unidas, as calças sendo empurradas para os tornozelos.
Ideia. Genial.
Graças ao fato de ele não usar cuecas, seu pau estava todo exposto, grosso e tenso, ao ser lançado para cima, dolorido e inchado por sobre a barriga. Abaixando a mão, ele deu umas puxadas enquanto Blay arrancava seus coturnos que estavam atrapalhando, largando-os de lado. As calças foram as próximas a darem adeus, e, com Deus como testemunha, Qhuinn nunca antes ficou tão contente em ver um par de couro voar por cima do ombro em toda a sua vida.
Em seguida, Blay voltou ao trabalho.
Qhuinn teve que fechar os olhos quando sentiu as coxas sendo afastadas e um par de mãos de lutador puxar o interior de suas pernas. Imediatamente ele soltou a ereção, afinal, porque ter a palma atrapalhando quando Blay poderia...
Não foram as mãos do cara que o seguraram.
Foi a boca quente e úmida que Qhuinn beijara pra cacete pouco antes.
Por uma fração de segundo, enquanto a sucção abocanhava a ponta e o mastro, ele teve o pensamento maldito de que Saxton ensinara Blay a fazer aquilo: seu maldito primo fizera aquilo com o cara, e fizera com que ele...
Pare, ordenou-se. Quaisquer lições aprendidas e a história por detrás delas não importavam, era a sua ereção que recebia atenção naquele instante. Por isso, que se dane essa merda.
Para deixar isso bem claro, forçou seus olhos a se abrirem. Inferno... do céu...
A cabeça de Blay subia e descia em seus quadris, o punho segurava a base do pau de Qhuinn, a outra mão se ocupava com as bolas. Mas então, como se estivesse esperando por contato visual, o cara parou no alto, libertou a cabeça e lambeu os lábios.
– Eu não gostaria que você fizesse uma lambança nesta linda sala – Blay disse com fala arrastada.
E então, estendeu a ponta da língua para açoitar o piercing no pênis de Qhuinn, a carne rosada brincando com a argola cinza de metal e a bolinha...
– Caralho. Vou gozar agora – grunhiu Qhuinn, com uma onda fervente se avolumando. – Eu vou...
Ele estava impotente para deter as coisas, muito mais até do que alguém que tivesse se lançado de um precipício e que, depois de metros de queda livre, quisesse desistir.
Só que ele não queria pisar no freio.
E não pisou.
Com um rugido potente, que provavelmente foi ouvido em outros lugares, a espinha de Qhuinn se afastou do chão, o traseiro ficou rígido, as bolas explodiram, a excitação esguichando com força na boca de Blay. E não foi só o seu sexo que foi afetado. O orgasmo o atingiu em todo o corpo, uma energia latente emergindo por ele enquanto cravava as unhas no tapete em que estava deitado, os dentes cerrados... e gozando como um animal selvagem.
Felizmente, Blay se mostrou mais do que eficiente na limpeza. E se isso não o fez gozar ainda mais... Também lhe deu muito para o que olhar: pelo resto dos seus dias, Qhuinn jamais se esqueceria da visão da boca do macho o envolvendo, as bochechas sugando enquanto ele libertava seu gozo e ele absorvia tudo. De novo e de novo e de novo.
Normalmente, Qhuinn ficava pronto para outra em seguida, mas quando as ondas tumultuadas finalmente se quebraram sobre ele, ele ficou completamente inerte, os braços largados no chão, os joelhos moles, a cabeça pensa.
– Não consigo me mexer – murmurou.
O riso de Blay foi profundo e sensual.
– Você parece um pouco cansado.
– Posso retribuir o favor?
– Você consegue levantar a cabeça?
– Ela ainda está grudada no meu corpo?
– Pelo que vejo, sim, está.
Enquanto Blay ria de novo, Qhuinn soube o que queria fazer e isso o surpreendeu. Em todas as suas explorações sexuais, ele nunca se permitiu ser enrabado. Não era assim que as coisas aconteciam. Ele era o conquistador, o que tomava, o que estabelecia o controle e conservava a superioridade.
Ficar por baixo simplesmente não o interessava.
E agora era o que queria.
O único problema era que, literalmente, não conseguia se mexer. Ah, sim, e havia uma coisinha a mais: como contar a Blay que ele era virgem?
Porque ele desejava. Se um dia chegasse àquilo, ele queria que Blay soubesse. Por algum motivo, isso era importante.
De repente, o rosto de Blay apareceu em seu campo de visão, e, Deus, como o lutador era lindo, o rosto afogueado, os olhos reluzentes, aqueles ombros largos bloqueando tudo.
E, ah, sim, aquele sorriso sexy como o inferno, tão satisfeito consigo e autossuficiente, como se o fato de Blay ter provocado tanto prazer em alguém fosse o bastante para que ele não precisasse do próprio alívio.
Mas isso não seria justo, seria?
– Não acho que você vai voltar a se mexer tão cedo – comentou Blay.
– Talvez. Mas posso abrir a boca – foi a resposta misteriosa. – Tanto quanto você.
Certo, tudo bem, a ideia de que provocava um orgasmo daquele em Qhuinn foi tão ratificadora que Blay se esquecera por completo do seu corpo.
A questão era que após tantos anos de rejeição, era uma emoção sem igual sentir poder em relação ao cara, ser aquele quem comandava o ritmo... a pessoa que levava Qhuinn a um lugar vulnerável e erótico muito mais intenso do que qualquer outro antes. E foi isso o que aconteceu. Ele sabia exatamente como Qhuinn ficava e como soava quando gozava, e Blay podia afirmar, sem nenhum traço de dúvida, que ele jamais vira seu camarada tão prostrado como agora, largado no tapete, os músculos do pescoço esticados, os abdominais contraídos, os quadris bombeando com força.
Qhuinn gozara praticamente vinte minutos direto.
E agora, no pós-coito, uma estranha revelação: até aquele instante, Blay jamais reconhecera o cinismo que Qhuinn carregava no rosto o tempo inteiro... as sobrancelhas caídas, o canto da boca perpetuamente repuxado para cima... o maxilar nunca, jamais relaxado.
Era como se toda a torpeza que a família lhe fizera tivesse permanentemente esculpido suas feições.
Mas não era verdade, não é mesmo? Durante o orgasmo, e agora, enquanto as coisas se acalmavam, nada daquela tensão era visível em lugar algum. O rosto de Qhuinn estava... livre de toda reserva, parecendo tão mais jovem, e Blay teve que se perguntar por que nunca percebera a idade dele antes.
– Então, vai me dar algo para eu chupar enquanto me recupero? – Qhuinn perguntou.
– O quê...?
– Estou com sede. E preciso chupar alguma coisa – dito isso, Qhuinn mordeu o lábio inferior, as presas brancas brilhantes afundando na pele. – Vai me ajudar?
Os olhos de Blay reviraram em suas órbitas.
– É... acho que posso fazer isso.
– Então me deixe tirar suas calças.
As pernas de Blay se levantaram com tanta rapidez que ele teve um insight novo sobre as leis da física, e enquanto ele chutava os sapatos, as mãos tremiam ao desabotoar a calça. As coisas foram bem rápidas a partir dali. E durante o tempo todo em que se despia, ele estava absolutamente ciente de tudo o que havia na sala – especialmente Qhuinn. O macho estava ficando rígido novamente, o sexo engrossando apesar de tudo pelo que acabara de passar... as coxas pesadas se contraindo e a pélvis rolando... a parte baixa do tronco tão delgada que cada sutil mudança do torso era refletida na pele esticada e bronzeada.
– Isso aí... – Qhuinn sibilou, as presas se estendendo do maxilar superior, as mãos procurando, e encontrando, o sexo, apalpando-o em movimentos longos e lentos. – Isso mesmo.
A respiração de Blay começou a acelerar, os batimentos cardíacos subindo até o telhado enquanto os olhos descombinados de Qhuinn se prendiam ao seu sexo.
– É isso o que eu quero – o macho grunhiu, soltando-se e esticando as duas mãos.
Por uma fração de segundo, Blay não teve muita certeza como as partes trabalhariam. Qhuinn estava diante do sofá, paralelo ao móvel, por isso não havia muito espaço para...
Um grunhido sutil perpassou o ar enquanto Qhuinn flexionava os dedos como se mal conseguisse esperar para segurar aquilo que desejava.
O planejamento que fosse para o inferno.
Os joelhos de Blay atenderam ao chamado, dobrando para a frente, levando seu peso ao chão perto da cabeça de Qhuinn.
Qhuinn assumiu o controle a partir daí. As palmas escorregaram e se prenderam, atraindo Blay de modo que, sem nem se dar conta, ele tinha um joelho atrás da cabeça do cara e a outra perna estendida ao longo do corpo até o quadril de Qhuinn.
– Ai... cacete... – Blay gemeu ao sentir o sexo entrar entre os lábios de Qhuinn.
O corpo pendeu para a frente até ele acabar derramando o torso nas almofadas do sofá, e foi nesse momento que ele se viu com uma excelente alavancagem. Apoiando os braços no sofá, distribuiu o peso entre os joelhos, os pés e as palmas... e depois se pôs a foder a boca adorável de Qhuinn.
O cara aceitou tudo, mesmo quando os quadris descontrolados de Blay empurraram com tudo o que ele tinha.
Com os dedos de Qhuinn cravados em seu traseiro, e aquela incrível sucção, e... Cristo, o piercing da língua, com a bolinha resvalando seu mastro a cada estocada... Blay estava se dirigindo exatamente para o mesmo tipo de orgasmo que Qhuinn acabara de ter.
Mesmo assim, no fundo da sua mente, ele se questionava se não estava machucando o cara. Do jeito como as coisas seguiam, ele acabaria gozando no estômago dele.
Tarde demais para se preocupar com isso.
Seu corpo assumiu, enrijecendo numa série de espasmos torturantes que corriam do alto da coluna até as pernas.
E bem quando as sensações descontroladas estavam começando a diminuir, o mundo entortou ao seu redor, como se seu senso de equilíbrio tivesse explodido junto de seu...
Não, o mundo estava no lugar. Qhuinn acabara de se levantar do chão, saindo de baixo e se posicionando atrás...
Enquanto Qhuinn penetrava com uma estocada na velocidade da luz, Blay emitiu um gemido que com certeza seria ouvido no Canadá...
O rangido que se fez ouvir na sala o deixou intrigado, mesmo em meio à pressão e ao prazer.
Ah. Eles estavam empurrando o sofá.
Que seja. Ele compraria um novo para a casa se quebrassem a maldita porcaria; ele não iria parar.
O ritmo foi tão punitivo quanto fora o seu e, nesse caso, a revanche não era só o que ele merecia, mas exatamente o que ele queria. A cada estocada, seu rosto era empurrado contra as almofadas do sofá; a cada recuada, ele respirava; só para ser empurrado novamente, num círculo que recomeçava sempre.
Reposicionando as pernas para que Qhuinn alcançasse ainda mais fundo, Blay teve a vaga noção de que eles, definitivamente, mudavam o sofá de posição, mas quem é que se importava com isso, contanto que eles não acabassem no corredor?
No último instante, pouco antes de ele gozar, teve a presença de espírito de pegar as calças. Puxando as cuecas, ele...
A mão de Qhuinn se esticou, apanhou a Calvin Klein e fez o que era preciso, garantindo que houvesse algo para conter o seu gozo. Então, um instante depois, seu peito se deslocou do sofá e ele estava ereto sobre os joelhos. Qhuinn cuidou de tudo, segurando o pau de Blay enquanto cobria a cabeça – penetrando, ainda penetrando, sempre penetrando...
Gozaram ao mesmo tempo, dois pares de gritos ecoando pela sala.
No meio do orgasmo, Blay, sem querer, levantou o olhar. No enorme espelho antigo que estava pendurado entre as duas janelas do lado oposto, ele viu os dois, soube que estavam ligados... e isso o fez gozar novamente.
No fim, as investidas desaceleraram. Os batimentos cardíacos começaram a diminuir. As respirações foram se acalmando.
No vidro chumbado, ele viu Qhuinn fechar os olhos e abaixar a cabeça. Na lateral do seu pescoço, Blay sentiu um resvalar suave.
Os lábios de Qhuinn.
E então a mão livre do macho subiu, parando para afagar Blay no peitoral...
Qhuinn congelou. Recuou. Afastou os lábios, seu toque.
– Desculpe. Desculpe, eu... sei que não quer isso de mim.
A mudança no rosto do cara, o regresso ao cinismo costumeiro, era como ser roubado.
E mesmo assim Blay não podia dizer a ele que voltasse a se aproximar. Qhuinn estava certo; no instante em que a ternura aparecia, ele começava a entrar em pânico.
A retirada foi rápida, rápida demais, e Blay sentiu falta da sensação de estar completo e de ser possuído. Mas estava na hora de acabar com aquilo.
Qhuinn pigarreou.
– Hum... você quer que eu...
– Cuido disso – murmurou Blay, substituindo a mão de Qhuinn sobre as cuecas amassadas em seu quadril.
Durante o sexo, o silêncio na sala equivalia à privacidade. Agora, eram apenas os sons amplificados de Qhuinn subindo as calças de couro.
Droga.
Voltavam ao caos e à confusão. E enquanto as coisas aconteciam, as sensações eram tão intensas e esmagadoras que não houve nenhum pensamento além do sexo. Depois, porém, o corpo de Blay estava frio demais no ambiente climatizado, diferentes partes pulsavam por terem sido usadas, as pernas estavam moles e cambaleantes, a mente, enevoada...
Nada parecia seguro ou garantido. Nem um pouco.
Forçando-se a se vestir, colocou as roupas o mais rápido que conseguiu, inclusive os sapatos. Nesse meio-tempo, foi Qhuinn quem devolveu o sofá ao seu lugar, cuidadosamente colocando os pés nas marcas do tapete. Também ajeitara as almofadas. Endireitara o tapete oriental.
Foi como se nada tivesse acontecido. A não ser pelas cuecas de Blay amassadas em sua mão fechada.
– Obrigado – disse Qhuinn baixinho. – Eu, hum...
– Tudo bem.
– Então... acho que eu vou agora.
– Ok.
E foi isso.
Bem, além de a porta se fechar.
Deixado a sós, Blay resolveu que precisava de uma chuveirada. Mais comida. Dormir.
Em vez disso tudo, ele ficou na sala de estar do segundo andar, olhando para aquele espelho, lembrando-se do que vira nele. Em sua mente, teve a vaga noção de que eles não podiam continuar fazendo aquilo. Emocionalmente, não era seguro para ele; na verdade, era o equivalente a manter a palma da mão sobre uma chama uma vez após a outra, só que a cada vez que você voltava a colocar a mão, você diminuía a distância entre a sua carne e o calor. Cedo ou tarde? Queimaduras de terceiro grau seriam o menor dos seus problemas, porque o braço inteiro estaria em chamas.
Depois de um tempo, contudo, não ficou só pensando naquela coisa de autopreservação.
Mas sim no que dera início àquilo tudo.
Faz isso parar.
Blay passou a mão pelo cabelo. Depois olhou para a porta fechada e franziu o cenho, a mente trabalhando, trabalhando, trabalhando...
Um minuto depois, saiu apressado, andando rapidamente.
Antes de partir num trote.
E acabar correndo como um louco.
CAPÍTULO 41
Eram mais ou menos dez da manhã quando Trez seguiu para o Restaurante Sal’s. O trajeto do apartamento no Commodore para o belo estabelecimento do irmão não demorou, levando apenas dez minutos, e havia diversos espaços disponíveis para estacionar quando ele chegou lá.
De fato, o lugar não abria antes da uma da tarde, nem mesmo para o pessoal da cozinha iniciar a preparação.
Enquanto se encaminhava para a entrada, suas botas esmagando a neve, ele esperou que o código de abertura pelo lado externo não funcionasse: iAm não voltara para casa na noite anterior e, supondo que os cretinos do s’Hisbe não o tivessem levado embora como dano colateral, só havia um lugar em que seu irmão poderia estar. Depois de dois bules de café e muitas consultas ao relógio de pulso, Trez entendeu que, se queria fazer as pazes, ele teria de atravessar a cidade.
Legal. A combinação não fora mudada.
Ainda.
Do lado de dentro, o lugar parecia uma réplica do Rat Pack, numa interpretação moderna de uma era que gerara tipos como Peter Lawford e Frank Sinatra: uma entrada com papel de parede de algodão preto e vermelho o levava até a recepção, onde a chapelaria, a mesinha retrô da recepcionista e o caixa ficavam. À esquerda e também à direita, estavam os dois salões principais, ambos decorados em veludo e couro preto e vermelho, mas não eram onde os políticos e os endinheirados locais ficavam. O lugar predileto era o bar mais à frente, um salão com painéis de madeira que tinha bancos estofados quadrados de couro vermelho perto das paredes e, durante o expediente, um barman de smoking atrás de uma bancada de carvalho servindo nada que não fosse o melhor.
Atravessando a extensão do bar, Trez seguiu para o outro lado das cinco prateleiras de garrafas à mostra e passou pelas portas em vaivém. Ao entrar na cozinha, o cheiro de manjericão, cebola, orégano e vinho tinto lhe denunciou exatamente onde iAm estava.
Como esperado, o cara estava diante do enorme fogão industrial de dezesseis bocas na parede oposta, com cinco panelas imensas borbulhando diante dele – e você gostaria de apostar que também havia alguma coisa no forno? Nesse meio-tempo, tábuas de madeira de corte estavam enfileiradas nas bancadas de aço inoxidável, as cabeças mortas de diferentes tipos de pimentão deixadas ao lado das facas afiadas que foram usadas.
Dez pratas para adivinhar em quem o cara estava pensando enquanto picava aquilo tudo.
– Vai ou não falar comigo? – Trez disse para as costas do irmão.
iAm seguiu para a panela seguinte, levantando a tampa com um pano de prato branco, uma imensa escumadeira entrando e mexendo lentamente.
Trez se inclinou para o lado e puxou um banquinho de aço inoxidável. Sentando-se, esfregou as coxas para cima e para baixo.
– Oi? Alguém aí?
iAm foi para a panela seguinte. E depois a outra. Cada uma delas tinha uma colher diferente para evitar a mistura de sabores, e seu irmão tomava muito cuidado com isso.
– Escute, eu sinto muito se não estava quando você foi à boate ontem à noite – todas as noites, iAm ia para o Iron Mask para dar uma olhada depois que o Sal’s fechava. – Tive que cuidar de uns assuntos.
Merda, se teve. A garota do namorado grosseiro levou uma eternidade para sair do seu carro quando ele a levou para a casa dela. No fim, ele a acompanhou até a porta, abriu e só faltou empurrá-la para dentro. De volta ao carro, ele acelerou como se tivesse plantado uma bomba na calçada e, enquanto seguia para o Iron Mask, tudo o que ouvia em sua cabeça era a voz de iAm.
Você não pode continuar a fazer isso.
A essa altura, iAm se virou, cruzou os braços sobre o peito e se recostou ao fogão. Os bíceps já eram grandes, mas com os braços cruzados daquele jeito, forçavam a borda da camiseta preta que ele vestia.
Os olhos amendoados estavam semicerrados.
– Você acha mesmo que eu estou bravo porque você não estava quando fui ao clube? Sério? E não por que você me deixou para lidar com AnsLai ou qualquer asneira do tipo...
Eeeee estavam todos a postos.
– Sabe que não posso me encontrar com o cara – Trez levantou as mãos como se quisesse dizer que não havia nada que ele pudesse fazer. – Eles tentariam me forçar a voltar com eles e, então, quais seriam as minhas opções? Brigar? Eu acabaria lutando com o filho da puta e onde eu iria parar com isso?
iAm esfregou os olhos como se estivesse com dor de cabeça.
– Neste instante, parece que eles estão tomando uma abordagem diplomática. Pelo menos comigo.
– Quando vão voltar?
– Não sei. É isso o que está me deixando nervoso.
Trez enrijeceu. A ideia de que seu irmão frio como peixe estivesse ansioso o fez sentir como se estivesse com uma faca no pescoço.
Pensando bem, ele sabia muito bem o quanto o seu povo podia ser perigoso. O s’Hisbe era conhecido como uma tribo pacífica, satisfeita em se manter ao largo das lutas contra a Sociedade Redutora e dos desagradáveis humanos. Educados, muito inteligentes e espirituais, eles eram, como um todo, um grupo agradável. Desde que você não estivesse na lista negra deles.
Trez olhou para as panelas e se perguntou qual seria a carne no molho.
– Ainda estou em débito com Rehv – ele observou. – Portanto, essa obrigação deve vir em primeiro lugar.
– Não para o s’Hisbe. AnsLai disse, e vou citar suas palavras: “Chegou a hora”.
– Não vou voltar – ele fitou os olhos do irmão. – Isso não vai acontecer.
iAm voltou para as panelas, mexendo em cada uma com a colher designada.
– Sei disso. E é por isso que estou cozinhando. Estou tentando encontrar uma saída.
Deus, como ele amava o irmão. Mesmo irritado, o cara tentava ajudar.
– Desculpe-me por ter desaparecido e ter feito você cuidar disso. Sinto muito mesmo. Não foi justo... Eu só... bem, não achei seguro estar no mesmo cômodo que aquele cara. Sinto muito.
O peito largo de iAm subiu e desceu.
– Sei que sente.
– Eu poderia simplesmente desaparecer e o problema estaria resolvido.
Ainda que deixar iAm para trás o matasse. A questão era que, caso ele fugisse do s’Hisbe, ele jamais teria contato com o macho novamente. Nunca mais.
– Para onde você iria? – iAm observou.
– Não faço ideia.
A boa notícia é que o s’Hisbe não gostava de ter nenhum contato com os Desconhecidos. Sem dúvida, só aparecer no apartamento dele e de iAm fora traumático, mesmo se o sumo sacerdote tivesse se desmaterializado até a varanda. Lidar diretamente com humanos? Estar ao lado deles? A cabeça de AnsLai explodiria.
– Então, qual era o seu assunto? – perguntou iAm.
Maravilha. Mais um assunto igualmente feliz.
– Fui ver aquele armazém – ele desviou. Mas, cacete, até parece que ele tocaria no assunto da garota com o namorado espontaneamente.
– A uma da manhã?
– Fiz uma oferta.
– De quanto?
– Um milhão e quatrocentos. O preço pedido era de dois milhões e meio, mas não vão conseguir esse montante de jeito nenhum. O lugar está vazio há anos e demonstra isso – embora, ao dizer isso em voz alta, ele teve que admitir que sentira presenças lá. Pensando bem, talvez fosse apenas o seu estresse o responsável por isso. – Meu palpite é que vão dar uma contraoferta de dois milhões, eu subo para um e seiscentos e acabamos acordando em um e setecentos.
– Tem certeza de que quer iniciar esse projeto agora? A menos que apareça no território com o seu mastro matrimonial pronto para ser usado, esta questão com o s’Hisbe só vai piorar.
– Se as coisas chegarem a esse ponto, eu cuido disso na hora certa.
– Quando – iAm o corrigiu. – A questão é “quando”. E sei o que aconteceu no estacionamento, Trez. Com aquele cara e a mulher.
Claaaaro que sim.
– Viu as fitas ou algo assim?
Maldita câmera de segurança.
– Sim.
– Eu cuidei daquilo.
– Assim como está cuidando do s’Hisbe. Perfeito.
Com o humor afetado, Trez se inclinou.
– Quer calçar os meus sapatos, irmãozinho? Eu bem que gostaria de saber como você lidaria com essa merda toda.
– Eu não estaria fodendo putas, isso eu garanto. O que me faz pensar... o nosso corretor é uma fêmea, não?
– Foda-se, iAm. De verdade.
Trez se levantou do banquinho e marchou para fora da cozinha. Ele já tinha problemas suficientes, pelo amor de Deus, não precisava do senhor Superior com habilidades de Julia Child palpitando sobre o assunto com doze tipos de panelas...
– Você não pode continuar postergando esse assunto – iAm chamou de lá de trás. – Ou tentando enterrá-lo entre as pernas das mulheres.
Trez parou, mas manteve o olhar fixo na saída.
– Simplesmente não pode – o irmão afirmou com franqueza.
Trez girou. iAm estava perto do bar, a porta em vaivém mexendo atrás dele formando um efeito de estroboscópio de luz, escuro, luz, escuro. Toda vez que a luz surgia, parecia que seu irmão tinha um halo ao redor de todo o corpo.
Trez praguejou.
– Só preciso que me deixem em paz.
– Eu sei – iAm esfregou a cabeça. – E, honestamente, não sei que porra fazer a respeito. Não consigo me imaginar vivendo sem você, e também não quero voltar para lá. Só que também não encontrei alternativas.
– Aquelas mulheres... sabe, as que eu... – Trez hesitou. – Não acha que elas me excitam?
– Se elas não fazem isso – iAm disse secamente –, não sei porque perde tempo com elas.
Trez teve que dar um sorriso.
– Não, estou falando do s’Hisbe. Estou bem longe de ser virgem a esta altura – pelo menos ele ainda não se rebaixara a animais de fazenda. – E o que é pior? Todas eram Desconhecidos, a maioria humanas. Isso deve enojá-los. Estamos falando da filha da rainha!
Enquanto iAm franzia o cenho como se estivesse considerando a ideia, Trez sentiu uma centelha de esperança.
– Não sei, não – veio a resposta. – Talvez isso funcione, mas ainda assim você negou a Sua Alteza o que ela quer e precisa. Se eles o considerarem desonrado, podem muito bem decidir matá-lo como castigo.
Que seja. Eles teriam que encontrá-lo primeiro.
Numa onda de agressão, Trez abaixou o queixo e olhou fixo por debaixo das sobrancelhas.
– Se esse for o caso, eles vão ter que lutar comigo. E eu garanto que isso não vai acabar bem para eles.
Na mansão da Irmandade, Wrath entendeu que sua rainha estava aborrecida no instante em que ela passou pelas portas do escritório. Seu cheiro atraente estava maculado por uma pontada de acidez: ansiedade.
– O que foi, leelan? – ele quis saber, estendendo os braços.
Mesmo não enxergando, suas lembranças lhe davam uma imagem mental dela cruzando o tapete Aubusson, com o corpo longo e atlético se movendo com graciosidade, os cabelos escuros soltos sobre os ombros, o lindo rosto marcado por tensão.
Naturalmente, o macho vinculado dentro dele desejou perseguir e matar o que quer que a tivesse perturbado.
– Olá, George – disse ela ao cão. Pelo barulho de batidas ritmadas no chão, ele supôs que o cachorro tivesse recebido uma dose de amor antes.
E então foi a vez do dono.
Beth subiu no colo de Wrath, o peso próximo de nada, o corpo quente e vivo enquanto ele passava os braços ao seu redor e a beijava nas laterais do pescoço e depois na boca.
– Jesus – grunhiu ele, sentindo a rigidez no corpo dela –, você está aborrecida mesmo. Que merda está acontecendo?
Deus do céu, ela estava tremendo. Sua rainha estava, de fato, tremendo.
– Fale comigo, leelan – insistiu, esfregando-lhe as costas. E se preparando para se armar e sair em plena luz do sol se preciso fosse.
– Bem, você sabe sobre Layla – disse ela com voz rouca.
Ahhhh.
– Sim, sei. Phury me contou.
Enquanto a cabeça dela se posicionava em seu ombro, ele a ajeitou, aninhando-a em seu peito – e isso era bom. Havia vezes – não muitas, mas ocasionais – em que ele se sentia menos macho por conta de sua falta de visão: no passado, um lutador, agora, preso atrás daquela mesa. Um dia livre para ir aonde bem quisesse, agora, dependendo de um navegador canino. Certa vez absolutamente autossuficiente, agora, precisando de ajuda.
Não muito bom para os colhões de um macho.
Mas em momentos como aquele, quando aquela fêmea maravilhosa estava incomodada e o procurava, e somente a ele, para conforto e segurança, ele se sentia mais forte que uma maldita montanha. Afinal, machos vinculados protegiam suas fêmeas com tudo o que tinham, e mesmo com o fardo do seu direito de nascimento e aquele trono em que era obrigado a se sentar, ele, em seu cerne, permanecia o hellren daquela fêmea.
Ela era a sua primeira prioridade, acima inclusive daquela coisa toda de reinado. A sua Beth era o seu coração atrás das costelas, o tutano dentro de seus ossos, a alma em seu corpo físico.
– É tudo tão triste – disse ela. – Tão triste.
– Você foi vê-la?
– Acabei de ir. Ela está descansando. Quero dizer... de certa forma, custo a acreditar que não haja nada a ser feito.
– Falou com a doutora Jane?
– Assim que eles voltaram da clínica.
Enquanto a sua shellan chorava um pouco, o cheiro das lágrimas frescas de sua amada era como uma adaga em seu peito, e ele não estava surpreso com a reação dela. Ouvira dizer que as fêmeas lidavam muito mal com a perda da gravidez de outra fêmea – e como não ser assim? Ele, por certo, conseguia se colocar no lugar de Qhuinn.
E, ah, Deus... a ideia de Beth sofrer daquele modo? Ou pior, de conseguir levar adiante a gestação e depois...
Ótimo. Agora era ele quem tremia.
Wrath abaixou o rosto para os cabelos de Beth, inspirando, acalmando-se. A boa notícia era que eles jamais teriam um filho, portanto, ele não tinha com que se preocupar.
– Eu sinto muito – sussurrou.
– Eu também. Odeio o que eles estão passando.
Bem, na verdade, ele estava se desculpando por outra coisa completamente diferente.
Não que ele quisesse que uma merda daquelas acontecesse com Qhuinn, Layla e o filho deles. Mas talvez se Beth enxergasse a triste realidade, ela se lembraria de todos os riscos que se apresentavam a eles em todas as etapas de uma gestação.
Porra. Aquilo soava horrível. Era horrível. Pelo amor de Deus, ele não queria mesmo nada daquilo para Qhuinn, e tampouco queria ver sua shellan triste. Infelizmente, porém, a triste realidade era que ele não tinha absolutamente interesse algum em plantar sua semente nela daquele jeito – jamais.
E esse tipo de desespero fazia com que um cara pensasse em coisas imperdoáveis.
Numa onda de paranoia, ele calculou mentalmente os anos desde a transição dela – um pouco mais do que dois. Pelo que sabia, as fêmeas vampiras, em média, passavam pelo primeiro cio uns cinco anos após a transformação, e a cada dez anos depois disso. Portanto, eles tinham um bom tempo antes de terem de se preocupar com tudo isso...
Pensando bem, como mestiça, não havia garantias no caso de Beth. Quando os humanos e os vampiros se misturavam, qualquer coisa podia acontecer... E ele tinha motivos para se preocupar. Afinal, ela já mencionara filhos uma ou duas vezes.
Mas, obviamente, aquilo só podia ser hipoteticamente.
– E então, você vai postergar a iniciação de Qhuinn? – ela perguntou.
– Sim. Saxton já atualizou a lei, mas Layla estando assim? Não é o momento de trazê-lo para a Irmandade.
– Foi o que pensei.
Os dois se calaram, e enquanto Wrath guardava aquele momento em seu coração, não conseguiu imaginar sua vida sem ela.
– Sabe de uma coisa? – perguntou.
– O quê? – havia um sorriso na voz dela, do tipo que dizia a ele que ela sabia para onde a conversa estava indo.
– Eu amo você mais do que tudo.
Sua rainha deu uma leve risada, e o afagou no rosto.
– Eu jamais teria imaginado isso.
Inferno, até ele captava a onda de seu odor de vinculação.
Em resposta, Wrath segurou o rosto dela entre as palmas e se inclinou, encontrando seus lábios e depositando um beijo suave, que não permaneceu assim. Caramba, era sempre assim com ela. Qualquer contato e, antes que se desse conta, já estava rígido e pronto.
Deus, não sabia como os homens humanos lidavam com isso. Pelo que entendia, eles tinham de adivinhar se seus pares estavam férteis toda vez que faziam sexo – evidentemente, eles não tinham como captar a alteração nos odores de suas fêmeas.
Ele enlouqueceria. Pelo menos quando uma vampira estava no cio, todos sabiam.
Beth mudou de posição em seu colo, apertando a sua ereção e fazendo-o gemer. E, normalmente, essa era a dica para George ser levado para o outro lado das portas duplas, banido temporariamente. Mas não naquela noite. Por mais que Wrath a desejasse, a tristeza presente na casa aplacava até mesmo a sua libido.
E também havia a questão do cio de Autumn. E de Layla.
Ele não iria mentir; aquela merda o estava deixando ansioso. Sabia-se que hormônios no ar tinham um efeito ricochete numa casa cheia de fêmeas, influenciando umas às outras ao cio, desde que seu período estivesse próximo.
Wrath afagou os cabelos de Beth e voltou a acomodar a cabeça dela em seu ombro.
– Você não quer...
Enquanto ela deixava a frase inacabada, ele pegou a sua mão e a levantou, sentindo o peso do anel de rubi que a rainha da raça sempre usava.
– Só quero abraçar você – disse ele. – Isso basta para mim agora.
Aninhando-se, ela se encaixou ainda mais perto dele.
– Bem, isto também é gostoso.
Sim. Era.
E curiosamente aterrador.
– Wrath?
– Sim?
– Você está bem?
Demorou um pouco para ele confiar na voz e responder:
– Sim, estou bem. Tudo bem.
Ao alisar o braço dela, para cima e para baixo, ele rezou para que ela acreditasse... e jurou que o que acontecia no quarto no fim do corredor nunca, jamais, aconteceria com eles.
Não. Os dois não teriam de lidar com aquele tipo de crise.
Graças à Virgem Escriba.
CAPÍTULO 42
Claro que Layla não estava dormindo.
Quando pediu a Qhuinn que saísse, ela falou sério quanto a não querer sustentar uma fachada de força diante dele. Mas o mais engraçado era que mesmo sem ninguém por perto, ela não ficou histérica. Não chorou. Não praguejou.
Apenas ficou deitada de lado com os braços e as pernas enroscados, a mente recuada para dentro do corpo e monitorando constantemente cada dor e cólica numa compulsão que a enlouquecia. No entanto, não havia como mudar aquilo. Era como se uma parte dela estivesse convencida de que se ao menos ela soubesse em que estágio estava, ela poderia, de algum modo, monitorar o processo.
O que, na verdade, era uma tremenda tolice. Como Qhuinn bem diria.
A imagem dele na clínica, com a adaga no pescoço do médico, era algo saído de um dos livros da biblioteca do Santuário – um episódio dramático que era parte da vida de outra pessoa.
Sua posição na cama, porém, fazia com que ela lembrasse que o caso não era bem esse...
A batida à porta foi suave, sugerindo se tratar de uma fêmea.
Layla fechou os olhos. Por mais que apreciasse qualquer tipo de gentileza que aguardava uma resposta, ela preferiria que quem quer que estivesse no corredor, continuasse lá. A breve visita da rainha fora uma provação, mesmo ela tendo apreciado.
– Sim – quando sua voz mal soou em seus ouvidos, ela pigarreou e repetiu: – Sim?
A porta abriu e, a princípio, ela não reconheceu quem era na sombra que preenchia o espaço entre os batentes da porta. Alta. Forte. Porém, não um macho...
– Payne? – perguntou.
– Posso entrar?
– Sim, claro.
Enquanto Layla tentava se sentar, a fêmea guerreira gesticulou para que ela continuasse deitada, e depois fechou a porta.
– Não, não... por favor, fique à vontade.
Um abajur fora deixado aceso sobre a cômoda e, na luz suave, a irmã de sangue de Vishous da Irmandade da Adaga Negra parecia temerária, com os olhos de diamante parecendo reluzir para fora dos ângulos fortes do rosto dela.
– Como você está? – a fêmea perguntou com suavidade.
– Estou bem, obrigada. E você?
A lutadora deu um passo à frente.
– Eu sinto muito quanto... à sua condição.
Ah, como Layla desejava que aquilo fosse algo que Phury e os outros não tivessem partilhado com ninguém. Em retrospecto, a saída da casa fora um tanto dramática, o tipo de evento que causaria perguntas preocupadas. Ainda assim, sua privacidade preferia evitar esse tipo de invasão indesejável, ainda que misericordiosa.
– Agradeço as suas palavras gentis – sussurrou.
– Posso me sentar?
– Sim, claro.
Ela imaginou que a fêmea fosse se sentar numa das cadeiras dispostas mais ao longe. Não foi o que Payne fez. Ela se aproximou da cama e abaixou o peso ao lado de Layla.
Compelida a, pelo menos, parecer uma boa anfitriã, Layla tentou se suspender, fazendo uma careta quando uma nova onda de cólicas a imobilizou no meio do caminho.
Enquanto Payne praguejava baixinho, Layla teve que voltar a se deitar. Com voz rouca, disse:
– Perdoe-me, mas não posso receber visitas agora, por mais que me queira bem. Obrigada por expressar a sua empatia...
– Você sabe quem é a minha mãe – Payne a interrompeu.
Layla balançou a cabeça ao encontro do travesseiro.
– Por favor, saia...
– Sabe? – a fêmea perguntou com rispidez.
Abruptamente, Layla quis chorar. Simplesmente não tinha forças para qualquer tipo de conversa, ainda mais a respeito de mahmens. Não enquanto perdia o filho.
– Por favor.
– Sou filha da Virgem Escriba.
Layla franziu o cenho, as palavras sendo compreendidas mesmo em meio à dor, tanto física quanto mental.
– O que disse?
Payne inspirou profundamente, como se a revelação não fosse algo com que se alegrasse, mas como se fosse um tipo de maldição.
– Sou da carne da Virgem Escriba, nascida há muito tempo, e ocultada dos registros das Escolhidas e dos olhos de outrem.
Layla piscou em estado de choque. A aparição da fêmea fora um tipo de mistério, mas ela certamente não fizera nenhuma pergunta, pois isso não cabia a ela. A única coisa que sabia com convicção é que jamais houve registro algum da mãe sagrada da raça um dia ter dado à luz uma criança.
Na verdade, a estrutura completa do sistema de crença era prevista no fato de isso não ter ocorrido.
– Como isso é possível? – arfou Layla.
Os olhos brilhantes de Payne estavam sérios.
– Não era o que eu desejaria. E não é algo de que fale a respeito.
No momento tenso que se seguiu, Layla considerou impossível não ver a verdade naquilo que a fêmea falava. Tampouco a raiva, cuja causa ela apenas podia supor.
– Você é sagrada – disse Layla maravilhada.
– Nem um pouco, eu lhe garanto. Mas minha linhagem me concedeu um tipo de... como posso explicar? Habilidade.
Layla se enrijeceu.
– Que seria...?
Os olhos de diamante de Payne não se desviaram.
– Quero ajudá-la.
As mãos de Layla foram para o baixo ventre.
– Se quer abreviar isto... não.
Ela tinha seu filho por um tempo curto demais. Não importava a dor que tivesse que passar, ela não sacrificaria um minuto sequer daquilo que, sem dúvida, seria sua única gestação.
Ela jamais se colocaria à mercê de outro sofrimento assim. No futuro, quando seu cio chegasse, ela seria sedada e pronto.
Aquele tipo de perda uma vez na vida já era demais.
– E se acredita que pode deter isto – Layla continuou –, isso não é possível. Não há nada que ninguém possa fazer.
– Não estou tão certa disso – o olhar de Payne era enlevado. – Eu gostaria de ver se posso salvar esta gestação. Se me permitir.
No campus abandonado da Escola para Moças Brownswick, o Sr. C. se acomodou no que um dia fora o escritório da diretora.
Era o que estava escrito na placa rachada do lado de fora da sala.
Como não havia calefação, a temperatura ambiente não estava muito maior do que a do lado de fora, mas graças ao sangue de Ômega, o frio não era um problema. Ainda bem: do outro lado do gramado crescido coberto de neve, no dormitório principal sobre uma colina, quase cinquenta redutores dormiam o sono dos mortos.
Se aqueles malditos necessitassem de aquecimento ou de comida, ele estaria sem sorte alguma.
Mas não, tudo o que ele tinha de fazer era providenciar um abrigo. A iniciação cuidaria do resto – e o fato de que precisavam desligar a consciência a cada 24 horas era um alívio.
Ele precisava de tempo para pensar.
Jesus Cristo, que confusão.
Compelido pela necessidade de se mexer, ele empurrou a cadeira para trás e se lembrou de que estava se sentando sobre um balde de argamassa virado ao contrário.
– Maldição.
Olhando ao redor da sala decrépita, ele mediu as placas de gesso penduradas das vigas do teto, as janelas cobertas por tábuas de madeira, e o buraco em uma das tábuas do piso no canto. O lugar era igual à conta bancária que ele encontrara.
Nenhum dinheiro em lugar algum. Munição zero. Armas que podiam ser usadas em combate à força, e só.
Depois de sua promoção, ele se viu cheio de energia, de planos. Agora encontrava-se diante de nenhum dinheiro, nenhum recurso, nada.
Ômega, por outro lado, esperava todo tipo de resultado. Como deixara bem claro no “encontro” deles na noite anterior.
E também havia outro problema. Ele odiava aquela merda.
Pelo menos ele podia fazer algo a respeito de todo o resto.
Esticando os braços acima da cabeça e estalando os ombros, agradeceu a Deus por duas coisas: uma, os celulares não tinham sido desligados, por isso ele podia se comunicar com seus homens no campo de batalha. E dois, todos aqueles anos na rua lhe deram os punhos de ferro no que se referia a controlar o bando de idiotas do tráfico de drogas.
Tinha de arranjar dinheiro. Logo.
Ele teve uma porra de um plano para isso também, mandando os últimos nove mil dólares com aqueles três garotos no meio da noite. Tudo o que os malditos tinham de fazer era pagar, pegar a droga e trazer para ali, onde dividiriam a merda, depois distribuiriam entre os novos recrutas para que eles vendessem nas ruas.
O problema era que ele ainda estava esperando pela porra da entrega.
E estava ficando puto de tanto esperar para descobrir se as drogas e o dinheiro tinham sumido.
Era bem possível que aqueles merdinhas tivessem fugido com um ou com o outro, mas, nesse caso, ele os caçaria como cachorros para mostrar aos outros o que acontecia quando você...
Quando seu celular tocou, ele o pegou, viu quem era e apertou o botão de chamada.
– Já era hora. Onde diabos você está e cadê minha mercadoria?
Houve uma pausa. Depois, a voz que se ouviu pela conexão não era nada parecida com a do traficante cheio de espinhas para quem ele entregara o celular e a última pistola da Sociedade que funcionava.
– Tenho uma coisa que você quer.
O Sr. C. franziu a testa. Voz grave. Envolta numa impaciência que ele reconhecia das ruas, e um sotaque que ele não sabia de onde vinha.
– Não é essa merda com a qual você está falando comigo – disse o Sr. C. com fala arrastada. – Tenho um monte desses.
Afinal de contas, quando você não tem nada na mão, no coldre ou na carteira, blefar era a sua única opção.
– Ora, que bom para você. Também tem muito do que me mandou? Dinheiro? Soldados?
– Quem diabos está falando?
– Sou seu inimigo.
– Se você ficou com a porra da minha grana, pode apostar que sim.
– Na verdade, essa é uma resposta bem simplista para um problema um tanto complexo.
O Sr. C. se pôs de pé, derrubando o balde.
– Onde está a porra do meu dinheiro e o que fez com os meus homens?
– Lamento, mas eles não podem mais atender ao telefone. É por isso que estou ligando.
– Você não faz ideia com quem está lidando – o Sr. C. ameaçou.
– Pelo contrário, é você quem está em desvantagem, bem como tantos outros – quando o Sr. C. estava pronto para rebater, o cara o interrompeu. – Eis o que vamos fazer. Vou telefonar à noite para lhe dar uma localização. Você, e apenas você, vai me encontrar lá. Se alguém o acompanhar, eu saberei, e você nunca mais vai saber de mim.
O Sr. C. estava acostumado a sentir desdém pelos outros, isso era parte do trabalho uma vez que você só lida com ladrões de merda e malditos viciados. Mas esse cara do outro lado da conexão? Controlado. Calmo.
Um profissional.
O Sr. C. controlou seu humor.
– Não preciso de nenhum joguinho...
– Sim, precisa. Porque se você quiser drogas para vender, terá que vir a mim.
O Sr. C. ficou calado. Ou aquele era um lunático cheio de ilusões de grandeza ou... era alguém com poder de verdade. Talvez o tipo que matou os intermediários do cartel de drogas em Caldwell um ano antes.
– Quando e onde? – disse de má vontade.
Houve uma risada sombria.
– Atenda o seu telefone ao cair da noite e você descobrirá.
CAPÍTULO 43
Layla não conseguiu falar enquanto tentava compreender as palavras de Payne.
– Não – disse à outra fêmea. – Não, Havers me disse que... não havia nada que pudesse ser feito.
– Na medicina, isso pode ser verdade. Eu posso ter outro modo, porém. Não sei se funcionará, mas, se permitir, eu gostaria de ver o que posso fazer.
Por um instante, Layla só conseguiu respirar.
– Eu não... – pôs a mão no abdômen liso. – O que fará comigo?
– Não sei bem, para ser sincera – Payne deu de ombros. – Na verdade, nem me passou pela cabeça que eu poderia ajudar nesta situação. Mas sou conhecida por curar aquilo que precisa ser curado. Repito, não sei se isso se aplica neste caso. Contudo, podemos tentar... e isso não a machucará. Isso eu posso prometer.
Layla perscrutou a expressão da lutadora.
– Por que... faria uma coisa dessas por mim?
Payne franziu o cenho e desviou o olhar.
– Você não precisa saber os motivos.
– Sim, preciso.
O perfil dela se tornou absolutamente frio.
– Você e eu somos irmãs da tirania de minha mãe, casualidades de seu plano maior de como as coisas devem ser. Estivemos as duas enjauladas em seus modos diversos, você como uma Escolhida; eu, como sua filha de sangue. Não há nada que eu não faça para ajudá-la.
Layla se recostou. Jamais se considerara uma desventura da mãe da raça. A não ser... ao pensar em seu desespero em ter uma família, seu senso de não ter raízes, sua absoluta falta de identidade além do trabalho de uma Escolhida... ela teve o que pensar. O livre-arbítrio a levava àquela situação horrenda, mas, pelo menos, ela escolhera a rota e os meios. Como membro da classe especial da Virgem Escriba, não tivera muitas escolhas, a respeito de nada em sua vida.
A respeito de nada mesmo.
Ela estava perdendo aquela gravidez, aquilo era óbvio. E se Payne achava que existia uma chance de...
– Faça o que precisar fazer – disse com voz rouca. – E obrigada, não importando o resultado.
Payne assentiu uma vez. Depois esticou as mãos, flexionando e afastando os dedos.
– Posso tocar no seu abdômen?
Layla abaixou as cobertas.
– Devo tirar a camisa?
– Não.
Melhor assim. A simples retirada da colcha lhe provocara uma nova onda de dor, a mínima mudança de peso era causa de...
– Você está sofrendo muito – murmurou a outra fêmea.
Layla não respondeu ao expor a pele do abdômen. Obviamente, sua expressão já dizia o bastante.
– Apenas relaxe. Isso não deverá lhe causar nenhum desconforto...
Quando o contato foi feito, Layla levantou a cabeça. As mãos da lutadora estavam quentes como a água de uma banheira. E igualmente calmas. Estranhamente calmas, para falar a verdade.
– Isto dói? – Payne perguntou.
– Não. Parece... – quando uma nova onda de dor se avolumava, ela agarrou os lençóis, se preparando...
Só que o pico da dor não se elevou como antes, como se a sensação fosse uma montanha íngreme, cujo topo fora arrancado.
Era o primeiro alívio que sentia desde que tudo aquilo começara.
Com um gemido de submissão, ela deixou a cabeça pender, o travesseiro amparando o repentino cansaço que a abateu pelo tanto de desconforto pelo qual seu corpo passara.
– E agora nós começamos.
De repente, a luz do abajur tremulou... e depois se apagou.
Sua iluminação, contudo, logo foi substituída.
Das mãos pálidas de Payne um brilho suave começou a ser lançado. O calor de seu toque se intensificou, o abrandamento estranho e maravilhoso parecia penetrar em sua pele, nos músculos, em cada osso que estava no caminho... indo direto para o ventre de Layla.
E, então, houve um tipo de explosão.
Com um sibilo, ela se entregou à grande onda de energia que abruptamente surgiu dentro dela, um calor que não queimava, mas fervia afastando a dor, suspendendo a agonia e arrancando-a de sua carne, como se o vapor de uma panela se dissipasse.
Mas não acabou ali. Uma grande sensação de euforia em seu corpo inteiro, com cachos dourados pulsando para fora de sua região pélvica e fluindo pelo torso até a mente e também em sua alma, e pernas e braços formigando.
Ah, que alívio pungente.
Ah, que poder incrível.
Ah, graça salvadora gentil.
A cura, contudo, não estava completa.
No meio do turbilhão, Layla sentiu... o que era aquilo? Um movimento em seu útero. Uma contração, talvez? Mas não uma cólica, não, nada disso. Mais como se o que estivesse defasado tivesse recuperado as forças.
Ela, gradualmente, deu-se conta de que batia os dentes.
Olhando para baixo, para seu corpo, ela viu que tudo tremia, e não só isso.
Sua forma física estava brilhando. Cada centímetro de sua pele era como uma cúpula de um abajur, revelando a luz que jazia por baixo, as roupas agindo como barreiras frágeis daquilo que fervia lentamente dentro dela.
Na iluminação, o rosto de Payne estava contraído, como se fosse um custo alto transferir a cura maravilhosa para outra pessoa. E Layla teria se distanciado, colocado um fim naquilo, se pudesse – porque a outra fêmea começava a parecer muito cansada. No entanto, não havia como romper a ligação. Ela não tinha o controle dos seus membros, não tinha como falar.
Aquela comunhão vital entre as duas pareceu durar uma eternidade.
Quando Payne finalmente se afastou, rompendo o elo, ela caiu da cama, formando uma pilha no chão.
Layla abriu a boca para gritar. Tentou segurar sua salvadora. Lutou contra o peso morto do corpo ainda iluminado.
Todavia, não havia nada que ela pudesse fazer.
A última coisa que ficou registrada antes que perdesse a consciência era a sua preocupação com a outra fêmea. E, depois, tudo ficou escuro.
CAPÍTULO 44
Qhuinn despertou com o pênis duro.
Estava deitado de costas e seus quadris se mexiam por conta própria, o movimento contínuo resvalava a ereção contra o peso dos lençóis e da colcha. Por um instante, enquanto se demorava naquele estado meio dormente antes de a consciência chegar, ele imaginou que era Blay criando aquela fricção, as palmas do macho subindo e descendo... num preâmbulo de mais ação oral.
Foi quando abaixou a mão para enterrar os dedos nos cabelos ruivos que percebeu estar sozinho: a mão encontrou apenas os lençóis.
Numa atitude otimista, lançou o braço para o lado, tateando o lugar ao seu lado, pronto para encontrar o corpo quente do macho.
Apenas mais lençóis. E estavam frios.
– Cacete – inspirou.
Abrindo os olhos, a realidade de onde estava o atingiu com força, murchando a sua ereção. Apesar dos encontros, aqueles dois interlúdios maravilhosos e extremamente sensuais, Blay estava, naquele exato instante, acordando ao lado de Saxton.
Provavelmente fazendo sexo com o cara.
Ah, Deus, ele ia vomitar.
A ideia de Blay tocando em outro, cavalgando em outro, lambendo e afagando outro – seu maldito primo, para ser bem claro – era quase tão insuportável quanto a maldita situação de Layla. A verdade era que, graças ao que acontecera, qualquer atração que Qhuinn sentisse pelo cara aumentara em vez de diminuir.
Maravilha. Outra rodada de boas notícias.
Foi sem nenhum entusiasmo que Qhuinn se arrastou para fora da cama e entrou no banheiro. Não acendeu a luz, não tinha interesse algum em ver que sua aparência era a mesma da merda de um cachorro, mas barbear-se só pelo toque não era a melhor das ideias.
Ao apertar o interruptor, piscou com força, e uma dor de cabeça começou a latejar atrás de ambos os olhos. Sem dúvida precisava comer de novo, mas que merda, as exigências constantes de seu corpo estavam acabando com ele.
Abrindo a torneira, ele pegou o gel de barbear e colocou um punhado na palma. Esfregou as mãos para criar espuma e pensou em seu primo. Ele tinha a impressão, embora não soubesse com certeza, de que Saxton usaria um daqueles pincéis antigos para espalhar a espuma no rosto. E nada de lâminas Gilette para ele. Muito provavelmente ele tinha um daqueles instrumentos de barbeiro com cabo em madrepérola.
O pai de Qhuinn tinha um desses. E seu irmão recebera um com suas iniciais após sua transição.
Junto ao anel de sinete.
Bem, ótimo para eles. Além do que, já que ambos estavam mortos, não era como eles continuassem se barbeando.
Quando o rosto ficou coberto de branco, como o cenário lá de fora, ele pegou sua lâmina comum Mach 3 com cabeça descartável...
Sem nem saber por que, achou que devia pegar uma lâmina nova.
Sim, uma supernova e ultracortante.
Qhuinn revirou os olhos para si mesmo. Nada como se concentrar em três pequenas lâminas e uma tira umidificadora. Algo bem lógico.
Depois de se admoestar, ele começou a vasculhar as gavetas do gabinete, puxando-as uma a uma, inventariando os itens de tolices de higiene que nunca usava, nem jamais sequer perdia tempo olhando-as.
Puxando a última, a mais próxima do chão, parou. Franziu o cenho. Agachou.
Havia uma caixinha preta de veludo ali, do tipo em que se colocam joias. Só que ele não tinha nenhuma, e muito menos da Reinhardt, aquela loja esnobe no centro. Como ninguém mais ficava em seu quarto, ele se perguntou se, talvez, aquilo estivesse ali desde que ele se mudara e ele simplesmente nunca o vira.
Tirando a caixinha, levantou a tampa e...
– Filho da mãe.
Dentro, como se valesse muita coisa, estavam todos os seus brincos de argola, bem como o piercing que costumava usar no lábio inferior.
Fritz deve tê-los juntado ao limpar o quarto uma noite e guardado na caixinha. Única explicação possível, porque Qhuinn não se importara com eles depois de tirá-los, um a um. Simplesmente os jogara no fundo de uma das gavetas do banheiro.
Qhuinn mexeu nas argolas de aço, relembrando quando as comprara e colocara. Seu pai ficara mortificado; a mãe também – ao ponto de se retirar da Última Refeição e ficar trancada no quarto por 24 horas seguidas depois de ele entrar flanando na sala de jantar usando-as.
O colocador de piercings lhe dissera para não usá-los até que as tachas utilizadas para perfurar tivessem a chance de cicatrizar. Mas esse conselho era para humanos. Em poucas horas, estava tudo perfeito e ele fizera a troca.
No banheiro de Blay, para falar a verdade.
Qhuinn franziu a testa, lembrando-se do momento em que pisara no quarto do cara. Blay estava na cama, acalentando uma Corona, assistindo TV. A cabeça dele se virou, com sua expressão franca e relaxada... até dar uma olhada em Qhuinn.
Seu rosto se contraiu mesmo que minimamente. De um jeito que, a menos que você conhecesse bem, muito bem uma pessoa, jamais teria percebido. Mas Qhuinn notara.
Naquela época, deduzira que seu estilo obviamente gótico fosse um tantinho demais para o senhor Conservador. Mas agora, em retrospecto, ele se lembrou de algo mais. Blay voltara a se concentrar na TV de plasma... e, casualmente, cobrira o colo com uma almofada.
Ele deve ter ficado excitado.
Enquanto Qhuinn repassava a cena inteira na mente, seu próprio sexo voltava a engrossar.
Só que aquilo era uma completa perda de tempo, não era?
Fitando as malditas argolas, pensou em sua rebeldia, na raiva e na ideia sem noção do que precisava ter para ser feliz.
Uma fêmea. Se encontrasse uma que o aceitasse.
Que... mentira... fora aquilo.
Engraçado, a covardia aparecia em muitas formas, não é? Não era necessário se encolher num canto, tremendo e choramingando como um gatinho. Inferno, não. Você pode ser um grandalhão barulhento cheio de marra e com o rosto cheio de piercings e um rosnado para mostrar para o mundo... e ainda assim não passar de um covarde filho da puta. Afinal, Saxton podia vestir ternos de três peças e gravatas e sapatos, mas o macho sabia quem era, e não tinha medo de ter aquilo que desejava.
E, olha só, Blay estava acordando ao lado do cara.
Qhuinn fechou a tampa e recolocou os piercings onde os encontrara. Depois se olhou no espelho. O que estava fazendo mesmo?, pensou ao fitar seu reflexo.
Ah, sim. Barbeando-se.
Era isso mesmo.
Cerca de vinte minutos mais tarde, Qhuinn saiu do quarto. Andou pelo corredor das estátuas, passou pelas portas fechadas do escritório de Wrath e continuou em frente.
Enquanto avançava, foi difícil olhar para a sala de estar do segundo andar, difícil permanecer controlado quando aquele sofá surgiu no seu campo de visão.
Nunca mais olharia para aquela peça de mobília do mesmo modo. Inferno, talvez todos os sofás estivessem perdidos para ele, para sempre.
À porta de Layla, ele se inclinou encostando o ouvido na madeira. Quando não ouviu nada, perguntou-se exatamente o que achava que descobriria daquele modo.
Deu uma batida suave. Quando não houve resposta, sentiu um aperto de medo irracional na garganta e, sem pensar duas vezes, abriu a porta.
A luz invadiu a escuridão.
Seu primeiro pensamento foi que ela tivesse morrido; que Havers, o filho da puta, tivesse mentido, e que o aborto tivesse saído do controle e a matado: Layla estava imóvel ao encontro dos travesseiros, a boca ligeiramente entreaberta, as mãos cruzadas sobre o peito como se ela tivesse sido arrumada por um agente funerário com respeito pelos mortos.
Só que... algo estava diferente, e ele precisou de um minuto para perceber o que era.
Não havia mais o cheiro sobrepujante do sangue. Na realidade, somente a fragrância delicada de canela marcava o ar, refrescando-o de um modo que iluminava o quarto inteiro.
Será que o aborto finalmente chegara ao fim?
– Layla? – ele a chamou, mesmo tendo dito que se a encontrasse dormindo, não a perturbaria.
Foi um alívio ver as sobrancelhas se mexendo quando seu nome foi captado pelo cérebro, mesmo sob o véu do sono.
Ele teve a sensação de que se a chamasse de novo, ela acordaria.
Parecia cruel forçar-lhe a consciência. O que ela teria para recebê-la quando acordasse? A dor que sentia? A sensação de perda?
Cacete.
Qhuinn saiu silenciosamente, fechou a porta atrás de si e continuou ali. Não sabia o que fazer. Wrath lhe dissera para ficar em casa, mesmo se John Matthew saísse – ele deduziu que aquilo fosse uma espécie de folga misericordiosa de seus deveres de ahstrux nohtrum. E estava grato por isso. Havia tão pouco que pudesse fazer por Layla – pelo menos podia ficar por perto caso ela precisasse de alguma coisa. Um refrigerante. Uma aspirina. Um ombro para chorar.
Você fez isso a ela.
A julgar pelo toque que saía da maldita sala de estar, ele deduziu que perdera a Primeira Refeição. Nove horas. Isso mesmo. Acabara dormindo demais, e isso era bom. Se ele tivesse de se sentar à mesa e passar 45 minutos na companhia de quase duas dúzias de pessoas que tentariam não encará-lo, ele teria perdido a porra da cabeça.
O som de alguém andando no vestíbulo logo abaixo fez com que ele levantasse a cabeça.
Sem nenhum plano ou pensamento específico, ele se aproximou da balaustrada e olhou para baixo.
Payne, a irmã valentona de V., estava saindo da sala de jantar.
Ele não conhecia muito bem aquela fêmea, mas a respeitava imensamente. Seria impossível não admirar, dado o modo como se portava no campo de batalha... Durona, verdadeiramente durona. Naquele instante, porém, a shellan do doutor Manello parecia ter levado uma surra de bar: caminhava lentamente, os pés se arrastando pelo piso de mosaico, o corpo encurvado, a pegada no braço de seu par parecendo ser a única coisa que a sustentava.
Será que ela se machucara em alguma luta corpo a corpo?
Não havia cheiro de sangue.
O doutor Manello disse algo para ela que ele não conseguiu ouvir, mas depois o cara indicou a direção da sala de bilhar com a cabeça – como se ele estivesse perguntando se ela queria ir para lá.
Tomaram aquela direção a passos de caramujo.
Já que não gostava quando as pessoas o encaravam, Qhuinn recuou da grade e esperou até que o caminho estivesse livre. Depois correu escada abaixo.
Comida. Exercícios. Voltar a ver Layla.
Aquela seria a sua noite.
Seguindo para a cozinha, ele se viu imaginando onde Blay estaria. O que estaria fazendo. Se tinha saído para lutar ou se tinha ficado em casa e...
Visto que não sabia onde Saxton estava, ele pôs um ponto final naquela linha de questionamentos.
Se Qhuinn não tivesse de fazer seu turno e pudesse passar um tempo com o cara, ele sabia muito bem o que Blay estaria fazendo.
E Saxton, seu primo filho da puta, não era nenhum tolo.
CONTINUA
CAPÍTULO 37
Enquanto Blay girava o anel de sinete da família no dedo, seu cigarro aceso queimava lentamente na outra mão, e seu traseiro ficava adormecido... e ninguém passava pelas portas do átrio.
Sentado no degrau de baixo da grande escadaria da mansão, ele não respeitaria a promessa feita à mãe de ir para casa. Não naquela noite, pelo menos. Depois da loucura da noite anterior, do pouso forçado do avião e do drama subsequente, Wrath ordenara que a Irmandade e os lutadores tirassem 24 horas de folga. Por isso, tecnicamente, ele deveria ligar para os pais e dizer à mãe que caprichasse na mussarela e no molho à bolonhesa.
Mas de jeito nenhum ele sairia daquela casa. Não depois de ouvir os gritos vindos do quarto de Layla, e de vê-la praticamente sendo carregada escadaria abaixo.
Naturalmente, Qhuinn esteve ao lado dela.
John Matthew não.
Portanto, o quer que estivesse acontecendo, pelo visto superava o ahstrux nohtrum, e isso significava que... ela só podia estar perdendo o filho. Somente algo sério assim possibilitaria um passe livre.
Enquanto ele continuava parado como uma porta, sem nada além da sua preocupação para lhe fazer companhia, naturalmente sua mente resolveu seguir o caminho errado: merda, fora mesmo para a cama com Qhuinn na noite passada?
Dando uma tragada em seu Dunhill, ele expeliu uma imprecação.
Acontecera mesmo?
Deus, essa pergunta vinha martelando a sua cabeça desde o minuto em que despertou de um sonho sensual, com uma ereção que parecia fazer pensar que o outro macho dormia ao seu lado.
Revendo as cenas pela centésima vez, só no que ele conseguia pensar era... como um plano podia fracassar. Depois de ter rejeitado Qhuinn quando ele se pôs de joelhos, voltara para o próprio quarto e andara de um lado para o outro, um debate que não interessava ter consigo mesmo transformando seu cérebro em fois gras.
Ele tomara a decisão correta ao sair. Mesmo. Tinha sim.
O problema foi que a decisão não se sustentou. Enquanto as horas do dia passavam, tudo o que ele conseguia pensar foi a vez em que o pai o flagrou roubando uma caixa de cigarros do doggen da família. Na época, ele era um jovem pré-trans e, como castigo, seu pai o obrigou a se sentar do lado de fora e fumar cada um daqueles Camels sem filtro. Ele se sentiu muito mal e demorou mais de dois anos para sequer tolerar fumo passivo.
Portanto, esse fora o seu segundo plano.
Fazia tempo demais que era louco por Qhuinn, mas tudo não passava de algo hipotético, dividido em fantasias de modo que ele conseguisse suportar. Nada de uma vez só, nada da coisa sobrecarregada, absoluta e arrasadora – e ele sabia muito bem que na vida real, Qhuinn não se conteria nem relaxaria. O “plano” fora ter a experiência concreta, e descobrir que aquilo não passava de apenas sexo brutal. Ou, inferno, descobrir que não era nem sexo bom.
Não era de se esperar que você fumasse um maço inteiro de cigarros... só para querer mais.
Deus todo-poderoso, foi a primeira vez em que a realidade foi muito melhor do que uma fantasia, a absolutamente melhor experiência erótica de toda a sua vida.
Depois, porém, a gentileza que Qhuinn demonstrara fora insuportável.
Na verdade, enquanto Blay rememorava aquela ternura, ele deu um salto de onde estava e começou a marchar ao redor do mosaico de macieira – não tinha para onde ir.
Naquele instante a porta se abriu. Porém, não a de entrada.
A da biblioteca.
Enquanto olhava de relance por sobre o ombro, Saxton surgiu de lá. Ele parecia saído do inferno, e não só porque, por mais veloz que fosse a sua recuperação, ele ainda tinha um inchaço residual na mandíbula graças ao ataque de Qhuinn.
Que lindo, Blay pensou. Bela maneira de expressar seu desapontamento quanto ao comportamento de alguém: deixe-o transar com você depois que ele tentou estrangular seu ex.
Quaaanta classe.
– Como você está? – Blay perguntou, e não por convenção social.
Foi um alívio Saxton se aproximar. E encará-lo. E sorrir-lhe um pouco como se estivesse determinado a fazer um esforço.
– Estou exausto. E faminto. E agitado.
– Gostaria de comer comigo? – sugeriu Blay num rompante. – Também estou me sentindo assim, e a única coisa em que posso dar jeito é a fome.
Saxton assentiu com a cabeça e enfiou as mãos nos bolsos da calça.
– Ideia brilhante.
Os dois acabaram na cozinha, sentados ante a castigada mesa de carvalho, lado a lado, de frente para o resto do cômodo. Com um sorriso contente, Fritz imediatamente passou para o seu modo “provedor de alimentos” e, veja só, dez minutos mais tarde, o mordomo servia uma tigela de cozido de carne para cada um, além de uma baguete para dividirem, uma garrafa de vinho tinto e uma porção de manteiga num pratinho ao lado.
– Volto em seguida, meus senhores – disse o mordomo com uma reverência. E depois ele prosseguiu expulsando todos da cozinha, desde o doggen que descascava legumes até os que poliam a prataria e os que limpavam as janelas de uma alcova logo além dali.
Quando a porta se fechou após a saída do último criado, Saxton disse:
– Tudo o que nos falta é uma vela, aí isto seria um encontro – o macho se inclinou para a frente e começou a comer com modos impecáveis. – Bem, suponho que precisaríamos de mais algumas coisas, não?
Blay olhou de esguelha enquanto apagava o cigarro. Mesmo com as olheiras e o hematoma desvanecendo no pescoço, o advogado era muito bonito de se olhar.
Por que ele não poderia simplesmente...
– Não repita, de novo, que sente muito – Saxton limpou a boca com o guardanapo e sorriu. – Não é necessário, nem apropriado.
Assim, sentado ao lado dele, não parecia que tinham acabado de romper, nem que ele estivera com Qhuinn. Será que as últimas noites aconteceram mesmo?
Até parece... O que ocorreu com Qhuinn não teria acontecido se ele e Sax ainda estivessem juntos. Isso era bem claro para ele: uma coisa era se masturbar secretamente, e isso já era ruim o bastante. Aquilo tudo? De jeito nenhum.
Droga, apesar do fato de ele e Saxton terem rompido, ele ainda sentia que devia confessar sua transgressão... mesmo que Qhuinn estivesse certo e que Saxton já tivesse seguido em frente, por assim dizer.
Enquanto comiam em silêncio, Blay balançou a cabeça, ainda que não tivessem lhe feito nenhuma pergunta e nem estivessem conversando. Ele só não sabia o que fazer. Às vezes, as mudanças da vida surgiam com tanta rapidez, e com tamanha impetuosidade, que não havia como acompanhar a realidade. Levava tempo para as coisas se assentarem, um novo equilíbrio se reestabelecia só depois de algum tempo em que seu cérebro batia de um lado contra o outro das paredes da sua cabeça.
Ele ainda estava na fase de balançar.
– Já sentiu alguma vez como se as horas fossem medidas em anos? – perguntou Saxton.
– Ou décadas. Sim. Absolutamente – Blay olhou de novo. – Na verdade, eu também estava pensando nisso.
– Que par de mórbidos nós somos.
– Talvez devêssemos vestir preto.
– Braçadeiras? – sugeriu Saxton.
– Não, preto dos pés à cabeça.
– E o que eu faço com o meu gosto por cores? – Saxton apontou para o lenço laranja Hermès no bolso da sua lapela. – Bem, pode-se muito bem usar todo tipo de acessórios.
– Certamente isso explica a teoria por trás dos aparelhos ortodônticos.
– Flamingos de plástico rosa.
– A franquia da Hello Kitty.
Juntos, os dois explodiram numa gargalhada. Nem era assim tão engraçado, mas o humor não era a questão ali. Mas quebrar o gelo. Voltar ao que era antes. Aprender a se relacionarem de um modo diverso.
Quando convergiram para um riso mais contido, Blay passou o braço ao redor dos ombros do macho e lhe deu um abraço rápido. Foi bom que Saxton tivesse relaxado um pouco, aceitando aquilo que lhe era oferecido. Não que Blay acreditasse que por estarem sentados juntos, partilhando uma refeição e uma bela risada, tudo, de repente, seria um navegar suave. Nada disso. Era estranho pensar que Saxton estivera com outra pessoa, e ainda mais incrível saber que ele fizera o mesmo – principalmente com quem o fizera.
Não se passava de amantes de quase um ano para companheiros de risadas em um ou dois dias.
Podia-se, porém, começar a forjar um novo caminho.
E colocar um pé na frente do outro.
Sempre haveria um lugar em seu coração para Saxton. O relacionamento que tiveram foi o seu primeiro não só com um macho, mas com qualquer um. E muitas coisas boas aconteceram, coisas que ele carregaria consigo como lembranças que valiam o espaço em sua mente.
– Deu uma olhada nos jardins de trás? – Saxton perguntou ao lhe oferecer o pão.
Blay partiu um pedaço e depois espalhou manteiga por cima enquanto Saxton também pegava um pouco.
– Estão bem ruins, não?
– Lembre-me de nunca tentar cortar grama com um Cessna.
– Você não curte jardinagem.
– Bem, para o caso de um dia eu tentar – Saxton se serviu de vinho. – Aceita?
– Sim, por favor.
E foi assim que as coisas aconteceram. Durante o cozido de carne até a torta de pêssegos, que milagrosamente apareceu diante deles graças à impecabilidade de Fritz. Quando a última garfada e a última limpada com guardanapo foram dadas, Blay se reclinou contra o encosto acolchoado do banco embutido e inspirou fundo.
Que se referia a muito mais do que uma simples barriga cheia.
– Bem – disse Saxton, ao apoiar o guardanapo ao lado do prato de sobremesa –, acredito que finalmente vou poder tomar o banho de banheira que você me sugeriu há algumas noites.
Blay abriu a boca para observar que os sais de banho que o macho preferia ainda estavam em seu banheiro. Ele os vira no gabinete quando fora pegar o creme de barbear reserva ao cair da noite.
Só que... ele não sabia se devia mencionar isso. E se Saxton pensasse que ele estava lhe pedindo para ir à sua banheira? Seria um lembrete muito grande de como as coisas tinham mudado e do por quê? E se...
– Tenho esse novo tratamento à base de óleos que estou morrendo de vontade de experimentar – explicou Saxton ao deslizar pelo banco. – Ele finalmente chegou do exterior hoje. Faz séculos que espero por ele.
– Parece maravilhoso.
– Mal posso esperar – Saxton ajustou o paletó nos ombros, ajeitou os punhos e depois acenou com a mão, saindo sem nenhum indício de complicações ou de tensão em seu rosto.
O que, de fato, ajudava muito.
Dobrando o próprio guardanapo, deixou-o de lado, e saiu de trás da mesa, esticando os braços acima da cabeça e curvando-se para trás, estalando muito bem a coluna.
A sua tensão voltou no segundo em que pisou no átrio novamente.
Que diabos estava acontecendo com Layla?
Maldição, ele nem podia ligar para Qhuinn. Aquele drama não era seu, nem estava ligado a ele de modo algum. Quando se tratava de uma gestação, ele não era diferente de nenhum outro macho daquela casa que também ouvira ou vira o show e, sem dúvida, estava tão preocupado quanto ele. Mas também não tinha direito a nenhuma notícia antecipada.
Uma pena que sua barriga, agora cheia, não concordasse com isso. Pensar em Qhuinn perdendo o filho o fez considerar seriamente a localização do banheiro mais próximo da porta de entrada, só para o caso de uma evacuação rápida ser ordenada pelo fundo da sua garganta.
No fim, ele se viu subindo para a sala de estar do segundo andar. Daquele lugar, ele não teria dificuldade em ouvir a porta da frente, e não estaria esperando abertamente...
As portas do escritório de Wrath se abriram, e John Matthew emergiu do santuário do Rei.
Imediatamente, Blay atravessou a sala de espera, pronto para ver se, talvez, o cara sabia de alguma coisa, mas se conteve ante a expressão de John.
Perdido em pensamentos. Como se tivesse recebido notícias pessoais do tipo perturbador.
Blay ficou para trás enquanto o camarada seguia no caminho contrário, na direção do corredor das estátuas, sem dúvida para desaparecer no próprio quarto.
Parecia que as coisas não andavam bem nas vidas dos outros também.
Maravilha.
Com uma imprecação baixa, Blay deixou o amigo em paz e voltou a caminhar e... a esperar.
Muito mais ao sul, na cidade de West Point, Sola estava pronta para entrar no segundo andar da casa de Ricardo Benloise, através da janela ao fim do corredor principal. Fazia meses desde que estivera lá dentro, mas ela contava com o fato de que seu contato na segurança por ela cuidadosamente manipulado ainda fosse o seu amigo.
Havia dois fatores-chave para invadir com sucesso qualquer casa, prédio, hotel ou instalação: planejamento e velocidade.
Ela possuía os dois.
Pendurada no cabo que lançara no telhado, ela tirou um instrumento de dentro do bolso da parca, segurando-o no canto direito da janela dupla. Iniciado o sinal, ela esperou, olhando fixamente para a luzinha vermelha que brilhava na tela à sua frente. Se por algum motivo ela não mudasse, ela teria de entrar por uma das águas-furtadas que dava para o jardim, o que seria um pé no saco...
A luz ficou verde com um sinal, e ela sorriu ao pegar mais instrumentos.
Pegando um copo de sucção, ela o empurrou no meio do painel, imediatamente abaixo da tranca e depois girou a coisa com o cortador de vidro. Um empurrão rápido e o espaço que possibilitava a entrada do seu braço foi criado.
Depois de deixar o círculo de vidro cair com suavidade na passadeira oriental, ela enfiou o braço e o virou, para soltar a trava de latão que mantinha a janela fechada.
O ar quente lhe deu boas-vindas, como se a casa estivesse contente por vê-la mais uma vez.
Antes de entrar, ela olhou ao redor. Relanceou para o caminho de carros. Inclinou-se para fora para ver o que conseguia encontrar nos jardins escuros.
Sentia como se alguém a estivesse observando... não tanto no caminho de carro até a cidade, mas depois que parara no estacionamento e colocara os esquis. Todavia, não havia ninguém por perto – pelo menos, ninguém que ela conseguisse enxergar – e por mais que a atenção fosse essencial em seu ramo de trabalho, a paranoia era uma perda de tempo perigosa.
Ela precisava deixar isso de lado.
Voltando a se concentrar no jogo, esticou as mãos enluvadas e suspendeu o traseiro e as pernas por cima e através da janela. Ao mesmo tempo, relaxou a tensão do cabo para que ele ficasse folgado e permitisse a sua entrada. Aterrissou sem nenhum som, graças não só ao tapete que cobria o longo corredor como também aos seus calçados de solas macias.
O silêncio era outro critério importante no tocante a realizar um trabalho com sucesso.
Ela parou onde estava por um breve momento. Nenhum som na casa, mas isso não significava nada necessariamente. Ela tinha quase certeza de que o alarme de Benloise fosse silencioso, e mais certeza ainda de que o sinal não iria para a força policial, nem a local, tampouco a estadual: ele gostava de cuidar das coisas particulares de modo privado. E Deus bem sabia, com o tipo de força braçal que ele contratava, havia poder suficiente para tal.
Felizmente, contudo, ela era boa no que fazia, e Benloise e seus capangas não estariam em casa até perto do nascer do sol, afinal, ele vivia a vida de um vampiro.
Por algum motivo, a palavra que começava com “v” a fez pensar no homem que aparecera ao lado do seu carro e que desaparecera como num passe de mágica.
Loucura. E a única vez em sua lembrança recente que alguém a fazia parar para pensar. Na verdade, depois de ser confrontada daquela forma, ela estava realmente considerando não voltar à casa de vidro no rio, embora houvesse motivos mais do que válidos para isso. Não por ela se preocupar em se machucar fisicamente. Deus bem sabia que ela era perfeitamente capaz de se defender.
Era a atração.
Mais perigosa do que qualquer pistola, faca, ou punho, em sua opinião.
Com passadas ágeis, Sola trotou pelo tapete, saltitando na ponta dos pés, seguindo para a suíte principal que dava para o jardim dos fundos. A casa ainda tinha o mesmo cheiro de que se lembrava: mobília antiga e lustra-móveis, e ela conhecia o bastante para se ater ao lado esquerdo da passadeira. Nenhum rangido daquele lado.
Quando chegou à suíte principal, a porta pesada de madeira estava fechada, e ela pegou a chave micha antes mesmo de testar a maçaneta. Benloise tinha duas patologias: limpeza e segurança. A impressão dela, entretanto, era que a segunda era mais crítica na galeria no centro de Caldwell do que em seu lar. Afinal, Benloise não mantinha debaixo do seu teto nada além de objetos de arte com seguros até o último centavo, e a ele próprio durante o dia – quando estava cercado por diversos seguranças e armas.
Na verdade, devia ser por isso que ele era uma coruja no centro da cidade. Isso significava que a galeria nunca ficava sem supervisão: ele aparecia depois do expediente e sua equipe de trabalho legítima estava lá durante o dia.
Como uma gatuna, ela certamente preferia entrar em lugares vazios.
Dito isso, mexeu no mecanismo de tranca da porta, abrindo-a, e entrou no quarto. Inspirou profundamente, o ar estava permeado com a fumaça do tabaco e da colônia refrescante de Benloise.
A combinação a fez pensar nos filmes em preto e branco de Clark Gable por algum motivo.
Com as cortinas puxadas e nenhuma luz acesa, ali estava absolutamente escuro, mas ela tirara fotografias dos quartos quando fora a uma festa ali, e Benloise não era o tipo de homem que mudava as coisas de lugar. Inferno, toda vez que uma nova exibição era instalada na galeria de arte, ela praticamente sentia o tremor debaixo da pele dele.
Medo de mudança era uma fraqueza, sua avó sempre dizia.
Obviamente facilitava as coisas para ela.
Mais devagar, ela avançou dez passos até o meio do quarto. A cama estaria à esquerda encostada na parede comprida. À sua frente estavam as janelas altas que davam para o jardim. À direita, haveria uma cômoda, uma escrivaninha e algumas cadeiras, e a lareira que nunca era usada porque Benloise detestava o cheiro de madeira queimada.
O alarme de segurança se localizava entre a entrada do banheiro e a cabeceira ornamentada da cama, ao lado do abajur que se elevava noventa centímetros do criado-mudo.
Sola deu um giro ao redor de si mesma. Deu quatro passos. Tentou encontrar o pé da cama... e o encontrou.
Passo lateral, um, dois, três. De frente para o flanco do colchão king-size. Outro passo lateral para desviar da mesinha de cabeceira e do abajur.
Sola esticou o braço esquerdo...
E lá estava o painel de segurança, bem onde deveria.
Abrindo a portinhola, usou uma lanterna de bolso que prendeu entre os dentes para iluminar o circuito. Pegando outro instrumento da mochila, conectou fios a fios, interceptando sinais, e com a ajuda de um laptop em miniatura e de um programa que um amigo seu desenvolvera, criou um circuito fechado dentro do sistema de alarme de modo que, enquanto o roteador estivesse no lugar, os detectores de movimento que ela estava para disparar não seriam registrados.
No que se referia à placa-mãe, nada pareceria anormal.
Deixando o laptop pendurado pelos fios, saiu do quarto, chegou ao corredor, e tomou as escadas para o primeiro andar.
O lugar estava perfeitamente decorado, pronto para uma foto de revista – ainda que, claro, Benloise protegesse demais a sua privacidade para permitir que suas coisas fossem fotografadas para o consumo público. Com passos rápidos, ela passou pelo hall de entrada, pela sala à esquerda e entrou no escritório.
Andando em meio à penumbra, ela bem que preferiria tirar a parca de camuflagem branca e as calças para neve: fazer aquilo em seu body preto seria um clichê que, entretanto, seria bem prático. Não havia tempo, porém, e ela estava mais preocupada em não ser vista do lado de fora do que ali, na casa vazia.
O espaço de trabalho pessoal de Benloise era, como todo o resto debaixo daquele teto, mais um cenário montado do que algo funcional. Ele, na verdade, não usava a imensa escrivaninha, nem se sentava no minitrono, tampouco lia qualquer um dos livros em capa de couro das prateleiras.
Todavia, ele transitava por aquele cômodo. Uma vez ao dia.
Certa vez, num momento de tranquilidade, ele lhe dissera que antes de sair, todas as noites, passeava pela casa olhando seus pertences, lembrando a si mesmo da beleza das suas coleções e de sua casa.
Como resultado dessa informação e de algumas outras coisas, Sola há muito deduzira que o homem crescera na pobreza. Primeiro porque, quando conversavam em espanhol ou em português, seu sotaque pertencia à classe baixa, mesmo que de modo sutil. Segundo, os ricos não valorizavam seus pertences como ele o fazia.
Nada era raro aos ricos, e isso significava que eles davam como certas todas as coisas.
O cofre estava escondido atrás da escrivaninha numa seção de estandes que era liberada por um botão localizado na gaveta inferior do lado direito.
Ela descobrira isso graças a uma minúscula câmera escondida que colocara do lado oposto durante aquela festa.
Após a abertura do mecanismo, um corte de sessenta por noventa centímetros na prateleira rolou para a frente e deslizou para o lado. E lá estava ela: uma caixa grossa de aço, cujo fabricante ela reconhecia.
Pensando bem, depois de invadir centenas de espaços, você acaba conhecendo intimamente os fabricantes. E ela aprovava aquela escolha. Se precisasse ter um cofre, era daquele tipo que ela pegaria e, sim, ele o prendera ao chão.
O maçarico que trouxera na mochila era pequeno, mas poderoso, e enquanto ela acendia a ponta, a chama chamuscou com um sibilo substancial e um brilho branco e azul.
Aquilo levaria tempo.
A fumaça do metal queimado irritava seus olhos, o nariz e a garganta, mas ela manteve a mão firme enquanto produzia um quadrado na frente do painel. Ela conseguia explodir a porta de alguns cofres, mas o único jeito com um daqueles era do modo antigo.
Que levava uma eternidade.
No entanto, ela conseguiu.
Deixando a pesada seção da porta de lado, ela mordeu a ponta da lanterna mais uma vez e se inclinou. Uma prateleira continha joias, cautelas de ações e alguns relógios de ouro que ele deixara à mão. Havia uma pistola que ela seria capaz de apostar que estaria carregada. Nenhum dinheiro.
Pensando bem, com Benloise sempre havia tanto dinheiro disponível que fazia sentido ele não se dar ao trabalho de colocá-lo no cofre.
Maldição. Não havia nada ali que valesse apenas cinco mil dólares.
Afinal, naquele trabalho, ela só estava atrás daquilo que lhe era devido por direito.
Com uma imprecação, ela se apoiou nos calcanhares. Na verdade, não havia nada no cofre que valesse menos do que vinte e cinco mil dólares. E não tinha como ela partir a metade da pulseira de um relógio de ouro – porque, como diabos conseguiria revender a coisa?
Um minuto se passou.
O segundo.
Ao diabo com aquilo, ela pensou ao recolocar o painel que cortara contra o cofre e deslizar a prateleira de volta ao seu lugar. Levantando-se, olhou ao redor da sala com a lanterna de bolso. Os livros eram todos edições de colecionadores de primeiras edições de antiguidades. A arte nas paredes e sobre as mesas não era somente muito cara, como difícil de transformar em dinheiro sem ser debaixo dos panos... para as pessoas intimamente ligadas a Benloise.
Mas, que droga, ela não sairia sem seu dinheiro, maldição...
Abruptamente, sorriu para si mesma, a solução se tornando muito clara.
Por vários anos no curso da civilização humana, o comércio só existira e sobrevivera na base da troca. Ou seja, um indivíduo trocava bens ou serviços por outros de mesmo valor.
Em todos os trabalhos que realizara, ela jamais considerara acrescentar os custos auxiliares aos seus alvos: novos cofres, novos sistemas de segurança, novos protocolos de segurança. Ela podia apostar que isso era caro – ainda que não tão caro quanto o que ela costumava tomar. E ela entrara ali deduzindo que esses custos adicionais seriam arcados por Benloise – um tipo de prejuízo monetário pelo que ele roubara dela.
No entanto, eles agora eram a questão.
No caminho de volta à escada, observou as oportunidades disponíveis... e, no fim, foi até uma escultura de Degas de uma pequena bailarina que fora colocada na lateral de um nicho. A figura em bronze da garotinha era o tipo de coisa que sua avó teria adorado, e talvez por isso, dentre tantas peças, foi aquela a lhe chamar a atenção.
A luz que fora colocada no teto acima da estátua estava desligada, mas a obra-prima ainda assim parecia brilhar. Sola adorou especialmente a saia em tutu, a delicada ainda que rígida explosão de tule delineada por metal entrelaçado que capturava perfeitamente o que deveria ser maleável.
Sola se aproximou da base da escultura, passou os braços ao redor dela, e concentrou toda a sua força em girar a sua posição não mais do que cinco centímetros.
Depois correu para as escadas, retirou os clipes do roteador e do laptop do painel de alarme na suíte principal, trancou novamente a porta e seguiu para a janela na qual cortara um buraco.
Estava de volta nos esquis, deslizando na neve não mais do que quatro minutos mais tarde.
Apesar do fato de não ter nada nos bolsos, ela sorria ao deixar a propriedade.
CAPÍTULO 38
Quando a Mercedes finalmente parou na entrada da mansão da Irmandade, Qhuinn saiu primeiro e foi para a porta em que Layla estava. Quando a abriu, os olhos dela encontraram os dele.
Ele soube que jamais se esqueceria da aparência dela. A tez estava branca como um papel e parecia tão fina quanto um, a bela estrutura óssea se esticando sobre a cobertura de pele. Os olhos estavam encovados no crânio. Os lábios, finos e inexpressivos.
Naquele instante, ele teve um vislumbre de como ela ficaria ao morrer, não importando quantas décadas e séculos isso fosse levar para acontecer.
– Eu carrego você – disse ele, inclinando-se para pegá-la no colo.
O modo como ela não discutiu lhe contou exatamente o pouco que restava dela.
Quando as portas de entrada foram abertas por Fritz, como se o mordomo estivesse esperando pela chegada deles, Qhuinn se arrependeu de tudo: do sonho que acalentara por um instante durante o cio dela. A esperança desperdiçada. A dor física pela qual ela passava. A angústia emocional que ambos atravessavam.
Você fez isso com ela.
Na época, quando a servira, ele só se concentrara no resultado positivo do qual esteve tão certo.
Agora, depois de tudo, com os coturnos fincados na realidade sólida e fétida? Não valia a pena. Mesmo a possibilidade de um filho saudável não valia aquele sacrifício.
O pior de tudo era testemunhar o sofrimento dela.
Ao carregá-la para dentro da casa, rezou para que não houvesse uma grande plateia. Ele só gostaria de poupá-la de tudo, de qualquer coisa, mesmo do simples fato de desfilar diante de rostos tristes e preocupados.
Não havia ninguém por perto.
Qhuinn subiu os degraus dois de cada vez e, ao chegar ao segundo andar, as grandes portas duplas do escritório de Wrath abertas o fizeram praguejar.
Pensando bem, o Rei era cego.
Enquanto George emitiu um latido de boas-vindas, Qhuinn apenas passou pela frente, indo direto para o quarto de Layla. Abrindo a porta com um chute, descobriu que o doggen estivera ali e limpara tudo, arrumando a cama, decerto tendo até trocado os lençóis, e também havia um vaso de flores frescas.
Ao que tudo levava a crer, ele não era o único disposto a ajudar em qualquer coisa que pudesse.
– Quer trocar de roupa? – perguntou ao fechar a porta com outro chute.
– Quero tomar banho...
– Vamos providenciar isso.
– ... mas estou com muito medo. Eu não quero... ver, se é que me entende.
Ele a deitou e se sentou ao seu lado na cama. Colocando uma mão em sua perna, esfregou-lhe o joelho com o polegar, de um lado para o outro.
– Sinto muito – disse ela com pesar.
– Droga... Não, não faça isso. Jamais pense nem diga isso, está bem? Isto não é culpa sua.
– De quem mais é?
– Isso não vem ao caso.
Merda, ele não conseguia acreditar que o processo do aborto duraria mais ou menos uma semana. Como podia ser possível...
A careta que contraiu o rosto de Layla revelou a ele que uma cólica a assolava novamente. Olhando de relance para trás, esperando ver a doutora Jane, descobriu que estavam sozinhos.
O que garantiu, mais do que tudo, que não havia nada a ser feito.
Qhuinn deixou a cabeça pensa e segurou a mão dela.
Aquilo começara com os dois.
E estava terminando com os dois.
– Acho que gostaria de dormir um pouco – disse Layla ao apertar a mão dele. – Você também parece estar precisando...
Ele olhou para a chaise-longue do outro lado.
– Você não precisa ficar comigo – murmurou ela.
– Onde mais eu ficaria?
Uma breve visão mental de Blay abrindo os braços cruzou sua mente. Que fantasia, hein...
Nunca mais me toque assim.
Qhuinn sacudiu a cabeça para que tais pensamentos sumissem.
– Vou dormir ali.
– Você não pode ficar aqui por sete noites seguidas.
– Vou repetir mais uma vez. Onde mais eu...
– Qhuinn – a voz dela soou estridente. – Você tem o seu trabalho. E você ouviu Havers. Isto vai levar o tempo que for preciso e, provavelmente, vai demorar um pouco. Não corro o risco de ter uma hemorragia e, francamente, sinto como se devesse ser forte na sua frente, e não tenho a energia necessária para isso. Por favor, volte aqui para me ver o quanto quiser. Mas vou enlouquecer se você montar acampamento aqui até isso tudo terminar.
Desespero comedido.
Era tudo o que Qhuinn tinha enquanto permanecia sentado na beira da cama, segurando a mão de Layla.
Ele acabou se levantando pouco depois. Claro, ela estava certa. Ela precisava descansar o máximo possível e, de fato, além de ficar olhando para ela e fazendo com que ela se sentisse fraca, não havia nada que ele pudesse fazer.
– Não estarei longe.
– Sei disso – ela suspendeu o punho dele para os seus lábios, e ele ficou chocado ao perceber o quanto eles estavam frios. – Você tem se mostrado... mais do que eu seria capaz de pedir.
– Não... Não fiz nada de...
– Você fez o que era certo e apropriado. Sempre.
Aquilo era uma questão de opinião.
– Preste atenção. Vou estar sempre com meu telefone por perto. Volto em algumas horas para ver como você está. Se estiver dormindo, eu não a incomodarei.
– Obrigada.
Qhuinn assentiu com a cabeça e andou de lado até a porta. Certa vez ouvira que não se devia dar as costas a uma Escolhida, e ele imaginou que demonstrar um pouco de protocolo não faria mal.
Fechando a porta atrás de si, ele se recostou nela. A única pessoa que ele queria ver era o único cara naquela casa que não tinha interesse algum em...
– O que está acontecendo?
A voz de Blay foi um choque tão grande que ele pensou que a tivesse imaginado. A não ser pelo fato de que o macho em pessoa acabara de passar pela porta da sala de estar do segundo andar. Como se estivesse ali esperando o tempo inteiro.
Qhuinn esfregou os olhos e depois começou a andar, o corpo procurando a única coisa pela qual ele vinha rezando.
– Ela está abortando – Qhuinn se ouviu dizer numa voz morta.
Blay murmurou algo em resposta, mas que não ficou registrado.
Engraçado, o aborto não lhe parecera real até aquele momento. Não até contar a Blay.
– O que disse? – perguntou Qhuinn, ciente de que o cara esperava por uma resposta.
– Posso fazer alguma coisa?
Tão engraçado. Qhuinn sempre achou que saíra do ventre da mãe já como um adulto. Pensando bem, nunca houve nenhum agradinho materno, nada de abraços quando ele se machucava, nenhum amparo quando ele tinha medo. Como resultado, quer fosse um aspecto do seu caráter, ou o modo como fora criado, ele nunca regredira. Não havia para o que voltar.
Todavia, foi com a voz de uma criança que disse:
– Faz isso parar?
Como se só Blay tivesse o poder de operar um milagre.
E então... foi o que o macho fez.
Blay abriu os braços, oferecendo o único refúgio que Qhuinn sempre conheceu.
– Faz isso parar?
O corpo de Blay começou a tremer quando Qhuinn enunciou essas palavras: depois de todos esses anos, ele vira o cara em diferentes estados de humor dependendo da circunstância. Porém, jamais assim. Nunca... tão completa e absolutamente devastado.
Nunca perdido como uma criança.
A despeito da sua necessidade de se manter verdadeiramente afastado de qualquer vínculo emocional, seus braços se abriram por vontade própria.
Enquanto Qhuinn avançava para ele, o corpo do guerreiro parecia menor e mais frágil do que de fato era. E os braços que passaram ao redor da cintura de Blay simplesmente ficaram lá, como se não tivessem força nos músculos.
Blay sustentou a ambos.
E antecipou que Qhuinn recuaria rapidamente. Normalmente, o cara não suportava nenhum tipo de conexão intensa além da sexual por mais tempo do que um segundo e meio.
Qhuinn não o fez, porém. Ele parecia preparado para ficar parado na entrada da sala de estar para sempre.
– Venha – disse Blay, levando o macho para dentro e fechando a porta. – Vamos para o sofá.
Qhuinn o seguiu, os coturnos se arrastando em vez de marcharem.
Quando chegaram ao sofá, sentaram-se de frente, os joelhos se tocando. Quando Blay o fitou, a tristeza ressonante o tocou tão profundamente, que não pôde evitar que a mão se esticasse e afagasse o cabelo escuro...
Sem aviso, Qhuinn se enroscou ao seu encontro, simplesmente se deixou cair, o corpo se dobrando ao meio, quase se desmanchando no colo de Blay.
Uma parte de Blay reconhecia que aquele era um terreno perigoso. Sexo era uma coisa, e já bem difícil de lidar, ora essa. Aquele momento tranquilo? Era potencialmente devastador.
Motivo pelo qual saíra num rompante daquele quarto na noite anterior.
A diferença desta noite, porém, era que ele estava no controle. Era Qhuinn quem buscava conforto, e Blay podia negar ou oferecer, dependendo de como se sentisse. Ser o depositário da confiança de alguém era absolutamente diferente de recebê-la... ou necessitá-la.
Blay era bom nisso. Havia uma medida de segurança, de controle. Não era o mesmo que cair num abismo. E, inferno, se alguém devia saber isso, esse alguém era ele. Deus bem sabia que ele passara anos lá embaixo.
– Eu faria qualquer coisa para mudar isso – disse Blay, afagando as costas de Qhuinn. – Odeio o que você está passando...
Ah, as palavras eram tão inúteis...
Ficaram ali por um tempo enorme, a tranquilidade da sala formando uma espécie de casulo. Periodicamente, o relógio antigo sobre a lareira tocava, e depois de um bom tempo, as persianas começaram a baixar sobre as janelas.
– Gostaria que existisse algo que eu pudesse fazer – disse Blay quando os painéis de aço chegaram ao fim com um baque.
– Deve estar na hora de você ir.
Blay deixou aquela passar. A verdade não era algo que ele quisesse partilhar: nem cavalos selvagens, ou armas carregadas, pés-de-cabra, mangueiras de incêndio, estouro de elefantes... nem mesmo uma ordem do Rei em pessoa o teria tirado dali.
E havia uma parte sua que ficava zangada com isso. Não com Qhuinn, mas com seu próprio coração. A questão era que não se pode lutar contra a sua natureza, e era isso o que ele vinha aprendendo. No rompimento com Saxton. Em se revelar à mãe. Naquele exato instante.
Qhuinn gemeu ao suspender o tronco e depois esfregar o rosto. Quando abaixou as mãos, as faces estavam vermelhas, bem como os olhos, mas não porque ele estivesse chorando.
Indubitavelmente, a sua cota de lágrimas da década fora derramada na noite anterior quando ele chorara de alívio por ter salvado a vida de um pai.
E se soubesse que Layla não estava bem naquele instante?
– Sabe o que é pior? – perguntou Qhuinn, parecendo um pouco mais consigo mesmo.
– O quê? – Deus bem sabia que a gama de opções era vasta.
– Eu vi a criança.
Os pelos da nuca de Blay se eriçaram.
– Do que está falando?
– Na noite em que a Guarda de Honra veio atrás de mim e que quase morri, lembra?
Blay deu uma tossidela, a lembrança era tão vívida e visceral como se tivesse acontecido uma hora antes. E mesmo assim a voz de Qhuinn era calma e tranquila, como se ele estivesse se referindo a uma noite numa boate ou algo assim.
– Sim, eu me lembro.
E pensou, eu fiz boca a boca em você no acostamento da estrada, porra.
– Eu fui até o Fade... – Qhuinn franziu o cenho. – Você está bem?
Ah, sim, claro, uma maravilha.
– Desculpe. Pode continuar.
– Fui até lá. Quero dizer, é como... a gente ouviu falar. Branco – Qhuinn esfregou o rosto de novo. – Tão branco. Tudo. Havia uma porta, e eu caminhei até ela... Eu sabia que se girasse a maçaneta, entraria e não sairia mais. Eu estava prestes a tocá-la quando... foi então que eu a vi. Na porta.
– Layla – interpôs Blay, sentindo como se o peito tivesse sido apunhalado.
– A minha filha.
A respiração de Blay ficou presa.
– A sua...
Qhuinn o encarou.
– Ela era... loira. Como Layla. Mas os olhos... – ele levou a mão próxima aos seus. – Eram como os meus. Parei de andar quando a vi e depois, de repente, eu estava de volta no chão, no acostamento da estrada. Depois disso, fiquei sem saber o que foi tudo aquilo. Mas depois, muito tempo depois, Layla entrou no cio e me procurou, e tudo se encaixou. Era como se aquilo... tivesse que acontecer. Pareceu o destino, sabe. De outro modo, eu jamais teria me deitado com Layla. Só fiz isso porque eu sabia que teríamos uma garotinha.
– Jesus.
– Mas eu estava errado – ele esfregou o rosto pela terceira vez. – Errei feio... E o que eu mais queria era não ter tomado esse caminho. O maior arrependimento da minha vida... Bem, o segundo maior, na verdade.
A Blay só restou imaginar o que poderia ser pior do que aquilo pelo que ele passava.
O que posso fazer?, Blay se perguntou.
Os olhos de Qhuinn procuraram os dele.
– Quer mesmo que eu responda a isso?
Pelo visto, ele pensara em voz alta.
– Sim, claro.
A mão da adaga de Qhuinn se levantou e amparou a lateral do rosto de Blay.
– Certeza?
O clima mudou de pronto. A tragédia ainda estava com eles, mas a poderosa ressaca sexual os abateu entre uma pulsação e a seguinte.
O olhar de Qhuinn começou a queimar, as pálpebras pesaram.
– Preciso... de uma âncora agora. Não sei explicar de modo melhor.
O corpo de Blay reagiu instantaneamente, o sangue fervendo, o membro engrossando e esticando.
– Deixe-me beijar você – Qhuinn gemeu ao se inclinar. – Sei que não mereço, mas, por favor... é isso o que você pode fazer por mim. Deixe-me senti-lo...
A boca de Qhuinn resvalou a dele. Voltou para um pouco mais. Demorou-se.
– Vou implorar – mais carícias daquela boca devastadora. – Se for preciso. Estou pouco me importando, eu vou implorar...
De algum modo, isso não seria necessário.
Blay deixou a cabeça ser inclinada para abrir caminho para mais manobras, a mão de Qhuinn em seu rosto tanto gentil quanto no comando. E, então, houve mais boca a boca, lento, arrastando-se, inexorável.
– Deixe-me estar dentro de você de novo, Blay...
CAPÍTULO 39
Assail voltou para casa cerca de meia hora antes do amanhecer. Ao estacionar o Range Rover na garagem, ele teve que esperar a porta abaixar para sair.
Sempre se considerara um intelectual – e não no sentido atribuído pela glymera, onde um se sentia importante ao discorrer sobre literatura, filosofia ou assuntos espirituais. Era mais pelo fato de existirem poucas coisas na vida na qual ele não podia aplicar seu raciocínio e entender a sua totalidade.
O que diabos aquela mulher fizera na casa de Benloise?
Obviamente ela era uma profissional, com tanto equipamento quanto técnica, e uma abordagem de infiltração muito praticada. Ele também suspeitava que ou ela tivesse a planta da casa ou estivera lá previamente. Tão eficiente. Tão decidida. E ele estava qualificado para julgar: seguira-a o tempo inteiro em que ela esteve dentro da casa, penetrando como um fantasma pela janela que ela abrira, atendo-se às sombras.
Seguindo o rastro dela por trás.
Mas aquilo ele não entendia: que tipo de ladrão se dá ao trabalho de invadir uma casa segura, encontra um cofre, queima-o para abri-lo, descobre muitas riquezas portáteis... mas não leva nada? Porque ele vira muito bem ao que ela teve acesso; assim que ela saiu do escritório, ele permanecera lá, soltando a prateleira como ela fizera antes, e usara a própria lanterna para dar uma espiada no cofre.
Só para descobrir o que ela deixara para trás, se é que tinha deixado algo.
Quando ele voltou para a casa em si, evitando qualquer fonte de luz, observara-a parada um instante no hall de entrada, com as mãos nos quadris, a cabeça virando lentamente, como se ela estivesse considerando suas opções.
E então ela se aproximou de uma estátua que só podia ser de Degas... e a girara apenas alguns centímetros para a esquerda.
Isso não fazia sentido.
Bem, era possível que ela tivesse invadido o cofre procurando por algo específico que, na verdade, não estava lá. Um anel, uma bugiganga, um colar. Um chip de computador, um pendrive, um documento como um testamento ou apólice de seguro. Mas a demora no hall não estava de acordo com a diligência anterior... e depois ela só moveu uma estátua?
A única explicação era que aquilo fora uma violação deliberada da propriedade de Benloise.
O problema era que, no que se referia a vinganças contra objetos inanimados, era difícil encontrar muita significância nos atos dela. Derrubasse a estátua, então. Levasse a maldita coisa. Danificasse-a com obscenidades em tinta spray. Batesse nela com um pé-de-cabra para que ficasse destruída. Mas uma leve virada que mal se podia perceber?
A única conclusão a que ele conseguia chegar era que aquilo fora um tipo de mensagem. E ele não gostava nem um pouco disso.
Pois sugeria que talvez ela conhecesse Benloise pessoalmente.
Assail abriu a porta do motorista...
– Oh, meu Deus... – sibilou, retraindo-se.
– Ficamos imaginando quanto tempo você ainda ficaria aí.
Enquanto uma voz ríspida se pronunciava, Assail saiu do carro e olhou ao redor da garagem para cinco carros. O fedor estava num meio-termo entre um atropelamento de três dias, maionese estragada e perfume barato.
– Isso é o que eu estou pensando? – perguntou aos primos, que estavam parados na soleira da antessala.
Graças à Virgem Escriba, eles avançaram e fecharam a porta que dava para a casa; caso contrário, aquele fedor horrendo invadiria o resto da construção.
– São os seus traficantes. Bem, parte deles, na verdade.
Que. Merda. Era. Aquela?
As passadas longas de Assail o levaram na direção que Ehric apontava: o canto oposto, onde três sacos plásticos verdes-escuro foram jogados de lado sem cuidado algum. Agachando-se, ele afrouxou a tira amarela de um deles, puxou a beirada e...
Deparou-se com os olhos sem vida de um humano que ele reconhecia.
A cabeça inanimada fora arrancada da coluna uns dez centímetros abaixo da mandíbula, e estava virada de modo a fitar para fora de seu caixão frouxo. O cabelo escuro e a pele vermelha estavam marcados por sangue preto e brilhante, e se o cheiro esteve ruim próximo ao carro, ali, bem perto, fez seus olhos lacrimejarem e a garganta se contrair num protesto.
Não que ele se importasse.
Abriu os outros dois sacos e, usando o plástico como “luva”, virou as outras cabeças na mesma posição.
Depois se sentou e ficou olhando para as três, observando as bocas escancaradas e impotentes em busca de ar.
– Contem o que aconteceu – ordenou sombriamente.
– Aparecemos na hora combinada.
– Rinque de patinação, na margem do rio ou debaixo da ponte?
– Ponte. Chegamos – Ehric apontou para o irmão gêmeo, que estava parado em silêncio ao seu lado – na hora com o produto. Uns cinco minutos depois, esses três apareceram.
– Como redutores.
– Eles tinham o dinheiro. Estavam prontos para fazer a transação.
Assail girou a cabeça na direção dele.
– Eles não foram lá para atacá-los?
– Não, mas só descobrimos isso quando já era tarde demais – Ehric deu de ombros. – Eram assassinos que apareceram do nada. Não sabíamos quantos havia, e não queríamos nos arriscar. Foi só depois que vasculhamos os bolsos e encontramos o montante certo de dinheiro que percebemos que eles só foram lá para fazer negócios.
Redutores no tráfico? Aquilo era novidade.
– Vocês apunhalaram os corpos?
– Pegamos as cabeças e escondemos o que restou. O dinheiro estava na mochila desse da esquerda e, naturalmente, nós o trouxemos para casa.
– Celulares?
– Peguei.
Assail começou a acender um charuto, mas não queria desperdiçar o sabor. Fechando os sacos, levantou-se acima da carnificina.
– Tem certeza de que não foram agressivos?
– Estavam mal preparados para se defenderem.
– Estar mal armado não significa que eles não estivessem lá para matá-los.
– Por que levar o dinheiro?
– Eles podiam estar negociando em outro lugar.
– Como já disse, era a quantia correta e nem um centavo a mais.
Abruptamente, Assail gesticulou para que o seguissem para o interior da casa e, ah, que alívio quando chegaram ao ar limpo. Com as telas descendo lentamente sobre as janelas de vidro, e com o alvorecer se completando, ele foi para o bar, pegou um galão de Bouchard Père et Fils, Montrachet, 2006 e estalou a rolha.
– Querem me acompanhar?
– Sim, claro.
Na mesa redonda na cozinha, ele se sentou com três taças e a garrafa. Servindo os três, dividiu o chardonnay com os dois sócios.
Porém, não lhes ofereceu seus cubanos. Eram valiosos demais.
Felizmente, cigarros apareceram e todos se sentaram juntos, fumando e saboreando goladas sublimes da beira afiada do seu Baccarat.
– Nenhuma agressão por parte dos assassinos – murmurou, inclinando a cabeça para trás para baforar, a fumaça azulada se elevando sobre sua cabeça.
– E a quantia exata.
Depois de um momento, ele voltou a olhar para eles.
– Será possível que a Sociedade Redutora esteja tentando entrar no meu ramo de negócios?
Xcor estava à luz de velas, sozinho.
O armazém estava tranquilo, seus soldados ainda não tinham retornado, nenhum humano, nenhum Sombra, nada caminhava sobre ele. O ar estava frio; o mesmo com o concreto abaixo dele. A escuridão o envolvia, a não ser pela fraca fonte de luz perto da qual ele estava sentado.
Algo no fundo de sua mente lhe dizia que estava perigosamente perto de amanhecer. Também havia outra coisa, algo de que ele deveria ter se lembrado.
Mas não havia a mínima chance de que algo transpusesse seu torpor.
Com os olhos fixos na única chama diante dele, Xcor repassou os eventos da noite em sua cabeça.
Dizer que ele encontrara a localização da Irmandade seria talvez aumentar um pouco a verdade, mas não uma falácia completa. Seguira aquela Mercedes para o interior, quilômetro após quilômetro, sem nenhum plano real do que deveria ou poderia fazer quando ela parasse... quando, do nada, o sinal do sangue no corpo de sua Escolhida não só se perdeu, mas foi totalmente redirecionado, como se uma bola lançada contra um muro tivesse alterado repentinamente a sua trajetória.
Confuso, ele vasculhou os arredores, desmaterializando aqui, acolá, para cima e para baixo e, durante o tempo todo, uma sensação de horror se abatendo sobre ele. Recuando, ele se viu na base de uma montanha, com seus contornos, mesmo sob o luar claro, registrados de maneira estranha, indistinta, pouco nítida.
O lugar em que eles ficavam só podia ser ali.
Talvez no alto da montanha. Talvez do outro lado.
Não havia outra explicação – afinal, a Irmandade vivia com o Rei para protegê-lo... portanto, indubitavelmente, eles tomariam precauções do tipo que ninguém mais conseguiria tomar, ou quem sabe, tivessem ao seu dispor tecnologias e provisões místicas que seriam, de outro modo, indisponíveis.
Em frenesi, ele circundou os arredores, dando a volta na base algumas vezes, pressentindo nada além da refração do sinal dela e aquela sensação de horror. Sua conclusão era de que ela deveria estar em algum lugar daquela imensidão: ele teria pressentido se ela tivesse atravessado para o outro lado, e seria razoável concluir que se tivesse ido para o seu templo sagrado, até um plano alternativo de existência, ou – que o destino não permitisse – morrido, aquele eco ressonante dentro dele teria desaparecido.
A sua Escolhida estava ali em algum lugar.
Retornando para o armazém, para o presente, para onde ele estava agora, Xcor esfregou as palmas para frente e para trás lentamente, o raspar dos calos interrompendo a quietude. À esquerda, no limiar da luz de velas, suas armas estavam dispostas lado a lado, as adagas, as pistolas, e sua adorada foice cuidadosamente organizadas ao lado de uma pilha confusa de roupas de sair que ele retirara assim que escolhera aquele lugar específico no chão.
Concentrou-se na foice e esperou que ela lhe falasse: ela o fazia com frequência, com seus modos sedentos de sangue em compasso com a agressividade que fluía em suas veias e que definia seus pensamentos e motivava suas ações.
Aguardou que ela lhe dissesse para atacar a Irmandade onde eles ficavam. Onde as fêmeas moravam. Onde as crianças dormiam.
O silêncio era preocupante.
De fato, sua chegada ao Novo Mundo fora baseada no desejo de ganhar poder, a expressão maior e mais arrojada desse desejo era tomar o trono, portanto, naturalmente, esse era o curso que ele escolhera. E estava progredindo. A tentativa de assassinato no outono, que, sem sombra de dúvida, lançara uma sentença de morte sobre a sua cabeça e a dos seus soldados, fora uma medida tática que quase colocara um ponto final na guerra inteira antes mesmo de ela começar. E seus esforços contínuos com Elan e com a glymera estavam promovendo seus objetivos e reforçando seu apoio dentro da aristocracia.
Mas aquilo que ele descobrira naquela noite...
Deuses, quase um ano de trabalho, sacrifício, planejamento e combate perdiam importância em comparação com a sua descoberta.
Se seu palpite estivesse correto – e como não podia estar? –, tudo o que ele tinha de fazer era marchar com seus soldados e começar um cerco assim que a noite caísse. A batalha seria épica, e a Irmandade e o lar da Primeira Família seriam permanentemente comprometidos, independentemente do resultado.
Seria um conflito digno dos livros de História – afinal, a primeira vez em que a propriedade real fora atingida foi quando o progenitor e a mahmen de Wrath foram assassinados antes da transição dele.
A história se repetia.
E ele e seus soldados tinham uma séria vantagem em relação àqueles assassinos que, na época, não possuíram: a Irmandade agora tinha muitos machos vinculados. Na verdade, ele acreditava que todos eles estivessem vinculados, e isso dividiria as atenções e as lealdades dos machos como nada mais conseguiria fazer. Ainda que a diretriz principal deles como guarda pessoal do Rei fosse proteger Wrath, seus cernes estariam divididos, e mesmo o mais forte dos lutadores com as melhores armas estaria enfraquecido se suas prioridades estivessem em dois lugares distintos.
Além disso, se Xcor ou um dos seus soldados conseguisse apanhar uma daquelas shellans, a Irmandade esmoreceria, porque a outra coisa verdadeira a respeito deles era que a dor de um dos Irmãos era a própria agonia.
Só bastaria uma fêmea de qualquer um deles, a arma derradeira.
Ele sabia disso em sua alma.
Sentado à luz da vela, Xcor esfregou a lâmina da adaga na palma de sua mão, de um lado para o outro, de um lado para o outro.
Uma fêmea.
Era só disso que ele precisava.
E ele conseguiria não só reivindicar sua própria fêmea... mas também o trono.
CAPÍTULO 40
Qhuinn sabia que acabara de colocar Blay numa posição totalmente injusta.
Transa por pena, hein? Mas, ah, Deus, encarando aqueles olhos azuis, aqueles malditos olhos azuis sem fundo que estavam francos para ele do mesmo modo que um dia estiveram... era só no que conseguia pensar. E, sim, tecnicamente era sexo em termos de onde ele queria suas diversas partes – bem, uma mais especificamente. No entanto, havia muito mais do que apenas isso.
Ele não sabia expressar em palavras; simplesmente não era bom em juntar as sílabas. Mas seu desejo de conexão foi o que o levou ao beijo. Ele quis mostrar a Blay o que estava querendo dizer, do que ele precisava, por que aquilo era importante: seu mundo inteiro parecia estar desmoronando e a perda que acontecia na porta ao lado doeria por um bom tempo.
No entanto, estar com Blay, sentir o seu calor, fazer contato, era como uma promessa de cura. Mesmo se durasse apenas o tempo em que estivessem ali naquela sala, ele aceitaria, e guardaria aquilo para si... para relembrar quando precisasse.
– Por favor – sussurrou.
Só que ele não deu chance para o cara responder. Sua língua saiu sorrateira e lambeu aquela boca, escorregando para dentro, assumindo o controle.
E a resposta de Blay foi o modo como ele se permitiu ser empurrado para trás nas almofadas do sofá.
Qhuinn teve dois pensamentos vagos: um, a porta só estava fechada, não trancada – e ele cuidou disso desejando que a trava de latão ficasse no lugar certo. E o segundo pensamento momentâneo era que eles não poderiam destruir aquele lugar. Explodir tudo em seu quarto era uma coisa. A sala de estar era propriedade pública, e muito bem decorada, com as almofadas de seda e as cortinas luxuosas, e um monte de outras coisas que pareciam facilmente rasgáveis, amassáveis, Deus, mancháveis...
Além disso, ele já destruíra seu Hummer, acabara com o jardim e sacudira o quarto. Portanto, sua cota de Destruidor já ultrapassara, e muito, o calendário anual...
Naturalmente, a solução mais prática para não dar nenhuma preocupação adicional a Fritz seria percorrer o corredor rapidamente até o seu quarto, mas enquanto as mãos talentosas de Blay estavam na frente do quadril de Qhuinn, já abaixando seu zíper, ele lançou essa ideia brilhante no cesto de lixo.
– Ai, Deus, toque-me – gemeu, empurrando a pélvis para a frente.
Ele só teria de ser comportado e bem limpinho com aquilo.
Presumindo que isso fosse possível.
Quando a palma de Blay se enfiou em sua calça de couro, o corpo de Qhuinn se arqueou, o torso curvando-se para trás enquanto o outro iniciava os trabalhos. O ângulo estava meio errado, por isso não havia muita fricção, e suas bolas estavam sendo beliscadas pela costura da calça, mas santo inferno, ele não se importava. O fato de que aquele era Blay bastava.
Cacete, depois de anos de chupadas, punhetas e transas, aquela parecia a primeira vez que alguém tocava nele.
Ele precisava retribuir o favor.
Entrando em ação, elevou o peito e aproximou os rostos. Caramba, ele adorava a expressão daqueles olhos azuis enquanto Blay o encarava, quente, selvagem, sensual.
Com tesão.
Qhuinn o segurou com força e aproximou as bocas, agarrando-se àqueles lábios, lançando a língua, tomando tudo como um desvairado...
– Espere, espere – Blay retrocedeu. – Vamos quebrar o sofá.
– O quê...? – o cara parecia estar falando inglês, mas pro inferno se ele conseguia traduzir. – Sofá?
E então ele percebeu que empurrara tanto Blay no braço do móvel, que a coisa estava começando a se inclinar. Que era mais do que duzentos quilos de sexo poderiam fazer em uma peça de mobília.
– Ai, merda, desculpe.
Ele estava começando a recuar quando Blay assumiu o controle e Qhuinn, de repente, viu-se fora do sofá, de costas no chão, as pernas unidas, as calças sendo empurradas para os tornozelos.
Ideia. Genial.
Graças ao fato de ele não usar cuecas, seu pau estava todo exposto, grosso e tenso, ao ser lançado para cima, dolorido e inchado por sobre a barriga. Abaixando a mão, ele deu umas puxadas enquanto Blay arrancava seus coturnos que estavam atrapalhando, largando-os de lado. As calças foram as próximas a darem adeus, e, com Deus como testemunha, Qhuinn nunca antes ficou tão contente em ver um par de couro voar por cima do ombro em toda a sua vida.
Em seguida, Blay voltou ao trabalho.
Qhuinn teve que fechar os olhos quando sentiu as coxas sendo afastadas e um par de mãos de lutador puxar o interior de suas pernas. Imediatamente ele soltou a ereção, afinal, porque ter a palma atrapalhando quando Blay poderia...
Não foram as mãos do cara que o seguraram.
Foi a boca quente e úmida que Qhuinn beijara pra cacete pouco antes.
Por uma fração de segundo, enquanto a sucção abocanhava a ponta e o mastro, ele teve o pensamento maldito de que Saxton ensinara Blay a fazer aquilo: seu maldito primo fizera aquilo com o cara, e fizera com que ele...
Pare, ordenou-se. Quaisquer lições aprendidas e a história por detrás delas não importavam, era a sua ereção que recebia atenção naquele instante. Por isso, que se dane essa merda.
Para deixar isso bem claro, forçou seus olhos a se abrirem. Inferno... do céu...
A cabeça de Blay subia e descia em seus quadris, o punho segurava a base do pau de Qhuinn, a outra mão se ocupava com as bolas. Mas então, como se estivesse esperando por contato visual, o cara parou no alto, libertou a cabeça e lambeu os lábios.
– Eu não gostaria que você fizesse uma lambança nesta linda sala – Blay disse com fala arrastada.
E então, estendeu a ponta da língua para açoitar o piercing no pênis de Qhuinn, a carne rosada brincando com a argola cinza de metal e a bolinha...
– Caralho. Vou gozar agora – grunhiu Qhuinn, com uma onda fervente se avolumando. – Eu vou...
Ele estava impotente para deter as coisas, muito mais até do que alguém que tivesse se lançado de um precipício e que, depois de metros de queda livre, quisesse desistir.
Só que ele não queria pisar no freio.
E não pisou.
Com um rugido potente, que provavelmente foi ouvido em outros lugares, a espinha de Qhuinn se afastou do chão, o traseiro ficou rígido, as bolas explodiram, a excitação esguichando com força na boca de Blay. E não foi só o seu sexo que foi afetado. O orgasmo o atingiu em todo o corpo, uma energia latente emergindo por ele enquanto cravava as unhas no tapete em que estava deitado, os dentes cerrados... e gozando como um animal selvagem.
Felizmente, Blay se mostrou mais do que eficiente na limpeza. E se isso não o fez gozar ainda mais... Também lhe deu muito para o que olhar: pelo resto dos seus dias, Qhuinn jamais se esqueceria da visão da boca do macho o envolvendo, as bochechas sugando enquanto ele libertava seu gozo e ele absorvia tudo. De novo e de novo e de novo.
Normalmente, Qhuinn ficava pronto para outra em seguida, mas quando as ondas tumultuadas finalmente se quebraram sobre ele, ele ficou completamente inerte, os braços largados no chão, os joelhos moles, a cabeça pensa.
– Não consigo me mexer – murmurou.
O riso de Blay foi profundo e sensual.
– Você parece um pouco cansado.
– Posso retribuir o favor?
– Você consegue levantar a cabeça?
– Ela ainda está grudada no meu corpo?
– Pelo que vejo, sim, está.
Enquanto Blay ria de novo, Qhuinn soube o que queria fazer e isso o surpreendeu. Em todas as suas explorações sexuais, ele nunca se permitiu ser enrabado. Não era assim que as coisas aconteciam. Ele era o conquistador, o que tomava, o que estabelecia o controle e conservava a superioridade.
Ficar por baixo simplesmente não o interessava.
E agora era o que queria.
O único problema era que, literalmente, não conseguia se mexer. Ah, sim, e havia uma coisinha a mais: como contar a Blay que ele era virgem?
Porque ele desejava. Se um dia chegasse àquilo, ele queria que Blay soubesse. Por algum motivo, isso era importante.
De repente, o rosto de Blay apareceu em seu campo de visão, e, Deus, como o lutador era lindo, o rosto afogueado, os olhos reluzentes, aqueles ombros largos bloqueando tudo.
E, ah, sim, aquele sorriso sexy como o inferno, tão satisfeito consigo e autossuficiente, como se o fato de Blay ter provocado tanto prazer em alguém fosse o bastante para que ele não precisasse do próprio alívio.
Mas isso não seria justo, seria?
– Não acho que você vai voltar a se mexer tão cedo – comentou Blay.
– Talvez. Mas posso abrir a boca – foi a resposta misteriosa. – Tanto quanto você.
Certo, tudo bem, a ideia de que provocava um orgasmo daquele em Qhuinn foi tão ratificadora que Blay se esquecera por completo do seu corpo.
A questão era que após tantos anos de rejeição, era uma emoção sem igual sentir poder em relação ao cara, ser aquele quem comandava o ritmo... a pessoa que levava Qhuinn a um lugar vulnerável e erótico muito mais intenso do que qualquer outro antes. E foi isso o que aconteceu. Ele sabia exatamente como Qhuinn ficava e como soava quando gozava, e Blay podia afirmar, sem nenhum traço de dúvida, que ele jamais vira seu camarada tão prostrado como agora, largado no tapete, os músculos do pescoço esticados, os abdominais contraídos, os quadris bombeando com força.
Qhuinn gozara praticamente vinte minutos direto.
E agora, no pós-coito, uma estranha revelação: até aquele instante, Blay jamais reconhecera o cinismo que Qhuinn carregava no rosto o tempo inteiro... as sobrancelhas caídas, o canto da boca perpetuamente repuxado para cima... o maxilar nunca, jamais relaxado.
Era como se toda a torpeza que a família lhe fizera tivesse permanentemente esculpido suas feições.
Mas não era verdade, não é mesmo? Durante o orgasmo, e agora, enquanto as coisas se acalmavam, nada daquela tensão era visível em lugar algum. O rosto de Qhuinn estava... livre de toda reserva, parecendo tão mais jovem, e Blay teve que se perguntar por que nunca percebera a idade dele antes.
– Então, vai me dar algo para eu chupar enquanto me recupero? – Qhuinn perguntou.
– O quê...?
– Estou com sede. E preciso chupar alguma coisa – dito isso, Qhuinn mordeu o lábio inferior, as presas brancas brilhantes afundando na pele. – Vai me ajudar?
Os olhos de Blay reviraram em suas órbitas.
– É... acho que posso fazer isso.
– Então me deixe tirar suas calças.
As pernas de Blay se levantaram com tanta rapidez que ele teve um insight novo sobre as leis da física, e enquanto ele chutava os sapatos, as mãos tremiam ao desabotoar a calça. As coisas foram bem rápidas a partir dali. E durante o tempo todo em que se despia, ele estava absolutamente ciente de tudo o que havia na sala – especialmente Qhuinn. O macho estava ficando rígido novamente, o sexo engrossando apesar de tudo pelo que acabara de passar... as coxas pesadas se contraindo e a pélvis rolando... a parte baixa do tronco tão delgada que cada sutil mudança do torso era refletida na pele esticada e bronzeada.
– Isso aí... – Qhuinn sibilou, as presas se estendendo do maxilar superior, as mãos procurando, e encontrando, o sexo, apalpando-o em movimentos longos e lentos. – Isso mesmo.
A respiração de Blay começou a acelerar, os batimentos cardíacos subindo até o telhado enquanto os olhos descombinados de Qhuinn se prendiam ao seu sexo.
– É isso o que eu quero – o macho grunhiu, soltando-se e esticando as duas mãos.
Por uma fração de segundo, Blay não teve muita certeza como as partes trabalhariam. Qhuinn estava diante do sofá, paralelo ao móvel, por isso não havia muito espaço para...
Um grunhido sutil perpassou o ar enquanto Qhuinn flexionava os dedos como se mal conseguisse esperar para segurar aquilo que desejava.
O planejamento que fosse para o inferno.
Os joelhos de Blay atenderam ao chamado, dobrando para a frente, levando seu peso ao chão perto da cabeça de Qhuinn.
Qhuinn assumiu o controle a partir daí. As palmas escorregaram e se prenderam, atraindo Blay de modo que, sem nem se dar conta, ele tinha um joelho atrás da cabeça do cara e a outra perna estendida ao longo do corpo até o quadril de Qhuinn.
– Ai... cacete... – Blay gemeu ao sentir o sexo entrar entre os lábios de Qhuinn.
O corpo pendeu para a frente até ele acabar derramando o torso nas almofadas do sofá, e foi nesse momento que ele se viu com uma excelente alavancagem. Apoiando os braços no sofá, distribuiu o peso entre os joelhos, os pés e as palmas... e depois se pôs a foder a boca adorável de Qhuinn.
O cara aceitou tudo, mesmo quando os quadris descontrolados de Blay empurraram com tudo o que ele tinha.
Com os dedos de Qhuinn cravados em seu traseiro, e aquela incrível sucção, e... Cristo, o piercing da língua, com a bolinha resvalando seu mastro a cada estocada... Blay estava se dirigindo exatamente para o mesmo tipo de orgasmo que Qhuinn acabara de ter.
Mesmo assim, no fundo da sua mente, ele se questionava se não estava machucando o cara. Do jeito como as coisas seguiam, ele acabaria gozando no estômago dele.
Tarde demais para se preocupar com isso.
Seu corpo assumiu, enrijecendo numa série de espasmos torturantes que corriam do alto da coluna até as pernas.
E bem quando as sensações descontroladas estavam começando a diminuir, o mundo entortou ao seu redor, como se seu senso de equilíbrio tivesse explodido junto de seu...
Não, o mundo estava no lugar. Qhuinn acabara de se levantar do chão, saindo de baixo e se posicionando atrás...
Enquanto Qhuinn penetrava com uma estocada na velocidade da luz, Blay emitiu um gemido que com certeza seria ouvido no Canadá...
O rangido que se fez ouvir na sala o deixou intrigado, mesmo em meio à pressão e ao prazer.
Ah. Eles estavam empurrando o sofá.
Que seja. Ele compraria um novo para a casa se quebrassem a maldita porcaria; ele não iria parar.
O ritmo foi tão punitivo quanto fora o seu e, nesse caso, a revanche não era só o que ele merecia, mas exatamente o que ele queria. A cada estocada, seu rosto era empurrado contra as almofadas do sofá; a cada recuada, ele respirava; só para ser empurrado novamente, num círculo que recomeçava sempre.
Reposicionando as pernas para que Qhuinn alcançasse ainda mais fundo, Blay teve a vaga noção de que eles, definitivamente, mudavam o sofá de posição, mas quem é que se importava com isso, contanto que eles não acabassem no corredor?
No último instante, pouco antes de ele gozar, teve a presença de espírito de pegar as calças. Puxando as cuecas, ele...
A mão de Qhuinn se esticou, apanhou a Calvin Klein e fez o que era preciso, garantindo que houvesse algo para conter o seu gozo. Então, um instante depois, seu peito se deslocou do sofá e ele estava ereto sobre os joelhos. Qhuinn cuidou de tudo, segurando o pau de Blay enquanto cobria a cabeça – penetrando, ainda penetrando, sempre penetrando...
Gozaram ao mesmo tempo, dois pares de gritos ecoando pela sala.
No meio do orgasmo, Blay, sem querer, levantou o olhar. No enorme espelho antigo que estava pendurado entre as duas janelas do lado oposto, ele viu os dois, soube que estavam ligados... e isso o fez gozar novamente.
No fim, as investidas desaceleraram. Os batimentos cardíacos começaram a diminuir. As respirações foram se acalmando.
No vidro chumbado, ele viu Qhuinn fechar os olhos e abaixar a cabeça. Na lateral do seu pescoço, Blay sentiu um resvalar suave.
Os lábios de Qhuinn.
E então a mão livre do macho subiu, parando para afagar Blay no peitoral...
Qhuinn congelou. Recuou. Afastou os lábios, seu toque.
– Desculpe. Desculpe, eu... sei que não quer isso de mim.
A mudança no rosto do cara, o regresso ao cinismo costumeiro, era como ser roubado.
E mesmo assim Blay não podia dizer a ele que voltasse a se aproximar. Qhuinn estava certo; no instante em que a ternura aparecia, ele começava a entrar em pânico.
A retirada foi rápida, rápida demais, e Blay sentiu falta da sensação de estar completo e de ser possuído. Mas estava na hora de acabar com aquilo.
Qhuinn pigarreou.
– Hum... você quer que eu...
– Cuido disso – murmurou Blay, substituindo a mão de Qhuinn sobre as cuecas amassadas em seu quadril.
Durante o sexo, o silêncio na sala equivalia à privacidade. Agora, eram apenas os sons amplificados de Qhuinn subindo as calças de couro.
Droga.
Voltavam ao caos e à confusão. E enquanto as coisas aconteciam, as sensações eram tão intensas e esmagadoras que não houve nenhum pensamento além do sexo. Depois, porém, o corpo de Blay estava frio demais no ambiente climatizado, diferentes partes pulsavam por terem sido usadas, as pernas estavam moles e cambaleantes, a mente, enevoada...
Nada parecia seguro ou garantido. Nem um pouco.
Forçando-se a se vestir, colocou as roupas o mais rápido que conseguiu, inclusive os sapatos. Nesse meio-tempo, foi Qhuinn quem devolveu o sofá ao seu lugar, cuidadosamente colocando os pés nas marcas do tapete. Também ajeitara as almofadas. Endireitara o tapete oriental.
Foi como se nada tivesse acontecido. A não ser pelas cuecas de Blay amassadas em sua mão fechada.
– Obrigado – disse Qhuinn baixinho. – Eu, hum...
– Tudo bem.
– Então... acho que eu vou agora.
– Ok.
E foi isso.
Bem, além de a porta se fechar.
Deixado a sós, Blay resolveu que precisava de uma chuveirada. Mais comida. Dormir.
Em vez disso tudo, ele ficou na sala de estar do segundo andar, olhando para aquele espelho, lembrando-se do que vira nele. Em sua mente, teve a vaga noção de que eles não podiam continuar fazendo aquilo. Emocionalmente, não era seguro para ele; na verdade, era o equivalente a manter a palma da mão sobre uma chama uma vez após a outra, só que a cada vez que você voltava a colocar a mão, você diminuía a distância entre a sua carne e o calor. Cedo ou tarde? Queimaduras de terceiro grau seriam o menor dos seus problemas, porque o braço inteiro estaria em chamas.
Depois de um tempo, contudo, não ficou só pensando naquela coisa de autopreservação.
Mas sim no que dera início àquilo tudo.
Faz isso parar.
Blay passou a mão pelo cabelo. Depois olhou para a porta fechada e franziu o cenho, a mente trabalhando, trabalhando, trabalhando...
Um minuto depois, saiu apressado, andando rapidamente.
Antes de partir num trote.
E acabar correndo como um louco.
CAPÍTULO 41
Eram mais ou menos dez da manhã quando Trez seguiu para o Restaurante Sal’s. O trajeto do apartamento no Commodore para o belo estabelecimento do irmão não demorou, levando apenas dez minutos, e havia diversos espaços disponíveis para estacionar quando ele chegou lá.
De fato, o lugar não abria antes da uma da tarde, nem mesmo para o pessoal da cozinha iniciar a preparação.
Enquanto se encaminhava para a entrada, suas botas esmagando a neve, ele esperou que o código de abertura pelo lado externo não funcionasse: iAm não voltara para casa na noite anterior e, supondo que os cretinos do s’Hisbe não o tivessem levado embora como dano colateral, só havia um lugar em que seu irmão poderia estar. Depois de dois bules de café e muitas consultas ao relógio de pulso, Trez entendeu que, se queria fazer as pazes, ele teria de atravessar a cidade.
Legal. A combinação não fora mudada.
Ainda.
Do lado de dentro, o lugar parecia uma réplica do Rat Pack, numa interpretação moderna de uma era que gerara tipos como Peter Lawford e Frank Sinatra: uma entrada com papel de parede de algodão preto e vermelho o levava até a recepção, onde a chapelaria, a mesinha retrô da recepcionista e o caixa ficavam. À esquerda e também à direita, estavam os dois salões principais, ambos decorados em veludo e couro preto e vermelho, mas não eram onde os políticos e os endinheirados locais ficavam. O lugar predileto era o bar mais à frente, um salão com painéis de madeira que tinha bancos estofados quadrados de couro vermelho perto das paredes e, durante o expediente, um barman de smoking atrás de uma bancada de carvalho servindo nada que não fosse o melhor.
Atravessando a extensão do bar, Trez seguiu para o outro lado das cinco prateleiras de garrafas à mostra e passou pelas portas em vaivém. Ao entrar na cozinha, o cheiro de manjericão, cebola, orégano e vinho tinto lhe denunciou exatamente onde iAm estava.
Como esperado, o cara estava diante do enorme fogão industrial de dezesseis bocas na parede oposta, com cinco panelas imensas borbulhando diante dele – e você gostaria de apostar que também havia alguma coisa no forno? Nesse meio-tempo, tábuas de madeira de corte estavam enfileiradas nas bancadas de aço inoxidável, as cabeças mortas de diferentes tipos de pimentão deixadas ao lado das facas afiadas que foram usadas.
Dez pratas para adivinhar em quem o cara estava pensando enquanto picava aquilo tudo.
– Vai ou não falar comigo? – Trez disse para as costas do irmão.
iAm seguiu para a panela seguinte, levantando a tampa com um pano de prato branco, uma imensa escumadeira entrando e mexendo lentamente.
Trez se inclinou para o lado e puxou um banquinho de aço inoxidável. Sentando-se, esfregou as coxas para cima e para baixo.
– Oi? Alguém aí?
iAm foi para a panela seguinte. E depois a outra. Cada uma delas tinha uma colher diferente para evitar a mistura de sabores, e seu irmão tomava muito cuidado com isso.
– Escute, eu sinto muito se não estava quando você foi à boate ontem à noite – todas as noites, iAm ia para o Iron Mask para dar uma olhada depois que o Sal’s fechava. – Tive que cuidar de uns assuntos.
Merda, se teve. A garota do namorado grosseiro levou uma eternidade para sair do seu carro quando ele a levou para a casa dela. No fim, ele a acompanhou até a porta, abriu e só faltou empurrá-la para dentro. De volta ao carro, ele acelerou como se tivesse plantado uma bomba na calçada e, enquanto seguia para o Iron Mask, tudo o que ouvia em sua cabeça era a voz de iAm.
Você não pode continuar a fazer isso.
A essa altura, iAm se virou, cruzou os braços sobre o peito e se recostou ao fogão. Os bíceps já eram grandes, mas com os braços cruzados daquele jeito, forçavam a borda da camiseta preta que ele vestia.
Os olhos amendoados estavam semicerrados.
– Você acha mesmo que eu estou bravo porque você não estava quando fui ao clube? Sério? E não por que você me deixou para lidar com AnsLai ou qualquer asneira do tipo...
Eeeee estavam todos a postos.
– Sabe que não posso me encontrar com o cara – Trez levantou as mãos como se quisesse dizer que não havia nada que ele pudesse fazer. – Eles tentariam me forçar a voltar com eles e, então, quais seriam as minhas opções? Brigar? Eu acabaria lutando com o filho da puta e onde eu iria parar com isso?
iAm esfregou os olhos como se estivesse com dor de cabeça.
– Neste instante, parece que eles estão tomando uma abordagem diplomática. Pelo menos comigo.
– Quando vão voltar?
– Não sei. É isso o que está me deixando nervoso.
Trez enrijeceu. A ideia de que seu irmão frio como peixe estivesse ansioso o fez sentir como se estivesse com uma faca no pescoço.
Pensando bem, ele sabia muito bem o quanto o seu povo podia ser perigoso. O s’Hisbe era conhecido como uma tribo pacífica, satisfeita em se manter ao largo das lutas contra a Sociedade Redutora e dos desagradáveis humanos. Educados, muito inteligentes e espirituais, eles eram, como um todo, um grupo agradável. Desde que você não estivesse na lista negra deles.
Trez olhou para as panelas e se perguntou qual seria a carne no molho.
– Ainda estou em débito com Rehv – ele observou. – Portanto, essa obrigação deve vir em primeiro lugar.
– Não para o s’Hisbe. AnsLai disse, e vou citar suas palavras: “Chegou a hora”.
– Não vou voltar – ele fitou os olhos do irmão. – Isso não vai acontecer.
iAm voltou para as panelas, mexendo em cada uma com a colher designada.
– Sei disso. E é por isso que estou cozinhando. Estou tentando encontrar uma saída.
Deus, como ele amava o irmão. Mesmo irritado, o cara tentava ajudar.
– Desculpe-me por ter desaparecido e ter feito você cuidar disso. Sinto muito mesmo. Não foi justo... Eu só... bem, não achei seguro estar no mesmo cômodo que aquele cara. Sinto muito.
O peito largo de iAm subiu e desceu.
– Sei que sente.
– Eu poderia simplesmente desaparecer e o problema estaria resolvido.
Ainda que deixar iAm para trás o matasse. A questão era que, caso ele fugisse do s’Hisbe, ele jamais teria contato com o macho novamente. Nunca mais.
– Para onde você iria? – iAm observou.
– Não faço ideia.
A boa notícia é que o s’Hisbe não gostava de ter nenhum contato com os Desconhecidos. Sem dúvida, só aparecer no apartamento dele e de iAm fora traumático, mesmo se o sumo sacerdote tivesse se desmaterializado até a varanda. Lidar diretamente com humanos? Estar ao lado deles? A cabeça de AnsLai explodiria.
– Então, qual era o seu assunto? – perguntou iAm.
Maravilha. Mais um assunto igualmente feliz.
– Fui ver aquele armazém – ele desviou. Mas, cacete, até parece que ele tocaria no assunto da garota com o namorado espontaneamente.
– A uma da manhã?
– Fiz uma oferta.
– De quanto?
– Um milhão e quatrocentos. O preço pedido era de dois milhões e meio, mas não vão conseguir esse montante de jeito nenhum. O lugar está vazio há anos e demonstra isso – embora, ao dizer isso em voz alta, ele teve que admitir que sentira presenças lá. Pensando bem, talvez fosse apenas o seu estresse o responsável por isso. – Meu palpite é que vão dar uma contraoferta de dois milhões, eu subo para um e seiscentos e acabamos acordando em um e setecentos.
– Tem certeza de que quer iniciar esse projeto agora? A menos que apareça no território com o seu mastro matrimonial pronto para ser usado, esta questão com o s’Hisbe só vai piorar.
– Se as coisas chegarem a esse ponto, eu cuido disso na hora certa.
– Quando – iAm o corrigiu. – A questão é “quando”. E sei o que aconteceu no estacionamento, Trez. Com aquele cara e a mulher.
Claaaaro que sim.
– Viu as fitas ou algo assim?
Maldita câmera de segurança.
– Sim.
– Eu cuidei daquilo.
– Assim como está cuidando do s’Hisbe. Perfeito.
Com o humor afetado, Trez se inclinou.
– Quer calçar os meus sapatos, irmãozinho? Eu bem que gostaria de saber como você lidaria com essa merda toda.
– Eu não estaria fodendo putas, isso eu garanto. O que me faz pensar... o nosso corretor é uma fêmea, não?
– Foda-se, iAm. De verdade.
Trez se levantou do banquinho e marchou para fora da cozinha. Ele já tinha problemas suficientes, pelo amor de Deus, não precisava do senhor Superior com habilidades de Julia Child palpitando sobre o assunto com doze tipos de panelas...
– Você não pode continuar postergando esse assunto – iAm chamou de lá de trás. – Ou tentando enterrá-lo entre as pernas das mulheres.
Trez parou, mas manteve o olhar fixo na saída.
– Simplesmente não pode – o irmão afirmou com franqueza.
Trez girou. iAm estava perto do bar, a porta em vaivém mexendo atrás dele formando um efeito de estroboscópio de luz, escuro, luz, escuro. Toda vez que a luz surgia, parecia que seu irmão tinha um halo ao redor de todo o corpo.
Trez praguejou.
– Só preciso que me deixem em paz.
– Eu sei – iAm esfregou a cabeça. – E, honestamente, não sei que porra fazer a respeito. Não consigo me imaginar vivendo sem você, e também não quero voltar para lá. Só que também não encontrei alternativas.
– Aquelas mulheres... sabe, as que eu... – Trez hesitou. – Não acha que elas me excitam?
– Se elas não fazem isso – iAm disse secamente –, não sei porque perde tempo com elas.
Trez teve que dar um sorriso.
– Não, estou falando do s’Hisbe. Estou bem longe de ser virgem a esta altura – pelo menos ele ainda não se rebaixara a animais de fazenda. – E o que é pior? Todas eram Desconhecidos, a maioria humanas. Isso deve enojá-los. Estamos falando da filha da rainha!
Enquanto iAm franzia o cenho como se estivesse considerando a ideia, Trez sentiu uma centelha de esperança.
– Não sei, não – veio a resposta. – Talvez isso funcione, mas ainda assim você negou a Sua Alteza o que ela quer e precisa. Se eles o considerarem desonrado, podem muito bem decidir matá-lo como castigo.
Que seja. Eles teriam que encontrá-lo primeiro.
Numa onda de agressão, Trez abaixou o queixo e olhou fixo por debaixo das sobrancelhas.
– Se esse for o caso, eles vão ter que lutar comigo. E eu garanto que isso não vai acabar bem para eles.
Na mansão da Irmandade, Wrath entendeu que sua rainha estava aborrecida no instante em que ela passou pelas portas do escritório. Seu cheiro atraente estava maculado por uma pontada de acidez: ansiedade.
– O que foi, leelan? – ele quis saber, estendendo os braços.
Mesmo não enxergando, suas lembranças lhe davam uma imagem mental dela cruzando o tapete Aubusson, com o corpo longo e atlético se movendo com graciosidade, os cabelos escuros soltos sobre os ombros, o lindo rosto marcado por tensão.
Naturalmente, o macho vinculado dentro dele desejou perseguir e matar o que quer que a tivesse perturbado.
– Olá, George – disse ela ao cão. Pelo barulho de batidas ritmadas no chão, ele supôs que o cachorro tivesse recebido uma dose de amor antes.
E então foi a vez do dono.
Beth subiu no colo de Wrath, o peso próximo de nada, o corpo quente e vivo enquanto ele passava os braços ao seu redor e a beijava nas laterais do pescoço e depois na boca.
– Jesus – grunhiu ele, sentindo a rigidez no corpo dela –, você está aborrecida mesmo. Que merda está acontecendo?
Deus do céu, ela estava tremendo. Sua rainha estava, de fato, tremendo.
– Fale comigo, leelan – insistiu, esfregando-lhe as costas. E se preparando para se armar e sair em plena luz do sol se preciso fosse.
– Bem, você sabe sobre Layla – disse ela com voz rouca.
Ahhhh.
– Sim, sei. Phury me contou.
Enquanto a cabeça dela se posicionava em seu ombro, ele a ajeitou, aninhando-a em seu peito – e isso era bom. Havia vezes – não muitas, mas ocasionais – em que ele se sentia menos macho por conta de sua falta de visão: no passado, um lutador, agora, preso atrás daquela mesa. Um dia livre para ir aonde bem quisesse, agora, dependendo de um navegador canino. Certa vez absolutamente autossuficiente, agora, precisando de ajuda.
Não muito bom para os colhões de um macho.
Mas em momentos como aquele, quando aquela fêmea maravilhosa estava incomodada e o procurava, e somente a ele, para conforto e segurança, ele se sentia mais forte que uma maldita montanha. Afinal, machos vinculados protegiam suas fêmeas com tudo o que tinham, e mesmo com o fardo do seu direito de nascimento e aquele trono em que era obrigado a se sentar, ele, em seu cerne, permanecia o hellren daquela fêmea.
Ela era a sua primeira prioridade, acima inclusive daquela coisa toda de reinado. A sua Beth era o seu coração atrás das costelas, o tutano dentro de seus ossos, a alma em seu corpo físico.
– É tudo tão triste – disse ela. – Tão triste.
– Você foi vê-la?
– Acabei de ir. Ela está descansando. Quero dizer... de certa forma, custo a acreditar que não haja nada a ser feito.
– Falou com a doutora Jane?
– Assim que eles voltaram da clínica.
Enquanto a sua shellan chorava um pouco, o cheiro das lágrimas frescas de sua amada era como uma adaga em seu peito, e ele não estava surpreso com a reação dela. Ouvira dizer que as fêmeas lidavam muito mal com a perda da gravidez de outra fêmea – e como não ser assim? Ele, por certo, conseguia se colocar no lugar de Qhuinn.
E, ah, Deus... a ideia de Beth sofrer daquele modo? Ou pior, de conseguir levar adiante a gestação e depois...
Ótimo. Agora era ele quem tremia.
Wrath abaixou o rosto para os cabelos de Beth, inspirando, acalmando-se. A boa notícia era que eles jamais teriam um filho, portanto, ele não tinha com que se preocupar.
– Eu sinto muito – sussurrou.
– Eu também. Odeio o que eles estão passando.
Bem, na verdade, ele estava se desculpando por outra coisa completamente diferente.
Não que ele quisesse que uma merda daquelas acontecesse com Qhuinn, Layla e o filho deles. Mas talvez se Beth enxergasse a triste realidade, ela se lembraria de todos os riscos que se apresentavam a eles em todas as etapas de uma gestação.
Porra. Aquilo soava horrível. Era horrível. Pelo amor de Deus, ele não queria mesmo nada daquilo para Qhuinn, e tampouco queria ver sua shellan triste. Infelizmente, porém, a triste realidade era que ele não tinha absolutamente interesse algum em plantar sua semente nela daquele jeito – jamais.
E esse tipo de desespero fazia com que um cara pensasse em coisas imperdoáveis.
Numa onda de paranoia, ele calculou mentalmente os anos desde a transição dela – um pouco mais do que dois. Pelo que sabia, as fêmeas vampiras, em média, passavam pelo primeiro cio uns cinco anos após a transformação, e a cada dez anos depois disso. Portanto, eles tinham um bom tempo antes de terem de se preocupar com tudo isso...
Pensando bem, como mestiça, não havia garantias no caso de Beth. Quando os humanos e os vampiros se misturavam, qualquer coisa podia acontecer... E ele tinha motivos para se preocupar. Afinal, ela já mencionara filhos uma ou duas vezes.
Mas, obviamente, aquilo só podia ser hipoteticamente.
– E então, você vai postergar a iniciação de Qhuinn? – ela perguntou.
– Sim. Saxton já atualizou a lei, mas Layla estando assim? Não é o momento de trazê-lo para a Irmandade.
– Foi o que pensei.
Os dois se calaram, e enquanto Wrath guardava aquele momento em seu coração, não conseguiu imaginar sua vida sem ela.
– Sabe de uma coisa? – perguntou.
– O quê? – havia um sorriso na voz dela, do tipo que dizia a ele que ela sabia para onde a conversa estava indo.
– Eu amo você mais do que tudo.
Sua rainha deu uma leve risada, e o afagou no rosto.
– Eu jamais teria imaginado isso.
Inferno, até ele captava a onda de seu odor de vinculação.
Em resposta, Wrath segurou o rosto dela entre as palmas e se inclinou, encontrando seus lábios e depositando um beijo suave, que não permaneceu assim. Caramba, era sempre assim com ela. Qualquer contato e, antes que se desse conta, já estava rígido e pronto.
Deus, não sabia como os homens humanos lidavam com isso. Pelo que entendia, eles tinham de adivinhar se seus pares estavam férteis toda vez que faziam sexo – evidentemente, eles não tinham como captar a alteração nos odores de suas fêmeas.
Ele enlouqueceria. Pelo menos quando uma vampira estava no cio, todos sabiam.
Beth mudou de posição em seu colo, apertando a sua ereção e fazendo-o gemer. E, normalmente, essa era a dica para George ser levado para o outro lado das portas duplas, banido temporariamente. Mas não naquela noite. Por mais que Wrath a desejasse, a tristeza presente na casa aplacava até mesmo a sua libido.
E também havia a questão do cio de Autumn. E de Layla.
Ele não iria mentir; aquela merda o estava deixando ansioso. Sabia-se que hormônios no ar tinham um efeito ricochete numa casa cheia de fêmeas, influenciando umas às outras ao cio, desde que seu período estivesse próximo.
Wrath afagou os cabelos de Beth e voltou a acomodar a cabeça dela em seu ombro.
– Você não quer...
Enquanto ela deixava a frase inacabada, ele pegou a sua mão e a levantou, sentindo o peso do anel de rubi que a rainha da raça sempre usava.
– Só quero abraçar você – disse ele. – Isso basta para mim agora.
Aninhando-se, ela se encaixou ainda mais perto dele.
– Bem, isto também é gostoso.
Sim. Era.
E curiosamente aterrador.
– Wrath?
– Sim?
– Você está bem?
Demorou um pouco para ele confiar na voz e responder:
– Sim, estou bem. Tudo bem.
Ao alisar o braço dela, para cima e para baixo, ele rezou para que ela acreditasse... e jurou que o que acontecia no quarto no fim do corredor nunca, jamais, aconteceria com eles.
Não. Os dois não teriam de lidar com aquele tipo de crise.
Graças à Virgem Escriba.
CAPÍTULO 42
Claro que Layla não estava dormindo.
Quando pediu a Qhuinn que saísse, ela falou sério quanto a não querer sustentar uma fachada de força diante dele. Mas o mais engraçado era que mesmo sem ninguém por perto, ela não ficou histérica. Não chorou. Não praguejou.
Apenas ficou deitada de lado com os braços e as pernas enroscados, a mente recuada para dentro do corpo e monitorando constantemente cada dor e cólica numa compulsão que a enlouquecia. No entanto, não havia como mudar aquilo. Era como se uma parte dela estivesse convencida de que se ao menos ela soubesse em que estágio estava, ela poderia, de algum modo, monitorar o processo.
O que, na verdade, era uma tremenda tolice. Como Qhuinn bem diria.
A imagem dele na clínica, com a adaga no pescoço do médico, era algo saído de um dos livros da biblioteca do Santuário – um episódio dramático que era parte da vida de outra pessoa.
Sua posição na cama, porém, fazia com que ela lembrasse que o caso não era bem esse...
A batida à porta foi suave, sugerindo se tratar de uma fêmea.
Layla fechou os olhos. Por mais que apreciasse qualquer tipo de gentileza que aguardava uma resposta, ela preferiria que quem quer que estivesse no corredor, continuasse lá. A breve visita da rainha fora uma provação, mesmo ela tendo apreciado.
– Sim – quando sua voz mal soou em seus ouvidos, ela pigarreou e repetiu: – Sim?
A porta abriu e, a princípio, ela não reconheceu quem era na sombra que preenchia o espaço entre os batentes da porta. Alta. Forte. Porém, não um macho...
– Payne? – perguntou.
– Posso entrar?
– Sim, claro.
Enquanto Layla tentava se sentar, a fêmea guerreira gesticulou para que ela continuasse deitada, e depois fechou a porta.
– Não, não... por favor, fique à vontade.
Um abajur fora deixado aceso sobre a cômoda e, na luz suave, a irmã de sangue de Vishous da Irmandade da Adaga Negra parecia temerária, com os olhos de diamante parecendo reluzir para fora dos ângulos fortes do rosto dela.
– Como você está? – a fêmea perguntou com suavidade.
– Estou bem, obrigada. E você?
A lutadora deu um passo à frente.
– Eu sinto muito quanto... à sua condição.
Ah, como Layla desejava que aquilo fosse algo que Phury e os outros não tivessem partilhado com ninguém. Em retrospecto, a saída da casa fora um tanto dramática, o tipo de evento que causaria perguntas preocupadas. Ainda assim, sua privacidade preferia evitar esse tipo de invasão indesejável, ainda que misericordiosa.
– Agradeço as suas palavras gentis – sussurrou.
– Posso me sentar?
– Sim, claro.
Ela imaginou que a fêmea fosse se sentar numa das cadeiras dispostas mais ao longe. Não foi o que Payne fez. Ela se aproximou da cama e abaixou o peso ao lado de Layla.
Compelida a, pelo menos, parecer uma boa anfitriã, Layla tentou se suspender, fazendo uma careta quando uma nova onda de cólicas a imobilizou no meio do caminho.
Enquanto Payne praguejava baixinho, Layla teve que voltar a se deitar. Com voz rouca, disse:
– Perdoe-me, mas não posso receber visitas agora, por mais que me queira bem. Obrigada por expressar a sua empatia...
– Você sabe quem é a minha mãe – Payne a interrompeu.
Layla balançou a cabeça ao encontro do travesseiro.
– Por favor, saia...
– Sabe? – a fêmea perguntou com rispidez.
Abruptamente, Layla quis chorar. Simplesmente não tinha forças para qualquer tipo de conversa, ainda mais a respeito de mahmens. Não enquanto perdia o filho.
– Por favor.
– Sou filha da Virgem Escriba.
Layla franziu o cenho, as palavras sendo compreendidas mesmo em meio à dor, tanto física quanto mental.
– O que disse?
Payne inspirou profundamente, como se a revelação não fosse algo com que se alegrasse, mas como se fosse um tipo de maldição.
– Sou da carne da Virgem Escriba, nascida há muito tempo, e ocultada dos registros das Escolhidas e dos olhos de outrem.
Layla piscou em estado de choque. A aparição da fêmea fora um tipo de mistério, mas ela certamente não fizera nenhuma pergunta, pois isso não cabia a ela. A única coisa que sabia com convicção é que jamais houve registro algum da mãe sagrada da raça um dia ter dado à luz uma criança.
Na verdade, a estrutura completa do sistema de crença era prevista no fato de isso não ter ocorrido.
– Como isso é possível? – arfou Layla.
Os olhos brilhantes de Payne estavam sérios.
– Não era o que eu desejaria. E não é algo de que fale a respeito.
No momento tenso que se seguiu, Layla considerou impossível não ver a verdade naquilo que a fêmea falava. Tampouco a raiva, cuja causa ela apenas podia supor.
– Você é sagrada – disse Layla maravilhada.
– Nem um pouco, eu lhe garanto. Mas minha linhagem me concedeu um tipo de... como posso explicar? Habilidade.
Layla se enrijeceu.
– Que seria...?
Os olhos de diamante de Payne não se desviaram.
– Quero ajudá-la.
As mãos de Layla foram para o baixo ventre.
– Se quer abreviar isto... não.
Ela tinha seu filho por um tempo curto demais. Não importava a dor que tivesse que passar, ela não sacrificaria um minuto sequer daquilo que, sem dúvida, seria sua única gestação.
Ela jamais se colocaria à mercê de outro sofrimento assim. No futuro, quando seu cio chegasse, ela seria sedada e pronto.
Aquele tipo de perda uma vez na vida já era demais.
– E se acredita que pode deter isto – Layla continuou –, isso não é possível. Não há nada que ninguém possa fazer.
– Não estou tão certa disso – o olhar de Payne era enlevado. – Eu gostaria de ver se posso salvar esta gestação. Se me permitir.
No campus abandonado da Escola para Moças Brownswick, o Sr. C. se acomodou no que um dia fora o escritório da diretora.
Era o que estava escrito na placa rachada do lado de fora da sala.
Como não havia calefação, a temperatura ambiente não estava muito maior do que a do lado de fora, mas graças ao sangue de Ômega, o frio não era um problema. Ainda bem: do outro lado do gramado crescido coberto de neve, no dormitório principal sobre uma colina, quase cinquenta redutores dormiam o sono dos mortos.
Se aqueles malditos necessitassem de aquecimento ou de comida, ele estaria sem sorte alguma.
Mas não, tudo o que ele tinha de fazer era providenciar um abrigo. A iniciação cuidaria do resto – e o fato de que precisavam desligar a consciência a cada 24 horas era um alívio.
Ele precisava de tempo para pensar.
Jesus Cristo, que confusão.
Compelido pela necessidade de se mexer, ele empurrou a cadeira para trás e se lembrou de que estava se sentando sobre um balde de argamassa virado ao contrário.
– Maldição.
Olhando ao redor da sala decrépita, ele mediu as placas de gesso penduradas das vigas do teto, as janelas cobertas por tábuas de madeira, e o buraco em uma das tábuas do piso no canto. O lugar era igual à conta bancária que ele encontrara.
Nenhum dinheiro em lugar algum. Munição zero. Armas que podiam ser usadas em combate à força, e só.
Depois de sua promoção, ele se viu cheio de energia, de planos. Agora encontrava-se diante de nenhum dinheiro, nenhum recurso, nada.
Ômega, por outro lado, esperava todo tipo de resultado. Como deixara bem claro no “encontro” deles na noite anterior.
E também havia outro problema. Ele odiava aquela merda.
Pelo menos ele podia fazer algo a respeito de todo o resto.
Esticando os braços acima da cabeça e estalando os ombros, agradeceu a Deus por duas coisas: uma, os celulares não tinham sido desligados, por isso ele podia se comunicar com seus homens no campo de batalha. E dois, todos aqueles anos na rua lhe deram os punhos de ferro no que se referia a controlar o bando de idiotas do tráfico de drogas.
Tinha de arranjar dinheiro. Logo.
Ele teve uma porra de um plano para isso também, mandando os últimos nove mil dólares com aqueles três garotos no meio da noite. Tudo o que os malditos tinham de fazer era pagar, pegar a droga e trazer para ali, onde dividiriam a merda, depois distribuiriam entre os novos recrutas para que eles vendessem nas ruas.
O problema era que ele ainda estava esperando pela porra da entrega.
E estava ficando puto de tanto esperar para descobrir se as drogas e o dinheiro tinham sumido.
Era bem possível que aqueles merdinhas tivessem fugido com um ou com o outro, mas, nesse caso, ele os caçaria como cachorros para mostrar aos outros o que acontecia quando você...
Quando seu celular tocou, ele o pegou, viu quem era e apertou o botão de chamada.
– Já era hora. Onde diabos você está e cadê minha mercadoria?
Houve uma pausa. Depois, a voz que se ouviu pela conexão não era nada parecida com a do traficante cheio de espinhas para quem ele entregara o celular e a última pistola da Sociedade que funcionava.
– Tenho uma coisa que você quer.
O Sr. C. franziu a testa. Voz grave. Envolta numa impaciência que ele reconhecia das ruas, e um sotaque que ele não sabia de onde vinha.
– Não é essa merda com a qual você está falando comigo – disse o Sr. C. com fala arrastada. – Tenho um monte desses.
Afinal de contas, quando você não tem nada na mão, no coldre ou na carteira, blefar era a sua única opção.
– Ora, que bom para você. Também tem muito do que me mandou? Dinheiro? Soldados?
– Quem diabos está falando?
– Sou seu inimigo.
– Se você ficou com a porra da minha grana, pode apostar que sim.
– Na verdade, essa é uma resposta bem simplista para um problema um tanto complexo.
O Sr. C. se pôs de pé, derrubando o balde.
– Onde está a porra do meu dinheiro e o que fez com os meus homens?
– Lamento, mas eles não podem mais atender ao telefone. É por isso que estou ligando.
– Você não faz ideia com quem está lidando – o Sr. C. ameaçou.
– Pelo contrário, é você quem está em desvantagem, bem como tantos outros – quando o Sr. C. estava pronto para rebater, o cara o interrompeu. – Eis o que vamos fazer. Vou telefonar à noite para lhe dar uma localização. Você, e apenas você, vai me encontrar lá. Se alguém o acompanhar, eu saberei, e você nunca mais vai saber de mim.
O Sr. C. estava acostumado a sentir desdém pelos outros, isso era parte do trabalho uma vez que você só lida com ladrões de merda e malditos viciados. Mas esse cara do outro lado da conexão? Controlado. Calmo.
Um profissional.
O Sr. C. controlou seu humor.
– Não preciso de nenhum joguinho...
– Sim, precisa. Porque se você quiser drogas para vender, terá que vir a mim.
O Sr. C. ficou calado. Ou aquele era um lunático cheio de ilusões de grandeza ou... era alguém com poder de verdade. Talvez o tipo que matou os intermediários do cartel de drogas em Caldwell um ano antes.
– Quando e onde? – disse de má vontade.
Houve uma risada sombria.
– Atenda o seu telefone ao cair da noite e você descobrirá.
CAPÍTULO 43
Layla não conseguiu falar enquanto tentava compreender as palavras de Payne.
– Não – disse à outra fêmea. – Não, Havers me disse que... não havia nada que pudesse ser feito.
– Na medicina, isso pode ser verdade. Eu posso ter outro modo, porém. Não sei se funcionará, mas, se permitir, eu gostaria de ver o que posso fazer.
Por um instante, Layla só conseguiu respirar.
– Eu não... – pôs a mão no abdômen liso. – O que fará comigo?
– Não sei bem, para ser sincera – Payne deu de ombros. – Na verdade, nem me passou pela cabeça que eu poderia ajudar nesta situação. Mas sou conhecida por curar aquilo que precisa ser curado. Repito, não sei se isso se aplica neste caso. Contudo, podemos tentar... e isso não a machucará. Isso eu posso prometer.
Layla perscrutou a expressão da lutadora.
– Por que... faria uma coisa dessas por mim?
Payne franziu o cenho e desviou o olhar.
– Você não precisa saber os motivos.
– Sim, preciso.
O perfil dela se tornou absolutamente frio.
– Você e eu somos irmãs da tirania de minha mãe, casualidades de seu plano maior de como as coisas devem ser. Estivemos as duas enjauladas em seus modos diversos, você como uma Escolhida; eu, como sua filha de sangue. Não há nada que eu não faça para ajudá-la.
Layla se recostou. Jamais se considerara uma desventura da mãe da raça. A não ser... ao pensar em seu desespero em ter uma família, seu senso de não ter raízes, sua absoluta falta de identidade além do trabalho de uma Escolhida... ela teve o que pensar. O livre-arbítrio a levava àquela situação horrenda, mas, pelo menos, ela escolhera a rota e os meios. Como membro da classe especial da Virgem Escriba, não tivera muitas escolhas, a respeito de nada em sua vida.
A respeito de nada mesmo.
Ela estava perdendo aquela gravidez, aquilo era óbvio. E se Payne achava que existia uma chance de...
– Faça o que precisar fazer – disse com voz rouca. – E obrigada, não importando o resultado.
Payne assentiu uma vez. Depois esticou as mãos, flexionando e afastando os dedos.
– Posso tocar no seu abdômen?
Layla abaixou as cobertas.
– Devo tirar a camisa?
– Não.
Melhor assim. A simples retirada da colcha lhe provocara uma nova onda de dor, a mínima mudança de peso era causa de...
– Você está sofrendo muito – murmurou a outra fêmea.
Layla não respondeu ao expor a pele do abdômen. Obviamente, sua expressão já dizia o bastante.
– Apenas relaxe. Isso não deverá lhe causar nenhum desconforto...
Quando o contato foi feito, Layla levantou a cabeça. As mãos da lutadora estavam quentes como a água de uma banheira. E igualmente calmas. Estranhamente calmas, para falar a verdade.
– Isto dói? – Payne perguntou.
– Não. Parece... – quando uma nova onda de dor se avolumava, ela agarrou os lençóis, se preparando...
Só que o pico da dor não se elevou como antes, como se a sensação fosse uma montanha íngreme, cujo topo fora arrancado.
Era o primeiro alívio que sentia desde que tudo aquilo começara.
Com um gemido de submissão, ela deixou a cabeça pender, o travesseiro amparando o repentino cansaço que a abateu pelo tanto de desconforto pelo qual seu corpo passara.
– E agora nós começamos.
De repente, a luz do abajur tremulou... e depois se apagou.
Sua iluminação, contudo, logo foi substituída.
Das mãos pálidas de Payne um brilho suave começou a ser lançado. O calor de seu toque se intensificou, o abrandamento estranho e maravilhoso parecia penetrar em sua pele, nos músculos, em cada osso que estava no caminho... indo direto para o ventre de Layla.
E, então, houve um tipo de explosão.
Com um sibilo, ela se entregou à grande onda de energia que abruptamente surgiu dentro dela, um calor que não queimava, mas fervia afastando a dor, suspendendo a agonia e arrancando-a de sua carne, como se o vapor de uma panela se dissipasse.
Mas não acabou ali. Uma grande sensação de euforia em seu corpo inteiro, com cachos dourados pulsando para fora de sua região pélvica e fluindo pelo torso até a mente e também em sua alma, e pernas e braços formigando.
Ah, que alívio pungente.
Ah, que poder incrível.
Ah, graça salvadora gentil.
A cura, contudo, não estava completa.
No meio do turbilhão, Layla sentiu... o que era aquilo? Um movimento em seu útero. Uma contração, talvez? Mas não uma cólica, não, nada disso. Mais como se o que estivesse defasado tivesse recuperado as forças.
Ela, gradualmente, deu-se conta de que batia os dentes.
Olhando para baixo, para seu corpo, ela viu que tudo tremia, e não só isso.
Sua forma física estava brilhando. Cada centímetro de sua pele era como uma cúpula de um abajur, revelando a luz que jazia por baixo, as roupas agindo como barreiras frágeis daquilo que fervia lentamente dentro dela.
Na iluminação, o rosto de Payne estava contraído, como se fosse um custo alto transferir a cura maravilhosa para outra pessoa. E Layla teria se distanciado, colocado um fim naquilo, se pudesse – porque a outra fêmea começava a parecer muito cansada. No entanto, não havia como romper a ligação. Ela não tinha o controle dos seus membros, não tinha como falar.
Aquela comunhão vital entre as duas pareceu durar uma eternidade.
Quando Payne finalmente se afastou, rompendo o elo, ela caiu da cama, formando uma pilha no chão.
Layla abriu a boca para gritar. Tentou segurar sua salvadora. Lutou contra o peso morto do corpo ainda iluminado.
Todavia, não havia nada que ela pudesse fazer.
A última coisa que ficou registrada antes que perdesse a consciência era a sua preocupação com a outra fêmea. E, depois, tudo ficou escuro.
CAPÍTULO 44
Qhuinn despertou com o pênis duro.
Estava deitado de costas e seus quadris se mexiam por conta própria, o movimento contínuo resvalava a ereção contra o peso dos lençóis e da colcha. Por um instante, enquanto se demorava naquele estado meio dormente antes de a consciência chegar, ele imaginou que era Blay criando aquela fricção, as palmas do macho subindo e descendo... num preâmbulo de mais ação oral.
Foi quando abaixou a mão para enterrar os dedos nos cabelos ruivos que percebeu estar sozinho: a mão encontrou apenas os lençóis.
Numa atitude otimista, lançou o braço para o lado, tateando o lugar ao seu lado, pronto para encontrar o corpo quente do macho.
Apenas mais lençóis. E estavam frios.
– Cacete – inspirou.
Abrindo os olhos, a realidade de onde estava o atingiu com força, murchando a sua ereção. Apesar dos encontros, aqueles dois interlúdios maravilhosos e extremamente sensuais, Blay estava, naquele exato instante, acordando ao lado de Saxton.
Provavelmente fazendo sexo com o cara.
Ah, Deus, ele ia vomitar.
A ideia de Blay tocando em outro, cavalgando em outro, lambendo e afagando outro – seu maldito primo, para ser bem claro – era quase tão insuportável quanto a maldita situação de Layla. A verdade era que, graças ao que acontecera, qualquer atração que Qhuinn sentisse pelo cara aumentara em vez de diminuir.
Maravilha. Outra rodada de boas notícias.
Foi sem nenhum entusiasmo que Qhuinn se arrastou para fora da cama e entrou no banheiro. Não acendeu a luz, não tinha interesse algum em ver que sua aparência era a mesma da merda de um cachorro, mas barbear-se só pelo toque não era a melhor das ideias.
Ao apertar o interruptor, piscou com força, e uma dor de cabeça começou a latejar atrás de ambos os olhos. Sem dúvida precisava comer de novo, mas que merda, as exigências constantes de seu corpo estavam acabando com ele.
Abrindo a torneira, ele pegou o gel de barbear e colocou um punhado na palma. Esfregou as mãos para criar espuma e pensou em seu primo. Ele tinha a impressão, embora não soubesse com certeza, de que Saxton usaria um daqueles pincéis antigos para espalhar a espuma no rosto. E nada de lâminas Gilette para ele. Muito provavelmente ele tinha um daqueles instrumentos de barbeiro com cabo em madrepérola.
O pai de Qhuinn tinha um desses. E seu irmão recebera um com suas iniciais após sua transição.
Junto ao anel de sinete.
Bem, ótimo para eles. Além do que, já que ambos estavam mortos, não era como eles continuassem se barbeando.
Quando o rosto ficou coberto de branco, como o cenário lá de fora, ele pegou sua lâmina comum Mach 3 com cabeça descartável...
Sem nem saber por que, achou que devia pegar uma lâmina nova.
Sim, uma supernova e ultracortante.
Qhuinn revirou os olhos para si mesmo. Nada como se concentrar em três pequenas lâminas e uma tira umidificadora. Algo bem lógico.
Depois de se admoestar, ele começou a vasculhar as gavetas do gabinete, puxando-as uma a uma, inventariando os itens de tolices de higiene que nunca usava, nem jamais sequer perdia tempo olhando-as.
Puxando a última, a mais próxima do chão, parou. Franziu o cenho. Agachou.
Havia uma caixinha preta de veludo ali, do tipo em que se colocam joias. Só que ele não tinha nenhuma, e muito menos da Reinhardt, aquela loja esnobe no centro. Como ninguém mais ficava em seu quarto, ele se perguntou se, talvez, aquilo estivesse ali desde que ele se mudara e ele simplesmente nunca o vira.
Tirando a caixinha, levantou a tampa e...
– Filho da mãe.
Dentro, como se valesse muita coisa, estavam todos os seus brincos de argola, bem como o piercing que costumava usar no lábio inferior.
Fritz deve tê-los juntado ao limpar o quarto uma noite e guardado na caixinha. Única explicação possível, porque Qhuinn não se importara com eles depois de tirá-los, um a um. Simplesmente os jogara no fundo de uma das gavetas do banheiro.
Qhuinn mexeu nas argolas de aço, relembrando quando as comprara e colocara. Seu pai ficara mortificado; a mãe também – ao ponto de se retirar da Última Refeição e ficar trancada no quarto por 24 horas seguidas depois de ele entrar flanando na sala de jantar usando-as.
O colocador de piercings lhe dissera para não usá-los até que as tachas utilizadas para perfurar tivessem a chance de cicatrizar. Mas esse conselho era para humanos. Em poucas horas, estava tudo perfeito e ele fizera a troca.
No banheiro de Blay, para falar a verdade.
Qhuinn franziu a testa, lembrando-se do momento em que pisara no quarto do cara. Blay estava na cama, acalentando uma Corona, assistindo TV. A cabeça dele se virou, com sua expressão franca e relaxada... até dar uma olhada em Qhuinn.
Seu rosto se contraiu mesmo que minimamente. De um jeito que, a menos que você conhecesse bem, muito bem uma pessoa, jamais teria percebido. Mas Qhuinn notara.
Naquela época, deduzira que seu estilo obviamente gótico fosse um tantinho demais para o senhor Conservador. Mas agora, em retrospecto, ele se lembrou de algo mais. Blay voltara a se concentrar na TV de plasma... e, casualmente, cobrira o colo com uma almofada.
Ele deve ter ficado excitado.
Enquanto Qhuinn repassava a cena inteira na mente, seu próprio sexo voltava a engrossar.
Só que aquilo era uma completa perda de tempo, não era?
Fitando as malditas argolas, pensou em sua rebeldia, na raiva e na ideia sem noção do que precisava ter para ser feliz.
Uma fêmea. Se encontrasse uma que o aceitasse.
Que... mentira... fora aquilo.
Engraçado, a covardia aparecia em muitas formas, não é? Não era necessário se encolher num canto, tremendo e choramingando como um gatinho. Inferno, não. Você pode ser um grandalhão barulhento cheio de marra e com o rosto cheio de piercings e um rosnado para mostrar para o mundo... e ainda assim não passar de um covarde filho da puta. Afinal, Saxton podia vestir ternos de três peças e gravatas e sapatos, mas o macho sabia quem era, e não tinha medo de ter aquilo que desejava.
E, olha só, Blay estava acordando ao lado do cara.
Qhuinn fechou a tampa e recolocou os piercings onde os encontrara. Depois se olhou no espelho. O que estava fazendo mesmo?, pensou ao fitar seu reflexo.
Ah, sim. Barbeando-se.
Era isso mesmo.
Cerca de vinte minutos mais tarde, Qhuinn saiu do quarto. Andou pelo corredor das estátuas, passou pelas portas fechadas do escritório de Wrath e continuou em frente.
Enquanto avançava, foi difícil olhar para a sala de estar do segundo andar, difícil permanecer controlado quando aquele sofá surgiu no seu campo de visão.
Nunca mais olharia para aquela peça de mobília do mesmo modo. Inferno, talvez todos os sofás estivessem perdidos para ele, para sempre.
À porta de Layla, ele se inclinou encostando o ouvido na madeira. Quando não ouviu nada, perguntou-se exatamente o que achava que descobriria daquele modo.
Deu uma batida suave. Quando não houve resposta, sentiu um aperto de medo irracional na garganta e, sem pensar duas vezes, abriu a porta.
A luz invadiu a escuridão.
Seu primeiro pensamento foi que ela tivesse morrido; que Havers, o filho da puta, tivesse mentido, e que o aborto tivesse saído do controle e a matado: Layla estava imóvel ao encontro dos travesseiros, a boca ligeiramente entreaberta, as mãos cruzadas sobre o peito como se ela tivesse sido arrumada por um agente funerário com respeito pelos mortos.
Só que... algo estava diferente, e ele precisou de um minuto para perceber o que era.
Não havia mais o cheiro sobrepujante do sangue. Na realidade, somente a fragrância delicada de canela marcava o ar, refrescando-o de um modo que iluminava o quarto inteiro.
Será que o aborto finalmente chegara ao fim?
– Layla? – ele a chamou, mesmo tendo dito que se a encontrasse dormindo, não a perturbaria.
Foi um alívio ver as sobrancelhas se mexendo quando seu nome foi captado pelo cérebro, mesmo sob o véu do sono.
Ele teve a sensação de que se a chamasse de novo, ela acordaria.
Parecia cruel forçar-lhe a consciência. O que ela teria para recebê-la quando acordasse? A dor que sentia? A sensação de perda?
Cacete.
Qhuinn saiu silenciosamente, fechou a porta atrás de si e continuou ali. Não sabia o que fazer. Wrath lhe dissera para ficar em casa, mesmo se John Matthew saísse – ele deduziu que aquilo fosse uma espécie de folga misericordiosa de seus deveres de ahstrux nohtrum. E estava grato por isso. Havia tão pouco que pudesse fazer por Layla – pelo menos podia ficar por perto caso ela precisasse de alguma coisa. Um refrigerante. Uma aspirina. Um ombro para chorar.
Você fez isso a ela.
A julgar pelo toque que saía da maldita sala de estar, ele deduziu que perdera a Primeira Refeição. Nove horas. Isso mesmo. Acabara dormindo demais, e isso era bom. Se ele tivesse de se sentar à mesa e passar 45 minutos na companhia de quase duas dúzias de pessoas que tentariam não encará-lo, ele teria perdido a porra da cabeça.
O som de alguém andando no vestíbulo logo abaixo fez com que ele levantasse a cabeça.
Sem nenhum plano ou pensamento específico, ele se aproximou da balaustrada e olhou para baixo.
Payne, a irmã valentona de V., estava saindo da sala de jantar.
Ele não conhecia muito bem aquela fêmea, mas a respeitava imensamente. Seria impossível não admirar, dado o modo como se portava no campo de batalha... Durona, verdadeiramente durona. Naquele instante, porém, a shellan do doutor Manello parecia ter levado uma surra de bar: caminhava lentamente, os pés se arrastando pelo piso de mosaico, o corpo encurvado, a pegada no braço de seu par parecendo ser a única coisa que a sustentava.
Será que ela se machucara em alguma luta corpo a corpo?
Não havia cheiro de sangue.
O doutor Manello disse algo para ela que ele não conseguiu ouvir, mas depois o cara indicou a direção da sala de bilhar com a cabeça – como se ele estivesse perguntando se ela queria ir para lá.
Tomaram aquela direção a passos de caramujo.
Já que não gostava quando as pessoas o encaravam, Qhuinn recuou da grade e esperou até que o caminho estivesse livre. Depois correu escada abaixo.
Comida. Exercícios. Voltar a ver Layla.
Aquela seria a sua noite.
Seguindo para a cozinha, ele se viu imaginando onde Blay estaria. O que estaria fazendo. Se tinha saído para lutar ou se tinha ficado em casa e...
Visto que não sabia onde Saxton estava, ele pôs um ponto final naquela linha de questionamentos.
Se Qhuinn não tivesse de fazer seu turno e pudesse passar um tempo com o cara, ele sabia muito bem o que Blay estaria fazendo.
E Saxton, seu primo filho da puta, não era nenhum tolo.
CONTINUA
CAPÍTULO 37
Enquanto Blay girava o anel de sinete da família no dedo, seu cigarro aceso queimava lentamente na outra mão, e seu traseiro ficava adormecido... e ninguém passava pelas portas do átrio.
Sentado no degrau de baixo da grande escadaria da mansão, ele não respeitaria a promessa feita à mãe de ir para casa. Não naquela noite, pelo menos. Depois da loucura da noite anterior, do pouso forçado do avião e do drama subsequente, Wrath ordenara que a Irmandade e os lutadores tirassem 24 horas de folga. Por isso, tecnicamente, ele deveria ligar para os pais e dizer à mãe que caprichasse na mussarela e no molho à bolonhesa.
Mas de jeito nenhum ele sairia daquela casa. Não depois de ouvir os gritos vindos do quarto de Layla, e de vê-la praticamente sendo carregada escadaria abaixo.
Naturalmente, Qhuinn esteve ao lado dela.
John Matthew não.
Portanto, o quer que estivesse acontecendo, pelo visto superava o ahstrux nohtrum, e isso significava que... ela só podia estar perdendo o filho. Somente algo sério assim possibilitaria um passe livre.
Enquanto ele continuava parado como uma porta, sem nada além da sua preocupação para lhe fazer companhia, naturalmente sua mente resolveu seguir o caminho errado: merda, fora mesmo para a cama com Qhuinn na noite passada?
Dando uma tragada em seu Dunhill, ele expeliu uma imprecação.
Acontecera mesmo?
Deus, essa pergunta vinha martelando a sua cabeça desde o minuto em que despertou de um sonho sensual, com uma ereção que parecia fazer pensar que o outro macho dormia ao seu lado.
Revendo as cenas pela centésima vez, só no que ele conseguia pensar era... como um plano podia fracassar. Depois de ter rejeitado Qhuinn quando ele se pôs de joelhos, voltara para o próprio quarto e andara de um lado para o outro, um debate que não interessava ter consigo mesmo transformando seu cérebro em fois gras.
Ele tomara a decisão correta ao sair. Mesmo. Tinha sim.
O problema foi que a decisão não se sustentou. Enquanto as horas do dia passavam, tudo o que ele conseguia pensar foi a vez em que o pai o flagrou roubando uma caixa de cigarros do doggen da família. Na época, ele era um jovem pré-trans e, como castigo, seu pai o obrigou a se sentar do lado de fora e fumar cada um daqueles Camels sem filtro. Ele se sentiu muito mal e demorou mais de dois anos para sequer tolerar fumo passivo.
Portanto, esse fora o seu segundo plano.
Fazia tempo demais que era louco por Qhuinn, mas tudo não passava de algo hipotético, dividido em fantasias de modo que ele conseguisse suportar. Nada de uma vez só, nada da coisa sobrecarregada, absoluta e arrasadora – e ele sabia muito bem que na vida real, Qhuinn não se conteria nem relaxaria. O “plano” fora ter a experiência concreta, e descobrir que aquilo não passava de apenas sexo brutal. Ou, inferno, descobrir que não era nem sexo bom.
Não era de se esperar que você fumasse um maço inteiro de cigarros... só para querer mais.
Deus todo-poderoso, foi a primeira vez em que a realidade foi muito melhor do que uma fantasia, a absolutamente melhor experiência erótica de toda a sua vida.
Depois, porém, a gentileza que Qhuinn demonstrara fora insuportável.
Na verdade, enquanto Blay rememorava aquela ternura, ele deu um salto de onde estava e começou a marchar ao redor do mosaico de macieira – não tinha para onde ir.
Naquele instante a porta se abriu. Porém, não a de entrada.
A da biblioteca.
Enquanto olhava de relance por sobre o ombro, Saxton surgiu de lá. Ele parecia saído do inferno, e não só porque, por mais veloz que fosse a sua recuperação, ele ainda tinha um inchaço residual na mandíbula graças ao ataque de Qhuinn.
Que lindo, Blay pensou. Bela maneira de expressar seu desapontamento quanto ao comportamento de alguém: deixe-o transar com você depois que ele tentou estrangular seu ex.
Quaaanta classe.
– Como você está? – Blay perguntou, e não por convenção social.
Foi um alívio Saxton se aproximar. E encará-lo. E sorrir-lhe um pouco como se estivesse determinado a fazer um esforço.
– Estou exausto. E faminto. E agitado.
– Gostaria de comer comigo? – sugeriu Blay num rompante. – Também estou me sentindo assim, e a única coisa em que posso dar jeito é a fome.
Saxton assentiu com a cabeça e enfiou as mãos nos bolsos da calça.
– Ideia brilhante.
Os dois acabaram na cozinha, sentados ante a castigada mesa de carvalho, lado a lado, de frente para o resto do cômodo. Com um sorriso contente, Fritz imediatamente passou para o seu modo “provedor de alimentos” e, veja só, dez minutos mais tarde, o mordomo servia uma tigela de cozido de carne para cada um, além de uma baguete para dividirem, uma garrafa de vinho tinto e uma porção de manteiga num pratinho ao lado.
– Volto em seguida, meus senhores – disse o mordomo com uma reverência. E depois ele prosseguiu expulsando todos da cozinha, desde o doggen que descascava legumes até os que poliam a prataria e os que limpavam as janelas de uma alcova logo além dali.
Quando a porta se fechou após a saída do último criado, Saxton disse:
– Tudo o que nos falta é uma vela, aí isto seria um encontro – o macho se inclinou para a frente e começou a comer com modos impecáveis. – Bem, suponho que precisaríamos de mais algumas coisas, não?
Blay olhou de esguelha enquanto apagava o cigarro. Mesmo com as olheiras e o hematoma desvanecendo no pescoço, o advogado era muito bonito de se olhar.
Por que ele não poderia simplesmente...
– Não repita, de novo, que sente muito – Saxton limpou a boca com o guardanapo e sorriu. – Não é necessário, nem apropriado.
Assim, sentado ao lado dele, não parecia que tinham acabado de romper, nem que ele estivera com Qhuinn. Será que as últimas noites aconteceram mesmo?
Até parece... O que ocorreu com Qhuinn não teria acontecido se ele e Sax ainda estivessem juntos. Isso era bem claro para ele: uma coisa era se masturbar secretamente, e isso já era ruim o bastante. Aquilo tudo? De jeito nenhum.
Droga, apesar do fato de ele e Saxton terem rompido, ele ainda sentia que devia confessar sua transgressão... mesmo que Qhuinn estivesse certo e que Saxton já tivesse seguido em frente, por assim dizer.
Enquanto comiam em silêncio, Blay balançou a cabeça, ainda que não tivessem lhe feito nenhuma pergunta e nem estivessem conversando. Ele só não sabia o que fazer. Às vezes, as mudanças da vida surgiam com tanta rapidez, e com tamanha impetuosidade, que não havia como acompanhar a realidade. Levava tempo para as coisas se assentarem, um novo equilíbrio se reestabelecia só depois de algum tempo em que seu cérebro batia de um lado contra o outro das paredes da sua cabeça.
Ele ainda estava na fase de balançar.
– Já sentiu alguma vez como se as horas fossem medidas em anos? – perguntou Saxton.
– Ou décadas. Sim. Absolutamente – Blay olhou de novo. – Na verdade, eu também estava pensando nisso.
– Que par de mórbidos nós somos.
– Talvez devêssemos vestir preto.
– Braçadeiras? – sugeriu Saxton.
– Não, preto dos pés à cabeça.
– E o que eu faço com o meu gosto por cores? – Saxton apontou para o lenço laranja Hermès no bolso da sua lapela. – Bem, pode-se muito bem usar todo tipo de acessórios.
– Certamente isso explica a teoria por trás dos aparelhos ortodônticos.
– Flamingos de plástico rosa.
– A franquia da Hello Kitty.
Juntos, os dois explodiram numa gargalhada. Nem era assim tão engraçado, mas o humor não era a questão ali. Mas quebrar o gelo. Voltar ao que era antes. Aprender a se relacionarem de um modo diverso.
Quando convergiram para um riso mais contido, Blay passou o braço ao redor dos ombros do macho e lhe deu um abraço rápido. Foi bom que Saxton tivesse relaxado um pouco, aceitando aquilo que lhe era oferecido. Não que Blay acreditasse que por estarem sentados juntos, partilhando uma refeição e uma bela risada, tudo, de repente, seria um navegar suave. Nada disso. Era estranho pensar que Saxton estivera com outra pessoa, e ainda mais incrível saber que ele fizera o mesmo – principalmente com quem o fizera.
Não se passava de amantes de quase um ano para companheiros de risadas em um ou dois dias.
Podia-se, porém, começar a forjar um novo caminho.
E colocar um pé na frente do outro.
Sempre haveria um lugar em seu coração para Saxton. O relacionamento que tiveram foi o seu primeiro não só com um macho, mas com qualquer um. E muitas coisas boas aconteceram, coisas que ele carregaria consigo como lembranças que valiam o espaço em sua mente.
– Deu uma olhada nos jardins de trás? – Saxton perguntou ao lhe oferecer o pão.
Blay partiu um pedaço e depois espalhou manteiga por cima enquanto Saxton também pegava um pouco.
– Estão bem ruins, não?
– Lembre-me de nunca tentar cortar grama com um Cessna.
– Você não curte jardinagem.
– Bem, para o caso de um dia eu tentar – Saxton se serviu de vinho. – Aceita?
– Sim, por favor.
E foi assim que as coisas aconteceram. Durante o cozido de carne até a torta de pêssegos, que milagrosamente apareceu diante deles graças à impecabilidade de Fritz. Quando a última garfada e a última limpada com guardanapo foram dadas, Blay se reclinou contra o encosto acolchoado do banco embutido e inspirou fundo.
Que se referia a muito mais do que uma simples barriga cheia.
– Bem – disse Saxton, ao apoiar o guardanapo ao lado do prato de sobremesa –, acredito que finalmente vou poder tomar o banho de banheira que você me sugeriu há algumas noites.
Blay abriu a boca para observar que os sais de banho que o macho preferia ainda estavam em seu banheiro. Ele os vira no gabinete quando fora pegar o creme de barbear reserva ao cair da noite.
Só que... ele não sabia se devia mencionar isso. E se Saxton pensasse que ele estava lhe pedindo para ir à sua banheira? Seria um lembrete muito grande de como as coisas tinham mudado e do por quê? E se...
– Tenho esse novo tratamento à base de óleos que estou morrendo de vontade de experimentar – explicou Saxton ao deslizar pelo banco. – Ele finalmente chegou do exterior hoje. Faz séculos que espero por ele.
– Parece maravilhoso.
– Mal posso esperar – Saxton ajustou o paletó nos ombros, ajeitou os punhos e depois acenou com a mão, saindo sem nenhum indício de complicações ou de tensão em seu rosto.
O que, de fato, ajudava muito.
Dobrando o próprio guardanapo, deixou-o de lado, e saiu de trás da mesa, esticando os braços acima da cabeça e curvando-se para trás, estalando muito bem a coluna.
A sua tensão voltou no segundo em que pisou no átrio novamente.
Que diabos estava acontecendo com Layla?
Maldição, ele nem podia ligar para Qhuinn. Aquele drama não era seu, nem estava ligado a ele de modo algum. Quando se tratava de uma gestação, ele não era diferente de nenhum outro macho daquela casa que também ouvira ou vira o show e, sem dúvida, estava tão preocupado quanto ele. Mas também não tinha direito a nenhuma notícia antecipada.
Uma pena que sua barriga, agora cheia, não concordasse com isso. Pensar em Qhuinn perdendo o filho o fez considerar seriamente a localização do banheiro mais próximo da porta de entrada, só para o caso de uma evacuação rápida ser ordenada pelo fundo da sua garganta.
No fim, ele se viu subindo para a sala de estar do segundo andar. Daquele lugar, ele não teria dificuldade em ouvir a porta da frente, e não estaria esperando abertamente...
As portas do escritório de Wrath se abriram, e John Matthew emergiu do santuário do Rei.
Imediatamente, Blay atravessou a sala de espera, pronto para ver se, talvez, o cara sabia de alguma coisa, mas se conteve ante a expressão de John.
Perdido em pensamentos. Como se tivesse recebido notícias pessoais do tipo perturbador.
Blay ficou para trás enquanto o camarada seguia no caminho contrário, na direção do corredor das estátuas, sem dúvida para desaparecer no próprio quarto.
Parecia que as coisas não andavam bem nas vidas dos outros também.
Maravilha.
Com uma imprecação baixa, Blay deixou o amigo em paz e voltou a caminhar e... a esperar.
Muito mais ao sul, na cidade de West Point, Sola estava pronta para entrar no segundo andar da casa de Ricardo Benloise, através da janela ao fim do corredor principal. Fazia meses desde que estivera lá dentro, mas ela contava com o fato de que seu contato na segurança por ela cuidadosamente manipulado ainda fosse o seu amigo.
Havia dois fatores-chave para invadir com sucesso qualquer casa, prédio, hotel ou instalação: planejamento e velocidade.
Ela possuía os dois.
Pendurada no cabo que lançara no telhado, ela tirou um instrumento de dentro do bolso da parca, segurando-o no canto direito da janela dupla. Iniciado o sinal, ela esperou, olhando fixamente para a luzinha vermelha que brilhava na tela à sua frente. Se por algum motivo ela não mudasse, ela teria de entrar por uma das águas-furtadas que dava para o jardim, o que seria um pé no saco...
A luz ficou verde com um sinal, e ela sorriu ao pegar mais instrumentos.
Pegando um copo de sucção, ela o empurrou no meio do painel, imediatamente abaixo da tranca e depois girou a coisa com o cortador de vidro. Um empurrão rápido e o espaço que possibilitava a entrada do seu braço foi criado.
Depois de deixar o círculo de vidro cair com suavidade na passadeira oriental, ela enfiou o braço e o virou, para soltar a trava de latão que mantinha a janela fechada.
O ar quente lhe deu boas-vindas, como se a casa estivesse contente por vê-la mais uma vez.
Antes de entrar, ela olhou ao redor. Relanceou para o caminho de carros. Inclinou-se para fora para ver o que conseguia encontrar nos jardins escuros.
Sentia como se alguém a estivesse observando... não tanto no caminho de carro até a cidade, mas depois que parara no estacionamento e colocara os esquis. Todavia, não havia ninguém por perto – pelo menos, ninguém que ela conseguisse enxergar – e por mais que a atenção fosse essencial em seu ramo de trabalho, a paranoia era uma perda de tempo perigosa.
Ela precisava deixar isso de lado.
Voltando a se concentrar no jogo, esticou as mãos enluvadas e suspendeu o traseiro e as pernas por cima e através da janela. Ao mesmo tempo, relaxou a tensão do cabo para que ele ficasse folgado e permitisse a sua entrada. Aterrissou sem nenhum som, graças não só ao tapete que cobria o longo corredor como também aos seus calçados de solas macias.
O silêncio era outro critério importante no tocante a realizar um trabalho com sucesso.
Ela parou onde estava por um breve momento. Nenhum som na casa, mas isso não significava nada necessariamente. Ela tinha quase certeza de que o alarme de Benloise fosse silencioso, e mais certeza ainda de que o sinal não iria para a força policial, nem a local, tampouco a estadual: ele gostava de cuidar das coisas particulares de modo privado. E Deus bem sabia, com o tipo de força braçal que ele contratava, havia poder suficiente para tal.
Felizmente, contudo, ela era boa no que fazia, e Benloise e seus capangas não estariam em casa até perto do nascer do sol, afinal, ele vivia a vida de um vampiro.
Por algum motivo, a palavra que começava com “v” a fez pensar no homem que aparecera ao lado do seu carro e que desaparecera como num passe de mágica.
Loucura. E a única vez em sua lembrança recente que alguém a fazia parar para pensar. Na verdade, depois de ser confrontada daquela forma, ela estava realmente considerando não voltar à casa de vidro no rio, embora houvesse motivos mais do que válidos para isso. Não por ela se preocupar em se machucar fisicamente. Deus bem sabia que ela era perfeitamente capaz de se defender.
Era a atração.
Mais perigosa do que qualquer pistola, faca, ou punho, em sua opinião.
Com passadas ágeis, Sola trotou pelo tapete, saltitando na ponta dos pés, seguindo para a suíte principal que dava para o jardim dos fundos. A casa ainda tinha o mesmo cheiro de que se lembrava: mobília antiga e lustra-móveis, e ela conhecia o bastante para se ater ao lado esquerdo da passadeira. Nenhum rangido daquele lado.
Quando chegou à suíte principal, a porta pesada de madeira estava fechada, e ela pegou a chave micha antes mesmo de testar a maçaneta. Benloise tinha duas patologias: limpeza e segurança. A impressão dela, entretanto, era que a segunda era mais crítica na galeria no centro de Caldwell do que em seu lar. Afinal, Benloise não mantinha debaixo do seu teto nada além de objetos de arte com seguros até o último centavo, e a ele próprio durante o dia – quando estava cercado por diversos seguranças e armas.
Na verdade, devia ser por isso que ele era uma coruja no centro da cidade. Isso significava que a galeria nunca ficava sem supervisão: ele aparecia depois do expediente e sua equipe de trabalho legítima estava lá durante o dia.
Como uma gatuna, ela certamente preferia entrar em lugares vazios.
Dito isso, mexeu no mecanismo de tranca da porta, abrindo-a, e entrou no quarto. Inspirou profundamente, o ar estava permeado com a fumaça do tabaco e da colônia refrescante de Benloise.
A combinação a fez pensar nos filmes em preto e branco de Clark Gable por algum motivo.
Com as cortinas puxadas e nenhuma luz acesa, ali estava absolutamente escuro, mas ela tirara fotografias dos quartos quando fora a uma festa ali, e Benloise não era o tipo de homem que mudava as coisas de lugar. Inferno, toda vez que uma nova exibição era instalada na galeria de arte, ela praticamente sentia o tremor debaixo da pele dele.
Medo de mudança era uma fraqueza, sua avó sempre dizia.
Obviamente facilitava as coisas para ela.
Mais devagar, ela avançou dez passos até o meio do quarto. A cama estaria à esquerda encostada na parede comprida. À sua frente estavam as janelas altas que davam para o jardim. À direita, haveria uma cômoda, uma escrivaninha e algumas cadeiras, e a lareira que nunca era usada porque Benloise detestava o cheiro de madeira queimada.
O alarme de segurança se localizava entre a entrada do banheiro e a cabeceira ornamentada da cama, ao lado do abajur que se elevava noventa centímetros do criado-mudo.
Sola deu um giro ao redor de si mesma. Deu quatro passos. Tentou encontrar o pé da cama... e o encontrou.
Passo lateral, um, dois, três. De frente para o flanco do colchão king-size. Outro passo lateral para desviar da mesinha de cabeceira e do abajur.
Sola esticou o braço esquerdo...
E lá estava o painel de segurança, bem onde deveria.
Abrindo a portinhola, usou uma lanterna de bolso que prendeu entre os dentes para iluminar o circuito. Pegando outro instrumento da mochila, conectou fios a fios, interceptando sinais, e com a ajuda de um laptop em miniatura e de um programa que um amigo seu desenvolvera, criou um circuito fechado dentro do sistema de alarme de modo que, enquanto o roteador estivesse no lugar, os detectores de movimento que ela estava para disparar não seriam registrados.
No que se referia à placa-mãe, nada pareceria anormal.
Deixando o laptop pendurado pelos fios, saiu do quarto, chegou ao corredor, e tomou as escadas para o primeiro andar.
O lugar estava perfeitamente decorado, pronto para uma foto de revista – ainda que, claro, Benloise protegesse demais a sua privacidade para permitir que suas coisas fossem fotografadas para o consumo público. Com passos rápidos, ela passou pelo hall de entrada, pela sala à esquerda e entrou no escritório.
Andando em meio à penumbra, ela bem que preferiria tirar a parca de camuflagem branca e as calças para neve: fazer aquilo em seu body preto seria um clichê que, entretanto, seria bem prático. Não havia tempo, porém, e ela estava mais preocupada em não ser vista do lado de fora do que ali, na casa vazia.
O espaço de trabalho pessoal de Benloise era, como todo o resto debaixo daquele teto, mais um cenário montado do que algo funcional. Ele, na verdade, não usava a imensa escrivaninha, nem se sentava no minitrono, tampouco lia qualquer um dos livros em capa de couro das prateleiras.
Todavia, ele transitava por aquele cômodo. Uma vez ao dia.
Certa vez, num momento de tranquilidade, ele lhe dissera que antes de sair, todas as noites, passeava pela casa olhando seus pertences, lembrando a si mesmo da beleza das suas coleções e de sua casa.
Como resultado dessa informação e de algumas outras coisas, Sola há muito deduzira que o homem crescera na pobreza. Primeiro porque, quando conversavam em espanhol ou em português, seu sotaque pertencia à classe baixa, mesmo que de modo sutil. Segundo, os ricos não valorizavam seus pertences como ele o fazia.
Nada era raro aos ricos, e isso significava que eles davam como certas todas as coisas.
O cofre estava escondido atrás da escrivaninha numa seção de estandes que era liberada por um botão localizado na gaveta inferior do lado direito.
Ela descobrira isso graças a uma minúscula câmera escondida que colocara do lado oposto durante aquela festa.
Após a abertura do mecanismo, um corte de sessenta por noventa centímetros na prateleira rolou para a frente e deslizou para o lado. E lá estava ela: uma caixa grossa de aço, cujo fabricante ela reconhecia.
Pensando bem, depois de invadir centenas de espaços, você acaba conhecendo intimamente os fabricantes. E ela aprovava aquela escolha. Se precisasse ter um cofre, era daquele tipo que ela pegaria e, sim, ele o prendera ao chão.
O maçarico que trouxera na mochila era pequeno, mas poderoso, e enquanto ela acendia a ponta, a chama chamuscou com um sibilo substancial e um brilho branco e azul.
Aquilo levaria tempo.
A fumaça do metal queimado irritava seus olhos, o nariz e a garganta, mas ela manteve a mão firme enquanto produzia um quadrado na frente do painel. Ela conseguia explodir a porta de alguns cofres, mas o único jeito com um daqueles era do modo antigo.
Que levava uma eternidade.
No entanto, ela conseguiu.
Deixando a pesada seção da porta de lado, ela mordeu a ponta da lanterna mais uma vez e se inclinou. Uma prateleira continha joias, cautelas de ações e alguns relógios de ouro que ele deixara à mão. Havia uma pistola que ela seria capaz de apostar que estaria carregada. Nenhum dinheiro.
Pensando bem, com Benloise sempre havia tanto dinheiro disponível que fazia sentido ele não se dar ao trabalho de colocá-lo no cofre.
Maldição. Não havia nada ali que valesse apenas cinco mil dólares.
Afinal, naquele trabalho, ela só estava atrás daquilo que lhe era devido por direito.
Com uma imprecação, ela se apoiou nos calcanhares. Na verdade, não havia nada no cofre que valesse menos do que vinte e cinco mil dólares. E não tinha como ela partir a metade da pulseira de um relógio de ouro – porque, como diabos conseguiria revender a coisa?
Um minuto se passou.
O segundo.
Ao diabo com aquilo, ela pensou ao recolocar o painel que cortara contra o cofre e deslizar a prateleira de volta ao seu lugar. Levantando-se, olhou ao redor da sala com a lanterna de bolso. Os livros eram todos edições de colecionadores de primeiras edições de antiguidades. A arte nas paredes e sobre as mesas não era somente muito cara, como difícil de transformar em dinheiro sem ser debaixo dos panos... para as pessoas intimamente ligadas a Benloise.
Mas, que droga, ela não sairia sem seu dinheiro, maldição...
Abruptamente, sorriu para si mesma, a solução se tornando muito clara.
Por vários anos no curso da civilização humana, o comércio só existira e sobrevivera na base da troca. Ou seja, um indivíduo trocava bens ou serviços por outros de mesmo valor.
Em todos os trabalhos que realizara, ela jamais considerara acrescentar os custos auxiliares aos seus alvos: novos cofres, novos sistemas de segurança, novos protocolos de segurança. Ela podia apostar que isso era caro – ainda que não tão caro quanto o que ela costumava tomar. E ela entrara ali deduzindo que esses custos adicionais seriam arcados por Benloise – um tipo de prejuízo monetário pelo que ele roubara dela.
No entanto, eles agora eram a questão.
No caminho de volta à escada, observou as oportunidades disponíveis... e, no fim, foi até uma escultura de Degas de uma pequena bailarina que fora colocada na lateral de um nicho. A figura em bronze da garotinha era o tipo de coisa que sua avó teria adorado, e talvez por isso, dentre tantas peças, foi aquela a lhe chamar a atenção.
A luz que fora colocada no teto acima da estátua estava desligada, mas a obra-prima ainda assim parecia brilhar. Sola adorou especialmente a saia em tutu, a delicada ainda que rígida explosão de tule delineada por metal entrelaçado que capturava perfeitamente o que deveria ser maleável.
Sola se aproximou da base da escultura, passou os braços ao redor dela, e concentrou toda a sua força em girar a sua posição não mais do que cinco centímetros.
Depois correu para as escadas, retirou os clipes do roteador e do laptop do painel de alarme na suíte principal, trancou novamente a porta e seguiu para a janela na qual cortara um buraco.
Estava de volta nos esquis, deslizando na neve não mais do que quatro minutos mais tarde.
Apesar do fato de não ter nada nos bolsos, ela sorria ao deixar a propriedade.
CAPÍTULO 38
Quando a Mercedes finalmente parou na entrada da mansão da Irmandade, Qhuinn saiu primeiro e foi para a porta em que Layla estava. Quando a abriu, os olhos dela encontraram os dele.
Ele soube que jamais se esqueceria da aparência dela. A tez estava branca como um papel e parecia tão fina quanto um, a bela estrutura óssea se esticando sobre a cobertura de pele. Os olhos estavam encovados no crânio. Os lábios, finos e inexpressivos.
Naquele instante, ele teve um vislumbre de como ela ficaria ao morrer, não importando quantas décadas e séculos isso fosse levar para acontecer.
– Eu carrego você – disse ele, inclinando-se para pegá-la no colo.
O modo como ela não discutiu lhe contou exatamente o pouco que restava dela.
Quando as portas de entrada foram abertas por Fritz, como se o mordomo estivesse esperando pela chegada deles, Qhuinn se arrependeu de tudo: do sonho que acalentara por um instante durante o cio dela. A esperança desperdiçada. A dor física pela qual ela passava. A angústia emocional que ambos atravessavam.
Você fez isso com ela.
Na época, quando a servira, ele só se concentrara no resultado positivo do qual esteve tão certo.
Agora, depois de tudo, com os coturnos fincados na realidade sólida e fétida? Não valia a pena. Mesmo a possibilidade de um filho saudável não valia aquele sacrifício.
O pior de tudo era testemunhar o sofrimento dela.
Ao carregá-la para dentro da casa, rezou para que não houvesse uma grande plateia. Ele só gostaria de poupá-la de tudo, de qualquer coisa, mesmo do simples fato de desfilar diante de rostos tristes e preocupados.
Não havia ninguém por perto.
Qhuinn subiu os degraus dois de cada vez e, ao chegar ao segundo andar, as grandes portas duplas do escritório de Wrath abertas o fizeram praguejar.
Pensando bem, o Rei era cego.
Enquanto George emitiu um latido de boas-vindas, Qhuinn apenas passou pela frente, indo direto para o quarto de Layla. Abrindo a porta com um chute, descobriu que o doggen estivera ali e limpara tudo, arrumando a cama, decerto tendo até trocado os lençóis, e também havia um vaso de flores frescas.
Ao que tudo levava a crer, ele não era o único disposto a ajudar em qualquer coisa que pudesse.
– Quer trocar de roupa? – perguntou ao fechar a porta com outro chute.
– Quero tomar banho...
– Vamos providenciar isso.
– ... mas estou com muito medo. Eu não quero... ver, se é que me entende.
Ele a deitou e se sentou ao seu lado na cama. Colocando uma mão em sua perna, esfregou-lhe o joelho com o polegar, de um lado para o outro.
– Sinto muito – disse ela com pesar.
– Droga... Não, não faça isso. Jamais pense nem diga isso, está bem? Isto não é culpa sua.
– De quem mais é?
– Isso não vem ao caso.
Merda, ele não conseguia acreditar que o processo do aborto duraria mais ou menos uma semana. Como podia ser possível...
A careta que contraiu o rosto de Layla revelou a ele que uma cólica a assolava novamente. Olhando de relance para trás, esperando ver a doutora Jane, descobriu que estavam sozinhos.
O que garantiu, mais do que tudo, que não havia nada a ser feito.
Qhuinn deixou a cabeça pensa e segurou a mão dela.
Aquilo começara com os dois.
E estava terminando com os dois.
– Acho que gostaria de dormir um pouco – disse Layla ao apertar a mão dele. – Você também parece estar precisando...
Ele olhou para a chaise-longue do outro lado.
– Você não precisa ficar comigo – murmurou ela.
– Onde mais eu ficaria?
Uma breve visão mental de Blay abrindo os braços cruzou sua mente. Que fantasia, hein...
Nunca mais me toque assim.
Qhuinn sacudiu a cabeça para que tais pensamentos sumissem.
– Vou dormir ali.
– Você não pode ficar aqui por sete noites seguidas.
– Vou repetir mais uma vez. Onde mais eu...
– Qhuinn – a voz dela soou estridente. – Você tem o seu trabalho. E você ouviu Havers. Isto vai levar o tempo que for preciso e, provavelmente, vai demorar um pouco. Não corro o risco de ter uma hemorragia e, francamente, sinto como se devesse ser forte na sua frente, e não tenho a energia necessária para isso. Por favor, volte aqui para me ver o quanto quiser. Mas vou enlouquecer se você montar acampamento aqui até isso tudo terminar.
Desespero comedido.
Era tudo o que Qhuinn tinha enquanto permanecia sentado na beira da cama, segurando a mão de Layla.
Ele acabou se levantando pouco depois. Claro, ela estava certa. Ela precisava descansar o máximo possível e, de fato, além de ficar olhando para ela e fazendo com que ela se sentisse fraca, não havia nada que ele pudesse fazer.
– Não estarei longe.
– Sei disso – ela suspendeu o punho dele para os seus lábios, e ele ficou chocado ao perceber o quanto eles estavam frios. – Você tem se mostrado... mais do que eu seria capaz de pedir.
– Não... Não fiz nada de...
– Você fez o que era certo e apropriado. Sempre.
Aquilo era uma questão de opinião.
– Preste atenção. Vou estar sempre com meu telefone por perto. Volto em algumas horas para ver como você está. Se estiver dormindo, eu não a incomodarei.
– Obrigada.
Qhuinn assentiu com a cabeça e andou de lado até a porta. Certa vez ouvira que não se devia dar as costas a uma Escolhida, e ele imaginou que demonstrar um pouco de protocolo não faria mal.
Fechando a porta atrás de si, ele se recostou nela. A única pessoa que ele queria ver era o único cara naquela casa que não tinha interesse algum em...
– O que está acontecendo?
A voz de Blay foi um choque tão grande que ele pensou que a tivesse imaginado. A não ser pelo fato de que o macho em pessoa acabara de passar pela porta da sala de estar do segundo andar. Como se estivesse ali esperando o tempo inteiro.
Qhuinn esfregou os olhos e depois começou a andar, o corpo procurando a única coisa pela qual ele vinha rezando.
– Ela está abortando – Qhuinn se ouviu dizer numa voz morta.
Blay murmurou algo em resposta, mas que não ficou registrado.
Engraçado, o aborto não lhe parecera real até aquele momento. Não até contar a Blay.
– O que disse? – perguntou Qhuinn, ciente de que o cara esperava por uma resposta.
– Posso fazer alguma coisa?
Tão engraçado. Qhuinn sempre achou que saíra do ventre da mãe já como um adulto. Pensando bem, nunca houve nenhum agradinho materno, nada de abraços quando ele se machucava, nenhum amparo quando ele tinha medo. Como resultado, quer fosse um aspecto do seu caráter, ou o modo como fora criado, ele nunca regredira. Não havia para o que voltar.
Todavia, foi com a voz de uma criança que disse:
– Faz isso parar?
Como se só Blay tivesse o poder de operar um milagre.
E então... foi o que o macho fez.
Blay abriu os braços, oferecendo o único refúgio que Qhuinn sempre conheceu.
– Faz isso parar?
O corpo de Blay começou a tremer quando Qhuinn enunciou essas palavras: depois de todos esses anos, ele vira o cara em diferentes estados de humor dependendo da circunstância. Porém, jamais assim. Nunca... tão completa e absolutamente devastado.
Nunca perdido como uma criança.
A despeito da sua necessidade de se manter verdadeiramente afastado de qualquer vínculo emocional, seus braços se abriram por vontade própria.
Enquanto Qhuinn avançava para ele, o corpo do guerreiro parecia menor e mais frágil do que de fato era. E os braços que passaram ao redor da cintura de Blay simplesmente ficaram lá, como se não tivessem força nos músculos.
Blay sustentou a ambos.
E antecipou que Qhuinn recuaria rapidamente. Normalmente, o cara não suportava nenhum tipo de conexão intensa além da sexual por mais tempo do que um segundo e meio.
Qhuinn não o fez, porém. Ele parecia preparado para ficar parado na entrada da sala de estar para sempre.
– Venha – disse Blay, levando o macho para dentro e fechando a porta. – Vamos para o sofá.
Qhuinn o seguiu, os coturnos se arrastando em vez de marcharem.
Quando chegaram ao sofá, sentaram-se de frente, os joelhos se tocando. Quando Blay o fitou, a tristeza ressonante o tocou tão profundamente, que não pôde evitar que a mão se esticasse e afagasse o cabelo escuro...
Sem aviso, Qhuinn se enroscou ao seu encontro, simplesmente se deixou cair, o corpo se dobrando ao meio, quase se desmanchando no colo de Blay.
Uma parte de Blay reconhecia que aquele era um terreno perigoso. Sexo era uma coisa, e já bem difícil de lidar, ora essa. Aquele momento tranquilo? Era potencialmente devastador.
Motivo pelo qual saíra num rompante daquele quarto na noite anterior.
A diferença desta noite, porém, era que ele estava no controle. Era Qhuinn quem buscava conforto, e Blay podia negar ou oferecer, dependendo de como se sentisse. Ser o depositário da confiança de alguém era absolutamente diferente de recebê-la... ou necessitá-la.
Blay era bom nisso. Havia uma medida de segurança, de controle. Não era o mesmo que cair num abismo. E, inferno, se alguém devia saber isso, esse alguém era ele. Deus bem sabia que ele passara anos lá embaixo.
– Eu faria qualquer coisa para mudar isso – disse Blay, afagando as costas de Qhuinn. – Odeio o que você está passando...
Ah, as palavras eram tão inúteis...
Ficaram ali por um tempo enorme, a tranquilidade da sala formando uma espécie de casulo. Periodicamente, o relógio antigo sobre a lareira tocava, e depois de um bom tempo, as persianas começaram a baixar sobre as janelas.
– Gostaria que existisse algo que eu pudesse fazer – disse Blay quando os painéis de aço chegaram ao fim com um baque.
– Deve estar na hora de você ir.
Blay deixou aquela passar. A verdade não era algo que ele quisesse partilhar: nem cavalos selvagens, ou armas carregadas, pés-de-cabra, mangueiras de incêndio, estouro de elefantes... nem mesmo uma ordem do Rei em pessoa o teria tirado dali.
E havia uma parte sua que ficava zangada com isso. Não com Qhuinn, mas com seu próprio coração. A questão era que não se pode lutar contra a sua natureza, e era isso o que ele vinha aprendendo. No rompimento com Saxton. Em se revelar à mãe. Naquele exato instante.
Qhuinn gemeu ao suspender o tronco e depois esfregar o rosto. Quando abaixou as mãos, as faces estavam vermelhas, bem como os olhos, mas não porque ele estivesse chorando.
Indubitavelmente, a sua cota de lágrimas da década fora derramada na noite anterior quando ele chorara de alívio por ter salvado a vida de um pai.
E se soubesse que Layla não estava bem naquele instante?
– Sabe o que é pior? – perguntou Qhuinn, parecendo um pouco mais consigo mesmo.
– O quê? – Deus bem sabia que a gama de opções era vasta.
– Eu vi a criança.
Os pelos da nuca de Blay se eriçaram.
– Do que está falando?
– Na noite em que a Guarda de Honra veio atrás de mim e que quase morri, lembra?
Blay deu uma tossidela, a lembrança era tão vívida e visceral como se tivesse acontecido uma hora antes. E mesmo assim a voz de Qhuinn era calma e tranquila, como se ele estivesse se referindo a uma noite numa boate ou algo assim.
– Sim, eu me lembro.
E pensou, eu fiz boca a boca em você no acostamento da estrada, porra.
– Eu fui até o Fade... – Qhuinn franziu o cenho. – Você está bem?
Ah, sim, claro, uma maravilha.
– Desculpe. Pode continuar.
– Fui até lá. Quero dizer, é como... a gente ouviu falar. Branco – Qhuinn esfregou o rosto de novo. – Tão branco. Tudo. Havia uma porta, e eu caminhei até ela... Eu sabia que se girasse a maçaneta, entraria e não sairia mais. Eu estava prestes a tocá-la quando... foi então que eu a vi. Na porta.
– Layla – interpôs Blay, sentindo como se o peito tivesse sido apunhalado.
– A minha filha.
A respiração de Blay ficou presa.
– A sua...
Qhuinn o encarou.
– Ela era... loira. Como Layla. Mas os olhos... – ele levou a mão próxima aos seus. – Eram como os meus. Parei de andar quando a vi e depois, de repente, eu estava de volta no chão, no acostamento da estrada. Depois disso, fiquei sem saber o que foi tudo aquilo. Mas depois, muito tempo depois, Layla entrou no cio e me procurou, e tudo se encaixou. Era como se aquilo... tivesse que acontecer. Pareceu o destino, sabe. De outro modo, eu jamais teria me deitado com Layla. Só fiz isso porque eu sabia que teríamos uma garotinha.
– Jesus.
– Mas eu estava errado – ele esfregou o rosto pela terceira vez. – Errei feio... E o que eu mais queria era não ter tomado esse caminho. O maior arrependimento da minha vida... Bem, o segundo maior, na verdade.
A Blay só restou imaginar o que poderia ser pior do que aquilo pelo que ele passava.
O que posso fazer?, Blay se perguntou.
Os olhos de Qhuinn procuraram os dele.
– Quer mesmo que eu responda a isso?
Pelo visto, ele pensara em voz alta.
– Sim, claro.
A mão da adaga de Qhuinn se levantou e amparou a lateral do rosto de Blay.
– Certeza?
O clima mudou de pronto. A tragédia ainda estava com eles, mas a poderosa ressaca sexual os abateu entre uma pulsação e a seguinte.
O olhar de Qhuinn começou a queimar, as pálpebras pesaram.
– Preciso... de uma âncora agora. Não sei explicar de modo melhor.
O corpo de Blay reagiu instantaneamente, o sangue fervendo, o membro engrossando e esticando.
– Deixe-me beijar você – Qhuinn gemeu ao se inclinar. – Sei que não mereço, mas, por favor... é isso o que você pode fazer por mim. Deixe-me senti-lo...
A boca de Qhuinn resvalou a dele. Voltou para um pouco mais. Demorou-se.
– Vou implorar – mais carícias daquela boca devastadora. – Se for preciso. Estou pouco me importando, eu vou implorar...
De algum modo, isso não seria necessário.
Blay deixou a cabeça ser inclinada para abrir caminho para mais manobras, a mão de Qhuinn em seu rosto tanto gentil quanto no comando. E, então, houve mais boca a boca, lento, arrastando-se, inexorável.
– Deixe-me estar dentro de você de novo, Blay...
CAPÍTULO 39
Assail voltou para casa cerca de meia hora antes do amanhecer. Ao estacionar o Range Rover na garagem, ele teve que esperar a porta abaixar para sair.
Sempre se considerara um intelectual – e não no sentido atribuído pela glymera, onde um se sentia importante ao discorrer sobre literatura, filosofia ou assuntos espirituais. Era mais pelo fato de existirem poucas coisas na vida na qual ele não podia aplicar seu raciocínio e entender a sua totalidade.
O que diabos aquela mulher fizera na casa de Benloise?
Obviamente ela era uma profissional, com tanto equipamento quanto técnica, e uma abordagem de infiltração muito praticada. Ele também suspeitava que ou ela tivesse a planta da casa ou estivera lá previamente. Tão eficiente. Tão decidida. E ele estava qualificado para julgar: seguira-a o tempo inteiro em que ela esteve dentro da casa, penetrando como um fantasma pela janela que ela abrira, atendo-se às sombras.
Seguindo o rastro dela por trás.
Mas aquilo ele não entendia: que tipo de ladrão se dá ao trabalho de invadir uma casa segura, encontra um cofre, queima-o para abri-lo, descobre muitas riquezas portáteis... mas não leva nada? Porque ele vira muito bem ao que ela teve acesso; assim que ela saiu do escritório, ele permanecera lá, soltando a prateleira como ela fizera antes, e usara a própria lanterna para dar uma espiada no cofre.
Só para descobrir o que ela deixara para trás, se é que tinha deixado algo.
Quando ele voltou para a casa em si, evitando qualquer fonte de luz, observara-a parada um instante no hall de entrada, com as mãos nos quadris, a cabeça virando lentamente, como se ela estivesse considerando suas opções.
E então ela se aproximou de uma estátua que só podia ser de Degas... e a girara apenas alguns centímetros para a esquerda.
Isso não fazia sentido.
Bem, era possível que ela tivesse invadido o cofre procurando por algo específico que, na verdade, não estava lá. Um anel, uma bugiganga, um colar. Um chip de computador, um pendrive, um documento como um testamento ou apólice de seguro. Mas a demora no hall não estava de acordo com a diligência anterior... e depois ela só moveu uma estátua?
A única explicação era que aquilo fora uma violação deliberada da propriedade de Benloise.
O problema era que, no que se referia a vinganças contra objetos inanimados, era difícil encontrar muita significância nos atos dela. Derrubasse a estátua, então. Levasse a maldita coisa. Danificasse-a com obscenidades em tinta spray. Batesse nela com um pé-de-cabra para que ficasse destruída. Mas uma leve virada que mal se podia perceber?
A única conclusão a que ele conseguia chegar era que aquilo fora um tipo de mensagem. E ele não gostava nem um pouco disso.
Pois sugeria que talvez ela conhecesse Benloise pessoalmente.
Assail abriu a porta do motorista...
– Oh, meu Deus... – sibilou, retraindo-se.
– Ficamos imaginando quanto tempo você ainda ficaria aí.
Enquanto uma voz ríspida se pronunciava, Assail saiu do carro e olhou ao redor da garagem para cinco carros. O fedor estava num meio-termo entre um atropelamento de três dias, maionese estragada e perfume barato.
– Isso é o que eu estou pensando? – perguntou aos primos, que estavam parados na soleira da antessala.
Graças à Virgem Escriba, eles avançaram e fecharam a porta que dava para a casa; caso contrário, aquele fedor horrendo invadiria o resto da construção.
– São os seus traficantes. Bem, parte deles, na verdade.
Que. Merda. Era. Aquela?
As passadas longas de Assail o levaram na direção que Ehric apontava: o canto oposto, onde três sacos plásticos verdes-escuro foram jogados de lado sem cuidado algum. Agachando-se, ele afrouxou a tira amarela de um deles, puxou a beirada e...
Deparou-se com os olhos sem vida de um humano que ele reconhecia.
A cabeça inanimada fora arrancada da coluna uns dez centímetros abaixo da mandíbula, e estava virada de modo a fitar para fora de seu caixão frouxo. O cabelo escuro e a pele vermelha estavam marcados por sangue preto e brilhante, e se o cheiro esteve ruim próximo ao carro, ali, bem perto, fez seus olhos lacrimejarem e a garganta se contrair num protesto.
Não que ele se importasse.
Abriu os outros dois sacos e, usando o plástico como “luva”, virou as outras cabeças na mesma posição.
Depois se sentou e ficou olhando para as três, observando as bocas escancaradas e impotentes em busca de ar.
– Contem o que aconteceu – ordenou sombriamente.
– Aparecemos na hora combinada.
– Rinque de patinação, na margem do rio ou debaixo da ponte?
– Ponte. Chegamos – Ehric apontou para o irmão gêmeo, que estava parado em silêncio ao seu lado – na hora com o produto. Uns cinco minutos depois, esses três apareceram.
– Como redutores.
– Eles tinham o dinheiro. Estavam prontos para fazer a transação.
Assail girou a cabeça na direção dele.
– Eles não foram lá para atacá-los?
– Não, mas só descobrimos isso quando já era tarde demais – Ehric deu de ombros. – Eram assassinos que apareceram do nada. Não sabíamos quantos havia, e não queríamos nos arriscar. Foi só depois que vasculhamos os bolsos e encontramos o montante certo de dinheiro que percebemos que eles só foram lá para fazer negócios.
Redutores no tráfico? Aquilo era novidade.
– Vocês apunhalaram os corpos?
– Pegamos as cabeças e escondemos o que restou. O dinheiro estava na mochila desse da esquerda e, naturalmente, nós o trouxemos para casa.
– Celulares?
– Peguei.
Assail começou a acender um charuto, mas não queria desperdiçar o sabor. Fechando os sacos, levantou-se acima da carnificina.
– Tem certeza de que não foram agressivos?
– Estavam mal preparados para se defenderem.
– Estar mal armado não significa que eles não estivessem lá para matá-los.
– Por que levar o dinheiro?
– Eles podiam estar negociando em outro lugar.
– Como já disse, era a quantia correta e nem um centavo a mais.
Abruptamente, Assail gesticulou para que o seguissem para o interior da casa e, ah, que alívio quando chegaram ao ar limpo. Com as telas descendo lentamente sobre as janelas de vidro, e com o alvorecer se completando, ele foi para o bar, pegou um galão de Bouchard Père et Fils, Montrachet, 2006 e estalou a rolha.
– Querem me acompanhar?
– Sim, claro.
Na mesa redonda na cozinha, ele se sentou com três taças e a garrafa. Servindo os três, dividiu o chardonnay com os dois sócios.
Porém, não lhes ofereceu seus cubanos. Eram valiosos demais.
Felizmente, cigarros apareceram e todos se sentaram juntos, fumando e saboreando goladas sublimes da beira afiada do seu Baccarat.
– Nenhuma agressão por parte dos assassinos – murmurou, inclinando a cabeça para trás para baforar, a fumaça azulada se elevando sobre sua cabeça.
– E a quantia exata.
Depois de um momento, ele voltou a olhar para eles.
– Será possível que a Sociedade Redutora esteja tentando entrar no meu ramo de negócios?
Xcor estava à luz de velas, sozinho.
O armazém estava tranquilo, seus soldados ainda não tinham retornado, nenhum humano, nenhum Sombra, nada caminhava sobre ele. O ar estava frio; o mesmo com o concreto abaixo dele. A escuridão o envolvia, a não ser pela fraca fonte de luz perto da qual ele estava sentado.
Algo no fundo de sua mente lhe dizia que estava perigosamente perto de amanhecer. Também havia outra coisa, algo de que ele deveria ter se lembrado.
Mas não havia a mínima chance de que algo transpusesse seu torpor.
Com os olhos fixos na única chama diante dele, Xcor repassou os eventos da noite em sua cabeça.
Dizer que ele encontrara a localização da Irmandade seria talvez aumentar um pouco a verdade, mas não uma falácia completa. Seguira aquela Mercedes para o interior, quilômetro após quilômetro, sem nenhum plano real do que deveria ou poderia fazer quando ela parasse... quando, do nada, o sinal do sangue no corpo de sua Escolhida não só se perdeu, mas foi totalmente redirecionado, como se uma bola lançada contra um muro tivesse alterado repentinamente a sua trajetória.
Confuso, ele vasculhou os arredores, desmaterializando aqui, acolá, para cima e para baixo e, durante o tempo todo, uma sensação de horror se abatendo sobre ele. Recuando, ele se viu na base de uma montanha, com seus contornos, mesmo sob o luar claro, registrados de maneira estranha, indistinta, pouco nítida.
O lugar em que eles ficavam só podia ser ali.
Talvez no alto da montanha. Talvez do outro lado.
Não havia outra explicação – afinal, a Irmandade vivia com o Rei para protegê-lo... portanto, indubitavelmente, eles tomariam precauções do tipo que ninguém mais conseguiria tomar, ou quem sabe, tivessem ao seu dispor tecnologias e provisões místicas que seriam, de outro modo, indisponíveis.
Em frenesi, ele circundou os arredores, dando a volta na base algumas vezes, pressentindo nada além da refração do sinal dela e aquela sensação de horror. Sua conclusão era de que ela deveria estar em algum lugar daquela imensidão: ele teria pressentido se ela tivesse atravessado para o outro lado, e seria razoável concluir que se tivesse ido para o seu templo sagrado, até um plano alternativo de existência, ou – que o destino não permitisse – morrido, aquele eco ressonante dentro dele teria desaparecido.
A sua Escolhida estava ali em algum lugar.
Retornando para o armazém, para o presente, para onde ele estava agora, Xcor esfregou as palmas para frente e para trás lentamente, o raspar dos calos interrompendo a quietude. À esquerda, no limiar da luz de velas, suas armas estavam dispostas lado a lado, as adagas, as pistolas, e sua adorada foice cuidadosamente organizadas ao lado de uma pilha confusa de roupas de sair que ele retirara assim que escolhera aquele lugar específico no chão.
Concentrou-se na foice e esperou que ela lhe falasse: ela o fazia com frequência, com seus modos sedentos de sangue em compasso com a agressividade que fluía em suas veias e que definia seus pensamentos e motivava suas ações.
Aguardou que ela lhe dissesse para atacar a Irmandade onde eles ficavam. Onde as fêmeas moravam. Onde as crianças dormiam.
O silêncio era preocupante.
De fato, sua chegada ao Novo Mundo fora baseada no desejo de ganhar poder, a expressão maior e mais arrojada desse desejo era tomar o trono, portanto, naturalmente, esse era o curso que ele escolhera. E estava progredindo. A tentativa de assassinato no outono, que, sem sombra de dúvida, lançara uma sentença de morte sobre a sua cabeça e a dos seus soldados, fora uma medida tática que quase colocara um ponto final na guerra inteira antes mesmo de ela começar. E seus esforços contínuos com Elan e com a glymera estavam promovendo seus objetivos e reforçando seu apoio dentro da aristocracia.
Mas aquilo que ele descobrira naquela noite...
Deuses, quase um ano de trabalho, sacrifício, planejamento e combate perdiam importância em comparação com a sua descoberta.
Se seu palpite estivesse correto – e como não podia estar? –, tudo o que ele tinha de fazer era marchar com seus soldados e começar um cerco assim que a noite caísse. A batalha seria épica, e a Irmandade e o lar da Primeira Família seriam permanentemente comprometidos, independentemente do resultado.
Seria um conflito digno dos livros de História – afinal, a primeira vez em que a propriedade real fora atingida foi quando o progenitor e a mahmen de Wrath foram assassinados antes da transição dele.
A história se repetia.
E ele e seus soldados tinham uma séria vantagem em relação àqueles assassinos que, na época, não possuíram: a Irmandade agora tinha muitos machos vinculados. Na verdade, ele acreditava que todos eles estivessem vinculados, e isso dividiria as atenções e as lealdades dos machos como nada mais conseguiria fazer. Ainda que a diretriz principal deles como guarda pessoal do Rei fosse proteger Wrath, seus cernes estariam divididos, e mesmo o mais forte dos lutadores com as melhores armas estaria enfraquecido se suas prioridades estivessem em dois lugares distintos.
Além disso, se Xcor ou um dos seus soldados conseguisse apanhar uma daquelas shellans, a Irmandade esmoreceria, porque a outra coisa verdadeira a respeito deles era que a dor de um dos Irmãos era a própria agonia.
Só bastaria uma fêmea de qualquer um deles, a arma derradeira.
Ele sabia disso em sua alma.
Sentado à luz da vela, Xcor esfregou a lâmina da adaga na palma de sua mão, de um lado para o outro, de um lado para o outro.
Uma fêmea.
Era só disso que ele precisava.
E ele conseguiria não só reivindicar sua própria fêmea... mas também o trono.
CAPÍTULO 40
Qhuinn sabia que acabara de colocar Blay numa posição totalmente injusta.
Transa por pena, hein? Mas, ah, Deus, encarando aqueles olhos azuis, aqueles malditos olhos azuis sem fundo que estavam francos para ele do mesmo modo que um dia estiveram... era só no que conseguia pensar. E, sim, tecnicamente era sexo em termos de onde ele queria suas diversas partes – bem, uma mais especificamente. No entanto, havia muito mais do que apenas isso.
Ele não sabia expressar em palavras; simplesmente não era bom em juntar as sílabas. Mas seu desejo de conexão foi o que o levou ao beijo. Ele quis mostrar a Blay o que estava querendo dizer, do que ele precisava, por que aquilo era importante: seu mundo inteiro parecia estar desmoronando e a perda que acontecia na porta ao lado doeria por um bom tempo.
No entanto, estar com Blay, sentir o seu calor, fazer contato, era como uma promessa de cura. Mesmo se durasse apenas o tempo em que estivessem ali naquela sala, ele aceitaria, e guardaria aquilo para si... para relembrar quando precisasse.
– Por favor – sussurrou.
Só que ele não deu chance para o cara responder. Sua língua saiu sorrateira e lambeu aquela boca, escorregando para dentro, assumindo o controle.
E a resposta de Blay foi o modo como ele se permitiu ser empurrado para trás nas almofadas do sofá.
Qhuinn teve dois pensamentos vagos: um, a porta só estava fechada, não trancada – e ele cuidou disso desejando que a trava de latão ficasse no lugar certo. E o segundo pensamento momentâneo era que eles não poderiam destruir aquele lugar. Explodir tudo em seu quarto era uma coisa. A sala de estar era propriedade pública, e muito bem decorada, com as almofadas de seda e as cortinas luxuosas, e um monte de outras coisas que pareciam facilmente rasgáveis, amassáveis, Deus, mancháveis...
Além disso, ele já destruíra seu Hummer, acabara com o jardim e sacudira o quarto. Portanto, sua cota de Destruidor já ultrapassara, e muito, o calendário anual...
Naturalmente, a solução mais prática para não dar nenhuma preocupação adicional a Fritz seria percorrer o corredor rapidamente até o seu quarto, mas enquanto as mãos talentosas de Blay estavam na frente do quadril de Qhuinn, já abaixando seu zíper, ele lançou essa ideia brilhante no cesto de lixo.
– Ai, Deus, toque-me – gemeu, empurrando a pélvis para a frente.
Ele só teria de ser comportado e bem limpinho com aquilo.
Presumindo que isso fosse possível.
Quando a palma de Blay se enfiou em sua calça de couro, o corpo de Qhuinn se arqueou, o torso curvando-se para trás enquanto o outro iniciava os trabalhos. O ângulo estava meio errado, por isso não havia muita fricção, e suas bolas estavam sendo beliscadas pela costura da calça, mas santo inferno, ele não se importava. O fato de que aquele era Blay bastava.
Cacete, depois de anos de chupadas, punhetas e transas, aquela parecia a primeira vez que alguém tocava nele.
Ele precisava retribuir o favor.
Entrando em ação, elevou o peito e aproximou os rostos. Caramba, ele adorava a expressão daqueles olhos azuis enquanto Blay o encarava, quente, selvagem, sensual.
Com tesão.
Qhuinn o segurou com força e aproximou as bocas, agarrando-se àqueles lábios, lançando a língua, tomando tudo como um desvairado...
– Espere, espere – Blay retrocedeu. – Vamos quebrar o sofá.
– O quê...? – o cara parecia estar falando inglês, mas pro inferno se ele conseguia traduzir. – Sofá?
E então ele percebeu que empurrara tanto Blay no braço do móvel, que a coisa estava começando a se inclinar. Que era mais do que duzentos quilos de sexo poderiam fazer em uma peça de mobília.
– Ai, merda, desculpe.
Ele estava começando a recuar quando Blay assumiu o controle e Qhuinn, de repente, viu-se fora do sofá, de costas no chão, as pernas unidas, as calças sendo empurradas para os tornozelos.
Ideia. Genial.
Graças ao fato de ele não usar cuecas, seu pau estava todo exposto, grosso e tenso, ao ser lançado para cima, dolorido e inchado por sobre a barriga. Abaixando a mão, ele deu umas puxadas enquanto Blay arrancava seus coturnos que estavam atrapalhando, largando-os de lado. As calças foram as próximas a darem adeus, e, com Deus como testemunha, Qhuinn nunca antes ficou tão contente em ver um par de couro voar por cima do ombro em toda a sua vida.
Em seguida, Blay voltou ao trabalho.
Qhuinn teve que fechar os olhos quando sentiu as coxas sendo afastadas e um par de mãos de lutador puxar o interior de suas pernas. Imediatamente ele soltou a ereção, afinal, porque ter a palma atrapalhando quando Blay poderia...
Não foram as mãos do cara que o seguraram.
Foi a boca quente e úmida que Qhuinn beijara pra cacete pouco antes.
Por uma fração de segundo, enquanto a sucção abocanhava a ponta e o mastro, ele teve o pensamento maldito de que Saxton ensinara Blay a fazer aquilo: seu maldito primo fizera aquilo com o cara, e fizera com que ele...
Pare, ordenou-se. Quaisquer lições aprendidas e a história por detrás delas não importavam, era a sua ereção que recebia atenção naquele instante. Por isso, que se dane essa merda.
Para deixar isso bem claro, forçou seus olhos a se abrirem. Inferno... do céu...
A cabeça de Blay subia e descia em seus quadris, o punho segurava a base do pau de Qhuinn, a outra mão se ocupava com as bolas. Mas então, como se estivesse esperando por contato visual, o cara parou no alto, libertou a cabeça e lambeu os lábios.
– Eu não gostaria que você fizesse uma lambança nesta linda sala – Blay disse com fala arrastada.
E então, estendeu a ponta da língua para açoitar o piercing no pênis de Qhuinn, a carne rosada brincando com a argola cinza de metal e a bolinha...
– Caralho. Vou gozar agora – grunhiu Qhuinn, com uma onda fervente se avolumando. – Eu vou...
Ele estava impotente para deter as coisas, muito mais até do que alguém que tivesse se lançado de um precipício e que, depois de metros de queda livre, quisesse desistir.
Só que ele não queria pisar no freio.
E não pisou.
Com um rugido potente, que provavelmente foi ouvido em outros lugares, a espinha de Qhuinn se afastou do chão, o traseiro ficou rígido, as bolas explodiram, a excitação esguichando com força na boca de Blay. E não foi só o seu sexo que foi afetado. O orgasmo o atingiu em todo o corpo, uma energia latente emergindo por ele enquanto cravava as unhas no tapete em que estava deitado, os dentes cerrados... e gozando como um animal selvagem.
Felizmente, Blay se mostrou mais do que eficiente na limpeza. E se isso não o fez gozar ainda mais... Também lhe deu muito para o que olhar: pelo resto dos seus dias, Qhuinn jamais se esqueceria da visão da boca do macho o envolvendo, as bochechas sugando enquanto ele libertava seu gozo e ele absorvia tudo. De novo e de novo e de novo.
Normalmente, Qhuinn ficava pronto para outra em seguida, mas quando as ondas tumultuadas finalmente se quebraram sobre ele, ele ficou completamente inerte, os braços largados no chão, os joelhos moles, a cabeça pensa.
– Não consigo me mexer – murmurou.
O riso de Blay foi profundo e sensual.
– Você parece um pouco cansado.
– Posso retribuir o favor?
– Você consegue levantar a cabeça?
– Ela ainda está grudada no meu corpo?
– Pelo que vejo, sim, está.
Enquanto Blay ria de novo, Qhuinn soube o que queria fazer e isso o surpreendeu. Em todas as suas explorações sexuais, ele nunca se permitiu ser enrabado. Não era assim que as coisas aconteciam. Ele era o conquistador, o que tomava, o que estabelecia o controle e conservava a superioridade.
Ficar por baixo simplesmente não o interessava.
E agora era o que queria.
O único problema era que, literalmente, não conseguia se mexer. Ah, sim, e havia uma coisinha a mais: como contar a Blay que ele era virgem?
Porque ele desejava. Se um dia chegasse àquilo, ele queria que Blay soubesse. Por algum motivo, isso era importante.
De repente, o rosto de Blay apareceu em seu campo de visão, e, Deus, como o lutador era lindo, o rosto afogueado, os olhos reluzentes, aqueles ombros largos bloqueando tudo.
E, ah, sim, aquele sorriso sexy como o inferno, tão satisfeito consigo e autossuficiente, como se o fato de Blay ter provocado tanto prazer em alguém fosse o bastante para que ele não precisasse do próprio alívio.
Mas isso não seria justo, seria?
– Não acho que você vai voltar a se mexer tão cedo – comentou Blay.
– Talvez. Mas posso abrir a boca – foi a resposta misteriosa. – Tanto quanto você.
Certo, tudo bem, a ideia de que provocava um orgasmo daquele em Qhuinn foi tão ratificadora que Blay se esquecera por completo do seu corpo.
A questão era que após tantos anos de rejeição, era uma emoção sem igual sentir poder em relação ao cara, ser aquele quem comandava o ritmo... a pessoa que levava Qhuinn a um lugar vulnerável e erótico muito mais intenso do que qualquer outro antes. E foi isso o que aconteceu. Ele sabia exatamente como Qhuinn ficava e como soava quando gozava, e Blay podia afirmar, sem nenhum traço de dúvida, que ele jamais vira seu camarada tão prostrado como agora, largado no tapete, os músculos do pescoço esticados, os abdominais contraídos, os quadris bombeando com força.
Qhuinn gozara praticamente vinte minutos direto.
E agora, no pós-coito, uma estranha revelação: até aquele instante, Blay jamais reconhecera o cinismo que Qhuinn carregava no rosto o tempo inteiro... as sobrancelhas caídas, o canto da boca perpetuamente repuxado para cima... o maxilar nunca, jamais relaxado.
Era como se toda a torpeza que a família lhe fizera tivesse permanentemente esculpido suas feições.
Mas não era verdade, não é mesmo? Durante o orgasmo, e agora, enquanto as coisas se acalmavam, nada daquela tensão era visível em lugar algum. O rosto de Qhuinn estava... livre de toda reserva, parecendo tão mais jovem, e Blay teve que se perguntar por que nunca percebera a idade dele antes.
– Então, vai me dar algo para eu chupar enquanto me recupero? – Qhuinn perguntou.
– O quê...?
– Estou com sede. E preciso chupar alguma coisa – dito isso, Qhuinn mordeu o lábio inferior, as presas brancas brilhantes afundando na pele. – Vai me ajudar?
Os olhos de Blay reviraram em suas órbitas.
– É... acho que posso fazer isso.
– Então me deixe tirar suas calças.
As pernas de Blay se levantaram com tanta rapidez que ele teve um insight novo sobre as leis da física, e enquanto ele chutava os sapatos, as mãos tremiam ao desabotoar a calça. As coisas foram bem rápidas a partir dali. E durante o tempo todo em que se despia, ele estava absolutamente ciente de tudo o que havia na sala – especialmente Qhuinn. O macho estava ficando rígido novamente, o sexo engrossando apesar de tudo pelo que acabara de passar... as coxas pesadas se contraindo e a pélvis rolando... a parte baixa do tronco tão delgada que cada sutil mudança do torso era refletida na pele esticada e bronzeada.
– Isso aí... – Qhuinn sibilou, as presas se estendendo do maxilar superior, as mãos procurando, e encontrando, o sexo, apalpando-o em movimentos longos e lentos. – Isso mesmo.
A respiração de Blay começou a acelerar, os batimentos cardíacos subindo até o telhado enquanto os olhos descombinados de Qhuinn se prendiam ao seu sexo.
– É isso o que eu quero – o macho grunhiu, soltando-se e esticando as duas mãos.
Por uma fração de segundo, Blay não teve muita certeza como as partes trabalhariam. Qhuinn estava diante do sofá, paralelo ao móvel, por isso não havia muito espaço para...
Um grunhido sutil perpassou o ar enquanto Qhuinn flexionava os dedos como se mal conseguisse esperar para segurar aquilo que desejava.
O planejamento que fosse para o inferno.
Os joelhos de Blay atenderam ao chamado, dobrando para a frente, levando seu peso ao chão perto da cabeça de Qhuinn.
Qhuinn assumiu o controle a partir daí. As palmas escorregaram e se prenderam, atraindo Blay de modo que, sem nem se dar conta, ele tinha um joelho atrás da cabeça do cara e a outra perna estendida ao longo do corpo até o quadril de Qhuinn.
– Ai... cacete... – Blay gemeu ao sentir o sexo entrar entre os lábios de Qhuinn.
O corpo pendeu para a frente até ele acabar derramando o torso nas almofadas do sofá, e foi nesse momento que ele se viu com uma excelente alavancagem. Apoiando os braços no sofá, distribuiu o peso entre os joelhos, os pés e as palmas... e depois se pôs a foder a boca adorável de Qhuinn.
O cara aceitou tudo, mesmo quando os quadris descontrolados de Blay empurraram com tudo o que ele tinha.
Com os dedos de Qhuinn cravados em seu traseiro, e aquela incrível sucção, e... Cristo, o piercing da língua, com a bolinha resvalando seu mastro a cada estocada... Blay estava se dirigindo exatamente para o mesmo tipo de orgasmo que Qhuinn acabara de ter.
Mesmo assim, no fundo da sua mente, ele se questionava se não estava machucando o cara. Do jeito como as coisas seguiam, ele acabaria gozando no estômago dele.
Tarde demais para se preocupar com isso.
Seu corpo assumiu, enrijecendo numa série de espasmos torturantes que corriam do alto da coluna até as pernas.
E bem quando as sensações descontroladas estavam começando a diminuir, o mundo entortou ao seu redor, como se seu senso de equilíbrio tivesse explodido junto de seu...
Não, o mundo estava no lugar. Qhuinn acabara de se levantar do chão, saindo de baixo e se posicionando atrás...
Enquanto Qhuinn penetrava com uma estocada na velocidade da luz, Blay emitiu um gemido que com certeza seria ouvido no Canadá...
O rangido que se fez ouvir na sala o deixou intrigado, mesmo em meio à pressão e ao prazer.
Ah. Eles estavam empurrando o sofá.
Que seja. Ele compraria um novo para a casa se quebrassem a maldita porcaria; ele não iria parar.
O ritmo foi tão punitivo quanto fora o seu e, nesse caso, a revanche não era só o que ele merecia, mas exatamente o que ele queria. A cada estocada, seu rosto era empurrado contra as almofadas do sofá; a cada recuada, ele respirava; só para ser empurrado novamente, num círculo que recomeçava sempre.
Reposicionando as pernas para que Qhuinn alcançasse ainda mais fundo, Blay teve a vaga noção de que eles, definitivamente, mudavam o sofá de posição, mas quem é que se importava com isso, contanto que eles não acabassem no corredor?
No último instante, pouco antes de ele gozar, teve a presença de espírito de pegar as calças. Puxando as cuecas, ele...
A mão de Qhuinn se esticou, apanhou a Calvin Klein e fez o que era preciso, garantindo que houvesse algo para conter o seu gozo. Então, um instante depois, seu peito se deslocou do sofá e ele estava ereto sobre os joelhos. Qhuinn cuidou de tudo, segurando o pau de Blay enquanto cobria a cabeça – penetrando, ainda penetrando, sempre penetrando...
Gozaram ao mesmo tempo, dois pares de gritos ecoando pela sala.
No meio do orgasmo, Blay, sem querer, levantou o olhar. No enorme espelho antigo que estava pendurado entre as duas janelas do lado oposto, ele viu os dois, soube que estavam ligados... e isso o fez gozar novamente.
No fim, as investidas desaceleraram. Os batimentos cardíacos começaram a diminuir. As respirações foram se acalmando.
No vidro chumbado, ele viu Qhuinn fechar os olhos e abaixar a cabeça. Na lateral do seu pescoço, Blay sentiu um resvalar suave.
Os lábios de Qhuinn.
E então a mão livre do macho subiu, parando para afagar Blay no peitoral...
Qhuinn congelou. Recuou. Afastou os lábios, seu toque.
– Desculpe. Desculpe, eu... sei que não quer isso de mim.
A mudança no rosto do cara, o regresso ao cinismo costumeiro, era como ser roubado.
E mesmo assim Blay não podia dizer a ele que voltasse a se aproximar. Qhuinn estava certo; no instante em que a ternura aparecia, ele começava a entrar em pânico.
A retirada foi rápida, rápida demais, e Blay sentiu falta da sensação de estar completo e de ser possuído. Mas estava na hora de acabar com aquilo.
Qhuinn pigarreou.
– Hum... você quer que eu...
– Cuido disso – murmurou Blay, substituindo a mão de Qhuinn sobre as cuecas amassadas em seu quadril.
Durante o sexo, o silêncio na sala equivalia à privacidade. Agora, eram apenas os sons amplificados de Qhuinn subindo as calças de couro.
Droga.
Voltavam ao caos e à confusão. E enquanto as coisas aconteciam, as sensações eram tão intensas e esmagadoras que não houve nenhum pensamento além do sexo. Depois, porém, o corpo de Blay estava frio demais no ambiente climatizado, diferentes partes pulsavam por terem sido usadas, as pernas estavam moles e cambaleantes, a mente, enevoada...
Nada parecia seguro ou garantido. Nem um pouco.
Forçando-se a se vestir, colocou as roupas o mais rápido que conseguiu, inclusive os sapatos. Nesse meio-tempo, foi Qhuinn quem devolveu o sofá ao seu lugar, cuidadosamente colocando os pés nas marcas do tapete. Também ajeitara as almofadas. Endireitara o tapete oriental.
Foi como se nada tivesse acontecido. A não ser pelas cuecas de Blay amassadas em sua mão fechada.
– Obrigado – disse Qhuinn baixinho. – Eu, hum...
– Tudo bem.
– Então... acho que eu vou agora.
– Ok.
E foi isso.
Bem, além de a porta se fechar.
Deixado a sós, Blay resolveu que precisava de uma chuveirada. Mais comida. Dormir.
Em vez disso tudo, ele ficou na sala de estar do segundo andar, olhando para aquele espelho, lembrando-se do que vira nele. Em sua mente, teve a vaga noção de que eles não podiam continuar fazendo aquilo. Emocionalmente, não era seguro para ele; na verdade, era o equivalente a manter a palma da mão sobre uma chama uma vez após a outra, só que a cada vez que você voltava a colocar a mão, você diminuía a distância entre a sua carne e o calor. Cedo ou tarde? Queimaduras de terceiro grau seriam o menor dos seus problemas, porque o braço inteiro estaria em chamas.
Depois de um tempo, contudo, não ficou só pensando naquela coisa de autopreservação.
Mas sim no que dera início àquilo tudo.
Faz isso parar.
Blay passou a mão pelo cabelo. Depois olhou para a porta fechada e franziu o cenho, a mente trabalhando, trabalhando, trabalhando...
Um minuto depois, saiu apressado, andando rapidamente.
Antes de partir num trote.
E acabar correndo como um louco.
CAPÍTULO 41
Eram mais ou menos dez da manhã quando Trez seguiu para o Restaurante Sal’s. O trajeto do apartamento no Commodore para o belo estabelecimento do irmão não demorou, levando apenas dez minutos, e havia diversos espaços disponíveis para estacionar quando ele chegou lá.
De fato, o lugar não abria antes da uma da tarde, nem mesmo para o pessoal da cozinha iniciar a preparação.
Enquanto se encaminhava para a entrada, suas botas esmagando a neve, ele esperou que o código de abertura pelo lado externo não funcionasse: iAm não voltara para casa na noite anterior e, supondo que os cretinos do s’Hisbe não o tivessem levado embora como dano colateral, só havia um lugar em que seu irmão poderia estar. Depois de dois bules de café e muitas consultas ao relógio de pulso, Trez entendeu que, se queria fazer as pazes, ele teria de atravessar a cidade.
Legal. A combinação não fora mudada.
Ainda.
Do lado de dentro, o lugar parecia uma réplica do Rat Pack, numa interpretação moderna de uma era que gerara tipos como Peter Lawford e Frank Sinatra: uma entrada com papel de parede de algodão preto e vermelho o levava até a recepção, onde a chapelaria, a mesinha retrô da recepcionista e o caixa ficavam. À esquerda e também à direita, estavam os dois salões principais, ambos decorados em veludo e couro preto e vermelho, mas não eram onde os políticos e os endinheirados locais ficavam. O lugar predileto era o bar mais à frente, um salão com painéis de madeira que tinha bancos estofados quadrados de couro vermelho perto das paredes e, durante o expediente, um barman de smoking atrás de uma bancada de carvalho servindo nada que não fosse o melhor.
Atravessando a extensão do bar, Trez seguiu para o outro lado das cinco prateleiras de garrafas à mostra e passou pelas portas em vaivém. Ao entrar na cozinha, o cheiro de manjericão, cebola, orégano e vinho tinto lhe denunciou exatamente onde iAm estava.
Como esperado, o cara estava diante do enorme fogão industrial de dezesseis bocas na parede oposta, com cinco panelas imensas borbulhando diante dele – e você gostaria de apostar que também havia alguma coisa no forno? Nesse meio-tempo, tábuas de madeira de corte estavam enfileiradas nas bancadas de aço inoxidável, as cabeças mortas de diferentes tipos de pimentão deixadas ao lado das facas afiadas que foram usadas.
Dez pratas para adivinhar em quem o cara estava pensando enquanto picava aquilo tudo.
– Vai ou não falar comigo? – Trez disse para as costas do irmão.
iAm seguiu para a panela seguinte, levantando a tampa com um pano de prato branco, uma imensa escumadeira entrando e mexendo lentamente.
Trez se inclinou para o lado e puxou um banquinho de aço inoxidável. Sentando-se, esfregou as coxas para cima e para baixo.
– Oi? Alguém aí?
iAm foi para a panela seguinte. E depois a outra. Cada uma delas tinha uma colher diferente para evitar a mistura de sabores, e seu irmão tomava muito cuidado com isso.
– Escute, eu sinto muito se não estava quando você foi à boate ontem à noite – todas as noites, iAm ia para o Iron Mask para dar uma olhada depois que o Sal’s fechava. – Tive que cuidar de uns assuntos.
Merda, se teve. A garota do namorado grosseiro levou uma eternidade para sair do seu carro quando ele a levou para a casa dela. No fim, ele a acompanhou até a porta, abriu e só faltou empurrá-la para dentro. De volta ao carro, ele acelerou como se tivesse plantado uma bomba na calçada e, enquanto seguia para o Iron Mask, tudo o que ouvia em sua cabeça era a voz de iAm.
Você não pode continuar a fazer isso.
A essa altura, iAm se virou, cruzou os braços sobre o peito e se recostou ao fogão. Os bíceps já eram grandes, mas com os braços cruzados daquele jeito, forçavam a borda da camiseta preta que ele vestia.
Os olhos amendoados estavam semicerrados.
– Você acha mesmo que eu estou bravo porque você não estava quando fui ao clube? Sério? E não por que você me deixou para lidar com AnsLai ou qualquer asneira do tipo...
Eeeee estavam todos a postos.
– Sabe que não posso me encontrar com o cara – Trez levantou as mãos como se quisesse dizer que não havia nada que ele pudesse fazer. – Eles tentariam me forçar a voltar com eles e, então, quais seriam as minhas opções? Brigar? Eu acabaria lutando com o filho da puta e onde eu iria parar com isso?
iAm esfregou os olhos como se estivesse com dor de cabeça.
– Neste instante, parece que eles estão tomando uma abordagem diplomática. Pelo menos comigo.
– Quando vão voltar?
– Não sei. É isso o que está me deixando nervoso.
Trez enrijeceu. A ideia de que seu irmão frio como peixe estivesse ansioso o fez sentir como se estivesse com uma faca no pescoço.
Pensando bem, ele sabia muito bem o quanto o seu povo podia ser perigoso. O s’Hisbe era conhecido como uma tribo pacífica, satisfeita em se manter ao largo das lutas contra a Sociedade Redutora e dos desagradáveis humanos. Educados, muito inteligentes e espirituais, eles eram, como um todo, um grupo agradável. Desde que você não estivesse na lista negra deles.
Trez olhou para as panelas e se perguntou qual seria a carne no molho.
– Ainda estou em débito com Rehv – ele observou. – Portanto, essa obrigação deve vir em primeiro lugar.
– Não para o s’Hisbe. AnsLai disse, e vou citar suas palavras: “Chegou a hora”.
– Não vou voltar – ele fitou os olhos do irmão. – Isso não vai acontecer.
iAm voltou para as panelas, mexendo em cada uma com a colher designada.
– Sei disso. E é por isso que estou cozinhando. Estou tentando encontrar uma saída.
Deus, como ele amava o irmão. Mesmo irritado, o cara tentava ajudar.
– Desculpe-me por ter desaparecido e ter feito você cuidar disso. Sinto muito mesmo. Não foi justo... Eu só... bem, não achei seguro estar no mesmo cômodo que aquele cara. Sinto muito.
O peito largo de iAm subiu e desceu.
– Sei que sente.
– Eu poderia simplesmente desaparecer e o problema estaria resolvido.
Ainda que deixar iAm para trás o matasse. A questão era que, caso ele fugisse do s’Hisbe, ele jamais teria contato com o macho novamente. Nunca mais.
– Para onde você iria? – iAm observou.
– Não faço ideia.
A boa notícia é que o s’Hisbe não gostava de ter nenhum contato com os Desconhecidos. Sem dúvida, só aparecer no apartamento dele e de iAm fora traumático, mesmo se o sumo sacerdote tivesse se desmaterializado até a varanda. Lidar diretamente com humanos? Estar ao lado deles? A cabeça de AnsLai explodiria.
– Então, qual era o seu assunto? – perguntou iAm.
Maravilha. Mais um assunto igualmente feliz.
– Fui ver aquele armazém – ele desviou. Mas, cacete, até parece que ele tocaria no assunto da garota com o namorado espontaneamente.
– A uma da manhã?
– Fiz uma oferta.
– De quanto?
– Um milhão e quatrocentos. O preço pedido era de dois milhões e meio, mas não vão conseguir esse montante de jeito nenhum. O lugar está vazio há anos e demonstra isso – embora, ao dizer isso em voz alta, ele teve que admitir que sentira presenças lá. Pensando bem, talvez fosse apenas o seu estresse o responsável por isso. – Meu palpite é que vão dar uma contraoferta de dois milhões, eu subo para um e seiscentos e acabamos acordando em um e setecentos.
– Tem certeza de que quer iniciar esse projeto agora? A menos que apareça no território com o seu mastro matrimonial pronto para ser usado, esta questão com o s’Hisbe só vai piorar.
– Se as coisas chegarem a esse ponto, eu cuido disso na hora certa.
– Quando – iAm o corrigiu. – A questão é “quando”. E sei o que aconteceu no estacionamento, Trez. Com aquele cara e a mulher.
Claaaaro que sim.
– Viu as fitas ou algo assim?
Maldita câmera de segurança.
– Sim.
– Eu cuidei daquilo.
– Assim como está cuidando do s’Hisbe. Perfeito.
Com o humor afetado, Trez se inclinou.
– Quer calçar os meus sapatos, irmãozinho? Eu bem que gostaria de saber como você lidaria com essa merda toda.
– Eu não estaria fodendo putas, isso eu garanto. O que me faz pensar... o nosso corretor é uma fêmea, não?
– Foda-se, iAm. De verdade.
Trez se levantou do banquinho e marchou para fora da cozinha. Ele já tinha problemas suficientes, pelo amor de Deus, não precisava do senhor Superior com habilidades de Julia Child palpitando sobre o assunto com doze tipos de panelas...
– Você não pode continuar postergando esse assunto – iAm chamou de lá de trás. – Ou tentando enterrá-lo entre as pernas das mulheres.
Trez parou, mas manteve o olhar fixo na saída.
– Simplesmente não pode – o irmão afirmou com franqueza.
Trez girou. iAm estava perto do bar, a porta em vaivém mexendo atrás dele formando um efeito de estroboscópio de luz, escuro, luz, escuro. Toda vez que a luz surgia, parecia que seu irmão tinha um halo ao redor de todo o corpo.
Trez praguejou.
– Só preciso que me deixem em paz.
– Eu sei – iAm esfregou a cabeça. – E, honestamente, não sei que porra fazer a respeito. Não consigo me imaginar vivendo sem você, e também não quero voltar para lá. Só que também não encontrei alternativas.
– Aquelas mulheres... sabe, as que eu... – Trez hesitou. – Não acha que elas me excitam?
– Se elas não fazem isso – iAm disse secamente –, não sei porque perde tempo com elas.
Trez teve que dar um sorriso.
– Não, estou falando do s’Hisbe. Estou bem longe de ser virgem a esta altura – pelo menos ele ainda não se rebaixara a animais de fazenda. – E o que é pior? Todas eram Desconhecidos, a maioria humanas. Isso deve enojá-los. Estamos falando da filha da rainha!
Enquanto iAm franzia o cenho como se estivesse considerando a ideia, Trez sentiu uma centelha de esperança.
– Não sei, não – veio a resposta. – Talvez isso funcione, mas ainda assim você negou a Sua Alteza o que ela quer e precisa. Se eles o considerarem desonrado, podem muito bem decidir matá-lo como castigo.
Que seja. Eles teriam que encontrá-lo primeiro.
Numa onda de agressão, Trez abaixou o queixo e olhou fixo por debaixo das sobrancelhas.
– Se esse for o caso, eles vão ter que lutar comigo. E eu garanto que isso não vai acabar bem para eles.
Na mansão da Irmandade, Wrath entendeu que sua rainha estava aborrecida no instante em que ela passou pelas portas do escritório. Seu cheiro atraente estava maculado por uma pontada de acidez: ansiedade.
– O que foi, leelan? – ele quis saber, estendendo os braços.
Mesmo não enxergando, suas lembranças lhe davam uma imagem mental dela cruzando o tapete Aubusson, com o corpo longo e atlético se movendo com graciosidade, os cabelos escuros soltos sobre os ombros, o lindo rosto marcado por tensão.
Naturalmente, o macho vinculado dentro dele desejou perseguir e matar o que quer que a tivesse perturbado.
– Olá, George – disse ela ao cão. Pelo barulho de batidas ritmadas no chão, ele supôs que o cachorro tivesse recebido uma dose de amor antes.
E então foi a vez do dono.
Beth subiu no colo de Wrath, o peso próximo de nada, o corpo quente e vivo enquanto ele passava os braços ao seu redor e a beijava nas laterais do pescoço e depois na boca.
– Jesus – grunhiu ele, sentindo a rigidez no corpo dela –, você está aborrecida mesmo. Que merda está acontecendo?
Deus do céu, ela estava tremendo. Sua rainha estava, de fato, tremendo.
– Fale comigo, leelan – insistiu, esfregando-lhe as costas. E se preparando para se armar e sair em plena luz do sol se preciso fosse.
– Bem, você sabe sobre Layla – disse ela com voz rouca.
Ahhhh.
– Sim, sei. Phury me contou.
Enquanto a cabeça dela se posicionava em seu ombro, ele a ajeitou, aninhando-a em seu peito – e isso era bom. Havia vezes – não muitas, mas ocasionais – em que ele se sentia menos macho por conta de sua falta de visão: no passado, um lutador, agora, preso atrás daquela mesa. Um dia livre para ir aonde bem quisesse, agora, dependendo de um navegador canino. Certa vez absolutamente autossuficiente, agora, precisando de ajuda.
Não muito bom para os colhões de um macho.
Mas em momentos como aquele, quando aquela fêmea maravilhosa estava incomodada e o procurava, e somente a ele, para conforto e segurança, ele se sentia mais forte que uma maldita montanha. Afinal, machos vinculados protegiam suas fêmeas com tudo o que tinham, e mesmo com o fardo do seu direito de nascimento e aquele trono em que era obrigado a se sentar, ele, em seu cerne, permanecia o hellren daquela fêmea.
Ela era a sua primeira prioridade, acima inclusive daquela coisa toda de reinado. A sua Beth era o seu coração atrás das costelas, o tutano dentro de seus ossos, a alma em seu corpo físico.
– É tudo tão triste – disse ela. – Tão triste.
– Você foi vê-la?
– Acabei de ir. Ela está descansando. Quero dizer... de certa forma, custo a acreditar que não haja nada a ser feito.
– Falou com a doutora Jane?
– Assim que eles voltaram da clínica.
Enquanto a sua shellan chorava um pouco, o cheiro das lágrimas frescas de sua amada era como uma adaga em seu peito, e ele não estava surpreso com a reação dela. Ouvira dizer que as fêmeas lidavam muito mal com a perda da gravidez de outra fêmea – e como não ser assim? Ele, por certo, conseguia se colocar no lugar de Qhuinn.
E, ah, Deus... a ideia de Beth sofrer daquele modo? Ou pior, de conseguir levar adiante a gestação e depois...
Ótimo. Agora era ele quem tremia.
Wrath abaixou o rosto para os cabelos de Beth, inspirando, acalmando-se. A boa notícia era que eles jamais teriam um filho, portanto, ele não tinha com que se preocupar.
– Eu sinto muito – sussurrou.
– Eu também. Odeio o que eles estão passando.
Bem, na verdade, ele estava se desculpando por outra coisa completamente diferente.
Não que ele quisesse que uma merda daquelas acontecesse com Qhuinn, Layla e o filho deles. Mas talvez se Beth enxergasse a triste realidade, ela se lembraria de todos os riscos que se apresentavam a eles em todas as etapas de uma gestação.
Porra. Aquilo soava horrível. Era horrível. Pelo amor de Deus, ele não queria mesmo nada daquilo para Qhuinn, e tampouco queria ver sua shellan triste. Infelizmente, porém, a triste realidade era que ele não tinha absolutamente interesse algum em plantar sua semente nela daquele jeito – jamais.
E esse tipo de desespero fazia com que um cara pensasse em coisas imperdoáveis.
Numa onda de paranoia, ele calculou mentalmente os anos desde a transição dela – um pouco mais do que dois. Pelo que sabia, as fêmeas vampiras, em média, passavam pelo primeiro cio uns cinco anos após a transformação, e a cada dez anos depois disso. Portanto, eles tinham um bom tempo antes de terem de se preocupar com tudo isso...
Pensando bem, como mestiça, não havia garantias no caso de Beth. Quando os humanos e os vampiros se misturavam, qualquer coisa podia acontecer... E ele tinha motivos para se preocupar. Afinal, ela já mencionara filhos uma ou duas vezes.
Mas, obviamente, aquilo só podia ser hipoteticamente.
– E então, você vai postergar a iniciação de Qhuinn? – ela perguntou.
– Sim. Saxton já atualizou a lei, mas Layla estando assim? Não é o momento de trazê-lo para a Irmandade.
– Foi o que pensei.
Os dois se calaram, e enquanto Wrath guardava aquele momento em seu coração, não conseguiu imaginar sua vida sem ela.
– Sabe de uma coisa? – perguntou.
– O quê? – havia um sorriso na voz dela, do tipo que dizia a ele que ela sabia para onde a conversa estava indo.
– Eu amo você mais do que tudo.
Sua rainha deu uma leve risada, e o afagou no rosto.
– Eu jamais teria imaginado isso.
Inferno, até ele captava a onda de seu odor de vinculação.
Em resposta, Wrath segurou o rosto dela entre as palmas e se inclinou, encontrando seus lábios e depositando um beijo suave, que não permaneceu assim. Caramba, era sempre assim com ela. Qualquer contato e, antes que se desse conta, já estava rígido e pronto.
Deus, não sabia como os homens humanos lidavam com isso. Pelo que entendia, eles tinham de adivinhar se seus pares estavam férteis toda vez que faziam sexo – evidentemente, eles não tinham como captar a alteração nos odores de suas fêmeas.
Ele enlouqueceria. Pelo menos quando uma vampira estava no cio, todos sabiam.
Beth mudou de posição em seu colo, apertando a sua ereção e fazendo-o gemer. E, normalmente, essa era a dica para George ser levado para o outro lado das portas duplas, banido temporariamente. Mas não naquela noite. Por mais que Wrath a desejasse, a tristeza presente na casa aplacava até mesmo a sua libido.
E também havia a questão do cio de Autumn. E de Layla.
Ele não iria mentir; aquela merda o estava deixando ansioso. Sabia-se que hormônios no ar tinham um efeito ricochete numa casa cheia de fêmeas, influenciando umas às outras ao cio, desde que seu período estivesse próximo.
Wrath afagou os cabelos de Beth e voltou a acomodar a cabeça dela em seu ombro.
– Você não quer...
Enquanto ela deixava a frase inacabada, ele pegou a sua mão e a levantou, sentindo o peso do anel de rubi que a rainha da raça sempre usava.
– Só quero abraçar você – disse ele. – Isso basta para mim agora.
Aninhando-se, ela se encaixou ainda mais perto dele.
– Bem, isto também é gostoso.
Sim. Era.
E curiosamente aterrador.
– Wrath?
– Sim?
– Você está bem?
Demorou um pouco para ele confiar na voz e responder:
– Sim, estou bem. Tudo bem.
Ao alisar o braço dela, para cima e para baixo, ele rezou para que ela acreditasse... e jurou que o que acontecia no quarto no fim do corredor nunca, jamais, aconteceria com eles.
Não. Os dois não teriam de lidar com aquele tipo de crise.
Graças à Virgem Escriba.
CAPÍTULO 42
Claro que Layla não estava dormindo.
Quando pediu a Qhuinn que saísse, ela falou sério quanto a não querer sustentar uma fachada de força diante dele. Mas o mais engraçado era que mesmo sem ninguém por perto, ela não ficou histérica. Não chorou. Não praguejou.
Apenas ficou deitada de lado com os braços e as pernas enroscados, a mente recuada para dentro do corpo e monitorando constantemente cada dor e cólica numa compulsão que a enlouquecia. No entanto, não havia como mudar aquilo. Era como se uma parte dela estivesse convencida de que se ao menos ela soubesse em que estágio estava, ela poderia, de algum modo, monitorar o processo.
O que, na verdade, era uma tremenda tolice. Como Qhuinn bem diria.
A imagem dele na clínica, com a adaga no pescoço do médico, era algo saído de um dos livros da biblioteca do Santuário – um episódio dramático que era parte da vida de outra pessoa.
Sua posição na cama, porém, fazia com que ela lembrasse que o caso não era bem esse...
A batida à porta foi suave, sugerindo se tratar de uma fêmea.
Layla fechou os olhos. Por mais que apreciasse qualquer tipo de gentileza que aguardava uma resposta, ela preferiria que quem quer que estivesse no corredor, continuasse lá. A breve visita da rainha fora uma provação, mesmo ela tendo apreciado.
– Sim – quando sua voz mal soou em seus ouvidos, ela pigarreou e repetiu: – Sim?
A porta abriu e, a princípio, ela não reconheceu quem era na sombra que preenchia o espaço entre os batentes da porta. Alta. Forte. Porém, não um macho...
– Payne? – perguntou.
– Posso entrar?
– Sim, claro.
Enquanto Layla tentava se sentar, a fêmea guerreira gesticulou para que ela continuasse deitada, e depois fechou a porta.
– Não, não... por favor, fique à vontade.
Um abajur fora deixado aceso sobre a cômoda e, na luz suave, a irmã de sangue de Vishous da Irmandade da Adaga Negra parecia temerária, com os olhos de diamante parecendo reluzir para fora dos ângulos fortes do rosto dela.
– Como você está? – a fêmea perguntou com suavidade.
– Estou bem, obrigada. E você?
A lutadora deu um passo à frente.
– Eu sinto muito quanto... à sua condição.
Ah, como Layla desejava que aquilo fosse algo que Phury e os outros não tivessem partilhado com ninguém. Em retrospecto, a saída da casa fora um tanto dramática, o tipo de evento que causaria perguntas preocupadas. Ainda assim, sua privacidade preferia evitar esse tipo de invasão indesejável, ainda que misericordiosa.
– Agradeço as suas palavras gentis – sussurrou.
– Posso me sentar?
– Sim, claro.
Ela imaginou que a fêmea fosse se sentar numa das cadeiras dispostas mais ao longe. Não foi o que Payne fez. Ela se aproximou da cama e abaixou o peso ao lado de Layla.
Compelida a, pelo menos, parecer uma boa anfitriã, Layla tentou se suspender, fazendo uma careta quando uma nova onda de cólicas a imobilizou no meio do caminho.
Enquanto Payne praguejava baixinho, Layla teve que voltar a se deitar. Com voz rouca, disse:
– Perdoe-me, mas não posso receber visitas agora, por mais que me queira bem. Obrigada por expressar a sua empatia...
– Você sabe quem é a minha mãe – Payne a interrompeu.
Layla balançou a cabeça ao encontro do travesseiro.
– Por favor, saia...
– Sabe? – a fêmea perguntou com rispidez.
Abruptamente, Layla quis chorar. Simplesmente não tinha forças para qualquer tipo de conversa, ainda mais a respeito de mahmens. Não enquanto perdia o filho.
– Por favor.
– Sou filha da Virgem Escriba.
Layla franziu o cenho, as palavras sendo compreendidas mesmo em meio à dor, tanto física quanto mental.
– O que disse?
Payne inspirou profundamente, como se a revelação não fosse algo com que se alegrasse, mas como se fosse um tipo de maldição.
– Sou da carne da Virgem Escriba, nascida há muito tempo, e ocultada dos registros das Escolhidas e dos olhos de outrem.
Layla piscou em estado de choque. A aparição da fêmea fora um tipo de mistério, mas ela certamente não fizera nenhuma pergunta, pois isso não cabia a ela. A única coisa que sabia com convicção é que jamais houve registro algum da mãe sagrada da raça um dia ter dado à luz uma criança.
Na verdade, a estrutura completa do sistema de crença era prevista no fato de isso não ter ocorrido.
– Como isso é possível? – arfou Layla.
Os olhos brilhantes de Payne estavam sérios.
– Não era o que eu desejaria. E não é algo de que fale a respeito.
No momento tenso que se seguiu, Layla considerou impossível não ver a verdade naquilo que a fêmea falava. Tampouco a raiva, cuja causa ela apenas podia supor.
– Você é sagrada – disse Layla maravilhada.
– Nem um pouco, eu lhe garanto. Mas minha linhagem me concedeu um tipo de... como posso explicar? Habilidade.
Layla se enrijeceu.
– Que seria...?
Os olhos de diamante de Payne não se desviaram.
– Quero ajudá-la.
As mãos de Layla foram para o baixo ventre.
– Se quer abreviar isto... não.
Ela tinha seu filho por um tempo curto demais. Não importava a dor que tivesse que passar, ela não sacrificaria um minuto sequer daquilo que, sem dúvida, seria sua única gestação.
Ela jamais se colocaria à mercê de outro sofrimento assim. No futuro, quando seu cio chegasse, ela seria sedada e pronto.
Aquele tipo de perda uma vez na vida já era demais.
– E se acredita que pode deter isto – Layla continuou –, isso não é possível. Não há nada que ninguém possa fazer.
– Não estou tão certa disso – o olhar de Payne era enlevado. – Eu gostaria de ver se posso salvar esta gestação. Se me permitir.
No campus abandonado da Escola para Moças Brownswick, o Sr. C. se acomodou no que um dia fora o escritório da diretora.
Era o que estava escrito na placa rachada do lado de fora da sala.
Como não havia calefação, a temperatura ambiente não estava muito maior do que a do lado de fora, mas graças ao sangue de Ômega, o frio não era um problema. Ainda bem: do outro lado do gramado crescido coberto de neve, no dormitório principal sobre uma colina, quase cinquenta redutores dormiam o sono dos mortos.
Se aqueles malditos necessitassem de aquecimento ou de comida, ele estaria sem sorte alguma.
Mas não, tudo o que ele tinha de fazer era providenciar um abrigo. A iniciação cuidaria do resto – e o fato de que precisavam desligar a consciência a cada 24 horas era um alívio.
Ele precisava de tempo para pensar.
Jesus Cristo, que confusão.
Compelido pela necessidade de se mexer, ele empurrou a cadeira para trás e se lembrou de que estava se sentando sobre um balde de argamassa virado ao contrário.
– Maldição.
Olhando ao redor da sala decrépita, ele mediu as placas de gesso penduradas das vigas do teto, as janelas cobertas por tábuas de madeira, e o buraco em uma das tábuas do piso no canto. O lugar era igual à conta bancária que ele encontrara.
Nenhum dinheiro em lugar algum. Munição zero. Armas que podiam ser usadas em combate à força, e só.
Depois de sua promoção, ele se viu cheio de energia, de planos. Agora encontrava-se diante de nenhum dinheiro, nenhum recurso, nada.
Ômega, por outro lado, esperava todo tipo de resultado. Como deixara bem claro no “encontro” deles na noite anterior.
E também havia outro problema. Ele odiava aquela merda.
Pelo menos ele podia fazer algo a respeito de todo o resto.
Esticando os braços acima da cabeça e estalando os ombros, agradeceu a Deus por duas coisas: uma, os celulares não tinham sido desligados, por isso ele podia se comunicar com seus homens no campo de batalha. E dois, todos aqueles anos na rua lhe deram os punhos de ferro no que se referia a controlar o bando de idiotas do tráfico de drogas.
Tinha de arranjar dinheiro. Logo.
Ele teve uma porra de um plano para isso também, mandando os últimos nove mil dólares com aqueles três garotos no meio da noite. Tudo o que os malditos tinham de fazer era pagar, pegar a droga e trazer para ali, onde dividiriam a merda, depois distribuiriam entre os novos recrutas para que eles vendessem nas ruas.
O problema era que ele ainda estava esperando pela porra da entrega.
E estava ficando puto de tanto esperar para descobrir se as drogas e o dinheiro tinham sumido.
Era bem possível que aqueles merdinhas tivessem fugido com um ou com o outro, mas, nesse caso, ele os caçaria como cachorros para mostrar aos outros o que acontecia quando você...
Quando seu celular tocou, ele o pegou, viu quem era e apertou o botão de chamada.
– Já era hora. Onde diabos você está e cadê minha mercadoria?
Houve uma pausa. Depois, a voz que se ouviu pela conexão não era nada parecida com a do traficante cheio de espinhas para quem ele entregara o celular e a última pistola da Sociedade que funcionava.
– Tenho uma coisa que você quer.
O Sr. C. franziu a testa. Voz grave. Envolta numa impaciência que ele reconhecia das ruas, e um sotaque que ele não sabia de onde vinha.
– Não é essa merda com a qual você está falando comigo – disse o Sr. C. com fala arrastada. – Tenho um monte desses.
Afinal de contas, quando você não tem nada na mão, no coldre ou na carteira, blefar era a sua única opção.
– Ora, que bom para você. Também tem muito do que me mandou? Dinheiro? Soldados?
– Quem diabos está falando?
– Sou seu inimigo.
– Se você ficou com a porra da minha grana, pode apostar que sim.
– Na verdade, essa é uma resposta bem simplista para um problema um tanto complexo.
O Sr. C. se pôs de pé, derrubando o balde.
– Onde está a porra do meu dinheiro e o que fez com os meus homens?
– Lamento, mas eles não podem mais atender ao telefone. É por isso que estou ligando.
– Você não faz ideia com quem está lidando – o Sr. C. ameaçou.
– Pelo contrário, é você quem está em desvantagem, bem como tantos outros – quando o Sr. C. estava pronto para rebater, o cara o interrompeu. – Eis o que vamos fazer. Vou telefonar à noite para lhe dar uma localização. Você, e apenas você, vai me encontrar lá. Se alguém o acompanhar, eu saberei, e você nunca mais vai saber de mim.
O Sr. C. estava acostumado a sentir desdém pelos outros, isso era parte do trabalho uma vez que você só lida com ladrões de merda e malditos viciados. Mas esse cara do outro lado da conexão? Controlado. Calmo.
Um profissional.
O Sr. C. controlou seu humor.
– Não preciso de nenhum joguinho...
– Sim, precisa. Porque se você quiser drogas para vender, terá que vir a mim.
O Sr. C. ficou calado. Ou aquele era um lunático cheio de ilusões de grandeza ou... era alguém com poder de verdade. Talvez o tipo que matou os intermediários do cartel de drogas em Caldwell um ano antes.
– Quando e onde? – disse de má vontade.
Houve uma risada sombria.
– Atenda o seu telefone ao cair da noite e você descobrirá.
CAPÍTULO 43
Layla não conseguiu falar enquanto tentava compreender as palavras de Payne.
– Não – disse à outra fêmea. – Não, Havers me disse que... não havia nada que pudesse ser feito.
– Na medicina, isso pode ser verdade. Eu posso ter outro modo, porém. Não sei se funcionará, mas, se permitir, eu gostaria de ver o que posso fazer.
Por um instante, Layla só conseguiu respirar.
– Eu não... – pôs a mão no abdômen liso. – O que fará comigo?
– Não sei bem, para ser sincera – Payne deu de ombros. – Na verdade, nem me passou pela cabeça que eu poderia ajudar nesta situação. Mas sou conhecida por curar aquilo que precisa ser curado. Repito, não sei se isso se aplica neste caso. Contudo, podemos tentar... e isso não a machucará. Isso eu posso prometer.
Layla perscrutou a expressão da lutadora.
– Por que... faria uma coisa dessas por mim?
Payne franziu o cenho e desviou o olhar.
– Você não precisa saber os motivos.
– Sim, preciso.
O perfil dela se tornou absolutamente frio.
– Você e eu somos irmãs da tirania de minha mãe, casualidades de seu plano maior de como as coisas devem ser. Estivemos as duas enjauladas em seus modos diversos, você como uma Escolhida; eu, como sua filha de sangue. Não há nada que eu não faça para ajudá-la.
Layla se recostou. Jamais se considerara uma desventura da mãe da raça. A não ser... ao pensar em seu desespero em ter uma família, seu senso de não ter raízes, sua absoluta falta de identidade além do trabalho de uma Escolhida... ela teve o que pensar. O livre-arbítrio a levava àquela situação horrenda, mas, pelo menos, ela escolhera a rota e os meios. Como membro da classe especial da Virgem Escriba, não tivera muitas escolhas, a respeito de nada em sua vida.
A respeito de nada mesmo.
Ela estava perdendo aquela gravidez, aquilo era óbvio. E se Payne achava que existia uma chance de...
– Faça o que precisar fazer – disse com voz rouca. – E obrigada, não importando o resultado.
Payne assentiu uma vez. Depois esticou as mãos, flexionando e afastando os dedos.
– Posso tocar no seu abdômen?
Layla abaixou as cobertas.
– Devo tirar a camisa?
– Não.
Melhor assim. A simples retirada da colcha lhe provocara uma nova onda de dor, a mínima mudança de peso era causa de...
– Você está sofrendo muito – murmurou a outra fêmea.
Layla não respondeu ao expor a pele do abdômen. Obviamente, sua expressão já dizia o bastante.
– Apenas relaxe. Isso não deverá lhe causar nenhum desconforto...
Quando o contato foi feito, Layla levantou a cabeça. As mãos da lutadora estavam quentes como a água de uma banheira. E igualmente calmas. Estranhamente calmas, para falar a verdade.
– Isto dói? – Payne perguntou.
– Não. Parece... – quando uma nova onda de dor se avolumava, ela agarrou os lençóis, se preparando...
Só que o pico da dor não se elevou como antes, como se a sensação fosse uma montanha íngreme, cujo topo fora arrancado.
Era o primeiro alívio que sentia desde que tudo aquilo começara.
Com um gemido de submissão, ela deixou a cabeça pender, o travesseiro amparando o repentino cansaço que a abateu pelo tanto de desconforto pelo qual seu corpo passara.
– E agora nós começamos.
De repente, a luz do abajur tremulou... e depois se apagou.
Sua iluminação, contudo, logo foi substituída.
Das mãos pálidas de Payne um brilho suave começou a ser lançado. O calor de seu toque se intensificou, o abrandamento estranho e maravilhoso parecia penetrar em sua pele, nos músculos, em cada osso que estava no caminho... indo direto para o ventre de Layla.
E, então, houve um tipo de explosão.
Com um sibilo, ela se entregou à grande onda de energia que abruptamente surgiu dentro dela, um calor que não queimava, mas fervia afastando a dor, suspendendo a agonia e arrancando-a de sua carne, como se o vapor de uma panela se dissipasse.
Mas não acabou ali. Uma grande sensação de euforia em seu corpo inteiro, com cachos dourados pulsando para fora de sua região pélvica e fluindo pelo torso até a mente e também em sua alma, e pernas e braços formigando.
Ah, que alívio pungente.
Ah, que poder incrível.
Ah, graça salvadora gentil.
A cura, contudo, não estava completa.
No meio do turbilhão, Layla sentiu... o que era aquilo? Um movimento em seu útero. Uma contração, talvez? Mas não uma cólica, não, nada disso. Mais como se o que estivesse defasado tivesse recuperado as forças.
Ela, gradualmente, deu-se conta de que batia os dentes.
Olhando para baixo, para seu corpo, ela viu que tudo tremia, e não só isso.
Sua forma física estava brilhando. Cada centímetro de sua pele era como uma cúpula de um abajur, revelando a luz que jazia por baixo, as roupas agindo como barreiras frágeis daquilo que fervia lentamente dentro dela.
Na iluminação, o rosto de Payne estava contraído, como se fosse um custo alto transferir a cura maravilhosa para outra pessoa. E Layla teria se distanciado, colocado um fim naquilo, se pudesse – porque a outra fêmea começava a parecer muito cansada. No entanto, não havia como romper a ligação. Ela não tinha o controle dos seus membros, não tinha como falar.
Aquela comunhão vital entre as duas pareceu durar uma eternidade.
Quando Payne finalmente se afastou, rompendo o elo, ela caiu da cama, formando uma pilha no chão.
Layla abriu a boca para gritar. Tentou segurar sua salvadora. Lutou contra o peso morto do corpo ainda iluminado.
Todavia, não havia nada que ela pudesse fazer.
A última coisa que ficou registrada antes que perdesse a consciência era a sua preocupação com a outra fêmea. E, depois, tudo ficou escuro.
CAPÍTULO 44
Qhuinn despertou com o pênis duro.
Estava deitado de costas e seus quadris se mexiam por conta própria, o movimento contínuo resvalava a ereção contra o peso dos lençóis e da colcha. Por um instante, enquanto se demorava naquele estado meio dormente antes de a consciência chegar, ele imaginou que era Blay criando aquela fricção, as palmas do macho subindo e descendo... num preâmbulo de mais ação oral.
Foi quando abaixou a mão para enterrar os dedos nos cabelos ruivos que percebeu estar sozinho: a mão encontrou apenas os lençóis.
Numa atitude otimista, lançou o braço para o lado, tateando o lugar ao seu lado, pronto para encontrar o corpo quente do macho.
Apenas mais lençóis. E estavam frios.
– Cacete – inspirou.
Abrindo os olhos, a realidade de onde estava o atingiu com força, murchando a sua ereção. Apesar dos encontros, aqueles dois interlúdios maravilhosos e extremamente sensuais, Blay estava, naquele exato instante, acordando ao lado de Saxton.
Provavelmente fazendo sexo com o cara.
Ah, Deus, ele ia vomitar.
A ideia de Blay tocando em outro, cavalgando em outro, lambendo e afagando outro – seu maldito primo, para ser bem claro – era quase tão insuportável quanto a maldita situação de Layla. A verdade era que, graças ao que acontecera, qualquer atração que Qhuinn sentisse pelo cara aumentara em vez de diminuir.
Maravilha. Outra rodada de boas notícias.
Foi sem nenhum entusiasmo que Qhuinn se arrastou para fora da cama e entrou no banheiro. Não acendeu a luz, não tinha interesse algum em ver que sua aparência era a mesma da merda de um cachorro, mas barbear-se só pelo toque não era a melhor das ideias.
Ao apertar o interruptor, piscou com força, e uma dor de cabeça começou a latejar atrás de ambos os olhos. Sem dúvida precisava comer de novo, mas que merda, as exigências constantes de seu corpo estavam acabando com ele.
Abrindo a torneira, ele pegou o gel de barbear e colocou um punhado na palma. Esfregou as mãos para criar espuma e pensou em seu primo. Ele tinha a impressão, embora não soubesse com certeza, de que Saxton usaria um daqueles pincéis antigos para espalhar a espuma no rosto. E nada de lâminas Gilette para ele. Muito provavelmente ele tinha um daqueles instrumentos de barbeiro com cabo em madrepérola.
O pai de Qhuinn tinha um desses. E seu irmão recebera um com suas iniciais após sua transição.
Junto ao anel de sinete.
Bem, ótimo para eles. Além do que, já que ambos estavam mortos, não era como eles continuassem se barbeando.
Quando o rosto ficou coberto de branco, como o cenário lá de fora, ele pegou sua lâmina comum Mach 3 com cabeça descartável...
Sem nem saber por que, achou que devia pegar uma lâmina nova.
Sim, uma supernova e ultracortante.
Qhuinn revirou os olhos para si mesmo. Nada como se concentrar em três pequenas lâminas e uma tira umidificadora. Algo bem lógico.
Depois de se admoestar, ele começou a vasculhar as gavetas do gabinete, puxando-as uma a uma, inventariando os itens de tolices de higiene que nunca usava, nem jamais sequer perdia tempo olhando-as.
Puxando a última, a mais próxima do chão, parou. Franziu o cenho. Agachou.
Havia uma caixinha preta de veludo ali, do tipo em que se colocam joias. Só que ele não tinha nenhuma, e muito menos da Reinhardt, aquela loja esnobe no centro. Como ninguém mais ficava em seu quarto, ele se perguntou se, talvez, aquilo estivesse ali desde que ele se mudara e ele simplesmente nunca o vira.
Tirando a caixinha, levantou a tampa e...
– Filho da mãe.
Dentro, como se valesse muita coisa, estavam todos os seus brincos de argola, bem como o piercing que costumava usar no lábio inferior.
Fritz deve tê-los juntado ao limpar o quarto uma noite e guardado na caixinha. Única explicação possível, porque Qhuinn não se importara com eles depois de tirá-los, um a um. Simplesmente os jogara no fundo de uma das gavetas do banheiro.
Qhuinn mexeu nas argolas de aço, relembrando quando as comprara e colocara. Seu pai ficara mortificado; a mãe também – ao ponto de se retirar da Última Refeição e ficar trancada no quarto por 24 horas seguidas depois de ele entrar flanando na sala de jantar usando-as.
O colocador de piercings lhe dissera para não usá-los até que as tachas utilizadas para perfurar tivessem a chance de cicatrizar. Mas esse conselho era para humanos. Em poucas horas, estava tudo perfeito e ele fizera a troca.
No banheiro de Blay, para falar a verdade.
Qhuinn franziu a testa, lembrando-se do momento em que pisara no quarto do cara. Blay estava na cama, acalentando uma Corona, assistindo TV. A cabeça dele se virou, com sua expressão franca e relaxada... até dar uma olhada em Qhuinn.
Seu rosto se contraiu mesmo que minimamente. De um jeito que, a menos que você conhecesse bem, muito bem uma pessoa, jamais teria percebido. Mas Qhuinn notara.
Naquela época, deduzira que seu estilo obviamente gótico fosse um tantinho demais para o senhor Conservador. Mas agora, em retrospecto, ele se lembrou de algo mais. Blay voltara a se concentrar na TV de plasma... e, casualmente, cobrira o colo com uma almofada.
Ele deve ter ficado excitado.
Enquanto Qhuinn repassava a cena inteira na mente, seu próprio sexo voltava a engrossar.
Só que aquilo era uma completa perda de tempo, não era?
Fitando as malditas argolas, pensou em sua rebeldia, na raiva e na ideia sem noção do que precisava ter para ser feliz.
Uma fêmea. Se encontrasse uma que o aceitasse.
Que... mentira... fora aquilo.
Engraçado, a covardia aparecia em muitas formas, não é? Não era necessário se encolher num canto, tremendo e choramingando como um gatinho. Inferno, não. Você pode ser um grandalhão barulhento cheio de marra e com o rosto cheio de piercings e um rosnado para mostrar para o mundo... e ainda assim não passar de um covarde filho da puta. Afinal, Saxton podia vestir ternos de três peças e gravatas e sapatos, mas o macho sabia quem era, e não tinha medo de ter aquilo que desejava.
E, olha só, Blay estava acordando ao lado do cara.
Qhuinn fechou a tampa e recolocou os piercings onde os encontrara. Depois se olhou no espelho. O que estava fazendo mesmo?, pensou ao fitar seu reflexo.
Ah, sim. Barbeando-se.
Era isso mesmo.
Cerca de vinte minutos mais tarde, Qhuinn saiu do quarto. Andou pelo corredor das estátuas, passou pelas portas fechadas do escritório de Wrath e continuou em frente.
Enquanto avançava, foi difícil olhar para a sala de estar do segundo andar, difícil permanecer controlado quando aquele sofá surgiu no seu campo de visão.
Nunca mais olharia para aquela peça de mobília do mesmo modo. Inferno, talvez todos os sofás estivessem perdidos para ele, para sempre.
À porta de Layla, ele se inclinou encostando o ouvido na madeira. Quando não ouviu nada, perguntou-se exatamente o que achava que descobriria daquele modo.
Deu uma batida suave. Quando não houve resposta, sentiu um aperto de medo irracional na garganta e, sem pensar duas vezes, abriu a porta.
A luz invadiu a escuridão.
Seu primeiro pensamento foi que ela tivesse morrido; que Havers, o filho da puta, tivesse mentido, e que o aborto tivesse saído do controle e a matado: Layla estava imóvel ao encontro dos travesseiros, a boca ligeiramente entreaberta, as mãos cruzadas sobre o peito como se ela tivesse sido arrumada por um agente funerário com respeito pelos mortos.
Só que... algo estava diferente, e ele precisou de um minuto para perceber o que era.
Não havia mais o cheiro sobrepujante do sangue. Na realidade, somente a fragrância delicada de canela marcava o ar, refrescando-o de um modo que iluminava o quarto inteiro.
Será que o aborto finalmente chegara ao fim?
– Layla? – ele a chamou, mesmo tendo dito que se a encontrasse dormindo, não a perturbaria.
Foi um alívio ver as sobrancelhas se mexendo quando seu nome foi captado pelo cérebro, mesmo sob o véu do sono.
Ele teve a sensação de que se a chamasse de novo, ela acordaria.
Parecia cruel forçar-lhe a consciência. O que ela teria para recebê-la quando acordasse? A dor que sentia? A sensação de perda?
Cacete.
Qhuinn saiu silenciosamente, fechou a porta atrás de si e continuou ali. Não sabia o que fazer. Wrath lhe dissera para ficar em casa, mesmo se John Matthew saísse – ele deduziu que aquilo fosse uma espécie de folga misericordiosa de seus deveres de ahstrux nohtrum. E estava grato por isso. Havia tão pouco que pudesse fazer por Layla – pelo menos podia ficar por perto caso ela precisasse de alguma coisa. Um refrigerante. Uma aspirina. Um ombro para chorar.
Você fez isso a ela.
A julgar pelo toque que saía da maldita sala de estar, ele deduziu que perdera a Primeira Refeição. Nove horas. Isso mesmo. Acabara dormindo demais, e isso era bom. Se ele tivesse de se sentar à mesa e passar 45 minutos na companhia de quase duas dúzias de pessoas que tentariam não encará-lo, ele teria perdido a porra da cabeça.
O som de alguém andando no vestíbulo logo abaixo fez com que ele levantasse a cabeça.
Sem nenhum plano ou pensamento específico, ele se aproximou da balaustrada e olhou para baixo.
Payne, a irmã valentona de V., estava saindo da sala de jantar.
Ele não conhecia muito bem aquela fêmea, mas a respeitava imensamente. Seria impossível não admirar, dado o modo como se portava no campo de batalha... Durona, verdadeiramente durona. Naquele instante, porém, a shellan do doutor Manello parecia ter levado uma surra de bar: caminhava lentamente, os pés se arrastando pelo piso de mosaico, o corpo encurvado, a pegada no braço de seu par parecendo ser a única coisa que a sustentava.
Será que ela se machucara em alguma luta corpo a corpo?
Não havia cheiro de sangue.
O doutor Manello disse algo para ela que ele não conseguiu ouvir, mas depois o cara indicou a direção da sala de bilhar com a cabeça – como se ele estivesse perguntando se ela queria ir para lá.
Tomaram aquela direção a passos de caramujo.
Já que não gostava quando as pessoas o encaravam, Qhuinn recuou da grade e esperou até que o caminho estivesse livre. Depois correu escada abaixo.
Comida. Exercícios. Voltar a ver Layla.
Aquela seria a sua noite.
Seguindo para a cozinha, ele se viu imaginando onde Blay estaria. O que estaria fazendo. Se tinha saído para lutar ou se tinha ficado em casa e...
Visto que não sabia onde Saxton estava, ele pôs um ponto final naquela linha de questionamentos.
Se Qhuinn não tivesse de fazer seu turno e pudesse passar um tempo com o cara, ele sabia muito bem o que Blay estaria fazendo.
E Saxton, seu primo filho da puta, não era nenhum tolo.
CONTINUA
CAPÍTULO 37
Enquanto Blay girava o anel de sinete da família no dedo, seu cigarro aceso queimava lentamente na outra mão, e seu traseiro ficava adormecido... e ninguém passava pelas portas do átrio.
Sentado no degrau de baixo da grande escadaria da mansão, ele não respeitaria a promessa feita à mãe de ir para casa. Não naquela noite, pelo menos. Depois da loucura da noite anterior, do pouso forçado do avião e do drama subsequente, Wrath ordenara que a Irmandade e os lutadores tirassem 24 horas de folga. Por isso, tecnicamente, ele deveria ligar para os pais e dizer à mãe que caprichasse na mussarela e no molho à bolonhesa.
Mas de jeito nenhum ele sairia daquela casa. Não depois de ouvir os gritos vindos do quarto de Layla, e de vê-la praticamente sendo carregada escadaria abaixo.
Naturalmente, Qhuinn esteve ao lado dela.
John Matthew não.
Portanto, o quer que estivesse acontecendo, pelo visto superava o ahstrux nohtrum, e isso significava que... ela só podia estar perdendo o filho. Somente algo sério assim possibilitaria um passe livre.
Enquanto ele continuava parado como uma porta, sem nada além da sua preocupação para lhe fazer companhia, naturalmente sua mente resolveu seguir o caminho errado: merda, fora mesmo para a cama com Qhuinn na noite passada?
Dando uma tragada em seu Dunhill, ele expeliu uma imprecação.
Acontecera mesmo?
Deus, essa pergunta vinha martelando a sua cabeça desde o minuto em que despertou de um sonho sensual, com uma ereção que parecia fazer pensar que o outro macho dormia ao seu lado.
Revendo as cenas pela centésima vez, só no que ele conseguia pensar era... como um plano podia fracassar. Depois de ter rejeitado Qhuinn quando ele se pôs de joelhos, voltara para o próprio quarto e andara de um lado para o outro, um debate que não interessava ter consigo mesmo transformando seu cérebro em fois gras.
Ele tomara a decisão correta ao sair. Mesmo. Tinha sim.
O problema foi que a decisão não se sustentou. Enquanto as horas do dia passavam, tudo o que ele conseguia pensar foi a vez em que o pai o flagrou roubando uma caixa de cigarros do doggen da família. Na época, ele era um jovem pré-trans e, como castigo, seu pai o obrigou a se sentar do lado de fora e fumar cada um daqueles Camels sem filtro. Ele se sentiu muito mal e demorou mais de dois anos para sequer tolerar fumo passivo.
Portanto, esse fora o seu segundo plano.
Fazia tempo demais que era louco por Qhuinn, mas tudo não passava de algo hipotético, dividido em fantasias de modo que ele conseguisse suportar. Nada de uma vez só, nada da coisa sobrecarregada, absoluta e arrasadora – e ele sabia muito bem que na vida real, Qhuinn não se conteria nem relaxaria. O “plano” fora ter a experiência concreta, e descobrir que aquilo não passava de apenas sexo brutal. Ou, inferno, descobrir que não era nem sexo bom.
Não era de se esperar que você fumasse um maço inteiro de cigarros... só para querer mais.
Deus todo-poderoso, foi a primeira vez em que a realidade foi muito melhor do que uma fantasia, a absolutamente melhor experiência erótica de toda a sua vida.
Depois, porém, a gentileza que Qhuinn demonstrara fora insuportável.
Na verdade, enquanto Blay rememorava aquela ternura, ele deu um salto de onde estava e começou a marchar ao redor do mosaico de macieira – não tinha para onde ir.
Naquele instante a porta se abriu. Porém, não a de entrada.
A da biblioteca.
Enquanto olhava de relance por sobre o ombro, Saxton surgiu de lá. Ele parecia saído do inferno, e não só porque, por mais veloz que fosse a sua recuperação, ele ainda tinha um inchaço residual na mandíbula graças ao ataque de Qhuinn.
Que lindo, Blay pensou. Bela maneira de expressar seu desapontamento quanto ao comportamento de alguém: deixe-o transar com você depois que ele tentou estrangular seu ex.
Quaaanta classe.
– Como você está? – Blay perguntou, e não por convenção social.
Foi um alívio Saxton se aproximar. E encará-lo. E sorrir-lhe um pouco como se estivesse determinado a fazer um esforço.
– Estou exausto. E faminto. E agitado.
– Gostaria de comer comigo? – sugeriu Blay num rompante. – Também estou me sentindo assim, e a única coisa em que posso dar jeito é a fome.
Saxton assentiu com a cabeça e enfiou as mãos nos bolsos da calça.
– Ideia brilhante.
Os dois acabaram na cozinha, sentados ante a castigada mesa de carvalho, lado a lado, de frente para o resto do cômodo. Com um sorriso contente, Fritz imediatamente passou para o seu modo “provedor de alimentos” e, veja só, dez minutos mais tarde, o mordomo servia uma tigela de cozido de carne para cada um, além de uma baguete para dividirem, uma garrafa de vinho tinto e uma porção de manteiga num pratinho ao lado.
– Volto em seguida, meus senhores – disse o mordomo com uma reverência. E depois ele prosseguiu expulsando todos da cozinha, desde o doggen que descascava legumes até os que poliam a prataria e os que limpavam as janelas de uma alcova logo além dali.
Quando a porta se fechou após a saída do último criado, Saxton disse:
– Tudo o que nos falta é uma vela, aí isto seria um encontro – o macho se inclinou para a frente e começou a comer com modos impecáveis. – Bem, suponho que precisaríamos de mais algumas coisas, não?
Blay olhou de esguelha enquanto apagava o cigarro. Mesmo com as olheiras e o hematoma desvanecendo no pescoço, o advogado era muito bonito de se olhar.
Por que ele não poderia simplesmente...
– Não repita, de novo, que sente muito – Saxton limpou a boca com o guardanapo e sorriu. – Não é necessário, nem apropriado.
Assim, sentado ao lado dele, não parecia que tinham acabado de romper, nem que ele estivera com Qhuinn. Será que as últimas noites aconteceram mesmo?
Até parece... O que ocorreu com Qhuinn não teria acontecido se ele e Sax ainda estivessem juntos. Isso era bem claro para ele: uma coisa era se masturbar secretamente, e isso já era ruim o bastante. Aquilo tudo? De jeito nenhum.
Droga, apesar do fato de ele e Saxton terem rompido, ele ainda sentia que devia confessar sua transgressão... mesmo que Qhuinn estivesse certo e que Saxton já tivesse seguido em frente, por assim dizer.
Enquanto comiam em silêncio, Blay balançou a cabeça, ainda que não tivessem lhe feito nenhuma pergunta e nem estivessem conversando. Ele só não sabia o que fazer. Às vezes, as mudanças da vida surgiam com tanta rapidez, e com tamanha impetuosidade, que não havia como acompanhar a realidade. Levava tempo para as coisas se assentarem, um novo equilíbrio se reestabelecia só depois de algum tempo em que seu cérebro batia de um lado contra o outro das paredes da sua cabeça.
Ele ainda estava na fase de balançar.
– Já sentiu alguma vez como se as horas fossem medidas em anos? – perguntou Saxton.
– Ou décadas. Sim. Absolutamente – Blay olhou de novo. – Na verdade, eu também estava pensando nisso.
– Que par de mórbidos nós somos.
– Talvez devêssemos vestir preto.
– Braçadeiras? – sugeriu Saxton.
– Não, preto dos pés à cabeça.
– E o que eu faço com o meu gosto por cores? – Saxton apontou para o lenço laranja Hermès no bolso da sua lapela. – Bem, pode-se muito bem usar todo tipo de acessórios.
– Certamente isso explica a teoria por trás dos aparelhos ortodônticos.
– Flamingos de plástico rosa.
– A franquia da Hello Kitty.
Juntos, os dois explodiram numa gargalhada. Nem era assim tão engraçado, mas o humor não era a questão ali. Mas quebrar o gelo. Voltar ao que era antes. Aprender a se relacionarem de um modo diverso.
Quando convergiram para um riso mais contido, Blay passou o braço ao redor dos ombros do macho e lhe deu um abraço rápido. Foi bom que Saxton tivesse relaxado um pouco, aceitando aquilo que lhe era oferecido. Não que Blay acreditasse que por estarem sentados juntos, partilhando uma refeição e uma bela risada, tudo, de repente, seria um navegar suave. Nada disso. Era estranho pensar que Saxton estivera com outra pessoa, e ainda mais incrível saber que ele fizera o mesmo – principalmente com quem o fizera.
Não se passava de amantes de quase um ano para companheiros de risadas em um ou dois dias.
Podia-se, porém, começar a forjar um novo caminho.
E colocar um pé na frente do outro.
Sempre haveria um lugar em seu coração para Saxton. O relacionamento que tiveram foi o seu primeiro não só com um macho, mas com qualquer um. E muitas coisas boas aconteceram, coisas que ele carregaria consigo como lembranças que valiam o espaço em sua mente.
– Deu uma olhada nos jardins de trás? – Saxton perguntou ao lhe oferecer o pão.
Blay partiu um pedaço e depois espalhou manteiga por cima enquanto Saxton também pegava um pouco.
– Estão bem ruins, não?
– Lembre-me de nunca tentar cortar grama com um Cessna.
– Você não curte jardinagem.
– Bem, para o caso de um dia eu tentar – Saxton se serviu de vinho. – Aceita?
– Sim, por favor.
E foi assim que as coisas aconteceram. Durante o cozido de carne até a torta de pêssegos, que milagrosamente apareceu diante deles graças à impecabilidade de Fritz. Quando a última garfada e a última limpada com guardanapo foram dadas, Blay se reclinou contra o encosto acolchoado do banco embutido e inspirou fundo.
Que se referia a muito mais do que uma simples barriga cheia.
– Bem – disse Saxton, ao apoiar o guardanapo ao lado do prato de sobremesa –, acredito que finalmente vou poder tomar o banho de banheira que você me sugeriu há algumas noites.
Blay abriu a boca para observar que os sais de banho que o macho preferia ainda estavam em seu banheiro. Ele os vira no gabinete quando fora pegar o creme de barbear reserva ao cair da noite.
Só que... ele não sabia se devia mencionar isso. E se Saxton pensasse que ele estava lhe pedindo para ir à sua banheira? Seria um lembrete muito grande de como as coisas tinham mudado e do por quê? E se...
– Tenho esse novo tratamento à base de óleos que estou morrendo de vontade de experimentar – explicou Saxton ao deslizar pelo banco. – Ele finalmente chegou do exterior hoje. Faz séculos que espero por ele.
– Parece maravilhoso.
– Mal posso esperar – Saxton ajustou o paletó nos ombros, ajeitou os punhos e depois acenou com a mão, saindo sem nenhum indício de complicações ou de tensão em seu rosto.
O que, de fato, ajudava muito.
Dobrando o próprio guardanapo, deixou-o de lado, e saiu de trás da mesa, esticando os braços acima da cabeça e curvando-se para trás, estalando muito bem a coluna.
A sua tensão voltou no segundo em que pisou no átrio novamente.
Que diabos estava acontecendo com Layla?
Maldição, ele nem podia ligar para Qhuinn. Aquele drama não era seu, nem estava ligado a ele de modo algum. Quando se tratava de uma gestação, ele não era diferente de nenhum outro macho daquela casa que também ouvira ou vira o show e, sem dúvida, estava tão preocupado quanto ele. Mas também não tinha direito a nenhuma notícia antecipada.
Uma pena que sua barriga, agora cheia, não concordasse com isso. Pensar em Qhuinn perdendo o filho o fez considerar seriamente a localização do banheiro mais próximo da porta de entrada, só para o caso de uma evacuação rápida ser ordenada pelo fundo da sua garganta.
No fim, ele se viu subindo para a sala de estar do segundo andar. Daquele lugar, ele não teria dificuldade em ouvir a porta da frente, e não estaria esperando abertamente...
As portas do escritório de Wrath se abriram, e John Matthew emergiu do santuário do Rei.
Imediatamente, Blay atravessou a sala de espera, pronto para ver se, talvez, o cara sabia de alguma coisa, mas se conteve ante a expressão de John.
Perdido em pensamentos. Como se tivesse recebido notícias pessoais do tipo perturbador.
Blay ficou para trás enquanto o camarada seguia no caminho contrário, na direção do corredor das estátuas, sem dúvida para desaparecer no próprio quarto.
Parecia que as coisas não andavam bem nas vidas dos outros também.
Maravilha.
Com uma imprecação baixa, Blay deixou o amigo em paz e voltou a caminhar e... a esperar.
Muito mais ao sul, na cidade de West Point, Sola estava pronta para entrar no segundo andar da casa de Ricardo Benloise, através da janela ao fim do corredor principal. Fazia meses desde que estivera lá dentro, mas ela contava com o fato de que seu contato na segurança por ela cuidadosamente manipulado ainda fosse o seu amigo.
Havia dois fatores-chave para invadir com sucesso qualquer casa, prédio, hotel ou instalação: planejamento e velocidade.
Ela possuía os dois.
Pendurada no cabo que lançara no telhado, ela tirou um instrumento de dentro do bolso da parca, segurando-o no canto direito da janela dupla. Iniciado o sinal, ela esperou, olhando fixamente para a luzinha vermelha que brilhava na tela à sua frente. Se por algum motivo ela não mudasse, ela teria de entrar por uma das águas-furtadas que dava para o jardim, o que seria um pé no saco...
A luz ficou verde com um sinal, e ela sorriu ao pegar mais instrumentos.
Pegando um copo de sucção, ela o empurrou no meio do painel, imediatamente abaixo da tranca e depois girou a coisa com o cortador de vidro. Um empurrão rápido e o espaço que possibilitava a entrada do seu braço foi criado.
Depois de deixar o círculo de vidro cair com suavidade na passadeira oriental, ela enfiou o braço e o virou, para soltar a trava de latão que mantinha a janela fechada.
O ar quente lhe deu boas-vindas, como se a casa estivesse contente por vê-la mais uma vez.
Antes de entrar, ela olhou ao redor. Relanceou para o caminho de carros. Inclinou-se para fora para ver o que conseguia encontrar nos jardins escuros.
Sentia como se alguém a estivesse observando... não tanto no caminho de carro até a cidade, mas depois que parara no estacionamento e colocara os esquis. Todavia, não havia ninguém por perto – pelo menos, ninguém que ela conseguisse enxergar – e por mais que a atenção fosse essencial em seu ramo de trabalho, a paranoia era uma perda de tempo perigosa.
Ela precisava deixar isso de lado.
Voltando a se concentrar no jogo, esticou as mãos enluvadas e suspendeu o traseiro e as pernas por cima e através da janela. Ao mesmo tempo, relaxou a tensão do cabo para que ele ficasse folgado e permitisse a sua entrada. Aterrissou sem nenhum som, graças não só ao tapete que cobria o longo corredor como também aos seus calçados de solas macias.
O silêncio era outro critério importante no tocante a realizar um trabalho com sucesso.
Ela parou onde estava por um breve momento. Nenhum som na casa, mas isso não significava nada necessariamente. Ela tinha quase certeza de que o alarme de Benloise fosse silencioso, e mais certeza ainda de que o sinal não iria para a força policial, nem a local, tampouco a estadual: ele gostava de cuidar das coisas particulares de modo privado. E Deus bem sabia, com o tipo de força braçal que ele contratava, havia poder suficiente para tal.
Felizmente, contudo, ela era boa no que fazia, e Benloise e seus capangas não estariam em casa até perto do nascer do sol, afinal, ele vivia a vida de um vampiro.
Por algum motivo, a palavra que começava com “v” a fez pensar no homem que aparecera ao lado do seu carro e que desaparecera como num passe de mágica.
Loucura. E a única vez em sua lembrança recente que alguém a fazia parar para pensar. Na verdade, depois de ser confrontada daquela forma, ela estava realmente considerando não voltar à casa de vidro no rio, embora houvesse motivos mais do que válidos para isso. Não por ela se preocupar em se machucar fisicamente. Deus bem sabia que ela era perfeitamente capaz de se defender.
Era a atração.
Mais perigosa do que qualquer pistola, faca, ou punho, em sua opinião.
Com passadas ágeis, Sola trotou pelo tapete, saltitando na ponta dos pés, seguindo para a suíte principal que dava para o jardim dos fundos. A casa ainda tinha o mesmo cheiro de que se lembrava: mobília antiga e lustra-móveis, e ela conhecia o bastante para se ater ao lado esquerdo da passadeira. Nenhum rangido daquele lado.
Quando chegou à suíte principal, a porta pesada de madeira estava fechada, e ela pegou a chave micha antes mesmo de testar a maçaneta. Benloise tinha duas patologias: limpeza e segurança. A impressão dela, entretanto, era que a segunda era mais crítica na galeria no centro de Caldwell do que em seu lar. Afinal, Benloise não mantinha debaixo do seu teto nada além de objetos de arte com seguros até o último centavo, e a ele próprio durante o dia – quando estava cercado por diversos seguranças e armas.
Na verdade, devia ser por isso que ele era uma coruja no centro da cidade. Isso significava que a galeria nunca ficava sem supervisão: ele aparecia depois do expediente e sua equipe de trabalho legítima estava lá durante o dia.
Como uma gatuna, ela certamente preferia entrar em lugares vazios.
Dito isso, mexeu no mecanismo de tranca da porta, abrindo-a, e entrou no quarto. Inspirou profundamente, o ar estava permeado com a fumaça do tabaco e da colônia refrescante de Benloise.
A combinação a fez pensar nos filmes em preto e branco de Clark Gable por algum motivo.
Com as cortinas puxadas e nenhuma luz acesa, ali estava absolutamente escuro, mas ela tirara fotografias dos quartos quando fora a uma festa ali, e Benloise não era o tipo de homem que mudava as coisas de lugar. Inferno, toda vez que uma nova exibição era instalada na galeria de arte, ela praticamente sentia o tremor debaixo da pele dele.
Medo de mudança era uma fraqueza, sua avó sempre dizia.
Obviamente facilitava as coisas para ela.
Mais devagar, ela avançou dez passos até o meio do quarto. A cama estaria à esquerda encostada na parede comprida. À sua frente estavam as janelas altas que davam para o jardim. À direita, haveria uma cômoda, uma escrivaninha e algumas cadeiras, e a lareira que nunca era usada porque Benloise detestava o cheiro de madeira queimada.
O alarme de segurança se localizava entre a entrada do banheiro e a cabeceira ornamentada da cama, ao lado do abajur que se elevava noventa centímetros do criado-mudo.
Sola deu um giro ao redor de si mesma. Deu quatro passos. Tentou encontrar o pé da cama... e o encontrou.
Passo lateral, um, dois, três. De frente para o flanco do colchão king-size. Outro passo lateral para desviar da mesinha de cabeceira e do abajur.
Sola esticou o braço esquerdo...
E lá estava o painel de segurança, bem onde deveria.
Abrindo a portinhola, usou uma lanterna de bolso que prendeu entre os dentes para iluminar o circuito. Pegando outro instrumento da mochila, conectou fios a fios, interceptando sinais, e com a ajuda de um laptop em miniatura e de um programa que um amigo seu desenvolvera, criou um circuito fechado dentro do sistema de alarme de modo que, enquanto o roteador estivesse no lugar, os detectores de movimento que ela estava para disparar não seriam registrados.
No que se referia à placa-mãe, nada pareceria anormal.
Deixando o laptop pendurado pelos fios, saiu do quarto, chegou ao corredor, e tomou as escadas para o primeiro andar.
O lugar estava perfeitamente decorado, pronto para uma foto de revista – ainda que, claro, Benloise protegesse demais a sua privacidade para permitir que suas coisas fossem fotografadas para o consumo público. Com passos rápidos, ela passou pelo hall de entrada, pela sala à esquerda e entrou no escritório.
Andando em meio à penumbra, ela bem que preferiria tirar a parca de camuflagem branca e as calças para neve: fazer aquilo em seu body preto seria um clichê que, entretanto, seria bem prático. Não havia tempo, porém, e ela estava mais preocupada em não ser vista do lado de fora do que ali, na casa vazia.
O espaço de trabalho pessoal de Benloise era, como todo o resto debaixo daquele teto, mais um cenário montado do que algo funcional. Ele, na verdade, não usava a imensa escrivaninha, nem se sentava no minitrono, tampouco lia qualquer um dos livros em capa de couro das prateleiras.
Todavia, ele transitava por aquele cômodo. Uma vez ao dia.
Certa vez, num momento de tranquilidade, ele lhe dissera que antes de sair, todas as noites, passeava pela casa olhando seus pertences, lembrando a si mesmo da beleza das suas coleções e de sua casa.
Como resultado dessa informação e de algumas outras coisas, Sola há muito deduzira que o homem crescera na pobreza. Primeiro porque, quando conversavam em espanhol ou em português, seu sotaque pertencia à classe baixa, mesmo que de modo sutil. Segundo, os ricos não valorizavam seus pertences como ele o fazia.
Nada era raro aos ricos, e isso significava que eles davam como certas todas as coisas.
O cofre estava escondido atrás da escrivaninha numa seção de estandes que era liberada por um botão localizado na gaveta inferior do lado direito.
Ela descobrira isso graças a uma minúscula câmera escondida que colocara do lado oposto durante aquela festa.
Após a abertura do mecanismo, um corte de sessenta por noventa centímetros na prateleira rolou para a frente e deslizou para o lado. E lá estava ela: uma caixa grossa de aço, cujo fabricante ela reconhecia.
Pensando bem, depois de invadir centenas de espaços, você acaba conhecendo intimamente os fabricantes. E ela aprovava aquela escolha. Se precisasse ter um cofre, era daquele tipo que ela pegaria e, sim, ele o prendera ao chão.
O maçarico que trouxera na mochila era pequeno, mas poderoso, e enquanto ela acendia a ponta, a chama chamuscou com um sibilo substancial e um brilho branco e azul.
Aquilo levaria tempo.
A fumaça do metal queimado irritava seus olhos, o nariz e a garganta, mas ela manteve a mão firme enquanto produzia um quadrado na frente do painel. Ela conseguia explodir a porta de alguns cofres, mas o único jeito com um daqueles era do modo antigo.
Que levava uma eternidade.
No entanto, ela conseguiu.
Deixando a pesada seção da porta de lado, ela mordeu a ponta da lanterna mais uma vez e se inclinou. Uma prateleira continha joias, cautelas de ações e alguns relógios de ouro que ele deixara à mão. Havia uma pistola que ela seria capaz de apostar que estaria carregada. Nenhum dinheiro.
Pensando bem, com Benloise sempre havia tanto dinheiro disponível que fazia sentido ele não se dar ao trabalho de colocá-lo no cofre.
Maldição. Não havia nada ali que valesse apenas cinco mil dólares.
Afinal, naquele trabalho, ela só estava atrás daquilo que lhe era devido por direito.
Com uma imprecação, ela se apoiou nos calcanhares. Na verdade, não havia nada no cofre que valesse menos do que vinte e cinco mil dólares. E não tinha como ela partir a metade da pulseira de um relógio de ouro – porque, como diabos conseguiria revender a coisa?
Um minuto se passou.
O segundo.
Ao diabo com aquilo, ela pensou ao recolocar o painel que cortara contra o cofre e deslizar a prateleira de volta ao seu lugar. Levantando-se, olhou ao redor da sala com a lanterna de bolso. Os livros eram todos edições de colecionadores de primeiras edições de antiguidades. A arte nas paredes e sobre as mesas não era somente muito cara, como difícil de transformar em dinheiro sem ser debaixo dos panos... para as pessoas intimamente ligadas a Benloise.
Mas, que droga, ela não sairia sem seu dinheiro, maldição...
Abruptamente, sorriu para si mesma, a solução se tornando muito clara.
Por vários anos no curso da civilização humana, o comércio só existira e sobrevivera na base da troca. Ou seja, um indivíduo trocava bens ou serviços por outros de mesmo valor.
Em todos os trabalhos que realizara, ela jamais considerara acrescentar os custos auxiliares aos seus alvos: novos cofres, novos sistemas de segurança, novos protocolos de segurança. Ela podia apostar que isso era caro – ainda que não tão caro quanto o que ela costumava tomar. E ela entrara ali deduzindo que esses custos adicionais seriam arcados por Benloise – um tipo de prejuízo monetário pelo que ele roubara dela.
No entanto, eles agora eram a questão.
No caminho de volta à escada, observou as oportunidades disponíveis... e, no fim, foi até uma escultura de Degas de uma pequena bailarina que fora colocada na lateral de um nicho. A figura em bronze da garotinha era o tipo de coisa que sua avó teria adorado, e talvez por isso, dentre tantas peças, foi aquela a lhe chamar a atenção.
A luz que fora colocada no teto acima da estátua estava desligada, mas a obra-prima ainda assim parecia brilhar. Sola adorou especialmente a saia em tutu, a delicada ainda que rígida explosão de tule delineada por metal entrelaçado que capturava perfeitamente o que deveria ser maleável.
Sola se aproximou da base da escultura, passou os braços ao redor dela, e concentrou toda a sua força em girar a sua posição não mais do que cinco centímetros.
Depois correu para as escadas, retirou os clipes do roteador e do laptop do painel de alarme na suíte principal, trancou novamente a porta e seguiu para a janela na qual cortara um buraco.
Estava de volta nos esquis, deslizando na neve não mais do que quatro minutos mais tarde.
Apesar do fato de não ter nada nos bolsos, ela sorria ao deixar a propriedade.
CAPÍTULO 38
Quando a Mercedes finalmente parou na entrada da mansão da Irmandade, Qhuinn saiu primeiro e foi para a porta em que Layla estava. Quando a abriu, os olhos dela encontraram os dele.
Ele soube que jamais se esqueceria da aparência dela. A tez estava branca como um papel e parecia tão fina quanto um, a bela estrutura óssea se esticando sobre a cobertura de pele. Os olhos estavam encovados no crânio. Os lábios, finos e inexpressivos.
Naquele instante, ele teve um vislumbre de como ela ficaria ao morrer, não importando quantas décadas e séculos isso fosse levar para acontecer.
– Eu carrego você – disse ele, inclinando-se para pegá-la no colo.
O modo como ela não discutiu lhe contou exatamente o pouco que restava dela.
Quando as portas de entrada foram abertas por Fritz, como se o mordomo estivesse esperando pela chegada deles, Qhuinn se arrependeu de tudo: do sonho que acalentara por um instante durante o cio dela. A esperança desperdiçada. A dor física pela qual ela passava. A angústia emocional que ambos atravessavam.
Você fez isso com ela.
Na época, quando a servira, ele só se concentrara no resultado positivo do qual esteve tão certo.
Agora, depois de tudo, com os coturnos fincados na realidade sólida e fétida? Não valia a pena. Mesmo a possibilidade de um filho saudável não valia aquele sacrifício.
O pior de tudo era testemunhar o sofrimento dela.
Ao carregá-la para dentro da casa, rezou para que não houvesse uma grande plateia. Ele só gostaria de poupá-la de tudo, de qualquer coisa, mesmo do simples fato de desfilar diante de rostos tristes e preocupados.
Não havia ninguém por perto.
Qhuinn subiu os degraus dois de cada vez e, ao chegar ao segundo andar, as grandes portas duplas do escritório de Wrath abertas o fizeram praguejar.
Pensando bem, o Rei era cego.
Enquanto George emitiu um latido de boas-vindas, Qhuinn apenas passou pela frente, indo direto para o quarto de Layla. Abrindo a porta com um chute, descobriu que o doggen estivera ali e limpara tudo, arrumando a cama, decerto tendo até trocado os lençóis, e também havia um vaso de flores frescas.
Ao que tudo levava a crer, ele não era o único disposto a ajudar em qualquer coisa que pudesse.
– Quer trocar de roupa? – perguntou ao fechar a porta com outro chute.
– Quero tomar banho...
– Vamos providenciar isso.
– ... mas estou com muito medo. Eu não quero... ver, se é que me entende.
Ele a deitou e se sentou ao seu lado na cama. Colocando uma mão em sua perna, esfregou-lhe o joelho com o polegar, de um lado para o outro.
– Sinto muito – disse ela com pesar.
– Droga... Não, não faça isso. Jamais pense nem diga isso, está bem? Isto não é culpa sua.
– De quem mais é?
– Isso não vem ao caso.
Merda, ele não conseguia acreditar que o processo do aborto duraria mais ou menos uma semana. Como podia ser possível...
A careta que contraiu o rosto de Layla revelou a ele que uma cólica a assolava novamente. Olhando de relance para trás, esperando ver a doutora Jane, descobriu que estavam sozinhos.
O que garantiu, mais do que tudo, que não havia nada a ser feito.
Qhuinn deixou a cabeça pensa e segurou a mão dela.
Aquilo começara com os dois.
E estava terminando com os dois.
– Acho que gostaria de dormir um pouco – disse Layla ao apertar a mão dele. – Você também parece estar precisando...
Ele olhou para a chaise-longue do outro lado.
– Você não precisa ficar comigo – murmurou ela.
– Onde mais eu ficaria?
Uma breve visão mental de Blay abrindo os braços cruzou sua mente. Que fantasia, hein...
Nunca mais me toque assim.
Qhuinn sacudiu a cabeça para que tais pensamentos sumissem.
– Vou dormir ali.
– Você não pode ficar aqui por sete noites seguidas.
– Vou repetir mais uma vez. Onde mais eu...
– Qhuinn – a voz dela soou estridente. – Você tem o seu trabalho. E você ouviu Havers. Isto vai levar o tempo que for preciso e, provavelmente, vai demorar um pouco. Não corro o risco de ter uma hemorragia e, francamente, sinto como se devesse ser forte na sua frente, e não tenho a energia necessária para isso. Por favor, volte aqui para me ver o quanto quiser. Mas vou enlouquecer se você montar acampamento aqui até isso tudo terminar.
Desespero comedido.
Era tudo o que Qhuinn tinha enquanto permanecia sentado na beira da cama, segurando a mão de Layla.
Ele acabou se levantando pouco depois. Claro, ela estava certa. Ela precisava descansar o máximo possível e, de fato, além de ficar olhando para ela e fazendo com que ela se sentisse fraca, não havia nada que ele pudesse fazer.
– Não estarei longe.
– Sei disso – ela suspendeu o punho dele para os seus lábios, e ele ficou chocado ao perceber o quanto eles estavam frios. – Você tem se mostrado... mais do que eu seria capaz de pedir.
– Não... Não fiz nada de...
– Você fez o que era certo e apropriado. Sempre.
Aquilo era uma questão de opinião.
– Preste atenção. Vou estar sempre com meu telefone por perto. Volto em algumas horas para ver como você está. Se estiver dormindo, eu não a incomodarei.
– Obrigada.
Qhuinn assentiu com a cabeça e andou de lado até a porta. Certa vez ouvira que não se devia dar as costas a uma Escolhida, e ele imaginou que demonstrar um pouco de protocolo não faria mal.
Fechando a porta atrás de si, ele se recostou nela. A única pessoa que ele queria ver era o único cara naquela casa que não tinha interesse algum em...
– O que está acontecendo?
A voz de Blay foi um choque tão grande que ele pensou que a tivesse imaginado. A não ser pelo fato de que o macho em pessoa acabara de passar pela porta da sala de estar do segundo andar. Como se estivesse ali esperando o tempo inteiro.
Qhuinn esfregou os olhos e depois começou a andar, o corpo procurando a única coisa pela qual ele vinha rezando.
– Ela está abortando – Qhuinn se ouviu dizer numa voz morta.
Blay murmurou algo em resposta, mas que não ficou registrado.
Engraçado, o aborto não lhe parecera real até aquele momento. Não até contar a Blay.
– O que disse? – perguntou Qhuinn, ciente de que o cara esperava por uma resposta.
– Posso fazer alguma coisa?
Tão engraçado. Qhuinn sempre achou que saíra do ventre da mãe já como um adulto. Pensando bem, nunca houve nenhum agradinho materno, nada de abraços quando ele se machucava, nenhum amparo quando ele tinha medo. Como resultado, quer fosse um aspecto do seu caráter, ou o modo como fora criado, ele nunca regredira. Não havia para o que voltar.
Todavia, foi com a voz de uma criança que disse:
– Faz isso parar?
Como se só Blay tivesse o poder de operar um milagre.
E então... foi o que o macho fez.
Blay abriu os braços, oferecendo o único refúgio que Qhuinn sempre conheceu.
– Faz isso parar?
O corpo de Blay começou a tremer quando Qhuinn enunciou essas palavras: depois de todos esses anos, ele vira o cara em diferentes estados de humor dependendo da circunstância. Porém, jamais assim. Nunca... tão completa e absolutamente devastado.
Nunca perdido como uma criança.
A despeito da sua necessidade de se manter verdadeiramente afastado de qualquer vínculo emocional, seus braços se abriram por vontade própria.
Enquanto Qhuinn avançava para ele, o corpo do guerreiro parecia menor e mais frágil do que de fato era. E os braços que passaram ao redor da cintura de Blay simplesmente ficaram lá, como se não tivessem força nos músculos.
Blay sustentou a ambos.
E antecipou que Qhuinn recuaria rapidamente. Normalmente, o cara não suportava nenhum tipo de conexão intensa além da sexual por mais tempo do que um segundo e meio.
Qhuinn não o fez, porém. Ele parecia preparado para ficar parado na entrada da sala de estar para sempre.
– Venha – disse Blay, levando o macho para dentro e fechando a porta. – Vamos para o sofá.
Qhuinn o seguiu, os coturnos se arrastando em vez de marcharem.
Quando chegaram ao sofá, sentaram-se de frente, os joelhos se tocando. Quando Blay o fitou, a tristeza ressonante o tocou tão profundamente, que não pôde evitar que a mão se esticasse e afagasse o cabelo escuro...
Sem aviso, Qhuinn se enroscou ao seu encontro, simplesmente se deixou cair, o corpo se dobrando ao meio, quase se desmanchando no colo de Blay.
Uma parte de Blay reconhecia que aquele era um terreno perigoso. Sexo era uma coisa, e já bem difícil de lidar, ora essa. Aquele momento tranquilo? Era potencialmente devastador.
Motivo pelo qual saíra num rompante daquele quarto na noite anterior.
A diferença desta noite, porém, era que ele estava no controle. Era Qhuinn quem buscava conforto, e Blay podia negar ou oferecer, dependendo de como se sentisse. Ser o depositário da confiança de alguém era absolutamente diferente de recebê-la... ou necessitá-la.
Blay era bom nisso. Havia uma medida de segurança, de controle. Não era o mesmo que cair num abismo. E, inferno, se alguém devia saber isso, esse alguém era ele. Deus bem sabia que ele passara anos lá embaixo.
– Eu faria qualquer coisa para mudar isso – disse Blay, afagando as costas de Qhuinn. – Odeio o que você está passando...
Ah, as palavras eram tão inúteis...
Ficaram ali por um tempo enorme, a tranquilidade da sala formando uma espécie de casulo. Periodicamente, o relógio antigo sobre a lareira tocava, e depois de um bom tempo, as persianas começaram a baixar sobre as janelas.
– Gostaria que existisse algo que eu pudesse fazer – disse Blay quando os painéis de aço chegaram ao fim com um baque.
– Deve estar na hora de você ir.
Blay deixou aquela passar. A verdade não era algo que ele quisesse partilhar: nem cavalos selvagens, ou armas carregadas, pés-de-cabra, mangueiras de incêndio, estouro de elefantes... nem mesmo uma ordem do Rei em pessoa o teria tirado dali.
E havia uma parte sua que ficava zangada com isso. Não com Qhuinn, mas com seu próprio coração. A questão era que não se pode lutar contra a sua natureza, e era isso o que ele vinha aprendendo. No rompimento com Saxton. Em se revelar à mãe. Naquele exato instante.
Qhuinn gemeu ao suspender o tronco e depois esfregar o rosto. Quando abaixou as mãos, as faces estavam vermelhas, bem como os olhos, mas não porque ele estivesse chorando.
Indubitavelmente, a sua cota de lágrimas da década fora derramada na noite anterior quando ele chorara de alívio por ter salvado a vida de um pai.
E se soubesse que Layla não estava bem naquele instante?
– Sabe o que é pior? – perguntou Qhuinn, parecendo um pouco mais consigo mesmo.
– O quê? – Deus bem sabia que a gama de opções era vasta.
– Eu vi a criança.
Os pelos da nuca de Blay se eriçaram.
– Do que está falando?
– Na noite em que a Guarda de Honra veio atrás de mim e que quase morri, lembra?
Blay deu uma tossidela, a lembrança era tão vívida e visceral como se tivesse acontecido uma hora antes. E mesmo assim a voz de Qhuinn era calma e tranquila, como se ele estivesse se referindo a uma noite numa boate ou algo assim.
– Sim, eu me lembro.
E pensou, eu fiz boca a boca em você no acostamento da estrada, porra.
– Eu fui até o Fade... – Qhuinn franziu o cenho. – Você está bem?
Ah, sim, claro, uma maravilha.
– Desculpe. Pode continuar.
– Fui até lá. Quero dizer, é como... a gente ouviu falar. Branco – Qhuinn esfregou o rosto de novo. – Tão branco. Tudo. Havia uma porta, e eu caminhei até ela... Eu sabia que se girasse a maçaneta, entraria e não sairia mais. Eu estava prestes a tocá-la quando... foi então que eu a vi. Na porta.
– Layla – interpôs Blay, sentindo como se o peito tivesse sido apunhalado.
– A minha filha.
A respiração de Blay ficou presa.
– A sua...
Qhuinn o encarou.
– Ela era... loira. Como Layla. Mas os olhos... – ele levou a mão próxima aos seus. – Eram como os meus. Parei de andar quando a vi e depois, de repente, eu estava de volta no chão, no acostamento da estrada. Depois disso, fiquei sem saber o que foi tudo aquilo. Mas depois, muito tempo depois, Layla entrou no cio e me procurou, e tudo se encaixou. Era como se aquilo... tivesse que acontecer. Pareceu o destino, sabe. De outro modo, eu jamais teria me deitado com Layla. Só fiz isso porque eu sabia que teríamos uma garotinha.
– Jesus.
– Mas eu estava errado – ele esfregou o rosto pela terceira vez. – Errei feio... E o que eu mais queria era não ter tomado esse caminho. O maior arrependimento da minha vida... Bem, o segundo maior, na verdade.
A Blay só restou imaginar o que poderia ser pior do que aquilo pelo que ele passava.
O que posso fazer?, Blay se perguntou.
Os olhos de Qhuinn procuraram os dele.
– Quer mesmo que eu responda a isso?
Pelo visto, ele pensara em voz alta.
– Sim, claro.
A mão da adaga de Qhuinn se levantou e amparou a lateral do rosto de Blay.
– Certeza?
O clima mudou de pronto. A tragédia ainda estava com eles, mas a poderosa ressaca sexual os abateu entre uma pulsação e a seguinte.
O olhar de Qhuinn começou a queimar, as pálpebras pesaram.
– Preciso... de uma âncora agora. Não sei explicar de modo melhor.
O corpo de Blay reagiu instantaneamente, o sangue fervendo, o membro engrossando e esticando.
– Deixe-me beijar você – Qhuinn gemeu ao se inclinar. – Sei que não mereço, mas, por favor... é isso o que você pode fazer por mim. Deixe-me senti-lo...
A boca de Qhuinn resvalou a dele. Voltou para um pouco mais. Demorou-se.
– Vou implorar – mais carícias daquela boca devastadora. – Se for preciso. Estou pouco me importando, eu vou implorar...
De algum modo, isso não seria necessário.
Blay deixou a cabeça ser inclinada para abrir caminho para mais manobras, a mão de Qhuinn em seu rosto tanto gentil quanto no comando. E, então, houve mais boca a boca, lento, arrastando-se, inexorável.
– Deixe-me estar dentro de você de novo, Blay...
CAPÍTULO 39
Assail voltou para casa cerca de meia hora antes do amanhecer. Ao estacionar o Range Rover na garagem, ele teve que esperar a porta abaixar para sair.
Sempre se considerara um intelectual – e não no sentido atribuído pela glymera, onde um se sentia importante ao discorrer sobre literatura, filosofia ou assuntos espirituais. Era mais pelo fato de existirem poucas coisas na vida na qual ele não podia aplicar seu raciocínio e entender a sua totalidade.
O que diabos aquela mulher fizera na casa de Benloise?
Obviamente ela era uma profissional, com tanto equipamento quanto técnica, e uma abordagem de infiltração muito praticada. Ele também suspeitava que ou ela tivesse a planta da casa ou estivera lá previamente. Tão eficiente. Tão decidida. E ele estava qualificado para julgar: seguira-a o tempo inteiro em que ela esteve dentro da casa, penetrando como um fantasma pela janela que ela abrira, atendo-se às sombras.
Seguindo o rastro dela por trás.
Mas aquilo ele não entendia: que tipo de ladrão se dá ao trabalho de invadir uma casa segura, encontra um cofre, queima-o para abri-lo, descobre muitas riquezas portáteis... mas não leva nada? Porque ele vira muito bem ao que ela teve acesso; assim que ela saiu do escritório, ele permanecera lá, soltando a prateleira como ela fizera antes, e usara a própria lanterna para dar uma espiada no cofre.
Só para descobrir o que ela deixara para trás, se é que tinha deixado algo.
Quando ele voltou para a casa em si, evitando qualquer fonte de luz, observara-a parada um instante no hall de entrada, com as mãos nos quadris, a cabeça virando lentamente, como se ela estivesse considerando suas opções.
E então ela se aproximou de uma estátua que só podia ser de Degas... e a girara apenas alguns centímetros para a esquerda.
Isso não fazia sentido.
Bem, era possível que ela tivesse invadido o cofre procurando por algo específico que, na verdade, não estava lá. Um anel, uma bugiganga, um colar. Um chip de computador, um pendrive, um documento como um testamento ou apólice de seguro. Mas a demora no hall não estava de acordo com a diligência anterior... e depois ela só moveu uma estátua?
A única explicação era que aquilo fora uma violação deliberada da propriedade de Benloise.
O problema era que, no que se referia a vinganças contra objetos inanimados, era difícil encontrar muita significância nos atos dela. Derrubasse a estátua, então. Levasse a maldita coisa. Danificasse-a com obscenidades em tinta spray. Batesse nela com um pé-de-cabra para que ficasse destruída. Mas uma leve virada que mal se podia perceber?
A única conclusão a que ele conseguia chegar era que aquilo fora um tipo de mensagem. E ele não gostava nem um pouco disso.
Pois sugeria que talvez ela conhecesse Benloise pessoalmente.
Assail abriu a porta do motorista...
– Oh, meu Deus... – sibilou, retraindo-se.
– Ficamos imaginando quanto tempo você ainda ficaria aí.
Enquanto uma voz ríspida se pronunciava, Assail saiu do carro e olhou ao redor da garagem para cinco carros. O fedor estava num meio-termo entre um atropelamento de três dias, maionese estragada e perfume barato.
– Isso é o que eu estou pensando? – perguntou aos primos, que estavam parados na soleira da antessala.
Graças à Virgem Escriba, eles avançaram e fecharam a porta que dava para a casa; caso contrário, aquele fedor horrendo invadiria o resto da construção.
– São os seus traficantes. Bem, parte deles, na verdade.
Que. Merda. Era. Aquela?
As passadas longas de Assail o levaram na direção que Ehric apontava: o canto oposto, onde três sacos plásticos verdes-escuro foram jogados de lado sem cuidado algum. Agachando-se, ele afrouxou a tira amarela de um deles, puxou a beirada e...
Deparou-se com os olhos sem vida de um humano que ele reconhecia.
A cabeça inanimada fora arrancada da coluna uns dez centímetros abaixo da mandíbula, e estava virada de modo a fitar para fora de seu caixão frouxo. O cabelo escuro e a pele vermelha estavam marcados por sangue preto e brilhante, e se o cheiro esteve ruim próximo ao carro, ali, bem perto, fez seus olhos lacrimejarem e a garganta se contrair num protesto.
Não que ele se importasse.
Abriu os outros dois sacos e, usando o plástico como “luva”, virou as outras cabeças na mesma posição.
Depois se sentou e ficou olhando para as três, observando as bocas escancaradas e impotentes em busca de ar.
– Contem o que aconteceu – ordenou sombriamente.
– Aparecemos na hora combinada.
– Rinque de patinação, na margem do rio ou debaixo da ponte?
– Ponte. Chegamos – Ehric apontou para o irmão gêmeo, que estava parado em silêncio ao seu lado – na hora com o produto. Uns cinco minutos depois, esses três apareceram.
– Como redutores.
– Eles tinham o dinheiro. Estavam prontos para fazer a transação.
Assail girou a cabeça na direção dele.
– Eles não foram lá para atacá-los?
– Não, mas só descobrimos isso quando já era tarde demais – Ehric deu de ombros. – Eram assassinos que apareceram do nada. Não sabíamos quantos havia, e não queríamos nos arriscar. Foi só depois que vasculhamos os bolsos e encontramos o montante certo de dinheiro que percebemos que eles só foram lá para fazer negócios.
Redutores no tráfico? Aquilo era novidade.
– Vocês apunhalaram os corpos?
– Pegamos as cabeças e escondemos o que restou. O dinheiro estava na mochila desse da esquerda e, naturalmente, nós o trouxemos para casa.
– Celulares?
– Peguei.
Assail começou a acender um charuto, mas não queria desperdiçar o sabor. Fechando os sacos, levantou-se acima da carnificina.
– Tem certeza de que não foram agressivos?
– Estavam mal preparados para se defenderem.
– Estar mal armado não significa que eles não estivessem lá para matá-los.
– Por que levar o dinheiro?
– Eles podiam estar negociando em outro lugar.
– Como já disse, era a quantia correta e nem um centavo a mais.
Abruptamente, Assail gesticulou para que o seguissem para o interior da casa e, ah, que alívio quando chegaram ao ar limpo. Com as telas descendo lentamente sobre as janelas de vidro, e com o alvorecer se completando, ele foi para o bar, pegou um galão de Bouchard Père et Fils, Montrachet, 2006 e estalou a rolha.
– Querem me acompanhar?
– Sim, claro.
Na mesa redonda na cozinha, ele se sentou com três taças e a garrafa. Servindo os três, dividiu o chardonnay com os dois sócios.
Porém, não lhes ofereceu seus cubanos. Eram valiosos demais.
Felizmente, cigarros apareceram e todos se sentaram juntos, fumando e saboreando goladas sublimes da beira afiada do seu Baccarat.
– Nenhuma agressão por parte dos assassinos – murmurou, inclinando a cabeça para trás para baforar, a fumaça azulada se elevando sobre sua cabeça.
– E a quantia exata.
Depois de um momento, ele voltou a olhar para eles.
– Será possível que a Sociedade Redutora esteja tentando entrar no meu ramo de negócios?
Xcor estava à luz de velas, sozinho.
O armazém estava tranquilo, seus soldados ainda não tinham retornado, nenhum humano, nenhum Sombra, nada caminhava sobre ele. O ar estava frio; o mesmo com o concreto abaixo dele. A escuridão o envolvia, a não ser pela fraca fonte de luz perto da qual ele estava sentado.
Algo no fundo de sua mente lhe dizia que estava perigosamente perto de amanhecer. Também havia outra coisa, algo de que ele deveria ter se lembrado.
Mas não havia a mínima chance de que algo transpusesse seu torpor.
Com os olhos fixos na única chama diante dele, Xcor repassou os eventos da noite em sua cabeça.
Dizer que ele encontrara a localização da Irmandade seria talvez aumentar um pouco a verdade, mas não uma falácia completa. Seguira aquela Mercedes para o interior, quilômetro após quilômetro, sem nenhum plano real do que deveria ou poderia fazer quando ela parasse... quando, do nada, o sinal do sangue no corpo de sua Escolhida não só se perdeu, mas foi totalmente redirecionado, como se uma bola lançada contra um muro tivesse alterado repentinamente a sua trajetória.
Confuso, ele vasculhou os arredores, desmaterializando aqui, acolá, para cima e para baixo e, durante o tempo todo, uma sensação de horror se abatendo sobre ele. Recuando, ele se viu na base de uma montanha, com seus contornos, mesmo sob o luar claro, registrados de maneira estranha, indistinta, pouco nítida.
O lugar em que eles ficavam só podia ser ali.
Talvez no alto da montanha. Talvez do outro lado.
Não havia outra explicação – afinal, a Irmandade vivia com o Rei para protegê-lo... portanto, indubitavelmente, eles tomariam precauções do tipo que ninguém mais conseguiria tomar, ou quem sabe, tivessem ao seu dispor tecnologias e provisões místicas que seriam, de outro modo, indisponíveis.
Em frenesi, ele circundou os arredores, dando a volta na base algumas vezes, pressentindo nada além da refração do sinal dela e aquela sensação de horror. Sua conclusão era de que ela deveria estar em algum lugar daquela imensidão: ele teria pressentido se ela tivesse atravessado para o outro lado, e seria razoável concluir que se tivesse ido para o seu templo sagrado, até um plano alternativo de existência, ou – que o destino não permitisse – morrido, aquele eco ressonante dentro dele teria desaparecido.
A sua Escolhida estava ali em algum lugar.
Retornando para o armazém, para o presente, para onde ele estava agora, Xcor esfregou as palmas para frente e para trás lentamente, o raspar dos calos interrompendo a quietude. À esquerda, no limiar da luz de velas, suas armas estavam dispostas lado a lado, as adagas, as pistolas, e sua adorada foice cuidadosamente organizadas ao lado de uma pilha confusa de roupas de sair que ele retirara assim que escolhera aquele lugar específico no chão.
Concentrou-se na foice e esperou que ela lhe falasse: ela o fazia com frequência, com seus modos sedentos de sangue em compasso com a agressividade que fluía em suas veias e que definia seus pensamentos e motivava suas ações.
Aguardou que ela lhe dissesse para atacar a Irmandade onde eles ficavam. Onde as fêmeas moravam. Onde as crianças dormiam.
O silêncio era preocupante.
De fato, sua chegada ao Novo Mundo fora baseada no desejo de ganhar poder, a expressão maior e mais arrojada desse desejo era tomar o trono, portanto, naturalmente, esse era o curso que ele escolhera. E estava progredindo. A tentativa de assassinato no outono, que, sem sombra de dúvida, lançara uma sentença de morte sobre a sua cabeça e a dos seus soldados, fora uma medida tática que quase colocara um ponto final na guerra inteira antes mesmo de ela começar. E seus esforços contínuos com Elan e com a glymera estavam promovendo seus objetivos e reforçando seu apoio dentro da aristocracia.
Mas aquilo que ele descobrira naquela noite...
Deuses, quase um ano de trabalho, sacrifício, planejamento e combate perdiam importância em comparação com a sua descoberta.
Se seu palpite estivesse correto – e como não podia estar? –, tudo o que ele tinha de fazer era marchar com seus soldados e começar um cerco assim que a noite caísse. A batalha seria épica, e a Irmandade e o lar da Primeira Família seriam permanentemente comprometidos, independentemente do resultado.
Seria um conflito digno dos livros de História – afinal, a primeira vez em que a propriedade real fora atingida foi quando o progenitor e a mahmen de Wrath foram assassinados antes da transição dele.
A história se repetia.
E ele e seus soldados tinham uma séria vantagem em relação àqueles assassinos que, na época, não possuíram: a Irmandade agora tinha muitos machos vinculados. Na verdade, ele acreditava que todos eles estivessem vinculados, e isso dividiria as atenções e as lealdades dos machos como nada mais conseguiria fazer. Ainda que a diretriz principal deles como guarda pessoal do Rei fosse proteger Wrath, seus cernes estariam divididos, e mesmo o mais forte dos lutadores com as melhores armas estaria enfraquecido se suas prioridades estivessem em dois lugares distintos.
Além disso, se Xcor ou um dos seus soldados conseguisse apanhar uma daquelas shellans, a Irmandade esmoreceria, porque a outra coisa verdadeira a respeito deles era que a dor de um dos Irmãos era a própria agonia.
Só bastaria uma fêmea de qualquer um deles, a arma derradeira.
Ele sabia disso em sua alma.
Sentado à luz da vela, Xcor esfregou a lâmina da adaga na palma de sua mão, de um lado para o outro, de um lado para o outro.
Uma fêmea.
Era só disso que ele precisava.
E ele conseguiria não só reivindicar sua própria fêmea... mas também o trono.
CAPÍTULO 40
Qhuinn sabia que acabara de colocar Blay numa posição totalmente injusta.
Transa por pena, hein? Mas, ah, Deus, encarando aqueles olhos azuis, aqueles malditos olhos azuis sem fundo que estavam francos para ele do mesmo modo que um dia estiveram... era só no que conseguia pensar. E, sim, tecnicamente era sexo em termos de onde ele queria suas diversas partes – bem, uma mais especificamente. No entanto, havia muito mais do que apenas isso.
Ele não sabia expressar em palavras; simplesmente não era bom em juntar as sílabas. Mas seu desejo de conexão foi o que o levou ao beijo. Ele quis mostrar a Blay o que estava querendo dizer, do que ele precisava, por que aquilo era importante: seu mundo inteiro parecia estar desmoronando e a perda que acontecia na porta ao lado doeria por um bom tempo.
No entanto, estar com Blay, sentir o seu calor, fazer contato, era como uma promessa de cura. Mesmo se durasse apenas o tempo em que estivessem ali naquela sala, ele aceitaria, e guardaria aquilo para si... para relembrar quando precisasse.
– Por favor – sussurrou.
Só que ele não deu chance para o cara responder. Sua língua saiu sorrateira e lambeu aquela boca, escorregando para dentro, assumindo o controle.
E a resposta de Blay foi o modo como ele se permitiu ser empurrado para trás nas almofadas do sofá.
Qhuinn teve dois pensamentos vagos: um, a porta só estava fechada, não trancada – e ele cuidou disso desejando que a trava de latão ficasse no lugar certo. E o segundo pensamento momentâneo era que eles não poderiam destruir aquele lugar. Explodir tudo em seu quarto era uma coisa. A sala de estar era propriedade pública, e muito bem decorada, com as almofadas de seda e as cortinas luxuosas, e um monte de outras coisas que pareciam facilmente rasgáveis, amassáveis, Deus, mancháveis...
Além disso, ele já destruíra seu Hummer, acabara com o jardim e sacudira o quarto. Portanto, sua cota de Destruidor já ultrapassara, e muito, o calendário anual...
Naturalmente, a solução mais prática para não dar nenhuma preocupação adicional a Fritz seria percorrer o corredor rapidamente até o seu quarto, mas enquanto as mãos talentosas de Blay estavam na frente do quadril de Qhuinn, já abaixando seu zíper, ele lançou essa ideia brilhante no cesto de lixo.
– Ai, Deus, toque-me – gemeu, empurrando a pélvis para a frente.
Ele só teria de ser comportado e bem limpinho com aquilo.
Presumindo que isso fosse possível.
Quando a palma de Blay se enfiou em sua calça de couro, o corpo de Qhuinn se arqueou, o torso curvando-se para trás enquanto o outro iniciava os trabalhos. O ângulo estava meio errado, por isso não havia muita fricção, e suas bolas estavam sendo beliscadas pela costura da calça, mas santo inferno, ele não se importava. O fato de que aquele era Blay bastava.
Cacete, depois de anos de chupadas, punhetas e transas, aquela parecia a primeira vez que alguém tocava nele.
Ele precisava retribuir o favor.
Entrando em ação, elevou o peito e aproximou os rostos. Caramba, ele adorava a expressão daqueles olhos azuis enquanto Blay o encarava, quente, selvagem, sensual.
Com tesão.
Qhuinn o segurou com força e aproximou as bocas, agarrando-se àqueles lábios, lançando a língua, tomando tudo como um desvairado...
– Espere, espere – Blay retrocedeu. – Vamos quebrar o sofá.
– O quê...? – o cara parecia estar falando inglês, mas pro inferno se ele conseguia traduzir. – Sofá?
E então ele percebeu que empurrara tanto Blay no braço do móvel, que a coisa estava começando a se inclinar. Que era mais do que duzentos quilos de sexo poderiam fazer em uma peça de mobília.
– Ai, merda, desculpe.
Ele estava começando a recuar quando Blay assumiu o controle e Qhuinn, de repente, viu-se fora do sofá, de costas no chão, as pernas unidas, as calças sendo empurradas para os tornozelos.
Ideia. Genial.
Graças ao fato de ele não usar cuecas, seu pau estava todo exposto, grosso e tenso, ao ser lançado para cima, dolorido e inchado por sobre a barriga. Abaixando a mão, ele deu umas puxadas enquanto Blay arrancava seus coturnos que estavam atrapalhando, largando-os de lado. As calças foram as próximas a darem adeus, e, com Deus como testemunha, Qhuinn nunca antes ficou tão contente em ver um par de couro voar por cima do ombro em toda a sua vida.
Em seguida, Blay voltou ao trabalho.
Qhuinn teve que fechar os olhos quando sentiu as coxas sendo afastadas e um par de mãos de lutador puxar o interior de suas pernas. Imediatamente ele soltou a ereção, afinal, porque ter a palma atrapalhando quando Blay poderia...
Não foram as mãos do cara que o seguraram.
Foi a boca quente e úmida que Qhuinn beijara pra cacete pouco antes.
Por uma fração de segundo, enquanto a sucção abocanhava a ponta e o mastro, ele teve o pensamento maldito de que Saxton ensinara Blay a fazer aquilo: seu maldito primo fizera aquilo com o cara, e fizera com que ele...
Pare, ordenou-se. Quaisquer lições aprendidas e a história por detrás delas não importavam, era a sua ereção que recebia atenção naquele instante. Por isso, que se dane essa merda.
Para deixar isso bem claro, forçou seus olhos a se abrirem. Inferno... do céu...
A cabeça de Blay subia e descia em seus quadris, o punho segurava a base do pau de Qhuinn, a outra mão se ocupava com as bolas. Mas então, como se estivesse esperando por contato visual, o cara parou no alto, libertou a cabeça e lambeu os lábios.
– Eu não gostaria que você fizesse uma lambança nesta linda sala – Blay disse com fala arrastada.
E então, estendeu a ponta da língua para açoitar o piercing no pênis de Qhuinn, a carne rosada brincando com a argola cinza de metal e a bolinha...
– Caralho. Vou gozar agora – grunhiu Qhuinn, com uma onda fervente se avolumando. – Eu vou...
Ele estava impotente para deter as coisas, muito mais até do que alguém que tivesse se lançado de um precipício e que, depois de metros de queda livre, quisesse desistir.
Só que ele não queria pisar no freio.
E não pisou.
Com um rugido potente, que provavelmente foi ouvido em outros lugares, a espinha de Qhuinn se afastou do chão, o traseiro ficou rígido, as bolas explodiram, a excitação esguichando com força na boca de Blay. E não foi só o seu sexo que foi afetado. O orgasmo o atingiu em todo o corpo, uma energia latente emergindo por ele enquanto cravava as unhas no tapete em que estava deitado, os dentes cerrados... e gozando como um animal selvagem.
Felizmente, Blay se mostrou mais do que eficiente na limpeza. E se isso não o fez gozar ainda mais... Também lhe deu muito para o que olhar: pelo resto dos seus dias, Qhuinn jamais se esqueceria da visão da boca do macho o envolvendo, as bochechas sugando enquanto ele libertava seu gozo e ele absorvia tudo. De novo e de novo e de novo.
Normalmente, Qhuinn ficava pronto para outra em seguida, mas quando as ondas tumultuadas finalmente se quebraram sobre ele, ele ficou completamente inerte, os braços largados no chão, os joelhos moles, a cabeça pensa.
– Não consigo me mexer – murmurou.
O riso de Blay foi profundo e sensual.
– Você parece um pouco cansado.
– Posso retribuir o favor?
– Você consegue levantar a cabeça?
– Ela ainda está grudada no meu corpo?
– Pelo que vejo, sim, está.
Enquanto Blay ria de novo, Qhuinn soube o que queria fazer e isso o surpreendeu. Em todas as suas explorações sexuais, ele nunca se permitiu ser enrabado. Não era assim que as coisas aconteciam. Ele era o conquistador, o que tomava, o que estabelecia o controle e conservava a superioridade.
Ficar por baixo simplesmente não o interessava.
E agora era o que queria.
O único problema era que, literalmente, não conseguia se mexer. Ah, sim, e havia uma coisinha a mais: como contar a Blay que ele era virgem?
Porque ele desejava. Se um dia chegasse àquilo, ele queria que Blay soubesse. Por algum motivo, isso era importante.
De repente, o rosto de Blay apareceu em seu campo de visão, e, Deus, como o lutador era lindo, o rosto afogueado, os olhos reluzentes, aqueles ombros largos bloqueando tudo.
E, ah, sim, aquele sorriso sexy como o inferno, tão satisfeito consigo e autossuficiente, como se o fato de Blay ter provocado tanto prazer em alguém fosse o bastante para que ele não precisasse do próprio alívio.
Mas isso não seria justo, seria?
– Não acho que você vai voltar a se mexer tão cedo – comentou Blay.
– Talvez. Mas posso abrir a boca – foi a resposta misteriosa. – Tanto quanto você.
Certo, tudo bem, a ideia de que provocava um orgasmo daquele em Qhuinn foi tão ratificadora que Blay se esquecera por completo do seu corpo.
A questão era que após tantos anos de rejeição, era uma emoção sem igual sentir poder em relação ao cara, ser aquele quem comandava o ritmo... a pessoa que levava Qhuinn a um lugar vulnerável e erótico muito mais intenso do que qualquer outro antes. E foi isso o que aconteceu. Ele sabia exatamente como Qhuinn ficava e como soava quando gozava, e Blay podia afirmar, sem nenhum traço de dúvida, que ele jamais vira seu camarada tão prostrado como agora, largado no tapete, os músculos do pescoço esticados, os abdominais contraídos, os quadris bombeando com força.
Qhuinn gozara praticamente vinte minutos direto.
E agora, no pós-coito, uma estranha revelação: até aquele instante, Blay jamais reconhecera o cinismo que Qhuinn carregava no rosto o tempo inteiro... as sobrancelhas caídas, o canto da boca perpetuamente repuxado para cima... o maxilar nunca, jamais relaxado.
Era como se toda a torpeza que a família lhe fizera tivesse permanentemente esculpido suas feições.
Mas não era verdade, não é mesmo? Durante o orgasmo, e agora, enquanto as coisas se acalmavam, nada daquela tensão era visível em lugar algum. O rosto de Qhuinn estava... livre de toda reserva, parecendo tão mais jovem, e Blay teve que se perguntar por que nunca percebera a idade dele antes.
– Então, vai me dar algo para eu chupar enquanto me recupero? – Qhuinn perguntou.
– O quê...?
– Estou com sede. E preciso chupar alguma coisa – dito isso, Qhuinn mordeu o lábio inferior, as presas brancas brilhantes afundando na pele. – Vai me ajudar?
Os olhos de Blay reviraram em suas órbitas.
– É... acho que posso fazer isso.
– Então me deixe tirar suas calças.
As pernas de Blay se levantaram com tanta rapidez que ele teve um insight novo sobre as leis da física, e enquanto ele chutava os sapatos, as mãos tremiam ao desabotoar a calça. As coisas foram bem rápidas a partir dali. E durante o tempo todo em que se despia, ele estava absolutamente ciente de tudo o que havia na sala – especialmente Qhuinn. O macho estava ficando rígido novamente, o sexo engrossando apesar de tudo pelo que acabara de passar... as coxas pesadas se contraindo e a pélvis rolando... a parte baixa do tronco tão delgada que cada sutil mudança do torso era refletida na pele esticada e bronzeada.
– Isso aí... – Qhuinn sibilou, as presas se estendendo do maxilar superior, as mãos procurando, e encontrando, o sexo, apalpando-o em movimentos longos e lentos. – Isso mesmo.
A respiração de Blay começou a acelerar, os batimentos cardíacos subindo até o telhado enquanto os olhos descombinados de Qhuinn se prendiam ao seu sexo.
– É isso o que eu quero – o macho grunhiu, soltando-se e esticando as duas mãos.
Por uma fração de segundo, Blay não teve muita certeza como as partes trabalhariam. Qhuinn estava diante do sofá, paralelo ao móvel, por isso não havia muito espaço para...
Um grunhido sutil perpassou o ar enquanto Qhuinn flexionava os dedos como se mal conseguisse esperar para segurar aquilo que desejava.
O planejamento que fosse para o inferno.
Os joelhos de Blay atenderam ao chamado, dobrando para a frente, levando seu peso ao chão perto da cabeça de Qhuinn.
Qhuinn assumiu o controle a partir daí. As palmas escorregaram e se prenderam, atraindo Blay de modo que, sem nem se dar conta, ele tinha um joelho atrás da cabeça do cara e a outra perna estendida ao longo do corpo até o quadril de Qhuinn.
– Ai... cacete... – Blay gemeu ao sentir o sexo entrar entre os lábios de Qhuinn.
O corpo pendeu para a frente até ele acabar derramando o torso nas almofadas do sofá, e foi nesse momento que ele se viu com uma excelente alavancagem. Apoiando os braços no sofá, distribuiu o peso entre os joelhos, os pés e as palmas... e depois se pôs a foder a boca adorável de Qhuinn.
O cara aceitou tudo, mesmo quando os quadris descontrolados de Blay empurraram com tudo o que ele tinha.
Com os dedos de Qhuinn cravados em seu traseiro, e aquela incrível sucção, e... Cristo, o piercing da língua, com a bolinha resvalando seu mastro a cada estocada... Blay estava se dirigindo exatamente para o mesmo tipo de orgasmo que Qhuinn acabara de ter.
Mesmo assim, no fundo da sua mente, ele se questionava se não estava machucando o cara. Do jeito como as coisas seguiam, ele acabaria gozando no estômago dele.
Tarde demais para se preocupar com isso.
Seu corpo assumiu, enrijecendo numa série de espasmos torturantes que corriam do alto da coluna até as pernas.
E bem quando as sensações descontroladas estavam começando a diminuir, o mundo entortou ao seu redor, como se seu senso de equilíbrio tivesse explodido junto de seu...
Não, o mundo estava no lugar. Qhuinn acabara de se levantar do chão, saindo de baixo e se posicionando atrás...
Enquanto Qhuinn penetrava com uma estocada na velocidade da luz, Blay emitiu um gemido que com certeza seria ouvido no Canadá...
O rangido que se fez ouvir na sala o deixou intrigado, mesmo em meio à pressão e ao prazer.
Ah. Eles estavam empurrando o sofá.
Que seja. Ele compraria um novo para a casa se quebrassem a maldita porcaria; ele não iria parar.
O ritmo foi tão punitivo quanto fora o seu e, nesse caso, a revanche não era só o que ele merecia, mas exatamente o que ele queria. A cada estocada, seu rosto era empurrado contra as almofadas do sofá; a cada recuada, ele respirava; só para ser empurrado novamente, num círculo que recomeçava sempre.
Reposicionando as pernas para que Qhuinn alcançasse ainda mais fundo, Blay teve a vaga noção de que eles, definitivamente, mudavam o sofá de posição, mas quem é que se importava com isso, contanto que eles não acabassem no corredor?
No último instante, pouco antes de ele gozar, teve a presença de espírito de pegar as calças. Puxando as cuecas, ele...
A mão de Qhuinn se esticou, apanhou a Calvin Klein e fez o que era preciso, garantindo que houvesse algo para conter o seu gozo. Então, um instante depois, seu peito se deslocou do sofá e ele estava ereto sobre os joelhos. Qhuinn cuidou de tudo, segurando o pau de Blay enquanto cobria a cabeça – penetrando, ainda penetrando, sempre penetrando...
Gozaram ao mesmo tempo, dois pares de gritos ecoando pela sala.
No meio do orgasmo, Blay, sem querer, levantou o olhar. No enorme espelho antigo que estava pendurado entre as duas janelas do lado oposto, ele viu os dois, soube que estavam ligados... e isso o fez gozar novamente.
No fim, as investidas desaceleraram. Os batimentos cardíacos começaram a diminuir. As respirações foram se acalmando.
No vidro chumbado, ele viu Qhuinn fechar os olhos e abaixar a cabeça. Na lateral do seu pescoço, Blay sentiu um resvalar suave.
Os lábios de Qhuinn.
E então a mão livre do macho subiu, parando para afagar Blay no peitoral...
Qhuinn congelou. Recuou. Afastou os lábios, seu toque.
– Desculpe. Desculpe, eu... sei que não quer isso de mim.
A mudança no rosto do cara, o regresso ao cinismo costumeiro, era como ser roubado.
E mesmo assim Blay não podia dizer a ele que voltasse a se aproximar. Qhuinn estava certo; no instante em que a ternura aparecia, ele começava a entrar em pânico.
A retirada foi rápida, rápida demais, e Blay sentiu falta da sensação de estar completo e de ser possuído. Mas estava na hora de acabar com aquilo.
Qhuinn pigarreou.
– Hum... você quer que eu...
– Cuido disso – murmurou Blay, substituindo a mão de Qhuinn sobre as cuecas amassadas em seu quadril.
Durante o sexo, o silêncio na sala equivalia à privacidade. Agora, eram apenas os sons amplificados de Qhuinn subindo as calças de couro.
Droga.
Voltavam ao caos e à confusão. E enquanto as coisas aconteciam, as sensações eram tão intensas e esmagadoras que não houve nenhum pensamento além do sexo. Depois, porém, o corpo de Blay estava frio demais no ambiente climatizado, diferentes partes pulsavam por terem sido usadas, as pernas estavam moles e cambaleantes, a mente, enevoada...
Nada parecia seguro ou garantido. Nem um pouco.
Forçando-se a se vestir, colocou as roupas o mais rápido que conseguiu, inclusive os sapatos. Nesse meio-tempo, foi Qhuinn quem devolveu o sofá ao seu lugar, cuidadosamente colocando os pés nas marcas do tapete. Também ajeitara as almofadas. Endireitara o tapete oriental.
Foi como se nada tivesse acontecido. A não ser pelas cuecas de Blay amassadas em sua mão fechada.
– Obrigado – disse Qhuinn baixinho. – Eu, hum...
– Tudo bem.
– Então... acho que eu vou agora.
– Ok.
E foi isso.
Bem, além de a porta se fechar.
Deixado a sós, Blay resolveu que precisava de uma chuveirada. Mais comida. Dormir.
Em vez disso tudo, ele ficou na sala de estar do segundo andar, olhando para aquele espelho, lembrando-se do que vira nele. Em sua mente, teve a vaga noção de que eles não podiam continuar fazendo aquilo. Emocionalmente, não era seguro para ele; na verdade, era o equivalente a manter a palma da mão sobre uma chama uma vez após a outra, só que a cada vez que você voltava a colocar a mão, você diminuía a distância entre a sua carne e o calor. Cedo ou tarde? Queimaduras de terceiro grau seriam o menor dos seus problemas, porque o braço inteiro estaria em chamas.
Depois de um tempo, contudo, não ficou só pensando naquela coisa de autopreservação.
Mas sim no que dera início àquilo tudo.
Faz isso parar.
Blay passou a mão pelo cabelo. Depois olhou para a porta fechada e franziu o cenho, a mente trabalhando, trabalhando, trabalhando...
Um minuto depois, saiu apressado, andando rapidamente.
Antes de partir num trote.
E acabar correndo como um louco.
CAPÍTULO 41
Eram mais ou menos dez da manhã quando Trez seguiu para o Restaurante Sal’s. O trajeto do apartamento no Commodore para o belo estabelecimento do irmão não demorou, levando apenas dez minutos, e havia diversos espaços disponíveis para estacionar quando ele chegou lá.
De fato, o lugar não abria antes da uma da tarde, nem mesmo para o pessoal da cozinha iniciar a preparação.
Enquanto se encaminhava para a entrada, suas botas esmagando a neve, ele esperou que o código de abertura pelo lado externo não funcionasse: iAm não voltara para casa na noite anterior e, supondo que os cretinos do s’Hisbe não o tivessem levado embora como dano colateral, só havia um lugar em que seu irmão poderia estar. Depois de dois bules de café e muitas consultas ao relógio de pulso, Trez entendeu que, se queria fazer as pazes, ele teria de atravessar a cidade.
Legal. A combinação não fora mudada.
Ainda.
Do lado de dentro, o lugar parecia uma réplica do Rat Pack, numa interpretação moderna de uma era que gerara tipos como Peter Lawford e Frank Sinatra: uma entrada com papel de parede de algodão preto e vermelho o levava até a recepção, onde a chapelaria, a mesinha retrô da recepcionista e o caixa ficavam. À esquerda e também à direita, estavam os dois salões principais, ambos decorados em veludo e couro preto e vermelho, mas não eram onde os políticos e os endinheirados locais ficavam. O lugar predileto era o bar mais à frente, um salão com painéis de madeira que tinha bancos estofados quadrados de couro vermelho perto das paredes e, durante o expediente, um barman de smoking atrás de uma bancada de carvalho servindo nada que não fosse o melhor.
Atravessando a extensão do bar, Trez seguiu para o outro lado das cinco prateleiras de garrafas à mostra e passou pelas portas em vaivém. Ao entrar na cozinha, o cheiro de manjericão, cebola, orégano e vinho tinto lhe denunciou exatamente onde iAm estava.
Como esperado, o cara estava diante do enorme fogão industrial de dezesseis bocas na parede oposta, com cinco panelas imensas borbulhando diante dele – e você gostaria de apostar que também havia alguma coisa no forno? Nesse meio-tempo, tábuas de madeira de corte estavam enfileiradas nas bancadas de aço inoxidável, as cabeças mortas de diferentes tipos de pimentão deixadas ao lado das facas afiadas que foram usadas.
Dez pratas para adivinhar em quem o cara estava pensando enquanto picava aquilo tudo.
– Vai ou não falar comigo? – Trez disse para as costas do irmão.
iAm seguiu para a panela seguinte, levantando a tampa com um pano de prato branco, uma imensa escumadeira entrando e mexendo lentamente.
Trez se inclinou para o lado e puxou um banquinho de aço inoxidável. Sentando-se, esfregou as coxas para cima e para baixo.
– Oi? Alguém aí?
iAm foi para a panela seguinte. E depois a outra. Cada uma delas tinha uma colher diferente para evitar a mistura de sabores, e seu irmão tomava muito cuidado com isso.
– Escute, eu sinto muito se não estava quando você foi à boate ontem à noite – todas as noites, iAm ia para o Iron Mask para dar uma olhada depois que o Sal’s fechava. – Tive que cuidar de uns assuntos.
Merda, se teve. A garota do namorado grosseiro levou uma eternidade para sair do seu carro quando ele a levou para a casa dela. No fim, ele a acompanhou até a porta, abriu e só faltou empurrá-la para dentro. De volta ao carro, ele acelerou como se tivesse plantado uma bomba na calçada e, enquanto seguia para o Iron Mask, tudo o que ouvia em sua cabeça era a voz de iAm.
Você não pode continuar a fazer isso.
A essa altura, iAm se virou, cruzou os braços sobre o peito e se recostou ao fogão. Os bíceps já eram grandes, mas com os braços cruzados daquele jeito, forçavam a borda da camiseta preta que ele vestia.
Os olhos amendoados estavam semicerrados.
– Você acha mesmo que eu estou bravo porque você não estava quando fui ao clube? Sério? E não por que você me deixou para lidar com AnsLai ou qualquer asneira do tipo...
Eeeee estavam todos a postos.
– Sabe que não posso me encontrar com o cara – Trez levantou as mãos como se quisesse dizer que não havia nada que ele pudesse fazer. – Eles tentariam me forçar a voltar com eles e, então, quais seriam as minhas opções? Brigar? Eu acabaria lutando com o filho da puta e onde eu iria parar com isso?
iAm esfregou os olhos como se estivesse com dor de cabeça.
– Neste instante, parece que eles estão tomando uma abordagem diplomática. Pelo menos comigo.
– Quando vão voltar?
– Não sei. É isso o que está me deixando nervoso.
Trez enrijeceu. A ideia de que seu irmão frio como peixe estivesse ansioso o fez sentir como se estivesse com uma faca no pescoço.
Pensando bem, ele sabia muito bem o quanto o seu povo podia ser perigoso. O s’Hisbe era conhecido como uma tribo pacífica, satisfeita em se manter ao largo das lutas contra a Sociedade Redutora e dos desagradáveis humanos. Educados, muito inteligentes e espirituais, eles eram, como um todo, um grupo agradável. Desde que você não estivesse na lista negra deles.
Trez olhou para as panelas e se perguntou qual seria a carne no molho.
– Ainda estou em débito com Rehv – ele observou. – Portanto, essa obrigação deve vir em primeiro lugar.
– Não para o s’Hisbe. AnsLai disse, e vou citar suas palavras: “Chegou a hora”.
– Não vou voltar – ele fitou os olhos do irmão. – Isso não vai acontecer.
iAm voltou para as panelas, mexendo em cada uma com a colher designada.
– Sei disso. E é por isso que estou cozinhando. Estou tentando encontrar uma saída.
Deus, como ele amava o irmão. Mesmo irritado, o cara tentava ajudar.
– Desculpe-me por ter desaparecido e ter feito você cuidar disso. Sinto muito mesmo. Não foi justo... Eu só... bem, não achei seguro estar no mesmo cômodo que aquele cara. Sinto muito.
O peito largo de iAm subiu e desceu.
– Sei que sente.
– Eu poderia simplesmente desaparecer e o problema estaria resolvido.
Ainda que deixar iAm para trás o matasse. A questão era que, caso ele fugisse do s’Hisbe, ele jamais teria contato com o macho novamente. Nunca mais.
– Para onde você iria? – iAm observou.
– Não faço ideia.
A boa notícia é que o s’Hisbe não gostava de ter nenhum contato com os Desconhecidos. Sem dúvida, só aparecer no apartamento dele e de iAm fora traumático, mesmo se o sumo sacerdote tivesse se desmaterializado até a varanda. Lidar diretamente com humanos? Estar ao lado deles? A cabeça de AnsLai explodiria.
– Então, qual era o seu assunto? – perguntou iAm.
Maravilha. Mais um assunto igualmente feliz.
– Fui ver aquele armazém – ele desviou. Mas, cacete, até parece que ele tocaria no assunto da garota com o namorado espontaneamente.
– A uma da manhã?
– Fiz uma oferta.
– De quanto?
– Um milhão e quatrocentos. O preço pedido era de dois milhões e meio, mas não vão conseguir esse montante de jeito nenhum. O lugar está vazio há anos e demonstra isso – embora, ao dizer isso em voz alta, ele teve que admitir que sentira presenças lá. Pensando bem, talvez fosse apenas o seu estresse o responsável por isso. – Meu palpite é que vão dar uma contraoferta de dois milhões, eu subo para um e seiscentos e acabamos acordando em um e setecentos.
– Tem certeza de que quer iniciar esse projeto agora? A menos que apareça no território com o seu mastro matrimonial pronto para ser usado, esta questão com o s’Hisbe só vai piorar.
– Se as coisas chegarem a esse ponto, eu cuido disso na hora certa.
– Quando – iAm o corrigiu. – A questão é “quando”. E sei o que aconteceu no estacionamento, Trez. Com aquele cara e a mulher.
Claaaaro que sim.
– Viu as fitas ou algo assim?
Maldita câmera de segurança.
– Sim.
– Eu cuidei daquilo.
– Assim como está cuidando do s’Hisbe. Perfeito.
Com o humor afetado, Trez se inclinou.
– Quer calçar os meus sapatos, irmãozinho? Eu bem que gostaria de saber como você lidaria com essa merda toda.
– Eu não estaria fodendo putas, isso eu garanto. O que me faz pensar... o nosso corretor é uma fêmea, não?
– Foda-se, iAm. De verdade.
Trez se levantou do banquinho e marchou para fora da cozinha. Ele já tinha problemas suficientes, pelo amor de Deus, não precisava do senhor Superior com habilidades de Julia Child palpitando sobre o assunto com doze tipos de panelas...
– Você não pode continuar postergando esse assunto – iAm chamou de lá de trás. – Ou tentando enterrá-lo entre as pernas das mulheres.
Trez parou, mas manteve o olhar fixo na saída.
– Simplesmente não pode – o irmão afirmou com franqueza.
Trez girou. iAm estava perto do bar, a porta em vaivém mexendo atrás dele formando um efeito de estroboscópio de luz, escuro, luz, escuro. Toda vez que a luz surgia, parecia que seu irmão tinha um halo ao redor de todo o corpo.
Trez praguejou.
– Só preciso que me deixem em paz.
– Eu sei – iAm esfregou a cabeça. – E, honestamente, não sei que porra fazer a respeito. Não consigo me imaginar vivendo sem você, e também não quero voltar para lá. Só que também não encontrei alternativas.
– Aquelas mulheres... sabe, as que eu... – Trez hesitou. – Não acha que elas me excitam?
– Se elas não fazem isso – iAm disse secamente –, não sei porque perde tempo com elas.
Trez teve que dar um sorriso.
– Não, estou falando do s’Hisbe. Estou bem longe de ser virgem a esta altura – pelo menos ele ainda não se rebaixara a animais de fazenda. – E o que é pior? Todas eram Desconhecidos, a maioria humanas. Isso deve enojá-los. Estamos falando da filha da rainha!
Enquanto iAm franzia o cenho como se estivesse considerando a ideia, Trez sentiu uma centelha de esperança.
– Não sei, não – veio a resposta. – Talvez isso funcione, mas ainda assim você negou a Sua Alteza o que ela quer e precisa. Se eles o considerarem desonrado, podem muito bem decidir matá-lo como castigo.
Que seja. Eles teriam que encontrá-lo primeiro.
Numa onda de agressão, Trez abaixou o queixo e olhou fixo por debaixo das sobrancelhas.
– Se esse for o caso, eles vão ter que lutar comigo. E eu garanto que isso não vai acabar bem para eles.
Na mansão da Irmandade, Wrath entendeu que sua rainha estava aborrecida no instante em que ela passou pelas portas do escritório. Seu cheiro atraente estava maculado por uma pontada de acidez: ansiedade.
– O que foi, leelan? – ele quis saber, estendendo os braços.
Mesmo não enxergando, suas lembranças lhe davam uma imagem mental dela cruzando o tapete Aubusson, com o corpo longo e atlético se movendo com graciosidade, os cabelos escuros soltos sobre os ombros, o lindo rosto marcado por tensão.
Naturalmente, o macho vinculado dentro dele desejou perseguir e matar o que quer que a tivesse perturbado.
– Olá, George – disse ela ao cão. Pelo barulho de batidas ritmadas no chão, ele supôs que o cachorro tivesse recebido uma dose de amor antes.
E então foi a vez do dono.
Beth subiu no colo de Wrath, o peso próximo de nada, o corpo quente e vivo enquanto ele passava os braços ao seu redor e a beijava nas laterais do pescoço e depois na boca.
– Jesus – grunhiu ele, sentindo a rigidez no corpo dela –, você está aborrecida mesmo. Que merda está acontecendo?
Deus do céu, ela estava tremendo. Sua rainha estava, de fato, tremendo.
– Fale comigo, leelan – insistiu, esfregando-lhe as costas. E se preparando para se armar e sair em plena luz do sol se preciso fosse.
– Bem, você sabe sobre Layla – disse ela com voz rouca.
Ahhhh.
– Sim, sei. Phury me contou.
Enquanto a cabeça dela se posicionava em seu ombro, ele a ajeitou, aninhando-a em seu peito – e isso era bom. Havia vezes – não muitas, mas ocasionais – em que ele se sentia menos macho por conta de sua falta de visão: no passado, um lutador, agora, preso atrás daquela mesa. Um dia livre para ir aonde bem quisesse, agora, dependendo de um navegador canino. Certa vez absolutamente autossuficiente, agora, precisando de ajuda.
Não muito bom para os colhões de um macho.
Mas em momentos como aquele, quando aquela fêmea maravilhosa estava incomodada e o procurava, e somente a ele, para conforto e segurança, ele se sentia mais forte que uma maldita montanha. Afinal, machos vinculados protegiam suas fêmeas com tudo o que tinham, e mesmo com o fardo do seu direito de nascimento e aquele trono em que era obrigado a se sentar, ele, em seu cerne, permanecia o hellren daquela fêmea.
Ela era a sua primeira prioridade, acima inclusive daquela coisa toda de reinado. A sua Beth era o seu coração atrás das costelas, o tutano dentro de seus ossos, a alma em seu corpo físico.
– É tudo tão triste – disse ela. – Tão triste.
– Você foi vê-la?
– Acabei de ir. Ela está descansando. Quero dizer... de certa forma, custo a acreditar que não haja nada a ser feito.
– Falou com a doutora Jane?
– Assim que eles voltaram da clínica.
Enquanto a sua shellan chorava um pouco, o cheiro das lágrimas frescas de sua amada era como uma adaga em seu peito, e ele não estava surpreso com a reação dela. Ouvira dizer que as fêmeas lidavam muito mal com a perda da gravidez de outra fêmea – e como não ser assim? Ele, por certo, conseguia se colocar no lugar de Qhuinn.
E, ah, Deus... a ideia de Beth sofrer daquele modo? Ou pior, de conseguir levar adiante a gestação e depois...
Ótimo. Agora era ele quem tremia.
Wrath abaixou o rosto para os cabelos de Beth, inspirando, acalmando-se. A boa notícia era que eles jamais teriam um filho, portanto, ele não tinha com que se preocupar.
– Eu sinto muito – sussurrou.
– Eu também. Odeio o que eles estão passando.
Bem, na verdade, ele estava se desculpando por outra coisa completamente diferente.
Não que ele quisesse que uma merda daquelas acontecesse com Qhuinn, Layla e o filho deles. Mas talvez se Beth enxergasse a triste realidade, ela se lembraria de todos os riscos que se apresentavam a eles em todas as etapas de uma gestação.
Porra. Aquilo soava horrível. Era horrível. Pelo amor de Deus, ele não queria mesmo nada daquilo para Qhuinn, e tampouco queria ver sua shellan triste. Infelizmente, porém, a triste realidade era que ele não tinha absolutamente interesse algum em plantar sua semente nela daquele jeito – jamais.
E esse tipo de desespero fazia com que um cara pensasse em coisas imperdoáveis.
Numa onda de paranoia, ele calculou mentalmente os anos desde a transição dela – um pouco mais do que dois. Pelo que sabia, as fêmeas vampiras, em média, passavam pelo primeiro cio uns cinco anos após a transformação, e a cada dez anos depois disso. Portanto, eles tinham um bom tempo antes de terem de se preocupar com tudo isso...
Pensando bem, como mestiça, não havia garantias no caso de Beth. Quando os humanos e os vampiros se misturavam, qualquer coisa podia acontecer... E ele tinha motivos para se preocupar. Afinal, ela já mencionara filhos uma ou duas vezes.
Mas, obviamente, aquilo só podia ser hipoteticamente.
– E então, você vai postergar a iniciação de Qhuinn? – ela perguntou.
– Sim. Saxton já atualizou a lei, mas Layla estando assim? Não é o momento de trazê-lo para a Irmandade.
– Foi o que pensei.
Os dois se calaram, e enquanto Wrath guardava aquele momento em seu coração, não conseguiu imaginar sua vida sem ela.
– Sabe de uma coisa? – perguntou.
– O quê? – havia um sorriso na voz dela, do tipo que dizia a ele que ela sabia para onde a conversa estava indo.
– Eu amo você mais do que tudo.
Sua rainha deu uma leve risada, e o afagou no rosto.
– Eu jamais teria imaginado isso.
Inferno, até ele captava a onda de seu odor de vinculação.
Em resposta, Wrath segurou o rosto dela entre as palmas e se inclinou, encontrando seus lábios e depositando um beijo suave, que não permaneceu assim. Caramba, era sempre assim com ela. Qualquer contato e, antes que se desse conta, já estava rígido e pronto.
Deus, não sabia como os homens humanos lidavam com isso. Pelo que entendia, eles tinham de adivinhar se seus pares estavam férteis toda vez que faziam sexo – evidentemente, eles não tinham como captar a alteração nos odores de suas fêmeas.
Ele enlouqueceria. Pelo menos quando uma vampira estava no cio, todos sabiam.
Beth mudou de posição em seu colo, apertando a sua ereção e fazendo-o gemer. E, normalmente, essa era a dica para George ser levado para o outro lado das portas duplas, banido temporariamente. Mas não naquela noite. Por mais que Wrath a desejasse, a tristeza presente na casa aplacava até mesmo a sua libido.
E também havia a questão do cio de Autumn. E de Layla.
Ele não iria mentir; aquela merda o estava deixando ansioso. Sabia-se que hormônios no ar tinham um efeito ricochete numa casa cheia de fêmeas, influenciando umas às outras ao cio, desde que seu período estivesse próximo.
Wrath afagou os cabelos de Beth e voltou a acomodar a cabeça dela em seu ombro.
– Você não quer...
Enquanto ela deixava a frase inacabada, ele pegou a sua mão e a levantou, sentindo o peso do anel de rubi que a rainha da raça sempre usava.
– Só quero abraçar você – disse ele. – Isso basta para mim agora.
Aninhando-se, ela se encaixou ainda mais perto dele.
– Bem, isto também é gostoso.
Sim. Era.
E curiosamente aterrador.
– Wrath?
– Sim?
– Você está bem?
Demorou um pouco para ele confiar na voz e responder:
– Sim, estou bem. Tudo bem.
Ao alisar o braço dela, para cima e para baixo, ele rezou para que ela acreditasse... e jurou que o que acontecia no quarto no fim do corredor nunca, jamais, aconteceria com eles.
Não. Os dois não teriam de lidar com aquele tipo de crise.
Graças à Virgem Escriba.
CAPÍTULO 42
Claro que Layla não estava dormindo.
Quando pediu a Qhuinn que saísse, ela falou sério quanto a não querer sustentar uma fachada de força diante dele. Mas o mais engraçado era que mesmo sem ninguém por perto, ela não ficou histérica. Não chorou. Não praguejou.
Apenas ficou deitada de lado com os braços e as pernas enroscados, a mente recuada para dentro do corpo e monitorando constantemente cada dor e cólica numa compulsão que a enlouquecia. No entanto, não havia como mudar aquilo. Era como se uma parte dela estivesse convencida de que se ao menos ela soubesse em que estágio estava, ela poderia, de algum modo, monitorar o processo.
O que, na verdade, era uma tremenda tolice. Como Qhuinn bem diria.
A imagem dele na clínica, com a adaga no pescoço do médico, era algo saído de um dos livros da biblioteca do Santuário – um episódio dramático que era parte da vida de outra pessoa.
Sua posição na cama, porém, fazia com que ela lembrasse que o caso não era bem esse...
A batida à porta foi suave, sugerindo se tratar de uma fêmea.
Layla fechou os olhos. Por mais que apreciasse qualquer tipo de gentileza que aguardava uma resposta, ela preferiria que quem quer que estivesse no corredor, continuasse lá. A breve visita da rainha fora uma provação, mesmo ela tendo apreciado.
– Sim – quando sua voz mal soou em seus ouvidos, ela pigarreou e repetiu: – Sim?
A porta abriu e, a princípio, ela não reconheceu quem era na sombra que preenchia o espaço entre os batentes da porta. Alta. Forte. Porém, não um macho...
– Payne? – perguntou.
– Posso entrar?
– Sim, claro.
Enquanto Layla tentava se sentar, a fêmea guerreira gesticulou para que ela continuasse deitada, e depois fechou a porta.
– Não, não... por favor, fique à vontade.
Um abajur fora deixado aceso sobre a cômoda e, na luz suave, a irmã de sangue de Vishous da Irmandade da Adaga Negra parecia temerária, com os olhos de diamante parecendo reluzir para fora dos ângulos fortes do rosto dela.
– Como você está? – a fêmea perguntou com suavidade.
– Estou bem, obrigada. E você?
A lutadora deu um passo à frente.
– Eu sinto muito quanto... à sua condição.
Ah, como Layla desejava que aquilo fosse algo que Phury e os outros não tivessem partilhado com ninguém. Em retrospecto, a saída da casa fora um tanto dramática, o tipo de evento que causaria perguntas preocupadas. Ainda assim, sua privacidade preferia evitar esse tipo de invasão indesejável, ainda que misericordiosa.
– Agradeço as suas palavras gentis – sussurrou.
– Posso me sentar?
– Sim, claro.
Ela imaginou que a fêmea fosse se sentar numa das cadeiras dispostas mais ao longe. Não foi o que Payne fez. Ela se aproximou da cama e abaixou o peso ao lado de Layla.
Compelida a, pelo menos, parecer uma boa anfitriã, Layla tentou se suspender, fazendo uma careta quando uma nova onda de cólicas a imobilizou no meio do caminho.
Enquanto Payne praguejava baixinho, Layla teve que voltar a se deitar. Com voz rouca, disse:
– Perdoe-me, mas não posso receber visitas agora, por mais que me queira bem. Obrigada por expressar a sua empatia...
– Você sabe quem é a minha mãe – Payne a interrompeu.
Layla balançou a cabeça ao encontro do travesseiro.
– Por favor, saia...
– Sabe? – a fêmea perguntou com rispidez.
Abruptamente, Layla quis chorar. Simplesmente não tinha forças para qualquer tipo de conversa, ainda mais a respeito de mahmens. Não enquanto perdia o filho.
– Por favor.
– Sou filha da Virgem Escriba.
Layla franziu o cenho, as palavras sendo compreendidas mesmo em meio à dor, tanto física quanto mental.
– O que disse?
Payne inspirou profundamente, como se a revelação não fosse algo com que se alegrasse, mas como se fosse um tipo de maldição.
– Sou da carne da Virgem Escriba, nascida há muito tempo, e ocultada dos registros das Escolhidas e dos olhos de outrem.
Layla piscou em estado de choque. A aparição da fêmea fora um tipo de mistério, mas ela certamente não fizera nenhuma pergunta, pois isso não cabia a ela. A única coisa que sabia com convicção é que jamais houve registro algum da mãe sagrada da raça um dia ter dado à luz uma criança.
Na verdade, a estrutura completa do sistema de crença era prevista no fato de isso não ter ocorrido.
– Como isso é possível? – arfou Layla.
Os olhos brilhantes de Payne estavam sérios.
– Não era o que eu desejaria. E não é algo de que fale a respeito.
No momento tenso que se seguiu, Layla considerou impossível não ver a verdade naquilo que a fêmea falava. Tampouco a raiva, cuja causa ela apenas podia supor.
– Você é sagrada – disse Layla maravilhada.
– Nem um pouco, eu lhe garanto. Mas minha linhagem me concedeu um tipo de... como posso explicar? Habilidade.
Layla se enrijeceu.
– Que seria...?
Os olhos de diamante de Payne não se desviaram.
– Quero ajudá-la.
As mãos de Layla foram para o baixo ventre.
– Se quer abreviar isto... não.
Ela tinha seu filho por um tempo curto demais. Não importava a dor que tivesse que passar, ela não sacrificaria um minuto sequer daquilo que, sem dúvida, seria sua única gestação.
Ela jamais se colocaria à mercê de outro sofrimento assim. No futuro, quando seu cio chegasse, ela seria sedada e pronto.
Aquele tipo de perda uma vez na vida já era demais.
– E se acredita que pode deter isto – Layla continuou –, isso não é possível. Não há nada que ninguém possa fazer.
– Não estou tão certa disso – o olhar de Payne era enlevado. – Eu gostaria de ver se posso salvar esta gestação. Se me permitir.
No campus abandonado da Escola para Moças Brownswick, o Sr. C. se acomodou no que um dia fora o escritório da diretora.
Era o que estava escrito na placa rachada do lado de fora da sala.
Como não havia calefação, a temperatura ambiente não estava muito maior do que a do lado de fora, mas graças ao sangue de Ômega, o frio não era um problema. Ainda bem: do outro lado do gramado crescido coberto de neve, no dormitório principal sobre uma colina, quase cinquenta redutores dormiam o sono dos mortos.
Se aqueles malditos necessitassem de aquecimento ou de comida, ele estaria sem sorte alguma.
Mas não, tudo o que ele tinha de fazer era providenciar um abrigo. A iniciação cuidaria do resto – e o fato de que precisavam desligar a consciência a cada 24 horas era um alívio.
Ele precisava de tempo para pensar.
Jesus Cristo, que confusão.
Compelido pela necessidade de se mexer, ele empurrou a cadeira para trás e se lembrou de que estava se sentando sobre um balde de argamassa virado ao contrário.
– Maldição.
Olhando ao redor da sala decrépita, ele mediu as placas de gesso penduradas das vigas do teto, as janelas cobertas por tábuas de madeira, e o buraco em uma das tábuas do piso no canto. O lugar era igual à conta bancária que ele encontrara.
Nenhum dinheiro em lugar algum. Munição zero. Armas que podiam ser usadas em combate à força, e só.
Depois de sua promoção, ele se viu cheio de energia, de planos. Agora encontrava-se diante de nenhum dinheiro, nenhum recurso, nada.
Ômega, por outro lado, esperava todo tipo de resultado. Como deixara bem claro no “encontro” deles na noite anterior.
E também havia outro problema. Ele odiava aquela merda.
Pelo menos ele podia fazer algo a respeito de todo o resto.
Esticando os braços acima da cabeça e estalando os ombros, agradeceu a Deus por duas coisas: uma, os celulares não tinham sido desligados, por isso ele podia se comunicar com seus homens no campo de batalha. E dois, todos aqueles anos na rua lhe deram os punhos de ferro no que se referia a controlar o bando de idiotas do tráfico de drogas.
Tinha de arranjar dinheiro. Logo.
Ele teve uma porra de um plano para isso também, mandando os últimos nove mil dólares com aqueles três garotos no meio da noite. Tudo o que os malditos tinham de fazer era pagar, pegar a droga e trazer para ali, onde dividiriam a merda, depois distribuiriam entre os novos recrutas para que eles vendessem nas ruas.
O problema era que ele ainda estava esperando pela porra da entrega.
E estava ficando puto de tanto esperar para descobrir se as drogas e o dinheiro tinham sumido.
Era bem possível que aqueles merdinhas tivessem fugido com um ou com o outro, mas, nesse caso, ele os caçaria como cachorros para mostrar aos outros o que acontecia quando você...
Quando seu celular tocou, ele o pegou, viu quem era e apertou o botão de chamada.
– Já era hora. Onde diabos você está e cadê minha mercadoria?
Houve uma pausa. Depois, a voz que se ouviu pela conexão não era nada parecida com a do traficante cheio de espinhas para quem ele entregara o celular e a última pistola da Sociedade que funcionava.
– Tenho uma coisa que você quer.
O Sr. C. franziu a testa. Voz grave. Envolta numa impaciência que ele reconhecia das ruas, e um sotaque que ele não sabia de onde vinha.
– Não é essa merda com a qual você está falando comigo – disse o Sr. C. com fala arrastada. – Tenho um monte desses.
Afinal de contas, quando você não tem nada na mão, no coldre ou na carteira, blefar era a sua única opção.
– Ora, que bom para você. Também tem muito do que me mandou? Dinheiro? Soldados?
– Quem diabos está falando?
– Sou seu inimigo.
– Se você ficou com a porra da minha grana, pode apostar que sim.
– Na verdade, essa é uma resposta bem simplista para um problema um tanto complexo.
O Sr. C. se pôs de pé, derrubando o balde.
– Onde está a porra do meu dinheiro e o que fez com os meus homens?
– Lamento, mas eles não podem mais atender ao telefone. É por isso que estou ligando.
– Você não faz ideia com quem está lidando – o Sr. C. ameaçou.
– Pelo contrário, é você quem está em desvantagem, bem como tantos outros – quando o Sr. C. estava pronto para rebater, o cara o interrompeu. – Eis o que vamos fazer. Vou telefonar à noite para lhe dar uma localização. Você, e apenas você, vai me encontrar lá. Se alguém o acompanhar, eu saberei, e você nunca mais vai saber de mim.
O Sr. C. estava acostumado a sentir desdém pelos outros, isso era parte do trabalho uma vez que você só lida com ladrões de merda e malditos viciados. Mas esse cara do outro lado da conexão? Controlado. Calmo.
Um profissional.
O Sr. C. controlou seu humor.
– Não preciso de nenhum joguinho...
– Sim, precisa. Porque se você quiser drogas para vender, terá que vir a mim.
O Sr. C. ficou calado. Ou aquele era um lunático cheio de ilusões de grandeza ou... era alguém com poder de verdade. Talvez o tipo que matou os intermediários do cartel de drogas em Caldwell um ano antes.
– Quando e onde? – disse de má vontade.
Houve uma risada sombria.
– Atenda o seu telefone ao cair da noite e você descobrirá.
CAPÍTULO 43
Layla não conseguiu falar enquanto tentava compreender as palavras de Payne.
– Não – disse à outra fêmea. – Não, Havers me disse que... não havia nada que pudesse ser feito.
– Na medicina, isso pode ser verdade. Eu posso ter outro modo, porém. Não sei se funcionará, mas, se permitir, eu gostaria de ver o que posso fazer.
Por um instante, Layla só conseguiu respirar.
– Eu não... – pôs a mão no abdômen liso. – O que fará comigo?
– Não sei bem, para ser sincera – Payne deu de ombros. – Na verdade, nem me passou pela cabeça que eu poderia ajudar nesta situação. Mas sou conhecida por curar aquilo que precisa ser curado. Repito, não sei se isso se aplica neste caso. Contudo, podemos tentar... e isso não a machucará. Isso eu posso prometer.
Layla perscrutou a expressão da lutadora.
– Por que... faria uma coisa dessas por mim?
Payne franziu o cenho e desviou o olhar.
– Você não precisa saber os motivos.
– Sim, preciso.
O perfil dela se tornou absolutamente frio.
– Você e eu somos irmãs da tirania de minha mãe, casualidades de seu plano maior de como as coisas devem ser. Estivemos as duas enjauladas em seus modos diversos, você como uma Escolhida; eu, como sua filha de sangue. Não há nada que eu não faça para ajudá-la.
Layla se recostou. Jamais se considerara uma desventura da mãe da raça. A não ser... ao pensar em seu desespero em ter uma família, seu senso de não ter raízes, sua absoluta falta de identidade além do trabalho de uma Escolhida... ela teve o que pensar. O livre-arbítrio a levava àquela situação horrenda, mas, pelo menos, ela escolhera a rota e os meios. Como membro da classe especial da Virgem Escriba, não tivera muitas escolhas, a respeito de nada em sua vida.
A respeito de nada mesmo.
Ela estava perdendo aquela gravidez, aquilo era óbvio. E se Payne achava que existia uma chance de...
– Faça o que precisar fazer – disse com voz rouca. – E obrigada, não importando o resultado.
Payne assentiu uma vez. Depois esticou as mãos, flexionando e afastando os dedos.
– Posso tocar no seu abdômen?
Layla abaixou as cobertas.
– Devo tirar a camisa?
– Não.
Melhor assim. A simples retirada da colcha lhe provocara uma nova onda de dor, a mínima mudança de peso era causa de...
– Você está sofrendo muito – murmurou a outra fêmea.
Layla não respondeu ao expor a pele do abdômen. Obviamente, sua expressão já dizia o bastante.
– Apenas relaxe. Isso não deverá lhe causar nenhum desconforto...
Quando o contato foi feito, Layla levantou a cabeça. As mãos da lutadora estavam quentes como a água de uma banheira. E igualmente calmas. Estranhamente calmas, para falar a verdade.
– Isto dói? – Payne perguntou.
– Não. Parece... – quando uma nova onda de dor se avolumava, ela agarrou os lençóis, se preparando...
Só que o pico da dor não se elevou como antes, como se a sensação fosse uma montanha íngreme, cujo topo fora arrancado.
Era o primeiro alívio que sentia desde que tudo aquilo começara.
Com um gemido de submissão, ela deixou a cabeça pender, o travesseiro amparando o repentino cansaço que a abateu pelo tanto de desconforto pelo qual seu corpo passara.
– E agora nós começamos.
De repente, a luz do abajur tremulou... e depois se apagou.
Sua iluminação, contudo, logo foi substituída.
Das mãos pálidas de Payne um brilho suave começou a ser lançado. O calor de seu toque se intensificou, o abrandamento estranho e maravilhoso parecia penetrar em sua pele, nos músculos, em cada osso que estava no caminho... indo direto para o ventre de Layla.
E, então, houve um tipo de explosão.
Com um sibilo, ela se entregou à grande onda de energia que abruptamente surgiu dentro dela, um calor que não queimava, mas fervia afastando a dor, suspendendo a agonia e arrancando-a de sua carne, como se o vapor de uma panela se dissipasse.
Mas não acabou ali. Uma grande sensação de euforia em seu corpo inteiro, com cachos dourados pulsando para fora de sua região pélvica e fluindo pelo torso até a mente e também em sua alma, e pernas e braços formigando.
Ah, que alívio pungente.
Ah, que poder incrível.
Ah, graça salvadora gentil.
A cura, contudo, não estava completa.
No meio do turbilhão, Layla sentiu... o que era aquilo? Um movimento em seu útero. Uma contração, talvez? Mas não uma cólica, não, nada disso. Mais como se o que estivesse defasado tivesse recuperado as forças.
Ela, gradualmente, deu-se conta de que batia os dentes.
Olhando para baixo, para seu corpo, ela viu que tudo tremia, e não só isso.
Sua forma física estava brilhando. Cada centímetro de sua pele era como uma cúpula de um abajur, revelando a luz que jazia por baixo, as roupas agindo como barreiras frágeis daquilo que fervia lentamente dentro dela.
Na iluminação, o rosto de Payne estava contraído, como se fosse um custo alto transferir a cura maravilhosa para outra pessoa. E Layla teria se distanciado, colocado um fim naquilo, se pudesse – porque a outra fêmea começava a parecer muito cansada. No entanto, não havia como romper a ligação. Ela não tinha o controle dos seus membros, não tinha como falar.
Aquela comunhão vital entre as duas pareceu durar uma eternidade.
Quando Payne finalmente se afastou, rompendo o elo, ela caiu da cama, formando uma pilha no chão.
Layla abriu a boca para gritar. Tentou segurar sua salvadora. Lutou contra o peso morto do corpo ainda iluminado.
Todavia, não havia nada que ela pudesse fazer.
A última coisa que ficou registrada antes que perdesse a consciência era a sua preocupação com a outra fêmea. E, depois, tudo ficou escuro.
CAPÍTULO 44
Qhuinn despertou com o pênis duro.
Estava deitado de costas e seus quadris se mexiam por conta própria, o movimento contínuo resvalava a ereção contra o peso dos lençóis e da colcha. Por um instante, enquanto se demorava naquele estado meio dormente antes de a consciência chegar, ele imaginou que era Blay criando aquela fricção, as palmas do macho subindo e descendo... num preâmbulo de mais ação oral.
Foi quando abaixou a mão para enterrar os dedos nos cabelos ruivos que percebeu estar sozinho: a mão encontrou apenas os lençóis.
Numa atitude otimista, lançou o braço para o lado, tateando o lugar ao seu lado, pronto para encontrar o corpo quente do macho.
Apenas mais lençóis. E estavam frios.
– Cacete – inspirou.
Abrindo os olhos, a realidade de onde estava o atingiu com força, murchando a sua ereção. Apesar dos encontros, aqueles dois interlúdios maravilhosos e extremamente sensuais, Blay estava, naquele exato instante, acordando ao lado de Saxton.
Provavelmente fazendo sexo com o cara.
Ah, Deus, ele ia vomitar.
A ideia de Blay tocando em outro, cavalgando em outro, lambendo e afagando outro – seu maldito primo, para ser bem claro – era quase tão insuportável quanto a maldita situação de Layla. A verdade era que, graças ao que acontecera, qualquer atração que Qhuinn sentisse pelo cara aumentara em vez de diminuir.
Maravilha. Outra rodada de boas notícias.
Foi sem nenhum entusiasmo que Qhuinn se arrastou para fora da cama e entrou no banheiro. Não acendeu a luz, não tinha interesse algum em ver que sua aparência era a mesma da merda de um cachorro, mas barbear-se só pelo toque não era a melhor das ideias.
Ao apertar o interruptor, piscou com força, e uma dor de cabeça começou a latejar atrás de ambos os olhos. Sem dúvida precisava comer de novo, mas que merda, as exigências constantes de seu corpo estavam acabando com ele.
Abrindo a torneira, ele pegou o gel de barbear e colocou um punhado na palma. Esfregou as mãos para criar espuma e pensou em seu primo. Ele tinha a impressão, embora não soubesse com certeza, de que Saxton usaria um daqueles pincéis antigos para espalhar a espuma no rosto. E nada de lâminas Gilette para ele. Muito provavelmente ele tinha um daqueles instrumentos de barbeiro com cabo em madrepérola.
O pai de Qhuinn tinha um desses. E seu irmão recebera um com suas iniciais após sua transição.
Junto ao anel de sinete.
Bem, ótimo para eles. Além do que, já que ambos estavam mortos, não era como eles continuassem se barbeando.
Quando o rosto ficou coberto de branco, como o cenário lá de fora, ele pegou sua lâmina comum Mach 3 com cabeça descartável...
Sem nem saber por que, achou que devia pegar uma lâmina nova.
Sim, uma supernova e ultracortante.
Qhuinn revirou os olhos para si mesmo. Nada como se concentrar em três pequenas lâminas e uma tira umidificadora. Algo bem lógico.
Depois de se admoestar, ele começou a vasculhar as gavetas do gabinete, puxando-as uma a uma, inventariando os itens de tolices de higiene que nunca usava, nem jamais sequer perdia tempo olhando-as.
Puxando a última, a mais próxima do chão, parou. Franziu o cenho. Agachou.
Havia uma caixinha preta de veludo ali, do tipo em que se colocam joias. Só que ele não tinha nenhuma, e muito menos da Reinhardt, aquela loja esnobe no centro. Como ninguém mais ficava em seu quarto, ele se perguntou se, talvez, aquilo estivesse ali desde que ele se mudara e ele simplesmente nunca o vira.
Tirando a caixinha, levantou a tampa e...
– Filho da mãe.
Dentro, como se valesse muita coisa, estavam todos os seus brincos de argola, bem como o piercing que costumava usar no lábio inferior.
Fritz deve tê-los juntado ao limpar o quarto uma noite e guardado na caixinha. Única explicação possível, porque Qhuinn não se importara com eles depois de tirá-los, um a um. Simplesmente os jogara no fundo de uma das gavetas do banheiro.
Qhuinn mexeu nas argolas de aço, relembrando quando as comprara e colocara. Seu pai ficara mortificado; a mãe também – ao ponto de se retirar da Última Refeição e ficar trancada no quarto por 24 horas seguidas depois de ele entrar flanando na sala de jantar usando-as.
O colocador de piercings lhe dissera para não usá-los até que as tachas utilizadas para perfurar tivessem a chance de cicatrizar. Mas esse conselho era para humanos. Em poucas horas, estava tudo perfeito e ele fizera a troca.
No banheiro de Blay, para falar a verdade.
Qhuinn franziu a testa, lembrando-se do momento em que pisara no quarto do cara. Blay estava na cama, acalentando uma Corona, assistindo TV. A cabeça dele se virou, com sua expressão franca e relaxada... até dar uma olhada em Qhuinn.
Seu rosto se contraiu mesmo que minimamente. De um jeito que, a menos que você conhecesse bem, muito bem uma pessoa, jamais teria percebido. Mas Qhuinn notara.
Naquela época, deduzira que seu estilo obviamente gótico fosse um tantinho demais para o senhor Conservador. Mas agora, em retrospecto, ele se lembrou de algo mais. Blay voltara a se concentrar na TV de plasma... e, casualmente, cobrira o colo com uma almofada.
Ele deve ter ficado excitado.
Enquanto Qhuinn repassava a cena inteira na mente, seu próprio sexo voltava a engrossar.
Só que aquilo era uma completa perda de tempo, não era?
Fitando as malditas argolas, pensou em sua rebeldia, na raiva e na ideia sem noção do que precisava ter para ser feliz.
Uma fêmea. Se encontrasse uma que o aceitasse.
Que... mentira... fora aquilo.
Engraçado, a covardia aparecia em muitas formas, não é? Não era necessário se encolher num canto, tremendo e choramingando como um gatinho. Inferno, não. Você pode ser um grandalhão barulhento cheio de marra e com o rosto cheio de piercings e um rosnado para mostrar para o mundo... e ainda assim não passar de um covarde filho da puta. Afinal, Saxton podia vestir ternos de três peças e gravatas e sapatos, mas o macho sabia quem era, e não tinha medo de ter aquilo que desejava.
E, olha só, Blay estava acordando ao lado do cara.
Qhuinn fechou a tampa e recolocou os piercings onde os encontrara. Depois se olhou no espelho. O que estava fazendo mesmo?, pensou ao fitar seu reflexo.
Ah, sim. Barbeando-se.
Era isso mesmo.
Cerca de vinte minutos mais tarde, Qhuinn saiu do quarto. Andou pelo corredor das estátuas, passou pelas portas fechadas do escritório de Wrath e continuou em frente.
Enquanto avançava, foi difícil olhar para a sala de estar do segundo andar, difícil permanecer controlado quando aquele sofá surgiu no seu campo de visão.
Nunca mais olharia para aquela peça de mobília do mesmo modo. Inferno, talvez todos os sofás estivessem perdidos para ele, para sempre.
À porta de Layla, ele se inclinou encostando o ouvido na madeira. Quando não ouviu nada, perguntou-se exatamente o que achava que descobriria daquele modo.
Deu uma batida suave. Quando não houve resposta, sentiu um aperto de medo irracional na garganta e, sem pensar duas vezes, abriu a porta.
A luz invadiu a escuridão.
Seu primeiro pensamento foi que ela tivesse morrido; que Havers, o filho da puta, tivesse mentido, e que o aborto tivesse saído do controle e a matado: Layla estava imóvel ao encontro dos travesseiros, a boca ligeiramente entreaberta, as mãos cruzadas sobre o peito como se ela tivesse sido arrumada por um agente funerário com respeito pelos mortos.
Só que... algo estava diferente, e ele precisou de um minuto para perceber o que era.
Não havia mais o cheiro sobrepujante do sangue. Na realidade, somente a fragrância delicada de canela marcava o ar, refrescando-o de um modo que iluminava o quarto inteiro.
Será que o aborto finalmente chegara ao fim?
– Layla? – ele a chamou, mesmo tendo dito que se a encontrasse dormindo, não a perturbaria.
Foi um alívio ver as sobrancelhas se mexendo quando seu nome foi captado pelo cérebro, mesmo sob o véu do sono.
Ele teve a sensação de que se a chamasse de novo, ela acordaria.
Parecia cruel forçar-lhe a consciência. O que ela teria para recebê-la quando acordasse? A dor que sentia? A sensação de perda?
Cacete.
Qhuinn saiu silenciosamente, fechou a porta atrás de si e continuou ali. Não sabia o que fazer. Wrath lhe dissera para ficar em casa, mesmo se John Matthew saísse – ele deduziu que aquilo fosse uma espécie de folga misericordiosa de seus deveres de ahstrux nohtrum. E estava grato por isso. Havia tão pouco que pudesse fazer por Layla – pelo menos podia ficar por perto caso ela precisasse de alguma coisa. Um refrigerante. Uma aspirina. Um ombro para chorar.
Você fez isso a ela.
A julgar pelo toque que saía da maldita sala de estar, ele deduziu que perdera a Primeira Refeição. Nove horas. Isso mesmo. Acabara dormindo demais, e isso era bom. Se ele tivesse de se sentar à mesa e passar 45 minutos na companhia de quase duas dúzias de pessoas que tentariam não encará-lo, ele teria perdido a porra da cabeça.
O som de alguém andando no vestíbulo logo abaixo fez com que ele levantasse a cabeça.
Sem nenhum plano ou pensamento específico, ele se aproximou da balaustrada e olhou para baixo.
Payne, a irmã valentona de V., estava saindo da sala de jantar.
Ele não conhecia muito bem aquela fêmea, mas a respeitava imensamente. Seria impossível não admirar, dado o modo como se portava no campo de batalha... Durona, verdadeiramente durona. Naquele instante, porém, a shellan do doutor Manello parecia ter levado uma surra de bar: caminhava lentamente, os pés se arrastando pelo piso de mosaico, o corpo encurvado, a pegada no braço de seu par parecendo ser a única coisa que a sustentava.
Será que ela se machucara em alguma luta corpo a corpo?
Não havia cheiro de sangue.
O doutor Manello disse algo para ela que ele não conseguiu ouvir, mas depois o cara indicou a direção da sala de bilhar com a cabeça – como se ele estivesse perguntando se ela queria ir para lá.
Tomaram aquela direção a passos de caramujo.
Já que não gostava quando as pessoas o encaravam, Qhuinn recuou da grade e esperou até que o caminho estivesse livre. Depois correu escada abaixo.
Comida. Exercícios. Voltar a ver Layla.
Aquela seria a sua noite.
Seguindo para a cozinha, ele se viu imaginando onde Blay estaria. O que estaria fazendo. Se tinha saído para lutar ou se tinha ficado em casa e...
Visto que não sabia onde Saxton estava, ele pôs um ponto final naquela linha de questionamentos.
Se Qhuinn não tivesse de fazer seu turno e pudesse passar um tempo com o cara, ele sabia muito bem o que Blay estaria fazendo.
E Saxton, seu primo filho da puta, não era nenhum tolo.
CONTINUA
CAPÍTULO 37
Enquanto Blay girava o anel de sinete da família no dedo, seu cigarro aceso queimava lentamente na outra mão, e seu traseiro ficava adormecido... e ninguém passava pelas portas do átrio.
Sentado no degrau de baixo da grande escadaria da mansão, ele não respeitaria a promessa feita à mãe de ir para casa. Não naquela noite, pelo menos. Depois da loucura da noite anterior, do pouso forçado do avião e do drama subsequente, Wrath ordenara que a Irmandade e os lutadores tirassem 24 horas de folga. Por isso, tecnicamente, ele deveria ligar para os pais e dizer à mãe que caprichasse na mussarela e no molho à bolonhesa.
Mas de jeito nenhum ele sairia daquela casa. Não depois de ouvir os gritos vindos do quarto de Layla, e de vê-la praticamente sendo carregada escadaria abaixo.
Naturalmente, Qhuinn esteve ao lado dela.
John Matthew não.
Portanto, o quer que estivesse acontecendo, pelo visto superava o ahstrux nohtrum, e isso significava que... ela só podia estar perdendo o filho. Somente algo sério assim possibilitaria um passe livre.
Enquanto ele continuava parado como uma porta, sem nada além da sua preocupação para lhe fazer companhia, naturalmente sua mente resolveu seguir o caminho errado: merda, fora mesmo para a cama com Qhuinn na noite passada?
Dando uma tragada em seu Dunhill, ele expeliu uma imprecação.
Acontecera mesmo?
Deus, essa pergunta vinha martelando a sua cabeça desde o minuto em que despertou de um sonho sensual, com uma ereção que parecia fazer pensar que o outro macho dormia ao seu lado.
Revendo as cenas pela centésima vez, só no que ele conseguia pensar era... como um plano podia fracassar. Depois de ter rejeitado Qhuinn quando ele se pôs de joelhos, voltara para o próprio quarto e andara de um lado para o outro, um debate que não interessava ter consigo mesmo transformando seu cérebro em fois gras.
Ele tomara a decisão correta ao sair. Mesmo. Tinha sim.
O problema foi que a decisão não se sustentou. Enquanto as horas do dia passavam, tudo o que ele conseguia pensar foi a vez em que o pai o flagrou roubando uma caixa de cigarros do doggen da família. Na época, ele era um jovem pré-trans e, como castigo, seu pai o obrigou a se sentar do lado de fora e fumar cada um daqueles Camels sem filtro. Ele se sentiu muito mal e demorou mais de dois anos para sequer tolerar fumo passivo.
Portanto, esse fora o seu segundo plano.
Fazia tempo demais que era louco por Qhuinn, mas tudo não passava de algo hipotético, dividido em fantasias de modo que ele conseguisse suportar. Nada de uma vez só, nada da coisa sobrecarregada, absoluta e arrasadora – e ele sabia muito bem que na vida real, Qhuinn não se conteria nem relaxaria. O “plano” fora ter a experiência concreta, e descobrir que aquilo não passava de apenas sexo brutal. Ou, inferno, descobrir que não era nem sexo bom.
Não era de se esperar que você fumasse um maço inteiro de cigarros... só para querer mais.
Deus todo-poderoso, foi a primeira vez em que a realidade foi muito melhor do que uma fantasia, a absolutamente melhor experiência erótica de toda a sua vida.
Depois, porém, a gentileza que Qhuinn demonstrara fora insuportável.
Na verdade, enquanto Blay rememorava aquela ternura, ele deu um salto de onde estava e começou a marchar ao redor do mosaico de macieira – não tinha para onde ir.
Naquele instante a porta se abriu. Porém, não a de entrada.
A da biblioteca.
Enquanto olhava de relance por sobre o ombro, Saxton surgiu de lá. Ele parecia saído do inferno, e não só porque, por mais veloz que fosse a sua recuperação, ele ainda tinha um inchaço residual na mandíbula graças ao ataque de Qhuinn.
Que lindo, Blay pensou. Bela maneira de expressar seu desapontamento quanto ao comportamento de alguém: deixe-o transar com você depois que ele tentou estrangular seu ex.
Quaaanta classe.
– Como você está? – Blay perguntou, e não por convenção social.
Foi um alívio Saxton se aproximar. E encará-lo. E sorrir-lhe um pouco como se estivesse determinado a fazer um esforço.
– Estou exausto. E faminto. E agitado.
– Gostaria de comer comigo? – sugeriu Blay num rompante. – Também estou me sentindo assim, e a única coisa em que posso dar jeito é a fome.
Saxton assentiu com a cabeça e enfiou as mãos nos bolsos da calça.
– Ideia brilhante.
Os dois acabaram na cozinha, sentados ante a castigada mesa de carvalho, lado a lado, de frente para o resto do cômodo. Com um sorriso contente, Fritz imediatamente passou para o seu modo “provedor de alimentos” e, veja só, dez minutos mais tarde, o mordomo servia uma tigela de cozido de carne para cada um, além de uma baguete para dividirem, uma garrafa de vinho tinto e uma porção de manteiga num pratinho ao lado.
– Volto em seguida, meus senhores – disse o mordomo com uma reverência. E depois ele prosseguiu expulsando todos da cozinha, desde o doggen que descascava legumes até os que poliam a prataria e os que limpavam as janelas de uma alcova logo além dali.
Quando a porta se fechou após a saída do último criado, Saxton disse:
– Tudo o que nos falta é uma vela, aí isto seria um encontro – o macho se inclinou para a frente e começou a comer com modos impecáveis. – Bem, suponho que precisaríamos de mais algumas coisas, não?
Blay olhou de esguelha enquanto apagava o cigarro. Mesmo com as olheiras e o hematoma desvanecendo no pescoço, o advogado era muito bonito de se olhar.
Por que ele não poderia simplesmente...
– Não repita, de novo, que sente muito – Saxton limpou a boca com o guardanapo e sorriu. – Não é necessário, nem apropriado.
Assim, sentado ao lado dele, não parecia que tinham acabado de romper, nem que ele estivera com Qhuinn. Será que as últimas noites aconteceram mesmo?
Até parece... O que ocorreu com Qhuinn não teria acontecido se ele e Sax ainda estivessem juntos. Isso era bem claro para ele: uma coisa era se masturbar secretamente, e isso já era ruim o bastante. Aquilo tudo? De jeito nenhum.
Droga, apesar do fato de ele e Saxton terem rompido, ele ainda sentia que devia confessar sua transgressão... mesmo que Qhuinn estivesse certo e que Saxton já tivesse seguido em frente, por assim dizer.
Enquanto comiam em silêncio, Blay balançou a cabeça, ainda que não tivessem lhe feito nenhuma pergunta e nem estivessem conversando. Ele só não sabia o que fazer. Às vezes, as mudanças da vida surgiam com tanta rapidez, e com tamanha impetuosidade, que não havia como acompanhar a realidade. Levava tempo para as coisas se assentarem, um novo equilíbrio se reestabelecia só depois de algum tempo em que seu cérebro batia de um lado contra o outro das paredes da sua cabeça.
Ele ainda estava na fase de balançar.
– Já sentiu alguma vez como se as horas fossem medidas em anos? – perguntou Saxton.
– Ou décadas. Sim. Absolutamente – Blay olhou de novo. – Na verdade, eu também estava pensando nisso.
– Que par de mórbidos nós somos.
– Talvez devêssemos vestir preto.
– Braçadeiras? – sugeriu Saxton.
– Não, preto dos pés à cabeça.
– E o que eu faço com o meu gosto por cores? – Saxton apontou para o lenço laranja Hermès no bolso da sua lapela. – Bem, pode-se muito bem usar todo tipo de acessórios.
– Certamente isso explica a teoria por trás dos aparelhos ortodônticos.
– Flamingos de plástico rosa.
– A franquia da Hello Kitty.
Juntos, os dois explodiram numa gargalhada. Nem era assim tão engraçado, mas o humor não era a questão ali. Mas quebrar o gelo. Voltar ao que era antes. Aprender a se relacionarem de um modo diverso.
Quando convergiram para um riso mais contido, Blay passou o braço ao redor dos ombros do macho e lhe deu um abraço rápido. Foi bom que Saxton tivesse relaxado um pouco, aceitando aquilo que lhe era oferecido. Não que Blay acreditasse que por estarem sentados juntos, partilhando uma refeição e uma bela risada, tudo, de repente, seria um navegar suave. Nada disso. Era estranho pensar que Saxton estivera com outra pessoa, e ainda mais incrível saber que ele fizera o mesmo – principalmente com quem o fizera.
Não se passava de amantes de quase um ano para companheiros de risadas em um ou dois dias.
Podia-se, porém, começar a forjar um novo caminho.
E colocar um pé na frente do outro.
Sempre haveria um lugar em seu coração para Saxton. O relacionamento que tiveram foi o seu primeiro não só com um macho, mas com qualquer um. E muitas coisas boas aconteceram, coisas que ele carregaria consigo como lembranças que valiam o espaço em sua mente.
– Deu uma olhada nos jardins de trás? – Saxton perguntou ao lhe oferecer o pão.
Blay partiu um pedaço e depois espalhou manteiga por cima enquanto Saxton também pegava um pouco.
– Estão bem ruins, não?
– Lembre-me de nunca tentar cortar grama com um Cessna.
– Você não curte jardinagem.
– Bem, para o caso de um dia eu tentar – Saxton se serviu de vinho. – Aceita?
– Sim, por favor.
E foi assim que as coisas aconteceram. Durante o cozido de carne até a torta de pêssegos, que milagrosamente apareceu diante deles graças à impecabilidade de Fritz. Quando a última garfada e a última limpada com guardanapo foram dadas, Blay se reclinou contra o encosto acolchoado do banco embutido e inspirou fundo.
Que se referia a muito mais do que uma simples barriga cheia.
– Bem – disse Saxton, ao apoiar o guardanapo ao lado do prato de sobremesa –, acredito que finalmente vou poder tomar o banho de banheira que você me sugeriu há algumas noites.
Blay abriu a boca para observar que os sais de banho que o macho preferia ainda estavam em seu banheiro. Ele os vira no gabinete quando fora pegar o creme de barbear reserva ao cair da noite.
Só que... ele não sabia se devia mencionar isso. E se Saxton pensasse que ele estava lhe pedindo para ir à sua banheira? Seria um lembrete muito grande de como as coisas tinham mudado e do por quê? E se...
– Tenho esse novo tratamento à base de óleos que estou morrendo de vontade de experimentar – explicou Saxton ao deslizar pelo banco. – Ele finalmente chegou do exterior hoje. Faz séculos que espero por ele.
– Parece maravilhoso.
– Mal posso esperar – Saxton ajustou o paletó nos ombros, ajeitou os punhos e depois acenou com a mão, saindo sem nenhum indício de complicações ou de tensão em seu rosto.
O que, de fato, ajudava muito.
Dobrando o próprio guardanapo, deixou-o de lado, e saiu de trás da mesa, esticando os braços acima da cabeça e curvando-se para trás, estalando muito bem a coluna.
A sua tensão voltou no segundo em que pisou no átrio novamente.
Que diabos estava acontecendo com Layla?
Maldição, ele nem podia ligar para Qhuinn. Aquele drama não era seu, nem estava ligado a ele de modo algum. Quando se tratava de uma gestação, ele não era diferente de nenhum outro macho daquela casa que também ouvira ou vira o show e, sem dúvida, estava tão preocupado quanto ele. Mas também não tinha direito a nenhuma notícia antecipada.
Uma pena que sua barriga, agora cheia, não concordasse com isso. Pensar em Qhuinn perdendo o filho o fez considerar seriamente a localização do banheiro mais próximo da porta de entrada, só para o caso de uma evacuação rápida ser ordenada pelo fundo da sua garganta.
No fim, ele se viu subindo para a sala de estar do segundo andar. Daquele lugar, ele não teria dificuldade em ouvir a porta da frente, e não estaria esperando abertamente...
As portas do escritório de Wrath se abriram, e John Matthew emergiu do santuário do Rei.
Imediatamente, Blay atravessou a sala de espera, pronto para ver se, talvez, o cara sabia de alguma coisa, mas se conteve ante a expressão de John.
Perdido em pensamentos. Como se tivesse recebido notícias pessoais do tipo perturbador.
Blay ficou para trás enquanto o camarada seguia no caminho contrário, na direção do corredor das estátuas, sem dúvida para desaparecer no próprio quarto.
Parecia que as coisas não andavam bem nas vidas dos outros também.
Maravilha.
Com uma imprecação baixa, Blay deixou o amigo em paz e voltou a caminhar e... a esperar.
Muito mais ao sul, na cidade de West Point, Sola estava pronta para entrar no segundo andar da casa de Ricardo Benloise, através da janela ao fim do corredor principal. Fazia meses desde que estivera lá dentro, mas ela contava com o fato de que seu contato na segurança por ela cuidadosamente manipulado ainda fosse o seu amigo.
Havia dois fatores-chave para invadir com sucesso qualquer casa, prédio, hotel ou instalação: planejamento e velocidade.
Ela possuía os dois.
Pendurada no cabo que lançara no telhado, ela tirou um instrumento de dentro do bolso da parca, segurando-o no canto direito da janela dupla. Iniciado o sinal, ela esperou, olhando fixamente para a luzinha vermelha que brilhava na tela à sua frente. Se por algum motivo ela não mudasse, ela teria de entrar por uma das águas-furtadas que dava para o jardim, o que seria um pé no saco...
A luz ficou verde com um sinal, e ela sorriu ao pegar mais instrumentos.
Pegando um copo de sucção, ela o empurrou no meio do painel, imediatamente abaixo da tranca e depois girou a coisa com o cortador de vidro. Um empurrão rápido e o espaço que possibilitava a entrada do seu braço foi criado.
Depois de deixar o círculo de vidro cair com suavidade na passadeira oriental, ela enfiou o braço e o virou, para soltar a trava de latão que mantinha a janela fechada.
O ar quente lhe deu boas-vindas, como se a casa estivesse contente por vê-la mais uma vez.
Antes de entrar, ela olhou ao redor. Relanceou para o caminho de carros. Inclinou-se para fora para ver o que conseguia encontrar nos jardins escuros.
Sentia como se alguém a estivesse observando... não tanto no caminho de carro até a cidade, mas depois que parara no estacionamento e colocara os esquis. Todavia, não havia ninguém por perto – pelo menos, ninguém que ela conseguisse enxergar – e por mais que a atenção fosse essencial em seu ramo de trabalho, a paranoia era uma perda de tempo perigosa.
Ela precisava deixar isso de lado.
Voltando a se concentrar no jogo, esticou as mãos enluvadas e suspendeu o traseiro e as pernas por cima e através da janela. Ao mesmo tempo, relaxou a tensão do cabo para que ele ficasse folgado e permitisse a sua entrada. Aterrissou sem nenhum som, graças não só ao tapete que cobria o longo corredor como também aos seus calçados de solas macias.
O silêncio era outro critério importante no tocante a realizar um trabalho com sucesso.
Ela parou onde estava por um breve momento. Nenhum som na casa, mas isso não significava nada necessariamente. Ela tinha quase certeza de que o alarme de Benloise fosse silencioso, e mais certeza ainda de que o sinal não iria para a força policial, nem a local, tampouco a estadual: ele gostava de cuidar das coisas particulares de modo privado. E Deus bem sabia, com o tipo de força braçal que ele contratava, havia poder suficiente para tal.
Felizmente, contudo, ela era boa no que fazia, e Benloise e seus capangas não estariam em casa até perto do nascer do sol, afinal, ele vivia a vida de um vampiro.
Por algum motivo, a palavra que começava com “v” a fez pensar no homem que aparecera ao lado do seu carro e que desaparecera como num passe de mágica.
Loucura. E a única vez em sua lembrança recente que alguém a fazia parar para pensar. Na verdade, depois de ser confrontada daquela forma, ela estava realmente considerando não voltar à casa de vidro no rio, embora houvesse motivos mais do que válidos para isso. Não por ela se preocupar em se machucar fisicamente. Deus bem sabia que ela era perfeitamente capaz de se defender.
Era a atração.
Mais perigosa do que qualquer pistola, faca, ou punho, em sua opinião.
Com passadas ágeis, Sola trotou pelo tapete, saltitando na ponta dos pés, seguindo para a suíte principal que dava para o jardim dos fundos. A casa ainda tinha o mesmo cheiro de que se lembrava: mobília antiga e lustra-móveis, e ela conhecia o bastante para se ater ao lado esquerdo da passadeira. Nenhum rangido daquele lado.
Quando chegou à suíte principal, a porta pesada de madeira estava fechada, e ela pegou a chave micha antes mesmo de testar a maçaneta. Benloise tinha duas patologias: limpeza e segurança. A impressão dela, entretanto, era que a segunda era mais crítica na galeria no centro de Caldwell do que em seu lar. Afinal, Benloise não mantinha debaixo do seu teto nada além de objetos de arte com seguros até o último centavo, e a ele próprio durante o dia – quando estava cercado por diversos seguranças e armas.
Na verdade, devia ser por isso que ele era uma coruja no centro da cidade. Isso significava que a galeria nunca ficava sem supervisão: ele aparecia depois do expediente e sua equipe de trabalho legítima estava lá durante o dia.
Como uma gatuna, ela certamente preferia entrar em lugares vazios.
Dito isso, mexeu no mecanismo de tranca da porta, abrindo-a, e entrou no quarto. Inspirou profundamente, o ar estava permeado com a fumaça do tabaco e da colônia refrescante de Benloise.
A combinação a fez pensar nos filmes em preto e branco de Clark Gable por algum motivo.
Com as cortinas puxadas e nenhuma luz acesa, ali estava absolutamente escuro, mas ela tirara fotografias dos quartos quando fora a uma festa ali, e Benloise não era o tipo de homem que mudava as coisas de lugar. Inferno, toda vez que uma nova exibição era instalada na galeria de arte, ela praticamente sentia o tremor debaixo da pele dele.
Medo de mudança era uma fraqueza, sua avó sempre dizia.
Obviamente facilitava as coisas para ela.
Mais devagar, ela avançou dez passos até o meio do quarto. A cama estaria à esquerda encostada na parede comprida. À sua frente estavam as janelas altas que davam para o jardim. À direita, haveria uma cômoda, uma escrivaninha e algumas cadeiras, e a lareira que nunca era usada porque Benloise detestava o cheiro de madeira queimada.
O alarme de segurança se localizava entre a entrada do banheiro e a cabeceira ornamentada da cama, ao lado do abajur que se elevava noventa centímetros do criado-mudo.
Sola deu um giro ao redor de si mesma. Deu quatro passos. Tentou encontrar o pé da cama... e o encontrou.
Passo lateral, um, dois, três. De frente para o flanco do colchão king-size. Outro passo lateral para desviar da mesinha de cabeceira e do abajur.
Sola esticou o braço esquerdo...
E lá estava o painel de segurança, bem onde deveria.
Abrindo a portinhola, usou uma lanterna de bolso que prendeu entre os dentes para iluminar o circuito. Pegando outro instrumento da mochila, conectou fios a fios, interceptando sinais, e com a ajuda de um laptop em miniatura e de um programa que um amigo seu desenvolvera, criou um circuito fechado dentro do sistema de alarme de modo que, enquanto o roteador estivesse no lugar, os detectores de movimento que ela estava para disparar não seriam registrados.
No que se referia à placa-mãe, nada pareceria anormal.
Deixando o laptop pendurado pelos fios, saiu do quarto, chegou ao corredor, e tomou as escadas para o primeiro andar.
O lugar estava perfeitamente decorado, pronto para uma foto de revista – ainda que, claro, Benloise protegesse demais a sua privacidade para permitir que suas coisas fossem fotografadas para o consumo público. Com passos rápidos, ela passou pelo hall de entrada, pela sala à esquerda e entrou no escritório.
Andando em meio à penumbra, ela bem que preferiria tirar a parca de camuflagem branca e as calças para neve: fazer aquilo em seu body preto seria um clichê que, entretanto, seria bem prático. Não havia tempo, porém, e ela estava mais preocupada em não ser vista do lado de fora do que ali, na casa vazia.
O espaço de trabalho pessoal de Benloise era, como todo o resto debaixo daquele teto, mais um cenário montado do que algo funcional. Ele, na verdade, não usava a imensa escrivaninha, nem se sentava no minitrono, tampouco lia qualquer um dos livros em capa de couro das prateleiras.
Todavia, ele transitava por aquele cômodo. Uma vez ao dia.
Certa vez, num momento de tranquilidade, ele lhe dissera que antes de sair, todas as noites, passeava pela casa olhando seus pertences, lembrando a si mesmo da beleza das suas coleções e de sua casa.
Como resultado dessa informação e de algumas outras coisas, Sola há muito deduzira que o homem crescera na pobreza. Primeiro porque, quando conversavam em espanhol ou em português, seu sotaque pertencia à classe baixa, mesmo que de modo sutil. Segundo, os ricos não valorizavam seus pertences como ele o fazia.
Nada era raro aos ricos, e isso significava que eles davam como certas todas as coisas.
O cofre estava escondido atrás da escrivaninha numa seção de estandes que era liberada por um botão localizado na gaveta inferior do lado direito.
Ela descobrira isso graças a uma minúscula câmera escondida que colocara do lado oposto durante aquela festa.
Após a abertura do mecanismo, um corte de sessenta por noventa centímetros na prateleira rolou para a frente e deslizou para o lado. E lá estava ela: uma caixa grossa de aço, cujo fabricante ela reconhecia.
Pensando bem, depois de invadir centenas de espaços, você acaba conhecendo intimamente os fabricantes. E ela aprovava aquela escolha. Se precisasse ter um cofre, era daquele tipo que ela pegaria e, sim, ele o prendera ao chão.
O maçarico que trouxera na mochila era pequeno, mas poderoso, e enquanto ela acendia a ponta, a chama chamuscou com um sibilo substancial e um brilho branco e azul.
Aquilo levaria tempo.
A fumaça do metal queimado irritava seus olhos, o nariz e a garganta, mas ela manteve a mão firme enquanto produzia um quadrado na frente do painel. Ela conseguia explodir a porta de alguns cofres, mas o único jeito com um daqueles era do modo antigo.
Que levava uma eternidade.
No entanto, ela conseguiu.
Deixando a pesada seção da porta de lado, ela mordeu a ponta da lanterna mais uma vez e se inclinou. Uma prateleira continha joias, cautelas de ações e alguns relógios de ouro que ele deixara à mão. Havia uma pistola que ela seria capaz de apostar que estaria carregada. Nenhum dinheiro.
Pensando bem, com Benloise sempre havia tanto dinheiro disponível que fazia sentido ele não se dar ao trabalho de colocá-lo no cofre.
Maldição. Não havia nada ali que valesse apenas cinco mil dólares.
Afinal, naquele trabalho, ela só estava atrás daquilo que lhe era devido por direito.
Com uma imprecação, ela se apoiou nos calcanhares. Na verdade, não havia nada no cofre que valesse menos do que vinte e cinco mil dólares. E não tinha como ela partir a metade da pulseira de um relógio de ouro – porque, como diabos conseguiria revender a coisa?
Um minuto se passou.
O segundo.
Ao diabo com aquilo, ela pensou ao recolocar o painel que cortara contra o cofre e deslizar a prateleira de volta ao seu lugar. Levantando-se, olhou ao redor da sala com a lanterna de bolso. Os livros eram todos edições de colecionadores de primeiras edições de antiguidades. A arte nas paredes e sobre as mesas não era somente muito cara, como difícil de transformar em dinheiro sem ser debaixo dos panos... para as pessoas intimamente ligadas a Benloise.
Mas, que droga, ela não sairia sem seu dinheiro, maldição...
Abruptamente, sorriu para si mesma, a solução se tornando muito clara.
Por vários anos no curso da civilização humana, o comércio só existira e sobrevivera na base da troca. Ou seja, um indivíduo trocava bens ou serviços por outros de mesmo valor.
Em todos os trabalhos que realizara, ela jamais considerara acrescentar os custos auxiliares aos seus alvos: novos cofres, novos sistemas de segurança, novos protocolos de segurança. Ela podia apostar que isso era caro – ainda que não tão caro quanto o que ela costumava tomar. E ela entrara ali deduzindo que esses custos adicionais seriam arcados por Benloise – um tipo de prejuízo monetário pelo que ele roubara dela.
No entanto, eles agora eram a questão.
No caminho de volta à escada, observou as oportunidades disponíveis... e, no fim, foi até uma escultura de Degas de uma pequena bailarina que fora colocada na lateral de um nicho. A figura em bronze da garotinha era o tipo de coisa que sua avó teria adorado, e talvez por isso, dentre tantas peças, foi aquela a lhe chamar a atenção.
A luz que fora colocada no teto acima da estátua estava desligada, mas a obra-prima ainda assim parecia brilhar. Sola adorou especialmente a saia em tutu, a delicada ainda que rígida explosão de tule delineada por metal entrelaçado que capturava perfeitamente o que deveria ser maleável.
Sola se aproximou da base da escultura, passou os braços ao redor dela, e concentrou toda a sua força em girar a sua posição não mais do que cinco centímetros.
Depois correu para as escadas, retirou os clipes do roteador e do laptop do painel de alarme na suíte principal, trancou novamente a porta e seguiu para a janela na qual cortara um buraco.
Estava de volta nos esquis, deslizando na neve não mais do que quatro minutos mais tarde.
Apesar do fato de não ter nada nos bolsos, ela sorria ao deixar a propriedade.
CAPÍTULO 38
Quando a Mercedes finalmente parou na entrada da mansão da Irmandade, Qhuinn saiu primeiro e foi para a porta em que Layla estava. Quando a abriu, os olhos dela encontraram os dele.
Ele soube que jamais se esqueceria da aparência dela. A tez estava branca como um papel e parecia tão fina quanto um, a bela estrutura óssea se esticando sobre a cobertura de pele. Os olhos estavam encovados no crânio. Os lábios, finos e inexpressivos.
Naquele instante, ele teve um vislumbre de como ela ficaria ao morrer, não importando quantas décadas e séculos isso fosse levar para acontecer.
– Eu carrego você – disse ele, inclinando-se para pegá-la no colo.
O modo como ela não discutiu lhe contou exatamente o pouco que restava dela.
Quando as portas de entrada foram abertas por Fritz, como se o mordomo estivesse esperando pela chegada deles, Qhuinn se arrependeu de tudo: do sonho que acalentara por um instante durante o cio dela. A esperança desperdiçada. A dor física pela qual ela passava. A angústia emocional que ambos atravessavam.
Você fez isso com ela.
Na época, quando a servira, ele só se concentrara no resultado positivo do qual esteve tão certo.
Agora, depois de tudo, com os coturnos fincados na realidade sólida e fétida? Não valia a pena. Mesmo a possibilidade de um filho saudável não valia aquele sacrifício.
O pior de tudo era testemunhar o sofrimento dela.
Ao carregá-la para dentro da casa, rezou para que não houvesse uma grande plateia. Ele só gostaria de poupá-la de tudo, de qualquer coisa, mesmo do simples fato de desfilar diante de rostos tristes e preocupados.
Não havia ninguém por perto.
Qhuinn subiu os degraus dois de cada vez e, ao chegar ao segundo andar, as grandes portas duplas do escritório de Wrath abertas o fizeram praguejar.
Pensando bem, o Rei era cego.
Enquanto George emitiu um latido de boas-vindas, Qhuinn apenas passou pela frente, indo direto para o quarto de Layla. Abrindo a porta com um chute, descobriu que o doggen estivera ali e limpara tudo, arrumando a cama, decerto tendo até trocado os lençóis, e também havia um vaso de flores frescas.
Ao que tudo levava a crer, ele não era o único disposto a ajudar em qualquer coisa que pudesse.
– Quer trocar de roupa? – perguntou ao fechar a porta com outro chute.
– Quero tomar banho...
– Vamos providenciar isso.
– ... mas estou com muito medo. Eu não quero... ver, se é que me entende.
Ele a deitou e se sentou ao seu lado na cama. Colocando uma mão em sua perna, esfregou-lhe o joelho com o polegar, de um lado para o outro.
– Sinto muito – disse ela com pesar.
– Droga... Não, não faça isso. Jamais pense nem diga isso, está bem? Isto não é culpa sua.
– De quem mais é?
– Isso não vem ao caso.
Merda, ele não conseguia acreditar que o processo do aborto duraria mais ou menos uma semana. Como podia ser possível...
A careta que contraiu o rosto de Layla revelou a ele que uma cólica a assolava novamente. Olhando de relance para trás, esperando ver a doutora Jane, descobriu que estavam sozinhos.
O que garantiu, mais do que tudo, que não havia nada a ser feito.
Qhuinn deixou a cabeça pensa e segurou a mão dela.
Aquilo começara com os dois.
E estava terminando com os dois.
– Acho que gostaria de dormir um pouco – disse Layla ao apertar a mão dele. – Você também parece estar precisando...
Ele olhou para a chaise-longue do outro lado.
– Você não precisa ficar comigo – murmurou ela.
– Onde mais eu ficaria?
Uma breve visão mental de Blay abrindo os braços cruzou sua mente. Que fantasia, hein...
Nunca mais me toque assim.
Qhuinn sacudiu a cabeça para que tais pensamentos sumissem.
– Vou dormir ali.
– Você não pode ficar aqui por sete noites seguidas.
– Vou repetir mais uma vez. Onde mais eu...
– Qhuinn – a voz dela soou estridente. – Você tem o seu trabalho. E você ouviu Havers. Isto vai levar o tempo que for preciso e, provavelmente, vai demorar um pouco. Não corro o risco de ter uma hemorragia e, francamente, sinto como se devesse ser forte na sua frente, e não tenho a energia necessária para isso. Por favor, volte aqui para me ver o quanto quiser. Mas vou enlouquecer se você montar acampamento aqui até isso tudo terminar.
Desespero comedido.
Era tudo o que Qhuinn tinha enquanto permanecia sentado na beira da cama, segurando a mão de Layla.
Ele acabou se levantando pouco depois. Claro, ela estava certa. Ela precisava descansar o máximo possível e, de fato, além de ficar olhando para ela e fazendo com que ela se sentisse fraca, não havia nada que ele pudesse fazer.
– Não estarei longe.
– Sei disso – ela suspendeu o punho dele para os seus lábios, e ele ficou chocado ao perceber o quanto eles estavam frios. – Você tem se mostrado... mais do que eu seria capaz de pedir.
– Não... Não fiz nada de...
– Você fez o que era certo e apropriado. Sempre.
Aquilo era uma questão de opinião.
– Preste atenção. Vou estar sempre com meu telefone por perto. Volto em algumas horas para ver como você está. Se estiver dormindo, eu não a incomodarei.
– Obrigada.
Qhuinn assentiu com a cabeça e andou de lado até a porta. Certa vez ouvira que não se devia dar as costas a uma Escolhida, e ele imaginou que demonstrar um pouco de protocolo não faria mal.
Fechando a porta atrás de si, ele se recostou nela. A única pessoa que ele queria ver era o único cara naquela casa que não tinha interesse algum em...
– O que está acontecendo?
A voz de Blay foi um choque tão grande que ele pensou que a tivesse imaginado. A não ser pelo fato de que o macho em pessoa acabara de passar pela porta da sala de estar do segundo andar. Como se estivesse ali esperando o tempo inteiro.
Qhuinn esfregou os olhos e depois começou a andar, o corpo procurando a única coisa pela qual ele vinha rezando.
– Ela está abortando – Qhuinn se ouviu dizer numa voz morta.
Blay murmurou algo em resposta, mas que não ficou registrado.
Engraçado, o aborto não lhe parecera real até aquele momento. Não até contar a Blay.
– O que disse? – perguntou Qhuinn, ciente de que o cara esperava por uma resposta.
– Posso fazer alguma coisa?
Tão engraçado. Qhuinn sempre achou que saíra do ventre da mãe já como um adulto. Pensando bem, nunca houve nenhum agradinho materno, nada de abraços quando ele se machucava, nenhum amparo quando ele tinha medo. Como resultado, quer fosse um aspecto do seu caráter, ou o modo como fora criado, ele nunca regredira. Não havia para o que voltar.
Todavia, foi com a voz de uma criança que disse:
– Faz isso parar?
Como se só Blay tivesse o poder de operar um milagre.
E então... foi o que o macho fez.
Blay abriu os braços, oferecendo o único refúgio que Qhuinn sempre conheceu.
– Faz isso parar?
O corpo de Blay começou a tremer quando Qhuinn enunciou essas palavras: depois de todos esses anos, ele vira o cara em diferentes estados de humor dependendo da circunstância. Porém, jamais assim. Nunca... tão completa e absolutamente devastado.
Nunca perdido como uma criança.
A despeito da sua necessidade de se manter verdadeiramente afastado de qualquer vínculo emocional, seus braços se abriram por vontade própria.
Enquanto Qhuinn avançava para ele, o corpo do guerreiro parecia menor e mais frágil do que de fato era. E os braços que passaram ao redor da cintura de Blay simplesmente ficaram lá, como se não tivessem força nos músculos.
Blay sustentou a ambos.
E antecipou que Qhuinn recuaria rapidamente. Normalmente, o cara não suportava nenhum tipo de conexão intensa além da sexual por mais tempo do que um segundo e meio.
Qhuinn não o fez, porém. Ele parecia preparado para ficar parado na entrada da sala de estar para sempre.
– Venha – disse Blay, levando o macho para dentro e fechando a porta. – Vamos para o sofá.
Qhuinn o seguiu, os coturnos se arrastando em vez de marcharem.
Quando chegaram ao sofá, sentaram-se de frente, os joelhos se tocando. Quando Blay o fitou, a tristeza ressonante o tocou tão profundamente, que não pôde evitar que a mão se esticasse e afagasse o cabelo escuro...
Sem aviso, Qhuinn se enroscou ao seu encontro, simplesmente se deixou cair, o corpo se dobrando ao meio, quase se desmanchando no colo de Blay.
Uma parte de Blay reconhecia que aquele era um terreno perigoso. Sexo era uma coisa, e já bem difícil de lidar, ora essa. Aquele momento tranquilo? Era potencialmente devastador.
Motivo pelo qual saíra num rompante daquele quarto na noite anterior.
A diferença desta noite, porém, era que ele estava no controle. Era Qhuinn quem buscava conforto, e Blay podia negar ou oferecer, dependendo de como se sentisse. Ser o depositário da confiança de alguém era absolutamente diferente de recebê-la... ou necessitá-la.
Blay era bom nisso. Havia uma medida de segurança, de controle. Não era o mesmo que cair num abismo. E, inferno, se alguém devia saber isso, esse alguém era ele. Deus bem sabia que ele passara anos lá embaixo.
– Eu faria qualquer coisa para mudar isso – disse Blay, afagando as costas de Qhuinn. – Odeio o que você está passando...
Ah, as palavras eram tão inúteis...
Ficaram ali por um tempo enorme, a tranquilidade da sala formando uma espécie de casulo. Periodicamente, o relógio antigo sobre a lareira tocava, e depois de um bom tempo, as persianas começaram a baixar sobre as janelas.
– Gostaria que existisse algo que eu pudesse fazer – disse Blay quando os painéis de aço chegaram ao fim com um baque.
– Deve estar na hora de você ir.
Blay deixou aquela passar. A verdade não era algo que ele quisesse partilhar: nem cavalos selvagens, ou armas carregadas, pés-de-cabra, mangueiras de incêndio, estouro de elefantes... nem mesmo uma ordem do Rei em pessoa o teria tirado dali.
E havia uma parte sua que ficava zangada com isso. Não com Qhuinn, mas com seu próprio coração. A questão era que não se pode lutar contra a sua natureza, e era isso o que ele vinha aprendendo. No rompimento com Saxton. Em se revelar à mãe. Naquele exato instante.
Qhuinn gemeu ao suspender o tronco e depois esfregar o rosto. Quando abaixou as mãos, as faces estavam vermelhas, bem como os olhos, mas não porque ele estivesse chorando.
Indubitavelmente, a sua cota de lágrimas da década fora derramada na noite anterior quando ele chorara de alívio por ter salvado a vida de um pai.
E se soubesse que Layla não estava bem naquele instante?
– Sabe o que é pior? – perguntou Qhuinn, parecendo um pouco mais consigo mesmo.
– O quê? – Deus bem sabia que a gama de opções era vasta.
– Eu vi a criança.
Os pelos da nuca de Blay se eriçaram.
– Do que está falando?
– Na noite em que a Guarda de Honra veio atrás de mim e que quase morri, lembra?
Blay deu uma tossidela, a lembrança era tão vívida e visceral como se tivesse acontecido uma hora antes. E mesmo assim a voz de Qhuinn era calma e tranquila, como se ele estivesse se referindo a uma noite numa boate ou algo assim.
– Sim, eu me lembro.
E pensou, eu fiz boca a boca em você no acostamento da estrada, porra.
– Eu fui até o Fade... – Qhuinn franziu o cenho. – Você está bem?
Ah, sim, claro, uma maravilha.
– Desculpe. Pode continuar.
– Fui até lá. Quero dizer, é como... a gente ouviu falar. Branco – Qhuinn esfregou o rosto de novo. – Tão branco. Tudo. Havia uma porta, e eu caminhei até ela... Eu sabia que se girasse a maçaneta, entraria e não sairia mais. Eu estava prestes a tocá-la quando... foi então que eu a vi. Na porta.
– Layla – interpôs Blay, sentindo como se o peito tivesse sido apunhalado.
– A minha filha.
A respiração de Blay ficou presa.
– A sua...
Qhuinn o encarou.
– Ela era... loira. Como Layla. Mas os olhos... – ele levou a mão próxima aos seus. – Eram como os meus. Parei de andar quando a vi e depois, de repente, eu estava de volta no chão, no acostamento da estrada. Depois disso, fiquei sem saber o que foi tudo aquilo. Mas depois, muito tempo depois, Layla entrou no cio e me procurou, e tudo se encaixou. Era como se aquilo... tivesse que acontecer. Pareceu o destino, sabe. De outro modo, eu jamais teria me deitado com Layla. Só fiz isso porque eu sabia que teríamos uma garotinha.
– Jesus.
– Mas eu estava errado – ele esfregou o rosto pela terceira vez. – Errei feio... E o que eu mais queria era não ter tomado esse caminho. O maior arrependimento da minha vida... Bem, o segundo maior, na verdade.
A Blay só restou imaginar o que poderia ser pior do que aquilo pelo que ele passava.
O que posso fazer?, Blay se perguntou.
Os olhos de Qhuinn procuraram os dele.
– Quer mesmo que eu responda a isso?
Pelo visto, ele pensara em voz alta.
– Sim, claro.
A mão da adaga de Qhuinn se levantou e amparou a lateral do rosto de Blay.
– Certeza?
O clima mudou de pronto. A tragédia ainda estava com eles, mas a poderosa ressaca sexual os abateu entre uma pulsação e a seguinte.
O olhar de Qhuinn começou a queimar, as pálpebras pesaram.
– Preciso... de uma âncora agora. Não sei explicar de modo melhor.
O corpo de Blay reagiu instantaneamente, o sangue fervendo, o membro engrossando e esticando.
– Deixe-me beijar você – Qhuinn gemeu ao se inclinar. – Sei que não mereço, mas, por favor... é isso o que você pode fazer por mim. Deixe-me senti-lo...
A boca de Qhuinn resvalou a dele. Voltou para um pouco mais. Demorou-se.
– Vou implorar – mais carícias daquela boca devastadora. – Se for preciso. Estou pouco me importando, eu vou implorar...
De algum modo, isso não seria necessário.
Blay deixou a cabeça ser inclinada para abrir caminho para mais manobras, a mão de Qhuinn em seu rosto tanto gentil quanto no comando. E, então, houve mais boca a boca, lento, arrastando-se, inexorável.
– Deixe-me estar dentro de você de novo, Blay...
CAPÍTULO 39
Assail voltou para casa cerca de meia hora antes do amanhecer. Ao estacionar o Range Rover na garagem, ele teve que esperar a porta abaixar para sair.
Sempre se considerara um intelectual – e não no sentido atribuído pela glymera, onde um se sentia importante ao discorrer sobre literatura, filosofia ou assuntos espirituais. Era mais pelo fato de existirem poucas coisas na vida na qual ele não podia aplicar seu raciocínio e entender a sua totalidade.
O que diabos aquela mulher fizera na casa de Benloise?
Obviamente ela era uma profissional, com tanto equipamento quanto técnica, e uma abordagem de infiltração muito praticada. Ele também suspeitava que ou ela tivesse a planta da casa ou estivera lá previamente. Tão eficiente. Tão decidida. E ele estava qualificado para julgar: seguira-a o tempo inteiro em que ela esteve dentro da casa, penetrando como um fantasma pela janela que ela abrira, atendo-se às sombras.
Seguindo o rastro dela por trás.
Mas aquilo ele não entendia: que tipo de ladrão se dá ao trabalho de invadir uma casa segura, encontra um cofre, queima-o para abri-lo, descobre muitas riquezas portáteis... mas não leva nada? Porque ele vira muito bem ao que ela teve acesso; assim que ela saiu do escritório, ele permanecera lá, soltando a prateleira como ela fizera antes, e usara a própria lanterna para dar uma espiada no cofre.
Só para descobrir o que ela deixara para trás, se é que tinha deixado algo.
Quando ele voltou para a casa em si, evitando qualquer fonte de luz, observara-a parada um instante no hall de entrada, com as mãos nos quadris, a cabeça virando lentamente, como se ela estivesse considerando suas opções.
E então ela se aproximou de uma estátua que só podia ser de Degas... e a girara apenas alguns centímetros para a esquerda.
Isso não fazia sentido.
Bem, era possível que ela tivesse invadido o cofre procurando por algo específico que, na verdade, não estava lá. Um anel, uma bugiganga, um colar. Um chip de computador, um pendrive, um documento como um testamento ou apólice de seguro. Mas a demora no hall não estava de acordo com a diligência anterior... e depois ela só moveu uma estátua?
A única explicação era que aquilo fora uma violação deliberada da propriedade de Benloise.
O problema era que, no que se referia a vinganças contra objetos inanimados, era difícil encontrar muita significância nos atos dela. Derrubasse a estátua, então. Levasse a maldita coisa. Danificasse-a com obscenidades em tinta spray. Batesse nela com um pé-de-cabra para que ficasse destruída. Mas uma leve virada que mal se podia perceber?
A única conclusão a que ele conseguia chegar era que aquilo fora um tipo de mensagem. E ele não gostava nem um pouco disso.
Pois sugeria que talvez ela conhecesse Benloise pessoalmente.
Assail abriu a porta do motorista...
– Oh, meu Deus... – sibilou, retraindo-se.
– Ficamos imaginando quanto tempo você ainda ficaria aí.
Enquanto uma voz ríspida se pronunciava, Assail saiu do carro e olhou ao redor da garagem para cinco carros. O fedor estava num meio-termo entre um atropelamento de três dias, maionese estragada e perfume barato.
– Isso é o que eu estou pensando? – perguntou aos primos, que estavam parados na soleira da antessala.
Graças à Virgem Escriba, eles avançaram e fecharam a porta que dava para a casa; caso contrário, aquele fedor horrendo invadiria o resto da construção.
– São os seus traficantes. Bem, parte deles, na verdade.
Que. Merda. Era. Aquela?
As passadas longas de Assail o levaram na direção que Ehric apontava: o canto oposto, onde três sacos plásticos verdes-escuro foram jogados de lado sem cuidado algum. Agachando-se, ele afrouxou a tira amarela de um deles, puxou a beirada e...
Deparou-se com os olhos sem vida de um humano que ele reconhecia.
A cabeça inanimada fora arrancada da coluna uns dez centímetros abaixo da mandíbula, e estava virada de modo a fitar para fora de seu caixão frouxo. O cabelo escuro e a pele vermelha estavam marcados por sangue preto e brilhante, e se o cheiro esteve ruim próximo ao carro, ali, bem perto, fez seus olhos lacrimejarem e a garganta se contrair num protesto.
Não que ele se importasse.
Abriu os outros dois sacos e, usando o plástico como “luva”, virou as outras cabeças na mesma posição.
Depois se sentou e ficou olhando para as três, observando as bocas escancaradas e impotentes em busca de ar.
– Contem o que aconteceu – ordenou sombriamente.
– Aparecemos na hora combinada.
– Rinque de patinação, na margem do rio ou debaixo da ponte?
– Ponte. Chegamos – Ehric apontou para o irmão gêmeo, que estava parado em silêncio ao seu lado – na hora com o produto. Uns cinco minutos depois, esses três apareceram.
– Como redutores.
– Eles tinham o dinheiro. Estavam prontos para fazer a transação.
Assail girou a cabeça na direção dele.
– Eles não foram lá para atacá-los?
– Não, mas só descobrimos isso quando já era tarde demais – Ehric deu de ombros. – Eram assassinos que apareceram do nada. Não sabíamos quantos havia, e não queríamos nos arriscar. Foi só depois que vasculhamos os bolsos e encontramos o montante certo de dinheiro que percebemos que eles só foram lá para fazer negócios.
Redutores no tráfico? Aquilo era novidade.
– Vocês apunhalaram os corpos?
– Pegamos as cabeças e escondemos o que restou. O dinheiro estava na mochila desse da esquerda e, naturalmente, nós o trouxemos para casa.
– Celulares?
– Peguei.
Assail começou a acender um charuto, mas não queria desperdiçar o sabor. Fechando os sacos, levantou-se acima da carnificina.
– Tem certeza de que não foram agressivos?
– Estavam mal preparados para se defenderem.
– Estar mal armado não significa que eles não estivessem lá para matá-los.
– Por que levar o dinheiro?
– Eles podiam estar negociando em outro lugar.
– Como já disse, era a quantia correta e nem um centavo a mais.
Abruptamente, Assail gesticulou para que o seguissem para o interior da casa e, ah, que alívio quando chegaram ao ar limpo. Com as telas descendo lentamente sobre as janelas de vidro, e com o alvorecer se completando, ele foi para o bar, pegou um galão de Bouchard Père et Fils, Montrachet, 2006 e estalou a rolha.
– Querem me acompanhar?
– Sim, claro.
Na mesa redonda na cozinha, ele se sentou com três taças e a garrafa. Servindo os três, dividiu o chardonnay com os dois sócios.
Porém, não lhes ofereceu seus cubanos. Eram valiosos demais.
Felizmente, cigarros apareceram e todos se sentaram juntos, fumando e saboreando goladas sublimes da beira afiada do seu Baccarat.
– Nenhuma agressão por parte dos assassinos – murmurou, inclinando a cabeça para trás para baforar, a fumaça azulada se elevando sobre sua cabeça.
– E a quantia exata.
Depois de um momento, ele voltou a olhar para eles.
– Será possível que a Sociedade Redutora esteja tentando entrar no meu ramo de negócios?
Xcor estava à luz de velas, sozinho.
O armazém estava tranquilo, seus soldados ainda não tinham retornado, nenhum humano, nenhum Sombra, nada caminhava sobre ele. O ar estava frio; o mesmo com o concreto abaixo dele. A escuridão o envolvia, a não ser pela fraca fonte de luz perto da qual ele estava sentado.
Algo no fundo de sua mente lhe dizia que estava perigosamente perto de amanhecer. Também havia outra coisa, algo de que ele deveria ter se lembrado.
Mas não havia a mínima chance de que algo transpusesse seu torpor.
Com os olhos fixos na única chama diante dele, Xcor repassou os eventos da noite em sua cabeça.
Dizer que ele encontrara a localização da Irmandade seria talvez aumentar um pouco a verdade, mas não uma falácia completa. Seguira aquela Mercedes para o interior, quilômetro após quilômetro, sem nenhum plano real do que deveria ou poderia fazer quando ela parasse... quando, do nada, o sinal do sangue no corpo de sua Escolhida não só se perdeu, mas foi totalmente redirecionado, como se uma bola lançada contra um muro tivesse alterado repentinamente a sua trajetória.
Confuso, ele vasculhou os arredores, desmaterializando aqui, acolá, para cima e para baixo e, durante o tempo todo, uma sensação de horror se abatendo sobre ele. Recuando, ele se viu na base de uma montanha, com seus contornos, mesmo sob o luar claro, registrados de maneira estranha, indistinta, pouco nítida.
O lugar em que eles ficavam só podia ser ali.
Talvez no alto da montanha. Talvez do outro lado.
Não havia outra explicação – afinal, a Irmandade vivia com o Rei para protegê-lo... portanto, indubitavelmente, eles tomariam precauções do tipo que ninguém mais conseguiria tomar, ou quem sabe, tivessem ao seu dispor tecnologias e provisões místicas que seriam, de outro modo, indisponíveis.
Em frenesi, ele circundou os arredores, dando a volta na base algumas vezes, pressentindo nada além da refração do sinal dela e aquela sensação de horror. Sua conclusão era de que ela deveria estar em algum lugar daquela imensidão: ele teria pressentido se ela tivesse atravessado para o outro lado, e seria razoável concluir que se tivesse ido para o seu templo sagrado, até um plano alternativo de existência, ou – que o destino não permitisse – morrido, aquele eco ressonante dentro dele teria desaparecido.
A sua Escolhida estava ali em algum lugar.
Retornando para o armazém, para o presente, para onde ele estava agora, Xcor esfregou as palmas para frente e para trás lentamente, o raspar dos calos interrompendo a quietude. À esquerda, no limiar da luz de velas, suas armas estavam dispostas lado a lado, as adagas, as pistolas, e sua adorada foice cuidadosamente organizadas ao lado de uma pilha confusa de roupas de sair que ele retirara assim que escolhera aquele lugar específico no chão.
Concentrou-se na foice e esperou que ela lhe falasse: ela o fazia com frequência, com seus modos sedentos de sangue em compasso com a agressividade que fluía em suas veias e que definia seus pensamentos e motivava suas ações.
Aguardou que ela lhe dissesse para atacar a Irmandade onde eles ficavam. Onde as fêmeas moravam. Onde as crianças dormiam.
O silêncio era preocupante.
De fato, sua chegada ao Novo Mundo fora baseada no desejo de ganhar poder, a expressão maior e mais arrojada desse desejo era tomar o trono, portanto, naturalmente, esse era o curso que ele escolhera. E estava progredindo. A tentativa de assassinato no outono, que, sem sombra de dúvida, lançara uma sentença de morte sobre a sua cabeça e a dos seus soldados, fora uma medida tática que quase colocara um ponto final na guerra inteira antes mesmo de ela começar. E seus esforços contínuos com Elan e com a glymera estavam promovendo seus objetivos e reforçando seu apoio dentro da aristocracia.
Mas aquilo que ele descobrira naquela noite...
Deuses, quase um ano de trabalho, sacrifício, planejamento e combate perdiam importância em comparação com a sua descoberta.
Se seu palpite estivesse correto – e como não podia estar? –, tudo o que ele tinha de fazer era marchar com seus soldados e começar um cerco assim que a noite caísse. A batalha seria épica, e a Irmandade e o lar da Primeira Família seriam permanentemente comprometidos, independentemente do resultado.
Seria um conflito digno dos livros de História – afinal, a primeira vez em que a propriedade real fora atingida foi quando o progenitor e a mahmen de Wrath foram assassinados antes da transição dele.
A história se repetia.
E ele e seus soldados tinham uma séria vantagem em relação àqueles assassinos que, na época, não possuíram: a Irmandade agora tinha muitos machos vinculados. Na verdade, ele acreditava que todos eles estivessem vinculados, e isso dividiria as atenções e as lealdades dos machos como nada mais conseguiria fazer. Ainda que a diretriz principal deles como guarda pessoal do Rei fosse proteger Wrath, seus cernes estariam divididos, e mesmo o mais forte dos lutadores com as melhores armas estaria enfraquecido se suas prioridades estivessem em dois lugares distintos.
Além disso, se Xcor ou um dos seus soldados conseguisse apanhar uma daquelas shellans, a Irmandade esmoreceria, porque a outra coisa verdadeira a respeito deles era que a dor de um dos Irmãos era a própria agonia.
Só bastaria uma fêmea de qualquer um deles, a arma derradeira.
Ele sabia disso em sua alma.
Sentado à luz da vela, Xcor esfregou a lâmina da adaga na palma de sua mão, de um lado para o outro, de um lado para o outro.
Uma fêmea.
Era só disso que ele precisava.
E ele conseguiria não só reivindicar sua própria fêmea... mas também o trono.
CAPÍTULO 40
Qhuinn sabia que acabara de colocar Blay numa posição totalmente injusta.
Transa por pena, hein? Mas, ah, Deus, encarando aqueles olhos azuis, aqueles malditos olhos azuis sem fundo que estavam francos para ele do mesmo modo que um dia estiveram... era só no que conseguia pensar. E, sim, tecnicamente era sexo em termos de onde ele queria suas diversas partes – bem, uma mais especificamente. No entanto, havia muito mais do que apenas isso.
Ele não sabia expressar em palavras; simplesmente não era bom em juntar as sílabas. Mas seu desejo de conexão foi o que o levou ao beijo. Ele quis mostrar a Blay o que estava querendo dizer, do que ele precisava, por que aquilo era importante: seu mundo inteiro parecia estar desmoronando e a perda que acontecia na porta ao lado doeria por um bom tempo.
No entanto, estar com Blay, sentir o seu calor, fazer contato, era como uma promessa de cura. Mesmo se durasse apenas o tempo em que estivessem ali naquela sala, ele aceitaria, e guardaria aquilo para si... para relembrar quando precisasse.
– Por favor – sussurrou.
Só que ele não deu chance para o cara responder. Sua língua saiu sorrateira e lambeu aquela boca, escorregando para dentro, assumindo o controle.
E a resposta de Blay foi o modo como ele se permitiu ser empurrado para trás nas almofadas do sofá.
Qhuinn teve dois pensamentos vagos: um, a porta só estava fechada, não trancada – e ele cuidou disso desejando que a trava de latão ficasse no lugar certo. E o segundo pensamento momentâneo era que eles não poderiam destruir aquele lugar. Explodir tudo em seu quarto era uma coisa. A sala de estar era propriedade pública, e muito bem decorada, com as almofadas de seda e as cortinas luxuosas, e um monte de outras coisas que pareciam facilmente rasgáveis, amassáveis, Deus, mancháveis...
Além disso, ele já destruíra seu Hummer, acabara com o jardim e sacudira o quarto. Portanto, sua cota de Destruidor já ultrapassara, e muito, o calendário anual...
Naturalmente, a solução mais prática para não dar nenhuma preocupação adicional a Fritz seria percorrer o corredor rapidamente até o seu quarto, mas enquanto as mãos talentosas de Blay estavam na frente do quadril de Qhuinn, já abaixando seu zíper, ele lançou essa ideia brilhante no cesto de lixo.
– Ai, Deus, toque-me – gemeu, empurrando a pélvis para a frente.
Ele só teria de ser comportado e bem limpinho com aquilo.
Presumindo que isso fosse possível.
Quando a palma de Blay se enfiou em sua calça de couro, o corpo de Qhuinn se arqueou, o torso curvando-se para trás enquanto o outro iniciava os trabalhos. O ângulo estava meio errado, por isso não havia muita fricção, e suas bolas estavam sendo beliscadas pela costura da calça, mas santo inferno, ele não se importava. O fato de que aquele era Blay bastava.
Cacete, depois de anos de chupadas, punhetas e transas, aquela parecia a primeira vez que alguém tocava nele.
Ele precisava retribuir o favor.
Entrando em ação, elevou o peito e aproximou os rostos. Caramba, ele adorava a expressão daqueles olhos azuis enquanto Blay o encarava, quente, selvagem, sensual.
Com tesão.
Qhuinn o segurou com força e aproximou as bocas, agarrando-se àqueles lábios, lançando a língua, tomando tudo como um desvairado...
– Espere, espere – Blay retrocedeu. – Vamos quebrar o sofá.
– O quê...? – o cara parecia estar falando inglês, mas pro inferno se ele conseguia traduzir. – Sofá?
E então ele percebeu que empurrara tanto Blay no braço do móvel, que a coisa estava começando a se inclinar. Que era mais do que duzentos quilos de sexo poderiam fazer em uma peça de mobília.
– Ai, merda, desculpe.
Ele estava começando a recuar quando Blay assumiu o controle e Qhuinn, de repente, viu-se fora do sofá, de costas no chão, as pernas unidas, as calças sendo empurradas para os tornozelos.
Ideia. Genial.
Graças ao fato de ele não usar cuecas, seu pau estava todo exposto, grosso e tenso, ao ser lançado para cima, dolorido e inchado por sobre a barriga. Abaixando a mão, ele deu umas puxadas enquanto Blay arrancava seus coturnos que estavam atrapalhando, largando-os de lado. As calças foram as próximas a darem adeus, e, com Deus como testemunha, Qhuinn nunca antes ficou tão contente em ver um par de couro voar por cima do ombro em toda a sua vida.
Em seguida, Blay voltou ao trabalho.
Qhuinn teve que fechar os olhos quando sentiu as coxas sendo afastadas e um par de mãos de lutador puxar o interior de suas pernas. Imediatamente ele soltou a ereção, afinal, porque ter a palma atrapalhando quando Blay poderia...
Não foram as mãos do cara que o seguraram.
Foi a boca quente e úmida que Qhuinn beijara pra cacete pouco antes.
Por uma fração de segundo, enquanto a sucção abocanhava a ponta e o mastro, ele teve o pensamento maldito de que Saxton ensinara Blay a fazer aquilo: seu maldito primo fizera aquilo com o cara, e fizera com que ele...
Pare, ordenou-se. Quaisquer lições aprendidas e a história por detrás delas não importavam, era a sua ereção que recebia atenção naquele instante. Por isso, que se dane essa merda.
Para deixar isso bem claro, forçou seus olhos a se abrirem. Inferno... do céu...
A cabeça de Blay subia e descia em seus quadris, o punho segurava a base do pau de Qhuinn, a outra mão se ocupava com as bolas. Mas então, como se estivesse esperando por contato visual, o cara parou no alto, libertou a cabeça e lambeu os lábios.
– Eu não gostaria que você fizesse uma lambança nesta linda sala – Blay disse com fala arrastada.
E então, estendeu a ponta da língua para açoitar o piercing no pênis de Qhuinn, a carne rosada brincando com a argola cinza de metal e a bolinha...
– Caralho. Vou gozar agora – grunhiu Qhuinn, com uma onda fervente se avolumando. – Eu vou...
Ele estava impotente para deter as coisas, muito mais até do que alguém que tivesse se lançado de um precipício e que, depois de metros de queda livre, quisesse desistir.
Só que ele não queria pisar no freio.
E não pisou.
Com um rugido potente, que provavelmente foi ouvido em outros lugares, a espinha de Qhuinn se afastou do chão, o traseiro ficou rígido, as bolas explodiram, a excitação esguichando com força na boca de Blay. E não foi só o seu sexo que foi afetado. O orgasmo o atingiu em todo o corpo, uma energia latente emergindo por ele enquanto cravava as unhas no tapete em que estava deitado, os dentes cerrados... e gozando como um animal selvagem.
Felizmente, Blay se mostrou mais do que eficiente na limpeza. E se isso não o fez gozar ainda mais... Também lhe deu muito para o que olhar: pelo resto dos seus dias, Qhuinn jamais se esqueceria da visão da boca do macho o envolvendo, as bochechas sugando enquanto ele libertava seu gozo e ele absorvia tudo. De novo e de novo e de novo.
Normalmente, Qhuinn ficava pronto para outra em seguida, mas quando as ondas tumultuadas finalmente se quebraram sobre ele, ele ficou completamente inerte, os braços largados no chão, os joelhos moles, a cabeça pensa.
– Não consigo me mexer – murmurou.
O riso de Blay foi profundo e sensual.
– Você parece um pouco cansado.
– Posso retribuir o favor?
– Você consegue levantar a cabeça?
– Ela ainda está grudada no meu corpo?
– Pelo que vejo, sim, está.
Enquanto Blay ria de novo, Qhuinn soube o que queria fazer e isso o surpreendeu. Em todas as suas explorações sexuais, ele nunca se permitiu ser enrabado. Não era assim que as coisas aconteciam. Ele era o conquistador, o que tomava, o que estabelecia o controle e conservava a superioridade.
Ficar por baixo simplesmente não o interessava.
E agora era o que queria.
O único problema era que, literalmente, não conseguia se mexer. Ah, sim, e havia uma coisinha a mais: como contar a Blay que ele era virgem?
Porque ele desejava. Se um dia chegasse àquilo, ele queria que Blay soubesse. Por algum motivo, isso era importante.
De repente, o rosto de Blay apareceu em seu campo de visão, e, Deus, como o lutador era lindo, o rosto afogueado, os olhos reluzentes, aqueles ombros largos bloqueando tudo.
E, ah, sim, aquele sorriso sexy como o inferno, tão satisfeito consigo e autossuficiente, como se o fato de Blay ter provocado tanto prazer em alguém fosse o bastante para que ele não precisasse do próprio alívio.
Mas isso não seria justo, seria?
– Não acho que você vai voltar a se mexer tão cedo – comentou Blay.
– Talvez. Mas posso abrir a boca – foi a resposta misteriosa. – Tanto quanto você.
Certo, tudo bem, a ideia de que provocava um orgasmo daquele em Qhuinn foi tão ratificadora que Blay se esquecera por completo do seu corpo.
A questão era que após tantos anos de rejeição, era uma emoção sem igual sentir poder em relação ao cara, ser aquele quem comandava o ritmo... a pessoa que levava Qhuinn a um lugar vulnerável e erótico muito mais intenso do que qualquer outro antes. E foi isso o que aconteceu. Ele sabia exatamente como Qhuinn ficava e como soava quando gozava, e Blay podia afirmar, sem nenhum traço de dúvida, que ele jamais vira seu camarada tão prostrado como agora, largado no tapete, os músculos do pescoço esticados, os abdominais contraídos, os quadris bombeando com força.
Qhuinn gozara praticamente vinte minutos direto.
E agora, no pós-coito, uma estranha revelação: até aquele instante, Blay jamais reconhecera o cinismo que Qhuinn carregava no rosto o tempo inteiro... as sobrancelhas caídas, o canto da boca perpetuamente repuxado para cima... o maxilar nunca, jamais relaxado.
Era como se toda a torpeza que a família lhe fizera tivesse permanentemente esculpido suas feições.
Mas não era verdade, não é mesmo? Durante o orgasmo, e agora, enquanto as coisas se acalmavam, nada daquela tensão era visível em lugar algum. O rosto de Qhuinn estava... livre de toda reserva, parecendo tão mais jovem, e Blay teve que se perguntar por que nunca percebera a idade dele antes.
– Então, vai me dar algo para eu chupar enquanto me recupero? – Qhuinn perguntou.
– O quê...?
– Estou com sede. E preciso chupar alguma coisa – dito isso, Qhuinn mordeu o lábio inferior, as presas brancas brilhantes afundando na pele. – Vai me ajudar?
Os olhos de Blay reviraram em suas órbitas.
– É... acho que posso fazer isso.
– Então me deixe tirar suas calças.
As pernas de Blay se levantaram com tanta rapidez que ele teve um insight novo sobre as leis da física, e enquanto ele chutava os sapatos, as mãos tremiam ao desabotoar a calça. As coisas foram bem rápidas a partir dali. E durante o tempo todo em que se despia, ele estava absolutamente ciente de tudo o que havia na sala – especialmente Qhuinn. O macho estava ficando rígido novamente, o sexo engrossando apesar de tudo pelo que acabara de passar... as coxas pesadas se contraindo e a pélvis rolando... a parte baixa do tronco tão delgada que cada sutil mudança do torso era refletida na pele esticada e bronzeada.
– Isso aí... – Qhuinn sibilou, as presas se estendendo do maxilar superior, as mãos procurando, e encontrando, o sexo, apalpando-o em movimentos longos e lentos. – Isso mesmo.
A respiração de Blay começou a acelerar, os batimentos cardíacos subindo até o telhado enquanto os olhos descombinados de Qhuinn se prendiam ao seu sexo.
– É isso o que eu quero – o macho grunhiu, soltando-se e esticando as duas mãos.
Por uma fração de segundo, Blay não teve muita certeza como as partes trabalhariam. Qhuinn estava diante do sofá, paralelo ao móvel, por isso não havia muito espaço para...
Um grunhido sutil perpassou o ar enquanto Qhuinn flexionava os dedos como se mal conseguisse esperar para segurar aquilo que desejava.
O planejamento que fosse para o inferno.
Os joelhos de Blay atenderam ao chamado, dobrando para a frente, levando seu peso ao chão perto da cabeça de Qhuinn.
Qhuinn assumiu o controle a partir daí. As palmas escorregaram e se prenderam, atraindo Blay de modo que, sem nem se dar conta, ele tinha um joelho atrás da cabeça do cara e a outra perna estendida ao longo do corpo até o quadril de Qhuinn.
– Ai... cacete... – Blay gemeu ao sentir o sexo entrar entre os lábios de Qhuinn.
O corpo pendeu para a frente até ele acabar derramando o torso nas almofadas do sofá, e foi nesse momento que ele se viu com uma excelente alavancagem. Apoiando os braços no sofá, distribuiu o peso entre os joelhos, os pés e as palmas... e depois se pôs a foder a boca adorável de Qhuinn.
O cara aceitou tudo, mesmo quando os quadris descontrolados de Blay empurraram com tudo o que ele tinha.
Com os dedos de Qhuinn cravados em seu traseiro, e aquela incrível sucção, e... Cristo, o piercing da língua, com a bolinha resvalando seu mastro a cada estocada... Blay estava se dirigindo exatamente para o mesmo tipo de orgasmo que Qhuinn acabara de ter.
Mesmo assim, no fundo da sua mente, ele se questionava se não estava machucando o cara. Do jeito como as coisas seguiam, ele acabaria gozando no estômago dele.
Tarde demais para se preocupar com isso.
Seu corpo assumiu, enrijecendo numa série de espasmos torturantes que corriam do alto da coluna até as pernas.
E bem quando as sensações descontroladas estavam começando a diminuir, o mundo entortou ao seu redor, como se seu senso de equilíbrio tivesse explodido junto de seu...
Não, o mundo estava no lugar. Qhuinn acabara de se levantar do chão, saindo de baixo e se posicionando atrás...
Enquanto Qhuinn penetrava com uma estocada na velocidade da luz, Blay emitiu um gemido que com certeza seria ouvido no Canadá...
O rangido que se fez ouvir na sala o deixou intrigado, mesmo em meio à pressão e ao prazer.
Ah. Eles estavam empurrando o sofá.
Que seja. Ele compraria um novo para a casa se quebrassem a maldita porcaria; ele não iria parar.
O ritmo foi tão punitivo quanto fora o seu e, nesse caso, a revanche não era só o que ele merecia, mas exatamente o que ele queria. A cada estocada, seu rosto era empurrado contra as almofadas do sofá; a cada recuada, ele respirava; só para ser empurrado novamente, num círculo que recomeçava sempre.
Reposicionando as pernas para que Qhuinn alcançasse ainda mais fundo, Blay teve a vaga noção de que eles, definitivamente, mudavam o sofá de posição, mas quem é que se importava com isso, contanto que eles não acabassem no corredor?
No último instante, pouco antes de ele gozar, teve a presença de espírito de pegar as calças. Puxando as cuecas, ele...
A mão de Qhuinn se esticou, apanhou a Calvin Klein e fez o que era preciso, garantindo que houvesse algo para conter o seu gozo. Então, um instante depois, seu peito se deslocou do sofá e ele estava ereto sobre os joelhos. Qhuinn cuidou de tudo, segurando o pau de Blay enquanto cobria a cabeça – penetrando, ainda penetrando, sempre penetrando...
Gozaram ao mesmo tempo, dois pares de gritos ecoando pela sala.
No meio do orgasmo, Blay, sem querer, levantou o olhar. No enorme espelho antigo que estava pendurado entre as duas janelas do lado oposto, ele viu os dois, soube que estavam ligados... e isso o fez gozar novamente.
No fim, as investidas desaceleraram. Os batimentos cardíacos começaram a diminuir. As respirações foram se acalmando.
No vidro chumbado, ele viu Qhuinn fechar os olhos e abaixar a cabeça. Na lateral do seu pescoço, Blay sentiu um resvalar suave.
Os lábios de Qhuinn.
E então a mão livre do macho subiu, parando para afagar Blay no peitoral...
Qhuinn congelou. Recuou. Afastou os lábios, seu toque.
– Desculpe. Desculpe, eu... sei que não quer isso de mim.
A mudança no rosto do cara, o regresso ao cinismo costumeiro, era como ser roubado.
E mesmo assim Blay não podia dizer a ele que voltasse a se aproximar. Qhuinn estava certo; no instante em que a ternura aparecia, ele começava a entrar em pânico.
A retirada foi rápida, rápida demais, e Blay sentiu falta da sensação de estar completo e de ser possuído. Mas estava na hora de acabar com aquilo.
Qhuinn pigarreou.
– Hum... você quer que eu...
– Cuido disso – murmurou Blay, substituindo a mão de Qhuinn sobre as cuecas amassadas em seu quadril.
Durante o sexo, o silêncio na sala equivalia à privacidade. Agora, eram apenas os sons amplificados de Qhuinn subindo as calças de couro.
Droga.
Voltavam ao caos e à confusão. E enquanto as coisas aconteciam, as sensações eram tão intensas e esmagadoras que não houve nenhum pensamento além do sexo. Depois, porém, o corpo de Blay estava frio demais no ambiente climatizado, diferentes partes pulsavam por terem sido usadas, as pernas estavam moles e cambaleantes, a mente, enevoada...
Nada parecia seguro ou garantido. Nem um pouco.
Forçando-se a se vestir, colocou as roupas o mais rápido que conseguiu, inclusive os sapatos. Nesse meio-tempo, foi Qhuinn quem devolveu o sofá ao seu lugar, cuidadosamente colocando os pés nas marcas do tapete. Também ajeitara as almofadas. Endireitara o tapete oriental.
Foi como se nada tivesse acontecido. A não ser pelas cuecas de Blay amassadas em sua mão fechada.
– Obrigado – disse Qhuinn baixinho. – Eu, hum...
– Tudo bem.
– Então... acho que eu vou agora.
– Ok.
E foi isso.
Bem, além de a porta se fechar.
Deixado a sós, Blay resolveu que precisava de uma chuveirada. Mais comida. Dormir.
Em vez disso tudo, ele ficou na sala de estar do segundo andar, olhando para aquele espelho, lembrando-se do que vira nele. Em sua mente, teve a vaga noção de que eles não podiam continuar fazendo aquilo. Emocionalmente, não era seguro para ele; na verdade, era o equivalente a manter a palma da mão sobre uma chama uma vez após a outra, só que a cada vez que você voltava a colocar a mão, você diminuía a distância entre a sua carne e o calor. Cedo ou tarde? Queimaduras de terceiro grau seriam o menor dos seus problemas, porque o braço inteiro estaria em chamas.
Depois de um tempo, contudo, não ficou só pensando naquela coisa de autopreservação.
Mas sim no que dera início àquilo tudo.
Faz isso parar.
Blay passou a mão pelo cabelo. Depois olhou para a porta fechada e franziu o cenho, a mente trabalhando, trabalhando, trabalhando...
Um minuto depois, saiu apressado, andando rapidamente.
Antes de partir num trote.
E acabar correndo como um louco.
CAPÍTULO 41
Eram mais ou menos dez da manhã quando Trez seguiu para o Restaurante Sal’s. O trajeto do apartamento no Commodore para o belo estabelecimento do irmão não demorou, levando apenas dez minutos, e havia diversos espaços disponíveis para estacionar quando ele chegou lá.
De fato, o lugar não abria antes da uma da tarde, nem mesmo para o pessoal da cozinha iniciar a preparação.
Enquanto se encaminhava para a entrada, suas botas esmagando a neve, ele esperou que o código de abertura pelo lado externo não funcionasse: iAm não voltara para casa na noite anterior e, supondo que os cretinos do s’Hisbe não o tivessem levado embora como dano colateral, só havia um lugar em que seu irmão poderia estar. Depois de dois bules de café e muitas consultas ao relógio de pulso, Trez entendeu que, se queria fazer as pazes, ele teria de atravessar a cidade.
Legal. A combinação não fora mudada.
Ainda.
Do lado de dentro, o lugar parecia uma réplica do Rat Pack, numa interpretação moderna de uma era que gerara tipos como Peter Lawford e Frank Sinatra: uma entrada com papel de parede de algodão preto e vermelho o levava até a recepção, onde a chapelaria, a mesinha retrô da recepcionista e o caixa ficavam. À esquerda e também à direita, estavam os dois salões principais, ambos decorados em veludo e couro preto e vermelho, mas não eram onde os políticos e os endinheirados locais ficavam. O lugar predileto era o bar mais à frente, um salão com painéis de madeira que tinha bancos estofados quadrados de couro vermelho perto das paredes e, durante o expediente, um barman de smoking atrás de uma bancada de carvalho servindo nada que não fosse o melhor.
Atravessando a extensão do bar, Trez seguiu para o outro lado das cinco prateleiras de garrafas à mostra e passou pelas portas em vaivém. Ao entrar na cozinha, o cheiro de manjericão, cebola, orégano e vinho tinto lhe denunciou exatamente onde iAm estava.
Como esperado, o cara estava diante do enorme fogão industrial de dezesseis bocas na parede oposta, com cinco panelas imensas borbulhando diante dele – e você gostaria de apostar que também havia alguma coisa no forno? Nesse meio-tempo, tábuas de madeira de corte estavam enfileiradas nas bancadas de aço inoxidável, as cabeças mortas de diferentes tipos de pimentão deixadas ao lado das facas afiadas que foram usadas.
Dez pratas para adivinhar em quem o cara estava pensando enquanto picava aquilo tudo.
– Vai ou não falar comigo? – Trez disse para as costas do irmão.
iAm seguiu para a panela seguinte, levantando a tampa com um pano de prato branco, uma imensa escumadeira entrando e mexendo lentamente.
Trez se inclinou para o lado e puxou um banquinho de aço inoxidável. Sentando-se, esfregou as coxas para cima e para baixo.
– Oi? Alguém aí?
iAm foi para a panela seguinte. E depois a outra. Cada uma delas tinha uma colher diferente para evitar a mistura de sabores, e seu irmão tomava muito cuidado com isso.
– Escute, eu sinto muito se não estava quando você foi à boate ontem à noite – todas as noites, iAm ia para o Iron Mask para dar uma olhada depois que o Sal’s fechava. – Tive que cuidar de uns assuntos.
Merda, se teve. A garota do namorado grosseiro levou uma eternidade para sair do seu carro quando ele a levou para a casa dela. No fim, ele a acompanhou até a porta, abriu e só faltou empurrá-la para dentro. De volta ao carro, ele acelerou como se tivesse plantado uma bomba na calçada e, enquanto seguia para o Iron Mask, tudo o que ouvia em sua cabeça era a voz de iAm.
Você não pode continuar a fazer isso.
A essa altura, iAm se virou, cruzou os braços sobre o peito e se recostou ao fogão. Os bíceps já eram grandes, mas com os braços cruzados daquele jeito, forçavam a borda da camiseta preta que ele vestia.
Os olhos amendoados estavam semicerrados.
– Você acha mesmo que eu estou bravo porque você não estava quando fui ao clube? Sério? E não por que você me deixou para lidar com AnsLai ou qualquer asneira do tipo...
Eeeee estavam todos a postos.
– Sabe que não posso me encontrar com o cara – Trez levantou as mãos como se quisesse dizer que não havia nada que ele pudesse fazer. – Eles tentariam me forçar a voltar com eles e, então, quais seriam as minhas opções? Brigar? Eu acabaria lutando com o filho da puta e onde eu iria parar com isso?
iAm esfregou os olhos como se estivesse com dor de cabeça.
– Neste instante, parece que eles estão tomando uma abordagem diplomática. Pelo menos comigo.
– Quando vão voltar?
– Não sei. É isso o que está me deixando nervoso.
Trez enrijeceu. A ideia de que seu irmão frio como peixe estivesse ansioso o fez sentir como se estivesse com uma faca no pescoço.
Pensando bem, ele sabia muito bem o quanto o seu povo podia ser perigoso. O s’Hisbe era conhecido como uma tribo pacífica, satisfeita em se manter ao largo das lutas contra a Sociedade Redutora e dos desagradáveis humanos. Educados, muito inteligentes e espirituais, eles eram, como um todo, um grupo agradável. Desde que você não estivesse na lista negra deles.
Trez olhou para as panelas e se perguntou qual seria a carne no molho.
– Ainda estou em débito com Rehv – ele observou. – Portanto, essa obrigação deve vir em primeiro lugar.
– Não para o s’Hisbe. AnsLai disse, e vou citar suas palavras: “Chegou a hora”.
– Não vou voltar – ele fitou os olhos do irmão. – Isso não vai acontecer.
iAm voltou para as panelas, mexendo em cada uma com a colher designada.
– Sei disso. E é por isso que estou cozinhando. Estou tentando encontrar uma saída.
Deus, como ele amava o irmão. Mesmo irritado, o cara tentava ajudar.
– Desculpe-me por ter desaparecido e ter feito você cuidar disso. Sinto muito mesmo. Não foi justo... Eu só... bem, não achei seguro estar no mesmo cômodo que aquele cara. Sinto muito.
O peito largo de iAm subiu e desceu.
– Sei que sente.
– Eu poderia simplesmente desaparecer e o problema estaria resolvido.
Ainda que deixar iAm para trás o matasse. A questão era que, caso ele fugisse do s’Hisbe, ele jamais teria contato com o macho novamente. Nunca mais.
– Para onde você iria? – iAm observou.
– Não faço ideia.
A boa notícia é que o s’Hisbe não gostava de ter nenhum contato com os Desconhecidos. Sem dúvida, só aparecer no apartamento dele e de iAm fora traumático, mesmo se o sumo sacerdote tivesse se desmaterializado até a varanda. Lidar diretamente com humanos? Estar ao lado deles? A cabeça de AnsLai explodiria.
– Então, qual era o seu assunto? – perguntou iAm.
Maravilha. Mais um assunto igualmente feliz.
– Fui ver aquele armazém – ele desviou. Mas, cacete, até parece que ele tocaria no assunto da garota com o namorado espontaneamente.
– A uma da manhã?
– Fiz uma oferta.
– De quanto?
– Um milhão e quatrocentos. O preço pedido era de dois milhões e meio, mas não vão conseguir esse montante de jeito nenhum. O lugar está vazio há anos e demonstra isso – embora, ao dizer isso em voz alta, ele teve que admitir que sentira presenças lá. Pensando bem, talvez fosse apenas o seu estresse o responsável por isso. – Meu palpite é que vão dar uma contraoferta de dois milhões, eu subo para um e seiscentos e acabamos acordando em um e setecentos.
– Tem certeza de que quer iniciar esse projeto agora? A menos que apareça no território com o seu mastro matrimonial pronto para ser usado, esta questão com o s’Hisbe só vai piorar.
– Se as coisas chegarem a esse ponto, eu cuido disso na hora certa.
– Quando – iAm o corrigiu. – A questão é “quando”. E sei o que aconteceu no estacionamento, Trez. Com aquele cara e a mulher.
Claaaaro que sim.
– Viu as fitas ou algo assim?
Maldita câmera de segurança.
– Sim.
– Eu cuidei daquilo.
– Assim como está cuidando do s’Hisbe. Perfeito.
Com o humor afetado, Trez se inclinou.
– Quer calçar os meus sapatos, irmãozinho? Eu bem que gostaria de saber como você lidaria com essa merda toda.
– Eu não estaria fodendo putas, isso eu garanto. O que me faz pensar... o nosso corretor é uma fêmea, não?
– Foda-se, iAm. De verdade.
Trez se levantou do banquinho e marchou para fora da cozinha. Ele já tinha problemas suficientes, pelo amor de Deus, não precisava do senhor Superior com habilidades de Julia Child palpitando sobre o assunto com doze tipos de panelas...
– Você não pode continuar postergando esse assunto – iAm chamou de lá de trás. – Ou tentando enterrá-lo entre as pernas das mulheres.
Trez parou, mas manteve o olhar fixo na saída.
– Simplesmente não pode – o irmão afirmou com franqueza.
Trez girou. iAm estava perto do bar, a porta em vaivém mexendo atrás dele formando um efeito de estroboscópio de luz, escuro, luz, escuro. Toda vez que a luz surgia, parecia que seu irmão tinha um halo ao redor de todo o corpo.
Trez praguejou.
– Só preciso que me deixem em paz.
– Eu sei – iAm esfregou a cabeça. – E, honestamente, não sei que porra fazer a respeito. Não consigo me imaginar vivendo sem você, e também não quero voltar para lá. Só que também não encontrei alternativas.
– Aquelas mulheres... sabe, as que eu... – Trez hesitou. – Não acha que elas me excitam?
– Se elas não fazem isso – iAm disse secamente –, não sei porque perde tempo com elas.
Trez teve que dar um sorriso.
– Não, estou falando do s’Hisbe. Estou bem longe de ser virgem a esta altura – pelo menos ele ainda não se rebaixara a animais de fazenda. – E o que é pior? Todas eram Desconhecidos, a maioria humanas. Isso deve enojá-los. Estamos falando da filha da rainha!
Enquanto iAm franzia o cenho como se estivesse considerando a ideia, Trez sentiu uma centelha de esperança.
– Não sei, não – veio a resposta. – Talvez isso funcione, mas ainda assim você negou a Sua Alteza o que ela quer e precisa. Se eles o considerarem desonrado, podem muito bem decidir matá-lo como castigo.
Que seja. Eles teriam que encontrá-lo primeiro.
Numa onda de agressão, Trez abaixou o queixo e olhou fixo por debaixo das sobrancelhas.
– Se esse for o caso, eles vão ter que lutar comigo. E eu garanto que isso não vai acabar bem para eles.
Na mansão da Irmandade, Wrath entendeu que sua rainha estava aborrecida no instante em que ela passou pelas portas do escritório. Seu cheiro atraente estava maculado por uma pontada de acidez: ansiedade.
– O que foi, leelan? – ele quis saber, estendendo os braços.
Mesmo não enxergando, suas lembranças lhe davam uma imagem mental dela cruzando o tapete Aubusson, com o corpo longo e atlético se movendo com graciosidade, os cabelos escuros soltos sobre os ombros, o lindo rosto marcado por tensão.
Naturalmente, o macho vinculado dentro dele desejou perseguir e matar o que quer que a tivesse perturbado.
– Olá, George – disse ela ao cão. Pelo barulho de batidas ritmadas no chão, ele supôs que o cachorro tivesse recebido uma dose de amor antes.
E então foi a vez do dono.
Beth subiu no colo de Wrath, o peso próximo de nada, o corpo quente e vivo enquanto ele passava os braços ao seu redor e a beijava nas laterais do pescoço e depois na boca.
– Jesus – grunhiu ele, sentindo a rigidez no corpo dela –, você está aborrecida mesmo. Que merda está acontecendo?
Deus do céu, ela estava tremendo. Sua rainha estava, de fato, tremendo.
– Fale comigo, leelan – insistiu, esfregando-lhe as costas. E se preparando para se armar e sair em plena luz do sol se preciso fosse.
– Bem, você sabe sobre Layla – disse ela com voz rouca.
Ahhhh.
– Sim, sei. Phury me contou.
Enquanto a cabeça dela se posicionava em seu ombro, ele a ajeitou, aninhando-a em seu peito – e isso era bom. Havia vezes – não muitas, mas ocasionais – em que ele se sentia menos macho por conta de sua falta de visão: no passado, um lutador, agora, preso atrás daquela mesa. Um dia livre para ir aonde bem quisesse, agora, dependendo de um navegador canino. Certa vez absolutamente autossuficiente, agora, precisando de ajuda.
Não muito bom para os colhões de um macho.
Mas em momentos como aquele, quando aquela fêmea maravilhosa estava incomodada e o procurava, e somente a ele, para conforto e segurança, ele se sentia mais forte que uma maldita montanha. Afinal, machos vinculados protegiam suas fêmeas com tudo o que tinham, e mesmo com o fardo do seu direito de nascimento e aquele trono em que era obrigado a se sentar, ele, em seu cerne, permanecia o hellren daquela fêmea.
Ela era a sua primeira prioridade, acima inclusive daquela coisa toda de reinado. A sua Beth era o seu coração atrás das costelas, o tutano dentro de seus ossos, a alma em seu corpo físico.
– É tudo tão triste – disse ela. – Tão triste.
– Você foi vê-la?
– Acabei de ir. Ela está descansando. Quero dizer... de certa forma, custo a acreditar que não haja nada a ser feito.
– Falou com a doutora Jane?
– Assim que eles voltaram da clínica.
Enquanto a sua shellan chorava um pouco, o cheiro das lágrimas frescas de sua amada era como uma adaga em seu peito, e ele não estava surpreso com a reação dela. Ouvira dizer que as fêmeas lidavam muito mal com a perda da gravidez de outra fêmea – e como não ser assim? Ele, por certo, conseguia se colocar no lugar de Qhuinn.
E, ah, Deus... a ideia de Beth sofrer daquele modo? Ou pior, de conseguir levar adiante a gestação e depois...
Ótimo. Agora era ele quem tremia.
Wrath abaixou o rosto para os cabelos de Beth, inspirando, acalmando-se. A boa notícia era que eles jamais teriam um filho, portanto, ele não tinha com que se preocupar.
– Eu sinto muito – sussurrou.
– Eu também. Odeio o que eles estão passando.
Bem, na verdade, ele estava se desculpando por outra coisa completamente diferente.
Não que ele quisesse que uma merda daquelas acontecesse com Qhuinn, Layla e o filho deles. Mas talvez se Beth enxergasse a triste realidade, ela se lembraria de todos os riscos que se apresentavam a eles em todas as etapas de uma gestação.
Porra. Aquilo soava horrível. Era horrível. Pelo amor de Deus, ele não queria mesmo nada daquilo para Qhuinn, e tampouco queria ver sua shellan triste. Infelizmente, porém, a triste realidade era que ele não tinha absolutamente interesse algum em plantar sua semente nela daquele jeito – jamais.
E esse tipo de desespero fazia com que um cara pensasse em coisas imperdoáveis.
Numa onda de paranoia, ele calculou mentalmente os anos desde a transição dela – um pouco mais do que dois. Pelo que sabia, as fêmeas vampiras, em média, passavam pelo primeiro cio uns cinco anos após a transformação, e a cada dez anos depois disso. Portanto, eles tinham um bom tempo antes de terem de se preocupar com tudo isso...
Pensando bem, como mestiça, não havia garantias no caso de Beth. Quando os humanos e os vampiros se misturavam, qualquer coisa podia acontecer... E ele tinha motivos para se preocupar. Afinal, ela já mencionara filhos uma ou duas vezes.
Mas, obviamente, aquilo só podia ser hipoteticamente.
– E então, você vai postergar a iniciação de Qhuinn? – ela perguntou.
– Sim. Saxton já atualizou a lei, mas Layla estando assim? Não é o momento de trazê-lo para a Irmandade.
– Foi o que pensei.
Os dois se calaram, e enquanto Wrath guardava aquele momento em seu coração, não conseguiu imaginar sua vida sem ela.
– Sabe de uma coisa? – perguntou.
– O quê? – havia um sorriso na voz dela, do tipo que dizia a ele que ela sabia para onde a conversa estava indo.
– Eu amo você mais do que tudo.
Sua rainha deu uma leve risada, e o afagou no rosto.
– Eu jamais teria imaginado isso.
Inferno, até ele captava a onda de seu odor de vinculação.
Em resposta, Wrath segurou o rosto dela entre as palmas e se inclinou, encontrando seus lábios e depositando um beijo suave, que não permaneceu assim. Caramba, era sempre assim com ela. Qualquer contato e, antes que se desse conta, já estava rígido e pronto.
Deus, não sabia como os homens humanos lidavam com isso. Pelo que entendia, eles tinham de adivinhar se seus pares estavam férteis toda vez que faziam sexo – evidentemente, eles não tinham como captar a alteração nos odores de suas fêmeas.
Ele enlouqueceria. Pelo menos quando uma vampira estava no cio, todos sabiam.
Beth mudou de posição em seu colo, apertando a sua ereção e fazendo-o gemer. E, normalmente, essa era a dica para George ser levado para o outro lado das portas duplas, banido temporariamente. Mas não naquela noite. Por mais que Wrath a desejasse, a tristeza presente na casa aplacava até mesmo a sua libido.
E também havia a questão do cio de Autumn. E de Layla.
Ele não iria mentir; aquela merda o estava deixando ansioso. Sabia-se que hormônios no ar tinham um efeito ricochete numa casa cheia de fêmeas, influenciando umas às outras ao cio, desde que seu período estivesse próximo.
Wrath afagou os cabelos de Beth e voltou a acomodar a cabeça dela em seu ombro.
– Você não quer...
Enquanto ela deixava a frase inacabada, ele pegou a sua mão e a levantou, sentindo o peso do anel de rubi que a rainha da raça sempre usava.
– Só quero abraçar você – disse ele. – Isso basta para mim agora.
Aninhando-se, ela se encaixou ainda mais perto dele.
– Bem, isto também é gostoso.
Sim. Era.
E curiosamente aterrador.
– Wrath?
– Sim?
– Você está bem?
Demorou um pouco para ele confiar na voz e responder:
– Sim, estou bem. Tudo bem.
Ao alisar o braço dela, para cima e para baixo, ele rezou para que ela acreditasse... e jurou que o que acontecia no quarto no fim do corredor nunca, jamais, aconteceria com eles.
Não. Os dois não teriam de lidar com aquele tipo de crise.
Graças à Virgem Escriba.
CAPÍTULO 42
Claro que Layla não estava dormindo.
Quando pediu a Qhuinn que saísse, ela falou sério quanto a não querer sustentar uma fachada de força diante dele. Mas o mais engraçado era que mesmo sem ninguém por perto, ela não ficou histérica. Não chorou. Não praguejou.
Apenas ficou deitada de lado com os braços e as pernas enroscados, a mente recuada para dentro do corpo e monitorando constantemente cada dor e cólica numa compulsão que a enlouquecia. No entanto, não havia como mudar aquilo. Era como se uma parte dela estivesse convencida de que se ao menos ela soubesse em que estágio estava, ela poderia, de algum modo, monitorar o processo.
O que, na verdade, era uma tremenda tolice. Como Qhuinn bem diria.
A imagem dele na clínica, com a adaga no pescoço do médico, era algo saído de um dos livros da biblioteca do Santuário – um episódio dramático que era parte da vida de outra pessoa.
Sua posição na cama, porém, fazia com que ela lembrasse que o caso não era bem esse...
A batida à porta foi suave, sugerindo se tratar de uma fêmea.
Layla fechou os olhos. Por mais que apreciasse qualquer tipo de gentileza que aguardava uma resposta, ela preferiria que quem quer que estivesse no corredor, continuasse lá. A breve visita da rainha fora uma provação, mesmo ela tendo apreciado.
– Sim – quando sua voz mal soou em seus ouvidos, ela pigarreou e repetiu: – Sim?
A porta abriu e, a princípio, ela não reconheceu quem era na sombra que preenchia o espaço entre os batentes da porta. Alta. Forte. Porém, não um macho...
– Payne? – perguntou.
– Posso entrar?
– Sim, claro.
Enquanto Layla tentava se sentar, a fêmea guerreira gesticulou para que ela continuasse deitada, e depois fechou a porta.
– Não, não... por favor, fique à vontade.
Um abajur fora deixado aceso sobre a cômoda e, na luz suave, a irmã de sangue de Vishous da Irmandade da Adaga Negra parecia temerária, com os olhos de diamante parecendo reluzir para fora dos ângulos fortes do rosto dela.
– Como você está? – a fêmea perguntou com suavidade.
– Estou bem, obrigada. E você?
A lutadora deu um passo à frente.
– Eu sinto muito quanto... à sua condição.
Ah, como Layla desejava que aquilo fosse algo que Phury e os outros não tivessem partilhado com ninguém. Em retrospecto, a saída da casa fora um tanto dramática, o tipo de evento que causaria perguntas preocupadas. Ainda assim, sua privacidade preferia evitar esse tipo de invasão indesejável, ainda que misericordiosa.
– Agradeço as suas palavras gentis – sussurrou.
– Posso me sentar?
– Sim, claro.
Ela imaginou que a fêmea fosse se sentar numa das cadeiras dispostas mais ao longe. Não foi o que Payne fez. Ela se aproximou da cama e abaixou o peso ao lado de Layla.
Compelida a, pelo menos, parecer uma boa anfitriã, Layla tentou se suspender, fazendo uma careta quando uma nova onda de cólicas a imobilizou no meio do caminho.
Enquanto Payne praguejava baixinho, Layla teve que voltar a se deitar. Com voz rouca, disse:
– Perdoe-me, mas não posso receber visitas agora, por mais que me queira bem. Obrigada por expressar a sua empatia...
– Você sabe quem é a minha mãe – Payne a interrompeu.
Layla balançou a cabeça ao encontro do travesseiro.
– Por favor, saia...
– Sabe? – a fêmea perguntou com rispidez.
Abruptamente, Layla quis chorar. Simplesmente não tinha forças para qualquer tipo de conversa, ainda mais a respeito de mahmens. Não enquanto perdia o filho.
– Por favor.
– Sou filha da Virgem Escriba.
Layla franziu o cenho, as palavras sendo compreendidas mesmo em meio à dor, tanto física quanto mental.
– O que disse?
Payne inspirou profundamente, como se a revelação não fosse algo com que se alegrasse, mas como se fosse um tipo de maldição.
– Sou da carne da Virgem Escriba, nascida há muito tempo, e ocultada dos registros das Escolhidas e dos olhos de outrem.
Layla piscou em estado de choque. A aparição da fêmea fora um tipo de mistério, mas ela certamente não fizera nenhuma pergunta, pois isso não cabia a ela. A única coisa que sabia com convicção é que jamais houve registro algum da mãe sagrada da raça um dia ter dado à luz uma criança.
Na verdade, a estrutura completa do sistema de crença era prevista no fato de isso não ter ocorrido.
– Como isso é possível? – arfou Layla.
Os olhos brilhantes de Payne estavam sérios.
– Não era o que eu desejaria. E não é algo de que fale a respeito.
No momento tenso que se seguiu, Layla considerou impossível não ver a verdade naquilo que a fêmea falava. Tampouco a raiva, cuja causa ela apenas podia supor.
– Você é sagrada – disse Layla maravilhada.
– Nem um pouco, eu lhe garanto. Mas minha linhagem me concedeu um tipo de... como posso explicar? Habilidade.
Layla se enrijeceu.
– Que seria...?
Os olhos de diamante de Payne não se desviaram.
– Quero ajudá-la.
As mãos de Layla foram para o baixo ventre.
– Se quer abreviar isto... não.
Ela tinha seu filho por um tempo curto demais. Não importava a dor que tivesse que passar, ela não sacrificaria um minuto sequer daquilo que, sem dúvida, seria sua única gestação.
Ela jamais se colocaria à mercê de outro sofrimento assim. No futuro, quando seu cio chegasse, ela seria sedada e pronto.
Aquele tipo de perda uma vez na vida já era demais.
– E se acredita que pode deter isto – Layla continuou –, isso não é possível. Não há nada que ninguém possa fazer.
– Não estou tão certa disso – o olhar de Payne era enlevado. – Eu gostaria de ver se posso salvar esta gestação. Se me permitir.
No campus abandonado da Escola para Moças Brownswick, o Sr. C. se acomodou no que um dia fora o escritório da diretora.
Era o que estava escrito na placa rachada do lado de fora da sala.
Como não havia calefação, a temperatura ambiente não estava muito maior do que a do lado de fora, mas graças ao sangue de Ômega, o frio não era um problema. Ainda bem: do outro lado do gramado crescido coberto de neve, no dormitório principal sobre uma colina, quase cinquenta redutores dormiam o sono dos mortos.
Se aqueles malditos necessitassem de aquecimento ou de comida, ele estaria sem sorte alguma.
Mas não, tudo o que ele tinha de fazer era providenciar um abrigo. A iniciação cuidaria do resto – e o fato de que precisavam desligar a consciência a cada 24 horas era um alívio.
Ele precisava de tempo para pensar.
Jesus Cristo, que confusão.
Compelido pela necessidade de se mexer, ele empurrou a cadeira para trás e se lembrou de que estava se sentando sobre um balde de argamassa virado ao contrário.
– Maldição.
Olhando ao redor da sala decrépita, ele mediu as placas de gesso penduradas das vigas do teto, as janelas cobertas por tábuas de madeira, e o buraco em uma das tábuas do piso no canto. O lugar era igual à conta bancária que ele encontrara.
Nenhum dinheiro em lugar algum. Munição zero. Armas que podiam ser usadas em combate à força, e só.
Depois de sua promoção, ele se viu cheio de energia, de planos. Agora encontrava-se diante de nenhum dinheiro, nenhum recurso, nada.
Ômega, por outro lado, esperava todo tipo de resultado. Como deixara bem claro no “encontro” deles na noite anterior.
E também havia outro problema. Ele odiava aquela merda.
Pelo menos ele podia fazer algo a respeito de todo o resto.
Esticando os braços acima da cabeça e estalando os ombros, agradeceu a Deus por duas coisas: uma, os celulares não tinham sido desligados, por isso ele podia se comunicar com seus homens no campo de batalha. E dois, todos aqueles anos na rua lhe deram os punhos de ferro no que se referia a controlar o bando de idiotas do tráfico de drogas.
Tinha de arranjar dinheiro. Logo.
Ele teve uma porra de um plano para isso também, mandando os últimos nove mil dólares com aqueles três garotos no meio da noite. Tudo o que os malditos tinham de fazer era pagar, pegar a droga e trazer para ali, onde dividiriam a merda, depois distribuiriam entre os novos recrutas para que eles vendessem nas ruas.
O problema era que ele ainda estava esperando pela porra da entrega.
E estava ficando puto de tanto esperar para descobrir se as drogas e o dinheiro tinham sumido.
Era bem possível que aqueles merdinhas tivessem fugido com um ou com o outro, mas, nesse caso, ele os caçaria como cachorros para mostrar aos outros o que acontecia quando você...
Quando seu celular tocou, ele o pegou, viu quem era e apertou o botão de chamada.
– Já era hora. Onde diabos você está e cadê minha mercadoria?
Houve uma pausa. Depois, a voz que se ouviu pela conexão não era nada parecida com a do traficante cheio de espinhas para quem ele entregara o celular e a última pistola da Sociedade que funcionava.
– Tenho uma coisa que você quer.
O Sr. C. franziu a testa. Voz grave. Envolta numa impaciência que ele reconhecia das ruas, e um sotaque que ele não sabia de onde vinha.
– Não é essa merda com a qual você está falando comigo – disse o Sr. C. com fala arrastada. – Tenho um monte desses.
Afinal de contas, quando você não tem nada na mão, no coldre ou na carteira, blefar era a sua única opção.
– Ora, que bom para você. Também tem muito do que me mandou? Dinheiro? Soldados?
– Quem diabos está falando?
– Sou seu inimigo.
– Se você ficou com a porra da minha grana, pode apostar que sim.
– Na verdade, essa é uma resposta bem simplista para um problema um tanto complexo.
O Sr. C. se pôs de pé, derrubando o balde.
– Onde está a porra do meu dinheiro e o que fez com os meus homens?
– Lamento, mas eles não podem mais atender ao telefone. É por isso que estou ligando.
– Você não faz ideia com quem está lidando – o Sr. C. ameaçou.
– Pelo contrário, é você quem está em desvantagem, bem como tantos outros – quando o Sr. C. estava pronto para rebater, o cara o interrompeu. – Eis o que vamos fazer. Vou telefonar à noite para lhe dar uma localização. Você, e apenas você, vai me encontrar lá. Se alguém o acompanhar, eu saberei, e você nunca mais vai saber de mim.
O Sr. C. estava acostumado a sentir desdém pelos outros, isso era parte do trabalho uma vez que você só lida com ladrões de merda e malditos viciados. Mas esse cara do outro lado da conexão? Controlado. Calmo.
Um profissional.
O Sr. C. controlou seu humor.
– Não preciso de nenhum joguinho...
– Sim, precisa. Porque se você quiser drogas para vender, terá que vir a mim.
O Sr. C. ficou calado. Ou aquele era um lunático cheio de ilusões de grandeza ou... era alguém com poder de verdade. Talvez o tipo que matou os intermediários do cartel de drogas em Caldwell um ano antes.
– Quando e onde? – disse de má vontade.
Houve uma risada sombria.
– Atenda o seu telefone ao cair da noite e você descobrirá.
CAPÍTULO 43
Layla não conseguiu falar enquanto tentava compreender as palavras de Payne.
– Não – disse à outra fêmea. – Não, Havers me disse que... não havia nada que pudesse ser feito.
– Na medicina, isso pode ser verdade. Eu posso ter outro modo, porém. Não sei se funcionará, mas, se permitir, eu gostaria de ver o que posso fazer.
Por um instante, Layla só conseguiu respirar.
– Eu não... – pôs a mão no abdômen liso. – O que fará comigo?
– Não sei bem, para ser sincera – Payne deu de ombros. – Na verdade, nem me passou pela cabeça que eu poderia ajudar nesta situação. Mas sou conhecida por curar aquilo que precisa ser curado. Repito, não sei se isso se aplica neste caso. Contudo, podemos tentar... e isso não a machucará. Isso eu posso prometer.
Layla perscrutou a expressão da lutadora.
– Por que... faria uma coisa dessas por mim?
Payne franziu o cenho e desviou o olhar.
– Você não precisa saber os motivos.
– Sim, preciso.
O perfil dela se tornou absolutamente frio.
– Você e eu somos irmãs da tirania de minha mãe, casualidades de seu plano maior de como as coisas devem ser. Estivemos as duas enjauladas em seus modos diversos, você como uma Escolhida; eu, como sua filha de sangue. Não há nada que eu não faça para ajudá-la.
Layla se recostou. Jamais se considerara uma desventura da mãe da raça. A não ser... ao pensar em seu desespero em ter uma família, seu senso de não ter raízes, sua absoluta falta de identidade além do trabalho de uma Escolhida... ela teve o que pensar. O livre-arbítrio a levava àquela situação horrenda, mas, pelo menos, ela escolhera a rota e os meios. Como membro da classe especial da Virgem Escriba, não tivera muitas escolhas, a respeito de nada em sua vida.
A respeito de nada mesmo.
Ela estava perdendo aquela gravidez, aquilo era óbvio. E se Payne achava que existia uma chance de...
– Faça o que precisar fazer – disse com voz rouca. – E obrigada, não importando o resultado.
Payne assentiu uma vez. Depois esticou as mãos, flexionando e afastando os dedos.
– Posso tocar no seu abdômen?
Layla abaixou as cobertas.
– Devo tirar a camisa?
– Não.
Melhor assim. A simples retirada da colcha lhe provocara uma nova onda de dor, a mínima mudança de peso era causa de...
– Você está sofrendo muito – murmurou a outra fêmea.
Layla não respondeu ao expor a pele do abdômen. Obviamente, sua expressão já dizia o bastante.
– Apenas relaxe. Isso não deverá lhe causar nenhum desconforto...
Quando o contato foi feito, Layla levantou a cabeça. As mãos da lutadora estavam quentes como a água de uma banheira. E igualmente calmas. Estranhamente calmas, para falar a verdade.
– Isto dói? – Payne perguntou.
– Não. Parece... – quando uma nova onda de dor se avolumava, ela agarrou os lençóis, se preparando...
Só que o pico da dor não se elevou como antes, como se a sensação fosse uma montanha íngreme, cujo topo fora arrancado.
Era o primeiro alívio que sentia desde que tudo aquilo começara.
Com um gemido de submissão, ela deixou a cabeça pender, o travesseiro amparando o repentino cansaço que a abateu pelo tanto de desconforto pelo qual seu corpo passara.
– E agora nós começamos.
De repente, a luz do abajur tremulou... e depois se apagou.
Sua iluminação, contudo, logo foi substituída.
Das mãos pálidas de Payne um brilho suave começou a ser lançado. O calor de seu toque se intensificou, o abrandamento estranho e maravilhoso parecia penetrar em sua pele, nos músculos, em cada osso que estava no caminho... indo direto para o ventre de Layla.
E, então, houve um tipo de explosão.
Com um sibilo, ela se entregou à grande onda de energia que abruptamente surgiu dentro dela, um calor que não queimava, mas fervia afastando a dor, suspendendo a agonia e arrancando-a de sua carne, como se o vapor de uma panela se dissipasse.
Mas não acabou ali. Uma grande sensação de euforia em seu corpo inteiro, com cachos dourados pulsando para fora de sua região pélvica e fluindo pelo torso até a mente e também em sua alma, e pernas e braços formigando.
Ah, que alívio pungente.
Ah, que poder incrível.
Ah, graça salvadora gentil.
A cura, contudo, não estava completa.
No meio do turbilhão, Layla sentiu... o que era aquilo? Um movimento em seu útero. Uma contração, talvez? Mas não uma cólica, não, nada disso. Mais como se o que estivesse defasado tivesse recuperado as forças.
Ela, gradualmente, deu-se conta de que batia os dentes.
Olhando para baixo, para seu corpo, ela viu que tudo tremia, e não só isso.
Sua forma física estava brilhando. Cada centímetro de sua pele era como uma cúpula de um abajur, revelando a luz que jazia por baixo, as roupas agindo como barreiras frágeis daquilo que fervia lentamente dentro dela.
Na iluminação, o rosto de Payne estava contraído, como se fosse um custo alto transferir a cura maravilhosa para outra pessoa. E Layla teria se distanciado, colocado um fim naquilo, se pudesse – porque a outra fêmea começava a parecer muito cansada. No entanto, não havia como romper a ligação. Ela não tinha o controle dos seus membros, não tinha como falar.
Aquela comunhão vital entre as duas pareceu durar uma eternidade.
Quando Payne finalmente se afastou, rompendo o elo, ela caiu da cama, formando uma pilha no chão.
Layla abriu a boca para gritar. Tentou segurar sua salvadora. Lutou contra o peso morto do corpo ainda iluminado.
Todavia, não havia nada que ela pudesse fazer.
A última coisa que ficou registrada antes que perdesse a consciência era a sua preocupação com a outra fêmea. E, depois, tudo ficou escuro.
CAPÍTULO 44
Qhuinn despertou com o pênis duro.
Estava deitado de costas e seus quadris se mexiam por conta própria, o movimento contínuo resvalava a ereção contra o peso dos lençóis e da colcha. Por um instante, enquanto se demorava naquele estado meio dormente antes de a consciência chegar, ele imaginou que era Blay criando aquela fricção, as palmas do macho subindo e descendo... num preâmbulo de mais ação oral.
Foi quando abaixou a mão para enterrar os dedos nos cabelos ruivos que percebeu estar sozinho: a mão encontrou apenas os lençóis.
Numa atitude otimista, lançou o braço para o lado, tateando o lugar ao seu lado, pronto para encontrar o corpo quente do macho.
Apenas mais lençóis. E estavam frios.
– Cacete – inspirou.
Abrindo os olhos, a realidade de onde estava o atingiu com força, murchando a sua ereção. Apesar dos encontros, aqueles dois interlúdios maravilhosos e extremamente sensuais, Blay estava, naquele exato instante, acordando ao lado de Saxton.
Provavelmente fazendo sexo com o cara.
Ah, Deus, ele ia vomitar.
A ideia de Blay tocando em outro, cavalgando em outro, lambendo e afagando outro – seu maldito primo, para ser bem claro – era quase tão insuportável quanto a maldita situação de Layla. A verdade era que, graças ao que acontecera, qualquer atração que Qhuinn sentisse pelo cara aumentara em vez de diminuir.
Maravilha. Outra rodada de boas notícias.
Foi sem nenhum entusiasmo que Qhuinn se arrastou para fora da cama e entrou no banheiro. Não acendeu a luz, não tinha interesse algum em ver que sua aparência era a mesma da merda de um cachorro, mas barbear-se só pelo toque não era a melhor das ideias.
Ao apertar o interruptor, piscou com força, e uma dor de cabeça começou a latejar atrás de ambos os olhos. Sem dúvida precisava comer de novo, mas que merda, as exigências constantes de seu corpo estavam acabando com ele.
Abrindo a torneira, ele pegou o gel de barbear e colocou um punhado na palma. Esfregou as mãos para criar espuma e pensou em seu primo. Ele tinha a impressão, embora não soubesse com certeza, de que Saxton usaria um daqueles pincéis antigos para espalhar a espuma no rosto. E nada de lâminas Gilette para ele. Muito provavelmente ele tinha um daqueles instrumentos de barbeiro com cabo em madrepérola.
O pai de Qhuinn tinha um desses. E seu irmão recebera um com suas iniciais após sua transição.
Junto ao anel de sinete.
Bem, ótimo para eles. Além do que, já que ambos estavam mortos, não era como eles continuassem se barbeando.
Quando o rosto ficou coberto de branco, como o cenário lá de fora, ele pegou sua lâmina comum Mach 3 com cabeça descartável...
Sem nem saber por que, achou que devia pegar uma lâmina nova.
Sim, uma supernova e ultracortante.
Qhuinn revirou os olhos para si mesmo. Nada como se concentrar em três pequenas lâminas e uma tira umidificadora. Algo bem lógico.
Depois de se admoestar, ele começou a vasculhar as gavetas do gabinete, puxando-as uma a uma, inventariando os itens de tolices de higiene que nunca usava, nem jamais sequer perdia tempo olhando-as.
Puxando a última, a mais próxima do chão, parou. Franziu o cenho. Agachou.
Havia uma caixinha preta de veludo ali, do tipo em que se colocam joias. Só que ele não tinha nenhuma, e muito menos da Reinhardt, aquela loja esnobe no centro. Como ninguém mais ficava em seu quarto, ele se perguntou se, talvez, aquilo estivesse ali desde que ele se mudara e ele simplesmente nunca o vira.
Tirando a caixinha, levantou a tampa e...
– Filho da mãe.
Dentro, como se valesse muita coisa, estavam todos os seus brincos de argola, bem como o piercing que costumava usar no lábio inferior.
Fritz deve tê-los juntado ao limpar o quarto uma noite e guardado na caixinha. Única explicação possível, porque Qhuinn não se importara com eles depois de tirá-los, um a um. Simplesmente os jogara no fundo de uma das gavetas do banheiro.
Qhuinn mexeu nas argolas de aço, relembrando quando as comprara e colocara. Seu pai ficara mortificado; a mãe também – ao ponto de se retirar da Última Refeição e ficar trancada no quarto por 24 horas seguidas depois de ele entrar flanando na sala de jantar usando-as.
O colocador de piercings lhe dissera para não usá-los até que as tachas utilizadas para perfurar tivessem a chance de cicatrizar. Mas esse conselho era para humanos. Em poucas horas, estava tudo perfeito e ele fizera a troca.
No banheiro de Blay, para falar a verdade.
Qhuinn franziu a testa, lembrando-se do momento em que pisara no quarto do cara. Blay estava na cama, acalentando uma Corona, assistindo TV. A cabeça dele se virou, com sua expressão franca e relaxada... até dar uma olhada em Qhuinn.
Seu rosto se contraiu mesmo que minimamente. De um jeito que, a menos que você conhecesse bem, muito bem uma pessoa, jamais teria percebido. Mas Qhuinn notara.
Naquela época, deduzira que seu estilo obviamente gótico fosse um tantinho demais para o senhor Conservador. Mas agora, em retrospecto, ele se lembrou de algo mais. Blay voltara a se concentrar na TV de plasma... e, casualmente, cobrira o colo com uma almofada.
Ele deve ter ficado excitado.
Enquanto Qhuinn repassava a cena inteira na mente, seu próprio sexo voltava a engrossar.
Só que aquilo era uma completa perda de tempo, não era?
Fitando as malditas argolas, pensou em sua rebeldia, na raiva e na ideia sem noção do que precisava ter para ser feliz.
Uma fêmea. Se encontrasse uma que o aceitasse.
Que... mentira... fora aquilo.
Engraçado, a covardia aparecia em muitas formas, não é? Não era necessário se encolher num canto, tremendo e choramingando como um gatinho. Inferno, não. Você pode ser um grandalhão barulhento cheio de marra e com o rosto cheio de piercings e um rosnado para mostrar para o mundo... e ainda assim não passar de um covarde filho da puta. Afinal, Saxton podia vestir ternos de três peças e gravatas e sapatos, mas o macho sabia quem era, e não tinha medo de ter aquilo que desejava.
E, olha só, Blay estava acordando ao lado do cara.
Qhuinn fechou a tampa e recolocou os piercings onde os encontrara. Depois se olhou no espelho. O que estava fazendo mesmo?, pensou ao fitar seu reflexo.
Ah, sim. Barbeando-se.
Era isso mesmo.
Cerca de vinte minutos mais tarde, Qhuinn saiu do quarto. Andou pelo corredor das estátuas, passou pelas portas fechadas do escritório de Wrath e continuou em frente.
Enquanto avançava, foi difícil olhar para a sala de estar do segundo andar, difícil permanecer controlado quando aquele sofá surgiu no seu campo de visão.
Nunca mais olharia para aquela peça de mobília do mesmo modo. Inferno, talvez todos os sofás estivessem perdidos para ele, para sempre.
À porta de Layla, ele se inclinou encostando o ouvido na madeira. Quando não ouviu nada, perguntou-se exatamente o que achava que descobriria daquele modo.
Deu uma batida suave. Quando não houve resposta, sentiu um aperto de medo irracional na garganta e, sem pensar duas vezes, abriu a porta.
A luz invadiu a escuridão.
Seu primeiro pensamento foi que ela tivesse morrido; que Havers, o filho da puta, tivesse mentido, e que o aborto tivesse saído do controle e a matado: Layla estava imóvel ao encontro dos travesseiros, a boca ligeiramente entreaberta, as mãos cruzadas sobre o peito como se ela tivesse sido arrumada por um agente funerário com respeito pelos mortos.
Só que... algo estava diferente, e ele precisou de um minuto para perceber o que era.
Não havia mais o cheiro sobrepujante do sangue. Na realidade, somente a fragrância delicada de canela marcava o ar, refrescando-o de um modo que iluminava o quarto inteiro.
Será que o aborto finalmente chegara ao fim?
– Layla? – ele a chamou, mesmo tendo dito que se a encontrasse dormindo, não a perturbaria.
Foi um alívio ver as sobrancelhas se mexendo quando seu nome foi captado pelo cérebro, mesmo sob o véu do sono.
Ele teve a sensação de que se a chamasse de novo, ela acordaria.
Parecia cruel forçar-lhe a consciência. O que ela teria para recebê-la quando acordasse? A dor que sentia? A sensação de perda?
Cacete.
Qhuinn saiu silenciosamente, fechou a porta atrás de si e continuou ali. Não sabia o que fazer. Wrath lhe dissera para ficar em casa, mesmo se John Matthew saísse – ele deduziu que aquilo fosse uma espécie de folga misericordiosa de seus deveres de ahstrux nohtrum. E estava grato por isso. Havia tão pouco que pudesse fazer por Layla – pelo menos podia ficar por perto caso ela precisasse de alguma coisa. Um refrigerante. Uma aspirina. Um ombro para chorar.
Você fez isso a ela.
A julgar pelo toque que saía da maldita sala de estar, ele deduziu que perdera a Primeira Refeição. Nove horas. Isso mesmo. Acabara dormindo demais, e isso era bom. Se ele tivesse de se sentar à mesa e passar 45 minutos na companhia de quase duas dúzias de pessoas que tentariam não encará-lo, ele teria perdido a porra da cabeça.
O som de alguém andando no vestíbulo logo abaixo fez com que ele levantasse a cabeça.
Sem nenhum plano ou pensamento específico, ele se aproximou da balaustrada e olhou para baixo.
Payne, a irmã valentona de V., estava saindo da sala de jantar.
Ele não conhecia muito bem aquela fêmea, mas a respeitava imensamente. Seria impossível não admirar, dado o modo como se portava no campo de batalha... Durona, verdadeiramente durona. Naquele instante, porém, a shellan do doutor Manello parecia ter levado uma surra de bar: caminhava lentamente, os pés se arrastando pelo piso de mosaico, o corpo encurvado, a pegada no braço de seu par parecendo ser a única coisa que a sustentava.
Será que ela se machucara em alguma luta corpo a corpo?
Não havia cheiro de sangue.
O doutor Manello disse algo para ela que ele não conseguiu ouvir, mas depois o cara indicou a direção da sala de bilhar com a cabeça – como se ele estivesse perguntando se ela queria ir para lá.
Tomaram aquela direção a passos de caramujo.
Já que não gostava quando as pessoas o encaravam, Qhuinn recuou da grade e esperou até que o caminho estivesse livre. Depois correu escada abaixo.
Comida. Exercícios. Voltar a ver Layla.
Aquela seria a sua noite.
Seguindo para a cozinha, ele se viu imaginando onde Blay estaria. O que estaria fazendo. Se tinha saído para lutar ou se tinha ficado em casa e...
Visto que não sabia onde Saxton estava, ele pôs um ponto final naquela linha de questionamentos.
Se Qhuinn não tivesse de fazer seu turno e pudesse passar um tempo com o cara, ele sabia muito bem o que Blay estaria fazendo.
E Saxton, seu primo filho da puta, não era nenhum tolo.
CONTINUA
CAPÍTULO 37
Enquanto Blay girava o anel de sinete da família no dedo, seu cigarro aceso queimava lentamente na outra mão, e seu traseiro ficava adormecido... e ninguém passava pelas portas do átrio.
Sentado no degrau de baixo da grande escadaria da mansão, ele não respeitaria a promessa feita à mãe de ir para casa. Não naquela noite, pelo menos. Depois da loucura da noite anterior, do pouso forçado do avião e do drama subsequente, Wrath ordenara que a Irmandade e os lutadores tirassem 24 horas de folga. Por isso, tecnicamente, ele deveria ligar para os pais e dizer à mãe que caprichasse na mussarela e no molho à bolonhesa.
Mas de jeito nenhum ele sairia daquela casa. Não depois de ouvir os gritos vindos do quarto de Layla, e de vê-la praticamente sendo carregada escadaria abaixo.
Naturalmente, Qhuinn esteve ao lado dela.
John Matthew não.
Portanto, o quer que estivesse acontecendo, pelo visto superava o ahstrux nohtrum, e isso significava que... ela só podia estar perdendo o filho. Somente algo sério assim possibilitaria um passe livre.
Enquanto ele continuava parado como uma porta, sem nada além da sua preocupação para lhe fazer companhia, naturalmente sua mente resolveu seguir o caminho errado: merda, fora mesmo para a cama com Qhuinn na noite passada?
Dando uma tragada em seu Dunhill, ele expeliu uma imprecação.
Acontecera mesmo?
Deus, essa pergunta vinha martelando a sua cabeça desde o minuto em que despertou de um sonho sensual, com uma ereção que parecia fazer pensar que o outro macho dormia ao seu lado.
Revendo as cenas pela centésima vez, só no que ele conseguia pensar era... como um plano podia fracassar. Depois de ter rejeitado Qhuinn quando ele se pôs de joelhos, voltara para o próprio quarto e andara de um lado para o outro, um debate que não interessava ter consigo mesmo transformando seu cérebro em fois gras.
Ele tomara a decisão correta ao sair. Mesmo. Tinha sim.
O problema foi que a decisão não se sustentou. Enquanto as horas do dia passavam, tudo o que ele conseguia pensar foi a vez em que o pai o flagrou roubando uma caixa de cigarros do doggen da família. Na época, ele era um jovem pré-trans e, como castigo, seu pai o obrigou a se sentar do lado de fora e fumar cada um daqueles Camels sem filtro. Ele se sentiu muito mal e demorou mais de dois anos para sequer tolerar fumo passivo.
Portanto, esse fora o seu segundo plano.
Fazia tempo demais que era louco por Qhuinn, mas tudo não passava de algo hipotético, dividido em fantasias de modo que ele conseguisse suportar. Nada de uma vez só, nada da coisa sobrecarregada, absoluta e arrasadora – e ele sabia muito bem que na vida real, Qhuinn não se conteria nem relaxaria. O “plano” fora ter a experiência concreta, e descobrir que aquilo não passava de apenas sexo brutal. Ou, inferno, descobrir que não era nem sexo bom.
Não era de se esperar que você fumasse um maço inteiro de cigarros... só para querer mais.
Deus todo-poderoso, foi a primeira vez em que a realidade foi muito melhor do que uma fantasia, a absolutamente melhor experiência erótica de toda a sua vida.
Depois, porém, a gentileza que Qhuinn demonstrara fora insuportável.
Na verdade, enquanto Blay rememorava aquela ternura, ele deu um salto de onde estava e começou a marchar ao redor do mosaico de macieira – não tinha para onde ir.
Naquele instante a porta se abriu. Porém, não a de entrada.
A da biblioteca.
Enquanto olhava de relance por sobre o ombro, Saxton surgiu de lá. Ele parecia saído do inferno, e não só porque, por mais veloz que fosse a sua recuperação, ele ainda tinha um inchaço residual na mandíbula graças ao ataque de Qhuinn.
Que lindo, Blay pensou. Bela maneira de expressar seu desapontamento quanto ao comportamento de alguém: deixe-o transar com você depois que ele tentou estrangular seu ex.
Quaaanta classe.
– Como você está? – Blay perguntou, e não por convenção social.
Foi um alívio Saxton se aproximar. E encará-lo. E sorrir-lhe um pouco como se estivesse determinado a fazer um esforço.
– Estou exausto. E faminto. E agitado.
– Gostaria de comer comigo? – sugeriu Blay num rompante. – Também estou me sentindo assim, e a única coisa em que posso dar jeito é a fome.
Saxton assentiu com a cabeça e enfiou as mãos nos bolsos da calça.
– Ideia brilhante.
Os dois acabaram na cozinha, sentados ante a castigada mesa de carvalho, lado a lado, de frente para o resto do cômodo. Com um sorriso contente, Fritz imediatamente passou para o seu modo “provedor de alimentos” e, veja só, dez minutos mais tarde, o mordomo servia uma tigela de cozido de carne para cada um, além de uma baguete para dividirem, uma garrafa de vinho tinto e uma porção de manteiga num pratinho ao lado.
– Volto em seguida, meus senhores – disse o mordomo com uma reverência. E depois ele prosseguiu expulsando todos da cozinha, desde o doggen que descascava legumes até os que poliam a prataria e os que limpavam as janelas de uma alcova logo além dali.
Quando a porta se fechou após a saída do último criado, Saxton disse:
– Tudo o que nos falta é uma vela, aí isto seria um encontro – o macho se inclinou para a frente e começou a comer com modos impecáveis. – Bem, suponho que precisaríamos de mais algumas coisas, não?
Blay olhou de esguelha enquanto apagava o cigarro. Mesmo com as olheiras e o hematoma desvanecendo no pescoço, o advogado era muito bonito de se olhar.
Por que ele não poderia simplesmente...
– Não repita, de novo, que sente muito – Saxton limpou a boca com o guardanapo e sorriu. – Não é necessário, nem apropriado.
Assim, sentado ao lado dele, não parecia que tinham acabado de romper, nem que ele estivera com Qhuinn. Será que as últimas noites aconteceram mesmo?
Até parece... O que ocorreu com Qhuinn não teria acontecido se ele e Sax ainda estivessem juntos. Isso era bem claro para ele: uma coisa era se masturbar secretamente, e isso já era ruim o bastante. Aquilo tudo? De jeito nenhum.
Droga, apesar do fato de ele e Saxton terem rompido, ele ainda sentia que devia confessar sua transgressão... mesmo que Qhuinn estivesse certo e que Saxton já tivesse seguido em frente, por assim dizer.
Enquanto comiam em silêncio, Blay balançou a cabeça, ainda que não tivessem lhe feito nenhuma pergunta e nem estivessem conversando. Ele só não sabia o que fazer. Às vezes, as mudanças da vida surgiam com tanta rapidez, e com tamanha impetuosidade, que não havia como acompanhar a realidade. Levava tempo para as coisas se assentarem, um novo equilíbrio se reestabelecia só depois de algum tempo em que seu cérebro batia de um lado contra o outro das paredes da sua cabeça.
Ele ainda estava na fase de balançar.
– Já sentiu alguma vez como se as horas fossem medidas em anos? – perguntou Saxton.
– Ou décadas. Sim. Absolutamente – Blay olhou de novo. – Na verdade, eu também estava pensando nisso.
– Que par de mórbidos nós somos.
– Talvez devêssemos vestir preto.
– Braçadeiras? – sugeriu Saxton.
– Não, preto dos pés à cabeça.
– E o que eu faço com o meu gosto por cores? – Saxton apontou para o lenço laranja Hermès no bolso da sua lapela. – Bem, pode-se muito bem usar todo tipo de acessórios.
– Certamente isso explica a teoria por trás dos aparelhos ortodônticos.
– Flamingos de plástico rosa.
– A franquia da Hello Kitty.
Juntos, os dois explodiram numa gargalhada. Nem era assim tão engraçado, mas o humor não era a questão ali. Mas quebrar o gelo. Voltar ao que era antes. Aprender a se relacionarem de um modo diverso.
Quando convergiram para um riso mais contido, Blay passou o braço ao redor dos ombros do macho e lhe deu um abraço rápido. Foi bom que Saxton tivesse relaxado um pouco, aceitando aquilo que lhe era oferecido. Não que Blay acreditasse que por estarem sentados juntos, partilhando uma refeição e uma bela risada, tudo, de repente, seria um navegar suave. Nada disso. Era estranho pensar que Saxton estivera com outra pessoa, e ainda mais incrível saber que ele fizera o mesmo – principalmente com quem o fizera.
Não se passava de amantes de quase um ano para companheiros de risadas em um ou dois dias.
Podia-se, porém, começar a forjar um novo caminho.
E colocar um pé na frente do outro.
Sempre haveria um lugar em seu coração para Saxton. O relacionamento que tiveram foi o seu primeiro não só com um macho, mas com qualquer um. E muitas coisas boas aconteceram, coisas que ele carregaria consigo como lembranças que valiam o espaço em sua mente.
– Deu uma olhada nos jardins de trás? – Saxton perguntou ao lhe oferecer o pão.
Blay partiu um pedaço e depois espalhou manteiga por cima enquanto Saxton também pegava um pouco.
– Estão bem ruins, não?
– Lembre-me de nunca tentar cortar grama com um Cessna.
– Você não curte jardinagem.
– Bem, para o caso de um dia eu tentar – Saxton se serviu de vinho. – Aceita?
– Sim, por favor.
E foi assim que as coisas aconteceram. Durante o cozido de carne até a torta de pêssegos, que milagrosamente apareceu diante deles graças à impecabilidade de Fritz. Quando a última garfada e a última limpada com guardanapo foram dadas, Blay se reclinou contra o encosto acolchoado do banco embutido e inspirou fundo.
Que se referia a muito mais do que uma simples barriga cheia.
– Bem – disse Saxton, ao apoiar o guardanapo ao lado do prato de sobremesa –, acredito que finalmente vou poder tomar o banho de banheira que você me sugeriu há algumas noites.
Blay abriu a boca para observar que os sais de banho que o macho preferia ainda estavam em seu banheiro. Ele os vira no gabinete quando fora pegar o creme de barbear reserva ao cair da noite.
Só que... ele não sabia se devia mencionar isso. E se Saxton pensasse que ele estava lhe pedindo para ir à sua banheira? Seria um lembrete muito grande de como as coisas tinham mudado e do por quê? E se...
– Tenho esse novo tratamento à base de óleos que estou morrendo de vontade de experimentar – explicou Saxton ao deslizar pelo banco. – Ele finalmente chegou do exterior hoje. Faz séculos que espero por ele.
– Parece maravilhoso.
– Mal posso esperar – Saxton ajustou o paletó nos ombros, ajeitou os punhos e depois acenou com a mão, saindo sem nenhum indício de complicações ou de tensão em seu rosto.
O que, de fato, ajudava muito.
Dobrando o próprio guardanapo, deixou-o de lado, e saiu de trás da mesa, esticando os braços acima da cabeça e curvando-se para trás, estalando muito bem a coluna.
A sua tensão voltou no segundo em que pisou no átrio novamente.
Que diabos estava acontecendo com Layla?
Maldição, ele nem podia ligar para Qhuinn. Aquele drama não era seu, nem estava ligado a ele de modo algum. Quando se tratava de uma gestação, ele não era diferente de nenhum outro macho daquela casa que também ouvira ou vira o show e, sem dúvida, estava tão preocupado quanto ele. Mas também não tinha direito a nenhuma notícia antecipada.
Uma pena que sua barriga, agora cheia, não concordasse com isso. Pensar em Qhuinn perdendo o filho o fez considerar seriamente a localização do banheiro mais próximo da porta de entrada, só para o caso de uma evacuação rápida ser ordenada pelo fundo da sua garganta.
No fim, ele se viu subindo para a sala de estar do segundo andar. Daquele lugar, ele não teria dificuldade em ouvir a porta da frente, e não estaria esperando abertamente...
As portas do escritório de Wrath se abriram, e John Matthew emergiu do santuário do Rei.
Imediatamente, Blay atravessou a sala de espera, pronto para ver se, talvez, o cara sabia de alguma coisa, mas se conteve ante a expressão de John.
Perdido em pensamentos. Como se tivesse recebido notícias pessoais do tipo perturbador.
Blay ficou para trás enquanto o camarada seguia no caminho contrário, na direção do corredor das estátuas, sem dúvida para desaparecer no próprio quarto.
Parecia que as coisas não andavam bem nas vidas dos outros também.
Maravilha.
Com uma imprecação baixa, Blay deixou o amigo em paz e voltou a caminhar e... a esperar.
Muito mais ao sul, na cidade de West Point, Sola estava pronta para entrar no segundo andar da casa de Ricardo Benloise, através da janela ao fim do corredor principal. Fazia meses desde que estivera lá dentro, mas ela contava com o fato de que seu contato na segurança por ela cuidadosamente manipulado ainda fosse o seu amigo.
Havia dois fatores-chave para invadir com sucesso qualquer casa, prédio, hotel ou instalação: planejamento e velocidade.
Ela possuía os dois.
Pendurada no cabo que lançara no telhado, ela tirou um instrumento de dentro do bolso da parca, segurando-o no canto direito da janela dupla. Iniciado o sinal, ela esperou, olhando fixamente para a luzinha vermelha que brilhava na tela à sua frente. Se por algum motivo ela não mudasse, ela teria de entrar por uma das águas-furtadas que dava para o jardim, o que seria um pé no saco...
A luz ficou verde com um sinal, e ela sorriu ao pegar mais instrumentos.
Pegando um copo de sucção, ela o empurrou no meio do painel, imediatamente abaixo da tranca e depois girou a coisa com o cortador de vidro. Um empurrão rápido e o espaço que possibilitava a entrada do seu braço foi criado.
Depois de deixar o círculo de vidro cair com suavidade na passadeira oriental, ela enfiou o braço e o virou, para soltar a trava de latão que mantinha a janela fechada.
O ar quente lhe deu boas-vindas, como se a casa estivesse contente por vê-la mais uma vez.
Antes de entrar, ela olhou ao redor. Relanceou para o caminho de carros. Inclinou-se para fora para ver o que conseguia encontrar nos jardins escuros.
Sentia como se alguém a estivesse observando... não tanto no caminho de carro até a cidade, mas depois que parara no estacionamento e colocara os esquis. Todavia, não havia ninguém por perto – pelo menos, ninguém que ela conseguisse enxergar – e por mais que a atenção fosse essencial em seu ramo de trabalho, a paranoia era uma perda de tempo perigosa.
Ela precisava deixar isso de lado.
Voltando a se concentrar no jogo, esticou as mãos enluvadas e suspendeu o traseiro e as pernas por cima e através da janela. Ao mesmo tempo, relaxou a tensão do cabo para que ele ficasse folgado e permitisse a sua entrada. Aterrissou sem nenhum som, graças não só ao tapete que cobria o longo corredor como também aos seus calçados de solas macias.
O silêncio era outro critério importante no tocante a realizar um trabalho com sucesso.
Ela parou onde estava por um breve momento. Nenhum som na casa, mas isso não significava nada necessariamente. Ela tinha quase certeza de que o alarme de Benloise fosse silencioso, e mais certeza ainda de que o sinal não iria para a força policial, nem a local, tampouco a estadual: ele gostava de cuidar das coisas particulares de modo privado. E Deus bem sabia, com o tipo de força braçal que ele contratava, havia poder suficiente para tal.
Felizmente, contudo, ela era boa no que fazia, e Benloise e seus capangas não estariam em casa até perto do nascer do sol, afinal, ele vivia a vida de um vampiro.
Por algum motivo, a palavra que começava com “v” a fez pensar no homem que aparecera ao lado do seu carro e que desaparecera como num passe de mágica.
Loucura. E a única vez em sua lembrança recente que alguém a fazia parar para pensar. Na verdade, depois de ser confrontada daquela forma, ela estava realmente considerando não voltar à casa de vidro no rio, embora houvesse motivos mais do que válidos para isso. Não por ela se preocupar em se machucar fisicamente. Deus bem sabia que ela era perfeitamente capaz de se defender.
Era a atração.
Mais perigosa do que qualquer pistola, faca, ou punho, em sua opinião.
Com passadas ágeis, Sola trotou pelo tapete, saltitando na ponta dos pés, seguindo para a suíte principal que dava para o jardim dos fundos. A casa ainda tinha o mesmo cheiro de que se lembrava: mobília antiga e lustra-móveis, e ela conhecia o bastante para se ater ao lado esquerdo da passadeira. Nenhum rangido daquele lado.
Quando chegou à suíte principal, a porta pesada de madeira estava fechada, e ela pegou a chave micha antes mesmo de testar a maçaneta. Benloise tinha duas patologias: limpeza e segurança. A impressão dela, entretanto, era que a segunda era mais crítica na galeria no centro de Caldwell do que em seu lar. Afinal, Benloise não mantinha debaixo do seu teto nada além de objetos de arte com seguros até o último centavo, e a ele próprio durante o dia – quando estava cercado por diversos seguranças e armas.
Na verdade, devia ser por isso que ele era uma coruja no centro da cidade. Isso significava que a galeria nunca ficava sem supervisão: ele aparecia depois do expediente e sua equipe de trabalho legítima estava lá durante o dia.
Como uma gatuna, ela certamente preferia entrar em lugares vazios.
Dito isso, mexeu no mecanismo de tranca da porta, abrindo-a, e entrou no quarto. Inspirou profundamente, o ar estava permeado com a fumaça do tabaco e da colônia refrescante de Benloise.
A combinação a fez pensar nos filmes em preto e branco de Clark Gable por algum motivo.
Com as cortinas puxadas e nenhuma luz acesa, ali estava absolutamente escuro, mas ela tirara fotografias dos quartos quando fora a uma festa ali, e Benloise não era o tipo de homem que mudava as coisas de lugar. Inferno, toda vez que uma nova exibição era instalada na galeria de arte, ela praticamente sentia o tremor debaixo da pele dele.
Medo de mudança era uma fraqueza, sua avó sempre dizia.
Obviamente facilitava as coisas para ela.
Mais devagar, ela avançou dez passos até o meio do quarto. A cama estaria à esquerda encostada na parede comprida. À sua frente estavam as janelas altas que davam para o jardim. À direita, haveria uma cômoda, uma escrivaninha e algumas cadeiras, e a lareira que nunca era usada porque Benloise detestava o cheiro de madeira queimada.
O alarme de segurança se localizava entre a entrada do banheiro e a cabeceira ornamentada da cama, ao lado do abajur que se elevava noventa centímetros do criado-mudo.
Sola deu um giro ao redor de si mesma. Deu quatro passos. Tentou encontrar o pé da cama... e o encontrou.
Passo lateral, um, dois, três. De frente para o flanco do colchão king-size. Outro passo lateral para desviar da mesinha de cabeceira e do abajur.
Sola esticou o braço esquerdo...
E lá estava o painel de segurança, bem onde deveria.
Abrindo a portinhola, usou uma lanterna de bolso que prendeu entre os dentes para iluminar o circuito. Pegando outro instrumento da mochila, conectou fios a fios, interceptando sinais, e com a ajuda de um laptop em miniatura e de um programa que um amigo seu desenvolvera, criou um circuito fechado dentro do sistema de alarme de modo que, enquanto o roteador estivesse no lugar, os detectores de movimento que ela estava para disparar não seriam registrados.
No que se referia à placa-mãe, nada pareceria anormal.
Deixando o laptop pendurado pelos fios, saiu do quarto, chegou ao corredor, e tomou as escadas para o primeiro andar.
O lugar estava perfeitamente decorado, pronto para uma foto de revista – ainda que, claro, Benloise protegesse demais a sua privacidade para permitir que suas coisas fossem fotografadas para o consumo público. Com passos rápidos, ela passou pelo hall de entrada, pela sala à esquerda e entrou no escritório.
Andando em meio à penumbra, ela bem que preferiria tirar a parca de camuflagem branca e as calças para neve: fazer aquilo em seu body preto seria um clichê que, entretanto, seria bem prático. Não havia tempo, porém, e ela estava mais preocupada em não ser vista do lado de fora do que ali, na casa vazia.
O espaço de trabalho pessoal de Benloise era, como todo o resto debaixo daquele teto, mais um cenário montado do que algo funcional. Ele, na verdade, não usava a imensa escrivaninha, nem se sentava no minitrono, tampouco lia qualquer um dos livros em capa de couro das prateleiras.
Todavia, ele transitava por aquele cômodo. Uma vez ao dia.
Certa vez, num momento de tranquilidade, ele lhe dissera que antes de sair, todas as noites, passeava pela casa olhando seus pertences, lembrando a si mesmo da beleza das suas coleções e de sua casa.
Como resultado dessa informação e de algumas outras coisas, Sola há muito deduzira que o homem crescera na pobreza. Primeiro porque, quando conversavam em espanhol ou em português, seu sotaque pertencia à classe baixa, mesmo que de modo sutil. Segundo, os ricos não valorizavam seus pertences como ele o fazia.
Nada era raro aos ricos, e isso significava que eles davam como certas todas as coisas.
O cofre estava escondido atrás da escrivaninha numa seção de estandes que era liberada por um botão localizado na gaveta inferior do lado direito.
Ela descobrira isso graças a uma minúscula câmera escondida que colocara do lado oposto durante aquela festa.
Após a abertura do mecanismo, um corte de sessenta por noventa centímetros na prateleira rolou para a frente e deslizou para o lado. E lá estava ela: uma caixa grossa de aço, cujo fabricante ela reconhecia.
Pensando bem, depois de invadir centenas de espaços, você acaba conhecendo intimamente os fabricantes. E ela aprovava aquela escolha. Se precisasse ter um cofre, era daquele tipo que ela pegaria e, sim, ele o prendera ao chão.
O maçarico que trouxera na mochila era pequeno, mas poderoso, e enquanto ela acendia a ponta, a chama chamuscou com um sibilo substancial e um brilho branco e azul.
Aquilo levaria tempo.
A fumaça do metal queimado irritava seus olhos, o nariz e a garganta, mas ela manteve a mão firme enquanto produzia um quadrado na frente do painel. Ela conseguia explodir a porta de alguns cofres, mas o único jeito com um daqueles era do modo antigo.
Que levava uma eternidade.
No entanto, ela conseguiu.
Deixando a pesada seção da porta de lado, ela mordeu a ponta da lanterna mais uma vez e se inclinou. Uma prateleira continha joias, cautelas de ações e alguns relógios de ouro que ele deixara à mão. Havia uma pistola que ela seria capaz de apostar que estaria carregada. Nenhum dinheiro.
Pensando bem, com Benloise sempre havia tanto dinheiro disponível que fazia sentido ele não se dar ao trabalho de colocá-lo no cofre.
Maldição. Não havia nada ali que valesse apenas cinco mil dólares.
Afinal, naquele trabalho, ela só estava atrás daquilo que lhe era devido por direito.
Com uma imprecação, ela se apoiou nos calcanhares. Na verdade, não havia nada no cofre que valesse menos do que vinte e cinco mil dólares. E não tinha como ela partir a metade da pulseira de um relógio de ouro – porque, como diabos conseguiria revender a coisa?
Um minuto se passou.
O segundo.
Ao diabo com aquilo, ela pensou ao recolocar o painel que cortara contra o cofre e deslizar a prateleira de volta ao seu lugar. Levantando-se, olhou ao redor da sala com a lanterna de bolso. Os livros eram todos edições de colecionadores de primeiras edições de antiguidades. A arte nas paredes e sobre as mesas não era somente muito cara, como difícil de transformar em dinheiro sem ser debaixo dos panos... para as pessoas intimamente ligadas a Benloise.
Mas, que droga, ela não sairia sem seu dinheiro, maldição...
Abruptamente, sorriu para si mesma, a solução se tornando muito clara.
Por vários anos no curso da civilização humana, o comércio só existira e sobrevivera na base da troca. Ou seja, um indivíduo trocava bens ou serviços por outros de mesmo valor.
Em todos os trabalhos que realizara, ela jamais considerara acrescentar os custos auxiliares aos seus alvos: novos cofres, novos sistemas de segurança, novos protocolos de segurança. Ela podia apostar que isso era caro – ainda que não tão caro quanto o que ela costumava tomar. E ela entrara ali deduzindo que esses custos adicionais seriam arcados por Benloise – um tipo de prejuízo monetário pelo que ele roubara dela.
No entanto, eles agora eram a questão.
No caminho de volta à escada, observou as oportunidades disponíveis... e, no fim, foi até uma escultura de Degas de uma pequena bailarina que fora colocada na lateral de um nicho. A figura em bronze da garotinha era o tipo de coisa que sua avó teria adorado, e talvez por isso, dentre tantas peças, foi aquela a lhe chamar a atenção.
A luz que fora colocada no teto acima da estátua estava desligada, mas a obra-prima ainda assim parecia brilhar. Sola adorou especialmente a saia em tutu, a delicada ainda que rígida explosão de tule delineada por metal entrelaçado que capturava perfeitamente o que deveria ser maleável.
Sola se aproximou da base da escultura, passou os braços ao redor dela, e concentrou toda a sua força em girar a sua posição não mais do que cinco centímetros.
Depois correu para as escadas, retirou os clipes do roteador e do laptop do painel de alarme na suíte principal, trancou novamente a porta e seguiu para a janela na qual cortara um buraco.
Estava de volta nos esquis, deslizando na neve não mais do que quatro minutos mais tarde.
Apesar do fato de não ter nada nos bolsos, ela sorria ao deixar a propriedade.
CAPÍTULO 38
Quando a Mercedes finalmente parou na entrada da mansão da Irmandade, Qhuinn saiu primeiro e foi para a porta em que Layla estava. Quando a abriu, os olhos dela encontraram os dele.
Ele soube que jamais se esqueceria da aparência dela. A tez estava branca como um papel e parecia tão fina quanto um, a bela estrutura óssea se esticando sobre a cobertura de pele. Os olhos estavam encovados no crânio. Os lábios, finos e inexpressivos.
Naquele instante, ele teve um vislumbre de como ela ficaria ao morrer, não importando quantas décadas e séculos isso fosse levar para acontecer.
– Eu carrego você – disse ele, inclinando-se para pegá-la no colo.
O modo como ela não discutiu lhe contou exatamente o pouco que restava dela.
Quando as portas de entrada foram abertas por Fritz, como se o mordomo estivesse esperando pela chegada deles, Qhuinn se arrependeu de tudo: do sonho que acalentara por um instante durante o cio dela. A esperança desperdiçada. A dor física pela qual ela passava. A angústia emocional que ambos atravessavam.
Você fez isso com ela.
Na época, quando a servira, ele só se concentrara no resultado positivo do qual esteve tão certo.
Agora, depois de tudo, com os coturnos fincados na realidade sólida e fétida? Não valia a pena. Mesmo a possibilidade de um filho saudável não valia aquele sacrifício.
O pior de tudo era testemunhar o sofrimento dela.
Ao carregá-la para dentro da casa, rezou para que não houvesse uma grande plateia. Ele só gostaria de poupá-la de tudo, de qualquer coisa, mesmo do simples fato de desfilar diante de rostos tristes e preocupados.
Não havia ninguém por perto.
Qhuinn subiu os degraus dois de cada vez e, ao chegar ao segundo andar, as grandes portas duplas do escritório de Wrath abertas o fizeram praguejar.
Pensando bem, o Rei era cego.
Enquanto George emitiu um latido de boas-vindas, Qhuinn apenas passou pela frente, indo direto para o quarto de Layla. Abrindo a porta com um chute, descobriu que o doggen estivera ali e limpara tudo, arrumando a cama, decerto tendo até trocado os lençóis, e também havia um vaso de flores frescas.
Ao que tudo levava a crer, ele não era o único disposto a ajudar em qualquer coisa que pudesse.
– Quer trocar de roupa? – perguntou ao fechar a porta com outro chute.
– Quero tomar banho...
– Vamos providenciar isso.
– ... mas estou com muito medo. Eu não quero... ver, se é que me entende.
Ele a deitou e se sentou ao seu lado na cama. Colocando uma mão em sua perna, esfregou-lhe o joelho com o polegar, de um lado para o outro.
– Sinto muito – disse ela com pesar.
– Droga... Não, não faça isso. Jamais pense nem diga isso, está bem? Isto não é culpa sua.
– De quem mais é?
– Isso não vem ao caso.
Merda, ele não conseguia acreditar que o processo do aborto duraria mais ou menos uma semana. Como podia ser possível...
A careta que contraiu o rosto de Layla revelou a ele que uma cólica a assolava novamente. Olhando de relance para trás, esperando ver a doutora Jane, descobriu que estavam sozinhos.
O que garantiu, mais do que tudo, que não havia nada a ser feito.
Qhuinn deixou a cabeça pensa e segurou a mão dela.
Aquilo começara com os dois.
E estava terminando com os dois.
– Acho que gostaria de dormir um pouco – disse Layla ao apertar a mão dele. – Você também parece estar precisando...
Ele olhou para a chaise-longue do outro lado.
– Você não precisa ficar comigo – murmurou ela.
– Onde mais eu ficaria?
Uma breve visão mental de Blay abrindo os braços cruzou sua mente. Que fantasia, hein...
Nunca mais me toque assim.
Qhuinn sacudiu a cabeça para que tais pensamentos sumissem.
– Vou dormir ali.
– Você não pode ficar aqui por sete noites seguidas.
– Vou repetir mais uma vez. Onde mais eu...
– Qhuinn – a voz dela soou estridente. – Você tem o seu trabalho. E você ouviu Havers. Isto vai levar o tempo que for preciso e, provavelmente, vai demorar um pouco. Não corro o risco de ter uma hemorragia e, francamente, sinto como se devesse ser forte na sua frente, e não tenho a energia necessária para isso. Por favor, volte aqui para me ver o quanto quiser. Mas vou enlouquecer se você montar acampamento aqui até isso tudo terminar.
Desespero comedido.
Era tudo o que Qhuinn tinha enquanto permanecia sentado na beira da cama, segurando a mão de Layla.
Ele acabou se levantando pouco depois. Claro, ela estava certa. Ela precisava descansar o máximo possível e, de fato, além de ficar olhando para ela e fazendo com que ela se sentisse fraca, não havia nada que ele pudesse fazer.
– Não estarei longe.
– Sei disso – ela suspendeu o punho dele para os seus lábios, e ele ficou chocado ao perceber o quanto eles estavam frios. – Você tem se mostrado... mais do que eu seria capaz de pedir.
– Não... Não fiz nada de...
– Você fez o que era certo e apropriado. Sempre.
Aquilo era uma questão de opinião.
– Preste atenção. Vou estar sempre com meu telefone por perto. Volto em algumas horas para ver como você está. Se estiver dormindo, eu não a incomodarei.
– Obrigada.
Qhuinn assentiu com a cabeça e andou de lado até a porta. Certa vez ouvira que não se devia dar as costas a uma Escolhida, e ele imaginou que demonstrar um pouco de protocolo não faria mal.
Fechando a porta atrás de si, ele se recostou nela. A única pessoa que ele queria ver era o único cara naquela casa que não tinha interesse algum em...
– O que está acontecendo?
A voz de Blay foi um choque tão grande que ele pensou que a tivesse imaginado. A não ser pelo fato de que o macho em pessoa acabara de passar pela porta da sala de estar do segundo andar. Como se estivesse ali esperando o tempo inteiro.
Qhuinn esfregou os olhos e depois começou a andar, o corpo procurando a única coisa pela qual ele vinha rezando.
– Ela está abortando – Qhuinn se ouviu dizer numa voz morta.
Blay murmurou algo em resposta, mas que não ficou registrado.
Engraçado, o aborto não lhe parecera real até aquele momento. Não até contar a Blay.
– O que disse? – perguntou Qhuinn, ciente de que o cara esperava por uma resposta.
– Posso fazer alguma coisa?
Tão engraçado. Qhuinn sempre achou que saíra do ventre da mãe já como um adulto. Pensando bem, nunca houve nenhum agradinho materno, nada de abraços quando ele se machucava, nenhum amparo quando ele tinha medo. Como resultado, quer fosse um aspecto do seu caráter, ou o modo como fora criado, ele nunca regredira. Não havia para o que voltar.
Todavia, foi com a voz de uma criança que disse:
– Faz isso parar?
Como se só Blay tivesse o poder de operar um milagre.
E então... foi o que o macho fez.
Blay abriu os braços, oferecendo o único refúgio que Qhuinn sempre conheceu.
– Faz isso parar?
O corpo de Blay começou a tremer quando Qhuinn enunciou essas palavras: depois de todos esses anos, ele vira o cara em diferentes estados de humor dependendo da circunstância. Porém, jamais assim. Nunca... tão completa e absolutamente devastado.
Nunca perdido como uma criança.
A despeito da sua necessidade de se manter verdadeiramente afastado de qualquer vínculo emocional, seus braços se abriram por vontade própria.
Enquanto Qhuinn avançava para ele, o corpo do guerreiro parecia menor e mais frágil do que de fato era. E os braços que passaram ao redor da cintura de Blay simplesmente ficaram lá, como se não tivessem força nos músculos.
Blay sustentou a ambos.
E antecipou que Qhuinn recuaria rapidamente. Normalmente, o cara não suportava nenhum tipo de conexão intensa além da sexual por mais tempo do que um segundo e meio.
Qhuinn não o fez, porém. Ele parecia preparado para ficar parado na entrada da sala de estar para sempre.
– Venha – disse Blay, levando o macho para dentro e fechando a porta. – Vamos para o sofá.
Qhuinn o seguiu, os coturnos se arrastando em vez de marcharem.
Quando chegaram ao sofá, sentaram-se de frente, os joelhos se tocando. Quando Blay o fitou, a tristeza ressonante o tocou tão profundamente, que não pôde evitar que a mão se esticasse e afagasse o cabelo escuro...
Sem aviso, Qhuinn se enroscou ao seu encontro, simplesmente se deixou cair, o corpo se dobrando ao meio, quase se desmanchando no colo de Blay.
Uma parte de Blay reconhecia que aquele era um terreno perigoso. Sexo era uma coisa, e já bem difícil de lidar, ora essa. Aquele momento tranquilo? Era potencialmente devastador.
Motivo pelo qual saíra num rompante daquele quarto na noite anterior.
A diferença desta noite, porém, era que ele estava no controle. Era Qhuinn quem buscava conforto, e Blay podia negar ou oferecer, dependendo de como se sentisse. Ser o depositário da confiança de alguém era absolutamente diferente de recebê-la... ou necessitá-la.
Blay era bom nisso. Havia uma medida de segurança, de controle. Não era o mesmo que cair num abismo. E, inferno, se alguém devia saber isso, esse alguém era ele. Deus bem sabia que ele passara anos lá embaixo.
– Eu faria qualquer coisa para mudar isso – disse Blay, afagando as costas de Qhuinn. – Odeio o que você está passando...
Ah, as palavras eram tão inúteis...
Ficaram ali por um tempo enorme, a tranquilidade da sala formando uma espécie de casulo. Periodicamente, o relógio antigo sobre a lareira tocava, e depois de um bom tempo, as persianas começaram a baixar sobre as janelas.
– Gostaria que existisse algo que eu pudesse fazer – disse Blay quando os painéis de aço chegaram ao fim com um baque.
– Deve estar na hora de você ir.
Blay deixou aquela passar. A verdade não era algo que ele quisesse partilhar: nem cavalos selvagens, ou armas carregadas, pés-de-cabra, mangueiras de incêndio, estouro de elefantes... nem mesmo uma ordem do Rei em pessoa o teria tirado dali.
E havia uma parte sua que ficava zangada com isso. Não com Qhuinn, mas com seu próprio coração. A questão era que não se pode lutar contra a sua natureza, e era isso o que ele vinha aprendendo. No rompimento com Saxton. Em se revelar à mãe. Naquele exato instante.
Qhuinn gemeu ao suspender o tronco e depois esfregar o rosto. Quando abaixou as mãos, as faces estavam vermelhas, bem como os olhos, mas não porque ele estivesse chorando.
Indubitavelmente, a sua cota de lágrimas da década fora derramada na noite anterior quando ele chorara de alívio por ter salvado a vida de um pai.
E se soubesse que Layla não estava bem naquele instante?
– Sabe o que é pior? – perguntou Qhuinn, parecendo um pouco mais consigo mesmo.
– O quê? – Deus bem sabia que a gama de opções era vasta.
– Eu vi a criança.
Os pelos da nuca de Blay se eriçaram.
– Do que está falando?
– Na noite em que a Guarda de Honra veio atrás de mim e que quase morri, lembra?
Blay deu uma tossidela, a lembrança era tão vívida e visceral como se tivesse acontecido uma hora antes. E mesmo assim a voz de Qhuinn era calma e tranquila, como se ele estivesse se referindo a uma noite numa boate ou algo assim.
– Sim, eu me lembro.
E pensou, eu fiz boca a boca em você no acostamento da estrada, porra.
– Eu fui até o Fade... – Qhuinn franziu o cenho. – Você está bem?
Ah, sim, claro, uma maravilha.
– Desculpe. Pode continuar.
– Fui até lá. Quero dizer, é como... a gente ouviu falar. Branco – Qhuinn esfregou o rosto de novo. – Tão branco. Tudo. Havia uma porta, e eu caminhei até ela... Eu sabia que se girasse a maçaneta, entraria e não sairia mais. Eu estava prestes a tocá-la quando... foi então que eu a vi. Na porta.
– Layla – interpôs Blay, sentindo como se o peito tivesse sido apunhalado.
– A minha filha.
A respiração de Blay ficou presa.
– A sua...
Qhuinn o encarou.
– Ela era... loira. Como Layla. Mas os olhos... – ele levou a mão próxima aos seus. – Eram como os meus. Parei de andar quando a vi e depois, de repente, eu estava de volta no chão, no acostamento da estrada. Depois disso, fiquei sem saber o que foi tudo aquilo. Mas depois, muito tempo depois, Layla entrou no cio e me procurou, e tudo se encaixou. Era como se aquilo... tivesse que acontecer. Pareceu o destino, sabe. De outro modo, eu jamais teria me deitado com Layla. Só fiz isso porque eu sabia que teríamos uma garotinha.
– Jesus.
– Mas eu estava errado – ele esfregou o rosto pela terceira vez. – Errei feio... E o que eu mais queria era não ter tomado esse caminho. O maior arrependimento da minha vida... Bem, o segundo maior, na verdade.
A Blay só restou imaginar o que poderia ser pior do que aquilo pelo que ele passava.
O que posso fazer?, Blay se perguntou.
Os olhos de Qhuinn procuraram os dele.
– Quer mesmo que eu responda a isso?
Pelo visto, ele pensara em voz alta.
– Sim, claro.
A mão da adaga de Qhuinn se levantou e amparou a lateral do rosto de Blay.
– Certeza?
O clima mudou de pronto. A tragédia ainda estava com eles, mas a poderosa ressaca sexual os abateu entre uma pulsação e a seguinte.
O olhar de Qhuinn começou a queimar, as pálpebras pesaram.
– Preciso... de uma âncora agora. Não sei explicar de modo melhor.
O corpo de Blay reagiu instantaneamente, o sangue fervendo, o membro engrossando e esticando.
– Deixe-me beijar você – Qhuinn gemeu ao se inclinar. – Sei que não mereço, mas, por favor... é isso o que você pode fazer por mim. Deixe-me senti-lo...
A boca de Qhuinn resvalou a dele. Voltou para um pouco mais. Demorou-se.
– Vou implorar – mais carícias daquela boca devastadora. – Se for preciso. Estou pouco me importando, eu vou implorar...
De algum modo, isso não seria necessário.
Blay deixou a cabeça ser inclinada para abrir caminho para mais manobras, a mão de Qhuinn em seu rosto tanto gentil quanto no comando. E, então, houve mais boca a boca, lento, arrastando-se, inexorável.
– Deixe-me estar dentro de você de novo, Blay...
CAPÍTULO 39
Assail voltou para casa cerca de meia hora antes do amanhecer. Ao estacionar o Range Rover na garagem, ele teve que esperar a porta abaixar para sair.
Sempre se considerara um intelectual – e não no sentido atribuído pela glymera, onde um se sentia importante ao discorrer sobre literatura, filosofia ou assuntos espirituais. Era mais pelo fato de existirem poucas coisas na vida na qual ele não podia aplicar seu raciocínio e entender a sua totalidade.
O que diabos aquela mulher fizera na casa de Benloise?
Obviamente ela era uma profissional, com tanto equipamento quanto técnica, e uma abordagem de infiltração muito praticada. Ele também suspeitava que ou ela tivesse a planta da casa ou estivera lá previamente. Tão eficiente. Tão decidida. E ele estava qualificado para julgar: seguira-a o tempo inteiro em que ela esteve dentro da casa, penetrando como um fantasma pela janela que ela abrira, atendo-se às sombras.
Seguindo o rastro dela por trás.
Mas aquilo ele não entendia: que tipo de ladrão se dá ao trabalho de invadir uma casa segura, encontra um cofre, queima-o para abri-lo, descobre muitas riquezas portáteis... mas não leva nada? Porque ele vira muito bem ao que ela teve acesso; assim que ela saiu do escritório, ele permanecera lá, soltando a prateleira como ela fizera antes, e usara a própria lanterna para dar uma espiada no cofre.
Só para descobrir o que ela deixara para trás, se é que tinha deixado algo.
Quando ele voltou para a casa em si, evitando qualquer fonte de luz, observara-a parada um instante no hall de entrada, com as mãos nos quadris, a cabeça virando lentamente, como se ela estivesse considerando suas opções.
E então ela se aproximou de uma estátua que só podia ser de Degas... e a girara apenas alguns centímetros para a esquerda.
Isso não fazia sentido.
Bem, era possível que ela tivesse invadido o cofre procurando por algo específico que, na verdade, não estava lá. Um anel, uma bugiganga, um colar. Um chip de computador, um pendrive, um documento como um testamento ou apólice de seguro. Mas a demora no hall não estava de acordo com a diligência anterior... e depois ela só moveu uma estátua?
A única explicação era que aquilo fora uma violação deliberada da propriedade de Benloise.
O problema era que, no que se referia a vinganças contra objetos inanimados, era difícil encontrar muita significância nos atos dela. Derrubasse a estátua, então. Levasse a maldita coisa. Danificasse-a com obscenidades em tinta spray. Batesse nela com um pé-de-cabra para que ficasse destruída. Mas uma leve virada que mal se podia perceber?
A única conclusão a que ele conseguia chegar era que aquilo fora um tipo de mensagem. E ele não gostava nem um pouco disso.
Pois sugeria que talvez ela conhecesse Benloise pessoalmente.
Assail abriu a porta do motorista...
– Oh, meu Deus... – sibilou, retraindo-se.
– Ficamos imaginando quanto tempo você ainda ficaria aí.
Enquanto uma voz ríspida se pronunciava, Assail saiu do carro e olhou ao redor da garagem para cinco carros. O fedor estava num meio-termo entre um atropelamento de três dias, maionese estragada e perfume barato.
– Isso é o que eu estou pensando? – perguntou aos primos, que estavam parados na soleira da antessala.
Graças à Virgem Escriba, eles avançaram e fecharam a porta que dava para a casa; caso contrário, aquele fedor horrendo invadiria o resto da construção.
– São os seus traficantes. Bem, parte deles, na verdade.
Que. Merda. Era. Aquela?
As passadas longas de Assail o levaram na direção que Ehric apontava: o canto oposto, onde três sacos plásticos verdes-escuro foram jogados de lado sem cuidado algum. Agachando-se, ele afrouxou a tira amarela de um deles, puxou a beirada e...
Deparou-se com os olhos sem vida de um humano que ele reconhecia.
A cabeça inanimada fora arrancada da coluna uns dez centímetros abaixo da mandíbula, e estava virada de modo a fitar para fora de seu caixão frouxo. O cabelo escuro e a pele vermelha estavam marcados por sangue preto e brilhante, e se o cheiro esteve ruim próximo ao carro, ali, bem perto, fez seus olhos lacrimejarem e a garganta se contrair num protesto.
Não que ele se importasse.
Abriu os outros dois sacos e, usando o plástico como “luva”, virou as outras cabeças na mesma posição.
Depois se sentou e ficou olhando para as três, observando as bocas escancaradas e impotentes em busca de ar.
– Contem o que aconteceu – ordenou sombriamente.
– Aparecemos na hora combinada.
– Rinque de patinação, na margem do rio ou debaixo da ponte?
– Ponte. Chegamos – Ehric apontou para o irmão gêmeo, que estava parado em silêncio ao seu lado – na hora com o produto. Uns cinco minutos depois, esses três apareceram.
– Como redutores.
– Eles tinham o dinheiro. Estavam prontos para fazer a transação.
Assail girou a cabeça na direção dele.
– Eles não foram lá para atacá-los?
– Não, mas só descobrimos isso quando já era tarde demais – Ehric deu de ombros. – Eram assassinos que apareceram do nada. Não sabíamos quantos havia, e não queríamos nos arriscar. Foi só depois que vasculhamos os bolsos e encontramos o montante certo de dinheiro que percebemos que eles só foram lá para fazer negócios.
Redutores no tráfico? Aquilo era novidade.
– Vocês apunhalaram os corpos?
– Pegamos as cabeças e escondemos o que restou. O dinheiro estava na mochila desse da esquerda e, naturalmente, nós o trouxemos para casa.
– Celulares?
– Peguei.
Assail começou a acender um charuto, mas não queria desperdiçar o sabor. Fechando os sacos, levantou-se acima da carnificina.
– Tem certeza de que não foram agressivos?
– Estavam mal preparados para se defenderem.
– Estar mal armado não significa que eles não estivessem lá para matá-los.
– Por que levar o dinheiro?
– Eles podiam estar negociando em outro lugar.
– Como já disse, era a quantia correta e nem um centavo a mais.
Abruptamente, Assail gesticulou para que o seguissem para o interior da casa e, ah, que alívio quando chegaram ao ar limpo. Com as telas descendo lentamente sobre as janelas de vidro, e com o alvorecer se completando, ele foi para o bar, pegou um galão de Bouchard Père et Fils, Montrachet, 2006 e estalou a rolha.
– Querem me acompanhar?
– Sim, claro.
Na mesa redonda na cozinha, ele se sentou com três taças e a garrafa. Servindo os três, dividiu o chardonnay com os dois sócios.
Porém, não lhes ofereceu seus cubanos. Eram valiosos demais.
Felizmente, cigarros apareceram e todos se sentaram juntos, fumando e saboreando goladas sublimes da beira afiada do seu Baccarat.
– Nenhuma agressão por parte dos assassinos – murmurou, inclinando a cabeça para trás para baforar, a fumaça azulada se elevando sobre sua cabeça.
– E a quantia exata.
Depois de um momento, ele voltou a olhar para eles.
– Será possível que a Sociedade Redutora esteja tentando entrar no meu ramo de negócios?
Xcor estava à luz de velas, sozinho.
O armazém estava tranquilo, seus soldados ainda não tinham retornado, nenhum humano, nenhum Sombra, nada caminhava sobre ele. O ar estava frio; o mesmo com o concreto abaixo dele. A escuridão o envolvia, a não ser pela fraca fonte de luz perto da qual ele estava sentado.
Algo no fundo de sua mente lhe dizia que estava perigosamente perto de amanhecer. Também havia outra coisa, algo de que ele deveria ter se lembrado.
Mas não havia a mínima chance de que algo transpusesse seu torpor.
Com os olhos fixos na única chama diante dele, Xcor repassou os eventos da noite em sua cabeça.
Dizer que ele encontrara a localização da Irmandade seria talvez aumentar um pouco a verdade, mas não uma falácia completa. Seguira aquela Mercedes para o interior, quilômetro após quilômetro, sem nenhum plano real do que deveria ou poderia fazer quando ela parasse... quando, do nada, o sinal do sangue no corpo de sua Escolhida não só se perdeu, mas foi totalmente redirecionado, como se uma bola lançada contra um muro tivesse alterado repentinamente a sua trajetória.
Confuso, ele vasculhou os arredores, desmaterializando aqui, acolá, para cima e para baixo e, durante o tempo todo, uma sensação de horror se abatendo sobre ele. Recuando, ele se viu na base de uma montanha, com seus contornos, mesmo sob o luar claro, registrados de maneira estranha, indistinta, pouco nítida.
O lugar em que eles ficavam só podia ser ali.
Talvez no alto da montanha. Talvez do outro lado.
Não havia outra explicação – afinal, a Irmandade vivia com o Rei para protegê-lo... portanto, indubitavelmente, eles tomariam precauções do tipo que ninguém mais conseguiria tomar, ou quem sabe, tivessem ao seu dispor tecnologias e provisões místicas que seriam, de outro modo, indisponíveis.
Em frenesi, ele circundou os arredores, dando a volta na base algumas vezes, pressentindo nada além da refração do sinal dela e aquela sensação de horror. Sua conclusão era de que ela deveria estar em algum lugar daquela imensidão: ele teria pressentido se ela tivesse atravessado para o outro lado, e seria razoável concluir que se tivesse ido para o seu templo sagrado, até um plano alternativo de existência, ou – que o destino não permitisse – morrido, aquele eco ressonante dentro dele teria desaparecido.
A sua Escolhida estava ali em algum lugar.
Retornando para o armazém, para o presente, para onde ele estava agora, Xcor esfregou as palmas para frente e para trás lentamente, o raspar dos calos interrompendo a quietude. À esquerda, no limiar da luz de velas, suas armas estavam dispostas lado a lado, as adagas, as pistolas, e sua adorada foice cuidadosamente organizadas ao lado de uma pilha confusa de roupas de sair que ele retirara assim que escolhera aquele lugar específico no chão.
Concentrou-se na foice e esperou que ela lhe falasse: ela o fazia com frequência, com seus modos sedentos de sangue em compasso com a agressividade que fluía em suas veias e que definia seus pensamentos e motivava suas ações.
Aguardou que ela lhe dissesse para atacar a Irmandade onde eles ficavam. Onde as fêmeas moravam. Onde as crianças dormiam.
O silêncio era preocupante.
De fato, sua chegada ao Novo Mundo fora baseada no desejo de ganhar poder, a expressão maior e mais arrojada desse desejo era tomar o trono, portanto, naturalmente, esse era o curso que ele escolhera. E estava progredindo. A tentativa de assassinato no outono, que, sem sombra de dúvida, lançara uma sentença de morte sobre a sua cabeça e a dos seus soldados, fora uma medida tática que quase colocara um ponto final na guerra inteira antes mesmo de ela começar. E seus esforços contínuos com Elan e com a glymera estavam promovendo seus objetivos e reforçando seu apoio dentro da aristocracia.
Mas aquilo que ele descobrira naquela noite...
Deuses, quase um ano de trabalho, sacrifício, planejamento e combate perdiam importância em comparação com a sua descoberta.
Se seu palpite estivesse correto – e como não podia estar? –, tudo o que ele tinha de fazer era marchar com seus soldados e começar um cerco assim que a noite caísse. A batalha seria épica, e a Irmandade e o lar da Primeira Família seriam permanentemente comprometidos, independentemente do resultado.
Seria um conflito digno dos livros de História – afinal, a primeira vez em que a propriedade real fora atingida foi quando o progenitor e a mahmen de Wrath foram assassinados antes da transição dele.
A história se repetia.
E ele e seus soldados tinham uma séria vantagem em relação àqueles assassinos que, na época, não possuíram: a Irmandade agora tinha muitos machos vinculados. Na verdade, ele acreditava que todos eles estivessem vinculados, e isso dividiria as atenções e as lealdades dos machos como nada mais conseguiria fazer. Ainda que a diretriz principal deles como guarda pessoal do Rei fosse proteger Wrath, seus cernes estariam divididos, e mesmo o mais forte dos lutadores com as melhores armas estaria enfraquecido se suas prioridades estivessem em dois lugares distintos.
Além disso, se Xcor ou um dos seus soldados conseguisse apanhar uma daquelas shellans, a Irmandade esmoreceria, porque a outra coisa verdadeira a respeito deles era que a dor de um dos Irmãos era a própria agonia.
Só bastaria uma fêmea de qualquer um deles, a arma derradeira.
Ele sabia disso em sua alma.
Sentado à luz da vela, Xcor esfregou a lâmina da adaga na palma de sua mão, de um lado para o outro, de um lado para o outro.
Uma fêmea.
Era só disso que ele precisava.
E ele conseguiria não só reivindicar sua própria fêmea... mas também o trono.
CAPÍTULO 40
Qhuinn sabia que acabara de colocar Blay numa posição totalmente injusta.
Transa por pena, hein? Mas, ah, Deus, encarando aqueles olhos azuis, aqueles malditos olhos azuis sem fundo que estavam francos para ele do mesmo modo que um dia estiveram... era só no que conseguia pensar. E, sim, tecnicamente era sexo em termos de onde ele queria suas diversas partes – bem, uma mais especificamente. No entanto, havia muito mais do que apenas isso.
Ele não sabia expressar em palavras; simplesmente não era bom em juntar as sílabas. Mas seu desejo de conexão foi o que o levou ao beijo. Ele quis mostrar a Blay o que estava querendo dizer, do que ele precisava, por que aquilo era importante: seu mundo inteiro parecia estar desmoronando e a perda que acontecia na porta ao lado doeria por um bom tempo.
No entanto, estar com Blay, sentir o seu calor, fazer contato, era como uma promessa de cura. Mesmo se durasse apenas o tempo em que estivessem ali naquela sala, ele aceitaria, e guardaria aquilo para si... para relembrar quando precisasse.
– Por favor – sussurrou.
Só que ele não deu chance para o cara responder. Sua língua saiu sorrateira e lambeu aquela boca, escorregando para dentro, assumindo o controle.
E a resposta de Blay foi o modo como ele se permitiu ser empurrado para trás nas almofadas do sofá.
Qhuinn teve dois pensamentos vagos: um, a porta só estava fechada, não trancada – e ele cuidou disso desejando que a trava de latão ficasse no lugar certo. E o segundo pensamento momentâneo era que eles não poderiam destruir aquele lugar. Explodir tudo em seu quarto era uma coisa. A sala de estar era propriedade pública, e muito bem decorada, com as almofadas de seda e as cortinas luxuosas, e um monte de outras coisas que pareciam facilmente rasgáveis, amassáveis, Deus, mancháveis...
Além disso, ele já destruíra seu Hummer, acabara com o jardim e sacudira o quarto. Portanto, sua cota de Destruidor já ultrapassara, e muito, o calendário anual...
Naturalmente, a solução mais prática para não dar nenhuma preocupação adicional a Fritz seria percorrer o corredor rapidamente até o seu quarto, mas enquanto as mãos talentosas de Blay estavam na frente do quadril de Qhuinn, já abaixando seu zíper, ele lançou essa ideia brilhante no cesto de lixo.
– Ai, Deus, toque-me – gemeu, empurrando a pélvis para a frente.
Ele só teria de ser comportado e bem limpinho com aquilo.
Presumindo que isso fosse possível.
Quando a palma de Blay se enfiou em sua calça de couro, o corpo de Qhuinn se arqueou, o torso curvando-se para trás enquanto o outro iniciava os trabalhos. O ângulo estava meio errado, por isso não havia muita fricção, e suas bolas estavam sendo beliscadas pela costura da calça, mas santo inferno, ele não se importava. O fato de que aquele era Blay bastava.
Cacete, depois de anos de chupadas, punhetas e transas, aquela parecia a primeira vez que alguém tocava nele.
Ele precisava retribuir o favor.
Entrando em ação, elevou o peito e aproximou os rostos. Caramba, ele adorava a expressão daqueles olhos azuis enquanto Blay o encarava, quente, selvagem, sensual.
Com tesão.
Qhuinn o segurou com força e aproximou as bocas, agarrando-se àqueles lábios, lançando a língua, tomando tudo como um desvairado...
– Espere, espere – Blay retrocedeu. – Vamos quebrar o sofá.
– O quê...? – o cara parecia estar falando inglês, mas pro inferno se ele conseguia traduzir. – Sofá?
E então ele percebeu que empurrara tanto Blay no braço do móvel, que a coisa estava começando a se inclinar. Que era mais do que duzentos quilos de sexo poderiam fazer em uma peça de mobília.
– Ai, merda, desculpe.
Ele estava começando a recuar quando Blay assumiu o controle e Qhuinn, de repente, viu-se fora do sofá, de costas no chão, as pernas unidas, as calças sendo empurradas para os tornozelos.
Ideia. Genial.
Graças ao fato de ele não usar cuecas, seu pau estava todo exposto, grosso e tenso, ao ser lançado para cima, dolorido e inchado por sobre a barriga. Abaixando a mão, ele deu umas puxadas enquanto Blay arrancava seus coturnos que estavam atrapalhando, largando-os de lado. As calças foram as próximas a darem adeus, e, com Deus como testemunha, Qhuinn nunca antes ficou tão contente em ver um par de couro voar por cima do ombro em toda a sua vida.
Em seguida, Blay voltou ao trabalho.
Qhuinn teve que fechar os olhos quando sentiu as coxas sendo afastadas e um par de mãos de lutador puxar o interior de suas pernas. Imediatamente ele soltou a ereção, afinal, porque ter a palma atrapalhando quando Blay poderia...
Não foram as mãos do cara que o seguraram.
Foi a boca quente e úmida que Qhuinn beijara pra cacete pouco antes.
Por uma fração de segundo, enquanto a sucção abocanhava a ponta e o mastro, ele teve o pensamento maldito de que Saxton ensinara Blay a fazer aquilo: seu maldito primo fizera aquilo com o cara, e fizera com que ele...
Pare, ordenou-se. Quaisquer lições aprendidas e a história por detrás delas não importavam, era a sua ereção que recebia atenção naquele instante. Por isso, que se dane essa merda.
Para deixar isso bem claro, forçou seus olhos a se abrirem. Inferno... do céu...
A cabeça de Blay subia e descia em seus quadris, o punho segurava a base do pau de Qhuinn, a outra mão se ocupava com as bolas. Mas então, como se estivesse esperando por contato visual, o cara parou no alto, libertou a cabeça e lambeu os lábios.
– Eu não gostaria que você fizesse uma lambança nesta linda sala – Blay disse com fala arrastada.
E então, estendeu a ponta da língua para açoitar o piercing no pênis de Qhuinn, a carne rosada brincando com a argola cinza de metal e a bolinha...
– Caralho. Vou gozar agora – grunhiu Qhuinn, com uma onda fervente se avolumando. – Eu vou...
Ele estava impotente para deter as coisas, muito mais até do que alguém que tivesse se lançado de um precipício e que, depois de metros de queda livre, quisesse desistir.
Só que ele não queria pisar no freio.
E não pisou.
Com um rugido potente, que provavelmente foi ouvido em outros lugares, a espinha de Qhuinn se afastou do chão, o traseiro ficou rígido, as bolas explodiram, a excitação esguichando com força na boca de Blay. E não foi só o seu sexo que foi afetado. O orgasmo o atingiu em todo o corpo, uma energia latente emergindo por ele enquanto cravava as unhas no tapete em que estava deitado, os dentes cerrados... e gozando como um animal selvagem.
Felizmente, Blay se mostrou mais do que eficiente na limpeza. E se isso não o fez gozar ainda mais... Também lhe deu muito para o que olhar: pelo resto dos seus dias, Qhuinn jamais se esqueceria da visão da boca do macho o envolvendo, as bochechas sugando enquanto ele libertava seu gozo e ele absorvia tudo. De novo e de novo e de novo.
Normalmente, Qhuinn ficava pronto para outra em seguida, mas quando as ondas tumultuadas finalmente se quebraram sobre ele, ele ficou completamente inerte, os braços largados no chão, os joelhos moles, a cabeça pensa.
– Não consigo me mexer – murmurou.
O riso de Blay foi profundo e sensual.
– Você parece um pouco cansado.
– Posso retribuir o favor?
– Você consegue levantar a cabeça?
– Ela ainda está grudada no meu corpo?
– Pelo que vejo, sim, está.
Enquanto Blay ria de novo, Qhuinn soube o que queria fazer e isso o surpreendeu. Em todas as suas explorações sexuais, ele nunca se permitiu ser enrabado. Não era assim que as coisas aconteciam. Ele era o conquistador, o que tomava, o que estabelecia o controle e conservava a superioridade.
Ficar por baixo simplesmente não o interessava.
E agora era o que queria.
O único problema era que, literalmente, não conseguia se mexer. Ah, sim, e havia uma coisinha a mais: como contar a Blay que ele era virgem?
Porque ele desejava. Se um dia chegasse àquilo, ele queria que Blay soubesse. Por algum motivo, isso era importante.
De repente, o rosto de Blay apareceu em seu campo de visão, e, Deus, como o lutador era lindo, o rosto afogueado, os olhos reluzentes, aqueles ombros largos bloqueando tudo.
E, ah, sim, aquele sorriso sexy como o inferno, tão satisfeito consigo e autossuficiente, como se o fato de Blay ter provocado tanto prazer em alguém fosse o bastante para que ele não precisasse do próprio alívio.
Mas isso não seria justo, seria?
– Não acho que você vai voltar a se mexer tão cedo – comentou Blay.
– Talvez. Mas posso abrir a boca – foi a resposta misteriosa. – Tanto quanto você.
Certo, tudo bem, a ideia de que provocava um orgasmo daquele em Qhuinn foi tão ratificadora que Blay se esquecera por completo do seu corpo.
A questão era que após tantos anos de rejeição, era uma emoção sem igual sentir poder em relação ao cara, ser aquele quem comandava o ritmo... a pessoa que levava Qhuinn a um lugar vulnerável e erótico muito mais intenso do que qualquer outro antes. E foi isso o que aconteceu. Ele sabia exatamente como Qhuinn ficava e como soava quando gozava, e Blay podia afirmar, sem nenhum traço de dúvida, que ele jamais vira seu camarada tão prostrado como agora, largado no tapete, os músculos do pescoço esticados, os abdominais contraídos, os quadris bombeando com força.
Qhuinn gozara praticamente vinte minutos direto.
E agora, no pós-coito, uma estranha revelação: até aquele instante, Blay jamais reconhecera o cinismo que Qhuinn carregava no rosto o tempo inteiro... as sobrancelhas caídas, o canto da boca perpetuamente repuxado para cima... o maxilar nunca, jamais relaxado.
Era como se toda a torpeza que a família lhe fizera tivesse permanentemente esculpido suas feições.
Mas não era verdade, não é mesmo? Durante o orgasmo, e agora, enquanto as coisas se acalmavam, nada daquela tensão era visível em lugar algum. O rosto de Qhuinn estava... livre de toda reserva, parecendo tão mais jovem, e Blay teve que se perguntar por que nunca percebera a idade dele antes.
– Então, vai me dar algo para eu chupar enquanto me recupero? – Qhuinn perguntou.
– O quê...?
– Estou com sede. E preciso chupar alguma coisa – dito isso, Qhuinn mordeu o lábio inferior, as presas brancas brilhantes afundando na pele. – Vai me ajudar?
Os olhos de Blay reviraram em suas órbitas.
– É... acho que posso fazer isso.
– Então me deixe tirar suas calças.
As pernas de Blay se levantaram com tanta rapidez que ele teve um insight novo sobre as leis da física, e enquanto ele chutava os sapatos, as mãos tremiam ao desabotoar a calça. As coisas foram bem rápidas a partir dali. E durante o tempo todo em que se despia, ele estava absolutamente ciente de tudo o que havia na sala – especialmente Qhuinn. O macho estava ficando rígido novamente, o sexo engrossando apesar de tudo pelo que acabara de passar... as coxas pesadas se contraindo e a pélvis rolando... a parte baixa do tronco tão delgada que cada sutil mudança do torso era refletida na pele esticada e bronzeada.
– Isso aí... – Qhuinn sibilou, as presas se estendendo do maxilar superior, as mãos procurando, e encontrando, o sexo, apalpando-o em movimentos longos e lentos. – Isso mesmo.
A respiração de Blay começou a acelerar, os batimentos cardíacos subindo até o telhado enquanto os olhos descombinados de Qhuinn se prendiam ao seu sexo.
– É isso o que eu quero – o macho grunhiu, soltando-se e esticando as duas mãos.
Por uma fração de segundo, Blay não teve muita certeza como as partes trabalhariam. Qhuinn estava diante do sofá, paralelo ao móvel, por isso não havia muito espaço para...
Um grunhido sutil perpassou o ar enquanto Qhuinn flexionava os dedos como se mal conseguisse esperar para segurar aquilo que desejava.
O planejamento que fosse para o inferno.
Os joelhos de Blay atenderam ao chamado, dobrando para a frente, levando seu peso ao chão perto da cabeça de Qhuinn.
Qhuinn assumiu o controle a partir daí. As palmas escorregaram e se prenderam, atraindo Blay de modo que, sem nem se dar conta, ele tinha um joelho atrás da cabeça do cara e a outra perna estendida ao longo do corpo até o quadril de Qhuinn.
– Ai... cacete... – Blay gemeu ao sentir o sexo entrar entre os lábios de Qhuinn.
O corpo pendeu para a frente até ele acabar derramando o torso nas almofadas do sofá, e foi nesse momento que ele se viu com uma excelente alavancagem. Apoiando os braços no sofá, distribuiu o peso entre os joelhos, os pés e as palmas... e depois se pôs a foder a boca adorável de Qhuinn.
O cara aceitou tudo, mesmo quando os quadris descontrolados de Blay empurraram com tudo o que ele tinha.
Com os dedos de Qhuinn cravados em seu traseiro, e aquela incrível sucção, e... Cristo, o piercing da língua, com a bolinha resvalando seu mastro a cada estocada... Blay estava se dirigindo exatamente para o mesmo tipo de orgasmo que Qhuinn acabara de ter.
Mesmo assim, no fundo da sua mente, ele se questionava se não estava machucando o cara. Do jeito como as coisas seguiam, ele acabaria gozando no estômago dele.
Tarde demais para se preocupar com isso.
Seu corpo assumiu, enrijecendo numa série de espasmos torturantes que corriam do alto da coluna até as pernas.
E bem quando as sensações descontroladas estavam começando a diminuir, o mundo entortou ao seu redor, como se seu senso de equilíbrio tivesse explodido junto de seu...
Não, o mundo estava no lugar. Qhuinn acabara de se levantar do chão, saindo de baixo e se posicionando atrás...
Enquanto Qhuinn penetrava com uma estocada na velocidade da luz, Blay emitiu um gemido que com certeza seria ouvido no Canadá...
O rangido que se fez ouvir na sala o deixou intrigado, mesmo em meio à pressão e ao prazer.
Ah. Eles estavam empurrando o sofá.
Que seja. Ele compraria um novo para a casa se quebrassem a maldita porcaria; ele não iria parar.
O ritmo foi tão punitivo quanto fora o seu e, nesse caso, a revanche não era só o que ele merecia, mas exatamente o que ele queria. A cada estocada, seu rosto era empurrado contra as almofadas do sofá; a cada recuada, ele respirava; só para ser empurrado novamente, num círculo que recomeçava sempre.
Reposicionando as pernas para que Qhuinn alcançasse ainda mais fundo, Blay teve a vaga noção de que eles, definitivamente, mudavam o sofá de posição, mas quem é que se importava com isso, contanto que eles não acabassem no corredor?
No último instante, pouco antes de ele gozar, teve a presença de espírito de pegar as calças. Puxando as cuecas, ele...
A mão de Qhuinn se esticou, apanhou a Calvin Klein e fez o que era preciso, garantindo que houvesse algo para conter o seu gozo. Então, um instante depois, seu peito se deslocou do sofá e ele estava ereto sobre os joelhos. Qhuinn cuidou de tudo, segurando o pau de Blay enquanto cobria a cabeça – penetrando, ainda penetrando, sempre penetrando...
Gozaram ao mesmo tempo, dois pares de gritos ecoando pela sala.
No meio do orgasmo, Blay, sem querer, levantou o olhar. No enorme espelho antigo que estava pendurado entre as duas janelas do lado oposto, ele viu os dois, soube que estavam ligados... e isso o fez gozar novamente.
No fim, as investidas desaceleraram. Os batimentos cardíacos começaram a diminuir. As respirações foram se acalmando.
No vidro chumbado, ele viu Qhuinn fechar os olhos e abaixar a cabeça. Na lateral do seu pescoço, Blay sentiu um resvalar suave.
Os lábios de Qhuinn.
E então a mão livre do macho subiu, parando para afagar Blay no peitoral...
Qhuinn congelou. Recuou. Afastou os lábios, seu toque.
– Desculpe. Desculpe, eu... sei que não quer isso de mim.
A mudança no rosto do cara, o regresso ao cinismo costumeiro, era como ser roubado.
E mesmo assim Blay não podia dizer a ele que voltasse a se aproximar. Qhuinn estava certo; no instante em que a ternura aparecia, ele começava a entrar em pânico.
A retirada foi rápida, rápida demais, e Blay sentiu falta da sensação de estar completo e de ser possuído. Mas estava na hora de acabar com aquilo.
Qhuinn pigarreou.
– Hum... você quer que eu...
– Cuido disso – murmurou Blay, substituindo a mão de Qhuinn sobre as cuecas amassadas em seu quadril.
Durante o sexo, o silêncio na sala equivalia à privacidade. Agora, eram apenas os sons amplificados de Qhuinn subindo as calças de couro.
Droga.
Voltavam ao caos e à confusão. E enquanto as coisas aconteciam, as sensações eram tão intensas e esmagadoras que não houve nenhum pensamento além do sexo. Depois, porém, o corpo de Blay estava frio demais no ambiente climatizado, diferentes partes pulsavam por terem sido usadas, as pernas estavam moles e cambaleantes, a mente, enevoada...
Nada parecia seguro ou garantido. Nem um pouco.
Forçando-se a se vestir, colocou as roupas o mais rápido que conseguiu, inclusive os sapatos. Nesse meio-tempo, foi Qhuinn quem devolveu o sofá ao seu lugar, cuidadosamente colocando os pés nas marcas do tapete. Também ajeitara as almofadas. Endireitara o tapete oriental.
Foi como se nada tivesse acontecido. A não ser pelas cuecas de Blay amassadas em sua mão fechada.
– Obrigado – disse Qhuinn baixinho. – Eu, hum...
– Tudo bem.
– Então... acho que eu vou agora.
– Ok.
E foi isso.
Bem, além de a porta se fechar.
Deixado a sós, Blay resolveu que precisava de uma chuveirada. Mais comida. Dormir.
Em vez disso tudo, ele ficou na sala de estar do segundo andar, olhando para aquele espelho, lembrando-se do que vira nele. Em sua mente, teve a vaga noção de que eles não podiam continuar fazendo aquilo. Emocionalmente, não era seguro para ele; na verdade, era o equivalente a manter a palma da mão sobre uma chama uma vez após a outra, só que a cada vez que você voltava a colocar a mão, você diminuía a distância entre a sua carne e o calor. Cedo ou tarde? Queimaduras de terceiro grau seriam o menor dos seus problemas, porque o braço inteiro estaria em chamas.
Depois de um tempo, contudo, não ficou só pensando naquela coisa de autopreservação.
Mas sim no que dera início àquilo tudo.
Faz isso parar.
Blay passou a mão pelo cabelo. Depois olhou para a porta fechada e franziu o cenho, a mente trabalhando, trabalhando, trabalhando...
Um minuto depois, saiu apressado, andando rapidamente.
Antes de partir num trote.
E acabar correndo como um louco.
CAPÍTULO 41
Eram mais ou menos dez da manhã quando Trez seguiu para o Restaurante Sal’s. O trajeto do apartamento no Commodore para o belo estabelecimento do irmão não demorou, levando apenas dez minutos, e havia diversos espaços disponíveis para estacionar quando ele chegou lá.
De fato, o lugar não abria antes da uma da tarde, nem mesmo para o pessoal da cozinha iniciar a preparação.
Enquanto se encaminhava para a entrada, suas botas esmagando a neve, ele esperou que o código de abertura pelo lado externo não funcionasse: iAm não voltara para casa na noite anterior e, supondo que os cretinos do s’Hisbe não o tivessem levado embora como dano colateral, só havia um lugar em que seu irmão poderia estar. Depois de dois bules de café e muitas consultas ao relógio de pulso, Trez entendeu que, se queria fazer as pazes, ele teria de atravessar a cidade.
Legal. A combinação não fora mudada.
Ainda.
Do lado de dentro, o lugar parecia uma réplica do Rat Pack, numa interpretação moderna de uma era que gerara tipos como Peter Lawford e Frank Sinatra: uma entrada com papel de parede de algodão preto e vermelho o levava até a recepção, onde a chapelaria, a mesinha retrô da recepcionista e o caixa ficavam. À esquerda e também à direita, estavam os dois salões principais, ambos decorados em veludo e couro preto e vermelho, mas não eram onde os políticos e os endinheirados locais ficavam. O lugar predileto era o bar mais à frente, um salão com painéis de madeira que tinha bancos estofados quadrados de couro vermelho perto das paredes e, durante o expediente, um barman de smoking atrás de uma bancada de carvalho servindo nada que não fosse o melhor.
Atravessando a extensão do bar, Trez seguiu para o outro lado das cinco prateleiras de garrafas à mostra e passou pelas portas em vaivém. Ao entrar na cozinha, o cheiro de manjericão, cebola, orégano e vinho tinto lhe denunciou exatamente onde iAm estava.
Como esperado, o cara estava diante do enorme fogão industrial de dezesseis bocas na parede oposta, com cinco panelas imensas borbulhando diante dele – e você gostaria de apostar que também havia alguma coisa no forno? Nesse meio-tempo, tábuas de madeira de corte estavam enfileiradas nas bancadas de aço inoxidável, as cabeças mortas de diferentes tipos de pimentão deixadas ao lado das facas afiadas que foram usadas.
Dez pratas para adivinhar em quem o cara estava pensando enquanto picava aquilo tudo.
– Vai ou não falar comigo? – Trez disse para as costas do irmão.
iAm seguiu para a panela seguinte, levantando a tampa com um pano de prato branco, uma imensa escumadeira entrando e mexendo lentamente.
Trez se inclinou para o lado e puxou um banquinho de aço inoxidável. Sentando-se, esfregou as coxas para cima e para baixo.
– Oi? Alguém aí?
iAm foi para a panela seguinte. E depois a outra. Cada uma delas tinha uma colher diferente para evitar a mistura de sabores, e seu irmão tomava muito cuidado com isso.
– Escute, eu sinto muito se não estava quando você foi à boate ontem à noite – todas as noites, iAm ia para o Iron Mask para dar uma olhada depois que o Sal’s fechava. – Tive que cuidar de uns assuntos.
Merda, se teve. A garota do namorado grosseiro levou uma eternidade para sair do seu carro quando ele a levou para a casa dela. No fim, ele a acompanhou até a porta, abriu e só faltou empurrá-la para dentro. De volta ao carro, ele acelerou como se tivesse plantado uma bomba na calçada e, enquanto seguia para o Iron Mask, tudo o que ouvia em sua cabeça era a voz de iAm.
Você não pode continuar a fazer isso.
A essa altura, iAm se virou, cruzou os braços sobre o peito e se recostou ao fogão. Os bíceps já eram grandes, mas com os braços cruzados daquele jeito, forçavam a borda da camiseta preta que ele vestia.
Os olhos amendoados estavam semicerrados.
– Você acha mesmo que eu estou bravo porque você não estava quando fui ao clube? Sério? E não por que você me deixou para lidar com AnsLai ou qualquer asneira do tipo...
Eeeee estavam todos a postos.
– Sabe que não posso me encontrar com o cara – Trez levantou as mãos como se quisesse dizer que não havia nada que ele pudesse fazer. – Eles tentariam me forçar a voltar com eles e, então, quais seriam as minhas opções? Brigar? Eu acabaria lutando com o filho da puta e onde eu iria parar com isso?
iAm esfregou os olhos como se estivesse com dor de cabeça.
– Neste instante, parece que eles estão tomando uma abordagem diplomática. Pelo menos comigo.
– Quando vão voltar?
– Não sei. É isso o que está me deixando nervoso.
Trez enrijeceu. A ideia de que seu irmão frio como peixe estivesse ansioso o fez sentir como se estivesse com uma faca no pescoço.
Pensando bem, ele sabia muito bem o quanto o seu povo podia ser perigoso. O s’Hisbe era conhecido como uma tribo pacífica, satisfeita em se manter ao largo das lutas contra a Sociedade Redutora e dos desagradáveis humanos. Educados, muito inteligentes e espirituais, eles eram, como um todo, um grupo agradável. Desde que você não estivesse na lista negra deles.
Trez olhou para as panelas e se perguntou qual seria a carne no molho.
– Ainda estou em débito com Rehv – ele observou. – Portanto, essa obrigação deve vir em primeiro lugar.
– Não para o s’Hisbe. AnsLai disse, e vou citar suas palavras: “Chegou a hora”.
– Não vou voltar – ele fitou os olhos do irmão. – Isso não vai acontecer.
iAm voltou para as panelas, mexendo em cada uma com a colher designada.
– Sei disso. E é por isso que estou cozinhando. Estou tentando encontrar uma saída.
Deus, como ele amava o irmão. Mesmo irritado, o cara tentava ajudar.
– Desculpe-me por ter desaparecido e ter feito você cuidar disso. Sinto muito mesmo. Não foi justo... Eu só... bem, não achei seguro estar no mesmo cômodo que aquele cara. Sinto muito.
O peito largo de iAm subiu e desceu.
– Sei que sente.
– Eu poderia simplesmente desaparecer e o problema estaria resolvido.
Ainda que deixar iAm para trás o matasse. A questão era que, caso ele fugisse do s’Hisbe, ele jamais teria contato com o macho novamente. Nunca mais.
– Para onde você iria? – iAm observou.
– Não faço ideia.
A boa notícia é que o s’Hisbe não gostava de ter nenhum contato com os Desconhecidos. Sem dúvida, só aparecer no apartamento dele e de iAm fora traumático, mesmo se o sumo sacerdote tivesse se desmaterializado até a varanda. Lidar diretamente com humanos? Estar ao lado deles? A cabeça de AnsLai explodiria.
– Então, qual era o seu assunto? – perguntou iAm.
Maravilha. Mais um assunto igualmente feliz.
– Fui ver aquele armazém – ele desviou. Mas, cacete, até parece que ele tocaria no assunto da garota com o namorado espontaneamente.
– A uma da manhã?
– Fiz uma oferta.
– De quanto?
– Um milhão e quatrocentos. O preço pedido era de dois milhões e meio, mas não vão conseguir esse montante de jeito nenhum. O lugar está vazio há anos e demonstra isso – embora, ao dizer isso em voz alta, ele teve que admitir que sentira presenças lá. Pensando bem, talvez fosse apenas o seu estresse o responsável por isso. – Meu palpite é que vão dar uma contraoferta de dois milhões, eu subo para um e seiscentos e acabamos acordando em um e setecentos.
– Tem certeza de que quer iniciar esse projeto agora? A menos que apareça no território com o seu mastro matrimonial pronto para ser usado, esta questão com o s’Hisbe só vai piorar.
– Se as coisas chegarem a esse ponto, eu cuido disso na hora certa.
– Quando – iAm o corrigiu. – A questão é “quando”. E sei o que aconteceu no estacionamento, Trez. Com aquele cara e a mulher.
Claaaaro que sim.
– Viu as fitas ou algo assim?
Maldita câmera de segurança.
– Sim.
– Eu cuidei daquilo.
– Assim como está cuidando do s’Hisbe. Perfeito.
Com o humor afetado, Trez se inclinou.
– Quer calçar os meus sapatos, irmãozinho? Eu bem que gostaria de saber como você lidaria com essa merda toda.
– Eu não estaria fodendo putas, isso eu garanto. O que me faz pensar... o nosso corretor é uma fêmea, não?
– Foda-se, iAm. De verdade.
Trez se levantou do banquinho e marchou para fora da cozinha. Ele já tinha problemas suficientes, pelo amor de Deus, não precisava do senhor Superior com habilidades de Julia Child palpitando sobre o assunto com doze tipos de panelas...
– Você não pode continuar postergando esse assunto – iAm chamou de lá de trás. – Ou tentando enterrá-lo entre as pernas das mulheres.
Trez parou, mas manteve o olhar fixo na saída.
– Simplesmente não pode – o irmão afirmou com franqueza.
Trez girou. iAm estava perto do bar, a porta em vaivém mexendo atrás dele formando um efeito de estroboscópio de luz, escuro, luz, escuro. Toda vez que a luz surgia, parecia que seu irmão tinha um halo ao redor de todo o corpo.
Trez praguejou.
– Só preciso que me deixem em paz.
– Eu sei – iAm esfregou a cabeça. – E, honestamente, não sei que porra fazer a respeito. Não consigo me imaginar vivendo sem você, e também não quero voltar para lá. Só que também não encontrei alternativas.
– Aquelas mulheres... sabe, as que eu... – Trez hesitou. – Não acha que elas me excitam?
– Se elas não fazem isso – iAm disse secamente –, não sei porque perde tempo com elas.
Trez teve que dar um sorriso.
– Não, estou falando do s’Hisbe. Estou bem longe de ser virgem a esta altura – pelo menos ele ainda não se rebaixara a animais de fazenda. – E o que é pior? Todas eram Desconhecidos, a maioria humanas. Isso deve enojá-los. Estamos falando da filha da rainha!
Enquanto iAm franzia o cenho como se estivesse considerando a ideia, Trez sentiu uma centelha de esperança.
– Não sei, não – veio a resposta. – Talvez isso funcione, mas ainda assim você negou a Sua Alteza o que ela quer e precisa. Se eles o considerarem desonrado, podem muito bem decidir matá-lo como castigo.
Que seja. Eles teriam que encontrá-lo primeiro.
Numa onda de agressão, Trez abaixou o queixo e olhou fixo por debaixo das sobrancelhas.
– Se esse for o caso, eles vão ter que lutar comigo. E eu garanto que isso não vai acabar bem para eles.
Na mansão da Irmandade, Wrath entendeu que sua rainha estava aborrecida no instante em que ela passou pelas portas do escritório. Seu cheiro atraente estava maculado por uma pontada de acidez: ansiedade.
– O que foi, leelan? – ele quis saber, estendendo os braços.
Mesmo não enxergando, suas lembranças lhe davam uma imagem mental dela cruzando o tapete Aubusson, com o corpo longo e atlético se movendo com graciosidade, os cabelos escuros soltos sobre os ombros, o lindo rosto marcado por tensão.
Naturalmente, o macho vinculado dentro dele desejou perseguir e matar o que quer que a tivesse perturbado.
– Olá, George – disse ela ao cão. Pelo barulho de batidas ritmadas no chão, ele supôs que o cachorro tivesse recebido uma dose de amor antes.
E então foi a vez do dono.
Beth subiu no colo de Wrath, o peso próximo de nada, o corpo quente e vivo enquanto ele passava os braços ao seu redor e a beijava nas laterais do pescoço e depois na boca.
– Jesus – grunhiu ele, sentindo a rigidez no corpo dela –, você está aborrecida mesmo. Que merda está acontecendo?
Deus do céu, ela estava tremendo. Sua rainha estava, de fato, tremendo.
– Fale comigo, leelan – insistiu, esfregando-lhe as costas. E se preparando para se armar e sair em plena luz do sol se preciso fosse.
– Bem, você sabe sobre Layla – disse ela com voz rouca.
Ahhhh.
– Sim, sei. Phury me contou.
Enquanto a cabeça dela se posicionava em seu ombro, ele a ajeitou, aninhando-a em seu peito – e isso era bom. Havia vezes – não muitas, mas ocasionais – em que ele se sentia menos macho por conta de sua falta de visão: no passado, um lutador, agora, preso atrás daquela mesa. Um dia livre para ir aonde bem quisesse, agora, dependendo de um navegador canino. Certa vez absolutamente autossuficiente, agora, precisando de ajuda.
Não muito bom para os colhões de um macho.
Mas em momentos como aquele, quando aquela fêmea maravilhosa estava incomodada e o procurava, e somente a ele, para conforto e segurança, ele se sentia mais forte que uma maldita montanha. Afinal, machos vinculados protegiam suas fêmeas com tudo o que tinham, e mesmo com o fardo do seu direito de nascimento e aquele trono em que era obrigado a se sentar, ele, em seu cerne, permanecia o hellren daquela fêmea.
Ela era a sua primeira prioridade, acima inclusive daquela coisa toda de reinado. A sua Beth era o seu coração atrás das costelas, o tutano dentro de seus ossos, a alma em seu corpo físico.
– É tudo tão triste – disse ela. – Tão triste.
– Você foi vê-la?
– Acabei de ir. Ela está descansando. Quero dizer... de certa forma, custo a acreditar que não haja nada a ser feito.
– Falou com a doutora Jane?
– Assim que eles voltaram da clínica.
Enquanto a sua shellan chorava um pouco, o cheiro das lágrimas frescas de sua amada era como uma adaga em seu peito, e ele não estava surpreso com a reação dela. Ouvira dizer que as fêmeas lidavam muito mal com a perda da gravidez de outra fêmea – e como não ser assim? Ele, por certo, conseguia se colocar no lugar de Qhuinn.
E, ah, Deus... a ideia de Beth sofrer daquele modo? Ou pior, de conseguir levar adiante a gestação e depois...
Ótimo. Agora era ele quem tremia.
Wrath abaixou o rosto para os cabelos de Beth, inspirando, acalmando-se. A boa notícia era que eles jamais teriam um filho, portanto, ele não tinha com que se preocupar.
– Eu sinto muito – sussurrou.
– Eu também. Odeio o que eles estão passando.
Bem, na verdade, ele estava se desculpando por outra coisa completamente diferente.
Não que ele quisesse que uma merda daquelas acontecesse com Qhuinn, Layla e o filho deles. Mas talvez se Beth enxergasse a triste realidade, ela se lembraria de todos os riscos que se apresentavam a eles em todas as etapas de uma gestação.
Porra. Aquilo soava horrível. Era horrível. Pelo amor de Deus, ele não queria mesmo nada daquilo para Qhuinn, e tampouco queria ver sua shellan triste. Infelizmente, porém, a triste realidade era que ele não tinha absolutamente interesse algum em plantar sua semente nela daquele jeito – jamais.
E esse tipo de desespero fazia com que um cara pensasse em coisas imperdoáveis.
Numa onda de paranoia, ele calculou mentalmente os anos desde a transição dela – um pouco mais do que dois. Pelo que sabia, as fêmeas vampiras, em média, passavam pelo primeiro cio uns cinco anos após a transformação, e a cada dez anos depois disso. Portanto, eles tinham um bom tempo antes de terem de se preocupar com tudo isso...
Pensando bem, como mestiça, não havia garantias no caso de Beth. Quando os humanos e os vampiros se misturavam, qualquer coisa podia acontecer... E ele tinha motivos para se preocupar. Afinal, ela já mencionara filhos uma ou duas vezes.
Mas, obviamente, aquilo só podia ser hipoteticamente.
– E então, você vai postergar a iniciação de Qhuinn? – ela perguntou.
– Sim. Saxton já atualizou a lei, mas Layla estando assim? Não é o momento de trazê-lo para a Irmandade.
– Foi o que pensei.
Os dois se calaram, e enquanto Wrath guardava aquele momento em seu coração, não conseguiu imaginar sua vida sem ela.
– Sabe de uma coisa? – perguntou.
– O quê? – havia um sorriso na voz dela, do tipo que dizia a ele que ela sabia para onde a conversa estava indo.
– Eu amo você mais do que tudo.
Sua rainha deu uma leve risada, e o afagou no rosto.
– Eu jamais teria imaginado isso.
Inferno, até ele captava a onda de seu odor de vinculação.
Em resposta, Wrath segurou o rosto dela entre as palmas e se inclinou, encontrando seus lábios e depositando um beijo suave, que não permaneceu assim. Caramba, era sempre assim com ela. Qualquer contato e, antes que se desse conta, já estava rígido e pronto.
Deus, não sabia como os homens humanos lidavam com isso. Pelo que entendia, eles tinham de adivinhar se seus pares estavam férteis toda vez que faziam sexo – evidentemente, eles não tinham como captar a alteração nos odores de suas fêmeas.
Ele enlouqueceria. Pelo menos quando uma vampira estava no cio, todos sabiam.
Beth mudou de posição em seu colo, apertando a sua ereção e fazendo-o gemer. E, normalmente, essa era a dica para George ser levado para o outro lado das portas duplas, banido temporariamente. Mas não naquela noite. Por mais que Wrath a desejasse, a tristeza presente na casa aplacava até mesmo a sua libido.
E também havia a questão do cio de Autumn. E de Layla.
Ele não iria mentir; aquela merda o estava deixando ansioso. Sabia-se que hormônios no ar tinham um efeito ricochete numa casa cheia de fêmeas, influenciando umas às outras ao cio, desde que seu período estivesse próximo.
Wrath afagou os cabelos de Beth e voltou a acomodar a cabeça dela em seu ombro.
– Você não quer...
Enquanto ela deixava a frase inacabada, ele pegou a sua mão e a levantou, sentindo o peso do anel de rubi que a rainha da raça sempre usava.
– Só quero abraçar você – disse ele. – Isso basta para mim agora.
Aninhando-se, ela se encaixou ainda mais perto dele.
– Bem, isto também é gostoso.
Sim. Era.
E curiosamente aterrador.
– Wrath?
– Sim?
– Você está bem?
Demorou um pouco para ele confiar na voz e responder:
– Sim, estou bem. Tudo bem.
Ao alisar o braço dela, para cima e para baixo, ele rezou para que ela acreditasse... e jurou que o que acontecia no quarto no fim do corredor nunca, jamais, aconteceria com eles.
Não. Os dois não teriam de lidar com aquele tipo de crise.
Graças à Virgem Escriba.
CAPÍTULO 42
Claro que Layla não estava dormindo.
Quando pediu a Qhuinn que saísse, ela falou sério quanto a não querer sustentar uma fachada de força diante dele. Mas o mais engraçado era que mesmo sem ninguém por perto, ela não ficou histérica. Não chorou. Não praguejou.
Apenas ficou deitada de lado com os braços e as pernas enroscados, a mente recuada para dentro do corpo e monitorando constantemente cada dor e cólica numa compulsão que a enlouquecia. No entanto, não havia como mudar aquilo. Era como se uma parte dela estivesse convencida de que se ao menos ela soubesse em que estágio estava, ela poderia, de algum modo, monitorar o processo.
O que, na verdade, era uma tremenda tolice. Como Qhuinn bem diria.
A imagem dele na clínica, com a adaga no pescoço do médico, era algo saído de um dos livros da biblioteca do Santuário – um episódio dramático que era parte da vida de outra pessoa.
Sua posição na cama, porém, fazia com que ela lembrasse que o caso não era bem esse...
A batida à porta foi suave, sugerindo se tratar de uma fêmea.
Layla fechou os olhos. Por mais que apreciasse qualquer tipo de gentileza que aguardava uma resposta, ela preferiria que quem quer que estivesse no corredor, continuasse lá. A breve visita da rainha fora uma provação, mesmo ela tendo apreciado.
– Sim – quando sua voz mal soou em seus ouvidos, ela pigarreou e repetiu: – Sim?
A porta abriu e, a princípio, ela não reconheceu quem era na sombra que preenchia o espaço entre os batentes da porta. Alta. Forte. Porém, não um macho...
– Payne? – perguntou.
– Posso entrar?
– Sim, claro.
Enquanto Layla tentava se sentar, a fêmea guerreira gesticulou para que ela continuasse deitada, e depois fechou a porta.
– Não, não... por favor, fique à vontade.
Um abajur fora deixado aceso sobre a cômoda e, na luz suave, a irmã de sangue de Vishous da Irmandade da Adaga Negra parecia temerária, com os olhos de diamante parecendo reluzir para fora dos ângulos fortes do rosto dela.
– Como você está? – a fêmea perguntou com suavidade.
– Estou bem, obrigada. E você?
A lutadora deu um passo à frente.
– Eu sinto muito quanto... à sua condição.
Ah, como Layla desejava que aquilo fosse algo que Phury e os outros não tivessem partilhado com ninguém. Em retrospecto, a saída da casa fora um tanto dramática, o tipo de evento que causaria perguntas preocupadas. Ainda assim, sua privacidade preferia evitar esse tipo de invasão indesejável, ainda que misericordiosa.
– Agradeço as suas palavras gentis – sussurrou.
– Posso me sentar?
– Sim, claro.
Ela imaginou que a fêmea fosse se sentar numa das cadeiras dispostas mais ao longe. Não foi o que Payne fez. Ela se aproximou da cama e abaixou o peso ao lado de Layla.
Compelida a, pelo menos, parecer uma boa anfitriã, Layla tentou se suspender, fazendo uma careta quando uma nova onda de cólicas a imobilizou no meio do caminho.
Enquanto Payne praguejava baixinho, Layla teve que voltar a se deitar. Com voz rouca, disse:
– Perdoe-me, mas não posso receber visitas agora, por mais que me queira bem. Obrigada por expressar a sua empatia...
– Você sabe quem é a minha mãe – Payne a interrompeu.
Layla balançou a cabeça ao encontro do travesseiro.
– Por favor, saia...
– Sabe? – a fêmea perguntou com rispidez.
Abruptamente, Layla quis chorar. Simplesmente não tinha forças para qualquer tipo de conversa, ainda mais a respeito de mahmens. Não enquanto perdia o filho.
– Por favor.
– Sou filha da Virgem Escriba.
Layla franziu o cenho, as palavras sendo compreendidas mesmo em meio à dor, tanto física quanto mental.
– O que disse?
Payne inspirou profundamente, como se a revelação não fosse algo com que se alegrasse, mas como se fosse um tipo de maldição.
– Sou da carne da Virgem Escriba, nascida há muito tempo, e ocultada dos registros das Escolhidas e dos olhos de outrem.
Layla piscou em estado de choque. A aparição da fêmea fora um tipo de mistério, mas ela certamente não fizera nenhuma pergunta, pois isso não cabia a ela. A única coisa que sabia com convicção é que jamais houve registro algum da mãe sagrada da raça um dia ter dado à luz uma criança.
Na verdade, a estrutura completa do sistema de crença era prevista no fato de isso não ter ocorrido.
– Como isso é possível? – arfou Layla.
Os olhos brilhantes de Payne estavam sérios.
– Não era o que eu desejaria. E não é algo de que fale a respeito.
No momento tenso que se seguiu, Layla considerou impossível não ver a verdade naquilo que a fêmea falava. Tampouco a raiva, cuja causa ela apenas podia supor.
– Você é sagrada – disse Layla maravilhada.
– Nem um pouco, eu lhe garanto. Mas minha linhagem me concedeu um tipo de... como posso explicar? Habilidade.
Layla se enrijeceu.
– Que seria...?
Os olhos de diamante de Payne não se desviaram.
– Quero ajudá-la.
As mãos de Layla foram para o baixo ventre.
– Se quer abreviar isto... não.
Ela tinha seu filho por um tempo curto demais. Não importava a dor que tivesse que passar, ela não sacrificaria um minuto sequer daquilo que, sem dúvida, seria sua única gestação.
Ela jamais se colocaria à mercê de outro sofrimento assim. No futuro, quando seu cio chegasse, ela seria sedada e pronto.
Aquele tipo de perda uma vez na vida já era demais.
– E se acredita que pode deter isto – Layla continuou –, isso não é possível. Não há nada que ninguém possa fazer.
– Não estou tão certa disso – o olhar de Payne era enlevado. – Eu gostaria de ver se posso salvar esta gestação. Se me permitir.
No campus abandonado da Escola para Moças Brownswick, o Sr. C. se acomodou no que um dia fora o escritório da diretora.
Era o que estava escrito na placa rachada do lado de fora da sala.
Como não havia calefação, a temperatura ambiente não estava muito maior do que a do lado de fora, mas graças ao sangue de Ômega, o frio não era um problema. Ainda bem: do outro lado do gramado crescido coberto de neve, no dormitório principal sobre uma colina, quase cinquenta redutores dormiam o sono dos mortos.
Se aqueles malditos necessitassem de aquecimento ou de comida, ele estaria sem sorte alguma.
Mas não, tudo o que ele tinha de fazer era providenciar um abrigo. A iniciação cuidaria do resto – e o fato de que precisavam desligar a consciência a cada 24 horas era um alívio.
Ele precisava de tempo para pensar.
Jesus Cristo, que confusão.
Compelido pela necessidade de se mexer, ele empurrou a cadeira para trás e se lembrou de que estava se sentando sobre um balde de argamassa virado ao contrário.
– Maldição.
Olhando ao redor da sala decrépita, ele mediu as placas de gesso penduradas das vigas do teto, as janelas cobertas por tábuas de madeira, e o buraco em uma das tábuas do piso no canto. O lugar era igual à conta bancária que ele encontrara.
Nenhum dinheiro em lugar algum. Munição zero. Armas que podiam ser usadas em combate à força, e só.
Depois de sua promoção, ele se viu cheio de energia, de planos. Agora encontrava-se diante de nenhum dinheiro, nenhum recurso, nada.
Ômega, por outro lado, esperava todo tipo de resultado. Como deixara bem claro no “encontro” deles na noite anterior.
E também havia outro problema. Ele odiava aquela merda.
Pelo menos ele podia fazer algo a respeito de todo o resto.
Esticando os braços acima da cabeça e estalando os ombros, agradeceu a Deus por duas coisas: uma, os celulares não tinham sido desligados, por isso ele podia se comunicar com seus homens no campo de batalha. E dois, todos aqueles anos na rua lhe deram os punhos de ferro no que se referia a controlar o bando de idiotas do tráfico de drogas.
Tinha de arranjar dinheiro. Logo.
Ele teve uma porra de um plano para isso também, mandando os últimos nove mil dólares com aqueles três garotos no meio da noite. Tudo o que os malditos tinham de fazer era pagar, pegar a droga e trazer para ali, onde dividiriam a merda, depois distribuiriam entre os novos recrutas para que eles vendessem nas ruas.
O problema era que ele ainda estava esperando pela porra da entrega.
E estava ficando puto de tanto esperar para descobrir se as drogas e o dinheiro tinham sumido.
Era bem possível que aqueles merdinhas tivessem fugido com um ou com o outro, mas, nesse caso, ele os caçaria como cachorros para mostrar aos outros o que acontecia quando você...
Quando seu celular tocou, ele o pegou, viu quem era e apertou o botão de chamada.
– Já era hora. Onde diabos você está e cadê minha mercadoria?
Houve uma pausa. Depois, a voz que se ouviu pela conexão não era nada parecida com a do traficante cheio de espinhas para quem ele entregara o celular e a última pistola da Sociedade que funcionava.
– Tenho uma coisa que você quer.
O Sr. C. franziu a testa. Voz grave. Envolta numa impaciência que ele reconhecia das ruas, e um sotaque que ele não sabia de onde vinha.
– Não é essa merda com a qual você está falando comigo – disse o Sr. C. com fala arrastada. – Tenho um monte desses.
Afinal de contas, quando você não tem nada na mão, no coldre ou na carteira, blefar era a sua única opção.
– Ora, que bom para você. Também tem muito do que me mandou? Dinheiro? Soldados?
– Quem diabos está falando?
– Sou seu inimigo.
– Se você ficou com a porra da minha grana, pode apostar que sim.
– Na verdade, essa é uma resposta bem simplista para um problema um tanto complexo.
O Sr. C. se pôs de pé, derrubando o balde.
– Onde está a porra do meu dinheiro e o que fez com os meus homens?
– Lamento, mas eles não podem mais atender ao telefone. É por isso que estou ligando.
– Você não faz ideia com quem está lidando – o Sr. C. ameaçou.
– Pelo contrário, é você quem está em desvantagem, bem como tantos outros – quando o Sr. C. estava pronto para rebater, o cara o interrompeu. – Eis o que vamos fazer. Vou telefonar à noite para lhe dar uma localização. Você, e apenas você, vai me encontrar lá. Se alguém o acompanhar, eu saberei, e você nunca mais vai saber de mim.
O Sr. C. estava acostumado a sentir desdém pelos outros, isso era parte do trabalho uma vez que você só lida com ladrões de merda e malditos viciados. Mas esse cara do outro lado da conexão? Controlado. Calmo.
Um profissional.
O Sr. C. controlou seu humor.
– Não preciso de nenhum joguinho...
– Sim, precisa. Porque se você quiser drogas para vender, terá que vir a mim.
O Sr. C. ficou calado. Ou aquele era um lunático cheio de ilusões de grandeza ou... era alguém com poder de verdade. Talvez o tipo que matou os intermediários do cartel de drogas em Caldwell um ano antes.
– Quando e onde? – disse de má vontade.
Houve uma risada sombria.
– Atenda o seu telefone ao cair da noite e você descobrirá.
CAPÍTULO 43
Layla não conseguiu falar enquanto tentava compreender as palavras de Payne.
– Não – disse à outra fêmea. – Não, Havers me disse que... não havia nada que pudesse ser feito.
– Na medicina, isso pode ser verdade. Eu posso ter outro modo, porém. Não sei se funcionará, mas, se permitir, eu gostaria de ver o que posso fazer.
Por um instante, Layla só conseguiu respirar.
– Eu não... – pôs a mão no abdômen liso. – O que fará comigo?
– Não sei bem, para ser sincera – Payne deu de ombros. – Na verdade, nem me passou pela cabeça que eu poderia ajudar nesta situação. Mas sou conhecida por curar aquilo que precisa ser curado. Repito, não sei se isso se aplica neste caso. Contudo, podemos tentar... e isso não a machucará. Isso eu posso prometer.
Layla perscrutou a expressão da lutadora.
– Por que... faria uma coisa dessas por mim?
Payne franziu o cenho e desviou o olhar.
– Você não precisa saber os motivos.
– Sim, preciso.
O perfil dela se tornou absolutamente frio.
– Você e eu somos irmãs da tirania de minha mãe, casualidades de seu plano maior de como as coisas devem ser. Estivemos as duas enjauladas em seus modos diversos, você como uma Escolhida; eu, como sua filha de sangue. Não há nada que eu não faça para ajudá-la.
Layla se recostou. Jamais se considerara uma desventura da mãe da raça. A não ser... ao pensar em seu desespero em ter uma família, seu senso de não ter raízes, sua absoluta falta de identidade além do trabalho de uma Escolhida... ela teve o que pensar. O livre-arbítrio a levava àquela situação horrenda, mas, pelo menos, ela escolhera a rota e os meios. Como membro da classe especial da Virgem Escriba, não tivera muitas escolhas, a respeito de nada em sua vida.
A respeito de nada mesmo.
Ela estava perdendo aquela gravidez, aquilo era óbvio. E se Payne achava que existia uma chance de...
– Faça o que precisar fazer – disse com voz rouca. – E obrigada, não importando o resultado.
Payne assentiu uma vez. Depois esticou as mãos, flexionando e afastando os dedos.
– Posso tocar no seu abdômen?
Layla abaixou as cobertas.
– Devo tirar a camisa?
– Não.
Melhor assim. A simples retirada da colcha lhe provocara uma nova onda de dor, a mínima mudança de peso era causa de...
– Você está sofrendo muito – murmurou a outra fêmea.
Layla não respondeu ao expor a pele do abdômen. Obviamente, sua expressão já dizia o bastante.
– Apenas relaxe. Isso não deverá lhe causar nenhum desconforto...
Quando o contato foi feito, Layla levantou a cabeça. As mãos da lutadora estavam quentes como a água de uma banheira. E igualmente calmas. Estranhamente calmas, para falar a verdade.
– Isto dói? – Payne perguntou.
– Não. Parece... – quando uma nova onda de dor se avolumava, ela agarrou os lençóis, se preparando...
Só que o pico da dor não se elevou como antes, como se a sensação fosse uma montanha íngreme, cujo topo fora arrancado.
Era o primeiro alívio que sentia desde que tudo aquilo começara.
Com um gemido de submissão, ela deixou a cabeça pender, o travesseiro amparando o repentino cansaço que a abateu pelo tanto de desconforto pelo qual seu corpo passara.
– E agora nós começamos.
De repente, a luz do abajur tremulou... e depois se apagou.
Sua iluminação, contudo, logo foi substituída.
Das mãos pálidas de Payne um brilho suave começou a ser lançado. O calor de seu toque se intensificou, o abrandamento estranho e maravilhoso parecia penetrar em sua pele, nos músculos, em cada osso que estava no caminho... indo direto para o ventre de Layla.
E, então, houve um tipo de explosão.
Com um sibilo, ela se entregou à grande onda de energia que abruptamente surgiu dentro dela, um calor que não queimava, mas fervia afastando a dor, suspendendo a agonia e arrancando-a de sua carne, como se o vapor de uma panela se dissipasse.
Mas não acabou ali. Uma grande sensação de euforia em seu corpo inteiro, com cachos dourados pulsando para fora de sua região pélvica e fluindo pelo torso até a mente e também em sua alma, e pernas e braços formigando.
Ah, que alívio pungente.
Ah, que poder incrível.
Ah, graça salvadora gentil.
A cura, contudo, não estava completa.
No meio do turbilhão, Layla sentiu... o que era aquilo? Um movimento em seu útero. Uma contração, talvez? Mas não uma cólica, não, nada disso. Mais como se o que estivesse defasado tivesse recuperado as forças.
Ela, gradualmente, deu-se conta de que batia os dentes.
Olhando para baixo, para seu corpo, ela viu que tudo tremia, e não só isso.
Sua forma física estava brilhando. Cada centímetro de sua pele era como uma cúpula de um abajur, revelando a luz que jazia por baixo, as roupas agindo como barreiras frágeis daquilo que fervia lentamente dentro dela.
Na iluminação, o rosto de Payne estava contraído, como se fosse um custo alto transferir a cura maravilhosa para outra pessoa. E Layla teria se distanciado, colocado um fim naquilo, se pudesse – porque a outra fêmea começava a parecer muito cansada. No entanto, não havia como romper a ligação. Ela não tinha o controle dos seus membros, não tinha como falar.
Aquela comunhão vital entre as duas pareceu durar uma eternidade.
Quando Payne finalmente se afastou, rompendo o elo, ela caiu da cama, formando uma pilha no chão.
Layla abriu a boca para gritar. Tentou segurar sua salvadora. Lutou contra o peso morto do corpo ainda iluminado.
Todavia, não havia nada que ela pudesse fazer.
A última coisa que ficou registrada antes que perdesse a consciência era a sua preocupação com a outra fêmea. E, depois, tudo ficou escuro.
CAPÍTULO 44
Qhuinn despertou com o pênis duro.
Estava deitado de costas e seus quadris se mexiam por conta própria, o movimento contínuo resvalava a ereção contra o peso dos lençóis e da colcha. Por um instante, enquanto se demorava naquele estado meio dormente antes de a consciência chegar, ele imaginou que era Blay criando aquela fricção, as palmas do macho subindo e descendo... num preâmbulo de mais ação oral.
Foi quando abaixou a mão para enterrar os dedos nos cabelos ruivos que percebeu estar sozinho: a mão encontrou apenas os lençóis.
Numa atitude otimista, lançou o braço para o lado, tateando o lugar ao seu lado, pronto para encontrar o corpo quente do macho.
Apenas mais lençóis. E estavam frios.
– Cacete – inspirou.
Abrindo os olhos, a realidade de onde estava o atingiu com força, murchando a sua ereção. Apesar dos encontros, aqueles dois interlúdios maravilhosos e extremamente sensuais, Blay estava, naquele exato instante, acordando ao lado de Saxton.
Provavelmente fazendo sexo com o cara.
Ah, Deus, ele ia vomitar.
A ideia de Blay tocando em outro, cavalgando em outro, lambendo e afagando outro – seu maldito primo, para ser bem claro – era quase tão insuportável quanto a maldita situação de Layla. A verdade era que, graças ao que acontecera, qualquer atração que Qhuinn sentisse pelo cara aumentara em vez de diminuir.
Maravilha. Outra rodada de boas notícias.
Foi sem nenhum entusiasmo que Qhuinn se arrastou para fora da cama e entrou no banheiro. Não acendeu a luz, não tinha interesse algum em ver que sua aparência era a mesma da merda de um cachorro, mas barbear-se só pelo toque não era a melhor das ideias.
Ao apertar o interruptor, piscou com força, e uma dor de cabeça começou a latejar atrás de ambos os olhos. Sem dúvida precisava comer de novo, mas que merda, as exigências constantes de seu corpo estavam acabando com ele.
Abrindo a torneira, ele pegou o gel de barbear e colocou um punhado na palma. Esfregou as mãos para criar espuma e pensou em seu primo. Ele tinha a impressão, embora não soubesse com certeza, de que Saxton usaria um daqueles pincéis antigos para espalhar a espuma no rosto. E nada de lâminas Gilette para ele. Muito provavelmente ele tinha um daqueles instrumentos de barbeiro com cabo em madrepérola.
O pai de Qhuinn tinha um desses. E seu irmão recebera um com suas iniciais após sua transição.
Junto ao anel de sinete.
Bem, ótimo para eles. Além do que, já que ambos estavam mortos, não era como eles continuassem se barbeando.
Quando o rosto ficou coberto de branco, como o cenário lá de fora, ele pegou sua lâmina comum Mach 3 com cabeça descartável...
Sem nem saber por que, achou que devia pegar uma lâmina nova.
Sim, uma supernova e ultracortante.
Qhuinn revirou os olhos para si mesmo. Nada como se concentrar em três pequenas lâminas e uma tira umidificadora. Algo bem lógico.
Depois de se admoestar, ele começou a vasculhar as gavetas do gabinete, puxando-as uma a uma, inventariando os itens de tolices de higiene que nunca usava, nem jamais sequer perdia tempo olhando-as.
Puxando a última, a mais próxima do chão, parou. Franziu o cenho. Agachou.
Havia uma caixinha preta de veludo ali, do tipo em que se colocam joias. Só que ele não tinha nenhuma, e muito menos da Reinhardt, aquela loja esnobe no centro. Como ninguém mais ficava em seu quarto, ele se perguntou se, talvez, aquilo estivesse ali desde que ele se mudara e ele simplesmente nunca o vira.
Tirando a caixinha, levantou a tampa e...
– Filho da mãe.
Dentro, como se valesse muita coisa, estavam todos os seus brincos de argola, bem como o piercing que costumava usar no lábio inferior.
Fritz deve tê-los juntado ao limpar o quarto uma noite e guardado na caixinha. Única explicação possível, porque Qhuinn não se importara com eles depois de tirá-los, um a um. Simplesmente os jogara no fundo de uma das gavetas do banheiro.
Qhuinn mexeu nas argolas de aço, relembrando quando as comprara e colocara. Seu pai ficara mortificado; a mãe também – ao ponto de se retirar da Última Refeição e ficar trancada no quarto por 24 horas seguidas depois de ele entrar flanando na sala de jantar usando-as.
O colocador de piercings lhe dissera para não usá-los até que as tachas utilizadas para perfurar tivessem a chance de cicatrizar. Mas esse conselho era para humanos. Em poucas horas, estava tudo perfeito e ele fizera a troca.
No banheiro de Blay, para falar a verdade.
Qhuinn franziu a testa, lembrando-se do momento em que pisara no quarto do cara. Blay estava na cama, acalentando uma Corona, assistindo TV. A cabeça dele se virou, com sua expressão franca e relaxada... até dar uma olhada em Qhuinn.
Seu rosto se contraiu mesmo que minimamente. De um jeito que, a menos que você conhecesse bem, muito bem uma pessoa, jamais teria percebido. Mas Qhuinn notara.
Naquela época, deduzira que seu estilo obviamente gótico fosse um tantinho demais para o senhor Conservador. Mas agora, em retrospecto, ele se lembrou de algo mais. Blay voltara a se concentrar na TV de plasma... e, casualmente, cobrira o colo com uma almofada.
Ele deve ter ficado excitado.
Enquanto Qhuinn repassava a cena inteira na mente, seu próprio sexo voltava a engrossar.
Só que aquilo era uma completa perda de tempo, não era?
Fitando as malditas argolas, pensou em sua rebeldia, na raiva e na ideia sem noção do que precisava ter para ser feliz.
Uma fêmea. Se encontrasse uma que o aceitasse.
Que... mentira... fora aquilo.
Engraçado, a covardia aparecia em muitas formas, não é? Não era necessário se encolher num canto, tremendo e choramingando como um gatinho. Inferno, não. Você pode ser um grandalhão barulhento cheio de marra e com o rosto cheio de piercings e um rosnado para mostrar para o mundo... e ainda assim não passar de um covarde filho da puta. Afinal, Saxton podia vestir ternos de três peças e gravatas e sapatos, mas o macho sabia quem era, e não tinha medo de ter aquilo que desejava.
E, olha só, Blay estava acordando ao lado do cara.
Qhuinn fechou a tampa e recolocou os piercings onde os encontrara. Depois se olhou no espelho. O que estava fazendo mesmo?, pensou ao fitar seu reflexo.
Ah, sim. Barbeando-se.
Era isso mesmo.
Cerca de vinte minutos mais tarde, Qhuinn saiu do quarto. Andou pelo corredor das estátuas, passou pelas portas fechadas do escritório de Wrath e continuou em frente.
Enquanto avançava, foi difícil olhar para a sala de estar do segundo andar, difícil permanecer controlado quando aquele sofá surgiu no seu campo de visão.
Nunca mais olharia para aquela peça de mobília do mesmo modo. Inferno, talvez todos os sofás estivessem perdidos para ele, para sempre.
À porta de Layla, ele se inclinou encostando o ouvido na madeira. Quando não ouviu nada, perguntou-se exatamente o que achava que descobriria daquele modo.
Deu uma batida suave. Quando não houve resposta, sentiu um aperto de medo irracional na garganta e, sem pensar duas vezes, abriu a porta.
A luz invadiu a escuridão.
Seu primeiro pensamento foi que ela tivesse morrido; que Havers, o filho da puta, tivesse mentido, e que o aborto tivesse saído do controle e a matado: Layla estava imóvel ao encontro dos travesseiros, a boca ligeiramente entreaberta, as mãos cruzadas sobre o peito como se ela tivesse sido arrumada por um agente funerário com respeito pelos mortos.
Só que... algo estava diferente, e ele precisou de um minuto para perceber o que era.
Não havia mais o cheiro sobrepujante do sangue. Na realidade, somente a fragrância delicada de canela marcava o ar, refrescando-o de um modo que iluminava o quarto inteiro.
Será que o aborto finalmente chegara ao fim?
– Layla? – ele a chamou, mesmo tendo dito que se a encontrasse dormindo, não a perturbaria.
Foi um alívio ver as sobrancelhas se mexendo quando seu nome foi captado pelo cérebro, mesmo sob o véu do sono.
Ele teve a sensação de que se a chamasse de novo, ela acordaria.
Parecia cruel forçar-lhe a consciência. O que ela teria para recebê-la quando acordasse? A dor que sentia? A sensação de perda?
Cacete.
Qhuinn saiu silenciosamente, fechou a porta atrás de si e continuou ali. Não sabia o que fazer. Wrath lhe dissera para ficar em casa, mesmo se John Matthew saísse – ele deduziu que aquilo fosse uma espécie de folga misericordiosa de seus deveres de ahstrux nohtrum. E estava grato por isso. Havia tão pouco que pudesse fazer por Layla – pelo menos podia ficar por perto caso ela precisasse de alguma coisa. Um refrigerante. Uma aspirina. Um ombro para chorar.
Você fez isso a ela.
A julgar pelo toque que saía da maldita sala de estar, ele deduziu que perdera a Primeira Refeição. Nove horas. Isso mesmo. Acabara dormindo demais, e isso era bom. Se ele tivesse de se sentar à mesa e passar 45 minutos na companhia de quase duas dúzias de pessoas que tentariam não encará-lo, ele teria perdido a porra da cabeça.
O som de alguém andando no vestíbulo logo abaixo fez com que ele levantasse a cabeça.
Sem nenhum plano ou pensamento específico, ele se aproximou da balaustrada e olhou para baixo.
Payne, a irmã valentona de V., estava saindo da sala de jantar.
Ele não conhecia muito bem aquela fêmea, mas a respeitava imensamente. Seria impossível não admirar, dado o modo como se portava no campo de batalha... Durona, verdadeiramente durona. Naquele instante, porém, a shellan do doutor Manello parecia ter levado uma surra de bar: caminhava lentamente, os pés se arrastando pelo piso de mosaico, o corpo encurvado, a pegada no braço de seu par parecendo ser a única coisa que a sustentava.
Será que ela se machucara em alguma luta corpo a corpo?
Não havia cheiro de sangue.
O doutor Manello disse algo para ela que ele não conseguiu ouvir, mas depois o cara indicou a direção da sala de bilhar com a cabeça – como se ele estivesse perguntando se ela queria ir para lá.
Tomaram aquela direção a passos de caramujo.
Já que não gostava quando as pessoas o encaravam, Qhuinn recuou da grade e esperou até que o caminho estivesse livre. Depois correu escada abaixo.
Comida. Exercícios. Voltar a ver Layla.
Aquela seria a sua noite.
Seguindo para a cozinha, ele se viu imaginando onde Blay estaria. O que estaria fazendo. Se tinha saído para lutar ou se tinha ficado em casa e...
Visto que não sabia onde Saxton estava, ele pôs um ponto final naquela linha de questionamentos.
Se Qhuinn não tivesse de fazer seu turno e pudesse passar um tempo com o cara, ele sabia muito bem o que Blay estaria fazendo.
E Saxton, seu primo filho da puta, não era nenhum tolo.
CONTINUA
CAPÍTULO 37
Enquanto Blay girava o anel de sinete da família no dedo, seu cigarro aceso queimava lentamente na outra mão, e seu traseiro ficava adormecido... e ninguém passava pelas portas do átrio.
Sentado no degrau de baixo da grande escadaria da mansão, ele não respeitaria a promessa feita à mãe de ir para casa. Não naquela noite, pelo menos. Depois da loucura da noite anterior, do pouso forçado do avião e do drama subsequente, Wrath ordenara que a Irmandade e os lutadores tirassem 24 horas de folga. Por isso, tecnicamente, ele deveria ligar para os pais e dizer à mãe que caprichasse na mussarela e no molho à bolonhesa.
Mas de jeito nenhum ele sairia daquela casa. Não depois de ouvir os gritos vindos do quarto de Layla, e de vê-la praticamente sendo carregada escadaria abaixo.
Naturalmente, Qhuinn esteve ao lado dela.
John Matthew não.
Portanto, o quer que estivesse acontecendo, pelo visto superava o ahstrux nohtrum, e isso significava que... ela só podia estar perdendo o filho. Somente algo sério assim possibilitaria um passe livre.
Enquanto ele continuava parado como uma porta, sem nada além da sua preocupação para lhe fazer companhia, naturalmente sua mente resolveu seguir o caminho errado: merda, fora mesmo para a cama com Qhuinn na noite passada?
Dando uma tragada em seu Dunhill, ele expeliu uma imprecação.
Acontecera mesmo?
Deus, essa pergunta vinha martelando a sua cabeça desde o minuto em que despertou de um sonho sensual, com uma ereção que parecia fazer pensar que o outro macho dormia ao seu lado.
Revendo as cenas pela centésima vez, só no que ele conseguia pensar era... como um plano podia fracassar. Depois de ter rejeitado Qhuinn quando ele se pôs de joelhos, voltara para o próprio quarto e andara de um lado para o outro, um debate que não interessava ter consigo mesmo transformando seu cérebro em fois gras.
Ele tomara a decisão correta ao sair. Mesmo. Tinha sim.
O problema foi que a decisão não se sustentou. Enquanto as horas do dia passavam, tudo o que ele conseguia pensar foi a vez em que o pai o flagrou roubando uma caixa de cigarros do doggen da família. Na época, ele era um jovem pré-trans e, como castigo, seu pai o obrigou a se sentar do lado de fora e fumar cada um daqueles Camels sem filtro. Ele se sentiu muito mal e demorou mais de dois anos para sequer tolerar fumo passivo.
Portanto, esse fora o seu segundo plano.
Fazia tempo demais que era louco por Qhuinn, mas tudo não passava de algo hipotético, dividido em fantasias de modo que ele conseguisse suportar. Nada de uma vez só, nada da coisa sobrecarregada, absoluta e arrasadora – e ele sabia muito bem que na vida real, Qhuinn não se conteria nem relaxaria. O “plano” fora ter a experiência concreta, e descobrir que aquilo não passava de apenas sexo brutal. Ou, inferno, descobrir que não era nem sexo bom.
Não era de se esperar que você fumasse um maço inteiro de cigarros... só para querer mais.
Deus todo-poderoso, foi a primeira vez em que a realidade foi muito melhor do que uma fantasia, a absolutamente melhor experiência erótica de toda a sua vida.
Depois, porém, a gentileza que Qhuinn demonstrara fora insuportável.
Na verdade, enquanto Blay rememorava aquela ternura, ele deu um salto de onde estava e começou a marchar ao redor do mosaico de macieira – não tinha para onde ir.
Naquele instante a porta se abriu. Porém, não a de entrada.
A da biblioteca.
Enquanto olhava de relance por sobre o ombro, Saxton surgiu de lá. Ele parecia saído do inferno, e não só porque, por mais veloz que fosse a sua recuperação, ele ainda tinha um inchaço residual na mandíbula graças ao ataque de Qhuinn.
Que lindo, Blay pensou. Bela maneira de expressar seu desapontamento quanto ao comportamento de alguém: deixe-o transar com você depois que ele tentou estrangular seu ex.
Quaaanta classe.
– Como você está? – Blay perguntou, e não por convenção social.
Foi um alívio Saxton se aproximar. E encará-lo. E sorrir-lhe um pouco como se estivesse determinado a fazer um esforço.
– Estou exausto. E faminto. E agitado.
– Gostaria de comer comigo? – sugeriu Blay num rompante. – Também estou me sentindo assim, e a única coisa em que posso dar jeito é a fome.
Saxton assentiu com a cabeça e enfiou as mãos nos bolsos da calça.
– Ideia brilhante.
Os dois acabaram na cozinha, sentados ante a castigada mesa de carvalho, lado a lado, de frente para o resto do cômodo. Com um sorriso contente, Fritz imediatamente passou para o seu modo “provedor de alimentos” e, veja só, dez minutos mais tarde, o mordomo servia uma tigela de cozido de carne para cada um, além de uma baguete para dividirem, uma garrafa de vinho tinto e uma porção de manteiga num pratinho ao lado.
– Volto em seguida, meus senhores – disse o mordomo com uma reverência. E depois ele prosseguiu expulsando todos da cozinha, desde o doggen que descascava legumes até os que poliam a prataria e os que limpavam as janelas de uma alcova logo além dali.
Quando a porta se fechou após a saída do último criado, Saxton disse:
– Tudo o que nos falta é uma vela, aí isto seria um encontro – o macho se inclinou para a frente e começou a comer com modos impecáveis. – Bem, suponho que precisaríamos de mais algumas coisas, não?
Blay olhou de esguelha enquanto apagava o cigarro. Mesmo com as olheiras e o hematoma desvanecendo no pescoço, o advogado era muito bonito de se olhar.
Por que ele não poderia simplesmente...
– Não repita, de novo, que sente muito – Saxton limpou a boca com o guardanapo e sorriu. – Não é necessário, nem apropriado.
Assim, sentado ao lado dele, não parecia que tinham acabado de romper, nem que ele estivera com Qhuinn. Será que as últimas noites aconteceram mesmo?
Até parece... O que ocorreu com Qhuinn não teria acontecido se ele e Sax ainda estivessem juntos. Isso era bem claro para ele: uma coisa era se masturbar secretamente, e isso já era ruim o bastante. Aquilo tudo? De jeito nenhum.
Droga, apesar do fato de ele e Saxton terem rompido, ele ainda sentia que devia confessar sua transgressão... mesmo que Qhuinn estivesse certo e que Saxton já tivesse seguido em frente, por assim dizer.
Enquanto comiam em silêncio, Blay balançou a cabeça, ainda que não tivessem lhe feito nenhuma pergunta e nem estivessem conversando. Ele só não sabia o que fazer. Às vezes, as mudanças da vida surgiam com tanta rapidez, e com tamanha impetuosidade, que não havia como acompanhar a realidade. Levava tempo para as coisas se assentarem, um novo equilíbrio se reestabelecia só depois de algum tempo em que seu cérebro batia de um lado contra o outro das paredes da sua cabeça.
Ele ainda estava na fase de balançar.
– Já sentiu alguma vez como se as horas fossem medidas em anos? – perguntou Saxton.
– Ou décadas. Sim. Absolutamente – Blay olhou de novo. – Na verdade, eu também estava pensando nisso.
– Que par de mórbidos nós somos.
– Talvez devêssemos vestir preto.
– Braçadeiras? – sugeriu Saxton.
– Não, preto dos pés à cabeça.
– E o que eu faço com o meu gosto por cores? – Saxton apontou para o lenço laranja Hermès no bolso da sua lapela. – Bem, pode-se muito bem usar todo tipo de acessórios.
– Certamente isso explica a teoria por trás dos aparelhos ortodônticos.
– Flamingos de plástico rosa.
– A franquia da Hello Kitty.
Juntos, os dois explodiram numa gargalhada. Nem era assim tão engraçado, mas o humor não era a questão ali. Mas quebrar o gelo. Voltar ao que era antes. Aprender a se relacionarem de um modo diverso.
Quando convergiram para um riso mais contido, Blay passou o braço ao redor dos ombros do macho e lhe deu um abraço rápido. Foi bom que Saxton tivesse relaxado um pouco, aceitando aquilo que lhe era oferecido. Não que Blay acreditasse que por estarem sentados juntos, partilhando uma refeição e uma bela risada, tudo, de repente, seria um navegar suave. Nada disso. Era estranho pensar que Saxton estivera com outra pessoa, e ainda mais incrível saber que ele fizera o mesmo – principalmente com quem o fizera.
Não se passava de amantes de quase um ano para companheiros de risadas em um ou dois dias.
Podia-se, porém, começar a forjar um novo caminho.
E colocar um pé na frente do outro.
Sempre haveria um lugar em seu coração para Saxton. O relacionamento que tiveram foi o seu primeiro não só com um macho, mas com qualquer um. E muitas coisas boas aconteceram, coisas que ele carregaria consigo como lembranças que valiam o espaço em sua mente.
– Deu uma olhada nos jardins de trás? – Saxton perguntou ao lhe oferecer o pão.
Blay partiu um pedaço e depois espalhou manteiga por cima enquanto Saxton também pegava um pouco.
– Estão bem ruins, não?
– Lembre-me de nunca tentar cortar grama com um Cessna.
– Você não curte jardinagem.
– Bem, para o caso de um dia eu tentar – Saxton se serviu de vinho. – Aceita?
– Sim, por favor.
E foi assim que as coisas aconteceram. Durante o cozido de carne até a torta de pêssegos, que milagrosamente apareceu diante deles graças à impecabilidade de Fritz. Quando a última garfada e a última limpada com guardanapo foram dadas, Blay se reclinou contra o encosto acolchoado do banco embutido e inspirou fundo.
Que se referia a muito mais do que uma simples barriga cheia.
– Bem – disse Saxton, ao apoiar o guardanapo ao lado do prato de sobremesa –, acredito que finalmente vou poder tomar o banho de banheira que você me sugeriu há algumas noites.
Blay abriu a boca para observar que os sais de banho que o macho preferia ainda estavam em seu banheiro. Ele os vira no gabinete quando fora pegar o creme de barbear reserva ao cair da noite.
Só que... ele não sabia se devia mencionar isso. E se Saxton pensasse que ele estava lhe pedindo para ir à sua banheira? Seria um lembrete muito grande de como as coisas tinham mudado e do por quê? E se...
– Tenho esse novo tratamento à base de óleos que estou morrendo de vontade de experimentar – explicou Saxton ao deslizar pelo banco. – Ele finalmente chegou do exterior hoje. Faz séculos que espero por ele.
– Parece maravilhoso.
– Mal posso esperar – Saxton ajustou o paletó nos ombros, ajeitou os punhos e depois acenou com a mão, saindo sem nenhum indício de complicações ou de tensão em seu rosto.
O que, de fato, ajudava muito.
Dobrando o próprio guardanapo, deixou-o de lado, e saiu de trás da mesa, esticando os braços acima da cabeça e curvando-se para trás, estalando muito bem a coluna.
A sua tensão voltou no segundo em que pisou no átrio novamente.
Que diabos estava acontecendo com Layla?
Maldição, ele nem podia ligar para Qhuinn. Aquele drama não era seu, nem estava ligado a ele de modo algum. Quando se tratava de uma gestação, ele não era diferente de nenhum outro macho daquela casa que também ouvira ou vira o show e, sem dúvida, estava tão preocupado quanto ele. Mas também não tinha direito a nenhuma notícia antecipada.
Uma pena que sua barriga, agora cheia, não concordasse com isso. Pensar em Qhuinn perdendo o filho o fez considerar seriamente a localização do banheiro mais próximo da porta de entrada, só para o caso de uma evacuação rápida ser ordenada pelo fundo da sua garganta.
No fim, ele se viu subindo para a sala de estar do segundo andar. Daquele lugar, ele não teria dificuldade em ouvir a porta da frente, e não estaria esperando abertamente...
As portas do escritório de Wrath se abriram, e John Matthew emergiu do santuário do Rei.
Imediatamente, Blay atravessou a sala de espera, pronto para ver se, talvez, o cara sabia de alguma coisa, mas se conteve ante a expressão de John.
Perdido em pensamentos. Como se tivesse recebido notícias pessoais do tipo perturbador.
Blay ficou para trás enquanto o camarada seguia no caminho contrário, na direção do corredor das estátuas, sem dúvida para desaparecer no próprio quarto.
Parecia que as coisas não andavam bem nas vidas dos outros também.
Maravilha.
Com uma imprecação baixa, Blay deixou o amigo em paz e voltou a caminhar e... a esperar.
Muito mais ao sul, na cidade de West Point, Sola estava pronta para entrar no segundo andar da casa de Ricardo Benloise, através da janela ao fim do corredor principal. Fazia meses desde que estivera lá dentro, mas ela contava com o fato de que seu contato na segurança por ela cuidadosamente manipulado ainda fosse o seu amigo.
Havia dois fatores-chave para invadir com sucesso qualquer casa, prédio, hotel ou instalação: planejamento e velocidade.
Ela possuía os dois.
Pendurada no cabo que lançara no telhado, ela tirou um instrumento de dentro do bolso da parca, segurando-o no canto direito da janela dupla. Iniciado o sinal, ela esperou, olhando fixamente para a luzinha vermelha que brilhava na tela à sua frente. Se por algum motivo ela não mudasse, ela teria de entrar por uma das águas-furtadas que dava para o jardim, o que seria um pé no saco...
A luz ficou verde com um sinal, e ela sorriu ao pegar mais instrumentos.
Pegando um copo de sucção, ela o empurrou no meio do painel, imediatamente abaixo da tranca e depois girou a coisa com o cortador de vidro. Um empurrão rápido e o espaço que possibilitava a entrada do seu braço foi criado.
Depois de deixar o círculo de vidro cair com suavidade na passadeira oriental, ela enfiou o braço e o virou, para soltar a trava de latão que mantinha a janela fechada.
O ar quente lhe deu boas-vindas, como se a casa estivesse contente por vê-la mais uma vez.
Antes de entrar, ela olhou ao redor. Relanceou para o caminho de carros. Inclinou-se para fora para ver o que conseguia encontrar nos jardins escuros.
Sentia como se alguém a estivesse observando... não tanto no caminho de carro até a cidade, mas depois que parara no estacionamento e colocara os esquis. Todavia, não havia ninguém por perto – pelo menos, ninguém que ela conseguisse enxergar – e por mais que a atenção fosse essencial em seu ramo de trabalho, a paranoia era uma perda de tempo perigosa.
Ela precisava deixar isso de lado.
Voltando a se concentrar no jogo, esticou as mãos enluvadas e suspendeu o traseiro e as pernas por cima e através da janela. Ao mesmo tempo, relaxou a tensão do cabo para que ele ficasse folgado e permitisse a sua entrada. Aterrissou sem nenhum som, graças não só ao tapete que cobria o longo corredor como também aos seus calçados de solas macias.
O silêncio era outro critério importante no tocante a realizar um trabalho com sucesso.
Ela parou onde estava por um breve momento. Nenhum som na casa, mas isso não significava nada necessariamente. Ela tinha quase certeza de que o alarme de Benloise fosse silencioso, e mais certeza ainda de que o sinal não iria para a força policial, nem a local, tampouco a estadual: ele gostava de cuidar das coisas particulares de modo privado. E Deus bem sabia, com o tipo de força braçal que ele contratava, havia poder suficiente para tal.
Felizmente, contudo, ela era boa no que fazia, e Benloise e seus capangas não estariam em casa até perto do nascer do sol, afinal, ele vivia a vida de um vampiro.
Por algum motivo, a palavra que começava com “v” a fez pensar no homem que aparecera ao lado do seu carro e que desaparecera como num passe de mágica.
Loucura. E a única vez em sua lembrança recente que alguém a fazia parar para pensar. Na verdade, depois de ser confrontada daquela forma, ela estava realmente considerando não voltar à casa de vidro no rio, embora houvesse motivos mais do que válidos para isso. Não por ela se preocupar em se machucar fisicamente. Deus bem sabia que ela era perfeitamente capaz de se defender.
Era a atração.
Mais perigosa do que qualquer pistola, faca, ou punho, em sua opinião.
Com passadas ágeis, Sola trotou pelo tapete, saltitando na ponta dos pés, seguindo para a suíte principal que dava para o jardim dos fundos. A casa ainda tinha o mesmo cheiro de que se lembrava: mobília antiga e lustra-móveis, e ela conhecia o bastante para se ater ao lado esquerdo da passadeira. Nenhum rangido daquele lado.
Quando chegou à suíte principal, a porta pesada de madeira estava fechada, e ela pegou a chave micha antes mesmo de testar a maçaneta. Benloise tinha duas patologias: limpeza e segurança. A impressão dela, entretanto, era que a segunda era mais crítica na galeria no centro de Caldwell do que em seu lar. Afinal, Benloise não mantinha debaixo do seu teto nada além de objetos de arte com seguros até o último centavo, e a ele próprio durante o dia – quando estava cercado por diversos seguranças e armas.
Na verdade, devia ser por isso que ele era uma coruja no centro da cidade. Isso significava que a galeria nunca ficava sem supervisão: ele aparecia depois do expediente e sua equipe de trabalho legítima estava lá durante o dia.
Como uma gatuna, ela certamente preferia entrar em lugares vazios.
Dito isso, mexeu no mecanismo de tranca da porta, abrindo-a, e entrou no quarto. Inspirou profundamente, o ar estava permeado com a fumaça do tabaco e da colônia refrescante de Benloise.
A combinação a fez pensar nos filmes em preto e branco de Clark Gable por algum motivo.
Com as cortinas puxadas e nenhuma luz acesa, ali estava absolutamente escuro, mas ela tirara fotografias dos quartos quando fora a uma festa ali, e Benloise não era o tipo de homem que mudava as coisas de lugar. Inferno, toda vez que uma nova exibição era instalada na galeria de arte, ela praticamente sentia o tremor debaixo da pele dele.
Medo de mudança era uma fraqueza, sua avó sempre dizia.
Obviamente facilitava as coisas para ela.
Mais devagar, ela avançou dez passos até o meio do quarto. A cama estaria à esquerda encostada na parede comprida. À sua frente estavam as janelas altas que davam para o jardim. À direita, haveria uma cômoda, uma escrivaninha e algumas cadeiras, e a lareira que nunca era usada porque Benloise detestava o cheiro de madeira queimada.
O alarme de segurança se localizava entre a entrada do banheiro e a cabeceira ornamentada da cama, ao lado do abajur que se elevava noventa centímetros do criado-mudo.
Sola deu um giro ao redor de si mesma. Deu quatro passos. Tentou encontrar o pé da cama... e o encontrou.
Passo lateral, um, dois, três. De frente para o flanco do colchão king-size. Outro passo lateral para desviar da mesinha de cabeceira e do abajur.
Sola esticou o braço esquerdo...
E lá estava o painel de segurança, bem onde deveria.
Abrindo a portinhola, usou uma lanterna de bolso que prendeu entre os dentes para iluminar o circuito. Pegando outro instrumento da mochila, conectou fios a fios, interceptando sinais, e com a ajuda de um laptop em miniatura e de um programa que um amigo seu desenvolvera, criou um circuito fechado dentro do sistema de alarme de modo que, enquanto o roteador estivesse no lugar, os detectores de movimento que ela estava para disparar não seriam registrados.
No que se referia à placa-mãe, nada pareceria anormal.
Deixando o laptop pendurado pelos fios, saiu do quarto, chegou ao corredor, e tomou as escadas para o primeiro andar.
O lugar estava perfeitamente decorado, pronto para uma foto de revista – ainda que, claro, Benloise protegesse demais a sua privacidade para permitir que suas coisas fossem fotografadas para o consumo público. Com passos rápidos, ela passou pelo hall de entrada, pela sala à esquerda e entrou no escritório.
Andando em meio à penumbra, ela bem que preferiria tirar a parca de camuflagem branca e as calças para neve: fazer aquilo em seu body preto seria um clichê que, entretanto, seria bem prático. Não havia tempo, porém, e ela estava mais preocupada em não ser vista do lado de fora do que ali, na casa vazia.
O espaço de trabalho pessoal de Benloise era, como todo o resto debaixo daquele teto, mais um cenário montado do que algo funcional. Ele, na verdade, não usava a imensa escrivaninha, nem se sentava no minitrono, tampouco lia qualquer um dos livros em capa de couro das prateleiras.
Todavia, ele transitava por aquele cômodo. Uma vez ao dia.
Certa vez, num momento de tranquilidade, ele lhe dissera que antes de sair, todas as noites, passeava pela casa olhando seus pertences, lembrando a si mesmo da beleza das suas coleções e de sua casa.
Como resultado dessa informação e de algumas outras coisas, Sola há muito deduzira que o homem crescera na pobreza. Primeiro porque, quando conversavam em espanhol ou em português, seu sotaque pertencia à classe baixa, mesmo que de modo sutil. Segundo, os ricos não valorizavam seus pertences como ele o fazia.
Nada era raro aos ricos, e isso significava que eles davam como certas todas as coisas.
O cofre estava escondido atrás da escrivaninha numa seção de estandes que era liberada por um botão localizado na gaveta inferior do lado direito.
Ela descobrira isso graças a uma minúscula câmera escondida que colocara do lado oposto durante aquela festa.
Após a abertura do mecanismo, um corte de sessenta por noventa centímetros na prateleira rolou para a frente e deslizou para o lado. E lá estava ela: uma caixa grossa de aço, cujo fabricante ela reconhecia.
Pensando bem, depois de invadir centenas de espaços, você acaba conhecendo intimamente os fabricantes. E ela aprovava aquela escolha. Se precisasse ter um cofre, era daquele tipo que ela pegaria e, sim, ele o prendera ao chão.
O maçarico que trouxera na mochila era pequeno, mas poderoso, e enquanto ela acendia a ponta, a chama chamuscou com um sibilo substancial e um brilho branco e azul.
Aquilo levaria tempo.
A fumaça do metal queimado irritava seus olhos, o nariz e a garganta, mas ela manteve a mão firme enquanto produzia um quadrado na frente do painel. Ela conseguia explodir a porta de alguns cofres, mas o único jeito com um daqueles era do modo antigo.
Que levava uma eternidade.
No entanto, ela conseguiu.
Deixando a pesada seção da porta de lado, ela mordeu a ponta da lanterna mais uma vez e se inclinou. Uma prateleira continha joias, cautelas de ações e alguns relógios de ouro que ele deixara à mão. Havia uma pistola que ela seria capaz de apostar que estaria carregada. Nenhum dinheiro.
Pensando bem, com Benloise sempre havia tanto dinheiro disponível que fazia sentido ele não se dar ao trabalho de colocá-lo no cofre.
Maldição. Não havia nada ali que valesse apenas cinco mil dólares.
Afinal, naquele trabalho, ela só estava atrás daquilo que lhe era devido por direito.
Com uma imprecação, ela se apoiou nos calcanhares. Na verdade, não havia nada no cofre que valesse menos do que vinte e cinco mil dólares. E não tinha como ela partir a metade da pulseira de um relógio de ouro – porque, como diabos conseguiria revender a coisa?
Um minuto se passou.
O segundo.
Ao diabo com aquilo, ela pensou ao recolocar o painel que cortara contra o cofre e deslizar a prateleira de volta ao seu lugar. Levantando-se, olhou ao redor da sala com a lanterna de bolso. Os livros eram todos edições de colecionadores de primeiras edições de antiguidades. A arte nas paredes e sobre as mesas não era somente muito cara, como difícil de transformar em dinheiro sem ser debaixo dos panos... para as pessoas intimamente ligadas a Benloise.
Mas, que droga, ela não sairia sem seu dinheiro, maldição...
Abruptamente, sorriu para si mesma, a solução se tornando muito clara.
Por vários anos no curso da civilização humana, o comércio só existira e sobrevivera na base da troca. Ou seja, um indivíduo trocava bens ou serviços por outros de mesmo valor.
Em todos os trabalhos que realizara, ela jamais considerara acrescentar os custos auxiliares aos seus alvos: novos cofres, novos sistemas de segurança, novos protocolos de segurança. Ela podia apostar que isso era caro – ainda que não tão caro quanto o que ela costumava tomar. E ela entrara ali deduzindo que esses custos adicionais seriam arcados por Benloise – um tipo de prejuízo monetário pelo que ele roubara dela.
No entanto, eles agora eram a questão.
No caminho de volta à escada, observou as oportunidades disponíveis... e, no fim, foi até uma escultura de Degas de uma pequena bailarina que fora colocada na lateral de um nicho. A figura em bronze da garotinha era o tipo de coisa que sua avó teria adorado, e talvez por isso, dentre tantas peças, foi aquela a lhe chamar a atenção.
A luz que fora colocada no teto acima da estátua estava desligada, mas a obra-prima ainda assim parecia brilhar. Sola adorou especialmente a saia em tutu, a delicada ainda que rígida explosão de tule delineada por metal entrelaçado que capturava perfeitamente o que deveria ser maleável.
Sola se aproximou da base da escultura, passou os braços ao redor dela, e concentrou toda a sua força em girar a sua posição não mais do que cinco centímetros.
Depois correu para as escadas, retirou os clipes do roteador e do laptop do painel de alarme na suíte principal, trancou novamente a porta e seguiu para a janela na qual cortara um buraco.
Estava de volta nos esquis, deslizando na neve não mais do que quatro minutos mais tarde.
Apesar do fato de não ter nada nos bolsos, ela sorria ao deixar a propriedade.
CAPÍTULO 38
Quando a Mercedes finalmente parou na entrada da mansão da Irmandade, Qhuinn saiu primeiro e foi para a porta em que Layla estava. Quando a abriu, os olhos dela encontraram os dele.
Ele soube que jamais se esqueceria da aparência dela. A tez estava branca como um papel e parecia tão fina quanto um, a bela estrutura óssea se esticando sobre a cobertura de pele. Os olhos estavam encovados no crânio. Os lábios, finos e inexpressivos.
Naquele instante, ele teve um vislumbre de como ela ficaria ao morrer, não importando quantas décadas e séculos isso fosse levar para acontecer.
– Eu carrego você – disse ele, inclinando-se para pegá-la no colo.
O modo como ela não discutiu lhe contou exatamente o pouco que restava dela.
Quando as portas de entrada foram abertas por Fritz, como se o mordomo estivesse esperando pela chegada deles, Qhuinn se arrependeu de tudo: do sonho que acalentara por um instante durante o cio dela. A esperança desperdiçada. A dor física pela qual ela passava. A angústia emocional que ambos atravessavam.
Você fez isso com ela.
Na época, quando a servira, ele só se concentrara no resultado positivo do qual esteve tão certo.
Agora, depois de tudo, com os coturnos fincados na realidade sólida e fétida? Não valia a pena. Mesmo a possibilidade de um filho saudável não valia aquele sacrifício.
O pior de tudo era testemunhar o sofrimento dela.
Ao carregá-la para dentro da casa, rezou para que não houvesse uma grande plateia. Ele só gostaria de poupá-la de tudo, de qualquer coisa, mesmo do simples fato de desfilar diante de rostos tristes e preocupados.
Não havia ninguém por perto.
Qhuinn subiu os degraus dois de cada vez e, ao chegar ao segundo andar, as grandes portas duplas do escritório de Wrath abertas o fizeram praguejar.
Pensando bem, o Rei era cego.
Enquanto George emitiu um latido de boas-vindas, Qhuinn apenas passou pela frente, indo direto para o quarto de Layla. Abrindo a porta com um chute, descobriu que o doggen estivera ali e limpara tudo, arrumando a cama, decerto tendo até trocado os lençóis, e também havia um vaso de flores frescas.
Ao que tudo levava a crer, ele não era o único disposto a ajudar em qualquer coisa que pudesse.
– Quer trocar de roupa? – perguntou ao fechar a porta com outro chute.
– Quero tomar banho...
– Vamos providenciar isso.
– ... mas estou com muito medo. Eu não quero... ver, se é que me entende.
Ele a deitou e se sentou ao seu lado na cama. Colocando uma mão em sua perna, esfregou-lhe o joelho com o polegar, de um lado para o outro.
– Sinto muito – disse ela com pesar.
– Droga... Não, não faça isso. Jamais pense nem diga isso, está bem? Isto não é culpa sua.
– De quem mais é?
– Isso não vem ao caso.
Merda, ele não conseguia acreditar que o processo do aborto duraria mais ou menos uma semana. Como podia ser possível...
A careta que contraiu o rosto de Layla revelou a ele que uma cólica a assolava novamente. Olhando de relance para trás, esperando ver a doutora Jane, descobriu que estavam sozinhos.
O que garantiu, mais do que tudo, que não havia nada a ser feito.
Qhuinn deixou a cabeça pensa e segurou a mão dela.
Aquilo começara com os dois.
E estava terminando com os dois.
– Acho que gostaria de dormir um pouco – disse Layla ao apertar a mão dele. – Você também parece estar precisando...
Ele olhou para a chaise-longue do outro lado.
– Você não precisa ficar comigo – murmurou ela.
– Onde mais eu ficaria?
Uma breve visão mental de Blay abrindo os braços cruzou sua mente. Que fantasia, hein...
Nunca mais me toque assim.
Qhuinn sacudiu a cabeça para que tais pensamentos sumissem.
– Vou dormir ali.
– Você não pode ficar aqui por sete noites seguidas.
– Vou repetir mais uma vez. Onde mais eu...
– Qhuinn – a voz dela soou estridente. – Você tem o seu trabalho. E você ouviu Havers. Isto vai levar o tempo que for preciso e, provavelmente, vai demorar um pouco. Não corro o risco de ter uma hemorragia e, francamente, sinto como se devesse ser forte na sua frente, e não tenho a energia necessária para isso. Por favor, volte aqui para me ver o quanto quiser. Mas vou enlouquecer se você montar acampamento aqui até isso tudo terminar.
Desespero comedido.
Era tudo o que Qhuinn tinha enquanto permanecia sentado na beira da cama, segurando a mão de Layla.
Ele acabou se levantando pouco depois. Claro, ela estava certa. Ela precisava descansar o máximo possível e, de fato, além de ficar olhando para ela e fazendo com que ela se sentisse fraca, não havia nada que ele pudesse fazer.
– Não estarei longe.
– Sei disso – ela suspendeu o punho dele para os seus lábios, e ele ficou chocado ao perceber o quanto eles estavam frios. – Você tem se mostrado... mais do que eu seria capaz de pedir.
– Não... Não fiz nada de...
– Você fez o que era certo e apropriado. Sempre.
Aquilo era uma questão de opinião.
– Preste atenção. Vou estar sempre com meu telefone por perto. Volto em algumas horas para ver como você está. Se estiver dormindo, eu não a incomodarei.
– Obrigada.
Qhuinn assentiu com a cabeça e andou de lado até a porta. Certa vez ouvira que não se devia dar as costas a uma Escolhida, e ele imaginou que demonstrar um pouco de protocolo não faria mal.
Fechando a porta atrás de si, ele se recostou nela. A única pessoa que ele queria ver era o único cara naquela casa que não tinha interesse algum em...
– O que está acontecendo?
A voz de Blay foi um choque tão grande que ele pensou que a tivesse imaginado. A não ser pelo fato de que o macho em pessoa acabara de passar pela porta da sala de estar do segundo andar. Como se estivesse ali esperando o tempo inteiro.
Qhuinn esfregou os olhos e depois começou a andar, o corpo procurando a única coisa pela qual ele vinha rezando.
– Ela está abortando – Qhuinn se ouviu dizer numa voz morta.
Blay murmurou algo em resposta, mas que não ficou registrado.
Engraçado, o aborto não lhe parecera real até aquele momento. Não até contar a Blay.
– O que disse? – perguntou Qhuinn, ciente de que o cara esperava por uma resposta.
– Posso fazer alguma coisa?
Tão engraçado. Qhuinn sempre achou que saíra do ventre da mãe já como um adulto. Pensando bem, nunca houve nenhum agradinho materno, nada de abraços quando ele se machucava, nenhum amparo quando ele tinha medo. Como resultado, quer fosse um aspecto do seu caráter, ou o modo como fora criado, ele nunca regredira. Não havia para o que voltar.
Todavia, foi com a voz de uma criança que disse:
– Faz isso parar?
Como se só Blay tivesse o poder de operar um milagre.
E então... foi o que o macho fez.
Blay abriu os braços, oferecendo o único refúgio que Qhuinn sempre conheceu.
– Faz isso parar?
O corpo de Blay começou a tremer quando Qhuinn enunciou essas palavras: depois de todos esses anos, ele vira o cara em diferentes estados de humor dependendo da circunstância. Porém, jamais assim. Nunca... tão completa e absolutamente devastado.
Nunca perdido como uma criança.
A despeito da sua necessidade de se manter verdadeiramente afastado de qualquer vínculo emocional, seus braços se abriram por vontade própria.
Enquanto Qhuinn avançava para ele, o corpo do guerreiro parecia menor e mais frágil do que de fato era. E os braços que passaram ao redor da cintura de Blay simplesmente ficaram lá, como se não tivessem força nos músculos.
Blay sustentou a ambos.
E antecipou que Qhuinn recuaria rapidamente. Normalmente, o cara não suportava nenhum tipo de conexão intensa além da sexual por mais tempo do que um segundo e meio.
Qhuinn não o fez, porém. Ele parecia preparado para ficar parado na entrada da sala de estar para sempre.
– Venha – disse Blay, levando o macho para dentro e fechando a porta. – Vamos para o sofá.
Qhuinn o seguiu, os coturnos se arrastando em vez de marcharem.
Quando chegaram ao sofá, sentaram-se de frente, os joelhos se tocando. Quando Blay o fitou, a tristeza ressonante o tocou tão profundamente, que não pôde evitar que a mão se esticasse e afagasse o cabelo escuro...
Sem aviso, Qhuinn se enroscou ao seu encontro, simplesmente se deixou cair, o corpo se dobrando ao meio, quase se desmanchando no colo de Blay.
Uma parte de Blay reconhecia que aquele era um terreno perigoso. Sexo era uma coisa, e já bem difícil de lidar, ora essa. Aquele momento tranquilo? Era potencialmente devastador.
Motivo pelo qual saíra num rompante daquele quarto na noite anterior.
A diferença desta noite, porém, era que ele estava no controle. Era Qhuinn quem buscava conforto, e Blay podia negar ou oferecer, dependendo de como se sentisse. Ser o depositário da confiança de alguém era absolutamente diferente de recebê-la... ou necessitá-la.
Blay era bom nisso. Havia uma medida de segurança, de controle. Não era o mesmo que cair num abismo. E, inferno, se alguém devia saber isso, esse alguém era ele. Deus bem sabia que ele passara anos lá embaixo.
– Eu faria qualquer coisa para mudar isso – disse Blay, afagando as costas de Qhuinn. – Odeio o que você está passando...
Ah, as palavras eram tão inúteis...
Ficaram ali por um tempo enorme, a tranquilidade da sala formando uma espécie de casulo. Periodicamente, o relógio antigo sobre a lareira tocava, e depois de um bom tempo, as persianas começaram a baixar sobre as janelas.
– Gostaria que existisse algo que eu pudesse fazer – disse Blay quando os painéis de aço chegaram ao fim com um baque.
– Deve estar na hora de você ir.
Blay deixou aquela passar. A verdade não era algo que ele quisesse partilhar: nem cavalos selvagens, ou armas carregadas, pés-de-cabra, mangueiras de incêndio, estouro de elefantes... nem mesmo uma ordem do Rei em pessoa o teria tirado dali.
E havia uma parte sua que ficava zangada com isso. Não com Qhuinn, mas com seu próprio coração. A questão era que não se pode lutar contra a sua natureza, e era isso o que ele vinha aprendendo. No rompimento com Saxton. Em se revelar à mãe. Naquele exato instante.
Qhuinn gemeu ao suspender o tronco e depois esfregar o rosto. Quando abaixou as mãos, as faces estavam vermelhas, bem como os olhos, mas não porque ele estivesse chorando.
Indubitavelmente, a sua cota de lágrimas da década fora derramada na noite anterior quando ele chorara de alívio por ter salvado a vida de um pai.
E se soubesse que Layla não estava bem naquele instante?
– Sabe o que é pior? – perguntou Qhuinn, parecendo um pouco mais consigo mesmo.
– O quê? – Deus bem sabia que a gama de opções era vasta.
– Eu vi a criança.
Os pelos da nuca de Blay se eriçaram.
– Do que está falando?
– Na noite em que a Guarda de Honra veio atrás de mim e que quase morri, lembra?
Blay deu uma tossidela, a lembrança era tão vívida e visceral como se tivesse acontecido uma hora antes. E mesmo assim a voz de Qhuinn era calma e tranquila, como se ele estivesse se referindo a uma noite numa boate ou algo assim.
– Sim, eu me lembro.
E pensou, eu fiz boca a boca em você no acostamento da estrada, porra.
– Eu fui até o Fade... – Qhuinn franziu o cenho. – Você está bem?
Ah, sim, claro, uma maravilha.
– Desculpe. Pode continuar.
– Fui até lá. Quero dizer, é como... a gente ouviu falar. Branco – Qhuinn esfregou o rosto de novo. – Tão branco. Tudo. Havia uma porta, e eu caminhei até ela... Eu sabia que se girasse a maçaneta, entraria e não sairia mais. Eu estava prestes a tocá-la quando... foi então que eu a vi. Na porta.
– Layla – interpôs Blay, sentindo como se o peito tivesse sido apunhalado.
– A minha filha.
A respiração de Blay ficou presa.
– A sua...
Qhuinn o encarou.
– Ela era... loira. Como Layla. Mas os olhos... – ele levou a mão próxima aos seus. – Eram como os meus. Parei de andar quando a vi e depois, de repente, eu estava de volta no chão, no acostamento da estrada. Depois disso, fiquei sem saber o que foi tudo aquilo. Mas depois, muito tempo depois, Layla entrou no cio e me procurou, e tudo se encaixou. Era como se aquilo... tivesse que acontecer. Pareceu o destino, sabe. De outro modo, eu jamais teria me deitado com Layla. Só fiz isso porque eu sabia que teríamos uma garotinha.
– Jesus.
– Mas eu estava errado – ele esfregou o rosto pela terceira vez. – Errei feio... E o que eu mais queria era não ter tomado esse caminho. O maior arrependimento da minha vida... Bem, o segundo maior, na verdade.
A Blay só restou imaginar o que poderia ser pior do que aquilo pelo que ele passava.
O que posso fazer?, Blay se perguntou.
Os olhos de Qhuinn procuraram os dele.
– Quer mesmo que eu responda a isso?
Pelo visto, ele pensara em voz alta.
– Sim, claro.
A mão da adaga de Qhuinn se levantou e amparou a lateral do rosto de Blay.
– Certeza?
O clima mudou de pronto. A tragédia ainda estava com eles, mas a poderosa ressaca sexual os abateu entre uma pulsação e a seguinte.
O olhar de Qhuinn começou a queimar, as pálpebras pesaram.
– Preciso... de uma âncora agora. Não sei explicar de modo melhor.
O corpo de Blay reagiu instantaneamente, o sangue fervendo, o membro engrossando e esticando.
– Deixe-me beijar você – Qhuinn gemeu ao se inclinar. – Sei que não mereço, mas, por favor... é isso o que você pode fazer por mim. Deixe-me senti-lo...
A boca de Qhuinn resvalou a dele. Voltou para um pouco mais. Demorou-se.
– Vou implorar – mais carícias daquela boca devastadora. – Se for preciso. Estou pouco me importando, eu vou implorar...
De algum modo, isso não seria necessário.
Blay deixou a cabeça ser inclinada para abrir caminho para mais manobras, a mão de Qhuinn em seu rosto tanto gentil quanto no comando. E, então, houve mais boca a boca, lento, arrastando-se, inexorável.
– Deixe-me estar dentro de você de novo, Blay...
CAPÍTULO 39
Assail voltou para casa cerca de meia hora antes do amanhecer. Ao estacionar o Range Rover na garagem, ele teve que esperar a porta abaixar para sair.
Sempre se considerara um intelectual – e não no sentido atribuído pela glymera, onde um se sentia importante ao discorrer sobre literatura, filosofia ou assuntos espirituais. Era mais pelo fato de existirem poucas coisas na vida na qual ele não podia aplicar seu raciocínio e entender a sua totalidade.
O que diabos aquela mulher fizera na casa de Benloise?
Obviamente ela era uma profissional, com tanto equipamento quanto técnica, e uma abordagem de infiltração muito praticada. Ele também suspeitava que ou ela tivesse a planta da casa ou estivera lá previamente. Tão eficiente. Tão decidida. E ele estava qualificado para julgar: seguira-a o tempo inteiro em que ela esteve dentro da casa, penetrando como um fantasma pela janela que ela abrira, atendo-se às sombras.
Seguindo o rastro dela por trás.
Mas aquilo ele não entendia: que tipo de ladrão se dá ao trabalho de invadir uma casa segura, encontra um cofre, queima-o para abri-lo, descobre muitas riquezas portáteis... mas não leva nada? Porque ele vira muito bem ao que ela teve acesso; assim que ela saiu do escritório, ele permanecera lá, soltando a prateleira como ela fizera antes, e usara a própria lanterna para dar uma espiada no cofre.
Só para descobrir o que ela deixara para trás, se é que tinha deixado algo.
Quando ele voltou para a casa em si, evitando qualquer fonte de luz, observara-a parada um instante no hall de entrada, com as mãos nos quadris, a cabeça virando lentamente, como se ela estivesse considerando suas opções.
E então ela se aproximou de uma estátua que só podia ser de Degas... e a girara apenas alguns centímetros para a esquerda.
Isso não fazia sentido.
Bem, era possível que ela tivesse invadido o cofre procurando por algo específico que, na verdade, não estava lá. Um anel, uma bugiganga, um colar. Um chip de computador, um pendrive, um documento como um testamento ou apólice de seguro. Mas a demora no hall não estava de acordo com a diligência anterior... e depois ela só moveu uma estátua?
A única explicação era que aquilo fora uma violação deliberada da propriedade de Benloise.
O problema era que, no que se referia a vinganças contra objetos inanimados, era difícil encontrar muita significância nos atos dela. Derrubasse a estátua, então. Levasse a maldita coisa. Danificasse-a com obscenidades em tinta spray. Batesse nela com um pé-de-cabra para que ficasse destruída. Mas uma leve virada que mal se podia perceber?
A única conclusão a que ele conseguia chegar era que aquilo fora um tipo de mensagem. E ele não gostava nem um pouco disso.
Pois sugeria que talvez ela conhecesse Benloise pessoalmente.
Assail abriu a porta do motorista...
– Oh, meu Deus... – sibilou, retraindo-se.
– Ficamos imaginando quanto tempo você ainda ficaria aí.
Enquanto uma voz ríspida se pronunciava, Assail saiu do carro e olhou ao redor da garagem para cinco carros. O fedor estava num meio-termo entre um atropelamento de três dias, maionese estragada e perfume barato.
– Isso é o que eu estou pensando? – perguntou aos primos, que estavam parados na soleira da antessala.
Graças à Virgem Escriba, eles avançaram e fecharam a porta que dava para a casa; caso contrário, aquele fedor horrendo invadiria o resto da construção.
– São os seus traficantes. Bem, parte deles, na verdade.
Que. Merda. Era. Aquela?
As passadas longas de Assail o levaram na direção que Ehric apontava: o canto oposto, onde três sacos plásticos verdes-escuro foram jogados de lado sem cuidado algum. Agachando-se, ele afrouxou a tira amarela de um deles, puxou a beirada e...
Deparou-se com os olhos sem vida de um humano que ele reconhecia.
A cabeça inanimada fora arrancada da coluna uns dez centímetros abaixo da mandíbula, e estava virada de modo a fitar para fora de seu caixão frouxo. O cabelo escuro e a pele vermelha estavam marcados por sangue preto e brilhante, e se o cheiro esteve ruim próximo ao carro, ali, bem perto, fez seus olhos lacrimejarem e a garganta se contrair num protesto.
Não que ele se importasse.
Abriu os outros dois sacos e, usando o plástico como “luva”, virou as outras cabeças na mesma posição.
Depois se sentou e ficou olhando para as três, observando as bocas escancaradas e impotentes em busca de ar.
– Contem o que aconteceu – ordenou sombriamente.
– Aparecemos na hora combinada.
– Rinque de patinação, na margem do rio ou debaixo da ponte?
– Ponte. Chegamos – Ehric apontou para o irmão gêmeo, que estava parado em silêncio ao seu lado – na hora com o produto. Uns cinco minutos depois, esses três apareceram.
– Como redutores.
– Eles tinham o dinheiro. Estavam prontos para fazer a transação.
Assail girou a cabeça na direção dele.
– Eles não foram lá para atacá-los?
– Não, mas só descobrimos isso quando já era tarde demais – Ehric deu de ombros. – Eram assassinos que apareceram do nada. Não sabíamos quantos havia, e não queríamos nos arriscar. Foi só depois que vasculhamos os bolsos e encontramos o montante certo de dinheiro que percebemos que eles só foram lá para fazer negócios.
Redutores no tráfico? Aquilo era novidade.
– Vocês apunhalaram os corpos?
– Pegamos as cabeças e escondemos o que restou. O dinheiro estava na mochila desse da esquerda e, naturalmente, nós o trouxemos para casa.
– Celulares?
– Peguei.
Assail começou a acender um charuto, mas não queria desperdiçar o sabor. Fechando os sacos, levantou-se acima da carnificina.
– Tem certeza de que não foram agressivos?
– Estavam mal preparados para se defenderem.
– Estar mal armado não significa que eles não estivessem lá para matá-los.
– Por que levar o dinheiro?
– Eles podiam estar negociando em outro lugar.
– Como já disse, era a quantia correta e nem um centavo a mais.
Abruptamente, Assail gesticulou para que o seguissem para o interior da casa e, ah, que alívio quando chegaram ao ar limpo. Com as telas descendo lentamente sobre as janelas de vidro, e com o alvorecer se completando, ele foi para o bar, pegou um galão de Bouchard Père et Fils, Montrachet, 2006 e estalou a rolha.
– Querem me acompanhar?
– Sim, claro.
Na mesa redonda na cozinha, ele se sentou com três taças e a garrafa. Servindo os três, dividiu o chardonnay com os dois sócios.
Porém, não lhes ofereceu seus cubanos. Eram valiosos demais.
Felizmente, cigarros apareceram e todos se sentaram juntos, fumando e saboreando goladas sublimes da beira afiada do seu Baccarat.
– Nenhuma agressão por parte dos assassinos – murmurou, inclinando a cabeça para trás para baforar, a fumaça azulada se elevando sobre sua cabeça.
– E a quantia exata.
Depois de um momento, ele voltou a olhar para eles.
– Será possível que a Sociedade Redutora esteja tentando entrar no meu ramo de negócios?
Xcor estava à luz de velas, sozinho.
O armazém estava tranquilo, seus soldados ainda não tinham retornado, nenhum humano, nenhum Sombra, nada caminhava sobre ele. O ar estava frio; o mesmo com o concreto abaixo dele. A escuridão o envolvia, a não ser pela fraca fonte de luz perto da qual ele estava sentado.
Algo no fundo de sua mente lhe dizia que estava perigosamente perto de amanhecer. Também havia outra coisa, algo de que ele deveria ter se lembrado.
Mas não havia a mínima chance de que algo transpusesse seu torpor.
Com os olhos fixos na única chama diante dele, Xcor repassou os eventos da noite em sua cabeça.
Dizer que ele encontrara a localização da Irmandade seria talvez aumentar um pouco a verdade, mas não uma falácia completa. Seguira aquela Mercedes para o interior, quilômetro após quilômetro, sem nenhum plano real do que deveria ou poderia fazer quando ela parasse... quando, do nada, o sinal do sangue no corpo de sua Escolhida não só se perdeu, mas foi totalmente redirecionado, como se uma bola lançada contra um muro tivesse alterado repentinamente a sua trajetória.
Confuso, ele vasculhou os arredores, desmaterializando aqui, acolá, para cima e para baixo e, durante o tempo todo, uma sensação de horror se abatendo sobre ele. Recuando, ele se viu na base de uma montanha, com seus contornos, mesmo sob o luar claro, registrados de maneira estranha, indistinta, pouco nítida.
O lugar em que eles ficavam só podia ser ali.
Talvez no alto da montanha. Talvez do outro lado.
Não havia outra explicação – afinal, a Irmandade vivia com o Rei para protegê-lo... portanto, indubitavelmente, eles tomariam precauções do tipo que ninguém mais conseguiria tomar, ou quem sabe, tivessem ao seu dispor tecnologias e provisões místicas que seriam, de outro modo, indisponíveis.
Em frenesi, ele circundou os arredores, dando a volta na base algumas vezes, pressentindo nada além da refração do sinal dela e aquela sensação de horror. Sua conclusão era de que ela deveria estar em algum lugar daquela imensidão: ele teria pressentido se ela tivesse atravessado para o outro lado, e seria razoável concluir que se tivesse ido para o seu templo sagrado, até um plano alternativo de existência, ou – que o destino não permitisse – morrido, aquele eco ressonante dentro dele teria desaparecido.
A sua Escolhida estava ali em algum lugar.
Retornando para o armazém, para o presente, para onde ele estava agora, Xcor esfregou as palmas para frente e para trás lentamente, o raspar dos calos interrompendo a quietude. À esquerda, no limiar da luz de velas, suas armas estavam dispostas lado a lado, as adagas, as pistolas, e sua adorada foice cuidadosamente organizadas ao lado de uma pilha confusa de roupas de sair que ele retirara assim que escolhera aquele lugar específico no chão.
Concentrou-se na foice e esperou que ela lhe falasse: ela o fazia com frequência, com seus modos sedentos de sangue em compasso com a agressividade que fluía em suas veias e que definia seus pensamentos e motivava suas ações.
Aguardou que ela lhe dissesse para atacar a Irmandade onde eles ficavam. Onde as fêmeas moravam. Onde as crianças dormiam.
O silêncio era preocupante.
De fato, sua chegada ao Novo Mundo fora baseada no desejo de ganhar poder, a expressão maior e mais arrojada desse desejo era tomar o trono, portanto, naturalmente, esse era o curso que ele escolhera. E estava progredindo. A tentativa de assassinato no outono, que, sem sombra de dúvida, lançara uma sentença de morte sobre a sua cabeça e a dos seus soldados, fora uma medida tática que quase colocara um ponto final na guerra inteira antes mesmo de ela começar. E seus esforços contínuos com Elan e com a glymera estavam promovendo seus objetivos e reforçando seu apoio dentro da aristocracia.
Mas aquilo que ele descobrira naquela noite...
Deuses, quase um ano de trabalho, sacrifício, planejamento e combate perdiam importância em comparação com a sua descoberta.
Se seu palpite estivesse correto – e como não podia estar? –, tudo o que ele tinha de fazer era marchar com seus soldados e começar um cerco assim que a noite caísse. A batalha seria épica, e a Irmandade e o lar da Primeira Família seriam permanentemente comprometidos, independentemente do resultado.
Seria um conflito digno dos livros de História – afinal, a primeira vez em que a propriedade real fora atingida foi quando o progenitor e a mahmen de Wrath foram assassinados antes da transição dele.
A história se repetia.
E ele e seus soldados tinham uma séria vantagem em relação àqueles assassinos que, na época, não possuíram: a Irmandade agora tinha muitos machos vinculados. Na verdade, ele acreditava que todos eles estivessem vinculados, e isso dividiria as atenções e as lealdades dos machos como nada mais conseguiria fazer. Ainda que a diretriz principal deles como guarda pessoal do Rei fosse proteger Wrath, seus cernes estariam divididos, e mesmo o mais forte dos lutadores com as melhores armas estaria enfraquecido se suas prioridades estivessem em dois lugares distintos.
Além disso, se Xcor ou um dos seus soldados conseguisse apanhar uma daquelas shellans, a Irmandade esmoreceria, porque a outra coisa verdadeira a respeito deles era que a dor de um dos Irmãos era a própria agonia.
Só bastaria uma fêmea de qualquer um deles, a arma derradeira.
Ele sabia disso em sua alma.
Sentado à luz da vela, Xcor esfregou a lâmina da adaga na palma de sua mão, de um lado para o outro, de um lado para o outro.
Uma fêmea.
Era só disso que ele precisava.
E ele conseguiria não só reivindicar sua própria fêmea... mas também o trono.
CAPÍTULO 40
Qhuinn sabia que acabara de colocar Blay numa posição totalmente injusta.
Transa por pena, hein? Mas, ah, Deus, encarando aqueles olhos azuis, aqueles malditos olhos azuis sem fundo que estavam francos para ele do mesmo modo que um dia estiveram... era só no que conseguia pensar. E, sim, tecnicamente era sexo em termos de onde ele queria suas diversas partes – bem, uma mais especificamente. No entanto, havia muito mais do que apenas isso.
Ele não sabia expressar em palavras; simplesmente não era bom em juntar as sílabas. Mas seu desejo de conexão foi o que o levou ao beijo. Ele quis mostrar a Blay o que estava querendo dizer, do que ele precisava, por que aquilo era importante: seu mundo inteiro parecia estar desmoronando e a perda que acontecia na porta ao lado doeria por um bom tempo.
No entanto, estar com Blay, sentir o seu calor, fazer contato, era como uma promessa de cura. Mesmo se durasse apenas o tempo em que estivessem ali naquela sala, ele aceitaria, e guardaria aquilo para si... para relembrar quando precisasse.
– Por favor – sussurrou.
Só que ele não deu chance para o cara responder. Sua língua saiu sorrateira e lambeu aquela boca, escorregando para dentro, assumindo o controle.
E a resposta de Blay foi o modo como ele se permitiu ser empurrado para trás nas almofadas do sofá.
Qhuinn teve dois pensamentos vagos: um, a porta só estava fechada, não trancada – e ele cuidou disso desejando que a trava de latão ficasse no lugar certo. E o segundo pensamento momentâneo era que eles não poderiam destruir aquele lugar. Explodir tudo em seu quarto era uma coisa. A sala de estar era propriedade pública, e muito bem decorada, com as almofadas de seda e as cortinas luxuosas, e um monte de outras coisas que pareciam facilmente rasgáveis, amassáveis, Deus, mancháveis...
Além disso, ele já destruíra seu Hummer, acabara com o jardim e sacudira o quarto. Portanto, sua cota de Destruidor já ultrapassara, e muito, o calendário anual...
Naturalmente, a solução mais prática para não dar nenhuma preocupação adicional a Fritz seria percorrer o corredor rapidamente até o seu quarto, mas enquanto as mãos talentosas de Blay estavam na frente do quadril de Qhuinn, já abaixando seu zíper, ele lançou essa ideia brilhante no cesto de lixo.
– Ai, Deus, toque-me – gemeu, empurrando a pélvis para a frente.
Ele só teria de ser comportado e bem limpinho com aquilo.
Presumindo que isso fosse possível.
Quando a palma de Blay se enfiou em sua calça de couro, o corpo de Qhuinn se arqueou, o torso curvando-se para trás enquanto o outro iniciava os trabalhos. O ângulo estava meio errado, por isso não havia muita fricção, e suas bolas estavam sendo beliscadas pela costura da calça, mas santo inferno, ele não se importava. O fato de que aquele era Blay bastava.
Cacete, depois de anos de chupadas, punhetas e transas, aquela parecia a primeira vez que alguém tocava nele.
Ele precisava retribuir o favor.
Entrando em ação, elevou o peito e aproximou os rostos. Caramba, ele adorava a expressão daqueles olhos azuis enquanto Blay o encarava, quente, selvagem, sensual.
Com tesão.
Qhuinn o segurou com força e aproximou as bocas, agarrando-se àqueles lábios, lançando a língua, tomando tudo como um desvairado...
– Espere, espere – Blay retrocedeu. – Vamos quebrar o sofá.
– O quê...? – o cara parecia estar falando inglês, mas pro inferno se ele conseguia traduzir. – Sofá?
E então ele percebeu que empurrara tanto Blay no braço do móvel, que a coisa estava começando a se inclinar. Que era mais do que duzentos quilos de sexo poderiam fazer em uma peça de mobília.
– Ai, merda, desculpe.
Ele estava começando a recuar quando Blay assumiu o controle e Qhuinn, de repente, viu-se fora do sofá, de costas no chão, as pernas unidas, as calças sendo empurradas para os tornozelos.
Ideia. Genial.
Graças ao fato de ele não usar cuecas, seu pau estava todo exposto, grosso e tenso, ao ser lançado para cima, dolorido e inchado por sobre a barriga. Abaixando a mão, ele deu umas puxadas enquanto Blay arrancava seus coturnos que estavam atrapalhando, largando-os de lado. As calças foram as próximas a darem adeus, e, com Deus como testemunha, Qhuinn nunca antes ficou tão contente em ver um par de couro voar por cima do ombro em toda a sua vida.
Em seguida, Blay voltou ao trabalho.
Qhuinn teve que fechar os olhos quando sentiu as coxas sendo afastadas e um par de mãos de lutador puxar o interior de suas pernas. Imediatamente ele soltou a ereção, afinal, porque ter a palma atrapalhando quando Blay poderia...
Não foram as mãos do cara que o seguraram.
Foi a boca quente e úmida que Qhuinn beijara pra cacete pouco antes.
Por uma fração de segundo, enquanto a sucção abocanhava a ponta e o mastro, ele teve o pensamento maldito de que Saxton ensinara Blay a fazer aquilo: seu maldito primo fizera aquilo com o cara, e fizera com que ele...
Pare, ordenou-se. Quaisquer lições aprendidas e a história por detrás delas não importavam, era a sua ereção que recebia atenção naquele instante. Por isso, que se dane essa merda.
Para deixar isso bem claro, forçou seus olhos a se abrirem. Inferno... do céu...
A cabeça de Blay subia e descia em seus quadris, o punho segurava a base do pau de Qhuinn, a outra mão se ocupava com as bolas. Mas então, como se estivesse esperando por contato visual, o cara parou no alto, libertou a cabeça e lambeu os lábios.
– Eu não gostaria que você fizesse uma lambança nesta linda sala – Blay disse com fala arrastada.
E então, estendeu a ponta da língua para açoitar o piercing no pênis de Qhuinn, a carne rosada brincando com a argola cinza de metal e a bolinha...
– Caralho. Vou gozar agora – grunhiu Qhuinn, com uma onda fervente se avolumando. – Eu vou...
Ele estava impotente para deter as coisas, muito mais até do que alguém que tivesse se lançado de um precipício e que, depois de metros de queda livre, quisesse desistir.
Só que ele não queria pisar no freio.
E não pisou.
Com um rugido potente, que provavelmente foi ouvido em outros lugares, a espinha de Qhuinn se afastou do chão, o traseiro ficou rígido, as bolas explodiram, a excitação esguichando com força na boca de Blay. E não foi só o seu sexo que foi afetado. O orgasmo o atingiu em todo o corpo, uma energia latente emergindo por ele enquanto cravava as unhas no tapete em que estava deitado, os dentes cerrados... e gozando como um animal selvagem.
Felizmente, Blay se mostrou mais do que eficiente na limpeza. E se isso não o fez gozar ainda mais... Também lhe deu muito para o que olhar: pelo resto dos seus dias, Qhuinn jamais se esqueceria da visão da boca do macho o envolvendo, as bochechas sugando enquanto ele libertava seu gozo e ele absorvia tudo. De novo e de novo e de novo.
Normalmente, Qhuinn ficava pronto para outra em seguida, mas quando as ondas tumultuadas finalmente se quebraram sobre ele, ele ficou completamente inerte, os braços largados no chão, os joelhos moles, a cabeça pensa.
– Não consigo me mexer – murmurou.
O riso de Blay foi profundo e sensual.
– Você parece um pouco cansado.
– Posso retribuir o favor?
– Você consegue levantar a cabeça?
– Ela ainda está grudada no meu corpo?
– Pelo que vejo, sim, está.
Enquanto Blay ria de novo, Qhuinn soube o que queria fazer e isso o surpreendeu. Em todas as suas explorações sexuais, ele nunca se permitiu ser enrabado. Não era assim que as coisas aconteciam. Ele era o conquistador, o que tomava, o que estabelecia o controle e conservava a superioridade.
Ficar por baixo simplesmente não o interessava.
E agora era o que queria.
O único problema era que, literalmente, não conseguia se mexer. Ah, sim, e havia uma coisinha a mais: como contar a Blay que ele era virgem?
Porque ele desejava. Se um dia chegasse àquilo, ele queria que Blay soubesse. Por algum motivo, isso era importante.
De repente, o rosto de Blay apareceu em seu campo de visão, e, Deus, como o lutador era lindo, o rosto afogueado, os olhos reluzentes, aqueles ombros largos bloqueando tudo.
E, ah, sim, aquele sorriso sexy como o inferno, tão satisfeito consigo e autossuficiente, como se o fato de Blay ter provocado tanto prazer em alguém fosse o bastante para que ele não precisasse do próprio alívio.
Mas isso não seria justo, seria?
– Não acho que você vai voltar a se mexer tão cedo – comentou Blay.
– Talvez. Mas posso abrir a boca – foi a resposta misteriosa. – Tanto quanto você.
Certo, tudo bem, a ideia de que provocava um orgasmo daquele em Qhuinn foi tão ratificadora que Blay se esquecera por completo do seu corpo.
A questão era que após tantos anos de rejeição, era uma emoção sem igual sentir poder em relação ao cara, ser aquele quem comandava o ritmo... a pessoa que levava Qhuinn a um lugar vulnerável e erótico muito mais intenso do que qualquer outro antes. E foi isso o que aconteceu. Ele sabia exatamente como Qhuinn ficava e como soava quando gozava, e Blay podia afirmar, sem nenhum traço de dúvida, que ele jamais vira seu camarada tão prostrado como agora, largado no tapete, os músculos do pescoço esticados, os abdominais contraídos, os quadris bombeando com força.
Qhuinn gozara praticamente vinte minutos direto.
E agora, no pós-coito, uma estranha revelação: até aquele instante, Blay jamais reconhecera o cinismo que Qhuinn carregava no rosto o tempo inteiro... as sobrancelhas caídas, o canto da boca perpetuamente repuxado para cima... o maxilar nunca, jamais relaxado.
Era como se toda a torpeza que a família lhe fizera tivesse permanentemente esculpido suas feições.
Mas não era verdade, não é mesmo? Durante o orgasmo, e agora, enquanto as coisas se acalmavam, nada daquela tensão era visível em lugar algum. O rosto de Qhuinn estava... livre de toda reserva, parecendo tão mais jovem, e Blay teve que se perguntar por que nunca percebera a idade dele antes.
– Então, vai me dar algo para eu chupar enquanto me recupero? – Qhuinn perguntou.
– O quê...?
– Estou com sede. E preciso chupar alguma coisa – dito isso, Qhuinn mordeu o lábio inferior, as presas brancas brilhantes afundando na pele. – Vai me ajudar?
Os olhos de Blay reviraram em suas órbitas.
– É... acho que posso fazer isso.
– Então me deixe tirar suas calças.
As pernas de Blay se levantaram com tanta rapidez que ele teve um insight novo sobre as leis da física, e enquanto ele chutava os sapatos, as mãos tremiam ao desabotoar a calça. As coisas foram bem rápidas a partir dali. E durante o tempo todo em que se despia, ele estava absolutamente ciente de tudo o que havia na sala – especialmente Qhuinn. O macho estava ficando rígido novamente, o sexo engrossando apesar de tudo pelo que acabara de passar... as coxas pesadas se contraindo e a pélvis rolando... a parte baixa do tronco tão delgada que cada sutil mudança do torso era refletida na pele esticada e bronzeada.
– Isso aí... – Qhuinn sibilou, as presas se estendendo do maxilar superior, as mãos procurando, e encontrando, o sexo, apalpando-o em movimentos longos e lentos. – Isso mesmo.
A respiração de Blay começou a acelerar, os batimentos cardíacos subindo até o telhado enquanto os olhos descombinados de Qhuinn se prendiam ao seu sexo.
– É isso o que eu quero – o macho grunhiu, soltando-se e esticando as duas mãos.
Por uma fração de segundo, Blay não teve muita certeza como as partes trabalhariam. Qhuinn estava diante do sofá, paralelo ao móvel, por isso não havia muito espaço para...
Um grunhido sutil perpassou o ar enquanto Qhuinn flexionava os dedos como se mal conseguisse esperar para segurar aquilo que desejava.
O planejamento que fosse para o inferno.
Os joelhos de Blay atenderam ao chamado, dobrando para a frente, levando seu peso ao chão perto da cabeça de Qhuinn.
Qhuinn assumiu o controle a partir daí. As palmas escorregaram e se prenderam, atraindo Blay de modo que, sem nem se dar conta, ele tinha um joelho atrás da cabeça do cara e a outra perna estendida ao longo do corpo até o quadril de Qhuinn.
– Ai... cacete... – Blay gemeu ao sentir o sexo entrar entre os lábios de Qhuinn.
O corpo pendeu para a frente até ele acabar derramando o torso nas almofadas do sofá, e foi nesse momento que ele se viu com uma excelente alavancagem. Apoiando os braços no sofá, distribuiu o peso entre os joelhos, os pés e as palmas... e depois se pôs a foder a boca adorável de Qhuinn.
O cara aceitou tudo, mesmo quando os quadris descontrolados de Blay empurraram com tudo o que ele tinha.
Com os dedos de Qhuinn cravados em seu traseiro, e aquela incrível sucção, e... Cristo, o piercing da língua, com a bolinha resvalando seu mastro a cada estocada... Blay estava se dirigindo exatamente para o mesmo tipo de orgasmo que Qhuinn acabara de ter.
Mesmo assim, no fundo da sua mente, ele se questionava se não estava machucando o cara. Do jeito como as coisas seguiam, ele acabaria gozando no estômago dele.
Tarde demais para se preocupar com isso.
Seu corpo assumiu, enrijecendo numa série de espasmos torturantes que corriam do alto da coluna até as pernas.
E bem quando as sensações descontroladas estavam começando a diminuir, o mundo entortou ao seu redor, como se seu senso de equilíbrio tivesse explodido junto de seu...
Não, o mundo estava no lugar. Qhuinn acabara de se levantar do chão, saindo de baixo e se posicionando atrás...
Enquanto Qhuinn penetrava com uma estocada na velocidade da luz, Blay emitiu um gemido que com certeza seria ouvido no Canadá...
O rangido que se fez ouvir na sala o deixou intrigado, mesmo em meio à pressão e ao prazer.
Ah. Eles estavam empurrando o sofá.
Que seja. Ele compraria um novo para a casa se quebrassem a maldita porcaria; ele não iria parar.
O ritmo foi tão punitivo quanto fora o seu e, nesse caso, a revanche não era só o que ele merecia, mas exatamente o que ele queria. A cada estocada, seu rosto era empurrado contra as almofadas do sofá; a cada recuada, ele respirava; só para ser empurrado novamente, num círculo que recomeçava sempre.
Reposicionando as pernas para que Qhuinn alcançasse ainda mais fundo, Blay teve a vaga noção de que eles, definitivamente, mudavam o sofá de posição, mas quem é que se importava com isso, contanto que eles não acabassem no corredor?
No último instante, pouco antes de ele gozar, teve a presença de espírito de pegar as calças. Puxando as cuecas, ele...
A mão de Qhuinn se esticou, apanhou a Calvin Klein e fez o que era preciso, garantindo que houvesse algo para conter o seu gozo. Então, um instante depois, seu peito se deslocou do sofá e ele estava ereto sobre os joelhos. Qhuinn cuidou de tudo, segurando o pau de Blay enquanto cobria a cabeça – penetrando, ainda penetrando, sempre penetrando...
Gozaram ao mesmo tempo, dois pares de gritos ecoando pela sala.
No meio do orgasmo, Blay, sem querer, levantou o olhar. No enorme espelho antigo que estava pendurado entre as duas janelas do lado oposto, ele viu os dois, soube que estavam ligados... e isso o fez gozar novamente.
No fim, as investidas desaceleraram. Os batimentos cardíacos começaram a diminuir. As respirações foram se acalmando.
No vidro chumbado, ele viu Qhuinn fechar os olhos e abaixar a cabeça. Na lateral do seu pescoço, Blay sentiu um resvalar suave.
Os lábios de Qhuinn.
E então a mão livre do macho subiu, parando para afagar Blay no peitoral...
Qhuinn congelou. Recuou. Afastou os lábios, seu toque.
– Desculpe. Desculpe, eu... sei que não quer isso de mim.
A mudança no rosto do cara, o regresso ao cinismo costumeiro, era como ser roubado.
E mesmo assim Blay não podia dizer a ele que voltasse a se aproximar. Qhuinn estava certo; no instante em que a ternura aparecia, ele começava a entrar em pânico.
A retirada foi rápida, rápida demais, e Blay sentiu falta da sensação de estar completo e de ser possuído. Mas estava na hora de acabar com aquilo.
Qhuinn pigarreou.
– Hum... você quer que eu...
– Cuido disso – murmurou Blay, substituindo a mão de Qhuinn sobre as cuecas amassadas em seu quadril.
Durante o sexo, o silêncio na sala equivalia à privacidade. Agora, eram apenas os sons amplificados de Qhuinn subindo as calças de couro.
Droga.
Voltavam ao caos e à confusão. E enquanto as coisas aconteciam, as sensações eram tão intensas e esmagadoras que não houve nenhum pensamento além do sexo. Depois, porém, o corpo de Blay estava frio demais no ambiente climatizado, diferentes partes pulsavam por terem sido usadas, as pernas estavam moles e cambaleantes, a mente, enevoada...
Nada parecia seguro ou garantido. Nem um pouco.
Forçando-se a se vestir, colocou as roupas o mais rápido que conseguiu, inclusive os sapatos. Nesse meio-tempo, foi Qhuinn quem devolveu o sofá ao seu lugar, cuidadosamente colocando os pés nas marcas do tapete. Também ajeitara as almofadas. Endireitara o tapete oriental.
Foi como se nada tivesse acontecido. A não ser pelas cuecas de Blay amassadas em sua mão fechada.
– Obrigado – disse Qhuinn baixinho. – Eu, hum...
– Tudo bem.
– Então... acho que eu vou agora.
– Ok.
E foi isso.
Bem, além de a porta se fechar.
Deixado a sós, Blay resolveu que precisava de uma chuveirada. Mais comida. Dormir.
Em vez disso tudo, ele ficou na sala de estar do segundo andar, olhando para aquele espelho, lembrando-se do que vira nele. Em sua mente, teve a vaga noção de que eles não podiam continuar fazendo aquilo. Emocionalmente, não era seguro para ele; na verdade, era o equivalente a manter a palma da mão sobre uma chama uma vez após a outra, só que a cada vez que você voltava a colocar a mão, você diminuía a distância entre a sua carne e o calor. Cedo ou tarde? Queimaduras de terceiro grau seriam o menor dos seus problemas, porque o braço inteiro estaria em chamas.
Depois de um tempo, contudo, não ficou só pensando naquela coisa de autopreservação.
Mas sim no que dera início àquilo tudo.
Faz isso parar.
Blay passou a mão pelo cabelo. Depois olhou para a porta fechada e franziu o cenho, a mente trabalhando, trabalhando, trabalhando...
Um minuto depois, saiu apressado, andando rapidamente.
Antes de partir num trote.
E acabar correndo como um louco.
CAPÍTULO 41
Eram mais ou menos dez da manhã quando Trez seguiu para o Restaurante Sal’s. O trajeto do apartamento no Commodore para o belo estabelecimento do irmão não demorou, levando apenas dez minutos, e havia diversos espaços disponíveis para estacionar quando ele chegou lá.
De fato, o lugar não abria antes da uma da tarde, nem mesmo para o pessoal da cozinha iniciar a preparação.
Enquanto se encaminhava para a entrada, suas botas esmagando a neve, ele esperou que o código de abertura pelo lado externo não funcionasse: iAm não voltara para casa na noite anterior e, supondo que os cretinos do s’Hisbe não o tivessem levado embora como dano colateral, só havia um lugar em que seu irmão poderia estar. Depois de dois bules de café e muitas consultas ao relógio de pulso, Trez entendeu que, se queria fazer as pazes, ele teria de atravessar a cidade.
Legal. A combinação não fora mudada.
Ainda.
Do lado de dentro, o lugar parecia uma réplica do Rat Pack, numa interpretação moderna de uma era que gerara tipos como Peter Lawford e Frank Sinatra: uma entrada com papel de parede de algodão preto e vermelho o levava até a recepção, onde a chapelaria, a mesinha retrô da recepcionista e o caixa ficavam. À esquerda e também à direita, estavam os dois salões principais, ambos decorados em veludo e couro preto e vermelho, mas não eram onde os políticos e os endinheirados locais ficavam. O lugar predileto era o bar mais à frente, um salão com painéis de madeira que tinha bancos estofados quadrados de couro vermelho perto das paredes e, durante o expediente, um barman de smoking atrás de uma bancada de carvalho servindo nada que não fosse o melhor.
Atravessando a extensão do bar, Trez seguiu para o outro lado das cinco prateleiras de garrafas à mostra e passou pelas portas em vaivém. Ao entrar na cozinha, o cheiro de manjericão, cebola, orégano e vinho tinto lhe denunciou exatamente onde iAm estava.
Como esperado, o cara estava diante do enorme fogão industrial de dezesseis bocas na parede oposta, com cinco panelas imensas borbulhando diante dele – e você gostaria de apostar que também havia alguma coisa no forno? Nesse meio-tempo, tábuas de madeira de corte estavam enfileiradas nas bancadas de aço inoxidável, as cabeças mortas de diferentes tipos de pimentão deixadas ao lado das facas afiadas que foram usadas.
Dez pratas para adivinhar em quem o cara estava pensando enquanto picava aquilo tudo.
– Vai ou não falar comigo? – Trez disse para as costas do irmão.
iAm seguiu para a panela seguinte, levantando a tampa com um pano de prato branco, uma imensa escumadeira entrando e mexendo lentamente.
Trez se inclinou para o lado e puxou um banquinho de aço inoxidável. Sentando-se, esfregou as coxas para cima e para baixo.
– Oi? Alguém aí?
iAm foi para a panela seguinte. E depois a outra. Cada uma delas tinha uma colher diferente para evitar a mistura de sabores, e seu irmão tomava muito cuidado com isso.
– Escute, eu sinto muito se não estava quando você foi à boate ontem à noite – todas as noites, iAm ia para o Iron Mask para dar uma olhada depois que o Sal’s fechava. – Tive que cuidar de uns assuntos.
Merda, se teve. A garota do namorado grosseiro levou uma eternidade para sair do seu carro quando ele a levou para a casa dela. No fim, ele a acompanhou até a porta, abriu e só faltou empurrá-la para dentro. De volta ao carro, ele acelerou como se tivesse plantado uma bomba na calçada e, enquanto seguia para o Iron Mask, tudo o que ouvia em sua cabeça era a voz de iAm.
Você não pode continuar a fazer isso.
A essa altura, iAm se virou, cruzou os braços sobre o peito e se recostou ao fogão. Os bíceps já eram grandes, mas com os braços cruzados daquele jeito, forçavam a borda da camiseta preta que ele vestia.
Os olhos amendoados estavam semicerrados.
– Você acha mesmo que eu estou bravo porque você não estava quando fui ao clube? Sério? E não por que você me deixou para lidar com AnsLai ou qualquer asneira do tipo...
Eeeee estavam todos a postos.
– Sabe que não posso me encontrar com o cara – Trez levantou as mãos como se quisesse dizer que não havia nada que ele pudesse fazer. – Eles tentariam me forçar a voltar com eles e, então, quais seriam as minhas opções? Brigar? Eu acabaria lutando com o filho da puta e onde eu iria parar com isso?
iAm esfregou os olhos como se estivesse com dor de cabeça.
– Neste instante, parece que eles estão tomando uma abordagem diplomática. Pelo menos comigo.
– Quando vão voltar?
– Não sei. É isso o que está me deixando nervoso.
Trez enrijeceu. A ideia de que seu irmão frio como peixe estivesse ansioso o fez sentir como se estivesse com uma faca no pescoço.
Pensando bem, ele sabia muito bem o quanto o seu povo podia ser perigoso. O s’Hisbe era conhecido como uma tribo pacífica, satisfeita em se manter ao largo das lutas contra a Sociedade Redutora e dos desagradáveis humanos. Educados, muito inteligentes e espirituais, eles eram, como um todo, um grupo agradável. Desde que você não estivesse na lista negra deles.
Trez olhou para as panelas e se perguntou qual seria a carne no molho.
– Ainda estou em débito com Rehv – ele observou. – Portanto, essa obrigação deve vir em primeiro lugar.
– Não para o s’Hisbe. AnsLai disse, e vou citar suas palavras: “Chegou a hora”.
– Não vou voltar – ele fitou os olhos do irmão. – Isso não vai acontecer.
iAm voltou para as panelas, mexendo em cada uma com a colher designada.
– Sei disso. E é por isso que estou cozinhando. Estou tentando encontrar uma saída.
Deus, como ele amava o irmão. Mesmo irritado, o cara tentava ajudar.
– Desculpe-me por ter desaparecido e ter feito você cuidar disso. Sinto muito mesmo. Não foi justo... Eu só... bem, não achei seguro estar no mesmo cômodo que aquele cara. Sinto muito.
O peito largo de iAm subiu e desceu.
– Sei que sente.
– Eu poderia simplesmente desaparecer e o problema estaria resolvido.
Ainda que deixar iAm para trás o matasse. A questão era que, caso ele fugisse do s’Hisbe, ele jamais teria contato com o macho novamente. Nunca mais.
– Para onde você iria? – iAm observou.
– Não faço ideia.
A boa notícia é que o s’Hisbe não gostava de ter nenhum contato com os Desconhecidos. Sem dúvida, só aparecer no apartamento dele e de iAm fora traumático, mesmo se o sumo sacerdote tivesse se desmaterializado até a varanda. Lidar diretamente com humanos? Estar ao lado deles? A cabeça de AnsLai explodiria.
– Então, qual era o seu assunto? – perguntou iAm.
Maravilha. Mais um assunto igualmente feliz.
– Fui ver aquele armazém – ele desviou. Mas, cacete, até parece que ele tocaria no assunto da garota com o namorado espontaneamente.
– A uma da manhã?
– Fiz uma oferta.
– De quanto?
– Um milhão e quatrocentos. O preço pedido era de dois milhões e meio, mas não vão conseguir esse montante de jeito nenhum. O lugar está vazio há anos e demonstra isso – embora, ao dizer isso em voz alta, ele teve que admitir que sentira presenças lá. Pensando bem, talvez fosse apenas o seu estresse o responsável por isso. – Meu palpite é que vão dar uma contraoferta de dois milhões, eu subo para um e seiscentos e acabamos acordando em um e setecentos.
– Tem certeza de que quer iniciar esse projeto agora? A menos que apareça no território com o seu mastro matrimonial pronto para ser usado, esta questão com o s’Hisbe só vai piorar.
– Se as coisas chegarem a esse ponto, eu cuido disso na hora certa.
– Quando – iAm o corrigiu. – A questão é “quando”. E sei o que aconteceu no estacionamento, Trez. Com aquele cara e a mulher.
Claaaaro que sim.
– Viu as fitas ou algo assim?
Maldita câmera de segurança.
– Sim.
– Eu cuidei daquilo.
– Assim como está cuidando do s’Hisbe. Perfeito.
Com o humor afetado, Trez se inclinou.
– Quer calçar os meus sapatos, irmãozinho? Eu bem que gostaria de saber como você lidaria com essa merda toda.
– Eu não estaria fodendo putas, isso eu garanto. O que me faz pensar... o nosso corretor é uma fêmea, não?
– Foda-se, iAm. De verdade.
Trez se levantou do banquinho e marchou para fora da cozinha. Ele já tinha problemas suficientes, pelo amor de Deus, não precisava do senhor Superior com habilidades de Julia Child palpitando sobre o assunto com doze tipos de panelas...
– Você não pode continuar postergando esse assunto – iAm chamou de lá de trás. – Ou tentando enterrá-lo entre as pernas das mulheres.
Trez parou, mas manteve o olhar fixo na saída.
– Simplesmente não pode – o irmão afirmou com franqueza.
Trez girou. iAm estava perto do bar, a porta em vaivém mexendo atrás dele formando um efeito de estroboscópio de luz, escuro, luz, escuro. Toda vez que a luz surgia, parecia que seu irmão tinha um halo ao redor de todo o corpo.
Trez praguejou.
– Só preciso que me deixem em paz.
– Eu sei – iAm esfregou a cabeça. – E, honestamente, não sei que porra fazer a respeito. Não consigo me imaginar vivendo sem você, e também não quero voltar para lá. Só que também não encontrei alternativas.
– Aquelas mulheres... sabe, as que eu... – Trez hesitou. – Não acha que elas me excitam?
– Se elas não fazem isso – iAm disse secamente –, não sei porque perde tempo com elas.
Trez teve que dar um sorriso.
– Não, estou falando do s’Hisbe. Estou bem longe de ser virgem a esta altura – pelo menos ele ainda não se rebaixara a animais de fazenda. – E o que é pior? Todas eram Desconhecidos, a maioria humanas. Isso deve enojá-los. Estamos falando da filha da rainha!
Enquanto iAm franzia o cenho como se estivesse considerando a ideia, Trez sentiu uma centelha de esperança.
– Não sei, não – veio a resposta. – Talvez isso funcione, mas ainda assim você negou a Sua Alteza o que ela quer e precisa. Se eles o considerarem desonrado, podem muito bem decidir matá-lo como castigo.
Que seja. Eles teriam que encontrá-lo primeiro.
Numa onda de agressão, Trez abaixou o queixo e olhou fixo por debaixo das sobrancelhas.
– Se esse for o caso, eles vão ter que lutar comigo. E eu garanto que isso não vai acabar bem para eles.
Na mansão da Irmandade, Wrath entendeu que sua rainha estava aborrecida no instante em que ela passou pelas portas do escritório. Seu cheiro atraente estava maculado por uma pontada de acidez: ansiedade.
– O que foi, leelan? – ele quis saber, estendendo os braços.
Mesmo não enxergando, suas lembranças lhe davam uma imagem mental dela cruzando o tapete Aubusson, com o corpo longo e atlético se movendo com graciosidade, os cabelos escuros soltos sobre os ombros, o lindo rosto marcado por tensão.
Naturalmente, o macho vinculado dentro dele desejou perseguir e matar o que quer que a tivesse perturbado.
– Olá, George – disse ela ao cão. Pelo barulho de batidas ritmadas no chão, ele supôs que o cachorro tivesse recebido uma dose de amor antes.
E então foi a vez do dono.
Beth subiu no colo de Wrath, o peso próximo de nada, o corpo quente e vivo enquanto ele passava os braços ao seu redor e a beijava nas laterais do pescoço e depois na boca.
– Jesus – grunhiu ele, sentindo a rigidez no corpo dela –, você está aborrecida mesmo. Que merda está acontecendo?
Deus do céu, ela estava tremendo. Sua rainha estava, de fato, tremendo.
– Fale comigo, leelan – insistiu, esfregando-lhe as costas. E se preparando para se armar e sair em plena luz do sol se preciso fosse.
– Bem, você sabe sobre Layla – disse ela com voz rouca.
Ahhhh.
– Sim, sei. Phury me contou.
Enquanto a cabeça dela se posicionava em seu ombro, ele a ajeitou, aninhando-a em seu peito – e isso era bom. Havia vezes – não muitas, mas ocasionais – em que ele se sentia menos macho por conta de sua falta de visão: no passado, um lutador, agora, preso atrás daquela mesa. Um dia livre para ir aonde bem quisesse, agora, dependendo de um navegador canino. Certa vez absolutamente autossuficiente, agora, precisando de ajuda.
Não muito bom para os colhões de um macho.
Mas em momentos como aquele, quando aquela fêmea maravilhosa estava incomodada e o procurava, e somente a ele, para conforto e segurança, ele se sentia mais forte que uma maldita montanha. Afinal, machos vinculados protegiam suas fêmeas com tudo o que tinham, e mesmo com o fardo do seu direito de nascimento e aquele trono em que era obrigado a se sentar, ele, em seu cerne, permanecia o hellren daquela fêmea.
Ela era a sua primeira prioridade, acima inclusive daquela coisa toda de reinado. A sua Beth era o seu coração atrás das costelas, o tutano dentro de seus ossos, a alma em seu corpo físico.
– É tudo tão triste – disse ela. – Tão triste.
– Você foi vê-la?
– Acabei de ir. Ela está descansando. Quero dizer... de certa forma, custo a acreditar que não haja nada a ser feito.
– Falou com a doutora Jane?
– Assim que eles voltaram da clínica.
Enquanto a sua shellan chorava um pouco, o cheiro das lágrimas frescas de sua amada era como uma adaga em seu peito, e ele não estava surpreso com a reação dela. Ouvira dizer que as fêmeas lidavam muito mal com a perda da gravidez de outra fêmea – e como não ser assim? Ele, por certo, conseguia se colocar no lugar de Qhuinn.
E, ah, Deus... a ideia de Beth sofrer daquele modo? Ou pior, de conseguir levar adiante a gestação e depois...
Ótimo. Agora era ele quem tremia.
Wrath abaixou o rosto para os cabelos de Beth, inspirando, acalmando-se. A boa notícia era que eles jamais teriam um filho, portanto, ele não tinha com que se preocupar.
– Eu sinto muito – sussurrou.
– Eu também. Odeio o que eles estão passando.
Bem, na verdade, ele estava se desculpando por outra coisa completamente diferente.
Não que ele quisesse que uma merda daquelas acontecesse com Qhuinn, Layla e o filho deles. Mas talvez se Beth enxergasse a triste realidade, ela se lembraria de todos os riscos que se apresentavam a eles em todas as etapas de uma gestação.
Porra. Aquilo soava horrível. Era horrível. Pelo amor de Deus, ele não queria mesmo nada daquilo para Qhuinn, e tampouco queria ver sua shellan triste. Infelizmente, porém, a triste realidade era que ele não tinha absolutamente interesse algum em plantar sua semente nela daquele jeito – jamais.
E esse tipo de desespero fazia com que um cara pensasse em coisas imperdoáveis.
Numa onda de paranoia, ele calculou mentalmente os anos desde a transição dela – um pouco mais do que dois. Pelo que sabia, as fêmeas vampiras, em média, passavam pelo primeiro cio uns cinco anos após a transformação, e a cada dez anos depois disso. Portanto, eles tinham um bom tempo antes de terem de se preocupar com tudo isso...
Pensando bem, como mestiça, não havia garantias no caso de Beth. Quando os humanos e os vampiros se misturavam, qualquer coisa podia acontecer... E ele tinha motivos para se preocupar. Afinal, ela já mencionara filhos uma ou duas vezes.
Mas, obviamente, aquilo só podia ser hipoteticamente.
– E então, você vai postergar a iniciação de Qhuinn? – ela perguntou.
– Sim. Saxton já atualizou a lei, mas Layla estando assim? Não é o momento de trazê-lo para a Irmandade.
– Foi o que pensei.
Os dois se calaram, e enquanto Wrath guardava aquele momento em seu coração, não conseguiu imaginar sua vida sem ela.
– Sabe de uma coisa? – perguntou.
– O quê? – havia um sorriso na voz dela, do tipo que dizia a ele que ela sabia para onde a conversa estava indo.
– Eu amo você mais do que tudo.
Sua rainha deu uma leve risada, e o afagou no rosto.
– Eu jamais teria imaginado isso.
Inferno, até ele captava a onda de seu odor de vinculação.
Em resposta, Wrath segurou o rosto dela entre as palmas e se inclinou, encontrando seus lábios e depositando um beijo suave, que não permaneceu assim. Caramba, era sempre assim com ela. Qualquer contato e, antes que se desse conta, já estava rígido e pronto.
Deus, não sabia como os homens humanos lidavam com isso. Pelo que entendia, eles tinham de adivinhar se seus pares estavam férteis toda vez que faziam sexo – evidentemente, eles não tinham como captar a alteração nos odores de suas fêmeas.
Ele enlouqueceria. Pelo menos quando uma vampira estava no cio, todos sabiam.
Beth mudou de posição em seu colo, apertando a sua ereção e fazendo-o gemer. E, normalmente, essa era a dica para George ser levado para o outro lado das portas duplas, banido temporariamente. Mas não naquela noite. Por mais que Wrath a desejasse, a tristeza presente na casa aplacava até mesmo a sua libido.
E também havia a questão do cio de Autumn. E de Layla.
Ele não iria mentir; aquela merda o estava deixando ansioso. Sabia-se que hormônios no ar tinham um efeito ricochete numa casa cheia de fêmeas, influenciando umas às outras ao cio, desde que seu período estivesse próximo.
Wrath afagou os cabelos de Beth e voltou a acomodar a cabeça dela em seu ombro.
– Você não quer...
Enquanto ela deixava a frase inacabada, ele pegou a sua mão e a levantou, sentindo o peso do anel de rubi que a rainha da raça sempre usava.
– Só quero abraçar você – disse ele. – Isso basta para mim agora.
Aninhando-se, ela se encaixou ainda mais perto dele.
– Bem, isto também é gostoso.
Sim. Era.
E curiosamente aterrador.
– Wrath?
– Sim?
– Você está bem?
Demorou um pouco para ele confiar na voz e responder:
– Sim, estou bem. Tudo bem.
Ao alisar o braço dela, para cima e para baixo, ele rezou para que ela acreditasse... e jurou que o que acontecia no quarto no fim do corredor nunca, jamais, aconteceria com eles.
Não. Os dois não teriam de lidar com aquele tipo de crise.
Graças à Virgem Escriba.
CAPÍTULO 42
Claro que Layla não estava dormindo.
Quando pediu a Qhuinn que saísse, ela falou sério quanto a não querer sustentar uma fachada de força diante dele. Mas o mais engraçado era que mesmo sem ninguém por perto, ela não ficou histérica. Não chorou. Não praguejou.
Apenas ficou deitada de lado com os braços e as pernas enroscados, a mente recuada para dentro do corpo e monitorando constantemente cada dor e cólica numa compulsão que a enlouquecia. No entanto, não havia como mudar aquilo. Era como se uma parte dela estivesse convencida de que se ao menos ela soubesse em que estágio estava, ela poderia, de algum modo, monitorar o processo.
O que, na verdade, era uma tremenda tolice. Como Qhuinn bem diria.
A imagem dele na clínica, com a adaga no pescoço do médico, era algo saído de um dos livros da biblioteca do Santuário – um episódio dramático que era parte da vida de outra pessoa.
Sua posição na cama, porém, fazia com que ela lembrasse que o caso não era bem esse...
A batida à porta foi suave, sugerindo se tratar de uma fêmea.
Layla fechou os olhos. Por mais que apreciasse qualquer tipo de gentileza que aguardava uma resposta, ela preferiria que quem quer que estivesse no corredor, continuasse lá. A breve visita da rainha fora uma provação, mesmo ela tendo apreciado.
– Sim – quando sua voz mal soou em seus ouvidos, ela pigarreou e repetiu: – Sim?
A porta abriu e, a princípio, ela não reconheceu quem era na sombra que preenchia o espaço entre os batentes da porta. Alta. Forte. Porém, não um macho...
– Payne? – perguntou.
– Posso entrar?
– Sim, claro.
Enquanto Layla tentava se sentar, a fêmea guerreira gesticulou para que ela continuasse deitada, e depois fechou a porta.
– Não, não... por favor, fique à vontade.
Um abajur fora deixado aceso sobre a cômoda e, na luz suave, a irmã de sangue de Vishous da Irmandade da Adaga Negra parecia temerária, com os olhos de diamante parecendo reluzir para fora dos ângulos fortes do rosto dela.
– Como você está? – a fêmea perguntou com suavidade.
– Estou bem, obrigada. E você?
A lutadora deu um passo à frente.
– Eu sinto muito quanto... à sua condição.
Ah, como Layla desejava que aquilo fosse algo que Phury e os outros não tivessem partilhado com ninguém. Em retrospecto, a saída da casa fora um tanto dramática, o tipo de evento que causaria perguntas preocupadas. Ainda assim, sua privacidade preferia evitar esse tipo de invasão indesejável, ainda que misericordiosa.
– Agradeço as suas palavras gentis – sussurrou.
– Posso me sentar?
– Sim, claro.
Ela imaginou que a fêmea fosse se sentar numa das cadeiras dispostas mais ao longe. Não foi o que Payne fez. Ela se aproximou da cama e abaixou o peso ao lado de Layla.
Compelida a, pelo menos, parecer uma boa anfitriã, Layla tentou se suspender, fazendo uma careta quando uma nova onda de cólicas a imobilizou no meio do caminho.
Enquanto Payne praguejava baixinho, Layla teve que voltar a se deitar. Com voz rouca, disse:
– Perdoe-me, mas não posso receber visitas agora, por mais que me queira bem. Obrigada por expressar a sua empatia...
– Você sabe quem é a minha mãe – Payne a interrompeu.
Layla balançou a cabeça ao encontro do travesseiro.
– Por favor, saia...
– Sabe? – a fêmea perguntou com rispidez.
Abruptamente, Layla quis chorar. Simplesmente não tinha forças para qualquer tipo de conversa, ainda mais a respeito de mahmens. Não enquanto perdia o filho.
– Por favor.
– Sou filha da Virgem Escriba.
Layla franziu o cenho, as palavras sendo compreendidas mesmo em meio à dor, tanto física quanto mental.
– O que disse?
Payne inspirou profundamente, como se a revelação não fosse algo com que se alegrasse, mas como se fosse um tipo de maldição.
– Sou da carne da Virgem Escriba, nascida há muito tempo, e ocultada dos registros das Escolhidas e dos olhos de outrem.
Layla piscou em estado de choque. A aparição da fêmea fora um tipo de mistério, mas ela certamente não fizera nenhuma pergunta, pois isso não cabia a ela. A única coisa que sabia com convicção é que jamais houve registro algum da mãe sagrada da raça um dia ter dado à luz uma criança.
Na verdade, a estrutura completa do sistema de crença era prevista no fato de isso não ter ocorrido.
– Como isso é possível? – arfou Layla.
Os olhos brilhantes de Payne estavam sérios.
– Não era o que eu desejaria. E não é algo de que fale a respeito.
No momento tenso que se seguiu, Layla considerou impossível não ver a verdade naquilo que a fêmea falava. Tampouco a raiva, cuja causa ela apenas podia supor.
– Você é sagrada – disse Layla maravilhada.
– Nem um pouco, eu lhe garanto. Mas minha linhagem me concedeu um tipo de... como posso explicar? Habilidade.
Layla se enrijeceu.
– Que seria...?
Os olhos de diamante de Payne não se desviaram.
– Quero ajudá-la.
As mãos de Layla foram para o baixo ventre.
– Se quer abreviar isto... não.
Ela tinha seu filho por um tempo curto demais. Não importava a dor que tivesse que passar, ela não sacrificaria um minuto sequer daquilo que, sem dúvida, seria sua única gestação.
Ela jamais se colocaria à mercê de outro sofrimento assim. No futuro, quando seu cio chegasse, ela seria sedada e pronto.
Aquele tipo de perda uma vez na vida já era demais.
– E se acredita que pode deter isto – Layla continuou –, isso não é possível. Não há nada que ninguém possa fazer.
– Não estou tão certa disso – o olhar de Payne era enlevado. – Eu gostaria de ver se posso salvar esta gestação. Se me permitir.
No campus abandonado da Escola para Moças Brownswick, o Sr. C. se acomodou no que um dia fora o escritório da diretora.
Era o que estava escrito na placa rachada do lado de fora da sala.
Como não havia calefação, a temperatura ambiente não estava muito maior do que a do lado de fora, mas graças ao sangue de Ômega, o frio não era um problema. Ainda bem: do outro lado do gramado crescido coberto de neve, no dormitório principal sobre uma colina, quase cinquenta redutores dormiam o sono dos mortos.
Se aqueles malditos necessitassem de aquecimento ou de comida, ele estaria sem sorte alguma.
Mas não, tudo o que ele tinha de fazer era providenciar um abrigo. A iniciação cuidaria do resto – e o fato de que precisavam desligar a consciência a cada 24 horas era um alívio.
Ele precisava de tempo para pensar.
Jesus Cristo, que confusão.
Compelido pela necessidade de se mexer, ele empurrou a cadeira para trás e se lembrou de que estava se sentando sobre um balde de argamassa virado ao contrário.
– Maldição.
Olhando ao redor da sala decrépita, ele mediu as placas de gesso penduradas das vigas do teto, as janelas cobertas por tábuas de madeira, e o buraco em uma das tábuas do piso no canto. O lugar era igual à conta bancária que ele encontrara.
Nenhum dinheiro em lugar algum. Munição zero. Armas que podiam ser usadas em combate à força, e só.
Depois de sua promoção, ele se viu cheio de energia, de planos. Agora encontrava-se diante de nenhum dinheiro, nenhum recurso, nada.
Ômega, por outro lado, esperava todo tipo de resultado. Como deixara bem claro no “encontro” deles na noite anterior.
E também havia outro problema. Ele odiava aquela merda.
Pelo menos ele podia fazer algo a respeito de todo o resto.
Esticando os braços acima da cabeça e estalando os ombros, agradeceu a Deus por duas coisas: uma, os celulares não tinham sido desligados, por isso ele podia se comunicar com seus homens no campo de batalha. E dois, todos aqueles anos na rua lhe deram os punhos de ferro no que se referia a controlar o bando de idiotas do tráfico de drogas.
Tinha de arranjar dinheiro. Logo.
Ele teve uma porra de um plano para isso também, mandando os últimos nove mil dólares com aqueles três garotos no meio da noite. Tudo o que os malditos tinham de fazer era pagar, pegar a droga e trazer para ali, onde dividiriam a merda, depois distribuiriam entre os novos recrutas para que eles vendessem nas ruas.
O problema era que ele ainda estava esperando pela porra da entrega.
E estava ficando puto de tanto esperar para descobrir se as drogas e o dinheiro tinham sumido.
Era bem possível que aqueles merdinhas tivessem fugido com um ou com o outro, mas, nesse caso, ele os caçaria como cachorros para mostrar aos outros o que acontecia quando você...
Quando seu celular tocou, ele o pegou, viu quem era e apertou o botão de chamada.
– Já era hora. Onde diabos você está e cadê minha mercadoria?
Houve uma pausa. Depois, a voz que se ouviu pela conexão não era nada parecida com a do traficante cheio de espinhas para quem ele entregara o celular e a última pistola da Sociedade que funcionava.
– Tenho uma coisa que você quer.
O Sr. C. franziu a testa. Voz grave. Envolta numa impaciência que ele reconhecia das ruas, e um sotaque que ele não sabia de onde vinha.
– Não é essa merda com a qual você está falando comigo – disse o Sr. C. com fala arrastada. – Tenho um monte desses.
Afinal de contas, quando você não tem nada na mão, no coldre ou na carteira, blefar era a sua única opção.
– Ora, que bom para você. Também tem muito do que me mandou? Dinheiro? Soldados?
– Quem diabos está falando?
– Sou seu inimigo.
– Se você ficou com a porra da minha grana, pode apostar que sim.
– Na verdade, essa é uma resposta bem simplista para um problema um tanto complexo.
O Sr. C. se pôs de pé, derrubando o balde.
– Onde está a porra do meu dinheiro e o que fez com os meus homens?
– Lamento, mas eles não podem mais atender ao telefone. É por isso que estou ligando.
– Você não faz ideia com quem está lidando – o Sr. C. ameaçou.
– Pelo contrário, é você quem está em desvantagem, bem como tantos outros – quando o Sr. C. estava pronto para rebater, o cara o interrompeu. – Eis o que vamos fazer. Vou telefonar à noite para lhe dar uma localização. Você, e apenas você, vai me encontrar lá. Se alguém o acompanhar, eu saberei, e você nunca mais vai saber de mim.
O Sr. C. estava acostumado a sentir desdém pelos outros, isso era parte do trabalho uma vez que você só lida com ladrões de merda e malditos viciados. Mas esse cara do outro lado da conexão? Controlado. Calmo.
Um profissional.
O Sr. C. controlou seu humor.
– Não preciso de nenhum joguinho...
– Sim, precisa. Porque se você quiser drogas para vender, terá que vir a mim.
O Sr. C. ficou calado. Ou aquele era um lunático cheio de ilusões de grandeza ou... era alguém com poder de verdade. Talvez o tipo que matou os intermediários do cartel de drogas em Caldwell um ano antes.
– Quando e onde? – disse de má vontade.
Houve uma risada sombria.
– Atenda o seu telefone ao cair da noite e você descobrirá.
CAPÍTULO 43
Layla não conseguiu falar enquanto tentava compreender as palavras de Payne.
– Não – disse à outra fêmea. – Não, Havers me disse que... não havia nada que pudesse ser feito.
– Na medicina, isso pode ser verdade. Eu posso ter outro modo, porém. Não sei se funcionará, mas, se permitir, eu gostaria de ver o que posso fazer.
Por um instante, Layla só conseguiu respirar.
– Eu não... – pôs a mão no abdômen liso. – O que fará comigo?
– Não sei bem, para ser sincera – Payne deu de ombros. – Na verdade, nem me passou pela cabeça que eu poderia ajudar nesta situação. Mas sou conhecida por curar aquilo que precisa ser curado. Repito, não sei se isso se aplica neste caso. Contudo, podemos tentar... e isso não a machucará. Isso eu posso prometer.
Layla perscrutou a expressão da lutadora.
– Por que... faria uma coisa dessas por mim?
Payne franziu o cenho e desviou o olhar.
– Você não precisa saber os motivos.
– Sim, preciso.
O perfil dela se tornou absolutamente frio.
– Você e eu somos irmãs da tirania de minha mãe, casualidades de seu plano maior de como as coisas devem ser. Estivemos as duas enjauladas em seus modos diversos, você como uma Escolhida; eu, como sua filha de sangue. Não há nada que eu não faça para ajudá-la.
Layla se recostou. Jamais se considerara uma desventura da mãe da raça. A não ser... ao pensar em seu desespero em ter uma família, seu senso de não ter raízes, sua absoluta falta de identidade além do trabalho de uma Escolhida... ela teve o que pensar. O livre-arbítrio a levava àquela situação horrenda, mas, pelo menos, ela escolhera a rota e os meios. Como membro da classe especial da Virgem Escriba, não tivera muitas escolhas, a respeito de nada em sua vida.
A respeito de nada mesmo.
Ela estava perdendo aquela gravidez, aquilo era óbvio. E se Payne achava que existia uma chance de...
– Faça o que precisar fazer – disse com voz rouca. – E obrigada, não importando o resultado.
Payne assentiu uma vez. Depois esticou as mãos, flexionando e afastando os dedos.
– Posso tocar no seu abdômen?
Layla abaixou as cobertas.
– Devo tirar a camisa?
– Não.
Melhor assim. A simples retirada da colcha lhe provocara uma nova onda de dor, a mínima mudança de peso era causa de...
– Você está sofrendo muito – murmurou a outra fêmea.
Layla não respondeu ao expor a pele do abdômen. Obviamente, sua expressão já dizia o bastante.
– Apenas relaxe. Isso não deverá lhe causar nenhum desconforto...
Quando o contato foi feito, Layla levantou a cabeça. As mãos da lutadora estavam quentes como a água de uma banheira. E igualmente calmas. Estranhamente calmas, para falar a verdade.
– Isto dói? – Payne perguntou.
– Não. Parece... – quando uma nova onda de dor se avolumava, ela agarrou os lençóis, se preparando...
Só que o pico da dor não se elevou como antes, como se a sensação fosse uma montanha íngreme, cujo topo fora arrancado.
Era o primeiro alívio que sentia desde que tudo aquilo começara.
Com um gemido de submissão, ela deixou a cabeça pender, o travesseiro amparando o repentino cansaço que a abateu pelo tanto de desconforto pelo qual seu corpo passara.
– E agora nós começamos.
De repente, a luz do abajur tremulou... e depois se apagou.
Sua iluminação, contudo, logo foi substituída.
Das mãos pálidas de Payne um brilho suave começou a ser lançado. O calor de seu toque se intensificou, o abrandamento estranho e maravilhoso parecia penetrar em sua pele, nos músculos, em cada osso que estava no caminho... indo direto para o ventre de Layla.
E, então, houve um tipo de explosão.
Com um sibilo, ela se entregou à grande onda de energia que abruptamente surgiu dentro dela, um calor que não queimava, mas fervia afastando a dor, suspendendo a agonia e arrancando-a de sua carne, como se o vapor de uma panela se dissipasse.
Mas não acabou ali. Uma grande sensação de euforia em seu corpo inteiro, com cachos dourados pulsando para fora de sua região pélvica e fluindo pelo torso até a mente e também em sua alma, e pernas e braços formigando.
Ah, que alívio pungente.
Ah, que poder incrível.
Ah, graça salvadora gentil.
A cura, contudo, não estava completa.
No meio do turbilhão, Layla sentiu... o que era aquilo? Um movimento em seu útero. Uma contração, talvez? Mas não uma cólica, não, nada disso. Mais como se o que estivesse defasado tivesse recuperado as forças.
Ela, gradualmente, deu-se conta de que batia os dentes.
Olhando para baixo, para seu corpo, ela viu que tudo tremia, e não só isso.
Sua forma física estava brilhando. Cada centímetro de sua pele era como uma cúpula de um abajur, revelando a luz que jazia por baixo, as roupas agindo como barreiras frágeis daquilo que fervia lentamente dentro dela.
Na iluminação, o rosto de Payne estava contraído, como se fosse um custo alto transferir a cura maravilhosa para outra pessoa. E Layla teria se distanciado, colocado um fim naquilo, se pudesse – porque a outra fêmea começava a parecer muito cansada. No entanto, não havia como romper a ligação. Ela não tinha o controle dos seus membros, não tinha como falar.
Aquela comunhão vital entre as duas pareceu durar uma eternidade.
Quando Payne finalmente se afastou, rompendo o elo, ela caiu da cama, formando uma pilha no chão.
Layla abriu a boca para gritar. Tentou segurar sua salvadora. Lutou contra o peso morto do corpo ainda iluminado.
Todavia, não havia nada que ela pudesse fazer.
A última coisa que ficou registrada antes que perdesse a consciência era a sua preocupação com a outra fêmea. E, depois, tudo ficou escuro.
CAPÍTULO 44
Qhuinn despertou com o pênis duro.
Estava deitado de costas e seus quadris se mexiam por conta própria, o movimento contínuo resvalava a ereção contra o peso dos lençóis e da colcha. Por um instante, enquanto se demorava naquele estado meio dormente antes de a consciência chegar, ele imaginou que era Blay criando aquela fricção, as palmas do macho subindo e descendo... num preâmbulo de mais ação oral.
Foi quando abaixou a mão para enterrar os dedos nos cabelos ruivos que percebeu estar sozinho: a mão encontrou apenas os lençóis.
Numa atitude otimista, lançou o braço para o lado, tateando o lugar ao seu lado, pronto para encontrar o corpo quente do macho.
Apenas mais lençóis. E estavam frios.
– Cacete – inspirou.
Abrindo os olhos, a realidade de onde estava o atingiu com força, murchando a sua ereção. Apesar dos encontros, aqueles dois interlúdios maravilhosos e extremamente sensuais, Blay estava, naquele exato instante, acordando ao lado de Saxton.
Provavelmente fazendo sexo com o cara.
Ah, Deus, ele ia vomitar.
A ideia de Blay tocando em outro, cavalgando em outro, lambendo e afagando outro – seu maldito primo, para ser bem claro – era quase tão insuportável quanto a maldita situação de Layla. A verdade era que, graças ao que acontecera, qualquer atração que Qhuinn sentisse pelo cara aumentara em vez de diminuir.
Maravilha. Outra rodada de boas notícias.
Foi sem nenhum entusiasmo que Qhuinn se arrastou para fora da cama e entrou no banheiro. Não acendeu a luz, não tinha interesse algum em ver que sua aparência era a mesma da merda de um cachorro, mas barbear-se só pelo toque não era a melhor das ideias.
Ao apertar o interruptor, piscou com força, e uma dor de cabeça começou a latejar atrás de ambos os olhos. Sem dúvida precisava comer de novo, mas que merda, as exigências constantes de seu corpo estavam acabando com ele.
Abrindo a torneira, ele pegou o gel de barbear e colocou um punhado na palma. Esfregou as mãos para criar espuma e pensou em seu primo. Ele tinha a impressão, embora não soubesse com certeza, de que Saxton usaria um daqueles pincéis antigos para espalhar a espuma no rosto. E nada de lâminas Gilette para ele. Muito provavelmente ele tinha um daqueles instrumentos de barbeiro com cabo em madrepérola.
O pai de Qhuinn tinha um desses. E seu irmão recebera um com suas iniciais após sua transição.
Junto ao anel de sinete.
Bem, ótimo para eles. Além do que, já que ambos estavam mortos, não era como eles continuassem se barbeando.
Quando o rosto ficou coberto de branco, como o cenário lá de fora, ele pegou sua lâmina comum Mach 3 com cabeça descartável...
Sem nem saber por que, achou que devia pegar uma lâmina nova.
Sim, uma supernova e ultracortante.
Qhuinn revirou os olhos para si mesmo. Nada como se concentrar em três pequenas lâminas e uma tira umidificadora. Algo bem lógico.
Depois de se admoestar, ele começou a vasculhar as gavetas do gabinete, puxando-as uma a uma, inventariando os itens de tolices de higiene que nunca usava, nem jamais sequer perdia tempo olhando-as.
Puxando a última, a mais próxima do chão, parou. Franziu o cenho. Agachou.
Havia uma caixinha preta de veludo ali, do tipo em que se colocam joias. Só que ele não tinha nenhuma, e muito menos da Reinhardt, aquela loja esnobe no centro. Como ninguém mais ficava em seu quarto, ele se perguntou se, talvez, aquilo estivesse ali desde que ele se mudara e ele simplesmente nunca o vira.
Tirando a caixinha, levantou a tampa e...
– Filho da mãe.
Dentro, como se valesse muita coisa, estavam todos os seus brincos de argola, bem como o piercing que costumava usar no lábio inferior.
Fritz deve tê-los juntado ao limpar o quarto uma noite e guardado na caixinha. Única explicação possível, porque Qhuinn não se importara com eles depois de tirá-los, um a um. Simplesmente os jogara no fundo de uma das gavetas do banheiro.
Qhuinn mexeu nas argolas de aço, relembrando quando as comprara e colocara. Seu pai ficara mortificado; a mãe também – ao ponto de se retirar da Última Refeição e ficar trancada no quarto por 24 horas seguidas depois de ele entrar flanando na sala de jantar usando-as.
O colocador de piercings lhe dissera para não usá-los até que as tachas utilizadas para perfurar tivessem a chance de cicatrizar. Mas esse conselho era para humanos. Em poucas horas, estava tudo perfeito e ele fizera a troca.
No banheiro de Blay, para falar a verdade.
Qhuinn franziu a testa, lembrando-se do momento em que pisara no quarto do cara. Blay estava na cama, acalentando uma Corona, assistindo TV. A cabeça dele se virou, com sua expressão franca e relaxada... até dar uma olhada em Qhuinn.
Seu rosto se contraiu mesmo que minimamente. De um jeito que, a menos que você conhecesse bem, muito bem uma pessoa, jamais teria percebido. Mas Qhuinn notara.
Naquela época, deduzira que seu estilo obviamente gótico fosse um tantinho demais para o senhor Conservador. Mas agora, em retrospecto, ele se lembrou de algo mais. Blay voltara a se concentrar na TV de plasma... e, casualmente, cobrira o colo com uma almofada.
Ele deve ter ficado excitado.
Enquanto Qhuinn repassava a cena inteira na mente, seu próprio sexo voltava a engrossar.
Só que aquilo era uma completa perda de tempo, não era?
Fitando as malditas argolas, pensou em sua rebeldia, na raiva e na ideia sem noção do que precisava ter para ser feliz.
Uma fêmea. Se encontrasse uma que o aceitasse.
Que... mentira... fora aquilo.
Engraçado, a covardia aparecia em muitas formas, não é? Não era necessário se encolher num canto, tremendo e choramingando como um gatinho. Inferno, não. Você pode ser um grandalhão barulhento cheio de marra e com o rosto cheio de piercings e um rosnado para mostrar para o mundo... e ainda assim não passar de um covarde filho da puta. Afinal, Saxton podia vestir ternos de três peças e gravatas e sapatos, mas o macho sabia quem era, e não tinha medo de ter aquilo que desejava.
E, olha só, Blay estava acordando ao lado do cara.
Qhuinn fechou a tampa e recolocou os piercings onde os encontrara. Depois se olhou no espelho. O que estava fazendo mesmo?, pensou ao fitar seu reflexo.
Ah, sim. Barbeando-se.
Era isso mesmo.
Cerca de vinte minutos mais tarde, Qhuinn saiu do quarto. Andou pelo corredor das estátuas, passou pelas portas fechadas do escritório de Wrath e continuou em frente.
Enquanto avançava, foi difícil olhar para a sala de estar do segundo andar, difícil permanecer controlado quando aquele sofá surgiu no seu campo de visão.
Nunca mais olharia para aquela peça de mobília do mesmo modo. Inferno, talvez todos os sofás estivessem perdidos para ele, para sempre.
À porta de Layla, ele se inclinou encostando o ouvido na madeira. Quando não ouviu nada, perguntou-se exatamente o que achava que descobriria daquele modo.
Deu uma batida suave. Quando não houve resposta, sentiu um aperto de medo irracional na garganta e, sem pensar duas vezes, abriu a porta.
A luz invadiu a escuridão.
Seu primeiro pensamento foi que ela tivesse morrido; que Havers, o filho da puta, tivesse mentido, e que o aborto tivesse saído do controle e a matado: Layla estava imóvel ao encontro dos travesseiros, a boca ligeiramente entreaberta, as mãos cruzadas sobre o peito como se ela tivesse sido arrumada por um agente funerário com respeito pelos mortos.
Só que... algo estava diferente, e ele precisou de um minuto para perceber o que era.
Não havia mais o cheiro sobrepujante do sangue. Na realidade, somente a fragrância delicada de canela marcava o ar, refrescando-o de um modo que iluminava o quarto inteiro.
Será que o aborto finalmente chegara ao fim?
– Layla? – ele a chamou, mesmo tendo dito que se a encontrasse dormindo, não a perturbaria.
Foi um alívio ver as sobrancelhas se mexendo quando seu nome foi captado pelo cérebro, mesmo sob o véu do sono.
Ele teve a sensação de que se a chamasse de novo, ela acordaria.
Parecia cruel forçar-lhe a consciência. O que ela teria para recebê-la quando acordasse? A dor que sentia? A sensação de perda?
Cacete.
Qhuinn saiu silenciosamente, fechou a porta atrás de si e continuou ali. Não sabia o que fazer. Wrath lhe dissera para ficar em casa, mesmo se John Matthew saísse – ele deduziu que aquilo fosse uma espécie de folga misericordiosa de seus deveres de ahstrux nohtrum. E estava grato por isso. Havia tão pouco que pudesse fazer por Layla – pelo menos podia ficar por perto caso ela precisasse de alguma coisa. Um refrigerante. Uma aspirina. Um ombro para chorar.
Você fez isso a ela.
A julgar pelo toque que saía da maldita sala de estar, ele deduziu que perdera a Primeira Refeição. Nove horas. Isso mesmo. Acabara dormindo demais, e isso era bom. Se ele tivesse de se sentar à mesa e passar 45 minutos na companhia de quase duas dúzias de pessoas que tentariam não encará-lo, ele teria perdido a porra da cabeça.
O som de alguém andando no vestíbulo logo abaixo fez com que ele levantasse a cabeça.
Sem nenhum plano ou pensamento específico, ele se aproximou da balaustrada e olhou para baixo.
Payne, a irmã valentona de V., estava saindo da sala de jantar.
Ele não conhecia muito bem aquela fêmea, mas a respeitava imensamente. Seria impossível não admirar, dado o modo como se portava no campo de batalha... Durona, verdadeiramente durona. Naquele instante, porém, a shellan do doutor Manello parecia ter levado uma surra de bar: caminhava lentamente, os pés se arrastando pelo piso de mosaico, o corpo encurvado, a pegada no braço de seu par parecendo ser a única coisa que a sustentava.
Será que ela se machucara em alguma luta corpo a corpo?
Não havia cheiro de sangue.
O doutor Manello disse algo para ela que ele não conseguiu ouvir, mas depois o cara indicou a direção da sala de bilhar com a cabeça – como se ele estivesse perguntando se ela queria ir para lá.
Tomaram aquela direção a passos de caramujo.
Já que não gostava quando as pessoas o encaravam, Qhuinn recuou da grade e esperou até que o caminho estivesse livre. Depois correu escada abaixo.
Comida. Exercícios. Voltar a ver Layla.
Aquela seria a sua noite.
Seguindo para a cozinha, ele se viu imaginando onde Blay estaria. O que estaria fazendo. Se tinha saído para lutar ou se tinha ficado em casa e...
Visto que não sabia onde Saxton estava, ele pôs um ponto final naquela linha de questionamentos.
Se Qhuinn não tivesse de fazer seu turno e pudesse passar um tempo com o cara, ele sabia muito bem o que Blay estaria fazendo.
E Saxton, seu primo filho da puta, não era nenhum tolo.
CONTINUA
CAPÍTULO 37
Enquanto Blay girava o anel de sinete da família no dedo, seu cigarro aceso queimava lentamente na outra mão, e seu traseiro ficava adormecido... e ninguém passava pelas portas do átrio.
Sentado no degrau de baixo da grande escadaria da mansão, ele não respeitaria a promessa feita à mãe de ir para casa. Não naquela noite, pelo menos. Depois da loucura da noite anterior, do pouso forçado do avião e do drama subsequente, Wrath ordenara que a Irmandade e os lutadores tirassem 24 horas de folga. Por isso, tecnicamente, ele deveria ligar para os pais e dizer à mãe que caprichasse na mussarela e no molho à bolonhesa.
Mas de jeito nenhum ele sairia daquela casa. Não depois de ouvir os gritos vindos do quarto de Layla, e de vê-la praticamente sendo carregada escadaria abaixo.
Naturalmente, Qhuinn esteve ao lado dela.
John Matthew não.
Portanto, o quer que estivesse acontecendo, pelo visto superava o ahstrux nohtrum, e isso significava que... ela só podia estar perdendo o filho. Somente algo sério assim possibilitaria um passe livre.
Enquanto ele continuava parado como uma porta, sem nada além da sua preocupação para lhe fazer companhia, naturalmente sua mente resolveu seguir o caminho errado: merda, fora mesmo para a cama com Qhuinn na noite passada?
Dando uma tragada em seu Dunhill, ele expeliu uma imprecação.
Acontecera mesmo?
Deus, essa pergunta vinha martelando a sua cabeça desde o minuto em que despertou de um sonho sensual, com uma ereção que parecia fazer pensar que o outro macho dormia ao seu lado.
Revendo as cenas pela centésima vez, só no que ele conseguia pensar era... como um plano podia fracassar. Depois de ter rejeitado Qhuinn quando ele se pôs de joelhos, voltara para o próprio quarto e andara de um lado para o outro, um debate que não interessava ter consigo mesmo transformando seu cérebro em fois gras.
Ele tomara a decisão correta ao sair. Mesmo. Tinha sim.
O problema foi que a decisão não se sustentou. Enquanto as horas do dia passavam, tudo o que ele conseguia pensar foi a vez em que o pai o flagrou roubando uma caixa de cigarros do doggen da família. Na época, ele era um jovem pré-trans e, como castigo, seu pai o obrigou a se sentar do lado de fora e fumar cada um daqueles Camels sem filtro. Ele se sentiu muito mal e demorou mais de dois anos para sequer tolerar fumo passivo.
Portanto, esse fora o seu segundo plano.
Fazia tempo demais que era louco por Qhuinn, mas tudo não passava de algo hipotético, dividido em fantasias de modo que ele conseguisse suportar. Nada de uma vez só, nada da coisa sobrecarregada, absoluta e arrasadora – e ele sabia muito bem que na vida real, Qhuinn não se conteria nem relaxaria. O “plano” fora ter a experiência concreta, e descobrir que aquilo não passava de apenas sexo brutal. Ou, inferno, descobrir que não era nem sexo bom.
Não era de se esperar que você fumasse um maço inteiro de cigarros... só para querer mais.
Deus todo-poderoso, foi a primeira vez em que a realidade foi muito melhor do que uma fantasia, a absolutamente melhor experiência erótica de toda a sua vida.
Depois, porém, a gentileza que Qhuinn demonstrara fora insuportável.
Na verdade, enquanto Blay rememorava aquela ternura, ele deu um salto de onde estava e começou a marchar ao redor do mosaico de macieira – não tinha para onde ir.
Naquele instante a porta se abriu. Porém, não a de entrada.
A da biblioteca.
Enquanto olhava de relance por sobre o ombro, Saxton surgiu de lá. Ele parecia saído do inferno, e não só porque, por mais veloz que fosse a sua recuperação, ele ainda tinha um inchaço residual na mandíbula graças ao ataque de Qhuinn.
Que lindo, Blay pensou. Bela maneira de expressar seu desapontamento quanto ao comportamento de alguém: deixe-o transar com você depois que ele tentou estrangular seu ex.
Quaaanta classe.
– Como você está? – Blay perguntou, e não por convenção social.
Foi um alívio Saxton se aproximar. E encará-lo. E sorrir-lhe um pouco como se estivesse determinado a fazer um esforço.
– Estou exausto. E faminto. E agitado.
– Gostaria de comer comigo? – sugeriu Blay num rompante. – Também estou me sentindo assim, e a única coisa em que posso dar jeito é a fome.
Saxton assentiu com a cabeça e enfiou as mãos nos bolsos da calça.
– Ideia brilhante.
Os dois acabaram na cozinha, sentados ante a castigada mesa de carvalho, lado a lado, de frente para o resto do cômodo. Com um sorriso contente, Fritz imediatamente passou para o seu modo “provedor de alimentos” e, veja só, dez minutos mais tarde, o mordomo servia uma tigela de cozido de carne para cada um, além de uma baguete para dividirem, uma garrafa de vinho tinto e uma porção de manteiga num pratinho ao lado.
– Volto em seguida, meus senhores – disse o mordomo com uma reverência. E depois ele prosseguiu expulsando todos da cozinha, desde o doggen que descascava legumes até os que poliam a prataria e os que limpavam as janelas de uma alcova logo além dali.
Quando a porta se fechou após a saída do último criado, Saxton disse:
– Tudo o que nos falta é uma vela, aí isto seria um encontro – o macho se inclinou para a frente e começou a comer com modos impecáveis. – Bem, suponho que precisaríamos de mais algumas coisas, não?
Blay olhou de esguelha enquanto apagava o cigarro. Mesmo com as olheiras e o hematoma desvanecendo no pescoço, o advogado era muito bonito de se olhar.
Por que ele não poderia simplesmente...
– Não repita, de novo, que sente muito – Saxton limpou a boca com o guardanapo e sorriu. – Não é necessário, nem apropriado.
Assim, sentado ao lado dele, não parecia que tinham acabado de romper, nem que ele estivera com Qhuinn. Será que as últimas noites aconteceram mesmo?
Até parece... O que ocorreu com Qhuinn não teria acontecido se ele e Sax ainda estivessem juntos. Isso era bem claro para ele: uma coisa era se masturbar secretamente, e isso já era ruim o bastante. Aquilo tudo? De jeito nenhum.
Droga, apesar do fato de ele e Saxton terem rompido, ele ainda sentia que devia confessar sua transgressão... mesmo que Qhuinn estivesse certo e que Saxton já tivesse seguido em frente, por assim dizer.
Enquanto comiam em silêncio, Blay balançou a cabeça, ainda que não tivessem lhe feito nenhuma pergunta e nem estivessem conversando. Ele só não sabia o que fazer. Às vezes, as mudanças da vida surgiam com tanta rapidez, e com tamanha impetuosidade, que não havia como acompanhar a realidade. Levava tempo para as coisas se assentarem, um novo equilíbrio se reestabelecia só depois de algum tempo em que seu cérebro batia de um lado contra o outro das paredes da sua cabeça.
Ele ainda estava na fase de balançar.
– Já sentiu alguma vez como se as horas fossem medidas em anos? – perguntou Saxton.
– Ou décadas. Sim. Absolutamente – Blay olhou de novo. – Na verdade, eu também estava pensando nisso.
– Que par de mórbidos nós somos.
– Talvez devêssemos vestir preto.
– Braçadeiras? – sugeriu Saxton.
– Não, preto dos pés à cabeça.
– E o que eu faço com o meu gosto por cores? – Saxton apontou para o lenço laranja Hermès no bolso da sua lapela. – Bem, pode-se muito bem usar todo tipo de acessórios.
– Certamente isso explica a teoria por trás dos aparelhos ortodônticos.
– Flamingos de plástico rosa.
– A franquia da Hello Kitty.
Juntos, os dois explodiram numa gargalhada. Nem era assim tão engraçado, mas o humor não era a questão ali. Mas quebrar o gelo. Voltar ao que era antes. Aprender a se relacionarem de um modo diverso.
Quando convergiram para um riso mais contido, Blay passou o braço ao redor dos ombros do macho e lhe deu um abraço rápido. Foi bom que Saxton tivesse relaxado um pouco, aceitando aquilo que lhe era oferecido. Não que Blay acreditasse que por estarem sentados juntos, partilhando uma refeição e uma bela risada, tudo, de repente, seria um navegar suave. Nada disso. Era estranho pensar que Saxton estivera com outra pessoa, e ainda mais incrível saber que ele fizera o mesmo – principalmente com quem o fizera.
Não se passava de amantes de quase um ano para companheiros de risadas em um ou dois dias.
Podia-se, porém, começar a forjar um novo caminho.
E colocar um pé na frente do outro.
Sempre haveria um lugar em seu coração para Saxton. O relacionamento que tiveram foi o seu primeiro não só com um macho, mas com qualquer um. E muitas coisas boas aconteceram, coisas que ele carregaria consigo como lembranças que valiam o espaço em sua mente.
– Deu uma olhada nos jardins de trás? – Saxton perguntou ao lhe oferecer o pão.
Blay partiu um pedaço e depois espalhou manteiga por cima enquanto Saxton também pegava um pouco.
– Estão bem ruins, não?
– Lembre-me de nunca tentar cortar grama com um Cessna.
– Você não curte jardinagem.
– Bem, para o caso de um dia eu tentar – Saxton se serviu de vinho. – Aceita?
– Sim, por favor.
E foi assim que as coisas aconteceram. Durante o cozido de carne até a torta de pêssegos, que milagrosamente apareceu diante deles graças à impecabilidade de Fritz. Quando a última garfada e a última limpada com guardanapo foram dadas, Blay se reclinou contra o encosto acolchoado do banco embutido e inspirou fundo.
Que se referia a muito mais do que uma simples barriga cheia.
– Bem – disse Saxton, ao apoiar o guardanapo ao lado do prato de sobremesa –, acredito que finalmente vou poder tomar o banho de banheira que você me sugeriu há algumas noites.
Blay abriu a boca para observar que os sais de banho que o macho preferia ainda estavam em seu banheiro. Ele os vira no gabinete quando fora pegar o creme de barbear reserva ao cair da noite.
Só que... ele não sabia se devia mencionar isso. E se Saxton pensasse que ele estava lhe pedindo para ir à sua banheira? Seria um lembrete muito grande de como as coisas tinham mudado e do por quê? E se...
– Tenho esse novo tratamento à base de óleos que estou morrendo de vontade de experimentar – explicou Saxton ao deslizar pelo banco. – Ele finalmente chegou do exterior hoje. Faz séculos que espero por ele.
– Parece maravilhoso.
– Mal posso esperar – Saxton ajustou o paletó nos ombros, ajeitou os punhos e depois acenou com a mão, saindo sem nenhum indício de complicações ou de tensão em seu rosto.
O que, de fato, ajudava muito.
Dobrando o próprio guardanapo, deixou-o de lado, e saiu de trás da mesa, esticando os braços acima da cabeça e curvando-se para trás, estalando muito bem a coluna.
A sua tensão voltou no segundo em que pisou no átrio novamente.
Que diabos estava acontecendo com Layla?
Maldição, ele nem podia ligar para Qhuinn. Aquele drama não era seu, nem estava ligado a ele de modo algum. Quando se tratava de uma gestação, ele não era diferente de nenhum outro macho daquela casa que também ouvira ou vira o show e, sem dúvida, estava tão preocupado quanto ele. Mas também não tinha direito a nenhuma notícia antecipada.
Uma pena que sua barriga, agora cheia, não concordasse com isso. Pensar em Qhuinn perdendo o filho o fez considerar seriamente a localização do banheiro mais próximo da porta de entrada, só para o caso de uma evacuação rápida ser ordenada pelo fundo da sua garganta.
No fim, ele se viu subindo para a sala de estar do segundo andar. Daquele lugar, ele não teria dificuldade em ouvir a porta da frente, e não estaria esperando abertamente...
As portas do escritório de Wrath se abriram, e John Matthew emergiu do santuário do Rei.
Imediatamente, Blay atravessou a sala de espera, pronto para ver se, talvez, o cara sabia de alguma coisa, mas se conteve ante a expressão de John.
Perdido em pensamentos. Como se tivesse recebido notícias pessoais do tipo perturbador.
Blay ficou para trás enquanto o camarada seguia no caminho contrário, na direção do corredor das estátuas, sem dúvida para desaparecer no próprio quarto.
Parecia que as coisas não andavam bem nas vidas dos outros também.
Maravilha.
Com uma imprecação baixa, Blay deixou o amigo em paz e voltou a caminhar e... a esperar.
Muito mais ao sul, na cidade de West Point, Sola estava pronta para entrar no segundo andar da casa de Ricardo Benloise, através da janela ao fim do corredor principal. Fazia meses desde que estivera lá dentro, mas ela contava com o fato de que seu contato na segurança por ela cuidadosamente manipulado ainda fosse o seu amigo.
Havia dois fatores-chave para invadir com sucesso qualquer casa, prédio, hotel ou instalação: planejamento e velocidade.
Ela possuía os dois.
Pendurada no cabo que lançara no telhado, ela tirou um instrumento de dentro do bolso da parca, segurando-o no canto direito da janela dupla. Iniciado o sinal, ela esperou, olhando fixamente para a luzinha vermelha que brilhava na tela à sua frente. Se por algum motivo ela não mudasse, ela teria de entrar por uma das águas-furtadas que dava para o jardim, o que seria um pé no saco...
A luz ficou verde com um sinal, e ela sorriu ao pegar mais instrumentos.
Pegando um copo de sucção, ela o empurrou no meio do painel, imediatamente abaixo da tranca e depois girou a coisa com o cortador de vidro. Um empurrão rápido e o espaço que possibilitava a entrada do seu braço foi criado.
Depois de deixar o círculo de vidro cair com suavidade na passadeira oriental, ela enfiou o braço e o virou, para soltar a trava de latão que mantinha a janela fechada.
O ar quente lhe deu boas-vindas, como se a casa estivesse contente por vê-la mais uma vez.
Antes de entrar, ela olhou ao redor. Relanceou para o caminho de carros. Inclinou-se para fora para ver o que conseguia encontrar nos jardins escuros.
Sentia como se alguém a estivesse observando... não tanto no caminho de carro até a cidade, mas depois que parara no estacionamento e colocara os esquis. Todavia, não havia ninguém por perto – pelo menos, ninguém que ela conseguisse enxergar – e por mais que a atenção fosse essencial em seu ramo de trabalho, a paranoia era uma perda de tempo perigosa.
Ela precisava deixar isso de lado.
Voltando a se concentrar no jogo, esticou as mãos enluvadas e suspendeu o traseiro e as pernas por cima e através da janela. Ao mesmo tempo, relaxou a tensão do cabo para que ele ficasse folgado e permitisse a sua entrada. Aterrissou sem nenhum som, graças não só ao tapete que cobria o longo corredor como também aos seus calçados de solas macias.
O silêncio era outro critério importante no tocante a realizar um trabalho com sucesso.
Ela parou onde estava por um breve momento. Nenhum som na casa, mas isso não significava nada necessariamente. Ela tinha quase certeza de que o alarme de Benloise fosse silencioso, e mais certeza ainda de que o sinal não iria para a força policial, nem a local, tampouco a estadual: ele gostava de cuidar das coisas particulares de modo privado. E Deus bem sabia, com o tipo de força braçal que ele contratava, havia poder suficiente para tal.
Felizmente, contudo, ela era boa no que fazia, e Benloise e seus capangas não estariam em casa até perto do nascer do sol, afinal, ele vivia a vida de um vampiro.
Por algum motivo, a palavra que começava com “v” a fez pensar no homem que aparecera ao lado do seu carro e que desaparecera como num passe de mágica.
Loucura. E a única vez em sua lembrança recente que alguém a fazia parar para pensar. Na verdade, depois de ser confrontada daquela forma, ela estava realmente considerando não voltar à casa de vidro no rio, embora houvesse motivos mais do que válidos para isso. Não por ela se preocupar em se machucar fisicamente. Deus bem sabia que ela era perfeitamente capaz de se defender.
Era a atração.
Mais perigosa do que qualquer pistola, faca, ou punho, em sua opinião.
Com passadas ágeis, Sola trotou pelo tapete, saltitando na ponta dos pés, seguindo para a suíte principal que dava para o jardim dos fundos. A casa ainda tinha o mesmo cheiro de que se lembrava: mobília antiga e lustra-móveis, e ela conhecia o bastante para se ater ao lado esquerdo da passadeira. Nenhum rangido daquele lado.
Quando chegou à suíte principal, a porta pesada de madeira estava fechada, e ela pegou a chave micha antes mesmo de testar a maçaneta. Benloise tinha duas patologias: limpeza e segurança. A impressão dela, entretanto, era que a segunda era mais crítica na galeria no centro de Caldwell do que em seu lar. Afinal, Benloise não mantinha debaixo do seu teto nada além de objetos de arte com seguros até o último centavo, e a ele próprio durante o dia – quando estava cercado por diversos seguranças e armas.
Na verdade, devia ser por isso que ele era uma coruja no centro da cidade. Isso significava que a galeria nunca ficava sem supervisão: ele aparecia depois do expediente e sua equipe de trabalho legítima estava lá durante o dia.
Como uma gatuna, ela certamente preferia entrar em lugares vazios.
Dito isso, mexeu no mecanismo de tranca da porta, abrindo-a, e entrou no quarto. Inspirou profundamente, o ar estava permeado com a fumaça do tabaco e da colônia refrescante de Benloise.
A combinação a fez pensar nos filmes em preto e branco de Clark Gable por algum motivo.
Com as cortinas puxadas e nenhuma luz acesa, ali estava absolutamente escuro, mas ela tirara fotografias dos quartos quando fora a uma festa ali, e Benloise não era o tipo de homem que mudava as coisas de lugar. Inferno, toda vez que uma nova exibição era instalada na galeria de arte, ela praticamente sentia o tremor debaixo da pele dele.
Medo de mudança era uma fraqueza, sua avó sempre dizia.
Obviamente facilitava as coisas para ela.
Mais devagar, ela avançou dez passos até o meio do quarto. A cama estaria à esquerda encostada na parede comprida. À sua frente estavam as janelas altas que davam para o jardim. À direita, haveria uma cômoda, uma escrivaninha e algumas cadeiras, e a lareira que nunca era usada porque Benloise detestava o cheiro de madeira queimada.
O alarme de segurança se localizava entre a entrada do banheiro e a cabeceira ornamentada da cama, ao lado do abajur que se elevava noventa centímetros do criado-mudo.
Sola deu um giro ao redor de si mesma. Deu quatro passos. Tentou encontrar o pé da cama... e o encontrou.
Passo lateral, um, dois, três. De frente para o flanco do colchão king-size. Outro passo lateral para desviar da mesinha de cabeceira e do abajur.
Sola esticou o braço esquerdo...
E lá estava o painel de segurança, bem onde deveria.
Abrindo a portinhola, usou uma lanterna de bolso que prendeu entre os dentes para iluminar o circuito. Pegando outro instrumento da mochila, conectou fios a fios, interceptando sinais, e com a ajuda de um laptop em miniatura e de um programa que um amigo seu desenvolvera, criou um circuito fechado dentro do sistema de alarme de modo que, enquanto o roteador estivesse no lugar, os detectores de movimento que ela estava para disparar não seriam registrados.
No que se referia à placa-mãe, nada pareceria anormal.
Deixando o laptop pendurado pelos fios, saiu do quarto, chegou ao corredor, e tomou as escadas para o primeiro andar.
O lugar estava perfeitamente decorado, pronto para uma foto de revista – ainda que, claro, Benloise protegesse demais a sua privacidade para permitir que suas coisas fossem fotografadas para o consumo público. Com passos rápidos, ela passou pelo hall de entrada, pela sala à esquerda e entrou no escritório.
Andando em meio à penumbra, ela bem que preferiria tirar a parca de camuflagem branca e as calças para neve: fazer aquilo em seu body preto seria um clichê que, entretanto, seria bem prático. Não havia tempo, porém, e ela estava mais preocupada em não ser vista do lado de fora do que ali, na casa vazia.
O espaço de trabalho pessoal de Benloise era, como todo o resto debaixo daquele teto, mais um cenário montado do que algo funcional. Ele, na verdade, não usava a imensa escrivaninha, nem se sentava no minitrono, tampouco lia qualquer um dos livros em capa de couro das prateleiras.
Todavia, ele transitava por aquele cômodo. Uma vez ao dia.
Certa vez, num momento de tranquilidade, ele lhe dissera que antes de sair, todas as noites, passeava pela casa olhando seus pertences, lembrando a si mesmo da beleza das suas coleções e de sua casa.
Como resultado dessa informação e de algumas outras coisas, Sola há muito deduzira que o homem crescera na pobreza. Primeiro porque, quando conversavam em espanhol ou em português, seu sotaque pertencia à classe baixa, mesmo que de modo sutil. Segundo, os ricos não valorizavam seus pertences como ele o fazia.
Nada era raro aos ricos, e isso significava que eles davam como certas todas as coisas.
O cofre estava escondido atrás da escrivaninha numa seção de estandes que era liberada por um botão localizado na gaveta inferior do lado direito.
Ela descobrira isso graças a uma minúscula câmera escondida que colocara do lado oposto durante aquela festa.
Após a abertura do mecanismo, um corte de sessenta por noventa centímetros na prateleira rolou para a frente e deslizou para o lado. E lá estava ela: uma caixa grossa de aço, cujo fabricante ela reconhecia.
Pensando bem, depois de invadir centenas de espaços, você acaba conhecendo intimamente os fabricantes. E ela aprovava aquela escolha. Se precisasse ter um cofre, era daquele tipo que ela pegaria e, sim, ele o prendera ao chão.
O maçarico que trouxera na mochila era pequeno, mas poderoso, e enquanto ela acendia a ponta, a chama chamuscou com um sibilo substancial e um brilho branco e azul.
Aquilo levaria tempo.
A fumaça do metal queimado irritava seus olhos, o nariz e a garganta, mas ela manteve a mão firme enquanto produzia um quadrado na frente do painel. Ela conseguia explodir a porta de alguns cofres, mas o único jeito com um daqueles era do modo antigo.
Que levava uma eternidade.
No entanto, ela conseguiu.
Deixando a pesada seção da porta de lado, ela mordeu a ponta da lanterna mais uma vez e se inclinou. Uma prateleira continha joias, cautelas de ações e alguns relógios de ouro que ele deixara à mão. Havia uma pistola que ela seria capaz de apostar que estaria carregada. Nenhum dinheiro.
Pensando bem, com Benloise sempre havia tanto dinheiro disponível que fazia sentido ele não se dar ao trabalho de colocá-lo no cofre.
Maldição. Não havia nada ali que valesse apenas cinco mil dólares.
Afinal, naquele trabalho, ela só estava atrás daquilo que lhe era devido por direito.
Com uma imprecação, ela se apoiou nos calcanhares. Na verdade, não havia nada no cofre que valesse menos do que vinte e cinco mil dólares. E não tinha como ela partir a metade da pulseira de um relógio de ouro – porque, como diabos conseguiria revender a coisa?
Um minuto se passou.
O segundo.
Ao diabo com aquilo, ela pensou ao recolocar o painel que cortara contra o cofre e deslizar a prateleira de volta ao seu lugar. Levantando-se, olhou ao redor da sala com a lanterna de bolso. Os livros eram todos edições de colecionadores de primeiras edições de antiguidades. A arte nas paredes e sobre as mesas não era somente muito cara, como difícil de transformar em dinheiro sem ser debaixo dos panos... para as pessoas intimamente ligadas a Benloise.
Mas, que droga, ela não sairia sem seu dinheiro, maldição...
Abruptamente, sorriu para si mesma, a solução se tornando muito clara.
Por vários anos no curso da civilização humana, o comércio só existira e sobrevivera na base da troca. Ou seja, um indivíduo trocava bens ou serviços por outros de mesmo valor.
Em todos os trabalhos que realizara, ela jamais considerara acrescentar os custos auxiliares aos seus alvos: novos cofres, novos sistemas de segurança, novos protocolos de segurança. Ela podia apostar que isso era caro – ainda que não tão caro quanto o que ela costumava tomar. E ela entrara ali deduzindo que esses custos adicionais seriam arcados por Benloise – um tipo de prejuízo monetário pelo que ele roubara dela.
No entanto, eles agora eram a questão.
No caminho de volta à escada, observou as oportunidades disponíveis... e, no fim, foi até uma escultura de Degas de uma pequena bailarina que fora colocada na lateral de um nicho. A figura em bronze da garotinha era o tipo de coisa que sua avó teria adorado, e talvez por isso, dentre tantas peças, foi aquela a lhe chamar a atenção.
A luz que fora colocada no teto acima da estátua estava desligada, mas a obra-prima ainda assim parecia brilhar. Sola adorou especialmente a saia em tutu, a delicada ainda que rígida explosão de tule delineada por metal entrelaçado que capturava perfeitamente o que deveria ser maleável.
Sola se aproximou da base da escultura, passou os braços ao redor dela, e concentrou toda a sua força em girar a sua posição não mais do que cinco centímetros.
Depois correu para as escadas, retirou os clipes do roteador e do laptop do painel de alarme na suíte principal, trancou novamente a porta e seguiu para a janela na qual cortara um buraco.
Estava de volta nos esquis, deslizando na neve não mais do que quatro minutos mais tarde.
Apesar do fato de não ter nada nos bolsos, ela sorria ao deixar a propriedade.
CAPÍTULO 38
Quando a Mercedes finalmente parou na entrada da mansão da Irmandade, Qhuinn saiu primeiro e foi para a porta em que Layla estava. Quando a abriu, os olhos dela encontraram os dele.
Ele soube que jamais se esqueceria da aparência dela. A tez estava branca como um papel e parecia tão fina quanto um, a bela estrutura óssea se esticando sobre a cobertura de pele. Os olhos estavam encovados no crânio. Os lábios, finos e inexpressivos.
Naquele instante, ele teve um vislumbre de como ela ficaria ao morrer, não importando quantas décadas e séculos isso fosse levar para acontecer.
– Eu carrego você – disse ele, inclinando-se para pegá-la no colo.
O modo como ela não discutiu lhe contou exatamente o pouco que restava dela.
Quando as portas de entrada foram abertas por Fritz, como se o mordomo estivesse esperando pela chegada deles, Qhuinn se arrependeu de tudo: do sonho que acalentara por um instante durante o cio dela. A esperança desperdiçada. A dor física pela qual ela passava. A angústia emocional que ambos atravessavam.
Você fez isso com ela.
Na época, quando a servira, ele só se concentrara no resultado positivo do qual esteve tão certo.
Agora, depois de tudo, com os coturnos fincados na realidade sólida e fétida? Não valia a pena. Mesmo a possibilidade de um filho saudável não valia aquele sacrifício.
O pior de tudo era testemunhar o sofrimento dela.
Ao carregá-la para dentro da casa, rezou para que não houvesse uma grande plateia. Ele só gostaria de poupá-la de tudo, de qualquer coisa, mesmo do simples fato de desfilar diante de rostos tristes e preocupados.
Não havia ninguém por perto.
Qhuinn subiu os degraus dois de cada vez e, ao chegar ao segundo andar, as grandes portas duplas do escritório de Wrath abertas o fizeram praguejar.
Pensando bem, o Rei era cego.
Enquanto George emitiu um latido de boas-vindas, Qhuinn apenas passou pela frente, indo direto para o quarto de Layla. Abrindo a porta com um chute, descobriu que o doggen estivera ali e limpara tudo, arrumando a cama, decerto tendo até trocado os lençóis, e também havia um vaso de flores frescas.
Ao que tudo levava a crer, ele não era o único disposto a ajudar em qualquer coisa que pudesse.
– Quer trocar de roupa? – perguntou ao fechar a porta com outro chute.
– Quero tomar banho...
– Vamos providenciar isso.
– ... mas estou com muito medo. Eu não quero... ver, se é que me entende.
Ele a deitou e se sentou ao seu lado na cama. Colocando uma mão em sua perna, esfregou-lhe o joelho com o polegar, de um lado para o outro.
– Sinto muito – disse ela com pesar.
– Droga... Não, não faça isso. Jamais pense nem diga isso, está bem? Isto não é culpa sua.
– De quem mais é?
– Isso não vem ao caso.
Merda, ele não conseguia acreditar que o processo do aborto duraria mais ou menos uma semana. Como podia ser possível...
A careta que contraiu o rosto de Layla revelou a ele que uma cólica a assolava novamente. Olhando de relance para trás, esperando ver a doutora Jane, descobriu que estavam sozinhos.
O que garantiu, mais do que tudo, que não havia nada a ser feito.
Qhuinn deixou a cabeça pensa e segurou a mão dela.
Aquilo começara com os dois.
E estava terminando com os dois.
– Acho que gostaria de dormir um pouco – disse Layla ao apertar a mão dele. – Você também parece estar precisando...
Ele olhou para a chaise-longue do outro lado.
– Você não precisa ficar comigo – murmurou ela.
– Onde mais eu ficaria?
Uma breve visão mental de Blay abrindo os braços cruzou sua mente. Que fantasia, hein...
Nunca mais me toque assim.
Qhuinn sacudiu a cabeça para que tais pensamentos sumissem.
– Vou dormir ali.
– Você não pode ficar aqui por sete noites seguidas.
– Vou repetir mais uma vez. Onde mais eu...
– Qhuinn – a voz dela soou estridente. – Você tem o seu trabalho. E você ouviu Havers. Isto vai levar o tempo que for preciso e, provavelmente, vai demorar um pouco. Não corro o risco de ter uma hemorragia e, francamente, sinto como se devesse ser forte na sua frente, e não tenho a energia necessária para isso. Por favor, volte aqui para me ver o quanto quiser. Mas vou enlouquecer se você montar acampamento aqui até isso tudo terminar.
Desespero comedido.
Era tudo o que Qhuinn tinha enquanto permanecia sentado na beira da cama, segurando a mão de Layla.
Ele acabou se levantando pouco depois. Claro, ela estava certa. Ela precisava descansar o máximo possível e, de fato, além de ficar olhando para ela e fazendo com que ela se sentisse fraca, não havia nada que ele pudesse fazer.
– Não estarei longe.
– Sei disso – ela suspendeu o punho dele para os seus lábios, e ele ficou chocado ao perceber o quanto eles estavam frios. – Você tem se mostrado... mais do que eu seria capaz de pedir.
– Não... Não fiz nada de...
– Você fez o que era certo e apropriado. Sempre.
Aquilo era uma questão de opinião.
– Preste atenção. Vou estar sempre com meu telefone por perto. Volto em algumas horas para ver como você está. Se estiver dormindo, eu não a incomodarei.
– Obrigada.
Qhuinn assentiu com a cabeça e andou de lado até a porta. Certa vez ouvira que não se devia dar as costas a uma Escolhida, e ele imaginou que demonstrar um pouco de protocolo não faria mal.
Fechando a porta atrás de si, ele se recostou nela. A única pessoa que ele queria ver era o único cara naquela casa que não tinha interesse algum em...
– O que está acontecendo?
A voz de Blay foi um choque tão grande que ele pensou que a tivesse imaginado. A não ser pelo fato de que o macho em pessoa acabara de passar pela porta da sala de estar do segundo andar. Como se estivesse ali esperando o tempo inteiro.
Qhuinn esfregou os olhos e depois começou a andar, o corpo procurando a única coisa pela qual ele vinha rezando.
– Ela está abortando – Qhuinn se ouviu dizer numa voz morta.
Blay murmurou algo em resposta, mas que não ficou registrado.
Engraçado, o aborto não lhe parecera real até aquele momento. Não até contar a Blay.
– O que disse? – perguntou Qhuinn, ciente de que o cara esperava por uma resposta.
– Posso fazer alguma coisa?
Tão engraçado. Qhuinn sempre achou que saíra do ventre da mãe já como um adulto. Pensando bem, nunca houve nenhum agradinho materno, nada de abraços quando ele se machucava, nenhum amparo quando ele tinha medo. Como resultado, quer fosse um aspecto do seu caráter, ou o modo como fora criado, ele nunca regredira. Não havia para o que voltar.
Todavia, foi com a voz de uma criança que disse:
– Faz isso parar?
Como se só Blay tivesse o poder de operar um milagre.
E então... foi o que o macho fez.
Blay abriu os braços, oferecendo o único refúgio que Qhuinn sempre conheceu.
– Faz isso parar?
O corpo de Blay começou a tremer quando Qhuinn enunciou essas palavras: depois de todos esses anos, ele vira o cara em diferentes estados de humor dependendo da circunstância. Porém, jamais assim. Nunca... tão completa e absolutamente devastado.
Nunca perdido como uma criança.
A despeito da sua necessidade de se manter verdadeiramente afastado de qualquer vínculo emocional, seus braços se abriram por vontade própria.
Enquanto Qhuinn avançava para ele, o corpo do guerreiro parecia menor e mais frágil do que de fato era. E os braços que passaram ao redor da cintura de Blay simplesmente ficaram lá, como se não tivessem força nos músculos.
Blay sustentou a ambos.
E antecipou que Qhuinn recuaria rapidamente. Normalmente, o cara não suportava nenhum tipo de conexão intensa além da sexual por mais tempo do que um segundo e meio.
Qhuinn não o fez, porém. Ele parecia preparado para ficar parado na entrada da sala de estar para sempre.
– Venha – disse Blay, levando o macho para dentro e fechando a porta. – Vamos para o sofá.
Qhuinn o seguiu, os coturnos se arrastando em vez de marcharem.
Quando chegaram ao sofá, sentaram-se de frente, os joelhos se tocando. Quando Blay o fitou, a tristeza ressonante o tocou tão profundamente, que não pôde evitar que a mão se esticasse e afagasse o cabelo escuro...
Sem aviso, Qhuinn se enroscou ao seu encontro, simplesmente se deixou cair, o corpo se dobrando ao meio, quase se desmanchando no colo de Blay.
Uma parte de Blay reconhecia que aquele era um terreno perigoso. Sexo era uma coisa, e já bem difícil de lidar, ora essa. Aquele momento tranquilo? Era potencialmente devastador.
Motivo pelo qual saíra num rompante daquele quarto na noite anterior.
A diferença desta noite, porém, era que ele estava no controle. Era Qhuinn quem buscava conforto, e Blay podia negar ou oferecer, dependendo de como se sentisse. Ser o depositário da confiança de alguém era absolutamente diferente de recebê-la... ou necessitá-la.
Blay era bom nisso. Havia uma medida de segurança, de controle. Não era o mesmo que cair num abismo. E, inferno, se alguém devia saber isso, esse alguém era ele. Deus bem sabia que ele passara anos lá embaixo.
– Eu faria qualquer coisa para mudar isso – disse Blay, afagando as costas de Qhuinn. – Odeio o que você está passando...
Ah, as palavras eram tão inúteis...
Ficaram ali por um tempo enorme, a tranquilidade da sala formando uma espécie de casulo. Periodicamente, o relógio antigo sobre a lareira tocava, e depois de um bom tempo, as persianas começaram a baixar sobre as janelas.
– Gostaria que existisse algo que eu pudesse fazer – disse Blay quando os painéis de aço chegaram ao fim com um baque.
– Deve estar na hora de você ir.
Blay deixou aquela passar. A verdade não era algo que ele quisesse partilhar: nem cavalos selvagens, ou armas carregadas, pés-de-cabra, mangueiras de incêndio, estouro de elefantes... nem mesmo uma ordem do Rei em pessoa o teria tirado dali.
E havia uma parte sua que ficava zangada com isso. Não com Qhuinn, mas com seu próprio coração. A questão era que não se pode lutar contra a sua natureza, e era isso o que ele vinha aprendendo. No rompimento com Saxton. Em se revelar à mãe. Naquele exato instante.
Qhuinn gemeu ao suspender o tronco e depois esfregar o rosto. Quando abaixou as mãos, as faces estavam vermelhas, bem como os olhos, mas não porque ele estivesse chorando.
Indubitavelmente, a sua cota de lágrimas da década fora derramada na noite anterior quando ele chorara de alívio por ter salvado a vida de um pai.
E se soubesse que Layla não estava bem naquele instante?
– Sabe o que é pior? – perguntou Qhuinn, parecendo um pouco mais consigo mesmo.
– O quê? – Deus bem sabia que a gama de opções era vasta.
– Eu vi a criança.
Os pelos da nuca de Blay se eriçaram.
– Do que está falando?
– Na noite em que a Guarda de Honra veio atrás de mim e que quase morri, lembra?
Blay deu uma tossidela, a lembrança era tão vívida e visceral como se tivesse acontecido uma hora antes. E mesmo assim a voz de Qhuinn era calma e tranquila, como se ele estivesse se referindo a uma noite numa boate ou algo assim.
– Sim, eu me lembro.
E pensou, eu fiz boca a boca em você no acostamento da estrada, porra.
– Eu fui até o Fade... – Qhuinn franziu o cenho. – Você está bem?
Ah, sim, claro, uma maravilha.
– Desculpe. Pode continuar.
– Fui até lá. Quero dizer, é como... a gente ouviu falar. Branco – Qhuinn esfregou o rosto de novo. – Tão branco. Tudo. Havia uma porta, e eu caminhei até ela... Eu sabia que se girasse a maçaneta, entraria e não sairia mais. Eu estava prestes a tocá-la quando... foi então que eu a vi. Na porta.
– Layla – interpôs Blay, sentindo como se o peito tivesse sido apunhalado.
– A minha filha.
A respiração de Blay ficou presa.
– A sua...
Qhuinn o encarou.
– Ela era... loira. Como Layla. Mas os olhos... – ele levou a mão próxima aos seus. – Eram como os meus. Parei de andar quando a vi e depois, de repente, eu estava de volta no chão, no acostamento da estrada. Depois disso, fiquei sem saber o que foi tudo aquilo. Mas depois, muito tempo depois, Layla entrou no cio e me procurou, e tudo se encaixou. Era como se aquilo... tivesse que acontecer. Pareceu o destino, sabe. De outro modo, eu jamais teria me deitado com Layla. Só fiz isso porque eu sabia que teríamos uma garotinha.
– Jesus.
– Mas eu estava errado – ele esfregou o rosto pela terceira vez. – Errei feio... E o que eu mais queria era não ter tomado esse caminho. O maior arrependimento da minha vida... Bem, o segundo maior, na verdade.
A Blay só restou imaginar o que poderia ser pior do que aquilo pelo que ele passava.
O que posso fazer?, Blay se perguntou.
Os olhos de Qhuinn procuraram os dele.
– Quer mesmo que eu responda a isso?
Pelo visto, ele pensara em voz alta.
– Sim, claro.
A mão da adaga de Qhuinn se levantou e amparou a lateral do rosto de Blay.
– Certeza?
O clima mudou de pronto. A tragédia ainda estava com eles, mas a poderosa ressaca sexual os abateu entre uma pulsação e a seguinte.
O olhar de Qhuinn começou a queimar, as pálpebras pesaram.
– Preciso... de uma âncora agora. Não sei explicar de modo melhor.
O corpo de Blay reagiu instantaneamente, o sangue fervendo, o membro engrossando e esticando.
– Deixe-me beijar você – Qhuinn gemeu ao se inclinar. – Sei que não mereço, mas, por favor... é isso o que você pode fazer por mim. Deixe-me senti-lo...
A boca de Qhuinn resvalou a dele. Voltou para um pouco mais. Demorou-se.
– Vou implorar – mais carícias daquela boca devastadora. – Se for preciso. Estou pouco me importando, eu vou implorar...
De algum modo, isso não seria necessário.
Blay deixou a cabeça ser inclinada para abrir caminho para mais manobras, a mão de Qhuinn em seu rosto tanto gentil quanto no comando. E, então, houve mais boca a boca, lento, arrastando-se, inexorável.
– Deixe-me estar dentro de você de novo, Blay...
CAPÍTULO 39
Assail voltou para casa cerca de meia hora antes do amanhecer. Ao estacionar o Range Rover na garagem, ele teve que esperar a porta abaixar para sair.
Sempre se considerara um intelectual – e não no sentido atribuído pela glymera, onde um se sentia importante ao discorrer sobre literatura, filosofia ou assuntos espirituais. Era mais pelo fato de existirem poucas coisas na vida na qual ele não podia aplicar seu raciocínio e entender a sua totalidade.
O que diabos aquela mulher fizera na casa de Benloise?
Obviamente ela era uma profissional, com tanto equipamento quanto técnica, e uma abordagem de infiltração muito praticada. Ele também suspeitava que ou ela tivesse a planta da casa ou estivera lá previamente. Tão eficiente. Tão decidida. E ele estava qualificado para julgar: seguira-a o tempo inteiro em que ela esteve dentro da casa, penetrando como um fantasma pela janela que ela abrira, atendo-se às sombras.
Seguindo o rastro dela por trás.
Mas aquilo ele não entendia: que tipo de ladrão se dá ao trabalho de invadir uma casa segura, encontra um cofre, queima-o para abri-lo, descobre muitas riquezas portáteis... mas não leva nada? Porque ele vira muito bem ao que ela teve acesso; assim que ela saiu do escritório, ele permanecera lá, soltando a prateleira como ela fizera antes, e usara a própria lanterna para dar uma espiada no cofre.
Só para descobrir o que ela deixara para trás, se é que tinha deixado algo.
Quando ele voltou para a casa em si, evitando qualquer fonte de luz, observara-a parada um instante no hall de entrada, com as mãos nos quadris, a cabeça virando lentamente, como se ela estivesse considerando suas opções.
E então ela se aproximou de uma estátua que só podia ser de Degas... e a girara apenas alguns centímetros para a esquerda.
Isso não fazia sentido.
Bem, era possível que ela tivesse invadido o cofre procurando por algo específico que, na verdade, não estava lá. Um anel, uma bugiganga, um colar. Um chip de computador, um pendrive, um documento como um testamento ou apólice de seguro. Mas a demora no hall não estava de acordo com a diligência anterior... e depois ela só moveu uma estátua?
A única explicação era que aquilo fora uma violação deliberada da propriedade de Benloise.
O problema era que, no que se referia a vinganças contra objetos inanimados, era difícil encontrar muita significância nos atos dela. Derrubasse a estátua, então. Levasse a maldita coisa. Danificasse-a com obscenidades em tinta spray. Batesse nela com um pé-de-cabra para que ficasse destruída. Mas uma leve virada que mal se podia perceber?
A única conclusão a que ele conseguia chegar era que aquilo fora um tipo de mensagem. E ele não gostava nem um pouco disso.
Pois sugeria que talvez ela conhecesse Benloise pessoalmente.
Assail abriu a porta do motorista...
– Oh, meu Deus... – sibilou, retraindo-se.
– Ficamos imaginando quanto tempo você ainda ficaria aí.
Enquanto uma voz ríspida se pronunciava, Assail saiu do carro e olhou ao redor da garagem para cinco carros. O fedor estava num meio-termo entre um atropelamento de três dias, maionese estragada e perfume barato.
– Isso é o que eu estou pensando? – perguntou aos primos, que estavam parados na soleira da antessala.
Graças à Virgem Escriba, eles avançaram e fecharam a porta que dava para a casa; caso contrário, aquele fedor horrendo invadiria o resto da construção.
– São os seus traficantes. Bem, parte deles, na verdade.
Que. Merda. Era. Aquela?
As passadas longas de Assail o levaram na direção que Ehric apontava: o canto oposto, onde três sacos plásticos verdes-escuro foram jogados de lado sem cuidado algum. Agachando-se, ele afrouxou a tira amarela de um deles, puxou a beirada e...
Deparou-se com os olhos sem vida de um humano que ele reconhecia.
A cabeça inanimada fora arrancada da coluna uns dez centímetros abaixo da mandíbula, e estava virada de modo a fitar para fora de seu caixão frouxo. O cabelo escuro e a pele vermelha estavam marcados por sangue preto e brilhante, e se o cheiro esteve ruim próximo ao carro, ali, bem perto, fez seus olhos lacrimejarem e a garganta se contrair num protesto.
Não que ele se importasse.
Abriu os outros dois sacos e, usando o plástico como “luva”, virou as outras cabeças na mesma posição.
Depois se sentou e ficou olhando para as três, observando as bocas escancaradas e impotentes em busca de ar.
– Contem o que aconteceu – ordenou sombriamente.
– Aparecemos na hora combinada.
– Rinque de patinação, na margem do rio ou debaixo da ponte?
– Ponte. Chegamos – Ehric apontou para o irmão gêmeo, que estava parado em silêncio ao seu lado – na hora com o produto. Uns cinco minutos depois, esses três apareceram.
– Como redutores.
– Eles tinham o dinheiro. Estavam prontos para fazer a transação.
Assail girou a cabeça na direção dele.
– Eles não foram lá para atacá-los?
– Não, mas só descobrimos isso quando já era tarde demais – Ehric deu de ombros. – Eram assassinos que apareceram do nada. Não sabíamos quantos havia, e não queríamos nos arriscar. Foi só depois que vasculhamos os bolsos e encontramos o montante certo de dinheiro que percebemos que eles só foram lá para fazer negócios.
Redutores no tráfico? Aquilo era novidade.
– Vocês apunhalaram os corpos?
– Pegamos as cabeças e escondemos o que restou. O dinheiro estava na mochila desse da esquerda e, naturalmente, nós o trouxemos para casa.
– Celulares?
– Peguei.
Assail começou a acender um charuto, mas não queria desperdiçar o sabor. Fechando os sacos, levantou-se acima da carnificina.
– Tem certeza de que não foram agressivos?
– Estavam mal preparados para se defenderem.
– Estar mal armado não significa que eles não estivessem lá para matá-los.
– Por que levar o dinheiro?
– Eles podiam estar negociando em outro lugar.
– Como já disse, era a quantia correta e nem um centavo a mais.
Abruptamente, Assail gesticulou para que o seguissem para o interior da casa e, ah, que alívio quando chegaram ao ar limpo. Com as telas descendo lentamente sobre as janelas de vidro, e com o alvorecer se completando, ele foi para o bar, pegou um galão de Bouchard Père et Fils, Montrachet, 2006 e estalou a rolha.
– Querem me acompanhar?
– Sim, claro.
Na mesa redonda na cozinha, ele se sentou com três taças e a garrafa. Servindo os três, dividiu o chardonnay com os dois sócios.
Porém, não lhes ofereceu seus cubanos. Eram valiosos demais.
Felizmente, cigarros apareceram e todos se sentaram juntos, fumando e saboreando goladas sublimes da beira afiada do seu Baccarat.
– Nenhuma agressão por parte dos assassinos – murmurou, inclinando a cabeça para trás para baforar, a fumaça azulada se elevando sobre sua cabeça.
– E a quantia exata.
Depois de um momento, ele voltou a olhar para eles.
– Será possível que a Sociedade Redutora esteja tentando entrar no meu ramo de negócios?
Xcor estava à luz de velas, sozinho.
O armazém estava tranquilo, seus soldados ainda não tinham retornado, nenhum humano, nenhum Sombra, nada caminhava sobre ele. O ar estava frio; o mesmo com o concreto abaixo dele. A escuridão o envolvia, a não ser pela fraca fonte de luz perto da qual ele estava sentado.
Algo no fundo de sua mente lhe dizia que estava perigosamente perto de amanhecer. Também havia outra coisa, algo de que ele deveria ter se lembrado.
Mas não havia a mínima chance de que algo transpusesse seu torpor.
Com os olhos fixos na única chama diante dele, Xcor repassou os eventos da noite em sua cabeça.
Dizer que ele encontrara a localização da Irmandade seria talvez aumentar um pouco a verdade, mas não uma falácia completa. Seguira aquela Mercedes para o interior, quilômetro após quilômetro, sem nenhum plano real do que deveria ou poderia fazer quando ela parasse... quando, do nada, o sinal do sangue no corpo de sua Escolhida não só se perdeu, mas foi totalmente redirecionado, como se uma bola lançada contra um muro tivesse alterado repentinamente a sua trajetória.
Confuso, ele vasculhou os arredores, desmaterializando aqui, acolá, para cima e para baixo e, durante o tempo todo, uma sensação de horror se abatendo sobre ele. Recuando, ele se viu na base de uma montanha, com seus contornos, mesmo sob o luar claro, registrados de maneira estranha, indistinta, pouco nítida.
O lugar em que eles ficavam só podia ser ali.
Talvez no alto da montanha. Talvez do outro lado.
Não havia outra explicação – afinal, a Irmandade vivia com o Rei para protegê-lo... portanto, indubitavelmente, eles tomariam precauções do tipo que ninguém mais conseguiria tomar, ou quem sabe, tivessem ao seu dispor tecnologias e provisões místicas que seriam, de outro modo, indisponíveis.
Em frenesi, ele circundou os arredores, dando a volta na base algumas vezes, pressentindo nada além da refração do sinal dela e aquela sensação de horror. Sua conclusão era de que ela deveria estar em algum lugar daquela imensidão: ele teria pressentido se ela tivesse atravessado para o outro lado, e seria razoável concluir que se tivesse ido para o seu templo sagrado, até um plano alternativo de existência, ou – que o destino não permitisse – morrido, aquele eco ressonante dentro dele teria desaparecido.
A sua Escolhida estava ali em algum lugar.
Retornando para o armazém, para o presente, para onde ele estava agora, Xcor esfregou as palmas para frente e para trás lentamente, o raspar dos calos interrompendo a quietude. À esquerda, no limiar da luz de velas, suas armas estavam dispostas lado a lado, as adagas, as pistolas, e sua adorada foice cuidadosamente organizadas ao lado de uma pilha confusa de roupas de sair que ele retirara assim que escolhera aquele lugar específico no chão.
Concentrou-se na foice e esperou que ela lhe falasse: ela o fazia com frequência, com seus modos sedentos de sangue em compasso com a agressividade que fluía em suas veias e que definia seus pensamentos e motivava suas ações.
Aguardou que ela lhe dissesse para atacar a Irmandade onde eles ficavam. Onde as fêmeas moravam. Onde as crianças dormiam.
O silêncio era preocupante.
De fato, sua chegada ao Novo Mundo fora baseada no desejo de ganhar poder, a expressão maior e mais arrojada desse desejo era tomar o trono, portanto, naturalmente, esse era o curso que ele escolhera. E estava progredindo. A tentativa de assassinato no outono, que, sem sombra de dúvida, lançara uma sentença de morte sobre a sua cabeça e a dos seus soldados, fora uma medida tática que quase colocara um ponto final na guerra inteira antes mesmo de ela começar. E seus esforços contínuos com Elan e com a glymera estavam promovendo seus objetivos e reforçando seu apoio dentro da aristocracia.
Mas aquilo que ele descobrira naquela noite...
Deuses, quase um ano de trabalho, sacrifício, planejamento e combate perdiam importância em comparação com a sua descoberta.
Se seu palpite estivesse correto – e como não podia estar? –, tudo o que ele tinha de fazer era marchar com seus soldados e começar um cerco assim que a noite caísse. A batalha seria épica, e a Irmandade e o lar da Primeira Família seriam permanentemente comprometidos, independentemente do resultado.
Seria um conflito digno dos livros de História – afinal, a primeira vez em que a propriedade real fora atingida foi quando o progenitor e a mahmen de Wrath foram assassinados antes da transição dele.
A história se repetia.
E ele e seus soldados tinham uma séria vantagem em relação àqueles assassinos que, na época, não possuíram: a Irmandade agora tinha muitos machos vinculados. Na verdade, ele acreditava que todos eles estivessem vinculados, e isso dividiria as atenções e as lealdades dos machos como nada mais conseguiria fazer. Ainda que a diretriz principal deles como guarda pessoal do Rei fosse proteger Wrath, seus cernes estariam divididos, e mesmo o mais forte dos lutadores com as melhores armas estaria enfraquecido se suas prioridades estivessem em dois lugares distintos.
Além disso, se Xcor ou um dos seus soldados conseguisse apanhar uma daquelas shellans, a Irmandade esmoreceria, porque a outra coisa verdadeira a respeito deles era que a dor de um dos Irmãos era a própria agonia.
Só bastaria uma fêmea de qualquer um deles, a arma derradeira.
Ele sabia disso em sua alma.
Sentado à luz da vela, Xcor esfregou a lâmina da adaga na palma de sua mão, de um lado para o outro, de um lado para o outro.
Uma fêmea.
Era só disso que ele precisava.
E ele conseguiria não só reivindicar sua própria fêmea... mas também o trono.
CAPÍTULO 40
Qhuinn sabia que acabara de colocar Blay numa posição totalmente injusta.
Transa por pena, hein? Mas, ah, Deus, encarando aqueles olhos azuis, aqueles malditos olhos azuis sem fundo que estavam francos para ele do mesmo modo que um dia estiveram... era só no que conseguia pensar. E, sim, tecnicamente era sexo em termos de onde ele queria suas diversas partes – bem, uma mais especificamente. No entanto, havia muito mais do que apenas isso.
Ele não sabia expressar em palavras; simplesmente não era bom em juntar as sílabas. Mas seu desejo de conexão foi o que o levou ao beijo. Ele quis mostrar a Blay o que estava querendo dizer, do que ele precisava, por que aquilo era importante: seu mundo inteiro parecia estar desmoronando e a perda que acontecia na porta ao lado doeria por um bom tempo.
No entanto, estar com Blay, sentir o seu calor, fazer contato, era como uma promessa de cura. Mesmo se durasse apenas o tempo em que estivessem ali naquela sala, ele aceitaria, e guardaria aquilo para si... para relembrar quando precisasse.
– Por favor – sussurrou.
Só que ele não deu chance para o cara responder. Sua língua saiu sorrateira e lambeu aquela boca, escorregando para dentro, assumindo o controle.
E a resposta de Blay foi o modo como ele se permitiu ser empurrado para trás nas almofadas do sofá.
Qhuinn teve dois pensamentos vagos: um, a porta só estava fechada, não trancada – e ele cuidou disso desejando que a trava de latão ficasse no lugar certo. E o segundo pensamento momentâneo era que eles não poderiam destruir aquele lugar. Explodir tudo em seu quarto era uma coisa. A sala de estar era propriedade pública, e muito bem decorada, com as almofadas de seda e as cortinas luxuosas, e um monte de outras coisas que pareciam facilmente rasgáveis, amassáveis, Deus, mancháveis...
Além disso, ele já destruíra seu Hummer, acabara com o jardim e sacudira o quarto. Portanto, sua cota de Destruidor já ultrapassara, e muito, o calendário anual...
Naturalmente, a solução mais prática para não dar nenhuma preocupação adicional a Fritz seria percorrer o corredor rapidamente até o seu quarto, mas enquanto as mãos talentosas de Blay estavam na frente do quadril de Qhuinn, já abaixando seu zíper, ele lançou essa ideia brilhante no cesto de lixo.
– Ai, Deus, toque-me – gemeu, empurrando a pélvis para a frente.
Ele só teria de ser comportado e bem limpinho com aquilo.
Presumindo que isso fosse possível.
Quando a palma de Blay se enfiou em sua calça de couro, o corpo de Qhuinn se arqueou, o torso curvando-se para trás enquanto o outro iniciava os trabalhos. O ângulo estava meio errado, por isso não havia muita fricção, e suas bolas estavam sendo beliscadas pela costura da calça, mas santo inferno, ele não se importava. O fato de que aquele era Blay bastava.
Cacete, depois de anos de chupadas, punhetas e transas, aquela parecia a primeira vez que alguém tocava nele.
Ele precisava retribuir o favor.
Entrando em ação, elevou o peito e aproximou os rostos. Caramba, ele adorava a expressão daqueles olhos azuis enquanto Blay o encarava, quente, selvagem, sensual.
Com tesão.
Qhuinn o segurou com força e aproximou as bocas, agarrando-se àqueles lábios, lançando a língua, tomando tudo como um desvairado...
– Espere, espere – Blay retrocedeu. – Vamos quebrar o sofá.
– O quê...? – o cara parecia estar falando inglês, mas pro inferno se ele conseguia traduzir. – Sofá?
E então ele percebeu que empurrara tanto Blay no braço do móvel, que a coisa estava começando a se inclinar. Que era mais do que duzentos quilos de sexo poderiam fazer em uma peça de mobília.
– Ai, merda, desculpe.
Ele estava começando a recuar quando Blay assumiu o controle e Qhuinn, de repente, viu-se fora do sofá, de costas no chão, as pernas unidas, as calças sendo empurradas para os tornozelos.
Ideia. Genial.
Graças ao fato de ele não usar cuecas, seu pau estava todo exposto, grosso e tenso, ao ser lançado para cima, dolorido e inchado por sobre a barriga. Abaixando a mão, ele deu umas puxadas enquanto Blay arrancava seus coturnos que estavam atrapalhando, largando-os de lado. As calças foram as próximas a darem adeus, e, com Deus como testemunha, Qhuinn nunca antes ficou tão contente em ver um par de couro voar por cima do ombro em toda a sua vida.
Em seguida, Blay voltou ao trabalho.
Qhuinn teve que fechar os olhos quando sentiu as coxas sendo afastadas e um par de mãos de lutador puxar o interior de suas pernas. Imediatamente ele soltou a ereção, afinal, porque ter a palma atrapalhando quando Blay poderia...
Não foram as mãos do cara que o seguraram.
Foi a boca quente e úmida que Qhuinn beijara pra cacete pouco antes.
Por uma fração de segundo, enquanto a sucção abocanhava a ponta e o mastro, ele teve o pensamento maldito de que Saxton ensinara Blay a fazer aquilo: seu maldito primo fizera aquilo com o cara, e fizera com que ele...
Pare, ordenou-se. Quaisquer lições aprendidas e a história por detrás delas não importavam, era a sua ereção que recebia atenção naquele instante. Por isso, que se dane essa merda.
Para deixar isso bem claro, forçou seus olhos a se abrirem. Inferno... do céu...
A cabeça de Blay subia e descia em seus quadris, o punho segurava a base do pau de Qhuinn, a outra mão se ocupava com as bolas. Mas então, como se estivesse esperando por contato visual, o cara parou no alto, libertou a cabeça e lambeu os lábios.
– Eu não gostaria que você fizesse uma lambança nesta linda sala – Blay disse com fala arrastada.
E então, estendeu a ponta da língua para açoitar o piercing no pênis de Qhuinn, a carne rosada brincando com a argola cinza de metal e a bolinha...
– Caralho. Vou gozar agora – grunhiu Qhuinn, com uma onda fervente se avolumando. – Eu vou...
Ele estava impotente para deter as coisas, muito mais até do que alguém que tivesse se lançado de um precipício e que, depois de metros de queda livre, quisesse desistir.
Só que ele não queria pisar no freio.
E não pisou.
Com um rugido potente, que provavelmente foi ouvido em outros lugares, a espinha de Qhuinn se afastou do chão, o traseiro ficou rígido, as bolas explodiram, a excitação esguichando com força na boca de Blay. E não foi só o seu sexo que foi afetado. O orgasmo o atingiu em todo o corpo, uma energia latente emergindo por ele enquanto cravava as unhas no tapete em que estava deitado, os dentes cerrados... e gozando como um animal selvagem.
Felizmente, Blay se mostrou mais do que eficiente na limpeza. E se isso não o fez gozar ainda mais... Também lhe deu muito para o que olhar: pelo resto dos seus dias, Qhuinn jamais se esqueceria da visão da boca do macho o envolvendo, as bochechas sugando enquanto ele libertava seu gozo e ele absorvia tudo. De novo e de novo e de novo.
Normalmente, Qhuinn ficava pronto para outra em seguida, mas quando as ondas tumultuadas finalmente se quebraram sobre ele, ele ficou completamente inerte, os braços largados no chão, os joelhos moles, a cabeça pensa.
– Não consigo me mexer – murmurou.
O riso de Blay foi profundo e sensual.
– Você parece um pouco cansado.
– Posso retribuir o favor?
– Você consegue levantar a cabeça?
– Ela ainda está grudada no meu corpo?
– Pelo que vejo, sim, está.
Enquanto Blay ria de novo, Qhuinn soube o que queria fazer e isso o surpreendeu. Em todas as suas explorações sexuais, ele nunca se permitiu ser enrabado. Não era assim que as coisas aconteciam. Ele era o conquistador, o que tomava, o que estabelecia o controle e conservava a superioridade.
Ficar por baixo simplesmente não o interessava.
E agora era o que queria.
O único problema era que, literalmente, não conseguia se mexer. Ah, sim, e havia uma coisinha a mais: como contar a Blay que ele era virgem?
Porque ele desejava. Se um dia chegasse àquilo, ele queria que Blay soubesse. Por algum motivo, isso era importante.
De repente, o rosto de Blay apareceu em seu campo de visão, e, Deus, como o lutador era lindo, o rosto afogueado, os olhos reluzentes, aqueles ombros largos bloqueando tudo.
E, ah, sim, aquele sorriso sexy como o inferno, tão satisfeito consigo e autossuficiente, como se o fato de Blay ter provocado tanto prazer em alguém fosse o bastante para que ele não precisasse do próprio alívio.
Mas isso não seria justo, seria?
– Não acho que você vai voltar a se mexer tão cedo – comentou Blay.
– Talvez. Mas posso abrir a boca – foi a resposta misteriosa. – Tanto quanto você.
Certo, tudo bem, a ideia de que provocava um orgasmo daquele em Qhuinn foi tão ratificadora que Blay se esquecera por completo do seu corpo.
A questão era que após tantos anos de rejeição, era uma emoção sem igual sentir poder em relação ao cara, ser aquele quem comandava o ritmo... a pessoa que levava Qhuinn a um lugar vulnerável e erótico muito mais intenso do que qualquer outro antes. E foi isso o que aconteceu. Ele sabia exatamente como Qhuinn ficava e como soava quando gozava, e Blay podia afirmar, sem nenhum traço de dúvida, que ele jamais vira seu camarada tão prostrado como agora, largado no tapete, os músculos do pescoço esticados, os abdominais contraídos, os quadris bombeando com força.
Qhuinn gozara praticamente vinte minutos direto.
E agora, no pós-coito, uma estranha revelação: até aquele instante, Blay jamais reconhecera o cinismo que Qhuinn carregava no rosto o tempo inteiro... as sobrancelhas caídas, o canto da boca perpetuamente repuxado para cima... o maxilar nunca, jamais relaxado.
Era como se toda a torpeza que a família lhe fizera tivesse permanentemente esculpido suas feições.
Mas não era verdade, não é mesmo? Durante o orgasmo, e agora, enquanto as coisas se acalmavam, nada daquela tensão era visível em lugar algum. O rosto de Qhuinn estava... livre de toda reserva, parecendo tão mais jovem, e Blay teve que se perguntar por que nunca percebera a idade dele antes.
– Então, vai me dar algo para eu chupar enquanto me recupero? – Qhuinn perguntou.
– O quê...?
– Estou com sede. E preciso chupar alguma coisa – dito isso, Qhuinn mordeu o lábio inferior, as presas brancas brilhantes afundando na pele. – Vai me ajudar?
Os olhos de Blay reviraram em suas órbitas.
– É... acho que posso fazer isso.
– Então me deixe tirar suas calças.
As pernas de Blay se levantaram com tanta rapidez que ele teve um insight novo sobre as leis da física, e enquanto ele chutava os sapatos, as mãos tremiam ao desabotoar a calça. As coisas foram bem rápidas a partir dali. E durante o tempo todo em que se despia, ele estava absolutamente ciente de tudo o que havia na sala – especialmente Qhuinn. O macho estava ficando rígido novamente, o sexo engrossando apesar de tudo pelo que acabara de passar... as coxas pesadas se contraindo e a pélvis rolando... a parte baixa do tronco tão delgada que cada sutil mudança do torso era refletida na pele esticada e bronzeada.
– Isso aí... – Qhuinn sibilou, as presas se estendendo do maxilar superior, as mãos procurando, e encontrando, o sexo, apalpando-o em movimentos longos e lentos. – Isso mesmo.
A respiração de Blay começou a acelerar, os batimentos cardíacos subindo até o telhado enquanto os olhos descombinados de Qhuinn se prendiam ao seu sexo.
– É isso o que eu quero – o macho grunhiu, soltando-se e esticando as duas mãos.
Por uma fração de segundo, Blay não teve muita certeza como as partes trabalhariam. Qhuinn estava diante do sofá, paralelo ao móvel, por isso não havia muito espaço para...
Um grunhido sutil perpassou o ar enquanto Qhuinn flexionava os dedos como se mal conseguisse esperar para segurar aquilo que desejava.
O planejamento que fosse para o inferno.
Os joelhos de Blay atenderam ao chamado, dobrando para a frente, levando seu peso ao chão perto da cabeça de Qhuinn.
Qhuinn assumiu o controle a partir daí. As palmas escorregaram e se prenderam, atraindo Blay de modo que, sem nem se dar conta, ele tinha um joelho atrás da cabeça do cara e a outra perna estendida ao longo do corpo até o quadril de Qhuinn.
– Ai... cacete... – Blay gemeu ao sentir o sexo entrar entre os lábios de Qhuinn.
O corpo pendeu para a frente até ele acabar derramando o torso nas almofadas do sofá, e foi nesse momento que ele se viu com uma excelente alavancagem. Apoiando os braços no sofá, distribuiu o peso entre os joelhos, os pés e as palmas... e depois se pôs a foder a boca adorável de Qhuinn.
O cara aceitou tudo, mesmo quando os quadris descontrolados de Blay empurraram com tudo o que ele tinha.
Com os dedos de Qhuinn cravados em seu traseiro, e aquela incrível sucção, e... Cristo, o piercing da língua, com a bolinha resvalando seu mastro a cada estocada... Blay estava se dirigindo exatamente para o mesmo tipo de orgasmo que Qhuinn acabara de ter.
Mesmo assim, no fundo da sua mente, ele se questionava se não estava machucando o cara. Do jeito como as coisas seguiam, ele acabaria gozando no estômago dele.
Tarde demais para se preocupar com isso.
Seu corpo assumiu, enrijecendo numa série de espasmos torturantes que corriam do alto da coluna até as pernas.
E bem quando as sensações descontroladas estavam começando a diminuir, o mundo entortou ao seu redor, como se seu senso de equilíbrio tivesse explodido junto de seu...
Não, o mundo estava no lugar. Qhuinn acabara de se levantar do chão, saindo de baixo e se posicionando atrás...
Enquanto Qhuinn penetrava com uma estocada na velocidade da luz, Blay emitiu um gemido que com certeza seria ouvido no Canadá...
O rangido que se fez ouvir na sala o deixou intrigado, mesmo em meio à pressão e ao prazer.
Ah. Eles estavam empurrando o sofá.
Que seja. Ele compraria um novo para a casa se quebrassem a maldita porcaria; ele não iria parar.
O ritmo foi tão punitivo quanto fora o seu e, nesse caso, a revanche não era só o que ele merecia, mas exatamente o que ele queria. A cada estocada, seu rosto era empurrado contra as almofadas do sofá; a cada recuada, ele respirava; só para ser empurrado novamente, num círculo que recomeçava sempre.
Reposicionando as pernas para que Qhuinn alcançasse ainda mais fundo, Blay teve a vaga noção de que eles, definitivamente, mudavam o sofá de posição, mas quem é que se importava com isso, contanto que eles não acabassem no corredor?
No último instante, pouco antes de ele gozar, teve a presença de espírito de pegar as calças. Puxando as cuecas, ele...
A mão de Qhuinn se esticou, apanhou a Calvin Klein e fez o que era preciso, garantindo que houvesse algo para conter o seu gozo. Então, um instante depois, seu peito se deslocou do sofá e ele estava ereto sobre os joelhos. Qhuinn cuidou de tudo, segurando o pau de Blay enquanto cobria a cabeça – penetrando, ainda penetrando, sempre penetrando...
Gozaram ao mesmo tempo, dois pares de gritos ecoando pela sala.
No meio do orgasmo, Blay, sem querer, levantou o olhar. No enorme espelho antigo que estava pendurado entre as duas janelas do lado oposto, ele viu os dois, soube que estavam ligados... e isso o fez gozar novamente.
No fim, as investidas desaceleraram. Os batimentos cardíacos começaram a diminuir. As respirações foram se acalmando.
No vidro chumbado, ele viu Qhuinn fechar os olhos e abaixar a cabeça. Na lateral do seu pescoço, Blay sentiu um resvalar suave.
Os lábios de Qhuinn.
E então a mão livre do macho subiu, parando para afagar Blay no peitoral...
Qhuinn congelou. Recuou. Afastou os lábios, seu toque.
– Desculpe. Desculpe, eu... sei que não quer isso de mim.
A mudança no rosto do cara, o regresso ao cinismo costumeiro, era como ser roubado.
E mesmo assim Blay não podia dizer a ele que voltasse a se aproximar. Qhuinn estava certo; no instante em que a ternura aparecia, ele começava a entrar em pânico.
A retirada foi rápida, rápida demais, e Blay sentiu falta da sensação de estar completo e de ser possuído. Mas estava na hora de acabar com aquilo.
Qhuinn pigarreou.
– Hum... você quer que eu...
– Cuido disso – murmurou Blay, substituindo a mão de Qhuinn sobre as cuecas amassadas em seu quadril.
Durante o sexo, o silêncio na sala equivalia à privacidade. Agora, eram apenas os sons amplificados de Qhuinn subindo as calças de couro.
Droga.
Voltavam ao caos e à confusão. E enquanto as coisas aconteciam, as sensações eram tão intensas e esmagadoras que não houve nenhum pensamento além do sexo. Depois, porém, o corpo de Blay estava frio demais no ambiente climatizado, diferentes partes pulsavam por terem sido usadas, as pernas estavam moles e cambaleantes, a mente, enevoada...
Nada parecia seguro ou garantido. Nem um pouco.
Forçando-se a se vestir, colocou as roupas o mais rápido que conseguiu, inclusive os sapatos. Nesse meio-tempo, foi Qhuinn quem devolveu o sofá ao seu lugar, cuidadosamente colocando os pés nas marcas do tapete. Também ajeitara as almofadas. Endireitara o tapete oriental.
Foi como se nada tivesse acontecido. A não ser pelas cuecas de Blay amassadas em sua mão fechada.
– Obrigado – disse Qhuinn baixinho. – Eu, hum...
– Tudo bem.
– Então... acho que eu vou agora.
– Ok.
E foi isso.
Bem, além de a porta se fechar.
Deixado a sós, Blay resolveu que precisava de uma chuveirada. Mais comida. Dormir.
Em vez disso tudo, ele ficou na sala de estar do segundo andar, olhando para aquele espelho, lembrando-se do que vira nele. Em sua mente, teve a vaga noção de que eles não podiam continuar fazendo aquilo. Emocionalmente, não era seguro para ele; na verdade, era o equivalente a manter a palma da mão sobre uma chama uma vez após a outra, só que a cada vez que você voltava a colocar a mão, você diminuía a distância entre a sua carne e o calor. Cedo ou tarde? Queimaduras de terceiro grau seriam o menor dos seus problemas, porque o braço inteiro estaria em chamas.
Depois de um tempo, contudo, não ficou só pensando naquela coisa de autopreservação.
Mas sim no que dera início àquilo tudo.
Faz isso parar.
Blay passou a mão pelo cabelo. Depois olhou para a porta fechada e franziu o cenho, a mente trabalhando, trabalhando, trabalhando...
Um minuto depois, saiu apressado, andando rapidamente.
Antes de partir num trote.
E acabar correndo como um louco.
CAPÍTULO 41
Eram mais ou menos dez da manhã quando Trez seguiu para o Restaurante Sal’s. O trajeto do apartamento no Commodore para o belo estabelecimento do irmão não demorou, levando apenas dez minutos, e havia diversos espaços disponíveis para estacionar quando ele chegou lá.
De fato, o lugar não abria antes da uma da tarde, nem mesmo para o pessoal da cozinha iniciar a preparação.
Enquanto se encaminhava para a entrada, suas botas esmagando a neve, ele esperou que o código de abertura pelo lado externo não funcionasse: iAm não voltara para casa na noite anterior e, supondo que os cretinos do s’Hisbe não o tivessem levado embora como dano colateral, só havia um lugar em que seu irmão poderia estar. Depois de dois bules de café e muitas consultas ao relógio de pulso, Trez entendeu que, se queria fazer as pazes, ele teria de atravessar a cidade.
Legal. A combinação não fora mudada.
Ainda.
Do lado de dentro, o lugar parecia uma réplica do Rat Pack, numa interpretação moderna de uma era que gerara tipos como Peter Lawford e Frank Sinatra: uma entrada com papel de parede de algodão preto e vermelho o levava até a recepção, onde a chapelaria, a mesinha retrô da recepcionista e o caixa ficavam. À esquerda e também à direita, estavam os dois salões principais, ambos decorados em veludo e couro preto e vermelho, mas não eram onde os políticos e os endinheirados locais ficavam. O lugar predileto era o bar mais à frente, um salão com painéis de madeira que tinha bancos estofados quadrados de couro vermelho perto das paredes e, durante o expediente, um barman de smoking atrás de uma bancada de carvalho servindo nada que não fosse o melhor.
Atravessando a extensão do bar, Trez seguiu para o outro lado das cinco prateleiras de garrafas à mostra e passou pelas portas em vaivém. Ao entrar na cozinha, o cheiro de manjericão, cebola, orégano e vinho tinto lhe denunciou exatamente onde iAm estava.
Como esperado, o cara estava diante do enorme fogão industrial de dezesseis bocas na parede oposta, com cinco panelas imensas borbulhando diante dele – e você gostaria de apostar que também havia alguma coisa no forno? Nesse meio-tempo, tábuas de madeira de corte estavam enfileiradas nas bancadas de aço inoxidável, as cabeças mortas de diferentes tipos de pimentão deixadas ao lado das facas afiadas que foram usadas.
Dez pratas para adivinhar em quem o cara estava pensando enquanto picava aquilo tudo.
– Vai ou não falar comigo? – Trez disse para as costas do irmão.
iAm seguiu para a panela seguinte, levantando a tampa com um pano de prato branco, uma imensa escumadeira entrando e mexendo lentamente.
Trez se inclinou para o lado e puxou um banquinho de aço inoxidável. Sentando-se, esfregou as coxas para cima e para baixo.
– Oi? Alguém aí?
iAm foi para a panela seguinte. E depois a outra. Cada uma delas tinha uma colher diferente para evitar a mistura de sabores, e seu irmão tomava muito cuidado com isso.
– Escute, eu sinto muito se não estava quando você foi à boate ontem à noite – todas as noites, iAm ia para o Iron Mask para dar uma olhada depois que o Sal’s fechava. – Tive que cuidar de uns assuntos.
Merda, se teve. A garota do namorado grosseiro levou uma eternidade para sair do seu carro quando ele a levou para a casa dela. No fim, ele a acompanhou até a porta, abriu e só faltou empurrá-la para dentro. De volta ao carro, ele acelerou como se tivesse plantado uma bomba na calçada e, enquanto seguia para o Iron Mask, tudo o que ouvia em sua cabeça era a voz de iAm.
Você não pode continuar a fazer isso.
A essa altura, iAm se virou, cruzou os braços sobre o peito e se recostou ao fogão. Os bíceps já eram grandes, mas com os braços cruzados daquele jeito, forçavam a borda da camiseta preta que ele vestia.
Os olhos amendoados estavam semicerrados.
– Você acha mesmo que eu estou bravo porque você não estava quando fui ao clube? Sério? E não por que você me deixou para lidar com AnsLai ou qualquer asneira do tipo...
Eeeee estavam todos a postos.
– Sabe que não posso me encontrar com o cara – Trez levantou as mãos como se quisesse dizer que não havia nada que ele pudesse fazer. – Eles tentariam me forçar a voltar com eles e, então, quais seriam as minhas opções? Brigar? Eu acabaria lutando com o filho da puta e onde eu iria parar com isso?
iAm esfregou os olhos como se estivesse com dor de cabeça.
– Neste instante, parece que eles estão tomando uma abordagem diplomática. Pelo menos comigo.
– Quando vão voltar?
– Não sei. É isso o que está me deixando nervoso.
Trez enrijeceu. A ideia de que seu irmão frio como peixe estivesse ansioso o fez sentir como se estivesse com uma faca no pescoço.
Pensando bem, ele sabia muito bem o quanto o seu povo podia ser perigoso. O s’Hisbe era conhecido como uma tribo pacífica, satisfeita em se manter ao largo das lutas contra a Sociedade Redutora e dos desagradáveis humanos. Educados, muito inteligentes e espirituais, eles eram, como um todo, um grupo agradável. Desde que você não estivesse na lista negra deles.
Trez olhou para as panelas e se perguntou qual seria a carne no molho.
– Ainda estou em débito com Rehv – ele observou. – Portanto, essa obrigação deve vir em primeiro lugar.
– Não para o s’Hisbe. AnsLai disse, e vou citar suas palavras: “Chegou a hora”.
– Não vou voltar – ele fitou os olhos do irmão. – Isso não vai acontecer.
iAm voltou para as panelas, mexendo em cada uma com a colher designada.
– Sei disso. E é por isso que estou cozinhando. Estou tentando encontrar uma saída.
Deus, como ele amava o irmão. Mesmo irritado, o cara tentava ajudar.
– Desculpe-me por ter desaparecido e ter feito você cuidar disso. Sinto muito mesmo. Não foi justo... Eu só... bem, não achei seguro estar no mesmo cômodo que aquele cara. Sinto muito.
O peito largo de iAm subiu e desceu.
– Sei que sente.
– Eu poderia simplesmente desaparecer e o problema estaria resolvido.
Ainda que deixar iAm para trás o matasse. A questão era que, caso ele fugisse do s’Hisbe, ele jamais teria contato com o macho novamente. Nunca mais.
– Para onde você iria? – iAm observou.
– Não faço ideia.
A boa notícia é que o s’Hisbe não gostava de ter nenhum contato com os Desconhecidos. Sem dúvida, só aparecer no apartamento dele e de iAm fora traumático, mesmo se o sumo sacerdote tivesse se desmaterializado até a varanda. Lidar diretamente com humanos? Estar ao lado deles? A cabeça de AnsLai explodiria.
– Então, qual era o seu assunto? – perguntou iAm.
Maravilha. Mais um assunto igualmente feliz.
– Fui ver aquele armazém – ele desviou. Mas, cacete, até parece que ele tocaria no assunto da garota com o namorado espontaneamente.
– A uma da manhã?
– Fiz uma oferta.
– De quanto?
– Um milhão e quatrocentos. O preço pedido era de dois milhões e meio, mas não vão conseguir esse montante de jeito nenhum. O lugar está vazio há anos e demonstra isso – embora, ao dizer isso em voz alta, ele teve que admitir que sentira presenças lá. Pensando bem, talvez fosse apenas o seu estresse o responsável por isso. – Meu palpite é que vão dar uma contraoferta de dois milhões, eu subo para um e seiscentos e acabamos acordando em um e setecentos.
– Tem certeza de que quer iniciar esse projeto agora? A menos que apareça no território com o seu mastro matrimonial pronto para ser usado, esta questão com o s’Hisbe só vai piorar.
– Se as coisas chegarem a esse ponto, eu cuido disso na hora certa.
– Quando – iAm o corrigiu. – A questão é “quando”. E sei o que aconteceu no estacionamento, Trez. Com aquele cara e a mulher.
Claaaaro que sim.
– Viu as fitas ou algo assim?
Maldita câmera de segurança.
– Sim.
– Eu cuidei daquilo.
– Assim como está cuidando do s’Hisbe. Perfeito.
Com o humor afetado, Trez se inclinou.
– Quer calçar os meus sapatos, irmãozinho? Eu bem que gostaria de saber como você lidaria com essa merda toda.
– Eu não estaria fodendo putas, isso eu garanto. O que me faz pensar... o nosso corretor é uma fêmea, não?
– Foda-se, iAm. De verdade.
Trez se levantou do banquinho e marchou para fora da cozinha. Ele já tinha problemas suficientes, pelo amor de Deus, não precisava do senhor Superior com habilidades de Julia Child palpitando sobre o assunto com doze tipos de panelas...
– Você não pode continuar postergando esse assunto – iAm chamou de lá de trás. – Ou tentando enterrá-lo entre as pernas das mulheres.
Trez parou, mas manteve o olhar fixo na saída.
– Simplesmente não pode – o irmão afirmou com franqueza.
Trez girou. iAm estava perto do bar, a porta em vaivém mexendo atrás dele formando um efeito de estroboscópio de luz, escuro, luz, escuro. Toda vez que a luz surgia, parecia que seu irmão tinha um halo ao redor de todo o corpo.
Trez praguejou.
– Só preciso que me deixem em paz.
– Eu sei – iAm esfregou a cabeça. – E, honestamente, não sei que porra fazer a respeito. Não consigo me imaginar vivendo sem você, e também não quero voltar para lá. Só que também não encontrei alternativas.
– Aquelas mulheres... sabe, as que eu... – Trez hesitou. – Não acha que elas me excitam?
– Se elas não fazem isso – iAm disse secamente –, não sei porque perde tempo com elas.
Trez teve que dar um sorriso.
– Não, estou falando do s’Hisbe. Estou bem longe de ser virgem a esta altura – pelo menos ele ainda não se rebaixara a animais de fazenda. – E o que é pior? Todas eram Desconhecidos, a maioria humanas. Isso deve enojá-los. Estamos falando da filha da rainha!
Enquanto iAm franzia o cenho como se estivesse considerando a ideia, Trez sentiu uma centelha de esperança.
– Não sei, não – veio a resposta. – Talvez isso funcione, mas ainda assim você negou a Sua Alteza o que ela quer e precisa. Se eles o considerarem desonrado, podem muito bem decidir matá-lo como castigo.
Que seja. Eles teriam que encontrá-lo primeiro.
Numa onda de agressão, Trez abaixou o queixo e olhou fixo por debaixo das sobrancelhas.
– Se esse for o caso, eles vão ter que lutar comigo. E eu garanto que isso não vai acabar bem para eles.
Na mansão da Irmandade, Wrath entendeu que sua rainha estava aborrecida no instante em que ela passou pelas portas do escritório. Seu cheiro atraente estava maculado por uma pontada de acidez: ansiedade.
– O que foi, leelan? – ele quis saber, estendendo os braços.
Mesmo não enxergando, suas lembranças lhe davam uma imagem mental dela cruzando o tapete Aubusson, com o corpo longo e atlético se movendo com graciosidade, os cabelos escuros soltos sobre os ombros, o lindo rosto marcado por tensão.
Naturalmente, o macho vinculado dentro dele desejou perseguir e matar o que quer que a tivesse perturbado.
– Olá, George – disse ela ao cão. Pelo barulho de batidas ritmadas no chão, ele supôs que o cachorro tivesse recebido uma dose de amor antes.
E então foi a vez do dono.
Beth subiu no colo de Wrath, o peso próximo de nada, o corpo quente e vivo enquanto ele passava os braços ao seu redor e a beijava nas laterais do pescoço e depois na boca.
– Jesus – grunhiu ele, sentindo a rigidez no corpo dela –, você está aborrecida mesmo. Que merda está acontecendo?
Deus do céu, ela estava tremendo. Sua rainha estava, de fato, tremendo.
– Fale comigo, leelan – insistiu, esfregando-lhe as costas. E se preparando para se armar e sair em plena luz do sol se preciso fosse.
– Bem, você sabe sobre Layla – disse ela com voz rouca.
Ahhhh.
– Sim, sei. Phury me contou.
Enquanto a cabeça dela se posicionava em seu ombro, ele a ajeitou, aninhando-a em seu peito – e isso era bom. Havia vezes – não muitas, mas ocasionais – em que ele se sentia menos macho por conta de sua falta de visão: no passado, um lutador, agora, preso atrás daquela mesa. Um dia livre para ir aonde bem quisesse, agora, dependendo de um navegador canino. Certa vez absolutamente autossuficiente, agora, precisando de ajuda.
Não muito bom para os colhões de um macho.
Mas em momentos como aquele, quando aquela fêmea maravilhosa estava incomodada e o procurava, e somente a ele, para conforto e segurança, ele se sentia mais forte que uma maldita montanha. Afinal, machos vinculados protegiam suas fêmeas com tudo o que tinham, e mesmo com o fardo do seu direito de nascimento e aquele trono em que era obrigado a se sentar, ele, em seu cerne, permanecia o hellren daquela fêmea.
Ela era a sua primeira prioridade, acima inclusive daquela coisa toda de reinado. A sua Beth era o seu coração atrás das costelas, o tutano dentro de seus ossos, a alma em seu corpo físico.
– É tudo tão triste – disse ela. – Tão triste.
– Você foi vê-la?
– Acabei de ir. Ela está descansando. Quero dizer... de certa forma, custo a acreditar que não haja nada a ser feito.
– Falou com a doutora Jane?
– Assim que eles voltaram da clínica.
Enquanto a sua shellan chorava um pouco, o cheiro das lágrimas frescas de sua amada era como uma adaga em seu peito, e ele não estava surpreso com a reação dela. Ouvira dizer que as fêmeas lidavam muito mal com a perda da gravidez de outra fêmea – e como não ser assim? Ele, por certo, conseguia se colocar no lugar de Qhuinn.
E, ah, Deus... a ideia de Beth sofrer daquele modo? Ou pior, de conseguir levar adiante a gestação e depois...
Ótimo. Agora era ele quem tremia.
Wrath abaixou o rosto para os cabelos de Beth, inspirando, acalmando-se. A boa notícia era que eles jamais teriam um filho, portanto, ele não tinha com que se preocupar.
– Eu sinto muito – sussurrou.
– Eu também. Odeio o que eles estão passando.
Bem, na verdade, ele estava se desculpando por outra coisa completamente diferente.
Não que ele quisesse que uma merda daquelas acontecesse com Qhuinn, Layla e o filho deles. Mas talvez se Beth enxergasse a triste realidade, ela se lembraria de todos os riscos que se apresentavam a eles em todas as etapas de uma gestação.
Porra. Aquilo soava horrível. Era horrível. Pelo amor de Deus, ele não queria mesmo nada daquilo para Qhuinn, e tampouco queria ver sua shellan triste. Infelizmente, porém, a triste realidade era que ele não tinha absolutamente interesse algum em plantar sua semente nela daquele jeito – jamais.
E esse tipo de desespero fazia com que um cara pensasse em coisas imperdoáveis.
Numa onda de paranoia, ele calculou mentalmente os anos desde a transição dela – um pouco mais do que dois. Pelo que sabia, as fêmeas vampiras, em média, passavam pelo primeiro cio uns cinco anos após a transformação, e a cada dez anos depois disso. Portanto, eles tinham um bom tempo antes de terem de se preocupar com tudo isso...
Pensando bem, como mestiça, não havia garantias no caso de Beth. Quando os humanos e os vampiros se misturavam, qualquer coisa podia acontecer... E ele tinha motivos para se preocupar. Afinal, ela já mencionara filhos uma ou duas vezes.
Mas, obviamente, aquilo só podia ser hipoteticamente.
– E então, você vai postergar a iniciação de Qhuinn? – ela perguntou.
– Sim. Saxton já atualizou a lei, mas Layla estando assim? Não é o momento de trazê-lo para a Irmandade.
– Foi o que pensei.
Os dois se calaram, e enquanto Wrath guardava aquele momento em seu coração, não conseguiu imaginar sua vida sem ela.
– Sabe de uma coisa? – perguntou.
– O quê? – havia um sorriso na voz dela, do tipo que dizia a ele que ela sabia para onde a conversa estava indo.
– Eu amo você mais do que tudo.
Sua rainha deu uma leve risada, e o afagou no rosto.
– Eu jamais teria imaginado isso.
Inferno, até ele captava a onda de seu odor de vinculação.
Em resposta, Wrath segurou o rosto dela entre as palmas e se inclinou, encontrando seus lábios e depositando um beijo suave, que não permaneceu assim. Caramba, era sempre assim com ela. Qualquer contato e, antes que se desse conta, já estava rígido e pronto.
Deus, não sabia como os homens humanos lidavam com isso. Pelo que entendia, eles tinham de adivinhar se seus pares estavam férteis toda vez que faziam sexo – evidentemente, eles não tinham como captar a alteração nos odores de suas fêmeas.
Ele enlouqueceria. Pelo menos quando uma vampira estava no cio, todos sabiam.
Beth mudou de posição em seu colo, apertando a sua ereção e fazendo-o gemer. E, normalmente, essa era a dica para George ser levado para o outro lado das portas duplas, banido temporariamente. Mas não naquela noite. Por mais que Wrath a desejasse, a tristeza presente na casa aplacava até mesmo a sua libido.
E também havia a questão do cio de Autumn. E de Layla.
Ele não iria mentir; aquela merda o estava deixando ansioso. Sabia-se que hormônios no ar tinham um efeito ricochete numa casa cheia de fêmeas, influenciando umas às outras ao cio, desde que seu período estivesse próximo.
Wrath afagou os cabelos de Beth e voltou a acomodar a cabeça dela em seu ombro.
– Você não quer...
Enquanto ela deixava a frase inacabada, ele pegou a sua mão e a levantou, sentindo o peso do anel de rubi que a rainha da raça sempre usava.
– Só quero abraçar você – disse ele. – Isso basta para mim agora.
Aninhando-se, ela se encaixou ainda mais perto dele.
– Bem, isto também é gostoso.
Sim. Era.
E curiosamente aterrador.
– Wrath?
– Sim?
– Você está bem?
Demorou um pouco para ele confiar na voz e responder:
– Sim, estou bem. Tudo bem.
Ao alisar o braço dela, para cima e para baixo, ele rezou para que ela acreditasse... e jurou que o que acontecia no quarto no fim do corredor nunca, jamais, aconteceria com eles.
Não. Os dois não teriam de lidar com aquele tipo de crise.
Graças à Virgem Escriba.
CAPÍTULO 42
Claro que Layla não estava dormindo.
Quando pediu a Qhuinn que saísse, ela falou sério quanto a não querer sustentar uma fachada de força diante dele. Mas o mais engraçado era que mesmo sem ninguém por perto, ela não ficou histérica. Não chorou. Não praguejou.
Apenas ficou deitada de lado com os braços e as pernas enroscados, a mente recuada para dentro do corpo e monitorando constantemente cada dor e cólica numa compulsão que a enlouquecia. No entanto, não havia como mudar aquilo. Era como se uma parte dela estivesse convencida de que se ao menos ela soubesse em que estágio estava, ela poderia, de algum modo, monitorar o processo.
O que, na verdade, era uma tremenda tolice. Como Qhuinn bem diria.
A imagem dele na clínica, com a adaga no pescoço do médico, era algo saído de um dos livros da biblioteca do Santuário – um episódio dramático que era parte da vida de outra pessoa.
Sua posição na cama, porém, fazia com que ela lembrasse que o caso não era bem esse...
A batida à porta foi suave, sugerindo se tratar de uma fêmea.
Layla fechou os olhos. Por mais que apreciasse qualquer tipo de gentileza que aguardava uma resposta, ela preferiria que quem quer que estivesse no corredor, continuasse lá. A breve visita da rainha fora uma provação, mesmo ela tendo apreciado.
– Sim – quando sua voz mal soou em seus ouvidos, ela pigarreou e repetiu: – Sim?
A porta abriu e, a princípio, ela não reconheceu quem era na sombra que preenchia o espaço entre os batentes da porta. Alta. Forte. Porém, não um macho...
– Payne? – perguntou.
– Posso entrar?
– Sim, claro.
Enquanto Layla tentava se sentar, a fêmea guerreira gesticulou para que ela continuasse deitada, e depois fechou a porta.
– Não, não... por favor, fique à vontade.
Um abajur fora deixado aceso sobre a cômoda e, na luz suave, a irmã de sangue de Vishous da Irmandade da Adaga Negra parecia temerária, com os olhos de diamante parecendo reluzir para fora dos ângulos fortes do rosto dela.
– Como você está? – a fêmea perguntou com suavidade.
– Estou bem, obrigada. E você?
A lutadora deu um passo à frente.
– Eu sinto muito quanto... à sua condição.
Ah, como Layla desejava que aquilo fosse algo que Phury e os outros não tivessem partilhado com ninguém. Em retrospecto, a saída da casa fora um tanto dramática, o tipo de evento que causaria perguntas preocupadas. Ainda assim, sua privacidade preferia evitar esse tipo de invasão indesejável, ainda que misericordiosa.
– Agradeço as suas palavras gentis – sussurrou.
– Posso me sentar?
– Sim, claro.
Ela imaginou que a fêmea fosse se sentar numa das cadeiras dispostas mais ao longe. Não foi o que Payne fez. Ela se aproximou da cama e abaixou o peso ao lado de Layla.
Compelida a, pelo menos, parecer uma boa anfitriã, Layla tentou se suspender, fazendo uma careta quando uma nova onda de cólicas a imobilizou no meio do caminho.
Enquanto Payne praguejava baixinho, Layla teve que voltar a se deitar. Com voz rouca, disse:
– Perdoe-me, mas não posso receber visitas agora, por mais que me queira bem. Obrigada por expressar a sua empatia...
– Você sabe quem é a minha mãe – Payne a interrompeu.
Layla balançou a cabeça ao encontro do travesseiro.
– Por favor, saia...
– Sabe? – a fêmea perguntou com rispidez.
Abruptamente, Layla quis chorar. Simplesmente não tinha forças para qualquer tipo de conversa, ainda mais a respeito de mahmens. Não enquanto perdia o filho.
– Por favor.
– Sou filha da Virgem Escriba.
Layla franziu o cenho, as palavras sendo compreendidas mesmo em meio à dor, tanto física quanto mental.
– O que disse?
Payne inspirou profundamente, como se a revelação não fosse algo com que se alegrasse, mas como se fosse um tipo de maldição.
– Sou da carne da Virgem Escriba, nascida há muito tempo, e ocultada dos registros das Escolhidas e dos olhos de outrem.
Layla piscou em estado de choque. A aparição da fêmea fora um tipo de mistério, mas ela certamente não fizera nenhuma pergunta, pois isso não cabia a ela. A única coisa que sabia com convicção é que jamais houve registro algum da mãe sagrada da raça um dia ter dado à luz uma criança.
Na verdade, a estrutura completa do sistema de crença era prevista no fato de isso não ter ocorrido.
– Como isso é possível? – arfou Layla.
Os olhos brilhantes de Payne estavam sérios.
– Não era o que eu desejaria. E não é algo de que fale a respeito.
No momento tenso que se seguiu, Layla considerou impossível não ver a verdade naquilo que a fêmea falava. Tampouco a raiva, cuja causa ela apenas podia supor.
– Você é sagrada – disse Layla maravilhada.
– Nem um pouco, eu lhe garanto. Mas minha linhagem me concedeu um tipo de... como posso explicar? Habilidade.
Layla se enrijeceu.
– Que seria...?
Os olhos de diamante de Payne não se desviaram.
– Quero ajudá-la.
As mãos de Layla foram para o baixo ventre.
– Se quer abreviar isto... não.
Ela tinha seu filho por um tempo curto demais. Não importava a dor que tivesse que passar, ela não sacrificaria um minuto sequer daquilo que, sem dúvida, seria sua única gestação.
Ela jamais se colocaria à mercê de outro sofrimento assim. No futuro, quando seu cio chegasse, ela seria sedada e pronto.
Aquele tipo de perda uma vez na vida já era demais.
– E se acredita que pode deter isto – Layla continuou –, isso não é possível. Não há nada que ninguém possa fazer.
– Não estou tão certa disso – o olhar de Payne era enlevado. – Eu gostaria de ver se posso salvar esta gestação. Se me permitir.
No campus abandonado da Escola para Moças Brownswick, o Sr. C. se acomodou no que um dia fora o escritório da diretora.
Era o que estava escrito na placa rachada do lado de fora da sala.
Como não havia calefação, a temperatura ambiente não estava muito maior do que a do lado de fora, mas graças ao sangue de Ômega, o frio não era um problema. Ainda bem: do outro lado do gramado crescido coberto de neve, no dormitório principal sobre uma colina, quase cinquenta redutores dormiam o sono dos mortos.
Se aqueles malditos necessitassem de aquecimento ou de comida, ele estaria sem sorte alguma.
Mas não, tudo o que ele tinha de fazer era providenciar um abrigo. A iniciação cuidaria do resto – e o fato de que precisavam desligar a consciência a cada 24 horas era um alívio.
Ele precisava de tempo para pensar.
Jesus Cristo, que confusão.
Compelido pela necessidade de se mexer, ele empurrou a cadeira para trás e se lembrou de que estava se sentando sobre um balde de argamassa virado ao contrário.
– Maldição.
Olhando ao redor da sala decrépita, ele mediu as placas de gesso penduradas das vigas do teto, as janelas cobertas por tábuas de madeira, e o buraco em uma das tábuas do piso no canto. O lugar era igual à conta bancária que ele encontrara.
Nenhum dinheiro em lugar algum. Munição zero. Armas que podiam ser usadas em combate à força, e só.
Depois de sua promoção, ele se viu cheio de energia, de planos. Agora encontrava-se diante de nenhum dinheiro, nenhum recurso, nada.
Ômega, por outro lado, esperava todo tipo de resultado. Como deixara bem claro no “encontro” deles na noite anterior.
E também havia outro problema. Ele odiava aquela merda.
Pelo menos ele podia fazer algo a respeito de todo o resto.
Esticando os braços acima da cabeça e estalando os ombros, agradeceu a Deus por duas coisas: uma, os celulares não tinham sido desligados, por isso ele podia se comunicar com seus homens no campo de batalha. E dois, todos aqueles anos na rua lhe deram os punhos de ferro no que se referia a controlar o bando de idiotas do tráfico de drogas.
Tinha de arranjar dinheiro. Logo.
Ele teve uma porra de um plano para isso também, mandando os últimos nove mil dólares com aqueles três garotos no meio da noite. Tudo o que os malditos tinham de fazer era pagar, pegar a droga e trazer para ali, onde dividiriam a merda, depois distribuiriam entre os novos recrutas para que eles vendessem nas ruas.
O problema era que ele ainda estava esperando pela porra da entrega.
E estava ficando puto de tanto esperar para descobrir se as drogas e o dinheiro tinham sumido.
Era bem possível que aqueles merdinhas tivessem fugido com um ou com o outro, mas, nesse caso, ele os caçaria como cachorros para mostrar aos outros o que acontecia quando você...
Quando seu celular tocou, ele o pegou, viu quem era e apertou o botão de chamada.
– Já era hora. Onde diabos você está e cadê minha mercadoria?
Houve uma pausa. Depois, a voz que se ouviu pela conexão não era nada parecida com a do traficante cheio de espinhas para quem ele entregara o celular e a última pistola da Sociedade que funcionava.
– Tenho uma coisa que você quer.
O Sr. C. franziu a testa. Voz grave. Envolta numa impaciência que ele reconhecia das ruas, e um sotaque que ele não sabia de onde vinha.
– Não é essa merda com a qual você está falando comigo – disse o Sr. C. com fala arrastada. – Tenho um monte desses.
Afinal de contas, quando você não tem nada na mão, no coldre ou na carteira, blefar era a sua única opção.
– Ora, que bom para você. Também tem muito do que me mandou? Dinheiro? Soldados?
– Quem diabos está falando?
– Sou seu inimigo.
– Se você ficou com a porra da minha grana, pode apostar que sim.
– Na verdade, essa é uma resposta bem simplista para um problema um tanto complexo.
O Sr. C. se pôs de pé, derrubando o balde.
– Onde está a porra do meu dinheiro e o que fez com os meus homens?
– Lamento, mas eles não podem mais atender ao telefone. É por isso que estou ligando.
– Você não faz ideia com quem está lidando – o Sr. C. ameaçou.
– Pelo contrário, é você quem está em desvantagem, bem como tantos outros – quando o Sr. C. estava pronto para rebater, o cara o interrompeu. – Eis o que vamos fazer. Vou telefonar à noite para lhe dar uma localização. Você, e apenas você, vai me encontrar lá. Se alguém o acompanhar, eu saberei, e você nunca mais vai saber de mim.
O Sr. C. estava acostumado a sentir desdém pelos outros, isso era parte do trabalho uma vez que você só lida com ladrões de merda e malditos viciados. Mas esse cara do outro lado da conexão? Controlado. Calmo.
Um profissional.
O Sr. C. controlou seu humor.
– Não preciso de nenhum joguinho...
– Sim, precisa. Porque se você quiser drogas para vender, terá que vir a mim.
O Sr. C. ficou calado. Ou aquele era um lunático cheio de ilusões de grandeza ou... era alguém com poder de verdade. Talvez o tipo que matou os intermediários do cartel de drogas em Caldwell um ano antes.
– Quando e onde? – disse de má vontade.
Houve uma risada sombria.
– Atenda o seu telefone ao cair da noite e você descobrirá.
CAPÍTULO 43
Layla não conseguiu falar enquanto tentava compreender as palavras de Payne.
– Não – disse à outra fêmea. – Não, Havers me disse que... não havia nada que pudesse ser feito.
– Na medicina, isso pode ser verdade. Eu posso ter outro modo, porém. Não sei se funcionará, mas, se permitir, eu gostaria de ver o que posso fazer.
Por um instante, Layla só conseguiu respirar.
– Eu não... – pôs a mão no abdômen liso. – O que fará comigo?
– Não sei bem, para ser sincera – Payne deu de ombros. – Na verdade, nem me passou pela cabeça que eu poderia ajudar nesta situação. Mas sou conhecida por curar aquilo que precisa ser curado. Repito, não sei se isso se aplica neste caso. Contudo, podemos tentar... e isso não a machucará. Isso eu posso prometer.
Layla perscrutou a expressão da lutadora.
– Por que... faria uma coisa dessas por mim?
Payne franziu o cenho e desviou o olhar.
– Você não precisa saber os motivos.
– Sim, preciso.
O perfil dela se tornou absolutamente frio.
– Você e eu somos irmãs da tirania de minha mãe, casualidades de seu plano maior de como as coisas devem ser. Estivemos as duas enjauladas em seus modos diversos, você como uma Escolhida; eu, como sua filha de sangue. Não há nada que eu não faça para ajudá-la.
Layla se recostou. Jamais se considerara uma desventura da mãe da raça. A não ser... ao pensar em seu desespero em ter uma família, seu senso de não ter raízes, sua absoluta falta de identidade além do trabalho de uma Escolhida... ela teve o que pensar. O livre-arbítrio a levava àquela situação horrenda, mas, pelo menos, ela escolhera a rota e os meios. Como membro da classe especial da Virgem Escriba, não tivera muitas escolhas, a respeito de nada em sua vida.
A respeito de nada mesmo.
Ela estava perdendo aquela gravidez, aquilo era óbvio. E se Payne achava que existia uma chance de...
– Faça o que precisar fazer – disse com voz rouca. – E obrigada, não importando o resultado.
Payne assentiu uma vez. Depois esticou as mãos, flexionando e afastando os dedos.
– Posso tocar no seu abdômen?
Layla abaixou as cobertas.
– Devo tirar a camisa?
– Não.
Melhor assim. A simples retirada da colcha lhe provocara uma nova onda de dor, a mínima mudança de peso era causa de...
– Você está sofrendo muito – murmurou a outra fêmea.
Layla não respondeu ao expor a pele do abdômen. Obviamente, sua expressão já dizia o bastante.
– Apenas relaxe. Isso não deverá lhe causar nenhum desconforto...
Quando o contato foi feito, Layla levantou a cabeça. As mãos da lutadora estavam quentes como a água de uma banheira. E igualmente calmas. Estranhamente calmas, para falar a verdade.
– Isto dói? – Payne perguntou.
– Não. Parece... – quando uma nova onda de dor se avolumava, ela agarrou os lençóis, se preparando...
Só que o pico da dor não se elevou como antes, como se a sensação fosse uma montanha íngreme, cujo topo fora arrancado.
Era o primeiro alívio que sentia desde que tudo aquilo começara.
Com um gemido de submissão, ela deixou a cabeça pender, o travesseiro amparando o repentino cansaço que a abateu pelo tanto de desconforto pelo qual seu corpo passara.
– E agora nós começamos.
De repente, a luz do abajur tremulou... e depois se apagou.
Sua iluminação, contudo, logo foi substituída.
Das mãos pálidas de Payne um brilho suave começou a ser lançado. O calor de seu toque se intensificou, o abrandamento estranho e maravilhoso parecia penetrar em sua pele, nos músculos, em cada osso que estava no caminho... indo direto para o ventre de Layla.
E, então, houve um tipo de explosão.
Com um sibilo, ela se entregou à grande onda de energia que abruptamente surgiu dentro dela, um calor que não queimava, mas fervia afastando a dor, suspendendo a agonia e arrancando-a de sua carne, como se o vapor de uma panela se dissipasse.
Mas não acabou ali. Uma grande sensação de euforia em seu corpo inteiro, com cachos dourados pulsando para fora de sua região pélvica e fluindo pelo torso até a mente e também em sua alma, e pernas e braços formigando.
Ah, que alívio pungente.
Ah, que poder incrível.
Ah, graça salvadora gentil.
A cura, contudo, não estava completa.
No meio do turbilhão, Layla sentiu... o que era aquilo? Um movimento em seu útero. Uma contração, talvez? Mas não uma cólica, não, nada disso. Mais como se o que estivesse defasado tivesse recuperado as forças.
Ela, gradualmente, deu-se conta de que batia os dentes.
Olhando para baixo, para seu corpo, ela viu que tudo tremia, e não só isso.
Sua forma física estava brilhando. Cada centímetro de sua pele era como uma cúpula de um abajur, revelando a luz que jazia por baixo, as roupas agindo como barreiras frágeis daquilo que fervia lentamente dentro dela.
Na iluminação, o rosto de Payne estava contraído, como se fosse um custo alto transferir a cura maravilhosa para outra pessoa. E Layla teria se distanciado, colocado um fim naquilo, se pudesse – porque a outra fêmea começava a parecer muito cansada. No entanto, não havia como romper a ligação. Ela não tinha o controle dos seus membros, não tinha como falar.
Aquela comunhão vital entre as duas pareceu durar uma eternidade.
Quando Payne finalmente se afastou, rompendo o elo, ela caiu da cama, formando uma pilha no chão.
Layla abriu a boca para gritar. Tentou segurar sua salvadora. Lutou contra o peso morto do corpo ainda iluminado.
Todavia, não havia nada que ela pudesse fazer.
A última coisa que ficou registrada antes que perdesse a consciência era a sua preocupação com a outra fêmea. E, depois, tudo ficou escuro.
CAPÍTULO 44
Qhuinn despertou com o pênis duro.
Estava deitado de costas e seus quadris se mexiam por conta própria, o movimento contínuo resvalava a ereção contra o peso dos lençóis e da colcha. Por um instante, enquanto se demorava naquele estado meio dormente antes de a consciência chegar, ele imaginou que era Blay criando aquela fricção, as palmas do macho subindo e descendo... num preâmbulo de mais ação oral.
Foi quando abaixou a mão para enterrar os dedos nos cabelos ruivos que percebeu estar sozinho: a mão encontrou apenas os lençóis.
Numa atitude otimista, lançou o braço para o lado, tateando o lugar ao seu lado, pronto para encontrar o corpo quente do macho.
Apenas mais lençóis. E estavam frios.
– Cacete – inspirou.
Abrindo os olhos, a realidade de onde estava o atingiu com força, murchando a sua ereção. Apesar dos encontros, aqueles dois interlúdios maravilhosos e extremamente sensuais, Blay estava, naquele exato instante, acordando ao lado de Saxton.
Provavelmente fazendo sexo com o cara.
Ah, Deus, ele ia vomitar.
A ideia de Blay tocando em outro, cavalgando em outro, lambendo e afagando outro – seu maldito primo, para ser bem claro – era quase tão insuportável quanto a maldita situação de Layla. A verdade era que, graças ao que acontecera, qualquer atração que Qhuinn sentisse pelo cara aumentara em vez de diminuir.
Maravilha. Outra rodada de boas notícias.
Foi sem nenhum entusiasmo que Qhuinn se arrastou para fora da cama e entrou no banheiro. Não acendeu a luz, não tinha interesse algum em ver que sua aparência era a mesma da merda de um cachorro, mas barbear-se só pelo toque não era a melhor das ideias.
Ao apertar o interruptor, piscou com força, e uma dor de cabeça começou a latejar atrás de ambos os olhos. Sem dúvida precisava comer de novo, mas que merda, as exigências constantes de seu corpo estavam acabando com ele.
Abrindo a torneira, ele pegou o gel de barbear e colocou um punhado na palma. Esfregou as mãos para criar espuma e pensou em seu primo. Ele tinha a impressão, embora não soubesse com certeza, de que Saxton usaria um daqueles pincéis antigos para espalhar a espuma no rosto. E nada de lâminas Gilette para ele. Muito provavelmente ele tinha um daqueles instrumentos de barbeiro com cabo em madrepérola.
O pai de Qhuinn tinha um desses. E seu irmão recebera um com suas iniciais após sua transição.
Junto ao anel de sinete.
Bem, ótimo para eles. Além do que, já que ambos estavam mortos, não era como eles continuassem se barbeando.
Quando o rosto ficou coberto de branco, como o cenário lá de fora, ele pegou sua lâmina comum Mach 3 com cabeça descartável...
Sem nem saber por que, achou que devia pegar uma lâmina nova.
Sim, uma supernova e ultracortante.
Qhuinn revirou os olhos para si mesmo. Nada como se concentrar em três pequenas lâminas e uma tira umidificadora. Algo bem lógico.
Depois de se admoestar, ele começou a vasculhar as gavetas do gabinete, puxando-as uma a uma, inventariando os itens de tolices de higiene que nunca usava, nem jamais sequer perdia tempo olhando-as.
Puxando a última, a mais próxima do chão, parou. Franziu o cenho. Agachou.
Havia uma caixinha preta de veludo ali, do tipo em que se colocam joias. Só que ele não tinha nenhuma, e muito menos da Reinhardt, aquela loja esnobe no centro. Como ninguém mais ficava em seu quarto, ele se perguntou se, talvez, aquilo estivesse ali desde que ele se mudara e ele simplesmente nunca o vira.
Tirando a caixinha, levantou a tampa e...
– Filho da mãe.
Dentro, como se valesse muita coisa, estavam todos os seus brincos de argola, bem como o piercing que costumava usar no lábio inferior.
Fritz deve tê-los juntado ao limpar o quarto uma noite e guardado na caixinha. Única explicação possível, porque Qhuinn não se importara com eles depois de tirá-los, um a um. Simplesmente os jogara no fundo de uma das gavetas do banheiro.
Qhuinn mexeu nas argolas de aço, relembrando quando as comprara e colocara. Seu pai ficara mortificado; a mãe também – ao ponto de se retirar da Última Refeição e ficar trancada no quarto por 24 horas seguidas depois de ele entrar flanando na sala de jantar usando-as.
O colocador de piercings lhe dissera para não usá-los até que as tachas utilizadas para perfurar tivessem a chance de cicatrizar. Mas esse conselho era para humanos. Em poucas horas, estava tudo perfeito e ele fizera a troca.
No banheiro de Blay, para falar a verdade.
Qhuinn franziu a testa, lembrando-se do momento em que pisara no quarto do cara. Blay estava na cama, acalentando uma Corona, assistindo TV. A cabeça dele se virou, com sua expressão franca e relaxada... até dar uma olhada em Qhuinn.
Seu rosto se contraiu mesmo que minimamente. De um jeito que, a menos que você conhecesse bem, muito bem uma pessoa, jamais teria percebido. Mas Qhuinn notara.
Naquela época, deduzira que seu estilo obviamente gótico fosse um tantinho demais para o senhor Conservador. Mas agora, em retrospecto, ele se lembrou de algo mais. Blay voltara a se concentrar na TV de plasma... e, casualmente, cobrira o colo com uma almofada.
Ele deve ter ficado excitado.
Enquanto Qhuinn repassava a cena inteira na mente, seu próprio sexo voltava a engrossar.
Só que aquilo era uma completa perda de tempo, não era?
Fitando as malditas argolas, pensou em sua rebeldia, na raiva e na ideia sem noção do que precisava ter para ser feliz.
Uma fêmea. Se encontrasse uma que o aceitasse.
Que... mentira... fora aquilo.
Engraçado, a covardia aparecia em muitas formas, não é? Não era necessário se encolher num canto, tremendo e choramingando como um gatinho. Inferno, não. Você pode ser um grandalhão barulhento cheio de marra e com o rosto cheio de piercings e um rosnado para mostrar para o mundo... e ainda assim não passar de um covarde filho da puta. Afinal, Saxton podia vestir ternos de três peças e gravatas e sapatos, mas o macho sabia quem era, e não tinha medo de ter aquilo que desejava.
E, olha só, Blay estava acordando ao lado do cara.
Qhuinn fechou a tampa e recolocou os piercings onde os encontrara. Depois se olhou no espelho. O que estava fazendo mesmo?, pensou ao fitar seu reflexo.
Ah, sim. Barbeando-se.
Era isso mesmo.
Cerca de vinte minutos mais tarde, Qhuinn saiu do quarto. Andou pelo corredor das estátuas, passou pelas portas fechadas do escritório de Wrath e continuou em frente.
Enquanto avançava, foi difícil olhar para a sala de estar do segundo andar, difícil permanecer controlado quando aquele sofá surgiu no seu campo de visão.
Nunca mais olharia para aquela peça de mobília do mesmo modo. Inferno, talvez todos os sofás estivessem perdidos para ele, para sempre.
À porta de Layla, ele se inclinou encostando o ouvido na madeira. Quando não ouviu nada, perguntou-se exatamente o que achava que descobriria daquele modo.
Deu uma batida suave. Quando não houve resposta, sentiu um aperto de medo irracional na garganta e, sem pensar duas vezes, abriu a porta.
A luz invadiu a escuridão.
Seu primeiro pensamento foi que ela tivesse morrido; que Havers, o filho da puta, tivesse mentido, e que o aborto tivesse saído do controle e a matado: Layla estava imóvel ao encontro dos travesseiros, a boca ligeiramente entreaberta, as mãos cruzadas sobre o peito como se ela tivesse sido arrumada por um agente funerário com respeito pelos mortos.
Só que... algo estava diferente, e ele precisou de um minuto para perceber o que era.
Não havia mais o cheiro sobrepujante do sangue. Na realidade, somente a fragrância delicada de canela marcava o ar, refrescando-o de um modo que iluminava o quarto inteiro.
Será que o aborto finalmente chegara ao fim?
– Layla? – ele a chamou, mesmo tendo dito que se a encontrasse dormindo, não a perturbaria.
Foi um alívio ver as sobrancelhas se mexendo quando seu nome foi captado pelo cérebro, mesmo sob o véu do sono.
Ele teve a sensação de que se a chamasse de novo, ela acordaria.
Parecia cruel forçar-lhe a consciência. O que ela teria para recebê-la quando acordasse? A dor que sentia? A sensação de perda?
Cacete.
Qhuinn saiu silenciosamente, fechou a porta atrás de si e continuou ali. Não sabia o que fazer. Wrath lhe dissera para ficar em casa, mesmo se John Matthew saísse – ele deduziu que aquilo fosse uma espécie de folga misericordiosa de seus deveres de ahstrux nohtrum. E estava grato por isso. Havia tão pouco que pudesse fazer por Layla – pelo menos podia ficar por perto caso ela precisasse de alguma coisa. Um refrigerante. Uma aspirina. Um ombro para chorar.
Você fez isso a ela.
A julgar pelo toque que saía da maldita sala de estar, ele deduziu que perdera a Primeira Refeição. Nove horas. Isso mesmo. Acabara dormindo demais, e isso era bom. Se ele tivesse de se sentar à mesa e passar 45 minutos na companhia de quase duas dúzias de pessoas que tentariam não encará-lo, ele teria perdido a porra da cabeça.
O som de alguém andando no vestíbulo logo abaixo fez com que ele levantasse a cabeça.
Sem nenhum plano ou pensamento específico, ele se aproximou da balaustrada e olhou para baixo.
Payne, a irmã valentona de V., estava saindo da sala de jantar.
Ele não conhecia muito bem aquela fêmea, mas a respeitava imensamente. Seria impossível não admirar, dado o modo como se portava no campo de batalha... Durona, verdadeiramente durona. Naquele instante, porém, a shellan do doutor Manello parecia ter levado uma surra de bar: caminhava lentamente, os pés se arrastando pelo piso de mosaico, o corpo encurvado, a pegada no braço de seu par parecendo ser a única coisa que a sustentava.
Será que ela se machucara em alguma luta corpo a corpo?
Não havia cheiro de sangue.
O doutor Manello disse algo para ela que ele não conseguiu ouvir, mas depois o cara indicou a direção da sala de bilhar com a cabeça – como se ele estivesse perguntando se ela queria ir para lá.
Tomaram aquela direção a passos de caramujo.
Já que não gostava quando as pessoas o encaravam, Qhuinn recuou da grade e esperou até que o caminho estivesse livre. Depois correu escada abaixo.
Comida. Exercícios. Voltar a ver Layla.
Aquela seria a sua noite.
Seguindo para a cozinha, ele se viu imaginando onde Blay estaria. O que estaria fazendo. Se tinha saído para lutar ou se tinha ficado em casa e...
Visto que não sabia onde Saxton estava, ele pôs um ponto final naquela linha de questionamentos.
Se Qhuinn não tivesse de fazer seu turno e pudesse passar um tempo com o cara, ele sabia muito bem o que Blay estaria fazendo.
E Saxton, seu primo filho da puta, não era nenhum tolo.
CONTINUA
CAPÍTULO 37
Enquanto Blay girava o anel de sinete da família no dedo, seu cigarro aceso queimava lentamente na outra mão, e seu traseiro ficava adormecido... e ninguém passava pelas portas do átrio.
Sentado no degrau de baixo da grande escadaria da mansão, ele não respeitaria a promessa feita à mãe de ir para casa. Não naquela noite, pelo menos. Depois da loucura da noite anterior, do pouso forçado do avião e do drama subsequente, Wrath ordenara que a Irmandade e os lutadores tirassem 24 horas de folga. Por isso, tecnicamente, ele deveria ligar para os pais e dizer à mãe que caprichasse na mussarela e no molho à bolonhesa.
Mas de jeito nenhum ele sairia daquela casa. Não depois de ouvir os gritos vindos do quarto de Layla, e de vê-la praticamente sendo carregada escadaria abaixo.
Naturalmente, Qhuinn esteve ao lado dela.
John Matthew não.
Portanto, o quer que estivesse acontecendo, pelo visto superava o ahstrux nohtrum, e isso significava que... ela só podia estar perdendo o filho. Somente algo sério assim possibilitaria um passe livre.
Enquanto ele continuava parado como uma porta, sem nada além da sua preocupação para lhe fazer companhia, naturalmente sua mente resolveu seguir o caminho errado: merda, fora mesmo para a cama com Qhuinn na noite passada?
Dando uma tragada em seu Dunhill, ele expeliu uma imprecação.
Acontecera mesmo?
Deus, essa pergunta vinha martelando a sua cabeça desde o minuto em que despertou de um sonho sensual, com uma ereção que parecia fazer pensar que o outro macho dormia ao seu lado.
Revendo as cenas pela centésima vez, só no que ele conseguia pensar era... como um plano podia fracassar. Depois de ter rejeitado Qhuinn quando ele se pôs de joelhos, voltara para o próprio quarto e andara de um lado para o outro, um debate que não interessava ter consigo mesmo transformando seu cérebro em fois gras.
Ele tomara a decisão correta ao sair. Mesmo. Tinha sim.
O problema foi que a decisão não se sustentou. Enquanto as horas do dia passavam, tudo o que ele conseguia pensar foi a vez em que o pai o flagrou roubando uma caixa de cigarros do doggen da família. Na época, ele era um jovem pré-trans e, como castigo, seu pai o obrigou a se sentar do lado de fora e fumar cada um daqueles Camels sem filtro. Ele se sentiu muito mal e demorou mais de dois anos para sequer tolerar fumo passivo.
Portanto, esse fora o seu segundo plano.
Fazia tempo demais que era louco por Qhuinn, mas tudo não passava de algo hipotético, dividido em fantasias de modo que ele conseguisse suportar. Nada de uma vez só, nada da coisa sobrecarregada, absoluta e arrasadora – e ele sabia muito bem que na vida real, Qhuinn não se conteria nem relaxaria. O “plano” fora ter a experiência concreta, e descobrir que aquilo não passava de apenas sexo brutal. Ou, inferno, descobrir que não era nem sexo bom.
Não era de se esperar que você fumasse um maço inteiro de cigarros... só para querer mais.
Deus todo-poderoso, foi a primeira vez em que a realidade foi muito melhor do que uma fantasia, a absolutamente melhor experiência erótica de toda a sua vida.
Depois, porém, a gentileza que Qhuinn demonstrara fora insuportável.
Na verdade, enquanto Blay rememorava aquela ternura, ele deu um salto de onde estava e começou a marchar ao redor do mosaico de macieira – não tinha para onde ir.
Naquele instante a porta se abriu. Porém, não a de entrada.
A da biblioteca.
Enquanto olhava de relance por sobre o ombro, Saxton surgiu de lá. Ele parecia saído do inferno, e não só porque, por mais veloz que fosse a sua recuperação, ele ainda tinha um inchaço residual na mandíbula graças ao ataque de Qhuinn.
Que lindo, Blay pensou. Bela maneira de expressar seu desapontamento quanto ao comportamento de alguém: deixe-o transar com você depois que ele tentou estrangular seu ex.
Quaaanta classe.
– Como você está? – Blay perguntou, e não por convenção social.
Foi um alívio Saxton se aproximar. E encará-lo. E sorrir-lhe um pouco como se estivesse determinado a fazer um esforço.
– Estou exausto. E faminto. E agitado.
– Gostaria de comer comigo? – sugeriu Blay num rompante. – Também estou me sentindo assim, e a única coisa em que posso dar jeito é a fome.
Saxton assentiu com a cabeça e enfiou as mãos nos bolsos da calça.
– Ideia brilhante.
Os dois acabaram na cozinha, sentados ante a castigada mesa de carvalho, lado a lado, de frente para o resto do cômodo. Com um sorriso contente, Fritz imediatamente passou para o seu modo “provedor de alimentos” e, veja só, dez minutos mais tarde, o mordomo servia uma tigela de cozido de carne para cada um, além de uma baguete para dividirem, uma garrafa de vinho tinto e uma porção de manteiga num pratinho ao lado.
– Volto em seguida, meus senhores – disse o mordomo com uma reverência. E depois ele prosseguiu expulsando todos da cozinha, desde o doggen que descascava legumes até os que poliam a prataria e os que limpavam as janelas de uma alcova logo além dali.
Quando a porta se fechou após a saída do último criado, Saxton disse:
– Tudo o que nos falta é uma vela, aí isto seria um encontro – o macho se inclinou para a frente e começou a comer com modos impecáveis. – Bem, suponho que precisaríamos de mais algumas coisas, não?
Blay olhou de esguelha enquanto apagava o cigarro. Mesmo com as olheiras e o hematoma desvanecendo no pescoço, o advogado era muito bonito de se olhar.
Por que ele não poderia simplesmente...
– Não repita, de novo, que sente muito – Saxton limpou a boca com o guardanapo e sorriu. – Não é necessário, nem apropriado.
Assim, sentado ao lado dele, não parecia que tinham acabado de romper, nem que ele estivera com Qhuinn. Será que as últimas noites aconteceram mesmo?
Até parece... O que ocorreu com Qhuinn não teria acontecido se ele e Sax ainda estivessem juntos. Isso era bem claro para ele: uma coisa era se masturbar secretamente, e isso já era ruim o bastante. Aquilo tudo? De jeito nenhum.
Droga, apesar do fato de ele e Saxton terem rompido, ele ainda sentia que devia confessar sua transgressão... mesmo que Qhuinn estivesse certo e que Saxton já tivesse seguido em frente, por assim dizer.
Enquanto comiam em silêncio, Blay balançou a cabeça, ainda que não tivessem lhe feito nenhuma pergunta e nem estivessem conversando. Ele só não sabia o que fazer. Às vezes, as mudanças da vida surgiam com tanta rapidez, e com tamanha impetuosidade, que não havia como acompanhar a realidade. Levava tempo para as coisas se assentarem, um novo equilíbrio se reestabelecia só depois de algum tempo em que seu cérebro batia de um lado contra o outro das paredes da sua cabeça.
Ele ainda estava na fase de balançar.
– Já sentiu alguma vez como se as horas fossem medidas em anos? – perguntou Saxton.
– Ou décadas. Sim. Absolutamente – Blay olhou de novo. – Na verdade, eu também estava pensando nisso.
– Que par de mórbidos nós somos.
– Talvez devêssemos vestir preto.
– Braçadeiras? – sugeriu Saxton.
– Não, preto dos pés à cabeça.
– E o que eu faço com o meu gosto por cores? – Saxton apontou para o lenço laranja Hermès no bolso da sua lapela. – Bem, pode-se muito bem usar todo tipo de acessórios.
– Certamente isso explica a teoria por trás dos aparelhos ortodônticos.
– Flamingos de plástico rosa.
– A franquia da Hello Kitty.
Juntos, os dois explodiram numa gargalhada. Nem era assim tão engraçado, mas o humor não era a questão ali. Mas quebrar o gelo. Voltar ao que era antes. Aprender a se relacionarem de um modo diverso.
Quando convergiram para um riso mais contido, Blay passou o braço ao redor dos ombros do macho e lhe deu um abraço rápido. Foi bom que Saxton tivesse relaxado um pouco, aceitando aquilo que lhe era oferecido. Não que Blay acreditasse que por estarem sentados juntos, partilhando uma refeição e uma bela risada, tudo, de repente, seria um navegar suave. Nada disso. Era estranho pensar que Saxton estivera com outra pessoa, e ainda mais incrível saber que ele fizera o mesmo – principalmente com quem o fizera.
Não se passava de amantes de quase um ano para companheiros de risadas em um ou dois dias.
Podia-se, porém, começar a forjar um novo caminho.
E colocar um pé na frente do outro.
Sempre haveria um lugar em seu coração para Saxton. O relacionamento que tiveram foi o seu primeiro não só com um macho, mas com qualquer um. E muitas coisas boas aconteceram, coisas que ele carregaria consigo como lembranças que valiam o espaço em sua mente.
– Deu uma olhada nos jardins de trás? – Saxton perguntou ao lhe oferecer o pão.
Blay partiu um pedaço e depois espalhou manteiga por cima enquanto Saxton também pegava um pouco.
– Estão bem ruins, não?
– Lembre-me de nunca tentar cortar grama com um Cessna.
– Você não curte jardinagem.
– Bem, para o caso de um dia eu tentar – Saxton se serviu de vinho. – Aceita?
– Sim, por favor.
E foi assim que as coisas aconteceram. Durante o cozido de carne até a torta de pêssegos, que milagrosamente apareceu diante deles graças à impecabilidade de Fritz. Quando a última garfada e a última limpada com guardanapo foram dadas, Blay se reclinou contra o encosto acolchoado do banco embutido e inspirou fundo.
Que se referia a muito mais do que uma simples barriga cheia.
– Bem – disse Saxton, ao apoiar o guardanapo ao lado do prato de sobremesa –, acredito que finalmente vou poder tomar o banho de banheira que você me sugeriu há algumas noites.
Blay abriu a boca para observar que os sais de banho que o macho preferia ainda estavam em seu banheiro. Ele os vira no gabinete quando fora pegar o creme de barbear reserva ao cair da noite.
Só que... ele não sabia se devia mencionar isso. E se Saxton pensasse que ele estava lhe pedindo para ir à sua banheira? Seria um lembrete muito grande de como as coisas tinham mudado e do por quê? E se...
– Tenho esse novo tratamento à base de óleos que estou morrendo de vontade de experimentar – explicou Saxton ao deslizar pelo banco. – Ele finalmente chegou do exterior hoje. Faz séculos que espero por ele.
– Parece maravilhoso.
– Mal posso esperar – Saxton ajustou o paletó nos ombros, ajeitou os punhos e depois acenou com a mão, saindo sem nenhum indício de complicações ou de tensão em seu rosto.
O que, de fato, ajudava muito.
Dobrando o próprio guardanapo, deixou-o de lado, e saiu de trás da mesa, esticando os braços acima da cabeça e curvando-se para trás, estalando muito bem a coluna.
A sua tensão voltou no segundo em que pisou no átrio novamente.
Que diabos estava acontecendo com Layla?
Maldição, ele nem podia ligar para Qhuinn. Aquele drama não era seu, nem estava ligado a ele de modo algum. Quando se tratava de uma gestação, ele não era diferente de nenhum outro macho daquela casa que também ouvira ou vira o show e, sem dúvida, estava tão preocupado quanto ele. Mas também não tinha direito a nenhuma notícia antecipada.
Uma pena que sua barriga, agora cheia, não concordasse com isso. Pensar em Qhuinn perdendo o filho o fez considerar seriamente a localização do banheiro mais próximo da porta de entrada, só para o caso de uma evacuação rápida ser ordenada pelo fundo da sua garganta.
No fim, ele se viu subindo para a sala de estar do segundo andar. Daquele lugar, ele não teria dificuldade em ouvir a porta da frente, e não estaria esperando abertamente...
As portas do escritório de Wrath se abriram, e John Matthew emergiu do santuário do Rei.
Imediatamente, Blay atravessou a sala de espera, pronto para ver se, talvez, o cara sabia de alguma coisa, mas se conteve ante a expressão de John.
Perdido em pensamentos. Como se tivesse recebido notícias pessoais do tipo perturbador.
Blay ficou para trás enquanto o camarada seguia no caminho contrário, na direção do corredor das estátuas, sem dúvida para desaparecer no próprio quarto.
Parecia que as coisas não andavam bem nas vidas dos outros também.
Maravilha.
Com uma imprecação baixa, Blay deixou o amigo em paz e voltou a caminhar e... a esperar.
Muito mais ao sul, na cidade de West Point, Sola estava pronta para entrar no segundo andar da casa de Ricardo Benloise, através da janela ao fim do corredor principal. Fazia meses desde que estivera lá dentro, mas ela contava com o fato de que seu contato na segurança por ela cuidadosamente manipulado ainda fosse o seu amigo.
Havia dois fatores-chave para invadir com sucesso qualquer casa, prédio, hotel ou instalação: planejamento e velocidade.
Ela possuía os dois.
Pendurada no cabo que lançara no telhado, ela tirou um instrumento de dentro do bolso da parca, segurando-o no canto direito da janela dupla. Iniciado o sinal, ela esperou, olhando fixamente para a luzinha vermelha que brilhava na tela à sua frente. Se por algum motivo ela não mudasse, ela teria de entrar por uma das águas-furtadas que dava para o jardim, o que seria um pé no saco...
A luz ficou verde com um sinal, e ela sorriu ao pegar mais instrumentos.
Pegando um copo de sucção, ela o empurrou no meio do painel, imediatamente abaixo da tranca e depois girou a coisa com o cortador de vidro. Um empurrão rápido e o espaço que possibilitava a entrada do seu braço foi criado.
Depois de deixar o círculo de vidro cair com suavidade na passadeira oriental, ela enfiou o braço e o virou, para soltar a trava de latão que mantinha a janela fechada.
O ar quente lhe deu boas-vindas, como se a casa estivesse contente por vê-la mais uma vez.
Antes de entrar, ela olhou ao redor. Relanceou para o caminho de carros. Inclinou-se para fora para ver o que conseguia encontrar nos jardins escuros.
Sentia como se alguém a estivesse observando... não tanto no caminho de carro até a cidade, mas depois que parara no estacionamento e colocara os esquis. Todavia, não havia ninguém por perto – pelo menos, ninguém que ela conseguisse enxergar – e por mais que a atenção fosse essencial em seu ramo de trabalho, a paranoia era uma perda de tempo perigosa.
Ela precisava deixar isso de lado.
Voltando a se concentrar no jogo, esticou as mãos enluvadas e suspendeu o traseiro e as pernas por cima e através da janela. Ao mesmo tempo, relaxou a tensão do cabo para que ele ficasse folgado e permitisse a sua entrada. Aterrissou sem nenhum som, graças não só ao tapete que cobria o longo corredor como também aos seus calçados de solas macias.
O silêncio era outro critério importante no tocante a realizar um trabalho com sucesso.
Ela parou onde estava por um breve momento. Nenhum som na casa, mas isso não significava nada necessariamente. Ela tinha quase certeza de que o alarme de Benloise fosse silencioso, e mais certeza ainda de que o sinal não iria para a força policial, nem a local, tampouco a estadual: ele gostava de cuidar das coisas particulares de modo privado. E Deus bem sabia, com o tipo de força braçal que ele contratava, havia poder suficiente para tal.
Felizmente, contudo, ela era boa no que fazia, e Benloise e seus capangas não estariam em casa até perto do nascer do sol, afinal, ele vivia a vida de um vampiro.
Por algum motivo, a palavra que começava com “v” a fez pensar no homem que aparecera ao lado do seu carro e que desaparecera como num passe de mágica.
Loucura. E a única vez em sua lembrança recente que alguém a fazia parar para pensar. Na verdade, depois de ser confrontada daquela forma, ela estava realmente considerando não voltar à casa de vidro no rio, embora houvesse motivos mais do que válidos para isso. Não por ela se preocupar em se machucar fisicamente. Deus bem sabia que ela era perfeitamente capaz de se defender.
Era a atração.
Mais perigosa do que qualquer pistola, faca, ou punho, em sua opinião.
Com passadas ágeis, Sola trotou pelo tapete, saltitando na ponta dos pés, seguindo para a suíte principal que dava para o jardim dos fundos. A casa ainda tinha o mesmo cheiro de que se lembrava: mobília antiga e lustra-móveis, e ela conhecia o bastante para se ater ao lado esquerdo da passadeira. Nenhum rangido daquele lado.
Quando chegou à suíte principal, a porta pesada de madeira estava fechada, e ela pegou a chave micha antes mesmo de testar a maçaneta. Benloise tinha duas patologias: limpeza e segurança. A impressão dela, entretanto, era que a segunda era mais crítica na galeria no centro de Caldwell do que em seu lar. Afinal, Benloise não mantinha debaixo do seu teto nada além de objetos de arte com seguros até o último centavo, e a ele próprio durante o dia – quando estava cercado por diversos seguranças e armas.
Na verdade, devia ser por isso que ele era uma coruja no centro da cidade. Isso significava que a galeria nunca ficava sem supervisão: ele aparecia depois do expediente e sua equipe de trabalho legítima estava lá durante o dia.
Como uma gatuna, ela certamente preferia entrar em lugares vazios.
Dito isso, mexeu no mecanismo de tranca da porta, abrindo-a, e entrou no quarto. Inspirou profundamente, o ar estava permeado com a fumaça do tabaco e da colônia refrescante de Benloise.
A combinação a fez pensar nos filmes em preto e branco de Clark Gable por algum motivo.
Com as cortinas puxadas e nenhuma luz acesa, ali estava absolutamente escuro, mas ela tirara fotografias dos quartos quando fora a uma festa ali, e Benloise não era o tipo de homem que mudava as coisas de lugar. Inferno, toda vez que uma nova exibição era instalada na galeria de arte, ela praticamente sentia o tremor debaixo da pele dele.
Medo de mudança era uma fraqueza, sua avó sempre dizia.
Obviamente facilitava as coisas para ela.
Mais devagar, ela avançou dez passos até o meio do quarto. A cama estaria à esquerda encostada na parede comprida. À sua frente estavam as janelas altas que davam para o jardim. À direita, haveria uma cômoda, uma escrivaninha e algumas cadeiras, e a lareira que nunca era usada porque Benloise detestava o cheiro de madeira queimada.
O alarme de segurança se localizava entre a entrada do banheiro e a cabeceira ornamentada da cama, ao lado do abajur que se elevava noventa centímetros do criado-mudo.
Sola deu um giro ao redor de si mesma. Deu quatro passos. Tentou encontrar o pé da cama... e o encontrou.
Passo lateral, um, dois, três. De frente para o flanco do colchão king-size. Outro passo lateral para desviar da mesinha de cabeceira e do abajur.
Sola esticou o braço esquerdo...
E lá estava o painel de segurança, bem onde deveria.
Abrindo a portinhola, usou uma lanterna de bolso que prendeu entre os dentes para iluminar o circuito. Pegando outro instrumento da mochila, conectou fios a fios, interceptando sinais, e com a ajuda de um laptop em miniatura e de um programa que um amigo seu desenvolvera, criou um circuito fechado dentro do sistema de alarme de modo que, enquanto o roteador estivesse no lugar, os detectores de movimento que ela estava para disparar não seriam registrados.
No que se referia à placa-mãe, nada pareceria anormal.
Deixando o laptop pendurado pelos fios, saiu do quarto, chegou ao corredor, e tomou as escadas para o primeiro andar.
O lugar estava perfeitamente decorado, pronto para uma foto de revista – ainda que, claro, Benloise protegesse demais a sua privacidade para permitir que suas coisas fossem fotografadas para o consumo público. Com passos rápidos, ela passou pelo hall de entrada, pela sala à esquerda e entrou no escritório.
Andando em meio à penumbra, ela bem que preferiria tirar a parca de camuflagem branca e as calças para neve: fazer aquilo em seu body preto seria um clichê que, entretanto, seria bem prático. Não havia tempo, porém, e ela estava mais preocupada em não ser vista do lado de fora do que ali, na casa vazia.
O espaço de trabalho pessoal de Benloise era, como todo o resto debaixo daquele teto, mais um cenário montado do que algo funcional. Ele, na verdade, não usava a imensa escrivaninha, nem se sentava no minitrono, tampouco lia qualquer um dos livros em capa de couro das prateleiras.
Todavia, ele transitava por aquele cômodo. Uma vez ao dia.
Certa vez, num momento de tranquilidade, ele lhe dissera que antes de sair, todas as noites, passeava pela casa olhando seus pertences, lembrando a si mesmo da beleza das suas coleções e de sua casa.
Como resultado dessa informação e de algumas outras coisas, Sola há muito deduzira que o homem crescera na pobreza. Primeiro porque, quando conversavam em espanhol ou em português, seu sotaque pertencia à classe baixa, mesmo que de modo sutil. Segundo, os ricos não valorizavam seus pertences como ele o fazia.
Nada era raro aos ricos, e isso significava que eles davam como certas todas as coisas.
O cofre estava escondido atrás da escrivaninha numa seção de estandes que era liberada por um botão localizado na gaveta inferior do lado direito.
Ela descobrira isso graças a uma minúscula câmera escondida que colocara do lado oposto durante aquela festa.
Após a abertura do mecanismo, um corte de sessenta por noventa centímetros na prateleira rolou para a frente e deslizou para o lado. E lá estava ela: uma caixa grossa de aço, cujo fabricante ela reconhecia.
Pensando bem, depois de invadir centenas de espaços, você acaba conhecendo intimamente os fabricantes. E ela aprovava aquela escolha. Se precisasse ter um cofre, era daquele tipo que ela pegaria e, sim, ele o prendera ao chão.
O maçarico que trouxera na mochila era pequeno, mas poderoso, e enquanto ela acendia a ponta, a chama chamuscou com um sibilo substancial e um brilho branco e azul.
Aquilo levaria tempo.
A fumaça do metal queimado irritava seus olhos, o nariz e a garganta, mas ela manteve a mão firme enquanto produzia um quadrado na frente do painel. Ela conseguia explodir a porta de alguns cofres, mas o único jeito com um daqueles era do modo antigo.
Que levava uma eternidade.
No entanto, ela conseguiu.
Deixando a pesada seção da porta de lado, ela mordeu a ponta da lanterna mais uma vez e se inclinou. Uma prateleira continha joias, cautelas de ações e alguns relógios de ouro que ele deixara à mão. Havia uma pistola que ela seria capaz de apostar que estaria carregada. Nenhum dinheiro.
Pensando bem, com Benloise sempre havia tanto dinheiro disponível que fazia sentido ele não se dar ao trabalho de colocá-lo no cofre.
Maldição. Não havia nada ali que valesse apenas cinco mil dólares.
Afinal, naquele trabalho, ela só estava atrás daquilo que lhe era devido por direito.
Com uma imprecação, ela se apoiou nos calcanhares. Na verdade, não havia nada no cofre que valesse menos do que vinte e cinco mil dólares. E não tinha como ela partir a metade da pulseira de um relógio de ouro – porque, como diabos conseguiria revender a coisa?
Um minuto se passou.
O segundo.
Ao diabo com aquilo, ela pensou ao recolocar o painel que cortara contra o cofre e deslizar a prateleira de volta ao seu lugar. Levantando-se, olhou ao redor da sala com a lanterna de bolso. Os livros eram todos edições de colecionadores de primeiras edições de antiguidades. A arte nas paredes e sobre as mesas não era somente muito cara, como difícil de transformar em dinheiro sem ser debaixo dos panos... para as pessoas intimamente ligadas a Benloise.
Mas, que droga, ela não sairia sem seu dinheiro, maldição...
Abruptamente, sorriu para si mesma, a solução se tornando muito clara.
Por vários anos no curso da civilização humana, o comércio só existira e sobrevivera na base da troca. Ou seja, um indivíduo trocava bens ou serviços por outros de mesmo valor.
Em todos os trabalhos que realizara, ela jamais considerara acrescentar os custos auxiliares aos seus alvos: novos cofres, novos sistemas de segurança, novos protocolos de segurança. Ela podia apostar que isso era caro – ainda que não tão caro quanto o que ela costumava tomar. E ela entrara ali deduzindo que esses custos adicionais seriam arcados por Benloise – um tipo de prejuízo monetário pelo que ele roubara dela.
No entanto, eles agora eram a questão.
No caminho de volta à escada, observou as oportunidades disponíveis... e, no fim, foi até uma escultura de Degas de uma pequena bailarina que fora colocada na lateral de um nicho. A figura em bronze da garotinha era o tipo de coisa que sua avó teria adorado, e talvez por isso, dentre tantas peças, foi aquela a lhe chamar a atenção.
A luz que fora colocada no teto acima da estátua estava desligada, mas a obra-prima ainda assim parecia brilhar. Sola adorou especialmente a saia em tutu, a delicada ainda que rígida explosão de tule delineada por metal entrelaçado que capturava perfeitamente o que deveria ser maleável.
Sola se aproximou da base da escultura, passou os braços ao redor dela, e concentrou toda a sua força em girar a sua posição não mais do que cinco centímetros.
Depois correu para as escadas, retirou os clipes do roteador e do laptop do painel de alarme na suíte principal, trancou novamente a porta e seguiu para a janela na qual cortara um buraco.
Estava de volta nos esquis, deslizando na neve não mais do que quatro minutos mais tarde.
Apesar do fato de não ter nada nos bolsos, ela sorria ao deixar a propriedade.
CAPÍTULO 38
Quando a Mercedes finalmente parou na entrada da mansão da Irmandade, Qhuinn saiu primeiro e foi para a porta em que Layla estava. Quando a abriu, os olhos dela encontraram os dele.
Ele soube que jamais se esqueceria da aparência dela. A tez estava branca como um papel e parecia tão fina quanto um, a bela estrutura óssea se esticando sobre a cobertura de pele. Os olhos estavam encovados no crânio. Os lábios, finos e inexpressivos.
Naquele instante, ele teve um vislumbre de como ela ficaria ao morrer, não importando quantas décadas e séculos isso fosse levar para acontecer.
– Eu carrego você – disse ele, inclinando-se para pegá-la no colo.
O modo como ela não discutiu lhe contou exatamente o pouco que restava dela.
Quando as portas de entrada foram abertas por Fritz, como se o mordomo estivesse esperando pela chegada deles, Qhuinn se arrependeu de tudo: do sonho que acalentara por um instante durante o cio dela. A esperança desperdiçada. A dor física pela qual ela passava. A angústia emocional que ambos atravessavam.
Você fez isso com ela.
Na época, quando a servira, ele só se concentrara no resultado positivo do qual esteve tão certo.
Agora, depois de tudo, com os coturnos fincados na realidade sólida e fétida? Não valia a pena. Mesmo a possibilidade de um filho saudável não valia aquele sacrifício.
O pior de tudo era testemunhar o sofrimento dela.
Ao carregá-la para dentro da casa, rezou para que não houvesse uma grande plateia. Ele só gostaria de poupá-la de tudo, de qualquer coisa, mesmo do simples fato de desfilar diante de rostos tristes e preocupados.
Não havia ninguém por perto.
Qhuinn subiu os degraus dois de cada vez e, ao chegar ao segundo andar, as grandes portas duplas do escritório de Wrath abertas o fizeram praguejar.
Pensando bem, o Rei era cego.
Enquanto George emitiu um latido de boas-vindas, Qhuinn apenas passou pela frente, indo direto para o quarto de Layla. Abrindo a porta com um chute, descobriu que o doggen estivera ali e limpara tudo, arrumando a cama, decerto tendo até trocado os lençóis, e também havia um vaso de flores frescas.
Ao que tudo levava a crer, ele não era o único disposto a ajudar em qualquer coisa que pudesse.
– Quer trocar de roupa? – perguntou ao fechar a porta com outro chute.
– Quero tomar banho...
– Vamos providenciar isso.
– ... mas estou com muito medo. Eu não quero... ver, se é que me entende.
Ele a deitou e se sentou ao seu lado na cama. Colocando uma mão em sua perna, esfregou-lhe o joelho com o polegar, de um lado para o outro.
– Sinto muito – disse ela com pesar.
– Droga... Não, não faça isso. Jamais pense nem diga isso, está bem? Isto não é culpa sua.
– De quem mais é?
– Isso não vem ao caso.
Merda, ele não conseguia acreditar que o processo do aborto duraria mais ou menos uma semana. Como podia ser possível...
A careta que contraiu o rosto de Layla revelou a ele que uma cólica a assolava novamente. Olhando de relance para trás, esperando ver a doutora Jane, descobriu que estavam sozinhos.
O que garantiu, mais do que tudo, que não havia nada a ser feito.
Qhuinn deixou a cabeça pensa e segurou a mão dela.
Aquilo começara com os dois.
E estava terminando com os dois.
– Acho que gostaria de dormir um pouco – disse Layla ao apertar a mão dele. – Você também parece estar precisando...
Ele olhou para a chaise-longue do outro lado.
– Você não precisa ficar comigo – murmurou ela.
– Onde mais eu ficaria?
Uma breve visão mental de Blay abrindo os braços cruzou sua mente. Que fantasia, hein...
Nunca mais me toque assim.
Qhuinn sacudiu a cabeça para que tais pensamentos sumissem.
– Vou dormir ali.
– Você não pode ficar aqui por sete noites seguidas.
– Vou repetir mais uma vez. Onde mais eu...
– Qhuinn – a voz dela soou estridente. – Você tem o seu trabalho. E você ouviu Havers. Isto vai levar o tempo que for preciso e, provavelmente, vai demorar um pouco. Não corro o risco de ter uma hemorragia e, francamente, sinto como se devesse ser forte na sua frente, e não tenho a energia necessária para isso. Por favor, volte aqui para me ver o quanto quiser. Mas vou enlouquecer se você montar acampamento aqui até isso tudo terminar.
Desespero comedido.
Era tudo o que Qhuinn tinha enquanto permanecia sentado na beira da cama, segurando a mão de Layla.
Ele acabou se levantando pouco depois. Claro, ela estava certa. Ela precisava descansar o máximo possível e, de fato, além de ficar olhando para ela e fazendo com que ela se sentisse fraca, não havia nada que ele pudesse fazer.
– Não estarei longe.
– Sei disso – ela suspendeu o punho dele para os seus lábios, e ele ficou chocado ao perceber o quanto eles estavam frios. – Você tem se mostrado... mais do que eu seria capaz de pedir.
– Não... Não fiz nada de...
– Você fez o que era certo e apropriado. Sempre.
Aquilo era uma questão de opinião.
– Preste atenção. Vou estar sempre com meu telefone por perto. Volto em algumas horas para ver como você está. Se estiver dormindo, eu não a incomodarei.
– Obrigada.
Qhuinn assentiu com a cabeça e andou de lado até a porta. Certa vez ouvira que não se devia dar as costas a uma Escolhida, e ele imaginou que demonstrar um pouco de protocolo não faria mal.
Fechando a porta atrás de si, ele se recostou nela. A única pessoa que ele queria ver era o único cara naquela casa que não tinha interesse algum em...
– O que está acontecendo?
A voz de Blay foi um choque tão grande que ele pensou que a tivesse imaginado. A não ser pelo fato de que o macho em pessoa acabara de passar pela porta da sala de estar do segundo andar. Como se estivesse ali esperando o tempo inteiro.
Qhuinn esfregou os olhos e depois começou a andar, o corpo procurando a única coisa pela qual ele vinha rezando.
– Ela está abortando – Qhuinn se ouviu dizer numa voz morta.
Blay murmurou algo em resposta, mas que não ficou registrado.
Engraçado, o aborto não lhe parecera real até aquele momento. Não até contar a Blay.
– O que disse? – perguntou Qhuinn, ciente de que o cara esperava por uma resposta.
– Posso fazer alguma coisa?
Tão engraçado. Qhuinn sempre achou que saíra do ventre da mãe já como um adulto. Pensando bem, nunca houve nenhum agradinho materno, nada de abraços quando ele se machucava, nenhum amparo quando ele tinha medo. Como resultado, quer fosse um aspecto do seu caráter, ou o modo como fora criado, ele nunca regredira. Não havia para o que voltar.
Todavia, foi com a voz de uma criança que disse:
– Faz isso parar?
Como se só Blay tivesse o poder de operar um milagre.
E então... foi o que o macho fez.
Blay abriu os braços, oferecendo o único refúgio que Qhuinn sempre conheceu.
– Faz isso parar?
O corpo de Blay começou a tremer quando Qhuinn enunciou essas palavras: depois de todos esses anos, ele vira o cara em diferentes estados de humor dependendo da circunstância. Porém, jamais assim. Nunca... tão completa e absolutamente devastado.
Nunca perdido como uma criança.
A despeito da sua necessidade de se manter verdadeiramente afastado de qualquer vínculo emocional, seus braços se abriram por vontade própria.
Enquanto Qhuinn avançava para ele, o corpo do guerreiro parecia menor e mais frágil do que de fato era. E os braços que passaram ao redor da cintura de Blay simplesmente ficaram lá, como se não tivessem força nos músculos.
Blay sustentou a ambos.
E antecipou que Qhuinn recuaria rapidamente. Normalmente, o cara não suportava nenhum tipo de conexão intensa além da sexual por mais tempo do que um segundo e meio.
Qhuinn não o fez, porém. Ele parecia preparado para ficar parado na entrada da sala de estar para sempre.
– Venha – disse Blay, levando o macho para dentro e fechando a porta. – Vamos para o sofá.
Qhuinn o seguiu, os coturnos se arrastando em vez de marcharem.
Quando chegaram ao sofá, sentaram-se de frente, os joelhos se tocando. Quando Blay o fitou, a tristeza ressonante o tocou tão profundamente, que não pôde evitar que a mão se esticasse e afagasse o cabelo escuro...
Sem aviso, Qhuinn se enroscou ao seu encontro, simplesmente se deixou cair, o corpo se dobrando ao meio, quase se desmanchando no colo de Blay.
Uma parte de Blay reconhecia que aquele era um terreno perigoso. Sexo era uma coisa, e já bem difícil de lidar, ora essa. Aquele momento tranquilo? Era potencialmente devastador.
Motivo pelo qual saíra num rompante daquele quarto na noite anterior.
A diferença desta noite, porém, era que ele estava no controle. Era Qhuinn quem buscava conforto, e Blay podia negar ou oferecer, dependendo de como se sentisse. Ser o depositário da confiança de alguém era absolutamente diferente de recebê-la... ou necessitá-la.
Blay era bom nisso. Havia uma medida de segurança, de controle. Não era o mesmo que cair num abismo. E, inferno, se alguém devia saber isso, esse alguém era ele. Deus bem sabia que ele passara anos lá embaixo.
– Eu faria qualquer coisa para mudar isso – disse Blay, afagando as costas de Qhuinn. – Odeio o que você está passando...
Ah, as palavras eram tão inúteis...
Ficaram ali por um tempo enorme, a tranquilidade da sala formando uma espécie de casulo. Periodicamente, o relógio antigo sobre a lareira tocava, e depois de um bom tempo, as persianas começaram a baixar sobre as janelas.
– Gostaria que existisse algo que eu pudesse fazer – disse Blay quando os painéis de aço chegaram ao fim com um baque.
– Deve estar na hora de você ir.
Blay deixou aquela passar. A verdade não era algo que ele quisesse partilhar: nem cavalos selvagens, ou armas carregadas, pés-de-cabra, mangueiras de incêndio, estouro de elefantes... nem mesmo uma ordem do Rei em pessoa o teria tirado dali.
E havia uma parte sua que ficava zangada com isso. Não com Qhuinn, mas com seu próprio coração. A questão era que não se pode lutar contra a sua natureza, e era isso o que ele vinha aprendendo. No rompimento com Saxton. Em se revelar à mãe. Naquele exato instante.
Qhuinn gemeu ao suspender o tronco e depois esfregar o rosto. Quando abaixou as mãos, as faces estavam vermelhas, bem como os olhos, mas não porque ele estivesse chorando.
Indubitavelmente, a sua cota de lágrimas da década fora derramada na noite anterior quando ele chorara de alívio por ter salvado a vida de um pai.
E se soubesse que Layla não estava bem naquele instante?
– Sabe o que é pior? – perguntou Qhuinn, parecendo um pouco mais consigo mesmo.
– O quê? – Deus bem sabia que a gama de opções era vasta.
– Eu vi a criança.
Os pelos da nuca de Blay se eriçaram.
– Do que está falando?
– Na noite em que a Guarda de Honra veio atrás de mim e que quase morri, lembra?
Blay deu uma tossidela, a lembrança era tão vívida e visceral como se tivesse acontecido uma hora antes. E mesmo assim a voz de Qhuinn era calma e tranquila, como se ele estivesse se referindo a uma noite numa boate ou algo assim.
– Sim, eu me lembro.
E pensou, eu fiz boca a boca em você no acostamento da estrada, porra.
– Eu fui até o Fade... – Qhuinn franziu o cenho. – Você está bem?
Ah, sim, claro, uma maravilha.
– Desculpe. Pode continuar.
– Fui até lá. Quero dizer, é como... a gente ouviu falar. Branco – Qhuinn esfregou o rosto de novo. – Tão branco. Tudo. Havia uma porta, e eu caminhei até ela... Eu sabia que se girasse a maçaneta, entraria e não sairia mais. Eu estava prestes a tocá-la quando... foi então que eu a vi. Na porta.
– Layla – interpôs Blay, sentindo como se o peito tivesse sido apunhalado.
– A minha filha.
A respiração de Blay ficou presa.
– A sua...
Qhuinn o encarou.
– Ela era... loira. Como Layla. Mas os olhos... – ele levou a mão próxima aos seus. – Eram como os meus. Parei de andar quando a vi e depois, de repente, eu estava de volta no chão, no acostamento da estrada. Depois disso, fiquei sem saber o que foi tudo aquilo. Mas depois, muito tempo depois, Layla entrou no cio e me procurou, e tudo se encaixou. Era como se aquilo... tivesse que acontecer. Pareceu o destino, sabe. De outro modo, eu jamais teria me deitado com Layla. Só fiz isso porque eu sabia que teríamos uma garotinha.
– Jesus.
– Mas eu estava errado – ele esfregou o rosto pela terceira vez. – Errei feio... E o que eu mais queria era não ter tomado esse caminho. O maior arrependimento da minha vida... Bem, o segundo maior, na verdade.
A Blay só restou imaginar o que poderia ser pior do que aquilo pelo que ele passava.
O que posso fazer?, Blay se perguntou.
Os olhos de Qhuinn procuraram os dele.
– Quer mesmo que eu responda a isso?
Pelo visto, ele pensara em voz alta.
– Sim, claro.
A mão da adaga de Qhuinn se levantou e amparou a lateral do rosto de Blay.
– Certeza?
O clima mudou de pronto. A tragédia ainda estava com eles, mas a poderosa ressaca sexual os abateu entre uma pulsação e a seguinte.
O olhar de Qhuinn começou a queimar, as pálpebras pesaram.
– Preciso... de uma âncora agora. Não sei explicar de modo melhor.
O corpo de Blay reagiu instantaneamente, o sangue fervendo, o membro engrossando e esticando.
– Deixe-me beijar você – Qhuinn gemeu ao se inclinar. – Sei que não mereço, mas, por favor... é isso o que você pode fazer por mim. Deixe-me senti-lo...
A boca de Qhuinn resvalou a dele. Voltou para um pouco mais. Demorou-se.
– Vou implorar – mais carícias daquela boca devastadora. – Se for preciso. Estou pouco me importando, eu vou implorar...
De algum modo, isso não seria necessário.
Blay deixou a cabeça ser inclinada para abrir caminho para mais manobras, a mão de Qhuinn em seu rosto tanto gentil quanto no comando. E, então, houve mais boca a boca, lento, arrastando-se, inexorável.
– Deixe-me estar dentro de você de novo, Blay...
CAPÍTULO 39
Assail voltou para casa cerca de meia hora antes do amanhecer. Ao estacionar o Range Rover na garagem, ele teve que esperar a porta abaixar para sair.
Sempre se considerara um intelectual – e não no sentido atribuído pela glymera, onde um se sentia importante ao discorrer sobre literatura, filosofia ou assuntos espirituais. Era mais pelo fato de existirem poucas coisas na vida na qual ele não podia aplicar seu raciocínio e entender a sua totalidade.
O que diabos aquela mulher fizera na casa de Benloise?
Obviamente ela era uma profissional, com tanto equipamento quanto técnica, e uma abordagem de infiltração muito praticada. Ele também suspeitava que ou ela tivesse a planta da casa ou estivera lá previamente. Tão eficiente. Tão decidida. E ele estava qualificado para julgar: seguira-a o tempo inteiro em que ela esteve dentro da casa, penetrando como um fantasma pela janela que ela abrira, atendo-se às sombras.
Seguindo o rastro dela por trás.
Mas aquilo ele não entendia: que tipo de ladrão se dá ao trabalho de invadir uma casa segura, encontra um cofre, queima-o para abri-lo, descobre muitas riquezas portáteis... mas não leva nada? Porque ele vira muito bem ao que ela teve acesso; assim que ela saiu do escritório, ele permanecera lá, soltando a prateleira como ela fizera antes, e usara a própria lanterna para dar uma espiada no cofre.
Só para descobrir o que ela deixara para trás, se é que tinha deixado algo.
Quando ele voltou para a casa em si, evitando qualquer fonte de luz, observara-a parada um instante no hall de entrada, com as mãos nos quadris, a cabeça virando lentamente, como se ela estivesse considerando suas opções.
E então ela se aproximou de uma estátua que só podia ser de Degas... e a girara apenas alguns centímetros para a esquerda.
Isso não fazia sentido.
Bem, era possível que ela tivesse invadido o cofre procurando por algo específico que, na verdade, não estava lá. Um anel, uma bugiganga, um colar. Um chip de computador, um pendrive, um documento como um testamento ou apólice de seguro. Mas a demora no hall não estava de acordo com a diligência anterior... e depois ela só moveu uma estátua?
A única explicação era que aquilo fora uma violação deliberada da propriedade de Benloise.
O problema era que, no que se referia a vinganças contra objetos inanimados, era difícil encontrar muita significância nos atos dela. Derrubasse a estátua, então. Levasse a maldita coisa. Danificasse-a com obscenidades em tinta spray. Batesse nela com um pé-de-cabra para que ficasse destruída. Mas uma leve virada que mal se podia perceber?
A única conclusão a que ele conseguia chegar era que aquilo fora um tipo de mensagem. E ele não gostava nem um pouco disso.
Pois sugeria que talvez ela conhecesse Benloise pessoalmente.
Assail abriu a porta do motorista...
– Oh, meu Deus... – sibilou, retraindo-se.
– Ficamos imaginando quanto tempo você ainda ficaria aí.
Enquanto uma voz ríspida se pronunciava, Assail saiu do carro e olhou ao redor da garagem para cinco carros. O fedor estava num meio-termo entre um atropelamento de três dias, maionese estragada e perfume barato.
– Isso é o que eu estou pensando? – perguntou aos primos, que estavam parados na soleira da antessala.
Graças à Virgem Escriba, eles avançaram e fecharam a porta que dava para a casa; caso contrário, aquele fedor horrendo invadiria o resto da construção.
– São os seus traficantes. Bem, parte deles, na verdade.
Que. Merda. Era. Aquela?
As passadas longas de Assail o levaram na direção que Ehric apontava: o canto oposto, onde três sacos plásticos verdes-escuro foram jogados de lado sem cuidado algum. Agachando-se, ele afrouxou a tira amarela de um deles, puxou a beirada e...
Deparou-se com os olhos sem vida de um humano que ele reconhecia.
A cabeça inanimada fora arrancada da coluna uns dez centímetros abaixo da mandíbula, e estava virada de modo a fitar para fora de seu caixão frouxo. O cabelo escuro e a pele vermelha estavam marcados por sangue preto e brilhante, e se o cheiro esteve ruim próximo ao carro, ali, bem perto, fez seus olhos lacrimejarem e a garganta se contrair num protesto.
Não que ele se importasse.
Abriu os outros dois sacos e, usando o plástico como “luva”, virou as outras cabeças na mesma posição.
Depois se sentou e ficou olhando para as três, observando as bocas escancaradas e impotentes em busca de ar.
– Contem o que aconteceu – ordenou sombriamente.
– Aparecemos na hora combinada.
– Rinque de patinação, na margem do rio ou debaixo da ponte?
– Ponte. Chegamos – Ehric apontou para o irmão gêmeo, que estava parado em silêncio ao seu lado – na hora com o produto. Uns cinco minutos depois, esses três apareceram.
– Como redutores.
– Eles tinham o dinheiro. Estavam prontos para fazer a transação.
Assail girou a cabeça na direção dele.
– Eles não foram lá para atacá-los?
– Não, mas só descobrimos isso quando já era tarde demais – Ehric deu de ombros. – Eram assassinos que apareceram do nada. Não sabíamos quantos havia, e não queríamos nos arriscar. Foi só depois que vasculhamos os bolsos e encontramos o montante certo de dinheiro que percebemos que eles só foram lá para fazer negócios.
Redutores no tráfico? Aquilo era novidade.
– Vocês apunhalaram os corpos?
– Pegamos as cabeças e escondemos o que restou. O dinheiro estava na mochila desse da esquerda e, naturalmente, nós o trouxemos para casa.
– Celulares?
– Peguei.
Assail começou a acender um charuto, mas não queria desperdiçar o sabor. Fechando os sacos, levantou-se acima da carnificina.
– Tem certeza de que não foram agressivos?
– Estavam mal preparados para se defenderem.
– Estar mal armado não significa que eles não estivessem lá para matá-los.
– Por que levar o dinheiro?
– Eles podiam estar negociando em outro lugar.
– Como já disse, era a quantia correta e nem um centavo a mais.
Abruptamente, Assail gesticulou para que o seguissem para o interior da casa e, ah, que alívio quando chegaram ao ar limpo. Com as telas descendo lentamente sobre as janelas de vidro, e com o alvorecer se completando, ele foi para o bar, pegou um galão de Bouchard Père et Fils, Montrachet, 2006 e estalou a rolha.
– Querem me acompanhar?
– Sim, claro.
Na mesa redonda na cozinha, ele se sentou com três taças e a garrafa. Servindo os três, dividiu o chardonnay com os dois sócios.
Porém, não lhes ofereceu seus cubanos. Eram valiosos demais.
Felizmente, cigarros apareceram e todos se sentaram juntos, fumando e saboreando goladas sublimes da beira afiada do seu Baccarat.
– Nenhuma agressão por parte dos assassinos – murmurou, inclinando a cabeça para trás para baforar, a fumaça azulada se elevando sobre sua cabeça.
– E a quantia exata.
Depois de um momento, ele voltou a olhar para eles.
– Será possível que a Sociedade Redutora esteja tentando entrar no meu ramo de negócios?
Xcor estava à luz de velas, sozinho.
O armazém estava tranquilo, seus soldados ainda não tinham retornado, nenhum humano, nenhum Sombra, nada caminhava sobre ele. O ar estava frio; o mesmo com o concreto abaixo dele. A escuridão o envolvia, a não ser pela fraca fonte de luz perto da qual ele estava sentado.
Algo no fundo de sua mente lhe dizia que estava perigosamente perto de amanhecer. Também havia outra coisa, algo de que ele deveria ter se lembrado.
Mas não havia a mínima chance de que algo transpusesse seu torpor.
Com os olhos fixos na única chama diante dele, Xcor repassou os eventos da noite em sua cabeça.
Dizer que ele encontrara a localização da Irmandade seria talvez aumentar um pouco a verdade, mas não uma falácia completa. Seguira aquela Mercedes para o interior, quilômetro após quilômetro, sem nenhum plano real do que deveria ou poderia fazer quando ela parasse... quando, do nada, o sinal do sangue no corpo de sua Escolhida não só se perdeu, mas foi totalmente redirecionado, como se uma bola lançada contra um muro tivesse alterado repentinamente a sua trajetória.
Confuso, ele vasculhou os arredores, desmaterializando aqui, acolá, para cima e para baixo e, durante o tempo todo, uma sensação de horror se abatendo sobre ele. Recuando, ele se viu na base de uma montanha, com seus contornos, mesmo sob o luar claro, registrados de maneira estranha, indistinta, pouco nítida.
O lugar em que eles ficavam só podia ser ali.
Talvez no alto da montanha. Talvez do outro lado.
Não havia outra explicação – afinal, a Irmandade vivia com o Rei para protegê-lo... portanto, indubitavelmente, eles tomariam precauções do tipo que ninguém mais conseguiria tomar, ou quem sabe, tivessem ao seu dispor tecnologias e provisões místicas que seriam, de outro modo, indisponíveis.
Em frenesi, ele circundou os arredores, dando a volta na base algumas vezes, pressentindo nada além da refração do sinal dela e aquela sensação de horror. Sua conclusão era de que ela deveria estar em algum lugar daquela imensidão: ele teria pressentido se ela tivesse atravessado para o outro lado, e seria razoável concluir que se tivesse ido para o seu templo sagrado, até um plano alternativo de existência, ou – que o destino não permitisse – morrido, aquele eco ressonante dentro dele teria desaparecido.
A sua Escolhida estava ali em algum lugar.
Retornando para o armazém, para o presente, para onde ele estava agora, Xcor esfregou as palmas para frente e para trás lentamente, o raspar dos calos interrompendo a quietude. À esquerda, no limiar da luz de velas, suas armas estavam dispostas lado a lado, as adagas, as pistolas, e sua adorada foice cuidadosamente organizadas ao lado de uma pilha confusa de roupas de sair que ele retirara assim que escolhera aquele lugar específico no chão.
Concentrou-se na foice e esperou que ela lhe falasse: ela o fazia com frequência, com seus modos sedentos de sangue em compasso com a agressividade que fluía em suas veias e que definia seus pensamentos e motivava suas ações.
Aguardou que ela lhe dissesse para atacar a Irmandade onde eles ficavam. Onde as fêmeas moravam. Onde as crianças dormiam.
O silêncio era preocupante.
De fato, sua chegada ao Novo Mundo fora baseada no desejo de ganhar poder, a expressão maior e mais arrojada desse desejo era tomar o trono, portanto, naturalmente, esse era o curso que ele escolhera. E estava progredindo. A tentativa de assassinato no outono, que, sem sombra de dúvida, lançara uma sentença de morte sobre a sua cabeça e a dos seus soldados, fora uma medida tática que quase colocara um ponto final na guerra inteira antes mesmo de ela começar. E seus esforços contínuos com Elan e com a glymera estavam promovendo seus objetivos e reforçando seu apoio dentro da aristocracia.
Mas aquilo que ele descobrira naquela noite...
Deuses, quase um ano de trabalho, sacrifício, planejamento e combate perdiam importância em comparação com a sua descoberta.
Se seu palpite estivesse correto – e como não podia estar? –, tudo o que ele tinha de fazer era marchar com seus soldados e começar um cerco assim que a noite caísse. A batalha seria épica, e a Irmandade e o lar da Primeira Família seriam permanentemente comprometidos, independentemente do resultado.
Seria um conflito digno dos livros de História – afinal, a primeira vez em que a propriedade real fora atingida foi quando o progenitor e a mahmen de Wrath foram assassinados antes da transição dele.
A história se repetia.
E ele e seus soldados tinham uma séria vantagem em relação àqueles assassinos que, na época, não possuíram: a Irmandade agora tinha muitos machos vinculados. Na verdade, ele acreditava que todos eles estivessem vinculados, e isso dividiria as atenções e as lealdades dos machos como nada mais conseguiria fazer. Ainda que a diretriz principal deles como guarda pessoal do Rei fosse proteger Wrath, seus cernes estariam divididos, e mesmo o mais forte dos lutadores com as melhores armas estaria enfraquecido se suas prioridades estivessem em dois lugares distintos.
Além disso, se Xcor ou um dos seus soldados conseguisse apanhar uma daquelas shellans, a Irmandade esmoreceria, porque a outra coisa verdadeira a respeito deles era que a dor de um dos Irmãos era a própria agonia.
Só bastaria uma fêmea de qualquer um deles, a arma derradeira.
Ele sabia disso em sua alma.
Sentado à luz da vela, Xcor esfregou a lâmina da adaga na palma de sua mão, de um lado para o outro, de um lado para o outro.
Uma fêmea.
Era só disso que ele precisava.
E ele conseguiria não só reivindicar sua própria fêmea... mas também o trono.
CAPÍTULO 40
Qhuinn sabia que acabara de colocar Blay numa posição totalmente injusta.
Transa por pena, hein? Mas, ah, Deus, encarando aqueles olhos azuis, aqueles malditos olhos azuis sem fundo que estavam francos para ele do mesmo modo que um dia estiveram... era só no que conseguia pensar. E, sim, tecnicamente era sexo em termos de onde ele queria suas diversas partes – bem, uma mais especificamente. No entanto, havia muito mais do que apenas isso.
Ele não sabia expressar em palavras; simplesmente não era bom em juntar as sílabas. Mas seu desejo de conexão foi o que o levou ao beijo. Ele quis mostrar a Blay o que estava querendo dizer, do que ele precisava, por que aquilo era importante: seu mundo inteiro parecia estar desmoronando e a perda que acontecia na porta ao lado doeria por um bom tempo.
No entanto, estar com Blay, sentir o seu calor, fazer contato, era como uma promessa de cura. Mesmo se durasse apenas o tempo em que estivessem ali naquela sala, ele aceitaria, e guardaria aquilo para si... para relembrar quando precisasse.
– Por favor – sussurrou.
Só que ele não deu chance para o cara responder. Sua língua saiu sorrateira e lambeu aquela boca, escorregando para dentro, assumindo o controle.
E a resposta de Blay foi o modo como ele se permitiu ser empurrado para trás nas almofadas do sofá.
Qhuinn teve dois pensamentos vagos: um, a porta só estava fechada, não trancada – e ele cuidou disso desejando que a trava de latão ficasse no lugar certo. E o segundo pensamento momentâneo era que eles não poderiam destruir aquele lugar. Explodir tudo em seu quarto era uma coisa. A sala de estar era propriedade pública, e muito bem decorada, com as almofadas de seda e as cortinas luxuosas, e um monte de outras coisas que pareciam facilmente rasgáveis, amassáveis, Deus, mancháveis...
Além disso, ele já destruíra seu Hummer, acabara com o jardim e sacudira o quarto. Portanto, sua cota de Destruidor já ultrapassara, e muito, o calendário anual...
Naturalmente, a solução mais prática para não dar nenhuma preocupação adicional a Fritz seria percorrer o corredor rapidamente até o seu quarto, mas enquanto as mãos talentosas de Blay estavam na frente do quadril de Qhuinn, já abaixando seu zíper, ele lançou essa ideia brilhante no cesto de lixo.
– Ai, Deus, toque-me – gemeu, empurrando a pélvis para a frente.
Ele só teria de ser comportado e bem limpinho com aquilo.
Presumindo que isso fosse possível.
Quando a palma de Blay se enfiou em sua calça de couro, o corpo de Qhuinn se arqueou, o torso curvando-se para trás enquanto o outro iniciava os trabalhos. O ângulo estava meio errado, por isso não havia muita fricção, e suas bolas estavam sendo beliscadas pela costura da calça, mas santo inferno, ele não se importava. O fato de que aquele era Blay bastava.
Cacete, depois de anos de chupadas, punhetas e transas, aquela parecia a primeira vez que alguém tocava nele.
Ele precisava retribuir o favor.
Entrando em ação, elevou o peito e aproximou os rostos. Caramba, ele adorava a expressão daqueles olhos azuis enquanto Blay o encarava, quente, selvagem, sensual.
Com tesão.
Qhuinn o segurou com força e aproximou as bocas, agarrando-se àqueles lábios, lançando a língua, tomando tudo como um desvairado...
– Espere, espere – Blay retrocedeu. – Vamos quebrar o sofá.
– O quê...? – o cara parecia estar falando inglês, mas pro inferno se ele conseguia traduzir. – Sofá?
E então ele percebeu que empurrara tanto Blay no braço do móvel, que a coisa estava começando a se inclinar. Que era mais do que duzentos quilos de sexo poderiam fazer em uma peça de mobília.
– Ai, merda, desculpe.
Ele estava começando a recuar quando Blay assumiu o controle e Qhuinn, de repente, viu-se fora do sofá, de costas no chão, as pernas unidas, as calças sendo empurradas para os tornozelos.
Ideia. Genial.
Graças ao fato de ele não usar cuecas, seu pau estava todo exposto, grosso e tenso, ao ser lançado para cima, dolorido e inchado por sobre a barriga. Abaixando a mão, ele deu umas puxadas enquanto Blay arrancava seus coturnos que estavam atrapalhando, largando-os de lado. As calças foram as próximas a darem adeus, e, com Deus como testemunha, Qhuinn nunca antes ficou tão contente em ver um par de couro voar por cima do ombro em toda a sua vida.
Em seguida, Blay voltou ao trabalho.
Qhuinn teve que fechar os olhos quando sentiu as coxas sendo afastadas e um par de mãos de lutador puxar o interior de suas pernas. Imediatamente ele soltou a ereção, afinal, porque ter a palma atrapalhando quando Blay poderia...
Não foram as mãos do cara que o seguraram.
Foi a boca quente e úmida que Qhuinn beijara pra cacete pouco antes.
Por uma fração de segundo, enquanto a sucção abocanhava a ponta e o mastro, ele teve o pensamento maldito de que Saxton ensinara Blay a fazer aquilo: seu maldito primo fizera aquilo com o cara, e fizera com que ele...
Pare, ordenou-se. Quaisquer lições aprendidas e a história por detrás delas não importavam, era a sua ereção que recebia atenção naquele instante. Por isso, que se dane essa merda.
Para deixar isso bem claro, forçou seus olhos a se abrirem. Inferno... do céu...
A cabeça de Blay subia e descia em seus quadris, o punho segurava a base do pau de Qhuinn, a outra mão se ocupava com as bolas. Mas então, como se estivesse esperando por contato visual, o cara parou no alto, libertou a cabeça e lambeu os lábios.
– Eu não gostaria que você fizesse uma lambança nesta linda sala – Blay disse com fala arrastada.
E então, estendeu a ponta da língua para açoitar o piercing no pênis de Qhuinn, a carne rosada brincando com a argola cinza de metal e a bolinha...
– Caralho. Vou gozar agora – grunhiu Qhuinn, com uma onda fervente se avolumando. – Eu vou...
Ele estava impotente para deter as coisas, muito mais até do que alguém que tivesse se lançado de um precipício e que, depois de metros de queda livre, quisesse desistir.
Só que ele não queria pisar no freio.
E não pisou.
Com um rugido potente, que provavelmente foi ouvido em outros lugares, a espinha de Qhuinn se afastou do chão, o traseiro ficou rígido, as bolas explodiram, a excitação esguichando com força na boca de Blay. E não foi só o seu sexo que foi afetado. O orgasmo o atingiu em todo o corpo, uma energia latente emergindo por ele enquanto cravava as unhas no tapete em que estava deitado, os dentes cerrados... e gozando como um animal selvagem.
Felizmente, Blay se mostrou mais do que eficiente na limpeza. E se isso não o fez gozar ainda mais... Também lhe deu muito para o que olhar: pelo resto dos seus dias, Qhuinn jamais se esqueceria da visão da boca do macho o envolvendo, as bochechas sugando enquanto ele libertava seu gozo e ele absorvia tudo. De novo e de novo e de novo.
Normalmente, Qhuinn ficava pronto para outra em seguida, mas quando as ondas tumultuadas finalmente se quebraram sobre ele, ele ficou completamente inerte, os braços largados no chão, os joelhos moles, a cabeça pensa.
– Não consigo me mexer – murmurou.
O riso de Blay foi profundo e sensual.
– Você parece um pouco cansado.
– Posso retribuir o favor?
– Você consegue levantar a cabeça?
– Ela ainda está grudada no meu corpo?
– Pelo que vejo, sim, está.
Enquanto Blay ria de novo, Qhuinn soube o que queria fazer e isso o surpreendeu. Em todas as suas explorações sexuais, ele nunca se permitiu ser enrabado. Não era assim que as coisas aconteciam. Ele era o conquistador, o que tomava, o que estabelecia o controle e conservava a superioridade.
Ficar por baixo simplesmente não o interessava.
E agora era o que queria.
O único problema era que, literalmente, não conseguia se mexer. Ah, sim, e havia uma coisinha a mais: como contar a Blay que ele era virgem?
Porque ele desejava. Se um dia chegasse àquilo, ele queria que Blay soubesse. Por algum motivo, isso era importante.
De repente, o rosto de Blay apareceu em seu campo de visão, e, Deus, como o lutador era lindo, o rosto afogueado, os olhos reluzentes, aqueles ombros largos bloqueando tudo.
E, ah, sim, aquele sorriso sexy como o inferno, tão satisfeito consigo e autossuficiente, como se o fato de Blay ter provocado tanto prazer em alguém fosse o bastante para que ele não precisasse do próprio alívio.
Mas isso não seria justo, seria?
– Não acho que você vai voltar a se mexer tão cedo – comentou Blay.
– Talvez. Mas posso abrir a boca – foi a resposta misteriosa. – Tanto quanto você.
Certo, tudo bem, a ideia de que provocava um orgasmo daquele em Qhuinn foi tão ratificadora que Blay se esquecera por completo do seu corpo.
A questão era que após tantos anos de rejeição, era uma emoção sem igual sentir poder em relação ao cara, ser aquele quem comandava o ritmo... a pessoa que levava Qhuinn a um lugar vulnerável e erótico muito mais intenso do que qualquer outro antes. E foi isso o que aconteceu. Ele sabia exatamente como Qhuinn ficava e como soava quando gozava, e Blay podia afirmar, sem nenhum traço de dúvida, que ele jamais vira seu camarada tão prostrado como agora, largado no tapete, os músculos do pescoço esticados, os abdominais contraídos, os quadris bombeando com força.
Qhuinn gozara praticamente vinte minutos direto.
E agora, no pós-coito, uma estranha revelação: até aquele instante, Blay jamais reconhecera o cinismo que Qhuinn carregava no rosto o tempo inteiro... as sobrancelhas caídas, o canto da boca perpetuamente repuxado para cima... o maxilar nunca, jamais relaxado.
Era como se toda a torpeza que a família lhe fizera tivesse permanentemente esculpido suas feições.
Mas não era verdade, não é mesmo? Durante o orgasmo, e agora, enquanto as coisas se acalmavam, nada daquela tensão era visível em lugar algum. O rosto de Qhuinn estava... livre de toda reserva, parecendo tão mais jovem, e Blay teve que se perguntar por que nunca percebera a idade dele antes.
– Então, vai me dar algo para eu chupar enquanto me recupero? – Qhuinn perguntou.
– O quê...?
– Estou com sede. E preciso chupar alguma coisa – dito isso, Qhuinn mordeu o lábio inferior, as presas brancas brilhantes afundando na pele. – Vai me ajudar?
Os olhos de Blay reviraram em suas órbitas.
– É... acho que posso fazer isso.
– Então me deixe tirar suas calças.
As pernas de Blay se levantaram com tanta rapidez que ele teve um insight novo sobre as leis da física, e enquanto ele chutava os sapatos, as mãos tremiam ao desabotoar a calça. As coisas foram bem rápidas a partir dali. E durante o tempo todo em que se despia, ele estava absolutamente ciente de tudo o que havia na sala – especialmente Qhuinn. O macho estava ficando rígido novamente, o sexo engrossando apesar de tudo pelo que acabara de passar... as coxas pesadas se contraindo e a pélvis rolando... a parte baixa do tronco tão delgada que cada sutil mudança do torso era refletida na pele esticada e bronzeada.
– Isso aí... – Qhuinn sibilou, as presas se estendendo do maxilar superior, as mãos procurando, e encontrando, o sexo, apalpando-o em movimentos longos e lentos. – Isso mesmo.
A respiração de Blay começou a acelerar, os batimentos cardíacos subindo até o telhado enquanto os olhos descombinados de Qhuinn se prendiam ao seu sexo.
– É isso o que eu quero – o macho grunhiu, soltando-se e esticando as duas mãos.
Por uma fração de segundo, Blay não teve muita certeza como as partes trabalhariam. Qhuinn estava diante do sofá, paralelo ao móvel, por isso não havia muito espaço para...
Um grunhido sutil perpassou o ar enquanto Qhuinn flexionava os dedos como se mal conseguisse esperar para segurar aquilo que desejava.
O planejamento que fosse para o inferno.
Os joelhos de Blay atenderam ao chamado, dobrando para a frente, levando seu peso ao chão perto da cabeça de Qhuinn.
Qhuinn assumiu o controle a partir daí. As palmas escorregaram e se prenderam, atraindo Blay de modo que, sem nem se dar conta, ele tinha um joelho atrás da cabeça do cara e a outra perna estendida ao longo do corpo até o quadril de Qhuinn.
– Ai... cacete... – Blay gemeu ao sentir o sexo entrar entre os lábios de Qhuinn.
O corpo pendeu para a frente até ele acabar derramando o torso nas almofadas do sofá, e foi nesse momento que ele se viu com uma excelente alavancagem. Apoiando os braços no sofá, distribuiu o peso entre os joelhos, os pés e as palmas... e depois se pôs a foder a boca adorável de Qhuinn.
O cara aceitou tudo, mesmo quando os quadris descontrolados de Blay empurraram com tudo o que ele tinha.
Com os dedos de Qhuinn cravados em seu traseiro, e aquela incrível sucção, e... Cristo, o piercing da língua, com a bolinha resvalando seu mastro a cada estocada... Blay estava se dirigindo exatamente para o mesmo tipo de orgasmo que Qhuinn acabara de ter.
Mesmo assim, no fundo da sua mente, ele se questionava se não estava machucando o cara. Do jeito como as coisas seguiam, ele acabaria gozando no estômago dele.
Tarde demais para se preocupar com isso.
Seu corpo assumiu, enrijecendo numa série de espasmos torturantes que corriam do alto da coluna até as pernas.
E bem quando as sensações descontroladas estavam começando a diminuir, o mundo entortou ao seu redor, como se seu senso de equilíbrio tivesse explodido junto de seu...
Não, o mundo estava no lugar. Qhuinn acabara de se levantar do chão, saindo de baixo e se posicionando atrás...
Enquanto Qhuinn penetrava com uma estocada na velocidade da luz, Blay emitiu um gemido que com certeza seria ouvido no Canadá...
O rangido que se fez ouvir na sala o deixou intrigado, mesmo em meio à pressão e ao prazer.
Ah. Eles estavam empurrando o sofá.
Que seja. Ele compraria um novo para a casa se quebrassem a maldita porcaria; ele não iria parar.
O ritmo foi tão punitivo quanto fora o seu e, nesse caso, a revanche não era só o que ele merecia, mas exatamente o que ele queria. A cada estocada, seu rosto era empurrado contra as almofadas do sofá; a cada recuada, ele respirava; só para ser empurrado novamente, num círculo que recomeçava sempre.
Reposicionando as pernas para que Qhuinn alcançasse ainda mais fundo, Blay teve a vaga noção de que eles, definitivamente, mudavam o sofá de posição, mas quem é que se importava com isso, contanto que eles não acabassem no corredor?
No último instante, pouco antes de ele gozar, teve a presença de espírito de pegar as calças. Puxando as cuecas, ele...
A mão de Qhuinn se esticou, apanhou a Calvin Klein e fez o que era preciso, garantindo que houvesse algo para conter o seu gozo. Então, um instante depois, seu peito se deslocou do sofá e ele estava ereto sobre os joelhos. Qhuinn cuidou de tudo, segurando o pau de Blay enquanto cobria a cabeça – penetrando, ainda penetrando, sempre penetrando...
Gozaram ao mesmo tempo, dois pares de gritos ecoando pela sala.
No meio do orgasmo, Blay, sem querer, levantou o olhar. No enorme espelho antigo que estava pendurado entre as duas janelas do lado oposto, ele viu os dois, soube que estavam ligados... e isso o fez gozar novamente.
No fim, as investidas desaceleraram. Os batimentos cardíacos começaram a diminuir. As respirações foram se acalmando.
No vidro chumbado, ele viu Qhuinn fechar os olhos e abaixar a cabeça. Na lateral do seu pescoço, Blay sentiu um resvalar suave.
Os lábios de Qhuinn.
E então a mão livre do macho subiu, parando para afagar Blay no peitoral...
Qhuinn congelou. Recuou. Afastou os lábios, seu toque.
– Desculpe. Desculpe, eu... sei que não quer isso de mim.
A mudança no rosto do cara, o regresso ao cinismo costumeiro, era como ser roubado.
E mesmo assim Blay não podia dizer a ele que voltasse a se aproximar. Qhuinn estava certo; no instante em que a ternura aparecia, ele começava a entrar em pânico.
A retirada foi rápida, rápida demais, e Blay sentiu falta da sensação de estar completo e de ser possuído. Mas estava na hora de acabar com aquilo.
Qhuinn pigarreou.
– Hum... você quer que eu...
– Cuido disso – murmurou Blay, substituindo a mão de Qhuinn sobre as cuecas amassadas em seu quadril.
Durante o sexo, o silêncio na sala equivalia à privacidade. Agora, eram apenas os sons amplificados de Qhuinn subindo as calças de couro.
Droga.
Voltavam ao caos e à confusão. E enquanto as coisas aconteciam, as sensações eram tão intensas e esmagadoras que não houve nenhum pensamento além do sexo. Depois, porém, o corpo de Blay estava frio demais no ambiente climatizado, diferentes partes pulsavam por terem sido usadas, as pernas estavam moles e cambaleantes, a mente, enevoada...
Nada parecia seguro ou garantido. Nem um pouco.
Forçando-se a se vestir, colocou as roupas o mais rápido que conseguiu, inclusive os sapatos. Nesse meio-tempo, foi Qhuinn quem devolveu o sofá ao seu lugar, cuidadosamente colocando os pés nas marcas do tapete. Também ajeitara as almofadas. Endireitara o tapete oriental.
Foi como se nada tivesse acontecido. A não ser pelas cuecas de Blay amassadas em sua mão fechada.
– Obrigado – disse Qhuinn baixinho. – Eu, hum...
– Tudo bem.
– Então... acho que eu vou agora.
– Ok.
E foi isso.
Bem, além de a porta se fechar.
Deixado a sós, Blay resolveu que precisava de uma chuveirada. Mais comida. Dormir.
Em vez disso tudo, ele ficou na sala de estar do segundo andar, olhando para aquele espelho, lembrando-se do que vira nele. Em sua mente, teve a vaga noção de que eles não podiam continuar fazendo aquilo. Emocionalmente, não era seguro para ele; na verdade, era o equivalente a manter a palma da mão sobre uma chama uma vez após a outra, só que a cada vez que você voltava a colocar a mão, você diminuía a distância entre a sua carne e o calor. Cedo ou tarde? Queimaduras de terceiro grau seriam o menor dos seus problemas, porque o braço inteiro estaria em chamas.
Depois de um tempo, contudo, não ficou só pensando naquela coisa de autopreservação.
Mas sim no que dera início àquilo tudo.
Faz isso parar.
Blay passou a mão pelo cabelo. Depois olhou para a porta fechada e franziu o cenho, a mente trabalhando, trabalhando, trabalhando...
Um minuto depois, saiu apressado, andando rapidamente.
Antes de partir num trote.
E acabar correndo como um louco.
CAPÍTULO 41
Eram mais ou menos dez da manhã quando Trez seguiu para o Restaurante Sal’s. O trajeto do apartamento no Commodore para o belo estabelecimento do irmão não demorou, levando apenas dez minutos, e havia diversos espaços disponíveis para estacionar quando ele chegou lá.
De fato, o lugar não abria antes da uma da tarde, nem mesmo para o pessoal da cozinha iniciar a preparação.
Enquanto se encaminhava para a entrada, suas botas esmagando a neve, ele esperou que o código de abertura pelo lado externo não funcionasse: iAm não voltara para casa na noite anterior e, supondo que os cretinos do s’Hisbe não o tivessem levado embora como dano colateral, só havia um lugar em que seu irmão poderia estar. Depois de dois bules de café e muitas consultas ao relógio de pulso, Trez entendeu que, se queria fazer as pazes, ele teria de atravessar a cidade.
Legal. A combinação não fora mudada.
Ainda.
Do lado de dentro, o lugar parecia uma réplica do Rat Pack, numa interpretação moderna de uma era que gerara tipos como Peter Lawford e Frank Sinatra: uma entrada com papel de parede de algodão preto e vermelho o levava até a recepção, onde a chapelaria, a mesinha retrô da recepcionista e o caixa ficavam. À esquerda e também à direita, estavam os dois salões principais, ambos decorados em veludo e couro preto e vermelho, mas não eram onde os políticos e os endinheirados locais ficavam. O lugar predileto era o bar mais à frente, um salão com painéis de madeira que tinha bancos estofados quadrados de couro vermelho perto das paredes e, durante o expediente, um barman de smoking atrás de uma bancada de carvalho servindo nada que não fosse o melhor.
Atravessando a extensão do bar, Trez seguiu para o outro lado das cinco prateleiras de garrafas à mostra e passou pelas portas em vaivém. Ao entrar na cozinha, o cheiro de manjericão, cebola, orégano e vinho tinto lhe denunciou exatamente onde iAm estava.
Como esperado, o cara estava diante do enorme fogão industrial de dezesseis bocas na parede oposta, com cinco panelas imensas borbulhando diante dele – e você gostaria de apostar que também havia alguma coisa no forno? Nesse meio-tempo, tábuas de madeira de corte estavam enfileiradas nas bancadas de aço inoxidável, as cabeças mortas de diferentes tipos de pimentão deixadas ao lado das facas afiadas que foram usadas.
Dez pratas para adivinhar em quem o cara estava pensando enquanto picava aquilo tudo.
– Vai ou não falar comigo? – Trez disse para as costas do irmão.
iAm seguiu para a panela seguinte, levantando a tampa com um pano de prato branco, uma imensa escumadeira entrando e mexendo lentamente.
Trez se inclinou para o lado e puxou um banquinho de aço inoxidável. Sentando-se, esfregou as coxas para cima e para baixo.
– Oi? Alguém aí?
iAm foi para a panela seguinte. E depois a outra. Cada uma delas tinha uma colher diferente para evitar a mistura de sabores, e seu irmão tomava muito cuidado com isso.
– Escute, eu sinto muito se não estava quando você foi à boate ontem à noite – todas as noites, iAm ia para o Iron Mask para dar uma olhada depois que o Sal’s fechava. – Tive que cuidar de uns assuntos.
Merda, se teve. A garota do namorado grosseiro levou uma eternidade para sair do seu carro quando ele a levou para a casa dela. No fim, ele a acompanhou até a porta, abriu e só faltou empurrá-la para dentro. De volta ao carro, ele acelerou como se tivesse plantado uma bomba na calçada e, enquanto seguia para o Iron Mask, tudo o que ouvia em sua cabeça era a voz de iAm.
Você não pode continuar a fazer isso.
A essa altura, iAm se virou, cruzou os braços sobre o peito e se recostou ao fogão. Os bíceps já eram grandes, mas com os braços cruzados daquele jeito, forçavam a borda da camiseta preta que ele vestia.
Os olhos amendoados estavam semicerrados.
– Você acha mesmo que eu estou bravo porque você não estava quando fui ao clube? Sério? E não por que você me deixou para lidar com AnsLai ou qualquer asneira do tipo...
Eeeee estavam todos a postos.
– Sabe que não posso me encontrar com o cara – Trez levantou as mãos como se quisesse dizer que não havia nada que ele pudesse fazer. – Eles tentariam me forçar a voltar com eles e, então, quais seriam as minhas opções? Brigar? Eu acabaria lutando com o filho da puta e onde eu iria parar com isso?
iAm esfregou os olhos como se estivesse com dor de cabeça.
– Neste instante, parece que eles estão tomando uma abordagem diplomática. Pelo menos comigo.
– Quando vão voltar?
– Não sei. É isso o que está me deixando nervoso.
Trez enrijeceu. A ideia de que seu irmão frio como peixe estivesse ansioso o fez sentir como se estivesse com uma faca no pescoço.
Pensando bem, ele sabia muito bem o quanto o seu povo podia ser perigoso. O s’Hisbe era conhecido como uma tribo pacífica, satisfeita em se manter ao largo das lutas contra a Sociedade Redutora e dos desagradáveis humanos. Educados, muito inteligentes e espirituais, eles eram, como um todo, um grupo agradável. Desde que você não estivesse na lista negra deles.
Trez olhou para as panelas e se perguntou qual seria a carne no molho.
– Ainda estou em débito com Rehv – ele observou. – Portanto, essa obrigação deve vir em primeiro lugar.
– Não para o s’Hisbe. AnsLai disse, e vou citar suas palavras: “Chegou a hora”.
– Não vou voltar – ele fitou os olhos do irmão. – Isso não vai acontecer.
iAm voltou para as panelas, mexendo em cada uma com a colher designada.
– Sei disso. E é por isso que estou cozinhando. Estou tentando encontrar uma saída.
Deus, como ele amava o irmão. Mesmo irritado, o cara tentava ajudar.
– Desculpe-me por ter desaparecido e ter feito você cuidar disso. Sinto muito mesmo. Não foi justo... Eu só... bem, não achei seguro estar no mesmo cômodo que aquele cara. Sinto muito.
O peito largo de iAm subiu e desceu.
– Sei que sente.
– Eu poderia simplesmente desaparecer e o problema estaria resolvido.
Ainda que deixar iAm para trás o matasse. A questão era que, caso ele fugisse do s’Hisbe, ele jamais teria contato com o macho novamente. Nunca mais.
– Para onde você iria? – iAm observou.
– Não faço ideia.
A boa notícia é que o s’Hisbe não gostava de ter nenhum contato com os Desconhecidos. Sem dúvida, só aparecer no apartamento dele e de iAm fora traumático, mesmo se o sumo sacerdote tivesse se desmaterializado até a varanda. Lidar diretamente com humanos? Estar ao lado deles? A cabeça de AnsLai explodiria.
– Então, qual era o seu assunto? – perguntou iAm.
Maravilha. Mais um assunto igualmente feliz.
– Fui ver aquele armazém – ele desviou. Mas, cacete, até parece que ele tocaria no assunto da garota com o namorado espontaneamente.
– A uma da manhã?
– Fiz uma oferta.
– De quanto?
– Um milhão e quatrocentos. O preço pedido era de dois milhões e meio, mas não vão conseguir esse montante de jeito nenhum. O lugar está vazio há anos e demonstra isso – embora, ao dizer isso em voz alta, ele teve que admitir que sentira presenças lá. Pensando bem, talvez fosse apenas o seu estresse o responsável por isso. – Meu palpite é que vão dar uma contraoferta de dois milhões, eu subo para um e seiscentos e acabamos acordando em um e setecentos.
– Tem certeza de que quer iniciar esse projeto agora? A menos que apareça no território com o seu mastro matrimonial pronto para ser usado, esta questão com o s’Hisbe só vai piorar.
– Se as coisas chegarem a esse ponto, eu cuido disso na hora certa.
– Quando – iAm o corrigiu. – A questão é “quando”. E sei o que aconteceu no estacionamento, Trez. Com aquele cara e a mulher.
Claaaaro que sim.
– Viu as fitas ou algo assim?
Maldita câmera de segurança.
– Sim.
– Eu cuidei daquilo.
– Assim como está cuidando do s’Hisbe. Perfeito.
Com o humor afetado, Trez se inclinou.
– Quer calçar os meus sapatos, irmãozinho? Eu bem que gostaria de saber como você lidaria com essa merda toda.
– Eu não estaria fodendo putas, isso eu garanto. O que me faz pensar... o nosso corretor é uma fêmea, não?
– Foda-se, iAm. De verdade.
Trez se levantou do banquinho e marchou para fora da cozinha. Ele já tinha problemas suficientes, pelo amor de Deus, não precisava do senhor Superior com habilidades de Julia Child palpitando sobre o assunto com doze tipos de panelas...
– Você não pode continuar postergando esse assunto – iAm chamou de lá de trás. – Ou tentando enterrá-lo entre as pernas das mulheres.
Trez parou, mas manteve o olhar fixo na saída.
– Simplesmente não pode – o irmão afirmou com franqueza.
Trez girou. iAm estava perto do bar, a porta em vaivém mexendo atrás dele formando um efeito de estroboscópio de luz, escuro, luz, escuro. Toda vez que a luz surgia, parecia que seu irmão tinha um halo ao redor de todo o corpo.
Trez praguejou.
– Só preciso que me deixem em paz.
– Eu sei – iAm esfregou a cabeça. – E, honestamente, não sei que porra fazer a respeito. Não consigo me imaginar vivendo sem você, e também não quero voltar para lá. Só que também não encontrei alternativas.
– Aquelas mulheres... sabe, as que eu... – Trez hesitou. – Não acha que elas me excitam?
– Se elas não fazem isso – iAm disse secamente –, não sei porque perde tempo com elas.
Trez teve que dar um sorriso.
– Não, estou falando do s’Hisbe. Estou bem longe de ser virgem a esta altura – pelo menos ele ainda não se rebaixara a animais de fazenda. – E o que é pior? Todas eram Desconhecidos, a maioria humanas. Isso deve enojá-los. Estamos falando da filha da rainha!
Enquanto iAm franzia o cenho como se estivesse considerando a ideia, Trez sentiu uma centelha de esperança.
– Não sei, não – veio a resposta. – Talvez isso funcione, mas ainda assim você negou a Sua Alteza o que ela quer e precisa. Se eles o considerarem desonrado, podem muito bem decidir matá-lo como castigo.
Que seja. Eles teriam que encontrá-lo primeiro.
Numa onda de agressão, Trez abaixou o queixo e olhou fixo por debaixo das sobrancelhas.
– Se esse for o caso, eles vão ter que lutar comigo. E eu garanto que isso não vai acabar bem para eles.
Na mansão da Irmandade, Wrath entendeu que sua rainha estava aborrecida no instante em que ela passou pelas portas do escritório. Seu cheiro atraente estava maculado por uma pontada de acidez: ansiedade.
– O que foi, leelan? – ele quis saber, estendendo os braços.
Mesmo não enxergando, suas lembranças lhe davam uma imagem mental dela cruzando o tapete Aubusson, com o corpo longo e atlético se movendo com graciosidade, os cabelos escuros soltos sobre os ombros, o lindo rosto marcado por tensão.
Naturalmente, o macho vinculado dentro dele desejou perseguir e matar o que quer que a tivesse perturbado.
– Olá, George – disse ela ao cão. Pelo barulho de batidas ritmadas no chão, ele supôs que o cachorro tivesse recebido uma dose de amor antes.
E então foi a vez do dono.
Beth subiu no colo de Wrath, o peso próximo de nada, o corpo quente e vivo enquanto ele passava os braços ao seu redor e a beijava nas laterais do pescoço e depois na boca.
– Jesus – grunhiu ele, sentindo a rigidez no corpo dela –, você está aborrecida mesmo. Que merda está acontecendo?
Deus do céu, ela estava tremendo. Sua rainha estava, de fato, tremendo.
– Fale comigo, leelan – insistiu, esfregando-lhe as costas. E se preparando para se armar e sair em plena luz do sol se preciso fosse.
– Bem, você sabe sobre Layla – disse ela com voz rouca.
Ahhhh.
– Sim, sei. Phury me contou.
Enquanto a cabeça dela se posicionava em seu ombro, ele a ajeitou, aninhando-a em seu peito – e isso era bom. Havia vezes – não muitas, mas ocasionais – em que ele se sentia menos macho por conta de sua falta de visão: no passado, um lutador, agora, preso atrás daquela mesa. Um dia livre para ir aonde bem quisesse, agora, dependendo de um navegador canino. Certa vez absolutamente autossuficiente, agora, precisando de ajuda.
Não muito bom para os colhões de um macho.
Mas em momentos como aquele, quando aquela fêmea maravilhosa estava incomodada e o procurava, e somente a ele, para conforto e segurança, ele se sentia mais forte que uma maldita montanha. Afinal, machos vinculados protegiam suas fêmeas com tudo o que tinham, e mesmo com o fardo do seu direito de nascimento e aquele trono em que era obrigado a se sentar, ele, em seu cerne, permanecia o hellren daquela fêmea.
Ela era a sua primeira prioridade, acima inclusive daquela coisa toda de reinado. A sua Beth era o seu coração atrás das costelas, o tutano dentro de seus ossos, a alma em seu corpo físico.
– É tudo tão triste – disse ela. – Tão triste.
– Você foi vê-la?
– Acabei de ir. Ela está descansando. Quero dizer... de certa forma, custo a acreditar que não haja nada a ser feito.
– Falou com a doutora Jane?
– Assim que eles voltaram da clínica.
Enquanto a sua shellan chorava um pouco, o cheiro das lágrimas frescas de sua amada era como uma adaga em seu peito, e ele não estava surpreso com a reação dela. Ouvira dizer que as fêmeas lidavam muito mal com a perda da gravidez de outra fêmea – e como não ser assim? Ele, por certo, conseguia se colocar no lugar de Qhuinn.
E, ah, Deus... a ideia de Beth sofrer daquele modo? Ou pior, de conseguir levar adiante a gestação e depois...
Ótimo. Agora era ele quem tremia.
Wrath abaixou o rosto para os cabelos de Beth, inspirando, acalmando-se. A boa notícia era que eles jamais teriam um filho, portanto, ele não tinha com que se preocupar.
– Eu sinto muito – sussurrou.
– Eu também. Odeio o que eles estão passando.
Bem, na verdade, ele estava se desculpando por outra coisa completamente diferente.
Não que ele quisesse que uma merda daquelas acontecesse com Qhuinn, Layla e o filho deles. Mas talvez se Beth enxergasse a triste realidade, ela se lembraria de todos os riscos que se apresentavam a eles em todas as etapas de uma gestação.
Porra. Aquilo soava horrível. Era horrível. Pelo amor de Deus, ele não queria mesmo nada daquilo para Qhuinn, e tampouco queria ver sua shellan triste. Infelizmente, porém, a triste realidade era que ele não tinha absolutamente interesse algum em plantar sua semente nela daquele jeito – jamais.
E esse tipo de desespero fazia com que um cara pensasse em coisas imperdoáveis.
Numa onda de paranoia, ele calculou mentalmente os anos desde a transição dela – um pouco mais do que dois. Pelo que sabia, as fêmeas vampiras, em média, passavam pelo primeiro cio uns cinco anos após a transformação, e a cada dez anos depois disso. Portanto, eles tinham um bom tempo antes de terem de se preocupar com tudo isso...
Pensando bem, como mestiça, não havia garantias no caso de Beth. Quando os humanos e os vampiros se misturavam, qualquer coisa podia acontecer... E ele tinha motivos para se preocupar. Afinal, ela já mencionara filhos uma ou duas vezes.
Mas, obviamente, aquilo só podia ser hipoteticamente.
– E então, você vai postergar a iniciação de Qhuinn? – ela perguntou.
– Sim. Saxton já atualizou a lei, mas Layla estando assim? Não é o momento de trazê-lo para a Irmandade.
– Foi o que pensei.
Os dois se calaram, e enquanto Wrath guardava aquele momento em seu coração, não conseguiu imaginar sua vida sem ela.
– Sabe de uma coisa? – perguntou.
– O quê? – havia um sorriso na voz dela, do tipo que dizia a ele que ela sabia para onde a conversa estava indo.
– Eu amo você mais do que tudo.
Sua rainha deu uma leve risada, e o afagou no rosto.
– Eu jamais teria imaginado isso.
Inferno, até ele captava a onda de seu odor de vinculação.
Em resposta, Wrath segurou o rosto dela entre as palmas e se inclinou, encontrando seus lábios e depositando um beijo suave, que não permaneceu assim. Caramba, era sempre assim com ela. Qualquer contato e, antes que se desse conta, já estava rígido e pronto.
Deus, não sabia como os homens humanos lidavam com isso. Pelo que entendia, eles tinham de adivinhar se seus pares estavam férteis toda vez que faziam sexo – evidentemente, eles não tinham como captar a alteração nos odores de suas fêmeas.
Ele enlouqueceria. Pelo menos quando uma vampira estava no cio, todos sabiam.
Beth mudou de posição em seu colo, apertando a sua ereção e fazendo-o gemer. E, normalmente, essa era a dica para George ser levado para o outro lado das portas duplas, banido temporariamente. Mas não naquela noite. Por mais que Wrath a desejasse, a tristeza presente na casa aplacava até mesmo a sua libido.
E também havia a questão do cio de Autumn. E de Layla.
Ele não iria mentir; aquela merda o estava deixando ansioso. Sabia-se que hormônios no ar tinham um efeito ricochete numa casa cheia de fêmeas, influenciando umas às outras ao cio, desde que seu período estivesse próximo.
Wrath afagou os cabelos de Beth e voltou a acomodar a cabeça dela em seu ombro.
– Você não quer...
Enquanto ela deixava a frase inacabada, ele pegou a sua mão e a levantou, sentindo o peso do anel de rubi que a rainha da raça sempre usava.
– Só quero abraçar você – disse ele. – Isso basta para mim agora.
Aninhando-se, ela se encaixou ainda mais perto dele.
– Bem, isto também é gostoso.
Sim. Era.
E curiosamente aterrador.
– Wrath?
– Sim?
– Você está bem?
Demorou um pouco para ele confiar na voz e responder:
– Sim, estou bem. Tudo bem.
Ao alisar o braço dela, para cima e para baixo, ele rezou para que ela acreditasse... e jurou que o que acontecia no quarto no fim do corredor nunca, jamais, aconteceria com eles.
Não. Os dois não teriam de lidar com aquele tipo de crise.
Graças à Virgem Escriba.
CAPÍTULO 42
Claro que Layla não estava dormindo.
Quando pediu a Qhuinn que saísse, ela falou sério quanto a não querer sustentar uma fachada de força diante dele. Mas o mais engraçado era que mesmo sem ninguém por perto, ela não ficou histérica. Não chorou. Não praguejou.
Apenas ficou deitada de lado com os braços e as pernas enroscados, a mente recuada para dentro do corpo e monitorando constantemente cada dor e cólica numa compulsão que a enlouquecia. No entanto, não havia como mudar aquilo. Era como se uma parte dela estivesse convencida de que se ao menos ela soubesse em que estágio estava, ela poderia, de algum modo, monitorar o processo.
O que, na verdade, era uma tremenda tolice. Como Qhuinn bem diria.
A imagem dele na clínica, com a adaga no pescoço do médico, era algo saído de um dos livros da biblioteca do Santuário – um episódio dramático que era parte da vida de outra pessoa.
Sua posição na cama, porém, fazia com que ela lembrasse que o caso não era bem esse...
A batida à porta foi suave, sugerindo se tratar de uma fêmea.
Layla fechou os olhos. Por mais que apreciasse qualquer tipo de gentileza que aguardava uma resposta, ela preferiria que quem quer que estivesse no corredor, continuasse lá. A breve visita da rainha fora uma provação, mesmo ela tendo apreciado.
– Sim – quando sua voz mal soou em seus ouvidos, ela pigarreou e repetiu: – Sim?
A porta abriu e, a princípio, ela não reconheceu quem era na sombra que preenchia o espaço entre os batentes da porta. Alta. Forte. Porém, não um macho...
– Payne? – perguntou.
– Posso entrar?
– Sim, claro.
Enquanto Layla tentava se sentar, a fêmea guerreira gesticulou para que ela continuasse deitada, e depois fechou a porta.
– Não, não... por favor, fique à vontade.
Um abajur fora deixado aceso sobre a cômoda e, na luz suave, a irmã de sangue de Vishous da Irmandade da Adaga Negra parecia temerária, com os olhos de diamante parecendo reluzir para fora dos ângulos fortes do rosto dela.
– Como você está? – a fêmea perguntou com suavidade.
– Estou bem, obrigada. E você?
A lutadora deu um passo à frente.
– Eu sinto muito quanto... à sua condição.
Ah, como Layla desejava que aquilo fosse algo que Phury e os outros não tivessem partilhado com ninguém. Em retrospecto, a saída da casa fora um tanto dramática, o tipo de evento que causaria perguntas preocupadas. Ainda assim, sua privacidade preferia evitar esse tipo de invasão indesejável, ainda que misericordiosa.
– Agradeço as suas palavras gentis – sussurrou.
– Posso me sentar?
– Sim, claro.
Ela imaginou que a fêmea fosse se sentar numa das cadeiras dispostas mais ao longe. Não foi o que Payne fez. Ela se aproximou da cama e abaixou o peso ao lado de Layla.
Compelida a, pelo menos, parecer uma boa anfitriã, Layla tentou se suspender, fazendo uma careta quando uma nova onda de cólicas a imobilizou no meio do caminho.
Enquanto Payne praguejava baixinho, Layla teve que voltar a se deitar. Com voz rouca, disse:
– Perdoe-me, mas não posso receber visitas agora, por mais que me queira bem. Obrigada por expressar a sua empatia...
– Você sabe quem é a minha mãe – Payne a interrompeu.
Layla balançou a cabeça ao encontro do travesseiro.
– Por favor, saia...
– Sabe? – a fêmea perguntou com rispidez.
Abruptamente, Layla quis chorar. Simplesmente não tinha forças para qualquer tipo de conversa, ainda mais a respeito de mahmens. Não enquanto perdia o filho.
– Por favor.
– Sou filha da Virgem Escriba.
Layla franziu o cenho, as palavras sendo compreendidas mesmo em meio à dor, tanto física quanto mental.
– O que disse?
Payne inspirou profundamente, como se a revelação não fosse algo com que se alegrasse, mas como se fosse um tipo de maldição.
– Sou da carne da Virgem Escriba, nascida há muito tempo, e ocultada dos registros das Escolhidas e dos olhos de outrem.
Layla piscou em estado de choque. A aparição da fêmea fora um tipo de mistério, mas ela certamente não fizera nenhuma pergunta, pois isso não cabia a ela. A única coisa que sabia com convicção é que jamais houve registro algum da mãe sagrada da raça um dia ter dado à luz uma criança.
Na verdade, a estrutura completa do sistema de crença era prevista no fato de isso não ter ocorrido.
– Como isso é possível? – arfou Layla.
Os olhos brilhantes de Payne estavam sérios.
– Não era o que eu desejaria. E não é algo de que fale a respeito.
No momento tenso que se seguiu, Layla considerou impossível não ver a verdade naquilo que a fêmea falava. Tampouco a raiva, cuja causa ela apenas podia supor.
– Você é sagrada – disse Layla maravilhada.
– Nem um pouco, eu lhe garanto. Mas minha linhagem me concedeu um tipo de... como posso explicar? Habilidade.
Layla se enrijeceu.
– Que seria...?
Os olhos de diamante de Payne não se desviaram.
– Quero ajudá-la.
As mãos de Layla foram para o baixo ventre.
– Se quer abreviar isto... não.
Ela tinha seu filho por um tempo curto demais. Não importava a dor que tivesse que passar, ela não sacrificaria um minuto sequer daquilo que, sem dúvida, seria sua única gestação.
Ela jamais se colocaria à mercê de outro sofrimento assim. No futuro, quando seu cio chegasse, ela seria sedada e pronto.
Aquele tipo de perda uma vez na vida já era demais.
– E se acredita que pode deter isto – Layla continuou –, isso não é possível. Não há nada que ninguém possa fazer.
– Não estou tão certa disso – o olhar de Payne era enlevado. – Eu gostaria de ver se posso salvar esta gestação. Se me permitir.
No campus abandonado da Escola para Moças Brownswick, o Sr. C. se acomodou no que um dia fora o escritório da diretora.
Era o que estava escrito na placa rachada do lado de fora da sala.
Como não havia calefação, a temperatura ambiente não estava muito maior do que a do lado de fora, mas graças ao sangue de Ômega, o frio não era um problema. Ainda bem: do outro lado do gramado crescido coberto de neve, no dormitório principal sobre uma colina, quase cinquenta redutores dormiam o sono dos mortos.
Se aqueles malditos necessitassem de aquecimento ou de comida, ele estaria sem sorte alguma.
Mas não, tudo o que ele tinha de fazer era providenciar um abrigo. A iniciação cuidaria do resto – e o fato de que precisavam desligar a consciência a cada 24 horas era um alívio.
Ele precisava de tempo para pensar.
Jesus Cristo, que confusão.
Compelido pela necessidade de se mexer, ele empurrou a cadeira para trás e se lembrou de que estava se sentando sobre um balde de argamassa virado ao contrário.
– Maldição.
Olhando ao redor da sala decrépita, ele mediu as placas de gesso penduradas das vigas do teto, as janelas cobertas por tábuas de madeira, e o buraco em uma das tábuas do piso no canto. O lugar era igual à conta bancária que ele encontrara.
Nenhum dinheiro em lugar algum. Munição zero. Armas que podiam ser usadas em combate à força, e só.
Depois de sua promoção, ele se viu cheio de energia, de planos. Agora encontrava-se diante de nenhum dinheiro, nenhum recurso, nada.
Ômega, por outro lado, esperava todo tipo de resultado. Como deixara bem claro no “encontro” deles na noite anterior.
E também havia outro problema. Ele odiava aquela merda.
Pelo menos ele podia fazer algo a respeito de todo o resto.
Esticando os braços acima da cabeça e estalando os ombros, agradeceu a Deus por duas coisas: uma, os celulares não tinham sido desligados, por isso ele podia se comunicar com seus homens no campo de batalha. E dois, todos aqueles anos na rua lhe deram os punhos de ferro no que se referia a controlar o bando de idiotas do tráfico de drogas.
Tinha de arranjar dinheiro. Logo.
Ele teve uma porra de um plano para isso também, mandando os últimos nove mil dólares com aqueles três garotos no meio da noite. Tudo o que os malditos tinham de fazer era pagar, pegar a droga e trazer para ali, onde dividiriam a merda, depois distribuiriam entre os novos recrutas para que eles vendessem nas ruas.
O problema era que ele ainda estava esperando pela porra da entrega.
E estava ficando puto de tanto esperar para descobrir se as drogas e o dinheiro tinham sumido.
Era bem possível que aqueles merdinhas tivessem fugido com um ou com o outro, mas, nesse caso, ele os caçaria como cachorros para mostrar aos outros o que acontecia quando você...
Quando seu celular tocou, ele o pegou, viu quem era e apertou o botão de chamada.
– Já era hora. Onde diabos você está e cadê minha mercadoria?
Houve uma pausa. Depois, a voz que se ouviu pela conexão não era nada parecida com a do traficante cheio de espinhas para quem ele entregara o celular e a última pistola da Sociedade que funcionava.
– Tenho uma coisa que você quer.
O Sr. C. franziu a testa. Voz grave. Envolta numa impaciência que ele reconhecia das ruas, e um sotaque que ele não sabia de onde vinha.
– Não é essa merda com a qual você está falando comigo – disse o Sr. C. com fala arrastada. – Tenho um monte desses.
Afinal de contas, quando você não tem nada na mão, no coldre ou na carteira, blefar era a sua única opção.
– Ora, que bom para você. Também tem muito do que me mandou? Dinheiro? Soldados?
– Quem diabos está falando?
– Sou seu inimigo.
– Se você ficou com a porra da minha grana, pode apostar que sim.
– Na verdade, essa é uma resposta bem simplista para um problema um tanto complexo.
O Sr. C. se pôs de pé, derrubando o balde.
– Onde está a porra do meu dinheiro e o que fez com os meus homens?
– Lamento, mas eles não podem mais atender ao telefone. É por isso que estou ligando.
– Você não faz ideia com quem está lidando – o Sr. C. ameaçou.
– Pelo contrário, é você quem está em desvantagem, bem como tantos outros – quando o Sr. C. estava pronto para rebater, o cara o interrompeu. – Eis o que vamos fazer. Vou telefonar à noite para lhe dar uma localização. Você, e apenas você, vai me encontrar lá. Se alguém o acompanhar, eu saberei, e você nunca mais vai saber de mim.
O Sr. C. estava acostumado a sentir desdém pelos outros, isso era parte do trabalho uma vez que você só lida com ladrões de merda e malditos viciados. Mas esse cara do outro lado da conexão? Controlado. Calmo.
Um profissional.
O Sr. C. controlou seu humor.
– Não preciso de nenhum joguinho...
– Sim, precisa. Porque se você quiser drogas para vender, terá que vir a mim.
O Sr. C. ficou calado. Ou aquele era um lunático cheio de ilusões de grandeza ou... era alguém com poder de verdade. Talvez o tipo que matou os intermediários do cartel de drogas em Caldwell um ano antes.
– Quando e onde? – disse de má vontade.
Houve uma risada sombria.
– Atenda o seu telefone ao cair da noite e você descobrirá.
CAPÍTULO 43
Layla não conseguiu falar enquanto tentava compreender as palavras de Payne.
– Não – disse à outra fêmea. – Não, Havers me disse que... não havia nada que pudesse ser feito.
– Na medicina, isso pode ser verdade. Eu posso ter outro modo, porém. Não sei se funcionará, mas, se permitir, eu gostaria de ver o que posso fazer.
Por um instante, Layla só conseguiu respirar.
– Eu não... – pôs a mão no abdômen liso. – O que fará comigo?
– Não sei bem, para ser sincera – Payne deu de ombros. – Na verdade, nem me passou pela cabeça que eu poderia ajudar nesta situação. Mas sou conhecida por curar aquilo que precisa ser curado. Repito, não sei se isso se aplica neste caso. Contudo, podemos tentar... e isso não a machucará. Isso eu posso prometer.
Layla perscrutou a expressão da lutadora.
– Por que... faria uma coisa dessas por mim?
Payne franziu o cenho e desviou o olhar.
– Você não precisa saber os motivos.
– Sim, preciso.
O perfil dela se tornou absolutamente frio.
– Você e eu somos irmãs da tirania de minha mãe, casualidades de seu plano maior de como as coisas devem ser. Estivemos as duas enjauladas em seus modos diversos, você como uma Escolhida; eu, como sua filha de sangue. Não há nada que eu não faça para ajudá-la.
Layla se recostou. Jamais se considerara uma desventura da mãe da raça. A não ser... ao pensar em seu desespero em ter uma família, seu senso de não ter raízes, sua absoluta falta de identidade além do trabalho de uma Escolhida... ela teve o que pensar. O livre-arbítrio a levava àquela situação horrenda, mas, pelo menos, ela escolhera a rota e os meios. Como membro da classe especial da Virgem Escriba, não tivera muitas escolhas, a respeito de nada em sua vida.
A respeito de nada mesmo.
Ela estava perdendo aquela gravidez, aquilo era óbvio. E se Payne achava que existia uma chance de...
– Faça o que precisar fazer – disse com voz rouca. – E obrigada, não importando o resultado.
Payne assentiu uma vez. Depois esticou as mãos, flexionando e afastando os dedos.
– Posso tocar no seu abdômen?
Layla abaixou as cobertas.
– Devo tirar a camisa?
– Não.
Melhor assim. A simples retirada da colcha lhe provocara uma nova onda de dor, a mínima mudança de peso era causa de...
– Você está sofrendo muito – murmurou a outra fêmea.
Layla não respondeu ao expor a pele do abdômen. Obviamente, sua expressão já dizia o bastante.
– Apenas relaxe. Isso não deverá lhe causar nenhum desconforto...
Quando o contato foi feito, Layla levantou a cabeça. As mãos da lutadora estavam quentes como a água de uma banheira. E igualmente calmas. Estranhamente calmas, para falar a verdade.
– Isto dói? – Payne perguntou.
– Não. Parece... – quando uma nova onda de dor se avolumava, ela agarrou os lençóis, se preparando...
Só que o pico da dor não se elevou como antes, como se a sensação fosse uma montanha íngreme, cujo topo fora arrancado.
Era o primeiro alívio que sentia desde que tudo aquilo começara.
Com um gemido de submissão, ela deixou a cabeça pender, o travesseiro amparando o repentino cansaço que a abateu pelo tanto de desconforto pelo qual seu corpo passara.
– E agora nós começamos.
De repente, a luz do abajur tremulou... e depois se apagou.
Sua iluminação, contudo, logo foi substituída.
Das mãos pálidas de Payne um brilho suave começou a ser lançado. O calor de seu toque se intensificou, o abrandamento estranho e maravilhoso parecia penetrar em sua pele, nos músculos, em cada osso que estava no caminho... indo direto para o ventre de Layla.
E, então, houve um tipo de explosão.
Com um sibilo, ela se entregou à grande onda de energia que abruptamente surgiu dentro dela, um calor que não queimava, mas fervia afastando a dor, suspendendo a agonia e arrancando-a de sua carne, como se o vapor de uma panela se dissipasse.
Mas não acabou ali. Uma grande sensação de euforia em seu corpo inteiro, com cachos dourados pulsando para fora de sua região pélvica e fluindo pelo torso até a mente e também em sua alma, e pernas e braços formigando.
Ah, que alívio pungente.
Ah, que poder incrível.
Ah, graça salvadora gentil.
A cura, contudo, não estava completa.
No meio do turbilhão, Layla sentiu... o que era aquilo? Um movimento em seu útero. Uma contração, talvez? Mas não uma cólica, não, nada disso. Mais como se o que estivesse defasado tivesse recuperado as forças.
Ela, gradualmente, deu-se conta de que batia os dentes.
Olhando para baixo, para seu corpo, ela viu que tudo tremia, e não só isso.
Sua forma física estava brilhando. Cada centímetro de sua pele era como uma cúpula de um abajur, revelando a luz que jazia por baixo, as roupas agindo como barreiras frágeis daquilo que fervia lentamente dentro dela.
Na iluminação, o rosto de Payne estava contraído, como se fosse um custo alto transferir a cura maravilhosa para outra pessoa. E Layla teria se distanciado, colocado um fim naquilo, se pudesse – porque a outra fêmea começava a parecer muito cansada. No entanto, não havia como romper a ligação. Ela não tinha o controle dos seus membros, não tinha como falar.
Aquela comunhão vital entre as duas pareceu durar uma eternidade.
Quando Payne finalmente se afastou, rompendo o elo, ela caiu da cama, formando uma pilha no chão.
Layla abriu a boca para gritar. Tentou segurar sua salvadora. Lutou contra o peso morto do corpo ainda iluminado.
Todavia, não havia nada que ela pudesse fazer.
A última coisa que ficou registrada antes que perdesse a consciência era a sua preocupação com a outra fêmea. E, depois, tudo ficou escuro.
CAPÍTULO 44
Qhuinn despertou com o pênis duro.
Estava deitado de costas e seus quadris se mexiam por conta própria, o movimento contínuo resvalava a ereção contra o peso dos lençóis e da colcha. Por um instante, enquanto se demorava naquele estado meio dormente antes de a consciência chegar, ele imaginou que era Blay criando aquela fricção, as palmas do macho subindo e descendo... num preâmbulo de mais ação oral.
Foi quando abaixou a mão para enterrar os dedos nos cabelos ruivos que percebeu estar sozinho: a mão encontrou apenas os lençóis.
Numa atitude otimista, lançou o braço para o lado, tateando o lugar ao seu lado, pronto para encontrar o corpo quente do macho.
Apenas mais lençóis. E estavam frios.
– Cacete – inspirou.
Abrindo os olhos, a realidade de onde estava o atingiu com força, murchando a sua ereção. Apesar dos encontros, aqueles dois interlúdios maravilhosos e extremamente sensuais, Blay estava, naquele exato instante, acordando ao lado de Saxton.
Provavelmente fazendo sexo com o cara.
Ah, Deus, ele ia vomitar.
A ideia de Blay tocando em outro, cavalgando em outro, lambendo e afagando outro – seu maldito primo, para ser bem claro – era quase tão insuportável quanto a maldita situação de Layla. A verdade era que, graças ao que acontecera, qualquer atração que Qhuinn sentisse pelo cara aumentara em vez de diminuir.
Maravilha. Outra rodada de boas notícias.
Foi sem nenhum entusiasmo que Qhuinn se arrastou para fora da cama e entrou no banheiro. Não acendeu a luz, não tinha interesse algum em ver que sua aparência era a mesma da merda de um cachorro, mas barbear-se só pelo toque não era a melhor das ideias.
Ao apertar o interruptor, piscou com força, e uma dor de cabeça começou a latejar atrás de ambos os olhos. Sem dúvida precisava comer de novo, mas que merda, as exigências constantes de seu corpo estavam acabando com ele.
Abrindo a torneira, ele pegou o gel de barbear e colocou um punhado na palma. Esfregou as mãos para criar espuma e pensou em seu primo. Ele tinha a impressão, embora não soubesse com certeza, de que Saxton usaria um daqueles pincéis antigos para espalhar a espuma no rosto. E nada de lâminas Gilette para ele. Muito provavelmente ele tinha um daqueles instrumentos de barbeiro com cabo em madrepérola.
O pai de Qhuinn tinha um desses. E seu irmão recebera um com suas iniciais após sua transição.
Junto ao anel de sinete.
Bem, ótimo para eles. Além do que, já que ambos estavam mortos, não era como eles continuassem se barbeando.
Quando o rosto ficou coberto de branco, como o cenário lá de fora, ele pegou sua lâmina comum Mach 3 com cabeça descartável...
Sem nem saber por que, achou que devia pegar uma lâmina nova.
Sim, uma supernova e ultracortante.
Qhuinn revirou os olhos para si mesmo. Nada como se concentrar em três pequenas lâminas e uma tira umidificadora. Algo bem lógico.
Depois de se admoestar, ele começou a vasculhar as gavetas do gabinete, puxando-as uma a uma, inventariando os itens de tolices de higiene que nunca usava, nem jamais sequer perdia tempo olhando-as.
Puxando a última, a mais próxima do chão, parou. Franziu o cenho. Agachou.
Havia uma caixinha preta de veludo ali, do tipo em que se colocam joias. Só que ele não tinha nenhuma, e muito menos da Reinhardt, aquela loja esnobe no centro. Como ninguém mais ficava em seu quarto, ele se perguntou se, talvez, aquilo estivesse ali desde que ele se mudara e ele simplesmente nunca o vira.
Tirando a caixinha, levantou a tampa e...
– Filho da mãe.
Dentro, como se valesse muita coisa, estavam todos os seus brincos de argola, bem como o piercing que costumava usar no lábio inferior.
Fritz deve tê-los juntado ao limpar o quarto uma noite e guardado na caixinha. Única explicação possível, porque Qhuinn não se importara com eles depois de tirá-los, um a um. Simplesmente os jogara no fundo de uma das gavetas do banheiro.
Qhuinn mexeu nas argolas de aço, relembrando quando as comprara e colocara. Seu pai ficara mortificado; a mãe também – ao ponto de se retirar da Última Refeição e ficar trancada no quarto por 24 horas seguidas depois de ele entrar flanando na sala de jantar usando-as.
O colocador de piercings lhe dissera para não usá-los até que as tachas utilizadas para perfurar tivessem a chance de cicatrizar. Mas esse conselho era para humanos. Em poucas horas, estava tudo perfeito e ele fizera a troca.
No banheiro de Blay, para falar a verdade.
Qhuinn franziu a testa, lembrando-se do momento em que pisara no quarto do cara. Blay estava na cama, acalentando uma Corona, assistindo TV. A cabeça dele se virou, com sua expressão franca e relaxada... até dar uma olhada em Qhuinn.
Seu rosto se contraiu mesmo que minimamente. De um jeito que, a menos que você conhecesse bem, muito bem uma pessoa, jamais teria percebido. Mas Qhuinn notara.
Naquela época, deduzira que seu estilo obviamente gótico fosse um tantinho demais para o senhor Conservador. Mas agora, em retrospecto, ele se lembrou de algo mais. Blay voltara a se concentrar na TV de plasma... e, casualmente, cobrira o colo com uma almofada.
Ele deve ter ficado excitado.
Enquanto Qhuinn repassava a cena inteira na mente, seu próprio sexo voltava a engrossar.
Só que aquilo era uma completa perda de tempo, não era?
Fitando as malditas argolas, pensou em sua rebeldia, na raiva e na ideia sem noção do que precisava ter para ser feliz.
Uma fêmea. Se encontrasse uma que o aceitasse.
Que... mentira... fora aquilo.
Engraçado, a covardia aparecia em muitas formas, não é? Não era necessário se encolher num canto, tremendo e choramingando como um gatinho. Inferno, não. Você pode ser um grandalhão barulhento cheio de marra e com o rosto cheio de piercings e um rosnado para mostrar para o mundo... e ainda assim não passar de um covarde filho da puta. Afinal, Saxton podia vestir ternos de três peças e gravatas e sapatos, mas o macho sabia quem era, e não tinha medo de ter aquilo que desejava.
E, olha só, Blay estava acordando ao lado do cara.
Qhuinn fechou a tampa e recolocou os piercings onde os encontrara. Depois se olhou no espelho. O que estava fazendo mesmo?, pensou ao fitar seu reflexo.
Ah, sim. Barbeando-se.
Era isso mesmo.
Cerca de vinte minutos mais tarde, Qhuinn saiu do quarto. Andou pelo corredor das estátuas, passou pelas portas fechadas do escritório de Wrath e continuou em frente.
Enquanto avançava, foi difícil olhar para a sala de estar do segundo andar, difícil permanecer controlado quando aquele sofá surgiu no seu campo de visão.
Nunca mais olharia para aquela peça de mobília do mesmo modo. Inferno, talvez todos os sofás estivessem perdidos para ele, para sempre.
À porta de Layla, ele se inclinou encostando o ouvido na madeira. Quando não ouviu nada, perguntou-se exatamente o que achava que descobriria daquele modo.
Deu uma batida suave. Quando não houve resposta, sentiu um aperto de medo irracional na garganta e, sem pensar duas vezes, abriu a porta.
A luz invadiu a escuridão.
Seu primeiro pensamento foi que ela tivesse morrido; que Havers, o filho da puta, tivesse mentido, e que o aborto tivesse saído do controle e a matado: Layla estava imóvel ao encontro dos travesseiros, a boca ligeiramente entreaberta, as mãos cruzadas sobre o peito como se ela tivesse sido arrumada por um agente funerário com respeito pelos mortos.
Só que... algo estava diferente, e ele precisou de um minuto para perceber o que era.
Não havia mais o cheiro sobrepujante do sangue. Na realidade, somente a fragrância delicada de canela marcava o ar, refrescando-o de um modo que iluminava o quarto inteiro.
Será que o aborto finalmente chegara ao fim?
– Layla? – ele a chamou, mesmo tendo dito que se a encontrasse dormindo, não a perturbaria.
Foi um alívio ver as sobrancelhas se mexendo quando seu nome foi captado pelo cérebro, mesmo sob o véu do sono.
Ele teve a sensação de que se a chamasse de novo, ela acordaria.
Parecia cruel forçar-lhe a consciência. O que ela teria para recebê-la quando acordasse? A dor que sentia? A sensação de perda?
Cacete.
Qhuinn saiu silenciosamente, fechou a porta atrás de si e continuou ali. Não sabia o que fazer. Wrath lhe dissera para ficar em casa, mesmo se John Matthew saísse – ele deduziu que aquilo fosse uma espécie de folga misericordiosa de seus deveres de ahstrux nohtrum. E estava grato por isso. Havia tão pouco que pudesse fazer por Layla – pelo menos podia ficar por perto caso ela precisasse de alguma coisa. Um refrigerante. Uma aspirina. Um ombro para chorar.
Você fez isso a ela.
A julgar pelo toque que saía da maldita sala de estar, ele deduziu que perdera a Primeira Refeição. Nove horas. Isso mesmo. Acabara dormindo demais, e isso era bom. Se ele tivesse de se sentar à mesa e passar 45 minutos na companhia de quase duas dúzias de pessoas que tentariam não encará-lo, ele teria perdido a porra da cabeça.
O som de alguém andando no vestíbulo logo abaixo fez com que ele levantasse a cabeça.
Sem nenhum plano ou pensamento específico, ele se aproximou da balaustrada e olhou para baixo.
Payne, a irmã valentona de V., estava saindo da sala de jantar.
Ele não conhecia muito bem aquela fêmea, mas a respeitava imensamente. Seria impossível não admirar, dado o modo como se portava no campo de batalha... Durona, verdadeiramente durona. Naquele instante, porém, a shellan do doutor Manello parecia ter levado uma surra de bar: caminhava lentamente, os pés se arrastando pelo piso de mosaico, o corpo encurvado, a pegada no braço de seu par parecendo ser a única coisa que a sustentava.
Será que ela se machucara em alguma luta corpo a corpo?
Não havia cheiro de sangue.
O doutor Manello disse algo para ela que ele não conseguiu ouvir, mas depois o cara indicou a direção da sala de bilhar com a cabeça – como se ele estivesse perguntando se ela queria ir para lá.
Tomaram aquela direção a passos de caramujo.
Já que não gostava quando as pessoas o encaravam, Qhuinn recuou da grade e esperou até que o caminho estivesse livre. Depois correu escada abaixo.
Comida. Exercícios. Voltar a ver Layla.
Aquela seria a sua noite.
Seguindo para a cozinha, ele se viu imaginando onde Blay estaria. O que estaria fazendo. Se tinha saído para lutar ou se tinha ficado em casa e...
Visto que não sabia onde Saxton estava, ele pôs um ponto final naquela linha de questionamentos.
Se Qhuinn não tivesse de fazer seu turno e pudesse passar um tempo com o cara, ele sabia muito bem o que Blay estaria fazendo.
E Saxton, seu primo filho da puta, não era nenhum tolo.
CONTINUA
CAPÍTULO 37
Enquanto Blay girava o anel de sinete da família no dedo, seu cigarro aceso queimava lentamente na outra mão, e seu traseiro ficava adormecido... e ninguém passava pelas portas do átrio.
Sentado no degrau de baixo da grande escadaria da mansão, ele não respeitaria a promessa feita à mãe de ir para casa. Não naquela noite, pelo menos. Depois da loucura da noite anterior, do pouso forçado do avião e do drama subsequente, Wrath ordenara que a Irmandade e os lutadores tirassem 24 horas de folga. Por isso, tecnicamente, ele deveria ligar para os pais e dizer à mãe que caprichasse na mussarela e no molho à bolonhesa.
Mas de jeito nenhum ele sairia daquela casa. Não depois de ouvir os gritos vindos do quarto de Layla, e de vê-la praticamente sendo carregada escadaria abaixo.
Naturalmente, Qhuinn esteve ao lado dela.
John Matthew não.
Portanto, o quer que estivesse acontecendo, pelo visto superava o ahstrux nohtrum, e isso significava que... ela só podia estar perdendo o filho. Somente algo sério assim possibilitaria um passe livre.
Enquanto ele continuava parado como uma porta, sem nada além da sua preocupação para lhe fazer companhia, naturalmente sua mente resolveu seguir o caminho errado: merda, fora mesmo para a cama com Qhuinn na noite passada?
Dando uma tragada em seu Dunhill, ele expeliu uma imprecação.
Acontecera mesmo?
Deus, essa pergunta vinha martelando a sua cabeça desde o minuto em que despertou de um sonho sensual, com uma ereção que parecia fazer pensar que o outro macho dormia ao seu lado.
Revendo as cenas pela centésima vez, só no que ele conseguia pensar era... como um plano podia fracassar. Depois de ter rejeitado Qhuinn quando ele se pôs de joelhos, voltara para o próprio quarto e andara de um lado para o outro, um debate que não interessava ter consigo mesmo transformando seu cérebro em fois gras.
Ele tomara a decisão correta ao sair. Mesmo. Tinha sim.
O problema foi que a decisão não se sustentou. Enquanto as horas do dia passavam, tudo o que ele conseguia pensar foi a vez em que o pai o flagrou roubando uma caixa de cigarros do doggen da família. Na época, ele era um jovem pré-trans e, como castigo, seu pai o obrigou a se sentar do lado de fora e fumar cada um daqueles Camels sem filtro. Ele se sentiu muito mal e demorou mais de dois anos para sequer tolerar fumo passivo.
Portanto, esse fora o seu segundo plano.
Fazia tempo demais que era louco por Qhuinn, mas tudo não passava de algo hipotético, dividido em fantasias de modo que ele conseguisse suportar. Nada de uma vez só, nada da coisa sobrecarregada, absoluta e arrasadora – e ele sabia muito bem que na vida real, Qhuinn não se conteria nem relaxaria. O “plano” fora ter a experiência concreta, e descobrir que aquilo não passava de apenas sexo brutal. Ou, inferno, descobrir que não era nem sexo bom.
Não era de se esperar que você fumasse um maço inteiro de cigarros... só para querer mais.
Deus todo-poderoso, foi a primeira vez em que a realidade foi muito melhor do que uma fantasia, a absolutamente melhor experiência erótica de toda a sua vida.
Depois, porém, a gentileza que Qhuinn demonstrara fora insuportável.
Na verdade, enquanto Blay rememorava aquela ternura, ele deu um salto de onde estava e começou a marchar ao redor do mosaico de macieira – não tinha para onde ir.
Naquele instante a porta se abriu. Porém, não a de entrada.
A da biblioteca.
Enquanto olhava de relance por sobre o ombro, Saxton surgiu de lá. Ele parecia saído do inferno, e não só porque, por mais veloz que fosse a sua recuperação, ele ainda tinha um inchaço residual na mandíbula graças ao ataque de Qhuinn.
Que lindo, Blay pensou. Bela maneira de expressar seu desapontamento quanto ao comportamento de alguém: deixe-o transar com você depois que ele tentou estrangular seu ex.
Quaaanta classe.
– Como você está? – Blay perguntou, e não por convenção social.
Foi um alívio Saxton se aproximar. E encará-lo. E sorrir-lhe um pouco como se estivesse determinado a fazer um esforço.
– Estou exausto. E faminto. E agitado.
– Gostaria de comer comigo? – sugeriu Blay num rompante. – Também estou me sentindo assim, e a única coisa em que posso dar jeito é a fome.
Saxton assentiu com a cabeça e enfiou as mãos nos bolsos da calça.
– Ideia brilhante.
Os dois acabaram na cozinha, sentados ante a castigada mesa de carvalho, lado a lado, de frente para o resto do cômodo. Com um sorriso contente, Fritz imediatamente passou para o seu modo “provedor de alimentos” e, veja só, dez minutos mais tarde, o mordomo servia uma tigela de cozido de carne para cada um, além de uma baguete para dividirem, uma garrafa de vinho tinto e uma porção de manteiga num pratinho ao lado.
– Volto em seguida, meus senhores – disse o mordomo com uma reverência. E depois ele prosseguiu expulsando todos da cozinha, desde o doggen que descascava legumes até os que poliam a prataria e os que limpavam as janelas de uma alcova logo além dali.
Quando a porta se fechou após a saída do último criado, Saxton disse:
– Tudo o que nos falta é uma vela, aí isto seria um encontro – o macho se inclinou para a frente e começou a comer com modos impecáveis. – Bem, suponho que precisaríamos de mais algumas coisas, não?
Blay olhou de esguelha enquanto apagava o cigarro. Mesmo com as olheiras e o hematoma desvanecendo no pescoço, o advogado era muito bonito de se olhar.
Por que ele não poderia simplesmente...
– Não repita, de novo, que sente muito – Saxton limpou a boca com o guardanapo e sorriu. – Não é necessário, nem apropriado.
Assim, sentado ao lado dele, não parecia que tinham acabado de romper, nem que ele estivera com Qhuinn. Será que as últimas noites aconteceram mesmo?
Até parece... O que ocorreu com Qhuinn não teria acontecido se ele e Sax ainda estivessem juntos. Isso era bem claro para ele: uma coisa era se masturbar secretamente, e isso já era ruim o bastante. Aquilo tudo? De jeito nenhum.
Droga, apesar do fato de ele e Saxton terem rompido, ele ainda sentia que devia confessar sua transgressão... mesmo que Qhuinn estivesse certo e que Saxton já tivesse seguido em frente, por assim dizer.
Enquanto comiam em silêncio, Blay balançou a cabeça, ainda que não tivessem lhe feito nenhuma pergunta e nem estivessem conversando. Ele só não sabia o que fazer. Às vezes, as mudanças da vida surgiam com tanta rapidez, e com tamanha impetuosidade, que não havia como acompanhar a realidade. Levava tempo para as coisas se assentarem, um novo equilíbrio se reestabelecia só depois de algum tempo em que seu cérebro batia de um lado contra o outro das paredes da sua cabeça.
Ele ainda estava na fase de balançar.
– Já sentiu alguma vez como se as horas fossem medidas em anos? – perguntou Saxton.
– Ou décadas. Sim. Absolutamente – Blay olhou de novo. – Na verdade, eu também estava pensando nisso.
– Que par de mórbidos nós somos.
– Talvez devêssemos vestir preto.
– Braçadeiras? – sugeriu Saxton.
– Não, preto dos pés à cabeça.
– E o que eu faço com o meu gosto por cores? – Saxton apontou para o lenço laranja Hermès no bolso da sua lapela. – Bem, pode-se muito bem usar todo tipo de acessórios.
– Certamente isso explica a teoria por trás dos aparelhos ortodônticos.
– Flamingos de plástico rosa.
– A franquia da Hello Kitty.
Juntos, os dois explodiram numa gargalhada. Nem era assim tão engraçado, mas o humor não era a questão ali. Mas quebrar o gelo. Voltar ao que era antes. Aprender a se relacionarem de um modo diverso.
Quando convergiram para um riso mais contido, Blay passou o braço ao redor dos ombros do macho e lhe deu um abraço rápido. Foi bom que Saxton tivesse relaxado um pouco, aceitando aquilo que lhe era oferecido. Não que Blay acreditasse que por estarem sentados juntos, partilhando uma refeição e uma bela risada, tudo, de repente, seria um navegar suave. Nada disso. Era estranho pensar que Saxton estivera com outra pessoa, e ainda mais incrível saber que ele fizera o mesmo – principalmente com quem o fizera.
Não se passava de amantes de quase um ano para companheiros de risadas em um ou dois dias.
Podia-se, porém, começar a forjar um novo caminho.
E colocar um pé na frente do outro.
Sempre haveria um lugar em seu coração para Saxton. O relacionamento que tiveram foi o seu primeiro não só com um macho, mas com qualquer um. E muitas coisas boas aconteceram, coisas que ele carregaria consigo como lembranças que valiam o espaço em sua mente.
– Deu uma olhada nos jardins de trás? – Saxton perguntou ao lhe oferecer o pão.
Blay partiu um pedaço e depois espalhou manteiga por cima enquanto Saxton também pegava um pouco.
– Estão bem ruins, não?
– Lembre-me de nunca tentar cortar grama com um Cessna.
– Você não curte jardinagem.
– Bem, para o caso de um dia eu tentar – Saxton se serviu de vinho. – Aceita?
– Sim, por favor.
E foi assim que as coisas aconteceram. Durante o cozido de carne até a torta de pêssegos, que milagrosamente apareceu diante deles graças à impecabilidade de Fritz. Quando a última garfada e a última limpada com guardanapo foram dadas, Blay se reclinou contra o encosto acolchoado do banco embutido e inspirou fundo.
Que se referia a muito mais do que uma simples barriga cheia.
– Bem – disse Saxton, ao apoiar o guardanapo ao lado do prato de sobremesa –, acredito que finalmente vou poder tomar o banho de banheira que você me sugeriu há algumas noites.
Blay abriu a boca para observar que os sais de banho que o macho preferia ainda estavam em seu banheiro. Ele os vira no gabinete quando fora pegar o creme de barbear reserva ao cair da noite.
Só que... ele não sabia se devia mencionar isso. E se Saxton pensasse que ele estava lhe pedindo para ir à sua banheira? Seria um lembrete muito grande de como as coisas tinham mudado e do por quê? E se...
– Tenho esse novo tratamento à base de óleos que estou morrendo de vontade de experimentar – explicou Saxton ao deslizar pelo banco. – Ele finalmente chegou do exterior hoje. Faz séculos que espero por ele.
– Parece maravilhoso.
– Mal posso esperar – Saxton ajustou o paletó nos ombros, ajeitou os punhos e depois acenou com a mão, saindo sem nenhum indício de complicações ou de tensão em seu rosto.
O que, de fato, ajudava muito.
Dobrando o próprio guardanapo, deixou-o de lado, e saiu de trás da mesa, esticando os braços acima da cabeça e curvando-se para trás, estalando muito bem a coluna.
A sua tensão voltou no segundo em que pisou no átrio novamente.
Que diabos estava acontecendo com Layla?
Maldição, ele nem podia ligar para Qhuinn. Aquele drama não era seu, nem estava ligado a ele de modo algum. Quando se tratava de uma gestação, ele não era diferente de nenhum outro macho daquela casa que também ouvira ou vira o show e, sem dúvida, estava tão preocupado quanto ele. Mas também não tinha direito a nenhuma notícia antecipada.
Uma pena que sua barriga, agora cheia, não concordasse com isso. Pensar em Qhuinn perdendo o filho o fez considerar seriamente a localização do banheiro mais próximo da porta de entrada, só para o caso de uma evacuação rápida ser ordenada pelo fundo da sua garganta.
No fim, ele se viu subindo para a sala de estar do segundo andar. Daquele lugar, ele não teria dificuldade em ouvir a porta da frente, e não estaria esperando abertamente...
As portas do escritório de Wrath se abriram, e John Matthew emergiu do santuário do Rei.
Imediatamente, Blay atravessou a sala de espera, pronto para ver se, talvez, o cara sabia de alguma coisa, mas se conteve ante a expressão de John.
Perdido em pensamentos. Como se tivesse recebido notícias pessoais do tipo perturbador.
Blay ficou para trás enquanto o camarada seguia no caminho contrário, na direção do corredor das estátuas, sem dúvida para desaparecer no próprio quarto.
Parecia que as coisas não andavam bem nas vidas dos outros também.
Maravilha.
Com uma imprecação baixa, Blay deixou o amigo em paz e voltou a caminhar e... a esperar.
Muito mais ao sul, na cidade de West Point, Sola estava pronta para entrar no segundo andar da casa de Ricardo Benloise, através da janela ao fim do corredor principal. Fazia meses desde que estivera lá dentro, mas ela contava com o fato de que seu contato na segurança por ela cuidadosamente manipulado ainda fosse o seu amigo.
Havia dois fatores-chave para invadir com sucesso qualquer casa, prédio, hotel ou instalação: planejamento e velocidade.
Ela possuía os dois.
Pendurada no cabo que lançara no telhado, ela tirou um instrumento de dentro do bolso da parca, segurando-o no canto direito da janela dupla. Iniciado o sinal, ela esperou, olhando fixamente para a luzinha vermelha que brilhava na tela à sua frente. Se por algum motivo ela não mudasse, ela teria de entrar por uma das águas-furtadas que dava para o jardim, o que seria um pé no saco...
A luz ficou verde com um sinal, e ela sorriu ao pegar mais instrumentos.
Pegando um copo de sucção, ela o empurrou no meio do painel, imediatamente abaixo da tranca e depois girou a coisa com o cortador de vidro. Um empurrão rápido e o espaço que possibilitava a entrada do seu braço foi criado.
Depois de deixar o círculo de vidro cair com suavidade na passadeira oriental, ela enfiou o braço e o virou, para soltar a trava de latão que mantinha a janela fechada.
O ar quente lhe deu boas-vindas, como se a casa estivesse contente por vê-la mais uma vez.
Antes de entrar, ela olhou ao redor. Relanceou para o caminho de carros. Inclinou-se para fora para ver o que conseguia encontrar nos jardins escuros.
Sentia como se alguém a estivesse observando... não tanto no caminho de carro até a cidade, mas depois que parara no estacionamento e colocara os esquis. Todavia, não havia ninguém por perto – pelo menos, ninguém que ela conseguisse enxergar – e por mais que a atenção fosse essencial em seu ramo de trabalho, a paranoia era uma perda de tempo perigosa.
Ela precisava deixar isso de lado.
Voltando a se concentrar no jogo, esticou as mãos enluvadas e suspendeu o traseiro e as pernas por cima e através da janela. Ao mesmo tempo, relaxou a tensão do cabo para que ele ficasse folgado e permitisse a sua entrada. Aterrissou sem nenhum som, graças não só ao tapete que cobria o longo corredor como também aos seus calçados de solas macias.
O silêncio era outro critério importante no tocante a realizar um trabalho com sucesso.
Ela parou onde estava por um breve momento. Nenhum som na casa, mas isso não significava nada necessariamente. Ela tinha quase certeza de que o alarme de Benloise fosse silencioso, e mais certeza ainda de que o sinal não iria para a força policial, nem a local, tampouco a estadual: ele gostava de cuidar das coisas particulares de modo privado. E Deus bem sabia, com o tipo de força braçal que ele contratava, havia poder suficiente para tal.
Felizmente, contudo, ela era boa no que fazia, e Benloise e seus capangas não estariam em casa até perto do nascer do sol, afinal, ele vivia a vida de um vampiro.
Por algum motivo, a palavra que começava com “v” a fez pensar no homem que aparecera ao lado do seu carro e que desaparecera como num passe de mágica.
Loucura. E a única vez em sua lembrança recente que alguém a fazia parar para pensar. Na verdade, depois de ser confrontada daquela forma, ela estava realmente considerando não voltar à casa de vidro no rio, embora houvesse motivos mais do que válidos para isso. Não por ela se preocupar em se machucar fisicamente. Deus bem sabia que ela era perfeitamente capaz de se defender.
Era a atração.
Mais perigosa do que qualquer pistola, faca, ou punho, em sua opinião.
Com passadas ágeis, Sola trotou pelo tapete, saltitando na ponta dos pés, seguindo para a suíte principal que dava para o jardim dos fundos. A casa ainda tinha o mesmo cheiro de que se lembrava: mobília antiga e lustra-móveis, e ela conhecia o bastante para se ater ao lado esquerdo da passadeira. Nenhum rangido daquele lado.
Quando chegou à suíte principal, a porta pesada de madeira estava fechada, e ela pegou a chave micha antes mesmo de testar a maçaneta. Benloise tinha duas patologias: limpeza e segurança. A impressão dela, entretanto, era que a segunda era mais crítica na galeria no centro de Caldwell do que em seu lar. Afinal, Benloise não mantinha debaixo do seu teto nada além de objetos de arte com seguros até o último centavo, e a ele próprio durante o dia – quando estava cercado por diversos seguranças e armas.
Na verdade, devia ser por isso que ele era uma coruja no centro da cidade. Isso significava que a galeria nunca ficava sem supervisão: ele aparecia depois do expediente e sua equipe de trabalho legítima estava lá durante o dia.
Como uma gatuna, ela certamente preferia entrar em lugares vazios.
Dito isso, mexeu no mecanismo de tranca da porta, abrindo-a, e entrou no quarto. Inspirou profundamente, o ar estava permeado com a fumaça do tabaco e da colônia refrescante de Benloise.
A combinação a fez pensar nos filmes em preto e branco de Clark Gable por algum motivo.
Com as cortinas puxadas e nenhuma luz acesa, ali estava absolutamente escuro, mas ela tirara fotografias dos quartos quando fora a uma festa ali, e Benloise não era o tipo de homem que mudava as coisas de lugar. Inferno, toda vez que uma nova exibição era instalada na galeria de arte, ela praticamente sentia o tremor debaixo da pele dele.
Medo de mudança era uma fraqueza, sua avó sempre dizia.
Obviamente facilitava as coisas para ela.
Mais devagar, ela avançou dez passos até o meio do quarto. A cama estaria à esquerda encostada na parede comprida. À sua frente estavam as janelas altas que davam para o jardim. À direita, haveria uma cômoda, uma escrivaninha e algumas cadeiras, e a lareira que nunca era usada porque Benloise detestava o cheiro de madeira queimada.
O alarme de segurança se localizava entre a entrada do banheiro e a cabeceira ornamentada da cama, ao lado do abajur que se elevava noventa centímetros do criado-mudo.
Sola deu um giro ao redor de si mesma. Deu quatro passos. Tentou encontrar o pé da cama... e o encontrou.
Passo lateral, um, dois, três. De frente para o flanco do colchão king-size. Outro passo lateral para desviar da mesinha de cabeceira e do abajur.
Sola esticou o braço esquerdo...
E lá estava o painel de segurança, bem onde deveria.
Abrindo a portinhola, usou uma lanterna de bolso que prendeu entre os dentes para iluminar o circuito. Pegando outro instrumento da mochila, conectou fios a fios, interceptando sinais, e com a ajuda de um laptop em miniatura e de um programa que um amigo seu desenvolvera, criou um circuito fechado dentro do sistema de alarme de modo que, enquanto o roteador estivesse no lugar, os detectores de movimento que ela estava para disparar não seriam registrados.
No que se referia à placa-mãe, nada pareceria anormal.
Deixando o laptop pendurado pelos fios, saiu do quarto, chegou ao corredor, e tomou as escadas para o primeiro andar.
O lugar estava perfeitamente decorado, pronto para uma foto de revista – ainda que, claro, Benloise protegesse demais a sua privacidade para permitir que suas coisas fossem fotografadas para o consumo público. Com passos rápidos, ela passou pelo hall de entrada, pela sala à esquerda e entrou no escritório.
Andando em meio à penumbra, ela bem que preferiria tirar a parca de camuflagem branca e as calças para neve: fazer aquilo em seu body preto seria um clichê que, entretanto, seria bem prático. Não havia tempo, porém, e ela estava mais preocupada em não ser vista do lado de fora do que ali, na casa vazia.
O espaço de trabalho pessoal de Benloise era, como todo o resto debaixo daquele teto, mais um cenário montado do que algo funcional. Ele, na verdade, não usava a imensa escrivaninha, nem se sentava no minitrono, tampouco lia qualquer um dos livros em capa de couro das prateleiras.
Todavia, ele transitava por aquele cômodo. Uma vez ao dia.
Certa vez, num momento de tranquilidade, ele lhe dissera que antes de sair, todas as noites, passeava pela casa olhando seus pertences, lembrando a si mesmo da beleza das suas coleções e de sua casa.
Como resultado dessa informação e de algumas outras coisas, Sola há muito deduzira que o homem crescera na pobreza. Primeiro porque, quando conversavam em espanhol ou em português, seu sotaque pertencia à classe baixa, mesmo que de modo sutil. Segundo, os ricos não valorizavam seus pertences como ele o fazia.
Nada era raro aos ricos, e isso significava que eles davam como certas todas as coisas.
O cofre estava escondido atrás da escrivaninha numa seção de estandes que era liberada por um botão localizado na gaveta inferior do lado direito.
Ela descobrira isso graças a uma minúscula câmera escondida que colocara do lado oposto durante aquela festa.
Após a abertura do mecanismo, um corte de sessenta por noventa centímetros na prateleira rolou para a frente e deslizou para o lado. E lá estava ela: uma caixa grossa de aço, cujo fabricante ela reconhecia.
Pensando bem, depois de invadir centenas de espaços, você acaba conhecendo intimamente os fabricantes. E ela aprovava aquela escolha. Se precisasse ter um cofre, era daquele tipo que ela pegaria e, sim, ele o prendera ao chão.
O maçarico que trouxera na mochila era pequeno, mas poderoso, e enquanto ela acendia a ponta, a chama chamuscou com um sibilo substancial e um brilho branco e azul.
Aquilo levaria tempo.
A fumaça do metal queimado irritava seus olhos, o nariz e a garganta, mas ela manteve a mão firme enquanto produzia um quadrado na frente do painel. Ela conseguia explodir a porta de alguns cofres, mas o único jeito com um daqueles era do modo antigo.
Que levava uma eternidade.
No entanto, ela conseguiu.
Deixando a pesada seção da porta de lado, ela mordeu a ponta da lanterna mais uma vez e se inclinou. Uma prateleira continha joias, cautelas de ações e alguns relógios de ouro que ele deixara à mão. Havia uma pistola que ela seria capaz de apostar que estaria carregada. Nenhum dinheiro.
Pensando bem, com Benloise sempre havia tanto dinheiro disponível que fazia sentido ele não se dar ao trabalho de colocá-lo no cofre.
Maldição. Não havia nada ali que valesse apenas cinco mil dólares.
Afinal, naquele trabalho, ela só estava atrás daquilo que lhe era devido por direito.
Com uma imprecação, ela se apoiou nos calcanhares. Na verdade, não havia nada no cofre que valesse menos do que vinte e cinco mil dólares. E não tinha como ela partir a metade da pulseira de um relógio de ouro – porque, como diabos conseguiria revender a coisa?
Um minuto se passou.
O segundo.
Ao diabo com aquilo, ela pensou ao recolocar o painel que cortara contra o cofre e deslizar a prateleira de volta ao seu lugar. Levantando-se, olhou ao redor da sala com a lanterna de bolso. Os livros eram todos edições de colecionadores de primeiras edições de antiguidades. A arte nas paredes e sobre as mesas não era somente muito cara, como difícil de transformar em dinheiro sem ser debaixo dos panos... para as pessoas intimamente ligadas a Benloise.
Mas, que droga, ela não sairia sem seu dinheiro, maldição...
Abruptamente, sorriu para si mesma, a solução se tornando muito clara.
Por vários anos no curso da civilização humana, o comércio só existira e sobrevivera na base da troca. Ou seja, um indivíduo trocava bens ou serviços por outros de mesmo valor.
Em todos os trabalhos que realizara, ela jamais considerara acrescentar os custos auxiliares aos seus alvos: novos cofres, novos sistemas de segurança, novos protocolos de segurança. Ela podia apostar que isso era caro – ainda que não tão caro quanto o que ela costumava tomar. E ela entrara ali deduzindo que esses custos adicionais seriam arcados por Benloise – um tipo de prejuízo monetário pelo que ele roubara dela.
No entanto, eles agora eram a questão.
No caminho de volta à escada, observou as oportunidades disponíveis... e, no fim, foi até uma escultura de Degas de uma pequena bailarina que fora colocada na lateral de um nicho. A figura em bronze da garotinha era o tipo de coisa que sua avó teria adorado, e talvez por isso, dentre tantas peças, foi aquela a lhe chamar a atenção.
A luz que fora colocada no teto acima da estátua estava desligada, mas a obra-prima ainda assim parecia brilhar. Sola adorou especialmente a saia em tutu, a delicada ainda que rígida explosão de tule delineada por metal entrelaçado que capturava perfeitamente o que deveria ser maleável.
Sola se aproximou da base da escultura, passou os braços ao redor dela, e concentrou toda a sua força em girar a sua posição não mais do que cinco centímetros.
Depois correu para as escadas, retirou os clipes do roteador e do laptop do painel de alarme na suíte principal, trancou novamente a porta e seguiu para a janela na qual cortara um buraco.
Estava de volta nos esquis, deslizando na neve não mais do que quatro minutos mais tarde.
Apesar do fato de não ter nada nos bolsos, ela sorria ao deixar a propriedade.
CAPÍTULO 38
Quando a Mercedes finalmente parou na entrada da mansão da Irmandade, Qhuinn saiu primeiro e foi para a porta em que Layla estava. Quando a abriu, os olhos dela encontraram os dele.
Ele soube que jamais se esqueceria da aparência dela. A tez estava branca como um papel e parecia tão fina quanto um, a bela estrutura óssea se esticando sobre a cobertura de pele. Os olhos estavam encovados no crânio. Os lábios, finos e inexpressivos.
Naquele instante, ele teve um vislumbre de como ela ficaria ao morrer, não importando quantas décadas e séculos isso fosse levar para acontecer.
– Eu carrego você – disse ele, inclinando-se para pegá-la no colo.
O modo como ela não discutiu lhe contou exatamente o pouco que restava dela.
Quando as portas de entrada foram abertas por Fritz, como se o mordomo estivesse esperando pela chegada deles, Qhuinn se arrependeu de tudo: do sonho que acalentara por um instante durante o cio dela. A esperança desperdiçada. A dor física pela qual ela passava. A angústia emocional que ambos atravessavam.
Você fez isso com ela.
Na época, quando a servira, ele só se concentrara no resultado positivo do qual esteve tão certo.
Agora, depois de tudo, com os coturnos fincados na realidade sólida e fétida? Não valia a pena. Mesmo a possibilidade de um filho saudável não valia aquele sacrifício.
O pior de tudo era testemunhar o sofrimento dela.
Ao carregá-la para dentro da casa, rezou para que não houvesse uma grande plateia. Ele só gostaria de poupá-la de tudo, de qualquer coisa, mesmo do simples fato de desfilar diante de rostos tristes e preocupados.
Não havia ninguém por perto.
Qhuinn subiu os degraus dois de cada vez e, ao chegar ao segundo andar, as grandes portas duplas do escritório de Wrath abertas o fizeram praguejar.
Pensando bem, o Rei era cego.
Enquanto George emitiu um latido de boas-vindas, Qhuinn apenas passou pela frente, indo direto para o quarto de Layla. Abrindo a porta com um chute, descobriu que o doggen estivera ali e limpara tudo, arrumando a cama, decerto tendo até trocado os lençóis, e também havia um vaso de flores frescas.
Ao que tudo levava a crer, ele não era o único disposto a ajudar em qualquer coisa que pudesse.
– Quer trocar de roupa? – perguntou ao fechar a porta com outro chute.
– Quero tomar banho...
– Vamos providenciar isso.
– ... mas estou com muito medo. Eu não quero... ver, se é que me entende.
Ele a deitou e se sentou ao seu lado na cama. Colocando uma mão em sua perna, esfregou-lhe o joelho com o polegar, de um lado para o outro.
– Sinto muito – disse ela com pesar.
– Droga... Não, não faça isso. Jamais pense nem diga isso, está bem? Isto não é culpa sua.
– De quem mais é?
– Isso não vem ao caso.
Merda, ele não conseguia acreditar que o processo do aborto duraria mais ou menos uma semana. Como podia ser possível...
A careta que contraiu o rosto de Layla revelou a ele que uma cólica a assolava novamente. Olhando de relance para trás, esperando ver a doutora Jane, descobriu que estavam sozinhos.
O que garantiu, mais do que tudo, que não havia nada a ser feito.
Qhuinn deixou a cabeça pensa e segurou a mão dela.
Aquilo começara com os dois.
E estava terminando com os dois.
– Acho que gostaria de dormir um pouco – disse Layla ao apertar a mão dele. – Você também parece estar precisando...
Ele olhou para a chaise-longue do outro lado.
– Você não precisa ficar comigo – murmurou ela.
– Onde mais eu ficaria?
Uma breve visão mental de Blay abrindo os braços cruzou sua mente. Que fantasia, hein...
Nunca mais me toque assim.
Qhuinn sacudiu a cabeça para que tais pensamentos sumissem.
– Vou dormir ali.
– Você não pode ficar aqui por sete noites seguidas.
– Vou repetir mais uma vez. Onde mais eu...
– Qhuinn – a voz dela soou estridente. – Você tem o seu trabalho. E você ouviu Havers. Isto vai levar o tempo que for preciso e, provavelmente, vai demorar um pouco. Não corro o risco de ter uma hemorragia e, francamente, sinto como se devesse ser forte na sua frente, e não tenho a energia necessária para isso. Por favor, volte aqui para me ver o quanto quiser. Mas vou enlouquecer se você montar acampamento aqui até isso tudo terminar.
Desespero comedido.
Era tudo o que Qhuinn tinha enquanto permanecia sentado na beira da cama, segurando a mão de Layla.
Ele acabou se levantando pouco depois. Claro, ela estava certa. Ela precisava descansar o máximo possível e, de fato, além de ficar olhando para ela e fazendo com que ela se sentisse fraca, não havia nada que ele pudesse fazer.
– Não estarei longe.
– Sei disso – ela suspendeu o punho dele para os seus lábios, e ele ficou chocado ao perceber o quanto eles estavam frios. – Você tem se mostrado... mais do que eu seria capaz de pedir.
– Não... Não fiz nada de...
– Você fez o que era certo e apropriado. Sempre.
Aquilo era uma questão de opinião.
– Preste atenção. Vou estar sempre com meu telefone por perto. Volto em algumas horas para ver como você está. Se estiver dormindo, eu não a incomodarei.
– Obrigada.
Qhuinn assentiu com a cabeça e andou de lado até a porta. Certa vez ouvira que não se devia dar as costas a uma Escolhida, e ele imaginou que demonstrar um pouco de protocolo não faria mal.
Fechando a porta atrás de si, ele se recostou nela. A única pessoa que ele queria ver era o único cara naquela casa que não tinha interesse algum em...
– O que está acontecendo?
A voz de Blay foi um choque tão grande que ele pensou que a tivesse imaginado. A não ser pelo fato de que o macho em pessoa acabara de passar pela porta da sala de estar do segundo andar. Como se estivesse ali esperando o tempo inteiro.
Qhuinn esfregou os olhos e depois começou a andar, o corpo procurando a única coisa pela qual ele vinha rezando.
– Ela está abortando – Qhuinn se ouviu dizer numa voz morta.
Blay murmurou algo em resposta, mas que não ficou registrado.
Engraçado, o aborto não lhe parecera real até aquele momento. Não até contar a Blay.
– O que disse? – perguntou Qhuinn, ciente de que o cara esperava por uma resposta.
– Posso fazer alguma coisa?
Tão engraçado. Qhuinn sempre achou que saíra do ventre da mãe já como um adulto. Pensando bem, nunca houve nenhum agradinho materno, nada de abraços quando ele se machucava, nenhum amparo quando ele tinha medo. Como resultado, quer fosse um aspecto do seu caráter, ou o modo como fora criado, ele nunca regredira. Não havia para o que voltar.
Todavia, foi com a voz de uma criança que disse:
– Faz isso parar?
Como se só Blay tivesse o poder de operar um milagre.
E então... foi o que o macho fez.
Blay abriu os braços, oferecendo o único refúgio que Qhuinn sempre conheceu.
– Faz isso parar?
O corpo de Blay começou a tremer quando Qhuinn enunciou essas palavras: depois de todos esses anos, ele vira o cara em diferentes estados de humor dependendo da circunstância. Porém, jamais assim. Nunca... tão completa e absolutamente devastado.
Nunca perdido como uma criança.
A despeito da sua necessidade de se manter verdadeiramente afastado de qualquer vínculo emocional, seus braços se abriram por vontade própria.
Enquanto Qhuinn avançava para ele, o corpo do guerreiro parecia menor e mais frágil do que de fato era. E os braços que passaram ao redor da cintura de Blay simplesmente ficaram lá, como se não tivessem força nos músculos.
Blay sustentou a ambos.
E antecipou que Qhuinn recuaria rapidamente. Normalmente, o cara não suportava nenhum tipo de conexão intensa além da sexual por mais tempo do que um segundo e meio.
Qhuinn não o fez, porém. Ele parecia preparado para ficar parado na entrada da sala de estar para sempre.
– Venha – disse Blay, levando o macho para dentro e fechando a porta. – Vamos para o sofá.
Qhuinn o seguiu, os coturnos se arrastando em vez de marcharem.
Quando chegaram ao sofá, sentaram-se de frente, os joelhos se tocando. Quando Blay o fitou, a tristeza ressonante o tocou tão profundamente, que não pôde evitar que a mão se esticasse e afagasse o cabelo escuro...
Sem aviso, Qhuinn se enroscou ao seu encontro, simplesmente se deixou cair, o corpo se dobrando ao meio, quase se desmanchando no colo de Blay.
Uma parte de Blay reconhecia que aquele era um terreno perigoso. Sexo era uma coisa, e já bem difícil de lidar, ora essa. Aquele momento tranquilo? Era potencialmente devastador.
Motivo pelo qual saíra num rompante daquele quarto na noite anterior.
A diferença desta noite, porém, era que ele estava no controle. Era Qhuinn quem buscava conforto, e Blay podia negar ou oferecer, dependendo de como se sentisse. Ser o depositário da confiança de alguém era absolutamente diferente de recebê-la... ou necessitá-la.
Blay era bom nisso. Havia uma medida de segurança, de controle. Não era o mesmo que cair num abismo. E, inferno, se alguém devia saber isso, esse alguém era ele. Deus bem sabia que ele passara anos lá embaixo.
– Eu faria qualquer coisa para mudar isso – disse Blay, afagando as costas de Qhuinn. – Odeio o que você está passando...
Ah, as palavras eram tão inúteis...
Ficaram ali por um tempo enorme, a tranquilidade da sala formando uma espécie de casulo. Periodicamente, o relógio antigo sobre a lareira tocava, e depois de um bom tempo, as persianas começaram a baixar sobre as janelas.
– Gostaria que existisse algo que eu pudesse fazer – disse Blay quando os painéis de aço chegaram ao fim com um baque.
– Deve estar na hora de você ir.
Blay deixou aquela passar. A verdade não era algo que ele quisesse partilhar: nem cavalos selvagens, ou armas carregadas, pés-de-cabra, mangueiras de incêndio, estouro de elefantes... nem mesmo uma ordem do Rei em pessoa o teria tirado dali.
E havia uma parte sua que ficava zangada com isso. Não com Qhuinn, mas com seu próprio coração. A questão era que não se pode lutar contra a sua natureza, e era isso o que ele vinha aprendendo. No rompimento com Saxton. Em se revelar à mãe. Naquele exato instante.
Qhuinn gemeu ao suspender o tronco e depois esfregar o rosto. Quando abaixou as mãos, as faces estavam vermelhas, bem como os olhos, mas não porque ele estivesse chorando.
Indubitavelmente, a sua cota de lágrimas da década fora derramada na noite anterior quando ele chorara de alívio por ter salvado a vida de um pai.
E se soubesse que Layla não estava bem naquele instante?
– Sabe o que é pior? – perguntou Qhuinn, parecendo um pouco mais consigo mesmo.
– O quê? – Deus bem sabia que a gama de opções era vasta.
– Eu vi a criança.
Os pelos da nuca de Blay se eriçaram.
– Do que está falando?
– Na noite em que a Guarda de Honra veio atrás de mim e que quase morri, lembra?
Blay deu uma tossidela, a lembrança era tão vívida e visceral como se tivesse acontecido uma hora antes. E mesmo assim a voz de Qhuinn era calma e tranquila, como se ele estivesse se referindo a uma noite numa boate ou algo assim.
– Sim, eu me lembro.
E pensou, eu fiz boca a boca em você no acostamento da estrada, porra.
– Eu fui até o Fade... – Qhuinn franziu o cenho. – Você está bem?
Ah, sim, claro, uma maravilha.
– Desculpe. Pode continuar.
– Fui até lá. Quero dizer, é como... a gente ouviu falar. Branco – Qhuinn esfregou o rosto de novo. – Tão branco. Tudo. Havia uma porta, e eu caminhei até ela... Eu sabia que se girasse a maçaneta, entraria e não sairia mais. Eu estava prestes a tocá-la quando... foi então que eu a vi. Na porta.
– Layla – interpôs Blay, sentindo como se o peito tivesse sido apunhalado.
– A minha filha.
A respiração de Blay ficou presa.
– A sua...
Qhuinn o encarou.
– Ela era... loira. Como Layla. Mas os olhos... – ele levou a mão próxima aos seus. – Eram como os meus. Parei de andar quando a vi e depois, de repente, eu estava de volta no chão, no acostamento da estrada. Depois disso, fiquei sem saber o que foi tudo aquilo. Mas depois, muito tempo depois, Layla entrou no cio e me procurou, e tudo se encaixou. Era como se aquilo... tivesse que acontecer. Pareceu o destino, sabe. De outro modo, eu jamais teria me deitado com Layla. Só fiz isso porque eu sabia que teríamos uma garotinha.
– Jesus.
– Mas eu estava errado – ele esfregou o rosto pela terceira vez. – Errei feio... E o que eu mais queria era não ter tomado esse caminho. O maior arrependimento da minha vida... Bem, o segundo maior, na verdade.
A Blay só restou imaginar o que poderia ser pior do que aquilo pelo que ele passava.
O que posso fazer?, Blay se perguntou.
Os olhos de Qhuinn procuraram os dele.
– Quer mesmo que eu responda a isso?
Pelo visto, ele pensara em voz alta.
– Sim, claro.
A mão da adaga de Qhuinn se levantou e amparou a lateral do rosto de Blay.
– Certeza?
O clima mudou de pronto. A tragédia ainda estava com eles, mas a poderosa ressaca sexual os abateu entre uma pulsação e a seguinte.
O olhar de Qhuinn começou a queimar, as pálpebras pesaram.
– Preciso... de uma âncora agora. Não sei explicar de modo melhor.
O corpo de Blay reagiu instantaneamente, o sangue fervendo, o membro engrossando e esticando.
– Deixe-me beijar você – Qhuinn gemeu ao se inclinar. – Sei que não mereço, mas, por favor... é isso o que você pode fazer por mim. Deixe-me senti-lo...
A boca de Qhuinn resvalou a dele. Voltou para um pouco mais. Demorou-se.
– Vou implorar – mais carícias daquela boca devastadora. – Se for preciso. Estou pouco me importando, eu vou implorar...
De algum modo, isso não seria necessário.
Blay deixou a cabeça ser inclinada para abrir caminho para mais manobras, a mão de Qhuinn em seu rosto tanto gentil quanto no comando. E, então, houve mais boca a boca, lento, arrastando-se, inexorável.
– Deixe-me estar dentro de você de novo, Blay...
CAPÍTULO 39
Assail voltou para casa cerca de meia hora antes do amanhecer. Ao estacionar o Range Rover na garagem, ele teve que esperar a porta abaixar para sair.
Sempre se considerara um intelectual – e não no sentido atribuído pela glymera, onde um se sentia importante ao discorrer sobre literatura, filosofia ou assuntos espirituais. Era mais pelo fato de existirem poucas coisas na vida na qual ele não podia aplicar seu raciocínio e entender a sua totalidade.
O que diabos aquela mulher fizera na casa de Benloise?
Obviamente ela era uma profissional, com tanto equipamento quanto técnica, e uma abordagem de infiltração muito praticada. Ele também suspeitava que ou ela tivesse a planta da casa ou estivera lá previamente. Tão eficiente. Tão decidida. E ele estava qualificado para julgar: seguira-a o tempo inteiro em que ela esteve dentro da casa, penetrando como um fantasma pela janela que ela abrira, atendo-se às sombras.
Seguindo o rastro dela por trás.
Mas aquilo ele não entendia: que tipo de ladrão se dá ao trabalho de invadir uma casa segura, encontra um cofre, queima-o para abri-lo, descobre muitas riquezas portáteis... mas não leva nada? Porque ele vira muito bem ao que ela teve acesso; assim que ela saiu do escritório, ele permanecera lá, soltando a prateleira como ela fizera antes, e usara a própria lanterna para dar uma espiada no cofre.
Só para descobrir o que ela deixara para trás, se é que tinha deixado algo.
Quando ele voltou para a casa em si, evitando qualquer fonte de luz, observara-a parada um instante no hall de entrada, com as mãos nos quadris, a cabeça virando lentamente, como se ela estivesse considerando suas opções.
E então ela se aproximou de uma estátua que só podia ser de Degas... e a girara apenas alguns centímetros para a esquerda.
Isso não fazia sentido.
Bem, era possível que ela tivesse invadido o cofre procurando por algo específico que, na verdade, não estava lá. Um anel, uma bugiganga, um colar. Um chip de computador, um pendrive, um documento como um testamento ou apólice de seguro. Mas a demora no hall não estava de acordo com a diligência anterior... e depois ela só moveu uma estátua?
A única explicação era que aquilo fora uma violação deliberada da propriedade de Benloise.
O problema era que, no que se referia a vinganças contra objetos inanimados, era difícil encontrar muita significância nos atos dela. Derrubasse a estátua, então. Levasse a maldita coisa. Danificasse-a com obscenidades em tinta spray. Batesse nela com um pé-de-cabra para que ficasse destruída. Mas uma leve virada que mal se podia perceber?
A única conclusão a que ele conseguia chegar era que aquilo fora um tipo de mensagem. E ele não gostava nem um pouco disso.
Pois sugeria que talvez ela conhecesse Benloise pessoalmente.
Assail abriu a porta do motorista...
– Oh, meu Deus... – sibilou, retraindo-se.
– Ficamos imaginando quanto tempo você ainda ficaria aí.
Enquanto uma voz ríspida se pronunciava, Assail saiu do carro e olhou ao redor da garagem para cinco carros. O fedor estava num meio-termo entre um atropelamento de três dias, maionese estragada e perfume barato.
– Isso é o que eu estou pensando? – perguntou aos primos, que estavam parados na soleira da antessala.
Graças à Virgem Escriba, eles avançaram e fecharam a porta que dava para a casa; caso contrário, aquele fedor horrendo invadiria o resto da construção.
– São os seus traficantes. Bem, parte deles, na verdade.
Que. Merda. Era. Aquela?
As passadas longas de Assail o levaram na direção que Ehric apontava: o canto oposto, onde três sacos plásticos verdes-escuro foram jogados de lado sem cuidado algum. Agachando-se, ele afrouxou a tira amarela de um deles, puxou a beirada e...
Deparou-se com os olhos sem vida de um humano que ele reconhecia.
A cabeça inanimada fora arrancada da coluna uns dez centímetros abaixo da mandíbula, e estava virada de modo a fitar para fora de seu caixão frouxo. O cabelo escuro e a pele vermelha estavam marcados por sangue preto e brilhante, e se o cheiro esteve ruim próximo ao carro, ali, bem perto, fez seus olhos lacrimejarem e a garganta se contrair num protesto.
Não que ele se importasse.
Abriu os outros dois sacos e, usando o plástico como “luva”, virou as outras cabeças na mesma posição.
Depois se sentou e ficou olhando para as três, observando as bocas escancaradas e impotentes em busca de ar.
– Contem o que aconteceu – ordenou sombriamente.
– Aparecemos na hora combinada.
– Rinque de patinação, na margem do rio ou debaixo da ponte?
– Ponte. Chegamos – Ehric apontou para o irmão gêmeo, que estava parado em silêncio ao seu lado – na hora com o produto. Uns cinco minutos depois, esses três apareceram.
– Como redutores.
– Eles tinham o dinheiro. Estavam prontos para fazer a transação.
Assail girou a cabeça na direção dele.
– Eles não foram lá para atacá-los?
– Não, mas só descobrimos isso quando já era tarde demais – Ehric deu de ombros. – Eram assassinos que apareceram do nada. Não sabíamos quantos havia, e não queríamos nos arriscar. Foi só depois que vasculhamos os bolsos e encontramos o montante certo de dinheiro que percebemos que eles só foram lá para fazer negócios.
Redutores no tráfico? Aquilo era novidade.
– Vocês apunhalaram os corpos?
– Pegamos as cabeças e escondemos o que restou. O dinheiro estava na mochila desse da esquerda e, naturalmente, nós o trouxemos para casa.
– Celulares?
– Peguei.
Assail começou a acender um charuto, mas não queria desperdiçar o sabor. Fechando os sacos, levantou-se acima da carnificina.
– Tem certeza de que não foram agressivos?
– Estavam mal preparados para se defenderem.
– Estar mal armado não significa que eles não estivessem lá para matá-los.
– Por que levar o dinheiro?
– Eles podiam estar negociando em outro lugar.
– Como já disse, era a quantia correta e nem um centavo a mais.
Abruptamente, Assail gesticulou para que o seguissem para o interior da casa e, ah, que alívio quando chegaram ao ar limpo. Com as telas descendo lentamente sobre as janelas de vidro, e com o alvorecer se completando, ele foi para o bar, pegou um galão de Bouchard Père et Fils, Montrachet, 2006 e estalou a rolha.
– Querem me acompanhar?
– Sim, claro.
Na mesa redonda na cozinha, ele se sentou com três taças e a garrafa. Servindo os três, dividiu o chardonnay com os dois sócios.
Porém, não lhes ofereceu seus cubanos. Eram valiosos demais.
Felizmente, cigarros apareceram e todos se sentaram juntos, fumando e saboreando goladas sublimes da beira afiada do seu Baccarat.
– Nenhuma agressão por parte dos assassinos – murmurou, inclinando a cabeça para trás para baforar, a fumaça azulada se elevando sobre sua cabeça.
– E a quantia exata.
Depois de um momento, ele voltou a olhar para eles.
– Será possível que a Sociedade Redutora esteja tentando entrar no meu ramo de negócios?
Xcor estava à luz de velas, sozinho.
O armazém estava tranquilo, seus soldados ainda não tinham retornado, nenhum humano, nenhum Sombra, nada caminhava sobre ele. O ar estava frio; o mesmo com o concreto abaixo dele. A escuridão o envolvia, a não ser pela fraca fonte de luz perto da qual ele estava sentado.
Algo no fundo de sua mente lhe dizia que estava perigosamente perto de amanhecer. Também havia outra coisa, algo de que ele deveria ter se lembrado.
Mas não havia a mínima chance de que algo transpusesse seu torpor.
Com os olhos fixos na única chama diante dele, Xcor repassou os eventos da noite em sua cabeça.
Dizer que ele encontrara a localização da Irmandade seria talvez aumentar um pouco a verdade, mas não uma falácia completa. Seguira aquela Mercedes para o interior, quilômetro após quilômetro, sem nenhum plano real do que deveria ou poderia fazer quando ela parasse... quando, do nada, o sinal do sangue no corpo de sua Escolhida não só se perdeu, mas foi totalmente redirecionado, como se uma bola lançada contra um muro tivesse alterado repentinamente a sua trajetória.
Confuso, ele vasculhou os arredores, desmaterializando aqui, acolá, para cima e para baixo e, durante o tempo todo, uma sensação de horror se abatendo sobre ele. Recuando, ele se viu na base de uma montanha, com seus contornos, mesmo sob o luar claro, registrados de maneira estranha, indistinta, pouco nítida.
O lugar em que eles ficavam só podia ser ali.
Talvez no alto da montanha. Talvez do outro lado.
Não havia outra explicação – afinal, a Irmandade vivia com o Rei para protegê-lo... portanto, indubitavelmente, eles tomariam precauções do tipo que ninguém mais conseguiria tomar, ou quem sabe, tivessem ao seu dispor tecnologias e provisões místicas que seriam, de outro modo, indisponíveis.
Em frenesi, ele circundou os arredores, dando a volta na base algumas vezes, pressentindo nada além da refração do sinal dela e aquela sensação de horror. Sua conclusão era de que ela deveria estar em algum lugar daquela imensidão: ele teria pressentido se ela tivesse atravessado para o outro lado, e seria razoável concluir que se tivesse ido para o seu templo sagrado, até um plano alternativo de existência, ou – que o destino não permitisse – morrido, aquele eco ressonante dentro dele teria desaparecido.
A sua Escolhida estava ali em algum lugar.
Retornando para o armazém, para o presente, para onde ele estava agora, Xcor esfregou as palmas para frente e para trás lentamente, o raspar dos calos interrompendo a quietude. À esquerda, no limiar da luz de velas, suas armas estavam dispostas lado a lado, as adagas, as pistolas, e sua adorada foice cuidadosamente organizadas ao lado de uma pilha confusa de roupas de sair que ele retirara assim que escolhera aquele lugar específico no chão.
Concentrou-se na foice e esperou que ela lhe falasse: ela o fazia com frequência, com seus modos sedentos de sangue em compasso com a agressividade que fluía em suas veias e que definia seus pensamentos e motivava suas ações.
Aguardou que ela lhe dissesse para atacar a Irmandade onde eles ficavam. Onde as fêmeas moravam. Onde as crianças dormiam.
O silêncio era preocupante.
De fato, sua chegada ao Novo Mundo fora baseada no desejo de ganhar poder, a expressão maior e mais arrojada desse desejo era tomar o trono, portanto, naturalmente, esse era o curso que ele escolhera. E estava progredindo. A tentativa de assassinato no outono, que, sem sombra de dúvida, lançara uma sentença de morte sobre a sua cabeça e a dos seus soldados, fora uma medida tática que quase colocara um ponto final na guerra inteira antes mesmo de ela começar. E seus esforços contínuos com Elan e com a glymera estavam promovendo seus objetivos e reforçando seu apoio dentro da aristocracia.
Mas aquilo que ele descobrira naquela noite...
Deuses, quase um ano de trabalho, sacrifício, planejamento e combate perdiam importância em comparação com a sua descoberta.
Se seu palpite estivesse correto – e como não podia estar? –, tudo o que ele tinha de fazer era marchar com seus soldados e começar um cerco assim que a noite caísse. A batalha seria épica, e a Irmandade e o lar da Primeira Família seriam permanentemente comprometidos, independentemente do resultado.
Seria um conflito digno dos livros de História – afinal, a primeira vez em que a propriedade real fora atingida foi quando o progenitor e a mahmen de Wrath foram assassinados antes da transição dele.
A história se repetia.
E ele e seus soldados tinham uma séria vantagem em relação àqueles assassinos que, na época, não possuíram: a Irmandade agora tinha muitos machos vinculados. Na verdade, ele acreditava que todos eles estivessem vinculados, e isso dividiria as atenções e as lealdades dos machos como nada mais conseguiria fazer. Ainda que a diretriz principal deles como guarda pessoal do Rei fosse proteger Wrath, seus cernes estariam divididos, e mesmo o mais forte dos lutadores com as melhores armas estaria enfraquecido se suas prioridades estivessem em dois lugares distintos.
Além disso, se Xcor ou um dos seus soldados conseguisse apanhar uma daquelas shellans, a Irmandade esmoreceria, porque a outra coisa verdadeira a respeito deles era que a dor de um dos Irmãos era a própria agonia.
Só bastaria uma fêmea de qualquer um deles, a arma derradeira.
Ele sabia disso em sua alma.
Sentado à luz da vela, Xcor esfregou a lâmina da adaga na palma de sua mão, de um lado para o outro, de um lado para o outro.
Uma fêmea.
Era só disso que ele precisava.
E ele conseguiria não só reivindicar sua própria fêmea... mas também o trono.
CAPÍTULO 40
Qhuinn sabia que acabara de colocar Blay numa posição totalmente injusta.
Transa por pena, hein? Mas, ah, Deus, encarando aqueles olhos azuis, aqueles malditos olhos azuis sem fundo que estavam francos para ele do mesmo modo que um dia estiveram... era só no que conseguia pensar. E, sim, tecnicamente era sexo em termos de onde ele queria suas diversas partes – bem, uma mais especificamente. No entanto, havia muito mais do que apenas isso.
Ele não sabia expressar em palavras; simplesmente não era bom em juntar as sílabas. Mas seu desejo de conexão foi o que o levou ao beijo. Ele quis mostrar a Blay o que estava querendo dizer, do que ele precisava, por que aquilo era importante: seu mundo inteiro parecia estar desmoronando e a perda que acontecia na porta ao lado doeria por um bom tempo.
No entanto, estar com Blay, sentir o seu calor, fazer contato, era como uma promessa de cura. Mesmo se durasse apenas o tempo em que estivessem ali naquela sala, ele aceitaria, e guardaria aquilo para si... para relembrar quando precisasse.
– Por favor – sussurrou.
Só que ele não deu chance para o cara responder. Sua língua saiu sorrateira e lambeu aquela boca, escorregando para dentro, assumindo o controle.
E a resposta de Blay foi o modo como ele se permitiu ser empurrado para trás nas almofadas do sofá.
Qhuinn teve dois pensamentos vagos: um, a porta só estava fechada, não trancada – e ele cuidou disso desejando que a trava de latão ficasse no lugar certo. E o segundo pensamento momentâneo era que eles não poderiam destruir aquele lugar. Explodir tudo em seu quarto era uma coisa. A sala de estar era propriedade pública, e muito bem decorada, com as almofadas de seda e as cortinas luxuosas, e um monte de outras coisas que pareciam facilmente rasgáveis, amassáveis, Deus, mancháveis...
Além disso, ele já destruíra seu Hummer, acabara com o jardim e sacudira o quarto. Portanto, sua cota de Destruidor já ultrapassara, e muito, o calendário anual...
Naturalmente, a solução mais prática para não dar nenhuma preocupação adicional a Fritz seria percorrer o corredor rapidamente até o seu quarto, mas enquanto as mãos talentosas de Blay estavam na frente do quadril de Qhuinn, já abaixando seu zíper, ele lançou essa ideia brilhante no cesto de lixo.
– Ai, Deus, toque-me – gemeu, empurrando a pélvis para a frente.
Ele só teria de ser comportado e bem limpinho com aquilo.
Presumindo que isso fosse possível.
Quando a palma de Blay se enfiou em sua calça de couro, o corpo de Qhuinn se arqueou, o torso curvando-se para trás enquanto o outro iniciava os trabalhos. O ângulo estava meio errado, por isso não havia muita fricção, e suas bolas estavam sendo beliscadas pela costura da calça, mas santo inferno, ele não se importava. O fato de que aquele era Blay bastava.
Cacete, depois de anos de chupadas, punhetas e transas, aquela parecia a primeira vez que alguém tocava nele.
Ele precisava retribuir o favor.
Entrando em ação, elevou o peito e aproximou os rostos. Caramba, ele adorava a expressão daqueles olhos azuis enquanto Blay o encarava, quente, selvagem, sensual.
Com tesão.
Qhuinn o segurou com força e aproximou as bocas, agarrando-se àqueles lábios, lançando a língua, tomando tudo como um desvairado...
– Espere, espere – Blay retrocedeu. – Vamos quebrar o sofá.
– O quê...? – o cara parecia estar falando inglês, mas pro inferno se ele conseguia traduzir. – Sofá?
E então ele percebeu que empurrara tanto Blay no braço do móvel, que a coisa estava começando a se inclinar. Que era mais do que duzentos quilos de sexo poderiam fazer em uma peça de mobília.
– Ai, merda, desculpe.
Ele estava começando a recuar quando Blay assumiu o controle e Qhuinn, de repente, viu-se fora do sofá, de costas no chão, as pernas unidas, as calças sendo empurradas para os tornozelos.
Ideia. Genial.
Graças ao fato de ele não usar cuecas, seu pau estava todo exposto, grosso e tenso, ao ser lançado para cima, dolorido e inchado por sobre a barriga. Abaixando a mão, ele deu umas puxadas enquanto Blay arrancava seus coturnos que estavam atrapalhando, largando-os de lado. As calças foram as próximas a darem adeus, e, com Deus como testemunha, Qhuinn nunca antes ficou tão contente em ver um par de couro voar por cima do ombro em toda a sua vida.
Em seguida, Blay voltou ao trabalho.
Qhuinn teve que fechar os olhos quando sentiu as coxas sendo afastadas e um par de mãos de lutador puxar o interior de suas pernas. Imediatamente ele soltou a ereção, afinal, porque ter a palma atrapalhando quando Blay poderia...
Não foram as mãos do cara que o seguraram.
Foi a boca quente e úmida que Qhuinn beijara pra cacete pouco antes.
Por uma fração de segundo, enquanto a sucção abocanhava a ponta e o mastro, ele teve o pensamento maldito de que Saxton ensinara Blay a fazer aquilo: seu maldito primo fizera aquilo com o cara, e fizera com que ele...
Pare, ordenou-se. Quaisquer lições aprendidas e a história por detrás delas não importavam, era a sua ereção que recebia atenção naquele instante. Por isso, que se dane essa merda.
Para deixar isso bem claro, forçou seus olhos a se abrirem. Inferno... do céu...
A cabeça de Blay subia e descia em seus quadris, o punho segurava a base do pau de Qhuinn, a outra mão se ocupava com as bolas. Mas então, como se estivesse esperando por contato visual, o cara parou no alto, libertou a cabeça e lambeu os lábios.
– Eu não gostaria que você fizesse uma lambança nesta linda sala – Blay disse com fala arrastada.
E então, estendeu a ponta da língua para açoitar o piercing no pênis de Qhuinn, a carne rosada brincando com a argola cinza de metal e a bolinha...
– Caralho. Vou gozar agora – grunhiu Qhuinn, com uma onda fervente se avolumando. – Eu vou...
Ele estava impotente para deter as coisas, muito mais até do que alguém que tivesse se lançado de um precipício e que, depois de metros de queda livre, quisesse desistir.
Só que ele não queria pisar no freio.
E não pisou.
Com um rugido potente, que provavelmente foi ouvido em outros lugares, a espinha de Qhuinn se afastou do chão, o traseiro ficou rígido, as bolas explodiram, a excitação esguichando com força na boca de Blay. E não foi só o seu sexo que foi afetado. O orgasmo o atingiu em todo o corpo, uma energia latente emergindo por ele enquanto cravava as unhas no tapete em que estava deitado, os dentes cerrados... e gozando como um animal selvagem.
Felizmente, Blay se mostrou mais do que eficiente na limpeza. E se isso não o fez gozar ainda mais... Também lhe deu muito para o que olhar: pelo resto dos seus dias, Qhuinn jamais se esqueceria da visão da boca do macho o envolvendo, as bochechas sugando enquanto ele libertava seu gozo e ele absorvia tudo. De novo e de novo e de novo.
Normalmente, Qhuinn ficava pronto para outra em seguida, mas quando as ondas tumultuadas finalmente se quebraram sobre ele, ele ficou completamente inerte, os braços largados no chão, os joelhos moles, a cabeça pensa.
– Não consigo me mexer – murmurou.
O riso de Blay foi profundo e sensual.
– Você parece um pouco cansado.
– Posso retribuir o favor?
– Você consegue levantar a cabeça?
– Ela ainda está grudada no meu corpo?
– Pelo que vejo, sim, está.
Enquanto Blay ria de novo, Qhuinn soube o que queria fazer e isso o surpreendeu. Em todas as suas explorações sexuais, ele nunca se permitiu ser enrabado. Não era assim que as coisas aconteciam. Ele era o conquistador, o que tomava, o que estabelecia o controle e conservava a superioridade.
Ficar por baixo simplesmente não o interessava.
E agora era o que queria.
O único problema era que, literalmente, não conseguia se mexer. Ah, sim, e havia uma coisinha a mais: como contar a Blay que ele era virgem?
Porque ele desejava. Se um dia chegasse àquilo, ele queria que Blay soubesse. Por algum motivo, isso era importante.
De repente, o rosto de Blay apareceu em seu campo de visão, e, Deus, como o lutador era lindo, o rosto afogueado, os olhos reluzentes, aqueles ombros largos bloqueando tudo.
E, ah, sim, aquele sorriso sexy como o inferno, tão satisfeito consigo e autossuficiente, como se o fato de Blay ter provocado tanto prazer em alguém fosse o bastante para que ele não precisasse do próprio alívio.
Mas isso não seria justo, seria?
– Não acho que você vai voltar a se mexer tão cedo – comentou Blay.
– Talvez. Mas posso abrir a boca – foi a resposta misteriosa. – Tanto quanto você.
Certo, tudo bem, a ideia de que provocava um orgasmo daquele em Qhuinn foi tão ratificadora que Blay se esquecera por completo do seu corpo.
A questão era que após tantos anos de rejeição, era uma emoção sem igual sentir poder em relação ao cara, ser aquele quem comandava o ritmo... a pessoa que levava Qhuinn a um lugar vulnerável e erótico muito mais intenso do que qualquer outro antes. E foi isso o que aconteceu. Ele sabia exatamente como Qhuinn ficava e como soava quando gozava, e Blay podia afirmar, sem nenhum traço de dúvida, que ele jamais vira seu camarada tão prostrado como agora, largado no tapete, os músculos do pescoço esticados, os abdominais contraídos, os quadris bombeando com força.
Qhuinn gozara praticamente vinte minutos direto.
E agora, no pós-coito, uma estranha revelação: até aquele instante, Blay jamais reconhecera o cinismo que Qhuinn carregava no rosto o tempo inteiro... as sobrancelhas caídas, o canto da boca perpetuamente repuxado para cima... o maxilar nunca, jamais relaxado.
Era como se toda a torpeza que a família lhe fizera tivesse permanentemente esculpido suas feições.
Mas não era verdade, não é mesmo? Durante o orgasmo, e agora, enquanto as coisas se acalmavam, nada daquela tensão era visível em lugar algum. O rosto de Qhuinn estava... livre de toda reserva, parecendo tão mais jovem, e Blay teve que se perguntar por que nunca percebera a idade dele antes.
– Então, vai me dar algo para eu chupar enquanto me recupero? – Qhuinn perguntou.
– O quê...?
– Estou com sede. E preciso chupar alguma coisa – dito isso, Qhuinn mordeu o lábio inferior, as presas brancas brilhantes afundando na pele. – Vai me ajudar?
Os olhos de Blay reviraram em suas órbitas.
– É... acho que posso fazer isso.
– Então me deixe tirar suas calças.
As pernas de Blay se levantaram com tanta rapidez que ele teve um insight novo sobre as leis da física, e enquanto ele chutava os sapatos, as mãos tremiam ao desabotoar a calça. As coisas foram bem rápidas a partir dali. E durante o tempo todo em que se despia, ele estava absolutamente ciente de tudo o que havia na sala – especialmente Qhuinn. O macho estava ficando rígido novamente, o sexo engrossando apesar de tudo pelo que acabara de passar... as coxas pesadas se contraindo e a pélvis rolando... a parte baixa do tronco tão delgada que cada sutil mudança do torso era refletida na pele esticada e bronzeada.
– Isso aí... – Qhuinn sibilou, as presas se estendendo do maxilar superior, as mãos procurando, e encontrando, o sexo, apalpando-o em movimentos longos e lentos. – Isso mesmo.
A respiração de Blay começou a acelerar, os batimentos cardíacos subindo até o telhado enquanto os olhos descombinados de Qhuinn se prendiam ao seu sexo.
– É isso o que eu quero – o macho grunhiu, soltando-se e esticando as duas mãos.
Por uma fração de segundo, Blay não teve muita certeza como as partes trabalhariam. Qhuinn estava diante do sofá, paralelo ao móvel, por isso não havia muito espaço para...
Um grunhido sutil perpassou o ar enquanto Qhuinn flexionava os dedos como se mal conseguisse esperar para segurar aquilo que desejava.
O planejamento que fosse para o inferno.
Os joelhos de Blay atenderam ao chamado, dobrando para a frente, levando seu peso ao chão perto da cabeça de Qhuinn.
Qhuinn assumiu o controle a partir daí. As palmas escorregaram e se prenderam, atraindo Blay de modo que, sem nem se dar conta, ele tinha um joelho atrás da cabeça do cara e a outra perna estendida ao longo do corpo até o quadril de Qhuinn.
– Ai... cacete... – Blay gemeu ao sentir o sexo entrar entre os lábios de Qhuinn.
O corpo pendeu para a frente até ele acabar derramando o torso nas almofadas do sofá, e foi nesse momento que ele se viu com uma excelente alavancagem. Apoiando os braços no sofá, distribuiu o peso entre os joelhos, os pés e as palmas... e depois se pôs a foder a boca adorável de Qhuinn.
O cara aceitou tudo, mesmo quando os quadris descontrolados de Blay empurraram com tudo o que ele tinha.
Com os dedos de Qhuinn cravados em seu traseiro, e aquela incrível sucção, e... Cristo, o piercing da língua, com a bolinha resvalando seu mastro a cada estocada... Blay estava se dirigindo exatamente para o mesmo tipo de orgasmo que Qhuinn acabara de ter.
Mesmo assim, no fundo da sua mente, ele se questionava se não estava machucando o cara. Do jeito como as coisas seguiam, ele acabaria gozando no estômago dele.
Tarde demais para se preocupar com isso.
Seu corpo assumiu, enrijecendo numa série de espasmos torturantes que corriam do alto da coluna até as pernas.
E bem quando as sensações descontroladas estavam começando a diminuir, o mundo entortou ao seu redor, como se seu senso de equilíbrio tivesse explodido junto de seu...
Não, o mundo estava no lugar. Qhuinn acabara de se levantar do chão, saindo de baixo e se posicionando atrás...
Enquanto Qhuinn penetrava com uma estocada na velocidade da luz, Blay emitiu um gemido que com certeza seria ouvido no Canadá...
O rangido que se fez ouvir na sala o deixou intrigado, mesmo em meio à pressão e ao prazer.
Ah. Eles estavam empurrando o sofá.
Que seja. Ele compraria um novo para a casa se quebrassem a maldita porcaria; ele não iria parar.
O ritmo foi tão punitivo quanto fora o seu e, nesse caso, a revanche não era só o que ele merecia, mas exatamente o que ele queria. A cada estocada, seu rosto era empurrado contra as almofadas do sofá; a cada recuada, ele respirava; só para ser empurrado novamente, num círculo que recomeçava sempre.
Reposicionando as pernas para que Qhuinn alcançasse ainda mais fundo, Blay teve a vaga noção de que eles, definitivamente, mudavam o sofá de posição, mas quem é que se importava com isso, contanto que eles não acabassem no corredor?
No último instante, pouco antes de ele gozar, teve a presença de espírito de pegar as calças. Puxando as cuecas, ele...
A mão de Qhuinn se esticou, apanhou a Calvin Klein e fez o que era preciso, garantindo que houvesse algo para conter o seu gozo. Então, um instante depois, seu peito se deslocou do sofá e ele estava ereto sobre os joelhos. Qhuinn cuidou de tudo, segurando o pau de Blay enquanto cobria a cabeça – penetrando, ainda penetrando, sempre penetrando...
Gozaram ao mesmo tempo, dois pares de gritos ecoando pela sala.
No meio do orgasmo, Blay, sem querer, levantou o olhar. No enorme espelho antigo que estava pendurado entre as duas janelas do lado oposto, ele viu os dois, soube que estavam ligados... e isso o fez gozar novamente.
No fim, as investidas desaceleraram. Os batimentos cardíacos começaram a diminuir. As respirações foram se acalmando.
No vidro chumbado, ele viu Qhuinn fechar os olhos e abaixar a cabeça. Na lateral do seu pescoço, Blay sentiu um resvalar suave.
Os lábios de Qhuinn.
E então a mão livre do macho subiu, parando para afagar Blay no peitoral...
Qhuinn congelou. Recuou. Afastou os lábios, seu toque.
– Desculpe. Desculpe, eu... sei que não quer isso de mim.
A mudança no rosto do cara, o regresso ao cinismo costumeiro, era como ser roubado.
E mesmo assim Blay não podia dizer a ele que voltasse a se aproximar. Qhuinn estava certo; no instante em que a ternura aparecia, ele começava a entrar em pânico.
A retirada foi rápida, rápida demais, e Blay sentiu falta da sensação de estar completo e de ser possuído. Mas estava na hora de acabar com aquilo.
Qhuinn pigarreou.
– Hum... você quer que eu...
– Cuido disso – murmurou Blay, substituindo a mão de Qhuinn sobre as cuecas amassadas em seu quadril.
Durante o sexo, o silêncio na sala equivalia à privacidade. Agora, eram apenas os sons amplificados de Qhuinn subindo as calças de couro.
Droga.
Voltavam ao caos e à confusão. E enquanto as coisas aconteciam, as sensações eram tão intensas e esmagadoras que não houve nenhum pensamento além do sexo. Depois, porém, o corpo de Blay estava frio demais no ambiente climatizado, diferentes partes pulsavam por terem sido usadas, as pernas estavam moles e cambaleantes, a mente, enevoada...
Nada parecia seguro ou garantido. Nem um pouco.
Forçando-se a se vestir, colocou as roupas o mais rápido que conseguiu, inclusive os sapatos. Nesse meio-tempo, foi Qhuinn quem devolveu o sofá ao seu lugar, cuidadosamente colocando os pés nas marcas do tapete. Também ajeitara as almofadas. Endireitara o tapete oriental.
Foi como se nada tivesse acontecido. A não ser pelas cuecas de Blay amassadas em sua mão fechada.
– Obrigado – disse Qhuinn baixinho. – Eu, hum...
– Tudo bem.
– Então... acho que eu vou agora.
– Ok.
E foi isso.
Bem, além de a porta se fechar.
Deixado a sós, Blay resolveu que precisava de uma chuveirada. Mais comida. Dormir.
Em vez disso tudo, ele ficou na sala de estar do segundo andar, olhando para aquele espelho, lembrando-se do que vira nele. Em sua mente, teve a vaga noção de que eles não podiam continuar fazendo aquilo. Emocionalmente, não era seguro para ele; na verdade, era o equivalente a manter a palma da mão sobre uma chama uma vez após a outra, só que a cada vez que você voltava a colocar a mão, você diminuía a distância entre a sua carne e o calor. Cedo ou tarde? Queimaduras de terceiro grau seriam o menor dos seus problemas, porque o braço inteiro estaria em chamas.
Depois de um tempo, contudo, não ficou só pensando naquela coisa de autopreservação.
Mas sim no que dera início àquilo tudo.
Faz isso parar.
Blay passou a mão pelo cabelo. Depois olhou para a porta fechada e franziu o cenho, a mente trabalhando, trabalhando, trabalhando...
Um minuto depois, saiu apressado, andando rapidamente.
Antes de partir num trote.
E acabar correndo como um louco.
CAPÍTULO 41
Eram mais ou menos dez da manhã quando Trez seguiu para o Restaurante Sal’s. O trajeto do apartamento no Commodore para o belo estabelecimento do irmão não demorou, levando apenas dez minutos, e havia diversos espaços disponíveis para estacionar quando ele chegou lá.
De fato, o lugar não abria antes da uma da tarde, nem mesmo para o pessoal da cozinha iniciar a preparação.
Enquanto se encaminhava para a entrada, suas botas esmagando a neve, ele esperou que o código de abertura pelo lado externo não funcionasse: iAm não voltara para casa na noite anterior e, supondo que os cretinos do s’Hisbe não o tivessem levado embora como dano colateral, só havia um lugar em que seu irmão poderia estar. Depois de dois bules de café e muitas consultas ao relógio de pulso, Trez entendeu que, se queria fazer as pazes, ele teria de atravessar a cidade.
Legal. A combinação não fora mudada.
Ainda.
Do lado de dentro, o lugar parecia uma réplica do Rat Pack, numa interpretação moderna de uma era que gerara tipos como Peter Lawford e Frank Sinatra: uma entrada com papel de parede de algodão preto e vermelho o levava até a recepção, onde a chapelaria, a mesinha retrô da recepcionista e o caixa ficavam. À esquerda e também à direita, estavam os dois salões principais, ambos decorados em veludo e couro preto e vermelho, mas não eram onde os políticos e os endinheirados locais ficavam. O lugar predileto era o bar mais à frente, um salão com painéis de madeira que tinha bancos estofados quadrados de couro vermelho perto das paredes e, durante o expediente, um barman de smoking atrás de uma bancada de carvalho servindo nada que não fosse o melhor.
Atravessando a extensão do bar, Trez seguiu para o outro lado das cinco prateleiras de garrafas à mostra e passou pelas portas em vaivém. Ao entrar na cozinha, o cheiro de manjericão, cebola, orégano e vinho tinto lhe denunciou exatamente onde iAm estava.
Como esperado, o cara estava diante do enorme fogão industrial de dezesseis bocas na parede oposta, com cinco panelas imensas borbulhando diante dele – e você gostaria de apostar que também havia alguma coisa no forno? Nesse meio-tempo, tábuas de madeira de corte estavam enfileiradas nas bancadas de aço inoxidável, as cabeças mortas de diferentes tipos de pimentão deixadas ao lado das facas afiadas que foram usadas.
Dez pratas para adivinhar em quem o cara estava pensando enquanto picava aquilo tudo.
– Vai ou não falar comigo? – Trez disse para as costas do irmão.
iAm seguiu para a panela seguinte, levantando a tampa com um pano de prato branco, uma imensa escumadeira entrando e mexendo lentamente.
Trez se inclinou para o lado e puxou um banquinho de aço inoxidável. Sentando-se, esfregou as coxas para cima e para baixo.
– Oi? Alguém aí?
iAm foi para a panela seguinte. E depois a outra. Cada uma delas tinha uma colher diferente para evitar a mistura de sabores, e seu irmão tomava muito cuidado com isso.
– Escute, eu sinto muito se não estava quando você foi à boate ontem à noite – todas as noites, iAm ia para o Iron Mask para dar uma olhada depois que o Sal’s fechava. – Tive que cuidar de uns assuntos.
Merda, se teve. A garota do namorado grosseiro levou uma eternidade para sair do seu carro quando ele a levou para a casa dela. No fim, ele a acompanhou até a porta, abriu e só faltou empurrá-la para dentro. De volta ao carro, ele acelerou como se tivesse plantado uma bomba na calçada e, enquanto seguia para o Iron Mask, tudo o que ouvia em sua cabeça era a voz de iAm.
Você não pode continuar a fazer isso.
A essa altura, iAm se virou, cruzou os braços sobre o peito e se recostou ao fogão. Os bíceps já eram grandes, mas com os braços cruzados daquele jeito, forçavam a borda da camiseta preta que ele vestia.
Os olhos amendoados estavam semicerrados.
– Você acha mesmo que eu estou bravo porque você não estava quando fui ao clube? Sério? E não por que você me deixou para lidar com AnsLai ou qualquer asneira do tipo...
Eeeee estavam todos a postos.
– Sabe que não posso me encontrar com o cara – Trez levantou as mãos como se quisesse dizer que não havia nada que ele pudesse fazer. – Eles tentariam me forçar a voltar com eles e, então, quais seriam as minhas opções? Brigar? Eu acabaria lutando com o filho da puta e onde eu iria parar com isso?
iAm esfregou os olhos como se estivesse com dor de cabeça.
– Neste instante, parece que eles estão tomando uma abordagem diplomática. Pelo menos comigo.
– Quando vão voltar?
– Não sei. É isso o que está me deixando nervoso.
Trez enrijeceu. A ideia de que seu irmão frio como peixe estivesse ansioso o fez sentir como se estivesse com uma faca no pescoço.
Pensando bem, ele sabia muito bem o quanto o seu povo podia ser perigoso. O s’Hisbe era conhecido como uma tribo pacífica, satisfeita em se manter ao largo das lutas contra a Sociedade Redutora e dos desagradáveis humanos. Educados, muito inteligentes e espirituais, eles eram, como um todo, um grupo agradável. Desde que você não estivesse na lista negra deles.
Trez olhou para as panelas e se perguntou qual seria a carne no molho.
– Ainda estou em débito com Rehv – ele observou. – Portanto, essa obrigação deve vir em primeiro lugar.
– Não para o s’Hisbe. AnsLai disse, e vou citar suas palavras: “Chegou a hora”.
– Não vou voltar – ele fitou os olhos do irmão. – Isso não vai acontecer.
iAm voltou para as panelas, mexendo em cada uma com a colher designada.
– Sei disso. E é por isso que estou cozinhando. Estou tentando encontrar uma saída.
Deus, como ele amava o irmão. Mesmo irritado, o cara tentava ajudar.
– Desculpe-me por ter desaparecido e ter feito você cuidar disso. Sinto muito mesmo. Não foi justo... Eu só... bem, não achei seguro estar no mesmo cômodo que aquele cara. Sinto muito.
O peito largo de iAm subiu e desceu.
– Sei que sente.
– Eu poderia simplesmente desaparecer e o problema estaria resolvido.
Ainda que deixar iAm para trás o matasse. A questão era que, caso ele fugisse do s’Hisbe, ele jamais teria contato com o macho novamente. Nunca mais.
– Para onde você iria? – iAm observou.
– Não faço ideia.
A boa notícia é que o s’Hisbe não gostava de ter nenhum contato com os Desconhecidos. Sem dúvida, só aparecer no apartamento dele e de iAm fora traumático, mesmo se o sumo sacerdote tivesse se desmaterializado até a varanda. Lidar diretamente com humanos? Estar ao lado deles? A cabeça de AnsLai explodiria.
– Então, qual era o seu assunto? – perguntou iAm.
Maravilha. Mais um assunto igualmente feliz.
– Fui ver aquele armazém – ele desviou. Mas, cacete, até parece que ele tocaria no assunto da garota com o namorado espontaneamente.
– A uma da manhã?
– Fiz uma oferta.
– De quanto?
– Um milhão e quatrocentos. O preço pedido era de dois milhões e meio, mas não vão conseguir esse montante de jeito nenhum. O lugar está vazio há anos e demonstra isso – embora, ao dizer isso em voz alta, ele teve que admitir que sentira presenças lá. Pensando bem, talvez fosse apenas o seu estresse o responsável por isso. – Meu palpite é que vão dar uma contraoferta de dois milhões, eu subo para um e seiscentos e acabamos acordando em um e setecentos.
– Tem certeza de que quer iniciar esse projeto agora? A menos que apareça no território com o seu mastro matrimonial pronto para ser usado, esta questão com o s’Hisbe só vai piorar.
– Se as coisas chegarem a esse ponto, eu cuido disso na hora certa.
– Quando – iAm o corrigiu. – A questão é “quando”. E sei o que aconteceu no estacionamento, Trez. Com aquele cara e a mulher.
Claaaaro que sim.
– Viu as fitas ou algo assim?
Maldita câmera de segurança.
– Sim.
– Eu cuidei daquilo.
– Assim como está cuidando do s’Hisbe. Perfeito.
Com o humor afetado, Trez se inclinou.
– Quer calçar os meus sapatos, irmãozinho? Eu bem que gostaria de saber como você lidaria com essa merda toda.
– Eu não estaria fodendo putas, isso eu garanto. O que me faz pensar... o nosso corretor é uma fêmea, não?
– Foda-se, iAm. De verdade.
Trez se levantou do banquinho e marchou para fora da cozinha. Ele já tinha problemas suficientes, pelo amor de Deus, não precisava do senhor Superior com habilidades de Julia Child palpitando sobre o assunto com doze tipos de panelas...
– Você não pode continuar postergando esse assunto – iAm chamou de lá de trás. – Ou tentando enterrá-lo entre as pernas das mulheres.
Trez parou, mas manteve o olhar fixo na saída.
– Simplesmente não pode – o irmão afirmou com franqueza.
Trez girou. iAm estava perto do bar, a porta em vaivém mexendo atrás dele formando um efeito de estroboscópio de luz, escuro, luz, escuro. Toda vez que a luz surgia, parecia que seu irmão tinha um halo ao redor de todo o corpo.
Trez praguejou.
– Só preciso que me deixem em paz.
– Eu sei – iAm esfregou a cabeça. – E, honestamente, não sei que porra fazer a respeito. Não consigo me imaginar vivendo sem você, e também não quero voltar para lá. Só que também não encontrei alternativas.
– Aquelas mulheres... sabe, as que eu... – Trez hesitou. – Não acha que elas me excitam?
– Se elas não fazem isso – iAm disse secamente –, não sei porque perde tempo com elas.
Trez teve que dar um sorriso.
– Não, estou falando do s’Hisbe. Estou bem longe de ser virgem a esta altura – pelo menos ele ainda não se rebaixara a animais de fazenda. – E o que é pior? Todas eram Desconhecidos, a maioria humanas. Isso deve enojá-los. Estamos falando da filha da rainha!
Enquanto iAm franzia o cenho como se estivesse considerando a ideia, Trez sentiu uma centelha de esperança.
– Não sei, não – veio a resposta. – Talvez isso funcione, mas ainda assim você negou a Sua Alteza o que ela quer e precisa. Se eles o considerarem desonrado, podem muito bem decidir matá-lo como castigo.
Que seja. Eles teriam que encontrá-lo primeiro.
Numa onda de agressão, Trez abaixou o queixo e olhou fixo por debaixo das sobrancelhas.
– Se esse for o caso, eles vão ter que lutar comigo. E eu garanto que isso não vai acabar bem para eles.
Na mansão da Irmandade, Wrath entendeu que sua rainha estava aborrecida no instante em que ela passou pelas portas do escritório. Seu cheiro atraente estava maculado por uma pontada de acidez: ansiedade.
– O que foi, leelan? – ele quis saber, estendendo os braços.
Mesmo não enxergando, suas lembranças lhe davam uma imagem mental dela cruzando o tapete Aubusson, com o corpo longo e atlético se movendo com graciosidade, os cabelos escuros soltos sobre os ombros, o lindo rosto marcado por tensão.
Naturalmente, o macho vinculado dentro dele desejou perseguir e matar o que quer que a tivesse perturbado.
– Olá, George – disse ela ao cão. Pelo barulho de batidas ritmadas no chão, ele supôs que o cachorro tivesse recebido uma dose de amor antes.
E então foi a vez do dono.
Beth subiu no colo de Wrath, o peso próximo de nada, o corpo quente e vivo enquanto ele passava os braços ao seu redor e a beijava nas laterais do pescoço e depois na boca.
– Jesus – grunhiu ele, sentindo a rigidez no corpo dela –, você está aborrecida mesmo. Que merda está acontecendo?
Deus do céu, ela estava tremendo. Sua rainha estava, de fato, tremendo.
– Fale comigo, leelan – insistiu, esfregando-lhe as costas. E se preparando para se armar e sair em plena luz do sol se preciso fosse.
– Bem, você sabe sobre Layla – disse ela com voz rouca.
Ahhhh.
– Sim, sei. Phury me contou.
Enquanto a cabeça dela se posicionava em seu ombro, ele a ajeitou, aninhando-a em seu peito – e isso era bom. Havia vezes – não muitas, mas ocasionais – em que ele se sentia menos macho por conta de sua falta de visão: no passado, um lutador, agora, preso atrás daquela mesa. Um dia livre para ir aonde bem quisesse, agora, dependendo de um navegador canino. Certa vez absolutamente autossuficiente, agora, precisando de ajuda.
Não muito bom para os colhões de um macho.
Mas em momentos como aquele, quando aquela fêmea maravilhosa estava incomodada e o procurava, e somente a ele, para conforto e segurança, ele se sentia mais forte que uma maldita montanha. Afinal, machos vinculados protegiam suas fêmeas com tudo o que tinham, e mesmo com o fardo do seu direito de nascimento e aquele trono em que era obrigado a se sentar, ele, em seu cerne, permanecia o hellren daquela fêmea.
Ela era a sua primeira prioridade, acima inclusive daquela coisa toda de reinado. A sua Beth era o seu coração atrás das costelas, o tutano dentro de seus ossos, a alma em seu corpo físico.
– É tudo tão triste – disse ela. – Tão triste.
– Você foi vê-la?
– Acabei de ir. Ela está descansando. Quero dizer... de certa forma, custo a acreditar que não haja nada a ser feito.
– Falou com a doutora Jane?
– Assim que eles voltaram da clínica.
Enquanto a sua shellan chorava um pouco, o cheiro das lágrimas frescas de sua amada era como uma adaga em seu peito, e ele não estava surpreso com a reação dela. Ouvira dizer que as fêmeas lidavam muito mal com a perda da gravidez de outra fêmea – e como não ser assim? Ele, por certo, conseguia se colocar no lugar de Qhuinn.
E, ah, Deus... a ideia de Beth sofrer daquele modo? Ou pior, de conseguir levar adiante a gestação e depois...
Ótimo. Agora era ele quem tremia.
Wrath abaixou o rosto para os cabelos de Beth, inspirando, acalmando-se. A boa notícia era que eles jamais teriam um filho, portanto, ele não tinha com que se preocupar.
– Eu sinto muito – sussurrou.
– Eu também. Odeio o que eles estão passando.
Bem, na verdade, ele estava se desculpando por outra coisa completamente diferente.
Não que ele quisesse que uma merda daquelas acontecesse com Qhuinn, Layla e o filho deles. Mas talvez se Beth enxergasse a triste realidade, ela se lembraria de todos os riscos que se apresentavam a eles em todas as etapas de uma gestação.
Porra. Aquilo soava horrível. Era horrível. Pelo amor de Deus, ele não queria mesmo nada daquilo para Qhuinn, e tampouco queria ver sua shellan triste. Infelizmente, porém, a triste realidade era que ele não tinha absolutamente interesse algum em plantar sua semente nela daquele jeito – jamais.
E esse tipo de desespero fazia com que um cara pensasse em coisas imperdoáveis.
Numa onda de paranoia, ele calculou mentalmente os anos desde a transição dela – um pouco mais do que dois. Pelo que sabia, as fêmeas vampiras, em média, passavam pelo primeiro cio uns cinco anos após a transformação, e a cada dez anos depois disso. Portanto, eles tinham um bom tempo antes de terem de se preocupar com tudo isso...
Pensando bem, como mestiça, não havia garantias no caso de Beth. Quando os humanos e os vampiros se misturavam, qualquer coisa podia acontecer... E ele tinha motivos para se preocupar. Afinal, ela já mencionara filhos uma ou duas vezes.
Mas, obviamente, aquilo só podia ser hipoteticamente.
– E então, você vai postergar a iniciação de Qhuinn? – ela perguntou.
– Sim. Saxton já atualizou a lei, mas Layla estando assim? Não é o momento de trazê-lo para a Irmandade.
– Foi o que pensei.
Os dois se calaram, e enquanto Wrath guardava aquele momento em seu coração, não conseguiu imaginar sua vida sem ela.
– Sabe de uma coisa? – perguntou.
– O quê? – havia um sorriso na voz dela, do tipo que dizia a ele que ela sabia para onde a conversa estava indo.
– Eu amo você mais do que tudo.
Sua rainha deu uma leve risada, e o afagou no rosto.
– Eu jamais teria imaginado isso.
Inferno, até ele captava a onda de seu odor de vinculação.
Em resposta, Wrath segurou o rosto dela entre as palmas e se inclinou, encontrando seus lábios e depositando um beijo suave, que não permaneceu assim. Caramba, era sempre assim com ela. Qualquer contato e, antes que se desse conta, já estava rígido e pronto.
Deus, não sabia como os homens humanos lidavam com isso. Pelo que entendia, eles tinham de adivinhar se seus pares estavam férteis toda vez que faziam sexo – evidentemente, eles não tinham como captar a alteração nos odores de suas fêmeas.
Ele enlouqueceria. Pelo menos quando uma vampira estava no cio, todos sabiam.
Beth mudou de posição em seu colo, apertando a sua ereção e fazendo-o gemer. E, normalmente, essa era a dica para George ser levado para o outro lado das portas duplas, banido temporariamente. Mas não naquela noite. Por mais que Wrath a desejasse, a tristeza presente na casa aplacava até mesmo a sua libido.
E também havia a questão do cio de Autumn. E de Layla.
Ele não iria mentir; aquela merda o estava deixando ansioso. Sabia-se que hormônios no ar tinham um efeito ricochete numa casa cheia de fêmeas, influenciando umas às outras ao cio, desde que seu período estivesse próximo.
Wrath afagou os cabelos de Beth e voltou a acomodar a cabeça dela em seu ombro.
– Você não quer...
Enquanto ela deixava a frase inacabada, ele pegou a sua mão e a levantou, sentindo o peso do anel de rubi que a rainha da raça sempre usava.
– Só quero abraçar você – disse ele. – Isso basta para mim agora.
Aninhando-se, ela se encaixou ainda mais perto dele.
– Bem, isto também é gostoso.
Sim. Era.
E curiosamente aterrador.
– Wrath?
– Sim?
– Você está bem?
Demorou um pouco para ele confiar na voz e responder:
– Sim, estou bem. Tudo bem.
Ao alisar o braço dela, para cima e para baixo, ele rezou para que ela acreditasse... e jurou que o que acontecia no quarto no fim do corredor nunca, jamais, aconteceria com eles.
Não. Os dois não teriam de lidar com aquele tipo de crise.
Graças à Virgem Escriba.
CAPÍTULO 42
Claro que Layla não estava dormindo.
Quando pediu a Qhuinn que saísse, ela falou sério quanto a não querer sustentar uma fachada de força diante dele. Mas o mais engraçado era que mesmo sem ninguém por perto, ela não ficou histérica. Não chorou. Não praguejou.
Apenas ficou deitada de lado com os braços e as pernas enroscados, a mente recuada para dentro do corpo e monitorando constantemente cada dor e cólica numa compulsão que a enlouquecia. No entanto, não havia como mudar aquilo. Era como se uma parte dela estivesse convencida de que se ao menos ela soubesse em que estágio estava, ela poderia, de algum modo, monitorar o processo.
O que, na verdade, era uma tremenda tolice. Como Qhuinn bem diria.
A imagem dele na clínica, com a adaga no pescoço do médico, era algo saído de um dos livros da biblioteca do Santuário – um episódio dramático que era parte da vida de outra pessoa.
Sua posição na cama, porém, fazia com que ela lembrasse que o caso não era bem esse...
A batida à porta foi suave, sugerindo se tratar de uma fêmea.
Layla fechou os olhos. Por mais que apreciasse qualquer tipo de gentileza que aguardava uma resposta, ela preferiria que quem quer que estivesse no corredor, continuasse lá. A breve visita da rainha fora uma provação, mesmo ela tendo apreciado.
– Sim – quando sua voz mal soou em seus ouvidos, ela pigarreou e repetiu: – Sim?
A porta abriu e, a princípio, ela não reconheceu quem era na sombra que preenchia o espaço entre os batentes da porta. Alta. Forte. Porém, não um macho...
– Payne? – perguntou.
– Posso entrar?
– Sim, claro.
Enquanto Layla tentava se sentar, a fêmea guerreira gesticulou para que ela continuasse deitada, e depois fechou a porta.
– Não, não... por favor, fique à vontade.
Um abajur fora deixado aceso sobre a cômoda e, na luz suave, a irmã de sangue de Vishous da Irmandade da Adaga Negra parecia temerária, com os olhos de diamante parecendo reluzir para fora dos ângulos fortes do rosto dela.
– Como você está? – a fêmea perguntou com suavidade.
– Estou bem, obrigada. E você?
A lutadora deu um passo à frente.
– Eu sinto muito quanto... à sua condição.
Ah, como Layla desejava que aquilo fosse algo que Phury e os outros não tivessem partilhado com ninguém. Em retrospecto, a saída da casa fora um tanto dramática, o tipo de evento que causaria perguntas preocupadas. Ainda assim, sua privacidade preferia evitar esse tipo de invasão indesejável, ainda que misericordiosa.
– Agradeço as suas palavras gentis – sussurrou.
– Posso me sentar?
– Sim, claro.
Ela imaginou que a fêmea fosse se sentar numa das cadeiras dispostas mais ao longe. Não foi o que Payne fez. Ela se aproximou da cama e abaixou o peso ao lado de Layla.
Compelida a, pelo menos, parecer uma boa anfitriã, Layla tentou se suspender, fazendo uma careta quando uma nova onda de cólicas a imobilizou no meio do caminho.
Enquanto Payne praguejava baixinho, Layla teve que voltar a se deitar. Com voz rouca, disse:
– Perdoe-me, mas não posso receber visitas agora, por mais que me queira bem. Obrigada por expressar a sua empatia...
– Você sabe quem é a minha mãe – Payne a interrompeu.
Layla balançou a cabeça ao encontro do travesseiro.
– Por favor, saia...
– Sabe? – a fêmea perguntou com rispidez.
Abruptamente, Layla quis chorar. Simplesmente não tinha forças para qualquer tipo de conversa, ainda mais a respeito de mahmens. Não enquanto perdia o filho.
– Por favor.
– Sou filha da Virgem Escriba.
Layla franziu o cenho, as palavras sendo compreendidas mesmo em meio à dor, tanto física quanto mental.
– O que disse?
Payne inspirou profundamente, como se a revelação não fosse algo com que se alegrasse, mas como se fosse um tipo de maldição.
– Sou da carne da Virgem Escriba, nascida há muito tempo, e ocultada dos registros das Escolhidas e dos olhos de outrem.
Layla piscou em estado de choque. A aparição da fêmea fora um tipo de mistério, mas ela certamente não fizera nenhuma pergunta, pois isso não cabia a ela. A única coisa que sabia com convicção é que jamais houve registro algum da mãe sagrada da raça um dia ter dado à luz uma criança.
Na verdade, a estrutura completa do sistema de crença era prevista no fato de isso não ter ocorrido.
– Como isso é possível? – arfou Layla.
Os olhos brilhantes de Payne estavam sérios.
– Não era o que eu desejaria. E não é algo de que fale a respeito.
No momento tenso que se seguiu, Layla considerou impossível não ver a verdade naquilo que a fêmea falava. Tampouco a raiva, cuja causa ela apenas podia supor.
– Você é sagrada – disse Layla maravilhada.
– Nem um pouco, eu lhe garanto. Mas minha linhagem me concedeu um tipo de... como posso explicar? Habilidade.
Layla se enrijeceu.
– Que seria...?
Os olhos de diamante de Payne não se desviaram.
– Quero ajudá-la.
As mãos de Layla foram para o baixo ventre.
– Se quer abreviar isto... não.
Ela tinha seu filho por um tempo curto demais. Não importava a dor que tivesse que passar, ela não sacrificaria um minuto sequer daquilo que, sem dúvida, seria sua única gestação.
Ela jamais se colocaria à mercê de outro sofrimento assim. No futuro, quando seu cio chegasse, ela seria sedada e pronto.
Aquele tipo de perda uma vez na vida já era demais.
– E se acredita que pode deter isto – Layla continuou –, isso não é possível. Não há nada que ninguém possa fazer.
– Não estou tão certa disso – o olhar de Payne era enlevado. – Eu gostaria de ver se posso salvar esta gestação. Se me permitir.
No campus abandonado da Escola para Moças Brownswick, o Sr. C. se acomodou no que um dia fora o escritório da diretora.
Era o que estava escrito na placa rachada do lado de fora da sala.
Como não havia calefação, a temperatura ambiente não estava muito maior do que a do lado de fora, mas graças ao sangue de Ômega, o frio não era um problema. Ainda bem: do outro lado do gramado crescido coberto de neve, no dormitório principal sobre uma colina, quase cinquenta redutores dormiam o sono dos mortos.
Se aqueles malditos necessitassem de aquecimento ou de comida, ele estaria sem sorte alguma.
Mas não, tudo o que ele tinha de fazer era providenciar um abrigo. A iniciação cuidaria do resto – e o fato de que precisavam desligar a consciência a cada 24 horas era um alívio.
Ele precisava de tempo para pensar.
Jesus Cristo, que confusão.
Compelido pela necessidade de se mexer, ele empurrou a cadeira para trás e se lembrou de que estava se sentando sobre um balde de argamassa virado ao contrário.
– Maldição.
Olhando ao redor da sala decrépita, ele mediu as placas de gesso penduradas das vigas do teto, as janelas cobertas por tábuas de madeira, e o buraco em uma das tábuas do piso no canto. O lugar era igual à conta bancária que ele encontrara.
Nenhum dinheiro em lugar algum. Munição zero. Armas que podiam ser usadas em combate à força, e só.
Depois de sua promoção, ele se viu cheio de energia, de planos. Agora encontrava-se diante de nenhum dinheiro, nenhum recurso, nada.
Ômega, por outro lado, esperava todo tipo de resultado. Como deixara bem claro no “encontro” deles na noite anterior.
E também havia outro problema. Ele odiava aquela merda.
Pelo menos ele podia fazer algo a respeito de todo o resto.
Esticando os braços acima da cabeça e estalando os ombros, agradeceu a Deus por duas coisas: uma, os celulares não tinham sido desligados, por isso ele podia se comunicar com seus homens no campo de batalha. E dois, todos aqueles anos na rua lhe deram os punhos de ferro no que se referia a controlar o bando de idiotas do tráfico de drogas.
Tinha de arranjar dinheiro. Logo.
Ele teve uma porra de um plano para isso também, mandando os últimos nove mil dólares com aqueles três garotos no meio da noite. Tudo o que os malditos tinham de fazer era pagar, pegar a droga e trazer para ali, onde dividiriam a merda, depois distribuiriam entre os novos recrutas para que eles vendessem nas ruas.
O problema era que ele ainda estava esperando pela porra da entrega.
E estava ficando puto de tanto esperar para descobrir se as drogas e o dinheiro tinham sumido.
Era bem possível que aqueles merdinhas tivessem fugido com um ou com o outro, mas, nesse caso, ele os caçaria como cachorros para mostrar aos outros o que acontecia quando você...
Quando seu celular tocou, ele o pegou, viu quem era e apertou o botão de chamada.
– Já era hora. Onde diabos você está e cadê minha mercadoria?
Houve uma pausa. Depois, a voz que se ouviu pela conexão não era nada parecida com a do traficante cheio de espinhas para quem ele entregara o celular e a última pistola da Sociedade que funcionava.
– Tenho uma coisa que você quer.
O Sr. C. franziu a testa. Voz grave. Envolta numa impaciência que ele reconhecia das ruas, e um sotaque que ele não sabia de onde vinha.
– Não é essa merda com a qual você está falando comigo – disse o Sr. C. com fala arrastada. – Tenho um monte desses.
Afinal de contas, quando você não tem nada na mão, no coldre ou na carteira, blefar era a sua única opção.
– Ora, que bom para você. Também tem muito do que me mandou? Dinheiro? Soldados?
– Quem diabos está falando?
– Sou seu inimigo.
– Se você ficou com a porra da minha grana, pode apostar que sim.
– Na verdade, essa é uma resposta bem simplista para um problema um tanto complexo.
O Sr. C. se pôs de pé, derrubando o balde.
– Onde está a porra do meu dinheiro e o que fez com os meus homens?
– Lamento, mas eles não podem mais atender ao telefone. É por isso que estou ligando.
– Você não faz ideia com quem está lidando – o Sr. C. ameaçou.
– Pelo contrário, é você quem está em desvantagem, bem como tantos outros – quando o Sr. C. estava pronto para rebater, o cara o interrompeu. – Eis o que vamos fazer. Vou telefonar à noite para lhe dar uma localização. Você, e apenas você, vai me encontrar lá. Se alguém o acompanhar, eu saberei, e você nunca mais vai saber de mim.
O Sr. C. estava acostumado a sentir desdém pelos outros, isso era parte do trabalho uma vez que você só lida com ladrões de merda e malditos viciados. Mas esse cara do outro lado da conexão? Controlado. Calmo.
Um profissional.
O Sr. C. controlou seu humor.
– Não preciso de nenhum joguinho...
– Sim, precisa. Porque se você quiser drogas para vender, terá que vir a mim.
O Sr. C. ficou calado. Ou aquele era um lunático cheio de ilusões de grandeza ou... era alguém com poder de verdade. Talvez o tipo que matou os intermediários do cartel de drogas em Caldwell um ano antes.
– Quando e onde? – disse de má vontade.
Houve uma risada sombria.
– Atenda o seu telefone ao cair da noite e você descobrirá.
CAPÍTULO 43
Layla não conseguiu falar enquanto tentava compreender as palavras de Payne.
– Não – disse à outra fêmea. – Não, Havers me disse que... não havia nada que pudesse ser feito.
– Na medicina, isso pode ser verdade. Eu posso ter outro modo, porém. Não sei se funcionará, mas, se permitir, eu gostaria de ver o que posso fazer.
Por um instante, Layla só conseguiu respirar.
– Eu não... – pôs a mão no abdômen liso. – O que fará comigo?
– Não sei bem, para ser sincera – Payne deu de ombros. – Na verdade, nem me passou pela cabeça que eu poderia ajudar nesta situação. Mas sou conhecida por curar aquilo que precisa ser curado. Repito, não sei se isso se aplica neste caso. Contudo, podemos tentar... e isso não a machucará. Isso eu posso prometer.
Layla perscrutou a expressão da lutadora.
– Por que... faria uma coisa dessas por mim?
Payne franziu o cenho e desviou o olhar.
– Você não precisa saber os motivos.
– Sim, preciso.
O perfil dela se tornou absolutamente frio.
– Você e eu somos irmãs da tirania de minha mãe, casualidades de seu plano maior de como as coisas devem ser. Estivemos as duas enjauladas em seus modos diversos, você como uma Escolhida; eu, como sua filha de sangue. Não há nada que eu não faça para ajudá-la.
Layla se recostou. Jamais se considerara uma desventura da mãe da raça. A não ser... ao pensar em seu desespero em ter uma família, seu senso de não ter raízes, sua absoluta falta de identidade além do trabalho de uma Escolhida... ela teve o que pensar. O livre-arbítrio a levava àquela situação horrenda, mas, pelo menos, ela escolhera a rota e os meios. Como membro da classe especial da Virgem Escriba, não tivera muitas escolhas, a respeito de nada em sua vida.
A respeito de nada mesmo.
Ela estava perdendo aquela gravidez, aquilo era óbvio. E se Payne achava que existia uma chance de...
– Faça o que precisar fazer – disse com voz rouca. – E obrigada, não importando o resultado.
Payne assentiu uma vez. Depois esticou as mãos, flexionando e afastando os dedos.
– Posso tocar no seu abdômen?
Layla abaixou as cobertas.
– Devo tirar a camisa?
– Não.
Melhor assim. A simples retirada da colcha lhe provocara uma nova onda de dor, a mínima mudança de peso era causa de...
– Você está sofrendo muito – murmurou a outra fêmea.
Layla não respondeu ao expor a pele do abdômen. Obviamente, sua expressão já dizia o bastante.
– Apenas relaxe. Isso não deverá lhe causar nenhum desconforto...
Quando o contato foi feito, Layla levantou a cabeça. As mãos da lutadora estavam quentes como a água de uma banheira. E igualmente calmas. Estranhamente calmas, para falar a verdade.
– Isto dói? – Payne perguntou.
– Não. Parece... – quando uma nova onda de dor se avolumava, ela agarrou os lençóis, se preparando...
Só que o pico da dor não se elevou como antes, como se a sensação fosse uma montanha íngreme, cujo topo fora arrancado.
Era o primeiro alívio que sentia desde que tudo aquilo começara.
Com um gemido de submissão, ela deixou a cabeça pender, o travesseiro amparando o repentino cansaço que a abateu pelo tanto de desconforto pelo qual seu corpo passara.
– E agora nós começamos.
De repente, a luz do abajur tremulou... e depois se apagou.
Sua iluminação, contudo, logo foi substituída.
Das mãos pálidas de Payne um brilho suave começou a ser lançado. O calor de seu toque se intensificou, o abrandamento estranho e maravilhoso parecia penetrar em sua pele, nos músculos, em cada osso que estava no caminho... indo direto para o ventre de Layla.
E, então, houve um tipo de explosão.
Com um sibilo, ela se entregou à grande onda de energia que abruptamente surgiu dentro dela, um calor que não queimava, mas fervia afastando a dor, suspendendo a agonia e arrancando-a de sua carne, como se o vapor de uma panela se dissipasse.
Mas não acabou ali. Uma grande sensação de euforia em seu corpo inteiro, com cachos dourados pulsando para fora de sua região pélvica e fluindo pelo torso até a mente e também em sua alma, e pernas e braços formigando.
Ah, que alívio pungente.
Ah, que poder incrível.
Ah, graça salvadora gentil.
A cura, contudo, não estava completa.
No meio do turbilhão, Layla sentiu... o que era aquilo? Um movimento em seu útero. Uma contração, talvez? Mas não uma cólica, não, nada disso. Mais como se o que estivesse defasado tivesse recuperado as forças.
Ela, gradualmente, deu-se conta de que batia os dentes.
Olhando para baixo, para seu corpo, ela viu que tudo tremia, e não só isso.
Sua forma física estava brilhando. Cada centímetro de sua pele era como uma cúpula de um abajur, revelando a luz que jazia por baixo, as roupas agindo como barreiras frágeis daquilo que fervia lentamente dentro dela.
Na iluminação, o rosto de Payne estava contraído, como se fosse um custo alto transferir a cura maravilhosa para outra pessoa. E Layla teria se distanciado, colocado um fim naquilo, se pudesse – porque a outra fêmea começava a parecer muito cansada. No entanto, não havia como romper a ligação. Ela não tinha o controle dos seus membros, não tinha como falar.
Aquela comunhão vital entre as duas pareceu durar uma eternidade.
Quando Payne finalmente se afastou, rompendo o elo, ela caiu da cama, formando uma pilha no chão.
Layla abriu a boca para gritar. Tentou segurar sua salvadora. Lutou contra o peso morto do corpo ainda iluminado.
Todavia, não havia nada que ela pudesse fazer.
A última coisa que ficou registrada antes que perdesse a consciência era a sua preocupação com a outra fêmea. E, depois, tudo ficou escuro.
CAPÍTULO 44
Qhuinn despertou com o pênis duro.
Estava deitado de costas e seus quadris se mexiam por conta própria, o movimento contínuo resvalava a ereção contra o peso dos lençóis e da colcha. Por um instante, enquanto se demorava naquele estado meio dormente antes de a consciência chegar, ele imaginou que era Blay criando aquela fricção, as palmas do macho subindo e descendo... num preâmbulo de mais ação oral.
Foi quando abaixou a mão para enterrar os dedos nos cabelos ruivos que percebeu estar sozinho: a mão encontrou apenas os lençóis.
Numa atitude otimista, lançou o braço para o lado, tateando o lugar ao seu lado, pronto para encontrar o corpo quente do macho.
Apenas mais lençóis. E estavam frios.
– Cacete – inspirou.
Abrindo os olhos, a realidade de onde estava o atingiu com força, murchando a sua ereção. Apesar dos encontros, aqueles dois interlúdios maravilhosos e extremamente sensuais, Blay estava, naquele exato instante, acordando ao lado de Saxton.
Provavelmente fazendo sexo com o cara.
Ah, Deus, ele ia vomitar.
A ideia de Blay tocando em outro, cavalgando em outro, lambendo e afagando outro – seu maldito primo, para ser bem claro – era quase tão insuportável quanto a maldita situação de Layla. A verdade era que, graças ao que acontecera, qualquer atração que Qhuinn sentisse pelo cara aumentara em vez de diminuir.
Maravilha. Outra rodada de boas notícias.
Foi sem nenhum entusiasmo que Qhuinn se arrastou para fora da cama e entrou no banheiro. Não acendeu a luz, não tinha interesse algum em ver que sua aparência era a mesma da merda de um cachorro, mas barbear-se só pelo toque não era a melhor das ideias.
Ao apertar o interruptor, piscou com força, e uma dor de cabeça começou a latejar atrás de ambos os olhos. Sem dúvida precisava comer de novo, mas que merda, as exigências constantes de seu corpo estavam acabando com ele.
Abrindo a torneira, ele pegou o gel de barbear e colocou um punhado na palma. Esfregou as mãos para criar espuma e pensou em seu primo. Ele tinha a impressão, embora não soubesse com certeza, de que Saxton usaria um daqueles pincéis antigos para espalhar a espuma no rosto. E nada de lâminas Gilette para ele. Muito provavelmente ele tinha um daqueles instrumentos de barbeiro com cabo em madrepérola.
O pai de Qhuinn tinha um desses. E seu irmão recebera um com suas iniciais após sua transição.
Junto ao anel de sinete.
Bem, ótimo para eles. Além do que, já que ambos estavam mortos, não era como eles continuassem se barbeando.
Quando o rosto ficou coberto de branco, como o cenário lá de fora, ele pegou sua lâmina comum Mach 3 com cabeça descartável...
Sem nem saber por que, achou que devia pegar uma lâmina nova.
Sim, uma supernova e ultracortante.
Qhuinn revirou os olhos para si mesmo. Nada como se concentrar em três pequenas lâminas e uma tira umidificadora. Algo bem lógico.
Depois de se admoestar, ele começou a vasculhar as gavetas do gabinete, puxando-as uma a uma, inventariando os itens de tolices de higiene que nunca usava, nem jamais sequer perdia tempo olhando-as.
Puxando a última, a mais próxima do chão, parou. Franziu o cenho. Agachou.
Havia uma caixinha preta de veludo ali, do tipo em que se colocam joias. Só que ele não tinha nenhuma, e muito menos da Reinhardt, aquela loja esnobe no centro. Como ninguém mais ficava em seu quarto, ele se perguntou se, talvez, aquilo estivesse ali desde que ele se mudara e ele simplesmente nunca o vira.
Tirando a caixinha, levantou a tampa e...
– Filho da mãe.
Dentro, como se valesse muita coisa, estavam todos os seus brincos de argola, bem como o piercing que costumava usar no lábio inferior.
Fritz deve tê-los juntado ao limpar o quarto uma noite e guardado na caixinha. Única explicação possível, porque Qhuinn não se importara com eles depois de tirá-los, um a um. Simplesmente os jogara no fundo de uma das gavetas do banheiro.
Qhuinn mexeu nas argolas de aço, relembrando quando as comprara e colocara. Seu pai ficara mortificado; a mãe também – ao ponto de se retirar da Última Refeição e ficar trancada no quarto por 24 horas seguidas depois de ele entrar flanando na sala de jantar usando-as.
O colocador de piercings lhe dissera para não usá-los até que as tachas utilizadas para perfurar tivessem a chance de cicatrizar. Mas esse conselho era para humanos. Em poucas horas, estava tudo perfeito e ele fizera a troca.
No banheiro de Blay, para falar a verdade.
Qhuinn franziu a testa, lembrando-se do momento em que pisara no quarto do cara. Blay estava na cama, acalentando uma Corona, assistindo TV. A cabeça dele se virou, com sua expressão franca e relaxada... até dar uma olhada em Qhuinn.
Seu rosto se contraiu mesmo que minimamente. De um jeito que, a menos que você conhecesse bem, muito bem uma pessoa, jamais teria percebido. Mas Qhuinn notara.
Naquela época, deduzira que seu estilo obviamente gótico fosse um tantinho demais para o senhor Conservador. Mas agora, em retrospecto, ele se lembrou de algo mais. Blay voltara a se concentrar na TV de plasma... e, casualmente, cobrira o colo com uma almofada.
Ele deve ter ficado excitado.
Enquanto Qhuinn repassava a cena inteira na mente, seu próprio sexo voltava a engrossar.
Só que aquilo era uma completa perda de tempo, não era?
Fitando as malditas argolas, pensou em sua rebeldia, na raiva e na ideia sem noção do que precisava ter para ser feliz.
Uma fêmea. Se encontrasse uma que o aceitasse.
Que... mentira... fora aquilo.
Engraçado, a covardia aparecia em muitas formas, não é? Não era necessário se encolher num canto, tremendo e choramingando como um gatinho. Inferno, não. Você pode ser um grandalhão barulhento cheio de marra e com o rosto cheio de piercings e um rosnado para mostrar para o mundo... e ainda assim não passar de um covarde filho da puta. Afinal, Saxton podia vestir ternos de três peças e gravatas e sapatos, mas o macho sabia quem era, e não tinha medo de ter aquilo que desejava.
E, olha só, Blay estava acordando ao lado do cara.
Qhuinn fechou a tampa e recolocou os piercings onde os encontrara. Depois se olhou no espelho. O que estava fazendo mesmo?, pensou ao fitar seu reflexo.
Ah, sim. Barbeando-se.
Era isso mesmo.
Cerca de vinte minutos mais tarde, Qhuinn saiu do quarto. Andou pelo corredor das estátuas, passou pelas portas fechadas do escritório de Wrath e continuou em frente.
Enquanto avançava, foi difícil olhar para a sala de estar do segundo andar, difícil permanecer controlado quando aquele sofá surgiu no seu campo de visão.
Nunca mais olharia para aquela peça de mobília do mesmo modo. Inferno, talvez todos os sofás estivessem perdidos para ele, para sempre.
À porta de Layla, ele se inclinou encostando o ouvido na madeira. Quando não ouviu nada, perguntou-se exatamente o que achava que descobriria daquele modo.
Deu uma batida suave. Quando não houve resposta, sentiu um aperto de medo irracional na garganta e, sem pensar duas vezes, abriu a porta.
A luz invadiu a escuridão.
Seu primeiro pensamento foi que ela tivesse morrido; que Havers, o filho da puta, tivesse mentido, e que o aborto tivesse saído do controle e a matado: Layla estava imóvel ao encontro dos travesseiros, a boca ligeiramente entreaberta, as mãos cruzadas sobre o peito como se ela tivesse sido arrumada por um agente funerário com respeito pelos mortos.
Só que... algo estava diferente, e ele precisou de um minuto para perceber o que era.
Não havia mais o cheiro sobrepujante do sangue. Na realidade, somente a fragrância delicada de canela marcava o ar, refrescando-o de um modo que iluminava o quarto inteiro.
Será que o aborto finalmente chegara ao fim?
– Layla? – ele a chamou, mesmo tendo dito que se a encontrasse dormindo, não a perturbaria.
Foi um alívio ver as sobrancelhas se mexendo quando seu nome foi captado pelo cérebro, mesmo sob o véu do sono.
Ele teve a sensação de que se a chamasse de novo, ela acordaria.
Parecia cruel forçar-lhe a consciência. O que ela teria para recebê-la quando acordasse? A dor que sentia? A sensação de perda?
Cacete.
Qhuinn saiu silenciosamente, fechou a porta atrás de si e continuou ali. Não sabia o que fazer. Wrath lhe dissera para ficar em casa, mesmo se John Matthew saísse – ele deduziu que aquilo fosse uma espécie de folga misericordiosa de seus deveres de ahstrux nohtrum. E estava grato por isso. Havia tão pouco que pudesse fazer por Layla – pelo menos podia ficar por perto caso ela precisasse de alguma coisa. Um refrigerante. Uma aspirina. Um ombro para chorar.
Você fez isso a ela.
A julgar pelo toque que saía da maldita sala de estar, ele deduziu que perdera a Primeira Refeição. Nove horas. Isso mesmo. Acabara dormindo demais, e isso era bom. Se ele tivesse de se sentar à mesa e passar 45 minutos na companhia de quase duas dúzias de pessoas que tentariam não encará-lo, ele teria perdido a porra da cabeça.
O som de alguém andando no vestíbulo logo abaixo fez com que ele levantasse a cabeça.
Sem nenhum plano ou pensamento específico, ele se aproximou da balaustrada e olhou para baixo.
Payne, a irmã valentona de V., estava saindo da sala de jantar.
Ele não conhecia muito bem aquela fêmea, mas a respeitava imensamente. Seria impossível não admirar, dado o modo como se portava no campo de batalha... Durona, verdadeiramente durona. Naquele instante, porém, a shellan do doutor Manello parecia ter levado uma surra de bar: caminhava lentamente, os pés se arrastando pelo piso de mosaico, o corpo encurvado, a pegada no braço de seu par parecendo ser a única coisa que a sustentava.
Será que ela se machucara em alguma luta corpo a corpo?
Não havia cheiro de sangue.
O doutor Manello disse algo para ela que ele não conseguiu ouvir, mas depois o cara indicou a direção da sala de bilhar com a cabeça – como se ele estivesse perguntando se ela queria ir para lá.
Tomaram aquela direção a passos de caramujo.
Já que não gostava quando as pessoas o encaravam, Qhuinn recuou da grade e esperou até que o caminho estivesse livre. Depois correu escada abaixo.
Comida. Exercícios. Voltar a ver Layla.
Aquela seria a sua noite.
Seguindo para a cozinha, ele se viu imaginando onde Blay estaria. O que estaria fazendo. Se tinha saído para lutar ou se tinha ficado em casa e...
Visto que não sabia onde Saxton estava, ele pôs um ponto final naquela linha de questionamentos.
Se Qhuinn não tivesse de fazer seu turno e pudesse passar um tempo com o cara, ele sabia muito bem o que Blay estaria fazendo.
E Saxton, seu primo filho da puta, não era nenhum tolo.