Irmandade da "Adaga Negra"
CAPÍTULO 27
Assomando-se acima de Qhuinn, Blay estava anormalmente ciente de tudo ao seu redor: a sensação da mão de Qhuinn atrás da sua perna, o modo como a bainha do roupão resvalava sua canela, o cheiro do sexo permeando o ar.
De tantos modos, ele quisera aquilo a vida inteira. Ou pelo menos, desde que sobrevivera à transição e teve algum tipo de impulso sexual. Aquele momento era o ápice de sonhos incontáveis e de inúmeras fantasias, seu desejo secreto sendo manifestado.
E era sincero: os olhos descombinados de Qhuinn não tinham sombras, nem dúvidas. O macho não só dizia a mais absoluta verdade que lhe passava pelo coração, mas estava em paz por se expor com tanta vulnerabilidade.
Blay cerrou as pálpebras brevemente. Aquela submissão era o oposto de tudo o que definia Qhuinn como macho. Ele nunca se entregava; não os seus princípios, não as suas armas, nunca, jamais a si mesmo. Pensando bem, a reviravolta fazia algum sentido. O enfrentamento da morte tendia a ser seguido por revelações...
A questão era que ele tinha a sensação de que aquilo não duraria. Aquela “visão desobstruída” sem dúvida estava ligada à viagem de avião, mas tal qual uma vítima de ataque cardíaco voltando à antiga dieta deplorável pouco depois, a “revelação” provavelmente não teria vida longa. Sim, Qhuinn estava sendo sincero quanto ao que dizia naquele momento inebriante, não havia dúvida alguma quanto a isso. No entanto, era difícil acreditar que aquilo seria permanente.
Qhuinn era o que era. E muito em breve, depois que o choque fosse absorvido – talvez ao cair da noite, quem sabe na semana seguinte, ou dali a um mês – ele voltaria ao seu modo de ser fechado, distante, à parte.
Decisão tomada, Blay voltou a abrir os olhos e se inclinou. Quando os rostos se aproximaram, os lábios de Qhuinn se partiram, o inferior, carnudo, pulsava como se ele já tentasse saborear o que desejava... e se deleitava.
Merda. O lutador era tão magnífico, o peito nu poderoso reluzindo na luz do abajur, a pele transportando uma camada de excitação, os mamilos perfurados se elevando e descendo conforme a pulsação desenfreada do sangue aquecido.
Blay percorreu a mão pelos músculos do braço que os ligava, desde a espessura grossa do ombro até a protuberância do bíceps e a curva entalhada do tríceps.
Retirou a palma de sua coxa.
E se afastou.
Qhuinn empalideceu a ponto de ficar acinzentado.
No silêncio, Blay nada disse. Não conseguiria. Sua voz havia desaparecido.
Em pernas cambaleantes, ele se distanciou, a mão envolvendo a maçaneta até conseguir coordenação suficiente para abrir a saída. Saindo, ele não saberia dizer se bateu a porta ou se a fechou silenciosamente.
Não foi muito longe. Pouco mais de um metro além do quarto, ele desabou ao encontro da parede lisa e fria do corredor.
Ofegando. Estava ofegando.
E todo aquele esforço de nada adiantaria. A sufocação no peito só piorava e, subitamente, sua visão foi substituída por quadrados em preto e branco de um tabuleiro de xadrez.
Deduzindo que estava prestes a desmaiar, agachou-se e colocou a cabeça entre os joelhos. Nos recessos da mente, rezou para que o corredor continuasse vazio. Aquele não era o tipo de coisa que gostaria de explicar para ninguém: estava do lado de fora do quarto de Qhuinn, obviamente excitado, o corpo tremendo como se um terremoto particular estivesse acontecendo...
– Jesus Cristo...
Quase morri hoje... e isso endireita as pessoas. Lá em cima naquele avião, olhando para a noite escura, não achei que fosse conseguir. Tudo ficou claro para mim.
– Não – Blay disse em voz alta. – Não...
Apoiando a cabeça nas mãos, tentou respirar calmamente, pensar racionalmente, agir sensatamente. Não poderia se dar ao luxo de se afundar ainda mais naquilo...
Aqueles olhos quentes, brilhantes, descombinados eram o que o atraiam.
– Não – sibilou.
Enquanto a voz ressoava em seu crânio, ele resolveu se dar ouvidos. Chega. Aquilo não poderia ir adiante.
Há tempos perdera o coração para aquele macho.
Não havia motivos para perder a alma também.
Uma hora mais tarde, talvez duas, ou seis, Qhuinn estava deitado nu entre os lençóis frios, fitando o escuro do teto que não conseguia enxergar.
Aquela era a dor horrível que Blay sentira? Como na vez em que fora procurá-lo no porão da casa dos pais dele e disse estar preparado para partir de Caldwell, deixando bem claro que não haveria mais nenhum laço entre eles? Ou talvez na vez em que se beijaram na clínica e Qhuinn se recusara a ir em frente? Ou naquela derradeira colisão quando eles quase ficaram juntos, pouco antes do primeiro encontro de Blay com Saxton?
Um maldito vazio enorme.
Como aquele quarto, na verdade: sem iluminação e essencialmente vazio, apenas quatro paredes e um teto. Ou um saco de pele e um esqueleto, como era o caso.
Levantando a mão, colocou-a sobre o coração, só para se certificar de que ainda tinha um.
Caramba, o destino tinha um jeito de lhe ensinar as coisas que você precisava saber, mesmo se você não estivesse ciente de que a lição era necessária até ela ser apresentada: ele desperdiçara tempo demais envolvido consigo mesmo e o seu defeito, e seu fracasso perante a família e a sociedade. Um emaranhado confuso em que se metera por tempo demais e Blay, porque se importara, fora sugado naquele turbilhão.
Mas quando foi que apoiara o amigo? O que de fato fizera pelo cara?
Blay estivera certo ao sair daquele quarto. Um pouco tarde demais, não era o ditado? E não que Qhuinn estivesse oferecendo algum tipo de prêmio. Debaixo da superfície, ele não estava muito mais estável, na verdade. Não estava mais em paz.
Não, ele merecia aquilo...
Uma centelha de luz amarelo-esverdeada fatiou o seu campo negro de visão, como se a escuridão fosse um tecido e o facho de luz uma faca.
Uma figura entrou sorrateira no seu quarto, silenciosamente, e fechou a porta.
Pelo cheiro, ele soube quem era.
O coração de Qhuinn começou a bater forte quando ele se endireitou nos travesseiros.
– Blay...?
Houve um ruído sutil, o roupão escorregando pelos ombros do macho alto. Em seguida, momentos depois, o colchão foi pressionado quando um peso grande, vital, subiu nele.
Qhuinn esticou a mão no escuro com acuidade certeira, as mãos encontrando as laterais do pescoço de Blay com tanta precisão como se tivessem sido direcionadas pela visão.
Nenhuma conversa. Ele temia que as palavras lhe roubassem aquele milagre.
Elevando a boca, puxou a de Blay para a sua, e quando aqueles lábios de veludo estavam perto de seu campo de atuação, ele os beijou com um desespero que foi retribuído. De uma vez só, todo o passado reprimido foi libertado com fúria e ele sentiu o gosto de sangue, sem saber quais foram as presas que rasgaram o outro.
E quem se importava?
Com um puxão forte, deitou Blay e depois rolou por cima do macho, afastando-lhe as coxas e pressionando-se até que o membro rijo se deparasse com...
Os dois gemeram.
Tonto por causa de tanta pele nua, Qhuinn começou a bombear os quadris para frente e para trás, a fricção dos sexos e a pele quente aumentando o calor úmido em suas bocas. Frenesi, em toda parte, rápido, depressa, rápido... Puta merda, havia desejo demais para entender onde suas mãos estavam, ou no que ele se esfregava ou... Porra, havia pele demais para tocar, cabelos para puxar, tanta coisa, demais...
Qhuinn gozou, as bolas endurecendo, a ereção jorrando entre eles, espalhando-se por todos os lados.
E isso não o desacelerou em nada.
Com um puxão, afastou-se da boca que poderia passar uma centena de anos beijando, lançou-se sobre o peito de Blay. Os músculos com que se deparava não se comparavam com os dos humanos com quem transara: aquilo era um vampiro, um lutador, um soldado treinado arduamente que exercitava o corpo para atingir uma condição não só útil, mas essencialmente letal. Caramba se aquilo não era ex-citante... mas, acima de tudo, aquele era Blay; finalmente, depois de todos aqueles anos...
Blay.
Qhuinn resvalou as presas por um abdômen que era sólido como uma rocha, e o seu cheiro na pele de Blay era uma marcação que sabia que fizera de propósito.
Aquele tempero forte também iria para outros lugares.
Gemeu quando as mãos encontraram o pênis de Blay e, enquanto circundava a coluna rija, o cara se arqueou profundamente, uma imprecação atravessando o quarto, de modo bem semelhante ao que a luz fizera pouco antes.
Qhuinn lambeu os lábios, elevou o sexo de Blay e permitiu que o pênis grosso e ousado partisse sua boca. Sugando, tomou-o até a base, abrindo a garganta, engolindo tudo. Em resposta, os quadris de Blay se elevaram, e mãos brutas cravaram em seus cabelos, forçando a cabeça ainda mais para baixo até que ele não conseguisse mais levar ar aos pulmões. Mas quem é que precisava de oxigênio?
Afundando as mãos nas nádegas de Blay, inclinou aquela pélvis e subiu e desceu, o pescoço se esticando com o ritmo punitivo, os ombros flexionando e relaxando enquanto ele executava exatamente aquilo que oferecera a Blay antes de ele ir embora.
Ele não pretendia fazer apenas aquilo, porém.
Não.
Era apenas o começo.
CAPÍTULO 28
Quando Blay caiu contra os travesseiros de Qhuinn, quase partiu a coluna. Tudo estava fora de controle, mas ele não teria desacelerado em nada as coisas: os quadris subiam e desciam, o pau empurrava e era chupado pela boca de Qhuinn...
Graças a Deus as luzes estavam apagadas.
Só as sensações já eram demais. Com um auxílio visual? Ele não conseguiria...
O orgasmo disparou como um foguete, a respiração ficou suspensa, o corpo enrijeceu todo, o sexo gozando ao máximo. Ao chegar ao clímax em grandes espasmos, ele foi ordenhado por aquela boca... e, caramba, a sucção incitou o alívio a continuar, com grandes ondas de prazer pulsante varrendo-o do cérebro até as bolas, seu corpo atingindo um plano de existência completamente diferente...
Sem aviso, ele foi virado por uma mão brusca, o corpo manejado como se não pesasse absolutamente nada. Em seguida, um braço passou por baixo de sua pélvis e o colocou de joelhos. Houve uma breve calmaria na qual tudo o que ele ouviu foi a respiração pesada atrás dele, o arquejo aumentando cada vez mais, mais fundo...
Ouviu o orgasmo de Qhuinn e entendeu exatamente o motivo.
Mesmo seu corpo inteiro estando fraco de antecipação, ele sabia que tinha de se preparar quando uma mão pesada aterrissou em seu ombro e...
A penetração foi como um ferro de marcar, quente e brutal, atingindo direto o seu cerne. E ele praguejou numa exalação explosiva. Não porque doesse, ainda que do melhor modo possível. Nem mesmo porque aquilo era algo que ele tanto desejara, se bem que isso fosse verdade.
Não. Era porque ele teve a estranha sensação de estar sendo marcado e, por algum motivo, isso fez com que...
Um sibilo atingiu-o no ouvido, e depois um par de presas cravou-se em seu ombro, a pegada de Qhuinn mudando na altura dos quadris, o torso enroscado em tantos lugares. E, então, quando a penetração inexorável começou, os molares de Blay se cerraram, os braços tiveram que suportar o peso dos dois, as pernas e o torso se esforçaram debaixo do ataque.
Ele teve a sensação de que a cabeceira da cama batia contra a parede e por um centésimo de segundo, lembrou-se do candelabro na biblioteca oscilando enquanto Layla fora sujeitada àquilo.
Blay amaldiçoou a imagem. Não se permitiria ir lá; não poderia. Deus bem sabia que haveria muito tempo para refletir sobre tudo aquilo mais tarde.
Naquele instante? Aquilo era bom demais para ser desperdiçado...
Enquanto o açoite continuava, suas palmas escorregaram nos lençóis de algodão fino, e ele teve que reposicioná-las, afundando-as no colchão macio para tentar sustentar sua posição. Deus, os sons que Qhuinn fazia, os rosnados que reverberavam entre as presas enterradas em seu ombro, as estocadas... ah, sim, isso era a cabeceira. Definitivamente.
Com a pressão se avolumando em suas bolas, ele se sentiu tentado a se espalmar, mas não havia como. Ele precisava das duas mãos naquele trabalho...
Como se Qhuinn lesse sua mente, o macho passou o braço ao seu redor e o agarrou.
Não era necessário masturbá-lo. Blay gozou tão violentamente que sua mente ficou difusa e, naquele exato instante, Qhuinn começou a ter um orgasmo também, os quadris movendo-se para dentro, parando um segundo antes de recuarem só para afundarem ainda mais antes da explosão. E, ah, porra, a combinação dos dois fazendo suas coisas era tão erótica que só fez com que tudo recomeçasse mais uma vez: não houve intervalo para se recuperarem, absolutamente nenhuma pausa. Qhuinn apenas retomou as investidas como se seu alívio o tivesse fortalecido.
Enquanto o sexo se estendia, e apesar de toda a força que Blay tinha em seus membros superiores, ele acabou caindo da cama, uma mão travando na lateral da mesinha de cabeceira só para que ele não batesse na parede...
Crash!
– Merda – disse ele rouco. – O abajur...
Ao que tudo levava a crer, Qhuinn não estava interessado em decoração. O macho simplesmente puxou a cabeça de Blay e começou a beijá-lo, a língua com piercing penetrando sua boca, lambendo e sugando... como se não conseguisse se fartar.
Tontura. Ele ficou absolutamente tonto com tudo aquilo. Em cada fantasia que teve, ele sempre visualizou Qhuinn como um amante impetuoso, mas aquilo... aquilo estava num outro nível.
Por isso, foi ao longe que ele se ouviu dizer numa voz gutural:
– Morda... de novo.
Um grunhido imenso vindo de cima perpassou seu ouvido, e depois outro sibilo atravessou a escuridão quando Qhuinn mudou as posições, seu peso massivo girando para que as presas pudessem afundar na lateral do pescoço.
Blay praguejou e empurrou para longe o que quer que tivesse restado sobre a mesinha de cabeceira, o peito tomando o lugar dos objetos, a pele suada chiando no verniz enquanto ele jazia meio de lado. Esticando a mão, ele se apoiou na tábua do piso e empurrou para cima, mantendo os dois estáveis enquanto Qhuinn se alimentava e o penetrava tão magnificamente bem...
Vezes demais para contar, até os travesseiros estarem no chão, os lençóis rasgados, outro abajur destruído... e não estava muita certo, mas ele achava que tinha derrubado um quadro da parede.
Quando a imobilidade por fim substituiu todo aquele esforço, Blay respirou fundo e se sentiu como se estivesse submerso.
O mesmo se passava com Qhuinn.
O aumento da trajetória úmida no pescoço de Blay sugeria que as coisas ficaram tão descontroladas que não houve o fechamento da veia que fora sugada. E quem se importava? Ele não, nem conseguia pensar, e não se preocuparia. As sensações pós-coito de flutuação e êxtase eram gloriosas demais para serem estragadas, o corpo estava ao mesmo tempo hipersensível e entorpecido, quente e brando, dolorido e saciado.
Caramba, os lençóis teriam de ser lavados. E Fritz indubitavelmente teria de encontrar uma supercola para aqueles abajures.
Onde exatamente ele estava?
Esticando a mão, tateou e descobriu o tapete e a saia da cama... além de uma manta. Ah, bom, estava quase caindo pela ponta da cama. O que explicava a tontura que sentia.
Quando Qhuinn, por fim, soltou-se dele, Blay quis acompanhá-lo, mas seu corpo estava muito mais interessado em ser um objeto inanimado. Ou um rolo de tecido ou, quem sabe...
Mãos gentis o suspenderam e, com cuidado e devagar, rolaram-no de costas. Houve mais um pouco de movimentação e depois ele se sentiu reposicionado contra os travesseiros que retornaram ao seu devido lugar. Enfim, uma manta leve foi ajustada na metade do seu corpo, como se Qhuinn soubesse que ele estava muito quente para ser coberto demais e, ainda assim, começava a sentir um friozinho enquanto o suor que o cobria começava a secar.
Seu cabelo foi empurrado para longe da testa e, em seguida, sua cabeça foi ajeitada para o lado. Lábios de seda beijaram a coluna de seu pescoço e, depois, lambidas longas e langorosas selaram a mordida que ele pedira e recebera.
Quando tudo terminou, deixou que sua cabeça fosse ajeitada para o lado de Qhuinn. Ainda que estivesse absolutamente escuro, ele sabia exatamente como o rosto que o fitava estava: ruborizado nas maçãs do rosto, as pálpebras semicerradas, os lábios vermelhos...
O beijo pressionado em sua boca foi reverente, o contato não mais pesado do que o ar quente e estático do quarto. Era o beijo perfeito de um amante, o tipo de coisa que ele desejava mais do que o sexo ardente que partilharam...
O pânico golpeou o centro do seu peito e ressoou para fora num piscar de olhos.
As mãos agiram por vontade própria, empurrando Qhuinn.
– Não me toque. Nunca mais me toque assim.
Deu um salto da cama e só Deus sabia em que parte do quarto ele aterrissou. Hesitante, tateou pelo aposento, mas acabou se orientando pela luz que passava por baixo da porta.
Apanhando o roupão no chão, não olhou para trás ao sair.
Não suportaria encarar o resultado daquilo tudo em nenhum tipo de luz.
Isso só tornaria tudo aquilo muito real.
Em algum momento, Qhuinn teve que fazer com que as luzes se acendessem. Não suportava mais a escuridão.
Quando a iluminação inundou o lugar, ele piscou e teve que amparar os olhos com a mão. Depois de recalibrar as retinas, olhou ao redor.
Caos. Total e absoluto.
Então tudo aquilo acontecera mesmo, hein. E quanta ironia que o interior da sua cabeça fizesse com que aquela bagunça parecesse uma ordem militar em comparação.
Nunca mais me toque assim.
Ah, inferno, pensou ele ao esfregar o rosto. Não poderia culpar o cara.
Primeiro, demonstrara a mesma finesse de uma escavadeira. Bola de demolição. Tanque de guerra. O problema era que tudo aquilo fora intenso demais para demonstrar qualquer traço de paciência: o instinto, tão puro e tão inflamável quanto combustível, o acendera; a sessão fora um caso de deixar as coisas rolarem.
Oh, Deus, marcara o cara.
Caralho. E não exatamente no bom sentido, considerando que Blay estava apaixonado e envolvido num relacionamento... e voltando para a cama do amante.
Mas, pensando bem, quando um macho está com quem ele quer, especialmente se é a primeira vez, era isso mesmo o que acontecia. As coisas saíam do controle...
Nem era preciso dizer que aquele fora o melhor sexo de sua vida, a primeira vez de perfeito encaixe depois de uma longa história de “nem de longe”. A questão foi que, no fim, ele quis que Blay soubesse disso, tentou encontrar as palavras e se apoiou no toque para pavimentar o caminho da confissão.
Contudo, ficou evidente que o macho não queria ter essa proximidade.
O que provocou um segundo, e mais profundo, arrependimento.
Sexo por desforra não se tratava de atração, mas sim de utilidade. E Blay o usara, do modo como ele pedira para ser usado.
Aquela sensação de vazio voltou multiplicada por dez. Por cem.
Sem conseguir suportar a emoção, pôs-se de pé, e teve que praguejar: a rigidez notável na lombar tinha tudo a ver com o acidente de avião e mais ainda com a pneumática que realizara na última hora... ou mais...
Merda.
Indo para o banheiro, deixou as luzes apagadas, mas havia iluminação suficiente vinda do quarto para ele conseguir entrar no chuveiro. Dessa vez, esperou a água esquentar; seu corpo não suportaria mais um choque.
Era tão patético; a última coisa que desejava era lavar o cheiro de Blay de sua pele, mas estava enlouquecendo com ele. Deus, devia ser assim que todos os hellrens se sentiam quando ficavam possessivos: metade do seu juízo dizia que ele devia descer o corredor, invadir o quarto de Blay e expulsar Saxton. A bem da verdade, teria adorado que o primo tivesse testemunhado, só para o cara saber que...
Para interromper aquele nada saudável curso de pensamentos, entrou no box envidraçado e pegou o sabonete.
Blay estava envolvido, tentou se lembrar disso, mais uma vez.
O sexo que partilharam não se referia à conexão emocional.
Portanto, ele estava, nesse momento de vazio, sendo passado para trás pela sua própria história.
Aquele parecia ser mais um caso em que o destino lhe dava aquilo que ele merecia.
Enquanto se lavava, o sabonete não era nada macio se comparado com a pele de Blay, nem cheirava um quarto do perfume do cara. A água não era tão quente quanto o sangue do lutador e o xampu, nada tranquilizador. Nada se equiparava.
Nem jamais conseguiria.
Enquanto Qhuinn virava o rosto para o jato e abria a boca, descobriu-se rezando para que Saxton pulasse a cerca mais uma vez, mesmo isso sendo uma coisa deplorável de se desejar.
O problema era que ele tinha a terrível sensação de que outro caso de infidelidade seria a única maneira de Blay voltar para ele.
Fechando os olhos, voltou para aquele momento em que beijou Blay no fim... em que o beijou de verdade, quando as bocas se encontraram gentilmente na calmaria após a tempestade. Enquanto sua mente reescrevia o roteiro, ele não era empurrado para o outro lado dos limites que ele mesmo criara. Não, em sua imaginação, as coisas terminavam como teriam de terminar, com ele afagando o rosto de Blay e fazendo as luzes se acenderem para que pudessem se olhar.
Em sua fantasia, ele beijaria seu amigo uma vez mais, se afastaria e...
– Eu te amo – disse ele para o jato de água. – Eu... te amo.
Ao fechar os olhos novamente ante a dor, ficou difícil saber quanto daquilo que descia pelo seu rosto era água e quanto era outra coisa.
CAPÍTULO 29
No dia seguinte, bem no fim da tarde, o visitante de Assail voltou.
Enquanto o sol se punha e os raios rosados de sol atravessavam a floresta, ele viu em seu monitor uma figura solitária em esquis de cross-country, os bastões equilibrados contra os quadris, binóculos cobrindo o rosto.
Nos quadris dela, o rosto dela, melhor dizendo.
A boa notícia era que suas câmeras de segurança não só tinham um zoom fantástico, como também seu foco e campo de visão eram facilmente manipulados por um joystick de computador.
Por isso ele restringiu ainda mais a imagem.
Quando a mulher abaixou os binóculos, ele mediu o comprimento de cada cílio ao redor dos olhos escuros e calculistas, e as marcas avermelhadas das maçãs do rosto de poros pequenos, e o ritmo uniforme da pulsação da artéria que percorria a mandíbula.
O aviso que ele dera a Benloise fora recebido. E, ainda assim, lá estava ela.
Era evidente que ela estava, de algum modo, ligada ao atacadista de drogas; e na noite anterior, pelo visto, ela ficara irritada com Benloise, visto o modo como marchara para fora da galeria como se alguém a tivesse insultado.
Todavia, Assail nunca a vira antes, o que era estranho. No último ano, aproximadamente, ele se familiarizara com todos os aspectos da operação de Benloise, desde o número incalculável de seguranças, até a equipe irrelevante da galeria, incluindo os importadores astutos e o irmão do homem, responsável pelas finanças.
Portanto, ele só podia deduzir que ela era uma empreiteira independente, contratada para um propósito específico.
Mas por que, então, ela ainda estava em sua propriedade?
Verificou os números digitais na parte inferior da tela. Quatro e meia. Costumeiramente, não seria uma hora com que se alegrar, pois ainda era cedo demais para sair. Mas o horário de verão acabara, e aquela invenção humana de manipular o sol na verdade trabalhava a seu favor por seis meses no ano.
Estaria um pouco quente lá fora, mas ele lidaria com isso.
Assail se vestiu rapidamente, colocando o terno Gucci com uma camisa de seda branca e pegando o sobretudo trespassado de pelo de camelo. O seu par de Smith & Wesson calibre .40 era o acessório perfeito, claro.
O metálico seria sempre o novo preto.
Pegando o iPhone, franziu ao tocar a tela. Uma chamada de Rehvenge, com uma mensagem.
Saindo do quarto, acessou a mensagem de voz do lídher do Conselho e ouviu-a enquanto descia as escadas.
A voz do macho ia direto ao ponto, e isso era algo a se respeitar:
– Assail, você sabe quem é. Estou convocando uma reunião do Conselho e quero não apenas um quorum, mas presença completa; o Rei estará presente, bem como a Irmandade. Como macho sobrevivente mais velho da sua linhagem, você está na lista do Conselho, mas registrado como inativo porque permaneceu no Antigo País. Agora que está de volta, está na hora de começar a participar desses encontros festivos. Ligue para mim para me informar a sua agenda, para que eu possa organizar local e data conveniente a todos.
Parando ante a porta de aço que bloqueava a escada inferior, colocou o telefone no bolso de dentro, destravou a porta e a abriu.
O primeiro andar estava escuro por conta das persianas especiais que bloqueavam toda a luz solar, e a sala de estar imensa mais se parecia com uma caverna no centro da terra do que com uma gaiola envidraçada às margens do rio.
Da direção da cozinha vinha o barulho de fritura e o cheiro de bacon.
Caminhando na direção oposta, entrou no falso escritório recoberto com painéis de nogueira que cedera ao uso dos primos e passou para o quarto especial de dois metros quadrados, cuja temperatura era mantida em precisos vinte graus Celsius e umidade a exatamente 69%, perfumado pelo tabaco de dúzias e dúzias de caixas de charutos. Depois de ponderar sobre a fileira exposta, apanhou três cubanos.
Afinal, os cubanos eram os melhores.
E ali estava mais uma coisa que Benloise lhe fornecia por um preço.
Trancando a sua preciosa coleção, voltou à sala de estar. Já não havia barulho de fritura, o bater sutil de talheres nos pratos o substituíra.
Ao entrar na cozinha, os dois primos estavam sentados em bancos ante a bancada de granito, o par comendo no mesmo ritmo preciso, como num rufar de tambores, despercebido por outros, mas que regulava seus movimentos.
Os dois levantaram as cabeças no mesmo ângulo para olhar para ele.
– Estou de saída. Sabem como me localizar – disse.
Ehric limpou a boca.
– Localizei três daqueles intermediários desaparecidos... voltaram à ação, estão prontos para se mexer. Vou fazer a entrega à meia-noite.
– Bom, muito bom – Assail verificou rapidamente as armas. – Tente descobrir onde estavam, sim?
– Como quiser.
Os dois abaixaram as cabeças ao mesmo tempo, voltando ao desjejum.
Nada de comida para ele. Do lado da cafeteira, ele pegou um frasco de cor de âmbar e desatarraxou a tampa, que tinha uma colherinha de prata grudada a ela, e o objeto emitiu um tinido enquanto ele o enchia com cocaína. Uma aspirada.
Bom dia!
Ele levou o resto consigo, colocando-o no mesmo bolso dos charutos. Já fazia um tempo desde que se alimentara e estava começando a sentir os efeitos, o corpo preguiçoso, a mente tendendo a um entorpecimento desconhecido.
O lado negativo do Novo Mundo? Era difícil encontrar fêmeas.
Felizmente, cocaína pura era um bom substituto, pelo menos por enquanto.
Ajustando um par de óculos de sol de lentes opacas, passou pelo vestíbulo e se preparou para sair pela porta dos fundos.
Afastando a porta...
Assail se retraiu e gemeu ante o ataque, seu peso oscilando em seus sapatos: apesar de 99% do seu corpo estar coberto por camadas múltiplas de roupa, e mesmo de óculos escuros, a luz efêmera do céu era o bastante para que ele vacilasse.
No entanto, não havia tempo para ceder à biologia.
Esforçando-se para se desmaterializar até a floresta atrás da casa, pôs-se a rastrear a mulher próximo à escuridão. Foi bem fácil localizá-la. Ela estava batendo em retirada, movendo-se rapidamente sobre aqueles esquis, abrindo caminho por entre os ramos espinhosos dos pinheiros e os carvalhos e bordos esqueléticos. Extrapolando a trajetória dela e aplicando a mesma lógica interna que ela demonstrara nas fitas de segurança da manhã anterior, ele logo se adiantou, antecipando bem onde ela estaria...
Ah, sim. O Audi preto da galeria. Estacionado ao lado da estrada limpa de neve a cerca de três quilômetros de sua propriedade.
Assail estava recostado contra a porta do motorista e bafejando um cubano quando ela saiu do limite das árvores.
Ela parou de pronto nos rastros duplos por ela criados, os bastões em ângulos abertos.
Ele lhe sorriu ao soprar uma nuvem de fumaça no crepúsculo.
– Belo entardecer para se exercitar. Apreciando a vista... Da minha casa?
A respiração dela estava acelerada devido ao esforço físico, mas não por algum medo que ele pudesse pressentir. Isso o excitava.
– Não sei do que está fal...
Ele interrompeu a mentira.
– Bem, o que posso lhe dizer é que, no momento, sou eu quem está apreciando a vista.
Enquanto seu olhar descia deliberadamente pelas pernas longas e atléticas nas calças justas de esqui, ela o encarou.
– Acho difícil que consiga ver qualquer coisa por trás dessas lentes.
– Meus olhos são muito sensíveis à luz.
Ela franziu o cenho e olhou ao redor.
– Quase não há mais nenhuma luz.
– Há o bastante para eu enxergá-la – ele deu nova baforada. – Gostaria de saber o que eu disse a Benloise ontem à noite?
– Quem?
Ela o aborreceu e ele afiou a voz:
– Um pequeno conselho. Não brinque comigo... isso fará com que morra mais rápido do que qualquer tipo de invasão de domicílio.
Um cálculo impassível fez com que ela estreitasse o olhar.
– Eu não sabia que invasão de propriedade dava pena de morte.
– Comigo, existe uma bela lista de coisas com repercussões letais.
Ele levantou o queixo.
– Ora, ora. Como você é perigoso.
Como se ele fosse um gatinho brincando com um novelo e sibilando.
Assail moveu-se com rapidez, ele bem sabia que os olhos dela seriam incapazes de acompanhá-lo. Num momento, estava a metros de distância; no instante seguinte, estava nas pontas dos seus esquis, prendendo-a no lugar.
A mulher gritou alarmada e tentou recuar, mas, claro, seus pés estavam presos. Para evitar que ela caísse, ele a apanhou pelo braço com a mão que não segurava o charuto.
Agora o sangue dela corria de medo e, quando ele inalou seu cheiro, excitou-se. Puxando-a para a frente, fitou-a, tracejando-lhe o rosto.
– Tome cuidado – disse ele numa voz mansa. – Eu me ofendo com rapidez e meu temperamento não é facilmente aplacado.
Embora ele conseguisse pensar pelo menos numa coisa que ela poderia lhe dar que o acalmaria.
Inclinando-se, ele inspirou profundamente. Deus, adorava o cheiro dela.
Mas aquela não era a hora de se distrair com esse tipo de coisa.
– Eu disse a Benloise que enviasse pessoas à minha casa por sua conta e risco... delas. Estou surpreso que ele não a tenha alertado sobre esses, como podemos dizer, limites bem delimitados de propriedade...
Pelo canto do olho, ele percebeu um movimento sutil no ombro dela. Ela pretendia pegar a arma com a mão direita.
Assail colocou o charuto entre os dentes e segurou o punho delicado. Aplicando pressão e só parando quando a dor se fez perceber na respiração dela, ele a arqueou para trás para que ela notasse completa e inequivocadamente o poder que ele tinha sobre si mesmo e sobre ela. Sobre tudo.
E foi nesse momento que a mulher se excitou.
Fazia muito tempo, talvez tempo demais, desde que Sola desejou um homem.
Não que ela não os considerasse desejáveis via de regra, ou que não tivessem existido ofertas para encontros horizontais com membros do sexo oposto. Nada lhe parecera valer o esforço. E talvez, depois daquele único relacionamento que não dera certo, ela tivesse regressado aos hábitos de sua rígida criação brasileira – o que era irônico, considerando-se o que fazia para sobreviver.
Aquele homem, porém, chamara sua atenção. Verdadeiramente.
O modo como a segurava pelo braço e pelo pulso não era nada educado e, mais do que isso, não havia clemência pelo fato de ela ser mulher; as mãos a apertavam com tanta força a ponto de a dor se encaminhar para o coração, fazendo-o bater forte. Do mesmo modo, o ângulo em que a forçava para trás testava os limites da capacidade de sua coluna se dobrar, e as coxas ardiam.
Excitar-se assim... era uma negligência ignorante para a sua autopreservação. Na verdade, ao fitar aquelas lentes escuras, ela estava bem ciente de que ele poderia matá-la ali mesmo. Torcendo o seu pescoço. Quebrando seus braços só para vê-la gritar antes de sufocá-la na neve. Ou talvez apenas desacordando-a antes de jogá-la no rio.
O sotaque carregado de sua avó subitamente veio-lhe à mente: Por que não pode conhecer um bom rapaz? Um rapaz católico de uma família que conhecemos? Marisol, assim você parte o meu coração.
– Só posso deduzir – a voz sombria sussurrou com um sotaque e uma inflexão que lhes eram desconhecidos – que a mensagem não lhe foi transmitida. Correto? Benloise deixou de lhe passar essa informação... e é por isso que, depois de eu ter expressamente indicado minhas intenções, você ainda assim voltou a espionar a minha casa? Creio que foi isso o que aconteceu, talvez uma mensagem de voz que ainda não tenha sido recebida. Ou uma mensagem de texto, um e-mail. Sim, acredito que o comunicado de Benloise tenha se perdido, não é mesmo?
A pressão nela intensificou-se ainda mais, sugerindo que ele tinha força de sobra, o que era, no mínimo, uma perspectiva assombrosa.
– Não é isso? – rugiu ele.
– Sim – disse ela. – É isso.
– Portanto, posso deduzir que não a encontrarei em seus esquis por aqui. Correto?
Ele a sacudiu novamente, a dor fazendo com que seus olhos revirassem.
– Sim – ela disse num engasgo.
O homem relaxou apenas o suficiente para que ela pudesse respirar um pouco. Depois continuou falando, naquela voz estranhamente sedutora:
– Bem, preciso de uma coisa antes que você vá. Você me dirá o que descobriu sobre mim... Tudo o que descobriu.
Sola franziu o cenho, pensando que aquilo era tolice. Sem dúvida um homem como aquele estaria ciente de qualquer informação que uma terceira pessoa poderia saber a seu respeito.
Então aquilo era um teste.
Visto que ela queria muito rever a avó, Sola disse:
– Não sei seu nome, mas posso imaginar o que faz, e também o que fez.
– E o que seria?
– Acredito que seja a pessoa que esteja matando aqueles interceptadores na cidade para assegurar território e controle.
– Os jornais e os noticiários disseram que se tratavam de suicídios.
Ela apenas prosseguiu, uma vez que não havia motivo para argumentar:
– Sei que mora sozinho, até onde posso saber, e que sua casa possui um tratamento estranho nas janelas. Um tipo de camuflagem para parecer o interior da casa, mas... é outro tipo de coisa. Só não sei o quê.
O rosto acima do dela permaneceu completamente impassível. Calmo. Tranquilo. Como se não a estivesse forçando a ficar no lugar... Ou a ameaçando. O controle era... erótico.
– E? – insistiu ele.
– É só isso.
Ele inalou o charuto nos lábios, a ponta em círculo alaranjado brilhando mais.
– Só vou libertá-la uma vez. Entende?
– Sim.
Ele se moveu com tanta rapidez que ela teve que balançar os braços para readquirir o equilíbrio, os bastões se afundando na neve. Espere, o que ele...
O homem apareceu bem atrás dela, os pés plantados nas laterais dos rastros dos esquis, uma barricada física para o caminho que ela fizera a partir da casa dele. Enquanto o bíceps e o pulso direitos dela ardiam por conta do sangue que voltava a circular nas partes que foram comprimidas, um aviso surgiu na base de sua nuca.
Cai fora daqui, Sola disse a si mesma. Agora.
Sem querer arriscar uma nova captura, ela se moveu para frente até a estrada, a parte inferior dos esquis lutando para conseguir avançar na neve gelada e compactada.
Enquanto ela avançava, ele a seguia, caminhando lentamente, inexoravelmente, como um grande felino que estava cercando a presa com a qual estava contente em apenas brincar, por enquanto.
As mãos dela tremiam quando usou as pontas dos esquis para soltar as amarras, e ela teve dificuldade para prender os esquis no rack do carro. O tempo inteiro, ele permaneceu parado no meio da estrada observando-a, a fumaça do charuto subindo pelo ombro em brisas frias que seguiam para o rio.
Entrando no carro, ela travou as portas, deu partida e olhou pelo espelho retrovisor. No brilho da luz do freio, ele parecia inequivocadamente maligno, um homem alto, de cabelos escuros, com o rosto lindo como o de um príncipe, e tão cruel quanto uma lâmina.
Pisando no acelerador, ela saiu do acostamento e se afastou rápido, o sistema de tração das quatro rodas sendo acionado para a tração de que ela precisava.
Ela olhou de relance mais uma vez pelo retrovisor. Ele ainda estava lá...
O pé de Sola mudou para o freio e quase o pressionou.
Ele sumira.
Como se tivesse se dissipado no ar. Num momento estava lá... no seguinte, invisível.
Sacudindo-se, voltou a pressionar o acelerador e fez o sinal da cruz sobre o coração acelerado.
Num pânico absurdo, perguntou-se: mas que diabos era ele?
CAPÍTULO 30
Bem quando as persianas eram suspensas com a chegada da noite, Layla ouviu uma batida à porta e, mesmo antes de o cheiro passar pelas frestas, ela sabia quem tinha vindo vê-la.
Inconscientemente, a mão subiu para o cabelo, e descobriu que estava uma bagunça, todo emaranhado por ter virado e revirado o dia inteiro. Pior, nem se importara em tirar a roupa com que saíra para ir à clínica.
Entretanto, não lhe poderia negar a entrada.
– Entre – disse, sentando-se um pouco mais erguida e ajeitando as cobertas que puxara até o queixo.
Qhuinn estava com suas roupas de combate, o que a levou a deduzir que ele estava escalado para o turno daquela noite – mas talvez não. Ela não conhecia o escalonamento.
Quando seus olhares se cruzaram, ela franziu o cenho.
– Você não está bem.
Ele levou a mão para o curativo na sobrancelha.
– Isto? É apenas um arranhão.
Só que não fora o machucado que chamara sua atenção. Era o olhar vago, as concavidades rígidas nas faces.
Ele parou. Farejou. Empalideceu.
Imediatamente, ela baixou o olhar para as mãos, e mais uma vez as torceu.
– Por favor, feche a porta – pediu.
– O que está acontecendo?
Quando a porta se fechou conforme o seu pedido, ela respirou fundo.
– Fui à clínica de Havers ontem à noite.
– O quê?
– Estou sangrando...
– Sangrando? – ele se apressou para a frente, quase derrapando a caminho da cama. – Por que diabos não me contou?
Santa Virgem Escriba, seria impossível para ela não se acovardar ante tamanha fúria. Na verdade, ela estava sem forças no momento e impossibilitada de reunir qualquer tipo de autopreservação.
Instantaneamente, Qhuinn recuou em sua raiva, afastando-se e circulando pelo quarto. Quando a fitou novamente, disse bruscamente:
– Sinto muito. Não tive a intenção de gritar... Eu só... eu só estou preocupado com você.
– Eu sinto muito. E eu deveria ter lhe contado, mas você estava fora em combate e eu não quis aborrecê-lo. Eu não sei... francamente, eu não devia estar pensando com clareza. Estava fora de mim.
Qhuinn se sentou ao lado dela, os ombros imensos se curvando enquanto ele cruzava os dedos e apoiava os cotovelos nos joelhos.
– Então, o que está acontecendo?
Tudo o que ela conseguiu fazer foi dar de ombros.
– Bem, como você pode perceber... estou sangrando.
– Quanto?
Ela pensou no que a enfermeira lhe havia dito.
– O suficiente.
– Há quanto tempo?
– Tudo começou há mais ou menos 24 horas. Não quis procurar a doutora Jane porque não tinha certeza de quão confidencial isso seria e também... ela não tem muita experiência com gestações da nossa espécie.
– O que Havers disse?
Foi a vez de ela franzir a testa.
– Ele não quis me dizer.
– Como é que é? – a cabeça de Qhuinn se ergueu.
– Por causa do meu status como Escolhida, ele só falará com o Primale.
– Está de brincadeira?
Ela balançou a cabeça.
– Não. Também não consegui acreditar nisso e sinto dizer que saí de lá em circunstâncias menos que favoráveis. Ele me reduziu a um objeto, como se eu não tivesse a mínima importância... não passasse de um repositório...
– Você sabe que isso não é verdade – Qhuinn segurou sua mão com os olhos descombinados ardendo. – Não para mim. Nunca para mim.
Ela estendeu a mão e o tocou no ombro.
– Eu sei, mas obrigada por dizer isso – ela estremeceu. – Preciso ouvir isso agora. E quanto ao que está acontecendo... comigo... a enfermeira disse que não há nada que ninguém possa fazer para impedir isto.
Qhuinn baixou o olhar para o tapete e ficou assim por um bom tempo.
– Não entendo. Não era para ser assim.
Engolindo a horrível sensação de fracasso, ela se endireitou e afagou as costas dele.
– Sei que você desejava isto tanto quanto eu.
– Você não pode estar abortando. Não é possível.
– Pelo que fiquei sabendo, os dados estatísticos não são tão bons. Não no começo... e não no fim.
– Não, não pode estar certo. Eu... a vi.
Layla limpou a garganta.
– Sonhos nem sempre se tornam realidade, Qhuinn.
Parecia algo muito simplista de se dizer. Igualmente óbvio. Mas magoava em seu cerne.
– Não foi um sonho – disse ele de modo rude. Mas, então, sacudiu-se e voltou a olhar para ela. – Como está se sentindo? Sente dor?
Quando ela não respondeu de imediato, porque não queria mentir para ele a respeito das cólicas, ele se pôs de pé.
– Vou procurar a doutora Jane.
Ela o segurou pela mão, detendo-o.
– Espere. Pense bem. Se estou perdendo... nosso filho... – ela parou para juntar coragem depois de ter verbalizado aquilo. – Não há razão por que contar para alguém. Ninguém precisa ficar sabendo. Podemos simplesmente deixar a natureza... – a voz dela falhou nesse momento, mas ela se forçou a continuar – ... seguir seu curso.
– Ao inferno com isso. Não vou colocar sua vida em risco só para evitar um confronto.
– Isso não interromperá o aborto, Qhuinn.
– Não estou preocupado somente com o aborto – ele apertou-lhe a mão. – Você é importante. Por isso vou procurar a doutora Jane agora mesmo.
Isso mesmo, ao inferno deixar as coisas por debaixo dos panos, Qhuinn pensou ao seguir para a porta.
Ouvira falar de histórias sobre fêmeas com hemorragias durante os abortos, e ainda que não fosse mencionar nada disso com Layla, teria de agir a respeito.
– Qhuinn. Pare – Layla o chamou. – Pense no que está fazendo.
– Eu estou. Claramente – ele não esperou para debater mais aquilo. – Fique onde está.
– Qhuinn...
Ele ainda conseguiu ouvir a voz dela quando fechou a porta e começou a correr, terminando o corredor e descendo as escadas. Com um pouco de sorte, a doutora Jane ainda estaria se demorando na Última Refeição com seu hellren; o casal estava à mesa quando ele se levantara para ir ver Layla.
Ao chegar ao átrio, seus tênis Nike guincharam no piso de mosaico quando ele tomou a direção da arcada na entrada da sala de jantar.
Vendo a médica bem onde estivera antes foi um golpe de sorte, e seu primeiro instinto foi chamá-la com um grito. Só não o fez ao perceber a quantidade de Irmãos à mesa, comendo a sobremesa.
Merda. Era fácil para ele dizer que lidaria com as consequências se o que fizeram se tornasse público. Mas, e quanto a Layla? Como uma Escolhida sagrada, ela tinha muito mais a perder do que ele. Phury era uma cara bem legal, por isso a chance de ele lidar bem com aquilo era bem grande. E o resto da sociedade?
Ele já passara pela experiência de ser rejeitado, e não queria o mesmo para ela.
Qhuinn se apressou para onde V. e Jane estavam descontraídos, o Irmão fumando um cigarro feito à mão, a médica espectral sorrindo para o seu parceiro enquanto ele lhe contava uma piada.
No instante em que a boa médica olhou para ele, aprumou-se em seu assento.
Qhuinn se abaixou e sussurrou ao seu ouvido.
Nem meio segundo depois, ela estava de pé.
– Preciso ir, Vishous.
Os olhos de diamante do irmão se elevaram. Aparentemente, apenas um vislumbre do rosto de Qhuinn foi preciso: ele não fez perguntas, apenas assentiu uma vez.
Qhuinn e a médica se apressaram juntos para fora.
Para o infinito crédito da doutora Jane, ela não perdeu tempo querendo saber como aquela gravidez tinha acontecido.
– Há quanto tempo ela está sangrando?
– 24 horas.
– Com que intensidade?
– Não sei.
– Algum outro sintoma? Febre? Enjoo? Dor de cabeça?
– Não sei.
Ela o deteve quando chegaram à grande escadaria.
– Vá até o Buraco. A minha maleta está na bancada ao lado do cesto de maçãs.
– Entendido.
Qhuinn nunca correu tão rápido em toda sua vida. Para fora do vestíbulo. Atravessando o pátio coberto de neve. Digitando o código de acesso para o Buraco. Correndo pelo espaço de V. e de Butch.
Costumeiramente, ele jamais teria entrado sem bater. Inferno, sem um horário marcado previamente. Mas naquela noite, que se foda...
Ah, que bom, a maleta preta estava, de fato, ao lado das Fujis.
Apanhando-a, correu para fora, voando ao lado dos carros estacionados e batendo os pés enquanto aguardava que Fritz atendesse à porta.
Ele quase atropelou o doggen.
Ao chegar ao segundo andar, passou acelerado diante do escritório de Wrath e invadiu o quarto que Layla vinha usando. Fechando a porta, arfou até chegar à cama, onde a médica estava sentada bem onde ele esteve antes.
Deus, Layla estava pálida como um lençol. Pensando bem, medo e hemorragia faziam isso com uma fêmea.
A doutora Jane estava no meio de uma frase quando pegou a maleta das mãos dele.
– Acho que devemos começar verificando os seus sinais vitais...
Bum!
Quando o som ensurdecedor atravessou o quarto, o primeiro pensamento de Qhuinn foi se jogar sobre as duas fêmeas para formar um escudo.
Mas não era uma bomba. Era Phury escancarando a porta.
Os olhos amarelos do Irmão reluziam, e não de modo positivo, quando eles passavam de Layla, para a médica e depois para Qhuinn... e refazendo o caminho ao contrário.
– Que diabos está acontecendo aqui? – ele exigiu saber, com as narinas inflando quando captou o mesmo cheiro que Qhuinn havia percebido antes. – Vejo a médica subindo as escadas num rompante. Depois é a vez de Qhuinn com a maleta. E agora... é melhor alguém começar a falar. Neste exato minuto!
Mas ele sabia. Porque estava olhando para Qhuinn.
Qhuinn encarou o Irmão.
– Eu a engravidei...
Ele não teve oportunidade de terminar a frase. Na verdade, mal conseguiu terminar a última palavra.
O Irmão o agarrou e o lançou contra a parede. Enquanto suas costas absorviam o impacto, a mandíbula dele explodiu de dor, o que sugeria que o cara também o socara com exatidão. Então, mãos ásperas o mantiveram fixos com os pés pendurados a quinze centímetros do tapete oriental, bem na hora em que pessoas começavam a se aglomerar na porta.
Ótimo. Uma plateia.
Phury aproximou o rosto do de Qhuinn e expôs as presas.
– O que você fez com ela?
Qhuinn deu uma golada de sangue.
– Ela estava no cio. Eu a servi.
– Você não a merece...
– Eu sei.
Phury o empurrou com força mais uma vez.
– Ela é melhor do que...
– Concordo...
Bang!
De novo contra a parede.
– Então que porra que você foi fazer...
O rugido que permeou o quarto foi alto o bastante para estremecer o espelho ao lado da cabeça de Qhuinn, assim como o conjunto de escovas de prata na penteadeira e os cristais nas arandelas ao lado da porta. A princípio, ele pensou que tivesse sido Phury, a não ser, porém, pelo fato de as sobrancelhas do Irmão se abaixarem e o macho olhar por sobre o ombro.
Layla saíra da cama e se aproximava dos dois. Raios! A expressão no olhar dela bastaria para derreter a pintura da porta de um carro: apesar de ela não estar se sentindo bem, as presas estavam expostas, os dedos crispados em forma de garra... e a brisa gélida que a precedeu fez com que a nuca de Qhuinn se eriçasse em alerta.
Aquele rugido nem deveria ter saído de um macho... quanto menos de uma fêmea delicada com status de Escolhida.
De fato, o pior era o tom horrível de sua voz:
– Solte-o. Agora.
Ela encarava Phury como se estivesse plenamente preparada para arrancar os braços do Irmão de suas juntas e socá-lo até não poder mais caso ele não a obedecesse. Imediatamente.
E, veja só, de repente, Qhuinn conseguiu respirar direito, e agora seus Nikes tocavam novamente o chão. Num passe de mágica.
Phury levantou as palmas das mãos.
– Layla, eu...
– Não toque nele. Não por causa disso... Estou sendo bem clara? – o peso dela estava equilibrado quase nos dedos dos pés, como se ela fosse avançar na garganta do cara a qualquer segundo. – Ele era o pai do meu filho, e receberá todos os direitos e privilégios dessa posição.
– Layla...
– Estamos entendidos?
Phury fez que sim com sua cabeça multicolorida.
– Sim. Mas...
No Antigo Idioma, ela sibilou:
– Caso algum mal recaia sobre ele, eu irei atrás de ti, e o encontrarei em teu sono. Não me importo onde e com quem repouses tua cabeça, minha vingança se derramará sobre ti até tu te afogares.
Aquela última palavra foi arrastada até sua última sílaba se perder num rugido.
Silêncio absoluto.
Até a doutora Jane comentar secamente:
– E é por isso que dizem que as fêmeas da espécie são mais perigosas que os machos.
– Verdade – alguém aquiesceu no corredor.
Phury levantou as mãos em frustração.
– Só quero o que for melhor para você e não só no papel de amigo preocupado... essa é a porra do meu trabalho. Você atravessa o cio sem contar a ninguém, deita-se com ele – como se Qhuinn fosse bosta de cachorro – e depois não diz a ninguém que está tendo problemas médicos. Será que eu tenho que ficar feliz com isso? Que merda!
Houve algum tipo de conversa entre eles àquela altura, mas Qhuinn não prestou atenção: toda a sua consciência recuara para dentro do cérebro. Caramba, o feliz comentário do Irmão não deveria ter doído tanto. Não era a primeira vez que ele ouvia esse tipo de comentário, ou até mesmo pensara isso a respeito de si mesmo. Mas, por algum motivo, as palavras dispararam uma falha geológica que retumbava bem em seu cerne.
Lembrando-se de que dificilmente seria uma tragédia ter o óbvio evidenciado, ele se desvencilhou do seu espiral de vergonha e olhou ao redor. Sim, todos tinham aparecido diante da porta aberta e, mais uma vez, aquilo que ele preferia que tivesse permanecido como um assunto particular estava acontecendo diante de milhares.
Pelo menos Layla não se importava. Inferno, ela nem parecia ter notado.
E era até engraçado ver todos aqueles lutadores profissionais desejando estar a quilômetros de distância de uma fêmea. Pensando bem, caso quisessem sobreviver no trabalho que exerciam, uma acurada avaliação de riscos era algo que se desenvolvia precocemente e até mesmo Qhuinn, objeto do instinto protetor da Escolhida, não ousaria tocá-la.
– Eu, neste momento, renuncio ao meu status de Escolhida, e todos os direitos e privilégios inerentes. Eu sou Layla, decaída daqui por diante...
Phury tentou interrompê-la:
– Escute, você não tem que fazer isso...
– ... e sempre. Estou arruinada perante os olhos tanto da tradição quanto da prática, não mais virgem, concebi um filho, mesmo estando a perdê-lo.
Qhuinn bateu a parte de trás da cabeça na parede. Maldição.
Phury passou uma mão pelos cabelos.
– Merda.
Quando Layla oscilou em seus pés, todos se projetaram para ela, mas ela empurrou todas as mãos e caminhou sozinha até a cama. Abaixando o corpo devagar, como se tudo lhe doesse, deixou a cabeça pender.
– Minha sorte está lançada e estou preparada para viver com as consequências, quaisquer que sejam elas. Isso é tudo.
Houve um belo tanto de sobrancelhas se erguendo quando a multidão começou a se dispersar, mas ninguém disse um pio. Depois de um instante, o grupo se desfez, embora Phury continuasse ali. Assim como Qhuinn e a médica.
A porta foi fechada.
– Ok, ainda mais depois disso tudo, preciso mesmo verificar seus sinais vitais – disse a doutora Jane, ajudando a fêmea a se recostar contra os travesseiros e a acomodar as cobertas que haviam sido afastadas.
Qhuinn não se moveu enquanto o aparelho de pressão era ajustado no braço magro e uma série de pufe-pufes era exalada.
Phury, por sua vez, andou de um lado para o outro, pelo menos até franzir o cenho e pegar o celular.
– É por isso que Havers me telefonou ontem?
Layla concordou.
– Fui lá em busca de ajuda.
– Por que não me procurou? – o Irmão murmurou para si mesmo.
– O que Havers disse?
– Não sei por qual motivo não verifiquei a caixa de mensagens. Pensei que não tivesse motivo para fazer isso.
– Ele deixou claro que só lidaria com você.
Ante isso, Phury olhou para Qhuinn, com aquele olhar amarelo se estreitando.
– Vai se vincular a ela?
– Não.
A expressão de Phury voltou a ser gélida.
– Que tipo de macho é você para...
– Ele não me ama – Layla interrompeu. – Tampouco eu o amo.
Quando a cabeça do Primale virou de lado, Layla prosseguiu:
– Queríamos um filho – ela se sentou inclinada para a frente enquanto a médica auscultava o coração por trás. – Nós começamos e terminamos ali.
Dessa vez o Irmão praguejou.
– Não entendo.
– Nós dois somos órfãos de muitas maneiras – disse a Escolhida. – Nós estamos... estávamos... querendo formar a nossa própria família.
Phury expirou fundo e caminhou até a mesa num canto, sentando-se sobre a cadeira frágil.
– Ah, bem. Acho que isso muda um pouco as coisas. Eu pensei que...
– Nada importa – interveio Layla. – As coisas são como são. Ou... eram, como parece ser o caso.
Qhuinn se viu esfregando os olhos sem nenhum motivo em especial. Não que eles estivessem embaçados nem nada assim. Não. Nem um pouco.
Tudo aquilo era só... tão triste. Toda aquela porcaria. Desde o estado de Layla, até a exaustão impotente de Phury, chegando a sua dor imensa no meio do peito, tudo era uma maldita coisa verdadeiramente triste.
CAPÍTULO 31
– É exatamente o que eu estava procurando.
Enquanto Trez falava, caminhava ao redor do espaço amplo e vazio do armazém, com as botas produzindo impactos altos que ecoavam. Atrás dele, sentia facilmente o alívio da corretora parada ao lado da porta.
Negociar com humanos? Era o mesmo que tirar o pirulito de uma criancinha.
– Você poderia transformar este lado da cidade – disse a mulher. – É uma verdadeira oportunidade.
– Verdade – não que o tipo de restaurante e lojas que o seguiriam até ali fossem de classe: seriam algo mais como lojas de piercings e tatuagens, restaurantes baratos, cinemas pornográficos.
Mas ele não tinha nenhum problema com isso. Até mesmo cafetões podiam se orgulhar de seus trabalhos e, francamente, ele tinha certa tendência a acreditar muuuito mais em tatuadores do que em muitos dos assim chamados “cidadãos exemplares”.
Trez girou sobre os calcanhares. O espaço era tremendo, quase tão alto quanto largo, com fileiras e fileiras de janelas quadradas, muitas delas com os vidros quebrados recobertos por tábuas de madeira. O teto parecia bom – ou quase isso, o revestimento de latão corrugado mantendo a neve do lado de fora, mas não o frio. O chão era de concreto, mas obviamente havia um piso subterrâneo – em diversos pontos viam-se alçapões, embora nenhum deles pudesse ser aberto com facilidade. A parte elétrica parecia boa; sistema de aquecimento, ventilação e ar-condicionado inexistentes; a hidráulica, uma piada.
Em sua mente, contudo, ele não enxergava o lugar como ele estava. Nada disso. Ele o via transformado, como uma boate nas proporções da Limelight. Naturalmente, o projeto necessitaria de uma imensa injeção de capital e vários meses para concluir os trabalhos; no fim, porém, Caldwell acabaria com um novo lugar quente – e ele teria mais uma fonte de renda.
Todos ganhavam.
– Então, gostaria de fazer uma oferta?
Trez olhou para a mulher. Ela era a senhora Profissional em seu casaco preto e terninho escuro abaixo dos joelhos – noventa por cento de sua pele estava coberta, e não só por estarem em dezembro. Contudo, mesmo abotoada até em cima e cabelo comportado, ela era bela no modo como todas as mulheres lhe eram belas: tinha seios e pele macia, e um lugar para ele brincar no meio das pernas.
E ela gostava dele.
Ele sabia disso pelo modo como ela abaixava o olhar, e também por ela aparentemente não saber o que fazer com as mãos: uma hora estavam nos bolsos do casaco; na outra, mexendo no cabelo, depois ajeitando a camisa de seda dentro da saia...
Ele conseguia pensar em alguns modos para mantê-la ocupada.
Trez sorriu ao se aproximar dela e não parou até invadir-lhe o espaço pessoal.
– Sim. Eu quero.
O duplo sentido foi captado, as faces dela enrubesceram não de frio, mas de excitação.
– Ah. Que bom.
– Onde quer fazer? – ele perguntou de modo arrastado.
– A oferta? – ela pigarreou. – Tudo o que tem que fazer é me dizer o que você... quer e eu... faço isso acontecer.
Ah, ela não era ligada em sexo casual. Que meigo.
– Aqui.
– Como disse? – perguntou ela, finalmente levantando o olhar.
Ele sorriu devagar e de modo contido para não revelar as presas.
– A oferta. Vamos fazer isso aqui?
Os olhos dela se arregalaram.
– Aqui?
– É. Aqui – ele se aproximou com mais um passo, mas não ficou perto o suficiente a ponto de se tocarem. Ele estava satisfeito em seduzi-la, mas ela teria de estar cem por cento segura de estar a fim. – Está pronta?
– Para... fazer... a oferta.
– Isso.
– Está... hum, está frio aqui – disse ela. – Que tal no escritório? É lá que a maioria... das ofertas... é conduzida.
Do nada, a imagem do irmão sentado no sofá em casa, olhando para ele como se ele fosse um maldito problema, atingiu-o em cheio, e quando isso aconteceu, percebeu que fazia sexo com praticamente toda mulher que conhecia desde... caramba, quanto tempo?
Bem, obviamente, se não tinham idade para copular, ele não estaria com elas.
Ou se eram férteis.
O que cortava, digamos, uma dúzia ou duas? Maravilha. Que herói.
Que porra ele estava fazendo? Não queria voltar ao escritório da mulher, primeiro porque não havia tempo suficiente, supondo que quisesse estar na abertura do Iron Mask. Portanto, a única opção era ali mesmo, de pé, com a saia suspensa até a cintura, as pernas ao redor dos seus quadris. Rápido, direto ao ponto; depois cada um seguindo o seu caminho.
Depois de ele dizer o quanto pretendia gastar na compra do armazém, claro.
Mas e aí? Ele não tinha a intenção de transar com ela no fechamento do contrato. Ele raramente repetia, e só se estivesse seriamente atraído ou com muito tesão, o que não acontecia nesse caso.
Pelo amor de Deus, o que exatamente ele tiraria daquilo? Sequer a veria nua. Nem teria muito contato de pele com pele.
A não ser... era essa a questão.
Quando foi a última vez em que esteve de fato com uma fêmea? Do jeito certo? Como num jantar fino, um pouco de música, uns amassos que conduziam até o quarto... depois um monte de ações longas e demoradas que levavam a alguns orgasmos...
E nenhuma sensação de pânico asfixiante quando tudo chegava ao fim.
– Você estava para dizer alguma coisa? – a mulher o instigou a falar.
iAm estava certo. Ele não precisava estar fazendo aquele tipo de merda. Inferno, nem mesmo estava atraído pela corretora. Ela estava parada diante dele, disponível, e aquela aliança no dedo era indício de que ela não causaria muitos problemas depois que terminassem, porque tinha algo a perder.
Trez recuou um passo.
– Escute, eu... – quando o celular tocou em seu bolso, ele pensou que tinha sido em boa hora. Viu quem era: iAm. – Com licença, preciso atender esta ligação. Ei, o que está fazendo, irmãozinho?
A resposta de iAm saiu suave, como se tivesse abaixado a voz:
– Temos companhia.
O corpo de Trez ficou tenso.
– De que tipo e onde?
– Estou em casa.
Ah, merda.
– Quem é?
– Não é a sua noiva, relaxe. É AnsLai.
O sumo sacerdote. Fantástico.
– Bem, estou ocupado.
– Ele não veio aqui para me ver.
– Então é melhor ele voltar de onde veio porque estou ocupado – quando não houve resposta do outro lado, tudo o que restava fazer era se chutar no traseiro. – Escute aqui, o que quer que eu faça?
– Pare de fugir e cuide disto.
– Não há do que cuidar. Falo com você mais tarde, ok?
Esperou por uma resposta. Em vez disso, a linha ficou muda. Pensando bem, quando você espera que seu irmão limpe suas bostas, o cara não deve ficar com muita vontade de se despedir longamente.
Trez desligou e olhou para a corretora. Com um sorriso amplo, ele se aproximou e baixou a cabeça para fitá-la. O batom era coral demais para a tez dela, mas ele não se importava.
Aquela coisa não continuaria na boca dela por muito tempo.
– Deixe-me mostrar como posso aquecer isto aqui – disse com um sorriso langoroso.
De volta à mansão da Irmandade, no quarto de Layla, um tipo de cessar-fogo fora alcançado pelas partes interessadas.
Phury não estava tentando transformar Qhuinn num gancho de parede. Layla estava sendo avaliada. A porta fora fechada e, com isso, nada do que acontecia ali teria mais do que um quarteto de testemunhas oculares.
Qhuinn só estava esperando que a doutora Jane se pronunciasse.
Quando ela, por fim, tirou o estetoscópio do pescoço, apenas se acomodou. E a expressão em seu rosto não lhe deu esperança alguma.
Ele não entendia. Vira sua filha às portas do Fade: quando fora surrado e largado como morto no acostamento pela Guarda de Honra, subira para só Deus sabe onde, aproximara-se de um portal branco... e lá vira uma fêmea jovem cujos olhos começaram com uma cor, e acabaram azul e verde como os seus.
Se ele não tivesse testemunhado aquilo, provavelmente não teria se deitado com Layla para início de conversa. Mas ele teve tanta certeza de que o destino estava traçado que nunca lhe ocorrera que...
Merda, talvez aquela jovem fosse o resultado de outra comunhão... com outra pessoa no futuro.
Como se algum dia ele fosse se unir a outra pessoa... Jamais.
Não era possível. Não agora que esteve com Blay uma vez.
Nada disso.
Mesmo que ele e seu ex-amigo nunca mais se encontrassem debaixo dos lençóis, ele nunca mais ficaria com ninguém. Quem poderia se comparar? E o celibato era melhor do que a segunda melhor opção, que é o que seria oferecido pelo resto do planeta.
A doutora Jane pigarreou e segurou a mão de Layla.
– A sua pressão sanguínea está um pouco baixa. A sua pulsação está um pouco lenta. Acredito que essas duas coisas possam ser melhoradas com alimentação...
Qhuinn praticamente pulou para perto da cama com o pulso estendido.
– Estou aqui... Pronto. Pode pegar.
A doutora Jane pousou uma mão no braço dele e lhe sorriu.
– Mas não é com isso que estou preocupada.
Ele congelou e, pelo canto do olho, viu que o mesmo aconteceu com Phury.
– Eis a questão – a doutora voltou a olhar para Layla, falando com suavidade e clareza. – Não sei muito sobre gestações vampíricas, portanto, por mais que eu deteste dizer isso, você precisa voltar à clínica de Havers – ela levantou a mão, como se já esperasse discussões de todos os lados. – Isto se trata dela e do filho dela, temos que levá-los para alguém que possa tratá-la adequadamente, mesmo se, em outras circunstâncias, nenhum de nós batesse à porta do cara. E, Phury – ela encarou o Irmão –, você tem que ir com ela e com Qhuinn. A sua presença lá só facilitará as coisas para todos.
Muitos lábios apertados depois disso.
– Ela tem razão – concordou Qhuinn por fim. E depois se voltou para o Primale. – E você tem que dizer que é o pai. Ela obterá mais respeito assim. Comigo? Ele pode muito bem se recusar a tratá-la... se ela for decaída e tiver transado com um defeituoso? Pode nos mandar dar meia-volta.
Phury abriu a boca. Fechou-a.
Não havia muito mais a ser dito.
Enquanto Phury pegava o telefone e ligava para a clínica para informar que estavam indo para lá, o tom de voz dele sugeria que estava pronto para incendiar o lugar se Havers e sua equipe dessem mancada.
Com isso resolvido, Qhuinn se aproximou de Layla.
Num tom baixo, disse:
– Desta vez vai ser diferente. Ele vai fazer isso acontecer. Não se preocupe, você será tratada como uma rainha.
Os olhos de Layla se arregalaram, mas ela se controlou.
– Sim. Tudo bem.
Resultado? O Irmão não era o único prestes a acabar com tudo. Se Havers provocasse qualquer tipo de desgosto à la glymera em Layla, Qhuinn acabaria com o ego do cara a tapa. Layla não merecia esse tipo de tratamento – nem mesmo por escolher um rejeitado como ele para se acasalar.
Cacete. Talvez fosse melhor ela abortar. Ele queria mesmo condenar uma criança ao seu DNA?
– Você também vem? – ela lhe perguntou, como se não estivesse acompanhando.
– Sim. Vou estar lá.
Quando Phury desligou, olhou de um para outro, os olhos amarelos se estreitando.
– Ok, eles vão nos receber no segundo em que chegarmos. Vou fazer Fritz ligar a Mercedes, mas eu dirijo.
– Desculpe – disse Layla ao encarar o grande macho. – Sei que decepcionei as Escolhidas e você, mas foi você quem nos disse para vir para este lado e... viver.
Phury apoiou as mãos nos quadris e exalou fundo. Ao balançar a cabeça, ficou claro que ele não teria escolhido nada daquilo para ela.
– Sim, eu disse isso. Eu fiz isso.
CAPÍTULO 32
Ah, grande poder desgovernado, pensou Xcor ao olhar para seus soldados, cada um deles armado e pronto para uma noite de luta. Depois de 24 horas de recuperação após a alimentação grupal, eles estavam loucos para sair e encontrar os inimigos – e ele estava pronto para libertá-los daquele porão de armazém.
Só havia um problema: alguém estava andando no andar de cima.
Como demonstração, passos pesados atravessaram o alçapão de madeira sobre sua cabeça.
Pela última meia hora, eles acompanharam o progresso dos visitantes inesperados. Um era pesado, uma forma masculina. O outro era mais leve, de uma variedade feminina. No entanto, não havia como perceber seus cheiros; o porão era hermeticamente fechado.
Muito provavelmente, eram apenas humanos de passagem, ainda que ele não pudesse adivinhar o motivo para alguém que não fosse sem teto perder tempo numa estrutura tão decrépita numa noite fria. Quem quer que fossem, quaisquer as razões que os levaram até ali, contudo, ele não teria problemas para defender seu território, mesmo sendo aquele.
Mas não fazia mal esperar. Se ele podia evitar massacrar aqueles humanos? Isso significava que ele e seus soldados continuariam a usar aquele espaço sem serem incomodados.
Ninguém disse nada enquanto as passadas continuavam.
Vozes se misturavam. Grave e aguda. Em seguida, um telefone tocou.
Xcor acompanhou o toque e a conversa que se seguiu, caminhando em silêncio até o outro alçapão, lugar em que a pessoa escolheu parar. Imóvel, prestou atenção e captou metade de uma conversa nada interessante que não lhe revelou nenhuma das identidades dos envolvidos.
Não muito depois, o som inconfundível de sexo se fez claro.
Enquanto Zypher ria baixinho, Xcor encarou o bastardo para calá-lo. Mesmo cada um dos alçapões estando fechado pelo lado de baixo, ninguém sabia que tipo de problema aqueles ratos sem rabo podiam causar em qualquer situação.
Consultou o relógio. Esperou que os gemidos parassem. Gesticulou para que os soldados ficassem quietos quando eles pararam.
Movendo-se em silêncio, ele seguiu para o alçapão no canto extremo do armazém, aquele que se abria no que deveria ser um escritório de supervisor. Destrancando-o, segurou uma pistola, desmaterializou-se e inalou.
Não era humano.
Bem, um esteve ali, mas o outro... era algo diferente.
Do outro lado, a porta externa foi fechada e trancada.
Em sua forma fantasmagórica, Xcor atravessou o armazém e apoiou as costas na parede de tijolos, e olhou para fora de um dos vidros empoeirados.
Um par de faróis se acendeu na frente, no estacionamento.
Desmaterializando-se do lado de fora da janela, subiu até o telhado do armazém do lado oposto da rua.
Ora, ora, se aquilo não era interessante.
Havia um Sombra ali embaixo, sentando atrás do volante do BMW com a janela do motorista abaixada até a metade e uma fêmea humana se inclinando sobre o SUV.
Era a segunda vez que se deparava com um em Caldwell.
Eles eram perigosos.
Pegando o celular, ligou para o número de Throe após encontrar a foto do macho na lista de contatos, e ordenou que os soldados saíssem e lutassem. Ele lidaria sozinho com aquela situação.
Lá embaixo, o Sombra esticou a mão, puxou a mulher pela nuca e a beijou. Depois deu marcha à ré no carro e saiu sem olhar para trás.
Xcor mudou de posição para acompanhar o macho, transitando de telhado em telhado, conforme o Sombra seguia na direção do bairro das boates nas ruas que corriam em paralelo ao rio...
A princípio, a sensação em seu corpo sugeria uma mudança na direção do vento, os açoites gélidos atingindo-o por trás, em vez de golpeá-lo no rosto. Mas logo pensou... não, era algo puramente interno. As ondas que sentia sob a pele...
Sua Escolhida estava por perto.
Sua Escolhida.
Abandonando imediatamente o rastro do Sombra, ele seguiu para perto do rio Hudson. Onde ela estava...
Num carro. Estava se movendo num carro.
Pelo que seus instintos lhe diziam, ela estava se movendo em alta velocidade que, ainda assim, era rastreável. Portanto, a única explicação era que ela estava na Northway, seguindo de noventa a cento e vinte quilômetros por hora.
Recuando na direção da fileira de armazéns, ele se concentrou no sinal que estava captando. Como fazia meses desde que se alimentara dela, sentiu pânico ao perceber que a conexão criada pelo sangue dela em suas veias estava perdendo intensidade, a ponto de ele ter dificuldade para localizar o veículo.
Mas, em seguida, captou um sedã luxuoso graças ao fato de ele ter freado na saída que convergia o tráfego para as pontes. Desmaterializando-se nas vigas, plantou as botas de combate no pináculo de um dos esteios de metal e esperou que ela passasse debaixo dele.
Pouco depois de fazê-lo, ela seguiu em frente, indo para o outro lado da cidade, oposta à margem do rio.
Ele continuou com ela, mantendo uma distância segura, embora se perguntasse a quem tentava enganar. Se ele pressentia sua fêmea?
O mesmo acontecia com ela.
Porém, ele não abandonaria seu rastro.
Enquanto Qhuinn estava no assento de passageiro do Mercedes, sua Heckler e Koch calibre .45 era mantida discretamente sobre a coxa, os olhos movimentando-se incessantemente do espelho retrovisor para a janela lateral e o para-brisa. Ao lado dele, Phury estava na direção, as mãos do Irmão num perfeito dez para as duas tão apertado que mais parecia que ele estava estrangulando alguém.
Caramba, havia coisas demais acontecendo ao mesmo tempo.
Layla e a criança. Aquele acidente com o Cessna. O que ele fizera ao primo na noite anterior. E também... bem, havia aquela situação com Blay.
Ah, bom Deus... a situação com Blay.
Enquanto Phury pegava a saída que os levaria às pontes, a mente de Qhuinn ia da preocupação com Layla às lembranças das imagens, dos sons... e dos sabores das horas diurnas.
Intelectualmente, ele sabia que o que acontecera entre eles não fora um sonho. E seu corpo se lembrava muito bem disso, como se o sexo tivesse sido um tipo de marcação a ferro em sua pele que o mudara para o resto da vida. E, mesmo assim, enquanto tentava lidar com o drama mais recente, a sessão breve demais parecia pré-histórica, e não ocorrera há nem 24 horas atrás.
Ele temia que se tratasse de uma sessão única.
Nunca mais me toque assim.
Gemendo, ele esfregou a testa.
– Não são os seus olhos – disse Phury.
– O que disse?
Phury olhou de relance para o banco de trás.
– Ei, como estão as coisas? – perguntou às fêmeas. Quando Layla e a doutora Jane responderam numa afirmativa breve, ele assentiu com a cabeça. – Escutem, vou fechar a divisória por um segundo, está bem? Está tudo bem por aqui.
O Irmão não lhes deu a chance de responder de um ou outro modo, e Qhuinn se retesou no banco enquanto a divisória opaca subia, partindo o sedã em duas partes. Não fugiria de nenhum tipo de confronto, mas isso não significava que ele estava ansioso pelo segundo round, e se Phury estava isolando as duas, aquilo não seria nada bonito.
– Seus olhos não são o problema – disse o Irmão.
– Não entendi.
Phury olhou para ele.
– O fato de eu estar irritado sobre tudo isso não tem nada a ver com nenhum defeito. Layla está apaixonada por você...
– Não, não está não.
– Vê, você está me irritando muito agora.
– Pergunte a ela.
– Enquanto está sofrendo um aborto? – replicou o Irmão. – É, é isso mesmo o que vou fazer.
Enquanto Qhuinn se retraía, Phury continuou:
– Sabe, esse é o seu negócio. Você gosta de viver no limite e ser desvairado... Eu, honestamente, acredito que isso o ajuda a lidar com as idiotices que sua família o fez passar. Se você destruir tudo? Nada pode afetá-lo. E acredite ou não, não tenho problema algum com isso. Você faz o que tem que fazer e sobrevive às noites e aos dias do melhor modo que pode. Mas assim que você parte o coração de uma inocente, ainda mais se ela está sob a minha proteção? É nessa hora que você e eu temos um problema.
Qhuinn olhou pela janela. Antes de tudo, parabéns ao cara ali do lado. A ideia de que havia um preconceito contra Qhuinn baseado em seu caráter em vez de uma mutação genética sobre a qual não tivera nenhum poder decisório era uma mudança refrescante. E, ei, não que ele não concordasse com o cara, pelo menos até um ano atrás. Antes disso? Inferno, ele esteve descontrolado em muitos níveis. Mas as coisas mudaram. Ele mudara.
Evidentemente, Blay se tornar indisponível fora o tipo de chute no saco de que ele precisava para finalmente crescer.
– Não sou mais assim – disse ele.
– Então, está preparado para se vincular a ela? – quando ele não respondeu, Phury deu de ombros. – E lá vai você de novo. Conclusão: sou responsável por ela, legal e moralmente. Posso não estar agindo como um Primale em alguns aspectos, mas o restante das funções desse cargo eu levo muito a sério. A ideia de que você a meteu nessa confusão me deixa enjoado, e eu acho muito difícil de acreditar que ela não tenha feito isso para agradá-lo... Você disse que os dois queriam um filho? Tem certeza de que não era só você, e ela só fez isso para deixá-lo feliz? Isso se parece muito com o feitio dela.
Tudo aquilo foi apresentado de maneira retórica. E não cabia a Qhuinn criticar a lógica, mesmo que ela estivesse errada. Mas, enquanto ele passava os dedos pelos cabelos, o fato de que fora Layla a procurá-lo era algo que ele manteria só para si. Se Phury queria pensar que a culpa era só sua, tudo bem, ele aguentaria o tranco. Qualquer coisa para tirar a pressão e as atenções de cima de Layla.
Phury olhou por entre os bancos.
– Isso não está certo, Qhuinn. Não é isso o que machos de verdade fazem. E olhe só a situação em que ela está. Você causou isso a ela. Você a colocou no banco de trás deste carro, e isso é errado.
Qhuinn apertou os olhos. Bem, como se isso não fosse martelá-lo na cabeça pelos próximos cem anos. Mais ou menos.
Enquanto eles seguiam pela ponte e deixavam as luzes piscantes do centro da cidade para trás, ele manteve a boca fechada, e Phury também se calou.
Mas, pensando bem, o Irmão já dissera tudo o que havia para ser dito, não?
CAPÍTULO 33
Assail acabou perseguindo sua presa atrás do volante do seu Range Rover. Muito mais confortável assim, e a localização da mulher já não era mais um problema: enquanto estivera esperando ao lado do Audi que ela saísse de sua propriedade, colocara um equipamento de rastreamento na parte inferior do espelho retrovisor lateral.
Seu iPhone cuidou do resto.
Depois de ela ter deixado abruptamente seu bairro – após a proposital desmaterialização ante suas vistas só para desestabilizá-la ainda mais –, ela atravessou o rio e deu a volta para a parte de trás da cidade, onde as casas eram pequenas, próximas umas das outras e delimitadas por cercas de alumínio.
Enquanto a perseguia, mantendo pelo menos dois quarteirões de distância entre os veículos, observou as luzinhas coloridas no bairro, milhares de fios de pisca-pisca entre os arbustos, pendurados nos telhados e emoldurando janelas e portas. Mas aquilo não era nem metade da história. Cenários de manjedouras colocados em destaque em diminutos jardins eram iluminados, e também havia os bonecos de neve falsos com cachecóis vermelhos e calças azuis que brilhavam por dentro.
Em contraste com a decoração sazonal, ele estava disposto a apostar que as estátuas da Virgem Maria eram permanentes.
Quando o carro parou e estacionou, ele se aproximou, parando quatro casas adiante e desligando as luzes. Ela não saiu imediatamente do carro, e quando o fez, não vestia a parca e as calças de esqui nas quais o espionara. Em vez disso, mudara para um suéter vermelho e um par de jeans.
E soltara o cabelo.
O volume escuro e pesado ultrapassava os ombros, curvando-se nas pontas.
Ele grunhiu na escuridão.
Com passadas rápidas e certeiras, ela ultrapassou os quatro degraus de concreto que levavam à entrada modesta da casa. Abrindo a porta de tela numa moldura de metal, ela a segurou com o quadril enquanto destrancava a porta com a chave, para depois entrar e trancar pelo lado de dentro.
Quando as luzes se acenderam no andar de baixo, ele observou a silhueta dela avançar pelo cômodo da frente, as cortinas finas lhe possibilitando apenas uma ideia da movimentação dela, e não uma visão desobstruída.
Ele pensou em suas próprias persianas. Demorou um tempo para que aperfeiçoasse aquela invenção, e a casa às margens do rio Hudson fora um teste perfeito. As barreiras funcionavam melhor do que ele antecipara.
Ela, porém, era esperta o bastante para notar alguma anormalidade, e ele se perguntou o que as teriam denunciado.
No segundo andar, uma luz se acendeu, como se alguém que estivesse descansando tivesse despertado com a chegada dela.
As presas dele pulsaram. A ideia de que algum homem humano estivesse à espera dela em seu quarto conjugal fez com que ele quisesse estabelecer sua dominância, mesmo que isso não fizesse sentido. Ele a seguira para o seu próprio bem, e nada mais.
Absolutamente nada mais.
Bem quando a mão segurou a maçaneta da porta, seu telefone tocou. Na hora certa.
Quando ele viu quem era, franziu o cenho e levou o celular ao ouvido.
– Duas ligações em tão pouco tempo. A que devo essa honra?
Rehvenge não pareceu estar se divertindo.
– Não retornou a minha ligação.
– Eu deveria?
– Cuidado, garoto.
Os olhos de Assail continuaram atentos à casinha. Ele estava curiosamente desesperado para saber quem estava lá dentro. Estaria ela subindo, despindo-se pelo caminho?
Exatamente de quem ela escondia suas espreitas? E ela de fato as escondia – senão, por que outro motivo trocar de roupa?
– Alô?
– Aprecio o gentil convite – ele se ouviu dizer.
– Não foi um convite. Você é um maldito membro do Conselho agora que está vivendo no Novo Mundo.
– Não.
– Como é que é?
Assail relembrou o encontro na casa de Elan no começo do inverno, aquele sobre o qual Rehvenge nada sabia, aquele no qual o Bando de Bastardos apareceu para forçar a barra. Também pensou no atentado a Wrath, à vida do Rei Cego... na sua própria propriedade, pelo amor de Deus.
Drama demais para o seu gosto.
Com calma ensaiada, ele se lançou no mesmo discurso que fizera à facção de Xcor:
– Sou um homem de negócios por predileção e propósito. Embora respeite tanto o reinado atual quanto o poder de base do Conselho, não posso desviar nem energia nem tempo das minhas empreitadas vigentes. Nem agora, nem no futuro.
Houve um momento prolongado de silêncio. E depois aquela voz profunda e maligna se fez ouvir do outro lado:
– Ouvi falar dos seus negócios.
– Verdade?
– Eu mesmo estive envolvido com isso há alguns anos.
– Foi o que eu soube.
– Consegui fazer as duas coisas.
Assail sorriu na escuridão.
– Talvez eu não seja tão talentoso quanto você.
– Vou deixar isto perfeitamente claro. Se você não aparecer nessa reunião, deduzirei que você está jogando no time errado.
– Com essa declaração, você reconhece que existem dois e que eles se opõem.
– Entenda como quiser. Mas se não estiver comigo e com o Rei, você é inimigo meu e dele.
E foi exatamente isso o que Xcor lhe dissera. Pensando bem, havia alguma outra posição naquela guerra crescente?
– O Rei foi alvejado na sua casa, Assail.
– Pelo que me lembro – disse ele secamente.
– Pensei que você talvez quisesse dizimar qualquer ideia quanto ao seu envolvimento.
– Já o fiz. Naquela mesma noite disse aos Irmãos que eu não tinha nada a ver com aquilo. Eu lhes dei o veículo com que escaparam com o Rei. Por que eu faria tal coisa se fosse um traidor?
– Para livrar seu rabo.
– Sou muito eficiente nisso sem o benefício de conversações, eu lhe garanto.
– Então, como anda a sua agenda?
A luz no segundo andar se apagou, e ele teve que imaginar o que a mulher fazia no escuro... E com quem.
Por vontade própria, suas presas se expuseram.
– Assail. Você está seriamente me aborrecendo com essa merda de comportamento.
Assail ligou o motor do Range Rover. Não estava disposto a ficar esperando no meio-fio enquanto o que quer que estivesse acontecendo ali dentro... acontecia. Obviamente, ela se recolhera e ficaria ali. Além disso, seu telefone o alertaria caso o carro dela voltasse a se movimentar.
Enquanto ele tomava a rua e acelerava, falou com clareza:
– Neste instante, estou me demitindo da minha posição no Conselho. A minha neutralidade nessa disputa pela coroa não será questionada por nenhum dos lados...
– E você sabe quem são os jogadores, não?
– Deixarei isto o mais claro possível: não tomo partido, Rehvenge. Não sei de que outro modo deixar isso ainda mais claro... e não serei arrastado para essa guerra por você, nem pelo Rei nem por ninguém mais. Não tente me forçar, e saiba que a neutralidade que lhe apresento agora é a mesma que apresentei a eles.
Desse mesmo modo, prometera a Elan e a Xcor não revelar suas identidades, e manteria sua palavra – não por acreditar que o grupo seria capaz de retribuir o favor, mas pelo simples fato de que, dependendo de quem vencesse, um confidente de qualquer lado seria visto como espião a ser erradicado ou um herói a ser aclamado. O problema era que não se saberia que lado venceria até aquilo acabar, e ele não estava interessado em apostas.
– Então você foi abordado – declarou Rehv.
– Recebi uma cópia da carta que eles enviaram na primavera passada.
– E esse foi o único contato que teve?
– Sim.
– Está mentindo para mim.
Assail parou num farol.
– Não há nada que possa dizer ou fazer para me arrastar para isso, caro lídher.
Com ameaças em excesso, o macho do outro lado rosnou.
– Não conte com isso, Assail.
Dito isso, Rehvenge desligou.
Praguejando, Assail jogou o telefone no banco do passageiro. Depois, cerrou os dois punhos e os bateu com força no volante.
Se existia uma coisa que ele não tolerava era ser sugado para o olho do furacão das brigas dos outros. Pouco se importava com quem sentava no trono, ou com quem era encarregado da glymera. Ele só queria ser deixado em paz para ganhar dinheiro à custa dos ratos sem rabo.
Isso era tão difícil de entender?
Quando a luz ficou verde, ele afundou o pé no acelerador, mesmo sem ter nenhum destino específico em mente. Apenas dirigiu a esmo... e cerca de quinze minutos mais tarde descobriu-se sobre o rio em uma das pontes.
Ah, então seu Range Rover decidira levá-lo de volta para casa.
Ao emergir na margem oposta, seu telefone emitiu um alerta, que ele quase ignorou. Mas os gêmeos tinham saído para cuidar do último carregamento de Benloise, e ele queria saber se os intermediários tinham aparecido com suas cotas no fim das contas.
Não era uma chamada, ou uma mensagem de texto.
Era o Audi preto se movendo mais uma vez.
Assail pisou no freio, cortou na frente de um carro que buzinou como se o xingasse, subiu e atravessou o canteiro central coberto de neve.
E praticamente voou pela ponte que o levava de volta.
Em sua posição vantajosa em uma relativa periferia distante, Xcor precisava de binóculos para ver adequadamente a sua Escolhida.
O carro em que ela vinha andando, o enorme sedã preto, continuara em frente depois da ponte, seguindo por oito ou nove quilômetros antes de sair por uma estradinha rural que levava para o norte. Depois de mais alguns quilômetros, e sem nenhum aviso, virou numa estrada de terra que era estrangulada nas duas laterais por plantações perenes. Por fim, parou ante uma construção baixa de concreto que não dava indícios de ter nem janelas nem uma porta.
Ele ajustou o foco quando dois machos saíram pela frente. Reconheceu um instantaneamente, o cabelo o denunciava: Phury, filho de Ahgony, que, de acordo com a boataria, tornara-se o Primale das Escolhidas.
O coração de Xcor começou a bater forte.
Especialmente quando reconheceu a segunda figura: era o lutador de olhos descombinados contra quem pelejara na casa de Assail quando o Rei fora levado embora às pressas.
Os dois machos sacaram as pistolas e perscrutaram as imediações.
Como Xcor estava a favor do vento e parecia não haver ninguém mais por perto, ele deduziu que havia uma grande probabilidade, a não ser que sua Escolhida revelasse a posição dele, que aquele par procedesse com o que quer que tivesse planejado para a fêmea.
De fato, era como se ela estivesse sendo levada para uma prisão.
Só. Por. Cima. Do. Seu. Cadáver.
Ela era um inocente naquela guerra, utilizada com propósitos nefastos sem que isso tivesse sido culpa sua; mas, obviamente, ela seria executada ou trancafiada numa cela na qual passaria o resto de sua vida na Terra.
Ou não.
Ele segurou as pistolas.
Aquela era uma boa noite para cuidar daquele assunto. De fato, era a sua chance de tê-la para si, de salvá-la de qualquer punição que lhe impingiram por ter, sem saber, ajudado e revigorado o inimigo. E talvez as circunstâncias quanto à sua condenação injusta a deixassem favoravelmente disposta em relação ao seu inimigo e salvador.
Ele fechou os olhos brevemente ao imaginá-la em sua cama.
Quando Xcor voltou a abri-los, Phury abria a porta traseira do sedã e colocava a mão para dentro. Quando o Irmão se endireitou, a Escolhida era retirada do veículo... e levada pelos dois cotovelos, os lutadores segurando-a de cada lado enquanto a conduziam para a construção.
Xcor se preparou para se aproximar. Depois de tanto tempo, uma vida inteira, mais uma vez ele a tinha próxima de si e não desperdiçaria a oportunidade que o destino lhe propiciava, não agora, não quando a vida dela tão obviamente pendia na balança. E ele levaria a melhor naquilo; a ameaça a ela fortalecia seu corpo a um nível inimaginável de poder, a mente se aguçava a ponto de avaliar todas as possibilidades de ataque e continuar absolutamente calmo.
De fato, havia apenas dois machos a guardá-la e, com eles, uma fêmea que não só parecia não estar armada, como também não avaliava seus arredores como se fosse treinada para tal ou inclinada para o conflito.
Ele estava mais do que preparado para acabar com os captores de sua fêmea.
Bem quando ele se preparava para avançar, o cheiro da Escolhida o atingiu na brisa fria, aquele perfume tentador exclusivo fazendo-o oscilar dentro de suas botas de combate...
Imediatamente, ele reconheceu uma mudança nele.
Sangue.
Ela estava sangrando. E havia mais alguma coisa...
Sem pensamento consciente, seu corpo se moveu para mais perto, sua forma restabelecendo o peso corpóreo, suspendendo-se a meros três metros, atrás de uma construção destacada do prédio principal.
Ele percebeu que ela não era uma prisioneira sendo levada para uma cela ou para a execução.
A sua Escolhida tinha dificuldade para andar. E aqueles guerreiros a amparavam com cuidado; mesmo com as armas expostas e os olhos vasculhando qualquer sinal de ataque, eles eram gentis com ela como seriam com a mais frágil das flores em botão.
Ela não estava sendo maltratada. Não tinha hematomas nem ferimentos. Enquanto o trio avançava, ela olhou para um macho, depois para o outro, e disse algo como que tentando assegurá-los, pois, na verdade, não era raiva que contraía as sobrancelhas daqueles guerreiros.
Era, na realidade, o mesmo terror que ele sentiu quando farejou o sangue dela.
O coração de Xcor bateu ainda mais forte em seu peito, a mente tentando compreender tudo aquilo.
E então, ele se lembrou de algo do seu passado.
Depois do seu nascimento, sua mahmen o repelira e ele fora deixado no orfanato no Antigo País para o que quer que o destino lhe reservasse. Ali, permanecera entre os raros indesejados, cuja maioria possuía deformidades físicas como a sua, por quase uma década... tempo suficiente para forjar lembranças permanentes sobre aquilo que transpirava no lugar triste e solitário.
Tempo suficiente para ele entender o que significava quando uma fêmea sozinha aparecia nos portões, era-lhe concedida a entrada, e depois berrava por horas, às vezes dias... antes de dar à luz, na maioria dos casos, a crianças mortas. Ou abortadas.
O cheiro do sangue naquela época era bem específico. E o cheiro levado pelo vento frio desta noite era o mesmo.
Uma gestação era o que invadia seu nariz agora.
Pela primeira vez em sua vida, ele se ouviu dizer, em absoluta agonia:
– Santa Virgem do Fade...
CAPÍTULO 34
A ideia de que os membros do s’Hisbe estivessem no código postal de Caldwell fez com que Trez pensasse em fazer as malas com tudo o que possuía, buscar o irmão e sair em férias permanentes dali.
Enquanto dirigia do armazém para o Iron Mask, a cabeça estava tão confusa que ele tinha de pensar conscientemente em quais esquinas virar, e frear nas placas de pare, e onde deveria estacionar quando chegasse à boate. E depois, quando desligou o motor do X5, apenas continuou sentado atrás do volante, encarando a parede de tijolos do seu prédio por... sei lá, um ano.
Uma tremenda metáfora, todo o “ir a nenhum lugar” bem na sua frente.
Não que não soubesse o quanto decepcionava as pessoas. A questão? Pouco se importava. Não voltaria para os costumes antigos. A vida que agora levava era sua, e ele se recusava a permitir que uma promessa feita na época do seu nascimento o encarcerasse na vida adulta.
Aquilo não aconteceria.
Desde que Rehvenge realizara a boa ação do século e salvara tanto o seu traseiro quanto o do seu irmão, as coisas mudaram para Trez. Ele e iAm receberam ordens para se aliarem aos sympatho do lado de fora do Território a fim de saldarem a dívida, e esse “pagamento forçado” fora o bilhete deles para a liberdade, a saída que eles vinham procurando. E ainda que ele lamentasse arrastar iAm para aquele drama, o resultado final foi que seu irmão teve que vir com ele, e essa era apenas mais uma parte da solução perfeita que vivia atualmente. Abandonar o s’Hisbe e vir para o mundo exterior fora uma revelação, a primeira e deliciosa amostra de liberdade. Não havia protocolo, nenhuma regra, ninguém bafejando em seu cangote.
A ironia? Aquilo deveria ter sido um tapinha na bunda por ousar ter saído do Território e se misturar com os Desconhecidos. Um castigo com a intenção de fazê-lo andar na linha.
Rá.
E, desde então, nos recessos de sua mente, ele meio que desejava que a extensão dos seus negócios com os Desconhecidos durante a última década o tivesse contaminado perante os olhos do s’Hisbe, tornando-o inelegível para a “honra” que lhe fora concedida no nascimento. Ou seja, condenando-o a uma liberdade permanente.
O problema era que, se enviaram AnsLai, o sumo sacerdote, obviamente esse objetivo não fora alcançado. A menos que a visita tenha sido para repudiá-lo...
Nesse caso, saberia por meio de iAm. Não?
Trez verificou o celular. Nenhuma mensagem. Nem de voz nem de texto. Estava na casinha do cachorro de novo em relação ao seu irmão, a menos que iAm tivesse resolvido mandar tudo à merda e voltado para casa, para a tribo.
Maldição...
A batida forte à sua janela não fez com que ele simplesmente levantasse a cabeça. Não. Ele também sacou a arma.
Trez franziu a testa. Parado do lado de fora do carro, um macho humano do tamanho de uma casa. O cara tinha um barrigão de cerveja, mas os ombros fortes sugeriam que ele realizava trabalho físico regular, e o maxilar rígido e pesado revelava tanto a sua ancestralidade Cro-Magnon quanto o tipo de arrogância mais comum entre os animais grandes e idiotas.
Com grandes baforadas de touro libertando-se das narinas, ele se inclinou e bateu na janela. Naturalmente, com um punho tão grande quanto uma bola de futebol.
Bem, ficou claro que ele queria um pouco de atenção, e quer saber? Trez estava mais do que disposto em lhe dar.
Sem aviso, ele escancarou a porta, pegando o cara em cheio nas bolas. Enquanto o humano cambaleava para trás agarrando a virilha, Trez se ergueu em toda a sua altura e guardou a arma no cós da calça, fora de vista, mas fácil de apanhar.
Quando o senhor Agressivo se recuperou o bastante para olhar para cima, beeeem para cima, ele pareceu perder um pouco do seu entusiasmo. Pensando bem, Trez devia ter uns quarenta centímetros e pesar uns 45 quilos a mais que o cara. Apesar daquele pneuzão que ele carregava.
– Está procurando por mim? – perguntou Trez, querendo mesmo dizer: tem certeza de que quer fazer isso, grandalhão?
– É. ‘Tô.
Ok, então tanto a gramática quanto a avaliação de risco eram problemas para ele. Provavelmente teria dificuldades do mesmo tipo com adições e subtrações com numerais de único dígito.
– Estou – corrigiu Trez.
– Quê?
– Acredito que seja “sim, eu estou”, e não “tô”.
– Vai à merda. Que tal? – o cara se aproximou. – E fique longe dela.
– Dela? – isso restringia o problema para o que... umas mil pessoas?
– Minha mina. Ela num qué ocê, num precisa ducê, e num vai mais ficá cucê.
– De quem, exatamente, estamos falando? Vou precisar de um nome – e talvez nem isso ajudasse.
À guisa de resposta, o cara avançou. Provavelmente teria sido um soco ferrado, mas o avanço foi lento demais e muito penoso, e a maldita coisa poderia ter sido acompanhada de uma legenda.
Trez segurou o punho com uma mão, espalmando-a como se fosse uma bola de basquete. E depois, com um giro rápido, ficou com o pedaço de bife virado e preso – prova positiva de que pontos de pressão funcionavam, e que o pulso era um deles.
Trez falou bem no ouvido do homem, só para que as regras básicas fossem bem recebidas:
– Faça isso de novo e vou quebrar cada osso da sua mão. De uma vez – enfatizou isso com um puxão que fez o cara gemer. – E depois, vou subir até o braço. Agora, de que porra você está falando?
– Ela ‘teve aqui ontem à noite.
– Muitas mulheres estiveram. Consegue ser mais específico...?
– Ele ‘tá falando de mim.
Trez ergueu o olhar. Ah... que magnífico.
A garota que deu uma de doida, a sua perseguidora.
– Eu disse que cuidava disso! – ela gritou.
É, o cara parecia mesmo ter o controle da situação. Então, a que tudo levava a crer, os dois tinham ilusões... E talvez isso explicasse o relacionamento deles: ele a considerava uma supermodelo, e ela acreditava que ele tivesse um cérebro.
– Isto é seu? – Trez perguntou à mulher. – Porque, ser for, pode levá-lo para casa com você antes que precise de um balde para limpar a bagunça?
– Eu disse procê não vir aqui – disse a mulher. – Que que ‘cê ‘tá fazendo aqui?
E mais uma prova de que esses dois eram um casal perfeito.
– Que tal se eu deixar vocês dois resolverem isso? – sugeriu Trez.
– Eu amo ele!
Por um segundo, a resposta não fez sentido. Mas depois, e deixando o sotaque carregado de lado, ele entendeu: a tonta estava falando dele.
Enquanto Trez encarava incrédulo a mulher, percebeu que aquela transa em particular tinha saído pela culatra de maneira gigantesca.
– Não está, não.
Bem, pelo menos o namorado agora falara corretamente.
– Sim, estou!
Foi nessa hora que tudo foi para a puta que o pariu. O touro se lançou sobre a mulher, quebrando o próprio pulso no processo de se libertar. Depois os dois ficaram cara a cara, berrando obscenidades, os corpos se arqueando para a frente.
Ficou claro que eles tinham prática naquilo.
Trez olhou ao redor. Não havia ninguém no estacionamento, nenhuma alma viva andando na calçada, mas ele não precisava de violência doméstica rolando nos fundos da sua boate. Inevitavelmente, alguém acabaria vendo e chamando a polícia ou, pior, aquela burra acabaria forçando demais a barra do namorado grande e burro, e acabaria levando a pior.
Se ao menos ele tivesse um balde de água ou, quem sabe, uma mangueira de jardim para que os dois se largassem.
– Escutem aqui, vocês dois têm que...
– Eu te amo! – a mulher disse, virando-se para Trez e agarrando o bustiê. – Não entendeu ainda? Eu te amo!
Por conta da camada de suor que a cobria, apesar de a temperatura estar próxima de zero, ficou bem claro que ela tinha usado alguma coisa. Coca ou metanfetamina seria o seu palpite se ele tivesse de adivinhar. Êcstasy normalmente não era associado a esse tipo de agressão.
Perfeito. Mais essa agora.
Trez balançou a cabeça.
– Querida, você não me conhece.
– Conheço sim!
– Não, você não...
– Porra, não fala com ela assim!
O cara atacou Trez, mas a fêmea se colocou na frente, metendo-se diante de um trem acelerado.
Cacete, agora era a hora de ele se meter. Nada de violência contra mulheres na frente dele. Nunca – mesmo que fosse dano colateral.
Trez se moveu com tanta rapidez que quase fez o tempo voltar para trás. Tirou sua “protetora” da linha de combate e lançou um soco que pegou o animal disparado bem no meio do queixo.
Causou pouca ou nenhuma impressão. Foi o mesmo que atingir uma vaca com uma pilha de papel.
Trez levou um murro no olho, uma luz pipocou em metade da sua vista, mas foi um golpe de sorte mais do que algo coordenado. A recompensa, contudo, foi tudo isso e muito mais: com rápida coordenação, ele descarregou as juntas dos dedos em sucessão veloz, acertando-o no ventre, transformando o fígado cheio de cirrose do cara num saco de pancada vivo até o filho da puta se dobrar ao meio e pedir arrego.
Trez concluiu o assunto chutando o peso morto gemedor até ele cair no chão.
Então, ele sacou a pistola e enfiou o cano bem na carótida do cara.
– Você tem uma chance de sair daqui – Trez disse calmo. – E é assim que as coisas vão ser. Você vai se levantar e não vai nem olhar nem falar com ela. Você vai embora pela frente da boate e vai entrar numa porra de um táxi e vai para a porra da sua casa.
Diferentemente de Trez, o homem não tinha um sistema cardíaco muito bem desenvolvido e conservado e respirava como um trem de carga. Apesar disso e do jeito como os olhos injetados e marejados o olhavam, ele conseguira focar a visão independentemente da hipoxia, e captara a mensagem.
– Se a agredir de qualquer modo que seja, se ela quebrar sequer uma unha por sua causa, se alguma propriedade dela for danificada de algum modo? – Trez se inclinou, aproximando-se. – Vou abordá-lo por trás. Você nem saberá que estive ali, e não vai sobreviver ao que eu lhe farei. Isso eu prometo.
Sim, Sombras tinham maneiras de se livrar dos inimigos e, ainda que ele preferisse carne com pouca gordura, como frango e peixe, não se importava em abrir exceções.
O problema era que tanto em sua vida pessoal quanto na profissional ele vira como a violência doméstica se intensificava. Em muitos casos, algo grande tinha que intervir a fim de romper o ciclo. Veja só? Ele se encaixava nisso.
– Acene com a cabeça se você entendeu meus termos – quando o aceno veio, ele bateu a arma com força contra a nuca gorda. – Agora, olhe em meus olhos e saiba que estou falando a verdade.
Enquanto Trez o encarava, ele inseriu um pensamento direto no córtex cerebral, implantando-o como se fosse um chip instalado entre os lóbulos. O seu disparo seria qualquer tipo de ideia brilhante que tivesse a respeito da mulher; seu efeito seria a absoluta convicção de que a sua própria morte seria inevitável e rápida, caso ele desse seguimento à ideia.
O melhor tipo de terapia cognitiva que existia.
Taxa de sucesso de cem por cento.
Trez deu um pulo e concedeu uma chance de se comportar como um bom garoto ao gorducho. E, claro, o filho da puta se ergueu do chão, sacudiu-se como um cão com as pernas plantadas afastadas e a camisa larga solta.
Quando ele saiu, foi mancando.
E foi nesse instante que as fungadas foram percebidas.
Trez se virou. A mulher tremia no frio, as roupas indiscretas não ofereciam nenhuma barreira para a noite de dezembro, a pele pálida, a exaltação desaparecida... como se o fato de ele colocar o cano da sua .40 na garganta do seu namoradinho tivesse alguma influência.
O rímel escorria pelo rosto enquanto ela testemunhava a partida do seu “Príncipe Encantado”.
Trez olhou para o céu e começou seu diálogo interno.
No fim, ele não teria como deixá-la ali sozinha no estacionamento, ainda mais toda trêmula como estava.
– Onde você mora, querida? – até ele percebia a exaustão em sua voz. – Querida?
A mulher olhou para o lado dele e imediatamente a sua expressão mudou.
– Nunca ninguém me defendeu assim antes.
Ok, agora ele pensava em afundar a cabeça na parede de tijolos. E, olha só, havia uma logo ali do lado.
– Deixe-me levá-la para casa. Onde você mora?
Enquanto ela se aproximava, Trez teve que ordenar aos pés que continuassem exatamente onde estavam – pois, claro, ela se enterrou em seu corpo.
– Eu te amo.
Trez cerrou bem os olhos.
– Vamos – disse, desprendendo-se dela e levando-a até o carro. – Você vai ficar bem.
CAPÍTULO 35
Enquanto Layla era levada até a clínica, seu coração batia forte e as pernas tremiam. Felizmente, Phury e Qhuinn não mostravam problema algum em sustentá-la.
Contudo, graças à presença do Primale, sua experiência foi completamente diferente dessa vez. Quando o painel de entrada do edifício deslizou para o lado, uma das enfermeiras estava lá para recebê-los, e eles foram levados imediatamente para uma parte diferente da clínica daquela em que ela esteve na noite anterior.
Enquanto eram levados para a sala de exames, Layla olhou de relance ao redor e hesitou. O que... era aquilo? As paredes eram recobertas por um rosa claro, e as pinturas em molduras douradas estavam penduradas a intervalos regulares. Nenhuma mesa de exames, tal como aquela em que ela se deitou na noite anterior. Ali, havia uma cama forrada por uma manta elegante, recoberta com pilhas de travesseiros fofos. E, além disso, em vez da pia de aço inoxidável e gabinetes brancos sem graça, uma tela pintada escondia um canto inteiro do quarto atrás da qual, ela deduziu, os instrumentos clínicos de Havers eram mantidos.
A menos que o grupo tenha sido conduzido para os aposentos particulares do médico.
– Ele logo virá vê-la – disse a enfermeira, sorrindo para Phury e se curvando. – Posso lhes trazer algo? Café, chá?
– Apenas o médico – o Primale respondeu.
– Imediatamente, Vossa Excelência.
Ela se curvou novamente e se apressou para fora.
– Vamos colocá-la na cama, está bem? – disse Phury ao lado do leito.
Layla balançou a cabeça.
– Tem certeza de que estamos no lugar certo?
– Sim – o Primale se aproximou e a ajudou a atravessar o quarto. – Esta é uma das suítes VIP.
Layla olhou por sobre o ombro. Qhuinn se acomodara no canto oposto à tela. Ele se mantinha absolutamente imóvel, os olhos focados no chão, a respiração estável, as mãos atrás das costas. E mesmo assim não estava à vontade. Não, ele parecia pronto e capaz de matar e, por um momento, uma pontada de medo a perpassou. Jamais teve medo dele antes, mas, pensando bem, ela nunca o vira num estado tão potencialmente agressivo.
Pelo menos a violência represada não parecia direcionada a ela, nem mesmo ao Primale. Certamente não à doutora Jane enquanto a médica se acomodava numa cadeira forrada de seda.
– Vamos – insistiu Phury com gentileza. – Vamos lá.
Layla tentou subir sozinha, mas o colchão estava longe demais do chão e a parte superior do seu corpo estava tão fraca quanto as pernas.
– Eu pego você – Phury atenciosamente passou o braço ao redor das suas costas e atrás das pernas; depois a suspendeu com cuidado. – Lá vamos nós.
Ajeitando-se na cama, ela gemeu ao sentir uma câimbra se agarrar à sua região pélvica. Enquanto todos os olhos no quarto fixavam-se nela, ela tentou esconder a careta com um sorriso. Sem sucesso: embora o sangramento continuasse estável, as ondas de dor se intensificavam, a duração delas era mais longa, e o espaçamento entre elas, menor.
Naquele compasso, logo se transformaria em agonia constante.
– Estou bem...
A batida à porta a interrompeu.
– Posso entrar?
Apenas a voz do doutor Havers já fez com que ela quisesse fugir.
– Ah, Santa Virgem Escriba – disse ao tentar juntar coragem.
– Sim – respondeu sombriamente Phury. – Entre...
O que aconteceu em seguida foi tão rápido e furioso que o único modo de descrever seria com o coloquialismo que aprendera com Qhuinn.
O mundo desabou.
Havers abriu a porta, entrou e Qhuinn atacou o médico, empurrando-o para aquele canto, inclinando-se com a adaga.
Layla gritou alarmada, mas ele não matou o macho.
No entanto, ele fechou a porta com o corpo do macho, ou talvez com a cara dele. E foi difícil saber se o barulho que ressoou foi a porta se encontrando com a soleira ou o impacto do curandeiro sendo lançado contra a madeira. Provavelmente uma combinação de ambos.
A terrível lâmina afiada foi pressionada contra a garganta pálida.
– Adivinha o que vai fazer primeiro, cretino? – Qhuinn rosnou. – Vai se desculpar por tratá-la como se fosse uma maldita incubadora.
Qhuinn o virou com um puxão. Os óculos de Havers estavam quebrados, uma das lentes rachada formando um padrão de teia de aranha, a alça do outro lado esticada num ângulo estranho.
Layla lançou um olhar para Phury. O Primale não parecia particularmente aborrecido: apenas cruzou os braços sobre o peito imenso e se recostou contra a parede ao lado dela, obviamente muito à vontade com aquela encenação. Do outro lado na cadeira, o mesmo acontecia com a doutora Jane, o olhar esverdeado era tranquilo enquanto observava o dramalhão.
– Olhe nos olhos dela – bramiu Qhuinn – e peça desculpas.
Quando o lutador sacudiu o médico como se ele não passasse de uma boneca de pano, algumas palavras amontoadas escaparam do médico.
Caramba. Layla supunha que deveria se portar como uma dama e não gostar daquilo, mas sentiu satisfação ante aquela vingança.
Tristeza também, porque a situação jamais deveria ter chegado àquilo.
– Aceita as desculpas dele? – Qhuinn perguntou num tom maldoso. – Ou prefere que ele rasteje? Eu ficarei muito feliz em transformá-lo num capacho aos seus pés.
– Isso foi o bastante. Obrigada.
– Agora você vai contar a ela – Qhuinn repetiu o chacoalhão, os braços de Havers quase sendo arrancados das juntas, o jaleco branco balançando tal qual uma bandeira – e somente a ela, que merda está acontecendo com o corpo dela.
– Preciso do... prontuário...
Qhuinn expôs as presas e as colocou ao lado da orelha de Havers, como se estivesse considerando a ideia de arrancá-la numa mordida.
– Tolice. E se você estiver contando a verdade? O lapso de memória vai causar a sua morte. Agora.
Havers já estava pálido, mas isso fez com que ele ficasse completamente branco.
– Comece a falar, doutor. E se o Primale, que o impressiona pra cacete, fizer a gentileza de me contar caso você desvie o olhar dela, isso seria maravilhoso.
– Com prazer – disse Phury.
– Não estou ouvindo nada, doutor. E não sou um cara muito paciente.
– Você é... – por detrás dos óculos quebrados, os olhos do macho encontraram os dela. – O seu filho...
Ela quase desejou que Qhuinn não forçasse aquele contato. Já era bastante difícil ouvir aquilo sem ter que encarar o médico que a tratara tão mal.
Mas, pensando bem, era Havers quem tinha de olhar para ela, e não o contrário.
Ela encarava os olhos de Qhuinn quando Havers disse:
– Você está sofrendo um aborto.
As coisas ficaram embaçadas dali por diante, portanto, ela deduziu que estivesse chorando. Entretanto, não sentia coisa alguma. Era como se sua alma tivesse sido tragada para fora do seu corpo, tudo o que a animava e conectava ao mundo nunca tivesse existido.
Qhuinn não demonstrou reação alguma. Não piscou. Não mudou de posição, nem balançou a adaga.
– Existe algo que possa ser feito em termos médicos? – questionou a doutora Jane.
Havers foi balançar a cabeça, mas parou quando a ponta afiada da adaga perfurou a pele do seu pescoço. Quando o sangue começou a descer pelo colarinho engomado da camisa social, o vermelho combinou com a gravata borboleta.
– Nada que eu saiba – respondeu o médico com voz rouca. – Não neste mundo, de qualquer forma.
– Diga a ela que ela não teve culpa – exigiu Qhuinn. – Diga a ela que ela não fez nada de errado.
Layla fechou os olhos.
– Presumindo que isso seja verdade...
– Em humanos, esse costuma ser o caso, desde que não tenha havido nenhum trauma – interveio a doutora Jane.
– Diga a ela – disse Qhuinn num estalido, o braço começando a vibrar bem de leve, como se estivesse a um passo de liberar a sua violência.
– É verdade – confirmou Havers meio engasgado.
Layla fitou o médico, procurando o olhar dele por trás dos óculos arruinados.
– Nada?
Havers falou rapidamente:
– A incidência de abortos espontâneos é de aproximadamente uma a cada três gestações. Acredito que, como acontece com os humanos, seja causado por um sistema autorregulatório que garante que defeitos de vários tipos não sejam levados a cabo.
– Mas, sem sombra de dúvida, eu estou grávida – disse ela num tom desprovido de emoção.
– Sim. Seus exames de sangue atestaram isso.
– Existe algum risco à vida dela – perguntou Qhuinn – se isso continuar?
– Você é o ghia dela? – perguntou Havers num rompante.
Phury interveio:
– Ele é o pai do filho dela. Portanto, você o tratará com o mesmo respeito com que me trataria.
Isso fez com que os olhos do médico saltassem das órbitas, as sobrancelhas emergissem por trás da armação arruinada. E foi engraçado; foi nesse instante que Qhuinn demonstrou um pouco de reação: apenas um leve vacilo em seu rosto antes que a expressão ferrenha voltasse a demonstrar agressividade.
– Responda – exigiu Qhuinn. – Ela corre algum perigo?
– E-eu... – Havers engoliu em seco. – Não existem garantias na medicina. De modo geral, eu diria que não; ela é saudável em relação ao resto, e o aborto parece estar seguindo seu curso costumeiro. Além disso...
Enquanto o médico continuava a falar, Layla percebeu que seu tom educado e refinado estava muito mais irregular do que na noite anterior.
Tudo regrediu, sua audição sumiu, junto a qualquer percepção de temperatura do quarto, a cama debaixo dela, bem como os outros corpos ao seu redor. A única coisa que enxergava eram os olhos descombinados de Qhuinn.
Seu único pensamento enquanto ele segurava aquela adaga junto ao pescoço do médico?
Mesmo não estando apaixonados um pelo outro, ele era exatamente o pai que queria que seu filho tivesse. Desde que tomara a decisão de participar do mundo real, ela aprendera o quanto a vida podia ser dura, como os outros podiam conspirar contra você e como, às vezes, a força baseada em seus princípios era a única coisa que o fazia atravessar a noite.
Qhuinn dispunha desse último aos montes.
Ele era um extraordinário e temível protetor, e era exatamente disso que uma fêmea precisava quando estava grávida, amamentando ou cuidando de um bebê.
Isso e sua gentileza inata o tornavam nobre a seu ver.
A cor dos seus olhos não importava.
Quase oitenta quilômetros ao sul de onde Havers molhava as calças de tanto medo em sua clínica, Assail estava atrás do volante de seu Range Rover, balançando a cabeça em descrença.
As coisas ficavam cada vez mais interessantes com aquela mulher.
Graças ao GPS, ele rastreara o Audi de longe quando ela decidira sair de seu bairro e tomar a Northway. A cada saída de subúrbio, ele esperava que ela a tomasse, mas enquanto eles deixavam Caldwell para trás para comer poeira, ele começou a pensar que talvez ela estivesse seguindo para Manhattan.
Nada disso.
West Point, o lar da venerável escola militar humana, ficava aproximadamente na metade do caminho entre a cidade de Nova York e Caldwell, e quando ela saiu da autoestrada àquela altura, ele ficou aliviado. Muitas coisas aconteciam lá naquela terra em que o código postal começava com 100, e ele não queria se distanciar muito de sua base por dois motivos: um, ainda não tivera notícias dos gêmeos quanto à aparição daqueles intermediários fuleiros, e, dois, a aurora surgiria em algum momento, e ele não apreciava a ideia de abandonar seu muito modificado e reforçado Range Rover no acostamento de uma estrada caso precisasse se desmaterializar de volta para a sua segurança.
Uma vez fora da estrada, a mulher prosseguiu a exatos setenta quilômetros por hora pela seleção de postos de combustível, hotéis turísticos e lanchonetes da cidade. Em seguida, do outro lado dessa coleção de lugares baratos, as coisas começaram a ficar mais caras. Casas grandes, do tipo que ficavam bem ao fundo de gramados que se pareciam com carpetes, começaram a aparecer, com seus muros de pedra baixos placidamente se aglomerando próximos à estradinha. Ela passou por todas essas propriedades, porém, para acabar parando no estacionamento de um parque que dava para a margem de um rio.
Assim que ela saiu do carro, ele passou por ela, virando a cabeça para trás para medi-la.
Uma centena de metros mais adiante, fora do campo de visão dela, Assail parou o carro no acostamento da estradinha, saindo para o vento enregelante, abotoando o casaco até o alto. Os sapatos não eram os ideais para caminhar sobre a neve, mas ele não se importou. Seus pés suportariam o frio e a umidade, e ele tinha outra dúzia de pares à sua espera no armário de sua casa.
Como o carro dela, e não o corpo, estava com o aparelho de rastreamento, ele manteve o olhar fixo nela. Como esperado, ela vestiu os esquis de cross-country e, depois, com uma máscara branca de esqui sobre a cabeça e roupa de camuflagem clara a lhe cobrir o corpo, ela praticamente desapareceu em meio ao cenário de inverno.
E ele a acompanhou.
Aparecendo a cada dez ou quinze metros, ele encontrou pinheiros para se esconder conforme ela avançava na direção de mansões, os esquis devorando o chão coberto de neve.
Ele concluiu, enquanto mantinha o compasso, antecipando a direção que ela tomaria e, em boa parte adivinhando, que ela iria para uma daquelas mansões.
Toda vez que ela passava por ele sem saber que ele estava em meio às árvores, seu corpo queria saltar. Para derrubá-la. Para mordê-la.
Por algum motivo, aquela humana o deixava faminto.
E brincar de gato e rato era algo muito erótico, especialmente se só o gato soubesse que o jogo estava valendo.
A propriedade na qual ela acabou se infiltrando ficava a quase dois quilômetros dali, mas, apesar da distância, o ritmo puxado daquelas pernas não diminuiu em nada. Ela entrou pelo lado direito do gramado da frente, aproximando-se de um muro de sempre-vivas, depois retomando seu curso.
Aquilo não fazia sentido. Se ela fosse descoberta, estava muito longe do carro. Por certo uma abordagem mais próxima teria feito mais sentido? Afinal, de qualquer modo, agora ela estava exposta, sem árvores para lhe servir de cobertura, nenhuma possível defesa contra uma acusação de invasão de propriedade se a vissem.
A menos que ela conhecesse o dono. E, nesse caso, por que se esconder e aparecer sorrateira no meio da noite?
O jardim de uns 30 mil metros quadrados gradualmente se elevava em direção a uma casa de pedras de uns 180 metros quadrados, com esculturas modernistas paradas como sentinelas brilhantes e cegas ante aquela aproximação, o gramado continuando pelo fundo. O tempo inteiro ela se ateve àquele muro e, observando-a a uns vinte metros de distância, ele se viu impressionado por ela. Contra a neve, ela se movia como uma brisa o faria, invisível e rápida, a sombra lançada contra o muro de pedras de tal modo que ela parecia desaparecer...
Ahhhh...
Ela escolhera aquela rota exatamente por isso, não?
Sim, de fato, o ângulo do luar lançava a sombra dela exatamente sobre as pedras, criando uma camuflagem ainda mais eficiente.
E aquela sensação estranha se intensificou nele.
Esperta.
Assail avançou, encontrando um esconderijo entre a vegetação na lateral da casa. De perto, notou que a mansão não era nova, embora também não fosse antiga – mesmo porque, no Novo Mundo, era raro se deparar com algo construído antes do século XVIII. Muitas janelas chumbadas. E varandas. E terraços.
Conclusão? Fortuna e distinção.
Sem dúvida, muito bem protegidas por inúmeros alarmes.
Parecia muito improvável que ela só fosse espiar a propriedade como fizera na dele. Para começar, havia uma extensão arborizada do lado oposto daquele muro de pedras que ela atravessara. Ela poderia ter estacionado os esquis, subido aquela moita de uns quatro a seis metros, e obtido uma vista privilegiada da casa. O que mais? Nesse caso, ela não precisaria de nada do que estava na mochila que lhe pesava nas costas.
A coisa parecia grande o bastante para transportar um corpo, e estava cheia.
Como se tivessem combinado, ela parou, pegou os binóculos e inspecionou a propriedade, ficando absolutamente imóvel com somente a cabeça a se mexer. E depois atravessou o gramado, movendo-se ainda mais rapidamente do que antes, a ponto de estar literalmente correndo em direção à casa.
Na direção dele.
De fato, ela seguia diretamente para Assail, para aquela junção entre arbustos que marcava a frente da mansão, para a sebe alta que corria ao redor do jardim dos fundos.
Obviamente, ela conhecia a propriedade.
Obviamente, ele escolhera o lugar perfeito.
Ante a aproximação dela, ele recuou apenas um pouco... porque não teria se importado em ser flagrado espiando.
A mulher esquiou mais uns dois metros além de onde ele se encontrava, aproximando-se tanto que ele conseguiu captar o cheiro dela não só em seu nariz, mas também no fundo da garganta.
Ele teve que se refrear para não ronronar.
Depois do esforço em atravessar aquela faixa de gramado com tanta rapidez, ela estava arfando, mas seu sistema cardiovascular se recuperou rápido – um sinal de sua boa saúde e vigor. E a velocidade com a qual ela agora se movia foi igualmente erótica. Tirando os esquis. Tirando a mochila. Abrindo a mochila. Extraindo...
Ele deduziu que ela subiria no telhado, enquanto ela montava o que parecia ser um lança-arpão. Ela mirou a coisa para cima, apertou o gatilho para atirar um gancho. Um instante depois houve o som de um metal se agarrando no alto.
Quando olhou para cima, ele percebeu que ela escolhera uma das poucas extensões de pedra sem janelas... e protegida pela sebe enorme na qual ele mesmo se escondia.
Ela ia entrar.
Àquela altura, Assail franziu o cenho... e desapareceu de onde a observava.
Reaparecendo nos fundos da casa no andar de baixo, ele espiou por várias janelas, apoiando as laterais das mãos no vidro ao se inclinar. O interior estava basicamente escuro, mas não completamente: aqui e acolá havia abajures acesos, as lâmpadas emitindo uma luz alaranjada sobre a mobília que era uma combinação de objetos antigos e arte moderna. Luxuoso que só: em seu sono pacífico, o lugar se parecia com um museu, ou algo que se fotografaria para uma revista, tudo muito bem organizado com uma precisão que haveria de se perguntar se réguas tinham sido utilizadas para dispor a mobília e os objetos de arte.
Nenhuma bagunça em lugar algum, nenhum jornal largado sem querer, nada de cartas, contas, recibos. Nenhum casaco sobre o espaldar de uma cadeira ou um par de sapatos abandonados ao lado do sofá.
Cada um dos cinzeiros imaculadamente limpos.
Somente uma pessoa lhe veio à mente.
– Benloise – sussurrou para si mesmo.
CAPÍTULO 36
Baseando-se nas vibrações regulares que vinham de seu bolso, Xcor sabia que a sua presença estava sendo desejada pelos seus lutadores.
Ele não atendeu.
Parado do lado de fora do prédio para o qual a sua Escolhida fora conduzida, ele não tinha forças nem para sair mesmo quando o fluxo de outros de sua espécie surgia em carros ou materializando-se diante do portal pelo qual ela fora levada. De fato, como tantos entraram e saíram, não havia dúvidas de que aquela era uma clínica médica.
Pelo menos ninguém parecia notá-lo, estando preocupados demais com o que os afligia, apesar do fato de ele estar parado no meio do caminho.
Ah, deuses, só o pensamento do que trouxera a sua Escolhida ali o nauseava ao ponto de ele ter de pigarrear e...
Inspirar o ar frio para dentro dos seus pulmões ajudou a conter a ânsia de vômito.
Quando o cio dela acontecera? Devia ter sido muito recentemente. Da última vez em que a vira...
Quem seria o pai?, perguntou-se pela centésima vez. Quem tomara o que era seu...
– Não seu – ele disse para si mesmo. – Não seu.
Só que era a sua mente dizendo isso e não os seus instintos. Em seu cerne, na parte mais máscula da sua essência, ela era a sua fêmea.
E, ironicamente, era isso o que o impedia de atacar a clínica – com todos os seus soldados, se necessário. Se ela estava recebendo cuidados, a última coisa que ele queria era interromper o processo.
Enquanto o tempo passava e a ausência de informações o torturava até a insanidade, ele percebeu que desconhecera a existência daquele lugar. Se ela fosse dele? Ele não teria sabido onde levá-la para obter ajuda, certamente teria mandado Throe encontrar algum lugar, de algum modo, para garantir os cuidados dela, mas e no caso de uma emergência? Uma hora ou duas procurando um curandeiro poderia significar a diferença entre a vida e a morte.
A Irmandade, por sua vez, soube exatamente onde levá-la. E quando ela recebesse alta daquele lugar, sem dúvida, eles a levariam de volta a um lugar aquecido, seguro, onde teria alimento abundante e uma cama macia, e a força valente de pelo menos seis guerreiros para protegê-la enquanto dormisse.
Irônico como ele se sentia à vontade com isso. Mas, pensando bem, a Sociedade Redutora era um adversário muito sério; e digam o que quiserem a respeito da Irmandade, eles provaram durante toda a eternidade serem defensores capazes.
Abruptamente, seus pensamentos se voltaram para o armazém em que ele e seus soldados vinham ficando. Aquele ambiente úmido, frio, hostil era, na verdade, apenas um degrau acima dos outros lugares em que levantaram acampamento. Se ela estivesse com ele, como a manteria? Nenhum macho jamais poderia vê-la em sua presença, especialmente se ela tivesse de trocar de roupa ou se banhar...
Um rugido se infiltrou em sua garganta.
Não. Nenhum macho colocaria os olhos na pele dela ou ele o esfolaria vivo...
Ah, Deus, ela se vinculara a outro. Abrira-se e aceitara outro macho dentro de suas carnes sagradas.
Xcor abaixou o rosto entre as mãos, a dor em seu peito fazendo-o cambalear em suas botas de combate.
Deve ter sido o Primale. Sim, claro, ela se deitara com Phury, filho de Ahgony. Era esse o único modo com que as Escolhidas se procriavam, se a sua memória e os boatos estivessem certos.
Instantaneamente, sua mente ficou enevoada com a imagem do rosto perfeito e da silhueta delgada. Pensar que outro a desnudara e cobrira-lhe o corpo com o dele...
Pare, ele se ordenou. Pare com isso.
Arrastando sua mente para longe dessa loucura, ele se desafiou a definir qualquer tipo de hospedagem que poderia propiciar a ela. Em qualquer circunstância.
O único pensamento que lhe ocorreu foi voltar e matar aquela fêmea de quem seus soldados se alimentaram. Aquele chalé parecera bem tranquilo e adorável...
Mas para onde iria sua Escolhida durante o dia?
E, além disso, ele jamais a envergonharia permitindo que ela sequer andasse sobre o tapete onde todo aquele sexo acontecera.
– Com licença.
Xcor buscou a pistola dentro da jaqueta ao dar meia-volta. Só que não havia necessidade de usar força bruta – era apenas uma fêmea pequena com seu filho. Ao que tudo levava a crer, eles tinham saído de um utilitário estacionado a poucos metros dele.
Enquanto a criança se escondia atrás da mãe, os olhos da fêmea se arregalaram de medo.
Mas, pensando bem, quando se tropeça num monstro, sua presença dificilmente é recebida com alegria.
Xcor se curvou profundamente, em grande parte porque a visão do seu rosto por certo não estava melhorando a situação.
– Sim, como não...
Dito isso, ele recuou e virou, voltando ao posto originalmente ocupado. Na verdade, não percebera o quanto tinha se exposto.
E ele não queria brigar. Não com a Irmandade. Não com a sua Escolhida daquele modo. Não... ali.
Fechando os olhos, desejou poder voltar para aquela noite quando Zypher o levara para a campina e Throe, com o subterfúgio de ajudá-lo, o condenara àquele tipo de morte em vida.
Um macho vinculado que não podia estar com sua fêmea?
Morto apesar de viver...
Sem aviso, o portal foi puxado para trás e sua Escolhida surgiu. Instantaneamente, os instintos de Xcor gritaram para que ele agisse, apesar de todos os motivos para deixá-la em paz.
Leve-a! Agora!
Mas ele não o fez: as expressões sérias daqueles que a protegiam com tamanho cuidado o imobilizaram: notícias ruins foram dadas durante a estada deles ali.
Como antes, só faltaram carregá-la até o veículo.
E o cheiro do sangue dela ainda pairava no ar.
Sua Escolhida foi acomodada no banco traseiro do sedã, com a fêmea ao lado dela. Depois, Phury, filho de Ahgony, e o guerreiro de olhos descombinados entraram na frente. O veículo foi virado bem lentamente, como que por preocupação com a carga preciosa no compartimento traseiro.
Xcor os seguiu, materializando-se de tempos em tempos acompanhando a velocidade crescente na estrada rural ao fim da rua, e depois na autoestrada. Quando o carro chegou à ponte, ele mais uma vez o viu do mais alto esteio e depois que sua fêmea passou debaixo dele, ele saltou de telhado em telhado enquanto o sedã dava a volta no centro da cidade.
Ele rastreou o carro seguindo ao norte até sair da autoestrada e entrar numa região rural.
Continuou com ela o tempo inteiro.
E foi assim que ele descobriu a localização da Irmandade.
CONTINUA
CAPÍTULO 27
Assomando-se acima de Qhuinn, Blay estava anormalmente ciente de tudo ao seu redor: a sensação da mão de Qhuinn atrás da sua perna, o modo como a bainha do roupão resvalava sua canela, o cheiro do sexo permeando o ar.
De tantos modos, ele quisera aquilo a vida inteira. Ou pelo menos, desde que sobrevivera à transição e teve algum tipo de impulso sexual. Aquele momento era o ápice de sonhos incontáveis e de inúmeras fantasias, seu desejo secreto sendo manifestado.
E era sincero: os olhos descombinados de Qhuinn não tinham sombras, nem dúvidas. O macho não só dizia a mais absoluta verdade que lhe passava pelo coração, mas estava em paz por se expor com tanta vulnerabilidade.
Blay cerrou as pálpebras brevemente. Aquela submissão era o oposto de tudo o que definia Qhuinn como macho. Ele nunca se entregava; não os seus princípios, não as suas armas, nunca, jamais a si mesmo. Pensando bem, a reviravolta fazia algum sentido. O enfrentamento da morte tendia a ser seguido por revelações...
A questão era que ele tinha a sensação de que aquilo não duraria. Aquela “visão desobstruída” sem dúvida estava ligada à viagem de avião, mas tal qual uma vítima de ataque cardíaco voltando à antiga dieta deplorável pouco depois, a “revelação” provavelmente não teria vida longa. Sim, Qhuinn estava sendo sincero quanto ao que dizia naquele momento inebriante, não havia dúvida alguma quanto a isso. No entanto, era difícil acreditar que aquilo seria permanente.
Qhuinn era o que era. E muito em breve, depois que o choque fosse absorvido – talvez ao cair da noite, quem sabe na semana seguinte, ou dali a um mês – ele voltaria ao seu modo de ser fechado, distante, à parte.
Decisão tomada, Blay voltou a abrir os olhos e se inclinou. Quando os rostos se aproximaram, os lábios de Qhuinn se partiram, o inferior, carnudo, pulsava como se ele já tentasse saborear o que desejava... e se deleitava.
Merda. O lutador era tão magnífico, o peito nu poderoso reluzindo na luz do abajur, a pele transportando uma camada de excitação, os mamilos perfurados se elevando e descendo conforme a pulsação desenfreada do sangue aquecido.
Blay percorreu a mão pelos músculos do braço que os ligava, desde a espessura grossa do ombro até a protuberância do bíceps e a curva entalhada do tríceps.
Retirou a palma de sua coxa.
E se afastou.
Qhuinn empalideceu a ponto de ficar acinzentado.
No silêncio, Blay nada disse. Não conseguiria. Sua voz havia desaparecido.
Em pernas cambaleantes, ele se distanciou, a mão envolvendo a maçaneta até conseguir coordenação suficiente para abrir a saída. Saindo, ele não saberia dizer se bateu a porta ou se a fechou silenciosamente.
Não foi muito longe. Pouco mais de um metro além do quarto, ele desabou ao encontro da parede lisa e fria do corredor.
Ofegando. Estava ofegando.
E todo aquele esforço de nada adiantaria. A sufocação no peito só piorava e, subitamente, sua visão foi substituída por quadrados em preto e branco de um tabuleiro de xadrez.
Deduzindo que estava prestes a desmaiar, agachou-se e colocou a cabeça entre os joelhos. Nos recessos da mente, rezou para que o corredor continuasse vazio. Aquele não era o tipo de coisa que gostaria de explicar para ninguém: estava do lado de fora do quarto de Qhuinn, obviamente excitado, o corpo tremendo como se um terremoto particular estivesse acontecendo...
– Jesus Cristo...
Quase morri hoje... e isso endireita as pessoas. Lá em cima naquele avião, olhando para a noite escura, não achei que fosse conseguir. Tudo ficou claro para mim.
– Não – Blay disse em voz alta. – Não...
Apoiando a cabeça nas mãos, tentou respirar calmamente, pensar racionalmente, agir sensatamente. Não poderia se dar ao luxo de se afundar ainda mais naquilo...
Aqueles olhos quentes, brilhantes, descombinados eram o que o atraiam.
– Não – sibilou.
Enquanto a voz ressoava em seu crânio, ele resolveu se dar ouvidos. Chega. Aquilo não poderia ir adiante.
Há tempos perdera o coração para aquele macho.
Não havia motivos para perder a alma também.
Uma hora mais tarde, talvez duas, ou seis, Qhuinn estava deitado nu entre os lençóis frios, fitando o escuro do teto que não conseguia enxergar.
Aquela era a dor horrível que Blay sentira? Como na vez em que fora procurá-lo no porão da casa dos pais dele e disse estar preparado para partir de Caldwell, deixando bem claro que não haveria mais nenhum laço entre eles? Ou talvez na vez em que se beijaram na clínica e Qhuinn se recusara a ir em frente? Ou naquela derradeira colisão quando eles quase ficaram juntos, pouco antes do primeiro encontro de Blay com Saxton?
Um maldito vazio enorme.
Como aquele quarto, na verdade: sem iluminação e essencialmente vazio, apenas quatro paredes e um teto. Ou um saco de pele e um esqueleto, como era o caso.
Levantando a mão, colocou-a sobre o coração, só para se certificar de que ainda tinha um.
Caramba, o destino tinha um jeito de lhe ensinar as coisas que você precisava saber, mesmo se você não estivesse ciente de que a lição era necessária até ela ser apresentada: ele desperdiçara tempo demais envolvido consigo mesmo e o seu defeito, e seu fracasso perante a família e a sociedade. Um emaranhado confuso em que se metera por tempo demais e Blay, porque se importara, fora sugado naquele turbilhão.
Mas quando foi que apoiara o amigo? O que de fato fizera pelo cara?
Blay estivera certo ao sair daquele quarto. Um pouco tarde demais, não era o ditado? E não que Qhuinn estivesse oferecendo algum tipo de prêmio. Debaixo da superfície, ele não estava muito mais estável, na verdade. Não estava mais em paz.
Não, ele merecia aquilo...
Uma centelha de luz amarelo-esverdeada fatiou o seu campo negro de visão, como se a escuridão fosse um tecido e o facho de luz uma faca.
Uma figura entrou sorrateira no seu quarto, silenciosamente, e fechou a porta.
Pelo cheiro, ele soube quem era.
O coração de Qhuinn começou a bater forte quando ele se endireitou nos travesseiros.
– Blay...?
Houve um ruído sutil, o roupão escorregando pelos ombros do macho alto. Em seguida, momentos depois, o colchão foi pressionado quando um peso grande, vital, subiu nele.
Qhuinn esticou a mão no escuro com acuidade certeira, as mãos encontrando as laterais do pescoço de Blay com tanta precisão como se tivessem sido direcionadas pela visão.
Nenhuma conversa. Ele temia que as palavras lhe roubassem aquele milagre.
Elevando a boca, puxou a de Blay para a sua, e quando aqueles lábios de veludo estavam perto de seu campo de atuação, ele os beijou com um desespero que foi retribuído. De uma vez só, todo o passado reprimido foi libertado com fúria e ele sentiu o gosto de sangue, sem saber quais foram as presas que rasgaram o outro.
E quem se importava?
Com um puxão forte, deitou Blay e depois rolou por cima do macho, afastando-lhe as coxas e pressionando-se até que o membro rijo se deparasse com...
Os dois gemeram.
Tonto por causa de tanta pele nua, Qhuinn começou a bombear os quadris para frente e para trás, a fricção dos sexos e a pele quente aumentando o calor úmido em suas bocas. Frenesi, em toda parte, rápido, depressa, rápido... Puta merda, havia desejo demais para entender onde suas mãos estavam, ou no que ele se esfregava ou... Porra, havia pele demais para tocar, cabelos para puxar, tanta coisa, demais...
Qhuinn gozou, as bolas endurecendo, a ereção jorrando entre eles, espalhando-se por todos os lados.
E isso não o desacelerou em nada.
Com um puxão, afastou-se da boca que poderia passar uma centena de anos beijando, lançou-se sobre o peito de Blay. Os músculos com que se deparava não se comparavam com os dos humanos com quem transara: aquilo era um vampiro, um lutador, um soldado treinado arduamente que exercitava o corpo para atingir uma condição não só útil, mas essencialmente letal. Caramba se aquilo não era ex-citante... mas, acima de tudo, aquele era Blay; finalmente, depois de todos aqueles anos...
Blay.
Qhuinn resvalou as presas por um abdômen que era sólido como uma rocha, e o seu cheiro na pele de Blay era uma marcação que sabia que fizera de propósito.
Aquele tempero forte também iria para outros lugares.
Gemeu quando as mãos encontraram o pênis de Blay e, enquanto circundava a coluna rija, o cara se arqueou profundamente, uma imprecação atravessando o quarto, de modo bem semelhante ao que a luz fizera pouco antes.
Qhuinn lambeu os lábios, elevou o sexo de Blay e permitiu que o pênis grosso e ousado partisse sua boca. Sugando, tomou-o até a base, abrindo a garganta, engolindo tudo. Em resposta, os quadris de Blay se elevaram, e mãos brutas cravaram em seus cabelos, forçando a cabeça ainda mais para baixo até que ele não conseguisse mais levar ar aos pulmões. Mas quem é que precisava de oxigênio?
Afundando as mãos nas nádegas de Blay, inclinou aquela pélvis e subiu e desceu, o pescoço se esticando com o ritmo punitivo, os ombros flexionando e relaxando enquanto ele executava exatamente aquilo que oferecera a Blay antes de ele ir embora.
Ele não pretendia fazer apenas aquilo, porém.
Não.
Era apenas o começo.
CAPÍTULO 28
Quando Blay caiu contra os travesseiros de Qhuinn, quase partiu a coluna. Tudo estava fora de controle, mas ele não teria desacelerado em nada as coisas: os quadris subiam e desciam, o pau empurrava e era chupado pela boca de Qhuinn...
Graças a Deus as luzes estavam apagadas.
Só as sensações já eram demais. Com um auxílio visual? Ele não conseguiria...
O orgasmo disparou como um foguete, a respiração ficou suspensa, o corpo enrijeceu todo, o sexo gozando ao máximo. Ao chegar ao clímax em grandes espasmos, ele foi ordenhado por aquela boca... e, caramba, a sucção incitou o alívio a continuar, com grandes ondas de prazer pulsante varrendo-o do cérebro até as bolas, seu corpo atingindo um plano de existência completamente diferente...
Sem aviso, ele foi virado por uma mão brusca, o corpo manejado como se não pesasse absolutamente nada. Em seguida, um braço passou por baixo de sua pélvis e o colocou de joelhos. Houve uma breve calmaria na qual tudo o que ele ouviu foi a respiração pesada atrás dele, o arquejo aumentando cada vez mais, mais fundo...
Ouviu o orgasmo de Qhuinn e entendeu exatamente o motivo.
Mesmo seu corpo inteiro estando fraco de antecipação, ele sabia que tinha de se preparar quando uma mão pesada aterrissou em seu ombro e...
A penetração foi como um ferro de marcar, quente e brutal, atingindo direto o seu cerne. E ele praguejou numa exalação explosiva. Não porque doesse, ainda que do melhor modo possível. Nem mesmo porque aquilo era algo que ele tanto desejara, se bem que isso fosse verdade.
Não. Era porque ele teve a estranha sensação de estar sendo marcado e, por algum motivo, isso fez com que...
Um sibilo atingiu-o no ouvido, e depois um par de presas cravou-se em seu ombro, a pegada de Qhuinn mudando na altura dos quadris, o torso enroscado em tantos lugares. E, então, quando a penetração inexorável começou, os molares de Blay se cerraram, os braços tiveram que suportar o peso dos dois, as pernas e o torso se esforçaram debaixo do ataque.
Ele teve a sensação de que a cabeceira da cama batia contra a parede e por um centésimo de segundo, lembrou-se do candelabro na biblioteca oscilando enquanto Layla fora sujeitada àquilo.
Blay amaldiçoou a imagem. Não se permitiria ir lá; não poderia. Deus bem sabia que haveria muito tempo para refletir sobre tudo aquilo mais tarde.
Naquele instante? Aquilo era bom demais para ser desperdiçado...
Enquanto o açoite continuava, suas palmas escorregaram nos lençóis de algodão fino, e ele teve que reposicioná-las, afundando-as no colchão macio para tentar sustentar sua posição. Deus, os sons que Qhuinn fazia, os rosnados que reverberavam entre as presas enterradas em seu ombro, as estocadas... ah, sim, isso era a cabeceira. Definitivamente.
Com a pressão se avolumando em suas bolas, ele se sentiu tentado a se espalmar, mas não havia como. Ele precisava das duas mãos naquele trabalho...
Como se Qhuinn lesse sua mente, o macho passou o braço ao seu redor e o agarrou.
Não era necessário masturbá-lo. Blay gozou tão violentamente que sua mente ficou difusa e, naquele exato instante, Qhuinn começou a ter um orgasmo também, os quadris movendo-se para dentro, parando um segundo antes de recuarem só para afundarem ainda mais antes da explosão. E, ah, porra, a combinação dos dois fazendo suas coisas era tão erótica que só fez com que tudo recomeçasse mais uma vez: não houve intervalo para se recuperarem, absolutamente nenhuma pausa. Qhuinn apenas retomou as investidas como se seu alívio o tivesse fortalecido.
Enquanto o sexo se estendia, e apesar de toda a força que Blay tinha em seus membros superiores, ele acabou caindo da cama, uma mão travando na lateral da mesinha de cabeceira só para que ele não batesse na parede...
Crash!
– Merda – disse ele rouco. – O abajur...
Ao que tudo levava a crer, Qhuinn não estava interessado em decoração. O macho simplesmente puxou a cabeça de Blay e começou a beijá-lo, a língua com piercing penetrando sua boca, lambendo e sugando... como se não conseguisse se fartar.
Tontura. Ele ficou absolutamente tonto com tudo aquilo. Em cada fantasia que teve, ele sempre visualizou Qhuinn como um amante impetuoso, mas aquilo... aquilo estava num outro nível.
Por isso, foi ao longe que ele se ouviu dizer numa voz gutural:
– Morda... de novo.
Um grunhido imenso vindo de cima perpassou seu ouvido, e depois outro sibilo atravessou a escuridão quando Qhuinn mudou as posições, seu peso massivo girando para que as presas pudessem afundar na lateral do pescoço.
Blay praguejou e empurrou para longe o que quer que tivesse restado sobre a mesinha de cabeceira, o peito tomando o lugar dos objetos, a pele suada chiando no verniz enquanto ele jazia meio de lado. Esticando a mão, ele se apoiou na tábua do piso e empurrou para cima, mantendo os dois estáveis enquanto Qhuinn se alimentava e o penetrava tão magnificamente bem...
Vezes demais para contar, até os travesseiros estarem no chão, os lençóis rasgados, outro abajur destruído... e não estava muita certo, mas ele achava que tinha derrubado um quadro da parede.
Quando a imobilidade por fim substituiu todo aquele esforço, Blay respirou fundo e se sentiu como se estivesse submerso.
O mesmo se passava com Qhuinn.
O aumento da trajetória úmida no pescoço de Blay sugeria que as coisas ficaram tão descontroladas que não houve o fechamento da veia que fora sugada. E quem se importava? Ele não, nem conseguia pensar, e não se preocuparia. As sensações pós-coito de flutuação e êxtase eram gloriosas demais para serem estragadas, o corpo estava ao mesmo tempo hipersensível e entorpecido, quente e brando, dolorido e saciado.
Caramba, os lençóis teriam de ser lavados. E Fritz indubitavelmente teria de encontrar uma supercola para aqueles abajures.
Onde exatamente ele estava?
Esticando a mão, tateou e descobriu o tapete e a saia da cama... além de uma manta. Ah, bom, estava quase caindo pela ponta da cama. O que explicava a tontura que sentia.
Quando Qhuinn, por fim, soltou-se dele, Blay quis acompanhá-lo, mas seu corpo estava muito mais interessado em ser um objeto inanimado. Ou um rolo de tecido ou, quem sabe...
Mãos gentis o suspenderam e, com cuidado e devagar, rolaram-no de costas. Houve mais um pouco de movimentação e depois ele se sentiu reposicionado contra os travesseiros que retornaram ao seu devido lugar. Enfim, uma manta leve foi ajustada na metade do seu corpo, como se Qhuinn soubesse que ele estava muito quente para ser coberto demais e, ainda assim, começava a sentir um friozinho enquanto o suor que o cobria começava a secar.
Seu cabelo foi empurrado para longe da testa e, em seguida, sua cabeça foi ajeitada para o lado. Lábios de seda beijaram a coluna de seu pescoço e, depois, lambidas longas e langorosas selaram a mordida que ele pedira e recebera.
Quando tudo terminou, deixou que sua cabeça fosse ajeitada para o lado de Qhuinn. Ainda que estivesse absolutamente escuro, ele sabia exatamente como o rosto que o fitava estava: ruborizado nas maçãs do rosto, as pálpebras semicerradas, os lábios vermelhos...
O beijo pressionado em sua boca foi reverente, o contato não mais pesado do que o ar quente e estático do quarto. Era o beijo perfeito de um amante, o tipo de coisa que ele desejava mais do que o sexo ardente que partilharam...
O pânico golpeou o centro do seu peito e ressoou para fora num piscar de olhos.
As mãos agiram por vontade própria, empurrando Qhuinn.
– Não me toque. Nunca mais me toque assim.
Deu um salto da cama e só Deus sabia em que parte do quarto ele aterrissou. Hesitante, tateou pelo aposento, mas acabou se orientando pela luz que passava por baixo da porta.
Apanhando o roupão no chão, não olhou para trás ao sair.
Não suportaria encarar o resultado daquilo tudo em nenhum tipo de luz.
Isso só tornaria tudo aquilo muito real.
Em algum momento, Qhuinn teve que fazer com que as luzes se acendessem. Não suportava mais a escuridão.
Quando a iluminação inundou o lugar, ele piscou e teve que amparar os olhos com a mão. Depois de recalibrar as retinas, olhou ao redor.
Caos. Total e absoluto.
Então tudo aquilo acontecera mesmo, hein. E quanta ironia que o interior da sua cabeça fizesse com que aquela bagunça parecesse uma ordem militar em comparação.
Nunca mais me toque assim.
Ah, inferno, pensou ele ao esfregar o rosto. Não poderia culpar o cara.
Primeiro, demonstrara a mesma finesse de uma escavadeira. Bola de demolição. Tanque de guerra. O problema era que tudo aquilo fora intenso demais para demonstrar qualquer traço de paciência: o instinto, tão puro e tão inflamável quanto combustível, o acendera; a sessão fora um caso de deixar as coisas rolarem.
Oh, Deus, marcara o cara.
Caralho. E não exatamente no bom sentido, considerando que Blay estava apaixonado e envolvido num relacionamento... e voltando para a cama do amante.
Mas, pensando bem, quando um macho está com quem ele quer, especialmente se é a primeira vez, era isso mesmo o que acontecia. As coisas saíam do controle...
Nem era preciso dizer que aquele fora o melhor sexo de sua vida, a primeira vez de perfeito encaixe depois de uma longa história de “nem de longe”. A questão foi que, no fim, ele quis que Blay soubesse disso, tentou encontrar as palavras e se apoiou no toque para pavimentar o caminho da confissão.
Contudo, ficou evidente que o macho não queria ter essa proximidade.
O que provocou um segundo, e mais profundo, arrependimento.
Sexo por desforra não se tratava de atração, mas sim de utilidade. E Blay o usara, do modo como ele pedira para ser usado.
Aquela sensação de vazio voltou multiplicada por dez. Por cem.
Sem conseguir suportar a emoção, pôs-se de pé, e teve que praguejar: a rigidez notável na lombar tinha tudo a ver com o acidente de avião e mais ainda com a pneumática que realizara na última hora... ou mais...
Merda.
Indo para o banheiro, deixou as luzes apagadas, mas havia iluminação suficiente vinda do quarto para ele conseguir entrar no chuveiro. Dessa vez, esperou a água esquentar; seu corpo não suportaria mais um choque.
Era tão patético; a última coisa que desejava era lavar o cheiro de Blay de sua pele, mas estava enlouquecendo com ele. Deus, devia ser assim que todos os hellrens se sentiam quando ficavam possessivos: metade do seu juízo dizia que ele devia descer o corredor, invadir o quarto de Blay e expulsar Saxton. A bem da verdade, teria adorado que o primo tivesse testemunhado, só para o cara saber que...
Para interromper aquele nada saudável curso de pensamentos, entrou no box envidraçado e pegou o sabonete.
Blay estava envolvido, tentou se lembrar disso, mais uma vez.
O sexo que partilharam não se referia à conexão emocional.
Portanto, ele estava, nesse momento de vazio, sendo passado para trás pela sua própria história.
Aquele parecia ser mais um caso em que o destino lhe dava aquilo que ele merecia.
Enquanto se lavava, o sabonete não era nada macio se comparado com a pele de Blay, nem cheirava um quarto do perfume do cara. A água não era tão quente quanto o sangue do lutador e o xampu, nada tranquilizador. Nada se equiparava.
Nem jamais conseguiria.
Enquanto Qhuinn virava o rosto para o jato e abria a boca, descobriu-se rezando para que Saxton pulasse a cerca mais uma vez, mesmo isso sendo uma coisa deplorável de se desejar.
O problema era que ele tinha a terrível sensação de que outro caso de infidelidade seria a única maneira de Blay voltar para ele.
Fechando os olhos, voltou para aquele momento em que beijou Blay no fim... em que o beijou de verdade, quando as bocas se encontraram gentilmente na calmaria após a tempestade. Enquanto sua mente reescrevia o roteiro, ele não era empurrado para o outro lado dos limites que ele mesmo criara. Não, em sua imaginação, as coisas terminavam como teriam de terminar, com ele afagando o rosto de Blay e fazendo as luzes se acenderem para que pudessem se olhar.
Em sua fantasia, ele beijaria seu amigo uma vez mais, se afastaria e...
– Eu te amo – disse ele para o jato de água. – Eu... te amo.
Ao fechar os olhos novamente ante a dor, ficou difícil saber quanto daquilo que descia pelo seu rosto era água e quanto era outra coisa.
CAPÍTULO 29
No dia seguinte, bem no fim da tarde, o visitante de Assail voltou.
Enquanto o sol se punha e os raios rosados de sol atravessavam a floresta, ele viu em seu monitor uma figura solitária em esquis de cross-country, os bastões equilibrados contra os quadris, binóculos cobrindo o rosto.
Nos quadris dela, o rosto dela, melhor dizendo.
A boa notícia era que suas câmeras de segurança não só tinham um zoom fantástico, como também seu foco e campo de visão eram facilmente manipulados por um joystick de computador.
Por isso ele restringiu ainda mais a imagem.
Quando a mulher abaixou os binóculos, ele mediu o comprimento de cada cílio ao redor dos olhos escuros e calculistas, e as marcas avermelhadas das maçãs do rosto de poros pequenos, e o ritmo uniforme da pulsação da artéria que percorria a mandíbula.
O aviso que ele dera a Benloise fora recebido. E, ainda assim, lá estava ela.
Era evidente que ela estava, de algum modo, ligada ao atacadista de drogas; e na noite anterior, pelo visto, ela ficara irritada com Benloise, visto o modo como marchara para fora da galeria como se alguém a tivesse insultado.
Todavia, Assail nunca a vira antes, o que era estranho. No último ano, aproximadamente, ele se familiarizara com todos os aspectos da operação de Benloise, desde o número incalculável de seguranças, até a equipe irrelevante da galeria, incluindo os importadores astutos e o irmão do homem, responsável pelas finanças.
Portanto, ele só podia deduzir que ela era uma empreiteira independente, contratada para um propósito específico.
Mas por que, então, ela ainda estava em sua propriedade?
Verificou os números digitais na parte inferior da tela. Quatro e meia. Costumeiramente, não seria uma hora com que se alegrar, pois ainda era cedo demais para sair. Mas o horário de verão acabara, e aquela invenção humana de manipular o sol na verdade trabalhava a seu favor por seis meses no ano.
Estaria um pouco quente lá fora, mas ele lidaria com isso.
Assail se vestiu rapidamente, colocando o terno Gucci com uma camisa de seda branca e pegando o sobretudo trespassado de pelo de camelo. O seu par de Smith & Wesson calibre .40 era o acessório perfeito, claro.
O metálico seria sempre o novo preto.
Pegando o iPhone, franziu ao tocar a tela. Uma chamada de Rehvenge, com uma mensagem.
Saindo do quarto, acessou a mensagem de voz do lídher do Conselho e ouviu-a enquanto descia as escadas.
A voz do macho ia direto ao ponto, e isso era algo a se respeitar:
– Assail, você sabe quem é. Estou convocando uma reunião do Conselho e quero não apenas um quorum, mas presença completa; o Rei estará presente, bem como a Irmandade. Como macho sobrevivente mais velho da sua linhagem, você está na lista do Conselho, mas registrado como inativo porque permaneceu no Antigo País. Agora que está de volta, está na hora de começar a participar desses encontros festivos. Ligue para mim para me informar a sua agenda, para que eu possa organizar local e data conveniente a todos.
Parando ante a porta de aço que bloqueava a escada inferior, colocou o telefone no bolso de dentro, destravou a porta e a abriu.
O primeiro andar estava escuro por conta das persianas especiais que bloqueavam toda a luz solar, e a sala de estar imensa mais se parecia com uma caverna no centro da terra do que com uma gaiola envidraçada às margens do rio.
Da direção da cozinha vinha o barulho de fritura e o cheiro de bacon.
Caminhando na direção oposta, entrou no falso escritório recoberto com painéis de nogueira que cedera ao uso dos primos e passou para o quarto especial de dois metros quadrados, cuja temperatura era mantida em precisos vinte graus Celsius e umidade a exatamente 69%, perfumado pelo tabaco de dúzias e dúzias de caixas de charutos. Depois de ponderar sobre a fileira exposta, apanhou três cubanos.
Afinal, os cubanos eram os melhores.
E ali estava mais uma coisa que Benloise lhe fornecia por um preço.
Trancando a sua preciosa coleção, voltou à sala de estar. Já não havia barulho de fritura, o bater sutil de talheres nos pratos o substituíra.
Ao entrar na cozinha, os dois primos estavam sentados em bancos ante a bancada de granito, o par comendo no mesmo ritmo preciso, como num rufar de tambores, despercebido por outros, mas que regulava seus movimentos.
Os dois levantaram as cabeças no mesmo ângulo para olhar para ele.
– Estou de saída. Sabem como me localizar – disse.
Ehric limpou a boca.
– Localizei três daqueles intermediários desaparecidos... voltaram à ação, estão prontos para se mexer. Vou fazer a entrega à meia-noite.
– Bom, muito bom – Assail verificou rapidamente as armas. – Tente descobrir onde estavam, sim?
– Como quiser.
Os dois abaixaram as cabeças ao mesmo tempo, voltando ao desjejum.
Nada de comida para ele. Do lado da cafeteira, ele pegou um frasco de cor de âmbar e desatarraxou a tampa, que tinha uma colherinha de prata grudada a ela, e o objeto emitiu um tinido enquanto ele o enchia com cocaína. Uma aspirada.
Bom dia!
Ele levou o resto consigo, colocando-o no mesmo bolso dos charutos. Já fazia um tempo desde que se alimentara e estava começando a sentir os efeitos, o corpo preguiçoso, a mente tendendo a um entorpecimento desconhecido.
O lado negativo do Novo Mundo? Era difícil encontrar fêmeas.
Felizmente, cocaína pura era um bom substituto, pelo menos por enquanto.
Ajustando um par de óculos de sol de lentes opacas, passou pelo vestíbulo e se preparou para sair pela porta dos fundos.
Afastando a porta...
Assail se retraiu e gemeu ante o ataque, seu peso oscilando em seus sapatos: apesar de 99% do seu corpo estar coberto por camadas múltiplas de roupa, e mesmo de óculos escuros, a luz efêmera do céu era o bastante para que ele vacilasse.
No entanto, não havia tempo para ceder à biologia.
Esforçando-se para se desmaterializar até a floresta atrás da casa, pôs-se a rastrear a mulher próximo à escuridão. Foi bem fácil localizá-la. Ela estava batendo em retirada, movendo-se rapidamente sobre aqueles esquis, abrindo caminho por entre os ramos espinhosos dos pinheiros e os carvalhos e bordos esqueléticos. Extrapolando a trajetória dela e aplicando a mesma lógica interna que ela demonstrara nas fitas de segurança da manhã anterior, ele logo se adiantou, antecipando bem onde ela estaria...
Ah, sim. O Audi preto da galeria. Estacionado ao lado da estrada limpa de neve a cerca de três quilômetros de sua propriedade.
Assail estava recostado contra a porta do motorista e bafejando um cubano quando ela saiu do limite das árvores.
Ela parou de pronto nos rastros duplos por ela criados, os bastões em ângulos abertos.
Ele lhe sorriu ao soprar uma nuvem de fumaça no crepúsculo.
– Belo entardecer para se exercitar. Apreciando a vista... Da minha casa?
A respiração dela estava acelerada devido ao esforço físico, mas não por algum medo que ele pudesse pressentir. Isso o excitava.
– Não sei do que está fal...
Ele interrompeu a mentira.
– Bem, o que posso lhe dizer é que, no momento, sou eu quem está apreciando a vista.
Enquanto seu olhar descia deliberadamente pelas pernas longas e atléticas nas calças justas de esqui, ela o encarou.
– Acho difícil que consiga ver qualquer coisa por trás dessas lentes.
– Meus olhos são muito sensíveis à luz.
Ela franziu o cenho e olhou ao redor.
– Quase não há mais nenhuma luz.
– Há o bastante para eu enxergá-la – ele deu nova baforada. – Gostaria de saber o que eu disse a Benloise ontem à noite?
– Quem?
Ela o aborreceu e ele afiou a voz:
– Um pequeno conselho. Não brinque comigo... isso fará com que morra mais rápido do que qualquer tipo de invasão de domicílio.
Um cálculo impassível fez com que ela estreitasse o olhar.
– Eu não sabia que invasão de propriedade dava pena de morte.
– Comigo, existe uma bela lista de coisas com repercussões letais.
Ele levantou o queixo.
– Ora, ora. Como você é perigoso.
Como se ele fosse um gatinho brincando com um novelo e sibilando.
Assail moveu-se com rapidez, ele bem sabia que os olhos dela seriam incapazes de acompanhá-lo. Num momento, estava a metros de distância; no instante seguinte, estava nas pontas dos seus esquis, prendendo-a no lugar.
A mulher gritou alarmada e tentou recuar, mas, claro, seus pés estavam presos. Para evitar que ela caísse, ele a apanhou pelo braço com a mão que não segurava o charuto.
Agora o sangue dela corria de medo e, quando ele inalou seu cheiro, excitou-se. Puxando-a para a frente, fitou-a, tracejando-lhe o rosto.
– Tome cuidado – disse ele numa voz mansa. – Eu me ofendo com rapidez e meu temperamento não é facilmente aplacado.
Embora ele conseguisse pensar pelo menos numa coisa que ela poderia lhe dar que o acalmaria.
Inclinando-se, ele inspirou profundamente. Deus, adorava o cheiro dela.
Mas aquela não era a hora de se distrair com esse tipo de coisa.
– Eu disse a Benloise que enviasse pessoas à minha casa por sua conta e risco... delas. Estou surpreso que ele não a tenha alertado sobre esses, como podemos dizer, limites bem delimitados de propriedade...
Pelo canto do olho, ele percebeu um movimento sutil no ombro dela. Ela pretendia pegar a arma com a mão direita.
Assail colocou o charuto entre os dentes e segurou o punho delicado. Aplicando pressão e só parando quando a dor se fez perceber na respiração dela, ele a arqueou para trás para que ela notasse completa e inequivocadamente o poder que ele tinha sobre si mesmo e sobre ela. Sobre tudo.
E foi nesse momento que a mulher se excitou.
Fazia muito tempo, talvez tempo demais, desde que Sola desejou um homem.
Não que ela não os considerasse desejáveis via de regra, ou que não tivessem existido ofertas para encontros horizontais com membros do sexo oposto. Nada lhe parecera valer o esforço. E talvez, depois daquele único relacionamento que não dera certo, ela tivesse regressado aos hábitos de sua rígida criação brasileira – o que era irônico, considerando-se o que fazia para sobreviver.
Aquele homem, porém, chamara sua atenção. Verdadeiramente.
O modo como a segurava pelo braço e pelo pulso não era nada educado e, mais do que isso, não havia clemência pelo fato de ela ser mulher; as mãos a apertavam com tanta força a ponto de a dor se encaminhar para o coração, fazendo-o bater forte. Do mesmo modo, o ângulo em que a forçava para trás testava os limites da capacidade de sua coluna se dobrar, e as coxas ardiam.
Excitar-se assim... era uma negligência ignorante para a sua autopreservação. Na verdade, ao fitar aquelas lentes escuras, ela estava bem ciente de que ele poderia matá-la ali mesmo. Torcendo o seu pescoço. Quebrando seus braços só para vê-la gritar antes de sufocá-la na neve. Ou talvez apenas desacordando-a antes de jogá-la no rio.
O sotaque carregado de sua avó subitamente veio-lhe à mente: Por que não pode conhecer um bom rapaz? Um rapaz católico de uma família que conhecemos? Marisol, assim você parte o meu coração.
– Só posso deduzir – a voz sombria sussurrou com um sotaque e uma inflexão que lhes eram desconhecidos – que a mensagem não lhe foi transmitida. Correto? Benloise deixou de lhe passar essa informação... e é por isso que, depois de eu ter expressamente indicado minhas intenções, você ainda assim voltou a espionar a minha casa? Creio que foi isso o que aconteceu, talvez uma mensagem de voz que ainda não tenha sido recebida. Ou uma mensagem de texto, um e-mail. Sim, acredito que o comunicado de Benloise tenha se perdido, não é mesmo?
A pressão nela intensificou-se ainda mais, sugerindo que ele tinha força de sobra, o que era, no mínimo, uma perspectiva assombrosa.
– Não é isso? – rugiu ele.
– Sim – disse ela. – É isso.
– Portanto, posso deduzir que não a encontrarei em seus esquis por aqui. Correto?
Ele a sacudiu novamente, a dor fazendo com que seus olhos revirassem.
– Sim – ela disse num engasgo.
O homem relaxou apenas o suficiente para que ela pudesse respirar um pouco. Depois continuou falando, naquela voz estranhamente sedutora:
– Bem, preciso de uma coisa antes que você vá. Você me dirá o que descobriu sobre mim... Tudo o que descobriu.
Sola franziu o cenho, pensando que aquilo era tolice. Sem dúvida um homem como aquele estaria ciente de qualquer informação que uma terceira pessoa poderia saber a seu respeito.
Então aquilo era um teste.
Visto que ela queria muito rever a avó, Sola disse:
– Não sei seu nome, mas posso imaginar o que faz, e também o que fez.
– E o que seria?
– Acredito que seja a pessoa que esteja matando aqueles interceptadores na cidade para assegurar território e controle.
– Os jornais e os noticiários disseram que se tratavam de suicídios.
Ela apenas prosseguiu, uma vez que não havia motivo para argumentar:
– Sei que mora sozinho, até onde posso saber, e que sua casa possui um tratamento estranho nas janelas. Um tipo de camuflagem para parecer o interior da casa, mas... é outro tipo de coisa. Só não sei o quê.
O rosto acima do dela permaneceu completamente impassível. Calmo. Tranquilo. Como se não a estivesse forçando a ficar no lugar... Ou a ameaçando. O controle era... erótico.
– E? – insistiu ele.
– É só isso.
Ele inalou o charuto nos lábios, a ponta em círculo alaranjado brilhando mais.
– Só vou libertá-la uma vez. Entende?
– Sim.
Ele se moveu com tanta rapidez que ela teve que balançar os braços para readquirir o equilíbrio, os bastões se afundando na neve. Espere, o que ele...
O homem apareceu bem atrás dela, os pés plantados nas laterais dos rastros dos esquis, uma barricada física para o caminho que ela fizera a partir da casa dele. Enquanto o bíceps e o pulso direitos dela ardiam por conta do sangue que voltava a circular nas partes que foram comprimidas, um aviso surgiu na base de sua nuca.
Cai fora daqui, Sola disse a si mesma. Agora.
Sem querer arriscar uma nova captura, ela se moveu para frente até a estrada, a parte inferior dos esquis lutando para conseguir avançar na neve gelada e compactada.
Enquanto ela avançava, ele a seguia, caminhando lentamente, inexoravelmente, como um grande felino que estava cercando a presa com a qual estava contente em apenas brincar, por enquanto.
As mãos dela tremiam quando usou as pontas dos esquis para soltar as amarras, e ela teve dificuldade para prender os esquis no rack do carro. O tempo inteiro, ele permaneceu parado no meio da estrada observando-a, a fumaça do charuto subindo pelo ombro em brisas frias que seguiam para o rio.
Entrando no carro, ela travou as portas, deu partida e olhou pelo espelho retrovisor. No brilho da luz do freio, ele parecia inequivocadamente maligno, um homem alto, de cabelos escuros, com o rosto lindo como o de um príncipe, e tão cruel quanto uma lâmina.
Pisando no acelerador, ela saiu do acostamento e se afastou rápido, o sistema de tração das quatro rodas sendo acionado para a tração de que ela precisava.
Ela olhou de relance mais uma vez pelo retrovisor. Ele ainda estava lá...
O pé de Sola mudou para o freio e quase o pressionou.
Ele sumira.
Como se tivesse se dissipado no ar. Num momento estava lá... no seguinte, invisível.
Sacudindo-se, voltou a pressionar o acelerador e fez o sinal da cruz sobre o coração acelerado.
Num pânico absurdo, perguntou-se: mas que diabos era ele?
CAPÍTULO 30
Bem quando as persianas eram suspensas com a chegada da noite, Layla ouviu uma batida à porta e, mesmo antes de o cheiro passar pelas frestas, ela sabia quem tinha vindo vê-la.
Inconscientemente, a mão subiu para o cabelo, e descobriu que estava uma bagunça, todo emaranhado por ter virado e revirado o dia inteiro. Pior, nem se importara em tirar a roupa com que saíra para ir à clínica.
Entretanto, não lhe poderia negar a entrada.
– Entre – disse, sentando-se um pouco mais erguida e ajeitando as cobertas que puxara até o queixo.
Qhuinn estava com suas roupas de combate, o que a levou a deduzir que ele estava escalado para o turno daquela noite – mas talvez não. Ela não conhecia o escalonamento.
Quando seus olhares se cruzaram, ela franziu o cenho.
– Você não está bem.
Ele levou a mão para o curativo na sobrancelha.
– Isto? É apenas um arranhão.
Só que não fora o machucado que chamara sua atenção. Era o olhar vago, as concavidades rígidas nas faces.
Ele parou. Farejou. Empalideceu.
Imediatamente, ela baixou o olhar para as mãos, e mais uma vez as torceu.
– Por favor, feche a porta – pediu.
– O que está acontecendo?
Quando a porta se fechou conforme o seu pedido, ela respirou fundo.
– Fui à clínica de Havers ontem à noite.
– O quê?
– Estou sangrando...
– Sangrando? – ele se apressou para a frente, quase derrapando a caminho da cama. – Por que diabos não me contou?
Santa Virgem Escriba, seria impossível para ela não se acovardar ante tamanha fúria. Na verdade, ela estava sem forças no momento e impossibilitada de reunir qualquer tipo de autopreservação.
Instantaneamente, Qhuinn recuou em sua raiva, afastando-se e circulando pelo quarto. Quando a fitou novamente, disse bruscamente:
– Sinto muito. Não tive a intenção de gritar... Eu só... eu só estou preocupado com você.
– Eu sinto muito. E eu deveria ter lhe contado, mas você estava fora em combate e eu não quis aborrecê-lo. Eu não sei... francamente, eu não devia estar pensando com clareza. Estava fora de mim.
Qhuinn se sentou ao lado dela, os ombros imensos se curvando enquanto ele cruzava os dedos e apoiava os cotovelos nos joelhos.
– Então, o que está acontecendo?
Tudo o que ela conseguiu fazer foi dar de ombros.
– Bem, como você pode perceber... estou sangrando.
– Quanto?
Ela pensou no que a enfermeira lhe havia dito.
– O suficiente.
– Há quanto tempo?
– Tudo começou há mais ou menos 24 horas. Não quis procurar a doutora Jane porque não tinha certeza de quão confidencial isso seria e também... ela não tem muita experiência com gestações da nossa espécie.
– O que Havers disse?
Foi a vez de ela franzir a testa.
– Ele não quis me dizer.
– Como é que é? – a cabeça de Qhuinn se ergueu.
– Por causa do meu status como Escolhida, ele só falará com o Primale.
– Está de brincadeira?
Ela balançou a cabeça.
– Não. Também não consegui acreditar nisso e sinto dizer que saí de lá em circunstâncias menos que favoráveis. Ele me reduziu a um objeto, como se eu não tivesse a mínima importância... não passasse de um repositório...
– Você sabe que isso não é verdade – Qhuinn segurou sua mão com os olhos descombinados ardendo. – Não para mim. Nunca para mim.
Ela estendeu a mão e o tocou no ombro.
– Eu sei, mas obrigada por dizer isso – ela estremeceu. – Preciso ouvir isso agora. E quanto ao que está acontecendo... comigo... a enfermeira disse que não há nada que ninguém possa fazer para impedir isto.
Qhuinn baixou o olhar para o tapete e ficou assim por um bom tempo.
– Não entendo. Não era para ser assim.
Engolindo a horrível sensação de fracasso, ela se endireitou e afagou as costas dele.
– Sei que você desejava isto tanto quanto eu.
– Você não pode estar abortando. Não é possível.
– Pelo que fiquei sabendo, os dados estatísticos não são tão bons. Não no começo... e não no fim.
– Não, não pode estar certo. Eu... a vi.
Layla limpou a garganta.
– Sonhos nem sempre se tornam realidade, Qhuinn.
Parecia algo muito simplista de se dizer. Igualmente óbvio. Mas magoava em seu cerne.
– Não foi um sonho – disse ele de modo rude. Mas, então, sacudiu-se e voltou a olhar para ela. – Como está se sentindo? Sente dor?
Quando ela não respondeu de imediato, porque não queria mentir para ele a respeito das cólicas, ele se pôs de pé.
– Vou procurar a doutora Jane.
Ela o segurou pela mão, detendo-o.
– Espere. Pense bem. Se estou perdendo... nosso filho... – ela parou para juntar coragem depois de ter verbalizado aquilo. – Não há razão por que contar para alguém. Ninguém precisa ficar sabendo. Podemos simplesmente deixar a natureza... – a voz dela falhou nesse momento, mas ela se forçou a continuar – ... seguir seu curso.
– Ao inferno com isso. Não vou colocar sua vida em risco só para evitar um confronto.
– Isso não interromperá o aborto, Qhuinn.
– Não estou preocupado somente com o aborto – ele apertou-lhe a mão. – Você é importante. Por isso vou procurar a doutora Jane agora mesmo.
Isso mesmo, ao inferno deixar as coisas por debaixo dos panos, Qhuinn pensou ao seguir para a porta.
Ouvira falar de histórias sobre fêmeas com hemorragias durante os abortos, e ainda que não fosse mencionar nada disso com Layla, teria de agir a respeito.
– Qhuinn. Pare – Layla o chamou. – Pense no que está fazendo.
– Eu estou. Claramente – ele não esperou para debater mais aquilo. – Fique onde está.
– Qhuinn...
Ele ainda conseguiu ouvir a voz dela quando fechou a porta e começou a correr, terminando o corredor e descendo as escadas. Com um pouco de sorte, a doutora Jane ainda estaria se demorando na Última Refeição com seu hellren; o casal estava à mesa quando ele se levantara para ir ver Layla.
Ao chegar ao átrio, seus tênis Nike guincharam no piso de mosaico quando ele tomou a direção da arcada na entrada da sala de jantar.
Vendo a médica bem onde estivera antes foi um golpe de sorte, e seu primeiro instinto foi chamá-la com um grito. Só não o fez ao perceber a quantidade de Irmãos à mesa, comendo a sobremesa.
Merda. Era fácil para ele dizer que lidaria com as consequências se o que fizeram se tornasse público. Mas, e quanto a Layla? Como uma Escolhida sagrada, ela tinha muito mais a perder do que ele. Phury era uma cara bem legal, por isso a chance de ele lidar bem com aquilo era bem grande. E o resto da sociedade?
Ele já passara pela experiência de ser rejeitado, e não queria o mesmo para ela.
Qhuinn se apressou para onde V. e Jane estavam descontraídos, o Irmão fumando um cigarro feito à mão, a médica espectral sorrindo para o seu parceiro enquanto ele lhe contava uma piada.
No instante em que a boa médica olhou para ele, aprumou-se em seu assento.
Qhuinn se abaixou e sussurrou ao seu ouvido.
Nem meio segundo depois, ela estava de pé.
– Preciso ir, Vishous.
Os olhos de diamante do irmão se elevaram. Aparentemente, apenas um vislumbre do rosto de Qhuinn foi preciso: ele não fez perguntas, apenas assentiu uma vez.
Qhuinn e a médica se apressaram juntos para fora.
Para o infinito crédito da doutora Jane, ela não perdeu tempo querendo saber como aquela gravidez tinha acontecido.
– Há quanto tempo ela está sangrando?
– 24 horas.
– Com que intensidade?
– Não sei.
– Algum outro sintoma? Febre? Enjoo? Dor de cabeça?
– Não sei.
Ela o deteve quando chegaram à grande escadaria.
– Vá até o Buraco. A minha maleta está na bancada ao lado do cesto de maçãs.
– Entendido.
Qhuinn nunca correu tão rápido em toda sua vida. Para fora do vestíbulo. Atravessando o pátio coberto de neve. Digitando o código de acesso para o Buraco. Correndo pelo espaço de V. e de Butch.
Costumeiramente, ele jamais teria entrado sem bater. Inferno, sem um horário marcado previamente. Mas naquela noite, que se foda...
Ah, que bom, a maleta preta estava, de fato, ao lado das Fujis.
Apanhando-a, correu para fora, voando ao lado dos carros estacionados e batendo os pés enquanto aguardava que Fritz atendesse à porta.
Ele quase atropelou o doggen.
Ao chegar ao segundo andar, passou acelerado diante do escritório de Wrath e invadiu o quarto que Layla vinha usando. Fechando a porta, arfou até chegar à cama, onde a médica estava sentada bem onde ele esteve antes.
Deus, Layla estava pálida como um lençol. Pensando bem, medo e hemorragia faziam isso com uma fêmea.
A doutora Jane estava no meio de uma frase quando pegou a maleta das mãos dele.
– Acho que devemos começar verificando os seus sinais vitais...
Bum!
Quando o som ensurdecedor atravessou o quarto, o primeiro pensamento de Qhuinn foi se jogar sobre as duas fêmeas para formar um escudo.
Mas não era uma bomba. Era Phury escancarando a porta.
Os olhos amarelos do Irmão reluziam, e não de modo positivo, quando eles passavam de Layla, para a médica e depois para Qhuinn... e refazendo o caminho ao contrário.
– Que diabos está acontecendo aqui? – ele exigiu saber, com as narinas inflando quando captou o mesmo cheiro que Qhuinn havia percebido antes. – Vejo a médica subindo as escadas num rompante. Depois é a vez de Qhuinn com a maleta. E agora... é melhor alguém começar a falar. Neste exato minuto!
Mas ele sabia. Porque estava olhando para Qhuinn.
Qhuinn encarou o Irmão.
– Eu a engravidei...
Ele não teve oportunidade de terminar a frase. Na verdade, mal conseguiu terminar a última palavra.
O Irmão o agarrou e o lançou contra a parede. Enquanto suas costas absorviam o impacto, a mandíbula dele explodiu de dor, o que sugeria que o cara também o socara com exatidão. Então, mãos ásperas o mantiveram fixos com os pés pendurados a quinze centímetros do tapete oriental, bem na hora em que pessoas começavam a se aglomerar na porta.
Ótimo. Uma plateia.
Phury aproximou o rosto do de Qhuinn e expôs as presas.
– O que você fez com ela?
Qhuinn deu uma golada de sangue.
– Ela estava no cio. Eu a servi.
– Você não a merece...
– Eu sei.
Phury o empurrou com força mais uma vez.
– Ela é melhor do que...
– Concordo...
Bang!
De novo contra a parede.
– Então que porra que você foi fazer...
O rugido que permeou o quarto foi alto o bastante para estremecer o espelho ao lado da cabeça de Qhuinn, assim como o conjunto de escovas de prata na penteadeira e os cristais nas arandelas ao lado da porta. A princípio, ele pensou que tivesse sido Phury, a não ser, porém, pelo fato de as sobrancelhas do Irmão se abaixarem e o macho olhar por sobre o ombro.
Layla saíra da cama e se aproximava dos dois. Raios! A expressão no olhar dela bastaria para derreter a pintura da porta de um carro: apesar de ela não estar se sentindo bem, as presas estavam expostas, os dedos crispados em forma de garra... e a brisa gélida que a precedeu fez com que a nuca de Qhuinn se eriçasse em alerta.
Aquele rugido nem deveria ter saído de um macho... quanto menos de uma fêmea delicada com status de Escolhida.
De fato, o pior era o tom horrível de sua voz:
– Solte-o. Agora.
Ela encarava Phury como se estivesse plenamente preparada para arrancar os braços do Irmão de suas juntas e socá-lo até não poder mais caso ele não a obedecesse. Imediatamente.
E, veja só, de repente, Qhuinn conseguiu respirar direito, e agora seus Nikes tocavam novamente o chão. Num passe de mágica.
Phury levantou as palmas das mãos.
– Layla, eu...
– Não toque nele. Não por causa disso... Estou sendo bem clara? – o peso dela estava equilibrado quase nos dedos dos pés, como se ela fosse avançar na garganta do cara a qualquer segundo. – Ele era o pai do meu filho, e receberá todos os direitos e privilégios dessa posição.
– Layla...
– Estamos entendidos?
Phury fez que sim com sua cabeça multicolorida.
– Sim. Mas...
No Antigo Idioma, ela sibilou:
– Caso algum mal recaia sobre ele, eu irei atrás de ti, e o encontrarei em teu sono. Não me importo onde e com quem repouses tua cabeça, minha vingança se derramará sobre ti até tu te afogares.
Aquela última palavra foi arrastada até sua última sílaba se perder num rugido.
Silêncio absoluto.
Até a doutora Jane comentar secamente:
– E é por isso que dizem que as fêmeas da espécie são mais perigosas que os machos.
– Verdade – alguém aquiesceu no corredor.
Phury levantou as mãos em frustração.
– Só quero o que for melhor para você e não só no papel de amigo preocupado... essa é a porra do meu trabalho. Você atravessa o cio sem contar a ninguém, deita-se com ele – como se Qhuinn fosse bosta de cachorro – e depois não diz a ninguém que está tendo problemas médicos. Será que eu tenho que ficar feliz com isso? Que merda!
Houve algum tipo de conversa entre eles àquela altura, mas Qhuinn não prestou atenção: toda a sua consciência recuara para dentro do cérebro. Caramba, o feliz comentário do Irmão não deveria ter doído tanto. Não era a primeira vez que ele ouvia esse tipo de comentário, ou até mesmo pensara isso a respeito de si mesmo. Mas, por algum motivo, as palavras dispararam uma falha geológica que retumbava bem em seu cerne.
Lembrando-se de que dificilmente seria uma tragédia ter o óbvio evidenciado, ele se desvencilhou do seu espiral de vergonha e olhou ao redor. Sim, todos tinham aparecido diante da porta aberta e, mais uma vez, aquilo que ele preferia que tivesse permanecido como um assunto particular estava acontecendo diante de milhares.
Pelo menos Layla não se importava. Inferno, ela nem parecia ter notado.
E era até engraçado ver todos aqueles lutadores profissionais desejando estar a quilômetros de distância de uma fêmea. Pensando bem, caso quisessem sobreviver no trabalho que exerciam, uma acurada avaliação de riscos era algo que se desenvolvia precocemente e até mesmo Qhuinn, objeto do instinto protetor da Escolhida, não ousaria tocá-la.
– Eu, neste momento, renuncio ao meu status de Escolhida, e todos os direitos e privilégios inerentes. Eu sou Layla, decaída daqui por diante...
Phury tentou interrompê-la:
– Escute, você não tem que fazer isso...
– ... e sempre. Estou arruinada perante os olhos tanto da tradição quanto da prática, não mais virgem, concebi um filho, mesmo estando a perdê-lo.
Qhuinn bateu a parte de trás da cabeça na parede. Maldição.
Phury passou uma mão pelos cabelos.
– Merda.
Quando Layla oscilou em seus pés, todos se projetaram para ela, mas ela empurrou todas as mãos e caminhou sozinha até a cama. Abaixando o corpo devagar, como se tudo lhe doesse, deixou a cabeça pender.
– Minha sorte está lançada e estou preparada para viver com as consequências, quaisquer que sejam elas. Isso é tudo.
Houve um belo tanto de sobrancelhas se erguendo quando a multidão começou a se dispersar, mas ninguém disse um pio. Depois de um instante, o grupo se desfez, embora Phury continuasse ali. Assim como Qhuinn e a médica.
A porta foi fechada.
– Ok, ainda mais depois disso tudo, preciso mesmo verificar seus sinais vitais – disse a doutora Jane, ajudando a fêmea a se recostar contra os travesseiros e a acomodar as cobertas que haviam sido afastadas.
Qhuinn não se moveu enquanto o aparelho de pressão era ajustado no braço magro e uma série de pufe-pufes era exalada.
Phury, por sua vez, andou de um lado para o outro, pelo menos até franzir o cenho e pegar o celular.
– É por isso que Havers me telefonou ontem?
Layla concordou.
– Fui lá em busca de ajuda.
– Por que não me procurou? – o Irmão murmurou para si mesmo.
– O que Havers disse?
– Não sei por qual motivo não verifiquei a caixa de mensagens. Pensei que não tivesse motivo para fazer isso.
– Ele deixou claro que só lidaria com você.
Ante isso, Phury olhou para Qhuinn, com aquele olhar amarelo se estreitando.
– Vai se vincular a ela?
– Não.
A expressão de Phury voltou a ser gélida.
– Que tipo de macho é você para...
– Ele não me ama – Layla interrompeu. – Tampouco eu o amo.
Quando a cabeça do Primale virou de lado, Layla prosseguiu:
– Queríamos um filho – ela se sentou inclinada para a frente enquanto a médica auscultava o coração por trás. – Nós começamos e terminamos ali.
Dessa vez o Irmão praguejou.
– Não entendo.
– Nós dois somos órfãos de muitas maneiras – disse a Escolhida. – Nós estamos... estávamos... querendo formar a nossa própria família.
Phury expirou fundo e caminhou até a mesa num canto, sentando-se sobre a cadeira frágil.
– Ah, bem. Acho que isso muda um pouco as coisas. Eu pensei que...
– Nada importa – interveio Layla. – As coisas são como são. Ou... eram, como parece ser o caso.
Qhuinn se viu esfregando os olhos sem nenhum motivo em especial. Não que eles estivessem embaçados nem nada assim. Não. Nem um pouco.
Tudo aquilo era só... tão triste. Toda aquela porcaria. Desde o estado de Layla, até a exaustão impotente de Phury, chegando a sua dor imensa no meio do peito, tudo era uma maldita coisa verdadeiramente triste.
CAPÍTULO 31
– É exatamente o que eu estava procurando.
Enquanto Trez falava, caminhava ao redor do espaço amplo e vazio do armazém, com as botas produzindo impactos altos que ecoavam. Atrás dele, sentia facilmente o alívio da corretora parada ao lado da porta.
Negociar com humanos? Era o mesmo que tirar o pirulito de uma criancinha.
– Você poderia transformar este lado da cidade – disse a mulher. – É uma verdadeira oportunidade.
– Verdade – não que o tipo de restaurante e lojas que o seguiriam até ali fossem de classe: seriam algo mais como lojas de piercings e tatuagens, restaurantes baratos, cinemas pornográficos.
Mas ele não tinha nenhum problema com isso. Até mesmo cafetões podiam se orgulhar de seus trabalhos e, francamente, ele tinha certa tendência a acreditar muuuito mais em tatuadores do que em muitos dos assim chamados “cidadãos exemplares”.
Trez girou sobre os calcanhares. O espaço era tremendo, quase tão alto quanto largo, com fileiras e fileiras de janelas quadradas, muitas delas com os vidros quebrados recobertos por tábuas de madeira. O teto parecia bom – ou quase isso, o revestimento de latão corrugado mantendo a neve do lado de fora, mas não o frio. O chão era de concreto, mas obviamente havia um piso subterrâneo – em diversos pontos viam-se alçapões, embora nenhum deles pudesse ser aberto com facilidade. A parte elétrica parecia boa; sistema de aquecimento, ventilação e ar-condicionado inexistentes; a hidráulica, uma piada.
Em sua mente, contudo, ele não enxergava o lugar como ele estava. Nada disso. Ele o via transformado, como uma boate nas proporções da Limelight. Naturalmente, o projeto necessitaria de uma imensa injeção de capital e vários meses para concluir os trabalhos; no fim, porém, Caldwell acabaria com um novo lugar quente – e ele teria mais uma fonte de renda.
Todos ganhavam.
– Então, gostaria de fazer uma oferta?
Trez olhou para a mulher. Ela era a senhora Profissional em seu casaco preto e terninho escuro abaixo dos joelhos – noventa por cento de sua pele estava coberta, e não só por estarem em dezembro. Contudo, mesmo abotoada até em cima e cabelo comportado, ela era bela no modo como todas as mulheres lhe eram belas: tinha seios e pele macia, e um lugar para ele brincar no meio das pernas.
E ela gostava dele.
Ele sabia disso pelo modo como ela abaixava o olhar, e também por ela aparentemente não saber o que fazer com as mãos: uma hora estavam nos bolsos do casaco; na outra, mexendo no cabelo, depois ajeitando a camisa de seda dentro da saia...
Ele conseguia pensar em alguns modos para mantê-la ocupada.
Trez sorriu ao se aproximar dela e não parou até invadir-lhe o espaço pessoal.
– Sim. Eu quero.
O duplo sentido foi captado, as faces dela enrubesceram não de frio, mas de excitação.
– Ah. Que bom.
– Onde quer fazer? – ele perguntou de modo arrastado.
– A oferta? – ela pigarreou. – Tudo o que tem que fazer é me dizer o que você... quer e eu... faço isso acontecer.
Ah, ela não era ligada em sexo casual. Que meigo.
– Aqui.
– Como disse? – perguntou ela, finalmente levantando o olhar.
Ele sorriu devagar e de modo contido para não revelar as presas.
– A oferta. Vamos fazer isso aqui?
Os olhos dela se arregalaram.
– Aqui?
– É. Aqui – ele se aproximou com mais um passo, mas não ficou perto o suficiente a ponto de se tocarem. Ele estava satisfeito em seduzi-la, mas ela teria de estar cem por cento segura de estar a fim. – Está pronta?
– Para... fazer... a oferta.
– Isso.
– Está... hum, está frio aqui – disse ela. – Que tal no escritório? É lá que a maioria... das ofertas... é conduzida.
Do nada, a imagem do irmão sentado no sofá em casa, olhando para ele como se ele fosse um maldito problema, atingiu-o em cheio, e quando isso aconteceu, percebeu que fazia sexo com praticamente toda mulher que conhecia desde... caramba, quanto tempo?
Bem, obviamente, se não tinham idade para copular, ele não estaria com elas.
Ou se eram férteis.
O que cortava, digamos, uma dúzia ou duas? Maravilha. Que herói.
Que porra ele estava fazendo? Não queria voltar ao escritório da mulher, primeiro porque não havia tempo suficiente, supondo que quisesse estar na abertura do Iron Mask. Portanto, a única opção era ali mesmo, de pé, com a saia suspensa até a cintura, as pernas ao redor dos seus quadris. Rápido, direto ao ponto; depois cada um seguindo o seu caminho.
Depois de ele dizer o quanto pretendia gastar na compra do armazém, claro.
Mas e aí? Ele não tinha a intenção de transar com ela no fechamento do contrato. Ele raramente repetia, e só se estivesse seriamente atraído ou com muito tesão, o que não acontecia nesse caso.
Pelo amor de Deus, o que exatamente ele tiraria daquilo? Sequer a veria nua. Nem teria muito contato de pele com pele.
A não ser... era essa a questão.
Quando foi a última vez em que esteve de fato com uma fêmea? Do jeito certo? Como num jantar fino, um pouco de música, uns amassos que conduziam até o quarto... depois um monte de ações longas e demoradas que levavam a alguns orgasmos...
E nenhuma sensação de pânico asfixiante quando tudo chegava ao fim.
– Você estava para dizer alguma coisa? – a mulher o instigou a falar.
iAm estava certo. Ele não precisava estar fazendo aquele tipo de merda. Inferno, nem mesmo estava atraído pela corretora. Ela estava parada diante dele, disponível, e aquela aliança no dedo era indício de que ela não causaria muitos problemas depois que terminassem, porque tinha algo a perder.
Trez recuou um passo.
– Escute, eu... – quando o celular tocou em seu bolso, ele pensou que tinha sido em boa hora. Viu quem era: iAm. – Com licença, preciso atender esta ligação. Ei, o que está fazendo, irmãozinho?
A resposta de iAm saiu suave, como se tivesse abaixado a voz:
– Temos companhia.
O corpo de Trez ficou tenso.
– De que tipo e onde?
– Estou em casa.
Ah, merda.
– Quem é?
– Não é a sua noiva, relaxe. É AnsLai.
O sumo sacerdote. Fantástico.
– Bem, estou ocupado.
– Ele não veio aqui para me ver.
– Então é melhor ele voltar de onde veio porque estou ocupado – quando não houve resposta do outro lado, tudo o que restava fazer era se chutar no traseiro. – Escute aqui, o que quer que eu faça?
– Pare de fugir e cuide disto.
– Não há do que cuidar. Falo com você mais tarde, ok?
Esperou por uma resposta. Em vez disso, a linha ficou muda. Pensando bem, quando você espera que seu irmão limpe suas bostas, o cara não deve ficar com muita vontade de se despedir longamente.
Trez desligou e olhou para a corretora. Com um sorriso amplo, ele se aproximou e baixou a cabeça para fitá-la. O batom era coral demais para a tez dela, mas ele não se importava.
Aquela coisa não continuaria na boca dela por muito tempo.
– Deixe-me mostrar como posso aquecer isto aqui – disse com um sorriso langoroso.
De volta à mansão da Irmandade, no quarto de Layla, um tipo de cessar-fogo fora alcançado pelas partes interessadas.
Phury não estava tentando transformar Qhuinn num gancho de parede. Layla estava sendo avaliada. A porta fora fechada e, com isso, nada do que acontecia ali teria mais do que um quarteto de testemunhas oculares.
Qhuinn só estava esperando que a doutora Jane se pronunciasse.
Quando ela, por fim, tirou o estetoscópio do pescoço, apenas se acomodou. E a expressão em seu rosto não lhe deu esperança alguma.
Ele não entendia. Vira sua filha às portas do Fade: quando fora surrado e largado como morto no acostamento pela Guarda de Honra, subira para só Deus sabe onde, aproximara-se de um portal branco... e lá vira uma fêmea jovem cujos olhos começaram com uma cor, e acabaram azul e verde como os seus.
Se ele não tivesse testemunhado aquilo, provavelmente não teria se deitado com Layla para início de conversa. Mas ele teve tanta certeza de que o destino estava traçado que nunca lhe ocorrera que...
Merda, talvez aquela jovem fosse o resultado de outra comunhão... com outra pessoa no futuro.
Como se algum dia ele fosse se unir a outra pessoa... Jamais.
Não era possível. Não agora que esteve com Blay uma vez.
Nada disso.
Mesmo que ele e seu ex-amigo nunca mais se encontrassem debaixo dos lençóis, ele nunca mais ficaria com ninguém. Quem poderia se comparar? E o celibato era melhor do que a segunda melhor opção, que é o que seria oferecido pelo resto do planeta.
A doutora Jane pigarreou e segurou a mão de Layla.
– A sua pressão sanguínea está um pouco baixa. A sua pulsação está um pouco lenta. Acredito que essas duas coisas possam ser melhoradas com alimentação...
Qhuinn praticamente pulou para perto da cama com o pulso estendido.
– Estou aqui... Pronto. Pode pegar.
A doutora Jane pousou uma mão no braço dele e lhe sorriu.
– Mas não é com isso que estou preocupada.
Ele congelou e, pelo canto do olho, viu que o mesmo aconteceu com Phury.
– Eis a questão – a doutora voltou a olhar para Layla, falando com suavidade e clareza. – Não sei muito sobre gestações vampíricas, portanto, por mais que eu deteste dizer isso, você precisa voltar à clínica de Havers – ela levantou a mão, como se já esperasse discussões de todos os lados. – Isto se trata dela e do filho dela, temos que levá-los para alguém que possa tratá-la adequadamente, mesmo se, em outras circunstâncias, nenhum de nós batesse à porta do cara. E, Phury – ela encarou o Irmão –, você tem que ir com ela e com Qhuinn. A sua presença lá só facilitará as coisas para todos.
Muitos lábios apertados depois disso.
– Ela tem razão – concordou Qhuinn por fim. E depois se voltou para o Primale. – E você tem que dizer que é o pai. Ela obterá mais respeito assim. Comigo? Ele pode muito bem se recusar a tratá-la... se ela for decaída e tiver transado com um defeituoso? Pode nos mandar dar meia-volta.
Phury abriu a boca. Fechou-a.
Não havia muito mais a ser dito.
Enquanto Phury pegava o telefone e ligava para a clínica para informar que estavam indo para lá, o tom de voz dele sugeria que estava pronto para incendiar o lugar se Havers e sua equipe dessem mancada.
Com isso resolvido, Qhuinn se aproximou de Layla.
Num tom baixo, disse:
– Desta vez vai ser diferente. Ele vai fazer isso acontecer. Não se preocupe, você será tratada como uma rainha.
Os olhos de Layla se arregalaram, mas ela se controlou.
– Sim. Tudo bem.
Resultado? O Irmão não era o único prestes a acabar com tudo. Se Havers provocasse qualquer tipo de desgosto à la glymera em Layla, Qhuinn acabaria com o ego do cara a tapa. Layla não merecia esse tipo de tratamento – nem mesmo por escolher um rejeitado como ele para se acasalar.
Cacete. Talvez fosse melhor ela abortar. Ele queria mesmo condenar uma criança ao seu DNA?
– Você também vem? – ela lhe perguntou, como se não estivesse acompanhando.
– Sim. Vou estar lá.
Quando Phury desligou, olhou de um para outro, os olhos amarelos se estreitando.
– Ok, eles vão nos receber no segundo em que chegarmos. Vou fazer Fritz ligar a Mercedes, mas eu dirijo.
– Desculpe – disse Layla ao encarar o grande macho. – Sei que decepcionei as Escolhidas e você, mas foi você quem nos disse para vir para este lado e... viver.
Phury apoiou as mãos nos quadris e exalou fundo. Ao balançar a cabeça, ficou claro que ele não teria escolhido nada daquilo para ela.
– Sim, eu disse isso. Eu fiz isso.
CAPÍTULO 32
Ah, grande poder desgovernado, pensou Xcor ao olhar para seus soldados, cada um deles armado e pronto para uma noite de luta. Depois de 24 horas de recuperação após a alimentação grupal, eles estavam loucos para sair e encontrar os inimigos – e ele estava pronto para libertá-los daquele porão de armazém.
Só havia um problema: alguém estava andando no andar de cima.
Como demonstração, passos pesados atravessaram o alçapão de madeira sobre sua cabeça.
Pela última meia hora, eles acompanharam o progresso dos visitantes inesperados. Um era pesado, uma forma masculina. O outro era mais leve, de uma variedade feminina. No entanto, não havia como perceber seus cheiros; o porão era hermeticamente fechado.
Muito provavelmente, eram apenas humanos de passagem, ainda que ele não pudesse adivinhar o motivo para alguém que não fosse sem teto perder tempo numa estrutura tão decrépita numa noite fria. Quem quer que fossem, quaisquer as razões que os levaram até ali, contudo, ele não teria problemas para defender seu território, mesmo sendo aquele.
Mas não fazia mal esperar. Se ele podia evitar massacrar aqueles humanos? Isso significava que ele e seus soldados continuariam a usar aquele espaço sem serem incomodados.
Ninguém disse nada enquanto as passadas continuavam.
Vozes se misturavam. Grave e aguda. Em seguida, um telefone tocou.
Xcor acompanhou o toque e a conversa que se seguiu, caminhando em silêncio até o outro alçapão, lugar em que a pessoa escolheu parar. Imóvel, prestou atenção e captou metade de uma conversa nada interessante que não lhe revelou nenhuma das identidades dos envolvidos.
Não muito depois, o som inconfundível de sexo se fez claro.
Enquanto Zypher ria baixinho, Xcor encarou o bastardo para calá-lo. Mesmo cada um dos alçapões estando fechado pelo lado de baixo, ninguém sabia que tipo de problema aqueles ratos sem rabo podiam causar em qualquer situação.
Consultou o relógio. Esperou que os gemidos parassem. Gesticulou para que os soldados ficassem quietos quando eles pararam.
Movendo-se em silêncio, ele seguiu para o alçapão no canto extremo do armazém, aquele que se abria no que deveria ser um escritório de supervisor. Destrancando-o, segurou uma pistola, desmaterializou-se e inalou.
Não era humano.
Bem, um esteve ali, mas o outro... era algo diferente.
Do outro lado, a porta externa foi fechada e trancada.
Em sua forma fantasmagórica, Xcor atravessou o armazém e apoiou as costas na parede de tijolos, e olhou para fora de um dos vidros empoeirados.
Um par de faróis se acendeu na frente, no estacionamento.
Desmaterializando-se do lado de fora da janela, subiu até o telhado do armazém do lado oposto da rua.
Ora, ora, se aquilo não era interessante.
Havia um Sombra ali embaixo, sentando atrás do volante do BMW com a janela do motorista abaixada até a metade e uma fêmea humana se inclinando sobre o SUV.
Era a segunda vez que se deparava com um em Caldwell.
Eles eram perigosos.
Pegando o celular, ligou para o número de Throe após encontrar a foto do macho na lista de contatos, e ordenou que os soldados saíssem e lutassem. Ele lidaria sozinho com aquela situação.
Lá embaixo, o Sombra esticou a mão, puxou a mulher pela nuca e a beijou. Depois deu marcha à ré no carro e saiu sem olhar para trás.
Xcor mudou de posição para acompanhar o macho, transitando de telhado em telhado, conforme o Sombra seguia na direção do bairro das boates nas ruas que corriam em paralelo ao rio...
A princípio, a sensação em seu corpo sugeria uma mudança na direção do vento, os açoites gélidos atingindo-o por trás, em vez de golpeá-lo no rosto. Mas logo pensou... não, era algo puramente interno. As ondas que sentia sob a pele...
Sua Escolhida estava por perto.
Sua Escolhida.
Abandonando imediatamente o rastro do Sombra, ele seguiu para perto do rio Hudson. Onde ela estava...
Num carro. Estava se movendo num carro.
Pelo que seus instintos lhe diziam, ela estava se movendo em alta velocidade que, ainda assim, era rastreável. Portanto, a única explicação era que ela estava na Northway, seguindo de noventa a cento e vinte quilômetros por hora.
Recuando na direção da fileira de armazéns, ele se concentrou no sinal que estava captando. Como fazia meses desde que se alimentara dela, sentiu pânico ao perceber que a conexão criada pelo sangue dela em suas veias estava perdendo intensidade, a ponto de ele ter dificuldade para localizar o veículo.
Mas, em seguida, captou um sedã luxuoso graças ao fato de ele ter freado na saída que convergia o tráfego para as pontes. Desmaterializando-se nas vigas, plantou as botas de combate no pináculo de um dos esteios de metal e esperou que ela passasse debaixo dele.
Pouco depois de fazê-lo, ela seguiu em frente, indo para o outro lado da cidade, oposta à margem do rio.
Ele continuou com ela, mantendo uma distância segura, embora se perguntasse a quem tentava enganar. Se ele pressentia sua fêmea?
O mesmo acontecia com ela.
Porém, ele não abandonaria seu rastro.
Enquanto Qhuinn estava no assento de passageiro do Mercedes, sua Heckler e Koch calibre .45 era mantida discretamente sobre a coxa, os olhos movimentando-se incessantemente do espelho retrovisor para a janela lateral e o para-brisa. Ao lado dele, Phury estava na direção, as mãos do Irmão num perfeito dez para as duas tão apertado que mais parecia que ele estava estrangulando alguém.
Caramba, havia coisas demais acontecendo ao mesmo tempo.
Layla e a criança. Aquele acidente com o Cessna. O que ele fizera ao primo na noite anterior. E também... bem, havia aquela situação com Blay.
Ah, bom Deus... a situação com Blay.
Enquanto Phury pegava a saída que os levaria às pontes, a mente de Qhuinn ia da preocupação com Layla às lembranças das imagens, dos sons... e dos sabores das horas diurnas.
Intelectualmente, ele sabia que o que acontecera entre eles não fora um sonho. E seu corpo se lembrava muito bem disso, como se o sexo tivesse sido um tipo de marcação a ferro em sua pele que o mudara para o resto da vida. E, mesmo assim, enquanto tentava lidar com o drama mais recente, a sessão breve demais parecia pré-histórica, e não ocorrera há nem 24 horas atrás.
Ele temia que se tratasse de uma sessão única.
Nunca mais me toque assim.
Gemendo, ele esfregou a testa.
– Não são os seus olhos – disse Phury.
– O que disse?
Phury olhou de relance para o banco de trás.
– Ei, como estão as coisas? – perguntou às fêmeas. Quando Layla e a doutora Jane responderam numa afirmativa breve, ele assentiu com a cabeça. – Escutem, vou fechar a divisória por um segundo, está bem? Está tudo bem por aqui.
O Irmão não lhes deu a chance de responder de um ou outro modo, e Qhuinn se retesou no banco enquanto a divisória opaca subia, partindo o sedã em duas partes. Não fugiria de nenhum tipo de confronto, mas isso não significava que ele estava ansioso pelo segundo round, e se Phury estava isolando as duas, aquilo não seria nada bonito.
– Seus olhos não são o problema – disse o Irmão.
– Não entendi.
Phury olhou para ele.
– O fato de eu estar irritado sobre tudo isso não tem nada a ver com nenhum defeito. Layla está apaixonada por você...
– Não, não está não.
– Vê, você está me irritando muito agora.
– Pergunte a ela.
– Enquanto está sofrendo um aborto? – replicou o Irmão. – É, é isso mesmo o que vou fazer.
Enquanto Qhuinn se retraía, Phury continuou:
– Sabe, esse é o seu negócio. Você gosta de viver no limite e ser desvairado... Eu, honestamente, acredito que isso o ajuda a lidar com as idiotices que sua família o fez passar. Se você destruir tudo? Nada pode afetá-lo. E acredite ou não, não tenho problema algum com isso. Você faz o que tem que fazer e sobrevive às noites e aos dias do melhor modo que pode. Mas assim que você parte o coração de uma inocente, ainda mais se ela está sob a minha proteção? É nessa hora que você e eu temos um problema.
Qhuinn olhou pela janela. Antes de tudo, parabéns ao cara ali do lado. A ideia de que havia um preconceito contra Qhuinn baseado em seu caráter em vez de uma mutação genética sobre a qual não tivera nenhum poder decisório era uma mudança refrescante. E, ei, não que ele não concordasse com o cara, pelo menos até um ano atrás. Antes disso? Inferno, ele esteve descontrolado em muitos níveis. Mas as coisas mudaram. Ele mudara.
Evidentemente, Blay se tornar indisponível fora o tipo de chute no saco de que ele precisava para finalmente crescer.
– Não sou mais assim – disse ele.
– Então, está preparado para se vincular a ela? – quando ele não respondeu, Phury deu de ombros. – E lá vai você de novo. Conclusão: sou responsável por ela, legal e moralmente. Posso não estar agindo como um Primale em alguns aspectos, mas o restante das funções desse cargo eu levo muito a sério. A ideia de que você a meteu nessa confusão me deixa enjoado, e eu acho muito difícil de acreditar que ela não tenha feito isso para agradá-lo... Você disse que os dois queriam um filho? Tem certeza de que não era só você, e ela só fez isso para deixá-lo feliz? Isso se parece muito com o feitio dela.
Tudo aquilo foi apresentado de maneira retórica. E não cabia a Qhuinn criticar a lógica, mesmo que ela estivesse errada. Mas, enquanto ele passava os dedos pelos cabelos, o fato de que fora Layla a procurá-lo era algo que ele manteria só para si. Se Phury queria pensar que a culpa era só sua, tudo bem, ele aguentaria o tranco. Qualquer coisa para tirar a pressão e as atenções de cima de Layla.
Phury olhou por entre os bancos.
– Isso não está certo, Qhuinn. Não é isso o que machos de verdade fazem. E olhe só a situação em que ela está. Você causou isso a ela. Você a colocou no banco de trás deste carro, e isso é errado.
Qhuinn apertou os olhos. Bem, como se isso não fosse martelá-lo na cabeça pelos próximos cem anos. Mais ou menos.
Enquanto eles seguiam pela ponte e deixavam as luzes piscantes do centro da cidade para trás, ele manteve a boca fechada, e Phury também se calou.
Mas, pensando bem, o Irmão já dissera tudo o que havia para ser dito, não?
CAPÍTULO 33
Assail acabou perseguindo sua presa atrás do volante do seu Range Rover. Muito mais confortável assim, e a localização da mulher já não era mais um problema: enquanto estivera esperando ao lado do Audi que ela saísse de sua propriedade, colocara um equipamento de rastreamento na parte inferior do espelho retrovisor lateral.
Seu iPhone cuidou do resto.
Depois de ela ter deixado abruptamente seu bairro – após a proposital desmaterialização ante suas vistas só para desestabilizá-la ainda mais –, ela atravessou o rio e deu a volta para a parte de trás da cidade, onde as casas eram pequenas, próximas umas das outras e delimitadas por cercas de alumínio.
Enquanto a perseguia, mantendo pelo menos dois quarteirões de distância entre os veículos, observou as luzinhas coloridas no bairro, milhares de fios de pisca-pisca entre os arbustos, pendurados nos telhados e emoldurando janelas e portas. Mas aquilo não era nem metade da história. Cenários de manjedouras colocados em destaque em diminutos jardins eram iluminados, e também havia os bonecos de neve falsos com cachecóis vermelhos e calças azuis que brilhavam por dentro.
Em contraste com a decoração sazonal, ele estava disposto a apostar que as estátuas da Virgem Maria eram permanentes.
Quando o carro parou e estacionou, ele se aproximou, parando quatro casas adiante e desligando as luzes. Ela não saiu imediatamente do carro, e quando o fez, não vestia a parca e as calças de esqui nas quais o espionara. Em vez disso, mudara para um suéter vermelho e um par de jeans.
E soltara o cabelo.
O volume escuro e pesado ultrapassava os ombros, curvando-se nas pontas.
Ele grunhiu na escuridão.
Com passadas rápidas e certeiras, ela ultrapassou os quatro degraus de concreto que levavam à entrada modesta da casa. Abrindo a porta de tela numa moldura de metal, ela a segurou com o quadril enquanto destrancava a porta com a chave, para depois entrar e trancar pelo lado de dentro.
Quando as luzes se acenderam no andar de baixo, ele observou a silhueta dela avançar pelo cômodo da frente, as cortinas finas lhe possibilitando apenas uma ideia da movimentação dela, e não uma visão desobstruída.
Ele pensou em suas próprias persianas. Demorou um tempo para que aperfeiçoasse aquela invenção, e a casa às margens do rio Hudson fora um teste perfeito. As barreiras funcionavam melhor do que ele antecipara.
Ela, porém, era esperta o bastante para notar alguma anormalidade, e ele se perguntou o que as teriam denunciado.
No segundo andar, uma luz se acendeu, como se alguém que estivesse descansando tivesse despertado com a chegada dela.
As presas dele pulsaram. A ideia de que algum homem humano estivesse à espera dela em seu quarto conjugal fez com que ele quisesse estabelecer sua dominância, mesmo que isso não fizesse sentido. Ele a seguira para o seu próprio bem, e nada mais.
Absolutamente nada mais.
Bem quando a mão segurou a maçaneta da porta, seu telefone tocou. Na hora certa.
Quando ele viu quem era, franziu o cenho e levou o celular ao ouvido.
– Duas ligações em tão pouco tempo. A que devo essa honra?
Rehvenge não pareceu estar se divertindo.
– Não retornou a minha ligação.
– Eu deveria?
– Cuidado, garoto.
Os olhos de Assail continuaram atentos à casinha. Ele estava curiosamente desesperado para saber quem estava lá dentro. Estaria ela subindo, despindo-se pelo caminho?
Exatamente de quem ela escondia suas espreitas? E ela de fato as escondia – senão, por que outro motivo trocar de roupa?
– Alô?
– Aprecio o gentil convite – ele se ouviu dizer.
– Não foi um convite. Você é um maldito membro do Conselho agora que está vivendo no Novo Mundo.
– Não.
– Como é que é?
Assail relembrou o encontro na casa de Elan no começo do inverno, aquele sobre o qual Rehvenge nada sabia, aquele no qual o Bando de Bastardos apareceu para forçar a barra. Também pensou no atentado a Wrath, à vida do Rei Cego... na sua própria propriedade, pelo amor de Deus.
Drama demais para o seu gosto.
Com calma ensaiada, ele se lançou no mesmo discurso que fizera à facção de Xcor:
– Sou um homem de negócios por predileção e propósito. Embora respeite tanto o reinado atual quanto o poder de base do Conselho, não posso desviar nem energia nem tempo das minhas empreitadas vigentes. Nem agora, nem no futuro.
Houve um momento prolongado de silêncio. E depois aquela voz profunda e maligna se fez ouvir do outro lado:
– Ouvi falar dos seus negócios.
– Verdade?
– Eu mesmo estive envolvido com isso há alguns anos.
– Foi o que eu soube.
– Consegui fazer as duas coisas.
Assail sorriu na escuridão.
– Talvez eu não seja tão talentoso quanto você.
– Vou deixar isto perfeitamente claro. Se você não aparecer nessa reunião, deduzirei que você está jogando no time errado.
– Com essa declaração, você reconhece que existem dois e que eles se opõem.
– Entenda como quiser. Mas se não estiver comigo e com o Rei, você é inimigo meu e dele.
E foi exatamente isso o que Xcor lhe dissera. Pensando bem, havia alguma outra posição naquela guerra crescente?
– O Rei foi alvejado na sua casa, Assail.
– Pelo que me lembro – disse ele secamente.
– Pensei que você talvez quisesse dizimar qualquer ideia quanto ao seu envolvimento.
– Já o fiz. Naquela mesma noite disse aos Irmãos que eu não tinha nada a ver com aquilo. Eu lhes dei o veículo com que escaparam com o Rei. Por que eu faria tal coisa se fosse um traidor?
– Para livrar seu rabo.
– Sou muito eficiente nisso sem o benefício de conversações, eu lhe garanto.
– Então, como anda a sua agenda?
A luz no segundo andar se apagou, e ele teve que imaginar o que a mulher fazia no escuro... E com quem.
Por vontade própria, suas presas se expuseram.
– Assail. Você está seriamente me aborrecendo com essa merda de comportamento.
Assail ligou o motor do Range Rover. Não estava disposto a ficar esperando no meio-fio enquanto o que quer que estivesse acontecendo ali dentro... acontecia. Obviamente, ela se recolhera e ficaria ali. Além disso, seu telefone o alertaria caso o carro dela voltasse a se movimentar.
Enquanto ele tomava a rua e acelerava, falou com clareza:
– Neste instante, estou me demitindo da minha posição no Conselho. A minha neutralidade nessa disputa pela coroa não será questionada por nenhum dos lados...
– E você sabe quem são os jogadores, não?
– Deixarei isto o mais claro possível: não tomo partido, Rehvenge. Não sei de que outro modo deixar isso ainda mais claro... e não serei arrastado para essa guerra por você, nem pelo Rei nem por ninguém mais. Não tente me forçar, e saiba que a neutralidade que lhe apresento agora é a mesma que apresentei a eles.
Desse mesmo modo, prometera a Elan e a Xcor não revelar suas identidades, e manteria sua palavra – não por acreditar que o grupo seria capaz de retribuir o favor, mas pelo simples fato de que, dependendo de quem vencesse, um confidente de qualquer lado seria visto como espião a ser erradicado ou um herói a ser aclamado. O problema era que não se saberia que lado venceria até aquilo acabar, e ele não estava interessado em apostas.
– Então você foi abordado – declarou Rehv.
– Recebi uma cópia da carta que eles enviaram na primavera passada.
– E esse foi o único contato que teve?
– Sim.
– Está mentindo para mim.
Assail parou num farol.
– Não há nada que possa dizer ou fazer para me arrastar para isso, caro lídher.
Com ameaças em excesso, o macho do outro lado rosnou.
– Não conte com isso, Assail.
Dito isso, Rehvenge desligou.
Praguejando, Assail jogou o telefone no banco do passageiro. Depois, cerrou os dois punhos e os bateu com força no volante.
Se existia uma coisa que ele não tolerava era ser sugado para o olho do furacão das brigas dos outros. Pouco se importava com quem sentava no trono, ou com quem era encarregado da glymera. Ele só queria ser deixado em paz para ganhar dinheiro à custa dos ratos sem rabo.
Isso era tão difícil de entender?
Quando a luz ficou verde, ele afundou o pé no acelerador, mesmo sem ter nenhum destino específico em mente. Apenas dirigiu a esmo... e cerca de quinze minutos mais tarde descobriu-se sobre o rio em uma das pontes.
Ah, então seu Range Rover decidira levá-lo de volta para casa.
Ao emergir na margem oposta, seu telefone emitiu um alerta, que ele quase ignorou. Mas os gêmeos tinham saído para cuidar do último carregamento de Benloise, e ele queria saber se os intermediários tinham aparecido com suas cotas no fim das contas.
Não era uma chamada, ou uma mensagem de texto.
Era o Audi preto se movendo mais uma vez.
Assail pisou no freio, cortou na frente de um carro que buzinou como se o xingasse, subiu e atravessou o canteiro central coberto de neve.
E praticamente voou pela ponte que o levava de volta.
Em sua posição vantajosa em uma relativa periferia distante, Xcor precisava de binóculos para ver adequadamente a sua Escolhida.
O carro em que ela vinha andando, o enorme sedã preto, continuara em frente depois da ponte, seguindo por oito ou nove quilômetros antes de sair por uma estradinha rural que levava para o norte. Depois de mais alguns quilômetros, e sem nenhum aviso, virou numa estrada de terra que era estrangulada nas duas laterais por plantações perenes. Por fim, parou ante uma construção baixa de concreto que não dava indícios de ter nem janelas nem uma porta.
Ele ajustou o foco quando dois machos saíram pela frente. Reconheceu um instantaneamente, o cabelo o denunciava: Phury, filho de Ahgony, que, de acordo com a boataria, tornara-se o Primale das Escolhidas.
O coração de Xcor começou a bater forte.
Especialmente quando reconheceu a segunda figura: era o lutador de olhos descombinados contra quem pelejara na casa de Assail quando o Rei fora levado embora às pressas.
Os dois machos sacaram as pistolas e perscrutaram as imediações.
Como Xcor estava a favor do vento e parecia não haver ninguém mais por perto, ele deduziu que havia uma grande probabilidade, a não ser que sua Escolhida revelasse a posição dele, que aquele par procedesse com o que quer que tivesse planejado para a fêmea.
De fato, era como se ela estivesse sendo levada para uma prisão.
Só. Por. Cima. Do. Seu. Cadáver.
Ela era um inocente naquela guerra, utilizada com propósitos nefastos sem que isso tivesse sido culpa sua; mas, obviamente, ela seria executada ou trancafiada numa cela na qual passaria o resto de sua vida na Terra.
Ou não.
Ele segurou as pistolas.
Aquela era uma boa noite para cuidar daquele assunto. De fato, era a sua chance de tê-la para si, de salvá-la de qualquer punição que lhe impingiram por ter, sem saber, ajudado e revigorado o inimigo. E talvez as circunstâncias quanto à sua condenação injusta a deixassem favoravelmente disposta em relação ao seu inimigo e salvador.
Ele fechou os olhos brevemente ao imaginá-la em sua cama.
Quando Xcor voltou a abri-los, Phury abria a porta traseira do sedã e colocava a mão para dentro. Quando o Irmão se endireitou, a Escolhida era retirada do veículo... e levada pelos dois cotovelos, os lutadores segurando-a de cada lado enquanto a conduziam para a construção.
Xcor se preparou para se aproximar. Depois de tanto tempo, uma vida inteira, mais uma vez ele a tinha próxima de si e não desperdiçaria a oportunidade que o destino lhe propiciava, não agora, não quando a vida dela tão obviamente pendia na balança. E ele levaria a melhor naquilo; a ameaça a ela fortalecia seu corpo a um nível inimaginável de poder, a mente se aguçava a ponto de avaliar todas as possibilidades de ataque e continuar absolutamente calmo.
De fato, havia apenas dois machos a guardá-la e, com eles, uma fêmea que não só parecia não estar armada, como também não avaliava seus arredores como se fosse treinada para tal ou inclinada para o conflito.
Ele estava mais do que preparado para acabar com os captores de sua fêmea.
Bem quando ele se preparava para avançar, o cheiro da Escolhida o atingiu na brisa fria, aquele perfume tentador exclusivo fazendo-o oscilar dentro de suas botas de combate...
Imediatamente, ele reconheceu uma mudança nele.
Sangue.
Ela estava sangrando. E havia mais alguma coisa...
Sem pensamento consciente, seu corpo se moveu para mais perto, sua forma restabelecendo o peso corpóreo, suspendendo-se a meros três metros, atrás de uma construção destacada do prédio principal.
Ele percebeu que ela não era uma prisioneira sendo levada para uma cela ou para a execução.
A sua Escolhida tinha dificuldade para andar. E aqueles guerreiros a amparavam com cuidado; mesmo com as armas expostas e os olhos vasculhando qualquer sinal de ataque, eles eram gentis com ela como seriam com a mais frágil das flores em botão.
Ela não estava sendo maltratada. Não tinha hematomas nem ferimentos. Enquanto o trio avançava, ela olhou para um macho, depois para o outro, e disse algo como que tentando assegurá-los, pois, na verdade, não era raiva que contraía as sobrancelhas daqueles guerreiros.
Era, na realidade, o mesmo terror que ele sentiu quando farejou o sangue dela.
O coração de Xcor bateu ainda mais forte em seu peito, a mente tentando compreender tudo aquilo.
E então, ele se lembrou de algo do seu passado.
Depois do seu nascimento, sua mahmen o repelira e ele fora deixado no orfanato no Antigo País para o que quer que o destino lhe reservasse. Ali, permanecera entre os raros indesejados, cuja maioria possuía deformidades físicas como a sua, por quase uma década... tempo suficiente para forjar lembranças permanentes sobre aquilo que transpirava no lugar triste e solitário.
Tempo suficiente para ele entender o que significava quando uma fêmea sozinha aparecia nos portões, era-lhe concedida a entrada, e depois berrava por horas, às vezes dias... antes de dar à luz, na maioria dos casos, a crianças mortas. Ou abortadas.
O cheiro do sangue naquela época era bem específico. E o cheiro levado pelo vento frio desta noite era o mesmo.
Uma gestação era o que invadia seu nariz agora.
Pela primeira vez em sua vida, ele se ouviu dizer, em absoluta agonia:
– Santa Virgem do Fade...
CAPÍTULO 34
A ideia de que os membros do s’Hisbe estivessem no código postal de Caldwell fez com que Trez pensasse em fazer as malas com tudo o que possuía, buscar o irmão e sair em férias permanentes dali.
Enquanto dirigia do armazém para o Iron Mask, a cabeça estava tão confusa que ele tinha de pensar conscientemente em quais esquinas virar, e frear nas placas de pare, e onde deveria estacionar quando chegasse à boate. E depois, quando desligou o motor do X5, apenas continuou sentado atrás do volante, encarando a parede de tijolos do seu prédio por... sei lá, um ano.
Uma tremenda metáfora, todo o “ir a nenhum lugar” bem na sua frente.
Não que não soubesse o quanto decepcionava as pessoas. A questão? Pouco se importava. Não voltaria para os costumes antigos. A vida que agora levava era sua, e ele se recusava a permitir que uma promessa feita na época do seu nascimento o encarcerasse na vida adulta.
Aquilo não aconteceria.
Desde que Rehvenge realizara a boa ação do século e salvara tanto o seu traseiro quanto o do seu irmão, as coisas mudaram para Trez. Ele e iAm receberam ordens para se aliarem aos sympatho do lado de fora do Território a fim de saldarem a dívida, e esse “pagamento forçado” fora o bilhete deles para a liberdade, a saída que eles vinham procurando. E ainda que ele lamentasse arrastar iAm para aquele drama, o resultado final foi que seu irmão teve que vir com ele, e essa era apenas mais uma parte da solução perfeita que vivia atualmente. Abandonar o s’Hisbe e vir para o mundo exterior fora uma revelação, a primeira e deliciosa amostra de liberdade. Não havia protocolo, nenhuma regra, ninguém bafejando em seu cangote.
A ironia? Aquilo deveria ter sido um tapinha na bunda por ousar ter saído do Território e se misturar com os Desconhecidos. Um castigo com a intenção de fazê-lo andar na linha.
Rá.
E, desde então, nos recessos de sua mente, ele meio que desejava que a extensão dos seus negócios com os Desconhecidos durante a última década o tivesse contaminado perante os olhos do s’Hisbe, tornando-o inelegível para a “honra” que lhe fora concedida no nascimento. Ou seja, condenando-o a uma liberdade permanente.
O problema era que, se enviaram AnsLai, o sumo sacerdote, obviamente esse objetivo não fora alcançado. A menos que a visita tenha sido para repudiá-lo...
Nesse caso, saberia por meio de iAm. Não?
Trez verificou o celular. Nenhuma mensagem. Nem de voz nem de texto. Estava na casinha do cachorro de novo em relação ao seu irmão, a menos que iAm tivesse resolvido mandar tudo à merda e voltado para casa, para a tribo.
Maldição...
A batida forte à sua janela não fez com que ele simplesmente levantasse a cabeça. Não. Ele também sacou a arma.
Trez franziu a testa. Parado do lado de fora do carro, um macho humano do tamanho de uma casa. O cara tinha um barrigão de cerveja, mas os ombros fortes sugeriam que ele realizava trabalho físico regular, e o maxilar rígido e pesado revelava tanto a sua ancestralidade Cro-Magnon quanto o tipo de arrogância mais comum entre os animais grandes e idiotas.
Com grandes baforadas de touro libertando-se das narinas, ele se inclinou e bateu na janela. Naturalmente, com um punho tão grande quanto uma bola de futebol.
Bem, ficou claro que ele queria um pouco de atenção, e quer saber? Trez estava mais do que disposto em lhe dar.
Sem aviso, ele escancarou a porta, pegando o cara em cheio nas bolas. Enquanto o humano cambaleava para trás agarrando a virilha, Trez se ergueu em toda a sua altura e guardou a arma no cós da calça, fora de vista, mas fácil de apanhar.
Quando o senhor Agressivo se recuperou o bastante para olhar para cima, beeeem para cima, ele pareceu perder um pouco do seu entusiasmo. Pensando bem, Trez devia ter uns quarenta centímetros e pesar uns 45 quilos a mais que o cara. Apesar daquele pneuzão que ele carregava.
– Está procurando por mim? – perguntou Trez, querendo mesmo dizer: tem certeza de que quer fazer isso, grandalhão?
– É. ‘Tô.
Ok, então tanto a gramática quanto a avaliação de risco eram problemas para ele. Provavelmente teria dificuldades do mesmo tipo com adições e subtrações com numerais de único dígito.
– Estou – corrigiu Trez.
– Quê?
– Acredito que seja “sim, eu estou”, e não “tô”.
– Vai à merda. Que tal? – o cara se aproximou. – E fique longe dela.
– Dela? – isso restringia o problema para o que... umas mil pessoas?
– Minha mina. Ela num qué ocê, num precisa ducê, e num vai mais ficá cucê.
– De quem, exatamente, estamos falando? Vou precisar de um nome – e talvez nem isso ajudasse.
À guisa de resposta, o cara avançou. Provavelmente teria sido um soco ferrado, mas o avanço foi lento demais e muito penoso, e a maldita coisa poderia ter sido acompanhada de uma legenda.
Trez segurou o punho com uma mão, espalmando-a como se fosse uma bola de basquete. E depois, com um giro rápido, ficou com o pedaço de bife virado e preso – prova positiva de que pontos de pressão funcionavam, e que o pulso era um deles.
Trez falou bem no ouvido do homem, só para que as regras básicas fossem bem recebidas:
– Faça isso de novo e vou quebrar cada osso da sua mão. De uma vez – enfatizou isso com um puxão que fez o cara gemer. – E depois, vou subir até o braço. Agora, de que porra você está falando?
– Ela ‘teve aqui ontem à noite.
– Muitas mulheres estiveram. Consegue ser mais específico...?
– Ele ‘tá falando de mim.
Trez ergueu o olhar. Ah... que magnífico.
A garota que deu uma de doida, a sua perseguidora.
– Eu disse que cuidava disso! – ela gritou.
É, o cara parecia mesmo ter o controle da situação. Então, a que tudo levava a crer, os dois tinham ilusões... E talvez isso explicasse o relacionamento deles: ele a considerava uma supermodelo, e ela acreditava que ele tivesse um cérebro.
– Isto é seu? – Trez perguntou à mulher. – Porque, ser for, pode levá-lo para casa com você antes que precise de um balde para limpar a bagunça?
– Eu disse procê não vir aqui – disse a mulher. – Que que ‘cê ‘tá fazendo aqui?
E mais uma prova de que esses dois eram um casal perfeito.
– Que tal se eu deixar vocês dois resolverem isso? – sugeriu Trez.
– Eu amo ele!
Por um segundo, a resposta não fez sentido. Mas depois, e deixando o sotaque carregado de lado, ele entendeu: a tonta estava falando dele.
Enquanto Trez encarava incrédulo a mulher, percebeu que aquela transa em particular tinha saído pela culatra de maneira gigantesca.
– Não está, não.
Bem, pelo menos o namorado agora falara corretamente.
– Sim, estou!
Foi nessa hora que tudo foi para a puta que o pariu. O touro se lançou sobre a mulher, quebrando o próprio pulso no processo de se libertar. Depois os dois ficaram cara a cara, berrando obscenidades, os corpos se arqueando para a frente.
Ficou claro que eles tinham prática naquilo.
Trez olhou ao redor. Não havia ninguém no estacionamento, nenhuma alma viva andando na calçada, mas ele não precisava de violência doméstica rolando nos fundos da sua boate. Inevitavelmente, alguém acabaria vendo e chamando a polícia ou, pior, aquela burra acabaria forçando demais a barra do namorado grande e burro, e acabaria levando a pior.
Se ao menos ele tivesse um balde de água ou, quem sabe, uma mangueira de jardim para que os dois se largassem.
– Escutem aqui, vocês dois têm que...
– Eu te amo! – a mulher disse, virando-se para Trez e agarrando o bustiê. – Não entendeu ainda? Eu te amo!
Por conta da camada de suor que a cobria, apesar de a temperatura estar próxima de zero, ficou bem claro que ela tinha usado alguma coisa. Coca ou metanfetamina seria o seu palpite se ele tivesse de adivinhar. Êcstasy normalmente não era associado a esse tipo de agressão.
Perfeito. Mais essa agora.
Trez balançou a cabeça.
– Querida, você não me conhece.
– Conheço sim!
– Não, você não...
– Porra, não fala com ela assim!
O cara atacou Trez, mas a fêmea se colocou na frente, metendo-se diante de um trem acelerado.
Cacete, agora era a hora de ele se meter. Nada de violência contra mulheres na frente dele. Nunca – mesmo que fosse dano colateral.
Trez se moveu com tanta rapidez que quase fez o tempo voltar para trás. Tirou sua “protetora” da linha de combate e lançou um soco que pegou o animal disparado bem no meio do queixo.
Causou pouca ou nenhuma impressão. Foi o mesmo que atingir uma vaca com uma pilha de papel.
Trez levou um murro no olho, uma luz pipocou em metade da sua vista, mas foi um golpe de sorte mais do que algo coordenado. A recompensa, contudo, foi tudo isso e muito mais: com rápida coordenação, ele descarregou as juntas dos dedos em sucessão veloz, acertando-o no ventre, transformando o fígado cheio de cirrose do cara num saco de pancada vivo até o filho da puta se dobrar ao meio e pedir arrego.
Trez concluiu o assunto chutando o peso morto gemedor até ele cair no chão.
Então, ele sacou a pistola e enfiou o cano bem na carótida do cara.
– Você tem uma chance de sair daqui – Trez disse calmo. – E é assim que as coisas vão ser. Você vai se levantar e não vai nem olhar nem falar com ela. Você vai embora pela frente da boate e vai entrar numa porra de um táxi e vai para a porra da sua casa.
Diferentemente de Trez, o homem não tinha um sistema cardíaco muito bem desenvolvido e conservado e respirava como um trem de carga. Apesar disso e do jeito como os olhos injetados e marejados o olhavam, ele conseguira focar a visão independentemente da hipoxia, e captara a mensagem.
– Se a agredir de qualquer modo que seja, se ela quebrar sequer uma unha por sua causa, se alguma propriedade dela for danificada de algum modo? – Trez se inclinou, aproximando-se. – Vou abordá-lo por trás. Você nem saberá que estive ali, e não vai sobreviver ao que eu lhe farei. Isso eu prometo.
Sim, Sombras tinham maneiras de se livrar dos inimigos e, ainda que ele preferisse carne com pouca gordura, como frango e peixe, não se importava em abrir exceções.
O problema era que tanto em sua vida pessoal quanto na profissional ele vira como a violência doméstica se intensificava. Em muitos casos, algo grande tinha que intervir a fim de romper o ciclo. Veja só? Ele se encaixava nisso.
– Acene com a cabeça se você entendeu meus termos – quando o aceno veio, ele bateu a arma com força contra a nuca gorda. – Agora, olhe em meus olhos e saiba que estou falando a verdade.
Enquanto Trez o encarava, ele inseriu um pensamento direto no córtex cerebral, implantando-o como se fosse um chip instalado entre os lóbulos. O seu disparo seria qualquer tipo de ideia brilhante que tivesse a respeito da mulher; seu efeito seria a absoluta convicção de que a sua própria morte seria inevitável e rápida, caso ele desse seguimento à ideia.
O melhor tipo de terapia cognitiva que existia.
Taxa de sucesso de cem por cento.
Trez deu um pulo e concedeu uma chance de se comportar como um bom garoto ao gorducho. E, claro, o filho da puta se ergueu do chão, sacudiu-se como um cão com as pernas plantadas afastadas e a camisa larga solta.
Quando ele saiu, foi mancando.
E foi nesse instante que as fungadas foram percebidas.
Trez se virou. A mulher tremia no frio, as roupas indiscretas não ofereciam nenhuma barreira para a noite de dezembro, a pele pálida, a exaltação desaparecida... como se o fato de ele colocar o cano da sua .40 na garganta do seu namoradinho tivesse alguma influência.
O rímel escorria pelo rosto enquanto ela testemunhava a partida do seu “Príncipe Encantado”.
Trez olhou para o céu e começou seu diálogo interno.
No fim, ele não teria como deixá-la ali sozinha no estacionamento, ainda mais toda trêmula como estava.
– Onde você mora, querida? – até ele percebia a exaustão em sua voz. – Querida?
A mulher olhou para o lado dele e imediatamente a sua expressão mudou.
– Nunca ninguém me defendeu assim antes.
Ok, agora ele pensava em afundar a cabeça na parede de tijolos. E, olha só, havia uma logo ali do lado.
– Deixe-me levá-la para casa. Onde você mora?
Enquanto ela se aproximava, Trez teve que ordenar aos pés que continuassem exatamente onde estavam – pois, claro, ela se enterrou em seu corpo.
– Eu te amo.
Trez cerrou bem os olhos.
– Vamos – disse, desprendendo-se dela e levando-a até o carro. – Você vai ficar bem.
CAPÍTULO 35
Enquanto Layla era levada até a clínica, seu coração batia forte e as pernas tremiam. Felizmente, Phury e Qhuinn não mostravam problema algum em sustentá-la.
Contudo, graças à presença do Primale, sua experiência foi completamente diferente dessa vez. Quando o painel de entrada do edifício deslizou para o lado, uma das enfermeiras estava lá para recebê-los, e eles foram levados imediatamente para uma parte diferente da clínica daquela em que ela esteve na noite anterior.
Enquanto eram levados para a sala de exames, Layla olhou de relance ao redor e hesitou. O que... era aquilo? As paredes eram recobertas por um rosa claro, e as pinturas em molduras douradas estavam penduradas a intervalos regulares. Nenhuma mesa de exames, tal como aquela em que ela se deitou na noite anterior. Ali, havia uma cama forrada por uma manta elegante, recoberta com pilhas de travesseiros fofos. E, além disso, em vez da pia de aço inoxidável e gabinetes brancos sem graça, uma tela pintada escondia um canto inteiro do quarto atrás da qual, ela deduziu, os instrumentos clínicos de Havers eram mantidos.
A menos que o grupo tenha sido conduzido para os aposentos particulares do médico.
– Ele logo virá vê-la – disse a enfermeira, sorrindo para Phury e se curvando. – Posso lhes trazer algo? Café, chá?
– Apenas o médico – o Primale respondeu.
– Imediatamente, Vossa Excelência.
Ela se curvou novamente e se apressou para fora.
– Vamos colocá-la na cama, está bem? – disse Phury ao lado do leito.
Layla balançou a cabeça.
– Tem certeza de que estamos no lugar certo?
– Sim – o Primale se aproximou e a ajudou a atravessar o quarto. – Esta é uma das suítes VIP.
Layla olhou por sobre o ombro. Qhuinn se acomodara no canto oposto à tela. Ele se mantinha absolutamente imóvel, os olhos focados no chão, a respiração estável, as mãos atrás das costas. E mesmo assim não estava à vontade. Não, ele parecia pronto e capaz de matar e, por um momento, uma pontada de medo a perpassou. Jamais teve medo dele antes, mas, pensando bem, ela nunca o vira num estado tão potencialmente agressivo.
Pelo menos a violência represada não parecia direcionada a ela, nem mesmo ao Primale. Certamente não à doutora Jane enquanto a médica se acomodava numa cadeira forrada de seda.
– Vamos – insistiu Phury com gentileza. – Vamos lá.
Layla tentou subir sozinha, mas o colchão estava longe demais do chão e a parte superior do seu corpo estava tão fraca quanto as pernas.
– Eu pego você – Phury atenciosamente passou o braço ao redor das suas costas e atrás das pernas; depois a suspendeu com cuidado. – Lá vamos nós.
Ajeitando-se na cama, ela gemeu ao sentir uma câimbra se agarrar à sua região pélvica. Enquanto todos os olhos no quarto fixavam-se nela, ela tentou esconder a careta com um sorriso. Sem sucesso: embora o sangramento continuasse estável, as ondas de dor se intensificavam, a duração delas era mais longa, e o espaçamento entre elas, menor.
Naquele compasso, logo se transformaria em agonia constante.
– Estou bem...
A batida à porta a interrompeu.
– Posso entrar?
Apenas a voz do doutor Havers já fez com que ela quisesse fugir.
– Ah, Santa Virgem Escriba – disse ao tentar juntar coragem.
– Sim – respondeu sombriamente Phury. – Entre...
O que aconteceu em seguida foi tão rápido e furioso que o único modo de descrever seria com o coloquialismo que aprendera com Qhuinn.
O mundo desabou.
Havers abriu a porta, entrou e Qhuinn atacou o médico, empurrando-o para aquele canto, inclinando-se com a adaga.
Layla gritou alarmada, mas ele não matou o macho.
No entanto, ele fechou a porta com o corpo do macho, ou talvez com a cara dele. E foi difícil saber se o barulho que ressoou foi a porta se encontrando com a soleira ou o impacto do curandeiro sendo lançado contra a madeira. Provavelmente uma combinação de ambos.
A terrível lâmina afiada foi pressionada contra a garganta pálida.
– Adivinha o que vai fazer primeiro, cretino? – Qhuinn rosnou. – Vai se desculpar por tratá-la como se fosse uma maldita incubadora.
Qhuinn o virou com um puxão. Os óculos de Havers estavam quebrados, uma das lentes rachada formando um padrão de teia de aranha, a alça do outro lado esticada num ângulo estranho.
Layla lançou um olhar para Phury. O Primale não parecia particularmente aborrecido: apenas cruzou os braços sobre o peito imenso e se recostou contra a parede ao lado dela, obviamente muito à vontade com aquela encenação. Do outro lado na cadeira, o mesmo acontecia com a doutora Jane, o olhar esverdeado era tranquilo enquanto observava o dramalhão.
– Olhe nos olhos dela – bramiu Qhuinn – e peça desculpas.
Quando o lutador sacudiu o médico como se ele não passasse de uma boneca de pano, algumas palavras amontoadas escaparam do médico.
Caramba. Layla supunha que deveria se portar como uma dama e não gostar daquilo, mas sentiu satisfação ante aquela vingança.
Tristeza também, porque a situação jamais deveria ter chegado àquilo.
– Aceita as desculpas dele? – Qhuinn perguntou num tom maldoso. – Ou prefere que ele rasteje? Eu ficarei muito feliz em transformá-lo num capacho aos seus pés.
– Isso foi o bastante. Obrigada.
– Agora você vai contar a ela – Qhuinn repetiu o chacoalhão, os braços de Havers quase sendo arrancados das juntas, o jaleco branco balançando tal qual uma bandeira – e somente a ela, que merda está acontecendo com o corpo dela.
– Preciso do... prontuário...
Qhuinn expôs as presas e as colocou ao lado da orelha de Havers, como se estivesse considerando a ideia de arrancá-la numa mordida.
– Tolice. E se você estiver contando a verdade? O lapso de memória vai causar a sua morte. Agora.
Havers já estava pálido, mas isso fez com que ele ficasse completamente branco.
– Comece a falar, doutor. E se o Primale, que o impressiona pra cacete, fizer a gentileza de me contar caso você desvie o olhar dela, isso seria maravilhoso.
– Com prazer – disse Phury.
– Não estou ouvindo nada, doutor. E não sou um cara muito paciente.
– Você é... – por detrás dos óculos quebrados, os olhos do macho encontraram os dela. – O seu filho...
Ela quase desejou que Qhuinn não forçasse aquele contato. Já era bastante difícil ouvir aquilo sem ter que encarar o médico que a tratara tão mal.
Mas, pensando bem, era Havers quem tinha de olhar para ela, e não o contrário.
Ela encarava os olhos de Qhuinn quando Havers disse:
– Você está sofrendo um aborto.
As coisas ficaram embaçadas dali por diante, portanto, ela deduziu que estivesse chorando. Entretanto, não sentia coisa alguma. Era como se sua alma tivesse sido tragada para fora do seu corpo, tudo o que a animava e conectava ao mundo nunca tivesse existido.
Qhuinn não demonstrou reação alguma. Não piscou. Não mudou de posição, nem balançou a adaga.
– Existe algo que possa ser feito em termos médicos? – questionou a doutora Jane.
Havers foi balançar a cabeça, mas parou quando a ponta afiada da adaga perfurou a pele do seu pescoço. Quando o sangue começou a descer pelo colarinho engomado da camisa social, o vermelho combinou com a gravata borboleta.
– Nada que eu saiba – respondeu o médico com voz rouca. – Não neste mundo, de qualquer forma.
– Diga a ela que ela não teve culpa – exigiu Qhuinn. – Diga a ela que ela não fez nada de errado.
Layla fechou os olhos.
– Presumindo que isso seja verdade...
– Em humanos, esse costuma ser o caso, desde que não tenha havido nenhum trauma – interveio a doutora Jane.
– Diga a ela – disse Qhuinn num estalido, o braço começando a vibrar bem de leve, como se estivesse a um passo de liberar a sua violência.
– É verdade – confirmou Havers meio engasgado.
Layla fitou o médico, procurando o olhar dele por trás dos óculos arruinados.
– Nada?
Havers falou rapidamente:
– A incidência de abortos espontâneos é de aproximadamente uma a cada três gestações. Acredito que, como acontece com os humanos, seja causado por um sistema autorregulatório que garante que defeitos de vários tipos não sejam levados a cabo.
– Mas, sem sombra de dúvida, eu estou grávida – disse ela num tom desprovido de emoção.
– Sim. Seus exames de sangue atestaram isso.
– Existe algum risco à vida dela – perguntou Qhuinn – se isso continuar?
– Você é o ghia dela? – perguntou Havers num rompante.
Phury interveio:
– Ele é o pai do filho dela. Portanto, você o tratará com o mesmo respeito com que me trataria.
Isso fez com que os olhos do médico saltassem das órbitas, as sobrancelhas emergissem por trás da armação arruinada. E foi engraçado; foi nesse instante que Qhuinn demonstrou um pouco de reação: apenas um leve vacilo em seu rosto antes que a expressão ferrenha voltasse a demonstrar agressividade.
– Responda – exigiu Qhuinn. – Ela corre algum perigo?
– E-eu... – Havers engoliu em seco. – Não existem garantias na medicina. De modo geral, eu diria que não; ela é saudável em relação ao resto, e o aborto parece estar seguindo seu curso costumeiro. Além disso...
Enquanto o médico continuava a falar, Layla percebeu que seu tom educado e refinado estava muito mais irregular do que na noite anterior.
Tudo regrediu, sua audição sumiu, junto a qualquer percepção de temperatura do quarto, a cama debaixo dela, bem como os outros corpos ao seu redor. A única coisa que enxergava eram os olhos descombinados de Qhuinn.
Seu único pensamento enquanto ele segurava aquela adaga junto ao pescoço do médico?
Mesmo não estando apaixonados um pelo outro, ele era exatamente o pai que queria que seu filho tivesse. Desde que tomara a decisão de participar do mundo real, ela aprendera o quanto a vida podia ser dura, como os outros podiam conspirar contra você e como, às vezes, a força baseada em seus princípios era a única coisa que o fazia atravessar a noite.
Qhuinn dispunha desse último aos montes.
Ele era um extraordinário e temível protetor, e era exatamente disso que uma fêmea precisava quando estava grávida, amamentando ou cuidando de um bebê.
Isso e sua gentileza inata o tornavam nobre a seu ver.
A cor dos seus olhos não importava.
Quase oitenta quilômetros ao sul de onde Havers molhava as calças de tanto medo em sua clínica, Assail estava atrás do volante de seu Range Rover, balançando a cabeça em descrença.
As coisas ficavam cada vez mais interessantes com aquela mulher.
Graças ao GPS, ele rastreara o Audi de longe quando ela decidira sair de seu bairro e tomar a Northway. A cada saída de subúrbio, ele esperava que ela a tomasse, mas enquanto eles deixavam Caldwell para trás para comer poeira, ele começou a pensar que talvez ela estivesse seguindo para Manhattan.
Nada disso.
West Point, o lar da venerável escola militar humana, ficava aproximadamente na metade do caminho entre a cidade de Nova York e Caldwell, e quando ela saiu da autoestrada àquela altura, ele ficou aliviado. Muitas coisas aconteciam lá naquela terra em que o código postal começava com 100, e ele não queria se distanciar muito de sua base por dois motivos: um, ainda não tivera notícias dos gêmeos quanto à aparição daqueles intermediários fuleiros, e, dois, a aurora surgiria em algum momento, e ele não apreciava a ideia de abandonar seu muito modificado e reforçado Range Rover no acostamento de uma estrada caso precisasse se desmaterializar de volta para a sua segurança.
Uma vez fora da estrada, a mulher prosseguiu a exatos setenta quilômetros por hora pela seleção de postos de combustível, hotéis turísticos e lanchonetes da cidade. Em seguida, do outro lado dessa coleção de lugares baratos, as coisas começaram a ficar mais caras. Casas grandes, do tipo que ficavam bem ao fundo de gramados que se pareciam com carpetes, começaram a aparecer, com seus muros de pedra baixos placidamente se aglomerando próximos à estradinha. Ela passou por todas essas propriedades, porém, para acabar parando no estacionamento de um parque que dava para a margem de um rio.
Assim que ela saiu do carro, ele passou por ela, virando a cabeça para trás para medi-la.
Uma centena de metros mais adiante, fora do campo de visão dela, Assail parou o carro no acostamento da estradinha, saindo para o vento enregelante, abotoando o casaco até o alto. Os sapatos não eram os ideais para caminhar sobre a neve, mas ele não se importou. Seus pés suportariam o frio e a umidade, e ele tinha outra dúzia de pares à sua espera no armário de sua casa.
Como o carro dela, e não o corpo, estava com o aparelho de rastreamento, ele manteve o olhar fixo nela. Como esperado, ela vestiu os esquis de cross-country e, depois, com uma máscara branca de esqui sobre a cabeça e roupa de camuflagem clara a lhe cobrir o corpo, ela praticamente desapareceu em meio ao cenário de inverno.
E ele a acompanhou.
Aparecendo a cada dez ou quinze metros, ele encontrou pinheiros para se esconder conforme ela avançava na direção de mansões, os esquis devorando o chão coberto de neve.
Ele concluiu, enquanto mantinha o compasso, antecipando a direção que ela tomaria e, em boa parte adivinhando, que ela iria para uma daquelas mansões.
Toda vez que ela passava por ele sem saber que ele estava em meio às árvores, seu corpo queria saltar. Para derrubá-la. Para mordê-la.
Por algum motivo, aquela humana o deixava faminto.
E brincar de gato e rato era algo muito erótico, especialmente se só o gato soubesse que o jogo estava valendo.
A propriedade na qual ela acabou se infiltrando ficava a quase dois quilômetros dali, mas, apesar da distância, o ritmo puxado daquelas pernas não diminuiu em nada. Ela entrou pelo lado direito do gramado da frente, aproximando-se de um muro de sempre-vivas, depois retomando seu curso.
Aquilo não fazia sentido. Se ela fosse descoberta, estava muito longe do carro. Por certo uma abordagem mais próxima teria feito mais sentido? Afinal, de qualquer modo, agora ela estava exposta, sem árvores para lhe servir de cobertura, nenhuma possível defesa contra uma acusação de invasão de propriedade se a vissem.
A menos que ela conhecesse o dono. E, nesse caso, por que se esconder e aparecer sorrateira no meio da noite?
O jardim de uns 30 mil metros quadrados gradualmente se elevava em direção a uma casa de pedras de uns 180 metros quadrados, com esculturas modernistas paradas como sentinelas brilhantes e cegas ante aquela aproximação, o gramado continuando pelo fundo. O tempo inteiro ela se ateve àquele muro e, observando-a a uns vinte metros de distância, ele se viu impressionado por ela. Contra a neve, ela se movia como uma brisa o faria, invisível e rápida, a sombra lançada contra o muro de pedras de tal modo que ela parecia desaparecer...
Ahhhh...
Ela escolhera aquela rota exatamente por isso, não?
Sim, de fato, o ângulo do luar lançava a sombra dela exatamente sobre as pedras, criando uma camuflagem ainda mais eficiente.
E aquela sensação estranha se intensificou nele.
Esperta.
Assail avançou, encontrando um esconderijo entre a vegetação na lateral da casa. De perto, notou que a mansão não era nova, embora também não fosse antiga – mesmo porque, no Novo Mundo, era raro se deparar com algo construído antes do século XVIII. Muitas janelas chumbadas. E varandas. E terraços.
Conclusão? Fortuna e distinção.
Sem dúvida, muito bem protegidas por inúmeros alarmes.
Parecia muito improvável que ela só fosse espiar a propriedade como fizera na dele. Para começar, havia uma extensão arborizada do lado oposto daquele muro de pedras que ela atravessara. Ela poderia ter estacionado os esquis, subido aquela moita de uns quatro a seis metros, e obtido uma vista privilegiada da casa. O que mais? Nesse caso, ela não precisaria de nada do que estava na mochila que lhe pesava nas costas.
A coisa parecia grande o bastante para transportar um corpo, e estava cheia.
Como se tivessem combinado, ela parou, pegou os binóculos e inspecionou a propriedade, ficando absolutamente imóvel com somente a cabeça a se mexer. E depois atravessou o gramado, movendo-se ainda mais rapidamente do que antes, a ponto de estar literalmente correndo em direção à casa.
Na direção dele.
De fato, ela seguia diretamente para Assail, para aquela junção entre arbustos que marcava a frente da mansão, para a sebe alta que corria ao redor do jardim dos fundos.
Obviamente, ela conhecia a propriedade.
Obviamente, ele escolhera o lugar perfeito.
Ante a aproximação dela, ele recuou apenas um pouco... porque não teria se importado em ser flagrado espiando.
A mulher esquiou mais uns dois metros além de onde ele se encontrava, aproximando-se tanto que ele conseguiu captar o cheiro dela não só em seu nariz, mas também no fundo da garganta.
Ele teve que se refrear para não ronronar.
Depois do esforço em atravessar aquela faixa de gramado com tanta rapidez, ela estava arfando, mas seu sistema cardiovascular se recuperou rápido – um sinal de sua boa saúde e vigor. E a velocidade com a qual ela agora se movia foi igualmente erótica. Tirando os esquis. Tirando a mochila. Abrindo a mochila. Extraindo...
Ele deduziu que ela subiria no telhado, enquanto ela montava o que parecia ser um lança-arpão. Ela mirou a coisa para cima, apertou o gatilho para atirar um gancho. Um instante depois houve o som de um metal se agarrando no alto.
Quando olhou para cima, ele percebeu que ela escolhera uma das poucas extensões de pedra sem janelas... e protegida pela sebe enorme na qual ele mesmo se escondia.
Ela ia entrar.
Àquela altura, Assail franziu o cenho... e desapareceu de onde a observava.
Reaparecendo nos fundos da casa no andar de baixo, ele espiou por várias janelas, apoiando as laterais das mãos no vidro ao se inclinar. O interior estava basicamente escuro, mas não completamente: aqui e acolá havia abajures acesos, as lâmpadas emitindo uma luz alaranjada sobre a mobília que era uma combinação de objetos antigos e arte moderna. Luxuoso que só: em seu sono pacífico, o lugar se parecia com um museu, ou algo que se fotografaria para uma revista, tudo muito bem organizado com uma precisão que haveria de se perguntar se réguas tinham sido utilizadas para dispor a mobília e os objetos de arte.
Nenhuma bagunça em lugar algum, nenhum jornal largado sem querer, nada de cartas, contas, recibos. Nenhum casaco sobre o espaldar de uma cadeira ou um par de sapatos abandonados ao lado do sofá.
Cada um dos cinzeiros imaculadamente limpos.
Somente uma pessoa lhe veio à mente.
– Benloise – sussurrou para si mesmo.
CAPÍTULO 36
Baseando-se nas vibrações regulares que vinham de seu bolso, Xcor sabia que a sua presença estava sendo desejada pelos seus lutadores.
Ele não atendeu.
Parado do lado de fora do prédio para o qual a sua Escolhida fora conduzida, ele não tinha forças nem para sair mesmo quando o fluxo de outros de sua espécie surgia em carros ou materializando-se diante do portal pelo qual ela fora levada. De fato, como tantos entraram e saíram, não havia dúvidas de que aquela era uma clínica médica.
Pelo menos ninguém parecia notá-lo, estando preocupados demais com o que os afligia, apesar do fato de ele estar parado no meio do caminho.
Ah, deuses, só o pensamento do que trouxera a sua Escolhida ali o nauseava ao ponto de ele ter de pigarrear e...
Inspirar o ar frio para dentro dos seus pulmões ajudou a conter a ânsia de vômito.
Quando o cio dela acontecera? Devia ter sido muito recentemente. Da última vez em que a vira...
Quem seria o pai?, perguntou-se pela centésima vez. Quem tomara o que era seu...
– Não seu – ele disse para si mesmo. – Não seu.
Só que era a sua mente dizendo isso e não os seus instintos. Em seu cerne, na parte mais máscula da sua essência, ela era a sua fêmea.
E, ironicamente, era isso o que o impedia de atacar a clínica – com todos os seus soldados, se necessário. Se ela estava recebendo cuidados, a última coisa que ele queria era interromper o processo.
Enquanto o tempo passava e a ausência de informações o torturava até a insanidade, ele percebeu que desconhecera a existência daquele lugar. Se ela fosse dele? Ele não teria sabido onde levá-la para obter ajuda, certamente teria mandado Throe encontrar algum lugar, de algum modo, para garantir os cuidados dela, mas e no caso de uma emergência? Uma hora ou duas procurando um curandeiro poderia significar a diferença entre a vida e a morte.
A Irmandade, por sua vez, soube exatamente onde levá-la. E quando ela recebesse alta daquele lugar, sem dúvida, eles a levariam de volta a um lugar aquecido, seguro, onde teria alimento abundante e uma cama macia, e a força valente de pelo menos seis guerreiros para protegê-la enquanto dormisse.
Irônico como ele se sentia à vontade com isso. Mas, pensando bem, a Sociedade Redutora era um adversário muito sério; e digam o que quiserem a respeito da Irmandade, eles provaram durante toda a eternidade serem defensores capazes.
Abruptamente, seus pensamentos se voltaram para o armazém em que ele e seus soldados vinham ficando. Aquele ambiente úmido, frio, hostil era, na verdade, apenas um degrau acima dos outros lugares em que levantaram acampamento. Se ela estivesse com ele, como a manteria? Nenhum macho jamais poderia vê-la em sua presença, especialmente se ela tivesse de trocar de roupa ou se banhar...
Um rugido se infiltrou em sua garganta.
Não. Nenhum macho colocaria os olhos na pele dela ou ele o esfolaria vivo...
Ah, Deus, ela se vinculara a outro. Abrira-se e aceitara outro macho dentro de suas carnes sagradas.
Xcor abaixou o rosto entre as mãos, a dor em seu peito fazendo-o cambalear em suas botas de combate.
Deve ter sido o Primale. Sim, claro, ela se deitara com Phury, filho de Ahgony. Era esse o único modo com que as Escolhidas se procriavam, se a sua memória e os boatos estivessem certos.
Instantaneamente, sua mente ficou enevoada com a imagem do rosto perfeito e da silhueta delgada. Pensar que outro a desnudara e cobrira-lhe o corpo com o dele...
Pare, ele se ordenou. Pare com isso.
Arrastando sua mente para longe dessa loucura, ele se desafiou a definir qualquer tipo de hospedagem que poderia propiciar a ela. Em qualquer circunstância.
O único pensamento que lhe ocorreu foi voltar e matar aquela fêmea de quem seus soldados se alimentaram. Aquele chalé parecera bem tranquilo e adorável...
Mas para onde iria sua Escolhida durante o dia?
E, além disso, ele jamais a envergonharia permitindo que ela sequer andasse sobre o tapete onde todo aquele sexo acontecera.
– Com licença.
Xcor buscou a pistola dentro da jaqueta ao dar meia-volta. Só que não havia necessidade de usar força bruta – era apenas uma fêmea pequena com seu filho. Ao que tudo levava a crer, eles tinham saído de um utilitário estacionado a poucos metros dele.
Enquanto a criança se escondia atrás da mãe, os olhos da fêmea se arregalaram de medo.
Mas, pensando bem, quando se tropeça num monstro, sua presença dificilmente é recebida com alegria.
Xcor se curvou profundamente, em grande parte porque a visão do seu rosto por certo não estava melhorando a situação.
– Sim, como não...
Dito isso, ele recuou e virou, voltando ao posto originalmente ocupado. Na verdade, não percebera o quanto tinha se exposto.
E ele não queria brigar. Não com a Irmandade. Não com a sua Escolhida daquele modo. Não... ali.
Fechando os olhos, desejou poder voltar para aquela noite quando Zypher o levara para a campina e Throe, com o subterfúgio de ajudá-lo, o condenara àquele tipo de morte em vida.
Um macho vinculado que não podia estar com sua fêmea?
Morto apesar de viver...
Sem aviso, o portal foi puxado para trás e sua Escolhida surgiu. Instantaneamente, os instintos de Xcor gritaram para que ele agisse, apesar de todos os motivos para deixá-la em paz.
Leve-a! Agora!
Mas ele não o fez: as expressões sérias daqueles que a protegiam com tamanho cuidado o imobilizaram: notícias ruins foram dadas durante a estada deles ali.
Como antes, só faltaram carregá-la até o veículo.
E o cheiro do sangue dela ainda pairava no ar.
Sua Escolhida foi acomodada no banco traseiro do sedã, com a fêmea ao lado dela. Depois, Phury, filho de Ahgony, e o guerreiro de olhos descombinados entraram na frente. O veículo foi virado bem lentamente, como que por preocupação com a carga preciosa no compartimento traseiro.
Xcor os seguiu, materializando-se de tempos em tempos acompanhando a velocidade crescente na estrada rural ao fim da rua, e depois na autoestrada. Quando o carro chegou à ponte, ele mais uma vez o viu do mais alto esteio e depois que sua fêmea passou debaixo dele, ele saltou de telhado em telhado enquanto o sedã dava a volta no centro da cidade.
Ele rastreou o carro seguindo ao norte até sair da autoestrada e entrar numa região rural.
Continuou com ela o tempo inteiro.
E foi assim que ele descobriu a localização da Irmandade.
CONTINUA
CAPÍTULO 27
Assomando-se acima de Qhuinn, Blay estava anormalmente ciente de tudo ao seu redor: a sensação da mão de Qhuinn atrás da sua perna, o modo como a bainha do roupão resvalava sua canela, o cheiro do sexo permeando o ar.
De tantos modos, ele quisera aquilo a vida inteira. Ou pelo menos, desde que sobrevivera à transição e teve algum tipo de impulso sexual. Aquele momento era o ápice de sonhos incontáveis e de inúmeras fantasias, seu desejo secreto sendo manifestado.
E era sincero: os olhos descombinados de Qhuinn não tinham sombras, nem dúvidas. O macho não só dizia a mais absoluta verdade que lhe passava pelo coração, mas estava em paz por se expor com tanta vulnerabilidade.
Blay cerrou as pálpebras brevemente. Aquela submissão era o oposto de tudo o que definia Qhuinn como macho. Ele nunca se entregava; não os seus princípios, não as suas armas, nunca, jamais a si mesmo. Pensando bem, a reviravolta fazia algum sentido. O enfrentamento da morte tendia a ser seguido por revelações...
A questão era que ele tinha a sensação de que aquilo não duraria. Aquela “visão desobstruída” sem dúvida estava ligada à viagem de avião, mas tal qual uma vítima de ataque cardíaco voltando à antiga dieta deplorável pouco depois, a “revelação” provavelmente não teria vida longa. Sim, Qhuinn estava sendo sincero quanto ao que dizia naquele momento inebriante, não havia dúvida alguma quanto a isso. No entanto, era difícil acreditar que aquilo seria permanente.
Qhuinn era o que era. E muito em breve, depois que o choque fosse absorvido – talvez ao cair da noite, quem sabe na semana seguinte, ou dali a um mês – ele voltaria ao seu modo de ser fechado, distante, à parte.
Decisão tomada, Blay voltou a abrir os olhos e se inclinou. Quando os rostos se aproximaram, os lábios de Qhuinn se partiram, o inferior, carnudo, pulsava como se ele já tentasse saborear o que desejava... e se deleitava.
Merda. O lutador era tão magnífico, o peito nu poderoso reluzindo na luz do abajur, a pele transportando uma camada de excitação, os mamilos perfurados se elevando e descendo conforme a pulsação desenfreada do sangue aquecido.
Blay percorreu a mão pelos músculos do braço que os ligava, desde a espessura grossa do ombro até a protuberância do bíceps e a curva entalhada do tríceps.
Retirou a palma de sua coxa.
E se afastou.
Qhuinn empalideceu a ponto de ficar acinzentado.
No silêncio, Blay nada disse. Não conseguiria. Sua voz havia desaparecido.
Em pernas cambaleantes, ele se distanciou, a mão envolvendo a maçaneta até conseguir coordenação suficiente para abrir a saída. Saindo, ele não saberia dizer se bateu a porta ou se a fechou silenciosamente.
Não foi muito longe. Pouco mais de um metro além do quarto, ele desabou ao encontro da parede lisa e fria do corredor.
Ofegando. Estava ofegando.
E todo aquele esforço de nada adiantaria. A sufocação no peito só piorava e, subitamente, sua visão foi substituída por quadrados em preto e branco de um tabuleiro de xadrez.
Deduzindo que estava prestes a desmaiar, agachou-se e colocou a cabeça entre os joelhos. Nos recessos da mente, rezou para que o corredor continuasse vazio. Aquele não era o tipo de coisa que gostaria de explicar para ninguém: estava do lado de fora do quarto de Qhuinn, obviamente excitado, o corpo tremendo como se um terremoto particular estivesse acontecendo...
– Jesus Cristo...
Quase morri hoje... e isso endireita as pessoas. Lá em cima naquele avião, olhando para a noite escura, não achei que fosse conseguir. Tudo ficou claro para mim.
– Não – Blay disse em voz alta. – Não...
Apoiando a cabeça nas mãos, tentou respirar calmamente, pensar racionalmente, agir sensatamente. Não poderia se dar ao luxo de se afundar ainda mais naquilo...
Aqueles olhos quentes, brilhantes, descombinados eram o que o atraiam.
– Não – sibilou.
Enquanto a voz ressoava em seu crânio, ele resolveu se dar ouvidos. Chega. Aquilo não poderia ir adiante.
Há tempos perdera o coração para aquele macho.
Não havia motivos para perder a alma também.
Uma hora mais tarde, talvez duas, ou seis, Qhuinn estava deitado nu entre os lençóis frios, fitando o escuro do teto que não conseguia enxergar.
Aquela era a dor horrível que Blay sentira? Como na vez em que fora procurá-lo no porão da casa dos pais dele e disse estar preparado para partir de Caldwell, deixando bem claro que não haveria mais nenhum laço entre eles? Ou talvez na vez em que se beijaram na clínica e Qhuinn se recusara a ir em frente? Ou naquela derradeira colisão quando eles quase ficaram juntos, pouco antes do primeiro encontro de Blay com Saxton?
Um maldito vazio enorme.
Como aquele quarto, na verdade: sem iluminação e essencialmente vazio, apenas quatro paredes e um teto. Ou um saco de pele e um esqueleto, como era o caso.
Levantando a mão, colocou-a sobre o coração, só para se certificar de que ainda tinha um.
Caramba, o destino tinha um jeito de lhe ensinar as coisas que você precisava saber, mesmo se você não estivesse ciente de que a lição era necessária até ela ser apresentada: ele desperdiçara tempo demais envolvido consigo mesmo e o seu defeito, e seu fracasso perante a família e a sociedade. Um emaranhado confuso em que se metera por tempo demais e Blay, porque se importara, fora sugado naquele turbilhão.
Mas quando foi que apoiara o amigo? O que de fato fizera pelo cara?
Blay estivera certo ao sair daquele quarto. Um pouco tarde demais, não era o ditado? E não que Qhuinn estivesse oferecendo algum tipo de prêmio. Debaixo da superfície, ele não estava muito mais estável, na verdade. Não estava mais em paz.
Não, ele merecia aquilo...
Uma centelha de luz amarelo-esverdeada fatiou o seu campo negro de visão, como se a escuridão fosse um tecido e o facho de luz uma faca.
Uma figura entrou sorrateira no seu quarto, silenciosamente, e fechou a porta.
Pelo cheiro, ele soube quem era.
O coração de Qhuinn começou a bater forte quando ele se endireitou nos travesseiros.
– Blay...?
Houve um ruído sutil, o roupão escorregando pelos ombros do macho alto. Em seguida, momentos depois, o colchão foi pressionado quando um peso grande, vital, subiu nele.
Qhuinn esticou a mão no escuro com acuidade certeira, as mãos encontrando as laterais do pescoço de Blay com tanta precisão como se tivessem sido direcionadas pela visão.
Nenhuma conversa. Ele temia que as palavras lhe roubassem aquele milagre.
Elevando a boca, puxou a de Blay para a sua, e quando aqueles lábios de veludo estavam perto de seu campo de atuação, ele os beijou com um desespero que foi retribuído. De uma vez só, todo o passado reprimido foi libertado com fúria e ele sentiu o gosto de sangue, sem saber quais foram as presas que rasgaram o outro.
E quem se importava?
Com um puxão forte, deitou Blay e depois rolou por cima do macho, afastando-lhe as coxas e pressionando-se até que o membro rijo se deparasse com...
Os dois gemeram.
Tonto por causa de tanta pele nua, Qhuinn começou a bombear os quadris para frente e para trás, a fricção dos sexos e a pele quente aumentando o calor úmido em suas bocas. Frenesi, em toda parte, rápido, depressa, rápido... Puta merda, havia desejo demais para entender onde suas mãos estavam, ou no que ele se esfregava ou... Porra, havia pele demais para tocar, cabelos para puxar, tanta coisa, demais...
Qhuinn gozou, as bolas endurecendo, a ereção jorrando entre eles, espalhando-se por todos os lados.
E isso não o desacelerou em nada.
Com um puxão, afastou-se da boca que poderia passar uma centena de anos beijando, lançou-se sobre o peito de Blay. Os músculos com que se deparava não se comparavam com os dos humanos com quem transara: aquilo era um vampiro, um lutador, um soldado treinado arduamente que exercitava o corpo para atingir uma condição não só útil, mas essencialmente letal. Caramba se aquilo não era ex-citante... mas, acima de tudo, aquele era Blay; finalmente, depois de todos aqueles anos...
Blay.
Qhuinn resvalou as presas por um abdômen que era sólido como uma rocha, e o seu cheiro na pele de Blay era uma marcação que sabia que fizera de propósito.
Aquele tempero forte também iria para outros lugares.
Gemeu quando as mãos encontraram o pênis de Blay e, enquanto circundava a coluna rija, o cara se arqueou profundamente, uma imprecação atravessando o quarto, de modo bem semelhante ao que a luz fizera pouco antes.
Qhuinn lambeu os lábios, elevou o sexo de Blay e permitiu que o pênis grosso e ousado partisse sua boca. Sugando, tomou-o até a base, abrindo a garganta, engolindo tudo. Em resposta, os quadris de Blay se elevaram, e mãos brutas cravaram em seus cabelos, forçando a cabeça ainda mais para baixo até que ele não conseguisse mais levar ar aos pulmões. Mas quem é que precisava de oxigênio?
Afundando as mãos nas nádegas de Blay, inclinou aquela pélvis e subiu e desceu, o pescoço se esticando com o ritmo punitivo, os ombros flexionando e relaxando enquanto ele executava exatamente aquilo que oferecera a Blay antes de ele ir embora.
Ele não pretendia fazer apenas aquilo, porém.
Não.
Era apenas o começo.
CAPÍTULO 28
Quando Blay caiu contra os travesseiros de Qhuinn, quase partiu a coluna. Tudo estava fora de controle, mas ele não teria desacelerado em nada as coisas: os quadris subiam e desciam, o pau empurrava e era chupado pela boca de Qhuinn...
Graças a Deus as luzes estavam apagadas.
Só as sensações já eram demais. Com um auxílio visual? Ele não conseguiria...
O orgasmo disparou como um foguete, a respiração ficou suspensa, o corpo enrijeceu todo, o sexo gozando ao máximo. Ao chegar ao clímax em grandes espasmos, ele foi ordenhado por aquela boca... e, caramba, a sucção incitou o alívio a continuar, com grandes ondas de prazer pulsante varrendo-o do cérebro até as bolas, seu corpo atingindo um plano de existência completamente diferente...
Sem aviso, ele foi virado por uma mão brusca, o corpo manejado como se não pesasse absolutamente nada. Em seguida, um braço passou por baixo de sua pélvis e o colocou de joelhos. Houve uma breve calmaria na qual tudo o que ele ouviu foi a respiração pesada atrás dele, o arquejo aumentando cada vez mais, mais fundo...
Ouviu o orgasmo de Qhuinn e entendeu exatamente o motivo.
Mesmo seu corpo inteiro estando fraco de antecipação, ele sabia que tinha de se preparar quando uma mão pesada aterrissou em seu ombro e...
A penetração foi como um ferro de marcar, quente e brutal, atingindo direto o seu cerne. E ele praguejou numa exalação explosiva. Não porque doesse, ainda que do melhor modo possível. Nem mesmo porque aquilo era algo que ele tanto desejara, se bem que isso fosse verdade.
Não. Era porque ele teve a estranha sensação de estar sendo marcado e, por algum motivo, isso fez com que...
Um sibilo atingiu-o no ouvido, e depois um par de presas cravou-se em seu ombro, a pegada de Qhuinn mudando na altura dos quadris, o torso enroscado em tantos lugares. E, então, quando a penetração inexorável começou, os molares de Blay se cerraram, os braços tiveram que suportar o peso dos dois, as pernas e o torso se esforçaram debaixo do ataque.
Ele teve a sensação de que a cabeceira da cama batia contra a parede e por um centésimo de segundo, lembrou-se do candelabro na biblioteca oscilando enquanto Layla fora sujeitada àquilo.
Blay amaldiçoou a imagem. Não se permitiria ir lá; não poderia. Deus bem sabia que haveria muito tempo para refletir sobre tudo aquilo mais tarde.
Naquele instante? Aquilo era bom demais para ser desperdiçado...
Enquanto o açoite continuava, suas palmas escorregaram nos lençóis de algodão fino, e ele teve que reposicioná-las, afundando-as no colchão macio para tentar sustentar sua posição. Deus, os sons que Qhuinn fazia, os rosnados que reverberavam entre as presas enterradas em seu ombro, as estocadas... ah, sim, isso era a cabeceira. Definitivamente.
Com a pressão se avolumando em suas bolas, ele se sentiu tentado a se espalmar, mas não havia como. Ele precisava das duas mãos naquele trabalho...
Como se Qhuinn lesse sua mente, o macho passou o braço ao seu redor e o agarrou.
Não era necessário masturbá-lo. Blay gozou tão violentamente que sua mente ficou difusa e, naquele exato instante, Qhuinn começou a ter um orgasmo também, os quadris movendo-se para dentro, parando um segundo antes de recuarem só para afundarem ainda mais antes da explosão. E, ah, porra, a combinação dos dois fazendo suas coisas era tão erótica que só fez com que tudo recomeçasse mais uma vez: não houve intervalo para se recuperarem, absolutamente nenhuma pausa. Qhuinn apenas retomou as investidas como se seu alívio o tivesse fortalecido.
Enquanto o sexo se estendia, e apesar de toda a força que Blay tinha em seus membros superiores, ele acabou caindo da cama, uma mão travando na lateral da mesinha de cabeceira só para que ele não batesse na parede...
Crash!
– Merda – disse ele rouco. – O abajur...
Ao que tudo levava a crer, Qhuinn não estava interessado em decoração. O macho simplesmente puxou a cabeça de Blay e começou a beijá-lo, a língua com piercing penetrando sua boca, lambendo e sugando... como se não conseguisse se fartar.
Tontura. Ele ficou absolutamente tonto com tudo aquilo. Em cada fantasia que teve, ele sempre visualizou Qhuinn como um amante impetuoso, mas aquilo... aquilo estava num outro nível.
Por isso, foi ao longe que ele se ouviu dizer numa voz gutural:
– Morda... de novo.
Um grunhido imenso vindo de cima perpassou seu ouvido, e depois outro sibilo atravessou a escuridão quando Qhuinn mudou as posições, seu peso massivo girando para que as presas pudessem afundar na lateral do pescoço.
Blay praguejou e empurrou para longe o que quer que tivesse restado sobre a mesinha de cabeceira, o peito tomando o lugar dos objetos, a pele suada chiando no verniz enquanto ele jazia meio de lado. Esticando a mão, ele se apoiou na tábua do piso e empurrou para cima, mantendo os dois estáveis enquanto Qhuinn se alimentava e o penetrava tão magnificamente bem...
Vezes demais para contar, até os travesseiros estarem no chão, os lençóis rasgados, outro abajur destruído... e não estava muita certo, mas ele achava que tinha derrubado um quadro da parede.
Quando a imobilidade por fim substituiu todo aquele esforço, Blay respirou fundo e se sentiu como se estivesse submerso.
O mesmo se passava com Qhuinn.
O aumento da trajetória úmida no pescoço de Blay sugeria que as coisas ficaram tão descontroladas que não houve o fechamento da veia que fora sugada. E quem se importava? Ele não, nem conseguia pensar, e não se preocuparia. As sensações pós-coito de flutuação e êxtase eram gloriosas demais para serem estragadas, o corpo estava ao mesmo tempo hipersensível e entorpecido, quente e brando, dolorido e saciado.
Caramba, os lençóis teriam de ser lavados. E Fritz indubitavelmente teria de encontrar uma supercola para aqueles abajures.
Onde exatamente ele estava?
Esticando a mão, tateou e descobriu o tapete e a saia da cama... além de uma manta. Ah, bom, estava quase caindo pela ponta da cama. O que explicava a tontura que sentia.
Quando Qhuinn, por fim, soltou-se dele, Blay quis acompanhá-lo, mas seu corpo estava muito mais interessado em ser um objeto inanimado. Ou um rolo de tecido ou, quem sabe...
Mãos gentis o suspenderam e, com cuidado e devagar, rolaram-no de costas. Houve mais um pouco de movimentação e depois ele se sentiu reposicionado contra os travesseiros que retornaram ao seu devido lugar. Enfim, uma manta leve foi ajustada na metade do seu corpo, como se Qhuinn soubesse que ele estava muito quente para ser coberto demais e, ainda assim, começava a sentir um friozinho enquanto o suor que o cobria começava a secar.
Seu cabelo foi empurrado para longe da testa e, em seguida, sua cabeça foi ajeitada para o lado. Lábios de seda beijaram a coluna de seu pescoço e, depois, lambidas longas e langorosas selaram a mordida que ele pedira e recebera.
Quando tudo terminou, deixou que sua cabeça fosse ajeitada para o lado de Qhuinn. Ainda que estivesse absolutamente escuro, ele sabia exatamente como o rosto que o fitava estava: ruborizado nas maçãs do rosto, as pálpebras semicerradas, os lábios vermelhos...
O beijo pressionado em sua boca foi reverente, o contato não mais pesado do que o ar quente e estático do quarto. Era o beijo perfeito de um amante, o tipo de coisa que ele desejava mais do que o sexo ardente que partilharam...
O pânico golpeou o centro do seu peito e ressoou para fora num piscar de olhos.
As mãos agiram por vontade própria, empurrando Qhuinn.
– Não me toque. Nunca mais me toque assim.
Deu um salto da cama e só Deus sabia em que parte do quarto ele aterrissou. Hesitante, tateou pelo aposento, mas acabou se orientando pela luz que passava por baixo da porta.
Apanhando o roupão no chão, não olhou para trás ao sair.
Não suportaria encarar o resultado daquilo tudo em nenhum tipo de luz.
Isso só tornaria tudo aquilo muito real.
Em algum momento, Qhuinn teve que fazer com que as luzes se acendessem. Não suportava mais a escuridão.
Quando a iluminação inundou o lugar, ele piscou e teve que amparar os olhos com a mão. Depois de recalibrar as retinas, olhou ao redor.
Caos. Total e absoluto.
Então tudo aquilo acontecera mesmo, hein. E quanta ironia que o interior da sua cabeça fizesse com que aquela bagunça parecesse uma ordem militar em comparação.
Nunca mais me toque assim.
Ah, inferno, pensou ele ao esfregar o rosto. Não poderia culpar o cara.
Primeiro, demonstrara a mesma finesse de uma escavadeira. Bola de demolição. Tanque de guerra. O problema era que tudo aquilo fora intenso demais para demonstrar qualquer traço de paciência: o instinto, tão puro e tão inflamável quanto combustível, o acendera; a sessão fora um caso de deixar as coisas rolarem.
Oh, Deus, marcara o cara.
Caralho. E não exatamente no bom sentido, considerando que Blay estava apaixonado e envolvido num relacionamento... e voltando para a cama do amante.
Mas, pensando bem, quando um macho está com quem ele quer, especialmente se é a primeira vez, era isso mesmo o que acontecia. As coisas saíam do controle...
Nem era preciso dizer que aquele fora o melhor sexo de sua vida, a primeira vez de perfeito encaixe depois de uma longa história de “nem de longe”. A questão foi que, no fim, ele quis que Blay soubesse disso, tentou encontrar as palavras e se apoiou no toque para pavimentar o caminho da confissão.
Contudo, ficou evidente que o macho não queria ter essa proximidade.
O que provocou um segundo, e mais profundo, arrependimento.
Sexo por desforra não se tratava de atração, mas sim de utilidade. E Blay o usara, do modo como ele pedira para ser usado.
Aquela sensação de vazio voltou multiplicada por dez. Por cem.
Sem conseguir suportar a emoção, pôs-se de pé, e teve que praguejar: a rigidez notável na lombar tinha tudo a ver com o acidente de avião e mais ainda com a pneumática que realizara na última hora... ou mais...
Merda.
Indo para o banheiro, deixou as luzes apagadas, mas havia iluminação suficiente vinda do quarto para ele conseguir entrar no chuveiro. Dessa vez, esperou a água esquentar; seu corpo não suportaria mais um choque.
Era tão patético; a última coisa que desejava era lavar o cheiro de Blay de sua pele, mas estava enlouquecendo com ele. Deus, devia ser assim que todos os hellrens se sentiam quando ficavam possessivos: metade do seu juízo dizia que ele devia descer o corredor, invadir o quarto de Blay e expulsar Saxton. A bem da verdade, teria adorado que o primo tivesse testemunhado, só para o cara saber que...
Para interromper aquele nada saudável curso de pensamentos, entrou no box envidraçado e pegou o sabonete.
Blay estava envolvido, tentou se lembrar disso, mais uma vez.
O sexo que partilharam não se referia à conexão emocional.
Portanto, ele estava, nesse momento de vazio, sendo passado para trás pela sua própria história.
Aquele parecia ser mais um caso em que o destino lhe dava aquilo que ele merecia.
Enquanto se lavava, o sabonete não era nada macio se comparado com a pele de Blay, nem cheirava um quarto do perfume do cara. A água não era tão quente quanto o sangue do lutador e o xampu, nada tranquilizador. Nada se equiparava.
Nem jamais conseguiria.
Enquanto Qhuinn virava o rosto para o jato e abria a boca, descobriu-se rezando para que Saxton pulasse a cerca mais uma vez, mesmo isso sendo uma coisa deplorável de se desejar.
O problema era que ele tinha a terrível sensação de que outro caso de infidelidade seria a única maneira de Blay voltar para ele.
Fechando os olhos, voltou para aquele momento em que beijou Blay no fim... em que o beijou de verdade, quando as bocas se encontraram gentilmente na calmaria após a tempestade. Enquanto sua mente reescrevia o roteiro, ele não era empurrado para o outro lado dos limites que ele mesmo criara. Não, em sua imaginação, as coisas terminavam como teriam de terminar, com ele afagando o rosto de Blay e fazendo as luzes se acenderem para que pudessem se olhar.
Em sua fantasia, ele beijaria seu amigo uma vez mais, se afastaria e...
– Eu te amo – disse ele para o jato de água. – Eu... te amo.
Ao fechar os olhos novamente ante a dor, ficou difícil saber quanto daquilo que descia pelo seu rosto era água e quanto era outra coisa.
CAPÍTULO 29
No dia seguinte, bem no fim da tarde, o visitante de Assail voltou.
Enquanto o sol se punha e os raios rosados de sol atravessavam a floresta, ele viu em seu monitor uma figura solitária em esquis de cross-country, os bastões equilibrados contra os quadris, binóculos cobrindo o rosto.
Nos quadris dela, o rosto dela, melhor dizendo.
A boa notícia era que suas câmeras de segurança não só tinham um zoom fantástico, como também seu foco e campo de visão eram facilmente manipulados por um joystick de computador.
Por isso ele restringiu ainda mais a imagem.
Quando a mulher abaixou os binóculos, ele mediu o comprimento de cada cílio ao redor dos olhos escuros e calculistas, e as marcas avermelhadas das maçãs do rosto de poros pequenos, e o ritmo uniforme da pulsação da artéria que percorria a mandíbula.
O aviso que ele dera a Benloise fora recebido. E, ainda assim, lá estava ela.
Era evidente que ela estava, de algum modo, ligada ao atacadista de drogas; e na noite anterior, pelo visto, ela ficara irritada com Benloise, visto o modo como marchara para fora da galeria como se alguém a tivesse insultado.
Todavia, Assail nunca a vira antes, o que era estranho. No último ano, aproximadamente, ele se familiarizara com todos os aspectos da operação de Benloise, desde o número incalculável de seguranças, até a equipe irrelevante da galeria, incluindo os importadores astutos e o irmão do homem, responsável pelas finanças.
Portanto, ele só podia deduzir que ela era uma empreiteira independente, contratada para um propósito específico.
Mas por que, então, ela ainda estava em sua propriedade?
Verificou os números digitais na parte inferior da tela. Quatro e meia. Costumeiramente, não seria uma hora com que se alegrar, pois ainda era cedo demais para sair. Mas o horário de verão acabara, e aquela invenção humana de manipular o sol na verdade trabalhava a seu favor por seis meses no ano.
Estaria um pouco quente lá fora, mas ele lidaria com isso.
Assail se vestiu rapidamente, colocando o terno Gucci com uma camisa de seda branca e pegando o sobretudo trespassado de pelo de camelo. O seu par de Smith & Wesson calibre .40 era o acessório perfeito, claro.
O metálico seria sempre o novo preto.
Pegando o iPhone, franziu ao tocar a tela. Uma chamada de Rehvenge, com uma mensagem.
Saindo do quarto, acessou a mensagem de voz do lídher do Conselho e ouviu-a enquanto descia as escadas.
A voz do macho ia direto ao ponto, e isso era algo a se respeitar:
– Assail, você sabe quem é. Estou convocando uma reunião do Conselho e quero não apenas um quorum, mas presença completa; o Rei estará presente, bem como a Irmandade. Como macho sobrevivente mais velho da sua linhagem, você está na lista do Conselho, mas registrado como inativo porque permaneceu no Antigo País. Agora que está de volta, está na hora de começar a participar desses encontros festivos. Ligue para mim para me informar a sua agenda, para que eu possa organizar local e data conveniente a todos.
Parando ante a porta de aço que bloqueava a escada inferior, colocou o telefone no bolso de dentro, destravou a porta e a abriu.
O primeiro andar estava escuro por conta das persianas especiais que bloqueavam toda a luz solar, e a sala de estar imensa mais se parecia com uma caverna no centro da terra do que com uma gaiola envidraçada às margens do rio.
Da direção da cozinha vinha o barulho de fritura e o cheiro de bacon.
Caminhando na direção oposta, entrou no falso escritório recoberto com painéis de nogueira que cedera ao uso dos primos e passou para o quarto especial de dois metros quadrados, cuja temperatura era mantida em precisos vinte graus Celsius e umidade a exatamente 69%, perfumado pelo tabaco de dúzias e dúzias de caixas de charutos. Depois de ponderar sobre a fileira exposta, apanhou três cubanos.
Afinal, os cubanos eram os melhores.
E ali estava mais uma coisa que Benloise lhe fornecia por um preço.
Trancando a sua preciosa coleção, voltou à sala de estar. Já não havia barulho de fritura, o bater sutil de talheres nos pratos o substituíra.
Ao entrar na cozinha, os dois primos estavam sentados em bancos ante a bancada de granito, o par comendo no mesmo ritmo preciso, como num rufar de tambores, despercebido por outros, mas que regulava seus movimentos.
Os dois levantaram as cabeças no mesmo ângulo para olhar para ele.
– Estou de saída. Sabem como me localizar – disse.
Ehric limpou a boca.
– Localizei três daqueles intermediários desaparecidos... voltaram à ação, estão prontos para se mexer. Vou fazer a entrega à meia-noite.
– Bom, muito bom – Assail verificou rapidamente as armas. – Tente descobrir onde estavam, sim?
– Como quiser.
Os dois abaixaram as cabeças ao mesmo tempo, voltando ao desjejum.
Nada de comida para ele. Do lado da cafeteira, ele pegou um frasco de cor de âmbar e desatarraxou a tampa, que tinha uma colherinha de prata grudada a ela, e o objeto emitiu um tinido enquanto ele o enchia com cocaína. Uma aspirada.
Bom dia!
Ele levou o resto consigo, colocando-o no mesmo bolso dos charutos. Já fazia um tempo desde que se alimentara e estava começando a sentir os efeitos, o corpo preguiçoso, a mente tendendo a um entorpecimento desconhecido.
O lado negativo do Novo Mundo? Era difícil encontrar fêmeas.
Felizmente, cocaína pura era um bom substituto, pelo menos por enquanto.
Ajustando um par de óculos de sol de lentes opacas, passou pelo vestíbulo e se preparou para sair pela porta dos fundos.
Afastando a porta...
Assail se retraiu e gemeu ante o ataque, seu peso oscilando em seus sapatos: apesar de 99% do seu corpo estar coberto por camadas múltiplas de roupa, e mesmo de óculos escuros, a luz efêmera do céu era o bastante para que ele vacilasse.
No entanto, não havia tempo para ceder à biologia.
Esforçando-se para se desmaterializar até a floresta atrás da casa, pôs-se a rastrear a mulher próximo à escuridão. Foi bem fácil localizá-la. Ela estava batendo em retirada, movendo-se rapidamente sobre aqueles esquis, abrindo caminho por entre os ramos espinhosos dos pinheiros e os carvalhos e bordos esqueléticos. Extrapolando a trajetória dela e aplicando a mesma lógica interna que ela demonstrara nas fitas de segurança da manhã anterior, ele logo se adiantou, antecipando bem onde ela estaria...
Ah, sim. O Audi preto da galeria. Estacionado ao lado da estrada limpa de neve a cerca de três quilômetros de sua propriedade.
Assail estava recostado contra a porta do motorista e bafejando um cubano quando ela saiu do limite das árvores.
Ela parou de pronto nos rastros duplos por ela criados, os bastões em ângulos abertos.
Ele lhe sorriu ao soprar uma nuvem de fumaça no crepúsculo.
– Belo entardecer para se exercitar. Apreciando a vista... Da minha casa?
A respiração dela estava acelerada devido ao esforço físico, mas não por algum medo que ele pudesse pressentir. Isso o excitava.
– Não sei do que está fal...
Ele interrompeu a mentira.
– Bem, o que posso lhe dizer é que, no momento, sou eu quem está apreciando a vista.
Enquanto seu olhar descia deliberadamente pelas pernas longas e atléticas nas calças justas de esqui, ela o encarou.
– Acho difícil que consiga ver qualquer coisa por trás dessas lentes.
– Meus olhos são muito sensíveis à luz.
Ela franziu o cenho e olhou ao redor.
– Quase não há mais nenhuma luz.
– Há o bastante para eu enxergá-la – ele deu nova baforada. – Gostaria de saber o que eu disse a Benloise ontem à noite?
– Quem?
Ela o aborreceu e ele afiou a voz:
– Um pequeno conselho. Não brinque comigo... isso fará com que morra mais rápido do que qualquer tipo de invasão de domicílio.
Um cálculo impassível fez com que ela estreitasse o olhar.
– Eu não sabia que invasão de propriedade dava pena de morte.
– Comigo, existe uma bela lista de coisas com repercussões letais.
Ele levantou o queixo.
– Ora, ora. Como você é perigoso.
Como se ele fosse um gatinho brincando com um novelo e sibilando.
Assail moveu-se com rapidez, ele bem sabia que os olhos dela seriam incapazes de acompanhá-lo. Num momento, estava a metros de distância; no instante seguinte, estava nas pontas dos seus esquis, prendendo-a no lugar.
A mulher gritou alarmada e tentou recuar, mas, claro, seus pés estavam presos. Para evitar que ela caísse, ele a apanhou pelo braço com a mão que não segurava o charuto.
Agora o sangue dela corria de medo e, quando ele inalou seu cheiro, excitou-se. Puxando-a para a frente, fitou-a, tracejando-lhe o rosto.
– Tome cuidado – disse ele numa voz mansa. – Eu me ofendo com rapidez e meu temperamento não é facilmente aplacado.
Embora ele conseguisse pensar pelo menos numa coisa que ela poderia lhe dar que o acalmaria.
Inclinando-se, ele inspirou profundamente. Deus, adorava o cheiro dela.
Mas aquela não era a hora de se distrair com esse tipo de coisa.
– Eu disse a Benloise que enviasse pessoas à minha casa por sua conta e risco... delas. Estou surpreso que ele não a tenha alertado sobre esses, como podemos dizer, limites bem delimitados de propriedade...
Pelo canto do olho, ele percebeu um movimento sutil no ombro dela. Ela pretendia pegar a arma com a mão direita.
Assail colocou o charuto entre os dentes e segurou o punho delicado. Aplicando pressão e só parando quando a dor se fez perceber na respiração dela, ele a arqueou para trás para que ela notasse completa e inequivocadamente o poder que ele tinha sobre si mesmo e sobre ela. Sobre tudo.
E foi nesse momento que a mulher se excitou.
Fazia muito tempo, talvez tempo demais, desde que Sola desejou um homem.
Não que ela não os considerasse desejáveis via de regra, ou que não tivessem existido ofertas para encontros horizontais com membros do sexo oposto. Nada lhe parecera valer o esforço. E talvez, depois daquele único relacionamento que não dera certo, ela tivesse regressado aos hábitos de sua rígida criação brasileira – o que era irônico, considerando-se o que fazia para sobreviver.
Aquele homem, porém, chamara sua atenção. Verdadeiramente.
O modo como a segurava pelo braço e pelo pulso não era nada educado e, mais do que isso, não havia clemência pelo fato de ela ser mulher; as mãos a apertavam com tanta força a ponto de a dor se encaminhar para o coração, fazendo-o bater forte. Do mesmo modo, o ângulo em que a forçava para trás testava os limites da capacidade de sua coluna se dobrar, e as coxas ardiam.
Excitar-se assim... era uma negligência ignorante para a sua autopreservação. Na verdade, ao fitar aquelas lentes escuras, ela estava bem ciente de que ele poderia matá-la ali mesmo. Torcendo o seu pescoço. Quebrando seus braços só para vê-la gritar antes de sufocá-la na neve. Ou talvez apenas desacordando-a antes de jogá-la no rio.
O sotaque carregado de sua avó subitamente veio-lhe à mente: Por que não pode conhecer um bom rapaz? Um rapaz católico de uma família que conhecemos? Marisol, assim você parte o meu coração.
– Só posso deduzir – a voz sombria sussurrou com um sotaque e uma inflexão que lhes eram desconhecidos – que a mensagem não lhe foi transmitida. Correto? Benloise deixou de lhe passar essa informação... e é por isso que, depois de eu ter expressamente indicado minhas intenções, você ainda assim voltou a espionar a minha casa? Creio que foi isso o que aconteceu, talvez uma mensagem de voz que ainda não tenha sido recebida. Ou uma mensagem de texto, um e-mail. Sim, acredito que o comunicado de Benloise tenha se perdido, não é mesmo?
A pressão nela intensificou-se ainda mais, sugerindo que ele tinha força de sobra, o que era, no mínimo, uma perspectiva assombrosa.
– Não é isso? – rugiu ele.
– Sim – disse ela. – É isso.
– Portanto, posso deduzir que não a encontrarei em seus esquis por aqui. Correto?
Ele a sacudiu novamente, a dor fazendo com que seus olhos revirassem.
– Sim – ela disse num engasgo.
O homem relaxou apenas o suficiente para que ela pudesse respirar um pouco. Depois continuou falando, naquela voz estranhamente sedutora:
– Bem, preciso de uma coisa antes que você vá. Você me dirá o que descobriu sobre mim... Tudo o que descobriu.
Sola franziu o cenho, pensando que aquilo era tolice. Sem dúvida um homem como aquele estaria ciente de qualquer informação que uma terceira pessoa poderia saber a seu respeito.
Então aquilo era um teste.
Visto que ela queria muito rever a avó, Sola disse:
– Não sei seu nome, mas posso imaginar o que faz, e também o que fez.
– E o que seria?
– Acredito que seja a pessoa que esteja matando aqueles interceptadores na cidade para assegurar território e controle.
– Os jornais e os noticiários disseram que se tratavam de suicídios.
Ela apenas prosseguiu, uma vez que não havia motivo para argumentar:
– Sei que mora sozinho, até onde posso saber, e que sua casa possui um tratamento estranho nas janelas. Um tipo de camuflagem para parecer o interior da casa, mas... é outro tipo de coisa. Só não sei o quê.
O rosto acima do dela permaneceu completamente impassível. Calmo. Tranquilo. Como se não a estivesse forçando a ficar no lugar... Ou a ameaçando. O controle era... erótico.
– E? – insistiu ele.
– É só isso.
Ele inalou o charuto nos lábios, a ponta em círculo alaranjado brilhando mais.
– Só vou libertá-la uma vez. Entende?
– Sim.
Ele se moveu com tanta rapidez que ela teve que balançar os braços para readquirir o equilíbrio, os bastões se afundando na neve. Espere, o que ele...
O homem apareceu bem atrás dela, os pés plantados nas laterais dos rastros dos esquis, uma barricada física para o caminho que ela fizera a partir da casa dele. Enquanto o bíceps e o pulso direitos dela ardiam por conta do sangue que voltava a circular nas partes que foram comprimidas, um aviso surgiu na base de sua nuca.
Cai fora daqui, Sola disse a si mesma. Agora.
Sem querer arriscar uma nova captura, ela se moveu para frente até a estrada, a parte inferior dos esquis lutando para conseguir avançar na neve gelada e compactada.
Enquanto ela avançava, ele a seguia, caminhando lentamente, inexoravelmente, como um grande felino que estava cercando a presa com a qual estava contente em apenas brincar, por enquanto.
As mãos dela tremiam quando usou as pontas dos esquis para soltar as amarras, e ela teve dificuldade para prender os esquis no rack do carro. O tempo inteiro, ele permaneceu parado no meio da estrada observando-a, a fumaça do charuto subindo pelo ombro em brisas frias que seguiam para o rio.
Entrando no carro, ela travou as portas, deu partida e olhou pelo espelho retrovisor. No brilho da luz do freio, ele parecia inequivocadamente maligno, um homem alto, de cabelos escuros, com o rosto lindo como o de um príncipe, e tão cruel quanto uma lâmina.
Pisando no acelerador, ela saiu do acostamento e se afastou rápido, o sistema de tração das quatro rodas sendo acionado para a tração de que ela precisava.
Ela olhou de relance mais uma vez pelo retrovisor. Ele ainda estava lá...
O pé de Sola mudou para o freio e quase o pressionou.
Ele sumira.
Como se tivesse se dissipado no ar. Num momento estava lá... no seguinte, invisível.
Sacudindo-se, voltou a pressionar o acelerador e fez o sinal da cruz sobre o coração acelerado.
Num pânico absurdo, perguntou-se: mas que diabos era ele?
CAPÍTULO 30
Bem quando as persianas eram suspensas com a chegada da noite, Layla ouviu uma batida à porta e, mesmo antes de o cheiro passar pelas frestas, ela sabia quem tinha vindo vê-la.
Inconscientemente, a mão subiu para o cabelo, e descobriu que estava uma bagunça, todo emaranhado por ter virado e revirado o dia inteiro. Pior, nem se importara em tirar a roupa com que saíra para ir à clínica.
Entretanto, não lhe poderia negar a entrada.
– Entre – disse, sentando-se um pouco mais erguida e ajeitando as cobertas que puxara até o queixo.
Qhuinn estava com suas roupas de combate, o que a levou a deduzir que ele estava escalado para o turno daquela noite – mas talvez não. Ela não conhecia o escalonamento.
Quando seus olhares se cruzaram, ela franziu o cenho.
– Você não está bem.
Ele levou a mão para o curativo na sobrancelha.
– Isto? É apenas um arranhão.
Só que não fora o machucado que chamara sua atenção. Era o olhar vago, as concavidades rígidas nas faces.
Ele parou. Farejou. Empalideceu.
Imediatamente, ela baixou o olhar para as mãos, e mais uma vez as torceu.
– Por favor, feche a porta – pediu.
– O que está acontecendo?
Quando a porta se fechou conforme o seu pedido, ela respirou fundo.
– Fui à clínica de Havers ontem à noite.
– O quê?
– Estou sangrando...
– Sangrando? – ele se apressou para a frente, quase derrapando a caminho da cama. – Por que diabos não me contou?
Santa Virgem Escriba, seria impossível para ela não se acovardar ante tamanha fúria. Na verdade, ela estava sem forças no momento e impossibilitada de reunir qualquer tipo de autopreservação.
Instantaneamente, Qhuinn recuou em sua raiva, afastando-se e circulando pelo quarto. Quando a fitou novamente, disse bruscamente:
– Sinto muito. Não tive a intenção de gritar... Eu só... eu só estou preocupado com você.
– Eu sinto muito. E eu deveria ter lhe contado, mas você estava fora em combate e eu não quis aborrecê-lo. Eu não sei... francamente, eu não devia estar pensando com clareza. Estava fora de mim.
Qhuinn se sentou ao lado dela, os ombros imensos se curvando enquanto ele cruzava os dedos e apoiava os cotovelos nos joelhos.
– Então, o que está acontecendo?
Tudo o que ela conseguiu fazer foi dar de ombros.
– Bem, como você pode perceber... estou sangrando.
– Quanto?
Ela pensou no que a enfermeira lhe havia dito.
– O suficiente.
– Há quanto tempo?
– Tudo começou há mais ou menos 24 horas. Não quis procurar a doutora Jane porque não tinha certeza de quão confidencial isso seria e também... ela não tem muita experiência com gestações da nossa espécie.
– O que Havers disse?
Foi a vez de ela franzir a testa.
– Ele não quis me dizer.
– Como é que é? – a cabeça de Qhuinn se ergueu.
– Por causa do meu status como Escolhida, ele só falará com o Primale.
– Está de brincadeira?
Ela balançou a cabeça.
– Não. Também não consegui acreditar nisso e sinto dizer que saí de lá em circunstâncias menos que favoráveis. Ele me reduziu a um objeto, como se eu não tivesse a mínima importância... não passasse de um repositório...
– Você sabe que isso não é verdade – Qhuinn segurou sua mão com os olhos descombinados ardendo. – Não para mim. Nunca para mim.
Ela estendeu a mão e o tocou no ombro.
– Eu sei, mas obrigada por dizer isso – ela estremeceu. – Preciso ouvir isso agora. E quanto ao que está acontecendo... comigo... a enfermeira disse que não há nada que ninguém possa fazer para impedir isto.
Qhuinn baixou o olhar para o tapete e ficou assim por um bom tempo.
– Não entendo. Não era para ser assim.
Engolindo a horrível sensação de fracasso, ela se endireitou e afagou as costas dele.
– Sei que você desejava isto tanto quanto eu.
– Você não pode estar abortando. Não é possível.
– Pelo que fiquei sabendo, os dados estatísticos não são tão bons. Não no começo... e não no fim.
– Não, não pode estar certo. Eu... a vi.
Layla limpou a garganta.
– Sonhos nem sempre se tornam realidade, Qhuinn.
Parecia algo muito simplista de se dizer. Igualmente óbvio. Mas magoava em seu cerne.
– Não foi um sonho – disse ele de modo rude. Mas, então, sacudiu-se e voltou a olhar para ela. – Como está se sentindo? Sente dor?
Quando ela não respondeu de imediato, porque não queria mentir para ele a respeito das cólicas, ele se pôs de pé.
– Vou procurar a doutora Jane.
Ela o segurou pela mão, detendo-o.
– Espere. Pense bem. Se estou perdendo... nosso filho... – ela parou para juntar coragem depois de ter verbalizado aquilo. – Não há razão por que contar para alguém. Ninguém precisa ficar sabendo. Podemos simplesmente deixar a natureza... – a voz dela falhou nesse momento, mas ela se forçou a continuar – ... seguir seu curso.
– Ao inferno com isso. Não vou colocar sua vida em risco só para evitar um confronto.
– Isso não interromperá o aborto, Qhuinn.
– Não estou preocupado somente com o aborto – ele apertou-lhe a mão. – Você é importante. Por isso vou procurar a doutora Jane agora mesmo.
Isso mesmo, ao inferno deixar as coisas por debaixo dos panos, Qhuinn pensou ao seguir para a porta.
Ouvira falar de histórias sobre fêmeas com hemorragias durante os abortos, e ainda que não fosse mencionar nada disso com Layla, teria de agir a respeito.
– Qhuinn. Pare – Layla o chamou. – Pense no que está fazendo.
– Eu estou. Claramente – ele não esperou para debater mais aquilo. – Fique onde está.
– Qhuinn...
Ele ainda conseguiu ouvir a voz dela quando fechou a porta e começou a correr, terminando o corredor e descendo as escadas. Com um pouco de sorte, a doutora Jane ainda estaria se demorando na Última Refeição com seu hellren; o casal estava à mesa quando ele se levantara para ir ver Layla.
Ao chegar ao átrio, seus tênis Nike guincharam no piso de mosaico quando ele tomou a direção da arcada na entrada da sala de jantar.
Vendo a médica bem onde estivera antes foi um golpe de sorte, e seu primeiro instinto foi chamá-la com um grito. Só não o fez ao perceber a quantidade de Irmãos à mesa, comendo a sobremesa.
Merda. Era fácil para ele dizer que lidaria com as consequências se o que fizeram se tornasse público. Mas, e quanto a Layla? Como uma Escolhida sagrada, ela tinha muito mais a perder do que ele. Phury era uma cara bem legal, por isso a chance de ele lidar bem com aquilo era bem grande. E o resto da sociedade?
Ele já passara pela experiência de ser rejeitado, e não queria o mesmo para ela.
Qhuinn se apressou para onde V. e Jane estavam descontraídos, o Irmão fumando um cigarro feito à mão, a médica espectral sorrindo para o seu parceiro enquanto ele lhe contava uma piada.
No instante em que a boa médica olhou para ele, aprumou-se em seu assento.
Qhuinn se abaixou e sussurrou ao seu ouvido.
Nem meio segundo depois, ela estava de pé.
– Preciso ir, Vishous.
Os olhos de diamante do irmão se elevaram. Aparentemente, apenas um vislumbre do rosto de Qhuinn foi preciso: ele não fez perguntas, apenas assentiu uma vez.
Qhuinn e a médica se apressaram juntos para fora.
Para o infinito crédito da doutora Jane, ela não perdeu tempo querendo saber como aquela gravidez tinha acontecido.
– Há quanto tempo ela está sangrando?
– 24 horas.
– Com que intensidade?
– Não sei.
– Algum outro sintoma? Febre? Enjoo? Dor de cabeça?
– Não sei.
Ela o deteve quando chegaram à grande escadaria.
– Vá até o Buraco. A minha maleta está na bancada ao lado do cesto de maçãs.
– Entendido.
Qhuinn nunca correu tão rápido em toda sua vida. Para fora do vestíbulo. Atravessando o pátio coberto de neve. Digitando o código de acesso para o Buraco. Correndo pelo espaço de V. e de Butch.
Costumeiramente, ele jamais teria entrado sem bater. Inferno, sem um horário marcado previamente. Mas naquela noite, que se foda...
Ah, que bom, a maleta preta estava, de fato, ao lado das Fujis.
Apanhando-a, correu para fora, voando ao lado dos carros estacionados e batendo os pés enquanto aguardava que Fritz atendesse à porta.
Ele quase atropelou o doggen.
Ao chegar ao segundo andar, passou acelerado diante do escritório de Wrath e invadiu o quarto que Layla vinha usando. Fechando a porta, arfou até chegar à cama, onde a médica estava sentada bem onde ele esteve antes.
Deus, Layla estava pálida como um lençol. Pensando bem, medo e hemorragia faziam isso com uma fêmea.
A doutora Jane estava no meio de uma frase quando pegou a maleta das mãos dele.
– Acho que devemos começar verificando os seus sinais vitais...
Bum!
Quando o som ensurdecedor atravessou o quarto, o primeiro pensamento de Qhuinn foi se jogar sobre as duas fêmeas para formar um escudo.
Mas não era uma bomba. Era Phury escancarando a porta.
Os olhos amarelos do Irmão reluziam, e não de modo positivo, quando eles passavam de Layla, para a médica e depois para Qhuinn... e refazendo o caminho ao contrário.
– Que diabos está acontecendo aqui? – ele exigiu saber, com as narinas inflando quando captou o mesmo cheiro que Qhuinn havia percebido antes. – Vejo a médica subindo as escadas num rompante. Depois é a vez de Qhuinn com a maleta. E agora... é melhor alguém começar a falar. Neste exato minuto!
Mas ele sabia. Porque estava olhando para Qhuinn.
Qhuinn encarou o Irmão.
– Eu a engravidei...
Ele não teve oportunidade de terminar a frase. Na verdade, mal conseguiu terminar a última palavra.
O Irmão o agarrou e o lançou contra a parede. Enquanto suas costas absorviam o impacto, a mandíbula dele explodiu de dor, o que sugeria que o cara também o socara com exatidão. Então, mãos ásperas o mantiveram fixos com os pés pendurados a quinze centímetros do tapete oriental, bem na hora em que pessoas começavam a se aglomerar na porta.
Ótimo. Uma plateia.
Phury aproximou o rosto do de Qhuinn e expôs as presas.
– O que você fez com ela?
Qhuinn deu uma golada de sangue.
– Ela estava no cio. Eu a servi.
– Você não a merece...
– Eu sei.
Phury o empurrou com força mais uma vez.
– Ela é melhor do que...
– Concordo...
Bang!
De novo contra a parede.
– Então que porra que você foi fazer...
O rugido que permeou o quarto foi alto o bastante para estremecer o espelho ao lado da cabeça de Qhuinn, assim como o conjunto de escovas de prata na penteadeira e os cristais nas arandelas ao lado da porta. A princípio, ele pensou que tivesse sido Phury, a não ser, porém, pelo fato de as sobrancelhas do Irmão se abaixarem e o macho olhar por sobre o ombro.
Layla saíra da cama e se aproximava dos dois. Raios! A expressão no olhar dela bastaria para derreter a pintura da porta de um carro: apesar de ela não estar se sentindo bem, as presas estavam expostas, os dedos crispados em forma de garra... e a brisa gélida que a precedeu fez com que a nuca de Qhuinn se eriçasse em alerta.
Aquele rugido nem deveria ter saído de um macho... quanto menos de uma fêmea delicada com status de Escolhida.
De fato, o pior era o tom horrível de sua voz:
– Solte-o. Agora.
Ela encarava Phury como se estivesse plenamente preparada para arrancar os braços do Irmão de suas juntas e socá-lo até não poder mais caso ele não a obedecesse. Imediatamente.
E, veja só, de repente, Qhuinn conseguiu respirar direito, e agora seus Nikes tocavam novamente o chão. Num passe de mágica.
Phury levantou as palmas das mãos.
– Layla, eu...
– Não toque nele. Não por causa disso... Estou sendo bem clara? – o peso dela estava equilibrado quase nos dedos dos pés, como se ela fosse avançar na garganta do cara a qualquer segundo. – Ele era o pai do meu filho, e receberá todos os direitos e privilégios dessa posição.
– Layla...
– Estamos entendidos?
Phury fez que sim com sua cabeça multicolorida.
– Sim. Mas...
No Antigo Idioma, ela sibilou:
– Caso algum mal recaia sobre ele, eu irei atrás de ti, e o encontrarei em teu sono. Não me importo onde e com quem repouses tua cabeça, minha vingança se derramará sobre ti até tu te afogares.
Aquela última palavra foi arrastada até sua última sílaba se perder num rugido.
Silêncio absoluto.
Até a doutora Jane comentar secamente:
– E é por isso que dizem que as fêmeas da espécie são mais perigosas que os machos.
– Verdade – alguém aquiesceu no corredor.
Phury levantou as mãos em frustração.
– Só quero o que for melhor para você e não só no papel de amigo preocupado... essa é a porra do meu trabalho. Você atravessa o cio sem contar a ninguém, deita-se com ele – como se Qhuinn fosse bosta de cachorro – e depois não diz a ninguém que está tendo problemas médicos. Será que eu tenho que ficar feliz com isso? Que merda!
Houve algum tipo de conversa entre eles àquela altura, mas Qhuinn não prestou atenção: toda a sua consciência recuara para dentro do cérebro. Caramba, o feliz comentário do Irmão não deveria ter doído tanto. Não era a primeira vez que ele ouvia esse tipo de comentário, ou até mesmo pensara isso a respeito de si mesmo. Mas, por algum motivo, as palavras dispararam uma falha geológica que retumbava bem em seu cerne.
Lembrando-se de que dificilmente seria uma tragédia ter o óbvio evidenciado, ele se desvencilhou do seu espiral de vergonha e olhou ao redor. Sim, todos tinham aparecido diante da porta aberta e, mais uma vez, aquilo que ele preferia que tivesse permanecido como um assunto particular estava acontecendo diante de milhares.
Pelo menos Layla não se importava. Inferno, ela nem parecia ter notado.
E era até engraçado ver todos aqueles lutadores profissionais desejando estar a quilômetros de distância de uma fêmea. Pensando bem, caso quisessem sobreviver no trabalho que exerciam, uma acurada avaliação de riscos era algo que se desenvolvia precocemente e até mesmo Qhuinn, objeto do instinto protetor da Escolhida, não ousaria tocá-la.
– Eu, neste momento, renuncio ao meu status de Escolhida, e todos os direitos e privilégios inerentes. Eu sou Layla, decaída daqui por diante...
Phury tentou interrompê-la:
– Escute, você não tem que fazer isso...
– ... e sempre. Estou arruinada perante os olhos tanto da tradição quanto da prática, não mais virgem, concebi um filho, mesmo estando a perdê-lo.
Qhuinn bateu a parte de trás da cabeça na parede. Maldição.
Phury passou uma mão pelos cabelos.
– Merda.
Quando Layla oscilou em seus pés, todos se projetaram para ela, mas ela empurrou todas as mãos e caminhou sozinha até a cama. Abaixando o corpo devagar, como se tudo lhe doesse, deixou a cabeça pender.
– Minha sorte está lançada e estou preparada para viver com as consequências, quaisquer que sejam elas. Isso é tudo.
Houve um belo tanto de sobrancelhas se erguendo quando a multidão começou a se dispersar, mas ninguém disse um pio. Depois de um instante, o grupo se desfez, embora Phury continuasse ali. Assim como Qhuinn e a médica.
A porta foi fechada.
– Ok, ainda mais depois disso tudo, preciso mesmo verificar seus sinais vitais – disse a doutora Jane, ajudando a fêmea a se recostar contra os travesseiros e a acomodar as cobertas que haviam sido afastadas.
Qhuinn não se moveu enquanto o aparelho de pressão era ajustado no braço magro e uma série de pufe-pufes era exalada.
Phury, por sua vez, andou de um lado para o outro, pelo menos até franzir o cenho e pegar o celular.
– É por isso que Havers me telefonou ontem?
Layla concordou.
– Fui lá em busca de ajuda.
– Por que não me procurou? – o Irmão murmurou para si mesmo.
– O que Havers disse?
– Não sei por qual motivo não verifiquei a caixa de mensagens. Pensei que não tivesse motivo para fazer isso.
– Ele deixou claro que só lidaria com você.
Ante isso, Phury olhou para Qhuinn, com aquele olhar amarelo se estreitando.
– Vai se vincular a ela?
– Não.
A expressão de Phury voltou a ser gélida.
– Que tipo de macho é você para...
– Ele não me ama – Layla interrompeu. – Tampouco eu o amo.
Quando a cabeça do Primale virou de lado, Layla prosseguiu:
– Queríamos um filho – ela se sentou inclinada para a frente enquanto a médica auscultava o coração por trás. – Nós começamos e terminamos ali.
Dessa vez o Irmão praguejou.
– Não entendo.
– Nós dois somos órfãos de muitas maneiras – disse a Escolhida. – Nós estamos... estávamos... querendo formar a nossa própria família.
Phury expirou fundo e caminhou até a mesa num canto, sentando-se sobre a cadeira frágil.
– Ah, bem. Acho que isso muda um pouco as coisas. Eu pensei que...
– Nada importa – interveio Layla. – As coisas são como são. Ou... eram, como parece ser o caso.
Qhuinn se viu esfregando os olhos sem nenhum motivo em especial. Não que eles estivessem embaçados nem nada assim. Não. Nem um pouco.
Tudo aquilo era só... tão triste. Toda aquela porcaria. Desde o estado de Layla, até a exaustão impotente de Phury, chegando a sua dor imensa no meio do peito, tudo era uma maldita coisa verdadeiramente triste.
CAPÍTULO 31
– É exatamente o que eu estava procurando.
Enquanto Trez falava, caminhava ao redor do espaço amplo e vazio do armazém, com as botas produzindo impactos altos que ecoavam. Atrás dele, sentia facilmente o alívio da corretora parada ao lado da porta.
Negociar com humanos? Era o mesmo que tirar o pirulito de uma criancinha.
– Você poderia transformar este lado da cidade – disse a mulher. – É uma verdadeira oportunidade.
– Verdade – não que o tipo de restaurante e lojas que o seguiriam até ali fossem de classe: seriam algo mais como lojas de piercings e tatuagens, restaurantes baratos, cinemas pornográficos.
Mas ele não tinha nenhum problema com isso. Até mesmo cafetões podiam se orgulhar de seus trabalhos e, francamente, ele tinha certa tendência a acreditar muuuito mais em tatuadores do que em muitos dos assim chamados “cidadãos exemplares”.
Trez girou sobre os calcanhares. O espaço era tremendo, quase tão alto quanto largo, com fileiras e fileiras de janelas quadradas, muitas delas com os vidros quebrados recobertos por tábuas de madeira. O teto parecia bom – ou quase isso, o revestimento de latão corrugado mantendo a neve do lado de fora, mas não o frio. O chão era de concreto, mas obviamente havia um piso subterrâneo – em diversos pontos viam-se alçapões, embora nenhum deles pudesse ser aberto com facilidade. A parte elétrica parecia boa; sistema de aquecimento, ventilação e ar-condicionado inexistentes; a hidráulica, uma piada.
Em sua mente, contudo, ele não enxergava o lugar como ele estava. Nada disso. Ele o via transformado, como uma boate nas proporções da Limelight. Naturalmente, o projeto necessitaria de uma imensa injeção de capital e vários meses para concluir os trabalhos; no fim, porém, Caldwell acabaria com um novo lugar quente – e ele teria mais uma fonte de renda.
Todos ganhavam.
– Então, gostaria de fazer uma oferta?
Trez olhou para a mulher. Ela era a senhora Profissional em seu casaco preto e terninho escuro abaixo dos joelhos – noventa por cento de sua pele estava coberta, e não só por estarem em dezembro. Contudo, mesmo abotoada até em cima e cabelo comportado, ela era bela no modo como todas as mulheres lhe eram belas: tinha seios e pele macia, e um lugar para ele brincar no meio das pernas.
E ela gostava dele.
Ele sabia disso pelo modo como ela abaixava o olhar, e também por ela aparentemente não saber o que fazer com as mãos: uma hora estavam nos bolsos do casaco; na outra, mexendo no cabelo, depois ajeitando a camisa de seda dentro da saia...
Ele conseguia pensar em alguns modos para mantê-la ocupada.
Trez sorriu ao se aproximar dela e não parou até invadir-lhe o espaço pessoal.
– Sim. Eu quero.
O duplo sentido foi captado, as faces dela enrubesceram não de frio, mas de excitação.
– Ah. Que bom.
– Onde quer fazer? – ele perguntou de modo arrastado.
– A oferta? – ela pigarreou. – Tudo o que tem que fazer é me dizer o que você... quer e eu... faço isso acontecer.
Ah, ela não era ligada em sexo casual. Que meigo.
– Aqui.
– Como disse? – perguntou ela, finalmente levantando o olhar.
Ele sorriu devagar e de modo contido para não revelar as presas.
– A oferta. Vamos fazer isso aqui?
Os olhos dela se arregalaram.
– Aqui?
– É. Aqui – ele se aproximou com mais um passo, mas não ficou perto o suficiente a ponto de se tocarem. Ele estava satisfeito em seduzi-la, mas ela teria de estar cem por cento segura de estar a fim. – Está pronta?
– Para... fazer... a oferta.
– Isso.
– Está... hum, está frio aqui – disse ela. – Que tal no escritório? É lá que a maioria... das ofertas... é conduzida.
Do nada, a imagem do irmão sentado no sofá em casa, olhando para ele como se ele fosse um maldito problema, atingiu-o em cheio, e quando isso aconteceu, percebeu que fazia sexo com praticamente toda mulher que conhecia desde... caramba, quanto tempo?
Bem, obviamente, se não tinham idade para copular, ele não estaria com elas.
Ou se eram férteis.
O que cortava, digamos, uma dúzia ou duas? Maravilha. Que herói.
Que porra ele estava fazendo? Não queria voltar ao escritório da mulher, primeiro porque não havia tempo suficiente, supondo que quisesse estar na abertura do Iron Mask. Portanto, a única opção era ali mesmo, de pé, com a saia suspensa até a cintura, as pernas ao redor dos seus quadris. Rápido, direto ao ponto; depois cada um seguindo o seu caminho.
Depois de ele dizer o quanto pretendia gastar na compra do armazém, claro.
Mas e aí? Ele não tinha a intenção de transar com ela no fechamento do contrato. Ele raramente repetia, e só se estivesse seriamente atraído ou com muito tesão, o que não acontecia nesse caso.
Pelo amor de Deus, o que exatamente ele tiraria daquilo? Sequer a veria nua. Nem teria muito contato de pele com pele.
A não ser... era essa a questão.
Quando foi a última vez em que esteve de fato com uma fêmea? Do jeito certo? Como num jantar fino, um pouco de música, uns amassos que conduziam até o quarto... depois um monte de ações longas e demoradas que levavam a alguns orgasmos...
E nenhuma sensação de pânico asfixiante quando tudo chegava ao fim.
– Você estava para dizer alguma coisa? – a mulher o instigou a falar.
iAm estava certo. Ele não precisava estar fazendo aquele tipo de merda. Inferno, nem mesmo estava atraído pela corretora. Ela estava parada diante dele, disponível, e aquela aliança no dedo era indício de que ela não causaria muitos problemas depois que terminassem, porque tinha algo a perder.
Trez recuou um passo.
– Escute, eu... – quando o celular tocou em seu bolso, ele pensou que tinha sido em boa hora. Viu quem era: iAm. – Com licença, preciso atender esta ligação. Ei, o que está fazendo, irmãozinho?
A resposta de iAm saiu suave, como se tivesse abaixado a voz:
– Temos companhia.
O corpo de Trez ficou tenso.
– De que tipo e onde?
– Estou em casa.
Ah, merda.
– Quem é?
– Não é a sua noiva, relaxe. É AnsLai.
O sumo sacerdote. Fantástico.
– Bem, estou ocupado.
– Ele não veio aqui para me ver.
– Então é melhor ele voltar de onde veio porque estou ocupado – quando não houve resposta do outro lado, tudo o que restava fazer era se chutar no traseiro. – Escute aqui, o que quer que eu faça?
– Pare de fugir e cuide disto.
– Não há do que cuidar. Falo com você mais tarde, ok?
Esperou por uma resposta. Em vez disso, a linha ficou muda. Pensando bem, quando você espera que seu irmão limpe suas bostas, o cara não deve ficar com muita vontade de se despedir longamente.
Trez desligou e olhou para a corretora. Com um sorriso amplo, ele se aproximou e baixou a cabeça para fitá-la. O batom era coral demais para a tez dela, mas ele não se importava.
Aquela coisa não continuaria na boca dela por muito tempo.
– Deixe-me mostrar como posso aquecer isto aqui – disse com um sorriso langoroso.
De volta à mansão da Irmandade, no quarto de Layla, um tipo de cessar-fogo fora alcançado pelas partes interessadas.
Phury não estava tentando transformar Qhuinn num gancho de parede. Layla estava sendo avaliada. A porta fora fechada e, com isso, nada do que acontecia ali teria mais do que um quarteto de testemunhas oculares.
Qhuinn só estava esperando que a doutora Jane se pronunciasse.
Quando ela, por fim, tirou o estetoscópio do pescoço, apenas se acomodou. E a expressão em seu rosto não lhe deu esperança alguma.
Ele não entendia. Vira sua filha às portas do Fade: quando fora surrado e largado como morto no acostamento pela Guarda de Honra, subira para só Deus sabe onde, aproximara-se de um portal branco... e lá vira uma fêmea jovem cujos olhos começaram com uma cor, e acabaram azul e verde como os seus.
Se ele não tivesse testemunhado aquilo, provavelmente não teria se deitado com Layla para início de conversa. Mas ele teve tanta certeza de que o destino estava traçado que nunca lhe ocorrera que...
Merda, talvez aquela jovem fosse o resultado de outra comunhão... com outra pessoa no futuro.
Como se algum dia ele fosse se unir a outra pessoa... Jamais.
Não era possível. Não agora que esteve com Blay uma vez.
Nada disso.
Mesmo que ele e seu ex-amigo nunca mais se encontrassem debaixo dos lençóis, ele nunca mais ficaria com ninguém. Quem poderia se comparar? E o celibato era melhor do que a segunda melhor opção, que é o que seria oferecido pelo resto do planeta.
A doutora Jane pigarreou e segurou a mão de Layla.
– A sua pressão sanguínea está um pouco baixa. A sua pulsação está um pouco lenta. Acredito que essas duas coisas possam ser melhoradas com alimentação...
Qhuinn praticamente pulou para perto da cama com o pulso estendido.
– Estou aqui... Pronto. Pode pegar.
A doutora Jane pousou uma mão no braço dele e lhe sorriu.
– Mas não é com isso que estou preocupada.
Ele congelou e, pelo canto do olho, viu que o mesmo aconteceu com Phury.
– Eis a questão – a doutora voltou a olhar para Layla, falando com suavidade e clareza. – Não sei muito sobre gestações vampíricas, portanto, por mais que eu deteste dizer isso, você precisa voltar à clínica de Havers – ela levantou a mão, como se já esperasse discussões de todos os lados. – Isto se trata dela e do filho dela, temos que levá-los para alguém que possa tratá-la adequadamente, mesmo se, em outras circunstâncias, nenhum de nós batesse à porta do cara. E, Phury – ela encarou o Irmão –, você tem que ir com ela e com Qhuinn. A sua presença lá só facilitará as coisas para todos.
Muitos lábios apertados depois disso.
– Ela tem razão – concordou Qhuinn por fim. E depois se voltou para o Primale. – E você tem que dizer que é o pai. Ela obterá mais respeito assim. Comigo? Ele pode muito bem se recusar a tratá-la... se ela for decaída e tiver transado com um defeituoso? Pode nos mandar dar meia-volta.
Phury abriu a boca. Fechou-a.
Não havia muito mais a ser dito.
Enquanto Phury pegava o telefone e ligava para a clínica para informar que estavam indo para lá, o tom de voz dele sugeria que estava pronto para incendiar o lugar se Havers e sua equipe dessem mancada.
Com isso resolvido, Qhuinn se aproximou de Layla.
Num tom baixo, disse:
– Desta vez vai ser diferente. Ele vai fazer isso acontecer. Não se preocupe, você será tratada como uma rainha.
Os olhos de Layla se arregalaram, mas ela se controlou.
– Sim. Tudo bem.
Resultado? O Irmão não era o único prestes a acabar com tudo. Se Havers provocasse qualquer tipo de desgosto à la glymera em Layla, Qhuinn acabaria com o ego do cara a tapa. Layla não merecia esse tipo de tratamento – nem mesmo por escolher um rejeitado como ele para se acasalar.
Cacete. Talvez fosse melhor ela abortar. Ele queria mesmo condenar uma criança ao seu DNA?
– Você também vem? – ela lhe perguntou, como se não estivesse acompanhando.
– Sim. Vou estar lá.
Quando Phury desligou, olhou de um para outro, os olhos amarelos se estreitando.
– Ok, eles vão nos receber no segundo em que chegarmos. Vou fazer Fritz ligar a Mercedes, mas eu dirijo.
– Desculpe – disse Layla ao encarar o grande macho. – Sei que decepcionei as Escolhidas e você, mas foi você quem nos disse para vir para este lado e... viver.
Phury apoiou as mãos nos quadris e exalou fundo. Ao balançar a cabeça, ficou claro que ele não teria escolhido nada daquilo para ela.
– Sim, eu disse isso. Eu fiz isso.
CAPÍTULO 32
Ah, grande poder desgovernado, pensou Xcor ao olhar para seus soldados, cada um deles armado e pronto para uma noite de luta. Depois de 24 horas de recuperação após a alimentação grupal, eles estavam loucos para sair e encontrar os inimigos – e ele estava pronto para libertá-los daquele porão de armazém.
Só havia um problema: alguém estava andando no andar de cima.
Como demonstração, passos pesados atravessaram o alçapão de madeira sobre sua cabeça.
Pela última meia hora, eles acompanharam o progresso dos visitantes inesperados. Um era pesado, uma forma masculina. O outro era mais leve, de uma variedade feminina. No entanto, não havia como perceber seus cheiros; o porão era hermeticamente fechado.
Muito provavelmente, eram apenas humanos de passagem, ainda que ele não pudesse adivinhar o motivo para alguém que não fosse sem teto perder tempo numa estrutura tão decrépita numa noite fria. Quem quer que fossem, quaisquer as razões que os levaram até ali, contudo, ele não teria problemas para defender seu território, mesmo sendo aquele.
Mas não fazia mal esperar. Se ele podia evitar massacrar aqueles humanos? Isso significava que ele e seus soldados continuariam a usar aquele espaço sem serem incomodados.
Ninguém disse nada enquanto as passadas continuavam.
Vozes se misturavam. Grave e aguda. Em seguida, um telefone tocou.
Xcor acompanhou o toque e a conversa que se seguiu, caminhando em silêncio até o outro alçapão, lugar em que a pessoa escolheu parar. Imóvel, prestou atenção e captou metade de uma conversa nada interessante que não lhe revelou nenhuma das identidades dos envolvidos.
Não muito depois, o som inconfundível de sexo se fez claro.
Enquanto Zypher ria baixinho, Xcor encarou o bastardo para calá-lo. Mesmo cada um dos alçapões estando fechado pelo lado de baixo, ninguém sabia que tipo de problema aqueles ratos sem rabo podiam causar em qualquer situação.
Consultou o relógio. Esperou que os gemidos parassem. Gesticulou para que os soldados ficassem quietos quando eles pararam.
Movendo-se em silêncio, ele seguiu para o alçapão no canto extremo do armazém, aquele que se abria no que deveria ser um escritório de supervisor. Destrancando-o, segurou uma pistola, desmaterializou-se e inalou.
Não era humano.
Bem, um esteve ali, mas o outro... era algo diferente.
Do outro lado, a porta externa foi fechada e trancada.
Em sua forma fantasmagórica, Xcor atravessou o armazém e apoiou as costas na parede de tijolos, e olhou para fora de um dos vidros empoeirados.
Um par de faróis se acendeu na frente, no estacionamento.
Desmaterializando-se do lado de fora da janela, subiu até o telhado do armazém do lado oposto da rua.
Ora, ora, se aquilo não era interessante.
Havia um Sombra ali embaixo, sentando atrás do volante do BMW com a janela do motorista abaixada até a metade e uma fêmea humana se inclinando sobre o SUV.
Era a segunda vez que se deparava com um em Caldwell.
Eles eram perigosos.
Pegando o celular, ligou para o número de Throe após encontrar a foto do macho na lista de contatos, e ordenou que os soldados saíssem e lutassem. Ele lidaria sozinho com aquela situação.
Lá embaixo, o Sombra esticou a mão, puxou a mulher pela nuca e a beijou. Depois deu marcha à ré no carro e saiu sem olhar para trás.
Xcor mudou de posição para acompanhar o macho, transitando de telhado em telhado, conforme o Sombra seguia na direção do bairro das boates nas ruas que corriam em paralelo ao rio...
A princípio, a sensação em seu corpo sugeria uma mudança na direção do vento, os açoites gélidos atingindo-o por trás, em vez de golpeá-lo no rosto. Mas logo pensou... não, era algo puramente interno. As ondas que sentia sob a pele...
Sua Escolhida estava por perto.
Sua Escolhida.
Abandonando imediatamente o rastro do Sombra, ele seguiu para perto do rio Hudson. Onde ela estava...
Num carro. Estava se movendo num carro.
Pelo que seus instintos lhe diziam, ela estava se movendo em alta velocidade que, ainda assim, era rastreável. Portanto, a única explicação era que ela estava na Northway, seguindo de noventa a cento e vinte quilômetros por hora.
Recuando na direção da fileira de armazéns, ele se concentrou no sinal que estava captando. Como fazia meses desde que se alimentara dela, sentiu pânico ao perceber que a conexão criada pelo sangue dela em suas veias estava perdendo intensidade, a ponto de ele ter dificuldade para localizar o veículo.
Mas, em seguida, captou um sedã luxuoso graças ao fato de ele ter freado na saída que convergia o tráfego para as pontes. Desmaterializando-se nas vigas, plantou as botas de combate no pináculo de um dos esteios de metal e esperou que ela passasse debaixo dele.
Pouco depois de fazê-lo, ela seguiu em frente, indo para o outro lado da cidade, oposta à margem do rio.
Ele continuou com ela, mantendo uma distância segura, embora se perguntasse a quem tentava enganar. Se ele pressentia sua fêmea?
O mesmo acontecia com ela.
Porém, ele não abandonaria seu rastro.
Enquanto Qhuinn estava no assento de passageiro do Mercedes, sua Heckler e Koch calibre .45 era mantida discretamente sobre a coxa, os olhos movimentando-se incessantemente do espelho retrovisor para a janela lateral e o para-brisa. Ao lado dele, Phury estava na direção, as mãos do Irmão num perfeito dez para as duas tão apertado que mais parecia que ele estava estrangulando alguém.
Caramba, havia coisas demais acontecendo ao mesmo tempo.
Layla e a criança. Aquele acidente com o Cessna. O que ele fizera ao primo na noite anterior. E também... bem, havia aquela situação com Blay.
Ah, bom Deus... a situação com Blay.
Enquanto Phury pegava a saída que os levaria às pontes, a mente de Qhuinn ia da preocupação com Layla às lembranças das imagens, dos sons... e dos sabores das horas diurnas.
Intelectualmente, ele sabia que o que acontecera entre eles não fora um sonho. E seu corpo se lembrava muito bem disso, como se o sexo tivesse sido um tipo de marcação a ferro em sua pele que o mudara para o resto da vida. E, mesmo assim, enquanto tentava lidar com o drama mais recente, a sessão breve demais parecia pré-histórica, e não ocorrera há nem 24 horas atrás.
Ele temia que se tratasse de uma sessão única.
Nunca mais me toque assim.
Gemendo, ele esfregou a testa.
– Não são os seus olhos – disse Phury.
– O que disse?
Phury olhou de relance para o banco de trás.
– Ei, como estão as coisas? – perguntou às fêmeas. Quando Layla e a doutora Jane responderam numa afirmativa breve, ele assentiu com a cabeça. – Escutem, vou fechar a divisória por um segundo, está bem? Está tudo bem por aqui.
O Irmão não lhes deu a chance de responder de um ou outro modo, e Qhuinn se retesou no banco enquanto a divisória opaca subia, partindo o sedã em duas partes. Não fugiria de nenhum tipo de confronto, mas isso não significava que ele estava ansioso pelo segundo round, e se Phury estava isolando as duas, aquilo não seria nada bonito.
– Seus olhos não são o problema – disse o Irmão.
– Não entendi.
Phury olhou para ele.
– O fato de eu estar irritado sobre tudo isso não tem nada a ver com nenhum defeito. Layla está apaixonada por você...
– Não, não está não.
– Vê, você está me irritando muito agora.
– Pergunte a ela.
– Enquanto está sofrendo um aborto? – replicou o Irmão. – É, é isso mesmo o que vou fazer.
Enquanto Qhuinn se retraía, Phury continuou:
– Sabe, esse é o seu negócio. Você gosta de viver no limite e ser desvairado... Eu, honestamente, acredito que isso o ajuda a lidar com as idiotices que sua família o fez passar. Se você destruir tudo? Nada pode afetá-lo. E acredite ou não, não tenho problema algum com isso. Você faz o que tem que fazer e sobrevive às noites e aos dias do melhor modo que pode. Mas assim que você parte o coração de uma inocente, ainda mais se ela está sob a minha proteção? É nessa hora que você e eu temos um problema.
Qhuinn olhou pela janela. Antes de tudo, parabéns ao cara ali do lado. A ideia de que havia um preconceito contra Qhuinn baseado em seu caráter em vez de uma mutação genética sobre a qual não tivera nenhum poder decisório era uma mudança refrescante. E, ei, não que ele não concordasse com o cara, pelo menos até um ano atrás. Antes disso? Inferno, ele esteve descontrolado em muitos níveis. Mas as coisas mudaram. Ele mudara.
Evidentemente, Blay se tornar indisponível fora o tipo de chute no saco de que ele precisava para finalmente crescer.
– Não sou mais assim – disse ele.
– Então, está preparado para se vincular a ela? – quando ele não respondeu, Phury deu de ombros. – E lá vai você de novo. Conclusão: sou responsável por ela, legal e moralmente. Posso não estar agindo como um Primale em alguns aspectos, mas o restante das funções desse cargo eu levo muito a sério. A ideia de que você a meteu nessa confusão me deixa enjoado, e eu acho muito difícil de acreditar que ela não tenha feito isso para agradá-lo... Você disse que os dois queriam um filho? Tem certeza de que não era só você, e ela só fez isso para deixá-lo feliz? Isso se parece muito com o feitio dela.
Tudo aquilo foi apresentado de maneira retórica. E não cabia a Qhuinn criticar a lógica, mesmo que ela estivesse errada. Mas, enquanto ele passava os dedos pelos cabelos, o fato de que fora Layla a procurá-lo era algo que ele manteria só para si. Se Phury queria pensar que a culpa era só sua, tudo bem, ele aguentaria o tranco. Qualquer coisa para tirar a pressão e as atenções de cima de Layla.
Phury olhou por entre os bancos.
– Isso não está certo, Qhuinn. Não é isso o que machos de verdade fazem. E olhe só a situação em que ela está. Você causou isso a ela. Você a colocou no banco de trás deste carro, e isso é errado.
Qhuinn apertou os olhos. Bem, como se isso não fosse martelá-lo na cabeça pelos próximos cem anos. Mais ou menos.
Enquanto eles seguiam pela ponte e deixavam as luzes piscantes do centro da cidade para trás, ele manteve a boca fechada, e Phury também se calou.
Mas, pensando bem, o Irmão já dissera tudo o que havia para ser dito, não?
CAPÍTULO 33
Assail acabou perseguindo sua presa atrás do volante do seu Range Rover. Muito mais confortável assim, e a localização da mulher já não era mais um problema: enquanto estivera esperando ao lado do Audi que ela saísse de sua propriedade, colocara um equipamento de rastreamento na parte inferior do espelho retrovisor lateral.
Seu iPhone cuidou do resto.
Depois de ela ter deixado abruptamente seu bairro – após a proposital desmaterialização ante suas vistas só para desestabilizá-la ainda mais –, ela atravessou o rio e deu a volta para a parte de trás da cidade, onde as casas eram pequenas, próximas umas das outras e delimitadas por cercas de alumínio.
Enquanto a perseguia, mantendo pelo menos dois quarteirões de distância entre os veículos, observou as luzinhas coloridas no bairro, milhares de fios de pisca-pisca entre os arbustos, pendurados nos telhados e emoldurando janelas e portas. Mas aquilo não era nem metade da história. Cenários de manjedouras colocados em destaque em diminutos jardins eram iluminados, e também havia os bonecos de neve falsos com cachecóis vermelhos e calças azuis que brilhavam por dentro.
Em contraste com a decoração sazonal, ele estava disposto a apostar que as estátuas da Virgem Maria eram permanentes.
Quando o carro parou e estacionou, ele se aproximou, parando quatro casas adiante e desligando as luzes. Ela não saiu imediatamente do carro, e quando o fez, não vestia a parca e as calças de esqui nas quais o espionara. Em vez disso, mudara para um suéter vermelho e um par de jeans.
E soltara o cabelo.
O volume escuro e pesado ultrapassava os ombros, curvando-se nas pontas.
Ele grunhiu na escuridão.
Com passadas rápidas e certeiras, ela ultrapassou os quatro degraus de concreto que levavam à entrada modesta da casa. Abrindo a porta de tela numa moldura de metal, ela a segurou com o quadril enquanto destrancava a porta com a chave, para depois entrar e trancar pelo lado de dentro.
Quando as luzes se acenderam no andar de baixo, ele observou a silhueta dela avançar pelo cômodo da frente, as cortinas finas lhe possibilitando apenas uma ideia da movimentação dela, e não uma visão desobstruída.
Ele pensou em suas próprias persianas. Demorou um tempo para que aperfeiçoasse aquela invenção, e a casa às margens do rio Hudson fora um teste perfeito. As barreiras funcionavam melhor do que ele antecipara.
Ela, porém, era esperta o bastante para notar alguma anormalidade, e ele se perguntou o que as teriam denunciado.
No segundo andar, uma luz se acendeu, como se alguém que estivesse descansando tivesse despertado com a chegada dela.
As presas dele pulsaram. A ideia de que algum homem humano estivesse à espera dela em seu quarto conjugal fez com que ele quisesse estabelecer sua dominância, mesmo que isso não fizesse sentido. Ele a seguira para o seu próprio bem, e nada mais.
Absolutamente nada mais.
Bem quando a mão segurou a maçaneta da porta, seu telefone tocou. Na hora certa.
Quando ele viu quem era, franziu o cenho e levou o celular ao ouvido.
– Duas ligações em tão pouco tempo. A que devo essa honra?
Rehvenge não pareceu estar se divertindo.
– Não retornou a minha ligação.
– Eu deveria?
– Cuidado, garoto.
Os olhos de Assail continuaram atentos à casinha. Ele estava curiosamente desesperado para saber quem estava lá dentro. Estaria ela subindo, despindo-se pelo caminho?
Exatamente de quem ela escondia suas espreitas? E ela de fato as escondia – senão, por que outro motivo trocar de roupa?
– Alô?
– Aprecio o gentil convite – ele se ouviu dizer.
– Não foi um convite. Você é um maldito membro do Conselho agora que está vivendo no Novo Mundo.
– Não.
– Como é que é?
Assail relembrou o encontro na casa de Elan no começo do inverno, aquele sobre o qual Rehvenge nada sabia, aquele no qual o Bando de Bastardos apareceu para forçar a barra. Também pensou no atentado a Wrath, à vida do Rei Cego... na sua própria propriedade, pelo amor de Deus.
Drama demais para o seu gosto.
Com calma ensaiada, ele se lançou no mesmo discurso que fizera à facção de Xcor:
– Sou um homem de negócios por predileção e propósito. Embora respeite tanto o reinado atual quanto o poder de base do Conselho, não posso desviar nem energia nem tempo das minhas empreitadas vigentes. Nem agora, nem no futuro.
Houve um momento prolongado de silêncio. E depois aquela voz profunda e maligna se fez ouvir do outro lado:
– Ouvi falar dos seus negócios.
– Verdade?
– Eu mesmo estive envolvido com isso há alguns anos.
– Foi o que eu soube.
– Consegui fazer as duas coisas.
Assail sorriu na escuridão.
– Talvez eu não seja tão talentoso quanto você.
– Vou deixar isto perfeitamente claro. Se você não aparecer nessa reunião, deduzirei que você está jogando no time errado.
– Com essa declaração, você reconhece que existem dois e que eles se opõem.
– Entenda como quiser. Mas se não estiver comigo e com o Rei, você é inimigo meu e dele.
E foi exatamente isso o que Xcor lhe dissera. Pensando bem, havia alguma outra posição naquela guerra crescente?
– O Rei foi alvejado na sua casa, Assail.
– Pelo que me lembro – disse ele secamente.
– Pensei que você talvez quisesse dizimar qualquer ideia quanto ao seu envolvimento.
– Já o fiz. Naquela mesma noite disse aos Irmãos que eu não tinha nada a ver com aquilo. Eu lhes dei o veículo com que escaparam com o Rei. Por que eu faria tal coisa se fosse um traidor?
– Para livrar seu rabo.
– Sou muito eficiente nisso sem o benefício de conversações, eu lhe garanto.
– Então, como anda a sua agenda?
A luz no segundo andar se apagou, e ele teve que imaginar o que a mulher fazia no escuro... E com quem.
Por vontade própria, suas presas se expuseram.
– Assail. Você está seriamente me aborrecendo com essa merda de comportamento.
Assail ligou o motor do Range Rover. Não estava disposto a ficar esperando no meio-fio enquanto o que quer que estivesse acontecendo ali dentro... acontecia. Obviamente, ela se recolhera e ficaria ali. Além disso, seu telefone o alertaria caso o carro dela voltasse a se movimentar.
Enquanto ele tomava a rua e acelerava, falou com clareza:
– Neste instante, estou me demitindo da minha posição no Conselho. A minha neutralidade nessa disputa pela coroa não será questionada por nenhum dos lados...
– E você sabe quem são os jogadores, não?
– Deixarei isto o mais claro possível: não tomo partido, Rehvenge. Não sei de que outro modo deixar isso ainda mais claro... e não serei arrastado para essa guerra por você, nem pelo Rei nem por ninguém mais. Não tente me forçar, e saiba que a neutralidade que lhe apresento agora é a mesma que apresentei a eles.
Desse mesmo modo, prometera a Elan e a Xcor não revelar suas identidades, e manteria sua palavra – não por acreditar que o grupo seria capaz de retribuir o favor, mas pelo simples fato de que, dependendo de quem vencesse, um confidente de qualquer lado seria visto como espião a ser erradicado ou um herói a ser aclamado. O problema era que não se saberia que lado venceria até aquilo acabar, e ele não estava interessado em apostas.
– Então você foi abordado – declarou Rehv.
– Recebi uma cópia da carta que eles enviaram na primavera passada.
– E esse foi o único contato que teve?
– Sim.
– Está mentindo para mim.
Assail parou num farol.
– Não há nada que possa dizer ou fazer para me arrastar para isso, caro lídher.
Com ameaças em excesso, o macho do outro lado rosnou.
– Não conte com isso, Assail.
Dito isso, Rehvenge desligou.
Praguejando, Assail jogou o telefone no banco do passageiro. Depois, cerrou os dois punhos e os bateu com força no volante.
Se existia uma coisa que ele não tolerava era ser sugado para o olho do furacão das brigas dos outros. Pouco se importava com quem sentava no trono, ou com quem era encarregado da glymera. Ele só queria ser deixado em paz para ganhar dinheiro à custa dos ratos sem rabo.
Isso era tão difícil de entender?
Quando a luz ficou verde, ele afundou o pé no acelerador, mesmo sem ter nenhum destino específico em mente. Apenas dirigiu a esmo... e cerca de quinze minutos mais tarde descobriu-se sobre o rio em uma das pontes.
Ah, então seu Range Rover decidira levá-lo de volta para casa.
Ao emergir na margem oposta, seu telefone emitiu um alerta, que ele quase ignorou. Mas os gêmeos tinham saído para cuidar do último carregamento de Benloise, e ele queria saber se os intermediários tinham aparecido com suas cotas no fim das contas.
Não era uma chamada, ou uma mensagem de texto.
Era o Audi preto se movendo mais uma vez.
Assail pisou no freio, cortou na frente de um carro que buzinou como se o xingasse, subiu e atravessou o canteiro central coberto de neve.
E praticamente voou pela ponte que o levava de volta.
Em sua posição vantajosa em uma relativa periferia distante, Xcor precisava de binóculos para ver adequadamente a sua Escolhida.
O carro em que ela vinha andando, o enorme sedã preto, continuara em frente depois da ponte, seguindo por oito ou nove quilômetros antes de sair por uma estradinha rural que levava para o norte. Depois de mais alguns quilômetros, e sem nenhum aviso, virou numa estrada de terra que era estrangulada nas duas laterais por plantações perenes. Por fim, parou ante uma construção baixa de concreto que não dava indícios de ter nem janelas nem uma porta.
Ele ajustou o foco quando dois machos saíram pela frente. Reconheceu um instantaneamente, o cabelo o denunciava: Phury, filho de Ahgony, que, de acordo com a boataria, tornara-se o Primale das Escolhidas.
O coração de Xcor começou a bater forte.
Especialmente quando reconheceu a segunda figura: era o lutador de olhos descombinados contra quem pelejara na casa de Assail quando o Rei fora levado embora às pressas.
Os dois machos sacaram as pistolas e perscrutaram as imediações.
Como Xcor estava a favor do vento e parecia não haver ninguém mais por perto, ele deduziu que havia uma grande probabilidade, a não ser que sua Escolhida revelasse a posição dele, que aquele par procedesse com o que quer que tivesse planejado para a fêmea.
De fato, era como se ela estivesse sendo levada para uma prisão.
Só. Por. Cima. Do. Seu. Cadáver.
Ela era um inocente naquela guerra, utilizada com propósitos nefastos sem que isso tivesse sido culpa sua; mas, obviamente, ela seria executada ou trancafiada numa cela na qual passaria o resto de sua vida na Terra.
Ou não.
Ele segurou as pistolas.
Aquela era uma boa noite para cuidar daquele assunto. De fato, era a sua chance de tê-la para si, de salvá-la de qualquer punição que lhe impingiram por ter, sem saber, ajudado e revigorado o inimigo. E talvez as circunstâncias quanto à sua condenação injusta a deixassem favoravelmente disposta em relação ao seu inimigo e salvador.
Ele fechou os olhos brevemente ao imaginá-la em sua cama.
Quando Xcor voltou a abri-los, Phury abria a porta traseira do sedã e colocava a mão para dentro. Quando o Irmão se endireitou, a Escolhida era retirada do veículo... e levada pelos dois cotovelos, os lutadores segurando-a de cada lado enquanto a conduziam para a construção.
Xcor se preparou para se aproximar. Depois de tanto tempo, uma vida inteira, mais uma vez ele a tinha próxima de si e não desperdiçaria a oportunidade que o destino lhe propiciava, não agora, não quando a vida dela tão obviamente pendia na balança. E ele levaria a melhor naquilo; a ameaça a ela fortalecia seu corpo a um nível inimaginável de poder, a mente se aguçava a ponto de avaliar todas as possibilidades de ataque e continuar absolutamente calmo.
De fato, havia apenas dois machos a guardá-la e, com eles, uma fêmea que não só parecia não estar armada, como também não avaliava seus arredores como se fosse treinada para tal ou inclinada para o conflito.
Ele estava mais do que preparado para acabar com os captores de sua fêmea.
Bem quando ele se preparava para avançar, o cheiro da Escolhida o atingiu na brisa fria, aquele perfume tentador exclusivo fazendo-o oscilar dentro de suas botas de combate...
Imediatamente, ele reconheceu uma mudança nele.
Sangue.
Ela estava sangrando. E havia mais alguma coisa...
Sem pensamento consciente, seu corpo se moveu para mais perto, sua forma restabelecendo o peso corpóreo, suspendendo-se a meros três metros, atrás de uma construção destacada do prédio principal.
Ele percebeu que ela não era uma prisioneira sendo levada para uma cela ou para a execução.
A sua Escolhida tinha dificuldade para andar. E aqueles guerreiros a amparavam com cuidado; mesmo com as armas expostas e os olhos vasculhando qualquer sinal de ataque, eles eram gentis com ela como seriam com a mais frágil das flores em botão.
Ela não estava sendo maltratada. Não tinha hematomas nem ferimentos. Enquanto o trio avançava, ela olhou para um macho, depois para o outro, e disse algo como que tentando assegurá-los, pois, na verdade, não era raiva que contraía as sobrancelhas daqueles guerreiros.
Era, na realidade, o mesmo terror que ele sentiu quando farejou o sangue dela.
O coração de Xcor bateu ainda mais forte em seu peito, a mente tentando compreender tudo aquilo.
E então, ele se lembrou de algo do seu passado.
Depois do seu nascimento, sua mahmen o repelira e ele fora deixado no orfanato no Antigo País para o que quer que o destino lhe reservasse. Ali, permanecera entre os raros indesejados, cuja maioria possuía deformidades físicas como a sua, por quase uma década... tempo suficiente para forjar lembranças permanentes sobre aquilo que transpirava no lugar triste e solitário.
Tempo suficiente para ele entender o que significava quando uma fêmea sozinha aparecia nos portões, era-lhe concedida a entrada, e depois berrava por horas, às vezes dias... antes de dar à luz, na maioria dos casos, a crianças mortas. Ou abortadas.
O cheiro do sangue naquela época era bem específico. E o cheiro levado pelo vento frio desta noite era o mesmo.
Uma gestação era o que invadia seu nariz agora.
Pela primeira vez em sua vida, ele se ouviu dizer, em absoluta agonia:
– Santa Virgem do Fade...
CAPÍTULO 34
A ideia de que os membros do s’Hisbe estivessem no código postal de Caldwell fez com que Trez pensasse em fazer as malas com tudo o que possuía, buscar o irmão e sair em férias permanentes dali.
Enquanto dirigia do armazém para o Iron Mask, a cabeça estava tão confusa que ele tinha de pensar conscientemente em quais esquinas virar, e frear nas placas de pare, e onde deveria estacionar quando chegasse à boate. E depois, quando desligou o motor do X5, apenas continuou sentado atrás do volante, encarando a parede de tijolos do seu prédio por... sei lá, um ano.
Uma tremenda metáfora, todo o “ir a nenhum lugar” bem na sua frente.
Não que não soubesse o quanto decepcionava as pessoas. A questão? Pouco se importava. Não voltaria para os costumes antigos. A vida que agora levava era sua, e ele se recusava a permitir que uma promessa feita na época do seu nascimento o encarcerasse na vida adulta.
Aquilo não aconteceria.
Desde que Rehvenge realizara a boa ação do século e salvara tanto o seu traseiro quanto o do seu irmão, as coisas mudaram para Trez. Ele e iAm receberam ordens para se aliarem aos sympatho do lado de fora do Território a fim de saldarem a dívida, e esse “pagamento forçado” fora o bilhete deles para a liberdade, a saída que eles vinham procurando. E ainda que ele lamentasse arrastar iAm para aquele drama, o resultado final foi que seu irmão teve que vir com ele, e essa era apenas mais uma parte da solução perfeita que vivia atualmente. Abandonar o s’Hisbe e vir para o mundo exterior fora uma revelação, a primeira e deliciosa amostra de liberdade. Não havia protocolo, nenhuma regra, ninguém bafejando em seu cangote.
A ironia? Aquilo deveria ter sido um tapinha na bunda por ousar ter saído do Território e se misturar com os Desconhecidos. Um castigo com a intenção de fazê-lo andar na linha.
Rá.
E, desde então, nos recessos de sua mente, ele meio que desejava que a extensão dos seus negócios com os Desconhecidos durante a última década o tivesse contaminado perante os olhos do s’Hisbe, tornando-o inelegível para a “honra” que lhe fora concedida no nascimento. Ou seja, condenando-o a uma liberdade permanente.
O problema era que, se enviaram AnsLai, o sumo sacerdote, obviamente esse objetivo não fora alcançado. A menos que a visita tenha sido para repudiá-lo...
Nesse caso, saberia por meio de iAm. Não?
Trez verificou o celular. Nenhuma mensagem. Nem de voz nem de texto. Estava na casinha do cachorro de novo em relação ao seu irmão, a menos que iAm tivesse resolvido mandar tudo à merda e voltado para casa, para a tribo.
Maldição...
A batida forte à sua janela não fez com que ele simplesmente levantasse a cabeça. Não. Ele também sacou a arma.
Trez franziu a testa. Parado do lado de fora do carro, um macho humano do tamanho de uma casa. O cara tinha um barrigão de cerveja, mas os ombros fortes sugeriam que ele realizava trabalho físico regular, e o maxilar rígido e pesado revelava tanto a sua ancestralidade Cro-Magnon quanto o tipo de arrogância mais comum entre os animais grandes e idiotas.
Com grandes baforadas de touro libertando-se das narinas, ele se inclinou e bateu na janela. Naturalmente, com um punho tão grande quanto uma bola de futebol.
Bem, ficou claro que ele queria um pouco de atenção, e quer saber? Trez estava mais do que disposto em lhe dar.
Sem aviso, ele escancarou a porta, pegando o cara em cheio nas bolas. Enquanto o humano cambaleava para trás agarrando a virilha, Trez se ergueu em toda a sua altura e guardou a arma no cós da calça, fora de vista, mas fácil de apanhar.
Quando o senhor Agressivo se recuperou o bastante para olhar para cima, beeeem para cima, ele pareceu perder um pouco do seu entusiasmo. Pensando bem, Trez devia ter uns quarenta centímetros e pesar uns 45 quilos a mais que o cara. Apesar daquele pneuzão que ele carregava.
– Está procurando por mim? – perguntou Trez, querendo mesmo dizer: tem certeza de que quer fazer isso, grandalhão?
– É. ‘Tô.
Ok, então tanto a gramática quanto a avaliação de risco eram problemas para ele. Provavelmente teria dificuldades do mesmo tipo com adições e subtrações com numerais de único dígito.
– Estou – corrigiu Trez.
– Quê?
– Acredito que seja “sim, eu estou”, e não “tô”.
– Vai à merda. Que tal? – o cara se aproximou. – E fique longe dela.
– Dela? – isso restringia o problema para o que... umas mil pessoas?
– Minha mina. Ela num qué ocê, num precisa ducê, e num vai mais ficá cucê.
– De quem, exatamente, estamos falando? Vou precisar de um nome – e talvez nem isso ajudasse.
À guisa de resposta, o cara avançou. Provavelmente teria sido um soco ferrado, mas o avanço foi lento demais e muito penoso, e a maldita coisa poderia ter sido acompanhada de uma legenda.
Trez segurou o punho com uma mão, espalmando-a como se fosse uma bola de basquete. E depois, com um giro rápido, ficou com o pedaço de bife virado e preso – prova positiva de que pontos de pressão funcionavam, e que o pulso era um deles.
Trez falou bem no ouvido do homem, só para que as regras básicas fossem bem recebidas:
– Faça isso de novo e vou quebrar cada osso da sua mão. De uma vez – enfatizou isso com um puxão que fez o cara gemer. – E depois, vou subir até o braço. Agora, de que porra você está falando?
– Ela ‘teve aqui ontem à noite.
– Muitas mulheres estiveram. Consegue ser mais específico...?
– Ele ‘tá falando de mim.
Trez ergueu o olhar. Ah... que magnífico.
A garota que deu uma de doida, a sua perseguidora.
– Eu disse que cuidava disso! – ela gritou.
É, o cara parecia mesmo ter o controle da situação. Então, a que tudo levava a crer, os dois tinham ilusões... E talvez isso explicasse o relacionamento deles: ele a considerava uma supermodelo, e ela acreditava que ele tivesse um cérebro.
– Isto é seu? – Trez perguntou à mulher. – Porque, ser for, pode levá-lo para casa com você antes que precise de um balde para limpar a bagunça?
– Eu disse procê não vir aqui – disse a mulher. – Que que ‘cê ‘tá fazendo aqui?
E mais uma prova de que esses dois eram um casal perfeito.
– Que tal se eu deixar vocês dois resolverem isso? – sugeriu Trez.
– Eu amo ele!
Por um segundo, a resposta não fez sentido. Mas depois, e deixando o sotaque carregado de lado, ele entendeu: a tonta estava falando dele.
Enquanto Trez encarava incrédulo a mulher, percebeu que aquela transa em particular tinha saído pela culatra de maneira gigantesca.
– Não está, não.
Bem, pelo menos o namorado agora falara corretamente.
– Sim, estou!
Foi nessa hora que tudo foi para a puta que o pariu. O touro se lançou sobre a mulher, quebrando o próprio pulso no processo de se libertar. Depois os dois ficaram cara a cara, berrando obscenidades, os corpos se arqueando para a frente.
Ficou claro que eles tinham prática naquilo.
Trez olhou ao redor. Não havia ninguém no estacionamento, nenhuma alma viva andando na calçada, mas ele não precisava de violência doméstica rolando nos fundos da sua boate. Inevitavelmente, alguém acabaria vendo e chamando a polícia ou, pior, aquela burra acabaria forçando demais a barra do namorado grande e burro, e acabaria levando a pior.
Se ao menos ele tivesse um balde de água ou, quem sabe, uma mangueira de jardim para que os dois se largassem.
– Escutem aqui, vocês dois têm que...
– Eu te amo! – a mulher disse, virando-se para Trez e agarrando o bustiê. – Não entendeu ainda? Eu te amo!
Por conta da camada de suor que a cobria, apesar de a temperatura estar próxima de zero, ficou bem claro que ela tinha usado alguma coisa. Coca ou metanfetamina seria o seu palpite se ele tivesse de adivinhar. Êcstasy normalmente não era associado a esse tipo de agressão.
Perfeito. Mais essa agora.
Trez balançou a cabeça.
– Querida, você não me conhece.
– Conheço sim!
– Não, você não...
– Porra, não fala com ela assim!
O cara atacou Trez, mas a fêmea se colocou na frente, metendo-se diante de um trem acelerado.
Cacete, agora era a hora de ele se meter. Nada de violência contra mulheres na frente dele. Nunca – mesmo que fosse dano colateral.
Trez se moveu com tanta rapidez que quase fez o tempo voltar para trás. Tirou sua “protetora” da linha de combate e lançou um soco que pegou o animal disparado bem no meio do queixo.
Causou pouca ou nenhuma impressão. Foi o mesmo que atingir uma vaca com uma pilha de papel.
Trez levou um murro no olho, uma luz pipocou em metade da sua vista, mas foi um golpe de sorte mais do que algo coordenado. A recompensa, contudo, foi tudo isso e muito mais: com rápida coordenação, ele descarregou as juntas dos dedos em sucessão veloz, acertando-o no ventre, transformando o fígado cheio de cirrose do cara num saco de pancada vivo até o filho da puta se dobrar ao meio e pedir arrego.
Trez concluiu o assunto chutando o peso morto gemedor até ele cair no chão.
Então, ele sacou a pistola e enfiou o cano bem na carótida do cara.
– Você tem uma chance de sair daqui – Trez disse calmo. – E é assim que as coisas vão ser. Você vai se levantar e não vai nem olhar nem falar com ela. Você vai embora pela frente da boate e vai entrar numa porra de um táxi e vai para a porra da sua casa.
Diferentemente de Trez, o homem não tinha um sistema cardíaco muito bem desenvolvido e conservado e respirava como um trem de carga. Apesar disso e do jeito como os olhos injetados e marejados o olhavam, ele conseguira focar a visão independentemente da hipoxia, e captara a mensagem.
– Se a agredir de qualquer modo que seja, se ela quebrar sequer uma unha por sua causa, se alguma propriedade dela for danificada de algum modo? – Trez se inclinou, aproximando-se. – Vou abordá-lo por trás. Você nem saberá que estive ali, e não vai sobreviver ao que eu lhe farei. Isso eu prometo.
Sim, Sombras tinham maneiras de se livrar dos inimigos e, ainda que ele preferisse carne com pouca gordura, como frango e peixe, não se importava em abrir exceções.
O problema era que tanto em sua vida pessoal quanto na profissional ele vira como a violência doméstica se intensificava. Em muitos casos, algo grande tinha que intervir a fim de romper o ciclo. Veja só? Ele se encaixava nisso.
– Acene com a cabeça se você entendeu meus termos – quando o aceno veio, ele bateu a arma com força contra a nuca gorda. – Agora, olhe em meus olhos e saiba que estou falando a verdade.
Enquanto Trez o encarava, ele inseriu um pensamento direto no córtex cerebral, implantando-o como se fosse um chip instalado entre os lóbulos. O seu disparo seria qualquer tipo de ideia brilhante que tivesse a respeito da mulher; seu efeito seria a absoluta convicção de que a sua própria morte seria inevitável e rápida, caso ele desse seguimento à ideia.
O melhor tipo de terapia cognitiva que existia.
Taxa de sucesso de cem por cento.
Trez deu um pulo e concedeu uma chance de se comportar como um bom garoto ao gorducho. E, claro, o filho da puta se ergueu do chão, sacudiu-se como um cão com as pernas plantadas afastadas e a camisa larga solta.
Quando ele saiu, foi mancando.
E foi nesse instante que as fungadas foram percebidas.
Trez se virou. A mulher tremia no frio, as roupas indiscretas não ofereciam nenhuma barreira para a noite de dezembro, a pele pálida, a exaltação desaparecida... como se o fato de ele colocar o cano da sua .40 na garganta do seu namoradinho tivesse alguma influência.
O rímel escorria pelo rosto enquanto ela testemunhava a partida do seu “Príncipe Encantado”.
Trez olhou para o céu e começou seu diálogo interno.
No fim, ele não teria como deixá-la ali sozinha no estacionamento, ainda mais toda trêmula como estava.
– Onde você mora, querida? – até ele percebia a exaustão em sua voz. – Querida?
A mulher olhou para o lado dele e imediatamente a sua expressão mudou.
– Nunca ninguém me defendeu assim antes.
Ok, agora ele pensava em afundar a cabeça na parede de tijolos. E, olha só, havia uma logo ali do lado.
– Deixe-me levá-la para casa. Onde você mora?
Enquanto ela se aproximava, Trez teve que ordenar aos pés que continuassem exatamente onde estavam – pois, claro, ela se enterrou em seu corpo.
– Eu te amo.
Trez cerrou bem os olhos.
– Vamos – disse, desprendendo-se dela e levando-a até o carro. – Você vai ficar bem.
CAPÍTULO 35
Enquanto Layla era levada até a clínica, seu coração batia forte e as pernas tremiam. Felizmente, Phury e Qhuinn não mostravam problema algum em sustentá-la.
Contudo, graças à presença do Primale, sua experiência foi completamente diferente dessa vez. Quando o painel de entrada do edifício deslizou para o lado, uma das enfermeiras estava lá para recebê-los, e eles foram levados imediatamente para uma parte diferente da clínica daquela em que ela esteve na noite anterior.
Enquanto eram levados para a sala de exames, Layla olhou de relance ao redor e hesitou. O que... era aquilo? As paredes eram recobertas por um rosa claro, e as pinturas em molduras douradas estavam penduradas a intervalos regulares. Nenhuma mesa de exames, tal como aquela em que ela se deitou na noite anterior. Ali, havia uma cama forrada por uma manta elegante, recoberta com pilhas de travesseiros fofos. E, além disso, em vez da pia de aço inoxidável e gabinetes brancos sem graça, uma tela pintada escondia um canto inteiro do quarto atrás da qual, ela deduziu, os instrumentos clínicos de Havers eram mantidos.
A menos que o grupo tenha sido conduzido para os aposentos particulares do médico.
– Ele logo virá vê-la – disse a enfermeira, sorrindo para Phury e se curvando. – Posso lhes trazer algo? Café, chá?
– Apenas o médico – o Primale respondeu.
– Imediatamente, Vossa Excelência.
Ela se curvou novamente e se apressou para fora.
– Vamos colocá-la na cama, está bem? – disse Phury ao lado do leito.
Layla balançou a cabeça.
– Tem certeza de que estamos no lugar certo?
– Sim – o Primale se aproximou e a ajudou a atravessar o quarto. – Esta é uma das suítes VIP.
Layla olhou por sobre o ombro. Qhuinn se acomodara no canto oposto à tela. Ele se mantinha absolutamente imóvel, os olhos focados no chão, a respiração estável, as mãos atrás das costas. E mesmo assim não estava à vontade. Não, ele parecia pronto e capaz de matar e, por um momento, uma pontada de medo a perpassou. Jamais teve medo dele antes, mas, pensando bem, ela nunca o vira num estado tão potencialmente agressivo.
Pelo menos a violência represada não parecia direcionada a ela, nem mesmo ao Primale. Certamente não à doutora Jane enquanto a médica se acomodava numa cadeira forrada de seda.
– Vamos – insistiu Phury com gentileza. – Vamos lá.
Layla tentou subir sozinha, mas o colchão estava longe demais do chão e a parte superior do seu corpo estava tão fraca quanto as pernas.
– Eu pego você – Phury atenciosamente passou o braço ao redor das suas costas e atrás das pernas; depois a suspendeu com cuidado. – Lá vamos nós.
Ajeitando-se na cama, ela gemeu ao sentir uma câimbra se agarrar à sua região pélvica. Enquanto todos os olhos no quarto fixavam-se nela, ela tentou esconder a careta com um sorriso. Sem sucesso: embora o sangramento continuasse estável, as ondas de dor se intensificavam, a duração delas era mais longa, e o espaçamento entre elas, menor.
Naquele compasso, logo se transformaria em agonia constante.
– Estou bem...
A batida à porta a interrompeu.
– Posso entrar?
Apenas a voz do doutor Havers já fez com que ela quisesse fugir.
– Ah, Santa Virgem Escriba – disse ao tentar juntar coragem.
– Sim – respondeu sombriamente Phury. – Entre...
O que aconteceu em seguida foi tão rápido e furioso que o único modo de descrever seria com o coloquialismo que aprendera com Qhuinn.
O mundo desabou.
Havers abriu a porta, entrou e Qhuinn atacou o médico, empurrando-o para aquele canto, inclinando-se com a adaga.
Layla gritou alarmada, mas ele não matou o macho.
No entanto, ele fechou a porta com o corpo do macho, ou talvez com a cara dele. E foi difícil saber se o barulho que ressoou foi a porta se encontrando com a soleira ou o impacto do curandeiro sendo lançado contra a madeira. Provavelmente uma combinação de ambos.
A terrível lâmina afiada foi pressionada contra a garganta pálida.
– Adivinha o que vai fazer primeiro, cretino? – Qhuinn rosnou. – Vai se desculpar por tratá-la como se fosse uma maldita incubadora.
Qhuinn o virou com um puxão. Os óculos de Havers estavam quebrados, uma das lentes rachada formando um padrão de teia de aranha, a alça do outro lado esticada num ângulo estranho.
Layla lançou um olhar para Phury. O Primale não parecia particularmente aborrecido: apenas cruzou os braços sobre o peito imenso e se recostou contra a parede ao lado dela, obviamente muito à vontade com aquela encenação. Do outro lado na cadeira, o mesmo acontecia com a doutora Jane, o olhar esverdeado era tranquilo enquanto observava o dramalhão.
– Olhe nos olhos dela – bramiu Qhuinn – e peça desculpas.
Quando o lutador sacudiu o médico como se ele não passasse de uma boneca de pano, algumas palavras amontoadas escaparam do médico.
Caramba. Layla supunha que deveria se portar como uma dama e não gostar daquilo, mas sentiu satisfação ante aquela vingança.
Tristeza também, porque a situação jamais deveria ter chegado àquilo.
– Aceita as desculpas dele? – Qhuinn perguntou num tom maldoso. – Ou prefere que ele rasteje? Eu ficarei muito feliz em transformá-lo num capacho aos seus pés.
– Isso foi o bastante. Obrigada.
– Agora você vai contar a ela – Qhuinn repetiu o chacoalhão, os braços de Havers quase sendo arrancados das juntas, o jaleco branco balançando tal qual uma bandeira – e somente a ela, que merda está acontecendo com o corpo dela.
– Preciso do... prontuário...
Qhuinn expôs as presas e as colocou ao lado da orelha de Havers, como se estivesse considerando a ideia de arrancá-la numa mordida.
– Tolice. E se você estiver contando a verdade? O lapso de memória vai causar a sua morte. Agora.
Havers já estava pálido, mas isso fez com que ele ficasse completamente branco.
– Comece a falar, doutor. E se o Primale, que o impressiona pra cacete, fizer a gentileza de me contar caso você desvie o olhar dela, isso seria maravilhoso.
– Com prazer – disse Phury.
– Não estou ouvindo nada, doutor. E não sou um cara muito paciente.
– Você é... – por detrás dos óculos quebrados, os olhos do macho encontraram os dela. – O seu filho...
Ela quase desejou que Qhuinn não forçasse aquele contato. Já era bastante difícil ouvir aquilo sem ter que encarar o médico que a tratara tão mal.
Mas, pensando bem, era Havers quem tinha de olhar para ela, e não o contrário.
Ela encarava os olhos de Qhuinn quando Havers disse:
– Você está sofrendo um aborto.
As coisas ficaram embaçadas dali por diante, portanto, ela deduziu que estivesse chorando. Entretanto, não sentia coisa alguma. Era como se sua alma tivesse sido tragada para fora do seu corpo, tudo o que a animava e conectava ao mundo nunca tivesse existido.
Qhuinn não demonstrou reação alguma. Não piscou. Não mudou de posição, nem balançou a adaga.
– Existe algo que possa ser feito em termos médicos? – questionou a doutora Jane.
Havers foi balançar a cabeça, mas parou quando a ponta afiada da adaga perfurou a pele do seu pescoço. Quando o sangue começou a descer pelo colarinho engomado da camisa social, o vermelho combinou com a gravata borboleta.
– Nada que eu saiba – respondeu o médico com voz rouca. – Não neste mundo, de qualquer forma.
– Diga a ela que ela não teve culpa – exigiu Qhuinn. – Diga a ela que ela não fez nada de errado.
Layla fechou os olhos.
– Presumindo que isso seja verdade...
– Em humanos, esse costuma ser o caso, desde que não tenha havido nenhum trauma – interveio a doutora Jane.
– Diga a ela – disse Qhuinn num estalido, o braço começando a vibrar bem de leve, como se estivesse a um passo de liberar a sua violência.
– É verdade – confirmou Havers meio engasgado.
Layla fitou o médico, procurando o olhar dele por trás dos óculos arruinados.
– Nada?
Havers falou rapidamente:
– A incidência de abortos espontâneos é de aproximadamente uma a cada três gestações. Acredito que, como acontece com os humanos, seja causado por um sistema autorregulatório que garante que defeitos de vários tipos não sejam levados a cabo.
– Mas, sem sombra de dúvida, eu estou grávida – disse ela num tom desprovido de emoção.
– Sim. Seus exames de sangue atestaram isso.
– Existe algum risco à vida dela – perguntou Qhuinn – se isso continuar?
– Você é o ghia dela? – perguntou Havers num rompante.
Phury interveio:
– Ele é o pai do filho dela. Portanto, você o tratará com o mesmo respeito com que me trataria.
Isso fez com que os olhos do médico saltassem das órbitas, as sobrancelhas emergissem por trás da armação arruinada. E foi engraçado; foi nesse instante que Qhuinn demonstrou um pouco de reação: apenas um leve vacilo em seu rosto antes que a expressão ferrenha voltasse a demonstrar agressividade.
– Responda – exigiu Qhuinn. – Ela corre algum perigo?
– E-eu... – Havers engoliu em seco. – Não existem garantias na medicina. De modo geral, eu diria que não; ela é saudável em relação ao resto, e o aborto parece estar seguindo seu curso costumeiro. Além disso...
Enquanto o médico continuava a falar, Layla percebeu que seu tom educado e refinado estava muito mais irregular do que na noite anterior.
Tudo regrediu, sua audição sumiu, junto a qualquer percepção de temperatura do quarto, a cama debaixo dela, bem como os outros corpos ao seu redor. A única coisa que enxergava eram os olhos descombinados de Qhuinn.
Seu único pensamento enquanto ele segurava aquela adaga junto ao pescoço do médico?
Mesmo não estando apaixonados um pelo outro, ele era exatamente o pai que queria que seu filho tivesse. Desde que tomara a decisão de participar do mundo real, ela aprendera o quanto a vida podia ser dura, como os outros podiam conspirar contra você e como, às vezes, a força baseada em seus princípios era a única coisa que o fazia atravessar a noite.
Qhuinn dispunha desse último aos montes.
Ele era um extraordinário e temível protetor, e era exatamente disso que uma fêmea precisava quando estava grávida, amamentando ou cuidando de um bebê.
Isso e sua gentileza inata o tornavam nobre a seu ver.
A cor dos seus olhos não importava.
Quase oitenta quilômetros ao sul de onde Havers molhava as calças de tanto medo em sua clínica, Assail estava atrás do volante de seu Range Rover, balançando a cabeça em descrença.
As coisas ficavam cada vez mais interessantes com aquela mulher.
Graças ao GPS, ele rastreara o Audi de longe quando ela decidira sair de seu bairro e tomar a Northway. A cada saída de subúrbio, ele esperava que ela a tomasse, mas enquanto eles deixavam Caldwell para trás para comer poeira, ele começou a pensar que talvez ela estivesse seguindo para Manhattan.
Nada disso.
West Point, o lar da venerável escola militar humana, ficava aproximadamente na metade do caminho entre a cidade de Nova York e Caldwell, e quando ela saiu da autoestrada àquela altura, ele ficou aliviado. Muitas coisas aconteciam lá naquela terra em que o código postal começava com 100, e ele não queria se distanciar muito de sua base por dois motivos: um, ainda não tivera notícias dos gêmeos quanto à aparição daqueles intermediários fuleiros, e, dois, a aurora surgiria em algum momento, e ele não apreciava a ideia de abandonar seu muito modificado e reforçado Range Rover no acostamento de uma estrada caso precisasse se desmaterializar de volta para a sua segurança.
Uma vez fora da estrada, a mulher prosseguiu a exatos setenta quilômetros por hora pela seleção de postos de combustível, hotéis turísticos e lanchonetes da cidade. Em seguida, do outro lado dessa coleção de lugares baratos, as coisas começaram a ficar mais caras. Casas grandes, do tipo que ficavam bem ao fundo de gramados que se pareciam com carpetes, começaram a aparecer, com seus muros de pedra baixos placidamente se aglomerando próximos à estradinha. Ela passou por todas essas propriedades, porém, para acabar parando no estacionamento de um parque que dava para a margem de um rio.
Assim que ela saiu do carro, ele passou por ela, virando a cabeça para trás para medi-la.
Uma centena de metros mais adiante, fora do campo de visão dela, Assail parou o carro no acostamento da estradinha, saindo para o vento enregelante, abotoando o casaco até o alto. Os sapatos não eram os ideais para caminhar sobre a neve, mas ele não se importou. Seus pés suportariam o frio e a umidade, e ele tinha outra dúzia de pares à sua espera no armário de sua casa.
Como o carro dela, e não o corpo, estava com o aparelho de rastreamento, ele manteve o olhar fixo nela. Como esperado, ela vestiu os esquis de cross-country e, depois, com uma máscara branca de esqui sobre a cabeça e roupa de camuflagem clara a lhe cobrir o corpo, ela praticamente desapareceu em meio ao cenário de inverno.
E ele a acompanhou.
Aparecendo a cada dez ou quinze metros, ele encontrou pinheiros para se esconder conforme ela avançava na direção de mansões, os esquis devorando o chão coberto de neve.
Ele concluiu, enquanto mantinha o compasso, antecipando a direção que ela tomaria e, em boa parte adivinhando, que ela iria para uma daquelas mansões.
Toda vez que ela passava por ele sem saber que ele estava em meio às árvores, seu corpo queria saltar. Para derrubá-la. Para mordê-la.
Por algum motivo, aquela humana o deixava faminto.
E brincar de gato e rato era algo muito erótico, especialmente se só o gato soubesse que o jogo estava valendo.
A propriedade na qual ela acabou se infiltrando ficava a quase dois quilômetros dali, mas, apesar da distância, o ritmo puxado daquelas pernas não diminuiu em nada. Ela entrou pelo lado direito do gramado da frente, aproximando-se de um muro de sempre-vivas, depois retomando seu curso.
Aquilo não fazia sentido. Se ela fosse descoberta, estava muito longe do carro. Por certo uma abordagem mais próxima teria feito mais sentido? Afinal, de qualquer modo, agora ela estava exposta, sem árvores para lhe servir de cobertura, nenhuma possível defesa contra uma acusação de invasão de propriedade se a vissem.
A menos que ela conhecesse o dono. E, nesse caso, por que se esconder e aparecer sorrateira no meio da noite?
O jardim de uns 30 mil metros quadrados gradualmente se elevava em direção a uma casa de pedras de uns 180 metros quadrados, com esculturas modernistas paradas como sentinelas brilhantes e cegas ante aquela aproximação, o gramado continuando pelo fundo. O tempo inteiro ela se ateve àquele muro e, observando-a a uns vinte metros de distância, ele se viu impressionado por ela. Contra a neve, ela se movia como uma brisa o faria, invisível e rápida, a sombra lançada contra o muro de pedras de tal modo que ela parecia desaparecer...
Ahhhh...
Ela escolhera aquela rota exatamente por isso, não?
Sim, de fato, o ângulo do luar lançava a sombra dela exatamente sobre as pedras, criando uma camuflagem ainda mais eficiente.
E aquela sensação estranha se intensificou nele.
Esperta.
Assail avançou, encontrando um esconderijo entre a vegetação na lateral da casa. De perto, notou que a mansão não era nova, embora também não fosse antiga – mesmo porque, no Novo Mundo, era raro se deparar com algo construído antes do século XVIII. Muitas janelas chumbadas. E varandas. E terraços.
Conclusão? Fortuna e distinção.
Sem dúvida, muito bem protegidas por inúmeros alarmes.
Parecia muito improvável que ela só fosse espiar a propriedade como fizera na dele. Para começar, havia uma extensão arborizada do lado oposto daquele muro de pedras que ela atravessara. Ela poderia ter estacionado os esquis, subido aquela moita de uns quatro a seis metros, e obtido uma vista privilegiada da casa. O que mais? Nesse caso, ela não precisaria de nada do que estava na mochila que lhe pesava nas costas.
A coisa parecia grande o bastante para transportar um corpo, e estava cheia.
Como se tivessem combinado, ela parou, pegou os binóculos e inspecionou a propriedade, ficando absolutamente imóvel com somente a cabeça a se mexer. E depois atravessou o gramado, movendo-se ainda mais rapidamente do que antes, a ponto de estar literalmente correndo em direção à casa.
Na direção dele.
De fato, ela seguia diretamente para Assail, para aquela junção entre arbustos que marcava a frente da mansão, para a sebe alta que corria ao redor do jardim dos fundos.
Obviamente, ela conhecia a propriedade.
Obviamente, ele escolhera o lugar perfeito.
Ante a aproximação dela, ele recuou apenas um pouco... porque não teria se importado em ser flagrado espiando.
A mulher esquiou mais uns dois metros além de onde ele se encontrava, aproximando-se tanto que ele conseguiu captar o cheiro dela não só em seu nariz, mas também no fundo da garganta.
Ele teve que se refrear para não ronronar.
Depois do esforço em atravessar aquela faixa de gramado com tanta rapidez, ela estava arfando, mas seu sistema cardiovascular se recuperou rápido – um sinal de sua boa saúde e vigor. E a velocidade com a qual ela agora se movia foi igualmente erótica. Tirando os esquis. Tirando a mochila. Abrindo a mochila. Extraindo...
Ele deduziu que ela subiria no telhado, enquanto ela montava o que parecia ser um lança-arpão. Ela mirou a coisa para cima, apertou o gatilho para atirar um gancho. Um instante depois houve o som de um metal se agarrando no alto.
Quando olhou para cima, ele percebeu que ela escolhera uma das poucas extensões de pedra sem janelas... e protegida pela sebe enorme na qual ele mesmo se escondia.
Ela ia entrar.
Àquela altura, Assail franziu o cenho... e desapareceu de onde a observava.
Reaparecendo nos fundos da casa no andar de baixo, ele espiou por várias janelas, apoiando as laterais das mãos no vidro ao se inclinar. O interior estava basicamente escuro, mas não completamente: aqui e acolá havia abajures acesos, as lâmpadas emitindo uma luz alaranjada sobre a mobília que era uma combinação de objetos antigos e arte moderna. Luxuoso que só: em seu sono pacífico, o lugar se parecia com um museu, ou algo que se fotografaria para uma revista, tudo muito bem organizado com uma precisão que haveria de se perguntar se réguas tinham sido utilizadas para dispor a mobília e os objetos de arte.
Nenhuma bagunça em lugar algum, nenhum jornal largado sem querer, nada de cartas, contas, recibos. Nenhum casaco sobre o espaldar de uma cadeira ou um par de sapatos abandonados ao lado do sofá.
Cada um dos cinzeiros imaculadamente limpos.
Somente uma pessoa lhe veio à mente.
– Benloise – sussurrou para si mesmo.
CAPÍTULO 36
Baseando-se nas vibrações regulares que vinham de seu bolso, Xcor sabia que a sua presença estava sendo desejada pelos seus lutadores.
Ele não atendeu.
Parado do lado de fora do prédio para o qual a sua Escolhida fora conduzida, ele não tinha forças nem para sair mesmo quando o fluxo de outros de sua espécie surgia em carros ou materializando-se diante do portal pelo qual ela fora levada. De fato, como tantos entraram e saíram, não havia dúvidas de que aquela era uma clínica médica.
Pelo menos ninguém parecia notá-lo, estando preocupados demais com o que os afligia, apesar do fato de ele estar parado no meio do caminho.
Ah, deuses, só o pensamento do que trouxera a sua Escolhida ali o nauseava ao ponto de ele ter de pigarrear e...
Inspirar o ar frio para dentro dos seus pulmões ajudou a conter a ânsia de vômito.
Quando o cio dela acontecera? Devia ter sido muito recentemente. Da última vez em que a vira...
Quem seria o pai?, perguntou-se pela centésima vez. Quem tomara o que era seu...
– Não seu – ele disse para si mesmo. – Não seu.
Só que era a sua mente dizendo isso e não os seus instintos. Em seu cerne, na parte mais máscula da sua essência, ela era a sua fêmea.
E, ironicamente, era isso o que o impedia de atacar a clínica – com todos os seus soldados, se necessário. Se ela estava recebendo cuidados, a última coisa que ele queria era interromper o processo.
Enquanto o tempo passava e a ausência de informações o torturava até a insanidade, ele percebeu que desconhecera a existência daquele lugar. Se ela fosse dele? Ele não teria sabido onde levá-la para obter ajuda, certamente teria mandado Throe encontrar algum lugar, de algum modo, para garantir os cuidados dela, mas e no caso de uma emergência? Uma hora ou duas procurando um curandeiro poderia significar a diferença entre a vida e a morte.
A Irmandade, por sua vez, soube exatamente onde levá-la. E quando ela recebesse alta daquele lugar, sem dúvida, eles a levariam de volta a um lugar aquecido, seguro, onde teria alimento abundante e uma cama macia, e a força valente de pelo menos seis guerreiros para protegê-la enquanto dormisse.
Irônico como ele se sentia à vontade com isso. Mas, pensando bem, a Sociedade Redutora era um adversário muito sério; e digam o que quiserem a respeito da Irmandade, eles provaram durante toda a eternidade serem defensores capazes.
Abruptamente, seus pensamentos se voltaram para o armazém em que ele e seus soldados vinham ficando. Aquele ambiente úmido, frio, hostil era, na verdade, apenas um degrau acima dos outros lugares em que levantaram acampamento. Se ela estivesse com ele, como a manteria? Nenhum macho jamais poderia vê-la em sua presença, especialmente se ela tivesse de trocar de roupa ou se banhar...
Um rugido se infiltrou em sua garganta.
Não. Nenhum macho colocaria os olhos na pele dela ou ele o esfolaria vivo...
Ah, Deus, ela se vinculara a outro. Abrira-se e aceitara outro macho dentro de suas carnes sagradas.
Xcor abaixou o rosto entre as mãos, a dor em seu peito fazendo-o cambalear em suas botas de combate.
Deve ter sido o Primale. Sim, claro, ela se deitara com Phury, filho de Ahgony. Era esse o único modo com que as Escolhidas se procriavam, se a sua memória e os boatos estivessem certos.
Instantaneamente, sua mente ficou enevoada com a imagem do rosto perfeito e da silhueta delgada. Pensar que outro a desnudara e cobrira-lhe o corpo com o dele...
Pare, ele se ordenou. Pare com isso.
Arrastando sua mente para longe dessa loucura, ele se desafiou a definir qualquer tipo de hospedagem que poderia propiciar a ela. Em qualquer circunstância.
O único pensamento que lhe ocorreu foi voltar e matar aquela fêmea de quem seus soldados se alimentaram. Aquele chalé parecera bem tranquilo e adorável...
Mas para onde iria sua Escolhida durante o dia?
E, além disso, ele jamais a envergonharia permitindo que ela sequer andasse sobre o tapete onde todo aquele sexo acontecera.
– Com licença.
Xcor buscou a pistola dentro da jaqueta ao dar meia-volta. Só que não havia necessidade de usar força bruta – era apenas uma fêmea pequena com seu filho. Ao que tudo levava a crer, eles tinham saído de um utilitário estacionado a poucos metros dele.
Enquanto a criança se escondia atrás da mãe, os olhos da fêmea se arregalaram de medo.
Mas, pensando bem, quando se tropeça num monstro, sua presença dificilmente é recebida com alegria.
Xcor se curvou profundamente, em grande parte porque a visão do seu rosto por certo não estava melhorando a situação.
– Sim, como não...
Dito isso, ele recuou e virou, voltando ao posto originalmente ocupado. Na verdade, não percebera o quanto tinha se exposto.
E ele não queria brigar. Não com a Irmandade. Não com a sua Escolhida daquele modo. Não... ali.
Fechando os olhos, desejou poder voltar para aquela noite quando Zypher o levara para a campina e Throe, com o subterfúgio de ajudá-lo, o condenara àquele tipo de morte em vida.
Um macho vinculado que não podia estar com sua fêmea?
Morto apesar de viver...
Sem aviso, o portal foi puxado para trás e sua Escolhida surgiu. Instantaneamente, os instintos de Xcor gritaram para que ele agisse, apesar de todos os motivos para deixá-la em paz.
Leve-a! Agora!
Mas ele não o fez: as expressões sérias daqueles que a protegiam com tamanho cuidado o imobilizaram: notícias ruins foram dadas durante a estada deles ali.
Como antes, só faltaram carregá-la até o veículo.
E o cheiro do sangue dela ainda pairava no ar.
Sua Escolhida foi acomodada no banco traseiro do sedã, com a fêmea ao lado dela. Depois, Phury, filho de Ahgony, e o guerreiro de olhos descombinados entraram na frente. O veículo foi virado bem lentamente, como que por preocupação com a carga preciosa no compartimento traseiro.
Xcor os seguiu, materializando-se de tempos em tempos acompanhando a velocidade crescente na estrada rural ao fim da rua, e depois na autoestrada. Quando o carro chegou à ponte, ele mais uma vez o viu do mais alto esteio e depois que sua fêmea passou debaixo dele, ele saltou de telhado em telhado enquanto o sedã dava a volta no centro da cidade.
Ele rastreou o carro seguindo ao norte até sair da autoestrada e entrar numa região rural.
Continuou com ela o tempo inteiro.
E foi assim que ele descobriu a localização da Irmandade.
CONTINUA
CAPÍTULO 27
Assomando-se acima de Qhuinn, Blay estava anormalmente ciente de tudo ao seu redor: a sensação da mão de Qhuinn atrás da sua perna, o modo como a bainha do roupão resvalava sua canela, o cheiro do sexo permeando o ar.
De tantos modos, ele quisera aquilo a vida inteira. Ou pelo menos, desde que sobrevivera à transição e teve algum tipo de impulso sexual. Aquele momento era o ápice de sonhos incontáveis e de inúmeras fantasias, seu desejo secreto sendo manifestado.
E era sincero: os olhos descombinados de Qhuinn não tinham sombras, nem dúvidas. O macho não só dizia a mais absoluta verdade que lhe passava pelo coração, mas estava em paz por se expor com tanta vulnerabilidade.
Blay cerrou as pálpebras brevemente. Aquela submissão era o oposto de tudo o que definia Qhuinn como macho. Ele nunca se entregava; não os seus princípios, não as suas armas, nunca, jamais a si mesmo. Pensando bem, a reviravolta fazia algum sentido. O enfrentamento da morte tendia a ser seguido por revelações...
A questão era que ele tinha a sensação de que aquilo não duraria. Aquela “visão desobstruída” sem dúvida estava ligada à viagem de avião, mas tal qual uma vítima de ataque cardíaco voltando à antiga dieta deplorável pouco depois, a “revelação” provavelmente não teria vida longa. Sim, Qhuinn estava sendo sincero quanto ao que dizia naquele momento inebriante, não havia dúvida alguma quanto a isso. No entanto, era difícil acreditar que aquilo seria permanente.
Qhuinn era o que era. E muito em breve, depois que o choque fosse absorvido – talvez ao cair da noite, quem sabe na semana seguinte, ou dali a um mês – ele voltaria ao seu modo de ser fechado, distante, à parte.
Decisão tomada, Blay voltou a abrir os olhos e se inclinou. Quando os rostos se aproximaram, os lábios de Qhuinn se partiram, o inferior, carnudo, pulsava como se ele já tentasse saborear o que desejava... e se deleitava.
Merda. O lutador era tão magnífico, o peito nu poderoso reluzindo na luz do abajur, a pele transportando uma camada de excitação, os mamilos perfurados se elevando e descendo conforme a pulsação desenfreada do sangue aquecido.
Blay percorreu a mão pelos músculos do braço que os ligava, desde a espessura grossa do ombro até a protuberância do bíceps e a curva entalhada do tríceps.
Retirou a palma de sua coxa.
E se afastou.
Qhuinn empalideceu a ponto de ficar acinzentado.
No silêncio, Blay nada disse. Não conseguiria. Sua voz havia desaparecido.
Em pernas cambaleantes, ele se distanciou, a mão envolvendo a maçaneta até conseguir coordenação suficiente para abrir a saída. Saindo, ele não saberia dizer se bateu a porta ou se a fechou silenciosamente.
Não foi muito longe. Pouco mais de um metro além do quarto, ele desabou ao encontro da parede lisa e fria do corredor.
Ofegando. Estava ofegando.
E todo aquele esforço de nada adiantaria. A sufocação no peito só piorava e, subitamente, sua visão foi substituída por quadrados em preto e branco de um tabuleiro de xadrez.
Deduzindo que estava prestes a desmaiar, agachou-se e colocou a cabeça entre os joelhos. Nos recessos da mente, rezou para que o corredor continuasse vazio. Aquele não era o tipo de coisa que gostaria de explicar para ninguém: estava do lado de fora do quarto de Qhuinn, obviamente excitado, o corpo tremendo como se um terremoto particular estivesse acontecendo...
– Jesus Cristo...
Quase morri hoje... e isso endireita as pessoas. Lá em cima naquele avião, olhando para a noite escura, não achei que fosse conseguir. Tudo ficou claro para mim.
– Não – Blay disse em voz alta. – Não...
Apoiando a cabeça nas mãos, tentou respirar calmamente, pensar racionalmente, agir sensatamente. Não poderia se dar ao luxo de se afundar ainda mais naquilo...
Aqueles olhos quentes, brilhantes, descombinados eram o que o atraiam.
– Não – sibilou.
Enquanto a voz ressoava em seu crânio, ele resolveu se dar ouvidos. Chega. Aquilo não poderia ir adiante.
Há tempos perdera o coração para aquele macho.
Não havia motivos para perder a alma também.
Uma hora mais tarde, talvez duas, ou seis, Qhuinn estava deitado nu entre os lençóis frios, fitando o escuro do teto que não conseguia enxergar.
Aquela era a dor horrível que Blay sentira? Como na vez em que fora procurá-lo no porão da casa dos pais dele e disse estar preparado para partir de Caldwell, deixando bem claro que não haveria mais nenhum laço entre eles? Ou talvez na vez em que se beijaram na clínica e Qhuinn se recusara a ir em frente? Ou naquela derradeira colisão quando eles quase ficaram juntos, pouco antes do primeiro encontro de Blay com Saxton?
Um maldito vazio enorme.
Como aquele quarto, na verdade: sem iluminação e essencialmente vazio, apenas quatro paredes e um teto. Ou um saco de pele e um esqueleto, como era o caso.
Levantando a mão, colocou-a sobre o coração, só para se certificar de que ainda tinha um.
Caramba, o destino tinha um jeito de lhe ensinar as coisas que você precisava saber, mesmo se você não estivesse ciente de que a lição era necessária até ela ser apresentada: ele desperdiçara tempo demais envolvido consigo mesmo e o seu defeito, e seu fracasso perante a família e a sociedade. Um emaranhado confuso em que se metera por tempo demais e Blay, porque se importara, fora sugado naquele turbilhão.
Mas quando foi que apoiara o amigo? O que de fato fizera pelo cara?
Blay estivera certo ao sair daquele quarto. Um pouco tarde demais, não era o ditado? E não que Qhuinn estivesse oferecendo algum tipo de prêmio. Debaixo da superfície, ele não estava muito mais estável, na verdade. Não estava mais em paz.
Não, ele merecia aquilo...
Uma centelha de luz amarelo-esverdeada fatiou o seu campo negro de visão, como se a escuridão fosse um tecido e o facho de luz uma faca.
Uma figura entrou sorrateira no seu quarto, silenciosamente, e fechou a porta.
Pelo cheiro, ele soube quem era.
O coração de Qhuinn começou a bater forte quando ele se endireitou nos travesseiros.
– Blay...?
Houve um ruído sutil, o roupão escorregando pelos ombros do macho alto. Em seguida, momentos depois, o colchão foi pressionado quando um peso grande, vital, subiu nele.
Qhuinn esticou a mão no escuro com acuidade certeira, as mãos encontrando as laterais do pescoço de Blay com tanta precisão como se tivessem sido direcionadas pela visão.
Nenhuma conversa. Ele temia que as palavras lhe roubassem aquele milagre.
Elevando a boca, puxou a de Blay para a sua, e quando aqueles lábios de veludo estavam perto de seu campo de atuação, ele os beijou com um desespero que foi retribuído. De uma vez só, todo o passado reprimido foi libertado com fúria e ele sentiu o gosto de sangue, sem saber quais foram as presas que rasgaram o outro.
E quem se importava?
Com um puxão forte, deitou Blay e depois rolou por cima do macho, afastando-lhe as coxas e pressionando-se até que o membro rijo se deparasse com...
Os dois gemeram.
Tonto por causa de tanta pele nua, Qhuinn começou a bombear os quadris para frente e para trás, a fricção dos sexos e a pele quente aumentando o calor úmido em suas bocas. Frenesi, em toda parte, rápido, depressa, rápido... Puta merda, havia desejo demais para entender onde suas mãos estavam, ou no que ele se esfregava ou... Porra, havia pele demais para tocar, cabelos para puxar, tanta coisa, demais...
Qhuinn gozou, as bolas endurecendo, a ereção jorrando entre eles, espalhando-se por todos os lados.
E isso não o desacelerou em nada.
Com um puxão, afastou-se da boca que poderia passar uma centena de anos beijando, lançou-se sobre o peito de Blay. Os músculos com que se deparava não se comparavam com os dos humanos com quem transara: aquilo era um vampiro, um lutador, um soldado treinado arduamente que exercitava o corpo para atingir uma condição não só útil, mas essencialmente letal. Caramba se aquilo não era ex-citante... mas, acima de tudo, aquele era Blay; finalmente, depois de todos aqueles anos...
Blay.
Qhuinn resvalou as presas por um abdômen que era sólido como uma rocha, e o seu cheiro na pele de Blay era uma marcação que sabia que fizera de propósito.
Aquele tempero forte também iria para outros lugares.
Gemeu quando as mãos encontraram o pênis de Blay e, enquanto circundava a coluna rija, o cara se arqueou profundamente, uma imprecação atravessando o quarto, de modo bem semelhante ao que a luz fizera pouco antes.
Qhuinn lambeu os lábios, elevou o sexo de Blay e permitiu que o pênis grosso e ousado partisse sua boca. Sugando, tomou-o até a base, abrindo a garganta, engolindo tudo. Em resposta, os quadris de Blay se elevaram, e mãos brutas cravaram em seus cabelos, forçando a cabeça ainda mais para baixo até que ele não conseguisse mais levar ar aos pulmões. Mas quem é que precisava de oxigênio?
Afundando as mãos nas nádegas de Blay, inclinou aquela pélvis e subiu e desceu, o pescoço se esticando com o ritmo punitivo, os ombros flexionando e relaxando enquanto ele executava exatamente aquilo que oferecera a Blay antes de ele ir embora.
Ele não pretendia fazer apenas aquilo, porém.
Não.
Era apenas o começo.
CAPÍTULO 28
Quando Blay caiu contra os travesseiros de Qhuinn, quase partiu a coluna. Tudo estava fora de controle, mas ele não teria desacelerado em nada as coisas: os quadris subiam e desciam, o pau empurrava e era chupado pela boca de Qhuinn...
Graças a Deus as luzes estavam apagadas.
Só as sensações já eram demais. Com um auxílio visual? Ele não conseguiria...
O orgasmo disparou como um foguete, a respiração ficou suspensa, o corpo enrijeceu todo, o sexo gozando ao máximo. Ao chegar ao clímax em grandes espasmos, ele foi ordenhado por aquela boca... e, caramba, a sucção incitou o alívio a continuar, com grandes ondas de prazer pulsante varrendo-o do cérebro até as bolas, seu corpo atingindo um plano de existência completamente diferente...
Sem aviso, ele foi virado por uma mão brusca, o corpo manejado como se não pesasse absolutamente nada. Em seguida, um braço passou por baixo de sua pélvis e o colocou de joelhos. Houve uma breve calmaria na qual tudo o que ele ouviu foi a respiração pesada atrás dele, o arquejo aumentando cada vez mais, mais fundo...
Ouviu o orgasmo de Qhuinn e entendeu exatamente o motivo.
Mesmo seu corpo inteiro estando fraco de antecipação, ele sabia que tinha de se preparar quando uma mão pesada aterrissou em seu ombro e...
A penetração foi como um ferro de marcar, quente e brutal, atingindo direto o seu cerne. E ele praguejou numa exalação explosiva. Não porque doesse, ainda que do melhor modo possível. Nem mesmo porque aquilo era algo que ele tanto desejara, se bem que isso fosse verdade.
Não. Era porque ele teve a estranha sensação de estar sendo marcado e, por algum motivo, isso fez com que...
Um sibilo atingiu-o no ouvido, e depois um par de presas cravou-se em seu ombro, a pegada de Qhuinn mudando na altura dos quadris, o torso enroscado em tantos lugares. E, então, quando a penetração inexorável começou, os molares de Blay se cerraram, os braços tiveram que suportar o peso dos dois, as pernas e o torso se esforçaram debaixo do ataque.
Ele teve a sensação de que a cabeceira da cama batia contra a parede e por um centésimo de segundo, lembrou-se do candelabro na biblioteca oscilando enquanto Layla fora sujeitada àquilo.
Blay amaldiçoou a imagem. Não se permitiria ir lá; não poderia. Deus bem sabia que haveria muito tempo para refletir sobre tudo aquilo mais tarde.
Naquele instante? Aquilo era bom demais para ser desperdiçado...
Enquanto o açoite continuava, suas palmas escorregaram nos lençóis de algodão fino, e ele teve que reposicioná-las, afundando-as no colchão macio para tentar sustentar sua posição. Deus, os sons que Qhuinn fazia, os rosnados que reverberavam entre as presas enterradas em seu ombro, as estocadas... ah, sim, isso era a cabeceira. Definitivamente.
Com a pressão se avolumando em suas bolas, ele se sentiu tentado a se espalmar, mas não havia como. Ele precisava das duas mãos naquele trabalho...
Como se Qhuinn lesse sua mente, o macho passou o braço ao seu redor e o agarrou.
Não era necessário masturbá-lo. Blay gozou tão violentamente que sua mente ficou difusa e, naquele exato instante, Qhuinn começou a ter um orgasmo também, os quadris movendo-se para dentro, parando um segundo antes de recuarem só para afundarem ainda mais antes da explosão. E, ah, porra, a combinação dos dois fazendo suas coisas era tão erótica que só fez com que tudo recomeçasse mais uma vez: não houve intervalo para se recuperarem, absolutamente nenhuma pausa. Qhuinn apenas retomou as investidas como se seu alívio o tivesse fortalecido.
Enquanto o sexo se estendia, e apesar de toda a força que Blay tinha em seus membros superiores, ele acabou caindo da cama, uma mão travando na lateral da mesinha de cabeceira só para que ele não batesse na parede...
Crash!
– Merda – disse ele rouco. – O abajur...
Ao que tudo levava a crer, Qhuinn não estava interessado em decoração. O macho simplesmente puxou a cabeça de Blay e começou a beijá-lo, a língua com piercing penetrando sua boca, lambendo e sugando... como se não conseguisse se fartar.
Tontura. Ele ficou absolutamente tonto com tudo aquilo. Em cada fantasia que teve, ele sempre visualizou Qhuinn como um amante impetuoso, mas aquilo... aquilo estava num outro nível.
Por isso, foi ao longe que ele se ouviu dizer numa voz gutural:
– Morda... de novo.
Um grunhido imenso vindo de cima perpassou seu ouvido, e depois outro sibilo atravessou a escuridão quando Qhuinn mudou as posições, seu peso massivo girando para que as presas pudessem afundar na lateral do pescoço.
Blay praguejou e empurrou para longe o que quer que tivesse restado sobre a mesinha de cabeceira, o peito tomando o lugar dos objetos, a pele suada chiando no verniz enquanto ele jazia meio de lado. Esticando a mão, ele se apoiou na tábua do piso e empurrou para cima, mantendo os dois estáveis enquanto Qhuinn se alimentava e o penetrava tão magnificamente bem...
Vezes demais para contar, até os travesseiros estarem no chão, os lençóis rasgados, outro abajur destruído... e não estava muita certo, mas ele achava que tinha derrubado um quadro da parede.
Quando a imobilidade por fim substituiu todo aquele esforço, Blay respirou fundo e se sentiu como se estivesse submerso.
O mesmo se passava com Qhuinn.
O aumento da trajetória úmida no pescoço de Blay sugeria que as coisas ficaram tão descontroladas que não houve o fechamento da veia que fora sugada. E quem se importava? Ele não, nem conseguia pensar, e não se preocuparia. As sensações pós-coito de flutuação e êxtase eram gloriosas demais para serem estragadas, o corpo estava ao mesmo tempo hipersensível e entorpecido, quente e brando, dolorido e saciado.
Caramba, os lençóis teriam de ser lavados. E Fritz indubitavelmente teria de encontrar uma supercola para aqueles abajures.
Onde exatamente ele estava?
Esticando a mão, tateou e descobriu o tapete e a saia da cama... além de uma manta. Ah, bom, estava quase caindo pela ponta da cama. O que explicava a tontura que sentia.
Quando Qhuinn, por fim, soltou-se dele, Blay quis acompanhá-lo, mas seu corpo estava muito mais interessado em ser um objeto inanimado. Ou um rolo de tecido ou, quem sabe...
Mãos gentis o suspenderam e, com cuidado e devagar, rolaram-no de costas. Houve mais um pouco de movimentação e depois ele se sentiu reposicionado contra os travesseiros que retornaram ao seu devido lugar. Enfim, uma manta leve foi ajustada na metade do seu corpo, como se Qhuinn soubesse que ele estava muito quente para ser coberto demais e, ainda assim, começava a sentir um friozinho enquanto o suor que o cobria começava a secar.
Seu cabelo foi empurrado para longe da testa e, em seguida, sua cabeça foi ajeitada para o lado. Lábios de seda beijaram a coluna de seu pescoço e, depois, lambidas longas e langorosas selaram a mordida que ele pedira e recebera.
Quando tudo terminou, deixou que sua cabeça fosse ajeitada para o lado de Qhuinn. Ainda que estivesse absolutamente escuro, ele sabia exatamente como o rosto que o fitava estava: ruborizado nas maçãs do rosto, as pálpebras semicerradas, os lábios vermelhos...
O beijo pressionado em sua boca foi reverente, o contato não mais pesado do que o ar quente e estático do quarto. Era o beijo perfeito de um amante, o tipo de coisa que ele desejava mais do que o sexo ardente que partilharam...
O pânico golpeou o centro do seu peito e ressoou para fora num piscar de olhos.
As mãos agiram por vontade própria, empurrando Qhuinn.
– Não me toque. Nunca mais me toque assim.
Deu um salto da cama e só Deus sabia em que parte do quarto ele aterrissou. Hesitante, tateou pelo aposento, mas acabou se orientando pela luz que passava por baixo da porta.
Apanhando o roupão no chão, não olhou para trás ao sair.
Não suportaria encarar o resultado daquilo tudo em nenhum tipo de luz.
Isso só tornaria tudo aquilo muito real.
Em algum momento, Qhuinn teve que fazer com que as luzes se acendessem. Não suportava mais a escuridão.
Quando a iluminação inundou o lugar, ele piscou e teve que amparar os olhos com a mão. Depois de recalibrar as retinas, olhou ao redor.
Caos. Total e absoluto.
Então tudo aquilo acontecera mesmo, hein. E quanta ironia que o interior da sua cabeça fizesse com que aquela bagunça parecesse uma ordem militar em comparação.
Nunca mais me toque assim.
Ah, inferno, pensou ele ao esfregar o rosto. Não poderia culpar o cara.
Primeiro, demonstrara a mesma finesse de uma escavadeira. Bola de demolição. Tanque de guerra. O problema era que tudo aquilo fora intenso demais para demonstrar qualquer traço de paciência: o instinto, tão puro e tão inflamável quanto combustível, o acendera; a sessão fora um caso de deixar as coisas rolarem.
Oh, Deus, marcara o cara.
Caralho. E não exatamente no bom sentido, considerando que Blay estava apaixonado e envolvido num relacionamento... e voltando para a cama do amante.
Mas, pensando bem, quando um macho está com quem ele quer, especialmente se é a primeira vez, era isso mesmo o que acontecia. As coisas saíam do controle...
Nem era preciso dizer que aquele fora o melhor sexo de sua vida, a primeira vez de perfeito encaixe depois de uma longa história de “nem de longe”. A questão foi que, no fim, ele quis que Blay soubesse disso, tentou encontrar as palavras e se apoiou no toque para pavimentar o caminho da confissão.
Contudo, ficou evidente que o macho não queria ter essa proximidade.
O que provocou um segundo, e mais profundo, arrependimento.
Sexo por desforra não se tratava de atração, mas sim de utilidade. E Blay o usara, do modo como ele pedira para ser usado.
Aquela sensação de vazio voltou multiplicada por dez. Por cem.
Sem conseguir suportar a emoção, pôs-se de pé, e teve que praguejar: a rigidez notável na lombar tinha tudo a ver com o acidente de avião e mais ainda com a pneumática que realizara na última hora... ou mais...
Merda.
Indo para o banheiro, deixou as luzes apagadas, mas havia iluminação suficiente vinda do quarto para ele conseguir entrar no chuveiro. Dessa vez, esperou a água esquentar; seu corpo não suportaria mais um choque.
Era tão patético; a última coisa que desejava era lavar o cheiro de Blay de sua pele, mas estava enlouquecendo com ele. Deus, devia ser assim que todos os hellrens se sentiam quando ficavam possessivos: metade do seu juízo dizia que ele devia descer o corredor, invadir o quarto de Blay e expulsar Saxton. A bem da verdade, teria adorado que o primo tivesse testemunhado, só para o cara saber que...
Para interromper aquele nada saudável curso de pensamentos, entrou no box envidraçado e pegou o sabonete.
Blay estava envolvido, tentou se lembrar disso, mais uma vez.
O sexo que partilharam não se referia à conexão emocional.
Portanto, ele estava, nesse momento de vazio, sendo passado para trás pela sua própria história.
Aquele parecia ser mais um caso em que o destino lhe dava aquilo que ele merecia.
Enquanto se lavava, o sabonete não era nada macio se comparado com a pele de Blay, nem cheirava um quarto do perfume do cara. A água não era tão quente quanto o sangue do lutador e o xampu, nada tranquilizador. Nada se equiparava.
Nem jamais conseguiria.
Enquanto Qhuinn virava o rosto para o jato e abria a boca, descobriu-se rezando para que Saxton pulasse a cerca mais uma vez, mesmo isso sendo uma coisa deplorável de se desejar.
O problema era que ele tinha a terrível sensação de que outro caso de infidelidade seria a única maneira de Blay voltar para ele.
Fechando os olhos, voltou para aquele momento em que beijou Blay no fim... em que o beijou de verdade, quando as bocas se encontraram gentilmente na calmaria após a tempestade. Enquanto sua mente reescrevia o roteiro, ele não era empurrado para o outro lado dos limites que ele mesmo criara. Não, em sua imaginação, as coisas terminavam como teriam de terminar, com ele afagando o rosto de Blay e fazendo as luzes se acenderem para que pudessem se olhar.
Em sua fantasia, ele beijaria seu amigo uma vez mais, se afastaria e...
– Eu te amo – disse ele para o jato de água. – Eu... te amo.
Ao fechar os olhos novamente ante a dor, ficou difícil saber quanto daquilo que descia pelo seu rosto era água e quanto era outra coisa.
CAPÍTULO 29
No dia seguinte, bem no fim da tarde, o visitante de Assail voltou.
Enquanto o sol se punha e os raios rosados de sol atravessavam a floresta, ele viu em seu monitor uma figura solitária em esquis de cross-country, os bastões equilibrados contra os quadris, binóculos cobrindo o rosto.
Nos quadris dela, o rosto dela, melhor dizendo.
A boa notícia era que suas câmeras de segurança não só tinham um zoom fantástico, como também seu foco e campo de visão eram facilmente manipulados por um joystick de computador.
Por isso ele restringiu ainda mais a imagem.
Quando a mulher abaixou os binóculos, ele mediu o comprimento de cada cílio ao redor dos olhos escuros e calculistas, e as marcas avermelhadas das maçãs do rosto de poros pequenos, e o ritmo uniforme da pulsação da artéria que percorria a mandíbula.
O aviso que ele dera a Benloise fora recebido. E, ainda assim, lá estava ela.
Era evidente que ela estava, de algum modo, ligada ao atacadista de drogas; e na noite anterior, pelo visto, ela ficara irritada com Benloise, visto o modo como marchara para fora da galeria como se alguém a tivesse insultado.
Todavia, Assail nunca a vira antes, o que era estranho. No último ano, aproximadamente, ele se familiarizara com todos os aspectos da operação de Benloise, desde o número incalculável de seguranças, até a equipe irrelevante da galeria, incluindo os importadores astutos e o irmão do homem, responsável pelas finanças.
Portanto, ele só podia deduzir que ela era uma empreiteira independente, contratada para um propósito específico.
Mas por que, então, ela ainda estava em sua propriedade?
Verificou os números digitais na parte inferior da tela. Quatro e meia. Costumeiramente, não seria uma hora com que se alegrar, pois ainda era cedo demais para sair. Mas o horário de verão acabara, e aquela invenção humana de manipular o sol na verdade trabalhava a seu favor por seis meses no ano.
Estaria um pouco quente lá fora, mas ele lidaria com isso.
Assail se vestiu rapidamente, colocando o terno Gucci com uma camisa de seda branca e pegando o sobretudo trespassado de pelo de camelo. O seu par de Smith & Wesson calibre .40 era o acessório perfeito, claro.
O metálico seria sempre o novo preto.
Pegando o iPhone, franziu ao tocar a tela. Uma chamada de Rehvenge, com uma mensagem.
Saindo do quarto, acessou a mensagem de voz do lídher do Conselho e ouviu-a enquanto descia as escadas.
A voz do macho ia direto ao ponto, e isso era algo a se respeitar:
– Assail, você sabe quem é. Estou convocando uma reunião do Conselho e quero não apenas um quorum, mas presença completa; o Rei estará presente, bem como a Irmandade. Como macho sobrevivente mais velho da sua linhagem, você está na lista do Conselho, mas registrado como inativo porque permaneceu no Antigo País. Agora que está de volta, está na hora de começar a participar desses encontros festivos. Ligue para mim para me informar a sua agenda, para que eu possa organizar local e data conveniente a todos.
Parando ante a porta de aço que bloqueava a escada inferior, colocou o telefone no bolso de dentro, destravou a porta e a abriu.
O primeiro andar estava escuro por conta das persianas especiais que bloqueavam toda a luz solar, e a sala de estar imensa mais se parecia com uma caverna no centro da terra do que com uma gaiola envidraçada às margens do rio.
Da direção da cozinha vinha o barulho de fritura e o cheiro de bacon.
Caminhando na direção oposta, entrou no falso escritório recoberto com painéis de nogueira que cedera ao uso dos primos e passou para o quarto especial de dois metros quadrados, cuja temperatura era mantida em precisos vinte graus Celsius e umidade a exatamente 69%, perfumado pelo tabaco de dúzias e dúzias de caixas de charutos. Depois de ponderar sobre a fileira exposta, apanhou três cubanos.
Afinal, os cubanos eram os melhores.
E ali estava mais uma coisa que Benloise lhe fornecia por um preço.
Trancando a sua preciosa coleção, voltou à sala de estar. Já não havia barulho de fritura, o bater sutil de talheres nos pratos o substituíra.
Ao entrar na cozinha, os dois primos estavam sentados em bancos ante a bancada de granito, o par comendo no mesmo ritmo preciso, como num rufar de tambores, despercebido por outros, mas que regulava seus movimentos.
Os dois levantaram as cabeças no mesmo ângulo para olhar para ele.
– Estou de saída. Sabem como me localizar – disse.
Ehric limpou a boca.
– Localizei três daqueles intermediários desaparecidos... voltaram à ação, estão prontos para se mexer. Vou fazer a entrega à meia-noite.
– Bom, muito bom – Assail verificou rapidamente as armas. – Tente descobrir onde estavam, sim?
– Como quiser.
Os dois abaixaram as cabeças ao mesmo tempo, voltando ao desjejum.
Nada de comida para ele. Do lado da cafeteira, ele pegou um frasco de cor de âmbar e desatarraxou a tampa, que tinha uma colherinha de prata grudada a ela, e o objeto emitiu um tinido enquanto ele o enchia com cocaína. Uma aspirada.
Bom dia!
Ele levou o resto consigo, colocando-o no mesmo bolso dos charutos. Já fazia um tempo desde que se alimentara e estava começando a sentir os efeitos, o corpo preguiçoso, a mente tendendo a um entorpecimento desconhecido.
O lado negativo do Novo Mundo? Era difícil encontrar fêmeas.
Felizmente, cocaína pura era um bom substituto, pelo menos por enquanto.
Ajustando um par de óculos de sol de lentes opacas, passou pelo vestíbulo e se preparou para sair pela porta dos fundos.
Afastando a porta...
Assail se retraiu e gemeu ante o ataque, seu peso oscilando em seus sapatos: apesar de 99% do seu corpo estar coberto por camadas múltiplas de roupa, e mesmo de óculos escuros, a luz efêmera do céu era o bastante para que ele vacilasse.
No entanto, não havia tempo para ceder à biologia.
Esforçando-se para se desmaterializar até a floresta atrás da casa, pôs-se a rastrear a mulher próximo à escuridão. Foi bem fácil localizá-la. Ela estava batendo em retirada, movendo-se rapidamente sobre aqueles esquis, abrindo caminho por entre os ramos espinhosos dos pinheiros e os carvalhos e bordos esqueléticos. Extrapolando a trajetória dela e aplicando a mesma lógica interna que ela demonstrara nas fitas de segurança da manhã anterior, ele logo se adiantou, antecipando bem onde ela estaria...
Ah, sim. O Audi preto da galeria. Estacionado ao lado da estrada limpa de neve a cerca de três quilômetros de sua propriedade.
Assail estava recostado contra a porta do motorista e bafejando um cubano quando ela saiu do limite das árvores.
Ela parou de pronto nos rastros duplos por ela criados, os bastões em ângulos abertos.
Ele lhe sorriu ao soprar uma nuvem de fumaça no crepúsculo.
– Belo entardecer para se exercitar. Apreciando a vista... Da minha casa?
A respiração dela estava acelerada devido ao esforço físico, mas não por algum medo que ele pudesse pressentir. Isso o excitava.
– Não sei do que está fal...
Ele interrompeu a mentira.
– Bem, o que posso lhe dizer é que, no momento, sou eu quem está apreciando a vista.
Enquanto seu olhar descia deliberadamente pelas pernas longas e atléticas nas calças justas de esqui, ela o encarou.
– Acho difícil que consiga ver qualquer coisa por trás dessas lentes.
– Meus olhos são muito sensíveis à luz.
Ela franziu o cenho e olhou ao redor.
– Quase não há mais nenhuma luz.
– Há o bastante para eu enxergá-la – ele deu nova baforada. – Gostaria de saber o que eu disse a Benloise ontem à noite?
– Quem?
Ela o aborreceu e ele afiou a voz:
– Um pequeno conselho. Não brinque comigo... isso fará com que morra mais rápido do que qualquer tipo de invasão de domicílio.
Um cálculo impassível fez com que ela estreitasse o olhar.
– Eu não sabia que invasão de propriedade dava pena de morte.
– Comigo, existe uma bela lista de coisas com repercussões letais.
Ele levantou o queixo.
– Ora, ora. Como você é perigoso.
Como se ele fosse um gatinho brincando com um novelo e sibilando.
Assail moveu-se com rapidez, ele bem sabia que os olhos dela seriam incapazes de acompanhá-lo. Num momento, estava a metros de distância; no instante seguinte, estava nas pontas dos seus esquis, prendendo-a no lugar.
A mulher gritou alarmada e tentou recuar, mas, claro, seus pés estavam presos. Para evitar que ela caísse, ele a apanhou pelo braço com a mão que não segurava o charuto.
Agora o sangue dela corria de medo e, quando ele inalou seu cheiro, excitou-se. Puxando-a para a frente, fitou-a, tracejando-lhe o rosto.
– Tome cuidado – disse ele numa voz mansa. – Eu me ofendo com rapidez e meu temperamento não é facilmente aplacado.
Embora ele conseguisse pensar pelo menos numa coisa que ela poderia lhe dar que o acalmaria.
Inclinando-se, ele inspirou profundamente. Deus, adorava o cheiro dela.
Mas aquela não era a hora de se distrair com esse tipo de coisa.
– Eu disse a Benloise que enviasse pessoas à minha casa por sua conta e risco... delas. Estou surpreso que ele não a tenha alertado sobre esses, como podemos dizer, limites bem delimitados de propriedade...
Pelo canto do olho, ele percebeu um movimento sutil no ombro dela. Ela pretendia pegar a arma com a mão direita.
Assail colocou o charuto entre os dentes e segurou o punho delicado. Aplicando pressão e só parando quando a dor se fez perceber na respiração dela, ele a arqueou para trás para que ela notasse completa e inequivocadamente o poder que ele tinha sobre si mesmo e sobre ela. Sobre tudo.
E foi nesse momento que a mulher se excitou.
Fazia muito tempo, talvez tempo demais, desde que Sola desejou um homem.
Não que ela não os considerasse desejáveis via de regra, ou que não tivessem existido ofertas para encontros horizontais com membros do sexo oposto. Nada lhe parecera valer o esforço. E talvez, depois daquele único relacionamento que não dera certo, ela tivesse regressado aos hábitos de sua rígida criação brasileira – o que era irônico, considerando-se o que fazia para sobreviver.
Aquele homem, porém, chamara sua atenção. Verdadeiramente.
O modo como a segurava pelo braço e pelo pulso não era nada educado e, mais do que isso, não havia clemência pelo fato de ela ser mulher; as mãos a apertavam com tanta força a ponto de a dor se encaminhar para o coração, fazendo-o bater forte. Do mesmo modo, o ângulo em que a forçava para trás testava os limites da capacidade de sua coluna se dobrar, e as coxas ardiam.
Excitar-se assim... era uma negligência ignorante para a sua autopreservação. Na verdade, ao fitar aquelas lentes escuras, ela estava bem ciente de que ele poderia matá-la ali mesmo. Torcendo o seu pescoço. Quebrando seus braços só para vê-la gritar antes de sufocá-la na neve. Ou talvez apenas desacordando-a antes de jogá-la no rio.
O sotaque carregado de sua avó subitamente veio-lhe à mente: Por que não pode conhecer um bom rapaz? Um rapaz católico de uma família que conhecemos? Marisol, assim você parte o meu coração.
– Só posso deduzir – a voz sombria sussurrou com um sotaque e uma inflexão que lhes eram desconhecidos – que a mensagem não lhe foi transmitida. Correto? Benloise deixou de lhe passar essa informação... e é por isso que, depois de eu ter expressamente indicado minhas intenções, você ainda assim voltou a espionar a minha casa? Creio que foi isso o que aconteceu, talvez uma mensagem de voz que ainda não tenha sido recebida. Ou uma mensagem de texto, um e-mail. Sim, acredito que o comunicado de Benloise tenha se perdido, não é mesmo?
A pressão nela intensificou-se ainda mais, sugerindo que ele tinha força de sobra, o que era, no mínimo, uma perspectiva assombrosa.
– Não é isso? – rugiu ele.
– Sim – disse ela. – É isso.
– Portanto, posso deduzir que não a encontrarei em seus esquis por aqui. Correto?
Ele a sacudiu novamente, a dor fazendo com que seus olhos revirassem.
– Sim – ela disse num engasgo.
O homem relaxou apenas o suficiente para que ela pudesse respirar um pouco. Depois continuou falando, naquela voz estranhamente sedutora:
– Bem, preciso de uma coisa antes que você vá. Você me dirá o que descobriu sobre mim... Tudo o que descobriu.
Sola franziu o cenho, pensando que aquilo era tolice. Sem dúvida um homem como aquele estaria ciente de qualquer informação que uma terceira pessoa poderia saber a seu respeito.
Então aquilo era um teste.
Visto que ela queria muito rever a avó, Sola disse:
– Não sei seu nome, mas posso imaginar o que faz, e também o que fez.
– E o que seria?
– Acredito que seja a pessoa que esteja matando aqueles interceptadores na cidade para assegurar território e controle.
– Os jornais e os noticiários disseram que se tratavam de suicídios.
Ela apenas prosseguiu, uma vez que não havia motivo para argumentar:
– Sei que mora sozinho, até onde posso saber, e que sua casa possui um tratamento estranho nas janelas. Um tipo de camuflagem para parecer o interior da casa, mas... é outro tipo de coisa. Só não sei o quê.
O rosto acima do dela permaneceu completamente impassível. Calmo. Tranquilo. Como se não a estivesse forçando a ficar no lugar... Ou a ameaçando. O controle era... erótico.
– E? – insistiu ele.
– É só isso.
Ele inalou o charuto nos lábios, a ponta em círculo alaranjado brilhando mais.
– Só vou libertá-la uma vez. Entende?
– Sim.
Ele se moveu com tanta rapidez que ela teve que balançar os braços para readquirir o equilíbrio, os bastões se afundando na neve. Espere, o que ele...
O homem apareceu bem atrás dela, os pés plantados nas laterais dos rastros dos esquis, uma barricada física para o caminho que ela fizera a partir da casa dele. Enquanto o bíceps e o pulso direitos dela ardiam por conta do sangue que voltava a circular nas partes que foram comprimidas, um aviso surgiu na base de sua nuca.
Cai fora daqui, Sola disse a si mesma. Agora.
Sem querer arriscar uma nova captura, ela se moveu para frente até a estrada, a parte inferior dos esquis lutando para conseguir avançar na neve gelada e compactada.
Enquanto ela avançava, ele a seguia, caminhando lentamente, inexoravelmente, como um grande felino que estava cercando a presa com a qual estava contente em apenas brincar, por enquanto.
As mãos dela tremiam quando usou as pontas dos esquis para soltar as amarras, e ela teve dificuldade para prender os esquis no rack do carro. O tempo inteiro, ele permaneceu parado no meio da estrada observando-a, a fumaça do charuto subindo pelo ombro em brisas frias que seguiam para o rio.
Entrando no carro, ela travou as portas, deu partida e olhou pelo espelho retrovisor. No brilho da luz do freio, ele parecia inequivocadamente maligno, um homem alto, de cabelos escuros, com o rosto lindo como o de um príncipe, e tão cruel quanto uma lâmina.
Pisando no acelerador, ela saiu do acostamento e se afastou rápido, o sistema de tração das quatro rodas sendo acionado para a tração de que ela precisava.
Ela olhou de relance mais uma vez pelo retrovisor. Ele ainda estava lá...
O pé de Sola mudou para o freio e quase o pressionou.
Ele sumira.
Como se tivesse se dissipado no ar. Num momento estava lá... no seguinte, invisível.
Sacudindo-se, voltou a pressionar o acelerador e fez o sinal da cruz sobre o coração acelerado.
Num pânico absurdo, perguntou-se: mas que diabos era ele?
CAPÍTULO 30
Bem quando as persianas eram suspensas com a chegada da noite, Layla ouviu uma batida à porta e, mesmo antes de o cheiro passar pelas frestas, ela sabia quem tinha vindo vê-la.
Inconscientemente, a mão subiu para o cabelo, e descobriu que estava uma bagunça, todo emaranhado por ter virado e revirado o dia inteiro. Pior, nem se importara em tirar a roupa com que saíra para ir à clínica.
Entretanto, não lhe poderia negar a entrada.
– Entre – disse, sentando-se um pouco mais erguida e ajeitando as cobertas que puxara até o queixo.
Qhuinn estava com suas roupas de combate, o que a levou a deduzir que ele estava escalado para o turno daquela noite – mas talvez não. Ela não conhecia o escalonamento.
Quando seus olhares se cruzaram, ela franziu o cenho.
– Você não está bem.
Ele levou a mão para o curativo na sobrancelha.
– Isto? É apenas um arranhão.
Só que não fora o machucado que chamara sua atenção. Era o olhar vago, as concavidades rígidas nas faces.
Ele parou. Farejou. Empalideceu.
Imediatamente, ela baixou o olhar para as mãos, e mais uma vez as torceu.
– Por favor, feche a porta – pediu.
– O que está acontecendo?
Quando a porta se fechou conforme o seu pedido, ela respirou fundo.
– Fui à clínica de Havers ontem à noite.
– O quê?
– Estou sangrando...
– Sangrando? – ele se apressou para a frente, quase derrapando a caminho da cama. – Por que diabos não me contou?
Santa Virgem Escriba, seria impossível para ela não se acovardar ante tamanha fúria. Na verdade, ela estava sem forças no momento e impossibilitada de reunir qualquer tipo de autopreservação.
Instantaneamente, Qhuinn recuou em sua raiva, afastando-se e circulando pelo quarto. Quando a fitou novamente, disse bruscamente:
– Sinto muito. Não tive a intenção de gritar... Eu só... eu só estou preocupado com você.
– Eu sinto muito. E eu deveria ter lhe contado, mas você estava fora em combate e eu não quis aborrecê-lo. Eu não sei... francamente, eu não devia estar pensando com clareza. Estava fora de mim.
Qhuinn se sentou ao lado dela, os ombros imensos se curvando enquanto ele cruzava os dedos e apoiava os cotovelos nos joelhos.
– Então, o que está acontecendo?
Tudo o que ela conseguiu fazer foi dar de ombros.
– Bem, como você pode perceber... estou sangrando.
– Quanto?
Ela pensou no que a enfermeira lhe havia dito.
– O suficiente.
– Há quanto tempo?
– Tudo começou há mais ou menos 24 horas. Não quis procurar a doutora Jane porque não tinha certeza de quão confidencial isso seria e também... ela não tem muita experiência com gestações da nossa espécie.
– O que Havers disse?
Foi a vez de ela franzir a testa.
– Ele não quis me dizer.
– Como é que é? – a cabeça de Qhuinn se ergueu.
– Por causa do meu status como Escolhida, ele só falará com o Primale.
– Está de brincadeira?
Ela balançou a cabeça.
– Não. Também não consegui acreditar nisso e sinto dizer que saí de lá em circunstâncias menos que favoráveis. Ele me reduziu a um objeto, como se eu não tivesse a mínima importância... não passasse de um repositório...
– Você sabe que isso não é verdade – Qhuinn segurou sua mão com os olhos descombinados ardendo. – Não para mim. Nunca para mim.
Ela estendeu a mão e o tocou no ombro.
– Eu sei, mas obrigada por dizer isso – ela estremeceu. – Preciso ouvir isso agora. E quanto ao que está acontecendo... comigo... a enfermeira disse que não há nada que ninguém possa fazer para impedir isto.
Qhuinn baixou o olhar para o tapete e ficou assim por um bom tempo.
– Não entendo. Não era para ser assim.
Engolindo a horrível sensação de fracasso, ela se endireitou e afagou as costas dele.
– Sei que você desejava isto tanto quanto eu.
– Você não pode estar abortando. Não é possível.
– Pelo que fiquei sabendo, os dados estatísticos não são tão bons. Não no começo... e não no fim.
– Não, não pode estar certo. Eu... a vi.
Layla limpou a garganta.
– Sonhos nem sempre se tornam realidade, Qhuinn.
Parecia algo muito simplista de se dizer. Igualmente óbvio. Mas magoava em seu cerne.
– Não foi um sonho – disse ele de modo rude. Mas, então, sacudiu-se e voltou a olhar para ela. – Como está se sentindo? Sente dor?
Quando ela não respondeu de imediato, porque não queria mentir para ele a respeito das cólicas, ele se pôs de pé.
– Vou procurar a doutora Jane.
Ela o segurou pela mão, detendo-o.
– Espere. Pense bem. Se estou perdendo... nosso filho... – ela parou para juntar coragem depois de ter verbalizado aquilo. – Não há razão por que contar para alguém. Ninguém precisa ficar sabendo. Podemos simplesmente deixar a natureza... – a voz dela falhou nesse momento, mas ela se forçou a continuar – ... seguir seu curso.
– Ao inferno com isso. Não vou colocar sua vida em risco só para evitar um confronto.
– Isso não interromperá o aborto, Qhuinn.
– Não estou preocupado somente com o aborto – ele apertou-lhe a mão. – Você é importante. Por isso vou procurar a doutora Jane agora mesmo.
Isso mesmo, ao inferno deixar as coisas por debaixo dos panos, Qhuinn pensou ao seguir para a porta.
Ouvira falar de histórias sobre fêmeas com hemorragias durante os abortos, e ainda que não fosse mencionar nada disso com Layla, teria de agir a respeito.
– Qhuinn. Pare – Layla o chamou. – Pense no que está fazendo.
– Eu estou. Claramente – ele não esperou para debater mais aquilo. – Fique onde está.
– Qhuinn...
Ele ainda conseguiu ouvir a voz dela quando fechou a porta e começou a correr, terminando o corredor e descendo as escadas. Com um pouco de sorte, a doutora Jane ainda estaria se demorando na Última Refeição com seu hellren; o casal estava à mesa quando ele se levantara para ir ver Layla.
Ao chegar ao átrio, seus tênis Nike guincharam no piso de mosaico quando ele tomou a direção da arcada na entrada da sala de jantar.
Vendo a médica bem onde estivera antes foi um golpe de sorte, e seu primeiro instinto foi chamá-la com um grito. Só não o fez ao perceber a quantidade de Irmãos à mesa, comendo a sobremesa.
Merda. Era fácil para ele dizer que lidaria com as consequências se o que fizeram se tornasse público. Mas, e quanto a Layla? Como uma Escolhida sagrada, ela tinha muito mais a perder do que ele. Phury era uma cara bem legal, por isso a chance de ele lidar bem com aquilo era bem grande. E o resto da sociedade?
Ele já passara pela experiência de ser rejeitado, e não queria o mesmo para ela.
Qhuinn se apressou para onde V. e Jane estavam descontraídos, o Irmão fumando um cigarro feito à mão, a médica espectral sorrindo para o seu parceiro enquanto ele lhe contava uma piada.
No instante em que a boa médica olhou para ele, aprumou-se em seu assento.
Qhuinn se abaixou e sussurrou ao seu ouvido.
Nem meio segundo depois, ela estava de pé.
– Preciso ir, Vishous.
Os olhos de diamante do irmão se elevaram. Aparentemente, apenas um vislumbre do rosto de Qhuinn foi preciso: ele não fez perguntas, apenas assentiu uma vez.
Qhuinn e a médica se apressaram juntos para fora.
Para o infinito crédito da doutora Jane, ela não perdeu tempo querendo saber como aquela gravidez tinha acontecido.
– Há quanto tempo ela está sangrando?
– 24 horas.
– Com que intensidade?
– Não sei.
– Algum outro sintoma? Febre? Enjoo? Dor de cabeça?
– Não sei.
Ela o deteve quando chegaram à grande escadaria.
– Vá até o Buraco. A minha maleta está na bancada ao lado do cesto de maçãs.
– Entendido.
Qhuinn nunca correu tão rápido em toda sua vida. Para fora do vestíbulo. Atravessando o pátio coberto de neve. Digitando o código de acesso para o Buraco. Correndo pelo espaço de V. e de Butch.
Costumeiramente, ele jamais teria entrado sem bater. Inferno, sem um horário marcado previamente. Mas naquela noite, que se foda...
Ah, que bom, a maleta preta estava, de fato, ao lado das Fujis.
Apanhando-a, correu para fora, voando ao lado dos carros estacionados e batendo os pés enquanto aguardava que Fritz atendesse à porta.
Ele quase atropelou o doggen.
Ao chegar ao segundo andar, passou acelerado diante do escritório de Wrath e invadiu o quarto que Layla vinha usando. Fechando a porta, arfou até chegar à cama, onde a médica estava sentada bem onde ele esteve antes.
Deus, Layla estava pálida como um lençol. Pensando bem, medo e hemorragia faziam isso com uma fêmea.
A doutora Jane estava no meio de uma frase quando pegou a maleta das mãos dele.
– Acho que devemos começar verificando os seus sinais vitais...
Bum!
Quando o som ensurdecedor atravessou o quarto, o primeiro pensamento de Qhuinn foi se jogar sobre as duas fêmeas para formar um escudo.
Mas não era uma bomba. Era Phury escancarando a porta.
Os olhos amarelos do Irmão reluziam, e não de modo positivo, quando eles passavam de Layla, para a médica e depois para Qhuinn... e refazendo o caminho ao contrário.
– Que diabos está acontecendo aqui? – ele exigiu saber, com as narinas inflando quando captou o mesmo cheiro que Qhuinn havia percebido antes. – Vejo a médica subindo as escadas num rompante. Depois é a vez de Qhuinn com a maleta. E agora... é melhor alguém começar a falar. Neste exato minuto!
Mas ele sabia. Porque estava olhando para Qhuinn.
Qhuinn encarou o Irmão.
– Eu a engravidei...
Ele não teve oportunidade de terminar a frase. Na verdade, mal conseguiu terminar a última palavra.
O Irmão o agarrou e o lançou contra a parede. Enquanto suas costas absorviam o impacto, a mandíbula dele explodiu de dor, o que sugeria que o cara também o socara com exatidão. Então, mãos ásperas o mantiveram fixos com os pés pendurados a quinze centímetros do tapete oriental, bem na hora em que pessoas começavam a se aglomerar na porta.
Ótimo. Uma plateia.
Phury aproximou o rosto do de Qhuinn e expôs as presas.
– O que você fez com ela?
Qhuinn deu uma golada de sangue.
– Ela estava no cio. Eu a servi.
– Você não a merece...
– Eu sei.
Phury o empurrou com força mais uma vez.
– Ela é melhor do que...
– Concordo...
Bang!
De novo contra a parede.
– Então que porra que você foi fazer...
O rugido que permeou o quarto foi alto o bastante para estremecer o espelho ao lado da cabeça de Qhuinn, assim como o conjunto de escovas de prata na penteadeira e os cristais nas arandelas ao lado da porta. A princípio, ele pensou que tivesse sido Phury, a não ser, porém, pelo fato de as sobrancelhas do Irmão se abaixarem e o macho olhar por sobre o ombro.
Layla saíra da cama e se aproximava dos dois. Raios! A expressão no olhar dela bastaria para derreter a pintura da porta de um carro: apesar de ela não estar se sentindo bem, as presas estavam expostas, os dedos crispados em forma de garra... e a brisa gélida que a precedeu fez com que a nuca de Qhuinn se eriçasse em alerta.
Aquele rugido nem deveria ter saído de um macho... quanto menos de uma fêmea delicada com status de Escolhida.
De fato, o pior era o tom horrível de sua voz:
– Solte-o. Agora.
Ela encarava Phury como se estivesse plenamente preparada para arrancar os braços do Irmão de suas juntas e socá-lo até não poder mais caso ele não a obedecesse. Imediatamente.
E, veja só, de repente, Qhuinn conseguiu respirar direito, e agora seus Nikes tocavam novamente o chão. Num passe de mágica.
Phury levantou as palmas das mãos.
– Layla, eu...
– Não toque nele. Não por causa disso... Estou sendo bem clara? – o peso dela estava equilibrado quase nos dedos dos pés, como se ela fosse avançar na garganta do cara a qualquer segundo. – Ele era o pai do meu filho, e receberá todos os direitos e privilégios dessa posição.
– Layla...
– Estamos entendidos?
Phury fez que sim com sua cabeça multicolorida.
– Sim. Mas...
No Antigo Idioma, ela sibilou:
– Caso algum mal recaia sobre ele, eu irei atrás de ti, e o encontrarei em teu sono. Não me importo onde e com quem repouses tua cabeça, minha vingança se derramará sobre ti até tu te afogares.
Aquela última palavra foi arrastada até sua última sílaba se perder num rugido.
Silêncio absoluto.
Até a doutora Jane comentar secamente:
– E é por isso que dizem que as fêmeas da espécie são mais perigosas que os machos.
– Verdade – alguém aquiesceu no corredor.
Phury levantou as mãos em frustração.
– Só quero o que for melhor para você e não só no papel de amigo preocupado... essa é a porra do meu trabalho. Você atravessa o cio sem contar a ninguém, deita-se com ele – como se Qhuinn fosse bosta de cachorro – e depois não diz a ninguém que está tendo problemas médicos. Será que eu tenho que ficar feliz com isso? Que merda!
Houve algum tipo de conversa entre eles àquela altura, mas Qhuinn não prestou atenção: toda a sua consciência recuara para dentro do cérebro. Caramba, o feliz comentário do Irmão não deveria ter doído tanto. Não era a primeira vez que ele ouvia esse tipo de comentário, ou até mesmo pensara isso a respeito de si mesmo. Mas, por algum motivo, as palavras dispararam uma falha geológica que retumbava bem em seu cerne.
Lembrando-se de que dificilmente seria uma tragédia ter o óbvio evidenciado, ele se desvencilhou do seu espiral de vergonha e olhou ao redor. Sim, todos tinham aparecido diante da porta aberta e, mais uma vez, aquilo que ele preferia que tivesse permanecido como um assunto particular estava acontecendo diante de milhares.
Pelo menos Layla não se importava. Inferno, ela nem parecia ter notado.
E era até engraçado ver todos aqueles lutadores profissionais desejando estar a quilômetros de distância de uma fêmea. Pensando bem, caso quisessem sobreviver no trabalho que exerciam, uma acurada avaliação de riscos era algo que se desenvolvia precocemente e até mesmo Qhuinn, objeto do instinto protetor da Escolhida, não ousaria tocá-la.
– Eu, neste momento, renuncio ao meu status de Escolhida, e todos os direitos e privilégios inerentes. Eu sou Layla, decaída daqui por diante...
Phury tentou interrompê-la:
– Escute, você não tem que fazer isso...
– ... e sempre. Estou arruinada perante os olhos tanto da tradição quanto da prática, não mais virgem, concebi um filho, mesmo estando a perdê-lo.
Qhuinn bateu a parte de trás da cabeça na parede. Maldição.
Phury passou uma mão pelos cabelos.
– Merda.
Quando Layla oscilou em seus pés, todos se projetaram para ela, mas ela empurrou todas as mãos e caminhou sozinha até a cama. Abaixando o corpo devagar, como se tudo lhe doesse, deixou a cabeça pender.
– Minha sorte está lançada e estou preparada para viver com as consequências, quaisquer que sejam elas. Isso é tudo.
Houve um belo tanto de sobrancelhas se erguendo quando a multidão começou a se dispersar, mas ninguém disse um pio. Depois de um instante, o grupo se desfez, embora Phury continuasse ali. Assim como Qhuinn e a médica.
A porta foi fechada.
– Ok, ainda mais depois disso tudo, preciso mesmo verificar seus sinais vitais – disse a doutora Jane, ajudando a fêmea a se recostar contra os travesseiros e a acomodar as cobertas que haviam sido afastadas.
Qhuinn não se moveu enquanto o aparelho de pressão era ajustado no braço magro e uma série de pufe-pufes era exalada.
Phury, por sua vez, andou de um lado para o outro, pelo menos até franzir o cenho e pegar o celular.
– É por isso que Havers me telefonou ontem?
Layla concordou.
– Fui lá em busca de ajuda.
– Por que não me procurou? – o Irmão murmurou para si mesmo.
– O que Havers disse?
– Não sei por qual motivo não verifiquei a caixa de mensagens. Pensei que não tivesse motivo para fazer isso.
– Ele deixou claro que só lidaria com você.
Ante isso, Phury olhou para Qhuinn, com aquele olhar amarelo se estreitando.
– Vai se vincular a ela?
– Não.
A expressão de Phury voltou a ser gélida.
– Que tipo de macho é você para...
– Ele não me ama – Layla interrompeu. – Tampouco eu o amo.
Quando a cabeça do Primale virou de lado, Layla prosseguiu:
– Queríamos um filho – ela se sentou inclinada para a frente enquanto a médica auscultava o coração por trás. – Nós começamos e terminamos ali.
Dessa vez o Irmão praguejou.
– Não entendo.
– Nós dois somos órfãos de muitas maneiras – disse a Escolhida. – Nós estamos... estávamos... querendo formar a nossa própria família.
Phury expirou fundo e caminhou até a mesa num canto, sentando-se sobre a cadeira frágil.
– Ah, bem. Acho que isso muda um pouco as coisas. Eu pensei que...
– Nada importa – interveio Layla. – As coisas são como são. Ou... eram, como parece ser o caso.
Qhuinn se viu esfregando os olhos sem nenhum motivo em especial. Não que eles estivessem embaçados nem nada assim. Não. Nem um pouco.
Tudo aquilo era só... tão triste. Toda aquela porcaria. Desde o estado de Layla, até a exaustão impotente de Phury, chegando a sua dor imensa no meio do peito, tudo era uma maldita coisa verdadeiramente triste.
CAPÍTULO 31
– É exatamente o que eu estava procurando.
Enquanto Trez falava, caminhava ao redor do espaço amplo e vazio do armazém, com as botas produzindo impactos altos que ecoavam. Atrás dele, sentia facilmente o alívio da corretora parada ao lado da porta.
Negociar com humanos? Era o mesmo que tirar o pirulito de uma criancinha.
– Você poderia transformar este lado da cidade – disse a mulher. – É uma verdadeira oportunidade.
– Verdade – não que o tipo de restaurante e lojas que o seguiriam até ali fossem de classe: seriam algo mais como lojas de piercings e tatuagens, restaurantes baratos, cinemas pornográficos.
Mas ele não tinha nenhum problema com isso. Até mesmo cafetões podiam se orgulhar de seus trabalhos e, francamente, ele tinha certa tendência a acreditar muuuito mais em tatuadores do que em muitos dos assim chamados “cidadãos exemplares”.
Trez girou sobre os calcanhares. O espaço era tremendo, quase tão alto quanto largo, com fileiras e fileiras de janelas quadradas, muitas delas com os vidros quebrados recobertos por tábuas de madeira. O teto parecia bom – ou quase isso, o revestimento de latão corrugado mantendo a neve do lado de fora, mas não o frio. O chão era de concreto, mas obviamente havia um piso subterrâneo – em diversos pontos viam-se alçapões, embora nenhum deles pudesse ser aberto com facilidade. A parte elétrica parecia boa; sistema de aquecimento, ventilação e ar-condicionado inexistentes; a hidráulica, uma piada.
Em sua mente, contudo, ele não enxergava o lugar como ele estava. Nada disso. Ele o via transformado, como uma boate nas proporções da Limelight. Naturalmente, o projeto necessitaria de uma imensa injeção de capital e vários meses para concluir os trabalhos; no fim, porém, Caldwell acabaria com um novo lugar quente – e ele teria mais uma fonte de renda.
Todos ganhavam.
– Então, gostaria de fazer uma oferta?
Trez olhou para a mulher. Ela era a senhora Profissional em seu casaco preto e terninho escuro abaixo dos joelhos – noventa por cento de sua pele estava coberta, e não só por estarem em dezembro. Contudo, mesmo abotoada até em cima e cabelo comportado, ela era bela no modo como todas as mulheres lhe eram belas: tinha seios e pele macia, e um lugar para ele brincar no meio das pernas.
E ela gostava dele.
Ele sabia disso pelo modo como ela abaixava o olhar, e também por ela aparentemente não saber o que fazer com as mãos: uma hora estavam nos bolsos do casaco; na outra, mexendo no cabelo, depois ajeitando a camisa de seda dentro da saia...
Ele conseguia pensar em alguns modos para mantê-la ocupada.
Trez sorriu ao se aproximar dela e não parou até invadir-lhe o espaço pessoal.
– Sim. Eu quero.
O duplo sentido foi captado, as faces dela enrubesceram não de frio, mas de excitação.
– Ah. Que bom.
– Onde quer fazer? – ele perguntou de modo arrastado.
– A oferta? – ela pigarreou. – Tudo o que tem que fazer é me dizer o que você... quer e eu... faço isso acontecer.
Ah, ela não era ligada em sexo casual. Que meigo.
– Aqui.
– Como disse? – perguntou ela, finalmente levantando o olhar.
Ele sorriu devagar e de modo contido para não revelar as presas.
– A oferta. Vamos fazer isso aqui?
Os olhos dela se arregalaram.
– Aqui?
– É. Aqui – ele se aproximou com mais um passo, mas não ficou perto o suficiente a ponto de se tocarem. Ele estava satisfeito em seduzi-la, mas ela teria de estar cem por cento segura de estar a fim. – Está pronta?
– Para... fazer... a oferta.
– Isso.
– Está... hum, está frio aqui – disse ela. – Que tal no escritório? É lá que a maioria... das ofertas... é conduzida.
Do nada, a imagem do irmão sentado no sofá em casa, olhando para ele como se ele fosse um maldito problema, atingiu-o em cheio, e quando isso aconteceu, percebeu que fazia sexo com praticamente toda mulher que conhecia desde... caramba, quanto tempo?
Bem, obviamente, se não tinham idade para copular, ele não estaria com elas.
Ou se eram férteis.
O que cortava, digamos, uma dúzia ou duas? Maravilha. Que herói.
Que porra ele estava fazendo? Não queria voltar ao escritório da mulher, primeiro porque não havia tempo suficiente, supondo que quisesse estar na abertura do Iron Mask. Portanto, a única opção era ali mesmo, de pé, com a saia suspensa até a cintura, as pernas ao redor dos seus quadris. Rápido, direto ao ponto; depois cada um seguindo o seu caminho.
Depois de ele dizer o quanto pretendia gastar na compra do armazém, claro.
Mas e aí? Ele não tinha a intenção de transar com ela no fechamento do contrato. Ele raramente repetia, e só se estivesse seriamente atraído ou com muito tesão, o que não acontecia nesse caso.
Pelo amor de Deus, o que exatamente ele tiraria daquilo? Sequer a veria nua. Nem teria muito contato de pele com pele.
A não ser... era essa a questão.
Quando foi a última vez em que esteve de fato com uma fêmea? Do jeito certo? Como num jantar fino, um pouco de música, uns amassos que conduziam até o quarto... depois um monte de ações longas e demoradas que levavam a alguns orgasmos...
E nenhuma sensação de pânico asfixiante quando tudo chegava ao fim.
– Você estava para dizer alguma coisa? – a mulher o instigou a falar.
iAm estava certo. Ele não precisava estar fazendo aquele tipo de merda. Inferno, nem mesmo estava atraído pela corretora. Ela estava parada diante dele, disponível, e aquela aliança no dedo era indício de que ela não causaria muitos problemas depois que terminassem, porque tinha algo a perder.
Trez recuou um passo.
– Escute, eu... – quando o celular tocou em seu bolso, ele pensou que tinha sido em boa hora. Viu quem era: iAm. – Com licença, preciso atender esta ligação. Ei, o que está fazendo, irmãozinho?
A resposta de iAm saiu suave, como se tivesse abaixado a voz:
– Temos companhia.
O corpo de Trez ficou tenso.
– De que tipo e onde?
– Estou em casa.
Ah, merda.
– Quem é?
– Não é a sua noiva, relaxe. É AnsLai.
O sumo sacerdote. Fantástico.
– Bem, estou ocupado.
– Ele não veio aqui para me ver.
– Então é melhor ele voltar de onde veio porque estou ocupado – quando não houve resposta do outro lado, tudo o que restava fazer era se chutar no traseiro. – Escute aqui, o que quer que eu faça?
– Pare de fugir e cuide disto.
– Não há do que cuidar. Falo com você mais tarde, ok?
Esperou por uma resposta. Em vez disso, a linha ficou muda. Pensando bem, quando você espera que seu irmão limpe suas bostas, o cara não deve ficar com muita vontade de se despedir longamente.
Trez desligou e olhou para a corretora. Com um sorriso amplo, ele se aproximou e baixou a cabeça para fitá-la. O batom era coral demais para a tez dela, mas ele não se importava.
Aquela coisa não continuaria na boca dela por muito tempo.
– Deixe-me mostrar como posso aquecer isto aqui – disse com um sorriso langoroso.
De volta à mansão da Irmandade, no quarto de Layla, um tipo de cessar-fogo fora alcançado pelas partes interessadas.
Phury não estava tentando transformar Qhuinn num gancho de parede. Layla estava sendo avaliada. A porta fora fechada e, com isso, nada do que acontecia ali teria mais do que um quarteto de testemunhas oculares.
Qhuinn só estava esperando que a doutora Jane se pronunciasse.
Quando ela, por fim, tirou o estetoscópio do pescoço, apenas se acomodou. E a expressão em seu rosto não lhe deu esperança alguma.
Ele não entendia. Vira sua filha às portas do Fade: quando fora surrado e largado como morto no acostamento pela Guarda de Honra, subira para só Deus sabe onde, aproximara-se de um portal branco... e lá vira uma fêmea jovem cujos olhos começaram com uma cor, e acabaram azul e verde como os seus.
Se ele não tivesse testemunhado aquilo, provavelmente não teria se deitado com Layla para início de conversa. Mas ele teve tanta certeza de que o destino estava traçado que nunca lhe ocorrera que...
Merda, talvez aquela jovem fosse o resultado de outra comunhão... com outra pessoa no futuro.
Como se algum dia ele fosse se unir a outra pessoa... Jamais.
Não era possível. Não agora que esteve com Blay uma vez.
Nada disso.
Mesmo que ele e seu ex-amigo nunca mais se encontrassem debaixo dos lençóis, ele nunca mais ficaria com ninguém. Quem poderia se comparar? E o celibato era melhor do que a segunda melhor opção, que é o que seria oferecido pelo resto do planeta.
A doutora Jane pigarreou e segurou a mão de Layla.
– A sua pressão sanguínea está um pouco baixa. A sua pulsação está um pouco lenta. Acredito que essas duas coisas possam ser melhoradas com alimentação...
Qhuinn praticamente pulou para perto da cama com o pulso estendido.
– Estou aqui... Pronto. Pode pegar.
A doutora Jane pousou uma mão no braço dele e lhe sorriu.
– Mas não é com isso que estou preocupada.
Ele congelou e, pelo canto do olho, viu que o mesmo aconteceu com Phury.
– Eis a questão – a doutora voltou a olhar para Layla, falando com suavidade e clareza. – Não sei muito sobre gestações vampíricas, portanto, por mais que eu deteste dizer isso, você precisa voltar à clínica de Havers – ela levantou a mão, como se já esperasse discussões de todos os lados. – Isto se trata dela e do filho dela, temos que levá-los para alguém que possa tratá-la adequadamente, mesmo se, em outras circunstâncias, nenhum de nós batesse à porta do cara. E, Phury – ela encarou o Irmão –, você tem que ir com ela e com Qhuinn. A sua presença lá só facilitará as coisas para todos.
Muitos lábios apertados depois disso.
– Ela tem razão – concordou Qhuinn por fim. E depois se voltou para o Primale. – E você tem que dizer que é o pai. Ela obterá mais respeito assim. Comigo? Ele pode muito bem se recusar a tratá-la... se ela for decaída e tiver transado com um defeituoso? Pode nos mandar dar meia-volta.
Phury abriu a boca. Fechou-a.
Não havia muito mais a ser dito.
Enquanto Phury pegava o telefone e ligava para a clínica para informar que estavam indo para lá, o tom de voz dele sugeria que estava pronto para incendiar o lugar se Havers e sua equipe dessem mancada.
Com isso resolvido, Qhuinn se aproximou de Layla.
Num tom baixo, disse:
– Desta vez vai ser diferente. Ele vai fazer isso acontecer. Não se preocupe, você será tratada como uma rainha.
Os olhos de Layla se arregalaram, mas ela se controlou.
– Sim. Tudo bem.
Resultado? O Irmão não era o único prestes a acabar com tudo. Se Havers provocasse qualquer tipo de desgosto à la glymera em Layla, Qhuinn acabaria com o ego do cara a tapa. Layla não merecia esse tipo de tratamento – nem mesmo por escolher um rejeitado como ele para se acasalar.
Cacete. Talvez fosse melhor ela abortar. Ele queria mesmo condenar uma criança ao seu DNA?
– Você também vem? – ela lhe perguntou, como se não estivesse acompanhando.
– Sim. Vou estar lá.
Quando Phury desligou, olhou de um para outro, os olhos amarelos se estreitando.
– Ok, eles vão nos receber no segundo em que chegarmos. Vou fazer Fritz ligar a Mercedes, mas eu dirijo.
– Desculpe – disse Layla ao encarar o grande macho. – Sei que decepcionei as Escolhidas e você, mas foi você quem nos disse para vir para este lado e... viver.
Phury apoiou as mãos nos quadris e exalou fundo. Ao balançar a cabeça, ficou claro que ele não teria escolhido nada daquilo para ela.
– Sim, eu disse isso. Eu fiz isso.
CAPÍTULO 32
Ah, grande poder desgovernado, pensou Xcor ao olhar para seus soldados, cada um deles armado e pronto para uma noite de luta. Depois de 24 horas de recuperação após a alimentação grupal, eles estavam loucos para sair e encontrar os inimigos – e ele estava pronto para libertá-los daquele porão de armazém.
Só havia um problema: alguém estava andando no andar de cima.
Como demonstração, passos pesados atravessaram o alçapão de madeira sobre sua cabeça.
Pela última meia hora, eles acompanharam o progresso dos visitantes inesperados. Um era pesado, uma forma masculina. O outro era mais leve, de uma variedade feminina. No entanto, não havia como perceber seus cheiros; o porão era hermeticamente fechado.
Muito provavelmente, eram apenas humanos de passagem, ainda que ele não pudesse adivinhar o motivo para alguém que não fosse sem teto perder tempo numa estrutura tão decrépita numa noite fria. Quem quer que fossem, quaisquer as razões que os levaram até ali, contudo, ele não teria problemas para defender seu território, mesmo sendo aquele.
Mas não fazia mal esperar. Se ele podia evitar massacrar aqueles humanos? Isso significava que ele e seus soldados continuariam a usar aquele espaço sem serem incomodados.
Ninguém disse nada enquanto as passadas continuavam.
Vozes se misturavam. Grave e aguda. Em seguida, um telefone tocou.
Xcor acompanhou o toque e a conversa que se seguiu, caminhando em silêncio até o outro alçapão, lugar em que a pessoa escolheu parar. Imóvel, prestou atenção e captou metade de uma conversa nada interessante que não lhe revelou nenhuma das identidades dos envolvidos.
Não muito depois, o som inconfundível de sexo se fez claro.
Enquanto Zypher ria baixinho, Xcor encarou o bastardo para calá-lo. Mesmo cada um dos alçapões estando fechado pelo lado de baixo, ninguém sabia que tipo de problema aqueles ratos sem rabo podiam causar em qualquer situação.
Consultou o relógio. Esperou que os gemidos parassem. Gesticulou para que os soldados ficassem quietos quando eles pararam.
Movendo-se em silêncio, ele seguiu para o alçapão no canto extremo do armazém, aquele que se abria no que deveria ser um escritório de supervisor. Destrancando-o, segurou uma pistola, desmaterializou-se e inalou.
Não era humano.
Bem, um esteve ali, mas o outro... era algo diferente.
Do outro lado, a porta externa foi fechada e trancada.
Em sua forma fantasmagórica, Xcor atravessou o armazém e apoiou as costas na parede de tijolos, e olhou para fora de um dos vidros empoeirados.
Um par de faróis se acendeu na frente, no estacionamento.
Desmaterializando-se do lado de fora da janela, subiu até o telhado do armazém do lado oposto da rua.
Ora, ora, se aquilo não era interessante.
Havia um Sombra ali embaixo, sentando atrás do volante do BMW com a janela do motorista abaixada até a metade e uma fêmea humana se inclinando sobre o SUV.
Era a segunda vez que se deparava com um em Caldwell.
Eles eram perigosos.
Pegando o celular, ligou para o número de Throe após encontrar a foto do macho na lista de contatos, e ordenou que os soldados saíssem e lutassem. Ele lidaria sozinho com aquela situação.
Lá embaixo, o Sombra esticou a mão, puxou a mulher pela nuca e a beijou. Depois deu marcha à ré no carro e saiu sem olhar para trás.
Xcor mudou de posição para acompanhar o macho, transitando de telhado em telhado, conforme o Sombra seguia na direção do bairro das boates nas ruas que corriam em paralelo ao rio...
A princípio, a sensação em seu corpo sugeria uma mudança na direção do vento, os açoites gélidos atingindo-o por trás, em vez de golpeá-lo no rosto. Mas logo pensou... não, era algo puramente interno. As ondas que sentia sob a pele...
Sua Escolhida estava por perto.
Sua Escolhida.
Abandonando imediatamente o rastro do Sombra, ele seguiu para perto do rio Hudson. Onde ela estava...
Num carro. Estava se movendo num carro.
Pelo que seus instintos lhe diziam, ela estava se movendo em alta velocidade que, ainda assim, era rastreável. Portanto, a única explicação era que ela estava na Northway, seguindo de noventa a cento e vinte quilômetros por hora.
Recuando na direção da fileira de armazéns, ele se concentrou no sinal que estava captando. Como fazia meses desde que se alimentara dela, sentiu pânico ao perceber que a conexão criada pelo sangue dela em suas veias estava perdendo intensidade, a ponto de ele ter dificuldade para localizar o veículo.
Mas, em seguida, captou um sedã luxuoso graças ao fato de ele ter freado na saída que convergia o tráfego para as pontes. Desmaterializando-se nas vigas, plantou as botas de combate no pináculo de um dos esteios de metal e esperou que ela passasse debaixo dele.
Pouco depois de fazê-lo, ela seguiu em frente, indo para o outro lado da cidade, oposta à margem do rio.
Ele continuou com ela, mantendo uma distância segura, embora se perguntasse a quem tentava enganar. Se ele pressentia sua fêmea?
O mesmo acontecia com ela.
Porém, ele não abandonaria seu rastro.
Enquanto Qhuinn estava no assento de passageiro do Mercedes, sua Heckler e Koch calibre .45 era mantida discretamente sobre a coxa, os olhos movimentando-se incessantemente do espelho retrovisor para a janela lateral e o para-brisa. Ao lado dele, Phury estava na direção, as mãos do Irmão num perfeito dez para as duas tão apertado que mais parecia que ele estava estrangulando alguém.
Caramba, havia coisas demais acontecendo ao mesmo tempo.
Layla e a criança. Aquele acidente com o Cessna. O que ele fizera ao primo na noite anterior. E também... bem, havia aquela situação com Blay.
Ah, bom Deus... a situação com Blay.
Enquanto Phury pegava a saída que os levaria às pontes, a mente de Qhuinn ia da preocupação com Layla às lembranças das imagens, dos sons... e dos sabores das horas diurnas.
Intelectualmente, ele sabia que o que acontecera entre eles não fora um sonho. E seu corpo se lembrava muito bem disso, como se o sexo tivesse sido um tipo de marcação a ferro em sua pele que o mudara para o resto da vida. E, mesmo assim, enquanto tentava lidar com o drama mais recente, a sessão breve demais parecia pré-histórica, e não ocorrera há nem 24 horas atrás.
Ele temia que se tratasse de uma sessão única.
Nunca mais me toque assim.
Gemendo, ele esfregou a testa.
– Não são os seus olhos – disse Phury.
– O que disse?
Phury olhou de relance para o banco de trás.
– Ei, como estão as coisas? – perguntou às fêmeas. Quando Layla e a doutora Jane responderam numa afirmativa breve, ele assentiu com a cabeça. – Escutem, vou fechar a divisória por um segundo, está bem? Está tudo bem por aqui.
O Irmão não lhes deu a chance de responder de um ou outro modo, e Qhuinn se retesou no banco enquanto a divisória opaca subia, partindo o sedã em duas partes. Não fugiria de nenhum tipo de confronto, mas isso não significava que ele estava ansioso pelo segundo round, e se Phury estava isolando as duas, aquilo não seria nada bonito.
– Seus olhos não são o problema – disse o Irmão.
– Não entendi.
Phury olhou para ele.
– O fato de eu estar irritado sobre tudo isso não tem nada a ver com nenhum defeito. Layla está apaixonada por você...
– Não, não está não.
– Vê, você está me irritando muito agora.
– Pergunte a ela.
– Enquanto está sofrendo um aborto? – replicou o Irmão. – É, é isso mesmo o que vou fazer.
Enquanto Qhuinn se retraía, Phury continuou:
– Sabe, esse é o seu negócio. Você gosta de viver no limite e ser desvairado... Eu, honestamente, acredito que isso o ajuda a lidar com as idiotices que sua família o fez passar. Se você destruir tudo? Nada pode afetá-lo. E acredite ou não, não tenho problema algum com isso. Você faz o que tem que fazer e sobrevive às noites e aos dias do melhor modo que pode. Mas assim que você parte o coração de uma inocente, ainda mais se ela está sob a minha proteção? É nessa hora que você e eu temos um problema.
Qhuinn olhou pela janela. Antes de tudo, parabéns ao cara ali do lado. A ideia de que havia um preconceito contra Qhuinn baseado em seu caráter em vez de uma mutação genética sobre a qual não tivera nenhum poder decisório era uma mudança refrescante. E, ei, não que ele não concordasse com o cara, pelo menos até um ano atrás. Antes disso? Inferno, ele esteve descontrolado em muitos níveis. Mas as coisas mudaram. Ele mudara.
Evidentemente, Blay se tornar indisponível fora o tipo de chute no saco de que ele precisava para finalmente crescer.
– Não sou mais assim – disse ele.
– Então, está preparado para se vincular a ela? – quando ele não respondeu, Phury deu de ombros. – E lá vai você de novo. Conclusão: sou responsável por ela, legal e moralmente. Posso não estar agindo como um Primale em alguns aspectos, mas o restante das funções desse cargo eu levo muito a sério. A ideia de que você a meteu nessa confusão me deixa enjoado, e eu acho muito difícil de acreditar que ela não tenha feito isso para agradá-lo... Você disse que os dois queriam um filho? Tem certeza de que não era só você, e ela só fez isso para deixá-lo feliz? Isso se parece muito com o feitio dela.
Tudo aquilo foi apresentado de maneira retórica. E não cabia a Qhuinn criticar a lógica, mesmo que ela estivesse errada. Mas, enquanto ele passava os dedos pelos cabelos, o fato de que fora Layla a procurá-lo era algo que ele manteria só para si. Se Phury queria pensar que a culpa era só sua, tudo bem, ele aguentaria o tranco. Qualquer coisa para tirar a pressão e as atenções de cima de Layla.
Phury olhou por entre os bancos.
– Isso não está certo, Qhuinn. Não é isso o que machos de verdade fazem. E olhe só a situação em que ela está. Você causou isso a ela. Você a colocou no banco de trás deste carro, e isso é errado.
Qhuinn apertou os olhos. Bem, como se isso não fosse martelá-lo na cabeça pelos próximos cem anos. Mais ou menos.
Enquanto eles seguiam pela ponte e deixavam as luzes piscantes do centro da cidade para trás, ele manteve a boca fechada, e Phury também se calou.
Mas, pensando bem, o Irmão já dissera tudo o que havia para ser dito, não?
CAPÍTULO 33
Assail acabou perseguindo sua presa atrás do volante do seu Range Rover. Muito mais confortável assim, e a localização da mulher já não era mais um problema: enquanto estivera esperando ao lado do Audi que ela saísse de sua propriedade, colocara um equipamento de rastreamento na parte inferior do espelho retrovisor lateral.
Seu iPhone cuidou do resto.
Depois de ela ter deixado abruptamente seu bairro – após a proposital desmaterialização ante suas vistas só para desestabilizá-la ainda mais –, ela atravessou o rio e deu a volta para a parte de trás da cidade, onde as casas eram pequenas, próximas umas das outras e delimitadas por cercas de alumínio.
Enquanto a perseguia, mantendo pelo menos dois quarteirões de distância entre os veículos, observou as luzinhas coloridas no bairro, milhares de fios de pisca-pisca entre os arbustos, pendurados nos telhados e emoldurando janelas e portas. Mas aquilo não era nem metade da história. Cenários de manjedouras colocados em destaque em diminutos jardins eram iluminados, e também havia os bonecos de neve falsos com cachecóis vermelhos e calças azuis que brilhavam por dentro.
Em contraste com a decoração sazonal, ele estava disposto a apostar que as estátuas da Virgem Maria eram permanentes.
Quando o carro parou e estacionou, ele se aproximou, parando quatro casas adiante e desligando as luzes. Ela não saiu imediatamente do carro, e quando o fez, não vestia a parca e as calças de esqui nas quais o espionara. Em vez disso, mudara para um suéter vermelho e um par de jeans.
E soltara o cabelo.
O volume escuro e pesado ultrapassava os ombros, curvando-se nas pontas.
Ele grunhiu na escuridão.
Com passadas rápidas e certeiras, ela ultrapassou os quatro degraus de concreto que levavam à entrada modesta da casa. Abrindo a porta de tela numa moldura de metal, ela a segurou com o quadril enquanto destrancava a porta com a chave, para depois entrar e trancar pelo lado de dentro.
Quando as luzes se acenderam no andar de baixo, ele observou a silhueta dela avançar pelo cômodo da frente, as cortinas finas lhe possibilitando apenas uma ideia da movimentação dela, e não uma visão desobstruída.
Ele pensou em suas próprias persianas. Demorou um tempo para que aperfeiçoasse aquela invenção, e a casa às margens do rio Hudson fora um teste perfeito. As barreiras funcionavam melhor do que ele antecipara.
Ela, porém, era esperta o bastante para notar alguma anormalidade, e ele se perguntou o que as teriam denunciado.
No segundo andar, uma luz se acendeu, como se alguém que estivesse descansando tivesse despertado com a chegada dela.
As presas dele pulsaram. A ideia de que algum homem humano estivesse à espera dela em seu quarto conjugal fez com que ele quisesse estabelecer sua dominância, mesmo que isso não fizesse sentido. Ele a seguira para o seu próprio bem, e nada mais.
Absolutamente nada mais.
Bem quando a mão segurou a maçaneta da porta, seu telefone tocou. Na hora certa.
Quando ele viu quem era, franziu o cenho e levou o celular ao ouvido.
– Duas ligações em tão pouco tempo. A que devo essa honra?
Rehvenge não pareceu estar se divertindo.
– Não retornou a minha ligação.
– Eu deveria?
– Cuidado, garoto.
Os olhos de Assail continuaram atentos à casinha. Ele estava curiosamente desesperado para saber quem estava lá dentro. Estaria ela subindo, despindo-se pelo caminho?
Exatamente de quem ela escondia suas espreitas? E ela de fato as escondia – senão, por que outro motivo trocar de roupa?
– Alô?
– Aprecio o gentil convite – ele se ouviu dizer.
– Não foi um convite. Você é um maldito membro do Conselho agora que está vivendo no Novo Mundo.
– Não.
– Como é que é?
Assail relembrou o encontro na casa de Elan no começo do inverno, aquele sobre o qual Rehvenge nada sabia, aquele no qual o Bando de Bastardos apareceu para forçar a barra. Também pensou no atentado a Wrath, à vida do Rei Cego... na sua própria propriedade, pelo amor de Deus.
Drama demais para o seu gosto.
Com calma ensaiada, ele se lançou no mesmo discurso que fizera à facção de Xcor:
– Sou um homem de negócios por predileção e propósito. Embora respeite tanto o reinado atual quanto o poder de base do Conselho, não posso desviar nem energia nem tempo das minhas empreitadas vigentes. Nem agora, nem no futuro.
Houve um momento prolongado de silêncio. E depois aquela voz profunda e maligna se fez ouvir do outro lado:
– Ouvi falar dos seus negócios.
– Verdade?
– Eu mesmo estive envolvido com isso há alguns anos.
– Foi o que eu soube.
– Consegui fazer as duas coisas.
Assail sorriu na escuridão.
– Talvez eu não seja tão talentoso quanto você.
– Vou deixar isto perfeitamente claro. Se você não aparecer nessa reunião, deduzirei que você está jogando no time errado.
– Com essa declaração, você reconhece que existem dois e que eles se opõem.
– Entenda como quiser. Mas se não estiver comigo e com o Rei, você é inimigo meu e dele.
E foi exatamente isso o que Xcor lhe dissera. Pensando bem, havia alguma outra posição naquela guerra crescente?
– O Rei foi alvejado na sua casa, Assail.
– Pelo que me lembro – disse ele secamente.
– Pensei que você talvez quisesse dizimar qualquer ideia quanto ao seu envolvimento.
– Já o fiz. Naquela mesma noite disse aos Irmãos que eu não tinha nada a ver com aquilo. Eu lhes dei o veículo com que escaparam com o Rei. Por que eu faria tal coisa se fosse um traidor?
– Para livrar seu rabo.
– Sou muito eficiente nisso sem o benefício de conversações, eu lhe garanto.
– Então, como anda a sua agenda?
A luz no segundo andar se apagou, e ele teve que imaginar o que a mulher fazia no escuro... E com quem.
Por vontade própria, suas presas se expuseram.
– Assail. Você está seriamente me aborrecendo com essa merda de comportamento.
Assail ligou o motor do Range Rover. Não estava disposto a ficar esperando no meio-fio enquanto o que quer que estivesse acontecendo ali dentro... acontecia. Obviamente, ela se recolhera e ficaria ali. Além disso, seu telefone o alertaria caso o carro dela voltasse a se movimentar.
Enquanto ele tomava a rua e acelerava, falou com clareza:
– Neste instante, estou me demitindo da minha posição no Conselho. A minha neutralidade nessa disputa pela coroa não será questionada por nenhum dos lados...
– E você sabe quem são os jogadores, não?
– Deixarei isto o mais claro possível: não tomo partido, Rehvenge. Não sei de que outro modo deixar isso ainda mais claro... e não serei arrastado para essa guerra por você, nem pelo Rei nem por ninguém mais. Não tente me forçar, e saiba que a neutralidade que lhe apresento agora é a mesma que apresentei a eles.
Desse mesmo modo, prometera a Elan e a Xcor não revelar suas identidades, e manteria sua palavra – não por acreditar que o grupo seria capaz de retribuir o favor, mas pelo simples fato de que, dependendo de quem vencesse, um confidente de qualquer lado seria visto como espião a ser erradicado ou um herói a ser aclamado. O problema era que não se saberia que lado venceria até aquilo acabar, e ele não estava interessado em apostas.
– Então você foi abordado – declarou Rehv.
– Recebi uma cópia da carta que eles enviaram na primavera passada.
– E esse foi o único contato que teve?
– Sim.
– Está mentindo para mim.
Assail parou num farol.
– Não há nada que possa dizer ou fazer para me arrastar para isso, caro lídher.
Com ameaças em excesso, o macho do outro lado rosnou.
– Não conte com isso, Assail.
Dito isso, Rehvenge desligou.
Praguejando, Assail jogou o telefone no banco do passageiro. Depois, cerrou os dois punhos e os bateu com força no volante.
Se existia uma coisa que ele não tolerava era ser sugado para o olho do furacão das brigas dos outros. Pouco se importava com quem sentava no trono, ou com quem era encarregado da glymera. Ele só queria ser deixado em paz para ganhar dinheiro à custa dos ratos sem rabo.
Isso era tão difícil de entender?
Quando a luz ficou verde, ele afundou o pé no acelerador, mesmo sem ter nenhum destino específico em mente. Apenas dirigiu a esmo... e cerca de quinze minutos mais tarde descobriu-se sobre o rio em uma das pontes.
Ah, então seu Range Rover decidira levá-lo de volta para casa.
Ao emergir na margem oposta, seu telefone emitiu um alerta, que ele quase ignorou. Mas os gêmeos tinham saído para cuidar do último carregamento de Benloise, e ele queria saber se os intermediários tinham aparecido com suas cotas no fim das contas.
Não era uma chamada, ou uma mensagem de texto.
Era o Audi preto se movendo mais uma vez.
Assail pisou no freio, cortou na frente de um carro que buzinou como se o xingasse, subiu e atravessou o canteiro central coberto de neve.
E praticamente voou pela ponte que o levava de volta.
Em sua posição vantajosa em uma relativa periferia distante, Xcor precisava de binóculos para ver adequadamente a sua Escolhida.
O carro em que ela vinha andando, o enorme sedã preto, continuara em frente depois da ponte, seguindo por oito ou nove quilômetros antes de sair por uma estradinha rural que levava para o norte. Depois de mais alguns quilômetros, e sem nenhum aviso, virou numa estrada de terra que era estrangulada nas duas laterais por plantações perenes. Por fim, parou ante uma construção baixa de concreto que não dava indícios de ter nem janelas nem uma porta.
Ele ajustou o foco quando dois machos saíram pela frente. Reconheceu um instantaneamente, o cabelo o denunciava: Phury, filho de Ahgony, que, de acordo com a boataria, tornara-se o Primale das Escolhidas.
O coração de Xcor começou a bater forte.
Especialmente quando reconheceu a segunda figura: era o lutador de olhos descombinados contra quem pelejara na casa de Assail quando o Rei fora levado embora às pressas.
Os dois machos sacaram as pistolas e perscrutaram as imediações.
Como Xcor estava a favor do vento e parecia não haver ninguém mais por perto, ele deduziu que havia uma grande probabilidade, a não ser que sua Escolhida revelasse a posição dele, que aquele par procedesse com o que quer que tivesse planejado para a fêmea.
De fato, era como se ela estivesse sendo levada para uma prisão.
Só. Por. Cima. Do. Seu. Cadáver.
Ela era um inocente naquela guerra, utilizada com propósitos nefastos sem que isso tivesse sido culpa sua; mas, obviamente, ela seria executada ou trancafiada numa cela na qual passaria o resto de sua vida na Terra.
Ou não.
Ele segurou as pistolas.
Aquela era uma boa noite para cuidar daquele assunto. De fato, era a sua chance de tê-la para si, de salvá-la de qualquer punição que lhe impingiram por ter, sem saber, ajudado e revigorado o inimigo. E talvez as circunstâncias quanto à sua condenação injusta a deixassem favoravelmente disposta em relação ao seu inimigo e salvador.
Ele fechou os olhos brevemente ao imaginá-la em sua cama.
Quando Xcor voltou a abri-los, Phury abria a porta traseira do sedã e colocava a mão para dentro. Quando o Irmão se endireitou, a Escolhida era retirada do veículo... e levada pelos dois cotovelos, os lutadores segurando-a de cada lado enquanto a conduziam para a construção.
Xcor se preparou para se aproximar. Depois de tanto tempo, uma vida inteira, mais uma vez ele a tinha próxima de si e não desperdiçaria a oportunidade que o destino lhe propiciava, não agora, não quando a vida dela tão obviamente pendia na balança. E ele levaria a melhor naquilo; a ameaça a ela fortalecia seu corpo a um nível inimaginável de poder, a mente se aguçava a ponto de avaliar todas as possibilidades de ataque e continuar absolutamente calmo.
De fato, havia apenas dois machos a guardá-la e, com eles, uma fêmea que não só parecia não estar armada, como também não avaliava seus arredores como se fosse treinada para tal ou inclinada para o conflito.
Ele estava mais do que preparado para acabar com os captores de sua fêmea.
Bem quando ele se preparava para avançar, o cheiro da Escolhida o atingiu na brisa fria, aquele perfume tentador exclusivo fazendo-o oscilar dentro de suas botas de combate...
Imediatamente, ele reconheceu uma mudança nele.
Sangue.
Ela estava sangrando. E havia mais alguma coisa...
Sem pensamento consciente, seu corpo se moveu para mais perto, sua forma restabelecendo o peso corpóreo, suspendendo-se a meros três metros, atrás de uma construção destacada do prédio principal.
Ele percebeu que ela não era uma prisioneira sendo levada para uma cela ou para a execução.
A sua Escolhida tinha dificuldade para andar. E aqueles guerreiros a amparavam com cuidado; mesmo com as armas expostas e os olhos vasculhando qualquer sinal de ataque, eles eram gentis com ela como seriam com a mais frágil das flores em botão.
Ela não estava sendo maltratada. Não tinha hematomas nem ferimentos. Enquanto o trio avançava, ela olhou para um macho, depois para o outro, e disse algo como que tentando assegurá-los, pois, na verdade, não era raiva que contraía as sobrancelhas daqueles guerreiros.
Era, na realidade, o mesmo terror que ele sentiu quando farejou o sangue dela.
O coração de Xcor bateu ainda mais forte em seu peito, a mente tentando compreender tudo aquilo.
E então, ele se lembrou de algo do seu passado.
Depois do seu nascimento, sua mahmen o repelira e ele fora deixado no orfanato no Antigo País para o que quer que o destino lhe reservasse. Ali, permanecera entre os raros indesejados, cuja maioria possuía deformidades físicas como a sua, por quase uma década... tempo suficiente para forjar lembranças permanentes sobre aquilo que transpirava no lugar triste e solitário.
Tempo suficiente para ele entender o que significava quando uma fêmea sozinha aparecia nos portões, era-lhe concedida a entrada, e depois berrava por horas, às vezes dias... antes de dar à luz, na maioria dos casos, a crianças mortas. Ou abortadas.
O cheiro do sangue naquela época era bem específico. E o cheiro levado pelo vento frio desta noite era o mesmo.
Uma gestação era o que invadia seu nariz agora.
Pela primeira vez em sua vida, ele se ouviu dizer, em absoluta agonia:
– Santa Virgem do Fade...
CAPÍTULO 34
A ideia de que os membros do s’Hisbe estivessem no código postal de Caldwell fez com que Trez pensasse em fazer as malas com tudo o que possuía, buscar o irmão e sair em férias permanentes dali.
Enquanto dirigia do armazém para o Iron Mask, a cabeça estava tão confusa que ele tinha de pensar conscientemente em quais esquinas virar, e frear nas placas de pare, e onde deveria estacionar quando chegasse à boate. E depois, quando desligou o motor do X5, apenas continuou sentado atrás do volante, encarando a parede de tijolos do seu prédio por... sei lá, um ano.
Uma tremenda metáfora, todo o “ir a nenhum lugar” bem na sua frente.
Não que não soubesse o quanto decepcionava as pessoas. A questão? Pouco se importava. Não voltaria para os costumes antigos. A vida que agora levava era sua, e ele se recusava a permitir que uma promessa feita na época do seu nascimento o encarcerasse na vida adulta.
Aquilo não aconteceria.
Desde que Rehvenge realizara a boa ação do século e salvara tanto o seu traseiro quanto o do seu irmão, as coisas mudaram para Trez. Ele e iAm receberam ordens para se aliarem aos sympatho do lado de fora do Território a fim de saldarem a dívida, e esse “pagamento forçado” fora o bilhete deles para a liberdade, a saída que eles vinham procurando. E ainda que ele lamentasse arrastar iAm para aquele drama, o resultado final foi que seu irmão teve que vir com ele, e essa era apenas mais uma parte da solução perfeita que vivia atualmente. Abandonar o s’Hisbe e vir para o mundo exterior fora uma revelação, a primeira e deliciosa amostra de liberdade. Não havia protocolo, nenhuma regra, ninguém bafejando em seu cangote.
A ironia? Aquilo deveria ter sido um tapinha na bunda por ousar ter saído do Território e se misturar com os Desconhecidos. Um castigo com a intenção de fazê-lo andar na linha.
Rá.
E, desde então, nos recessos de sua mente, ele meio que desejava que a extensão dos seus negócios com os Desconhecidos durante a última década o tivesse contaminado perante os olhos do s’Hisbe, tornando-o inelegível para a “honra” que lhe fora concedida no nascimento. Ou seja, condenando-o a uma liberdade permanente.
O problema era que, se enviaram AnsLai, o sumo sacerdote, obviamente esse objetivo não fora alcançado. A menos que a visita tenha sido para repudiá-lo...
Nesse caso, saberia por meio de iAm. Não?
Trez verificou o celular. Nenhuma mensagem. Nem de voz nem de texto. Estava na casinha do cachorro de novo em relação ao seu irmão, a menos que iAm tivesse resolvido mandar tudo à merda e voltado para casa, para a tribo.
Maldição...
A batida forte à sua janela não fez com que ele simplesmente levantasse a cabeça. Não. Ele também sacou a arma.
Trez franziu a testa. Parado do lado de fora do carro, um macho humano do tamanho de uma casa. O cara tinha um barrigão de cerveja, mas os ombros fortes sugeriam que ele realizava trabalho físico regular, e o maxilar rígido e pesado revelava tanto a sua ancestralidade Cro-Magnon quanto o tipo de arrogância mais comum entre os animais grandes e idiotas.
Com grandes baforadas de touro libertando-se das narinas, ele se inclinou e bateu na janela. Naturalmente, com um punho tão grande quanto uma bola de futebol.
Bem, ficou claro que ele queria um pouco de atenção, e quer saber? Trez estava mais do que disposto em lhe dar.
Sem aviso, ele escancarou a porta, pegando o cara em cheio nas bolas. Enquanto o humano cambaleava para trás agarrando a virilha, Trez se ergueu em toda a sua altura e guardou a arma no cós da calça, fora de vista, mas fácil de apanhar.
Quando o senhor Agressivo se recuperou o bastante para olhar para cima, beeeem para cima, ele pareceu perder um pouco do seu entusiasmo. Pensando bem, Trez devia ter uns quarenta centímetros e pesar uns 45 quilos a mais que o cara. Apesar daquele pneuzão que ele carregava.
– Está procurando por mim? – perguntou Trez, querendo mesmo dizer: tem certeza de que quer fazer isso, grandalhão?
– É. ‘Tô.
Ok, então tanto a gramática quanto a avaliação de risco eram problemas para ele. Provavelmente teria dificuldades do mesmo tipo com adições e subtrações com numerais de único dígito.
– Estou – corrigiu Trez.
– Quê?
– Acredito que seja “sim, eu estou”, e não “tô”.
– Vai à merda. Que tal? – o cara se aproximou. – E fique longe dela.
– Dela? – isso restringia o problema para o que... umas mil pessoas?
– Minha mina. Ela num qué ocê, num precisa ducê, e num vai mais ficá cucê.
– De quem, exatamente, estamos falando? Vou precisar de um nome – e talvez nem isso ajudasse.
À guisa de resposta, o cara avançou. Provavelmente teria sido um soco ferrado, mas o avanço foi lento demais e muito penoso, e a maldita coisa poderia ter sido acompanhada de uma legenda.
Trez segurou o punho com uma mão, espalmando-a como se fosse uma bola de basquete. E depois, com um giro rápido, ficou com o pedaço de bife virado e preso – prova positiva de que pontos de pressão funcionavam, e que o pulso era um deles.
Trez falou bem no ouvido do homem, só para que as regras básicas fossem bem recebidas:
– Faça isso de novo e vou quebrar cada osso da sua mão. De uma vez – enfatizou isso com um puxão que fez o cara gemer. – E depois, vou subir até o braço. Agora, de que porra você está falando?
– Ela ‘teve aqui ontem à noite.
– Muitas mulheres estiveram. Consegue ser mais específico...?
– Ele ‘tá falando de mim.
Trez ergueu o olhar. Ah... que magnífico.
A garota que deu uma de doida, a sua perseguidora.
– Eu disse que cuidava disso! – ela gritou.
É, o cara parecia mesmo ter o controle da situação. Então, a que tudo levava a crer, os dois tinham ilusões... E talvez isso explicasse o relacionamento deles: ele a considerava uma supermodelo, e ela acreditava que ele tivesse um cérebro.
– Isto é seu? – Trez perguntou à mulher. – Porque, ser for, pode levá-lo para casa com você antes que precise de um balde para limpar a bagunça?
– Eu disse procê não vir aqui – disse a mulher. – Que que ‘cê ‘tá fazendo aqui?
E mais uma prova de que esses dois eram um casal perfeito.
– Que tal se eu deixar vocês dois resolverem isso? – sugeriu Trez.
– Eu amo ele!
Por um segundo, a resposta não fez sentido. Mas depois, e deixando o sotaque carregado de lado, ele entendeu: a tonta estava falando dele.
Enquanto Trez encarava incrédulo a mulher, percebeu que aquela transa em particular tinha saído pela culatra de maneira gigantesca.
– Não está, não.
Bem, pelo menos o namorado agora falara corretamente.
– Sim, estou!
Foi nessa hora que tudo foi para a puta que o pariu. O touro se lançou sobre a mulher, quebrando o próprio pulso no processo de se libertar. Depois os dois ficaram cara a cara, berrando obscenidades, os corpos se arqueando para a frente.
Ficou claro que eles tinham prática naquilo.
Trez olhou ao redor. Não havia ninguém no estacionamento, nenhuma alma viva andando na calçada, mas ele não precisava de violência doméstica rolando nos fundos da sua boate. Inevitavelmente, alguém acabaria vendo e chamando a polícia ou, pior, aquela burra acabaria forçando demais a barra do namorado grande e burro, e acabaria levando a pior.
Se ao menos ele tivesse um balde de água ou, quem sabe, uma mangueira de jardim para que os dois se largassem.
– Escutem aqui, vocês dois têm que...
– Eu te amo! – a mulher disse, virando-se para Trez e agarrando o bustiê. – Não entendeu ainda? Eu te amo!
Por conta da camada de suor que a cobria, apesar de a temperatura estar próxima de zero, ficou bem claro que ela tinha usado alguma coisa. Coca ou metanfetamina seria o seu palpite se ele tivesse de adivinhar. Êcstasy normalmente não era associado a esse tipo de agressão.
Perfeito. Mais essa agora.
Trez balançou a cabeça.
– Querida, você não me conhece.
– Conheço sim!
– Não, você não...
– Porra, não fala com ela assim!
O cara atacou Trez, mas a fêmea se colocou na frente, metendo-se diante de um trem acelerado.
Cacete, agora era a hora de ele se meter. Nada de violência contra mulheres na frente dele. Nunca – mesmo que fosse dano colateral.
Trez se moveu com tanta rapidez que quase fez o tempo voltar para trás. Tirou sua “protetora” da linha de combate e lançou um soco que pegou o animal disparado bem no meio do queixo.
Causou pouca ou nenhuma impressão. Foi o mesmo que atingir uma vaca com uma pilha de papel.
Trez levou um murro no olho, uma luz pipocou em metade da sua vista, mas foi um golpe de sorte mais do que algo coordenado. A recompensa, contudo, foi tudo isso e muito mais: com rápida coordenação, ele descarregou as juntas dos dedos em sucessão veloz, acertando-o no ventre, transformando o fígado cheio de cirrose do cara num saco de pancada vivo até o filho da puta se dobrar ao meio e pedir arrego.
Trez concluiu o assunto chutando o peso morto gemedor até ele cair no chão.
Então, ele sacou a pistola e enfiou o cano bem na carótida do cara.
– Você tem uma chance de sair daqui – Trez disse calmo. – E é assim que as coisas vão ser. Você vai se levantar e não vai nem olhar nem falar com ela. Você vai embora pela frente da boate e vai entrar numa porra de um táxi e vai para a porra da sua casa.
Diferentemente de Trez, o homem não tinha um sistema cardíaco muito bem desenvolvido e conservado e respirava como um trem de carga. Apesar disso e do jeito como os olhos injetados e marejados o olhavam, ele conseguira focar a visão independentemente da hipoxia, e captara a mensagem.
– Se a agredir de qualquer modo que seja, se ela quebrar sequer uma unha por sua causa, se alguma propriedade dela for danificada de algum modo? – Trez se inclinou, aproximando-se. – Vou abordá-lo por trás. Você nem saberá que estive ali, e não vai sobreviver ao que eu lhe farei. Isso eu prometo.
Sim, Sombras tinham maneiras de se livrar dos inimigos e, ainda que ele preferisse carne com pouca gordura, como frango e peixe, não se importava em abrir exceções.
O problema era que tanto em sua vida pessoal quanto na profissional ele vira como a violência doméstica se intensificava. Em muitos casos, algo grande tinha que intervir a fim de romper o ciclo. Veja só? Ele se encaixava nisso.
– Acene com a cabeça se você entendeu meus termos – quando o aceno veio, ele bateu a arma com força contra a nuca gorda. – Agora, olhe em meus olhos e saiba que estou falando a verdade.
Enquanto Trez o encarava, ele inseriu um pensamento direto no córtex cerebral, implantando-o como se fosse um chip instalado entre os lóbulos. O seu disparo seria qualquer tipo de ideia brilhante que tivesse a respeito da mulher; seu efeito seria a absoluta convicção de que a sua própria morte seria inevitável e rápida, caso ele desse seguimento à ideia.
O melhor tipo de terapia cognitiva que existia.
Taxa de sucesso de cem por cento.
Trez deu um pulo e concedeu uma chance de se comportar como um bom garoto ao gorducho. E, claro, o filho da puta se ergueu do chão, sacudiu-se como um cão com as pernas plantadas afastadas e a camisa larga solta.
Quando ele saiu, foi mancando.
E foi nesse instante que as fungadas foram percebidas.
Trez se virou. A mulher tremia no frio, as roupas indiscretas não ofereciam nenhuma barreira para a noite de dezembro, a pele pálida, a exaltação desaparecida... como se o fato de ele colocar o cano da sua .40 na garganta do seu namoradinho tivesse alguma influência.
O rímel escorria pelo rosto enquanto ela testemunhava a partida do seu “Príncipe Encantado”.
Trez olhou para o céu e começou seu diálogo interno.
No fim, ele não teria como deixá-la ali sozinha no estacionamento, ainda mais toda trêmula como estava.
– Onde você mora, querida? – até ele percebia a exaustão em sua voz. – Querida?
A mulher olhou para o lado dele e imediatamente a sua expressão mudou.
– Nunca ninguém me defendeu assim antes.
Ok, agora ele pensava em afundar a cabeça na parede de tijolos. E, olha só, havia uma logo ali do lado.
– Deixe-me levá-la para casa. Onde você mora?
Enquanto ela se aproximava, Trez teve que ordenar aos pés que continuassem exatamente onde estavam – pois, claro, ela se enterrou em seu corpo.
– Eu te amo.
Trez cerrou bem os olhos.
– Vamos – disse, desprendendo-se dela e levando-a até o carro. – Você vai ficar bem.
CAPÍTULO 35
Enquanto Layla era levada até a clínica, seu coração batia forte e as pernas tremiam. Felizmente, Phury e Qhuinn não mostravam problema algum em sustentá-la.
Contudo, graças à presença do Primale, sua experiência foi completamente diferente dessa vez. Quando o painel de entrada do edifício deslizou para o lado, uma das enfermeiras estava lá para recebê-los, e eles foram levados imediatamente para uma parte diferente da clínica daquela em que ela esteve na noite anterior.
Enquanto eram levados para a sala de exames, Layla olhou de relance ao redor e hesitou. O que... era aquilo? As paredes eram recobertas por um rosa claro, e as pinturas em molduras douradas estavam penduradas a intervalos regulares. Nenhuma mesa de exames, tal como aquela em que ela se deitou na noite anterior. Ali, havia uma cama forrada por uma manta elegante, recoberta com pilhas de travesseiros fofos. E, além disso, em vez da pia de aço inoxidável e gabinetes brancos sem graça, uma tela pintada escondia um canto inteiro do quarto atrás da qual, ela deduziu, os instrumentos clínicos de Havers eram mantidos.
A menos que o grupo tenha sido conduzido para os aposentos particulares do médico.
– Ele logo virá vê-la – disse a enfermeira, sorrindo para Phury e se curvando. – Posso lhes trazer algo? Café, chá?
– Apenas o médico – o Primale respondeu.
– Imediatamente, Vossa Excelência.
Ela se curvou novamente e se apressou para fora.
– Vamos colocá-la na cama, está bem? – disse Phury ao lado do leito.
Layla balançou a cabeça.
– Tem certeza de que estamos no lugar certo?
– Sim – o Primale se aproximou e a ajudou a atravessar o quarto. – Esta é uma das suítes VIP.
Layla olhou por sobre o ombro. Qhuinn se acomodara no canto oposto à tela. Ele se mantinha absolutamente imóvel, os olhos focados no chão, a respiração estável, as mãos atrás das costas. E mesmo assim não estava à vontade. Não, ele parecia pronto e capaz de matar e, por um momento, uma pontada de medo a perpassou. Jamais teve medo dele antes, mas, pensando bem, ela nunca o vira num estado tão potencialmente agressivo.
Pelo menos a violência represada não parecia direcionada a ela, nem mesmo ao Primale. Certamente não à doutora Jane enquanto a médica se acomodava numa cadeira forrada de seda.
– Vamos – insistiu Phury com gentileza. – Vamos lá.
Layla tentou subir sozinha, mas o colchão estava longe demais do chão e a parte superior do seu corpo estava tão fraca quanto as pernas.
– Eu pego você – Phury atenciosamente passou o braço ao redor das suas costas e atrás das pernas; depois a suspendeu com cuidado. – Lá vamos nós.
Ajeitando-se na cama, ela gemeu ao sentir uma câimbra se agarrar à sua região pélvica. Enquanto todos os olhos no quarto fixavam-se nela, ela tentou esconder a careta com um sorriso. Sem sucesso: embora o sangramento continuasse estável, as ondas de dor se intensificavam, a duração delas era mais longa, e o espaçamento entre elas, menor.
Naquele compasso, logo se transformaria em agonia constante.
– Estou bem...
A batida à porta a interrompeu.
– Posso entrar?
Apenas a voz do doutor Havers já fez com que ela quisesse fugir.
– Ah, Santa Virgem Escriba – disse ao tentar juntar coragem.
– Sim – respondeu sombriamente Phury. – Entre...
O que aconteceu em seguida foi tão rápido e furioso que o único modo de descrever seria com o coloquialismo que aprendera com Qhuinn.
O mundo desabou.
Havers abriu a porta, entrou e Qhuinn atacou o médico, empurrando-o para aquele canto, inclinando-se com a adaga.
Layla gritou alarmada, mas ele não matou o macho.
No entanto, ele fechou a porta com o corpo do macho, ou talvez com a cara dele. E foi difícil saber se o barulho que ressoou foi a porta se encontrando com a soleira ou o impacto do curandeiro sendo lançado contra a madeira. Provavelmente uma combinação de ambos.
A terrível lâmina afiada foi pressionada contra a garganta pálida.
– Adivinha o que vai fazer primeiro, cretino? – Qhuinn rosnou. – Vai se desculpar por tratá-la como se fosse uma maldita incubadora.
Qhuinn o virou com um puxão. Os óculos de Havers estavam quebrados, uma das lentes rachada formando um padrão de teia de aranha, a alça do outro lado esticada num ângulo estranho.
Layla lançou um olhar para Phury. O Primale não parecia particularmente aborrecido: apenas cruzou os braços sobre o peito imenso e se recostou contra a parede ao lado dela, obviamente muito à vontade com aquela encenação. Do outro lado na cadeira, o mesmo acontecia com a doutora Jane, o olhar esverdeado era tranquilo enquanto observava o dramalhão.
– Olhe nos olhos dela – bramiu Qhuinn – e peça desculpas.
Quando o lutador sacudiu o médico como se ele não passasse de uma boneca de pano, algumas palavras amontoadas escaparam do médico.
Caramba. Layla supunha que deveria se portar como uma dama e não gostar daquilo, mas sentiu satisfação ante aquela vingança.
Tristeza também, porque a situação jamais deveria ter chegado àquilo.
– Aceita as desculpas dele? – Qhuinn perguntou num tom maldoso. – Ou prefere que ele rasteje? Eu ficarei muito feliz em transformá-lo num capacho aos seus pés.
– Isso foi o bastante. Obrigada.
– Agora você vai contar a ela – Qhuinn repetiu o chacoalhão, os braços de Havers quase sendo arrancados das juntas, o jaleco branco balançando tal qual uma bandeira – e somente a ela, que merda está acontecendo com o corpo dela.
– Preciso do... prontuário...
Qhuinn expôs as presas e as colocou ao lado da orelha de Havers, como se estivesse considerando a ideia de arrancá-la numa mordida.
– Tolice. E se você estiver contando a verdade? O lapso de memória vai causar a sua morte. Agora.
Havers já estava pálido, mas isso fez com que ele ficasse completamente branco.
– Comece a falar, doutor. E se o Primale, que o impressiona pra cacete, fizer a gentileza de me contar caso você desvie o olhar dela, isso seria maravilhoso.
– Com prazer – disse Phury.
– Não estou ouvindo nada, doutor. E não sou um cara muito paciente.
– Você é... – por detrás dos óculos quebrados, os olhos do macho encontraram os dela. – O seu filho...
Ela quase desejou que Qhuinn não forçasse aquele contato. Já era bastante difícil ouvir aquilo sem ter que encarar o médico que a tratara tão mal.
Mas, pensando bem, era Havers quem tinha de olhar para ela, e não o contrário.
Ela encarava os olhos de Qhuinn quando Havers disse:
– Você está sofrendo um aborto.
As coisas ficaram embaçadas dali por diante, portanto, ela deduziu que estivesse chorando. Entretanto, não sentia coisa alguma. Era como se sua alma tivesse sido tragada para fora do seu corpo, tudo o que a animava e conectava ao mundo nunca tivesse existido.
Qhuinn não demonstrou reação alguma. Não piscou. Não mudou de posição, nem balançou a adaga.
– Existe algo que possa ser feito em termos médicos? – questionou a doutora Jane.
Havers foi balançar a cabeça, mas parou quando a ponta afiada da adaga perfurou a pele do seu pescoço. Quando o sangue começou a descer pelo colarinho engomado da camisa social, o vermelho combinou com a gravata borboleta.
– Nada que eu saiba – respondeu o médico com voz rouca. – Não neste mundo, de qualquer forma.
– Diga a ela que ela não teve culpa – exigiu Qhuinn. – Diga a ela que ela não fez nada de errado.
Layla fechou os olhos.
– Presumindo que isso seja verdade...
– Em humanos, esse costuma ser o caso, desde que não tenha havido nenhum trauma – interveio a doutora Jane.
– Diga a ela – disse Qhuinn num estalido, o braço começando a vibrar bem de leve, como se estivesse a um passo de liberar a sua violência.
– É verdade – confirmou Havers meio engasgado.
Layla fitou o médico, procurando o olhar dele por trás dos óculos arruinados.
– Nada?
Havers falou rapidamente:
– A incidência de abortos espontâneos é de aproximadamente uma a cada três gestações. Acredito que, como acontece com os humanos, seja causado por um sistema autorregulatório que garante que defeitos de vários tipos não sejam levados a cabo.
– Mas, sem sombra de dúvida, eu estou grávida – disse ela num tom desprovido de emoção.
– Sim. Seus exames de sangue atestaram isso.
– Existe algum risco à vida dela – perguntou Qhuinn – se isso continuar?
– Você é o ghia dela? – perguntou Havers num rompante.
Phury interveio:
– Ele é o pai do filho dela. Portanto, você o tratará com o mesmo respeito com que me trataria.
Isso fez com que os olhos do médico saltassem das órbitas, as sobrancelhas emergissem por trás da armação arruinada. E foi engraçado; foi nesse instante que Qhuinn demonstrou um pouco de reação: apenas um leve vacilo em seu rosto antes que a expressão ferrenha voltasse a demonstrar agressividade.
– Responda – exigiu Qhuinn. – Ela corre algum perigo?
– E-eu... – Havers engoliu em seco. – Não existem garantias na medicina. De modo geral, eu diria que não; ela é saudável em relação ao resto, e o aborto parece estar seguindo seu curso costumeiro. Além disso...
Enquanto o médico continuava a falar, Layla percebeu que seu tom educado e refinado estava muito mais irregular do que na noite anterior.
Tudo regrediu, sua audição sumiu, junto a qualquer percepção de temperatura do quarto, a cama debaixo dela, bem como os outros corpos ao seu redor. A única coisa que enxergava eram os olhos descombinados de Qhuinn.
Seu único pensamento enquanto ele segurava aquela adaga junto ao pescoço do médico?
Mesmo não estando apaixonados um pelo outro, ele era exatamente o pai que queria que seu filho tivesse. Desde que tomara a decisão de participar do mundo real, ela aprendera o quanto a vida podia ser dura, como os outros podiam conspirar contra você e como, às vezes, a força baseada em seus princípios era a única coisa que o fazia atravessar a noite.
Qhuinn dispunha desse último aos montes.
Ele era um extraordinário e temível protetor, e era exatamente disso que uma fêmea precisava quando estava grávida, amamentando ou cuidando de um bebê.
Isso e sua gentileza inata o tornavam nobre a seu ver.
A cor dos seus olhos não importava.
Quase oitenta quilômetros ao sul de onde Havers molhava as calças de tanto medo em sua clínica, Assail estava atrás do volante de seu Range Rover, balançando a cabeça em descrença.
As coisas ficavam cada vez mais interessantes com aquela mulher.
Graças ao GPS, ele rastreara o Audi de longe quando ela decidira sair de seu bairro e tomar a Northway. A cada saída de subúrbio, ele esperava que ela a tomasse, mas enquanto eles deixavam Caldwell para trás para comer poeira, ele começou a pensar que talvez ela estivesse seguindo para Manhattan.
Nada disso.
West Point, o lar da venerável escola militar humana, ficava aproximadamente na metade do caminho entre a cidade de Nova York e Caldwell, e quando ela saiu da autoestrada àquela altura, ele ficou aliviado. Muitas coisas aconteciam lá naquela terra em que o código postal começava com 100, e ele não queria se distanciar muito de sua base por dois motivos: um, ainda não tivera notícias dos gêmeos quanto à aparição daqueles intermediários fuleiros, e, dois, a aurora surgiria em algum momento, e ele não apreciava a ideia de abandonar seu muito modificado e reforçado Range Rover no acostamento de uma estrada caso precisasse se desmaterializar de volta para a sua segurança.
Uma vez fora da estrada, a mulher prosseguiu a exatos setenta quilômetros por hora pela seleção de postos de combustível, hotéis turísticos e lanchonetes da cidade. Em seguida, do outro lado dessa coleção de lugares baratos, as coisas começaram a ficar mais caras. Casas grandes, do tipo que ficavam bem ao fundo de gramados que se pareciam com carpetes, começaram a aparecer, com seus muros de pedra baixos placidamente se aglomerando próximos à estradinha. Ela passou por todas essas propriedades, porém, para acabar parando no estacionamento de um parque que dava para a margem de um rio.
Assim que ela saiu do carro, ele passou por ela, virando a cabeça para trás para medi-la.
Uma centena de metros mais adiante, fora do campo de visão dela, Assail parou o carro no acostamento da estradinha, saindo para o vento enregelante, abotoando o casaco até o alto. Os sapatos não eram os ideais para caminhar sobre a neve, mas ele não se importou. Seus pés suportariam o frio e a umidade, e ele tinha outra dúzia de pares à sua espera no armário de sua casa.
Como o carro dela, e não o corpo, estava com o aparelho de rastreamento, ele manteve o olhar fixo nela. Como esperado, ela vestiu os esquis de cross-country e, depois, com uma máscara branca de esqui sobre a cabeça e roupa de camuflagem clara a lhe cobrir o corpo, ela praticamente desapareceu em meio ao cenário de inverno.
E ele a acompanhou.
Aparecendo a cada dez ou quinze metros, ele encontrou pinheiros para se esconder conforme ela avançava na direção de mansões, os esquis devorando o chão coberto de neve.
Ele concluiu, enquanto mantinha o compasso, antecipando a direção que ela tomaria e, em boa parte adivinhando, que ela iria para uma daquelas mansões.
Toda vez que ela passava por ele sem saber que ele estava em meio às árvores, seu corpo queria saltar. Para derrubá-la. Para mordê-la.
Por algum motivo, aquela humana o deixava faminto.
E brincar de gato e rato era algo muito erótico, especialmente se só o gato soubesse que o jogo estava valendo.
A propriedade na qual ela acabou se infiltrando ficava a quase dois quilômetros dali, mas, apesar da distância, o ritmo puxado daquelas pernas não diminuiu em nada. Ela entrou pelo lado direito do gramado da frente, aproximando-se de um muro de sempre-vivas, depois retomando seu curso.
Aquilo não fazia sentido. Se ela fosse descoberta, estava muito longe do carro. Por certo uma abordagem mais próxima teria feito mais sentido? Afinal, de qualquer modo, agora ela estava exposta, sem árvores para lhe servir de cobertura, nenhuma possível defesa contra uma acusação de invasão de propriedade se a vissem.
A menos que ela conhecesse o dono. E, nesse caso, por que se esconder e aparecer sorrateira no meio da noite?
O jardim de uns 30 mil metros quadrados gradualmente se elevava em direção a uma casa de pedras de uns 180 metros quadrados, com esculturas modernistas paradas como sentinelas brilhantes e cegas ante aquela aproximação, o gramado continuando pelo fundo. O tempo inteiro ela se ateve àquele muro e, observando-a a uns vinte metros de distância, ele se viu impressionado por ela. Contra a neve, ela se movia como uma brisa o faria, invisível e rápida, a sombra lançada contra o muro de pedras de tal modo que ela parecia desaparecer...
Ahhhh...
Ela escolhera aquela rota exatamente por isso, não?
Sim, de fato, o ângulo do luar lançava a sombra dela exatamente sobre as pedras, criando uma camuflagem ainda mais eficiente.
E aquela sensação estranha se intensificou nele.
Esperta.
Assail avançou, encontrando um esconderijo entre a vegetação na lateral da casa. De perto, notou que a mansão não era nova, embora também não fosse antiga – mesmo porque, no Novo Mundo, era raro se deparar com algo construído antes do século XVIII. Muitas janelas chumbadas. E varandas. E terraços.
Conclusão? Fortuna e distinção.
Sem dúvida, muito bem protegidas por inúmeros alarmes.
Parecia muito improvável que ela só fosse espiar a propriedade como fizera na dele. Para começar, havia uma extensão arborizada do lado oposto daquele muro de pedras que ela atravessara. Ela poderia ter estacionado os esquis, subido aquela moita de uns quatro a seis metros, e obtido uma vista privilegiada da casa. O que mais? Nesse caso, ela não precisaria de nada do que estava na mochila que lhe pesava nas costas.
A coisa parecia grande o bastante para transportar um corpo, e estava cheia.
Como se tivessem combinado, ela parou, pegou os binóculos e inspecionou a propriedade, ficando absolutamente imóvel com somente a cabeça a se mexer. E depois atravessou o gramado, movendo-se ainda mais rapidamente do que antes, a ponto de estar literalmente correndo em direção à casa.
Na direção dele.
De fato, ela seguia diretamente para Assail, para aquela junção entre arbustos que marcava a frente da mansão, para a sebe alta que corria ao redor do jardim dos fundos.
Obviamente, ela conhecia a propriedade.
Obviamente, ele escolhera o lugar perfeito.
Ante a aproximação dela, ele recuou apenas um pouco... porque não teria se importado em ser flagrado espiando.
A mulher esquiou mais uns dois metros além de onde ele se encontrava, aproximando-se tanto que ele conseguiu captar o cheiro dela não só em seu nariz, mas também no fundo da garganta.
Ele teve que se refrear para não ronronar.
Depois do esforço em atravessar aquela faixa de gramado com tanta rapidez, ela estava arfando, mas seu sistema cardiovascular se recuperou rápido – um sinal de sua boa saúde e vigor. E a velocidade com a qual ela agora se movia foi igualmente erótica. Tirando os esquis. Tirando a mochila. Abrindo a mochila. Extraindo...
Ele deduziu que ela subiria no telhado, enquanto ela montava o que parecia ser um lança-arpão. Ela mirou a coisa para cima, apertou o gatilho para atirar um gancho. Um instante depois houve o som de um metal se agarrando no alto.
Quando olhou para cima, ele percebeu que ela escolhera uma das poucas extensões de pedra sem janelas... e protegida pela sebe enorme na qual ele mesmo se escondia.
Ela ia entrar.
Àquela altura, Assail franziu o cenho... e desapareceu de onde a observava.
Reaparecendo nos fundos da casa no andar de baixo, ele espiou por várias janelas, apoiando as laterais das mãos no vidro ao se inclinar. O interior estava basicamente escuro, mas não completamente: aqui e acolá havia abajures acesos, as lâmpadas emitindo uma luz alaranjada sobre a mobília que era uma combinação de objetos antigos e arte moderna. Luxuoso que só: em seu sono pacífico, o lugar se parecia com um museu, ou algo que se fotografaria para uma revista, tudo muito bem organizado com uma precisão que haveria de se perguntar se réguas tinham sido utilizadas para dispor a mobília e os objetos de arte.
Nenhuma bagunça em lugar algum, nenhum jornal largado sem querer, nada de cartas, contas, recibos. Nenhum casaco sobre o espaldar de uma cadeira ou um par de sapatos abandonados ao lado do sofá.
Cada um dos cinzeiros imaculadamente limpos.
Somente uma pessoa lhe veio à mente.
– Benloise – sussurrou para si mesmo.
CAPÍTULO 36
Baseando-se nas vibrações regulares que vinham de seu bolso, Xcor sabia que a sua presença estava sendo desejada pelos seus lutadores.
Ele não atendeu.
Parado do lado de fora do prédio para o qual a sua Escolhida fora conduzida, ele não tinha forças nem para sair mesmo quando o fluxo de outros de sua espécie surgia em carros ou materializando-se diante do portal pelo qual ela fora levada. De fato, como tantos entraram e saíram, não havia dúvidas de que aquela era uma clínica médica.
Pelo menos ninguém parecia notá-lo, estando preocupados demais com o que os afligia, apesar do fato de ele estar parado no meio do caminho.
Ah, deuses, só o pensamento do que trouxera a sua Escolhida ali o nauseava ao ponto de ele ter de pigarrear e...
Inspirar o ar frio para dentro dos seus pulmões ajudou a conter a ânsia de vômito.
Quando o cio dela acontecera? Devia ter sido muito recentemente. Da última vez em que a vira...
Quem seria o pai?, perguntou-se pela centésima vez. Quem tomara o que era seu...
– Não seu – ele disse para si mesmo. – Não seu.
Só que era a sua mente dizendo isso e não os seus instintos. Em seu cerne, na parte mais máscula da sua essência, ela era a sua fêmea.
E, ironicamente, era isso o que o impedia de atacar a clínica – com todos os seus soldados, se necessário. Se ela estava recebendo cuidados, a última coisa que ele queria era interromper o processo.
Enquanto o tempo passava e a ausência de informações o torturava até a insanidade, ele percebeu que desconhecera a existência daquele lugar. Se ela fosse dele? Ele não teria sabido onde levá-la para obter ajuda, certamente teria mandado Throe encontrar algum lugar, de algum modo, para garantir os cuidados dela, mas e no caso de uma emergência? Uma hora ou duas procurando um curandeiro poderia significar a diferença entre a vida e a morte.
A Irmandade, por sua vez, soube exatamente onde levá-la. E quando ela recebesse alta daquele lugar, sem dúvida, eles a levariam de volta a um lugar aquecido, seguro, onde teria alimento abundante e uma cama macia, e a força valente de pelo menos seis guerreiros para protegê-la enquanto dormisse.
Irônico como ele se sentia à vontade com isso. Mas, pensando bem, a Sociedade Redutora era um adversário muito sério; e digam o que quiserem a respeito da Irmandade, eles provaram durante toda a eternidade serem defensores capazes.
Abruptamente, seus pensamentos se voltaram para o armazém em que ele e seus soldados vinham ficando. Aquele ambiente úmido, frio, hostil era, na verdade, apenas um degrau acima dos outros lugares em que levantaram acampamento. Se ela estivesse com ele, como a manteria? Nenhum macho jamais poderia vê-la em sua presença, especialmente se ela tivesse de trocar de roupa ou se banhar...
Um rugido se infiltrou em sua garganta.
Não. Nenhum macho colocaria os olhos na pele dela ou ele o esfolaria vivo...
Ah, Deus, ela se vinculara a outro. Abrira-se e aceitara outro macho dentro de suas carnes sagradas.
Xcor abaixou o rosto entre as mãos, a dor em seu peito fazendo-o cambalear em suas botas de combate.
Deve ter sido o Primale. Sim, claro, ela se deitara com Phury, filho de Ahgony. Era esse o único modo com que as Escolhidas se procriavam, se a sua memória e os boatos estivessem certos.
Instantaneamente, sua mente ficou enevoada com a imagem do rosto perfeito e da silhueta delgada. Pensar que outro a desnudara e cobrira-lhe o corpo com o dele...
Pare, ele se ordenou. Pare com isso.
Arrastando sua mente para longe dessa loucura, ele se desafiou a definir qualquer tipo de hospedagem que poderia propiciar a ela. Em qualquer circunstância.
O único pensamento que lhe ocorreu foi voltar e matar aquela fêmea de quem seus soldados se alimentaram. Aquele chalé parecera bem tranquilo e adorável...
Mas para onde iria sua Escolhida durante o dia?
E, além disso, ele jamais a envergonharia permitindo que ela sequer andasse sobre o tapete onde todo aquele sexo acontecera.
– Com licença.
Xcor buscou a pistola dentro da jaqueta ao dar meia-volta. Só que não havia necessidade de usar força bruta – era apenas uma fêmea pequena com seu filho. Ao que tudo levava a crer, eles tinham saído de um utilitário estacionado a poucos metros dele.
Enquanto a criança se escondia atrás da mãe, os olhos da fêmea se arregalaram de medo.
Mas, pensando bem, quando se tropeça num monstro, sua presença dificilmente é recebida com alegria.
Xcor se curvou profundamente, em grande parte porque a visão do seu rosto por certo não estava melhorando a situação.
– Sim, como não...
Dito isso, ele recuou e virou, voltando ao posto originalmente ocupado. Na verdade, não percebera o quanto tinha se exposto.
E ele não queria brigar. Não com a Irmandade. Não com a sua Escolhida daquele modo. Não... ali.
Fechando os olhos, desejou poder voltar para aquela noite quando Zypher o levara para a campina e Throe, com o subterfúgio de ajudá-lo, o condenara àquele tipo de morte em vida.
Um macho vinculado que não podia estar com sua fêmea?
Morto apesar de viver...
Sem aviso, o portal foi puxado para trás e sua Escolhida surgiu. Instantaneamente, os instintos de Xcor gritaram para que ele agisse, apesar de todos os motivos para deixá-la em paz.
Leve-a! Agora!
Mas ele não o fez: as expressões sérias daqueles que a protegiam com tamanho cuidado o imobilizaram: notícias ruins foram dadas durante a estada deles ali.
Como antes, só faltaram carregá-la até o veículo.
E o cheiro do sangue dela ainda pairava no ar.
Sua Escolhida foi acomodada no banco traseiro do sedã, com a fêmea ao lado dela. Depois, Phury, filho de Ahgony, e o guerreiro de olhos descombinados entraram na frente. O veículo foi virado bem lentamente, como que por preocupação com a carga preciosa no compartimento traseiro.
Xcor os seguiu, materializando-se de tempos em tempos acompanhando a velocidade crescente na estrada rural ao fim da rua, e depois na autoestrada. Quando o carro chegou à ponte, ele mais uma vez o viu do mais alto esteio e depois que sua fêmea passou debaixo dele, ele saltou de telhado em telhado enquanto o sedã dava a volta no centro da cidade.
Ele rastreou o carro seguindo ao norte até sair da autoestrada e entrar numa região rural.
Continuou com ela o tempo inteiro.
E foi assim que ele descobriu a localização da Irmandade.
CONTINUA
CAPÍTULO 27
Assomando-se acima de Qhuinn, Blay estava anormalmente ciente de tudo ao seu redor: a sensação da mão de Qhuinn atrás da sua perna, o modo como a bainha do roupão resvalava sua canela, o cheiro do sexo permeando o ar.
De tantos modos, ele quisera aquilo a vida inteira. Ou pelo menos, desde que sobrevivera à transição e teve algum tipo de impulso sexual. Aquele momento era o ápice de sonhos incontáveis e de inúmeras fantasias, seu desejo secreto sendo manifestado.
E era sincero: os olhos descombinados de Qhuinn não tinham sombras, nem dúvidas. O macho não só dizia a mais absoluta verdade que lhe passava pelo coração, mas estava em paz por se expor com tanta vulnerabilidade.
Blay cerrou as pálpebras brevemente. Aquela submissão era o oposto de tudo o que definia Qhuinn como macho. Ele nunca se entregava; não os seus princípios, não as suas armas, nunca, jamais a si mesmo. Pensando bem, a reviravolta fazia algum sentido. O enfrentamento da morte tendia a ser seguido por revelações...
A questão era que ele tinha a sensação de que aquilo não duraria. Aquela “visão desobstruída” sem dúvida estava ligada à viagem de avião, mas tal qual uma vítima de ataque cardíaco voltando à antiga dieta deplorável pouco depois, a “revelação” provavelmente não teria vida longa. Sim, Qhuinn estava sendo sincero quanto ao que dizia naquele momento inebriante, não havia dúvida alguma quanto a isso. No entanto, era difícil acreditar que aquilo seria permanente.
Qhuinn era o que era. E muito em breve, depois que o choque fosse absorvido – talvez ao cair da noite, quem sabe na semana seguinte, ou dali a um mês – ele voltaria ao seu modo de ser fechado, distante, à parte.
Decisão tomada, Blay voltou a abrir os olhos e se inclinou. Quando os rostos se aproximaram, os lábios de Qhuinn se partiram, o inferior, carnudo, pulsava como se ele já tentasse saborear o que desejava... e se deleitava.
Merda. O lutador era tão magnífico, o peito nu poderoso reluzindo na luz do abajur, a pele transportando uma camada de excitação, os mamilos perfurados se elevando e descendo conforme a pulsação desenfreada do sangue aquecido.
Blay percorreu a mão pelos músculos do braço que os ligava, desde a espessura grossa do ombro até a protuberância do bíceps e a curva entalhada do tríceps.
Retirou a palma de sua coxa.
E se afastou.
Qhuinn empalideceu a ponto de ficar acinzentado.
No silêncio, Blay nada disse. Não conseguiria. Sua voz havia desaparecido.
Em pernas cambaleantes, ele se distanciou, a mão envolvendo a maçaneta até conseguir coordenação suficiente para abrir a saída. Saindo, ele não saberia dizer se bateu a porta ou se a fechou silenciosamente.
Não foi muito longe. Pouco mais de um metro além do quarto, ele desabou ao encontro da parede lisa e fria do corredor.
Ofegando. Estava ofegando.
E todo aquele esforço de nada adiantaria. A sufocação no peito só piorava e, subitamente, sua visão foi substituída por quadrados em preto e branco de um tabuleiro de xadrez.
Deduzindo que estava prestes a desmaiar, agachou-se e colocou a cabeça entre os joelhos. Nos recessos da mente, rezou para que o corredor continuasse vazio. Aquele não era o tipo de coisa que gostaria de explicar para ninguém: estava do lado de fora do quarto de Qhuinn, obviamente excitado, o corpo tremendo como se um terremoto particular estivesse acontecendo...
– Jesus Cristo...
Quase morri hoje... e isso endireita as pessoas. Lá em cima naquele avião, olhando para a noite escura, não achei que fosse conseguir. Tudo ficou claro para mim.
– Não – Blay disse em voz alta. – Não...
Apoiando a cabeça nas mãos, tentou respirar calmamente, pensar racionalmente, agir sensatamente. Não poderia se dar ao luxo de se afundar ainda mais naquilo...
Aqueles olhos quentes, brilhantes, descombinados eram o que o atraiam.
– Não – sibilou.
Enquanto a voz ressoava em seu crânio, ele resolveu se dar ouvidos. Chega. Aquilo não poderia ir adiante.
Há tempos perdera o coração para aquele macho.
Não havia motivos para perder a alma também.
Uma hora mais tarde, talvez duas, ou seis, Qhuinn estava deitado nu entre os lençóis frios, fitando o escuro do teto que não conseguia enxergar.
Aquela era a dor horrível que Blay sentira? Como na vez em que fora procurá-lo no porão da casa dos pais dele e disse estar preparado para partir de Caldwell, deixando bem claro que não haveria mais nenhum laço entre eles? Ou talvez na vez em que se beijaram na clínica e Qhuinn se recusara a ir em frente? Ou naquela derradeira colisão quando eles quase ficaram juntos, pouco antes do primeiro encontro de Blay com Saxton?
Um maldito vazio enorme.
Como aquele quarto, na verdade: sem iluminação e essencialmente vazio, apenas quatro paredes e um teto. Ou um saco de pele e um esqueleto, como era o caso.
Levantando a mão, colocou-a sobre o coração, só para se certificar de que ainda tinha um.
Caramba, o destino tinha um jeito de lhe ensinar as coisas que você precisava saber, mesmo se você não estivesse ciente de que a lição era necessária até ela ser apresentada: ele desperdiçara tempo demais envolvido consigo mesmo e o seu defeito, e seu fracasso perante a família e a sociedade. Um emaranhado confuso em que se metera por tempo demais e Blay, porque se importara, fora sugado naquele turbilhão.
Mas quando foi que apoiara o amigo? O que de fato fizera pelo cara?
Blay estivera certo ao sair daquele quarto. Um pouco tarde demais, não era o ditado? E não que Qhuinn estivesse oferecendo algum tipo de prêmio. Debaixo da superfície, ele não estava muito mais estável, na verdade. Não estava mais em paz.
Não, ele merecia aquilo...
Uma centelha de luz amarelo-esverdeada fatiou o seu campo negro de visão, como se a escuridão fosse um tecido e o facho de luz uma faca.
Uma figura entrou sorrateira no seu quarto, silenciosamente, e fechou a porta.
Pelo cheiro, ele soube quem era.
O coração de Qhuinn começou a bater forte quando ele se endireitou nos travesseiros.
– Blay...?
Houve um ruído sutil, o roupão escorregando pelos ombros do macho alto. Em seguida, momentos depois, o colchão foi pressionado quando um peso grande, vital, subiu nele.
Qhuinn esticou a mão no escuro com acuidade certeira, as mãos encontrando as laterais do pescoço de Blay com tanta precisão como se tivessem sido direcionadas pela visão.
Nenhuma conversa. Ele temia que as palavras lhe roubassem aquele milagre.
Elevando a boca, puxou a de Blay para a sua, e quando aqueles lábios de veludo estavam perto de seu campo de atuação, ele os beijou com um desespero que foi retribuído. De uma vez só, todo o passado reprimido foi libertado com fúria e ele sentiu o gosto de sangue, sem saber quais foram as presas que rasgaram o outro.
E quem se importava?
Com um puxão forte, deitou Blay e depois rolou por cima do macho, afastando-lhe as coxas e pressionando-se até que o membro rijo se deparasse com...
Os dois gemeram.
Tonto por causa de tanta pele nua, Qhuinn começou a bombear os quadris para frente e para trás, a fricção dos sexos e a pele quente aumentando o calor úmido em suas bocas. Frenesi, em toda parte, rápido, depressa, rápido... Puta merda, havia desejo demais para entender onde suas mãos estavam, ou no que ele se esfregava ou... Porra, havia pele demais para tocar, cabelos para puxar, tanta coisa, demais...
Qhuinn gozou, as bolas endurecendo, a ereção jorrando entre eles, espalhando-se por todos os lados.
E isso não o desacelerou em nada.
Com um puxão, afastou-se da boca que poderia passar uma centena de anos beijando, lançou-se sobre o peito de Blay. Os músculos com que se deparava não se comparavam com os dos humanos com quem transara: aquilo era um vampiro, um lutador, um soldado treinado arduamente que exercitava o corpo para atingir uma condição não só útil, mas essencialmente letal. Caramba se aquilo não era ex-citante... mas, acima de tudo, aquele era Blay; finalmente, depois de todos aqueles anos...
Blay.
Qhuinn resvalou as presas por um abdômen que era sólido como uma rocha, e o seu cheiro na pele de Blay era uma marcação que sabia que fizera de propósito.
Aquele tempero forte também iria para outros lugares.
Gemeu quando as mãos encontraram o pênis de Blay e, enquanto circundava a coluna rija, o cara se arqueou profundamente, uma imprecação atravessando o quarto, de modo bem semelhante ao que a luz fizera pouco antes.
Qhuinn lambeu os lábios, elevou o sexo de Blay e permitiu que o pênis grosso e ousado partisse sua boca. Sugando, tomou-o até a base, abrindo a garganta, engolindo tudo. Em resposta, os quadris de Blay se elevaram, e mãos brutas cravaram em seus cabelos, forçando a cabeça ainda mais para baixo até que ele não conseguisse mais levar ar aos pulmões. Mas quem é que precisava de oxigênio?
Afundando as mãos nas nádegas de Blay, inclinou aquela pélvis e subiu e desceu, o pescoço se esticando com o ritmo punitivo, os ombros flexionando e relaxando enquanto ele executava exatamente aquilo que oferecera a Blay antes de ele ir embora.
Ele não pretendia fazer apenas aquilo, porém.
Não.
Era apenas o começo.
CAPÍTULO 28
Quando Blay caiu contra os travesseiros de Qhuinn, quase partiu a coluna. Tudo estava fora de controle, mas ele não teria desacelerado em nada as coisas: os quadris subiam e desciam, o pau empurrava e era chupado pela boca de Qhuinn...
Graças a Deus as luzes estavam apagadas.
Só as sensações já eram demais. Com um auxílio visual? Ele não conseguiria...
O orgasmo disparou como um foguete, a respiração ficou suspensa, o corpo enrijeceu todo, o sexo gozando ao máximo. Ao chegar ao clímax em grandes espasmos, ele foi ordenhado por aquela boca... e, caramba, a sucção incitou o alívio a continuar, com grandes ondas de prazer pulsante varrendo-o do cérebro até as bolas, seu corpo atingindo um plano de existência completamente diferente...
Sem aviso, ele foi virado por uma mão brusca, o corpo manejado como se não pesasse absolutamente nada. Em seguida, um braço passou por baixo de sua pélvis e o colocou de joelhos. Houve uma breve calmaria na qual tudo o que ele ouviu foi a respiração pesada atrás dele, o arquejo aumentando cada vez mais, mais fundo...
Ouviu o orgasmo de Qhuinn e entendeu exatamente o motivo.
Mesmo seu corpo inteiro estando fraco de antecipação, ele sabia que tinha de se preparar quando uma mão pesada aterrissou em seu ombro e...
A penetração foi como um ferro de marcar, quente e brutal, atingindo direto o seu cerne. E ele praguejou numa exalação explosiva. Não porque doesse, ainda que do melhor modo possível. Nem mesmo porque aquilo era algo que ele tanto desejara, se bem que isso fosse verdade.
Não. Era porque ele teve a estranha sensação de estar sendo marcado e, por algum motivo, isso fez com que...
Um sibilo atingiu-o no ouvido, e depois um par de presas cravou-se em seu ombro, a pegada de Qhuinn mudando na altura dos quadris, o torso enroscado em tantos lugares. E, então, quando a penetração inexorável começou, os molares de Blay se cerraram, os braços tiveram que suportar o peso dos dois, as pernas e o torso se esforçaram debaixo do ataque.
Ele teve a sensação de que a cabeceira da cama batia contra a parede e por um centésimo de segundo, lembrou-se do candelabro na biblioteca oscilando enquanto Layla fora sujeitada àquilo.
Blay amaldiçoou a imagem. Não se permitiria ir lá; não poderia. Deus bem sabia que haveria muito tempo para refletir sobre tudo aquilo mais tarde.
Naquele instante? Aquilo era bom demais para ser desperdiçado...
Enquanto o açoite continuava, suas palmas escorregaram nos lençóis de algodão fino, e ele teve que reposicioná-las, afundando-as no colchão macio para tentar sustentar sua posição. Deus, os sons que Qhuinn fazia, os rosnados que reverberavam entre as presas enterradas em seu ombro, as estocadas... ah, sim, isso era a cabeceira. Definitivamente.
Com a pressão se avolumando em suas bolas, ele se sentiu tentado a se espalmar, mas não havia como. Ele precisava das duas mãos naquele trabalho...
Como se Qhuinn lesse sua mente, o macho passou o braço ao seu redor e o agarrou.
Não era necessário masturbá-lo. Blay gozou tão violentamente que sua mente ficou difusa e, naquele exato instante, Qhuinn começou a ter um orgasmo também, os quadris movendo-se para dentro, parando um segundo antes de recuarem só para afundarem ainda mais antes da explosão. E, ah, porra, a combinação dos dois fazendo suas coisas era tão erótica que só fez com que tudo recomeçasse mais uma vez: não houve intervalo para se recuperarem, absolutamente nenhuma pausa. Qhuinn apenas retomou as investidas como se seu alívio o tivesse fortalecido.
Enquanto o sexo se estendia, e apesar de toda a força que Blay tinha em seus membros superiores, ele acabou caindo da cama, uma mão travando na lateral da mesinha de cabeceira só para que ele não batesse na parede...
Crash!
– Merda – disse ele rouco. – O abajur...
Ao que tudo levava a crer, Qhuinn não estava interessado em decoração. O macho simplesmente puxou a cabeça de Blay e começou a beijá-lo, a língua com piercing penetrando sua boca, lambendo e sugando... como se não conseguisse se fartar.
Tontura. Ele ficou absolutamente tonto com tudo aquilo. Em cada fantasia que teve, ele sempre visualizou Qhuinn como um amante impetuoso, mas aquilo... aquilo estava num outro nível.
Por isso, foi ao longe que ele se ouviu dizer numa voz gutural:
– Morda... de novo.
Um grunhido imenso vindo de cima perpassou seu ouvido, e depois outro sibilo atravessou a escuridão quando Qhuinn mudou as posições, seu peso massivo girando para que as presas pudessem afundar na lateral do pescoço.
Blay praguejou e empurrou para longe o que quer que tivesse restado sobre a mesinha de cabeceira, o peito tomando o lugar dos objetos, a pele suada chiando no verniz enquanto ele jazia meio de lado. Esticando a mão, ele se apoiou na tábua do piso e empurrou para cima, mantendo os dois estáveis enquanto Qhuinn se alimentava e o penetrava tão magnificamente bem...
Vezes demais para contar, até os travesseiros estarem no chão, os lençóis rasgados, outro abajur destruído... e não estava muita certo, mas ele achava que tinha derrubado um quadro da parede.
Quando a imobilidade por fim substituiu todo aquele esforço, Blay respirou fundo e se sentiu como se estivesse submerso.
O mesmo se passava com Qhuinn.
O aumento da trajetória úmida no pescoço de Blay sugeria que as coisas ficaram tão descontroladas que não houve o fechamento da veia que fora sugada. E quem se importava? Ele não, nem conseguia pensar, e não se preocuparia. As sensações pós-coito de flutuação e êxtase eram gloriosas demais para serem estragadas, o corpo estava ao mesmo tempo hipersensível e entorpecido, quente e brando, dolorido e saciado.
Caramba, os lençóis teriam de ser lavados. E Fritz indubitavelmente teria de encontrar uma supercola para aqueles abajures.
Onde exatamente ele estava?
Esticando a mão, tateou e descobriu o tapete e a saia da cama... além de uma manta. Ah, bom, estava quase caindo pela ponta da cama. O que explicava a tontura que sentia.
Quando Qhuinn, por fim, soltou-se dele, Blay quis acompanhá-lo, mas seu corpo estava muito mais interessado em ser um objeto inanimado. Ou um rolo de tecido ou, quem sabe...
Mãos gentis o suspenderam e, com cuidado e devagar, rolaram-no de costas. Houve mais um pouco de movimentação e depois ele se sentiu reposicionado contra os travesseiros que retornaram ao seu devido lugar. Enfim, uma manta leve foi ajustada na metade do seu corpo, como se Qhuinn soubesse que ele estava muito quente para ser coberto demais e, ainda assim, começava a sentir um friozinho enquanto o suor que o cobria começava a secar.
Seu cabelo foi empurrado para longe da testa e, em seguida, sua cabeça foi ajeitada para o lado. Lábios de seda beijaram a coluna de seu pescoço e, depois, lambidas longas e langorosas selaram a mordida que ele pedira e recebera.
Quando tudo terminou, deixou que sua cabeça fosse ajeitada para o lado de Qhuinn. Ainda que estivesse absolutamente escuro, ele sabia exatamente como o rosto que o fitava estava: ruborizado nas maçãs do rosto, as pálpebras semicerradas, os lábios vermelhos...
O beijo pressionado em sua boca foi reverente, o contato não mais pesado do que o ar quente e estático do quarto. Era o beijo perfeito de um amante, o tipo de coisa que ele desejava mais do que o sexo ardente que partilharam...
O pânico golpeou o centro do seu peito e ressoou para fora num piscar de olhos.
As mãos agiram por vontade própria, empurrando Qhuinn.
– Não me toque. Nunca mais me toque assim.
Deu um salto da cama e só Deus sabia em que parte do quarto ele aterrissou. Hesitante, tateou pelo aposento, mas acabou se orientando pela luz que passava por baixo da porta.
Apanhando o roupão no chão, não olhou para trás ao sair.
Não suportaria encarar o resultado daquilo tudo em nenhum tipo de luz.
Isso só tornaria tudo aquilo muito real.
Em algum momento, Qhuinn teve que fazer com que as luzes se acendessem. Não suportava mais a escuridão.
Quando a iluminação inundou o lugar, ele piscou e teve que amparar os olhos com a mão. Depois de recalibrar as retinas, olhou ao redor.
Caos. Total e absoluto.
Então tudo aquilo acontecera mesmo, hein. E quanta ironia que o interior da sua cabeça fizesse com que aquela bagunça parecesse uma ordem militar em comparação.
Nunca mais me toque assim.
Ah, inferno, pensou ele ao esfregar o rosto. Não poderia culpar o cara.
Primeiro, demonstrara a mesma finesse de uma escavadeira. Bola de demolição. Tanque de guerra. O problema era que tudo aquilo fora intenso demais para demonstrar qualquer traço de paciência: o instinto, tão puro e tão inflamável quanto combustível, o acendera; a sessão fora um caso de deixar as coisas rolarem.
Oh, Deus, marcara o cara.
Caralho. E não exatamente no bom sentido, considerando que Blay estava apaixonado e envolvido num relacionamento... e voltando para a cama do amante.
Mas, pensando bem, quando um macho está com quem ele quer, especialmente se é a primeira vez, era isso mesmo o que acontecia. As coisas saíam do controle...
Nem era preciso dizer que aquele fora o melhor sexo de sua vida, a primeira vez de perfeito encaixe depois de uma longa história de “nem de longe”. A questão foi que, no fim, ele quis que Blay soubesse disso, tentou encontrar as palavras e se apoiou no toque para pavimentar o caminho da confissão.
Contudo, ficou evidente que o macho não queria ter essa proximidade.
O que provocou um segundo, e mais profundo, arrependimento.
Sexo por desforra não se tratava de atração, mas sim de utilidade. E Blay o usara, do modo como ele pedira para ser usado.
Aquela sensação de vazio voltou multiplicada por dez. Por cem.
Sem conseguir suportar a emoção, pôs-se de pé, e teve que praguejar: a rigidez notável na lombar tinha tudo a ver com o acidente de avião e mais ainda com a pneumática que realizara na última hora... ou mais...
Merda.
Indo para o banheiro, deixou as luzes apagadas, mas havia iluminação suficiente vinda do quarto para ele conseguir entrar no chuveiro. Dessa vez, esperou a água esquentar; seu corpo não suportaria mais um choque.
Era tão patético; a última coisa que desejava era lavar o cheiro de Blay de sua pele, mas estava enlouquecendo com ele. Deus, devia ser assim que todos os hellrens se sentiam quando ficavam possessivos: metade do seu juízo dizia que ele devia descer o corredor, invadir o quarto de Blay e expulsar Saxton. A bem da verdade, teria adorado que o primo tivesse testemunhado, só para o cara saber que...
Para interromper aquele nada saudável curso de pensamentos, entrou no box envidraçado e pegou o sabonete.
Blay estava envolvido, tentou se lembrar disso, mais uma vez.
O sexo que partilharam não se referia à conexão emocional.
Portanto, ele estava, nesse momento de vazio, sendo passado para trás pela sua própria história.
Aquele parecia ser mais um caso em que o destino lhe dava aquilo que ele merecia.
Enquanto se lavava, o sabonete não era nada macio se comparado com a pele de Blay, nem cheirava um quarto do perfume do cara. A água não era tão quente quanto o sangue do lutador e o xampu, nada tranquilizador. Nada se equiparava.
Nem jamais conseguiria.
Enquanto Qhuinn virava o rosto para o jato e abria a boca, descobriu-se rezando para que Saxton pulasse a cerca mais uma vez, mesmo isso sendo uma coisa deplorável de se desejar.
O problema era que ele tinha a terrível sensação de que outro caso de infidelidade seria a única maneira de Blay voltar para ele.
Fechando os olhos, voltou para aquele momento em que beijou Blay no fim... em que o beijou de verdade, quando as bocas se encontraram gentilmente na calmaria após a tempestade. Enquanto sua mente reescrevia o roteiro, ele não era empurrado para o outro lado dos limites que ele mesmo criara. Não, em sua imaginação, as coisas terminavam como teriam de terminar, com ele afagando o rosto de Blay e fazendo as luzes se acenderem para que pudessem se olhar.
Em sua fantasia, ele beijaria seu amigo uma vez mais, se afastaria e...
– Eu te amo – disse ele para o jato de água. – Eu... te amo.
Ao fechar os olhos novamente ante a dor, ficou difícil saber quanto daquilo que descia pelo seu rosto era água e quanto era outra coisa.
CAPÍTULO 29
No dia seguinte, bem no fim da tarde, o visitante de Assail voltou.
Enquanto o sol se punha e os raios rosados de sol atravessavam a floresta, ele viu em seu monitor uma figura solitária em esquis de cross-country, os bastões equilibrados contra os quadris, binóculos cobrindo o rosto.
Nos quadris dela, o rosto dela, melhor dizendo.
A boa notícia era que suas câmeras de segurança não só tinham um zoom fantástico, como também seu foco e campo de visão eram facilmente manipulados por um joystick de computador.
Por isso ele restringiu ainda mais a imagem.
Quando a mulher abaixou os binóculos, ele mediu o comprimento de cada cílio ao redor dos olhos escuros e calculistas, e as marcas avermelhadas das maçãs do rosto de poros pequenos, e o ritmo uniforme da pulsação da artéria que percorria a mandíbula.
O aviso que ele dera a Benloise fora recebido. E, ainda assim, lá estava ela.
Era evidente que ela estava, de algum modo, ligada ao atacadista de drogas; e na noite anterior, pelo visto, ela ficara irritada com Benloise, visto o modo como marchara para fora da galeria como se alguém a tivesse insultado.
Todavia, Assail nunca a vira antes, o que era estranho. No último ano, aproximadamente, ele se familiarizara com todos os aspectos da operação de Benloise, desde o número incalculável de seguranças, até a equipe irrelevante da galeria, incluindo os importadores astutos e o irmão do homem, responsável pelas finanças.
Portanto, ele só podia deduzir que ela era uma empreiteira independente, contratada para um propósito específico.
Mas por que, então, ela ainda estava em sua propriedade?
Verificou os números digitais na parte inferior da tela. Quatro e meia. Costumeiramente, não seria uma hora com que se alegrar, pois ainda era cedo demais para sair. Mas o horário de verão acabara, e aquela invenção humana de manipular o sol na verdade trabalhava a seu favor por seis meses no ano.
Estaria um pouco quente lá fora, mas ele lidaria com isso.
Assail se vestiu rapidamente, colocando o terno Gucci com uma camisa de seda branca e pegando o sobretudo trespassado de pelo de camelo. O seu par de Smith & Wesson calibre .40 era o acessório perfeito, claro.
O metálico seria sempre o novo preto.
Pegando o iPhone, franziu ao tocar a tela. Uma chamada de Rehvenge, com uma mensagem.
Saindo do quarto, acessou a mensagem de voz do lídher do Conselho e ouviu-a enquanto descia as escadas.
A voz do macho ia direto ao ponto, e isso era algo a se respeitar:
– Assail, você sabe quem é. Estou convocando uma reunião do Conselho e quero não apenas um quorum, mas presença completa; o Rei estará presente, bem como a Irmandade. Como macho sobrevivente mais velho da sua linhagem, você está na lista do Conselho, mas registrado como inativo porque permaneceu no Antigo País. Agora que está de volta, está na hora de começar a participar desses encontros festivos. Ligue para mim para me informar a sua agenda, para que eu possa organizar local e data conveniente a todos.
Parando ante a porta de aço que bloqueava a escada inferior, colocou o telefone no bolso de dentro, destravou a porta e a abriu.
O primeiro andar estava escuro por conta das persianas especiais que bloqueavam toda a luz solar, e a sala de estar imensa mais se parecia com uma caverna no centro da terra do que com uma gaiola envidraçada às margens do rio.
Da direção da cozinha vinha o barulho de fritura e o cheiro de bacon.
Caminhando na direção oposta, entrou no falso escritório recoberto com painéis de nogueira que cedera ao uso dos primos e passou para o quarto especial de dois metros quadrados, cuja temperatura era mantida em precisos vinte graus Celsius e umidade a exatamente 69%, perfumado pelo tabaco de dúzias e dúzias de caixas de charutos. Depois de ponderar sobre a fileira exposta, apanhou três cubanos.
Afinal, os cubanos eram os melhores.
E ali estava mais uma coisa que Benloise lhe fornecia por um preço.
Trancando a sua preciosa coleção, voltou à sala de estar. Já não havia barulho de fritura, o bater sutil de talheres nos pratos o substituíra.
Ao entrar na cozinha, os dois primos estavam sentados em bancos ante a bancada de granito, o par comendo no mesmo ritmo preciso, como num rufar de tambores, despercebido por outros, mas que regulava seus movimentos.
Os dois levantaram as cabeças no mesmo ângulo para olhar para ele.
– Estou de saída. Sabem como me localizar – disse.
Ehric limpou a boca.
– Localizei três daqueles intermediários desaparecidos... voltaram à ação, estão prontos para se mexer. Vou fazer a entrega à meia-noite.
– Bom, muito bom – Assail verificou rapidamente as armas. – Tente descobrir onde estavam, sim?
– Como quiser.
Os dois abaixaram as cabeças ao mesmo tempo, voltando ao desjejum.
Nada de comida para ele. Do lado da cafeteira, ele pegou um frasco de cor de âmbar e desatarraxou a tampa, que tinha uma colherinha de prata grudada a ela, e o objeto emitiu um tinido enquanto ele o enchia com cocaína. Uma aspirada.
Bom dia!
Ele levou o resto consigo, colocando-o no mesmo bolso dos charutos. Já fazia um tempo desde que se alimentara e estava começando a sentir os efeitos, o corpo preguiçoso, a mente tendendo a um entorpecimento desconhecido.
O lado negativo do Novo Mundo? Era difícil encontrar fêmeas.
Felizmente, cocaína pura era um bom substituto, pelo menos por enquanto.
Ajustando um par de óculos de sol de lentes opacas, passou pelo vestíbulo e se preparou para sair pela porta dos fundos.
Afastando a porta...
Assail se retraiu e gemeu ante o ataque, seu peso oscilando em seus sapatos: apesar de 99% do seu corpo estar coberto por camadas múltiplas de roupa, e mesmo de óculos escuros, a luz efêmera do céu era o bastante para que ele vacilasse.
No entanto, não havia tempo para ceder à biologia.
Esforçando-se para se desmaterializar até a floresta atrás da casa, pôs-se a rastrear a mulher próximo à escuridão. Foi bem fácil localizá-la. Ela estava batendo em retirada, movendo-se rapidamente sobre aqueles esquis, abrindo caminho por entre os ramos espinhosos dos pinheiros e os carvalhos e bordos esqueléticos. Extrapolando a trajetória dela e aplicando a mesma lógica interna que ela demonstrara nas fitas de segurança da manhã anterior, ele logo se adiantou, antecipando bem onde ela estaria...
Ah, sim. O Audi preto da galeria. Estacionado ao lado da estrada limpa de neve a cerca de três quilômetros de sua propriedade.
Assail estava recostado contra a porta do motorista e bafejando um cubano quando ela saiu do limite das árvores.
Ela parou de pronto nos rastros duplos por ela criados, os bastões em ângulos abertos.
Ele lhe sorriu ao soprar uma nuvem de fumaça no crepúsculo.
– Belo entardecer para se exercitar. Apreciando a vista... Da minha casa?
A respiração dela estava acelerada devido ao esforço físico, mas não por algum medo que ele pudesse pressentir. Isso o excitava.
– Não sei do que está fal...
Ele interrompeu a mentira.
– Bem, o que posso lhe dizer é que, no momento, sou eu quem está apreciando a vista.
Enquanto seu olhar descia deliberadamente pelas pernas longas e atléticas nas calças justas de esqui, ela o encarou.
– Acho difícil que consiga ver qualquer coisa por trás dessas lentes.
– Meus olhos são muito sensíveis à luz.
Ela franziu o cenho e olhou ao redor.
– Quase não há mais nenhuma luz.
– Há o bastante para eu enxergá-la – ele deu nova baforada. – Gostaria de saber o que eu disse a Benloise ontem à noite?
– Quem?
Ela o aborreceu e ele afiou a voz:
– Um pequeno conselho. Não brinque comigo... isso fará com que morra mais rápido do que qualquer tipo de invasão de domicílio.
Um cálculo impassível fez com que ela estreitasse o olhar.
– Eu não sabia que invasão de propriedade dava pena de morte.
– Comigo, existe uma bela lista de coisas com repercussões letais.
Ele levantou o queixo.
– Ora, ora. Como você é perigoso.
Como se ele fosse um gatinho brincando com um novelo e sibilando.
Assail moveu-se com rapidez, ele bem sabia que os olhos dela seriam incapazes de acompanhá-lo. Num momento, estava a metros de distância; no instante seguinte, estava nas pontas dos seus esquis, prendendo-a no lugar.
A mulher gritou alarmada e tentou recuar, mas, claro, seus pés estavam presos. Para evitar que ela caísse, ele a apanhou pelo braço com a mão que não segurava o charuto.
Agora o sangue dela corria de medo e, quando ele inalou seu cheiro, excitou-se. Puxando-a para a frente, fitou-a, tracejando-lhe o rosto.
– Tome cuidado – disse ele numa voz mansa. – Eu me ofendo com rapidez e meu temperamento não é facilmente aplacado.
Embora ele conseguisse pensar pelo menos numa coisa que ela poderia lhe dar que o acalmaria.
Inclinando-se, ele inspirou profundamente. Deus, adorava o cheiro dela.
Mas aquela não era a hora de se distrair com esse tipo de coisa.
– Eu disse a Benloise que enviasse pessoas à minha casa por sua conta e risco... delas. Estou surpreso que ele não a tenha alertado sobre esses, como podemos dizer, limites bem delimitados de propriedade...
Pelo canto do olho, ele percebeu um movimento sutil no ombro dela. Ela pretendia pegar a arma com a mão direita.
Assail colocou o charuto entre os dentes e segurou o punho delicado. Aplicando pressão e só parando quando a dor se fez perceber na respiração dela, ele a arqueou para trás para que ela notasse completa e inequivocadamente o poder que ele tinha sobre si mesmo e sobre ela. Sobre tudo.
E foi nesse momento que a mulher se excitou.
Fazia muito tempo, talvez tempo demais, desde que Sola desejou um homem.
Não que ela não os considerasse desejáveis via de regra, ou que não tivessem existido ofertas para encontros horizontais com membros do sexo oposto. Nada lhe parecera valer o esforço. E talvez, depois daquele único relacionamento que não dera certo, ela tivesse regressado aos hábitos de sua rígida criação brasileira – o que era irônico, considerando-se o que fazia para sobreviver.
Aquele homem, porém, chamara sua atenção. Verdadeiramente.
O modo como a segurava pelo braço e pelo pulso não era nada educado e, mais do que isso, não havia clemência pelo fato de ela ser mulher; as mãos a apertavam com tanta força a ponto de a dor se encaminhar para o coração, fazendo-o bater forte. Do mesmo modo, o ângulo em que a forçava para trás testava os limites da capacidade de sua coluna se dobrar, e as coxas ardiam.
Excitar-se assim... era uma negligência ignorante para a sua autopreservação. Na verdade, ao fitar aquelas lentes escuras, ela estava bem ciente de que ele poderia matá-la ali mesmo. Torcendo o seu pescoço. Quebrando seus braços só para vê-la gritar antes de sufocá-la na neve. Ou talvez apenas desacordando-a antes de jogá-la no rio.
O sotaque carregado de sua avó subitamente veio-lhe à mente: Por que não pode conhecer um bom rapaz? Um rapaz católico de uma família que conhecemos? Marisol, assim você parte o meu coração.
– Só posso deduzir – a voz sombria sussurrou com um sotaque e uma inflexão que lhes eram desconhecidos – que a mensagem não lhe foi transmitida. Correto? Benloise deixou de lhe passar essa informação... e é por isso que, depois de eu ter expressamente indicado minhas intenções, você ainda assim voltou a espionar a minha casa? Creio que foi isso o que aconteceu, talvez uma mensagem de voz que ainda não tenha sido recebida. Ou uma mensagem de texto, um e-mail. Sim, acredito que o comunicado de Benloise tenha se perdido, não é mesmo?
A pressão nela intensificou-se ainda mais, sugerindo que ele tinha força de sobra, o que era, no mínimo, uma perspectiva assombrosa.
– Não é isso? – rugiu ele.
– Sim – disse ela. – É isso.
– Portanto, posso deduzir que não a encontrarei em seus esquis por aqui. Correto?
Ele a sacudiu novamente, a dor fazendo com que seus olhos revirassem.
– Sim – ela disse num engasgo.
O homem relaxou apenas o suficiente para que ela pudesse respirar um pouco. Depois continuou falando, naquela voz estranhamente sedutora:
– Bem, preciso de uma coisa antes que você vá. Você me dirá o que descobriu sobre mim... Tudo o que descobriu.
Sola franziu o cenho, pensando que aquilo era tolice. Sem dúvida um homem como aquele estaria ciente de qualquer informação que uma terceira pessoa poderia saber a seu respeito.
Então aquilo era um teste.
Visto que ela queria muito rever a avó, Sola disse:
– Não sei seu nome, mas posso imaginar o que faz, e também o que fez.
– E o que seria?
– Acredito que seja a pessoa que esteja matando aqueles interceptadores na cidade para assegurar território e controle.
– Os jornais e os noticiários disseram que se tratavam de suicídios.
Ela apenas prosseguiu, uma vez que não havia motivo para argumentar:
– Sei que mora sozinho, até onde posso saber, e que sua casa possui um tratamento estranho nas janelas. Um tipo de camuflagem para parecer o interior da casa, mas... é outro tipo de coisa. Só não sei o quê.
O rosto acima do dela permaneceu completamente impassível. Calmo. Tranquilo. Como se não a estivesse forçando a ficar no lugar... Ou a ameaçando. O controle era... erótico.
– E? – insistiu ele.
– É só isso.
Ele inalou o charuto nos lábios, a ponta em círculo alaranjado brilhando mais.
– Só vou libertá-la uma vez. Entende?
– Sim.
Ele se moveu com tanta rapidez que ela teve que balançar os braços para readquirir o equilíbrio, os bastões se afundando na neve. Espere, o que ele...
O homem apareceu bem atrás dela, os pés plantados nas laterais dos rastros dos esquis, uma barricada física para o caminho que ela fizera a partir da casa dele. Enquanto o bíceps e o pulso direitos dela ardiam por conta do sangue que voltava a circular nas partes que foram comprimidas, um aviso surgiu na base de sua nuca.
Cai fora daqui, Sola disse a si mesma. Agora.
Sem querer arriscar uma nova captura, ela se moveu para frente até a estrada, a parte inferior dos esquis lutando para conseguir avançar na neve gelada e compactada.
Enquanto ela avançava, ele a seguia, caminhando lentamente, inexoravelmente, como um grande felino que estava cercando a presa com a qual estava contente em apenas brincar, por enquanto.
As mãos dela tremiam quando usou as pontas dos esquis para soltar as amarras, e ela teve dificuldade para prender os esquis no rack do carro. O tempo inteiro, ele permaneceu parado no meio da estrada observando-a, a fumaça do charuto subindo pelo ombro em brisas frias que seguiam para o rio.
Entrando no carro, ela travou as portas, deu partida e olhou pelo espelho retrovisor. No brilho da luz do freio, ele parecia inequivocadamente maligno, um homem alto, de cabelos escuros, com o rosto lindo como o de um príncipe, e tão cruel quanto uma lâmina.
Pisando no acelerador, ela saiu do acostamento e se afastou rápido, o sistema de tração das quatro rodas sendo acionado para a tração de que ela precisava.
Ela olhou de relance mais uma vez pelo retrovisor. Ele ainda estava lá...
O pé de Sola mudou para o freio e quase o pressionou.
Ele sumira.
Como se tivesse se dissipado no ar. Num momento estava lá... no seguinte, invisível.
Sacudindo-se, voltou a pressionar o acelerador e fez o sinal da cruz sobre o coração acelerado.
Num pânico absurdo, perguntou-se: mas que diabos era ele?
CAPÍTULO 30
Bem quando as persianas eram suspensas com a chegada da noite, Layla ouviu uma batida à porta e, mesmo antes de o cheiro passar pelas frestas, ela sabia quem tinha vindo vê-la.
Inconscientemente, a mão subiu para o cabelo, e descobriu que estava uma bagunça, todo emaranhado por ter virado e revirado o dia inteiro. Pior, nem se importara em tirar a roupa com que saíra para ir à clínica.
Entretanto, não lhe poderia negar a entrada.
– Entre – disse, sentando-se um pouco mais erguida e ajeitando as cobertas que puxara até o queixo.
Qhuinn estava com suas roupas de combate, o que a levou a deduzir que ele estava escalado para o turno daquela noite – mas talvez não. Ela não conhecia o escalonamento.
Quando seus olhares se cruzaram, ela franziu o cenho.
– Você não está bem.
Ele levou a mão para o curativo na sobrancelha.
– Isto? É apenas um arranhão.
Só que não fora o machucado que chamara sua atenção. Era o olhar vago, as concavidades rígidas nas faces.
Ele parou. Farejou. Empalideceu.
Imediatamente, ela baixou o olhar para as mãos, e mais uma vez as torceu.
– Por favor, feche a porta – pediu.
– O que está acontecendo?
Quando a porta se fechou conforme o seu pedido, ela respirou fundo.
– Fui à clínica de Havers ontem à noite.
– O quê?
– Estou sangrando...
– Sangrando? – ele se apressou para a frente, quase derrapando a caminho da cama. – Por que diabos não me contou?
Santa Virgem Escriba, seria impossível para ela não se acovardar ante tamanha fúria. Na verdade, ela estava sem forças no momento e impossibilitada de reunir qualquer tipo de autopreservação.
Instantaneamente, Qhuinn recuou em sua raiva, afastando-se e circulando pelo quarto. Quando a fitou novamente, disse bruscamente:
– Sinto muito. Não tive a intenção de gritar... Eu só... eu só estou preocupado com você.
– Eu sinto muito. E eu deveria ter lhe contado, mas você estava fora em combate e eu não quis aborrecê-lo. Eu não sei... francamente, eu não devia estar pensando com clareza. Estava fora de mim.
Qhuinn se sentou ao lado dela, os ombros imensos se curvando enquanto ele cruzava os dedos e apoiava os cotovelos nos joelhos.
– Então, o que está acontecendo?
Tudo o que ela conseguiu fazer foi dar de ombros.
– Bem, como você pode perceber... estou sangrando.
– Quanto?
Ela pensou no que a enfermeira lhe havia dito.
– O suficiente.
– Há quanto tempo?
– Tudo começou há mais ou menos 24 horas. Não quis procurar a doutora Jane porque não tinha certeza de quão confidencial isso seria e também... ela não tem muita experiência com gestações da nossa espécie.
– O que Havers disse?
Foi a vez de ela franzir a testa.
– Ele não quis me dizer.
– Como é que é? – a cabeça de Qhuinn se ergueu.
– Por causa do meu status como Escolhida, ele só falará com o Primale.
– Está de brincadeira?
Ela balançou a cabeça.
– Não. Também não consegui acreditar nisso e sinto dizer que saí de lá em circunstâncias menos que favoráveis. Ele me reduziu a um objeto, como se eu não tivesse a mínima importância... não passasse de um repositório...
– Você sabe que isso não é verdade – Qhuinn segurou sua mão com os olhos descombinados ardendo. – Não para mim. Nunca para mim.
Ela estendeu a mão e o tocou no ombro.
– Eu sei, mas obrigada por dizer isso – ela estremeceu. – Preciso ouvir isso agora. E quanto ao que está acontecendo... comigo... a enfermeira disse que não há nada que ninguém possa fazer para impedir isto.
Qhuinn baixou o olhar para o tapete e ficou assim por um bom tempo.
– Não entendo. Não era para ser assim.
Engolindo a horrível sensação de fracasso, ela se endireitou e afagou as costas dele.
– Sei que você desejava isto tanto quanto eu.
– Você não pode estar abortando. Não é possível.
– Pelo que fiquei sabendo, os dados estatísticos não são tão bons. Não no começo... e não no fim.
– Não, não pode estar certo. Eu... a vi.
Layla limpou a garganta.
– Sonhos nem sempre se tornam realidade, Qhuinn.
Parecia algo muito simplista de se dizer. Igualmente óbvio. Mas magoava em seu cerne.
– Não foi um sonho – disse ele de modo rude. Mas, então, sacudiu-se e voltou a olhar para ela. – Como está se sentindo? Sente dor?
Quando ela não respondeu de imediato, porque não queria mentir para ele a respeito das cólicas, ele se pôs de pé.
– Vou procurar a doutora Jane.
Ela o segurou pela mão, detendo-o.
– Espere. Pense bem. Se estou perdendo... nosso filho... – ela parou para juntar coragem depois de ter verbalizado aquilo. – Não há razão por que contar para alguém. Ninguém precisa ficar sabendo. Podemos simplesmente deixar a natureza... – a voz dela falhou nesse momento, mas ela se forçou a continuar – ... seguir seu curso.
– Ao inferno com isso. Não vou colocar sua vida em risco só para evitar um confronto.
– Isso não interromperá o aborto, Qhuinn.
– Não estou preocupado somente com o aborto – ele apertou-lhe a mão. – Você é importante. Por isso vou procurar a doutora Jane agora mesmo.
Isso mesmo, ao inferno deixar as coisas por debaixo dos panos, Qhuinn pensou ao seguir para a porta.
Ouvira falar de histórias sobre fêmeas com hemorragias durante os abortos, e ainda que não fosse mencionar nada disso com Layla, teria de agir a respeito.
– Qhuinn. Pare – Layla o chamou. – Pense no que está fazendo.
– Eu estou. Claramente – ele não esperou para debater mais aquilo. – Fique onde está.
– Qhuinn...
Ele ainda conseguiu ouvir a voz dela quando fechou a porta e começou a correr, terminando o corredor e descendo as escadas. Com um pouco de sorte, a doutora Jane ainda estaria se demorando na Última Refeição com seu hellren; o casal estava à mesa quando ele se levantara para ir ver Layla.
Ao chegar ao átrio, seus tênis Nike guincharam no piso de mosaico quando ele tomou a direção da arcada na entrada da sala de jantar.
Vendo a médica bem onde estivera antes foi um golpe de sorte, e seu primeiro instinto foi chamá-la com um grito. Só não o fez ao perceber a quantidade de Irmãos à mesa, comendo a sobremesa.
Merda. Era fácil para ele dizer que lidaria com as consequências se o que fizeram se tornasse público. Mas, e quanto a Layla? Como uma Escolhida sagrada, ela tinha muito mais a perder do que ele. Phury era uma cara bem legal, por isso a chance de ele lidar bem com aquilo era bem grande. E o resto da sociedade?
Ele já passara pela experiência de ser rejeitado, e não queria o mesmo para ela.
Qhuinn se apressou para onde V. e Jane estavam descontraídos, o Irmão fumando um cigarro feito à mão, a médica espectral sorrindo para o seu parceiro enquanto ele lhe contava uma piada.
No instante em que a boa médica olhou para ele, aprumou-se em seu assento.
Qhuinn se abaixou e sussurrou ao seu ouvido.
Nem meio segundo depois, ela estava de pé.
– Preciso ir, Vishous.
Os olhos de diamante do irmão se elevaram. Aparentemente, apenas um vislumbre do rosto de Qhuinn foi preciso: ele não fez perguntas, apenas assentiu uma vez.
Qhuinn e a médica se apressaram juntos para fora.
Para o infinito crédito da doutora Jane, ela não perdeu tempo querendo saber como aquela gravidez tinha acontecido.
– Há quanto tempo ela está sangrando?
– 24 horas.
– Com que intensidade?
– Não sei.
– Algum outro sintoma? Febre? Enjoo? Dor de cabeça?
– Não sei.
Ela o deteve quando chegaram à grande escadaria.
– Vá até o Buraco. A minha maleta está na bancada ao lado do cesto de maçãs.
– Entendido.
Qhuinn nunca correu tão rápido em toda sua vida. Para fora do vestíbulo. Atravessando o pátio coberto de neve. Digitando o código de acesso para o Buraco. Correndo pelo espaço de V. e de Butch.
Costumeiramente, ele jamais teria entrado sem bater. Inferno, sem um horário marcado previamente. Mas naquela noite, que se foda...
Ah, que bom, a maleta preta estava, de fato, ao lado das Fujis.
Apanhando-a, correu para fora, voando ao lado dos carros estacionados e batendo os pés enquanto aguardava que Fritz atendesse à porta.
Ele quase atropelou o doggen.
Ao chegar ao segundo andar, passou acelerado diante do escritório de Wrath e invadiu o quarto que Layla vinha usando. Fechando a porta, arfou até chegar à cama, onde a médica estava sentada bem onde ele esteve antes.
Deus, Layla estava pálida como um lençol. Pensando bem, medo e hemorragia faziam isso com uma fêmea.
A doutora Jane estava no meio de uma frase quando pegou a maleta das mãos dele.
– Acho que devemos começar verificando os seus sinais vitais...
Bum!
Quando o som ensurdecedor atravessou o quarto, o primeiro pensamento de Qhuinn foi se jogar sobre as duas fêmeas para formar um escudo.
Mas não era uma bomba. Era Phury escancarando a porta.
Os olhos amarelos do Irmão reluziam, e não de modo positivo, quando eles passavam de Layla, para a médica e depois para Qhuinn... e refazendo o caminho ao contrário.
– Que diabos está acontecendo aqui? – ele exigiu saber, com as narinas inflando quando captou o mesmo cheiro que Qhuinn havia percebido antes. – Vejo a médica subindo as escadas num rompante. Depois é a vez de Qhuinn com a maleta. E agora... é melhor alguém começar a falar. Neste exato minuto!
Mas ele sabia. Porque estava olhando para Qhuinn.
Qhuinn encarou o Irmão.
– Eu a engravidei...
Ele não teve oportunidade de terminar a frase. Na verdade, mal conseguiu terminar a última palavra.
O Irmão o agarrou e o lançou contra a parede. Enquanto suas costas absorviam o impacto, a mandíbula dele explodiu de dor, o que sugeria que o cara também o socara com exatidão. Então, mãos ásperas o mantiveram fixos com os pés pendurados a quinze centímetros do tapete oriental, bem na hora em que pessoas começavam a se aglomerar na porta.
Ótimo. Uma plateia.
Phury aproximou o rosto do de Qhuinn e expôs as presas.
– O que você fez com ela?
Qhuinn deu uma golada de sangue.
– Ela estava no cio. Eu a servi.
– Você não a merece...
– Eu sei.
Phury o empurrou com força mais uma vez.
– Ela é melhor do que...
– Concordo...
Bang!
De novo contra a parede.
– Então que porra que você foi fazer...
O rugido que permeou o quarto foi alto o bastante para estremecer o espelho ao lado da cabeça de Qhuinn, assim como o conjunto de escovas de prata na penteadeira e os cristais nas arandelas ao lado da porta. A princípio, ele pensou que tivesse sido Phury, a não ser, porém, pelo fato de as sobrancelhas do Irmão se abaixarem e o macho olhar por sobre o ombro.
Layla saíra da cama e se aproximava dos dois. Raios! A expressão no olhar dela bastaria para derreter a pintura da porta de um carro: apesar de ela não estar se sentindo bem, as presas estavam expostas, os dedos crispados em forma de garra... e a brisa gélida que a precedeu fez com que a nuca de Qhuinn se eriçasse em alerta.
Aquele rugido nem deveria ter saído de um macho... quanto menos de uma fêmea delicada com status de Escolhida.
De fato, o pior era o tom horrível de sua voz:
– Solte-o. Agora.
Ela encarava Phury como se estivesse plenamente preparada para arrancar os braços do Irmão de suas juntas e socá-lo até não poder mais caso ele não a obedecesse. Imediatamente.
E, veja só, de repente, Qhuinn conseguiu respirar direito, e agora seus Nikes tocavam novamente o chão. Num passe de mágica.
Phury levantou as palmas das mãos.
– Layla, eu...
– Não toque nele. Não por causa disso... Estou sendo bem clara? – o peso dela estava equilibrado quase nos dedos dos pés, como se ela fosse avançar na garganta do cara a qualquer segundo. – Ele era o pai do meu filho, e receberá todos os direitos e privilégios dessa posição.
– Layla...
– Estamos entendidos?
Phury fez que sim com sua cabeça multicolorida.
– Sim. Mas...
No Antigo Idioma, ela sibilou:
– Caso algum mal recaia sobre ele, eu irei atrás de ti, e o encontrarei em teu sono. Não me importo onde e com quem repouses tua cabeça, minha vingança se derramará sobre ti até tu te afogares.
Aquela última palavra foi arrastada até sua última sílaba se perder num rugido.
Silêncio absoluto.
Até a doutora Jane comentar secamente:
– E é por isso que dizem que as fêmeas da espécie são mais perigosas que os machos.
– Verdade – alguém aquiesceu no corredor.
Phury levantou as mãos em frustração.
– Só quero o que for melhor para você e não só no papel de amigo preocupado... essa é a porra do meu trabalho. Você atravessa o cio sem contar a ninguém, deita-se com ele – como se Qhuinn fosse bosta de cachorro – e depois não diz a ninguém que está tendo problemas médicos. Será que eu tenho que ficar feliz com isso? Que merda!
Houve algum tipo de conversa entre eles àquela altura, mas Qhuinn não prestou atenção: toda a sua consciência recuara para dentro do cérebro. Caramba, o feliz comentário do Irmão não deveria ter doído tanto. Não era a primeira vez que ele ouvia esse tipo de comentário, ou até mesmo pensara isso a respeito de si mesmo. Mas, por algum motivo, as palavras dispararam uma falha geológica que retumbava bem em seu cerne.
Lembrando-se de que dificilmente seria uma tragédia ter o óbvio evidenciado, ele se desvencilhou do seu espiral de vergonha e olhou ao redor. Sim, todos tinham aparecido diante da porta aberta e, mais uma vez, aquilo que ele preferia que tivesse permanecido como um assunto particular estava acontecendo diante de milhares.
Pelo menos Layla não se importava. Inferno, ela nem parecia ter notado.
E era até engraçado ver todos aqueles lutadores profissionais desejando estar a quilômetros de distância de uma fêmea. Pensando bem, caso quisessem sobreviver no trabalho que exerciam, uma acurada avaliação de riscos era algo que se desenvolvia precocemente e até mesmo Qhuinn, objeto do instinto protetor da Escolhida, não ousaria tocá-la.
– Eu, neste momento, renuncio ao meu status de Escolhida, e todos os direitos e privilégios inerentes. Eu sou Layla, decaída daqui por diante...
Phury tentou interrompê-la:
– Escute, você não tem que fazer isso...
– ... e sempre. Estou arruinada perante os olhos tanto da tradição quanto da prática, não mais virgem, concebi um filho, mesmo estando a perdê-lo.
Qhuinn bateu a parte de trás da cabeça na parede. Maldição.
Phury passou uma mão pelos cabelos.
– Merda.
Quando Layla oscilou em seus pés, todos se projetaram para ela, mas ela empurrou todas as mãos e caminhou sozinha até a cama. Abaixando o corpo devagar, como se tudo lhe doesse, deixou a cabeça pender.
– Minha sorte está lançada e estou preparada para viver com as consequências, quaisquer que sejam elas. Isso é tudo.
Houve um belo tanto de sobrancelhas se erguendo quando a multidão começou a se dispersar, mas ninguém disse um pio. Depois de um instante, o grupo se desfez, embora Phury continuasse ali. Assim como Qhuinn e a médica.
A porta foi fechada.
– Ok, ainda mais depois disso tudo, preciso mesmo verificar seus sinais vitais – disse a doutora Jane, ajudando a fêmea a se recostar contra os travesseiros e a acomodar as cobertas que haviam sido afastadas.
Qhuinn não se moveu enquanto o aparelho de pressão era ajustado no braço magro e uma série de pufe-pufes era exalada.
Phury, por sua vez, andou de um lado para o outro, pelo menos até franzir o cenho e pegar o celular.
– É por isso que Havers me telefonou ontem?
Layla concordou.
– Fui lá em busca de ajuda.
– Por que não me procurou? – o Irmão murmurou para si mesmo.
– O que Havers disse?
– Não sei por qual motivo não verifiquei a caixa de mensagens. Pensei que não tivesse motivo para fazer isso.
– Ele deixou claro que só lidaria com você.
Ante isso, Phury olhou para Qhuinn, com aquele olhar amarelo se estreitando.
– Vai se vincular a ela?
– Não.
A expressão de Phury voltou a ser gélida.
– Que tipo de macho é você para...
– Ele não me ama – Layla interrompeu. – Tampouco eu o amo.
Quando a cabeça do Primale virou de lado, Layla prosseguiu:
– Queríamos um filho – ela se sentou inclinada para a frente enquanto a médica auscultava o coração por trás. – Nós começamos e terminamos ali.
Dessa vez o Irmão praguejou.
– Não entendo.
– Nós dois somos órfãos de muitas maneiras – disse a Escolhida. – Nós estamos... estávamos... querendo formar a nossa própria família.
Phury expirou fundo e caminhou até a mesa num canto, sentando-se sobre a cadeira frágil.
– Ah, bem. Acho que isso muda um pouco as coisas. Eu pensei que...
– Nada importa – interveio Layla. – As coisas são como são. Ou... eram, como parece ser o caso.
Qhuinn se viu esfregando os olhos sem nenhum motivo em especial. Não que eles estivessem embaçados nem nada assim. Não. Nem um pouco.
Tudo aquilo era só... tão triste. Toda aquela porcaria. Desde o estado de Layla, até a exaustão impotente de Phury, chegando a sua dor imensa no meio do peito, tudo era uma maldita coisa verdadeiramente triste.
CAPÍTULO 31
– É exatamente o que eu estava procurando.
Enquanto Trez falava, caminhava ao redor do espaço amplo e vazio do armazém, com as botas produzindo impactos altos que ecoavam. Atrás dele, sentia facilmente o alívio da corretora parada ao lado da porta.
Negociar com humanos? Era o mesmo que tirar o pirulito de uma criancinha.
– Você poderia transformar este lado da cidade – disse a mulher. – É uma verdadeira oportunidade.
– Verdade – não que o tipo de restaurante e lojas que o seguiriam até ali fossem de classe: seriam algo mais como lojas de piercings e tatuagens, restaurantes baratos, cinemas pornográficos.
Mas ele não tinha nenhum problema com isso. Até mesmo cafetões podiam se orgulhar de seus trabalhos e, francamente, ele tinha certa tendência a acreditar muuuito mais em tatuadores do que em muitos dos assim chamados “cidadãos exemplares”.
Trez girou sobre os calcanhares. O espaço era tremendo, quase tão alto quanto largo, com fileiras e fileiras de janelas quadradas, muitas delas com os vidros quebrados recobertos por tábuas de madeira. O teto parecia bom – ou quase isso, o revestimento de latão corrugado mantendo a neve do lado de fora, mas não o frio. O chão era de concreto, mas obviamente havia um piso subterrâneo – em diversos pontos viam-se alçapões, embora nenhum deles pudesse ser aberto com facilidade. A parte elétrica parecia boa; sistema de aquecimento, ventilação e ar-condicionado inexistentes; a hidráulica, uma piada.
Em sua mente, contudo, ele não enxergava o lugar como ele estava. Nada disso. Ele o via transformado, como uma boate nas proporções da Limelight. Naturalmente, o projeto necessitaria de uma imensa injeção de capital e vários meses para concluir os trabalhos; no fim, porém, Caldwell acabaria com um novo lugar quente – e ele teria mais uma fonte de renda.
Todos ganhavam.
– Então, gostaria de fazer uma oferta?
Trez olhou para a mulher. Ela era a senhora Profissional em seu casaco preto e terninho escuro abaixo dos joelhos – noventa por cento de sua pele estava coberta, e não só por estarem em dezembro. Contudo, mesmo abotoada até em cima e cabelo comportado, ela era bela no modo como todas as mulheres lhe eram belas: tinha seios e pele macia, e um lugar para ele brincar no meio das pernas.
E ela gostava dele.
Ele sabia disso pelo modo como ela abaixava o olhar, e também por ela aparentemente não saber o que fazer com as mãos: uma hora estavam nos bolsos do casaco; na outra, mexendo no cabelo, depois ajeitando a camisa de seda dentro da saia...
Ele conseguia pensar em alguns modos para mantê-la ocupada.
Trez sorriu ao se aproximar dela e não parou até invadir-lhe o espaço pessoal.
– Sim. Eu quero.
O duplo sentido foi captado, as faces dela enrubesceram não de frio, mas de excitação.
– Ah. Que bom.
– Onde quer fazer? – ele perguntou de modo arrastado.
– A oferta? – ela pigarreou. – Tudo o que tem que fazer é me dizer o que você... quer e eu... faço isso acontecer.
Ah, ela não era ligada em sexo casual. Que meigo.
– Aqui.
– Como disse? – perguntou ela, finalmente levantando o olhar.
Ele sorriu devagar e de modo contido para não revelar as presas.
– A oferta. Vamos fazer isso aqui?
Os olhos dela se arregalaram.
– Aqui?
– É. Aqui – ele se aproximou com mais um passo, mas não ficou perto o suficiente a ponto de se tocarem. Ele estava satisfeito em seduzi-la, mas ela teria de estar cem por cento segura de estar a fim. – Está pronta?
– Para... fazer... a oferta.
– Isso.
– Está... hum, está frio aqui – disse ela. – Que tal no escritório? É lá que a maioria... das ofertas... é conduzida.
Do nada, a imagem do irmão sentado no sofá em casa, olhando para ele como se ele fosse um maldito problema, atingiu-o em cheio, e quando isso aconteceu, percebeu que fazia sexo com praticamente toda mulher que conhecia desde... caramba, quanto tempo?
Bem, obviamente, se não tinham idade para copular, ele não estaria com elas.
Ou se eram férteis.
O que cortava, digamos, uma dúzia ou duas? Maravilha. Que herói.
Que porra ele estava fazendo? Não queria voltar ao escritório da mulher, primeiro porque não havia tempo suficiente, supondo que quisesse estar na abertura do Iron Mask. Portanto, a única opção era ali mesmo, de pé, com a saia suspensa até a cintura, as pernas ao redor dos seus quadris. Rápido, direto ao ponto; depois cada um seguindo o seu caminho.
Depois de ele dizer o quanto pretendia gastar na compra do armazém, claro.
Mas e aí? Ele não tinha a intenção de transar com ela no fechamento do contrato. Ele raramente repetia, e só se estivesse seriamente atraído ou com muito tesão, o que não acontecia nesse caso.
Pelo amor de Deus, o que exatamente ele tiraria daquilo? Sequer a veria nua. Nem teria muito contato de pele com pele.
A não ser... era essa a questão.
Quando foi a última vez em que esteve de fato com uma fêmea? Do jeito certo? Como num jantar fino, um pouco de música, uns amassos que conduziam até o quarto... depois um monte de ações longas e demoradas que levavam a alguns orgasmos...
E nenhuma sensação de pânico asfixiante quando tudo chegava ao fim.
– Você estava para dizer alguma coisa? – a mulher o instigou a falar.
iAm estava certo. Ele não precisava estar fazendo aquele tipo de merda. Inferno, nem mesmo estava atraído pela corretora. Ela estava parada diante dele, disponível, e aquela aliança no dedo era indício de que ela não causaria muitos problemas depois que terminassem, porque tinha algo a perder.
Trez recuou um passo.
– Escute, eu... – quando o celular tocou em seu bolso, ele pensou que tinha sido em boa hora. Viu quem era: iAm. – Com licença, preciso atender esta ligação. Ei, o que está fazendo, irmãozinho?
A resposta de iAm saiu suave, como se tivesse abaixado a voz:
– Temos companhia.
O corpo de Trez ficou tenso.
– De que tipo e onde?
– Estou em casa.
Ah, merda.
– Quem é?
– Não é a sua noiva, relaxe. É AnsLai.
O sumo sacerdote. Fantástico.
– Bem, estou ocupado.
– Ele não veio aqui para me ver.
– Então é melhor ele voltar de onde veio porque estou ocupado – quando não houve resposta do outro lado, tudo o que restava fazer era se chutar no traseiro. – Escute aqui, o que quer que eu faça?
– Pare de fugir e cuide disto.
– Não há do que cuidar. Falo com você mais tarde, ok?
Esperou por uma resposta. Em vez disso, a linha ficou muda. Pensando bem, quando você espera que seu irmão limpe suas bostas, o cara não deve ficar com muita vontade de se despedir longamente.
Trez desligou e olhou para a corretora. Com um sorriso amplo, ele se aproximou e baixou a cabeça para fitá-la. O batom era coral demais para a tez dela, mas ele não se importava.
Aquela coisa não continuaria na boca dela por muito tempo.
– Deixe-me mostrar como posso aquecer isto aqui – disse com um sorriso langoroso.
De volta à mansão da Irmandade, no quarto de Layla, um tipo de cessar-fogo fora alcançado pelas partes interessadas.
Phury não estava tentando transformar Qhuinn num gancho de parede. Layla estava sendo avaliada. A porta fora fechada e, com isso, nada do que acontecia ali teria mais do que um quarteto de testemunhas oculares.
Qhuinn só estava esperando que a doutora Jane se pronunciasse.
Quando ela, por fim, tirou o estetoscópio do pescoço, apenas se acomodou. E a expressão em seu rosto não lhe deu esperança alguma.
Ele não entendia. Vira sua filha às portas do Fade: quando fora surrado e largado como morto no acostamento pela Guarda de Honra, subira para só Deus sabe onde, aproximara-se de um portal branco... e lá vira uma fêmea jovem cujos olhos começaram com uma cor, e acabaram azul e verde como os seus.
Se ele não tivesse testemunhado aquilo, provavelmente não teria se deitado com Layla para início de conversa. Mas ele teve tanta certeza de que o destino estava traçado que nunca lhe ocorrera que...
Merda, talvez aquela jovem fosse o resultado de outra comunhão... com outra pessoa no futuro.
Como se algum dia ele fosse se unir a outra pessoa... Jamais.
Não era possível. Não agora que esteve com Blay uma vez.
Nada disso.
Mesmo que ele e seu ex-amigo nunca mais se encontrassem debaixo dos lençóis, ele nunca mais ficaria com ninguém. Quem poderia se comparar? E o celibato era melhor do que a segunda melhor opção, que é o que seria oferecido pelo resto do planeta.
A doutora Jane pigarreou e segurou a mão de Layla.
– A sua pressão sanguínea está um pouco baixa. A sua pulsação está um pouco lenta. Acredito que essas duas coisas possam ser melhoradas com alimentação...
Qhuinn praticamente pulou para perto da cama com o pulso estendido.
– Estou aqui... Pronto. Pode pegar.
A doutora Jane pousou uma mão no braço dele e lhe sorriu.
– Mas não é com isso que estou preocupada.
Ele congelou e, pelo canto do olho, viu que o mesmo aconteceu com Phury.
– Eis a questão – a doutora voltou a olhar para Layla, falando com suavidade e clareza. – Não sei muito sobre gestações vampíricas, portanto, por mais que eu deteste dizer isso, você precisa voltar à clínica de Havers – ela levantou a mão, como se já esperasse discussões de todos os lados. – Isto se trata dela e do filho dela, temos que levá-los para alguém que possa tratá-la adequadamente, mesmo se, em outras circunstâncias, nenhum de nós batesse à porta do cara. E, Phury – ela encarou o Irmão –, você tem que ir com ela e com Qhuinn. A sua presença lá só facilitará as coisas para todos.
Muitos lábios apertados depois disso.
– Ela tem razão – concordou Qhuinn por fim. E depois se voltou para o Primale. – E você tem que dizer que é o pai. Ela obterá mais respeito assim. Comigo? Ele pode muito bem se recusar a tratá-la... se ela for decaída e tiver transado com um defeituoso? Pode nos mandar dar meia-volta.
Phury abriu a boca. Fechou-a.
Não havia muito mais a ser dito.
Enquanto Phury pegava o telefone e ligava para a clínica para informar que estavam indo para lá, o tom de voz dele sugeria que estava pronto para incendiar o lugar se Havers e sua equipe dessem mancada.
Com isso resolvido, Qhuinn se aproximou de Layla.
Num tom baixo, disse:
– Desta vez vai ser diferente. Ele vai fazer isso acontecer. Não se preocupe, você será tratada como uma rainha.
Os olhos de Layla se arregalaram, mas ela se controlou.
– Sim. Tudo bem.
Resultado? O Irmão não era o único prestes a acabar com tudo. Se Havers provocasse qualquer tipo de desgosto à la glymera em Layla, Qhuinn acabaria com o ego do cara a tapa. Layla não merecia esse tipo de tratamento – nem mesmo por escolher um rejeitado como ele para se acasalar.
Cacete. Talvez fosse melhor ela abortar. Ele queria mesmo condenar uma criança ao seu DNA?
– Você também vem? – ela lhe perguntou, como se não estivesse acompanhando.
– Sim. Vou estar lá.
Quando Phury desligou, olhou de um para outro, os olhos amarelos se estreitando.
– Ok, eles vão nos receber no segundo em que chegarmos. Vou fazer Fritz ligar a Mercedes, mas eu dirijo.
– Desculpe – disse Layla ao encarar o grande macho. – Sei que decepcionei as Escolhidas e você, mas foi você quem nos disse para vir para este lado e... viver.
Phury apoiou as mãos nos quadris e exalou fundo. Ao balançar a cabeça, ficou claro que ele não teria escolhido nada daquilo para ela.
– Sim, eu disse isso. Eu fiz isso.
CAPÍTULO 32
Ah, grande poder desgovernado, pensou Xcor ao olhar para seus soldados, cada um deles armado e pronto para uma noite de luta. Depois de 24 horas de recuperação após a alimentação grupal, eles estavam loucos para sair e encontrar os inimigos – e ele estava pronto para libertá-los daquele porão de armazém.
Só havia um problema: alguém estava andando no andar de cima.
Como demonstração, passos pesados atravessaram o alçapão de madeira sobre sua cabeça.
Pela última meia hora, eles acompanharam o progresso dos visitantes inesperados. Um era pesado, uma forma masculina. O outro era mais leve, de uma variedade feminina. No entanto, não havia como perceber seus cheiros; o porão era hermeticamente fechado.
Muito provavelmente, eram apenas humanos de passagem, ainda que ele não pudesse adivinhar o motivo para alguém que não fosse sem teto perder tempo numa estrutura tão decrépita numa noite fria. Quem quer que fossem, quaisquer as razões que os levaram até ali, contudo, ele não teria problemas para defender seu território, mesmo sendo aquele.
Mas não fazia mal esperar. Se ele podia evitar massacrar aqueles humanos? Isso significava que ele e seus soldados continuariam a usar aquele espaço sem serem incomodados.
Ninguém disse nada enquanto as passadas continuavam.
Vozes se misturavam. Grave e aguda. Em seguida, um telefone tocou.
Xcor acompanhou o toque e a conversa que se seguiu, caminhando em silêncio até o outro alçapão, lugar em que a pessoa escolheu parar. Imóvel, prestou atenção e captou metade de uma conversa nada interessante que não lhe revelou nenhuma das identidades dos envolvidos.
Não muito depois, o som inconfundível de sexo se fez claro.
Enquanto Zypher ria baixinho, Xcor encarou o bastardo para calá-lo. Mesmo cada um dos alçapões estando fechado pelo lado de baixo, ninguém sabia que tipo de problema aqueles ratos sem rabo podiam causar em qualquer situação.
Consultou o relógio. Esperou que os gemidos parassem. Gesticulou para que os soldados ficassem quietos quando eles pararam.
Movendo-se em silêncio, ele seguiu para o alçapão no canto extremo do armazém, aquele que se abria no que deveria ser um escritório de supervisor. Destrancando-o, segurou uma pistola, desmaterializou-se e inalou.
Não era humano.
Bem, um esteve ali, mas o outro... era algo diferente.
Do outro lado, a porta externa foi fechada e trancada.
Em sua forma fantasmagórica, Xcor atravessou o armazém e apoiou as costas na parede de tijolos, e olhou para fora de um dos vidros empoeirados.
Um par de faróis se acendeu na frente, no estacionamento.
Desmaterializando-se do lado de fora da janela, subiu até o telhado do armazém do lado oposto da rua.
Ora, ora, se aquilo não era interessante.
Havia um Sombra ali embaixo, sentando atrás do volante do BMW com a janela do motorista abaixada até a metade e uma fêmea humana se inclinando sobre o SUV.
Era a segunda vez que se deparava com um em Caldwell.
Eles eram perigosos.
Pegando o celular, ligou para o número de Throe após encontrar a foto do macho na lista de contatos, e ordenou que os soldados saíssem e lutassem. Ele lidaria sozinho com aquela situação.
Lá embaixo, o Sombra esticou a mão, puxou a mulher pela nuca e a beijou. Depois deu marcha à ré no carro e saiu sem olhar para trás.
Xcor mudou de posição para acompanhar o macho, transitando de telhado em telhado, conforme o Sombra seguia na direção do bairro das boates nas ruas que corriam em paralelo ao rio...
A princípio, a sensação em seu corpo sugeria uma mudança na direção do vento, os açoites gélidos atingindo-o por trás, em vez de golpeá-lo no rosto. Mas logo pensou... não, era algo puramente interno. As ondas que sentia sob a pele...
Sua Escolhida estava por perto.
Sua Escolhida.
Abandonando imediatamente o rastro do Sombra, ele seguiu para perto do rio Hudson. Onde ela estava...
Num carro. Estava se movendo num carro.
Pelo que seus instintos lhe diziam, ela estava se movendo em alta velocidade que, ainda assim, era rastreável. Portanto, a única explicação era que ela estava na Northway, seguindo de noventa a cento e vinte quilômetros por hora.
Recuando na direção da fileira de armazéns, ele se concentrou no sinal que estava captando. Como fazia meses desde que se alimentara dela, sentiu pânico ao perceber que a conexão criada pelo sangue dela em suas veias estava perdendo intensidade, a ponto de ele ter dificuldade para localizar o veículo.
Mas, em seguida, captou um sedã luxuoso graças ao fato de ele ter freado na saída que convergia o tráfego para as pontes. Desmaterializando-se nas vigas, plantou as botas de combate no pináculo de um dos esteios de metal e esperou que ela passasse debaixo dele.
Pouco depois de fazê-lo, ela seguiu em frente, indo para o outro lado da cidade, oposta à margem do rio.
Ele continuou com ela, mantendo uma distância segura, embora se perguntasse a quem tentava enganar. Se ele pressentia sua fêmea?
O mesmo acontecia com ela.
Porém, ele não abandonaria seu rastro.
Enquanto Qhuinn estava no assento de passageiro do Mercedes, sua Heckler e Koch calibre .45 era mantida discretamente sobre a coxa, os olhos movimentando-se incessantemente do espelho retrovisor para a janela lateral e o para-brisa. Ao lado dele, Phury estava na direção, as mãos do Irmão num perfeito dez para as duas tão apertado que mais parecia que ele estava estrangulando alguém.
Caramba, havia coisas demais acontecendo ao mesmo tempo.
Layla e a criança. Aquele acidente com o Cessna. O que ele fizera ao primo na noite anterior. E também... bem, havia aquela situação com Blay.
Ah, bom Deus... a situação com Blay.
Enquanto Phury pegava a saída que os levaria às pontes, a mente de Qhuinn ia da preocupação com Layla às lembranças das imagens, dos sons... e dos sabores das horas diurnas.
Intelectualmente, ele sabia que o que acontecera entre eles não fora um sonho. E seu corpo se lembrava muito bem disso, como se o sexo tivesse sido um tipo de marcação a ferro em sua pele que o mudara para o resto da vida. E, mesmo assim, enquanto tentava lidar com o drama mais recente, a sessão breve demais parecia pré-histórica, e não ocorrera há nem 24 horas atrás.
Ele temia que se tratasse de uma sessão única.
Nunca mais me toque assim.
Gemendo, ele esfregou a testa.
– Não são os seus olhos – disse Phury.
– O que disse?
Phury olhou de relance para o banco de trás.
– Ei, como estão as coisas? – perguntou às fêmeas. Quando Layla e a doutora Jane responderam numa afirmativa breve, ele assentiu com a cabeça. – Escutem, vou fechar a divisória por um segundo, está bem? Está tudo bem por aqui.
O Irmão não lhes deu a chance de responder de um ou outro modo, e Qhuinn se retesou no banco enquanto a divisória opaca subia, partindo o sedã em duas partes. Não fugiria de nenhum tipo de confronto, mas isso não significava que ele estava ansioso pelo segundo round, e se Phury estava isolando as duas, aquilo não seria nada bonito.
– Seus olhos não são o problema – disse o Irmão.
– Não entendi.
Phury olhou para ele.
– O fato de eu estar irritado sobre tudo isso não tem nada a ver com nenhum defeito. Layla está apaixonada por você...
– Não, não está não.
– Vê, você está me irritando muito agora.
– Pergunte a ela.
– Enquanto está sofrendo um aborto? – replicou o Irmão. – É, é isso mesmo o que vou fazer.
Enquanto Qhuinn se retraía, Phury continuou:
– Sabe, esse é o seu negócio. Você gosta de viver no limite e ser desvairado... Eu, honestamente, acredito que isso o ajuda a lidar com as idiotices que sua família o fez passar. Se você destruir tudo? Nada pode afetá-lo. E acredite ou não, não tenho problema algum com isso. Você faz o que tem que fazer e sobrevive às noites e aos dias do melhor modo que pode. Mas assim que você parte o coração de uma inocente, ainda mais se ela está sob a minha proteção? É nessa hora que você e eu temos um problema.
Qhuinn olhou pela janela. Antes de tudo, parabéns ao cara ali do lado. A ideia de que havia um preconceito contra Qhuinn baseado em seu caráter em vez de uma mutação genética sobre a qual não tivera nenhum poder decisório era uma mudança refrescante. E, ei, não que ele não concordasse com o cara, pelo menos até um ano atrás. Antes disso? Inferno, ele esteve descontrolado em muitos níveis. Mas as coisas mudaram. Ele mudara.
Evidentemente, Blay se tornar indisponível fora o tipo de chute no saco de que ele precisava para finalmente crescer.
– Não sou mais assim – disse ele.
– Então, está preparado para se vincular a ela? – quando ele não respondeu, Phury deu de ombros. – E lá vai você de novo. Conclusão: sou responsável por ela, legal e moralmente. Posso não estar agindo como um Primale em alguns aspectos, mas o restante das funções desse cargo eu levo muito a sério. A ideia de que você a meteu nessa confusão me deixa enjoado, e eu acho muito difícil de acreditar que ela não tenha feito isso para agradá-lo... Você disse que os dois queriam um filho? Tem certeza de que não era só você, e ela só fez isso para deixá-lo feliz? Isso se parece muito com o feitio dela.
Tudo aquilo foi apresentado de maneira retórica. E não cabia a Qhuinn criticar a lógica, mesmo que ela estivesse errada. Mas, enquanto ele passava os dedos pelos cabelos, o fato de que fora Layla a procurá-lo era algo que ele manteria só para si. Se Phury queria pensar que a culpa era só sua, tudo bem, ele aguentaria o tranco. Qualquer coisa para tirar a pressão e as atenções de cima de Layla.
Phury olhou por entre os bancos.
– Isso não está certo, Qhuinn. Não é isso o que machos de verdade fazem. E olhe só a situação em que ela está. Você causou isso a ela. Você a colocou no banco de trás deste carro, e isso é errado.
Qhuinn apertou os olhos. Bem, como se isso não fosse martelá-lo na cabeça pelos próximos cem anos. Mais ou menos.
Enquanto eles seguiam pela ponte e deixavam as luzes piscantes do centro da cidade para trás, ele manteve a boca fechada, e Phury também se calou.
Mas, pensando bem, o Irmão já dissera tudo o que havia para ser dito, não?
CAPÍTULO 33
Assail acabou perseguindo sua presa atrás do volante do seu Range Rover. Muito mais confortável assim, e a localização da mulher já não era mais um problema: enquanto estivera esperando ao lado do Audi que ela saísse de sua propriedade, colocara um equipamento de rastreamento na parte inferior do espelho retrovisor lateral.
Seu iPhone cuidou do resto.
Depois de ela ter deixado abruptamente seu bairro – após a proposital desmaterialização ante suas vistas só para desestabilizá-la ainda mais –, ela atravessou o rio e deu a volta para a parte de trás da cidade, onde as casas eram pequenas, próximas umas das outras e delimitadas por cercas de alumínio.
Enquanto a perseguia, mantendo pelo menos dois quarteirões de distância entre os veículos, observou as luzinhas coloridas no bairro, milhares de fios de pisca-pisca entre os arbustos, pendurados nos telhados e emoldurando janelas e portas. Mas aquilo não era nem metade da história. Cenários de manjedouras colocados em destaque em diminutos jardins eram iluminados, e também havia os bonecos de neve falsos com cachecóis vermelhos e calças azuis que brilhavam por dentro.
Em contraste com a decoração sazonal, ele estava disposto a apostar que as estátuas da Virgem Maria eram permanentes.
Quando o carro parou e estacionou, ele se aproximou, parando quatro casas adiante e desligando as luzes. Ela não saiu imediatamente do carro, e quando o fez, não vestia a parca e as calças de esqui nas quais o espionara. Em vez disso, mudara para um suéter vermelho e um par de jeans.
E soltara o cabelo.
O volume escuro e pesado ultrapassava os ombros, curvando-se nas pontas.
Ele grunhiu na escuridão.
Com passadas rápidas e certeiras, ela ultrapassou os quatro degraus de concreto que levavam à entrada modesta da casa. Abrindo a porta de tela numa moldura de metal, ela a segurou com o quadril enquanto destrancava a porta com a chave, para depois entrar e trancar pelo lado de dentro.
Quando as luzes se acenderam no andar de baixo, ele observou a silhueta dela avançar pelo cômodo da frente, as cortinas finas lhe possibilitando apenas uma ideia da movimentação dela, e não uma visão desobstruída.
Ele pensou em suas próprias persianas. Demorou um tempo para que aperfeiçoasse aquela invenção, e a casa às margens do rio Hudson fora um teste perfeito. As barreiras funcionavam melhor do que ele antecipara.
Ela, porém, era esperta o bastante para notar alguma anormalidade, e ele se perguntou o que as teriam denunciado.
No segundo andar, uma luz se acendeu, como se alguém que estivesse descansando tivesse despertado com a chegada dela.
As presas dele pulsaram. A ideia de que algum homem humano estivesse à espera dela em seu quarto conjugal fez com que ele quisesse estabelecer sua dominância, mesmo que isso não fizesse sentido. Ele a seguira para o seu próprio bem, e nada mais.
Absolutamente nada mais.
Bem quando a mão segurou a maçaneta da porta, seu telefone tocou. Na hora certa.
Quando ele viu quem era, franziu o cenho e levou o celular ao ouvido.
– Duas ligações em tão pouco tempo. A que devo essa honra?
Rehvenge não pareceu estar se divertindo.
– Não retornou a minha ligação.
– Eu deveria?
– Cuidado, garoto.
Os olhos de Assail continuaram atentos à casinha. Ele estava curiosamente desesperado para saber quem estava lá dentro. Estaria ela subindo, despindo-se pelo caminho?
Exatamente de quem ela escondia suas espreitas? E ela de fato as escondia – senão, por que outro motivo trocar de roupa?
– Alô?
– Aprecio o gentil convite – ele se ouviu dizer.
– Não foi um convite. Você é um maldito membro do Conselho agora que está vivendo no Novo Mundo.
– Não.
– Como é que é?
Assail relembrou o encontro na casa de Elan no começo do inverno, aquele sobre o qual Rehvenge nada sabia, aquele no qual o Bando de Bastardos apareceu para forçar a barra. Também pensou no atentado a Wrath, à vida do Rei Cego... na sua própria propriedade, pelo amor de Deus.
Drama demais para o seu gosto.
Com calma ensaiada, ele se lançou no mesmo discurso que fizera à facção de Xcor:
– Sou um homem de negócios por predileção e propósito. Embora respeite tanto o reinado atual quanto o poder de base do Conselho, não posso desviar nem energia nem tempo das minhas empreitadas vigentes. Nem agora, nem no futuro.
Houve um momento prolongado de silêncio. E depois aquela voz profunda e maligna se fez ouvir do outro lado:
– Ouvi falar dos seus negócios.
– Verdade?
– Eu mesmo estive envolvido com isso há alguns anos.
– Foi o que eu soube.
– Consegui fazer as duas coisas.
Assail sorriu na escuridão.
– Talvez eu não seja tão talentoso quanto você.
– Vou deixar isto perfeitamente claro. Se você não aparecer nessa reunião, deduzirei que você está jogando no time errado.
– Com essa declaração, você reconhece que existem dois e que eles se opõem.
– Entenda como quiser. Mas se não estiver comigo e com o Rei, você é inimigo meu e dele.
E foi exatamente isso o que Xcor lhe dissera. Pensando bem, havia alguma outra posição naquela guerra crescente?
– O Rei foi alvejado na sua casa, Assail.
– Pelo que me lembro – disse ele secamente.
– Pensei que você talvez quisesse dizimar qualquer ideia quanto ao seu envolvimento.
– Já o fiz. Naquela mesma noite disse aos Irmãos que eu não tinha nada a ver com aquilo. Eu lhes dei o veículo com que escaparam com o Rei. Por que eu faria tal coisa se fosse um traidor?
– Para livrar seu rabo.
– Sou muito eficiente nisso sem o benefício de conversações, eu lhe garanto.
– Então, como anda a sua agenda?
A luz no segundo andar se apagou, e ele teve que imaginar o que a mulher fazia no escuro... E com quem.
Por vontade própria, suas presas se expuseram.
– Assail. Você está seriamente me aborrecendo com essa merda de comportamento.
Assail ligou o motor do Range Rover. Não estava disposto a ficar esperando no meio-fio enquanto o que quer que estivesse acontecendo ali dentro... acontecia. Obviamente, ela se recolhera e ficaria ali. Além disso, seu telefone o alertaria caso o carro dela voltasse a se movimentar.
Enquanto ele tomava a rua e acelerava, falou com clareza:
– Neste instante, estou me demitindo da minha posição no Conselho. A minha neutralidade nessa disputa pela coroa não será questionada por nenhum dos lados...
– E você sabe quem são os jogadores, não?
– Deixarei isto o mais claro possível: não tomo partido, Rehvenge. Não sei de que outro modo deixar isso ainda mais claro... e não serei arrastado para essa guerra por você, nem pelo Rei nem por ninguém mais. Não tente me forçar, e saiba que a neutralidade que lhe apresento agora é a mesma que apresentei a eles.
Desse mesmo modo, prometera a Elan e a Xcor não revelar suas identidades, e manteria sua palavra – não por acreditar que o grupo seria capaz de retribuir o favor, mas pelo simples fato de que, dependendo de quem vencesse, um confidente de qualquer lado seria visto como espião a ser erradicado ou um herói a ser aclamado. O problema era que não se saberia que lado venceria até aquilo acabar, e ele não estava interessado em apostas.
– Então você foi abordado – declarou Rehv.
– Recebi uma cópia da carta que eles enviaram na primavera passada.
– E esse foi o único contato que teve?
– Sim.
– Está mentindo para mim.
Assail parou num farol.
– Não há nada que possa dizer ou fazer para me arrastar para isso, caro lídher.
Com ameaças em excesso, o macho do outro lado rosnou.
– Não conte com isso, Assail.
Dito isso, Rehvenge desligou.
Praguejando, Assail jogou o telefone no banco do passageiro. Depois, cerrou os dois punhos e os bateu com força no volante.
Se existia uma coisa que ele não tolerava era ser sugado para o olho do furacão das brigas dos outros. Pouco se importava com quem sentava no trono, ou com quem era encarregado da glymera. Ele só queria ser deixado em paz para ganhar dinheiro à custa dos ratos sem rabo.
Isso era tão difícil de entender?
Quando a luz ficou verde, ele afundou o pé no acelerador, mesmo sem ter nenhum destino específico em mente. Apenas dirigiu a esmo... e cerca de quinze minutos mais tarde descobriu-se sobre o rio em uma das pontes.
Ah, então seu Range Rover decidira levá-lo de volta para casa.
Ao emergir na margem oposta, seu telefone emitiu um alerta, que ele quase ignorou. Mas os gêmeos tinham saído para cuidar do último carregamento de Benloise, e ele queria saber se os intermediários tinham aparecido com suas cotas no fim das contas.
Não era uma chamada, ou uma mensagem de texto.
Era o Audi preto se movendo mais uma vez.
Assail pisou no freio, cortou na frente de um carro que buzinou como se o xingasse, subiu e atravessou o canteiro central coberto de neve.
E praticamente voou pela ponte que o levava de volta.
Em sua posição vantajosa em uma relativa periferia distante, Xcor precisava de binóculos para ver adequadamente a sua Escolhida.
O carro em que ela vinha andando, o enorme sedã preto, continuara em frente depois da ponte, seguindo por oito ou nove quilômetros antes de sair por uma estradinha rural que levava para o norte. Depois de mais alguns quilômetros, e sem nenhum aviso, virou numa estrada de terra que era estrangulada nas duas laterais por plantações perenes. Por fim, parou ante uma construção baixa de concreto que não dava indícios de ter nem janelas nem uma porta.
Ele ajustou o foco quando dois machos saíram pela frente. Reconheceu um instantaneamente, o cabelo o denunciava: Phury, filho de Ahgony, que, de acordo com a boataria, tornara-se o Primale das Escolhidas.
O coração de Xcor começou a bater forte.
Especialmente quando reconheceu a segunda figura: era o lutador de olhos descombinados contra quem pelejara na casa de Assail quando o Rei fora levado embora às pressas.
Os dois machos sacaram as pistolas e perscrutaram as imediações.
Como Xcor estava a favor do vento e parecia não haver ninguém mais por perto, ele deduziu que havia uma grande probabilidade, a não ser que sua Escolhida revelasse a posição dele, que aquele par procedesse com o que quer que tivesse planejado para a fêmea.
De fato, era como se ela estivesse sendo levada para uma prisão.
Só. Por. Cima. Do. Seu. Cadáver.
Ela era um inocente naquela guerra, utilizada com propósitos nefastos sem que isso tivesse sido culpa sua; mas, obviamente, ela seria executada ou trancafiada numa cela na qual passaria o resto de sua vida na Terra.
Ou não.
Ele segurou as pistolas.
Aquela era uma boa noite para cuidar daquele assunto. De fato, era a sua chance de tê-la para si, de salvá-la de qualquer punição que lhe impingiram por ter, sem saber, ajudado e revigorado o inimigo. E talvez as circunstâncias quanto à sua condenação injusta a deixassem favoravelmente disposta em relação ao seu inimigo e salvador.
Ele fechou os olhos brevemente ao imaginá-la em sua cama.
Quando Xcor voltou a abri-los, Phury abria a porta traseira do sedã e colocava a mão para dentro. Quando o Irmão se endireitou, a Escolhida era retirada do veículo... e levada pelos dois cotovelos, os lutadores segurando-a de cada lado enquanto a conduziam para a construção.
Xcor se preparou para se aproximar. Depois de tanto tempo, uma vida inteira, mais uma vez ele a tinha próxima de si e não desperdiçaria a oportunidade que o destino lhe propiciava, não agora, não quando a vida dela tão obviamente pendia na balança. E ele levaria a melhor naquilo; a ameaça a ela fortalecia seu corpo a um nível inimaginável de poder, a mente se aguçava a ponto de avaliar todas as possibilidades de ataque e continuar absolutamente calmo.
De fato, havia apenas dois machos a guardá-la e, com eles, uma fêmea que não só parecia não estar armada, como também não avaliava seus arredores como se fosse treinada para tal ou inclinada para o conflito.
Ele estava mais do que preparado para acabar com os captores de sua fêmea.
Bem quando ele se preparava para avançar, o cheiro da Escolhida o atingiu na brisa fria, aquele perfume tentador exclusivo fazendo-o oscilar dentro de suas botas de combate...
Imediatamente, ele reconheceu uma mudança nele.
Sangue.
Ela estava sangrando. E havia mais alguma coisa...
Sem pensamento consciente, seu corpo se moveu para mais perto, sua forma restabelecendo o peso corpóreo, suspendendo-se a meros três metros, atrás de uma construção destacada do prédio principal.
Ele percebeu que ela não era uma prisioneira sendo levada para uma cela ou para a execução.
A sua Escolhida tinha dificuldade para andar. E aqueles guerreiros a amparavam com cuidado; mesmo com as armas expostas e os olhos vasculhando qualquer sinal de ataque, eles eram gentis com ela como seriam com a mais frágil das flores em botão.
Ela não estava sendo maltratada. Não tinha hematomas nem ferimentos. Enquanto o trio avançava, ela olhou para um macho, depois para o outro, e disse algo como que tentando assegurá-los, pois, na verdade, não era raiva que contraía as sobrancelhas daqueles guerreiros.
Era, na realidade, o mesmo terror que ele sentiu quando farejou o sangue dela.
O coração de Xcor bateu ainda mais forte em seu peito, a mente tentando compreender tudo aquilo.
E então, ele se lembrou de algo do seu passado.
Depois do seu nascimento, sua mahmen o repelira e ele fora deixado no orfanato no Antigo País para o que quer que o destino lhe reservasse. Ali, permanecera entre os raros indesejados, cuja maioria possuía deformidades físicas como a sua, por quase uma década... tempo suficiente para forjar lembranças permanentes sobre aquilo que transpirava no lugar triste e solitário.
Tempo suficiente para ele entender o que significava quando uma fêmea sozinha aparecia nos portões, era-lhe concedida a entrada, e depois berrava por horas, às vezes dias... antes de dar à luz, na maioria dos casos, a crianças mortas. Ou abortadas.
O cheiro do sangue naquela época era bem específico. E o cheiro levado pelo vento frio desta noite era o mesmo.
Uma gestação era o que invadia seu nariz agora.
Pela primeira vez em sua vida, ele se ouviu dizer, em absoluta agonia:
– Santa Virgem do Fade...
CAPÍTULO 34
A ideia de que os membros do s’Hisbe estivessem no código postal de Caldwell fez com que Trez pensasse em fazer as malas com tudo o que possuía, buscar o irmão e sair em férias permanentes dali.
Enquanto dirigia do armazém para o Iron Mask, a cabeça estava tão confusa que ele tinha de pensar conscientemente em quais esquinas virar, e frear nas placas de pare, e onde deveria estacionar quando chegasse à boate. E depois, quando desligou o motor do X5, apenas continuou sentado atrás do volante, encarando a parede de tijolos do seu prédio por... sei lá, um ano.
Uma tremenda metáfora, todo o “ir a nenhum lugar” bem na sua frente.
Não que não soubesse o quanto decepcionava as pessoas. A questão? Pouco se importava. Não voltaria para os costumes antigos. A vida que agora levava era sua, e ele se recusava a permitir que uma promessa feita na época do seu nascimento o encarcerasse na vida adulta.
Aquilo não aconteceria.
Desde que Rehvenge realizara a boa ação do século e salvara tanto o seu traseiro quanto o do seu irmão, as coisas mudaram para Trez. Ele e iAm receberam ordens para se aliarem aos sympatho do lado de fora do Território a fim de saldarem a dívida, e esse “pagamento forçado” fora o bilhete deles para a liberdade, a saída que eles vinham procurando. E ainda que ele lamentasse arrastar iAm para aquele drama, o resultado final foi que seu irmão teve que vir com ele, e essa era apenas mais uma parte da solução perfeita que vivia atualmente. Abandonar o s’Hisbe e vir para o mundo exterior fora uma revelação, a primeira e deliciosa amostra de liberdade. Não havia protocolo, nenhuma regra, ninguém bafejando em seu cangote.
A ironia? Aquilo deveria ter sido um tapinha na bunda por ousar ter saído do Território e se misturar com os Desconhecidos. Um castigo com a intenção de fazê-lo andar na linha.
Rá.
E, desde então, nos recessos de sua mente, ele meio que desejava que a extensão dos seus negócios com os Desconhecidos durante a última década o tivesse contaminado perante os olhos do s’Hisbe, tornando-o inelegível para a “honra” que lhe fora concedida no nascimento. Ou seja, condenando-o a uma liberdade permanente.
O problema era que, se enviaram AnsLai, o sumo sacerdote, obviamente esse objetivo não fora alcançado. A menos que a visita tenha sido para repudiá-lo...
Nesse caso, saberia por meio de iAm. Não?
Trez verificou o celular. Nenhuma mensagem. Nem de voz nem de texto. Estava na casinha do cachorro de novo em relação ao seu irmão, a menos que iAm tivesse resolvido mandar tudo à merda e voltado para casa, para a tribo.
Maldição...
A batida forte à sua janela não fez com que ele simplesmente levantasse a cabeça. Não. Ele também sacou a arma.
Trez franziu a testa. Parado do lado de fora do carro, um macho humano do tamanho de uma casa. O cara tinha um barrigão de cerveja, mas os ombros fortes sugeriam que ele realizava trabalho físico regular, e o maxilar rígido e pesado revelava tanto a sua ancestralidade Cro-Magnon quanto o tipo de arrogância mais comum entre os animais grandes e idiotas.
Com grandes baforadas de touro libertando-se das narinas, ele se inclinou e bateu na janela. Naturalmente, com um punho tão grande quanto uma bola de futebol.
Bem, ficou claro que ele queria um pouco de atenção, e quer saber? Trez estava mais do que disposto em lhe dar.
Sem aviso, ele escancarou a porta, pegando o cara em cheio nas bolas. Enquanto o humano cambaleava para trás agarrando a virilha, Trez se ergueu em toda a sua altura e guardou a arma no cós da calça, fora de vista, mas fácil de apanhar.
Quando o senhor Agressivo se recuperou o bastante para olhar para cima, beeeem para cima, ele pareceu perder um pouco do seu entusiasmo. Pensando bem, Trez devia ter uns quarenta centímetros e pesar uns 45 quilos a mais que o cara. Apesar daquele pneuzão que ele carregava.
– Está procurando por mim? – perguntou Trez, querendo mesmo dizer: tem certeza de que quer fazer isso, grandalhão?
– É. ‘Tô.
Ok, então tanto a gramática quanto a avaliação de risco eram problemas para ele. Provavelmente teria dificuldades do mesmo tipo com adições e subtrações com numerais de único dígito.
– Estou – corrigiu Trez.
– Quê?
– Acredito que seja “sim, eu estou”, e não “tô”.
– Vai à merda. Que tal? – o cara se aproximou. – E fique longe dela.
– Dela? – isso restringia o problema para o que... umas mil pessoas?
– Minha mina. Ela num qué ocê, num precisa ducê, e num vai mais ficá cucê.
– De quem, exatamente, estamos falando? Vou precisar de um nome – e talvez nem isso ajudasse.
À guisa de resposta, o cara avançou. Provavelmente teria sido um soco ferrado, mas o avanço foi lento demais e muito penoso, e a maldita coisa poderia ter sido acompanhada de uma legenda.
Trez segurou o punho com uma mão, espalmando-a como se fosse uma bola de basquete. E depois, com um giro rápido, ficou com o pedaço de bife virado e preso – prova positiva de que pontos de pressão funcionavam, e que o pulso era um deles.
Trez falou bem no ouvido do homem, só para que as regras básicas fossem bem recebidas:
– Faça isso de novo e vou quebrar cada osso da sua mão. De uma vez – enfatizou isso com um puxão que fez o cara gemer. – E depois, vou subir até o braço. Agora, de que porra você está falando?
– Ela ‘teve aqui ontem à noite.
– Muitas mulheres estiveram. Consegue ser mais específico...?
– Ele ‘tá falando de mim.
Trez ergueu o olhar. Ah... que magnífico.
A garota que deu uma de doida, a sua perseguidora.
– Eu disse que cuidava disso! – ela gritou.
É, o cara parecia mesmo ter o controle da situação. Então, a que tudo levava a crer, os dois tinham ilusões... E talvez isso explicasse o relacionamento deles: ele a considerava uma supermodelo, e ela acreditava que ele tivesse um cérebro.
– Isto é seu? – Trez perguntou à mulher. – Porque, ser for, pode levá-lo para casa com você antes que precise de um balde para limpar a bagunça?
– Eu disse procê não vir aqui – disse a mulher. – Que que ‘cê ‘tá fazendo aqui?
E mais uma prova de que esses dois eram um casal perfeito.
– Que tal se eu deixar vocês dois resolverem isso? – sugeriu Trez.
– Eu amo ele!
Por um segundo, a resposta não fez sentido. Mas depois, e deixando o sotaque carregado de lado, ele entendeu: a tonta estava falando dele.
Enquanto Trez encarava incrédulo a mulher, percebeu que aquela transa em particular tinha saído pela culatra de maneira gigantesca.
– Não está, não.
Bem, pelo menos o namorado agora falara corretamente.
– Sim, estou!
Foi nessa hora que tudo foi para a puta que o pariu. O touro se lançou sobre a mulher, quebrando o próprio pulso no processo de se libertar. Depois os dois ficaram cara a cara, berrando obscenidades, os corpos se arqueando para a frente.
Ficou claro que eles tinham prática naquilo.
Trez olhou ao redor. Não havia ninguém no estacionamento, nenhuma alma viva andando na calçada, mas ele não precisava de violência doméstica rolando nos fundos da sua boate. Inevitavelmente, alguém acabaria vendo e chamando a polícia ou, pior, aquela burra acabaria forçando demais a barra do namorado grande e burro, e acabaria levando a pior.
Se ao menos ele tivesse um balde de água ou, quem sabe, uma mangueira de jardim para que os dois se largassem.
– Escutem aqui, vocês dois têm que...
– Eu te amo! – a mulher disse, virando-se para Trez e agarrando o bustiê. – Não entendeu ainda? Eu te amo!
Por conta da camada de suor que a cobria, apesar de a temperatura estar próxima de zero, ficou bem claro que ela tinha usado alguma coisa. Coca ou metanfetamina seria o seu palpite se ele tivesse de adivinhar. Êcstasy normalmente não era associado a esse tipo de agressão.
Perfeito. Mais essa agora.
Trez balançou a cabeça.
– Querida, você não me conhece.
– Conheço sim!
– Não, você não...
– Porra, não fala com ela assim!
O cara atacou Trez, mas a fêmea se colocou na frente, metendo-se diante de um trem acelerado.
Cacete, agora era a hora de ele se meter. Nada de violência contra mulheres na frente dele. Nunca – mesmo que fosse dano colateral.
Trez se moveu com tanta rapidez que quase fez o tempo voltar para trás. Tirou sua “protetora” da linha de combate e lançou um soco que pegou o animal disparado bem no meio do queixo.
Causou pouca ou nenhuma impressão. Foi o mesmo que atingir uma vaca com uma pilha de papel.
Trez levou um murro no olho, uma luz pipocou em metade da sua vista, mas foi um golpe de sorte mais do que algo coordenado. A recompensa, contudo, foi tudo isso e muito mais: com rápida coordenação, ele descarregou as juntas dos dedos em sucessão veloz, acertando-o no ventre, transformando o fígado cheio de cirrose do cara num saco de pancada vivo até o filho da puta se dobrar ao meio e pedir arrego.
Trez concluiu o assunto chutando o peso morto gemedor até ele cair no chão.
Então, ele sacou a pistola e enfiou o cano bem na carótida do cara.
– Você tem uma chance de sair daqui – Trez disse calmo. – E é assim que as coisas vão ser. Você vai se levantar e não vai nem olhar nem falar com ela. Você vai embora pela frente da boate e vai entrar numa porra de um táxi e vai para a porra da sua casa.
Diferentemente de Trez, o homem não tinha um sistema cardíaco muito bem desenvolvido e conservado e respirava como um trem de carga. Apesar disso e do jeito como os olhos injetados e marejados o olhavam, ele conseguira focar a visão independentemente da hipoxia, e captara a mensagem.
– Se a agredir de qualquer modo que seja, se ela quebrar sequer uma unha por sua causa, se alguma propriedade dela for danificada de algum modo? – Trez se inclinou, aproximando-se. – Vou abordá-lo por trás. Você nem saberá que estive ali, e não vai sobreviver ao que eu lhe farei. Isso eu prometo.
Sim, Sombras tinham maneiras de se livrar dos inimigos e, ainda que ele preferisse carne com pouca gordura, como frango e peixe, não se importava em abrir exceções.
O problema era que tanto em sua vida pessoal quanto na profissional ele vira como a violência doméstica se intensificava. Em muitos casos, algo grande tinha que intervir a fim de romper o ciclo. Veja só? Ele se encaixava nisso.
– Acene com a cabeça se você entendeu meus termos – quando o aceno veio, ele bateu a arma com força contra a nuca gorda. – Agora, olhe em meus olhos e saiba que estou falando a verdade.
Enquanto Trez o encarava, ele inseriu um pensamento direto no córtex cerebral, implantando-o como se fosse um chip instalado entre os lóbulos. O seu disparo seria qualquer tipo de ideia brilhante que tivesse a respeito da mulher; seu efeito seria a absoluta convicção de que a sua própria morte seria inevitável e rápida, caso ele desse seguimento à ideia.
O melhor tipo de terapia cognitiva que existia.
Taxa de sucesso de cem por cento.
Trez deu um pulo e concedeu uma chance de se comportar como um bom garoto ao gorducho. E, claro, o filho da puta se ergueu do chão, sacudiu-se como um cão com as pernas plantadas afastadas e a camisa larga solta.
Quando ele saiu, foi mancando.
E foi nesse instante que as fungadas foram percebidas.
Trez se virou. A mulher tremia no frio, as roupas indiscretas não ofereciam nenhuma barreira para a noite de dezembro, a pele pálida, a exaltação desaparecida... como se o fato de ele colocar o cano da sua .40 na garganta do seu namoradinho tivesse alguma influência.
O rímel escorria pelo rosto enquanto ela testemunhava a partida do seu “Príncipe Encantado”.
Trez olhou para o céu e começou seu diálogo interno.
No fim, ele não teria como deixá-la ali sozinha no estacionamento, ainda mais toda trêmula como estava.
– Onde você mora, querida? – até ele percebia a exaustão em sua voz. – Querida?
A mulher olhou para o lado dele e imediatamente a sua expressão mudou.
– Nunca ninguém me defendeu assim antes.
Ok, agora ele pensava em afundar a cabeça na parede de tijolos. E, olha só, havia uma logo ali do lado.
– Deixe-me levá-la para casa. Onde você mora?
Enquanto ela se aproximava, Trez teve que ordenar aos pés que continuassem exatamente onde estavam – pois, claro, ela se enterrou em seu corpo.
– Eu te amo.
Trez cerrou bem os olhos.
– Vamos – disse, desprendendo-se dela e levando-a até o carro. – Você vai ficar bem.
CAPÍTULO 35
Enquanto Layla era levada até a clínica, seu coração batia forte e as pernas tremiam. Felizmente, Phury e Qhuinn não mostravam problema algum em sustentá-la.
Contudo, graças à presença do Primale, sua experiência foi completamente diferente dessa vez. Quando o painel de entrada do edifício deslizou para o lado, uma das enfermeiras estava lá para recebê-los, e eles foram levados imediatamente para uma parte diferente da clínica daquela em que ela esteve na noite anterior.
Enquanto eram levados para a sala de exames, Layla olhou de relance ao redor e hesitou. O que... era aquilo? As paredes eram recobertas por um rosa claro, e as pinturas em molduras douradas estavam penduradas a intervalos regulares. Nenhuma mesa de exames, tal como aquela em que ela se deitou na noite anterior. Ali, havia uma cama forrada por uma manta elegante, recoberta com pilhas de travesseiros fofos. E, além disso, em vez da pia de aço inoxidável e gabinetes brancos sem graça, uma tela pintada escondia um canto inteiro do quarto atrás da qual, ela deduziu, os instrumentos clínicos de Havers eram mantidos.
A menos que o grupo tenha sido conduzido para os aposentos particulares do médico.
– Ele logo virá vê-la – disse a enfermeira, sorrindo para Phury e se curvando. – Posso lhes trazer algo? Café, chá?
– Apenas o médico – o Primale respondeu.
– Imediatamente, Vossa Excelência.
Ela se curvou novamente e se apressou para fora.
– Vamos colocá-la na cama, está bem? – disse Phury ao lado do leito.
Layla balançou a cabeça.
– Tem certeza de que estamos no lugar certo?
– Sim – o Primale se aproximou e a ajudou a atravessar o quarto. – Esta é uma das suítes VIP.
Layla olhou por sobre o ombro. Qhuinn se acomodara no canto oposto à tela. Ele se mantinha absolutamente imóvel, os olhos focados no chão, a respiração estável, as mãos atrás das costas. E mesmo assim não estava à vontade. Não, ele parecia pronto e capaz de matar e, por um momento, uma pontada de medo a perpassou. Jamais teve medo dele antes, mas, pensando bem, ela nunca o vira num estado tão potencialmente agressivo.
Pelo menos a violência represada não parecia direcionada a ela, nem mesmo ao Primale. Certamente não à doutora Jane enquanto a médica se acomodava numa cadeira forrada de seda.
– Vamos – insistiu Phury com gentileza. – Vamos lá.
Layla tentou subir sozinha, mas o colchão estava longe demais do chão e a parte superior do seu corpo estava tão fraca quanto as pernas.
– Eu pego você – Phury atenciosamente passou o braço ao redor das suas costas e atrás das pernas; depois a suspendeu com cuidado. – Lá vamos nós.
Ajeitando-se na cama, ela gemeu ao sentir uma câimbra se agarrar à sua região pélvica. Enquanto todos os olhos no quarto fixavam-se nela, ela tentou esconder a careta com um sorriso. Sem sucesso: embora o sangramento continuasse estável, as ondas de dor se intensificavam, a duração delas era mais longa, e o espaçamento entre elas, menor.
Naquele compasso, logo se transformaria em agonia constante.
– Estou bem...
A batida à porta a interrompeu.
– Posso entrar?
Apenas a voz do doutor Havers já fez com que ela quisesse fugir.
– Ah, Santa Virgem Escriba – disse ao tentar juntar coragem.
– Sim – respondeu sombriamente Phury. – Entre...
O que aconteceu em seguida foi tão rápido e furioso que o único modo de descrever seria com o coloquialismo que aprendera com Qhuinn.
O mundo desabou.
Havers abriu a porta, entrou e Qhuinn atacou o médico, empurrando-o para aquele canto, inclinando-se com a adaga.
Layla gritou alarmada, mas ele não matou o macho.
No entanto, ele fechou a porta com o corpo do macho, ou talvez com a cara dele. E foi difícil saber se o barulho que ressoou foi a porta se encontrando com a soleira ou o impacto do curandeiro sendo lançado contra a madeira. Provavelmente uma combinação de ambos.
A terrível lâmina afiada foi pressionada contra a garganta pálida.
– Adivinha o que vai fazer primeiro, cretino? – Qhuinn rosnou. – Vai se desculpar por tratá-la como se fosse uma maldita incubadora.
Qhuinn o virou com um puxão. Os óculos de Havers estavam quebrados, uma das lentes rachada formando um padrão de teia de aranha, a alça do outro lado esticada num ângulo estranho.
Layla lançou um olhar para Phury. O Primale não parecia particularmente aborrecido: apenas cruzou os braços sobre o peito imenso e se recostou contra a parede ao lado dela, obviamente muito à vontade com aquela encenação. Do outro lado na cadeira, o mesmo acontecia com a doutora Jane, o olhar esverdeado era tranquilo enquanto observava o dramalhão.
– Olhe nos olhos dela – bramiu Qhuinn – e peça desculpas.
Quando o lutador sacudiu o médico como se ele não passasse de uma boneca de pano, algumas palavras amontoadas escaparam do médico.
Caramba. Layla supunha que deveria se portar como uma dama e não gostar daquilo, mas sentiu satisfação ante aquela vingança.
Tristeza também, porque a situação jamais deveria ter chegado àquilo.
– Aceita as desculpas dele? – Qhuinn perguntou num tom maldoso. – Ou prefere que ele rasteje? Eu ficarei muito feliz em transformá-lo num capacho aos seus pés.
– Isso foi o bastante. Obrigada.
– Agora você vai contar a ela – Qhuinn repetiu o chacoalhão, os braços de Havers quase sendo arrancados das juntas, o jaleco branco balançando tal qual uma bandeira – e somente a ela, que merda está acontecendo com o corpo dela.
– Preciso do... prontuário...
Qhuinn expôs as presas e as colocou ao lado da orelha de Havers, como se estivesse considerando a ideia de arrancá-la numa mordida.
– Tolice. E se você estiver contando a verdade? O lapso de memória vai causar a sua morte. Agora.
Havers já estava pálido, mas isso fez com que ele ficasse completamente branco.
– Comece a falar, doutor. E se o Primale, que o impressiona pra cacete, fizer a gentileza de me contar caso você desvie o olhar dela, isso seria maravilhoso.
– Com prazer – disse Phury.
– Não estou ouvindo nada, doutor. E não sou um cara muito paciente.
– Você é... – por detrás dos óculos quebrados, os olhos do macho encontraram os dela. – O seu filho...
Ela quase desejou que Qhuinn não forçasse aquele contato. Já era bastante difícil ouvir aquilo sem ter que encarar o médico que a tratara tão mal.
Mas, pensando bem, era Havers quem tinha de olhar para ela, e não o contrário.
Ela encarava os olhos de Qhuinn quando Havers disse:
– Você está sofrendo um aborto.
As coisas ficaram embaçadas dali por diante, portanto, ela deduziu que estivesse chorando. Entretanto, não sentia coisa alguma. Era como se sua alma tivesse sido tragada para fora do seu corpo, tudo o que a animava e conectava ao mundo nunca tivesse existido.
Qhuinn não demonstrou reação alguma. Não piscou. Não mudou de posição, nem balançou a adaga.
– Existe algo que possa ser feito em termos médicos? – questionou a doutora Jane.
Havers foi balançar a cabeça, mas parou quando a ponta afiada da adaga perfurou a pele do seu pescoço. Quando o sangue começou a descer pelo colarinho engomado da camisa social, o vermelho combinou com a gravata borboleta.
– Nada que eu saiba – respondeu o médico com voz rouca. – Não neste mundo, de qualquer forma.
– Diga a ela que ela não teve culpa – exigiu Qhuinn. – Diga a ela que ela não fez nada de errado.
Layla fechou os olhos.
– Presumindo que isso seja verdade...
– Em humanos, esse costuma ser o caso, desde que não tenha havido nenhum trauma – interveio a doutora Jane.
– Diga a ela – disse Qhuinn num estalido, o braço começando a vibrar bem de leve, como se estivesse a um passo de liberar a sua violência.
– É verdade – confirmou Havers meio engasgado.
Layla fitou o médico, procurando o olhar dele por trás dos óculos arruinados.
– Nada?
Havers falou rapidamente:
– A incidência de abortos espontâneos é de aproximadamente uma a cada três gestações. Acredito que, como acontece com os humanos, seja causado por um sistema autorregulatório que garante que defeitos de vários tipos não sejam levados a cabo.
– Mas, sem sombra de dúvida, eu estou grávida – disse ela num tom desprovido de emoção.
– Sim. Seus exames de sangue atestaram isso.
– Existe algum risco à vida dela – perguntou Qhuinn – se isso continuar?
– Você é o ghia dela? – perguntou Havers num rompante.
Phury interveio:
– Ele é o pai do filho dela. Portanto, você o tratará com o mesmo respeito com que me trataria.
Isso fez com que os olhos do médico saltassem das órbitas, as sobrancelhas emergissem por trás da armação arruinada. E foi engraçado; foi nesse instante que Qhuinn demonstrou um pouco de reação: apenas um leve vacilo em seu rosto antes que a expressão ferrenha voltasse a demonstrar agressividade.
– Responda – exigiu Qhuinn. – Ela corre algum perigo?
– E-eu... – Havers engoliu em seco. – Não existem garantias na medicina. De modo geral, eu diria que não; ela é saudável em relação ao resto, e o aborto parece estar seguindo seu curso costumeiro. Além disso...
Enquanto o médico continuava a falar, Layla percebeu que seu tom educado e refinado estava muito mais irregular do que na noite anterior.
Tudo regrediu, sua audição sumiu, junto a qualquer percepção de temperatura do quarto, a cama debaixo dela, bem como os outros corpos ao seu redor. A única coisa que enxergava eram os olhos descombinados de Qhuinn.
Seu único pensamento enquanto ele segurava aquela adaga junto ao pescoço do médico?
Mesmo não estando apaixonados um pelo outro, ele era exatamente o pai que queria que seu filho tivesse. Desde que tomara a decisão de participar do mundo real, ela aprendera o quanto a vida podia ser dura, como os outros podiam conspirar contra você e como, às vezes, a força baseada em seus princípios era a única coisa que o fazia atravessar a noite.
Qhuinn dispunha desse último aos montes.
Ele era um extraordinário e temível protetor, e era exatamente disso que uma fêmea precisava quando estava grávida, amamentando ou cuidando de um bebê.
Isso e sua gentileza inata o tornavam nobre a seu ver.
A cor dos seus olhos não importava.
Quase oitenta quilômetros ao sul de onde Havers molhava as calças de tanto medo em sua clínica, Assail estava atrás do volante de seu Range Rover, balançando a cabeça em descrença.
As coisas ficavam cada vez mais interessantes com aquela mulher.
Graças ao GPS, ele rastreara o Audi de longe quando ela decidira sair de seu bairro e tomar a Northway. A cada saída de subúrbio, ele esperava que ela a tomasse, mas enquanto eles deixavam Caldwell para trás para comer poeira, ele começou a pensar que talvez ela estivesse seguindo para Manhattan.
Nada disso.
West Point, o lar da venerável escola militar humana, ficava aproximadamente na metade do caminho entre a cidade de Nova York e Caldwell, e quando ela saiu da autoestrada àquela altura, ele ficou aliviado. Muitas coisas aconteciam lá naquela terra em que o código postal começava com 100, e ele não queria se distanciar muito de sua base por dois motivos: um, ainda não tivera notícias dos gêmeos quanto à aparição daqueles intermediários fuleiros, e, dois, a aurora surgiria em algum momento, e ele não apreciava a ideia de abandonar seu muito modificado e reforçado Range Rover no acostamento de uma estrada caso precisasse se desmaterializar de volta para a sua segurança.
Uma vez fora da estrada, a mulher prosseguiu a exatos setenta quilômetros por hora pela seleção de postos de combustível, hotéis turísticos e lanchonetes da cidade. Em seguida, do outro lado dessa coleção de lugares baratos, as coisas começaram a ficar mais caras. Casas grandes, do tipo que ficavam bem ao fundo de gramados que se pareciam com carpetes, começaram a aparecer, com seus muros de pedra baixos placidamente se aglomerando próximos à estradinha. Ela passou por todas essas propriedades, porém, para acabar parando no estacionamento de um parque que dava para a margem de um rio.
Assim que ela saiu do carro, ele passou por ela, virando a cabeça para trás para medi-la.
Uma centena de metros mais adiante, fora do campo de visão dela, Assail parou o carro no acostamento da estradinha, saindo para o vento enregelante, abotoando o casaco até o alto. Os sapatos não eram os ideais para caminhar sobre a neve, mas ele não se importou. Seus pés suportariam o frio e a umidade, e ele tinha outra dúzia de pares à sua espera no armário de sua casa.
Como o carro dela, e não o corpo, estava com o aparelho de rastreamento, ele manteve o olhar fixo nela. Como esperado, ela vestiu os esquis de cross-country e, depois, com uma máscara branca de esqui sobre a cabeça e roupa de camuflagem clara a lhe cobrir o corpo, ela praticamente desapareceu em meio ao cenário de inverno.
E ele a acompanhou.
Aparecendo a cada dez ou quinze metros, ele encontrou pinheiros para se esconder conforme ela avançava na direção de mansões, os esquis devorando o chão coberto de neve.
Ele concluiu, enquanto mantinha o compasso, antecipando a direção que ela tomaria e, em boa parte adivinhando, que ela iria para uma daquelas mansões.
Toda vez que ela passava por ele sem saber que ele estava em meio às árvores, seu corpo queria saltar. Para derrubá-la. Para mordê-la.
Por algum motivo, aquela humana o deixava faminto.
E brincar de gato e rato era algo muito erótico, especialmente se só o gato soubesse que o jogo estava valendo.
A propriedade na qual ela acabou se infiltrando ficava a quase dois quilômetros dali, mas, apesar da distância, o ritmo puxado daquelas pernas não diminuiu em nada. Ela entrou pelo lado direito do gramado da frente, aproximando-se de um muro de sempre-vivas, depois retomando seu curso.
Aquilo não fazia sentido. Se ela fosse descoberta, estava muito longe do carro. Por certo uma abordagem mais próxima teria feito mais sentido? Afinal, de qualquer modo, agora ela estava exposta, sem árvores para lhe servir de cobertura, nenhuma possível defesa contra uma acusação de invasão de propriedade se a vissem.
A menos que ela conhecesse o dono. E, nesse caso, por que se esconder e aparecer sorrateira no meio da noite?
O jardim de uns 30 mil metros quadrados gradualmente se elevava em direção a uma casa de pedras de uns 180 metros quadrados, com esculturas modernistas paradas como sentinelas brilhantes e cegas ante aquela aproximação, o gramado continuando pelo fundo. O tempo inteiro ela se ateve àquele muro e, observando-a a uns vinte metros de distância, ele se viu impressionado por ela. Contra a neve, ela se movia como uma brisa o faria, invisível e rápida, a sombra lançada contra o muro de pedras de tal modo que ela parecia desaparecer...
Ahhhh...
Ela escolhera aquela rota exatamente por isso, não?
Sim, de fato, o ângulo do luar lançava a sombra dela exatamente sobre as pedras, criando uma camuflagem ainda mais eficiente.
E aquela sensação estranha se intensificou nele.
Esperta.
Assail avançou, encontrando um esconderijo entre a vegetação na lateral da casa. De perto, notou que a mansão não era nova, embora também não fosse antiga – mesmo porque, no Novo Mundo, era raro se deparar com algo construído antes do século XVIII. Muitas janelas chumbadas. E varandas. E terraços.
Conclusão? Fortuna e distinção.
Sem dúvida, muito bem protegidas por inúmeros alarmes.
Parecia muito improvável que ela só fosse espiar a propriedade como fizera na dele. Para começar, havia uma extensão arborizada do lado oposto daquele muro de pedras que ela atravessara. Ela poderia ter estacionado os esquis, subido aquela moita de uns quatro a seis metros, e obtido uma vista privilegiada da casa. O que mais? Nesse caso, ela não precisaria de nada do que estava na mochila que lhe pesava nas costas.
A coisa parecia grande o bastante para transportar um corpo, e estava cheia.
Como se tivessem combinado, ela parou, pegou os binóculos e inspecionou a propriedade, ficando absolutamente imóvel com somente a cabeça a se mexer. E depois atravessou o gramado, movendo-se ainda mais rapidamente do que antes, a ponto de estar literalmente correndo em direção à casa.
Na direção dele.
De fato, ela seguia diretamente para Assail, para aquela junção entre arbustos que marcava a frente da mansão, para a sebe alta que corria ao redor do jardim dos fundos.
Obviamente, ela conhecia a propriedade.
Obviamente, ele escolhera o lugar perfeito.
Ante a aproximação dela, ele recuou apenas um pouco... porque não teria se importado em ser flagrado espiando.
A mulher esquiou mais uns dois metros além de onde ele se encontrava, aproximando-se tanto que ele conseguiu captar o cheiro dela não só em seu nariz, mas também no fundo da garganta.
Ele teve que se refrear para não ronronar.
Depois do esforço em atravessar aquela faixa de gramado com tanta rapidez, ela estava arfando, mas seu sistema cardiovascular se recuperou rápido – um sinal de sua boa saúde e vigor. E a velocidade com a qual ela agora se movia foi igualmente erótica. Tirando os esquis. Tirando a mochila. Abrindo a mochila. Extraindo...
Ele deduziu que ela subiria no telhado, enquanto ela montava o que parecia ser um lança-arpão. Ela mirou a coisa para cima, apertou o gatilho para atirar um gancho. Um instante depois houve o som de um metal se agarrando no alto.
Quando olhou para cima, ele percebeu que ela escolhera uma das poucas extensões de pedra sem janelas... e protegida pela sebe enorme na qual ele mesmo se escondia.
Ela ia entrar.
Àquela altura, Assail franziu o cenho... e desapareceu de onde a observava.
Reaparecendo nos fundos da casa no andar de baixo, ele espiou por várias janelas, apoiando as laterais das mãos no vidro ao se inclinar. O interior estava basicamente escuro, mas não completamente: aqui e acolá havia abajures acesos, as lâmpadas emitindo uma luz alaranjada sobre a mobília que era uma combinação de objetos antigos e arte moderna. Luxuoso que só: em seu sono pacífico, o lugar se parecia com um museu, ou algo que se fotografaria para uma revista, tudo muito bem organizado com uma precisão que haveria de se perguntar se réguas tinham sido utilizadas para dispor a mobília e os objetos de arte.
Nenhuma bagunça em lugar algum, nenhum jornal largado sem querer, nada de cartas, contas, recibos. Nenhum casaco sobre o espaldar de uma cadeira ou um par de sapatos abandonados ao lado do sofá.
Cada um dos cinzeiros imaculadamente limpos.
Somente uma pessoa lhe veio à mente.
– Benloise – sussurrou para si mesmo.
CAPÍTULO 36
Baseando-se nas vibrações regulares que vinham de seu bolso, Xcor sabia que a sua presença estava sendo desejada pelos seus lutadores.
Ele não atendeu.
Parado do lado de fora do prédio para o qual a sua Escolhida fora conduzida, ele não tinha forças nem para sair mesmo quando o fluxo de outros de sua espécie surgia em carros ou materializando-se diante do portal pelo qual ela fora levada. De fato, como tantos entraram e saíram, não havia dúvidas de que aquela era uma clínica médica.
Pelo menos ninguém parecia notá-lo, estando preocupados demais com o que os afligia, apesar do fato de ele estar parado no meio do caminho.
Ah, deuses, só o pensamento do que trouxera a sua Escolhida ali o nauseava ao ponto de ele ter de pigarrear e...
Inspirar o ar frio para dentro dos seus pulmões ajudou a conter a ânsia de vômito.
Quando o cio dela acontecera? Devia ter sido muito recentemente. Da última vez em que a vira...
Quem seria o pai?, perguntou-se pela centésima vez. Quem tomara o que era seu...
– Não seu – ele disse para si mesmo. – Não seu.
Só que era a sua mente dizendo isso e não os seus instintos. Em seu cerne, na parte mais máscula da sua essência, ela era a sua fêmea.
E, ironicamente, era isso o que o impedia de atacar a clínica – com todos os seus soldados, se necessário. Se ela estava recebendo cuidados, a última coisa que ele queria era interromper o processo.
Enquanto o tempo passava e a ausência de informações o torturava até a insanidade, ele percebeu que desconhecera a existência daquele lugar. Se ela fosse dele? Ele não teria sabido onde levá-la para obter ajuda, certamente teria mandado Throe encontrar algum lugar, de algum modo, para garantir os cuidados dela, mas e no caso de uma emergência? Uma hora ou duas procurando um curandeiro poderia significar a diferença entre a vida e a morte.
A Irmandade, por sua vez, soube exatamente onde levá-la. E quando ela recebesse alta daquele lugar, sem dúvida, eles a levariam de volta a um lugar aquecido, seguro, onde teria alimento abundante e uma cama macia, e a força valente de pelo menos seis guerreiros para protegê-la enquanto dormisse.
Irônico como ele se sentia à vontade com isso. Mas, pensando bem, a Sociedade Redutora era um adversário muito sério; e digam o que quiserem a respeito da Irmandade, eles provaram durante toda a eternidade serem defensores capazes.
Abruptamente, seus pensamentos se voltaram para o armazém em que ele e seus soldados vinham ficando. Aquele ambiente úmido, frio, hostil era, na verdade, apenas um degrau acima dos outros lugares em que levantaram acampamento. Se ela estivesse com ele, como a manteria? Nenhum macho jamais poderia vê-la em sua presença, especialmente se ela tivesse de trocar de roupa ou se banhar...
Um rugido se infiltrou em sua garganta.
Não. Nenhum macho colocaria os olhos na pele dela ou ele o esfolaria vivo...
Ah, Deus, ela se vinculara a outro. Abrira-se e aceitara outro macho dentro de suas carnes sagradas.
Xcor abaixou o rosto entre as mãos, a dor em seu peito fazendo-o cambalear em suas botas de combate.
Deve ter sido o Primale. Sim, claro, ela se deitara com Phury, filho de Ahgony. Era esse o único modo com que as Escolhidas se procriavam, se a sua memória e os boatos estivessem certos.
Instantaneamente, sua mente ficou enevoada com a imagem do rosto perfeito e da silhueta delgada. Pensar que outro a desnudara e cobrira-lhe o corpo com o dele...
Pare, ele se ordenou. Pare com isso.
Arrastando sua mente para longe dessa loucura, ele se desafiou a definir qualquer tipo de hospedagem que poderia propiciar a ela. Em qualquer circunstância.
O único pensamento que lhe ocorreu foi voltar e matar aquela fêmea de quem seus soldados se alimentaram. Aquele chalé parecera bem tranquilo e adorável...
Mas para onde iria sua Escolhida durante o dia?
E, além disso, ele jamais a envergonharia permitindo que ela sequer andasse sobre o tapete onde todo aquele sexo acontecera.
– Com licença.
Xcor buscou a pistola dentro da jaqueta ao dar meia-volta. Só que não havia necessidade de usar força bruta – era apenas uma fêmea pequena com seu filho. Ao que tudo levava a crer, eles tinham saído de um utilitário estacionado a poucos metros dele.
Enquanto a criança se escondia atrás da mãe, os olhos da fêmea se arregalaram de medo.
Mas, pensando bem, quando se tropeça num monstro, sua presença dificilmente é recebida com alegria.
Xcor se curvou profundamente, em grande parte porque a visão do seu rosto por certo não estava melhorando a situação.
– Sim, como não...
Dito isso, ele recuou e virou, voltando ao posto originalmente ocupado. Na verdade, não percebera o quanto tinha se exposto.
E ele não queria brigar. Não com a Irmandade. Não com a sua Escolhida daquele modo. Não... ali.
Fechando os olhos, desejou poder voltar para aquela noite quando Zypher o levara para a campina e Throe, com o subterfúgio de ajudá-lo, o condenara àquele tipo de morte em vida.
Um macho vinculado que não podia estar com sua fêmea?
Morto apesar de viver...
Sem aviso, o portal foi puxado para trás e sua Escolhida surgiu. Instantaneamente, os instintos de Xcor gritaram para que ele agisse, apesar de todos os motivos para deixá-la em paz.
Leve-a! Agora!
Mas ele não o fez: as expressões sérias daqueles que a protegiam com tamanho cuidado o imobilizaram: notícias ruins foram dadas durante a estada deles ali.
Como antes, só faltaram carregá-la até o veículo.
E o cheiro do sangue dela ainda pairava no ar.
Sua Escolhida foi acomodada no banco traseiro do sedã, com a fêmea ao lado dela. Depois, Phury, filho de Ahgony, e o guerreiro de olhos descombinados entraram na frente. O veículo foi virado bem lentamente, como que por preocupação com a carga preciosa no compartimento traseiro.
Xcor os seguiu, materializando-se de tempos em tempos acompanhando a velocidade crescente na estrada rural ao fim da rua, e depois na autoestrada. Quando o carro chegou à ponte, ele mais uma vez o viu do mais alto esteio e depois que sua fêmea passou debaixo dele, ele saltou de telhado em telhado enquanto o sedã dava a volta no centro da cidade.
Ele rastreou o carro seguindo ao norte até sair da autoestrada e entrar numa região rural.
Continuou com ela o tempo inteiro.
E foi assim que ele descobriu a localização da Irmandade.
CONTINUA
CAPÍTULO 27
Assomando-se acima de Qhuinn, Blay estava anormalmente ciente de tudo ao seu redor: a sensação da mão de Qhuinn atrás da sua perna, o modo como a bainha do roupão resvalava sua canela, o cheiro do sexo permeando o ar.
De tantos modos, ele quisera aquilo a vida inteira. Ou pelo menos, desde que sobrevivera à transição e teve algum tipo de impulso sexual. Aquele momento era o ápice de sonhos incontáveis e de inúmeras fantasias, seu desejo secreto sendo manifestado.
E era sincero: os olhos descombinados de Qhuinn não tinham sombras, nem dúvidas. O macho não só dizia a mais absoluta verdade que lhe passava pelo coração, mas estava em paz por se expor com tanta vulnerabilidade.
Blay cerrou as pálpebras brevemente. Aquela submissão era o oposto de tudo o que definia Qhuinn como macho. Ele nunca se entregava; não os seus princípios, não as suas armas, nunca, jamais a si mesmo. Pensando bem, a reviravolta fazia algum sentido. O enfrentamento da morte tendia a ser seguido por revelações...
A questão era que ele tinha a sensação de que aquilo não duraria. Aquela “visão desobstruída” sem dúvida estava ligada à viagem de avião, mas tal qual uma vítima de ataque cardíaco voltando à antiga dieta deplorável pouco depois, a “revelação” provavelmente não teria vida longa. Sim, Qhuinn estava sendo sincero quanto ao que dizia naquele momento inebriante, não havia dúvida alguma quanto a isso. No entanto, era difícil acreditar que aquilo seria permanente.
Qhuinn era o que era. E muito em breve, depois que o choque fosse absorvido – talvez ao cair da noite, quem sabe na semana seguinte, ou dali a um mês – ele voltaria ao seu modo de ser fechado, distante, à parte.
Decisão tomada, Blay voltou a abrir os olhos e se inclinou. Quando os rostos se aproximaram, os lábios de Qhuinn se partiram, o inferior, carnudo, pulsava como se ele já tentasse saborear o que desejava... e se deleitava.
Merda. O lutador era tão magnífico, o peito nu poderoso reluzindo na luz do abajur, a pele transportando uma camada de excitação, os mamilos perfurados se elevando e descendo conforme a pulsação desenfreada do sangue aquecido.
Blay percorreu a mão pelos músculos do braço que os ligava, desde a espessura grossa do ombro até a protuberância do bíceps e a curva entalhada do tríceps.
Retirou a palma de sua coxa.
E se afastou.
Qhuinn empalideceu a ponto de ficar acinzentado.
No silêncio, Blay nada disse. Não conseguiria. Sua voz havia desaparecido.
Em pernas cambaleantes, ele se distanciou, a mão envolvendo a maçaneta até conseguir coordenação suficiente para abrir a saída. Saindo, ele não saberia dizer se bateu a porta ou se a fechou silenciosamente.
Não foi muito longe. Pouco mais de um metro além do quarto, ele desabou ao encontro da parede lisa e fria do corredor.
Ofegando. Estava ofegando.
E todo aquele esforço de nada adiantaria. A sufocação no peito só piorava e, subitamente, sua visão foi substituída por quadrados em preto e branco de um tabuleiro de xadrez.
Deduzindo que estava prestes a desmaiar, agachou-se e colocou a cabeça entre os joelhos. Nos recessos da mente, rezou para que o corredor continuasse vazio. Aquele não era o tipo de coisa que gostaria de explicar para ninguém: estava do lado de fora do quarto de Qhuinn, obviamente excitado, o corpo tremendo como se um terremoto particular estivesse acontecendo...
– Jesus Cristo...
Quase morri hoje... e isso endireita as pessoas. Lá em cima naquele avião, olhando para a noite escura, não achei que fosse conseguir. Tudo ficou claro para mim.
– Não – Blay disse em voz alta. – Não...
Apoiando a cabeça nas mãos, tentou respirar calmamente, pensar racionalmente, agir sensatamente. Não poderia se dar ao luxo de se afundar ainda mais naquilo...
Aqueles olhos quentes, brilhantes, descombinados eram o que o atraiam.
– Não – sibilou.
Enquanto a voz ressoava em seu crânio, ele resolveu se dar ouvidos. Chega. Aquilo não poderia ir adiante.
Há tempos perdera o coração para aquele macho.
Não havia motivos para perder a alma também.
Uma hora mais tarde, talvez duas, ou seis, Qhuinn estava deitado nu entre os lençóis frios, fitando o escuro do teto que não conseguia enxergar.
Aquela era a dor horrível que Blay sentira? Como na vez em que fora procurá-lo no porão da casa dos pais dele e disse estar preparado para partir de Caldwell, deixando bem claro que não haveria mais nenhum laço entre eles? Ou talvez na vez em que se beijaram na clínica e Qhuinn se recusara a ir em frente? Ou naquela derradeira colisão quando eles quase ficaram juntos, pouco antes do primeiro encontro de Blay com Saxton?
Um maldito vazio enorme.
Como aquele quarto, na verdade: sem iluminação e essencialmente vazio, apenas quatro paredes e um teto. Ou um saco de pele e um esqueleto, como era o caso.
Levantando a mão, colocou-a sobre o coração, só para se certificar de que ainda tinha um.
Caramba, o destino tinha um jeito de lhe ensinar as coisas que você precisava saber, mesmo se você não estivesse ciente de que a lição era necessária até ela ser apresentada: ele desperdiçara tempo demais envolvido consigo mesmo e o seu defeito, e seu fracasso perante a família e a sociedade. Um emaranhado confuso em que se metera por tempo demais e Blay, porque se importara, fora sugado naquele turbilhão.
Mas quando foi que apoiara o amigo? O que de fato fizera pelo cara?
Blay estivera certo ao sair daquele quarto. Um pouco tarde demais, não era o ditado? E não que Qhuinn estivesse oferecendo algum tipo de prêmio. Debaixo da superfície, ele não estava muito mais estável, na verdade. Não estava mais em paz.
Não, ele merecia aquilo...
Uma centelha de luz amarelo-esverdeada fatiou o seu campo negro de visão, como se a escuridão fosse um tecido e o facho de luz uma faca.
Uma figura entrou sorrateira no seu quarto, silenciosamente, e fechou a porta.
Pelo cheiro, ele soube quem era.
O coração de Qhuinn começou a bater forte quando ele se endireitou nos travesseiros.
– Blay...?
Houve um ruído sutil, o roupão escorregando pelos ombros do macho alto. Em seguida, momentos depois, o colchão foi pressionado quando um peso grande, vital, subiu nele.
Qhuinn esticou a mão no escuro com acuidade certeira, as mãos encontrando as laterais do pescoço de Blay com tanta precisão como se tivessem sido direcionadas pela visão.
Nenhuma conversa. Ele temia que as palavras lhe roubassem aquele milagre.
Elevando a boca, puxou a de Blay para a sua, e quando aqueles lábios de veludo estavam perto de seu campo de atuação, ele os beijou com um desespero que foi retribuído. De uma vez só, todo o passado reprimido foi libertado com fúria e ele sentiu o gosto de sangue, sem saber quais foram as presas que rasgaram o outro.
E quem se importava?
Com um puxão forte, deitou Blay e depois rolou por cima do macho, afastando-lhe as coxas e pressionando-se até que o membro rijo se deparasse com...
Os dois gemeram.
Tonto por causa de tanta pele nua, Qhuinn começou a bombear os quadris para frente e para trás, a fricção dos sexos e a pele quente aumentando o calor úmido em suas bocas. Frenesi, em toda parte, rápido, depressa, rápido... Puta merda, havia desejo demais para entender onde suas mãos estavam, ou no que ele se esfregava ou... Porra, havia pele demais para tocar, cabelos para puxar, tanta coisa, demais...
Qhuinn gozou, as bolas endurecendo, a ereção jorrando entre eles, espalhando-se por todos os lados.
E isso não o desacelerou em nada.
Com um puxão, afastou-se da boca que poderia passar uma centena de anos beijando, lançou-se sobre o peito de Blay. Os músculos com que se deparava não se comparavam com os dos humanos com quem transara: aquilo era um vampiro, um lutador, um soldado treinado arduamente que exercitava o corpo para atingir uma condição não só útil, mas essencialmente letal. Caramba se aquilo não era ex-citante... mas, acima de tudo, aquele era Blay; finalmente, depois de todos aqueles anos...
Blay.
Qhuinn resvalou as presas por um abdômen que era sólido como uma rocha, e o seu cheiro na pele de Blay era uma marcação que sabia que fizera de propósito.
Aquele tempero forte também iria para outros lugares.
Gemeu quando as mãos encontraram o pênis de Blay e, enquanto circundava a coluna rija, o cara se arqueou profundamente, uma imprecação atravessando o quarto, de modo bem semelhante ao que a luz fizera pouco antes.
Qhuinn lambeu os lábios, elevou o sexo de Blay e permitiu que o pênis grosso e ousado partisse sua boca. Sugando, tomou-o até a base, abrindo a garganta, engolindo tudo. Em resposta, os quadris de Blay se elevaram, e mãos brutas cravaram em seus cabelos, forçando a cabeça ainda mais para baixo até que ele não conseguisse mais levar ar aos pulmões. Mas quem é que precisava de oxigênio?
Afundando as mãos nas nádegas de Blay, inclinou aquela pélvis e subiu e desceu, o pescoço se esticando com o ritmo punitivo, os ombros flexionando e relaxando enquanto ele executava exatamente aquilo que oferecera a Blay antes de ele ir embora.
Ele não pretendia fazer apenas aquilo, porém.
Não.
Era apenas o começo.
CAPÍTULO 28
Quando Blay caiu contra os travesseiros de Qhuinn, quase partiu a coluna. Tudo estava fora de controle, mas ele não teria desacelerado em nada as coisas: os quadris subiam e desciam, o pau empurrava e era chupado pela boca de Qhuinn...
Graças a Deus as luzes estavam apagadas.
Só as sensações já eram demais. Com um auxílio visual? Ele não conseguiria...
O orgasmo disparou como um foguete, a respiração ficou suspensa, o corpo enrijeceu todo, o sexo gozando ao máximo. Ao chegar ao clímax em grandes espasmos, ele foi ordenhado por aquela boca... e, caramba, a sucção incitou o alívio a continuar, com grandes ondas de prazer pulsante varrendo-o do cérebro até as bolas, seu corpo atingindo um plano de existência completamente diferente...
Sem aviso, ele foi virado por uma mão brusca, o corpo manejado como se não pesasse absolutamente nada. Em seguida, um braço passou por baixo de sua pélvis e o colocou de joelhos. Houve uma breve calmaria na qual tudo o que ele ouviu foi a respiração pesada atrás dele, o arquejo aumentando cada vez mais, mais fundo...
Ouviu o orgasmo de Qhuinn e entendeu exatamente o motivo.
Mesmo seu corpo inteiro estando fraco de antecipação, ele sabia que tinha de se preparar quando uma mão pesada aterrissou em seu ombro e...
A penetração foi como um ferro de marcar, quente e brutal, atingindo direto o seu cerne. E ele praguejou numa exalação explosiva. Não porque doesse, ainda que do melhor modo possível. Nem mesmo porque aquilo era algo que ele tanto desejara, se bem que isso fosse verdade.
Não. Era porque ele teve a estranha sensação de estar sendo marcado e, por algum motivo, isso fez com que...
Um sibilo atingiu-o no ouvido, e depois um par de presas cravou-se em seu ombro, a pegada de Qhuinn mudando na altura dos quadris, o torso enroscado em tantos lugares. E, então, quando a penetração inexorável começou, os molares de Blay se cerraram, os braços tiveram que suportar o peso dos dois, as pernas e o torso se esforçaram debaixo do ataque.
Ele teve a sensação de que a cabeceira da cama batia contra a parede e por um centésimo de segundo, lembrou-se do candelabro na biblioteca oscilando enquanto Layla fora sujeitada àquilo.
Blay amaldiçoou a imagem. Não se permitiria ir lá; não poderia. Deus bem sabia que haveria muito tempo para refletir sobre tudo aquilo mais tarde.
Naquele instante? Aquilo era bom demais para ser desperdiçado...
Enquanto o açoite continuava, suas palmas escorregaram nos lençóis de algodão fino, e ele teve que reposicioná-las, afundando-as no colchão macio para tentar sustentar sua posição. Deus, os sons que Qhuinn fazia, os rosnados que reverberavam entre as presas enterradas em seu ombro, as estocadas... ah, sim, isso era a cabeceira. Definitivamente.
Com a pressão se avolumando em suas bolas, ele se sentiu tentado a se espalmar, mas não havia como. Ele precisava das duas mãos naquele trabalho...
Como se Qhuinn lesse sua mente, o macho passou o braço ao seu redor e o agarrou.
Não era necessário masturbá-lo. Blay gozou tão violentamente que sua mente ficou difusa e, naquele exato instante, Qhuinn começou a ter um orgasmo também, os quadris movendo-se para dentro, parando um segundo antes de recuarem só para afundarem ainda mais antes da explosão. E, ah, porra, a combinação dos dois fazendo suas coisas era tão erótica que só fez com que tudo recomeçasse mais uma vez: não houve intervalo para se recuperarem, absolutamente nenhuma pausa. Qhuinn apenas retomou as investidas como se seu alívio o tivesse fortalecido.
Enquanto o sexo se estendia, e apesar de toda a força que Blay tinha em seus membros superiores, ele acabou caindo da cama, uma mão travando na lateral da mesinha de cabeceira só para que ele não batesse na parede...
Crash!
– Merda – disse ele rouco. – O abajur...
Ao que tudo levava a crer, Qhuinn não estava interessado em decoração. O macho simplesmente puxou a cabeça de Blay e começou a beijá-lo, a língua com piercing penetrando sua boca, lambendo e sugando... como se não conseguisse se fartar.
Tontura. Ele ficou absolutamente tonto com tudo aquilo. Em cada fantasia que teve, ele sempre visualizou Qhuinn como um amante impetuoso, mas aquilo... aquilo estava num outro nível.
Por isso, foi ao longe que ele se ouviu dizer numa voz gutural:
– Morda... de novo.
Um grunhido imenso vindo de cima perpassou seu ouvido, e depois outro sibilo atravessou a escuridão quando Qhuinn mudou as posições, seu peso massivo girando para que as presas pudessem afundar na lateral do pescoço.
Blay praguejou e empurrou para longe o que quer que tivesse restado sobre a mesinha de cabeceira, o peito tomando o lugar dos objetos, a pele suada chiando no verniz enquanto ele jazia meio de lado. Esticando a mão, ele se apoiou na tábua do piso e empurrou para cima, mantendo os dois estáveis enquanto Qhuinn se alimentava e o penetrava tão magnificamente bem...
Vezes demais para contar, até os travesseiros estarem no chão, os lençóis rasgados, outro abajur destruído... e não estava muita certo, mas ele achava que tinha derrubado um quadro da parede.
Quando a imobilidade por fim substituiu todo aquele esforço, Blay respirou fundo e se sentiu como se estivesse submerso.
O mesmo se passava com Qhuinn.
O aumento da trajetória úmida no pescoço de Blay sugeria que as coisas ficaram tão descontroladas que não houve o fechamento da veia que fora sugada. E quem se importava? Ele não, nem conseguia pensar, e não se preocuparia. As sensações pós-coito de flutuação e êxtase eram gloriosas demais para serem estragadas, o corpo estava ao mesmo tempo hipersensível e entorpecido, quente e brando, dolorido e saciado.
Caramba, os lençóis teriam de ser lavados. E Fritz indubitavelmente teria de encontrar uma supercola para aqueles abajures.
Onde exatamente ele estava?
Esticando a mão, tateou e descobriu o tapete e a saia da cama... além de uma manta. Ah, bom, estava quase caindo pela ponta da cama. O que explicava a tontura que sentia.
Quando Qhuinn, por fim, soltou-se dele, Blay quis acompanhá-lo, mas seu corpo estava muito mais interessado em ser um objeto inanimado. Ou um rolo de tecido ou, quem sabe...
Mãos gentis o suspenderam e, com cuidado e devagar, rolaram-no de costas. Houve mais um pouco de movimentação e depois ele se sentiu reposicionado contra os travesseiros que retornaram ao seu devido lugar. Enfim, uma manta leve foi ajustada na metade do seu corpo, como se Qhuinn soubesse que ele estava muito quente para ser coberto demais e, ainda assim, começava a sentir um friozinho enquanto o suor que o cobria começava a secar.
Seu cabelo foi empurrado para longe da testa e, em seguida, sua cabeça foi ajeitada para o lado. Lábios de seda beijaram a coluna de seu pescoço e, depois, lambidas longas e langorosas selaram a mordida que ele pedira e recebera.
Quando tudo terminou, deixou que sua cabeça fosse ajeitada para o lado de Qhuinn. Ainda que estivesse absolutamente escuro, ele sabia exatamente como o rosto que o fitava estava: ruborizado nas maçãs do rosto, as pálpebras semicerradas, os lábios vermelhos...
O beijo pressionado em sua boca foi reverente, o contato não mais pesado do que o ar quente e estático do quarto. Era o beijo perfeito de um amante, o tipo de coisa que ele desejava mais do que o sexo ardente que partilharam...
O pânico golpeou o centro do seu peito e ressoou para fora num piscar de olhos.
As mãos agiram por vontade própria, empurrando Qhuinn.
– Não me toque. Nunca mais me toque assim.
Deu um salto da cama e só Deus sabia em que parte do quarto ele aterrissou. Hesitante, tateou pelo aposento, mas acabou se orientando pela luz que passava por baixo da porta.
Apanhando o roupão no chão, não olhou para trás ao sair.
Não suportaria encarar o resultado daquilo tudo em nenhum tipo de luz.
Isso só tornaria tudo aquilo muito real.
Em algum momento, Qhuinn teve que fazer com que as luzes se acendessem. Não suportava mais a escuridão.
Quando a iluminação inundou o lugar, ele piscou e teve que amparar os olhos com a mão. Depois de recalibrar as retinas, olhou ao redor.
Caos. Total e absoluto.
Então tudo aquilo acontecera mesmo, hein. E quanta ironia que o interior da sua cabeça fizesse com que aquela bagunça parecesse uma ordem militar em comparação.
Nunca mais me toque assim.
Ah, inferno, pensou ele ao esfregar o rosto. Não poderia culpar o cara.
Primeiro, demonstrara a mesma finesse de uma escavadeira. Bola de demolição. Tanque de guerra. O problema era que tudo aquilo fora intenso demais para demonstrar qualquer traço de paciência: o instinto, tão puro e tão inflamável quanto combustível, o acendera; a sessão fora um caso de deixar as coisas rolarem.
Oh, Deus, marcara o cara.
Caralho. E não exatamente no bom sentido, considerando que Blay estava apaixonado e envolvido num relacionamento... e voltando para a cama do amante.
Mas, pensando bem, quando um macho está com quem ele quer, especialmente se é a primeira vez, era isso mesmo o que acontecia. As coisas saíam do controle...
Nem era preciso dizer que aquele fora o melhor sexo de sua vida, a primeira vez de perfeito encaixe depois de uma longa história de “nem de longe”. A questão foi que, no fim, ele quis que Blay soubesse disso, tentou encontrar as palavras e se apoiou no toque para pavimentar o caminho da confissão.
Contudo, ficou evidente que o macho não queria ter essa proximidade.
O que provocou um segundo, e mais profundo, arrependimento.
Sexo por desforra não se tratava de atração, mas sim de utilidade. E Blay o usara, do modo como ele pedira para ser usado.
Aquela sensação de vazio voltou multiplicada por dez. Por cem.
Sem conseguir suportar a emoção, pôs-se de pé, e teve que praguejar: a rigidez notável na lombar tinha tudo a ver com o acidente de avião e mais ainda com a pneumática que realizara na última hora... ou mais...
Merda.
Indo para o banheiro, deixou as luzes apagadas, mas havia iluminação suficiente vinda do quarto para ele conseguir entrar no chuveiro. Dessa vez, esperou a água esquentar; seu corpo não suportaria mais um choque.
Era tão patético; a última coisa que desejava era lavar o cheiro de Blay de sua pele, mas estava enlouquecendo com ele. Deus, devia ser assim que todos os hellrens se sentiam quando ficavam possessivos: metade do seu juízo dizia que ele devia descer o corredor, invadir o quarto de Blay e expulsar Saxton. A bem da verdade, teria adorado que o primo tivesse testemunhado, só para o cara saber que...
Para interromper aquele nada saudável curso de pensamentos, entrou no box envidraçado e pegou o sabonete.
Blay estava envolvido, tentou se lembrar disso, mais uma vez.
O sexo que partilharam não se referia à conexão emocional.
Portanto, ele estava, nesse momento de vazio, sendo passado para trás pela sua própria história.
Aquele parecia ser mais um caso em que o destino lhe dava aquilo que ele merecia.
Enquanto se lavava, o sabonete não era nada macio se comparado com a pele de Blay, nem cheirava um quarto do perfume do cara. A água não era tão quente quanto o sangue do lutador e o xampu, nada tranquilizador. Nada se equiparava.
Nem jamais conseguiria.
Enquanto Qhuinn virava o rosto para o jato e abria a boca, descobriu-se rezando para que Saxton pulasse a cerca mais uma vez, mesmo isso sendo uma coisa deplorável de se desejar.
O problema era que ele tinha a terrível sensação de que outro caso de infidelidade seria a única maneira de Blay voltar para ele.
Fechando os olhos, voltou para aquele momento em que beijou Blay no fim... em que o beijou de verdade, quando as bocas se encontraram gentilmente na calmaria após a tempestade. Enquanto sua mente reescrevia o roteiro, ele não era empurrado para o outro lado dos limites que ele mesmo criara. Não, em sua imaginação, as coisas terminavam como teriam de terminar, com ele afagando o rosto de Blay e fazendo as luzes se acenderem para que pudessem se olhar.
Em sua fantasia, ele beijaria seu amigo uma vez mais, se afastaria e...
– Eu te amo – disse ele para o jato de água. – Eu... te amo.
Ao fechar os olhos novamente ante a dor, ficou difícil saber quanto daquilo que descia pelo seu rosto era água e quanto era outra coisa.
CAPÍTULO 29
No dia seguinte, bem no fim da tarde, o visitante de Assail voltou.
Enquanto o sol se punha e os raios rosados de sol atravessavam a floresta, ele viu em seu monitor uma figura solitária em esquis de cross-country, os bastões equilibrados contra os quadris, binóculos cobrindo o rosto.
Nos quadris dela, o rosto dela, melhor dizendo.
A boa notícia era que suas câmeras de segurança não só tinham um zoom fantástico, como também seu foco e campo de visão eram facilmente manipulados por um joystick de computador.
Por isso ele restringiu ainda mais a imagem.
Quando a mulher abaixou os binóculos, ele mediu o comprimento de cada cílio ao redor dos olhos escuros e calculistas, e as marcas avermelhadas das maçãs do rosto de poros pequenos, e o ritmo uniforme da pulsação da artéria que percorria a mandíbula.
O aviso que ele dera a Benloise fora recebido. E, ainda assim, lá estava ela.
Era evidente que ela estava, de algum modo, ligada ao atacadista de drogas; e na noite anterior, pelo visto, ela ficara irritada com Benloise, visto o modo como marchara para fora da galeria como se alguém a tivesse insultado.
Todavia, Assail nunca a vira antes, o que era estranho. No último ano, aproximadamente, ele se familiarizara com todos os aspectos da operação de Benloise, desde o número incalculável de seguranças, até a equipe irrelevante da galeria, incluindo os importadores astutos e o irmão do homem, responsável pelas finanças.
Portanto, ele só podia deduzir que ela era uma empreiteira independente, contratada para um propósito específico.
Mas por que, então, ela ainda estava em sua propriedade?
Verificou os números digitais na parte inferior da tela. Quatro e meia. Costumeiramente, não seria uma hora com que se alegrar, pois ainda era cedo demais para sair. Mas o horário de verão acabara, e aquela invenção humana de manipular o sol na verdade trabalhava a seu favor por seis meses no ano.
Estaria um pouco quente lá fora, mas ele lidaria com isso.
Assail se vestiu rapidamente, colocando o terno Gucci com uma camisa de seda branca e pegando o sobretudo trespassado de pelo de camelo. O seu par de Smith & Wesson calibre .40 era o acessório perfeito, claro.
O metálico seria sempre o novo preto.
Pegando o iPhone, franziu ao tocar a tela. Uma chamada de Rehvenge, com uma mensagem.
Saindo do quarto, acessou a mensagem de voz do lídher do Conselho e ouviu-a enquanto descia as escadas.
A voz do macho ia direto ao ponto, e isso era algo a se respeitar:
– Assail, você sabe quem é. Estou convocando uma reunião do Conselho e quero não apenas um quorum, mas presença completa; o Rei estará presente, bem como a Irmandade. Como macho sobrevivente mais velho da sua linhagem, você está na lista do Conselho, mas registrado como inativo porque permaneceu no Antigo País. Agora que está de volta, está na hora de começar a participar desses encontros festivos. Ligue para mim para me informar a sua agenda, para que eu possa organizar local e data conveniente a todos.
Parando ante a porta de aço que bloqueava a escada inferior, colocou o telefone no bolso de dentro, destravou a porta e a abriu.
O primeiro andar estava escuro por conta das persianas especiais que bloqueavam toda a luz solar, e a sala de estar imensa mais se parecia com uma caverna no centro da terra do que com uma gaiola envidraçada às margens do rio.
Da direção da cozinha vinha o barulho de fritura e o cheiro de bacon.
Caminhando na direção oposta, entrou no falso escritório recoberto com painéis de nogueira que cedera ao uso dos primos e passou para o quarto especial de dois metros quadrados, cuja temperatura era mantida em precisos vinte graus Celsius e umidade a exatamente 69%, perfumado pelo tabaco de dúzias e dúzias de caixas de charutos. Depois de ponderar sobre a fileira exposta, apanhou três cubanos.
Afinal, os cubanos eram os melhores.
E ali estava mais uma coisa que Benloise lhe fornecia por um preço.
Trancando a sua preciosa coleção, voltou à sala de estar. Já não havia barulho de fritura, o bater sutil de talheres nos pratos o substituíra.
Ao entrar na cozinha, os dois primos estavam sentados em bancos ante a bancada de granito, o par comendo no mesmo ritmo preciso, como num rufar de tambores, despercebido por outros, mas que regulava seus movimentos.
Os dois levantaram as cabeças no mesmo ângulo para olhar para ele.
– Estou de saída. Sabem como me localizar – disse.
Ehric limpou a boca.
– Localizei três daqueles intermediários desaparecidos... voltaram à ação, estão prontos para se mexer. Vou fazer a entrega à meia-noite.
– Bom, muito bom – Assail verificou rapidamente as armas. – Tente descobrir onde estavam, sim?
– Como quiser.
Os dois abaixaram as cabeças ao mesmo tempo, voltando ao desjejum.
Nada de comida para ele. Do lado da cafeteira, ele pegou um frasco de cor de âmbar e desatarraxou a tampa, que tinha uma colherinha de prata grudada a ela, e o objeto emitiu um tinido enquanto ele o enchia com cocaína. Uma aspirada.
Bom dia!
Ele levou o resto consigo, colocando-o no mesmo bolso dos charutos. Já fazia um tempo desde que se alimentara e estava começando a sentir os efeitos, o corpo preguiçoso, a mente tendendo a um entorpecimento desconhecido.
O lado negativo do Novo Mundo? Era difícil encontrar fêmeas.
Felizmente, cocaína pura era um bom substituto, pelo menos por enquanto.
Ajustando um par de óculos de sol de lentes opacas, passou pelo vestíbulo e se preparou para sair pela porta dos fundos.
Afastando a porta...
Assail se retraiu e gemeu ante o ataque, seu peso oscilando em seus sapatos: apesar de 99% do seu corpo estar coberto por camadas múltiplas de roupa, e mesmo de óculos escuros, a luz efêmera do céu era o bastante para que ele vacilasse.
No entanto, não havia tempo para ceder à biologia.
Esforçando-se para se desmaterializar até a floresta atrás da casa, pôs-se a rastrear a mulher próximo à escuridão. Foi bem fácil localizá-la. Ela estava batendo em retirada, movendo-se rapidamente sobre aqueles esquis, abrindo caminho por entre os ramos espinhosos dos pinheiros e os carvalhos e bordos esqueléticos. Extrapolando a trajetória dela e aplicando a mesma lógica interna que ela demonstrara nas fitas de segurança da manhã anterior, ele logo se adiantou, antecipando bem onde ela estaria...
Ah, sim. O Audi preto da galeria. Estacionado ao lado da estrada limpa de neve a cerca de três quilômetros de sua propriedade.
Assail estava recostado contra a porta do motorista e bafejando um cubano quando ela saiu do limite das árvores.
Ela parou de pronto nos rastros duplos por ela criados, os bastões em ângulos abertos.
Ele lhe sorriu ao soprar uma nuvem de fumaça no crepúsculo.
– Belo entardecer para se exercitar. Apreciando a vista... Da minha casa?
A respiração dela estava acelerada devido ao esforço físico, mas não por algum medo que ele pudesse pressentir. Isso o excitava.
– Não sei do que está fal...
Ele interrompeu a mentira.
– Bem, o que posso lhe dizer é que, no momento, sou eu quem está apreciando a vista.
Enquanto seu olhar descia deliberadamente pelas pernas longas e atléticas nas calças justas de esqui, ela o encarou.
– Acho difícil que consiga ver qualquer coisa por trás dessas lentes.
– Meus olhos são muito sensíveis à luz.
Ela franziu o cenho e olhou ao redor.
– Quase não há mais nenhuma luz.
– Há o bastante para eu enxergá-la – ele deu nova baforada. – Gostaria de saber o que eu disse a Benloise ontem à noite?
– Quem?
Ela o aborreceu e ele afiou a voz:
– Um pequeno conselho. Não brinque comigo... isso fará com que morra mais rápido do que qualquer tipo de invasão de domicílio.
Um cálculo impassível fez com que ela estreitasse o olhar.
– Eu não sabia que invasão de propriedade dava pena de morte.
– Comigo, existe uma bela lista de coisas com repercussões letais.
Ele levantou o queixo.
– Ora, ora. Como você é perigoso.
Como se ele fosse um gatinho brincando com um novelo e sibilando.
Assail moveu-se com rapidez, ele bem sabia que os olhos dela seriam incapazes de acompanhá-lo. Num momento, estava a metros de distância; no instante seguinte, estava nas pontas dos seus esquis, prendendo-a no lugar.
A mulher gritou alarmada e tentou recuar, mas, claro, seus pés estavam presos. Para evitar que ela caísse, ele a apanhou pelo braço com a mão que não segurava o charuto.
Agora o sangue dela corria de medo e, quando ele inalou seu cheiro, excitou-se. Puxando-a para a frente, fitou-a, tracejando-lhe o rosto.
– Tome cuidado – disse ele numa voz mansa. – Eu me ofendo com rapidez e meu temperamento não é facilmente aplacado.
Embora ele conseguisse pensar pelo menos numa coisa que ela poderia lhe dar que o acalmaria.
Inclinando-se, ele inspirou profundamente. Deus, adorava o cheiro dela.
Mas aquela não era a hora de se distrair com esse tipo de coisa.
– Eu disse a Benloise que enviasse pessoas à minha casa por sua conta e risco... delas. Estou surpreso que ele não a tenha alertado sobre esses, como podemos dizer, limites bem delimitados de propriedade...
Pelo canto do olho, ele percebeu um movimento sutil no ombro dela. Ela pretendia pegar a arma com a mão direita.
Assail colocou o charuto entre os dentes e segurou o punho delicado. Aplicando pressão e só parando quando a dor se fez perceber na respiração dela, ele a arqueou para trás para que ela notasse completa e inequivocadamente o poder que ele tinha sobre si mesmo e sobre ela. Sobre tudo.
E foi nesse momento que a mulher se excitou.
Fazia muito tempo, talvez tempo demais, desde que Sola desejou um homem.
Não que ela não os considerasse desejáveis via de regra, ou que não tivessem existido ofertas para encontros horizontais com membros do sexo oposto. Nada lhe parecera valer o esforço. E talvez, depois daquele único relacionamento que não dera certo, ela tivesse regressado aos hábitos de sua rígida criação brasileira – o que era irônico, considerando-se o que fazia para sobreviver.
Aquele homem, porém, chamara sua atenção. Verdadeiramente.
O modo como a segurava pelo braço e pelo pulso não era nada educado e, mais do que isso, não havia clemência pelo fato de ela ser mulher; as mãos a apertavam com tanta força a ponto de a dor se encaminhar para o coração, fazendo-o bater forte. Do mesmo modo, o ângulo em que a forçava para trás testava os limites da capacidade de sua coluna se dobrar, e as coxas ardiam.
Excitar-se assim... era uma negligência ignorante para a sua autopreservação. Na verdade, ao fitar aquelas lentes escuras, ela estava bem ciente de que ele poderia matá-la ali mesmo. Torcendo o seu pescoço. Quebrando seus braços só para vê-la gritar antes de sufocá-la na neve. Ou talvez apenas desacordando-a antes de jogá-la no rio.
O sotaque carregado de sua avó subitamente veio-lhe à mente: Por que não pode conhecer um bom rapaz? Um rapaz católico de uma família que conhecemos? Marisol, assim você parte o meu coração.
– Só posso deduzir – a voz sombria sussurrou com um sotaque e uma inflexão que lhes eram desconhecidos – que a mensagem não lhe foi transmitida. Correto? Benloise deixou de lhe passar essa informação... e é por isso que, depois de eu ter expressamente indicado minhas intenções, você ainda assim voltou a espionar a minha casa? Creio que foi isso o que aconteceu, talvez uma mensagem de voz que ainda não tenha sido recebida. Ou uma mensagem de texto, um e-mail. Sim, acredito que o comunicado de Benloise tenha se perdido, não é mesmo?
A pressão nela intensificou-se ainda mais, sugerindo que ele tinha força de sobra, o que era, no mínimo, uma perspectiva assombrosa.
– Não é isso? – rugiu ele.
– Sim – disse ela. – É isso.
– Portanto, posso deduzir que não a encontrarei em seus esquis por aqui. Correto?
Ele a sacudiu novamente, a dor fazendo com que seus olhos revirassem.
– Sim – ela disse num engasgo.
O homem relaxou apenas o suficiente para que ela pudesse respirar um pouco. Depois continuou falando, naquela voz estranhamente sedutora:
– Bem, preciso de uma coisa antes que você vá. Você me dirá o que descobriu sobre mim... Tudo o que descobriu.
Sola franziu o cenho, pensando que aquilo era tolice. Sem dúvida um homem como aquele estaria ciente de qualquer informação que uma terceira pessoa poderia saber a seu respeito.
Então aquilo era um teste.
Visto que ela queria muito rever a avó, Sola disse:
– Não sei seu nome, mas posso imaginar o que faz, e também o que fez.
– E o que seria?
– Acredito que seja a pessoa que esteja matando aqueles interceptadores na cidade para assegurar território e controle.
– Os jornais e os noticiários disseram que se tratavam de suicídios.
Ela apenas prosseguiu, uma vez que não havia motivo para argumentar:
– Sei que mora sozinho, até onde posso saber, e que sua casa possui um tratamento estranho nas janelas. Um tipo de camuflagem para parecer o interior da casa, mas... é outro tipo de coisa. Só não sei o quê.
O rosto acima do dela permaneceu completamente impassível. Calmo. Tranquilo. Como se não a estivesse forçando a ficar no lugar... Ou a ameaçando. O controle era... erótico.
– E? – insistiu ele.
– É só isso.
Ele inalou o charuto nos lábios, a ponta em círculo alaranjado brilhando mais.
– Só vou libertá-la uma vez. Entende?
– Sim.
Ele se moveu com tanta rapidez que ela teve que balançar os braços para readquirir o equilíbrio, os bastões se afundando na neve. Espere, o que ele...
O homem apareceu bem atrás dela, os pés plantados nas laterais dos rastros dos esquis, uma barricada física para o caminho que ela fizera a partir da casa dele. Enquanto o bíceps e o pulso direitos dela ardiam por conta do sangue que voltava a circular nas partes que foram comprimidas, um aviso surgiu na base de sua nuca.
Cai fora daqui, Sola disse a si mesma. Agora.
Sem querer arriscar uma nova captura, ela se moveu para frente até a estrada, a parte inferior dos esquis lutando para conseguir avançar na neve gelada e compactada.
Enquanto ela avançava, ele a seguia, caminhando lentamente, inexoravelmente, como um grande felino que estava cercando a presa com a qual estava contente em apenas brincar, por enquanto.
As mãos dela tremiam quando usou as pontas dos esquis para soltar as amarras, e ela teve dificuldade para prender os esquis no rack do carro. O tempo inteiro, ele permaneceu parado no meio da estrada observando-a, a fumaça do charuto subindo pelo ombro em brisas frias que seguiam para o rio.
Entrando no carro, ela travou as portas, deu partida e olhou pelo espelho retrovisor. No brilho da luz do freio, ele parecia inequivocadamente maligno, um homem alto, de cabelos escuros, com o rosto lindo como o de um príncipe, e tão cruel quanto uma lâmina.
Pisando no acelerador, ela saiu do acostamento e se afastou rápido, o sistema de tração das quatro rodas sendo acionado para a tração de que ela precisava.
Ela olhou de relance mais uma vez pelo retrovisor. Ele ainda estava lá...
O pé de Sola mudou para o freio e quase o pressionou.
Ele sumira.
Como se tivesse se dissipado no ar. Num momento estava lá... no seguinte, invisível.
Sacudindo-se, voltou a pressionar o acelerador e fez o sinal da cruz sobre o coração acelerado.
Num pânico absurdo, perguntou-se: mas que diabos era ele?
CAPÍTULO 30
Bem quando as persianas eram suspensas com a chegada da noite, Layla ouviu uma batida à porta e, mesmo antes de o cheiro passar pelas frestas, ela sabia quem tinha vindo vê-la.
Inconscientemente, a mão subiu para o cabelo, e descobriu que estava uma bagunça, todo emaranhado por ter virado e revirado o dia inteiro. Pior, nem se importara em tirar a roupa com que saíra para ir à clínica.
Entretanto, não lhe poderia negar a entrada.
– Entre – disse, sentando-se um pouco mais erguida e ajeitando as cobertas que puxara até o queixo.
Qhuinn estava com suas roupas de combate, o que a levou a deduzir que ele estava escalado para o turno daquela noite – mas talvez não. Ela não conhecia o escalonamento.
Quando seus olhares se cruzaram, ela franziu o cenho.
– Você não está bem.
Ele levou a mão para o curativo na sobrancelha.
– Isto? É apenas um arranhão.
Só que não fora o machucado que chamara sua atenção. Era o olhar vago, as concavidades rígidas nas faces.
Ele parou. Farejou. Empalideceu.
Imediatamente, ela baixou o olhar para as mãos, e mais uma vez as torceu.
– Por favor, feche a porta – pediu.
– O que está acontecendo?
Quando a porta se fechou conforme o seu pedido, ela respirou fundo.
– Fui à clínica de Havers ontem à noite.
– O quê?
– Estou sangrando...
– Sangrando? – ele se apressou para a frente, quase derrapando a caminho da cama. – Por que diabos não me contou?
Santa Virgem Escriba, seria impossível para ela não se acovardar ante tamanha fúria. Na verdade, ela estava sem forças no momento e impossibilitada de reunir qualquer tipo de autopreservação.
Instantaneamente, Qhuinn recuou em sua raiva, afastando-se e circulando pelo quarto. Quando a fitou novamente, disse bruscamente:
– Sinto muito. Não tive a intenção de gritar... Eu só... eu só estou preocupado com você.
– Eu sinto muito. E eu deveria ter lhe contado, mas você estava fora em combate e eu não quis aborrecê-lo. Eu não sei... francamente, eu não devia estar pensando com clareza. Estava fora de mim.
Qhuinn se sentou ao lado dela, os ombros imensos se curvando enquanto ele cruzava os dedos e apoiava os cotovelos nos joelhos.
– Então, o que está acontecendo?
Tudo o que ela conseguiu fazer foi dar de ombros.
– Bem, como você pode perceber... estou sangrando.
– Quanto?
Ela pensou no que a enfermeira lhe havia dito.
– O suficiente.
– Há quanto tempo?
– Tudo começou há mais ou menos 24 horas. Não quis procurar a doutora Jane porque não tinha certeza de quão confidencial isso seria e também... ela não tem muita experiência com gestações da nossa espécie.
– O que Havers disse?
Foi a vez de ela franzir a testa.
– Ele não quis me dizer.
– Como é que é? – a cabeça de Qhuinn se ergueu.
– Por causa do meu status como Escolhida, ele só falará com o Primale.
– Está de brincadeira?
Ela balançou a cabeça.
– Não. Também não consegui acreditar nisso e sinto dizer que saí de lá em circunstâncias menos que favoráveis. Ele me reduziu a um objeto, como se eu não tivesse a mínima importância... não passasse de um repositório...
– Você sabe que isso não é verdade – Qhuinn segurou sua mão com os olhos descombinados ardendo. – Não para mim. Nunca para mim.
Ela estendeu a mão e o tocou no ombro.
– Eu sei, mas obrigada por dizer isso – ela estremeceu. – Preciso ouvir isso agora. E quanto ao que está acontecendo... comigo... a enfermeira disse que não há nada que ninguém possa fazer para impedir isto.
Qhuinn baixou o olhar para o tapete e ficou assim por um bom tempo.
– Não entendo. Não era para ser assim.
Engolindo a horrível sensação de fracasso, ela se endireitou e afagou as costas dele.
– Sei que você desejava isto tanto quanto eu.
– Você não pode estar abortando. Não é possível.
– Pelo que fiquei sabendo, os dados estatísticos não são tão bons. Não no começo... e não no fim.
– Não, não pode estar certo. Eu... a vi.
Layla limpou a garganta.
– Sonhos nem sempre se tornam realidade, Qhuinn.
Parecia algo muito simplista de se dizer. Igualmente óbvio. Mas magoava em seu cerne.
– Não foi um sonho – disse ele de modo rude. Mas, então, sacudiu-se e voltou a olhar para ela. – Como está se sentindo? Sente dor?
Quando ela não respondeu de imediato, porque não queria mentir para ele a respeito das cólicas, ele se pôs de pé.
– Vou procurar a doutora Jane.
Ela o segurou pela mão, detendo-o.
– Espere. Pense bem. Se estou perdendo... nosso filho... – ela parou para juntar coragem depois de ter verbalizado aquilo. – Não há razão por que contar para alguém. Ninguém precisa ficar sabendo. Podemos simplesmente deixar a natureza... – a voz dela falhou nesse momento, mas ela se forçou a continuar – ... seguir seu curso.
– Ao inferno com isso. Não vou colocar sua vida em risco só para evitar um confronto.
– Isso não interromperá o aborto, Qhuinn.
– Não estou preocupado somente com o aborto – ele apertou-lhe a mão. – Você é importante. Por isso vou procurar a doutora Jane agora mesmo.
Isso mesmo, ao inferno deixar as coisas por debaixo dos panos, Qhuinn pensou ao seguir para a porta.
Ouvira falar de histórias sobre fêmeas com hemorragias durante os abortos, e ainda que não fosse mencionar nada disso com Layla, teria de agir a respeito.
– Qhuinn. Pare – Layla o chamou. – Pense no que está fazendo.
– Eu estou. Claramente – ele não esperou para debater mais aquilo. – Fique onde está.
– Qhuinn...
Ele ainda conseguiu ouvir a voz dela quando fechou a porta e começou a correr, terminando o corredor e descendo as escadas. Com um pouco de sorte, a doutora Jane ainda estaria se demorando na Última Refeição com seu hellren; o casal estava à mesa quando ele se levantara para ir ver Layla.
Ao chegar ao átrio, seus tênis Nike guincharam no piso de mosaico quando ele tomou a direção da arcada na entrada da sala de jantar.
Vendo a médica bem onde estivera antes foi um golpe de sorte, e seu primeiro instinto foi chamá-la com um grito. Só não o fez ao perceber a quantidade de Irmãos à mesa, comendo a sobremesa.
Merda. Era fácil para ele dizer que lidaria com as consequências se o que fizeram se tornasse público. Mas, e quanto a Layla? Como uma Escolhida sagrada, ela tinha muito mais a perder do que ele. Phury era uma cara bem legal, por isso a chance de ele lidar bem com aquilo era bem grande. E o resto da sociedade?
Ele já passara pela experiência de ser rejeitado, e não queria o mesmo para ela.
Qhuinn se apressou para onde V. e Jane estavam descontraídos, o Irmão fumando um cigarro feito à mão, a médica espectral sorrindo para o seu parceiro enquanto ele lhe contava uma piada.
No instante em que a boa médica olhou para ele, aprumou-se em seu assento.
Qhuinn se abaixou e sussurrou ao seu ouvido.
Nem meio segundo depois, ela estava de pé.
– Preciso ir, Vishous.
Os olhos de diamante do irmão se elevaram. Aparentemente, apenas um vislumbre do rosto de Qhuinn foi preciso: ele não fez perguntas, apenas assentiu uma vez.
Qhuinn e a médica se apressaram juntos para fora.
Para o infinito crédito da doutora Jane, ela não perdeu tempo querendo saber como aquela gravidez tinha acontecido.
– Há quanto tempo ela está sangrando?
– 24 horas.
– Com que intensidade?
– Não sei.
– Algum outro sintoma? Febre? Enjoo? Dor de cabeça?
– Não sei.
Ela o deteve quando chegaram à grande escadaria.
– Vá até o Buraco. A minha maleta está na bancada ao lado do cesto de maçãs.
– Entendido.
Qhuinn nunca correu tão rápido em toda sua vida. Para fora do vestíbulo. Atravessando o pátio coberto de neve. Digitando o código de acesso para o Buraco. Correndo pelo espaço de V. e de Butch.
Costumeiramente, ele jamais teria entrado sem bater. Inferno, sem um horário marcado previamente. Mas naquela noite, que se foda...
Ah, que bom, a maleta preta estava, de fato, ao lado das Fujis.
Apanhando-a, correu para fora, voando ao lado dos carros estacionados e batendo os pés enquanto aguardava que Fritz atendesse à porta.
Ele quase atropelou o doggen.
Ao chegar ao segundo andar, passou acelerado diante do escritório de Wrath e invadiu o quarto que Layla vinha usando. Fechando a porta, arfou até chegar à cama, onde a médica estava sentada bem onde ele esteve antes.
Deus, Layla estava pálida como um lençol. Pensando bem, medo e hemorragia faziam isso com uma fêmea.
A doutora Jane estava no meio de uma frase quando pegou a maleta das mãos dele.
– Acho que devemos começar verificando os seus sinais vitais...
Bum!
Quando o som ensurdecedor atravessou o quarto, o primeiro pensamento de Qhuinn foi se jogar sobre as duas fêmeas para formar um escudo.
Mas não era uma bomba. Era Phury escancarando a porta.
Os olhos amarelos do Irmão reluziam, e não de modo positivo, quando eles passavam de Layla, para a médica e depois para Qhuinn... e refazendo o caminho ao contrário.
– Que diabos está acontecendo aqui? – ele exigiu saber, com as narinas inflando quando captou o mesmo cheiro que Qhuinn havia percebido antes. – Vejo a médica subindo as escadas num rompante. Depois é a vez de Qhuinn com a maleta. E agora... é melhor alguém começar a falar. Neste exato minuto!
Mas ele sabia. Porque estava olhando para Qhuinn.
Qhuinn encarou o Irmão.
– Eu a engravidei...
Ele não teve oportunidade de terminar a frase. Na verdade, mal conseguiu terminar a última palavra.
O Irmão o agarrou e o lançou contra a parede. Enquanto suas costas absorviam o impacto, a mandíbula dele explodiu de dor, o que sugeria que o cara também o socara com exatidão. Então, mãos ásperas o mantiveram fixos com os pés pendurados a quinze centímetros do tapete oriental, bem na hora em que pessoas começavam a se aglomerar na porta.
Ótimo. Uma plateia.
Phury aproximou o rosto do de Qhuinn e expôs as presas.
– O que você fez com ela?
Qhuinn deu uma golada de sangue.
– Ela estava no cio. Eu a servi.
– Você não a merece...
– Eu sei.
Phury o empurrou com força mais uma vez.
– Ela é melhor do que...
– Concordo...
Bang!
De novo contra a parede.
– Então que porra que você foi fazer...
O rugido que permeou o quarto foi alto o bastante para estremecer o espelho ao lado da cabeça de Qhuinn, assim como o conjunto de escovas de prata na penteadeira e os cristais nas arandelas ao lado da porta. A princípio, ele pensou que tivesse sido Phury, a não ser, porém, pelo fato de as sobrancelhas do Irmão se abaixarem e o macho olhar por sobre o ombro.
Layla saíra da cama e se aproximava dos dois. Raios! A expressão no olhar dela bastaria para derreter a pintura da porta de um carro: apesar de ela não estar se sentindo bem, as presas estavam expostas, os dedos crispados em forma de garra... e a brisa gélida que a precedeu fez com que a nuca de Qhuinn se eriçasse em alerta.
Aquele rugido nem deveria ter saído de um macho... quanto menos de uma fêmea delicada com status de Escolhida.
De fato, o pior era o tom horrível de sua voz:
– Solte-o. Agora.
Ela encarava Phury como se estivesse plenamente preparada para arrancar os braços do Irmão de suas juntas e socá-lo até não poder mais caso ele não a obedecesse. Imediatamente.
E, veja só, de repente, Qhuinn conseguiu respirar direito, e agora seus Nikes tocavam novamente o chão. Num passe de mágica.
Phury levantou as palmas das mãos.
– Layla, eu...
– Não toque nele. Não por causa disso... Estou sendo bem clara? – o peso dela estava equilibrado quase nos dedos dos pés, como se ela fosse avançar na garganta do cara a qualquer segundo. – Ele era o pai do meu filho, e receberá todos os direitos e privilégios dessa posição.
– Layla...
– Estamos entendidos?
Phury fez que sim com sua cabeça multicolorida.
– Sim. Mas...
No Antigo Idioma, ela sibilou:
– Caso algum mal recaia sobre ele, eu irei atrás de ti, e o encontrarei em teu sono. Não me importo onde e com quem repouses tua cabeça, minha vingança se derramará sobre ti até tu te afogares.
Aquela última palavra foi arrastada até sua última sílaba se perder num rugido.
Silêncio absoluto.
Até a doutora Jane comentar secamente:
– E é por isso que dizem que as fêmeas da espécie são mais perigosas que os machos.
– Verdade – alguém aquiesceu no corredor.
Phury levantou as mãos em frustração.
– Só quero o que for melhor para você e não só no papel de amigo preocupado... essa é a porra do meu trabalho. Você atravessa o cio sem contar a ninguém, deita-se com ele – como se Qhuinn fosse bosta de cachorro – e depois não diz a ninguém que está tendo problemas médicos. Será que eu tenho que ficar feliz com isso? Que merda!
Houve algum tipo de conversa entre eles àquela altura, mas Qhuinn não prestou atenção: toda a sua consciência recuara para dentro do cérebro. Caramba, o feliz comentário do Irmão não deveria ter doído tanto. Não era a primeira vez que ele ouvia esse tipo de comentário, ou até mesmo pensara isso a respeito de si mesmo. Mas, por algum motivo, as palavras dispararam uma falha geológica que retumbava bem em seu cerne.
Lembrando-se de que dificilmente seria uma tragédia ter o óbvio evidenciado, ele se desvencilhou do seu espiral de vergonha e olhou ao redor. Sim, todos tinham aparecido diante da porta aberta e, mais uma vez, aquilo que ele preferia que tivesse permanecido como um assunto particular estava acontecendo diante de milhares.
Pelo menos Layla não se importava. Inferno, ela nem parecia ter notado.
E era até engraçado ver todos aqueles lutadores profissionais desejando estar a quilômetros de distância de uma fêmea. Pensando bem, caso quisessem sobreviver no trabalho que exerciam, uma acurada avaliação de riscos era algo que se desenvolvia precocemente e até mesmo Qhuinn, objeto do instinto protetor da Escolhida, não ousaria tocá-la.
– Eu, neste momento, renuncio ao meu status de Escolhida, e todos os direitos e privilégios inerentes. Eu sou Layla, decaída daqui por diante...
Phury tentou interrompê-la:
– Escute, você não tem que fazer isso...
– ... e sempre. Estou arruinada perante os olhos tanto da tradição quanto da prática, não mais virgem, concebi um filho, mesmo estando a perdê-lo.
Qhuinn bateu a parte de trás da cabeça na parede. Maldição.
Phury passou uma mão pelos cabelos.
– Merda.
Quando Layla oscilou em seus pés, todos se projetaram para ela, mas ela empurrou todas as mãos e caminhou sozinha até a cama. Abaixando o corpo devagar, como se tudo lhe doesse, deixou a cabeça pender.
– Minha sorte está lançada e estou preparada para viver com as consequências, quaisquer que sejam elas. Isso é tudo.
Houve um belo tanto de sobrancelhas se erguendo quando a multidão começou a se dispersar, mas ninguém disse um pio. Depois de um instante, o grupo se desfez, embora Phury continuasse ali. Assim como Qhuinn e a médica.
A porta foi fechada.
– Ok, ainda mais depois disso tudo, preciso mesmo verificar seus sinais vitais – disse a doutora Jane, ajudando a fêmea a se recostar contra os travesseiros e a acomodar as cobertas que haviam sido afastadas.
Qhuinn não se moveu enquanto o aparelho de pressão era ajustado no braço magro e uma série de pufe-pufes era exalada.
Phury, por sua vez, andou de um lado para o outro, pelo menos até franzir o cenho e pegar o celular.
– É por isso que Havers me telefonou ontem?
Layla concordou.
– Fui lá em busca de ajuda.
– Por que não me procurou? – o Irmão murmurou para si mesmo.
– O que Havers disse?
– Não sei por qual motivo não verifiquei a caixa de mensagens. Pensei que não tivesse motivo para fazer isso.
– Ele deixou claro que só lidaria com você.
Ante isso, Phury olhou para Qhuinn, com aquele olhar amarelo se estreitando.
– Vai se vincular a ela?
– Não.
A expressão de Phury voltou a ser gélida.
– Que tipo de macho é você para...
– Ele não me ama – Layla interrompeu. – Tampouco eu o amo.
Quando a cabeça do Primale virou de lado, Layla prosseguiu:
– Queríamos um filho – ela se sentou inclinada para a frente enquanto a médica auscultava o coração por trás. – Nós começamos e terminamos ali.
Dessa vez o Irmão praguejou.
– Não entendo.
– Nós dois somos órfãos de muitas maneiras – disse a Escolhida. – Nós estamos... estávamos... querendo formar a nossa própria família.
Phury expirou fundo e caminhou até a mesa num canto, sentando-se sobre a cadeira frágil.
– Ah, bem. Acho que isso muda um pouco as coisas. Eu pensei que...
– Nada importa – interveio Layla. – As coisas são como são. Ou... eram, como parece ser o caso.
Qhuinn se viu esfregando os olhos sem nenhum motivo em especial. Não que eles estivessem embaçados nem nada assim. Não. Nem um pouco.
Tudo aquilo era só... tão triste. Toda aquela porcaria. Desde o estado de Layla, até a exaustão impotente de Phury, chegando a sua dor imensa no meio do peito, tudo era uma maldita coisa verdadeiramente triste.
CAPÍTULO 31
– É exatamente o que eu estava procurando.
Enquanto Trez falava, caminhava ao redor do espaço amplo e vazio do armazém, com as botas produzindo impactos altos que ecoavam. Atrás dele, sentia facilmente o alívio da corretora parada ao lado da porta.
Negociar com humanos? Era o mesmo que tirar o pirulito de uma criancinha.
– Você poderia transformar este lado da cidade – disse a mulher. – É uma verdadeira oportunidade.
– Verdade – não que o tipo de restaurante e lojas que o seguiriam até ali fossem de classe: seriam algo mais como lojas de piercings e tatuagens, restaurantes baratos, cinemas pornográficos.
Mas ele não tinha nenhum problema com isso. Até mesmo cafetões podiam se orgulhar de seus trabalhos e, francamente, ele tinha certa tendência a acreditar muuuito mais em tatuadores do que em muitos dos assim chamados “cidadãos exemplares”.
Trez girou sobre os calcanhares. O espaço era tremendo, quase tão alto quanto largo, com fileiras e fileiras de janelas quadradas, muitas delas com os vidros quebrados recobertos por tábuas de madeira. O teto parecia bom – ou quase isso, o revestimento de latão corrugado mantendo a neve do lado de fora, mas não o frio. O chão era de concreto, mas obviamente havia um piso subterrâneo – em diversos pontos viam-se alçapões, embora nenhum deles pudesse ser aberto com facilidade. A parte elétrica parecia boa; sistema de aquecimento, ventilação e ar-condicionado inexistentes; a hidráulica, uma piada.
Em sua mente, contudo, ele não enxergava o lugar como ele estava. Nada disso. Ele o via transformado, como uma boate nas proporções da Limelight. Naturalmente, o projeto necessitaria de uma imensa injeção de capital e vários meses para concluir os trabalhos; no fim, porém, Caldwell acabaria com um novo lugar quente – e ele teria mais uma fonte de renda.
Todos ganhavam.
– Então, gostaria de fazer uma oferta?
Trez olhou para a mulher. Ela era a senhora Profissional em seu casaco preto e terninho escuro abaixo dos joelhos – noventa por cento de sua pele estava coberta, e não só por estarem em dezembro. Contudo, mesmo abotoada até em cima e cabelo comportado, ela era bela no modo como todas as mulheres lhe eram belas: tinha seios e pele macia, e um lugar para ele brincar no meio das pernas.
E ela gostava dele.
Ele sabia disso pelo modo como ela abaixava o olhar, e também por ela aparentemente não saber o que fazer com as mãos: uma hora estavam nos bolsos do casaco; na outra, mexendo no cabelo, depois ajeitando a camisa de seda dentro da saia...
Ele conseguia pensar em alguns modos para mantê-la ocupada.
Trez sorriu ao se aproximar dela e não parou até invadir-lhe o espaço pessoal.
– Sim. Eu quero.
O duplo sentido foi captado, as faces dela enrubesceram não de frio, mas de excitação.
– Ah. Que bom.
– Onde quer fazer? – ele perguntou de modo arrastado.
– A oferta? – ela pigarreou. – Tudo o que tem que fazer é me dizer o que você... quer e eu... faço isso acontecer.
Ah, ela não era ligada em sexo casual. Que meigo.
– Aqui.
– Como disse? – perguntou ela, finalmente levantando o olhar.
Ele sorriu devagar e de modo contido para não revelar as presas.
– A oferta. Vamos fazer isso aqui?
Os olhos dela se arregalaram.
– Aqui?
– É. Aqui – ele se aproximou com mais um passo, mas não ficou perto o suficiente a ponto de se tocarem. Ele estava satisfeito em seduzi-la, mas ela teria de estar cem por cento segura de estar a fim. – Está pronta?
– Para... fazer... a oferta.
– Isso.
– Está... hum, está frio aqui – disse ela. – Que tal no escritório? É lá que a maioria... das ofertas... é conduzida.
Do nada, a imagem do irmão sentado no sofá em casa, olhando para ele como se ele fosse um maldito problema, atingiu-o em cheio, e quando isso aconteceu, percebeu que fazia sexo com praticamente toda mulher que conhecia desde... caramba, quanto tempo?
Bem, obviamente, se não tinham idade para copular, ele não estaria com elas.
Ou se eram férteis.
O que cortava, digamos, uma dúzia ou duas? Maravilha. Que herói.
Que porra ele estava fazendo? Não queria voltar ao escritório da mulher, primeiro porque não havia tempo suficiente, supondo que quisesse estar na abertura do Iron Mask. Portanto, a única opção era ali mesmo, de pé, com a saia suspensa até a cintura, as pernas ao redor dos seus quadris. Rápido, direto ao ponto; depois cada um seguindo o seu caminho.
Depois de ele dizer o quanto pretendia gastar na compra do armazém, claro.
Mas e aí? Ele não tinha a intenção de transar com ela no fechamento do contrato. Ele raramente repetia, e só se estivesse seriamente atraído ou com muito tesão, o que não acontecia nesse caso.
Pelo amor de Deus, o que exatamente ele tiraria daquilo? Sequer a veria nua. Nem teria muito contato de pele com pele.
A não ser... era essa a questão.
Quando foi a última vez em que esteve de fato com uma fêmea? Do jeito certo? Como num jantar fino, um pouco de música, uns amassos que conduziam até o quarto... depois um monte de ações longas e demoradas que levavam a alguns orgasmos...
E nenhuma sensação de pânico asfixiante quando tudo chegava ao fim.
– Você estava para dizer alguma coisa? – a mulher o instigou a falar.
iAm estava certo. Ele não precisava estar fazendo aquele tipo de merda. Inferno, nem mesmo estava atraído pela corretora. Ela estava parada diante dele, disponível, e aquela aliança no dedo era indício de que ela não causaria muitos problemas depois que terminassem, porque tinha algo a perder.
Trez recuou um passo.
– Escute, eu... – quando o celular tocou em seu bolso, ele pensou que tinha sido em boa hora. Viu quem era: iAm. – Com licença, preciso atender esta ligação. Ei, o que está fazendo, irmãozinho?
A resposta de iAm saiu suave, como se tivesse abaixado a voz:
– Temos companhia.
O corpo de Trez ficou tenso.
– De que tipo e onde?
– Estou em casa.
Ah, merda.
– Quem é?
– Não é a sua noiva, relaxe. É AnsLai.
O sumo sacerdote. Fantástico.
– Bem, estou ocupado.
– Ele não veio aqui para me ver.
– Então é melhor ele voltar de onde veio porque estou ocupado – quando não houve resposta do outro lado, tudo o que restava fazer era se chutar no traseiro. – Escute aqui, o que quer que eu faça?
– Pare de fugir e cuide disto.
– Não há do que cuidar. Falo com você mais tarde, ok?
Esperou por uma resposta. Em vez disso, a linha ficou muda. Pensando bem, quando você espera que seu irmão limpe suas bostas, o cara não deve ficar com muita vontade de se despedir longamente.
Trez desligou e olhou para a corretora. Com um sorriso amplo, ele se aproximou e baixou a cabeça para fitá-la. O batom era coral demais para a tez dela, mas ele não se importava.
Aquela coisa não continuaria na boca dela por muito tempo.
– Deixe-me mostrar como posso aquecer isto aqui – disse com um sorriso langoroso.
De volta à mansão da Irmandade, no quarto de Layla, um tipo de cessar-fogo fora alcançado pelas partes interessadas.
Phury não estava tentando transformar Qhuinn num gancho de parede. Layla estava sendo avaliada. A porta fora fechada e, com isso, nada do que acontecia ali teria mais do que um quarteto de testemunhas oculares.
Qhuinn só estava esperando que a doutora Jane se pronunciasse.
Quando ela, por fim, tirou o estetoscópio do pescoço, apenas se acomodou. E a expressão em seu rosto não lhe deu esperança alguma.
Ele não entendia. Vira sua filha às portas do Fade: quando fora surrado e largado como morto no acostamento pela Guarda de Honra, subira para só Deus sabe onde, aproximara-se de um portal branco... e lá vira uma fêmea jovem cujos olhos começaram com uma cor, e acabaram azul e verde como os seus.
Se ele não tivesse testemunhado aquilo, provavelmente não teria se deitado com Layla para início de conversa. Mas ele teve tanta certeza de que o destino estava traçado que nunca lhe ocorrera que...
Merda, talvez aquela jovem fosse o resultado de outra comunhão... com outra pessoa no futuro.
Como se algum dia ele fosse se unir a outra pessoa... Jamais.
Não era possível. Não agora que esteve com Blay uma vez.
Nada disso.
Mesmo que ele e seu ex-amigo nunca mais se encontrassem debaixo dos lençóis, ele nunca mais ficaria com ninguém. Quem poderia se comparar? E o celibato era melhor do que a segunda melhor opção, que é o que seria oferecido pelo resto do planeta.
A doutora Jane pigarreou e segurou a mão de Layla.
– A sua pressão sanguínea está um pouco baixa. A sua pulsação está um pouco lenta. Acredito que essas duas coisas possam ser melhoradas com alimentação...
Qhuinn praticamente pulou para perto da cama com o pulso estendido.
– Estou aqui... Pronto. Pode pegar.
A doutora Jane pousou uma mão no braço dele e lhe sorriu.
– Mas não é com isso que estou preocupada.
Ele congelou e, pelo canto do olho, viu que o mesmo aconteceu com Phury.
– Eis a questão – a doutora voltou a olhar para Layla, falando com suavidade e clareza. – Não sei muito sobre gestações vampíricas, portanto, por mais que eu deteste dizer isso, você precisa voltar à clínica de Havers – ela levantou a mão, como se já esperasse discussões de todos os lados. – Isto se trata dela e do filho dela, temos que levá-los para alguém que possa tratá-la adequadamente, mesmo se, em outras circunstâncias, nenhum de nós batesse à porta do cara. E, Phury – ela encarou o Irmão –, você tem que ir com ela e com Qhuinn. A sua presença lá só facilitará as coisas para todos.
Muitos lábios apertados depois disso.
– Ela tem razão – concordou Qhuinn por fim. E depois se voltou para o Primale. – E você tem que dizer que é o pai. Ela obterá mais respeito assim. Comigo? Ele pode muito bem se recusar a tratá-la... se ela for decaída e tiver transado com um defeituoso? Pode nos mandar dar meia-volta.
Phury abriu a boca. Fechou-a.
Não havia muito mais a ser dito.
Enquanto Phury pegava o telefone e ligava para a clínica para informar que estavam indo para lá, o tom de voz dele sugeria que estava pronto para incendiar o lugar se Havers e sua equipe dessem mancada.
Com isso resolvido, Qhuinn se aproximou de Layla.
Num tom baixo, disse:
– Desta vez vai ser diferente. Ele vai fazer isso acontecer. Não se preocupe, você será tratada como uma rainha.
Os olhos de Layla se arregalaram, mas ela se controlou.
– Sim. Tudo bem.
Resultado? O Irmão não era o único prestes a acabar com tudo. Se Havers provocasse qualquer tipo de desgosto à la glymera em Layla, Qhuinn acabaria com o ego do cara a tapa. Layla não merecia esse tipo de tratamento – nem mesmo por escolher um rejeitado como ele para se acasalar.
Cacete. Talvez fosse melhor ela abortar. Ele queria mesmo condenar uma criança ao seu DNA?
– Você também vem? – ela lhe perguntou, como se não estivesse acompanhando.
– Sim. Vou estar lá.
Quando Phury desligou, olhou de um para outro, os olhos amarelos se estreitando.
– Ok, eles vão nos receber no segundo em que chegarmos. Vou fazer Fritz ligar a Mercedes, mas eu dirijo.
– Desculpe – disse Layla ao encarar o grande macho. – Sei que decepcionei as Escolhidas e você, mas foi você quem nos disse para vir para este lado e... viver.
Phury apoiou as mãos nos quadris e exalou fundo. Ao balançar a cabeça, ficou claro que ele não teria escolhido nada daquilo para ela.
– Sim, eu disse isso. Eu fiz isso.
CAPÍTULO 32
Ah, grande poder desgovernado, pensou Xcor ao olhar para seus soldados, cada um deles armado e pronto para uma noite de luta. Depois de 24 horas de recuperação após a alimentação grupal, eles estavam loucos para sair e encontrar os inimigos – e ele estava pronto para libertá-los daquele porão de armazém.
Só havia um problema: alguém estava andando no andar de cima.
Como demonstração, passos pesados atravessaram o alçapão de madeira sobre sua cabeça.
Pela última meia hora, eles acompanharam o progresso dos visitantes inesperados. Um era pesado, uma forma masculina. O outro era mais leve, de uma variedade feminina. No entanto, não havia como perceber seus cheiros; o porão era hermeticamente fechado.
Muito provavelmente, eram apenas humanos de passagem, ainda que ele não pudesse adivinhar o motivo para alguém que não fosse sem teto perder tempo numa estrutura tão decrépita numa noite fria. Quem quer que fossem, quaisquer as razões que os levaram até ali, contudo, ele não teria problemas para defender seu território, mesmo sendo aquele.
Mas não fazia mal esperar. Se ele podia evitar massacrar aqueles humanos? Isso significava que ele e seus soldados continuariam a usar aquele espaço sem serem incomodados.
Ninguém disse nada enquanto as passadas continuavam.
Vozes se misturavam. Grave e aguda. Em seguida, um telefone tocou.
Xcor acompanhou o toque e a conversa que se seguiu, caminhando em silêncio até o outro alçapão, lugar em que a pessoa escolheu parar. Imóvel, prestou atenção e captou metade de uma conversa nada interessante que não lhe revelou nenhuma das identidades dos envolvidos.
Não muito depois, o som inconfundível de sexo se fez claro.
Enquanto Zypher ria baixinho, Xcor encarou o bastardo para calá-lo. Mesmo cada um dos alçapões estando fechado pelo lado de baixo, ninguém sabia que tipo de problema aqueles ratos sem rabo podiam causar em qualquer situação.
Consultou o relógio. Esperou que os gemidos parassem. Gesticulou para que os soldados ficassem quietos quando eles pararam.
Movendo-se em silêncio, ele seguiu para o alçapão no canto extremo do armazém, aquele que se abria no que deveria ser um escritório de supervisor. Destrancando-o, segurou uma pistola, desmaterializou-se e inalou.
Não era humano.
Bem, um esteve ali, mas o outro... era algo diferente.
Do outro lado, a porta externa foi fechada e trancada.
Em sua forma fantasmagórica, Xcor atravessou o armazém e apoiou as costas na parede de tijolos, e olhou para fora de um dos vidros empoeirados.
Um par de faróis se acendeu na frente, no estacionamento.
Desmaterializando-se do lado de fora da janela, subiu até o telhado do armazém do lado oposto da rua.
Ora, ora, se aquilo não era interessante.
Havia um Sombra ali embaixo, sentando atrás do volante do BMW com a janela do motorista abaixada até a metade e uma fêmea humana se inclinando sobre o SUV.
Era a segunda vez que se deparava com um em Caldwell.
Eles eram perigosos.
Pegando o celular, ligou para o número de Throe após encontrar a foto do macho na lista de contatos, e ordenou que os soldados saíssem e lutassem. Ele lidaria sozinho com aquela situação.
Lá embaixo, o Sombra esticou a mão, puxou a mulher pela nuca e a beijou. Depois deu marcha à ré no carro e saiu sem olhar para trás.
Xcor mudou de posição para acompanhar o macho, transitando de telhado em telhado, conforme o Sombra seguia na direção do bairro das boates nas ruas que corriam em paralelo ao rio...
A princípio, a sensação em seu corpo sugeria uma mudança na direção do vento, os açoites gélidos atingindo-o por trás, em vez de golpeá-lo no rosto. Mas logo pensou... não, era algo puramente interno. As ondas que sentia sob a pele...
Sua Escolhida estava por perto.
Sua Escolhida.
Abandonando imediatamente o rastro do Sombra, ele seguiu para perto do rio Hudson. Onde ela estava...
Num carro. Estava se movendo num carro.
Pelo que seus instintos lhe diziam, ela estava se movendo em alta velocidade que, ainda assim, era rastreável. Portanto, a única explicação era que ela estava na Northway, seguindo de noventa a cento e vinte quilômetros por hora.
Recuando na direção da fileira de armazéns, ele se concentrou no sinal que estava captando. Como fazia meses desde que se alimentara dela, sentiu pânico ao perceber que a conexão criada pelo sangue dela em suas veias estava perdendo intensidade, a ponto de ele ter dificuldade para localizar o veículo.
Mas, em seguida, captou um sedã luxuoso graças ao fato de ele ter freado na saída que convergia o tráfego para as pontes. Desmaterializando-se nas vigas, plantou as botas de combate no pináculo de um dos esteios de metal e esperou que ela passasse debaixo dele.
Pouco depois de fazê-lo, ela seguiu em frente, indo para o outro lado da cidade, oposta à margem do rio.
Ele continuou com ela, mantendo uma distância segura, embora se perguntasse a quem tentava enganar. Se ele pressentia sua fêmea?
O mesmo acontecia com ela.
Porém, ele não abandonaria seu rastro.
Enquanto Qhuinn estava no assento de passageiro do Mercedes, sua Heckler e Koch calibre .45 era mantida discretamente sobre a coxa, os olhos movimentando-se incessantemente do espelho retrovisor para a janela lateral e o para-brisa. Ao lado dele, Phury estava na direção, as mãos do Irmão num perfeito dez para as duas tão apertado que mais parecia que ele estava estrangulando alguém.
Caramba, havia coisas demais acontecendo ao mesmo tempo.
Layla e a criança. Aquele acidente com o Cessna. O que ele fizera ao primo na noite anterior. E também... bem, havia aquela situação com Blay.
Ah, bom Deus... a situação com Blay.
Enquanto Phury pegava a saída que os levaria às pontes, a mente de Qhuinn ia da preocupação com Layla às lembranças das imagens, dos sons... e dos sabores das horas diurnas.
Intelectualmente, ele sabia que o que acontecera entre eles não fora um sonho. E seu corpo se lembrava muito bem disso, como se o sexo tivesse sido um tipo de marcação a ferro em sua pele que o mudara para o resto da vida. E, mesmo assim, enquanto tentava lidar com o drama mais recente, a sessão breve demais parecia pré-histórica, e não ocorrera há nem 24 horas atrás.
Ele temia que se tratasse de uma sessão única.
Nunca mais me toque assim.
Gemendo, ele esfregou a testa.
– Não são os seus olhos – disse Phury.
– O que disse?
Phury olhou de relance para o banco de trás.
– Ei, como estão as coisas? – perguntou às fêmeas. Quando Layla e a doutora Jane responderam numa afirmativa breve, ele assentiu com a cabeça. – Escutem, vou fechar a divisória por um segundo, está bem? Está tudo bem por aqui.
O Irmão não lhes deu a chance de responder de um ou outro modo, e Qhuinn se retesou no banco enquanto a divisória opaca subia, partindo o sedã em duas partes. Não fugiria de nenhum tipo de confronto, mas isso não significava que ele estava ansioso pelo segundo round, e se Phury estava isolando as duas, aquilo não seria nada bonito.
– Seus olhos não são o problema – disse o Irmão.
– Não entendi.
Phury olhou para ele.
– O fato de eu estar irritado sobre tudo isso não tem nada a ver com nenhum defeito. Layla está apaixonada por você...
– Não, não está não.
– Vê, você está me irritando muito agora.
– Pergunte a ela.
– Enquanto está sofrendo um aborto? – replicou o Irmão. – É, é isso mesmo o que vou fazer.
Enquanto Qhuinn se retraía, Phury continuou:
– Sabe, esse é o seu negócio. Você gosta de viver no limite e ser desvairado... Eu, honestamente, acredito que isso o ajuda a lidar com as idiotices que sua família o fez passar. Se você destruir tudo? Nada pode afetá-lo. E acredite ou não, não tenho problema algum com isso. Você faz o que tem que fazer e sobrevive às noites e aos dias do melhor modo que pode. Mas assim que você parte o coração de uma inocente, ainda mais se ela está sob a minha proteção? É nessa hora que você e eu temos um problema.
Qhuinn olhou pela janela. Antes de tudo, parabéns ao cara ali do lado. A ideia de que havia um preconceito contra Qhuinn baseado em seu caráter em vez de uma mutação genética sobre a qual não tivera nenhum poder decisório era uma mudança refrescante. E, ei, não que ele não concordasse com o cara, pelo menos até um ano atrás. Antes disso? Inferno, ele esteve descontrolado em muitos níveis. Mas as coisas mudaram. Ele mudara.
Evidentemente, Blay se tornar indisponível fora o tipo de chute no saco de que ele precisava para finalmente crescer.
– Não sou mais assim – disse ele.
– Então, está preparado para se vincular a ela? – quando ele não respondeu, Phury deu de ombros. – E lá vai você de novo. Conclusão: sou responsável por ela, legal e moralmente. Posso não estar agindo como um Primale em alguns aspectos, mas o restante das funções desse cargo eu levo muito a sério. A ideia de que você a meteu nessa confusão me deixa enjoado, e eu acho muito difícil de acreditar que ela não tenha feito isso para agradá-lo... Você disse que os dois queriam um filho? Tem certeza de que não era só você, e ela só fez isso para deixá-lo feliz? Isso se parece muito com o feitio dela.
Tudo aquilo foi apresentado de maneira retórica. E não cabia a Qhuinn criticar a lógica, mesmo que ela estivesse errada. Mas, enquanto ele passava os dedos pelos cabelos, o fato de que fora Layla a procurá-lo era algo que ele manteria só para si. Se Phury queria pensar que a culpa era só sua, tudo bem, ele aguentaria o tranco. Qualquer coisa para tirar a pressão e as atenções de cima de Layla.
Phury olhou por entre os bancos.
– Isso não está certo, Qhuinn. Não é isso o que machos de verdade fazem. E olhe só a situação em que ela está. Você causou isso a ela. Você a colocou no banco de trás deste carro, e isso é errado.
Qhuinn apertou os olhos. Bem, como se isso não fosse martelá-lo na cabeça pelos próximos cem anos. Mais ou menos.
Enquanto eles seguiam pela ponte e deixavam as luzes piscantes do centro da cidade para trás, ele manteve a boca fechada, e Phury também se calou.
Mas, pensando bem, o Irmão já dissera tudo o que havia para ser dito, não?
CAPÍTULO 33
Assail acabou perseguindo sua presa atrás do volante do seu Range Rover. Muito mais confortável assim, e a localização da mulher já não era mais um problema: enquanto estivera esperando ao lado do Audi que ela saísse de sua propriedade, colocara um equipamento de rastreamento na parte inferior do espelho retrovisor lateral.
Seu iPhone cuidou do resto.
Depois de ela ter deixado abruptamente seu bairro – após a proposital desmaterialização ante suas vistas só para desestabilizá-la ainda mais –, ela atravessou o rio e deu a volta para a parte de trás da cidade, onde as casas eram pequenas, próximas umas das outras e delimitadas por cercas de alumínio.
Enquanto a perseguia, mantendo pelo menos dois quarteirões de distância entre os veículos, observou as luzinhas coloridas no bairro, milhares de fios de pisca-pisca entre os arbustos, pendurados nos telhados e emoldurando janelas e portas. Mas aquilo não era nem metade da história. Cenários de manjedouras colocados em destaque em diminutos jardins eram iluminados, e também havia os bonecos de neve falsos com cachecóis vermelhos e calças azuis que brilhavam por dentro.
Em contraste com a decoração sazonal, ele estava disposto a apostar que as estátuas da Virgem Maria eram permanentes.
Quando o carro parou e estacionou, ele se aproximou, parando quatro casas adiante e desligando as luzes. Ela não saiu imediatamente do carro, e quando o fez, não vestia a parca e as calças de esqui nas quais o espionara. Em vez disso, mudara para um suéter vermelho e um par de jeans.
E soltara o cabelo.
O volume escuro e pesado ultrapassava os ombros, curvando-se nas pontas.
Ele grunhiu na escuridão.
Com passadas rápidas e certeiras, ela ultrapassou os quatro degraus de concreto que levavam à entrada modesta da casa. Abrindo a porta de tela numa moldura de metal, ela a segurou com o quadril enquanto destrancava a porta com a chave, para depois entrar e trancar pelo lado de dentro.
Quando as luzes se acenderam no andar de baixo, ele observou a silhueta dela avançar pelo cômodo da frente, as cortinas finas lhe possibilitando apenas uma ideia da movimentação dela, e não uma visão desobstruída.
Ele pensou em suas próprias persianas. Demorou um tempo para que aperfeiçoasse aquela invenção, e a casa às margens do rio Hudson fora um teste perfeito. As barreiras funcionavam melhor do que ele antecipara.
Ela, porém, era esperta o bastante para notar alguma anormalidade, e ele se perguntou o que as teriam denunciado.
No segundo andar, uma luz se acendeu, como se alguém que estivesse descansando tivesse despertado com a chegada dela.
As presas dele pulsaram. A ideia de que algum homem humano estivesse à espera dela em seu quarto conjugal fez com que ele quisesse estabelecer sua dominância, mesmo que isso não fizesse sentido. Ele a seguira para o seu próprio bem, e nada mais.
Absolutamente nada mais.
Bem quando a mão segurou a maçaneta da porta, seu telefone tocou. Na hora certa.
Quando ele viu quem era, franziu o cenho e levou o celular ao ouvido.
– Duas ligações em tão pouco tempo. A que devo essa honra?
Rehvenge não pareceu estar se divertindo.
– Não retornou a minha ligação.
– Eu deveria?
– Cuidado, garoto.
Os olhos de Assail continuaram atentos à casinha. Ele estava curiosamente desesperado para saber quem estava lá dentro. Estaria ela subindo, despindo-se pelo caminho?
Exatamente de quem ela escondia suas espreitas? E ela de fato as escondia – senão, por que outro motivo trocar de roupa?
– Alô?
– Aprecio o gentil convite – ele se ouviu dizer.
– Não foi um convite. Você é um maldito membro do Conselho agora que está vivendo no Novo Mundo.
– Não.
– Como é que é?
Assail relembrou o encontro na casa de Elan no começo do inverno, aquele sobre o qual Rehvenge nada sabia, aquele no qual o Bando de Bastardos apareceu para forçar a barra. Também pensou no atentado a Wrath, à vida do Rei Cego... na sua própria propriedade, pelo amor de Deus.
Drama demais para o seu gosto.
Com calma ensaiada, ele se lançou no mesmo discurso que fizera à facção de Xcor:
– Sou um homem de negócios por predileção e propósito. Embora respeite tanto o reinado atual quanto o poder de base do Conselho, não posso desviar nem energia nem tempo das minhas empreitadas vigentes. Nem agora, nem no futuro.
Houve um momento prolongado de silêncio. E depois aquela voz profunda e maligna se fez ouvir do outro lado:
– Ouvi falar dos seus negócios.
– Verdade?
– Eu mesmo estive envolvido com isso há alguns anos.
– Foi o que eu soube.
– Consegui fazer as duas coisas.
Assail sorriu na escuridão.
– Talvez eu não seja tão talentoso quanto você.
– Vou deixar isto perfeitamente claro. Se você não aparecer nessa reunião, deduzirei que você está jogando no time errado.
– Com essa declaração, você reconhece que existem dois e que eles se opõem.
– Entenda como quiser. Mas se não estiver comigo e com o Rei, você é inimigo meu e dele.
E foi exatamente isso o que Xcor lhe dissera. Pensando bem, havia alguma outra posição naquela guerra crescente?
– O Rei foi alvejado na sua casa, Assail.
– Pelo que me lembro – disse ele secamente.
– Pensei que você talvez quisesse dizimar qualquer ideia quanto ao seu envolvimento.
– Já o fiz. Naquela mesma noite disse aos Irmãos que eu não tinha nada a ver com aquilo. Eu lhes dei o veículo com que escaparam com o Rei. Por que eu faria tal coisa se fosse um traidor?
– Para livrar seu rabo.
– Sou muito eficiente nisso sem o benefício de conversações, eu lhe garanto.
– Então, como anda a sua agenda?
A luz no segundo andar se apagou, e ele teve que imaginar o que a mulher fazia no escuro... E com quem.
Por vontade própria, suas presas se expuseram.
– Assail. Você está seriamente me aborrecendo com essa merda de comportamento.
Assail ligou o motor do Range Rover. Não estava disposto a ficar esperando no meio-fio enquanto o que quer que estivesse acontecendo ali dentro... acontecia. Obviamente, ela se recolhera e ficaria ali. Além disso, seu telefone o alertaria caso o carro dela voltasse a se movimentar.
Enquanto ele tomava a rua e acelerava, falou com clareza:
– Neste instante, estou me demitindo da minha posição no Conselho. A minha neutralidade nessa disputa pela coroa não será questionada por nenhum dos lados...
– E você sabe quem são os jogadores, não?
– Deixarei isto o mais claro possível: não tomo partido, Rehvenge. Não sei de que outro modo deixar isso ainda mais claro... e não serei arrastado para essa guerra por você, nem pelo Rei nem por ninguém mais. Não tente me forçar, e saiba que a neutralidade que lhe apresento agora é a mesma que apresentei a eles.
Desse mesmo modo, prometera a Elan e a Xcor não revelar suas identidades, e manteria sua palavra – não por acreditar que o grupo seria capaz de retribuir o favor, mas pelo simples fato de que, dependendo de quem vencesse, um confidente de qualquer lado seria visto como espião a ser erradicado ou um herói a ser aclamado. O problema era que não se saberia que lado venceria até aquilo acabar, e ele não estava interessado em apostas.
– Então você foi abordado – declarou Rehv.
– Recebi uma cópia da carta que eles enviaram na primavera passada.
– E esse foi o único contato que teve?
– Sim.
– Está mentindo para mim.
Assail parou num farol.
– Não há nada que possa dizer ou fazer para me arrastar para isso, caro lídher.
Com ameaças em excesso, o macho do outro lado rosnou.
– Não conte com isso, Assail.
Dito isso, Rehvenge desligou.
Praguejando, Assail jogou o telefone no banco do passageiro. Depois, cerrou os dois punhos e os bateu com força no volante.
Se existia uma coisa que ele não tolerava era ser sugado para o olho do furacão das brigas dos outros. Pouco se importava com quem sentava no trono, ou com quem era encarregado da glymera. Ele só queria ser deixado em paz para ganhar dinheiro à custa dos ratos sem rabo.
Isso era tão difícil de entender?
Quando a luz ficou verde, ele afundou o pé no acelerador, mesmo sem ter nenhum destino específico em mente. Apenas dirigiu a esmo... e cerca de quinze minutos mais tarde descobriu-se sobre o rio em uma das pontes.
Ah, então seu Range Rover decidira levá-lo de volta para casa.
Ao emergir na margem oposta, seu telefone emitiu um alerta, que ele quase ignorou. Mas os gêmeos tinham saído para cuidar do último carregamento de Benloise, e ele queria saber se os intermediários tinham aparecido com suas cotas no fim das contas.
Não era uma chamada, ou uma mensagem de texto.
Era o Audi preto se movendo mais uma vez.
Assail pisou no freio, cortou na frente de um carro que buzinou como se o xingasse, subiu e atravessou o canteiro central coberto de neve.
E praticamente voou pela ponte que o levava de volta.
Em sua posição vantajosa em uma relativa periferia distante, Xcor precisava de binóculos para ver adequadamente a sua Escolhida.
O carro em que ela vinha andando, o enorme sedã preto, continuara em frente depois da ponte, seguindo por oito ou nove quilômetros antes de sair por uma estradinha rural que levava para o norte. Depois de mais alguns quilômetros, e sem nenhum aviso, virou numa estrada de terra que era estrangulada nas duas laterais por plantações perenes. Por fim, parou ante uma construção baixa de concreto que não dava indícios de ter nem janelas nem uma porta.
Ele ajustou o foco quando dois machos saíram pela frente. Reconheceu um instantaneamente, o cabelo o denunciava: Phury, filho de Ahgony, que, de acordo com a boataria, tornara-se o Primale das Escolhidas.
O coração de Xcor começou a bater forte.
Especialmente quando reconheceu a segunda figura: era o lutador de olhos descombinados contra quem pelejara na casa de Assail quando o Rei fora levado embora às pressas.
Os dois machos sacaram as pistolas e perscrutaram as imediações.
Como Xcor estava a favor do vento e parecia não haver ninguém mais por perto, ele deduziu que havia uma grande probabilidade, a não ser que sua Escolhida revelasse a posição dele, que aquele par procedesse com o que quer que tivesse planejado para a fêmea.
De fato, era como se ela estivesse sendo levada para uma prisão.
Só. Por. Cima. Do. Seu. Cadáver.
Ela era um inocente naquela guerra, utilizada com propósitos nefastos sem que isso tivesse sido culpa sua; mas, obviamente, ela seria executada ou trancafiada numa cela na qual passaria o resto de sua vida na Terra.
Ou não.
Ele segurou as pistolas.
Aquela era uma boa noite para cuidar daquele assunto. De fato, era a sua chance de tê-la para si, de salvá-la de qualquer punição que lhe impingiram por ter, sem saber, ajudado e revigorado o inimigo. E talvez as circunstâncias quanto à sua condenação injusta a deixassem favoravelmente disposta em relação ao seu inimigo e salvador.
Ele fechou os olhos brevemente ao imaginá-la em sua cama.
Quando Xcor voltou a abri-los, Phury abria a porta traseira do sedã e colocava a mão para dentro. Quando o Irmão se endireitou, a Escolhida era retirada do veículo... e levada pelos dois cotovelos, os lutadores segurando-a de cada lado enquanto a conduziam para a construção.
Xcor se preparou para se aproximar. Depois de tanto tempo, uma vida inteira, mais uma vez ele a tinha próxima de si e não desperdiçaria a oportunidade que o destino lhe propiciava, não agora, não quando a vida dela tão obviamente pendia na balança. E ele levaria a melhor naquilo; a ameaça a ela fortalecia seu corpo a um nível inimaginável de poder, a mente se aguçava a ponto de avaliar todas as possibilidades de ataque e continuar absolutamente calmo.
De fato, havia apenas dois machos a guardá-la e, com eles, uma fêmea que não só parecia não estar armada, como também não avaliava seus arredores como se fosse treinada para tal ou inclinada para o conflito.
Ele estava mais do que preparado para acabar com os captores de sua fêmea.
Bem quando ele se preparava para avançar, o cheiro da Escolhida o atingiu na brisa fria, aquele perfume tentador exclusivo fazendo-o oscilar dentro de suas botas de combate...
Imediatamente, ele reconheceu uma mudança nele.
Sangue.
Ela estava sangrando. E havia mais alguma coisa...
Sem pensamento consciente, seu corpo se moveu para mais perto, sua forma restabelecendo o peso corpóreo, suspendendo-se a meros três metros, atrás de uma construção destacada do prédio principal.
Ele percebeu que ela não era uma prisioneira sendo levada para uma cela ou para a execução.
A sua Escolhida tinha dificuldade para andar. E aqueles guerreiros a amparavam com cuidado; mesmo com as armas expostas e os olhos vasculhando qualquer sinal de ataque, eles eram gentis com ela como seriam com a mais frágil das flores em botão.
Ela não estava sendo maltratada. Não tinha hematomas nem ferimentos. Enquanto o trio avançava, ela olhou para um macho, depois para o outro, e disse algo como que tentando assegurá-los, pois, na verdade, não era raiva que contraía as sobrancelhas daqueles guerreiros.
Era, na realidade, o mesmo terror que ele sentiu quando farejou o sangue dela.
O coração de Xcor bateu ainda mais forte em seu peito, a mente tentando compreender tudo aquilo.
E então, ele se lembrou de algo do seu passado.
Depois do seu nascimento, sua mahmen o repelira e ele fora deixado no orfanato no Antigo País para o que quer que o destino lhe reservasse. Ali, permanecera entre os raros indesejados, cuja maioria possuía deformidades físicas como a sua, por quase uma década... tempo suficiente para forjar lembranças permanentes sobre aquilo que transpirava no lugar triste e solitário.
Tempo suficiente para ele entender o que significava quando uma fêmea sozinha aparecia nos portões, era-lhe concedida a entrada, e depois berrava por horas, às vezes dias... antes de dar à luz, na maioria dos casos, a crianças mortas. Ou abortadas.
O cheiro do sangue naquela época era bem específico. E o cheiro levado pelo vento frio desta noite era o mesmo.
Uma gestação era o que invadia seu nariz agora.
Pela primeira vez em sua vida, ele se ouviu dizer, em absoluta agonia:
– Santa Virgem do Fade...
CAPÍTULO 34
A ideia de que os membros do s’Hisbe estivessem no código postal de Caldwell fez com que Trez pensasse em fazer as malas com tudo o que possuía, buscar o irmão e sair em férias permanentes dali.
Enquanto dirigia do armazém para o Iron Mask, a cabeça estava tão confusa que ele tinha de pensar conscientemente em quais esquinas virar, e frear nas placas de pare, e onde deveria estacionar quando chegasse à boate. E depois, quando desligou o motor do X5, apenas continuou sentado atrás do volante, encarando a parede de tijolos do seu prédio por... sei lá, um ano.
Uma tremenda metáfora, todo o “ir a nenhum lugar” bem na sua frente.
Não que não soubesse o quanto decepcionava as pessoas. A questão? Pouco se importava. Não voltaria para os costumes antigos. A vida que agora levava era sua, e ele se recusava a permitir que uma promessa feita na época do seu nascimento o encarcerasse na vida adulta.
Aquilo não aconteceria.
Desde que Rehvenge realizara a boa ação do século e salvara tanto o seu traseiro quanto o do seu irmão, as coisas mudaram para Trez. Ele e iAm receberam ordens para se aliarem aos sympatho do lado de fora do Território a fim de saldarem a dívida, e esse “pagamento forçado” fora o bilhete deles para a liberdade, a saída que eles vinham procurando. E ainda que ele lamentasse arrastar iAm para aquele drama, o resultado final foi que seu irmão teve que vir com ele, e essa era apenas mais uma parte da solução perfeita que vivia atualmente. Abandonar o s’Hisbe e vir para o mundo exterior fora uma revelação, a primeira e deliciosa amostra de liberdade. Não havia protocolo, nenhuma regra, ninguém bafejando em seu cangote.
A ironia? Aquilo deveria ter sido um tapinha na bunda por ousar ter saído do Território e se misturar com os Desconhecidos. Um castigo com a intenção de fazê-lo andar na linha.
Rá.
E, desde então, nos recessos de sua mente, ele meio que desejava que a extensão dos seus negócios com os Desconhecidos durante a última década o tivesse contaminado perante os olhos do s’Hisbe, tornando-o inelegível para a “honra” que lhe fora concedida no nascimento. Ou seja, condenando-o a uma liberdade permanente.
O problema era que, se enviaram AnsLai, o sumo sacerdote, obviamente esse objetivo não fora alcançado. A menos que a visita tenha sido para repudiá-lo...
Nesse caso, saberia por meio de iAm. Não?
Trez verificou o celular. Nenhuma mensagem. Nem de voz nem de texto. Estava na casinha do cachorro de novo em relação ao seu irmão, a menos que iAm tivesse resolvido mandar tudo à merda e voltado para casa, para a tribo.
Maldição...
A batida forte à sua janela não fez com que ele simplesmente levantasse a cabeça. Não. Ele também sacou a arma.
Trez franziu a testa. Parado do lado de fora do carro, um macho humano do tamanho de uma casa. O cara tinha um barrigão de cerveja, mas os ombros fortes sugeriam que ele realizava trabalho físico regular, e o maxilar rígido e pesado revelava tanto a sua ancestralidade Cro-Magnon quanto o tipo de arrogância mais comum entre os animais grandes e idiotas.
Com grandes baforadas de touro libertando-se das narinas, ele se inclinou e bateu na janela. Naturalmente, com um punho tão grande quanto uma bola de futebol.
Bem, ficou claro que ele queria um pouco de atenção, e quer saber? Trez estava mais do que disposto em lhe dar.
Sem aviso, ele escancarou a porta, pegando o cara em cheio nas bolas. Enquanto o humano cambaleava para trás agarrando a virilha, Trez se ergueu em toda a sua altura e guardou a arma no cós da calça, fora de vista, mas fácil de apanhar.
Quando o senhor Agressivo se recuperou o bastante para olhar para cima, beeeem para cima, ele pareceu perder um pouco do seu entusiasmo. Pensando bem, Trez devia ter uns quarenta centímetros e pesar uns 45 quilos a mais que o cara. Apesar daquele pneuzão que ele carregava.
– Está procurando por mim? – perguntou Trez, querendo mesmo dizer: tem certeza de que quer fazer isso, grandalhão?
– É. ‘Tô.
Ok, então tanto a gramática quanto a avaliação de risco eram problemas para ele. Provavelmente teria dificuldades do mesmo tipo com adições e subtrações com numerais de único dígito.
– Estou – corrigiu Trez.
– Quê?
– Acredito que seja “sim, eu estou”, e não “tô”.
– Vai à merda. Que tal? – o cara se aproximou. – E fique longe dela.
– Dela? – isso restringia o problema para o que... umas mil pessoas?
– Minha mina. Ela num qué ocê, num precisa ducê, e num vai mais ficá cucê.
– De quem, exatamente, estamos falando? Vou precisar de um nome – e talvez nem isso ajudasse.
À guisa de resposta, o cara avançou. Provavelmente teria sido um soco ferrado, mas o avanço foi lento demais e muito penoso, e a maldita coisa poderia ter sido acompanhada de uma legenda.
Trez segurou o punho com uma mão, espalmando-a como se fosse uma bola de basquete. E depois, com um giro rápido, ficou com o pedaço de bife virado e preso – prova positiva de que pontos de pressão funcionavam, e que o pulso era um deles.
Trez falou bem no ouvido do homem, só para que as regras básicas fossem bem recebidas:
– Faça isso de novo e vou quebrar cada osso da sua mão. De uma vez – enfatizou isso com um puxão que fez o cara gemer. – E depois, vou subir até o braço. Agora, de que porra você está falando?
– Ela ‘teve aqui ontem à noite.
– Muitas mulheres estiveram. Consegue ser mais específico...?
– Ele ‘tá falando de mim.
Trez ergueu o olhar. Ah... que magnífico.
A garota que deu uma de doida, a sua perseguidora.
– Eu disse que cuidava disso! – ela gritou.
É, o cara parecia mesmo ter o controle da situação. Então, a que tudo levava a crer, os dois tinham ilusões... E talvez isso explicasse o relacionamento deles: ele a considerava uma supermodelo, e ela acreditava que ele tivesse um cérebro.
– Isto é seu? – Trez perguntou à mulher. – Porque, ser for, pode levá-lo para casa com você antes que precise de um balde para limpar a bagunça?
– Eu disse procê não vir aqui – disse a mulher. – Que que ‘cê ‘tá fazendo aqui?
E mais uma prova de que esses dois eram um casal perfeito.
– Que tal se eu deixar vocês dois resolverem isso? – sugeriu Trez.
– Eu amo ele!
Por um segundo, a resposta não fez sentido. Mas depois, e deixando o sotaque carregado de lado, ele entendeu: a tonta estava falando dele.
Enquanto Trez encarava incrédulo a mulher, percebeu que aquela transa em particular tinha saído pela culatra de maneira gigantesca.
– Não está, não.
Bem, pelo menos o namorado agora falara corretamente.
– Sim, estou!
Foi nessa hora que tudo foi para a puta que o pariu. O touro se lançou sobre a mulher, quebrando o próprio pulso no processo de se libertar. Depois os dois ficaram cara a cara, berrando obscenidades, os corpos se arqueando para a frente.
Ficou claro que eles tinham prática naquilo.
Trez olhou ao redor. Não havia ninguém no estacionamento, nenhuma alma viva andando na calçada, mas ele não precisava de violência doméstica rolando nos fundos da sua boate. Inevitavelmente, alguém acabaria vendo e chamando a polícia ou, pior, aquela burra acabaria forçando demais a barra do namorado grande e burro, e acabaria levando a pior.
Se ao menos ele tivesse um balde de água ou, quem sabe, uma mangueira de jardim para que os dois se largassem.
– Escutem aqui, vocês dois têm que...
– Eu te amo! – a mulher disse, virando-se para Trez e agarrando o bustiê. – Não entendeu ainda? Eu te amo!
Por conta da camada de suor que a cobria, apesar de a temperatura estar próxima de zero, ficou bem claro que ela tinha usado alguma coisa. Coca ou metanfetamina seria o seu palpite se ele tivesse de adivinhar. Êcstasy normalmente não era associado a esse tipo de agressão.
Perfeito. Mais essa agora.
Trez balançou a cabeça.
– Querida, você não me conhece.
– Conheço sim!
– Não, você não...
– Porra, não fala com ela assim!
O cara atacou Trez, mas a fêmea se colocou na frente, metendo-se diante de um trem acelerado.
Cacete, agora era a hora de ele se meter. Nada de violência contra mulheres na frente dele. Nunca – mesmo que fosse dano colateral.
Trez se moveu com tanta rapidez que quase fez o tempo voltar para trás. Tirou sua “protetora” da linha de combate e lançou um soco que pegou o animal disparado bem no meio do queixo.
Causou pouca ou nenhuma impressão. Foi o mesmo que atingir uma vaca com uma pilha de papel.
Trez levou um murro no olho, uma luz pipocou em metade da sua vista, mas foi um golpe de sorte mais do que algo coordenado. A recompensa, contudo, foi tudo isso e muito mais: com rápida coordenação, ele descarregou as juntas dos dedos em sucessão veloz, acertando-o no ventre, transformando o fígado cheio de cirrose do cara num saco de pancada vivo até o filho da puta se dobrar ao meio e pedir arrego.
Trez concluiu o assunto chutando o peso morto gemedor até ele cair no chão.
Então, ele sacou a pistola e enfiou o cano bem na carótida do cara.
– Você tem uma chance de sair daqui – Trez disse calmo. – E é assim que as coisas vão ser. Você vai se levantar e não vai nem olhar nem falar com ela. Você vai embora pela frente da boate e vai entrar numa porra de um táxi e vai para a porra da sua casa.
Diferentemente de Trez, o homem não tinha um sistema cardíaco muito bem desenvolvido e conservado e respirava como um trem de carga. Apesar disso e do jeito como os olhos injetados e marejados o olhavam, ele conseguira focar a visão independentemente da hipoxia, e captara a mensagem.
– Se a agredir de qualquer modo que seja, se ela quebrar sequer uma unha por sua causa, se alguma propriedade dela for danificada de algum modo? – Trez se inclinou, aproximando-se. – Vou abordá-lo por trás. Você nem saberá que estive ali, e não vai sobreviver ao que eu lhe farei. Isso eu prometo.
Sim, Sombras tinham maneiras de se livrar dos inimigos e, ainda que ele preferisse carne com pouca gordura, como frango e peixe, não se importava em abrir exceções.
O problema era que tanto em sua vida pessoal quanto na profissional ele vira como a violência doméstica se intensificava. Em muitos casos, algo grande tinha que intervir a fim de romper o ciclo. Veja só? Ele se encaixava nisso.
– Acene com a cabeça se você entendeu meus termos – quando o aceno veio, ele bateu a arma com força contra a nuca gorda. – Agora, olhe em meus olhos e saiba que estou falando a verdade.
Enquanto Trez o encarava, ele inseriu um pensamento direto no córtex cerebral, implantando-o como se fosse um chip instalado entre os lóbulos. O seu disparo seria qualquer tipo de ideia brilhante que tivesse a respeito da mulher; seu efeito seria a absoluta convicção de que a sua própria morte seria inevitável e rápida, caso ele desse seguimento à ideia.
O melhor tipo de terapia cognitiva que existia.
Taxa de sucesso de cem por cento.
Trez deu um pulo e concedeu uma chance de se comportar como um bom garoto ao gorducho. E, claro, o filho da puta se ergueu do chão, sacudiu-se como um cão com as pernas plantadas afastadas e a camisa larga solta.
Quando ele saiu, foi mancando.
E foi nesse instante que as fungadas foram percebidas.
Trez se virou. A mulher tremia no frio, as roupas indiscretas não ofereciam nenhuma barreira para a noite de dezembro, a pele pálida, a exaltação desaparecida... como se o fato de ele colocar o cano da sua .40 na garganta do seu namoradinho tivesse alguma influência.
O rímel escorria pelo rosto enquanto ela testemunhava a partida do seu “Príncipe Encantado”.
Trez olhou para o céu e começou seu diálogo interno.
No fim, ele não teria como deixá-la ali sozinha no estacionamento, ainda mais toda trêmula como estava.
– Onde você mora, querida? – até ele percebia a exaustão em sua voz. – Querida?
A mulher olhou para o lado dele e imediatamente a sua expressão mudou.
– Nunca ninguém me defendeu assim antes.
Ok, agora ele pensava em afundar a cabeça na parede de tijolos. E, olha só, havia uma logo ali do lado.
– Deixe-me levá-la para casa. Onde você mora?
Enquanto ela se aproximava, Trez teve que ordenar aos pés que continuassem exatamente onde estavam – pois, claro, ela se enterrou em seu corpo.
– Eu te amo.
Trez cerrou bem os olhos.
– Vamos – disse, desprendendo-se dela e levando-a até o carro. – Você vai ficar bem.
CAPÍTULO 35
Enquanto Layla era levada até a clínica, seu coração batia forte e as pernas tremiam. Felizmente, Phury e Qhuinn não mostravam problema algum em sustentá-la.
Contudo, graças à presença do Primale, sua experiência foi completamente diferente dessa vez. Quando o painel de entrada do edifício deslizou para o lado, uma das enfermeiras estava lá para recebê-los, e eles foram levados imediatamente para uma parte diferente da clínica daquela em que ela esteve na noite anterior.
Enquanto eram levados para a sala de exames, Layla olhou de relance ao redor e hesitou. O que... era aquilo? As paredes eram recobertas por um rosa claro, e as pinturas em molduras douradas estavam penduradas a intervalos regulares. Nenhuma mesa de exames, tal como aquela em que ela se deitou na noite anterior. Ali, havia uma cama forrada por uma manta elegante, recoberta com pilhas de travesseiros fofos. E, além disso, em vez da pia de aço inoxidável e gabinetes brancos sem graça, uma tela pintada escondia um canto inteiro do quarto atrás da qual, ela deduziu, os instrumentos clínicos de Havers eram mantidos.
A menos que o grupo tenha sido conduzido para os aposentos particulares do médico.
– Ele logo virá vê-la – disse a enfermeira, sorrindo para Phury e se curvando. – Posso lhes trazer algo? Café, chá?
– Apenas o médico – o Primale respondeu.
– Imediatamente, Vossa Excelência.
Ela se curvou novamente e se apressou para fora.
– Vamos colocá-la na cama, está bem? – disse Phury ao lado do leito.
Layla balançou a cabeça.
– Tem certeza de que estamos no lugar certo?
– Sim – o Primale se aproximou e a ajudou a atravessar o quarto. – Esta é uma das suítes VIP.
Layla olhou por sobre o ombro. Qhuinn se acomodara no canto oposto à tela. Ele se mantinha absolutamente imóvel, os olhos focados no chão, a respiração estável, as mãos atrás das costas. E mesmo assim não estava à vontade. Não, ele parecia pronto e capaz de matar e, por um momento, uma pontada de medo a perpassou. Jamais teve medo dele antes, mas, pensando bem, ela nunca o vira num estado tão potencialmente agressivo.
Pelo menos a violência represada não parecia direcionada a ela, nem mesmo ao Primale. Certamente não à doutora Jane enquanto a médica se acomodava numa cadeira forrada de seda.
– Vamos – insistiu Phury com gentileza. – Vamos lá.
Layla tentou subir sozinha, mas o colchão estava longe demais do chão e a parte superior do seu corpo estava tão fraca quanto as pernas.
– Eu pego você – Phury atenciosamente passou o braço ao redor das suas costas e atrás das pernas; depois a suspendeu com cuidado. – Lá vamos nós.
Ajeitando-se na cama, ela gemeu ao sentir uma câimbra se agarrar à sua região pélvica. Enquanto todos os olhos no quarto fixavam-se nela, ela tentou esconder a careta com um sorriso. Sem sucesso: embora o sangramento continuasse estável, as ondas de dor se intensificavam, a duração delas era mais longa, e o espaçamento entre elas, menor.
Naquele compasso, logo se transformaria em agonia constante.
– Estou bem...
A batida à porta a interrompeu.
– Posso entrar?
Apenas a voz do doutor Havers já fez com que ela quisesse fugir.
– Ah, Santa Virgem Escriba – disse ao tentar juntar coragem.
– Sim – respondeu sombriamente Phury. – Entre...
O que aconteceu em seguida foi tão rápido e furioso que o único modo de descrever seria com o coloquialismo que aprendera com Qhuinn.
O mundo desabou.
Havers abriu a porta, entrou e Qhuinn atacou o médico, empurrando-o para aquele canto, inclinando-se com a adaga.
Layla gritou alarmada, mas ele não matou o macho.
No entanto, ele fechou a porta com o corpo do macho, ou talvez com a cara dele. E foi difícil saber se o barulho que ressoou foi a porta se encontrando com a soleira ou o impacto do curandeiro sendo lançado contra a madeira. Provavelmente uma combinação de ambos.
A terrível lâmina afiada foi pressionada contra a garganta pálida.
– Adivinha o que vai fazer primeiro, cretino? – Qhuinn rosnou. – Vai se desculpar por tratá-la como se fosse uma maldita incubadora.
Qhuinn o virou com um puxão. Os óculos de Havers estavam quebrados, uma das lentes rachada formando um padrão de teia de aranha, a alça do outro lado esticada num ângulo estranho.
Layla lançou um olhar para Phury. O Primale não parecia particularmente aborrecido: apenas cruzou os braços sobre o peito imenso e se recostou contra a parede ao lado dela, obviamente muito à vontade com aquela encenação. Do outro lado na cadeira, o mesmo acontecia com a doutora Jane, o olhar esverdeado era tranquilo enquanto observava o dramalhão.
– Olhe nos olhos dela – bramiu Qhuinn – e peça desculpas.
Quando o lutador sacudiu o médico como se ele não passasse de uma boneca de pano, algumas palavras amontoadas escaparam do médico.
Caramba. Layla supunha que deveria se portar como uma dama e não gostar daquilo, mas sentiu satisfação ante aquela vingança.
Tristeza também, porque a situação jamais deveria ter chegado àquilo.
– Aceita as desculpas dele? – Qhuinn perguntou num tom maldoso. – Ou prefere que ele rasteje? Eu ficarei muito feliz em transformá-lo num capacho aos seus pés.
– Isso foi o bastante. Obrigada.
– Agora você vai contar a ela – Qhuinn repetiu o chacoalhão, os braços de Havers quase sendo arrancados das juntas, o jaleco branco balançando tal qual uma bandeira – e somente a ela, que merda está acontecendo com o corpo dela.
– Preciso do... prontuário...
Qhuinn expôs as presas e as colocou ao lado da orelha de Havers, como se estivesse considerando a ideia de arrancá-la numa mordida.
– Tolice. E se você estiver contando a verdade? O lapso de memória vai causar a sua morte. Agora.
Havers já estava pálido, mas isso fez com que ele ficasse completamente branco.
– Comece a falar, doutor. E se o Primale, que o impressiona pra cacete, fizer a gentileza de me contar caso você desvie o olhar dela, isso seria maravilhoso.
– Com prazer – disse Phury.
– Não estou ouvindo nada, doutor. E não sou um cara muito paciente.
– Você é... – por detrás dos óculos quebrados, os olhos do macho encontraram os dela. – O seu filho...
Ela quase desejou que Qhuinn não forçasse aquele contato. Já era bastante difícil ouvir aquilo sem ter que encarar o médico que a tratara tão mal.
Mas, pensando bem, era Havers quem tinha de olhar para ela, e não o contrário.
Ela encarava os olhos de Qhuinn quando Havers disse:
– Você está sofrendo um aborto.
As coisas ficaram embaçadas dali por diante, portanto, ela deduziu que estivesse chorando. Entretanto, não sentia coisa alguma. Era como se sua alma tivesse sido tragada para fora do seu corpo, tudo o que a animava e conectava ao mundo nunca tivesse existido.
Qhuinn não demonstrou reação alguma. Não piscou. Não mudou de posição, nem balançou a adaga.
– Existe algo que possa ser feito em termos médicos? – questionou a doutora Jane.
Havers foi balançar a cabeça, mas parou quando a ponta afiada da adaga perfurou a pele do seu pescoço. Quando o sangue começou a descer pelo colarinho engomado da camisa social, o vermelho combinou com a gravata borboleta.
– Nada que eu saiba – respondeu o médico com voz rouca. – Não neste mundo, de qualquer forma.
– Diga a ela que ela não teve culpa – exigiu Qhuinn. – Diga a ela que ela não fez nada de errado.
Layla fechou os olhos.
– Presumindo que isso seja verdade...
– Em humanos, esse costuma ser o caso, desde que não tenha havido nenhum trauma – interveio a doutora Jane.
– Diga a ela – disse Qhuinn num estalido, o braço começando a vibrar bem de leve, como se estivesse a um passo de liberar a sua violência.
– É verdade – confirmou Havers meio engasgado.
Layla fitou o médico, procurando o olhar dele por trás dos óculos arruinados.
– Nada?
Havers falou rapidamente:
– A incidência de abortos espontâneos é de aproximadamente uma a cada três gestações. Acredito que, como acontece com os humanos, seja causado por um sistema autorregulatório que garante que defeitos de vários tipos não sejam levados a cabo.
– Mas, sem sombra de dúvida, eu estou grávida – disse ela num tom desprovido de emoção.
– Sim. Seus exames de sangue atestaram isso.
– Existe algum risco à vida dela – perguntou Qhuinn – se isso continuar?
– Você é o ghia dela? – perguntou Havers num rompante.
Phury interveio:
– Ele é o pai do filho dela. Portanto, você o tratará com o mesmo respeito com que me trataria.
Isso fez com que os olhos do médico saltassem das órbitas, as sobrancelhas emergissem por trás da armação arruinada. E foi engraçado; foi nesse instante que Qhuinn demonstrou um pouco de reação: apenas um leve vacilo em seu rosto antes que a expressão ferrenha voltasse a demonstrar agressividade.
– Responda – exigiu Qhuinn. – Ela corre algum perigo?
– E-eu... – Havers engoliu em seco. – Não existem garantias na medicina. De modo geral, eu diria que não; ela é saudável em relação ao resto, e o aborto parece estar seguindo seu curso costumeiro. Além disso...
Enquanto o médico continuava a falar, Layla percebeu que seu tom educado e refinado estava muito mais irregular do que na noite anterior.
Tudo regrediu, sua audição sumiu, junto a qualquer percepção de temperatura do quarto, a cama debaixo dela, bem como os outros corpos ao seu redor. A única coisa que enxergava eram os olhos descombinados de Qhuinn.
Seu único pensamento enquanto ele segurava aquela adaga junto ao pescoço do médico?
Mesmo não estando apaixonados um pelo outro, ele era exatamente o pai que queria que seu filho tivesse. Desde que tomara a decisão de participar do mundo real, ela aprendera o quanto a vida podia ser dura, como os outros podiam conspirar contra você e como, às vezes, a força baseada em seus princípios era a única coisa que o fazia atravessar a noite.
Qhuinn dispunha desse último aos montes.
Ele era um extraordinário e temível protetor, e era exatamente disso que uma fêmea precisava quando estava grávida, amamentando ou cuidando de um bebê.
Isso e sua gentileza inata o tornavam nobre a seu ver.
A cor dos seus olhos não importava.
Quase oitenta quilômetros ao sul de onde Havers molhava as calças de tanto medo em sua clínica, Assail estava atrás do volante de seu Range Rover, balançando a cabeça em descrença.
As coisas ficavam cada vez mais interessantes com aquela mulher.
Graças ao GPS, ele rastreara o Audi de longe quando ela decidira sair de seu bairro e tomar a Northway. A cada saída de subúrbio, ele esperava que ela a tomasse, mas enquanto eles deixavam Caldwell para trás para comer poeira, ele começou a pensar que talvez ela estivesse seguindo para Manhattan.
Nada disso.
West Point, o lar da venerável escola militar humana, ficava aproximadamente na metade do caminho entre a cidade de Nova York e Caldwell, e quando ela saiu da autoestrada àquela altura, ele ficou aliviado. Muitas coisas aconteciam lá naquela terra em que o código postal começava com 100, e ele não queria se distanciar muito de sua base por dois motivos: um, ainda não tivera notícias dos gêmeos quanto à aparição daqueles intermediários fuleiros, e, dois, a aurora surgiria em algum momento, e ele não apreciava a ideia de abandonar seu muito modificado e reforçado Range Rover no acostamento de uma estrada caso precisasse se desmaterializar de volta para a sua segurança.
Uma vez fora da estrada, a mulher prosseguiu a exatos setenta quilômetros por hora pela seleção de postos de combustível, hotéis turísticos e lanchonetes da cidade. Em seguida, do outro lado dessa coleção de lugares baratos, as coisas começaram a ficar mais caras. Casas grandes, do tipo que ficavam bem ao fundo de gramados que se pareciam com carpetes, começaram a aparecer, com seus muros de pedra baixos placidamente se aglomerando próximos à estradinha. Ela passou por todas essas propriedades, porém, para acabar parando no estacionamento de um parque que dava para a margem de um rio.
Assim que ela saiu do carro, ele passou por ela, virando a cabeça para trás para medi-la.
Uma centena de metros mais adiante, fora do campo de visão dela, Assail parou o carro no acostamento da estradinha, saindo para o vento enregelante, abotoando o casaco até o alto. Os sapatos não eram os ideais para caminhar sobre a neve, mas ele não se importou. Seus pés suportariam o frio e a umidade, e ele tinha outra dúzia de pares à sua espera no armário de sua casa.
Como o carro dela, e não o corpo, estava com o aparelho de rastreamento, ele manteve o olhar fixo nela. Como esperado, ela vestiu os esquis de cross-country e, depois, com uma máscara branca de esqui sobre a cabeça e roupa de camuflagem clara a lhe cobrir o corpo, ela praticamente desapareceu em meio ao cenário de inverno.
E ele a acompanhou.
Aparecendo a cada dez ou quinze metros, ele encontrou pinheiros para se esconder conforme ela avançava na direção de mansões, os esquis devorando o chão coberto de neve.
Ele concluiu, enquanto mantinha o compasso, antecipando a direção que ela tomaria e, em boa parte adivinhando, que ela iria para uma daquelas mansões.
Toda vez que ela passava por ele sem saber que ele estava em meio às árvores, seu corpo queria saltar. Para derrubá-la. Para mordê-la.
Por algum motivo, aquela humana o deixava faminto.
E brincar de gato e rato era algo muito erótico, especialmente se só o gato soubesse que o jogo estava valendo.
A propriedade na qual ela acabou se infiltrando ficava a quase dois quilômetros dali, mas, apesar da distância, o ritmo puxado daquelas pernas não diminuiu em nada. Ela entrou pelo lado direito do gramado da frente, aproximando-se de um muro de sempre-vivas, depois retomando seu curso.
Aquilo não fazia sentido. Se ela fosse descoberta, estava muito longe do carro. Por certo uma abordagem mais próxima teria feito mais sentido? Afinal, de qualquer modo, agora ela estava exposta, sem árvores para lhe servir de cobertura, nenhuma possível defesa contra uma acusação de invasão de propriedade se a vissem.
A menos que ela conhecesse o dono. E, nesse caso, por que se esconder e aparecer sorrateira no meio da noite?
O jardim de uns 30 mil metros quadrados gradualmente se elevava em direção a uma casa de pedras de uns 180 metros quadrados, com esculturas modernistas paradas como sentinelas brilhantes e cegas ante aquela aproximação, o gramado continuando pelo fundo. O tempo inteiro ela se ateve àquele muro e, observando-a a uns vinte metros de distância, ele se viu impressionado por ela. Contra a neve, ela se movia como uma brisa o faria, invisível e rápida, a sombra lançada contra o muro de pedras de tal modo que ela parecia desaparecer...
Ahhhh...
Ela escolhera aquela rota exatamente por isso, não?
Sim, de fato, o ângulo do luar lançava a sombra dela exatamente sobre as pedras, criando uma camuflagem ainda mais eficiente.
E aquela sensação estranha se intensificou nele.
Esperta.
Assail avançou, encontrando um esconderijo entre a vegetação na lateral da casa. De perto, notou que a mansão não era nova, embora também não fosse antiga – mesmo porque, no Novo Mundo, era raro se deparar com algo construído antes do século XVIII. Muitas janelas chumbadas. E varandas. E terraços.
Conclusão? Fortuna e distinção.
Sem dúvida, muito bem protegidas por inúmeros alarmes.
Parecia muito improvável que ela só fosse espiar a propriedade como fizera na dele. Para começar, havia uma extensão arborizada do lado oposto daquele muro de pedras que ela atravessara. Ela poderia ter estacionado os esquis, subido aquela moita de uns quatro a seis metros, e obtido uma vista privilegiada da casa. O que mais? Nesse caso, ela não precisaria de nada do que estava na mochila que lhe pesava nas costas.
A coisa parecia grande o bastante para transportar um corpo, e estava cheia.
Como se tivessem combinado, ela parou, pegou os binóculos e inspecionou a propriedade, ficando absolutamente imóvel com somente a cabeça a se mexer. E depois atravessou o gramado, movendo-se ainda mais rapidamente do que antes, a ponto de estar literalmente correndo em direção à casa.
Na direção dele.
De fato, ela seguia diretamente para Assail, para aquela junção entre arbustos que marcava a frente da mansão, para a sebe alta que corria ao redor do jardim dos fundos.
Obviamente, ela conhecia a propriedade.
Obviamente, ele escolhera o lugar perfeito.
Ante a aproximação dela, ele recuou apenas um pouco... porque não teria se importado em ser flagrado espiando.
A mulher esquiou mais uns dois metros além de onde ele se encontrava, aproximando-se tanto que ele conseguiu captar o cheiro dela não só em seu nariz, mas também no fundo da garganta.
Ele teve que se refrear para não ronronar.
Depois do esforço em atravessar aquela faixa de gramado com tanta rapidez, ela estava arfando, mas seu sistema cardiovascular se recuperou rápido – um sinal de sua boa saúde e vigor. E a velocidade com a qual ela agora se movia foi igualmente erótica. Tirando os esquis. Tirando a mochila. Abrindo a mochila. Extraindo...
Ele deduziu que ela subiria no telhado, enquanto ela montava o que parecia ser um lança-arpão. Ela mirou a coisa para cima, apertou o gatilho para atirar um gancho. Um instante depois houve o som de um metal se agarrando no alto.
Quando olhou para cima, ele percebeu que ela escolhera uma das poucas extensões de pedra sem janelas... e protegida pela sebe enorme na qual ele mesmo se escondia.
Ela ia entrar.
Àquela altura, Assail franziu o cenho... e desapareceu de onde a observava.
Reaparecendo nos fundos da casa no andar de baixo, ele espiou por várias janelas, apoiando as laterais das mãos no vidro ao se inclinar. O interior estava basicamente escuro, mas não completamente: aqui e acolá havia abajures acesos, as lâmpadas emitindo uma luz alaranjada sobre a mobília que era uma combinação de objetos antigos e arte moderna. Luxuoso que só: em seu sono pacífico, o lugar se parecia com um museu, ou algo que se fotografaria para uma revista, tudo muito bem organizado com uma precisão que haveria de se perguntar se réguas tinham sido utilizadas para dispor a mobília e os objetos de arte.
Nenhuma bagunça em lugar algum, nenhum jornal largado sem querer, nada de cartas, contas, recibos. Nenhum casaco sobre o espaldar de uma cadeira ou um par de sapatos abandonados ao lado do sofá.
Cada um dos cinzeiros imaculadamente limpos.
Somente uma pessoa lhe veio à mente.
– Benloise – sussurrou para si mesmo.
CAPÍTULO 36
Baseando-se nas vibrações regulares que vinham de seu bolso, Xcor sabia que a sua presença estava sendo desejada pelos seus lutadores.
Ele não atendeu.
Parado do lado de fora do prédio para o qual a sua Escolhida fora conduzida, ele não tinha forças nem para sair mesmo quando o fluxo de outros de sua espécie surgia em carros ou materializando-se diante do portal pelo qual ela fora levada. De fato, como tantos entraram e saíram, não havia dúvidas de que aquela era uma clínica médica.
Pelo menos ninguém parecia notá-lo, estando preocupados demais com o que os afligia, apesar do fato de ele estar parado no meio do caminho.
Ah, deuses, só o pensamento do que trouxera a sua Escolhida ali o nauseava ao ponto de ele ter de pigarrear e...
Inspirar o ar frio para dentro dos seus pulmões ajudou a conter a ânsia de vômito.
Quando o cio dela acontecera? Devia ter sido muito recentemente. Da última vez em que a vira...
Quem seria o pai?, perguntou-se pela centésima vez. Quem tomara o que era seu...
– Não seu – ele disse para si mesmo. – Não seu.
Só que era a sua mente dizendo isso e não os seus instintos. Em seu cerne, na parte mais máscula da sua essência, ela era a sua fêmea.
E, ironicamente, era isso o que o impedia de atacar a clínica – com todos os seus soldados, se necessário. Se ela estava recebendo cuidados, a última coisa que ele queria era interromper o processo.
Enquanto o tempo passava e a ausência de informações o torturava até a insanidade, ele percebeu que desconhecera a existência daquele lugar. Se ela fosse dele? Ele não teria sabido onde levá-la para obter ajuda, certamente teria mandado Throe encontrar algum lugar, de algum modo, para garantir os cuidados dela, mas e no caso de uma emergência? Uma hora ou duas procurando um curandeiro poderia significar a diferença entre a vida e a morte.
A Irmandade, por sua vez, soube exatamente onde levá-la. E quando ela recebesse alta daquele lugar, sem dúvida, eles a levariam de volta a um lugar aquecido, seguro, onde teria alimento abundante e uma cama macia, e a força valente de pelo menos seis guerreiros para protegê-la enquanto dormisse.
Irônico como ele se sentia à vontade com isso. Mas, pensando bem, a Sociedade Redutora era um adversário muito sério; e digam o que quiserem a respeito da Irmandade, eles provaram durante toda a eternidade serem defensores capazes.
Abruptamente, seus pensamentos se voltaram para o armazém em que ele e seus soldados vinham ficando. Aquele ambiente úmido, frio, hostil era, na verdade, apenas um degrau acima dos outros lugares em que levantaram acampamento. Se ela estivesse com ele, como a manteria? Nenhum macho jamais poderia vê-la em sua presença, especialmente se ela tivesse de trocar de roupa ou se banhar...
Um rugido se infiltrou em sua garganta.
Não. Nenhum macho colocaria os olhos na pele dela ou ele o esfolaria vivo...
Ah, Deus, ela se vinculara a outro. Abrira-se e aceitara outro macho dentro de suas carnes sagradas.
Xcor abaixou o rosto entre as mãos, a dor em seu peito fazendo-o cambalear em suas botas de combate.
Deve ter sido o Primale. Sim, claro, ela se deitara com Phury, filho de Ahgony. Era esse o único modo com que as Escolhidas se procriavam, se a sua memória e os boatos estivessem certos.
Instantaneamente, sua mente ficou enevoada com a imagem do rosto perfeito e da silhueta delgada. Pensar que outro a desnudara e cobrira-lhe o corpo com o dele...
Pare, ele se ordenou. Pare com isso.
Arrastando sua mente para longe dessa loucura, ele se desafiou a definir qualquer tipo de hospedagem que poderia propiciar a ela. Em qualquer circunstância.
O único pensamento que lhe ocorreu foi voltar e matar aquela fêmea de quem seus soldados se alimentaram. Aquele chalé parecera bem tranquilo e adorável...
Mas para onde iria sua Escolhida durante o dia?
E, além disso, ele jamais a envergonharia permitindo que ela sequer andasse sobre o tapete onde todo aquele sexo acontecera.
– Com licença.
Xcor buscou a pistola dentro da jaqueta ao dar meia-volta. Só que não havia necessidade de usar força bruta – era apenas uma fêmea pequena com seu filho. Ao que tudo levava a crer, eles tinham saído de um utilitário estacionado a poucos metros dele.
Enquanto a criança se escondia atrás da mãe, os olhos da fêmea se arregalaram de medo.
Mas, pensando bem, quando se tropeça num monstro, sua presença dificilmente é recebida com alegria.
Xcor se curvou profundamente, em grande parte porque a visão do seu rosto por certo não estava melhorando a situação.
– Sim, como não...
Dito isso, ele recuou e virou, voltando ao posto originalmente ocupado. Na verdade, não percebera o quanto tinha se exposto.
E ele não queria brigar. Não com a Irmandade. Não com a sua Escolhida daquele modo. Não... ali.
Fechando os olhos, desejou poder voltar para aquela noite quando Zypher o levara para a campina e Throe, com o subterfúgio de ajudá-lo, o condenara àquele tipo de morte em vida.
Um macho vinculado que não podia estar com sua fêmea?
Morto apesar de viver...
Sem aviso, o portal foi puxado para trás e sua Escolhida surgiu. Instantaneamente, os instintos de Xcor gritaram para que ele agisse, apesar de todos os motivos para deixá-la em paz.
Leve-a! Agora!
Mas ele não o fez: as expressões sérias daqueles que a protegiam com tamanho cuidado o imobilizaram: notícias ruins foram dadas durante a estada deles ali.
Como antes, só faltaram carregá-la até o veículo.
E o cheiro do sangue dela ainda pairava no ar.
Sua Escolhida foi acomodada no banco traseiro do sedã, com a fêmea ao lado dela. Depois, Phury, filho de Ahgony, e o guerreiro de olhos descombinados entraram na frente. O veículo foi virado bem lentamente, como que por preocupação com a carga preciosa no compartimento traseiro.
Xcor os seguiu, materializando-se de tempos em tempos acompanhando a velocidade crescente na estrada rural ao fim da rua, e depois na autoestrada. Quando o carro chegou à ponte, ele mais uma vez o viu do mais alto esteio e depois que sua fêmea passou debaixo dele, ele saltou de telhado em telhado enquanto o sedã dava a volta no centro da cidade.
Ele rastreou o carro seguindo ao norte até sair da autoestrada e entrar numa região rural.
Continuou com ela o tempo inteiro.
E foi assim que ele descobriu a localização da Irmandade.
CONTINUA
CAPÍTULO 27
Assomando-se acima de Qhuinn, Blay estava anormalmente ciente de tudo ao seu redor: a sensação da mão de Qhuinn atrás da sua perna, o modo como a bainha do roupão resvalava sua canela, o cheiro do sexo permeando o ar.
De tantos modos, ele quisera aquilo a vida inteira. Ou pelo menos, desde que sobrevivera à transição e teve algum tipo de impulso sexual. Aquele momento era o ápice de sonhos incontáveis e de inúmeras fantasias, seu desejo secreto sendo manifestado.
E era sincero: os olhos descombinados de Qhuinn não tinham sombras, nem dúvidas. O macho não só dizia a mais absoluta verdade que lhe passava pelo coração, mas estava em paz por se expor com tanta vulnerabilidade.
Blay cerrou as pálpebras brevemente. Aquela submissão era o oposto de tudo o que definia Qhuinn como macho. Ele nunca se entregava; não os seus princípios, não as suas armas, nunca, jamais a si mesmo. Pensando bem, a reviravolta fazia algum sentido. O enfrentamento da morte tendia a ser seguido por revelações...
A questão era que ele tinha a sensação de que aquilo não duraria. Aquela “visão desobstruída” sem dúvida estava ligada à viagem de avião, mas tal qual uma vítima de ataque cardíaco voltando à antiga dieta deplorável pouco depois, a “revelação” provavelmente não teria vida longa. Sim, Qhuinn estava sendo sincero quanto ao que dizia naquele momento inebriante, não havia dúvida alguma quanto a isso. No entanto, era difícil acreditar que aquilo seria permanente.
Qhuinn era o que era. E muito em breve, depois que o choque fosse absorvido – talvez ao cair da noite, quem sabe na semana seguinte, ou dali a um mês – ele voltaria ao seu modo de ser fechado, distante, à parte.
Decisão tomada, Blay voltou a abrir os olhos e se inclinou. Quando os rostos se aproximaram, os lábios de Qhuinn se partiram, o inferior, carnudo, pulsava como se ele já tentasse saborear o que desejava... e se deleitava.
Merda. O lutador era tão magnífico, o peito nu poderoso reluzindo na luz do abajur, a pele transportando uma camada de excitação, os mamilos perfurados se elevando e descendo conforme a pulsação desenfreada do sangue aquecido.
Blay percorreu a mão pelos músculos do braço que os ligava, desde a espessura grossa do ombro até a protuberância do bíceps e a curva entalhada do tríceps.
Retirou a palma de sua coxa.
E se afastou.
Qhuinn empalideceu a ponto de ficar acinzentado.
No silêncio, Blay nada disse. Não conseguiria. Sua voz havia desaparecido.
Em pernas cambaleantes, ele se distanciou, a mão envolvendo a maçaneta até conseguir coordenação suficiente para abrir a saída. Saindo, ele não saberia dizer se bateu a porta ou se a fechou silenciosamente.
Não foi muito longe. Pouco mais de um metro além do quarto, ele desabou ao encontro da parede lisa e fria do corredor.
Ofegando. Estava ofegando.
E todo aquele esforço de nada adiantaria. A sufocação no peito só piorava e, subitamente, sua visão foi substituída por quadrados em preto e branco de um tabuleiro de xadrez.
Deduzindo que estava prestes a desmaiar, agachou-se e colocou a cabeça entre os joelhos. Nos recessos da mente, rezou para que o corredor continuasse vazio. Aquele não era o tipo de coisa que gostaria de explicar para ninguém: estava do lado de fora do quarto de Qhuinn, obviamente excitado, o corpo tremendo como se um terremoto particular estivesse acontecendo...
– Jesus Cristo...
Quase morri hoje... e isso endireita as pessoas. Lá em cima naquele avião, olhando para a noite escura, não achei que fosse conseguir. Tudo ficou claro para mim.
– Não – Blay disse em voz alta. – Não...
Apoiando a cabeça nas mãos, tentou respirar calmamente, pensar racionalmente, agir sensatamente. Não poderia se dar ao luxo de se afundar ainda mais naquilo...
Aqueles olhos quentes, brilhantes, descombinados eram o que o atraiam.
– Não – sibilou.
Enquanto a voz ressoava em seu crânio, ele resolveu se dar ouvidos. Chega. Aquilo não poderia ir adiante.
Há tempos perdera o coração para aquele macho.
Não havia motivos para perder a alma também.
Uma hora mais tarde, talvez duas, ou seis, Qhuinn estava deitado nu entre os lençóis frios, fitando o escuro do teto que não conseguia enxergar.
Aquela era a dor horrível que Blay sentira? Como na vez em que fora procurá-lo no porão da casa dos pais dele e disse estar preparado para partir de Caldwell, deixando bem claro que não haveria mais nenhum laço entre eles? Ou talvez na vez em que se beijaram na clínica e Qhuinn se recusara a ir em frente? Ou naquela derradeira colisão quando eles quase ficaram juntos, pouco antes do primeiro encontro de Blay com Saxton?
Um maldito vazio enorme.
Como aquele quarto, na verdade: sem iluminação e essencialmente vazio, apenas quatro paredes e um teto. Ou um saco de pele e um esqueleto, como era o caso.
Levantando a mão, colocou-a sobre o coração, só para se certificar de que ainda tinha um.
Caramba, o destino tinha um jeito de lhe ensinar as coisas que você precisava saber, mesmo se você não estivesse ciente de que a lição era necessária até ela ser apresentada: ele desperdiçara tempo demais envolvido consigo mesmo e o seu defeito, e seu fracasso perante a família e a sociedade. Um emaranhado confuso em que se metera por tempo demais e Blay, porque se importara, fora sugado naquele turbilhão.
Mas quando foi que apoiara o amigo? O que de fato fizera pelo cara?
Blay estivera certo ao sair daquele quarto. Um pouco tarde demais, não era o ditado? E não que Qhuinn estivesse oferecendo algum tipo de prêmio. Debaixo da superfície, ele não estava muito mais estável, na verdade. Não estava mais em paz.
Não, ele merecia aquilo...
Uma centelha de luz amarelo-esverdeada fatiou o seu campo negro de visão, como se a escuridão fosse um tecido e o facho de luz uma faca.
Uma figura entrou sorrateira no seu quarto, silenciosamente, e fechou a porta.
Pelo cheiro, ele soube quem era.
O coração de Qhuinn começou a bater forte quando ele se endireitou nos travesseiros.
– Blay...?
Houve um ruído sutil, o roupão escorregando pelos ombros do macho alto. Em seguida, momentos depois, o colchão foi pressionado quando um peso grande, vital, subiu nele.
Qhuinn esticou a mão no escuro com acuidade certeira, as mãos encontrando as laterais do pescoço de Blay com tanta precisão como se tivessem sido direcionadas pela visão.
Nenhuma conversa. Ele temia que as palavras lhe roubassem aquele milagre.
Elevando a boca, puxou a de Blay para a sua, e quando aqueles lábios de veludo estavam perto de seu campo de atuação, ele os beijou com um desespero que foi retribuído. De uma vez só, todo o passado reprimido foi libertado com fúria e ele sentiu o gosto de sangue, sem saber quais foram as presas que rasgaram o outro.
E quem se importava?
Com um puxão forte, deitou Blay e depois rolou por cima do macho, afastando-lhe as coxas e pressionando-se até que o membro rijo se deparasse com...
Os dois gemeram.
Tonto por causa de tanta pele nua, Qhuinn começou a bombear os quadris para frente e para trás, a fricção dos sexos e a pele quente aumentando o calor úmido em suas bocas. Frenesi, em toda parte, rápido, depressa, rápido... Puta merda, havia desejo demais para entender onde suas mãos estavam, ou no que ele se esfregava ou... Porra, havia pele demais para tocar, cabelos para puxar, tanta coisa, demais...
Qhuinn gozou, as bolas endurecendo, a ereção jorrando entre eles, espalhando-se por todos os lados.
E isso não o desacelerou em nada.
Com um puxão, afastou-se da boca que poderia passar uma centena de anos beijando, lançou-se sobre o peito de Blay. Os músculos com que se deparava não se comparavam com os dos humanos com quem transara: aquilo era um vampiro, um lutador, um soldado treinado arduamente que exercitava o corpo para atingir uma condição não só útil, mas essencialmente letal. Caramba se aquilo não era ex-citante... mas, acima de tudo, aquele era Blay; finalmente, depois de todos aqueles anos...
Blay.
Qhuinn resvalou as presas por um abdômen que era sólido como uma rocha, e o seu cheiro na pele de Blay era uma marcação que sabia que fizera de propósito.
Aquele tempero forte também iria para outros lugares.
Gemeu quando as mãos encontraram o pênis de Blay e, enquanto circundava a coluna rija, o cara se arqueou profundamente, uma imprecação atravessando o quarto, de modo bem semelhante ao que a luz fizera pouco antes.
Qhuinn lambeu os lábios, elevou o sexo de Blay e permitiu que o pênis grosso e ousado partisse sua boca. Sugando, tomou-o até a base, abrindo a garganta, engolindo tudo. Em resposta, os quadris de Blay se elevaram, e mãos brutas cravaram em seus cabelos, forçando a cabeça ainda mais para baixo até que ele não conseguisse mais levar ar aos pulmões. Mas quem é que precisava de oxigênio?
Afundando as mãos nas nádegas de Blay, inclinou aquela pélvis e subiu e desceu, o pescoço se esticando com o ritmo punitivo, os ombros flexionando e relaxando enquanto ele executava exatamente aquilo que oferecera a Blay antes de ele ir embora.
Ele não pretendia fazer apenas aquilo, porém.
Não.
Era apenas o começo.
CAPÍTULO 28
Quando Blay caiu contra os travesseiros de Qhuinn, quase partiu a coluna. Tudo estava fora de controle, mas ele não teria desacelerado em nada as coisas: os quadris subiam e desciam, o pau empurrava e era chupado pela boca de Qhuinn...
Graças a Deus as luzes estavam apagadas.
Só as sensações já eram demais. Com um auxílio visual? Ele não conseguiria...
O orgasmo disparou como um foguete, a respiração ficou suspensa, o corpo enrijeceu todo, o sexo gozando ao máximo. Ao chegar ao clímax em grandes espasmos, ele foi ordenhado por aquela boca... e, caramba, a sucção incitou o alívio a continuar, com grandes ondas de prazer pulsante varrendo-o do cérebro até as bolas, seu corpo atingindo um plano de existência completamente diferente...
Sem aviso, ele foi virado por uma mão brusca, o corpo manejado como se não pesasse absolutamente nada. Em seguida, um braço passou por baixo de sua pélvis e o colocou de joelhos. Houve uma breve calmaria na qual tudo o que ele ouviu foi a respiração pesada atrás dele, o arquejo aumentando cada vez mais, mais fundo...
Ouviu o orgasmo de Qhuinn e entendeu exatamente o motivo.
Mesmo seu corpo inteiro estando fraco de antecipação, ele sabia que tinha de se preparar quando uma mão pesada aterrissou em seu ombro e...
A penetração foi como um ferro de marcar, quente e brutal, atingindo direto o seu cerne. E ele praguejou numa exalação explosiva. Não porque doesse, ainda que do melhor modo possível. Nem mesmo porque aquilo era algo que ele tanto desejara, se bem que isso fosse verdade.
Não. Era porque ele teve a estranha sensação de estar sendo marcado e, por algum motivo, isso fez com que...
Um sibilo atingiu-o no ouvido, e depois um par de presas cravou-se em seu ombro, a pegada de Qhuinn mudando na altura dos quadris, o torso enroscado em tantos lugares. E, então, quando a penetração inexorável começou, os molares de Blay se cerraram, os braços tiveram que suportar o peso dos dois, as pernas e o torso se esforçaram debaixo do ataque.
Ele teve a sensação de que a cabeceira da cama batia contra a parede e por um centésimo de segundo, lembrou-se do candelabro na biblioteca oscilando enquanto Layla fora sujeitada àquilo.
Blay amaldiçoou a imagem. Não se permitiria ir lá; não poderia. Deus bem sabia que haveria muito tempo para refletir sobre tudo aquilo mais tarde.
Naquele instante? Aquilo era bom demais para ser desperdiçado...
Enquanto o açoite continuava, suas palmas escorregaram nos lençóis de algodão fino, e ele teve que reposicioná-las, afundando-as no colchão macio para tentar sustentar sua posição. Deus, os sons que Qhuinn fazia, os rosnados que reverberavam entre as presas enterradas em seu ombro, as estocadas... ah, sim, isso era a cabeceira. Definitivamente.
Com a pressão se avolumando em suas bolas, ele se sentiu tentado a se espalmar, mas não havia como. Ele precisava das duas mãos naquele trabalho...
Como se Qhuinn lesse sua mente, o macho passou o braço ao seu redor e o agarrou.
Não era necessário masturbá-lo. Blay gozou tão violentamente que sua mente ficou difusa e, naquele exato instante, Qhuinn começou a ter um orgasmo também, os quadris movendo-se para dentro, parando um segundo antes de recuarem só para afundarem ainda mais antes da explosão. E, ah, porra, a combinação dos dois fazendo suas coisas era tão erótica que só fez com que tudo recomeçasse mais uma vez: não houve intervalo para se recuperarem, absolutamente nenhuma pausa. Qhuinn apenas retomou as investidas como se seu alívio o tivesse fortalecido.
Enquanto o sexo se estendia, e apesar de toda a força que Blay tinha em seus membros superiores, ele acabou caindo da cama, uma mão travando na lateral da mesinha de cabeceira só para que ele não batesse na parede...
Crash!
– Merda – disse ele rouco. – O abajur...
Ao que tudo levava a crer, Qhuinn não estava interessado em decoração. O macho simplesmente puxou a cabeça de Blay e começou a beijá-lo, a língua com piercing penetrando sua boca, lambendo e sugando... como se não conseguisse se fartar.
Tontura. Ele ficou absolutamente tonto com tudo aquilo. Em cada fantasia que teve, ele sempre visualizou Qhuinn como um amante impetuoso, mas aquilo... aquilo estava num outro nível.
Por isso, foi ao longe que ele se ouviu dizer numa voz gutural:
– Morda... de novo.
Um grunhido imenso vindo de cima perpassou seu ouvido, e depois outro sibilo atravessou a escuridão quando Qhuinn mudou as posições, seu peso massivo girando para que as presas pudessem afundar na lateral do pescoço.
Blay praguejou e empurrou para longe o que quer que tivesse restado sobre a mesinha de cabeceira, o peito tomando o lugar dos objetos, a pele suada chiando no verniz enquanto ele jazia meio de lado. Esticando a mão, ele se apoiou na tábua do piso e empurrou para cima, mantendo os dois estáveis enquanto Qhuinn se alimentava e o penetrava tão magnificamente bem...
Vezes demais para contar, até os travesseiros estarem no chão, os lençóis rasgados, outro abajur destruído... e não estava muita certo, mas ele achava que tinha derrubado um quadro da parede.
Quando a imobilidade por fim substituiu todo aquele esforço, Blay respirou fundo e se sentiu como se estivesse submerso.
O mesmo se passava com Qhuinn.
O aumento da trajetória úmida no pescoço de Blay sugeria que as coisas ficaram tão descontroladas que não houve o fechamento da veia que fora sugada. E quem se importava? Ele não, nem conseguia pensar, e não se preocuparia. As sensações pós-coito de flutuação e êxtase eram gloriosas demais para serem estragadas, o corpo estava ao mesmo tempo hipersensível e entorpecido, quente e brando, dolorido e saciado.
Caramba, os lençóis teriam de ser lavados. E Fritz indubitavelmente teria de encontrar uma supercola para aqueles abajures.
Onde exatamente ele estava?
Esticando a mão, tateou e descobriu o tapete e a saia da cama... além de uma manta. Ah, bom, estava quase caindo pela ponta da cama. O que explicava a tontura que sentia.
Quando Qhuinn, por fim, soltou-se dele, Blay quis acompanhá-lo, mas seu corpo estava muito mais interessado em ser um objeto inanimado. Ou um rolo de tecido ou, quem sabe...
Mãos gentis o suspenderam e, com cuidado e devagar, rolaram-no de costas. Houve mais um pouco de movimentação e depois ele se sentiu reposicionado contra os travesseiros que retornaram ao seu devido lugar. Enfim, uma manta leve foi ajustada na metade do seu corpo, como se Qhuinn soubesse que ele estava muito quente para ser coberto demais e, ainda assim, começava a sentir um friozinho enquanto o suor que o cobria começava a secar.
Seu cabelo foi empurrado para longe da testa e, em seguida, sua cabeça foi ajeitada para o lado. Lábios de seda beijaram a coluna de seu pescoço e, depois, lambidas longas e langorosas selaram a mordida que ele pedira e recebera.
Quando tudo terminou, deixou que sua cabeça fosse ajeitada para o lado de Qhuinn. Ainda que estivesse absolutamente escuro, ele sabia exatamente como o rosto que o fitava estava: ruborizado nas maçãs do rosto, as pálpebras semicerradas, os lábios vermelhos...
O beijo pressionado em sua boca foi reverente, o contato não mais pesado do que o ar quente e estático do quarto. Era o beijo perfeito de um amante, o tipo de coisa que ele desejava mais do que o sexo ardente que partilharam...
O pânico golpeou o centro do seu peito e ressoou para fora num piscar de olhos.
As mãos agiram por vontade própria, empurrando Qhuinn.
– Não me toque. Nunca mais me toque assim.
Deu um salto da cama e só Deus sabia em que parte do quarto ele aterrissou. Hesitante, tateou pelo aposento, mas acabou se orientando pela luz que passava por baixo da porta.
Apanhando o roupão no chão, não olhou para trás ao sair.
Não suportaria encarar o resultado daquilo tudo em nenhum tipo de luz.
Isso só tornaria tudo aquilo muito real.
Em algum momento, Qhuinn teve que fazer com que as luzes se acendessem. Não suportava mais a escuridão.
Quando a iluminação inundou o lugar, ele piscou e teve que amparar os olhos com a mão. Depois de recalibrar as retinas, olhou ao redor.
Caos. Total e absoluto.
Então tudo aquilo acontecera mesmo, hein. E quanta ironia que o interior da sua cabeça fizesse com que aquela bagunça parecesse uma ordem militar em comparação.
Nunca mais me toque assim.
Ah, inferno, pensou ele ao esfregar o rosto. Não poderia culpar o cara.
Primeiro, demonstrara a mesma finesse de uma escavadeira. Bola de demolição. Tanque de guerra. O problema era que tudo aquilo fora intenso demais para demonstrar qualquer traço de paciência: o instinto, tão puro e tão inflamável quanto combustível, o acendera; a sessão fora um caso de deixar as coisas rolarem.
Oh, Deus, marcara o cara.
Caralho. E não exatamente no bom sentido, considerando que Blay estava apaixonado e envolvido num relacionamento... e voltando para a cama do amante.
Mas, pensando bem, quando um macho está com quem ele quer, especialmente se é a primeira vez, era isso mesmo o que acontecia. As coisas saíam do controle...
Nem era preciso dizer que aquele fora o melhor sexo de sua vida, a primeira vez de perfeito encaixe depois de uma longa história de “nem de longe”. A questão foi que, no fim, ele quis que Blay soubesse disso, tentou encontrar as palavras e se apoiou no toque para pavimentar o caminho da confissão.
Contudo, ficou evidente que o macho não queria ter essa proximidade.
O que provocou um segundo, e mais profundo, arrependimento.
Sexo por desforra não se tratava de atração, mas sim de utilidade. E Blay o usara, do modo como ele pedira para ser usado.
Aquela sensação de vazio voltou multiplicada por dez. Por cem.
Sem conseguir suportar a emoção, pôs-se de pé, e teve que praguejar: a rigidez notável na lombar tinha tudo a ver com o acidente de avião e mais ainda com a pneumática que realizara na última hora... ou mais...
Merda.
Indo para o banheiro, deixou as luzes apagadas, mas havia iluminação suficiente vinda do quarto para ele conseguir entrar no chuveiro. Dessa vez, esperou a água esquentar; seu corpo não suportaria mais um choque.
Era tão patético; a última coisa que desejava era lavar o cheiro de Blay de sua pele, mas estava enlouquecendo com ele. Deus, devia ser assim que todos os hellrens se sentiam quando ficavam possessivos: metade do seu juízo dizia que ele devia descer o corredor, invadir o quarto de Blay e expulsar Saxton. A bem da verdade, teria adorado que o primo tivesse testemunhado, só para o cara saber que...
Para interromper aquele nada saudável curso de pensamentos, entrou no box envidraçado e pegou o sabonete.
Blay estava envolvido, tentou se lembrar disso, mais uma vez.
O sexo que partilharam não se referia à conexão emocional.
Portanto, ele estava, nesse momento de vazio, sendo passado para trás pela sua própria história.
Aquele parecia ser mais um caso em que o destino lhe dava aquilo que ele merecia.
Enquanto se lavava, o sabonete não era nada macio se comparado com a pele de Blay, nem cheirava um quarto do perfume do cara. A água não era tão quente quanto o sangue do lutador e o xampu, nada tranquilizador. Nada se equiparava.
Nem jamais conseguiria.
Enquanto Qhuinn virava o rosto para o jato e abria a boca, descobriu-se rezando para que Saxton pulasse a cerca mais uma vez, mesmo isso sendo uma coisa deplorável de se desejar.
O problema era que ele tinha a terrível sensação de que outro caso de infidelidade seria a única maneira de Blay voltar para ele.
Fechando os olhos, voltou para aquele momento em que beijou Blay no fim... em que o beijou de verdade, quando as bocas se encontraram gentilmente na calmaria após a tempestade. Enquanto sua mente reescrevia o roteiro, ele não era empurrado para o outro lado dos limites que ele mesmo criara. Não, em sua imaginação, as coisas terminavam como teriam de terminar, com ele afagando o rosto de Blay e fazendo as luzes se acenderem para que pudessem se olhar.
Em sua fantasia, ele beijaria seu amigo uma vez mais, se afastaria e...
– Eu te amo – disse ele para o jato de água. – Eu... te amo.
Ao fechar os olhos novamente ante a dor, ficou difícil saber quanto daquilo que descia pelo seu rosto era água e quanto era outra coisa.
CAPÍTULO 29
No dia seguinte, bem no fim da tarde, o visitante de Assail voltou.
Enquanto o sol se punha e os raios rosados de sol atravessavam a floresta, ele viu em seu monitor uma figura solitária em esquis de cross-country, os bastões equilibrados contra os quadris, binóculos cobrindo o rosto.
Nos quadris dela, o rosto dela, melhor dizendo.
A boa notícia era que suas câmeras de segurança não só tinham um zoom fantástico, como também seu foco e campo de visão eram facilmente manipulados por um joystick de computador.
Por isso ele restringiu ainda mais a imagem.
Quando a mulher abaixou os binóculos, ele mediu o comprimento de cada cílio ao redor dos olhos escuros e calculistas, e as marcas avermelhadas das maçãs do rosto de poros pequenos, e o ritmo uniforme da pulsação da artéria que percorria a mandíbula.
O aviso que ele dera a Benloise fora recebido. E, ainda assim, lá estava ela.
Era evidente que ela estava, de algum modo, ligada ao atacadista de drogas; e na noite anterior, pelo visto, ela ficara irritada com Benloise, visto o modo como marchara para fora da galeria como se alguém a tivesse insultado.
Todavia, Assail nunca a vira antes, o que era estranho. No último ano, aproximadamente, ele se familiarizara com todos os aspectos da operação de Benloise, desde o número incalculável de seguranças, até a equipe irrelevante da galeria, incluindo os importadores astutos e o irmão do homem, responsável pelas finanças.
Portanto, ele só podia deduzir que ela era uma empreiteira independente, contratada para um propósito específico.
Mas por que, então, ela ainda estava em sua propriedade?
Verificou os números digitais na parte inferior da tela. Quatro e meia. Costumeiramente, não seria uma hora com que se alegrar, pois ainda era cedo demais para sair. Mas o horário de verão acabara, e aquela invenção humana de manipular o sol na verdade trabalhava a seu favor por seis meses no ano.
Estaria um pouco quente lá fora, mas ele lidaria com isso.
Assail se vestiu rapidamente, colocando o terno Gucci com uma camisa de seda branca e pegando o sobretudo trespassado de pelo de camelo. O seu par de Smith & Wesson calibre .40 era o acessório perfeito, claro.
O metálico seria sempre o novo preto.
Pegando o iPhone, franziu ao tocar a tela. Uma chamada de Rehvenge, com uma mensagem.
Saindo do quarto, acessou a mensagem de voz do lídher do Conselho e ouviu-a enquanto descia as escadas.
A voz do macho ia direto ao ponto, e isso era algo a se respeitar:
– Assail, você sabe quem é. Estou convocando uma reunião do Conselho e quero não apenas um quorum, mas presença completa; o Rei estará presente, bem como a Irmandade. Como macho sobrevivente mais velho da sua linhagem, você está na lista do Conselho, mas registrado como inativo porque permaneceu no Antigo País. Agora que está de volta, está na hora de começar a participar desses encontros festivos. Ligue para mim para me informar a sua agenda, para que eu possa organizar local e data conveniente a todos.
Parando ante a porta de aço que bloqueava a escada inferior, colocou o telefone no bolso de dentro, destravou a porta e a abriu.
O primeiro andar estava escuro por conta das persianas especiais que bloqueavam toda a luz solar, e a sala de estar imensa mais se parecia com uma caverna no centro da terra do que com uma gaiola envidraçada às margens do rio.
Da direção da cozinha vinha o barulho de fritura e o cheiro de bacon.
Caminhando na direção oposta, entrou no falso escritório recoberto com painéis de nogueira que cedera ao uso dos primos e passou para o quarto especial de dois metros quadrados, cuja temperatura era mantida em precisos vinte graus Celsius e umidade a exatamente 69%, perfumado pelo tabaco de dúzias e dúzias de caixas de charutos. Depois de ponderar sobre a fileira exposta, apanhou três cubanos.
Afinal, os cubanos eram os melhores.
E ali estava mais uma coisa que Benloise lhe fornecia por um preço.
Trancando a sua preciosa coleção, voltou à sala de estar. Já não havia barulho de fritura, o bater sutil de talheres nos pratos o substituíra.
Ao entrar na cozinha, os dois primos estavam sentados em bancos ante a bancada de granito, o par comendo no mesmo ritmo preciso, como num rufar de tambores, despercebido por outros, mas que regulava seus movimentos.
Os dois levantaram as cabeças no mesmo ângulo para olhar para ele.
– Estou de saída. Sabem como me localizar – disse.
Ehric limpou a boca.
– Localizei três daqueles intermediários desaparecidos... voltaram à ação, estão prontos para se mexer. Vou fazer a entrega à meia-noite.
– Bom, muito bom – Assail verificou rapidamente as armas. – Tente descobrir onde estavam, sim?
– Como quiser.
Os dois abaixaram as cabeças ao mesmo tempo, voltando ao desjejum.
Nada de comida para ele. Do lado da cafeteira, ele pegou um frasco de cor de âmbar e desatarraxou a tampa, que tinha uma colherinha de prata grudada a ela, e o objeto emitiu um tinido enquanto ele o enchia com cocaína. Uma aspirada.
Bom dia!
Ele levou o resto consigo, colocando-o no mesmo bolso dos charutos. Já fazia um tempo desde que se alimentara e estava começando a sentir os efeitos, o corpo preguiçoso, a mente tendendo a um entorpecimento desconhecido.
O lado negativo do Novo Mundo? Era difícil encontrar fêmeas.
Felizmente, cocaína pura era um bom substituto, pelo menos por enquanto.
Ajustando um par de óculos de sol de lentes opacas, passou pelo vestíbulo e se preparou para sair pela porta dos fundos.
Afastando a porta...
Assail se retraiu e gemeu ante o ataque, seu peso oscilando em seus sapatos: apesar de 99% do seu corpo estar coberto por camadas múltiplas de roupa, e mesmo de óculos escuros, a luz efêmera do céu era o bastante para que ele vacilasse.
No entanto, não havia tempo para ceder à biologia.
Esforçando-se para se desmaterializar até a floresta atrás da casa, pôs-se a rastrear a mulher próximo à escuridão. Foi bem fácil localizá-la. Ela estava batendo em retirada, movendo-se rapidamente sobre aqueles esquis, abrindo caminho por entre os ramos espinhosos dos pinheiros e os carvalhos e bordos esqueléticos. Extrapolando a trajetória dela e aplicando a mesma lógica interna que ela demonstrara nas fitas de segurança da manhã anterior, ele logo se adiantou, antecipando bem onde ela estaria...
Ah, sim. O Audi preto da galeria. Estacionado ao lado da estrada limpa de neve a cerca de três quilômetros de sua propriedade.
Assail estava recostado contra a porta do motorista e bafejando um cubano quando ela saiu do limite das árvores.
Ela parou de pronto nos rastros duplos por ela criados, os bastões em ângulos abertos.
Ele lhe sorriu ao soprar uma nuvem de fumaça no crepúsculo.
– Belo entardecer para se exercitar. Apreciando a vista... Da minha casa?
A respiração dela estava acelerada devido ao esforço físico, mas não por algum medo que ele pudesse pressentir. Isso o excitava.
– Não sei do que está fal...
Ele interrompeu a mentira.
– Bem, o que posso lhe dizer é que, no momento, sou eu quem está apreciando a vista.
Enquanto seu olhar descia deliberadamente pelas pernas longas e atléticas nas calças justas de esqui, ela o encarou.
– Acho difícil que consiga ver qualquer coisa por trás dessas lentes.
– Meus olhos são muito sensíveis à luz.
Ela franziu o cenho e olhou ao redor.
– Quase não há mais nenhuma luz.
– Há o bastante para eu enxergá-la – ele deu nova baforada. – Gostaria de saber o que eu disse a Benloise ontem à noite?
– Quem?
Ela o aborreceu e ele afiou a voz:
– Um pequeno conselho. Não brinque comigo... isso fará com que morra mais rápido do que qualquer tipo de invasão de domicílio.
Um cálculo impassível fez com que ela estreitasse o olhar.
– Eu não sabia que invasão de propriedade dava pena de morte.
– Comigo, existe uma bela lista de coisas com repercussões letais.
Ele levantou o queixo.
– Ora, ora. Como você é perigoso.
Como se ele fosse um gatinho brincando com um novelo e sibilando.
Assail moveu-se com rapidez, ele bem sabia que os olhos dela seriam incapazes de acompanhá-lo. Num momento, estava a metros de distância; no instante seguinte, estava nas pontas dos seus esquis, prendendo-a no lugar.
A mulher gritou alarmada e tentou recuar, mas, claro, seus pés estavam presos. Para evitar que ela caísse, ele a apanhou pelo braço com a mão que não segurava o charuto.
Agora o sangue dela corria de medo e, quando ele inalou seu cheiro, excitou-se. Puxando-a para a frente, fitou-a, tracejando-lhe o rosto.
– Tome cuidado – disse ele numa voz mansa. – Eu me ofendo com rapidez e meu temperamento não é facilmente aplacado.
Embora ele conseguisse pensar pelo menos numa coisa que ela poderia lhe dar que o acalmaria.
Inclinando-se, ele inspirou profundamente. Deus, adorava o cheiro dela.
Mas aquela não era a hora de se distrair com esse tipo de coisa.
– Eu disse a Benloise que enviasse pessoas à minha casa por sua conta e risco... delas. Estou surpreso que ele não a tenha alertado sobre esses, como podemos dizer, limites bem delimitados de propriedade...
Pelo canto do olho, ele percebeu um movimento sutil no ombro dela. Ela pretendia pegar a arma com a mão direita.
Assail colocou o charuto entre os dentes e segurou o punho delicado. Aplicando pressão e só parando quando a dor se fez perceber na respiração dela, ele a arqueou para trás para que ela notasse completa e inequivocadamente o poder que ele tinha sobre si mesmo e sobre ela. Sobre tudo.
E foi nesse momento que a mulher se excitou.
Fazia muito tempo, talvez tempo demais, desde que Sola desejou um homem.
Não que ela não os considerasse desejáveis via de regra, ou que não tivessem existido ofertas para encontros horizontais com membros do sexo oposto. Nada lhe parecera valer o esforço. E talvez, depois daquele único relacionamento que não dera certo, ela tivesse regressado aos hábitos de sua rígida criação brasileira – o que era irônico, considerando-se o que fazia para sobreviver.
Aquele homem, porém, chamara sua atenção. Verdadeiramente.
O modo como a segurava pelo braço e pelo pulso não era nada educado e, mais do que isso, não havia clemência pelo fato de ela ser mulher; as mãos a apertavam com tanta força a ponto de a dor se encaminhar para o coração, fazendo-o bater forte. Do mesmo modo, o ângulo em que a forçava para trás testava os limites da capacidade de sua coluna se dobrar, e as coxas ardiam.
Excitar-se assim... era uma negligência ignorante para a sua autopreservação. Na verdade, ao fitar aquelas lentes escuras, ela estava bem ciente de que ele poderia matá-la ali mesmo. Torcendo o seu pescoço. Quebrando seus braços só para vê-la gritar antes de sufocá-la na neve. Ou talvez apenas desacordando-a antes de jogá-la no rio.
O sotaque carregado de sua avó subitamente veio-lhe à mente: Por que não pode conhecer um bom rapaz? Um rapaz católico de uma família que conhecemos? Marisol, assim você parte o meu coração.
– Só posso deduzir – a voz sombria sussurrou com um sotaque e uma inflexão que lhes eram desconhecidos – que a mensagem não lhe foi transmitida. Correto? Benloise deixou de lhe passar essa informação... e é por isso que, depois de eu ter expressamente indicado minhas intenções, você ainda assim voltou a espionar a minha casa? Creio que foi isso o que aconteceu, talvez uma mensagem de voz que ainda não tenha sido recebida. Ou uma mensagem de texto, um e-mail. Sim, acredito que o comunicado de Benloise tenha se perdido, não é mesmo?
A pressão nela intensificou-se ainda mais, sugerindo que ele tinha força de sobra, o que era, no mínimo, uma perspectiva assombrosa.
– Não é isso? – rugiu ele.
– Sim – disse ela. – É isso.
– Portanto, posso deduzir que não a encontrarei em seus esquis por aqui. Correto?
Ele a sacudiu novamente, a dor fazendo com que seus olhos revirassem.
– Sim – ela disse num engasgo.
O homem relaxou apenas o suficiente para que ela pudesse respirar um pouco. Depois continuou falando, naquela voz estranhamente sedutora:
– Bem, preciso de uma coisa antes que você vá. Você me dirá o que descobriu sobre mim... Tudo o que descobriu.
Sola franziu o cenho, pensando que aquilo era tolice. Sem dúvida um homem como aquele estaria ciente de qualquer informação que uma terceira pessoa poderia saber a seu respeito.
Então aquilo era um teste.
Visto que ela queria muito rever a avó, Sola disse:
– Não sei seu nome, mas posso imaginar o que faz, e também o que fez.
– E o que seria?
– Acredito que seja a pessoa que esteja matando aqueles interceptadores na cidade para assegurar território e controle.
– Os jornais e os noticiários disseram que se tratavam de suicídios.
Ela apenas prosseguiu, uma vez que não havia motivo para argumentar:
– Sei que mora sozinho, até onde posso saber, e que sua casa possui um tratamento estranho nas janelas. Um tipo de camuflagem para parecer o interior da casa, mas... é outro tipo de coisa. Só não sei o quê.
O rosto acima do dela permaneceu completamente impassível. Calmo. Tranquilo. Como se não a estivesse forçando a ficar no lugar... Ou a ameaçando. O controle era... erótico.
– E? – insistiu ele.
– É só isso.
Ele inalou o charuto nos lábios, a ponta em círculo alaranjado brilhando mais.
– Só vou libertá-la uma vez. Entende?
– Sim.
Ele se moveu com tanta rapidez que ela teve que balançar os braços para readquirir o equilíbrio, os bastões se afundando na neve. Espere, o que ele...
O homem apareceu bem atrás dela, os pés plantados nas laterais dos rastros dos esquis, uma barricada física para o caminho que ela fizera a partir da casa dele. Enquanto o bíceps e o pulso direitos dela ardiam por conta do sangue que voltava a circular nas partes que foram comprimidas, um aviso surgiu na base de sua nuca.
Cai fora daqui, Sola disse a si mesma. Agora.
Sem querer arriscar uma nova captura, ela se moveu para frente até a estrada, a parte inferior dos esquis lutando para conseguir avançar na neve gelada e compactada.
Enquanto ela avançava, ele a seguia, caminhando lentamente, inexoravelmente, como um grande felino que estava cercando a presa com a qual estava contente em apenas brincar, por enquanto.
As mãos dela tremiam quando usou as pontas dos esquis para soltar as amarras, e ela teve dificuldade para prender os esquis no rack do carro. O tempo inteiro, ele permaneceu parado no meio da estrada observando-a, a fumaça do charuto subindo pelo ombro em brisas frias que seguiam para o rio.
Entrando no carro, ela travou as portas, deu partida e olhou pelo espelho retrovisor. No brilho da luz do freio, ele parecia inequivocadamente maligno, um homem alto, de cabelos escuros, com o rosto lindo como o de um príncipe, e tão cruel quanto uma lâmina.
Pisando no acelerador, ela saiu do acostamento e se afastou rápido, o sistema de tração das quatro rodas sendo acionado para a tração de que ela precisava.
Ela olhou de relance mais uma vez pelo retrovisor. Ele ainda estava lá...
O pé de Sola mudou para o freio e quase o pressionou.
Ele sumira.
Como se tivesse se dissipado no ar. Num momento estava lá... no seguinte, invisível.
Sacudindo-se, voltou a pressionar o acelerador e fez o sinal da cruz sobre o coração acelerado.
Num pânico absurdo, perguntou-se: mas que diabos era ele?
CAPÍTULO 30
Bem quando as persianas eram suspensas com a chegada da noite, Layla ouviu uma batida à porta e, mesmo antes de o cheiro passar pelas frestas, ela sabia quem tinha vindo vê-la.
Inconscientemente, a mão subiu para o cabelo, e descobriu que estava uma bagunça, todo emaranhado por ter virado e revirado o dia inteiro. Pior, nem se importara em tirar a roupa com que saíra para ir à clínica.
Entretanto, não lhe poderia negar a entrada.
– Entre – disse, sentando-se um pouco mais erguida e ajeitando as cobertas que puxara até o queixo.
Qhuinn estava com suas roupas de combate, o que a levou a deduzir que ele estava escalado para o turno daquela noite – mas talvez não. Ela não conhecia o escalonamento.
Quando seus olhares se cruzaram, ela franziu o cenho.
– Você não está bem.
Ele levou a mão para o curativo na sobrancelha.
– Isto? É apenas um arranhão.
Só que não fora o machucado que chamara sua atenção. Era o olhar vago, as concavidades rígidas nas faces.
Ele parou. Farejou. Empalideceu.
Imediatamente, ela baixou o olhar para as mãos, e mais uma vez as torceu.
– Por favor, feche a porta – pediu.
– O que está acontecendo?
Quando a porta se fechou conforme o seu pedido, ela respirou fundo.
– Fui à clínica de Havers ontem à noite.
– O quê?
– Estou sangrando...
– Sangrando? – ele se apressou para a frente, quase derrapando a caminho da cama. – Por que diabos não me contou?
Santa Virgem Escriba, seria impossível para ela não se acovardar ante tamanha fúria. Na verdade, ela estava sem forças no momento e impossibilitada de reunir qualquer tipo de autopreservação.
Instantaneamente, Qhuinn recuou em sua raiva, afastando-se e circulando pelo quarto. Quando a fitou novamente, disse bruscamente:
– Sinto muito. Não tive a intenção de gritar... Eu só... eu só estou preocupado com você.
– Eu sinto muito. E eu deveria ter lhe contado, mas você estava fora em combate e eu não quis aborrecê-lo. Eu não sei... francamente, eu não devia estar pensando com clareza. Estava fora de mim.
Qhuinn se sentou ao lado dela, os ombros imensos se curvando enquanto ele cruzava os dedos e apoiava os cotovelos nos joelhos.
– Então, o que está acontecendo?
Tudo o que ela conseguiu fazer foi dar de ombros.
– Bem, como você pode perceber... estou sangrando.
– Quanto?
Ela pensou no que a enfermeira lhe havia dito.
– O suficiente.
– Há quanto tempo?
– Tudo começou há mais ou menos 24 horas. Não quis procurar a doutora Jane porque não tinha certeza de quão confidencial isso seria e também... ela não tem muita experiência com gestações da nossa espécie.
– O que Havers disse?
Foi a vez de ela franzir a testa.
– Ele não quis me dizer.
– Como é que é? – a cabeça de Qhuinn se ergueu.
– Por causa do meu status como Escolhida, ele só falará com o Primale.
– Está de brincadeira?
Ela balançou a cabeça.
– Não. Também não consegui acreditar nisso e sinto dizer que saí de lá em circunstâncias menos que favoráveis. Ele me reduziu a um objeto, como se eu não tivesse a mínima importância... não passasse de um repositório...
– Você sabe que isso não é verdade – Qhuinn segurou sua mão com os olhos descombinados ardendo. – Não para mim. Nunca para mim.
Ela estendeu a mão e o tocou no ombro.
– Eu sei, mas obrigada por dizer isso – ela estremeceu. – Preciso ouvir isso agora. E quanto ao que está acontecendo... comigo... a enfermeira disse que não há nada que ninguém possa fazer para impedir isto.
Qhuinn baixou o olhar para o tapete e ficou assim por um bom tempo.
– Não entendo. Não era para ser assim.
Engolindo a horrível sensação de fracasso, ela se endireitou e afagou as costas dele.
– Sei que você desejava isto tanto quanto eu.
– Você não pode estar abortando. Não é possível.
– Pelo que fiquei sabendo, os dados estatísticos não são tão bons. Não no começo... e não no fim.
– Não, não pode estar certo. Eu... a vi.
Layla limpou a garganta.
– Sonhos nem sempre se tornam realidade, Qhuinn.
Parecia algo muito simplista de se dizer. Igualmente óbvio. Mas magoava em seu cerne.
– Não foi um sonho – disse ele de modo rude. Mas, então, sacudiu-se e voltou a olhar para ela. – Como está se sentindo? Sente dor?
Quando ela não respondeu de imediato, porque não queria mentir para ele a respeito das cólicas, ele se pôs de pé.
– Vou procurar a doutora Jane.
Ela o segurou pela mão, detendo-o.
– Espere. Pense bem. Se estou perdendo... nosso filho... – ela parou para juntar coragem depois de ter verbalizado aquilo. – Não há razão por que contar para alguém. Ninguém precisa ficar sabendo. Podemos simplesmente deixar a natureza... – a voz dela falhou nesse momento, mas ela se forçou a continuar – ... seguir seu curso.
– Ao inferno com isso. Não vou colocar sua vida em risco só para evitar um confronto.
– Isso não interromperá o aborto, Qhuinn.
– Não estou preocupado somente com o aborto – ele apertou-lhe a mão. – Você é importante. Por isso vou procurar a doutora Jane agora mesmo.
Isso mesmo, ao inferno deixar as coisas por debaixo dos panos, Qhuinn pensou ao seguir para a porta.
Ouvira falar de histórias sobre fêmeas com hemorragias durante os abortos, e ainda que não fosse mencionar nada disso com Layla, teria de agir a respeito.
– Qhuinn. Pare – Layla o chamou. – Pense no que está fazendo.
– Eu estou. Claramente – ele não esperou para debater mais aquilo. – Fique onde está.
– Qhuinn...
Ele ainda conseguiu ouvir a voz dela quando fechou a porta e começou a correr, terminando o corredor e descendo as escadas. Com um pouco de sorte, a doutora Jane ainda estaria se demorando na Última Refeição com seu hellren; o casal estava à mesa quando ele se levantara para ir ver Layla.
Ao chegar ao átrio, seus tênis Nike guincharam no piso de mosaico quando ele tomou a direção da arcada na entrada da sala de jantar.
Vendo a médica bem onde estivera antes foi um golpe de sorte, e seu primeiro instinto foi chamá-la com um grito. Só não o fez ao perceber a quantidade de Irmãos à mesa, comendo a sobremesa.
Merda. Era fácil para ele dizer que lidaria com as consequências se o que fizeram se tornasse público. Mas, e quanto a Layla? Como uma Escolhida sagrada, ela tinha muito mais a perder do que ele. Phury era uma cara bem legal, por isso a chance de ele lidar bem com aquilo era bem grande. E o resto da sociedade?
Ele já passara pela experiência de ser rejeitado, e não queria o mesmo para ela.
Qhuinn se apressou para onde V. e Jane estavam descontraídos, o Irmão fumando um cigarro feito à mão, a médica espectral sorrindo para o seu parceiro enquanto ele lhe contava uma piada.
No instante em que a boa médica olhou para ele, aprumou-se em seu assento.
Qhuinn se abaixou e sussurrou ao seu ouvido.
Nem meio segundo depois, ela estava de pé.
– Preciso ir, Vishous.
Os olhos de diamante do irmão se elevaram. Aparentemente, apenas um vislumbre do rosto de Qhuinn foi preciso: ele não fez perguntas, apenas assentiu uma vez.
Qhuinn e a médica se apressaram juntos para fora.
Para o infinito crédito da doutora Jane, ela não perdeu tempo querendo saber como aquela gravidez tinha acontecido.
– Há quanto tempo ela está sangrando?
– 24 horas.
– Com que intensidade?
– Não sei.
– Algum outro sintoma? Febre? Enjoo? Dor de cabeça?
– Não sei.
Ela o deteve quando chegaram à grande escadaria.
– Vá até o Buraco. A minha maleta está na bancada ao lado do cesto de maçãs.
– Entendido.
Qhuinn nunca correu tão rápido em toda sua vida. Para fora do vestíbulo. Atravessando o pátio coberto de neve. Digitando o código de acesso para o Buraco. Correndo pelo espaço de V. e de Butch.
Costumeiramente, ele jamais teria entrado sem bater. Inferno, sem um horário marcado previamente. Mas naquela noite, que se foda...
Ah, que bom, a maleta preta estava, de fato, ao lado das Fujis.
Apanhando-a, correu para fora, voando ao lado dos carros estacionados e batendo os pés enquanto aguardava que Fritz atendesse à porta.
Ele quase atropelou o doggen.
Ao chegar ao segundo andar, passou acelerado diante do escritório de Wrath e invadiu o quarto que Layla vinha usando. Fechando a porta, arfou até chegar à cama, onde a médica estava sentada bem onde ele esteve antes.
Deus, Layla estava pálida como um lençol. Pensando bem, medo e hemorragia faziam isso com uma fêmea.
A doutora Jane estava no meio de uma frase quando pegou a maleta das mãos dele.
– Acho que devemos começar verificando os seus sinais vitais...
Bum!
Quando o som ensurdecedor atravessou o quarto, o primeiro pensamento de Qhuinn foi se jogar sobre as duas fêmeas para formar um escudo.
Mas não era uma bomba. Era Phury escancarando a porta.
Os olhos amarelos do Irmão reluziam, e não de modo positivo, quando eles passavam de Layla, para a médica e depois para Qhuinn... e refazendo o caminho ao contrário.
– Que diabos está acontecendo aqui? – ele exigiu saber, com as narinas inflando quando captou o mesmo cheiro que Qhuinn havia percebido antes. – Vejo a médica subindo as escadas num rompante. Depois é a vez de Qhuinn com a maleta. E agora... é melhor alguém começar a falar. Neste exato minuto!
Mas ele sabia. Porque estava olhando para Qhuinn.
Qhuinn encarou o Irmão.
– Eu a engravidei...
Ele não teve oportunidade de terminar a frase. Na verdade, mal conseguiu terminar a última palavra.
O Irmão o agarrou e o lançou contra a parede. Enquanto suas costas absorviam o impacto, a mandíbula dele explodiu de dor, o que sugeria que o cara também o socara com exatidão. Então, mãos ásperas o mantiveram fixos com os pés pendurados a quinze centímetros do tapete oriental, bem na hora em que pessoas começavam a se aglomerar na porta.
Ótimo. Uma plateia.
Phury aproximou o rosto do de Qhuinn e expôs as presas.
– O que você fez com ela?
Qhuinn deu uma golada de sangue.
– Ela estava no cio. Eu a servi.
– Você não a merece...
– Eu sei.
Phury o empurrou com força mais uma vez.
– Ela é melhor do que...
– Concordo...
Bang!
De novo contra a parede.
– Então que porra que você foi fazer...
O rugido que permeou o quarto foi alto o bastante para estremecer o espelho ao lado da cabeça de Qhuinn, assim como o conjunto de escovas de prata na penteadeira e os cristais nas arandelas ao lado da porta. A princípio, ele pensou que tivesse sido Phury, a não ser, porém, pelo fato de as sobrancelhas do Irmão se abaixarem e o macho olhar por sobre o ombro.
Layla saíra da cama e se aproximava dos dois. Raios! A expressão no olhar dela bastaria para derreter a pintura da porta de um carro: apesar de ela não estar se sentindo bem, as presas estavam expostas, os dedos crispados em forma de garra... e a brisa gélida que a precedeu fez com que a nuca de Qhuinn se eriçasse em alerta.
Aquele rugido nem deveria ter saído de um macho... quanto menos de uma fêmea delicada com status de Escolhida.
De fato, o pior era o tom horrível de sua voz:
– Solte-o. Agora.
Ela encarava Phury como se estivesse plenamente preparada para arrancar os braços do Irmão de suas juntas e socá-lo até não poder mais caso ele não a obedecesse. Imediatamente.
E, veja só, de repente, Qhuinn conseguiu respirar direito, e agora seus Nikes tocavam novamente o chão. Num passe de mágica.
Phury levantou as palmas das mãos.
– Layla, eu...
– Não toque nele. Não por causa disso... Estou sendo bem clara? – o peso dela estava equilibrado quase nos dedos dos pés, como se ela fosse avançar na garganta do cara a qualquer segundo. – Ele era o pai do meu filho, e receberá todos os direitos e privilégios dessa posição.
– Layla...
– Estamos entendidos?
Phury fez que sim com sua cabeça multicolorida.
– Sim. Mas...
No Antigo Idioma, ela sibilou:
– Caso algum mal recaia sobre ele, eu irei atrás de ti, e o encontrarei em teu sono. Não me importo onde e com quem repouses tua cabeça, minha vingança se derramará sobre ti até tu te afogares.
Aquela última palavra foi arrastada até sua última sílaba se perder num rugido.
Silêncio absoluto.
Até a doutora Jane comentar secamente:
– E é por isso que dizem que as fêmeas da espécie são mais perigosas que os machos.
– Verdade – alguém aquiesceu no corredor.
Phury levantou as mãos em frustração.
– Só quero o que for melhor para você e não só no papel de amigo preocupado... essa é a porra do meu trabalho. Você atravessa o cio sem contar a ninguém, deita-se com ele – como se Qhuinn fosse bosta de cachorro – e depois não diz a ninguém que está tendo problemas médicos. Será que eu tenho que ficar feliz com isso? Que merda!
Houve algum tipo de conversa entre eles àquela altura, mas Qhuinn não prestou atenção: toda a sua consciência recuara para dentro do cérebro. Caramba, o feliz comentário do Irmão não deveria ter doído tanto. Não era a primeira vez que ele ouvia esse tipo de comentário, ou até mesmo pensara isso a respeito de si mesmo. Mas, por algum motivo, as palavras dispararam uma falha geológica que retumbava bem em seu cerne.
Lembrando-se de que dificilmente seria uma tragédia ter o óbvio evidenciado, ele se desvencilhou do seu espiral de vergonha e olhou ao redor. Sim, todos tinham aparecido diante da porta aberta e, mais uma vez, aquilo que ele preferia que tivesse permanecido como um assunto particular estava acontecendo diante de milhares.
Pelo menos Layla não se importava. Inferno, ela nem parecia ter notado.
E era até engraçado ver todos aqueles lutadores profissionais desejando estar a quilômetros de distância de uma fêmea. Pensando bem, caso quisessem sobreviver no trabalho que exerciam, uma acurada avaliação de riscos era algo que se desenvolvia precocemente e até mesmo Qhuinn, objeto do instinto protetor da Escolhida, não ousaria tocá-la.
– Eu, neste momento, renuncio ao meu status de Escolhida, e todos os direitos e privilégios inerentes. Eu sou Layla, decaída daqui por diante...
Phury tentou interrompê-la:
– Escute, você não tem que fazer isso...
– ... e sempre. Estou arruinada perante os olhos tanto da tradição quanto da prática, não mais virgem, concebi um filho, mesmo estando a perdê-lo.
Qhuinn bateu a parte de trás da cabeça na parede. Maldição.
Phury passou uma mão pelos cabelos.
– Merda.
Quando Layla oscilou em seus pés, todos se projetaram para ela, mas ela empurrou todas as mãos e caminhou sozinha até a cama. Abaixando o corpo devagar, como se tudo lhe doesse, deixou a cabeça pender.
– Minha sorte está lançada e estou preparada para viver com as consequências, quaisquer que sejam elas. Isso é tudo.
Houve um belo tanto de sobrancelhas se erguendo quando a multidão começou a se dispersar, mas ninguém disse um pio. Depois de um instante, o grupo se desfez, embora Phury continuasse ali. Assim como Qhuinn e a médica.
A porta foi fechada.
– Ok, ainda mais depois disso tudo, preciso mesmo verificar seus sinais vitais – disse a doutora Jane, ajudando a fêmea a se recostar contra os travesseiros e a acomodar as cobertas que haviam sido afastadas.
Qhuinn não se moveu enquanto o aparelho de pressão era ajustado no braço magro e uma série de pufe-pufes era exalada.
Phury, por sua vez, andou de um lado para o outro, pelo menos até franzir o cenho e pegar o celular.
– É por isso que Havers me telefonou ontem?
Layla concordou.
– Fui lá em busca de ajuda.
– Por que não me procurou? – o Irmão murmurou para si mesmo.
– O que Havers disse?
– Não sei por qual motivo não verifiquei a caixa de mensagens. Pensei que não tivesse motivo para fazer isso.
– Ele deixou claro que só lidaria com você.
Ante isso, Phury olhou para Qhuinn, com aquele olhar amarelo se estreitando.
– Vai se vincular a ela?
– Não.
A expressão de Phury voltou a ser gélida.
– Que tipo de macho é você para...
– Ele não me ama – Layla interrompeu. – Tampouco eu o amo.
Quando a cabeça do Primale virou de lado, Layla prosseguiu:
– Queríamos um filho – ela se sentou inclinada para a frente enquanto a médica auscultava o coração por trás. – Nós começamos e terminamos ali.
Dessa vez o Irmão praguejou.
– Não entendo.
– Nós dois somos órfãos de muitas maneiras – disse a Escolhida. – Nós estamos... estávamos... querendo formar a nossa própria família.
Phury expirou fundo e caminhou até a mesa num canto, sentando-se sobre a cadeira frágil.
– Ah, bem. Acho que isso muda um pouco as coisas. Eu pensei que...
– Nada importa – interveio Layla. – As coisas são como são. Ou... eram, como parece ser o caso.
Qhuinn se viu esfregando os olhos sem nenhum motivo em especial. Não que eles estivessem embaçados nem nada assim. Não. Nem um pouco.
Tudo aquilo era só... tão triste. Toda aquela porcaria. Desde o estado de Layla, até a exaustão impotente de Phury, chegando a sua dor imensa no meio do peito, tudo era uma maldita coisa verdadeiramente triste.
CAPÍTULO 31
– É exatamente o que eu estava procurando.
Enquanto Trez falava, caminhava ao redor do espaço amplo e vazio do armazém, com as botas produzindo impactos altos que ecoavam. Atrás dele, sentia facilmente o alívio da corretora parada ao lado da porta.
Negociar com humanos? Era o mesmo que tirar o pirulito de uma criancinha.
– Você poderia transformar este lado da cidade – disse a mulher. – É uma verdadeira oportunidade.
– Verdade – não que o tipo de restaurante e lojas que o seguiriam até ali fossem de classe: seriam algo mais como lojas de piercings e tatuagens, restaurantes baratos, cinemas pornográficos.
Mas ele não tinha nenhum problema com isso. Até mesmo cafetões podiam se orgulhar de seus trabalhos e, francamente, ele tinha certa tendência a acreditar muuuito mais em tatuadores do que em muitos dos assim chamados “cidadãos exemplares”.
Trez girou sobre os calcanhares. O espaço era tremendo, quase tão alto quanto largo, com fileiras e fileiras de janelas quadradas, muitas delas com os vidros quebrados recobertos por tábuas de madeira. O teto parecia bom – ou quase isso, o revestimento de latão corrugado mantendo a neve do lado de fora, mas não o frio. O chão era de concreto, mas obviamente havia um piso subterrâneo – em diversos pontos viam-se alçapões, embora nenhum deles pudesse ser aberto com facilidade. A parte elétrica parecia boa; sistema de aquecimento, ventilação e ar-condicionado inexistentes; a hidráulica, uma piada.
Em sua mente, contudo, ele não enxergava o lugar como ele estava. Nada disso. Ele o via transformado, como uma boate nas proporções da Limelight. Naturalmente, o projeto necessitaria de uma imensa injeção de capital e vários meses para concluir os trabalhos; no fim, porém, Caldwell acabaria com um novo lugar quente – e ele teria mais uma fonte de renda.
Todos ganhavam.
– Então, gostaria de fazer uma oferta?
Trez olhou para a mulher. Ela era a senhora Profissional em seu casaco preto e terninho escuro abaixo dos joelhos – noventa por cento de sua pele estava coberta, e não só por estarem em dezembro. Contudo, mesmo abotoada até em cima e cabelo comportado, ela era bela no modo como todas as mulheres lhe eram belas: tinha seios e pele macia, e um lugar para ele brincar no meio das pernas.
E ela gostava dele.
Ele sabia disso pelo modo como ela abaixava o olhar, e também por ela aparentemente não saber o que fazer com as mãos: uma hora estavam nos bolsos do casaco; na outra, mexendo no cabelo, depois ajeitando a camisa de seda dentro da saia...
Ele conseguia pensar em alguns modos para mantê-la ocupada.
Trez sorriu ao se aproximar dela e não parou até invadir-lhe o espaço pessoal.
– Sim. Eu quero.
O duplo sentido foi captado, as faces dela enrubesceram não de frio, mas de excitação.
– Ah. Que bom.
– Onde quer fazer? – ele perguntou de modo arrastado.
– A oferta? – ela pigarreou. – Tudo o que tem que fazer é me dizer o que você... quer e eu... faço isso acontecer.
Ah, ela não era ligada em sexo casual. Que meigo.
– Aqui.
– Como disse? – perguntou ela, finalmente levantando o olhar.
Ele sorriu devagar e de modo contido para não revelar as presas.
– A oferta. Vamos fazer isso aqui?
Os olhos dela se arregalaram.
– Aqui?
– É. Aqui – ele se aproximou com mais um passo, mas não ficou perto o suficiente a ponto de se tocarem. Ele estava satisfeito em seduzi-la, mas ela teria de estar cem por cento segura de estar a fim. – Está pronta?
– Para... fazer... a oferta.
– Isso.
– Está... hum, está frio aqui – disse ela. – Que tal no escritório? É lá que a maioria... das ofertas... é conduzida.
Do nada, a imagem do irmão sentado no sofá em casa, olhando para ele como se ele fosse um maldito problema, atingiu-o em cheio, e quando isso aconteceu, percebeu que fazia sexo com praticamente toda mulher que conhecia desde... caramba, quanto tempo?
Bem, obviamente, se não tinham idade para copular, ele não estaria com elas.
Ou se eram férteis.
O que cortava, digamos, uma dúzia ou duas? Maravilha. Que herói.
Que porra ele estava fazendo? Não queria voltar ao escritório da mulher, primeiro porque não havia tempo suficiente, supondo que quisesse estar na abertura do Iron Mask. Portanto, a única opção era ali mesmo, de pé, com a saia suspensa até a cintura, as pernas ao redor dos seus quadris. Rápido, direto ao ponto; depois cada um seguindo o seu caminho.
Depois de ele dizer o quanto pretendia gastar na compra do armazém, claro.
Mas e aí? Ele não tinha a intenção de transar com ela no fechamento do contrato. Ele raramente repetia, e só se estivesse seriamente atraído ou com muito tesão, o que não acontecia nesse caso.
Pelo amor de Deus, o que exatamente ele tiraria daquilo? Sequer a veria nua. Nem teria muito contato de pele com pele.
A não ser... era essa a questão.
Quando foi a última vez em que esteve de fato com uma fêmea? Do jeito certo? Como num jantar fino, um pouco de música, uns amassos que conduziam até o quarto... depois um monte de ações longas e demoradas que levavam a alguns orgasmos...
E nenhuma sensação de pânico asfixiante quando tudo chegava ao fim.
– Você estava para dizer alguma coisa? – a mulher o instigou a falar.
iAm estava certo. Ele não precisava estar fazendo aquele tipo de merda. Inferno, nem mesmo estava atraído pela corretora. Ela estava parada diante dele, disponível, e aquela aliança no dedo era indício de que ela não causaria muitos problemas depois que terminassem, porque tinha algo a perder.
Trez recuou um passo.
– Escute, eu... – quando o celular tocou em seu bolso, ele pensou que tinha sido em boa hora. Viu quem era: iAm. – Com licença, preciso atender esta ligação. Ei, o que está fazendo, irmãozinho?
A resposta de iAm saiu suave, como se tivesse abaixado a voz:
– Temos companhia.
O corpo de Trez ficou tenso.
– De que tipo e onde?
– Estou em casa.
Ah, merda.
– Quem é?
– Não é a sua noiva, relaxe. É AnsLai.
O sumo sacerdote. Fantástico.
– Bem, estou ocupado.
– Ele não veio aqui para me ver.
– Então é melhor ele voltar de onde veio porque estou ocupado – quando não houve resposta do outro lado, tudo o que restava fazer era se chutar no traseiro. – Escute aqui, o que quer que eu faça?
– Pare de fugir e cuide disto.
– Não há do que cuidar. Falo com você mais tarde, ok?
Esperou por uma resposta. Em vez disso, a linha ficou muda. Pensando bem, quando você espera que seu irmão limpe suas bostas, o cara não deve ficar com muita vontade de se despedir longamente.
Trez desligou e olhou para a corretora. Com um sorriso amplo, ele se aproximou e baixou a cabeça para fitá-la. O batom era coral demais para a tez dela, mas ele não se importava.
Aquela coisa não continuaria na boca dela por muito tempo.
– Deixe-me mostrar como posso aquecer isto aqui – disse com um sorriso langoroso.
De volta à mansão da Irmandade, no quarto de Layla, um tipo de cessar-fogo fora alcançado pelas partes interessadas.
Phury não estava tentando transformar Qhuinn num gancho de parede. Layla estava sendo avaliada. A porta fora fechada e, com isso, nada do que acontecia ali teria mais do que um quarteto de testemunhas oculares.
Qhuinn só estava esperando que a doutora Jane se pronunciasse.
Quando ela, por fim, tirou o estetoscópio do pescoço, apenas se acomodou. E a expressão em seu rosto não lhe deu esperança alguma.
Ele não entendia. Vira sua filha às portas do Fade: quando fora surrado e largado como morto no acostamento pela Guarda de Honra, subira para só Deus sabe onde, aproximara-se de um portal branco... e lá vira uma fêmea jovem cujos olhos começaram com uma cor, e acabaram azul e verde como os seus.
Se ele não tivesse testemunhado aquilo, provavelmente não teria se deitado com Layla para início de conversa. Mas ele teve tanta certeza de que o destino estava traçado que nunca lhe ocorrera que...
Merda, talvez aquela jovem fosse o resultado de outra comunhão... com outra pessoa no futuro.
Como se algum dia ele fosse se unir a outra pessoa... Jamais.
Não era possível. Não agora que esteve com Blay uma vez.
Nada disso.
Mesmo que ele e seu ex-amigo nunca mais se encontrassem debaixo dos lençóis, ele nunca mais ficaria com ninguém. Quem poderia se comparar? E o celibato era melhor do que a segunda melhor opção, que é o que seria oferecido pelo resto do planeta.
A doutora Jane pigarreou e segurou a mão de Layla.
– A sua pressão sanguínea está um pouco baixa. A sua pulsação está um pouco lenta. Acredito que essas duas coisas possam ser melhoradas com alimentação...
Qhuinn praticamente pulou para perto da cama com o pulso estendido.
– Estou aqui... Pronto. Pode pegar.
A doutora Jane pousou uma mão no braço dele e lhe sorriu.
– Mas não é com isso que estou preocupada.
Ele congelou e, pelo canto do olho, viu que o mesmo aconteceu com Phury.
– Eis a questão – a doutora voltou a olhar para Layla, falando com suavidade e clareza. – Não sei muito sobre gestações vampíricas, portanto, por mais que eu deteste dizer isso, você precisa voltar à clínica de Havers – ela levantou a mão, como se já esperasse discussões de todos os lados. – Isto se trata dela e do filho dela, temos que levá-los para alguém que possa tratá-la adequadamente, mesmo se, em outras circunstâncias, nenhum de nós batesse à porta do cara. E, Phury – ela encarou o Irmão –, você tem que ir com ela e com Qhuinn. A sua presença lá só facilitará as coisas para todos.
Muitos lábios apertados depois disso.
– Ela tem razão – concordou Qhuinn por fim. E depois se voltou para o Primale. – E você tem que dizer que é o pai. Ela obterá mais respeito assim. Comigo? Ele pode muito bem se recusar a tratá-la... se ela for decaída e tiver transado com um defeituoso? Pode nos mandar dar meia-volta.
Phury abriu a boca. Fechou-a.
Não havia muito mais a ser dito.
Enquanto Phury pegava o telefone e ligava para a clínica para informar que estavam indo para lá, o tom de voz dele sugeria que estava pronto para incendiar o lugar se Havers e sua equipe dessem mancada.
Com isso resolvido, Qhuinn se aproximou de Layla.
Num tom baixo, disse:
– Desta vez vai ser diferente. Ele vai fazer isso acontecer. Não se preocupe, você será tratada como uma rainha.
Os olhos de Layla se arregalaram, mas ela se controlou.
– Sim. Tudo bem.
Resultado? O Irmão não era o único prestes a acabar com tudo. Se Havers provocasse qualquer tipo de desgosto à la glymera em Layla, Qhuinn acabaria com o ego do cara a tapa. Layla não merecia esse tipo de tratamento – nem mesmo por escolher um rejeitado como ele para se acasalar.
Cacete. Talvez fosse melhor ela abortar. Ele queria mesmo condenar uma criança ao seu DNA?
– Você também vem? – ela lhe perguntou, como se não estivesse acompanhando.
– Sim. Vou estar lá.
Quando Phury desligou, olhou de um para outro, os olhos amarelos se estreitando.
– Ok, eles vão nos receber no segundo em que chegarmos. Vou fazer Fritz ligar a Mercedes, mas eu dirijo.
– Desculpe – disse Layla ao encarar o grande macho. – Sei que decepcionei as Escolhidas e você, mas foi você quem nos disse para vir para este lado e... viver.
Phury apoiou as mãos nos quadris e exalou fundo. Ao balançar a cabeça, ficou claro que ele não teria escolhido nada daquilo para ela.
– Sim, eu disse isso. Eu fiz isso.
CAPÍTULO 32
Ah, grande poder desgovernado, pensou Xcor ao olhar para seus soldados, cada um deles armado e pronto para uma noite de luta. Depois de 24 horas de recuperação após a alimentação grupal, eles estavam loucos para sair e encontrar os inimigos – e ele estava pronto para libertá-los daquele porão de armazém.
Só havia um problema: alguém estava andando no andar de cima.
Como demonstração, passos pesados atravessaram o alçapão de madeira sobre sua cabeça.
Pela última meia hora, eles acompanharam o progresso dos visitantes inesperados. Um era pesado, uma forma masculina. O outro era mais leve, de uma variedade feminina. No entanto, não havia como perceber seus cheiros; o porão era hermeticamente fechado.
Muito provavelmente, eram apenas humanos de passagem, ainda que ele não pudesse adivinhar o motivo para alguém que não fosse sem teto perder tempo numa estrutura tão decrépita numa noite fria. Quem quer que fossem, quaisquer as razões que os levaram até ali, contudo, ele não teria problemas para defender seu território, mesmo sendo aquele.
Mas não fazia mal esperar. Se ele podia evitar massacrar aqueles humanos? Isso significava que ele e seus soldados continuariam a usar aquele espaço sem serem incomodados.
Ninguém disse nada enquanto as passadas continuavam.
Vozes se misturavam. Grave e aguda. Em seguida, um telefone tocou.
Xcor acompanhou o toque e a conversa que se seguiu, caminhando em silêncio até o outro alçapão, lugar em que a pessoa escolheu parar. Imóvel, prestou atenção e captou metade de uma conversa nada interessante que não lhe revelou nenhuma das identidades dos envolvidos.
Não muito depois, o som inconfundível de sexo se fez claro.
Enquanto Zypher ria baixinho, Xcor encarou o bastardo para calá-lo. Mesmo cada um dos alçapões estando fechado pelo lado de baixo, ninguém sabia que tipo de problema aqueles ratos sem rabo podiam causar em qualquer situação.
Consultou o relógio. Esperou que os gemidos parassem. Gesticulou para que os soldados ficassem quietos quando eles pararam.
Movendo-se em silêncio, ele seguiu para o alçapão no canto extremo do armazém, aquele que se abria no que deveria ser um escritório de supervisor. Destrancando-o, segurou uma pistola, desmaterializou-se e inalou.
Não era humano.
Bem, um esteve ali, mas o outro... era algo diferente.
Do outro lado, a porta externa foi fechada e trancada.
Em sua forma fantasmagórica, Xcor atravessou o armazém e apoiou as costas na parede de tijolos, e olhou para fora de um dos vidros empoeirados.
Um par de faróis se acendeu na frente, no estacionamento.
Desmaterializando-se do lado de fora da janela, subiu até o telhado do armazém do lado oposto da rua.
Ora, ora, se aquilo não era interessante.
Havia um Sombra ali embaixo, sentando atrás do volante do BMW com a janela do motorista abaixada até a metade e uma fêmea humana se inclinando sobre o SUV.
Era a segunda vez que se deparava com um em Caldwell.
Eles eram perigosos.
Pegando o celular, ligou para o número de Throe após encontrar a foto do macho na lista de contatos, e ordenou que os soldados saíssem e lutassem. Ele lidaria sozinho com aquela situação.
Lá embaixo, o Sombra esticou a mão, puxou a mulher pela nuca e a beijou. Depois deu marcha à ré no carro e saiu sem olhar para trás.
Xcor mudou de posição para acompanhar o macho, transitando de telhado em telhado, conforme o Sombra seguia na direção do bairro das boates nas ruas que corriam em paralelo ao rio...
A princípio, a sensação em seu corpo sugeria uma mudança na direção do vento, os açoites gélidos atingindo-o por trás, em vez de golpeá-lo no rosto. Mas logo pensou... não, era algo puramente interno. As ondas que sentia sob a pele...
Sua Escolhida estava por perto.
Sua Escolhida.
Abandonando imediatamente o rastro do Sombra, ele seguiu para perto do rio Hudson. Onde ela estava...
Num carro. Estava se movendo num carro.
Pelo que seus instintos lhe diziam, ela estava se movendo em alta velocidade que, ainda assim, era rastreável. Portanto, a única explicação era que ela estava na Northway, seguindo de noventa a cento e vinte quilômetros por hora.
Recuando na direção da fileira de armazéns, ele se concentrou no sinal que estava captando. Como fazia meses desde que se alimentara dela, sentiu pânico ao perceber que a conexão criada pelo sangue dela em suas veias estava perdendo intensidade, a ponto de ele ter dificuldade para localizar o veículo.
Mas, em seguida, captou um sedã luxuoso graças ao fato de ele ter freado na saída que convergia o tráfego para as pontes. Desmaterializando-se nas vigas, plantou as botas de combate no pináculo de um dos esteios de metal e esperou que ela passasse debaixo dele.
Pouco depois de fazê-lo, ela seguiu em frente, indo para o outro lado da cidade, oposta à margem do rio.
Ele continuou com ela, mantendo uma distância segura, embora se perguntasse a quem tentava enganar. Se ele pressentia sua fêmea?
O mesmo acontecia com ela.
Porém, ele não abandonaria seu rastro.
Enquanto Qhuinn estava no assento de passageiro do Mercedes, sua Heckler e Koch calibre .45 era mantida discretamente sobre a coxa, os olhos movimentando-se incessantemente do espelho retrovisor para a janela lateral e o para-brisa. Ao lado dele, Phury estava na direção, as mãos do Irmão num perfeito dez para as duas tão apertado que mais parecia que ele estava estrangulando alguém.
Caramba, havia coisas demais acontecendo ao mesmo tempo.
Layla e a criança. Aquele acidente com o Cessna. O que ele fizera ao primo na noite anterior. E também... bem, havia aquela situação com Blay.
Ah, bom Deus... a situação com Blay.
Enquanto Phury pegava a saída que os levaria às pontes, a mente de Qhuinn ia da preocupação com Layla às lembranças das imagens, dos sons... e dos sabores das horas diurnas.
Intelectualmente, ele sabia que o que acontecera entre eles não fora um sonho. E seu corpo se lembrava muito bem disso, como se o sexo tivesse sido um tipo de marcação a ferro em sua pele que o mudara para o resto da vida. E, mesmo assim, enquanto tentava lidar com o drama mais recente, a sessão breve demais parecia pré-histórica, e não ocorrera há nem 24 horas atrás.
Ele temia que se tratasse de uma sessão única.
Nunca mais me toque assim.
Gemendo, ele esfregou a testa.
– Não são os seus olhos – disse Phury.
– O que disse?
Phury olhou de relance para o banco de trás.
– Ei, como estão as coisas? – perguntou às fêmeas. Quando Layla e a doutora Jane responderam numa afirmativa breve, ele assentiu com a cabeça. – Escutem, vou fechar a divisória por um segundo, está bem? Está tudo bem por aqui.
O Irmão não lhes deu a chance de responder de um ou outro modo, e Qhuinn se retesou no banco enquanto a divisória opaca subia, partindo o sedã em duas partes. Não fugiria de nenhum tipo de confronto, mas isso não significava que ele estava ansioso pelo segundo round, e se Phury estava isolando as duas, aquilo não seria nada bonito.
– Seus olhos não são o problema – disse o Irmão.
– Não entendi.
Phury olhou para ele.
– O fato de eu estar irritado sobre tudo isso não tem nada a ver com nenhum defeito. Layla está apaixonada por você...
– Não, não está não.
– Vê, você está me irritando muito agora.
– Pergunte a ela.
– Enquanto está sofrendo um aborto? – replicou o Irmão. – É, é isso mesmo o que vou fazer.
Enquanto Qhuinn se retraía, Phury continuou:
– Sabe, esse é o seu negócio. Você gosta de viver no limite e ser desvairado... Eu, honestamente, acredito que isso o ajuda a lidar com as idiotices que sua família o fez passar. Se você destruir tudo? Nada pode afetá-lo. E acredite ou não, não tenho problema algum com isso. Você faz o que tem que fazer e sobrevive às noites e aos dias do melhor modo que pode. Mas assim que você parte o coração de uma inocente, ainda mais se ela está sob a minha proteção? É nessa hora que você e eu temos um problema.
Qhuinn olhou pela janela. Antes de tudo, parabéns ao cara ali do lado. A ideia de que havia um preconceito contra Qhuinn baseado em seu caráter em vez de uma mutação genética sobre a qual não tivera nenhum poder decisório era uma mudança refrescante. E, ei, não que ele não concordasse com o cara, pelo menos até um ano atrás. Antes disso? Inferno, ele esteve descontrolado em muitos níveis. Mas as coisas mudaram. Ele mudara.
Evidentemente, Blay se tornar indisponível fora o tipo de chute no saco de que ele precisava para finalmente crescer.
– Não sou mais assim – disse ele.
– Então, está preparado para se vincular a ela? – quando ele não respondeu, Phury deu de ombros. – E lá vai você de novo. Conclusão: sou responsável por ela, legal e moralmente. Posso não estar agindo como um Primale em alguns aspectos, mas o restante das funções desse cargo eu levo muito a sério. A ideia de que você a meteu nessa confusão me deixa enjoado, e eu acho muito difícil de acreditar que ela não tenha feito isso para agradá-lo... Você disse que os dois queriam um filho? Tem certeza de que não era só você, e ela só fez isso para deixá-lo feliz? Isso se parece muito com o feitio dela.
Tudo aquilo foi apresentado de maneira retórica. E não cabia a Qhuinn criticar a lógica, mesmo que ela estivesse errada. Mas, enquanto ele passava os dedos pelos cabelos, o fato de que fora Layla a procurá-lo era algo que ele manteria só para si. Se Phury queria pensar que a culpa era só sua, tudo bem, ele aguentaria o tranco. Qualquer coisa para tirar a pressão e as atenções de cima de Layla.
Phury olhou por entre os bancos.
– Isso não está certo, Qhuinn. Não é isso o que machos de verdade fazem. E olhe só a situação em que ela está. Você causou isso a ela. Você a colocou no banco de trás deste carro, e isso é errado.
Qhuinn apertou os olhos. Bem, como se isso não fosse martelá-lo na cabeça pelos próximos cem anos. Mais ou menos.
Enquanto eles seguiam pela ponte e deixavam as luzes piscantes do centro da cidade para trás, ele manteve a boca fechada, e Phury também se calou.
Mas, pensando bem, o Irmão já dissera tudo o que havia para ser dito, não?
CAPÍTULO 33
Assail acabou perseguindo sua presa atrás do volante do seu Range Rover. Muito mais confortável assim, e a localização da mulher já não era mais um problema: enquanto estivera esperando ao lado do Audi que ela saísse de sua propriedade, colocara um equipamento de rastreamento na parte inferior do espelho retrovisor lateral.
Seu iPhone cuidou do resto.
Depois de ela ter deixado abruptamente seu bairro – após a proposital desmaterialização ante suas vistas só para desestabilizá-la ainda mais –, ela atravessou o rio e deu a volta para a parte de trás da cidade, onde as casas eram pequenas, próximas umas das outras e delimitadas por cercas de alumínio.
Enquanto a perseguia, mantendo pelo menos dois quarteirões de distância entre os veículos, observou as luzinhas coloridas no bairro, milhares de fios de pisca-pisca entre os arbustos, pendurados nos telhados e emoldurando janelas e portas. Mas aquilo não era nem metade da história. Cenários de manjedouras colocados em destaque em diminutos jardins eram iluminados, e também havia os bonecos de neve falsos com cachecóis vermelhos e calças azuis que brilhavam por dentro.
Em contraste com a decoração sazonal, ele estava disposto a apostar que as estátuas da Virgem Maria eram permanentes.
Quando o carro parou e estacionou, ele se aproximou, parando quatro casas adiante e desligando as luzes. Ela não saiu imediatamente do carro, e quando o fez, não vestia a parca e as calças de esqui nas quais o espionara. Em vez disso, mudara para um suéter vermelho e um par de jeans.
E soltara o cabelo.
O volume escuro e pesado ultrapassava os ombros, curvando-se nas pontas.
Ele grunhiu na escuridão.
Com passadas rápidas e certeiras, ela ultrapassou os quatro degraus de concreto que levavam à entrada modesta da casa. Abrindo a porta de tela numa moldura de metal, ela a segurou com o quadril enquanto destrancava a porta com a chave, para depois entrar e trancar pelo lado de dentro.
Quando as luzes se acenderam no andar de baixo, ele observou a silhueta dela avançar pelo cômodo da frente, as cortinas finas lhe possibilitando apenas uma ideia da movimentação dela, e não uma visão desobstruída.
Ele pensou em suas próprias persianas. Demorou um tempo para que aperfeiçoasse aquela invenção, e a casa às margens do rio Hudson fora um teste perfeito. As barreiras funcionavam melhor do que ele antecipara.
Ela, porém, era esperta o bastante para notar alguma anormalidade, e ele se perguntou o que as teriam denunciado.
No segundo andar, uma luz se acendeu, como se alguém que estivesse descansando tivesse despertado com a chegada dela.
As presas dele pulsaram. A ideia de que algum homem humano estivesse à espera dela em seu quarto conjugal fez com que ele quisesse estabelecer sua dominância, mesmo que isso não fizesse sentido. Ele a seguira para o seu próprio bem, e nada mais.
Absolutamente nada mais.
Bem quando a mão segurou a maçaneta da porta, seu telefone tocou. Na hora certa.
Quando ele viu quem era, franziu o cenho e levou o celular ao ouvido.
– Duas ligações em tão pouco tempo. A que devo essa honra?
Rehvenge não pareceu estar se divertindo.
– Não retornou a minha ligação.
– Eu deveria?
– Cuidado, garoto.
Os olhos de Assail continuaram atentos à casinha. Ele estava curiosamente desesperado para saber quem estava lá dentro. Estaria ela subindo, despindo-se pelo caminho?
Exatamente de quem ela escondia suas espreitas? E ela de fato as escondia – senão, por que outro motivo trocar de roupa?
– Alô?
– Aprecio o gentil convite – ele se ouviu dizer.
– Não foi um convite. Você é um maldito membro do Conselho agora que está vivendo no Novo Mundo.
– Não.
– Como é que é?
Assail relembrou o encontro na casa de Elan no começo do inverno, aquele sobre o qual Rehvenge nada sabia, aquele no qual o Bando de Bastardos apareceu para forçar a barra. Também pensou no atentado a Wrath, à vida do Rei Cego... na sua própria propriedade, pelo amor de Deus.
Drama demais para o seu gosto.
Com calma ensaiada, ele se lançou no mesmo discurso que fizera à facção de Xcor:
– Sou um homem de negócios por predileção e propósito. Embora respeite tanto o reinado atual quanto o poder de base do Conselho, não posso desviar nem energia nem tempo das minhas empreitadas vigentes. Nem agora, nem no futuro.
Houve um momento prolongado de silêncio. E depois aquela voz profunda e maligna se fez ouvir do outro lado:
– Ouvi falar dos seus negócios.
– Verdade?
– Eu mesmo estive envolvido com isso há alguns anos.
– Foi o que eu soube.
– Consegui fazer as duas coisas.
Assail sorriu na escuridão.
– Talvez eu não seja tão talentoso quanto você.
– Vou deixar isto perfeitamente claro. Se você não aparecer nessa reunião, deduzirei que você está jogando no time errado.
– Com essa declaração, você reconhece que existem dois e que eles se opõem.
– Entenda como quiser. Mas se não estiver comigo e com o Rei, você é inimigo meu e dele.
E foi exatamente isso o que Xcor lhe dissera. Pensando bem, havia alguma outra posição naquela guerra crescente?
– O Rei foi alvejado na sua casa, Assail.
– Pelo que me lembro – disse ele secamente.
– Pensei que você talvez quisesse dizimar qualquer ideia quanto ao seu envolvimento.
– Já o fiz. Naquela mesma noite disse aos Irmãos que eu não tinha nada a ver com aquilo. Eu lhes dei o veículo com que escaparam com o Rei. Por que eu faria tal coisa se fosse um traidor?
– Para livrar seu rabo.
– Sou muito eficiente nisso sem o benefício de conversações, eu lhe garanto.
– Então, como anda a sua agenda?
A luz no segundo andar se apagou, e ele teve que imaginar o que a mulher fazia no escuro... E com quem.
Por vontade própria, suas presas se expuseram.
– Assail. Você está seriamente me aborrecendo com essa merda de comportamento.
Assail ligou o motor do Range Rover. Não estava disposto a ficar esperando no meio-fio enquanto o que quer que estivesse acontecendo ali dentro... acontecia. Obviamente, ela se recolhera e ficaria ali. Além disso, seu telefone o alertaria caso o carro dela voltasse a se movimentar.
Enquanto ele tomava a rua e acelerava, falou com clareza:
– Neste instante, estou me demitindo da minha posição no Conselho. A minha neutralidade nessa disputa pela coroa não será questionada por nenhum dos lados...
– E você sabe quem são os jogadores, não?
– Deixarei isto o mais claro possível: não tomo partido, Rehvenge. Não sei de que outro modo deixar isso ainda mais claro... e não serei arrastado para essa guerra por você, nem pelo Rei nem por ninguém mais. Não tente me forçar, e saiba que a neutralidade que lhe apresento agora é a mesma que apresentei a eles.
Desse mesmo modo, prometera a Elan e a Xcor não revelar suas identidades, e manteria sua palavra – não por acreditar que o grupo seria capaz de retribuir o favor, mas pelo simples fato de que, dependendo de quem vencesse, um confidente de qualquer lado seria visto como espião a ser erradicado ou um herói a ser aclamado. O problema era que não se saberia que lado venceria até aquilo acabar, e ele não estava interessado em apostas.
– Então você foi abordado – declarou Rehv.
– Recebi uma cópia da carta que eles enviaram na primavera passada.
– E esse foi o único contato que teve?
– Sim.
– Está mentindo para mim.
Assail parou num farol.
– Não há nada que possa dizer ou fazer para me arrastar para isso, caro lídher.
Com ameaças em excesso, o macho do outro lado rosnou.
– Não conte com isso, Assail.
Dito isso, Rehvenge desligou.
Praguejando, Assail jogou o telefone no banco do passageiro. Depois, cerrou os dois punhos e os bateu com força no volante.
Se existia uma coisa que ele não tolerava era ser sugado para o olho do furacão das brigas dos outros. Pouco se importava com quem sentava no trono, ou com quem era encarregado da glymera. Ele só queria ser deixado em paz para ganhar dinheiro à custa dos ratos sem rabo.
Isso era tão difícil de entender?
Quando a luz ficou verde, ele afundou o pé no acelerador, mesmo sem ter nenhum destino específico em mente. Apenas dirigiu a esmo... e cerca de quinze minutos mais tarde descobriu-se sobre o rio em uma das pontes.
Ah, então seu Range Rover decidira levá-lo de volta para casa.
Ao emergir na margem oposta, seu telefone emitiu um alerta, que ele quase ignorou. Mas os gêmeos tinham saído para cuidar do último carregamento de Benloise, e ele queria saber se os intermediários tinham aparecido com suas cotas no fim das contas.
Não era uma chamada, ou uma mensagem de texto.
Era o Audi preto se movendo mais uma vez.
Assail pisou no freio, cortou na frente de um carro que buzinou como se o xingasse, subiu e atravessou o canteiro central coberto de neve.
E praticamente voou pela ponte que o levava de volta.
Em sua posição vantajosa em uma relativa periferia distante, Xcor precisava de binóculos para ver adequadamente a sua Escolhida.
O carro em que ela vinha andando, o enorme sedã preto, continuara em frente depois da ponte, seguindo por oito ou nove quilômetros antes de sair por uma estradinha rural que levava para o norte. Depois de mais alguns quilômetros, e sem nenhum aviso, virou numa estrada de terra que era estrangulada nas duas laterais por plantações perenes. Por fim, parou ante uma construção baixa de concreto que não dava indícios de ter nem janelas nem uma porta.
Ele ajustou o foco quando dois machos saíram pela frente. Reconheceu um instantaneamente, o cabelo o denunciava: Phury, filho de Ahgony, que, de acordo com a boataria, tornara-se o Primale das Escolhidas.
O coração de Xcor começou a bater forte.
Especialmente quando reconheceu a segunda figura: era o lutador de olhos descombinados contra quem pelejara na casa de Assail quando o Rei fora levado embora às pressas.
Os dois machos sacaram as pistolas e perscrutaram as imediações.
Como Xcor estava a favor do vento e parecia não haver ninguém mais por perto, ele deduziu que havia uma grande probabilidade, a não ser que sua Escolhida revelasse a posição dele, que aquele par procedesse com o que quer que tivesse planejado para a fêmea.
De fato, era como se ela estivesse sendo levada para uma prisão.
Só. Por. Cima. Do. Seu. Cadáver.
Ela era um inocente naquela guerra, utilizada com propósitos nefastos sem que isso tivesse sido culpa sua; mas, obviamente, ela seria executada ou trancafiada numa cela na qual passaria o resto de sua vida na Terra.
Ou não.
Ele segurou as pistolas.
Aquela era uma boa noite para cuidar daquele assunto. De fato, era a sua chance de tê-la para si, de salvá-la de qualquer punição que lhe impingiram por ter, sem saber, ajudado e revigorado o inimigo. E talvez as circunstâncias quanto à sua condenação injusta a deixassem favoravelmente disposta em relação ao seu inimigo e salvador.
Ele fechou os olhos brevemente ao imaginá-la em sua cama.
Quando Xcor voltou a abri-los, Phury abria a porta traseira do sedã e colocava a mão para dentro. Quando o Irmão se endireitou, a Escolhida era retirada do veículo... e levada pelos dois cotovelos, os lutadores segurando-a de cada lado enquanto a conduziam para a construção.
Xcor se preparou para se aproximar. Depois de tanto tempo, uma vida inteira, mais uma vez ele a tinha próxima de si e não desperdiçaria a oportunidade que o destino lhe propiciava, não agora, não quando a vida dela tão obviamente pendia na balança. E ele levaria a melhor naquilo; a ameaça a ela fortalecia seu corpo a um nível inimaginável de poder, a mente se aguçava a ponto de avaliar todas as possibilidades de ataque e continuar absolutamente calmo.
De fato, havia apenas dois machos a guardá-la e, com eles, uma fêmea que não só parecia não estar armada, como também não avaliava seus arredores como se fosse treinada para tal ou inclinada para o conflito.
Ele estava mais do que preparado para acabar com os captores de sua fêmea.
Bem quando ele se preparava para avançar, o cheiro da Escolhida o atingiu na brisa fria, aquele perfume tentador exclusivo fazendo-o oscilar dentro de suas botas de combate...
Imediatamente, ele reconheceu uma mudança nele.
Sangue.
Ela estava sangrando. E havia mais alguma coisa...
Sem pensamento consciente, seu corpo se moveu para mais perto, sua forma restabelecendo o peso corpóreo, suspendendo-se a meros três metros, atrás de uma construção destacada do prédio principal.
Ele percebeu que ela não era uma prisioneira sendo levada para uma cela ou para a execução.
A sua Escolhida tinha dificuldade para andar. E aqueles guerreiros a amparavam com cuidado; mesmo com as armas expostas e os olhos vasculhando qualquer sinal de ataque, eles eram gentis com ela como seriam com a mais frágil das flores em botão.
Ela não estava sendo maltratada. Não tinha hematomas nem ferimentos. Enquanto o trio avançava, ela olhou para um macho, depois para o outro, e disse algo como que tentando assegurá-los, pois, na verdade, não era raiva que contraía as sobrancelhas daqueles guerreiros.
Era, na realidade, o mesmo terror que ele sentiu quando farejou o sangue dela.
O coração de Xcor bateu ainda mais forte em seu peito, a mente tentando compreender tudo aquilo.
E então, ele se lembrou de algo do seu passado.
Depois do seu nascimento, sua mahmen o repelira e ele fora deixado no orfanato no Antigo País para o que quer que o destino lhe reservasse. Ali, permanecera entre os raros indesejados, cuja maioria possuía deformidades físicas como a sua, por quase uma década... tempo suficiente para forjar lembranças permanentes sobre aquilo que transpirava no lugar triste e solitário.
Tempo suficiente para ele entender o que significava quando uma fêmea sozinha aparecia nos portões, era-lhe concedida a entrada, e depois berrava por horas, às vezes dias... antes de dar à luz, na maioria dos casos, a crianças mortas. Ou abortadas.
O cheiro do sangue naquela época era bem específico. E o cheiro levado pelo vento frio desta noite era o mesmo.
Uma gestação era o que invadia seu nariz agora.
Pela primeira vez em sua vida, ele se ouviu dizer, em absoluta agonia:
– Santa Virgem do Fade...
CAPÍTULO 34
A ideia de que os membros do s’Hisbe estivessem no código postal de Caldwell fez com que Trez pensasse em fazer as malas com tudo o que possuía, buscar o irmão e sair em férias permanentes dali.
Enquanto dirigia do armazém para o Iron Mask, a cabeça estava tão confusa que ele tinha de pensar conscientemente em quais esquinas virar, e frear nas placas de pare, e onde deveria estacionar quando chegasse à boate. E depois, quando desligou o motor do X5, apenas continuou sentado atrás do volante, encarando a parede de tijolos do seu prédio por... sei lá, um ano.
Uma tremenda metáfora, todo o “ir a nenhum lugar” bem na sua frente.
Não que não soubesse o quanto decepcionava as pessoas. A questão? Pouco se importava. Não voltaria para os costumes antigos. A vida que agora levava era sua, e ele se recusava a permitir que uma promessa feita na época do seu nascimento o encarcerasse na vida adulta.
Aquilo não aconteceria.
Desde que Rehvenge realizara a boa ação do século e salvara tanto o seu traseiro quanto o do seu irmão, as coisas mudaram para Trez. Ele e iAm receberam ordens para se aliarem aos sympatho do lado de fora do Território a fim de saldarem a dívida, e esse “pagamento forçado” fora o bilhete deles para a liberdade, a saída que eles vinham procurando. E ainda que ele lamentasse arrastar iAm para aquele drama, o resultado final foi que seu irmão teve que vir com ele, e essa era apenas mais uma parte da solução perfeita que vivia atualmente. Abandonar o s’Hisbe e vir para o mundo exterior fora uma revelação, a primeira e deliciosa amostra de liberdade. Não havia protocolo, nenhuma regra, ninguém bafejando em seu cangote.
A ironia? Aquilo deveria ter sido um tapinha na bunda por ousar ter saído do Território e se misturar com os Desconhecidos. Um castigo com a intenção de fazê-lo andar na linha.
Rá.
E, desde então, nos recessos de sua mente, ele meio que desejava que a extensão dos seus negócios com os Desconhecidos durante a última década o tivesse contaminado perante os olhos do s’Hisbe, tornando-o inelegível para a “honra” que lhe fora concedida no nascimento. Ou seja, condenando-o a uma liberdade permanente.
O problema era que, se enviaram AnsLai, o sumo sacerdote, obviamente esse objetivo não fora alcançado. A menos que a visita tenha sido para repudiá-lo...
Nesse caso, saberia por meio de iAm. Não?
Trez verificou o celular. Nenhuma mensagem. Nem de voz nem de texto. Estava na casinha do cachorro de novo em relação ao seu irmão, a menos que iAm tivesse resolvido mandar tudo à merda e voltado para casa, para a tribo.
Maldição...
A batida forte à sua janela não fez com que ele simplesmente levantasse a cabeça. Não. Ele também sacou a arma.
Trez franziu a testa. Parado do lado de fora do carro, um macho humano do tamanho de uma casa. O cara tinha um barrigão de cerveja, mas os ombros fortes sugeriam que ele realizava trabalho físico regular, e o maxilar rígido e pesado revelava tanto a sua ancestralidade Cro-Magnon quanto o tipo de arrogância mais comum entre os animais grandes e idiotas.
Com grandes baforadas de touro libertando-se das narinas, ele se inclinou e bateu na janela. Naturalmente, com um punho tão grande quanto uma bola de futebol.
Bem, ficou claro que ele queria um pouco de atenção, e quer saber? Trez estava mais do que disposto em lhe dar.
Sem aviso, ele escancarou a porta, pegando o cara em cheio nas bolas. Enquanto o humano cambaleava para trás agarrando a virilha, Trez se ergueu em toda a sua altura e guardou a arma no cós da calça, fora de vista, mas fácil de apanhar.
Quando o senhor Agressivo se recuperou o bastante para olhar para cima, beeeem para cima, ele pareceu perder um pouco do seu entusiasmo. Pensando bem, Trez devia ter uns quarenta centímetros e pesar uns 45 quilos a mais que o cara. Apesar daquele pneuzão que ele carregava.
– Está procurando por mim? – perguntou Trez, querendo mesmo dizer: tem certeza de que quer fazer isso, grandalhão?
– É. ‘Tô.
Ok, então tanto a gramática quanto a avaliação de risco eram problemas para ele. Provavelmente teria dificuldades do mesmo tipo com adições e subtrações com numerais de único dígito.
– Estou – corrigiu Trez.
– Quê?
– Acredito que seja “sim, eu estou”, e não “tô”.
– Vai à merda. Que tal? – o cara se aproximou. – E fique longe dela.
– Dela? – isso restringia o problema para o que... umas mil pessoas?
– Minha mina. Ela num qué ocê, num precisa ducê, e num vai mais ficá cucê.
– De quem, exatamente, estamos falando? Vou precisar de um nome – e talvez nem isso ajudasse.
À guisa de resposta, o cara avançou. Provavelmente teria sido um soco ferrado, mas o avanço foi lento demais e muito penoso, e a maldita coisa poderia ter sido acompanhada de uma legenda.
Trez segurou o punho com uma mão, espalmando-a como se fosse uma bola de basquete. E depois, com um giro rápido, ficou com o pedaço de bife virado e preso – prova positiva de que pontos de pressão funcionavam, e que o pulso era um deles.
Trez falou bem no ouvido do homem, só para que as regras básicas fossem bem recebidas:
– Faça isso de novo e vou quebrar cada osso da sua mão. De uma vez – enfatizou isso com um puxão que fez o cara gemer. – E depois, vou subir até o braço. Agora, de que porra você está falando?
– Ela ‘teve aqui ontem à noite.
– Muitas mulheres estiveram. Consegue ser mais específico...?
– Ele ‘tá falando de mim.
Trez ergueu o olhar. Ah... que magnífico.
A garota que deu uma de doida, a sua perseguidora.
– Eu disse que cuidava disso! – ela gritou.
É, o cara parecia mesmo ter o controle da situação. Então, a que tudo levava a crer, os dois tinham ilusões... E talvez isso explicasse o relacionamento deles: ele a considerava uma supermodelo, e ela acreditava que ele tivesse um cérebro.
– Isto é seu? – Trez perguntou à mulher. – Porque, ser for, pode levá-lo para casa com você antes que precise de um balde para limpar a bagunça?
– Eu disse procê não vir aqui – disse a mulher. – Que que ‘cê ‘tá fazendo aqui?
E mais uma prova de que esses dois eram um casal perfeito.
– Que tal se eu deixar vocês dois resolverem isso? – sugeriu Trez.
– Eu amo ele!
Por um segundo, a resposta não fez sentido. Mas depois, e deixando o sotaque carregado de lado, ele entendeu: a tonta estava falando dele.
Enquanto Trez encarava incrédulo a mulher, percebeu que aquela transa em particular tinha saído pela culatra de maneira gigantesca.
– Não está, não.
Bem, pelo menos o namorado agora falara corretamente.
– Sim, estou!
Foi nessa hora que tudo foi para a puta que o pariu. O touro se lançou sobre a mulher, quebrando o próprio pulso no processo de se libertar. Depois os dois ficaram cara a cara, berrando obscenidades, os corpos se arqueando para a frente.
Ficou claro que eles tinham prática naquilo.
Trez olhou ao redor. Não havia ninguém no estacionamento, nenhuma alma viva andando na calçada, mas ele não precisava de violência doméstica rolando nos fundos da sua boate. Inevitavelmente, alguém acabaria vendo e chamando a polícia ou, pior, aquela burra acabaria forçando demais a barra do namorado grande e burro, e acabaria levando a pior.
Se ao menos ele tivesse um balde de água ou, quem sabe, uma mangueira de jardim para que os dois se largassem.
– Escutem aqui, vocês dois têm que...
– Eu te amo! – a mulher disse, virando-se para Trez e agarrando o bustiê. – Não entendeu ainda? Eu te amo!
Por conta da camada de suor que a cobria, apesar de a temperatura estar próxima de zero, ficou bem claro que ela tinha usado alguma coisa. Coca ou metanfetamina seria o seu palpite se ele tivesse de adivinhar. Êcstasy normalmente não era associado a esse tipo de agressão.
Perfeito. Mais essa agora.
Trez balançou a cabeça.
– Querida, você não me conhece.
– Conheço sim!
– Não, você não...
– Porra, não fala com ela assim!
O cara atacou Trez, mas a fêmea se colocou na frente, metendo-se diante de um trem acelerado.
Cacete, agora era a hora de ele se meter. Nada de violência contra mulheres na frente dele. Nunca – mesmo que fosse dano colateral.
Trez se moveu com tanta rapidez que quase fez o tempo voltar para trás. Tirou sua “protetora” da linha de combate e lançou um soco que pegou o animal disparado bem no meio do queixo.
Causou pouca ou nenhuma impressão. Foi o mesmo que atingir uma vaca com uma pilha de papel.
Trez levou um murro no olho, uma luz pipocou em metade da sua vista, mas foi um golpe de sorte mais do que algo coordenado. A recompensa, contudo, foi tudo isso e muito mais: com rápida coordenação, ele descarregou as juntas dos dedos em sucessão veloz, acertando-o no ventre, transformando o fígado cheio de cirrose do cara num saco de pancada vivo até o filho da puta se dobrar ao meio e pedir arrego.
Trez concluiu o assunto chutando o peso morto gemedor até ele cair no chão.
Então, ele sacou a pistola e enfiou o cano bem na carótida do cara.
– Você tem uma chance de sair daqui – Trez disse calmo. – E é assim que as coisas vão ser. Você vai se levantar e não vai nem olhar nem falar com ela. Você vai embora pela frente da boate e vai entrar numa porra de um táxi e vai para a porra da sua casa.
Diferentemente de Trez, o homem não tinha um sistema cardíaco muito bem desenvolvido e conservado e respirava como um trem de carga. Apesar disso e do jeito como os olhos injetados e marejados o olhavam, ele conseguira focar a visão independentemente da hipoxia, e captara a mensagem.
– Se a agredir de qualquer modo que seja, se ela quebrar sequer uma unha por sua causa, se alguma propriedade dela for danificada de algum modo? – Trez se inclinou, aproximando-se. – Vou abordá-lo por trás. Você nem saberá que estive ali, e não vai sobreviver ao que eu lhe farei. Isso eu prometo.
Sim, Sombras tinham maneiras de se livrar dos inimigos e, ainda que ele preferisse carne com pouca gordura, como frango e peixe, não se importava em abrir exceções.
O problema era que tanto em sua vida pessoal quanto na profissional ele vira como a violência doméstica se intensificava. Em muitos casos, algo grande tinha que intervir a fim de romper o ciclo. Veja só? Ele se encaixava nisso.
– Acene com a cabeça se você entendeu meus termos – quando o aceno veio, ele bateu a arma com força contra a nuca gorda. – Agora, olhe em meus olhos e saiba que estou falando a verdade.
Enquanto Trez o encarava, ele inseriu um pensamento direto no córtex cerebral, implantando-o como se fosse um chip instalado entre os lóbulos. O seu disparo seria qualquer tipo de ideia brilhante que tivesse a respeito da mulher; seu efeito seria a absoluta convicção de que a sua própria morte seria inevitável e rápida, caso ele desse seguimento à ideia.
O melhor tipo de terapia cognitiva que existia.
Taxa de sucesso de cem por cento.
Trez deu um pulo e concedeu uma chance de se comportar como um bom garoto ao gorducho. E, claro, o filho da puta se ergueu do chão, sacudiu-se como um cão com as pernas plantadas afastadas e a camisa larga solta.
Quando ele saiu, foi mancando.
E foi nesse instante que as fungadas foram percebidas.
Trez se virou. A mulher tremia no frio, as roupas indiscretas não ofereciam nenhuma barreira para a noite de dezembro, a pele pálida, a exaltação desaparecida... como se o fato de ele colocar o cano da sua .40 na garganta do seu namoradinho tivesse alguma influência.
O rímel escorria pelo rosto enquanto ela testemunhava a partida do seu “Príncipe Encantado”.
Trez olhou para o céu e começou seu diálogo interno.
No fim, ele não teria como deixá-la ali sozinha no estacionamento, ainda mais toda trêmula como estava.
– Onde você mora, querida? – até ele percebia a exaustão em sua voz. – Querida?
A mulher olhou para o lado dele e imediatamente a sua expressão mudou.
– Nunca ninguém me defendeu assim antes.
Ok, agora ele pensava em afundar a cabeça na parede de tijolos. E, olha só, havia uma logo ali do lado.
– Deixe-me levá-la para casa. Onde você mora?
Enquanto ela se aproximava, Trez teve que ordenar aos pés que continuassem exatamente onde estavam – pois, claro, ela se enterrou em seu corpo.
– Eu te amo.
Trez cerrou bem os olhos.
– Vamos – disse, desprendendo-se dela e levando-a até o carro. – Você vai ficar bem.
CAPÍTULO 35
Enquanto Layla era levada até a clínica, seu coração batia forte e as pernas tremiam. Felizmente, Phury e Qhuinn não mostravam problema algum em sustentá-la.
Contudo, graças à presença do Primale, sua experiência foi completamente diferente dessa vez. Quando o painel de entrada do edifício deslizou para o lado, uma das enfermeiras estava lá para recebê-los, e eles foram levados imediatamente para uma parte diferente da clínica daquela em que ela esteve na noite anterior.
Enquanto eram levados para a sala de exames, Layla olhou de relance ao redor e hesitou. O que... era aquilo? As paredes eram recobertas por um rosa claro, e as pinturas em molduras douradas estavam penduradas a intervalos regulares. Nenhuma mesa de exames, tal como aquela em que ela se deitou na noite anterior. Ali, havia uma cama forrada por uma manta elegante, recoberta com pilhas de travesseiros fofos. E, além disso, em vez da pia de aço inoxidável e gabinetes brancos sem graça, uma tela pintada escondia um canto inteiro do quarto atrás da qual, ela deduziu, os instrumentos clínicos de Havers eram mantidos.
A menos que o grupo tenha sido conduzido para os aposentos particulares do médico.
– Ele logo virá vê-la – disse a enfermeira, sorrindo para Phury e se curvando. – Posso lhes trazer algo? Café, chá?
– Apenas o médico – o Primale respondeu.
– Imediatamente, Vossa Excelência.
Ela se curvou novamente e se apressou para fora.
– Vamos colocá-la na cama, está bem? – disse Phury ao lado do leito.
Layla balançou a cabeça.
– Tem certeza de que estamos no lugar certo?
– Sim – o Primale se aproximou e a ajudou a atravessar o quarto. – Esta é uma das suítes VIP.
Layla olhou por sobre o ombro. Qhuinn se acomodara no canto oposto à tela. Ele se mantinha absolutamente imóvel, os olhos focados no chão, a respiração estável, as mãos atrás das costas. E mesmo assim não estava à vontade. Não, ele parecia pronto e capaz de matar e, por um momento, uma pontada de medo a perpassou. Jamais teve medo dele antes, mas, pensando bem, ela nunca o vira num estado tão potencialmente agressivo.
Pelo menos a violência represada não parecia direcionada a ela, nem mesmo ao Primale. Certamente não à doutora Jane enquanto a médica se acomodava numa cadeira forrada de seda.
– Vamos – insistiu Phury com gentileza. – Vamos lá.
Layla tentou subir sozinha, mas o colchão estava longe demais do chão e a parte superior do seu corpo estava tão fraca quanto as pernas.
– Eu pego você – Phury atenciosamente passou o braço ao redor das suas costas e atrás das pernas; depois a suspendeu com cuidado. – Lá vamos nós.
Ajeitando-se na cama, ela gemeu ao sentir uma câimbra se agarrar à sua região pélvica. Enquanto todos os olhos no quarto fixavam-se nela, ela tentou esconder a careta com um sorriso. Sem sucesso: embora o sangramento continuasse estável, as ondas de dor se intensificavam, a duração delas era mais longa, e o espaçamento entre elas, menor.
Naquele compasso, logo se transformaria em agonia constante.
– Estou bem...
A batida à porta a interrompeu.
– Posso entrar?
Apenas a voz do doutor Havers já fez com que ela quisesse fugir.
– Ah, Santa Virgem Escriba – disse ao tentar juntar coragem.
– Sim – respondeu sombriamente Phury. – Entre...
O que aconteceu em seguida foi tão rápido e furioso que o único modo de descrever seria com o coloquialismo que aprendera com Qhuinn.
O mundo desabou.
Havers abriu a porta, entrou e Qhuinn atacou o médico, empurrando-o para aquele canto, inclinando-se com a adaga.
Layla gritou alarmada, mas ele não matou o macho.
No entanto, ele fechou a porta com o corpo do macho, ou talvez com a cara dele. E foi difícil saber se o barulho que ressoou foi a porta se encontrando com a soleira ou o impacto do curandeiro sendo lançado contra a madeira. Provavelmente uma combinação de ambos.
A terrível lâmina afiada foi pressionada contra a garganta pálida.
– Adivinha o que vai fazer primeiro, cretino? – Qhuinn rosnou. – Vai se desculpar por tratá-la como se fosse uma maldita incubadora.
Qhuinn o virou com um puxão. Os óculos de Havers estavam quebrados, uma das lentes rachada formando um padrão de teia de aranha, a alça do outro lado esticada num ângulo estranho.
Layla lançou um olhar para Phury. O Primale não parecia particularmente aborrecido: apenas cruzou os braços sobre o peito imenso e se recostou contra a parede ao lado dela, obviamente muito à vontade com aquela encenação. Do outro lado na cadeira, o mesmo acontecia com a doutora Jane, o olhar esverdeado era tranquilo enquanto observava o dramalhão.
– Olhe nos olhos dela – bramiu Qhuinn – e peça desculpas.
Quando o lutador sacudiu o médico como se ele não passasse de uma boneca de pano, algumas palavras amontoadas escaparam do médico.
Caramba. Layla supunha que deveria se portar como uma dama e não gostar daquilo, mas sentiu satisfação ante aquela vingança.
Tristeza também, porque a situação jamais deveria ter chegado àquilo.
– Aceita as desculpas dele? – Qhuinn perguntou num tom maldoso. – Ou prefere que ele rasteje? Eu ficarei muito feliz em transformá-lo num capacho aos seus pés.
– Isso foi o bastante. Obrigada.
– Agora você vai contar a ela – Qhuinn repetiu o chacoalhão, os braços de Havers quase sendo arrancados das juntas, o jaleco branco balançando tal qual uma bandeira – e somente a ela, que merda está acontecendo com o corpo dela.
– Preciso do... prontuário...
Qhuinn expôs as presas e as colocou ao lado da orelha de Havers, como se estivesse considerando a ideia de arrancá-la numa mordida.
– Tolice. E se você estiver contando a verdade? O lapso de memória vai causar a sua morte. Agora.
Havers já estava pálido, mas isso fez com que ele ficasse completamente branco.
– Comece a falar, doutor. E se o Primale, que o impressiona pra cacete, fizer a gentileza de me contar caso você desvie o olhar dela, isso seria maravilhoso.
– Com prazer – disse Phury.
– Não estou ouvindo nada, doutor. E não sou um cara muito paciente.
– Você é... – por detrás dos óculos quebrados, os olhos do macho encontraram os dela. – O seu filho...
Ela quase desejou que Qhuinn não forçasse aquele contato. Já era bastante difícil ouvir aquilo sem ter que encarar o médico que a tratara tão mal.
Mas, pensando bem, era Havers quem tinha de olhar para ela, e não o contrário.
Ela encarava os olhos de Qhuinn quando Havers disse:
– Você está sofrendo um aborto.
As coisas ficaram embaçadas dali por diante, portanto, ela deduziu que estivesse chorando. Entretanto, não sentia coisa alguma. Era como se sua alma tivesse sido tragada para fora do seu corpo, tudo o que a animava e conectava ao mundo nunca tivesse existido.
Qhuinn não demonstrou reação alguma. Não piscou. Não mudou de posição, nem balançou a adaga.
– Existe algo que possa ser feito em termos médicos? – questionou a doutora Jane.
Havers foi balançar a cabeça, mas parou quando a ponta afiada da adaga perfurou a pele do seu pescoço. Quando o sangue começou a descer pelo colarinho engomado da camisa social, o vermelho combinou com a gravata borboleta.
– Nada que eu saiba – respondeu o médico com voz rouca. – Não neste mundo, de qualquer forma.
– Diga a ela que ela não teve culpa – exigiu Qhuinn. – Diga a ela que ela não fez nada de errado.
Layla fechou os olhos.
– Presumindo que isso seja verdade...
– Em humanos, esse costuma ser o caso, desde que não tenha havido nenhum trauma – interveio a doutora Jane.
– Diga a ela – disse Qhuinn num estalido, o braço começando a vibrar bem de leve, como se estivesse a um passo de liberar a sua violência.
– É verdade – confirmou Havers meio engasgado.
Layla fitou o médico, procurando o olhar dele por trás dos óculos arruinados.
– Nada?
Havers falou rapidamente:
– A incidência de abortos espontâneos é de aproximadamente uma a cada três gestações. Acredito que, como acontece com os humanos, seja causado por um sistema autorregulatório que garante que defeitos de vários tipos não sejam levados a cabo.
– Mas, sem sombra de dúvida, eu estou grávida – disse ela num tom desprovido de emoção.
– Sim. Seus exames de sangue atestaram isso.
– Existe algum risco à vida dela – perguntou Qhuinn – se isso continuar?
– Você é o ghia dela? – perguntou Havers num rompante.
Phury interveio:
– Ele é o pai do filho dela. Portanto, você o tratará com o mesmo respeito com que me trataria.
Isso fez com que os olhos do médico saltassem das órbitas, as sobrancelhas emergissem por trás da armação arruinada. E foi engraçado; foi nesse instante que Qhuinn demonstrou um pouco de reação: apenas um leve vacilo em seu rosto antes que a expressão ferrenha voltasse a demonstrar agressividade.
– Responda – exigiu Qhuinn. – Ela corre algum perigo?
– E-eu... – Havers engoliu em seco. – Não existem garantias na medicina. De modo geral, eu diria que não; ela é saudável em relação ao resto, e o aborto parece estar seguindo seu curso costumeiro. Além disso...
Enquanto o médico continuava a falar, Layla percebeu que seu tom educado e refinado estava muito mais irregular do que na noite anterior.
Tudo regrediu, sua audição sumiu, junto a qualquer percepção de temperatura do quarto, a cama debaixo dela, bem como os outros corpos ao seu redor. A única coisa que enxergava eram os olhos descombinados de Qhuinn.
Seu único pensamento enquanto ele segurava aquela adaga junto ao pescoço do médico?
Mesmo não estando apaixonados um pelo outro, ele era exatamente o pai que queria que seu filho tivesse. Desde que tomara a decisão de participar do mundo real, ela aprendera o quanto a vida podia ser dura, como os outros podiam conspirar contra você e como, às vezes, a força baseada em seus princípios era a única coisa que o fazia atravessar a noite.
Qhuinn dispunha desse último aos montes.
Ele era um extraordinário e temível protetor, e era exatamente disso que uma fêmea precisava quando estava grávida, amamentando ou cuidando de um bebê.
Isso e sua gentileza inata o tornavam nobre a seu ver.
A cor dos seus olhos não importava.
Quase oitenta quilômetros ao sul de onde Havers molhava as calças de tanto medo em sua clínica, Assail estava atrás do volante de seu Range Rover, balançando a cabeça em descrença.
As coisas ficavam cada vez mais interessantes com aquela mulher.
Graças ao GPS, ele rastreara o Audi de longe quando ela decidira sair de seu bairro e tomar a Northway. A cada saída de subúrbio, ele esperava que ela a tomasse, mas enquanto eles deixavam Caldwell para trás para comer poeira, ele começou a pensar que talvez ela estivesse seguindo para Manhattan.
Nada disso.
West Point, o lar da venerável escola militar humana, ficava aproximadamente na metade do caminho entre a cidade de Nova York e Caldwell, e quando ela saiu da autoestrada àquela altura, ele ficou aliviado. Muitas coisas aconteciam lá naquela terra em que o código postal começava com 100, e ele não queria se distanciar muito de sua base por dois motivos: um, ainda não tivera notícias dos gêmeos quanto à aparição daqueles intermediários fuleiros, e, dois, a aurora surgiria em algum momento, e ele não apreciava a ideia de abandonar seu muito modificado e reforçado Range Rover no acostamento de uma estrada caso precisasse se desmaterializar de volta para a sua segurança.
Uma vez fora da estrada, a mulher prosseguiu a exatos setenta quilômetros por hora pela seleção de postos de combustível, hotéis turísticos e lanchonetes da cidade. Em seguida, do outro lado dessa coleção de lugares baratos, as coisas começaram a ficar mais caras. Casas grandes, do tipo que ficavam bem ao fundo de gramados que se pareciam com carpetes, começaram a aparecer, com seus muros de pedra baixos placidamente se aglomerando próximos à estradinha. Ela passou por todas essas propriedades, porém, para acabar parando no estacionamento de um parque que dava para a margem de um rio.
Assim que ela saiu do carro, ele passou por ela, virando a cabeça para trás para medi-la.
Uma centena de metros mais adiante, fora do campo de visão dela, Assail parou o carro no acostamento da estradinha, saindo para o vento enregelante, abotoando o casaco até o alto. Os sapatos não eram os ideais para caminhar sobre a neve, mas ele não se importou. Seus pés suportariam o frio e a umidade, e ele tinha outra dúzia de pares à sua espera no armário de sua casa.
Como o carro dela, e não o corpo, estava com o aparelho de rastreamento, ele manteve o olhar fixo nela. Como esperado, ela vestiu os esquis de cross-country e, depois, com uma máscara branca de esqui sobre a cabeça e roupa de camuflagem clara a lhe cobrir o corpo, ela praticamente desapareceu em meio ao cenário de inverno.
E ele a acompanhou.
Aparecendo a cada dez ou quinze metros, ele encontrou pinheiros para se esconder conforme ela avançava na direção de mansões, os esquis devorando o chão coberto de neve.
Ele concluiu, enquanto mantinha o compasso, antecipando a direção que ela tomaria e, em boa parte adivinhando, que ela iria para uma daquelas mansões.
Toda vez que ela passava por ele sem saber que ele estava em meio às árvores, seu corpo queria saltar. Para derrubá-la. Para mordê-la.
Por algum motivo, aquela humana o deixava faminto.
E brincar de gato e rato era algo muito erótico, especialmente se só o gato soubesse que o jogo estava valendo.
A propriedade na qual ela acabou se infiltrando ficava a quase dois quilômetros dali, mas, apesar da distância, o ritmo puxado daquelas pernas não diminuiu em nada. Ela entrou pelo lado direito do gramado da frente, aproximando-se de um muro de sempre-vivas, depois retomando seu curso.
Aquilo não fazia sentido. Se ela fosse descoberta, estava muito longe do carro. Por certo uma abordagem mais próxima teria feito mais sentido? Afinal, de qualquer modo, agora ela estava exposta, sem árvores para lhe servir de cobertura, nenhuma possível defesa contra uma acusação de invasão de propriedade se a vissem.
A menos que ela conhecesse o dono. E, nesse caso, por que se esconder e aparecer sorrateira no meio da noite?
O jardim de uns 30 mil metros quadrados gradualmente se elevava em direção a uma casa de pedras de uns 180 metros quadrados, com esculturas modernistas paradas como sentinelas brilhantes e cegas ante aquela aproximação, o gramado continuando pelo fundo. O tempo inteiro ela se ateve àquele muro e, observando-a a uns vinte metros de distância, ele se viu impressionado por ela. Contra a neve, ela se movia como uma brisa o faria, invisível e rápida, a sombra lançada contra o muro de pedras de tal modo que ela parecia desaparecer...
Ahhhh...
Ela escolhera aquela rota exatamente por isso, não?
Sim, de fato, o ângulo do luar lançava a sombra dela exatamente sobre as pedras, criando uma camuflagem ainda mais eficiente.
E aquela sensação estranha se intensificou nele.
Esperta.
Assail avançou, encontrando um esconderijo entre a vegetação na lateral da casa. De perto, notou que a mansão não era nova, embora também não fosse antiga – mesmo porque, no Novo Mundo, era raro se deparar com algo construído antes do século XVIII. Muitas janelas chumbadas. E varandas. E terraços.
Conclusão? Fortuna e distinção.
Sem dúvida, muito bem protegidas por inúmeros alarmes.
Parecia muito improvável que ela só fosse espiar a propriedade como fizera na dele. Para começar, havia uma extensão arborizada do lado oposto daquele muro de pedras que ela atravessara. Ela poderia ter estacionado os esquis, subido aquela moita de uns quatro a seis metros, e obtido uma vista privilegiada da casa. O que mais? Nesse caso, ela não precisaria de nada do que estava na mochila que lhe pesava nas costas.
A coisa parecia grande o bastante para transportar um corpo, e estava cheia.
Como se tivessem combinado, ela parou, pegou os binóculos e inspecionou a propriedade, ficando absolutamente imóvel com somente a cabeça a se mexer. E depois atravessou o gramado, movendo-se ainda mais rapidamente do que antes, a ponto de estar literalmente correndo em direção à casa.
Na direção dele.
De fato, ela seguia diretamente para Assail, para aquela junção entre arbustos que marcava a frente da mansão, para a sebe alta que corria ao redor do jardim dos fundos.
Obviamente, ela conhecia a propriedade.
Obviamente, ele escolhera o lugar perfeito.
Ante a aproximação dela, ele recuou apenas um pouco... porque não teria se importado em ser flagrado espiando.
A mulher esquiou mais uns dois metros além de onde ele se encontrava, aproximando-se tanto que ele conseguiu captar o cheiro dela não só em seu nariz, mas também no fundo da garganta.
Ele teve que se refrear para não ronronar.
Depois do esforço em atravessar aquela faixa de gramado com tanta rapidez, ela estava arfando, mas seu sistema cardiovascular se recuperou rápido – um sinal de sua boa saúde e vigor. E a velocidade com a qual ela agora se movia foi igualmente erótica. Tirando os esquis. Tirando a mochila. Abrindo a mochila. Extraindo...
Ele deduziu que ela subiria no telhado, enquanto ela montava o que parecia ser um lança-arpão. Ela mirou a coisa para cima, apertou o gatilho para atirar um gancho. Um instante depois houve o som de um metal se agarrando no alto.
Quando olhou para cima, ele percebeu que ela escolhera uma das poucas extensões de pedra sem janelas... e protegida pela sebe enorme na qual ele mesmo se escondia.
Ela ia entrar.
Àquela altura, Assail franziu o cenho... e desapareceu de onde a observava.
Reaparecendo nos fundos da casa no andar de baixo, ele espiou por várias janelas, apoiando as laterais das mãos no vidro ao se inclinar. O interior estava basicamente escuro, mas não completamente: aqui e acolá havia abajures acesos, as lâmpadas emitindo uma luz alaranjada sobre a mobília que era uma combinação de objetos antigos e arte moderna. Luxuoso que só: em seu sono pacífico, o lugar se parecia com um museu, ou algo que se fotografaria para uma revista, tudo muito bem organizado com uma precisão que haveria de se perguntar se réguas tinham sido utilizadas para dispor a mobília e os objetos de arte.
Nenhuma bagunça em lugar algum, nenhum jornal largado sem querer, nada de cartas, contas, recibos. Nenhum casaco sobre o espaldar de uma cadeira ou um par de sapatos abandonados ao lado do sofá.
Cada um dos cinzeiros imaculadamente limpos.
Somente uma pessoa lhe veio à mente.
– Benloise – sussurrou para si mesmo.
CAPÍTULO 36
Baseando-se nas vibrações regulares que vinham de seu bolso, Xcor sabia que a sua presença estava sendo desejada pelos seus lutadores.
Ele não atendeu.
Parado do lado de fora do prédio para o qual a sua Escolhida fora conduzida, ele não tinha forças nem para sair mesmo quando o fluxo de outros de sua espécie surgia em carros ou materializando-se diante do portal pelo qual ela fora levada. De fato, como tantos entraram e saíram, não havia dúvidas de que aquela era uma clínica médica.
Pelo menos ninguém parecia notá-lo, estando preocupados demais com o que os afligia, apesar do fato de ele estar parado no meio do caminho.
Ah, deuses, só o pensamento do que trouxera a sua Escolhida ali o nauseava ao ponto de ele ter de pigarrear e...
Inspirar o ar frio para dentro dos seus pulmões ajudou a conter a ânsia de vômito.
Quando o cio dela acontecera? Devia ter sido muito recentemente. Da última vez em que a vira...
Quem seria o pai?, perguntou-se pela centésima vez. Quem tomara o que era seu...
– Não seu – ele disse para si mesmo. – Não seu.
Só que era a sua mente dizendo isso e não os seus instintos. Em seu cerne, na parte mais máscula da sua essência, ela era a sua fêmea.
E, ironicamente, era isso o que o impedia de atacar a clínica – com todos os seus soldados, se necessário. Se ela estava recebendo cuidados, a última coisa que ele queria era interromper o processo.
Enquanto o tempo passava e a ausência de informações o torturava até a insanidade, ele percebeu que desconhecera a existência daquele lugar. Se ela fosse dele? Ele não teria sabido onde levá-la para obter ajuda, certamente teria mandado Throe encontrar algum lugar, de algum modo, para garantir os cuidados dela, mas e no caso de uma emergência? Uma hora ou duas procurando um curandeiro poderia significar a diferença entre a vida e a morte.
A Irmandade, por sua vez, soube exatamente onde levá-la. E quando ela recebesse alta daquele lugar, sem dúvida, eles a levariam de volta a um lugar aquecido, seguro, onde teria alimento abundante e uma cama macia, e a força valente de pelo menos seis guerreiros para protegê-la enquanto dormisse.
Irônico como ele se sentia à vontade com isso. Mas, pensando bem, a Sociedade Redutora era um adversário muito sério; e digam o que quiserem a respeito da Irmandade, eles provaram durante toda a eternidade serem defensores capazes.
Abruptamente, seus pensamentos se voltaram para o armazém em que ele e seus soldados vinham ficando. Aquele ambiente úmido, frio, hostil era, na verdade, apenas um degrau acima dos outros lugares em que levantaram acampamento. Se ela estivesse com ele, como a manteria? Nenhum macho jamais poderia vê-la em sua presença, especialmente se ela tivesse de trocar de roupa ou se banhar...
Um rugido se infiltrou em sua garganta.
Não. Nenhum macho colocaria os olhos na pele dela ou ele o esfolaria vivo...
Ah, Deus, ela se vinculara a outro. Abrira-se e aceitara outro macho dentro de suas carnes sagradas.
Xcor abaixou o rosto entre as mãos, a dor em seu peito fazendo-o cambalear em suas botas de combate.
Deve ter sido o Primale. Sim, claro, ela se deitara com Phury, filho de Ahgony. Era esse o único modo com que as Escolhidas se procriavam, se a sua memória e os boatos estivessem certos.
Instantaneamente, sua mente ficou enevoada com a imagem do rosto perfeito e da silhueta delgada. Pensar que outro a desnudara e cobrira-lhe o corpo com o dele...
Pare, ele se ordenou. Pare com isso.
Arrastando sua mente para longe dessa loucura, ele se desafiou a definir qualquer tipo de hospedagem que poderia propiciar a ela. Em qualquer circunstância.
O único pensamento que lhe ocorreu foi voltar e matar aquela fêmea de quem seus soldados se alimentaram. Aquele chalé parecera bem tranquilo e adorável...
Mas para onde iria sua Escolhida durante o dia?
E, além disso, ele jamais a envergonharia permitindo que ela sequer andasse sobre o tapete onde todo aquele sexo acontecera.
– Com licença.
Xcor buscou a pistola dentro da jaqueta ao dar meia-volta. Só que não havia necessidade de usar força bruta – era apenas uma fêmea pequena com seu filho. Ao que tudo levava a crer, eles tinham saído de um utilitário estacionado a poucos metros dele.
Enquanto a criança se escondia atrás da mãe, os olhos da fêmea se arregalaram de medo.
Mas, pensando bem, quando se tropeça num monstro, sua presença dificilmente é recebida com alegria.
Xcor se curvou profundamente, em grande parte porque a visão do seu rosto por certo não estava melhorando a situação.
– Sim, como não...
Dito isso, ele recuou e virou, voltando ao posto originalmente ocupado. Na verdade, não percebera o quanto tinha se exposto.
E ele não queria brigar. Não com a Irmandade. Não com a sua Escolhida daquele modo. Não... ali.
Fechando os olhos, desejou poder voltar para aquela noite quando Zypher o levara para a campina e Throe, com o subterfúgio de ajudá-lo, o condenara àquele tipo de morte em vida.
Um macho vinculado que não podia estar com sua fêmea?
Morto apesar de viver...
Sem aviso, o portal foi puxado para trás e sua Escolhida surgiu. Instantaneamente, os instintos de Xcor gritaram para que ele agisse, apesar de todos os motivos para deixá-la em paz.
Leve-a! Agora!
Mas ele não o fez: as expressões sérias daqueles que a protegiam com tamanho cuidado o imobilizaram: notícias ruins foram dadas durante a estada deles ali.
Como antes, só faltaram carregá-la até o veículo.
E o cheiro do sangue dela ainda pairava no ar.
Sua Escolhida foi acomodada no banco traseiro do sedã, com a fêmea ao lado dela. Depois, Phury, filho de Ahgony, e o guerreiro de olhos descombinados entraram na frente. O veículo foi virado bem lentamente, como que por preocupação com a carga preciosa no compartimento traseiro.
Xcor os seguiu, materializando-se de tempos em tempos acompanhando a velocidade crescente na estrada rural ao fim da rua, e depois na autoestrada. Quando o carro chegou à ponte, ele mais uma vez o viu do mais alto esteio e depois que sua fêmea passou debaixo dele, ele saltou de telhado em telhado enquanto o sedã dava a volta no centro da cidade.
Ele rastreou o carro seguindo ao norte até sair da autoestrada e entrar numa região rural.
Continuou com ela o tempo inteiro.
E foi assim que ele descobriu a localização da Irmandade.
CONTINUA
CAPÍTULO 27
Assomando-se acima de Qhuinn, Blay estava anormalmente ciente de tudo ao seu redor: a sensação da mão de Qhuinn atrás da sua perna, o modo como a bainha do roupão resvalava sua canela, o cheiro do sexo permeando o ar.
De tantos modos, ele quisera aquilo a vida inteira. Ou pelo menos, desde que sobrevivera à transição e teve algum tipo de impulso sexual. Aquele momento era o ápice de sonhos incontáveis e de inúmeras fantasias, seu desejo secreto sendo manifestado.
E era sincero: os olhos descombinados de Qhuinn não tinham sombras, nem dúvidas. O macho não só dizia a mais absoluta verdade que lhe passava pelo coração, mas estava em paz por se expor com tanta vulnerabilidade.
Blay cerrou as pálpebras brevemente. Aquela submissão era o oposto de tudo o que definia Qhuinn como macho. Ele nunca se entregava; não os seus princípios, não as suas armas, nunca, jamais a si mesmo. Pensando bem, a reviravolta fazia algum sentido. O enfrentamento da morte tendia a ser seguido por revelações...
A questão era que ele tinha a sensação de que aquilo não duraria. Aquela “visão desobstruída” sem dúvida estava ligada à viagem de avião, mas tal qual uma vítima de ataque cardíaco voltando à antiga dieta deplorável pouco depois, a “revelação” provavelmente não teria vida longa. Sim, Qhuinn estava sendo sincero quanto ao que dizia naquele momento inebriante, não havia dúvida alguma quanto a isso. No entanto, era difícil acreditar que aquilo seria permanente.
Qhuinn era o que era. E muito em breve, depois que o choque fosse absorvido – talvez ao cair da noite, quem sabe na semana seguinte, ou dali a um mês – ele voltaria ao seu modo de ser fechado, distante, à parte.
Decisão tomada, Blay voltou a abrir os olhos e se inclinou. Quando os rostos se aproximaram, os lábios de Qhuinn se partiram, o inferior, carnudo, pulsava como se ele já tentasse saborear o que desejava... e se deleitava.
Merda. O lutador era tão magnífico, o peito nu poderoso reluzindo na luz do abajur, a pele transportando uma camada de excitação, os mamilos perfurados se elevando e descendo conforme a pulsação desenfreada do sangue aquecido.
Blay percorreu a mão pelos músculos do braço que os ligava, desde a espessura grossa do ombro até a protuberância do bíceps e a curva entalhada do tríceps.
Retirou a palma de sua coxa.
E se afastou.
Qhuinn empalideceu a ponto de ficar acinzentado.
No silêncio, Blay nada disse. Não conseguiria. Sua voz havia desaparecido.
Em pernas cambaleantes, ele se distanciou, a mão envolvendo a maçaneta até conseguir coordenação suficiente para abrir a saída. Saindo, ele não saberia dizer se bateu a porta ou se a fechou silenciosamente.
Não foi muito longe. Pouco mais de um metro além do quarto, ele desabou ao encontro da parede lisa e fria do corredor.
Ofegando. Estava ofegando.
E todo aquele esforço de nada adiantaria. A sufocação no peito só piorava e, subitamente, sua visão foi substituída por quadrados em preto e branco de um tabuleiro de xadrez.
Deduzindo que estava prestes a desmaiar, agachou-se e colocou a cabeça entre os joelhos. Nos recessos da mente, rezou para que o corredor continuasse vazio. Aquele não era o tipo de coisa que gostaria de explicar para ninguém: estava do lado de fora do quarto de Qhuinn, obviamente excitado, o corpo tremendo como se um terremoto particular estivesse acontecendo...
– Jesus Cristo...
Quase morri hoje... e isso endireita as pessoas. Lá em cima naquele avião, olhando para a noite escura, não achei que fosse conseguir. Tudo ficou claro para mim.
– Não – Blay disse em voz alta. – Não...
Apoiando a cabeça nas mãos, tentou respirar calmamente, pensar racionalmente, agir sensatamente. Não poderia se dar ao luxo de se afundar ainda mais naquilo...
Aqueles olhos quentes, brilhantes, descombinados eram o que o atraiam.
– Não – sibilou.
Enquanto a voz ressoava em seu crânio, ele resolveu se dar ouvidos. Chega. Aquilo não poderia ir adiante.
Há tempos perdera o coração para aquele macho.
Não havia motivos para perder a alma também.
Uma hora mais tarde, talvez duas, ou seis, Qhuinn estava deitado nu entre os lençóis frios, fitando o escuro do teto que não conseguia enxergar.
Aquela era a dor horrível que Blay sentira? Como na vez em que fora procurá-lo no porão da casa dos pais dele e disse estar preparado para partir de Caldwell, deixando bem claro que não haveria mais nenhum laço entre eles? Ou talvez na vez em que se beijaram na clínica e Qhuinn se recusara a ir em frente? Ou naquela derradeira colisão quando eles quase ficaram juntos, pouco antes do primeiro encontro de Blay com Saxton?
Um maldito vazio enorme.
Como aquele quarto, na verdade: sem iluminação e essencialmente vazio, apenas quatro paredes e um teto. Ou um saco de pele e um esqueleto, como era o caso.
Levantando a mão, colocou-a sobre o coração, só para se certificar de que ainda tinha um.
Caramba, o destino tinha um jeito de lhe ensinar as coisas que você precisava saber, mesmo se você não estivesse ciente de que a lição era necessária até ela ser apresentada: ele desperdiçara tempo demais envolvido consigo mesmo e o seu defeito, e seu fracasso perante a família e a sociedade. Um emaranhado confuso em que se metera por tempo demais e Blay, porque se importara, fora sugado naquele turbilhão.
Mas quando foi que apoiara o amigo? O que de fato fizera pelo cara?
Blay estivera certo ao sair daquele quarto. Um pouco tarde demais, não era o ditado? E não que Qhuinn estivesse oferecendo algum tipo de prêmio. Debaixo da superfície, ele não estava muito mais estável, na verdade. Não estava mais em paz.
Não, ele merecia aquilo...
Uma centelha de luz amarelo-esverdeada fatiou o seu campo negro de visão, como se a escuridão fosse um tecido e o facho de luz uma faca.
Uma figura entrou sorrateira no seu quarto, silenciosamente, e fechou a porta.
Pelo cheiro, ele soube quem era.
O coração de Qhuinn começou a bater forte quando ele se endireitou nos travesseiros.
– Blay...?
Houve um ruído sutil, o roupão escorregando pelos ombros do macho alto. Em seguida, momentos depois, o colchão foi pressionado quando um peso grande, vital, subiu nele.
Qhuinn esticou a mão no escuro com acuidade certeira, as mãos encontrando as laterais do pescoço de Blay com tanta precisão como se tivessem sido direcionadas pela visão.
Nenhuma conversa. Ele temia que as palavras lhe roubassem aquele milagre.
Elevando a boca, puxou a de Blay para a sua, e quando aqueles lábios de veludo estavam perto de seu campo de atuação, ele os beijou com um desespero que foi retribuído. De uma vez só, todo o passado reprimido foi libertado com fúria e ele sentiu o gosto de sangue, sem saber quais foram as presas que rasgaram o outro.
E quem se importava?
Com um puxão forte, deitou Blay e depois rolou por cima do macho, afastando-lhe as coxas e pressionando-se até que o membro rijo se deparasse com...
Os dois gemeram.
Tonto por causa de tanta pele nua, Qhuinn começou a bombear os quadris para frente e para trás, a fricção dos sexos e a pele quente aumentando o calor úmido em suas bocas. Frenesi, em toda parte, rápido, depressa, rápido... Puta merda, havia desejo demais para entender onde suas mãos estavam, ou no que ele se esfregava ou... Porra, havia pele demais para tocar, cabelos para puxar, tanta coisa, demais...
Qhuinn gozou, as bolas endurecendo, a ereção jorrando entre eles, espalhando-se por todos os lados.
E isso não o desacelerou em nada.
Com um puxão, afastou-se da boca que poderia passar uma centena de anos beijando, lançou-se sobre o peito de Blay. Os músculos com que se deparava não se comparavam com os dos humanos com quem transara: aquilo era um vampiro, um lutador, um soldado treinado arduamente que exercitava o corpo para atingir uma condição não só útil, mas essencialmente letal. Caramba se aquilo não era ex-citante... mas, acima de tudo, aquele era Blay; finalmente, depois de todos aqueles anos...
Blay.
Qhuinn resvalou as presas por um abdômen que era sólido como uma rocha, e o seu cheiro na pele de Blay era uma marcação que sabia que fizera de propósito.
Aquele tempero forte também iria para outros lugares.
Gemeu quando as mãos encontraram o pênis de Blay e, enquanto circundava a coluna rija, o cara se arqueou profundamente, uma imprecação atravessando o quarto, de modo bem semelhante ao que a luz fizera pouco antes.
Qhuinn lambeu os lábios, elevou o sexo de Blay e permitiu que o pênis grosso e ousado partisse sua boca. Sugando, tomou-o até a base, abrindo a garganta, engolindo tudo. Em resposta, os quadris de Blay se elevaram, e mãos brutas cravaram em seus cabelos, forçando a cabeça ainda mais para baixo até que ele não conseguisse mais levar ar aos pulmões. Mas quem é que precisava de oxigênio?
Afundando as mãos nas nádegas de Blay, inclinou aquela pélvis e subiu e desceu, o pescoço se esticando com o ritmo punitivo, os ombros flexionando e relaxando enquanto ele executava exatamente aquilo que oferecera a Blay antes de ele ir embora.
Ele não pretendia fazer apenas aquilo, porém.
Não.
Era apenas o começo.
CAPÍTULO 28
Quando Blay caiu contra os travesseiros de Qhuinn, quase partiu a coluna. Tudo estava fora de controle, mas ele não teria desacelerado em nada as coisas: os quadris subiam e desciam, o pau empurrava e era chupado pela boca de Qhuinn...
Graças a Deus as luzes estavam apagadas.
Só as sensações já eram demais. Com um auxílio visual? Ele não conseguiria...
O orgasmo disparou como um foguete, a respiração ficou suspensa, o corpo enrijeceu todo, o sexo gozando ao máximo. Ao chegar ao clímax em grandes espasmos, ele foi ordenhado por aquela boca... e, caramba, a sucção incitou o alívio a continuar, com grandes ondas de prazer pulsante varrendo-o do cérebro até as bolas, seu corpo atingindo um plano de existência completamente diferente...
Sem aviso, ele foi virado por uma mão brusca, o corpo manejado como se não pesasse absolutamente nada. Em seguida, um braço passou por baixo de sua pélvis e o colocou de joelhos. Houve uma breve calmaria na qual tudo o que ele ouviu foi a respiração pesada atrás dele, o arquejo aumentando cada vez mais, mais fundo...
Ouviu o orgasmo de Qhuinn e entendeu exatamente o motivo.
Mesmo seu corpo inteiro estando fraco de antecipação, ele sabia que tinha de se preparar quando uma mão pesada aterrissou em seu ombro e...
A penetração foi como um ferro de marcar, quente e brutal, atingindo direto o seu cerne. E ele praguejou numa exalação explosiva. Não porque doesse, ainda que do melhor modo possível. Nem mesmo porque aquilo era algo que ele tanto desejara, se bem que isso fosse verdade.
Não. Era porque ele teve a estranha sensação de estar sendo marcado e, por algum motivo, isso fez com que...
Um sibilo atingiu-o no ouvido, e depois um par de presas cravou-se em seu ombro, a pegada de Qhuinn mudando na altura dos quadris, o torso enroscado em tantos lugares. E, então, quando a penetração inexorável começou, os molares de Blay se cerraram, os braços tiveram que suportar o peso dos dois, as pernas e o torso se esforçaram debaixo do ataque.
Ele teve a sensação de que a cabeceira da cama batia contra a parede e por um centésimo de segundo, lembrou-se do candelabro na biblioteca oscilando enquanto Layla fora sujeitada àquilo.
Blay amaldiçoou a imagem. Não se permitiria ir lá; não poderia. Deus bem sabia que haveria muito tempo para refletir sobre tudo aquilo mais tarde.
Naquele instante? Aquilo era bom demais para ser desperdiçado...
Enquanto o açoite continuava, suas palmas escorregaram nos lençóis de algodão fino, e ele teve que reposicioná-las, afundando-as no colchão macio para tentar sustentar sua posição. Deus, os sons que Qhuinn fazia, os rosnados que reverberavam entre as presas enterradas em seu ombro, as estocadas... ah, sim, isso era a cabeceira. Definitivamente.
Com a pressão se avolumando em suas bolas, ele se sentiu tentado a se espalmar, mas não havia como. Ele precisava das duas mãos naquele trabalho...
Como se Qhuinn lesse sua mente, o macho passou o braço ao seu redor e o agarrou.
Não era necessário masturbá-lo. Blay gozou tão violentamente que sua mente ficou difusa e, naquele exato instante, Qhuinn começou a ter um orgasmo também, os quadris movendo-se para dentro, parando um segundo antes de recuarem só para afundarem ainda mais antes da explosão. E, ah, porra, a combinação dos dois fazendo suas coisas era tão erótica que só fez com que tudo recomeçasse mais uma vez: não houve intervalo para se recuperarem, absolutamente nenhuma pausa. Qhuinn apenas retomou as investidas como se seu alívio o tivesse fortalecido.
Enquanto o sexo se estendia, e apesar de toda a força que Blay tinha em seus membros superiores, ele acabou caindo da cama, uma mão travando na lateral da mesinha de cabeceira só para que ele não batesse na parede...
Crash!
– Merda – disse ele rouco. – O abajur...
Ao que tudo levava a crer, Qhuinn não estava interessado em decoração. O macho simplesmente puxou a cabeça de Blay e começou a beijá-lo, a língua com piercing penetrando sua boca, lambendo e sugando... como se não conseguisse se fartar.
Tontura. Ele ficou absolutamente tonto com tudo aquilo. Em cada fantasia que teve, ele sempre visualizou Qhuinn como um amante impetuoso, mas aquilo... aquilo estava num outro nível.
Por isso, foi ao longe que ele se ouviu dizer numa voz gutural:
– Morda... de novo.
Um grunhido imenso vindo de cima perpassou seu ouvido, e depois outro sibilo atravessou a escuridão quando Qhuinn mudou as posições, seu peso massivo girando para que as presas pudessem afundar na lateral do pescoço.
Blay praguejou e empurrou para longe o que quer que tivesse restado sobre a mesinha de cabeceira, o peito tomando o lugar dos objetos, a pele suada chiando no verniz enquanto ele jazia meio de lado. Esticando a mão, ele se apoiou na tábua do piso e empurrou para cima, mantendo os dois estáveis enquanto Qhuinn se alimentava e o penetrava tão magnificamente bem...
Vezes demais para contar, até os travesseiros estarem no chão, os lençóis rasgados, outro abajur destruído... e não estava muita certo, mas ele achava que tinha derrubado um quadro da parede.
Quando a imobilidade por fim substituiu todo aquele esforço, Blay respirou fundo e se sentiu como se estivesse submerso.
O mesmo se passava com Qhuinn.
O aumento da trajetória úmida no pescoço de Blay sugeria que as coisas ficaram tão descontroladas que não houve o fechamento da veia que fora sugada. E quem se importava? Ele não, nem conseguia pensar, e não se preocuparia. As sensações pós-coito de flutuação e êxtase eram gloriosas demais para serem estragadas, o corpo estava ao mesmo tempo hipersensível e entorpecido, quente e brando, dolorido e saciado.
Caramba, os lençóis teriam de ser lavados. E Fritz indubitavelmente teria de encontrar uma supercola para aqueles abajures.
Onde exatamente ele estava?
Esticando a mão, tateou e descobriu o tapete e a saia da cama... além de uma manta. Ah, bom, estava quase caindo pela ponta da cama. O que explicava a tontura que sentia.
Quando Qhuinn, por fim, soltou-se dele, Blay quis acompanhá-lo, mas seu corpo estava muito mais interessado em ser um objeto inanimado. Ou um rolo de tecido ou, quem sabe...
Mãos gentis o suspenderam e, com cuidado e devagar, rolaram-no de costas. Houve mais um pouco de movimentação e depois ele se sentiu reposicionado contra os travesseiros que retornaram ao seu devido lugar. Enfim, uma manta leve foi ajustada na metade do seu corpo, como se Qhuinn soubesse que ele estava muito quente para ser coberto demais e, ainda assim, começava a sentir um friozinho enquanto o suor que o cobria começava a secar.
Seu cabelo foi empurrado para longe da testa e, em seguida, sua cabeça foi ajeitada para o lado. Lábios de seda beijaram a coluna de seu pescoço e, depois, lambidas longas e langorosas selaram a mordida que ele pedira e recebera.
Quando tudo terminou, deixou que sua cabeça fosse ajeitada para o lado de Qhuinn. Ainda que estivesse absolutamente escuro, ele sabia exatamente como o rosto que o fitava estava: ruborizado nas maçãs do rosto, as pálpebras semicerradas, os lábios vermelhos...
O beijo pressionado em sua boca foi reverente, o contato não mais pesado do que o ar quente e estático do quarto. Era o beijo perfeito de um amante, o tipo de coisa que ele desejava mais do que o sexo ardente que partilharam...
O pânico golpeou o centro do seu peito e ressoou para fora num piscar de olhos.
As mãos agiram por vontade própria, empurrando Qhuinn.
– Não me toque. Nunca mais me toque assim.
Deu um salto da cama e só Deus sabia em que parte do quarto ele aterrissou. Hesitante, tateou pelo aposento, mas acabou se orientando pela luz que passava por baixo da porta.
Apanhando o roupão no chão, não olhou para trás ao sair.
Não suportaria encarar o resultado daquilo tudo em nenhum tipo de luz.
Isso só tornaria tudo aquilo muito real.
Em algum momento, Qhuinn teve que fazer com que as luzes se acendessem. Não suportava mais a escuridão.
Quando a iluminação inundou o lugar, ele piscou e teve que amparar os olhos com a mão. Depois de recalibrar as retinas, olhou ao redor.
Caos. Total e absoluto.
Então tudo aquilo acontecera mesmo, hein. E quanta ironia que o interior da sua cabeça fizesse com que aquela bagunça parecesse uma ordem militar em comparação.
Nunca mais me toque assim.
Ah, inferno, pensou ele ao esfregar o rosto. Não poderia culpar o cara.
Primeiro, demonstrara a mesma finesse de uma escavadeira. Bola de demolição. Tanque de guerra. O problema era que tudo aquilo fora intenso demais para demonstrar qualquer traço de paciência: o instinto, tão puro e tão inflamável quanto combustível, o acendera; a sessão fora um caso de deixar as coisas rolarem.
Oh, Deus, marcara o cara.
Caralho. E não exatamente no bom sentido, considerando que Blay estava apaixonado e envolvido num relacionamento... e voltando para a cama do amante.
Mas, pensando bem, quando um macho está com quem ele quer, especialmente se é a primeira vez, era isso mesmo o que acontecia. As coisas saíam do controle...
Nem era preciso dizer que aquele fora o melhor sexo de sua vida, a primeira vez de perfeito encaixe depois de uma longa história de “nem de longe”. A questão foi que, no fim, ele quis que Blay soubesse disso, tentou encontrar as palavras e se apoiou no toque para pavimentar o caminho da confissão.
Contudo, ficou evidente que o macho não queria ter essa proximidade.
O que provocou um segundo, e mais profundo, arrependimento.
Sexo por desforra não se tratava de atração, mas sim de utilidade. E Blay o usara, do modo como ele pedira para ser usado.
Aquela sensação de vazio voltou multiplicada por dez. Por cem.
Sem conseguir suportar a emoção, pôs-se de pé, e teve que praguejar: a rigidez notável na lombar tinha tudo a ver com o acidente de avião e mais ainda com a pneumática que realizara na última hora... ou mais...
Merda.
Indo para o banheiro, deixou as luzes apagadas, mas havia iluminação suficiente vinda do quarto para ele conseguir entrar no chuveiro. Dessa vez, esperou a água esquentar; seu corpo não suportaria mais um choque.
Era tão patético; a última coisa que desejava era lavar o cheiro de Blay de sua pele, mas estava enlouquecendo com ele. Deus, devia ser assim que todos os hellrens se sentiam quando ficavam possessivos: metade do seu juízo dizia que ele devia descer o corredor, invadir o quarto de Blay e expulsar Saxton. A bem da verdade, teria adorado que o primo tivesse testemunhado, só para o cara saber que...
Para interromper aquele nada saudável curso de pensamentos, entrou no box envidraçado e pegou o sabonete.
Blay estava envolvido, tentou se lembrar disso, mais uma vez.
O sexo que partilharam não se referia à conexão emocional.
Portanto, ele estava, nesse momento de vazio, sendo passado para trás pela sua própria história.
Aquele parecia ser mais um caso em que o destino lhe dava aquilo que ele merecia.
Enquanto se lavava, o sabonete não era nada macio se comparado com a pele de Blay, nem cheirava um quarto do perfume do cara. A água não era tão quente quanto o sangue do lutador e o xampu, nada tranquilizador. Nada se equiparava.
Nem jamais conseguiria.
Enquanto Qhuinn virava o rosto para o jato e abria a boca, descobriu-se rezando para que Saxton pulasse a cerca mais uma vez, mesmo isso sendo uma coisa deplorável de se desejar.
O problema era que ele tinha a terrível sensação de que outro caso de infidelidade seria a única maneira de Blay voltar para ele.
Fechando os olhos, voltou para aquele momento em que beijou Blay no fim... em que o beijou de verdade, quando as bocas se encontraram gentilmente na calmaria após a tempestade. Enquanto sua mente reescrevia o roteiro, ele não era empurrado para o outro lado dos limites que ele mesmo criara. Não, em sua imaginação, as coisas terminavam como teriam de terminar, com ele afagando o rosto de Blay e fazendo as luzes se acenderem para que pudessem se olhar.
Em sua fantasia, ele beijaria seu amigo uma vez mais, se afastaria e...
– Eu te amo – disse ele para o jato de água. – Eu... te amo.
Ao fechar os olhos novamente ante a dor, ficou difícil saber quanto daquilo que descia pelo seu rosto era água e quanto era outra coisa.
CAPÍTULO 29
No dia seguinte, bem no fim da tarde, o visitante de Assail voltou.
Enquanto o sol se punha e os raios rosados de sol atravessavam a floresta, ele viu em seu monitor uma figura solitária em esquis de cross-country, os bastões equilibrados contra os quadris, binóculos cobrindo o rosto.
Nos quadris dela, o rosto dela, melhor dizendo.
A boa notícia era que suas câmeras de segurança não só tinham um zoom fantástico, como também seu foco e campo de visão eram facilmente manipulados por um joystick de computador.
Por isso ele restringiu ainda mais a imagem.
Quando a mulher abaixou os binóculos, ele mediu o comprimento de cada cílio ao redor dos olhos escuros e calculistas, e as marcas avermelhadas das maçãs do rosto de poros pequenos, e o ritmo uniforme da pulsação da artéria que percorria a mandíbula.
O aviso que ele dera a Benloise fora recebido. E, ainda assim, lá estava ela.
Era evidente que ela estava, de algum modo, ligada ao atacadista de drogas; e na noite anterior, pelo visto, ela ficara irritada com Benloise, visto o modo como marchara para fora da galeria como se alguém a tivesse insultado.
Todavia, Assail nunca a vira antes, o que era estranho. No último ano, aproximadamente, ele se familiarizara com todos os aspectos da operação de Benloise, desde o número incalculável de seguranças, até a equipe irrelevante da galeria, incluindo os importadores astutos e o irmão do homem, responsável pelas finanças.
Portanto, ele só podia deduzir que ela era uma empreiteira independente, contratada para um propósito específico.
Mas por que, então, ela ainda estava em sua propriedade?
Verificou os números digitais na parte inferior da tela. Quatro e meia. Costumeiramente, não seria uma hora com que se alegrar, pois ainda era cedo demais para sair. Mas o horário de verão acabara, e aquela invenção humana de manipular o sol na verdade trabalhava a seu favor por seis meses no ano.
Estaria um pouco quente lá fora, mas ele lidaria com isso.
Assail se vestiu rapidamente, colocando o terno Gucci com uma camisa de seda branca e pegando o sobretudo trespassado de pelo de camelo. O seu par de Smith & Wesson calibre .40 era o acessório perfeito, claro.
O metálico seria sempre o novo preto.
Pegando o iPhone, franziu ao tocar a tela. Uma chamada de Rehvenge, com uma mensagem.
Saindo do quarto, acessou a mensagem de voz do lídher do Conselho e ouviu-a enquanto descia as escadas.
A voz do macho ia direto ao ponto, e isso era algo a se respeitar:
– Assail, você sabe quem é. Estou convocando uma reunião do Conselho e quero não apenas um quorum, mas presença completa; o Rei estará presente, bem como a Irmandade. Como macho sobrevivente mais velho da sua linhagem, você está na lista do Conselho, mas registrado como inativo porque permaneceu no Antigo País. Agora que está de volta, está na hora de começar a participar desses encontros festivos. Ligue para mim para me informar a sua agenda, para que eu possa organizar local e data conveniente a todos.
Parando ante a porta de aço que bloqueava a escada inferior, colocou o telefone no bolso de dentro, destravou a porta e a abriu.
O primeiro andar estava escuro por conta das persianas especiais que bloqueavam toda a luz solar, e a sala de estar imensa mais se parecia com uma caverna no centro da terra do que com uma gaiola envidraçada às margens do rio.
Da direção da cozinha vinha o barulho de fritura e o cheiro de bacon.
Caminhando na direção oposta, entrou no falso escritório recoberto com painéis de nogueira que cedera ao uso dos primos e passou para o quarto especial de dois metros quadrados, cuja temperatura era mantida em precisos vinte graus Celsius e umidade a exatamente 69%, perfumado pelo tabaco de dúzias e dúzias de caixas de charutos. Depois de ponderar sobre a fileira exposta, apanhou três cubanos.
Afinal, os cubanos eram os melhores.
E ali estava mais uma coisa que Benloise lhe fornecia por um preço.
Trancando a sua preciosa coleção, voltou à sala de estar. Já não havia barulho de fritura, o bater sutil de talheres nos pratos o substituíra.
Ao entrar na cozinha, os dois primos estavam sentados em bancos ante a bancada de granito, o par comendo no mesmo ritmo preciso, como num rufar de tambores, despercebido por outros, mas que regulava seus movimentos.
Os dois levantaram as cabeças no mesmo ângulo para olhar para ele.
– Estou de saída. Sabem como me localizar – disse.
Ehric limpou a boca.
– Localizei três daqueles intermediários desaparecidos... voltaram à ação, estão prontos para se mexer. Vou fazer a entrega à meia-noite.
– Bom, muito bom – Assail verificou rapidamente as armas. – Tente descobrir onde estavam, sim?
– Como quiser.
Os dois abaixaram as cabeças ao mesmo tempo, voltando ao desjejum.
Nada de comida para ele. Do lado da cafeteira, ele pegou um frasco de cor de âmbar e desatarraxou a tampa, que tinha uma colherinha de prata grudada a ela, e o objeto emitiu um tinido enquanto ele o enchia com cocaína. Uma aspirada.
Bom dia!
Ele levou o resto consigo, colocando-o no mesmo bolso dos charutos. Já fazia um tempo desde que se alimentara e estava começando a sentir os efeitos, o corpo preguiçoso, a mente tendendo a um entorpecimento desconhecido.
O lado negativo do Novo Mundo? Era difícil encontrar fêmeas.
Felizmente, cocaína pura era um bom substituto, pelo menos por enquanto.
Ajustando um par de óculos de sol de lentes opacas, passou pelo vestíbulo e se preparou para sair pela porta dos fundos.
Afastando a porta...
Assail se retraiu e gemeu ante o ataque, seu peso oscilando em seus sapatos: apesar de 99% do seu corpo estar coberto por camadas múltiplas de roupa, e mesmo de óculos escuros, a luz efêmera do céu era o bastante para que ele vacilasse.
No entanto, não havia tempo para ceder à biologia.
Esforçando-se para se desmaterializar até a floresta atrás da casa, pôs-se a rastrear a mulher próximo à escuridão. Foi bem fácil localizá-la. Ela estava batendo em retirada, movendo-se rapidamente sobre aqueles esquis, abrindo caminho por entre os ramos espinhosos dos pinheiros e os carvalhos e bordos esqueléticos. Extrapolando a trajetória dela e aplicando a mesma lógica interna que ela demonstrara nas fitas de segurança da manhã anterior, ele logo se adiantou, antecipando bem onde ela estaria...
Ah, sim. O Audi preto da galeria. Estacionado ao lado da estrada limpa de neve a cerca de três quilômetros de sua propriedade.
Assail estava recostado contra a porta do motorista e bafejando um cubano quando ela saiu do limite das árvores.
Ela parou de pronto nos rastros duplos por ela criados, os bastões em ângulos abertos.
Ele lhe sorriu ao soprar uma nuvem de fumaça no crepúsculo.
– Belo entardecer para se exercitar. Apreciando a vista... Da minha casa?
A respiração dela estava acelerada devido ao esforço físico, mas não por algum medo que ele pudesse pressentir. Isso o excitava.
– Não sei do que está fal...
Ele interrompeu a mentira.
– Bem, o que posso lhe dizer é que, no momento, sou eu quem está apreciando a vista.
Enquanto seu olhar descia deliberadamente pelas pernas longas e atléticas nas calças justas de esqui, ela o encarou.
– Acho difícil que consiga ver qualquer coisa por trás dessas lentes.
– Meus olhos são muito sensíveis à luz.
Ela franziu o cenho e olhou ao redor.
– Quase não há mais nenhuma luz.
– Há o bastante para eu enxergá-la – ele deu nova baforada. – Gostaria de saber o que eu disse a Benloise ontem à noite?
– Quem?
Ela o aborreceu e ele afiou a voz:
– Um pequeno conselho. Não brinque comigo... isso fará com que morra mais rápido do que qualquer tipo de invasão de domicílio.
Um cálculo impassível fez com que ela estreitasse o olhar.
– Eu não sabia que invasão de propriedade dava pena de morte.
– Comigo, existe uma bela lista de coisas com repercussões letais.
Ele levantou o queixo.
– Ora, ora. Como você é perigoso.
Como se ele fosse um gatinho brincando com um novelo e sibilando.
Assail moveu-se com rapidez, ele bem sabia que os olhos dela seriam incapazes de acompanhá-lo. Num momento, estava a metros de distância; no instante seguinte, estava nas pontas dos seus esquis, prendendo-a no lugar.
A mulher gritou alarmada e tentou recuar, mas, claro, seus pés estavam presos. Para evitar que ela caísse, ele a apanhou pelo braço com a mão que não segurava o charuto.
Agora o sangue dela corria de medo e, quando ele inalou seu cheiro, excitou-se. Puxando-a para a frente, fitou-a, tracejando-lhe o rosto.
– Tome cuidado – disse ele numa voz mansa. – Eu me ofendo com rapidez e meu temperamento não é facilmente aplacado.
Embora ele conseguisse pensar pelo menos numa coisa que ela poderia lhe dar que o acalmaria.
Inclinando-se, ele inspirou profundamente. Deus, adorava o cheiro dela.
Mas aquela não era a hora de se distrair com esse tipo de coisa.
– Eu disse a Benloise que enviasse pessoas à minha casa por sua conta e risco... delas. Estou surpreso que ele não a tenha alertado sobre esses, como podemos dizer, limites bem delimitados de propriedade...
Pelo canto do olho, ele percebeu um movimento sutil no ombro dela. Ela pretendia pegar a arma com a mão direita.
Assail colocou o charuto entre os dentes e segurou o punho delicado. Aplicando pressão e só parando quando a dor se fez perceber na respiração dela, ele a arqueou para trás para que ela notasse completa e inequivocadamente o poder que ele tinha sobre si mesmo e sobre ela. Sobre tudo.
E foi nesse momento que a mulher se excitou.
Fazia muito tempo, talvez tempo demais, desde que Sola desejou um homem.
Não que ela não os considerasse desejáveis via de regra, ou que não tivessem existido ofertas para encontros horizontais com membros do sexo oposto. Nada lhe parecera valer o esforço. E talvez, depois daquele único relacionamento que não dera certo, ela tivesse regressado aos hábitos de sua rígida criação brasileira – o que era irônico, considerando-se o que fazia para sobreviver.
Aquele homem, porém, chamara sua atenção. Verdadeiramente.
O modo como a segurava pelo braço e pelo pulso não era nada educado e, mais do que isso, não havia clemência pelo fato de ela ser mulher; as mãos a apertavam com tanta força a ponto de a dor se encaminhar para o coração, fazendo-o bater forte. Do mesmo modo, o ângulo em que a forçava para trás testava os limites da capacidade de sua coluna se dobrar, e as coxas ardiam.
Excitar-se assim... era uma negligência ignorante para a sua autopreservação. Na verdade, ao fitar aquelas lentes escuras, ela estava bem ciente de que ele poderia matá-la ali mesmo. Torcendo o seu pescoço. Quebrando seus braços só para vê-la gritar antes de sufocá-la na neve. Ou talvez apenas desacordando-a antes de jogá-la no rio.
O sotaque carregado de sua avó subitamente veio-lhe à mente: Por que não pode conhecer um bom rapaz? Um rapaz católico de uma família que conhecemos? Marisol, assim você parte o meu coração.
– Só posso deduzir – a voz sombria sussurrou com um sotaque e uma inflexão que lhes eram desconhecidos – que a mensagem não lhe foi transmitida. Correto? Benloise deixou de lhe passar essa informação... e é por isso que, depois de eu ter expressamente indicado minhas intenções, você ainda assim voltou a espionar a minha casa? Creio que foi isso o que aconteceu, talvez uma mensagem de voz que ainda não tenha sido recebida. Ou uma mensagem de texto, um e-mail. Sim, acredito que o comunicado de Benloise tenha se perdido, não é mesmo?
A pressão nela intensificou-se ainda mais, sugerindo que ele tinha força de sobra, o que era, no mínimo, uma perspectiva assombrosa.
– Não é isso? – rugiu ele.
– Sim – disse ela. – É isso.
– Portanto, posso deduzir que não a encontrarei em seus esquis por aqui. Correto?
Ele a sacudiu novamente, a dor fazendo com que seus olhos revirassem.
– Sim – ela disse num engasgo.
O homem relaxou apenas o suficiente para que ela pudesse respirar um pouco. Depois continuou falando, naquela voz estranhamente sedutora:
– Bem, preciso de uma coisa antes que você vá. Você me dirá o que descobriu sobre mim... Tudo o que descobriu.
Sola franziu o cenho, pensando que aquilo era tolice. Sem dúvida um homem como aquele estaria ciente de qualquer informação que uma terceira pessoa poderia saber a seu respeito.
Então aquilo era um teste.
Visto que ela queria muito rever a avó, Sola disse:
– Não sei seu nome, mas posso imaginar o que faz, e também o que fez.
– E o que seria?
– Acredito que seja a pessoa que esteja matando aqueles interceptadores na cidade para assegurar território e controle.
– Os jornais e os noticiários disseram que se tratavam de suicídios.
Ela apenas prosseguiu, uma vez que não havia motivo para argumentar:
– Sei que mora sozinho, até onde posso saber, e que sua casa possui um tratamento estranho nas janelas. Um tipo de camuflagem para parecer o interior da casa, mas... é outro tipo de coisa. Só não sei o quê.
O rosto acima do dela permaneceu completamente impassível. Calmo. Tranquilo. Como se não a estivesse forçando a ficar no lugar... Ou a ameaçando. O controle era... erótico.
– E? – insistiu ele.
– É só isso.
Ele inalou o charuto nos lábios, a ponta em círculo alaranjado brilhando mais.
– Só vou libertá-la uma vez. Entende?
– Sim.
Ele se moveu com tanta rapidez que ela teve que balançar os braços para readquirir o equilíbrio, os bastões se afundando na neve. Espere, o que ele...
O homem apareceu bem atrás dela, os pés plantados nas laterais dos rastros dos esquis, uma barricada física para o caminho que ela fizera a partir da casa dele. Enquanto o bíceps e o pulso direitos dela ardiam por conta do sangue que voltava a circular nas partes que foram comprimidas, um aviso surgiu na base de sua nuca.
Cai fora daqui, Sola disse a si mesma. Agora.
Sem querer arriscar uma nova captura, ela se moveu para frente até a estrada, a parte inferior dos esquis lutando para conseguir avançar na neve gelada e compactada.
Enquanto ela avançava, ele a seguia, caminhando lentamente, inexoravelmente, como um grande felino que estava cercando a presa com a qual estava contente em apenas brincar, por enquanto.
As mãos dela tremiam quando usou as pontas dos esquis para soltar as amarras, e ela teve dificuldade para prender os esquis no rack do carro. O tempo inteiro, ele permaneceu parado no meio da estrada observando-a, a fumaça do charuto subindo pelo ombro em brisas frias que seguiam para o rio.
Entrando no carro, ela travou as portas, deu partida e olhou pelo espelho retrovisor. No brilho da luz do freio, ele parecia inequivocadamente maligno, um homem alto, de cabelos escuros, com o rosto lindo como o de um príncipe, e tão cruel quanto uma lâmina.
Pisando no acelerador, ela saiu do acostamento e se afastou rápido, o sistema de tração das quatro rodas sendo acionado para a tração de que ela precisava.
Ela olhou de relance mais uma vez pelo retrovisor. Ele ainda estava lá...
O pé de Sola mudou para o freio e quase o pressionou.
Ele sumira.
Como se tivesse se dissipado no ar. Num momento estava lá... no seguinte, invisível.
Sacudindo-se, voltou a pressionar o acelerador e fez o sinal da cruz sobre o coração acelerado.
Num pânico absurdo, perguntou-se: mas que diabos era ele?
CAPÍTULO 30
Bem quando as persianas eram suspensas com a chegada da noite, Layla ouviu uma batida à porta e, mesmo antes de o cheiro passar pelas frestas, ela sabia quem tinha vindo vê-la.
Inconscientemente, a mão subiu para o cabelo, e descobriu que estava uma bagunça, todo emaranhado por ter virado e revirado o dia inteiro. Pior, nem se importara em tirar a roupa com que saíra para ir à clínica.
Entretanto, não lhe poderia negar a entrada.
– Entre – disse, sentando-se um pouco mais erguida e ajeitando as cobertas que puxara até o queixo.
Qhuinn estava com suas roupas de combate, o que a levou a deduzir que ele estava escalado para o turno daquela noite – mas talvez não. Ela não conhecia o escalonamento.
Quando seus olhares se cruzaram, ela franziu o cenho.
– Você não está bem.
Ele levou a mão para o curativo na sobrancelha.
– Isto? É apenas um arranhão.
Só que não fora o machucado que chamara sua atenção. Era o olhar vago, as concavidades rígidas nas faces.
Ele parou. Farejou. Empalideceu.
Imediatamente, ela baixou o olhar para as mãos, e mais uma vez as torceu.
– Por favor, feche a porta – pediu.
– O que está acontecendo?
Quando a porta se fechou conforme o seu pedido, ela respirou fundo.
– Fui à clínica de Havers ontem à noite.
– O quê?
– Estou sangrando...
– Sangrando? – ele se apressou para a frente, quase derrapando a caminho da cama. – Por que diabos não me contou?
Santa Virgem Escriba, seria impossível para ela não se acovardar ante tamanha fúria. Na verdade, ela estava sem forças no momento e impossibilitada de reunir qualquer tipo de autopreservação.
Instantaneamente, Qhuinn recuou em sua raiva, afastando-se e circulando pelo quarto. Quando a fitou novamente, disse bruscamente:
– Sinto muito. Não tive a intenção de gritar... Eu só... eu só estou preocupado com você.
– Eu sinto muito. E eu deveria ter lhe contado, mas você estava fora em combate e eu não quis aborrecê-lo. Eu não sei... francamente, eu não devia estar pensando com clareza. Estava fora de mim.
Qhuinn se sentou ao lado dela, os ombros imensos se curvando enquanto ele cruzava os dedos e apoiava os cotovelos nos joelhos.
– Então, o que está acontecendo?
Tudo o que ela conseguiu fazer foi dar de ombros.
– Bem, como você pode perceber... estou sangrando.
– Quanto?
Ela pensou no que a enfermeira lhe havia dito.
– O suficiente.
– Há quanto tempo?
– Tudo começou há mais ou menos 24 horas. Não quis procurar a doutora Jane porque não tinha certeza de quão confidencial isso seria e também... ela não tem muita experiência com gestações da nossa espécie.
– O que Havers disse?
Foi a vez de ela franzir a testa.
– Ele não quis me dizer.
– Como é que é? – a cabeça de Qhuinn se ergueu.
– Por causa do meu status como Escolhida, ele só falará com o Primale.
– Está de brincadeira?
Ela balançou a cabeça.
– Não. Também não consegui acreditar nisso e sinto dizer que saí de lá em circunstâncias menos que favoráveis. Ele me reduziu a um objeto, como se eu não tivesse a mínima importância... não passasse de um repositório...
– Você sabe que isso não é verdade – Qhuinn segurou sua mão com os olhos descombinados ardendo. – Não para mim. Nunca para mim.
Ela estendeu a mão e o tocou no ombro.
– Eu sei, mas obrigada por dizer isso – ela estremeceu. – Preciso ouvir isso agora. E quanto ao que está acontecendo... comigo... a enfermeira disse que não há nada que ninguém possa fazer para impedir isto.
Qhuinn baixou o olhar para o tapete e ficou assim por um bom tempo.
– Não entendo. Não era para ser assim.
Engolindo a horrível sensação de fracasso, ela se endireitou e afagou as costas dele.
– Sei que você desejava isto tanto quanto eu.
– Você não pode estar abortando. Não é possível.
– Pelo que fiquei sabendo, os dados estatísticos não são tão bons. Não no começo... e não no fim.
– Não, não pode estar certo. Eu... a vi.
Layla limpou a garganta.
– Sonhos nem sempre se tornam realidade, Qhuinn.
Parecia algo muito simplista de se dizer. Igualmente óbvio. Mas magoava em seu cerne.
– Não foi um sonho – disse ele de modo rude. Mas, então, sacudiu-se e voltou a olhar para ela. – Como está se sentindo? Sente dor?
Quando ela não respondeu de imediato, porque não queria mentir para ele a respeito das cólicas, ele se pôs de pé.
– Vou procurar a doutora Jane.
Ela o segurou pela mão, detendo-o.
– Espere. Pense bem. Se estou perdendo... nosso filho... – ela parou para juntar coragem depois de ter verbalizado aquilo. – Não há razão por que contar para alguém. Ninguém precisa ficar sabendo. Podemos simplesmente deixar a natureza... – a voz dela falhou nesse momento, mas ela se forçou a continuar – ... seguir seu curso.
– Ao inferno com isso. Não vou colocar sua vida em risco só para evitar um confronto.
– Isso não interromperá o aborto, Qhuinn.
– Não estou preocupado somente com o aborto – ele apertou-lhe a mão. – Você é importante. Por isso vou procurar a doutora Jane agora mesmo.
Isso mesmo, ao inferno deixar as coisas por debaixo dos panos, Qhuinn pensou ao seguir para a porta.
Ouvira falar de histórias sobre fêmeas com hemorragias durante os abortos, e ainda que não fosse mencionar nada disso com Layla, teria de agir a respeito.
– Qhuinn. Pare – Layla o chamou. – Pense no que está fazendo.
– Eu estou. Claramente – ele não esperou para debater mais aquilo. – Fique onde está.
– Qhuinn...
Ele ainda conseguiu ouvir a voz dela quando fechou a porta e começou a correr, terminando o corredor e descendo as escadas. Com um pouco de sorte, a doutora Jane ainda estaria se demorando na Última Refeição com seu hellren; o casal estava à mesa quando ele se levantara para ir ver Layla.
Ao chegar ao átrio, seus tênis Nike guincharam no piso de mosaico quando ele tomou a direção da arcada na entrada da sala de jantar.
Vendo a médica bem onde estivera antes foi um golpe de sorte, e seu primeiro instinto foi chamá-la com um grito. Só não o fez ao perceber a quantidade de Irmãos à mesa, comendo a sobremesa.
Merda. Era fácil para ele dizer que lidaria com as consequências se o que fizeram se tornasse público. Mas, e quanto a Layla? Como uma Escolhida sagrada, ela tinha muito mais a perder do que ele. Phury era uma cara bem legal, por isso a chance de ele lidar bem com aquilo era bem grande. E o resto da sociedade?
Ele já passara pela experiência de ser rejeitado, e não queria o mesmo para ela.
Qhuinn se apressou para onde V. e Jane estavam descontraídos, o Irmão fumando um cigarro feito à mão, a médica espectral sorrindo para o seu parceiro enquanto ele lhe contava uma piada.
No instante em que a boa médica olhou para ele, aprumou-se em seu assento.
Qhuinn se abaixou e sussurrou ao seu ouvido.
Nem meio segundo depois, ela estava de pé.
– Preciso ir, Vishous.
Os olhos de diamante do irmão se elevaram. Aparentemente, apenas um vislumbre do rosto de Qhuinn foi preciso: ele não fez perguntas, apenas assentiu uma vez.
Qhuinn e a médica se apressaram juntos para fora.
Para o infinito crédito da doutora Jane, ela não perdeu tempo querendo saber como aquela gravidez tinha acontecido.
– Há quanto tempo ela está sangrando?
– 24 horas.
– Com que intensidade?
– Não sei.
– Algum outro sintoma? Febre? Enjoo? Dor de cabeça?
– Não sei.
Ela o deteve quando chegaram à grande escadaria.
– Vá até o Buraco. A minha maleta está na bancada ao lado do cesto de maçãs.
– Entendido.
Qhuinn nunca correu tão rápido em toda sua vida. Para fora do vestíbulo. Atravessando o pátio coberto de neve. Digitando o código de acesso para o Buraco. Correndo pelo espaço de V. e de Butch.
Costumeiramente, ele jamais teria entrado sem bater. Inferno, sem um horário marcado previamente. Mas naquela noite, que se foda...
Ah, que bom, a maleta preta estava, de fato, ao lado das Fujis.
Apanhando-a, correu para fora, voando ao lado dos carros estacionados e batendo os pés enquanto aguardava que Fritz atendesse à porta.
Ele quase atropelou o doggen.
Ao chegar ao segundo andar, passou acelerado diante do escritório de Wrath e invadiu o quarto que Layla vinha usando. Fechando a porta, arfou até chegar à cama, onde a médica estava sentada bem onde ele esteve antes.
Deus, Layla estava pálida como um lençol. Pensando bem, medo e hemorragia faziam isso com uma fêmea.
A doutora Jane estava no meio de uma frase quando pegou a maleta das mãos dele.
– Acho que devemos começar verificando os seus sinais vitais...
Bum!
Quando o som ensurdecedor atravessou o quarto, o primeiro pensamento de Qhuinn foi se jogar sobre as duas fêmeas para formar um escudo.
Mas não era uma bomba. Era Phury escancarando a porta.
Os olhos amarelos do Irmão reluziam, e não de modo positivo, quando eles passavam de Layla, para a médica e depois para Qhuinn... e refazendo o caminho ao contrário.
– Que diabos está acontecendo aqui? – ele exigiu saber, com as narinas inflando quando captou o mesmo cheiro que Qhuinn havia percebido antes. – Vejo a médica subindo as escadas num rompante. Depois é a vez de Qhuinn com a maleta. E agora... é melhor alguém começar a falar. Neste exato minuto!
Mas ele sabia. Porque estava olhando para Qhuinn.
Qhuinn encarou o Irmão.
– Eu a engravidei...
Ele não teve oportunidade de terminar a frase. Na verdade, mal conseguiu terminar a última palavra.
O Irmão o agarrou e o lançou contra a parede. Enquanto suas costas absorviam o impacto, a mandíbula dele explodiu de dor, o que sugeria que o cara também o socara com exatidão. Então, mãos ásperas o mantiveram fixos com os pés pendurados a quinze centímetros do tapete oriental, bem na hora em que pessoas começavam a se aglomerar na porta.
Ótimo. Uma plateia.
Phury aproximou o rosto do de Qhuinn e expôs as presas.
– O que você fez com ela?
Qhuinn deu uma golada de sangue.
– Ela estava no cio. Eu a servi.
– Você não a merece...
– Eu sei.
Phury o empurrou com força mais uma vez.
– Ela é melhor do que...
– Concordo...
Bang!
De novo contra a parede.
– Então que porra que você foi fazer...
O rugido que permeou o quarto foi alto o bastante para estremecer o espelho ao lado da cabeça de Qhuinn, assim como o conjunto de escovas de prata na penteadeira e os cristais nas arandelas ao lado da porta. A princípio, ele pensou que tivesse sido Phury, a não ser, porém, pelo fato de as sobrancelhas do Irmão se abaixarem e o macho olhar por sobre o ombro.
Layla saíra da cama e se aproximava dos dois. Raios! A expressão no olhar dela bastaria para derreter a pintura da porta de um carro: apesar de ela não estar se sentindo bem, as presas estavam expostas, os dedos crispados em forma de garra... e a brisa gélida que a precedeu fez com que a nuca de Qhuinn se eriçasse em alerta.
Aquele rugido nem deveria ter saído de um macho... quanto menos de uma fêmea delicada com status de Escolhida.
De fato, o pior era o tom horrível de sua voz:
– Solte-o. Agora.
Ela encarava Phury como se estivesse plenamente preparada para arrancar os braços do Irmão de suas juntas e socá-lo até não poder mais caso ele não a obedecesse. Imediatamente.
E, veja só, de repente, Qhuinn conseguiu respirar direito, e agora seus Nikes tocavam novamente o chão. Num passe de mágica.
Phury levantou as palmas das mãos.
– Layla, eu...
– Não toque nele. Não por causa disso... Estou sendo bem clara? – o peso dela estava equilibrado quase nos dedos dos pés, como se ela fosse avançar na garganta do cara a qualquer segundo. – Ele era o pai do meu filho, e receberá todos os direitos e privilégios dessa posição.
– Layla...
– Estamos entendidos?
Phury fez que sim com sua cabeça multicolorida.
– Sim. Mas...
No Antigo Idioma, ela sibilou:
– Caso algum mal recaia sobre ele, eu irei atrás de ti, e o encontrarei em teu sono. Não me importo onde e com quem repouses tua cabeça, minha vingança se derramará sobre ti até tu te afogares.
Aquela última palavra foi arrastada até sua última sílaba se perder num rugido.
Silêncio absoluto.
Até a doutora Jane comentar secamente:
– E é por isso que dizem que as fêmeas da espécie são mais perigosas que os machos.
– Verdade – alguém aquiesceu no corredor.
Phury levantou as mãos em frustração.
– Só quero o que for melhor para você e não só no papel de amigo preocupado... essa é a porra do meu trabalho. Você atravessa o cio sem contar a ninguém, deita-se com ele – como se Qhuinn fosse bosta de cachorro – e depois não diz a ninguém que está tendo problemas médicos. Será que eu tenho que ficar feliz com isso? Que merda!
Houve algum tipo de conversa entre eles àquela altura, mas Qhuinn não prestou atenção: toda a sua consciência recuara para dentro do cérebro. Caramba, o feliz comentário do Irmão não deveria ter doído tanto. Não era a primeira vez que ele ouvia esse tipo de comentário, ou até mesmo pensara isso a respeito de si mesmo. Mas, por algum motivo, as palavras dispararam uma falha geológica que retumbava bem em seu cerne.
Lembrando-se de que dificilmente seria uma tragédia ter o óbvio evidenciado, ele se desvencilhou do seu espiral de vergonha e olhou ao redor. Sim, todos tinham aparecido diante da porta aberta e, mais uma vez, aquilo que ele preferia que tivesse permanecido como um assunto particular estava acontecendo diante de milhares.
Pelo menos Layla não se importava. Inferno, ela nem parecia ter notado.
E era até engraçado ver todos aqueles lutadores profissionais desejando estar a quilômetros de distância de uma fêmea. Pensando bem, caso quisessem sobreviver no trabalho que exerciam, uma acurada avaliação de riscos era algo que se desenvolvia precocemente e até mesmo Qhuinn, objeto do instinto protetor da Escolhida, não ousaria tocá-la.
– Eu, neste momento, renuncio ao meu status de Escolhida, e todos os direitos e privilégios inerentes. Eu sou Layla, decaída daqui por diante...
Phury tentou interrompê-la:
– Escute, você não tem que fazer isso...
– ... e sempre. Estou arruinada perante os olhos tanto da tradição quanto da prática, não mais virgem, concebi um filho, mesmo estando a perdê-lo.
Qhuinn bateu a parte de trás da cabeça na parede. Maldição.
Phury passou uma mão pelos cabelos.
– Merda.
Quando Layla oscilou em seus pés, todos se projetaram para ela, mas ela empurrou todas as mãos e caminhou sozinha até a cama. Abaixando o corpo devagar, como se tudo lhe doesse, deixou a cabeça pender.
– Minha sorte está lançada e estou preparada para viver com as consequências, quaisquer que sejam elas. Isso é tudo.
Houve um belo tanto de sobrancelhas se erguendo quando a multidão começou a se dispersar, mas ninguém disse um pio. Depois de um instante, o grupo se desfez, embora Phury continuasse ali. Assim como Qhuinn e a médica.
A porta foi fechada.
– Ok, ainda mais depois disso tudo, preciso mesmo verificar seus sinais vitais – disse a doutora Jane, ajudando a fêmea a se recostar contra os travesseiros e a acomodar as cobertas que haviam sido afastadas.
Qhuinn não se moveu enquanto o aparelho de pressão era ajustado no braço magro e uma série de pufe-pufes era exalada.
Phury, por sua vez, andou de um lado para o outro, pelo menos até franzir o cenho e pegar o celular.
– É por isso que Havers me telefonou ontem?
Layla concordou.
– Fui lá em busca de ajuda.
– Por que não me procurou? – o Irmão murmurou para si mesmo.
– O que Havers disse?
– Não sei por qual motivo não verifiquei a caixa de mensagens. Pensei que não tivesse motivo para fazer isso.
– Ele deixou claro que só lidaria com você.
Ante isso, Phury olhou para Qhuinn, com aquele olhar amarelo se estreitando.
– Vai se vincular a ela?
– Não.
A expressão de Phury voltou a ser gélida.
– Que tipo de macho é você para...
– Ele não me ama – Layla interrompeu. – Tampouco eu o amo.
Quando a cabeça do Primale virou de lado, Layla prosseguiu:
– Queríamos um filho – ela se sentou inclinada para a frente enquanto a médica auscultava o coração por trás. – Nós começamos e terminamos ali.
Dessa vez o Irmão praguejou.
– Não entendo.
– Nós dois somos órfãos de muitas maneiras – disse a Escolhida. – Nós estamos... estávamos... querendo formar a nossa própria família.
Phury expirou fundo e caminhou até a mesa num canto, sentando-se sobre a cadeira frágil.
– Ah, bem. Acho que isso muda um pouco as coisas. Eu pensei que...
– Nada importa – interveio Layla. – As coisas são como são. Ou... eram, como parece ser o caso.
Qhuinn se viu esfregando os olhos sem nenhum motivo em especial. Não que eles estivessem embaçados nem nada assim. Não. Nem um pouco.
Tudo aquilo era só... tão triste. Toda aquela porcaria. Desde o estado de Layla, até a exaustão impotente de Phury, chegando a sua dor imensa no meio do peito, tudo era uma maldita coisa verdadeiramente triste.
CAPÍTULO 31
– É exatamente o que eu estava procurando.
Enquanto Trez falava, caminhava ao redor do espaço amplo e vazio do armazém, com as botas produzindo impactos altos que ecoavam. Atrás dele, sentia facilmente o alívio da corretora parada ao lado da porta.
Negociar com humanos? Era o mesmo que tirar o pirulito de uma criancinha.
– Você poderia transformar este lado da cidade – disse a mulher. – É uma verdadeira oportunidade.
– Verdade – não que o tipo de restaurante e lojas que o seguiriam até ali fossem de classe: seriam algo mais como lojas de piercings e tatuagens, restaurantes baratos, cinemas pornográficos.
Mas ele não tinha nenhum problema com isso. Até mesmo cafetões podiam se orgulhar de seus trabalhos e, francamente, ele tinha certa tendência a acreditar muuuito mais em tatuadores do que em muitos dos assim chamados “cidadãos exemplares”.
Trez girou sobre os calcanhares. O espaço era tremendo, quase tão alto quanto largo, com fileiras e fileiras de janelas quadradas, muitas delas com os vidros quebrados recobertos por tábuas de madeira. O teto parecia bom – ou quase isso, o revestimento de latão corrugado mantendo a neve do lado de fora, mas não o frio. O chão era de concreto, mas obviamente havia um piso subterrâneo – em diversos pontos viam-se alçapões, embora nenhum deles pudesse ser aberto com facilidade. A parte elétrica parecia boa; sistema de aquecimento, ventilação e ar-condicionado inexistentes; a hidráulica, uma piada.
Em sua mente, contudo, ele não enxergava o lugar como ele estava. Nada disso. Ele o via transformado, como uma boate nas proporções da Limelight. Naturalmente, o projeto necessitaria de uma imensa injeção de capital e vários meses para concluir os trabalhos; no fim, porém, Caldwell acabaria com um novo lugar quente – e ele teria mais uma fonte de renda.
Todos ganhavam.
– Então, gostaria de fazer uma oferta?
Trez olhou para a mulher. Ela era a senhora Profissional em seu casaco preto e terninho escuro abaixo dos joelhos – noventa por cento de sua pele estava coberta, e não só por estarem em dezembro. Contudo, mesmo abotoada até em cima e cabelo comportado, ela era bela no modo como todas as mulheres lhe eram belas: tinha seios e pele macia, e um lugar para ele brincar no meio das pernas.
E ela gostava dele.
Ele sabia disso pelo modo como ela abaixava o olhar, e também por ela aparentemente não saber o que fazer com as mãos: uma hora estavam nos bolsos do casaco; na outra, mexendo no cabelo, depois ajeitando a camisa de seda dentro da saia...
Ele conseguia pensar em alguns modos para mantê-la ocupada.
Trez sorriu ao se aproximar dela e não parou até invadir-lhe o espaço pessoal.
– Sim. Eu quero.
O duplo sentido foi captado, as faces dela enrubesceram não de frio, mas de excitação.
– Ah. Que bom.
– Onde quer fazer? – ele perguntou de modo arrastado.
– A oferta? – ela pigarreou. – Tudo o que tem que fazer é me dizer o que você... quer e eu... faço isso acontecer.
Ah, ela não era ligada em sexo casual. Que meigo.
– Aqui.
– Como disse? – perguntou ela, finalmente levantando o olhar.
Ele sorriu devagar e de modo contido para não revelar as presas.
– A oferta. Vamos fazer isso aqui?
Os olhos dela se arregalaram.
– Aqui?
– É. Aqui – ele se aproximou com mais um passo, mas não ficou perto o suficiente a ponto de se tocarem. Ele estava satisfeito em seduzi-la, mas ela teria de estar cem por cento segura de estar a fim. – Está pronta?
– Para... fazer... a oferta.
– Isso.
– Está... hum, está frio aqui – disse ela. – Que tal no escritório? É lá que a maioria... das ofertas... é conduzida.
Do nada, a imagem do irmão sentado no sofá em casa, olhando para ele como se ele fosse um maldito problema, atingiu-o em cheio, e quando isso aconteceu, percebeu que fazia sexo com praticamente toda mulher que conhecia desde... caramba, quanto tempo?
Bem, obviamente, se não tinham idade para copular, ele não estaria com elas.
Ou se eram férteis.
O que cortava, digamos, uma dúzia ou duas? Maravilha. Que herói.
Que porra ele estava fazendo? Não queria voltar ao escritório da mulher, primeiro porque não havia tempo suficiente, supondo que quisesse estar na abertura do Iron Mask. Portanto, a única opção era ali mesmo, de pé, com a saia suspensa até a cintura, as pernas ao redor dos seus quadris. Rápido, direto ao ponto; depois cada um seguindo o seu caminho.
Depois de ele dizer o quanto pretendia gastar na compra do armazém, claro.
Mas e aí? Ele não tinha a intenção de transar com ela no fechamento do contrato. Ele raramente repetia, e só se estivesse seriamente atraído ou com muito tesão, o que não acontecia nesse caso.
Pelo amor de Deus, o que exatamente ele tiraria daquilo? Sequer a veria nua. Nem teria muito contato de pele com pele.
A não ser... era essa a questão.
Quando foi a última vez em que esteve de fato com uma fêmea? Do jeito certo? Como num jantar fino, um pouco de música, uns amassos que conduziam até o quarto... depois um monte de ações longas e demoradas que levavam a alguns orgasmos...
E nenhuma sensação de pânico asfixiante quando tudo chegava ao fim.
– Você estava para dizer alguma coisa? – a mulher o instigou a falar.
iAm estava certo. Ele não precisava estar fazendo aquele tipo de merda. Inferno, nem mesmo estava atraído pela corretora. Ela estava parada diante dele, disponível, e aquela aliança no dedo era indício de que ela não causaria muitos problemas depois que terminassem, porque tinha algo a perder.
Trez recuou um passo.
– Escute, eu... – quando o celular tocou em seu bolso, ele pensou que tinha sido em boa hora. Viu quem era: iAm. – Com licença, preciso atender esta ligação. Ei, o que está fazendo, irmãozinho?
A resposta de iAm saiu suave, como se tivesse abaixado a voz:
– Temos companhia.
O corpo de Trez ficou tenso.
– De que tipo e onde?
– Estou em casa.
Ah, merda.
– Quem é?
– Não é a sua noiva, relaxe. É AnsLai.
O sumo sacerdote. Fantástico.
– Bem, estou ocupado.
– Ele não veio aqui para me ver.
– Então é melhor ele voltar de onde veio porque estou ocupado – quando não houve resposta do outro lado, tudo o que restava fazer era se chutar no traseiro. – Escute aqui, o que quer que eu faça?
– Pare de fugir e cuide disto.
– Não há do que cuidar. Falo com você mais tarde, ok?
Esperou por uma resposta. Em vez disso, a linha ficou muda. Pensando bem, quando você espera que seu irmão limpe suas bostas, o cara não deve ficar com muita vontade de se despedir longamente.
Trez desligou e olhou para a corretora. Com um sorriso amplo, ele se aproximou e baixou a cabeça para fitá-la. O batom era coral demais para a tez dela, mas ele não se importava.
Aquela coisa não continuaria na boca dela por muito tempo.
– Deixe-me mostrar como posso aquecer isto aqui – disse com um sorriso langoroso.
De volta à mansão da Irmandade, no quarto de Layla, um tipo de cessar-fogo fora alcançado pelas partes interessadas.
Phury não estava tentando transformar Qhuinn num gancho de parede. Layla estava sendo avaliada. A porta fora fechada e, com isso, nada do que acontecia ali teria mais do que um quarteto de testemunhas oculares.
Qhuinn só estava esperando que a doutora Jane se pronunciasse.
Quando ela, por fim, tirou o estetoscópio do pescoço, apenas se acomodou. E a expressão em seu rosto não lhe deu esperança alguma.
Ele não entendia. Vira sua filha às portas do Fade: quando fora surrado e largado como morto no acostamento pela Guarda de Honra, subira para só Deus sabe onde, aproximara-se de um portal branco... e lá vira uma fêmea jovem cujos olhos começaram com uma cor, e acabaram azul e verde como os seus.
Se ele não tivesse testemunhado aquilo, provavelmente não teria se deitado com Layla para início de conversa. Mas ele teve tanta certeza de que o destino estava traçado que nunca lhe ocorrera que...
Merda, talvez aquela jovem fosse o resultado de outra comunhão... com outra pessoa no futuro.
Como se algum dia ele fosse se unir a outra pessoa... Jamais.
Não era possível. Não agora que esteve com Blay uma vez.
Nada disso.
Mesmo que ele e seu ex-amigo nunca mais se encontrassem debaixo dos lençóis, ele nunca mais ficaria com ninguém. Quem poderia se comparar? E o celibato era melhor do que a segunda melhor opção, que é o que seria oferecido pelo resto do planeta.
A doutora Jane pigarreou e segurou a mão de Layla.
– A sua pressão sanguínea está um pouco baixa. A sua pulsação está um pouco lenta. Acredito que essas duas coisas possam ser melhoradas com alimentação...
Qhuinn praticamente pulou para perto da cama com o pulso estendido.
– Estou aqui... Pronto. Pode pegar.
A doutora Jane pousou uma mão no braço dele e lhe sorriu.
– Mas não é com isso que estou preocupada.
Ele congelou e, pelo canto do olho, viu que o mesmo aconteceu com Phury.
– Eis a questão – a doutora voltou a olhar para Layla, falando com suavidade e clareza. – Não sei muito sobre gestações vampíricas, portanto, por mais que eu deteste dizer isso, você precisa voltar à clínica de Havers – ela levantou a mão, como se já esperasse discussões de todos os lados. – Isto se trata dela e do filho dela, temos que levá-los para alguém que possa tratá-la adequadamente, mesmo se, em outras circunstâncias, nenhum de nós batesse à porta do cara. E, Phury – ela encarou o Irmão –, você tem que ir com ela e com Qhuinn. A sua presença lá só facilitará as coisas para todos.
Muitos lábios apertados depois disso.
– Ela tem razão – concordou Qhuinn por fim. E depois se voltou para o Primale. – E você tem que dizer que é o pai. Ela obterá mais respeito assim. Comigo? Ele pode muito bem se recusar a tratá-la... se ela for decaída e tiver transado com um defeituoso? Pode nos mandar dar meia-volta.
Phury abriu a boca. Fechou-a.
Não havia muito mais a ser dito.
Enquanto Phury pegava o telefone e ligava para a clínica para informar que estavam indo para lá, o tom de voz dele sugeria que estava pronto para incendiar o lugar se Havers e sua equipe dessem mancada.
Com isso resolvido, Qhuinn se aproximou de Layla.
Num tom baixo, disse:
– Desta vez vai ser diferente. Ele vai fazer isso acontecer. Não se preocupe, você será tratada como uma rainha.
Os olhos de Layla se arregalaram, mas ela se controlou.
– Sim. Tudo bem.
Resultado? O Irmão não era o único prestes a acabar com tudo. Se Havers provocasse qualquer tipo de desgosto à la glymera em Layla, Qhuinn acabaria com o ego do cara a tapa. Layla não merecia esse tipo de tratamento – nem mesmo por escolher um rejeitado como ele para se acasalar.
Cacete. Talvez fosse melhor ela abortar. Ele queria mesmo condenar uma criança ao seu DNA?
– Você também vem? – ela lhe perguntou, como se não estivesse acompanhando.
– Sim. Vou estar lá.
Quando Phury desligou, olhou de um para outro, os olhos amarelos se estreitando.
– Ok, eles vão nos receber no segundo em que chegarmos. Vou fazer Fritz ligar a Mercedes, mas eu dirijo.
– Desculpe – disse Layla ao encarar o grande macho. – Sei que decepcionei as Escolhidas e você, mas foi você quem nos disse para vir para este lado e... viver.
Phury apoiou as mãos nos quadris e exalou fundo. Ao balançar a cabeça, ficou claro que ele não teria escolhido nada daquilo para ela.
– Sim, eu disse isso. Eu fiz isso.
CAPÍTULO 32
Ah, grande poder desgovernado, pensou Xcor ao olhar para seus soldados, cada um deles armado e pronto para uma noite de luta. Depois de 24 horas de recuperação após a alimentação grupal, eles estavam loucos para sair e encontrar os inimigos – e ele estava pronto para libertá-los daquele porão de armazém.
Só havia um problema: alguém estava andando no andar de cima.
Como demonstração, passos pesados atravessaram o alçapão de madeira sobre sua cabeça.
Pela última meia hora, eles acompanharam o progresso dos visitantes inesperados. Um era pesado, uma forma masculina. O outro era mais leve, de uma variedade feminina. No entanto, não havia como perceber seus cheiros; o porão era hermeticamente fechado.
Muito provavelmente, eram apenas humanos de passagem, ainda que ele não pudesse adivinhar o motivo para alguém que não fosse sem teto perder tempo numa estrutura tão decrépita numa noite fria. Quem quer que fossem, quaisquer as razões que os levaram até ali, contudo, ele não teria problemas para defender seu território, mesmo sendo aquele.
Mas não fazia mal esperar. Se ele podia evitar massacrar aqueles humanos? Isso significava que ele e seus soldados continuariam a usar aquele espaço sem serem incomodados.
Ninguém disse nada enquanto as passadas continuavam.
Vozes se misturavam. Grave e aguda. Em seguida, um telefone tocou.
Xcor acompanhou o toque e a conversa que se seguiu, caminhando em silêncio até o outro alçapão, lugar em que a pessoa escolheu parar. Imóvel, prestou atenção e captou metade de uma conversa nada interessante que não lhe revelou nenhuma das identidades dos envolvidos.
Não muito depois, o som inconfundível de sexo se fez claro.
Enquanto Zypher ria baixinho, Xcor encarou o bastardo para calá-lo. Mesmo cada um dos alçapões estando fechado pelo lado de baixo, ninguém sabia que tipo de problema aqueles ratos sem rabo podiam causar em qualquer situação.
Consultou o relógio. Esperou que os gemidos parassem. Gesticulou para que os soldados ficassem quietos quando eles pararam.
Movendo-se em silêncio, ele seguiu para o alçapão no canto extremo do armazém, aquele que se abria no que deveria ser um escritório de supervisor. Destrancando-o, segurou uma pistola, desmaterializou-se e inalou.
Não era humano.
Bem, um esteve ali, mas o outro... era algo diferente.
Do outro lado, a porta externa foi fechada e trancada.
Em sua forma fantasmagórica, Xcor atravessou o armazém e apoiou as costas na parede de tijolos, e olhou para fora de um dos vidros empoeirados.
Um par de faróis se acendeu na frente, no estacionamento.
Desmaterializando-se do lado de fora da janela, subiu até o telhado do armazém do lado oposto da rua.
Ora, ora, se aquilo não era interessante.
Havia um Sombra ali embaixo, sentando atrás do volante do BMW com a janela do motorista abaixada até a metade e uma fêmea humana se inclinando sobre o SUV.
Era a segunda vez que se deparava com um em Caldwell.
Eles eram perigosos.
Pegando o celular, ligou para o número de Throe após encontrar a foto do macho na lista de contatos, e ordenou que os soldados saíssem e lutassem. Ele lidaria sozinho com aquela situação.
Lá embaixo, o Sombra esticou a mão, puxou a mulher pela nuca e a beijou. Depois deu marcha à ré no carro e saiu sem olhar para trás.
Xcor mudou de posição para acompanhar o macho, transitando de telhado em telhado, conforme o Sombra seguia na direção do bairro das boates nas ruas que corriam em paralelo ao rio...
A princípio, a sensação em seu corpo sugeria uma mudança na direção do vento, os açoites gélidos atingindo-o por trás, em vez de golpeá-lo no rosto. Mas logo pensou... não, era algo puramente interno. As ondas que sentia sob a pele...
Sua Escolhida estava por perto.
Sua Escolhida.
Abandonando imediatamente o rastro do Sombra, ele seguiu para perto do rio Hudson. Onde ela estava...
Num carro. Estava se movendo num carro.
Pelo que seus instintos lhe diziam, ela estava se movendo em alta velocidade que, ainda assim, era rastreável. Portanto, a única explicação era que ela estava na Northway, seguindo de noventa a cento e vinte quilômetros por hora.
Recuando na direção da fileira de armazéns, ele se concentrou no sinal que estava captando. Como fazia meses desde que se alimentara dela, sentiu pânico ao perceber que a conexão criada pelo sangue dela em suas veias estava perdendo intensidade, a ponto de ele ter dificuldade para localizar o veículo.
Mas, em seguida, captou um sedã luxuoso graças ao fato de ele ter freado na saída que convergia o tráfego para as pontes. Desmaterializando-se nas vigas, plantou as botas de combate no pináculo de um dos esteios de metal e esperou que ela passasse debaixo dele.
Pouco depois de fazê-lo, ela seguiu em frente, indo para o outro lado da cidade, oposta à margem do rio.
Ele continuou com ela, mantendo uma distância segura, embora se perguntasse a quem tentava enganar. Se ele pressentia sua fêmea?
O mesmo acontecia com ela.
Porém, ele não abandonaria seu rastro.
Enquanto Qhuinn estava no assento de passageiro do Mercedes, sua Heckler e Koch calibre .45 era mantida discretamente sobre a coxa, os olhos movimentando-se incessantemente do espelho retrovisor para a janela lateral e o para-brisa. Ao lado dele, Phury estava na direção, as mãos do Irmão num perfeito dez para as duas tão apertado que mais parecia que ele estava estrangulando alguém.
Caramba, havia coisas demais acontecendo ao mesmo tempo.
Layla e a criança. Aquele acidente com o Cessna. O que ele fizera ao primo na noite anterior. E também... bem, havia aquela situação com Blay.
Ah, bom Deus... a situação com Blay.
Enquanto Phury pegava a saída que os levaria às pontes, a mente de Qhuinn ia da preocupação com Layla às lembranças das imagens, dos sons... e dos sabores das horas diurnas.
Intelectualmente, ele sabia que o que acontecera entre eles não fora um sonho. E seu corpo se lembrava muito bem disso, como se o sexo tivesse sido um tipo de marcação a ferro em sua pele que o mudara para o resto da vida. E, mesmo assim, enquanto tentava lidar com o drama mais recente, a sessão breve demais parecia pré-histórica, e não ocorrera há nem 24 horas atrás.
Ele temia que se tratasse de uma sessão única.
Nunca mais me toque assim.
Gemendo, ele esfregou a testa.
– Não são os seus olhos – disse Phury.
– O que disse?
Phury olhou de relance para o banco de trás.
– Ei, como estão as coisas? – perguntou às fêmeas. Quando Layla e a doutora Jane responderam numa afirmativa breve, ele assentiu com a cabeça. – Escutem, vou fechar a divisória por um segundo, está bem? Está tudo bem por aqui.
O Irmão não lhes deu a chance de responder de um ou outro modo, e Qhuinn se retesou no banco enquanto a divisória opaca subia, partindo o sedã em duas partes. Não fugiria de nenhum tipo de confronto, mas isso não significava que ele estava ansioso pelo segundo round, e se Phury estava isolando as duas, aquilo não seria nada bonito.
– Seus olhos não são o problema – disse o Irmão.
– Não entendi.
Phury olhou para ele.
– O fato de eu estar irritado sobre tudo isso não tem nada a ver com nenhum defeito. Layla está apaixonada por você...
– Não, não está não.
– Vê, você está me irritando muito agora.
– Pergunte a ela.
– Enquanto está sofrendo um aborto? – replicou o Irmão. – É, é isso mesmo o que vou fazer.
Enquanto Qhuinn se retraía, Phury continuou:
– Sabe, esse é o seu negócio. Você gosta de viver no limite e ser desvairado... Eu, honestamente, acredito que isso o ajuda a lidar com as idiotices que sua família o fez passar. Se você destruir tudo? Nada pode afetá-lo. E acredite ou não, não tenho problema algum com isso. Você faz o que tem que fazer e sobrevive às noites e aos dias do melhor modo que pode. Mas assim que você parte o coração de uma inocente, ainda mais se ela está sob a minha proteção? É nessa hora que você e eu temos um problema.
Qhuinn olhou pela janela. Antes de tudo, parabéns ao cara ali do lado. A ideia de que havia um preconceito contra Qhuinn baseado em seu caráter em vez de uma mutação genética sobre a qual não tivera nenhum poder decisório era uma mudança refrescante. E, ei, não que ele não concordasse com o cara, pelo menos até um ano atrás. Antes disso? Inferno, ele esteve descontrolado em muitos níveis. Mas as coisas mudaram. Ele mudara.
Evidentemente, Blay se tornar indisponível fora o tipo de chute no saco de que ele precisava para finalmente crescer.
– Não sou mais assim – disse ele.
– Então, está preparado para se vincular a ela? – quando ele não respondeu, Phury deu de ombros. – E lá vai você de novo. Conclusão: sou responsável por ela, legal e moralmente. Posso não estar agindo como um Primale em alguns aspectos, mas o restante das funções desse cargo eu levo muito a sério. A ideia de que você a meteu nessa confusão me deixa enjoado, e eu acho muito difícil de acreditar que ela não tenha feito isso para agradá-lo... Você disse que os dois queriam um filho? Tem certeza de que não era só você, e ela só fez isso para deixá-lo feliz? Isso se parece muito com o feitio dela.
Tudo aquilo foi apresentado de maneira retórica. E não cabia a Qhuinn criticar a lógica, mesmo que ela estivesse errada. Mas, enquanto ele passava os dedos pelos cabelos, o fato de que fora Layla a procurá-lo era algo que ele manteria só para si. Se Phury queria pensar que a culpa era só sua, tudo bem, ele aguentaria o tranco. Qualquer coisa para tirar a pressão e as atenções de cima de Layla.
Phury olhou por entre os bancos.
– Isso não está certo, Qhuinn. Não é isso o que machos de verdade fazem. E olhe só a situação em que ela está. Você causou isso a ela. Você a colocou no banco de trás deste carro, e isso é errado.
Qhuinn apertou os olhos. Bem, como se isso não fosse martelá-lo na cabeça pelos próximos cem anos. Mais ou menos.
Enquanto eles seguiam pela ponte e deixavam as luzes piscantes do centro da cidade para trás, ele manteve a boca fechada, e Phury também se calou.
Mas, pensando bem, o Irmão já dissera tudo o que havia para ser dito, não?
CAPÍTULO 33
Assail acabou perseguindo sua presa atrás do volante do seu Range Rover. Muito mais confortável assim, e a localização da mulher já não era mais um problema: enquanto estivera esperando ao lado do Audi que ela saísse de sua propriedade, colocara um equipamento de rastreamento na parte inferior do espelho retrovisor lateral.
Seu iPhone cuidou do resto.
Depois de ela ter deixado abruptamente seu bairro – após a proposital desmaterialização ante suas vistas só para desestabilizá-la ainda mais –, ela atravessou o rio e deu a volta para a parte de trás da cidade, onde as casas eram pequenas, próximas umas das outras e delimitadas por cercas de alumínio.
Enquanto a perseguia, mantendo pelo menos dois quarteirões de distância entre os veículos, observou as luzinhas coloridas no bairro, milhares de fios de pisca-pisca entre os arbustos, pendurados nos telhados e emoldurando janelas e portas. Mas aquilo não era nem metade da história. Cenários de manjedouras colocados em destaque em diminutos jardins eram iluminados, e também havia os bonecos de neve falsos com cachecóis vermelhos e calças azuis que brilhavam por dentro.
Em contraste com a decoração sazonal, ele estava disposto a apostar que as estátuas da Virgem Maria eram permanentes.
Quando o carro parou e estacionou, ele se aproximou, parando quatro casas adiante e desligando as luzes. Ela não saiu imediatamente do carro, e quando o fez, não vestia a parca e as calças de esqui nas quais o espionara. Em vez disso, mudara para um suéter vermelho e um par de jeans.
E soltara o cabelo.
O volume escuro e pesado ultrapassava os ombros, curvando-se nas pontas.
Ele grunhiu na escuridão.
Com passadas rápidas e certeiras, ela ultrapassou os quatro degraus de concreto que levavam à entrada modesta da casa. Abrindo a porta de tela numa moldura de metal, ela a segurou com o quadril enquanto destrancava a porta com a chave, para depois entrar e trancar pelo lado de dentro.
Quando as luzes se acenderam no andar de baixo, ele observou a silhueta dela avançar pelo cômodo da frente, as cortinas finas lhe possibilitando apenas uma ideia da movimentação dela, e não uma visão desobstruída.
Ele pensou em suas próprias persianas. Demorou um tempo para que aperfeiçoasse aquela invenção, e a casa às margens do rio Hudson fora um teste perfeito. As barreiras funcionavam melhor do que ele antecipara.
Ela, porém, era esperta o bastante para notar alguma anormalidade, e ele se perguntou o que as teriam denunciado.
No segundo andar, uma luz se acendeu, como se alguém que estivesse descansando tivesse despertado com a chegada dela.
As presas dele pulsaram. A ideia de que algum homem humano estivesse à espera dela em seu quarto conjugal fez com que ele quisesse estabelecer sua dominância, mesmo que isso não fizesse sentido. Ele a seguira para o seu próprio bem, e nada mais.
Absolutamente nada mais.
Bem quando a mão segurou a maçaneta da porta, seu telefone tocou. Na hora certa.
Quando ele viu quem era, franziu o cenho e levou o celular ao ouvido.
– Duas ligações em tão pouco tempo. A que devo essa honra?
Rehvenge não pareceu estar se divertindo.
– Não retornou a minha ligação.
– Eu deveria?
– Cuidado, garoto.
Os olhos de Assail continuaram atentos à casinha. Ele estava curiosamente desesperado para saber quem estava lá dentro. Estaria ela subindo, despindo-se pelo caminho?
Exatamente de quem ela escondia suas espreitas? E ela de fato as escondia – senão, por que outro motivo trocar de roupa?
– Alô?
– Aprecio o gentil convite – ele se ouviu dizer.
– Não foi um convite. Você é um maldito membro do Conselho agora que está vivendo no Novo Mundo.
– Não.
– Como é que é?
Assail relembrou o encontro na casa de Elan no começo do inverno, aquele sobre o qual Rehvenge nada sabia, aquele no qual o Bando de Bastardos apareceu para forçar a barra. Também pensou no atentado a Wrath, à vida do Rei Cego... na sua própria propriedade, pelo amor de Deus.
Drama demais para o seu gosto.
Com calma ensaiada, ele se lançou no mesmo discurso que fizera à facção de Xcor:
– Sou um homem de negócios por predileção e propósito. Embora respeite tanto o reinado atual quanto o poder de base do Conselho, não posso desviar nem energia nem tempo das minhas empreitadas vigentes. Nem agora, nem no futuro.
Houve um momento prolongado de silêncio. E depois aquela voz profunda e maligna se fez ouvir do outro lado:
– Ouvi falar dos seus negócios.
– Verdade?
– Eu mesmo estive envolvido com isso há alguns anos.
– Foi o que eu soube.
– Consegui fazer as duas coisas.
Assail sorriu na escuridão.
– Talvez eu não seja tão talentoso quanto você.
– Vou deixar isto perfeitamente claro. Se você não aparecer nessa reunião, deduzirei que você está jogando no time errado.
– Com essa declaração, você reconhece que existem dois e que eles se opõem.
– Entenda como quiser. Mas se não estiver comigo e com o Rei, você é inimigo meu e dele.
E foi exatamente isso o que Xcor lhe dissera. Pensando bem, havia alguma outra posição naquela guerra crescente?
– O Rei foi alvejado na sua casa, Assail.
– Pelo que me lembro – disse ele secamente.
– Pensei que você talvez quisesse dizimar qualquer ideia quanto ao seu envolvimento.
– Já o fiz. Naquela mesma noite disse aos Irmãos que eu não tinha nada a ver com aquilo. Eu lhes dei o veículo com que escaparam com o Rei. Por que eu faria tal coisa se fosse um traidor?
– Para livrar seu rabo.
– Sou muito eficiente nisso sem o benefício de conversações, eu lhe garanto.
– Então, como anda a sua agenda?
A luz no segundo andar se apagou, e ele teve que imaginar o que a mulher fazia no escuro... E com quem.
Por vontade própria, suas presas se expuseram.
– Assail. Você está seriamente me aborrecendo com essa merda de comportamento.
Assail ligou o motor do Range Rover. Não estava disposto a ficar esperando no meio-fio enquanto o que quer que estivesse acontecendo ali dentro... acontecia. Obviamente, ela se recolhera e ficaria ali. Além disso, seu telefone o alertaria caso o carro dela voltasse a se movimentar.
Enquanto ele tomava a rua e acelerava, falou com clareza:
– Neste instante, estou me demitindo da minha posição no Conselho. A minha neutralidade nessa disputa pela coroa não será questionada por nenhum dos lados...
– E você sabe quem são os jogadores, não?
– Deixarei isto o mais claro possível: não tomo partido, Rehvenge. Não sei de que outro modo deixar isso ainda mais claro... e não serei arrastado para essa guerra por você, nem pelo Rei nem por ninguém mais. Não tente me forçar, e saiba que a neutralidade que lhe apresento agora é a mesma que apresentei a eles.
Desse mesmo modo, prometera a Elan e a Xcor não revelar suas identidades, e manteria sua palavra – não por acreditar que o grupo seria capaz de retribuir o favor, mas pelo simples fato de que, dependendo de quem vencesse, um confidente de qualquer lado seria visto como espião a ser erradicado ou um herói a ser aclamado. O problema era que não se saberia que lado venceria até aquilo acabar, e ele não estava interessado em apostas.
– Então você foi abordado – declarou Rehv.
– Recebi uma cópia da carta que eles enviaram na primavera passada.
– E esse foi o único contato que teve?
– Sim.
– Está mentindo para mim.
Assail parou num farol.
– Não há nada que possa dizer ou fazer para me arrastar para isso, caro lídher.
Com ameaças em excesso, o macho do outro lado rosnou.
– Não conte com isso, Assail.
Dito isso, Rehvenge desligou.
Praguejando, Assail jogou o telefone no banco do passageiro. Depois, cerrou os dois punhos e os bateu com força no volante.
Se existia uma coisa que ele não tolerava era ser sugado para o olho do furacão das brigas dos outros. Pouco se importava com quem sentava no trono, ou com quem era encarregado da glymera. Ele só queria ser deixado em paz para ganhar dinheiro à custa dos ratos sem rabo.
Isso era tão difícil de entender?
Quando a luz ficou verde, ele afundou o pé no acelerador, mesmo sem ter nenhum destino específico em mente. Apenas dirigiu a esmo... e cerca de quinze minutos mais tarde descobriu-se sobre o rio em uma das pontes.
Ah, então seu Range Rover decidira levá-lo de volta para casa.
Ao emergir na margem oposta, seu telefone emitiu um alerta, que ele quase ignorou. Mas os gêmeos tinham saído para cuidar do último carregamento de Benloise, e ele queria saber se os intermediários tinham aparecido com suas cotas no fim das contas.
Não era uma chamada, ou uma mensagem de texto.
Era o Audi preto se movendo mais uma vez.
Assail pisou no freio, cortou na frente de um carro que buzinou como se o xingasse, subiu e atravessou o canteiro central coberto de neve.
E praticamente voou pela ponte que o levava de volta.
Em sua posição vantajosa em uma relativa periferia distante, Xcor precisava de binóculos para ver adequadamente a sua Escolhida.
O carro em que ela vinha andando, o enorme sedã preto, continuara em frente depois da ponte, seguindo por oito ou nove quilômetros antes de sair por uma estradinha rural que levava para o norte. Depois de mais alguns quilômetros, e sem nenhum aviso, virou numa estrada de terra que era estrangulada nas duas laterais por plantações perenes. Por fim, parou ante uma construção baixa de concreto que não dava indícios de ter nem janelas nem uma porta.
Ele ajustou o foco quando dois machos saíram pela frente. Reconheceu um instantaneamente, o cabelo o denunciava: Phury, filho de Ahgony, que, de acordo com a boataria, tornara-se o Primale das Escolhidas.
O coração de Xcor começou a bater forte.
Especialmente quando reconheceu a segunda figura: era o lutador de olhos descombinados contra quem pelejara na casa de Assail quando o Rei fora levado embora às pressas.
Os dois machos sacaram as pistolas e perscrutaram as imediações.
Como Xcor estava a favor do vento e parecia não haver ninguém mais por perto, ele deduziu que havia uma grande probabilidade, a não ser que sua Escolhida revelasse a posição dele, que aquele par procedesse com o que quer que tivesse planejado para a fêmea.
De fato, era como se ela estivesse sendo levada para uma prisão.
Só. Por. Cima. Do. Seu. Cadáver.
Ela era um inocente naquela guerra, utilizada com propósitos nefastos sem que isso tivesse sido culpa sua; mas, obviamente, ela seria executada ou trancafiada numa cela na qual passaria o resto de sua vida na Terra.
Ou não.
Ele segurou as pistolas.
Aquela era uma boa noite para cuidar daquele assunto. De fato, era a sua chance de tê-la para si, de salvá-la de qualquer punição que lhe impingiram por ter, sem saber, ajudado e revigorado o inimigo. E talvez as circunstâncias quanto à sua condenação injusta a deixassem favoravelmente disposta em relação ao seu inimigo e salvador.
Ele fechou os olhos brevemente ao imaginá-la em sua cama.
Quando Xcor voltou a abri-los, Phury abria a porta traseira do sedã e colocava a mão para dentro. Quando o Irmão se endireitou, a Escolhida era retirada do veículo... e levada pelos dois cotovelos, os lutadores segurando-a de cada lado enquanto a conduziam para a construção.
Xcor se preparou para se aproximar. Depois de tanto tempo, uma vida inteira, mais uma vez ele a tinha próxima de si e não desperdiçaria a oportunidade que o destino lhe propiciava, não agora, não quando a vida dela tão obviamente pendia na balança. E ele levaria a melhor naquilo; a ameaça a ela fortalecia seu corpo a um nível inimaginável de poder, a mente se aguçava a ponto de avaliar todas as possibilidades de ataque e continuar absolutamente calmo.
De fato, havia apenas dois machos a guardá-la e, com eles, uma fêmea que não só parecia não estar armada, como também não avaliava seus arredores como se fosse treinada para tal ou inclinada para o conflito.
Ele estava mais do que preparado para acabar com os captores de sua fêmea.
Bem quando ele se preparava para avançar, o cheiro da Escolhida o atingiu na brisa fria, aquele perfume tentador exclusivo fazendo-o oscilar dentro de suas botas de combate...
Imediatamente, ele reconheceu uma mudança nele.
Sangue.
Ela estava sangrando. E havia mais alguma coisa...
Sem pensamento consciente, seu corpo se moveu para mais perto, sua forma restabelecendo o peso corpóreo, suspendendo-se a meros três metros, atrás de uma construção destacada do prédio principal.
Ele percebeu que ela não era uma prisioneira sendo levada para uma cela ou para a execução.
A sua Escolhida tinha dificuldade para andar. E aqueles guerreiros a amparavam com cuidado; mesmo com as armas expostas e os olhos vasculhando qualquer sinal de ataque, eles eram gentis com ela como seriam com a mais frágil das flores em botão.
Ela não estava sendo maltratada. Não tinha hematomas nem ferimentos. Enquanto o trio avançava, ela olhou para um macho, depois para o outro, e disse algo como que tentando assegurá-los, pois, na verdade, não era raiva que contraía as sobrancelhas daqueles guerreiros.
Era, na realidade, o mesmo terror que ele sentiu quando farejou o sangue dela.
O coração de Xcor bateu ainda mais forte em seu peito, a mente tentando compreender tudo aquilo.
E então, ele se lembrou de algo do seu passado.
Depois do seu nascimento, sua mahmen o repelira e ele fora deixado no orfanato no Antigo País para o que quer que o destino lhe reservasse. Ali, permanecera entre os raros indesejados, cuja maioria possuía deformidades físicas como a sua, por quase uma década... tempo suficiente para forjar lembranças permanentes sobre aquilo que transpirava no lugar triste e solitário.
Tempo suficiente para ele entender o que significava quando uma fêmea sozinha aparecia nos portões, era-lhe concedida a entrada, e depois berrava por horas, às vezes dias... antes de dar à luz, na maioria dos casos, a crianças mortas. Ou abortadas.
O cheiro do sangue naquela época era bem específico. E o cheiro levado pelo vento frio desta noite era o mesmo.
Uma gestação era o que invadia seu nariz agora.
Pela primeira vez em sua vida, ele se ouviu dizer, em absoluta agonia:
– Santa Virgem do Fade...
CAPÍTULO 34
A ideia de que os membros do s’Hisbe estivessem no código postal de Caldwell fez com que Trez pensasse em fazer as malas com tudo o que possuía, buscar o irmão e sair em férias permanentes dali.
Enquanto dirigia do armazém para o Iron Mask, a cabeça estava tão confusa que ele tinha de pensar conscientemente em quais esquinas virar, e frear nas placas de pare, e onde deveria estacionar quando chegasse à boate. E depois, quando desligou o motor do X5, apenas continuou sentado atrás do volante, encarando a parede de tijolos do seu prédio por... sei lá, um ano.
Uma tremenda metáfora, todo o “ir a nenhum lugar” bem na sua frente.
Não que não soubesse o quanto decepcionava as pessoas. A questão? Pouco se importava. Não voltaria para os costumes antigos. A vida que agora levava era sua, e ele se recusava a permitir que uma promessa feita na época do seu nascimento o encarcerasse na vida adulta.
Aquilo não aconteceria.
Desde que Rehvenge realizara a boa ação do século e salvara tanto o seu traseiro quanto o do seu irmão, as coisas mudaram para Trez. Ele e iAm receberam ordens para se aliarem aos sympatho do lado de fora do Território a fim de saldarem a dívida, e esse “pagamento forçado” fora o bilhete deles para a liberdade, a saída que eles vinham procurando. E ainda que ele lamentasse arrastar iAm para aquele drama, o resultado final foi que seu irmão teve que vir com ele, e essa era apenas mais uma parte da solução perfeita que vivia atualmente. Abandonar o s’Hisbe e vir para o mundo exterior fora uma revelação, a primeira e deliciosa amostra de liberdade. Não havia protocolo, nenhuma regra, ninguém bafejando em seu cangote.
A ironia? Aquilo deveria ter sido um tapinha na bunda por ousar ter saído do Território e se misturar com os Desconhecidos. Um castigo com a intenção de fazê-lo andar na linha.
Rá.
E, desde então, nos recessos de sua mente, ele meio que desejava que a extensão dos seus negócios com os Desconhecidos durante a última década o tivesse contaminado perante os olhos do s’Hisbe, tornando-o inelegível para a “honra” que lhe fora concedida no nascimento. Ou seja, condenando-o a uma liberdade permanente.
O problema era que, se enviaram AnsLai, o sumo sacerdote, obviamente esse objetivo não fora alcançado. A menos que a visita tenha sido para repudiá-lo...
Nesse caso, saberia por meio de iAm. Não?
Trez verificou o celular. Nenhuma mensagem. Nem de voz nem de texto. Estava na casinha do cachorro de novo em relação ao seu irmão, a menos que iAm tivesse resolvido mandar tudo à merda e voltado para casa, para a tribo.
Maldição...
A batida forte à sua janela não fez com que ele simplesmente levantasse a cabeça. Não. Ele também sacou a arma.
Trez franziu a testa. Parado do lado de fora do carro, um macho humano do tamanho de uma casa. O cara tinha um barrigão de cerveja, mas os ombros fortes sugeriam que ele realizava trabalho físico regular, e o maxilar rígido e pesado revelava tanto a sua ancestralidade Cro-Magnon quanto o tipo de arrogância mais comum entre os animais grandes e idiotas.
Com grandes baforadas de touro libertando-se das narinas, ele se inclinou e bateu na janela. Naturalmente, com um punho tão grande quanto uma bola de futebol.
Bem, ficou claro que ele queria um pouco de atenção, e quer saber? Trez estava mais do que disposto em lhe dar.
Sem aviso, ele escancarou a porta, pegando o cara em cheio nas bolas. Enquanto o humano cambaleava para trás agarrando a virilha, Trez se ergueu em toda a sua altura e guardou a arma no cós da calça, fora de vista, mas fácil de apanhar.
Quando o senhor Agressivo se recuperou o bastante para olhar para cima, beeeem para cima, ele pareceu perder um pouco do seu entusiasmo. Pensando bem, Trez devia ter uns quarenta centímetros e pesar uns 45 quilos a mais que o cara. Apesar daquele pneuzão que ele carregava.
– Está procurando por mim? – perguntou Trez, querendo mesmo dizer: tem certeza de que quer fazer isso, grandalhão?
– É. ‘Tô.
Ok, então tanto a gramática quanto a avaliação de risco eram problemas para ele. Provavelmente teria dificuldades do mesmo tipo com adições e subtrações com numerais de único dígito.
– Estou – corrigiu Trez.
– Quê?
– Acredito que seja “sim, eu estou”, e não “tô”.
– Vai à merda. Que tal? – o cara se aproximou. – E fique longe dela.
– Dela? – isso restringia o problema para o que... umas mil pessoas?
– Minha mina. Ela num qué ocê, num precisa ducê, e num vai mais ficá cucê.
– De quem, exatamente, estamos falando? Vou precisar de um nome – e talvez nem isso ajudasse.
À guisa de resposta, o cara avançou. Provavelmente teria sido um soco ferrado, mas o avanço foi lento demais e muito penoso, e a maldita coisa poderia ter sido acompanhada de uma legenda.
Trez segurou o punho com uma mão, espalmando-a como se fosse uma bola de basquete. E depois, com um giro rápido, ficou com o pedaço de bife virado e preso – prova positiva de que pontos de pressão funcionavam, e que o pulso era um deles.
Trez falou bem no ouvido do homem, só para que as regras básicas fossem bem recebidas:
– Faça isso de novo e vou quebrar cada osso da sua mão. De uma vez – enfatizou isso com um puxão que fez o cara gemer. – E depois, vou subir até o braço. Agora, de que porra você está falando?
– Ela ‘teve aqui ontem à noite.
– Muitas mulheres estiveram. Consegue ser mais específico...?
– Ele ‘tá falando de mim.
Trez ergueu o olhar. Ah... que magnífico.
A garota que deu uma de doida, a sua perseguidora.
– Eu disse que cuidava disso! – ela gritou.
É, o cara parecia mesmo ter o controle da situação. Então, a que tudo levava a crer, os dois tinham ilusões... E talvez isso explicasse o relacionamento deles: ele a considerava uma supermodelo, e ela acreditava que ele tivesse um cérebro.
– Isto é seu? – Trez perguntou à mulher. – Porque, ser for, pode levá-lo para casa com você antes que precise de um balde para limpar a bagunça?
– Eu disse procê não vir aqui – disse a mulher. – Que que ‘cê ‘tá fazendo aqui?
E mais uma prova de que esses dois eram um casal perfeito.
– Que tal se eu deixar vocês dois resolverem isso? – sugeriu Trez.
– Eu amo ele!
Por um segundo, a resposta não fez sentido. Mas depois, e deixando o sotaque carregado de lado, ele entendeu: a tonta estava falando dele.
Enquanto Trez encarava incrédulo a mulher, percebeu que aquela transa em particular tinha saído pela culatra de maneira gigantesca.
– Não está, não.
Bem, pelo menos o namorado agora falara corretamente.
– Sim, estou!
Foi nessa hora que tudo foi para a puta que o pariu. O touro se lançou sobre a mulher, quebrando o próprio pulso no processo de se libertar. Depois os dois ficaram cara a cara, berrando obscenidades, os corpos se arqueando para a frente.
Ficou claro que eles tinham prática naquilo.
Trez olhou ao redor. Não havia ninguém no estacionamento, nenhuma alma viva andando na calçada, mas ele não precisava de violência doméstica rolando nos fundos da sua boate. Inevitavelmente, alguém acabaria vendo e chamando a polícia ou, pior, aquela burra acabaria forçando demais a barra do namorado grande e burro, e acabaria levando a pior.
Se ao menos ele tivesse um balde de água ou, quem sabe, uma mangueira de jardim para que os dois se largassem.
– Escutem aqui, vocês dois têm que...
– Eu te amo! – a mulher disse, virando-se para Trez e agarrando o bustiê. – Não entendeu ainda? Eu te amo!
Por conta da camada de suor que a cobria, apesar de a temperatura estar próxima de zero, ficou bem claro que ela tinha usado alguma coisa. Coca ou metanfetamina seria o seu palpite se ele tivesse de adivinhar. Êcstasy normalmente não era associado a esse tipo de agressão.
Perfeito. Mais essa agora.
Trez balançou a cabeça.
– Querida, você não me conhece.
– Conheço sim!
– Não, você não...
– Porra, não fala com ela assim!
O cara atacou Trez, mas a fêmea se colocou na frente, metendo-se diante de um trem acelerado.
Cacete, agora era a hora de ele se meter. Nada de violência contra mulheres na frente dele. Nunca – mesmo que fosse dano colateral.
Trez se moveu com tanta rapidez que quase fez o tempo voltar para trás. Tirou sua “protetora” da linha de combate e lançou um soco que pegou o animal disparado bem no meio do queixo.
Causou pouca ou nenhuma impressão. Foi o mesmo que atingir uma vaca com uma pilha de papel.
Trez levou um murro no olho, uma luz pipocou em metade da sua vista, mas foi um golpe de sorte mais do que algo coordenado. A recompensa, contudo, foi tudo isso e muito mais: com rápida coordenação, ele descarregou as juntas dos dedos em sucessão veloz, acertando-o no ventre, transformando o fígado cheio de cirrose do cara num saco de pancada vivo até o filho da puta se dobrar ao meio e pedir arrego.
Trez concluiu o assunto chutando o peso morto gemedor até ele cair no chão.
Então, ele sacou a pistola e enfiou o cano bem na carótida do cara.
– Você tem uma chance de sair daqui – Trez disse calmo. – E é assim que as coisas vão ser. Você vai se levantar e não vai nem olhar nem falar com ela. Você vai embora pela frente da boate e vai entrar numa porra de um táxi e vai para a porra da sua casa.
Diferentemente de Trez, o homem não tinha um sistema cardíaco muito bem desenvolvido e conservado e respirava como um trem de carga. Apesar disso e do jeito como os olhos injetados e marejados o olhavam, ele conseguira focar a visão independentemente da hipoxia, e captara a mensagem.
– Se a agredir de qualquer modo que seja, se ela quebrar sequer uma unha por sua causa, se alguma propriedade dela for danificada de algum modo? – Trez se inclinou, aproximando-se. – Vou abordá-lo por trás. Você nem saberá que estive ali, e não vai sobreviver ao que eu lhe farei. Isso eu prometo.
Sim, Sombras tinham maneiras de se livrar dos inimigos e, ainda que ele preferisse carne com pouca gordura, como frango e peixe, não se importava em abrir exceções.
O problema era que tanto em sua vida pessoal quanto na profissional ele vira como a violência doméstica se intensificava. Em muitos casos, algo grande tinha que intervir a fim de romper o ciclo. Veja só? Ele se encaixava nisso.
– Acene com a cabeça se você entendeu meus termos – quando o aceno veio, ele bateu a arma com força contra a nuca gorda. – Agora, olhe em meus olhos e saiba que estou falando a verdade.
Enquanto Trez o encarava, ele inseriu um pensamento direto no córtex cerebral, implantando-o como se fosse um chip instalado entre os lóbulos. O seu disparo seria qualquer tipo de ideia brilhante que tivesse a respeito da mulher; seu efeito seria a absoluta convicção de que a sua própria morte seria inevitável e rápida, caso ele desse seguimento à ideia.
O melhor tipo de terapia cognitiva que existia.
Taxa de sucesso de cem por cento.
Trez deu um pulo e concedeu uma chance de se comportar como um bom garoto ao gorducho. E, claro, o filho da puta se ergueu do chão, sacudiu-se como um cão com as pernas plantadas afastadas e a camisa larga solta.
Quando ele saiu, foi mancando.
E foi nesse instante que as fungadas foram percebidas.
Trez se virou. A mulher tremia no frio, as roupas indiscretas não ofereciam nenhuma barreira para a noite de dezembro, a pele pálida, a exaltação desaparecida... como se o fato de ele colocar o cano da sua .40 na garganta do seu namoradinho tivesse alguma influência.
O rímel escorria pelo rosto enquanto ela testemunhava a partida do seu “Príncipe Encantado”.
Trez olhou para o céu e começou seu diálogo interno.
No fim, ele não teria como deixá-la ali sozinha no estacionamento, ainda mais toda trêmula como estava.
– Onde você mora, querida? – até ele percebia a exaustão em sua voz. – Querida?
A mulher olhou para o lado dele e imediatamente a sua expressão mudou.
– Nunca ninguém me defendeu assim antes.
Ok, agora ele pensava em afundar a cabeça na parede de tijolos. E, olha só, havia uma logo ali do lado.
– Deixe-me levá-la para casa. Onde você mora?
Enquanto ela se aproximava, Trez teve que ordenar aos pés que continuassem exatamente onde estavam – pois, claro, ela se enterrou em seu corpo.
– Eu te amo.
Trez cerrou bem os olhos.
– Vamos – disse, desprendendo-se dela e levando-a até o carro. – Você vai ficar bem.
CAPÍTULO 35
Enquanto Layla era levada até a clínica, seu coração batia forte e as pernas tremiam. Felizmente, Phury e Qhuinn não mostravam problema algum em sustentá-la.
Contudo, graças à presença do Primale, sua experiência foi completamente diferente dessa vez. Quando o painel de entrada do edifício deslizou para o lado, uma das enfermeiras estava lá para recebê-los, e eles foram levados imediatamente para uma parte diferente da clínica daquela em que ela esteve na noite anterior.
Enquanto eram levados para a sala de exames, Layla olhou de relance ao redor e hesitou. O que... era aquilo? As paredes eram recobertas por um rosa claro, e as pinturas em molduras douradas estavam penduradas a intervalos regulares. Nenhuma mesa de exames, tal como aquela em que ela se deitou na noite anterior. Ali, havia uma cama forrada por uma manta elegante, recoberta com pilhas de travesseiros fofos. E, além disso, em vez da pia de aço inoxidável e gabinetes brancos sem graça, uma tela pintada escondia um canto inteiro do quarto atrás da qual, ela deduziu, os instrumentos clínicos de Havers eram mantidos.
A menos que o grupo tenha sido conduzido para os aposentos particulares do médico.
– Ele logo virá vê-la – disse a enfermeira, sorrindo para Phury e se curvando. – Posso lhes trazer algo? Café, chá?
– Apenas o médico – o Primale respondeu.
– Imediatamente, Vossa Excelência.
Ela se curvou novamente e se apressou para fora.
– Vamos colocá-la na cama, está bem? – disse Phury ao lado do leito.
Layla balançou a cabeça.
– Tem certeza de que estamos no lugar certo?
– Sim – o Primale se aproximou e a ajudou a atravessar o quarto. – Esta é uma das suítes VIP.
Layla olhou por sobre o ombro. Qhuinn se acomodara no canto oposto à tela. Ele se mantinha absolutamente imóvel, os olhos focados no chão, a respiração estável, as mãos atrás das costas. E mesmo assim não estava à vontade. Não, ele parecia pronto e capaz de matar e, por um momento, uma pontada de medo a perpassou. Jamais teve medo dele antes, mas, pensando bem, ela nunca o vira num estado tão potencialmente agressivo.
Pelo menos a violência represada não parecia direcionada a ela, nem mesmo ao Primale. Certamente não à doutora Jane enquanto a médica se acomodava numa cadeira forrada de seda.
– Vamos – insistiu Phury com gentileza. – Vamos lá.
Layla tentou subir sozinha, mas o colchão estava longe demais do chão e a parte superior do seu corpo estava tão fraca quanto as pernas.
– Eu pego você – Phury atenciosamente passou o braço ao redor das suas costas e atrás das pernas; depois a suspendeu com cuidado. – Lá vamos nós.
Ajeitando-se na cama, ela gemeu ao sentir uma câimbra se agarrar à sua região pélvica. Enquanto todos os olhos no quarto fixavam-se nela, ela tentou esconder a careta com um sorriso. Sem sucesso: embora o sangramento continuasse estável, as ondas de dor se intensificavam, a duração delas era mais longa, e o espaçamento entre elas, menor.
Naquele compasso, logo se transformaria em agonia constante.
– Estou bem...
A batida à porta a interrompeu.
– Posso entrar?
Apenas a voz do doutor Havers já fez com que ela quisesse fugir.
– Ah, Santa Virgem Escriba – disse ao tentar juntar coragem.
– Sim – respondeu sombriamente Phury. – Entre...
O que aconteceu em seguida foi tão rápido e furioso que o único modo de descrever seria com o coloquialismo que aprendera com Qhuinn.
O mundo desabou.
Havers abriu a porta, entrou e Qhuinn atacou o médico, empurrando-o para aquele canto, inclinando-se com a adaga.
Layla gritou alarmada, mas ele não matou o macho.
No entanto, ele fechou a porta com o corpo do macho, ou talvez com a cara dele. E foi difícil saber se o barulho que ressoou foi a porta se encontrando com a soleira ou o impacto do curandeiro sendo lançado contra a madeira. Provavelmente uma combinação de ambos.
A terrível lâmina afiada foi pressionada contra a garganta pálida.
– Adivinha o que vai fazer primeiro, cretino? – Qhuinn rosnou. – Vai se desculpar por tratá-la como se fosse uma maldita incubadora.
Qhuinn o virou com um puxão. Os óculos de Havers estavam quebrados, uma das lentes rachada formando um padrão de teia de aranha, a alça do outro lado esticada num ângulo estranho.
Layla lançou um olhar para Phury. O Primale não parecia particularmente aborrecido: apenas cruzou os braços sobre o peito imenso e se recostou contra a parede ao lado dela, obviamente muito à vontade com aquela encenação. Do outro lado na cadeira, o mesmo acontecia com a doutora Jane, o olhar esverdeado era tranquilo enquanto observava o dramalhão.
– Olhe nos olhos dela – bramiu Qhuinn – e peça desculpas.
Quando o lutador sacudiu o médico como se ele não passasse de uma boneca de pano, algumas palavras amontoadas escaparam do médico.
Caramba. Layla supunha que deveria se portar como uma dama e não gostar daquilo, mas sentiu satisfação ante aquela vingança.
Tristeza também, porque a situação jamais deveria ter chegado àquilo.
– Aceita as desculpas dele? – Qhuinn perguntou num tom maldoso. – Ou prefere que ele rasteje? Eu ficarei muito feliz em transformá-lo num capacho aos seus pés.
– Isso foi o bastante. Obrigada.
– Agora você vai contar a ela – Qhuinn repetiu o chacoalhão, os braços de Havers quase sendo arrancados das juntas, o jaleco branco balançando tal qual uma bandeira – e somente a ela, que merda está acontecendo com o corpo dela.
– Preciso do... prontuário...
Qhuinn expôs as presas e as colocou ao lado da orelha de Havers, como se estivesse considerando a ideia de arrancá-la numa mordida.
– Tolice. E se você estiver contando a verdade? O lapso de memória vai causar a sua morte. Agora.
Havers já estava pálido, mas isso fez com que ele ficasse completamente branco.
– Comece a falar, doutor. E se o Primale, que o impressiona pra cacete, fizer a gentileza de me contar caso você desvie o olhar dela, isso seria maravilhoso.
– Com prazer – disse Phury.
– Não estou ouvindo nada, doutor. E não sou um cara muito paciente.
– Você é... – por detrás dos óculos quebrados, os olhos do macho encontraram os dela. – O seu filho...
Ela quase desejou que Qhuinn não forçasse aquele contato. Já era bastante difícil ouvir aquilo sem ter que encarar o médico que a tratara tão mal.
Mas, pensando bem, era Havers quem tinha de olhar para ela, e não o contrário.
Ela encarava os olhos de Qhuinn quando Havers disse:
– Você está sofrendo um aborto.
As coisas ficaram embaçadas dali por diante, portanto, ela deduziu que estivesse chorando. Entretanto, não sentia coisa alguma. Era como se sua alma tivesse sido tragada para fora do seu corpo, tudo o que a animava e conectava ao mundo nunca tivesse existido.
Qhuinn não demonstrou reação alguma. Não piscou. Não mudou de posição, nem balançou a adaga.
– Existe algo que possa ser feito em termos médicos? – questionou a doutora Jane.
Havers foi balançar a cabeça, mas parou quando a ponta afiada da adaga perfurou a pele do seu pescoço. Quando o sangue começou a descer pelo colarinho engomado da camisa social, o vermelho combinou com a gravata borboleta.
– Nada que eu saiba – respondeu o médico com voz rouca. – Não neste mundo, de qualquer forma.
– Diga a ela que ela não teve culpa – exigiu Qhuinn. – Diga a ela que ela não fez nada de errado.
Layla fechou os olhos.
– Presumindo que isso seja verdade...
– Em humanos, esse costuma ser o caso, desde que não tenha havido nenhum trauma – interveio a doutora Jane.
– Diga a ela – disse Qhuinn num estalido, o braço começando a vibrar bem de leve, como se estivesse a um passo de liberar a sua violência.
– É verdade – confirmou Havers meio engasgado.
Layla fitou o médico, procurando o olhar dele por trás dos óculos arruinados.
– Nada?
Havers falou rapidamente:
– A incidência de abortos espontâneos é de aproximadamente uma a cada três gestações. Acredito que, como acontece com os humanos, seja causado por um sistema autorregulatório que garante que defeitos de vários tipos não sejam levados a cabo.
– Mas, sem sombra de dúvida, eu estou grávida – disse ela num tom desprovido de emoção.
– Sim. Seus exames de sangue atestaram isso.
– Existe algum risco à vida dela – perguntou Qhuinn – se isso continuar?
– Você é o ghia dela? – perguntou Havers num rompante.
Phury interveio:
– Ele é o pai do filho dela. Portanto, você o tratará com o mesmo respeito com que me trataria.
Isso fez com que os olhos do médico saltassem das órbitas, as sobrancelhas emergissem por trás da armação arruinada. E foi engraçado; foi nesse instante que Qhuinn demonstrou um pouco de reação: apenas um leve vacilo em seu rosto antes que a expressão ferrenha voltasse a demonstrar agressividade.
– Responda – exigiu Qhuinn. – Ela corre algum perigo?
– E-eu... – Havers engoliu em seco. – Não existem garantias na medicina. De modo geral, eu diria que não; ela é saudável em relação ao resto, e o aborto parece estar seguindo seu curso costumeiro. Além disso...
Enquanto o médico continuava a falar, Layla percebeu que seu tom educado e refinado estava muito mais irregular do que na noite anterior.
Tudo regrediu, sua audição sumiu, junto a qualquer percepção de temperatura do quarto, a cama debaixo dela, bem como os outros corpos ao seu redor. A única coisa que enxergava eram os olhos descombinados de Qhuinn.
Seu único pensamento enquanto ele segurava aquela adaga junto ao pescoço do médico?
Mesmo não estando apaixonados um pelo outro, ele era exatamente o pai que queria que seu filho tivesse. Desde que tomara a decisão de participar do mundo real, ela aprendera o quanto a vida podia ser dura, como os outros podiam conspirar contra você e como, às vezes, a força baseada em seus princípios era a única coisa que o fazia atravessar a noite.
Qhuinn dispunha desse último aos montes.
Ele era um extraordinário e temível protetor, e era exatamente disso que uma fêmea precisava quando estava grávida, amamentando ou cuidando de um bebê.
Isso e sua gentileza inata o tornavam nobre a seu ver.
A cor dos seus olhos não importava.
Quase oitenta quilômetros ao sul de onde Havers molhava as calças de tanto medo em sua clínica, Assail estava atrás do volante de seu Range Rover, balançando a cabeça em descrença.
As coisas ficavam cada vez mais interessantes com aquela mulher.
Graças ao GPS, ele rastreara o Audi de longe quando ela decidira sair de seu bairro e tomar a Northway. A cada saída de subúrbio, ele esperava que ela a tomasse, mas enquanto eles deixavam Caldwell para trás para comer poeira, ele começou a pensar que talvez ela estivesse seguindo para Manhattan.
Nada disso.
West Point, o lar da venerável escola militar humana, ficava aproximadamente na metade do caminho entre a cidade de Nova York e Caldwell, e quando ela saiu da autoestrada àquela altura, ele ficou aliviado. Muitas coisas aconteciam lá naquela terra em que o código postal começava com 100, e ele não queria se distanciar muito de sua base por dois motivos: um, ainda não tivera notícias dos gêmeos quanto à aparição daqueles intermediários fuleiros, e, dois, a aurora surgiria em algum momento, e ele não apreciava a ideia de abandonar seu muito modificado e reforçado Range Rover no acostamento de uma estrada caso precisasse se desmaterializar de volta para a sua segurança.
Uma vez fora da estrada, a mulher prosseguiu a exatos setenta quilômetros por hora pela seleção de postos de combustível, hotéis turísticos e lanchonetes da cidade. Em seguida, do outro lado dessa coleção de lugares baratos, as coisas começaram a ficar mais caras. Casas grandes, do tipo que ficavam bem ao fundo de gramados que se pareciam com carpetes, começaram a aparecer, com seus muros de pedra baixos placidamente se aglomerando próximos à estradinha. Ela passou por todas essas propriedades, porém, para acabar parando no estacionamento de um parque que dava para a margem de um rio.
Assim que ela saiu do carro, ele passou por ela, virando a cabeça para trás para medi-la.
Uma centena de metros mais adiante, fora do campo de visão dela, Assail parou o carro no acostamento da estradinha, saindo para o vento enregelante, abotoando o casaco até o alto. Os sapatos não eram os ideais para caminhar sobre a neve, mas ele não se importou. Seus pés suportariam o frio e a umidade, e ele tinha outra dúzia de pares à sua espera no armário de sua casa.
Como o carro dela, e não o corpo, estava com o aparelho de rastreamento, ele manteve o olhar fixo nela. Como esperado, ela vestiu os esquis de cross-country e, depois, com uma máscara branca de esqui sobre a cabeça e roupa de camuflagem clara a lhe cobrir o corpo, ela praticamente desapareceu em meio ao cenário de inverno.
E ele a acompanhou.
Aparecendo a cada dez ou quinze metros, ele encontrou pinheiros para se esconder conforme ela avançava na direção de mansões, os esquis devorando o chão coberto de neve.
Ele concluiu, enquanto mantinha o compasso, antecipando a direção que ela tomaria e, em boa parte adivinhando, que ela iria para uma daquelas mansões.
Toda vez que ela passava por ele sem saber que ele estava em meio às árvores, seu corpo queria saltar. Para derrubá-la. Para mordê-la.
Por algum motivo, aquela humana o deixava faminto.
E brincar de gato e rato era algo muito erótico, especialmente se só o gato soubesse que o jogo estava valendo.
A propriedade na qual ela acabou se infiltrando ficava a quase dois quilômetros dali, mas, apesar da distância, o ritmo puxado daquelas pernas não diminuiu em nada. Ela entrou pelo lado direito do gramado da frente, aproximando-se de um muro de sempre-vivas, depois retomando seu curso.
Aquilo não fazia sentido. Se ela fosse descoberta, estava muito longe do carro. Por certo uma abordagem mais próxima teria feito mais sentido? Afinal, de qualquer modo, agora ela estava exposta, sem árvores para lhe servir de cobertura, nenhuma possível defesa contra uma acusação de invasão de propriedade se a vissem.
A menos que ela conhecesse o dono. E, nesse caso, por que se esconder e aparecer sorrateira no meio da noite?
O jardim de uns 30 mil metros quadrados gradualmente se elevava em direção a uma casa de pedras de uns 180 metros quadrados, com esculturas modernistas paradas como sentinelas brilhantes e cegas ante aquela aproximação, o gramado continuando pelo fundo. O tempo inteiro ela se ateve àquele muro e, observando-a a uns vinte metros de distância, ele se viu impressionado por ela. Contra a neve, ela se movia como uma brisa o faria, invisível e rápida, a sombra lançada contra o muro de pedras de tal modo que ela parecia desaparecer...
Ahhhh...
Ela escolhera aquela rota exatamente por isso, não?
Sim, de fato, o ângulo do luar lançava a sombra dela exatamente sobre as pedras, criando uma camuflagem ainda mais eficiente.
E aquela sensação estranha se intensificou nele.
Esperta.
Assail avançou, encontrando um esconderijo entre a vegetação na lateral da casa. De perto, notou que a mansão não era nova, embora também não fosse antiga – mesmo porque, no Novo Mundo, era raro se deparar com algo construído antes do século XVIII. Muitas janelas chumbadas. E varandas. E terraços.
Conclusão? Fortuna e distinção.
Sem dúvida, muito bem protegidas por inúmeros alarmes.
Parecia muito improvável que ela só fosse espiar a propriedade como fizera na dele. Para começar, havia uma extensão arborizada do lado oposto daquele muro de pedras que ela atravessara. Ela poderia ter estacionado os esquis, subido aquela moita de uns quatro a seis metros, e obtido uma vista privilegiada da casa. O que mais? Nesse caso, ela não precisaria de nada do que estava na mochila que lhe pesava nas costas.
A coisa parecia grande o bastante para transportar um corpo, e estava cheia.
Como se tivessem combinado, ela parou, pegou os binóculos e inspecionou a propriedade, ficando absolutamente imóvel com somente a cabeça a se mexer. E depois atravessou o gramado, movendo-se ainda mais rapidamente do que antes, a ponto de estar literalmente correndo em direção à casa.
Na direção dele.
De fato, ela seguia diretamente para Assail, para aquela junção entre arbustos que marcava a frente da mansão, para a sebe alta que corria ao redor do jardim dos fundos.
Obviamente, ela conhecia a propriedade.
Obviamente, ele escolhera o lugar perfeito.
Ante a aproximação dela, ele recuou apenas um pouco... porque não teria se importado em ser flagrado espiando.
A mulher esquiou mais uns dois metros além de onde ele se encontrava, aproximando-se tanto que ele conseguiu captar o cheiro dela não só em seu nariz, mas também no fundo da garganta.
Ele teve que se refrear para não ronronar.
Depois do esforço em atravessar aquela faixa de gramado com tanta rapidez, ela estava arfando, mas seu sistema cardiovascular se recuperou rápido – um sinal de sua boa saúde e vigor. E a velocidade com a qual ela agora se movia foi igualmente erótica. Tirando os esquis. Tirando a mochila. Abrindo a mochila. Extraindo...
Ele deduziu que ela subiria no telhado, enquanto ela montava o que parecia ser um lança-arpão. Ela mirou a coisa para cima, apertou o gatilho para atirar um gancho. Um instante depois houve o som de um metal se agarrando no alto.
Quando olhou para cima, ele percebeu que ela escolhera uma das poucas extensões de pedra sem janelas... e protegida pela sebe enorme na qual ele mesmo se escondia.
Ela ia entrar.
Àquela altura, Assail franziu o cenho... e desapareceu de onde a observava.
Reaparecendo nos fundos da casa no andar de baixo, ele espiou por várias janelas, apoiando as laterais das mãos no vidro ao se inclinar. O interior estava basicamente escuro, mas não completamente: aqui e acolá havia abajures acesos, as lâmpadas emitindo uma luz alaranjada sobre a mobília que era uma combinação de objetos antigos e arte moderna. Luxuoso que só: em seu sono pacífico, o lugar se parecia com um museu, ou algo que se fotografaria para uma revista, tudo muito bem organizado com uma precisão que haveria de se perguntar se réguas tinham sido utilizadas para dispor a mobília e os objetos de arte.
Nenhuma bagunça em lugar algum, nenhum jornal largado sem querer, nada de cartas, contas, recibos. Nenhum casaco sobre o espaldar de uma cadeira ou um par de sapatos abandonados ao lado do sofá.
Cada um dos cinzeiros imaculadamente limpos.
Somente uma pessoa lhe veio à mente.
– Benloise – sussurrou para si mesmo.
CAPÍTULO 36
Baseando-se nas vibrações regulares que vinham de seu bolso, Xcor sabia que a sua presença estava sendo desejada pelos seus lutadores.
Ele não atendeu.
Parado do lado de fora do prédio para o qual a sua Escolhida fora conduzida, ele não tinha forças nem para sair mesmo quando o fluxo de outros de sua espécie surgia em carros ou materializando-se diante do portal pelo qual ela fora levada. De fato, como tantos entraram e saíram, não havia dúvidas de que aquela era uma clínica médica.
Pelo menos ninguém parecia notá-lo, estando preocupados demais com o que os afligia, apesar do fato de ele estar parado no meio do caminho.
Ah, deuses, só o pensamento do que trouxera a sua Escolhida ali o nauseava ao ponto de ele ter de pigarrear e...
Inspirar o ar frio para dentro dos seus pulmões ajudou a conter a ânsia de vômito.
Quando o cio dela acontecera? Devia ter sido muito recentemente. Da última vez em que a vira...
Quem seria o pai?, perguntou-se pela centésima vez. Quem tomara o que era seu...
– Não seu – ele disse para si mesmo. – Não seu.
Só que era a sua mente dizendo isso e não os seus instintos. Em seu cerne, na parte mais máscula da sua essência, ela era a sua fêmea.
E, ironicamente, era isso o que o impedia de atacar a clínica – com todos os seus soldados, se necessário. Se ela estava recebendo cuidados, a última coisa que ele queria era interromper o processo.
Enquanto o tempo passava e a ausência de informações o torturava até a insanidade, ele percebeu que desconhecera a existência daquele lugar. Se ela fosse dele? Ele não teria sabido onde levá-la para obter ajuda, certamente teria mandado Throe encontrar algum lugar, de algum modo, para garantir os cuidados dela, mas e no caso de uma emergência? Uma hora ou duas procurando um curandeiro poderia significar a diferença entre a vida e a morte.
A Irmandade, por sua vez, soube exatamente onde levá-la. E quando ela recebesse alta daquele lugar, sem dúvida, eles a levariam de volta a um lugar aquecido, seguro, onde teria alimento abundante e uma cama macia, e a força valente de pelo menos seis guerreiros para protegê-la enquanto dormisse.
Irônico como ele se sentia à vontade com isso. Mas, pensando bem, a Sociedade Redutora era um adversário muito sério; e digam o que quiserem a respeito da Irmandade, eles provaram durante toda a eternidade serem defensores capazes.
Abruptamente, seus pensamentos se voltaram para o armazém em que ele e seus soldados vinham ficando. Aquele ambiente úmido, frio, hostil era, na verdade, apenas um degrau acima dos outros lugares em que levantaram acampamento. Se ela estivesse com ele, como a manteria? Nenhum macho jamais poderia vê-la em sua presença, especialmente se ela tivesse de trocar de roupa ou se banhar...
Um rugido se infiltrou em sua garganta.
Não. Nenhum macho colocaria os olhos na pele dela ou ele o esfolaria vivo...
Ah, Deus, ela se vinculara a outro. Abrira-se e aceitara outro macho dentro de suas carnes sagradas.
Xcor abaixou o rosto entre as mãos, a dor em seu peito fazendo-o cambalear em suas botas de combate.
Deve ter sido o Primale. Sim, claro, ela se deitara com Phury, filho de Ahgony. Era esse o único modo com que as Escolhidas se procriavam, se a sua memória e os boatos estivessem certos.
Instantaneamente, sua mente ficou enevoada com a imagem do rosto perfeito e da silhueta delgada. Pensar que outro a desnudara e cobrira-lhe o corpo com o dele...
Pare, ele se ordenou. Pare com isso.
Arrastando sua mente para longe dessa loucura, ele se desafiou a definir qualquer tipo de hospedagem que poderia propiciar a ela. Em qualquer circunstância.
O único pensamento que lhe ocorreu foi voltar e matar aquela fêmea de quem seus soldados se alimentaram. Aquele chalé parecera bem tranquilo e adorável...
Mas para onde iria sua Escolhida durante o dia?
E, além disso, ele jamais a envergonharia permitindo que ela sequer andasse sobre o tapete onde todo aquele sexo acontecera.
– Com licença.
Xcor buscou a pistola dentro da jaqueta ao dar meia-volta. Só que não havia necessidade de usar força bruta – era apenas uma fêmea pequena com seu filho. Ao que tudo levava a crer, eles tinham saído de um utilitário estacionado a poucos metros dele.
Enquanto a criança se escondia atrás da mãe, os olhos da fêmea se arregalaram de medo.
Mas, pensando bem, quando se tropeça num monstro, sua presença dificilmente é recebida com alegria.
Xcor se curvou profundamente, em grande parte porque a visão do seu rosto por certo não estava melhorando a situação.
– Sim, como não...
Dito isso, ele recuou e virou, voltando ao posto originalmente ocupado. Na verdade, não percebera o quanto tinha se exposto.
E ele não queria brigar. Não com a Irmandade. Não com a sua Escolhida daquele modo. Não... ali.
Fechando os olhos, desejou poder voltar para aquela noite quando Zypher o levara para a campina e Throe, com o subterfúgio de ajudá-lo, o condenara àquele tipo de morte em vida.
Um macho vinculado que não podia estar com sua fêmea?
Morto apesar de viver...
Sem aviso, o portal foi puxado para trás e sua Escolhida surgiu. Instantaneamente, os instintos de Xcor gritaram para que ele agisse, apesar de todos os motivos para deixá-la em paz.
Leve-a! Agora!
Mas ele não o fez: as expressões sérias daqueles que a protegiam com tamanho cuidado o imobilizaram: notícias ruins foram dadas durante a estada deles ali.
Como antes, só faltaram carregá-la até o veículo.
E o cheiro do sangue dela ainda pairava no ar.
Sua Escolhida foi acomodada no banco traseiro do sedã, com a fêmea ao lado dela. Depois, Phury, filho de Ahgony, e o guerreiro de olhos descombinados entraram na frente. O veículo foi virado bem lentamente, como que por preocupação com a carga preciosa no compartimento traseiro.
Xcor os seguiu, materializando-se de tempos em tempos acompanhando a velocidade crescente na estrada rural ao fim da rua, e depois na autoestrada. Quando o carro chegou à ponte, ele mais uma vez o viu do mais alto esteio e depois que sua fêmea passou debaixo dele, ele saltou de telhado em telhado enquanto o sedã dava a volta no centro da cidade.
Ele rastreou o carro seguindo ao norte até sair da autoestrada e entrar numa região rural.
Continuou com ela o tempo inteiro.
E foi assim que ele descobriu a localização da Irmandade.