Irmandade da "Adaga Negra"
1761, ANTIGO PAÍS
Xcor viu seu pai sendo morto após cinco anos de sua transição. Aconteceu diante de seus olhos, mas, mesmo com a proximidade, não poderia imaginar o que houve.
A noite começou como qualquer outra, a escuridão caiu sobre a paisagem de florestas e cavernas, as nuvens encobriam a luz da lua para ele e para aqueles que viajavam a cavalo com ele. Seu grupo de soldados era composto por seis homens fortes: Throe, Zypher, os três primos e ele próprio. E seu pai.
Bloodletter.
Antigo membro da Irmandade da Adaga Negra.
O que os fez sair naquela noite foi o que os chamava ao serviço após cada pôr de sol: procuravam redutores, aquelas armas sem alma de Ômega, que achou por bem exterminar a raça vampira. E os encontravam. Frequentemente.
Mas aqueles sete machos não eram membros da Irmandade.
Ao contrário dos aclamados Irmãos, eram um grupo secreto de guerreiros. Aquele grupo de bastardos liderados por Bloodletter não era nada além de soldados: sem cerimônias. Nada de serem adorados pela população civil. Nada de louvores. A linhagem deles poderia ser aristocrática, mas todos foram abandonados por seus familiares por terem nascido com defeitos ou fora de um acasalamento santificado.
Nunca seriam outra coisa senão pedaços de carne dispensáveis dentro da grande guerra pela sobrevivência.
Porém, mesmo isso sendo verdade, eram a elite dos soldados, os mais cruéis, os braços mais fortes, aqueles que foram provados ao longo do tempo pelo feitor mais rígido da raça: o pai de Xcor. Escolhidos a dedo e com sabedoria, esses homens eram mortais contra o inimigo e não seguiam nenhum código de conduta quando se tratava da sociedade vampira. Também não seguiam nenhum código quando se tratava de matar alguém: não importava se a presa era um assassino, um humano, um animal ou um lobo. Sangue seria derramado.
Eles fizeram um, e apenas um, juramento: seu pai era o senhor deles e ninguém mais. Aonde quer que ele fosse, eles iriam, e isso era tudo. Muito mais simples que toda aquela porcaria elaborada pela Irmandade – mesmo Xcor sendo um candidato por linhagem, não teve interesse em ser um Irmão. Não se importava com a glória, uma vez que nada se comparava ao doce prazer do assassinato. Melhor deixar de lado a tradição inútil e o ritual desgastado para aqueles que se recusam a empunhar qualquer outra coisa que não seja uma adaga negra.
Usaria qualquer arma disponível.
E seu pai faria o mesmo.
O clamor dos cascos abrandou e depois ficaram em silêncio quando os lutadores saíram da floresta em um enclave de carvalhos e arbustos. A fumaça das lareiras das casas pairava na brisa, mas não havia nenhuma outra confirmação de que tinham chegado, finalmente, à pequena cidade que procuravam: no alto, sobre um íngreme penhasco, havia um castelo fortificado que se apresentava como uma águia empoleirada, sua fundação era como garras fincadas na rocha.
Humanos. Guerreando entre si.
Que entediante.
Ainda assim, era preciso respeitar a construção. Talvez, se Xcor se estabelecesse algum dia, massacraria a dinastia daquele lugar e tomaria posse daquela fortaleza. Muito mais eficiente roubar que construir.
– Para a aldeia – seu pai ordenou. – Avancemos para a diversão.
A notícia era de que havia redutores ali, as bestas pálidas misturavam-se e confundiam-se com os moradores do vilarejo que tinham escavado lotes de terra e construído casas de pedra à sombra do castelo.
Isso era uma típica estratégia de recrutamento da Sociedade: infiltrar-se em uma cidade, tomar os machos um a um, assassinar ou vender as mulheres e crianças, fugir com armas e cavalos e mudar-se para uma localidade próxima em maior número.
Xcor tinha a mesma mentalidade do inimigo nesse aspecto: quando acabava de lutar, sempre pegava tudo o que podia antes de dirigir-se para a próxima batalha. Noite após noite, Bloodletter e seus soldados abriam caminho ao longo do território que os seres humanos chamavam de Inglaterra e, quando alcançavam a ponta do território escocês, viravam-se e colocavam-se em direção oposta, indo sempre para o sul, até chegarem ao calcanhar da Itália, quando davam meia-volta outra vez. Em seguida, percorriam novamente os muitos quilômetros que tinham caminhado até ali. E faziam isso de novo. E mais outra vez.
– Deixemos nossas provisões aqui. – disse Xcor, apontando para uma árvore de tronco grosso, que havia caído sobre um riacho.
Enquanto faziam a transferência dos modestos suprimentos, não havia nada além do ranger de couro e do bufar ocasional de um garanhão. Quando tudo estava guardado sob o flanco do carvalho abatido, montaram outra vez sobre seus animais e reuniram os cavalos de raça – que eram as únicas coisas de valor, além de armas, que possuíam. Xcor não via utilidade em objetos de beleza ou conforto – para ele, eram nada além de um peso que o induzia à queda. Um cavalo forte e um punhal afiado? Isso sim tinha um valor inestimável.
Enquanto os sete andavam até a aldeia, não fizeram qualquer esforço para silenciar as batidas dos cascos de seus cavalos. Contudo, não houve gritos de guerra. Era um desperdício de energia, seus inimigos não precisavam de um convite para vir saudá-los. O único ato de boas-vindas foi um humano ou dois espiando para fora de suas portas e, em seguida, voltando rapidamente a trancarem-se em seus domicílios. Xcor os ignorou. Em vez de importar-se com isso, examinou as casas baixas de pedra, a praça central e as lojas de comércio fortificadas, procurando por alguma forma bípede, pálida como um fantasma e fedendo como um cadáver revestido em melado.
Seu pai andou até ele e sorriu com um toque de maldade.
– Talvez possamos colher os frutos dos jardins por aqui mais tarde.
– Talvez. – murmurou Xcor enquanto seu cavalo jogava a cabeça para trás. Na verdade, não estava muito interessado em deitar-se com fêmeas ou subjugar machos, mas não se podia negar nada a seu pai, mesmo quando se tratava de suas extravagâncias na hora do lazer.
Sinalizando com as mãos, Xcor direcionou três de seu grupo para a esquerda, onde havia uma pequena estrutura com uma cruz em cima de seu telhado pontiagudo. Ele e os outros seguiriam à direita. Seu pai faria o que quisesse. Como sempre.
Forçar os garanhões a permanecer em um galope contínuo era uma tarefa que desafiava até mesmo o mais vigoroso dos braços, mas estava acostumado com o cabo de guerra e sentou-se com firmeza na sela. Com um propósito sombrio, seus olhos penetraram as sombras produzidas pelo luar, procurando, sondando...
O grupo de assassinos que saiu do abrigo de ferragens possuía uma grande quantidade de armas.
– Cinco – Zypher rosnou. – Bendita noite.
– Três – Xcor interrompeu. – Dois ainda são seres humanos... porém, matar esses dois... também será um prazer.
– Qual devemos atacar, meu senhor? – Seu irmão de armas disse com um grande respeito que era dedicado por merecimento e não por ser o primogênito.
– Os humanos – Xcor disse, deslocando-se para frente e preparando-se para o momento em que incitaria seu cavalo a partir. – Se há outros redutores por perto, isso os atrairia ainda mais.
Estimulando o grande animal e afundando-se na sela, sorriu quando os redutores mantiveram-se firmes com suas correntes e armamentos. No entanto, as duas pessoas junto a eles não ficariam tão firmes. Embora os dois estivessem equipados para lutar, dariam meia-volta e correriam quando vissem a primeira exibição de presas como cavalos assustados por um tiro de canhão, razão pela qual deu um solavanco de forma abrupta para a direita logo após galopar apenas alguns passos. Atrás da cabana do ferreiro, puxou as rédeas e desmontou do corcel. Seu garanhão era um animal selvagem, mas obediente quando tratava-se de desmontar e aguardar...
Uma fêmea humana irrompeu pela porta dos fundos, sua camisola branca era como uma faixa brilhante na escuridão, enquanto esforçava-se para ficar em pé sobre a lama. No instante em que ela o viu, ficou paralisada de terror.
Reação lógica: ele era duas vezes o tamanho dela, talvez três, e não estava vestido para dormir, mas para a guerra. Quando a mão da fêmea ergueu-se até a garganta, ele farejou o ar e sentiu seu perfume. Hummm, talvez seu pai gostasse daquela flor de jardim...
Quando o pensamento lhe ocorreu, soltou um rosnado baixo que incitou a moça a uma corrida desenfreada; a visão da tentativa de fuga fez o predador dentro dele vir à tona. Com uma sede de sangue percorrendo suas entranhas, lembrou-se que havia se passado semanas desde que tinha se alimentado de alguém de sua espécie e, apesar daquela garota ser apenas uma humana, poderia ser o suficiente para aquela noite.
Infelizmente, não havia tempo para se divertir naquele momento... Apesar disso, seu pai iria atrás dela mais tarde, com certeza. Se Xcor precisava de um pouco de sangue para vencer as dificuldades, conseguiria tal fonte com aquela mulher, ou com qualquer outra.
Dando as costas para a fuga, parou com firmeza sobre o chão e desembainhou a arma escolhida: embora as adagas servissem, preferiu a foice, cabo longo e modificado para um coldre amarrado em suas costas. Era especialista em empunhar aquele grande peso e sorriu enquanto manejava ao vento a lâmina cruel e curvada, esperando para jogar a rede sobre aqueles dois peixes que, com certeza, estavam nadando até ele...
Ah, sim, como era bom estar certo.
Logo após uma luz brilhante surgir e um estalo eclodir da passagem principal, os dois humanos vieram gritando em direção aos fundos da casa do ferreiro como se estivessem sendo perseguidos por carrascos.
Mas estavam errados, não? O carrasco estava esperando ali.
Xcor não gritou ou amaldiçoou. Sequer rosnou. Começou a correr com a foice, havia um equilíbrio uniforme entre as duas mãos enquanto as coxas poderosas encurtavam a distância. Só de olhar para ele, os humanos derraparam em suas botas, braços soltos, como asas de patos pousando sobre a água.
O tempo pareceu desacelerar quando caiu sobre eles, sua arma favorita fez um grande círculo, atingindo os dois na altura do pescoço.
As cabeças foram decepadas com um golpe único e limpo. Os rostos surpresos brilharam e desapareceram à medida que a parte removida do corpo girava, o sangue espirrou e salpicou no peito de Xcor. Com a ausência de crânios, a parte inferior dos corpos caíram sobre o chão com uma graça curiosa e líquida, aterrissando inanimados com os membros retorcidos.
Agora sim ele gritava.
Virando-se, Xcor fixou suas botas de couro na lama, respirou fundo e soltou um rosnado enquanto manejava a foice, o aço avermelhado pedia mais sangue. Apesar de suas presas serem meros seres humanos, o impulso de matar era superior a um orgasmo, a sensação de que havia tirado uma vida e deixado cadáveres para trás percorria seu corpo como uma bebida alcoólica.
Chamou seu cavalo assoviando, que foi até ele rapidamente após o comando. Com um salto, montou na sela, a foice erguida em sua mão direita enquanto lidava com as rédeas com a esquerda. Dando um golpe com força, incitou o corcel ao galope, percorrendo rapidamente um caminho estreito e sujo e emergindo no auge da batalha.
Seus colegas lutavam com todas as forças, o som das espadas colidindo e gritos bombardearam a noite quando o demônio encontrou seu inimigo. E assim como Xcor havia previsto, mais uma meia dúzia de redutores veio correndo a toda velocidade sobre seus garanhões de raça, como leões que foram libertos para defender seu território.
Xcor entrou em cena e avançou contra o inimigo, envolvendo as rédeas no punho e brandindo a foice enquanto o cavalo corria em direção aos outros com os dentes à mostra. Sangue negro e partes de corpos voaram quando passou por entre os adversários, ele e seu cavalo trabalhavam como uma unidade naquele ataque.
Quando atingiu mais um assassino com sua lâmina e o cortou ao meio na altura do peito, soube que tinha nascido para fazer isso, era a maior e melhor maneira de usar seu tempo sobre a terra. Era um assassino, não um defensor.
Não lutava pela raça... mas por si mesmo.
Tudo aconteceu muito depressa, a névoa noturna rondava os redutores caídos, que contorciam-se em poças do próprio sangue oleoso e negro. Houve poucos feridos dentre o grupo de Xcor. Throe tinha um corte no ombro, feito por alguma lâmina. Zypher estava mancando, uma mancha vermelha escorria de sua perna, ensopando a bota. Nenhum deles estava mais lento ou mesmo preocupado.
Xcor deteve o cavalo, desmontou e voltou a colocar a foice no coldre. Sacou a adaga de aço e começou sua ronda para esfaquear os assassinos, lamentou o processo que enviava o inimigo de volta a seu criador. Queria mais luta, não menos...
Um grito ecoou e ele ergueu a cabeça. A mulher humana de camisola estava correndo pela estrada de terra batida do vilarejo, seu corpo pálido em uma fuga desgovernada, como se tivesse sido expulsa de um esconderijo. Logo atrás dela, o pai de Xcor montou em seu cavalo e galopou rápido; o corpo maciço de Bloodletter pendia em um dos lados da sela quando a alcançou. Na verdade, não houve, de fato, uma corrida: quando ficou ao lado dela, pegou-a com o braço e atirou-a sobre seu colo.
Não houve parada, nem mesmo uma diminuição da velocidade depois da captura, mas uma marca foi feita: com seu cavalo galopando a toda velocidade e a humana se debatendo, o pai de Xcor ainda conseguiu atingir a garganta delgada com suas presas, prendendo-se no pescoço da mulher como se fosse detê-la apenas com os caninos.
Ela teria morrido. Com certeza, ela teria morrido.
Se Bloodletter não tivesse morrido primeiro.
De fora do turbilhão do nevoeiro surgiu uma figura fantasmagórica como se fosse formada pelos filamentos de umidade que percorriam o ar. E no momento que Xcor viu o espectro, estreitou os olhos e valeu-se de seu olfato aguçado.
Parecia ser uma mulher. De sua espécie. Vestida com uma túnica branca.
E seu cheiro lembrou-o de algo que não conseguiu localizar.
Ela foi diretamente ao encontro de seu pai, mas parecia não ter a menor preocupação com o cavalo ou com o guerreiro sádico que logo viria atrás dela. No entanto, seu pai estava fascinado por ela. No instante em que a notou, largou a humana como se não fosse nada além de um osso do qual já houvesse comido toda a carne.
Isso estava errado, Xcor pensou. De fato, ele era um macho de ação e poder e dificilmente um membro do sexo frágil o intimidaria... mas tudo em seu corpo advertia que aquela entidade etérea era perigosa. Letal.
– Ei! Pai! – gritou. – Vire-se!
Xcor assoviou para seu cavalo, que atendeu ao comando. Montando sobre a sela, estimulou os flancos do animal, lançando-se a toda velocidade para que pudesse cruzar o caminho do pai, um pânico estranho o incitando.
Tarde demais. Seu pai lançou-se sobre a fêmea, que agachou-se lentamente.
Meu Deus, ela ia saltar por cima do...
Com um impulso coordenado, ela flutuou no ar e pegou a perna de seu pai, usando-a para montar sobre o cavalo de um salto. Então, agarrou o sólido peitoral de Bloodletter, saltou para um lado e levou o macho ao chão com ela, como se fossem apenas um. A investida poderosa desafiava a questão de ser do sexo feminino e sua natureza espectral.
Ora, não era um fantasma, mas um ser de carne e osso.
O que significava que poderia ser morta.
Enquanto Xcor preparava-se para lançar seu garanhão contra eles, a fêmea soltou um grito nada feminino: mais ao estilo do grito de guerra de Xcor, o berro trespassou o ruído dos cascos trovejantes abaixo dele e os sons do grupo que reunia-se para combater aquele ataque inesperado.
Contudo, não havia necessidade de uma intercessão imediata.
Seu pai, após o choque de ser tirado de sua sela, rolou de costas, desembainhou seu punhal e rosnou como um animal. Com uma maldição, Xcor freou e interrompeu o resgate, pois, com certeza, seu pai assumiria o controle. Bloodletter não era o tipo de homem a quem se ajudava – havia agredido Xcor por isso no passado, uma lição que foi duramente aprendida e que sempre seria lembrada.
Ainda assim, desmontou e aproximou-se da situação para reagir no caso de haver mais alguma “Valquíria” saindo do meio da floresta.
E foi assim que ele a ouviu, claramente, dizer um nome.
– Vishous.
A raiva de seu pai deu lugar a uma breve confusão. E antes que pudesse retomar sua autodefesa, a figura fantasmagórica começou a brilhar com uma luz profana.
– Pai! – Xcor gritou ao aproximar-se correndo.
Mas era tarde. E o contato foi feito.
Chamas irromperam sobre o rosto rude e barbado de seu pai e tomaram seu corpo, como se fosse feno seco. E com a mesma graça que ela o derrubou, a fêmea saltou para trás e observou enquanto seu pai tentava apagar o fogo debatendo-se freneticamente, sem sucesso. No meio da noite, ele gritava enquanto era queimado vivo, suas roupas de couro não ofereceram proteção alguma para sua pele e músculos.
Não havia chance alguma de aproximar-se o suficiente do fogo e Xcor derrapou até parar, levantando o braço para se proteger e curvando-se para se afastar do calor que ficava exponencialmente mais intenso.
Durante todo o tempo, a fêmea ficou sobre o corpo que se contorcia e tinha espasmos... O brilho laranja iluminava o rosto belo e cruel.
A vadia estava sorrindo.
E foi então que ela ergueu o rosto para ele. Quando Xcor teve uma visão correta de seu rosto, recusou-se, em um primeiro momento, a acreditar no que via. Ainda assim, o brilho das chamas não mentia.
Xcor observava uma versão feminina de Bloodletter. O mesmo cabelo negro, a mesma pele e olhos claros. A mesma estrutura óssea. Além disso, a mesma luz vingativa em seu olhar violento, aquele arrebatamento e satisfação ao causar uma morte era uma combinação que Xcor conhecia muito bem.
Ela partiu logo em seguida, desaparecendo na neblina de uma maneira que não condizia com a desmaterialização de sua espécie, mas, sim, fez isso como um sopro de fumaça, desvanecendo-se devagar em princípio e, em seguida, rápida e definitivamente.
Assim que sentiu-se capaz, Xcor correu para seu pai, mas não havia mais nada a ser salvo... mal havia algo para ser enterrado. Afundando os joelhos diante dos ossos fumegantes e do fedor de queimado, teve um momento de fraqueza deplorável: lágrimas derramaram-se dos olhos. Bloodletter tinha sido um bruto, mas como sua única descendência masculina, Xcor e ele eram bem próximos... Na verdade, eram quase membros de um mesmo corpo.
– Por tudo o que é mais sagrado – Zypher disse com voz rouca –, o que foi isso?
Xcor piscou com força antes de olhar por cima do ombro.
– Ela o matou.
– Sim. E fez mais alguma coisa.
Quando o grupo de bastardos aproximou-se dele, um a um, Xcor teve de pensar no que dizer, no que fazer.
Erguendo-se com firmeza, quis chamar seu cavalo, mas sua boca estava seca demais para assoviar.
Seu pai... um inimigo e, ao mesmo tempo, seu porto seguro, estava morto. Morto. E aconteceu tão rápido, rápido demais.
Por uma fêmea.
Seu pai havia partido.
Quando conseguiu, olhou para cada um dos machos diante dele, os dois montados nos cavalos, os dois em pé e o que estava a sua direita. Com uma nítida percepção, soube que não importava o que o destino tivesse reservado, seria moldado pelo que havia acontecido naquele momento, aqui, agora.
Não havia se preparado para isso, mas não se afastaria do que deveria fazer:
– Ouçam bem, pois só direi uma vez. Ninguém vai dizer nada. Meu pai morreu em uma batalha contra o inimigo. Eu o queimei para homenageá-lo e mantê-lo sempre comigo. Jurem isso para mim agora.
Os bastardos com quem ele vivia e lutava há muito tempo juraram e depois que suas vozes profundas desvaneceram-se no ar noturno, Xcor inclinou-se e passou os dedos pelas cinzas. Erguendo as mãos até o rosto, traçou uma listra com a fuligem desde as bochechas até as grossas veias que percorriam cada lado do pescoço... em seguida, acariciou o crânio duro que era tudo o que havia restado de seu pai. Segurando os restos carbonizados que ainda soltavam fumaça, reivindicou os soldados a sua frente como seus.
– Sou o único senhor agora. Liguem-se a mim neste momento ou serão meus inimigos. O que me dizem?
Não houve hesitação alguma. Os machos se ajoelharam, retiraram suas adagas e irromperam o grito de guerra antes de enterrarem as lâminas na terra a seus pés.
Xcor observou as cabeças inclinadas e sentiu que um manto caía-lhe sobre os ombros. Bloodletter estava morto. Sem vida, seria transformado em lenda a partir daquela noite.
E, seguindo o que é certo e apropriado, o filho substituiria o pai agora, comandando aqueles soldados que não serviriam a Wrath, o rei que não os governava; nem à Irmandade, que não se dignificava a descer àquele nível... Serviriam a Xcor e somente a ele.
– Vamos seguir na direção de onde a fêmea veio – anunciou. – Vamos encontrá-la mesmo que levem séculos, pois ela deve pagar por aquilo que fez esta noite. – Nesse momento, Xcor conseguiu assoviar alto e claro para seu cavalo. – Levarei, pessoalmente, a morte ao esconderijo daquela fêmea.
Subindo em seu cavalo, reuniu as rédeas e incitou o grande animal a cruzar a noite. Seu grupo de bastardos entrou em formação e o seguiu, disposto a morrer por ele.
Enquanto trovejava ao sair da aldeia, colocou o crânio de seu pai dentre as roupas de couro que usava nas batalhas, bem em cima do coração.
Aquela vingança seria sua. Mesmo que o matasse.
CAPÍTULO 1
DIAS ATUAIS
HIPÓDROMO DE AQUEDUCT, QUEENS, NOVA YORK
– Quero enlouquecer você.
O Dr. Manny Manello virou a cabeça para a direita e olhou para a mulher que tinha falado com ele. Não foi a primeira vez que tinha ouvido essas palavras e a boca pela qual elas saíram tinha silicone suficiente para preencher uma boa almofada. Mas, ainda assim, foi uma surpresa.
Candance Hanson sorriu para ele e ajeitou seu chapéu retrô com uma mão bem manicurada. Aparentemente, ela tinha decidido que a combinação de dama refinada com uma dose de atrevimento era atraente – e talvez fosse, para alguns rapazes.
Caramba, em outro momento de sua vida, ele provavelmente teria dado em cima dela seguindo a teoria do “por que não?”. Agora? Seguia a ideia do “não é pra tanto”.
Sem se deixar abater pela falta de entusiasmo do médico, ela inclinou-se para frente, exibindo um par de seios que não exatamente desafiava a gravidade. Na verdade, aquilo era mais como mostrar o dedo médio, insultar a mãe e pisar no calo de alguém – uma falta de educação.
– Sei de um lugar aonde poderíamos ir.
Ele apostava que sim.
– A corrida já vai começar.
Ela fez beicinho. Ou talvez fosse o efeito das aplicações para aumentar os lábios. Deus, há dez anos ela devia ter um rosto jovem; agora, os anos tinham adicionado uma pátina de desespero nela – junto ao processo normal de envelhecimento, contra o qual ela lutava como um boxeador.
– Depois, então.
Manny afastou-se sem responder, sem saber exatamente como ela tinha conseguido entrar na área dos proprietários. Deveria ter sido na confusão que havia para voltar àquele local depois de selarem os cavalos – e, sem dúvida, estava acostumada a entrar em lugares que, tecnicamente, não lhe eram permitidos: Candance era um daqueles tipos sociais de Manhattan que só se diferenciava de uma prostituta por não ter um cafetão e, de muitas maneiras, era como uma vespa qualquer: ignorava o incômodo causado e ia pousar em outra coisa.
Ou em outra pessoa, como era o caso.
Erguendo o braço para mantê-la distante, Manny inclinou-se sobre o corrimão da cabine e esperou que sua garota saísse para a pista. Tinha sido colocada na parte externa, e isso era bom: preferia não ficar muito perto dos outros e percorrer uma distância extra nunca a incomodou.
O hipódromo de Aqueduct, no Queens, Nova York, não tinha o prestígio de um Belmont ou Pimlico ou do venerável pai de todos os hipódromos, o Churchill Downs. Contudo, não era de se jogar fora. A instalação tinha uma arena de quase três quilômetros, uma pista de turfe e outra para corridas de curta distância. A capacidade total era de, aproximadamente, nove hectares. A comida era medíocre, mas ninguém ia até lá para comer e havia algumas corridas grandes, como a daquele dia: a Wood Memorial Stakes tinha uma bolsa de 750 mil dólares e, como era realizada em abril, era uma boa referência para os candidatos ao prêmio Triple Crown...*
Ah, sim, lá estava ela. Lá estava sua garota.
Quando os olhos de Manny fixaram-se em GloryGloryAllelujah, o barulho da multidão, a luz brilhante daquele dia e a fila vacilante composta pelos outros cavalos desapareceram. Tudo o que ele via era sua magnífica égua negra, sua capa capturava a luz do sol e reluzia, as pernas finas se flexionavam, os cascos delicados erguiam-se e voltavam a pousar na pista de areia. Como ela media quase um metro e setenta, o jóquei parecia um pequeno mosquito em suas costas, e essa diferença de tamanho representava a divisão do poder. Ela deixou isso claro desde o primeiro dia de treinamento: poderia tolerar os pequenos seres humanos, mas estavam apenas a passeio na corrida. Ela estava no comando.
Seu temperamento dominador já havia lhe custado dois treinadores. O terceiro? O cara parecia um pouco frustrado, mas era apenas seu senso de controle que estava sendo espancado até a morte: Glory destacava-se e isso, simplesmente, não tinha nada a ver com ele. E Manny não tinha a menor preocupação com os egos inflados de homens que dominavam cavalos a vida inteira. Sua garota era uma lutadora, sabia o que estava fazendo, e ele não tinha o menor problema em deixá-la assumir o controle. Queria apenas assisti-la divertir-se ao acabar com a concorrência.
Quando seus olhos a encontraram, lembrou-se do otário de quem a tinha comprado há pouco mais de um ano. Aqueles vinte mil dólares tinham sido um roubo, considerando sua linhagem, também uma fortuna se pensasse no temperamento dela, e ainda não estava claro se conseguiria autorização para correr. Era uma égua indisciplinada de um ano de idade que já esteve prestes a ser afastada. Ou pior: de ser transformada em comida de cachorro.
Mas ele acertou. Desde que a deixasse liderar e comandar o show, era um espetáculo.
Quando a formação de cavalos aproximou-se do portão, alguns começaram a bater os cascos e a bufar, mas sua garota estava firme, como se soubesse que era inútil desperdiçar energia antes do jogo. Ele achava que as chances eram boas apesar da posição no pódio, pois o jóquei montado em seu dorso era uma estrela: sabia exatamente como lidar com ela e, nesse sentido, era mais responsável pelo sucesso da garota do que os outros treinadores. Sua estratégia era apenas certificar-se de que ela conhecia os melhores percursos, deixá-la escolher e ir.
Manny levantou-se e segurou o corrimão de ferro pintado na frente dele, juntando-se à multidão que saía de seus assentos, e começava a exibir uma quantidade incontável de binóculos. Quando seu coração começou a bater forte, ficou contente, pois fora dali encontrava-se muito próximo do sedentarismo, ultimamente. A vida que levava estava em um estágio de entorpecimento terrível no último ano ou um pouco mais, e talvez essa fosse a razão pela qual aquela égua era tão importante para ele.
Talvez ela também fosse tudo o que ele tinha.
Não era bem assim.
No portão, havia um movimento frenético: quando se trata de amontoar quinze cavalos fortes com patas da espessura de varetas e com glândulas adrenais disparando como obus em minúsculas caixas de metal, você não perde tempo. Em mais ou menos um minuto, o campo foi fechado e as pistas foram restringidas pelos trilhos.
Uma batida de coração.
Um sino.
Bang.
Os portões foram abertos, a multidão rugiu e os cavalos avançaram como se tivessem sido lançados de bocas de canhões. As condições eram perfeitas. Clima seco. Frio. Estavam a toda velocidade na pista.
Não que sua garota se importasse com isso. Correria na areia movediça se fosse necessário.
Os cavalos puros-sangues trovejaram, o som dos cascos e a voz do locutor chicoteavam energia nas arquibancadas a ponto de ficarem em um estado de êxtase. Porém, Manny manteve a calma, permanecendo com as mãos firmadas no trilho na frente dele e seus olhos sobre o campo, enquanto o grupo de cavalos fazia a primeira curva em uma confusão tensa de dorsos e caudas.
O telão mostrava-lhe tudo o que precisava ver. Sua égua estava na penúltima posição, apenas galopando enquanto todos os outros empreendiam uma corrida mortal – inferno, seu pescoço sequer estava totalmente estendido. No entanto, o jóquei estava fazendo seu trabalho, facilitando o caminho dela para avançar na pista, dando-lhe a opção de correr ao redor do grupo ou cortar caminho através deles quando estivesse pronta.
Manny sabia exatamente o que ela iria fazer. Entraria pela direita em meio aos outros cavalos como uma bola de demolição.
Era o jeito dela.
E foi assim que, quando os outros abriram distância, ela começou a pegar fogo. A cabeça baixa, o pescoço alongado, seu passo começou a acelerar.
– Caramba – Manny sussurrou. – Você consegue, garota.
Quando Glory adentrou a pista verde, transformou-se em um raio de luz que ultrapassava os outros corredores, a explosão de velocidade era tão poderosa que qualquer um se perguntaria se aquilo não era de propósito: apenas vencê-los não era o suficiente, ela tinha que fazer isso no último quilômetro, deixando as selas dos outros bastardos na poeira, no último minuto possível.
Manny riu do fundo da garganta. Ela era seu tipo de garota.
– Meu Deus, Manello, olha só como ela avança.
Manny assentiu com a cabeça sem olhar para o cara que falou em seu ouvido, pois a liderança do grupo estava mudando: o potro que estava à frente perdia sua força, ficando para trás quando suas pernas pareceram ficar sem combustível. Em resposta a isso, o jóquei o golpeou, chicoteando-lhe o traseiro – algo que obteve o mesmo sucesso de quando alguém amaldiçoa um carro cujo tanque esvaziou. O potro que estava em segundo lugar, um animal grande e castanho com jeito de mau e um passo que poderia englobar um campo de futebol, aproveitou imediatamente a desaceleração, e seu jóquei permitiu que o cavalo estendesse sua cabeça totalmente.
Os dois ficaram emparelhados por apenas um segundo antes que o cavalo castanho assumisse a liderança da corrida. Mas não seria por muito tempo. A garota de Manny tinha escolhido seu momento para contornar os três cavalos e fazer com que ele ficasse totalmente tenso.
Sim, Glory fazia o que tinha nascido para fazer, orelhas unidas à cabeça, dentes expostos.
Ela ia roubar o doce da boca daquele garanhão. E era impossível não extrapolar e pensar que participariam de corridas importantes como a Kentucky Derby...
Tudo aconteceu tão rápido.
Tudo chegou ao fim... em um piscar de olhos.
Com um golpe intencional, o potro bateu em Glory, o impacto brutal enviou-a para os trilhos. Sua garota era grande e forte, mas não poderia suportar um contato corporal assim, não quando corria a mais de sessenta quilômetros por hora.
Por uma fração de segundo, Manny ficou convencido de que ela se reergueria. Apesar da maneira como inclinou-se e cambaleou, esperava que encontrasse um ponto de equilíbrio e desse uma lição de boas maneiras àquele bastardo.
Só que ela caiu. Bem na frente dos três cavalos que tinha ultrapassado.
O massacre foi imediato, os cavalos mudaram totalmente a direção para evitar o obstáculo no caminho, os jóqueis seguraram as rédeas com força na esperança de permanecerem montados.
Todos fizeram isso. Exceto Glory.
Quando a multidão exclamou, Manny lançou-se para frente, ultrapassando os limites da cerca e saltando sobre as pessoas, cadeiras e barricadas até chegar à pista.
Além dos trilhos. Na arena.
Correu até ela. Anos de prática do atletismo levaram-no a uma velocidade vertiginosa até o cerne daquela situação.
Ela estava tentando se levantar. Mas que coração grande e feroz... estava lutando para erguer-se do chão, seus olhos encarando o grupo como se não desse a mínima por estar ferida; só queria pegar de jeito aqueles que a deixaram na poeira.
Tragicamente, sua perna dianteira tinha outros planos: enquanto se debatia, a perna direita vacilava na altura do joelho; e Manny não precisava de sua experiência como ortopedista para saber que ela tinha um problema.
Um problemão.
Ao aproximar-se dela, viu que o jóquei estava em lágrimas.
– Dr. Manello, eu tentei... Oh, Deus...
Manny escorregou na areia e arremeteu-se em direção às rédeas enquanto os veterinários aproximavam-se e o telão voltava-se para o drama.
Quando três homens de uniforme aproximaram-se dela, seus olhos não emitiam mais aquele sentimento selvagem... passaram a expressar dor e confusão. Manny fez o possível para acalmá-la, permitindo que balançasse com força a cabeça o quanto quisesse enquanto acariciava seu pescoço. Ela se acalmou quando lhe deram um tranquilizante.
Ao menos a tentativa desesperadora de andar, mesmo mancando, cessou.
O veterinário-chefe olhou para a perna e balançou a cabeça, algo que no mundo das corridas era um sinal universal para “será necessário sacrificá-la”.
Manny aproximou-se do rosto do cara.
– Nem pense nisso. Estabilize o que estiver quebrado e leve-a para o hospital veterinário de Tricounty. Entendido?
– Ela nunca mais correrá novamente... isso parece uma fratura múlti...
– Tire meu maldito cavalo da pista e leve-o ao Tricounty...
– Não vale a pena...
Many agarrou a jaqueta do veterinário e puxou o “Sr. Falar é Fácil” até ficarem face a face.
– Faça isso. Agora.
Houve um momento de incompreensão total, como se ser insultado fosse algo novo para o profissional teimoso.
E assim que os dois entenderam o que estava acontecendo, Manny rosnou:
– Não vou perdê-la, mas estou totalmente disposto a sacrificar você. Bem aqui. E agora.
O veterinário encolheu-se, afastando-se, como se soubesse que estava correndo perigo de levar um belo golpe.
– Certo... certo.
Manny não ia perder seu cavalo. Nos últimos doze meses, lamentou a perda da única mulher com quem se preocupou na vida, questionou sua sanidade e passou a se embebedar de uísque mesmo odiando a coisa.
Se Glory partisse agora... não sobraria muita coisa nessa vida, sobraria?
Algumas modalidades de esporte como o surfe e o jóquei e outras competições como o pôquer oferecem um prêmio especial na terceira vitória consecutiva, o Triple Crown. (N. da T.)
CAPÍTULO 2
CALDWELL, NOVA YORK
CENTRO DE TREINAMENTO,
COMPLEXO DA IRMANDADE
Caramba... Que droga... mas que inferno...
Vishous estava em pé no corredor do lado de fora da clínica médica da Irmandade com uma das mãos fechadas sobre os lábios e o polegar mexendo freneticamente em um tique irritante. No entanto, não havia nada a ser dito, não importava quantas vezes ele friccionasse o pequeno isqueiro.
Tic. Tic. Tic...
Com uma repulsa total, lançou a maldita coisa na lixeira e agarrou a luva revestida de chumbo que cobria sua mão. Ao tirar o pedaço de couro, olhou para a palma da mão brilhante, flexionando os dedos, arqueando-a em direção ao punho.
A coisa era em parte um lança-chamas, em parte uma bomba nuclear, capaz de derreter qualquer metal, transformar pedra em vidro e deixar em pedaços qualquer avião, trem ou automóvel que quisesse. Essa também era a razão pela qual conseguia fazer amor com sua shellan e um dos dois legados que sua mãe divina havia lhe dado.
E uma maldita segunda visão que era tão divertida quanto a rotina de lidar com a “mão da morte”.
Aproximando a arma mortal de seu rosto, acendeu a ponta do cigarro artesanal que fazia, mas não chegou perto demais ou prejudicaria seu sistema de envio de nicotina ao corpo e teria que desperdiçar seu tempo criando outro, curando-se. E não tinha paciência para isso mesmo em um dia bom, quanto mais em um momento como aquele...
Ah, a adorável tragada.
Encostando-se contra a parede, plantou suas botas de combate no chão de linóleo e fumou. Aquele prego de caixão não fez muito pela sua expressão deprimente, mas isso era melhor do que a opção que tinha passado por seus pensamentos nas últimas duas horas. Ao colocar a luva de volta pensou em sair dali com seu “dom” e incendiar alguma coisa, qualquer coisa...
Era mesmo sua irmã gêmea que estava do outro lado da parede? Deitada em uma cama de hospital... paralisada?
Jesus Cristo... Trezentos anos de idade e só então descobrir que se tem uma irmã.
Boa jogada, mamãe. Muito legal mesmo.
E pensar que ele achava ter resolvido todos os problemas com seus pais. Porém, apenas um deles estava morto. Se a Virgem Escriba seguisse pelo caminho de Bloodletter e descansasse em paz, talvez ele conseguisse encontrar um ponto de equilíbrio.
No entanto, pensando em como as coisas estavam e naquela tentativa absurda de Jane no mundo humano... Tudo aquilo estava fazendo com que ele...
Sim, não havia palavras para isso.
Pegou seu telefone celular. Verificou. Colocou de volta no bolso de sua jaqueta de couro. Caramba, isso era tão típico. Jane colocava seu foco em algo e isso era tudo. Nada mais importava.
Claro que ele era exatamente assim, mas em momentos como aquele, gostaria muito de ser atualizado.
Maldito sol. Prendia-o dentro de casa. Ao menos se estivesse com sua shellan não haveria possibilidade de o “grande” Manuel Manello negar alguma coisa. V. simplesmente golpearia o desgraçado, jogaria o corpo no Escalade e traria aquelas mãos talentosas até ali para operar Payne.
Para ele, o livre-arbítrio era um privilégio, não um direito.
Quando terminou de fumar o cigarro artesanal, apagou-o na sola de suas botas de combate e jogou a bituca no lixo. Queria muito uma bebida – exceto refrigerante ou água. Meio engradado de vodka o afastaria um pouco daquele abismo, mas com um pouco de sorte permitiriam que ele ajudasse na sala de cirurgia em breve, e precisava estar sóbrio para isso.
Entrando na sala de exames, os ombros ficaram tensos, os molares se fecharam e, por uma fração de segundo, não sabia o quanto mais poderia suportar. Se tinha uma coisa que o tirava do sério era quando sua mãe aprontava das suas, e era difícil imaginar algo pior do que a mentira de todas as mentiras.
O problema era que a vida não vinha com um “botão” de reiniciar, como o video game, que se pode pressionar quando ele trava por tentarem inserir alguma vantagem ou trapaça no jogo.
– Vishous?
Fechou os olhos por um instante ao som daquela voz suave e baixa.
– Sim, Payne – terminou a frase no Antigo Idioma. – Sou eu.
Cruzando a sala, reassumiu seu posto na banqueta com rodas ao lado da maca. Deitada embaixo de vários cobertores, Payne estava imobilizada, com a cabeça em um bloco e um colar cervical que ia do queixo à clavícula. Uma intravenosa ligava o braço dela a uma bolsa pendurada em uma extremidade de aço inoxidável e havia uma tubulação embaixo conectada ao cateter que Ehlena lhe dera.
Mesmo a sala de azulejos sendo clara, limpa e brilhante e os equipamentos e suprimentos médicos tão ameaçadores quanto xícaras e pires em uma cozinha, parecia que estavam em uma caverna suja cercados por ursos.
Seria tão bom se pudesse sair e matar o filho da mãe que tinha colocado sua irmã naquela condição. O problema era... isso significava que teria de acabar com Wrath, e que grande confusão essa morte traria. O maldito filho da mãe não era apenas o Rei, era um Irmão... e esse era o pequeno detalhe pelo qual a estadia dela ali havia sido consensual. As sessões de luta que os dois vinham travando nos últimos dois meses os deixaram em forma – e, claro, Wrath não fazia ideia com quem lutava, pois estava cego. Uma fêmea? Bem, dedução óbvia. As sessões aconteciam do Outro Lado e não havia machos por lá. Mas a falta de visão do Rei significava que ele perdia o que V. e todos os outros observavam ao entrarem naquela sala: a longa trança preta de Payne era da cor exata do cabelo de V. e sua pele do mesmo tom que a dele, tinha a mesma constituição: alta, magra e forte. Mas os olhos... cara, os olhos.
V. esfregou o rosto. Seu pai, Bloodletter, teve um número incontável de bastardos antes de ser assassinado em uma batalha contra redutores no Antigo País. Mas V. não se importava com nenhuma dessas relações aleatórias com as fêmeas.
Payne era diferente. Os dois tinham a mesma mãe e não era uma mahmen qualquer. Era a Virgem Escriba. A grande mãe da raça.
Era uma vadia, isso sim.
O olhar de Payne deslocou-se e a respiração de V. saiu com dificuldade. A íris que o encontrou era da cor de gelo branco, assim como a sua, e a borda azul-marinho em torno dela era algo que via todas as noites no espelho. E a inteligência... a inteligência que havia nas profundezas árticas daquela brancura era exatamente a mesma que havia dentro dele também.
– Não consigo sentir nada – Payne disse.
– Sei. – V. repetiu balançando a cabeça: – Eu sei.
Sua boca se contorceu e exibiu algo que poderia ter sido um sorriso em outras circunstâncias.
– Pode falar no idioma que quiser – disse com um inglês bem marcado. – Sou fluente em... muitos.
Ele também. O que significava que era incapaz de formular uma resposta em dezesseis línguas diferentes. Maravilha.
– Sua shellan... já lhe disse alguma coisa? – disse pausadamente.
– Não. Gostaria de tomar mais analgésicos? – Ela parecia mais fraca que da última vez que a vira.
– Não, obrigada. Eles fazem com que eu me sinta... estranha.
Essa frase foi seguida por um longo silêncio. Que ficou mais longo. E ainda mais longo.
Cristo, talvez ele devesse segurar a mão dela – afinal, ela podia sentir algo acima da cintura. Sim, mas o que poderia oferecer com essa atitude? Sua mão esquerda estava tremendo e a direita era mortal.
– Vishous, o tempo não está...
Quando sua irmã gêmea deixou a frase pairando no ar, ele a terminou mentalmente: do nosso lado.
Ele queria que ela estivesse errada. Contudo, quando se trata de lesões na coluna, assim como derrames e ataques cardíacos, boas oportunidades de recuperação são perdidas a cada minuto que o paciente passa sem tratamento.
Era melhor que aquele humano fosse tão bom quanto Jane havia dito.
– Vishous?
– Sim?
– Gostaria que eu não tivesse vindo até aqui?
Franziu a testa com força.
– De que diabos está falando? Claro que gostaria de ter você comigo.
Enquanto seu pé ficava batendo no chão de nervosismo, perguntou quanto tempo mais precisaria ficar antes que pudesse sair para outro cigarro. Simplesmente não ia conseguir respirar enquanto estivesse sentado ali, sem poder fazer nada enquanto sua irmã sofria e seu cérebro engasgava-se com as perguntas. Tinha um milhão de “o que?” e “por que” instalados em sua cabeça, só que não podia perguntar nada para ninguém. Parecia que Payne poderia entrar em coma a qualquer momento por causa da dor, portanto, não era uma boa hora para se fazer um social, cheio de perguntas, com direito a cafezinho.
Caramba, os vampiros podiam se curar como um relâmpago, mas não eram imortais.
Poderia muito bem perder sua irmã gêmea antes de sequer conhecê-la melhor.
Seguindo esse raciocínio, ele deu uma olhada para ver seus sinais vitais no monitor. A raça vampira tinha pressão sanguínea baixa, mas a dela estava quase ao nível do chão. A pulsação estava lenta e irregular, como uma bateria de escola de samba formada apenas por garotos brancos. E o sensor de oxigênio teve de ser silenciado, pois o alarme de alerta soava continuamente.
Quando seus olhos se fecharam, ele temeu que fosse a última vez... e o que havia feito por ela? Nada, exceto gritar quando lhe fizera uma pergunta.
Inclinou-se para mais perto dela, sentindo-se um idiota.
– Tem de aguentar firme, Payne. Estou tentando conseguir o que você precisa, mas você tem de ser forte.
As pálpebras de sua irmã ergueram-se e ela olhou para ele de sua cabeça imóvel.
– Trouxe muitos inconvenientes a sua casa.
– Não se preocupe comigo.
– Isso é o que sempre fiz.
V. franziu a testa outra vez. Era evidente que toda essa coisa de irmão/irmã era uma novidade apenas para ele. Tinha de descobrir como, diabos, ela sabia sobre ele.
E o que sabia.
Droga, lá estava outro momento em que desejaria ser menos durão.
– Está tão confiante nesse curandeiro que procura – ela murmurou.
Ah, não mesmo. A única coisa de que tinha certeza era que se o desgraçado a matasse haveria um funeral duplo naquela noite... assumindo que haveria alguma coisa restante do humano para enterrar ou queimar.
– Vishous?
– Minha shellan confia nele.
Os olhos de Payne ergueram-se e ficaram assim. Será que ela estava olhando para o teto?, V. se perguntou. Seria a lâmpada cirúrgica que havia sobre ela? Algo que ele não conseguia ver?
Num determinado momento, ela disse:
– Pergunte-me quanto tempo passei nas mãos de nossa mãe.
– Tem certeza de que tem forças para isso? – Quando ela olhou para tudo a seu redor, exceto para ele, quis sorrir. – Quanto tempo?
– Em que ano estamos na Terra? – Quando ele respondeu, seus olhos se arregalaram. – De fato. Bem, foram centenas de anos. Fui aprisionada pela nossa mahmen por... centenas de anos da minha vida.
Vishous sentiu as pontas de suas presas formigarem de raiva. Aquela mãe deles... Já deveria saber que a paz que tinha encontrado com sua fêmea não duraria muito.
– Está livre agora.
– Estou – olhou para baixo em direção às pernas. – Não conseguirei viver em outra prisão.
– Isso não vai acontecer.
Então, aquele olhar gélido tornou-se astuto.
– Não posso viver assim. Entende o que estou dizendo?
O interior dele congelou completamente.
– Ouça, vou trazer aquele médico até aqui e...
– Vishous – ela disse com voz rouca. – De fato, faria isso se pudesse, mas não posso e não há outra pessoa a quem possa recorrer. Você me entende?
Quando encontrou os olhos dela, quis gritar, suas entranhas se contorceram, gotas de suor brotaram em sua testa. Era um assassino por natureza e treinado para isso, mas aquela não era uma habilidade que tinha a intenção de praticar com alguém de seu sangue. Bem, tirando sua mãe, claro. Talvez seu pai, só que o cara tinha morrido por conta própria.
Certo, reformulando a frase: não era algo que exerceria com sua irmã.
– Vishous. Você...?
– Sim. – Olhou para baixo, para sua mão amaldiçoada e flexionou o maldito pedaço de seu corpo. – Eu entendo.
Dentro de sua pele, em sua essência, seu eixo interno começou a vibrar. Era o tipo de coisa pela qual se tornou intimamente familiarizado ao longo de sua vida... e também era um choque total. Não tinha sentido aquilo desde que Jane e Butch apareceram; e voltar a sentir era... terrível!
No passado, isso o levaria direto aos trilhos do sexo perigoso e hard-core, ficaria à beira do abismo.
Só que na velocidade do som.
A voz de Payne era fraca:
– O que me diz?
Droga, ele tinha acabado de conhecê-la.
– Sim – flexionou sua mão mortal. – Vou cuidar de você. Se chegarmos a isso.
Quando Payne olhou em direção à gaiola que era seu corpo meio-morto, o perfil sombrio de seu irmão gêmeo era tudo o que conseguia enxergar e desprezou-se pela posição em que o colocou. Gastou muito tempo desde que tinha chegado àquele lado tentando descobrir outra saída, outra opção, outra... qualquer coisa.
Mas o que ela precisava era algo que não se podia pedir a um estranho.
Por outro lado, ele era um estranho.
– Obrigada, meu irmão – ela disse.
Vishous assentiu com a cabeça uma vez e voltou a olhar para frente. Na verdade, ele era muito mais que a soma de suas características faciais e do enorme tamanho de seu corpo. Até bem pouco tempo atrás, quando aprisionada por sua mahmen, teve de observá-lo por muito tempo nas tigelas do santuário das Escolhidas e soube quem ele era no instante em que surgiu naquela água rasa; tudo o que teve de fazer foi olhar para ele e enxergar a si própria.
Que vida ele levou. Começando com o campo de guerra e a brutalidade de seu pai... e agora isso.
Sob sua postura fria, ele vociferava. Podia sentir em seus ossos uma ligação entre eles que lhe dava uma visão que ia além daquilo que seus olhos conseguiam lhe informar: por fora, estava contido como uma parede de tijolos, seus componentes todos em ordem e encaixados no lugar; no entanto, por dentro, ele fervia... e a dica externa era sua mão direita enluvada. Por baixo do acessório, uma luz brilhava... e ficava cada vez mais brilhante – especialmente depois que fizera o pedido.
Ela percebeu que aquele poderia ser o único momento que teriam juntos, e seus olhos fecharam-se outra vez.
– Está unido a uma fêmea curadora? – Ela murmurou.
– Sim.
Quando houve apenas silêncio, ela desejou poder encará-lo, mas ficou claro que respondeu apenas por educação. Ainda assim, acreditou nele quando disse que estava contente por estar ali. Ele não diria uma mentira assim, não por que se preocupasse com a moral ou a ética, mas sim porque viu que tal esforço seria um desperdício de tempo e energia.
Payne deitou seus olhos outra vez sobre a cabeça dele, que parecia ter um anel de fogo sobre ela. Desejou que segurasse sua mão ou a tocasse de alguma maneira, mas já havia feito pedidos demais.
Deitada sobre a maca com rodas, seu corpo parecia muito estranho, pesado e leve ao mesmo tempo, e sua única esperança eram os espasmos que corriam por suas pernas e faziam cócegas em seus pés, fazendo com que repuxassem. Certamente, se aquilo estava acontecendo nem tudo estava perdido, disse a si mesma.
Só que, mesmo quando acalentava tal pensamento, uma pequena e silenciosa parte de sua mente dizia que o telhado cognitivo que estava tentando construir não suportaria a chuva que estava prestes a cair em sua vida: quando movia as mãos, mesmo sem conseguir enxergá-las, podia sentir os lençóis frios e macios e a mesa lisa e gelada sobre a qual estava. Mas quando pedia que seus pés fizessem o mesmo... Era como se estivesse nas águas mornas e serenas das piscinas de banho do Outro Lado, encapsulada em um abraço invisível, sentindo absolutamente nada.
Onde estava aquele curandeiro?
O tempo... estava passando.
Quando a espera passou do insuportável para a extrema agonia, era difícil saber se a sensação de asfixia era devido a sua condição ou pelo silêncio da sala. Na verdade, ela e seu irmão gêmeo estavam mergulhados no silêncio... só que por razões muito diferentes: ela não iria a lugar algum, mesmo com muito entusiasmo; e ele estava prestes a explodir.
Desesperada por algum estímulo, alguma coisa, qualquer coisa, murmurou:
– Fale um pouco sobre o curandeiro que está chegando.
A brisa de ar frio que atingiu seu rosto e o aroma de especiarias escuras que percorreram seu nariz diziam que era um macho. Tinha de ser.
– É o melhor – Vishous murmurou. – Jane sempre fala dele como se fosse um deus. – O tom não era muito educado, mas o fato era que vampiros machos não gostavam muito de outros em torno de suas fêmeas.
Quem poderia ser esse dentre os machos da raça?, Payne perguntou-se. O único curandeiro que conseguira enxergar nas tigelas era Havers, e, com certeza, não havia razão alguma para procurarem por ele.
Talvez houvesse outro que ela não tinha observado; afinal, não passava tanto tempo tentando recuperar o atraso com o mundo e, de acordo com seu irmão gêmeo, haviam se passado muitos, muitos e muitos anos entre sua prisão e a liberdade...
De repente, a exaustão interrompeu sua linha de raciocínio, penetrando em sua medula, pressionando-a ainda mais sobre a mesa de metal.
No entanto, quando fechou os olhos, conseguiu suportar a escuridão apenas durante um rápido momento antes do pânico fazer suas pálpebras se abrirem. Enquanto estivera presa por sua mãe, tinha plena consciência de que poderia movimentar-se sem limites em um espaço livre; mas dentro daquele local opressivo, onde os minutos se arrastavam, aquela paralisia era muito parecida com o que tinha sofrido durante centenas de anos. Razão pela qual fizera aquele pedido terrível a Vishous. Não poderia ficar ali daquele lado apenas para reproduzir aquilo pelo que sempre havia lutado de maneira tão desesperada para escapar.
Lágrimas escorreram de seus olhos, fazendo com que a fonte de luz verde brilhante vacilasse. Como desejava que seu irmão segurasse sua mão...
– Por favor, não chore – disse Vishous. – Não... chore.
Na verdade, ficou surpresa por ele ter notado.
– Sim, você está certo. Chorar não cura nada.
Aumentando sua força de vontade, buscou ser forte, mas foi uma batalha. Embora seu conhecimento das artes medicinais fosse limitado, uma lógica simples anunciava onde estava o erro: como era de uma linhagem extremamente forte, seu corpo começou a recuperar-se no momento em que havia sido ferida na sessão de luta com o Rei Cego; contudo, o problema era que o processo regenerativo, que em uma situação comum salvaria sua vida, tornava sua condição ainda mais terrível – e era muito provável que aquilo fosse permanente.
Vértebras quebradas tentando se regenerar não conseguiam alcançar um resultado muito bom, e a paralisia em suas pernas era um testemunho desse fato.
– Por que fica olhando o tempo todo para sua mão? – ela perguntou, ainda olhando para a luz.
Houve um momento de silêncio, superior a todos os outros.
– Por que acha que estou fazendo isso?
Payne suspirou.
– Porque o conheço, meu irmão. Sei tudo sobre você.
Quando ele não disse nada, o silêncio era tão agradável quanto os inquéritos que havia no Antigo País.
Oh, o que será que ela havia desencadeado? E onde todos estariam quando tudo chegasse ao fim?
CAPÍTULO 3
Algumas vezes, a única maneira de se saber quão longe se foi é voltando ao ponto de onde se iniciou.
Quando Jane Whitcomb, médica, entrou no complexo hospitalar São Francisco, foi sugada de volta a sua antiga vida. De alguma maneira, foi uma viagem curta – há apenas um ano ela era a chefe do departamento de traumatologia daquele lugar, morava em um apartamento cheio de coisas de seus pais, passando vinte horas por dia correndo entre a emergência e as salas de cirurgia. Não mais.
Um indício certo de que a mudança era definitiva foi a maneira como ela entrou no centro cirúrgico: não havia razão para preocupar-se com as portas giratórias ou aquelas que precisavam ser empurradas na recepção. Ela atravessou as paredes de vidro e passou despercebida pelos seguranças que estavam no balcão. Fantasmas são bons nisso.
Desde que fora transformada, conseguia ir a lugares e ultrapassar coisas sem que ninguém fizesse ideia de que estava por perto. Mas também poderia ficar tão corpórea quanto a pessoa ao lado, assumindo uma forma sólida, de acordo com a sua vontade. Em dado momento era absolutamente etérea; em outro, era como a humana que havia sido, capaz de comer, amar e viver. Isso era uma grande vantagem ao exercer o cargo de cirurgiã particular da Irmandade.
Como agora, por exemplo: de que outra maneira ela seria capaz de se infiltrar no mundo dos humanos outra vez sem quase nenhum barulho?
Percorrendo o chão de pedra polida da recepção, passou pela parede de mármore onde estava inscrito o nome dos benfeitores e abriu caminho pela multidão de pessoas. Naquele congestionamento humano, muitos rostos eram familiares, desde o pessoal da administração até os médicos e enfermeiros com quem trabalhou durante anos. Mesmo anônimos, os pacientes estressados e suas famílias pareciam íntimos dela... de alguma maneira, as máscaras de tristeza e preocupação eram as mesmas, não importava quais fossem as características faciais que as moldavam.
Quando se dirigiu às escadas, estava buscando seu antigo chefe, e, Cristo, teve vontade de rir. Ao longo de todos aqueles anos trabalhando juntos, tinha surpreendido Manny Manello de muitas maneiras; mas aquilo ia superar vários acidentes de carro, avião ou uma explosão de edifício. Tudo isso junto.
Flutuando ao atravessar uma saída de emergência de metal, ela subiu a escada dos fundos. Os pés não tocavam os degraus, pairavam sobre eles enquanto subia como fumaça, sem esforço algum.
Aquilo tinha de funcionar. Tinha que convencer Manny a lhe acompanhar para cuidar daquela coluna lesionada, e ponto final. Não havia outras opções, nada de imprevistos, nada de virar à direita ou à esquerda naquela estrada: aquele era o passe final... e estava rezando para que o goleiro não pegasse aquela bola.
Que bom que ela tinha um bom desempenho sob pressão e que conhecia aquele homem como a palma de sua mão.
Manny aceitaria o desafio; mesmo isso não fazendo sentido algum para ele, ficaria lívido por saber que ela ainda estava “viva”. Além disso, não seria capaz de recusar ajuda a um paciente necessitado – simplesmente não estava programado para isso.
No décimo andar, atravessou outra parede e entrou na seção administrativa do departamento cirúrgico. O local era equipado como um escritório de advocacia, todo escuro, sombrio e luxuoso. Fazia sentido: o centro cirúrgico era uma fonte enorme de renda para qualquer hospital universitário, e o dinheiro era gasto para recrutar, manter e abrigar aqueles seres mimados e arrogantes que abriam pessoas para que elas sobrevivessem mais.
Dentre o grupo que operava com os bisturis no Hospital São Francisco, Manny Manello estava no topo da pirâmide, chefe não apenas de uma subespecialidade, como ela tinha sido, mas de todo o conjunto da obra. Isso significava que era uma estrela de cinema, um sargento e o presidente dos Estados Unidos ao mesmo tempo, tudo isso englobado em um cara com pouco mais de um metro e oitenta de altura. Tinha um temperamento terrível, uma inteligência impressionante e um pavio de mais ou menos um milímetro de comprimento, e isso em um dia bom. E seu trabalho era tão valioso quanto uma pedra preciosa.
As operações de maior rentabilidade do cara sempre foram aquelas feitas em atletas profissionais: ele tratou vários joelhos, quadris e ombros que teriam provocado muitos finais de carreira no futebol, baseball ou no hóquei. Mas também tinha muita experiência com tratamentos de coluna e, apesar da atuação de um neurocirurgião ser interessante se considerasse as radiografias de Payne, aquele era um problema ortopédico: se a medula espinhal fosse rompida, nada do que fizessem em termos neurológicos ajudaria. A ciência médica não tinha avançado tanto assim.
Quando dobrou a extremidade da mesa de recepção, teve de parar. À esquerda estava seu antigo escritório, o lugar onde passava horas incontáveis lidando com papéis e fazendo reuniões de consulta com Manny e o resto da equipe. Agora, lia-se o nome na placa fixada na porta: DR. THOMAS GOLDBERG, CIRUGIÃO-CHEFE DO DEPARTAMENTO DE TRAUMATOLOGIA.
Goldberg era uma excelente escolha; ainda assim, por alguma razão, doía ver o nome de outra pessoa ali.
Mas até parece. Esperava que Manny preservasse sua mesa e seu escritório como um monumento em homenagem a ela? A vida continua. A dela. A dele. A do hospital.
Voltando à realidade da situação, caminhou pelo corredor acarpetado. Mexia sempre em seu jaleco branco, com a caneta em seu bolso e com o celular que, até agora, não havia tido motivos para usar. Não havia tempo para explicar seu retorno do mundo dos mortos ou persuadir Manny ou ajudá-lo a entender o que estava prestes a expor; e não havia escolha, mas, de alguma forma, tinha de levá-lo com ela.
Em frente à porta fechada, preparou-se e, em seguida, atravessou...
Ele não estava atrás da mesa, ou trabalhando em algo na mesa de conferências da sala de reuniões.
Verificou rapidamente em seu banheiro privativo... nada ali também... não havia nenhuma umidade nas portas de vidro ou toalhas molhadas sobre a pia.
De volta ao escritório, ela respirou fundo... e o aroma suave de sua loção pós-barba pairando no ar a fez engolir em seco. Deus, sentia a falta dele.
Balançando a cabeça, andou ao redor da mesa e olhou a desordem. Arquivos de pacientes, pilhas de memorandos interdepartamentais, relatórios de Assistência ao Paciente e de Avaliação de Qualidade. Como era um pouco depois das cinco da tarde de um sábado, esperava encontrá-lo ali: as provas de seleção não eram realizadas nos finais de semana; então, a menos que estivesse de plantão ou lidando com um algum caso na traumatologia, deveria estar bem ali atrás daquela confusão de papéis. Manny era workaholic: trabalhava vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana.
Saindo do escritório, verificou a mesa de sua secretária. Nada ali também: seus compromissos eram mantidos no computador, protegidos por senha.
A próxima parada era o centro cirúrgico. O São Francisco tinha diferentes níveis de salas de operação, todas organizadas por especialidades. Ela foi diretamente à seção que ele costumava atuar. Olhando pelas janelas de vidro e portas duplas, viu que estavam operando uma terrível fratura múltipla. Embora os cirurgiões usassem máscaras e toucas, poderia dizer que nenhum deles era Manny. Seus ombros eram grandes o suficiente para esticar até mesmo o maior uniforme cirúrgico disponível e, além disso, as músicas que soavam ao fundo não eram o estilo dele. Mozart? Sem chance. Pop? Nem morto: Manny ouvia rock clássico e heavy metal. Aliás, se não fosse contra o protocolo, os enfermeiros usariam um protetor de ouvidos durante todos os procedimentos com ele.
Caramba... Onde diabos estava? Não havia conferências naquela época do ano e ele não tinha vida fora do hospital. As únicas opções que restavam era que estivesse no Commodore: desmaiado de cansaço no sofá de seu apartamento ou na academia do arranha-céu.
Quando saiu dali, pegou o celular e ligou para o sistema de atendimento do hospital.
– Sim, alô? – disse quando a ligação foi atendida. – Gostaria de falar com o Dr. Manuel Manello. Meu nome? – que droga! – Ah... Hannah. Hannah Whit. Pode retornar a ligação neste número.
Quando desligou, percebeu que não fazia ideia do que dizer caso ele retornasse a ligação, mas resolveu dar destaque ao pensamento positivo... e rezou para que tivesse a habilidade inata de realizar aquela tarefa. O fato era: se o sol baixasse no horizonte, um dos Irmãos sairia do complexo e faria algum trabalho mental em Manny para facilitar o processo de levá-lo até lá.
Contudo, não seria Vishous. Outra pessoa. Qualquer pessoa. Seus instintos diziam-lhe para deixar os dois tão afastados quanto possível: já tinham uma emergência médica em processo, e a última coisa de que precisava era de seu antigo patrão sendo pressionado porque seu marido tinha um instinto territorial e poderia decidir rachar, ele próprio, uma coluna a qualquer momento. Pouco antes de sua morte, Manny estava interessado em mais do que apenas uma associação profissional com ela; portanto, a menos que tivesse se casado com uma das Barbies que insistia em namorar, provavelmente ainda estava solteiro... E a regra dizia que o coração ficava ainda mais afeiçoado à pessoa ausente; então, seus sentimentos devem ter persistido.
Por outro lado, era possível que a insultasse sem piedade por mentir para ele sobre toda a coisa de estar “morta e enterrada”.
Pelo menos ele não se lembraria de nada daquilo; contudo, quanto a ela, temia nunca mais se esquecer das próximas vinte e quatro horas.
O Hospital Equino Tricounty era uma instalação de última geração em todos os sentidos. Localizado a quinze minutos do hipódromo de Aqueduct, o local tinha tudo, desde salas de operação e um serviço completo de quartos de recuperação até piscinas para hidroterapia e exames que forneciam imagens avançadas. E seu quadro de funcionários era composto por pessoas que viam os cavalos como muito mais do que uma fonte de lucros sobre quatro patas.
Na sala de cirurgia, Manny analisava as radiografias da perna dianteira de sua garota e desejou ser o único a entrar ali para resolver o problema: conseguia ver claramente as fissuras na imagem, mas isso não era o que o preocupava. Havia vários ligamentos que haviam sido rompidos e manchas acentuadas orbitando ao redor dos centros nervosos do osso alongado que mais pareciam luas ao redor de um planeta.
Só porque ela era de outra espécie não significava que não poderia fazer a operação. Assim que o anestesista fizesse seu trabalho em segurança, ele poderia cuidar do resto. Osso era sempre osso; mas não bancaria o idiota.
– O que acha? – perguntou.
– Minha opinião profissional – respondeu o veterinário-chefe – é de que está muito ruim. É uma fratura múltipla deslocada. O tempo de recuperação será extenso e não é possível garantir que ela sequer possa reproduzir.
O que era uma zica total: cavalos foram feitos para ficar em pé com seu peso distribuído sobre quatro pontos de maneira uniforme. Quando uma perna era quebrada, não se tratava tanto da lesão em si, mas o fato de que era preciso redistribuir o peso e contar, desproporcionalmente, com as partes que ainda estavam boas no corpo para ficar em pé. E esse era o grande problema.
Ao considerar aquilo que examinava, a maioria dos proprietários escolheria a eutanásia; mas sua garota tinha nascido para correr, e aquela lesão catastrófica faria disso impossível, mesmo se fosse apenas para o lazer... isso se ela sobrevivesse. Como médico, estava muito familiarizado com a crueldade do trabalho “salvador” de seus colegas que acabavam levando o paciente a viver em condições piores do que a morte – ou não faziam nada além de prolongar, de maneira dolorosa, o inevitável.
– Dr. Manello? O senhor ouviu o que eu disse?
– Sim. Ouvi. – Pelo menos aquele cara, ao contrário do idiota na pista, parecia tão arrasado quanto Manny.
Afastando-se, foi até onde a deitaram e colocou uma das mãos sobre sua bochecha arredondada. Sua pelagem negra brilhava sob a iluminação e, em meio ao cenário de ladrilho claro e aço inoxidável, parecia uma sombra projetada ao acaso e esquecida no centro da sala.
Por um longo momento, observou como sua grande caixa torácica expandia-se e contraía-se com a respiração. Só de vê-la na maca com as belas pernas esticadas como bastões e sua cauda pendendo sobre o ladrilho fê-lo perceber que animais como ela deveriam ficar em pé: aquilo que via era completamente contrário à natureza, e injusto.
Mantê-la viva apenas para que não tivesse de enfrentar sua morte não era a resposta certa.
Preparando-se para a situação, Manny abriu a boca...
A vibração dentro do bolso de seu terno o interrompeu. Com um palavrão, tirou o celular e verificou. Era do hospital. Hannah Whit? Com um número desconhecido?
Não era ninguém que conhecesse e ele não estava de plantão.
Provavelmente um erro do atendimento.
– Quero que opere – ouviu-se dizendo enquanto guardava o telefone de volta.
O curto silêncio que se seguiu deu-lhe tempo de sobra para perceber que impedi-la de partir cheirava a covardia. Mas não poderia insistir naquele melodrama psíquico ou perderia a sanidade.
– Não posso garantir nada. – O veterinário voltou a olhar as radiografias. – Não sei dizer o que vai acontecer, mas posso jurar que... farei meu melhor.
Deus, agora sabia como as famílias se sentiam quando dizia isso a elas.
– Obrigado. Posso assistir?
– Com certeza. Vou pegar algo para o senhor vestir e sabe como fazer a higienização antisséptica, certo, doutor?
Vinte minutos depois, a operação começou e Manny assistiu próximo à cabeça de Glory, acariciando sua crina com as mãos envolvidas com as luvas de látex, mesmo sedada. Enquanto o veterinário-chefe trabalhava, Manny teve de tirar o chapéu para a metodologia e habilidade daquele homem... as únicas coisas corretas desde que Glory havia caído. O procedimento terminou em menos de uma hora, com os fragmentos ósseos ou removidos ou encaixados no devido lugar. Então, imobilizaram a perna, retiraram a égua da sala de cirurgia e a colocaram em uma piscina para que não quebrasse outra perna quando o efeito da anestesia passasse.
Manny ficou com ela até que acordasse e, em seguida, acompanhou o veterinário até o corredor.
– Os sinais vitais são bons e correu tudo bem na operação – o veterinário disse –, mas essa vitalidade pode mudar rapidamente. E vai levar tempo até sabermos o que conseguimos alcançar.
Nossa. Aquele pequeno discurso era exatamente o que dizia aos familiares mais próximos e outros parentes quando achava que era hora de irem para casa descansar e esperar como o paciente reagiria ao pós-operatório.
– Ligaremos para o senhor – falou o veterinário. – Vamos mantê-lo informado.
Manny tirou as luvas e pegou seu cartão de visitas.
– No caso de ainda não terem todos os meus dados nos registros.
– Temos sim – de qualquer forma, pegou o papel. – Se alguma coisa mudar, será o primeiro a saber, e lhe darei as informações pessoalmente, a cada doze horas, que é o intervalo entre as minhas rondas, quando passo visitando todos os leitos.
Manny assentiu e estendeu a mão.
– Obrigado. Por cuidar dela.
– Por nada.
Depois de apertarem as mãos, Manny assentiu outra vez junto às portas duplas.
– Importa-se se eu me despedir dela?
– Não. Pode ir.
Dentro do quarto outra vez, passou um momento com sua égua. Deus... aquilo doía.
– Segure firme, garota – teve de sussurrar, pois não conseguia respirar direito.
Quando se ergueu, a equipe o observava com uma tristeza que sabia que ia permanecer.
– Vamos cuidar dela. – o veterinário disse gravemente.
Acreditava mesmo que cuidariam e foi a única coisa que o levou de volta ao corredor.
As instalações do Tricounty eram extensas e precisou de um tempo considerável para trocar de roupa e seguir seu caminho até a saída onde tinha estacionado, próximo à porta da frente. À frente, o sol se punha, um brilho de um tom pêssego se espalhava, iluminando o céu como se Manhattan estivesse em chamas. O ar estava frio, mas perfumado, pois o início da primavera esforçava-se para trazer vida à paisagem árida do inverno, e ele respirou tão fundo que ficou tonto. Deus, o tempo tinha passado como uma neblina, mas agora, com os minutos se arrastando, percebeu que aquele ritmo frenético tinha esgotado sua fonte de energia. Era isso ou tinha batido contra um muro de tijolos e desmaiado.
Enquanto procurava a chave do carro, sentiu-se mais velho do que Deus. Sua cabeça estava dando fortes pontadas e sua artrite no quadril o estava matando. Aquela corrida que havia empreendido para chegar à pista e ficar ao lado de Glory ia além de seus limites.
Não foi assim que imaginou o final do dia. Achou que estaria comprando bebidas para os proprietários que tinha derrotado... E talvez, no resplendor da vitória, seguisse a generosa sugestão oral da Sra. Hanson.
Ao entrar no carro, ligou o motor. Caldwell estava a mais ou menos quarenta e cinco minutos ao norte de Queens, e seu carro conseguia fazer a viagem de volta ao Commodore praticamente sozinho. Isso era muito bom, pois era quase um zumbi naquele momento. Nada de rádio. Nenhuma música no iPod. Ninguém telefonando também.
Ao pegar a estrada, observou o caminho à frente e lutou contra o impulso de dar meia-volta e... sim, e fazer o quê? Descansar em paz ao lado de seu cavalo?
A questão era: se conseguisse chegar em casa logo, poderia conseguir ajuda. Tinha uma garrafa de uísque esperando por ele e poderia ou não ir com calma ao usá-la. Até onde dizia respeito ao hospital, estava de folga até segunda pela manhã, às seis horas, e tinha planos de ficar bêbado e permanecer assim.
Guiando o volante revestido de couro com uma das mãos, procurou, com a outra, em meio a sua camisa de seda, sua representação do Cristo crucificado. Segurando a cruz de ouro, fez uma oração.
Deus... por favor, permita que ela fique bem.
Não poderia suportar perder outra de suas garotas. Não tão cedo. Jane Whitcomb tinha morrido há um ano, mas isso era o que o calendário dizia. O tempo do luto era diferente – nele havia transcorrido apenas um minuto e meio.
Não queria passar por isso outra vez.
CONTINUA
1761, ANTIGO PAÍS
Xcor viu seu pai sendo morto após cinco anos de sua transição. Aconteceu diante de seus olhos, mas, mesmo com a proximidade, não poderia imaginar o que houve.
A noite começou como qualquer outra, a escuridão caiu sobre a paisagem de florestas e cavernas, as nuvens encobriam a luz da lua para ele e para aqueles que viajavam a cavalo com ele. Seu grupo de soldados era composto por seis homens fortes: Throe, Zypher, os três primos e ele próprio. E seu pai.
Bloodletter.
Antigo membro da Irmandade da Adaga Negra.
O que os fez sair naquela noite foi o que os chamava ao serviço após cada pôr de sol: procuravam redutores, aquelas armas sem alma de Ômega, que achou por bem exterminar a raça vampira. E os encontravam. Frequentemente.
Mas aqueles sete machos não eram membros da Irmandade.
Ao contrário dos aclamados Irmãos, eram um grupo secreto de guerreiros. Aquele grupo de bastardos liderados por Bloodletter não era nada além de soldados: sem cerimônias. Nada de serem adorados pela população civil. Nada de louvores. A linhagem deles poderia ser aristocrática, mas todos foram abandonados por seus familiares por terem nascido com defeitos ou fora de um acasalamento santificado.
Nunca seriam outra coisa senão pedaços de carne dispensáveis dentro da grande guerra pela sobrevivência.
Porém, mesmo isso sendo verdade, eram a elite dos soldados, os mais cruéis, os braços mais fortes, aqueles que foram provados ao longo do tempo pelo feitor mais rígido da raça: o pai de Xcor. Escolhidos a dedo e com sabedoria, esses homens eram mortais contra o inimigo e não seguiam nenhum código de conduta quando se tratava da sociedade vampira. Também não seguiam nenhum código quando se tratava de matar alguém: não importava se a presa era um assassino, um humano, um animal ou um lobo. Sangue seria derramado.
Eles fizeram um, e apenas um, juramento: seu pai era o senhor deles e ninguém mais. Aonde quer que ele fosse, eles iriam, e isso era tudo. Muito mais simples que toda aquela porcaria elaborada pela Irmandade – mesmo Xcor sendo um candidato por linhagem, não teve interesse em ser um Irmão. Não se importava com a glória, uma vez que nada se comparava ao doce prazer do assassinato. Melhor deixar de lado a tradição inútil e o ritual desgastado para aqueles que se recusam a empunhar qualquer outra coisa que não seja uma adaga negra.
Usaria qualquer arma disponível.
E seu pai faria o mesmo.
O clamor dos cascos abrandou e depois ficaram em silêncio quando os lutadores saíram da floresta em um enclave de carvalhos e arbustos. A fumaça das lareiras das casas pairava na brisa, mas não havia nenhuma outra confirmação de que tinham chegado, finalmente, à pequena cidade que procuravam: no alto, sobre um íngreme penhasco, havia um castelo fortificado que se apresentava como uma águia empoleirada, sua fundação era como garras fincadas na rocha.
Humanos. Guerreando entre si.
Que entediante.
Ainda assim, era preciso respeitar a construção. Talvez, se Xcor se estabelecesse algum dia, massacraria a dinastia daquele lugar e tomaria posse daquela fortaleza. Muito mais eficiente roubar que construir.
– Para a aldeia – seu pai ordenou. – Avancemos para a diversão.
A notícia era de que havia redutores ali, as bestas pálidas misturavam-se e confundiam-se com os moradores do vilarejo que tinham escavado lotes de terra e construído casas de pedra à sombra do castelo.
Isso era uma típica estratégia de recrutamento da Sociedade: infiltrar-se em uma cidade, tomar os machos um a um, assassinar ou vender as mulheres e crianças, fugir com armas e cavalos e mudar-se para uma localidade próxima em maior número.
Xcor tinha a mesma mentalidade do inimigo nesse aspecto: quando acabava de lutar, sempre pegava tudo o que podia antes de dirigir-se para a próxima batalha. Noite após noite, Bloodletter e seus soldados abriam caminho ao longo do território que os seres humanos chamavam de Inglaterra e, quando alcançavam a ponta do território escocês, viravam-se e colocavam-se em direção oposta, indo sempre para o sul, até chegarem ao calcanhar da Itália, quando davam meia-volta outra vez. Em seguida, percorriam novamente os muitos quilômetros que tinham caminhado até ali. E faziam isso de novo. E mais outra vez.
– Deixemos nossas provisões aqui. – disse Xcor, apontando para uma árvore de tronco grosso, que havia caído sobre um riacho.
Enquanto faziam a transferência dos modestos suprimentos, não havia nada além do ranger de couro e do bufar ocasional de um garanhão. Quando tudo estava guardado sob o flanco do carvalho abatido, montaram outra vez sobre seus animais e reuniram os cavalos de raça – que eram as únicas coisas de valor, além de armas, que possuíam. Xcor não via utilidade em objetos de beleza ou conforto – para ele, eram nada além de um peso que o induzia à queda. Um cavalo forte e um punhal afiado? Isso sim tinha um valor inestimável.
Enquanto os sete andavam até a aldeia, não fizeram qualquer esforço para silenciar as batidas dos cascos de seus cavalos. Contudo, não houve gritos de guerra. Era um desperdício de energia, seus inimigos não precisavam de um convite para vir saudá-los. O único ato de boas-vindas foi um humano ou dois espiando para fora de suas portas e, em seguida, voltando rapidamente a trancarem-se em seus domicílios. Xcor os ignorou. Em vez de importar-se com isso, examinou as casas baixas de pedra, a praça central e as lojas de comércio fortificadas, procurando por alguma forma bípede, pálida como um fantasma e fedendo como um cadáver revestido em melado.
Seu pai andou até ele e sorriu com um toque de maldade.
– Talvez possamos colher os frutos dos jardins por aqui mais tarde.
– Talvez. – murmurou Xcor enquanto seu cavalo jogava a cabeça para trás. Na verdade, não estava muito interessado em deitar-se com fêmeas ou subjugar machos, mas não se podia negar nada a seu pai, mesmo quando se tratava de suas extravagâncias na hora do lazer.
Sinalizando com as mãos, Xcor direcionou três de seu grupo para a esquerda, onde havia uma pequena estrutura com uma cruz em cima de seu telhado pontiagudo. Ele e os outros seguiriam à direita. Seu pai faria o que quisesse. Como sempre.
Forçar os garanhões a permanecer em um galope contínuo era uma tarefa que desafiava até mesmo o mais vigoroso dos braços, mas estava acostumado com o cabo de guerra e sentou-se com firmeza na sela. Com um propósito sombrio, seus olhos penetraram as sombras produzidas pelo luar, procurando, sondando...
O grupo de assassinos que saiu do abrigo de ferragens possuía uma grande quantidade de armas.
– Cinco – Zypher rosnou. – Bendita noite.
– Três – Xcor interrompeu. – Dois ainda são seres humanos... porém, matar esses dois... também será um prazer.
– Qual devemos atacar, meu senhor? – Seu irmão de armas disse com um grande respeito que era dedicado por merecimento e não por ser o primogênito.
– Os humanos – Xcor disse, deslocando-se para frente e preparando-se para o momento em que incitaria seu cavalo a partir. – Se há outros redutores por perto, isso os atrairia ainda mais.
Estimulando o grande animal e afundando-se na sela, sorriu quando os redutores mantiveram-se firmes com suas correntes e armamentos. No entanto, as duas pessoas junto a eles não ficariam tão firmes. Embora os dois estivessem equipados para lutar, dariam meia-volta e correriam quando vissem a primeira exibição de presas como cavalos assustados por um tiro de canhão, razão pela qual deu um solavanco de forma abrupta para a direita logo após galopar apenas alguns passos. Atrás da cabana do ferreiro, puxou as rédeas e desmontou do corcel. Seu garanhão era um animal selvagem, mas obediente quando tratava-se de desmontar e aguardar...
Uma fêmea humana irrompeu pela porta dos fundos, sua camisola branca era como uma faixa brilhante na escuridão, enquanto esforçava-se para ficar em pé sobre a lama. No instante em que ela o viu, ficou paralisada de terror.
Reação lógica: ele era duas vezes o tamanho dela, talvez três, e não estava vestido para dormir, mas para a guerra. Quando a mão da fêmea ergueu-se até a garganta, ele farejou o ar e sentiu seu perfume. Hummm, talvez seu pai gostasse daquela flor de jardim...
Quando o pensamento lhe ocorreu, soltou um rosnado baixo que incitou a moça a uma corrida desenfreada; a visão da tentativa de fuga fez o predador dentro dele vir à tona. Com uma sede de sangue percorrendo suas entranhas, lembrou-se que havia se passado semanas desde que tinha se alimentado de alguém de sua espécie e, apesar daquela garota ser apenas uma humana, poderia ser o suficiente para aquela noite.
Infelizmente, não havia tempo para se divertir naquele momento... Apesar disso, seu pai iria atrás dela mais tarde, com certeza. Se Xcor precisava de um pouco de sangue para vencer as dificuldades, conseguiria tal fonte com aquela mulher, ou com qualquer outra.
Dando as costas para a fuga, parou com firmeza sobre o chão e desembainhou a arma escolhida: embora as adagas servissem, preferiu a foice, cabo longo e modificado para um coldre amarrado em suas costas. Era especialista em empunhar aquele grande peso e sorriu enquanto manejava ao vento a lâmina cruel e curvada, esperando para jogar a rede sobre aqueles dois peixes que, com certeza, estavam nadando até ele...
Ah, sim, como era bom estar certo.
Logo após uma luz brilhante surgir e um estalo eclodir da passagem principal, os dois humanos vieram gritando em direção aos fundos da casa do ferreiro como se estivessem sendo perseguidos por carrascos.
Mas estavam errados, não? O carrasco estava esperando ali.
Xcor não gritou ou amaldiçoou. Sequer rosnou. Começou a correr com a foice, havia um equilíbrio uniforme entre as duas mãos enquanto as coxas poderosas encurtavam a distância. Só de olhar para ele, os humanos derraparam em suas botas, braços soltos, como asas de patos pousando sobre a água.
O tempo pareceu desacelerar quando caiu sobre eles, sua arma favorita fez um grande círculo, atingindo os dois na altura do pescoço.
As cabeças foram decepadas com um golpe único e limpo. Os rostos surpresos brilharam e desapareceram à medida que a parte removida do corpo girava, o sangue espirrou e salpicou no peito de Xcor. Com a ausência de crânios, a parte inferior dos corpos caíram sobre o chão com uma graça curiosa e líquida, aterrissando inanimados com os membros retorcidos.
Agora sim ele gritava.
Virando-se, Xcor fixou suas botas de couro na lama, respirou fundo e soltou um rosnado enquanto manejava a foice, o aço avermelhado pedia mais sangue. Apesar de suas presas serem meros seres humanos, o impulso de matar era superior a um orgasmo, a sensação de que havia tirado uma vida e deixado cadáveres para trás percorria seu corpo como uma bebida alcoólica.
Chamou seu cavalo assoviando, que foi até ele rapidamente após o comando. Com um salto, montou na sela, a foice erguida em sua mão direita enquanto lidava com as rédeas com a esquerda. Dando um golpe com força, incitou o corcel ao galope, percorrendo rapidamente um caminho estreito e sujo e emergindo no auge da batalha.
Seus colegas lutavam com todas as forças, o som das espadas colidindo e gritos bombardearam a noite quando o demônio encontrou seu inimigo. E assim como Xcor havia previsto, mais uma meia dúzia de redutores veio correndo a toda velocidade sobre seus garanhões de raça, como leões que foram libertos para defender seu território.
Xcor entrou em cena e avançou contra o inimigo, envolvendo as rédeas no punho e brandindo a foice enquanto o cavalo corria em direção aos outros com os dentes à mostra. Sangue negro e partes de corpos voaram quando passou por entre os adversários, ele e seu cavalo trabalhavam como uma unidade naquele ataque.
Quando atingiu mais um assassino com sua lâmina e o cortou ao meio na altura do peito, soube que tinha nascido para fazer isso, era a maior e melhor maneira de usar seu tempo sobre a terra. Era um assassino, não um defensor.
Não lutava pela raça... mas por si mesmo.
Tudo aconteceu muito depressa, a névoa noturna rondava os redutores caídos, que contorciam-se em poças do próprio sangue oleoso e negro. Houve poucos feridos dentre o grupo de Xcor. Throe tinha um corte no ombro, feito por alguma lâmina. Zypher estava mancando, uma mancha vermelha escorria de sua perna, ensopando a bota. Nenhum deles estava mais lento ou mesmo preocupado.
Xcor deteve o cavalo, desmontou e voltou a colocar a foice no coldre. Sacou a adaga de aço e começou sua ronda para esfaquear os assassinos, lamentou o processo que enviava o inimigo de volta a seu criador. Queria mais luta, não menos...
Um grito ecoou e ele ergueu a cabeça. A mulher humana de camisola estava correndo pela estrada de terra batida do vilarejo, seu corpo pálido em uma fuga desgovernada, como se tivesse sido expulsa de um esconderijo. Logo atrás dela, o pai de Xcor montou em seu cavalo e galopou rápido; o corpo maciço de Bloodletter pendia em um dos lados da sela quando a alcançou. Na verdade, não houve, de fato, uma corrida: quando ficou ao lado dela, pegou-a com o braço e atirou-a sobre seu colo.
Não houve parada, nem mesmo uma diminuição da velocidade depois da captura, mas uma marca foi feita: com seu cavalo galopando a toda velocidade e a humana se debatendo, o pai de Xcor ainda conseguiu atingir a garganta delgada com suas presas, prendendo-se no pescoço da mulher como se fosse detê-la apenas com os caninos.
Ela teria morrido. Com certeza, ela teria morrido.
Se Bloodletter não tivesse morrido primeiro.
De fora do turbilhão do nevoeiro surgiu uma figura fantasmagórica como se fosse formada pelos filamentos de umidade que percorriam o ar. E no momento que Xcor viu o espectro, estreitou os olhos e valeu-se de seu olfato aguçado.
Parecia ser uma mulher. De sua espécie. Vestida com uma túnica branca.
E seu cheiro lembrou-o de algo que não conseguiu localizar.
Ela foi diretamente ao encontro de seu pai, mas parecia não ter a menor preocupação com o cavalo ou com o guerreiro sádico que logo viria atrás dela. No entanto, seu pai estava fascinado por ela. No instante em que a notou, largou a humana como se não fosse nada além de um osso do qual já houvesse comido toda a carne.
Isso estava errado, Xcor pensou. De fato, ele era um macho de ação e poder e dificilmente um membro do sexo frágil o intimidaria... mas tudo em seu corpo advertia que aquela entidade etérea era perigosa. Letal.
– Ei! Pai! – gritou. – Vire-se!
Xcor assoviou para seu cavalo, que atendeu ao comando. Montando sobre a sela, estimulou os flancos do animal, lançando-se a toda velocidade para que pudesse cruzar o caminho do pai, um pânico estranho o incitando.
Tarde demais. Seu pai lançou-se sobre a fêmea, que agachou-se lentamente.
Meu Deus, ela ia saltar por cima do...
Com um impulso coordenado, ela flutuou no ar e pegou a perna de seu pai, usando-a para montar sobre o cavalo de um salto. Então, agarrou o sólido peitoral de Bloodletter, saltou para um lado e levou o macho ao chão com ela, como se fossem apenas um. A investida poderosa desafiava a questão de ser do sexo feminino e sua natureza espectral.
Ora, não era um fantasma, mas um ser de carne e osso.
O que significava que poderia ser morta.
Enquanto Xcor preparava-se para lançar seu garanhão contra eles, a fêmea soltou um grito nada feminino: mais ao estilo do grito de guerra de Xcor, o berro trespassou o ruído dos cascos trovejantes abaixo dele e os sons do grupo que reunia-se para combater aquele ataque inesperado.
Contudo, não havia necessidade de uma intercessão imediata.
Seu pai, após o choque de ser tirado de sua sela, rolou de costas, desembainhou seu punhal e rosnou como um animal. Com uma maldição, Xcor freou e interrompeu o resgate, pois, com certeza, seu pai assumiria o controle. Bloodletter não era o tipo de homem a quem se ajudava – havia agredido Xcor por isso no passado, uma lição que foi duramente aprendida e que sempre seria lembrada.
Ainda assim, desmontou e aproximou-se da situação para reagir no caso de haver mais alguma “Valquíria” saindo do meio da floresta.
E foi assim que ele a ouviu, claramente, dizer um nome.
– Vishous.
A raiva de seu pai deu lugar a uma breve confusão. E antes que pudesse retomar sua autodefesa, a figura fantasmagórica começou a brilhar com uma luz profana.
– Pai! – Xcor gritou ao aproximar-se correndo.
Mas era tarde. E o contato foi feito.
Chamas irromperam sobre o rosto rude e barbado de seu pai e tomaram seu corpo, como se fosse feno seco. E com a mesma graça que ela o derrubou, a fêmea saltou para trás e observou enquanto seu pai tentava apagar o fogo debatendo-se freneticamente, sem sucesso. No meio da noite, ele gritava enquanto era queimado vivo, suas roupas de couro não ofereceram proteção alguma para sua pele e músculos.
Não havia chance alguma de aproximar-se o suficiente do fogo e Xcor derrapou até parar, levantando o braço para se proteger e curvando-se para se afastar do calor que ficava exponencialmente mais intenso.
Durante todo o tempo, a fêmea ficou sobre o corpo que se contorcia e tinha espasmos... O brilho laranja iluminava o rosto belo e cruel.
A vadia estava sorrindo.
E foi então que ela ergueu o rosto para ele. Quando Xcor teve uma visão correta de seu rosto, recusou-se, em um primeiro momento, a acreditar no que via. Ainda assim, o brilho das chamas não mentia.
Xcor observava uma versão feminina de Bloodletter. O mesmo cabelo negro, a mesma pele e olhos claros. A mesma estrutura óssea. Além disso, a mesma luz vingativa em seu olhar violento, aquele arrebatamento e satisfação ao causar uma morte era uma combinação que Xcor conhecia muito bem.
Ela partiu logo em seguida, desaparecendo na neblina de uma maneira que não condizia com a desmaterialização de sua espécie, mas, sim, fez isso como um sopro de fumaça, desvanecendo-se devagar em princípio e, em seguida, rápida e definitivamente.
Assim que sentiu-se capaz, Xcor correu para seu pai, mas não havia mais nada a ser salvo... mal havia algo para ser enterrado. Afundando os joelhos diante dos ossos fumegantes e do fedor de queimado, teve um momento de fraqueza deplorável: lágrimas derramaram-se dos olhos. Bloodletter tinha sido um bruto, mas como sua única descendência masculina, Xcor e ele eram bem próximos... Na verdade, eram quase membros de um mesmo corpo.
– Por tudo o que é mais sagrado – Zypher disse com voz rouca –, o que foi isso?
Xcor piscou com força antes de olhar por cima do ombro.
– Ela o matou.
– Sim. E fez mais alguma coisa.
Quando o grupo de bastardos aproximou-se dele, um a um, Xcor teve de pensar no que dizer, no que fazer.
Erguendo-se com firmeza, quis chamar seu cavalo, mas sua boca estava seca demais para assoviar.
Seu pai... um inimigo e, ao mesmo tempo, seu porto seguro, estava morto. Morto. E aconteceu tão rápido, rápido demais.
Por uma fêmea.
Seu pai havia partido.
Quando conseguiu, olhou para cada um dos machos diante dele, os dois montados nos cavalos, os dois em pé e o que estava a sua direita. Com uma nítida percepção, soube que não importava o que o destino tivesse reservado, seria moldado pelo que havia acontecido naquele momento, aqui, agora.
Não havia se preparado para isso, mas não se afastaria do que deveria fazer:
– Ouçam bem, pois só direi uma vez. Ninguém vai dizer nada. Meu pai morreu em uma batalha contra o inimigo. Eu o queimei para homenageá-lo e mantê-lo sempre comigo. Jurem isso para mim agora.
Os bastardos com quem ele vivia e lutava há muito tempo juraram e depois que suas vozes profundas desvaneceram-se no ar noturno, Xcor inclinou-se e passou os dedos pelas cinzas. Erguendo as mãos até o rosto, traçou uma listra com a fuligem desde as bochechas até as grossas veias que percorriam cada lado do pescoço... em seguida, acariciou o crânio duro que era tudo o que havia restado de seu pai. Segurando os restos carbonizados que ainda soltavam fumaça, reivindicou os soldados a sua frente como seus.
– Sou o único senhor agora. Liguem-se a mim neste momento ou serão meus inimigos. O que me dizem?
Não houve hesitação alguma. Os machos se ajoelharam, retiraram suas adagas e irromperam o grito de guerra antes de enterrarem as lâminas na terra a seus pés.
Xcor observou as cabeças inclinadas e sentiu que um manto caía-lhe sobre os ombros. Bloodletter estava morto. Sem vida, seria transformado em lenda a partir daquela noite.
E, seguindo o que é certo e apropriado, o filho substituiria o pai agora, comandando aqueles soldados que não serviriam a Wrath, o rei que não os governava; nem à Irmandade, que não se dignificava a descer àquele nível... Serviriam a Xcor e somente a ele.
– Vamos seguir na direção de onde a fêmea veio – anunciou. – Vamos encontrá-la mesmo que levem séculos, pois ela deve pagar por aquilo que fez esta noite. – Nesse momento, Xcor conseguiu assoviar alto e claro para seu cavalo. – Levarei, pessoalmente, a morte ao esconderijo daquela fêmea.
Subindo em seu cavalo, reuniu as rédeas e incitou o grande animal a cruzar a noite. Seu grupo de bastardos entrou em formação e o seguiu, disposto a morrer por ele.
Enquanto trovejava ao sair da aldeia, colocou o crânio de seu pai dentre as roupas de couro que usava nas batalhas, bem em cima do coração.
Aquela vingança seria sua. Mesmo que o matasse.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/9_AMANTE_LIBERTADA.jpg
CAPÍTULO 1
DIAS ATUAIS
HIPÓDROMO DE AQUEDUCT, QUEENS, NOVA YORK
– Quero enlouquecer você.
O Dr. Manny Manello virou a cabeça para a direita e olhou para a mulher que tinha falado com ele. Não foi a primeira vez que tinha ouvido essas palavras e a boca pela qual elas saíram tinha silicone suficiente para preencher uma boa almofada. Mas, ainda assim, foi uma surpresa.
Candance Hanson sorriu para ele e ajeitou seu chapéu retrô com uma mão bem manicurada. Aparentemente, ela tinha decidido que a combinação de dama refinada com uma dose de atrevimento era atraente – e talvez fosse, para alguns rapazes.
Caramba, em outro momento de sua vida, ele provavelmente teria dado em cima dela seguindo a teoria do “por que não?”. Agora? Seguia a ideia do “não é pra tanto”.
Sem se deixar abater pela falta de entusiasmo do médico, ela inclinou-se para frente, exibindo um par de seios que não exatamente desafiava a gravidade. Na verdade, aquilo era mais como mostrar o dedo médio, insultar a mãe e pisar no calo de alguém – uma falta de educação.
– Sei de um lugar aonde poderíamos ir.
Ele apostava que sim.
– A corrida já vai começar.
Ela fez beicinho. Ou talvez fosse o efeito das aplicações para aumentar os lábios. Deus, há dez anos ela devia ter um rosto jovem; agora, os anos tinham adicionado uma pátina de desespero nela – junto ao processo normal de envelhecimento, contra o qual ela lutava como um boxeador.
– Depois, então.
Manny afastou-se sem responder, sem saber exatamente como ela tinha conseguido entrar na área dos proprietários. Deveria ter sido na confusão que havia para voltar àquele local depois de selarem os cavalos – e, sem dúvida, estava acostumada a entrar em lugares que, tecnicamente, não lhe eram permitidos: Candance era um daqueles tipos sociais de Manhattan que só se diferenciava de uma prostituta por não ter um cafetão e, de muitas maneiras, era como uma vespa qualquer: ignorava o incômodo causado e ia pousar em outra coisa.
Ou em outra pessoa, como era o caso.
Erguendo o braço para mantê-la distante, Manny inclinou-se sobre o corrimão da cabine e esperou que sua garota saísse para a pista. Tinha sido colocada na parte externa, e isso era bom: preferia não ficar muito perto dos outros e percorrer uma distância extra nunca a incomodou.
O hipódromo de Aqueduct, no Queens, Nova York, não tinha o prestígio de um Belmont ou Pimlico ou do venerável pai de todos os hipódromos, o Churchill Downs. Contudo, não era de se jogar fora. A instalação tinha uma arena de quase três quilômetros, uma pista de turfe e outra para corridas de curta distância. A capacidade total era de, aproximadamente, nove hectares. A comida era medíocre, mas ninguém ia até lá para comer e havia algumas corridas grandes, como a daquele dia: a Wood Memorial Stakes tinha uma bolsa de 750 mil dólares e, como era realizada em abril, era uma boa referência para os candidatos ao prêmio Triple Crown...*
Ah, sim, lá estava ela. Lá estava sua garota.
Quando os olhos de Manny fixaram-se em GloryGloryAllelujah, o barulho da multidão, a luz brilhante daquele dia e a fila vacilante composta pelos outros cavalos desapareceram. Tudo o que ele via era sua magnífica égua negra, sua capa capturava a luz do sol e reluzia, as pernas finas se flexionavam, os cascos delicados erguiam-se e voltavam a pousar na pista de areia. Como ela media quase um metro e setenta, o jóquei parecia um pequeno mosquito em suas costas, e essa diferença de tamanho representava a divisão do poder. Ela deixou isso claro desde o primeiro dia de treinamento: poderia tolerar os pequenos seres humanos, mas estavam apenas a passeio na corrida. Ela estava no comando.
Seu temperamento dominador já havia lhe custado dois treinadores. O terceiro? O cara parecia um pouco frustrado, mas era apenas seu senso de controle que estava sendo espancado até a morte: Glory destacava-se e isso, simplesmente, não tinha nada a ver com ele. E Manny não tinha a menor preocupação com os egos inflados de homens que dominavam cavalos a vida inteira. Sua garota era uma lutadora, sabia o que estava fazendo, e ele não tinha o menor problema em deixá-la assumir o controle. Queria apenas assisti-la divertir-se ao acabar com a concorrência.
Quando seus olhos a encontraram, lembrou-se do otário de quem a tinha comprado há pouco mais de um ano. Aqueles vinte mil dólares tinham sido um roubo, considerando sua linhagem, também uma fortuna se pensasse no temperamento dela, e ainda não estava claro se conseguiria autorização para correr. Era uma égua indisciplinada de um ano de idade que já esteve prestes a ser afastada. Ou pior: de ser transformada em comida de cachorro.
Mas ele acertou. Desde que a deixasse liderar e comandar o show, era um espetáculo.
Quando a formação de cavalos aproximou-se do portão, alguns começaram a bater os cascos e a bufar, mas sua garota estava firme, como se soubesse que era inútil desperdiçar energia antes do jogo. Ele achava que as chances eram boas apesar da posição no pódio, pois o jóquei montado em seu dorso era uma estrela: sabia exatamente como lidar com ela e, nesse sentido, era mais responsável pelo sucesso da garota do que os outros treinadores. Sua estratégia era apenas certificar-se de que ela conhecia os melhores percursos, deixá-la escolher e ir.
Manny levantou-se e segurou o corrimão de ferro pintado na frente dele, juntando-se à multidão que saía de seus assentos, e começava a exibir uma quantidade incontável de binóculos. Quando seu coração começou a bater forte, ficou contente, pois fora dali encontrava-se muito próximo do sedentarismo, ultimamente. A vida que levava estava em um estágio de entorpecimento terrível no último ano ou um pouco mais, e talvez essa fosse a razão pela qual aquela égua era tão importante para ele.
Talvez ela também fosse tudo o que ele tinha.
Não era bem assim.
No portão, havia um movimento frenético: quando se trata de amontoar quinze cavalos fortes com patas da espessura de varetas e com glândulas adrenais disparando como obus em minúsculas caixas de metal, você não perde tempo. Em mais ou menos um minuto, o campo foi fechado e as pistas foram restringidas pelos trilhos.
Uma batida de coração.
Um sino.
Bang.
Os portões foram abertos, a multidão rugiu e os cavalos avançaram como se tivessem sido lançados de bocas de canhões. As condições eram perfeitas. Clima seco. Frio. Estavam a toda velocidade na pista.
Não que sua garota se importasse com isso. Correria na areia movediça se fosse necessário.
Os cavalos puros-sangues trovejaram, o som dos cascos e a voz do locutor chicoteavam energia nas arquibancadas a ponto de ficarem em um estado de êxtase. Porém, Manny manteve a calma, permanecendo com as mãos firmadas no trilho na frente dele e seus olhos sobre o campo, enquanto o grupo de cavalos fazia a primeira curva em uma confusão tensa de dorsos e caudas.
O telão mostrava-lhe tudo o que precisava ver. Sua égua estava na penúltima posição, apenas galopando enquanto todos os outros empreendiam uma corrida mortal – inferno, seu pescoço sequer estava totalmente estendido. No entanto, o jóquei estava fazendo seu trabalho, facilitando o caminho dela para avançar na pista, dando-lhe a opção de correr ao redor do grupo ou cortar caminho através deles quando estivesse pronta.
Manny sabia exatamente o que ela iria fazer. Entraria pela direita em meio aos outros cavalos como uma bola de demolição.
Era o jeito dela.
E foi assim que, quando os outros abriram distância, ela começou a pegar fogo. A cabeça baixa, o pescoço alongado, seu passo começou a acelerar.
– Caramba – Manny sussurrou. – Você consegue, garota.
Quando Glory adentrou a pista verde, transformou-se em um raio de luz que ultrapassava os outros corredores, a explosão de velocidade era tão poderosa que qualquer um se perguntaria se aquilo não era de propósito: apenas vencê-los não era o suficiente, ela tinha que fazer isso no último quilômetro, deixando as selas dos outros bastardos na poeira, no último minuto possível.
Manny riu do fundo da garganta. Ela era seu tipo de garota.
– Meu Deus, Manello, olha só como ela avança.
Manny assentiu com a cabeça sem olhar para o cara que falou em seu ouvido, pois a liderança do grupo estava mudando: o potro que estava à frente perdia sua força, ficando para trás quando suas pernas pareceram ficar sem combustível. Em resposta a isso, o jóquei o golpeou, chicoteando-lhe o traseiro – algo que obteve o mesmo sucesso de quando alguém amaldiçoa um carro cujo tanque esvaziou. O potro que estava em segundo lugar, um animal grande e castanho com jeito de mau e um passo que poderia englobar um campo de futebol, aproveitou imediatamente a desaceleração, e seu jóquei permitiu que o cavalo estendesse sua cabeça totalmente.
Os dois ficaram emparelhados por apenas um segundo antes que o cavalo castanho assumisse a liderança da corrida. Mas não seria por muito tempo. A garota de Manny tinha escolhido seu momento para contornar os três cavalos e fazer com que ele ficasse totalmente tenso.
Sim, Glory fazia o que tinha nascido para fazer, orelhas unidas à cabeça, dentes expostos.
Ela ia roubar o doce da boca daquele garanhão. E era impossível não extrapolar e pensar que participariam de corridas importantes como a Kentucky Derby...
Tudo aconteceu tão rápido.
Tudo chegou ao fim... em um piscar de olhos.
Com um golpe intencional, o potro bateu em Glory, o impacto brutal enviou-a para os trilhos. Sua garota era grande e forte, mas não poderia suportar um contato corporal assim, não quando corria a mais de sessenta quilômetros por hora.
Por uma fração de segundo, Manny ficou convencido de que ela se reergueria. Apesar da maneira como inclinou-se e cambaleou, esperava que encontrasse um ponto de equilíbrio e desse uma lição de boas maneiras àquele bastardo.
Só que ela caiu. Bem na frente dos três cavalos que tinha ultrapassado.
O massacre foi imediato, os cavalos mudaram totalmente a direção para evitar o obstáculo no caminho, os jóqueis seguraram as rédeas com força na esperança de permanecerem montados.
Todos fizeram isso. Exceto Glory.
Quando a multidão exclamou, Manny lançou-se para frente, ultrapassando os limites da cerca e saltando sobre as pessoas, cadeiras e barricadas até chegar à pista.
Além dos trilhos. Na arena.
Correu até ela. Anos de prática do atletismo levaram-no a uma velocidade vertiginosa até o cerne daquela situação.
Ela estava tentando se levantar. Mas que coração grande e feroz... estava lutando para erguer-se do chão, seus olhos encarando o grupo como se não desse a mínima por estar ferida; só queria pegar de jeito aqueles que a deixaram na poeira.
Tragicamente, sua perna dianteira tinha outros planos: enquanto se debatia, a perna direita vacilava na altura do joelho; e Manny não precisava de sua experiência como ortopedista para saber que ela tinha um problema.
Um problemão.
Ao aproximar-se dela, viu que o jóquei estava em lágrimas.
– Dr. Manello, eu tentei... Oh, Deus...
Manny escorregou na areia e arremeteu-se em direção às rédeas enquanto os veterinários aproximavam-se e o telão voltava-se para o drama.
Quando três homens de uniforme aproximaram-se dela, seus olhos não emitiam mais aquele sentimento selvagem... passaram a expressar dor e confusão. Manny fez o possível para acalmá-la, permitindo que balançasse com força a cabeça o quanto quisesse enquanto acariciava seu pescoço. Ela se acalmou quando lhe deram um tranquilizante.
Ao menos a tentativa desesperadora de andar, mesmo mancando, cessou.
O veterinário-chefe olhou para a perna e balançou a cabeça, algo que no mundo das corridas era um sinal universal para “será necessário sacrificá-la”.
Manny aproximou-se do rosto do cara.
– Nem pense nisso. Estabilize o que estiver quebrado e leve-a para o hospital veterinário de Tricounty. Entendido?
– Ela nunca mais correrá novamente... isso parece uma fratura múlti...
– Tire meu maldito cavalo da pista e leve-o ao Tricounty...
– Não vale a pena...
Many agarrou a jaqueta do veterinário e puxou o “Sr. Falar é Fácil” até ficarem face a face.
– Faça isso. Agora.
Houve um momento de incompreensão total, como se ser insultado fosse algo novo para o profissional teimoso.
E assim que os dois entenderam o que estava acontecendo, Manny rosnou:
– Não vou perdê-la, mas estou totalmente disposto a sacrificar você. Bem aqui. E agora.
O veterinário encolheu-se, afastando-se, como se soubesse que estava correndo perigo de levar um belo golpe.
– Certo... certo.
Manny não ia perder seu cavalo. Nos últimos doze meses, lamentou a perda da única mulher com quem se preocupou na vida, questionou sua sanidade e passou a se embebedar de uísque mesmo odiando a coisa.
Se Glory partisse agora... não sobraria muita coisa nessa vida, sobraria?
Algumas modalidades de esporte como o surfe e o jóquei e outras competições como o pôquer oferecem um prêmio especial na terceira vitória consecutiva, o Triple Crown. (N. da T.)
CAPÍTULO 2
CALDWELL, NOVA YORK
CENTRO DE TREINAMENTO,
COMPLEXO DA IRMANDADE
Caramba... Que droga... mas que inferno...
Vishous estava em pé no corredor do lado de fora da clínica médica da Irmandade com uma das mãos fechadas sobre os lábios e o polegar mexendo freneticamente em um tique irritante. No entanto, não havia nada a ser dito, não importava quantas vezes ele friccionasse o pequeno isqueiro.
Tic. Tic. Tic...
Com uma repulsa total, lançou a maldita coisa na lixeira e agarrou a luva revestida de chumbo que cobria sua mão. Ao tirar o pedaço de couro, olhou para a palma da mão brilhante, flexionando os dedos, arqueando-a em direção ao punho.
A coisa era em parte um lança-chamas, em parte uma bomba nuclear, capaz de derreter qualquer metal, transformar pedra em vidro e deixar em pedaços qualquer avião, trem ou automóvel que quisesse. Essa também era a razão pela qual conseguia fazer amor com sua shellan e um dos dois legados que sua mãe divina havia lhe dado.
E uma maldita segunda visão que era tão divertida quanto a rotina de lidar com a “mão da morte”.
Aproximando a arma mortal de seu rosto, acendeu a ponta do cigarro artesanal que fazia, mas não chegou perto demais ou prejudicaria seu sistema de envio de nicotina ao corpo e teria que desperdiçar seu tempo criando outro, curando-se. E não tinha paciência para isso mesmo em um dia bom, quanto mais em um momento como aquele...
Ah, a adorável tragada.
Encostando-se contra a parede, plantou suas botas de combate no chão de linóleo e fumou. Aquele prego de caixão não fez muito pela sua expressão deprimente, mas isso era melhor do que a opção que tinha passado por seus pensamentos nas últimas duas horas. Ao colocar a luva de volta pensou em sair dali com seu “dom” e incendiar alguma coisa, qualquer coisa...
Era mesmo sua irmã gêmea que estava do outro lado da parede? Deitada em uma cama de hospital... paralisada?
Jesus Cristo... Trezentos anos de idade e só então descobrir que se tem uma irmã.
Boa jogada, mamãe. Muito legal mesmo.
E pensar que ele achava ter resolvido todos os problemas com seus pais. Porém, apenas um deles estava morto. Se a Virgem Escriba seguisse pelo caminho de Bloodletter e descansasse em paz, talvez ele conseguisse encontrar um ponto de equilíbrio.
No entanto, pensando em como as coisas estavam e naquela tentativa absurda de Jane no mundo humano... Tudo aquilo estava fazendo com que ele...
Sim, não havia palavras para isso.
Pegou seu telefone celular. Verificou. Colocou de volta no bolso de sua jaqueta de couro. Caramba, isso era tão típico. Jane colocava seu foco em algo e isso era tudo. Nada mais importava.
Claro que ele era exatamente assim, mas em momentos como aquele, gostaria muito de ser atualizado.
Maldito sol. Prendia-o dentro de casa. Ao menos se estivesse com sua shellan não haveria possibilidade de o “grande” Manuel Manello negar alguma coisa. V. simplesmente golpearia o desgraçado, jogaria o corpo no Escalade e traria aquelas mãos talentosas até ali para operar Payne.
Para ele, o livre-arbítrio era um privilégio, não um direito.
Quando terminou de fumar o cigarro artesanal, apagou-o na sola de suas botas de combate e jogou a bituca no lixo. Queria muito uma bebida – exceto refrigerante ou água. Meio engradado de vodka o afastaria um pouco daquele abismo, mas com um pouco de sorte permitiriam que ele ajudasse na sala de cirurgia em breve, e precisava estar sóbrio para isso.
Entrando na sala de exames, os ombros ficaram tensos, os molares se fecharam e, por uma fração de segundo, não sabia o quanto mais poderia suportar. Se tinha uma coisa que o tirava do sério era quando sua mãe aprontava das suas, e era difícil imaginar algo pior do que a mentira de todas as mentiras.
O problema era que a vida não vinha com um “botão” de reiniciar, como o video game, que se pode pressionar quando ele trava por tentarem inserir alguma vantagem ou trapaça no jogo.
– Vishous?
Fechou os olhos por um instante ao som daquela voz suave e baixa.
– Sim, Payne – terminou a frase no Antigo Idioma. – Sou eu.
Cruzando a sala, reassumiu seu posto na banqueta com rodas ao lado da maca. Deitada embaixo de vários cobertores, Payne estava imobilizada, com a cabeça em um bloco e um colar cervical que ia do queixo à clavícula. Uma intravenosa ligava o braço dela a uma bolsa pendurada em uma extremidade de aço inoxidável e havia uma tubulação embaixo conectada ao cateter que Ehlena lhe dera.
Mesmo a sala de azulejos sendo clara, limpa e brilhante e os equipamentos e suprimentos médicos tão ameaçadores quanto xícaras e pires em uma cozinha, parecia que estavam em uma caverna suja cercados por ursos.
Seria tão bom se pudesse sair e matar o filho da mãe que tinha colocado sua irmã naquela condição. O problema era... isso significava que teria de acabar com Wrath, e que grande confusão essa morte traria. O maldito filho da mãe não era apenas o Rei, era um Irmão... e esse era o pequeno detalhe pelo qual a estadia dela ali havia sido consensual. As sessões de luta que os dois vinham travando nos últimos dois meses os deixaram em forma – e, claro, Wrath não fazia ideia com quem lutava, pois estava cego. Uma fêmea? Bem, dedução óbvia. As sessões aconteciam do Outro Lado e não havia machos por lá. Mas a falta de visão do Rei significava que ele perdia o que V. e todos os outros observavam ao entrarem naquela sala: a longa trança preta de Payne era da cor exata do cabelo de V. e sua pele do mesmo tom que a dele, tinha a mesma constituição: alta, magra e forte. Mas os olhos... cara, os olhos.
V. esfregou o rosto. Seu pai, Bloodletter, teve um número incontável de bastardos antes de ser assassinado em uma batalha contra redutores no Antigo País. Mas V. não se importava com nenhuma dessas relações aleatórias com as fêmeas.
Payne era diferente. Os dois tinham a mesma mãe e não era uma mahmen qualquer. Era a Virgem Escriba. A grande mãe da raça.
Era uma vadia, isso sim.
O olhar de Payne deslocou-se e a respiração de V. saiu com dificuldade. A íris que o encontrou era da cor de gelo branco, assim como a sua, e a borda azul-marinho em torno dela era algo que via todas as noites no espelho. E a inteligência... a inteligência que havia nas profundezas árticas daquela brancura era exatamente a mesma que havia dentro dele também.
– Não consigo sentir nada – Payne disse.
– Sei. – V. repetiu balançando a cabeça: – Eu sei.
Sua boca se contorceu e exibiu algo que poderia ter sido um sorriso em outras circunstâncias.
– Pode falar no idioma que quiser – disse com um inglês bem marcado. – Sou fluente em... muitos.
Ele também. O que significava que era incapaz de formular uma resposta em dezesseis línguas diferentes. Maravilha.
– Sua shellan... já lhe disse alguma coisa? – disse pausadamente.
– Não. Gostaria de tomar mais analgésicos? – Ela parecia mais fraca que da última vez que a vira.
– Não, obrigada. Eles fazem com que eu me sinta... estranha.
Essa frase foi seguida por um longo silêncio. Que ficou mais longo. E ainda mais longo.
Cristo, talvez ele devesse segurar a mão dela – afinal, ela podia sentir algo acima da cintura. Sim, mas o que poderia oferecer com essa atitude? Sua mão esquerda estava tremendo e a direita era mortal.
– Vishous, o tempo não está...
Quando sua irmã gêmea deixou a frase pairando no ar, ele a terminou mentalmente: do nosso lado.
Ele queria que ela estivesse errada. Contudo, quando se trata de lesões na coluna, assim como derrames e ataques cardíacos, boas oportunidades de recuperação são perdidas a cada minuto que o paciente passa sem tratamento.
Era melhor que aquele humano fosse tão bom quanto Jane havia dito.
– Vishous?
– Sim?
– Gostaria que eu não tivesse vindo até aqui?
Franziu a testa com força.
– De que diabos está falando? Claro que gostaria de ter você comigo.
Enquanto seu pé ficava batendo no chão de nervosismo, perguntou quanto tempo mais precisaria ficar antes que pudesse sair para outro cigarro. Simplesmente não ia conseguir respirar enquanto estivesse sentado ali, sem poder fazer nada enquanto sua irmã sofria e seu cérebro engasgava-se com as perguntas. Tinha um milhão de “o que?” e “por que” instalados em sua cabeça, só que não podia perguntar nada para ninguém. Parecia que Payne poderia entrar em coma a qualquer momento por causa da dor, portanto, não era uma boa hora para se fazer um social, cheio de perguntas, com direito a cafezinho.
Caramba, os vampiros podiam se curar como um relâmpago, mas não eram imortais.
Poderia muito bem perder sua irmã gêmea antes de sequer conhecê-la melhor.
Seguindo esse raciocínio, ele deu uma olhada para ver seus sinais vitais no monitor. A raça vampira tinha pressão sanguínea baixa, mas a dela estava quase ao nível do chão. A pulsação estava lenta e irregular, como uma bateria de escola de samba formada apenas por garotos brancos. E o sensor de oxigênio teve de ser silenciado, pois o alarme de alerta soava continuamente.
Quando seus olhos se fecharam, ele temeu que fosse a última vez... e o que havia feito por ela? Nada, exceto gritar quando lhe fizera uma pergunta.
Inclinou-se para mais perto dela, sentindo-se um idiota.
– Tem de aguentar firme, Payne. Estou tentando conseguir o que você precisa, mas você tem de ser forte.
As pálpebras de sua irmã ergueram-se e ela olhou para ele de sua cabeça imóvel.
– Trouxe muitos inconvenientes a sua casa.
– Não se preocupe comigo.
– Isso é o que sempre fiz.
V. franziu a testa outra vez. Era evidente que toda essa coisa de irmão/irmã era uma novidade apenas para ele. Tinha de descobrir como, diabos, ela sabia sobre ele.
E o que sabia.
Droga, lá estava outro momento em que desejaria ser menos durão.
– Está tão confiante nesse curandeiro que procura – ela murmurou.
Ah, não mesmo. A única coisa de que tinha certeza era que se o desgraçado a matasse haveria um funeral duplo naquela noite... assumindo que haveria alguma coisa restante do humano para enterrar ou queimar.
– Vishous?
– Minha shellan confia nele.
Os olhos de Payne ergueram-se e ficaram assim. Será que ela estava olhando para o teto?, V. se perguntou. Seria a lâmpada cirúrgica que havia sobre ela? Algo que ele não conseguia ver?
Num determinado momento, ela disse:
– Pergunte-me quanto tempo passei nas mãos de nossa mãe.
– Tem certeza de que tem forças para isso? – Quando ela olhou para tudo a seu redor, exceto para ele, quis sorrir. – Quanto tempo?
– Em que ano estamos na Terra? – Quando ele respondeu, seus olhos se arregalaram. – De fato. Bem, foram centenas de anos. Fui aprisionada pela nossa mahmen por... centenas de anos da minha vida.
Vishous sentiu as pontas de suas presas formigarem de raiva. Aquela mãe deles... Já deveria saber que a paz que tinha encontrado com sua fêmea não duraria muito.
– Está livre agora.
– Estou – olhou para baixo em direção às pernas. – Não conseguirei viver em outra prisão.
– Isso não vai acontecer.
Então, aquele olhar gélido tornou-se astuto.
– Não posso viver assim. Entende o que estou dizendo?
O interior dele congelou completamente.
– Ouça, vou trazer aquele médico até aqui e...
– Vishous – ela disse com voz rouca. – De fato, faria isso se pudesse, mas não posso e não há outra pessoa a quem possa recorrer. Você me entende?
Quando encontrou os olhos dela, quis gritar, suas entranhas se contorceram, gotas de suor brotaram em sua testa. Era um assassino por natureza e treinado para isso, mas aquela não era uma habilidade que tinha a intenção de praticar com alguém de seu sangue. Bem, tirando sua mãe, claro. Talvez seu pai, só que o cara tinha morrido por conta própria.
Certo, reformulando a frase: não era algo que exerceria com sua irmã.
– Vishous. Você...?
– Sim. – Olhou para baixo, para sua mão amaldiçoada e flexionou o maldito pedaço de seu corpo. – Eu entendo.
Dentro de sua pele, em sua essência, seu eixo interno começou a vibrar. Era o tipo de coisa pela qual se tornou intimamente familiarizado ao longo de sua vida... e também era um choque total. Não tinha sentido aquilo desde que Jane e Butch apareceram; e voltar a sentir era... terrível!
No passado, isso o levaria direto aos trilhos do sexo perigoso e hard-core, ficaria à beira do abismo.
Só que na velocidade do som.
A voz de Payne era fraca:
– O que me diz?
Droga, ele tinha acabado de conhecê-la.
– Sim – flexionou sua mão mortal. – Vou cuidar de você. Se chegarmos a isso.
Quando Payne olhou em direção à gaiola que era seu corpo meio-morto, o perfil sombrio de seu irmão gêmeo era tudo o que conseguia enxergar e desprezou-se pela posição em que o colocou. Gastou muito tempo desde que tinha chegado àquele lado tentando descobrir outra saída, outra opção, outra... qualquer coisa.
Mas o que ela precisava era algo que não se podia pedir a um estranho.
Por outro lado, ele era um estranho.
– Obrigada, meu irmão – ela disse.
Vishous assentiu com a cabeça uma vez e voltou a olhar para frente. Na verdade, ele era muito mais que a soma de suas características faciais e do enorme tamanho de seu corpo. Até bem pouco tempo atrás, quando aprisionada por sua mahmen, teve de observá-lo por muito tempo nas tigelas do santuário das Escolhidas e soube quem ele era no instante em que surgiu naquela água rasa; tudo o que teve de fazer foi olhar para ele e enxergar a si própria.
Que vida ele levou. Começando com o campo de guerra e a brutalidade de seu pai... e agora isso.
Sob sua postura fria, ele vociferava. Podia sentir em seus ossos uma ligação entre eles que lhe dava uma visão que ia além daquilo que seus olhos conseguiam lhe informar: por fora, estava contido como uma parede de tijolos, seus componentes todos em ordem e encaixados no lugar; no entanto, por dentro, ele fervia... e a dica externa era sua mão direita enluvada. Por baixo do acessório, uma luz brilhava... e ficava cada vez mais brilhante – especialmente depois que fizera o pedido.
Ela percebeu que aquele poderia ser o único momento que teriam juntos, e seus olhos fecharam-se outra vez.
– Está unido a uma fêmea curadora? – Ela murmurou.
– Sim.
Quando houve apenas silêncio, ela desejou poder encará-lo, mas ficou claro que respondeu apenas por educação. Ainda assim, acreditou nele quando disse que estava contente por estar ali. Ele não diria uma mentira assim, não por que se preocupasse com a moral ou a ética, mas sim porque viu que tal esforço seria um desperdício de tempo e energia.
Payne deitou seus olhos outra vez sobre a cabeça dele, que parecia ter um anel de fogo sobre ela. Desejou que segurasse sua mão ou a tocasse de alguma maneira, mas já havia feito pedidos demais.
Deitada sobre a maca com rodas, seu corpo parecia muito estranho, pesado e leve ao mesmo tempo, e sua única esperança eram os espasmos que corriam por suas pernas e faziam cócegas em seus pés, fazendo com que repuxassem. Certamente, se aquilo estava acontecendo nem tudo estava perdido, disse a si mesma.
Só que, mesmo quando acalentava tal pensamento, uma pequena e silenciosa parte de sua mente dizia que o telhado cognitivo que estava tentando construir não suportaria a chuva que estava prestes a cair em sua vida: quando movia as mãos, mesmo sem conseguir enxergá-las, podia sentir os lençóis frios e macios e a mesa lisa e gelada sobre a qual estava. Mas quando pedia que seus pés fizessem o mesmo... Era como se estivesse nas águas mornas e serenas das piscinas de banho do Outro Lado, encapsulada em um abraço invisível, sentindo absolutamente nada.
Onde estava aquele curandeiro?
O tempo... estava passando.
Quando a espera passou do insuportável para a extrema agonia, era difícil saber se a sensação de asfixia era devido a sua condição ou pelo silêncio da sala. Na verdade, ela e seu irmão gêmeo estavam mergulhados no silêncio... só que por razões muito diferentes: ela não iria a lugar algum, mesmo com muito entusiasmo; e ele estava prestes a explodir.
Desesperada por algum estímulo, alguma coisa, qualquer coisa, murmurou:
– Fale um pouco sobre o curandeiro que está chegando.
A brisa de ar frio que atingiu seu rosto e o aroma de especiarias escuras que percorreram seu nariz diziam que era um macho. Tinha de ser.
– É o melhor – Vishous murmurou. – Jane sempre fala dele como se fosse um deus. – O tom não era muito educado, mas o fato era que vampiros machos não gostavam muito de outros em torno de suas fêmeas.
Quem poderia ser esse dentre os machos da raça?, Payne perguntou-se. O único curandeiro que conseguira enxergar nas tigelas era Havers, e, com certeza, não havia razão alguma para procurarem por ele.
Talvez houvesse outro que ela não tinha observado; afinal, não passava tanto tempo tentando recuperar o atraso com o mundo e, de acordo com seu irmão gêmeo, haviam se passado muitos, muitos e muitos anos entre sua prisão e a liberdade...
De repente, a exaustão interrompeu sua linha de raciocínio, penetrando em sua medula, pressionando-a ainda mais sobre a mesa de metal.
No entanto, quando fechou os olhos, conseguiu suportar a escuridão apenas durante um rápido momento antes do pânico fazer suas pálpebras se abrirem. Enquanto estivera presa por sua mãe, tinha plena consciência de que poderia movimentar-se sem limites em um espaço livre; mas dentro daquele local opressivo, onde os minutos se arrastavam, aquela paralisia era muito parecida com o que tinha sofrido durante centenas de anos. Razão pela qual fizera aquele pedido terrível a Vishous. Não poderia ficar ali daquele lado apenas para reproduzir aquilo pelo que sempre havia lutado de maneira tão desesperada para escapar.
Lágrimas escorreram de seus olhos, fazendo com que a fonte de luz verde brilhante vacilasse. Como desejava que seu irmão segurasse sua mão...
– Por favor, não chore – disse Vishous. – Não... chore.
Na verdade, ficou surpresa por ele ter notado.
– Sim, você está certo. Chorar não cura nada.
Aumentando sua força de vontade, buscou ser forte, mas foi uma batalha. Embora seu conhecimento das artes medicinais fosse limitado, uma lógica simples anunciava onde estava o erro: como era de uma linhagem extremamente forte, seu corpo começou a recuperar-se no momento em que havia sido ferida na sessão de luta com o Rei Cego; contudo, o problema era que o processo regenerativo, que em uma situação comum salvaria sua vida, tornava sua condição ainda mais terrível – e era muito provável que aquilo fosse permanente.
Vértebras quebradas tentando se regenerar não conseguiam alcançar um resultado muito bom, e a paralisia em suas pernas era um testemunho desse fato.
– Por que fica olhando o tempo todo para sua mão? – ela perguntou, ainda olhando para a luz.
Houve um momento de silêncio, superior a todos os outros.
– Por que acha que estou fazendo isso?
Payne suspirou.
– Porque o conheço, meu irmão. Sei tudo sobre você.
Quando ele não disse nada, o silêncio era tão agradável quanto os inquéritos que havia no Antigo País.
Oh, o que será que ela havia desencadeado? E onde todos estariam quando tudo chegasse ao fim?
CAPÍTULO 3
Algumas vezes, a única maneira de se saber quão longe se foi é voltando ao ponto de onde se iniciou.
Quando Jane Whitcomb, médica, entrou no complexo hospitalar São Francisco, foi sugada de volta a sua antiga vida. De alguma maneira, foi uma viagem curta – há apenas um ano ela era a chefe do departamento de traumatologia daquele lugar, morava em um apartamento cheio de coisas de seus pais, passando vinte horas por dia correndo entre a emergência e as salas de cirurgia. Não mais.
Um indício certo de que a mudança era definitiva foi a maneira como ela entrou no centro cirúrgico: não havia razão para preocupar-se com as portas giratórias ou aquelas que precisavam ser empurradas na recepção. Ela atravessou as paredes de vidro e passou despercebida pelos seguranças que estavam no balcão. Fantasmas são bons nisso.
Desde que fora transformada, conseguia ir a lugares e ultrapassar coisas sem que ninguém fizesse ideia de que estava por perto. Mas também poderia ficar tão corpórea quanto a pessoa ao lado, assumindo uma forma sólida, de acordo com a sua vontade. Em dado momento era absolutamente etérea; em outro, era como a humana que havia sido, capaz de comer, amar e viver. Isso era uma grande vantagem ao exercer o cargo de cirurgiã particular da Irmandade.
Como agora, por exemplo: de que outra maneira ela seria capaz de se infiltrar no mundo dos humanos outra vez sem quase nenhum barulho?
Percorrendo o chão de pedra polida da recepção, passou pela parede de mármore onde estava inscrito o nome dos benfeitores e abriu caminho pela multidão de pessoas. Naquele congestionamento humano, muitos rostos eram familiares, desde o pessoal da administração até os médicos e enfermeiros com quem trabalhou durante anos. Mesmo anônimos, os pacientes estressados e suas famílias pareciam íntimos dela... de alguma maneira, as máscaras de tristeza e preocupação eram as mesmas, não importava quais fossem as características faciais que as moldavam.
Quando se dirigiu às escadas, estava buscando seu antigo chefe, e, Cristo, teve vontade de rir. Ao longo de todos aqueles anos trabalhando juntos, tinha surpreendido Manny Manello de muitas maneiras; mas aquilo ia superar vários acidentes de carro, avião ou uma explosão de edifício. Tudo isso junto.
Flutuando ao atravessar uma saída de emergência de metal, ela subiu a escada dos fundos. Os pés não tocavam os degraus, pairavam sobre eles enquanto subia como fumaça, sem esforço algum.
Aquilo tinha de funcionar. Tinha que convencer Manny a lhe acompanhar para cuidar daquela coluna lesionada, e ponto final. Não havia outras opções, nada de imprevistos, nada de virar à direita ou à esquerda naquela estrada: aquele era o passe final... e estava rezando para que o goleiro não pegasse aquela bola.
Que bom que ela tinha um bom desempenho sob pressão e que conhecia aquele homem como a palma de sua mão.
Manny aceitaria o desafio; mesmo isso não fazendo sentido algum para ele, ficaria lívido por saber que ela ainda estava “viva”. Além disso, não seria capaz de recusar ajuda a um paciente necessitado – simplesmente não estava programado para isso.
No décimo andar, atravessou outra parede e entrou na seção administrativa do departamento cirúrgico. O local era equipado como um escritório de advocacia, todo escuro, sombrio e luxuoso. Fazia sentido: o centro cirúrgico era uma fonte enorme de renda para qualquer hospital universitário, e o dinheiro era gasto para recrutar, manter e abrigar aqueles seres mimados e arrogantes que abriam pessoas para que elas sobrevivessem mais.
Dentre o grupo que operava com os bisturis no Hospital São Francisco, Manny Manello estava no topo da pirâmide, chefe não apenas de uma subespecialidade, como ela tinha sido, mas de todo o conjunto da obra. Isso significava que era uma estrela de cinema, um sargento e o presidente dos Estados Unidos ao mesmo tempo, tudo isso englobado em um cara com pouco mais de um metro e oitenta de altura. Tinha um temperamento terrível, uma inteligência impressionante e um pavio de mais ou menos um milímetro de comprimento, e isso em um dia bom. E seu trabalho era tão valioso quanto uma pedra preciosa.
As operações de maior rentabilidade do cara sempre foram aquelas feitas em atletas profissionais: ele tratou vários joelhos, quadris e ombros que teriam provocado muitos finais de carreira no futebol, baseball ou no hóquei. Mas também tinha muita experiência com tratamentos de coluna e, apesar da atuação de um neurocirurgião ser interessante se considerasse as radiografias de Payne, aquele era um problema ortopédico: se a medula espinhal fosse rompida, nada do que fizessem em termos neurológicos ajudaria. A ciência médica não tinha avançado tanto assim.
Quando dobrou a extremidade da mesa de recepção, teve de parar. À esquerda estava seu antigo escritório, o lugar onde passava horas incontáveis lidando com papéis e fazendo reuniões de consulta com Manny e o resto da equipe. Agora, lia-se o nome na placa fixada na porta: DR. THOMAS GOLDBERG, CIRUGIÃO-CHEFE DO DEPARTAMENTO DE TRAUMATOLOGIA.
Goldberg era uma excelente escolha; ainda assim, por alguma razão, doía ver o nome de outra pessoa ali.
Mas até parece. Esperava que Manny preservasse sua mesa e seu escritório como um monumento em homenagem a ela? A vida continua. A dela. A dele. A do hospital.
Voltando à realidade da situação, caminhou pelo corredor acarpetado. Mexia sempre em seu jaleco branco, com a caneta em seu bolso e com o celular que, até agora, não havia tido motivos para usar. Não havia tempo para explicar seu retorno do mundo dos mortos ou persuadir Manny ou ajudá-lo a entender o que estava prestes a expor; e não havia escolha, mas, de alguma forma, tinha de levá-lo com ela.
Em frente à porta fechada, preparou-se e, em seguida, atravessou...
Ele não estava atrás da mesa, ou trabalhando em algo na mesa de conferências da sala de reuniões.
Verificou rapidamente em seu banheiro privativo... nada ali também... não havia nenhuma umidade nas portas de vidro ou toalhas molhadas sobre a pia.
De volta ao escritório, ela respirou fundo... e o aroma suave de sua loção pós-barba pairando no ar a fez engolir em seco. Deus, sentia a falta dele.
Balançando a cabeça, andou ao redor da mesa e olhou a desordem. Arquivos de pacientes, pilhas de memorandos interdepartamentais, relatórios de Assistência ao Paciente e de Avaliação de Qualidade. Como era um pouco depois das cinco da tarde de um sábado, esperava encontrá-lo ali: as provas de seleção não eram realizadas nos finais de semana; então, a menos que estivesse de plantão ou lidando com um algum caso na traumatologia, deveria estar bem ali atrás daquela confusão de papéis. Manny era workaholic: trabalhava vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana.
Saindo do escritório, verificou a mesa de sua secretária. Nada ali também: seus compromissos eram mantidos no computador, protegidos por senha.
A próxima parada era o centro cirúrgico. O São Francisco tinha diferentes níveis de salas de operação, todas organizadas por especialidades. Ela foi diretamente à seção que ele costumava atuar. Olhando pelas janelas de vidro e portas duplas, viu que estavam operando uma terrível fratura múltipla. Embora os cirurgiões usassem máscaras e toucas, poderia dizer que nenhum deles era Manny. Seus ombros eram grandes o suficiente para esticar até mesmo o maior uniforme cirúrgico disponível e, além disso, as músicas que soavam ao fundo não eram o estilo dele. Mozart? Sem chance. Pop? Nem morto: Manny ouvia rock clássico e heavy metal. Aliás, se não fosse contra o protocolo, os enfermeiros usariam um protetor de ouvidos durante todos os procedimentos com ele.
Caramba... Onde diabos estava? Não havia conferências naquela época do ano e ele não tinha vida fora do hospital. As únicas opções que restavam era que estivesse no Commodore: desmaiado de cansaço no sofá de seu apartamento ou na academia do arranha-céu.
Quando saiu dali, pegou o celular e ligou para o sistema de atendimento do hospital.
– Sim, alô? – disse quando a ligação foi atendida. – Gostaria de falar com o Dr. Manuel Manello. Meu nome? – que droga! – Ah... Hannah. Hannah Whit. Pode retornar a ligação neste número.
Quando desligou, percebeu que não fazia ideia do que dizer caso ele retornasse a ligação, mas resolveu dar destaque ao pensamento positivo... e rezou para que tivesse a habilidade inata de realizar aquela tarefa. O fato era: se o sol baixasse no horizonte, um dos Irmãos sairia do complexo e faria algum trabalho mental em Manny para facilitar o processo de levá-lo até lá.
Contudo, não seria Vishous. Outra pessoa. Qualquer pessoa. Seus instintos diziam-lhe para deixar os dois tão afastados quanto possível: já tinham uma emergência médica em processo, e a última coisa de que precisava era de seu antigo patrão sendo pressionado porque seu marido tinha um instinto territorial e poderia decidir rachar, ele próprio, uma coluna a qualquer momento. Pouco antes de sua morte, Manny estava interessado em mais do que apenas uma associação profissional com ela; portanto, a menos que tivesse se casado com uma das Barbies que insistia em namorar, provavelmente ainda estava solteiro... E a regra dizia que o coração ficava ainda mais afeiçoado à pessoa ausente; então, seus sentimentos devem ter persistido.
Por outro lado, era possível que a insultasse sem piedade por mentir para ele sobre toda a coisa de estar “morta e enterrada”.
Pelo menos ele não se lembraria de nada daquilo; contudo, quanto a ela, temia nunca mais se esquecer das próximas vinte e quatro horas.
O Hospital Equino Tricounty era uma instalação de última geração em todos os sentidos. Localizado a quinze minutos do hipódromo de Aqueduct, o local tinha tudo, desde salas de operação e um serviço completo de quartos de recuperação até piscinas para hidroterapia e exames que forneciam imagens avançadas. E seu quadro de funcionários era composto por pessoas que viam os cavalos como muito mais do que uma fonte de lucros sobre quatro patas.
Na sala de cirurgia, Manny analisava as radiografias da perna dianteira de sua garota e desejou ser o único a entrar ali para resolver o problema: conseguia ver claramente as fissuras na imagem, mas isso não era o que o preocupava. Havia vários ligamentos que haviam sido rompidos e manchas acentuadas orbitando ao redor dos centros nervosos do osso alongado que mais pareciam luas ao redor de um planeta.
Só porque ela era de outra espécie não significava que não poderia fazer a operação. Assim que o anestesista fizesse seu trabalho em segurança, ele poderia cuidar do resto. Osso era sempre osso; mas não bancaria o idiota.
– O que acha? – perguntou.
– Minha opinião profissional – respondeu o veterinário-chefe – é de que está muito ruim. É uma fratura múltipla deslocada. O tempo de recuperação será extenso e não é possível garantir que ela sequer possa reproduzir.
O que era uma zica total: cavalos foram feitos para ficar em pé com seu peso distribuído sobre quatro pontos de maneira uniforme. Quando uma perna era quebrada, não se tratava tanto da lesão em si, mas o fato de que era preciso redistribuir o peso e contar, desproporcionalmente, com as partes que ainda estavam boas no corpo para ficar em pé. E esse era o grande problema.
Ao considerar aquilo que examinava, a maioria dos proprietários escolheria a eutanásia; mas sua garota tinha nascido para correr, e aquela lesão catastrófica faria disso impossível, mesmo se fosse apenas para o lazer... isso se ela sobrevivesse. Como médico, estava muito familiarizado com a crueldade do trabalho “salvador” de seus colegas que acabavam levando o paciente a viver em condições piores do que a morte – ou não faziam nada além de prolongar, de maneira dolorosa, o inevitável.
– Dr. Manello? O senhor ouviu o que eu disse?
– Sim. Ouvi. – Pelo menos aquele cara, ao contrário do idiota na pista, parecia tão arrasado quanto Manny.
Afastando-se, foi até onde a deitaram e colocou uma das mãos sobre sua bochecha arredondada. Sua pelagem negra brilhava sob a iluminação e, em meio ao cenário de ladrilho claro e aço inoxidável, parecia uma sombra projetada ao acaso e esquecida no centro da sala.
Por um longo momento, observou como sua grande caixa torácica expandia-se e contraía-se com a respiração. Só de vê-la na maca com as belas pernas esticadas como bastões e sua cauda pendendo sobre o ladrilho fê-lo perceber que animais como ela deveriam ficar em pé: aquilo que via era completamente contrário à natureza, e injusto.
Mantê-la viva apenas para que não tivesse de enfrentar sua morte não era a resposta certa.
Preparando-se para a situação, Manny abriu a boca...
A vibração dentro do bolso de seu terno o interrompeu. Com um palavrão, tirou o celular e verificou. Era do hospital. Hannah Whit? Com um número desconhecido?
Não era ninguém que conhecesse e ele não estava de plantão.
Provavelmente um erro do atendimento.
– Quero que opere – ouviu-se dizendo enquanto guardava o telefone de volta.
O curto silêncio que se seguiu deu-lhe tempo de sobra para perceber que impedi-la de partir cheirava a covardia. Mas não poderia insistir naquele melodrama psíquico ou perderia a sanidade.
– Não posso garantir nada. – O veterinário voltou a olhar as radiografias. – Não sei dizer o que vai acontecer, mas posso jurar que... farei meu melhor.
Deus, agora sabia como as famílias se sentiam quando dizia isso a elas.
– Obrigado. Posso assistir?
– Com certeza. Vou pegar algo para o senhor vestir e sabe como fazer a higienização antisséptica, certo, doutor?
Vinte minutos depois, a operação começou e Manny assistiu próximo à cabeça de Glory, acariciando sua crina com as mãos envolvidas com as luvas de látex, mesmo sedada. Enquanto o veterinário-chefe trabalhava, Manny teve de tirar o chapéu para a metodologia e habilidade daquele homem... as únicas coisas corretas desde que Glory havia caído. O procedimento terminou em menos de uma hora, com os fragmentos ósseos ou removidos ou encaixados no devido lugar. Então, imobilizaram a perna, retiraram a égua da sala de cirurgia e a colocaram em uma piscina para que não quebrasse outra perna quando o efeito da anestesia passasse.
Manny ficou com ela até que acordasse e, em seguida, acompanhou o veterinário até o corredor.
– Os sinais vitais são bons e correu tudo bem na operação – o veterinário disse –, mas essa vitalidade pode mudar rapidamente. E vai levar tempo até sabermos o que conseguimos alcançar.
Nossa. Aquele pequeno discurso era exatamente o que dizia aos familiares mais próximos e outros parentes quando achava que era hora de irem para casa descansar e esperar como o paciente reagiria ao pós-operatório.
– Ligaremos para o senhor – falou o veterinário. – Vamos mantê-lo informado.
Manny tirou as luvas e pegou seu cartão de visitas.
– No caso de ainda não terem todos os meus dados nos registros.
– Temos sim – de qualquer forma, pegou o papel. – Se alguma coisa mudar, será o primeiro a saber, e lhe darei as informações pessoalmente, a cada doze horas, que é o intervalo entre as minhas rondas, quando passo visitando todos os leitos.
Manny assentiu e estendeu a mão.
– Obrigado. Por cuidar dela.
– Por nada.
Depois de apertarem as mãos, Manny assentiu outra vez junto às portas duplas.
– Importa-se se eu me despedir dela?
– Não. Pode ir.
Dentro do quarto outra vez, passou um momento com sua égua. Deus... aquilo doía.
– Segure firme, garota – teve de sussurrar, pois não conseguia respirar direito.
Quando se ergueu, a equipe o observava com uma tristeza que sabia que ia permanecer.
– Vamos cuidar dela. – o veterinário disse gravemente.
Acreditava mesmo que cuidariam e foi a única coisa que o levou de volta ao corredor.
As instalações do Tricounty eram extensas e precisou de um tempo considerável para trocar de roupa e seguir seu caminho até a saída onde tinha estacionado, próximo à porta da frente. À frente, o sol se punha, um brilho de um tom pêssego se espalhava, iluminando o céu como se Manhattan estivesse em chamas. O ar estava frio, mas perfumado, pois o início da primavera esforçava-se para trazer vida à paisagem árida do inverno, e ele respirou tão fundo que ficou tonto. Deus, o tempo tinha passado como uma neblina, mas agora, com os minutos se arrastando, percebeu que aquele ritmo frenético tinha esgotado sua fonte de energia. Era isso ou tinha batido contra um muro de tijolos e desmaiado.
Enquanto procurava a chave do carro, sentiu-se mais velho do que Deus. Sua cabeça estava dando fortes pontadas e sua artrite no quadril o estava matando. Aquela corrida que havia empreendido para chegar à pista e ficar ao lado de Glory ia além de seus limites.
Não foi assim que imaginou o final do dia. Achou que estaria comprando bebidas para os proprietários que tinha derrotado... E talvez, no resplendor da vitória, seguisse a generosa sugestão oral da Sra. Hanson.
Ao entrar no carro, ligou o motor. Caldwell estava a mais ou menos quarenta e cinco minutos ao norte de Queens, e seu carro conseguia fazer a viagem de volta ao Commodore praticamente sozinho. Isso era muito bom, pois era quase um zumbi naquele momento. Nada de rádio. Nenhuma música no iPod. Ninguém telefonando também.
Ao pegar a estrada, observou o caminho à frente e lutou contra o impulso de dar meia-volta e... sim, e fazer o quê? Descansar em paz ao lado de seu cavalo?
A questão era: se conseguisse chegar em casa logo, poderia conseguir ajuda. Tinha uma garrafa de uísque esperando por ele e poderia ou não ir com calma ao usá-la. Até onde dizia respeito ao hospital, estava de folga até segunda pela manhã, às seis horas, e tinha planos de ficar bêbado e permanecer assim.
Guiando o volante revestido de couro com uma das mãos, procurou, com a outra, em meio a sua camisa de seda, sua representação do Cristo crucificado. Segurando a cruz de ouro, fez uma oração.
Deus... por favor, permita que ela fique bem.
Não poderia suportar perder outra de suas garotas. Não tão cedo. Jane Whitcomb tinha morrido há um ano, mas isso era o que o calendário dizia. O tempo do luto era diferente – nele havia transcorrido apenas um minuto e meio.
Não queria passar por isso outra vez.
CONTINUA
1761, ANTIGO PAÍS
Xcor viu seu pai sendo morto após cinco anos de sua transição. Aconteceu diante de seus olhos, mas, mesmo com a proximidade, não poderia imaginar o que houve.
A noite começou como qualquer outra, a escuridão caiu sobre a paisagem de florestas e cavernas, as nuvens encobriam a luz da lua para ele e para aqueles que viajavam a cavalo com ele. Seu grupo de soldados era composto por seis homens fortes: Throe, Zypher, os três primos e ele próprio. E seu pai.
Bloodletter.
Antigo membro da Irmandade da Adaga Negra.
O que os fez sair naquela noite foi o que os chamava ao serviço após cada pôr de sol: procuravam redutores, aquelas armas sem alma de Ômega, que achou por bem exterminar a raça vampira. E os encontravam. Frequentemente.
Mas aqueles sete machos não eram membros da Irmandade.
Ao contrário dos aclamados Irmãos, eram um grupo secreto de guerreiros. Aquele grupo de bastardos liderados por Bloodletter não era nada além de soldados: sem cerimônias. Nada de serem adorados pela população civil. Nada de louvores. A linhagem deles poderia ser aristocrática, mas todos foram abandonados por seus familiares por terem nascido com defeitos ou fora de um acasalamento santificado.
Nunca seriam outra coisa senão pedaços de carne dispensáveis dentro da grande guerra pela sobrevivência.
Porém, mesmo isso sendo verdade, eram a elite dos soldados, os mais cruéis, os braços mais fortes, aqueles que foram provados ao longo do tempo pelo feitor mais rígido da raça: o pai de Xcor. Escolhidos a dedo e com sabedoria, esses homens eram mortais contra o inimigo e não seguiam nenhum código de conduta quando se tratava da sociedade vampira. Também não seguiam nenhum código quando se tratava de matar alguém: não importava se a presa era um assassino, um humano, um animal ou um lobo. Sangue seria derramado.
Eles fizeram um, e apenas um, juramento: seu pai era o senhor deles e ninguém mais. Aonde quer que ele fosse, eles iriam, e isso era tudo. Muito mais simples que toda aquela porcaria elaborada pela Irmandade – mesmo Xcor sendo um candidato por linhagem, não teve interesse em ser um Irmão. Não se importava com a glória, uma vez que nada se comparava ao doce prazer do assassinato. Melhor deixar de lado a tradição inútil e o ritual desgastado para aqueles que se recusam a empunhar qualquer outra coisa que não seja uma adaga negra.
Usaria qualquer arma disponível.
E seu pai faria o mesmo.
O clamor dos cascos abrandou e depois ficaram em silêncio quando os lutadores saíram da floresta em um enclave de carvalhos e arbustos. A fumaça das lareiras das casas pairava na brisa, mas não havia nenhuma outra confirmação de que tinham chegado, finalmente, à pequena cidade que procuravam: no alto, sobre um íngreme penhasco, havia um castelo fortificado que se apresentava como uma águia empoleirada, sua fundação era como garras fincadas na rocha.
Humanos. Guerreando entre si.
Que entediante.
Ainda assim, era preciso respeitar a construção. Talvez, se Xcor se estabelecesse algum dia, massacraria a dinastia daquele lugar e tomaria posse daquela fortaleza. Muito mais eficiente roubar que construir.
– Para a aldeia – seu pai ordenou. – Avancemos para a diversão.
A notícia era de que havia redutores ali, as bestas pálidas misturavam-se e confundiam-se com os moradores do vilarejo que tinham escavado lotes de terra e construído casas de pedra à sombra do castelo.
Isso era uma típica estratégia de recrutamento da Sociedade: infiltrar-se em uma cidade, tomar os machos um a um, assassinar ou vender as mulheres e crianças, fugir com armas e cavalos e mudar-se para uma localidade próxima em maior número.
Xcor tinha a mesma mentalidade do inimigo nesse aspecto: quando acabava de lutar, sempre pegava tudo o que podia antes de dirigir-se para a próxima batalha. Noite após noite, Bloodletter e seus soldados abriam caminho ao longo do território que os seres humanos chamavam de Inglaterra e, quando alcançavam a ponta do território escocês, viravam-se e colocavam-se em direção oposta, indo sempre para o sul, até chegarem ao calcanhar da Itália, quando davam meia-volta outra vez. Em seguida, percorriam novamente os muitos quilômetros que tinham caminhado até ali. E faziam isso de novo. E mais outra vez.
– Deixemos nossas provisões aqui. – disse Xcor, apontando para uma árvore de tronco grosso, que havia caído sobre um riacho.
Enquanto faziam a transferência dos modestos suprimentos, não havia nada além do ranger de couro e do bufar ocasional de um garanhão. Quando tudo estava guardado sob o flanco do carvalho abatido, montaram outra vez sobre seus animais e reuniram os cavalos de raça – que eram as únicas coisas de valor, além de armas, que possuíam. Xcor não via utilidade em objetos de beleza ou conforto – para ele, eram nada além de um peso que o induzia à queda. Um cavalo forte e um punhal afiado? Isso sim tinha um valor inestimável.
Enquanto os sete andavam até a aldeia, não fizeram qualquer esforço para silenciar as batidas dos cascos de seus cavalos. Contudo, não houve gritos de guerra. Era um desperdício de energia, seus inimigos não precisavam de um convite para vir saudá-los. O único ato de boas-vindas foi um humano ou dois espiando para fora de suas portas e, em seguida, voltando rapidamente a trancarem-se em seus domicílios. Xcor os ignorou. Em vez de importar-se com isso, examinou as casas baixas de pedra, a praça central e as lojas de comércio fortificadas, procurando por alguma forma bípede, pálida como um fantasma e fedendo como um cadáver revestido em melado.
Seu pai andou até ele e sorriu com um toque de maldade.
– Talvez possamos colher os frutos dos jardins por aqui mais tarde.
– Talvez. – murmurou Xcor enquanto seu cavalo jogava a cabeça para trás. Na verdade, não estava muito interessado em deitar-se com fêmeas ou subjugar machos, mas não se podia negar nada a seu pai, mesmo quando se tratava de suas extravagâncias na hora do lazer.
Sinalizando com as mãos, Xcor direcionou três de seu grupo para a esquerda, onde havia uma pequena estrutura com uma cruz em cima de seu telhado pontiagudo. Ele e os outros seguiriam à direita. Seu pai faria o que quisesse. Como sempre.
Forçar os garanhões a permanecer em um galope contínuo era uma tarefa que desafiava até mesmo o mais vigoroso dos braços, mas estava acostumado com o cabo de guerra e sentou-se com firmeza na sela. Com um propósito sombrio, seus olhos penetraram as sombras produzidas pelo luar, procurando, sondando...
O grupo de assassinos que saiu do abrigo de ferragens possuía uma grande quantidade de armas.
– Cinco – Zypher rosnou. – Bendita noite.
– Três – Xcor interrompeu. – Dois ainda são seres humanos... porém, matar esses dois... também será um prazer.
– Qual devemos atacar, meu senhor? – Seu irmão de armas disse com um grande respeito que era dedicado por merecimento e não por ser o primogênito.
– Os humanos – Xcor disse, deslocando-se para frente e preparando-se para o momento em que incitaria seu cavalo a partir. – Se há outros redutores por perto, isso os atrairia ainda mais.
Estimulando o grande animal e afundando-se na sela, sorriu quando os redutores mantiveram-se firmes com suas correntes e armamentos. No entanto, as duas pessoas junto a eles não ficariam tão firmes. Embora os dois estivessem equipados para lutar, dariam meia-volta e correriam quando vissem a primeira exibição de presas como cavalos assustados por um tiro de canhão, razão pela qual deu um solavanco de forma abrupta para a direita logo após galopar apenas alguns passos. Atrás da cabana do ferreiro, puxou as rédeas e desmontou do corcel. Seu garanhão era um animal selvagem, mas obediente quando tratava-se de desmontar e aguardar...
Uma fêmea humana irrompeu pela porta dos fundos, sua camisola branca era como uma faixa brilhante na escuridão, enquanto esforçava-se para ficar em pé sobre a lama. No instante em que ela o viu, ficou paralisada de terror.
Reação lógica: ele era duas vezes o tamanho dela, talvez três, e não estava vestido para dormir, mas para a guerra. Quando a mão da fêmea ergueu-se até a garganta, ele farejou o ar e sentiu seu perfume. Hummm, talvez seu pai gostasse daquela flor de jardim...
Quando o pensamento lhe ocorreu, soltou um rosnado baixo que incitou a moça a uma corrida desenfreada; a visão da tentativa de fuga fez o predador dentro dele vir à tona. Com uma sede de sangue percorrendo suas entranhas, lembrou-se que havia se passado semanas desde que tinha se alimentado de alguém de sua espécie e, apesar daquela garota ser apenas uma humana, poderia ser o suficiente para aquela noite.
Infelizmente, não havia tempo para se divertir naquele momento... Apesar disso, seu pai iria atrás dela mais tarde, com certeza. Se Xcor precisava de um pouco de sangue para vencer as dificuldades, conseguiria tal fonte com aquela mulher, ou com qualquer outra.
Dando as costas para a fuga, parou com firmeza sobre o chão e desembainhou a arma escolhida: embora as adagas servissem, preferiu a foice, cabo longo e modificado para um coldre amarrado em suas costas. Era especialista em empunhar aquele grande peso e sorriu enquanto manejava ao vento a lâmina cruel e curvada, esperando para jogar a rede sobre aqueles dois peixes que, com certeza, estavam nadando até ele...
Ah, sim, como era bom estar certo.
Logo após uma luz brilhante surgir e um estalo eclodir da passagem principal, os dois humanos vieram gritando em direção aos fundos da casa do ferreiro como se estivessem sendo perseguidos por carrascos.
Mas estavam errados, não? O carrasco estava esperando ali.
Xcor não gritou ou amaldiçoou. Sequer rosnou. Começou a correr com a foice, havia um equilíbrio uniforme entre as duas mãos enquanto as coxas poderosas encurtavam a distância. Só de olhar para ele, os humanos derraparam em suas botas, braços soltos, como asas de patos pousando sobre a água.
O tempo pareceu desacelerar quando caiu sobre eles, sua arma favorita fez um grande círculo, atingindo os dois na altura do pescoço.
As cabeças foram decepadas com um golpe único e limpo. Os rostos surpresos brilharam e desapareceram à medida que a parte removida do corpo girava, o sangue espirrou e salpicou no peito de Xcor. Com a ausência de crânios, a parte inferior dos corpos caíram sobre o chão com uma graça curiosa e líquida, aterrissando inanimados com os membros retorcidos.
Agora sim ele gritava.
Virando-se, Xcor fixou suas botas de couro na lama, respirou fundo e soltou um rosnado enquanto manejava a foice, o aço avermelhado pedia mais sangue. Apesar de suas presas serem meros seres humanos, o impulso de matar era superior a um orgasmo, a sensação de que havia tirado uma vida e deixado cadáveres para trás percorria seu corpo como uma bebida alcoólica.
Chamou seu cavalo assoviando, que foi até ele rapidamente após o comando. Com um salto, montou na sela, a foice erguida em sua mão direita enquanto lidava com as rédeas com a esquerda. Dando um golpe com força, incitou o corcel ao galope, percorrendo rapidamente um caminho estreito e sujo e emergindo no auge da batalha.
Seus colegas lutavam com todas as forças, o som das espadas colidindo e gritos bombardearam a noite quando o demônio encontrou seu inimigo. E assim como Xcor havia previsto, mais uma meia dúzia de redutores veio correndo a toda velocidade sobre seus garanhões de raça, como leões que foram libertos para defender seu território.
Xcor entrou em cena e avançou contra o inimigo, envolvendo as rédeas no punho e brandindo a foice enquanto o cavalo corria em direção aos outros com os dentes à mostra. Sangue negro e partes de corpos voaram quando passou por entre os adversários, ele e seu cavalo trabalhavam como uma unidade naquele ataque.
Quando atingiu mais um assassino com sua lâmina e o cortou ao meio na altura do peito, soube que tinha nascido para fazer isso, era a maior e melhor maneira de usar seu tempo sobre a terra. Era um assassino, não um defensor.
Não lutava pela raça... mas por si mesmo.
Tudo aconteceu muito depressa, a névoa noturna rondava os redutores caídos, que contorciam-se em poças do próprio sangue oleoso e negro. Houve poucos feridos dentre o grupo de Xcor. Throe tinha um corte no ombro, feito por alguma lâmina. Zypher estava mancando, uma mancha vermelha escorria de sua perna, ensopando a bota. Nenhum deles estava mais lento ou mesmo preocupado.
Xcor deteve o cavalo, desmontou e voltou a colocar a foice no coldre. Sacou a adaga de aço e começou sua ronda para esfaquear os assassinos, lamentou o processo que enviava o inimigo de volta a seu criador. Queria mais luta, não menos...
Um grito ecoou e ele ergueu a cabeça. A mulher humana de camisola estava correndo pela estrada de terra batida do vilarejo, seu corpo pálido em uma fuga desgovernada, como se tivesse sido expulsa de um esconderijo. Logo atrás dela, o pai de Xcor montou em seu cavalo e galopou rápido; o corpo maciço de Bloodletter pendia em um dos lados da sela quando a alcançou. Na verdade, não houve, de fato, uma corrida: quando ficou ao lado dela, pegou-a com o braço e atirou-a sobre seu colo.
Não houve parada, nem mesmo uma diminuição da velocidade depois da captura, mas uma marca foi feita: com seu cavalo galopando a toda velocidade e a humana se debatendo, o pai de Xcor ainda conseguiu atingir a garganta delgada com suas presas, prendendo-se no pescoço da mulher como se fosse detê-la apenas com os caninos.
Ela teria morrido. Com certeza, ela teria morrido.
Se Bloodletter não tivesse morrido primeiro.
De fora do turbilhão do nevoeiro surgiu uma figura fantasmagórica como se fosse formada pelos filamentos de umidade que percorriam o ar. E no momento que Xcor viu o espectro, estreitou os olhos e valeu-se de seu olfato aguçado.
Parecia ser uma mulher. De sua espécie. Vestida com uma túnica branca.
E seu cheiro lembrou-o de algo que não conseguiu localizar.
Ela foi diretamente ao encontro de seu pai, mas parecia não ter a menor preocupação com o cavalo ou com o guerreiro sádico que logo viria atrás dela. No entanto, seu pai estava fascinado por ela. No instante em que a notou, largou a humana como se não fosse nada além de um osso do qual já houvesse comido toda a carne.
Isso estava errado, Xcor pensou. De fato, ele era um macho de ação e poder e dificilmente um membro do sexo frágil o intimidaria... mas tudo em seu corpo advertia que aquela entidade etérea era perigosa. Letal.
– Ei! Pai! – gritou. – Vire-se!
Xcor assoviou para seu cavalo, que atendeu ao comando. Montando sobre a sela, estimulou os flancos do animal, lançando-se a toda velocidade para que pudesse cruzar o caminho do pai, um pânico estranho o incitando.
Tarde demais. Seu pai lançou-se sobre a fêmea, que agachou-se lentamente.
Meu Deus, ela ia saltar por cima do...
Com um impulso coordenado, ela flutuou no ar e pegou a perna de seu pai, usando-a para montar sobre o cavalo de um salto. Então, agarrou o sólido peitoral de Bloodletter, saltou para um lado e levou o macho ao chão com ela, como se fossem apenas um. A investida poderosa desafiava a questão de ser do sexo feminino e sua natureza espectral.
Ora, não era um fantasma, mas um ser de carne e osso.
O que significava que poderia ser morta.
Enquanto Xcor preparava-se para lançar seu garanhão contra eles, a fêmea soltou um grito nada feminino: mais ao estilo do grito de guerra de Xcor, o berro trespassou o ruído dos cascos trovejantes abaixo dele e os sons do grupo que reunia-se para combater aquele ataque inesperado.
Contudo, não havia necessidade de uma intercessão imediata.
Seu pai, após o choque de ser tirado de sua sela, rolou de costas, desembainhou seu punhal e rosnou como um animal. Com uma maldição, Xcor freou e interrompeu o resgate, pois, com certeza, seu pai assumiria o controle. Bloodletter não era o tipo de homem a quem se ajudava – havia agredido Xcor por isso no passado, uma lição que foi duramente aprendida e que sempre seria lembrada.
Ainda assim, desmontou e aproximou-se da situação para reagir no caso de haver mais alguma “Valquíria” saindo do meio da floresta.
E foi assim que ele a ouviu, claramente, dizer um nome.
– Vishous.
A raiva de seu pai deu lugar a uma breve confusão. E antes que pudesse retomar sua autodefesa, a figura fantasmagórica começou a brilhar com uma luz profana.
– Pai! – Xcor gritou ao aproximar-se correndo.
Mas era tarde. E o contato foi feito.
Chamas irromperam sobre o rosto rude e barbado de seu pai e tomaram seu corpo, como se fosse feno seco. E com a mesma graça que ela o derrubou, a fêmea saltou para trás e observou enquanto seu pai tentava apagar o fogo debatendo-se freneticamente, sem sucesso. No meio da noite, ele gritava enquanto era queimado vivo, suas roupas de couro não ofereceram proteção alguma para sua pele e músculos.
Não havia chance alguma de aproximar-se o suficiente do fogo e Xcor derrapou até parar, levantando o braço para se proteger e curvando-se para se afastar do calor que ficava exponencialmente mais intenso.
Durante todo o tempo, a fêmea ficou sobre o corpo que se contorcia e tinha espasmos... O brilho laranja iluminava o rosto belo e cruel.
A vadia estava sorrindo.
E foi então que ela ergueu o rosto para ele. Quando Xcor teve uma visão correta de seu rosto, recusou-se, em um primeiro momento, a acreditar no que via. Ainda assim, o brilho das chamas não mentia.
Xcor observava uma versão feminina de Bloodletter. O mesmo cabelo negro, a mesma pele e olhos claros. A mesma estrutura óssea. Além disso, a mesma luz vingativa em seu olhar violento, aquele arrebatamento e satisfação ao causar uma morte era uma combinação que Xcor conhecia muito bem.
Ela partiu logo em seguida, desaparecendo na neblina de uma maneira que não condizia com a desmaterialização de sua espécie, mas, sim, fez isso como um sopro de fumaça, desvanecendo-se devagar em princípio e, em seguida, rápida e definitivamente.
Assim que sentiu-se capaz, Xcor correu para seu pai, mas não havia mais nada a ser salvo... mal havia algo para ser enterrado. Afundando os joelhos diante dos ossos fumegantes e do fedor de queimado, teve um momento de fraqueza deplorável: lágrimas derramaram-se dos olhos. Bloodletter tinha sido um bruto, mas como sua única descendência masculina, Xcor e ele eram bem próximos... Na verdade, eram quase membros de um mesmo corpo.
– Por tudo o que é mais sagrado – Zypher disse com voz rouca –, o que foi isso?
Xcor piscou com força antes de olhar por cima do ombro.
– Ela o matou.
– Sim. E fez mais alguma coisa.
Quando o grupo de bastardos aproximou-se dele, um a um, Xcor teve de pensar no que dizer, no que fazer.
Erguendo-se com firmeza, quis chamar seu cavalo, mas sua boca estava seca demais para assoviar.
Seu pai... um inimigo e, ao mesmo tempo, seu porto seguro, estava morto. Morto. E aconteceu tão rápido, rápido demais.
Por uma fêmea.
Seu pai havia partido.
Quando conseguiu, olhou para cada um dos machos diante dele, os dois montados nos cavalos, os dois em pé e o que estava a sua direita. Com uma nítida percepção, soube que não importava o que o destino tivesse reservado, seria moldado pelo que havia acontecido naquele momento, aqui, agora.
Não havia se preparado para isso, mas não se afastaria do que deveria fazer:
– Ouçam bem, pois só direi uma vez. Ninguém vai dizer nada. Meu pai morreu em uma batalha contra o inimigo. Eu o queimei para homenageá-lo e mantê-lo sempre comigo. Jurem isso para mim agora.
Os bastardos com quem ele vivia e lutava há muito tempo juraram e depois que suas vozes profundas desvaneceram-se no ar noturno, Xcor inclinou-se e passou os dedos pelas cinzas. Erguendo as mãos até o rosto, traçou uma listra com a fuligem desde as bochechas até as grossas veias que percorriam cada lado do pescoço... em seguida, acariciou o crânio duro que era tudo o que havia restado de seu pai. Segurando os restos carbonizados que ainda soltavam fumaça, reivindicou os soldados a sua frente como seus.
– Sou o único senhor agora. Liguem-se a mim neste momento ou serão meus inimigos. O que me dizem?
Não houve hesitação alguma. Os machos se ajoelharam, retiraram suas adagas e irromperam o grito de guerra antes de enterrarem as lâminas na terra a seus pés.
Xcor observou as cabeças inclinadas e sentiu que um manto caía-lhe sobre os ombros. Bloodletter estava morto. Sem vida, seria transformado em lenda a partir daquela noite.
E, seguindo o que é certo e apropriado, o filho substituiria o pai agora, comandando aqueles soldados que não serviriam a Wrath, o rei que não os governava; nem à Irmandade, que não se dignificava a descer àquele nível... Serviriam a Xcor e somente a ele.
– Vamos seguir na direção de onde a fêmea veio – anunciou. – Vamos encontrá-la mesmo que levem séculos, pois ela deve pagar por aquilo que fez esta noite. – Nesse momento, Xcor conseguiu assoviar alto e claro para seu cavalo. – Levarei, pessoalmente, a morte ao esconderijo daquela fêmea.
Subindo em seu cavalo, reuniu as rédeas e incitou o grande animal a cruzar a noite. Seu grupo de bastardos entrou em formação e o seguiu, disposto a morrer por ele.
Enquanto trovejava ao sair da aldeia, colocou o crânio de seu pai dentre as roupas de couro que usava nas batalhas, bem em cima do coração.
Aquela vingança seria sua. Mesmo que o matasse.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/9_AMANTE_LIBERTADA.jpg
CAPÍTULO 1
DIAS ATUAIS
HIPÓDROMO DE AQUEDUCT, QUEENS, NOVA YORK
– Quero enlouquecer você.
O Dr. Manny Manello virou a cabeça para a direita e olhou para a mulher que tinha falado com ele. Não foi a primeira vez que tinha ouvido essas palavras e a boca pela qual elas saíram tinha silicone suficiente para preencher uma boa almofada. Mas, ainda assim, foi uma surpresa.
Candance Hanson sorriu para ele e ajeitou seu chapéu retrô com uma mão bem manicurada. Aparentemente, ela tinha decidido que a combinação de dama refinada com uma dose de atrevimento era atraente – e talvez fosse, para alguns rapazes.
Caramba, em outro momento de sua vida, ele provavelmente teria dado em cima dela seguindo a teoria do “por que não?”. Agora? Seguia a ideia do “não é pra tanto”.
Sem se deixar abater pela falta de entusiasmo do médico, ela inclinou-se para frente, exibindo um par de seios que não exatamente desafiava a gravidade. Na verdade, aquilo era mais como mostrar o dedo médio, insultar a mãe e pisar no calo de alguém – uma falta de educação.
– Sei de um lugar aonde poderíamos ir.
Ele apostava que sim.
– A corrida já vai começar.
Ela fez beicinho. Ou talvez fosse o efeito das aplicações para aumentar os lábios. Deus, há dez anos ela devia ter um rosto jovem; agora, os anos tinham adicionado uma pátina de desespero nela – junto ao processo normal de envelhecimento, contra o qual ela lutava como um boxeador.
– Depois, então.
Manny afastou-se sem responder, sem saber exatamente como ela tinha conseguido entrar na área dos proprietários. Deveria ter sido na confusão que havia para voltar àquele local depois de selarem os cavalos – e, sem dúvida, estava acostumada a entrar em lugares que, tecnicamente, não lhe eram permitidos: Candance era um daqueles tipos sociais de Manhattan que só se diferenciava de uma prostituta por não ter um cafetão e, de muitas maneiras, era como uma vespa qualquer: ignorava o incômodo causado e ia pousar em outra coisa.
Ou em outra pessoa, como era o caso.
Erguendo o braço para mantê-la distante, Manny inclinou-se sobre o corrimão da cabine e esperou que sua garota saísse para a pista. Tinha sido colocada na parte externa, e isso era bom: preferia não ficar muito perto dos outros e percorrer uma distância extra nunca a incomodou.
O hipódromo de Aqueduct, no Queens, Nova York, não tinha o prestígio de um Belmont ou Pimlico ou do venerável pai de todos os hipódromos, o Churchill Downs. Contudo, não era de se jogar fora. A instalação tinha uma arena de quase três quilômetros, uma pista de turfe e outra para corridas de curta distância. A capacidade total era de, aproximadamente, nove hectares. A comida era medíocre, mas ninguém ia até lá para comer e havia algumas corridas grandes, como a daquele dia: a Wood Memorial Stakes tinha uma bolsa de 750 mil dólares e, como era realizada em abril, era uma boa referência para os candidatos ao prêmio Triple Crown...*
Ah, sim, lá estava ela. Lá estava sua garota.
Quando os olhos de Manny fixaram-se em GloryGloryAllelujah, o barulho da multidão, a luz brilhante daquele dia e a fila vacilante composta pelos outros cavalos desapareceram. Tudo o que ele via era sua magnífica égua negra, sua capa capturava a luz do sol e reluzia, as pernas finas se flexionavam, os cascos delicados erguiam-se e voltavam a pousar na pista de areia. Como ela media quase um metro e setenta, o jóquei parecia um pequeno mosquito em suas costas, e essa diferença de tamanho representava a divisão do poder. Ela deixou isso claro desde o primeiro dia de treinamento: poderia tolerar os pequenos seres humanos, mas estavam apenas a passeio na corrida. Ela estava no comando.
Seu temperamento dominador já havia lhe custado dois treinadores. O terceiro? O cara parecia um pouco frustrado, mas era apenas seu senso de controle que estava sendo espancado até a morte: Glory destacava-se e isso, simplesmente, não tinha nada a ver com ele. E Manny não tinha a menor preocupação com os egos inflados de homens que dominavam cavalos a vida inteira. Sua garota era uma lutadora, sabia o que estava fazendo, e ele não tinha o menor problema em deixá-la assumir o controle. Queria apenas assisti-la divertir-se ao acabar com a concorrência.
Quando seus olhos a encontraram, lembrou-se do otário de quem a tinha comprado há pouco mais de um ano. Aqueles vinte mil dólares tinham sido um roubo, considerando sua linhagem, também uma fortuna se pensasse no temperamento dela, e ainda não estava claro se conseguiria autorização para correr. Era uma égua indisciplinada de um ano de idade que já esteve prestes a ser afastada. Ou pior: de ser transformada em comida de cachorro.
Mas ele acertou. Desde que a deixasse liderar e comandar o show, era um espetáculo.
Quando a formação de cavalos aproximou-se do portão, alguns começaram a bater os cascos e a bufar, mas sua garota estava firme, como se soubesse que era inútil desperdiçar energia antes do jogo. Ele achava que as chances eram boas apesar da posição no pódio, pois o jóquei montado em seu dorso era uma estrela: sabia exatamente como lidar com ela e, nesse sentido, era mais responsável pelo sucesso da garota do que os outros treinadores. Sua estratégia era apenas certificar-se de que ela conhecia os melhores percursos, deixá-la escolher e ir.
Manny levantou-se e segurou o corrimão de ferro pintado na frente dele, juntando-se à multidão que saía de seus assentos, e começava a exibir uma quantidade incontável de binóculos. Quando seu coração começou a bater forte, ficou contente, pois fora dali encontrava-se muito próximo do sedentarismo, ultimamente. A vida que levava estava em um estágio de entorpecimento terrível no último ano ou um pouco mais, e talvez essa fosse a razão pela qual aquela égua era tão importante para ele.
Talvez ela também fosse tudo o que ele tinha.
Não era bem assim.
No portão, havia um movimento frenético: quando se trata de amontoar quinze cavalos fortes com patas da espessura de varetas e com glândulas adrenais disparando como obus em minúsculas caixas de metal, você não perde tempo. Em mais ou menos um minuto, o campo foi fechado e as pistas foram restringidas pelos trilhos.
Uma batida de coração.
Um sino.
Bang.
Os portões foram abertos, a multidão rugiu e os cavalos avançaram como se tivessem sido lançados de bocas de canhões. As condições eram perfeitas. Clima seco. Frio. Estavam a toda velocidade na pista.
Não que sua garota se importasse com isso. Correria na areia movediça se fosse necessário.
Os cavalos puros-sangues trovejaram, o som dos cascos e a voz do locutor chicoteavam energia nas arquibancadas a ponto de ficarem em um estado de êxtase. Porém, Manny manteve a calma, permanecendo com as mãos firmadas no trilho na frente dele e seus olhos sobre o campo, enquanto o grupo de cavalos fazia a primeira curva em uma confusão tensa de dorsos e caudas.
O telão mostrava-lhe tudo o que precisava ver. Sua égua estava na penúltima posição, apenas galopando enquanto todos os outros empreendiam uma corrida mortal – inferno, seu pescoço sequer estava totalmente estendido. No entanto, o jóquei estava fazendo seu trabalho, facilitando o caminho dela para avançar na pista, dando-lhe a opção de correr ao redor do grupo ou cortar caminho através deles quando estivesse pronta.
Manny sabia exatamente o que ela iria fazer. Entraria pela direita em meio aos outros cavalos como uma bola de demolição.
Era o jeito dela.
E foi assim que, quando os outros abriram distância, ela começou a pegar fogo. A cabeça baixa, o pescoço alongado, seu passo começou a acelerar.
– Caramba – Manny sussurrou. – Você consegue, garota.
Quando Glory adentrou a pista verde, transformou-se em um raio de luz que ultrapassava os outros corredores, a explosão de velocidade era tão poderosa que qualquer um se perguntaria se aquilo não era de propósito: apenas vencê-los não era o suficiente, ela tinha que fazer isso no último quilômetro, deixando as selas dos outros bastardos na poeira, no último minuto possível.
Manny riu do fundo da garganta. Ela era seu tipo de garota.
– Meu Deus, Manello, olha só como ela avança.
Manny assentiu com a cabeça sem olhar para o cara que falou em seu ouvido, pois a liderança do grupo estava mudando: o potro que estava à frente perdia sua força, ficando para trás quando suas pernas pareceram ficar sem combustível. Em resposta a isso, o jóquei o golpeou, chicoteando-lhe o traseiro – algo que obteve o mesmo sucesso de quando alguém amaldiçoa um carro cujo tanque esvaziou. O potro que estava em segundo lugar, um animal grande e castanho com jeito de mau e um passo que poderia englobar um campo de futebol, aproveitou imediatamente a desaceleração, e seu jóquei permitiu que o cavalo estendesse sua cabeça totalmente.
Os dois ficaram emparelhados por apenas um segundo antes que o cavalo castanho assumisse a liderança da corrida. Mas não seria por muito tempo. A garota de Manny tinha escolhido seu momento para contornar os três cavalos e fazer com que ele ficasse totalmente tenso.
Sim, Glory fazia o que tinha nascido para fazer, orelhas unidas à cabeça, dentes expostos.
Ela ia roubar o doce da boca daquele garanhão. E era impossível não extrapolar e pensar que participariam de corridas importantes como a Kentucky Derby...
Tudo aconteceu tão rápido.
Tudo chegou ao fim... em um piscar de olhos.
Com um golpe intencional, o potro bateu em Glory, o impacto brutal enviou-a para os trilhos. Sua garota era grande e forte, mas não poderia suportar um contato corporal assim, não quando corria a mais de sessenta quilômetros por hora.
Por uma fração de segundo, Manny ficou convencido de que ela se reergueria. Apesar da maneira como inclinou-se e cambaleou, esperava que encontrasse um ponto de equilíbrio e desse uma lição de boas maneiras àquele bastardo.
Só que ela caiu. Bem na frente dos três cavalos que tinha ultrapassado.
O massacre foi imediato, os cavalos mudaram totalmente a direção para evitar o obstáculo no caminho, os jóqueis seguraram as rédeas com força na esperança de permanecerem montados.
Todos fizeram isso. Exceto Glory.
Quando a multidão exclamou, Manny lançou-se para frente, ultrapassando os limites da cerca e saltando sobre as pessoas, cadeiras e barricadas até chegar à pista.
Além dos trilhos. Na arena.
Correu até ela. Anos de prática do atletismo levaram-no a uma velocidade vertiginosa até o cerne daquela situação.
Ela estava tentando se levantar. Mas que coração grande e feroz... estava lutando para erguer-se do chão, seus olhos encarando o grupo como se não desse a mínima por estar ferida; só queria pegar de jeito aqueles que a deixaram na poeira.
Tragicamente, sua perna dianteira tinha outros planos: enquanto se debatia, a perna direita vacilava na altura do joelho; e Manny não precisava de sua experiência como ortopedista para saber que ela tinha um problema.
Um problemão.
Ao aproximar-se dela, viu que o jóquei estava em lágrimas.
– Dr. Manello, eu tentei... Oh, Deus...
Manny escorregou na areia e arremeteu-se em direção às rédeas enquanto os veterinários aproximavam-se e o telão voltava-se para o drama.
Quando três homens de uniforme aproximaram-se dela, seus olhos não emitiam mais aquele sentimento selvagem... passaram a expressar dor e confusão. Manny fez o possível para acalmá-la, permitindo que balançasse com força a cabeça o quanto quisesse enquanto acariciava seu pescoço. Ela se acalmou quando lhe deram um tranquilizante.
Ao menos a tentativa desesperadora de andar, mesmo mancando, cessou.
O veterinário-chefe olhou para a perna e balançou a cabeça, algo que no mundo das corridas era um sinal universal para “será necessário sacrificá-la”.
Manny aproximou-se do rosto do cara.
– Nem pense nisso. Estabilize o que estiver quebrado e leve-a para o hospital veterinário de Tricounty. Entendido?
– Ela nunca mais correrá novamente... isso parece uma fratura múlti...
– Tire meu maldito cavalo da pista e leve-o ao Tricounty...
– Não vale a pena...
Many agarrou a jaqueta do veterinário e puxou o “Sr. Falar é Fácil” até ficarem face a face.
– Faça isso. Agora.
Houve um momento de incompreensão total, como se ser insultado fosse algo novo para o profissional teimoso.
E assim que os dois entenderam o que estava acontecendo, Manny rosnou:
– Não vou perdê-la, mas estou totalmente disposto a sacrificar você. Bem aqui. E agora.
O veterinário encolheu-se, afastando-se, como se soubesse que estava correndo perigo de levar um belo golpe.
– Certo... certo.
Manny não ia perder seu cavalo. Nos últimos doze meses, lamentou a perda da única mulher com quem se preocupou na vida, questionou sua sanidade e passou a se embebedar de uísque mesmo odiando a coisa.
Se Glory partisse agora... não sobraria muita coisa nessa vida, sobraria?
Algumas modalidades de esporte como o surfe e o jóquei e outras competições como o pôquer oferecem um prêmio especial na terceira vitória consecutiva, o Triple Crown. (N. da T.)
CAPÍTULO 2
CALDWELL, NOVA YORK
CENTRO DE TREINAMENTO,
COMPLEXO DA IRMANDADE
Caramba... Que droga... mas que inferno...
Vishous estava em pé no corredor do lado de fora da clínica médica da Irmandade com uma das mãos fechadas sobre os lábios e o polegar mexendo freneticamente em um tique irritante. No entanto, não havia nada a ser dito, não importava quantas vezes ele friccionasse o pequeno isqueiro.
Tic. Tic. Tic...
Com uma repulsa total, lançou a maldita coisa na lixeira e agarrou a luva revestida de chumbo que cobria sua mão. Ao tirar o pedaço de couro, olhou para a palma da mão brilhante, flexionando os dedos, arqueando-a em direção ao punho.
A coisa era em parte um lança-chamas, em parte uma bomba nuclear, capaz de derreter qualquer metal, transformar pedra em vidro e deixar em pedaços qualquer avião, trem ou automóvel que quisesse. Essa também era a razão pela qual conseguia fazer amor com sua shellan e um dos dois legados que sua mãe divina havia lhe dado.
E uma maldita segunda visão que era tão divertida quanto a rotina de lidar com a “mão da morte”.
Aproximando a arma mortal de seu rosto, acendeu a ponta do cigarro artesanal que fazia, mas não chegou perto demais ou prejudicaria seu sistema de envio de nicotina ao corpo e teria que desperdiçar seu tempo criando outro, curando-se. E não tinha paciência para isso mesmo em um dia bom, quanto mais em um momento como aquele...
Ah, a adorável tragada.
Encostando-se contra a parede, plantou suas botas de combate no chão de linóleo e fumou. Aquele prego de caixão não fez muito pela sua expressão deprimente, mas isso era melhor do que a opção que tinha passado por seus pensamentos nas últimas duas horas. Ao colocar a luva de volta pensou em sair dali com seu “dom” e incendiar alguma coisa, qualquer coisa...
Era mesmo sua irmã gêmea que estava do outro lado da parede? Deitada em uma cama de hospital... paralisada?
Jesus Cristo... Trezentos anos de idade e só então descobrir que se tem uma irmã.
Boa jogada, mamãe. Muito legal mesmo.
E pensar que ele achava ter resolvido todos os problemas com seus pais. Porém, apenas um deles estava morto. Se a Virgem Escriba seguisse pelo caminho de Bloodletter e descansasse em paz, talvez ele conseguisse encontrar um ponto de equilíbrio.
No entanto, pensando em como as coisas estavam e naquela tentativa absurda de Jane no mundo humano... Tudo aquilo estava fazendo com que ele...
Sim, não havia palavras para isso.
Pegou seu telefone celular. Verificou. Colocou de volta no bolso de sua jaqueta de couro. Caramba, isso era tão típico. Jane colocava seu foco em algo e isso era tudo. Nada mais importava.
Claro que ele era exatamente assim, mas em momentos como aquele, gostaria muito de ser atualizado.
Maldito sol. Prendia-o dentro de casa. Ao menos se estivesse com sua shellan não haveria possibilidade de o “grande” Manuel Manello negar alguma coisa. V. simplesmente golpearia o desgraçado, jogaria o corpo no Escalade e traria aquelas mãos talentosas até ali para operar Payne.
Para ele, o livre-arbítrio era um privilégio, não um direito.
Quando terminou de fumar o cigarro artesanal, apagou-o na sola de suas botas de combate e jogou a bituca no lixo. Queria muito uma bebida – exceto refrigerante ou água. Meio engradado de vodka o afastaria um pouco daquele abismo, mas com um pouco de sorte permitiriam que ele ajudasse na sala de cirurgia em breve, e precisava estar sóbrio para isso.
Entrando na sala de exames, os ombros ficaram tensos, os molares se fecharam e, por uma fração de segundo, não sabia o quanto mais poderia suportar. Se tinha uma coisa que o tirava do sério era quando sua mãe aprontava das suas, e era difícil imaginar algo pior do que a mentira de todas as mentiras.
O problema era que a vida não vinha com um “botão” de reiniciar, como o video game, que se pode pressionar quando ele trava por tentarem inserir alguma vantagem ou trapaça no jogo.
– Vishous?
Fechou os olhos por um instante ao som daquela voz suave e baixa.
– Sim, Payne – terminou a frase no Antigo Idioma. – Sou eu.
Cruzando a sala, reassumiu seu posto na banqueta com rodas ao lado da maca. Deitada embaixo de vários cobertores, Payne estava imobilizada, com a cabeça em um bloco e um colar cervical que ia do queixo à clavícula. Uma intravenosa ligava o braço dela a uma bolsa pendurada em uma extremidade de aço inoxidável e havia uma tubulação embaixo conectada ao cateter que Ehlena lhe dera.
Mesmo a sala de azulejos sendo clara, limpa e brilhante e os equipamentos e suprimentos médicos tão ameaçadores quanto xícaras e pires em uma cozinha, parecia que estavam em uma caverna suja cercados por ursos.
Seria tão bom se pudesse sair e matar o filho da mãe que tinha colocado sua irmã naquela condição. O problema era... isso significava que teria de acabar com Wrath, e que grande confusão essa morte traria. O maldito filho da mãe não era apenas o Rei, era um Irmão... e esse era o pequeno detalhe pelo qual a estadia dela ali havia sido consensual. As sessões de luta que os dois vinham travando nos últimos dois meses os deixaram em forma – e, claro, Wrath não fazia ideia com quem lutava, pois estava cego. Uma fêmea? Bem, dedução óbvia. As sessões aconteciam do Outro Lado e não havia machos por lá. Mas a falta de visão do Rei significava que ele perdia o que V. e todos os outros observavam ao entrarem naquela sala: a longa trança preta de Payne era da cor exata do cabelo de V. e sua pele do mesmo tom que a dele, tinha a mesma constituição: alta, magra e forte. Mas os olhos... cara, os olhos.
V. esfregou o rosto. Seu pai, Bloodletter, teve um número incontável de bastardos antes de ser assassinado em uma batalha contra redutores no Antigo País. Mas V. não se importava com nenhuma dessas relações aleatórias com as fêmeas.
Payne era diferente. Os dois tinham a mesma mãe e não era uma mahmen qualquer. Era a Virgem Escriba. A grande mãe da raça.
Era uma vadia, isso sim.
O olhar de Payne deslocou-se e a respiração de V. saiu com dificuldade. A íris que o encontrou era da cor de gelo branco, assim como a sua, e a borda azul-marinho em torno dela era algo que via todas as noites no espelho. E a inteligência... a inteligência que havia nas profundezas árticas daquela brancura era exatamente a mesma que havia dentro dele também.
– Não consigo sentir nada – Payne disse.
– Sei. – V. repetiu balançando a cabeça: – Eu sei.
Sua boca se contorceu e exibiu algo que poderia ter sido um sorriso em outras circunstâncias.
– Pode falar no idioma que quiser – disse com um inglês bem marcado. – Sou fluente em... muitos.
Ele também. O que significava que era incapaz de formular uma resposta em dezesseis línguas diferentes. Maravilha.
– Sua shellan... já lhe disse alguma coisa? – disse pausadamente.
– Não. Gostaria de tomar mais analgésicos? – Ela parecia mais fraca que da última vez que a vira.
– Não, obrigada. Eles fazem com que eu me sinta... estranha.
Essa frase foi seguida por um longo silêncio. Que ficou mais longo. E ainda mais longo.
Cristo, talvez ele devesse segurar a mão dela – afinal, ela podia sentir algo acima da cintura. Sim, mas o que poderia oferecer com essa atitude? Sua mão esquerda estava tremendo e a direita era mortal.
– Vishous, o tempo não está...
Quando sua irmã gêmea deixou a frase pairando no ar, ele a terminou mentalmente: do nosso lado.
Ele queria que ela estivesse errada. Contudo, quando se trata de lesões na coluna, assim como derrames e ataques cardíacos, boas oportunidades de recuperação são perdidas a cada minuto que o paciente passa sem tratamento.
Era melhor que aquele humano fosse tão bom quanto Jane havia dito.
– Vishous?
– Sim?
– Gostaria que eu não tivesse vindo até aqui?
Franziu a testa com força.
– De que diabos está falando? Claro que gostaria de ter você comigo.
Enquanto seu pé ficava batendo no chão de nervosismo, perguntou quanto tempo mais precisaria ficar antes que pudesse sair para outro cigarro. Simplesmente não ia conseguir respirar enquanto estivesse sentado ali, sem poder fazer nada enquanto sua irmã sofria e seu cérebro engasgava-se com as perguntas. Tinha um milhão de “o que?” e “por que” instalados em sua cabeça, só que não podia perguntar nada para ninguém. Parecia que Payne poderia entrar em coma a qualquer momento por causa da dor, portanto, não era uma boa hora para se fazer um social, cheio de perguntas, com direito a cafezinho.
Caramba, os vampiros podiam se curar como um relâmpago, mas não eram imortais.
Poderia muito bem perder sua irmã gêmea antes de sequer conhecê-la melhor.
Seguindo esse raciocínio, ele deu uma olhada para ver seus sinais vitais no monitor. A raça vampira tinha pressão sanguínea baixa, mas a dela estava quase ao nível do chão. A pulsação estava lenta e irregular, como uma bateria de escola de samba formada apenas por garotos brancos. E o sensor de oxigênio teve de ser silenciado, pois o alarme de alerta soava continuamente.
Quando seus olhos se fecharam, ele temeu que fosse a última vez... e o que havia feito por ela? Nada, exceto gritar quando lhe fizera uma pergunta.
Inclinou-se para mais perto dela, sentindo-se um idiota.
– Tem de aguentar firme, Payne. Estou tentando conseguir o que você precisa, mas você tem de ser forte.
As pálpebras de sua irmã ergueram-se e ela olhou para ele de sua cabeça imóvel.
– Trouxe muitos inconvenientes a sua casa.
– Não se preocupe comigo.
– Isso é o que sempre fiz.
V. franziu a testa outra vez. Era evidente que toda essa coisa de irmão/irmã era uma novidade apenas para ele. Tinha de descobrir como, diabos, ela sabia sobre ele.
E o que sabia.
Droga, lá estava outro momento em que desejaria ser menos durão.
– Está tão confiante nesse curandeiro que procura – ela murmurou.
Ah, não mesmo. A única coisa de que tinha certeza era que se o desgraçado a matasse haveria um funeral duplo naquela noite... assumindo que haveria alguma coisa restante do humano para enterrar ou queimar.
– Vishous?
– Minha shellan confia nele.
Os olhos de Payne ergueram-se e ficaram assim. Será que ela estava olhando para o teto?, V. se perguntou. Seria a lâmpada cirúrgica que havia sobre ela? Algo que ele não conseguia ver?
Num determinado momento, ela disse:
– Pergunte-me quanto tempo passei nas mãos de nossa mãe.
– Tem certeza de que tem forças para isso? – Quando ela olhou para tudo a seu redor, exceto para ele, quis sorrir. – Quanto tempo?
– Em que ano estamos na Terra? – Quando ele respondeu, seus olhos se arregalaram. – De fato. Bem, foram centenas de anos. Fui aprisionada pela nossa mahmen por... centenas de anos da minha vida.
Vishous sentiu as pontas de suas presas formigarem de raiva. Aquela mãe deles... Já deveria saber que a paz que tinha encontrado com sua fêmea não duraria muito.
– Está livre agora.
– Estou – olhou para baixo em direção às pernas. – Não conseguirei viver em outra prisão.
– Isso não vai acontecer.
Então, aquele olhar gélido tornou-se astuto.
– Não posso viver assim. Entende o que estou dizendo?
O interior dele congelou completamente.
– Ouça, vou trazer aquele médico até aqui e...
– Vishous – ela disse com voz rouca. – De fato, faria isso se pudesse, mas não posso e não há outra pessoa a quem possa recorrer. Você me entende?
Quando encontrou os olhos dela, quis gritar, suas entranhas se contorceram, gotas de suor brotaram em sua testa. Era um assassino por natureza e treinado para isso, mas aquela não era uma habilidade que tinha a intenção de praticar com alguém de seu sangue. Bem, tirando sua mãe, claro. Talvez seu pai, só que o cara tinha morrido por conta própria.
Certo, reformulando a frase: não era algo que exerceria com sua irmã.
– Vishous. Você...?
– Sim. – Olhou para baixo, para sua mão amaldiçoada e flexionou o maldito pedaço de seu corpo. – Eu entendo.
Dentro de sua pele, em sua essência, seu eixo interno começou a vibrar. Era o tipo de coisa pela qual se tornou intimamente familiarizado ao longo de sua vida... e também era um choque total. Não tinha sentido aquilo desde que Jane e Butch apareceram; e voltar a sentir era... terrível!
No passado, isso o levaria direto aos trilhos do sexo perigoso e hard-core, ficaria à beira do abismo.
Só que na velocidade do som.
A voz de Payne era fraca:
– O que me diz?
Droga, ele tinha acabado de conhecê-la.
– Sim – flexionou sua mão mortal. – Vou cuidar de você. Se chegarmos a isso.
Quando Payne olhou em direção à gaiola que era seu corpo meio-morto, o perfil sombrio de seu irmão gêmeo era tudo o que conseguia enxergar e desprezou-se pela posição em que o colocou. Gastou muito tempo desde que tinha chegado àquele lado tentando descobrir outra saída, outra opção, outra... qualquer coisa.
Mas o que ela precisava era algo que não se podia pedir a um estranho.
Por outro lado, ele era um estranho.
– Obrigada, meu irmão – ela disse.
Vishous assentiu com a cabeça uma vez e voltou a olhar para frente. Na verdade, ele era muito mais que a soma de suas características faciais e do enorme tamanho de seu corpo. Até bem pouco tempo atrás, quando aprisionada por sua mahmen, teve de observá-lo por muito tempo nas tigelas do santuário das Escolhidas e soube quem ele era no instante em que surgiu naquela água rasa; tudo o que teve de fazer foi olhar para ele e enxergar a si própria.
Que vida ele levou. Começando com o campo de guerra e a brutalidade de seu pai... e agora isso.
Sob sua postura fria, ele vociferava. Podia sentir em seus ossos uma ligação entre eles que lhe dava uma visão que ia além daquilo que seus olhos conseguiam lhe informar: por fora, estava contido como uma parede de tijolos, seus componentes todos em ordem e encaixados no lugar; no entanto, por dentro, ele fervia... e a dica externa era sua mão direita enluvada. Por baixo do acessório, uma luz brilhava... e ficava cada vez mais brilhante – especialmente depois que fizera o pedido.
Ela percebeu que aquele poderia ser o único momento que teriam juntos, e seus olhos fecharam-se outra vez.
– Está unido a uma fêmea curadora? – Ela murmurou.
– Sim.
Quando houve apenas silêncio, ela desejou poder encará-lo, mas ficou claro que respondeu apenas por educação. Ainda assim, acreditou nele quando disse que estava contente por estar ali. Ele não diria uma mentira assim, não por que se preocupasse com a moral ou a ética, mas sim porque viu que tal esforço seria um desperdício de tempo e energia.
Payne deitou seus olhos outra vez sobre a cabeça dele, que parecia ter um anel de fogo sobre ela. Desejou que segurasse sua mão ou a tocasse de alguma maneira, mas já havia feito pedidos demais.
Deitada sobre a maca com rodas, seu corpo parecia muito estranho, pesado e leve ao mesmo tempo, e sua única esperança eram os espasmos que corriam por suas pernas e faziam cócegas em seus pés, fazendo com que repuxassem. Certamente, se aquilo estava acontecendo nem tudo estava perdido, disse a si mesma.
Só que, mesmo quando acalentava tal pensamento, uma pequena e silenciosa parte de sua mente dizia que o telhado cognitivo que estava tentando construir não suportaria a chuva que estava prestes a cair em sua vida: quando movia as mãos, mesmo sem conseguir enxergá-las, podia sentir os lençóis frios e macios e a mesa lisa e gelada sobre a qual estava. Mas quando pedia que seus pés fizessem o mesmo... Era como se estivesse nas águas mornas e serenas das piscinas de banho do Outro Lado, encapsulada em um abraço invisível, sentindo absolutamente nada.
Onde estava aquele curandeiro?
O tempo... estava passando.
Quando a espera passou do insuportável para a extrema agonia, era difícil saber se a sensação de asfixia era devido a sua condição ou pelo silêncio da sala. Na verdade, ela e seu irmão gêmeo estavam mergulhados no silêncio... só que por razões muito diferentes: ela não iria a lugar algum, mesmo com muito entusiasmo; e ele estava prestes a explodir.
Desesperada por algum estímulo, alguma coisa, qualquer coisa, murmurou:
– Fale um pouco sobre o curandeiro que está chegando.
A brisa de ar frio que atingiu seu rosto e o aroma de especiarias escuras que percorreram seu nariz diziam que era um macho. Tinha de ser.
– É o melhor – Vishous murmurou. – Jane sempre fala dele como se fosse um deus. – O tom não era muito educado, mas o fato era que vampiros machos não gostavam muito de outros em torno de suas fêmeas.
Quem poderia ser esse dentre os machos da raça?, Payne perguntou-se. O único curandeiro que conseguira enxergar nas tigelas era Havers, e, com certeza, não havia razão alguma para procurarem por ele.
Talvez houvesse outro que ela não tinha observado; afinal, não passava tanto tempo tentando recuperar o atraso com o mundo e, de acordo com seu irmão gêmeo, haviam se passado muitos, muitos e muitos anos entre sua prisão e a liberdade...
De repente, a exaustão interrompeu sua linha de raciocínio, penetrando em sua medula, pressionando-a ainda mais sobre a mesa de metal.
No entanto, quando fechou os olhos, conseguiu suportar a escuridão apenas durante um rápido momento antes do pânico fazer suas pálpebras se abrirem. Enquanto estivera presa por sua mãe, tinha plena consciência de que poderia movimentar-se sem limites em um espaço livre; mas dentro daquele local opressivo, onde os minutos se arrastavam, aquela paralisia era muito parecida com o que tinha sofrido durante centenas de anos. Razão pela qual fizera aquele pedido terrível a Vishous. Não poderia ficar ali daquele lado apenas para reproduzir aquilo pelo que sempre havia lutado de maneira tão desesperada para escapar.
Lágrimas escorreram de seus olhos, fazendo com que a fonte de luz verde brilhante vacilasse. Como desejava que seu irmão segurasse sua mão...
– Por favor, não chore – disse Vishous. – Não... chore.
Na verdade, ficou surpresa por ele ter notado.
– Sim, você está certo. Chorar não cura nada.
Aumentando sua força de vontade, buscou ser forte, mas foi uma batalha. Embora seu conhecimento das artes medicinais fosse limitado, uma lógica simples anunciava onde estava o erro: como era de uma linhagem extremamente forte, seu corpo começou a recuperar-se no momento em que havia sido ferida na sessão de luta com o Rei Cego; contudo, o problema era que o processo regenerativo, que em uma situação comum salvaria sua vida, tornava sua condição ainda mais terrível – e era muito provável que aquilo fosse permanente.
Vértebras quebradas tentando se regenerar não conseguiam alcançar um resultado muito bom, e a paralisia em suas pernas era um testemunho desse fato.
– Por que fica olhando o tempo todo para sua mão? – ela perguntou, ainda olhando para a luz.
Houve um momento de silêncio, superior a todos os outros.
– Por que acha que estou fazendo isso?
Payne suspirou.
– Porque o conheço, meu irmão. Sei tudo sobre você.
Quando ele não disse nada, o silêncio era tão agradável quanto os inquéritos que havia no Antigo País.
Oh, o que será que ela havia desencadeado? E onde todos estariam quando tudo chegasse ao fim?
CAPÍTULO 3
Algumas vezes, a única maneira de se saber quão longe se foi é voltando ao ponto de onde se iniciou.
Quando Jane Whitcomb, médica, entrou no complexo hospitalar São Francisco, foi sugada de volta a sua antiga vida. De alguma maneira, foi uma viagem curta – há apenas um ano ela era a chefe do departamento de traumatologia daquele lugar, morava em um apartamento cheio de coisas de seus pais, passando vinte horas por dia correndo entre a emergência e as salas de cirurgia. Não mais.
Um indício certo de que a mudança era definitiva foi a maneira como ela entrou no centro cirúrgico: não havia razão para preocupar-se com as portas giratórias ou aquelas que precisavam ser empurradas na recepção. Ela atravessou as paredes de vidro e passou despercebida pelos seguranças que estavam no balcão. Fantasmas são bons nisso.
Desde que fora transformada, conseguia ir a lugares e ultrapassar coisas sem que ninguém fizesse ideia de que estava por perto. Mas também poderia ficar tão corpórea quanto a pessoa ao lado, assumindo uma forma sólida, de acordo com a sua vontade. Em dado momento era absolutamente etérea; em outro, era como a humana que havia sido, capaz de comer, amar e viver. Isso era uma grande vantagem ao exercer o cargo de cirurgiã particular da Irmandade.
Como agora, por exemplo: de que outra maneira ela seria capaz de se infiltrar no mundo dos humanos outra vez sem quase nenhum barulho?
Percorrendo o chão de pedra polida da recepção, passou pela parede de mármore onde estava inscrito o nome dos benfeitores e abriu caminho pela multidão de pessoas. Naquele congestionamento humano, muitos rostos eram familiares, desde o pessoal da administração até os médicos e enfermeiros com quem trabalhou durante anos. Mesmo anônimos, os pacientes estressados e suas famílias pareciam íntimos dela... de alguma maneira, as máscaras de tristeza e preocupação eram as mesmas, não importava quais fossem as características faciais que as moldavam.
Quando se dirigiu às escadas, estava buscando seu antigo chefe, e, Cristo, teve vontade de rir. Ao longo de todos aqueles anos trabalhando juntos, tinha surpreendido Manny Manello de muitas maneiras; mas aquilo ia superar vários acidentes de carro, avião ou uma explosão de edifício. Tudo isso junto.
Flutuando ao atravessar uma saída de emergência de metal, ela subiu a escada dos fundos. Os pés não tocavam os degraus, pairavam sobre eles enquanto subia como fumaça, sem esforço algum.
Aquilo tinha de funcionar. Tinha que convencer Manny a lhe acompanhar para cuidar daquela coluna lesionada, e ponto final. Não havia outras opções, nada de imprevistos, nada de virar à direita ou à esquerda naquela estrada: aquele era o passe final... e estava rezando para que o goleiro não pegasse aquela bola.
Que bom que ela tinha um bom desempenho sob pressão e que conhecia aquele homem como a palma de sua mão.
Manny aceitaria o desafio; mesmo isso não fazendo sentido algum para ele, ficaria lívido por saber que ela ainda estava “viva”. Além disso, não seria capaz de recusar ajuda a um paciente necessitado – simplesmente não estava programado para isso.
No décimo andar, atravessou outra parede e entrou na seção administrativa do departamento cirúrgico. O local era equipado como um escritório de advocacia, todo escuro, sombrio e luxuoso. Fazia sentido: o centro cirúrgico era uma fonte enorme de renda para qualquer hospital universitário, e o dinheiro era gasto para recrutar, manter e abrigar aqueles seres mimados e arrogantes que abriam pessoas para que elas sobrevivessem mais.
Dentre o grupo que operava com os bisturis no Hospital São Francisco, Manny Manello estava no topo da pirâmide, chefe não apenas de uma subespecialidade, como ela tinha sido, mas de todo o conjunto da obra. Isso significava que era uma estrela de cinema, um sargento e o presidente dos Estados Unidos ao mesmo tempo, tudo isso englobado em um cara com pouco mais de um metro e oitenta de altura. Tinha um temperamento terrível, uma inteligência impressionante e um pavio de mais ou menos um milímetro de comprimento, e isso em um dia bom. E seu trabalho era tão valioso quanto uma pedra preciosa.
As operações de maior rentabilidade do cara sempre foram aquelas feitas em atletas profissionais: ele tratou vários joelhos, quadris e ombros que teriam provocado muitos finais de carreira no futebol, baseball ou no hóquei. Mas também tinha muita experiência com tratamentos de coluna e, apesar da atuação de um neurocirurgião ser interessante se considerasse as radiografias de Payne, aquele era um problema ortopédico: se a medula espinhal fosse rompida, nada do que fizessem em termos neurológicos ajudaria. A ciência médica não tinha avançado tanto assim.
Quando dobrou a extremidade da mesa de recepção, teve de parar. À esquerda estava seu antigo escritório, o lugar onde passava horas incontáveis lidando com papéis e fazendo reuniões de consulta com Manny e o resto da equipe. Agora, lia-se o nome na placa fixada na porta: DR. THOMAS GOLDBERG, CIRUGIÃO-CHEFE DO DEPARTAMENTO DE TRAUMATOLOGIA.
Goldberg era uma excelente escolha; ainda assim, por alguma razão, doía ver o nome de outra pessoa ali.
Mas até parece. Esperava que Manny preservasse sua mesa e seu escritório como um monumento em homenagem a ela? A vida continua. A dela. A dele. A do hospital.
Voltando à realidade da situação, caminhou pelo corredor acarpetado. Mexia sempre em seu jaleco branco, com a caneta em seu bolso e com o celular que, até agora, não havia tido motivos para usar. Não havia tempo para explicar seu retorno do mundo dos mortos ou persuadir Manny ou ajudá-lo a entender o que estava prestes a expor; e não havia escolha, mas, de alguma forma, tinha de levá-lo com ela.
Em frente à porta fechada, preparou-se e, em seguida, atravessou...
Ele não estava atrás da mesa, ou trabalhando em algo na mesa de conferências da sala de reuniões.
Verificou rapidamente em seu banheiro privativo... nada ali também... não havia nenhuma umidade nas portas de vidro ou toalhas molhadas sobre a pia.
De volta ao escritório, ela respirou fundo... e o aroma suave de sua loção pós-barba pairando no ar a fez engolir em seco. Deus, sentia a falta dele.
Balançando a cabeça, andou ao redor da mesa e olhou a desordem. Arquivos de pacientes, pilhas de memorandos interdepartamentais, relatórios de Assistência ao Paciente e de Avaliação de Qualidade. Como era um pouco depois das cinco da tarde de um sábado, esperava encontrá-lo ali: as provas de seleção não eram realizadas nos finais de semana; então, a menos que estivesse de plantão ou lidando com um algum caso na traumatologia, deveria estar bem ali atrás daquela confusão de papéis. Manny era workaholic: trabalhava vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana.
Saindo do escritório, verificou a mesa de sua secretária. Nada ali também: seus compromissos eram mantidos no computador, protegidos por senha.
A próxima parada era o centro cirúrgico. O São Francisco tinha diferentes níveis de salas de operação, todas organizadas por especialidades. Ela foi diretamente à seção que ele costumava atuar. Olhando pelas janelas de vidro e portas duplas, viu que estavam operando uma terrível fratura múltipla. Embora os cirurgiões usassem máscaras e toucas, poderia dizer que nenhum deles era Manny. Seus ombros eram grandes o suficiente para esticar até mesmo o maior uniforme cirúrgico disponível e, além disso, as músicas que soavam ao fundo não eram o estilo dele. Mozart? Sem chance. Pop? Nem morto: Manny ouvia rock clássico e heavy metal. Aliás, se não fosse contra o protocolo, os enfermeiros usariam um protetor de ouvidos durante todos os procedimentos com ele.
Caramba... Onde diabos estava? Não havia conferências naquela época do ano e ele não tinha vida fora do hospital. As únicas opções que restavam era que estivesse no Commodore: desmaiado de cansaço no sofá de seu apartamento ou na academia do arranha-céu.
Quando saiu dali, pegou o celular e ligou para o sistema de atendimento do hospital.
– Sim, alô? – disse quando a ligação foi atendida. – Gostaria de falar com o Dr. Manuel Manello. Meu nome? – que droga! – Ah... Hannah. Hannah Whit. Pode retornar a ligação neste número.
Quando desligou, percebeu que não fazia ideia do que dizer caso ele retornasse a ligação, mas resolveu dar destaque ao pensamento positivo... e rezou para que tivesse a habilidade inata de realizar aquela tarefa. O fato era: se o sol baixasse no horizonte, um dos Irmãos sairia do complexo e faria algum trabalho mental em Manny para facilitar o processo de levá-lo até lá.
Contudo, não seria Vishous. Outra pessoa. Qualquer pessoa. Seus instintos diziam-lhe para deixar os dois tão afastados quanto possível: já tinham uma emergência médica em processo, e a última coisa de que precisava era de seu antigo patrão sendo pressionado porque seu marido tinha um instinto territorial e poderia decidir rachar, ele próprio, uma coluna a qualquer momento. Pouco antes de sua morte, Manny estava interessado em mais do que apenas uma associação profissional com ela; portanto, a menos que tivesse se casado com uma das Barbies que insistia em namorar, provavelmente ainda estava solteiro... E a regra dizia que o coração ficava ainda mais afeiçoado à pessoa ausente; então, seus sentimentos devem ter persistido.
Por outro lado, era possível que a insultasse sem piedade por mentir para ele sobre toda a coisa de estar “morta e enterrada”.
Pelo menos ele não se lembraria de nada daquilo; contudo, quanto a ela, temia nunca mais se esquecer das próximas vinte e quatro horas.
O Hospital Equino Tricounty era uma instalação de última geração em todos os sentidos. Localizado a quinze minutos do hipódromo de Aqueduct, o local tinha tudo, desde salas de operação e um serviço completo de quartos de recuperação até piscinas para hidroterapia e exames que forneciam imagens avançadas. E seu quadro de funcionários era composto por pessoas que viam os cavalos como muito mais do que uma fonte de lucros sobre quatro patas.
Na sala de cirurgia, Manny analisava as radiografias da perna dianteira de sua garota e desejou ser o único a entrar ali para resolver o problema: conseguia ver claramente as fissuras na imagem, mas isso não era o que o preocupava. Havia vários ligamentos que haviam sido rompidos e manchas acentuadas orbitando ao redor dos centros nervosos do osso alongado que mais pareciam luas ao redor de um planeta.
Só porque ela era de outra espécie não significava que não poderia fazer a operação. Assim que o anestesista fizesse seu trabalho em segurança, ele poderia cuidar do resto. Osso era sempre osso; mas não bancaria o idiota.
– O que acha? – perguntou.
– Minha opinião profissional – respondeu o veterinário-chefe – é de que está muito ruim. É uma fratura múltipla deslocada. O tempo de recuperação será extenso e não é possível garantir que ela sequer possa reproduzir.
O que era uma zica total: cavalos foram feitos para ficar em pé com seu peso distribuído sobre quatro pontos de maneira uniforme. Quando uma perna era quebrada, não se tratava tanto da lesão em si, mas o fato de que era preciso redistribuir o peso e contar, desproporcionalmente, com as partes que ainda estavam boas no corpo para ficar em pé. E esse era o grande problema.
Ao considerar aquilo que examinava, a maioria dos proprietários escolheria a eutanásia; mas sua garota tinha nascido para correr, e aquela lesão catastrófica faria disso impossível, mesmo se fosse apenas para o lazer... isso se ela sobrevivesse. Como médico, estava muito familiarizado com a crueldade do trabalho “salvador” de seus colegas que acabavam levando o paciente a viver em condições piores do que a morte – ou não faziam nada além de prolongar, de maneira dolorosa, o inevitável.
– Dr. Manello? O senhor ouviu o que eu disse?
– Sim. Ouvi. – Pelo menos aquele cara, ao contrário do idiota na pista, parecia tão arrasado quanto Manny.
Afastando-se, foi até onde a deitaram e colocou uma das mãos sobre sua bochecha arredondada. Sua pelagem negra brilhava sob a iluminação e, em meio ao cenário de ladrilho claro e aço inoxidável, parecia uma sombra projetada ao acaso e esquecida no centro da sala.
Por um longo momento, observou como sua grande caixa torácica expandia-se e contraía-se com a respiração. Só de vê-la na maca com as belas pernas esticadas como bastões e sua cauda pendendo sobre o ladrilho fê-lo perceber que animais como ela deveriam ficar em pé: aquilo que via era completamente contrário à natureza, e injusto.
Mantê-la viva apenas para que não tivesse de enfrentar sua morte não era a resposta certa.
Preparando-se para a situação, Manny abriu a boca...
A vibração dentro do bolso de seu terno o interrompeu. Com um palavrão, tirou o celular e verificou. Era do hospital. Hannah Whit? Com um número desconhecido?
Não era ninguém que conhecesse e ele não estava de plantão.
Provavelmente um erro do atendimento.
– Quero que opere – ouviu-se dizendo enquanto guardava o telefone de volta.
O curto silêncio que se seguiu deu-lhe tempo de sobra para perceber que impedi-la de partir cheirava a covardia. Mas não poderia insistir naquele melodrama psíquico ou perderia a sanidade.
– Não posso garantir nada. – O veterinário voltou a olhar as radiografias. – Não sei dizer o que vai acontecer, mas posso jurar que... farei meu melhor.
Deus, agora sabia como as famílias se sentiam quando dizia isso a elas.
– Obrigado. Posso assistir?
– Com certeza. Vou pegar algo para o senhor vestir e sabe como fazer a higienização antisséptica, certo, doutor?
Vinte minutos depois, a operação começou e Manny assistiu próximo à cabeça de Glory, acariciando sua crina com as mãos envolvidas com as luvas de látex, mesmo sedada. Enquanto o veterinário-chefe trabalhava, Manny teve de tirar o chapéu para a metodologia e habilidade daquele homem... as únicas coisas corretas desde que Glory havia caído. O procedimento terminou em menos de uma hora, com os fragmentos ósseos ou removidos ou encaixados no devido lugar. Então, imobilizaram a perna, retiraram a égua da sala de cirurgia e a colocaram em uma piscina para que não quebrasse outra perna quando o efeito da anestesia passasse.
Manny ficou com ela até que acordasse e, em seguida, acompanhou o veterinário até o corredor.
– Os sinais vitais são bons e correu tudo bem na operação – o veterinário disse –, mas essa vitalidade pode mudar rapidamente. E vai levar tempo até sabermos o que conseguimos alcançar.
Nossa. Aquele pequeno discurso era exatamente o que dizia aos familiares mais próximos e outros parentes quando achava que era hora de irem para casa descansar e esperar como o paciente reagiria ao pós-operatório.
– Ligaremos para o senhor – falou o veterinário. – Vamos mantê-lo informado.
Manny tirou as luvas e pegou seu cartão de visitas.
– No caso de ainda não terem todos os meus dados nos registros.
– Temos sim – de qualquer forma, pegou o papel. – Se alguma coisa mudar, será o primeiro a saber, e lhe darei as informações pessoalmente, a cada doze horas, que é o intervalo entre as minhas rondas, quando passo visitando todos os leitos.
Manny assentiu e estendeu a mão.
– Obrigado. Por cuidar dela.
– Por nada.
Depois de apertarem as mãos, Manny assentiu outra vez junto às portas duplas.
– Importa-se se eu me despedir dela?
– Não. Pode ir.
Dentro do quarto outra vez, passou um momento com sua égua. Deus... aquilo doía.
– Segure firme, garota – teve de sussurrar, pois não conseguia respirar direito.
Quando se ergueu, a equipe o observava com uma tristeza que sabia que ia permanecer.
– Vamos cuidar dela. – o veterinário disse gravemente.
Acreditava mesmo que cuidariam e foi a única coisa que o levou de volta ao corredor.
As instalações do Tricounty eram extensas e precisou de um tempo considerável para trocar de roupa e seguir seu caminho até a saída onde tinha estacionado, próximo à porta da frente. À frente, o sol se punha, um brilho de um tom pêssego se espalhava, iluminando o céu como se Manhattan estivesse em chamas. O ar estava frio, mas perfumado, pois o início da primavera esforçava-se para trazer vida à paisagem árida do inverno, e ele respirou tão fundo que ficou tonto. Deus, o tempo tinha passado como uma neblina, mas agora, com os minutos se arrastando, percebeu que aquele ritmo frenético tinha esgotado sua fonte de energia. Era isso ou tinha batido contra um muro de tijolos e desmaiado.
Enquanto procurava a chave do carro, sentiu-se mais velho do que Deus. Sua cabeça estava dando fortes pontadas e sua artrite no quadril o estava matando. Aquela corrida que havia empreendido para chegar à pista e ficar ao lado de Glory ia além de seus limites.
Não foi assim que imaginou o final do dia. Achou que estaria comprando bebidas para os proprietários que tinha derrotado... E talvez, no resplendor da vitória, seguisse a generosa sugestão oral da Sra. Hanson.
Ao entrar no carro, ligou o motor. Caldwell estava a mais ou menos quarenta e cinco minutos ao norte de Queens, e seu carro conseguia fazer a viagem de volta ao Commodore praticamente sozinho. Isso era muito bom, pois era quase um zumbi naquele momento. Nada de rádio. Nenhuma música no iPod. Ninguém telefonando também.
Ao pegar a estrada, observou o caminho à frente e lutou contra o impulso de dar meia-volta e... sim, e fazer o quê? Descansar em paz ao lado de seu cavalo?
A questão era: se conseguisse chegar em casa logo, poderia conseguir ajuda. Tinha uma garrafa de uísque esperando por ele e poderia ou não ir com calma ao usá-la. Até onde dizia respeito ao hospital, estava de folga até segunda pela manhã, às seis horas, e tinha planos de ficar bêbado e permanecer assim.
Guiando o volante revestido de couro com uma das mãos, procurou, com a outra, em meio a sua camisa de seda, sua representação do Cristo crucificado. Segurando a cruz de ouro, fez uma oração.
Deus... por favor, permita que ela fique bem.
Não poderia suportar perder outra de suas garotas. Não tão cedo. Jane Whitcomb tinha morrido há um ano, mas isso era o que o calendário dizia. O tempo do luto era diferente – nele havia transcorrido apenas um minuto e meio.
Não queria passar por isso outra vez.
CONTINUA
1761, ANTIGO PAÍS
Xcor viu seu pai sendo morto após cinco anos de sua transição. Aconteceu diante de seus olhos, mas, mesmo com a proximidade, não poderia imaginar o que houve.
A noite começou como qualquer outra, a escuridão caiu sobre a paisagem de florestas e cavernas, as nuvens encobriam a luz da lua para ele e para aqueles que viajavam a cavalo com ele. Seu grupo de soldados era composto por seis homens fortes: Throe, Zypher, os três primos e ele próprio. E seu pai.
Bloodletter.
Antigo membro da Irmandade da Adaga Negra.
O que os fez sair naquela noite foi o que os chamava ao serviço após cada pôr de sol: procuravam redutores, aquelas armas sem alma de Ômega, que achou por bem exterminar a raça vampira. E os encontravam. Frequentemente.
Mas aqueles sete machos não eram membros da Irmandade.
Ao contrário dos aclamados Irmãos, eram um grupo secreto de guerreiros. Aquele grupo de bastardos liderados por Bloodletter não era nada além de soldados: sem cerimônias. Nada de serem adorados pela população civil. Nada de louvores. A linhagem deles poderia ser aristocrática, mas todos foram abandonados por seus familiares por terem nascido com defeitos ou fora de um acasalamento santificado.
Nunca seriam outra coisa senão pedaços de carne dispensáveis dentro da grande guerra pela sobrevivência.
Porém, mesmo isso sendo verdade, eram a elite dos soldados, os mais cruéis, os braços mais fortes, aqueles que foram provados ao longo do tempo pelo feitor mais rígido da raça: o pai de Xcor. Escolhidos a dedo e com sabedoria, esses homens eram mortais contra o inimigo e não seguiam nenhum código de conduta quando se tratava da sociedade vampira. Também não seguiam nenhum código quando se tratava de matar alguém: não importava se a presa era um assassino, um humano, um animal ou um lobo. Sangue seria derramado.
Eles fizeram um, e apenas um, juramento: seu pai era o senhor deles e ninguém mais. Aonde quer que ele fosse, eles iriam, e isso era tudo. Muito mais simples que toda aquela porcaria elaborada pela Irmandade – mesmo Xcor sendo um candidato por linhagem, não teve interesse em ser um Irmão. Não se importava com a glória, uma vez que nada se comparava ao doce prazer do assassinato. Melhor deixar de lado a tradição inútil e o ritual desgastado para aqueles que se recusam a empunhar qualquer outra coisa que não seja uma adaga negra.
Usaria qualquer arma disponível.
E seu pai faria o mesmo.
O clamor dos cascos abrandou e depois ficaram em silêncio quando os lutadores saíram da floresta em um enclave de carvalhos e arbustos. A fumaça das lareiras das casas pairava na brisa, mas não havia nenhuma outra confirmação de que tinham chegado, finalmente, à pequena cidade que procuravam: no alto, sobre um íngreme penhasco, havia um castelo fortificado que se apresentava como uma águia empoleirada, sua fundação era como garras fincadas na rocha.
Humanos. Guerreando entre si.
Que entediante.
Ainda assim, era preciso respeitar a construção. Talvez, se Xcor se estabelecesse algum dia, massacraria a dinastia daquele lugar e tomaria posse daquela fortaleza. Muito mais eficiente roubar que construir.
– Para a aldeia – seu pai ordenou. – Avancemos para a diversão.
A notícia era de que havia redutores ali, as bestas pálidas misturavam-se e confundiam-se com os moradores do vilarejo que tinham escavado lotes de terra e construído casas de pedra à sombra do castelo.
Isso era uma típica estratégia de recrutamento da Sociedade: infiltrar-se em uma cidade, tomar os machos um a um, assassinar ou vender as mulheres e crianças, fugir com armas e cavalos e mudar-se para uma localidade próxima em maior número.
Xcor tinha a mesma mentalidade do inimigo nesse aspecto: quando acabava de lutar, sempre pegava tudo o que podia antes de dirigir-se para a próxima batalha. Noite após noite, Bloodletter e seus soldados abriam caminho ao longo do território que os seres humanos chamavam de Inglaterra e, quando alcançavam a ponta do território escocês, viravam-se e colocavam-se em direção oposta, indo sempre para o sul, até chegarem ao calcanhar da Itália, quando davam meia-volta outra vez. Em seguida, percorriam novamente os muitos quilômetros que tinham caminhado até ali. E faziam isso de novo. E mais outra vez.
– Deixemos nossas provisões aqui. – disse Xcor, apontando para uma árvore de tronco grosso, que havia caído sobre um riacho.
Enquanto faziam a transferência dos modestos suprimentos, não havia nada além do ranger de couro e do bufar ocasional de um garanhão. Quando tudo estava guardado sob o flanco do carvalho abatido, montaram outra vez sobre seus animais e reuniram os cavalos de raça – que eram as únicas coisas de valor, além de armas, que possuíam. Xcor não via utilidade em objetos de beleza ou conforto – para ele, eram nada além de um peso que o induzia à queda. Um cavalo forte e um punhal afiado? Isso sim tinha um valor inestimável.
Enquanto os sete andavam até a aldeia, não fizeram qualquer esforço para silenciar as batidas dos cascos de seus cavalos. Contudo, não houve gritos de guerra. Era um desperdício de energia, seus inimigos não precisavam de um convite para vir saudá-los. O único ato de boas-vindas foi um humano ou dois espiando para fora de suas portas e, em seguida, voltando rapidamente a trancarem-se em seus domicílios. Xcor os ignorou. Em vez de importar-se com isso, examinou as casas baixas de pedra, a praça central e as lojas de comércio fortificadas, procurando por alguma forma bípede, pálida como um fantasma e fedendo como um cadáver revestido em melado.
Seu pai andou até ele e sorriu com um toque de maldade.
– Talvez possamos colher os frutos dos jardins por aqui mais tarde.
– Talvez. – murmurou Xcor enquanto seu cavalo jogava a cabeça para trás. Na verdade, não estava muito interessado em deitar-se com fêmeas ou subjugar machos, mas não se podia negar nada a seu pai, mesmo quando se tratava de suas extravagâncias na hora do lazer.
Sinalizando com as mãos, Xcor direcionou três de seu grupo para a esquerda, onde havia uma pequena estrutura com uma cruz em cima de seu telhado pontiagudo. Ele e os outros seguiriam à direita. Seu pai faria o que quisesse. Como sempre.
Forçar os garanhões a permanecer em um galope contínuo era uma tarefa que desafiava até mesmo o mais vigoroso dos braços, mas estava acostumado com o cabo de guerra e sentou-se com firmeza na sela. Com um propósito sombrio, seus olhos penetraram as sombras produzidas pelo luar, procurando, sondando...
O grupo de assassinos que saiu do abrigo de ferragens possuía uma grande quantidade de armas.
– Cinco – Zypher rosnou. – Bendita noite.
– Três – Xcor interrompeu. – Dois ainda são seres humanos... porém, matar esses dois... também será um prazer.
– Qual devemos atacar, meu senhor? – Seu irmão de armas disse com um grande respeito que era dedicado por merecimento e não por ser o primogênito.
– Os humanos – Xcor disse, deslocando-se para frente e preparando-se para o momento em que incitaria seu cavalo a partir. – Se há outros redutores por perto, isso os atrairia ainda mais.
Estimulando o grande animal e afundando-se na sela, sorriu quando os redutores mantiveram-se firmes com suas correntes e armamentos. No entanto, as duas pessoas junto a eles não ficariam tão firmes. Embora os dois estivessem equipados para lutar, dariam meia-volta e correriam quando vissem a primeira exibição de presas como cavalos assustados por um tiro de canhão, razão pela qual deu um solavanco de forma abrupta para a direita logo após galopar apenas alguns passos. Atrás da cabana do ferreiro, puxou as rédeas e desmontou do corcel. Seu garanhão era um animal selvagem, mas obediente quando tratava-se de desmontar e aguardar...
Uma fêmea humana irrompeu pela porta dos fundos, sua camisola branca era como uma faixa brilhante na escuridão, enquanto esforçava-se para ficar em pé sobre a lama. No instante em que ela o viu, ficou paralisada de terror.
Reação lógica: ele era duas vezes o tamanho dela, talvez três, e não estava vestido para dormir, mas para a guerra. Quando a mão da fêmea ergueu-se até a garganta, ele farejou o ar e sentiu seu perfume. Hummm, talvez seu pai gostasse daquela flor de jardim...
Quando o pensamento lhe ocorreu, soltou um rosnado baixo que incitou a moça a uma corrida desenfreada; a visão da tentativa de fuga fez o predador dentro dele vir à tona. Com uma sede de sangue percorrendo suas entranhas, lembrou-se que havia se passado semanas desde que tinha se alimentado de alguém de sua espécie e, apesar daquela garota ser apenas uma humana, poderia ser o suficiente para aquela noite.
Infelizmente, não havia tempo para se divertir naquele momento... Apesar disso, seu pai iria atrás dela mais tarde, com certeza. Se Xcor precisava de um pouco de sangue para vencer as dificuldades, conseguiria tal fonte com aquela mulher, ou com qualquer outra.
Dando as costas para a fuga, parou com firmeza sobre o chão e desembainhou a arma escolhida: embora as adagas servissem, preferiu a foice, cabo longo e modificado para um coldre amarrado em suas costas. Era especialista em empunhar aquele grande peso e sorriu enquanto manejava ao vento a lâmina cruel e curvada, esperando para jogar a rede sobre aqueles dois peixes que, com certeza, estavam nadando até ele...
Ah, sim, como era bom estar certo.
Logo após uma luz brilhante surgir e um estalo eclodir da passagem principal, os dois humanos vieram gritando em direção aos fundos da casa do ferreiro como se estivessem sendo perseguidos por carrascos.
Mas estavam errados, não? O carrasco estava esperando ali.
Xcor não gritou ou amaldiçoou. Sequer rosnou. Começou a correr com a foice, havia um equilíbrio uniforme entre as duas mãos enquanto as coxas poderosas encurtavam a distância. Só de olhar para ele, os humanos derraparam em suas botas, braços soltos, como asas de patos pousando sobre a água.
O tempo pareceu desacelerar quando caiu sobre eles, sua arma favorita fez um grande círculo, atingindo os dois na altura do pescoço.
As cabeças foram decepadas com um golpe único e limpo. Os rostos surpresos brilharam e desapareceram à medida que a parte removida do corpo girava, o sangue espirrou e salpicou no peito de Xcor. Com a ausência de crânios, a parte inferior dos corpos caíram sobre o chão com uma graça curiosa e líquida, aterrissando inanimados com os membros retorcidos.
Agora sim ele gritava.
Virando-se, Xcor fixou suas botas de couro na lama, respirou fundo e soltou um rosnado enquanto manejava a foice, o aço avermelhado pedia mais sangue. Apesar de suas presas serem meros seres humanos, o impulso de matar era superior a um orgasmo, a sensação de que havia tirado uma vida e deixado cadáveres para trás percorria seu corpo como uma bebida alcoólica.
Chamou seu cavalo assoviando, que foi até ele rapidamente após o comando. Com um salto, montou na sela, a foice erguida em sua mão direita enquanto lidava com as rédeas com a esquerda. Dando um golpe com força, incitou o corcel ao galope, percorrendo rapidamente um caminho estreito e sujo e emergindo no auge da batalha.
Seus colegas lutavam com todas as forças, o som das espadas colidindo e gritos bombardearam a noite quando o demônio encontrou seu inimigo. E assim como Xcor havia previsto, mais uma meia dúzia de redutores veio correndo a toda velocidade sobre seus garanhões de raça, como leões que foram libertos para defender seu território.
Xcor entrou em cena e avançou contra o inimigo, envolvendo as rédeas no punho e brandindo a foice enquanto o cavalo corria em direção aos outros com os dentes à mostra. Sangue negro e partes de corpos voaram quando passou por entre os adversários, ele e seu cavalo trabalhavam como uma unidade naquele ataque.
Quando atingiu mais um assassino com sua lâmina e o cortou ao meio na altura do peito, soube que tinha nascido para fazer isso, era a maior e melhor maneira de usar seu tempo sobre a terra. Era um assassino, não um defensor.
Não lutava pela raça... mas por si mesmo.
Tudo aconteceu muito depressa, a névoa noturna rondava os redutores caídos, que contorciam-se em poças do próprio sangue oleoso e negro. Houve poucos feridos dentre o grupo de Xcor. Throe tinha um corte no ombro, feito por alguma lâmina. Zypher estava mancando, uma mancha vermelha escorria de sua perna, ensopando a bota. Nenhum deles estava mais lento ou mesmo preocupado.
Xcor deteve o cavalo, desmontou e voltou a colocar a foice no coldre. Sacou a adaga de aço e começou sua ronda para esfaquear os assassinos, lamentou o processo que enviava o inimigo de volta a seu criador. Queria mais luta, não menos...
Um grito ecoou e ele ergueu a cabeça. A mulher humana de camisola estava correndo pela estrada de terra batida do vilarejo, seu corpo pálido em uma fuga desgovernada, como se tivesse sido expulsa de um esconderijo. Logo atrás dela, o pai de Xcor montou em seu cavalo e galopou rápido; o corpo maciço de Bloodletter pendia em um dos lados da sela quando a alcançou. Na verdade, não houve, de fato, uma corrida: quando ficou ao lado dela, pegou-a com o braço e atirou-a sobre seu colo.
Não houve parada, nem mesmo uma diminuição da velocidade depois da captura, mas uma marca foi feita: com seu cavalo galopando a toda velocidade e a humana se debatendo, o pai de Xcor ainda conseguiu atingir a garganta delgada com suas presas, prendendo-se no pescoço da mulher como se fosse detê-la apenas com os caninos.
Ela teria morrido. Com certeza, ela teria morrido.
Se Bloodletter não tivesse morrido primeiro.
De fora do turbilhão do nevoeiro surgiu uma figura fantasmagórica como se fosse formada pelos filamentos de umidade que percorriam o ar. E no momento que Xcor viu o espectro, estreitou os olhos e valeu-se de seu olfato aguçado.
Parecia ser uma mulher. De sua espécie. Vestida com uma túnica branca.
E seu cheiro lembrou-o de algo que não conseguiu localizar.
Ela foi diretamente ao encontro de seu pai, mas parecia não ter a menor preocupação com o cavalo ou com o guerreiro sádico que logo viria atrás dela. No entanto, seu pai estava fascinado por ela. No instante em que a notou, largou a humana como se não fosse nada além de um osso do qual já houvesse comido toda a carne.
Isso estava errado, Xcor pensou. De fato, ele era um macho de ação e poder e dificilmente um membro do sexo frágil o intimidaria... mas tudo em seu corpo advertia que aquela entidade etérea era perigosa. Letal.
– Ei! Pai! – gritou. – Vire-se!
Xcor assoviou para seu cavalo, que atendeu ao comando. Montando sobre a sela, estimulou os flancos do animal, lançando-se a toda velocidade para que pudesse cruzar o caminho do pai, um pânico estranho o incitando.
Tarde demais. Seu pai lançou-se sobre a fêmea, que agachou-se lentamente.
Meu Deus, ela ia saltar por cima do...
Com um impulso coordenado, ela flutuou no ar e pegou a perna de seu pai, usando-a para montar sobre o cavalo de um salto. Então, agarrou o sólido peitoral de Bloodletter, saltou para um lado e levou o macho ao chão com ela, como se fossem apenas um. A investida poderosa desafiava a questão de ser do sexo feminino e sua natureza espectral.
Ora, não era um fantasma, mas um ser de carne e osso.
O que significava que poderia ser morta.
Enquanto Xcor preparava-se para lançar seu garanhão contra eles, a fêmea soltou um grito nada feminino: mais ao estilo do grito de guerra de Xcor, o berro trespassou o ruído dos cascos trovejantes abaixo dele e os sons do grupo que reunia-se para combater aquele ataque inesperado.
Contudo, não havia necessidade de uma intercessão imediata.
Seu pai, após o choque de ser tirado de sua sela, rolou de costas, desembainhou seu punhal e rosnou como um animal. Com uma maldição, Xcor freou e interrompeu o resgate, pois, com certeza, seu pai assumiria o controle. Bloodletter não era o tipo de homem a quem se ajudava – havia agredido Xcor por isso no passado, uma lição que foi duramente aprendida e que sempre seria lembrada.
Ainda assim, desmontou e aproximou-se da situação para reagir no caso de haver mais alguma “Valquíria” saindo do meio da floresta.
E foi assim que ele a ouviu, claramente, dizer um nome.
– Vishous.
A raiva de seu pai deu lugar a uma breve confusão. E antes que pudesse retomar sua autodefesa, a figura fantasmagórica começou a brilhar com uma luz profana.
– Pai! – Xcor gritou ao aproximar-se correndo.
Mas era tarde. E o contato foi feito.
Chamas irromperam sobre o rosto rude e barbado de seu pai e tomaram seu corpo, como se fosse feno seco. E com a mesma graça que ela o derrubou, a fêmea saltou para trás e observou enquanto seu pai tentava apagar o fogo debatendo-se freneticamente, sem sucesso. No meio da noite, ele gritava enquanto era queimado vivo, suas roupas de couro não ofereceram proteção alguma para sua pele e músculos.
Não havia chance alguma de aproximar-se o suficiente do fogo e Xcor derrapou até parar, levantando o braço para se proteger e curvando-se para se afastar do calor que ficava exponencialmente mais intenso.
Durante todo o tempo, a fêmea ficou sobre o corpo que se contorcia e tinha espasmos... O brilho laranja iluminava o rosto belo e cruel.
A vadia estava sorrindo.
E foi então que ela ergueu o rosto para ele. Quando Xcor teve uma visão correta de seu rosto, recusou-se, em um primeiro momento, a acreditar no que via. Ainda assim, o brilho das chamas não mentia.
Xcor observava uma versão feminina de Bloodletter. O mesmo cabelo negro, a mesma pele e olhos claros. A mesma estrutura óssea. Além disso, a mesma luz vingativa em seu olhar violento, aquele arrebatamento e satisfação ao causar uma morte era uma combinação que Xcor conhecia muito bem.
Ela partiu logo em seguida, desaparecendo na neblina de uma maneira que não condizia com a desmaterialização de sua espécie, mas, sim, fez isso como um sopro de fumaça, desvanecendo-se devagar em princípio e, em seguida, rápida e definitivamente.
Assim que sentiu-se capaz, Xcor correu para seu pai, mas não havia mais nada a ser salvo... mal havia algo para ser enterrado. Afundando os joelhos diante dos ossos fumegantes e do fedor de queimado, teve um momento de fraqueza deplorável: lágrimas derramaram-se dos olhos. Bloodletter tinha sido um bruto, mas como sua única descendência masculina, Xcor e ele eram bem próximos... Na verdade, eram quase membros de um mesmo corpo.
– Por tudo o que é mais sagrado – Zypher disse com voz rouca –, o que foi isso?
Xcor piscou com força antes de olhar por cima do ombro.
– Ela o matou.
– Sim. E fez mais alguma coisa.
Quando o grupo de bastardos aproximou-se dele, um a um, Xcor teve de pensar no que dizer, no que fazer.
Erguendo-se com firmeza, quis chamar seu cavalo, mas sua boca estava seca demais para assoviar.
Seu pai... um inimigo e, ao mesmo tempo, seu porto seguro, estava morto. Morto. E aconteceu tão rápido, rápido demais.
Por uma fêmea.
Seu pai havia partido.
Quando conseguiu, olhou para cada um dos machos diante dele, os dois montados nos cavalos, os dois em pé e o que estava a sua direita. Com uma nítida percepção, soube que não importava o que o destino tivesse reservado, seria moldado pelo que havia acontecido naquele momento, aqui, agora.
Não havia se preparado para isso, mas não se afastaria do que deveria fazer:
– Ouçam bem, pois só direi uma vez. Ninguém vai dizer nada. Meu pai morreu em uma batalha contra o inimigo. Eu o queimei para homenageá-lo e mantê-lo sempre comigo. Jurem isso para mim agora.
Os bastardos com quem ele vivia e lutava há muito tempo juraram e depois que suas vozes profundas desvaneceram-se no ar noturno, Xcor inclinou-se e passou os dedos pelas cinzas. Erguendo as mãos até o rosto, traçou uma listra com a fuligem desde as bochechas até as grossas veias que percorriam cada lado do pescoço... em seguida, acariciou o crânio duro que era tudo o que havia restado de seu pai. Segurando os restos carbonizados que ainda soltavam fumaça, reivindicou os soldados a sua frente como seus.
– Sou o único senhor agora. Liguem-se a mim neste momento ou serão meus inimigos. O que me dizem?
Não houve hesitação alguma. Os machos se ajoelharam, retiraram suas adagas e irromperam o grito de guerra antes de enterrarem as lâminas na terra a seus pés.
Xcor observou as cabeças inclinadas e sentiu que um manto caía-lhe sobre os ombros. Bloodletter estava morto. Sem vida, seria transformado em lenda a partir daquela noite.
E, seguindo o que é certo e apropriado, o filho substituiria o pai agora, comandando aqueles soldados que não serviriam a Wrath, o rei que não os governava; nem à Irmandade, que não se dignificava a descer àquele nível... Serviriam a Xcor e somente a ele.
– Vamos seguir na direção de onde a fêmea veio – anunciou. – Vamos encontrá-la mesmo que levem séculos, pois ela deve pagar por aquilo que fez esta noite. – Nesse momento, Xcor conseguiu assoviar alto e claro para seu cavalo. – Levarei, pessoalmente, a morte ao esconderijo daquela fêmea.
Subindo em seu cavalo, reuniu as rédeas e incitou o grande animal a cruzar a noite. Seu grupo de bastardos entrou em formação e o seguiu, disposto a morrer por ele.
Enquanto trovejava ao sair da aldeia, colocou o crânio de seu pai dentre as roupas de couro que usava nas batalhas, bem em cima do coração.
Aquela vingança seria sua. Mesmo que o matasse.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/9_AMANTE_LIBERTADA.jpg
CAPÍTULO 1
DIAS ATUAIS
HIPÓDROMO DE AQUEDUCT, QUEENS, NOVA YORK
– Quero enlouquecer você.
O Dr. Manny Manello virou a cabeça para a direita e olhou para a mulher que tinha falado com ele. Não foi a primeira vez que tinha ouvido essas palavras e a boca pela qual elas saíram tinha silicone suficiente para preencher uma boa almofada. Mas, ainda assim, foi uma surpresa.
Candance Hanson sorriu para ele e ajeitou seu chapéu retrô com uma mão bem manicurada. Aparentemente, ela tinha decidido que a combinação de dama refinada com uma dose de atrevimento era atraente – e talvez fosse, para alguns rapazes.
Caramba, em outro momento de sua vida, ele provavelmente teria dado em cima dela seguindo a teoria do “por que não?”. Agora? Seguia a ideia do “não é pra tanto”.
Sem se deixar abater pela falta de entusiasmo do médico, ela inclinou-se para frente, exibindo um par de seios que não exatamente desafiava a gravidade. Na verdade, aquilo era mais como mostrar o dedo médio, insultar a mãe e pisar no calo de alguém – uma falta de educação.
– Sei de um lugar aonde poderíamos ir.
Ele apostava que sim.
– A corrida já vai começar.
Ela fez beicinho. Ou talvez fosse o efeito das aplicações para aumentar os lábios. Deus, há dez anos ela devia ter um rosto jovem; agora, os anos tinham adicionado uma pátina de desespero nela – junto ao processo normal de envelhecimento, contra o qual ela lutava como um boxeador.
– Depois, então.
Manny afastou-se sem responder, sem saber exatamente como ela tinha conseguido entrar na área dos proprietários. Deveria ter sido na confusão que havia para voltar àquele local depois de selarem os cavalos – e, sem dúvida, estava acostumada a entrar em lugares que, tecnicamente, não lhe eram permitidos: Candance era um daqueles tipos sociais de Manhattan que só se diferenciava de uma prostituta por não ter um cafetão e, de muitas maneiras, era como uma vespa qualquer: ignorava o incômodo causado e ia pousar em outra coisa.
Ou em outra pessoa, como era o caso.
Erguendo o braço para mantê-la distante, Manny inclinou-se sobre o corrimão da cabine e esperou que sua garota saísse para a pista. Tinha sido colocada na parte externa, e isso era bom: preferia não ficar muito perto dos outros e percorrer uma distância extra nunca a incomodou.
O hipódromo de Aqueduct, no Queens, Nova York, não tinha o prestígio de um Belmont ou Pimlico ou do venerável pai de todos os hipódromos, o Churchill Downs. Contudo, não era de se jogar fora. A instalação tinha uma arena de quase três quilômetros, uma pista de turfe e outra para corridas de curta distância. A capacidade total era de, aproximadamente, nove hectares. A comida era medíocre, mas ninguém ia até lá para comer e havia algumas corridas grandes, como a daquele dia: a Wood Memorial Stakes tinha uma bolsa de 750 mil dólares e, como era realizada em abril, era uma boa referência para os candidatos ao prêmio Triple Crown...*
Ah, sim, lá estava ela. Lá estava sua garota.
Quando os olhos de Manny fixaram-se em GloryGloryAllelujah, o barulho da multidão, a luz brilhante daquele dia e a fila vacilante composta pelos outros cavalos desapareceram. Tudo o que ele via era sua magnífica égua negra, sua capa capturava a luz do sol e reluzia, as pernas finas se flexionavam, os cascos delicados erguiam-se e voltavam a pousar na pista de areia. Como ela media quase um metro e setenta, o jóquei parecia um pequeno mosquito em suas costas, e essa diferença de tamanho representava a divisão do poder. Ela deixou isso claro desde o primeiro dia de treinamento: poderia tolerar os pequenos seres humanos, mas estavam apenas a passeio na corrida. Ela estava no comando.
Seu temperamento dominador já havia lhe custado dois treinadores. O terceiro? O cara parecia um pouco frustrado, mas era apenas seu senso de controle que estava sendo espancado até a morte: Glory destacava-se e isso, simplesmente, não tinha nada a ver com ele. E Manny não tinha a menor preocupação com os egos inflados de homens que dominavam cavalos a vida inteira. Sua garota era uma lutadora, sabia o que estava fazendo, e ele não tinha o menor problema em deixá-la assumir o controle. Queria apenas assisti-la divertir-se ao acabar com a concorrência.
Quando seus olhos a encontraram, lembrou-se do otário de quem a tinha comprado há pouco mais de um ano. Aqueles vinte mil dólares tinham sido um roubo, considerando sua linhagem, também uma fortuna se pensasse no temperamento dela, e ainda não estava claro se conseguiria autorização para correr. Era uma égua indisciplinada de um ano de idade que já esteve prestes a ser afastada. Ou pior: de ser transformada em comida de cachorro.
Mas ele acertou. Desde que a deixasse liderar e comandar o show, era um espetáculo.
Quando a formação de cavalos aproximou-se do portão, alguns começaram a bater os cascos e a bufar, mas sua garota estava firme, como se soubesse que era inútil desperdiçar energia antes do jogo. Ele achava que as chances eram boas apesar da posição no pódio, pois o jóquei montado em seu dorso era uma estrela: sabia exatamente como lidar com ela e, nesse sentido, era mais responsável pelo sucesso da garota do que os outros treinadores. Sua estratégia era apenas certificar-se de que ela conhecia os melhores percursos, deixá-la escolher e ir.
Manny levantou-se e segurou o corrimão de ferro pintado na frente dele, juntando-se à multidão que saía de seus assentos, e começava a exibir uma quantidade incontável de binóculos. Quando seu coração começou a bater forte, ficou contente, pois fora dali encontrava-se muito próximo do sedentarismo, ultimamente. A vida que levava estava em um estágio de entorpecimento terrível no último ano ou um pouco mais, e talvez essa fosse a razão pela qual aquela égua era tão importante para ele.
Talvez ela também fosse tudo o que ele tinha.
Não era bem assim.
No portão, havia um movimento frenético: quando se trata de amontoar quinze cavalos fortes com patas da espessura de varetas e com glândulas adrenais disparando como obus em minúsculas caixas de metal, você não perde tempo. Em mais ou menos um minuto, o campo foi fechado e as pistas foram restringidas pelos trilhos.
Uma batida de coração.
Um sino.
Bang.
Os portões foram abertos, a multidão rugiu e os cavalos avançaram como se tivessem sido lançados de bocas de canhões. As condições eram perfeitas. Clima seco. Frio. Estavam a toda velocidade na pista.
Não que sua garota se importasse com isso. Correria na areia movediça se fosse necessário.
Os cavalos puros-sangues trovejaram, o som dos cascos e a voz do locutor chicoteavam energia nas arquibancadas a ponto de ficarem em um estado de êxtase. Porém, Manny manteve a calma, permanecendo com as mãos firmadas no trilho na frente dele e seus olhos sobre o campo, enquanto o grupo de cavalos fazia a primeira curva em uma confusão tensa de dorsos e caudas.
O telão mostrava-lhe tudo o que precisava ver. Sua égua estava na penúltima posição, apenas galopando enquanto todos os outros empreendiam uma corrida mortal – inferno, seu pescoço sequer estava totalmente estendido. No entanto, o jóquei estava fazendo seu trabalho, facilitando o caminho dela para avançar na pista, dando-lhe a opção de correr ao redor do grupo ou cortar caminho através deles quando estivesse pronta.
Manny sabia exatamente o que ela iria fazer. Entraria pela direita em meio aos outros cavalos como uma bola de demolição.
Era o jeito dela.
E foi assim que, quando os outros abriram distância, ela começou a pegar fogo. A cabeça baixa, o pescoço alongado, seu passo começou a acelerar.
– Caramba – Manny sussurrou. – Você consegue, garota.
Quando Glory adentrou a pista verde, transformou-se em um raio de luz que ultrapassava os outros corredores, a explosão de velocidade era tão poderosa que qualquer um se perguntaria se aquilo não era de propósito: apenas vencê-los não era o suficiente, ela tinha que fazer isso no último quilômetro, deixando as selas dos outros bastardos na poeira, no último minuto possível.
Manny riu do fundo da garganta. Ela era seu tipo de garota.
– Meu Deus, Manello, olha só como ela avança.
Manny assentiu com a cabeça sem olhar para o cara que falou em seu ouvido, pois a liderança do grupo estava mudando: o potro que estava à frente perdia sua força, ficando para trás quando suas pernas pareceram ficar sem combustível. Em resposta a isso, o jóquei o golpeou, chicoteando-lhe o traseiro – algo que obteve o mesmo sucesso de quando alguém amaldiçoa um carro cujo tanque esvaziou. O potro que estava em segundo lugar, um animal grande e castanho com jeito de mau e um passo que poderia englobar um campo de futebol, aproveitou imediatamente a desaceleração, e seu jóquei permitiu que o cavalo estendesse sua cabeça totalmente.
Os dois ficaram emparelhados por apenas um segundo antes que o cavalo castanho assumisse a liderança da corrida. Mas não seria por muito tempo. A garota de Manny tinha escolhido seu momento para contornar os três cavalos e fazer com que ele ficasse totalmente tenso.
Sim, Glory fazia o que tinha nascido para fazer, orelhas unidas à cabeça, dentes expostos.
Ela ia roubar o doce da boca daquele garanhão. E era impossível não extrapolar e pensar que participariam de corridas importantes como a Kentucky Derby...
Tudo aconteceu tão rápido.
Tudo chegou ao fim... em um piscar de olhos.
Com um golpe intencional, o potro bateu em Glory, o impacto brutal enviou-a para os trilhos. Sua garota era grande e forte, mas não poderia suportar um contato corporal assim, não quando corria a mais de sessenta quilômetros por hora.
Por uma fração de segundo, Manny ficou convencido de que ela se reergueria. Apesar da maneira como inclinou-se e cambaleou, esperava que encontrasse um ponto de equilíbrio e desse uma lição de boas maneiras àquele bastardo.
Só que ela caiu. Bem na frente dos três cavalos que tinha ultrapassado.
O massacre foi imediato, os cavalos mudaram totalmente a direção para evitar o obstáculo no caminho, os jóqueis seguraram as rédeas com força na esperança de permanecerem montados.
Todos fizeram isso. Exceto Glory.
Quando a multidão exclamou, Manny lançou-se para frente, ultrapassando os limites da cerca e saltando sobre as pessoas, cadeiras e barricadas até chegar à pista.
Além dos trilhos. Na arena.
Correu até ela. Anos de prática do atletismo levaram-no a uma velocidade vertiginosa até o cerne daquela situação.
Ela estava tentando se levantar. Mas que coração grande e feroz... estava lutando para erguer-se do chão, seus olhos encarando o grupo como se não desse a mínima por estar ferida; só queria pegar de jeito aqueles que a deixaram na poeira.
Tragicamente, sua perna dianteira tinha outros planos: enquanto se debatia, a perna direita vacilava na altura do joelho; e Manny não precisava de sua experiência como ortopedista para saber que ela tinha um problema.
Um problemão.
Ao aproximar-se dela, viu que o jóquei estava em lágrimas.
– Dr. Manello, eu tentei... Oh, Deus...
Manny escorregou na areia e arremeteu-se em direção às rédeas enquanto os veterinários aproximavam-se e o telão voltava-se para o drama.
Quando três homens de uniforme aproximaram-se dela, seus olhos não emitiam mais aquele sentimento selvagem... passaram a expressar dor e confusão. Manny fez o possível para acalmá-la, permitindo que balançasse com força a cabeça o quanto quisesse enquanto acariciava seu pescoço. Ela se acalmou quando lhe deram um tranquilizante.
Ao menos a tentativa desesperadora de andar, mesmo mancando, cessou.
O veterinário-chefe olhou para a perna e balançou a cabeça, algo que no mundo das corridas era um sinal universal para “será necessário sacrificá-la”.
Manny aproximou-se do rosto do cara.
– Nem pense nisso. Estabilize o que estiver quebrado e leve-a para o hospital veterinário de Tricounty. Entendido?
– Ela nunca mais correrá novamente... isso parece uma fratura múlti...
– Tire meu maldito cavalo da pista e leve-o ao Tricounty...
– Não vale a pena...
Many agarrou a jaqueta do veterinário e puxou o “Sr. Falar é Fácil” até ficarem face a face.
– Faça isso. Agora.
Houve um momento de incompreensão total, como se ser insultado fosse algo novo para o profissional teimoso.
E assim que os dois entenderam o que estava acontecendo, Manny rosnou:
– Não vou perdê-la, mas estou totalmente disposto a sacrificar você. Bem aqui. E agora.
O veterinário encolheu-se, afastando-se, como se soubesse que estava correndo perigo de levar um belo golpe.
– Certo... certo.
Manny não ia perder seu cavalo. Nos últimos doze meses, lamentou a perda da única mulher com quem se preocupou na vida, questionou sua sanidade e passou a se embebedar de uísque mesmo odiando a coisa.
Se Glory partisse agora... não sobraria muita coisa nessa vida, sobraria?
Algumas modalidades de esporte como o surfe e o jóquei e outras competições como o pôquer oferecem um prêmio especial na terceira vitória consecutiva, o Triple Crown. (N. da T.)
CAPÍTULO 2
CALDWELL, NOVA YORK
CENTRO DE TREINAMENTO,
COMPLEXO DA IRMANDADE
Caramba... Que droga... mas que inferno...
Vishous estava em pé no corredor do lado de fora da clínica médica da Irmandade com uma das mãos fechadas sobre os lábios e o polegar mexendo freneticamente em um tique irritante. No entanto, não havia nada a ser dito, não importava quantas vezes ele friccionasse o pequeno isqueiro.
Tic. Tic. Tic...
Com uma repulsa total, lançou a maldita coisa na lixeira e agarrou a luva revestida de chumbo que cobria sua mão. Ao tirar o pedaço de couro, olhou para a palma da mão brilhante, flexionando os dedos, arqueando-a em direção ao punho.
A coisa era em parte um lança-chamas, em parte uma bomba nuclear, capaz de derreter qualquer metal, transformar pedra em vidro e deixar em pedaços qualquer avião, trem ou automóvel que quisesse. Essa também era a razão pela qual conseguia fazer amor com sua shellan e um dos dois legados que sua mãe divina havia lhe dado.
E uma maldita segunda visão que era tão divertida quanto a rotina de lidar com a “mão da morte”.
Aproximando a arma mortal de seu rosto, acendeu a ponta do cigarro artesanal que fazia, mas não chegou perto demais ou prejudicaria seu sistema de envio de nicotina ao corpo e teria que desperdiçar seu tempo criando outro, curando-se. E não tinha paciência para isso mesmo em um dia bom, quanto mais em um momento como aquele...
Ah, a adorável tragada.
Encostando-se contra a parede, plantou suas botas de combate no chão de linóleo e fumou. Aquele prego de caixão não fez muito pela sua expressão deprimente, mas isso era melhor do que a opção que tinha passado por seus pensamentos nas últimas duas horas. Ao colocar a luva de volta pensou em sair dali com seu “dom” e incendiar alguma coisa, qualquer coisa...
Era mesmo sua irmã gêmea que estava do outro lado da parede? Deitada em uma cama de hospital... paralisada?
Jesus Cristo... Trezentos anos de idade e só então descobrir que se tem uma irmã.
Boa jogada, mamãe. Muito legal mesmo.
E pensar que ele achava ter resolvido todos os problemas com seus pais. Porém, apenas um deles estava morto. Se a Virgem Escriba seguisse pelo caminho de Bloodletter e descansasse em paz, talvez ele conseguisse encontrar um ponto de equilíbrio.
No entanto, pensando em como as coisas estavam e naquela tentativa absurda de Jane no mundo humano... Tudo aquilo estava fazendo com que ele...
Sim, não havia palavras para isso.
Pegou seu telefone celular. Verificou. Colocou de volta no bolso de sua jaqueta de couro. Caramba, isso era tão típico. Jane colocava seu foco em algo e isso era tudo. Nada mais importava.
Claro que ele era exatamente assim, mas em momentos como aquele, gostaria muito de ser atualizado.
Maldito sol. Prendia-o dentro de casa. Ao menos se estivesse com sua shellan não haveria possibilidade de o “grande” Manuel Manello negar alguma coisa. V. simplesmente golpearia o desgraçado, jogaria o corpo no Escalade e traria aquelas mãos talentosas até ali para operar Payne.
Para ele, o livre-arbítrio era um privilégio, não um direito.
Quando terminou de fumar o cigarro artesanal, apagou-o na sola de suas botas de combate e jogou a bituca no lixo. Queria muito uma bebida – exceto refrigerante ou água. Meio engradado de vodka o afastaria um pouco daquele abismo, mas com um pouco de sorte permitiriam que ele ajudasse na sala de cirurgia em breve, e precisava estar sóbrio para isso.
Entrando na sala de exames, os ombros ficaram tensos, os molares se fecharam e, por uma fração de segundo, não sabia o quanto mais poderia suportar. Se tinha uma coisa que o tirava do sério era quando sua mãe aprontava das suas, e era difícil imaginar algo pior do que a mentira de todas as mentiras.
O problema era que a vida não vinha com um “botão” de reiniciar, como o video game, que se pode pressionar quando ele trava por tentarem inserir alguma vantagem ou trapaça no jogo.
– Vishous?
Fechou os olhos por um instante ao som daquela voz suave e baixa.
– Sim, Payne – terminou a frase no Antigo Idioma. – Sou eu.
Cruzando a sala, reassumiu seu posto na banqueta com rodas ao lado da maca. Deitada embaixo de vários cobertores, Payne estava imobilizada, com a cabeça em um bloco e um colar cervical que ia do queixo à clavícula. Uma intravenosa ligava o braço dela a uma bolsa pendurada em uma extremidade de aço inoxidável e havia uma tubulação embaixo conectada ao cateter que Ehlena lhe dera.
Mesmo a sala de azulejos sendo clara, limpa e brilhante e os equipamentos e suprimentos médicos tão ameaçadores quanto xícaras e pires em uma cozinha, parecia que estavam em uma caverna suja cercados por ursos.
Seria tão bom se pudesse sair e matar o filho da mãe que tinha colocado sua irmã naquela condição. O problema era... isso significava que teria de acabar com Wrath, e que grande confusão essa morte traria. O maldito filho da mãe não era apenas o Rei, era um Irmão... e esse era o pequeno detalhe pelo qual a estadia dela ali havia sido consensual. As sessões de luta que os dois vinham travando nos últimos dois meses os deixaram em forma – e, claro, Wrath não fazia ideia com quem lutava, pois estava cego. Uma fêmea? Bem, dedução óbvia. As sessões aconteciam do Outro Lado e não havia machos por lá. Mas a falta de visão do Rei significava que ele perdia o que V. e todos os outros observavam ao entrarem naquela sala: a longa trança preta de Payne era da cor exata do cabelo de V. e sua pele do mesmo tom que a dele, tinha a mesma constituição: alta, magra e forte. Mas os olhos... cara, os olhos.
V. esfregou o rosto. Seu pai, Bloodletter, teve um número incontável de bastardos antes de ser assassinado em uma batalha contra redutores no Antigo País. Mas V. não se importava com nenhuma dessas relações aleatórias com as fêmeas.
Payne era diferente. Os dois tinham a mesma mãe e não era uma mahmen qualquer. Era a Virgem Escriba. A grande mãe da raça.
Era uma vadia, isso sim.
O olhar de Payne deslocou-se e a respiração de V. saiu com dificuldade. A íris que o encontrou era da cor de gelo branco, assim como a sua, e a borda azul-marinho em torno dela era algo que via todas as noites no espelho. E a inteligência... a inteligência que havia nas profundezas árticas daquela brancura era exatamente a mesma que havia dentro dele também.
– Não consigo sentir nada – Payne disse.
– Sei. – V. repetiu balançando a cabeça: – Eu sei.
Sua boca se contorceu e exibiu algo que poderia ter sido um sorriso em outras circunstâncias.
– Pode falar no idioma que quiser – disse com um inglês bem marcado. – Sou fluente em... muitos.
Ele também. O que significava que era incapaz de formular uma resposta em dezesseis línguas diferentes. Maravilha.
– Sua shellan... já lhe disse alguma coisa? – disse pausadamente.
– Não. Gostaria de tomar mais analgésicos? – Ela parecia mais fraca que da última vez que a vira.
– Não, obrigada. Eles fazem com que eu me sinta... estranha.
Essa frase foi seguida por um longo silêncio. Que ficou mais longo. E ainda mais longo.
Cristo, talvez ele devesse segurar a mão dela – afinal, ela podia sentir algo acima da cintura. Sim, mas o que poderia oferecer com essa atitude? Sua mão esquerda estava tremendo e a direita era mortal.
– Vishous, o tempo não está...
Quando sua irmã gêmea deixou a frase pairando no ar, ele a terminou mentalmente: do nosso lado.
Ele queria que ela estivesse errada. Contudo, quando se trata de lesões na coluna, assim como derrames e ataques cardíacos, boas oportunidades de recuperação são perdidas a cada minuto que o paciente passa sem tratamento.
Era melhor que aquele humano fosse tão bom quanto Jane havia dito.
– Vishous?
– Sim?
– Gostaria que eu não tivesse vindo até aqui?
Franziu a testa com força.
– De que diabos está falando? Claro que gostaria de ter você comigo.
Enquanto seu pé ficava batendo no chão de nervosismo, perguntou quanto tempo mais precisaria ficar antes que pudesse sair para outro cigarro. Simplesmente não ia conseguir respirar enquanto estivesse sentado ali, sem poder fazer nada enquanto sua irmã sofria e seu cérebro engasgava-se com as perguntas. Tinha um milhão de “o que?” e “por que” instalados em sua cabeça, só que não podia perguntar nada para ninguém. Parecia que Payne poderia entrar em coma a qualquer momento por causa da dor, portanto, não era uma boa hora para se fazer um social, cheio de perguntas, com direito a cafezinho.
Caramba, os vampiros podiam se curar como um relâmpago, mas não eram imortais.
Poderia muito bem perder sua irmã gêmea antes de sequer conhecê-la melhor.
Seguindo esse raciocínio, ele deu uma olhada para ver seus sinais vitais no monitor. A raça vampira tinha pressão sanguínea baixa, mas a dela estava quase ao nível do chão. A pulsação estava lenta e irregular, como uma bateria de escola de samba formada apenas por garotos brancos. E o sensor de oxigênio teve de ser silenciado, pois o alarme de alerta soava continuamente.
Quando seus olhos se fecharam, ele temeu que fosse a última vez... e o que havia feito por ela? Nada, exceto gritar quando lhe fizera uma pergunta.
Inclinou-se para mais perto dela, sentindo-se um idiota.
– Tem de aguentar firme, Payne. Estou tentando conseguir o que você precisa, mas você tem de ser forte.
As pálpebras de sua irmã ergueram-se e ela olhou para ele de sua cabeça imóvel.
– Trouxe muitos inconvenientes a sua casa.
– Não se preocupe comigo.
– Isso é o que sempre fiz.
V. franziu a testa outra vez. Era evidente que toda essa coisa de irmão/irmã era uma novidade apenas para ele. Tinha de descobrir como, diabos, ela sabia sobre ele.
E o que sabia.
Droga, lá estava outro momento em que desejaria ser menos durão.
– Está tão confiante nesse curandeiro que procura – ela murmurou.
Ah, não mesmo. A única coisa de que tinha certeza era que se o desgraçado a matasse haveria um funeral duplo naquela noite... assumindo que haveria alguma coisa restante do humano para enterrar ou queimar.
– Vishous?
– Minha shellan confia nele.
Os olhos de Payne ergueram-se e ficaram assim. Será que ela estava olhando para o teto?, V. se perguntou. Seria a lâmpada cirúrgica que havia sobre ela? Algo que ele não conseguia ver?
Num determinado momento, ela disse:
– Pergunte-me quanto tempo passei nas mãos de nossa mãe.
– Tem certeza de que tem forças para isso? – Quando ela olhou para tudo a seu redor, exceto para ele, quis sorrir. – Quanto tempo?
– Em que ano estamos na Terra? – Quando ele respondeu, seus olhos se arregalaram. – De fato. Bem, foram centenas de anos. Fui aprisionada pela nossa mahmen por... centenas de anos da minha vida.
Vishous sentiu as pontas de suas presas formigarem de raiva. Aquela mãe deles... Já deveria saber que a paz que tinha encontrado com sua fêmea não duraria muito.
– Está livre agora.
– Estou – olhou para baixo em direção às pernas. – Não conseguirei viver em outra prisão.
– Isso não vai acontecer.
Então, aquele olhar gélido tornou-se astuto.
– Não posso viver assim. Entende o que estou dizendo?
O interior dele congelou completamente.
– Ouça, vou trazer aquele médico até aqui e...
– Vishous – ela disse com voz rouca. – De fato, faria isso se pudesse, mas não posso e não há outra pessoa a quem possa recorrer. Você me entende?
Quando encontrou os olhos dela, quis gritar, suas entranhas se contorceram, gotas de suor brotaram em sua testa. Era um assassino por natureza e treinado para isso, mas aquela não era uma habilidade que tinha a intenção de praticar com alguém de seu sangue. Bem, tirando sua mãe, claro. Talvez seu pai, só que o cara tinha morrido por conta própria.
Certo, reformulando a frase: não era algo que exerceria com sua irmã.
– Vishous. Você...?
– Sim. – Olhou para baixo, para sua mão amaldiçoada e flexionou o maldito pedaço de seu corpo. – Eu entendo.
Dentro de sua pele, em sua essência, seu eixo interno começou a vibrar. Era o tipo de coisa pela qual se tornou intimamente familiarizado ao longo de sua vida... e também era um choque total. Não tinha sentido aquilo desde que Jane e Butch apareceram; e voltar a sentir era... terrível!
No passado, isso o levaria direto aos trilhos do sexo perigoso e hard-core, ficaria à beira do abismo.
Só que na velocidade do som.
A voz de Payne era fraca:
– O que me diz?
Droga, ele tinha acabado de conhecê-la.
– Sim – flexionou sua mão mortal. – Vou cuidar de você. Se chegarmos a isso.
Quando Payne olhou em direção à gaiola que era seu corpo meio-morto, o perfil sombrio de seu irmão gêmeo era tudo o que conseguia enxergar e desprezou-se pela posição em que o colocou. Gastou muito tempo desde que tinha chegado àquele lado tentando descobrir outra saída, outra opção, outra... qualquer coisa.
Mas o que ela precisava era algo que não se podia pedir a um estranho.
Por outro lado, ele era um estranho.
– Obrigada, meu irmão – ela disse.
Vishous assentiu com a cabeça uma vez e voltou a olhar para frente. Na verdade, ele era muito mais que a soma de suas características faciais e do enorme tamanho de seu corpo. Até bem pouco tempo atrás, quando aprisionada por sua mahmen, teve de observá-lo por muito tempo nas tigelas do santuário das Escolhidas e soube quem ele era no instante em que surgiu naquela água rasa; tudo o que teve de fazer foi olhar para ele e enxergar a si própria.
Que vida ele levou. Começando com o campo de guerra e a brutalidade de seu pai... e agora isso.
Sob sua postura fria, ele vociferava. Podia sentir em seus ossos uma ligação entre eles que lhe dava uma visão que ia além daquilo que seus olhos conseguiam lhe informar: por fora, estava contido como uma parede de tijolos, seus componentes todos em ordem e encaixados no lugar; no entanto, por dentro, ele fervia... e a dica externa era sua mão direita enluvada. Por baixo do acessório, uma luz brilhava... e ficava cada vez mais brilhante – especialmente depois que fizera o pedido.
Ela percebeu que aquele poderia ser o único momento que teriam juntos, e seus olhos fecharam-se outra vez.
– Está unido a uma fêmea curadora? – Ela murmurou.
– Sim.
Quando houve apenas silêncio, ela desejou poder encará-lo, mas ficou claro que respondeu apenas por educação. Ainda assim, acreditou nele quando disse que estava contente por estar ali. Ele não diria uma mentira assim, não por que se preocupasse com a moral ou a ética, mas sim porque viu que tal esforço seria um desperdício de tempo e energia.
Payne deitou seus olhos outra vez sobre a cabeça dele, que parecia ter um anel de fogo sobre ela. Desejou que segurasse sua mão ou a tocasse de alguma maneira, mas já havia feito pedidos demais.
Deitada sobre a maca com rodas, seu corpo parecia muito estranho, pesado e leve ao mesmo tempo, e sua única esperança eram os espasmos que corriam por suas pernas e faziam cócegas em seus pés, fazendo com que repuxassem. Certamente, se aquilo estava acontecendo nem tudo estava perdido, disse a si mesma.
Só que, mesmo quando acalentava tal pensamento, uma pequena e silenciosa parte de sua mente dizia que o telhado cognitivo que estava tentando construir não suportaria a chuva que estava prestes a cair em sua vida: quando movia as mãos, mesmo sem conseguir enxergá-las, podia sentir os lençóis frios e macios e a mesa lisa e gelada sobre a qual estava. Mas quando pedia que seus pés fizessem o mesmo... Era como se estivesse nas águas mornas e serenas das piscinas de banho do Outro Lado, encapsulada em um abraço invisível, sentindo absolutamente nada.
Onde estava aquele curandeiro?
O tempo... estava passando.
Quando a espera passou do insuportável para a extrema agonia, era difícil saber se a sensação de asfixia era devido a sua condição ou pelo silêncio da sala. Na verdade, ela e seu irmão gêmeo estavam mergulhados no silêncio... só que por razões muito diferentes: ela não iria a lugar algum, mesmo com muito entusiasmo; e ele estava prestes a explodir.
Desesperada por algum estímulo, alguma coisa, qualquer coisa, murmurou:
– Fale um pouco sobre o curandeiro que está chegando.
A brisa de ar frio que atingiu seu rosto e o aroma de especiarias escuras que percorreram seu nariz diziam que era um macho. Tinha de ser.
– É o melhor – Vishous murmurou. – Jane sempre fala dele como se fosse um deus. – O tom não era muito educado, mas o fato era que vampiros machos não gostavam muito de outros em torno de suas fêmeas.
Quem poderia ser esse dentre os machos da raça?, Payne perguntou-se. O único curandeiro que conseguira enxergar nas tigelas era Havers, e, com certeza, não havia razão alguma para procurarem por ele.
Talvez houvesse outro que ela não tinha observado; afinal, não passava tanto tempo tentando recuperar o atraso com o mundo e, de acordo com seu irmão gêmeo, haviam se passado muitos, muitos e muitos anos entre sua prisão e a liberdade...
De repente, a exaustão interrompeu sua linha de raciocínio, penetrando em sua medula, pressionando-a ainda mais sobre a mesa de metal.
No entanto, quando fechou os olhos, conseguiu suportar a escuridão apenas durante um rápido momento antes do pânico fazer suas pálpebras se abrirem. Enquanto estivera presa por sua mãe, tinha plena consciência de que poderia movimentar-se sem limites em um espaço livre; mas dentro daquele local opressivo, onde os minutos se arrastavam, aquela paralisia era muito parecida com o que tinha sofrido durante centenas de anos. Razão pela qual fizera aquele pedido terrível a Vishous. Não poderia ficar ali daquele lado apenas para reproduzir aquilo pelo que sempre havia lutado de maneira tão desesperada para escapar.
Lágrimas escorreram de seus olhos, fazendo com que a fonte de luz verde brilhante vacilasse. Como desejava que seu irmão segurasse sua mão...
– Por favor, não chore – disse Vishous. – Não... chore.
Na verdade, ficou surpresa por ele ter notado.
– Sim, você está certo. Chorar não cura nada.
Aumentando sua força de vontade, buscou ser forte, mas foi uma batalha. Embora seu conhecimento das artes medicinais fosse limitado, uma lógica simples anunciava onde estava o erro: como era de uma linhagem extremamente forte, seu corpo começou a recuperar-se no momento em que havia sido ferida na sessão de luta com o Rei Cego; contudo, o problema era que o processo regenerativo, que em uma situação comum salvaria sua vida, tornava sua condição ainda mais terrível – e era muito provável que aquilo fosse permanente.
Vértebras quebradas tentando se regenerar não conseguiam alcançar um resultado muito bom, e a paralisia em suas pernas era um testemunho desse fato.
– Por que fica olhando o tempo todo para sua mão? – ela perguntou, ainda olhando para a luz.
Houve um momento de silêncio, superior a todos os outros.
– Por que acha que estou fazendo isso?
Payne suspirou.
– Porque o conheço, meu irmão. Sei tudo sobre você.
Quando ele não disse nada, o silêncio era tão agradável quanto os inquéritos que havia no Antigo País.
Oh, o que será que ela havia desencadeado? E onde todos estariam quando tudo chegasse ao fim?
CAPÍTULO 3
Algumas vezes, a única maneira de se saber quão longe se foi é voltando ao ponto de onde se iniciou.
Quando Jane Whitcomb, médica, entrou no complexo hospitalar São Francisco, foi sugada de volta a sua antiga vida. De alguma maneira, foi uma viagem curta – há apenas um ano ela era a chefe do departamento de traumatologia daquele lugar, morava em um apartamento cheio de coisas de seus pais, passando vinte horas por dia correndo entre a emergência e as salas de cirurgia. Não mais.
Um indício certo de que a mudança era definitiva foi a maneira como ela entrou no centro cirúrgico: não havia razão para preocupar-se com as portas giratórias ou aquelas que precisavam ser empurradas na recepção. Ela atravessou as paredes de vidro e passou despercebida pelos seguranças que estavam no balcão. Fantasmas são bons nisso.
Desde que fora transformada, conseguia ir a lugares e ultrapassar coisas sem que ninguém fizesse ideia de que estava por perto. Mas também poderia ficar tão corpórea quanto a pessoa ao lado, assumindo uma forma sólida, de acordo com a sua vontade. Em dado momento era absolutamente etérea; em outro, era como a humana que havia sido, capaz de comer, amar e viver. Isso era uma grande vantagem ao exercer o cargo de cirurgiã particular da Irmandade.
Como agora, por exemplo: de que outra maneira ela seria capaz de se infiltrar no mundo dos humanos outra vez sem quase nenhum barulho?
Percorrendo o chão de pedra polida da recepção, passou pela parede de mármore onde estava inscrito o nome dos benfeitores e abriu caminho pela multidão de pessoas. Naquele congestionamento humano, muitos rostos eram familiares, desde o pessoal da administração até os médicos e enfermeiros com quem trabalhou durante anos. Mesmo anônimos, os pacientes estressados e suas famílias pareciam íntimos dela... de alguma maneira, as máscaras de tristeza e preocupação eram as mesmas, não importava quais fossem as características faciais que as moldavam.
Quando se dirigiu às escadas, estava buscando seu antigo chefe, e, Cristo, teve vontade de rir. Ao longo de todos aqueles anos trabalhando juntos, tinha surpreendido Manny Manello de muitas maneiras; mas aquilo ia superar vários acidentes de carro, avião ou uma explosão de edifício. Tudo isso junto.
Flutuando ao atravessar uma saída de emergência de metal, ela subiu a escada dos fundos. Os pés não tocavam os degraus, pairavam sobre eles enquanto subia como fumaça, sem esforço algum.
Aquilo tinha de funcionar. Tinha que convencer Manny a lhe acompanhar para cuidar daquela coluna lesionada, e ponto final. Não havia outras opções, nada de imprevistos, nada de virar à direita ou à esquerda naquela estrada: aquele era o passe final... e estava rezando para que o goleiro não pegasse aquela bola.
Que bom que ela tinha um bom desempenho sob pressão e que conhecia aquele homem como a palma de sua mão.
Manny aceitaria o desafio; mesmo isso não fazendo sentido algum para ele, ficaria lívido por saber que ela ainda estava “viva”. Além disso, não seria capaz de recusar ajuda a um paciente necessitado – simplesmente não estava programado para isso.
No décimo andar, atravessou outra parede e entrou na seção administrativa do departamento cirúrgico. O local era equipado como um escritório de advocacia, todo escuro, sombrio e luxuoso. Fazia sentido: o centro cirúrgico era uma fonte enorme de renda para qualquer hospital universitário, e o dinheiro era gasto para recrutar, manter e abrigar aqueles seres mimados e arrogantes que abriam pessoas para que elas sobrevivessem mais.
Dentre o grupo que operava com os bisturis no Hospital São Francisco, Manny Manello estava no topo da pirâmide, chefe não apenas de uma subespecialidade, como ela tinha sido, mas de todo o conjunto da obra. Isso significava que era uma estrela de cinema, um sargento e o presidente dos Estados Unidos ao mesmo tempo, tudo isso englobado em um cara com pouco mais de um metro e oitenta de altura. Tinha um temperamento terrível, uma inteligência impressionante e um pavio de mais ou menos um milímetro de comprimento, e isso em um dia bom. E seu trabalho era tão valioso quanto uma pedra preciosa.
As operações de maior rentabilidade do cara sempre foram aquelas feitas em atletas profissionais: ele tratou vários joelhos, quadris e ombros que teriam provocado muitos finais de carreira no futebol, baseball ou no hóquei. Mas também tinha muita experiência com tratamentos de coluna e, apesar da atuação de um neurocirurgião ser interessante se considerasse as radiografias de Payne, aquele era um problema ortopédico: se a medula espinhal fosse rompida, nada do que fizessem em termos neurológicos ajudaria. A ciência médica não tinha avançado tanto assim.
Quando dobrou a extremidade da mesa de recepção, teve de parar. À esquerda estava seu antigo escritório, o lugar onde passava horas incontáveis lidando com papéis e fazendo reuniões de consulta com Manny e o resto da equipe. Agora, lia-se o nome na placa fixada na porta: DR. THOMAS GOLDBERG, CIRUGIÃO-CHEFE DO DEPARTAMENTO DE TRAUMATOLOGIA.
Goldberg era uma excelente escolha; ainda assim, por alguma razão, doía ver o nome de outra pessoa ali.
Mas até parece. Esperava que Manny preservasse sua mesa e seu escritório como um monumento em homenagem a ela? A vida continua. A dela. A dele. A do hospital.
Voltando à realidade da situação, caminhou pelo corredor acarpetado. Mexia sempre em seu jaleco branco, com a caneta em seu bolso e com o celular que, até agora, não havia tido motivos para usar. Não havia tempo para explicar seu retorno do mundo dos mortos ou persuadir Manny ou ajudá-lo a entender o que estava prestes a expor; e não havia escolha, mas, de alguma forma, tinha de levá-lo com ela.
Em frente à porta fechada, preparou-se e, em seguida, atravessou...
Ele não estava atrás da mesa, ou trabalhando em algo na mesa de conferências da sala de reuniões.
Verificou rapidamente em seu banheiro privativo... nada ali também... não havia nenhuma umidade nas portas de vidro ou toalhas molhadas sobre a pia.
De volta ao escritório, ela respirou fundo... e o aroma suave de sua loção pós-barba pairando no ar a fez engolir em seco. Deus, sentia a falta dele.
Balançando a cabeça, andou ao redor da mesa e olhou a desordem. Arquivos de pacientes, pilhas de memorandos interdepartamentais, relatórios de Assistência ao Paciente e de Avaliação de Qualidade. Como era um pouco depois das cinco da tarde de um sábado, esperava encontrá-lo ali: as provas de seleção não eram realizadas nos finais de semana; então, a menos que estivesse de plantão ou lidando com um algum caso na traumatologia, deveria estar bem ali atrás daquela confusão de papéis. Manny era workaholic: trabalhava vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana.
Saindo do escritório, verificou a mesa de sua secretária. Nada ali também: seus compromissos eram mantidos no computador, protegidos por senha.
A próxima parada era o centro cirúrgico. O São Francisco tinha diferentes níveis de salas de operação, todas organizadas por especialidades. Ela foi diretamente à seção que ele costumava atuar. Olhando pelas janelas de vidro e portas duplas, viu que estavam operando uma terrível fratura múltipla. Embora os cirurgiões usassem máscaras e toucas, poderia dizer que nenhum deles era Manny. Seus ombros eram grandes o suficiente para esticar até mesmo o maior uniforme cirúrgico disponível e, além disso, as músicas que soavam ao fundo não eram o estilo dele. Mozart? Sem chance. Pop? Nem morto: Manny ouvia rock clássico e heavy metal. Aliás, se não fosse contra o protocolo, os enfermeiros usariam um protetor de ouvidos durante todos os procedimentos com ele.
Caramba... Onde diabos estava? Não havia conferências naquela época do ano e ele não tinha vida fora do hospital. As únicas opções que restavam era que estivesse no Commodore: desmaiado de cansaço no sofá de seu apartamento ou na academia do arranha-céu.
Quando saiu dali, pegou o celular e ligou para o sistema de atendimento do hospital.
– Sim, alô? – disse quando a ligação foi atendida. – Gostaria de falar com o Dr. Manuel Manello. Meu nome? – que droga! – Ah... Hannah. Hannah Whit. Pode retornar a ligação neste número.
Quando desligou, percebeu que não fazia ideia do que dizer caso ele retornasse a ligação, mas resolveu dar destaque ao pensamento positivo... e rezou para que tivesse a habilidade inata de realizar aquela tarefa. O fato era: se o sol baixasse no horizonte, um dos Irmãos sairia do complexo e faria algum trabalho mental em Manny para facilitar o processo de levá-lo até lá.
Contudo, não seria Vishous. Outra pessoa. Qualquer pessoa. Seus instintos diziam-lhe para deixar os dois tão afastados quanto possível: já tinham uma emergência médica em processo, e a última coisa de que precisava era de seu antigo patrão sendo pressionado porque seu marido tinha um instinto territorial e poderia decidir rachar, ele próprio, uma coluna a qualquer momento. Pouco antes de sua morte, Manny estava interessado em mais do que apenas uma associação profissional com ela; portanto, a menos que tivesse se casado com uma das Barbies que insistia em namorar, provavelmente ainda estava solteiro... E a regra dizia que o coração ficava ainda mais afeiçoado à pessoa ausente; então, seus sentimentos devem ter persistido.
Por outro lado, era possível que a insultasse sem piedade por mentir para ele sobre toda a coisa de estar “morta e enterrada”.
Pelo menos ele não se lembraria de nada daquilo; contudo, quanto a ela, temia nunca mais se esquecer das próximas vinte e quatro horas.
O Hospital Equino Tricounty era uma instalação de última geração em todos os sentidos. Localizado a quinze minutos do hipódromo de Aqueduct, o local tinha tudo, desde salas de operação e um serviço completo de quartos de recuperação até piscinas para hidroterapia e exames que forneciam imagens avançadas. E seu quadro de funcionários era composto por pessoas que viam os cavalos como muito mais do que uma fonte de lucros sobre quatro patas.
Na sala de cirurgia, Manny analisava as radiografias da perna dianteira de sua garota e desejou ser o único a entrar ali para resolver o problema: conseguia ver claramente as fissuras na imagem, mas isso não era o que o preocupava. Havia vários ligamentos que haviam sido rompidos e manchas acentuadas orbitando ao redor dos centros nervosos do osso alongado que mais pareciam luas ao redor de um planeta.
Só porque ela era de outra espécie não significava que não poderia fazer a operação. Assim que o anestesista fizesse seu trabalho em segurança, ele poderia cuidar do resto. Osso era sempre osso; mas não bancaria o idiota.
– O que acha? – perguntou.
– Minha opinião profissional – respondeu o veterinário-chefe – é de que está muito ruim. É uma fratura múltipla deslocada. O tempo de recuperação será extenso e não é possível garantir que ela sequer possa reproduzir.
O que era uma zica total: cavalos foram feitos para ficar em pé com seu peso distribuído sobre quatro pontos de maneira uniforme. Quando uma perna era quebrada, não se tratava tanto da lesão em si, mas o fato de que era preciso redistribuir o peso e contar, desproporcionalmente, com as partes que ainda estavam boas no corpo para ficar em pé. E esse era o grande problema.
Ao considerar aquilo que examinava, a maioria dos proprietários escolheria a eutanásia; mas sua garota tinha nascido para correr, e aquela lesão catastrófica faria disso impossível, mesmo se fosse apenas para o lazer... isso se ela sobrevivesse. Como médico, estava muito familiarizado com a crueldade do trabalho “salvador” de seus colegas que acabavam levando o paciente a viver em condições piores do que a morte – ou não faziam nada além de prolongar, de maneira dolorosa, o inevitável.
– Dr. Manello? O senhor ouviu o que eu disse?
– Sim. Ouvi. – Pelo menos aquele cara, ao contrário do idiota na pista, parecia tão arrasado quanto Manny.
Afastando-se, foi até onde a deitaram e colocou uma das mãos sobre sua bochecha arredondada. Sua pelagem negra brilhava sob a iluminação e, em meio ao cenário de ladrilho claro e aço inoxidável, parecia uma sombra projetada ao acaso e esquecida no centro da sala.
Por um longo momento, observou como sua grande caixa torácica expandia-se e contraía-se com a respiração. Só de vê-la na maca com as belas pernas esticadas como bastões e sua cauda pendendo sobre o ladrilho fê-lo perceber que animais como ela deveriam ficar em pé: aquilo que via era completamente contrário à natureza, e injusto.
Mantê-la viva apenas para que não tivesse de enfrentar sua morte não era a resposta certa.
Preparando-se para a situação, Manny abriu a boca...
A vibração dentro do bolso de seu terno o interrompeu. Com um palavrão, tirou o celular e verificou. Era do hospital. Hannah Whit? Com um número desconhecido?
Não era ninguém que conhecesse e ele não estava de plantão.
Provavelmente um erro do atendimento.
– Quero que opere – ouviu-se dizendo enquanto guardava o telefone de volta.
O curto silêncio que se seguiu deu-lhe tempo de sobra para perceber que impedi-la de partir cheirava a covardia. Mas não poderia insistir naquele melodrama psíquico ou perderia a sanidade.
– Não posso garantir nada. – O veterinário voltou a olhar as radiografias. – Não sei dizer o que vai acontecer, mas posso jurar que... farei meu melhor.
Deus, agora sabia como as famílias se sentiam quando dizia isso a elas.
– Obrigado. Posso assistir?
– Com certeza. Vou pegar algo para o senhor vestir e sabe como fazer a higienização antisséptica, certo, doutor?
Vinte minutos depois, a operação começou e Manny assistiu próximo à cabeça de Glory, acariciando sua crina com as mãos envolvidas com as luvas de látex, mesmo sedada. Enquanto o veterinário-chefe trabalhava, Manny teve de tirar o chapéu para a metodologia e habilidade daquele homem... as únicas coisas corretas desde que Glory havia caído. O procedimento terminou em menos de uma hora, com os fragmentos ósseos ou removidos ou encaixados no devido lugar. Então, imobilizaram a perna, retiraram a égua da sala de cirurgia e a colocaram em uma piscina para que não quebrasse outra perna quando o efeito da anestesia passasse.
Manny ficou com ela até que acordasse e, em seguida, acompanhou o veterinário até o corredor.
– Os sinais vitais são bons e correu tudo bem na operação – o veterinário disse –, mas essa vitalidade pode mudar rapidamente. E vai levar tempo até sabermos o que conseguimos alcançar.
Nossa. Aquele pequeno discurso era exatamente o que dizia aos familiares mais próximos e outros parentes quando achava que era hora de irem para casa descansar e esperar como o paciente reagiria ao pós-operatório.
– Ligaremos para o senhor – falou o veterinário. – Vamos mantê-lo informado.
Manny tirou as luvas e pegou seu cartão de visitas.
– No caso de ainda não terem todos os meus dados nos registros.
– Temos sim – de qualquer forma, pegou o papel. – Se alguma coisa mudar, será o primeiro a saber, e lhe darei as informações pessoalmente, a cada doze horas, que é o intervalo entre as minhas rondas, quando passo visitando todos os leitos.
Manny assentiu e estendeu a mão.
– Obrigado. Por cuidar dela.
– Por nada.
Depois de apertarem as mãos, Manny assentiu outra vez junto às portas duplas.
– Importa-se se eu me despedir dela?
– Não. Pode ir.
Dentro do quarto outra vez, passou um momento com sua égua. Deus... aquilo doía.
– Segure firme, garota – teve de sussurrar, pois não conseguia respirar direito.
Quando se ergueu, a equipe o observava com uma tristeza que sabia que ia permanecer.
– Vamos cuidar dela. – o veterinário disse gravemente.
Acreditava mesmo que cuidariam e foi a única coisa que o levou de volta ao corredor.
As instalações do Tricounty eram extensas e precisou de um tempo considerável para trocar de roupa e seguir seu caminho até a saída onde tinha estacionado, próximo à porta da frente. À frente, o sol se punha, um brilho de um tom pêssego se espalhava, iluminando o céu como se Manhattan estivesse em chamas. O ar estava frio, mas perfumado, pois o início da primavera esforçava-se para trazer vida à paisagem árida do inverno, e ele respirou tão fundo que ficou tonto. Deus, o tempo tinha passado como uma neblina, mas agora, com os minutos se arrastando, percebeu que aquele ritmo frenético tinha esgotado sua fonte de energia. Era isso ou tinha batido contra um muro de tijolos e desmaiado.
Enquanto procurava a chave do carro, sentiu-se mais velho do que Deus. Sua cabeça estava dando fortes pontadas e sua artrite no quadril o estava matando. Aquela corrida que havia empreendido para chegar à pista e ficar ao lado de Glory ia além de seus limites.
Não foi assim que imaginou o final do dia. Achou que estaria comprando bebidas para os proprietários que tinha derrotado... E talvez, no resplendor da vitória, seguisse a generosa sugestão oral da Sra. Hanson.
Ao entrar no carro, ligou o motor. Caldwell estava a mais ou menos quarenta e cinco minutos ao norte de Queens, e seu carro conseguia fazer a viagem de volta ao Commodore praticamente sozinho. Isso era muito bom, pois era quase um zumbi naquele momento. Nada de rádio. Nenhuma música no iPod. Ninguém telefonando também.
Ao pegar a estrada, observou o caminho à frente e lutou contra o impulso de dar meia-volta e... sim, e fazer o quê? Descansar em paz ao lado de seu cavalo?
A questão era: se conseguisse chegar em casa logo, poderia conseguir ajuda. Tinha uma garrafa de uísque esperando por ele e poderia ou não ir com calma ao usá-la. Até onde dizia respeito ao hospital, estava de folga até segunda pela manhã, às seis horas, e tinha planos de ficar bêbado e permanecer assim.
Guiando o volante revestido de couro com uma das mãos, procurou, com a outra, em meio a sua camisa de seda, sua representação do Cristo crucificado. Segurando a cruz de ouro, fez uma oração.
Deus... por favor, permita que ela fique bem.
Não poderia suportar perder outra de suas garotas. Não tão cedo. Jane Whitcomb tinha morrido há um ano, mas isso era o que o calendário dizia. O tempo do luto era diferente – nele havia transcorrido apenas um minuto e meio.
Não queria passar por isso outra vez.
CONTINUA
1761, ANTIGO PAÍS
Xcor viu seu pai sendo morto após cinco anos de sua transição. Aconteceu diante de seus olhos, mas, mesmo com a proximidade, não poderia imaginar o que houve.
A noite começou como qualquer outra, a escuridão caiu sobre a paisagem de florestas e cavernas, as nuvens encobriam a luz da lua para ele e para aqueles que viajavam a cavalo com ele. Seu grupo de soldados era composto por seis homens fortes: Throe, Zypher, os três primos e ele próprio. E seu pai.
Bloodletter.
Antigo membro da Irmandade da Adaga Negra.
O que os fez sair naquela noite foi o que os chamava ao serviço após cada pôr de sol: procuravam redutores, aquelas armas sem alma de Ômega, que achou por bem exterminar a raça vampira. E os encontravam. Frequentemente.
Mas aqueles sete machos não eram membros da Irmandade.
Ao contrário dos aclamados Irmãos, eram um grupo secreto de guerreiros. Aquele grupo de bastardos liderados por Bloodletter não era nada além de soldados: sem cerimônias. Nada de serem adorados pela população civil. Nada de louvores. A linhagem deles poderia ser aristocrática, mas todos foram abandonados por seus familiares por terem nascido com defeitos ou fora de um acasalamento santificado.
Nunca seriam outra coisa senão pedaços de carne dispensáveis dentro da grande guerra pela sobrevivência.
Porém, mesmo isso sendo verdade, eram a elite dos soldados, os mais cruéis, os braços mais fortes, aqueles que foram provados ao longo do tempo pelo feitor mais rígido da raça: o pai de Xcor. Escolhidos a dedo e com sabedoria, esses homens eram mortais contra o inimigo e não seguiam nenhum código de conduta quando se tratava da sociedade vampira. Também não seguiam nenhum código quando se tratava de matar alguém: não importava se a presa era um assassino, um humano, um animal ou um lobo. Sangue seria derramado.
Eles fizeram um, e apenas um, juramento: seu pai era o senhor deles e ninguém mais. Aonde quer que ele fosse, eles iriam, e isso era tudo. Muito mais simples que toda aquela porcaria elaborada pela Irmandade – mesmo Xcor sendo um candidato por linhagem, não teve interesse em ser um Irmão. Não se importava com a glória, uma vez que nada se comparava ao doce prazer do assassinato. Melhor deixar de lado a tradição inútil e o ritual desgastado para aqueles que se recusam a empunhar qualquer outra coisa que não seja uma adaga negra.
Usaria qualquer arma disponível.
E seu pai faria o mesmo.
O clamor dos cascos abrandou e depois ficaram em silêncio quando os lutadores saíram da floresta em um enclave de carvalhos e arbustos. A fumaça das lareiras das casas pairava na brisa, mas não havia nenhuma outra confirmação de que tinham chegado, finalmente, à pequena cidade que procuravam: no alto, sobre um íngreme penhasco, havia um castelo fortificado que se apresentava como uma águia empoleirada, sua fundação era como garras fincadas na rocha.
Humanos. Guerreando entre si.
Que entediante.
Ainda assim, era preciso respeitar a construção. Talvez, se Xcor se estabelecesse algum dia, massacraria a dinastia daquele lugar e tomaria posse daquela fortaleza. Muito mais eficiente roubar que construir.
– Para a aldeia – seu pai ordenou. – Avancemos para a diversão.
A notícia era de que havia redutores ali, as bestas pálidas misturavam-se e confundiam-se com os moradores do vilarejo que tinham escavado lotes de terra e construído casas de pedra à sombra do castelo.
Isso era uma típica estratégia de recrutamento da Sociedade: infiltrar-se em uma cidade, tomar os machos um a um, assassinar ou vender as mulheres e crianças, fugir com armas e cavalos e mudar-se para uma localidade próxima em maior número.
Xcor tinha a mesma mentalidade do inimigo nesse aspecto: quando acabava de lutar, sempre pegava tudo o que podia antes de dirigir-se para a próxima batalha. Noite após noite, Bloodletter e seus soldados abriam caminho ao longo do território que os seres humanos chamavam de Inglaterra e, quando alcançavam a ponta do território escocês, viravam-se e colocavam-se em direção oposta, indo sempre para o sul, até chegarem ao calcanhar da Itália, quando davam meia-volta outra vez. Em seguida, percorriam novamente os muitos quilômetros que tinham caminhado até ali. E faziam isso de novo. E mais outra vez.
– Deixemos nossas provisões aqui. – disse Xcor, apontando para uma árvore de tronco grosso, que havia caído sobre um riacho.
Enquanto faziam a transferência dos modestos suprimentos, não havia nada além do ranger de couro e do bufar ocasional de um garanhão. Quando tudo estava guardado sob o flanco do carvalho abatido, montaram outra vez sobre seus animais e reuniram os cavalos de raça – que eram as únicas coisas de valor, além de armas, que possuíam. Xcor não via utilidade em objetos de beleza ou conforto – para ele, eram nada além de um peso que o induzia à queda. Um cavalo forte e um punhal afiado? Isso sim tinha um valor inestimável.
Enquanto os sete andavam até a aldeia, não fizeram qualquer esforço para silenciar as batidas dos cascos de seus cavalos. Contudo, não houve gritos de guerra. Era um desperdício de energia, seus inimigos não precisavam de um convite para vir saudá-los. O único ato de boas-vindas foi um humano ou dois espiando para fora de suas portas e, em seguida, voltando rapidamente a trancarem-se em seus domicílios. Xcor os ignorou. Em vez de importar-se com isso, examinou as casas baixas de pedra, a praça central e as lojas de comércio fortificadas, procurando por alguma forma bípede, pálida como um fantasma e fedendo como um cadáver revestido em melado.
Seu pai andou até ele e sorriu com um toque de maldade.
– Talvez possamos colher os frutos dos jardins por aqui mais tarde.
– Talvez. – murmurou Xcor enquanto seu cavalo jogava a cabeça para trás. Na verdade, não estava muito interessado em deitar-se com fêmeas ou subjugar machos, mas não se podia negar nada a seu pai, mesmo quando se tratava de suas extravagâncias na hora do lazer.
Sinalizando com as mãos, Xcor direcionou três de seu grupo para a esquerda, onde havia uma pequena estrutura com uma cruz em cima de seu telhado pontiagudo. Ele e os outros seguiriam à direita. Seu pai faria o que quisesse. Como sempre.
Forçar os garanhões a permanecer em um galope contínuo era uma tarefa que desafiava até mesmo o mais vigoroso dos braços, mas estava acostumado com o cabo de guerra e sentou-se com firmeza na sela. Com um propósito sombrio, seus olhos penetraram as sombras produzidas pelo luar, procurando, sondando...
O grupo de assassinos que saiu do abrigo de ferragens possuía uma grande quantidade de armas.
– Cinco – Zypher rosnou. – Bendita noite.
– Três – Xcor interrompeu. – Dois ainda são seres humanos... porém, matar esses dois... também será um prazer.
– Qual devemos atacar, meu senhor? – Seu irmão de armas disse com um grande respeito que era dedicado por merecimento e não por ser o primogênito.
– Os humanos – Xcor disse, deslocando-se para frente e preparando-se para o momento em que incitaria seu cavalo a partir. – Se há outros redutores por perto, isso os atrairia ainda mais.
Estimulando o grande animal e afundando-se na sela, sorriu quando os redutores mantiveram-se firmes com suas correntes e armamentos. No entanto, as duas pessoas junto a eles não ficariam tão firmes. Embora os dois estivessem equipados para lutar, dariam meia-volta e correriam quando vissem a primeira exibição de presas como cavalos assustados por um tiro de canhão, razão pela qual deu um solavanco de forma abrupta para a direita logo após galopar apenas alguns passos. Atrás da cabana do ferreiro, puxou as rédeas e desmontou do corcel. Seu garanhão era um animal selvagem, mas obediente quando tratava-se de desmontar e aguardar...
Uma fêmea humana irrompeu pela porta dos fundos, sua camisola branca era como uma faixa brilhante na escuridão, enquanto esforçava-se para ficar em pé sobre a lama. No instante em que ela o viu, ficou paralisada de terror.
Reação lógica: ele era duas vezes o tamanho dela, talvez três, e não estava vestido para dormir, mas para a guerra. Quando a mão da fêmea ergueu-se até a garganta, ele farejou o ar e sentiu seu perfume. Hummm, talvez seu pai gostasse daquela flor de jardim...
Quando o pensamento lhe ocorreu, soltou um rosnado baixo que incitou a moça a uma corrida desenfreada; a visão da tentativa de fuga fez o predador dentro dele vir à tona. Com uma sede de sangue percorrendo suas entranhas, lembrou-se que havia se passado semanas desde que tinha se alimentado de alguém de sua espécie e, apesar daquela garota ser apenas uma humana, poderia ser o suficiente para aquela noite.
Infelizmente, não havia tempo para se divertir naquele momento... Apesar disso, seu pai iria atrás dela mais tarde, com certeza. Se Xcor precisava de um pouco de sangue para vencer as dificuldades, conseguiria tal fonte com aquela mulher, ou com qualquer outra.
Dando as costas para a fuga, parou com firmeza sobre o chão e desembainhou a arma escolhida: embora as adagas servissem, preferiu a foice, cabo longo e modificado para um coldre amarrado em suas costas. Era especialista em empunhar aquele grande peso e sorriu enquanto manejava ao vento a lâmina cruel e curvada, esperando para jogar a rede sobre aqueles dois peixes que, com certeza, estavam nadando até ele...
Ah, sim, como era bom estar certo.
Logo após uma luz brilhante surgir e um estalo eclodir da passagem principal, os dois humanos vieram gritando em direção aos fundos da casa do ferreiro como se estivessem sendo perseguidos por carrascos.
Mas estavam errados, não? O carrasco estava esperando ali.
Xcor não gritou ou amaldiçoou. Sequer rosnou. Começou a correr com a foice, havia um equilíbrio uniforme entre as duas mãos enquanto as coxas poderosas encurtavam a distância. Só de olhar para ele, os humanos derraparam em suas botas, braços soltos, como asas de patos pousando sobre a água.
O tempo pareceu desacelerar quando caiu sobre eles, sua arma favorita fez um grande círculo, atingindo os dois na altura do pescoço.
As cabeças foram decepadas com um golpe único e limpo. Os rostos surpresos brilharam e desapareceram à medida que a parte removida do corpo girava, o sangue espirrou e salpicou no peito de Xcor. Com a ausência de crânios, a parte inferior dos corpos caíram sobre o chão com uma graça curiosa e líquida, aterrissando inanimados com os membros retorcidos.
Agora sim ele gritava.
Virando-se, Xcor fixou suas botas de couro na lama, respirou fundo e soltou um rosnado enquanto manejava a foice, o aço avermelhado pedia mais sangue. Apesar de suas presas serem meros seres humanos, o impulso de matar era superior a um orgasmo, a sensação de que havia tirado uma vida e deixado cadáveres para trás percorria seu corpo como uma bebida alcoólica.
Chamou seu cavalo assoviando, que foi até ele rapidamente após o comando. Com um salto, montou na sela, a foice erguida em sua mão direita enquanto lidava com as rédeas com a esquerda. Dando um golpe com força, incitou o corcel ao galope, percorrendo rapidamente um caminho estreito e sujo e emergindo no auge da batalha.
Seus colegas lutavam com todas as forças, o som das espadas colidindo e gritos bombardearam a noite quando o demônio encontrou seu inimigo. E assim como Xcor havia previsto, mais uma meia dúzia de redutores veio correndo a toda velocidade sobre seus garanhões de raça, como leões que foram libertos para defender seu território.
Xcor entrou em cena e avançou contra o inimigo, envolvendo as rédeas no punho e brandindo a foice enquanto o cavalo corria em direção aos outros com os dentes à mostra. Sangue negro e partes de corpos voaram quando passou por entre os adversários, ele e seu cavalo trabalhavam como uma unidade naquele ataque.
Quando atingiu mais um assassino com sua lâmina e o cortou ao meio na altura do peito, soube que tinha nascido para fazer isso, era a maior e melhor maneira de usar seu tempo sobre a terra. Era um assassino, não um defensor.
Não lutava pela raça... mas por si mesmo.
Tudo aconteceu muito depressa, a névoa noturna rondava os redutores caídos, que contorciam-se em poças do próprio sangue oleoso e negro. Houve poucos feridos dentre o grupo de Xcor. Throe tinha um corte no ombro, feito por alguma lâmina. Zypher estava mancando, uma mancha vermelha escorria de sua perna, ensopando a bota. Nenhum deles estava mais lento ou mesmo preocupado.
Xcor deteve o cavalo, desmontou e voltou a colocar a foice no coldre. Sacou a adaga de aço e começou sua ronda para esfaquear os assassinos, lamentou o processo que enviava o inimigo de volta a seu criador. Queria mais luta, não menos...
Um grito ecoou e ele ergueu a cabeça. A mulher humana de camisola estava correndo pela estrada de terra batida do vilarejo, seu corpo pálido em uma fuga desgovernada, como se tivesse sido expulsa de um esconderijo. Logo atrás dela, o pai de Xcor montou em seu cavalo e galopou rápido; o corpo maciço de Bloodletter pendia em um dos lados da sela quando a alcançou. Na verdade, não houve, de fato, uma corrida: quando ficou ao lado dela, pegou-a com o braço e atirou-a sobre seu colo.
Não houve parada, nem mesmo uma diminuição da velocidade depois da captura, mas uma marca foi feita: com seu cavalo galopando a toda velocidade e a humana se debatendo, o pai de Xcor ainda conseguiu atingir a garganta delgada com suas presas, prendendo-se no pescoço da mulher como se fosse detê-la apenas com os caninos.
Ela teria morrido. Com certeza, ela teria morrido.
Se Bloodletter não tivesse morrido primeiro.
De fora do turbilhão do nevoeiro surgiu uma figura fantasmagórica como se fosse formada pelos filamentos de umidade que percorriam o ar. E no momento que Xcor viu o espectro, estreitou os olhos e valeu-se de seu olfato aguçado.
Parecia ser uma mulher. De sua espécie. Vestida com uma túnica branca.
E seu cheiro lembrou-o de algo que não conseguiu localizar.
Ela foi diretamente ao encontro de seu pai, mas parecia não ter a menor preocupação com o cavalo ou com o guerreiro sádico que logo viria atrás dela. No entanto, seu pai estava fascinado por ela. No instante em que a notou, largou a humana como se não fosse nada além de um osso do qual já houvesse comido toda a carne.
Isso estava errado, Xcor pensou. De fato, ele era um macho de ação e poder e dificilmente um membro do sexo frágil o intimidaria... mas tudo em seu corpo advertia que aquela entidade etérea era perigosa. Letal.
– Ei! Pai! – gritou. – Vire-se!
Xcor assoviou para seu cavalo, que atendeu ao comando. Montando sobre a sela, estimulou os flancos do animal, lançando-se a toda velocidade para que pudesse cruzar o caminho do pai, um pânico estranho o incitando.
Tarde demais. Seu pai lançou-se sobre a fêmea, que agachou-se lentamente.
Meu Deus, ela ia saltar por cima do...
Com um impulso coordenado, ela flutuou no ar e pegou a perna de seu pai, usando-a para montar sobre o cavalo de um salto. Então, agarrou o sólido peitoral de Bloodletter, saltou para um lado e levou o macho ao chão com ela, como se fossem apenas um. A investida poderosa desafiava a questão de ser do sexo feminino e sua natureza espectral.
Ora, não era um fantasma, mas um ser de carne e osso.
O que significava que poderia ser morta.
Enquanto Xcor preparava-se para lançar seu garanhão contra eles, a fêmea soltou um grito nada feminino: mais ao estilo do grito de guerra de Xcor, o berro trespassou o ruído dos cascos trovejantes abaixo dele e os sons do grupo que reunia-se para combater aquele ataque inesperado.
Contudo, não havia necessidade de uma intercessão imediata.
Seu pai, após o choque de ser tirado de sua sela, rolou de costas, desembainhou seu punhal e rosnou como um animal. Com uma maldição, Xcor freou e interrompeu o resgate, pois, com certeza, seu pai assumiria o controle. Bloodletter não era o tipo de homem a quem se ajudava – havia agredido Xcor por isso no passado, uma lição que foi duramente aprendida e que sempre seria lembrada.
Ainda assim, desmontou e aproximou-se da situação para reagir no caso de haver mais alguma “Valquíria” saindo do meio da floresta.
E foi assim que ele a ouviu, claramente, dizer um nome.
– Vishous.
A raiva de seu pai deu lugar a uma breve confusão. E antes que pudesse retomar sua autodefesa, a figura fantasmagórica começou a brilhar com uma luz profana.
– Pai! – Xcor gritou ao aproximar-se correndo.
Mas era tarde. E o contato foi feito.
Chamas irromperam sobre o rosto rude e barbado de seu pai e tomaram seu corpo, como se fosse feno seco. E com a mesma graça que ela o derrubou, a fêmea saltou para trás e observou enquanto seu pai tentava apagar o fogo debatendo-se freneticamente, sem sucesso. No meio da noite, ele gritava enquanto era queimado vivo, suas roupas de couro não ofereceram proteção alguma para sua pele e músculos.
Não havia chance alguma de aproximar-se o suficiente do fogo e Xcor derrapou até parar, levantando o braço para se proteger e curvando-se para se afastar do calor que ficava exponencialmente mais intenso.
Durante todo o tempo, a fêmea ficou sobre o corpo que se contorcia e tinha espasmos... O brilho laranja iluminava o rosto belo e cruel.
A vadia estava sorrindo.
E foi então que ela ergueu o rosto para ele. Quando Xcor teve uma visão correta de seu rosto, recusou-se, em um primeiro momento, a acreditar no que via. Ainda assim, o brilho das chamas não mentia.
Xcor observava uma versão feminina de Bloodletter. O mesmo cabelo negro, a mesma pele e olhos claros. A mesma estrutura óssea. Além disso, a mesma luz vingativa em seu olhar violento, aquele arrebatamento e satisfação ao causar uma morte era uma combinação que Xcor conhecia muito bem.
Ela partiu logo em seguida, desaparecendo na neblina de uma maneira que não condizia com a desmaterialização de sua espécie, mas, sim, fez isso como um sopro de fumaça, desvanecendo-se devagar em princípio e, em seguida, rápida e definitivamente.
Assim que sentiu-se capaz, Xcor correu para seu pai, mas não havia mais nada a ser salvo... mal havia algo para ser enterrado. Afundando os joelhos diante dos ossos fumegantes e do fedor de queimado, teve um momento de fraqueza deplorável: lágrimas derramaram-se dos olhos. Bloodletter tinha sido um bruto, mas como sua única descendência masculina, Xcor e ele eram bem próximos... Na verdade, eram quase membros de um mesmo corpo.
– Por tudo o que é mais sagrado – Zypher disse com voz rouca –, o que foi isso?
Xcor piscou com força antes de olhar por cima do ombro.
– Ela o matou.
– Sim. E fez mais alguma coisa.
Quando o grupo de bastardos aproximou-se dele, um a um, Xcor teve de pensar no que dizer, no que fazer.
Erguendo-se com firmeza, quis chamar seu cavalo, mas sua boca estava seca demais para assoviar.
Seu pai... um inimigo e, ao mesmo tempo, seu porto seguro, estava morto. Morto. E aconteceu tão rápido, rápido demais.
Por uma fêmea.
Seu pai havia partido.
Quando conseguiu, olhou para cada um dos machos diante dele, os dois montados nos cavalos, os dois em pé e o que estava a sua direita. Com uma nítida percepção, soube que não importava o que o destino tivesse reservado, seria moldado pelo que havia acontecido naquele momento, aqui, agora.
Não havia se preparado para isso, mas não se afastaria do que deveria fazer:
– Ouçam bem, pois só direi uma vez. Ninguém vai dizer nada. Meu pai morreu em uma batalha contra o inimigo. Eu o queimei para homenageá-lo e mantê-lo sempre comigo. Jurem isso para mim agora.
Os bastardos com quem ele vivia e lutava há muito tempo juraram e depois que suas vozes profundas desvaneceram-se no ar noturno, Xcor inclinou-se e passou os dedos pelas cinzas. Erguendo as mãos até o rosto, traçou uma listra com a fuligem desde as bochechas até as grossas veias que percorriam cada lado do pescoço... em seguida, acariciou o crânio duro que era tudo o que havia restado de seu pai. Segurando os restos carbonizados que ainda soltavam fumaça, reivindicou os soldados a sua frente como seus.
– Sou o único senhor agora. Liguem-se a mim neste momento ou serão meus inimigos. O que me dizem?
Não houve hesitação alguma. Os machos se ajoelharam, retiraram suas adagas e irromperam o grito de guerra antes de enterrarem as lâminas na terra a seus pés.
Xcor observou as cabeças inclinadas e sentiu que um manto caía-lhe sobre os ombros. Bloodletter estava morto. Sem vida, seria transformado em lenda a partir daquela noite.
E, seguindo o que é certo e apropriado, o filho substituiria o pai agora, comandando aqueles soldados que não serviriam a Wrath, o rei que não os governava; nem à Irmandade, que não se dignificava a descer àquele nível... Serviriam a Xcor e somente a ele.
– Vamos seguir na direção de onde a fêmea veio – anunciou. – Vamos encontrá-la mesmo que levem séculos, pois ela deve pagar por aquilo que fez esta noite. – Nesse momento, Xcor conseguiu assoviar alto e claro para seu cavalo. – Levarei, pessoalmente, a morte ao esconderijo daquela fêmea.
Subindo em seu cavalo, reuniu as rédeas e incitou o grande animal a cruzar a noite. Seu grupo de bastardos entrou em formação e o seguiu, disposto a morrer por ele.
Enquanto trovejava ao sair da aldeia, colocou o crânio de seu pai dentre as roupas de couro que usava nas batalhas, bem em cima do coração.
Aquela vingança seria sua. Mesmo que o matasse.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/9_AMANTE_LIBERTADA.jpg
CAPÍTULO 1
DIAS ATUAIS
HIPÓDROMO DE AQUEDUCT, QUEENS, NOVA YORK
– Quero enlouquecer você.
O Dr. Manny Manello virou a cabeça para a direita e olhou para a mulher que tinha falado com ele. Não foi a primeira vez que tinha ouvido essas palavras e a boca pela qual elas saíram tinha silicone suficiente para preencher uma boa almofada. Mas, ainda assim, foi uma surpresa.
Candance Hanson sorriu para ele e ajeitou seu chapéu retrô com uma mão bem manicurada. Aparentemente, ela tinha decidido que a combinação de dama refinada com uma dose de atrevimento era atraente – e talvez fosse, para alguns rapazes.
Caramba, em outro momento de sua vida, ele provavelmente teria dado em cima dela seguindo a teoria do “por que não?”. Agora? Seguia a ideia do “não é pra tanto”.
Sem se deixar abater pela falta de entusiasmo do médico, ela inclinou-se para frente, exibindo um par de seios que não exatamente desafiava a gravidade. Na verdade, aquilo era mais como mostrar o dedo médio, insultar a mãe e pisar no calo de alguém – uma falta de educação.
– Sei de um lugar aonde poderíamos ir.
Ele apostava que sim.
– A corrida já vai começar.
Ela fez beicinho. Ou talvez fosse o efeito das aplicações para aumentar os lábios. Deus, há dez anos ela devia ter um rosto jovem; agora, os anos tinham adicionado uma pátina de desespero nela – junto ao processo normal de envelhecimento, contra o qual ela lutava como um boxeador.
– Depois, então.
Manny afastou-se sem responder, sem saber exatamente como ela tinha conseguido entrar na área dos proprietários. Deveria ter sido na confusão que havia para voltar àquele local depois de selarem os cavalos – e, sem dúvida, estava acostumada a entrar em lugares que, tecnicamente, não lhe eram permitidos: Candance era um daqueles tipos sociais de Manhattan que só se diferenciava de uma prostituta por não ter um cafetão e, de muitas maneiras, era como uma vespa qualquer: ignorava o incômodo causado e ia pousar em outra coisa.
Ou em outra pessoa, como era o caso.
Erguendo o braço para mantê-la distante, Manny inclinou-se sobre o corrimão da cabine e esperou que sua garota saísse para a pista. Tinha sido colocada na parte externa, e isso era bom: preferia não ficar muito perto dos outros e percorrer uma distância extra nunca a incomodou.
O hipódromo de Aqueduct, no Queens, Nova York, não tinha o prestígio de um Belmont ou Pimlico ou do venerável pai de todos os hipódromos, o Churchill Downs. Contudo, não era de se jogar fora. A instalação tinha uma arena de quase três quilômetros, uma pista de turfe e outra para corridas de curta distância. A capacidade total era de, aproximadamente, nove hectares. A comida era medíocre, mas ninguém ia até lá para comer e havia algumas corridas grandes, como a daquele dia: a Wood Memorial Stakes tinha uma bolsa de 750 mil dólares e, como era realizada em abril, era uma boa referência para os candidatos ao prêmio Triple Crown...*
Ah, sim, lá estava ela. Lá estava sua garota.
Quando os olhos de Manny fixaram-se em GloryGloryAllelujah, o barulho da multidão, a luz brilhante daquele dia e a fila vacilante composta pelos outros cavalos desapareceram. Tudo o que ele via era sua magnífica égua negra, sua capa capturava a luz do sol e reluzia, as pernas finas se flexionavam, os cascos delicados erguiam-se e voltavam a pousar na pista de areia. Como ela media quase um metro e setenta, o jóquei parecia um pequeno mosquito em suas costas, e essa diferença de tamanho representava a divisão do poder. Ela deixou isso claro desde o primeiro dia de treinamento: poderia tolerar os pequenos seres humanos, mas estavam apenas a passeio na corrida. Ela estava no comando.
Seu temperamento dominador já havia lhe custado dois treinadores. O terceiro? O cara parecia um pouco frustrado, mas era apenas seu senso de controle que estava sendo espancado até a morte: Glory destacava-se e isso, simplesmente, não tinha nada a ver com ele. E Manny não tinha a menor preocupação com os egos inflados de homens que dominavam cavalos a vida inteira. Sua garota era uma lutadora, sabia o que estava fazendo, e ele não tinha o menor problema em deixá-la assumir o controle. Queria apenas assisti-la divertir-se ao acabar com a concorrência.
Quando seus olhos a encontraram, lembrou-se do otário de quem a tinha comprado há pouco mais de um ano. Aqueles vinte mil dólares tinham sido um roubo, considerando sua linhagem, também uma fortuna se pensasse no temperamento dela, e ainda não estava claro se conseguiria autorização para correr. Era uma égua indisciplinada de um ano de idade que já esteve prestes a ser afastada. Ou pior: de ser transformada em comida de cachorro.
Mas ele acertou. Desde que a deixasse liderar e comandar o show, era um espetáculo.
Quando a formação de cavalos aproximou-se do portão, alguns começaram a bater os cascos e a bufar, mas sua garota estava firme, como se soubesse que era inútil desperdiçar energia antes do jogo. Ele achava que as chances eram boas apesar da posição no pódio, pois o jóquei montado em seu dorso era uma estrela: sabia exatamente como lidar com ela e, nesse sentido, era mais responsável pelo sucesso da garota do que os outros treinadores. Sua estratégia era apenas certificar-se de que ela conhecia os melhores percursos, deixá-la escolher e ir.
Manny levantou-se e segurou o corrimão de ferro pintado na frente dele, juntando-se à multidão que saía de seus assentos, e começava a exibir uma quantidade incontável de binóculos. Quando seu coração começou a bater forte, ficou contente, pois fora dali encontrava-se muito próximo do sedentarismo, ultimamente. A vida que levava estava em um estágio de entorpecimento terrível no último ano ou um pouco mais, e talvez essa fosse a razão pela qual aquela égua era tão importante para ele.
Talvez ela também fosse tudo o que ele tinha.
Não era bem assim.
No portão, havia um movimento frenético: quando se trata de amontoar quinze cavalos fortes com patas da espessura de varetas e com glândulas adrenais disparando como obus em minúsculas caixas de metal, você não perde tempo. Em mais ou menos um minuto, o campo foi fechado e as pistas foram restringidas pelos trilhos.
Uma batida de coração.
Um sino.
Bang.
Os portões foram abertos, a multidão rugiu e os cavalos avançaram como se tivessem sido lançados de bocas de canhões. As condições eram perfeitas. Clima seco. Frio. Estavam a toda velocidade na pista.
Não que sua garota se importasse com isso. Correria na areia movediça se fosse necessário.
Os cavalos puros-sangues trovejaram, o som dos cascos e a voz do locutor chicoteavam energia nas arquibancadas a ponto de ficarem em um estado de êxtase. Porém, Manny manteve a calma, permanecendo com as mãos firmadas no trilho na frente dele e seus olhos sobre o campo, enquanto o grupo de cavalos fazia a primeira curva em uma confusão tensa de dorsos e caudas.
O telão mostrava-lhe tudo o que precisava ver. Sua égua estava na penúltima posição, apenas galopando enquanto todos os outros empreendiam uma corrida mortal – inferno, seu pescoço sequer estava totalmente estendido. No entanto, o jóquei estava fazendo seu trabalho, facilitando o caminho dela para avançar na pista, dando-lhe a opção de correr ao redor do grupo ou cortar caminho através deles quando estivesse pronta.
Manny sabia exatamente o que ela iria fazer. Entraria pela direita em meio aos outros cavalos como uma bola de demolição.
Era o jeito dela.
E foi assim que, quando os outros abriram distância, ela começou a pegar fogo. A cabeça baixa, o pescoço alongado, seu passo começou a acelerar.
– Caramba – Manny sussurrou. – Você consegue, garota.
Quando Glory adentrou a pista verde, transformou-se em um raio de luz que ultrapassava os outros corredores, a explosão de velocidade era tão poderosa que qualquer um se perguntaria se aquilo não era de propósito: apenas vencê-los não era o suficiente, ela tinha que fazer isso no último quilômetro, deixando as selas dos outros bastardos na poeira, no último minuto possível.
Manny riu do fundo da garganta. Ela era seu tipo de garota.
– Meu Deus, Manello, olha só como ela avança.
Manny assentiu com a cabeça sem olhar para o cara que falou em seu ouvido, pois a liderança do grupo estava mudando: o potro que estava à frente perdia sua força, ficando para trás quando suas pernas pareceram ficar sem combustível. Em resposta a isso, o jóquei o golpeou, chicoteando-lhe o traseiro – algo que obteve o mesmo sucesso de quando alguém amaldiçoa um carro cujo tanque esvaziou. O potro que estava em segundo lugar, um animal grande e castanho com jeito de mau e um passo que poderia englobar um campo de futebol, aproveitou imediatamente a desaceleração, e seu jóquei permitiu que o cavalo estendesse sua cabeça totalmente.
Os dois ficaram emparelhados por apenas um segundo antes que o cavalo castanho assumisse a liderança da corrida. Mas não seria por muito tempo. A garota de Manny tinha escolhido seu momento para contornar os três cavalos e fazer com que ele ficasse totalmente tenso.
Sim, Glory fazia o que tinha nascido para fazer, orelhas unidas à cabeça, dentes expostos.
Ela ia roubar o doce da boca daquele garanhão. E era impossível não extrapolar e pensar que participariam de corridas importantes como a Kentucky Derby...
Tudo aconteceu tão rápido.
Tudo chegou ao fim... em um piscar de olhos.
Com um golpe intencional, o potro bateu em Glory, o impacto brutal enviou-a para os trilhos. Sua garota era grande e forte, mas não poderia suportar um contato corporal assim, não quando corria a mais de sessenta quilômetros por hora.
Por uma fração de segundo, Manny ficou convencido de que ela se reergueria. Apesar da maneira como inclinou-se e cambaleou, esperava que encontrasse um ponto de equilíbrio e desse uma lição de boas maneiras àquele bastardo.
Só que ela caiu. Bem na frente dos três cavalos que tinha ultrapassado.
O massacre foi imediato, os cavalos mudaram totalmente a direção para evitar o obstáculo no caminho, os jóqueis seguraram as rédeas com força na esperança de permanecerem montados.
Todos fizeram isso. Exceto Glory.
Quando a multidão exclamou, Manny lançou-se para frente, ultrapassando os limites da cerca e saltando sobre as pessoas, cadeiras e barricadas até chegar à pista.
Além dos trilhos. Na arena.
Correu até ela. Anos de prática do atletismo levaram-no a uma velocidade vertiginosa até o cerne daquela situação.
Ela estava tentando se levantar. Mas que coração grande e feroz... estava lutando para erguer-se do chão, seus olhos encarando o grupo como se não desse a mínima por estar ferida; só queria pegar de jeito aqueles que a deixaram na poeira.
Tragicamente, sua perna dianteira tinha outros planos: enquanto se debatia, a perna direita vacilava na altura do joelho; e Manny não precisava de sua experiência como ortopedista para saber que ela tinha um problema.
Um problemão.
Ao aproximar-se dela, viu que o jóquei estava em lágrimas.
– Dr. Manello, eu tentei... Oh, Deus...
Manny escorregou na areia e arremeteu-se em direção às rédeas enquanto os veterinários aproximavam-se e o telão voltava-se para o drama.
Quando três homens de uniforme aproximaram-se dela, seus olhos não emitiam mais aquele sentimento selvagem... passaram a expressar dor e confusão. Manny fez o possível para acalmá-la, permitindo que balançasse com força a cabeça o quanto quisesse enquanto acariciava seu pescoço. Ela se acalmou quando lhe deram um tranquilizante.
Ao menos a tentativa desesperadora de andar, mesmo mancando, cessou.
O veterinário-chefe olhou para a perna e balançou a cabeça, algo que no mundo das corridas era um sinal universal para “será necessário sacrificá-la”.
Manny aproximou-se do rosto do cara.
– Nem pense nisso. Estabilize o que estiver quebrado e leve-a para o hospital veterinário de Tricounty. Entendido?
– Ela nunca mais correrá novamente... isso parece uma fratura múlti...
– Tire meu maldito cavalo da pista e leve-o ao Tricounty...
– Não vale a pena...
Many agarrou a jaqueta do veterinário e puxou o “Sr. Falar é Fácil” até ficarem face a face.
– Faça isso. Agora.
Houve um momento de incompreensão total, como se ser insultado fosse algo novo para o profissional teimoso.
E assim que os dois entenderam o que estava acontecendo, Manny rosnou:
– Não vou perdê-la, mas estou totalmente disposto a sacrificar você. Bem aqui. E agora.
O veterinário encolheu-se, afastando-se, como se soubesse que estava correndo perigo de levar um belo golpe.
– Certo... certo.
Manny não ia perder seu cavalo. Nos últimos doze meses, lamentou a perda da única mulher com quem se preocupou na vida, questionou sua sanidade e passou a se embebedar de uísque mesmo odiando a coisa.
Se Glory partisse agora... não sobraria muita coisa nessa vida, sobraria?
Algumas modalidades de esporte como o surfe e o jóquei e outras competições como o pôquer oferecem um prêmio especial na terceira vitória consecutiva, o Triple Crown. (N. da T.)
CAPÍTULO 2
CALDWELL, NOVA YORK
CENTRO DE TREINAMENTO,
COMPLEXO DA IRMANDADE
Caramba... Que droga... mas que inferno...
Vishous estava em pé no corredor do lado de fora da clínica médica da Irmandade com uma das mãos fechadas sobre os lábios e o polegar mexendo freneticamente em um tique irritante. No entanto, não havia nada a ser dito, não importava quantas vezes ele friccionasse o pequeno isqueiro.
Tic. Tic. Tic...
Com uma repulsa total, lançou a maldita coisa na lixeira e agarrou a luva revestida de chumbo que cobria sua mão. Ao tirar o pedaço de couro, olhou para a palma da mão brilhante, flexionando os dedos, arqueando-a em direção ao punho.
A coisa era em parte um lança-chamas, em parte uma bomba nuclear, capaz de derreter qualquer metal, transformar pedra em vidro e deixar em pedaços qualquer avião, trem ou automóvel que quisesse. Essa também era a razão pela qual conseguia fazer amor com sua shellan e um dos dois legados que sua mãe divina havia lhe dado.
E uma maldita segunda visão que era tão divertida quanto a rotina de lidar com a “mão da morte”.
Aproximando a arma mortal de seu rosto, acendeu a ponta do cigarro artesanal que fazia, mas não chegou perto demais ou prejudicaria seu sistema de envio de nicotina ao corpo e teria que desperdiçar seu tempo criando outro, curando-se. E não tinha paciência para isso mesmo em um dia bom, quanto mais em um momento como aquele...
Ah, a adorável tragada.
Encostando-se contra a parede, plantou suas botas de combate no chão de linóleo e fumou. Aquele prego de caixão não fez muito pela sua expressão deprimente, mas isso era melhor do que a opção que tinha passado por seus pensamentos nas últimas duas horas. Ao colocar a luva de volta pensou em sair dali com seu “dom” e incendiar alguma coisa, qualquer coisa...
Era mesmo sua irmã gêmea que estava do outro lado da parede? Deitada em uma cama de hospital... paralisada?
Jesus Cristo... Trezentos anos de idade e só então descobrir que se tem uma irmã.
Boa jogada, mamãe. Muito legal mesmo.
E pensar que ele achava ter resolvido todos os problemas com seus pais. Porém, apenas um deles estava morto. Se a Virgem Escriba seguisse pelo caminho de Bloodletter e descansasse em paz, talvez ele conseguisse encontrar um ponto de equilíbrio.
No entanto, pensando em como as coisas estavam e naquela tentativa absurda de Jane no mundo humano... Tudo aquilo estava fazendo com que ele...
Sim, não havia palavras para isso.
Pegou seu telefone celular. Verificou. Colocou de volta no bolso de sua jaqueta de couro. Caramba, isso era tão típico. Jane colocava seu foco em algo e isso era tudo. Nada mais importava.
Claro que ele era exatamente assim, mas em momentos como aquele, gostaria muito de ser atualizado.
Maldito sol. Prendia-o dentro de casa. Ao menos se estivesse com sua shellan não haveria possibilidade de o “grande” Manuel Manello negar alguma coisa. V. simplesmente golpearia o desgraçado, jogaria o corpo no Escalade e traria aquelas mãos talentosas até ali para operar Payne.
Para ele, o livre-arbítrio era um privilégio, não um direito.
Quando terminou de fumar o cigarro artesanal, apagou-o na sola de suas botas de combate e jogou a bituca no lixo. Queria muito uma bebida – exceto refrigerante ou água. Meio engradado de vodka o afastaria um pouco daquele abismo, mas com um pouco de sorte permitiriam que ele ajudasse na sala de cirurgia em breve, e precisava estar sóbrio para isso.
Entrando na sala de exames, os ombros ficaram tensos, os molares se fecharam e, por uma fração de segundo, não sabia o quanto mais poderia suportar. Se tinha uma coisa que o tirava do sério era quando sua mãe aprontava das suas, e era difícil imaginar algo pior do que a mentira de todas as mentiras.
O problema era que a vida não vinha com um “botão” de reiniciar, como o video game, que se pode pressionar quando ele trava por tentarem inserir alguma vantagem ou trapaça no jogo.
– Vishous?
Fechou os olhos por um instante ao som daquela voz suave e baixa.
– Sim, Payne – terminou a frase no Antigo Idioma. – Sou eu.
Cruzando a sala, reassumiu seu posto na banqueta com rodas ao lado da maca. Deitada embaixo de vários cobertores, Payne estava imobilizada, com a cabeça em um bloco e um colar cervical que ia do queixo à clavícula. Uma intravenosa ligava o braço dela a uma bolsa pendurada em uma extremidade de aço inoxidável e havia uma tubulação embaixo conectada ao cateter que Ehlena lhe dera.
Mesmo a sala de azulejos sendo clara, limpa e brilhante e os equipamentos e suprimentos médicos tão ameaçadores quanto xícaras e pires em uma cozinha, parecia que estavam em uma caverna suja cercados por ursos.
Seria tão bom se pudesse sair e matar o filho da mãe que tinha colocado sua irmã naquela condição. O problema era... isso significava que teria de acabar com Wrath, e que grande confusão essa morte traria. O maldito filho da mãe não era apenas o Rei, era um Irmão... e esse era o pequeno detalhe pelo qual a estadia dela ali havia sido consensual. As sessões de luta que os dois vinham travando nos últimos dois meses os deixaram em forma – e, claro, Wrath não fazia ideia com quem lutava, pois estava cego. Uma fêmea? Bem, dedução óbvia. As sessões aconteciam do Outro Lado e não havia machos por lá. Mas a falta de visão do Rei significava que ele perdia o que V. e todos os outros observavam ao entrarem naquela sala: a longa trança preta de Payne era da cor exata do cabelo de V. e sua pele do mesmo tom que a dele, tinha a mesma constituição: alta, magra e forte. Mas os olhos... cara, os olhos.
V. esfregou o rosto. Seu pai, Bloodletter, teve um número incontável de bastardos antes de ser assassinado em uma batalha contra redutores no Antigo País. Mas V. não se importava com nenhuma dessas relações aleatórias com as fêmeas.
Payne era diferente. Os dois tinham a mesma mãe e não era uma mahmen qualquer. Era a Virgem Escriba. A grande mãe da raça.
Era uma vadia, isso sim.
O olhar de Payne deslocou-se e a respiração de V. saiu com dificuldade. A íris que o encontrou era da cor de gelo branco, assim como a sua, e a borda azul-marinho em torno dela era algo que via todas as noites no espelho. E a inteligência... a inteligência que havia nas profundezas árticas daquela brancura era exatamente a mesma que havia dentro dele também.
– Não consigo sentir nada – Payne disse.
– Sei. – V. repetiu balançando a cabeça: – Eu sei.
Sua boca se contorceu e exibiu algo que poderia ter sido um sorriso em outras circunstâncias.
– Pode falar no idioma que quiser – disse com um inglês bem marcado. – Sou fluente em... muitos.
Ele também. O que significava que era incapaz de formular uma resposta em dezesseis línguas diferentes. Maravilha.
– Sua shellan... já lhe disse alguma coisa? – disse pausadamente.
– Não. Gostaria de tomar mais analgésicos? – Ela parecia mais fraca que da última vez que a vira.
– Não, obrigada. Eles fazem com que eu me sinta... estranha.
Essa frase foi seguida por um longo silêncio. Que ficou mais longo. E ainda mais longo.
Cristo, talvez ele devesse segurar a mão dela – afinal, ela podia sentir algo acima da cintura. Sim, mas o que poderia oferecer com essa atitude? Sua mão esquerda estava tremendo e a direita era mortal.
– Vishous, o tempo não está...
Quando sua irmã gêmea deixou a frase pairando no ar, ele a terminou mentalmente: do nosso lado.
Ele queria que ela estivesse errada. Contudo, quando se trata de lesões na coluna, assim como derrames e ataques cardíacos, boas oportunidades de recuperação são perdidas a cada minuto que o paciente passa sem tratamento.
Era melhor que aquele humano fosse tão bom quanto Jane havia dito.
– Vishous?
– Sim?
– Gostaria que eu não tivesse vindo até aqui?
Franziu a testa com força.
– De que diabos está falando? Claro que gostaria de ter você comigo.
Enquanto seu pé ficava batendo no chão de nervosismo, perguntou quanto tempo mais precisaria ficar antes que pudesse sair para outro cigarro. Simplesmente não ia conseguir respirar enquanto estivesse sentado ali, sem poder fazer nada enquanto sua irmã sofria e seu cérebro engasgava-se com as perguntas. Tinha um milhão de “o que?” e “por que” instalados em sua cabeça, só que não podia perguntar nada para ninguém. Parecia que Payne poderia entrar em coma a qualquer momento por causa da dor, portanto, não era uma boa hora para se fazer um social, cheio de perguntas, com direito a cafezinho.
Caramba, os vampiros podiam se curar como um relâmpago, mas não eram imortais.
Poderia muito bem perder sua irmã gêmea antes de sequer conhecê-la melhor.
Seguindo esse raciocínio, ele deu uma olhada para ver seus sinais vitais no monitor. A raça vampira tinha pressão sanguínea baixa, mas a dela estava quase ao nível do chão. A pulsação estava lenta e irregular, como uma bateria de escola de samba formada apenas por garotos brancos. E o sensor de oxigênio teve de ser silenciado, pois o alarme de alerta soava continuamente.
Quando seus olhos se fecharam, ele temeu que fosse a última vez... e o que havia feito por ela? Nada, exceto gritar quando lhe fizera uma pergunta.
Inclinou-se para mais perto dela, sentindo-se um idiota.
– Tem de aguentar firme, Payne. Estou tentando conseguir o que você precisa, mas você tem de ser forte.
As pálpebras de sua irmã ergueram-se e ela olhou para ele de sua cabeça imóvel.
– Trouxe muitos inconvenientes a sua casa.
– Não se preocupe comigo.
– Isso é o que sempre fiz.
V. franziu a testa outra vez. Era evidente que toda essa coisa de irmão/irmã era uma novidade apenas para ele. Tinha de descobrir como, diabos, ela sabia sobre ele.
E o que sabia.
Droga, lá estava outro momento em que desejaria ser menos durão.
– Está tão confiante nesse curandeiro que procura – ela murmurou.
Ah, não mesmo. A única coisa de que tinha certeza era que se o desgraçado a matasse haveria um funeral duplo naquela noite... assumindo que haveria alguma coisa restante do humano para enterrar ou queimar.
– Vishous?
– Minha shellan confia nele.
Os olhos de Payne ergueram-se e ficaram assim. Será que ela estava olhando para o teto?, V. se perguntou. Seria a lâmpada cirúrgica que havia sobre ela? Algo que ele não conseguia ver?
Num determinado momento, ela disse:
– Pergunte-me quanto tempo passei nas mãos de nossa mãe.
– Tem certeza de que tem forças para isso? – Quando ela olhou para tudo a seu redor, exceto para ele, quis sorrir. – Quanto tempo?
– Em que ano estamos na Terra? – Quando ele respondeu, seus olhos se arregalaram. – De fato. Bem, foram centenas de anos. Fui aprisionada pela nossa mahmen por... centenas de anos da minha vida.
Vishous sentiu as pontas de suas presas formigarem de raiva. Aquela mãe deles... Já deveria saber que a paz que tinha encontrado com sua fêmea não duraria muito.
– Está livre agora.
– Estou – olhou para baixo em direção às pernas. – Não conseguirei viver em outra prisão.
– Isso não vai acontecer.
Então, aquele olhar gélido tornou-se astuto.
– Não posso viver assim. Entende o que estou dizendo?
O interior dele congelou completamente.
– Ouça, vou trazer aquele médico até aqui e...
– Vishous – ela disse com voz rouca. – De fato, faria isso se pudesse, mas não posso e não há outra pessoa a quem possa recorrer. Você me entende?
Quando encontrou os olhos dela, quis gritar, suas entranhas se contorceram, gotas de suor brotaram em sua testa. Era um assassino por natureza e treinado para isso, mas aquela não era uma habilidade que tinha a intenção de praticar com alguém de seu sangue. Bem, tirando sua mãe, claro. Talvez seu pai, só que o cara tinha morrido por conta própria.
Certo, reformulando a frase: não era algo que exerceria com sua irmã.
– Vishous. Você...?
– Sim. – Olhou para baixo, para sua mão amaldiçoada e flexionou o maldito pedaço de seu corpo. – Eu entendo.
Dentro de sua pele, em sua essência, seu eixo interno começou a vibrar. Era o tipo de coisa pela qual se tornou intimamente familiarizado ao longo de sua vida... e também era um choque total. Não tinha sentido aquilo desde que Jane e Butch apareceram; e voltar a sentir era... terrível!
No passado, isso o levaria direto aos trilhos do sexo perigoso e hard-core, ficaria à beira do abismo.
Só que na velocidade do som.
A voz de Payne era fraca:
– O que me diz?
Droga, ele tinha acabado de conhecê-la.
– Sim – flexionou sua mão mortal. – Vou cuidar de você. Se chegarmos a isso.
Quando Payne olhou em direção à gaiola que era seu corpo meio-morto, o perfil sombrio de seu irmão gêmeo era tudo o que conseguia enxergar e desprezou-se pela posição em que o colocou. Gastou muito tempo desde que tinha chegado àquele lado tentando descobrir outra saída, outra opção, outra... qualquer coisa.
Mas o que ela precisava era algo que não se podia pedir a um estranho.
Por outro lado, ele era um estranho.
– Obrigada, meu irmão – ela disse.
Vishous assentiu com a cabeça uma vez e voltou a olhar para frente. Na verdade, ele era muito mais que a soma de suas características faciais e do enorme tamanho de seu corpo. Até bem pouco tempo atrás, quando aprisionada por sua mahmen, teve de observá-lo por muito tempo nas tigelas do santuário das Escolhidas e soube quem ele era no instante em que surgiu naquela água rasa; tudo o que teve de fazer foi olhar para ele e enxergar a si própria.
Que vida ele levou. Começando com o campo de guerra e a brutalidade de seu pai... e agora isso.
Sob sua postura fria, ele vociferava. Podia sentir em seus ossos uma ligação entre eles que lhe dava uma visão que ia além daquilo que seus olhos conseguiam lhe informar: por fora, estava contido como uma parede de tijolos, seus componentes todos em ordem e encaixados no lugar; no entanto, por dentro, ele fervia... e a dica externa era sua mão direita enluvada. Por baixo do acessório, uma luz brilhava... e ficava cada vez mais brilhante – especialmente depois que fizera o pedido.
Ela percebeu que aquele poderia ser o único momento que teriam juntos, e seus olhos fecharam-se outra vez.
– Está unido a uma fêmea curadora? – Ela murmurou.
– Sim.
Quando houve apenas silêncio, ela desejou poder encará-lo, mas ficou claro que respondeu apenas por educação. Ainda assim, acreditou nele quando disse que estava contente por estar ali. Ele não diria uma mentira assim, não por que se preocupasse com a moral ou a ética, mas sim porque viu que tal esforço seria um desperdício de tempo e energia.
Payne deitou seus olhos outra vez sobre a cabeça dele, que parecia ter um anel de fogo sobre ela. Desejou que segurasse sua mão ou a tocasse de alguma maneira, mas já havia feito pedidos demais.
Deitada sobre a maca com rodas, seu corpo parecia muito estranho, pesado e leve ao mesmo tempo, e sua única esperança eram os espasmos que corriam por suas pernas e faziam cócegas em seus pés, fazendo com que repuxassem. Certamente, se aquilo estava acontecendo nem tudo estava perdido, disse a si mesma.
Só que, mesmo quando acalentava tal pensamento, uma pequena e silenciosa parte de sua mente dizia que o telhado cognitivo que estava tentando construir não suportaria a chuva que estava prestes a cair em sua vida: quando movia as mãos, mesmo sem conseguir enxergá-las, podia sentir os lençóis frios e macios e a mesa lisa e gelada sobre a qual estava. Mas quando pedia que seus pés fizessem o mesmo... Era como se estivesse nas águas mornas e serenas das piscinas de banho do Outro Lado, encapsulada em um abraço invisível, sentindo absolutamente nada.
Onde estava aquele curandeiro?
O tempo... estava passando.
Quando a espera passou do insuportável para a extrema agonia, era difícil saber se a sensação de asfixia era devido a sua condição ou pelo silêncio da sala. Na verdade, ela e seu irmão gêmeo estavam mergulhados no silêncio... só que por razões muito diferentes: ela não iria a lugar algum, mesmo com muito entusiasmo; e ele estava prestes a explodir.
Desesperada por algum estímulo, alguma coisa, qualquer coisa, murmurou:
– Fale um pouco sobre o curandeiro que está chegando.
A brisa de ar frio que atingiu seu rosto e o aroma de especiarias escuras que percorreram seu nariz diziam que era um macho. Tinha de ser.
– É o melhor – Vishous murmurou. – Jane sempre fala dele como se fosse um deus. – O tom não era muito educado, mas o fato era que vampiros machos não gostavam muito de outros em torno de suas fêmeas.
Quem poderia ser esse dentre os machos da raça?, Payne perguntou-se. O único curandeiro que conseguira enxergar nas tigelas era Havers, e, com certeza, não havia razão alguma para procurarem por ele.
Talvez houvesse outro que ela não tinha observado; afinal, não passava tanto tempo tentando recuperar o atraso com o mundo e, de acordo com seu irmão gêmeo, haviam se passado muitos, muitos e muitos anos entre sua prisão e a liberdade...
De repente, a exaustão interrompeu sua linha de raciocínio, penetrando em sua medula, pressionando-a ainda mais sobre a mesa de metal.
No entanto, quando fechou os olhos, conseguiu suportar a escuridão apenas durante um rápido momento antes do pânico fazer suas pálpebras se abrirem. Enquanto estivera presa por sua mãe, tinha plena consciência de que poderia movimentar-se sem limites em um espaço livre; mas dentro daquele local opressivo, onde os minutos se arrastavam, aquela paralisia era muito parecida com o que tinha sofrido durante centenas de anos. Razão pela qual fizera aquele pedido terrível a Vishous. Não poderia ficar ali daquele lado apenas para reproduzir aquilo pelo que sempre havia lutado de maneira tão desesperada para escapar.
Lágrimas escorreram de seus olhos, fazendo com que a fonte de luz verde brilhante vacilasse. Como desejava que seu irmão segurasse sua mão...
– Por favor, não chore – disse Vishous. – Não... chore.
Na verdade, ficou surpresa por ele ter notado.
– Sim, você está certo. Chorar não cura nada.
Aumentando sua força de vontade, buscou ser forte, mas foi uma batalha. Embora seu conhecimento das artes medicinais fosse limitado, uma lógica simples anunciava onde estava o erro: como era de uma linhagem extremamente forte, seu corpo começou a recuperar-se no momento em que havia sido ferida na sessão de luta com o Rei Cego; contudo, o problema era que o processo regenerativo, que em uma situação comum salvaria sua vida, tornava sua condição ainda mais terrível – e era muito provável que aquilo fosse permanente.
Vértebras quebradas tentando se regenerar não conseguiam alcançar um resultado muito bom, e a paralisia em suas pernas era um testemunho desse fato.
– Por que fica olhando o tempo todo para sua mão? – ela perguntou, ainda olhando para a luz.
Houve um momento de silêncio, superior a todos os outros.
– Por que acha que estou fazendo isso?
Payne suspirou.
– Porque o conheço, meu irmão. Sei tudo sobre você.
Quando ele não disse nada, o silêncio era tão agradável quanto os inquéritos que havia no Antigo País.
Oh, o que será que ela havia desencadeado? E onde todos estariam quando tudo chegasse ao fim?
CAPÍTULO 3
Algumas vezes, a única maneira de se saber quão longe se foi é voltando ao ponto de onde se iniciou.
Quando Jane Whitcomb, médica, entrou no complexo hospitalar São Francisco, foi sugada de volta a sua antiga vida. De alguma maneira, foi uma viagem curta – há apenas um ano ela era a chefe do departamento de traumatologia daquele lugar, morava em um apartamento cheio de coisas de seus pais, passando vinte horas por dia correndo entre a emergência e as salas de cirurgia. Não mais.
Um indício certo de que a mudança era definitiva foi a maneira como ela entrou no centro cirúrgico: não havia razão para preocupar-se com as portas giratórias ou aquelas que precisavam ser empurradas na recepção. Ela atravessou as paredes de vidro e passou despercebida pelos seguranças que estavam no balcão. Fantasmas são bons nisso.
Desde que fora transformada, conseguia ir a lugares e ultrapassar coisas sem que ninguém fizesse ideia de que estava por perto. Mas também poderia ficar tão corpórea quanto a pessoa ao lado, assumindo uma forma sólida, de acordo com a sua vontade. Em dado momento era absolutamente etérea; em outro, era como a humana que havia sido, capaz de comer, amar e viver. Isso era uma grande vantagem ao exercer o cargo de cirurgiã particular da Irmandade.
Como agora, por exemplo: de que outra maneira ela seria capaz de se infiltrar no mundo dos humanos outra vez sem quase nenhum barulho?
Percorrendo o chão de pedra polida da recepção, passou pela parede de mármore onde estava inscrito o nome dos benfeitores e abriu caminho pela multidão de pessoas. Naquele congestionamento humano, muitos rostos eram familiares, desde o pessoal da administração até os médicos e enfermeiros com quem trabalhou durante anos. Mesmo anônimos, os pacientes estressados e suas famílias pareciam íntimos dela... de alguma maneira, as máscaras de tristeza e preocupação eram as mesmas, não importava quais fossem as características faciais que as moldavam.
Quando se dirigiu às escadas, estava buscando seu antigo chefe, e, Cristo, teve vontade de rir. Ao longo de todos aqueles anos trabalhando juntos, tinha surpreendido Manny Manello de muitas maneiras; mas aquilo ia superar vários acidentes de carro, avião ou uma explosão de edifício. Tudo isso junto.
Flutuando ao atravessar uma saída de emergência de metal, ela subiu a escada dos fundos. Os pés não tocavam os degraus, pairavam sobre eles enquanto subia como fumaça, sem esforço algum.
Aquilo tinha de funcionar. Tinha que convencer Manny a lhe acompanhar para cuidar daquela coluna lesionada, e ponto final. Não havia outras opções, nada de imprevistos, nada de virar à direita ou à esquerda naquela estrada: aquele era o passe final... e estava rezando para que o goleiro não pegasse aquela bola.
Que bom que ela tinha um bom desempenho sob pressão e que conhecia aquele homem como a palma de sua mão.
Manny aceitaria o desafio; mesmo isso não fazendo sentido algum para ele, ficaria lívido por saber que ela ainda estava “viva”. Além disso, não seria capaz de recusar ajuda a um paciente necessitado – simplesmente não estava programado para isso.
No décimo andar, atravessou outra parede e entrou na seção administrativa do departamento cirúrgico. O local era equipado como um escritório de advocacia, todo escuro, sombrio e luxuoso. Fazia sentido: o centro cirúrgico era uma fonte enorme de renda para qualquer hospital universitário, e o dinheiro era gasto para recrutar, manter e abrigar aqueles seres mimados e arrogantes que abriam pessoas para que elas sobrevivessem mais.
Dentre o grupo que operava com os bisturis no Hospital São Francisco, Manny Manello estava no topo da pirâmide, chefe não apenas de uma subespecialidade, como ela tinha sido, mas de todo o conjunto da obra. Isso significava que era uma estrela de cinema, um sargento e o presidente dos Estados Unidos ao mesmo tempo, tudo isso englobado em um cara com pouco mais de um metro e oitenta de altura. Tinha um temperamento terrível, uma inteligência impressionante e um pavio de mais ou menos um milímetro de comprimento, e isso em um dia bom. E seu trabalho era tão valioso quanto uma pedra preciosa.
As operações de maior rentabilidade do cara sempre foram aquelas feitas em atletas profissionais: ele tratou vários joelhos, quadris e ombros que teriam provocado muitos finais de carreira no futebol, baseball ou no hóquei. Mas também tinha muita experiência com tratamentos de coluna e, apesar da atuação de um neurocirurgião ser interessante se considerasse as radiografias de Payne, aquele era um problema ortopédico: se a medula espinhal fosse rompida, nada do que fizessem em termos neurológicos ajudaria. A ciência médica não tinha avançado tanto assim.
Quando dobrou a extremidade da mesa de recepção, teve de parar. À esquerda estava seu antigo escritório, o lugar onde passava horas incontáveis lidando com papéis e fazendo reuniões de consulta com Manny e o resto da equipe. Agora, lia-se o nome na placa fixada na porta: DR. THOMAS GOLDBERG, CIRUGIÃO-CHEFE DO DEPARTAMENTO DE TRAUMATOLOGIA.
Goldberg era uma excelente escolha; ainda assim, por alguma razão, doía ver o nome de outra pessoa ali.
Mas até parece. Esperava que Manny preservasse sua mesa e seu escritório como um monumento em homenagem a ela? A vida continua. A dela. A dele. A do hospital.
Voltando à realidade da situação, caminhou pelo corredor acarpetado. Mexia sempre em seu jaleco branco, com a caneta em seu bolso e com o celular que, até agora, não havia tido motivos para usar. Não havia tempo para explicar seu retorno do mundo dos mortos ou persuadir Manny ou ajudá-lo a entender o que estava prestes a expor; e não havia escolha, mas, de alguma forma, tinha de levá-lo com ela.
Em frente à porta fechada, preparou-se e, em seguida, atravessou...
Ele não estava atrás da mesa, ou trabalhando em algo na mesa de conferências da sala de reuniões.
Verificou rapidamente em seu banheiro privativo... nada ali também... não havia nenhuma umidade nas portas de vidro ou toalhas molhadas sobre a pia.
De volta ao escritório, ela respirou fundo... e o aroma suave de sua loção pós-barba pairando no ar a fez engolir em seco. Deus, sentia a falta dele.
Balançando a cabeça, andou ao redor da mesa e olhou a desordem. Arquivos de pacientes, pilhas de memorandos interdepartamentais, relatórios de Assistência ao Paciente e de Avaliação de Qualidade. Como era um pouco depois das cinco da tarde de um sábado, esperava encontrá-lo ali: as provas de seleção não eram realizadas nos finais de semana; então, a menos que estivesse de plantão ou lidando com um algum caso na traumatologia, deveria estar bem ali atrás daquela confusão de papéis. Manny era workaholic: trabalhava vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana.
Saindo do escritório, verificou a mesa de sua secretária. Nada ali também: seus compromissos eram mantidos no computador, protegidos por senha.
A próxima parada era o centro cirúrgico. O São Francisco tinha diferentes níveis de salas de operação, todas organizadas por especialidades. Ela foi diretamente à seção que ele costumava atuar. Olhando pelas janelas de vidro e portas duplas, viu que estavam operando uma terrível fratura múltipla. Embora os cirurgiões usassem máscaras e toucas, poderia dizer que nenhum deles era Manny. Seus ombros eram grandes o suficiente para esticar até mesmo o maior uniforme cirúrgico disponível e, além disso, as músicas que soavam ao fundo não eram o estilo dele. Mozart? Sem chance. Pop? Nem morto: Manny ouvia rock clássico e heavy metal. Aliás, se não fosse contra o protocolo, os enfermeiros usariam um protetor de ouvidos durante todos os procedimentos com ele.
Caramba... Onde diabos estava? Não havia conferências naquela época do ano e ele não tinha vida fora do hospital. As únicas opções que restavam era que estivesse no Commodore: desmaiado de cansaço no sofá de seu apartamento ou na academia do arranha-céu.
Quando saiu dali, pegou o celular e ligou para o sistema de atendimento do hospital.
– Sim, alô? – disse quando a ligação foi atendida. – Gostaria de falar com o Dr. Manuel Manello. Meu nome? – que droga! – Ah... Hannah. Hannah Whit. Pode retornar a ligação neste número.
Quando desligou, percebeu que não fazia ideia do que dizer caso ele retornasse a ligação, mas resolveu dar destaque ao pensamento positivo... e rezou para que tivesse a habilidade inata de realizar aquela tarefa. O fato era: se o sol baixasse no horizonte, um dos Irmãos sairia do complexo e faria algum trabalho mental em Manny para facilitar o processo de levá-lo até lá.
Contudo, não seria Vishous. Outra pessoa. Qualquer pessoa. Seus instintos diziam-lhe para deixar os dois tão afastados quanto possível: já tinham uma emergência médica em processo, e a última coisa de que precisava era de seu antigo patrão sendo pressionado porque seu marido tinha um instinto territorial e poderia decidir rachar, ele próprio, uma coluna a qualquer momento. Pouco antes de sua morte, Manny estava interessado em mais do que apenas uma associação profissional com ela; portanto, a menos que tivesse se casado com uma das Barbies que insistia em namorar, provavelmente ainda estava solteiro... E a regra dizia que o coração ficava ainda mais afeiçoado à pessoa ausente; então, seus sentimentos devem ter persistido.
Por outro lado, era possível que a insultasse sem piedade por mentir para ele sobre toda a coisa de estar “morta e enterrada”.
Pelo menos ele não se lembraria de nada daquilo; contudo, quanto a ela, temia nunca mais se esquecer das próximas vinte e quatro horas.
O Hospital Equino Tricounty era uma instalação de última geração em todos os sentidos. Localizado a quinze minutos do hipódromo de Aqueduct, o local tinha tudo, desde salas de operação e um serviço completo de quartos de recuperação até piscinas para hidroterapia e exames que forneciam imagens avançadas. E seu quadro de funcionários era composto por pessoas que viam os cavalos como muito mais do que uma fonte de lucros sobre quatro patas.
Na sala de cirurgia, Manny analisava as radiografias da perna dianteira de sua garota e desejou ser o único a entrar ali para resolver o problema: conseguia ver claramente as fissuras na imagem, mas isso não era o que o preocupava. Havia vários ligamentos que haviam sido rompidos e manchas acentuadas orbitando ao redor dos centros nervosos do osso alongado que mais pareciam luas ao redor de um planeta.
Só porque ela era de outra espécie não significava que não poderia fazer a operação. Assim que o anestesista fizesse seu trabalho em segurança, ele poderia cuidar do resto. Osso era sempre osso; mas não bancaria o idiota.
– O que acha? – perguntou.
– Minha opinião profissional – respondeu o veterinário-chefe – é de que está muito ruim. É uma fratura múltipla deslocada. O tempo de recuperação será extenso e não é possível garantir que ela sequer possa reproduzir.
O que era uma zica total: cavalos foram feitos para ficar em pé com seu peso distribuído sobre quatro pontos de maneira uniforme. Quando uma perna era quebrada, não se tratava tanto da lesão em si, mas o fato de que era preciso redistribuir o peso e contar, desproporcionalmente, com as partes que ainda estavam boas no corpo para ficar em pé. E esse era o grande problema.
Ao considerar aquilo que examinava, a maioria dos proprietários escolheria a eutanásia; mas sua garota tinha nascido para correr, e aquela lesão catastrófica faria disso impossível, mesmo se fosse apenas para o lazer... isso se ela sobrevivesse. Como médico, estava muito familiarizado com a crueldade do trabalho “salvador” de seus colegas que acabavam levando o paciente a viver em condições piores do que a morte – ou não faziam nada além de prolongar, de maneira dolorosa, o inevitável.
– Dr. Manello? O senhor ouviu o que eu disse?
– Sim. Ouvi. – Pelo menos aquele cara, ao contrário do idiota na pista, parecia tão arrasado quanto Manny.
Afastando-se, foi até onde a deitaram e colocou uma das mãos sobre sua bochecha arredondada. Sua pelagem negra brilhava sob a iluminação e, em meio ao cenário de ladrilho claro e aço inoxidável, parecia uma sombra projetada ao acaso e esquecida no centro da sala.
Por um longo momento, observou como sua grande caixa torácica expandia-se e contraía-se com a respiração. Só de vê-la na maca com as belas pernas esticadas como bastões e sua cauda pendendo sobre o ladrilho fê-lo perceber que animais como ela deveriam ficar em pé: aquilo que via era completamente contrário à natureza, e injusto.
Mantê-la viva apenas para que não tivesse de enfrentar sua morte não era a resposta certa.
Preparando-se para a situação, Manny abriu a boca...
A vibração dentro do bolso de seu terno o interrompeu. Com um palavrão, tirou o celular e verificou. Era do hospital. Hannah Whit? Com um número desconhecido?
Não era ninguém que conhecesse e ele não estava de plantão.
Provavelmente um erro do atendimento.
– Quero que opere – ouviu-se dizendo enquanto guardava o telefone de volta.
O curto silêncio que se seguiu deu-lhe tempo de sobra para perceber que impedi-la de partir cheirava a covardia. Mas não poderia insistir naquele melodrama psíquico ou perderia a sanidade.
– Não posso garantir nada. – O veterinário voltou a olhar as radiografias. – Não sei dizer o que vai acontecer, mas posso jurar que... farei meu melhor.
Deus, agora sabia como as famílias se sentiam quando dizia isso a elas.
– Obrigado. Posso assistir?
– Com certeza. Vou pegar algo para o senhor vestir e sabe como fazer a higienização antisséptica, certo, doutor?
Vinte minutos depois, a operação começou e Manny assistiu próximo à cabeça de Glory, acariciando sua crina com as mãos envolvidas com as luvas de látex, mesmo sedada. Enquanto o veterinário-chefe trabalhava, Manny teve de tirar o chapéu para a metodologia e habilidade daquele homem... as únicas coisas corretas desde que Glory havia caído. O procedimento terminou em menos de uma hora, com os fragmentos ósseos ou removidos ou encaixados no devido lugar. Então, imobilizaram a perna, retiraram a égua da sala de cirurgia e a colocaram em uma piscina para que não quebrasse outra perna quando o efeito da anestesia passasse.
Manny ficou com ela até que acordasse e, em seguida, acompanhou o veterinário até o corredor.
– Os sinais vitais são bons e correu tudo bem na operação – o veterinário disse –, mas essa vitalidade pode mudar rapidamente. E vai levar tempo até sabermos o que conseguimos alcançar.
Nossa. Aquele pequeno discurso era exatamente o que dizia aos familiares mais próximos e outros parentes quando achava que era hora de irem para casa descansar e esperar como o paciente reagiria ao pós-operatório.
– Ligaremos para o senhor – falou o veterinário. – Vamos mantê-lo informado.
Manny tirou as luvas e pegou seu cartão de visitas.
– No caso de ainda não terem todos os meus dados nos registros.
– Temos sim – de qualquer forma, pegou o papel. – Se alguma coisa mudar, será o primeiro a saber, e lhe darei as informações pessoalmente, a cada doze horas, que é o intervalo entre as minhas rondas, quando passo visitando todos os leitos.
Manny assentiu e estendeu a mão.
– Obrigado. Por cuidar dela.
– Por nada.
Depois de apertarem as mãos, Manny assentiu outra vez junto às portas duplas.
– Importa-se se eu me despedir dela?
– Não. Pode ir.
Dentro do quarto outra vez, passou um momento com sua égua. Deus... aquilo doía.
– Segure firme, garota – teve de sussurrar, pois não conseguia respirar direito.
Quando se ergueu, a equipe o observava com uma tristeza que sabia que ia permanecer.
– Vamos cuidar dela. – o veterinário disse gravemente.
Acreditava mesmo que cuidariam e foi a única coisa que o levou de volta ao corredor.
As instalações do Tricounty eram extensas e precisou de um tempo considerável para trocar de roupa e seguir seu caminho até a saída onde tinha estacionado, próximo à porta da frente. À frente, o sol se punha, um brilho de um tom pêssego se espalhava, iluminando o céu como se Manhattan estivesse em chamas. O ar estava frio, mas perfumado, pois o início da primavera esforçava-se para trazer vida à paisagem árida do inverno, e ele respirou tão fundo que ficou tonto. Deus, o tempo tinha passado como uma neblina, mas agora, com os minutos se arrastando, percebeu que aquele ritmo frenético tinha esgotado sua fonte de energia. Era isso ou tinha batido contra um muro de tijolos e desmaiado.
Enquanto procurava a chave do carro, sentiu-se mais velho do que Deus. Sua cabeça estava dando fortes pontadas e sua artrite no quadril o estava matando. Aquela corrida que havia empreendido para chegar à pista e ficar ao lado de Glory ia além de seus limites.
Não foi assim que imaginou o final do dia. Achou que estaria comprando bebidas para os proprietários que tinha derrotado... E talvez, no resplendor da vitória, seguisse a generosa sugestão oral da Sra. Hanson.
Ao entrar no carro, ligou o motor. Caldwell estava a mais ou menos quarenta e cinco minutos ao norte de Queens, e seu carro conseguia fazer a viagem de volta ao Commodore praticamente sozinho. Isso era muito bom, pois era quase um zumbi naquele momento. Nada de rádio. Nenhuma música no iPod. Ninguém telefonando também.
Ao pegar a estrada, observou o caminho à frente e lutou contra o impulso de dar meia-volta e... sim, e fazer o quê? Descansar em paz ao lado de seu cavalo?
A questão era: se conseguisse chegar em casa logo, poderia conseguir ajuda. Tinha uma garrafa de uísque esperando por ele e poderia ou não ir com calma ao usá-la. Até onde dizia respeito ao hospital, estava de folga até segunda pela manhã, às seis horas, e tinha planos de ficar bêbado e permanecer assim.
Guiando o volante revestido de couro com uma das mãos, procurou, com a outra, em meio a sua camisa de seda, sua representação do Cristo crucificado. Segurando a cruz de ouro, fez uma oração.
Deus... por favor, permita que ela fique bem.
Não poderia suportar perder outra de suas garotas. Não tão cedo. Jane Whitcomb tinha morrido há um ano, mas isso era o que o calendário dizia. O tempo do luto era diferente – nele havia transcorrido apenas um minuto e meio.
Não queria passar por isso outra vez.
CONTINUA
1761, ANTIGO PAÍS
Xcor viu seu pai sendo morto após cinco anos de sua transição. Aconteceu diante de seus olhos, mas, mesmo com a proximidade, não poderia imaginar o que houve.
A noite começou como qualquer outra, a escuridão caiu sobre a paisagem de florestas e cavernas, as nuvens encobriam a luz da lua para ele e para aqueles que viajavam a cavalo com ele. Seu grupo de soldados era composto por seis homens fortes: Throe, Zypher, os três primos e ele próprio. E seu pai.
Bloodletter.
Antigo membro da Irmandade da Adaga Negra.
O que os fez sair naquela noite foi o que os chamava ao serviço após cada pôr de sol: procuravam redutores, aquelas armas sem alma de Ômega, que achou por bem exterminar a raça vampira. E os encontravam. Frequentemente.
Mas aqueles sete machos não eram membros da Irmandade.
Ao contrário dos aclamados Irmãos, eram um grupo secreto de guerreiros. Aquele grupo de bastardos liderados por Bloodletter não era nada além de soldados: sem cerimônias. Nada de serem adorados pela população civil. Nada de louvores. A linhagem deles poderia ser aristocrática, mas todos foram abandonados por seus familiares por terem nascido com defeitos ou fora de um acasalamento santificado.
Nunca seriam outra coisa senão pedaços de carne dispensáveis dentro da grande guerra pela sobrevivência.
Porém, mesmo isso sendo verdade, eram a elite dos soldados, os mais cruéis, os braços mais fortes, aqueles que foram provados ao longo do tempo pelo feitor mais rígido da raça: o pai de Xcor. Escolhidos a dedo e com sabedoria, esses homens eram mortais contra o inimigo e não seguiam nenhum código de conduta quando se tratava da sociedade vampira. Também não seguiam nenhum código quando se tratava de matar alguém: não importava se a presa era um assassino, um humano, um animal ou um lobo. Sangue seria derramado.
Eles fizeram um, e apenas um, juramento: seu pai era o senhor deles e ninguém mais. Aonde quer que ele fosse, eles iriam, e isso era tudo. Muito mais simples que toda aquela porcaria elaborada pela Irmandade – mesmo Xcor sendo um candidato por linhagem, não teve interesse em ser um Irmão. Não se importava com a glória, uma vez que nada se comparava ao doce prazer do assassinato. Melhor deixar de lado a tradição inútil e o ritual desgastado para aqueles que se recusam a empunhar qualquer outra coisa que não seja uma adaga negra.
Usaria qualquer arma disponível.
E seu pai faria o mesmo.
O clamor dos cascos abrandou e depois ficaram em silêncio quando os lutadores saíram da floresta em um enclave de carvalhos e arbustos. A fumaça das lareiras das casas pairava na brisa, mas não havia nenhuma outra confirmação de que tinham chegado, finalmente, à pequena cidade que procuravam: no alto, sobre um íngreme penhasco, havia um castelo fortificado que se apresentava como uma águia empoleirada, sua fundação era como garras fincadas na rocha.
Humanos. Guerreando entre si.
Que entediante.
Ainda assim, era preciso respeitar a construção. Talvez, se Xcor se estabelecesse algum dia, massacraria a dinastia daquele lugar e tomaria posse daquela fortaleza. Muito mais eficiente roubar que construir.
– Para a aldeia – seu pai ordenou. – Avancemos para a diversão.
A notícia era de que havia redutores ali, as bestas pálidas misturavam-se e confundiam-se com os moradores do vilarejo que tinham escavado lotes de terra e construído casas de pedra à sombra do castelo.
Isso era uma típica estratégia de recrutamento da Sociedade: infiltrar-se em uma cidade, tomar os machos um a um, assassinar ou vender as mulheres e crianças, fugir com armas e cavalos e mudar-se para uma localidade próxima em maior número.
Xcor tinha a mesma mentalidade do inimigo nesse aspecto: quando acabava de lutar, sempre pegava tudo o que podia antes de dirigir-se para a próxima batalha. Noite após noite, Bloodletter e seus soldados abriam caminho ao longo do território que os seres humanos chamavam de Inglaterra e, quando alcançavam a ponta do território escocês, viravam-se e colocavam-se em direção oposta, indo sempre para o sul, até chegarem ao calcanhar da Itália, quando davam meia-volta outra vez. Em seguida, percorriam novamente os muitos quilômetros que tinham caminhado até ali. E faziam isso de novo. E mais outra vez.
– Deixemos nossas provisões aqui. – disse Xcor, apontando para uma árvore de tronco grosso, que havia caído sobre um riacho.
Enquanto faziam a transferência dos modestos suprimentos, não havia nada além do ranger de couro e do bufar ocasional de um garanhão. Quando tudo estava guardado sob o flanco do carvalho abatido, montaram outra vez sobre seus animais e reuniram os cavalos de raça – que eram as únicas coisas de valor, além de armas, que possuíam. Xcor não via utilidade em objetos de beleza ou conforto – para ele, eram nada além de um peso que o induzia à queda. Um cavalo forte e um punhal afiado? Isso sim tinha um valor inestimável.
Enquanto os sete andavam até a aldeia, não fizeram qualquer esforço para silenciar as batidas dos cascos de seus cavalos. Contudo, não houve gritos de guerra. Era um desperdício de energia, seus inimigos não precisavam de um convite para vir saudá-los. O único ato de boas-vindas foi um humano ou dois espiando para fora de suas portas e, em seguida, voltando rapidamente a trancarem-se em seus domicílios. Xcor os ignorou. Em vez de importar-se com isso, examinou as casas baixas de pedra, a praça central e as lojas de comércio fortificadas, procurando por alguma forma bípede, pálida como um fantasma e fedendo como um cadáver revestido em melado.
Seu pai andou até ele e sorriu com um toque de maldade.
– Talvez possamos colher os frutos dos jardins por aqui mais tarde.
– Talvez. – murmurou Xcor enquanto seu cavalo jogava a cabeça para trás. Na verdade, não estava muito interessado em deitar-se com fêmeas ou subjugar machos, mas não se podia negar nada a seu pai, mesmo quando se tratava de suas extravagâncias na hora do lazer.
Sinalizando com as mãos, Xcor direcionou três de seu grupo para a esquerda, onde havia uma pequena estrutura com uma cruz em cima de seu telhado pontiagudo. Ele e os outros seguiriam à direita. Seu pai faria o que quisesse. Como sempre.
Forçar os garanhões a permanecer em um galope contínuo era uma tarefa que desafiava até mesmo o mais vigoroso dos braços, mas estava acostumado com o cabo de guerra e sentou-se com firmeza na sela. Com um propósito sombrio, seus olhos penetraram as sombras produzidas pelo luar, procurando, sondando...
O grupo de assassinos que saiu do abrigo de ferragens possuía uma grande quantidade de armas.
– Cinco – Zypher rosnou. – Bendita noite.
– Três – Xcor interrompeu. – Dois ainda são seres humanos... porém, matar esses dois... também será um prazer.
– Qual devemos atacar, meu senhor? – Seu irmão de armas disse com um grande respeito que era dedicado por merecimento e não por ser o primogênito.
– Os humanos – Xcor disse, deslocando-se para frente e preparando-se para o momento em que incitaria seu cavalo a partir. – Se há outros redutores por perto, isso os atrairia ainda mais.
Estimulando o grande animal e afundando-se na sela, sorriu quando os redutores mantiveram-se firmes com suas correntes e armamentos. No entanto, as duas pessoas junto a eles não ficariam tão firmes. Embora os dois estivessem equipados para lutar, dariam meia-volta e correriam quando vissem a primeira exibição de presas como cavalos assustados por um tiro de canhão, razão pela qual deu um solavanco de forma abrupta para a direita logo após galopar apenas alguns passos. Atrás da cabana do ferreiro, puxou as rédeas e desmontou do corcel. Seu garanhão era um animal selvagem, mas obediente quando tratava-se de desmontar e aguardar...
Uma fêmea humana irrompeu pela porta dos fundos, sua camisola branca era como uma faixa brilhante na escuridão, enquanto esforçava-se para ficar em pé sobre a lama. No instante em que ela o viu, ficou paralisada de terror.
Reação lógica: ele era duas vezes o tamanho dela, talvez três, e não estava vestido para dormir, mas para a guerra. Quando a mão da fêmea ergueu-se até a garganta, ele farejou o ar e sentiu seu perfume. Hummm, talvez seu pai gostasse daquela flor de jardim...
Quando o pensamento lhe ocorreu, soltou um rosnado baixo que incitou a moça a uma corrida desenfreada; a visão da tentativa de fuga fez o predador dentro dele vir à tona. Com uma sede de sangue percorrendo suas entranhas, lembrou-se que havia se passado semanas desde que tinha se alimentado de alguém de sua espécie e, apesar daquela garota ser apenas uma humana, poderia ser o suficiente para aquela noite.
Infelizmente, não havia tempo para se divertir naquele momento... Apesar disso, seu pai iria atrás dela mais tarde, com certeza. Se Xcor precisava de um pouco de sangue para vencer as dificuldades, conseguiria tal fonte com aquela mulher, ou com qualquer outra.
Dando as costas para a fuga, parou com firmeza sobre o chão e desembainhou a arma escolhida: embora as adagas servissem, preferiu a foice, cabo longo e modificado para um coldre amarrado em suas costas. Era especialista em empunhar aquele grande peso e sorriu enquanto manejava ao vento a lâmina cruel e curvada, esperando para jogar a rede sobre aqueles dois peixes que, com certeza, estavam nadando até ele...
Ah, sim, como era bom estar certo.
Logo após uma luz brilhante surgir e um estalo eclodir da passagem principal, os dois humanos vieram gritando em direção aos fundos da casa do ferreiro como se estivessem sendo perseguidos por carrascos.
Mas estavam errados, não? O carrasco estava esperando ali.
Xcor não gritou ou amaldiçoou. Sequer rosnou. Começou a correr com a foice, havia um equilíbrio uniforme entre as duas mãos enquanto as coxas poderosas encurtavam a distância. Só de olhar para ele, os humanos derraparam em suas botas, braços soltos, como asas de patos pousando sobre a água.
O tempo pareceu desacelerar quando caiu sobre eles, sua arma favorita fez um grande círculo, atingindo os dois na altura do pescoço.
As cabeças foram decepadas com um golpe único e limpo. Os rostos surpresos brilharam e desapareceram à medida que a parte removida do corpo girava, o sangue espirrou e salpicou no peito de Xcor. Com a ausência de crânios, a parte inferior dos corpos caíram sobre o chão com uma graça curiosa e líquida, aterrissando inanimados com os membros retorcidos.
Agora sim ele gritava.
Virando-se, Xcor fixou suas botas de couro na lama, respirou fundo e soltou um rosnado enquanto manejava a foice, o aço avermelhado pedia mais sangue. Apesar de suas presas serem meros seres humanos, o impulso de matar era superior a um orgasmo, a sensação de que havia tirado uma vida e deixado cadáveres para trás percorria seu corpo como uma bebida alcoólica.
Chamou seu cavalo assoviando, que foi até ele rapidamente após o comando. Com um salto, montou na sela, a foice erguida em sua mão direita enquanto lidava com as rédeas com a esquerda. Dando um golpe com força, incitou o corcel ao galope, percorrendo rapidamente um caminho estreito e sujo e emergindo no auge da batalha.
Seus colegas lutavam com todas as forças, o som das espadas colidindo e gritos bombardearam a noite quando o demônio encontrou seu inimigo. E assim como Xcor havia previsto, mais uma meia dúzia de redutores veio correndo a toda velocidade sobre seus garanhões de raça, como leões que foram libertos para defender seu território.
Xcor entrou em cena e avançou contra o inimigo, envolvendo as rédeas no punho e brandindo a foice enquanto o cavalo corria em direção aos outros com os dentes à mostra. Sangue negro e partes de corpos voaram quando passou por entre os adversários, ele e seu cavalo trabalhavam como uma unidade naquele ataque.
Quando atingiu mais um assassino com sua lâmina e o cortou ao meio na altura do peito, soube que tinha nascido para fazer isso, era a maior e melhor maneira de usar seu tempo sobre a terra. Era um assassino, não um defensor.
Não lutava pela raça... mas por si mesmo.
Tudo aconteceu muito depressa, a névoa noturna rondava os redutores caídos, que contorciam-se em poças do próprio sangue oleoso e negro. Houve poucos feridos dentre o grupo de Xcor. Throe tinha um corte no ombro, feito por alguma lâmina. Zypher estava mancando, uma mancha vermelha escorria de sua perna, ensopando a bota. Nenhum deles estava mais lento ou mesmo preocupado.
Xcor deteve o cavalo, desmontou e voltou a colocar a foice no coldre. Sacou a adaga de aço e começou sua ronda para esfaquear os assassinos, lamentou o processo que enviava o inimigo de volta a seu criador. Queria mais luta, não menos...
Um grito ecoou e ele ergueu a cabeça. A mulher humana de camisola estava correndo pela estrada de terra batida do vilarejo, seu corpo pálido em uma fuga desgovernada, como se tivesse sido expulsa de um esconderijo. Logo atrás dela, o pai de Xcor montou em seu cavalo e galopou rápido; o corpo maciço de Bloodletter pendia em um dos lados da sela quando a alcançou. Na verdade, não houve, de fato, uma corrida: quando ficou ao lado dela, pegou-a com o braço e atirou-a sobre seu colo.
Não houve parada, nem mesmo uma diminuição da velocidade depois da captura, mas uma marca foi feita: com seu cavalo galopando a toda velocidade e a humana se debatendo, o pai de Xcor ainda conseguiu atingir a garganta delgada com suas presas, prendendo-se no pescoço da mulher como se fosse detê-la apenas com os caninos.
Ela teria morrido. Com certeza, ela teria morrido.
Se Bloodletter não tivesse morrido primeiro.
De fora do turbilhão do nevoeiro surgiu uma figura fantasmagórica como se fosse formada pelos filamentos de umidade que percorriam o ar. E no momento que Xcor viu o espectro, estreitou os olhos e valeu-se de seu olfato aguçado.
Parecia ser uma mulher. De sua espécie. Vestida com uma túnica branca.
E seu cheiro lembrou-o de algo que não conseguiu localizar.
Ela foi diretamente ao encontro de seu pai, mas parecia não ter a menor preocupação com o cavalo ou com o guerreiro sádico que logo viria atrás dela. No entanto, seu pai estava fascinado por ela. No instante em que a notou, largou a humana como se não fosse nada além de um osso do qual já houvesse comido toda a carne.
Isso estava errado, Xcor pensou. De fato, ele era um macho de ação e poder e dificilmente um membro do sexo frágil o intimidaria... mas tudo em seu corpo advertia que aquela entidade etérea era perigosa. Letal.
– Ei! Pai! – gritou. – Vire-se!
Xcor assoviou para seu cavalo, que atendeu ao comando. Montando sobre a sela, estimulou os flancos do animal, lançando-se a toda velocidade para que pudesse cruzar o caminho do pai, um pânico estranho o incitando.
Tarde demais. Seu pai lançou-se sobre a fêmea, que agachou-se lentamente.
Meu Deus, ela ia saltar por cima do...
Com um impulso coordenado, ela flutuou no ar e pegou a perna de seu pai, usando-a para montar sobre o cavalo de um salto. Então, agarrou o sólido peitoral de Bloodletter, saltou para um lado e levou o macho ao chão com ela, como se fossem apenas um. A investida poderosa desafiava a questão de ser do sexo feminino e sua natureza espectral.
Ora, não era um fantasma, mas um ser de carne e osso.
O que significava que poderia ser morta.
Enquanto Xcor preparava-se para lançar seu garanhão contra eles, a fêmea soltou um grito nada feminino: mais ao estilo do grito de guerra de Xcor, o berro trespassou o ruído dos cascos trovejantes abaixo dele e os sons do grupo que reunia-se para combater aquele ataque inesperado.
Contudo, não havia necessidade de uma intercessão imediata.
Seu pai, após o choque de ser tirado de sua sela, rolou de costas, desembainhou seu punhal e rosnou como um animal. Com uma maldição, Xcor freou e interrompeu o resgate, pois, com certeza, seu pai assumiria o controle. Bloodletter não era o tipo de homem a quem se ajudava – havia agredido Xcor por isso no passado, uma lição que foi duramente aprendida e que sempre seria lembrada.
Ainda assim, desmontou e aproximou-se da situação para reagir no caso de haver mais alguma “Valquíria” saindo do meio da floresta.
E foi assim que ele a ouviu, claramente, dizer um nome.
– Vishous.
A raiva de seu pai deu lugar a uma breve confusão. E antes que pudesse retomar sua autodefesa, a figura fantasmagórica começou a brilhar com uma luz profana.
– Pai! – Xcor gritou ao aproximar-se correndo.
Mas era tarde. E o contato foi feito.
Chamas irromperam sobre o rosto rude e barbado de seu pai e tomaram seu corpo, como se fosse feno seco. E com a mesma graça que ela o derrubou, a fêmea saltou para trás e observou enquanto seu pai tentava apagar o fogo debatendo-se freneticamente, sem sucesso. No meio da noite, ele gritava enquanto era queimado vivo, suas roupas de couro não ofereceram proteção alguma para sua pele e músculos.
Não havia chance alguma de aproximar-se o suficiente do fogo e Xcor derrapou até parar, levantando o braço para se proteger e curvando-se para se afastar do calor que ficava exponencialmente mais intenso.
Durante todo o tempo, a fêmea ficou sobre o corpo que se contorcia e tinha espasmos... O brilho laranja iluminava o rosto belo e cruel.
A vadia estava sorrindo.
E foi então que ela ergueu o rosto para ele. Quando Xcor teve uma visão correta de seu rosto, recusou-se, em um primeiro momento, a acreditar no que via. Ainda assim, o brilho das chamas não mentia.
Xcor observava uma versão feminina de Bloodletter. O mesmo cabelo negro, a mesma pele e olhos claros. A mesma estrutura óssea. Além disso, a mesma luz vingativa em seu olhar violento, aquele arrebatamento e satisfação ao causar uma morte era uma combinação que Xcor conhecia muito bem.
Ela partiu logo em seguida, desaparecendo na neblina de uma maneira que não condizia com a desmaterialização de sua espécie, mas, sim, fez isso como um sopro de fumaça, desvanecendo-se devagar em princípio e, em seguida, rápida e definitivamente.
Assim que sentiu-se capaz, Xcor correu para seu pai, mas não havia mais nada a ser salvo... mal havia algo para ser enterrado. Afundando os joelhos diante dos ossos fumegantes e do fedor de queimado, teve um momento de fraqueza deplorável: lágrimas derramaram-se dos olhos. Bloodletter tinha sido um bruto, mas como sua única descendência masculina, Xcor e ele eram bem próximos... Na verdade, eram quase membros de um mesmo corpo.
– Por tudo o que é mais sagrado – Zypher disse com voz rouca –, o que foi isso?
Xcor piscou com força antes de olhar por cima do ombro.
– Ela o matou.
– Sim. E fez mais alguma coisa.
Quando o grupo de bastardos aproximou-se dele, um a um, Xcor teve de pensar no que dizer, no que fazer.
Erguendo-se com firmeza, quis chamar seu cavalo, mas sua boca estava seca demais para assoviar.
Seu pai... um inimigo e, ao mesmo tempo, seu porto seguro, estava morto. Morto. E aconteceu tão rápido, rápido demais.
Por uma fêmea.
Seu pai havia partido.
Quando conseguiu, olhou para cada um dos machos diante dele, os dois montados nos cavalos, os dois em pé e o que estava a sua direita. Com uma nítida percepção, soube que não importava o que o destino tivesse reservado, seria moldado pelo que havia acontecido naquele momento, aqui, agora.
Não havia se preparado para isso, mas não se afastaria do que deveria fazer:
– Ouçam bem, pois só direi uma vez. Ninguém vai dizer nada. Meu pai morreu em uma batalha contra o inimigo. Eu o queimei para homenageá-lo e mantê-lo sempre comigo. Jurem isso para mim agora.
Os bastardos com quem ele vivia e lutava há muito tempo juraram e depois que suas vozes profundas desvaneceram-se no ar noturno, Xcor inclinou-se e passou os dedos pelas cinzas. Erguendo as mãos até o rosto, traçou uma listra com a fuligem desde as bochechas até as grossas veias que percorriam cada lado do pescoço... em seguida, acariciou o crânio duro que era tudo o que havia restado de seu pai. Segurando os restos carbonizados que ainda soltavam fumaça, reivindicou os soldados a sua frente como seus.
– Sou o único senhor agora. Liguem-se a mim neste momento ou serão meus inimigos. O que me dizem?
Não houve hesitação alguma. Os machos se ajoelharam, retiraram suas adagas e irromperam o grito de guerra antes de enterrarem as lâminas na terra a seus pés.
Xcor observou as cabeças inclinadas e sentiu que um manto caía-lhe sobre os ombros. Bloodletter estava morto. Sem vida, seria transformado em lenda a partir daquela noite.
E, seguindo o que é certo e apropriado, o filho substituiria o pai agora, comandando aqueles soldados que não serviriam a Wrath, o rei que não os governava; nem à Irmandade, que não se dignificava a descer àquele nível... Serviriam a Xcor e somente a ele.
– Vamos seguir na direção de onde a fêmea veio – anunciou. – Vamos encontrá-la mesmo que levem séculos, pois ela deve pagar por aquilo que fez esta noite. – Nesse momento, Xcor conseguiu assoviar alto e claro para seu cavalo. – Levarei, pessoalmente, a morte ao esconderijo daquela fêmea.
Subindo em seu cavalo, reuniu as rédeas e incitou o grande animal a cruzar a noite. Seu grupo de bastardos entrou em formação e o seguiu, disposto a morrer por ele.
Enquanto trovejava ao sair da aldeia, colocou o crânio de seu pai dentre as roupas de couro que usava nas batalhas, bem em cima do coração.
Aquela vingança seria sua. Mesmo que o matasse.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/9_AMANTE_LIBERTADA.jpg
CAPÍTULO 1
DIAS ATUAIS
HIPÓDROMO DE AQUEDUCT, QUEENS, NOVA YORK
– Quero enlouquecer você.
O Dr. Manny Manello virou a cabeça para a direita e olhou para a mulher que tinha falado com ele. Não foi a primeira vez que tinha ouvido essas palavras e a boca pela qual elas saíram tinha silicone suficiente para preencher uma boa almofada. Mas, ainda assim, foi uma surpresa.
Candance Hanson sorriu para ele e ajeitou seu chapéu retrô com uma mão bem manicurada. Aparentemente, ela tinha decidido que a combinação de dama refinada com uma dose de atrevimento era atraente – e talvez fosse, para alguns rapazes.
Caramba, em outro momento de sua vida, ele provavelmente teria dado em cima dela seguindo a teoria do “por que não?”. Agora? Seguia a ideia do “não é pra tanto”.
Sem se deixar abater pela falta de entusiasmo do médico, ela inclinou-se para frente, exibindo um par de seios que não exatamente desafiava a gravidade. Na verdade, aquilo era mais como mostrar o dedo médio, insultar a mãe e pisar no calo de alguém – uma falta de educação.
– Sei de um lugar aonde poderíamos ir.
Ele apostava que sim.
– A corrida já vai começar.
Ela fez beicinho. Ou talvez fosse o efeito das aplicações para aumentar os lábios. Deus, há dez anos ela devia ter um rosto jovem; agora, os anos tinham adicionado uma pátina de desespero nela – junto ao processo normal de envelhecimento, contra o qual ela lutava como um boxeador.
– Depois, então.
Manny afastou-se sem responder, sem saber exatamente como ela tinha conseguido entrar na área dos proprietários. Deveria ter sido na confusão que havia para voltar àquele local depois de selarem os cavalos – e, sem dúvida, estava acostumada a entrar em lugares que, tecnicamente, não lhe eram permitidos: Candance era um daqueles tipos sociais de Manhattan que só se diferenciava de uma prostituta por não ter um cafetão e, de muitas maneiras, era como uma vespa qualquer: ignorava o incômodo causado e ia pousar em outra coisa.
Ou em outra pessoa, como era o caso.
Erguendo o braço para mantê-la distante, Manny inclinou-se sobre o corrimão da cabine e esperou que sua garota saísse para a pista. Tinha sido colocada na parte externa, e isso era bom: preferia não ficar muito perto dos outros e percorrer uma distância extra nunca a incomodou.
O hipódromo de Aqueduct, no Queens, Nova York, não tinha o prestígio de um Belmont ou Pimlico ou do venerável pai de todos os hipódromos, o Churchill Downs. Contudo, não era de se jogar fora. A instalação tinha uma arena de quase três quilômetros, uma pista de turfe e outra para corridas de curta distância. A capacidade total era de, aproximadamente, nove hectares. A comida era medíocre, mas ninguém ia até lá para comer e havia algumas corridas grandes, como a daquele dia: a Wood Memorial Stakes tinha uma bolsa de 750 mil dólares e, como era realizada em abril, era uma boa referência para os candidatos ao prêmio Triple Crown...*
Ah, sim, lá estava ela. Lá estava sua garota.
Quando os olhos de Manny fixaram-se em GloryGloryAllelujah, o barulho da multidão, a luz brilhante daquele dia e a fila vacilante composta pelos outros cavalos desapareceram. Tudo o que ele via era sua magnífica égua negra, sua capa capturava a luz do sol e reluzia, as pernas finas se flexionavam, os cascos delicados erguiam-se e voltavam a pousar na pista de areia. Como ela media quase um metro e setenta, o jóquei parecia um pequeno mosquito em suas costas, e essa diferença de tamanho representava a divisão do poder. Ela deixou isso claro desde o primeiro dia de treinamento: poderia tolerar os pequenos seres humanos, mas estavam apenas a passeio na corrida. Ela estava no comando.
Seu temperamento dominador já havia lhe custado dois treinadores. O terceiro? O cara parecia um pouco frustrado, mas era apenas seu senso de controle que estava sendo espancado até a morte: Glory destacava-se e isso, simplesmente, não tinha nada a ver com ele. E Manny não tinha a menor preocupação com os egos inflados de homens que dominavam cavalos a vida inteira. Sua garota era uma lutadora, sabia o que estava fazendo, e ele não tinha o menor problema em deixá-la assumir o controle. Queria apenas assisti-la divertir-se ao acabar com a concorrência.
Quando seus olhos a encontraram, lembrou-se do otário de quem a tinha comprado há pouco mais de um ano. Aqueles vinte mil dólares tinham sido um roubo, considerando sua linhagem, também uma fortuna se pensasse no temperamento dela, e ainda não estava claro se conseguiria autorização para correr. Era uma égua indisciplinada de um ano de idade que já esteve prestes a ser afastada. Ou pior: de ser transformada em comida de cachorro.
Mas ele acertou. Desde que a deixasse liderar e comandar o show, era um espetáculo.
Quando a formação de cavalos aproximou-se do portão, alguns começaram a bater os cascos e a bufar, mas sua garota estava firme, como se soubesse que era inútil desperdiçar energia antes do jogo. Ele achava que as chances eram boas apesar da posição no pódio, pois o jóquei montado em seu dorso era uma estrela: sabia exatamente como lidar com ela e, nesse sentido, era mais responsável pelo sucesso da garota do que os outros treinadores. Sua estratégia era apenas certificar-se de que ela conhecia os melhores percursos, deixá-la escolher e ir.
Manny levantou-se e segurou o corrimão de ferro pintado na frente dele, juntando-se à multidão que saía de seus assentos, e começava a exibir uma quantidade incontável de binóculos. Quando seu coração começou a bater forte, ficou contente, pois fora dali encontrava-se muito próximo do sedentarismo, ultimamente. A vida que levava estava em um estágio de entorpecimento terrível no último ano ou um pouco mais, e talvez essa fosse a razão pela qual aquela égua era tão importante para ele.
Talvez ela também fosse tudo o que ele tinha.
Não era bem assim.
No portão, havia um movimento frenético: quando se trata de amontoar quinze cavalos fortes com patas da espessura de varetas e com glândulas adrenais disparando como obus em minúsculas caixas de metal, você não perde tempo. Em mais ou menos um minuto, o campo foi fechado e as pistas foram restringidas pelos trilhos.
Uma batida de coração.
Um sino.
Bang.
Os portões foram abertos, a multidão rugiu e os cavalos avançaram como se tivessem sido lançados de bocas de canhões. As condições eram perfeitas. Clima seco. Frio. Estavam a toda velocidade na pista.
Não que sua garota se importasse com isso. Correria na areia movediça se fosse necessário.
Os cavalos puros-sangues trovejaram, o som dos cascos e a voz do locutor chicoteavam energia nas arquibancadas a ponto de ficarem em um estado de êxtase. Porém, Manny manteve a calma, permanecendo com as mãos firmadas no trilho na frente dele e seus olhos sobre o campo, enquanto o grupo de cavalos fazia a primeira curva em uma confusão tensa de dorsos e caudas.
O telão mostrava-lhe tudo o que precisava ver. Sua égua estava na penúltima posição, apenas galopando enquanto todos os outros empreendiam uma corrida mortal – inferno, seu pescoço sequer estava totalmente estendido. No entanto, o jóquei estava fazendo seu trabalho, facilitando o caminho dela para avançar na pista, dando-lhe a opção de correr ao redor do grupo ou cortar caminho através deles quando estivesse pronta.
Manny sabia exatamente o que ela iria fazer. Entraria pela direita em meio aos outros cavalos como uma bola de demolição.
Era o jeito dela.
E foi assim que, quando os outros abriram distância, ela começou a pegar fogo. A cabeça baixa, o pescoço alongado, seu passo começou a acelerar.
– Caramba – Manny sussurrou. – Você consegue, garota.
Quando Glory adentrou a pista verde, transformou-se em um raio de luz que ultrapassava os outros corredores, a explosão de velocidade era tão poderosa que qualquer um se perguntaria se aquilo não era de propósito: apenas vencê-los não era o suficiente, ela tinha que fazer isso no último quilômetro, deixando as selas dos outros bastardos na poeira, no último minuto possível.
Manny riu do fundo da garganta. Ela era seu tipo de garota.
– Meu Deus, Manello, olha só como ela avança.
Manny assentiu com a cabeça sem olhar para o cara que falou em seu ouvido, pois a liderança do grupo estava mudando: o potro que estava à frente perdia sua força, ficando para trás quando suas pernas pareceram ficar sem combustível. Em resposta a isso, o jóquei o golpeou, chicoteando-lhe o traseiro – algo que obteve o mesmo sucesso de quando alguém amaldiçoa um carro cujo tanque esvaziou. O potro que estava em segundo lugar, um animal grande e castanho com jeito de mau e um passo que poderia englobar um campo de futebol, aproveitou imediatamente a desaceleração, e seu jóquei permitiu que o cavalo estendesse sua cabeça totalmente.
Os dois ficaram emparelhados por apenas um segundo antes que o cavalo castanho assumisse a liderança da corrida. Mas não seria por muito tempo. A garota de Manny tinha escolhido seu momento para contornar os três cavalos e fazer com que ele ficasse totalmente tenso.
Sim, Glory fazia o que tinha nascido para fazer, orelhas unidas à cabeça, dentes expostos.
Ela ia roubar o doce da boca daquele garanhão. E era impossível não extrapolar e pensar que participariam de corridas importantes como a Kentucky Derby...
Tudo aconteceu tão rápido.
Tudo chegou ao fim... em um piscar de olhos.
Com um golpe intencional, o potro bateu em Glory, o impacto brutal enviou-a para os trilhos. Sua garota era grande e forte, mas não poderia suportar um contato corporal assim, não quando corria a mais de sessenta quilômetros por hora.
Por uma fração de segundo, Manny ficou convencido de que ela se reergueria. Apesar da maneira como inclinou-se e cambaleou, esperava que encontrasse um ponto de equilíbrio e desse uma lição de boas maneiras àquele bastardo.
Só que ela caiu. Bem na frente dos três cavalos que tinha ultrapassado.
O massacre foi imediato, os cavalos mudaram totalmente a direção para evitar o obstáculo no caminho, os jóqueis seguraram as rédeas com força na esperança de permanecerem montados.
Todos fizeram isso. Exceto Glory.
Quando a multidão exclamou, Manny lançou-se para frente, ultrapassando os limites da cerca e saltando sobre as pessoas, cadeiras e barricadas até chegar à pista.
Além dos trilhos. Na arena.
Correu até ela. Anos de prática do atletismo levaram-no a uma velocidade vertiginosa até o cerne daquela situação.
Ela estava tentando se levantar. Mas que coração grande e feroz... estava lutando para erguer-se do chão, seus olhos encarando o grupo como se não desse a mínima por estar ferida; só queria pegar de jeito aqueles que a deixaram na poeira.
Tragicamente, sua perna dianteira tinha outros planos: enquanto se debatia, a perna direita vacilava na altura do joelho; e Manny não precisava de sua experiência como ortopedista para saber que ela tinha um problema.
Um problemão.
Ao aproximar-se dela, viu que o jóquei estava em lágrimas.
– Dr. Manello, eu tentei... Oh, Deus...
Manny escorregou na areia e arremeteu-se em direção às rédeas enquanto os veterinários aproximavam-se e o telão voltava-se para o drama.
Quando três homens de uniforme aproximaram-se dela, seus olhos não emitiam mais aquele sentimento selvagem... passaram a expressar dor e confusão. Manny fez o possível para acalmá-la, permitindo que balançasse com força a cabeça o quanto quisesse enquanto acariciava seu pescoço. Ela se acalmou quando lhe deram um tranquilizante.
Ao menos a tentativa desesperadora de andar, mesmo mancando, cessou.
O veterinário-chefe olhou para a perna e balançou a cabeça, algo que no mundo das corridas era um sinal universal para “será necessário sacrificá-la”.
Manny aproximou-se do rosto do cara.
– Nem pense nisso. Estabilize o que estiver quebrado e leve-a para o hospital veterinário de Tricounty. Entendido?
– Ela nunca mais correrá novamente... isso parece uma fratura múlti...
– Tire meu maldito cavalo da pista e leve-o ao Tricounty...
– Não vale a pena...
Many agarrou a jaqueta do veterinário e puxou o “Sr. Falar é Fácil” até ficarem face a face.
– Faça isso. Agora.
Houve um momento de incompreensão total, como se ser insultado fosse algo novo para o profissional teimoso.
E assim que os dois entenderam o que estava acontecendo, Manny rosnou:
– Não vou perdê-la, mas estou totalmente disposto a sacrificar você. Bem aqui. E agora.
O veterinário encolheu-se, afastando-se, como se soubesse que estava correndo perigo de levar um belo golpe.
– Certo... certo.
Manny não ia perder seu cavalo. Nos últimos doze meses, lamentou a perda da única mulher com quem se preocupou na vida, questionou sua sanidade e passou a se embebedar de uísque mesmo odiando a coisa.
Se Glory partisse agora... não sobraria muita coisa nessa vida, sobraria?
Algumas modalidades de esporte como o surfe e o jóquei e outras competições como o pôquer oferecem um prêmio especial na terceira vitória consecutiva, o Triple Crown. (N. da T.)
CAPÍTULO 2
CALDWELL, NOVA YORK
CENTRO DE TREINAMENTO,
COMPLEXO DA IRMANDADE
Caramba... Que droga... mas que inferno...
Vishous estava em pé no corredor do lado de fora da clínica médica da Irmandade com uma das mãos fechadas sobre os lábios e o polegar mexendo freneticamente em um tique irritante. No entanto, não havia nada a ser dito, não importava quantas vezes ele friccionasse o pequeno isqueiro.
Tic. Tic. Tic...
Com uma repulsa total, lançou a maldita coisa na lixeira e agarrou a luva revestida de chumbo que cobria sua mão. Ao tirar o pedaço de couro, olhou para a palma da mão brilhante, flexionando os dedos, arqueando-a em direção ao punho.
A coisa era em parte um lança-chamas, em parte uma bomba nuclear, capaz de derreter qualquer metal, transformar pedra em vidro e deixar em pedaços qualquer avião, trem ou automóvel que quisesse. Essa também era a razão pela qual conseguia fazer amor com sua shellan e um dos dois legados que sua mãe divina havia lhe dado.
E uma maldita segunda visão que era tão divertida quanto a rotina de lidar com a “mão da morte”.
Aproximando a arma mortal de seu rosto, acendeu a ponta do cigarro artesanal que fazia, mas não chegou perto demais ou prejudicaria seu sistema de envio de nicotina ao corpo e teria que desperdiçar seu tempo criando outro, curando-se. E não tinha paciência para isso mesmo em um dia bom, quanto mais em um momento como aquele...
Ah, a adorável tragada.
Encostando-se contra a parede, plantou suas botas de combate no chão de linóleo e fumou. Aquele prego de caixão não fez muito pela sua expressão deprimente, mas isso era melhor do que a opção que tinha passado por seus pensamentos nas últimas duas horas. Ao colocar a luva de volta pensou em sair dali com seu “dom” e incendiar alguma coisa, qualquer coisa...
Era mesmo sua irmã gêmea que estava do outro lado da parede? Deitada em uma cama de hospital... paralisada?
Jesus Cristo... Trezentos anos de idade e só então descobrir que se tem uma irmã.
Boa jogada, mamãe. Muito legal mesmo.
E pensar que ele achava ter resolvido todos os problemas com seus pais. Porém, apenas um deles estava morto. Se a Virgem Escriba seguisse pelo caminho de Bloodletter e descansasse em paz, talvez ele conseguisse encontrar um ponto de equilíbrio.
No entanto, pensando em como as coisas estavam e naquela tentativa absurda de Jane no mundo humano... Tudo aquilo estava fazendo com que ele...
Sim, não havia palavras para isso.
Pegou seu telefone celular. Verificou. Colocou de volta no bolso de sua jaqueta de couro. Caramba, isso era tão típico. Jane colocava seu foco em algo e isso era tudo. Nada mais importava.
Claro que ele era exatamente assim, mas em momentos como aquele, gostaria muito de ser atualizado.
Maldito sol. Prendia-o dentro de casa. Ao menos se estivesse com sua shellan não haveria possibilidade de o “grande” Manuel Manello negar alguma coisa. V. simplesmente golpearia o desgraçado, jogaria o corpo no Escalade e traria aquelas mãos talentosas até ali para operar Payne.
Para ele, o livre-arbítrio era um privilégio, não um direito.
Quando terminou de fumar o cigarro artesanal, apagou-o na sola de suas botas de combate e jogou a bituca no lixo. Queria muito uma bebida – exceto refrigerante ou água. Meio engradado de vodka o afastaria um pouco daquele abismo, mas com um pouco de sorte permitiriam que ele ajudasse na sala de cirurgia em breve, e precisava estar sóbrio para isso.
Entrando na sala de exames, os ombros ficaram tensos, os molares se fecharam e, por uma fração de segundo, não sabia o quanto mais poderia suportar. Se tinha uma coisa que o tirava do sério era quando sua mãe aprontava das suas, e era difícil imaginar algo pior do que a mentira de todas as mentiras.
O problema era que a vida não vinha com um “botão” de reiniciar, como o video game, que se pode pressionar quando ele trava por tentarem inserir alguma vantagem ou trapaça no jogo.
– Vishous?
Fechou os olhos por um instante ao som daquela voz suave e baixa.
– Sim, Payne – terminou a frase no Antigo Idioma. – Sou eu.
Cruzando a sala, reassumiu seu posto na banqueta com rodas ao lado da maca. Deitada embaixo de vários cobertores, Payne estava imobilizada, com a cabeça em um bloco e um colar cervical que ia do queixo à clavícula. Uma intravenosa ligava o braço dela a uma bolsa pendurada em uma extremidade de aço inoxidável e havia uma tubulação embaixo conectada ao cateter que Ehlena lhe dera.
Mesmo a sala de azulejos sendo clara, limpa e brilhante e os equipamentos e suprimentos médicos tão ameaçadores quanto xícaras e pires em uma cozinha, parecia que estavam em uma caverna suja cercados por ursos.
Seria tão bom se pudesse sair e matar o filho da mãe que tinha colocado sua irmã naquela condição. O problema era... isso significava que teria de acabar com Wrath, e que grande confusão essa morte traria. O maldito filho da mãe não era apenas o Rei, era um Irmão... e esse era o pequeno detalhe pelo qual a estadia dela ali havia sido consensual. As sessões de luta que os dois vinham travando nos últimos dois meses os deixaram em forma – e, claro, Wrath não fazia ideia com quem lutava, pois estava cego. Uma fêmea? Bem, dedução óbvia. As sessões aconteciam do Outro Lado e não havia machos por lá. Mas a falta de visão do Rei significava que ele perdia o que V. e todos os outros observavam ao entrarem naquela sala: a longa trança preta de Payne era da cor exata do cabelo de V. e sua pele do mesmo tom que a dele, tinha a mesma constituição: alta, magra e forte. Mas os olhos... cara, os olhos.
V. esfregou o rosto. Seu pai, Bloodletter, teve um número incontável de bastardos antes de ser assassinado em uma batalha contra redutores no Antigo País. Mas V. não se importava com nenhuma dessas relações aleatórias com as fêmeas.
Payne era diferente. Os dois tinham a mesma mãe e não era uma mahmen qualquer. Era a Virgem Escriba. A grande mãe da raça.
Era uma vadia, isso sim.
O olhar de Payne deslocou-se e a respiração de V. saiu com dificuldade. A íris que o encontrou era da cor de gelo branco, assim como a sua, e a borda azul-marinho em torno dela era algo que via todas as noites no espelho. E a inteligência... a inteligência que havia nas profundezas árticas daquela brancura era exatamente a mesma que havia dentro dele também.
– Não consigo sentir nada – Payne disse.
– Sei. – V. repetiu balançando a cabeça: – Eu sei.
Sua boca se contorceu e exibiu algo que poderia ter sido um sorriso em outras circunstâncias.
– Pode falar no idioma que quiser – disse com um inglês bem marcado. – Sou fluente em... muitos.
Ele também. O que significava que era incapaz de formular uma resposta em dezesseis línguas diferentes. Maravilha.
– Sua shellan... já lhe disse alguma coisa? – disse pausadamente.
– Não. Gostaria de tomar mais analgésicos? – Ela parecia mais fraca que da última vez que a vira.
– Não, obrigada. Eles fazem com que eu me sinta... estranha.
Essa frase foi seguida por um longo silêncio. Que ficou mais longo. E ainda mais longo.
Cristo, talvez ele devesse segurar a mão dela – afinal, ela podia sentir algo acima da cintura. Sim, mas o que poderia oferecer com essa atitude? Sua mão esquerda estava tremendo e a direita era mortal.
– Vishous, o tempo não está...
Quando sua irmã gêmea deixou a frase pairando no ar, ele a terminou mentalmente: do nosso lado.
Ele queria que ela estivesse errada. Contudo, quando se trata de lesões na coluna, assim como derrames e ataques cardíacos, boas oportunidades de recuperação são perdidas a cada minuto que o paciente passa sem tratamento.
Era melhor que aquele humano fosse tão bom quanto Jane havia dito.
– Vishous?
– Sim?
– Gostaria que eu não tivesse vindo até aqui?
Franziu a testa com força.
– De que diabos está falando? Claro que gostaria de ter você comigo.
Enquanto seu pé ficava batendo no chão de nervosismo, perguntou quanto tempo mais precisaria ficar antes que pudesse sair para outro cigarro. Simplesmente não ia conseguir respirar enquanto estivesse sentado ali, sem poder fazer nada enquanto sua irmã sofria e seu cérebro engasgava-se com as perguntas. Tinha um milhão de “o que?” e “por que” instalados em sua cabeça, só que não podia perguntar nada para ninguém. Parecia que Payne poderia entrar em coma a qualquer momento por causa da dor, portanto, não era uma boa hora para se fazer um social, cheio de perguntas, com direito a cafezinho.
Caramba, os vampiros podiam se curar como um relâmpago, mas não eram imortais.
Poderia muito bem perder sua irmã gêmea antes de sequer conhecê-la melhor.
Seguindo esse raciocínio, ele deu uma olhada para ver seus sinais vitais no monitor. A raça vampira tinha pressão sanguínea baixa, mas a dela estava quase ao nível do chão. A pulsação estava lenta e irregular, como uma bateria de escola de samba formada apenas por garotos brancos. E o sensor de oxigênio teve de ser silenciado, pois o alarme de alerta soava continuamente.
Quando seus olhos se fecharam, ele temeu que fosse a última vez... e o que havia feito por ela? Nada, exceto gritar quando lhe fizera uma pergunta.
Inclinou-se para mais perto dela, sentindo-se um idiota.
– Tem de aguentar firme, Payne. Estou tentando conseguir o que você precisa, mas você tem de ser forte.
As pálpebras de sua irmã ergueram-se e ela olhou para ele de sua cabeça imóvel.
– Trouxe muitos inconvenientes a sua casa.
– Não se preocupe comigo.
– Isso é o que sempre fiz.
V. franziu a testa outra vez. Era evidente que toda essa coisa de irmão/irmã era uma novidade apenas para ele. Tinha de descobrir como, diabos, ela sabia sobre ele.
E o que sabia.
Droga, lá estava outro momento em que desejaria ser menos durão.
– Está tão confiante nesse curandeiro que procura – ela murmurou.
Ah, não mesmo. A única coisa de que tinha certeza era que se o desgraçado a matasse haveria um funeral duplo naquela noite... assumindo que haveria alguma coisa restante do humano para enterrar ou queimar.
– Vishous?
– Minha shellan confia nele.
Os olhos de Payne ergueram-se e ficaram assim. Será que ela estava olhando para o teto?, V. se perguntou. Seria a lâmpada cirúrgica que havia sobre ela? Algo que ele não conseguia ver?
Num determinado momento, ela disse:
– Pergunte-me quanto tempo passei nas mãos de nossa mãe.
– Tem certeza de que tem forças para isso? – Quando ela olhou para tudo a seu redor, exceto para ele, quis sorrir. – Quanto tempo?
– Em que ano estamos na Terra? – Quando ele respondeu, seus olhos se arregalaram. – De fato. Bem, foram centenas de anos. Fui aprisionada pela nossa mahmen por... centenas de anos da minha vida.
Vishous sentiu as pontas de suas presas formigarem de raiva. Aquela mãe deles... Já deveria saber que a paz que tinha encontrado com sua fêmea não duraria muito.
– Está livre agora.
– Estou – olhou para baixo em direção às pernas. – Não conseguirei viver em outra prisão.
– Isso não vai acontecer.
Então, aquele olhar gélido tornou-se astuto.
– Não posso viver assim. Entende o que estou dizendo?
O interior dele congelou completamente.
– Ouça, vou trazer aquele médico até aqui e...
– Vishous – ela disse com voz rouca. – De fato, faria isso se pudesse, mas não posso e não há outra pessoa a quem possa recorrer. Você me entende?
Quando encontrou os olhos dela, quis gritar, suas entranhas se contorceram, gotas de suor brotaram em sua testa. Era um assassino por natureza e treinado para isso, mas aquela não era uma habilidade que tinha a intenção de praticar com alguém de seu sangue. Bem, tirando sua mãe, claro. Talvez seu pai, só que o cara tinha morrido por conta própria.
Certo, reformulando a frase: não era algo que exerceria com sua irmã.
– Vishous. Você...?
– Sim. – Olhou para baixo, para sua mão amaldiçoada e flexionou o maldito pedaço de seu corpo. – Eu entendo.
Dentro de sua pele, em sua essência, seu eixo interno começou a vibrar. Era o tipo de coisa pela qual se tornou intimamente familiarizado ao longo de sua vida... e também era um choque total. Não tinha sentido aquilo desde que Jane e Butch apareceram; e voltar a sentir era... terrível!
No passado, isso o levaria direto aos trilhos do sexo perigoso e hard-core, ficaria à beira do abismo.
Só que na velocidade do som.
A voz de Payne era fraca:
– O que me diz?
Droga, ele tinha acabado de conhecê-la.
– Sim – flexionou sua mão mortal. – Vou cuidar de você. Se chegarmos a isso.
Quando Payne olhou em direção à gaiola que era seu corpo meio-morto, o perfil sombrio de seu irmão gêmeo era tudo o que conseguia enxergar e desprezou-se pela posição em que o colocou. Gastou muito tempo desde que tinha chegado àquele lado tentando descobrir outra saída, outra opção, outra... qualquer coisa.
Mas o que ela precisava era algo que não se podia pedir a um estranho.
Por outro lado, ele era um estranho.
– Obrigada, meu irmão – ela disse.
Vishous assentiu com a cabeça uma vez e voltou a olhar para frente. Na verdade, ele era muito mais que a soma de suas características faciais e do enorme tamanho de seu corpo. Até bem pouco tempo atrás, quando aprisionada por sua mahmen, teve de observá-lo por muito tempo nas tigelas do santuário das Escolhidas e soube quem ele era no instante em que surgiu naquela água rasa; tudo o que teve de fazer foi olhar para ele e enxergar a si própria.
Que vida ele levou. Começando com o campo de guerra e a brutalidade de seu pai... e agora isso.
Sob sua postura fria, ele vociferava. Podia sentir em seus ossos uma ligação entre eles que lhe dava uma visão que ia além daquilo que seus olhos conseguiam lhe informar: por fora, estava contido como uma parede de tijolos, seus componentes todos em ordem e encaixados no lugar; no entanto, por dentro, ele fervia... e a dica externa era sua mão direita enluvada. Por baixo do acessório, uma luz brilhava... e ficava cada vez mais brilhante – especialmente depois que fizera o pedido.
Ela percebeu que aquele poderia ser o único momento que teriam juntos, e seus olhos fecharam-se outra vez.
– Está unido a uma fêmea curadora? – Ela murmurou.
– Sim.
Quando houve apenas silêncio, ela desejou poder encará-lo, mas ficou claro que respondeu apenas por educação. Ainda assim, acreditou nele quando disse que estava contente por estar ali. Ele não diria uma mentira assim, não por que se preocupasse com a moral ou a ética, mas sim porque viu que tal esforço seria um desperdício de tempo e energia.
Payne deitou seus olhos outra vez sobre a cabeça dele, que parecia ter um anel de fogo sobre ela. Desejou que segurasse sua mão ou a tocasse de alguma maneira, mas já havia feito pedidos demais.
Deitada sobre a maca com rodas, seu corpo parecia muito estranho, pesado e leve ao mesmo tempo, e sua única esperança eram os espasmos que corriam por suas pernas e faziam cócegas em seus pés, fazendo com que repuxassem. Certamente, se aquilo estava acontecendo nem tudo estava perdido, disse a si mesma.
Só que, mesmo quando acalentava tal pensamento, uma pequena e silenciosa parte de sua mente dizia que o telhado cognitivo que estava tentando construir não suportaria a chuva que estava prestes a cair em sua vida: quando movia as mãos, mesmo sem conseguir enxergá-las, podia sentir os lençóis frios e macios e a mesa lisa e gelada sobre a qual estava. Mas quando pedia que seus pés fizessem o mesmo... Era como se estivesse nas águas mornas e serenas das piscinas de banho do Outro Lado, encapsulada em um abraço invisível, sentindo absolutamente nada.
Onde estava aquele curandeiro?
O tempo... estava passando.
Quando a espera passou do insuportável para a extrema agonia, era difícil saber se a sensação de asfixia era devido a sua condição ou pelo silêncio da sala. Na verdade, ela e seu irmão gêmeo estavam mergulhados no silêncio... só que por razões muito diferentes: ela não iria a lugar algum, mesmo com muito entusiasmo; e ele estava prestes a explodir.
Desesperada por algum estímulo, alguma coisa, qualquer coisa, murmurou:
– Fale um pouco sobre o curandeiro que está chegando.
A brisa de ar frio que atingiu seu rosto e o aroma de especiarias escuras que percorreram seu nariz diziam que era um macho. Tinha de ser.
– É o melhor – Vishous murmurou. – Jane sempre fala dele como se fosse um deus. – O tom não era muito educado, mas o fato era que vampiros machos não gostavam muito de outros em torno de suas fêmeas.
Quem poderia ser esse dentre os machos da raça?, Payne perguntou-se. O único curandeiro que conseguira enxergar nas tigelas era Havers, e, com certeza, não havia razão alguma para procurarem por ele.
Talvez houvesse outro que ela não tinha observado; afinal, não passava tanto tempo tentando recuperar o atraso com o mundo e, de acordo com seu irmão gêmeo, haviam se passado muitos, muitos e muitos anos entre sua prisão e a liberdade...
De repente, a exaustão interrompeu sua linha de raciocínio, penetrando em sua medula, pressionando-a ainda mais sobre a mesa de metal.
No entanto, quando fechou os olhos, conseguiu suportar a escuridão apenas durante um rápido momento antes do pânico fazer suas pálpebras se abrirem. Enquanto estivera presa por sua mãe, tinha plena consciência de que poderia movimentar-se sem limites em um espaço livre; mas dentro daquele local opressivo, onde os minutos se arrastavam, aquela paralisia era muito parecida com o que tinha sofrido durante centenas de anos. Razão pela qual fizera aquele pedido terrível a Vishous. Não poderia ficar ali daquele lado apenas para reproduzir aquilo pelo que sempre havia lutado de maneira tão desesperada para escapar.
Lágrimas escorreram de seus olhos, fazendo com que a fonte de luz verde brilhante vacilasse. Como desejava que seu irmão segurasse sua mão...
– Por favor, não chore – disse Vishous. – Não... chore.
Na verdade, ficou surpresa por ele ter notado.
– Sim, você está certo. Chorar não cura nada.
Aumentando sua força de vontade, buscou ser forte, mas foi uma batalha. Embora seu conhecimento das artes medicinais fosse limitado, uma lógica simples anunciava onde estava o erro: como era de uma linhagem extremamente forte, seu corpo começou a recuperar-se no momento em que havia sido ferida na sessão de luta com o Rei Cego; contudo, o problema era que o processo regenerativo, que em uma situação comum salvaria sua vida, tornava sua condição ainda mais terrível – e era muito provável que aquilo fosse permanente.
Vértebras quebradas tentando se regenerar não conseguiam alcançar um resultado muito bom, e a paralisia em suas pernas era um testemunho desse fato.
– Por que fica olhando o tempo todo para sua mão? – ela perguntou, ainda olhando para a luz.
Houve um momento de silêncio, superior a todos os outros.
– Por que acha que estou fazendo isso?
Payne suspirou.
– Porque o conheço, meu irmão. Sei tudo sobre você.
Quando ele não disse nada, o silêncio era tão agradável quanto os inquéritos que havia no Antigo País.
Oh, o que será que ela havia desencadeado? E onde todos estariam quando tudo chegasse ao fim?
CAPÍTULO 3
Algumas vezes, a única maneira de se saber quão longe se foi é voltando ao ponto de onde se iniciou.
Quando Jane Whitcomb, médica, entrou no complexo hospitalar São Francisco, foi sugada de volta a sua antiga vida. De alguma maneira, foi uma viagem curta – há apenas um ano ela era a chefe do departamento de traumatologia daquele lugar, morava em um apartamento cheio de coisas de seus pais, passando vinte horas por dia correndo entre a emergência e as salas de cirurgia. Não mais.
Um indício certo de que a mudança era definitiva foi a maneira como ela entrou no centro cirúrgico: não havia razão para preocupar-se com as portas giratórias ou aquelas que precisavam ser empurradas na recepção. Ela atravessou as paredes de vidro e passou despercebida pelos seguranças que estavam no balcão. Fantasmas são bons nisso.
Desde que fora transformada, conseguia ir a lugares e ultrapassar coisas sem que ninguém fizesse ideia de que estava por perto. Mas também poderia ficar tão corpórea quanto a pessoa ao lado, assumindo uma forma sólida, de acordo com a sua vontade. Em dado momento era absolutamente etérea; em outro, era como a humana que havia sido, capaz de comer, amar e viver. Isso era uma grande vantagem ao exercer o cargo de cirurgiã particular da Irmandade.
Como agora, por exemplo: de que outra maneira ela seria capaz de se infiltrar no mundo dos humanos outra vez sem quase nenhum barulho?
Percorrendo o chão de pedra polida da recepção, passou pela parede de mármore onde estava inscrito o nome dos benfeitores e abriu caminho pela multidão de pessoas. Naquele congestionamento humano, muitos rostos eram familiares, desde o pessoal da administração até os médicos e enfermeiros com quem trabalhou durante anos. Mesmo anônimos, os pacientes estressados e suas famílias pareciam íntimos dela... de alguma maneira, as máscaras de tristeza e preocupação eram as mesmas, não importava quais fossem as características faciais que as moldavam.
Quando se dirigiu às escadas, estava buscando seu antigo chefe, e, Cristo, teve vontade de rir. Ao longo de todos aqueles anos trabalhando juntos, tinha surpreendido Manny Manello de muitas maneiras; mas aquilo ia superar vários acidentes de carro, avião ou uma explosão de edifício. Tudo isso junto.
Flutuando ao atravessar uma saída de emergência de metal, ela subiu a escada dos fundos. Os pés não tocavam os degraus, pairavam sobre eles enquanto subia como fumaça, sem esforço algum.
Aquilo tinha de funcionar. Tinha que convencer Manny a lhe acompanhar para cuidar daquela coluna lesionada, e ponto final. Não havia outras opções, nada de imprevistos, nada de virar à direita ou à esquerda naquela estrada: aquele era o passe final... e estava rezando para que o goleiro não pegasse aquela bola.
Que bom que ela tinha um bom desempenho sob pressão e que conhecia aquele homem como a palma de sua mão.
Manny aceitaria o desafio; mesmo isso não fazendo sentido algum para ele, ficaria lívido por saber que ela ainda estava “viva”. Além disso, não seria capaz de recusar ajuda a um paciente necessitado – simplesmente não estava programado para isso.
No décimo andar, atravessou outra parede e entrou na seção administrativa do departamento cirúrgico. O local era equipado como um escritório de advocacia, todo escuro, sombrio e luxuoso. Fazia sentido: o centro cirúrgico era uma fonte enorme de renda para qualquer hospital universitário, e o dinheiro era gasto para recrutar, manter e abrigar aqueles seres mimados e arrogantes que abriam pessoas para que elas sobrevivessem mais.
Dentre o grupo que operava com os bisturis no Hospital São Francisco, Manny Manello estava no topo da pirâmide, chefe não apenas de uma subespecialidade, como ela tinha sido, mas de todo o conjunto da obra. Isso significava que era uma estrela de cinema, um sargento e o presidente dos Estados Unidos ao mesmo tempo, tudo isso englobado em um cara com pouco mais de um metro e oitenta de altura. Tinha um temperamento terrível, uma inteligência impressionante e um pavio de mais ou menos um milímetro de comprimento, e isso em um dia bom. E seu trabalho era tão valioso quanto uma pedra preciosa.
As operações de maior rentabilidade do cara sempre foram aquelas feitas em atletas profissionais: ele tratou vários joelhos, quadris e ombros que teriam provocado muitos finais de carreira no futebol, baseball ou no hóquei. Mas também tinha muita experiência com tratamentos de coluna e, apesar da atuação de um neurocirurgião ser interessante se considerasse as radiografias de Payne, aquele era um problema ortopédico: se a medula espinhal fosse rompida, nada do que fizessem em termos neurológicos ajudaria. A ciência médica não tinha avançado tanto assim.
Quando dobrou a extremidade da mesa de recepção, teve de parar. À esquerda estava seu antigo escritório, o lugar onde passava horas incontáveis lidando com papéis e fazendo reuniões de consulta com Manny e o resto da equipe. Agora, lia-se o nome na placa fixada na porta: DR. THOMAS GOLDBERG, CIRUGIÃO-CHEFE DO DEPARTAMENTO DE TRAUMATOLOGIA.
Goldberg era uma excelente escolha; ainda assim, por alguma razão, doía ver o nome de outra pessoa ali.
Mas até parece. Esperava que Manny preservasse sua mesa e seu escritório como um monumento em homenagem a ela? A vida continua. A dela. A dele. A do hospital.
Voltando à realidade da situação, caminhou pelo corredor acarpetado. Mexia sempre em seu jaleco branco, com a caneta em seu bolso e com o celular que, até agora, não havia tido motivos para usar. Não havia tempo para explicar seu retorno do mundo dos mortos ou persuadir Manny ou ajudá-lo a entender o que estava prestes a expor; e não havia escolha, mas, de alguma forma, tinha de levá-lo com ela.
Em frente à porta fechada, preparou-se e, em seguida, atravessou...
Ele não estava atrás da mesa, ou trabalhando em algo na mesa de conferências da sala de reuniões.
Verificou rapidamente em seu banheiro privativo... nada ali também... não havia nenhuma umidade nas portas de vidro ou toalhas molhadas sobre a pia.
De volta ao escritório, ela respirou fundo... e o aroma suave de sua loção pós-barba pairando no ar a fez engolir em seco. Deus, sentia a falta dele.
Balançando a cabeça, andou ao redor da mesa e olhou a desordem. Arquivos de pacientes, pilhas de memorandos interdepartamentais, relatórios de Assistência ao Paciente e de Avaliação de Qualidade. Como era um pouco depois das cinco da tarde de um sábado, esperava encontrá-lo ali: as provas de seleção não eram realizadas nos finais de semana; então, a menos que estivesse de plantão ou lidando com um algum caso na traumatologia, deveria estar bem ali atrás daquela confusão de papéis. Manny era workaholic: trabalhava vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana.
Saindo do escritório, verificou a mesa de sua secretária. Nada ali também: seus compromissos eram mantidos no computador, protegidos por senha.
A próxima parada era o centro cirúrgico. O São Francisco tinha diferentes níveis de salas de operação, todas organizadas por especialidades. Ela foi diretamente à seção que ele costumava atuar. Olhando pelas janelas de vidro e portas duplas, viu que estavam operando uma terrível fratura múltipla. Embora os cirurgiões usassem máscaras e toucas, poderia dizer que nenhum deles era Manny. Seus ombros eram grandes o suficiente para esticar até mesmo o maior uniforme cirúrgico disponível e, além disso, as músicas que soavam ao fundo não eram o estilo dele. Mozart? Sem chance. Pop? Nem morto: Manny ouvia rock clássico e heavy metal. Aliás, se não fosse contra o protocolo, os enfermeiros usariam um protetor de ouvidos durante todos os procedimentos com ele.
Caramba... Onde diabos estava? Não havia conferências naquela época do ano e ele não tinha vida fora do hospital. As únicas opções que restavam era que estivesse no Commodore: desmaiado de cansaço no sofá de seu apartamento ou na academia do arranha-céu.
Quando saiu dali, pegou o celular e ligou para o sistema de atendimento do hospital.
– Sim, alô? – disse quando a ligação foi atendida. – Gostaria de falar com o Dr. Manuel Manello. Meu nome? – que droga! – Ah... Hannah. Hannah Whit. Pode retornar a ligação neste número.
Quando desligou, percebeu que não fazia ideia do que dizer caso ele retornasse a ligação, mas resolveu dar destaque ao pensamento positivo... e rezou para que tivesse a habilidade inata de realizar aquela tarefa. O fato era: se o sol baixasse no horizonte, um dos Irmãos sairia do complexo e faria algum trabalho mental em Manny para facilitar o processo de levá-lo até lá.
Contudo, não seria Vishous. Outra pessoa. Qualquer pessoa. Seus instintos diziam-lhe para deixar os dois tão afastados quanto possível: já tinham uma emergência médica em processo, e a última coisa de que precisava era de seu antigo patrão sendo pressionado porque seu marido tinha um instinto territorial e poderia decidir rachar, ele próprio, uma coluna a qualquer momento. Pouco antes de sua morte, Manny estava interessado em mais do que apenas uma associação profissional com ela; portanto, a menos que tivesse se casado com uma das Barbies que insistia em namorar, provavelmente ainda estava solteiro... E a regra dizia que o coração ficava ainda mais afeiçoado à pessoa ausente; então, seus sentimentos devem ter persistido.
Por outro lado, era possível que a insultasse sem piedade por mentir para ele sobre toda a coisa de estar “morta e enterrada”.
Pelo menos ele não se lembraria de nada daquilo; contudo, quanto a ela, temia nunca mais se esquecer das próximas vinte e quatro horas.
O Hospital Equino Tricounty era uma instalação de última geração em todos os sentidos. Localizado a quinze minutos do hipódromo de Aqueduct, o local tinha tudo, desde salas de operação e um serviço completo de quartos de recuperação até piscinas para hidroterapia e exames que forneciam imagens avançadas. E seu quadro de funcionários era composto por pessoas que viam os cavalos como muito mais do que uma fonte de lucros sobre quatro patas.
Na sala de cirurgia, Manny analisava as radiografias da perna dianteira de sua garota e desejou ser o único a entrar ali para resolver o problema: conseguia ver claramente as fissuras na imagem, mas isso não era o que o preocupava. Havia vários ligamentos que haviam sido rompidos e manchas acentuadas orbitando ao redor dos centros nervosos do osso alongado que mais pareciam luas ao redor de um planeta.
Só porque ela era de outra espécie não significava que não poderia fazer a operação. Assim que o anestesista fizesse seu trabalho em segurança, ele poderia cuidar do resto. Osso era sempre osso; mas não bancaria o idiota.
– O que acha? – perguntou.
– Minha opinião profissional – respondeu o veterinário-chefe – é de que está muito ruim. É uma fratura múltipla deslocada. O tempo de recuperação será extenso e não é possível garantir que ela sequer possa reproduzir.
O que era uma zica total: cavalos foram feitos para ficar em pé com seu peso distribuído sobre quatro pontos de maneira uniforme. Quando uma perna era quebrada, não se tratava tanto da lesão em si, mas o fato de que era preciso redistribuir o peso e contar, desproporcionalmente, com as partes que ainda estavam boas no corpo para ficar em pé. E esse era o grande problema.
Ao considerar aquilo que examinava, a maioria dos proprietários escolheria a eutanásia; mas sua garota tinha nascido para correr, e aquela lesão catastrófica faria disso impossível, mesmo se fosse apenas para o lazer... isso se ela sobrevivesse. Como médico, estava muito familiarizado com a crueldade do trabalho “salvador” de seus colegas que acabavam levando o paciente a viver em condições piores do que a morte – ou não faziam nada além de prolongar, de maneira dolorosa, o inevitável.
– Dr. Manello? O senhor ouviu o que eu disse?
– Sim. Ouvi. – Pelo menos aquele cara, ao contrário do idiota na pista, parecia tão arrasado quanto Manny.
Afastando-se, foi até onde a deitaram e colocou uma das mãos sobre sua bochecha arredondada. Sua pelagem negra brilhava sob a iluminação e, em meio ao cenário de ladrilho claro e aço inoxidável, parecia uma sombra projetada ao acaso e esquecida no centro da sala.
Por um longo momento, observou como sua grande caixa torácica expandia-se e contraía-se com a respiração. Só de vê-la na maca com as belas pernas esticadas como bastões e sua cauda pendendo sobre o ladrilho fê-lo perceber que animais como ela deveriam ficar em pé: aquilo que via era completamente contrário à natureza, e injusto.
Mantê-la viva apenas para que não tivesse de enfrentar sua morte não era a resposta certa.
Preparando-se para a situação, Manny abriu a boca...
A vibração dentro do bolso de seu terno o interrompeu. Com um palavrão, tirou o celular e verificou. Era do hospital. Hannah Whit? Com um número desconhecido?
Não era ninguém que conhecesse e ele não estava de plantão.
Provavelmente um erro do atendimento.
– Quero que opere – ouviu-se dizendo enquanto guardava o telefone de volta.
O curto silêncio que se seguiu deu-lhe tempo de sobra para perceber que impedi-la de partir cheirava a covardia. Mas não poderia insistir naquele melodrama psíquico ou perderia a sanidade.
– Não posso garantir nada. – O veterinário voltou a olhar as radiografias. – Não sei dizer o que vai acontecer, mas posso jurar que... farei meu melhor.
Deus, agora sabia como as famílias se sentiam quando dizia isso a elas.
– Obrigado. Posso assistir?
– Com certeza. Vou pegar algo para o senhor vestir e sabe como fazer a higienização antisséptica, certo, doutor?
Vinte minutos depois, a operação começou e Manny assistiu próximo à cabeça de Glory, acariciando sua crina com as mãos envolvidas com as luvas de látex, mesmo sedada. Enquanto o veterinário-chefe trabalhava, Manny teve de tirar o chapéu para a metodologia e habilidade daquele homem... as únicas coisas corretas desde que Glory havia caído. O procedimento terminou em menos de uma hora, com os fragmentos ósseos ou removidos ou encaixados no devido lugar. Então, imobilizaram a perna, retiraram a égua da sala de cirurgia e a colocaram em uma piscina para que não quebrasse outra perna quando o efeito da anestesia passasse.
Manny ficou com ela até que acordasse e, em seguida, acompanhou o veterinário até o corredor.
– Os sinais vitais são bons e correu tudo bem na operação – o veterinário disse –, mas essa vitalidade pode mudar rapidamente. E vai levar tempo até sabermos o que conseguimos alcançar.
Nossa. Aquele pequeno discurso era exatamente o que dizia aos familiares mais próximos e outros parentes quando achava que era hora de irem para casa descansar e esperar como o paciente reagiria ao pós-operatório.
– Ligaremos para o senhor – falou o veterinário. – Vamos mantê-lo informado.
Manny tirou as luvas e pegou seu cartão de visitas.
– No caso de ainda não terem todos os meus dados nos registros.
– Temos sim – de qualquer forma, pegou o papel. – Se alguma coisa mudar, será o primeiro a saber, e lhe darei as informações pessoalmente, a cada doze horas, que é o intervalo entre as minhas rondas, quando passo visitando todos os leitos.
Manny assentiu e estendeu a mão.
– Obrigado. Por cuidar dela.
– Por nada.
Depois de apertarem as mãos, Manny assentiu outra vez junto às portas duplas.
– Importa-se se eu me despedir dela?
– Não. Pode ir.
Dentro do quarto outra vez, passou um momento com sua égua. Deus... aquilo doía.
– Segure firme, garota – teve de sussurrar, pois não conseguia respirar direito.
Quando se ergueu, a equipe o observava com uma tristeza que sabia que ia permanecer.
– Vamos cuidar dela. – o veterinário disse gravemente.
Acreditava mesmo que cuidariam e foi a única coisa que o levou de volta ao corredor.
As instalações do Tricounty eram extensas e precisou de um tempo considerável para trocar de roupa e seguir seu caminho até a saída onde tinha estacionado, próximo à porta da frente. À frente, o sol se punha, um brilho de um tom pêssego se espalhava, iluminando o céu como se Manhattan estivesse em chamas. O ar estava frio, mas perfumado, pois o início da primavera esforçava-se para trazer vida à paisagem árida do inverno, e ele respirou tão fundo que ficou tonto. Deus, o tempo tinha passado como uma neblina, mas agora, com os minutos se arrastando, percebeu que aquele ritmo frenético tinha esgotado sua fonte de energia. Era isso ou tinha batido contra um muro de tijolos e desmaiado.
Enquanto procurava a chave do carro, sentiu-se mais velho do que Deus. Sua cabeça estava dando fortes pontadas e sua artrite no quadril o estava matando. Aquela corrida que havia empreendido para chegar à pista e ficar ao lado de Glory ia além de seus limites.
Não foi assim que imaginou o final do dia. Achou que estaria comprando bebidas para os proprietários que tinha derrotado... E talvez, no resplendor da vitória, seguisse a generosa sugestão oral da Sra. Hanson.
Ao entrar no carro, ligou o motor. Caldwell estava a mais ou menos quarenta e cinco minutos ao norte de Queens, e seu carro conseguia fazer a viagem de volta ao Commodore praticamente sozinho. Isso era muito bom, pois era quase um zumbi naquele momento. Nada de rádio. Nenhuma música no iPod. Ninguém telefonando também.
Ao pegar a estrada, observou o caminho à frente e lutou contra o impulso de dar meia-volta e... sim, e fazer o quê? Descansar em paz ao lado de seu cavalo?
A questão era: se conseguisse chegar em casa logo, poderia conseguir ajuda. Tinha uma garrafa de uísque esperando por ele e poderia ou não ir com calma ao usá-la. Até onde dizia respeito ao hospital, estava de folga até segunda pela manhã, às seis horas, e tinha planos de ficar bêbado e permanecer assim.
Guiando o volante revestido de couro com uma das mãos, procurou, com a outra, em meio a sua camisa de seda, sua representação do Cristo crucificado. Segurando a cruz de ouro, fez uma oração.
Deus... por favor, permita que ela fique bem.
Não poderia suportar perder outra de suas garotas. Não tão cedo. Jane Whitcomb tinha morrido há um ano, mas isso era o que o calendário dizia. O tempo do luto era diferente – nele havia transcorrido apenas um minuto e meio.
Não queria passar por isso outra vez.
CONTINUA
1761, ANTIGO PAÍS
Xcor viu seu pai sendo morto após cinco anos de sua transição. Aconteceu diante de seus olhos, mas, mesmo com a proximidade, não poderia imaginar o que houve.
A noite começou como qualquer outra, a escuridão caiu sobre a paisagem de florestas e cavernas, as nuvens encobriam a luz da lua para ele e para aqueles que viajavam a cavalo com ele. Seu grupo de soldados era composto por seis homens fortes: Throe, Zypher, os três primos e ele próprio. E seu pai.
Bloodletter.
Antigo membro da Irmandade da Adaga Negra.
O que os fez sair naquela noite foi o que os chamava ao serviço após cada pôr de sol: procuravam redutores, aquelas armas sem alma de Ômega, que achou por bem exterminar a raça vampira. E os encontravam. Frequentemente.
Mas aqueles sete machos não eram membros da Irmandade.
Ao contrário dos aclamados Irmãos, eram um grupo secreto de guerreiros. Aquele grupo de bastardos liderados por Bloodletter não era nada além de soldados: sem cerimônias. Nada de serem adorados pela população civil. Nada de louvores. A linhagem deles poderia ser aristocrática, mas todos foram abandonados por seus familiares por terem nascido com defeitos ou fora de um acasalamento santificado.
Nunca seriam outra coisa senão pedaços de carne dispensáveis dentro da grande guerra pela sobrevivência.
Porém, mesmo isso sendo verdade, eram a elite dos soldados, os mais cruéis, os braços mais fortes, aqueles que foram provados ao longo do tempo pelo feitor mais rígido da raça: o pai de Xcor. Escolhidos a dedo e com sabedoria, esses homens eram mortais contra o inimigo e não seguiam nenhum código de conduta quando se tratava da sociedade vampira. Também não seguiam nenhum código quando se tratava de matar alguém: não importava se a presa era um assassino, um humano, um animal ou um lobo. Sangue seria derramado.
Eles fizeram um, e apenas um, juramento: seu pai era o senhor deles e ninguém mais. Aonde quer que ele fosse, eles iriam, e isso era tudo. Muito mais simples que toda aquela porcaria elaborada pela Irmandade – mesmo Xcor sendo um candidato por linhagem, não teve interesse em ser um Irmão. Não se importava com a glória, uma vez que nada se comparava ao doce prazer do assassinato. Melhor deixar de lado a tradição inútil e o ritual desgastado para aqueles que se recusam a empunhar qualquer outra coisa que não seja uma adaga negra.
Usaria qualquer arma disponível.
E seu pai faria o mesmo.
O clamor dos cascos abrandou e depois ficaram em silêncio quando os lutadores saíram da floresta em um enclave de carvalhos e arbustos. A fumaça das lareiras das casas pairava na brisa, mas não havia nenhuma outra confirmação de que tinham chegado, finalmente, à pequena cidade que procuravam: no alto, sobre um íngreme penhasco, havia um castelo fortificado que se apresentava como uma águia empoleirada, sua fundação era como garras fincadas na rocha.
Humanos. Guerreando entre si.
Que entediante.
Ainda assim, era preciso respeitar a construção. Talvez, se Xcor se estabelecesse algum dia, massacraria a dinastia daquele lugar e tomaria posse daquela fortaleza. Muito mais eficiente roubar que construir.
– Para a aldeia – seu pai ordenou. – Avancemos para a diversão.
A notícia era de que havia redutores ali, as bestas pálidas misturavam-se e confundiam-se com os moradores do vilarejo que tinham escavado lotes de terra e construído casas de pedra à sombra do castelo.
Isso era uma típica estratégia de recrutamento da Sociedade: infiltrar-se em uma cidade, tomar os machos um a um, assassinar ou vender as mulheres e crianças, fugir com armas e cavalos e mudar-se para uma localidade próxima em maior número.
Xcor tinha a mesma mentalidade do inimigo nesse aspecto: quando acabava de lutar, sempre pegava tudo o que podia antes de dirigir-se para a próxima batalha. Noite após noite, Bloodletter e seus soldados abriam caminho ao longo do território que os seres humanos chamavam de Inglaterra e, quando alcançavam a ponta do território escocês, viravam-se e colocavam-se em direção oposta, indo sempre para o sul, até chegarem ao calcanhar da Itália, quando davam meia-volta outra vez. Em seguida, percorriam novamente os muitos quilômetros que tinham caminhado até ali. E faziam isso de novo. E mais outra vez.
– Deixemos nossas provisões aqui. – disse Xcor, apontando para uma árvore de tronco grosso, que havia caído sobre um riacho.
Enquanto faziam a transferência dos modestos suprimentos, não havia nada além do ranger de couro e do bufar ocasional de um garanhão. Quando tudo estava guardado sob o flanco do carvalho abatido, montaram outra vez sobre seus animais e reuniram os cavalos de raça – que eram as únicas coisas de valor, além de armas, que possuíam. Xcor não via utilidade em objetos de beleza ou conforto – para ele, eram nada além de um peso que o induzia à queda. Um cavalo forte e um punhal afiado? Isso sim tinha um valor inestimável.
Enquanto os sete andavam até a aldeia, não fizeram qualquer esforço para silenciar as batidas dos cascos de seus cavalos. Contudo, não houve gritos de guerra. Era um desperdício de energia, seus inimigos não precisavam de um convite para vir saudá-los. O único ato de boas-vindas foi um humano ou dois espiando para fora de suas portas e, em seguida, voltando rapidamente a trancarem-se em seus domicílios. Xcor os ignorou. Em vez de importar-se com isso, examinou as casas baixas de pedra, a praça central e as lojas de comércio fortificadas, procurando por alguma forma bípede, pálida como um fantasma e fedendo como um cadáver revestido em melado.
Seu pai andou até ele e sorriu com um toque de maldade.
– Talvez possamos colher os frutos dos jardins por aqui mais tarde.
– Talvez. – murmurou Xcor enquanto seu cavalo jogava a cabeça para trás. Na verdade, não estava muito interessado em deitar-se com fêmeas ou subjugar machos, mas não se podia negar nada a seu pai, mesmo quando se tratava de suas extravagâncias na hora do lazer.
Sinalizando com as mãos, Xcor direcionou três de seu grupo para a esquerda, onde havia uma pequena estrutura com uma cruz em cima de seu telhado pontiagudo. Ele e os outros seguiriam à direita. Seu pai faria o que quisesse. Como sempre.
Forçar os garanhões a permanecer em um galope contínuo era uma tarefa que desafiava até mesmo o mais vigoroso dos braços, mas estava acostumado com o cabo de guerra e sentou-se com firmeza na sela. Com um propósito sombrio, seus olhos penetraram as sombras produzidas pelo luar, procurando, sondando...
O grupo de assassinos que saiu do abrigo de ferragens possuía uma grande quantidade de armas.
– Cinco – Zypher rosnou. – Bendita noite.
– Três – Xcor interrompeu. – Dois ainda são seres humanos... porém, matar esses dois... também será um prazer.
– Qual devemos atacar, meu senhor? – Seu irmão de armas disse com um grande respeito que era dedicado por merecimento e não por ser o primogênito.
– Os humanos – Xcor disse, deslocando-se para frente e preparando-se para o momento em que incitaria seu cavalo a partir. – Se há outros redutores por perto, isso os atrairia ainda mais.
Estimulando o grande animal e afundando-se na sela, sorriu quando os redutores mantiveram-se firmes com suas correntes e armamentos. No entanto, as duas pessoas junto a eles não ficariam tão firmes. Embora os dois estivessem equipados para lutar, dariam meia-volta e correriam quando vissem a primeira exibição de presas como cavalos assustados por um tiro de canhão, razão pela qual deu um solavanco de forma abrupta para a direita logo após galopar apenas alguns passos. Atrás da cabana do ferreiro, puxou as rédeas e desmontou do corcel. Seu garanhão era um animal selvagem, mas obediente quando tratava-se de desmontar e aguardar...
Uma fêmea humana irrompeu pela porta dos fundos, sua camisola branca era como uma faixa brilhante na escuridão, enquanto esforçava-se para ficar em pé sobre a lama. No instante em que ela o viu, ficou paralisada de terror.
Reação lógica: ele era duas vezes o tamanho dela, talvez três, e não estava vestido para dormir, mas para a guerra. Quando a mão da fêmea ergueu-se até a garganta, ele farejou o ar e sentiu seu perfume. Hummm, talvez seu pai gostasse daquela flor de jardim...
Quando o pensamento lhe ocorreu, soltou um rosnado baixo que incitou a moça a uma corrida desenfreada; a visão da tentativa de fuga fez o predador dentro dele vir à tona. Com uma sede de sangue percorrendo suas entranhas, lembrou-se que havia se passado semanas desde que tinha se alimentado de alguém de sua espécie e, apesar daquela garota ser apenas uma humana, poderia ser o suficiente para aquela noite.
Infelizmente, não havia tempo para se divertir naquele momento... Apesar disso, seu pai iria atrás dela mais tarde, com certeza. Se Xcor precisava de um pouco de sangue para vencer as dificuldades, conseguiria tal fonte com aquela mulher, ou com qualquer outra.
Dando as costas para a fuga, parou com firmeza sobre o chão e desembainhou a arma escolhida: embora as adagas servissem, preferiu a foice, cabo longo e modificado para um coldre amarrado em suas costas. Era especialista em empunhar aquele grande peso e sorriu enquanto manejava ao vento a lâmina cruel e curvada, esperando para jogar a rede sobre aqueles dois peixes que, com certeza, estavam nadando até ele...
Ah, sim, como era bom estar certo.
Logo após uma luz brilhante surgir e um estalo eclodir da passagem principal, os dois humanos vieram gritando em direção aos fundos da casa do ferreiro como se estivessem sendo perseguidos por carrascos.
Mas estavam errados, não? O carrasco estava esperando ali.
Xcor não gritou ou amaldiçoou. Sequer rosnou. Começou a correr com a foice, havia um equilíbrio uniforme entre as duas mãos enquanto as coxas poderosas encurtavam a distância. Só de olhar para ele, os humanos derraparam em suas botas, braços soltos, como asas de patos pousando sobre a água.
O tempo pareceu desacelerar quando caiu sobre eles, sua arma favorita fez um grande círculo, atingindo os dois na altura do pescoço.
As cabeças foram decepadas com um golpe único e limpo. Os rostos surpresos brilharam e desapareceram à medida que a parte removida do corpo girava, o sangue espirrou e salpicou no peito de Xcor. Com a ausência de crânios, a parte inferior dos corpos caíram sobre o chão com uma graça curiosa e líquida, aterrissando inanimados com os membros retorcidos.
Agora sim ele gritava.
Virando-se, Xcor fixou suas botas de couro na lama, respirou fundo e soltou um rosnado enquanto manejava a foice, o aço avermelhado pedia mais sangue. Apesar de suas presas serem meros seres humanos, o impulso de matar era superior a um orgasmo, a sensação de que havia tirado uma vida e deixado cadáveres para trás percorria seu corpo como uma bebida alcoólica.
Chamou seu cavalo assoviando, que foi até ele rapidamente após o comando. Com um salto, montou na sela, a foice erguida em sua mão direita enquanto lidava com as rédeas com a esquerda. Dando um golpe com força, incitou o corcel ao galope, percorrendo rapidamente um caminho estreito e sujo e emergindo no auge da batalha.
Seus colegas lutavam com todas as forças, o som das espadas colidindo e gritos bombardearam a noite quando o demônio encontrou seu inimigo. E assim como Xcor havia previsto, mais uma meia dúzia de redutores veio correndo a toda velocidade sobre seus garanhões de raça, como leões que foram libertos para defender seu território.
Xcor entrou em cena e avançou contra o inimigo, envolvendo as rédeas no punho e brandindo a foice enquanto o cavalo corria em direção aos outros com os dentes à mostra. Sangue negro e partes de corpos voaram quando passou por entre os adversários, ele e seu cavalo trabalhavam como uma unidade naquele ataque.
Quando atingiu mais um assassino com sua lâmina e o cortou ao meio na altura do peito, soube que tinha nascido para fazer isso, era a maior e melhor maneira de usar seu tempo sobre a terra. Era um assassino, não um defensor.
Não lutava pela raça... mas por si mesmo.
Tudo aconteceu muito depressa, a névoa noturna rondava os redutores caídos, que contorciam-se em poças do próprio sangue oleoso e negro. Houve poucos feridos dentre o grupo de Xcor. Throe tinha um corte no ombro, feito por alguma lâmina. Zypher estava mancando, uma mancha vermelha escorria de sua perna, ensopando a bota. Nenhum deles estava mais lento ou mesmo preocupado.
Xcor deteve o cavalo, desmontou e voltou a colocar a foice no coldre. Sacou a adaga de aço e começou sua ronda para esfaquear os assassinos, lamentou o processo que enviava o inimigo de volta a seu criador. Queria mais luta, não menos...
Um grito ecoou e ele ergueu a cabeça. A mulher humana de camisola estava correndo pela estrada de terra batida do vilarejo, seu corpo pálido em uma fuga desgovernada, como se tivesse sido expulsa de um esconderijo. Logo atrás dela, o pai de Xcor montou em seu cavalo e galopou rápido; o corpo maciço de Bloodletter pendia em um dos lados da sela quando a alcançou. Na verdade, não houve, de fato, uma corrida: quando ficou ao lado dela, pegou-a com o braço e atirou-a sobre seu colo.
Não houve parada, nem mesmo uma diminuição da velocidade depois da captura, mas uma marca foi feita: com seu cavalo galopando a toda velocidade e a humana se debatendo, o pai de Xcor ainda conseguiu atingir a garganta delgada com suas presas, prendendo-se no pescoço da mulher como se fosse detê-la apenas com os caninos.
Ela teria morrido. Com certeza, ela teria morrido.
Se Bloodletter não tivesse morrido primeiro.
De fora do turbilhão do nevoeiro surgiu uma figura fantasmagórica como se fosse formada pelos filamentos de umidade que percorriam o ar. E no momento que Xcor viu o espectro, estreitou os olhos e valeu-se de seu olfato aguçado.
Parecia ser uma mulher. De sua espécie. Vestida com uma túnica branca.
E seu cheiro lembrou-o de algo que não conseguiu localizar.
Ela foi diretamente ao encontro de seu pai, mas parecia não ter a menor preocupação com o cavalo ou com o guerreiro sádico que logo viria atrás dela. No entanto, seu pai estava fascinado por ela. No instante em que a notou, largou a humana como se não fosse nada além de um osso do qual já houvesse comido toda a carne.
Isso estava errado, Xcor pensou. De fato, ele era um macho de ação e poder e dificilmente um membro do sexo frágil o intimidaria... mas tudo em seu corpo advertia que aquela entidade etérea era perigosa. Letal.
– Ei! Pai! – gritou. – Vire-se!
Xcor assoviou para seu cavalo, que atendeu ao comando. Montando sobre a sela, estimulou os flancos do animal, lançando-se a toda velocidade para que pudesse cruzar o caminho do pai, um pânico estranho o incitando.
Tarde demais. Seu pai lançou-se sobre a fêmea, que agachou-se lentamente.
Meu Deus, ela ia saltar por cima do...
Com um impulso coordenado, ela flutuou no ar e pegou a perna de seu pai, usando-a para montar sobre o cavalo de um salto. Então, agarrou o sólido peitoral de Bloodletter, saltou para um lado e levou o macho ao chão com ela, como se fossem apenas um. A investida poderosa desafiava a questão de ser do sexo feminino e sua natureza espectral.
Ora, não era um fantasma, mas um ser de carne e osso.
O que significava que poderia ser morta.
Enquanto Xcor preparava-se para lançar seu garanhão contra eles, a fêmea soltou um grito nada feminino: mais ao estilo do grito de guerra de Xcor, o berro trespassou o ruído dos cascos trovejantes abaixo dele e os sons do grupo que reunia-se para combater aquele ataque inesperado.
Contudo, não havia necessidade de uma intercessão imediata.
Seu pai, após o choque de ser tirado de sua sela, rolou de costas, desembainhou seu punhal e rosnou como um animal. Com uma maldição, Xcor freou e interrompeu o resgate, pois, com certeza, seu pai assumiria o controle. Bloodletter não era o tipo de homem a quem se ajudava – havia agredido Xcor por isso no passado, uma lição que foi duramente aprendida e que sempre seria lembrada.
Ainda assim, desmontou e aproximou-se da situação para reagir no caso de haver mais alguma “Valquíria” saindo do meio da floresta.
E foi assim que ele a ouviu, claramente, dizer um nome.
– Vishous.
A raiva de seu pai deu lugar a uma breve confusão. E antes que pudesse retomar sua autodefesa, a figura fantasmagórica começou a brilhar com uma luz profana.
– Pai! – Xcor gritou ao aproximar-se correndo.
Mas era tarde. E o contato foi feito.
Chamas irromperam sobre o rosto rude e barbado de seu pai e tomaram seu corpo, como se fosse feno seco. E com a mesma graça que ela o derrubou, a fêmea saltou para trás e observou enquanto seu pai tentava apagar o fogo debatendo-se freneticamente, sem sucesso. No meio da noite, ele gritava enquanto era queimado vivo, suas roupas de couro não ofereceram proteção alguma para sua pele e músculos.
Não havia chance alguma de aproximar-se o suficiente do fogo e Xcor derrapou até parar, levantando o braço para se proteger e curvando-se para se afastar do calor que ficava exponencialmente mais intenso.
Durante todo o tempo, a fêmea ficou sobre o corpo que se contorcia e tinha espasmos... O brilho laranja iluminava o rosto belo e cruel.
A vadia estava sorrindo.
E foi então que ela ergueu o rosto para ele. Quando Xcor teve uma visão correta de seu rosto, recusou-se, em um primeiro momento, a acreditar no que via. Ainda assim, o brilho das chamas não mentia.
Xcor observava uma versão feminina de Bloodletter. O mesmo cabelo negro, a mesma pele e olhos claros. A mesma estrutura óssea. Além disso, a mesma luz vingativa em seu olhar violento, aquele arrebatamento e satisfação ao causar uma morte era uma combinação que Xcor conhecia muito bem.
Ela partiu logo em seguida, desaparecendo na neblina de uma maneira que não condizia com a desmaterialização de sua espécie, mas, sim, fez isso como um sopro de fumaça, desvanecendo-se devagar em princípio e, em seguida, rápida e definitivamente.
Assim que sentiu-se capaz, Xcor correu para seu pai, mas não havia mais nada a ser salvo... mal havia algo para ser enterrado. Afundando os joelhos diante dos ossos fumegantes e do fedor de queimado, teve um momento de fraqueza deplorável: lágrimas derramaram-se dos olhos. Bloodletter tinha sido um bruto, mas como sua única descendência masculina, Xcor e ele eram bem próximos... Na verdade, eram quase membros de um mesmo corpo.
– Por tudo o que é mais sagrado – Zypher disse com voz rouca –, o que foi isso?
Xcor piscou com força antes de olhar por cima do ombro.
– Ela o matou.
– Sim. E fez mais alguma coisa.
Quando o grupo de bastardos aproximou-se dele, um a um, Xcor teve de pensar no que dizer, no que fazer.
Erguendo-se com firmeza, quis chamar seu cavalo, mas sua boca estava seca demais para assoviar.
Seu pai... um inimigo e, ao mesmo tempo, seu porto seguro, estava morto. Morto. E aconteceu tão rápido, rápido demais.
Por uma fêmea.
Seu pai havia partido.
Quando conseguiu, olhou para cada um dos machos diante dele, os dois montados nos cavalos, os dois em pé e o que estava a sua direita. Com uma nítida percepção, soube que não importava o que o destino tivesse reservado, seria moldado pelo que havia acontecido naquele momento, aqui, agora.
Não havia se preparado para isso, mas não se afastaria do que deveria fazer:
– Ouçam bem, pois só direi uma vez. Ninguém vai dizer nada. Meu pai morreu em uma batalha contra o inimigo. Eu o queimei para homenageá-lo e mantê-lo sempre comigo. Jurem isso para mim agora.
Os bastardos com quem ele vivia e lutava há muito tempo juraram e depois que suas vozes profundas desvaneceram-se no ar noturno, Xcor inclinou-se e passou os dedos pelas cinzas. Erguendo as mãos até o rosto, traçou uma listra com a fuligem desde as bochechas até as grossas veias que percorriam cada lado do pescoço... em seguida, acariciou o crânio duro que era tudo o que havia restado de seu pai. Segurando os restos carbonizados que ainda soltavam fumaça, reivindicou os soldados a sua frente como seus.
– Sou o único senhor agora. Liguem-se a mim neste momento ou serão meus inimigos. O que me dizem?
Não houve hesitação alguma. Os machos se ajoelharam, retiraram suas adagas e irromperam o grito de guerra antes de enterrarem as lâminas na terra a seus pés.
Xcor observou as cabeças inclinadas e sentiu que um manto caía-lhe sobre os ombros. Bloodletter estava morto. Sem vida, seria transformado em lenda a partir daquela noite.
E, seguindo o que é certo e apropriado, o filho substituiria o pai agora, comandando aqueles soldados que não serviriam a Wrath, o rei que não os governava; nem à Irmandade, que não se dignificava a descer àquele nível... Serviriam a Xcor e somente a ele.
– Vamos seguir na direção de onde a fêmea veio – anunciou. – Vamos encontrá-la mesmo que levem séculos, pois ela deve pagar por aquilo que fez esta noite. – Nesse momento, Xcor conseguiu assoviar alto e claro para seu cavalo. – Levarei, pessoalmente, a morte ao esconderijo daquela fêmea.
Subindo em seu cavalo, reuniu as rédeas e incitou o grande animal a cruzar a noite. Seu grupo de bastardos entrou em formação e o seguiu, disposto a morrer por ele.
Enquanto trovejava ao sair da aldeia, colocou o crânio de seu pai dentre as roupas de couro que usava nas batalhas, bem em cima do coração.
Aquela vingança seria sua. Mesmo que o matasse.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/9_AMANTE_LIBERTADA.jpg
CAPÍTULO 1
DIAS ATUAIS
HIPÓDROMO DE AQUEDUCT, QUEENS, NOVA YORK
– Quero enlouquecer você.
O Dr. Manny Manello virou a cabeça para a direita e olhou para a mulher que tinha falado com ele. Não foi a primeira vez que tinha ouvido essas palavras e a boca pela qual elas saíram tinha silicone suficiente para preencher uma boa almofada. Mas, ainda assim, foi uma surpresa.
Candance Hanson sorriu para ele e ajeitou seu chapéu retrô com uma mão bem manicurada. Aparentemente, ela tinha decidido que a combinação de dama refinada com uma dose de atrevimento era atraente – e talvez fosse, para alguns rapazes.
Caramba, em outro momento de sua vida, ele provavelmente teria dado em cima dela seguindo a teoria do “por que não?”. Agora? Seguia a ideia do “não é pra tanto”.
Sem se deixar abater pela falta de entusiasmo do médico, ela inclinou-se para frente, exibindo um par de seios que não exatamente desafiava a gravidade. Na verdade, aquilo era mais como mostrar o dedo médio, insultar a mãe e pisar no calo de alguém – uma falta de educação.
– Sei de um lugar aonde poderíamos ir.
Ele apostava que sim.
– A corrida já vai começar.
Ela fez beicinho. Ou talvez fosse o efeito das aplicações para aumentar os lábios. Deus, há dez anos ela devia ter um rosto jovem; agora, os anos tinham adicionado uma pátina de desespero nela – junto ao processo normal de envelhecimento, contra o qual ela lutava como um boxeador.
– Depois, então.
Manny afastou-se sem responder, sem saber exatamente como ela tinha conseguido entrar na área dos proprietários. Deveria ter sido na confusão que havia para voltar àquele local depois de selarem os cavalos – e, sem dúvida, estava acostumada a entrar em lugares que, tecnicamente, não lhe eram permitidos: Candance era um daqueles tipos sociais de Manhattan que só se diferenciava de uma prostituta por não ter um cafetão e, de muitas maneiras, era como uma vespa qualquer: ignorava o incômodo causado e ia pousar em outra coisa.
Ou em outra pessoa, como era o caso.
Erguendo o braço para mantê-la distante, Manny inclinou-se sobre o corrimão da cabine e esperou que sua garota saísse para a pista. Tinha sido colocada na parte externa, e isso era bom: preferia não ficar muito perto dos outros e percorrer uma distância extra nunca a incomodou.
O hipódromo de Aqueduct, no Queens, Nova York, não tinha o prestígio de um Belmont ou Pimlico ou do venerável pai de todos os hipódromos, o Churchill Downs. Contudo, não era de se jogar fora. A instalação tinha uma arena de quase três quilômetros, uma pista de turfe e outra para corridas de curta distância. A capacidade total era de, aproximadamente, nove hectares. A comida era medíocre, mas ninguém ia até lá para comer e havia algumas corridas grandes, como a daquele dia: a Wood Memorial Stakes tinha uma bolsa de 750 mil dólares e, como era realizada em abril, era uma boa referência para os candidatos ao prêmio Triple Crown...*
Ah, sim, lá estava ela. Lá estava sua garota.
Quando os olhos de Manny fixaram-se em GloryGloryAllelujah, o barulho da multidão, a luz brilhante daquele dia e a fila vacilante composta pelos outros cavalos desapareceram. Tudo o que ele via era sua magnífica égua negra, sua capa capturava a luz do sol e reluzia, as pernas finas se flexionavam, os cascos delicados erguiam-se e voltavam a pousar na pista de areia. Como ela media quase um metro e setenta, o jóquei parecia um pequeno mosquito em suas costas, e essa diferença de tamanho representava a divisão do poder. Ela deixou isso claro desde o primeiro dia de treinamento: poderia tolerar os pequenos seres humanos, mas estavam apenas a passeio na corrida. Ela estava no comando.
Seu temperamento dominador já havia lhe custado dois treinadores. O terceiro? O cara parecia um pouco frustrado, mas era apenas seu senso de controle que estava sendo espancado até a morte: Glory destacava-se e isso, simplesmente, não tinha nada a ver com ele. E Manny não tinha a menor preocupação com os egos inflados de homens que dominavam cavalos a vida inteira. Sua garota era uma lutadora, sabia o que estava fazendo, e ele não tinha o menor problema em deixá-la assumir o controle. Queria apenas assisti-la divertir-se ao acabar com a concorrência.
Quando seus olhos a encontraram, lembrou-se do otário de quem a tinha comprado há pouco mais de um ano. Aqueles vinte mil dólares tinham sido um roubo, considerando sua linhagem, também uma fortuna se pensasse no temperamento dela, e ainda não estava claro se conseguiria autorização para correr. Era uma égua indisciplinada de um ano de idade que já esteve prestes a ser afastada. Ou pior: de ser transformada em comida de cachorro.
Mas ele acertou. Desde que a deixasse liderar e comandar o show, era um espetáculo.
Quando a formação de cavalos aproximou-se do portão, alguns começaram a bater os cascos e a bufar, mas sua garota estava firme, como se soubesse que era inútil desperdiçar energia antes do jogo. Ele achava que as chances eram boas apesar da posição no pódio, pois o jóquei montado em seu dorso era uma estrela: sabia exatamente como lidar com ela e, nesse sentido, era mais responsável pelo sucesso da garota do que os outros treinadores. Sua estratégia era apenas certificar-se de que ela conhecia os melhores percursos, deixá-la escolher e ir.
Manny levantou-se e segurou o corrimão de ferro pintado na frente dele, juntando-se à multidão que saía de seus assentos, e começava a exibir uma quantidade incontável de binóculos. Quando seu coração começou a bater forte, ficou contente, pois fora dali encontrava-se muito próximo do sedentarismo, ultimamente. A vida que levava estava em um estágio de entorpecimento terrível no último ano ou um pouco mais, e talvez essa fosse a razão pela qual aquela égua era tão importante para ele.
Talvez ela também fosse tudo o que ele tinha.
Não era bem assim.
No portão, havia um movimento frenético: quando se trata de amontoar quinze cavalos fortes com patas da espessura de varetas e com glândulas adrenais disparando como obus em minúsculas caixas de metal, você não perde tempo. Em mais ou menos um minuto, o campo foi fechado e as pistas foram restringidas pelos trilhos.
Uma batida de coração.
Um sino.
Bang.
Os portões foram abertos, a multidão rugiu e os cavalos avançaram como se tivessem sido lançados de bocas de canhões. As condições eram perfeitas. Clima seco. Frio. Estavam a toda velocidade na pista.
Não que sua garota se importasse com isso. Correria na areia movediça se fosse necessário.
Os cavalos puros-sangues trovejaram, o som dos cascos e a voz do locutor chicoteavam energia nas arquibancadas a ponto de ficarem em um estado de êxtase. Porém, Manny manteve a calma, permanecendo com as mãos firmadas no trilho na frente dele e seus olhos sobre o campo, enquanto o grupo de cavalos fazia a primeira curva em uma confusão tensa de dorsos e caudas.
O telão mostrava-lhe tudo o que precisava ver. Sua égua estava na penúltima posição, apenas galopando enquanto todos os outros empreendiam uma corrida mortal – inferno, seu pescoço sequer estava totalmente estendido. No entanto, o jóquei estava fazendo seu trabalho, facilitando o caminho dela para avançar na pista, dando-lhe a opção de correr ao redor do grupo ou cortar caminho através deles quando estivesse pronta.
Manny sabia exatamente o que ela iria fazer. Entraria pela direita em meio aos outros cavalos como uma bola de demolição.
Era o jeito dela.
E foi assim que, quando os outros abriram distância, ela começou a pegar fogo. A cabeça baixa, o pescoço alongado, seu passo começou a acelerar.
– Caramba – Manny sussurrou. – Você consegue, garota.
Quando Glory adentrou a pista verde, transformou-se em um raio de luz que ultrapassava os outros corredores, a explosão de velocidade era tão poderosa que qualquer um se perguntaria se aquilo não era de propósito: apenas vencê-los não era o suficiente, ela tinha que fazer isso no último quilômetro, deixando as selas dos outros bastardos na poeira, no último minuto possível.
Manny riu do fundo da garganta. Ela era seu tipo de garota.
– Meu Deus, Manello, olha só como ela avança.
Manny assentiu com a cabeça sem olhar para o cara que falou em seu ouvido, pois a liderança do grupo estava mudando: o potro que estava à frente perdia sua força, ficando para trás quando suas pernas pareceram ficar sem combustível. Em resposta a isso, o jóquei o golpeou, chicoteando-lhe o traseiro – algo que obteve o mesmo sucesso de quando alguém amaldiçoa um carro cujo tanque esvaziou. O potro que estava em segundo lugar, um animal grande e castanho com jeito de mau e um passo que poderia englobar um campo de futebol, aproveitou imediatamente a desaceleração, e seu jóquei permitiu que o cavalo estendesse sua cabeça totalmente.
Os dois ficaram emparelhados por apenas um segundo antes que o cavalo castanho assumisse a liderança da corrida. Mas não seria por muito tempo. A garota de Manny tinha escolhido seu momento para contornar os três cavalos e fazer com que ele ficasse totalmente tenso.
Sim, Glory fazia o que tinha nascido para fazer, orelhas unidas à cabeça, dentes expostos.
Ela ia roubar o doce da boca daquele garanhão. E era impossível não extrapolar e pensar que participariam de corridas importantes como a Kentucky Derby...
Tudo aconteceu tão rápido.
Tudo chegou ao fim... em um piscar de olhos.
Com um golpe intencional, o potro bateu em Glory, o impacto brutal enviou-a para os trilhos. Sua garota era grande e forte, mas não poderia suportar um contato corporal assim, não quando corria a mais de sessenta quilômetros por hora.
Por uma fração de segundo, Manny ficou convencido de que ela se reergueria. Apesar da maneira como inclinou-se e cambaleou, esperava que encontrasse um ponto de equilíbrio e desse uma lição de boas maneiras àquele bastardo.
Só que ela caiu. Bem na frente dos três cavalos que tinha ultrapassado.
O massacre foi imediato, os cavalos mudaram totalmente a direção para evitar o obstáculo no caminho, os jóqueis seguraram as rédeas com força na esperança de permanecerem montados.
Todos fizeram isso. Exceto Glory.
Quando a multidão exclamou, Manny lançou-se para frente, ultrapassando os limites da cerca e saltando sobre as pessoas, cadeiras e barricadas até chegar à pista.
Além dos trilhos. Na arena.
Correu até ela. Anos de prática do atletismo levaram-no a uma velocidade vertiginosa até o cerne daquela situação.
Ela estava tentando se levantar. Mas que coração grande e feroz... estava lutando para erguer-se do chão, seus olhos encarando o grupo como se não desse a mínima por estar ferida; só queria pegar de jeito aqueles que a deixaram na poeira.
Tragicamente, sua perna dianteira tinha outros planos: enquanto se debatia, a perna direita vacilava na altura do joelho; e Manny não precisava de sua experiência como ortopedista para saber que ela tinha um problema.
Um problemão.
Ao aproximar-se dela, viu que o jóquei estava em lágrimas.
– Dr. Manello, eu tentei... Oh, Deus...
Manny escorregou na areia e arremeteu-se em direção às rédeas enquanto os veterinários aproximavam-se e o telão voltava-se para o drama.
Quando três homens de uniforme aproximaram-se dela, seus olhos não emitiam mais aquele sentimento selvagem... passaram a expressar dor e confusão. Manny fez o possível para acalmá-la, permitindo que balançasse com força a cabeça o quanto quisesse enquanto acariciava seu pescoço. Ela se acalmou quando lhe deram um tranquilizante.
Ao menos a tentativa desesperadora de andar, mesmo mancando, cessou.
O veterinário-chefe olhou para a perna e balançou a cabeça, algo que no mundo das corridas era um sinal universal para “será necessário sacrificá-la”.
Manny aproximou-se do rosto do cara.
– Nem pense nisso. Estabilize o que estiver quebrado e leve-a para o hospital veterinário de Tricounty. Entendido?
– Ela nunca mais correrá novamente... isso parece uma fratura múlti...
– Tire meu maldito cavalo da pista e leve-o ao Tricounty...
– Não vale a pena...
Many agarrou a jaqueta do veterinário e puxou o “Sr. Falar é Fácil” até ficarem face a face.
– Faça isso. Agora.
Houve um momento de incompreensão total, como se ser insultado fosse algo novo para o profissional teimoso.
E assim que os dois entenderam o que estava acontecendo, Manny rosnou:
– Não vou perdê-la, mas estou totalmente disposto a sacrificar você. Bem aqui. E agora.
O veterinário encolheu-se, afastando-se, como se soubesse que estava correndo perigo de levar um belo golpe.
– Certo... certo.
Manny não ia perder seu cavalo. Nos últimos doze meses, lamentou a perda da única mulher com quem se preocupou na vida, questionou sua sanidade e passou a se embebedar de uísque mesmo odiando a coisa.
Se Glory partisse agora... não sobraria muita coisa nessa vida, sobraria?
Algumas modalidades de esporte como o surfe e o jóquei e outras competições como o pôquer oferecem um prêmio especial na terceira vitória consecutiva, o Triple Crown. (N. da T.)
CAPÍTULO 2
CALDWELL, NOVA YORK
CENTRO DE TREINAMENTO,
COMPLEXO DA IRMANDADE
Caramba... Que droga... mas que inferno...
Vishous estava em pé no corredor do lado de fora da clínica médica da Irmandade com uma das mãos fechadas sobre os lábios e o polegar mexendo freneticamente em um tique irritante. No entanto, não havia nada a ser dito, não importava quantas vezes ele friccionasse o pequeno isqueiro.
Tic. Tic. Tic...
Com uma repulsa total, lançou a maldita coisa na lixeira e agarrou a luva revestida de chumbo que cobria sua mão. Ao tirar o pedaço de couro, olhou para a palma da mão brilhante, flexionando os dedos, arqueando-a em direção ao punho.
A coisa era em parte um lança-chamas, em parte uma bomba nuclear, capaz de derreter qualquer metal, transformar pedra em vidro e deixar em pedaços qualquer avião, trem ou automóvel que quisesse. Essa também era a razão pela qual conseguia fazer amor com sua shellan e um dos dois legados que sua mãe divina havia lhe dado.
E uma maldita segunda visão que era tão divertida quanto a rotina de lidar com a “mão da morte”.
Aproximando a arma mortal de seu rosto, acendeu a ponta do cigarro artesanal que fazia, mas não chegou perto demais ou prejudicaria seu sistema de envio de nicotina ao corpo e teria que desperdiçar seu tempo criando outro, curando-se. E não tinha paciência para isso mesmo em um dia bom, quanto mais em um momento como aquele...
Ah, a adorável tragada.
Encostando-se contra a parede, plantou suas botas de combate no chão de linóleo e fumou. Aquele prego de caixão não fez muito pela sua expressão deprimente, mas isso era melhor do que a opção que tinha passado por seus pensamentos nas últimas duas horas. Ao colocar a luva de volta pensou em sair dali com seu “dom” e incendiar alguma coisa, qualquer coisa...
Era mesmo sua irmã gêmea que estava do outro lado da parede? Deitada em uma cama de hospital... paralisada?
Jesus Cristo... Trezentos anos de idade e só então descobrir que se tem uma irmã.
Boa jogada, mamãe. Muito legal mesmo.
E pensar que ele achava ter resolvido todos os problemas com seus pais. Porém, apenas um deles estava morto. Se a Virgem Escriba seguisse pelo caminho de Bloodletter e descansasse em paz, talvez ele conseguisse encontrar um ponto de equilíbrio.
No entanto, pensando em como as coisas estavam e naquela tentativa absurda de Jane no mundo humano... Tudo aquilo estava fazendo com que ele...
Sim, não havia palavras para isso.
Pegou seu telefone celular. Verificou. Colocou de volta no bolso de sua jaqueta de couro. Caramba, isso era tão típico. Jane colocava seu foco em algo e isso era tudo. Nada mais importava.
Claro que ele era exatamente assim, mas em momentos como aquele, gostaria muito de ser atualizado.
Maldito sol. Prendia-o dentro de casa. Ao menos se estivesse com sua shellan não haveria possibilidade de o “grande” Manuel Manello negar alguma coisa. V. simplesmente golpearia o desgraçado, jogaria o corpo no Escalade e traria aquelas mãos talentosas até ali para operar Payne.
Para ele, o livre-arbítrio era um privilégio, não um direito.
Quando terminou de fumar o cigarro artesanal, apagou-o na sola de suas botas de combate e jogou a bituca no lixo. Queria muito uma bebida – exceto refrigerante ou água. Meio engradado de vodka o afastaria um pouco daquele abismo, mas com um pouco de sorte permitiriam que ele ajudasse na sala de cirurgia em breve, e precisava estar sóbrio para isso.
Entrando na sala de exames, os ombros ficaram tensos, os molares se fecharam e, por uma fração de segundo, não sabia o quanto mais poderia suportar. Se tinha uma coisa que o tirava do sério era quando sua mãe aprontava das suas, e era difícil imaginar algo pior do que a mentira de todas as mentiras.
O problema era que a vida não vinha com um “botão” de reiniciar, como o video game, que se pode pressionar quando ele trava por tentarem inserir alguma vantagem ou trapaça no jogo.
– Vishous?
Fechou os olhos por um instante ao som daquela voz suave e baixa.
– Sim, Payne – terminou a frase no Antigo Idioma. – Sou eu.
Cruzando a sala, reassumiu seu posto na banqueta com rodas ao lado da maca. Deitada embaixo de vários cobertores, Payne estava imobilizada, com a cabeça em um bloco e um colar cervical que ia do queixo à clavícula. Uma intravenosa ligava o braço dela a uma bolsa pendurada em uma extremidade de aço inoxidável e havia uma tubulação embaixo conectada ao cateter que Ehlena lhe dera.
Mesmo a sala de azulejos sendo clara, limpa e brilhante e os equipamentos e suprimentos médicos tão ameaçadores quanto xícaras e pires em uma cozinha, parecia que estavam em uma caverna suja cercados por ursos.
Seria tão bom se pudesse sair e matar o filho da mãe que tinha colocado sua irmã naquela condição. O problema era... isso significava que teria de acabar com Wrath, e que grande confusão essa morte traria. O maldito filho da mãe não era apenas o Rei, era um Irmão... e esse era o pequeno detalhe pelo qual a estadia dela ali havia sido consensual. As sessões de luta que os dois vinham travando nos últimos dois meses os deixaram em forma – e, claro, Wrath não fazia ideia com quem lutava, pois estava cego. Uma fêmea? Bem, dedução óbvia. As sessões aconteciam do Outro Lado e não havia machos por lá. Mas a falta de visão do Rei significava que ele perdia o que V. e todos os outros observavam ao entrarem naquela sala: a longa trança preta de Payne era da cor exata do cabelo de V. e sua pele do mesmo tom que a dele, tinha a mesma constituição: alta, magra e forte. Mas os olhos... cara, os olhos.
V. esfregou o rosto. Seu pai, Bloodletter, teve um número incontável de bastardos antes de ser assassinado em uma batalha contra redutores no Antigo País. Mas V. não se importava com nenhuma dessas relações aleatórias com as fêmeas.
Payne era diferente. Os dois tinham a mesma mãe e não era uma mahmen qualquer. Era a Virgem Escriba. A grande mãe da raça.
Era uma vadia, isso sim.
O olhar de Payne deslocou-se e a respiração de V. saiu com dificuldade. A íris que o encontrou era da cor de gelo branco, assim como a sua, e a borda azul-marinho em torno dela era algo que via todas as noites no espelho. E a inteligência... a inteligência que havia nas profundezas árticas daquela brancura era exatamente a mesma que havia dentro dele também.
– Não consigo sentir nada – Payne disse.
– Sei. – V. repetiu balançando a cabeça: – Eu sei.
Sua boca se contorceu e exibiu algo que poderia ter sido um sorriso em outras circunstâncias.
– Pode falar no idioma que quiser – disse com um inglês bem marcado. – Sou fluente em... muitos.
Ele também. O que significava que era incapaz de formular uma resposta em dezesseis línguas diferentes. Maravilha.
– Sua shellan... já lhe disse alguma coisa? – disse pausadamente.
– Não. Gostaria de tomar mais analgésicos? – Ela parecia mais fraca que da última vez que a vira.
– Não, obrigada. Eles fazem com que eu me sinta... estranha.
Essa frase foi seguida por um longo silêncio. Que ficou mais longo. E ainda mais longo.
Cristo, talvez ele devesse segurar a mão dela – afinal, ela podia sentir algo acima da cintura. Sim, mas o que poderia oferecer com essa atitude? Sua mão esquerda estava tremendo e a direita era mortal.
– Vishous, o tempo não está...
Quando sua irmã gêmea deixou a frase pairando no ar, ele a terminou mentalmente: do nosso lado.
Ele queria que ela estivesse errada. Contudo, quando se trata de lesões na coluna, assim como derrames e ataques cardíacos, boas oportunidades de recuperação são perdidas a cada minuto que o paciente passa sem tratamento.
Era melhor que aquele humano fosse tão bom quanto Jane havia dito.
– Vishous?
– Sim?
– Gostaria que eu não tivesse vindo até aqui?
Franziu a testa com força.
– De que diabos está falando? Claro que gostaria de ter você comigo.
Enquanto seu pé ficava batendo no chão de nervosismo, perguntou quanto tempo mais precisaria ficar antes que pudesse sair para outro cigarro. Simplesmente não ia conseguir respirar enquanto estivesse sentado ali, sem poder fazer nada enquanto sua irmã sofria e seu cérebro engasgava-se com as perguntas. Tinha um milhão de “o que?” e “por que” instalados em sua cabeça, só que não podia perguntar nada para ninguém. Parecia que Payne poderia entrar em coma a qualquer momento por causa da dor, portanto, não era uma boa hora para se fazer um social, cheio de perguntas, com direito a cafezinho.
Caramba, os vampiros podiam se curar como um relâmpago, mas não eram imortais.
Poderia muito bem perder sua irmã gêmea antes de sequer conhecê-la melhor.
Seguindo esse raciocínio, ele deu uma olhada para ver seus sinais vitais no monitor. A raça vampira tinha pressão sanguínea baixa, mas a dela estava quase ao nível do chão. A pulsação estava lenta e irregular, como uma bateria de escola de samba formada apenas por garotos brancos. E o sensor de oxigênio teve de ser silenciado, pois o alarme de alerta soava continuamente.
Quando seus olhos se fecharam, ele temeu que fosse a última vez... e o que havia feito por ela? Nada, exceto gritar quando lhe fizera uma pergunta.
Inclinou-se para mais perto dela, sentindo-se um idiota.
– Tem de aguentar firme, Payne. Estou tentando conseguir o que você precisa, mas você tem de ser forte.
As pálpebras de sua irmã ergueram-se e ela olhou para ele de sua cabeça imóvel.
– Trouxe muitos inconvenientes a sua casa.
– Não se preocupe comigo.
– Isso é o que sempre fiz.
V. franziu a testa outra vez. Era evidente que toda essa coisa de irmão/irmã era uma novidade apenas para ele. Tinha de descobrir como, diabos, ela sabia sobre ele.
E o que sabia.
Droga, lá estava outro momento em que desejaria ser menos durão.
– Está tão confiante nesse curandeiro que procura – ela murmurou.
Ah, não mesmo. A única coisa de que tinha certeza era que se o desgraçado a matasse haveria um funeral duplo naquela noite... assumindo que haveria alguma coisa restante do humano para enterrar ou queimar.
– Vishous?
– Minha shellan confia nele.
Os olhos de Payne ergueram-se e ficaram assim. Será que ela estava olhando para o teto?, V. se perguntou. Seria a lâmpada cirúrgica que havia sobre ela? Algo que ele não conseguia ver?
Num determinado momento, ela disse:
– Pergunte-me quanto tempo passei nas mãos de nossa mãe.
– Tem certeza de que tem forças para isso? – Quando ela olhou para tudo a seu redor, exceto para ele, quis sorrir. – Quanto tempo?
– Em que ano estamos na Terra? – Quando ele respondeu, seus olhos se arregalaram. – De fato. Bem, foram centenas de anos. Fui aprisionada pela nossa mahmen por... centenas de anos da minha vida.
Vishous sentiu as pontas de suas presas formigarem de raiva. Aquela mãe deles... Já deveria saber que a paz que tinha encontrado com sua fêmea não duraria muito.
– Está livre agora.
– Estou – olhou para baixo em direção às pernas. – Não conseguirei viver em outra prisão.
– Isso não vai acontecer.
Então, aquele olhar gélido tornou-se astuto.
– Não posso viver assim. Entende o que estou dizendo?
O interior dele congelou completamente.
– Ouça, vou trazer aquele médico até aqui e...
– Vishous – ela disse com voz rouca. – De fato, faria isso se pudesse, mas não posso e não há outra pessoa a quem possa recorrer. Você me entende?
Quando encontrou os olhos dela, quis gritar, suas entranhas se contorceram, gotas de suor brotaram em sua testa. Era um assassino por natureza e treinado para isso, mas aquela não era uma habilidade que tinha a intenção de praticar com alguém de seu sangue. Bem, tirando sua mãe, claro. Talvez seu pai, só que o cara tinha morrido por conta própria.
Certo, reformulando a frase: não era algo que exerceria com sua irmã.
– Vishous. Você...?
– Sim. – Olhou para baixo, para sua mão amaldiçoada e flexionou o maldito pedaço de seu corpo. – Eu entendo.
Dentro de sua pele, em sua essência, seu eixo interno começou a vibrar. Era o tipo de coisa pela qual se tornou intimamente familiarizado ao longo de sua vida... e também era um choque total. Não tinha sentido aquilo desde que Jane e Butch apareceram; e voltar a sentir era... terrível!
No passado, isso o levaria direto aos trilhos do sexo perigoso e hard-core, ficaria à beira do abismo.
Só que na velocidade do som.
A voz de Payne era fraca:
– O que me diz?
Droga, ele tinha acabado de conhecê-la.
– Sim – flexionou sua mão mortal. – Vou cuidar de você. Se chegarmos a isso.
Quando Payne olhou em direção à gaiola que era seu corpo meio-morto, o perfil sombrio de seu irmão gêmeo era tudo o que conseguia enxergar e desprezou-se pela posição em que o colocou. Gastou muito tempo desde que tinha chegado àquele lado tentando descobrir outra saída, outra opção, outra... qualquer coisa.
Mas o que ela precisava era algo que não se podia pedir a um estranho.
Por outro lado, ele era um estranho.
– Obrigada, meu irmão – ela disse.
Vishous assentiu com a cabeça uma vez e voltou a olhar para frente. Na verdade, ele era muito mais que a soma de suas características faciais e do enorme tamanho de seu corpo. Até bem pouco tempo atrás, quando aprisionada por sua mahmen, teve de observá-lo por muito tempo nas tigelas do santuário das Escolhidas e soube quem ele era no instante em que surgiu naquela água rasa; tudo o que teve de fazer foi olhar para ele e enxergar a si própria.
Que vida ele levou. Começando com o campo de guerra e a brutalidade de seu pai... e agora isso.
Sob sua postura fria, ele vociferava. Podia sentir em seus ossos uma ligação entre eles que lhe dava uma visão que ia além daquilo que seus olhos conseguiam lhe informar: por fora, estava contido como uma parede de tijolos, seus componentes todos em ordem e encaixados no lugar; no entanto, por dentro, ele fervia... e a dica externa era sua mão direita enluvada. Por baixo do acessório, uma luz brilhava... e ficava cada vez mais brilhante – especialmente depois que fizera o pedido.
Ela percebeu que aquele poderia ser o único momento que teriam juntos, e seus olhos fecharam-se outra vez.
– Está unido a uma fêmea curadora? – Ela murmurou.
– Sim.
Quando houve apenas silêncio, ela desejou poder encará-lo, mas ficou claro que respondeu apenas por educação. Ainda assim, acreditou nele quando disse que estava contente por estar ali. Ele não diria uma mentira assim, não por que se preocupasse com a moral ou a ética, mas sim porque viu que tal esforço seria um desperdício de tempo e energia.
Payne deitou seus olhos outra vez sobre a cabeça dele, que parecia ter um anel de fogo sobre ela. Desejou que segurasse sua mão ou a tocasse de alguma maneira, mas já havia feito pedidos demais.
Deitada sobre a maca com rodas, seu corpo parecia muito estranho, pesado e leve ao mesmo tempo, e sua única esperança eram os espasmos que corriam por suas pernas e faziam cócegas em seus pés, fazendo com que repuxassem. Certamente, se aquilo estava acontecendo nem tudo estava perdido, disse a si mesma.
Só que, mesmo quando acalentava tal pensamento, uma pequena e silenciosa parte de sua mente dizia que o telhado cognitivo que estava tentando construir não suportaria a chuva que estava prestes a cair em sua vida: quando movia as mãos, mesmo sem conseguir enxergá-las, podia sentir os lençóis frios e macios e a mesa lisa e gelada sobre a qual estava. Mas quando pedia que seus pés fizessem o mesmo... Era como se estivesse nas águas mornas e serenas das piscinas de banho do Outro Lado, encapsulada em um abraço invisível, sentindo absolutamente nada.
Onde estava aquele curandeiro?
O tempo... estava passando.
Quando a espera passou do insuportável para a extrema agonia, era difícil saber se a sensação de asfixia era devido a sua condição ou pelo silêncio da sala. Na verdade, ela e seu irmão gêmeo estavam mergulhados no silêncio... só que por razões muito diferentes: ela não iria a lugar algum, mesmo com muito entusiasmo; e ele estava prestes a explodir.
Desesperada por algum estímulo, alguma coisa, qualquer coisa, murmurou:
– Fale um pouco sobre o curandeiro que está chegando.
A brisa de ar frio que atingiu seu rosto e o aroma de especiarias escuras que percorreram seu nariz diziam que era um macho. Tinha de ser.
– É o melhor – Vishous murmurou. – Jane sempre fala dele como se fosse um deus. – O tom não era muito educado, mas o fato era que vampiros machos não gostavam muito de outros em torno de suas fêmeas.
Quem poderia ser esse dentre os machos da raça?, Payne perguntou-se. O único curandeiro que conseguira enxergar nas tigelas era Havers, e, com certeza, não havia razão alguma para procurarem por ele.
Talvez houvesse outro que ela não tinha observado; afinal, não passava tanto tempo tentando recuperar o atraso com o mundo e, de acordo com seu irmão gêmeo, haviam se passado muitos, muitos e muitos anos entre sua prisão e a liberdade...
De repente, a exaustão interrompeu sua linha de raciocínio, penetrando em sua medula, pressionando-a ainda mais sobre a mesa de metal.
No entanto, quando fechou os olhos, conseguiu suportar a escuridão apenas durante um rápido momento antes do pânico fazer suas pálpebras se abrirem. Enquanto estivera presa por sua mãe, tinha plena consciência de que poderia movimentar-se sem limites em um espaço livre; mas dentro daquele local opressivo, onde os minutos se arrastavam, aquela paralisia era muito parecida com o que tinha sofrido durante centenas de anos. Razão pela qual fizera aquele pedido terrível a Vishous. Não poderia ficar ali daquele lado apenas para reproduzir aquilo pelo que sempre havia lutado de maneira tão desesperada para escapar.
Lágrimas escorreram de seus olhos, fazendo com que a fonte de luz verde brilhante vacilasse. Como desejava que seu irmão segurasse sua mão...
– Por favor, não chore – disse Vishous. – Não... chore.
Na verdade, ficou surpresa por ele ter notado.
– Sim, você está certo. Chorar não cura nada.
Aumentando sua força de vontade, buscou ser forte, mas foi uma batalha. Embora seu conhecimento das artes medicinais fosse limitado, uma lógica simples anunciava onde estava o erro: como era de uma linhagem extremamente forte, seu corpo começou a recuperar-se no momento em que havia sido ferida na sessão de luta com o Rei Cego; contudo, o problema era que o processo regenerativo, que em uma situação comum salvaria sua vida, tornava sua condição ainda mais terrível – e era muito provável que aquilo fosse permanente.
Vértebras quebradas tentando se regenerar não conseguiam alcançar um resultado muito bom, e a paralisia em suas pernas era um testemunho desse fato.
– Por que fica olhando o tempo todo para sua mão? – ela perguntou, ainda olhando para a luz.
Houve um momento de silêncio, superior a todos os outros.
– Por que acha que estou fazendo isso?
Payne suspirou.
– Porque o conheço, meu irmão. Sei tudo sobre você.
Quando ele não disse nada, o silêncio era tão agradável quanto os inquéritos que havia no Antigo País.
Oh, o que será que ela havia desencadeado? E onde todos estariam quando tudo chegasse ao fim?
CAPÍTULO 3
Algumas vezes, a única maneira de se saber quão longe se foi é voltando ao ponto de onde se iniciou.
Quando Jane Whitcomb, médica, entrou no complexo hospitalar São Francisco, foi sugada de volta a sua antiga vida. De alguma maneira, foi uma viagem curta – há apenas um ano ela era a chefe do departamento de traumatologia daquele lugar, morava em um apartamento cheio de coisas de seus pais, passando vinte horas por dia correndo entre a emergência e as salas de cirurgia. Não mais.
Um indício certo de que a mudança era definitiva foi a maneira como ela entrou no centro cirúrgico: não havia razão para preocupar-se com as portas giratórias ou aquelas que precisavam ser empurradas na recepção. Ela atravessou as paredes de vidro e passou despercebida pelos seguranças que estavam no balcão. Fantasmas são bons nisso.
Desde que fora transformada, conseguia ir a lugares e ultrapassar coisas sem que ninguém fizesse ideia de que estava por perto. Mas também poderia ficar tão corpórea quanto a pessoa ao lado, assumindo uma forma sólida, de acordo com a sua vontade. Em dado momento era absolutamente etérea; em outro, era como a humana que havia sido, capaz de comer, amar e viver. Isso era uma grande vantagem ao exercer o cargo de cirurgiã particular da Irmandade.
Como agora, por exemplo: de que outra maneira ela seria capaz de se infiltrar no mundo dos humanos outra vez sem quase nenhum barulho?
Percorrendo o chão de pedra polida da recepção, passou pela parede de mármore onde estava inscrito o nome dos benfeitores e abriu caminho pela multidão de pessoas. Naquele congestionamento humano, muitos rostos eram familiares, desde o pessoal da administração até os médicos e enfermeiros com quem trabalhou durante anos. Mesmo anônimos, os pacientes estressados e suas famílias pareciam íntimos dela... de alguma maneira, as máscaras de tristeza e preocupação eram as mesmas, não importava quais fossem as características faciais que as moldavam.
Quando se dirigiu às escadas, estava buscando seu antigo chefe, e, Cristo, teve vontade de rir. Ao longo de todos aqueles anos trabalhando juntos, tinha surpreendido Manny Manello de muitas maneiras; mas aquilo ia superar vários acidentes de carro, avião ou uma explosão de edifício. Tudo isso junto.
Flutuando ao atravessar uma saída de emergência de metal, ela subiu a escada dos fundos. Os pés não tocavam os degraus, pairavam sobre eles enquanto subia como fumaça, sem esforço algum.
Aquilo tinha de funcionar. Tinha que convencer Manny a lhe acompanhar para cuidar daquela coluna lesionada, e ponto final. Não havia outras opções, nada de imprevistos, nada de virar à direita ou à esquerda naquela estrada: aquele era o passe final... e estava rezando para que o goleiro não pegasse aquela bola.
Que bom que ela tinha um bom desempenho sob pressão e que conhecia aquele homem como a palma de sua mão.
Manny aceitaria o desafio; mesmo isso não fazendo sentido algum para ele, ficaria lívido por saber que ela ainda estava “viva”. Além disso, não seria capaz de recusar ajuda a um paciente necessitado – simplesmente não estava programado para isso.
No décimo andar, atravessou outra parede e entrou na seção administrativa do departamento cirúrgico. O local era equipado como um escritório de advocacia, todo escuro, sombrio e luxuoso. Fazia sentido: o centro cirúrgico era uma fonte enorme de renda para qualquer hospital universitário, e o dinheiro era gasto para recrutar, manter e abrigar aqueles seres mimados e arrogantes que abriam pessoas para que elas sobrevivessem mais.
Dentre o grupo que operava com os bisturis no Hospital São Francisco, Manny Manello estava no topo da pirâmide, chefe não apenas de uma subespecialidade, como ela tinha sido, mas de todo o conjunto da obra. Isso significava que era uma estrela de cinema, um sargento e o presidente dos Estados Unidos ao mesmo tempo, tudo isso englobado em um cara com pouco mais de um metro e oitenta de altura. Tinha um temperamento terrível, uma inteligência impressionante e um pavio de mais ou menos um milímetro de comprimento, e isso em um dia bom. E seu trabalho era tão valioso quanto uma pedra preciosa.
As operações de maior rentabilidade do cara sempre foram aquelas feitas em atletas profissionais: ele tratou vários joelhos, quadris e ombros que teriam provocado muitos finais de carreira no futebol, baseball ou no hóquei. Mas também tinha muita experiência com tratamentos de coluna e, apesar da atuação de um neurocirurgião ser interessante se considerasse as radiografias de Payne, aquele era um problema ortopédico: se a medula espinhal fosse rompida, nada do que fizessem em termos neurológicos ajudaria. A ciência médica não tinha avançado tanto assim.
Quando dobrou a extremidade da mesa de recepção, teve de parar. À esquerda estava seu antigo escritório, o lugar onde passava horas incontáveis lidando com papéis e fazendo reuniões de consulta com Manny e o resto da equipe. Agora, lia-se o nome na placa fixada na porta: DR. THOMAS GOLDBERG, CIRUGIÃO-CHEFE DO DEPARTAMENTO DE TRAUMATOLOGIA.
Goldberg era uma excelente escolha; ainda assim, por alguma razão, doía ver o nome de outra pessoa ali.
Mas até parece. Esperava que Manny preservasse sua mesa e seu escritório como um monumento em homenagem a ela? A vida continua. A dela. A dele. A do hospital.
Voltando à realidade da situação, caminhou pelo corredor acarpetado. Mexia sempre em seu jaleco branco, com a caneta em seu bolso e com o celular que, até agora, não havia tido motivos para usar. Não havia tempo para explicar seu retorno do mundo dos mortos ou persuadir Manny ou ajudá-lo a entender o que estava prestes a expor; e não havia escolha, mas, de alguma forma, tinha de levá-lo com ela.
Em frente à porta fechada, preparou-se e, em seguida, atravessou...
Ele não estava atrás da mesa, ou trabalhando em algo na mesa de conferências da sala de reuniões.
Verificou rapidamente em seu banheiro privativo... nada ali também... não havia nenhuma umidade nas portas de vidro ou toalhas molhadas sobre a pia.
De volta ao escritório, ela respirou fundo... e o aroma suave de sua loção pós-barba pairando no ar a fez engolir em seco. Deus, sentia a falta dele.
Balançando a cabeça, andou ao redor da mesa e olhou a desordem. Arquivos de pacientes, pilhas de memorandos interdepartamentais, relatórios de Assistência ao Paciente e de Avaliação de Qualidade. Como era um pouco depois das cinco da tarde de um sábado, esperava encontrá-lo ali: as provas de seleção não eram realizadas nos finais de semana; então, a menos que estivesse de plantão ou lidando com um algum caso na traumatologia, deveria estar bem ali atrás daquela confusão de papéis. Manny era workaholic: trabalhava vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana.
Saindo do escritório, verificou a mesa de sua secretária. Nada ali também: seus compromissos eram mantidos no computador, protegidos por senha.
A próxima parada era o centro cirúrgico. O São Francisco tinha diferentes níveis de salas de operação, todas organizadas por especialidades. Ela foi diretamente à seção que ele costumava atuar. Olhando pelas janelas de vidro e portas duplas, viu que estavam operando uma terrível fratura múltipla. Embora os cirurgiões usassem máscaras e toucas, poderia dizer que nenhum deles era Manny. Seus ombros eram grandes o suficiente para esticar até mesmo o maior uniforme cirúrgico disponível e, além disso, as músicas que soavam ao fundo não eram o estilo dele. Mozart? Sem chance. Pop? Nem morto: Manny ouvia rock clássico e heavy metal. Aliás, se não fosse contra o protocolo, os enfermeiros usariam um protetor de ouvidos durante todos os procedimentos com ele.
Caramba... Onde diabos estava? Não havia conferências naquela época do ano e ele não tinha vida fora do hospital. As únicas opções que restavam era que estivesse no Commodore: desmaiado de cansaço no sofá de seu apartamento ou na academia do arranha-céu.
Quando saiu dali, pegou o celular e ligou para o sistema de atendimento do hospital.
– Sim, alô? – disse quando a ligação foi atendida. – Gostaria de falar com o Dr. Manuel Manello. Meu nome? – que droga! – Ah... Hannah. Hannah Whit. Pode retornar a ligação neste número.
Quando desligou, percebeu que não fazia ideia do que dizer caso ele retornasse a ligação, mas resolveu dar destaque ao pensamento positivo... e rezou para que tivesse a habilidade inata de realizar aquela tarefa. O fato era: se o sol baixasse no horizonte, um dos Irmãos sairia do complexo e faria algum trabalho mental em Manny para facilitar o processo de levá-lo até lá.
Contudo, não seria Vishous. Outra pessoa. Qualquer pessoa. Seus instintos diziam-lhe para deixar os dois tão afastados quanto possível: já tinham uma emergência médica em processo, e a última coisa de que precisava era de seu antigo patrão sendo pressionado porque seu marido tinha um instinto territorial e poderia decidir rachar, ele próprio, uma coluna a qualquer momento. Pouco antes de sua morte, Manny estava interessado em mais do que apenas uma associação profissional com ela; portanto, a menos que tivesse se casado com uma das Barbies que insistia em namorar, provavelmente ainda estava solteiro... E a regra dizia que o coração ficava ainda mais afeiçoado à pessoa ausente; então, seus sentimentos devem ter persistido.
Por outro lado, era possível que a insultasse sem piedade por mentir para ele sobre toda a coisa de estar “morta e enterrada”.
Pelo menos ele não se lembraria de nada daquilo; contudo, quanto a ela, temia nunca mais se esquecer das próximas vinte e quatro horas.
O Hospital Equino Tricounty era uma instalação de última geração em todos os sentidos. Localizado a quinze minutos do hipódromo de Aqueduct, o local tinha tudo, desde salas de operação e um serviço completo de quartos de recuperação até piscinas para hidroterapia e exames que forneciam imagens avançadas. E seu quadro de funcionários era composto por pessoas que viam os cavalos como muito mais do que uma fonte de lucros sobre quatro patas.
Na sala de cirurgia, Manny analisava as radiografias da perna dianteira de sua garota e desejou ser o único a entrar ali para resolver o problema: conseguia ver claramente as fissuras na imagem, mas isso não era o que o preocupava. Havia vários ligamentos que haviam sido rompidos e manchas acentuadas orbitando ao redor dos centros nervosos do osso alongado que mais pareciam luas ao redor de um planeta.
Só porque ela era de outra espécie não significava que não poderia fazer a operação. Assim que o anestesista fizesse seu trabalho em segurança, ele poderia cuidar do resto. Osso era sempre osso; mas não bancaria o idiota.
– O que acha? – perguntou.
– Minha opinião profissional – respondeu o veterinário-chefe – é de que está muito ruim. É uma fratura múltipla deslocada. O tempo de recuperação será extenso e não é possível garantir que ela sequer possa reproduzir.
O que era uma zica total: cavalos foram feitos para ficar em pé com seu peso distribuído sobre quatro pontos de maneira uniforme. Quando uma perna era quebrada, não se tratava tanto da lesão em si, mas o fato de que era preciso redistribuir o peso e contar, desproporcionalmente, com as partes que ainda estavam boas no corpo para ficar em pé. E esse era o grande problema.
Ao considerar aquilo que examinava, a maioria dos proprietários escolheria a eutanásia; mas sua garota tinha nascido para correr, e aquela lesão catastrófica faria disso impossível, mesmo se fosse apenas para o lazer... isso se ela sobrevivesse. Como médico, estava muito familiarizado com a crueldade do trabalho “salvador” de seus colegas que acabavam levando o paciente a viver em condições piores do que a morte – ou não faziam nada além de prolongar, de maneira dolorosa, o inevitável.
– Dr. Manello? O senhor ouviu o que eu disse?
– Sim. Ouvi. – Pelo menos aquele cara, ao contrário do idiota na pista, parecia tão arrasado quanto Manny.
Afastando-se, foi até onde a deitaram e colocou uma das mãos sobre sua bochecha arredondada. Sua pelagem negra brilhava sob a iluminação e, em meio ao cenário de ladrilho claro e aço inoxidável, parecia uma sombra projetada ao acaso e esquecida no centro da sala.
Por um longo momento, observou como sua grande caixa torácica expandia-se e contraía-se com a respiração. Só de vê-la na maca com as belas pernas esticadas como bastões e sua cauda pendendo sobre o ladrilho fê-lo perceber que animais como ela deveriam ficar em pé: aquilo que via era completamente contrário à natureza, e injusto.
Mantê-la viva apenas para que não tivesse de enfrentar sua morte não era a resposta certa.
Preparando-se para a situação, Manny abriu a boca...
A vibração dentro do bolso de seu terno o interrompeu. Com um palavrão, tirou o celular e verificou. Era do hospital. Hannah Whit? Com um número desconhecido?
Não era ninguém que conhecesse e ele não estava de plantão.
Provavelmente um erro do atendimento.
– Quero que opere – ouviu-se dizendo enquanto guardava o telefone de volta.
O curto silêncio que se seguiu deu-lhe tempo de sobra para perceber que impedi-la de partir cheirava a covardia. Mas não poderia insistir naquele melodrama psíquico ou perderia a sanidade.
– Não posso garantir nada. – O veterinário voltou a olhar as radiografias. – Não sei dizer o que vai acontecer, mas posso jurar que... farei meu melhor.
Deus, agora sabia como as famílias se sentiam quando dizia isso a elas.
– Obrigado. Posso assistir?
– Com certeza. Vou pegar algo para o senhor vestir e sabe como fazer a higienização antisséptica, certo, doutor?
Vinte minutos depois, a operação começou e Manny assistiu próximo à cabeça de Glory, acariciando sua crina com as mãos envolvidas com as luvas de látex, mesmo sedada. Enquanto o veterinário-chefe trabalhava, Manny teve de tirar o chapéu para a metodologia e habilidade daquele homem... as únicas coisas corretas desde que Glory havia caído. O procedimento terminou em menos de uma hora, com os fragmentos ósseos ou removidos ou encaixados no devido lugar. Então, imobilizaram a perna, retiraram a égua da sala de cirurgia e a colocaram em uma piscina para que não quebrasse outra perna quando o efeito da anestesia passasse.
Manny ficou com ela até que acordasse e, em seguida, acompanhou o veterinário até o corredor.
– Os sinais vitais são bons e correu tudo bem na operação – o veterinário disse –, mas essa vitalidade pode mudar rapidamente. E vai levar tempo até sabermos o que conseguimos alcançar.
Nossa. Aquele pequeno discurso era exatamente o que dizia aos familiares mais próximos e outros parentes quando achava que era hora de irem para casa descansar e esperar como o paciente reagiria ao pós-operatório.
– Ligaremos para o senhor – falou o veterinário. – Vamos mantê-lo informado.
Manny tirou as luvas e pegou seu cartão de visitas.
– No caso de ainda não terem todos os meus dados nos registros.
– Temos sim – de qualquer forma, pegou o papel. – Se alguma coisa mudar, será o primeiro a saber, e lhe darei as informações pessoalmente, a cada doze horas, que é o intervalo entre as minhas rondas, quando passo visitando todos os leitos.
Manny assentiu e estendeu a mão.
– Obrigado. Por cuidar dela.
– Por nada.
Depois de apertarem as mãos, Manny assentiu outra vez junto às portas duplas.
– Importa-se se eu me despedir dela?
– Não. Pode ir.
Dentro do quarto outra vez, passou um momento com sua égua. Deus... aquilo doía.
– Segure firme, garota – teve de sussurrar, pois não conseguia respirar direito.
Quando se ergueu, a equipe o observava com uma tristeza que sabia que ia permanecer.
– Vamos cuidar dela. – o veterinário disse gravemente.
Acreditava mesmo que cuidariam e foi a única coisa que o levou de volta ao corredor.
As instalações do Tricounty eram extensas e precisou de um tempo considerável para trocar de roupa e seguir seu caminho até a saída onde tinha estacionado, próximo à porta da frente. À frente, o sol se punha, um brilho de um tom pêssego se espalhava, iluminando o céu como se Manhattan estivesse em chamas. O ar estava frio, mas perfumado, pois o início da primavera esforçava-se para trazer vida à paisagem árida do inverno, e ele respirou tão fundo que ficou tonto. Deus, o tempo tinha passado como uma neblina, mas agora, com os minutos se arrastando, percebeu que aquele ritmo frenético tinha esgotado sua fonte de energia. Era isso ou tinha batido contra um muro de tijolos e desmaiado.
Enquanto procurava a chave do carro, sentiu-se mais velho do que Deus. Sua cabeça estava dando fortes pontadas e sua artrite no quadril o estava matando. Aquela corrida que havia empreendido para chegar à pista e ficar ao lado de Glory ia além de seus limites.
Não foi assim que imaginou o final do dia. Achou que estaria comprando bebidas para os proprietários que tinha derrotado... E talvez, no resplendor da vitória, seguisse a generosa sugestão oral da Sra. Hanson.
Ao entrar no carro, ligou o motor. Caldwell estava a mais ou menos quarenta e cinco minutos ao norte de Queens, e seu carro conseguia fazer a viagem de volta ao Commodore praticamente sozinho. Isso era muito bom, pois era quase um zumbi naquele momento. Nada de rádio. Nenhuma música no iPod. Ninguém telefonando também.
Ao pegar a estrada, observou o caminho à frente e lutou contra o impulso de dar meia-volta e... sim, e fazer o quê? Descansar em paz ao lado de seu cavalo?
A questão era: se conseguisse chegar em casa logo, poderia conseguir ajuda. Tinha uma garrafa de uísque esperando por ele e poderia ou não ir com calma ao usá-la. Até onde dizia respeito ao hospital, estava de folga até segunda pela manhã, às seis horas, e tinha planos de ficar bêbado e permanecer assim.
Guiando o volante revestido de couro com uma das mãos, procurou, com a outra, em meio a sua camisa de seda, sua representação do Cristo crucificado. Segurando a cruz de ouro, fez uma oração.
Deus... por favor, permita que ela fique bem.
Não poderia suportar perder outra de suas garotas. Não tão cedo. Jane Whitcomb tinha morrido há um ano, mas isso era o que o calendário dizia. O tempo do luto era diferente – nele havia transcorrido apenas um minuto e meio.
Não queria passar por isso outra vez.
CONTINUA
1761, ANTIGO PAÍS
Xcor viu seu pai sendo morto após cinco anos de sua transição. Aconteceu diante de seus olhos, mas, mesmo com a proximidade, não poderia imaginar o que houve.
A noite começou como qualquer outra, a escuridão caiu sobre a paisagem de florestas e cavernas, as nuvens encobriam a luz da lua para ele e para aqueles que viajavam a cavalo com ele. Seu grupo de soldados era composto por seis homens fortes: Throe, Zypher, os três primos e ele próprio. E seu pai.
Bloodletter.
Antigo membro da Irmandade da Adaga Negra.
O que os fez sair naquela noite foi o que os chamava ao serviço após cada pôr de sol: procuravam redutores, aquelas armas sem alma de Ômega, que achou por bem exterminar a raça vampira. E os encontravam. Frequentemente.
Mas aqueles sete machos não eram membros da Irmandade.
Ao contrário dos aclamados Irmãos, eram um grupo secreto de guerreiros. Aquele grupo de bastardos liderados por Bloodletter não era nada além de soldados: sem cerimônias. Nada de serem adorados pela população civil. Nada de louvores. A linhagem deles poderia ser aristocrática, mas todos foram abandonados por seus familiares por terem nascido com defeitos ou fora de um acasalamento santificado.
Nunca seriam outra coisa senão pedaços de carne dispensáveis dentro da grande guerra pela sobrevivência.
Porém, mesmo isso sendo verdade, eram a elite dos soldados, os mais cruéis, os braços mais fortes, aqueles que foram provados ao longo do tempo pelo feitor mais rígido da raça: o pai de Xcor. Escolhidos a dedo e com sabedoria, esses homens eram mortais contra o inimigo e não seguiam nenhum código de conduta quando se tratava da sociedade vampira. Também não seguiam nenhum código quando se tratava de matar alguém: não importava se a presa era um assassino, um humano, um animal ou um lobo. Sangue seria derramado.
Eles fizeram um, e apenas um, juramento: seu pai era o senhor deles e ninguém mais. Aonde quer que ele fosse, eles iriam, e isso era tudo. Muito mais simples que toda aquela porcaria elaborada pela Irmandade – mesmo Xcor sendo um candidato por linhagem, não teve interesse em ser um Irmão. Não se importava com a glória, uma vez que nada se comparava ao doce prazer do assassinato. Melhor deixar de lado a tradição inútil e o ritual desgastado para aqueles que se recusam a empunhar qualquer outra coisa que não seja uma adaga negra.
Usaria qualquer arma disponível.
E seu pai faria o mesmo.
O clamor dos cascos abrandou e depois ficaram em silêncio quando os lutadores saíram da floresta em um enclave de carvalhos e arbustos. A fumaça das lareiras das casas pairava na brisa, mas não havia nenhuma outra confirmação de que tinham chegado, finalmente, à pequena cidade que procuravam: no alto, sobre um íngreme penhasco, havia um castelo fortificado que se apresentava como uma águia empoleirada, sua fundação era como garras fincadas na rocha.
Humanos. Guerreando entre si.
Que entediante.
Ainda assim, era preciso respeitar a construção. Talvez, se Xcor se estabelecesse algum dia, massacraria a dinastia daquele lugar e tomaria posse daquela fortaleza. Muito mais eficiente roubar que construir.
– Para a aldeia – seu pai ordenou. – Avancemos para a diversão.
A notícia era de que havia redutores ali, as bestas pálidas misturavam-se e confundiam-se com os moradores do vilarejo que tinham escavado lotes de terra e construído casas de pedra à sombra do castelo.
Isso era uma típica estratégia de recrutamento da Sociedade: infiltrar-se em uma cidade, tomar os machos um a um, assassinar ou vender as mulheres e crianças, fugir com armas e cavalos e mudar-se para uma localidade próxima em maior número.
Xcor tinha a mesma mentalidade do inimigo nesse aspecto: quando acabava de lutar, sempre pegava tudo o que podia antes de dirigir-se para a próxima batalha. Noite após noite, Bloodletter e seus soldados abriam caminho ao longo do território que os seres humanos chamavam de Inglaterra e, quando alcançavam a ponta do território escocês, viravam-se e colocavam-se em direção oposta, indo sempre para o sul, até chegarem ao calcanhar da Itália, quando davam meia-volta outra vez. Em seguida, percorriam novamente os muitos quilômetros que tinham caminhado até ali. E faziam isso de novo. E mais outra vez.
– Deixemos nossas provisões aqui. – disse Xcor, apontando para uma árvore de tronco grosso, que havia caído sobre um riacho.
Enquanto faziam a transferência dos modestos suprimentos, não havia nada além do ranger de couro e do bufar ocasional de um garanhão. Quando tudo estava guardado sob o flanco do carvalho abatido, montaram outra vez sobre seus animais e reuniram os cavalos de raça – que eram as únicas coisas de valor, além de armas, que possuíam. Xcor não via utilidade em objetos de beleza ou conforto – para ele, eram nada além de um peso que o induzia à queda. Um cavalo forte e um punhal afiado? Isso sim tinha um valor inestimável.
Enquanto os sete andavam até a aldeia, não fizeram qualquer esforço para silenciar as batidas dos cascos de seus cavalos. Contudo, não houve gritos de guerra. Era um desperdício de energia, seus inimigos não precisavam de um convite para vir saudá-los. O único ato de boas-vindas foi um humano ou dois espiando para fora de suas portas e, em seguida, voltando rapidamente a trancarem-se em seus domicílios. Xcor os ignorou. Em vez de importar-se com isso, examinou as casas baixas de pedra, a praça central e as lojas de comércio fortificadas, procurando por alguma forma bípede, pálida como um fantasma e fedendo como um cadáver revestido em melado.
Seu pai andou até ele e sorriu com um toque de maldade.
– Talvez possamos colher os frutos dos jardins por aqui mais tarde.
– Talvez. – murmurou Xcor enquanto seu cavalo jogava a cabeça para trás. Na verdade, não estava muito interessado em deitar-se com fêmeas ou subjugar machos, mas não se podia negar nada a seu pai, mesmo quando se tratava de suas extravagâncias na hora do lazer.
Sinalizando com as mãos, Xcor direcionou três de seu grupo para a esquerda, onde havia uma pequena estrutura com uma cruz em cima de seu telhado pontiagudo. Ele e os outros seguiriam à direita. Seu pai faria o que quisesse. Como sempre.
Forçar os garanhões a permanecer em um galope contínuo era uma tarefa que desafiava até mesmo o mais vigoroso dos braços, mas estava acostumado com o cabo de guerra e sentou-se com firmeza na sela. Com um propósito sombrio, seus olhos penetraram as sombras produzidas pelo luar, procurando, sondando...
O grupo de assassinos que saiu do abrigo de ferragens possuía uma grande quantidade de armas.
– Cinco – Zypher rosnou. – Bendita noite.
– Três – Xcor interrompeu. – Dois ainda são seres humanos... porém, matar esses dois... também será um prazer.
– Qual devemos atacar, meu senhor? – Seu irmão de armas disse com um grande respeito que era dedicado por merecimento e não por ser o primogênito.
– Os humanos – Xcor disse, deslocando-se para frente e preparando-se para o momento em que incitaria seu cavalo a partir. – Se há outros redutores por perto, isso os atrairia ainda mais.
Estimulando o grande animal e afundando-se na sela, sorriu quando os redutores mantiveram-se firmes com suas correntes e armamentos. No entanto, as duas pessoas junto a eles não ficariam tão firmes. Embora os dois estivessem equipados para lutar, dariam meia-volta e correriam quando vissem a primeira exibição de presas como cavalos assustados por um tiro de canhão, razão pela qual deu um solavanco de forma abrupta para a direita logo após galopar apenas alguns passos. Atrás da cabana do ferreiro, puxou as rédeas e desmontou do corcel. Seu garanhão era um animal selvagem, mas obediente quando tratava-se de desmontar e aguardar...
Uma fêmea humana irrompeu pela porta dos fundos, sua camisola branca era como uma faixa brilhante na escuridão, enquanto esforçava-se para ficar em pé sobre a lama. No instante em que ela o viu, ficou paralisada de terror.
Reação lógica: ele era duas vezes o tamanho dela, talvez três, e não estava vestido para dormir, mas para a guerra. Quando a mão da fêmea ergueu-se até a garganta, ele farejou o ar e sentiu seu perfume. Hummm, talvez seu pai gostasse daquela flor de jardim...
Quando o pensamento lhe ocorreu, soltou um rosnado baixo que incitou a moça a uma corrida desenfreada; a visão da tentativa de fuga fez o predador dentro dele vir à tona. Com uma sede de sangue percorrendo suas entranhas, lembrou-se que havia se passado semanas desde que tinha se alimentado de alguém de sua espécie e, apesar daquela garota ser apenas uma humana, poderia ser o suficiente para aquela noite.
Infelizmente, não havia tempo para se divertir naquele momento... Apesar disso, seu pai iria atrás dela mais tarde, com certeza. Se Xcor precisava de um pouco de sangue para vencer as dificuldades, conseguiria tal fonte com aquela mulher, ou com qualquer outra.
Dando as costas para a fuga, parou com firmeza sobre o chão e desembainhou a arma escolhida: embora as adagas servissem, preferiu a foice, cabo longo e modificado para um coldre amarrado em suas costas. Era especialista em empunhar aquele grande peso e sorriu enquanto manejava ao vento a lâmina cruel e curvada, esperando para jogar a rede sobre aqueles dois peixes que, com certeza, estavam nadando até ele...
Ah, sim, como era bom estar certo.
Logo após uma luz brilhante surgir e um estalo eclodir da passagem principal, os dois humanos vieram gritando em direção aos fundos da casa do ferreiro como se estivessem sendo perseguidos por carrascos.
Mas estavam errados, não? O carrasco estava esperando ali.
Xcor não gritou ou amaldiçoou. Sequer rosnou. Começou a correr com a foice, havia um equilíbrio uniforme entre as duas mãos enquanto as coxas poderosas encurtavam a distância. Só de olhar para ele, os humanos derraparam em suas botas, braços soltos, como asas de patos pousando sobre a água.
O tempo pareceu desacelerar quando caiu sobre eles, sua arma favorita fez um grande círculo, atingindo os dois na altura do pescoço.
As cabeças foram decepadas com um golpe único e limpo. Os rostos surpresos brilharam e desapareceram à medida que a parte removida do corpo girava, o sangue espirrou e salpicou no peito de Xcor. Com a ausência de crânios, a parte inferior dos corpos caíram sobre o chão com uma graça curiosa e líquida, aterrissando inanimados com os membros retorcidos.
Agora sim ele gritava.
Virando-se, Xcor fixou suas botas de couro na lama, respirou fundo e soltou um rosnado enquanto manejava a foice, o aço avermelhado pedia mais sangue. Apesar de suas presas serem meros seres humanos, o impulso de matar era superior a um orgasmo, a sensação de que havia tirado uma vida e deixado cadáveres para trás percorria seu corpo como uma bebida alcoólica.
Chamou seu cavalo assoviando, que foi até ele rapidamente após o comando. Com um salto, montou na sela, a foice erguida em sua mão direita enquanto lidava com as rédeas com a esquerda. Dando um golpe com força, incitou o corcel ao galope, percorrendo rapidamente um caminho estreito e sujo e emergindo no auge da batalha.
Seus colegas lutavam com todas as forças, o som das espadas colidindo e gritos bombardearam a noite quando o demônio encontrou seu inimigo. E assim como Xcor havia previsto, mais uma meia dúzia de redutores veio correndo a toda velocidade sobre seus garanhões de raça, como leões que foram libertos para defender seu território.
Xcor entrou em cena e avançou contra o inimigo, envolvendo as rédeas no punho e brandindo a foice enquanto o cavalo corria em direção aos outros com os dentes à mostra. Sangue negro e partes de corpos voaram quando passou por entre os adversários, ele e seu cavalo trabalhavam como uma unidade naquele ataque.
Quando atingiu mais um assassino com sua lâmina e o cortou ao meio na altura do peito, soube que tinha nascido para fazer isso, era a maior e melhor maneira de usar seu tempo sobre a terra. Era um assassino, não um defensor.
Não lutava pela raça... mas por si mesmo.
Tudo aconteceu muito depressa, a névoa noturna rondava os redutores caídos, que contorciam-se em poças do próprio sangue oleoso e negro. Houve poucos feridos dentre o grupo de Xcor. Throe tinha um corte no ombro, feito por alguma lâmina. Zypher estava mancando, uma mancha vermelha escorria de sua perna, ensopando a bota. Nenhum deles estava mais lento ou mesmo preocupado.
Xcor deteve o cavalo, desmontou e voltou a colocar a foice no coldre. Sacou a adaga de aço e começou sua ronda para esfaquear os assassinos, lamentou o processo que enviava o inimigo de volta a seu criador. Queria mais luta, não menos...
Um grito ecoou e ele ergueu a cabeça. A mulher humana de camisola estava correndo pela estrada de terra batida do vilarejo, seu corpo pálido em uma fuga desgovernada, como se tivesse sido expulsa de um esconderijo. Logo atrás dela, o pai de Xcor montou em seu cavalo e galopou rápido; o corpo maciço de Bloodletter pendia em um dos lados da sela quando a alcançou. Na verdade, não houve, de fato, uma corrida: quando ficou ao lado dela, pegou-a com o braço e atirou-a sobre seu colo.
Não houve parada, nem mesmo uma diminuição da velocidade depois da captura, mas uma marca foi feita: com seu cavalo galopando a toda velocidade e a humana se debatendo, o pai de Xcor ainda conseguiu atingir a garganta delgada com suas presas, prendendo-se no pescoço da mulher como se fosse detê-la apenas com os caninos.
Ela teria morrido. Com certeza, ela teria morrido.
Se Bloodletter não tivesse morrido primeiro.
De fora do turbilhão do nevoeiro surgiu uma figura fantasmagórica como se fosse formada pelos filamentos de umidade que percorriam o ar. E no momento que Xcor viu o espectro, estreitou os olhos e valeu-se de seu olfato aguçado.
Parecia ser uma mulher. De sua espécie. Vestida com uma túnica branca.
E seu cheiro lembrou-o de algo que não conseguiu localizar.
Ela foi diretamente ao encontro de seu pai, mas parecia não ter a menor preocupação com o cavalo ou com o guerreiro sádico que logo viria atrás dela. No entanto, seu pai estava fascinado por ela. No instante em que a notou, largou a humana como se não fosse nada além de um osso do qual já houvesse comido toda a carne.
Isso estava errado, Xcor pensou. De fato, ele era um macho de ação e poder e dificilmente um membro do sexo frágil o intimidaria... mas tudo em seu corpo advertia que aquela entidade etérea era perigosa. Letal.
– Ei! Pai! – gritou. – Vire-se!
Xcor assoviou para seu cavalo, que atendeu ao comando. Montando sobre a sela, estimulou os flancos do animal, lançando-se a toda velocidade para que pudesse cruzar o caminho do pai, um pânico estranho o incitando.
Tarde demais. Seu pai lançou-se sobre a fêmea, que agachou-se lentamente.
Meu Deus, ela ia saltar por cima do...
Com um impulso coordenado, ela flutuou no ar e pegou a perna de seu pai, usando-a para montar sobre o cavalo de um salto. Então, agarrou o sólido peitoral de Bloodletter, saltou para um lado e levou o macho ao chão com ela, como se fossem apenas um. A investida poderosa desafiava a questão de ser do sexo feminino e sua natureza espectral.
Ora, não era um fantasma, mas um ser de carne e osso.
O que significava que poderia ser morta.
Enquanto Xcor preparava-se para lançar seu garanhão contra eles, a fêmea soltou um grito nada feminino: mais ao estilo do grito de guerra de Xcor, o berro trespassou o ruído dos cascos trovejantes abaixo dele e os sons do grupo que reunia-se para combater aquele ataque inesperado.
Contudo, não havia necessidade de uma intercessão imediata.
Seu pai, após o choque de ser tirado de sua sela, rolou de costas, desembainhou seu punhal e rosnou como um animal. Com uma maldição, Xcor freou e interrompeu o resgate, pois, com certeza, seu pai assumiria o controle. Bloodletter não era o tipo de homem a quem se ajudava – havia agredido Xcor por isso no passado, uma lição que foi duramente aprendida e que sempre seria lembrada.
Ainda assim, desmontou e aproximou-se da situação para reagir no caso de haver mais alguma “Valquíria” saindo do meio da floresta.
E foi assim que ele a ouviu, claramente, dizer um nome.
– Vishous.
A raiva de seu pai deu lugar a uma breve confusão. E antes que pudesse retomar sua autodefesa, a figura fantasmagórica começou a brilhar com uma luz profana.
– Pai! – Xcor gritou ao aproximar-se correndo.
Mas era tarde. E o contato foi feito.
Chamas irromperam sobre o rosto rude e barbado de seu pai e tomaram seu corpo, como se fosse feno seco. E com a mesma graça que ela o derrubou, a fêmea saltou para trás e observou enquanto seu pai tentava apagar o fogo debatendo-se freneticamente, sem sucesso. No meio da noite, ele gritava enquanto era queimado vivo, suas roupas de couro não ofereceram proteção alguma para sua pele e músculos.
Não havia chance alguma de aproximar-se o suficiente do fogo e Xcor derrapou até parar, levantando o braço para se proteger e curvando-se para se afastar do calor que ficava exponencialmente mais intenso.
Durante todo o tempo, a fêmea ficou sobre o corpo que se contorcia e tinha espasmos... O brilho laranja iluminava o rosto belo e cruel.
A vadia estava sorrindo.
E foi então que ela ergueu o rosto para ele. Quando Xcor teve uma visão correta de seu rosto, recusou-se, em um primeiro momento, a acreditar no que via. Ainda assim, o brilho das chamas não mentia.
Xcor observava uma versão feminina de Bloodletter. O mesmo cabelo negro, a mesma pele e olhos claros. A mesma estrutura óssea. Além disso, a mesma luz vingativa em seu olhar violento, aquele arrebatamento e satisfação ao causar uma morte era uma combinação que Xcor conhecia muito bem.
Ela partiu logo em seguida, desaparecendo na neblina de uma maneira que não condizia com a desmaterialização de sua espécie, mas, sim, fez isso como um sopro de fumaça, desvanecendo-se devagar em princípio e, em seguida, rápida e definitivamente.
Assim que sentiu-se capaz, Xcor correu para seu pai, mas não havia mais nada a ser salvo... mal havia algo para ser enterrado. Afundando os joelhos diante dos ossos fumegantes e do fedor de queimado, teve um momento de fraqueza deplorável: lágrimas derramaram-se dos olhos. Bloodletter tinha sido um bruto, mas como sua única descendência masculina, Xcor e ele eram bem próximos... Na verdade, eram quase membros de um mesmo corpo.
– Por tudo o que é mais sagrado – Zypher disse com voz rouca –, o que foi isso?
Xcor piscou com força antes de olhar por cima do ombro.
– Ela o matou.
– Sim. E fez mais alguma coisa.
Quando o grupo de bastardos aproximou-se dele, um a um, Xcor teve de pensar no que dizer, no que fazer.
Erguendo-se com firmeza, quis chamar seu cavalo, mas sua boca estava seca demais para assoviar.
Seu pai... um inimigo e, ao mesmo tempo, seu porto seguro, estava morto. Morto. E aconteceu tão rápido, rápido demais.
Por uma fêmea.
Seu pai havia partido.
Quando conseguiu, olhou para cada um dos machos diante dele, os dois montados nos cavalos, os dois em pé e o que estava a sua direita. Com uma nítida percepção, soube que não importava o que o destino tivesse reservado, seria moldado pelo que havia acontecido naquele momento, aqui, agora.
Não havia se preparado para isso, mas não se afastaria do que deveria fazer:
– Ouçam bem, pois só direi uma vez. Ninguém vai dizer nada. Meu pai morreu em uma batalha contra o inimigo. Eu o queimei para homenageá-lo e mantê-lo sempre comigo. Jurem isso para mim agora.
Os bastardos com quem ele vivia e lutava há muito tempo juraram e depois que suas vozes profundas desvaneceram-se no ar noturno, Xcor inclinou-se e passou os dedos pelas cinzas. Erguendo as mãos até o rosto, traçou uma listra com a fuligem desde as bochechas até as grossas veias que percorriam cada lado do pescoço... em seguida, acariciou o crânio duro que era tudo o que havia restado de seu pai. Segurando os restos carbonizados que ainda soltavam fumaça, reivindicou os soldados a sua frente como seus.
– Sou o único senhor agora. Liguem-se a mim neste momento ou serão meus inimigos. O que me dizem?
Não houve hesitação alguma. Os machos se ajoelharam, retiraram suas adagas e irromperam o grito de guerra antes de enterrarem as lâminas na terra a seus pés.
Xcor observou as cabeças inclinadas e sentiu que um manto caía-lhe sobre os ombros. Bloodletter estava morto. Sem vida, seria transformado em lenda a partir daquela noite.
E, seguindo o que é certo e apropriado, o filho substituiria o pai agora, comandando aqueles soldados que não serviriam a Wrath, o rei que não os governava; nem à Irmandade, que não se dignificava a descer àquele nível... Serviriam a Xcor e somente a ele.
– Vamos seguir na direção de onde a fêmea veio – anunciou. – Vamos encontrá-la mesmo que levem séculos, pois ela deve pagar por aquilo que fez esta noite. – Nesse momento, Xcor conseguiu assoviar alto e claro para seu cavalo. – Levarei, pessoalmente, a morte ao esconderijo daquela fêmea.
Subindo em seu cavalo, reuniu as rédeas e incitou o grande animal a cruzar a noite. Seu grupo de bastardos entrou em formação e o seguiu, disposto a morrer por ele.
Enquanto trovejava ao sair da aldeia, colocou o crânio de seu pai dentre as roupas de couro que usava nas batalhas, bem em cima do coração.
Aquela vingança seria sua. Mesmo que o matasse.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/9_AMANTE_LIBERTADA.jpg
CAPÍTULO 1
DIAS ATUAIS
HIPÓDROMO DE AQUEDUCT, QUEENS, NOVA YORK
– Quero enlouquecer você.
O Dr. Manny Manello virou a cabeça para a direita e olhou para a mulher que tinha falado com ele. Não foi a primeira vez que tinha ouvido essas palavras e a boca pela qual elas saíram tinha silicone suficiente para preencher uma boa almofada. Mas, ainda assim, foi uma surpresa.
Candance Hanson sorriu para ele e ajeitou seu chapéu retrô com uma mão bem manicurada. Aparentemente, ela tinha decidido que a combinação de dama refinada com uma dose de atrevimento era atraente – e talvez fosse, para alguns rapazes.
Caramba, em outro momento de sua vida, ele provavelmente teria dado em cima dela seguindo a teoria do “por que não?”. Agora? Seguia a ideia do “não é pra tanto”.
Sem se deixar abater pela falta de entusiasmo do médico, ela inclinou-se para frente, exibindo um par de seios que não exatamente desafiava a gravidade. Na verdade, aquilo era mais como mostrar o dedo médio, insultar a mãe e pisar no calo de alguém – uma falta de educação.
– Sei de um lugar aonde poderíamos ir.
Ele apostava que sim.
– A corrida já vai começar.
Ela fez beicinho. Ou talvez fosse o efeito das aplicações para aumentar os lábios. Deus, há dez anos ela devia ter um rosto jovem; agora, os anos tinham adicionado uma pátina de desespero nela – junto ao processo normal de envelhecimento, contra o qual ela lutava como um boxeador.
– Depois, então.
Manny afastou-se sem responder, sem saber exatamente como ela tinha conseguido entrar na área dos proprietários. Deveria ter sido na confusão que havia para voltar àquele local depois de selarem os cavalos – e, sem dúvida, estava acostumada a entrar em lugares que, tecnicamente, não lhe eram permitidos: Candance era um daqueles tipos sociais de Manhattan que só se diferenciava de uma prostituta por não ter um cafetão e, de muitas maneiras, era como uma vespa qualquer: ignorava o incômodo causado e ia pousar em outra coisa.
Ou em outra pessoa, como era o caso.
Erguendo o braço para mantê-la distante, Manny inclinou-se sobre o corrimão da cabine e esperou que sua garota saísse para a pista. Tinha sido colocada na parte externa, e isso era bom: preferia não ficar muito perto dos outros e percorrer uma distância extra nunca a incomodou.
O hipódromo de Aqueduct, no Queens, Nova York, não tinha o prestígio de um Belmont ou Pimlico ou do venerável pai de todos os hipódromos, o Churchill Downs. Contudo, não era de se jogar fora. A instalação tinha uma arena de quase três quilômetros, uma pista de turfe e outra para corridas de curta distância. A capacidade total era de, aproximadamente, nove hectares. A comida era medíocre, mas ninguém ia até lá para comer e havia algumas corridas grandes, como a daquele dia: a Wood Memorial Stakes tinha uma bolsa de 750 mil dólares e, como era realizada em abril, era uma boa referência para os candidatos ao prêmio Triple Crown...*
Ah, sim, lá estava ela. Lá estava sua garota.
Quando os olhos de Manny fixaram-se em GloryGloryAllelujah, o barulho da multidão, a luz brilhante daquele dia e a fila vacilante composta pelos outros cavalos desapareceram. Tudo o que ele via era sua magnífica égua negra, sua capa capturava a luz do sol e reluzia, as pernas finas se flexionavam, os cascos delicados erguiam-se e voltavam a pousar na pista de areia. Como ela media quase um metro e setenta, o jóquei parecia um pequeno mosquito em suas costas, e essa diferença de tamanho representava a divisão do poder. Ela deixou isso claro desde o primeiro dia de treinamento: poderia tolerar os pequenos seres humanos, mas estavam apenas a passeio na corrida. Ela estava no comando.
Seu temperamento dominador já havia lhe custado dois treinadores. O terceiro? O cara parecia um pouco frustrado, mas era apenas seu senso de controle que estava sendo espancado até a morte: Glory destacava-se e isso, simplesmente, não tinha nada a ver com ele. E Manny não tinha a menor preocupação com os egos inflados de homens que dominavam cavalos a vida inteira. Sua garota era uma lutadora, sabia o que estava fazendo, e ele não tinha o menor problema em deixá-la assumir o controle. Queria apenas assisti-la divertir-se ao acabar com a concorrência.
Quando seus olhos a encontraram, lembrou-se do otário de quem a tinha comprado há pouco mais de um ano. Aqueles vinte mil dólares tinham sido um roubo, considerando sua linhagem, também uma fortuna se pensasse no temperamento dela, e ainda não estava claro se conseguiria autorização para correr. Era uma égua indisciplinada de um ano de idade que já esteve prestes a ser afastada. Ou pior: de ser transformada em comida de cachorro.
Mas ele acertou. Desde que a deixasse liderar e comandar o show, era um espetáculo.
Quando a formação de cavalos aproximou-se do portão, alguns começaram a bater os cascos e a bufar, mas sua garota estava firme, como se soubesse que era inútil desperdiçar energia antes do jogo. Ele achava que as chances eram boas apesar da posição no pódio, pois o jóquei montado em seu dorso era uma estrela: sabia exatamente como lidar com ela e, nesse sentido, era mais responsável pelo sucesso da garota do que os outros treinadores. Sua estratégia era apenas certificar-se de que ela conhecia os melhores percursos, deixá-la escolher e ir.
Manny levantou-se e segurou o corrimão de ferro pintado na frente dele, juntando-se à multidão que saía de seus assentos, e começava a exibir uma quantidade incontável de binóculos. Quando seu coração começou a bater forte, ficou contente, pois fora dali encontrava-se muito próximo do sedentarismo, ultimamente. A vida que levava estava em um estágio de entorpecimento terrível no último ano ou um pouco mais, e talvez essa fosse a razão pela qual aquela égua era tão importante para ele.
Talvez ela também fosse tudo o que ele tinha.
Não era bem assim.
No portão, havia um movimento frenético: quando se trata de amontoar quinze cavalos fortes com patas da espessura de varetas e com glândulas adrenais disparando como obus em minúsculas caixas de metal, você não perde tempo. Em mais ou menos um minuto, o campo foi fechado e as pistas foram restringidas pelos trilhos.
Uma batida de coração.
Um sino.
Bang.
Os portões foram abertos, a multidão rugiu e os cavalos avançaram como se tivessem sido lançados de bocas de canhões. As condições eram perfeitas. Clima seco. Frio. Estavam a toda velocidade na pista.
Não que sua garota se importasse com isso. Correria na areia movediça se fosse necessário.
Os cavalos puros-sangues trovejaram, o som dos cascos e a voz do locutor chicoteavam energia nas arquibancadas a ponto de ficarem em um estado de êxtase. Porém, Manny manteve a calma, permanecendo com as mãos firmadas no trilho na frente dele e seus olhos sobre o campo, enquanto o grupo de cavalos fazia a primeira curva em uma confusão tensa de dorsos e caudas.
O telão mostrava-lhe tudo o que precisava ver. Sua égua estava na penúltima posição, apenas galopando enquanto todos os outros empreendiam uma corrida mortal – inferno, seu pescoço sequer estava totalmente estendido. No entanto, o jóquei estava fazendo seu trabalho, facilitando o caminho dela para avançar na pista, dando-lhe a opção de correr ao redor do grupo ou cortar caminho através deles quando estivesse pronta.
Manny sabia exatamente o que ela iria fazer. Entraria pela direita em meio aos outros cavalos como uma bola de demolição.
Era o jeito dela.
E foi assim que, quando os outros abriram distância, ela começou a pegar fogo. A cabeça baixa, o pescoço alongado, seu passo começou a acelerar.
– Caramba – Manny sussurrou. – Você consegue, garota.
Quando Glory adentrou a pista verde, transformou-se em um raio de luz que ultrapassava os outros corredores, a explosão de velocidade era tão poderosa que qualquer um se perguntaria se aquilo não era de propósito: apenas vencê-los não era o suficiente, ela tinha que fazer isso no último quilômetro, deixando as selas dos outros bastardos na poeira, no último minuto possível.
Manny riu do fundo da garganta. Ela era seu tipo de garota.
– Meu Deus, Manello, olha só como ela avança.
Manny assentiu com a cabeça sem olhar para o cara que falou em seu ouvido, pois a liderança do grupo estava mudando: o potro que estava à frente perdia sua força, ficando para trás quando suas pernas pareceram ficar sem combustível. Em resposta a isso, o jóquei o golpeou, chicoteando-lhe o traseiro – algo que obteve o mesmo sucesso de quando alguém amaldiçoa um carro cujo tanque esvaziou. O potro que estava em segundo lugar, um animal grande e castanho com jeito de mau e um passo que poderia englobar um campo de futebol, aproveitou imediatamente a desaceleração, e seu jóquei permitiu que o cavalo estendesse sua cabeça totalmente.
Os dois ficaram emparelhados por apenas um segundo antes que o cavalo castanho assumisse a liderança da corrida. Mas não seria por muito tempo. A garota de Manny tinha escolhido seu momento para contornar os três cavalos e fazer com que ele ficasse totalmente tenso.
Sim, Glory fazia o que tinha nascido para fazer, orelhas unidas à cabeça, dentes expostos.
Ela ia roubar o doce da boca daquele garanhão. E era impossível não extrapolar e pensar que participariam de corridas importantes como a Kentucky Derby...
Tudo aconteceu tão rápido.
Tudo chegou ao fim... em um piscar de olhos.
Com um golpe intencional, o potro bateu em Glory, o impacto brutal enviou-a para os trilhos. Sua garota era grande e forte, mas não poderia suportar um contato corporal assim, não quando corria a mais de sessenta quilômetros por hora.
Por uma fração de segundo, Manny ficou convencido de que ela se reergueria. Apesar da maneira como inclinou-se e cambaleou, esperava que encontrasse um ponto de equilíbrio e desse uma lição de boas maneiras àquele bastardo.
Só que ela caiu. Bem na frente dos três cavalos que tinha ultrapassado.
O massacre foi imediato, os cavalos mudaram totalmente a direção para evitar o obstáculo no caminho, os jóqueis seguraram as rédeas com força na esperança de permanecerem montados.
Todos fizeram isso. Exceto Glory.
Quando a multidão exclamou, Manny lançou-se para frente, ultrapassando os limites da cerca e saltando sobre as pessoas, cadeiras e barricadas até chegar à pista.
Além dos trilhos. Na arena.
Correu até ela. Anos de prática do atletismo levaram-no a uma velocidade vertiginosa até o cerne daquela situação.
Ela estava tentando se levantar. Mas que coração grande e feroz... estava lutando para erguer-se do chão, seus olhos encarando o grupo como se não desse a mínima por estar ferida; só queria pegar de jeito aqueles que a deixaram na poeira.
Tragicamente, sua perna dianteira tinha outros planos: enquanto se debatia, a perna direita vacilava na altura do joelho; e Manny não precisava de sua experiência como ortopedista para saber que ela tinha um problema.
Um problemão.
Ao aproximar-se dela, viu que o jóquei estava em lágrimas.
– Dr. Manello, eu tentei... Oh, Deus...
Manny escorregou na areia e arremeteu-se em direção às rédeas enquanto os veterinários aproximavam-se e o telão voltava-se para o drama.
Quando três homens de uniforme aproximaram-se dela, seus olhos não emitiam mais aquele sentimento selvagem... passaram a expressar dor e confusão. Manny fez o possível para acalmá-la, permitindo que balançasse com força a cabeça o quanto quisesse enquanto acariciava seu pescoço. Ela se acalmou quando lhe deram um tranquilizante.
Ao menos a tentativa desesperadora de andar, mesmo mancando, cessou.
O veterinário-chefe olhou para a perna e balançou a cabeça, algo que no mundo das corridas era um sinal universal para “será necessário sacrificá-la”.
Manny aproximou-se do rosto do cara.
– Nem pense nisso. Estabilize o que estiver quebrado e leve-a para o hospital veterinário de Tricounty. Entendido?
– Ela nunca mais correrá novamente... isso parece uma fratura múlti...
– Tire meu maldito cavalo da pista e leve-o ao Tricounty...
– Não vale a pena...
Many agarrou a jaqueta do veterinário e puxou o “Sr. Falar é Fácil” até ficarem face a face.
– Faça isso. Agora.
Houve um momento de incompreensão total, como se ser insultado fosse algo novo para o profissional teimoso.
E assim que os dois entenderam o que estava acontecendo, Manny rosnou:
– Não vou perdê-la, mas estou totalmente disposto a sacrificar você. Bem aqui. E agora.
O veterinário encolheu-se, afastando-se, como se soubesse que estava correndo perigo de levar um belo golpe.
– Certo... certo.
Manny não ia perder seu cavalo. Nos últimos doze meses, lamentou a perda da única mulher com quem se preocupou na vida, questionou sua sanidade e passou a se embebedar de uísque mesmo odiando a coisa.
Se Glory partisse agora... não sobraria muita coisa nessa vida, sobraria?
Algumas modalidades de esporte como o surfe e o jóquei e outras competições como o pôquer oferecem um prêmio especial na terceira vitória consecutiva, o Triple Crown. (N. da T.)
CAPÍTULO 2
CALDWELL, NOVA YORK
CENTRO DE TREINAMENTO,
COMPLEXO DA IRMANDADE
Caramba... Que droga... mas que inferno...
Vishous estava em pé no corredor do lado de fora da clínica médica da Irmandade com uma das mãos fechadas sobre os lábios e o polegar mexendo freneticamente em um tique irritante. No entanto, não havia nada a ser dito, não importava quantas vezes ele friccionasse o pequeno isqueiro.
Tic. Tic. Tic...
Com uma repulsa total, lançou a maldita coisa na lixeira e agarrou a luva revestida de chumbo que cobria sua mão. Ao tirar o pedaço de couro, olhou para a palma da mão brilhante, flexionando os dedos, arqueando-a em direção ao punho.
A coisa era em parte um lança-chamas, em parte uma bomba nuclear, capaz de derreter qualquer metal, transformar pedra em vidro e deixar em pedaços qualquer avião, trem ou automóvel que quisesse. Essa também era a razão pela qual conseguia fazer amor com sua shellan e um dos dois legados que sua mãe divina havia lhe dado.
E uma maldita segunda visão que era tão divertida quanto a rotina de lidar com a “mão da morte”.
Aproximando a arma mortal de seu rosto, acendeu a ponta do cigarro artesanal que fazia, mas não chegou perto demais ou prejudicaria seu sistema de envio de nicotina ao corpo e teria que desperdiçar seu tempo criando outro, curando-se. E não tinha paciência para isso mesmo em um dia bom, quanto mais em um momento como aquele...
Ah, a adorável tragada.
Encostando-se contra a parede, plantou suas botas de combate no chão de linóleo e fumou. Aquele prego de caixão não fez muito pela sua expressão deprimente, mas isso era melhor do que a opção que tinha passado por seus pensamentos nas últimas duas horas. Ao colocar a luva de volta pensou em sair dali com seu “dom” e incendiar alguma coisa, qualquer coisa...
Era mesmo sua irmã gêmea que estava do outro lado da parede? Deitada em uma cama de hospital... paralisada?
Jesus Cristo... Trezentos anos de idade e só então descobrir que se tem uma irmã.
Boa jogada, mamãe. Muito legal mesmo.
E pensar que ele achava ter resolvido todos os problemas com seus pais. Porém, apenas um deles estava morto. Se a Virgem Escriba seguisse pelo caminho de Bloodletter e descansasse em paz, talvez ele conseguisse encontrar um ponto de equilíbrio.
No entanto, pensando em como as coisas estavam e naquela tentativa absurda de Jane no mundo humano... Tudo aquilo estava fazendo com que ele...
Sim, não havia palavras para isso.
Pegou seu telefone celular. Verificou. Colocou de volta no bolso de sua jaqueta de couro. Caramba, isso era tão típico. Jane colocava seu foco em algo e isso era tudo. Nada mais importava.
Claro que ele era exatamente assim, mas em momentos como aquele, gostaria muito de ser atualizado.
Maldito sol. Prendia-o dentro de casa. Ao menos se estivesse com sua shellan não haveria possibilidade de o “grande” Manuel Manello negar alguma coisa. V. simplesmente golpearia o desgraçado, jogaria o corpo no Escalade e traria aquelas mãos talentosas até ali para operar Payne.
Para ele, o livre-arbítrio era um privilégio, não um direito.
Quando terminou de fumar o cigarro artesanal, apagou-o na sola de suas botas de combate e jogou a bituca no lixo. Queria muito uma bebida – exceto refrigerante ou água. Meio engradado de vodka o afastaria um pouco daquele abismo, mas com um pouco de sorte permitiriam que ele ajudasse na sala de cirurgia em breve, e precisava estar sóbrio para isso.
Entrando na sala de exames, os ombros ficaram tensos, os molares se fecharam e, por uma fração de segundo, não sabia o quanto mais poderia suportar. Se tinha uma coisa que o tirava do sério era quando sua mãe aprontava das suas, e era difícil imaginar algo pior do que a mentira de todas as mentiras.
O problema era que a vida não vinha com um “botão” de reiniciar, como o video game, que se pode pressionar quando ele trava por tentarem inserir alguma vantagem ou trapaça no jogo.
– Vishous?
Fechou os olhos por um instante ao som daquela voz suave e baixa.
– Sim, Payne – terminou a frase no Antigo Idioma. – Sou eu.
Cruzando a sala, reassumiu seu posto na banqueta com rodas ao lado da maca. Deitada embaixo de vários cobertores, Payne estava imobilizada, com a cabeça em um bloco e um colar cervical que ia do queixo à clavícula. Uma intravenosa ligava o braço dela a uma bolsa pendurada em uma extremidade de aço inoxidável e havia uma tubulação embaixo conectada ao cateter que Ehlena lhe dera.
Mesmo a sala de azulejos sendo clara, limpa e brilhante e os equipamentos e suprimentos médicos tão ameaçadores quanto xícaras e pires em uma cozinha, parecia que estavam em uma caverna suja cercados por ursos.
Seria tão bom se pudesse sair e matar o filho da mãe que tinha colocado sua irmã naquela condição. O problema era... isso significava que teria de acabar com Wrath, e que grande confusão essa morte traria. O maldito filho da mãe não era apenas o Rei, era um Irmão... e esse era o pequeno detalhe pelo qual a estadia dela ali havia sido consensual. As sessões de luta que os dois vinham travando nos últimos dois meses os deixaram em forma – e, claro, Wrath não fazia ideia com quem lutava, pois estava cego. Uma fêmea? Bem, dedução óbvia. As sessões aconteciam do Outro Lado e não havia machos por lá. Mas a falta de visão do Rei significava que ele perdia o que V. e todos os outros observavam ao entrarem naquela sala: a longa trança preta de Payne era da cor exata do cabelo de V. e sua pele do mesmo tom que a dele, tinha a mesma constituição: alta, magra e forte. Mas os olhos... cara, os olhos.
V. esfregou o rosto. Seu pai, Bloodletter, teve um número incontável de bastardos antes de ser assassinado em uma batalha contra redutores no Antigo País. Mas V. não se importava com nenhuma dessas relações aleatórias com as fêmeas.
Payne era diferente. Os dois tinham a mesma mãe e não era uma mahmen qualquer. Era a Virgem Escriba. A grande mãe da raça.
Era uma vadia, isso sim.
O olhar de Payne deslocou-se e a respiração de V. saiu com dificuldade. A íris que o encontrou era da cor de gelo branco, assim como a sua, e a borda azul-marinho em torno dela era algo que via todas as noites no espelho. E a inteligência... a inteligência que havia nas profundezas árticas daquela brancura era exatamente a mesma que havia dentro dele também.
– Não consigo sentir nada – Payne disse.
– Sei. – V. repetiu balançando a cabeça: – Eu sei.
Sua boca se contorceu e exibiu algo que poderia ter sido um sorriso em outras circunstâncias.
– Pode falar no idioma que quiser – disse com um inglês bem marcado. – Sou fluente em... muitos.
Ele também. O que significava que era incapaz de formular uma resposta em dezesseis línguas diferentes. Maravilha.
– Sua shellan... já lhe disse alguma coisa? – disse pausadamente.
– Não. Gostaria de tomar mais analgésicos? – Ela parecia mais fraca que da última vez que a vira.
– Não, obrigada. Eles fazem com que eu me sinta... estranha.
Essa frase foi seguida por um longo silêncio. Que ficou mais longo. E ainda mais longo.
Cristo, talvez ele devesse segurar a mão dela – afinal, ela podia sentir algo acima da cintura. Sim, mas o que poderia oferecer com essa atitude? Sua mão esquerda estava tremendo e a direita era mortal.
– Vishous, o tempo não está...
Quando sua irmã gêmea deixou a frase pairando no ar, ele a terminou mentalmente: do nosso lado.
Ele queria que ela estivesse errada. Contudo, quando se trata de lesões na coluna, assim como derrames e ataques cardíacos, boas oportunidades de recuperação são perdidas a cada minuto que o paciente passa sem tratamento.
Era melhor que aquele humano fosse tão bom quanto Jane havia dito.
– Vishous?
– Sim?
– Gostaria que eu não tivesse vindo até aqui?
Franziu a testa com força.
– De que diabos está falando? Claro que gostaria de ter você comigo.
Enquanto seu pé ficava batendo no chão de nervosismo, perguntou quanto tempo mais precisaria ficar antes que pudesse sair para outro cigarro. Simplesmente não ia conseguir respirar enquanto estivesse sentado ali, sem poder fazer nada enquanto sua irmã sofria e seu cérebro engasgava-se com as perguntas. Tinha um milhão de “o que?” e “por que” instalados em sua cabeça, só que não podia perguntar nada para ninguém. Parecia que Payne poderia entrar em coma a qualquer momento por causa da dor, portanto, não era uma boa hora para se fazer um social, cheio de perguntas, com direito a cafezinho.
Caramba, os vampiros podiam se curar como um relâmpago, mas não eram imortais.
Poderia muito bem perder sua irmã gêmea antes de sequer conhecê-la melhor.
Seguindo esse raciocínio, ele deu uma olhada para ver seus sinais vitais no monitor. A raça vampira tinha pressão sanguínea baixa, mas a dela estava quase ao nível do chão. A pulsação estava lenta e irregular, como uma bateria de escola de samba formada apenas por garotos brancos. E o sensor de oxigênio teve de ser silenciado, pois o alarme de alerta soava continuamente.
Quando seus olhos se fecharam, ele temeu que fosse a última vez... e o que havia feito por ela? Nada, exceto gritar quando lhe fizera uma pergunta.
Inclinou-se para mais perto dela, sentindo-se um idiota.
– Tem de aguentar firme, Payne. Estou tentando conseguir o que você precisa, mas você tem de ser forte.
As pálpebras de sua irmã ergueram-se e ela olhou para ele de sua cabeça imóvel.
– Trouxe muitos inconvenientes a sua casa.
– Não se preocupe comigo.
– Isso é o que sempre fiz.
V. franziu a testa outra vez. Era evidente que toda essa coisa de irmão/irmã era uma novidade apenas para ele. Tinha de descobrir como, diabos, ela sabia sobre ele.
E o que sabia.
Droga, lá estava outro momento em que desejaria ser menos durão.
– Está tão confiante nesse curandeiro que procura – ela murmurou.
Ah, não mesmo. A única coisa de que tinha certeza era que se o desgraçado a matasse haveria um funeral duplo naquela noite... assumindo que haveria alguma coisa restante do humano para enterrar ou queimar.
– Vishous?
– Minha shellan confia nele.
Os olhos de Payne ergueram-se e ficaram assim. Será que ela estava olhando para o teto?, V. se perguntou. Seria a lâmpada cirúrgica que havia sobre ela? Algo que ele não conseguia ver?
Num determinado momento, ela disse:
– Pergunte-me quanto tempo passei nas mãos de nossa mãe.
– Tem certeza de que tem forças para isso? – Quando ela olhou para tudo a seu redor, exceto para ele, quis sorrir. – Quanto tempo?
– Em que ano estamos na Terra? – Quando ele respondeu, seus olhos se arregalaram. – De fato. Bem, foram centenas de anos. Fui aprisionada pela nossa mahmen por... centenas de anos da minha vida.
Vishous sentiu as pontas de suas presas formigarem de raiva. Aquela mãe deles... Já deveria saber que a paz que tinha encontrado com sua fêmea não duraria muito.
– Está livre agora.
– Estou – olhou para baixo em direção às pernas. – Não conseguirei viver em outra prisão.
– Isso não vai acontecer.
Então, aquele olhar gélido tornou-se astuto.
– Não posso viver assim. Entende o que estou dizendo?
O interior dele congelou completamente.
– Ouça, vou trazer aquele médico até aqui e...
– Vishous – ela disse com voz rouca. – De fato, faria isso se pudesse, mas não posso e não há outra pessoa a quem possa recorrer. Você me entende?
Quando encontrou os olhos dela, quis gritar, suas entranhas se contorceram, gotas de suor brotaram em sua testa. Era um assassino por natureza e treinado para isso, mas aquela não era uma habilidade que tinha a intenção de praticar com alguém de seu sangue. Bem, tirando sua mãe, claro. Talvez seu pai, só que o cara tinha morrido por conta própria.
Certo, reformulando a frase: não era algo que exerceria com sua irmã.
– Vishous. Você...?
– Sim. – Olhou para baixo, para sua mão amaldiçoada e flexionou o maldito pedaço de seu corpo. – Eu entendo.
Dentro de sua pele, em sua essência, seu eixo interno começou a vibrar. Era o tipo de coisa pela qual se tornou intimamente familiarizado ao longo de sua vida... e também era um choque total. Não tinha sentido aquilo desde que Jane e Butch apareceram; e voltar a sentir era... terrível!
No passado, isso o levaria direto aos trilhos do sexo perigoso e hard-core, ficaria à beira do abismo.
Só que na velocidade do som.
A voz de Payne era fraca:
– O que me diz?
Droga, ele tinha acabado de conhecê-la.
– Sim – flexionou sua mão mortal. – Vou cuidar de você. Se chegarmos a isso.
Quando Payne olhou em direção à gaiola que era seu corpo meio-morto, o perfil sombrio de seu irmão gêmeo era tudo o que conseguia enxergar e desprezou-se pela posição em que o colocou. Gastou muito tempo desde que tinha chegado àquele lado tentando descobrir outra saída, outra opção, outra... qualquer coisa.
Mas o que ela precisava era algo que não se podia pedir a um estranho.
Por outro lado, ele era um estranho.
– Obrigada, meu irmão – ela disse.
Vishous assentiu com a cabeça uma vez e voltou a olhar para frente. Na verdade, ele era muito mais que a soma de suas características faciais e do enorme tamanho de seu corpo. Até bem pouco tempo atrás, quando aprisionada por sua mahmen, teve de observá-lo por muito tempo nas tigelas do santuário das Escolhidas e soube quem ele era no instante em que surgiu naquela água rasa; tudo o que teve de fazer foi olhar para ele e enxergar a si própria.
Que vida ele levou. Começando com o campo de guerra e a brutalidade de seu pai... e agora isso.
Sob sua postura fria, ele vociferava. Podia sentir em seus ossos uma ligação entre eles que lhe dava uma visão que ia além daquilo que seus olhos conseguiam lhe informar: por fora, estava contido como uma parede de tijolos, seus componentes todos em ordem e encaixados no lugar; no entanto, por dentro, ele fervia... e a dica externa era sua mão direita enluvada. Por baixo do acessório, uma luz brilhava... e ficava cada vez mais brilhante – especialmente depois que fizera o pedido.
Ela percebeu que aquele poderia ser o único momento que teriam juntos, e seus olhos fecharam-se outra vez.
– Está unido a uma fêmea curadora? – Ela murmurou.
– Sim.
Quando houve apenas silêncio, ela desejou poder encará-lo, mas ficou claro que respondeu apenas por educação. Ainda assim, acreditou nele quando disse que estava contente por estar ali. Ele não diria uma mentira assim, não por que se preocupasse com a moral ou a ética, mas sim porque viu que tal esforço seria um desperdício de tempo e energia.
Payne deitou seus olhos outra vez sobre a cabeça dele, que parecia ter um anel de fogo sobre ela. Desejou que segurasse sua mão ou a tocasse de alguma maneira, mas já havia feito pedidos demais.
Deitada sobre a maca com rodas, seu corpo parecia muito estranho, pesado e leve ao mesmo tempo, e sua única esperança eram os espasmos que corriam por suas pernas e faziam cócegas em seus pés, fazendo com que repuxassem. Certamente, se aquilo estava acontecendo nem tudo estava perdido, disse a si mesma.
Só que, mesmo quando acalentava tal pensamento, uma pequena e silenciosa parte de sua mente dizia que o telhado cognitivo que estava tentando construir não suportaria a chuva que estava prestes a cair em sua vida: quando movia as mãos, mesmo sem conseguir enxergá-las, podia sentir os lençóis frios e macios e a mesa lisa e gelada sobre a qual estava. Mas quando pedia que seus pés fizessem o mesmo... Era como se estivesse nas águas mornas e serenas das piscinas de banho do Outro Lado, encapsulada em um abraço invisível, sentindo absolutamente nada.
Onde estava aquele curandeiro?
O tempo... estava passando.
Quando a espera passou do insuportável para a extrema agonia, era difícil saber se a sensação de asfixia era devido a sua condição ou pelo silêncio da sala. Na verdade, ela e seu irmão gêmeo estavam mergulhados no silêncio... só que por razões muito diferentes: ela não iria a lugar algum, mesmo com muito entusiasmo; e ele estava prestes a explodir.
Desesperada por algum estímulo, alguma coisa, qualquer coisa, murmurou:
– Fale um pouco sobre o curandeiro que está chegando.
A brisa de ar frio que atingiu seu rosto e o aroma de especiarias escuras que percorreram seu nariz diziam que era um macho. Tinha de ser.
– É o melhor – Vishous murmurou. – Jane sempre fala dele como se fosse um deus. – O tom não era muito educado, mas o fato era que vampiros machos não gostavam muito de outros em torno de suas fêmeas.
Quem poderia ser esse dentre os machos da raça?, Payne perguntou-se. O único curandeiro que conseguira enxergar nas tigelas era Havers, e, com certeza, não havia razão alguma para procurarem por ele.
Talvez houvesse outro que ela não tinha observado; afinal, não passava tanto tempo tentando recuperar o atraso com o mundo e, de acordo com seu irmão gêmeo, haviam se passado muitos, muitos e muitos anos entre sua prisão e a liberdade...
De repente, a exaustão interrompeu sua linha de raciocínio, penetrando em sua medula, pressionando-a ainda mais sobre a mesa de metal.
No entanto, quando fechou os olhos, conseguiu suportar a escuridão apenas durante um rápido momento antes do pânico fazer suas pálpebras se abrirem. Enquanto estivera presa por sua mãe, tinha plena consciência de que poderia movimentar-se sem limites em um espaço livre; mas dentro daquele local opressivo, onde os minutos se arrastavam, aquela paralisia era muito parecida com o que tinha sofrido durante centenas de anos. Razão pela qual fizera aquele pedido terrível a Vishous. Não poderia ficar ali daquele lado apenas para reproduzir aquilo pelo que sempre havia lutado de maneira tão desesperada para escapar.
Lágrimas escorreram de seus olhos, fazendo com que a fonte de luz verde brilhante vacilasse. Como desejava que seu irmão segurasse sua mão...
– Por favor, não chore – disse Vishous. – Não... chore.
Na verdade, ficou surpresa por ele ter notado.
– Sim, você está certo. Chorar não cura nada.
Aumentando sua força de vontade, buscou ser forte, mas foi uma batalha. Embora seu conhecimento das artes medicinais fosse limitado, uma lógica simples anunciava onde estava o erro: como era de uma linhagem extremamente forte, seu corpo começou a recuperar-se no momento em que havia sido ferida na sessão de luta com o Rei Cego; contudo, o problema era que o processo regenerativo, que em uma situação comum salvaria sua vida, tornava sua condição ainda mais terrível – e era muito provável que aquilo fosse permanente.
Vértebras quebradas tentando se regenerar não conseguiam alcançar um resultado muito bom, e a paralisia em suas pernas era um testemunho desse fato.
– Por que fica olhando o tempo todo para sua mão? – ela perguntou, ainda olhando para a luz.
Houve um momento de silêncio, superior a todos os outros.
– Por que acha que estou fazendo isso?
Payne suspirou.
– Porque o conheço, meu irmão. Sei tudo sobre você.
Quando ele não disse nada, o silêncio era tão agradável quanto os inquéritos que havia no Antigo País.
Oh, o que será que ela havia desencadeado? E onde todos estariam quando tudo chegasse ao fim?
CAPÍTULO 3
Algumas vezes, a única maneira de se saber quão longe se foi é voltando ao ponto de onde se iniciou.
Quando Jane Whitcomb, médica, entrou no complexo hospitalar São Francisco, foi sugada de volta a sua antiga vida. De alguma maneira, foi uma viagem curta – há apenas um ano ela era a chefe do departamento de traumatologia daquele lugar, morava em um apartamento cheio de coisas de seus pais, passando vinte horas por dia correndo entre a emergência e as salas de cirurgia. Não mais.
Um indício certo de que a mudança era definitiva foi a maneira como ela entrou no centro cirúrgico: não havia razão para preocupar-se com as portas giratórias ou aquelas que precisavam ser empurradas na recepção. Ela atravessou as paredes de vidro e passou despercebida pelos seguranças que estavam no balcão. Fantasmas são bons nisso.
Desde que fora transformada, conseguia ir a lugares e ultrapassar coisas sem que ninguém fizesse ideia de que estava por perto. Mas também poderia ficar tão corpórea quanto a pessoa ao lado, assumindo uma forma sólida, de acordo com a sua vontade. Em dado momento era absolutamente etérea; em outro, era como a humana que havia sido, capaz de comer, amar e viver. Isso era uma grande vantagem ao exercer o cargo de cirurgiã particular da Irmandade.
Como agora, por exemplo: de que outra maneira ela seria capaz de se infiltrar no mundo dos humanos outra vez sem quase nenhum barulho?
Percorrendo o chão de pedra polida da recepção, passou pela parede de mármore onde estava inscrito o nome dos benfeitores e abriu caminho pela multidão de pessoas. Naquele congestionamento humano, muitos rostos eram familiares, desde o pessoal da administração até os médicos e enfermeiros com quem trabalhou durante anos. Mesmo anônimos, os pacientes estressados e suas famílias pareciam íntimos dela... de alguma maneira, as máscaras de tristeza e preocupação eram as mesmas, não importava quais fossem as características faciais que as moldavam.
Quando se dirigiu às escadas, estava buscando seu antigo chefe, e, Cristo, teve vontade de rir. Ao longo de todos aqueles anos trabalhando juntos, tinha surpreendido Manny Manello de muitas maneiras; mas aquilo ia superar vários acidentes de carro, avião ou uma explosão de edifício. Tudo isso junto.
Flutuando ao atravessar uma saída de emergência de metal, ela subiu a escada dos fundos. Os pés não tocavam os degraus, pairavam sobre eles enquanto subia como fumaça, sem esforço algum.
Aquilo tinha de funcionar. Tinha que convencer Manny a lhe acompanhar para cuidar daquela coluna lesionada, e ponto final. Não havia outras opções, nada de imprevistos, nada de virar à direita ou à esquerda naquela estrada: aquele era o passe final... e estava rezando para que o goleiro não pegasse aquela bola.
Que bom que ela tinha um bom desempenho sob pressão e que conhecia aquele homem como a palma de sua mão.
Manny aceitaria o desafio; mesmo isso não fazendo sentido algum para ele, ficaria lívido por saber que ela ainda estava “viva”. Além disso, não seria capaz de recusar ajuda a um paciente necessitado – simplesmente não estava programado para isso.
No décimo andar, atravessou outra parede e entrou na seção administrativa do departamento cirúrgico. O local era equipado como um escritório de advocacia, todo escuro, sombrio e luxuoso. Fazia sentido: o centro cirúrgico era uma fonte enorme de renda para qualquer hospital universitário, e o dinheiro era gasto para recrutar, manter e abrigar aqueles seres mimados e arrogantes que abriam pessoas para que elas sobrevivessem mais.
Dentre o grupo que operava com os bisturis no Hospital São Francisco, Manny Manello estava no topo da pirâmide, chefe não apenas de uma subespecialidade, como ela tinha sido, mas de todo o conjunto da obra. Isso significava que era uma estrela de cinema, um sargento e o presidente dos Estados Unidos ao mesmo tempo, tudo isso englobado em um cara com pouco mais de um metro e oitenta de altura. Tinha um temperamento terrível, uma inteligência impressionante e um pavio de mais ou menos um milímetro de comprimento, e isso em um dia bom. E seu trabalho era tão valioso quanto uma pedra preciosa.
As operações de maior rentabilidade do cara sempre foram aquelas feitas em atletas profissionais: ele tratou vários joelhos, quadris e ombros que teriam provocado muitos finais de carreira no futebol, baseball ou no hóquei. Mas também tinha muita experiência com tratamentos de coluna e, apesar da atuação de um neurocirurgião ser interessante se considerasse as radiografias de Payne, aquele era um problema ortopédico: se a medula espinhal fosse rompida, nada do que fizessem em termos neurológicos ajudaria. A ciência médica não tinha avançado tanto assim.
Quando dobrou a extremidade da mesa de recepção, teve de parar. À esquerda estava seu antigo escritório, o lugar onde passava horas incontáveis lidando com papéis e fazendo reuniões de consulta com Manny e o resto da equipe. Agora, lia-se o nome na placa fixada na porta: DR. THOMAS GOLDBERG, CIRUGIÃO-CHEFE DO DEPARTAMENTO DE TRAUMATOLOGIA.
Goldberg era uma excelente escolha; ainda assim, por alguma razão, doía ver o nome de outra pessoa ali.
Mas até parece. Esperava que Manny preservasse sua mesa e seu escritório como um monumento em homenagem a ela? A vida continua. A dela. A dele. A do hospital.
Voltando à realidade da situação, caminhou pelo corredor acarpetado. Mexia sempre em seu jaleco branco, com a caneta em seu bolso e com o celular que, até agora, não havia tido motivos para usar. Não havia tempo para explicar seu retorno do mundo dos mortos ou persuadir Manny ou ajudá-lo a entender o que estava prestes a expor; e não havia escolha, mas, de alguma forma, tinha de levá-lo com ela.
Em frente à porta fechada, preparou-se e, em seguida, atravessou...
Ele não estava atrás da mesa, ou trabalhando em algo na mesa de conferências da sala de reuniões.
Verificou rapidamente em seu banheiro privativo... nada ali também... não havia nenhuma umidade nas portas de vidro ou toalhas molhadas sobre a pia.
De volta ao escritório, ela respirou fundo... e o aroma suave de sua loção pós-barba pairando no ar a fez engolir em seco. Deus, sentia a falta dele.
Balançando a cabeça, andou ao redor da mesa e olhou a desordem. Arquivos de pacientes, pilhas de memorandos interdepartamentais, relatórios de Assistência ao Paciente e de Avaliação de Qualidade. Como era um pouco depois das cinco da tarde de um sábado, esperava encontrá-lo ali: as provas de seleção não eram realizadas nos finais de semana; então, a menos que estivesse de plantão ou lidando com um algum caso na traumatologia, deveria estar bem ali atrás daquela confusão de papéis. Manny era workaholic: trabalhava vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana.
Saindo do escritório, verificou a mesa de sua secretária. Nada ali também: seus compromissos eram mantidos no computador, protegidos por senha.
A próxima parada era o centro cirúrgico. O São Francisco tinha diferentes níveis de salas de operação, todas organizadas por especialidades. Ela foi diretamente à seção que ele costumava atuar. Olhando pelas janelas de vidro e portas duplas, viu que estavam operando uma terrível fratura múltipla. Embora os cirurgiões usassem máscaras e toucas, poderia dizer que nenhum deles era Manny. Seus ombros eram grandes o suficiente para esticar até mesmo o maior uniforme cirúrgico disponível e, além disso, as músicas que soavam ao fundo não eram o estilo dele. Mozart? Sem chance. Pop? Nem morto: Manny ouvia rock clássico e heavy metal. Aliás, se não fosse contra o protocolo, os enfermeiros usariam um protetor de ouvidos durante todos os procedimentos com ele.
Caramba... Onde diabos estava? Não havia conferências naquela época do ano e ele não tinha vida fora do hospital. As únicas opções que restavam era que estivesse no Commodore: desmaiado de cansaço no sofá de seu apartamento ou na academia do arranha-céu.
Quando saiu dali, pegou o celular e ligou para o sistema de atendimento do hospital.
– Sim, alô? – disse quando a ligação foi atendida. – Gostaria de falar com o Dr. Manuel Manello. Meu nome? – que droga! – Ah... Hannah. Hannah Whit. Pode retornar a ligação neste número.
Quando desligou, percebeu que não fazia ideia do que dizer caso ele retornasse a ligação, mas resolveu dar destaque ao pensamento positivo... e rezou para que tivesse a habilidade inata de realizar aquela tarefa. O fato era: se o sol baixasse no horizonte, um dos Irmãos sairia do complexo e faria algum trabalho mental em Manny para facilitar o processo de levá-lo até lá.
Contudo, não seria Vishous. Outra pessoa. Qualquer pessoa. Seus instintos diziam-lhe para deixar os dois tão afastados quanto possível: já tinham uma emergência médica em processo, e a última coisa de que precisava era de seu antigo patrão sendo pressionado porque seu marido tinha um instinto territorial e poderia decidir rachar, ele próprio, uma coluna a qualquer momento. Pouco antes de sua morte, Manny estava interessado em mais do que apenas uma associação profissional com ela; portanto, a menos que tivesse se casado com uma das Barbies que insistia em namorar, provavelmente ainda estava solteiro... E a regra dizia que o coração ficava ainda mais afeiçoado à pessoa ausente; então, seus sentimentos devem ter persistido.
Por outro lado, era possível que a insultasse sem piedade por mentir para ele sobre toda a coisa de estar “morta e enterrada”.
Pelo menos ele não se lembraria de nada daquilo; contudo, quanto a ela, temia nunca mais se esquecer das próximas vinte e quatro horas.
O Hospital Equino Tricounty era uma instalação de última geração em todos os sentidos. Localizado a quinze minutos do hipódromo de Aqueduct, o local tinha tudo, desde salas de operação e um serviço completo de quartos de recuperação até piscinas para hidroterapia e exames que forneciam imagens avançadas. E seu quadro de funcionários era composto por pessoas que viam os cavalos como muito mais do que uma fonte de lucros sobre quatro patas.
Na sala de cirurgia, Manny analisava as radiografias da perna dianteira de sua garota e desejou ser o único a entrar ali para resolver o problema: conseguia ver claramente as fissuras na imagem, mas isso não era o que o preocupava. Havia vários ligamentos que haviam sido rompidos e manchas acentuadas orbitando ao redor dos centros nervosos do osso alongado que mais pareciam luas ao redor de um planeta.
Só porque ela era de outra espécie não significava que não poderia fazer a operação. Assim que o anestesista fizesse seu trabalho em segurança, ele poderia cuidar do resto. Osso era sempre osso; mas não bancaria o idiota.
– O que acha? – perguntou.
– Minha opinião profissional – respondeu o veterinário-chefe – é de que está muito ruim. É uma fratura múltipla deslocada. O tempo de recuperação será extenso e não é possível garantir que ela sequer possa reproduzir.
O que era uma zica total: cavalos foram feitos para ficar em pé com seu peso distribuído sobre quatro pontos de maneira uniforme. Quando uma perna era quebrada, não se tratava tanto da lesão em si, mas o fato de que era preciso redistribuir o peso e contar, desproporcionalmente, com as partes que ainda estavam boas no corpo para ficar em pé. E esse era o grande problema.
Ao considerar aquilo que examinava, a maioria dos proprietários escolheria a eutanásia; mas sua garota tinha nascido para correr, e aquela lesão catastrófica faria disso impossível, mesmo se fosse apenas para o lazer... isso se ela sobrevivesse. Como médico, estava muito familiarizado com a crueldade do trabalho “salvador” de seus colegas que acabavam levando o paciente a viver em condições piores do que a morte – ou não faziam nada além de prolongar, de maneira dolorosa, o inevitável.
– Dr. Manello? O senhor ouviu o que eu disse?
– Sim. Ouvi. – Pelo menos aquele cara, ao contrário do idiota na pista, parecia tão arrasado quanto Manny.
Afastando-se, foi até onde a deitaram e colocou uma das mãos sobre sua bochecha arredondada. Sua pelagem negra brilhava sob a iluminação e, em meio ao cenário de ladrilho claro e aço inoxidável, parecia uma sombra projetada ao acaso e esquecida no centro da sala.
Por um longo momento, observou como sua grande caixa torácica expandia-se e contraía-se com a respiração. Só de vê-la na maca com as belas pernas esticadas como bastões e sua cauda pendendo sobre o ladrilho fê-lo perceber que animais como ela deveriam ficar em pé: aquilo que via era completamente contrário à natureza, e injusto.
Mantê-la viva apenas para que não tivesse de enfrentar sua morte não era a resposta certa.
Preparando-se para a situação, Manny abriu a boca...
A vibração dentro do bolso de seu terno o interrompeu. Com um palavrão, tirou o celular e verificou. Era do hospital. Hannah Whit? Com um número desconhecido?
Não era ninguém que conhecesse e ele não estava de plantão.
Provavelmente um erro do atendimento.
– Quero que opere – ouviu-se dizendo enquanto guardava o telefone de volta.
O curto silêncio que se seguiu deu-lhe tempo de sobra para perceber que impedi-la de partir cheirava a covardia. Mas não poderia insistir naquele melodrama psíquico ou perderia a sanidade.
– Não posso garantir nada. – O veterinário voltou a olhar as radiografias. – Não sei dizer o que vai acontecer, mas posso jurar que... farei meu melhor.
Deus, agora sabia como as famílias se sentiam quando dizia isso a elas.
– Obrigado. Posso assistir?
– Com certeza. Vou pegar algo para o senhor vestir e sabe como fazer a higienização antisséptica, certo, doutor?
Vinte minutos depois, a operação começou e Manny assistiu próximo à cabeça de Glory, acariciando sua crina com as mãos envolvidas com as luvas de látex, mesmo sedada. Enquanto o veterinário-chefe trabalhava, Manny teve de tirar o chapéu para a metodologia e habilidade daquele homem... as únicas coisas corretas desde que Glory havia caído. O procedimento terminou em menos de uma hora, com os fragmentos ósseos ou removidos ou encaixados no devido lugar. Então, imobilizaram a perna, retiraram a égua da sala de cirurgia e a colocaram em uma piscina para que não quebrasse outra perna quando o efeito da anestesia passasse.
Manny ficou com ela até que acordasse e, em seguida, acompanhou o veterinário até o corredor.
– Os sinais vitais são bons e correu tudo bem na operação – o veterinário disse –, mas essa vitalidade pode mudar rapidamente. E vai levar tempo até sabermos o que conseguimos alcançar.
Nossa. Aquele pequeno discurso era exatamente o que dizia aos familiares mais próximos e outros parentes quando achava que era hora de irem para casa descansar e esperar como o paciente reagiria ao pós-operatório.
– Ligaremos para o senhor – falou o veterinário. – Vamos mantê-lo informado.
Manny tirou as luvas e pegou seu cartão de visitas.
– No caso de ainda não terem todos os meus dados nos registros.
– Temos sim – de qualquer forma, pegou o papel. – Se alguma coisa mudar, será o primeiro a saber, e lhe darei as informações pessoalmente, a cada doze horas, que é o intervalo entre as minhas rondas, quando passo visitando todos os leitos.
Manny assentiu e estendeu a mão.
– Obrigado. Por cuidar dela.
– Por nada.
Depois de apertarem as mãos, Manny assentiu outra vez junto às portas duplas.
– Importa-se se eu me despedir dela?
– Não. Pode ir.
Dentro do quarto outra vez, passou um momento com sua égua. Deus... aquilo doía.
– Segure firme, garota – teve de sussurrar, pois não conseguia respirar direito.
Quando se ergueu, a equipe o observava com uma tristeza que sabia que ia permanecer.
– Vamos cuidar dela. – o veterinário disse gravemente.
Acreditava mesmo que cuidariam e foi a única coisa que o levou de volta ao corredor.
As instalações do Tricounty eram extensas e precisou de um tempo considerável para trocar de roupa e seguir seu caminho até a saída onde tinha estacionado, próximo à porta da frente. À frente, o sol se punha, um brilho de um tom pêssego se espalhava, iluminando o céu como se Manhattan estivesse em chamas. O ar estava frio, mas perfumado, pois o início da primavera esforçava-se para trazer vida à paisagem árida do inverno, e ele respirou tão fundo que ficou tonto. Deus, o tempo tinha passado como uma neblina, mas agora, com os minutos se arrastando, percebeu que aquele ritmo frenético tinha esgotado sua fonte de energia. Era isso ou tinha batido contra um muro de tijolos e desmaiado.
Enquanto procurava a chave do carro, sentiu-se mais velho do que Deus. Sua cabeça estava dando fortes pontadas e sua artrite no quadril o estava matando. Aquela corrida que havia empreendido para chegar à pista e ficar ao lado de Glory ia além de seus limites.
Não foi assim que imaginou o final do dia. Achou que estaria comprando bebidas para os proprietários que tinha derrotado... E talvez, no resplendor da vitória, seguisse a generosa sugestão oral da Sra. Hanson.
Ao entrar no carro, ligou o motor. Caldwell estava a mais ou menos quarenta e cinco minutos ao norte de Queens, e seu carro conseguia fazer a viagem de volta ao Commodore praticamente sozinho. Isso era muito bom, pois era quase um zumbi naquele momento. Nada de rádio. Nenhuma música no iPod. Ninguém telefonando também.
Ao pegar a estrada, observou o caminho à frente e lutou contra o impulso de dar meia-volta e... sim, e fazer o quê? Descansar em paz ao lado de seu cavalo?
A questão era: se conseguisse chegar em casa logo, poderia conseguir ajuda. Tinha uma garrafa de uísque esperando por ele e poderia ou não ir com calma ao usá-la. Até onde dizia respeito ao hospital, estava de folga até segunda pela manhã, às seis horas, e tinha planos de ficar bêbado e permanecer assim.
Guiando o volante revestido de couro com uma das mãos, procurou, com a outra, em meio a sua camisa de seda, sua representação do Cristo crucificado. Segurando a cruz de ouro, fez uma oração.
Deus... por favor, permita que ela fique bem.
Não poderia suportar perder outra de suas garotas. Não tão cedo. Jane Whitcomb tinha morrido há um ano, mas isso era o que o calendário dizia. O tempo do luto era diferente – nele havia transcorrido apenas um minuto e meio.
Não queria passar por isso outra vez.
CONTINUA
1761, ANTIGO PAÍS
Xcor viu seu pai sendo morto após cinco anos de sua transição. Aconteceu diante de seus olhos, mas, mesmo com a proximidade, não poderia imaginar o que houve.
A noite começou como qualquer outra, a escuridão caiu sobre a paisagem de florestas e cavernas, as nuvens encobriam a luz da lua para ele e para aqueles que viajavam a cavalo com ele. Seu grupo de soldados era composto por seis homens fortes: Throe, Zypher, os três primos e ele próprio. E seu pai.
Bloodletter.
Antigo membro da Irmandade da Adaga Negra.
O que os fez sair naquela noite foi o que os chamava ao serviço após cada pôr de sol: procuravam redutores, aquelas armas sem alma de Ômega, que achou por bem exterminar a raça vampira. E os encontravam. Frequentemente.
Mas aqueles sete machos não eram membros da Irmandade.
Ao contrário dos aclamados Irmãos, eram um grupo secreto de guerreiros. Aquele grupo de bastardos liderados por Bloodletter não era nada além de soldados: sem cerimônias. Nada de serem adorados pela população civil. Nada de louvores. A linhagem deles poderia ser aristocrática, mas todos foram abandonados por seus familiares por terem nascido com defeitos ou fora de um acasalamento santificado.
Nunca seriam outra coisa senão pedaços de carne dispensáveis dentro da grande guerra pela sobrevivência.
Porém, mesmo isso sendo verdade, eram a elite dos soldados, os mais cruéis, os braços mais fortes, aqueles que foram provados ao longo do tempo pelo feitor mais rígido da raça: o pai de Xcor. Escolhidos a dedo e com sabedoria, esses homens eram mortais contra o inimigo e não seguiam nenhum código de conduta quando se tratava da sociedade vampira. Também não seguiam nenhum código quando se tratava de matar alguém: não importava se a presa era um assassino, um humano, um animal ou um lobo. Sangue seria derramado.
Eles fizeram um, e apenas um, juramento: seu pai era o senhor deles e ninguém mais. Aonde quer que ele fosse, eles iriam, e isso era tudo. Muito mais simples que toda aquela porcaria elaborada pela Irmandade – mesmo Xcor sendo um candidato por linhagem, não teve interesse em ser um Irmão. Não se importava com a glória, uma vez que nada se comparava ao doce prazer do assassinato. Melhor deixar de lado a tradição inútil e o ritual desgastado para aqueles que se recusam a empunhar qualquer outra coisa que não seja uma adaga negra.
Usaria qualquer arma disponível.
E seu pai faria o mesmo.
O clamor dos cascos abrandou e depois ficaram em silêncio quando os lutadores saíram da floresta em um enclave de carvalhos e arbustos. A fumaça das lareiras das casas pairava na brisa, mas não havia nenhuma outra confirmação de que tinham chegado, finalmente, à pequena cidade que procuravam: no alto, sobre um íngreme penhasco, havia um castelo fortificado que se apresentava como uma águia empoleirada, sua fundação era como garras fincadas na rocha.
Humanos. Guerreando entre si.
Que entediante.
Ainda assim, era preciso respeitar a construção. Talvez, se Xcor se estabelecesse algum dia, massacraria a dinastia daquele lugar e tomaria posse daquela fortaleza. Muito mais eficiente roubar que construir.
– Para a aldeia – seu pai ordenou. – Avancemos para a diversão.
A notícia era de que havia redutores ali, as bestas pálidas misturavam-se e confundiam-se com os moradores do vilarejo que tinham escavado lotes de terra e construído casas de pedra à sombra do castelo.
Isso era uma típica estratégia de recrutamento da Sociedade: infiltrar-se em uma cidade, tomar os machos um a um, assassinar ou vender as mulheres e crianças, fugir com armas e cavalos e mudar-se para uma localidade próxima em maior número.
Xcor tinha a mesma mentalidade do inimigo nesse aspecto: quando acabava de lutar, sempre pegava tudo o que podia antes de dirigir-se para a próxima batalha. Noite após noite, Bloodletter e seus soldados abriam caminho ao longo do território que os seres humanos chamavam de Inglaterra e, quando alcançavam a ponta do território escocês, viravam-se e colocavam-se em direção oposta, indo sempre para o sul, até chegarem ao calcanhar da Itália, quando davam meia-volta outra vez. Em seguida, percorriam novamente os muitos quilômetros que tinham caminhado até ali. E faziam isso de novo. E mais outra vez.
– Deixemos nossas provisões aqui. – disse Xcor, apontando para uma árvore de tronco grosso, que havia caído sobre um riacho.
Enquanto faziam a transferência dos modestos suprimentos, não havia nada além do ranger de couro e do bufar ocasional de um garanhão. Quando tudo estava guardado sob o flanco do carvalho abatido, montaram outra vez sobre seus animais e reuniram os cavalos de raça – que eram as únicas coisas de valor, além de armas, que possuíam. Xcor não via utilidade em objetos de beleza ou conforto – para ele, eram nada além de um peso que o induzia à queda. Um cavalo forte e um punhal afiado? Isso sim tinha um valor inestimável.
Enquanto os sete andavam até a aldeia, não fizeram qualquer esforço para silenciar as batidas dos cascos de seus cavalos. Contudo, não houve gritos de guerra. Era um desperdício de energia, seus inimigos não precisavam de um convite para vir saudá-los. O único ato de boas-vindas foi um humano ou dois espiando para fora de suas portas e, em seguida, voltando rapidamente a trancarem-se em seus domicílios. Xcor os ignorou. Em vez de importar-se com isso, examinou as casas baixas de pedra, a praça central e as lojas de comércio fortificadas, procurando por alguma forma bípede, pálida como um fantasma e fedendo como um cadáver revestido em melado.
Seu pai andou até ele e sorriu com um toque de maldade.
– Talvez possamos colher os frutos dos jardins por aqui mais tarde.
– Talvez. – murmurou Xcor enquanto seu cavalo jogava a cabeça para trás. Na verdade, não estava muito interessado em deitar-se com fêmeas ou subjugar machos, mas não se podia negar nada a seu pai, mesmo quando se tratava de suas extravagâncias na hora do lazer.
Sinalizando com as mãos, Xcor direcionou três de seu grupo para a esquerda, onde havia uma pequena estrutura com uma cruz em cima de seu telhado pontiagudo. Ele e os outros seguiriam à direita. Seu pai faria o que quisesse. Como sempre.
Forçar os garanhões a permanecer em um galope contínuo era uma tarefa que desafiava até mesmo o mais vigoroso dos braços, mas estava acostumado com o cabo de guerra e sentou-se com firmeza na sela. Com um propósito sombrio, seus olhos penetraram as sombras produzidas pelo luar, procurando, sondando...
O grupo de assassinos que saiu do abrigo de ferragens possuía uma grande quantidade de armas.
– Cinco – Zypher rosnou. – Bendita noite.
– Três – Xcor interrompeu. – Dois ainda são seres humanos... porém, matar esses dois... também será um prazer.
– Qual devemos atacar, meu senhor? – Seu irmão de armas disse com um grande respeito que era dedicado por merecimento e não por ser o primogênito.
– Os humanos – Xcor disse, deslocando-se para frente e preparando-se para o momento em que incitaria seu cavalo a partir. – Se há outros redutores por perto, isso os atrairia ainda mais.
Estimulando o grande animal e afundando-se na sela, sorriu quando os redutores mantiveram-se firmes com suas correntes e armamentos. No entanto, as duas pessoas junto a eles não ficariam tão firmes. Embora os dois estivessem equipados para lutar, dariam meia-volta e correriam quando vissem a primeira exibição de presas como cavalos assustados por um tiro de canhão, razão pela qual deu um solavanco de forma abrupta para a direita logo após galopar apenas alguns passos. Atrás da cabana do ferreiro, puxou as rédeas e desmontou do corcel. Seu garanhão era um animal selvagem, mas obediente quando tratava-se de desmontar e aguardar...
Uma fêmea humana irrompeu pela porta dos fundos, sua camisola branca era como uma faixa brilhante na escuridão, enquanto esforçava-se para ficar em pé sobre a lama. No instante em que ela o viu, ficou paralisada de terror.
Reação lógica: ele era duas vezes o tamanho dela, talvez três, e não estava vestido para dormir, mas para a guerra. Quando a mão da fêmea ergueu-se até a garganta, ele farejou o ar e sentiu seu perfume. Hummm, talvez seu pai gostasse daquela flor de jardim...
Quando o pensamento lhe ocorreu, soltou um rosnado baixo que incitou a moça a uma corrida desenfreada; a visão da tentativa de fuga fez o predador dentro dele vir à tona. Com uma sede de sangue percorrendo suas entranhas, lembrou-se que havia se passado semanas desde que tinha se alimentado de alguém de sua espécie e, apesar daquela garota ser apenas uma humana, poderia ser o suficiente para aquela noite.
Infelizmente, não havia tempo para se divertir naquele momento... Apesar disso, seu pai iria atrás dela mais tarde, com certeza. Se Xcor precisava de um pouco de sangue para vencer as dificuldades, conseguiria tal fonte com aquela mulher, ou com qualquer outra.
Dando as costas para a fuga, parou com firmeza sobre o chão e desembainhou a arma escolhida: embora as adagas servissem, preferiu a foice, cabo longo e modificado para um coldre amarrado em suas costas. Era especialista em empunhar aquele grande peso e sorriu enquanto manejava ao vento a lâmina cruel e curvada, esperando para jogar a rede sobre aqueles dois peixes que, com certeza, estavam nadando até ele...
Ah, sim, como era bom estar certo.
Logo após uma luz brilhante surgir e um estalo eclodir da passagem principal, os dois humanos vieram gritando em direção aos fundos da casa do ferreiro como se estivessem sendo perseguidos por carrascos.
Mas estavam errados, não? O carrasco estava esperando ali.
Xcor não gritou ou amaldiçoou. Sequer rosnou. Começou a correr com a foice, havia um equilíbrio uniforme entre as duas mãos enquanto as coxas poderosas encurtavam a distância. Só de olhar para ele, os humanos derraparam em suas botas, braços soltos, como asas de patos pousando sobre a água.
O tempo pareceu desacelerar quando caiu sobre eles, sua arma favorita fez um grande círculo, atingindo os dois na altura do pescoço.
As cabeças foram decepadas com um golpe único e limpo. Os rostos surpresos brilharam e desapareceram à medida que a parte removida do corpo girava, o sangue espirrou e salpicou no peito de Xcor. Com a ausência de crânios, a parte inferior dos corpos caíram sobre o chão com uma graça curiosa e líquida, aterrissando inanimados com os membros retorcidos.
Agora sim ele gritava.
Virando-se, Xcor fixou suas botas de couro na lama, respirou fundo e soltou um rosnado enquanto manejava a foice, o aço avermelhado pedia mais sangue. Apesar de suas presas serem meros seres humanos, o impulso de matar era superior a um orgasmo, a sensação de que havia tirado uma vida e deixado cadáveres para trás percorria seu corpo como uma bebida alcoólica.
Chamou seu cavalo assoviando, que foi até ele rapidamente após o comando. Com um salto, montou na sela, a foice erguida em sua mão direita enquanto lidava com as rédeas com a esquerda. Dando um golpe com força, incitou o corcel ao galope, percorrendo rapidamente um caminho estreito e sujo e emergindo no auge da batalha.
Seus colegas lutavam com todas as forças, o som das espadas colidindo e gritos bombardearam a noite quando o demônio encontrou seu inimigo. E assim como Xcor havia previsto, mais uma meia dúzia de redutores veio correndo a toda velocidade sobre seus garanhões de raça, como leões que foram libertos para defender seu território.
Xcor entrou em cena e avançou contra o inimigo, envolvendo as rédeas no punho e brandindo a foice enquanto o cavalo corria em direção aos outros com os dentes à mostra. Sangue negro e partes de corpos voaram quando passou por entre os adversários, ele e seu cavalo trabalhavam como uma unidade naquele ataque.
Quando atingiu mais um assassino com sua lâmina e o cortou ao meio na altura do peito, soube que tinha nascido para fazer isso, era a maior e melhor maneira de usar seu tempo sobre a terra. Era um assassino, não um defensor.
Não lutava pela raça... mas por si mesmo.
Tudo aconteceu muito depressa, a névoa noturna rondava os redutores caídos, que contorciam-se em poças do próprio sangue oleoso e negro. Houve poucos feridos dentre o grupo de Xcor. Throe tinha um corte no ombro, feito por alguma lâmina. Zypher estava mancando, uma mancha vermelha escorria de sua perna, ensopando a bota. Nenhum deles estava mais lento ou mesmo preocupado.
Xcor deteve o cavalo, desmontou e voltou a colocar a foice no coldre. Sacou a adaga de aço e começou sua ronda para esfaquear os assassinos, lamentou o processo que enviava o inimigo de volta a seu criador. Queria mais luta, não menos...
Um grito ecoou e ele ergueu a cabeça. A mulher humana de camisola estava correndo pela estrada de terra batida do vilarejo, seu corpo pálido em uma fuga desgovernada, como se tivesse sido expulsa de um esconderijo. Logo atrás dela, o pai de Xcor montou em seu cavalo e galopou rápido; o corpo maciço de Bloodletter pendia em um dos lados da sela quando a alcançou. Na verdade, não houve, de fato, uma corrida: quando ficou ao lado dela, pegou-a com o braço e atirou-a sobre seu colo.
Não houve parada, nem mesmo uma diminuição da velocidade depois da captura, mas uma marca foi feita: com seu cavalo galopando a toda velocidade e a humana se debatendo, o pai de Xcor ainda conseguiu atingir a garganta delgada com suas presas, prendendo-se no pescoço da mulher como se fosse detê-la apenas com os caninos.
Ela teria morrido. Com certeza, ela teria morrido.
Se Bloodletter não tivesse morrido primeiro.
De fora do turbilhão do nevoeiro surgiu uma figura fantasmagórica como se fosse formada pelos filamentos de umidade que percorriam o ar. E no momento que Xcor viu o espectro, estreitou os olhos e valeu-se de seu olfato aguçado.
Parecia ser uma mulher. De sua espécie. Vestida com uma túnica branca.
E seu cheiro lembrou-o de algo que não conseguiu localizar.
Ela foi diretamente ao encontro de seu pai, mas parecia não ter a menor preocupação com o cavalo ou com o guerreiro sádico que logo viria atrás dela. No entanto, seu pai estava fascinado por ela. No instante em que a notou, largou a humana como se não fosse nada além de um osso do qual já houvesse comido toda a carne.
Isso estava errado, Xcor pensou. De fato, ele era um macho de ação e poder e dificilmente um membro do sexo frágil o intimidaria... mas tudo em seu corpo advertia que aquela entidade etérea era perigosa. Letal.
– Ei! Pai! – gritou. – Vire-se!
Xcor assoviou para seu cavalo, que atendeu ao comando. Montando sobre a sela, estimulou os flancos do animal, lançando-se a toda velocidade para que pudesse cruzar o caminho do pai, um pânico estranho o incitando.
Tarde demais. Seu pai lançou-se sobre a fêmea, que agachou-se lentamente.
Meu Deus, ela ia saltar por cima do...
Com um impulso coordenado, ela flutuou no ar e pegou a perna de seu pai, usando-a para montar sobre o cavalo de um salto. Então, agarrou o sólido peitoral de Bloodletter, saltou para um lado e levou o macho ao chão com ela, como se fossem apenas um. A investida poderosa desafiava a questão de ser do sexo feminino e sua natureza espectral.
Ora, não era um fantasma, mas um ser de carne e osso.
O que significava que poderia ser morta.
Enquanto Xcor preparava-se para lançar seu garanhão contra eles, a fêmea soltou um grito nada feminino: mais ao estilo do grito de guerra de Xcor, o berro trespassou o ruído dos cascos trovejantes abaixo dele e os sons do grupo que reunia-se para combater aquele ataque inesperado.
Contudo, não havia necessidade de uma intercessão imediata.
Seu pai, após o choque de ser tirado de sua sela, rolou de costas, desembainhou seu punhal e rosnou como um animal. Com uma maldição, Xcor freou e interrompeu o resgate, pois, com certeza, seu pai assumiria o controle. Bloodletter não era o tipo de homem a quem se ajudava – havia agredido Xcor por isso no passado, uma lição que foi duramente aprendida e que sempre seria lembrada.
Ainda assim, desmontou e aproximou-se da situação para reagir no caso de haver mais alguma “Valquíria” saindo do meio da floresta.
E foi assim que ele a ouviu, claramente, dizer um nome.
– Vishous.
A raiva de seu pai deu lugar a uma breve confusão. E antes que pudesse retomar sua autodefesa, a figura fantasmagórica começou a brilhar com uma luz profana.
– Pai! – Xcor gritou ao aproximar-se correndo.
Mas era tarde. E o contato foi feito.
Chamas irromperam sobre o rosto rude e barbado de seu pai e tomaram seu corpo, como se fosse feno seco. E com a mesma graça que ela o derrubou, a fêmea saltou para trás e observou enquanto seu pai tentava apagar o fogo debatendo-se freneticamente, sem sucesso. No meio da noite, ele gritava enquanto era queimado vivo, suas roupas de couro não ofereceram proteção alguma para sua pele e músculos.
Não havia chance alguma de aproximar-se o suficiente do fogo e Xcor derrapou até parar, levantando o braço para se proteger e curvando-se para se afastar do calor que ficava exponencialmente mais intenso.
Durante todo o tempo, a fêmea ficou sobre o corpo que se contorcia e tinha espasmos... O brilho laranja iluminava o rosto belo e cruel.
A vadia estava sorrindo.
E foi então que ela ergueu o rosto para ele. Quando Xcor teve uma visão correta de seu rosto, recusou-se, em um primeiro momento, a acreditar no que via. Ainda assim, o brilho das chamas não mentia.
Xcor observava uma versão feminina de Bloodletter. O mesmo cabelo negro, a mesma pele e olhos claros. A mesma estrutura óssea. Além disso, a mesma luz vingativa em seu olhar violento, aquele arrebatamento e satisfação ao causar uma morte era uma combinação que Xcor conhecia muito bem.
Ela partiu logo em seguida, desaparecendo na neblina de uma maneira que não condizia com a desmaterialização de sua espécie, mas, sim, fez isso como um sopro de fumaça, desvanecendo-se devagar em princípio e, em seguida, rápida e definitivamente.
Assim que sentiu-se capaz, Xcor correu para seu pai, mas não havia mais nada a ser salvo... mal havia algo para ser enterrado. Afundando os joelhos diante dos ossos fumegantes e do fedor de queimado, teve um momento de fraqueza deplorável: lágrimas derramaram-se dos olhos. Bloodletter tinha sido um bruto, mas como sua única descendência masculina, Xcor e ele eram bem próximos... Na verdade, eram quase membros de um mesmo corpo.
– Por tudo o que é mais sagrado – Zypher disse com voz rouca –, o que foi isso?
Xcor piscou com força antes de olhar por cima do ombro.
– Ela o matou.
– Sim. E fez mais alguma coisa.
Quando o grupo de bastardos aproximou-se dele, um a um, Xcor teve de pensar no que dizer, no que fazer.
Erguendo-se com firmeza, quis chamar seu cavalo, mas sua boca estava seca demais para assoviar.
Seu pai... um inimigo e, ao mesmo tempo, seu porto seguro, estava morto. Morto. E aconteceu tão rápido, rápido demais.
Por uma fêmea.
Seu pai havia partido.
Quando conseguiu, olhou para cada um dos machos diante dele, os dois montados nos cavalos, os dois em pé e o que estava a sua direita. Com uma nítida percepção, soube que não importava o que o destino tivesse reservado, seria moldado pelo que havia acontecido naquele momento, aqui, agora.
Não havia se preparado para isso, mas não se afastaria do que deveria fazer:
– Ouçam bem, pois só direi uma vez. Ninguém vai dizer nada. Meu pai morreu em uma batalha contra o inimigo. Eu o queimei para homenageá-lo e mantê-lo sempre comigo. Jurem isso para mim agora.
Os bastardos com quem ele vivia e lutava há muito tempo juraram e depois que suas vozes profundas desvaneceram-se no ar noturno, Xcor inclinou-se e passou os dedos pelas cinzas. Erguendo as mãos até o rosto, traçou uma listra com a fuligem desde as bochechas até as grossas veias que percorriam cada lado do pescoço... em seguida, acariciou o crânio duro que era tudo o que havia restado de seu pai. Segurando os restos carbonizados que ainda soltavam fumaça, reivindicou os soldados a sua frente como seus.
– Sou o único senhor agora. Liguem-se a mim neste momento ou serão meus inimigos. O que me dizem?
Não houve hesitação alguma. Os machos se ajoelharam, retiraram suas adagas e irromperam o grito de guerra antes de enterrarem as lâminas na terra a seus pés.
Xcor observou as cabeças inclinadas e sentiu que um manto caía-lhe sobre os ombros. Bloodletter estava morto. Sem vida, seria transformado em lenda a partir daquela noite.
E, seguindo o que é certo e apropriado, o filho substituiria o pai agora, comandando aqueles soldados que não serviriam a Wrath, o rei que não os governava; nem à Irmandade, que não se dignificava a descer àquele nível... Serviriam a Xcor e somente a ele.
– Vamos seguir na direção de onde a fêmea veio – anunciou. – Vamos encontrá-la mesmo que levem séculos, pois ela deve pagar por aquilo que fez esta noite. – Nesse momento, Xcor conseguiu assoviar alto e claro para seu cavalo. – Levarei, pessoalmente, a morte ao esconderijo daquela fêmea.
Subindo em seu cavalo, reuniu as rédeas e incitou o grande animal a cruzar a noite. Seu grupo de bastardos entrou em formação e o seguiu, disposto a morrer por ele.
Enquanto trovejava ao sair da aldeia, colocou o crânio de seu pai dentre as roupas de couro que usava nas batalhas, bem em cima do coração.
Aquela vingança seria sua. Mesmo que o matasse.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/9_AMANTE_LIBERTADA.jpg
CAPÍTULO 1
DIAS ATUAIS
HIPÓDROMO DE AQUEDUCT, QUEENS, NOVA YORK
– Quero enlouquecer você.
O Dr. Manny Manello virou a cabeça para a direita e olhou para a mulher que tinha falado com ele. Não foi a primeira vez que tinha ouvido essas palavras e a boca pela qual elas saíram tinha silicone suficiente para preencher uma boa almofada. Mas, ainda assim, foi uma surpresa.
Candance Hanson sorriu para ele e ajeitou seu chapéu retrô com uma mão bem manicurada. Aparentemente, ela tinha decidido que a combinação de dama refinada com uma dose de atrevimento era atraente – e talvez fosse, para alguns rapazes.
Caramba, em outro momento de sua vida, ele provavelmente teria dado em cima dela seguindo a teoria do “por que não?”. Agora? Seguia a ideia do “não é pra tanto”.
Sem se deixar abater pela falta de entusiasmo do médico, ela inclinou-se para frente, exibindo um par de seios que não exatamente desafiava a gravidade. Na verdade, aquilo era mais como mostrar o dedo médio, insultar a mãe e pisar no calo de alguém – uma falta de educação.
– Sei de um lugar aonde poderíamos ir.
Ele apostava que sim.
– A corrida já vai começar.
Ela fez beicinho. Ou talvez fosse o efeito das aplicações para aumentar os lábios. Deus, há dez anos ela devia ter um rosto jovem; agora, os anos tinham adicionado uma pátina de desespero nela – junto ao processo normal de envelhecimento, contra o qual ela lutava como um boxeador.
– Depois, então.
Manny afastou-se sem responder, sem saber exatamente como ela tinha conseguido entrar na área dos proprietários. Deveria ter sido na confusão que havia para voltar àquele local depois de selarem os cavalos – e, sem dúvida, estava acostumada a entrar em lugares que, tecnicamente, não lhe eram permitidos: Candance era um daqueles tipos sociais de Manhattan que só se diferenciava de uma prostituta por não ter um cafetão e, de muitas maneiras, era como uma vespa qualquer: ignorava o incômodo causado e ia pousar em outra coisa.
Ou em outra pessoa, como era o caso.
Erguendo o braço para mantê-la distante, Manny inclinou-se sobre o corrimão da cabine e esperou que sua garota saísse para a pista. Tinha sido colocada na parte externa, e isso era bom: preferia não ficar muito perto dos outros e percorrer uma distância extra nunca a incomodou.
O hipódromo de Aqueduct, no Queens, Nova York, não tinha o prestígio de um Belmont ou Pimlico ou do venerável pai de todos os hipódromos, o Churchill Downs. Contudo, não era de se jogar fora. A instalação tinha uma arena de quase três quilômetros, uma pista de turfe e outra para corridas de curta distância. A capacidade total era de, aproximadamente, nove hectares. A comida era medíocre, mas ninguém ia até lá para comer e havia algumas corridas grandes, como a daquele dia: a Wood Memorial Stakes tinha uma bolsa de 750 mil dólares e, como era realizada em abril, era uma boa referência para os candidatos ao prêmio Triple Crown...*
Ah, sim, lá estava ela. Lá estava sua garota.
Quando os olhos de Manny fixaram-se em GloryGloryAllelujah, o barulho da multidão, a luz brilhante daquele dia e a fila vacilante composta pelos outros cavalos desapareceram. Tudo o que ele via era sua magnífica égua negra, sua capa capturava a luz do sol e reluzia, as pernas finas se flexionavam, os cascos delicados erguiam-se e voltavam a pousar na pista de areia. Como ela media quase um metro e setenta, o jóquei parecia um pequeno mosquito em suas costas, e essa diferença de tamanho representava a divisão do poder. Ela deixou isso claro desde o primeiro dia de treinamento: poderia tolerar os pequenos seres humanos, mas estavam apenas a passeio na corrida. Ela estava no comando.
Seu temperamento dominador já havia lhe custado dois treinadores. O terceiro? O cara parecia um pouco frustrado, mas era apenas seu senso de controle que estava sendo espancado até a morte: Glory destacava-se e isso, simplesmente, não tinha nada a ver com ele. E Manny não tinha a menor preocupação com os egos inflados de homens que dominavam cavalos a vida inteira. Sua garota era uma lutadora, sabia o que estava fazendo, e ele não tinha o menor problema em deixá-la assumir o controle. Queria apenas assisti-la divertir-se ao acabar com a concorrência.
Quando seus olhos a encontraram, lembrou-se do otário de quem a tinha comprado há pouco mais de um ano. Aqueles vinte mil dólares tinham sido um roubo, considerando sua linhagem, também uma fortuna se pensasse no temperamento dela, e ainda não estava claro se conseguiria autorização para correr. Era uma égua indisciplinada de um ano de idade que já esteve prestes a ser afastada. Ou pior: de ser transformada em comida de cachorro.
Mas ele acertou. Desde que a deixasse liderar e comandar o show, era um espetáculo.
Quando a formação de cavalos aproximou-se do portão, alguns começaram a bater os cascos e a bufar, mas sua garota estava firme, como se soubesse que era inútil desperdiçar energia antes do jogo. Ele achava que as chances eram boas apesar da posição no pódio, pois o jóquei montado em seu dorso era uma estrela: sabia exatamente como lidar com ela e, nesse sentido, era mais responsável pelo sucesso da garota do que os outros treinadores. Sua estratégia era apenas certificar-se de que ela conhecia os melhores percursos, deixá-la escolher e ir.
Manny levantou-se e segurou o corrimão de ferro pintado na frente dele, juntando-se à multidão que saía de seus assentos, e começava a exibir uma quantidade incontável de binóculos. Quando seu coração começou a bater forte, ficou contente, pois fora dali encontrava-se muito próximo do sedentarismo, ultimamente. A vida que levava estava em um estágio de entorpecimento terrível no último ano ou um pouco mais, e talvez essa fosse a razão pela qual aquela égua era tão importante para ele.
Talvez ela também fosse tudo o que ele tinha.
Não era bem assim.
No portão, havia um movimento frenético: quando se trata de amontoar quinze cavalos fortes com patas da espessura de varetas e com glândulas adrenais disparando como obus em minúsculas caixas de metal, você não perde tempo. Em mais ou menos um minuto, o campo foi fechado e as pistas foram restringidas pelos trilhos.
Uma batida de coração.
Um sino.
Bang.
Os portões foram abertos, a multidão rugiu e os cavalos avançaram como se tivessem sido lançados de bocas de canhões. As condições eram perfeitas. Clima seco. Frio. Estavam a toda velocidade na pista.
Não que sua garota se importasse com isso. Correria na areia movediça se fosse necessário.
Os cavalos puros-sangues trovejaram, o som dos cascos e a voz do locutor chicoteavam energia nas arquibancadas a ponto de ficarem em um estado de êxtase. Porém, Manny manteve a calma, permanecendo com as mãos firmadas no trilho na frente dele e seus olhos sobre o campo, enquanto o grupo de cavalos fazia a primeira curva em uma confusão tensa de dorsos e caudas.
O telão mostrava-lhe tudo o que precisava ver. Sua égua estava na penúltima posição, apenas galopando enquanto todos os outros empreendiam uma corrida mortal – inferno, seu pescoço sequer estava totalmente estendido. No entanto, o jóquei estava fazendo seu trabalho, facilitando o caminho dela para avançar na pista, dando-lhe a opção de correr ao redor do grupo ou cortar caminho através deles quando estivesse pronta.
Manny sabia exatamente o que ela iria fazer. Entraria pela direita em meio aos outros cavalos como uma bola de demolição.
Era o jeito dela.
E foi assim que, quando os outros abriram distância, ela começou a pegar fogo. A cabeça baixa, o pescoço alongado, seu passo começou a acelerar.
– Caramba – Manny sussurrou. – Você consegue, garota.
Quando Glory adentrou a pista verde, transformou-se em um raio de luz que ultrapassava os outros corredores, a explosão de velocidade era tão poderosa que qualquer um se perguntaria se aquilo não era de propósito: apenas vencê-los não era o suficiente, ela tinha que fazer isso no último quilômetro, deixando as selas dos outros bastardos na poeira, no último minuto possível.
Manny riu do fundo da garganta. Ela era seu tipo de garota.
– Meu Deus, Manello, olha só como ela avança.
Manny assentiu com a cabeça sem olhar para o cara que falou em seu ouvido, pois a liderança do grupo estava mudando: o potro que estava à frente perdia sua força, ficando para trás quando suas pernas pareceram ficar sem combustível. Em resposta a isso, o jóquei o golpeou, chicoteando-lhe o traseiro – algo que obteve o mesmo sucesso de quando alguém amaldiçoa um carro cujo tanque esvaziou. O potro que estava em segundo lugar, um animal grande e castanho com jeito de mau e um passo que poderia englobar um campo de futebol, aproveitou imediatamente a desaceleração, e seu jóquei permitiu que o cavalo estendesse sua cabeça totalmente.
Os dois ficaram emparelhados por apenas um segundo antes que o cavalo castanho assumisse a liderança da corrida. Mas não seria por muito tempo. A garota de Manny tinha escolhido seu momento para contornar os três cavalos e fazer com que ele ficasse totalmente tenso.
Sim, Glory fazia o que tinha nascido para fazer, orelhas unidas à cabeça, dentes expostos.
Ela ia roubar o doce da boca daquele garanhão. E era impossível não extrapolar e pensar que participariam de corridas importantes como a Kentucky Derby...
Tudo aconteceu tão rápido.
Tudo chegou ao fim... em um piscar de olhos.
Com um golpe intencional, o potro bateu em Glory, o impacto brutal enviou-a para os trilhos. Sua garota era grande e forte, mas não poderia suportar um contato corporal assim, não quando corria a mais de sessenta quilômetros por hora.
Por uma fração de segundo, Manny ficou convencido de que ela se reergueria. Apesar da maneira como inclinou-se e cambaleou, esperava que encontrasse um ponto de equilíbrio e desse uma lição de boas maneiras àquele bastardo.
Só que ela caiu. Bem na frente dos três cavalos que tinha ultrapassado.
O massacre foi imediato, os cavalos mudaram totalmente a direção para evitar o obstáculo no caminho, os jóqueis seguraram as rédeas com força na esperança de permanecerem montados.
Todos fizeram isso. Exceto Glory.
Quando a multidão exclamou, Manny lançou-se para frente, ultrapassando os limites da cerca e saltando sobre as pessoas, cadeiras e barricadas até chegar à pista.
Além dos trilhos. Na arena.
Correu até ela. Anos de prática do atletismo levaram-no a uma velocidade vertiginosa até o cerne daquela situação.
Ela estava tentando se levantar. Mas que coração grande e feroz... estava lutando para erguer-se do chão, seus olhos encarando o grupo como se não desse a mínima por estar ferida; só queria pegar de jeito aqueles que a deixaram na poeira.
Tragicamente, sua perna dianteira tinha outros planos: enquanto se debatia, a perna direita vacilava na altura do joelho; e Manny não precisava de sua experiência como ortopedista para saber que ela tinha um problema.
Um problemão.
Ao aproximar-se dela, viu que o jóquei estava em lágrimas.
– Dr. Manello, eu tentei... Oh, Deus...
Manny escorregou na areia e arremeteu-se em direção às rédeas enquanto os veterinários aproximavam-se e o telão voltava-se para o drama.
Quando três homens de uniforme aproximaram-se dela, seus olhos não emitiam mais aquele sentimento selvagem... passaram a expressar dor e confusão. Manny fez o possível para acalmá-la, permitindo que balançasse com força a cabeça o quanto quisesse enquanto acariciava seu pescoço. Ela se acalmou quando lhe deram um tranquilizante.
Ao menos a tentativa desesperadora de andar, mesmo mancando, cessou.
O veterinário-chefe olhou para a perna e balançou a cabeça, algo que no mundo das corridas era um sinal universal para “será necessário sacrificá-la”.
Manny aproximou-se do rosto do cara.
– Nem pense nisso. Estabilize o que estiver quebrado e leve-a para o hospital veterinário de Tricounty. Entendido?
– Ela nunca mais correrá novamente... isso parece uma fratura múlti...
– Tire meu maldito cavalo da pista e leve-o ao Tricounty...
– Não vale a pena...
Many agarrou a jaqueta do veterinário e puxou o “Sr. Falar é Fácil” até ficarem face a face.
– Faça isso. Agora.
Houve um momento de incompreensão total, como se ser insultado fosse algo novo para o profissional teimoso.
E assim que os dois entenderam o que estava acontecendo, Manny rosnou:
– Não vou perdê-la, mas estou totalmente disposto a sacrificar você. Bem aqui. E agora.
O veterinário encolheu-se, afastando-se, como se soubesse que estava correndo perigo de levar um belo golpe.
– Certo... certo.
Manny não ia perder seu cavalo. Nos últimos doze meses, lamentou a perda da única mulher com quem se preocupou na vida, questionou sua sanidade e passou a se embebedar de uísque mesmo odiando a coisa.
Se Glory partisse agora... não sobraria muita coisa nessa vida, sobraria?
Algumas modalidades de esporte como o surfe e o jóquei e outras competições como o pôquer oferecem um prêmio especial na terceira vitória consecutiva, o Triple Crown. (N. da T.)
CAPÍTULO 2
CALDWELL, NOVA YORK
CENTRO DE TREINAMENTO,
COMPLEXO DA IRMANDADE
Caramba... Que droga... mas que inferno...
Vishous estava em pé no corredor do lado de fora da clínica médica da Irmandade com uma das mãos fechadas sobre os lábios e o polegar mexendo freneticamente em um tique irritante. No entanto, não havia nada a ser dito, não importava quantas vezes ele friccionasse o pequeno isqueiro.
Tic. Tic. Tic...
Com uma repulsa total, lançou a maldita coisa na lixeira e agarrou a luva revestida de chumbo que cobria sua mão. Ao tirar o pedaço de couro, olhou para a palma da mão brilhante, flexionando os dedos, arqueando-a em direção ao punho.
A coisa era em parte um lança-chamas, em parte uma bomba nuclear, capaz de derreter qualquer metal, transformar pedra em vidro e deixar em pedaços qualquer avião, trem ou automóvel que quisesse. Essa também era a razão pela qual conseguia fazer amor com sua shellan e um dos dois legados que sua mãe divina havia lhe dado.
E uma maldita segunda visão que era tão divertida quanto a rotina de lidar com a “mão da morte”.
Aproximando a arma mortal de seu rosto, acendeu a ponta do cigarro artesanal que fazia, mas não chegou perto demais ou prejudicaria seu sistema de envio de nicotina ao corpo e teria que desperdiçar seu tempo criando outro, curando-se. E não tinha paciência para isso mesmo em um dia bom, quanto mais em um momento como aquele...
Ah, a adorável tragada.
Encostando-se contra a parede, plantou suas botas de combate no chão de linóleo e fumou. Aquele prego de caixão não fez muito pela sua expressão deprimente, mas isso era melhor do que a opção que tinha passado por seus pensamentos nas últimas duas horas. Ao colocar a luva de volta pensou em sair dali com seu “dom” e incendiar alguma coisa, qualquer coisa...
Era mesmo sua irmã gêmea que estava do outro lado da parede? Deitada em uma cama de hospital... paralisada?
Jesus Cristo... Trezentos anos de idade e só então descobrir que se tem uma irmã.
Boa jogada, mamãe. Muito legal mesmo.
E pensar que ele achava ter resolvido todos os problemas com seus pais. Porém, apenas um deles estava morto. Se a Virgem Escriba seguisse pelo caminho de Bloodletter e descansasse em paz, talvez ele conseguisse encontrar um ponto de equilíbrio.
No entanto, pensando em como as coisas estavam e naquela tentativa absurda de Jane no mundo humano... Tudo aquilo estava fazendo com que ele...
Sim, não havia palavras para isso.
Pegou seu telefone celular. Verificou. Colocou de volta no bolso de sua jaqueta de couro. Caramba, isso era tão típico. Jane colocava seu foco em algo e isso era tudo. Nada mais importava.
Claro que ele era exatamente assim, mas em momentos como aquele, gostaria muito de ser atualizado.
Maldito sol. Prendia-o dentro de casa. Ao menos se estivesse com sua shellan não haveria possibilidade de o “grande” Manuel Manello negar alguma coisa. V. simplesmente golpearia o desgraçado, jogaria o corpo no Escalade e traria aquelas mãos talentosas até ali para operar Payne.
Para ele, o livre-arbítrio era um privilégio, não um direito.
Quando terminou de fumar o cigarro artesanal, apagou-o na sola de suas botas de combate e jogou a bituca no lixo. Queria muito uma bebida – exceto refrigerante ou água. Meio engradado de vodka o afastaria um pouco daquele abismo, mas com um pouco de sorte permitiriam que ele ajudasse na sala de cirurgia em breve, e precisava estar sóbrio para isso.
Entrando na sala de exames, os ombros ficaram tensos, os molares se fecharam e, por uma fração de segundo, não sabia o quanto mais poderia suportar. Se tinha uma coisa que o tirava do sério era quando sua mãe aprontava das suas, e era difícil imaginar algo pior do que a mentira de todas as mentiras.
O problema era que a vida não vinha com um “botão” de reiniciar, como o video game, que se pode pressionar quando ele trava por tentarem inserir alguma vantagem ou trapaça no jogo.
– Vishous?
Fechou os olhos por um instante ao som daquela voz suave e baixa.
– Sim, Payne – terminou a frase no Antigo Idioma. – Sou eu.
Cruzando a sala, reassumiu seu posto na banqueta com rodas ao lado da maca. Deitada embaixo de vários cobertores, Payne estava imobilizada, com a cabeça em um bloco e um colar cervical que ia do queixo à clavícula. Uma intravenosa ligava o braço dela a uma bolsa pendurada em uma extremidade de aço inoxidável e havia uma tubulação embaixo conectada ao cateter que Ehlena lhe dera.
Mesmo a sala de azulejos sendo clara, limpa e brilhante e os equipamentos e suprimentos médicos tão ameaçadores quanto xícaras e pires em uma cozinha, parecia que estavam em uma caverna suja cercados por ursos.
Seria tão bom se pudesse sair e matar o filho da mãe que tinha colocado sua irmã naquela condição. O problema era... isso significava que teria de acabar com Wrath, e que grande confusão essa morte traria. O maldito filho da mãe não era apenas o Rei, era um Irmão... e esse era o pequeno detalhe pelo qual a estadia dela ali havia sido consensual. As sessões de luta que os dois vinham travando nos últimos dois meses os deixaram em forma – e, claro, Wrath não fazia ideia com quem lutava, pois estava cego. Uma fêmea? Bem, dedução óbvia. As sessões aconteciam do Outro Lado e não havia machos por lá. Mas a falta de visão do Rei significava que ele perdia o que V. e todos os outros observavam ao entrarem naquela sala: a longa trança preta de Payne era da cor exata do cabelo de V. e sua pele do mesmo tom que a dele, tinha a mesma constituição: alta, magra e forte. Mas os olhos... cara, os olhos.
V. esfregou o rosto. Seu pai, Bloodletter, teve um número incontável de bastardos antes de ser assassinado em uma batalha contra redutores no Antigo País. Mas V. não se importava com nenhuma dessas relações aleatórias com as fêmeas.
Payne era diferente. Os dois tinham a mesma mãe e não era uma mahmen qualquer. Era a Virgem Escriba. A grande mãe da raça.
Era uma vadia, isso sim.
O olhar de Payne deslocou-se e a respiração de V. saiu com dificuldade. A íris que o encontrou era da cor de gelo branco, assim como a sua, e a borda azul-marinho em torno dela era algo que via todas as noites no espelho. E a inteligência... a inteligência que havia nas profundezas árticas daquela brancura era exatamente a mesma que havia dentro dele também.
– Não consigo sentir nada – Payne disse.
– Sei. – V. repetiu balançando a cabeça: – Eu sei.
Sua boca se contorceu e exibiu algo que poderia ter sido um sorriso em outras circunstâncias.
– Pode falar no idioma que quiser – disse com um inglês bem marcado. – Sou fluente em... muitos.
Ele também. O que significava que era incapaz de formular uma resposta em dezesseis línguas diferentes. Maravilha.
– Sua shellan... já lhe disse alguma coisa? – disse pausadamente.
– Não. Gostaria de tomar mais analgésicos? – Ela parecia mais fraca que da última vez que a vira.
– Não, obrigada. Eles fazem com que eu me sinta... estranha.
Essa frase foi seguida por um longo silêncio. Que ficou mais longo. E ainda mais longo.
Cristo, talvez ele devesse segurar a mão dela – afinal, ela podia sentir algo acima da cintura. Sim, mas o que poderia oferecer com essa atitude? Sua mão esquerda estava tremendo e a direita era mortal.
– Vishous, o tempo não está...
Quando sua irmã gêmea deixou a frase pairando no ar, ele a terminou mentalmente: do nosso lado.
Ele queria que ela estivesse errada. Contudo, quando se trata de lesões na coluna, assim como derrames e ataques cardíacos, boas oportunidades de recuperação são perdidas a cada minuto que o paciente passa sem tratamento.
Era melhor que aquele humano fosse tão bom quanto Jane havia dito.
– Vishous?
– Sim?
– Gostaria que eu não tivesse vindo até aqui?
Franziu a testa com força.
– De que diabos está falando? Claro que gostaria de ter você comigo.
Enquanto seu pé ficava batendo no chão de nervosismo, perguntou quanto tempo mais precisaria ficar antes que pudesse sair para outro cigarro. Simplesmente não ia conseguir respirar enquanto estivesse sentado ali, sem poder fazer nada enquanto sua irmã sofria e seu cérebro engasgava-se com as perguntas. Tinha um milhão de “o que?” e “por que” instalados em sua cabeça, só que não podia perguntar nada para ninguém. Parecia que Payne poderia entrar em coma a qualquer momento por causa da dor, portanto, não era uma boa hora para se fazer um social, cheio de perguntas, com direito a cafezinho.
Caramba, os vampiros podiam se curar como um relâmpago, mas não eram imortais.
Poderia muito bem perder sua irmã gêmea antes de sequer conhecê-la melhor.
Seguindo esse raciocínio, ele deu uma olhada para ver seus sinais vitais no monitor. A raça vampira tinha pressão sanguínea baixa, mas a dela estava quase ao nível do chão. A pulsação estava lenta e irregular, como uma bateria de escola de samba formada apenas por garotos brancos. E o sensor de oxigênio teve de ser silenciado, pois o alarme de alerta soava continuamente.
Quando seus olhos se fecharam, ele temeu que fosse a última vez... e o que havia feito por ela? Nada, exceto gritar quando lhe fizera uma pergunta.
Inclinou-se para mais perto dela, sentindo-se um idiota.
– Tem de aguentar firme, Payne. Estou tentando conseguir o que você precisa, mas você tem de ser forte.
As pálpebras de sua irmã ergueram-se e ela olhou para ele de sua cabeça imóvel.
– Trouxe muitos inconvenientes a sua casa.
– Não se preocupe comigo.
– Isso é o que sempre fiz.
V. franziu a testa outra vez. Era evidente que toda essa coisa de irmão/irmã era uma novidade apenas para ele. Tinha de descobrir como, diabos, ela sabia sobre ele.
E o que sabia.
Droga, lá estava outro momento em que desejaria ser menos durão.
– Está tão confiante nesse curandeiro que procura – ela murmurou.
Ah, não mesmo. A única coisa de que tinha certeza era que se o desgraçado a matasse haveria um funeral duplo naquela noite... assumindo que haveria alguma coisa restante do humano para enterrar ou queimar.
– Vishous?
– Minha shellan confia nele.
Os olhos de Payne ergueram-se e ficaram assim. Será que ela estava olhando para o teto?, V. se perguntou. Seria a lâmpada cirúrgica que havia sobre ela? Algo que ele não conseguia ver?
Num determinado momento, ela disse:
– Pergunte-me quanto tempo passei nas mãos de nossa mãe.
– Tem certeza de que tem forças para isso? – Quando ela olhou para tudo a seu redor, exceto para ele, quis sorrir. – Quanto tempo?
– Em que ano estamos na Terra? – Quando ele respondeu, seus olhos se arregalaram. – De fato. Bem, foram centenas de anos. Fui aprisionada pela nossa mahmen por... centenas de anos da minha vida.
Vishous sentiu as pontas de suas presas formigarem de raiva. Aquela mãe deles... Já deveria saber que a paz que tinha encontrado com sua fêmea não duraria muito.
– Está livre agora.
– Estou – olhou para baixo em direção às pernas. – Não conseguirei viver em outra prisão.
– Isso não vai acontecer.
Então, aquele olhar gélido tornou-se astuto.
– Não posso viver assim. Entende o que estou dizendo?
O interior dele congelou completamente.
– Ouça, vou trazer aquele médico até aqui e...
– Vishous – ela disse com voz rouca. – De fato, faria isso se pudesse, mas não posso e não há outra pessoa a quem possa recorrer. Você me entende?
Quando encontrou os olhos dela, quis gritar, suas entranhas se contorceram, gotas de suor brotaram em sua testa. Era um assassino por natureza e treinado para isso, mas aquela não era uma habilidade que tinha a intenção de praticar com alguém de seu sangue. Bem, tirando sua mãe, claro. Talvez seu pai, só que o cara tinha morrido por conta própria.
Certo, reformulando a frase: não era algo que exerceria com sua irmã.
– Vishous. Você...?
– Sim. – Olhou para baixo, para sua mão amaldiçoada e flexionou o maldito pedaço de seu corpo. – Eu entendo.
Dentro de sua pele, em sua essência, seu eixo interno começou a vibrar. Era o tipo de coisa pela qual se tornou intimamente familiarizado ao longo de sua vida... e também era um choque total. Não tinha sentido aquilo desde que Jane e Butch apareceram; e voltar a sentir era... terrível!
No passado, isso o levaria direto aos trilhos do sexo perigoso e hard-core, ficaria à beira do abismo.
Só que na velocidade do som.
A voz de Payne era fraca:
– O que me diz?
Droga, ele tinha acabado de conhecê-la.
– Sim – flexionou sua mão mortal. – Vou cuidar de você. Se chegarmos a isso.
Quando Payne olhou em direção à gaiola que era seu corpo meio-morto, o perfil sombrio de seu irmão gêmeo era tudo o que conseguia enxergar e desprezou-se pela posição em que o colocou. Gastou muito tempo desde que tinha chegado àquele lado tentando descobrir outra saída, outra opção, outra... qualquer coisa.
Mas o que ela precisava era algo que não se podia pedir a um estranho.
Por outro lado, ele era um estranho.
– Obrigada, meu irmão – ela disse.
Vishous assentiu com a cabeça uma vez e voltou a olhar para frente. Na verdade, ele era muito mais que a soma de suas características faciais e do enorme tamanho de seu corpo. Até bem pouco tempo atrás, quando aprisionada por sua mahmen, teve de observá-lo por muito tempo nas tigelas do santuário das Escolhidas e soube quem ele era no instante em que surgiu naquela água rasa; tudo o que teve de fazer foi olhar para ele e enxergar a si própria.
Que vida ele levou. Começando com o campo de guerra e a brutalidade de seu pai... e agora isso.
Sob sua postura fria, ele vociferava. Podia sentir em seus ossos uma ligação entre eles que lhe dava uma visão que ia além daquilo que seus olhos conseguiam lhe informar: por fora, estava contido como uma parede de tijolos, seus componentes todos em ordem e encaixados no lugar; no entanto, por dentro, ele fervia... e a dica externa era sua mão direita enluvada. Por baixo do acessório, uma luz brilhava... e ficava cada vez mais brilhante – especialmente depois que fizera o pedido.
Ela percebeu que aquele poderia ser o único momento que teriam juntos, e seus olhos fecharam-se outra vez.
– Está unido a uma fêmea curadora? – Ela murmurou.
– Sim.
Quando houve apenas silêncio, ela desejou poder encará-lo, mas ficou claro que respondeu apenas por educação. Ainda assim, acreditou nele quando disse que estava contente por estar ali. Ele não diria uma mentira assim, não por que se preocupasse com a moral ou a ética, mas sim porque viu que tal esforço seria um desperdício de tempo e energia.
Payne deitou seus olhos outra vez sobre a cabeça dele, que parecia ter um anel de fogo sobre ela. Desejou que segurasse sua mão ou a tocasse de alguma maneira, mas já havia feito pedidos demais.
Deitada sobre a maca com rodas, seu corpo parecia muito estranho, pesado e leve ao mesmo tempo, e sua única esperança eram os espasmos que corriam por suas pernas e faziam cócegas em seus pés, fazendo com que repuxassem. Certamente, se aquilo estava acontecendo nem tudo estava perdido, disse a si mesma.
Só que, mesmo quando acalentava tal pensamento, uma pequena e silenciosa parte de sua mente dizia que o telhado cognitivo que estava tentando construir não suportaria a chuva que estava prestes a cair em sua vida: quando movia as mãos, mesmo sem conseguir enxergá-las, podia sentir os lençóis frios e macios e a mesa lisa e gelada sobre a qual estava. Mas quando pedia que seus pés fizessem o mesmo... Era como se estivesse nas águas mornas e serenas das piscinas de banho do Outro Lado, encapsulada em um abraço invisível, sentindo absolutamente nada.
Onde estava aquele curandeiro?
O tempo... estava passando.
Quando a espera passou do insuportável para a extrema agonia, era difícil saber se a sensação de asfixia era devido a sua condição ou pelo silêncio da sala. Na verdade, ela e seu irmão gêmeo estavam mergulhados no silêncio... só que por razões muito diferentes: ela não iria a lugar algum, mesmo com muito entusiasmo; e ele estava prestes a explodir.
Desesperada por algum estímulo, alguma coisa, qualquer coisa, murmurou:
– Fale um pouco sobre o curandeiro que está chegando.
A brisa de ar frio que atingiu seu rosto e o aroma de especiarias escuras que percorreram seu nariz diziam que era um macho. Tinha de ser.
– É o melhor – Vishous murmurou. – Jane sempre fala dele como se fosse um deus. – O tom não era muito educado, mas o fato era que vampiros machos não gostavam muito de outros em torno de suas fêmeas.
Quem poderia ser esse dentre os machos da raça?, Payne perguntou-se. O único curandeiro que conseguira enxergar nas tigelas era Havers, e, com certeza, não havia razão alguma para procurarem por ele.
Talvez houvesse outro que ela não tinha observado; afinal, não passava tanto tempo tentando recuperar o atraso com o mundo e, de acordo com seu irmão gêmeo, haviam se passado muitos, muitos e muitos anos entre sua prisão e a liberdade...
De repente, a exaustão interrompeu sua linha de raciocínio, penetrando em sua medula, pressionando-a ainda mais sobre a mesa de metal.
No entanto, quando fechou os olhos, conseguiu suportar a escuridão apenas durante um rápido momento antes do pânico fazer suas pálpebras se abrirem. Enquanto estivera presa por sua mãe, tinha plena consciência de que poderia movimentar-se sem limites em um espaço livre; mas dentro daquele local opressivo, onde os minutos se arrastavam, aquela paralisia era muito parecida com o que tinha sofrido durante centenas de anos. Razão pela qual fizera aquele pedido terrível a Vishous. Não poderia ficar ali daquele lado apenas para reproduzir aquilo pelo que sempre havia lutado de maneira tão desesperada para escapar.
Lágrimas escorreram de seus olhos, fazendo com que a fonte de luz verde brilhante vacilasse. Como desejava que seu irmão segurasse sua mão...
– Por favor, não chore – disse Vishous. – Não... chore.
Na verdade, ficou surpresa por ele ter notado.
– Sim, você está certo. Chorar não cura nada.
Aumentando sua força de vontade, buscou ser forte, mas foi uma batalha. Embora seu conhecimento das artes medicinais fosse limitado, uma lógica simples anunciava onde estava o erro: como era de uma linhagem extremamente forte, seu corpo começou a recuperar-se no momento em que havia sido ferida na sessão de luta com o Rei Cego; contudo, o problema era que o processo regenerativo, que em uma situação comum salvaria sua vida, tornava sua condição ainda mais terrível – e era muito provável que aquilo fosse permanente.
Vértebras quebradas tentando se regenerar não conseguiam alcançar um resultado muito bom, e a paralisia em suas pernas era um testemunho desse fato.
– Por que fica olhando o tempo todo para sua mão? – ela perguntou, ainda olhando para a luz.
Houve um momento de silêncio, superior a todos os outros.
– Por que acha que estou fazendo isso?
Payne suspirou.
– Porque o conheço, meu irmão. Sei tudo sobre você.
Quando ele não disse nada, o silêncio era tão agradável quanto os inquéritos que havia no Antigo País.
Oh, o que será que ela havia desencadeado? E onde todos estariam quando tudo chegasse ao fim?
CAPÍTULO 3
Algumas vezes, a única maneira de se saber quão longe se foi é voltando ao ponto de onde se iniciou.
Quando Jane Whitcomb, médica, entrou no complexo hospitalar São Francisco, foi sugada de volta a sua antiga vida. De alguma maneira, foi uma viagem curta – há apenas um ano ela era a chefe do departamento de traumatologia daquele lugar, morava em um apartamento cheio de coisas de seus pais, passando vinte horas por dia correndo entre a emergência e as salas de cirurgia. Não mais.
Um indício certo de que a mudança era definitiva foi a maneira como ela entrou no centro cirúrgico: não havia razão para preocupar-se com as portas giratórias ou aquelas que precisavam ser empurradas na recepção. Ela atravessou as paredes de vidro e passou despercebida pelos seguranças que estavam no balcão. Fantasmas são bons nisso.
Desde que fora transformada, conseguia ir a lugares e ultrapassar coisas sem que ninguém fizesse ideia de que estava por perto. Mas também poderia ficar tão corpórea quanto a pessoa ao lado, assumindo uma forma sólida, de acordo com a sua vontade. Em dado momento era absolutamente etérea; em outro, era como a humana que havia sido, capaz de comer, amar e viver. Isso era uma grande vantagem ao exercer o cargo de cirurgiã particular da Irmandade.
Como agora, por exemplo: de que outra maneira ela seria capaz de se infiltrar no mundo dos humanos outra vez sem quase nenhum barulho?
Percorrendo o chão de pedra polida da recepção, passou pela parede de mármore onde estava inscrito o nome dos benfeitores e abriu caminho pela multidão de pessoas. Naquele congestionamento humano, muitos rostos eram familiares, desde o pessoal da administração até os médicos e enfermeiros com quem trabalhou durante anos. Mesmo anônimos, os pacientes estressados e suas famílias pareciam íntimos dela... de alguma maneira, as máscaras de tristeza e preocupação eram as mesmas, não importava quais fossem as características faciais que as moldavam.
Quando se dirigiu às escadas, estava buscando seu antigo chefe, e, Cristo, teve vontade de rir. Ao longo de todos aqueles anos trabalhando juntos, tinha surpreendido Manny Manello de muitas maneiras; mas aquilo ia superar vários acidentes de carro, avião ou uma explosão de edifício. Tudo isso junto.
Flutuando ao atravessar uma saída de emergência de metal, ela subiu a escada dos fundos. Os pés não tocavam os degraus, pairavam sobre eles enquanto subia como fumaça, sem esforço algum.
Aquilo tinha de funcionar. Tinha que convencer Manny a lhe acompanhar para cuidar daquela coluna lesionada, e ponto final. Não havia outras opções, nada de imprevistos, nada de virar à direita ou à esquerda naquela estrada: aquele era o passe final... e estava rezando para que o goleiro não pegasse aquela bola.
Que bom que ela tinha um bom desempenho sob pressão e que conhecia aquele homem como a palma de sua mão.
Manny aceitaria o desafio; mesmo isso não fazendo sentido algum para ele, ficaria lívido por saber que ela ainda estava “viva”. Além disso, não seria capaz de recusar ajuda a um paciente necessitado – simplesmente não estava programado para isso.
No décimo andar, atravessou outra parede e entrou na seção administrativa do departamento cirúrgico. O local era equipado como um escritório de advocacia, todo escuro, sombrio e luxuoso. Fazia sentido: o centro cirúrgico era uma fonte enorme de renda para qualquer hospital universitário, e o dinheiro era gasto para recrutar, manter e abrigar aqueles seres mimados e arrogantes que abriam pessoas para que elas sobrevivessem mais.
Dentre o grupo que operava com os bisturis no Hospital São Francisco, Manny Manello estava no topo da pirâmide, chefe não apenas de uma subespecialidade, como ela tinha sido, mas de todo o conjunto da obra. Isso significava que era uma estrela de cinema, um sargento e o presidente dos Estados Unidos ao mesmo tempo, tudo isso englobado em um cara com pouco mais de um metro e oitenta de altura. Tinha um temperamento terrível, uma inteligência impressionante e um pavio de mais ou menos um milímetro de comprimento, e isso em um dia bom. E seu trabalho era tão valioso quanto uma pedra preciosa.
As operações de maior rentabilidade do cara sempre foram aquelas feitas em atletas profissionais: ele tratou vários joelhos, quadris e ombros que teriam provocado muitos finais de carreira no futebol, baseball ou no hóquei. Mas também tinha muita experiência com tratamentos de coluna e, apesar da atuação de um neurocirurgião ser interessante se considerasse as radiografias de Payne, aquele era um problema ortopédico: se a medula espinhal fosse rompida, nada do que fizessem em termos neurológicos ajudaria. A ciência médica não tinha avançado tanto assim.
Quando dobrou a extremidade da mesa de recepção, teve de parar. À esquerda estava seu antigo escritório, o lugar onde passava horas incontáveis lidando com papéis e fazendo reuniões de consulta com Manny e o resto da equipe. Agora, lia-se o nome na placa fixada na porta: DR. THOMAS GOLDBERG, CIRUGIÃO-CHEFE DO DEPARTAMENTO DE TRAUMATOLOGIA.
Goldberg era uma excelente escolha; ainda assim, por alguma razão, doía ver o nome de outra pessoa ali.
Mas até parece. Esperava que Manny preservasse sua mesa e seu escritório como um monumento em homenagem a ela? A vida continua. A dela. A dele. A do hospital.
Voltando à realidade da situação, caminhou pelo corredor acarpetado. Mexia sempre em seu jaleco branco, com a caneta em seu bolso e com o celular que, até agora, não havia tido motivos para usar. Não havia tempo para explicar seu retorno do mundo dos mortos ou persuadir Manny ou ajudá-lo a entender o que estava prestes a expor; e não havia escolha, mas, de alguma forma, tinha de levá-lo com ela.
Em frente à porta fechada, preparou-se e, em seguida, atravessou...
Ele não estava atrás da mesa, ou trabalhando em algo na mesa de conferências da sala de reuniões.
Verificou rapidamente em seu banheiro privativo... nada ali também... não havia nenhuma umidade nas portas de vidro ou toalhas molhadas sobre a pia.
De volta ao escritório, ela respirou fundo... e o aroma suave de sua loção pós-barba pairando no ar a fez engolir em seco. Deus, sentia a falta dele.
Balançando a cabeça, andou ao redor da mesa e olhou a desordem. Arquivos de pacientes, pilhas de memorandos interdepartamentais, relatórios de Assistência ao Paciente e de Avaliação de Qualidade. Como era um pouco depois das cinco da tarde de um sábado, esperava encontrá-lo ali: as provas de seleção não eram realizadas nos finais de semana; então, a menos que estivesse de plantão ou lidando com um algum caso na traumatologia, deveria estar bem ali atrás daquela confusão de papéis. Manny era workaholic: trabalhava vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana.
Saindo do escritório, verificou a mesa de sua secretária. Nada ali também: seus compromissos eram mantidos no computador, protegidos por senha.
A próxima parada era o centro cirúrgico. O São Francisco tinha diferentes níveis de salas de operação, todas organizadas por especialidades. Ela foi diretamente à seção que ele costumava atuar. Olhando pelas janelas de vidro e portas duplas, viu que estavam operando uma terrível fratura múltipla. Embora os cirurgiões usassem máscaras e toucas, poderia dizer que nenhum deles era Manny. Seus ombros eram grandes o suficiente para esticar até mesmo o maior uniforme cirúrgico disponível e, além disso, as músicas que soavam ao fundo não eram o estilo dele. Mozart? Sem chance. Pop? Nem morto: Manny ouvia rock clássico e heavy metal. Aliás, se não fosse contra o protocolo, os enfermeiros usariam um protetor de ouvidos durante todos os procedimentos com ele.
Caramba... Onde diabos estava? Não havia conferências naquela época do ano e ele não tinha vida fora do hospital. As únicas opções que restavam era que estivesse no Commodore: desmaiado de cansaço no sofá de seu apartamento ou na academia do arranha-céu.
Quando saiu dali, pegou o celular e ligou para o sistema de atendimento do hospital.
– Sim, alô? – disse quando a ligação foi atendida. – Gostaria de falar com o Dr. Manuel Manello. Meu nome? – que droga! – Ah... Hannah. Hannah Whit. Pode retornar a ligação neste número.
Quando desligou, percebeu que não fazia ideia do que dizer caso ele retornasse a ligação, mas resolveu dar destaque ao pensamento positivo... e rezou para que tivesse a habilidade inata de realizar aquela tarefa. O fato era: se o sol baixasse no horizonte, um dos Irmãos sairia do complexo e faria algum trabalho mental em Manny para facilitar o processo de levá-lo até lá.
Contudo, não seria Vishous. Outra pessoa. Qualquer pessoa. Seus instintos diziam-lhe para deixar os dois tão afastados quanto possível: já tinham uma emergência médica em processo, e a última coisa de que precisava era de seu antigo patrão sendo pressionado porque seu marido tinha um instinto territorial e poderia decidir rachar, ele próprio, uma coluna a qualquer momento. Pouco antes de sua morte, Manny estava interessado em mais do que apenas uma associação profissional com ela; portanto, a menos que tivesse se casado com uma das Barbies que insistia em namorar, provavelmente ainda estava solteiro... E a regra dizia que o coração ficava ainda mais afeiçoado à pessoa ausente; então, seus sentimentos devem ter persistido.
Por outro lado, era possível que a insultasse sem piedade por mentir para ele sobre toda a coisa de estar “morta e enterrada”.
Pelo menos ele não se lembraria de nada daquilo; contudo, quanto a ela, temia nunca mais se esquecer das próximas vinte e quatro horas.
O Hospital Equino Tricounty era uma instalação de última geração em todos os sentidos. Localizado a quinze minutos do hipódromo de Aqueduct, o local tinha tudo, desde salas de operação e um serviço completo de quartos de recuperação até piscinas para hidroterapia e exames que forneciam imagens avançadas. E seu quadro de funcionários era composto por pessoas que viam os cavalos como muito mais do que uma fonte de lucros sobre quatro patas.
Na sala de cirurgia, Manny analisava as radiografias da perna dianteira de sua garota e desejou ser o único a entrar ali para resolver o problema: conseguia ver claramente as fissuras na imagem, mas isso não era o que o preocupava. Havia vários ligamentos que haviam sido rompidos e manchas acentuadas orbitando ao redor dos centros nervosos do osso alongado que mais pareciam luas ao redor de um planeta.
Só porque ela era de outra espécie não significava que não poderia fazer a operação. Assim que o anestesista fizesse seu trabalho em segurança, ele poderia cuidar do resto. Osso era sempre osso; mas não bancaria o idiota.
– O que acha? – perguntou.
– Minha opinião profissional – respondeu o veterinário-chefe – é de que está muito ruim. É uma fratura múltipla deslocada. O tempo de recuperação será extenso e não é possível garantir que ela sequer possa reproduzir.
O que era uma zica total: cavalos foram feitos para ficar em pé com seu peso distribuído sobre quatro pontos de maneira uniforme. Quando uma perna era quebrada, não se tratava tanto da lesão em si, mas o fato de que era preciso redistribuir o peso e contar, desproporcionalmente, com as partes que ainda estavam boas no corpo para ficar em pé. E esse era o grande problema.
Ao considerar aquilo que examinava, a maioria dos proprietários escolheria a eutanásia; mas sua garota tinha nascido para correr, e aquela lesão catastrófica faria disso impossível, mesmo se fosse apenas para o lazer... isso se ela sobrevivesse. Como médico, estava muito familiarizado com a crueldade do trabalho “salvador” de seus colegas que acabavam levando o paciente a viver em condições piores do que a morte – ou não faziam nada além de prolongar, de maneira dolorosa, o inevitável.
– Dr. Manello? O senhor ouviu o que eu disse?
– Sim. Ouvi. – Pelo menos aquele cara, ao contrário do idiota na pista, parecia tão arrasado quanto Manny.
Afastando-se, foi até onde a deitaram e colocou uma das mãos sobre sua bochecha arredondada. Sua pelagem negra brilhava sob a iluminação e, em meio ao cenário de ladrilho claro e aço inoxidável, parecia uma sombra projetada ao acaso e esquecida no centro da sala.
Por um longo momento, observou como sua grande caixa torácica expandia-se e contraía-se com a respiração. Só de vê-la na maca com as belas pernas esticadas como bastões e sua cauda pendendo sobre o ladrilho fê-lo perceber que animais como ela deveriam ficar em pé: aquilo que via era completamente contrário à natureza, e injusto.
Mantê-la viva apenas para que não tivesse de enfrentar sua morte não era a resposta certa.
Preparando-se para a situação, Manny abriu a boca...
A vibração dentro do bolso de seu terno o interrompeu. Com um palavrão, tirou o celular e verificou. Era do hospital. Hannah Whit? Com um número desconhecido?
Não era ninguém que conhecesse e ele não estava de plantão.
Provavelmente um erro do atendimento.
– Quero que opere – ouviu-se dizendo enquanto guardava o telefone de volta.
O curto silêncio que se seguiu deu-lhe tempo de sobra para perceber que impedi-la de partir cheirava a covardia. Mas não poderia insistir naquele melodrama psíquico ou perderia a sanidade.
– Não posso garantir nada. – O veterinário voltou a olhar as radiografias. – Não sei dizer o que vai acontecer, mas posso jurar que... farei meu melhor.
Deus, agora sabia como as famílias se sentiam quando dizia isso a elas.
– Obrigado. Posso assistir?
– Com certeza. Vou pegar algo para o senhor vestir e sabe como fazer a higienização antisséptica, certo, doutor?
Vinte minutos depois, a operação começou e Manny assistiu próximo à cabeça de Glory, acariciando sua crina com as mãos envolvidas com as luvas de látex, mesmo sedada. Enquanto o veterinário-chefe trabalhava, Manny teve de tirar o chapéu para a metodologia e habilidade daquele homem... as únicas coisas corretas desde que Glory havia caído. O procedimento terminou em menos de uma hora, com os fragmentos ósseos ou removidos ou encaixados no devido lugar. Então, imobilizaram a perna, retiraram a égua da sala de cirurgia e a colocaram em uma piscina para que não quebrasse outra perna quando o efeito da anestesia passasse.
Manny ficou com ela até que acordasse e, em seguida, acompanhou o veterinário até o corredor.
– Os sinais vitais são bons e correu tudo bem na operação – o veterinário disse –, mas essa vitalidade pode mudar rapidamente. E vai levar tempo até sabermos o que conseguimos alcançar.
Nossa. Aquele pequeno discurso era exatamente o que dizia aos familiares mais próximos e outros parentes quando achava que era hora de irem para casa descansar e esperar como o paciente reagiria ao pós-operatório.
– Ligaremos para o senhor – falou o veterinário. – Vamos mantê-lo informado.
Manny tirou as luvas e pegou seu cartão de visitas.
– No caso de ainda não terem todos os meus dados nos registros.
– Temos sim – de qualquer forma, pegou o papel. – Se alguma coisa mudar, será o primeiro a saber, e lhe darei as informações pessoalmente, a cada doze horas, que é o intervalo entre as minhas rondas, quando passo visitando todos os leitos.
Manny assentiu e estendeu a mão.
– Obrigado. Por cuidar dela.
– Por nada.
Depois de apertarem as mãos, Manny assentiu outra vez junto às portas duplas.
– Importa-se se eu me despedir dela?
– Não. Pode ir.
Dentro do quarto outra vez, passou um momento com sua égua. Deus... aquilo doía.
– Segure firme, garota – teve de sussurrar, pois não conseguia respirar direito.
Quando se ergueu, a equipe o observava com uma tristeza que sabia que ia permanecer.
– Vamos cuidar dela. – o veterinário disse gravemente.
Acreditava mesmo que cuidariam e foi a única coisa que o levou de volta ao corredor.
As instalações do Tricounty eram extensas e precisou de um tempo considerável para trocar de roupa e seguir seu caminho até a saída onde tinha estacionado, próximo à porta da frente. À frente, o sol se punha, um brilho de um tom pêssego se espalhava, iluminando o céu como se Manhattan estivesse em chamas. O ar estava frio, mas perfumado, pois o início da primavera esforçava-se para trazer vida à paisagem árida do inverno, e ele respirou tão fundo que ficou tonto. Deus, o tempo tinha passado como uma neblina, mas agora, com os minutos se arrastando, percebeu que aquele ritmo frenético tinha esgotado sua fonte de energia. Era isso ou tinha batido contra um muro de tijolos e desmaiado.
Enquanto procurava a chave do carro, sentiu-se mais velho do que Deus. Sua cabeça estava dando fortes pontadas e sua artrite no quadril o estava matando. Aquela corrida que havia empreendido para chegar à pista e ficar ao lado de Glory ia além de seus limites.
Não foi assim que imaginou o final do dia. Achou que estaria comprando bebidas para os proprietários que tinha derrotado... E talvez, no resplendor da vitória, seguisse a generosa sugestão oral da Sra. Hanson.
Ao entrar no carro, ligou o motor. Caldwell estava a mais ou menos quarenta e cinco minutos ao norte de Queens, e seu carro conseguia fazer a viagem de volta ao Commodore praticamente sozinho. Isso era muito bom, pois era quase um zumbi naquele momento. Nada de rádio. Nenhuma música no iPod. Ninguém telefonando também.
Ao pegar a estrada, observou o caminho à frente e lutou contra o impulso de dar meia-volta e... sim, e fazer o quê? Descansar em paz ao lado de seu cavalo?
A questão era: se conseguisse chegar em casa logo, poderia conseguir ajuda. Tinha uma garrafa de uísque esperando por ele e poderia ou não ir com calma ao usá-la. Até onde dizia respeito ao hospital, estava de folga até segunda pela manhã, às seis horas, e tinha planos de ficar bêbado e permanecer assim.
Guiando o volante revestido de couro com uma das mãos, procurou, com a outra, em meio a sua camisa de seda, sua representação do Cristo crucificado. Segurando a cruz de ouro, fez uma oração.
Deus... por favor, permita que ela fique bem.
Não poderia suportar perder outra de suas garotas. Não tão cedo. Jane Whitcomb tinha morrido há um ano, mas isso era o que o calendário dizia. O tempo do luto era diferente – nele havia transcorrido apenas um minuto e meio.
Não queria passar por isso outra vez.
CONTINUA
1761, ANTIGO PAÍS
Xcor viu seu pai sendo morto após cinco anos de sua transição. Aconteceu diante de seus olhos, mas, mesmo com a proximidade, não poderia imaginar o que houve.
A noite começou como qualquer outra, a escuridão caiu sobre a paisagem de florestas e cavernas, as nuvens encobriam a luz da lua para ele e para aqueles que viajavam a cavalo com ele. Seu grupo de soldados era composto por seis homens fortes: Throe, Zypher, os três primos e ele próprio. E seu pai.
Bloodletter.
Antigo membro da Irmandade da Adaga Negra.
O que os fez sair naquela noite foi o que os chamava ao serviço após cada pôr de sol: procuravam redutores, aquelas armas sem alma de Ômega, que achou por bem exterminar a raça vampira. E os encontravam. Frequentemente.
Mas aqueles sete machos não eram membros da Irmandade.
Ao contrário dos aclamados Irmãos, eram um grupo secreto de guerreiros. Aquele grupo de bastardos liderados por Bloodletter não era nada além de soldados: sem cerimônias. Nada de serem adorados pela população civil. Nada de louvores. A linhagem deles poderia ser aristocrática, mas todos foram abandonados por seus familiares por terem nascido com defeitos ou fora de um acasalamento santificado.
Nunca seriam outra coisa senão pedaços de carne dispensáveis dentro da grande guerra pela sobrevivência.
Porém, mesmo isso sendo verdade, eram a elite dos soldados, os mais cruéis, os braços mais fortes, aqueles que foram provados ao longo do tempo pelo feitor mais rígido da raça: o pai de Xcor. Escolhidos a dedo e com sabedoria, esses homens eram mortais contra o inimigo e não seguiam nenhum código de conduta quando se tratava da sociedade vampira. Também não seguiam nenhum código quando se tratava de matar alguém: não importava se a presa era um assassino, um humano, um animal ou um lobo. Sangue seria derramado.
Eles fizeram um, e apenas um, juramento: seu pai era o senhor deles e ninguém mais. Aonde quer que ele fosse, eles iriam, e isso era tudo. Muito mais simples que toda aquela porcaria elaborada pela Irmandade – mesmo Xcor sendo um candidato por linhagem, não teve interesse em ser um Irmão. Não se importava com a glória, uma vez que nada se comparava ao doce prazer do assassinato. Melhor deixar de lado a tradição inútil e o ritual desgastado para aqueles que se recusam a empunhar qualquer outra coisa que não seja uma adaga negra.
Usaria qualquer arma disponível.
E seu pai faria o mesmo.
O clamor dos cascos abrandou e depois ficaram em silêncio quando os lutadores saíram da floresta em um enclave de carvalhos e arbustos. A fumaça das lareiras das casas pairava na brisa, mas não havia nenhuma outra confirmação de que tinham chegado, finalmente, à pequena cidade que procuravam: no alto, sobre um íngreme penhasco, havia um castelo fortificado que se apresentava como uma águia empoleirada, sua fundação era como garras fincadas na rocha.
Humanos. Guerreando entre si.
Que entediante.
Ainda assim, era preciso respeitar a construção. Talvez, se Xcor se estabelecesse algum dia, massacraria a dinastia daquele lugar e tomaria posse daquela fortaleza. Muito mais eficiente roubar que construir.
– Para a aldeia – seu pai ordenou. – Avancemos para a diversão.
A notícia era de que havia redutores ali, as bestas pálidas misturavam-se e confundiam-se com os moradores do vilarejo que tinham escavado lotes de terra e construído casas de pedra à sombra do castelo.
Isso era uma típica estratégia de recrutamento da Sociedade: infiltrar-se em uma cidade, tomar os machos um a um, assassinar ou vender as mulheres e crianças, fugir com armas e cavalos e mudar-se para uma localidade próxima em maior número.
Xcor tinha a mesma mentalidade do inimigo nesse aspecto: quando acabava de lutar, sempre pegava tudo o que podia antes de dirigir-se para a próxima batalha. Noite após noite, Bloodletter e seus soldados abriam caminho ao longo do território que os seres humanos chamavam de Inglaterra e, quando alcançavam a ponta do território escocês, viravam-se e colocavam-se em direção oposta, indo sempre para o sul, até chegarem ao calcanhar da Itália, quando davam meia-volta outra vez. Em seguida, percorriam novamente os muitos quilômetros que tinham caminhado até ali. E faziam isso de novo. E mais outra vez.
– Deixemos nossas provisões aqui. – disse Xcor, apontando para uma árvore de tronco grosso, que havia caído sobre um riacho.
Enquanto faziam a transferência dos modestos suprimentos, não havia nada além do ranger de couro e do bufar ocasional de um garanhão. Quando tudo estava guardado sob o flanco do carvalho abatido, montaram outra vez sobre seus animais e reuniram os cavalos de raça – que eram as únicas coisas de valor, além de armas, que possuíam. Xcor não via utilidade em objetos de beleza ou conforto – para ele, eram nada além de um peso que o induzia à queda. Um cavalo forte e um punhal afiado? Isso sim tinha um valor inestimável.
Enquanto os sete andavam até a aldeia, não fizeram qualquer esforço para silenciar as batidas dos cascos de seus cavalos. Contudo, não houve gritos de guerra. Era um desperdício de energia, seus inimigos não precisavam de um convite para vir saudá-los. O único ato de boas-vindas foi um humano ou dois espiando para fora de suas portas e, em seguida, voltando rapidamente a trancarem-se em seus domicílios. Xcor os ignorou. Em vez de importar-se com isso, examinou as casas baixas de pedra, a praça central e as lojas de comércio fortificadas, procurando por alguma forma bípede, pálida como um fantasma e fedendo como um cadáver revestido em melado.
Seu pai andou até ele e sorriu com um toque de maldade.
– Talvez possamos colher os frutos dos jardins por aqui mais tarde.
– Talvez. – murmurou Xcor enquanto seu cavalo jogava a cabeça para trás. Na verdade, não estava muito interessado em deitar-se com fêmeas ou subjugar machos, mas não se podia negar nada a seu pai, mesmo quando se tratava de suas extravagâncias na hora do lazer.
Sinalizando com as mãos, Xcor direcionou três de seu grupo para a esquerda, onde havia uma pequena estrutura com uma cruz em cima de seu telhado pontiagudo. Ele e os outros seguiriam à direita. Seu pai faria o que quisesse. Como sempre.
Forçar os garanhões a permanecer em um galope contínuo era uma tarefa que desafiava até mesmo o mais vigoroso dos braços, mas estava acostumado com o cabo de guerra e sentou-se com firmeza na sela. Com um propósito sombrio, seus olhos penetraram as sombras produzidas pelo luar, procurando, sondando...
O grupo de assassinos que saiu do abrigo de ferragens possuía uma grande quantidade de armas.
– Cinco – Zypher rosnou. – Bendita noite.
– Três – Xcor interrompeu. – Dois ainda são seres humanos... porém, matar esses dois... também será um prazer.
– Qual devemos atacar, meu senhor? – Seu irmão de armas disse com um grande respeito que era dedicado por merecimento e não por ser o primogênito.
– Os humanos – Xcor disse, deslocando-se para frente e preparando-se para o momento em que incitaria seu cavalo a partir. – Se há outros redutores por perto, isso os atrairia ainda mais.
Estimulando o grande animal e afundando-se na sela, sorriu quando os redutores mantiveram-se firmes com suas correntes e armamentos. No entanto, as duas pessoas junto a eles não ficariam tão firmes. Embora os dois estivessem equipados para lutar, dariam meia-volta e correriam quando vissem a primeira exibição de presas como cavalos assustados por um tiro de canhão, razão pela qual deu um solavanco de forma abrupta para a direita logo após galopar apenas alguns passos. Atrás da cabana do ferreiro, puxou as rédeas e desmontou do corcel. Seu garanhão era um animal selvagem, mas obediente quando tratava-se de desmontar e aguardar...
Uma fêmea humana irrompeu pela porta dos fundos, sua camisola branca era como uma faixa brilhante na escuridão, enquanto esforçava-se para ficar em pé sobre a lama. No instante em que ela o viu, ficou paralisada de terror.
Reação lógica: ele era duas vezes o tamanho dela, talvez três, e não estava vestido para dormir, mas para a guerra. Quando a mão da fêmea ergueu-se até a garganta, ele farejou o ar e sentiu seu perfume. Hummm, talvez seu pai gostasse daquela flor de jardim...
Quando o pensamento lhe ocorreu, soltou um rosnado baixo que incitou a moça a uma corrida desenfreada; a visão da tentativa de fuga fez o predador dentro dele vir à tona. Com uma sede de sangue percorrendo suas entranhas, lembrou-se que havia se passado semanas desde que tinha se alimentado de alguém de sua espécie e, apesar daquela garota ser apenas uma humana, poderia ser o suficiente para aquela noite.
Infelizmente, não havia tempo para se divertir naquele momento... Apesar disso, seu pai iria atrás dela mais tarde, com certeza. Se Xcor precisava de um pouco de sangue para vencer as dificuldades, conseguiria tal fonte com aquela mulher, ou com qualquer outra.
Dando as costas para a fuga, parou com firmeza sobre o chão e desembainhou a arma escolhida: embora as adagas servissem, preferiu a foice, cabo longo e modificado para um coldre amarrado em suas costas. Era especialista em empunhar aquele grande peso e sorriu enquanto manejava ao vento a lâmina cruel e curvada, esperando para jogar a rede sobre aqueles dois peixes que, com certeza, estavam nadando até ele...
Ah, sim, como era bom estar certo.
Logo após uma luz brilhante surgir e um estalo eclodir da passagem principal, os dois humanos vieram gritando em direção aos fundos da casa do ferreiro como se estivessem sendo perseguidos por carrascos.
Mas estavam errados, não? O carrasco estava esperando ali.
Xcor não gritou ou amaldiçoou. Sequer rosnou. Começou a correr com a foice, havia um equilíbrio uniforme entre as duas mãos enquanto as coxas poderosas encurtavam a distância. Só de olhar para ele, os humanos derraparam em suas botas, braços soltos, como asas de patos pousando sobre a água.
O tempo pareceu desacelerar quando caiu sobre eles, sua arma favorita fez um grande círculo, atingindo os dois na altura do pescoço.
As cabeças foram decepadas com um golpe único e limpo. Os rostos surpresos brilharam e desapareceram à medida que a parte removida do corpo girava, o sangue espirrou e salpicou no peito de Xcor. Com a ausência de crânios, a parte inferior dos corpos caíram sobre o chão com uma graça curiosa e líquida, aterrissando inanimados com os membros retorcidos.
Agora sim ele gritava.
Virando-se, Xcor fixou suas botas de couro na lama, respirou fundo e soltou um rosnado enquanto manejava a foice, o aço avermelhado pedia mais sangue. Apesar de suas presas serem meros seres humanos, o impulso de matar era superior a um orgasmo, a sensação de que havia tirado uma vida e deixado cadáveres para trás percorria seu corpo como uma bebida alcoólica.
Chamou seu cavalo assoviando, que foi até ele rapidamente após o comando. Com um salto, montou na sela, a foice erguida em sua mão direita enquanto lidava com as rédeas com a esquerda. Dando um golpe com força, incitou o corcel ao galope, percorrendo rapidamente um caminho estreito e sujo e emergindo no auge da batalha.
Seus colegas lutavam com todas as forças, o som das espadas colidindo e gritos bombardearam a noite quando o demônio encontrou seu inimigo. E assim como Xcor havia previsto, mais uma meia dúzia de redutores veio correndo a toda velocidade sobre seus garanhões de raça, como leões que foram libertos para defender seu território.
Xcor entrou em cena e avançou contra o inimigo, envolvendo as rédeas no punho e brandindo a foice enquanto o cavalo corria em direção aos outros com os dentes à mostra. Sangue negro e partes de corpos voaram quando passou por entre os adversários, ele e seu cavalo trabalhavam como uma unidade naquele ataque.
Quando atingiu mais um assassino com sua lâmina e o cortou ao meio na altura do peito, soube que tinha nascido para fazer isso, era a maior e melhor maneira de usar seu tempo sobre a terra. Era um assassino, não um defensor.
Não lutava pela raça... mas por si mesmo.
Tudo aconteceu muito depressa, a névoa noturna rondava os redutores caídos, que contorciam-se em poças do próprio sangue oleoso e negro. Houve poucos feridos dentre o grupo de Xcor. Throe tinha um corte no ombro, feito por alguma lâmina. Zypher estava mancando, uma mancha vermelha escorria de sua perna, ensopando a bota. Nenhum deles estava mais lento ou mesmo preocupado.
Xcor deteve o cavalo, desmontou e voltou a colocar a foice no coldre. Sacou a adaga de aço e começou sua ronda para esfaquear os assassinos, lamentou o processo que enviava o inimigo de volta a seu criador. Queria mais luta, não menos...
Um grito ecoou e ele ergueu a cabeça. A mulher humana de camisola estava correndo pela estrada de terra batida do vilarejo, seu corpo pálido em uma fuga desgovernada, como se tivesse sido expulsa de um esconderijo. Logo atrás dela, o pai de Xcor montou em seu cavalo e galopou rápido; o corpo maciço de Bloodletter pendia em um dos lados da sela quando a alcançou. Na verdade, não houve, de fato, uma corrida: quando ficou ao lado dela, pegou-a com o braço e atirou-a sobre seu colo.
Não houve parada, nem mesmo uma diminuição da velocidade depois da captura, mas uma marca foi feita: com seu cavalo galopando a toda velocidade e a humana se debatendo, o pai de Xcor ainda conseguiu atingir a garganta delgada com suas presas, prendendo-se no pescoço da mulher como se fosse detê-la apenas com os caninos.
Ela teria morrido. Com certeza, ela teria morrido.
Se Bloodletter não tivesse morrido primeiro.
De fora do turbilhão do nevoeiro surgiu uma figura fantasmagórica como se fosse formada pelos filamentos de umidade que percorriam o ar. E no momento que Xcor viu o espectro, estreitou os olhos e valeu-se de seu olfato aguçado.
Parecia ser uma mulher. De sua espécie. Vestida com uma túnica branca.
E seu cheiro lembrou-o de algo que não conseguiu localizar.
Ela foi diretamente ao encontro de seu pai, mas parecia não ter a menor preocupação com o cavalo ou com o guerreiro sádico que logo viria atrás dela. No entanto, seu pai estava fascinado por ela. No instante em que a notou, largou a humana como se não fosse nada além de um osso do qual já houvesse comido toda a carne.
Isso estava errado, Xcor pensou. De fato, ele era um macho de ação e poder e dificilmente um membro do sexo frágil o intimidaria... mas tudo em seu corpo advertia que aquela entidade etérea era perigosa. Letal.
– Ei! Pai! – gritou. – Vire-se!
Xcor assoviou para seu cavalo, que atendeu ao comando. Montando sobre a sela, estimulou os flancos do animal, lançando-se a toda velocidade para que pudesse cruzar o caminho do pai, um pânico estranho o incitando.
Tarde demais. Seu pai lançou-se sobre a fêmea, que agachou-se lentamente.
Meu Deus, ela ia saltar por cima do...
Com um impulso coordenado, ela flutuou no ar e pegou a perna de seu pai, usando-a para montar sobre o cavalo de um salto. Então, agarrou o sólido peitoral de Bloodletter, saltou para um lado e levou o macho ao chão com ela, como se fossem apenas um. A investida poderosa desafiava a questão de ser do sexo feminino e sua natureza espectral.
Ora, não era um fantasma, mas um ser de carne e osso.
O que significava que poderia ser morta.
Enquanto Xcor preparava-se para lançar seu garanhão contra eles, a fêmea soltou um grito nada feminino: mais ao estilo do grito de guerra de Xcor, o berro trespassou o ruído dos cascos trovejantes abaixo dele e os sons do grupo que reunia-se para combater aquele ataque inesperado.
Contudo, não havia necessidade de uma intercessão imediata.
Seu pai, após o choque de ser tirado de sua sela, rolou de costas, desembainhou seu punhal e rosnou como um animal. Com uma maldição, Xcor freou e interrompeu o resgate, pois, com certeza, seu pai assumiria o controle. Bloodletter não era o tipo de homem a quem se ajudava – havia agredido Xcor por isso no passado, uma lição que foi duramente aprendida e que sempre seria lembrada.
Ainda assim, desmontou e aproximou-se da situação para reagir no caso de haver mais alguma “Valquíria” saindo do meio da floresta.
E foi assim que ele a ouviu, claramente, dizer um nome.
– Vishous.
A raiva de seu pai deu lugar a uma breve confusão. E antes que pudesse retomar sua autodefesa, a figura fantasmagórica começou a brilhar com uma luz profana.
– Pai! – Xcor gritou ao aproximar-se correndo.
Mas era tarde. E o contato foi feito.
Chamas irromperam sobre o rosto rude e barbado de seu pai e tomaram seu corpo, como se fosse feno seco. E com a mesma graça que ela o derrubou, a fêmea saltou para trás e observou enquanto seu pai tentava apagar o fogo debatendo-se freneticamente, sem sucesso. No meio da noite, ele gritava enquanto era queimado vivo, suas roupas de couro não ofereceram proteção alguma para sua pele e músculos.
Não havia chance alguma de aproximar-se o suficiente do fogo e Xcor derrapou até parar, levantando o braço para se proteger e curvando-se para se afastar do calor que ficava exponencialmente mais intenso.
Durante todo o tempo, a fêmea ficou sobre o corpo que se contorcia e tinha espasmos... O brilho laranja iluminava o rosto belo e cruel.
A vadia estava sorrindo.
E foi então que ela ergueu o rosto para ele. Quando Xcor teve uma visão correta de seu rosto, recusou-se, em um primeiro momento, a acreditar no que via. Ainda assim, o brilho das chamas não mentia.
Xcor observava uma versão feminina de Bloodletter. O mesmo cabelo negro, a mesma pele e olhos claros. A mesma estrutura óssea. Além disso, a mesma luz vingativa em seu olhar violento, aquele arrebatamento e satisfação ao causar uma morte era uma combinação que Xcor conhecia muito bem.
Ela partiu logo em seguida, desaparecendo na neblina de uma maneira que não condizia com a desmaterialização de sua espécie, mas, sim, fez isso como um sopro de fumaça, desvanecendo-se devagar em princípio e, em seguida, rápida e definitivamente.
Assim que sentiu-se capaz, Xcor correu para seu pai, mas não havia mais nada a ser salvo... mal havia algo para ser enterrado. Afundando os joelhos diante dos ossos fumegantes e do fedor de queimado, teve um momento de fraqueza deplorável: lágrimas derramaram-se dos olhos. Bloodletter tinha sido um bruto, mas como sua única descendência masculina, Xcor e ele eram bem próximos... Na verdade, eram quase membros de um mesmo corpo.
– Por tudo o que é mais sagrado – Zypher disse com voz rouca –, o que foi isso?
Xcor piscou com força antes de olhar por cima do ombro.
– Ela o matou.
– Sim. E fez mais alguma coisa.
Quando o grupo de bastardos aproximou-se dele, um a um, Xcor teve de pensar no que dizer, no que fazer.
Erguendo-se com firmeza, quis chamar seu cavalo, mas sua boca estava seca demais para assoviar.
Seu pai... um inimigo e, ao mesmo tempo, seu porto seguro, estava morto. Morto. E aconteceu tão rápido, rápido demais.
Por uma fêmea.
Seu pai havia partido.
Quando conseguiu, olhou para cada um dos machos diante dele, os dois montados nos cavalos, os dois em pé e o que estava a sua direita. Com uma nítida percepção, soube que não importava o que o destino tivesse reservado, seria moldado pelo que havia acontecido naquele momento, aqui, agora.
Não havia se preparado para isso, mas não se afastaria do que deveria fazer:
– Ouçam bem, pois só direi uma vez. Ninguém vai dizer nada. Meu pai morreu em uma batalha contra o inimigo. Eu o queimei para homenageá-lo e mantê-lo sempre comigo. Jurem isso para mim agora.
Os bastardos com quem ele vivia e lutava há muito tempo juraram e depois que suas vozes profundas desvaneceram-se no ar noturno, Xcor inclinou-se e passou os dedos pelas cinzas. Erguendo as mãos até o rosto, traçou uma listra com a fuligem desde as bochechas até as grossas veias que percorriam cada lado do pescoço... em seguida, acariciou o crânio duro que era tudo o que havia restado de seu pai. Segurando os restos carbonizados que ainda soltavam fumaça, reivindicou os soldados a sua frente como seus.
– Sou o único senhor agora. Liguem-se a mim neste momento ou serão meus inimigos. O que me dizem?
Não houve hesitação alguma. Os machos se ajoelharam, retiraram suas adagas e irromperam o grito de guerra antes de enterrarem as lâminas na terra a seus pés.
Xcor observou as cabeças inclinadas e sentiu que um manto caía-lhe sobre os ombros. Bloodletter estava morto. Sem vida, seria transformado em lenda a partir daquela noite.
E, seguindo o que é certo e apropriado, o filho substituiria o pai agora, comandando aqueles soldados que não serviriam a Wrath, o rei que não os governava; nem à Irmandade, que não se dignificava a descer àquele nível... Serviriam a Xcor e somente a ele.
– Vamos seguir na direção de onde a fêmea veio – anunciou. – Vamos encontrá-la mesmo que levem séculos, pois ela deve pagar por aquilo que fez esta noite. – Nesse momento, Xcor conseguiu assoviar alto e claro para seu cavalo. – Levarei, pessoalmente, a morte ao esconderijo daquela fêmea.
Subindo em seu cavalo, reuniu as rédeas e incitou o grande animal a cruzar a noite. Seu grupo de bastardos entrou em formação e o seguiu, disposto a morrer por ele.
Enquanto trovejava ao sair da aldeia, colocou o crânio de seu pai dentre as roupas de couro que usava nas batalhas, bem em cima do coração.
Aquela vingança seria sua. Mesmo que o matasse.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/9_AMANTE_LIBERTADA.jpg
CAPÍTULO 1
DIAS ATUAIS
HIPÓDROMO DE AQUEDUCT, QUEENS, NOVA YORK
– Quero enlouquecer você.
O Dr. Manny Manello virou a cabeça para a direita e olhou para a mulher que tinha falado com ele. Não foi a primeira vez que tinha ouvido essas palavras e a boca pela qual elas saíram tinha silicone suficiente para preencher uma boa almofada. Mas, ainda assim, foi uma surpresa.
Candance Hanson sorriu para ele e ajeitou seu chapéu retrô com uma mão bem manicurada. Aparentemente, ela tinha decidido que a combinação de dama refinada com uma dose de atrevimento era atraente – e talvez fosse, para alguns rapazes.
Caramba, em outro momento de sua vida, ele provavelmente teria dado em cima dela seguindo a teoria do “por que não?”. Agora? Seguia a ideia do “não é pra tanto”.
Sem se deixar abater pela falta de entusiasmo do médico, ela inclinou-se para frente, exibindo um par de seios que não exatamente desafiava a gravidade. Na verdade, aquilo era mais como mostrar o dedo médio, insultar a mãe e pisar no calo de alguém – uma falta de educação.
– Sei de um lugar aonde poderíamos ir.
Ele apostava que sim.
– A corrida já vai começar.
Ela fez beicinho. Ou talvez fosse o efeito das aplicações para aumentar os lábios. Deus, há dez anos ela devia ter um rosto jovem; agora, os anos tinham adicionado uma pátina de desespero nela – junto ao processo normal de envelhecimento, contra o qual ela lutava como um boxeador.
– Depois, então.
Manny afastou-se sem responder, sem saber exatamente como ela tinha conseguido entrar na área dos proprietários. Deveria ter sido na confusão que havia para voltar àquele local depois de selarem os cavalos – e, sem dúvida, estava acostumada a entrar em lugares que, tecnicamente, não lhe eram permitidos: Candance era um daqueles tipos sociais de Manhattan que só se diferenciava de uma prostituta por não ter um cafetão e, de muitas maneiras, era como uma vespa qualquer: ignorava o incômodo causado e ia pousar em outra coisa.
Ou em outra pessoa, como era o caso.
Erguendo o braço para mantê-la distante, Manny inclinou-se sobre o corrimão da cabine e esperou que sua garota saísse para a pista. Tinha sido colocada na parte externa, e isso era bom: preferia não ficar muito perto dos outros e percorrer uma distância extra nunca a incomodou.
O hipódromo de Aqueduct, no Queens, Nova York, não tinha o prestígio de um Belmont ou Pimlico ou do venerável pai de todos os hipódromos, o Churchill Downs. Contudo, não era de se jogar fora. A instalação tinha uma arena de quase três quilômetros, uma pista de turfe e outra para corridas de curta distância. A capacidade total era de, aproximadamente, nove hectares. A comida era medíocre, mas ninguém ia até lá para comer e havia algumas corridas grandes, como a daquele dia: a Wood Memorial Stakes tinha uma bolsa de 750 mil dólares e, como era realizada em abril, era uma boa referência para os candidatos ao prêmio Triple Crown...*
Ah, sim, lá estava ela. Lá estava sua garota.
Quando os olhos de Manny fixaram-se em GloryGloryAllelujah, o barulho da multidão, a luz brilhante daquele dia e a fila vacilante composta pelos outros cavalos desapareceram. Tudo o que ele via era sua magnífica égua negra, sua capa capturava a luz do sol e reluzia, as pernas finas se flexionavam, os cascos delicados erguiam-se e voltavam a pousar na pista de areia. Como ela media quase um metro e setenta, o jóquei parecia um pequeno mosquito em suas costas, e essa diferença de tamanho representava a divisão do poder. Ela deixou isso claro desde o primeiro dia de treinamento: poderia tolerar os pequenos seres humanos, mas estavam apenas a passeio na corrida. Ela estava no comando.
Seu temperamento dominador já havia lhe custado dois treinadores. O terceiro? O cara parecia um pouco frustrado, mas era apenas seu senso de controle que estava sendo espancado até a morte: Glory destacava-se e isso, simplesmente, não tinha nada a ver com ele. E Manny não tinha a menor preocupação com os egos inflados de homens que dominavam cavalos a vida inteira. Sua garota era uma lutadora, sabia o que estava fazendo, e ele não tinha o menor problema em deixá-la assumir o controle. Queria apenas assisti-la divertir-se ao acabar com a concorrência.
Quando seus olhos a encontraram, lembrou-se do otário de quem a tinha comprado há pouco mais de um ano. Aqueles vinte mil dólares tinham sido um roubo, considerando sua linhagem, também uma fortuna se pensasse no temperamento dela, e ainda não estava claro se conseguiria autorização para correr. Era uma égua indisciplinada de um ano de idade que já esteve prestes a ser afastada. Ou pior: de ser transformada em comida de cachorro.
Mas ele acertou. Desde que a deixasse liderar e comandar o show, era um espetáculo.
Quando a formação de cavalos aproximou-se do portão, alguns começaram a bater os cascos e a bufar, mas sua garota estava firme, como se soubesse que era inútil desperdiçar energia antes do jogo. Ele achava que as chances eram boas apesar da posição no pódio, pois o jóquei montado em seu dorso era uma estrela: sabia exatamente como lidar com ela e, nesse sentido, era mais responsável pelo sucesso da garota do que os outros treinadores. Sua estratégia era apenas certificar-se de que ela conhecia os melhores percursos, deixá-la escolher e ir.
Manny levantou-se e segurou o corrimão de ferro pintado na frente dele, juntando-se à multidão que saía de seus assentos, e começava a exibir uma quantidade incontável de binóculos. Quando seu coração começou a bater forte, ficou contente, pois fora dali encontrava-se muito próximo do sedentarismo, ultimamente. A vida que levava estava em um estágio de entorpecimento terrível no último ano ou um pouco mais, e talvez essa fosse a razão pela qual aquela égua era tão importante para ele.
Talvez ela também fosse tudo o que ele tinha.
Não era bem assim.
No portão, havia um movimento frenético: quando se trata de amontoar quinze cavalos fortes com patas da espessura de varetas e com glândulas adrenais disparando como obus em minúsculas caixas de metal, você não perde tempo. Em mais ou menos um minuto, o campo foi fechado e as pistas foram restringidas pelos trilhos.
Uma batida de coração.
Um sino.
Bang.
Os portões foram abertos, a multidão rugiu e os cavalos avançaram como se tivessem sido lançados de bocas de canhões. As condições eram perfeitas. Clima seco. Frio. Estavam a toda velocidade na pista.
Não que sua garota se importasse com isso. Correria na areia movediça se fosse necessário.
Os cavalos puros-sangues trovejaram, o som dos cascos e a voz do locutor chicoteavam energia nas arquibancadas a ponto de ficarem em um estado de êxtase. Porém, Manny manteve a calma, permanecendo com as mãos firmadas no trilho na frente dele e seus olhos sobre o campo, enquanto o grupo de cavalos fazia a primeira curva em uma confusão tensa de dorsos e caudas.
O telão mostrava-lhe tudo o que precisava ver. Sua égua estava na penúltima posição, apenas galopando enquanto todos os outros empreendiam uma corrida mortal – inferno, seu pescoço sequer estava totalmente estendido. No entanto, o jóquei estava fazendo seu trabalho, facilitando o caminho dela para avançar na pista, dando-lhe a opção de correr ao redor do grupo ou cortar caminho através deles quando estivesse pronta.
Manny sabia exatamente o que ela iria fazer. Entraria pela direita em meio aos outros cavalos como uma bola de demolição.
Era o jeito dela.
E foi assim que, quando os outros abriram distância, ela começou a pegar fogo. A cabeça baixa, o pescoço alongado, seu passo começou a acelerar.
– Caramba – Manny sussurrou. – Você consegue, garota.
Quando Glory adentrou a pista verde, transformou-se em um raio de luz que ultrapassava os outros corredores, a explosão de velocidade era tão poderosa que qualquer um se perguntaria se aquilo não era de propósito: apenas vencê-los não era o suficiente, ela tinha que fazer isso no último quilômetro, deixando as selas dos outros bastardos na poeira, no último minuto possível.
Manny riu do fundo da garganta. Ela era seu tipo de garota.
– Meu Deus, Manello, olha só como ela avança.
Manny assentiu com a cabeça sem olhar para o cara que falou em seu ouvido, pois a liderança do grupo estava mudando: o potro que estava à frente perdia sua força, ficando para trás quando suas pernas pareceram ficar sem combustível. Em resposta a isso, o jóquei o golpeou, chicoteando-lhe o traseiro – algo que obteve o mesmo sucesso de quando alguém amaldiçoa um carro cujo tanque esvaziou. O potro que estava em segundo lugar, um animal grande e castanho com jeito de mau e um passo que poderia englobar um campo de futebol, aproveitou imediatamente a desaceleração, e seu jóquei permitiu que o cavalo estendesse sua cabeça totalmente.
Os dois ficaram emparelhados por apenas um segundo antes que o cavalo castanho assumisse a liderança da corrida. Mas não seria por muito tempo. A garota de Manny tinha escolhido seu momento para contornar os três cavalos e fazer com que ele ficasse totalmente tenso.
Sim, Glory fazia o que tinha nascido para fazer, orelhas unidas à cabeça, dentes expostos.
Ela ia roubar o doce da boca daquele garanhão. E era impossível não extrapolar e pensar que participariam de corridas importantes como a Kentucky Derby...
Tudo aconteceu tão rápido.
Tudo chegou ao fim... em um piscar de olhos.
Com um golpe intencional, o potro bateu em Glory, o impacto brutal enviou-a para os trilhos. Sua garota era grande e forte, mas não poderia suportar um contato corporal assim, não quando corria a mais de sessenta quilômetros por hora.
Por uma fração de segundo, Manny ficou convencido de que ela se reergueria. Apesar da maneira como inclinou-se e cambaleou, esperava que encontrasse um ponto de equilíbrio e desse uma lição de boas maneiras àquele bastardo.
Só que ela caiu. Bem na frente dos três cavalos que tinha ultrapassado.
O massacre foi imediato, os cavalos mudaram totalmente a direção para evitar o obstáculo no caminho, os jóqueis seguraram as rédeas com força na esperança de permanecerem montados.
Todos fizeram isso. Exceto Glory.
Quando a multidão exclamou, Manny lançou-se para frente, ultrapassando os limites da cerca e saltando sobre as pessoas, cadeiras e barricadas até chegar à pista.
Além dos trilhos. Na arena.
Correu até ela. Anos de prática do atletismo levaram-no a uma velocidade vertiginosa até o cerne daquela situação.
Ela estava tentando se levantar. Mas que coração grande e feroz... estava lutando para erguer-se do chão, seus olhos encarando o grupo como se não desse a mínima por estar ferida; só queria pegar de jeito aqueles que a deixaram na poeira.
Tragicamente, sua perna dianteira tinha outros planos: enquanto se debatia, a perna direita vacilava na altura do joelho; e Manny não precisava de sua experiência como ortopedista para saber que ela tinha um problema.
Um problemão.
Ao aproximar-se dela, viu que o jóquei estava em lágrimas.
– Dr. Manello, eu tentei... Oh, Deus...
Manny escorregou na areia e arremeteu-se em direção às rédeas enquanto os veterinários aproximavam-se e o telão voltava-se para o drama.
Quando três homens de uniforme aproximaram-se dela, seus olhos não emitiam mais aquele sentimento selvagem... passaram a expressar dor e confusão. Manny fez o possível para acalmá-la, permitindo que balançasse com força a cabeça o quanto quisesse enquanto acariciava seu pescoço. Ela se acalmou quando lhe deram um tranquilizante.
Ao menos a tentativa desesperadora de andar, mesmo mancando, cessou.
O veterinário-chefe olhou para a perna e balançou a cabeça, algo que no mundo das corridas era um sinal universal para “será necessário sacrificá-la”.
Manny aproximou-se do rosto do cara.
– Nem pense nisso. Estabilize o que estiver quebrado e leve-a para o hospital veterinário de Tricounty. Entendido?
– Ela nunca mais correrá novamente... isso parece uma fratura múlti...
– Tire meu maldito cavalo da pista e leve-o ao Tricounty...
– Não vale a pena...
Many agarrou a jaqueta do veterinário e puxou o “Sr. Falar é Fácil” até ficarem face a face.
– Faça isso. Agora.
Houve um momento de incompreensão total, como se ser insultado fosse algo novo para o profissional teimoso.
E assim que os dois entenderam o que estava acontecendo, Manny rosnou:
– Não vou perdê-la, mas estou totalmente disposto a sacrificar você. Bem aqui. E agora.
O veterinário encolheu-se, afastando-se, como se soubesse que estava correndo perigo de levar um belo golpe.
– Certo... certo.
Manny não ia perder seu cavalo. Nos últimos doze meses, lamentou a perda da única mulher com quem se preocupou na vida, questionou sua sanidade e passou a se embebedar de uísque mesmo odiando a coisa.
Se Glory partisse agora... não sobraria muita coisa nessa vida, sobraria?
Algumas modalidades de esporte como o surfe e o jóquei e outras competições como o pôquer oferecem um prêmio especial na terceira vitória consecutiva, o Triple Crown. (N. da T.)
CAPÍTULO 2
CALDWELL, NOVA YORK
CENTRO DE TREINAMENTO,
COMPLEXO DA IRMANDADE
Caramba... Que droga... mas que inferno...
Vishous estava em pé no corredor do lado de fora da clínica médica da Irmandade com uma das mãos fechadas sobre os lábios e o polegar mexendo freneticamente em um tique irritante. No entanto, não havia nada a ser dito, não importava quantas vezes ele friccionasse o pequeno isqueiro.
Tic. Tic. Tic...
Com uma repulsa total, lançou a maldita coisa na lixeira e agarrou a luva revestida de chumbo que cobria sua mão. Ao tirar o pedaço de couro, olhou para a palma da mão brilhante, flexionando os dedos, arqueando-a em direção ao punho.
A coisa era em parte um lança-chamas, em parte uma bomba nuclear, capaz de derreter qualquer metal, transformar pedra em vidro e deixar em pedaços qualquer avião, trem ou automóvel que quisesse. Essa também era a razão pela qual conseguia fazer amor com sua shellan e um dos dois legados que sua mãe divina havia lhe dado.
E uma maldita segunda visão que era tão divertida quanto a rotina de lidar com a “mão da morte”.
Aproximando a arma mortal de seu rosto, acendeu a ponta do cigarro artesanal que fazia, mas não chegou perto demais ou prejudicaria seu sistema de envio de nicotina ao corpo e teria que desperdiçar seu tempo criando outro, curando-se. E não tinha paciência para isso mesmo em um dia bom, quanto mais em um momento como aquele...
Ah, a adorável tragada.
Encostando-se contra a parede, plantou suas botas de combate no chão de linóleo e fumou. Aquele prego de caixão não fez muito pela sua expressão deprimente, mas isso era melhor do que a opção que tinha passado por seus pensamentos nas últimas duas horas. Ao colocar a luva de volta pensou em sair dali com seu “dom” e incendiar alguma coisa, qualquer coisa...
Era mesmo sua irmã gêmea que estava do outro lado da parede? Deitada em uma cama de hospital... paralisada?
Jesus Cristo... Trezentos anos de idade e só então descobrir que se tem uma irmã.
Boa jogada, mamãe. Muito legal mesmo.
E pensar que ele achava ter resolvido todos os problemas com seus pais. Porém, apenas um deles estava morto. Se a Virgem Escriba seguisse pelo caminho de Bloodletter e descansasse em paz, talvez ele conseguisse encontrar um ponto de equilíbrio.
No entanto, pensando em como as coisas estavam e naquela tentativa absurda de Jane no mundo humano... Tudo aquilo estava fazendo com que ele...
Sim, não havia palavras para isso.
Pegou seu telefone celular. Verificou. Colocou de volta no bolso de sua jaqueta de couro. Caramba, isso era tão típico. Jane colocava seu foco em algo e isso era tudo. Nada mais importava.
Claro que ele era exatamente assim, mas em momentos como aquele, gostaria muito de ser atualizado.
Maldito sol. Prendia-o dentro de casa. Ao menos se estivesse com sua shellan não haveria possibilidade de o “grande” Manuel Manello negar alguma coisa. V. simplesmente golpearia o desgraçado, jogaria o corpo no Escalade e traria aquelas mãos talentosas até ali para operar Payne.
Para ele, o livre-arbítrio era um privilégio, não um direito.
Quando terminou de fumar o cigarro artesanal, apagou-o na sola de suas botas de combate e jogou a bituca no lixo. Queria muito uma bebida – exceto refrigerante ou água. Meio engradado de vodka o afastaria um pouco daquele abismo, mas com um pouco de sorte permitiriam que ele ajudasse na sala de cirurgia em breve, e precisava estar sóbrio para isso.
Entrando na sala de exames, os ombros ficaram tensos, os molares se fecharam e, por uma fração de segundo, não sabia o quanto mais poderia suportar. Se tinha uma coisa que o tirava do sério era quando sua mãe aprontava das suas, e era difícil imaginar algo pior do que a mentira de todas as mentiras.
O problema era que a vida não vinha com um “botão” de reiniciar, como o video game, que se pode pressionar quando ele trava por tentarem inserir alguma vantagem ou trapaça no jogo.
– Vishous?
Fechou os olhos por um instante ao som daquela voz suave e baixa.
– Sim, Payne – terminou a frase no Antigo Idioma. – Sou eu.
Cruzando a sala, reassumiu seu posto na banqueta com rodas ao lado da maca. Deitada embaixo de vários cobertores, Payne estava imobilizada, com a cabeça em um bloco e um colar cervical que ia do queixo à clavícula. Uma intravenosa ligava o braço dela a uma bolsa pendurada em uma extremidade de aço inoxidável e havia uma tubulação embaixo conectada ao cateter que Ehlena lhe dera.
Mesmo a sala de azulejos sendo clara, limpa e brilhante e os equipamentos e suprimentos médicos tão ameaçadores quanto xícaras e pires em uma cozinha, parecia que estavam em uma caverna suja cercados por ursos.
Seria tão bom se pudesse sair e matar o filho da mãe que tinha colocado sua irmã naquela condição. O problema era... isso significava que teria de acabar com Wrath, e que grande confusão essa morte traria. O maldito filho da mãe não era apenas o Rei, era um Irmão... e esse era o pequeno detalhe pelo qual a estadia dela ali havia sido consensual. As sessões de luta que os dois vinham travando nos últimos dois meses os deixaram em forma – e, claro, Wrath não fazia ideia com quem lutava, pois estava cego. Uma fêmea? Bem, dedução óbvia. As sessões aconteciam do Outro Lado e não havia machos por lá. Mas a falta de visão do Rei significava que ele perdia o que V. e todos os outros observavam ao entrarem naquela sala: a longa trança preta de Payne era da cor exata do cabelo de V. e sua pele do mesmo tom que a dele, tinha a mesma constituição: alta, magra e forte. Mas os olhos... cara, os olhos.
V. esfregou o rosto. Seu pai, Bloodletter, teve um número incontável de bastardos antes de ser assassinado em uma batalha contra redutores no Antigo País. Mas V. não se importava com nenhuma dessas relações aleatórias com as fêmeas.
Payne era diferente. Os dois tinham a mesma mãe e não era uma mahmen qualquer. Era a Virgem Escriba. A grande mãe da raça.
Era uma vadia, isso sim.
O olhar de Payne deslocou-se e a respiração de V. saiu com dificuldade. A íris que o encontrou era da cor de gelo branco, assim como a sua, e a borda azul-marinho em torno dela era algo que via todas as noites no espelho. E a inteligência... a inteligência que havia nas profundezas árticas daquela brancura era exatamente a mesma que havia dentro dele também.
– Não consigo sentir nada – Payne disse.
– Sei. – V. repetiu balançando a cabeça: – Eu sei.
Sua boca se contorceu e exibiu algo que poderia ter sido um sorriso em outras circunstâncias.
– Pode falar no idioma que quiser – disse com um inglês bem marcado. – Sou fluente em... muitos.
Ele também. O que significava que era incapaz de formular uma resposta em dezesseis línguas diferentes. Maravilha.
– Sua shellan... já lhe disse alguma coisa? – disse pausadamente.
– Não. Gostaria de tomar mais analgésicos? – Ela parecia mais fraca que da última vez que a vira.
– Não, obrigada. Eles fazem com que eu me sinta... estranha.
Essa frase foi seguida por um longo silêncio. Que ficou mais longo. E ainda mais longo.
Cristo, talvez ele devesse segurar a mão dela – afinal, ela podia sentir algo acima da cintura. Sim, mas o que poderia oferecer com essa atitude? Sua mão esquerda estava tremendo e a direita era mortal.
– Vishous, o tempo não está...
Quando sua irmã gêmea deixou a frase pairando no ar, ele a terminou mentalmente: do nosso lado.
Ele queria que ela estivesse errada. Contudo, quando se trata de lesões na coluna, assim como derrames e ataques cardíacos, boas oportunidades de recuperação são perdidas a cada minuto que o paciente passa sem tratamento.
Era melhor que aquele humano fosse tão bom quanto Jane havia dito.
– Vishous?
– Sim?
– Gostaria que eu não tivesse vindo até aqui?
Franziu a testa com força.
– De que diabos está falando? Claro que gostaria de ter você comigo.
Enquanto seu pé ficava batendo no chão de nervosismo, perguntou quanto tempo mais precisaria ficar antes que pudesse sair para outro cigarro. Simplesmente não ia conseguir respirar enquanto estivesse sentado ali, sem poder fazer nada enquanto sua irmã sofria e seu cérebro engasgava-se com as perguntas. Tinha um milhão de “o que?” e “por que” instalados em sua cabeça, só que não podia perguntar nada para ninguém. Parecia que Payne poderia entrar em coma a qualquer momento por causa da dor, portanto, não era uma boa hora para se fazer um social, cheio de perguntas, com direito a cafezinho.
Caramba, os vampiros podiam se curar como um relâmpago, mas não eram imortais.
Poderia muito bem perder sua irmã gêmea antes de sequer conhecê-la melhor.
Seguindo esse raciocínio, ele deu uma olhada para ver seus sinais vitais no monitor. A raça vampira tinha pressão sanguínea baixa, mas a dela estava quase ao nível do chão. A pulsação estava lenta e irregular, como uma bateria de escola de samba formada apenas por garotos brancos. E o sensor de oxigênio teve de ser silenciado, pois o alarme de alerta soava continuamente.
Quando seus olhos se fecharam, ele temeu que fosse a última vez... e o que havia feito por ela? Nada, exceto gritar quando lhe fizera uma pergunta.
Inclinou-se para mais perto dela, sentindo-se um idiota.
– Tem de aguentar firme, Payne. Estou tentando conseguir o que você precisa, mas você tem de ser forte.
As pálpebras de sua irmã ergueram-se e ela olhou para ele de sua cabeça imóvel.
– Trouxe muitos inconvenientes a sua casa.
– Não se preocupe comigo.
– Isso é o que sempre fiz.
V. franziu a testa outra vez. Era evidente que toda essa coisa de irmão/irmã era uma novidade apenas para ele. Tinha de descobrir como, diabos, ela sabia sobre ele.
E o que sabia.
Droga, lá estava outro momento em que desejaria ser menos durão.
– Está tão confiante nesse curandeiro que procura – ela murmurou.
Ah, não mesmo. A única coisa de que tinha certeza era que se o desgraçado a matasse haveria um funeral duplo naquela noite... assumindo que haveria alguma coisa restante do humano para enterrar ou queimar.
– Vishous?
– Minha shellan confia nele.
Os olhos de Payne ergueram-se e ficaram assim. Será que ela estava olhando para o teto?, V. se perguntou. Seria a lâmpada cirúrgica que havia sobre ela? Algo que ele não conseguia ver?
Num determinado momento, ela disse:
– Pergunte-me quanto tempo passei nas mãos de nossa mãe.
– Tem certeza de que tem forças para isso? – Quando ela olhou para tudo a seu redor, exceto para ele, quis sorrir. – Quanto tempo?
– Em que ano estamos na Terra? – Quando ele respondeu, seus olhos se arregalaram. – De fato. Bem, foram centenas de anos. Fui aprisionada pela nossa mahmen por... centenas de anos da minha vida.
Vishous sentiu as pontas de suas presas formigarem de raiva. Aquela mãe deles... Já deveria saber que a paz que tinha encontrado com sua fêmea não duraria muito.
– Está livre agora.
– Estou – olhou para baixo em direção às pernas. – Não conseguirei viver em outra prisão.
– Isso não vai acontecer.
Então, aquele olhar gélido tornou-se astuto.
– Não posso viver assim. Entende o que estou dizendo?
O interior dele congelou completamente.
– Ouça, vou trazer aquele médico até aqui e...
– Vishous – ela disse com voz rouca. – De fato, faria isso se pudesse, mas não posso e não há outra pessoa a quem possa recorrer. Você me entende?
Quando encontrou os olhos dela, quis gritar, suas entranhas se contorceram, gotas de suor brotaram em sua testa. Era um assassino por natureza e treinado para isso, mas aquela não era uma habilidade que tinha a intenção de praticar com alguém de seu sangue. Bem, tirando sua mãe, claro. Talvez seu pai, só que o cara tinha morrido por conta própria.
Certo, reformulando a frase: não era algo que exerceria com sua irmã.
– Vishous. Você...?
– Sim. – Olhou para baixo, para sua mão amaldiçoada e flexionou o maldito pedaço de seu corpo. – Eu entendo.
Dentro de sua pele, em sua essência, seu eixo interno começou a vibrar. Era o tipo de coisa pela qual se tornou intimamente familiarizado ao longo de sua vida... e também era um choque total. Não tinha sentido aquilo desde que Jane e Butch apareceram; e voltar a sentir era... terrível!
No passado, isso o levaria direto aos trilhos do sexo perigoso e hard-core, ficaria à beira do abismo.
Só que na velocidade do som.
A voz de Payne era fraca:
– O que me diz?
Droga, ele tinha acabado de conhecê-la.
– Sim – flexionou sua mão mortal. – Vou cuidar de você. Se chegarmos a isso.
Quando Payne olhou em direção à gaiola que era seu corpo meio-morto, o perfil sombrio de seu irmão gêmeo era tudo o que conseguia enxergar e desprezou-se pela posição em que o colocou. Gastou muito tempo desde que tinha chegado àquele lado tentando descobrir outra saída, outra opção, outra... qualquer coisa.
Mas o que ela precisava era algo que não se podia pedir a um estranho.
Por outro lado, ele era um estranho.
– Obrigada, meu irmão – ela disse.
Vishous assentiu com a cabeça uma vez e voltou a olhar para frente. Na verdade, ele era muito mais que a soma de suas características faciais e do enorme tamanho de seu corpo. Até bem pouco tempo atrás, quando aprisionada por sua mahmen, teve de observá-lo por muito tempo nas tigelas do santuário das Escolhidas e soube quem ele era no instante em que surgiu naquela água rasa; tudo o que teve de fazer foi olhar para ele e enxergar a si própria.
Que vida ele levou. Começando com o campo de guerra e a brutalidade de seu pai... e agora isso.
Sob sua postura fria, ele vociferava. Podia sentir em seus ossos uma ligação entre eles que lhe dava uma visão que ia além daquilo que seus olhos conseguiam lhe informar: por fora, estava contido como uma parede de tijolos, seus componentes todos em ordem e encaixados no lugar; no entanto, por dentro, ele fervia... e a dica externa era sua mão direita enluvada. Por baixo do acessório, uma luz brilhava... e ficava cada vez mais brilhante – especialmente depois que fizera o pedido.
Ela percebeu que aquele poderia ser o único momento que teriam juntos, e seus olhos fecharam-se outra vez.
– Está unido a uma fêmea curadora? – Ela murmurou.
– Sim.
Quando houve apenas silêncio, ela desejou poder encará-lo, mas ficou claro que respondeu apenas por educação. Ainda assim, acreditou nele quando disse que estava contente por estar ali. Ele não diria uma mentira assim, não por que se preocupasse com a moral ou a ética, mas sim porque viu que tal esforço seria um desperdício de tempo e energia.
Payne deitou seus olhos outra vez sobre a cabeça dele, que parecia ter um anel de fogo sobre ela. Desejou que segurasse sua mão ou a tocasse de alguma maneira, mas já havia feito pedidos demais.
Deitada sobre a maca com rodas, seu corpo parecia muito estranho, pesado e leve ao mesmo tempo, e sua única esperança eram os espasmos que corriam por suas pernas e faziam cócegas em seus pés, fazendo com que repuxassem. Certamente, se aquilo estava acontecendo nem tudo estava perdido, disse a si mesma.
Só que, mesmo quando acalentava tal pensamento, uma pequena e silenciosa parte de sua mente dizia que o telhado cognitivo que estava tentando construir não suportaria a chuva que estava prestes a cair em sua vida: quando movia as mãos, mesmo sem conseguir enxergá-las, podia sentir os lençóis frios e macios e a mesa lisa e gelada sobre a qual estava. Mas quando pedia que seus pés fizessem o mesmo... Era como se estivesse nas águas mornas e serenas das piscinas de banho do Outro Lado, encapsulada em um abraço invisível, sentindo absolutamente nada.
Onde estava aquele curandeiro?
O tempo... estava passando.
Quando a espera passou do insuportável para a extrema agonia, era difícil saber se a sensação de asfixia era devido a sua condição ou pelo silêncio da sala. Na verdade, ela e seu irmão gêmeo estavam mergulhados no silêncio... só que por razões muito diferentes: ela não iria a lugar algum, mesmo com muito entusiasmo; e ele estava prestes a explodir.
Desesperada por algum estímulo, alguma coisa, qualquer coisa, murmurou:
– Fale um pouco sobre o curandeiro que está chegando.
A brisa de ar frio que atingiu seu rosto e o aroma de especiarias escuras que percorreram seu nariz diziam que era um macho. Tinha de ser.
– É o melhor – Vishous murmurou. – Jane sempre fala dele como se fosse um deus. – O tom não era muito educado, mas o fato era que vampiros machos não gostavam muito de outros em torno de suas fêmeas.
Quem poderia ser esse dentre os machos da raça?, Payne perguntou-se. O único curandeiro que conseguira enxergar nas tigelas era Havers, e, com certeza, não havia razão alguma para procurarem por ele.
Talvez houvesse outro que ela não tinha observado; afinal, não passava tanto tempo tentando recuperar o atraso com o mundo e, de acordo com seu irmão gêmeo, haviam se passado muitos, muitos e muitos anos entre sua prisão e a liberdade...
De repente, a exaustão interrompeu sua linha de raciocínio, penetrando em sua medula, pressionando-a ainda mais sobre a mesa de metal.
No entanto, quando fechou os olhos, conseguiu suportar a escuridão apenas durante um rápido momento antes do pânico fazer suas pálpebras se abrirem. Enquanto estivera presa por sua mãe, tinha plena consciência de que poderia movimentar-se sem limites em um espaço livre; mas dentro daquele local opressivo, onde os minutos se arrastavam, aquela paralisia era muito parecida com o que tinha sofrido durante centenas de anos. Razão pela qual fizera aquele pedido terrível a Vishous. Não poderia ficar ali daquele lado apenas para reproduzir aquilo pelo que sempre havia lutado de maneira tão desesperada para escapar.
Lágrimas escorreram de seus olhos, fazendo com que a fonte de luz verde brilhante vacilasse. Como desejava que seu irmão segurasse sua mão...
– Por favor, não chore – disse Vishous. – Não... chore.
Na verdade, ficou surpresa por ele ter notado.
– Sim, você está certo. Chorar não cura nada.
Aumentando sua força de vontade, buscou ser forte, mas foi uma batalha. Embora seu conhecimento das artes medicinais fosse limitado, uma lógica simples anunciava onde estava o erro: como era de uma linhagem extremamente forte, seu corpo começou a recuperar-se no momento em que havia sido ferida na sessão de luta com o Rei Cego; contudo, o problema era que o processo regenerativo, que em uma situação comum salvaria sua vida, tornava sua condição ainda mais terrível – e era muito provável que aquilo fosse permanente.
Vértebras quebradas tentando se regenerar não conseguiam alcançar um resultado muito bom, e a paralisia em suas pernas era um testemunho desse fato.
– Por que fica olhando o tempo todo para sua mão? – ela perguntou, ainda olhando para a luz.
Houve um momento de silêncio, superior a todos os outros.
– Por que acha que estou fazendo isso?
Payne suspirou.
– Porque o conheço, meu irmão. Sei tudo sobre você.
Quando ele não disse nada, o silêncio era tão agradável quanto os inquéritos que havia no Antigo País.
Oh, o que será que ela havia desencadeado? E onde todos estariam quando tudo chegasse ao fim?
CAPÍTULO 3
Algumas vezes, a única maneira de se saber quão longe se foi é voltando ao ponto de onde se iniciou.
Quando Jane Whitcomb, médica, entrou no complexo hospitalar São Francisco, foi sugada de volta a sua antiga vida. De alguma maneira, foi uma viagem curta – há apenas um ano ela era a chefe do departamento de traumatologia daquele lugar, morava em um apartamento cheio de coisas de seus pais, passando vinte horas por dia correndo entre a emergência e as salas de cirurgia. Não mais.
Um indício certo de que a mudança era definitiva foi a maneira como ela entrou no centro cirúrgico: não havia razão para preocupar-se com as portas giratórias ou aquelas que precisavam ser empurradas na recepção. Ela atravessou as paredes de vidro e passou despercebida pelos seguranças que estavam no balcão. Fantasmas são bons nisso.
Desde que fora transformada, conseguia ir a lugares e ultrapassar coisas sem que ninguém fizesse ideia de que estava por perto. Mas também poderia ficar tão corpórea quanto a pessoa ao lado, assumindo uma forma sólida, de acordo com a sua vontade. Em dado momento era absolutamente etérea; em outro, era como a humana que havia sido, capaz de comer, amar e viver. Isso era uma grande vantagem ao exercer o cargo de cirurgiã particular da Irmandade.
Como agora, por exemplo: de que outra maneira ela seria capaz de se infiltrar no mundo dos humanos outra vez sem quase nenhum barulho?
Percorrendo o chão de pedra polida da recepção, passou pela parede de mármore onde estava inscrito o nome dos benfeitores e abriu caminho pela multidão de pessoas. Naquele congestionamento humano, muitos rostos eram familiares, desde o pessoal da administração até os médicos e enfermeiros com quem trabalhou durante anos. Mesmo anônimos, os pacientes estressados e suas famílias pareciam íntimos dela... de alguma maneira, as máscaras de tristeza e preocupação eram as mesmas, não importava quais fossem as características faciais que as moldavam.
Quando se dirigiu às escadas, estava buscando seu antigo chefe, e, Cristo, teve vontade de rir. Ao longo de todos aqueles anos trabalhando juntos, tinha surpreendido Manny Manello de muitas maneiras; mas aquilo ia superar vários acidentes de carro, avião ou uma explosão de edifício. Tudo isso junto.
Flutuando ao atravessar uma saída de emergência de metal, ela subiu a escada dos fundos. Os pés não tocavam os degraus, pairavam sobre eles enquanto subia como fumaça, sem esforço algum.
Aquilo tinha de funcionar. Tinha que convencer Manny a lhe acompanhar para cuidar daquela coluna lesionada, e ponto final. Não havia outras opções, nada de imprevistos, nada de virar à direita ou à esquerda naquela estrada: aquele era o passe final... e estava rezando para que o goleiro não pegasse aquela bola.
Que bom que ela tinha um bom desempenho sob pressão e que conhecia aquele homem como a palma de sua mão.
Manny aceitaria o desafio; mesmo isso não fazendo sentido algum para ele, ficaria lívido por saber que ela ainda estava “viva”. Além disso, não seria capaz de recusar ajuda a um paciente necessitado – simplesmente não estava programado para isso.
No décimo andar, atravessou outra parede e entrou na seção administrativa do departamento cirúrgico. O local era equipado como um escritório de advocacia, todo escuro, sombrio e luxuoso. Fazia sentido: o centro cirúrgico era uma fonte enorme de renda para qualquer hospital universitário, e o dinheiro era gasto para recrutar, manter e abrigar aqueles seres mimados e arrogantes que abriam pessoas para que elas sobrevivessem mais.
Dentre o grupo que operava com os bisturis no Hospital São Francisco, Manny Manello estava no topo da pirâmide, chefe não apenas de uma subespecialidade, como ela tinha sido, mas de todo o conjunto da obra. Isso significava que era uma estrela de cinema, um sargento e o presidente dos Estados Unidos ao mesmo tempo, tudo isso englobado em um cara com pouco mais de um metro e oitenta de altura. Tinha um temperamento terrível, uma inteligência impressionante e um pavio de mais ou menos um milímetro de comprimento, e isso em um dia bom. E seu trabalho era tão valioso quanto uma pedra preciosa.
As operações de maior rentabilidade do cara sempre foram aquelas feitas em atletas profissionais: ele tratou vários joelhos, quadris e ombros que teriam provocado muitos finais de carreira no futebol, baseball ou no hóquei. Mas também tinha muita experiência com tratamentos de coluna e, apesar da atuação de um neurocirurgião ser interessante se considerasse as radiografias de Payne, aquele era um problema ortopédico: se a medula espinhal fosse rompida, nada do que fizessem em termos neurológicos ajudaria. A ciência médica não tinha avançado tanto assim.
Quando dobrou a extremidade da mesa de recepção, teve de parar. À esquerda estava seu antigo escritório, o lugar onde passava horas incontáveis lidando com papéis e fazendo reuniões de consulta com Manny e o resto da equipe. Agora, lia-se o nome na placa fixada na porta: DR. THOMAS GOLDBERG, CIRUGIÃO-CHEFE DO DEPARTAMENTO DE TRAUMATOLOGIA.
Goldberg era uma excelente escolha; ainda assim, por alguma razão, doía ver o nome de outra pessoa ali.
Mas até parece. Esperava que Manny preservasse sua mesa e seu escritório como um monumento em homenagem a ela? A vida continua. A dela. A dele. A do hospital.
Voltando à realidade da situação, caminhou pelo corredor acarpetado. Mexia sempre em seu jaleco branco, com a caneta em seu bolso e com o celular que, até agora, não havia tido motivos para usar. Não havia tempo para explicar seu retorno do mundo dos mortos ou persuadir Manny ou ajudá-lo a entender o que estava prestes a expor; e não havia escolha, mas, de alguma forma, tinha de levá-lo com ela.
Em frente à porta fechada, preparou-se e, em seguida, atravessou...
Ele não estava atrás da mesa, ou trabalhando em algo na mesa de conferências da sala de reuniões.
Verificou rapidamente em seu banheiro privativo... nada ali também... não havia nenhuma umidade nas portas de vidro ou toalhas molhadas sobre a pia.
De volta ao escritório, ela respirou fundo... e o aroma suave de sua loção pós-barba pairando no ar a fez engolir em seco. Deus, sentia a falta dele.
Balançando a cabeça, andou ao redor da mesa e olhou a desordem. Arquivos de pacientes, pilhas de memorandos interdepartamentais, relatórios de Assistência ao Paciente e de Avaliação de Qualidade. Como era um pouco depois das cinco da tarde de um sábado, esperava encontrá-lo ali: as provas de seleção não eram realizadas nos finais de semana; então, a menos que estivesse de plantão ou lidando com um algum caso na traumatologia, deveria estar bem ali atrás daquela confusão de papéis. Manny era workaholic: trabalhava vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana.
Saindo do escritório, verificou a mesa de sua secretária. Nada ali também: seus compromissos eram mantidos no computador, protegidos por senha.
A próxima parada era o centro cirúrgico. O São Francisco tinha diferentes níveis de salas de operação, todas organizadas por especialidades. Ela foi diretamente à seção que ele costumava atuar. Olhando pelas janelas de vidro e portas duplas, viu que estavam operando uma terrível fratura múltipla. Embora os cirurgiões usassem máscaras e toucas, poderia dizer que nenhum deles era Manny. Seus ombros eram grandes o suficiente para esticar até mesmo o maior uniforme cirúrgico disponível e, além disso, as músicas que soavam ao fundo não eram o estilo dele. Mozart? Sem chance. Pop? Nem morto: Manny ouvia rock clássico e heavy metal. Aliás, se não fosse contra o protocolo, os enfermeiros usariam um protetor de ouvidos durante todos os procedimentos com ele.
Caramba... Onde diabos estava? Não havia conferências naquela época do ano e ele não tinha vida fora do hospital. As únicas opções que restavam era que estivesse no Commodore: desmaiado de cansaço no sofá de seu apartamento ou na academia do arranha-céu.
Quando saiu dali, pegou o celular e ligou para o sistema de atendimento do hospital.
– Sim, alô? – disse quando a ligação foi atendida. – Gostaria de falar com o Dr. Manuel Manello. Meu nome? – que droga! – Ah... Hannah. Hannah Whit. Pode retornar a ligação neste número.
Quando desligou, percebeu que não fazia ideia do que dizer caso ele retornasse a ligação, mas resolveu dar destaque ao pensamento positivo... e rezou para que tivesse a habilidade inata de realizar aquela tarefa. O fato era: se o sol baixasse no horizonte, um dos Irmãos sairia do complexo e faria algum trabalho mental em Manny para facilitar o processo de levá-lo até lá.
Contudo, não seria Vishous. Outra pessoa. Qualquer pessoa. Seus instintos diziam-lhe para deixar os dois tão afastados quanto possível: já tinham uma emergência médica em processo, e a última coisa de que precisava era de seu antigo patrão sendo pressionado porque seu marido tinha um instinto territorial e poderia decidir rachar, ele próprio, uma coluna a qualquer momento. Pouco antes de sua morte, Manny estava interessado em mais do que apenas uma associação profissional com ela; portanto, a menos que tivesse se casado com uma das Barbies que insistia em namorar, provavelmente ainda estava solteiro... E a regra dizia que o coração ficava ainda mais afeiçoado à pessoa ausente; então, seus sentimentos devem ter persistido.
Por outro lado, era possível que a insultasse sem piedade por mentir para ele sobre toda a coisa de estar “morta e enterrada”.
Pelo menos ele não se lembraria de nada daquilo; contudo, quanto a ela, temia nunca mais se esquecer das próximas vinte e quatro horas.
O Hospital Equino Tricounty era uma instalação de última geração em todos os sentidos. Localizado a quinze minutos do hipódromo de Aqueduct, o local tinha tudo, desde salas de operação e um serviço completo de quartos de recuperação até piscinas para hidroterapia e exames que forneciam imagens avançadas. E seu quadro de funcionários era composto por pessoas que viam os cavalos como muito mais do que uma fonte de lucros sobre quatro patas.
Na sala de cirurgia, Manny analisava as radiografias da perna dianteira de sua garota e desejou ser o único a entrar ali para resolver o problema: conseguia ver claramente as fissuras na imagem, mas isso não era o que o preocupava. Havia vários ligamentos que haviam sido rompidos e manchas acentuadas orbitando ao redor dos centros nervosos do osso alongado que mais pareciam luas ao redor de um planeta.
Só porque ela era de outra espécie não significava que não poderia fazer a operação. Assim que o anestesista fizesse seu trabalho em segurança, ele poderia cuidar do resto. Osso era sempre osso; mas não bancaria o idiota.
– O que acha? – perguntou.
– Minha opinião profissional – respondeu o veterinário-chefe – é de que está muito ruim. É uma fratura múltipla deslocada. O tempo de recuperação será extenso e não é possível garantir que ela sequer possa reproduzir.
O que era uma zica total: cavalos foram feitos para ficar em pé com seu peso distribuído sobre quatro pontos de maneira uniforme. Quando uma perna era quebrada, não se tratava tanto da lesão em si, mas o fato de que era preciso redistribuir o peso e contar, desproporcionalmente, com as partes que ainda estavam boas no corpo para ficar em pé. E esse era o grande problema.
Ao considerar aquilo que examinava, a maioria dos proprietários escolheria a eutanásia; mas sua garota tinha nascido para correr, e aquela lesão catastrófica faria disso impossível, mesmo se fosse apenas para o lazer... isso se ela sobrevivesse. Como médico, estava muito familiarizado com a crueldade do trabalho “salvador” de seus colegas que acabavam levando o paciente a viver em condições piores do que a morte – ou não faziam nada além de prolongar, de maneira dolorosa, o inevitável.
– Dr. Manello? O senhor ouviu o que eu disse?
– Sim. Ouvi. – Pelo menos aquele cara, ao contrário do idiota na pista, parecia tão arrasado quanto Manny.
Afastando-se, foi até onde a deitaram e colocou uma das mãos sobre sua bochecha arredondada. Sua pelagem negra brilhava sob a iluminação e, em meio ao cenário de ladrilho claro e aço inoxidável, parecia uma sombra projetada ao acaso e esquecida no centro da sala.
Por um longo momento, observou como sua grande caixa torácica expandia-se e contraía-se com a respiração. Só de vê-la na maca com as belas pernas esticadas como bastões e sua cauda pendendo sobre o ladrilho fê-lo perceber que animais como ela deveriam ficar em pé: aquilo que via era completamente contrário à natureza, e injusto.
Mantê-la viva apenas para que não tivesse de enfrentar sua morte não era a resposta certa.
Preparando-se para a situação, Manny abriu a boca...
A vibração dentro do bolso de seu terno o interrompeu. Com um palavrão, tirou o celular e verificou. Era do hospital. Hannah Whit? Com um número desconhecido?
Não era ninguém que conhecesse e ele não estava de plantão.
Provavelmente um erro do atendimento.
– Quero que opere – ouviu-se dizendo enquanto guardava o telefone de volta.
O curto silêncio que se seguiu deu-lhe tempo de sobra para perceber que impedi-la de partir cheirava a covardia. Mas não poderia insistir naquele melodrama psíquico ou perderia a sanidade.
– Não posso garantir nada. – O veterinário voltou a olhar as radiografias. – Não sei dizer o que vai acontecer, mas posso jurar que... farei meu melhor.
Deus, agora sabia como as famílias se sentiam quando dizia isso a elas.
– Obrigado. Posso assistir?
– Com certeza. Vou pegar algo para o senhor vestir e sabe como fazer a higienização antisséptica, certo, doutor?
Vinte minutos depois, a operação começou e Manny assistiu próximo à cabeça de Glory, acariciando sua crina com as mãos envolvidas com as luvas de látex, mesmo sedada. Enquanto o veterinário-chefe trabalhava, Manny teve de tirar o chapéu para a metodologia e habilidade daquele homem... as únicas coisas corretas desde que Glory havia caído. O procedimento terminou em menos de uma hora, com os fragmentos ósseos ou removidos ou encaixados no devido lugar. Então, imobilizaram a perna, retiraram a égua da sala de cirurgia e a colocaram em uma piscina para que não quebrasse outra perna quando o efeito da anestesia passasse.
Manny ficou com ela até que acordasse e, em seguida, acompanhou o veterinário até o corredor.
– Os sinais vitais são bons e correu tudo bem na operação – o veterinário disse –, mas essa vitalidade pode mudar rapidamente. E vai levar tempo até sabermos o que conseguimos alcançar.
Nossa. Aquele pequeno discurso era exatamente o que dizia aos familiares mais próximos e outros parentes quando achava que era hora de irem para casa descansar e esperar como o paciente reagiria ao pós-operatório.
– Ligaremos para o senhor – falou o veterinário. – Vamos mantê-lo informado.
Manny tirou as luvas e pegou seu cartão de visitas.
– No caso de ainda não terem todos os meus dados nos registros.
– Temos sim – de qualquer forma, pegou o papel. – Se alguma coisa mudar, será o primeiro a saber, e lhe darei as informações pessoalmente, a cada doze horas, que é o intervalo entre as minhas rondas, quando passo visitando todos os leitos.
Manny assentiu e estendeu a mão.
– Obrigado. Por cuidar dela.
– Por nada.
Depois de apertarem as mãos, Manny assentiu outra vez junto às portas duplas.
– Importa-se se eu me despedir dela?
– Não. Pode ir.
Dentro do quarto outra vez, passou um momento com sua égua. Deus... aquilo doía.
– Segure firme, garota – teve de sussurrar, pois não conseguia respirar direito.
Quando se ergueu, a equipe o observava com uma tristeza que sabia que ia permanecer.
– Vamos cuidar dela. – o veterinário disse gravemente.
Acreditava mesmo que cuidariam e foi a única coisa que o levou de volta ao corredor.
As instalações do Tricounty eram extensas e precisou de um tempo considerável para trocar de roupa e seguir seu caminho até a saída onde tinha estacionado, próximo à porta da frente. À frente, o sol se punha, um brilho de um tom pêssego se espalhava, iluminando o céu como se Manhattan estivesse em chamas. O ar estava frio, mas perfumado, pois o início da primavera esforçava-se para trazer vida à paisagem árida do inverno, e ele respirou tão fundo que ficou tonto. Deus, o tempo tinha passado como uma neblina, mas agora, com os minutos se arrastando, percebeu que aquele ritmo frenético tinha esgotado sua fonte de energia. Era isso ou tinha batido contra um muro de tijolos e desmaiado.
Enquanto procurava a chave do carro, sentiu-se mais velho do que Deus. Sua cabeça estava dando fortes pontadas e sua artrite no quadril o estava matando. Aquela corrida que havia empreendido para chegar à pista e ficar ao lado de Glory ia além de seus limites.
Não foi assim que imaginou o final do dia. Achou que estaria comprando bebidas para os proprietários que tinha derrotado... E talvez, no resplendor da vitória, seguisse a generosa sugestão oral da Sra. Hanson.
Ao entrar no carro, ligou o motor. Caldwell estava a mais ou menos quarenta e cinco minutos ao norte de Queens, e seu carro conseguia fazer a viagem de volta ao Commodore praticamente sozinho. Isso era muito bom, pois era quase um zumbi naquele momento. Nada de rádio. Nenhuma música no iPod. Ninguém telefonando também.
Ao pegar a estrada, observou o caminho à frente e lutou contra o impulso de dar meia-volta e... sim, e fazer o quê? Descansar em paz ao lado de seu cavalo?
A questão era: se conseguisse chegar em casa logo, poderia conseguir ajuda. Tinha uma garrafa de uísque esperando por ele e poderia ou não ir com calma ao usá-la. Até onde dizia respeito ao hospital, estava de folga até segunda pela manhã, às seis horas, e tinha planos de ficar bêbado e permanecer assim.
Guiando o volante revestido de couro com uma das mãos, procurou, com a outra, em meio a sua camisa de seda, sua representação do Cristo crucificado. Segurando a cruz de ouro, fez uma oração.
Deus... por favor, permita que ela fique bem.
Não poderia suportar perder outra de suas garotas. Não tão cedo. Jane Whitcomb tinha morrido há um ano, mas isso era o que o calendário dizia. O tempo do luto era diferente – nele havia transcorrido apenas um minuto e meio.
Não queria passar por isso outra vez.