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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AMANTE FINALMENTE
AMANTE FINALMENTE

 

 

 

                                                            Irmandade da "Adaga Negra"                                                                 

 

 

 

 

CAPÍTULO 22

Do outro lado do rio, na clínica de Havers, Layla finalmente teve que sair da mesa de exames e andar pela saleta. Perdera completamente a noção do tempo àquela altura. De fato, parecia que ela estivera fitando aquelas quatro paredes por uma eternidade. E continuaria a fitar pelo resto de sua vida na face da Terra.

A única parte sua que permanecia fresca e ocupada era a cabeça. Infelizmente, ela se concentrava em pensar no que a enfermeira lhe dissera... que aquilo era um aborto. Que era muito provável que ela tivesse concebido...

Quando a batida à porta que ela tanto esperava chegou, foi inesperada e a assustou.

– Entre – disse ela.

A enfermeira que fora tão gentil entrou... mas parecia diferente. Ela se recusava a olhar para Layla, e o rosto estava congelado numa máscara. Havia um tecido branco dobrado no braço, e ela o empurrou para a frente, desviando o olhar. E depois fez uma mesura.

– Sua Graça – disse ela com uma voz trêmula. – Eu... Havers... nós... não sabíamos.

Layla franziu o cenho.

– O que está...

A enfermeira sacudiu o manto, como se tentasse forçar Layla a aceitá-lo.

– Por favor, vista isto.

– Do que se trata?

– A senhora tem sangue de Escolhida – a voz da enfermeira tremulou. – Havers está... perturbado.

Layla se esforçou para compreender as palavras. Então aquilo não era... por causa da gravidez?

– O quê... Não compreendo. Por que ele está... está perturbado porque sou uma Escolhida?

A outra fêmea empalideceu.

– Pensávamos que a senhora fosse... decaída?

Layla cobriu os olhos com as mãos.

– Eu logo poderei ser isso... dependendo do que acontecer – ela não tinha energia para aquilo. – Alguém poderia me contar o resultado dos exames e o que preciso fazer para cuidar de mim?

A enfermeira remexeu no tecido, ainda tentando entregá-lo.

– Ele não pode voltar para cá...

– O quê?

– Não se não estiver... Ele não pode ficar aqui com a senhora. Ele nunca deveria ter...

Layla avançou, sua calma sumindo.

– Deixe-me ser bem clara, quero falar com o médico – ante essa exigência, a enfermeira levantou a cabeça para olhar para ela. – Tenho o direito de saber o que ele descobriu a respeito do meu corpo. Diga isso a ele agora.

Não havia nenhum guincho em sua voz. Nenhuma histeria aguda; apenas um tom neutro, poderoso, que ela nunca vira saindo de sua boca antes.

– Vá. E traga-o – exigiu.

A enfermeira levantou o pedaço de pano.

– Por favor. Vista isso. Ele...

Layla se esforçou para não gritar.

– Sou apenas uma paciente qualquer...

A enfermeira aprumou os olhos e franziu o cenho.

– Com licença, mas isso não é bem verdade. Segundo o médico, ele a violou durante o exame.

– O quê?

A enfermeira apenas a encarou.

– Ele é um bom macho. Um macho muito tradicional em seu modo de ser...

– O que isso, em nome da Virgem Escriba, tem a ver com qualquer coisa?

– O Primale pode matá-lo pelo que ele lhe fez.

– Durante o exame? Eu permiti... era um procedimento médico necessário!

– Isso não faz diferença. Ele fez algo ilegal.

Layla fechou os olhos. Deveria ter usado a clínica da Irmandade.

– A senhora tem que perceber de onde ele vem – ponderou a enfermeira. – A senhora vem de uma hierarquia com a qual não temos contato... e, mais do que isso, nem deveríamos ter contato.

– Tenho um coração pulsante e um corpo que precisa de ajuda. Isso é tudo o que ele, e qualquer outra pessoa, precisa saber. A carne é a mesma.

– O sangue não é.

– Ele tem que vir me ver...

– Ele não virá.

Layla voltou a focalizar a enfermeira. E depois pousou a mão no baixo ventre. Por toda sua existência, até então, ela vivera do lado da integridade, servindo com lealdade, executando suas tarefas, existindo apenas dentro dos parâmetros prescritos ditados por outrem.

Não mais.

Estreitou o olhar.

– Diga ao médico que ou ele vem até aqui e me diz pessoalmente o que está acontecendo... ou procuro o Primale e conto palavra por palavra o que aconteceu aqui.

Deliberadamente, desviou o olhar para a máquina utilizada durante o exame interno.

Enquanto a enfermeira empalidecia, Layla não sentiu nenhuma alegria no poder utilizado. Tampouco se arrependia.

A enfermeira fez uma mesura e saiu do quarto, deixando aquele pedaço de pano ridículo na bancada baixa ao lado da pia.

Layla nunca considerara seu status de Escolhida nem um fardo nem um benefício. Era simplesmente quem ela era: sua sina, o destino que lhe fora dado se manifestando por meio da respiração e da consciência. Outros, porém, não eram tão fleumáticos, especialmente ali embaixo.

E aquilo era apenas o começo.

Pensando bem, estava perdendo o bebê, não estava? Então, aquilo era o fim.

Esticando a mão, pegou o pano e o enrolou ao seu redor. Não se importava com as sensibilidades do médico, mas se ficasse coberta como lhe pediram, talvez ele se concentrasse nela em vez do que em quem ela era.

Quase imediatamente houve outra batida à porta e, quando Layla respondeu, Havers entrou, parecendo ter uma arma na cabeça. Mantendo o olhar no chão, ele apenas os fechou parcialmente na sala, antes de cruzar os braços sobre o estetoscópio.

– Se eu tivesse sabido do seu status, jamais a teria tratado.

– Procurei-o por livre e espontânea vontade, como uma paciente necessitada.

Ele balançou a cabeça.

– A senhora é uma santidade na Terra. Quem sou eu para intervir em assunto tão sagrado?

– Por favor. Apenas ponha um fim no meu sofrimento e me diga o que está acontecendo.

Ele retirou os óculos e esfregou o nariz.

– Não posso divulgar essa informação para a senhora.

Layla abriu a boca. Fechou-a.

– Como disse?

– A senhora não é minha paciente. O seu filho e o Primale são... Portanto, falarei com ele quando puder...

– Não! Não deve procurá-lo!

O olhar que ele lhe lançou sugeriu um desdém que ela imaginava que ele normalmente reservasse a prostitutas. E, em seguida, ele falou num tom baixo, vagamente ameaçador:

– Não está em posição de exigir nada.

Layla se retraiu.

– Vim até aqui porque quis, como uma fêmea independente...

– Você é uma Escolhida. Não só é ilegal para mim acolhê-la, como também posso ser julgado pelo que lhe fiz antes. O corpo de uma Escolhida...

– Pertence a ela mesma!

– ... ao Primale, por lei, como deveria ser. Você é de pouca importância... Nada além de um receptáculo para aquilo que lhe é dado. Como ousa vir até aqui, fingindo ser uma simples fêmea, e colocar o meu consultório e minha vida em risco com tal engodo?

Layla sentiu uma onda de raiva estremecer até cada uma das terminações nervosas de seu corpo.

– De quem é o coração que bate neste corpo? – ela bateu no peito. – De quem é esta respiração aqui dentro!

Havers balançou a cabeça.

– Falarei com o Primale e somente com ele...

– Não pode estar falando sério! Só eu vivo nesta carne. Ninguém mais...

O rosto do médico se contraiu em desgosto.

– Como já disse, você não passa de um recipiente para o mistério divino em seu ventre, o próprio Primale está em sua carne, e, por isso, eu a deterei aqui até que...

– Contra a minha vontade? Acho que não.

– Ficará aqui até que o Primale venha buscá-la. Não serei responsável por deixá-la livre no mundo.

Os dois se encararam.

Com uma imprecação, Layla arrancou o tecido que a cobria.

– Bem, esse seu plano é ótimo. Mas estou me despindo neste segundo e sairei daqui desse modo se assim for necessário. Fique e observe se quiser... ou pode tentar tocar em mim, mas acredito que isso seria considerado outra violação de algum tipo para o senhor, não seria?

O médico saiu com tanta rapidez que tropeçou no corredor.

Layla não desperdiçou sequer um segundo, vestindo suas roupas e se apressando pelo corredor. Ainda que fosse improvável que houvesse apenas uma saída, a da recepção – deviam existir outras rotas de fuga, para o caso de um ataque –, infelizmente, ela não conhecia a planta da clínica.

Sua única opção era ir direto para a entrada. E teria de fazer isso caminhando, pois estava furiosa demais para se desmaterializar.

Trotando, Layla tomou a direção pela qual entrara e, quase imediatamente, como se tivessem sido instruídas a tal, a equipe de enfermagem apareceu em seu caminho, tomando conta do corredor, impossibilitando-a de passar.

– Se uma de vocês tocar em mim – exclamou ela no Antigo Idioma –, considerarei isso uma violação da minha santidade sagrada.

Todas pararam.

Enfrentando cada um dos olhares, ela se adiantou e forçou-as a se afastarem, um caminho se formando entre as figuras imóveis e depois voltando a se fechar atrás dela. Na sala de espera, ela parou na frente do balcão de recepção e encarou a fêmea que, alarmada, continuava apenas sentada.

– Você tem duas escolhas – Layla indicou a porta de saída reforçada. – Pode voluntariamente abrir aquela porta para mim, ou eu a explodo com o meu poder... expondo todos vocês e os seus pacientes para o açoite da luz do sol que entrará – consultou o relógio da parede – em menos de sete horas. Não tenho certeza se vocês poderão consertar esse tipo de estrago a tempo... você tem?

O clique da trava sendo aberta ressoou no silêncio.

– Obrigada – murmurou com educação ao se encaminhar para a saída. – A sua aquiescência é muito apreciada.

Afinal, ela jamais se esquecia dos seus modos.

Sentado atrás da escrivaninha, com o traseiro confortável no trono que seu pai fizera séculos e séculos atrás, Wrath, filho de Wrath, escorregava o dedo para cima e para baixo na suave lâmina de prata do abridor de cartas em forma de adaga. Ao seu lado, no chão, George roncava pelo focinho.

O cão dormia em raros momentos.

Se alguém batesse à porta ou entrasse, ou se o próprio Wrath se movesse de algum modo, a cabeçorra se levantava e a coleira pesada fazia barulho. O alerta instantâneo também aparecia se alguém atravessasse o corredor, ou usasse um aspirador de pó em algum lugar, ou abrisse a porta do vestíbulo no andar de baixo. Ou servisse uma refeição. Ou espirrasse na biblioteca.

Depois que a cabeça se erguia, havia uma escala de reações, variando do nada (atividades na sala de jantar, aspirador e espirro), a um levantar de orelhas (a porta da frente se abrindo ou alguém no corredor) até a atenção completa sentando-se (batida e entrada). O cachorro nunca era agressivo, porém servia como um detector de movimentos, deixando a decisão quanto ao que fazer a seu dono.

O cão guia era um cavalheiro.

E, mesmo assim, ainda que a natureza mansa fosse parte do animal bem como os pelos longos e macios, e o corpo grande e amplo, Wrath, vez ou outra, testemunhara vislumbres da fera dentro de tal combinação adorável: quando se está em meio a um bando de lutadores agressivos e másculos como a Irmandade, as cabeças esquentavam vez ou outra, mesmo em relação ao Rei. E isso não incomodava Wrath. Ele estava junto aos filhos da mãe há tempo demais para se importar com um pouco de batidas no peito e seguradas de saco.

George, no entanto, não gostava disso. Se algum deles se metesse a valentão em relação ao Rei, os pelos do cão gentil se eriçavam e ele rosnava em aviso enquanto pressionava o corpo às pernas de Wrath, como se estivesse se preparando para mostrar aos Irmãos o comprimento das suas presas para o caso de as coisas chegarem às vias de fato.

A única coisa que Wrath amava mais era a sua rainha.

Abaixando a mão, afagou o flanco do cachorro; depois, voltou a se concentrar na sensação do abridor de cartas contra o dedo.

Jesus Cristo. Aviões caindo do céu... Irmãos se machucando... Qhuinn bancando o herói novamente...

Pelo menos a noite não fora apenas um drama de provocar ataques cardíacos. Na verdade, começaram em boa nota com a prova de que precisavam para atacar o Bando de Bastardos: V. concluíra o teste de balística e, caramba, a bala extraída do pescoço de Wrath começara sua trajetória no rifle encontrado no covil de Xcor.

Wrath sorriu consigo, as presas coçando nas pontas.

Aqueles traidores agora estavam, oficialmente, na sua lista de inimigos, com o amparo total da lei – e estava na hora de causar alguns estragos.

Nesse instante, George sacudiu a cabeça, e a batida insistente à porta que se seguiu indicava que Wrath não devia ter notado a primeira batida.

– Entre.

Ele sabia quem era antes que a Irmandade entrasse: V. e o tira. Rhage. Tohr. Phury. E, por fim, Z., quem, a julgar pelo baque, parecia estar usando uma bengala.

Fecharam a porta.

Como ninguém se sentou, tampouco jogou conversa fora, ele soube exatamente por que vieram vê-lo.

– Qual o veredicto, senhoras? – perguntou de modo arrastado, ao se recostar contra o trono.


Foi a voz de Tohr que lhe respondeu:

– Estivemos pensando a respeito de Qhuinn.

Ele apostava nisso. Depois de apresentar a ideia na reunião no começo da noite, não pressionara por um sim ou um não. Havia muitas coisas que ele, como rei, tinha que enfiar goela abaixo das pessoas. Quem os Irmãos aceitariam no grupo não era uma dessas coisas.

– E?

Zsadist falou no Antigo Idioma:

– Eu, Zsadist, filho de Ahgony, iniciado no ano 242 do reino de Wrath, filho de Wrath, por meio desta indico Qhuinn, um órfão no mundo, como membro da Irmandade da Adaga Negra.

Ouvir as palavras formais saírem da boca do Irmão foi um choque. Z., dentre todos eles, acreditava que o passado era um monte de asneira. Não quando se referia àquilo, pelo visto.

Jesus, pensou Wrath. Eles dariam prosseguimento àquilo. E rápido – acreditara que eles precisariam de mais tempo. Dias de reflexão. Semanas. Talvez um mês – e, talvez, um “não” por uma série de motivos.

Mas eles estavam dispostos – e, em concordância, também Wrath.

– Em que se baseia esse pedido em seu nome e de sua linhagem? – perguntou Wrath.

Em seguida, Z. deixou a formalidade de lado e foi para a realidade que importava.

– Ele me trouxe de volta para casa em segurança, para a minha shellan e minha pequena filha. Arriscando a própria vida.

– Muito justo.

Wrath passou o olhar por todos os machos parados diante de sua escrivaninha, mesmo sem conseguir enxergá-los. A visão não importava. Ele não precisava de retinas operantes para lhe dizer onde todos estavam e como se sentiam a respeito daquilo; o odor de suas emoções estava claro.

Eram, como grupo, firmes, resolutos e orgulhosos.

Mas as formalidades eram necessárias.

Wrath começou pelo que estava na ponta.

– V.?

– Eu estava pronto para atacar quando ele já estava em cima de Xcor.

Houve um grunhido de concordância.

– Butch?

O sotaque de Boston se fez alto e claro:

– Considero-o um lutador de primeira. E gosto dele. Ele está amadurecendo, deixando de lado a atitude negativa, está se tornando sério.

– Rhage?

– Deveria tê-lo visto hoje. Ele não me deixou pilotar o avião... disse que dois Irmãos seria muito a perder.

Mais grunhidos de concordância.

– Tohr?

– Na noite em que você foi atingido? Eu consegui tirá-lo de lá graças a ele. Ele tem valor.

– Phury?

– Gosto dele. De verdade. Ele é o primeiro a agir em qualquer situação. Ele, literalmente, faria qualquer coisa por qualquer um de nós... não importando o quanto possa ser perigoso.

Wrath tamborilou as juntas na mesa.

– Está acertado, então. Direi a Saxton para providenciar as mudanças e faremos isso.

Tohr se intrometeu:

– Com todo o respeito, meu senhor, precisamos resolver a questão do ahstrum nohtrum. Cuidar da retaguarda de John não pode mais ser a diretriz primária dele.

– Concordo. Diremos a John para liberá-lo disso... e não creio que a resposta seja negativa. Então, farei com que Saxton cuide da papelada, e depois da iniciação de Qhuinn; V., cuide da tatuagem no rosto dele. Como se John tivesse morrido de causas naturais ou algo do tipo?

Houve um barulho de roupas se mexendo, como se os Irmãos estivessem fazendo o gesto simbólico de “que a Virgem Escriba não permita isso” por sobre o peito.

– De acordo – disse V.

Wrath cruzou os braços diante do peito. Aquele era um momento histórico e ele sabia muito bem isso. A iniciação de Butch fora legal por causa do laço de sangue que ele tinha com a realeza. Qhuinn era uma história diferente. Nenhum sangue real. Nenhum sangue de Escolhida ou de Irmandade, ainda que, tecnicamente, ele fosse da aristocracia.

Nenhuma família.

Por outro lado, o garoto dera provas de quem era vezes sem conta no campo de batalha, fazendo jus a um padrão que, segundo as Antigas Leis atualmente determinavam, era reservado somente para aqueles de linhagens específicas – e isso era tolice. Não que Wrath não apreciasse os planos de procriação da Virgem Escriba. As combinações entre os machos mais fortes e as fêmeas mais inteligentes produziram, de fato, resultados extraordinários no que se referia aos lutadores.

Porém, também resultara em defeitos como a sua cegueira. E limitava as promoções baseadas no mérito.

No fim, a reformulação das leis no tocante a quem poderia ou não estar na Irmandade não era apenas apropriado nos termos de que tipo de sociedade ele desejava criar – era uma questão de sobrevivência. Quanto mais lutadores, melhor.

Além do mais, Qhuinn verdadeiramente fizera por merecer a honra.

– Que assim seja – murmurou Wrath. – Oito é um bom número. Um número de sorte.

O murmúrio de concordância perpassou o ar mais uma vez, o som de uma única e completa solidariedade.

Aquele era o futuro, pensou Wrath ao sorrir e revelar as presas. E era certo.


CAPÍTULO 23

Enquanto Sola Morte estava no escritório do “chefe”, seu corpo estava numa pose de combate. Pensando bem, aquele era seu modo de ser, e nada específico em relação ao ambiente ou à conversa que se sucedia.

Essa última, no entanto, não melhorava muito o seu humor.

– Desculpe, o que disse? – exigiu saber.

Ricardo Benloise sorriu em seu típico modo tranquilo e distante.

– A sua missão está completa. Obrigado pelo seu tempo.

– Eu nem lhe contei o que descobri lá.

O homem se recostou na cadeira.

– Pode receber seus honorários com meu irmão.

– Não entendo isso – quando ele telefonara menos de 48 horas antes, aquilo tinha sido uma prioridade. – Você disse...

– Seus serviços não são mais necessários para esse propósito específico. Obrigado.

Será que ele estava trabalhando com outra pessoa? Mas quem em Caldwell fazia o tipo de coisas que ela fazia?

– Você nem mesmo quer saber o que descobri.

– Sua missão chegou ao fim – o homem sorriu novamente, de modo tão profissional, que alguém poderia jurar que ele era um advogado ou um juiz. Não um criminoso em escala global. – Mal posso esperar para voltarmos a trabalhar juntos no futuro.

Um dos guarda-costas ao fundo deu alguns passos à frente, como se estivesse pronto para levar o lixo para fora.

– Alguma coisa está acontecendo naquela casa – disse ela ao se virar. – Quem quer que seja, está escondendo...

– Não quero que volte lá.

Sola parou e olhou por sobre o ombro. A voz de Benloise estava tranquila como sempre, mas os olhos eram francos.

Bem, aquilo era interessante.

A única explicação possível com alguma lógica era de que o senhor Misterioso da grande casa de vidro alertara Benloise para que recuasse. Será que sua visitinha fora descoberta? Ou seria aquilo apenas uma demonstração rotineira de como as coisas prosseguiam no tráfico de drogas?

– Está ficando sentimental? – perguntou ela com suavidade. Afinal, ela e Benloise se conheciam há tempos.

– Você é uma commodity muito útil – o sorriso atenuou a ferroada das palavras. – Agora vá e fique em segurança, niña.

Ah, pelo amor de Deus... não havia motivos para brigar com o homem. E ela receberia seu dinheiro, portanto, por que se importar?

Ela acenou, seguiu para a porta e desceu as escadas. No espaço da galeria, seguiu para o fundo do prédio, onde os empregados legítimos trabalhavam durante o expediente lícito. Passando os arquivos e as mesas, que pareciam do tamanho de uma casinha da Barbie graças ao teto alto industrial quinze metros acima, ela tomou um corredor estreito que estava marcado apenas pelas câmeras de segurança.

Bater à porta era inútil, mas ela o fez assim mesmo, os painéis à prova de balas absorvendo o som das juntas, como se estivessem com fome. Para auxiliar o irmão de Benloise (não que Eduardo precisasse disso) ela se virou para a câmera mais próxima e mostrou o rosto.

As travas foram abertas momentos depois. O escritório de Ricardo era minimalista ao extremo; o de Eduardo era um lugar em que Donald Trump, com todo o seu fetiche por ouro, sentiria-se sufocado.

Com um pouco mais de mármore e tecidos dourados, você se sentiria num prostíbulo.

Enquanto Eduardo sorria, seus dentes falsos eram da forma e cor das teclas de um piano, e o bronzeado uniforme tão profundo, que pareceria ter sido colocado nele com uma caneta permanente. Como sempre, ele estava usando um terno de três peças, ao estilo do senhor Roarke da Ilha da Fantasia, com a exceção de ser preto, e não branco.

– Como está hoje? – o olhar dele passeou pelo seu corpo. – Parece-me ótima.

– Ricardo disse para eu procurá-lo para pegar o meu dinheiro.

Instantaneamente, Eduardo se mostrou sério, lembrando-a do motivo pelo qual Ricardo o mantinha por perto: laços de sangue e competência eram uma combinação poderosa.

– Sim, ele me avisou que você viria – Eduardo abriu uma das gavetas e pegou um envelope. – Aqui está.

Ele esticou o braço ao longo da escrivaninha, e ela pegou o que lhe foi oferecido, abrindo-o imediatamente.

– Aqui só tem a metade – ela levantou o olhar. – Só tem dois e quinhentos.

Eduardo sorriu exatamente como o irmão: só no rosto, sem atingir o olhar.

– A missão não foi completada.

– Foi o seu irmão quem a suspendeu. Não eu.

Eduardo ergueu as palmas para cima.

– Esse é o seu pagamento. Ou pode deixar o dinheiro aqui.

Sola estreitou o olhar.

Fechando a aba do envelope devagar, ela o virou na mão, esticou o braço e depositou-o sobre a mesa. Deixando o indicador apoiado nele, assentiu uma vez.

– Como quiser.

Virando-se, foi para a porta e esperou que ela fosse destrancada.

– Niña, não faça assim – disse Eduardo. Quando ela nada disse, o rangido da cadeira indicou que ele estava se levantando e dando a volta na mesa.

E logo a colônia dele atingiu seu nariz, e as mãos dele pousaram em seus ombros.

– Preste atenção – disse ele. – Você é muito importante para Ricardo e para mim. Nós não a estamos desmerecendo... mucho respeito, certo?

Sola olhou por cima do ombro.

– Deixe-me sair.

– Niña.

– Agora.

– Leve o dinheiro.

– Não.

Eduardo suspirou.

– Você não precisa ser assim.

Sola apreciou a culpa que se fez ouvir na voz dele. A reação, na verdade, era a que ela buscava. Como muitos homens da cultura deles, Eduardo e Ricardo Benloise foram criados por uma mãe tradicional, e isso significava que sentir culpa era um ato reflexo.

Mais eficaz do que gritar com eles ou implorar.

– Saia – disse ela. – Agora.

Eduardo suspirou novamente, dessa vez mais profunda e demoradamente, o som da confirmação de que a manipulação dela mais uma vez atingira o alvo.

Entretanto, ele não lhe deu o dinheiro devido. Apesar da decoração excessiva e do retrospecto da dinâmica da sua infância, ele era mais fechado que um cofre de banco. Dito isso, ela tinha certeza de que arruinara a noite dele, portanto existia satisfação no ato... e ela cuidaria daquilo que Ricardo lhe devia.

Ele podia ser justo. Ou, conforme preferira, fazer o que ela não queria.

Isso vinha acompanhado de uma sobretaxa, evidentemente.

Sim, teria sido muito mais barato para ele lhe dar o valor correto, contudo, ela não era responsável pelas decisões dos outros.

– Ricardo ficará decepcionado – disse Eduardo. – Ele odeia ficar decepcionado. Por favor, apenas aceite o dinheiro; isto não está certo.

A parte lógica de seu cérebro sugeria que ela aproveitasse a oportunidade de apontar a injustiça de ser passada para trás naquilo que lhe era devido. Mas se ela bem conhecia aqueles irmãos, o silêncio... ah, o silêncio...

Como a natureza odiava o vácuo, o mesmo acontecia com a consciência dos sul-americanos bem-criados.

– Sola...

Ela simplesmente cruzou os braços diante do peito e continuou a olhar para a frente. Deixa para o espanhol: Eduardo disparou a falar em sua língua nativa, como se a angústia o despisse das suas habilidades no inglês.

Ele, finalmente, desistiu e a deixou sair cerca de dez minutos mais tarde.

Haveria rosas na sua porta às nove da manhã. No entanto, ela não estaria em casa.

Ela tinha trabalho a fazer.

– Como assim, eles não apareceram? – Assail exigiu saber no Antigo Idioma.

Ao se recostar no assento do Range Rover, segurou o celular firme contra a orelha. O farol vermelho logo adiante impedia seu progresso, e era difícil não enxergar isso como um paralelo cósmico.

Seu primo foi direto, como sempre:

– Os receptadores não chegaram na hora combinada.

– Quantos?

– Quatro.

– O quê? – mas não havia necessidade de o macho repetir. – E nenhuma explicação?

– Nada na rua da parte dos outros sete, se é isso o que está perguntando.

– O que fez com o produto extra?

– Trouxe para casa comigo.

Quando o farol ficou verde, Assail pisou no acelerador.

– Vou fazer o pagamento completo para Benloise, e depois vou me encontrar com você.

– Como preferir.

Assail virou à direita e se afastou do rio. Dois quarteirões à frente, uma curva à esquerda o deixou perto da galeria novamente; outra à esquerda e ele chegava aos fundos.

Já havia um carro estacionado ali, um Audi preto, e ele parou atrás do sedã. Abaixando à frente do banco de passageiros, apanhou pela alça uma maleta de metal prateada e saiu do carro.

Nesse instante, a porta dos fundos da galeria se abriu e alguém saiu.

Uma fêmea humana, a julgar pelo cheiro.

Ela era alta e tinha pernas longas. Cabelos escuros e volumosos penteados para trás. Queixo erguido, como se estivesse pronta para um confronto. Ou como se tivesse acabado de sair de um.

Mas nada disso era relevante para ele. Exceto a parca: uma parca de camuflagem branca sobre creme.

– Boa noite – disse ele num tom baixo quando se encontraram no beco. Ele pronto para entrar, ela, saindo.

Ela parou e franziu o cenho, a mão entrando sorrateira no casaco. Num rompante, ele se viu questionando como seriam os seios dela.

– Nos conhecemos? – perguntou ela.

– Estamos nos conhecendo agora – ele esticou a mão e disse: – Como vai?

Ela olhou para a mão dele, depois voltou a se concentrar no rosto.

– Alguém já lhe disse que você parece o Drácula com esse sotaque?

Ele sorriu contido para que as presas não aparecessem.


– Algumas comparações foram feitas de tempos em tempos. Não vai apertar a minha mão?

– Não – ela indicou a porta da galeria com a cabeça. – É amigo dos Benloise?

– Sou. E você?

– Não os conheço. Bela maleta, a propósito.

Com isso, ela se virou sobre os saltos e se dirigiu para o Audi. Depois que a luz do alarme piscou, ela entrou, o vento varrendo os cabelos sobre seus ombros enquanto ela desaparecia atrás do volante.

Ele saiu da frente quando ela acelerou e saiu dali.

Assail a observou se afastar e se descobriu pensando com desdém a respeito do seu parceiro de negócios Benloise.

Que tipo de homem enviava uma fêmea para aquele tipo de trabalho?

Enquanto as luzes de freio se iluminaram brevemente, e depois viraram a esquina, Assail sinceramente esperava que o limite estabelecido previamente naquela noite fosse respeitado. Seria uma pena ter de matá-la.

Não que ele hesitaria sequer um instante se a situação o exigisse.


CAPÍTULO 24

Deitado de costas no concreto duro, os diversos anos de Zypher como membro do Bando de Bastardos significava que ele estava bem familiarizado com a falta de acomodações de que agora usufruía: o traseiro estava entorpecido pelo frio bem como pela ausência de um colchão debaixo do corpo pesado. Do mesmo modo, a cabeça estava amparada apenas pela mochila que ele usara para carregar seus poucos pertences para o novo QG no porão daquele armazém. Além disso, a coberta fina e áspera que o cobria não era comprida o suficiente, deixando expostos seus pés apenas de meias ao ar frio e úmido.

Mas ele estava no paraíso. Um paraíso perfeito.

Correndo em suas veias estava o sangue daquela fêmea, e, ah, que alívio... Tendo passado quase um ano sem alimentação adequada, ele se acostumara à fadiga, aos músculos desassossegados e às dores. Mas tudo aquilo se acabara.

De fato, era como se estivesse inflando com força, a pele voltando a se esticar à sua dimensão própria, a altura mais uma vez retornado ao seu normal, a mente tanto sonolenta pelo que se passara quanto se aguçando a cada momento que transcorria.

Contudo, caso tivesse uma cama, ele também a apreciaria, claro. Travesseiros macios, lençóis cheirosos, roupas limpas... aquecimento no inverno, ar-refrigerado no verão... alimento num estômago vazio, água na garganta seca... tudo isso era bom quando se conseguia ter.

No entanto, não eram necessários.

Uma pistola limpa, uma adaga afiada, um lutador pleno em sua totalidade. Era disso que precisava.

E, claro, nas horas vagas, seria bom ter uma fêmea desejosa deitada de costas. Ou de bruços. Ou de lado com um joelho erguido até o seio expondo o sexo pronto para ele.

Ele não era de escolher muito.

Santa Virgem Escriba, aquilo era o... êxtase.

Não era uma palavra que usasse com muita frequência – e ele não queria dormir durante aquele despertar. Mesmo enquanto os outros se deixavam cair no descanso dos mortos, cada um deles na mesma recuperação que ele próprio estava amortecido, ele permanecia profundamente ciente da sua incandescência interna gloriosa.

Só havia uma coisa que o estava irritando. As passadas.

Entreabriu um olho.

Bem no limiar da luz das velas, Xcor andava de um lado para o outro, o caminho restrito entre duas imensas colunas de sustentação que segurava o pavimento superior.

O líder deles nunca estava à vontade, mas aquela inquietação era diferente. A julgar pelo modo como segurava o aparelho telefônico, esperava uma ligação. E isso explicava por que ele estava ali. O único lugar em que conseguiam um sinal era debaixo de um dos alçapões. A porta era feita de madeira, e a malha de aço que fora colocada por baixo foi a única alteração que fizeram quando espantaram os últimos vagabundos humanos, selando as portas exteriores para se mudarem para ali.

Dessa forma, os vampiros não poderiam se materializar ali embaixo.

E bem se sabia que os humanos não tinham força suficiente para abrir aquelas pranchas de madeira de quinze centímetros de espessura...

O tinido do telefone do líder era civilizado demais para aquele ambiente, a campainha falsa soando alegre demais como sinos de vento remexendo pela brisa primaveril.

Xcor parou e olhou para o telefone, deixando-o tocar uma vez mais. Duas vezes.

Obviamente, o macho não queria deixar transparecer que estava aguardando o telefonema.

Quando por fim atendeu, levou o aparelho ao ouvido, ergueu o queixo e relaxou o corpo. Estava de novo no controle.

– Elan – disse ele com suavidade. Houve uma pausa. E, em seguida, aquelas sobrancelhas sempre baixas se ergueram ao máximo. – Que dia e que hora?

Zypher se sentou.

– O Rei ligou? – silêncio. – Não, nem um pouco. De qualquer forma, somente o Conselho terá permissão. Ficaremos à margem... Conforme o seu pedido.

A última parte foi pronunciada com certa carga de ironia, ainda que dificilmente o aristocrata do outro lado da conversa percebesse isso. Pelo pouco que Zypher vira e ouvira de Elan, filho de Larex, ele estava menos do que impressionado. Pensando bem, os fracos eram sempre facilmente manipulados, e Xcor sabia muito bem disso.

– Há algo que precisa saber, Elan. Houve um atentado contra a vida de Wrath no outono... e não se surpreenda se houver insinuação do meu envolvimento e dos meus soldados nessa reunião... O quê? Foi na casa de Assail, na verdade, mas qualquer outro detalhe é insignificante. Portanto, entenda, é de se supor que Wrath esteja convocando a reunião com o propósito de expor a mim e aos meus... Lembre-se de que o avisei disso? Apenas se recorde de que foi amplamente protegido. Os Irmãos e o Rei desconhecem o nosso relacionamento... Isto é, a menos que um dos seus cavalheiros relatarem isso de alguma forma a ele. Nós, no entanto, permanecemos calados. Além disso, saiba também que não temo ser cunhado de traidor ou ser marcado como alvo pela Irmandade. Percebo, porém, que você possui uma sensibilidade muito mais cultural e refinada, e eu não só respeito isso como farei tudo o que estiver ao meu alcance para protegê-lo de qualquer brutalidade.

Ah, sim, claro, Zypher pensou revirando os olhos.

– Lembre-se, Elan, de que você está protegido.

Enquanto Xcor sorria mais amplamente, suas presas eram expostas por completo, como se estivesse perto de atacar a goela do outro, arrancando-lhe a traqueia.

Despedidas foram feitas em seguida, e Xcor concluiu a ligação.

Zypher falou:

– Está tudo bem?

A cabeça do líder se voltou no alto da espinha, e quando seus olhos se encontraram, Zypher lamentou pelo idiota ao telefone... e por Wrath e a Irmandade.

A luz no olhar do líder era pura maldade.

– Ah, sim. Está tudo muito bem.


CAPÍTULO 25

Enquanto o som do telefone tocando sem ser atendido chegava da linha fixa, Blay segurava o aparelho junto ao ouvido e se sentou na beira da cama. Aquilo era estranho. Os pais deveriam estar em casa àquela hora da noite, faltando tão pouco para amanhecer.

– Alô? – disse a mãe, finalmente.

Blay emitiu um suspiro de alívio longo e lento, e se recostou na cabeceira da cama. Dobrando a ponta do roupão por sobre as pernas, pigarreou.

– Oi, sou eu.

A felicidade que se derramou na voz do outro lado aqueceu-lhe o peito.

– Blay! Como está? Deixe-me chamar seu pai, assim ele pode atender na extensão...

– Não, espere – ele fechou os olhos. – Vamos só... conversar. Você e eu.

– Você está bem? – ele ouviu o som de uma cadeira arranhando o piso e soube onde ela estava: à mesa de carvalho em sua preciosa cozinha. – O que está acontecendo? Não está ferido, está?

Não por fora.

– Eu... estou bem.

– O que foi?

Blay esfregou o rosto com a mão livre. Ele e os pais sempre foram ligados. Normalmente, não existia nada que não lhes contasse, e seu rompimento com Saxton era exatamente o tipo de coisa que ele comentaria: estava triste, confuso, desapontado, um pouco deprimido... todo tipo de descarga emocional que ele e a mãe processavam nesse tipo de telefonema.

Enquanto permanecia calado, porém, ele se lembrava de que havia, na verdade, um assunto que jamais tocara com eles. Um assunto muito importante...

– Blay? Você está me assustando.

– Eu estou bem.

– Não, não está não.

Verdade.

Ele imaginava que não lhes contara a respeito da sua orientação sexual porque a vida amorosa não era exatamente algo que as pessoas normalmente partilhavam com os pais. E talvez houvesse uma parte dele, por mais ilógica que fosse, que se preocupava se eles o encarariam de modo diverso ou não.

Retire esse talvez.

Afinal, a política da glymera a respeito da homossexualidade era bem clara: desde que você nunca fosse franco a esse respeito, e você se comprometesse com alguém do sexo oposto conforme o esperado, você não seria expulso por perversão.

Sim, fazia sentido, porque se amarrar a alguém por quem você não se sente atraído e nem ama, e mentir para essa pessoa a respeito de uma infidelidade, é muito mais honrável do que a verdade.

Mas que Deus o perdoe se você for um macho e tiver um namorado sério – como ele teve pelos últimos doze meses mais ou menos.

– Eu... hum... rompi com alguém.


E com isso se ouviam os grilos cricrilando do lado da mãe.


– Sério? – disse ela depois de um momento, como se estivesse chocada, mas tentando esconder isso.

Se você considera isso uma surpresa, mãe, espere pelo que está por vir, pensou ele.

Porque, caramba, ele iria...

Espere, ele ia mesmo fazer isso assim, pelo telefone? Não deveria ser pessoalmente?

– Sim, eu... hum... – ele engoliu em seco. – Na verdade, estive envolvido por boa parte do último ano.

– Ora, eu... – a dor no tom dela o afetou. – Eu... Nós, seu pai e eu, nunca suspeitamos.

– Eu não sabia muito bem como contar.

– Nós a conhecemos? A família?

Ele fechou os olhos, o peito estava apertado.

– Hum... sim, vocês conhecem a família.

– Bem, sinto muito que não tenha dado certo. Você está bem...? Como terminou?

– Simplesmente acabou, para falar a verdade.

– Bem, relacionamentos são sempre muito difíceis. Ah, meu amor, meu querido... dá para saber como você está triste só de ouvi-lo. Você gostaria de vir para cá e...

– Era Saxton. O primo de Qhuinn.

Houve uma inspiração profunda do outro lado.

Enquanto a mãe ficava solenemente calada, o braço de Blay começou a tremer tanto que ele mal conseguia sustentar o telefone.

– Eu... eu... hum... – a mãe engoliu em seco. – Eu não sabia. Que você... hum...

Ele terminou o que ela não conseguia em sua cabeça: Eu não sabia que você era uma dessas pessoas.

Como se homossexuais fossem leprosos sociais.

Ah, inferno. Ele não deveria ter dito nada. Nada, absolutamente nada. Maldição, por que tinha de implodir sua vida de uma só vez? Por que não podia antes lidar com o rompimento... e depois de alguns anos, talvez uma década, pudesse se revelar aos pais para que eles o repudiassem? Mas, nããão, ele tinha que...

– É por isso que você nunca nos contou que estava com alguém? – ela perguntou. – Porque...

– Talvez. Sim...

Houve uma fungada. Depois uma profunda inspiração.

O desapontamento dela pelo telefonema era demais para se aguentar, o peso esmagador comprimindo-lhe o peito e impossibilitando-o de respirar.

– Como pôde...

Ele se apressou em interrompê-la, porque não suportaria ouvir sua doce voz proferir aquelas palavras.

– Mahmen, desculpe. Escute, eu não quis dizer isso, ok? Eu não sei o que estava dizendo. Eu só...

– O que eu ou nós fizemos...

– Mahmen, pare – nessa pausa que se seguiu, ele pensou em recitar um pouco de Lady Gaga, e justificar-se bastante com aquele papo de “a culpa não é sua, você não fez nada de errado como mãe”. – Mahmen, eu só...

Ele sucumbiu nesse instante, chorando o mais silenciosamente possível. A sensação de que, pelo ponto de vista da mãe, ele tivesse desapontado a família só por ser quem era... era uma rejeição que jamais superaria. Ele só queria viver honesta e abertamente, sem desculpas. Como todas as outras pessoas. Amar e ser amado, ser quem era... mas a sociedade tinha um padrão diferente, e como ele sempre temeu, seus pais eram uma parte disso...

Vagamente, ele percebeu que a mãe falava com ele, e se esforçou para se recompor e concluir aquele telefonema.

– ... para que você pensasse que não poderia nos abordar com esse assunto? Que isso, de algum modo, mudaria o que sentimos por você? Blay piscou enquanto o cérebro traduzia o que ele acabara de ouvir em alguma linguagem que fizesse sentido.

– Desculpe... O que disse?

– Por que você... O que fizemos para que você sentisse que qualquer coisa a seu respeito o tornaria de algum modo... diminuído aos nossos olhos? – ela limpou a garganta, como se estivesse tentando se recompor. – Eu amo você. Você é o meu coração batendo fora do meu peito. Não me importo com quem se relacione, se eles têm cabelos claros ou escuros, olhos verdes ou azuis, partes femininas ou masculinas... contanto que você seja feliz, é tudo o que me interessa. Quero para você o que você quiser para si. Eu amo você, Blaylock... simplesmente amo.

– O que... está dizendo...

– Eu te amo.

– Mahmen... – ele engasgou, as lágrimas voltando a se formar.

– Eu só gostaria que não tivesse me contado pelo telefone – murmurou. – Porque eu gostaria muito de poder abraçá-lo agora.

Ele riu de um modo atrapalhado e disforme.

– Não tive a intenção. Quero dizer, não planejei isto. Escapou.

– E eu sinto muito – disse ela – que as coisas não tenham dado certo com Saxton. Ele é um cavalheiro muito gentil. Tem certeza de que acabou mesmo?

Blay esfregou o rosto enquanto a realidade se recalibrava, o amor que ele sempre conheceu ainda com ele. Apesar da verdade. Ou talvez... por causa dela.

Em momentos como aqueles ele se sentia o cara mais sortudo do mundo.

– Blay?

– Desculpe, hum, sim. A respeito de Saxton... – ele pensou no que fizera no escritório vazio no centro de treinamento quando esteve sozinho. – Sim, mahmen, está acabado. Tenho certeza.

– Ok, eis o que tem de fazer, então. Tire um tempo de folga para melhorar. Você saberá quando se sentir melhor. E depois tem que se abrir para conhecer uma pessoa nova. Você é um ótimo partido, sabe disso.

E lá estava ela lhe dizendo para conhecer outro homem.

– Blay? Você me ouviu? Não quero que passe a vida sozinho.

Ele enxugou o rosto de novo.

– Você é a melhor mãe do planeta, sabia disso, não?

– Então, quando virá me ver? Quero cozinhar para você.

Blay relaxou nos travesseiros, ainda que a cabeça começasse a doer, provavelmente pelo fato de, apesar de estar sozinho, ter tentado refrear o choro. Talvez também porque detestasse o ponto em que estava com Qhuinn. E ele também sentia falta de Saxton, de certo modo, porque era difícil dormir sozinho.

Mas aquilo era bom. Aquela... honestidade fizera muito por ele...

– Espere, espere – ele se ergueu dos travesseiros. – Preste atenção, não quero que conte nada para o papai.

– Santa Virgem Escriba, mas por que não?

– Não sei. Estou nervoso.

– Meu bem, ele não vai se sentir diferente de mim.

Sei não, como filho único e último da linhagem... e com toda aquela coisa de pai e filho...

– Por favor. Deixe-me contar pessoalmente – ah, como se isso não o deixasse com vontade de vomitar. – Era o que eu deveria ter feito com você. Apareço aí assim que tiver folga do meu turno; não quero colocá-la numa posição de ter de esconder algo dele...

– Não se preocupe com isso. Essa informação é sua, você tem o direito de partilhá-la com as pessoas quando quiser, se quiser. Porém, eu gostaria que o fizesse logo. Em circunstâncias normais, seu pai e eu contamos tudo um para o outro.

– Prometo.

Houve uma calmaria na conversa.

– Bem, e o trabalho, como tem ido?

Ele balançou a cabeça.

– Mahmen, você não vai querer ouvir a respeito disso.

– Claro que quero.

– Não quero que fique pensando que o meu trabalho é perigoso.

– Blaylock, filho do meu amado hellren, exatamente que tipo de idiota você acha que eu sou?

Blay riu e depois ficou sério.


– Qhuinn pilotou um avião hoje à noite.

– Verdade? Eu não sabia que ele pilotava.

E não era esse o assunto da noite?

– Ele não sabe – Blay voltou a relaxar nos travesseiros e cruzou os pés na altura dos tornozelos. – Zsadist se machucou e nós estávamos com ele num lugar remoto. Qhuinn decidiu que... isto é, sabe como ele é, ele tenta de tudo.

– Muito aventureiro, um tanto selvagem. Mas um macho adorável. Uma vergonha o que a família fez com ele.

Blay remexeu no cordão do roupão.

– Você sempre gostou dele, não? Engraçado, acho que a maioria dos pais não o aprovaria... de tantas maneiras.

– Isso porque eles creem naquele exterior durão. Para mim, é o interior que conta – ela estalou a língua e ele conseguiu visualizá-la balançando a cabeça. – Sabe, nunca vou esquecer a noite em que você o trouxe para casa pela primeira vez. Ele era apenas um projeto de pré-trans, com aquela imperfeição óbvia pela qual, estou certa, ele foi abusado e humilhado. E, mesmo com tudo isso, ele veio direto a mim, estendeu a mão e se apresentou. Ele me olhou direto nos olhos, não num tipo de confrontação, mas como se quisesse que eu olhasse bem para ele e o expulsasse de uma vez se fosse o caso – a mãe exalou uma leve imprecação. – Eu o teria acolhido naquela mesma noite, sabe. Num piscar de olhos. Ao diabo com toda a glymera.

– Você é, verdadeira e inexoravelmente, a melhor mãe do mundo.

Agora foi a vez dela rir.

– E pensar que você diz isso sem que eu esteja colocando um prato de comida na sua frente.

– Bem, uma lasanha a tornaria a melhor mãe do universo.

– Vou colocar a massa para ferver agora.

Enquanto fechava os olhos, essa volta à conversa descontraída, que sempre fora o marco do relacionamento deles, pareceu ainda mais especial.

– Então, conte-me a respeito dessa valentia de Qhuinn. Adoro ouvi-lo falar dele, você fica tão animado.

Caramba, Blay se recusava a pensar nos motivos por trás disso. Apenas se lançou na narrativa, com um pouco de edição para não divulgar nada que a Irmandade não quisesse que se soubesse, não que a mãe fosse contar alguma coisa a alguém.

– Bem, nós estávamos vasculhando essa região e...

– Necessita de mais alguma coisa, senhor?

Qhuinn balançou a cabeça e mastigou o mais rápido que pôde para deixar a boca livre.

– Não, obrigado, Fritz.

– Quem sabe um pouco mais de rosbife?

– Não, obrigado... ah, bem, ok – ele saiu do caminho quando uma carne cozida perfeita atingiu seu prato. – Mas não preciso...

Mais batatas. Mais abobrinhas.

– E vou lhe trazer mais um copo de leite – anunciou o mordomo com um sorriso.

Enquanto o doggen ancião se virava, Qhuinn emitiu um suspiro como quem se prepara para algo antes de acatar a segunda rodada. Ele tinha a sensação de que toda aquela comida era o modo de Fritz lhe dizer obrigado, e era estranho... quanto mais ele comia, mais começava a sentir fome.

Pensando nisso... quando foi mesmo a última vez em que fizera uma refeição?

E quando o mordomo lhe trouxe mais leite, ele o tomou todo como um bom menino.

Maldição, não fora sua intenção perder tempo ali na cozinha. Sua vontade original, quando saiu da clínica, era ir direto para o quarto de Layla. Fritz, por sua vez, teve outras ideias, e o velho doggen não aceitara não como resposta, o que sugeria que fora uma ordem vinda de cima. Como de Tohr, o chefe da Irmandade. Ou do próprio Rei.

Portanto, Qhuinn desistira e cedera... acabando por se sentar à bancada de granito, empanturrando-se tal qual uma piñata.

Pelo menos a rendição era deliciosa, pensou ele um pouco depois, ao abaixar o garfo e limpar a boca.

– Aqui está, senhor, a sua sobremesa.

– Hum, obrigado, mas... – ora, ora, ora, o que temos aqui: uma tigela de sorvete de café com calda quente de chocolate por cima; nada de chantili nem de castanhas. Bem como ele gostava. – Você não precisava se dar a esse trabalho.

– É seu favorito, não?

– Na verdade, é sim – e veja só, uma colher de prata.

Sabe, seria grosseiro deixar a coisa derreter.

Enquanto Qhuinn começava a sobremesa, os pontos dados na sobrancelha pela doutora Jane começaram a latejar debaixo do curativo e a dor o lembrou da noite louca que tivera.

Parecia surreal pensar que apenas uma hora antes ele esteve à beira da morte, dançando no céu escuro naquela armadilha de ratos que era aquele avião que ele não fazia ideia de como pilotar. E agora? Havia somente um pote do melhor de Breyers. Com calda quente.

E pensar que ele estava de fato feliz por não haver nem chantili nem castanhas para arruinar o seu paladar. Porque isso sim seria um problema bem sério.

Enquanto as glândulas adrenais arrotaram e um jorro de ansiedade tremulou ao longo de cada nervo do seu corpo, ele soube muito bem que os choques viriam e iriam embora. Como um tipo de chicotada em seu sistema nervoso.

Mas lidar com um caso de ansiedade pós-desastre era tremendamente melhor do que acabar subindo em chamas. Ou descendo, como teria sido o caso.

Depois da segunda parte da sua refeição, fez o que pôde para ajudar a limpar antes de sair para ver Layla, mas Fritz provocava um alvoroço caso ele sequer tentasse carregar a tigela e a colher para qualquer lugar perto da pia. Cedendo mais uma vez, ele saiu passando pela sala de jantar e parou um segundo para olhar para a longa mesa, imaginando todos sentados em seus lugares costumeiros.

Tudo o que importava era que Z. estava de volta, seguro nos braços de sua shellan, e que ninguém mais se ferira.

– Com licença, senhor – disse Fritz ao se apressar. – A porta.

No fim do vestíbulo, o doggen verificou a câmera de segurança. Um segundo depois, ele destravou a tranca interna do átrio.

E Saxton entrou.

Qhuinn se recolheu. A última coisa que desejava fazer era falar com aquele macho agora. Estava indo ver Layla e depois se deitar...

O cheiro que chegou a ele não estava certo.

Franzindo o cenho, foi até a passagem em arco. Logo adiante, seu primo conversou com Fritz por um minuto, depois começou a caminhar na direção da grande escadaria.

Qhuinn inalou profundamente, as narinas inflando. É, sim, aquela era a colônia cara de Saxton... mas havia outro odor misturado àquele. Outra colônia permeava o macho todo.

E não era de Blay. Ou de nada que o lutador usaria.

E também havia o inconfundível cheiro de sexo...

Não lhe ocorreu nenhum pensamento consciente quando marchou para o espaço aberto e exclamou:

– Onde esteve?

O primo parou. Olhou por sobre o ombro.

– O que disse?

– Você ouviu muito bem – numa inspeção mais próxima, ficou óbvio o que o cara aprontara. Os lábios estavam avermelhados e havia um rubor no rosto dele que Qhuinn podia apostar que não tinha nada a ver com o tempo frio. – Onde diabos você estava?

– Não creio que isso seja assunto seu, primo.

Qhuinn atravessou o piso de mosaico, sem parar até os coturnos de ponta de aço ficarem diante dos belos sapatos do cara.

– Seu puto maldito.

Saxton teve a audácia de parecer enfastiado.

– Sem ofensa, meu querido parente, mas não tenho tempo para isto.

O cara deu meia-volta...

Qhuinn esticou uma mão e o segurou pelo braço. Com um puxão, trouxe-o para perto novamente, nariz com nariz. E merda, o fedor no cara o deixou nauseado.

– Blay está arriscando a vida na guerra e você fica fodendo com um qualquer pelas costas dele? Muita classe, boqueteiro de merda...

– Qhuinn, isso não é da sua conta...

Saxton tentou se livrar dele. Não foi uma boa ideia. Antes de Qhuinn sequer perceber o que estava fazendo, travou as mãos ao redor do pescoço do macho.

– Como ousa? – disse com as presas totalmente expostas.

Saxton bateu as duas mãos nos pulsos de Qhuinn e tentou se soltar, puxando, empurrando, não tendo êxito algum.

– Você... está... me sufocando...

– Eu deveria matá-lo aqui mesmo – rugiu Qhuinn. – Como pôde fazer isso com ele? Ele está apaixonado por você...

– Qhuinn... – a voz estrangulada ficava cada vez mais fina. – Qh...

Pensar em tudo o que o primo tinha, e tudo de que ele não tomava conta, deu-lhe uma força extra, e ele a canalizou direto para as mãos.

– De que diabos você precisa mais, cretino? Acha que algum desconhecido vai ser melhor do que aquilo que você já tem na sua cama?

A força do ataque começou a empurrar Saxton para trás, os sapatos dele escorregando no piso liso enquanto os coturnos de Qhuinn guiavam os dois. Pararam quando os ombros de Saxton bateram no corrimão da imensa escadaria.

– Seu puto maldito...

Alguém gritou. Assim como outro alguém.

E logo se ouviram passadas vindas de todos os lados, seguidas por um punhado de pessoas puxando-o pelos braços.

Tanto faz. Ele apenas continuou com os olhos e os braços travados, a fúria em seu âmago transformando-o num buldogue que...

Não...

Iria...

Soltar...


CAPÍTULO 26

– Então, vocês acham que um dia voltarão para Caldwell? – Blay perguntou para a mãe.

– Não sei. Seu pai vai e volta do trabalho com tanta facilidade à noite, e nós dois gostamos da calma e da privacidade daqui do interior. Acha que agora está mais seguro do que aí na cidade...

De repente, gritos passaram pelas portas fechadas de seu quarto. Muitos gritos.

Blay olhou de relancu e franziu o cenho.

– Ei, mahmen, sinto interromper, mas acho que está acontecendo alguma coisa aqui na casa...

O tom de voz dela baixou, o medo se entrelaçando em suas palavras.

– Não estão sendo atacados, estão?

Por um momento, aquela noite na casa deles em Caldwell um ano e meio atrás retornou em sua memória numa série rápida de contrações no estômago: a mãe correndo aterrorizada, o pai se armando contra o inimigo, a casa destruída.

Ainda que a gritaria parecesse piorar, ele não tinha como sair sem apaziguá-la.

– Não, não, mahmen, este lugar é muito seguro. Ninguém pode nos encontrar, e mesmo que conseguissem não poderiam entrar. É só que às vezes os Irmãos começam a discutir. Garanto, está tudo bem.

Pelo menos era o que ele esperava. As coisas pareciam estar piorando.

– Ah, que alívio. Não quero que nada aconteça com você. Vá cuidar de tudo e me ligue quando souber que virá nos visitar. Vou arrumar o seu quarto e preparar uma lasanha para você.

Na mesma hora, a boca começou a salivar. Assim como os olhos ficaram um poquinho marejados.

– Eu te amo, mahmen... E obrigado. Você sabe, por...

– Sou eu quem agradece pela confiança. Agora vá lá ver o que está acontecendo, e cuide-se. Eu te amo.

Desligando, ele saiu da cama e foi para a porta. No segundo em que se viu no corredor das estátuas, ficou claro que uma bela briga estava acontecendo na parte principal da casa: havia muitas vozes de machos, todas elas num volume que indicava “emergência”.

Trotando, ele seguiu para o balcão do segundo andar...

Quando conseguiu espiar o vestíbulo, não entendeu de pronto o que via lá embaixo: havia um nó de pessoas na base da escadaria, todas com os braços esticados como se tentassem apartar uma briga.

Só que não era entre dois Irmãos.

Que merda era aquela? Estavam mesmo tentando tirar Qhuinn de cima de Saxton...?

Jesus, o maldito estava com as mãos ao redor do pescoço do primo e, a julgar pelo tom acinzentado no rosto do macho, prestes a matá-lo.

– Que diabos está acontecendo aqui! – Blay berrou, ao tomar as escadas correndo.

Quando chegou à confusão, havia Irmãos demais no caminho. E aqueles não eram o tipo de macho que você simplesmente afastava às cotoveladas. Infelizmente, se alguém conseguiria deter Qhuinn, esse alguém seria ele. Mas como diabos ele conseguiria atrair a atenção do idiota...

Isso mesmo, pensou.

Atravessando o vestíbulo, quebrou o vidro do antigo alarme manual de incêndio com o punho e puxou a alavanca para baixo.

No mesmo instante, uma sirene explodiu no recinto, a acústica do teto de igreja agindo como um amplificador enquanto o alarme berrava desenfreado.

Foi como atingir um bando de cães de briga com um balde de água. Toda a ação parou e as cabeças se levantaram da confusão para olhar ao redor.

O único que não deu a mínima foi Qhuinn. Ele ainda apertava com força.

Blay se aproveitou do momento “ei, o que é isso” e conseguiu abrir caminho.

Concentrando-se em Qhuinn, posicionou o rosto bem na frente do dele.

– Solte-o agora.

No segundo em que a sua voz foi registrada, uma expressão de choque substituiu a violência fria que marcava o rosto de Qhuinn, como se ele não tivesse esperado que Blay viesse até ali. E foi só isso o que foi preciso. Um único comando dele e aquelas mãos se soltaram tão rapidamente que Saxton caiu no chão como um peso morto.

– Doutora Jane! Manny! – alguém gritou. – Chamem um médico!

Blay queria berrar com Qhuinn ali mesmo, mas estava aterrorizado demais com o estado de Saxton para perder tempo com “o que há de errado com você?”. O advogado não se mexia. Segurando o belo terno do rapaz, Blay o rolou no chão e verificou a carótida com a ponta dos dedos, rezando para encontrar a pulsação. Quando não encontrou, inclinou a cabeça de Saxton para trás e se curvou para fazer boca a boca.

Mas, antes disso, Saxton tossiu e puxou o ar para dentro dos pulmões.

– Manny está chegando – disse Blay com a voz rouca, mesmo sem saber se isso era verdade. Mas, ora essa, alguém devia estar a caminho. – Fique comigo...

Mais tossidas. Mais inspirações fundas. E a cor começou a voltar para o belo e refinado rosto.

Com a mão trêmula, Blay afastou o cabelo loiro e espesso da testa que tocara tantas vezes antes. Ao fitar os olhos confusos que olhavam para ele, ele quis sentir algo profundo na alma, que desse uma guinada em sua vida e...

Rezou por esse tipo de reação.

Inferno, naquele instante, trocaria seu passado e seu presente por isso.

Mas não estava ali. Pesar, raiva em favor do macho, tristeza, alívio... catalogou cada um desses sentimentos. Era só isso, contudo.

– Cheguei, deixe-me dar uma olhada – disse a doutora Jane ao apoiar a maleta preta de médico no chão e se ajoelhar no piso de mosaico.

Blay recuou para dar espaço à shellan de V., mas ficou próximo, mesmo sem poder fazer coisa alguma. Inferno, ele sempre quis ir para a faculdade de medicina, mas não para ressuscitar ex-amantes porque um psicótico tentara estrangulá-los no maldito átrio de entrada.

Olhou para Qhuinn. O lutador ainda estava sendo contido por Rhage, como se o Irmão não estivesse inteiramente certo de que o episódio terminara.

– Vamos ficar de pé – disse a doutora Jane.

Blay se adiantou, ajudando Saxton, mantendo-o firme, conduzindo-o para a escadaria. Os dois ficaram em silêncio ao subir, e quando chegaram ao segundo andar, Blay seguiu para o seu quarto por força do hábito.

Puxa.

– Não, está tudo bem – murmurou Saxton. – Só me deixe sentar aqui um minuto, está bem?

Blay pensou na cama, mas quando Saxton ficou tenso ao tomarem essa direção, ele o levou para a chaise-longue. Ajudando o macho a se deitar, recuou desajeitado.

No silêncio que se seguiu, uma raiva violenta o atingiu sabe-se lá vinda de onde.

E agora as suas mãos tremiam por outro motivo.

– Então – disse Saxton com voz rouca –, como foi a sua noite?

– O que diabos acabou de acontecer?

Saxton afrouxou a gravata. Desabotoou o colarinho. Respirou fundo mais uma vez.

– Briga de família, parece.

– Tolice.

Saxton desviou o olhar cansado.

– Temos mesmo que fazer isto?

– O que aconteceu...

– Acho que você e ele têm que conversar. E depois que o fizerem, não terei mais que me preocupar em ser atacado como um criminoso novamente.

Blay franziu a testa.

– Ele e eu não temos nada para dizer um ao...

– Com todo o respeito, as marcas no meu pescoço sugerem o contrário.

– Como estamos, grandão?

Enquanto a voz de Rhage era registrada nos ouvidos de Qhuinn, ficou claro que o Irmão verificava se o drama já acabara. Desnecessário. No instante em que Blay lhe disse para parar, o corpo de Qhuinn obedecera, como se o cara tivesse o controle remoto da sua TV.

Havia outras pessoas por perto, obviamente também esperando para ver se ele mostrava qualquer indicação de que correria atrás de Saxton para retomar a rotina de estrangulamento.

– Você está bem? – perguntou Rhage.

– Sim, sim. Estou bem.

As barras de aço ao redor do seu tronco relaxaram e gradualmente se abaixaram. Então uma mãozorra deu-lhe um tapa nas costas e apertou seu ombro.

– Fritz odeia corpos no átrio frontal.

– Mas não há muito sangue no estrangulamento – alguém observou. – Seria fácil limpar depois.

– Apenas uma polida e pronto – o outro disse.

Houve uma pausa pesada depois disso.

– Vou subir – quando voltaram a olhar para ele em antecipação, Qhuinn balançou a cabeça. – Não para uma repetição. Juro pelo...

Bem, ele não tinha uma mãe, um pai, um irmão, uma irmã... nem mesmo um filho, ainda que, tomara, isso fosse temporário.

– Não vou, ok?

Não esperou por mais nenhum comentário e se lembrou de que ainda precisava passar pelo quarto de Layla.

Tomando a direita no alto das escadas, seguiu para o quarto de hóspedes para o qual a Escolhida fora levada ao se mudar e bateu à porta com suavidade.

– Layla?

Apesar do fato de que teriam um filho juntos, ele não se sentia à vontade para entrar sem ser convidado.

A segunda batida foi um pouco mais forte. Assim como sua voz:

– Layla?

Ela devia estar dormindo.

Recuando, seguiu para o próprio quarto, passando diante do escritório de Wrath com suas portas fechadas e depois tomou o corredor das estátuas. Ao passar diante da porta de Blay, não conseguiu deixar de encarar a maldita porta.

Jesus Cristo, quase matara Saxton.

E ainda sentia vontade de matar.

Sempre soube que o primo não valia nada e detestava estar certo a esse respeito. O que diabos Sax estava pensando? O cara tinha o insuperável na sua cama todo santo dia e, mesmo assim, de algum modo, qualquer um de algum bar, de uma boate ou da maldita Biblioteca Municipal de Caldwell era melhor do que aquilo? Até mesmo necessário?

Filho da mãe traiçoeiro.

Enquanto as mãos se fechavam em punhos e ele entretinha a ideia de abrir caminho com um chute só para dar mais uns socos no rosto de Saxton, quase não conseguiu controlar seu impulso.

Solte-o agora.

De lugar nenhum a voz de Blay reverberou em sua cabeça uma vez mais e, obviamente, a violência foi desligada. Literalmente, entre um momento e o seguinte, ele passou de touro enfurecido a estado neutro.

Estranho.

Balançando a cabeça, foi até seu quarto, entrou e fechou a porta.

Depois de fazer com que as luzes se acendessem, ficou parado, os pés colados no chão, os braços pensos como cordas frouxas, a cabeça à toa no alto da espinha. Sem ir a parte alguma.

Sem nenhum motivo aparente, pensou no amado aspirador de Fritz, o eletrodoméstico estacionado dentro de um armário, deixado no escuro até que alguém o utilizasse.

Ótimo. Estava reduzido ao nível de um aspirador de pó.

No fim, praguejou, e se obrigou a começar a se despir e ir para a cama. A noite se mostrara um trabalho hercúleo desde o instante em que o sol se pusera e a boa notícia era que a confusão toda finalmente chegara ao fim: as persianas estavam abaixadas para impedir a entrada do sol. A casa estava ficando silenciosa.

Hora do sono REM para recarga.

Ao tirar a camiseta regata devagar e gemer ante todas as dores, percebeu que deixara a jaqueta de couro e as armas na clínica. Sem problemas. Ele tinha extras ali em cima caso precisasse delas durante o dia, e poderia ir buscar seus pertences antes da Primeira Refeição.

Descendo a mão para o zíper da calça, ele...

A porta atrás dele se abriu numa explosão tamanha que ricocheteou na parede, só para ser interceptada pela pegada firme de um filho da mãe muito irritado.

Parado debaixo da moldura da porta, Blay estava furioso, o corpo trêmulo de raiva que até mesmo Qhuinn, que já enfrentara muitas coisas na vida, se pôs em alerta.

– O que há de errado com você!? – o macho exclamou.

Está de brincadeira, foi o que Qhuinn pensou. Como ele não reconhecera o perfume estranho no corpo do amante?

– Acho que precisa perguntar isso ao meu primo.

Enquanto Blay marchava adiante, Qhuinn desviou do cara para...

Blay o segurou pelo braço e expôs as presas com um sibilo.

– Vai fugir?

Num tom controlado, Qhuinn respondeu:

– Não. Vou fechar a maldita porta para que ninguém escute isto.

– Não dou a mínima!

Qhuinn pensou em Layla do outro lado do corredor, tentando dormir.

– Bem, eu me importo.

Qhuinn se soltou e fechou a porta. Depois, antes de se virar, fechou os olhos para dar um tempo.

– Você me dá aversão – disse Blay.

Qhuinn deixou a cabeça pender.

– Você tem que cair fora da minha vida – a amargura naquela voz conhecida foi direto ao coração dele. – Afaste-se de tudo que se refere a mim!

Qhuinn olhou por cima do ombro.

– Você nem se importa de ele ter estado com outra pessoa?

A boca de Blay se abriu. Fechou. Então as sobrancelhas desceram.

– O quê?

Ah. Maravilha.

Naquela confusão, Blay não entendera os porquês.

– O que você disse? – repetiu Blay.

– Você me ouviu.

Quando não houve resposta, nenhuma imprecação, nenhum objeto lançado, Qhuinn se virou.

Depois de um momento, Blay cruzou os braços, não sobre o peito, mas no centro, como se estivesse se sentindo levemente nauseado.

Qhuinn esfregou o rosto e falou numa voz entrecortada:

– Desculpe. Eu sinto muito... não quero isso para você.

Blay balançou a cabeça.

– O quê... – os olhos azuis se concentraram. – Foi por isso que você o atacou?

Qhuinn deu um passo para a frente.

– Eu sinto muito... Eu só... Ele passou pela porta, eu percebi o cheiro dele e perdi a cabeça. Eu sequer estava pensando.

Blay piscou, como se talvez estivesse se deparando com um conceito desconhecido.

– É por isso que você... Por que diabos você faria uma coisa dessas?

Qhuinn deu mais um passo à frente, e depois se forçou a parar, apesar da necessidade quase premente de estar perto dele. E enquanto Blay balançava a cabeça como se estivesse tendo problemas de compreensão, Qhuinn não tinha intenção de falar.

Mas falou.

– Você se lembra do dia na clínica, mais ou menos um ano atrás... – ele apontou para baixo, para o caso de o cara ter se esquecido de onde ficava o centro de treinamento. – Foi antes de você e Saxton... – certo. Não terminaria aquela frase, não se quisesse segurar toda a comida que tinha no estômago. – Lembra-se do que eu lhe disse?

Enquanto Blay parecia confuso, ele o ajudou a se lembrar:

– Eu disse que se alguém o magoasse, eu perseguiria essa pessoa e a deixaria para queimar sob o Sol – até ele mesmo percebeu o modo como a voz abaixou para um rosnado ameaçador. – Saxton o magoou hoje, por isso fiz o que disse que faria.

Blay esfregou o rosto com a mão.

– Jesus...

– Eu lhe disse o que aconteceria. E se ele repetir isso, não posso prometer que não darei cabo do meu trabalho.

– Escute, Qhuinn, você não pode... não pode fazer esse tipo de merda. Simplesmente não pode.

– Você não se importa? Ele foi infiel. Isso não está certo.

Blay expirou profunda e lentamente, como se estivesse cansado de carregar um peso.

– Apenas... não faça mais isso.

Agora era Qhuinn quem balançava a cabeça. Ele não conseguia entender. Se estivesse num relacionamento com Blay, e Blay o traísse? Ele jamais superaria.

Deus, por que não tirara vantagem daquilo que lhe fora oferecido? Não deveria ter corrido. Deveria ter ficado parado.

De modo espontâneo, seus pés deram outro passo à frente.

– Sinto muito...

De repente, ele começou a repetir essas palavras, repetindo-as a cada passo que o levava para mais perto de Blay.

– Sinto muito... Sinto muito... Sinto... muito... – ele não sabia o que estava dizendo nem fazendo; apenas sentia uma urgência de se redimir de todos os seus pecados.

Havia tanto no que se referia àquele macho honrado que estava totalmente imobilizado diante dele.

Por fim, só havia mais um passo antes que seu peito nu atingisse o de Blay.

A voz de Qhuinn não passava de um sussurro:

– Sinto muito.

No silêncio espesso que se seguiu, a boca de Blay se abriu... mas não em sinal de surpresa. Era porque ele não estava conseguindo respirar.

Lembrando-se de não ser um cretino que acreditava que o mundo girava ao redor do seu umbigo, Qhuinn conduziu o assunto de novo para o que acontecia entre Blay e Saxton.

– Não desejo isso para você – disse ele, os olhos perscrutando aquele rosto. – Você já sofreu o bastante, e sei que o ama. Eu sinto muito... Sinto muito mesmo.

Blay apenas continuou parado diante dele, a expressão congelada, os olhos se mexendo como se ele não conseguisse compreender nada. Mas não recuou, não fugiu, não correu. Ele permaneceu... bem onde estava.

– Sinto muito.

Qhuinn observou de uma vasta distância a sua mão se levantar e tocar o rosto de Blay, as pontas dos dedos percorrendo a barba por fazer.

– Eu sinto muito.

Ah, Deus, poder tocá-lo. Sentir o calor daquela pele, inalar o odor másculo e limpo.

– Sinto muito.

O que diabos estava fazendo? Caramba... tarde demais para responder aquilo – esticando o outro braço, pousou a mão no ombro forte.

– Sinto muito.

Ah, Deus, estava atraindo Blay, puxando o corpo dele para junto do seu.

– Sinto muito.

Passou uma mão para a nuca de Blay e enfiou os dedos entre os cabelos que ali formavam cachos.

– Sinto muito.

Blay estava duro, a coluna reta como uma flecha, os braços ainda ao redor da barriga. Mas, um momento depois, como se estivesse confuso com sua própria reação, o macho se inclinou, o peso mudando sutilmente a princípio, e depois um pouco mais.

Com um puxão, Qhuinn passou os braços ao redor da pessoa mais importante da sua vida. Não era Layla, embora sentisse uma dor ante essa negação. Não era John, nem seu Rei. Não eram os Irmãos.

Aquele macho era a razão de tudo.

E mesmo se sentindo morrer porque Blay estava apaixonado por outra pessoa, ele agiu. Fazia tempo demais desde que o tocara pela última vez... e nunca daquela maneira.

– Sinto muito.

Espalmando a parte de trás da cabeça de Blay, incitou o macho a se aproximar, aninhando a cabeça em seu pescoço.

– Sinto muito.

Enquanto Blay aquiescia, Qhuinn estremeceu, virando o rosto para dentro, respirando fundo, enfiando todas as sensações em sua mente para poder se lembrar daquilo para sempre. Enquanto a palma subia e descia, relaxando as costas musculosas, ele fez o que pôde para poder compensar muito mais do que a infidelidade do primo.

– Sinto muito...

Mudando de posição rapidamente, Blay balançou a cabeça. Desvencilhou-se. Recuou.

Afastou-se.

Os ombros de Qhuinn cederam.

– Sinto muito.

– Por que fica repetindo isso?

– Porque...

Nesse instante, quando seus olhos se encontraram, Qhuinn soube que era chegada a hora. Estragara tantas oportunidades com Blay; existiram tantos passos em falso e desencontros deliberados, tantos anos, tantas negações. E tudo de sua parte. Acovardara-se por tempo demais, mas aquilo chegara ao fim.

Ao abrir a boca para dizer as três palavras que estavam na ponta da língua, os olhos de Blay se endureceram.

– Não preciso da sua ajuda, está bem? Posso cuidar de mim sozinho.

Tum. Tum. Tum.

Seu coração batia tão forte que ele teve que se perguntar se explodiria.

– Você vai continuar com ele – Qhuinn disse entorpecido. – Você vai...

– Não faça mais essa cretinice com Saxton... Nunca mais. Jure.

Mesmo morrendo por dentro, Qhuinn sentia-se impotente para negar-lhe qualquer coisa.

– Ok – levantou as palmas. – Não toco nele.

Blay assentiu, o acordo estava selado.

– Só quero ajudar você – disse Qhuinn. – Só isso.

– Você não pode – rebateu Blay.

Deus, mesmo se estranhando novamente, ele ansiava por mais contato e, de pronto, ele enxergou um caminho para exatamente isso. Uma proposta traiçoeira, mas ao menos havia um tipo de lógica interna nela.

Os braços se ergueram, as mãos procurando, encontrando, prendendo-se. Aos ombros de Blay. À nuca de Blay.

O sexo surgiu dentro dele, enrijecendo seu membro, fazendo-o ofegar.

– Mas eu tenho como ajudar.

– Como?

Qhuinn se aproximou, levou a boca ao ouvido de Blay. Em seguida, encostou o peito nu deliberadamente no de Blay.

– Use-me.

– O quê?

– Dê uma lição a ele – Qhuinn segurou com mais força e inclinou a cabeça de Blay para trás. – Vingue-se na mesma moeda. Comigo.

Para deixar bem claro, Qhuinn estendeu a língua e percorreu a lateral do pescoço de Blay.

O sibilo em reação foi tão alto quanto uma imprecação.

Blay o socou, empurrando-o.

– Perdeu o maldito juízo?

Qhuinn apalpou o sexo rijo e pesado.

– Quero você. E aceito você do jeito que for, mesmo que seja só como uma vingança contra o meu primo.

A expressão de Blay mudava como numa partida de tênis de mesa, passando da mais absoluta descrença para uma raiva épica.

– Seu cretino idiota! Você me rejeitou por anos e anos, e agora, de repente, muda de ideia? Que diabos há de errado com você?

Com a mão livre, Qhuinn tocou num dos piercings dos mamilos... e se concentrou no que estava acontecendo abaixo da cintura de Blay: debaixo daquele roupão, o macho ficou completamente duro, o tecido atoalhado impotente diante daquele tipo de ereção.

– Perdeu a sua maldita cabeça de vez? Que merda!

Normalmente, Blay não praguejava nem elevava a voz. Era excitante vê-lo perder o controle.

Encarando o amigo nos olhos, Qhuinn se deixou cair de joelhos.

– Deixe-me cuidar disso...

– O quê...

Ele se inclinou para a frente e puxou a bainha do roupão, atraindo-o na sua direção.

– Venha cá. Deixe-me mostrar do que sou capaz.

Blay agarrou o cordão que mantinha as duas metades unidas e deu um apertão.

– Que diabos você está fazendo?

Deus, o fato de ele estar de joelhos, implorando, parecia apropriado.

– Quero estar com você. Não me importo com o motivo... Apenas me deixe ficar com você...

– Depois de todo esse tempo? O que mudou?

– Tudo.

– Você está com a Layla...

– Não. Vou repetir quantas vezes você precisar ouvir: não estou com ela.

– Ela está grávida.

– Uma vez. Fiquei com ela apenas uma vez, e como já lhe disse, foi só porque quero uma família e ela também quer. Uma vez, Blay, e nunca mais.

A cabeça de Blay pendeu para trás como se alguém estivesse enfiando espinhos debaixo das suas unhas.

– Não faça isso, pelo amor de Deus, você não pode fazer isso... – a voz dele se quebrantou, a angústia era um triste vislumbre de todos os problemas que Qhuinn causara.–Por que agora? Talvez seja você quem queira se vingar de Saxton...

– Meu primo que se foda, isso não tem nada a ver com ele em relação a mim. Se você estivesse sozinho, eu ainda estaria neste tapete, ajoelhado, à espera de estar com você. Se você estivesse comprometido com uma fêmea, se estivesse namorando alguém de modo casual, se você estivesse em milhares de outras situações na vida... eu ainda estaria aqui. Implorando por algo, qualquer coisa... uma só vez, se é o que pode me dar.

Qhuinn esticou a mão de novo, passando por debaixo do roupão, afagando a perna musculosa e forte. E quando Blay recuou um passo, ele sabia que estava perdendo a batalha.

Merda, ele perderia aquela chance se não...

– Escute, Blay, fiz muitas merdas na minha vida, mas sempre tentei ser verdadeiro. Quase morri hoje... e isso endireita as pessoas. Lá em cima, naquele avião, olhando para a noite escura, não achei que fosse conseguir. Tudo ficou claro para mim. Quero estar com você por causa disso.

Na verdade, fazia muuuuito tempo, beeeem antes da situação com o Cessna, que ele sabia disso, mas ele desejava que a explicação fizesse sentido para Blay.

Talvez fizesse. Em resposta, ele oscilou o peso sobre os pés, como se fosse ceder... ou ir embora. Não havia como saber que direção ele tomaria.

Qhuinn se apressou em dizer mais:

– Sinto muito ter desperdiçado tanto tempo... e se você não quiser ficar comigo, eu entendo. Não vou insistir, vou lidar com as consequências. Mas, pelo amor de Deus, se houver uma chance... por qualquer motivo que seja da sua parte, raiva, curiosidade... droga, mesmo que me deixe transar com você uma vez e nunca mais, com o único propósito de me cravar uma estaca no peito... Eu aceito. Aceito você... do jeito que for.

Ele esticou a mão uma terceira vez, escorregando-a por trás da perna de Blay. Afagando. Implorando.

– Não me importo quanto isso vai me custar.


CONTINUA

CAPÍTULO 22

Do outro lado do rio, na clínica de Havers, Layla finalmente teve que sair da mesa de exames e andar pela saleta. Perdera completamente a noção do tempo àquela altura. De fato, parecia que ela estivera fitando aquelas quatro paredes por uma eternidade. E continuaria a fitar pelo resto de sua vida na face da Terra.

A única parte sua que permanecia fresca e ocupada era a cabeça. Infelizmente, ela se concentrava em pensar no que a enfermeira lhe dissera... que aquilo era um aborto. Que era muito provável que ela tivesse concebido...

Quando a batida à porta que ela tanto esperava chegou, foi inesperada e a assustou.

– Entre – disse ela.

A enfermeira que fora tão gentil entrou... mas parecia diferente. Ela se recusava a olhar para Layla, e o rosto estava congelado numa máscara. Havia um tecido branco dobrado no braço, e ela o empurrou para a frente, desviando o olhar. E depois fez uma mesura.

– Sua Graça – disse ela com uma voz trêmula. – Eu... Havers... nós... não sabíamos.

Layla franziu o cenho.

– O que está...

A enfermeira sacudiu o manto, como se tentasse forçar Layla a aceitá-lo.

– Por favor, vista isto.

– Do que se trata?

– A senhora tem sangue de Escolhida – a voz da enfermeira tremulou. – Havers está... perturbado.

Layla se esforçou para compreender as palavras. Então aquilo não era... por causa da gravidez?

– O quê... Não compreendo. Por que ele está... está perturbado porque sou uma Escolhida?

A outra fêmea empalideceu.

– Pensávamos que a senhora fosse... decaída?

Layla cobriu os olhos com as mãos.

– Eu logo poderei ser isso... dependendo do que acontecer – ela não tinha energia para aquilo. – Alguém poderia me contar o resultado dos exames e o que preciso fazer para cuidar de mim?

A enfermeira remexeu no tecido, ainda tentando entregá-lo.

– Ele não pode voltar para cá...

– O quê?

– Não se não estiver... Ele não pode ficar aqui com a senhora. Ele nunca deveria ter...

Layla avançou, sua calma sumindo.

– Deixe-me ser bem clara, quero falar com o médico – ante essa exigência, a enfermeira levantou a cabeça para olhar para ela. – Tenho o direito de saber o que ele descobriu a respeito do meu corpo. Diga isso a ele agora.

Não havia nenhum guincho em sua voz. Nenhuma histeria aguda; apenas um tom neutro, poderoso, que ela nunca vira saindo de sua boca antes.

– Vá. E traga-o – exigiu.

A enfermeira levantou o pedaço de pano.

– Por favor. Vista isso. Ele...

Layla se esforçou para não gritar.

– Sou apenas uma paciente qualquer...

A enfermeira aprumou os olhos e franziu o cenho.

– Com licença, mas isso não é bem verdade. Segundo o médico, ele a violou durante o exame.

– O quê?

A enfermeira apenas a encarou.

– Ele é um bom macho. Um macho muito tradicional em seu modo de ser...

– O que isso, em nome da Virgem Escriba, tem a ver com qualquer coisa?

– O Primale pode matá-lo pelo que ele lhe fez.

– Durante o exame? Eu permiti... era um procedimento médico necessário!

– Isso não faz diferença. Ele fez algo ilegal.

Layla fechou os olhos. Deveria ter usado a clínica da Irmandade.

– A senhora tem que perceber de onde ele vem – ponderou a enfermeira. – A senhora vem de uma hierarquia com a qual não temos contato... e, mais do que isso, nem deveríamos ter contato.

– Tenho um coração pulsante e um corpo que precisa de ajuda. Isso é tudo o que ele, e qualquer outra pessoa, precisa saber. A carne é a mesma.

– O sangue não é.

– Ele tem que vir me ver...

– Ele não virá.

Layla voltou a focalizar a enfermeira. E depois pousou a mão no baixo ventre. Por toda sua existência, até então, ela vivera do lado da integridade, servindo com lealdade, executando suas tarefas, existindo apenas dentro dos parâmetros prescritos ditados por outrem.

Não mais.

Estreitou o olhar.

– Diga ao médico que ou ele vem até aqui e me diz pessoalmente o que está acontecendo... ou procuro o Primale e conto palavra por palavra o que aconteceu aqui.

Deliberadamente, desviou o olhar para a máquina utilizada durante o exame interno.

Enquanto a enfermeira empalidecia, Layla não sentiu nenhuma alegria no poder utilizado. Tampouco se arrependia.

A enfermeira fez uma mesura e saiu do quarto, deixando aquele pedaço de pano ridículo na bancada baixa ao lado da pia.

Layla nunca considerara seu status de Escolhida nem um fardo nem um benefício. Era simplesmente quem ela era: sua sina, o destino que lhe fora dado se manifestando por meio da respiração e da consciência. Outros, porém, não eram tão fleumáticos, especialmente ali embaixo.

E aquilo era apenas o começo.

Pensando bem, estava perdendo o bebê, não estava? Então, aquilo era o fim.

Esticando a mão, pegou o pano e o enrolou ao seu redor. Não se importava com as sensibilidades do médico, mas se ficasse coberta como lhe pediram, talvez ele se concentrasse nela em vez do que em quem ela era.

Quase imediatamente houve outra batida à porta e, quando Layla respondeu, Havers entrou, parecendo ter uma arma na cabeça. Mantendo o olhar no chão, ele apenas os fechou parcialmente na sala, antes de cruzar os braços sobre o estetoscópio.

– Se eu tivesse sabido do seu status, jamais a teria tratado.

– Procurei-o por livre e espontânea vontade, como uma paciente necessitada.

Ele balançou a cabeça.

– A senhora é uma santidade na Terra. Quem sou eu para intervir em assunto tão sagrado?

– Por favor. Apenas ponha um fim no meu sofrimento e me diga o que está acontecendo.

Ele retirou os óculos e esfregou o nariz.

– Não posso divulgar essa informação para a senhora.

Layla abriu a boca. Fechou-a.

– Como disse?

– A senhora não é minha paciente. O seu filho e o Primale são... Portanto, falarei com ele quando puder...

– Não! Não deve procurá-lo!

O olhar que ele lhe lançou sugeriu um desdém que ela imaginava que ele normalmente reservasse a prostitutas. E, em seguida, ele falou num tom baixo, vagamente ameaçador:

– Não está em posição de exigir nada.

Layla se retraiu.

– Vim até aqui porque quis, como uma fêmea independente...

– Você é uma Escolhida. Não só é ilegal para mim acolhê-la, como também posso ser julgado pelo que lhe fiz antes. O corpo de uma Escolhida...

– Pertence a ela mesma!

– ... ao Primale, por lei, como deveria ser. Você é de pouca importância... Nada além de um receptáculo para aquilo que lhe é dado. Como ousa vir até aqui, fingindo ser uma simples fêmea, e colocar o meu consultório e minha vida em risco com tal engodo?

Layla sentiu uma onda de raiva estremecer até cada uma das terminações nervosas de seu corpo.

– De quem é o coração que bate neste corpo? – ela bateu no peito. – De quem é esta respiração aqui dentro!

Havers balançou a cabeça.

– Falarei com o Primale e somente com ele...

– Não pode estar falando sério! Só eu vivo nesta carne. Ninguém mais...

O rosto do médico se contraiu em desgosto.

– Como já disse, você não passa de um recipiente para o mistério divino em seu ventre, o próprio Primale está em sua carne, e, por isso, eu a deterei aqui até que...

– Contra a minha vontade? Acho que não.

– Ficará aqui até que o Primale venha buscá-la. Não serei responsável por deixá-la livre no mundo.

Os dois se encararam.

Com uma imprecação, Layla arrancou o tecido que a cobria.

– Bem, esse seu plano é ótimo. Mas estou me despindo neste segundo e sairei daqui desse modo se assim for necessário. Fique e observe se quiser... ou pode tentar tocar em mim, mas acredito que isso seria considerado outra violação de algum tipo para o senhor, não seria?

O médico saiu com tanta rapidez que tropeçou no corredor.

Layla não desperdiçou sequer um segundo, vestindo suas roupas e se apressando pelo corredor. Ainda que fosse improvável que houvesse apenas uma saída, a da recepção – deviam existir outras rotas de fuga, para o caso de um ataque –, infelizmente, ela não conhecia a planta da clínica.

Sua única opção era ir direto para a entrada. E teria de fazer isso caminhando, pois estava furiosa demais para se desmaterializar.

Trotando, Layla tomou a direção pela qual entrara e, quase imediatamente, como se tivessem sido instruídas a tal, a equipe de enfermagem apareceu em seu caminho, tomando conta do corredor, impossibilitando-a de passar.

– Se uma de vocês tocar em mim – exclamou ela no Antigo Idioma –, considerarei isso uma violação da minha santidade sagrada.

Todas pararam.

Enfrentando cada um dos olhares, ela se adiantou e forçou-as a se afastarem, um caminho se formando entre as figuras imóveis e depois voltando a se fechar atrás dela. Na sala de espera, ela parou na frente do balcão de recepção e encarou a fêmea que, alarmada, continuava apenas sentada.

– Você tem duas escolhas – Layla indicou a porta de saída reforçada. – Pode voluntariamente abrir aquela porta para mim, ou eu a explodo com o meu poder... expondo todos vocês e os seus pacientes para o açoite da luz do sol que entrará – consultou o relógio da parede – em menos de sete horas. Não tenho certeza se vocês poderão consertar esse tipo de estrago a tempo... você tem?

O clique da trava sendo aberta ressoou no silêncio.

– Obrigada – murmurou com educação ao se encaminhar para a saída. – A sua aquiescência é muito apreciada.

Afinal, ela jamais se esquecia dos seus modos.

Sentado atrás da escrivaninha, com o traseiro confortável no trono que seu pai fizera séculos e séculos atrás, Wrath, filho de Wrath, escorregava o dedo para cima e para baixo na suave lâmina de prata do abridor de cartas em forma de adaga. Ao seu lado, no chão, George roncava pelo focinho.

O cão dormia em raros momentos.

Se alguém batesse à porta ou entrasse, ou se o próprio Wrath se movesse de algum modo, a cabeçorra se levantava e a coleira pesada fazia barulho. O alerta instantâneo também aparecia se alguém atravessasse o corredor, ou usasse um aspirador de pó em algum lugar, ou abrisse a porta do vestíbulo no andar de baixo. Ou servisse uma refeição. Ou espirrasse na biblioteca.

Depois que a cabeça se erguia, havia uma escala de reações, variando do nada (atividades na sala de jantar, aspirador e espirro), a um levantar de orelhas (a porta da frente se abrindo ou alguém no corredor) até a atenção completa sentando-se (batida e entrada). O cachorro nunca era agressivo, porém servia como um detector de movimentos, deixando a decisão quanto ao que fazer a seu dono.

O cão guia era um cavalheiro.

E, mesmo assim, ainda que a natureza mansa fosse parte do animal bem como os pelos longos e macios, e o corpo grande e amplo, Wrath, vez ou outra, testemunhara vislumbres da fera dentro de tal combinação adorável: quando se está em meio a um bando de lutadores agressivos e másculos como a Irmandade, as cabeças esquentavam vez ou outra, mesmo em relação ao Rei. E isso não incomodava Wrath. Ele estava junto aos filhos da mãe há tempo demais para se importar com um pouco de batidas no peito e seguradas de saco.

George, no entanto, não gostava disso. Se algum deles se metesse a valentão em relação ao Rei, os pelos do cão gentil se eriçavam e ele rosnava em aviso enquanto pressionava o corpo às pernas de Wrath, como se estivesse se preparando para mostrar aos Irmãos o comprimento das suas presas para o caso de as coisas chegarem às vias de fato.

A única coisa que Wrath amava mais era a sua rainha.

Abaixando a mão, afagou o flanco do cachorro; depois, voltou a se concentrar na sensação do abridor de cartas contra o dedo.

Jesus Cristo. Aviões caindo do céu... Irmãos se machucando... Qhuinn bancando o herói novamente...

Pelo menos a noite não fora apenas um drama de provocar ataques cardíacos. Na verdade, começaram em boa nota com a prova de que precisavam para atacar o Bando de Bastardos: V. concluíra o teste de balística e, caramba, a bala extraída do pescoço de Wrath começara sua trajetória no rifle encontrado no covil de Xcor.

Wrath sorriu consigo, as presas coçando nas pontas.

Aqueles traidores agora estavam, oficialmente, na sua lista de inimigos, com o amparo total da lei – e estava na hora de causar alguns estragos.

Nesse instante, George sacudiu a cabeça, e a batida insistente à porta que se seguiu indicava que Wrath não devia ter notado a primeira batida.

– Entre.

Ele sabia quem era antes que a Irmandade entrasse: V. e o tira. Rhage. Tohr. Phury. E, por fim, Z., quem, a julgar pelo baque, parecia estar usando uma bengala.

Fecharam a porta.

Como ninguém se sentou, tampouco jogou conversa fora, ele soube exatamente por que vieram vê-lo.

– Qual o veredicto, senhoras? – perguntou de modo arrastado, ao se recostar contra o trono.


Foi a voz de Tohr que lhe respondeu:

– Estivemos pensando a respeito de Qhuinn.

Ele apostava nisso. Depois de apresentar a ideia na reunião no começo da noite, não pressionara por um sim ou um não. Havia muitas coisas que ele, como rei, tinha que enfiar goela abaixo das pessoas. Quem os Irmãos aceitariam no grupo não era uma dessas coisas.

– E?

Zsadist falou no Antigo Idioma:

– Eu, Zsadist, filho de Ahgony, iniciado no ano 242 do reino de Wrath, filho de Wrath, por meio desta indico Qhuinn, um órfão no mundo, como membro da Irmandade da Adaga Negra.

Ouvir as palavras formais saírem da boca do Irmão foi um choque. Z., dentre todos eles, acreditava que o passado era um monte de asneira. Não quando se referia àquilo, pelo visto.

Jesus, pensou Wrath. Eles dariam prosseguimento àquilo. E rápido – acreditara que eles precisariam de mais tempo. Dias de reflexão. Semanas. Talvez um mês – e, talvez, um “não” por uma série de motivos.

Mas eles estavam dispostos – e, em concordância, também Wrath.

– Em que se baseia esse pedido em seu nome e de sua linhagem? – perguntou Wrath.

Em seguida, Z. deixou a formalidade de lado e foi para a realidade que importava.

– Ele me trouxe de volta para casa em segurança, para a minha shellan e minha pequena filha. Arriscando a própria vida.

– Muito justo.

Wrath passou o olhar por todos os machos parados diante de sua escrivaninha, mesmo sem conseguir enxergá-los. A visão não importava. Ele não precisava de retinas operantes para lhe dizer onde todos estavam e como se sentiam a respeito daquilo; o odor de suas emoções estava claro.

Eram, como grupo, firmes, resolutos e orgulhosos.

Mas as formalidades eram necessárias.

Wrath começou pelo que estava na ponta.

– V.?

– Eu estava pronto para atacar quando ele já estava em cima de Xcor.

Houve um grunhido de concordância.

– Butch?

O sotaque de Boston se fez alto e claro:

– Considero-o um lutador de primeira. E gosto dele. Ele está amadurecendo, deixando de lado a atitude negativa, está se tornando sério.

– Rhage?

– Deveria tê-lo visto hoje. Ele não me deixou pilotar o avião... disse que dois Irmãos seria muito a perder.

Mais grunhidos de concordância.

– Tohr?

– Na noite em que você foi atingido? Eu consegui tirá-lo de lá graças a ele. Ele tem valor.

– Phury?

– Gosto dele. De verdade. Ele é o primeiro a agir em qualquer situação. Ele, literalmente, faria qualquer coisa por qualquer um de nós... não importando o quanto possa ser perigoso.

Wrath tamborilou as juntas na mesa.

– Está acertado, então. Direi a Saxton para providenciar as mudanças e faremos isso.

Tohr se intrometeu:

– Com todo o respeito, meu senhor, precisamos resolver a questão do ahstrum nohtrum. Cuidar da retaguarda de John não pode mais ser a diretriz primária dele.

– Concordo. Diremos a John para liberá-lo disso... e não creio que a resposta seja negativa. Então, farei com que Saxton cuide da papelada, e depois da iniciação de Qhuinn; V., cuide da tatuagem no rosto dele. Como se John tivesse morrido de causas naturais ou algo do tipo?

Houve um barulho de roupas se mexendo, como se os Irmãos estivessem fazendo o gesto simbólico de “que a Virgem Escriba não permita isso” por sobre o peito.

– De acordo – disse V.

Wrath cruzou os braços diante do peito. Aquele era um momento histórico e ele sabia muito bem isso. A iniciação de Butch fora legal por causa do laço de sangue que ele tinha com a realeza. Qhuinn era uma história diferente. Nenhum sangue real. Nenhum sangue de Escolhida ou de Irmandade, ainda que, tecnicamente, ele fosse da aristocracia.

Nenhuma família.

Por outro lado, o garoto dera provas de quem era vezes sem conta no campo de batalha, fazendo jus a um padrão que, segundo as Antigas Leis atualmente determinavam, era reservado somente para aqueles de linhagens específicas – e isso era tolice. Não que Wrath não apreciasse os planos de procriação da Virgem Escriba. As combinações entre os machos mais fortes e as fêmeas mais inteligentes produziram, de fato, resultados extraordinários no que se referia aos lutadores.

Porém, também resultara em defeitos como a sua cegueira. E limitava as promoções baseadas no mérito.

No fim, a reformulação das leis no tocante a quem poderia ou não estar na Irmandade não era apenas apropriado nos termos de que tipo de sociedade ele desejava criar – era uma questão de sobrevivência. Quanto mais lutadores, melhor.

Além do mais, Qhuinn verdadeiramente fizera por merecer a honra.

– Que assim seja – murmurou Wrath. – Oito é um bom número. Um número de sorte.

O murmúrio de concordância perpassou o ar mais uma vez, o som de uma única e completa solidariedade.

Aquele era o futuro, pensou Wrath ao sorrir e revelar as presas. E era certo.


CAPÍTULO 23

Enquanto Sola Morte estava no escritório do “chefe”, seu corpo estava numa pose de combate. Pensando bem, aquele era seu modo de ser, e nada específico em relação ao ambiente ou à conversa que se sucedia.

Essa última, no entanto, não melhorava muito o seu humor.

– Desculpe, o que disse? – exigiu saber.

Ricardo Benloise sorriu em seu típico modo tranquilo e distante.

– A sua missão está completa. Obrigado pelo seu tempo.

– Eu nem lhe contei o que descobri lá.

O homem se recostou na cadeira.

– Pode receber seus honorários com meu irmão.

– Não entendo isso – quando ele telefonara menos de 48 horas antes, aquilo tinha sido uma prioridade. – Você disse...

– Seus serviços não são mais necessários para esse propósito específico. Obrigado.

Será que ele estava trabalhando com outra pessoa? Mas quem em Caldwell fazia o tipo de coisas que ela fazia?

– Você nem mesmo quer saber o que descobri.

– Sua missão chegou ao fim – o homem sorriu novamente, de modo tão profissional, que alguém poderia jurar que ele era um advogado ou um juiz. Não um criminoso em escala global. – Mal posso esperar para voltarmos a trabalhar juntos no futuro.

Um dos guarda-costas ao fundo deu alguns passos à frente, como se estivesse pronto para levar o lixo para fora.

– Alguma coisa está acontecendo naquela casa – disse ela ao se virar. – Quem quer que seja, está escondendo...

– Não quero que volte lá.

Sola parou e olhou por sobre o ombro. A voz de Benloise estava tranquila como sempre, mas os olhos eram francos.

Bem, aquilo era interessante.

A única explicação possível com alguma lógica era de que o senhor Misterioso da grande casa de vidro alertara Benloise para que recuasse. Será que sua visitinha fora descoberta? Ou seria aquilo apenas uma demonstração rotineira de como as coisas prosseguiam no tráfico de drogas?

– Está ficando sentimental? – perguntou ela com suavidade. Afinal, ela e Benloise se conheciam há tempos.

– Você é uma commodity muito útil – o sorriso atenuou a ferroada das palavras. – Agora vá e fique em segurança, niña.

Ah, pelo amor de Deus... não havia motivos para brigar com o homem. E ela receberia seu dinheiro, portanto, por que se importar?

Ela acenou, seguiu para a porta e desceu as escadas. No espaço da galeria, seguiu para o fundo do prédio, onde os empregados legítimos trabalhavam durante o expediente lícito. Passando os arquivos e as mesas, que pareciam do tamanho de uma casinha da Barbie graças ao teto alto industrial quinze metros acima, ela tomou um corredor estreito que estava marcado apenas pelas câmeras de segurança.

Bater à porta era inútil, mas ela o fez assim mesmo, os painéis à prova de balas absorvendo o som das juntas, como se estivessem com fome. Para auxiliar o irmão de Benloise (não que Eduardo precisasse disso) ela se virou para a câmera mais próxima e mostrou o rosto.

As travas foram abertas momentos depois. O escritório de Ricardo era minimalista ao extremo; o de Eduardo era um lugar em que Donald Trump, com todo o seu fetiche por ouro, sentiria-se sufocado.

Com um pouco mais de mármore e tecidos dourados, você se sentiria num prostíbulo.

Enquanto Eduardo sorria, seus dentes falsos eram da forma e cor das teclas de um piano, e o bronzeado uniforme tão profundo, que pareceria ter sido colocado nele com uma caneta permanente. Como sempre, ele estava usando um terno de três peças, ao estilo do senhor Roarke da Ilha da Fantasia, com a exceção de ser preto, e não branco.

– Como está hoje? – o olhar dele passeou pelo seu corpo. – Parece-me ótima.

– Ricardo disse para eu procurá-lo para pegar o meu dinheiro.

Instantaneamente, Eduardo se mostrou sério, lembrando-a do motivo pelo qual Ricardo o mantinha por perto: laços de sangue e competência eram uma combinação poderosa.

– Sim, ele me avisou que você viria – Eduardo abriu uma das gavetas e pegou um envelope. – Aqui está.

Ele esticou o braço ao longo da escrivaninha, e ela pegou o que lhe foi oferecido, abrindo-o imediatamente.

– Aqui só tem a metade – ela levantou o olhar. – Só tem dois e quinhentos.

Eduardo sorriu exatamente como o irmão: só no rosto, sem atingir o olhar.

– A missão não foi completada.

– Foi o seu irmão quem a suspendeu. Não eu.

Eduardo ergueu as palmas para cima.

– Esse é o seu pagamento. Ou pode deixar o dinheiro aqui.

Sola estreitou o olhar.

Fechando a aba do envelope devagar, ela o virou na mão, esticou o braço e depositou-o sobre a mesa. Deixando o indicador apoiado nele, assentiu uma vez.

– Como quiser.

Virando-se, foi para a porta e esperou que ela fosse destrancada.

– Niña, não faça assim – disse Eduardo. Quando ela nada disse, o rangido da cadeira indicou que ele estava se levantando e dando a volta na mesa.

E logo a colônia dele atingiu seu nariz, e as mãos dele pousaram em seus ombros.

– Preste atenção – disse ele. – Você é muito importante para Ricardo e para mim. Nós não a estamos desmerecendo... mucho respeito, certo?

Sola olhou por cima do ombro.

– Deixe-me sair.

– Niña.

– Agora.

– Leve o dinheiro.

– Não.

Eduardo suspirou.

– Você não precisa ser assim.

Sola apreciou a culpa que se fez ouvir na voz dele. A reação, na verdade, era a que ela buscava. Como muitos homens da cultura deles, Eduardo e Ricardo Benloise foram criados por uma mãe tradicional, e isso significava que sentir culpa era um ato reflexo.

Mais eficaz do que gritar com eles ou implorar.

– Saia – disse ela. – Agora.

Eduardo suspirou novamente, dessa vez mais profunda e demoradamente, o som da confirmação de que a manipulação dela mais uma vez atingira o alvo.

Entretanto, ele não lhe deu o dinheiro devido. Apesar da decoração excessiva e do retrospecto da dinâmica da sua infância, ele era mais fechado que um cofre de banco. Dito isso, ela tinha certeza de que arruinara a noite dele, portanto existia satisfação no ato... e ela cuidaria daquilo que Ricardo lhe devia.

Ele podia ser justo. Ou, conforme preferira, fazer o que ela não queria.

Isso vinha acompanhado de uma sobretaxa, evidentemente.

Sim, teria sido muito mais barato para ele lhe dar o valor correto, contudo, ela não era responsável pelas decisões dos outros.

– Ricardo ficará decepcionado – disse Eduardo. – Ele odeia ficar decepcionado. Por favor, apenas aceite o dinheiro; isto não está certo.

A parte lógica de seu cérebro sugeria que ela aproveitasse a oportunidade de apontar a injustiça de ser passada para trás naquilo que lhe era devido. Mas se ela bem conhecia aqueles irmãos, o silêncio... ah, o silêncio...

Como a natureza odiava o vácuo, o mesmo acontecia com a consciência dos sul-americanos bem-criados.

– Sola...

Ela simplesmente cruzou os braços diante do peito e continuou a olhar para a frente. Deixa para o espanhol: Eduardo disparou a falar em sua língua nativa, como se a angústia o despisse das suas habilidades no inglês.

Ele, finalmente, desistiu e a deixou sair cerca de dez minutos mais tarde.

Haveria rosas na sua porta às nove da manhã. No entanto, ela não estaria em casa.

Ela tinha trabalho a fazer.

– Como assim, eles não apareceram? – Assail exigiu saber no Antigo Idioma.

Ao se recostar no assento do Range Rover, segurou o celular firme contra a orelha. O farol vermelho logo adiante impedia seu progresso, e era difícil não enxergar isso como um paralelo cósmico.

Seu primo foi direto, como sempre:

– Os receptadores não chegaram na hora combinada.

– Quantos?

– Quatro.

– O quê? – mas não havia necessidade de o macho repetir. – E nenhuma explicação?

– Nada na rua da parte dos outros sete, se é isso o que está perguntando.

– O que fez com o produto extra?

– Trouxe para casa comigo.

Quando o farol ficou verde, Assail pisou no acelerador.

– Vou fazer o pagamento completo para Benloise, e depois vou me encontrar com você.

– Como preferir.

Assail virou à direita e se afastou do rio. Dois quarteirões à frente, uma curva à esquerda o deixou perto da galeria novamente; outra à esquerda e ele chegava aos fundos.

Já havia um carro estacionado ali, um Audi preto, e ele parou atrás do sedã. Abaixando à frente do banco de passageiros, apanhou pela alça uma maleta de metal prateada e saiu do carro.

Nesse instante, a porta dos fundos da galeria se abriu e alguém saiu.

Uma fêmea humana, a julgar pelo cheiro.

Ela era alta e tinha pernas longas. Cabelos escuros e volumosos penteados para trás. Queixo erguido, como se estivesse pronta para um confronto. Ou como se tivesse acabado de sair de um.

Mas nada disso era relevante para ele. Exceto a parca: uma parca de camuflagem branca sobre creme.

– Boa noite – disse ele num tom baixo quando se encontraram no beco. Ele pronto para entrar, ela, saindo.

Ela parou e franziu o cenho, a mão entrando sorrateira no casaco. Num rompante, ele se viu questionando como seriam os seios dela.

– Nos conhecemos? – perguntou ela.

– Estamos nos conhecendo agora – ele esticou a mão e disse: – Como vai?

Ela olhou para a mão dele, depois voltou a se concentrar no rosto.

– Alguém já lhe disse que você parece o Drácula com esse sotaque?

Ele sorriu contido para que as presas não aparecessem.


– Algumas comparações foram feitas de tempos em tempos. Não vai apertar a minha mão?

– Não – ela indicou a porta da galeria com a cabeça. – É amigo dos Benloise?

– Sou. E você?

– Não os conheço. Bela maleta, a propósito.

Com isso, ela se virou sobre os saltos e se dirigiu para o Audi. Depois que a luz do alarme piscou, ela entrou, o vento varrendo os cabelos sobre seus ombros enquanto ela desaparecia atrás do volante.

Ele saiu da frente quando ela acelerou e saiu dali.

Assail a observou se afastar e se descobriu pensando com desdém a respeito do seu parceiro de negócios Benloise.

Que tipo de homem enviava uma fêmea para aquele tipo de trabalho?

Enquanto as luzes de freio se iluminaram brevemente, e depois viraram a esquina, Assail sinceramente esperava que o limite estabelecido previamente naquela noite fosse respeitado. Seria uma pena ter de matá-la.

Não que ele hesitaria sequer um instante se a situação o exigisse.


CAPÍTULO 24

Deitado de costas no concreto duro, os diversos anos de Zypher como membro do Bando de Bastardos significava que ele estava bem familiarizado com a falta de acomodações de que agora usufruía: o traseiro estava entorpecido pelo frio bem como pela ausência de um colchão debaixo do corpo pesado. Do mesmo modo, a cabeça estava amparada apenas pela mochila que ele usara para carregar seus poucos pertences para o novo QG no porão daquele armazém. Além disso, a coberta fina e áspera que o cobria não era comprida o suficiente, deixando expostos seus pés apenas de meias ao ar frio e úmido.

Mas ele estava no paraíso. Um paraíso perfeito.

Correndo em suas veias estava o sangue daquela fêmea, e, ah, que alívio... Tendo passado quase um ano sem alimentação adequada, ele se acostumara à fadiga, aos músculos desassossegados e às dores. Mas tudo aquilo se acabara.

De fato, era como se estivesse inflando com força, a pele voltando a se esticar à sua dimensão própria, a altura mais uma vez retornado ao seu normal, a mente tanto sonolenta pelo que se passara quanto se aguçando a cada momento que transcorria.

Contudo, caso tivesse uma cama, ele também a apreciaria, claro. Travesseiros macios, lençóis cheirosos, roupas limpas... aquecimento no inverno, ar-refrigerado no verão... alimento num estômago vazio, água na garganta seca... tudo isso era bom quando se conseguia ter.

No entanto, não eram necessários.

Uma pistola limpa, uma adaga afiada, um lutador pleno em sua totalidade. Era disso que precisava.

E, claro, nas horas vagas, seria bom ter uma fêmea desejosa deitada de costas. Ou de bruços. Ou de lado com um joelho erguido até o seio expondo o sexo pronto para ele.

Ele não era de escolher muito.

Santa Virgem Escriba, aquilo era o... êxtase.

Não era uma palavra que usasse com muita frequência – e ele não queria dormir durante aquele despertar. Mesmo enquanto os outros se deixavam cair no descanso dos mortos, cada um deles na mesma recuperação que ele próprio estava amortecido, ele permanecia profundamente ciente da sua incandescência interna gloriosa.

Só havia uma coisa que o estava irritando. As passadas.

Entreabriu um olho.

Bem no limiar da luz das velas, Xcor andava de um lado para o outro, o caminho restrito entre duas imensas colunas de sustentação que segurava o pavimento superior.

O líder deles nunca estava à vontade, mas aquela inquietação era diferente. A julgar pelo modo como segurava o aparelho telefônico, esperava uma ligação. E isso explicava por que ele estava ali. O único lugar em que conseguiam um sinal era debaixo de um dos alçapões. A porta era feita de madeira, e a malha de aço que fora colocada por baixo foi a única alteração que fizeram quando espantaram os últimos vagabundos humanos, selando as portas exteriores para se mudarem para ali.

Dessa forma, os vampiros não poderiam se materializar ali embaixo.

E bem se sabia que os humanos não tinham força suficiente para abrir aquelas pranchas de madeira de quinze centímetros de espessura...

O tinido do telefone do líder era civilizado demais para aquele ambiente, a campainha falsa soando alegre demais como sinos de vento remexendo pela brisa primaveril.

Xcor parou e olhou para o telefone, deixando-o tocar uma vez mais. Duas vezes.

Obviamente, o macho não queria deixar transparecer que estava aguardando o telefonema.

Quando por fim atendeu, levou o aparelho ao ouvido, ergueu o queixo e relaxou o corpo. Estava de novo no controle.

– Elan – disse ele com suavidade. Houve uma pausa. E, em seguida, aquelas sobrancelhas sempre baixas se ergueram ao máximo. – Que dia e que hora?

Zypher se sentou.

– O Rei ligou? – silêncio. – Não, nem um pouco. De qualquer forma, somente o Conselho terá permissão. Ficaremos à margem... Conforme o seu pedido.

A última parte foi pronunciada com certa carga de ironia, ainda que dificilmente o aristocrata do outro lado da conversa percebesse isso. Pelo pouco que Zypher vira e ouvira de Elan, filho de Larex, ele estava menos do que impressionado. Pensando bem, os fracos eram sempre facilmente manipulados, e Xcor sabia muito bem disso.

– Há algo que precisa saber, Elan. Houve um atentado contra a vida de Wrath no outono... e não se surpreenda se houver insinuação do meu envolvimento e dos meus soldados nessa reunião... O quê? Foi na casa de Assail, na verdade, mas qualquer outro detalhe é insignificante. Portanto, entenda, é de se supor que Wrath esteja convocando a reunião com o propósito de expor a mim e aos meus... Lembre-se de que o avisei disso? Apenas se recorde de que foi amplamente protegido. Os Irmãos e o Rei desconhecem o nosso relacionamento... Isto é, a menos que um dos seus cavalheiros relatarem isso de alguma forma a ele. Nós, no entanto, permanecemos calados. Além disso, saiba também que não temo ser cunhado de traidor ou ser marcado como alvo pela Irmandade. Percebo, porém, que você possui uma sensibilidade muito mais cultural e refinada, e eu não só respeito isso como farei tudo o que estiver ao meu alcance para protegê-lo de qualquer brutalidade.

Ah, sim, claro, Zypher pensou revirando os olhos.

– Lembre-se, Elan, de que você está protegido.

Enquanto Xcor sorria mais amplamente, suas presas eram expostas por completo, como se estivesse perto de atacar a goela do outro, arrancando-lhe a traqueia.

Despedidas foram feitas em seguida, e Xcor concluiu a ligação.

Zypher falou:

– Está tudo bem?

A cabeça do líder se voltou no alto da espinha, e quando seus olhos se encontraram, Zypher lamentou pelo idiota ao telefone... e por Wrath e a Irmandade.

A luz no olhar do líder era pura maldade.

– Ah, sim. Está tudo muito bem.


CAPÍTULO 25

Enquanto o som do telefone tocando sem ser atendido chegava da linha fixa, Blay segurava o aparelho junto ao ouvido e se sentou na beira da cama. Aquilo era estranho. Os pais deveriam estar em casa àquela hora da noite, faltando tão pouco para amanhecer.

– Alô? – disse a mãe, finalmente.

Blay emitiu um suspiro de alívio longo e lento, e se recostou na cabeceira da cama. Dobrando a ponta do roupão por sobre as pernas, pigarreou.

– Oi, sou eu.

A felicidade que se derramou na voz do outro lado aqueceu-lhe o peito.

– Blay! Como está? Deixe-me chamar seu pai, assim ele pode atender na extensão...

– Não, espere – ele fechou os olhos. – Vamos só... conversar. Você e eu.

– Você está bem? – ele ouviu o som de uma cadeira arranhando o piso e soube onde ela estava: à mesa de carvalho em sua preciosa cozinha. – O que está acontecendo? Não está ferido, está?

Não por fora.

– Eu... estou bem.

– O que foi?

Blay esfregou o rosto com a mão livre. Ele e os pais sempre foram ligados. Normalmente, não existia nada que não lhes contasse, e seu rompimento com Saxton era exatamente o tipo de coisa que ele comentaria: estava triste, confuso, desapontado, um pouco deprimido... todo tipo de descarga emocional que ele e a mãe processavam nesse tipo de telefonema.

Enquanto permanecia calado, porém, ele se lembrava de que havia, na verdade, um assunto que jamais tocara com eles. Um assunto muito importante...

– Blay? Você está me assustando.

– Eu estou bem.

– Não, não está não.

Verdade.

Ele imaginava que não lhes contara a respeito da sua orientação sexual porque a vida amorosa não era exatamente algo que as pessoas normalmente partilhavam com os pais. E talvez houvesse uma parte dele, por mais ilógica que fosse, que se preocupava se eles o encarariam de modo diverso ou não.

Retire esse talvez.

Afinal, a política da glymera a respeito da homossexualidade era bem clara: desde que você nunca fosse franco a esse respeito, e você se comprometesse com alguém do sexo oposto conforme o esperado, você não seria expulso por perversão.

Sim, fazia sentido, porque se amarrar a alguém por quem você não se sente atraído e nem ama, e mentir para essa pessoa a respeito de uma infidelidade, é muito mais honrável do que a verdade.

Mas que Deus o perdoe se você for um macho e tiver um namorado sério – como ele teve pelos últimos doze meses mais ou menos.

– Eu... hum... rompi com alguém.


E com isso se ouviam os grilos cricrilando do lado da mãe.


– Sério? – disse ela depois de um momento, como se estivesse chocada, mas tentando esconder isso.

Se você considera isso uma surpresa, mãe, espere pelo que está por vir, pensou ele.

Porque, caramba, ele iria...

Espere, ele ia mesmo fazer isso assim, pelo telefone? Não deveria ser pessoalmente?

– Sim, eu... hum... – ele engoliu em seco. – Na verdade, estive envolvido por boa parte do último ano.

– Ora, eu... – a dor no tom dela o afetou. – Eu... Nós, seu pai e eu, nunca suspeitamos.

– Eu não sabia muito bem como contar.

– Nós a conhecemos? A família?

Ele fechou os olhos, o peito estava apertado.

– Hum... sim, vocês conhecem a família.

– Bem, sinto muito que não tenha dado certo. Você está bem...? Como terminou?

– Simplesmente acabou, para falar a verdade.

– Bem, relacionamentos são sempre muito difíceis. Ah, meu amor, meu querido... dá para saber como você está triste só de ouvi-lo. Você gostaria de vir para cá e...

– Era Saxton. O primo de Qhuinn.

Houve uma inspiração profunda do outro lado.

Enquanto a mãe ficava solenemente calada, o braço de Blay começou a tremer tanto que ele mal conseguia sustentar o telefone.

– Eu... eu... hum... – a mãe engoliu em seco. – Eu não sabia. Que você... hum...

Ele terminou o que ela não conseguia em sua cabeça: Eu não sabia que você era uma dessas pessoas.

Como se homossexuais fossem leprosos sociais.

Ah, inferno. Ele não deveria ter dito nada. Nada, absolutamente nada. Maldição, por que tinha de implodir sua vida de uma só vez? Por que não podia antes lidar com o rompimento... e depois de alguns anos, talvez uma década, pudesse se revelar aos pais para que eles o repudiassem? Mas, nããão, ele tinha que...

– É por isso que você nunca nos contou que estava com alguém? – ela perguntou. – Porque...

– Talvez. Sim...

Houve uma fungada. Depois uma profunda inspiração.

O desapontamento dela pelo telefonema era demais para se aguentar, o peso esmagador comprimindo-lhe o peito e impossibilitando-o de respirar.

– Como pôde...

Ele se apressou em interrompê-la, porque não suportaria ouvir sua doce voz proferir aquelas palavras.

– Mahmen, desculpe. Escute, eu não quis dizer isso, ok? Eu não sei o que estava dizendo. Eu só...

– O que eu ou nós fizemos...

– Mahmen, pare – nessa pausa que se seguiu, ele pensou em recitar um pouco de Lady Gaga, e justificar-se bastante com aquele papo de “a culpa não é sua, você não fez nada de errado como mãe”. – Mahmen, eu só...

Ele sucumbiu nesse instante, chorando o mais silenciosamente possível. A sensação de que, pelo ponto de vista da mãe, ele tivesse desapontado a família só por ser quem era... era uma rejeição que jamais superaria. Ele só queria viver honesta e abertamente, sem desculpas. Como todas as outras pessoas. Amar e ser amado, ser quem era... mas a sociedade tinha um padrão diferente, e como ele sempre temeu, seus pais eram uma parte disso...

Vagamente, ele percebeu que a mãe falava com ele, e se esforçou para se recompor e concluir aquele telefonema.

– ... para que você pensasse que não poderia nos abordar com esse assunto? Que isso, de algum modo, mudaria o que sentimos por você? Blay piscou enquanto o cérebro traduzia o que ele acabara de ouvir em alguma linguagem que fizesse sentido.

– Desculpe... O que disse?

– Por que você... O que fizemos para que você sentisse que qualquer coisa a seu respeito o tornaria de algum modo... diminuído aos nossos olhos? – ela limpou a garganta, como se estivesse tentando se recompor. – Eu amo você. Você é o meu coração batendo fora do meu peito. Não me importo com quem se relacione, se eles têm cabelos claros ou escuros, olhos verdes ou azuis, partes femininas ou masculinas... contanto que você seja feliz, é tudo o que me interessa. Quero para você o que você quiser para si. Eu amo você, Blaylock... simplesmente amo.

– O que... está dizendo...

– Eu te amo.

– Mahmen... – ele engasgou, as lágrimas voltando a se formar.

– Eu só gostaria que não tivesse me contado pelo telefone – murmurou. – Porque eu gostaria muito de poder abraçá-lo agora.

Ele riu de um modo atrapalhado e disforme.

– Não tive a intenção. Quero dizer, não planejei isto. Escapou.

– E eu sinto muito – disse ela – que as coisas não tenham dado certo com Saxton. Ele é um cavalheiro muito gentil. Tem certeza de que acabou mesmo?

Blay esfregou o rosto enquanto a realidade se recalibrava, o amor que ele sempre conheceu ainda com ele. Apesar da verdade. Ou talvez... por causa dela.

Em momentos como aqueles ele se sentia o cara mais sortudo do mundo.

– Blay?

– Desculpe, hum, sim. A respeito de Saxton... – ele pensou no que fizera no escritório vazio no centro de treinamento quando esteve sozinho. – Sim, mahmen, está acabado. Tenho certeza.

– Ok, eis o que tem de fazer, então. Tire um tempo de folga para melhorar. Você saberá quando se sentir melhor. E depois tem que se abrir para conhecer uma pessoa nova. Você é um ótimo partido, sabe disso.

E lá estava ela lhe dizendo para conhecer outro homem.

– Blay? Você me ouviu? Não quero que passe a vida sozinho.

Ele enxugou o rosto de novo.

– Você é a melhor mãe do planeta, sabia disso, não?

– Então, quando virá me ver? Quero cozinhar para você.

Blay relaxou nos travesseiros, ainda que a cabeça começasse a doer, provavelmente pelo fato de, apesar de estar sozinho, ter tentado refrear o choro. Talvez também porque detestasse o ponto em que estava com Qhuinn. E ele também sentia falta de Saxton, de certo modo, porque era difícil dormir sozinho.

Mas aquilo era bom. Aquela... honestidade fizera muito por ele...

– Espere, espere – ele se ergueu dos travesseiros. – Preste atenção, não quero que conte nada para o papai.

– Santa Virgem Escriba, mas por que não?

– Não sei. Estou nervoso.

– Meu bem, ele não vai se sentir diferente de mim.

Sei não, como filho único e último da linhagem... e com toda aquela coisa de pai e filho...

– Por favor. Deixe-me contar pessoalmente – ah, como se isso não o deixasse com vontade de vomitar. – Era o que eu deveria ter feito com você. Apareço aí assim que tiver folga do meu turno; não quero colocá-la numa posição de ter de esconder algo dele...

– Não se preocupe com isso. Essa informação é sua, você tem o direito de partilhá-la com as pessoas quando quiser, se quiser. Porém, eu gostaria que o fizesse logo. Em circunstâncias normais, seu pai e eu contamos tudo um para o outro.

– Prometo.

Houve uma calmaria na conversa.

– Bem, e o trabalho, como tem ido?

Ele balançou a cabeça.

– Mahmen, você não vai querer ouvir a respeito disso.

– Claro que quero.

– Não quero que fique pensando que o meu trabalho é perigoso.

– Blaylock, filho do meu amado hellren, exatamente que tipo de idiota você acha que eu sou?

Blay riu e depois ficou sério.


– Qhuinn pilotou um avião hoje à noite.

– Verdade? Eu não sabia que ele pilotava.

E não era esse o assunto da noite?

– Ele não sabe – Blay voltou a relaxar nos travesseiros e cruzou os pés na altura dos tornozelos. – Zsadist se machucou e nós estávamos com ele num lugar remoto. Qhuinn decidiu que... isto é, sabe como ele é, ele tenta de tudo.

– Muito aventureiro, um tanto selvagem. Mas um macho adorável. Uma vergonha o que a família fez com ele.

Blay remexeu no cordão do roupão.

– Você sempre gostou dele, não? Engraçado, acho que a maioria dos pais não o aprovaria... de tantas maneiras.

– Isso porque eles creem naquele exterior durão. Para mim, é o interior que conta – ela estalou a língua e ele conseguiu visualizá-la balançando a cabeça. – Sabe, nunca vou esquecer a noite em que você o trouxe para casa pela primeira vez. Ele era apenas um projeto de pré-trans, com aquela imperfeição óbvia pela qual, estou certa, ele foi abusado e humilhado. E, mesmo com tudo isso, ele veio direto a mim, estendeu a mão e se apresentou. Ele me olhou direto nos olhos, não num tipo de confrontação, mas como se quisesse que eu olhasse bem para ele e o expulsasse de uma vez se fosse o caso – a mãe exalou uma leve imprecação. – Eu o teria acolhido naquela mesma noite, sabe. Num piscar de olhos. Ao diabo com toda a glymera.

– Você é, verdadeira e inexoravelmente, a melhor mãe do mundo.

Agora foi a vez dela rir.

– E pensar que você diz isso sem que eu esteja colocando um prato de comida na sua frente.

– Bem, uma lasanha a tornaria a melhor mãe do universo.

– Vou colocar a massa para ferver agora.

Enquanto fechava os olhos, essa volta à conversa descontraída, que sempre fora o marco do relacionamento deles, pareceu ainda mais especial.

– Então, conte-me a respeito dessa valentia de Qhuinn. Adoro ouvi-lo falar dele, você fica tão animado.

Caramba, Blay se recusava a pensar nos motivos por trás disso. Apenas se lançou na narrativa, com um pouco de edição para não divulgar nada que a Irmandade não quisesse que se soubesse, não que a mãe fosse contar alguma coisa a alguém.

– Bem, nós estávamos vasculhando essa região e...

– Necessita de mais alguma coisa, senhor?

Qhuinn balançou a cabeça e mastigou o mais rápido que pôde para deixar a boca livre.

– Não, obrigado, Fritz.

– Quem sabe um pouco mais de rosbife?

– Não, obrigado... ah, bem, ok – ele saiu do caminho quando uma carne cozida perfeita atingiu seu prato. – Mas não preciso...

Mais batatas. Mais abobrinhas.

– E vou lhe trazer mais um copo de leite – anunciou o mordomo com um sorriso.

Enquanto o doggen ancião se virava, Qhuinn emitiu um suspiro como quem se prepara para algo antes de acatar a segunda rodada. Ele tinha a sensação de que toda aquela comida era o modo de Fritz lhe dizer obrigado, e era estranho... quanto mais ele comia, mais começava a sentir fome.

Pensando nisso... quando foi mesmo a última vez em que fizera uma refeição?

E quando o mordomo lhe trouxe mais leite, ele o tomou todo como um bom menino.

Maldição, não fora sua intenção perder tempo ali na cozinha. Sua vontade original, quando saiu da clínica, era ir direto para o quarto de Layla. Fritz, por sua vez, teve outras ideias, e o velho doggen não aceitara não como resposta, o que sugeria que fora uma ordem vinda de cima. Como de Tohr, o chefe da Irmandade. Ou do próprio Rei.

Portanto, Qhuinn desistira e cedera... acabando por se sentar à bancada de granito, empanturrando-se tal qual uma piñata.

Pelo menos a rendição era deliciosa, pensou ele um pouco depois, ao abaixar o garfo e limpar a boca.

– Aqui está, senhor, a sua sobremesa.

– Hum, obrigado, mas... – ora, ora, ora, o que temos aqui: uma tigela de sorvete de café com calda quente de chocolate por cima; nada de chantili nem de castanhas. Bem como ele gostava. – Você não precisava se dar a esse trabalho.

– É seu favorito, não?

– Na verdade, é sim – e veja só, uma colher de prata.

Sabe, seria grosseiro deixar a coisa derreter.

Enquanto Qhuinn começava a sobremesa, os pontos dados na sobrancelha pela doutora Jane começaram a latejar debaixo do curativo e a dor o lembrou da noite louca que tivera.

Parecia surreal pensar que apenas uma hora antes ele esteve à beira da morte, dançando no céu escuro naquela armadilha de ratos que era aquele avião que ele não fazia ideia de como pilotar. E agora? Havia somente um pote do melhor de Breyers. Com calda quente.

E pensar que ele estava de fato feliz por não haver nem chantili nem castanhas para arruinar o seu paladar. Porque isso sim seria um problema bem sério.

Enquanto as glândulas adrenais arrotaram e um jorro de ansiedade tremulou ao longo de cada nervo do seu corpo, ele soube muito bem que os choques viriam e iriam embora. Como um tipo de chicotada em seu sistema nervoso.

Mas lidar com um caso de ansiedade pós-desastre era tremendamente melhor do que acabar subindo em chamas. Ou descendo, como teria sido o caso.

Depois da segunda parte da sua refeição, fez o que pôde para ajudar a limpar antes de sair para ver Layla, mas Fritz provocava um alvoroço caso ele sequer tentasse carregar a tigela e a colher para qualquer lugar perto da pia. Cedendo mais uma vez, ele saiu passando pela sala de jantar e parou um segundo para olhar para a longa mesa, imaginando todos sentados em seus lugares costumeiros.

Tudo o que importava era que Z. estava de volta, seguro nos braços de sua shellan, e que ninguém mais se ferira.

– Com licença, senhor – disse Fritz ao se apressar. – A porta.

No fim do vestíbulo, o doggen verificou a câmera de segurança. Um segundo depois, ele destravou a tranca interna do átrio.

E Saxton entrou.

Qhuinn se recolheu. A última coisa que desejava fazer era falar com aquele macho agora. Estava indo ver Layla e depois se deitar...

O cheiro que chegou a ele não estava certo.

Franzindo o cenho, foi até a passagem em arco. Logo adiante, seu primo conversou com Fritz por um minuto, depois começou a caminhar na direção da grande escadaria.

Qhuinn inalou profundamente, as narinas inflando. É, sim, aquela era a colônia cara de Saxton... mas havia outro odor misturado àquele. Outra colônia permeava o macho todo.

E não era de Blay. Ou de nada que o lutador usaria.

E também havia o inconfundível cheiro de sexo...

Não lhe ocorreu nenhum pensamento consciente quando marchou para o espaço aberto e exclamou:

– Onde esteve?

O primo parou. Olhou por sobre o ombro.

– O que disse?

– Você ouviu muito bem – numa inspeção mais próxima, ficou óbvio o que o cara aprontara. Os lábios estavam avermelhados e havia um rubor no rosto dele que Qhuinn podia apostar que não tinha nada a ver com o tempo frio. – Onde diabos você estava?

– Não creio que isso seja assunto seu, primo.

Qhuinn atravessou o piso de mosaico, sem parar até os coturnos de ponta de aço ficarem diante dos belos sapatos do cara.

– Seu puto maldito.

Saxton teve a audácia de parecer enfastiado.

– Sem ofensa, meu querido parente, mas não tenho tempo para isto.

O cara deu meia-volta...

Qhuinn esticou uma mão e o segurou pelo braço. Com um puxão, trouxe-o para perto novamente, nariz com nariz. E merda, o fedor no cara o deixou nauseado.

– Blay está arriscando a vida na guerra e você fica fodendo com um qualquer pelas costas dele? Muita classe, boqueteiro de merda...

– Qhuinn, isso não é da sua conta...

Saxton tentou se livrar dele. Não foi uma boa ideia. Antes de Qhuinn sequer perceber o que estava fazendo, travou as mãos ao redor do pescoço do macho.

– Como ousa? – disse com as presas totalmente expostas.

Saxton bateu as duas mãos nos pulsos de Qhuinn e tentou se soltar, puxando, empurrando, não tendo êxito algum.

– Você... está... me sufocando...

– Eu deveria matá-lo aqui mesmo – rugiu Qhuinn. – Como pôde fazer isso com ele? Ele está apaixonado por você...

– Qhuinn... – a voz estrangulada ficava cada vez mais fina. – Qh...

Pensar em tudo o que o primo tinha, e tudo de que ele não tomava conta, deu-lhe uma força extra, e ele a canalizou direto para as mãos.

– De que diabos você precisa mais, cretino? Acha que algum desconhecido vai ser melhor do que aquilo que você já tem na sua cama?

A força do ataque começou a empurrar Saxton para trás, os sapatos dele escorregando no piso liso enquanto os coturnos de Qhuinn guiavam os dois. Pararam quando os ombros de Saxton bateram no corrimão da imensa escadaria.

– Seu puto maldito...

Alguém gritou. Assim como outro alguém.

E logo se ouviram passadas vindas de todos os lados, seguidas por um punhado de pessoas puxando-o pelos braços.

Tanto faz. Ele apenas continuou com os olhos e os braços travados, a fúria em seu âmago transformando-o num buldogue que...

Não...

Iria...

Soltar...


CAPÍTULO 26

– Então, vocês acham que um dia voltarão para Caldwell? – Blay perguntou para a mãe.

– Não sei. Seu pai vai e volta do trabalho com tanta facilidade à noite, e nós dois gostamos da calma e da privacidade daqui do interior. Acha que agora está mais seguro do que aí na cidade...

De repente, gritos passaram pelas portas fechadas de seu quarto. Muitos gritos.

Blay olhou de relancu e franziu o cenho.

– Ei, mahmen, sinto interromper, mas acho que está acontecendo alguma coisa aqui na casa...

O tom de voz dela baixou, o medo se entrelaçando em suas palavras.

– Não estão sendo atacados, estão?

Por um momento, aquela noite na casa deles em Caldwell um ano e meio atrás retornou em sua memória numa série rápida de contrações no estômago: a mãe correndo aterrorizada, o pai se armando contra o inimigo, a casa destruída.

Ainda que a gritaria parecesse piorar, ele não tinha como sair sem apaziguá-la.

– Não, não, mahmen, este lugar é muito seguro. Ninguém pode nos encontrar, e mesmo que conseguissem não poderiam entrar. É só que às vezes os Irmãos começam a discutir. Garanto, está tudo bem.

Pelo menos era o que ele esperava. As coisas pareciam estar piorando.

– Ah, que alívio. Não quero que nada aconteça com você. Vá cuidar de tudo e me ligue quando souber que virá nos visitar. Vou arrumar o seu quarto e preparar uma lasanha para você.

Na mesma hora, a boca começou a salivar. Assim como os olhos ficaram um poquinho marejados.

– Eu te amo, mahmen... E obrigado. Você sabe, por...

– Sou eu quem agradece pela confiança. Agora vá lá ver o que está acontecendo, e cuide-se. Eu te amo.

Desligando, ele saiu da cama e foi para a porta. No segundo em que se viu no corredor das estátuas, ficou claro que uma bela briga estava acontecendo na parte principal da casa: havia muitas vozes de machos, todas elas num volume que indicava “emergência”.

Trotando, ele seguiu para o balcão do segundo andar...

Quando conseguiu espiar o vestíbulo, não entendeu de pronto o que via lá embaixo: havia um nó de pessoas na base da escadaria, todas com os braços esticados como se tentassem apartar uma briga.

Só que não era entre dois Irmãos.

Que merda era aquela? Estavam mesmo tentando tirar Qhuinn de cima de Saxton...?

Jesus, o maldito estava com as mãos ao redor do pescoço do primo e, a julgar pelo tom acinzentado no rosto do macho, prestes a matá-lo.

– Que diabos está acontecendo aqui! – Blay berrou, ao tomar as escadas correndo.

Quando chegou à confusão, havia Irmãos demais no caminho. E aqueles não eram o tipo de macho que você simplesmente afastava às cotoveladas. Infelizmente, se alguém conseguiria deter Qhuinn, esse alguém seria ele. Mas como diabos ele conseguiria atrair a atenção do idiota...

Isso mesmo, pensou.

Atravessando o vestíbulo, quebrou o vidro do antigo alarme manual de incêndio com o punho e puxou a alavanca para baixo.

No mesmo instante, uma sirene explodiu no recinto, a acústica do teto de igreja agindo como um amplificador enquanto o alarme berrava desenfreado.

Foi como atingir um bando de cães de briga com um balde de água. Toda a ação parou e as cabeças se levantaram da confusão para olhar ao redor.

O único que não deu a mínima foi Qhuinn. Ele ainda apertava com força.

Blay se aproveitou do momento “ei, o que é isso” e conseguiu abrir caminho.

Concentrando-se em Qhuinn, posicionou o rosto bem na frente do dele.

– Solte-o agora.

No segundo em que a sua voz foi registrada, uma expressão de choque substituiu a violência fria que marcava o rosto de Qhuinn, como se ele não tivesse esperado que Blay viesse até ali. E foi só isso o que foi preciso. Um único comando dele e aquelas mãos se soltaram tão rapidamente que Saxton caiu no chão como um peso morto.

– Doutora Jane! Manny! – alguém gritou. – Chamem um médico!

Blay queria berrar com Qhuinn ali mesmo, mas estava aterrorizado demais com o estado de Saxton para perder tempo com “o que há de errado com você?”. O advogado não se mexia. Segurando o belo terno do rapaz, Blay o rolou no chão e verificou a carótida com a ponta dos dedos, rezando para encontrar a pulsação. Quando não encontrou, inclinou a cabeça de Saxton para trás e se curvou para fazer boca a boca.

Mas, antes disso, Saxton tossiu e puxou o ar para dentro dos pulmões.

– Manny está chegando – disse Blay com a voz rouca, mesmo sem saber se isso era verdade. Mas, ora essa, alguém devia estar a caminho. – Fique comigo...

Mais tossidas. Mais inspirações fundas. E a cor começou a voltar para o belo e refinado rosto.

Com a mão trêmula, Blay afastou o cabelo loiro e espesso da testa que tocara tantas vezes antes. Ao fitar os olhos confusos que olhavam para ele, ele quis sentir algo profundo na alma, que desse uma guinada em sua vida e...

Rezou por esse tipo de reação.

Inferno, naquele instante, trocaria seu passado e seu presente por isso.

Mas não estava ali. Pesar, raiva em favor do macho, tristeza, alívio... catalogou cada um desses sentimentos. Era só isso, contudo.

– Cheguei, deixe-me dar uma olhada – disse a doutora Jane ao apoiar a maleta preta de médico no chão e se ajoelhar no piso de mosaico.

Blay recuou para dar espaço à shellan de V., mas ficou próximo, mesmo sem poder fazer coisa alguma. Inferno, ele sempre quis ir para a faculdade de medicina, mas não para ressuscitar ex-amantes porque um psicótico tentara estrangulá-los no maldito átrio de entrada.

Olhou para Qhuinn. O lutador ainda estava sendo contido por Rhage, como se o Irmão não estivesse inteiramente certo de que o episódio terminara.

– Vamos ficar de pé – disse a doutora Jane.

Blay se adiantou, ajudando Saxton, mantendo-o firme, conduzindo-o para a escadaria. Os dois ficaram em silêncio ao subir, e quando chegaram ao segundo andar, Blay seguiu para o seu quarto por força do hábito.

Puxa.

– Não, está tudo bem – murmurou Saxton. – Só me deixe sentar aqui um minuto, está bem?

Blay pensou na cama, mas quando Saxton ficou tenso ao tomarem essa direção, ele o levou para a chaise-longue. Ajudando o macho a se deitar, recuou desajeitado.

No silêncio que se seguiu, uma raiva violenta o atingiu sabe-se lá vinda de onde.

E agora as suas mãos tremiam por outro motivo.

– Então – disse Saxton com voz rouca –, como foi a sua noite?

– O que diabos acabou de acontecer?

Saxton afrouxou a gravata. Desabotoou o colarinho. Respirou fundo mais uma vez.

– Briga de família, parece.

– Tolice.

Saxton desviou o olhar cansado.

– Temos mesmo que fazer isto?

– O que aconteceu...

– Acho que você e ele têm que conversar. E depois que o fizerem, não terei mais que me preocupar em ser atacado como um criminoso novamente.

Blay franziu a testa.

– Ele e eu não temos nada para dizer um ao...

– Com todo o respeito, as marcas no meu pescoço sugerem o contrário.

– Como estamos, grandão?

Enquanto a voz de Rhage era registrada nos ouvidos de Qhuinn, ficou claro que o Irmão verificava se o drama já acabara. Desnecessário. No instante em que Blay lhe disse para parar, o corpo de Qhuinn obedecera, como se o cara tivesse o controle remoto da sua TV.

Havia outras pessoas por perto, obviamente também esperando para ver se ele mostrava qualquer indicação de que correria atrás de Saxton para retomar a rotina de estrangulamento.

– Você está bem? – perguntou Rhage.

– Sim, sim. Estou bem.

As barras de aço ao redor do seu tronco relaxaram e gradualmente se abaixaram. Então uma mãozorra deu-lhe um tapa nas costas e apertou seu ombro.

– Fritz odeia corpos no átrio frontal.

– Mas não há muito sangue no estrangulamento – alguém observou. – Seria fácil limpar depois.

– Apenas uma polida e pronto – o outro disse.

Houve uma pausa pesada depois disso.

– Vou subir – quando voltaram a olhar para ele em antecipação, Qhuinn balançou a cabeça. – Não para uma repetição. Juro pelo...

Bem, ele não tinha uma mãe, um pai, um irmão, uma irmã... nem mesmo um filho, ainda que, tomara, isso fosse temporário.

– Não vou, ok?

Não esperou por mais nenhum comentário e se lembrou de que ainda precisava passar pelo quarto de Layla.

Tomando a direita no alto das escadas, seguiu para o quarto de hóspedes para o qual a Escolhida fora levada ao se mudar e bateu à porta com suavidade.

– Layla?

Apesar do fato de que teriam um filho juntos, ele não se sentia à vontade para entrar sem ser convidado.

A segunda batida foi um pouco mais forte. Assim como sua voz:

– Layla?

Ela devia estar dormindo.

Recuando, seguiu para o próprio quarto, passando diante do escritório de Wrath com suas portas fechadas e depois tomou o corredor das estátuas. Ao passar diante da porta de Blay, não conseguiu deixar de encarar a maldita porta.

Jesus Cristo, quase matara Saxton.

E ainda sentia vontade de matar.

Sempre soube que o primo não valia nada e detestava estar certo a esse respeito. O que diabos Sax estava pensando? O cara tinha o insuperável na sua cama todo santo dia e, mesmo assim, de algum modo, qualquer um de algum bar, de uma boate ou da maldita Biblioteca Municipal de Caldwell era melhor do que aquilo? Até mesmo necessário?

Filho da mãe traiçoeiro.

Enquanto as mãos se fechavam em punhos e ele entretinha a ideia de abrir caminho com um chute só para dar mais uns socos no rosto de Saxton, quase não conseguiu controlar seu impulso.

Solte-o agora.

De lugar nenhum a voz de Blay reverberou em sua cabeça uma vez mais e, obviamente, a violência foi desligada. Literalmente, entre um momento e o seguinte, ele passou de touro enfurecido a estado neutro.

Estranho.

Balançando a cabeça, foi até seu quarto, entrou e fechou a porta.

Depois de fazer com que as luzes se acendessem, ficou parado, os pés colados no chão, os braços pensos como cordas frouxas, a cabeça à toa no alto da espinha. Sem ir a parte alguma.

Sem nenhum motivo aparente, pensou no amado aspirador de Fritz, o eletrodoméstico estacionado dentro de um armário, deixado no escuro até que alguém o utilizasse.

Ótimo. Estava reduzido ao nível de um aspirador de pó.

No fim, praguejou, e se obrigou a começar a se despir e ir para a cama. A noite se mostrara um trabalho hercúleo desde o instante em que o sol se pusera e a boa notícia era que a confusão toda finalmente chegara ao fim: as persianas estavam abaixadas para impedir a entrada do sol. A casa estava ficando silenciosa.

Hora do sono REM para recarga.

Ao tirar a camiseta regata devagar e gemer ante todas as dores, percebeu que deixara a jaqueta de couro e as armas na clínica. Sem problemas. Ele tinha extras ali em cima caso precisasse delas durante o dia, e poderia ir buscar seus pertences antes da Primeira Refeição.

Descendo a mão para o zíper da calça, ele...

A porta atrás dele se abriu numa explosão tamanha que ricocheteou na parede, só para ser interceptada pela pegada firme de um filho da mãe muito irritado.

Parado debaixo da moldura da porta, Blay estava furioso, o corpo trêmulo de raiva que até mesmo Qhuinn, que já enfrentara muitas coisas na vida, se pôs em alerta.

– O que há de errado com você!? – o macho exclamou.

Está de brincadeira, foi o que Qhuinn pensou. Como ele não reconhecera o perfume estranho no corpo do amante?

– Acho que precisa perguntar isso ao meu primo.

Enquanto Blay marchava adiante, Qhuinn desviou do cara para...

Blay o segurou pelo braço e expôs as presas com um sibilo.

– Vai fugir?

Num tom controlado, Qhuinn respondeu:

– Não. Vou fechar a maldita porta para que ninguém escute isto.

– Não dou a mínima!

Qhuinn pensou em Layla do outro lado do corredor, tentando dormir.

– Bem, eu me importo.

Qhuinn se soltou e fechou a porta. Depois, antes de se virar, fechou os olhos para dar um tempo.

– Você me dá aversão – disse Blay.

Qhuinn deixou a cabeça pender.

– Você tem que cair fora da minha vida – a amargura naquela voz conhecida foi direto ao coração dele. – Afaste-se de tudo que se refere a mim!

Qhuinn olhou por cima do ombro.

– Você nem se importa de ele ter estado com outra pessoa?

A boca de Blay se abriu. Fechou. Então as sobrancelhas desceram.

– O quê?

Ah. Maravilha.

Naquela confusão, Blay não entendera os porquês.

– O que você disse? – repetiu Blay.

– Você me ouviu.

Quando não houve resposta, nenhuma imprecação, nenhum objeto lançado, Qhuinn se virou.

Depois de um momento, Blay cruzou os braços, não sobre o peito, mas no centro, como se estivesse se sentindo levemente nauseado.

Qhuinn esfregou o rosto e falou numa voz entrecortada:

– Desculpe. Eu sinto muito... não quero isso para você.

Blay balançou a cabeça.

– O quê... – os olhos azuis se concentraram. – Foi por isso que você o atacou?

Qhuinn deu um passo para a frente.

– Eu sinto muito... Eu só... Ele passou pela porta, eu percebi o cheiro dele e perdi a cabeça. Eu sequer estava pensando.

Blay piscou, como se talvez estivesse se deparando com um conceito desconhecido.

– É por isso que você... Por que diabos você faria uma coisa dessas?

Qhuinn deu mais um passo à frente, e depois se forçou a parar, apesar da necessidade quase premente de estar perto dele. E enquanto Blay balançava a cabeça como se estivesse tendo problemas de compreensão, Qhuinn não tinha intenção de falar.

Mas falou.

– Você se lembra do dia na clínica, mais ou menos um ano atrás... – ele apontou para baixo, para o caso de o cara ter se esquecido de onde ficava o centro de treinamento. – Foi antes de você e Saxton... – certo. Não terminaria aquela frase, não se quisesse segurar toda a comida que tinha no estômago. – Lembra-se do que eu lhe disse?

Enquanto Blay parecia confuso, ele o ajudou a se lembrar:

– Eu disse que se alguém o magoasse, eu perseguiria essa pessoa e a deixaria para queimar sob o Sol – até ele mesmo percebeu o modo como a voz abaixou para um rosnado ameaçador. – Saxton o magoou hoje, por isso fiz o que disse que faria.

Blay esfregou o rosto com a mão.

– Jesus...

– Eu lhe disse o que aconteceria. E se ele repetir isso, não posso prometer que não darei cabo do meu trabalho.

– Escute, Qhuinn, você não pode... não pode fazer esse tipo de merda. Simplesmente não pode.

– Você não se importa? Ele foi infiel. Isso não está certo.

Blay expirou profunda e lentamente, como se estivesse cansado de carregar um peso.

– Apenas... não faça mais isso.

Agora era Qhuinn quem balançava a cabeça. Ele não conseguia entender. Se estivesse num relacionamento com Blay, e Blay o traísse? Ele jamais superaria.

Deus, por que não tirara vantagem daquilo que lhe fora oferecido? Não deveria ter corrido. Deveria ter ficado parado.

De modo espontâneo, seus pés deram outro passo à frente.

– Sinto muito...

De repente, ele começou a repetir essas palavras, repetindo-as a cada passo que o levava para mais perto de Blay.

– Sinto muito... Sinto muito... Sinto... muito... – ele não sabia o que estava dizendo nem fazendo; apenas sentia uma urgência de se redimir de todos os seus pecados.

Havia tanto no que se referia àquele macho honrado que estava totalmente imobilizado diante dele.

Por fim, só havia mais um passo antes que seu peito nu atingisse o de Blay.

A voz de Qhuinn não passava de um sussurro:

– Sinto muito.

No silêncio espesso que se seguiu, a boca de Blay se abriu... mas não em sinal de surpresa. Era porque ele não estava conseguindo respirar.

Lembrando-se de não ser um cretino que acreditava que o mundo girava ao redor do seu umbigo, Qhuinn conduziu o assunto de novo para o que acontecia entre Blay e Saxton.

– Não desejo isso para você – disse ele, os olhos perscrutando aquele rosto. – Você já sofreu o bastante, e sei que o ama. Eu sinto muito... Sinto muito mesmo.

Blay apenas continuou parado diante dele, a expressão congelada, os olhos se mexendo como se ele não conseguisse compreender nada. Mas não recuou, não fugiu, não correu. Ele permaneceu... bem onde estava.

– Sinto muito.

Qhuinn observou de uma vasta distância a sua mão se levantar e tocar o rosto de Blay, as pontas dos dedos percorrendo a barba por fazer.

– Eu sinto muito.

Ah, Deus, poder tocá-lo. Sentir o calor daquela pele, inalar o odor másculo e limpo.

– Sinto muito.

O que diabos estava fazendo? Caramba... tarde demais para responder aquilo – esticando o outro braço, pousou a mão no ombro forte.

– Sinto muito.

Ah, Deus, estava atraindo Blay, puxando o corpo dele para junto do seu.

– Sinto muito.

Passou uma mão para a nuca de Blay e enfiou os dedos entre os cabelos que ali formavam cachos.

– Sinto muito.

Blay estava duro, a coluna reta como uma flecha, os braços ainda ao redor da barriga. Mas, um momento depois, como se estivesse confuso com sua própria reação, o macho se inclinou, o peso mudando sutilmente a princípio, e depois um pouco mais.

Com um puxão, Qhuinn passou os braços ao redor da pessoa mais importante da sua vida. Não era Layla, embora sentisse uma dor ante essa negação. Não era John, nem seu Rei. Não eram os Irmãos.

Aquele macho era a razão de tudo.

E mesmo se sentindo morrer porque Blay estava apaixonado por outra pessoa, ele agiu. Fazia tempo demais desde que o tocara pela última vez... e nunca daquela maneira.

– Sinto muito.

Espalmando a parte de trás da cabeça de Blay, incitou o macho a se aproximar, aninhando a cabeça em seu pescoço.

– Sinto muito.

Enquanto Blay aquiescia, Qhuinn estremeceu, virando o rosto para dentro, respirando fundo, enfiando todas as sensações em sua mente para poder se lembrar daquilo para sempre. Enquanto a palma subia e descia, relaxando as costas musculosas, ele fez o que pôde para poder compensar muito mais do que a infidelidade do primo.

– Sinto muito...

Mudando de posição rapidamente, Blay balançou a cabeça. Desvencilhou-se. Recuou.

Afastou-se.

Os ombros de Qhuinn cederam.

– Sinto muito.

– Por que fica repetindo isso?

– Porque...

Nesse instante, quando seus olhos se encontraram, Qhuinn soube que era chegada a hora. Estragara tantas oportunidades com Blay; existiram tantos passos em falso e desencontros deliberados, tantos anos, tantas negações. E tudo de sua parte. Acovardara-se por tempo demais, mas aquilo chegara ao fim.

Ao abrir a boca para dizer as três palavras que estavam na ponta da língua, os olhos de Blay se endureceram.

– Não preciso da sua ajuda, está bem? Posso cuidar de mim sozinho.

Tum. Tum. Tum.

Seu coração batia tão forte que ele teve que se perguntar se explodiria.

– Você vai continuar com ele – Qhuinn disse entorpecido. – Você vai...

– Não faça mais essa cretinice com Saxton... Nunca mais. Jure.

Mesmo morrendo por dentro, Qhuinn sentia-se impotente para negar-lhe qualquer coisa.

– Ok – levantou as palmas. – Não toco nele.

Blay assentiu, o acordo estava selado.

– Só quero ajudar você – disse Qhuinn. – Só isso.

– Você não pode – rebateu Blay.

Deus, mesmo se estranhando novamente, ele ansiava por mais contato e, de pronto, ele enxergou um caminho para exatamente isso. Uma proposta traiçoeira, mas ao menos havia um tipo de lógica interna nela.

Os braços se ergueram, as mãos procurando, encontrando, prendendo-se. Aos ombros de Blay. À nuca de Blay.

O sexo surgiu dentro dele, enrijecendo seu membro, fazendo-o ofegar.

– Mas eu tenho como ajudar.

– Como?

Qhuinn se aproximou, levou a boca ao ouvido de Blay. Em seguida, encostou o peito nu deliberadamente no de Blay.

– Use-me.

– O quê?

– Dê uma lição a ele – Qhuinn segurou com mais força e inclinou a cabeça de Blay para trás. – Vingue-se na mesma moeda. Comigo.

Para deixar bem claro, Qhuinn estendeu a língua e percorreu a lateral do pescoço de Blay.

O sibilo em reação foi tão alto quanto uma imprecação.

Blay o socou, empurrando-o.

– Perdeu o maldito juízo?

Qhuinn apalpou o sexo rijo e pesado.

– Quero você. E aceito você do jeito que for, mesmo que seja só como uma vingança contra o meu primo.

A expressão de Blay mudava como numa partida de tênis de mesa, passando da mais absoluta descrença para uma raiva épica.

– Seu cretino idiota! Você me rejeitou por anos e anos, e agora, de repente, muda de ideia? Que diabos há de errado com você?

Com a mão livre, Qhuinn tocou num dos piercings dos mamilos... e se concentrou no que estava acontecendo abaixo da cintura de Blay: debaixo daquele roupão, o macho ficou completamente duro, o tecido atoalhado impotente diante daquele tipo de ereção.

– Perdeu a sua maldita cabeça de vez? Que merda!

Normalmente, Blay não praguejava nem elevava a voz. Era excitante vê-lo perder o controle.

Encarando o amigo nos olhos, Qhuinn se deixou cair de joelhos.

– Deixe-me cuidar disso...

– O quê...

Ele se inclinou para a frente e puxou a bainha do roupão, atraindo-o na sua direção.

– Venha cá. Deixe-me mostrar do que sou capaz.

Blay agarrou o cordão que mantinha as duas metades unidas e deu um apertão.

– Que diabos você está fazendo?

Deus, o fato de ele estar de joelhos, implorando, parecia apropriado.

– Quero estar com você. Não me importo com o motivo... Apenas me deixe ficar com você...

– Depois de todo esse tempo? O que mudou?

– Tudo.

– Você está com a Layla...

– Não. Vou repetir quantas vezes você precisar ouvir: não estou com ela.

– Ela está grávida.

– Uma vez. Fiquei com ela apenas uma vez, e como já lhe disse, foi só porque quero uma família e ela também quer. Uma vez, Blay, e nunca mais.

A cabeça de Blay pendeu para trás como se alguém estivesse enfiando espinhos debaixo das suas unhas.

– Não faça isso, pelo amor de Deus, você não pode fazer isso... – a voz dele se quebrantou, a angústia era um triste vislumbre de todos os problemas que Qhuinn causara.–Por que agora? Talvez seja você quem queira se vingar de Saxton...

– Meu primo que se foda, isso não tem nada a ver com ele em relação a mim. Se você estivesse sozinho, eu ainda estaria neste tapete, ajoelhado, à espera de estar com você. Se você estivesse comprometido com uma fêmea, se estivesse namorando alguém de modo casual, se você estivesse em milhares de outras situações na vida... eu ainda estaria aqui. Implorando por algo, qualquer coisa... uma só vez, se é o que pode me dar.

Qhuinn esticou a mão de novo, passando por debaixo do roupão, afagando a perna musculosa e forte. E quando Blay recuou um passo, ele sabia que estava perdendo a batalha.

Merda, ele perderia aquela chance se não...

– Escute, Blay, fiz muitas merdas na minha vida, mas sempre tentei ser verdadeiro. Quase morri hoje... e isso endireita as pessoas. Lá em cima, naquele avião, olhando para a noite escura, não achei que fosse conseguir. Tudo ficou claro para mim. Quero estar com você por causa disso.

Na verdade, fazia muuuuito tempo, beeeem antes da situação com o Cessna, que ele sabia disso, mas ele desejava que a explicação fizesse sentido para Blay.

Talvez fizesse. Em resposta, ele oscilou o peso sobre os pés, como se fosse ceder... ou ir embora. Não havia como saber que direção ele tomaria.

Qhuinn se apressou em dizer mais:

– Sinto muito ter desperdiçado tanto tempo... e se você não quiser ficar comigo, eu entendo. Não vou insistir, vou lidar com as consequências. Mas, pelo amor de Deus, se houver uma chance... por qualquer motivo que seja da sua parte, raiva, curiosidade... droga, mesmo que me deixe transar com você uma vez e nunca mais, com o único propósito de me cravar uma estaca no peito... Eu aceito. Aceito você... do jeito que for.

Ele esticou a mão uma terceira vez, escorregando-a por trás da perna de Blay. Afagando. Implorando.

– Não me importo quanto isso vai me custar.


CONTINUA

CAPÍTULO 22

Do outro lado do rio, na clínica de Havers, Layla finalmente teve que sair da mesa de exames e andar pela saleta. Perdera completamente a noção do tempo àquela altura. De fato, parecia que ela estivera fitando aquelas quatro paredes por uma eternidade. E continuaria a fitar pelo resto de sua vida na face da Terra.

A única parte sua que permanecia fresca e ocupada era a cabeça. Infelizmente, ela se concentrava em pensar no que a enfermeira lhe dissera... que aquilo era um aborto. Que era muito provável que ela tivesse concebido...

Quando a batida à porta que ela tanto esperava chegou, foi inesperada e a assustou.

– Entre – disse ela.

A enfermeira que fora tão gentil entrou... mas parecia diferente. Ela se recusava a olhar para Layla, e o rosto estava congelado numa máscara. Havia um tecido branco dobrado no braço, e ela o empurrou para a frente, desviando o olhar. E depois fez uma mesura.

– Sua Graça – disse ela com uma voz trêmula. – Eu... Havers... nós... não sabíamos.

Layla franziu o cenho.

– O que está...

A enfermeira sacudiu o manto, como se tentasse forçar Layla a aceitá-lo.

– Por favor, vista isto.

– Do que se trata?

– A senhora tem sangue de Escolhida – a voz da enfermeira tremulou. – Havers está... perturbado.

Layla se esforçou para compreender as palavras. Então aquilo não era... por causa da gravidez?

– O quê... Não compreendo. Por que ele está... está perturbado porque sou uma Escolhida?

A outra fêmea empalideceu.

– Pensávamos que a senhora fosse... decaída?

Layla cobriu os olhos com as mãos.

– Eu logo poderei ser isso... dependendo do que acontecer – ela não tinha energia para aquilo. – Alguém poderia me contar o resultado dos exames e o que preciso fazer para cuidar de mim?

A enfermeira remexeu no tecido, ainda tentando entregá-lo.

– Ele não pode voltar para cá...

– O quê?

– Não se não estiver... Ele não pode ficar aqui com a senhora. Ele nunca deveria ter...

Layla avançou, sua calma sumindo.

– Deixe-me ser bem clara, quero falar com o médico – ante essa exigência, a enfermeira levantou a cabeça para olhar para ela. – Tenho o direito de saber o que ele descobriu a respeito do meu corpo. Diga isso a ele agora.

Não havia nenhum guincho em sua voz. Nenhuma histeria aguda; apenas um tom neutro, poderoso, que ela nunca vira saindo de sua boca antes.

– Vá. E traga-o – exigiu.

A enfermeira levantou o pedaço de pano.

– Por favor. Vista isso. Ele...

Layla se esforçou para não gritar.

– Sou apenas uma paciente qualquer...

A enfermeira aprumou os olhos e franziu o cenho.

– Com licença, mas isso não é bem verdade. Segundo o médico, ele a violou durante o exame.

– O quê?

A enfermeira apenas a encarou.

– Ele é um bom macho. Um macho muito tradicional em seu modo de ser...

– O que isso, em nome da Virgem Escriba, tem a ver com qualquer coisa?

– O Primale pode matá-lo pelo que ele lhe fez.

– Durante o exame? Eu permiti... era um procedimento médico necessário!

– Isso não faz diferença. Ele fez algo ilegal.

Layla fechou os olhos. Deveria ter usado a clínica da Irmandade.

– A senhora tem que perceber de onde ele vem – ponderou a enfermeira. – A senhora vem de uma hierarquia com a qual não temos contato... e, mais do que isso, nem deveríamos ter contato.

– Tenho um coração pulsante e um corpo que precisa de ajuda. Isso é tudo o que ele, e qualquer outra pessoa, precisa saber. A carne é a mesma.

– O sangue não é.

– Ele tem que vir me ver...

– Ele não virá.

Layla voltou a focalizar a enfermeira. E depois pousou a mão no baixo ventre. Por toda sua existência, até então, ela vivera do lado da integridade, servindo com lealdade, executando suas tarefas, existindo apenas dentro dos parâmetros prescritos ditados por outrem.

Não mais.

Estreitou o olhar.

– Diga ao médico que ou ele vem até aqui e me diz pessoalmente o que está acontecendo... ou procuro o Primale e conto palavra por palavra o que aconteceu aqui.

Deliberadamente, desviou o olhar para a máquina utilizada durante o exame interno.

Enquanto a enfermeira empalidecia, Layla não sentiu nenhuma alegria no poder utilizado. Tampouco se arrependia.

A enfermeira fez uma mesura e saiu do quarto, deixando aquele pedaço de pano ridículo na bancada baixa ao lado da pia.

Layla nunca considerara seu status de Escolhida nem um fardo nem um benefício. Era simplesmente quem ela era: sua sina, o destino que lhe fora dado se manifestando por meio da respiração e da consciência. Outros, porém, não eram tão fleumáticos, especialmente ali embaixo.

E aquilo era apenas o começo.

Pensando bem, estava perdendo o bebê, não estava? Então, aquilo era o fim.

Esticando a mão, pegou o pano e o enrolou ao seu redor. Não se importava com as sensibilidades do médico, mas se ficasse coberta como lhe pediram, talvez ele se concentrasse nela em vez do que em quem ela era.

Quase imediatamente houve outra batida à porta e, quando Layla respondeu, Havers entrou, parecendo ter uma arma na cabeça. Mantendo o olhar no chão, ele apenas os fechou parcialmente na sala, antes de cruzar os braços sobre o estetoscópio.

– Se eu tivesse sabido do seu status, jamais a teria tratado.

– Procurei-o por livre e espontânea vontade, como uma paciente necessitada.

Ele balançou a cabeça.

– A senhora é uma santidade na Terra. Quem sou eu para intervir em assunto tão sagrado?

– Por favor. Apenas ponha um fim no meu sofrimento e me diga o que está acontecendo.

Ele retirou os óculos e esfregou o nariz.

– Não posso divulgar essa informação para a senhora.

Layla abriu a boca. Fechou-a.

– Como disse?

– A senhora não é minha paciente. O seu filho e o Primale são... Portanto, falarei com ele quando puder...

– Não! Não deve procurá-lo!

O olhar que ele lhe lançou sugeriu um desdém que ela imaginava que ele normalmente reservasse a prostitutas. E, em seguida, ele falou num tom baixo, vagamente ameaçador:

– Não está em posição de exigir nada.

Layla se retraiu.

– Vim até aqui porque quis, como uma fêmea independente...

– Você é uma Escolhida. Não só é ilegal para mim acolhê-la, como também posso ser julgado pelo que lhe fiz antes. O corpo de uma Escolhida...

– Pertence a ela mesma!

– ... ao Primale, por lei, como deveria ser. Você é de pouca importância... Nada além de um receptáculo para aquilo que lhe é dado. Como ousa vir até aqui, fingindo ser uma simples fêmea, e colocar o meu consultório e minha vida em risco com tal engodo?

Layla sentiu uma onda de raiva estremecer até cada uma das terminações nervosas de seu corpo.

– De quem é o coração que bate neste corpo? – ela bateu no peito. – De quem é esta respiração aqui dentro!

Havers balançou a cabeça.

– Falarei com o Primale e somente com ele...

– Não pode estar falando sério! Só eu vivo nesta carne. Ninguém mais...

O rosto do médico se contraiu em desgosto.

– Como já disse, você não passa de um recipiente para o mistério divino em seu ventre, o próprio Primale está em sua carne, e, por isso, eu a deterei aqui até que...

– Contra a minha vontade? Acho que não.

– Ficará aqui até que o Primale venha buscá-la. Não serei responsável por deixá-la livre no mundo.

Os dois se encararam.

Com uma imprecação, Layla arrancou o tecido que a cobria.

– Bem, esse seu plano é ótimo. Mas estou me despindo neste segundo e sairei daqui desse modo se assim for necessário. Fique e observe se quiser... ou pode tentar tocar em mim, mas acredito que isso seria considerado outra violação de algum tipo para o senhor, não seria?

O médico saiu com tanta rapidez que tropeçou no corredor.

Layla não desperdiçou sequer um segundo, vestindo suas roupas e se apressando pelo corredor. Ainda que fosse improvável que houvesse apenas uma saída, a da recepção – deviam existir outras rotas de fuga, para o caso de um ataque –, infelizmente, ela não conhecia a planta da clínica.

Sua única opção era ir direto para a entrada. E teria de fazer isso caminhando, pois estava furiosa demais para se desmaterializar.

Trotando, Layla tomou a direção pela qual entrara e, quase imediatamente, como se tivessem sido instruídas a tal, a equipe de enfermagem apareceu em seu caminho, tomando conta do corredor, impossibilitando-a de passar.

– Se uma de vocês tocar em mim – exclamou ela no Antigo Idioma –, considerarei isso uma violação da minha santidade sagrada.

Todas pararam.

Enfrentando cada um dos olhares, ela se adiantou e forçou-as a se afastarem, um caminho se formando entre as figuras imóveis e depois voltando a se fechar atrás dela. Na sala de espera, ela parou na frente do balcão de recepção e encarou a fêmea que, alarmada, continuava apenas sentada.

– Você tem duas escolhas – Layla indicou a porta de saída reforçada. – Pode voluntariamente abrir aquela porta para mim, ou eu a explodo com o meu poder... expondo todos vocês e os seus pacientes para o açoite da luz do sol que entrará – consultou o relógio da parede – em menos de sete horas. Não tenho certeza se vocês poderão consertar esse tipo de estrago a tempo... você tem?

O clique da trava sendo aberta ressoou no silêncio.

– Obrigada – murmurou com educação ao se encaminhar para a saída. – A sua aquiescência é muito apreciada.

Afinal, ela jamais se esquecia dos seus modos.

Sentado atrás da escrivaninha, com o traseiro confortável no trono que seu pai fizera séculos e séculos atrás, Wrath, filho de Wrath, escorregava o dedo para cima e para baixo na suave lâmina de prata do abridor de cartas em forma de adaga. Ao seu lado, no chão, George roncava pelo focinho.

O cão dormia em raros momentos.

Se alguém batesse à porta ou entrasse, ou se o próprio Wrath se movesse de algum modo, a cabeçorra se levantava e a coleira pesada fazia barulho. O alerta instantâneo também aparecia se alguém atravessasse o corredor, ou usasse um aspirador de pó em algum lugar, ou abrisse a porta do vestíbulo no andar de baixo. Ou servisse uma refeição. Ou espirrasse na biblioteca.

Depois que a cabeça se erguia, havia uma escala de reações, variando do nada (atividades na sala de jantar, aspirador e espirro), a um levantar de orelhas (a porta da frente se abrindo ou alguém no corredor) até a atenção completa sentando-se (batida e entrada). O cachorro nunca era agressivo, porém servia como um detector de movimentos, deixando a decisão quanto ao que fazer a seu dono.

O cão guia era um cavalheiro.

E, mesmo assim, ainda que a natureza mansa fosse parte do animal bem como os pelos longos e macios, e o corpo grande e amplo, Wrath, vez ou outra, testemunhara vislumbres da fera dentro de tal combinação adorável: quando se está em meio a um bando de lutadores agressivos e másculos como a Irmandade, as cabeças esquentavam vez ou outra, mesmo em relação ao Rei. E isso não incomodava Wrath. Ele estava junto aos filhos da mãe há tempo demais para se importar com um pouco de batidas no peito e seguradas de saco.

George, no entanto, não gostava disso. Se algum deles se metesse a valentão em relação ao Rei, os pelos do cão gentil se eriçavam e ele rosnava em aviso enquanto pressionava o corpo às pernas de Wrath, como se estivesse se preparando para mostrar aos Irmãos o comprimento das suas presas para o caso de as coisas chegarem às vias de fato.

A única coisa que Wrath amava mais era a sua rainha.

Abaixando a mão, afagou o flanco do cachorro; depois, voltou a se concentrar na sensação do abridor de cartas contra o dedo.

Jesus Cristo. Aviões caindo do céu... Irmãos se machucando... Qhuinn bancando o herói novamente...

Pelo menos a noite não fora apenas um drama de provocar ataques cardíacos. Na verdade, começaram em boa nota com a prova de que precisavam para atacar o Bando de Bastardos: V. concluíra o teste de balística e, caramba, a bala extraída do pescoço de Wrath começara sua trajetória no rifle encontrado no covil de Xcor.

Wrath sorriu consigo, as presas coçando nas pontas.

Aqueles traidores agora estavam, oficialmente, na sua lista de inimigos, com o amparo total da lei – e estava na hora de causar alguns estragos.

Nesse instante, George sacudiu a cabeça, e a batida insistente à porta que se seguiu indicava que Wrath não devia ter notado a primeira batida.

– Entre.

Ele sabia quem era antes que a Irmandade entrasse: V. e o tira. Rhage. Tohr. Phury. E, por fim, Z., quem, a julgar pelo baque, parecia estar usando uma bengala.

Fecharam a porta.

Como ninguém se sentou, tampouco jogou conversa fora, ele soube exatamente por que vieram vê-lo.

– Qual o veredicto, senhoras? – perguntou de modo arrastado, ao se recostar contra o trono.


Foi a voz de Tohr que lhe respondeu:

– Estivemos pensando a respeito de Qhuinn.

Ele apostava nisso. Depois de apresentar a ideia na reunião no começo da noite, não pressionara por um sim ou um não. Havia muitas coisas que ele, como rei, tinha que enfiar goela abaixo das pessoas. Quem os Irmãos aceitariam no grupo não era uma dessas coisas.

– E?

Zsadist falou no Antigo Idioma:

– Eu, Zsadist, filho de Ahgony, iniciado no ano 242 do reino de Wrath, filho de Wrath, por meio desta indico Qhuinn, um órfão no mundo, como membro da Irmandade da Adaga Negra.

Ouvir as palavras formais saírem da boca do Irmão foi um choque. Z., dentre todos eles, acreditava que o passado era um monte de asneira. Não quando se referia àquilo, pelo visto.

Jesus, pensou Wrath. Eles dariam prosseguimento àquilo. E rápido – acreditara que eles precisariam de mais tempo. Dias de reflexão. Semanas. Talvez um mês – e, talvez, um “não” por uma série de motivos.

Mas eles estavam dispostos – e, em concordância, também Wrath.

– Em que se baseia esse pedido em seu nome e de sua linhagem? – perguntou Wrath.

Em seguida, Z. deixou a formalidade de lado e foi para a realidade que importava.

– Ele me trouxe de volta para casa em segurança, para a minha shellan e minha pequena filha. Arriscando a própria vida.

– Muito justo.

Wrath passou o olhar por todos os machos parados diante de sua escrivaninha, mesmo sem conseguir enxergá-los. A visão não importava. Ele não precisava de retinas operantes para lhe dizer onde todos estavam e como se sentiam a respeito daquilo; o odor de suas emoções estava claro.

Eram, como grupo, firmes, resolutos e orgulhosos.

Mas as formalidades eram necessárias.

Wrath começou pelo que estava na ponta.

– V.?

– Eu estava pronto para atacar quando ele já estava em cima de Xcor.

Houve um grunhido de concordância.

– Butch?

O sotaque de Boston se fez alto e claro:

– Considero-o um lutador de primeira. E gosto dele. Ele está amadurecendo, deixando de lado a atitude negativa, está se tornando sério.

– Rhage?

– Deveria tê-lo visto hoje. Ele não me deixou pilotar o avião... disse que dois Irmãos seria muito a perder.

Mais grunhidos de concordância.

– Tohr?

– Na noite em que você foi atingido? Eu consegui tirá-lo de lá graças a ele. Ele tem valor.

– Phury?

– Gosto dele. De verdade. Ele é o primeiro a agir em qualquer situação. Ele, literalmente, faria qualquer coisa por qualquer um de nós... não importando o quanto possa ser perigoso.

Wrath tamborilou as juntas na mesa.

– Está acertado, então. Direi a Saxton para providenciar as mudanças e faremos isso.

Tohr se intrometeu:

– Com todo o respeito, meu senhor, precisamos resolver a questão do ahstrum nohtrum. Cuidar da retaguarda de John não pode mais ser a diretriz primária dele.

– Concordo. Diremos a John para liberá-lo disso... e não creio que a resposta seja negativa. Então, farei com que Saxton cuide da papelada, e depois da iniciação de Qhuinn; V., cuide da tatuagem no rosto dele. Como se John tivesse morrido de causas naturais ou algo do tipo?

Houve um barulho de roupas se mexendo, como se os Irmãos estivessem fazendo o gesto simbólico de “que a Virgem Escriba não permita isso” por sobre o peito.

– De acordo – disse V.

Wrath cruzou os braços diante do peito. Aquele era um momento histórico e ele sabia muito bem isso. A iniciação de Butch fora legal por causa do laço de sangue que ele tinha com a realeza. Qhuinn era uma história diferente. Nenhum sangue real. Nenhum sangue de Escolhida ou de Irmandade, ainda que, tecnicamente, ele fosse da aristocracia.

Nenhuma família.

Por outro lado, o garoto dera provas de quem era vezes sem conta no campo de batalha, fazendo jus a um padrão que, segundo as Antigas Leis atualmente determinavam, era reservado somente para aqueles de linhagens específicas – e isso era tolice. Não que Wrath não apreciasse os planos de procriação da Virgem Escriba. As combinações entre os machos mais fortes e as fêmeas mais inteligentes produziram, de fato, resultados extraordinários no que se referia aos lutadores.

Porém, também resultara em defeitos como a sua cegueira. E limitava as promoções baseadas no mérito.

No fim, a reformulação das leis no tocante a quem poderia ou não estar na Irmandade não era apenas apropriado nos termos de que tipo de sociedade ele desejava criar – era uma questão de sobrevivência. Quanto mais lutadores, melhor.

Além do mais, Qhuinn verdadeiramente fizera por merecer a honra.

– Que assim seja – murmurou Wrath. – Oito é um bom número. Um número de sorte.

O murmúrio de concordância perpassou o ar mais uma vez, o som de uma única e completa solidariedade.

Aquele era o futuro, pensou Wrath ao sorrir e revelar as presas. E era certo.


CAPÍTULO 23

Enquanto Sola Morte estava no escritório do “chefe”, seu corpo estava numa pose de combate. Pensando bem, aquele era seu modo de ser, e nada específico em relação ao ambiente ou à conversa que se sucedia.

Essa última, no entanto, não melhorava muito o seu humor.

– Desculpe, o que disse? – exigiu saber.

Ricardo Benloise sorriu em seu típico modo tranquilo e distante.

– A sua missão está completa. Obrigado pelo seu tempo.

– Eu nem lhe contei o que descobri lá.

O homem se recostou na cadeira.

– Pode receber seus honorários com meu irmão.

– Não entendo isso – quando ele telefonara menos de 48 horas antes, aquilo tinha sido uma prioridade. – Você disse...

– Seus serviços não são mais necessários para esse propósito específico. Obrigado.

Será que ele estava trabalhando com outra pessoa? Mas quem em Caldwell fazia o tipo de coisas que ela fazia?

– Você nem mesmo quer saber o que descobri.

– Sua missão chegou ao fim – o homem sorriu novamente, de modo tão profissional, que alguém poderia jurar que ele era um advogado ou um juiz. Não um criminoso em escala global. – Mal posso esperar para voltarmos a trabalhar juntos no futuro.

Um dos guarda-costas ao fundo deu alguns passos à frente, como se estivesse pronto para levar o lixo para fora.

– Alguma coisa está acontecendo naquela casa – disse ela ao se virar. – Quem quer que seja, está escondendo...

– Não quero que volte lá.

Sola parou e olhou por sobre o ombro. A voz de Benloise estava tranquila como sempre, mas os olhos eram francos.

Bem, aquilo era interessante.

A única explicação possível com alguma lógica era de que o senhor Misterioso da grande casa de vidro alertara Benloise para que recuasse. Será que sua visitinha fora descoberta? Ou seria aquilo apenas uma demonstração rotineira de como as coisas prosseguiam no tráfico de drogas?

– Está ficando sentimental? – perguntou ela com suavidade. Afinal, ela e Benloise se conheciam há tempos.

– Você é uma commodity muito útil – o sorriso atenuou a ferroada das palavras. – Agora vá e fique em segurança, niña.

Ah, pelo amor de Deus... não havia motivos para brigar com o homem. E ela receberia seu dinheiro, portanto, por que se importar?

Ela acenou, seguiu para a porta e desceu as escadas. No espaço da galeria, seguiu para o fundo do prédio, onde os empregados legítimos trabalhavam durante o expediente lícito. Passando os arquivos e as mesas, que pareciam do tamanho de uma casinha da Barbie graças ao teto alto industrial quinze metros acima, ela tomou um corredor estreito que estava marcado apenas pelas câmeras de segurança.

Bater à porta era inútil, mas ela o fez assim mesmo, os painéis à prova de balas absorvendo o som das juntas, como se estivessem com fome. Para auxiliar o irmão de Benloise (não que Eduardo precisasse disso) ela se virou para a câmera mais próxima e mostrou o rosto.

As travas foram abertas momentos depois. O escritório de Ricardo era minimalista ao extremo; o de Eduardo era um lugar em que Donald Trump, com todo o seu fetiche por ouro, sentiria-se sufocado.

Com um pouco mais de mármore e tecidos dourados, você se sentiria num prostíbulo.

Enquanto Eduardo sorria, seus dentes falsos eram da forma e cor das teclas de um piano, e o bronzeado uniforme tão profundo, que pareceria ter sido colocado nele com uma caneta permanente. Como sempre, ele estava usando um terno de três peças, ao estilo do senhor Roarke da Ilha da Fantasia, com a exceção de ser preto, e não branco.

– Como está hoje? – o olhar dele passeou pelo seu corpo. – Parece-me ótima.

– Ricardo disse para eu procurá-lo para pegar o meu dinheiro.

Instantaneamente, Eduardo se mostrou sério, lembrando-a do motivo pelo qual Ricardo o mantinha por perto: laços de sangue e competência eram uma combinação poderosa.

– Sim, ele me avisou que você viria – Eduardo abriu uma das gavetas e pegou um envelope. – Aqui está.

Ele esticou o braço ao longo da escrivaninha, e ela pegou o que lhe foi oferecido, abrindo-o imediatamente.

– Aqui só tem a metade – ela levantou o olhar. – Só tem dois e quinhentos.

Eduardo sorriu exatamente como o irmão: só no rosto, sem atingir o olhar.

– A missão não foi completada.

– Foi o seu irmão quem a suspendeu. Não eu.

Eduardo ergueu as palmas para cima.

– Esse é o seu pagamento. Ou pode deixar o dinheiro aqui.

Sola estreitou o olhar.

Fechando a aba do envelope devagar, ela o virou na mão, esticou o braço e depositou-o sobre a mesa. Deixando o indicador apoiado nele, assentiu uma vez.

– Como quiser.

Virando-se, foi para a porta e esperou que ela fosse destrancada.

– Niña, não faça assim – disse Eduardo. Quando ela nada disse, o rangido da cadeira indicou que ele estava se levantando e dando a volta na mesa.

E logo a colônia dele atingiu seu nariz, e as mãos dele pousaram em seus ombros.

– Preste atenção – disse ele. – Você é muito importante para Ricardo e para mim. Nós não a estamos desmerecendo... mucho respeito, certo?

Sola olhou por cima do ombro.

– Deixe-me sair.

– Niña.

– Agora.

– Leve o dinheiro.

– Não.

Eduardo suspirou.

– Você não precisa ser assim.

Sola apreciou a culpa que se fez ouvir na voz dele. A reação, na verdade, era a que ela buscava. Como muitos homens da cultura deles, Eduardo e Ricardo Benloise foram criados por uma mãe tradicional, e isso significava que sentir culpa era um ato reflexo.

Mais eficaz do que gritar com eles ou implorar.

– Saia – disse ela. – Agora.

Eduardo suspirou novamente, dessa vez mais profunda e demoradamente, o som da confirmação de que a manipulação dela mais uma vez atingira o alvo.

Entretanto, ele não lhe deu o dinheiro devido. Apesar da decoração excessiva e do retrospecto da dinâmica da sua infância, ele era mais fechado que um cofre de banco. Dito isso, ela tinha certeza de que arruinara a noite dele, portanto existia satisfação no ato... e ela cuidaria daquilo que Ricardo lhe devia.

Ele podia ser justo. Ou, conforme preferira, fazer o que ela não queria.

Isso vinha acompanhado de uma sobretaxa, evidentemente.

Sim, teria sido muito mais barato para ele lhe dar o valor correto, contudo, ela não era responsável pelas decisões dos outros.

– Ricardo ficará decepcionado – disse Eduardo. – Ele odeia ficar decepcionado. Por favor, apenas aceite o dinheiro; isto não está certo.

A parte lógica de seu cérebro sugeria que ela aproveitasse a oportunidade de apontar a injustiça de ser passada para trás naquilo que lhe era devido. Mas se ela bem conhecia aqueles irmãos, o silêncio... ah, o silêncio...

Como a natureza odiava o vácuo, o mesmo acontecia com a consciência dos sul-americanos bem-criados.

– Sola...

Ela simplesmente cruzou os braços diante do peito e continuou a olhar para a frente. Deixa para o espanhol: Eduardo disparou a falar em sua língua nativa, como se a angústia o despisse das suas habilidades no inglês.

Ele, finalmente, desistiu e a deixou sair cerca de dez minutos mais tarde.

Haveria rosas na sua porta às nove da manhã. No entanto, ela não estaria em casa.

Ela tinha trabalho a fazer.

– Como assim, eles não apareceram? – Assail exigiu saber no Antigo Idioma.

Ao se recostar no assento do Range Rover, segurou o celular firme contra a orelha. O farol vermelho logo adiante impedia seu progresso, e era difícil não enxergar isso como um paralelo cósmico.

Seu primo foi direto, como sempre:

– Os receptadores não chegaram na hora combinada.

– Quantos?

– Quatro.

– O quê? – mas não havia necessidade de o macho repetir. – E nenhuma explicação?

– Nada na rua da parte dos outros sete, se é isso o que está perguntando.

– O que fez com o produto extra?

– Trouxe para casa comigo.

Quando o farol ficou verde, Assail pisou no acelerador.

– Vou fazer o pagamento completo para Benloise, e depois vou me encontrar com você.

– Como preferir.

Assail virou à direita e se afastou do rio. Dois quarteirões à frente, uma curva à esquerda o deixou perto da galeria novamente; outra à esquerda e ele chegava aos fundos.

Já havia um carro estacionado ali, um Audi preto, e ele parou atrás do sedã. Abaixando à frente do banco de passageiros, apanhou pela alça uma maleta de metal prateada e saiu do carro.

Nesse instante, a porta dos fundos da galeria se abriu e alguém saiu.

Uma fêmea humana, a julgar pelo cheiro.

Ela era alta e tinha pernas longas. Cabelos escuros e volumosos penteados para trás. Queixo erguido, como se estivesse pronta para um confronto. Ou como se tivesse acabado de sair de um.

Mas nada disso era relevante para ele. Exceto a parca: uma parca de camuflagem branca sobre creme.

– Boa noite – disse ele num tom baixo quando se encontraram no beco. Ele pronto para entrar, ela, saindo.

Ela parou e franziu o cenho, a mão entrando sorrateira no casaco. Num rompante, ele se viu questionando como seriam os seios dela.

– Nos conhecemos? – perguntou ela.

– Estamos nos conhecendo agora – ele esticou a mão e disse: – Como vai?

Ela olhou para a mão dele, depois voltou a se concentrar no rosto.

– Alguém já lhe disse que você parece o Drácula com esse sotaque?

Ele sorriu contido para que as presas não aparecessem.


– Algumas comparações foram feitas de tempos em tempos. Não vai apertar a minha mão?

– Não – ela indicou a porta da galeria com a cabeça. – É amigo dos Benloise?

– Sou. E você?

– Não os conheço. Bela maleta, a propósito.

Com isso, ela se virou sobre os saltos e se dirigiu para o Audi. Depois que a luz do alarme piscou, ela entrou, o vento varrendo os cabelos sobre seus ombros enquanto ela desaparecia atrás do volante.

Ele saiu da frente quando ela acelerou e saiu dali.

Assail a observou se afastar e se descobriu pensando com desdém a respeito do seu parceiro de negócios Benloise.

Que tipo de homem enviava uma fêmea para aquele tipo de trabalho?

Enquanto as luzes de freio se iluminaram brevemente, e depois viraram a esquina, Assail sinceramente esperava que o limite estabelecido previamente naquela noite fosse respeitado. Seria uma pena ter de matá-la.

Não que ele hesitaria sequer um instante se a situação o exigisse.


CAPÍTULO 24

Deitado de costas no concreto duro, os diversos anos de Zypher como membro do Bando de Bastardos significava que ele estava bem familiarizado com a falta de acomodações de que agora usufruía: o traseiro estava entorpecido pelo frio bem como pela ausência de um colchão debaixo do corpo pesado. Do mesmo modo, a cabeça estava amparada apenas pela mochila que ele usara para carregar seus poucos pertences para o novo QG no porão daquele armazém. Além disso, a coberta fina e áspera que o cobria não era comprida o suficiente, deixando expostos seus pés apenas de meias ao ar frio e úmido.

Mas ele estava no paraíso. Um paraíso perfeito.

Correndo em suas veias estava o sangue daquela fêmea, e, ah, que alívio... Tendo passado quase um ano sem alimentação adequada, ele se acostumara à fadiga, aos músculos desassossegados e às dores. Mas tudo aquilo se acabara.

De fato, era como se estivesse inflando com força, a pele voltando a se esticar à sua dimensão própria, a altura mais uma vez retornado ao seu normal, a mente tanto sonolenta pelo que se passara quanto se aguçando a cada momento que transcorria.

Contudo, caso tivesse uma cama, ele também a apreciaria, claro. Travesseiros macios, lençóis cheirosos, roupas limpas... aquecimento no inverno, ar-refrigerado no verão... alimento num estômago vazio, água na garganta seca... tudo isso era bom quando se conseguia ter.

No entanto, não eram necessários.

Uma pistola limpa, uma adaga afiada, um lutador pleno em sua totalidade. Era disso que precisava.

E, claro, nas horas vagas, seria bom ter uma fêmea desejosa deitada de costas. Ou de bruços. Ou de lado com um joelho erguido até o seio expondo o sexo pronto para ele.

Ele não era de escolher muito.

Santa Virgem Escriba, aquilo era o... êxtase.

Não era uma palavra que usasse com muita frequência – e ele não queria dormir durante aquele despertar. Mesmo enquanto os outros se deixavam cair no descanso dos mortos, cada um deles na mesma recuperação que ele próprio estava amortecido, ele permanecia profundamente ciente da sua incandescência interna gloriosa.

Só havia uma coisa que o estava irritando. As passadas.

Entreabriu um olho.

Bem no limiar da luz das velas, Xcor andava de um lado para o outro, o caminho restrito entre duas imensas colunas de sustentação que segurava o pavimento superior.

O líder deles nunca estava à vontade, mas aquela inquietação era diferente. A julgar pelo modo como segurava o aparelho telefônico, esperava uma ligação. E isso explicava por que ele estava ali. O único lugar em que conseguiam um sinal era debaixo de um dos alçapões. A porta era feita de madeira, e a malha de aço que fora colocada por baixo foi a única alteração que fizeram quando espantaram os últimos vagabundos humanos, selando as portas exteriores para se mudarem para ali.

Dessa forma, os vampiros não poderiam se materializar ali embaixo.

E bem se sabia que os humanos não tinham força suficiente para abrir aquelas pranchas de madeira de quinze centímetros de espessura...

O tinido do telefone do líder era civilizado demais para aquele ambiente, a campainha falsa soando alegre demais como sinos de vento remexendo pela brisa primaveril.

Xcor parou e olhou para o telefone, deixando-o tocar uma vez mais. Duas vezes.

Obviamente, o macho não queria deixar transparecer que estava aguardando o telefonema.

Quando por fim atendeu, levou o aparelho ao ouvido, ergueu o queixo e relaxou o corpo. Estava de novo no controle.

– Elan – disse ele com suavidade. Houve uma pausa. E, em seguida, aquelas sobrancelhas sempre baixas se ergueram ao máximo. – Que dia e que hora?

Zypher se sentou.

– O Rei ligou? – silêncio. – Não, nem um pouco. De qualquer forma, somente o Conselho terá permissão. Ficaremos à margem... Conforme o seu pedido.

A última parte foi pronunciada com certa carga de ironia, ainda que dificilmente o aristocrata do outro lado da conversa percebesse isso. Pelo pouco que Zypher vira e ouvira de Elan, filho de Larex, ele estava menos do que impressionado. Pensando bem, os fracos eram sempre facilmente manipulados, e Xcor sabia muito bem disso.

– Há algo que precisa saber, Elan. Houve um atentado contra a vida de Wrath no outono... e não se surpreenda se houver insinuação do meu envolvimento e dos meus soldados nessa reunião... O quê? Foi na casa de Assail, na verdade, mas qualquer outro detalhe é insignificante. Portanto, entenda, é de se supor que Wrath esteja convocando a reunião com o propósito de expor a mim e aos meus... Lembre-se de que o avisei disso? Apenas se recorde de que foi amplamente protegido. Os Irmãos e o Rei desconhecem o nosso relacionamento... Isto é, a menos que um dos seus cavalheiros relatarem isso de alguma forma a ele. Nós, no entanto, permanecemos calados. Além disso, saiba também que não temo ser cunhado de traidor ou ser marcado como alvo pela Irmandade. Percebo, porém, que você possui uma sensibilidade muito mais cultural e refinada, e eu não só respeito isso como farei tudo o que estiver ao meu alcance para protegê-lo de qualquer brutalidade.

Ah, sim, claro, Zypher pensou revirando os olhos.

– Lembre-se, Elan, de que você está protegido.

Enquanto Xcor sorria mais amplamente, suas presas eram expostas por completo, como se estivesse perto de atacar a goela do outro, arrancando-lhe a traqueia.

Despedidas foram feitas em seguida, e Xcor concluiu a ligação.

Zypher falou:

– Está tudo bem?

A cabeça do líder se voltou no alto da espinha, e quando seus olhos se encontraram, Zypher lamentou pelo idiota ao telefone... e por Wrath e a Irmandade.

A luz no olhar do líder era pura maldade.

– Ah, sim. Está tudo muito bem.


CAPÍTULO 25

Enquanto o som do telefone tocando sem ser atendido chegava da linha fixa, Blay segurava o aparelho junto ao ouvido e se sentou na beira da cama. Aquilo era estranho. Os pais deveriam estar em casa àquela hora da noite, faltando tão pouco para amanhecer.

– Alô? – disse a mãe, finalmente.

Blay emitiu um suspiro de alívio longo e lento, e se recostou na cabeceira da cama. Dobrando a ponta do roupão por sobre as pernas, pigarreou.

– Oi, sou eu.

A felicidade que se derramou na voz do outro lado aqueceu-lhe o peito.

– Blay! Como está? Deixe-me chamar seu pai, assim ele pode atender na extensão...

– Não, espere – ele fechou os olhos. – Vamos só... conversar. Você e eu.

– Você está bem? – ele ouviu o som de uma cadeira arranhando o piso e soube onde ela estava: à mesa de carvalho em sua preciosa cozinha. – O que está acontecendo? Não está ferido, está?

Não por fora.

– Eu... estou bem.

– O que foi?

Blay esfregou o rosto com a mão livre. Ele e os pais sempre foram ligados. Normalmente, não existia nada que não lhes contasse, e seu rompimento com Saxton era exatamente o tipo de coisa que ele comentaria: estava triste, confuso, desapontado, um pouco deprimido... todo tipo de descarga emocional que ele e a mãe processavam nesse tipo de telefonema.

Enquanto permanecia calado, porém, ele se lembrava de que havia, na verdade, um assunto que jamais tocara com eles. Um assunto muito importante...

– Blay? Você está me assustando.

– Eu estou bem.

– Não, não está não.

Verdade.

Ele imaginava que não lhes contara a respeito da sua orientação sexual porque a vida amorosa não era exatamente algo que as pessoas normalmente partilhavam com os pais. E talvez houvesse uma parte dele, por mais ilógica que fosse, que se preocupava se eles o encarariam de modo diverso ou não.

Retire esse talvez.

Afinal, a política da glymera a respeito da homossexualidade era bem clara: desde que você nunca fosse franco a esse respeito, e você se comprometesse com alguém do sexo oposto conforme o esperado, você não seria expulso por perversão.

Sim, fazia sentido, porque se amarrar a alguém por quem você não se sente atraído e nem ama, e mentir para essa pessoa a respeito de uma infidelidade, é muito mais honrável do que a verdade.

Mas que Deus o perdoe se você for um macho e tiver um namorado sério – como ele teve pelos últimos doze meses mais ou menos.

– Eu... hum... rompi com alguém.


E com isso se ouviam os grilos cricrilando do lado da mãe.


– Sério? – disse ela depois de um momento, como se estivesse chocada, mas tentando esconder isso.

Se você considera isso uma surpresa, mãe, espere pelo que está por vir, pensou ele.

Porque, caramba, ele iria...

Espere, ele ia mesmo fazer isso assim, pelo telefone? Não deveria ser pessoalmente?

– Sim, eu... hum... – ele engoliu em seco. – Na verdade, estive envolvido por boa parte do último ano.

– Ora, eu... – a dor no tom dela o afetou. – Eu... Nós, seu pai e eu, nunca suspeitamos.

– Eu não sabia muito bem como contar.

– Nós a conhecemos? A família?

Ele fechou os olhos, o peito estava apertado.

– Hum... sim, vocês conhecem a família.

– Bem, sinto muito que não tenha dado certo. Você está bem...? Como terminou?

– Simplesmente acabou, para falar a verdade.

– Bem, relacionamentos são sempre muito difíceis. Ah, meu amor, meu querido... dá para saber como você está triste só de ouvi-lo. Você gostaria de vir para cá e...

– Era Saxton. O primo de Qhuinn.

Houve uma inspiração profunda do outro lado.

Enquanto a mãe ficava solenemente calada, o braço de Blay começou a tremer tanto que ele mal conseguia sustentar o telefone.

– Eu... eu... hum... – a mãe engoliu em seco. – Eu não sabia. Que você... hum...

Ele terminou o que ela não conseguia em sua cabeça: Eu não sabia que você era uma dessas pessoas.

Como se homossexuais fossem leprosos sociais.

Ah, inferno. Ele não deveria ter dito nada. Nada, absolutamente nada. Maldição, por que tinha de implodir sua vida de uma só vez? Por que não podia antes lidar com o rompimento... e depois de alguns anos, talvez uma década, pudesse se revelar aos pais para que eles o repudiassem? Mas, nããão, ele tinha que...

– É por isso que você nunca nos contou que estava com alguém? – ela perguntou. – Porque...

– Talvez. Sim...

Houve uma fungada. Depois uma profunda inspiração.

O desapontamento dela pelo telefonema era demais para se aguentar, o peso esmagador comprimindo-lhe o peito e impossibilitando-o de respirar.

– Como pôde...

Ele se apressou em interrompê-la, porque não suportaria ouvir sua doce voz proferir aquelas palavras.

– Mahmen, desculpe. Escute, eu não quis dizer isso, ok? Eu não sei o que estava dizendo. Eu só...

– O que eu ou nós fizemos...

– Mahmen, pare – nessa pausa que se seguiu, ele pensou em recitar um pouco de Lady Gaga, e justificar-se bastante com aquele papo de “a culpa não é sua, você não fez nada de errado como mãe”. – Mahmen, eu só...

Ele sucumbiu nesse instante, chorando o mais silenciosamente possível. A sensação de que, pelo ponto de vista da mãe, ele tivesse desapontado a família só por ser quem era... era uma rejeição que jamais superaria. Ele só queria viver honesta e abertamente, sem desculpas. Como todas as outras pessoas. Amar e ser amado, ser quem era... mas a sociedade tinha um padrão diferente, e como ele sempre temeu, seus pais eram uma parte disso...

Vagamente, ele percebeu que a mãe falava com ele, e se esforçou para se recompor e concluir aquele telefonema.

– ... para que você pensasse que não poderia nos abordar com esse assunto? Que isso, de algum modo, mudaria o que sentimos por você? Blay piscou enquanto o cérebro traduzia o que ele acabara de ouvir em alguma linguagem que fizesse sentido.

– Desculpe... O que disse?

– Por que você... O que fizemos para que você sentisse que qualquer coisa a seu respeito o tornaria de algum modo... diminuído aos nossos olhos? – ela limpou a garganta, como se estivesse tentando se recompor. – Eu amo você. Você é o meu coração batendo fora do meu peito. Não me importo com quem se relacione, se eles têm cabelos claros ou escuros, olhos verdes ou azuis, partes femininas ou masculinas... contanto que você seja feliz, é tudo o que me interessa. Quero para você o que você quiser para si. Eu amo você, Blaylock... simplesmente amo.

– O que... está dizendo...

– Eu te amo.

– Mahmen... – ele engasgou, as lágrimas voltando a se formar.

– Eu só gostaria que não tivesse me contado pelo telefone – murmurou. – Porque eu gostaria muito de poder abraçá-lo agora.

Ele riu de um modo atrapalhado e disforme.

– Não tive a intenção. Quero dizer, não planejei isto. Escapou.

– E eu sinto muito – disse ela – que as coisas não tenham dado certo com Saxton. Ele é um cavalheiro muito gentil. Tem certeza de que acabou mesmo?

Blay esfregou o rosto enquanto a realidade se recalibrava, o amor que ele sempre conheceu ainda com ele. Apesar da verdade. Ou talvez... por causa dela.

Em momentos como aqueles ele se sentia o cara mais sortudo do mundo.

– Blay?

– Desculpe, hum, sim. A respeito de Saxton... – ele pensou no que fizera no escritório vazio no centro de treinamento quando esteve sozinho. – Sim, mahmen, está acabado. Tenho certeza.

– Ok, eis o que tem de fazer, então. Tire um tempo de folga para melhorar. Você saberá quando se sentir melhor. E depois tem que se abrir para conhecer uma pessoa nova. Você é um ótimo partido, sabe disso.

E lá estava ela lhe dizendo para conhecer outro homem.

– Blay? Você me ouviu? Não quero que passe a vida sozinho.

Ele enxugou o rosto de novo.

– Você é a melhor mãe do planeta, sabia disso, não?

– Então, quando virá me ver? Quero cozinhar para você.

Blay relaxou nos travesseiros, ainda que a cabeça começasse a doer, provavelmente pelo fato de, apesar de estar sozinho, ter tentado refrear o choro. Talvez também porque detestasse o ponto em que estava com Qhuinn. E ele também sentia falta de Saxton, de certo modo, porque era difícil dormir sozinho.

Mas aquilo era bom. Aquela... honestidade fizera muito por ele...

– Espere, espere – ele se ergueu dos travesseiros. – Preste atenção, não quero que conte nada para o papai.

– Santa Virgem Escriba, mas por que não?

– Não sei. Estou nervoso.

– Meu bem, ele não vai se sentir diferente de mim.

Sei não, como filho único e último da linhagem... e com toda aquela coisa de pai e filho...

– Por favor. Deixe-me contar pessoalmente – ah, como se isso não o deixasse com vontade de vomitar. – Era o que eu deveria ter feito com você. Apareço aí assim que tiver folga do meu turno; não quero colocá-la numa posição de ter de esconder algo dele...

– Não se preocupe com isso. Essa informação é sua, você tem o direito de partilhá-la com as pessoas quando quiser, se quiser. Porém, eu gostaria que o fizesse logo. Em circunstâncias normais, seu pai e eu contamos tudo um para o outro.

– Prometo.

Houve uma calmaria na conversa.

– Bem, e o trabalho, como tem ido?

Ele balançou a cabeça.

– Mahmen, você não vai querer ouvir a respeito disso.

– Claro que quero.

– Não quero que fique pensando que o meu trabalho é perigoso.

– Blaylock, filho do meu amado hellren, exatamente que tipo de idiota você acha que eu sou?

Blay riu e depois ficou sério.


– Qhuinn pilotou um avião hoje à noite.

– Verdade? Eu não sabia que ele pilotava.

E não era esse o assunto da noite?

– Ele não sabe – Blay voltou a relaxar nos travesseiros e cruzou os pés na altura dos tornozelos. – Zsadist se machucou e nós estávamos com ele num lugar remoto. Qhuinn decidiu que... isto é, sabe como ele é, ele tenta de tudo.

– Muito aventureiro, um tanto selvagem. Mas um macho adorável. Uma vergonha o que a família fez com ele.

Blay remexeu no cordão do roupão.

– Você sempre gostou dele, não? Engraçado, acho que a maioria dos pais não o aprovaria... de tantas maneiras.

– Isso porque eles creem naquele exterior durão. Para mim, é o interior que conta – ela estalou a língua e ele conseguiu visualizá-la balançando a cabeça. – Sabe, nunca vou esquecer a noite em que você o trouxe para casa pela primeira vez. Ele era apenas um projeto de pré-trans, com aquela imperfeição óbvia pela qual, estou certa, ele foi abusado e humilhado. E, mesmo com tudo isso, ele veio direto a mim, estendeu a mão e se apresentou. Ele me olhou direto nos olhos, não num tipo de confrontação, mas como se quisesse que eu olhasse bem para ele e o expulsasse de uma vez se fosse o caso – a mãe exalou uma leve imprecação. – Eu o teria acolhido naquela mesma noite, sabe. Num piscar de olhos. Ao diabo com toda a glymera.

– Você é, verdadeira e inexoravelmente, a melhor mãe do mundo.

Agora foi a vez dela rir.

– E pensar que você diz isso sem que eu esteja colocando um prato de comida na sua frente.

– Bem, uma lasanha a tornaria a melhor mãe do universo.

– Vou colocar a massa para ferver agora.

Enquanto fechava os olhos, essa volta à conversa descontraída, que sempre fora o marco do relacionamento deles, pareceu ainda mais especial.

– Então, conte-me a respeito dessa valentia de Qhuinn. Adoro ouvi-lo falar dele, você fica tão animado.

Caramba, Blay se recusava a pensar nos motivos por trás disso. Apenas se lançou na narrativa, com um pouco de edição para não divulgar nada que a Irmandade não quisesse que se soubesse, não que a mãe fosse contar alguma coisa a alguém.

– Bem, nós estávamos vasculhando essa região e...

– Necessita de mais alguma coisa, senhor?

Qhuinn balançou a cabeça e mastigou o mais rápido que pôde para deixar a boca livre.

– Não, obrigado, Fritz.

– Quem sabe um pouco mais de rosbife?

– Não, obrigado... ah, bem, ok – ele saiu do caminho quando uma carne cozida perfeita atingiu seu prato. – Mas não preciso...

Mais batatas. Mais abobrinhas.

– E vou lhe trazer mais um copo de leite – anunciou o mordomo com um sorriso.

Enquanto o doggen ancião se virava, Qhuinn emitiu um suspiro como quem se prepara para algo antes de acatar a segunda rodada. Ele tinha a sensação de que toda aquela comida era o modo de Fritz lhe dizer obrigado, e era estranho... quanto mais ele comia, mais começava a sentir fome.

Pensando nisso... quando foi mesmo a última vez em que fizera uma refeição?

E quando o mordomo lhe trouxe mais leite, ele o tomou todo como um bom menino.

Maldição, não fora sua intenção perder tempo ali na cozinha. Sua vontade original, quando saiu da clínica, era ir direto para o quarto de Layla. Fritz, por sua vez, teve outras ideias, e o velho doggen não aceitara não como resposta, o que sugeria que fora uma ordem vinda de cima. Como de Tohr, o chefe da Irmandade. Ou do próprio Rei.

Portanto, Qhuinn desistira e cedera... acabando por se sentar à bancada de granito, empanturrando-se tal qual uma piñata.

Pelo menos a rendição era deliciosa, pensou ele um pouco depois, ao abaixar o garfo e limpar a boca.

– Aqui está, senhor, a sua sobremesa.

– Hum, obrigado, mas... – ora, ora, ora, o que temos aqui: uma tigela de sorvete de café com calda quente de chocolate por cima; nada de chantili nem de castanhas. Bem como ele gostava. – Você não precisava se dar a esse trabalho.

– É seu favorito, não?

– Na verdade, é sim – e veja só, uma colher de prata.

Sabe, seria grosseiro deixar a coisa derreter.

Enquanto Qhuinn começava a sobremesa, os pontos dados na sobrancelha pela doutora Jane começaram a latejar debaixo do curativo e a dor o lembrou da noite louca que tivera.

Parecia surreal pensar que apenas uma hora antes ele esteve à beira da morte, dançando no céu escuro naquela armadilha de ratos que era aquele avião que ele não fazia ideia de como pilotar. E agora? Havia somente um pote do melhor de Breyers. Com calda quente.

E pensar que ele estava de fato feliz por não haver nem chantili nem castanhas para arruinar o seu paladar. Porque isso sim seria um problema bem sério.

Enquanto as glândulas adrenais arrotaram e um jorro de ansiedade tremulou ao longo de cada nervo do seu corpo, ele soube muito bem que os choques viriam e iriam embora. Como um tipo de chicotada em seu sistema nervoso.

Mas lidar com um caso de ansiedade pós-desastre era tremendamente melhor do que acabar subindo em chamas. Ou descendo, como teria sido o caso.

Depois da segunda parte da sua refeição, fez o que pôde para ajudar a limpar antes de sair para ver Layla, mas Fritz provocava um alvoroço caso ele sequer tentasse carregar a tigela e a colher para qualquer lugar perto da pia. Cedendo mais uma vez, ele saiu passando pela sala de jantar e parou um segundo para olhar para a longa mesa, imaginando todos sentados em seus lugares costumeiros.

Tudo o que importava era que Z. estava de volta, seguro nos braços de sua shellan, e que ninguém mais se ferira.

– Com licença, senhor – disse Fritz ao se apressar. – A porta.

No fim do vestíbulo, o doggen verificou a câmera de segurança. Um segundo depois, ele destravou a tranca interna do átrio.

E Saxton entrou.

Qhuinn se recolheu. A última coisa que desejava fazer era falar com aquele macho agora. Estava indo ver Layla e depois se deitar...

O cheiro que chegou a ele não estava certo.

Franzindo o cenho, foi até a passagem em arco. Logo adiante, seu primo conversou com Fritz por um minuto, depois começou a caminhar na direção da grande escadaria.

Qhuinn inalou profundamente, as narinas inflando. É, sim, aquela era a colônia cara de Saxton... mas havia outro odor misturado àquele. Outra colônia permeava o macho todo.

E não era de Blay. Ou de nada que o lutador usaria.

E também havia o inconfundível cheiro de sexo...

Não lhe ocorreu nenhum pensamento consciente quando marchou para o espaço aberto e exclamou:

– Onde esteve?

O primo parou. Olhou por sobre o ombro.

– O que disse?

– Você ouviu muito bem – numa inspeção mais próxima, ficou óbvio o que o cara aprontara. Os lábios estavam avermelhados e havia um rubor no rosto dele que Qhuinn podia apostar que não tinha nada a ver com o tempo frio. – Onde diabos você estava?

– Não creio que isso seja assunto seu, primo.

Qhuinn atravessou o piso de mosaico, sem parar até os coturnos de ponta de aço ficarem diante dos belos sapatos do cara.

– Seu puto maldito.

Saxton teve a audácia de parecer enfastiado.

– Sem ofensa, meu querido parente, mas não tenho tempo para isto.

O cara deu meia-volta...

Qhuinn esticou uma mão e o segurou pelo braço. Com um puxão, trouxe-o para perto novamente, nariz com nariz. E merda, o fedor no cara o deixou nauseado.

– Blay está arriscando a vida na guerra e você fica fodendo com um qualquer pelas costas dele? Muita classe, boqueteiro de merda...

– Qhuinn, isso não é da sua conta...

Saxton tentou se livrar dele. Não foi uma boa ideia. Antes de Qhuinn sequer perceber o que estava fazendo, travou as mãos ao redor do pescoço do macho.

– Como ousa? – disse com as presas totalmente expostas.

Saxton bateu as duas mãos nos pulsos de Qhuinn e tentou se soltar, puxando, empurrando, não tendo êxito algum.

– Você... está... me sufocando...

– Eu deveria matá-lo aqui mesmo – rugiu Qhuinn. – Como pôde fazer isso com ele? Ele está apaixonado por você...

– Qhuinn... – a voz estrangulada ficava cada vez mais fina. – Qh...

Pensar em tudo o que o primo tinha, e tudo de que ele não tomava conta, deu-lhe uma força extra, e ele a canalizou direto para as mãos.

– De que diabos você precisa mais, cretino? Acha que algum desconhecido vai ser melhor do que aquilo que você já tem na sua cama?

A força do ataque começou a empurrar Saxton para trás, os sapatos dele escorregando no piso liso enquanto os coturnos de Qhuinn guiavam os dois. Pararam quando os ombros de Saxton bateram no corrimão da imensa escadaria.

– Seu puto maldito...

Alguém gritou. Assim como outro alguém.

E logo se ouviram passadas vindas de todos os lados, seguidas por um punhado de pessoas puxando-o pelos braços.

Tanto faz. Ele apenas continuou com os olhos e os braços travados, a fúria em seu âmago transformando-o num buldogue que...

Não...

Iria...

Soltar...


CAPÍTULO 26

– Então, vocês acham que um dia voltarão para Caldwell? – Blay perguntou para a mãe.

– Não sei. Seu pai vai e volta do trabalho com tanta facilidade à noite, e nós dois gostamos da calma e da privacidade daqui do interior. Acha que agora está mais seguro do que aí na cidade...

De repente, gritos passaram pelas portas fechadas de seu quarto. Muitos gritos.

Blay olhou de relancu e franziu o cenho.

– Ei, mahmen, sinto interromper, mas acho que está acontecendo alguma coisa aqui na casa...

O tom de voz dela baixou, o medo se entrelaçando em suas palavras.

– Não estão sendo atacados, estão?

Por um momento, aquela noite na casa deles em Caldwell um ano e meio atrás retornou em sua memória numa série rápida de contrações no estômago: a mãe correndo aterrorizada, o pai se armando contra o inimigo, a casa destruída.

Ainda que a gritaria parecesse piorar, ele não tinha como sair sem apaziguá-la.

– Não, não, mahmen, este lugar é muito seguro. Ninguém pode nos encontrar, e mesmo que conseguissem não poderiam entrar. É só que às vezes os Irmãos começam a discutir. Garanto, está tudo bem.

Pelo menos era o que ele esperava. As coisas pareciam estar piorando.

– Ah, que alívio. Não quero que nada aconteça com você. Vá cuidar de tudo e me ligue quando souber que virá nos visitar. Vou arrumar o seu quarto e preparar uma lasanha para você.

Na mesma hora, a boca começou a salivar. Assim como os olhos ficaram um poquinho marejados.

– Eu te amo, mahmen... E obrigado. Você sabe, por...

– Sou eu quem agradece pela confiança. Agora vá lá ver o que está acontecendo, e cuide-se. Eu te amo.

Desligando, ele saiu da cama e foi para a porta. No segundo em que se viu no corredor das estátuas, ficou claro que uma bela briga estava acontecendo na parte principal da casa: havia muitas vozes de machos, todas elas num volume que indicava “emergência”.

Trotando, ele seguiu para o balcão do segundo andar...

Quando conseguiu espiar o vestíbulo, não entendeu de pronto o que via lá embaixo: havia um nó de pessoas na base da escadaria, todas com os braços esticados como se tentassem apartar uma briga.

Só que não era entre dois Irmãos.

Que merda era aquela? Estavam mesmo tentando tirar Qhuinn de cima de Saxton...?

Jesus, o maldito estava com as mãos ao redor do pescoço do primo e, a julgar pelo tom acinzentado no rosto do macho, prestes a matá-lo.

– Que diabos está acontecendo aqui! – Blay berrou, ao tomar as escadas correndo.

Quando chegou à confusão, havia Irmãos demais no caminho. E aqueles não eram o tipo de macho que você simplesmente afastava às cotoveladas. Infelizmente, se alguém conseguiria deter Qhuinn, esse alguém seria ele. Mas como diabos ele conseguiria atrair a atenção do idiota...

Isso mesmo, pensou.

Atravessando o vestíbulo, quebrou o vidro do antigo alarme manual de incêndio com o punho e puxou a alavanca para baixo.

No mesmo instante, uma sirene explodiu no recinto, a acústica do teto de igreja agindo como um amplificador enquanto o alarme berrava desenfreado.

Foi como atingir um bando de cães de briga com um balde de água. Toda a ação parou e as cabeças se levantaram da confusão para olhar ao redor.

O único que não deu a mínima foi Qhuinn. Ele ainda apertava com força.

Blay se aproveitou do momento “ei, o que é isso” e conseguiu abrir caminho.

Concentrando-se em Qhuinn, posicionou o rosto bem na frente do dele.

– Solte-o agora.

No segundo em que a sua voz foi registrada, uma expressão de choque substituiu a violência fria que marcava o rosto de Qhuinn, como se ele não tivesse esperado que Blay viesse até ali. E foi só isso o que foi preciso. Um único comando dele e aquelas mãos se soltaram tão rapidamente que Saxton caiu no chão como um peso morto.

– Doutora Jane! Manny! – alguém gritou. – Chamem um médico!

Blay queria berrar com Qhuinn ali mesmo, mas estava aterrorizado demais com o estado de Saxton para perder tempo com “o que há de errado com você?”. O advogado não se mexia. Segurando o belo terno do rapaz, Blay o rolou no chão e verificou a carótida com a ponta dos dedos, rezando para encontrar a pulsação. Quando não encontrou, inclinou a cabeça de Saxton para trás e se curvou para fazer boca a boca.

Mas, antes disso, Saxton tossiu e puxou o ar para dentro dos pulmões.

– Manny está chegando – disse Blay com a voz rouca, mesmo sem saber se isso era verdade. Mas, ora essa, alguém devia estar a caminho. – Fique comigo...

Mais tossidas. Mais inspirações fundas. E a cor começou a voltar para o belo e refinado rosto.

Com a mão trêmula, Blay afastou o cabelo loiro e espesso da testa que tocara tantas vezes antes. Ao fitar os olhos confusos que olhavam para ele, ele quis sentir algo profundo na alma, que desse uma guinada em sua vida e...

Rezou por esse tipo de reação.

Inferno, naquele instante, trocaria seu passado e seu presente por isso.

Mas não estava ali. Pesar, raiva em favor do macho, tristeza, alívio... catalogou cada um desses sentimentos. Era só isso, contudo.

– Cheguei, deixe-me dar uma olhada – disse a doutora Jane ao apoiar a maleta preta de médico no chão e se ajoelhar no piso de mosaico.

Blay recuou para dar espaço à shellan de V., mas ficou próximo, mesmo sem poder fazer coisa alguma. Inferno, ele sempre quis ir para a faculdade de medicina, mas não para ressuscitar ex-amantes porque um psicótico tentara estrangulá-los no maldito átrio de entrada.

Olhou para Qhuinn. O lutador ainda estava sendo contido por Rhage, como se o Irmão não estivesse inteiramente certo de que o episódio terminara.

– Vamos ficar de pé – disse a doutora Jane.

Blay se adiantou, ajudando Saxton, mantendo-o firme, conduzindo-o para a escadaria. Os dois ficaram em silêncio ao subir, e quando chegaram ao segundo andar, Blay seguiu para o seu quarto por força do hábito.

Puxa.

– Não, está tudo bem – murmurou Saxton. – Só me deixe sentar aqui um minuto, está bem?

Blay pensou na cama, mas quando Saxton ficou tenso ao tomarem essa direção, ele o levou para a chaise-longue. Ajudando o macho a se deitar, recuou desajeitado.

No silêncio que se seguiu, uma raiva violenta o atingiu sabe-se lá vinda de onde.

E agora as suas mãos tremiam por outro motivo.

– Então – disse Saxton com voz rouca –, como foi a sua noite?

– O que diabos acabou de acontecer?

Saxton afrouxou a gravata. Desabotoou o colarinho. Respirou fundo mais uma vez.

– Briga de família, parece.

– Tolice.

Saxton desviou o olhar cansado.

– Temos mesmo que fazer isto?

– O que aconteceu...

– Acho que você e ele têm que conversar. E depois que o fizerem, não terei mais que me preocupar em ser atacado como um criminoso novamente.

Blay franziu a testa.

– Ele e eu não temos nada para dizer um ao...

– Com todo o respeito, as marcas no meu pescoço sugerem o contrário.

– Como estamos, grandão?

Enquanto a voz de Rhage era registrada nos ouvidos de Qhuinn, ficou claro que o Irmão verificava se o drama já acabara. Desnecessário. No instante em que Blay lhe disse para parar, o corpo de Qhuinn obedecera, como se o cara tivesse o controle remoto da sua TV.

Havia outras pessoas por perto, obviamente também esperando para ver se ele mostrava qualquer indicação de que correria atrás de Saxton para retomar a rotina de estrangulamento.

– Você está bem? – perguntou Rhage.

– Sim, sim. Estou bem.

As barras de aço ao redor do seu tronco relaxaram e gradualmente se abaixaram. Então uma mãozorra deu-lhe um tapa nas costas e apertou seu ombro.

– Fritz odeia corpos no átrio frontal.

– Mas não há muito sangue no estrangulamento – alguém observou. – Seria fácil limpar depois.

– Apenas uma polida e pronto – o outro disse.

Houve uma pausa pesada depois disso.

– Vou subir – quando voltaram a olhar para ele em antecipação, Qhuinn balançou a cabeça. – Não para uma repetição. Juro pelo...

Bem, ele não tinha uma mãe, um pai, um irmão, uma irmã... nem mesmo um filho, ainda que, tomara, isso fosse temporário.

– Não vou, ok?

Não esperou por mais nenhum comentário e se lembrou de que ainda precisava passar pelo quarto de Layla.

Tomando a direita no alto das escadas, seguiu para o quarto de hóspedes para o qual a Escolhida fora levada ao se mudar e bateu à porta com suavidade.

– Layla?

Apesar do fato de que teriam um filho juntos, ele não se sentia à vontade para entrar sem ser convidado.

A segunda batida foi um pouco mais forte. Assim como sua voz:

– Layla?

Ela devia estar dormindo.

Recuando, seguiu para o próprio quarto, passando diante do escritório de Wrath com suas portas fechadas e depois tomou o corredor das estátuas. Ao passar diante da porta de Blay, não conseguiu deixar de encarar a maldita porta.

Jesus Cristo, quase matara Saxton.

E ainda sentia vontade de matar.

Sempre soube que o primo não valia nada e detestava estar certo a esse respeito. O que diabos Sax estava pensando? O cara tinha o insuperável na sua cama todo santo dia e, mesmo assim, de algum modo, qualquer um de algum bar, de uma boate ou da maldita Biblioteca Municipal de Caldwell era melhor do que aquilo? Até mesmo necessário?

Filho da mãe traiçoeiro.

Enquanto as mãos se fechavam em punhos e ele entretinha a ideia de abrir caminho com um chute só para dar mais uns socos no rosto de Saxton, quase não conseguiu controlar seu impulso.

Solte-o agora.

De lugar nenhum a voz de Blay reverberou em sua cabeça uma vez mais e, obviamente, a violência foi desligada. Literalmente, entre um momento e o seguinte, ele passou de touro enfurecido a estado neutro.

Estranho.

Balançando a cabeça, foi até seu quarto, entrou e fechou a porta.

Depois de fazer com que as luzes se acendessem, ficou parado, os pés colados no chão, os braços pensos como cordas frouxas, a cabeça à toa no alto da espinha. Sem ir a parte alguma.

Sem nenhum motivo aparente, pensou no amado aspirador de Fritz, o eletrodoméstico estacionado dentro de um armário, deixado no escuro até que alguém o utilizasse.

Ótimo. Estava reduzido ao nível de um aspirador de pó.

No fim, praguejou, e se obrigou a começar a se despir e ir para a cama. A noite se mostrara um trabalho hercúleo desde o instante em que o sol se pusera e a boa notícia era que a confusão toda finalmente chegara ao fim: as persianas estavam abaixadas para impedir a entrada do sol. A casa estava ficando silenciosa.

Hora do sono REM para recarga.

Ao tirar a camiseta regata devagar e gemer ante todas as dores, percebeu que deixara a jaqueta de couro e as armas na clínica. Sem problemas. Ele tinha extras ali em cima caso precisasse delas durante o dia, e poderia ir buscar seus pertences antes da Primeira Refeição.

Descendo a mão para o zíper da calça, ele...

A porta atrás dele se abriu numa explosão tamanha que ricocheteou na parede, só para ser interceptada pela pegada firme de um filho da mãe muito irritado.

Parado debaixo da moldura da porta, Blay estava furioso, o corpo trêmulo de raiva que até mesmo Qhuinn, que já enfrentara muitas coisas na vida, se pôs em alerta.

– O que há de errado com você!? – o macho exclamou.

Está de brincadeira, foi o que Qhuinn pensou. Como ele não reconhecera o perfume estranho no corpo do amante?

– Acho que precisa perguntar isso ao meu primo.

Enquanto Blay marchava adiante, Qhuinn desviou do cara para...

Blay o segurou pelo braço e expôs as presas com um sibilo.

– Vai fugir?

Num tom controlado, Qhuinn respondeu:

– Não. Vou fechar a maldita porta para que ninguém escute isto.

– Não dou a mínima!

Qhuinn pensou em Layla do outro lado do corredor, tentando dormir.

– Bem, eu me importo.

Qhuinn se soltou e fechou a porta. Depois, antes de se virar, fechou os olhos para dar um tempo.

– Você me dá aversão – disse Blay.

Qhuinn deixou a cabeça pender.

– Você tem que cair fora da minha vida – a amargura naquela voz conhecida foi direto ao coração dele. – Afaste-se de tudo que se refere a mim!

Qhuinn olhou por cima do ombro.

– Você nem se importa de ele ter estado com outra pessoa?

A boca de Blay se abriu. Fechou. Então as sobrancelhas desceram.

– O quê?

Ah. Maravilha.

Naquela confusão, Blay não entendera os porquês.

– O que você disse? – repetiu Blay.

– Você me ouviu.

Quando não houve resposta, nenhuma imprecação, nenhum objeto lançado, Qhuinn se virou.

Depois de um momento, Blay cruzou os braços, não sobre o peito, mas no centro, como se estivesse se sentindo levemente nauseado.

Qhuinn esfregou o rosto e falou numa voz entrecortada:

– Desculpe. Eu sinto muito... não quero isso para você.

Blay balançou a cabeça.

– O quê... – os olhos azuis se concentraram. – Foi por isso que você o atacou?

Qhuinn deu um passo para a frente.

– Eu sinto muito... Eu só... Ele passou pela porta, eu percebi o cheiro dele e perdi a cabeça. Eu sequer estava pensando.

Blay piscou, como se talvez estivesse se deparando com um conceito desconhecido.

– É por isso que você... Por que diabos você faria uma coisa dessas?

Qhuinn deu mais um passo à frente, e depois se forçou a parar, apesar da necessidade quase premente de estar perto dele. E enquanto Blay balançava a cabeça como se estivesse tendo problemas de compreensão, Qhuinn não tinha intenção de falar.

Mas falou.

– Você se lembra do dia na clínica, mais ou menos um ano atrás... – ele apontou para baixo, para o caso de o cara ter se esquecido de onde ficava o centro de treinamento. – Foi antes de você e Saxton... – certo. Não terminaria aquela frase, não se quisesse segurar toda a comida que tinha no estômago. – Lembra-se do que eu lhe disse?

Enquanto Blay parecia confuso, ele o ajudou a se lembrar:

– Eu disse que se alguém o magoasse, eu perseguiria essa pessoa e a deixaria para queimar sob o Sol – até ele mesmo percebeu o modo como a voz abaixou para um rosnado ameaçador. – Saxton o magoou hoje, por isso fiz o que disse que faria.

Blay esfregou o rosto com a mão.

– Jesus...

– Eu lhe disse o que aconteceria. E se ele repetir isso, não posso prometer que não darei cabo do meu trabalho.

– Escute, Qhuinn, você não pode... não pode fazer esse tipo de merda. Simplesmente não pode.

– Você não se importa? Ele foi infiel. Isso não está certo.

Blay expirou profunda e lentamente, como se estivesse cansado de carregar um peso.

– Apenas... não faça mais isso.

Agora era Qhuinn quem balançava a cabeça. Ele não conseguia entender. Se estivesse num relacionamento com Blay, e Blay o traísse? Ele jamais superaria.

Deus, por que não tirara vantagem daquilo que lhe fora oferecido? Não deveria ter corrido. Deveria ter ficado parado.

De modo espontâneo, seus pés deram outro passo à frente.

– Sinto muito...

De repente, ele começou a repetir essas palavras, repetindo-as a cada passo que o levava para mais perto de Blay.

– Sinto muito... Sinto muito... Sinto... muito... – ele não sabia o que estava dizendo nem fazendo; apenas sentia uma urgência de se redimir de todos os seus pecados.

Havia tanto no que se referia àquele macho honrado que estava totalmente imobilizado diante dele.

Por fim, só havia mais um passo antes que seu peito nu atingisse o de Blay.

A voz de Qhuinn não passava de um sussurro:

– Sinto muito.

No silêncio espesso que se seguiu, a boca de Blay se abriu... mas não em sinal de surpresa. Era porque ele não estava conseguindo respirar.

Lembrando-se de não ser um cretino que acreditava que o mundo girava ao redor do seu umbigo, Qhuinn conduziu o assunto de novo para o que acontecia entre Blay e Saxton.

– Não desejo isso para você – disse ele, os olhos perscrutando aquele rosto. – Você já sofreu o bastante, e sei que o ama. Eu sinto muito... Sinto muito mesmo.

Blay apenas continuou parado diante dele, a expressão congelada, os olhos se mexendo como se ele não conseguisse compreender nada. Mas não recuou, não fugiu, não correu. Ele permaneceu... bem onde estava.

– Sinto muito.

Qhuinn observou de uma vasta distância a sua mão se levantar e tocar o rosto de Blay, as pontas dos dedos percorrendo a barba por fazer.

– Eu sinto muito.

Ah, Deus, poder tocá-lo. Sentir o calor daquela pele, inalar o odor másculo e limpo.

– Sinto muito.

O que diabos estava fazendo? Caramba... tarde demais para responder aquilo – esticando o outro braço, pousou a mão no ombro forte.

– Sinto muito.

Ah, Deus, estava atraindo Blay, puxando o corpo dele para junto do seu.

– Sinto muito.

Passou uma mão para a nuca de Blay e enfiou os dedos entre os cabelos que ali formavam cachos.

– Sinto muito.

Blay estava duro, a coluna reta como uma flecha, os braços ainda ao redor da barriga. Mas, um momento depois, como se estivesse confuso com sua própria reação, o macho se inclinou, o peso mudando sutilmente a princípio, e depois um pouco mais.

Com um puxão, Qhuinn passou os braços ao redor da pessoa mais importante da sua vida. Não era Layla, embora sentisse uma dor ante essa negação. Não era John, nem seu Rei. Não eram os Irmãos.

Aquele macho era a razão de tudo.

E mesmo se sentindo morrer porque Blay estava apaixonado por outra pessoa, ele agiu. Fazia tempo demais desde que o tocara pela última vez... e nunca daquela maneira.

– Sinto muito.

Espalmando a parte de trás da cabeça de Blay, incitou o macho a se aproximar, aninhando a cabeça em seu pescoço.

– Sinto muito.

Enquanto Blay aquiescia, Qhuinn estremeceu, virando o rosto para dentro, respirando fundo, enfiando todas as sensações em sua mente para poder se lembrar daquilo para sempre. Enquanto a palma subia e descia, relaxando as costas musculosas, ele fez o que pôde para poder compensar muito mais do que a infidelidade do primo.

– Sinto muito...

Mudando de posição rapidamente, Blay balançou a cabeça. Desvencilhou-se. Recuou.

Afastou-se.

Os ombros de Qhuinn cederam.

– Sinto muito.

– Por que fica repetindo isso?

– Porque...

Nesse instante, quando seus olhos se encontraram, Qhuinn soube que era chegada a hora. Estragara tantas oportunidades com Blay; existiram tantos passos em falso e desencontros deliberados, tantos anos, tantas negações. E tudo de sua parte. Acovardara-se por tempo demais, mas aquilo chegara ao fim.

Ao abrir a boca para dizer as três palavras que estavam na ponta da língua, os olhos de Blay se endureceram.

– Não preciso da sua ajuda, está bem? Posso cuidar de mim sozinho.

Tum. Tum. Tum.

Seu coração batia tão forte que ele teve que se perguntar se explodiria.

– Você vai continuar com ele – Qhuinn disse entorpecido. – Você vai...

– Não faça mais essa cretinice com Saxton... Nunca mais. Jure.

Mesmo morrendo por dentro, Qhuinn sentia-se impotente para negar-lhe qualquer coisa.

– Ok – levantou as palmas. – Não toco nele.

Blay assentiu, o acordo estava selado.

– Só quero ajudar você – disse Qhuinn. – Só isso.

– Você não pode – rebateu Blay.

Deus, mesmo se estranhando novamente, ele ansiava por mais contato e, de pronto, ele enxergou um caminho para exatamente isso. Uma proposta traiçoeira, mas ao menos havia um tipo de lógica interna nela.

Os braços se ergueram, as mãos procurando, encontrando, prendendo-se. Aos ombros de Blay. À nuca de Blay.

O sexo surgiu dentro dele, enrijecendo seu membro, fazendo-o ofegar.

– Mas eu tenho como ajudar.

– Como?

Qhuinn se aproximou, levou a boca ao ouvido de Blay. Em seguida, encostou o peito nu deliberadamente no de Blay.

– Use-me.

– O quê?

– Dê uma lição a ele – Qhuinn segurou com mais força e inclinou a cabeça de Blay para trás. – Vingue-se na mesma moeda. Comigo.

Para deixar bem claro, Qhuinn estendeu a língua e percorreu a lateral do pescoço de Blay.

O sibilo em reação foi tão alto quanto uma imprecação.

Blay o socou, empurrando-o.

– Perdeu o maldito juízo?

Qhuinn apalpou o sexo rijo e pesado.

– Quero você. E aceito você do jeito que for, mesmo que seja só como uma vingança contra o meu primo.

A expressão de Blay mudava como numa partida de tênis de mesa, passando da mais absoluta descrença para uma raiva épica.

– Seu cretino idiota! Você me rejeitou por anos e anos, e agora, de repente, muda de ideia? Que diabos há de errado com você?

Com a mão livre, Qhuinn tocou num dos piercings dos mamilos... e se concentrou no que estava acontecendo abaixo da cintura de Blay: debaixo daquele roupão, o macho ficou completamente duro, o tecido atoalhado impotente diante daquele tipo de ereção.

– Perdeu a sua maldita cabeça de vez? Que merda!

Normalmente, Blay não praguejava nem elevava a voz. Era excitante vê-lo perder o controle.

Encarando o amigo nos olhos, Qhuinn se deixou cair de joelhos.

– Deixe-me cuidar disso...

– O quê...

Ele se inclinou para a frente e puxou a bainha do roupão, atraindo-o na sua direção.

– Venha cá. Deixe-me mostrar do que sou capaz.

Blay agarrou o cordão que mantinha as duas metades unidas e deu um apertão.

– Que diabos você está fazendo?

Deus, o fato de ele estar de joelhos, implorando, parecia apropriado.

– Quero estar com você. Não me importo com o motivo... Apenas me deixe ficar com você...

– Depois de todo esse tempo? O que mudou?

– Tudo.

– Você está com a Layla...

– Não. Vou repetir quantas vezes você precisar ouvir: não estou com ela.

– Ela está grávida.

– Uma vez. Fiquei com ela apenas uma vez, e como já lhe disse, foi só porque quero uma família e ela também quer. Uma vez, Blay, e nunca mais.

A cabeça de Blay pendeu para trás como se alguém estivesse enfiando espinhos debaixo das suas unhas.

– Não faça isso, pelo amor de Deus, você não pode fazer isso... – a voz dele se quebrantou, a angústia era um triste vislumbre de todos os problemas que Qhuinn causara.–Por que agora? Talvez seja você quem queira se vingar de Saxton...

– Meu primo que se foda, isso não tem nada a ver com ele em relação a mim. Se você estivesse sozinho, eu ainda estaria neste tapete, ajoelhado, à espera de estar com você. Se você estivesse comprometido com uma fêmea, se estivesse namorando alguém de modo casual, se você estivesse em milhares de outras situações na vida... eu ainda estaria aqui. Implorando por algo, qualquer coisa... uma só vez, se é o que pode me dar.

Qhuinn esticou a mão de novo, passando por debaixo do roupão, afagando a perna musculosa e forte. E quando Blay recuou um passo, ele sabia que estava perdendo a batalha.

Merda, ele perderia aquela chance se não...

– Escute, Blay, fiz muitas merdas na minha vida, mas sempre tentei ser verdadeiro. Quase morri hoje... e isso endireita as pessoas. Lá em cima, naquele avião, olhando para a noite escura, não achei que fosse conseguir. Tudo ficou claro para mim. Quero estar com você por causa disso.

Na verdade, fazia muuuuito tempo, beeeem antes da situação com o Cessna, que ele sabia disso, mas ele desejava que a explicação fizesse sentido para Blay.

Talvez fizesse. Em resposta, ele oscilou o peso sobre os pés, como se fosse ceder... ou ir embora. Não havia como saber que direção ele tomaria.

Qhuinn se apressou em dizer mais:

– Sinto muito ter desperdiçado tanto tempo... e se você não quiser ficar comigo, eu entendo. Não vou insistir, vou lidar com as consequências. Mas, pelo amor de Deus, se houver uma chance... por qualquer motivo que seja da sua parte, raiva, curiosidade... droga, mesmo que me deixe transar com você uma vez e nunca mais, com o único propósito de me cravar uma estaca no peito... Eu aceito. Aceito você... do jeito que for.

Ele esticou a mão uma terceira vez, escorregando-a por trás da perna de Blay. Afagando. Implorando.

– Não me importo quanto isso vai me custar.


CONTINUA

CAPÍTULO 22

Do outro lado do rio, na clínica de Havers, Layla finalmente teve que sair da mesa de exames e andar pela saleta. Perdera completamente a noção do tempo àquela altura. De fato, parecia que ela estivera fitando aquelas quatro paredes por uma eternidade. E continuaria a fitar pelo resto de sua vida na face da Terra.

A única parte sua que permanecia fresca e ocupada era a cabeça. Infelizmente, ela se concentrava em pensar no que a enfermeira lhe dissera... que aquilo era um aborto. Que era muito provável que ela tivesse concebido...

Quando a batida à porta que ela tanto esperava chegou, foi inesperada e a assustou.

– Entre – disse ela.

A enfermeira que fora tão gentil entrou... mas parecia diferente. Ela se recusava a olhar para Layla, e o rosto estava congelado numa máscara. Havia um tecido branco dobrado no braço, e ela o empurrou para a frente, desviando o olhar. E depois fez uma mesura.

– Sua Graça – disse ela com uma voz trêmula. – Eu... Havers... nós... não sabíamos.

Layla franziu o cenho.

– O que está...

A enfermeira sacudiu o manto, como se tentasse forçar Layla a aceitá-lo.

– Por favor, vista isto.

– Do que se trata?

– A senhora tem sangue de Escolhida – a voz da enfermeira tremulou. – Havers está... perturbado.

Layla se esforçou para compreender as palavras. Então aquilo não era... por causa da gravidez?

– O quê... Não compreendo. Por que ele está... está perturbado porque sou uma Escolhida?

A outra fêmea empalideceu.

– Pensávamos que a senhora fosse... decaída?

Layla cobriu os olhos com as mãos.

– Eu logo poderei ser isso... dependendo do que acontecer – ela não tinha energia para aquilo. – Alguém poderia me contar o resultado dos exames e o que preciso fazer para cuidar de mim?

A enfermeira remexeu no tecido, ainda tentando entregá-lo.

– Ele não pode voltar para cá...

– O quê?

– Não se não estiver... Ele não pode ficar aqui com a senhora. Ele nunca deveria ter...

Layla avançou, sua calma sumindo.

– Deixe-me ser bem clara, quero falar com o médico – ante essa exigência, a enfermeira levantou a cabeça para olhar para ela. – Tenho o direito de saber o que ele descobriu a respeito do meu corpo. Diga isso a ele agora.

Não havia nenhum guincho em sua voz. Nenhuma histeria aguda; apenas um tom neutro, poderoso, que ela nunca vira saindo de sua boca antes.

– Vá. E traga-o – exigiu.

A enfermeira levantou o pedaço de pano.

– Por favor. Vista isso. Ele...

Layla se esforçou para não gritar.

– Sou apenas uma paciente qualquer...

A enfermeira aprumou os olhos e franziu o cenho.

– Com licença, mas isso não é bem verdade. Segundo o médico, ele a violou durante o exame.

– O quê?

A enfermeira apenas a encarou.

– Ele é um bom macho. Um macho muito tradicional em seu modo de ser...

– O que isso, em nome da Virgem Escriba, tem a ver com qualquer coisa?

– O Primale pode matá-lo pelo que ele lhe fez.

– Durante o exame? Eu permiti... era um procedimento médico necessário!

– Isso não faz diferença. Ele fez algo ilegal.

Layla fechou os olhos. Deveria ter usado a clínica da Irmandade.

– A senhora tem que perceber de onde ele vem – ponderou a enfermeira. – A senhora vem de uma hierarquia com a qual não temos contato... e, mais do que isso, nem deveríamos ter contato.

– Tenho um coração pulsante e um corpo que precisa de ajuda. Isso é tudo o que ele, e qualquer outra pessoa, precisa saber. A carne é a mesma.

– O sangue não é.

– Ele tem que vir me ver...

– Ele não virá.

Layla voltou a focalizar a enfermeira. E depois pousou a mão no baixo ventre. Por toda sua existência, até então, ela vivera do lado da integridade, servindo com lealdade, executando suas tarefas, existindo apenas dentro dos parâmetros prescritos ditados por outrem.

Não mais.

Estreitou o olhar.

– Diga ao médico que ou ele vem até aqui e me diz pessoalmente o que está acontecendo... ou procuro o Primale e conto palavra por palavra o que aconteceu aqui.

Deliberadamente, desviou o olhar para a máquina utilizada durante o exame interno.

Enquanto a enfermeira empalidecia, Layla não sentiu nenhuma alegria no poder utilizado. Tampouco se arrependia.

A enfermeira fez uma mesura e saiu do quarto, deixando aquele pedaço de pano ridículo na bancada baixa ao lado da pia.

Layla nunca considerara seu status de Escolhida nem um fardo nem um benefício. Era simplesmente quem ela era: sua sina, o destino que lhe fora dado se manifestando por meio da respiração e da consciência. Outros, porém, não eram tão fleumáticos, especialmente ali embaixo.

E aquilo era apenas o começo.

Pensando bem, estava perdendo o bebê, não estava? Então, aquilo era o fim.

Esticando a mão, pegou o pano e o enrolou ao seu redor. Não se importava com as sensibilidades do médico, mas se ficasse coberta como lhe pediram, talvez ele se concentrasse nela em vez do que em quem ela era.

Quase imediatamente houve outra batida à porta e, quando Layla respondeu, Havers entrou, parecendo ter uma arma na cabeça. Mantendo o olhar no chão, ele apenas os fechou parcialmente na sala, antes de cruzar os braços sobre o estetoscópio.

– Se eu tivesse sabido do seu status, jamais a teria tratado.

– Procurei-o por livre e espontânea vontade, como uma paciente necessitada.

Ele balançou a cabeça.

– A senhora é uma santidade na Terra. Quem sou eu para intervir em assunto tão sagrado?

– Por favor. Apenas ponha um fim no meu sofrimento e me diga o que está acontecendo.

Ele retirou os óculos e esfregou o nariz.

– Não posso divulgar essa informação para a senhora.

Layla abriu a boca. Fechou-a.

– Como disse?

– A senhora não é minha paciente. O seu filho e o Primale são... Portanto, falarei com ele quando puder...

– Não! Não deve procurá-lo!

O olhar que ele lhe lançou sugeriu um desdém que ela imaginava que ele normalmente reservasse a prostitutas. E, em seguida, ele falou num tom baixo, vagamente ameaçador:

– Não está em posição de exigir nada.

Layla se retraiu.

– Vim até aqui porque quis, como uma fêmea independente...

– Você é uma Escolhida. Não só é ilegal para mim acolhê-la, como também posso ser julgado pelo que lhe fiz antes. O corpo de uma Escolhida...

– Pertence a ela mesma!

– ... ao Primale, por lei, como deveria ser. Você é de pouca importância... Nada além de um receptáculo para aquilo que lhe é dado. Como ousa vir até aqui, fingindo ser uma simples fêmea, e colocar o meu consultório e minha vida em risco com tal engodo?

Layla sentiu uma onda de raiva estremecer até cada uma das terminações nervosas de seu corpo.

– De quem é o coração que bate neste corpo? – ela bateu no peito. – De quem é esta respiração aqui dentro!

Havers balançou a cabeça.

– Falarei com o Primale e somente com ele...

– Não pode estar falando sério! Só eu vivo nesta carne. Ninguém mais...

O rosto do médico se contraiu em desgosto.

– Como já disse, você não passa de um recipiente para o mistério divino em seu ventre, o próprio Primale está em sua carne, e, por isso, eu a deterei aqui até que...

– Contra a minha vontade? Acho que não.

– Ficará aqui até que o Primale venha buscá-la. Não serei responsável por deixá-la livre no mundo.

Os dois se encararam.

Com uma imprecação, Layla arrancou o tecido que a cobria.

– Bem, esse seu plano é ótimo. Mas estou me despindo neste segundo e sairei daqui desse modo se assim for necessário. Fique e observe se quiser... ou pode tentar tocar em mim, mas acredito que isso seria considerado outra violação de algum tipo para o senhor, não seria?

O médico saiu com tanta rapidez que tropeçou no corredor.

Layla não desperdiçou sequer um segundo, vestindo suas roupas e se apressando pelo corredor. Ainda que fosse improvável que houvesse apenas uma saída, a da recepção – deviam existir outras rotas de fuga, para o caso de um ataque –, infelizmente, ela não conhecia a planta da clínica.

Sua única opção era ir direto para a entrada. E teria de fazer isso caminhando, pois estava furiosa demais para se desmaterializar.

Trotando, Layla tomou a direção pela qual entrara e, quase imediatamente, como se tivessem sido instruídas a tal, a equipe de enfermagem apareceu em seu caminho, tomando conta do corredor, impossibilitando-a de passar.

– Se uma de vocês tocar em mim – exclamou ela no Antigo Idioma –, considerarei isso uma violação da minha santidade sagrada.

Todas pararam.

Enfrentando cada um dos olhares, ela se adiantou e forçou-as a se afastarem, um caminho se formando entre as figuras imóveis e depois voltando a se fechar atrás dela. Na sala de espera, ela parou na frente do balcão de recepção e encarou a fêmea que, alarmada, continuava apenas sentada.

– Você tem duas escolhas – Layla indicou a porta de saída reforçada. – Pode voluntariamente abrir aquela porta para mim, ou eu a explodo com o meu poder... expondo todos vocês e os seus pacientes para o açoite da luz do sol que entrará – consultou o relógio da parede – em menos de sete horas. Não tenho certeza se vocês poderão consertar esse tipo de estrago a tempo... você tem?

O clique da trava sendo aberta ressoou no silêncio.

– Obrigada – murmurou com educação ao se encaminhar para a saída. – A sua aquiescência é muito apreciada.

Afinal, ela jamais se esquecia dos seus modos.

Sentado atrás da escrivaninha, com o traseiro confortável no trono que seu pai fizera séculos e séculos atrás, Wrath, filho de Wrath, escorregava o dedo para cima e para baixo na suave lâmina de prata do abridor de cartas em forma de adaga. Ao seu lado, no chão, George roncava pelo focinho.

O cão dormia em raros momentos.

Se alguém batesse à porta ou entrasse, ou se o próprio Wrath se movesse de algum modo, a cabeçorra se levantava e a coleira pesada fazia barulho. O alerta instantâneo também aparecia se alguém atravessasse o corredor, ou usasse um aspirador de pó em algum lugar, ou abrisse a porta do vestíbulo no andar de baixo. Ou servisse uma refeição. Ou espirrasse na biblioteca.

Depois que a cabeça se erguia, havia uma escala de reações, variando do nada (atividades na sala de jantar, aspirador e espirro), a um levantar de orelhas (a porta da frente se abrindo ou alguém no corredor) até a atenção completa sentando-se (batida e entrada). O cachorro nunca era agressivo, porém servia como um detector de movimentos, deixando a decisão quanto ao que fazer a seu dono.

O cão guia era um cavalheiro.

E, mesmo assim, ainda que a natureza mansa fosse parte do animal bem como os pelos longos e macios, e o corpo grande e amplo, Wrath, vez ou outra, testemunhara vislumbres da fera dentro de tal combinação adorável: quando se está em meio a um bando de lutadores agressivos e másculos como a Irmandade, as cabeças esquentavam vez ou outra, mesmo em relação ao Rei. E isso não incomodava Wrath. Ele estava junto aos filhos da mãe há tempo demais para se importar com um pouco de batidas no peito e seguradas de saco.

George, no entanto, não gostava disso. Se algum deles se metesse a valentão em relação ao Rei, os pelos do cão gentil se eriçavam e ele rosnava em aviso enquanto pressionava o corpo às pernas de Wrath, como se estivesse se preparando para mostrar aos Irmãos o comprimento das suas presas para o caso de as coisas chegarem às vias de fato.

A única coisa que Wrath amava mais era a sua rainha.

Abaixando a mão, afagou o flanco do cachorro; depois, voltou a se concentrar na sensação do abridor de cartas contra o dedo.

Jesus Cristo. Aviões caindo do céu... Irmãos se machucando... Qhuinn bancando o herói novamente...

Pelo menos a noite não fora apenas um drama de provocar ataques cardíacos. Na verdade, começaram em boa nota com a prova de que precisavam para atacar o Bando de Bastardos: V. concluíra o teste de balística e, caramba, a bala extraída do pescoço de Wrath começara sua trajetória no rifle encontrado no covil de Xcor.

Wrath sorriu consigo, as presas coçando nas pontas.

Aqueles traidores agora estavam, oficialmente, na sua lista de inimigos, com o amparo total da lei – e estava na hora de causar alguns estragos.

Nesse instante, George sacudiu a cabeça, e a batida insistente à porta que se seguiu indicava que Wrath não devia ter notado a primeira batida.

– Entre.

Ele sabia quem era antes que a Irmandade entrasse: V. e o tira. Rhage. Tohr. Phury. E, por fim, Z., quem, a julgar pelo baque, parecia estar usando uma bengala.

Fecharam a porta.

Como ninguém se sentou, tampouco jogou conversa fora, ele soube exatamente por que vieram vê-lo.

– Qual o veredicto, senhoras? – perguntou de modo arrastado, ao se recostar contra o trono.


Foi a voz de Tohr que lhe respondeu:

– Estivemos pensando a respeito de Qhuinn.

Ele apostava nisso. Depois de apresentar a ideia na reunião no começo da noite, não pressionara por um sim ou um não. Havia muitas coisas que ele, como rei, tinha que enfiar goela abaixo das pessoas. Quem os Irmãos aceitariam no grupo não era uma dessas coisas.

– E?

Zsadist falou no Antigo Idioma:

– Eu, Zsadist, filho de Ahgony, iniciado no ano 242 do reino de Wrath, filho de Wrath, por meio desta indico Qhuinn, um órfão no mundo, como membro da Irmandade da Adaga Negra.

Ouvir as palavras formais saírem da boca do Irmão foi um choque. Z., dentre todos eles, acreditava que o passado era um monte de asneira. Não quando se referia àquilo, pelo visto.

Jesus, pensou Wrath. Eles dariam prosseguimento àquilo. E rápido – acreditara que eles precisariam de mais tempo. Dias de reflexão. Semanas. Talvez um mês – e, talvez, um “não” por uma série de motivos.

Mas eles estavam dispostos – e, em concordância, também Wrath.

– Em que se baseia esse pedido em seu nome e de sua linhagem? – perguntou Wrath.

Em seguida, Z. deixou a formalidade de lado e foi para a realidade que importava.

– Ele me trouxe de volta para casa em segurança, para a minha shellan e minha pequena filha. Arriscando a própria vida.

– Muito justo.

Wrath passou o olhar por todos os machos parados diante de sua escrivaninha, mesmo sem conseguir enxergá-los. A visão não importava. Ele não precisava de retinas operantes para lhe dizer onde todos estavam e como se sentiam a respeito daquilo; o odor de suas emoções estava claro.

Eram, como grupo, firmes, resolutos e orgulhosos.

Mas as formalidades eram necessárias.

Wrath começou pelo que estava na ponta.

– V.?

– Eu estava pronto para atacar quando ele já estava em cima de Xcor.

Houve um grunhido de concordância.

– Butch?

O sotaque de Boston se fez alto e claro:

– Considero-o um lutador de primeira. E gosto dele. Ele está amadurecendo, deixando de lado a atitude negativa, está se tornando sério.

– Rhage?

– Deveria tê-lo visto hoje. Ele não me deixou pilotar o avião... disse que dois Irmãos seria muito a perder.

Mais grunhidos de concordância.

– Tohr?

– Na noite em que você foi atingido? Eu consegui tirá-lo de lá graças a ele. Ele tem valor.

– Phury?

– Gosto dele. De verdade. Ele é o primeiro a agir em qualquer situação. Ele, literalmente, faria qualquer coisa por qualquer um de nós... não importando o quanto possa ser perigoso.

Wrath tamborilou as juntas na mesa.

– Está acertado, então. Direi a Saxton para providenciar as mudanças e faremos isso.

Tohr se intrometeu:

– Com todo o respeito, meu senhor, precisamos resolver a questão do ahstrum nohtrum. Cuidar da retaguarda de John não pode mais ser a diretriz primária dele.

– Concordo. Diremos a John para liberá-lo disso... e não creio que a resposta seja negativa. Então, farei com que Saxton cuide da papelada, e depois da iniciação de Qhuinn; V., cuide da tatuagem no rosto dele. Como se John tivesse morrido de causas naturais ou algo do tipo?

Houve um barulho de roupas se mexendo, como se os Irmãos estivessem fazendo o gesto simbólico de “que a Virgem Escriba não permita isso” por sobre o peito.

– De acordo – disse V.

Wrath cruzou os braços diante do peito. Aquele era um momento histórico e ele sabia muito bem isso. A iniciação de Butch fora legal por causa do laço de sangue que ele tinha com a realeza. Qhuinn era uma história diferente. Nenhum sangue real. Nenhum sangue de Escolhida ou de Irmandade, ainda que, tecnicamente, ele fosse da aristocracia.

Nenhuma família.

Por outro lado, o garoto dera provas de quem era vezes sem conta no campo de batalha, fazendo jus a um padrão que, segundo as Antigas Leis atualmente determinavam, era reservado somente para aqueles de linhagens específicas – e isso era tolice. Não que Wrath não apreciasse os planos de procriação da Virgem Escriba. As combinações entre os machos mais fortes e as fêmeas mais inteligentes produziram, de fato, resultados extraordinários no que se referia aos lutadores.

Porém, também resultara em defeitos como a sua cegueira. E limitava as promoções baseadas no mérito.

No fim, a reformulação das leis no tocante a quem poderia ou não estar na Irmandade não era apenas apropriado nos termos de que tipo de sociedade ele desejava criar – era uma questão de sobrevivência. Quanto mais lutadores, melhor.

Além do mais, Qhuinn verdadeiramente fizera por merecer a honra.

– Que assim seja – murmurou Wrath. – Oito é um bom número. Um número de sorte.

O murmúrio de concordância perpassou o ar mais uma vez, o som de uma única e completa solidariedade.

Aquele era o futuro, pensou Wrath ao sorrir e revelar as presas. E era certo.


CAPÍTULO 23

Enquanto Sola Morte estava no escritório do “chefe”, seu corpo estava numa pose de combate. Pensando bem, aquele era seu modo de ser, e nada específico em relação ao ambiente ou à conversa que se sucedia.

Essa última, no entanto, não melhorava muito o seu humor.

– Desculpe, o que disse? – exigiu saber.

Ricardo Benloise sorriu em seu típico modo tranquilo e distante.

– A sua missão está completa. Obrigado pelo seu tempo.

– Eu nem lhe contei o que descobri lá.

O homem se recostou na cadeira.

– Pode receber seus honorários com meu irmão.

– Não entendo isso – quando ele telefonara menos de 48 horas antes, aquilo tinha sido uma prioridade. – Você disse...

– Seus serviços não são mais necessários para esse propósito específico. Obrigado.

Será que ele estava trabalhando com outra pessoa? Mas quem em Caldwell fazia o tipo de coisas que ela fazia?

– Você nem mesmo quer saber o que descobri.

– Sua missão chegou ao fim – o homem sorriu novamente, de modo tão profissional, que alguém poderia jurar que ele era um advogado ou um juiz. Não um criminoso em escala global. – Mal posso esperar para voltarmos a trabalhar juntos no futuro.

Um dos guarda-costas ao fundo deu alguns passos à frente, como se estivesse pronto para levar o lixo para fora.

– Alguma coisa está acontecendo naquela casa – disse ela ao se virar. – Quem quer que seja, está escondendo...

– Não quero que volte lá.

Sola parou e olhou por sobre o ombro. A voz de Benloise estava tranquila como sempre, mas os olhos eram francos.

Bem, aquilo era interessante.

A única explicação possível com alguma lógica era de que o senhor Misterioso da grande casa de vidro alertara Benloise para que recuasse. Será que sua visitinha fora descoberta? Ou seria aquilo apenas uma demonstração rotineira de como as coisas prosseguiam no tráfico de drogas?

– Está ficando sentimental? – perguntou ela com suavidade. Afinal, ela e Benloise se conheciam há tempos.

– Você é uma commodity muito útil – o sorriso atenuou a ferroada das palavras. – Agora vá e fique em segurança, niña.

Ah, pelo amor de Deus... não havia motivos para brigar com o homem. E ela receberia seu dinheiro, portanto, por que se importar?

Ela acenou, seguiu para a porta e desceu as escadas. No espaço da galeria, seguiu para o fundo do prédio, onde os empregados legítimos trabalhavam durante o expediente lícito. Passando os arquivos e as mesas, que pareciam do tamanho de uma casinha da Barbie graças ao teto alto industrial quinze metros acima, ela tomou um corredor estreito que estava marcado apenas pelas câmeras de segurança.

Bater à porta era inútil, mas ela o fez assim mesmo, os painéis à prova de balas absorvendo o som das juntas, como se estivessem com fome. Para auxiliar o irmão de Benloise (não que Eduardo precisasse disso) ela se virou para a câmera mais próxima e mostrou o rosto.

As travas foram abertas momentos depois. O escritório de Ricardo era minimalista ao extremo; o de Eduardo era um lugar em que Donald Trump, com todo o seu fetiche por ouro, sentiria-se sufocado.

Com um pouco mais de mármore e tecidos dourados, você se sentiria num prostíbulo.

Enquanto Eduardo sorria, seus dentes falsos eram da forma e cor das teclas de um piano, e o bronzeado uniforme tão profundo, que pareceria ter sido colocado nele com uma caneta permanente. Como sempre, ele estava usando um terno de três peças, ao estilo do senhor Roarke da Ilha da Fantasia, com a exceção de ser preto, e não branco.

– Como está hoje? – o olhar dele passeou pelo seu corpo. – Parece-me ótima.

– Ricardo disse para eu procurá-lo para pegar o meu dinheiro.

Instantaneamente, Eduardo se mostrou sério, lembrando-a do motivo pelo qual Ricardo o mantinha por perto: laços de sangue e competência eram uma combinação poderosa.

– Sim, ele me avisou que você viria – Eduardo abriu uma das gavetas e pegou um envelope. – Aqui está.

Ele esticou o braço ao longo da escrivaninha, e ela pegou o que lhe foi oferecido, abrindo-o imediatamente.

– Aqui só tem a metade – ela levantou o olhar. – Só tem dois e quinhentos.

Eduardo sorriu exatamente como o irmão: só no rosto, sem atingir o olhar.

– A missão não foi completada.

– Foi o seu irmão quem a suspendeu. Não eu.

Eduardo ergueu as palmas para cima.

– Esse é o seu pagamento. Ou pode deixar o dinheiro aqui.

Sola estreitou o olhar.

Fechando a aba do envelope devagar, ela o virou na mão, esticou o braço e depositou-o sobre a mesa. Deixando o indicador apoiado nele, assentiu uma vez.

– Como quiser.

Virando-se, foi para a porta e esperou que ela fosse destrancada.

– Niña, não faça assim – disse Eduardo. Quando ela nada disse, o rangido da cadeira indicou que ele estava se levantando e dando a volta na mesa.

E logo a colônia dele atingiu seu nariz, e as mãos dele pousaram em seus ombros.

– Preste atenção – disse ele. – Você é muito importante para Ricardo e para mim. Nós não a estamos desmerecendo... mucho respeito, certo?

Sola olhou por cima do ombro.

– Deixe-me sair.

– Niña.

– Agora.

– Leve o dinheiro.

– Não.

Eduardo suspirou.

– Você não precisa ser assim.

Sola apreciou a culpa que se fez ouvir na voz dele. A reação, na verdade, era a que ela buscava. Como muitos homens da cultura deles, Eduardo e Ricardo Benloise foram criados por uma mãe tradicional, e isso significava que sentir culpa era um ato reflexo.

Mais eficaz do que gritar com eles ou implorar.

– Saia – disse ela. – Agora.

Eduardo suspirou novamente, dessa vez mais profunda e demoradamente, o som da confirmação de que a manipulação dela mais uma vez atingira o alvo.

Entretanto, ele não lhe deu o dinheiro devido. Apesar da decoração excessiva e do retrospecto da dinâmica da sua infância, ele era mais fechado que um cofre de banco. Dito isso, ela tinha certeza de que arruinara a noite dele, portanto existia satisfação no ato... e ela cuidaria daquilo que Ricardo lhe devia.

Ele podia ser justo. Ou, conforme preferira, fazer o que ela não queria.

Isso vinha acompanhado de uma sobretaxa, evidentemente.

Sim, teria sido muito mais barato para ele lhe dar o valor correto, contudo, ela não era responsável pelas decisões dos outros.

– Ricardo ficará decepcionado – disse Eduardo. – Ele odeia ficar decepcionado. Por favor, apenas aceite o dinheiro; isto não está certo.

A parte lógica de seu cérebro sugeria que ela aproveitasse a oportunidade de apontar a injustiça de ser passada para trás naquilo que lhe era devido. Mas se ela bem conhecia aqueles irmãos, o silêncio... ah, o silêncio...

Como a natureza odiava o vácuo, o mesmo acontecia com a consciência dos sul-americanos bem-criados.

– Sola...

Ela simplesmente cruzou os braços diante do peito e continuou a olhar para a frente. Deixa para o espanhol: Eduardo disparou a falar em sua língua nativa, como se a angústia o despisse das suas habilidades no inglês.

Ele, finalmente, desistiu e a deixou sair cerca de dez minutos mais tarde.

Haveria rosas na sua porta às nove da manhã. No entanto, ela não estaria em casa.

Ela tinha trabalho a fazer.

– Como assim, eles não apareceram? – Assail exigiu saber no Antigo Idioma.

Ao se recostar no assento do Range Rover, segurou o celular firme contra a orelha. O farol vermelho logo adiante impedia seu progresso, e era difícil não enxergar isso como um paralelo cósmico.

Seu primo foi direto, como sempre:

– Os receptadores não chegaram na hora combinada.

– Quantos?

– Quatro.

– O quê? – mas não havia necessidade de o macho repetir. – E nenhuma explicação?

– Nada na rua da parte dos outros sete, se é isso o que está perguntando.

– O que fez com o produto extra?

– Trouxe para casa comigo.

Quando o farol ficou verde, Assail pisou no acelerador.

– Vou fazer o pagamento completo para Benloise, e depois vou me encontrar com você.

– Como preferir.

Assail virou à direita e se afastou do rio. Dois quarteirões à frente, uma curva à esquerda o deixou perto da galeria novamente; outra à esquerda e ele chegava aos fundos.

Já havia um carro estacionado ali, um Audi preto, e ele parou atrás do sedã. Abaixando à frente do banco de passageiros, apanhou pela alça uma maleta de metal prateada e saiu do carro.

Nesse instante, a porta dos fundos da galeria se abriu e alguém saiu.

Uma fêmea humana, a julgar pelo cheiro.

Ela era alta e tinha pernas longas. Cabelos escuros e volumosos penteados para trás. Queixo erguido, como se estivesse pronta para um confronto. Ou como se tivesse acabado de sair de um.

Mas nada disso era relevante para ele. Exceto a parca: uma parca de camuflagem branca sobre creme.

– Boa noite – disse ele num tom baixo quando se encontraram no beco. Ele pronto para entrar, ela, saindo.

Ela parou e franziu o cenho, a mão entrando sorrateira no casaco. Num rompante, ele se viu questionando como seriam os seios dela.

– Nos conhecemos? – perguntou ela.

– Estamos nos conhecendo agora – ele esticou a mão e disse: – Como vai?

Ela olhou para a mão dele, depois voltou a se concentrar no rosto.

– Alguém já lhe disse que você parece o Drácula com esse sotaque?

Ele sorriu contido para que as presas não aparecessem.


– Algumas comparações foram feitas de tempos em tempos. Não vai apertar a minha mão?

– Não – ela indicou a porta da galeria com a cabeça. – É amigo dos Benloise?

– Sou. E você?

– Não os conheço. Bela maleta, a propósito.

Com isso, ela se virou sobre os saltos e se dirigiu para o Audi. Depois que a luz do alarme piscou, ela entrou, o vento varrendo os cabelos sobre seus ombros enquanto ela desaparecia atrás do volante.

Ele saiu da frente quando ela acelerou e saiu dali.

Assail a observou se afastar e se descobriu pensando com desdém a respeito do seu parceiro de negócios Benloise.

Que tipo de homem enviava uma fêmea para aquele tipo de trabalho?

Enquanto as luzes de freio se iluminaram brevemente, e depois viraram a esquina, Assail sinceramente esperava que o limite estabelecido previamente naquela noite fosse respeitado. Seria uma pena ter de matá-la.

Não que ele hesitaria sequer um instante se a situação o exigisse.


CAPÍTULO 24

Deitado de costas no concreto duro, os diversos anos de Zypher como membro do Bando de Bastardos significava que ele estava bem familiarizado com a falta de acomodações de que agora usufruía: o traseiro estava entorpecido pelo frio bem como pela ausência de um colchão debaixo do corpo pesado. Do mesmo modo, a cabeça estava amparada apenas pela mochila que ele usara para carregar seus poucos pertences para o novo QG no porão daquele armazém. Além disso, a coberta fina e áspera que o cobria não era comprida o suficiente, deixando expostos seus pés apenas de meias ao ar frio e úmido.

Mas ele estava no paraíso. Um paraíso perfeito.

Correndo em suas veias estava o sangue daquela fêmea, e, ah, que alívio... Tendo passado quase um ano sem alimentação adequada, ele se acostumara à fadiga, aos músculos desassossegados e às dores. Mas tudo aquilo se acabara.

De fato, era como se estivesse inflando com força, a pele voltando a se esticar à sua dimensão própria, a altura mais uma vez retornado ao seu normal, a mente tanto sonolenta pelo que se passara quanto se aguçando a cada momento que transcorria.

Contudo, caso tivesse uma cama, ele também a apreciaria, claro. Travesseiros macios, lençóis cheirosos, roupas limpas... aquecimento no inverno, ar-refrigerado no verão... alimento num estômago vazio, água na garganta seca... tudo isso era bom quando se conseguia ter.

No entanto, não eram necessários.

Uma pistola limpa, uma adaga afiada, um lutador pleno em sua totalidade. Era disso que precisava.

E, claro, nas horas vagas, seria bom ter uma fêmea desejosa deitada de costas. Ou de bruços. Ou de lado com um joelho erguido até o seio expondo o sexo pronto para ele.

Ele não era de escolher muito.

Santa Virgem Escriba, aquilo era o... êxtase.

Não era uma palavra que usasse com muita frequência – e ele não queria dormir durante aquele despertar. Mesmo enquanto os outros se deixavam cair no descanso dos mortos, cada um deles na mesma recuperação que ele próprio estava amortecido, ele permanecia profundamente ciente da sua incandescência interna gloriosa.

Só havia uma coisa que o estava irritando. As passadas.

Entreabriu um olho.

Bem no limiar da luz das velas, Xcor andava de um lado para o outro, o caminho restrito entre duas imensas colunas de sustentação que segurava o pavimento superior.

O líder deles nunca estava à vontade, mas aquela inquietação era diferente. A julgar pelo modo como segurava o aparelho telefônico, esperava uma ligação. E isso explicava por que ele estava ali. O único lugar em que conseguiam um sinal era debaixo de um dos alçapões. A porta era feita de madeira, e a malha de aço que fora colocada por baixo foi a única alteração que fizeram quando espantaram os últimos vagabundos humanos, selando as portas exteriores para se mudarem para ali.

Dessa forma, os vampiros não poderiam se materializar ali embaixo.

E bem se sabia que os humanos não tinham força suficiente para abrir aquelas pranchas de madeira de quinze centímetros de espessura...

O tinido do telefone do líder era civilizado demais para aquele ambiente, a campainha falsa soando alegre demais como sinos de vento remexendo pela brisa primaveril.

Xcor parou e olhou para o telefone, deixando-o tocar uma vez mais. Duas vezes.

Obviamente, o macho não queria deixar transparecer que estava aguardando o telefonema.

Quando por fim atendeu, levou o aparelho ao ouvido, ergueu o queixo e relaxou o corpo. Estava de novo no controle.

– Elan – disse ele com suavidade. Houve uma pausa. E, em seguida, aquelas sobrancelhas sempre baixas se ergueram ao máximo. – Que dia e que hora?

Zypher se sentou.

– O Rei ligou? – silêncio. – Não, nem um pouco. De qualquer forma, somente o Conselho terá permissão. Ficaremos à margem... Conforme o seu pedido.

A última parte foi pronunciada com certa carga de ironia, ainda que dificilmente o aristocrata do outro lado da conversa percebesse isso. Pelo pouco que Zypher vira e ouvira de Elan, filho de Larex, ele estava menos do que impressionado. Pensando bem, os fracos eram sempre facilmente manipulados, e Xcor sabia muito bem disso.

– Há algo que precisa saber, Elan. Houve um atentado contra a vida de Wrath no outono... e não se surpreenda se houver insinuação do meu envolvimento e dos meus soldados nessa reunião... O quê? Foi na casa de Assail, na verdade, mas qualquer outro detalhe é insignificante. Portanto, entenda, é de se supor que Wrath esteja convocando a reunião com o propósito de expor a mim e aos meus... Lembre-se de que o avisei disso? Apenas se recorde de que foi amplamente protegido. Os Irmãos e o Rei desconhecem o nosso relacionamento... Isto é, a menos que um dos seus cavalheiros relatarem isso de alguma forma a ele. Nós, no entanto, permanecemos calados. Além disso, saiba também que não temo ser cunhado de traidor ou ser marcado como alvo pela Irmandade. Percebo, porém, que você possui uma sensibilidade muito mais cultural e refinada, e eu não só respeito isso como farei tudo o que estiver ao meu alcance para protegê-lo de qualquer brutalidade.

Ah, sim, claro, Zypher pensou revirando os olhos.

– Lembre-se, Elan, de que você está protegido.

Enquanto Xcor sorria mais amplamente, suas presas eram expostas por completo, como se estivesse perto de atacar a goela do outro, arrancando-lhe a traqueia.

Despedidas foram feitas em seguida, e Xcor concluiu a ligação.

Zypher falou:

– Está tudo bem?

A cabeça do líder se voltou no alto da espinha, e quando seus olhos se encontraram, Zypher lamentou pelo idiota ao telefone... e por Wrath e a Irmandade.

A luz no olhar do líder era pura maldade.

– Ah, sim. Está tudo muito bem.


CAPÍTULO 25

Enquanto o som do telefone tocando sem ser atendido chegava da linha fixa, Blay segurava o aparelho junto ao ouvido e se sentou na beira da cama. Aquilo era estranho. Os pais deveriam estar em casa àquela hora da noite, faltando tão pouco para amanhecer.

– Alô? – disse a mãe, finalmente.

Blay emitiu um suspiro de alívio longo e lento, e se recostou na cabeceira da cama. Dobrando a ponta do roupão por sobre as pernas, pigarreou.

– Oi, sou eu.

A felicidade que se derramou na voz do outro lado aqueceu-lhe o peito.

– Blay! Como está? Deixe-me chamar seu pai, assim ele pode atender na extensão...

– Não, espere – ele fechou os olhos. – Vamos só... conversar. Você e eu.

– Você está bem? – ele ouviu o som de uma cadeira arranhando o piso e soube onde ela estava: à mesa de carvalho em sua preciosa cozinha. – O que está acontecendo? Não está ferido, está?

Não por fora.

– Eu... estou bem.

– O que foi?

Blay esfregou o rosto com a mão livre. Ele e os pais sempre foram ligados. Normalmente, não existia nada que não lhes contasse, e seu rompimento com Saxton era exatamente o tipo de coisa que ele comentaria: estava triste, confuso, desapontado, um pouco deprimido... todo tipo de descarga emocional que ele e a mãe processavam nesse tipo de telefonema.

Enquanto permanecia calado, porém, ele se lembrava de que havia, na verdade, um assunto que jamais tocara com eles. Um assunto muito importante...

– Blay? Você está me assustando.

– Eu estou bem.

– Não, não está não.

Verdade.

Ele imaginava que não lhes contara a respeito da sua orientação sexual porque a vida amorosa não era exatamente algo que as pessoas normalmente partilhavam com os pais. E talvez houvesse uma parte dele, por mais ilógica que fosse, que se preocupava se eles o encarariam de modo diverso ou não.

Retire esse talvez.

Afinal, a política da glymera a respeito da homossexualidade era bem clara: desde que você nunca fosse franco a esse respeito, e você se comprometesse com alguém do sexo oposto conforme o esperado, você não seria expulso por perversão.

Sim, fazia sentido, porque se amarrar a alguém por quem você não se sente atraído e nem ama, e mentir para essa pessoa a respeito de uma infidelidade, é muito mais honrável do que a verdade.

Mas que Deus o perdoe se você for um macho e tiver um namorado sério – como ele teve pelos últimos doze meses mais ou menos.

– Eu... hum... rompi com alguém.


E com isso se ouviam os grilos cricrilando do lado da mãe.


– Sério? – disse ela depois de um momento, como se estivesse chocada, mas tentando esconder isso.

Se você considera isso uma surpresa, mãe, espere pelo que está por vir, pensou ele.

Porque, caramba, ele iria...

Espere, ele ia mesmo fazer isso assim, pelo telefone? Não deveria ser pessoalmente?

– Sim, eu... hum... – ele engoliu em seco. – Na verdade, estive envolvido por boa parte do último ano.

– Ora, eu... – a dor no tom dela o afetou. – Eu... Nós, seu pai e eu, nunca suspeitamos.

– Eu não sabia muito bem como contar.

– Nós a conhecemos? A família?

Ele fechou os olhos, o peito estava apertado.

– Hum... sim, vocês conhecem a família.

– Bem, sinto muito que não tenha dado certo. Você está bem...? Como terminou?

– Simplesmente acabou, para falar a verdade.

– Bem, relacionamentos são sempre muito difíceis. Ah, meu amor, meu querido... dá para saber como você está triste só de ouvi-lo. Você gostaria de vir para cá e...

– Era Saxton. O primo de Qhuinn.

Houve uma inspiração profunda do outro lado.

Enquanto a mãe ficava solenemente calada, o braço de Blay começou a tremer tanto que ele mal conseguia sustentar o telefone.

– Eu... eu... hum... – a mãe engoliu em seco. – Eu não sabia. Que você... hum...

Ele terminou o que ela não conseguia em sua cabeça: Eu não sabia que você era uma dessas pessoas.

Como se homossexuais fossem leprosos sociais.

Ah, inferno. Ele não deveria ter dito nada. Nada, absolutamente nada. Maldição, por que tinha de implodir sua vida de uma só vez? Por que não podia antes lidar com o rompimento... e depois de alguns anos, talvez uma década, pudesse se revelar aos pais para que eles o repudiassem? Mas, nããão, ele tinha que...

– É por isso que você nunca nos contou que estava com alguém? – ela perguntou. – Porque...

– Talvez. Sim...

Houve uma fungada. Depois uma profunda inspiração.

O desapontamento dela pelo telefonema era demais para se aguentar, o peso esmagador comprimindo-lhe o peito e impossibilitando-o de respirar.

– Como pôde...

Ele se apressou em interrompê-la, porque não suportaria ouvir sua doce voz proferir aquelas palavras.

– Mahmen, desculpe. Escute, eu não quis dizer isso, ok? Eu não sei o que estava dizendo. Eu só...

– O que eu ou nós fizemos...

– Mahmen, pare – nessa pausa que se seguiu, ele pensou em recitar um pouco de Lady Gaga, e justificar-se bastante com aquele papo de “a culpa não é sua, você não fez nada de errado como mãe”. – Mahmen, eu só...

Ele sucumbiu nesse instante, chorando o mais silenciosamente possível. A sensação de que, pelo ponto de vista da mãe, ele tivesse desapontado a família só por ser quem era... era uma rejeição que jamais superaria. Ele só queria viver honesta e abertamente, sem desculpas. Como todas as outras pessoas. Amar e ser amado, ser quem era... mas a sociedade tinha um padrão diferente, e como ele sempre temeu, seus pais eram uma parte disso...

Vagamente, ele percebeu que a mãe falava com ele, e se esforçou para se recompor e concluir aquele telefonema.

– ... para que você pensasse que não poderia nos abordar com esse assunto? Que isso, de algum modo, mudaria o que sentimos por você? Blay piscou enquanto o cérebro traduzia o que ele acabara de ouvir em alguma linguagem que fizesse sentido.

– Desculpe... O que disse?

– Por que você... O que fizemos para que você sentisse que qualquer coisa a seu respeito o tornaria de algum modo... diminuído aos nossos olhos? – ela limpou a garganta, como se estivesse tentando se recompor. – Eu amo você. Você é o meu coração batendo fora do meu peito. Não me importo com quem se relacione, se eles têm cabelos claros ou escuros, olhos verdes ou azuis, partes femininas ou masculinas... contanto que você seja feliz, é tudo o que me interessa. Quero para você o que você quiser para si. Eu amo você, Blaylock... simplesmente amo.

– O que... está dizendo...

– Eu te amo.

– Mahmen... – ele engasgou, as lágrimas voltando a se formar.

– Eu só gostaria que não tivesse me contado pelo telefone – murmurou. – Porque eu gostaria muito de poder abraçá-lo agora.

Ele riu de um modo atrapalhado e disforme.

– Não tive a intenção. Quero dizer, não planejei isto. Escapou.

– E eu sinto muito – disse ela – que as coisas não tenham dado certo com Saxton. Ele é um cavalheiro muito gentil. Tem certeza de que acabou mesmo?

Blay esfregou o rosto enquanto a realidade se recalibrava, o amor que ele sempre conheceu ainda com ele. Apesar da verdade. Ou talvez... por causa dela.

Em momentos como aqueles ele se sentia o cara mais sortudo do mundo.

– Blay?

– Desculpe, hum, sim. A respeito de Saxton... – ele pensou no que fizera no escritório vazio no centro de treinamento quando esteve sozinho. – Sim, mahmen, está acabado. Tenho certeza.

– Ok, eis o que tem de fazer, então. Tire um tempo de folga para melhorar. Você saberá quando se sentir melhor. E depois tem que se abrir para conhecer uma pessoa nova. Você é um ótimo partido, sabe disso.

E lá estava ela lhe dizendo para conhecer outro homem.

– Blay? Você me ouviu? Não quero que passe a vida sozinho.

Ele enxugou o rosto de novo.

– Você é a melhor mãe do planeta, sabia disso, não?

– Então, quando virá me ver? Quero cozinhar para você.

Blay relaxou nos travesseiros, ainda que a cabeça começasse a doer, provavelmente pelo fato de, apesar de estar sozinho, ter tentado refrear o choro. Talvez também porque detestasse o ponto em que estava com Qhuinn. E ele também sentia falta de Saxton, de certo modo, porque era difícil dormir sozinho.

Mas aquilo era bom. Aquela... honestidade fizera muito por ele...

– Espere, espere – ele se ergueu dos travesseiros. – Preste atenção, não quero que conte nada para o papai.

– Santa Virgem Escriba, mas por que não?

– Não sei. Estou nervoso.

– Meu bem, ele não vai se sentir diferente de mim.

Sei não, como filho único e último da linhagem... e com toda aquela coisa de pai e filho...

– Por favor. Deixe-me contar pessoalmente – ah, como se isso não o deixasse com vontade de vomitar. – Era o que eu deveria ter feito com você. Apareço aí assim que tiver folga do meu turno; não quero colocá-la numa posição de ter de esconder algo dele...

– Não se preocupe com isso. Essa informação é sua, você tem o direito de partilhá-la com as pessoas quando quiser, se quiser. Porém, eu gostaria que o fizesse logo. Em circunstâncias normais, seu pai e eu contamos tudo um para o outro.

– Prometo.

Houve uma calmaria na conversa.

– Bem, e o trabalho, como tem ido?

Ele balançou a cabeça.

– Mahmen, você não vai querer ouvir a respeito disso.

– Claro que quero.

– Não quero que fique pensando que o meu trabalho é perigoso.

– Blaylock, filho do meu amado hellren, exatamente que tipo de idiota você acha que eu sou?

Blay riu e depois ficou sério.


– Qhuinn pilotou um avião hoje à noite.

– Verdade? Eu não sabia que ele pilotava.

E não era esse o assunto da noite?

– Ele não sabe – Blay voltou a relaxar nos travesseiros e cruzou os pés na altura dos tornozelos. – Zsadist se machucou e nós estávamos com ele num lugar remoto. Qhuinn decidiu que... isto é, sabe como ele é, ele tenta de tudo.

– Muito aventureiro, um tanto selvagem. Mas um macho adorável. Uma vergonha o que a família fez com ele.

Blay remexeu no cordão do roupão.

– Você sempre gostou dele, não? Engraçado, acho que a maioria dos pais não o aprovaria... de tantas maneiras.

– Isso porque eles creem naquele exterior durão. Para mim, é o interior que conta – ela estalou a língua e ele conseguiu visualizá-la balançando a cabeça. – Sabe, nunca vou esquecer a noite em que você o trouxe para casa pela primeira vez. Ele era apenas um projeto de pré-trans, com aquela imperfeição óbvia pela qual, estou certa, ele foi abusado e humilhado. E, mesmo com tudo isso, ele veio direto a mim, estendeu a mão e se apresentou. Ele me olhou direto nos olhos, não num tipo de confrontação, mas como se quisesse que eu olhasse bem para ele e o expulsasse de uma vez se fosse o caso – a mãe exalou uma leve imprecação. – Eu o teria acolhido naquela mesma noite, sabe. Num piscar de olhos. Ao diabo com toda a glymera.

– Você é, verdadeira e inexoravelmente, a melhor mãe do mundo.

Agora foi a vez dela rir.

– E pensar que você diz isso sem que eu esteja colocando um prato de comida na sua frente.

– Bem, uma lasanha a tornaria a melhor mãe do universo.

– Vou colocar a massa para ferver agora.

Enquanto fechava os olhos, essa volta à conversa descontraída, que sempre fora o marco do relacionamento deles, pareceu ainda mais especial.

– Então, conte-me a respeito dessa valentia de Qhuinn. Adoro ouvi-lo falar dele, você fica tão animado.

Caramba, Blay se recusava a pensar nos motivos por trás disso. Apenas se lançou na narrativa, com um pouco de edição para não divulgar nada que a Irmandade não quisesse que se soubesse, não que a mãe fosse contar alguma coisa a alguém.

– Bem, nós estávamos vasculhando essa região e...

– Necessita de mais alguma coisa, senhor?

Qhuinn balançou a cabeça e mastigou o mais rápido que pôde para deixar a boca livre.

– Não, obrigado, Fritz.

– Quem sabe um pouco mais de rosbife?

– Não, obrigado... ah, bem, ok – ele saiu do caminho quando uma carne cozida perfeita atingiu seu prato. – Mas não preciso...

Mais batatas. Mais abobrinhas.

– E vou lhe trazer mais um copo de leite – anunciou o mordomo com um sorriso.

Enquanto o doggen ancião se virava, Qhuinn emitiu um suspiro como quem se prepara para algo antes de acatar a segunda rodada. Ele tinha a sensação de que toda aquela comida era o modo de Fritz lhe dizer obrigado, e era estranho... quanto mais ele comia, mais começava a sentir fome.

Pensando nisso... quando foi mesmo a última vez em que fizera uma refeição?

E quando o mordomo lhe trouxe mais leite, ele o tomou todo como um bom menino.

Maldição, não fora sua intenção perder tempo ali na cozinha. Sua vontade original, quando saiu da clínica, era ir direto para o quarto de Layla. Fritz, por sua vez, teve outras ideias, e o velho doggen não aceitara não como resposta, o que sugeria que fora uma ordem vinda de cima. Como de Tohr, o chefe da Irmandade. Ou do próprio Rei.

Portanto, Qhuinn desistira e cedera... acabando por se sentar à bancada de granito, empanturrando-se tal qual uma piñata.

Pelo menos a rendição era deliciosa, pensou ele um pouco depois, ao abaixar o garfo e limpar a boca.

– Aqui está, senhor, a sua sobremesa.

– Hum, obrigado, mas... – ora, ora, ora, o que temos aqui: uma tigela de sorvete de café com calda quente de chocolate por cima; nada de chantili nem de castanhas. Bem como ele gostava. – Você não precisava se dar a esse trabalho.

– É seu favorito, não?

– Na verdade, é sim – e veja só, uma colher de prata.

Sabe, seria grosseiro deixar a coisa derreter.

Enquanto Qhuinn começava a sobremesa, os pontos dados na sobrancelha pela doutora Jane começaram a latejar debaixo do curativo e a dor o lembrou da noite louca que tivera.

Parecia surreal pensar que apenas uma hora antes ele esteve à beira da morte, dançando no céu escuro naquela armadilha de ratos que era aquele avião que ele não fazia ideia de como pilotar. E agora? Havia somente um pote do melhor de Breyers. Com calda quente.

E pensar que ele estava de fato feliz por não haver nem chantili nem castanhas para arruinar o seu paladar. Porque isso sim seria um problema bem sério.

Enquanto as glândulas adrenais arrotaram e um jorro de ansiedade tremulou ao longo de cada nervo do seu corpo, ele soube muito bem que os choques viriam e iriam embora. Como um tipo de chicotada em seu sistema nervoso.

Mas lidar com um caso de ansiedade pós-desastre era tremendamente melhor do que acabar subindo em chamas. Ou descendo, como teria sido o caso.

Depois da segunda parte da sua refeição, fez o que pôde para ajudar a limpar antes de sair para ver Layla, mas Fritz provocava um alvoroço caso ele sequer tentasse carregar a tigela e a colher para qualquer lugar perto da pia. Cedendo mais uma vez, ele saiu passando pela sala de jantar e parou um segundo para olhar para a longa mesa, imaginando todos sentados em seus lugares costumeiros.

Tudo o que importava era que Z. estava de volta, seguro nos braços de sua shellan, e que ninguém mais se ferira.

– Com licença, senhor – disse Fritz ao se apressar. – A porta.

No fim do vestíbulo, o doggen verificou a câmera de segurança. Um segundo depois, ele destravou a tranca interna do átrio.

E Saxton entrou.

Qhuinn se recolheu. A última coisa que desejava fazer era falar com aquele macho agora. Estava indo ver Layla e depois se deitar...

O cheiro que chegou a ele não estava certo.

Franzindo o cenho, foi até a passagem em arco. Logo adiante, seu primo conversou com Fritz por um minuto, depois começou a caminhar na direção da grande escadaria.

Qhuinn inalou profundamente, as narinas inflando. É, sim, aquela era a colônia cara de Saxton... mas havia outro odor misturado àquele. Outra colônia permeava o macho todo.

E não era de Blay. Ou de nada que o lutador usaria.

E também havia o inconfundível cheiro de sexo...

Não lhe ocorreu nenhum pensamento consciente quando marchou para o espaço aberto e exclamou:

– Onde esteve?

O primo parou. Olhou por sobre o ombro.

– O que disse?

– Você ouviu muito bem – numa inspeção mais próxima, ficou óbvio o que o cara aprontara. Os lábios estavam avermelhados e havia um rubor no rosto dele que Qhuinn podia apostar que não tinha nada a ver com o tempo frio. – Onde diabos você estava?

– Não creio que isso seja assunto seu, primo.

Qhuinn atravessou o piso de mosaico, sem parar até os coturnos de ponta de aço ficarem diante dos belos sapatos do cara.

– Seu puto maldito.

Saxton teve a audácia de parecer enfastiado.

– Sem ofensa, meu querido parente, mas não tenho tempo para isto.

O cara deu meia-volta...

Qhuinn esticou uma mão e o segurou pelo braço. Com um puxão, trouxe-o para perto novamente, nariz com nariz. E merda, o fedor no cara o deixou nauseado.

– Blay está arriscando a vida na guerra e você fica fodendo com um qualquer pelas costas dele? Muita classe, boqueteiro de merda...

– Qhuinn, isso não é da sua conta...

Saxton tentou se livrar dele. Não foi uma boa ideia. Antes de Qhuinn sequer perceber o que estava fazendo, travou as mãos ao redor do pescoço do macho.

– Como ousa? – disse com as presas totalmente expostas.

Saxton bateu as duas mãos nos pulsos de Qhuinn e tentou se soltar, puxando, empurrando, não tendo êxito algum.

– Você... está... me sufocando...

– Eu deveria matá-lo aqui mesmo – rugiu Qhuinn. – Como pôde fazer isso com ele? Ele está apaixonado por você...

– Qhuinn... – a voz estrangulada ficava cada vez mais fina. – Qh...

Pensar em tudo o que o primo tinha, e tudo de que ele não tomava conta, deu-lhe uma força extra, e ele a canalizou direto para as mãos.

– De que diabos você precisa mais, cretino? Acha que algum desconhecido vai ser melhor do que aquilo que você já tem na sua cama?

A força do ataque começou a empurrar Saxton para trás, os sapatos dele escorregando no piso liso enquanto os coturnos de Qhuinn guiavam os dois. Pararam quando os ombros de Saxton bateram no corrimão da imensa escadaria.

– Seu puto maldito...

Alguém gritou. Assim como outro alguém.

E logo se ouviram passadas vindas de todos os lados, seguidas por um punhado de pessoas puxando-o pelos braços.

Tanto faz. Ele apenas continuou com os olhos e os braços travados, a fúria em seu âmago transformando-o num buldogue que...

Não...

Iria...

Soltar...


CAPÍTULO 26

– Então, vocês acham que um dia voltarão para Caldwell? – Blay perguntou para a mãe.

– Não sei. Seu pai vai e volta do trabalho com tanta facilidade à noite, e nós dois gostamos da calma e da privacidade daqui do interior. Acha que agora está mais seguro do que aí na cidade...

De repente, gritos passaram pelas portas fechadas de seu quarto. Muitos gritos.

Blay olhou de relancu e franziu o cenho.

– Ei, mahmen, sinto interromper, mas acho que está acontecendo alguma coisa aqui na casa...

O tom de voz dela baixou, o medo se entrelaçando em suas palavras.

– Não estão sendo atacados, estão?

Por um momento, aquela noite na casa deles em Caldwell um ano e meio atrás retornou em sua memória numa série rápida de contrações no estômago: a mãe correndo aterrorizada, o pai se armando contra o inimigo, a casa destruída.

Ainda que a gritaria parecesse piorar, ele não tinha como sair sem apaziguá-la.

– Não, não, mahmen, este lugar é muito seguro. Ninguém pode nos encontrar, e mesmo que conseguissem não poderiam entrar. É só que às vezes os Irmãos começam a discutir. Garanto, está tudo bem.

Pelo menos era o que ele esperava. As coisas pareciam estar piorando.

– Ah, que alívio. Não quero que nada aconteça com você. Vá cuidar de tudo e me ligue quando souber que virá nos visitar. Vou arrumar o seu quarto e preparar uma lasanha para você.

Na mesma hora, a boca começou a salivar. Assim como os olhos ficaram um poquinho marejados.

– Eu te amo, mahmen... E obrigado. Você sabe, por...

– Sou eu quem agradece pela confiança. Agora vá lá ver o que está acontecendo, e cuide-se. Eu te amo.

Desligando, ele saiu da cama e foi para a porta. No segundo em que se viu no corredor das estátuas, ficou claro que uma bela briga estava acontecendo na parte principal da casa: havia muitas vozes de machos, todas elas num volume que indicava “emergência”.

Trotando, ele seguiu para o balcão do segundo andar...

Quando conseguiu espiar o vestíbulo, não entendeu de pronto o que via lá embaixo: havia um nó de pessoas na base da escadaria, todas com os braços esticados como se tentassem apartar uma briga.

Só que não era entre dois Irmãos.

Que merda era aquela? Estavam mesmo tentando tirar Qhuinn de cima de Saxton...?

Jesus, o maldito estava com as mãos ao redor do pescoço do primo e, a julgar pelo tom acinzentado no rosto do macho, prestes a matá-lo.

– Que diabos está acontecendo aqui! – Blay berrou, ao tomar as escadas correndo.

Quando chegou à confusão, havia Irmãos demais no caminho. E aqueles não eram o tipo de macho que você simplesmente afastava às cotoveladas. Infelizmente, se alguém conseguiria deter Qhuinn, esse alguém seria ele. Mas como diabos ele conseguiria atrair a atenção do idiota...

Isso mesmo, pensou.

Atravessando o vestíbulo, quebrou o vidro do antigo alarme manual de incêndio com o punho e puxou a alavanca para baixo.

No mesmo instante, uma sirene explodiu no recinto, a acústica do teto de igreja agindo como um amplificador enquanto o alarme berrava desenfreado.

Foi como atingir um bando de cães de briga com um balde de água. Toda a ação parou e as cabeças se levantaram da confusão para olhar ao redor.

O único que não deu a mínima foi Qhuinn. Ele ainda apertava com força.

Blay se aproveitou do momento “ei, o que é isso” e conseguiu abrir caminho.

Concentrando-se em Qhuinn, posicionou o rosto bem na frente do dele.

– Solte-o agora.

No segundo em que a sua voz foi registrada, uma expressão de choque substituiu a violência fria que marcava o rosto de Qhuinn, como se ele não tivesse esperado que Blay viesse até ali. E foi só isso o que foi preciso. Um único comando dele e aquelas mãos se soltaram tão rapidamente que Saxton caiu no chão como um peso morto.

– Doutora Jane! Manny! – alguém gritou. – Chamem um médico!

Blay queria berrar com Qhuinn ali mesmo, mas estava aterrorizado demais com o estado de Saxton para perder tempo com “o que há de errado com você?”. O advogado não se mexia. Segurando o belo terno do rapaz, Blay o rolou no chão e verificou a carótida com a ponta dos dedos, rezando para encontrar a pulsação. Quando não encontrou, inclinou a cabeça de Saxton para trás e se curvou para fazer boca a boca.

Mas, antes disso, Saxton tossiu e puxou o ar para dentro dos pulmões.

– Manny está chegando – disse Blay com a voz rouca, mesmo sem saber se isso era verdade. Mas, ora essa, alguém devia estar a caminho. – Fique comigo...

Mais tossidas. Mais inspirações fundas. E a cor começou a voltar para o belo e refinado rosto.

Com a mão trêmula, Blay afastou o cabelo loiro e espesso da testa que tocara tantas vezes antes. Ao fitar os olhos confusos que olhavam para ele, ele quis sentir algo profundo na alma, que desse uma guinada em sua vida e...

Rezou por esse tipo de reação.

Inferno, naquele instante, trocaria seu passado e seu presente por isso.

Mas não estava ali. Pesar, raiva em favor do macho, tristeza, alívio... catalogou cada um desses sentimentos. Era só isso, contudo.

– Cheguei, deixe-me dar uma olhada – disse a doutora Jane ao apoiar a maleta preta de médico no chão e se ajoelhar no piso de mosaico.

Blay recuou para dar espaço à shellan de V., mas ficou próximo, mesmo sem poder fazer coisa alguma. Inferno, ele sempre quis ir para a faculdade de medicina, mas não para ressuscitar ex-amantes porque um psicótico tentara estrangulá-los no maldito átrio de entrada.

Olhou para Qhuinn. O lutador ainda estava sendo contido por Rhage, como se o Irmão não estivesse inteiramente certo de que o episódio terminara.

– Vamos ficar de pé – disse a doutora Jane.

Blay se adiantou, ajudando Saxton, mantendo-o firme, conduzindo-o para a escadaria. Os dois ficaram em silêncio ao subir, e quando chegaram ao segundo andar, Blay seguiu para o seu quarto por força do hábito.

Puxa.

– Não, está tudo bem – murmurou Saxton. – Só me deixe sentar aqui um minuto, está bem?

Blay pensou na cama, mas quando Saxton ficou tenso ao tomarem essa direção, ele o levou para a chaise-longue. Ajudando o macho a se deitar, recuou desajeitado.

No silêncio que se seguiu, uma raiva violenta o atingiu sabe-se lá vinda de onde.

E agora as suas mãos tremiam por outro motivo.

– Então – disse Saxton com voz rouca –, como foi a sua noite?

– O que diabos acabou de acontecer?

Saxton afrouxou a gravata. Desabotoou o colarinho. Respirou fundo mais uma vez.

– Briga de família, parece.

– Tolice.

Saxton desviou o olhar cansado.

– Temos mesmo que fazer isto?

– O que aconteceu...

– Acho que você e ele têm que conversar. E depois que o fizerem, não terei mais que me preocupar em ser atacado como um criminoso novamente.

Blay franziu a testa.

– Ele e eu não temos nada para dizer um ao...

– Com todo o respeito, as marcas no meu pescoço sugerem o contrário.

– Como estamos, grandão?

Enquanto a voz de Rhage era registrada nos ouvidos de Qhuinn, ficou claro que o Irmão verificava se o drama já acabara. Desnecessário. No instante em que Blay lhe disse para parar, o corpo de Qhuinn obedecera, como se o cara tivesse o controle remoto da sua TV.

Havia outras pessoas por perto, obviamente também esperando para ver se ele mostrava qualquer indicação de que correria atrás de Saxton para retomar a rotina de estrangulamento.

– Você está bem? – perguntou Rhage.

– Sim, sim. Estou bem.

As barras de aço ao redor do seu tronco relaxaram e gradualmente se abaixaram. Então uma mãozorra deu-lhe um tapa nas costas e apertou seu ombro.

– Fritz odeia corpos no átrio frontal.

– Mas não há muito sangue no estrangulamento – alguém observou. – Seria fácil limpar depois.

– Apenas uma polida e pronto – o outro disse.

Houve uma pausa pesada depois disso.

– Vou subir – quando voltaram a olhar para ele em antecipação, Qhuinn balançou a cabeça. – Não para uma repetição. Juro pelo...

Bem, ele não tinha uma mãe, um pai, um irmão, uma irmã... nem mesmo um filho, ainda que, tomara, isso fosse temporário.

– Não vou, ok?

Não esperou por mais nenhum comentário e se lembrou de que ainda precisava passar pelo quarto de Layla.

Tomando a direita no alto das escadas, seguiu para o quarto de hóspedes para o qual a Escolhida fora levada ao se mudar e bateu à porta com suavidade.

– Layla?

Apesar do fato de que teriam um filho juntos, ele não se sentia à vontade para entrar sem ser convidado.

A segunda batida foi um pouco mais forte. Assim como sua voz:

– Layla?

Ela devia estar dormindo.

Recuando, seguiu para o próprio quarto, passando diante do escritório de Wrath com suas portas fechadas e depois tomou o corredor das estátuas. Ao passar diante da porta de Blay, não conseguiu deixar de encarar a maldita porta.

Jesus Cristo, quase matara Saxton.

E ainda sentia vontade de matar.

Sempre soube que o primo não valia nada e detestava estar certo a esse respeito. O que diabos Sax estava pensando? O cara tinha o insuperável na sua cama todo santo dia e, mesmo assim, de algum modo, qualquer um de algum bar, de uma boate ou da maldita Biblioteca Municipal de Caldwell era melhor do que aquilo? Até mesmo necessário?

Filho da mãe traiçoeiro.

Enquanto as mãos se fechavam em punhos e ele entretinha a ideia de abrir caminho com um chute só para dar mais uns socos no rosto de Saxton, quase não conseguiu controlar seu impulso.

Solte-o agora.

De lugar nenhum a voz de Blay reverberou em sua cabeça uma vez mais e, obviamente, a violência foi desligada. Literalmente, entre um momento e o seguinte, ele passou de touro enfurecido a estado neutro.

Estranho.

Balançando a cabeça, foi até seu quarto, entrou e fechou a porta.

Depois de fazer com que as luzes se acendessem, ficou parado, os pés colados no chão, os braços pensos como cordas frouxas, a cabeça à toa no alto da espinha. Sem ir a parte alguma.

Sem nenhum motivo aparente, pensou no amado aspirador de Fritz, o eletrodoméstico estacionado dentro de um armário, deixado no escuro até que alguém o utilizasse.

Ótimo. Estava reduzido ao nível de um aspirador de pó.

No fim, praguejou, e se obrigou a começar a se despir e ir para a cama. A noite se mostrara um trabalho hercúleo desde o instante em que o sol se pusera e a boa notícia era que a confusão toda finalmente chegara ao fim: as persianas estavam abaixadas para impedir a entrada do sol. A casa estava ficando silenciosa.

Hora do sono REM para recarga.

Ao tirar a camiseta regata devagar e gemer ante todas as dores, percebeu que deixara a jaqueta de couro e as armas na clínica. Sem problemas. Ele tinha extras ali em cima caso precisasse delas durante o dia, e poderia ir buscar seus pertences antes da Primeira Refeição.

Descendo a mão para o zíper da calça, ele...

A porta atrás dele se abriu numa explosão tamanha que ricocheteou na parede, só para ser interceptada pela pegada firme de um filho da mãe muito irritado.

Parado debaixo da moldura da porta, Blay estava furioso, o corpo trêmulo de raiva que até mesmo Qhuinn, que já enfrentara muitas coisas na vida, se pôs em alerta.

– O que há de errado com você!? – o macho exclamou.

Está de brincadeira, foi o que Qhuinn pensou. Como ele não reconhecera o perfume estranho no corpo do amante?

– Acho que precisa perguntar isso ao meu primo.

Enquanto Blay marchava adiante, Qhuinn desviou do cara para...

Blay o segurou pelo braço e expôs as presas com um sibilo.

– Vai fugir?

Num tom controlado, Qhuinn respondeu:

– Não. Vou fechar a maldita porta para que ninguém escute isto.

– Não dou a mínima!

Qhuinn pensou em Layla do outro lado do corredor, tentando dormir.

– Bem, eu me importo.

Qhuinn se soltou e fechou a porta. Depois, antes de se virar, fechou os olhos para dar um tempo.

– Você me dá aversão – disse Blay.

Qhuinn deixou a cabeça pender.

– Você tem que cair fora da minha vida – a amargura naquela voz conhecida foi direto ao coração dele. – Afaste-se de tudo que se refere a mim!

Qhuinn olhou por cima do ombro.

– Você nem se importa de ele ter estado com outra pessoa?

A boca de Blay se abriu. Fechou. Então as sobrancelhas desceram.

– O quê?

Ah. Maravilha.

Naquela confusão, Blay não entendera os porquês.

– O que você disse? – repetiu Blay.

– Você me ouviu.

Quando não houve resposta, nenhuma imprecação, nenhum objeto lançado, Qhuinn se virou.

Depois de um momento, Blay cruzou os braços, não sobre o peito, mas no centro, como se estivesse se sentindo levemente nauseado.

Qhuinn esfregou o rosto e falou numa voz entrecortada:

– Desculpe. Eu sinto muito... não quero isso para você.

Blay balançou a cabeça.

– O quê... – os olhos azuis se concentraram. – Foi por isso que você o atacou?

Qhuinn deu um passo para a frente.

– Eu sinto muito... Eu só... Ele passou pela porta, eu percebi o cheiro dele e perdi a cabeça. Eu sequer estava pensando.

Blay piscou, como se talvez estivesse se deparando com um conceito desconhecido.

– É por isso que você... Por que diabos você faria uma coisa dessas?

Qhuinn deu mais um passo à frente, e depois se forçou a parar, apesar da necessidade quase premente de estar perto dele. E enquanto Blay balançava a cabeça como se estivesse tendo problemas de compreensão, Qhuinn não tinha intenção de falar.

Mas falou.

– Você se lembra do dia na clínica, mais ou menos um ano atrás... – ele apontou para baixo, para o caso de o cara ter se esquecido de onde ficava o centro de treinamento. – Foi antes de você e Saxton... – certo. Não terminaria aquela frase, não se quisesse segurar toda a comida que tinha no estômago. – Lembra-se do que eu lhe disse?

Enquanto Blay parecia confuso, ele o ajudou a se lembrar:

– Eu disse que se alguém o magoasse, eu perseguiria essa pessoa e a deixaria para queimar sob o Sol – até ele mesmo percebeu o modo como a voz abaixou para um rosnado ameaçador. – Saxton o magoou hoje, por isso fiz o que disse que faria.

Blay esfregou o rosto com a mão.

– Jesus...

– Eu lhe disse o que aconteceria. E se ele repetir isso, não posso prometer que não darei cabo do meu trabalho.

– Escute, Qhuinn, você não pode... não pode fazer esse tipo de merda. Simplesmente não pode.

– Você não se importa? Ele foi infiel. Isso não está certo.

Blay expirou profunda e lentamente, como se estivesse cansado de carregar um peso.

– Apenas... não faça mais isso.

Agora era Qhuinn quem balançava a cabeça. Ele não conseguia entender. Se estivesse num relacionamento com Blay, e Blay o traísse? Ele jamais superaria.

Deus, por que não tirara vantagem daquilo que lhe fora oferecido? Não deveria ter corrido. Deveria ter ficado parado.

De modo espontâneo, seus pés deram outro passo à frente.

– Sinto muito...

De repente, ele começou a repetir essas palavras, repetindo-as a cada passo que o levava para mais perto de Blay.

– Sinto muito... Sinto muito... Sinto... muito... – ele não sabia o que estava dizendo nem fazendo; apenas sentia uma urgência de se redimir de todos os seus pecados.

Havia tanto no que se referia àquele macho honrado que estava totalmente imobilizado diante dele.

Por fim, só havia mais um passo antes que seu peito nu atingisse o de Blay.

A voz de Qhuinn não passava de um sussurro:

– Sinto muito.

No silêncio espesso que se seguiu, a boca de Blay se abriu... mas não em sinal de surpresa. Era porque ele não estava conseguindo respirar.

Lembrando-se de não ser um cretino que acreditava que o mundo girava ao redor do seu umbigo, Qhuinn conduziu o assunto de novo para o que acontecia entre Blay e Saxton.

– Não desejo isso para você – disse ele, os olhos perscrutando aquele rosto. – Você já sofreu o bastante, e sei que o ama. Eu sinto muito... Sinto muito mesmo.

Blay apenas continuou parado diante dele, a expressão congelada, os olhos se mexendo como se ele não conseguisse compreender nada. Mas não recuou, não fugiu, não correu. Ele permaneceu... bem onde estava.

– Sinto muito.

Qhuinn observou de uma vasta distância a sua mão se levantar e tocar o rosto de Blay, as pontas dos dedos percorrendo a barba por fazer.

– Eu sinto muito.

Ah, Deus, poder tocá-lo. Sentir o calor daquela pele, inalar o odor másculo e limpo.

– Sinto muito.

O que diabos estava fazendo? Caramba... tarde demais para responder aquilo – esticando o outro braço, pousou a mão no ombro forte.

– Sinto muito.

Ah, Deus, estava atraindo Blay, puxando o corpo dele para junto do seu.

– Sinto muito.

Passou uma mão para a nuca de Blay e enfiou os dedos entre os cabelos que ali formavam cachos.

– Sinto muito.

Blay estava duro, a coluna reta como uma flecha, os braços ainda ao redor da barriga. Mas, um momento depois, como se estivesse confuso com sua própria reação, o macho se inclinou, o peso mudando sutilmente a princípio, e depois um pouco mais.

Com um puxão, Qhuinn passou os braços ao redor da pessoa mais importante da sua vida. Não era Layla, embora sentisse uma dor ante essa negação. Não era John, nem seu Rei. Não eram os Irmãos.

Aquele macho era a razão de tudo.

E mesmo se sentindo morrer porque Blay estava apaixonado por outra pessoa, ele agiu. Fazia tempo demais desde que o tocara pela última vez... e nunca daquela maneira.

– Sinto muito.

Espalmando a parte de trás da cabeça de Blay, incitou o macho a se aproximar, aninhando a cabeça em seu pescoço.

– Sinto muito.

Enquanto Blay aquiescia, Qhuinn estremeceu, virando o rosto para dentro, respirando fundo, enfiando todas as sensações em sua mente para poder se lembrar daquilo para sempre. Enquanto a palma subia e descia, relaxando as costas musculosas, ele fez o que pôde para poder compensar muito mais do que a infidelidade do primo.

– Sinto muito...

Mudando de posição rapidamente, Blay balançou a cabeça. Desvencilhou-se. Recuou.

Afastou-se.

Os ombros de Qhuinn cederam.

– Sinto muito.

– Por que fica repetindo isso?

– Porque...

Nesse instante, quando seus olhos se encontraram, Qhuinn soube que era chegada a hora. Estragara tantas oportunidades com Blay; existiram tantos passos em falso e desencontros deliberados, tantos anos, tantas negações. E tudo de sua parte. Acovardara-se por tempo demais, mas aquilo chegara ao fim.

Ao abrir a boca para dizer as três palavras que estavam na ponta da língua, os olhos de Blay se endureceram.

– Não preciso da sua ajuda, está bem? Posso cuidar de mim sozinho.

Tum. Tum. Tum.

Seu coração batia tão forte que ele teve que se perguntar se explodiria.

– Você vai continuar com ele – Qhuinn disse entorpecido. – Você vai...

– Não faça mais essa cretinice com Saxton... Nunca mais. Jure.

Mesmo morrendo por dentro, Qhuinn sentia-se impotente para negar-lhe qualquer coisa.

– Ok – levantou as palmas. – Não toco nele.

Blay assentiu, o acordo estava selado.

– Só quero ajudar você – disse Qhuinn. – Só isso.

– Você não pode – rebateu Blay.

Deus, mesmo se estranhando novamente, ele ansiava por mais contato e, de pronto, ele enxergou um caminho para exatamente isso. Uma proposta traiçoeira, mas ao menos havia um tipo de lógica interna nela.

Os braços se ergueram, as mãos procurando, encontrando, prendendo-se. Aos ombros de Blay. À nuca de Blay.

O sexo surgiu dentro dele, enrijecendo seu membro, fazendo-o ofegar.

– Mas eu tenho como ajudar.

– Como?

Qhuinn se aproximou, levou a boca ao ouvido de Blay. Em seguida, encostou o peito nu deliberadamente no de Blay.

– Use-me.

– O quê?

– Dê uma lição a ele – Qhuinn segurou com mais força e inclinou a cabeça de Blay para trás. – Vingue-se na mesma moeda. Comigo.

Para deixar bem claro, Qhuinn estendeu a língua e percorreu a lateral do pescoço de Blay.

O sibilo em reação foi tão alto quanto uma imprecação.

Blay o socou, empurrando-o.

– Perdeu o maldito juízo?

Qhuinn apalpou o sexo rijo e pesado.

– Quero você. E aceito você do jeito que for, mesmo que seja só como uma vingança contra o meu primo.

A expressão de Blay mudava como numa partida de tênis de mesa, passando da mais absoluta descrença para uma raiva épica.

– Seu cretino idiota! Você me rejeitou por anos e anos, e agora, de repente, muda de ideia? Que diabos há de errado com você?

Com a mão livre, Qhuinn tocou num dos piercings dos mamilos... e se concentrou no que estava acontecendo abaixo da cintura de Blay: debaixo daquele roupão, o macho ficou completamente duro, o tecido atoalhado impotente diante daquele tipo de ereção.

– Perdeu a sua maldita cabeça de vez? Que merda!

Normalmente, Blay não praguejava nem elevava a voz. Era excitante vê-lo perder o controle.

Encarando o amigo nos olhos, Qhuinn se deixou cair de joelhos.

– Deixe-me cuidar disso...

– O quê...

Ele se inclinou para a frente e puxou a bainha do roupão, atraindo-o na sua direção.

– Venha cá. Deixe-me mostrar do que sou capaz.

Blay agarrou o cordão que mantinha as duas metades unidas e deu um apertão.

– Que diabos você está fazendo?

Deus, o fato de ele estar de joelhos, implorando, parecia apropriado.

– Quero estar com você. Não me importo com o motivo... Apenas me deixe ficar com você...

– Depois de todo esse tempo? O que mudou?

– Tudo.

– Você está com a Layla...

– Não. Vou repetir quantas vezes você precisar ouvir: não estou com ela.

– Ela está grávida.

– Uma vez. Fiquei com ela apenas uma vez, e como já lhe disse, foi só porque quero uma família e ela também quer. Uma vez, Blay, e nunca mais.

A cabeça de Blay pendeu para trás como se alguém estivesse enfiando espinhos debaixo das suas unhas.

– Não faça isso, pelo amor de Deus, você não pode fazer isso... – a voz dele se quebrantou, a angústia era um triste vislumbre de todos os problemas que Qhuinn causara.–Por que agora? Talvez seja você quem queira se vingar de Saxton...

– Meu primo que se foda, isso não tem nada a ver com ele em relação a mim. Se você estivesse sozinho, eu ainda estaria neste tapete, ajoelhado, à espera de estar com você. Se você estivesse comprometido com uma fêmea, se estivesse namorando alguém de modo casual, se você estivesse em milhares de outras situações na vida... eu ainda estaria aqui. Implorando por algo, qualquer coisa... uma só vez, se é o que pode me dar.

Qhuinn esticou a mão de novo, passando por debaixo do roupão, afagando a perna musculosa e forte. E quando Blay recuou um passo, ele sabia que estava perdendo a batalha.

Merda, ele perderia aquela chance se não...

– Escute, Blay, fiz muitas merdas na minha vida, mas sempre tentei ser verdadeiro. Quase morri hoje... e isso endireita as pessoas. Lá em cima, naquele avião, olhando para a noite escura, não achei que fosse conseguir. Tudo ficou claro para mim. Quero estar com você por causa disso.

Na verdade, fazia muuuuito tempo, beeeem antes da situação com o Cessna, que ele sabia disso, mas ele desejava que a explicação fizesse sentido para Blay.

Talvez fizesse. Em resposta, ele oscilou o peso sobre os pés, como se fosse ceder... ou ir embora. Não havia como saber que direção ele tomaria.

Qhuinn se apressou em dizer mais:

– Sinto muito ter desperdiçado tanto tempo... e se você não quiser ficar comigo, eu entendo. Não vou insistir, vou lidar com as consequências. Mas, pelo amor de Deus, se houver uma chance... por qualquer motivo que seja da sua parte, raiva, curiosidade... droga, mesmo que me deixe transar com você uma vez e nunca mais, com o único propósito de me cravar uma estaca no peito... Eu aceito. Aceito você... do jeito que for.

Ele esticou a mão uma terceira vez, escorregando-a por trás da perna de Blay. Afagando. Implorando.

– Não me importo quanto isso vai me custar.


CONTINUA

CAPÍTULO 22

Do outro lado do rio, na clínica de Havers, Layla finalmente teve que sair da mesa de exames e andar pela saleta. Perdera completamente a noção do tempo àquela altura. De fato, parecia que ela estivera fitando aquelas quatro paredes por uma eternidade. E continuaria a fitar pelo resto de sua vida na face da Terra.

A única parte sua que permanecia fresca e ocupada era a cabeça. Infelizmente, ela se concentrava em pensar no que a enfermeira lhe dissera... que aquilo era um aborto. Que era muito provável que ela tivesse concebido...

Quando a batida à porta que ela tanto esperava chegou, foi inesperada e a assustou.

– Entre – disse ela.

A enfermeira que fora tão gentil entrou... mas parecia diferente. Ela se recusava a olhar para Layla, e o rosto estava congelado numa máscara. Havia um tecido branco dobrado no braço, e ela o empurrou para a frente, desviando o olhar. E depois fez uma mesura.

– Sua Graça – disse ela com uma voz trêmula. – Eu... Havers... nós... não sabíamos.

Layla franziu o cenho.

– O que está...

A enfermeira sacudiu o manto, como se tentasse forçar Layla a aceitá-lo.

– Por favor, vista isto.

– Do que se trata?

– A senhora tem sangue de Escolhida – a voz da enfermeira tremulou. – Havers está... perturbado.

Layla se esforçou para compreender as palavras. Então aquilo não era... por causa da gravidez?

– O quê... Não compreendo. Por que ele está... está perturbado porque sou uma Escolhida?

A outra fêmea empalideceu.

– Pensávamos que a senhora fosse... decaída?

Layla cobriu os olhos com as mãos.

– Eu logo poderei ser isso... dependendo do que acontecer – ela não tinha energia para aquilo. – Alguém poderia me contar o resultado dos exames e o que preciso fazer para cuidar de mim?

A enfermeira remexeu no tecido, ainda tentando entregá-lo.

– Ele não pode voltar para cá...

– O quê?

– Não se não estiver... Ele não pode ficar aqui com a senhora. Ele nunca deveria ter...

Layla avançou, sua calma sumindo.

– Deixe-me ser bem clara, quero falar com o médico – ante essa exigência, a enfermeira levantou a cabeça para olhar para ela. – Tenho o direito de saber o que ele descobriu a respeito do meu corpo. Diga isso a ele agora.

Não havia nenhum guincho em sua voz. Nenhuma histeria aguda; apenas um tom neutro, poderoso, que ela nunca vira saindo de sua boca antes.

– Vá. E traga-o – exigiu.

A enfermeira levantou o pedaço de pano.

– Por favor. Vista isso. Ele...

Layla se esforçou para não gritar.

– Sou apenas uma paciente qualquer...

A enfermeira aprumou os olhos e franziu o cenho.

– Com licença, mas isso não é bem verdade. Segundo o médico, ele a violou durante o exame.

– O quê?

A enfermeira apenas a encarou.

– Ele é um bom macho. Um macho muito tradicional em seu modo de ser...

– O que isso, em nome da Virgem Escriba, tem a ver com qualquer coisa?

– O Primale pode matá-lo pelo que ele lhe fez.

– Durante o exame? Eu permiti... era um procedimento médico necessário!

– Isso não faz diferença. Ele fez algo ilegal.

Layla fechou os olhos. Deveria ter usado a clínica da Irmandade.

– A senhora tem que perceber de onde ele vem – ponderou a enfermeira. – A senhora vem de uma hierarquia com a qual não temos contato... e, mais do que isso, nem deveríamos ter contato.

– Tenho um coração pulsante e um corpo que precisa de ajuda. Isso é tudo o que ele, e qualquer outra pessoa, precisa saber. A carne é a mesma.

– O sangue não é.

– Ele tem que vir me ver...

– Ele não virá.

Layla voltou a focalizar a enfermeira. E depois pousou a mão no baixo ventre. Por toda sua existência, até então, ela vivera do lado da integridade, servindo com lealdade, executando suas tarefas, existindo apenas dentro dos parâmetros prescritos ditados por outrem.

Não mais.

Estreitou o olhar.

– Diga ao médico que ou ele vem até aqui e me diz pessoalmente o que está acontecendo... ou procuro o Primale e conto palavra por palavra o que aconteceu aqui.

Deliberadamente, desviou o olhar para a máquina utilizada durante o exame interno.

Enquanto a enfermeira empalidecia, Layla não sentiu nenhuma alegria no poder utilizado. Tampouco se arrependia.

A enfermeira fez uma mesura e saiu do quarto, deixando aquele pedaço de pano ridículo na bancada baixa ao lado da pia.

Layla nunca considerara seu status de Escolhida nem um fardo nem um benefício. Era simplesmente quem ela era: sua sina, o destino que lhe fora dado se manifestando por meio da respiração e da consciência. Outros, porém, não eram tão fleumáticos, especialmente ali embaixo.

E aquilo era apenas o começo.

Pensando bem, estava perdendo o bebê, não estava? Então, aquilo era o fim.

Esticando a mão, pegou o pano e o enrolou ao seu redor. Não se importava com as sensibilidades do médico, mas se ficasse coberta como lhe pediram, talvez ele se concentrasse nela em vez do que em quem ela era.

Quase imediatamente houve outra batida à porta e, quando Layla respondeu, Havers entrou, parecendo ter uma arma na cabeça. Mantendo o olhar no chão, ele apenas os fechou parcialmente na sala, antes de cruzar os braços sobre o estetoscópio.

– Se eu tivesse sabido do seu status, jamais a teria tratado.

– Procurei-o por livre e espontânea vontade, como uma paciente necessitada.

Ele balançou a cabeça.

– A senhora é uma santidade na Terra. Quem sou eu para intervir em assunto tão sagrado?

– Por favor. Apenas ponha um fim no meu sofrimento e me diga o que está acontecendo.

Ele retirou os óculos e esfregou o nariz.

– Não posso divulgar essa informação para a senhora.

Layla abriu a boca. Fechou-a.

– Como disse?

– A senhora não é minha paciente. O seu filho e o Primale são... Portanto, falarei com ele quando puder...

– Não! Não deve procurá-lo!

O olhar que ele lhe lançou sugeriu um desdém que ela imaginava que ele normalmente reservasse a prostitutas. E, em seguida, ele falou num tom baixo, vagamente ameaçador:

– Não está em posição de exigir nada.

Layla se retraiu.

– Vim até aqui porque quis, como uma fêmea independente...

– Você é uma Escolhida. Não só é ilegal para mim acolhê-la, como também posso ser julgado pelo que lhe fiz antes. O corpo de uma Escolhida...

– Pertence a ela mesma!

– ... ao Primale, por lei, como deveria ser. Você é de pouca importância... Nada além de um receptáculo para aquilo que lhe é dado. Como ousa vir até aqui, fingindo ser uma simples fêmea, e colocar o meu consultório e minha vida em risco com tal engodo?

Layla sentiu uma onda de raiva estremecer até cada uma das terminações nervosas de seu corpo.

– De quem é o coração que bate neste corpo? – ela bateu no peito. – De quem é esta respiração aqui dentro!

Havers balançou a cabeça.

– Falarei com o Primale e somente com ele...

– Não pode estar falando sério! Só eu vivo nesta carne. Ninguém mais...

O rosto do médico se contraiu em desgosto.

– Como já disse, você não passa de um recipiente para o mistério divino em seu ventre, o próprio Primale está em sua carne, e, por isso, eu a deterei aqui até que...

– Contra a minha vontade? Acho que não.

– Ficará aqui até que o Primale venha buscá-la. Não serei responsável por deixá-la livre no mundo.

Os dois se encararam.

Com uma imprecação, Layla arrancou o tecido que a cobria.

– Bem, esse seu plano é ótimo. Mas estou me despindo neste segundo e sairei daqui desse modo se assim for necessário. Fique e observe se quiser... ou pode tentar tocar em mim, mas acredito que isso seria considerado outra violação de algum tipo para o senhor, não seria?

O médico saiu com tanta rapidez que tropeçou no corredor.

Layla não desperdiçou sequer um segundo, vestindo suas roupas e se apressando pelo corredor. Ainda que fosse improvável que houvesse apenas uma saída, a da recepção – deviam existir outras rotas de fuga, para o caso de um ataque –, infelizmente, ela não conhecia a planta da clínica.

Sua única opção era ir direto para a entrada. E teria de fazer isso caminhando, pois estava furiosa demais para se desmaterializar.

Trotando, Layla tomou a direção pela qual entrara e, quase imediatamente, como se tivessem sido instruídas a tal, a equipe de enfermagem apareceu em seu caminho, tomando conta do corredor, impossibilitando-a de passar.

– Se uma de vocês tocar em mim – exclamou ela no Antigo Idioma –, considerarei isso uma violação da minha santidade sagrada.

Todas pararam.

Enfrentando cada um dos olhares, ela se adiantou e forçou-as a se afastarem, um caminho se formando entre as figuras imóveis e depois voltando a se fechar atrás dela. Na sala de espera, ela parou na frente do balcão de recepção e encarou a fêmea que, alarmada, continuava apenas sentada.

– Você tem duas escolhas – Layla indicou a porta de saída reforçada. – Pode voluntariamente abrir aquela porta para mim, ou eu a explodo com o meu poder... expondo todos vocês e os seus pacientes para o açoite da luz do sol que entrará – consultou o relógio da parede – em menos de sete horas. Não tenho certeza se vocês poderão consertar esse tipo de estrago a tempo... você tem?

O clique da trava sendo aberta ressoou no silêncio.

– Obrigada – murmurou com educação ao se encaminhar para a saída. – A sua aquiescência é muito apreciada.

Afinal, ela jamais se esquecia dos seus modos.

Sentado atrás da escrivaninha, com o traseiro confortável no trono que seu pai fizera séculos e séculos atrás, Wrath, filho de Wrath, escorregava o dedo para cima e para baixo na suave lâmina de prata do abridor de cartas em forma de adaga. Ao seu lado, no chão, George roncava pelo focinho.

O cão dormia em raros momentos.

Se alguém batesse à porta ou entrasse, ou se o próprio Wrath se movesse de algum modo, a cabeçorra se levantava e a coleira pesada fazia barulho. O alerta instantâneo também aparecia se alguém atravessasse o corredor, ou usasse um aspirador de pó em algum lugar, ou abrisse a porta do vestíbulo no andar de baixo. Ou servisse uma refeição. Ou espirrasse na biblioteca.

Depois que a cabeça se erguia, havia uma escala de reações, variando do nada (atividades na sala de jantar, aspirador e espirro), a um levantar de orelhas (a porta da frente se abrindo ou alguém no corredor) até a atenção completa sentando-se (batida e entrada). O cachorro nunca era agressivo, porém servia como um detector de movimentos, deixando a decisão quanto ao que fazer a seu dono.

O cão guia era um cavalheiro.

E, mesmo assim, ainda que a natureza mansa fosse parte do animal bem como os pelos longos e macios, e o corpo grande e amplo, Wrath, vez ou outra, testemunhara vislumbres da fera dentro de tal combinação adorável: quando se está em meio a um bando de lutadores agressivos e másculos como a Irmandade, as cabeças esquentavam vez ou outra, mesmo em relação ao Rei. E isso não incomodava Wrath. Ele estava junto aos filhos da mãe há tempo demais para se importar com um pouco de batidas no peito e seguradas de saco.

George, no entanto, não gostava disso. Se algum deles se metesse a valentão em relação ao Rei, os pelos do cão gentil se eriçavam e ele rosnava em aviso enquanto pressionava o corpo às pernas de Wrath, como se estivesse se preparando para mostrar aos Irmãos o comprimento das suas presas para o caso de as coisas chegarem às vias de fato.

A única coisa que Wrath amava mais era a sua rainha.

Abaixando a mão, afagou o flanco do cachorro; depois, voltou a se concentrar na sensação do abridor de cartas contra o dedo.

Jesus Cristo. Aviões caindo do céu... Irmãos se machucando... Qhuinn bancando o herói novamente...

Pelo menos a noite não fora apenas um drama de provocar ataques cardíacos. Na verdade, começaram em boa nota com a prova de que precisavam para atacar o Bando de Bastardos: V. concluíra o teste de balística e, caramba, a bala extraída do pescoço de Wrath começara sua trajetória no rifle encontrado no covil de Xcor.

Wrath sorriu consigo, as presas coçando nas pontas.

Aqueles traidores agora estavam, oficialmente, na sua lista de inimigos, com o amparo total da lei – e estava na hora de causar alguns estragos.

Nesse instante, George sacudiu a cabeça, e a batida insistente à porta que se seguiu indicava que Wrath não devia ter notado a primeira batida.

– Entre.

Ele sabia quem era antes que a Irmandade entrasse: V. e o tira. Rhage. Tohr. Phury. E, por fim, Z., quem, a julgar pelo baque, parecia estar usando uma bengala.

Fecharam a porta.

Como ninguém se sentou, tampouco jogou conversa fora, ele soube exatamente por que vieram vê-lo.

– Qual o veredicto, senhoras? – perguntou de modo arrastado, ao se recostar contra o trono.


Foi a voz de Tohr que lhe respondeu:

– Estivemos pensando a respeito de Qhuinn.

Ele apostava nisso. Depois de apresentar a ideia na reunião no começo da noite, não pressionara por um sim ou um não. Havia muitas coisas que ele, como rei, tinha que enfiar goela abaixo das pessoas. Quem os Irmãos aceitariam no grupo não era uma dessas coisas.

– E?

Zsadist falou no Antigo Idioma:

– Eu, Zsadist, filho de Ahgony, iniciado no ano 242 do reino de Wrath, filho de Wrath, por meio desta indico Qhuinn, um órfão no mundo, como membro da Irmandade da Adaga Negra.

Ouvir as palavras formais saírem da boca do Irmão foi um choque. Z., dentre todos eles, acreditava que o passado era um monte de asneira. Não quando se referia àquilo, pelo visto.

Jesus, pensou Wrath. Eles dariam prosseguimento àquilo. E rápido – acreditara que eles precisariam de mais tempo. Dias de reflexão. Semanas. Talvez um mês – e, talvez, um “não” por uma série de motivos.

Mas eles estavam dispostos – e, em concordância, também Wrath.

– Em que se baseia esse pedido em seu nome e de sua linhagem? – perguntou Wrath.

Em seguida, Z. deixou a formalidade de lado e foi para a realidade que importava.

– Ele me trouxe de volta para casa em segurança, para a minha shellan e minha pequena filha. Arriscando a própria vida.

– Muito justo.

Wrath passou o olhar por todos os machos parados diante de sua escrivaninha, mesmo sem conseguir enxergá-los. A visão não importava. Ele não precisava de retinas operantes para lhe dizer onde todos estavam e como se sentiam a respeito daquilo; o odor de suas emoções estava claro.

Eram, como grupo, firmes, resolutos e orgulhosos.

Mas as formalidades eram necessárias.

Wrath começou pelo que estava na ponta.

– V.?

– Eu estava pronto para atacar quando ele já estava em cima de Xcor.

Houve um grunhido de concordância.

– Butch?

O sotaque de Boston se fez alto e claro:

– Considero-o um lutador de primeira. E gosto dele. Ele está amadurecendo, deixando de lado a atitude negativa, está se tornando sério.

– Rhage?

– Deveria tê-lo visto hoje. Ele não me deixou pilotar o avião... disse que dois Irmãos seria muito a perder.

Mais grunhidos de concordância.

– Tohr?

– Na noite em que você foi atingido? Eu consegui tirá-lo de lá graças a ele. Ele tem valor.

– Phury?

– Gosto dele. De verdade. Ele é o primeiro a agir em qualquer situação. Ele, literalmente, faria qualquer coisa por qualquer um de nós... não importando o quanto possa ser perigoso.

Wrath tamborilou as juntas na mesa.

– Está acertado, então. Direi a Saxton para providenciar as mudanças e faremos isso.

Tohr se intrometeu:

– Com todo o respeito, meu senhor, precisamos resolver a questão do ahstrum nohtrum. Cuidar da retaguarda de John não pode mais ser a diretriz primária dele.

– Concordo. Diremos a John para liberá-lo disso... e não creio que a resposta seja negativa. Então, farei com que Saxton cuide da papelada, e depois da iniciação de Qhuinn; V., cuide da tatuagem no rosto dele. Como se John tivesse morrido de causas naturais ou algo do tipo?

Houve um barulho de roupas se mexendo, como se os Irmãos estivessem fazendo o gesto simbólico de “que a Virgem Escriba não permita isso” por sobre o peito.

– De acordo – disse V.

Wrath cruzou os braços diante do peito. Aquele era um momento histórico e ele sabia muito bem isso. A iniciação de Butch fora legal por causa do laço de sangue que ele tinha com a realeza. Qhuinn era uma história diferente. Nenhum sangue real. Nenhum sangue de Escolhida ou de Irmandade, ainda que, tecnicamente, ele fosse da aristocracia.

Nenhuma família.

Por outro lado, o garoto dera provas de quem era vezes sem conta no campo de batalha, fazendo jus a um padrão que, segundo as Antigas Leis atualmente determinavam, era reservado somente para aqueles de linhagens específicas – e isso era tolice. Não que Wrath não apreciasse os planos de procriação da Virgem Escriba. As combinações entre os machos mais fortes e as fêmeas mais inteligentes produziram, de fato, resultados extraordinários no que se referia aos lutadores.

Porém, também resultara em defeitos como a sua cegueira. E limitava as promoções baseadas no mérito.

No fim, a reformulação das leis no tocante a quem poderia ou não estar na Irmandade não era apenas apropriado nos termos de que tipo de sociedade ele desejava criar – era uma questão de sobrevivência. Quanto mais lutadores, melhor.

Além do mais, Qhuinn verdadeiramente fizera por merecer a honra.

– Que assim seja – murmurou Wrath. – Oito é um bom número. Um número de sorte.

O murmúrio de concordância perpassou o ar mais uma vez, o som de uma única e completa solidariedade.

Aquele era o futuro, pensou Wrath ao sorrir e revelar as presas. E era certo.


CAPÍTULO 23

Enquanto Sola Morte estava no escritório do “chefe”, seu corpo estava numa pose de combate. Pensando bem, aquele era seu modo de ser, e nada específico em relação ao ambiente ou à conversa que se sucedia.

Essa última, no entanto, não melhorava muito o seu humor.

– Desculpe, o que disse? – exigiu saber.

Ricardo Benloise sorriu em seu típico modo tranquilo e distante.

– A sua missão está completa. Obrigado pelo seu tempo.

– Eu nem lhe contei o que descobri lá.

O homem se recostou na cadeira.

– Pode receber seus honorários com meu irmão.

– Não entendo isso – quando ele telefonara menos de 48 horas antes, aquilo tinha sido uma prioridade. – Você disse...

– Seus serviços não são mais necessários para esse propósito específico. Obrigado.

Será que ele estava trabalhando com outra pessoa? Mas quem em Caldwell fazia o tipo de coisas que ela fazia?

– Você nem mesmo quer saber o que descobri.

– Sua missão chegou ao fim – o homem sorriu novamente, de modo tão profissional, que alguém poderia jurar que ele era um advogado ou um juiz. Não um criminoso em escala global. – Mal posso esperar para voltarmos a trabalhar juntos no futuro.

Um dos guarda-costas ao fundo deu alguns passos à frente, como se estivesse pronto para levar o lixo para fora.

– Alguma coisa está acontecendo naquela casa – disse ela ao se virar. – Quem quer que seja, está escondendo...

– Não quero que volte lá.

Sola parou e olhou por sobre o ombro. A voz de Benloise estava tranquila como sempre, mas os olhos eram francos.

Bem, aquilo era interessante.

A única explicação possível com alguma lógica era de que o senhor Misterioso da grande casa de vidro alertara Benloise para que recuasse. Será que sua visitinha fora descoberta? Ou seria aquilo apenas uma demonstração rotineira de como as coisas prosseguiam no tráfico de drogas?

– Está ficando sentimental? – perguntou ela com suavidade. Afinal, ela e Benloise se conheciam há tempos.

– Você é uma commodity muito útil – o sorriso atenuou a ferroada das palavras. – Agora vá e fique em segurança, niña.

Ah, pelo amor de Deus... não havia motivos para brigar com o homem. E ela receberia seu dinheiro, portanto, por que se importar?

Ela acenou, seguiu para a porta e desceu as escadas. No espaço da galeria, seguiu para o fundo do prédio, onde os empregados legítimos trabalhavam durante o expediente lícito. Passando os arquivos e as mesas, que pareciam do tamanho de uma casinha da Barbie graças ao teto alto industrial quinze metros acima, ela tomou um corredor estreito que estava marcado apenas pelas câmeras de segurança.

Bater à porta era inútil, mas ela o fez assim mesmo, os painéis à prova de balas absorvendo o som das juntas, como se estivessem com fome. Para auxiliar o irmão de Benloise (não que Eduardo precisasse disso) ela se virou para a câmera mais próxima e mostrou o rosto.

As travas foram abertas momentos depois. O escritório de Ricardo era minimalista ao extremo; o de Eduardo era um lugar em que Donald Trump, com todo o seu fetiche por ouro, sentiria-se sufocado.

Com um pouco mais de mármore e tecidos dourados, você se sentiria num prostíbulo.

Enquanto Eduardo sorria, seus dentes falsos eram da forma e cor das teclas de um piano, e o bronzeado uniforme tão profundo, que pareceria ter sido colocado nele com uma caneta permanente. Como sempre, ele estava usando um terno de três peças, ao estilo do senhor Roarke da Ilha da Fantasia, com a exceção de ser preto, e não branco.

– Como está hoje? – o olhar dele passeou pelo seu corpo. – Parece-me ótima.

– Ricardo disse para eu procurá-lo para pegar o meu dinheiro.

Instantaneamente, Eduardo se mostrou sério, lembrando-a do motivo pelo qual Ricardo o mantinha por perto: laços de sangue e competência eram uma combinação poderosa.

– Sim, ele me avisou que você viria – Eduardo abriu uma das gavetas e pegou um envelope. – Aqui está.

Ele esticou o braço ao longo da escrivaninha, e ela pegou o que lhe foi oferecido, abrindo-o imediatamente.

– Aqui só tem a metade – ela levantou o olhar. – Só tem dois e quinhentos.

Eduardo sorriu exatamente como o irmão: só no rosto, sem atingir o olhar.

– A missão não foi completada.

– Foi o seu irmão quem a suspendeu. Não eu.

Eduardo ergueu as palmas para cima.

– Esse é o seu pagamento. Ou pode deixar o dinheiro aqui.

Sola estreitou o olhar.

Fechando a aba do envelope devagar, ela o virou na mão, esticou o braço e depositou-o sobre a mesa. Deixando o indicador apoiado nele, assentiu uma vez.

– Como quiser.

Virando-se, foi para a porta e esperou que ela fosse destrancada.

– Niña, não faça assim – disse Eduardo. Quando ela nada disse, o rangido da cadeira indicou que ele estava se levantando e dando a volta na mesa.

E logo a colônia dele atingiu seu nariz, e as mãos dele pousaram em seus ombros.

– Preste atenção – disse ele. – Você é muito importante para Ricardo e para mim. Nós não a estamos desmerecendo... mucho respeito, certo?

Sola olhou por cima do ombro.

– Deixe-me sair.

– Niña.

– Agora.

– Leve o dinheiro.

– Não.

Eduardo suspirou.

– Você não precisa ser assim.

Sola apreciou a culpa que se fez ouvir na voz dele. A reação, na verdade, era a que ela buscava. Como muitos homens da cultura deles, Eduardo e Ricardo Benloise foram criados por uma mãe tradicional, e isso significava que sentir culpa era um ato reflexo.

Mais eficaz do que gritar com eles ou implorar.

– Saia – disse ela. – Agora.

Eduardo suspirou novamente, dessa vez mais profunda e demoradamente, o som da confirmação de que a manipulação dela mais uma vez atingira o alvo.

Entretanto, ele não lhe deu o dinheiro devido. Apesar da decoração excessiva e do retrospecto da dinâmica da sua infância, ele era mais fechado que um cofre de banco. Dito isso, ela tinha certeza de que arruinara a noite dele, portanto existia satisfação no ato... e ela cuidaria daquilo que Ricardo lhe devia.

Ele podia ser justo. Ou, conforme preferira, fazer o que ela não queria.

Isso vinha acompanhado de uma sobretaxa, evidentemente.

Sim, teria sido muito mais barato para ele lhe dar o valor correto, contudo, ela não era responsável pelas decisões dos outros.

– Ricardo ficará decepcionado – disse Eduardo. – Ele odeia ficar decepcionado. Por favor, apenas aceite o dinheiro; isto não está certo.

A parte lógica de seu cérebro sugeria que ela aproveitasse a oportunidade de apontar a injustiça de ser passada para trás naquilo que lhe era devido. Mas se ela bem conhecia aqueles irmãos, o silêncio... ah, o silêncio...

Como a natureza odiava o vácuo, o mesmo acontecia com a consciência dos sul-americanos bem-criados.

– Sola...

Ela simplesmente cruzou os braços diante do peito e continuou a olhar para a frente. Deixa para o espanhol: Eduardo disparou a falar em sua língua nativa, como se a angústia o despisse das suas habilidades no inglês.

Ele, finalmente, desistiu e a deixou sair cerca de dez minutos mais tarde.

Haveria rosas na sua porta às nove da manhã. No entanto, ela não estaria em casa.

Ela tinha trabalho a fazer.

– Como assim, eles não apareceram? – Assail exigiu saber no Antigo Idioma.

Ao se recostar no assento do Range Rover, segurou o celular firme contra a orelha. O farol vermelho logo adiante impedia seu progresso, e era difícil não enxergar isso como um paralelo cósmico.

Seu primo foi direto, como sempre:

– Os receptadores não chegaram na hora combinada.

– Quantos?

– Quatro.

– O quê? – mas não havia necessidade de o macho repetir. – E nenhuma explicação?

– Nada na rua da parte dos outros sete, se é isso o que está perguntando.

– O que fez com o produto extra?

– Trouxe para casa comigo.

Quando o farol ficou verde, Assail pisou no acelerador.

– Vou fazer o pagamento completo para Benloise, e depois vou me encontrar com você.

– Como preferir.

Assail virou à direita e se afastou do rio. Dois quarteirões à frente, uma curva à esquerda o deixou perto da galeria novamente; outra à esquerda e ele chegava aos fundos.

Já havia um carro estacionado ali, um Audi preto, e ele parou atrás do sedã. Abaixando à frente do banco de passageiros, apanhou pela alça uma maleta de metal prateada e saiu do carro.

Nesse instante, a porta dos fundos da galeria se abriu e alguém saiu.

Uma fêmea humana, a julgar pelo cheiro.

Ela era alta e tinha pernas longas. Cabelos escuros e volumosos penteados para trás. Queixo erguido, como se estivesse pronta para um confronto. Ou como se tivesse acabado de sair de um.

Mas nada disso era relevante para ele. Exceto a parca: uma parca de camuflagem branca sobre creme.

– Boa noite – disse ele num tom baixo quando se encontraram no beco. Ele pronto para entrar, ela, saindo.

Ela parou e franziu o cenho, a mão entrando sorrateira no casaco. Num rompante, ele se viu questionando como seriam os seios dela.

– Nos conhecemos? – perguntou ela.

– Estamos nos conhecendo agora – ele esticou a mão e disse: – Como vai?

Ela olhou para a mão dele, depois voltou a se concentrar no rosto.

– Alguém já lhe disse que você parece o Drácula com esse sotaque?

Ele sorriu contido para que as presas não aparecessem.


– Algumas comparações foram feitas de tempos em tempos. Não vai apertar a minha mão?

– Não – ela indicou a porta da galeria com a cabeça. – É amigo dos Benloise?

– Sou. E você?

– Não os conheço. Bela maleta, a propósito.

Com isso, ela se virou sobre os saltos e se dirigiu para o Audi. Depois que a luz do alarme piscou, ela entrou, o vento varrendo os cabelos sobre seus ombros enquanto ela desaparecia atrás do volante.

Ele saiu da frente quando ela acelerou e saiu dali.

Assail a observou se afastar e se descobriu pensando com desdém a respeito do seu parceiro de negócios Benloise.

Que tipo de homem enviava uma fêmea para aquele tipo de trabalho?

Enquanto as luzes de freio se iluminaram brevemente, e depois viraram a esquina, Assail sinceramente esperava que o limite estabelecido previamente naquela noite fosse respeitado. Seria uma pena ter de matá-la.

Não que ele hesitaria sequer um instante se a situação o exigisse.


CAPÍTULO 24

Deitado de costas no concreto duro, os diversos anos de Zypher como membro do Bando de Bastardos significava que ele estava bem familiarizado com a falta de acomodações de que agora usufruía: o traseiro estava entorpecido pelo frio bem como pela ausência de um colchão debaixo do corpo pesado. Do mesmo modo, a cabeça estava amparada apenas pela mochila que ele usara para carregar seus poucos pertences para o novo QG no porão daquele armazém. Além disso, a coberta fina e áspera que o cobria não era comprida o suficiente, deixando expostos seus pés apenas de meias ao ar frio e úmido.

Mas ele estava no paraíso. Um paraíso perfeito.

Correndo em suas veias estava o sangue daquela fêmea, e, ah, que alívio... Tendo passado quase um ano sem alimentação adequada, ele se acostumara à fadiga, aos músculos desassossegados e às dores. Mas tudo aquilo se acabara.

De fato, era como se estivesse inflando com força, a pele voltando a se esticar à sua dimensão própria, a altura mais uma vez retornado ao seu normal, a mente tanto sonolenta pelo que se passara quanto se aguçando a cada momento que transcorria.

Contudo, caso tivesse uma cama, ele também a apreciaria, claro. Travesseiros macios, lençóis cheirosos, roupas limpas... aquecimento no inverno, ar-refrigerado no verão... alimento num estômago vazio, água na garganta seca... tudo isso era bom quando se conseguia ter.

No entanto, não eram necessários.

Uma pistola limpa, uma adaga afiada, um lutador pleno em sua totalidade. Era disso que precisava.

E, claro, nas horas vagas, seria bom ter uma fêmea desejosa deitada de costas. Ou de bruços. Ou de lado com um joelho erguido até o seio expondo o sexo pronto para ele.

Ele não era de escolher muito.

Santa Virgem Escriba, aquilo era o... êxtase.

Não era uma palavra que usasse com muita frequência – e ele não queria dormir durante aquele despertar. Mesmo enquanto os outros se deixavam cair no descanso dos mortos, cada um deles na mesma recuperação que ele próprio estava amortecido, ele permanecia profundamente ciente da sua incandescência interna gloriosa.

Só havia uma coisa que o estava irritando. As passadas.

Entreabriu um olho.

Bem no limiar da luz das velas, Xcor andava de um lado para o outro, o caminho restrito entre duas imensas colunas de sustentação que segurava o pavimento superior.

O líder deles nunca estava à vontade, mas aquela inquietação era diferente. A julgar pelo modo como segurava o aparelho telefônico, esperava uma ligação. E isso explicava por que ele estava ali. O único lugar em que conseguiam um sinal era debaixo de um dos alçapões. A porta era feita de madeira, e a malha de aço que fora colocada por baixo foi a única alteração que fizeram quando espantaram os últimos vagabundos humanos, selando as portas exteriores para se mudarem para ali.

Dessa forma, os vampiros não poderiam se materializar ali embaixo.

E bem se sabia que os humanos não tinham força suficiente para abrir aquelas pranchas de madeira de quinze centímetros de espessura...

O tinido do telefone do líder era civilizado demais para aquele ambiente, a campainha falsa soando alegre demais como sinos de vento remexendo pela brisa primaveril.

Xcor parou e olhou para o telefone, deixando-o tocar uma vez mais. Duas vezes.

Obviamente, o macho não queria deixar transparecer que estava aguardando o telefonema.

Quando por fim atendeu, levou o aparelho ao ouvido, ergueu o queixo e relaxou o corpo. Estava de novo no controle.

– Elan – disse ele com suavidade. Houve uma pausa. E, em seguida, aquelas sobrancelhas sempre baixas se ergueram ao máximo. – Que dia e que hora?

Zypher se sentou.

– O Rei ligou? – silêncio. – Não, nem um pouco. De qualquer forma, somente o Conselho terá permissão. Ficaremos à margem... Conforme o seu pedido.

A última parte foi pronunciada com certa carga de ironia, ainda que dificilmente o aristocrata do outro lado da conversa percebesse isso. Pelo pouco que Zypher vira e ouvira de Elan, filho de Larex, ele estava menos do que impressionado. Pensando bem, os fracos eram sempre facilmente manipulados, e Xcor sabia muito bem disso.

– Há algo que precisa saber, Elan. Houve um atentado contra a vida de Wrath no outono... e não se surpreenda se houver insinuação do meu envolvimento e dos meus soldados nessa reunião... O quê? Foi na casa de Assail, na verdade, mas qualquer outro detalhe é insignificante. Portanto, entenda, é de se supor que Wrath esteja convocando a reunião com o propósito de expor a mim e aos meus... Lembre-se de que o avisei disso? Apenas se recorde de que foi amplamente protegido. Os Irmãos e o Rei desconhecem o nosso relacionamento... Isto é, a menos que um dos seus cavalheiros relatarem isso de alguma forma a ele. Nós, no entanto, permanecemos calados. Além disso, saiba também que não temo ser cunhado de traidor ou ser marcado como alvo pela Irmandade. Percebo, porém, que você possui uma sensibilidade muito mais cultural e refinada, e eu não só respeito isso como farei tudo o que estiver ao meu alcance para protegê-lo de qualquer brutalidade.

Ah, sim, claro, Zypher pensou revirando os olhos.

– Lembre-se, Elan, de que você está protegido.

Enquanto Xcor sorria mais amplamente, suas presas eram expostas por completo, como se estivesse perto de atacar a goela do outro, arrancando-lhe a traqueia.

Despedidas foram feitas em seguida, e Xcor concluiu a ligação.

Zypher falou:

– Está tudo bem?

A cabeça do líder se voltou no alto da espinha, e quando seus olhos se encontraram, Zypher lamentou pelo idiota ao telefone... e por Wrath e a Irmandade.

A luz no olhar do líder era pura maldade.

– Ah, sim. Está tudo muito bem.


CAPÍTULO 25

Enquanto o som do telefone tocando sem ser atendido chegava da linha fixa, Blay segurava o aparelho junto ao ouvido e se sentou na beira da cama. Aquilo era estranho. Os pais deveriam estar em casa àquela hora da noite, faltando tão pouco para amanhecer.

– Alô? – disse a mãe, finalmente.

Blay emitiu um suspiro de alívio longo e lento, e se recostou na cabeceira da cama. Dobrando a ponta do roupão por sobre as pernas, pigarreou.

– Oi, sou eu.

A felicidade que se derramou na voz do outro lado aqueceu-lhe o peito.

– Blay! Como está? Deixe-me chamar seu pai, assim ele pode atender na extensão...

– Não, espere – ele fechou os olhos. – Vamos só... conversar. Você e eu.

– Você está bem? – ele ouviu o som de uma cadeira arranhando o piso e soube onde ela estava: à mesa de carvalho em sua preciosa cozinha. – O que está acontecendo? Não está ferido, está?

Não por fora.

– Eu... estou bem.

– O que foi?

Blay esfregou o rosto com a mão livre. Ele e os pais sempre foram ligados. Normalmente, não existia nada que não lhes contasse, e seu rompimento com Saxton era exatamente o tipo de coisa que ele comentaria: estava triste, confuso, desapontado, um pouco deprimido... todo tipo de descarga emocional que ele e a mãe processavam nesse tipo de telefonema.

Enquanto permanecia calado, porém, ele se lembrava de que havia, na verdade, um assunto que jamais tocara com eles. Um assunto muito importante...

– Blay? Você está me assustando.

– Eu estou bem.

– Não, não está não.

Verdade.

Ele imaginava que não lhes contara a respeito da sua orientação sexual porque a vida amorosa não era exatamente algo que as pessoas normalmente partilhavam com os pais. E talvez houvesse uma parte dele, por mais ilógica que fosse, que se preocupava se eles o encarariam de modo diverso ou não.

Retire esse talvez.

Afinal, a política da glymera a respeito da homossexualidade era bem clara: desde que você nunca fosse franco a esse respeito, e você se comprometesse com alguém do sexo oposto conforme o esperado, você não seria expulso por perversão.

Sim, fazia sentido, porque se amarrar a alguém por quem você não se sente atraído e nem ama, e mentir para essa pessoa a respeito de uma infidelidade, é muito mais honrável do que a verdade.

Mas que Deus o perdoe se você for um macho e tiver um namorado sério – como ele teve pelos últimos doze meses mais ou menos.

– Eu... hum... rompi com alguém.


E com isso se ouviam os grilos cricrilando do lado da mãe.


– Sério? – disse ela depois de um momento, como se estivesse chocada, mas tentando esconder isso.

Se você considera isso uma surpresa, mãe, espere pelo que está por vir, pensou ele.

Porque, caramba, ele iria...

Espere, ele ia mesmo fazer isso assim, pelo telefone? Não deveria ser pessoalmente?

– Sim, eu... hum... – ele engoliu em seco. – Na verdade, estive envolvido por boa parte do último ano.

– Ora, eu... – a dor no tom dela o afetou. – Eu... Nós, seu pai e eu, nunca suspeitamos.

– Eu não sabia muito bem como contar.

– Nós a conhecemos? A família?

Ele fechou os olhos, o peito estava apertado.

– Hum... sim, vocês conhecem a família.

– Bem, sinto muito que não tenha dado certo. Você está bem...? Como terminou?

– Simplesmente acabou, para falar a verdade.

– Bem, relacionamentos são sempre muito difíceis. Ah, meu amor, meu querido... dá para saber como você está triste só de ouvi-lo. Você gostaria de vir para cá e...

– Era Saxton. O primo de Qhuinn.

Houve uma inspiração profunda do outro lado.

Enquanto a mãe ficava solenemente calada, o braço de Blay começou a tremer tanto que ele mal conseguia sustentar o telefone.

– Eu... eu... hum... – a mãe engoliu em seco. – Eu não sabia. Que você... hum...

Ele terminou o que ela não conseguia em sua cabeça: Eu não sabia que você era uma dessas pessoas.

Como se homossexuais fossem leprosos sociais.

Ah, inferno. Ele não deveria ter dito nada. Nada, absolutamente nada. Maldição, por que tinha de implodir sua vida de uma só vez? Por que não podia antes lidar com o rompimento... e depois de alguns anos, talvez uma década, pudesse se revelar aos pais para que eles o repudiassem? Mas, nããão, ele tinha que...

– É por isso que você nunca nos contou que estava com alguém? – ela perguntou. – Porque...

– Talvez. Sim...

Houve uma fungada. Depois uma profunda inspiração.

O desapontamento dela pelo telefonema era demais para se aguentar, o peso esmagador comprimindo-lhe o peito e impossibilitando-o de respirar.

– Como pôde...

Ele se apressou em interrompê-la, porque não suportaria ouvir sua doce voz proferir aquelas palavras.

– Mahmen, desculpe. Escute, eu não quis dizer isso, ok? Eu não sei o que estava dizendo. Eu só...

– O que eu ou nós fizemos...

– Mahmen, pare – nessa pausa que se seguiu, ele pensou em recitar um pouco de Lady Gaga, e justificar-se bastante com aquele papo de “a culpa não é sua, você não fez nada de errado como mãe”. – Mahmen, eu só...

Ele sucumbiu nesse instante, chorando o mais silenciosamente possível. A sensação de que, pelo ponto de vista da mãe, ele tivesse desapontado a família só por ser quem era... era uma rejeição que jamais superaria. Ele só queria viver honesta e abertamente, sem desculpas. Como todas as outras pessoas. Amar e ser amado, ser quem era... mas a sociedade tinha um padrão diferente, e como ele sempre temeu, seus pais eram uma parte disso...

Vagamente, ele percebeu que a mãe falava com ele, e se esforçou para se recompor e concluir aquele telefonema.

– ... para que você pensasse que não poderia nos abordar com esse assunto? Que isso, de algum modo, mudaria o que sentimos por você? Blay piscou enquanto o cérebro traduzia o que ele acabara de ouvir em alguma linguagem que fizesse sentido.

– Desculpe... O que disse?

– Por que você... O que fizemos para que você sentisse que qualquer coisa a seu respeito o tornaria de algum modo... diminuído aos nossos olhos? – ela limpou a garganta, como se estivesse tentando se recompor. – Eu amo você. Você é o meu coração batendo fora do meu peito. Não me importo com quem se relacione, se eles têm cabelos claros ou escuros, olhos verdes ou azuis, partes femininas ou masculinas... contanto que você seja feliz, é tudo o que me interessa. Quero para você o que você quiser para si. Eu amo você, Blaylock... simplesmente amo.

– O que... está dizendo...

– Eu te amo.

– Mahmen... – ele engasgou, as lágrimas voltando a se formar.

– Eu só gostaria que não tivesse me contado pelo telefone – murmurou. – Porque eu gostaria muito de poder abraçá-lo agora.

Ele riu de um modo atrapalhado e disforme.

– Não tive a intenção. Quero dizer, não planejei isto. Escapou.

– E eu sinto muito – disse ela – que as coisas não tenham dado certo com Saxton. Ele é um cavalheiro muito gentil. Tem certeza de que acabou mesmo?

Blay esfregou o rosto enquanto a realidade se recalibrava, o amor que ele sempre conheceu ainda com ele. Apesar da verdade. Ou talvez... por causa dela.

Em momentos como aqueles ele se sentia o cara mais sortudo do mundo.

– Blay?

– Desculpe, hum, sim. A respeito de Saxton... – ele pensou no que fizera no escritório vazio no centro de treinamento quando esteve sozinho. – Sim, mahmen, está acabado. Tenho certeza.

– Ok, eis o que tem de fazer, então. Tire um tempo de folga para melhorar. Você saberá quando se sentir melhor. E depois tem que se abrir para conhecer uma pessoa nova. Você é um ótimo partido, sabe disso.

E lá estava ela lhe dizendo para conhecer outro homem.

– Blay? Você me ouviu? Não quero que passe a vida sozinho.

Ele enxugou o rosto de novo.

– Você é a melhor mãe do planeta, sabia disso, não?

– Então, quando virá me ver? Quero cozinhar para você.

Blay relaxou nos travesseiros, ainda que a cabeça começasse a doer, provavelmente pelo fato de, apesar de estar sozinho, ter tentado refrear o choro. Talvez também porque detestasse o ponto em que estava com Qhuinn. E ele também sentia falta de Saxton, de certo modo, porque era difícil dormir sozinho.

Mas aquilo era bom. Aquela... honestidade fizera muito por ele...

– Espere, espere – ele se ergueu dos travesseiros. – Preste atenção, não quero que conte nada para o papai.

– Santa Virgem Escriba, mas por que não?

– Não sei. Estou nervoso.

– Meu bem, ele não vai se sentir diferente de mim.

Sei não, como filho único e último da linhagem... e com toda aquela coisa de pai e filho...

– Por favor. Deixe-me contar pessoalmente – ah, como se isso não o deixasse com vontade de vomitar. – Era o que eu deveria ter feito com você. Apareço aí assim que tiver folga do meu turno; não quero colocá-la numa posição de ter de esconder algo dele...

– Não se preocupe com isso. Essa informação é sua, você tem o direito de partilhá-la com as pessoas quando quiser, se quiser. Porém, eu gostaria que o fizesse logo. Em circunstâncias normais, seu pai e eu contamos tudo um para o outro.

– Prometo.

Houve uma calmaria na conversa.

– Bem, e o trabalho, como tem ido?

Ele balançou a cabeça.

– Mahmen, você não vai querer ouvir a respeito disso.

– Claro que quero.

– Não quero que fique pensando que o meu trabalho é perigoso.

– Blaylock, filho do meu amado hellren, exatamente que tipo de idiota você acha que eu sou?

Blay riu e depois ficou sério.


– Qhuinn pilotou um avião hoje à noite.

– Verdade? Eu não sabia que ele pilotava.

E não era esse o assunto da noite?

– Ele não sabe – Blay voltou a relaxar nos travesseiros e cruzou os pés na altura dos tornozelos. – Zsadist se machucou e nós estávamos com ele num lugar remoto. Qhuinn decidiu que... isto é, sabe como ele é, ele tenta de tudo.

– Muito aventureiro, um tanto selvagem. Mas um macho adorável. Uma vergonha o que a família fez com ele.

Blay remexeu no cordão do roupão.

– Você sempre gostou dele, não? Engraçado, acho que a maioria dos pais não o aprovaria... de tantas maneiras.

– Isso porque eles creem naquele exterior durão. Para mim, é o interior que conta – ela estalou a língua e ele conseguiu visualizá-la balançando a cabeça. – Sabe, nunca vou esquecer a noite em que você o trouxe para casa pela primeira vez. Ele era apenas um projeto de pré-trans, com aquela imperfeição óbvia pela qual, estou certa, ele foi abusado e humilhado. E, mesmo com tudo isso, ele veio direto a mim, estendeu a mão e se apresentou. Ele me olhou direto nos olhos, não num tipo de confrontação, mas como se quisesse que eu olhasse bem para ele e o expulsasse de uma vez se fosse o caso – a mãe exalou uma leve imprecação. – Eu o teria acolhido naquela mesma noite, sabe. Num piscar de olhos. Ao diabo com toda a glymera.

– Você é, verdadeira e inexoravelmente, a melhor mãe do mundo.

Agora foi a vez dela rir.

– E pensar que você diz isso sem que eu esteja colocando um prato de comida na sua frente.

– Bem, uma lasanha a tornaria a melhor mãe do universo.

– Vou colocar a massa para ferver agora.

Enquanto fechava os olhos, essa volta à conversa descontraída, que sempre fora o marco do relacionamento deles, pareceu ainda mais especial.

– Então, conte-me a respeito dessa valentia de Qhuinn. Adoro ouvi-lo falar dele, você fica tão animado.

Caramba, Blay se recusava a pensar nos motivos por trás disso. Apenas se lançou na narrativa, com um pouco de edição para não divulgar nada que a Irmandade não quisesse que se soubesse, não que a mãe fosse contar alguma coisa a alguém.

– Bem, nós estávamos vasculhando essa região e...

– Necessita de mais alguma coisa, senhor?

Qhuinn balançou a cabeça e mastigou o mais rápido que pôde para deixar a boca livre.

– Não, obrigado, Fritz.

– Quem sabe um pouco mais de rosbife?

– Não, obrigado... ah, bem, ok – ele saiu do caminho quando uma carne cozida perfeita atingiu seu prato. – Mas não preciso...

Mais batatas. Mais abobrinhas.

– E vou lhe trazer mais um copo de leite – anunciou o mordomo com um sorriso.

Enquanto o doggen ancião se virava, Qhuinn emitiu um suspiro como quem se prepara para algo antes de acatar a segunda rodada. Ele tinha a sensação de que toda aquela comida era o modo de Fritz lhe dizer obrigado, e era estranho... quanto mais ele comia, mais começava a sentir fome.

Pensando nisso... quando foi mesmo a última vez em que fizera uma refeição?

E quando o mordomo lhe trouxe mais leite, ele o tomou todo como um bom menino.

Maldição, não fora sua intenção perder tempo ali na cozinha. Sua vontade original, quando saiu da clínica, era ir direto para o quarto de Layla. Fritz, por sua vez, teve outras ideias, e o velho doggen não aceitara não como resposta, o que sugeria que fora uma ordem vinda de cima. Como de Tohr, o chefe da Irmandade. Ou do próprio Rei.

Portanto, Qhuinn desistira e cedera... acabando por se sentar à bancada de granito, empanturrando-se tal qual uma piñata.

Pelo menos a rendição era deliciosa, pensou ele um pouco depois, ao abaixar o garfo e limpar a boca.

– Aqui está, senhor, a sua sobremesa.

– Hum, obrigado, mas... – ora, ora, ora, o que temos aqui: uma tigela de sorvete de café com calda quente de chocolate por cima; nada de chantili nem de castanhas. Bem como ele gostava. – Você não precisava se dar a esse trabalho.

– É seu favorito, não?

– Na verdade, é sim – e veja só, uma colher de prata.

Sabe, seria grosseiro deixar a coisa derreter.

Enquanto Qhuinn começava a sobremesa, os pontos dados na sobrancelha pela doutora Jane começaram a latejar debaixo do curativo e a dor o lembrou da noite louca que tivera.

Parecia surreal pensar que apenas uma hora antes ele esteve à beira da morte, dançando no céu escuro naquela armadilha de ratos que era aquele avião que ele não fazia ideia de como pilotar. E agora? Havia somente um pote do melhor de Breyers. Com calda quente.

E pensar que ele estava de fato feliz por não haver nem chantili nem castanhas para arruinar o seu paladar. Porque isso sim seria um problema bem sério.

Enquanto as glândulas adrenais arrotaram e um jorro de ansiedade tremulou ao longo de cada nervo do seu corpo, ele soube muito bem que os choques viriam e iriam embora. Como um tipo de chicotada em seu sistema nervoso.

Mas lidar com um caso de ansiedade pós-desastre era tremendamente melhor do que acabar subindo em chamas. Ou descendo, como teria sido o caso.

Depois da segunda parte da sua refeição, fez o que pôde para ajudar a limpar antes de sair para ver Layla, mas Fritz provocava um alvoroço caso ele sequer tentasse carregar a tigela e a colher para qualquer lugar perto da pia. Cedendo mais uma vez, ele saiu passando pela sala de jantar e parou um segundo para olhar para a longa mesa, imaginando todos sentados em seus lugares costumeiros.

Tudo o que importava era que Z. estava de volta, seguro nos braços de sua shellan, e que ninguém mais se ferira.

– Com licença, senhor – disse Fritz ao se apressar. – A porta.

No fim do vestíbulo, o doggen verificou a câmera de segurança. Um segundo depois, ele destravou a tranca interna do átrio.

E Saxton entrou.

Qhuinn se recolheu. A última coisa que desejava fazer era falar com aquele macho agora. Estava indo ver Layla e depois se deitar...

O cheiro que chegou a ele não estava certo.

Franzindo o cenho, foi até a passagem em arco. Logo adiante, seu primo conversou com Fritz por um minuto, depois começou a caminhar na direção da grande escadaria.

Qhuinn inalou profundamente, as narinas inflando. É, sim, aquela era a colônia cara de Saxton... mas havia outro odor misturado àquele. Outra colônia permeava o macho todo.

E não era de Blay. Ou de nada que o lutador usaria.

E também havia o inconfundível cheiro de sexo...

Não lhe ocorreu nenhum pensamento consciente quando marchou para o espaço aberto e exclamou:

– Onde esteve?

O primo parou. Olhou por sobre o ombro.

– O que disse?

– Você ouviu muito bem – numa inspeção mais próxima, ficou óbvio o que o cara aprontara. Os lábios estavam avermelhados e havia um rubor no rosto dele que Qhuinn podia apostar que não tinha nada a ver com o tempo frio. – Onde diabos você estava?

– Não creio que isso seja assunto seu, primo.

Qhuinn atravessou o piso de mosaico, sem parar até os coturnos de ponta de aço ficarem diante dos belos sapatos do cara.

– Seu puto maldito.

Saxton teve a audácia de parecer enfastiado.

– Sem ofensa, meu querido parente, mas não tenho tempo para isto.

O cara deu meia-volta...

Qhuinn esticou uma mão e o segurou pelo braço. Com um puxão, trouxe-o para perto novamente, nariz com nariz. E merda, o fedor no cara o deixou nauseado.

– Blay está arriscando a vida na guerra e você fica fodendo com um qualquer pelas costas dele? Muita classe, boqueteiro de merda...

– Qhuinn, isso não é da sua conta...

Saxton tentou se livrar dele. Não foi uma boa ideia. Antes de Qhuinn sequer perceber o que estava fazendo, travou as mãos ao redor do pescoço do macho.

– Como ousa? – disse com as presas totalmente expostas.

Saxton bateu as duas mãos nos pulsos de Qhuinn e tentou se soltar, puxando, empurrando, não tendo êxito algum.

– Você... está... me sufocando...

– Eu deveria matá-lo aqui mesmo – rugiu Qhuinn. – Como pôde fazer isso com ele? Ele está apaixonado por você...

– Qhuinn... – a voz estrangulada ficava cada vez mais fina. – Qh...

Pensar em tudo o que o primo tinha, e tudo de que ele não tomava conta, deu-lhe uma força extra, e ele a canalizou direto para as mãos.

– De que diabos você precisa mais, cretino? Acha que algum desconhecido vai ser melhor do que aquilo que você já tem na sua cama?

A força do ataque começou a empurrar Saxton para trás, os sapatos dele escorregando no piso liso enquanto os coturnos de Qhuinn guiavam os dois. Pararam quando os ombros de Saxton bateram no corrimão da imensa escadaria.

– Seu puto maldito...

Alguém gritou. Assim como outro alguém.

E logo se ouviram passadas vindas de todos os lados, seguidas por um punhado de pessoas puxando-o pelos braços.

Tanto faz. Ele apenas continuou com os olhos e os braços travados, a fúria em seu âmago transformando-o num buldogue que...

Não...

Iria...

Soltar...


CAPÍTULO 26

– Então, vocês acham que um dia voltarão para Caldwell? – Blay perguntou para a mãe.

– Não sei. Seu pai vai e volta do trabalho com tanta facilidade à noite, e nós dois gostamos da calma e da privacidade daqui do interior. Acha que agora está mais seguro do que aí na cidade...

De repente, gritos passaram pelas portas fechadas de seu quarto. Muitos gritos.

Blay olhou de relancu e franziu o cenho.

– Ei, mahmen, sinto interromper, mas acho que está acontecendo alguma coisa aqui na casa...

O tom de voz dela baixou, o medo se entrelaçando em suas palavras.

– Não estão sendo atacados, estão?

Por um momento, aquela noite na casa deles em Caldwell um ano e meio atrás retornou em sua memória numa série rápida de contrações no estômago: a mãe correndo aterrorizada, o pai se armando contra o inimigo, a casa destruída.

Ainda que a gritaria parecesse piorar, ele não tinha como sair sem apaziguá-la.

– Não, não, mahmen, este lugar é muito seguro. Ninguém pode nos encontrar, e mesmo que conseguissem não poderiam entrar. É só que às vezes os Irmãos começam a discutir. Garanto, está tudo bem.

Pelo menos era o que ele esperava. As coisas pareciam estar piorando.

– Ah, que alívio. Não quero que nada aconteça com você. Vá cuidar de tudo e me ligue quando souber que virá nos visitar. Vou arrumar o seu quarto e preparar uma lasanha para você.

Na mesma hora, a boca começou a salivar. Assim como os olhos ficaram um poquinho marejados.

– Eu te amo, mahmen... E obrigado. Você sabe, por...

– Sou eu quem agradece pela confiança. Agora vá lá ver o que está acontecendo, e cuide-se. Eu te amo.

Desligando, ele saiu da cama e foi para a porta. No segundo em que se viu no corredor das estátuas, ficou claro que uma bela briga estava acontecendo na parte principal da casa: havia muitas vozes de machos, todas elas num volume que indicava “emergência”.

Trotando, ele seguiu para o balcão do segundo andar...

Quando conseguiu espiar o vestíbulo, não entendeu de pronto o que via lá embaixo: havia um nó de pessoas na base da escadaria, todas com os braços esticados como se tentassem apartar uma briga.

Só que não era entre dois Irmãos.

Que merda era aquela? Estavam mesmo tentando tirar Qhuinn de cima de Saxton...?

Jesus, o maldito estava com as mãos ao redor do pescoço do primo e, a julgar pelo tom acinzentado no rosto do macho, prestes a matá-lo.

– Que diabos está acontecendo aqui! – Blay berrou, ao tomar as escadas correndo.

Quando chegou à confusão, havia Irmãos demais no caminho. E aqueles não eram o tipo de macho que você simplesmente afastava às cotoveladas. Infelizmente, se alguém conseguiria deter Qhuinn, esse alguém seria ele. Mas como diabos ele conseguiria atrair a atenção do idiota...

Isso mesmo, pensou.

Atravessando o vestíbulo, quebrou o vidro do antigo alarme manual de incêndio com o punho e puxou a alavanca para baixo.

No mesmo instante, uma sirene explodiu no recinto, a acústica do teto de igreja agindo como um amplificador enquanto o alarme berrava desenfreado.

Foi como atingir um bando de cães de briga com um balde de água. Toda a ação parou e as cabeças se levantaram da confusão para olhar ao redor.

O único que não deu a mínima foi Qhuinn. Ele ainda apertava com força.

Blay se aproveitou do momento “ei, o que é isso” e conseguiu abrir caminho.

Concentrando-se em Qhuinn, posicionou o rosto bem na frente do dele.

– Solte-o agora.

No segundo em que a sua voz foi registrada, uma expressão de choque substituiu a violência fria que marcava o rosto de Qhuinn, como se ele não tivesse esperado que Blay viesse até ali. E foi só isso o que foi preciso. Um único comando dele e aquelas mãos se soltaram tão rapidamente que Saxton caiu no chão como um peso morto.

– Doutora Jane! Manny! – alguém gritou. – Chamem um médico!

Blay queria berrar com Qhuinn ali mesmo, mas estava aterrorizado demais com o estado de Saxton para perder tempo com “o que há de errado com você?”. O advogado não se mexia. Segurando o belo terno do rapaz, Blay o rolou no chão e verificou a carótida com a ponta dos dedos, rezando para encontrar a pulsação. Quando não encontrou, inclinou a cabeça de Saxton para trás e se curvou para fazer boca a boca.

Mas, antes disso, Saxton tossiu e puxou o ar para dentro dos pulmões.

– Manny está chegando – disse Blay com a voz rouca, mesmo sem saber se isso era verdade. Mas, ora essa, alguém devia estar a caminho. – Fique comigo...

Mais tossidas. Mais inspirações fundas. E a cor começou a voltar para o belo e refinado rosto.

Com a mão trêmula, Blay afastou o cabelo loiro e espesso da testa que tocara tantas vezes antes. Ao fitar os olhos confusos que olhavam para ele, ele quis sentir algo profundo na alma, que desse uma guinada em sua vida e...

Rezou por esse tipo de reação.

Inferno, naquele instante, trocaria seu passado e seu presente por isso.

Mas não estava ali. Pesar, raiva em favor do macho, tristeza, alívio... catalogou cada um desses sentimentos. Era só isso, contudo.

– Cheguei, deixe-me dar uma olhada – disse a doutora Jane ao apoiar a maleta preta de médico no chão e se ajoelhar no piso de mosaico.

Blay recuou para dar espaço à shellan de V., mas ficou próximo, mesmo sem poder fazer coisa alguma. Inferno, ele sempre quis ir para a faculdade de medicina, mas não para ressuscitar ex-amantes porque um psicótico tentara estrangulá-los no maldito átrio de entrada.

Olhou para Qhuinn. O lutador ainda estava sendo contido por Rhage, como se o Irmão não estivesse inteiramente certo de que o episódio terminara.

– Vamos ficar de pé – disse a doutora Jane.

Blay se adiantou, ajudando Saxton, mantendo-o firme, conduzindo-o para a escadaria. Os dois ficaram em silêncio ao subir, e quando chegaram ao segundo andar, Blay seguiu para o seu quarto por força do hábito.

Puxa.

– Não, está tudo bem – murmurou Saxton. – Só me deixe sentar aqui um minuto, está bem?

Blay pensou na cama, mas quando Saxton ficou tenso ao tomarem essa direção, ele o levou para a chaise-longue. Ajudando o macho a se deitar, recuou desajeitado.

No silêncio que se seguiu, uma raiva violenta o atingiu sabe-se lá vinda de onde.

E agora as suas mãos tremiam por outro motivo.

– Então – disse Saxton com voz rouca –, como foi a sua noite?

– O que diabos acabou de acontecer?

Saxton afrouxou a gravata. Desabotoou o colarinho. Respirou fundo mais uma vez.

– Briga de família, parece.

– Tolice.

Saxton desviou o olhar cansado.

– Temos mesmo que fazer isto?

– O que aconteceu...

– Acho que você e ele têm que conversar. E depois que o fizerem, não terei mais que me preocupar em ser atacado como um criminoso novamente.

Blay franziu a testa.

– Ele e eu não temos nada para dizer um ao...

– Com todo o respeito, as marcas no meu pescoço sugerem o contrário.

– Como estamos, grandão?

Enquanto a voz de Rhage era registrada nos ouvidos de Qhuinn, ficou claro que o Irmão verificava se o drama já acabara. Desnecessário. No instante em que Blay lhe disse para parar, o corpo de Qhuinn obedecera, como se o cara tivesse o controle remoto da sua TV.

Havia outras pessoas por perto, obviamente também esperando para ver se ele mostrava qualquer indicação de que correria atrás de Saxton para retomar a rotina de estrangulamento.

– Você está bem? – perguntou Rhage.

– Sim, sim. Estou bem.

As barras de aço ao redor do seu tronco relaxaram e gradualmente se abaixaram. Então uma mãozorra deu-lhe um tapa nas costas e apertou seu ombro.

– Fritz odeia corpos no átrio frontal.

– Mas não há muito sangue no estrangulamento – alguém observou. – Seria fácil limpar depois.

– Apenas uma polida e pronto – o outro disse.

Houve uma pausa pesada depois disso.

– Vou subir – quando voltaram a olhar para ele em antecipação, Qhuinn balançou a cabeça. – Não para uma repetição. Juro pelo...

Bem, ele não tinha uma mãe, um pai, um irmão, uma irmã... nem mesmo um filho, ainda que, tomara, isso fosse temporário.

– Não vou, ok?

Não esperou por mais nenhum comentário e se lembrou de que ainda precisava passar pelo quarto de Layla.

Tomando a direita no alto das escadas, seguiu para o quarto de hóspedes para o qual a Escolhida fora levada ao se mudar e bateu à porta com suavidade.

– Layla?

Apesar do fato de que teriam um filho juntos, ele não se sentia à vontade para entrar sem ser convidado.

A segunda batida foi um pouco mais forte. Assim como sua voz:

– Layla?

Ela devia estar dormindo.

Recuando, seguiu para o próprio quarto, passando diante do escritório de Wrath com suas portas fechadas e depois tomou o corredor das estátuas. Ao passar diante da porta de Blay, não conseguiu deixar de encarar a maldita porta.

Jesus Cristo, quase matara Saxton.

E ainda sentia vontade de matar.

Sempre soube que o primo não valia nada e detestava estar certo a esse respeito. O que diabos Sax estava pensando? O cara tinha o insuperável na sua cama todo santo dia e, mesmo assim, de algum modo, qualquer um de algum bar, de uma boate ou da maldita Biblioteca Municipal de Caldwell era melhor do que aquilo? Até mesmo necessário?

Filho da mãe traiçoeiro.

Enquanto as mãos se fechavam em punhos e ele entretinha a ideia de abrir caminho com um chute só para dar mais uns socos no rosto de Saxton, quase não conseguiu controlar seu impulso.

Solte-o agora.

De lugar nenhum a voz de Blay reverberou em sua cabeça uma vez mais e, obviamente, a violência foi desligada. Literalmente, entre um momento e o seguinte, ele passou de touro enfurecido a estado neutro.

Estranho.

Balançando a cabeça, foi até seu quarto, entrou e fechou a porta.

Depois de fazer com que as luzes se acendessem, ficou parado, os pés colados no chão, os braços pensos como cordas frouxas, a cabeça à toa no alto da espinha. Sem ir a parte alguma.

Sem nenhum motivo aparente, pensou no amado aspirador de Fritz, o eletrodoméstico estacionado dentro de um armário, deixado no escuro até que alguém o utilizasse.

Ótimo. Estava reduzido ao nível de um aspirador de pó.

No fim, praguejou, e se obrigou a começar a se despir e ir para a cama. A noite se mostrara um trabalho hercúleo desde o instante em que o sol se pusera e a boa notícia era que a confusão toda finalmente chegara ao fim: as persianas estavam abaixadas para impedir a entrada do sol. A casa estava ficando silenciosa.

Hora do sono REM para recarga.

Ao tirar a camiseta regata devagar e gemer ante todas as dores, percebeu que deixara a jaqueta de couro e as armas na clínica. Sem problemas. Ele tinha extras ali em cima caso precisasse delas durante o dia, e poderia ir buscar seus pertences antes da Primeira Refeição.

Descendo a mão para o zíper da calça, ele...

A porta atrás dele se abriu numa explosão tamanha que ricocheteou na parede, só para ser interceptada pela pegada firme de um filho da mãe muito irritado.

Parado debaixo da moldura da porta, Blay estava furioso, o corpo trêmulo de raiva que até mesmo Qhuinn, que já enfrentara muitas coisas na vida, se pôs em alerta.

– O que há de errado com você!? – o macho exclamou.

Está de brincadeira, foi o que Qhuinn pensou. Como ele não reconhecera o perfume estranho no corpo do amante?

– Acho que precisa perguntar isso ao meu primo.

Enquanto Blay marchava adiante, Qhuinn desviou do cara para...

Blay o segurou pelo braço e expôs as presas com um sibilo.

– Vai fugir?

Num tom controlado, Qhuinn respondeu:

– Não. Vou fechar a maldita porta para que ninguém escute isto.

– Não dou a mínima!

Qhuinn pensou em Layla do outro lado do corredor, tentando dormir.

– Bem, eu me importo.

Qhuinn se soltou e fechou a porta. Depois, antes de se virar, fechou os olhos para dar um tempo.

– Você me dá aversão – disse Blay.

Qhuinn deixou a cabeça pender.

– Você tem que cair fora da minha vida – a amargura naquela voz conhecida foi direto ao coração dele. – Afaste-se de tudo que se refere a mim!

Qhuinn olhou por cima do ombro.

– Você nem se importa de ele ter estado com outra pessoa?

A boca de Blay se abriu. Fechou. Então as sobrancelhas desceram.

– O quê?

Ah. Maravilha.

Naquela confusão, Blay não entendera os porquês.

– O que você disse? – repetiu Blay.

– Você me ouviu.

Quando não houve resposta, nenhuma imprecação, nenhum objeto lançado, Qhuinn se virou.

Depois de um momento, Blay cruzou os braços, não sobre o peito, mas no centro, como se estivesse se sentindo levemente nauseado.

Qhuinn esfregou o rosto e falou numa voz entrecortada:

– Desculpe. Eu sinto muito... não quero isso para você.

Blay balançou a cabeça.

– O quê... – os olhos azuis se concentraram. – Foi por isso que você o atacou?

Qhuinn deu um passo para a frente.

– Eu sinto muito... Eu só... Ele passou pela porta, eu percebi o cheiro dele e perdi a cabeça. Eu sequer estava pensando.

Blay piscou, como se talvez estivesse se deparando com um conceito desconhecido.

– É por isso que você... Por que diabos você faria uma coisa dessas?

Qhuinn deu mais um passo à frente, e depois se forçou a parar, apesar da necessidade quase premente de estar perto dele. E enquanto Blay balançava a cabeça como se estivesse tendo problemas de compreensão, Qhuinn não tinha intenção de falar.

Mas falou.

– Você se lembra do dia na clínica, mais ou menos um ano atrás... – ele apontou para baixo, para o caso de o cara ter se esquecido de onde ficava o centro de treinamento. – Foi antes de você e Saxton... – certo. Não terminaria aquela frase, não se quisesse segurar toda a comida que tinha no estômago. – Lembra-se do que eu lhe disse?

Enquanto Blay parecia confuso, ele o ajudou a se lembrar:

– Eu disse que se alguém o magoasse, eu perseguiria essa pessoa e a deixaria para queimar sob o Sol – até ele mesmo percebeu o modo como a voz abaixou para um rosnado ameaçador. – Saxton o magoou hoje, por isso fiz o que disse que faria.

Blay esfregou o rosto com a mão.

– Jesus...

– Eu lhe disse o que aconteceria. E se ele repetir isso, não posso prometer que não darei cabo do meu trabalho.

– Escute, Qhuinn, você não pode... não pode fazer esse tipo de merda. Simplesmente não pode.

– Você não se importa? Ele foi infiel. Isso não está certo.

Blay expirou profunda e lentamente, como se estivesse cansado de carregar um peso.

– Apenas... não faça mais isso.

Agora era Qhuinn quem balançava a cabeça. Ele não conseguia entender. Se estivesse num relacionamento com Blay, e Blay o traísse? Ele jamais superaria.

Deus, por que não tirara vantagem daquilo que lhe fora oferecido? Não deveria ter corrido. Deveria ter ficado parado.

De modo espontâneo, seus pés deram outro passo à frente.

– Sinto muito...

De repente, ele começou a repetir essas palavras, repetindo-as a cada passo que o levava para mais perto de Blay.

– Sinto muito... Sinto muito... Sinto... muito... – ele não sabia o que estava dizendo nem fazendo; apenas sentia uma urgência de se redimir de todos os seus pecados.

Havia tanto no que se referia àquele macho honrado que estava totalmente imobilizado diante dele.

Por fim, só havia mais um passo antes que seu peito nu atingisse o de Blay.

A voz de Qhuinn não passava de um sussurro:

– Sinto muito.

No silêncio espesso que se seguiu, a boca de Blay se abriu... mas não em sinal de surpresa. Era porque ele não estava conseguindo respirar.

Lembrando-se de não ser um cretino que acreditava que o mundo girava ao redor do seu umbigo, Qhuinn conduziu o assunto de novo para o que acontecia entre Blay e Saxton.

– Não desejo isso para você – disse ele, os olhos perscrutando aquele rosto. – Você já sofreu o bastante, e sei que o ama. Eu sinto muito... Sinto muito mesmo.

Blay apenas continuou parado diante dele, a expressão congelada, os olhos se mexendo como se ele não conseguisse compreender nada. Mas não recuou, não fugiu, não correu. Ele permaneceu... bem onde estava.

– Sinto muito.

Qhuinn observou de uma vasta distância a sua mão se levantar e tocar o rosto de Blay, as pontas dos dedos percorrendo a barba por fazer.

– Eu sinto muito.

Ah, Deus, poder tocá-lo. Sentir o calor daquela pele, inalar o odor másculo e limpo.

– Sinto muito.

O que diabos estava fazendo? Caramba... tarde demais para responder aquilo – esticando o outro braço, pousou a mão no ombro forte.

– Sinto muito.

Ah, Deus, estava atraindo Blay, puxando o corpo dele para junto do seu.

– Sinto muito.

Passou uma mão para a nuca de Blay e enfiou os dedos entre os cabelos que ali formavam cachos.

– Sinto muito.

Blay estava duro, a coluna reta como uma flecha, os braços ainda ao redor da barriga. Mas, um momento depois, como se estivesse confuso com sua própria reação, o macho se inclinou, o peso mudando sutilmente a princípio, e depois um pouco mais.

Com um puxão, Qhuinn passou os braços ao redor da pessoa mais importante da sua vida. Não era Layla, embora sentisse uma dor ante essa negação. Não era John, nem seu Rei. Não eram os Irmãos.

Aquele macho era a razão de tudo.

E mesmo se sentindo morrer porque Blay estava apaixonado por outra pessoa, ele agiu. Fazia tempo demais desde que o tocara pela última vez... e nunca daquela maneira.

– Sinto muito.

Espalmando a parte de trás da cabeça de Blay, incitou o macho a se aproximar, aninhando a cabeça em seu pescoço.

– Sinto muito.

Enquanto Blay aquiescia, Qhuinn estremeceu, virando o rosto para dentro, respirando fundo, enfiando todas as sensações em sua mente para poder se lembrar daquilo para sempre. Enquanto a palma subia e descia, relaxando as costas musculosas, ele fez o que pôde para poder compensar muito mais do que a infidelidade do primo.

– Sinto muito...

Mudando de posição rapidamente, Blay balançou a cabeça. Desvencilhou-se. Recuou.

Afastou-se.

Os ombros de Qhuinn cederam.

– Sinto muito.

– Por que fica repetindo isso?

– Porque...

Nesse instante, quando seus olhos se encontraram, Qhuinn soube que era chegada a hora. Estragara tantas oportunidades com Blay; existiram tantos passos em falso e desencontros deliberados, tantos anos, tantas negações. E tudo de sua parte. Acovardara-se por tempo demais, mas aquilo chegara ao fim.

Ao abrir a boca para dizer as três palavras que estavam na ponta da língua, os olhos de Blay se endureceram.

– Não preciso da sua ajuda, está bem? Posso cuidar de mim sozinho.

Tum. Tum. Tum.

Seu coração batia tão forte que ele teve que se perguntar se explodiria.

– Você vai continuar com ele – Qhuinn disse entorpecido. – Você vai...

– Não faça mais essa cretinice com Saxton... Nunca mais. Jure.

Mesmo morrendo por dentro, Qhuinn sentia-se impotente para negar-lhe qualquer coisa.

– Ok – levantou as palmas. – Não toco nele.

Blay assentiu, o acordo estava selado.

– Só quero ajudar você – disse Qhuinn. – Só isso.

– Você não pode – rebateu Blay.

Deus, mesmo se estranhando novamente, ele ansiava por mais contato e, de pronto, ele enxergou um caminho para exatamente isso. Uma proposta traiçoeira, mas ao menos havia um tipo de lógica interna nela.

Os braços se ergueram, as mãos procurando, encontrando, prendendo-se. Aos ombros de Blay. À nuca de Blay.

O sexo surgiu dentro dele, enrijecendo seu membro, fazendo-o ofegar.

– Mas eu tenho como ajudar.

– Como?

Qhuinn se aproximou, levou a boca ao ouvido de Blay. Em seguida, encostou o peito nu deliberadamente no de Blay.

– Use-me.

– O quê?

– Dê uma lição a ele – Qhuinn segurou com mais força e inclinou a cabeça de Blay para trás. – Vingue-se na mesma moeda. Comigo.

Para deixar bem claro, Qhuinn estendeu a língua e percorreu a lateral do pescoço de Blay.

O sibilo em reação foi tão alto quanto uma imprecação.

Blay o socou, empurrando-o.

– Perdeu o maldito juízo?

Qhuinn apalpou o sexo rijo e pesado.

– Quero você. E aceito você do jeito que for, mesmo que seja só como uma vingança contra o meu primo.

A expressão de Blay mudava como numa partida de tênis de mesa, passando da mais absoluta descrença para uma raiva épica.

– Seu cretino idiota! Você me rejeitou por anos e anos, e agora, de repente, muda de ideia? Que diabos há de errado com você?

Com a mão livre, Qhuinn tocou num dos piercings dos mamilos... e se concentrou no que estava acontecendo abaixo da cintura de Blay: debaixo daquele roupão, o macho ficou completamente duro, o tecido atoalhado impotente diante daquele tipo de ereção.

– Perdeu a sua maldita cabeça de vez? Que merda!

Normalmente, Blay não praguejava nem elevava a voz. Era excitante vê-lo perder o controle.

Encarando o amigo nos olhos, Qhuinn se deixou cair de joelhos.

– Deixe-me cuidar disso...

– O quê...

Ele se inclinou para a frente e puxou a bainha do roupão, atraindo-o na sua direção.

– Venha cá. Deixe-me mostrar do que sou capaz.

Blay agarrou o cordão que mantinha as duas metades unidas e deu um apertão.

– Que diabos você está fazendo?

Deus, o fato de ele estar de joelhos, implorando, parecia apropriado.

– Quero estar com você. Não me importo com o motivo... Apenas me deixe ficar com você...

– Depois de todo esse tempo? O que mudou?

– Tudo.

– Você está com a Layla...

– Não. Vou repetir quantas vezes você precisar ouvir: não estou com ela.

– Ela está grávida.

– Uma vez. Fiquei com ela apenas uma vez, e como já lhe disse, foi só porque quero uma família e ela também quer. Uma vez, Blay, e nunca mais.

A cabeça de Blay pendeu para trás como se alguém estivesse enfiando espinhos debaixo das suas unhas.

– Não faça isso, pelo amor de Deus, você não pode fazer isso... – a voz dele se quebrantou, a angústia era um triste vislumbre de todos os problemas que Qhuinn causara.–Por que agora? Talvez seja você quem queira se vingar de Saxton...

– Meu primo que se foda, isso não tem nada a ver com ele em relação a mim. Se você estivesse sozinho, eu ainda estaria neste tapete, ajoelhado, à espera de estar com você. Se você estivesse comprometido com uma fêmea, se estivesse namorando alguém de modo casual, se você estivesse em milhares de outras situações na vida... eu ainda estaria aqui. Implorando por algo, qualquer coisa... uma só vez, se é o que pode me dar.

Qhuinn esticou a mão de novo, passando por debaixo do roupão, afagando a perna musculosa e forte. E quando Blay recuou um passo, ele sabia que estava perdendo a batalha.

Merda, ele perderia aquela chance se não...

– Escute, Blay, fiz muitas merdas na minha vida, mas sempre tentei ser verdadeiro. Quase morri hoje... e isso endireita as pessoas. Lá em cima, naquele avião, olhando para a noite escura, não achei que fosse conseguir. Tudo ficou claro para mim. Quero estar com você por causa disso.

Na verdade, fazia muuuuito tempo, beeeem antes da situação com o Cessna, que ele sabia disso, mas ele desejava que a explicação fizesse sentido para Blay.

Talvez fizesse. Em resposta, ele oscilou o peso sobre os pés, como se fosse ceder... ou ir embora. Não havia como saber que direção ele tomaria.

Qhuinn se apressou em dizer mais:

– Sinto muito ter desperdiçado tanto tempo... e se você não quiser ficar comigo, eu entendo. Não vou insistir, vou lidar com as consequências. Mas, pelo amor de Deus, se houver uma chance... por qualquer motivo que seja da sua parte, raiva, curiosidade... droga, mesmo que me deixe transar com você uma vez e nunca mais, com o único propósito de me cravar uma estaca no peito... Eu aceito. Aceito você... do jeito que for.

Ele esticou a mão uma terceira vez, escorregando-a por trás da perna de Blay. Afagando. Implorando.

– Não me importo quanto isso vai me custar.

 


                                CONTINUA