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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AMANTE LIBERTADA
AMANTE LIBERTADA

 

 

 

                                                            Irmandade da "Adaga Negra"                                                                 

 

 

 

 

CAPÍTULO 4

No centro de Caldwell havia vários prédios altos, cheios de janelas espelhadas, mas nenhum era como o Commodore. Com trinta andares, estava entre os mais altos daquela floresta de concreto e os sessenta apartamentos que abrigava eram totalmente fantásticos, ao estilo de grandes empresários como Donald Trump, revestido de mármore e detalhes cromados; tudo era muito bem projetado.

No vigésimo sétimo andar, Jane entrou no apartamento de Manny, procurando por sinais de vida, e o que encontrou foi... nada. Literalmente. A casa do cara aproximava-se mais de uma pista de dança do que uma pista de obstáculos: a mobília era composta de três objetos na sala e uma cama enorme na suíte principal. Ponto. Bem, e algumas banquetas de couro ao redor do balcão da cozinha. Quanto às paredes? A única coisa que havia pendurado ali era uma TV de plasma do tamanho de um outdoor. Não havia tapetes sobre os pisos de madeira, apenas mochilas de academia... mais mochilas de academia... e calçados esportivos.

Nada disso indicava que era desorganizado; não tinha coisas suficientes para ser considerado assim.

Com um pânico crescente, entrou no quarto dele e viu mais ou menos meia dúzia de uniformes cirúrgicos deixados em pilhas no chão, como poças d’água após uma tempestade e... nada mais.

Mas a porta do armário estava aberta e ela entrou...

– Meu Deus... mas que droga.

Havia um conjunto de três malas alinhado no chão, onde deveria estar uma pequena, uma média e outra grande... mas a do meio não estava lá. Então, concluiu o que estava acontecendo ao considerar os espaços vazios que havia entre os cabides de calças e camisas: estava fora, em uma viagem. Talvez durante todo o fim de semana.

Sem muita esperança, discou para o sistema de atendimento do hospital e chamou-o outra vez...

Notou que estava recebendo outra chamada e amaldiçoou quando observou o número.

Respirando fundo, respondeu:

– Oi, V.

– Nada?

– Nada no hospital ou no apartamento. – Um rosnado sutil chegou até ela pelo telefone e ampliou a angústia da busca que ainda não tinha dado em nada. – Também procurei na academia, vindo para cá.

– Invadi o sistema do Hospital São Francisco e consegui os horários dele.

– Onde ele está?

– Tudo o que diz lá é que Goldberg está de plantão, certo? Olha, o sol se pôs. Vou sair daqui em, mais ou menos...

– Não, não... fique com Payne. Ehlena é ótima, mas acho que deveria ficar com ela.

Houve uma grande pausa, como se ele soubesse que estava sendo despistado.

– O que vai fazer agora?

Apertou o telefone e perguntou-se a quem deveria recorrer. Deus? À mãe dele?

– Não tenho certeza. Mas liguei para ele. Duas vezes.

– Ligue quando encontrá-lo. Vou pegar vocês.

– Posso levá-lo até em casa...

– Não vou machucá-lo, Jane. Não tenho a menor intenção de deixá-lo em pedaços.

Sim, mas considerando o tom de voz frio, teve de se perguntar sobre aqueles planos bem intencionados de vampiros cheios de autocontrole e blá, blá, blá... Acreditava que Manny viveria para tratar da irmã gêmea de V. Mas, e depois? Tinha suas reservas... especialmente se as coisas dessem errado na sala de cirurgia.

– Vou esperar aqui mais um pouco; talvez ele apareça, ou ligue. Se isso não acontecer, penso em outra coisa.

No longo silêncio, praticamente conseguia sentir uma corrente de ar frio chegando através do celular. Seu companheiro fazia muitas coisas direito: lutar, fazer amor, lidar com qualquer coisa relacionada à informática. Ser forçado a ficar parado? Não era bem uma de suas competências inatas. Na verdade, era garantia de deixá-lo enlouquecido.

Ainda assim, o fato de não confiar nela fez com que se sentisse distante dele.

– Fique com sua irmã, Vishous – disse em um tom de voz equilibrado. – Manterei contato.

Silêncio.

– Vishous. Confie em mim e vá ficar ao lado dela.

Ele não disse coisa alguma depois disso. Apenas desligou.

Quando pressionou a tecla end do telefone, soltou um palavrão.

Uma fração de segundo depois estava discando outra vez e no instante em que ouviu uma voz profunda atender, teve de enxugar uma lágrima que, se pensasse em toda sua natureza translúcida, era muito, muito real.

– Butch – ela resmungou –, preciso de sua ajuda.

Quando o pouco que restava do pôr do sol desapareceu e a noite bateu seu cartão de ponto, assumindo o turno seguinte, o carro de Manny deveria ter ido para casa. Deveria ter sido levado por si só direto para Caldwell.

Ao invés disso, acabou chegando ao extremo sul da cidade, onde as árvores eram grandes e as extensões de grama superavam as de asfalto em até dez vezes mais.

Fazia sentido. Os cemitérios deveriam ter longos trechos de terra, pois não se podia enterrar um caixão no concreto. Bem, até poderia... se se tratasse de um mausoléu.

O cemitério Bosque dos Pinheiros ficava aberto até as dez da noite, seus grandes portões de ferro permaneciam escancarados e seus inúmeros postes de iluminação forjados em ferro emitiam uma luz amarelo-manteiga ao longo do labirinto de ruas. Quando entrou, foi para a direita, os faróis do carro iluminando o local ao longo das lápides e do gramado.

Em última análise, o local para onde se dirigia não significava nada: não havia um corpo embaixo da lápide de granito que ia visitar – não restara nada para ser enterrado. Nada de cinzas para colocar em uma vasilha, também... ou, pelo menos, nada que se pudesse separar com certeza de dentro de um Audi que havia pegado fogo.

Depois de dar, mais ou menos, um quilômetro de voltas, tirou o pé do acelerador e deixou o carro deslizar até estacionar. Até onde conseguia ver, era o único no cemitério, mas isso não era problema para ele. Não havia razão para se ter uma audiência.

Quando saiu do carro, o ar frio não ajudou a limpar sua mente, mas deu algo para seus pulmões fazerem quando inalou profundamente e caminhou sobre a grama áspera da primavera. Teve o cuidado de não pisar em nenhuma tumba enquanto avançava... claro, os mortos não saberiam que estava andando acima deles, mas parecia uma coisa respeitosa a fazer.

O túmulo de Jane estava à frente, e desacelerou o passo quando aproximou-se daquilo que não havia sido deixado por ela, por assim dizer.

Ao longe, o apito de um trem cortou o silêncio... e o som vazio e lúgubre era um clichê tão grande que se sentiu em um filme o qual nunca assistiria sentado em casa, muito menos pagaria para ver em um cinema.

– Droga, Jane.

Inclinando-se, passou os dedos sobre as marcas irregulares da lápide. Foi ele quem tinha escolhido a pedra escura de azeviche, pois ela não teria gostado nem um pouco de algo pastel ou desbotado. E a inscrição também era simples e descomplicada, apenas seu nome, datas e uma frase na parte inferior: DESCANSE EM PAZ.

Sim. Deu a si mesmo nota dez em originalidade por isso.

Lembrava-se exatamente onde estava quando soube que ela tinha morrido: no hospital, claro. Era final de um longo plantão que tinha começado com o joelho de um jogador de hóquei e terminado com a reconstrução espetacular de um ombro, isso porque o viciado decidiu tentar voar.

Saiu da sala de cirurgia e encontrou Goldberg esperando próximo às pias de higienização. Manny parou no meio do processo de retirar a máscara cirúrgica ao dar apenas uma olhada no rosto pálido de seu colega. Com a coisa pendurada em seu queixo como um babador, exigiu saber o que diabos havia acontecido de errado – contando o tempo todo que se tratava de um acidente com quarenta carros engavetados na estrada ou um acidente de avião ou um hotel incendiado... algo relacionado a uma tragédia que englobasse toda uma comunidade.

Só que quando olhou sobre o ombro do cara e viu cinco enfermeiras e três outros médicos... Todos com a mesma aparência de Goldberg... E nenhum deles correndo para chamar outros funcionários para assumirem plantão ou preparando as salas de cirurgia.

Certo. Tinha acontecido algo que englobava toda uma comunidade. A comunidade deles.

– Quem? – perguntou.

Goldberg olhou para trás, em direção a sua tropa de apoio e foi então que Manny entendeu. E mesmo com as entranhas congeladas dentro dele, agarrou-se a uma esperança irracional de que o nome que estava prestes a sair da boca de seu colega cirurgião não fosse...

– Jane. Acidente de carro.

Manny não perdeu tempo.

– Quando ela deu entrada?

– Não chegou a dar entrada.

Com isso, Manny não disse nada. Terminou de tirar a máscara de seu rosto, amassou-a e descartou-a na lata de lixo mais próxima.

Quando foi passando por eles, Goldberg abriu a boca outra vez.

– Nem uma palavra – Manny ladrou. – Nem. Uma. Palavra.

Os outros funcionários começaram a tropeçar entre eles mesmos para sair do caminho, dividindo o grupo com a precisão de um pedaço de tecido cortado ao meio.

Voltando ao presente, não conseguia se lembrar onde tinha ido ou o que tinha feito depois disso... não importava quantas vezes voltasse sua mente àquela noite obscura, esses momentos eram como um buraco negro. Contudo, em dado momento, percebeu que tinha chegado em seu apartamento, pois acordou ali dois dias depois e viu que ainda estava com o uniforme cirúrgico respingado com o sangue do último paciente que havia operado.

O mais irritante de tudo era o fato de que Jane tinha salvado tantas pessoas vítimas de acidentes de carro. A ideia de ter sido levada dessa maneira levava-o a pensar que o Ceifeiro da Morte veio atrás dela para cobrar todas as almas que tinha afastado do alcance de suas garras mortais.

O som de outro apito de trem o fez querer gritar.

O trem e aquele pager apitando.

Hannah Whit. Outra vez?

Mas que diabos...

Manny franziu o cenho e olhou para a lápide. Salvo engano, a irmã mais nova de Jane chamava-se Hannah. Whit. Whitcomb?

Só que ela tinha morrido muito cedo.

Não tinha?

Loucura. Total.

Deus, deveria ter trazido seus tênis para essa aventura, Jane pensou enquanto andava sem rumo pelo apartamento de Manny. Outra vez. Teria deixado o apartamento se tivesse uma ideia melhor de onde ir, mas seu cérebro, mesmo sendo tão astuto, não conseguia enxergar outra opção...

Seu telefone tocando não era exatamente algo bom. Não queria dizer a Vishous que quarenta e cinco minutos depois não tinha nada de novo para relatar.

Pegou o celular.

– Oh... Deus.

Aquele número. Aqueles dez dígitos que sempre estiveram registrados na discagem rápida de todos os telefones que teve antes daquele. Manny.

Quando pressionou a tecla send, sua mente estava em branco e seus olhos cheios de lágrimas. Seu velho e querido amigo e colega de profissão...

– Alô? – ele disse. – Senhorita Whit?

Ao fundo, ouviu o soar fraco de um apito de trem.

– Alô? Hannah? – Aquele tom... era exatamente o mesmo de anos atrás: baixo, impositivo. – Tem alguém aí?

Aquele apito baixo soou outra vez.

Jesus Cristo... ela pensou. Sabia onde ele estava.

Jane desligou e saiu rápido do apartamento, do centro da cidade, atravessando a toda velocidade pelos subúrbios.

Viajando em um borrão à velocidade da luz, suas moléculas atravessaram a noite em uma corrida alucinante que percorreu quilômetros como se fossem centímetros.

O cemitério Bosque dos Pinheiros era o tipo de lugar que precisava de um mapa para se localizar nele, mas quando se é uma forma etérea no ar, pode-se percorrer uma centena de acres em apenas um piscar de olhos.

Quando tomou forma na escuridão perto de sua sepultura, respirou fundo e quase chorou.

Lá estava ele, em carne e osso. Seu chefe. Seu colega. O único a quem deixou para trás. E ele estava em pé atrás de uma lápide negra na qual havia seu nome esculpido.

Certo, agora sabia que tinha tomado a decisão certa quando não havia ido ao funeral. O mais perto que chegou disso foi lendo a notícia no Caldwell Courier Journal – e a imagem de todos aqueles cirurgiões, funcionários do hospital e pacientes emocionou-a demais. Mas aquilo era muito pior.

Manny parecia exatamente como ela mesma se sentia: arruinado por dentro.

Jesus, aquela loção pós-barba ainda cheirava bem... e apesar de ter perdido um pouco de peso, era um pedaço de mal caminho, com aquele cabelo escuro e aquele rosto rígido. Seu terno era de risca de giz e feito sob medida... mas havia sujeira em volta da bainha da calça muito bem passada. E seus sapatos estavam sujos também, fazendo com que ela se perguntasse onde diabos ele estivera. Com certeza não tinha ficado assim por causa da sepultura; depois de um ano, o solo ainda estava plano e coberto com grama bem aparada...

Oh, espere. O túmulo devia estar assim desde o primeiro dia. Ela não tinha deixado nada para ser enterrado.

Quando os dedos dele descansaram sobre a pedra, soube que foi ele quem tinha escolhido a sepultura. Ninguém mais teria tido o bom-senso de fazer exatamente o que ela gostaria que fizesse. Nada de muitos detalhes rococós ou dizeres complicados; curto, doce, no ponto.

Jane limpou a garganta.

– Manny...

Ele ergueu a cabeça, mas não olhou para ela... como se tivesse ouvido a voz dela apenas em sua mente.

Assumindo uma forma totalmente corpórea, ela falou mais alto.

– Manny.

Sob qualquer outra circunstância, a reação teria sido uma profusão de risos. Mas ele se virou, em seguida, gritou, tropeçou na lápide e caiu sentado no chão.

– Mas que... diabos... você está fazendo aqui? – ele engasgou. A expressão em seu rosto começou com um sentimento de horror, mas rapidamente mudou para a descrença absoluta.

– Sinto muito.

Era totalmente ridículo, mas foi tudo o que saiu de sua boca.

E parecia mais do que poderia suportar. Encontrar aqueles olhos castanhos fez com que, de repente, ela não tivesse nada a dizer.

Manny ergueu-se com um salto, e seu olhar escuro subia e descia observando o corpo dela.

E, por fim, subiu... fixando-se em seu rosto.

Foi quando a raiva veio. E também uma dor de cabeça, evidentemente, considerando a maneira como ele estremeceu e esfregou as têmporas.

– É algum tipo de piada?

– Não – ela desejava que fosse. – Sinto muito mesmo.

O olhar severo e cruel era dolorosamente familiar, e que ironia sentir-se nostálgica com um olhar ameaçador como aquele.

– Você sente muito.

– Manny, eu...

– Eu a enterrei. E você sente muito? Que porcaria é essa?

– Manny, não tenho tempo para explicar. Preciso de você.

Ele a encarou por um longo momento.

– Você aparece depois de um ano morta e diz que precisa de mim?

A realidade de quanto tempo havia se passado pesou sobre ela. Acima de tudo.

– Manny... não sabia o que lhe dizer.

– Oh, mesmo? Que tal: ah, puxa, por falar nisso, estou viva.

Ele a encarou. Apenas a encarou.

Então, com uma voz rouca, disse:

– Você faz alguma ideia do que foi perdê-la? – passou rapidamente a mão sobre os olhos. – Tem noção?

A dor no peito dela fez com que a respiração ficasse difícil.

– Sim. Porque perdi você... perdi minha vida com você e no hospital.

Manny começou a andar, aproximando-se e afastando-se da lápide. E, embora ela quisesse, sabia que não devia aproximar-se demais.

– Manny... se houvesse alguma maneira de voltar para você, eu voltaria.

– Você voltou. Uma vez. Pensei que era um sonho, mas não. Não era.

– Não.

– Como entrou no meu apartamento?

– Apenas entrei.

Ele se deteve e olhou para ela, a lápide ficou entre eles.

– Por que fez isso, Jane? Por que forjou sua morte?

Bem, na verdade, não havia forjado.

– Não tenho tempo para explicar agora.

– Então, que diabos está fazendo aqui. Que tal explicar isso?

Ela clareou a garganta e disse:

– Estou com uma paciente cujo tratamento exige além da minha capacidade e quero que dê uma olhada. Não posso dizer para onde vou levá-lo, não posso lhe dar muitos detalhes e sei que isso não é justo... mas eu preciso de você – Queria arrancar os cabelos. Cair aos prantos. Abraçá-lo. Mas continuou, por que era isso o que tinha de fazer. – Estou procurando por você há mais de uma hora, então, estou atrasada. Sei que está chateado e confuso e não o culpo. Mas fique com raiva de mim mais tarde... Apenas venha comigo agora. Por favor.

Tudo o que pôde fazer foi esperar. Manny não se convencia por alguém falar demais, não conseguiria persuadi-lo assim. Escolheria ir... ou não.

E, infelizmente, se fosse a segunda opção, ela teria de chamar os Irmãos. Por mais que amasse e sentisse falta de seu antigo chefe, Vishous era seu homem e se sentiria uma maldita se deixasse alguma coisa acontecer com a irmã dele.

De uma forma ou de outra, Manny operaria alguém naquela noite.


CAPÍTULO 5

Butch O’Neal não era o tipo de cara que deixava uma dama em perigo.

Era alguém à moda antiga... o policial... o devoto, o católico praticante que havia nele. Dito isso, ao receber a ligação da amável e talentosa Dra. Jane Whitcomb, o cavalheirismo não seguiu o instinto impulsivo. Nem um pouco.

Ao colocar o pé para fora do Buraco e correr ao longo do túnel em direção ao centro de treinamento da Irmandade, seus interesses e os dela estavam totalmente alinhados, mesmo sem se levar em conta toda a questão de “ser um cavalheiro”: os dois temiam que V. perdesse o controle outra vez.

Já exibia todos os sinais: tudo o que tinha de fazer era olhar para ele e ver que a tampa da panela de pressão estava trancada com força sobre todo aquele calor e confusão. O que aconteceria com toda aquela pressão? Teria de encontrar uma vazão de alguma maneira e, no passado, isso aconteceu das piores maneiras possíveis.

Saindo da porta oculta e emergindo no escritório, Butch virou à direita e desceu ao longo do corredor que levava às instalações médicas. O sopro sutil de tabaco turco no ar disse-lhe exatamente onde encontrar seu alvo, não que houvesse alguma dúvida.

Próximo à porta fechada da sala de exames, ajeitou os punhos da camisa e ergueu o cinto. A batida na porta foi suave. Já o batimento cardíaco estava forte.

Vishous não respondeu com um “entre”. Ao invés disso, o Irmão saiu e fechou a porta atrás de si.

Caramba, ele parecia estar mal. E suas mãos tremiam ligeiramente quando pegou um de seus cigarros para preparar. Enquanto lambia a coisa para selá-la, Butch enfiou a mão no bolso para oferecer o isqueiro, acendendo a chama e erguendo-a à frente. Quando seu melhor amigo inclinou-se para o brilho laranja, reconheceu cada detalhe daquele rosto cruel e impassível. Jane estava absolutamente certa. O pobre coitado estava sobrecarregado e segurava tudo aquilo.

Vishous inalou profundamente e, então, recostou-se contra a parede de concreto, os olhos perspicazes fixos à frente, as botas de combate plantadas solidamente no chão. Em determinado momento, murmurou:

– Não vai perguntar como estou?

Butch inclinou-se da mesma maneira, aproximando-se bem de seu amigo.

– Não precisa.

– Anda lendo mentes?

– Sim. Esse sou eu.

V. inclinou-se para o lado e bateu as cinzas no lixo.

– Então, pode me dizer no que estou pensando, certo?

– Tem certeza que quer que eu solte um monte de palavrões tão perto de sua irmã? – Quando isso produziu uma risada curta, Butch olhou para o perfil de V. As tatuagens ao redor do olho do cara estavam especialmente sinistras, se considerasse as marcas de preocupação que o cercavam, como se fossem nuvens em um inverno nuclear.

– Não quer que eu faça isso em voz alta, V. – disse suavemente.

– Ah. Faça uma tentativa.

Isso significava que V. precisava conversar, mas, considerando a situação, não daria certo forçar coisa nenhuma ali: o macho sempre “finalizava” as conversas, mas, pelo menos, estava indo melhor do que tinha ido... antes? Sim, sequer quebrou uma porta nem nada.

– Ela pediu para que cuide dela se isso não der certo, não foi? – Butch disse, pronunciando o que mais temia. – E não estamos falando de cuidados paliativos de enfermagem.

A resposta de V. foi soltar uma respiração que durou mais ou menos uns quinze minutos depois do infinito.

– O que vai fazer? – perguntou Butch, mesmo sabendo a resposta.

– Não vou hesitar. – O complemento da resposta “mesmo que isso me mate” ficou subentendido.

Maldita vida. Às vezes, as situações pelas quais as pessoas passavam eram cruéis demais.

Butch fechou os olhos e deixou a cabeça cair para trás, contra a parede. A família era tudo para os vampiros. Sua companheira, os Irmãos com quem lutava, seu sangue... era todo o seu mundo. E, segundo essa teoria, ele também sofria junto com V. e Jane e o resto da Irmandade.

– Com sorte, não chegará a fazer isso – Butch olhou para a porta fechada. – A doutora Jane vai encontrar o cara. Ela é como um cão farejador...

– Sabe o que me ocorreu há uns dez minutos?

– O quê?

– Mesmo que não fosse mais dia, ela gostaria de continuar sozinha para encontrá-lo.

Quando o aroma de vinculação do macho exalou, Butch pensou: “Certo, cara. Jane e o cirurgião conviveram juntos durante anos, então, se há algum tipo de persuasão a ser feito, ela terá mais oportunidades sozinha... isso concluindo que ela dará um jeito na coisa toda de voltar dos mortos. Além disso, V. era um vampiro. Caramba. Será que alguém precisava adicionar mais alguma dificuldade nessa confusão toda?”.

Assim, considerando tudo, seria ótimo se o cirurgião tivesse mais de dois metros de altura, estrabismo e pelo de urso nas costas. Ser extremamente feio seria sua única vantagem se o macho vinculado em V. fosse acionado.

– Sem ofensa – Butch murmurou –, mas dá para culpá-la?

– É minha irmã gêmea que está em jogo – o cara passou com força uma das mãos ao longo dos cabelos escuros. – Mas que droga, Butch... minha irmã.

Butch sabia alguma coisa sobre como era perder alguém, então, sim, podia entender o que o macho na frente dele sentia. E, cara, não sairia do lado do Irmão: ele e Jane eram os únicos que conseguiam acalmar Vishous quando ficava assim. Jane já teria muita coisa para fazer ao lidar com o cirurgião e sua paciente.

O som do celular de V. fez os dois saltarem, mas o Irmão recuperou-se rápido e não deu tempo para que um segundo toque chegasse a seus ouvidos.

– Mesmo? Conseguiu? Obrigado... cara... sim. Sim. Encontro vocês na garagem. Certo. – Houve uma pequena pausa e V. olhou como se quisesse ficar sozinho.

Louco para desaparecer dali, Butch olhou para seus sapatos. O Irmão nunca fora muito bom em demonstrações públicas de afeto ou em conversar sobre coisas pessoais com Jane se houvesse alguém por perto. Mas como Butch era um mestiço, não conseguia se desmaterializar – e para onde, diabos, ele correria?

Após V. murmurar um rápido “tchau”, tragou profundamente um de seus cigarros e disse em voz baixa ao expirar:

– Pode parar de fingir que não está a meu lado.

– Que alívio. Não sou muito bom nisso.

– Não tem culpa de ocupar espaço.

– Então, ela o encontrou? – Quando Vishous assentiu, Butch assumiu uma expressão mortalmente séria. – Prometa-me uma coisa.

– O quê?

– Não vai matar esse cirurgião. – Butch sabia muito bem como era dar uma volta lá fora e ter de retornar àquele mundo vampiro. No seu caso, deu tudo certo, mas e quanto a Manello? – Não é culpa do cara e nem problema seu.

V. balançou o cigarro sobre o lixo e olhou para cima, os olhos de diamante estavam frios como uma noite ártica.

– Vamos ver como ele vai se sair, tira.

Com isso, virou-se e entrou onde sua irmã estava.

Bem, pelo menos, o filho da mãe era honesto, Butch pensou junto com uma maldição.

Manny não gostava nem um pouco de outras pessoas dirigindo seu Porsche 911 Turbo. Na verdade, além de seu mecânico, ninguém mais o dirigia.

Contudo, naquela noite, permitiu que Jane assumisse a direção, pois, em primeiro lugar, era competente e poderia mudar as marchas sem destruir a transmissão; em segundo lugar, ela afirmava que a única maneira possível de levá-lo até onde precisavam ir era chegando lá dirigindo o automóvel ela mesma; e, em terceiro lugar, ainda estava se recuperando de ter visto alguém que havia enterrado aparecer de repente e dizer “Oi, tudo bem?”. Então, talvez não fosse uma boa ideia comandar uma máquina pesada que estava correndo a cento e vinte quilômetros por hora.

Não conseguia acreditar que estava sentado ao lado dela, indo para o norte, no carro dele.

Mas é claro que disse sim ao pedido dela. Sua atitude era patética com relação a mulheres aflitas... e também era um profissional viciado em uma sala de cirurgia. Que óbvio!

Porém, ainda havia muitas perguntas e muita fúria. Sim, com certeza, esperava chegar a um lugar cheio de paz, luz, sol e de toda aquela besteira piegas, mas não estava preocupado com toda essa história de lugar perfeito, o que era irônico. Quantas vezes olhou para o teto durante a noite, aninhado em sua cama com uma garrafa de uísque, rezando por algum milagre que trouxesse sua antiga chefe do departamento de traumatologia de volta para ele?

Manny olhou para o perfil de Jane. Iluminada pela luz do painel do carro, ainda mostrava ser inteligente. Ainda mostrava ser forte. Ainda era seu tipo de mulher.

Mas isso nunca aconteceria. Apesar de toda aquela mentira grosseira sobre sua morte, havia um anel cinza escuro em sua mão esquerda.

– Você se casou? – ele disse.

Ela não olhou para ele, apenas continuou dirigindo.

– Sim. Casei.

Aquela dor de cabeça que surgiu no instante da aparição passou imediatamente de incômoda para horrível. Enquanto isso, memórias sombrias surgiam sob a superfície de sua consciência como se fossem o Monstro do Lago Ness, torturando-o e tentando trazer tudo à tona.

Contudo, teve de interromper aquele processo cognitivo de recuperar lembranças antes que tivesse um aneurisma por causa da tensão. Além disso, não chegaria a lugar algum com isso... Por mais que tentasse não conseguiria entender o que sentia ali e tinha a sensação de que poderia causar danos permanentes se continuasse assim.

Quando ele olhou pela janela do carro, pinheiros e carvalhos mostravam-se altos e firmes sob o luar, o bosque que percorria os subúrbios de Caldwell ficava cada vez mais denso ao distanciarem-se da cidade e do nó asfixiante de pessoas e edifícios.

– Você morreu aqui – ele disse severamente. – Ou ao menos fingiu ter morrido.

Um ciclista encontrou o Audi de Jane entre as árvores, em um ponto da estrada não muito longe dali; o carro havia deslizado para fora do acostamento. Entretanto, não havia corpo... e não era por causa do fogo, que havia surgido após a queda.

Jane limpou a garganta.

– É triste, mas tudo o que tenho a dizer é “sinto muito”. Sei que é uma droga.

– Não é exatamente uma festa para mim também.

Silêncio. Muito silêncio. Mas não queria ficar perguntando muita coisa se tudo o que receberia como resposta era um “sinto muito”.

– Gostaria de poder ter lhe contado – ela disse de repente. – Você foi a pessoa mais difícil de ser deixada.

– Mas não abandonou seu trabalho, não é mesmo? Porque ainda está trabalhando como cirurgiã.

– Sim, estou.

– Como é seu marido?

Nesse momento, ela estremeceu.

– Vai conhecê-lo.

Ótimo. Que alegria!

Diminuindo a velocidade, ela virou à direita em direção a... uma estrada de terra? Mas que droga é essa?

– Para sua informação – ele murmurou –, este carro foi feito para pistas de asfalto, não para percursos assim.

– É o único caminho.

Para onde? Ele se perguntou.

– Você vai ficar me devendo algo muito grande por isso.

– Eu sei. Mas você é o único que pode salvá-la.

Manny piscou os olhos.

– Não disse nada sobre ser “ela”.

– Isso importa?

– Se pensar que não estou entendendo nada do que está acontecendo, tudo importa.

Após percorrerem uns dez metros, começaram a passar por vários atoleiros que eram tão profundos quanto malditos lagos e, enquanto seu Porsche trepidava, sentiu algo arranhando seu estômago e apertou os dentes.

– Que se dane essa paciente, quero um reembolso pelo que está fazendo ao chassi do meu carro.

Jane soltou uma risadinha e isso fez com que o centro de seu peito doesse... mas tinha de cair na real. Os dois nunca estiveram, de fato, juntos. Claro, houve uma atração de sua parte, uma grande atração. E, talvez, um beijo. Mas isso foi tudo.

E agora ela era a Sra. de Outra Pessoa, e também tinha acabado de voltar do maldito mundo dos mortos.

Cristo, que tipo de vida ele tinha? Por outro lado, talvez aquilo fosse um sonho... Isso o animou, pois talvez Glory não tivesse se acidentado também.

– Não me disse o tipo de lesão – disse ele.

– Quebra na coluna vertebral. Entre C6 e C7. Nenhuma sensação abaixo da cintura.

– Droga, Jane... Isso é complicado.

– Agora sabe por que preciso tanto de você.

Mais ou menos cinco minutos mais tarde, aproximaram-se de portões que pareciam ter sido construídos durante as Guerras Púnicas, pelo menos dois séculos antes de Cristo... A coisa parecia estar fixada ali nos moldes de Alice no País das Maravilhas, os elos da corrente estavam enferrujados e quebrados em alguns lugares. E a barra que os atravessava? Aquela porcaria não valia nem o esforço de ser manuseada, não era nada além de um pedaço de arame usado para cerca de gado e que já tinha vivido dias melhores. No entando, a maldita coisa abriu sem problemas, e enquanto entravam, viu a primeira câmera de vídeo.

Ao avançarem a passos lentos, uma névoa estranha veio do nada, a paisagem ficou fora de foco até não conseguir enxergar nada que havia além de trinta centímetros à frente do carro. Cristo, era como se estivessem em um episódio de Scooby-Doo.

E, então, houve um progresso curioso: o próximo portão estava em condições um pouco melhores; o seguinte era ainda mais novo e o quarto parecia ter apenas um ano, no máximo. O último portão estava brilhando e parecia algo saído de Alcatraz: mais de sete metros de altura e avisos de alta voltagem espalhados por toda sua extensão. E aquele muro no qual o portão estava instalado? Não era bem para conter gado... Talvez dinossauros. E podia apostar que os tijolos deviam ter pelo menos meio metro de espessura.

Manny girava a cabeça de um lado a outro à medida que avançavam e começavam a descer por um túnel tão profundo e com uma estrutura tão forte que poderia atravessar por baixo do rio Hudson. Quanto mais desciam, mais a grande questão que o assolava desde a aparição intensificava-se em sua mente: por que forjar a morte? Por que provocar o caos que tinha causado na vida dele e na dos outros que trabalhavam com ela no Hospital São Francisco? Nunca tinha sido uma mulher cruel, mentirosa, não tinha problemas financeiros, nem nada do que fugir.

Agora sabia, mesmo que não tivesse dito uma palavra: Governo dos Estados Unidos.

Aquele cenário, aquela estrutura no sistema de segurança... Um local oculto nos subúrbios de uma cidade suficientemente grande, mas não tão grande quanto Nova York, Los Angeles ou Chicago? Tinha de ser o Governo. Quem mais poderia pagar por isso?

E quem era a mulher a quem trataria?

O túnel terminou em uma típica garagem subterrânea, com pilares e vagas limitadas por faixas amarelas... e, mesmo sendo tão grande, o local estava vazio. Havia apenas duas vans, que não conseguia distinguir muito bem a marca, com vidros escurecidos e um micro-ônibus que também tinha vidros filmados.

Antes mesmo de ela estacionar o Porsche na garagem, uma porta de aço abriu-se e...

Bastou um olhar no cara enorme que saiu dali e a cabeça de Manny explodiu, a dor atrás dos olhos ficou tão intensa que escorregou no banco do carro, os braços caíram e seu rosto contorceu-se de agonia. Jane lhe disse alguma coisa. Uma porta do carro foi aberta. Em seguida, a dele.

A brisa que o atingiu era seca e cheirava vagamente a terra... mas havia algo mais. Colônia. Uma fragrância amadeirada de especiarias que era, ao mesmo tempo, cara e agradável, mas também algo que despertava nele um desejo curioso de sair correndo.

Manny forçou as pálpebras a se abrirem. Sua visão estava muito turva, mas era incrível o que a necessidade obrigava alguém a fazer... E quando o homem a sua frente entrou em foco, viu-se encarando o filho da mãe de cavanhaque que tinha...

Com uma onda de dor, seus olhos reviraram e quase vomitou.

– Precisa liberar as memórias – ouviu Jane dizer.

Houve alguma conversa nesse ponto, a voz de sua antiga colega misturava-se com os tons profundos daquele homem com tatuagens nas têmporas.

– Isso o está matando...

– É arriscado demais...

– Como ele vai operar desse jeito?

Houve um longo silêncio. E, então, de repente, a dor foi retirada como se fosse um véu sendo levantado – toda aquela pressão saiu de dentro dele em um piscar de olhos. Em seu lugar, as lembranças inundaram sua mente.

A paciente de Jane. O Hospital São Francisco. O homem com o cavanhaque e... um coração de seis válvulas.

Manny abriu bem os olhos e encarou aquele rosto cruel.

– Conheço você.

– Tire-o do carro – foi a única resposta do cara de cavanhaque. – Não confio nos meus atos se tocar nele.

Que maravilha de boas-vindas. E havia alguém atrás do desgraçado. Um homem que Manny tinha cem por cento de certeza de que já havia visto antes... Contudo, deve ter sido algo muito rápido, pois não conseguia lembrar-se de seu nome ou de onde se conheceram.

– Vamos – Jane disse.

Sim. Grande ideia. Naquele momento, precisava de alguma coisa para se concentrar que não tivesse nada relacionado com aquela situação de não saber o que dizer.

Enquanto o cérebro de Manny lutava para processar o que estava acontecendo, percebeu que ao menos seus pés e pernas seguiam o programa. Depois que Jane o ajudou a sair do carro e a ficar em pé, começou a segui-la e ao cara de cavanhaque pela instalação que era tão insípida e limpa quanto um hospital: corredores sóbrios, lâmpadas fluorescentes no teto, tudo cheirava a produtos de limpeza.

Havia também câmeras de segurança que moviam-se em intervalos regulares, como se o edifício fosse um monstro com muitos olhos.

Enquanto caminhavam, sabia que não devia fazer qualquer pergunta. Bem, sabia disso e de que sua cabeça estava tão confusa que tinha a certeza de que se mover era o máximo de suas habilidades naquele momento. Em seguida, percebeu o cara do cavanhaque e seu olhar mortal... não era exatamente uma abertura para iniciar um bate-papo.

Portas. Passaram por muitas portas, todas as quais foram fechadas em seguida e, sem dúvida, trancadas.

Palavrinhas interessantes como local secreto e segurança nacional brincaram em seu crânio, e isso ajudou muito, fazendo-o acreditar que talvez pudesse perdoar Jane por desaparecer da vida dele... um dia.

Quando Jane parou diante de uma porta dupla, suas mãos brincaram com as lapelas do jaleco branco e, em seguida, com o estetoscópio no bolso. E essa reação só fez com que tivesse a sensação de que tinha uma arma na cabeça: na sala de cirurgia, nos incontáveis problemas graves que se passaram no departamento de traumatologia, ela sempre mantivera a calma. Era sua marca registrada.

Mas aquilo era pessoal, ele pensou. De alguma maneira, seja lá o que estivesse do outro lado daquelas portas, estava relacionado a alguém próximo a ela.

– Tenho bons equipamentos aqui – ela disse. – Mas não tudo. Não tenho ressonância magnética. Apenas tomografias e raios-X. Contudo, a sala de cirurgia é adequada e não só posso ajudar como também tenho uma excelente enfermeira.

Manny respirou fundo, muito fundo, recompondo-se. Com toda força de vontade, calou todas as perguntas, a persistente indignação em sua cabeça e a estranheza daquela viagem ao mundo da espionagem ao estilo 007.

Primeiro item em sua lista de coisas a fazer? Despistar o público revoltado dali.

Olhou por cima do ombro, em direção ao cara de cavanhaque.

– Vai precisar sair daqui, amigo. Quero você fora, no corredor.

A reação que teve depois disso foi... simplesmente fantástica, principalmente se fosse um dentista: o desgraçado exibiu um par de caninos tão longos quanto seu braço e rosnou, em alto e bom som, como um cachorro.

– Certo – disse Jane, posicionando-se entre eles. – Tudo bem. Vishous vai esperar lá fora.

Vishous? Será que tinha ouvido direito?

Por outro lado, a mãe do menino devia ser louca de pedra, considerando o pequeno espetáculo odontológico. Não importa. Tinha trabalho a fazer e, talvez, o filho da mãe mastigasse couro duro ou algo assim.

Entrando na sala de exames ele...

Oh... santo Deus.

Ah... meu Deus do céu.

A paciente sobre a mesa estava deitada como águas tranquilas... era provavelmente a coisa mais linda que ele já tinha visto: o cabelo era muito preto e trançado em uma corda grossa que pendia livre ao lado de sua cabeça. A pele era de um marrom dourado, como se ela fosse descendente de italianos e tivesse sido exposta ao sol recentemente. Olhos... seus olhos eram como diamantes, muito claros e brilhantes ao mesmo tempo, com apenas uma borda escura ao redor da íris.

– Manny?

A voz de Jane estava bem atrás dele, mas sentiu como se estivesse a quilômetros de distância. Na verdade, o mundo inteiro estava em outro lugar, nada existia além do olhar de sua paciente que o encontrou do alto daquela mesa com a cabeça imobilizada.

Finalmente havia acontecido, pensou. Durante a vida inteira perguntara-se por que nunca havia se apaixonado e agora sabia a resposta. Estava esperando aquele momento, aquela mulher, aquela hora.

Esta mulher é minha, pensou.

E mesmo sabendo que aquilo não fazia sentido algum, a convicção era tão forte que não conseguia questionar.

– Você é o curandeiro? – ela disse em uma voz baixa que parou seu coração. – Você está aqui... por mim?

Suas palavras tinham um sotaque forte – maravilhoso por sinal –, e havia também um tom um pouco surpreso.

– Sim. Sou eu. – Arrancou o casaco do terno e jogou-o em um canto, sem dar a mínima importância para onde havia caído. – Estou aqui por você.

Quando se aproximou, lágrimas deslizaram de seus olhos cobertos de gelo.

– Minhas pernas... sinto como se estivesse as movimentando, mas acho que não consigo.

– Doem?

– Sim.

Dor fantasma. Não era uma surpresa.

Manny deteve-se ao lado dela e olhou para seu corpo, que estava coberto com um lençol. Era alta. Pelo menos um metro e oitenta. E era constituída com uma força elegante. Era uma guerreira, pensou, observando a força de seus braços. Uma lutadora.

Deus, a perda da mobilidade em alguém como ela tirava-lhe o fôlego. Por outro lado, mesmo que se tratasse de alguém viciado em televisão, a vida em uma cadeira de rodas seria terrível; mas, para alguém como ela, seria uma sentença de morte.

Manny aproximou-se e pegou a mão dela... No instante em que fez contato, o corpo dele como um todo estremeceu, como se ela fosse a tomada do seu plugue interior.

– Vou cuidar de você – disse enquanto olhava diretamente em seus olhos. – Quero que confie em mim.

Ela engoliu a saliva quando uma lágrima cristalina deslizou de seus olhos. Por instinto, ele estendeu a mão e a deteve com a ponta do dedo...

O rosnado que infiltrou-se pela porta era uma ameaça, uma contagem regressiva para se afastar, mas não deu importância àquilo. Quando olhou para o cara de barbicha, sentiu como se estivesse rosnando de volta para o filho da mãe. O que, mais uma vez, não fazia sentido algum.

Ainda segurando a mão de sua paciente, exclamou para Jane:

– Tire esse bastardo miserável da minha sala de cirurgia. E quero ver os malditos exames e radiografias. Agora.

Ele ia salvar aquela mulher, mesmo se aquilo o matasse.

Quando os olhos do Sr. Cavanhaque brilharam em direção a ele com puro ódio, Manny pensou: “Bem, esse é o máximo que o cara pode fazer...”.


CAPÍTULO 6

Qhuinn saiu sozinho em Caldwell, pela primeira vez na vida.

Quando pensou melhor sobre isso, concluiu que era quase uma impossibilidade estatística. Passou tantas noites lutando, bebendo e fazendo sexo dentro e ao redor dos clubes noturnos do centro da cidade que pelo menos um ou dois voos tinham de ter sido feitos sozinho. Mas não. Quando entrou no Iron Mask, estava sem a companhia de seus dois amigos pela primeira vez.

De qualquer forma, as coisas eram diferentes agora. Os tempos tinham mudado. As pessoas também.

John Matthew estava agora muito feliz casado; então, quando tinha uma folga, como naquela noite, ficava em casa com sua shellan, Xhex, fazendo a cama praticar uma série de exercícios de resistência. Sim, claro, Qhuinn era um ahstrux nohtrum e tudo mais, mas Xhex era uma symphato assassina totalmente capaz de cuidar de seu macho, e da Adaga Negra.

O complexo da Irmandade era uma fortaleza que nem mesmo uma equipe da SWAT poderia invadir. Assim, ele e John chegaram a um acordo... e deixaram isso em segredo.

Quanto a Blay... Qhuinn não ia pensar sobre seu melhor amigo. Não. De jeito nenhum.

Observando o interior do clube, iniciou sua máquina de seleção interna e começou a abrir caminho por meio das mulheres, homens e casais. Havia uma e apenas uma razão para ter ido até ali, e era a mesma que havia levado os outros góticos àquele local.

Não era um lugar para se procurar um relacionamento, sequer uma companhia. Tratava-se apenas de movimentar-se entrando e saindo e, quando tudo estivesse acabado, era o caso de dizer “Obrigado, moça” – ou “cara”, dependendo de seu humor –, “Estou dando o fora”. Porque ele ia precisar de outra pessoa. Ou outras pessoas.

Não investiria apenas uma vez naquela noite; sentia como se estivesse arrancando a própria pele, seu corpo latejava com força, necessitando de alívio. Cara, sempre gostou de transar, mas nos últimos dias sua libido tinha aumentado até crescer como um monstro.

Será que Blay não era mais seu melhor amigo?

Qhuinn fez uma pausa e olhou rapidamente uma vitrine antes de inclinar a cabeça sobre ela: caramba, não tinha mais cinco anos. Machos adultos não têm melhores amigos. Não precisam deles, especialmente se o macho em questão estivesse transando com outra pessoa. O dia inteiro. Todos os dias.

Qhuinn andou até o bar.

– Tequila. Dose dupla. E traga a melhor que tiver.

Os olhos da mulher aqueceram-se por trás do pesado delineador e dos cílios postiços.

– Já vai pagar a comanda?

– Sim – e considerando a maneira como ela escorregou a mão sobre o estômago achatado e desceu ainda mais pelo quadril, ele poderia ter pedido, com certeza, um pedaço dela também.

Quando ele estendeu o cartão de crédito, ela fez um movimento amplo com os seios para pegar a maldita coisa, inclinando-se de tal forma que poderia muito bem pegar algo no chão com os mamilos.

– Volto já, já com sua bebida.

Que surpresa.

– Ótimo.

Estava perdendo tempo ao sair rebolando como fez: não era nada disso que procurava naquela noite... não chegava nem perto. Sexo errado, para começar. E não ia investir em nada que tivesse cabelos escuros. Para dizer a verdade, não conseguia acreditar no que queria.

Tinha algumas limitações por ser daltônico, mas quando vestia apenas preto e trabalhava à noite, na maioria das vezes, isso não era grande coisa. Além disso, seus olhos desiguais eram tão perspicazes e sensíveis às variações de cinza que realmente percebias as “cores” – era tudo uma questão de gradação. Por exemplo, sabia quem eram as pessoas loiras no clube. Sabia a diferença entre as morenas e as de cabelos negros. E, sim, poderia enganar-se e interpretar mal se algum idiota tivesse feito uma tintura estranha, mas, mesmo assim, poderia dizer que havia algo estranho, porque o tom de pele nunca combinava direito com a cor artificial do cabelo.

– Aqui está – disse a bartender.

Qhuinn estendeu a mão, pegou o copo, bebeu a tequila e voltou a colocá-lo vazio sobre o balcão do bar.

– Vamos tentar isso mais algumas vezes.

– É pra já. – Exibiu seu par de seios novamente, sem dúvida com a esperança de que ele os agarrasse a qualquer momento. – Você é o tipo de cliente que gosto. Porque é óbvio que consegue lidar com uma boa bebida.

Uh-hum. Claro. Como se a habilidade de ingerir o equivalente a quatro doses de álcool de uma vez só fosse grande coisa. Deus, a ideia de que alguém, com esse sistema de valores, tivesse permissão para votar fazia com que ele desejasse encarar a vitrine outra vez.

Humanos eram patéticos.

Contudo, quando olhou para trás para observar a multidão, pensou que baixar a bola seria uma boa. Sentia-se patético sozinho naquela noite, especialmente quando viu dois homens em um canto, os dois separados apenas pelas roupas de couro que vestiam. Naturalmente, um deles era loiro. Assim como seu primo. Então, era claro que imagens hipotéticas de Blay e Saxton começaram a brincar em seu campo de polo interior, marcando seu gramado com pegadas e bosta de cavalo.

Só que não eram hipotéticos, mas reais: no final de todas as noites, quando as pessoas à mesa da mansão da Irmandade começavam a se dispersar depois da Última Refeição e a sair para resolver seus assuntos particulares, Blay e Saxton dirigiam-se discretamente para a grande escadaria e desapareciam no corredor do andar de cima, onde seus quartos ficavam.

Nunca tinham se dado as mãos, nunca tinham se beijado na frente de ninguém, e também não havia olhares de reprovação. Por outro lado, Blay era um cavalheiro, e Saxton era uma vagabunda elegante inserida de alguma maneira em um grande espetáculo.

Seu primo era uma verdadeira prostituta...

Não, não é, uma pequena voz soou. Só o odeia porque está de caso com seu garoto.

– Ele não é meu garoto.

– O que disse?

Qhuinn lançou um olhar ao espectador... e, em seguida, reassumiu seu ar durão. Bingo, ele pensou.

Ao lado dele estava um macho humano, mais ou menos um metro e oitenta com um cabelo fabuloso, rosto bonito e lábios muito agradáveis. As roupas não eram totalmente góticas, mas tinha algumas correntes na cintura e duas argolas em uma das orelhas. Mas foi a cor do cabelo que realmente fez a diferença.

– Estava falando sozinho – Qhuinn murmurou.

– Ah. Faço muito isso. – O sorriso foi breve e, em seguida, o cara voltou a cuidar de sua...

– O que está bebendo? – Qhuinn perguntou.

Um copo já na metade foi erguido.

– Vodka e tônica. Não suporto essa coisa de adocicar a bebida.

– Nem eu. Vou de tequila. Pura.

– Patrón?

– Nunca. Gosto da Herradura.

– Ah – o cara virou-se e olhou para frente em direção à multidão. – Gosta das coisas como são.

– Sim.

Qhuinn queria perguntar se o Sr. Vodka e Tônica estava observando os caras ou as garotas, mas permaneceu em silêncio. Cara, aquele cabelo era incrível. Grosso. Enrolado nas pontas.

– Está procurando por alguém em particular? – Qhuinn disse em voz baixa.

– Talvez. E você?

– Com certeza.

O cara riu.

– Tem muita mulher bonita aqui. Pode escolher.

Mas. Que. Droga. Que sorte a dele: um hétero. Por outro lado, talvez pudessem dividir alguma coisa e começar por aí.

O cara inclinou-se e ofereceu a palma da mão.

– Eu sou...

Quando os dois entreolharam-se completamente, o cara deixou a sentença à deriva, mas não tinha importância. Qhuinn não dava a mínima para o nome dele.

– Seus olhos têm cores diferentes? – o cara perguntou suavemente.

– Sim.

– Isso é muito... legal.

Bem, sim. Quando não se é um vampiro nascido na glymera. Se esse fosse o caso, seria considerado um defeito físico que significava ser geneticamente ruim e, portanto, uma vergonha para sua linhagem e absolutamente inabilitado para o acasalamento.

– Obrigado – Qhuinn disse. – Qual é a cor dos seus?

– Não pode dizer?

Qhuinn deu um tapinha sobre a lágrima tatuada perto do olho.

– Daltônico.

– Ah. Os meus são azuis.

– E você é ruivo, certo?

– Como sabe disso?

– Pelo seu tom de pele. Além disso, você é meio pálido e tem sardas.

– Isso é incrível – o cara olhou ao redor. – Está escuro aqui... não imaginava que conseguiria enxergar.

– Acho que posso – e acrescentou mentalmente: e que tal se eu lhe mostrar alguns dos meus outros truques.

O novo amigo de Qhuinn sorriu um pouco e voltou a observar a multidão. Depois de um minuto, disse:

– Por que está olhando para mim assim?

Porque quero transar com você.

– Você me lembra alguém.

– Quem?

– Alguém que perdi.

– Oh, droga, sinto muito.

– Tudo bem. A culpa é minha.

Pequena pausa.

– Então, você é gay, certo?

– Não.

O cara deu risada.

– Desculpe. Apenas imaginei que... Bom, acho que era um bom amigo.

Nenhum comentário.

– Vou encher o copo outra vez. Posso fazer isso para você também?

– Obrigado, cara.

Qhuinn virou-se e sinalizou para a atendente. Enquanto esperava ela se aproximar rebolando, planejou sua abordagem. Primeiro, um pouco mais de álcool. Em seguida, adicionaria algumas fêmeas à mistura. O terceiro passo seria entrar em um dos banheiros e transar com a(s) garota(s).

Então... Mais alguns olhares. De preferência quando um deles ou os dois estivessem dentro de uma mulher. Pois por mais que o ruivo de cabelo espetacular parecesse estar a fim das garotas, o filho da mãe tinha sentido alguma coisa quando os dois se entreolharam – e hétero é um termo relativo.

Assim como virgem.

Isso fazia com que os dois se enquadrassem nesses termos, não? Afinal, Qhuinn nunca, jamais, havia ficado com alguém de cabelo vermelho.

Mas aquela noite seria uma exceção.


CONTINUA

CAPÍTULO 4

No centro de Caldwell havia vários prédios altos, cheios de janelas espelhadas, mas nenhum era como o Commodore. Com trinta andares, estava entre os mais altos daquela floresta de concreto e os sessenta apartamentos que abrigava eram totalmente fantásticos, ao estilo de grandes empresários como Donald Trump, revestido de mármore e detalhes cromados; tudo era muito bem projetado.

No vigésimo sétimo andar, Jane entrou no apartamento de Manny, procurando por sinais de vida, e o que encontrou foi... nada. Literalmente. A casa do cara aproximava-se mais de uma pista de dança do que uma pista de obstáculos: a mobília era composta de três objetos na sala e uma cama enorme na suíte principal. Ponto. Bem, e algumas banquetas de couro ao redor do balcão da cozinha. Quanto às paredes? A única coisa que havia pendurado ali era uma TV de plasma do tamanho de um outdoor. Não havia tapetes sobre os pisos de madeira, apenas mochilas de academia... mais mochilas de academia... e calçados esportivos.

Nada disso indicava que era desorganizado; não tinha coisas suficientes para ser considerado assim.

Com um pânico crescente, entrou no quarto dele e viu mais ou menos meia dúzia de uniformes cirúrgicos deixados em pilhas no chão, como poças d’água após uma tempestade e... nada mais.

Mas a porta do armário estava aberta e ela entrou...

– Meu Deus... mas que droga.

Havia um conjunto de três malas alinhado no chão, onde deveria estar uma pequena, uma média e outra grande... mas a do meio não estava lá. Então, concluiu o que estava acontecendo ao considerar os espaços vazios que havia entre os cabides de calças e camisas: estava fora, em uma viagem. Talvez durante todo o fim de semana.

Sem muita esperança, discou para o sistema de atendimento do hospital e chamou-o outra vez...

Notou que estava recebendo outra chamada e amaldiçoou quando observou o número.

Respirando fundo, respondeu:

– Oi, V.

– Nada?

– Nada no hospital ou no apartamento. – Um rosnado sutil chegou até ela pelo telefone e ampliou a angústia da busca que ainda não tinha dado em nada. – Também procurei na academia, vindo para cá.

– Invadi o sistema do Hospital São Francisco e consegui os horários dele.

– Onde ele está?

– Tudo o que diz lá é que Goldberg está de plantão, certo? Olha, o sol se pôs. Vou sair daqui em, mais ou menos...

– Não, não... fique com Payne. Ehlena é ótima, mas acho que deveria ficar com ela.

Houve uma grande pausa, como se ele soubesse que estava sendo despistado.

– O que vai fazer agora?

Apertou o telefone e perguntou-se a quem deveria recorrer. Deus? À mãe dele?

– Não tenho certeza. Mas liguei para ele. Duas vezes.

– Ligue quando encontrá-lo. Vou pegar vocês.

– Posso levá-lo até em casa...

– Não vou machucá-lo, Jane. Não tenho a menor intenção de deixá-lo em pedaços.

Sim, mas considerando o tom de voz frio, teve de se perguntar sobre aqueles planos bem intencionados de vampiros cheios de autocontrole e blá, blá, blá... Acreditava que Manny viveria para tratar da irmã gêmea de V. Mas, e depois? Tinha suas reservas... especialmente se as coisas dessem errado na sala de cirurgia.

– Vou esperar aqui mais um pouco; talvez ele apareça, ou ligue. Se isso não acontecer, penso em outra coisa.

No longo silêncio, praticamente conseguia sentir uma corrente de ar frio chegando através do celular. Seu companheiro fazia muitas coisas direito: lutar, fazer amor, lidar com qualquer coisa relacionada à informática. Ser forçado a ficar parado? Não era bem uma de suas competências inatas. Na verdade, era garantia de deixá-lo enlouquecido.

Ainda assim, o fato de não confiar nela fez com que se sentisse distante dele.

– Fique com sua irmã, Vishous – disse em um tom de voz equilibrado. – Manterei contato.

Silêncio.

– Vishous. Confie em mim e vá ficar ao lado dela.

Ele não disse coisa alguma depois disso. Apenas desligou.

Quando pressionou a tecla end do telefone, soltou um palavrão.

Uma fração de segundo depois estava discando outra vez e no instante em que ouviu uma voz profunda atender, teve de enxugar uma lágrima que, se pensasse em toda sua natureza translúcida, era muito, muito real.

– Butch – ela resmungou –, preciso de sua ajuda.

Quando o pouco que restava do pôr do sol desapareceu e a noite bateu seu cartão de ponto, assumindo o turno seguinte, o carro de Manny deveria ter ido para casa. Deveria ter sido levado por si só direto para Caldwell.

Ao invés disso, acabou chegando ao extremo sul da cidade, onde as árvores eram grandes e as extensões de grama superavam as de asfalto em até dez vezes mais.

Fazia sentido. Os cemitérios deveriam ter longos trechos de terra, pois não se podia enterrar um caixão no concreto. Bem, até poderia... se se tratasse de um mausoléu.

O cemitério Bosque dos Pinheiros ficava aberto até as dez da noite, seus grandes portões de ferro permaneciam escancarados e seus inúmeros postes de iluminação forjados em ferro emitiam uma luz amarelo-manteiga ao longo do labirinto de ruas. Quando entrou, foi para a direita, os faróis do carro iluminando o local ao longo das lápides e do gramado.

Em última análise, o local para onde se dirigia não significava nada: não havia um corpo embaixo da lápide de granito que ia visitar – não restara nada para ser enterrado. Nada de cinzas para colocar em uma vasilha, também... ou, pelo menos, nada que se pudesse separar com certeza de dentro de um Audi que havia pegado fogo.

Depois de dar, mais ou menos, um quilômetro de voltas, tirou o pé do acelerador e deixou o carro deslizar até estacionar. Até onde conseguia ver, era o único no cemitério, mas isso não era problema para ele. Não havia razão para se ter uma audiência.

Quando saiu do carro, o ar frio não ajudou a limpar sua mente, mas deu algo para seus pulmões fazerem quando inalou profundamente e caminhou sobre a grama áspera da primavera. Teve o cuidado de não pisar em nenhuma tumba enquanto avançava... claro, os mortos não saberiam que estava andando acima deles, mas parecia uma coisa respeitosa a fazer.

O túmulo de Jane estava à frente, e desacelerou o passo quando aproximou-se daquilo que não havia sido deixado por ela, por assim dizer.

Ao longe, o apito de um trem cortou o silêncio... e o som vazio e lúgubre era um clichê tão grande que se sentiu em um filme o qual nunca assistiria sentado em casa, muito menos pagaria para ver em um cinema.

– Droga, Jane.

Inclinando-se, passou os dedos sobre as marcas irregulares da lápide. Foi ele quem tinha escolhido a pedra escura de azeviche, pois ela não teria gostado nem um pouco de algo pastel ou desbotado. E a inscrição também era simples e descomplicada, apenas seu nome, datas e uma frase na parte inferior: DESCANSE EM PAZ.

Sim. Deu a si mesmo nota dez em originalidade por isso.

Lembrava-se exatamente onde estava quando soube que ela tinha morrido: no hospital, claro. Era final de um longo plantão que tinha começado com o joelho de um jogador de hóquei e terminado com a reconstrução espetacular de um ombro, isso porque o viciado decidiu tentar voar.

Saiu da sala de cirurgia e encontrou Goldberg esperando próximo às pias de higienização. Manny parou no meio do processo de retirar a máscara cirúrgica ao dar apenas uma olhada no rosto pálido de seu colega. Com a coisa pendurada em seu queixo como um babador, exigiu saber o que diabos havia acontecido de errado – contando o tempo todo que se tratava de um acidente com quarenta carros engavetados na estrada ou um acidente de avião ou um hotel incendiado... algo relacionado a uma tragédia que englobasse toda uma comunidade.

Só que quando olhou sobre o ombro do cara e viu cinco enfermeiras e três outros médicos... Todos com a mesma aparência de Goldberg... E nenhum deles correndo para chamar outros funcionários para assumirem plantão ou preparando as salas de cirurgia.

Certo. Tinha acontecido algo que englobava toda uma comunidade. A comunidade deles.

– Quem? – perguntou.

Goldberg olhou para trás, em direção a sua tropa de apoio e foi então que Manny entendeu. E mesmo com as entranhas congeladas dentro dele, agarrou-se a uma esperança irracional de que o nome que estava prestes a sair da boca de seu colega cirurgião não fosse...

– Jane. Acidente de carro.

Manny não perdeu tempo.

– Quando ela deu entrada?

– Não chegou a dar entrada.

Com isso, Manny não disse nada. Terminou de tirar a máscara de seu rosto, amassou-a e descartou-a na lata de lixo mais próxima.

Quando foi passando por eles, Goldberg abriu a boca outra vez.

– Nem uma palavra – Manny ladrou. – Nem. Uma. Palavra.

Os outros funcionários começaram a tropeçar entre eles mesmos para sair do caminho, dividindo o grupo com a precisão de um pedaço de tecido cortado ao meio.

Voltando ao presente, não conseguia se lembrar onde tinha ido ou o que tinha feito depois disso... não importava quantas vezes voltasse sua mente àquela noite obscura, esses momentos eram como um buraco negro. Contudo, em dado momento, percebeu que tinha chegado em seu apartamento, pois acordou ali dois dias depois e viu que ainda estava com o uniforme cirúrgico respingado com o sangue do último paciente que havia operado.

O mais irritante de tudo era o fato de que Jane tinha salvado tantas pessoas vítimas de acidentes de carro. A ideia de ter sido levada dessa maneira levava-o a pensar que o Ceifeiro da Morte veio atrás dela para cobrar todas as almas que tinha afastado do alcance de suas garras mortais.

O som de outro apito de trem o fez querer gritar.

O trem e aquele pager apitando.

Hannah Whit. Outra vez?

Mas que diabos...

Manny franziu o cenho e olhou para a lápide. Salvo engano, a irmã mais nova de Jane chamava-se Hannah. Whit. Whitcomb?

Só que ela tinha morrido muito cedo.

Não tinha?

Loucura. Total.

Deus, deveria ter trazido seus tênis para essa aventura, Jane pensou enquanto andava sem rumo pelo apartamento de Manny. Outra vez. Teria deixado o apartamento se tivesse uma ideia melhor de onde ir, mas seu cérebro, mesmo sendo tão astuto, não conseguia enxergar outra opção...

Seu telefone tocando não era exatamente algo bom. Não queria dizer a Vishous que quarenta e cinco minutos depois não tinha nada de novo para relatar.

Pegou o celular.

– Oh... Deus.

Aquele número. Aqueles dez dígitos que sempre estiveram registrados na discagem rápida de todos os telefones que teve antes daquele. Manny.

Quando pressionou a tecla send, sua mente estava em branco e seus olhos cheios de lágrimas. Seu velho e querido amigo e colega de profissão...

– Alô? – ele disse. – Senhorita Whit?

Ao fundo, ouviu o soar fraco de um apito de trem.

– Alô? Hannah? – Aquele tom... era exatamente o mesmo de anos atrás: baixo, impositivo. – Tem alguém aí?

Aquele apito baixo soou outra vez.

Jesus Cristo... ela pensou. Sabia onde ele estava.

Jane desligou e saiu rápido do apartamento, do centro da cidade, atravessando a toda velocidade pelos subúrbios.

Viajando em um borrão à velocidade da luz, suas moléculas atravessaram a noite em uma corrida alucinante que percorreu quilômetros como se fossem centímetros.

O cemitério Bosque dos Pinheiros era o tipo de lugar que precisava de um mapa para se localizar nele, mas quando se é uma forma etérea no ar, pode-se percorrer uma centena de acres em apenas um piscar de olhos.

Quando tomou forma na escuridão perto de sua sepultura, respirou fundo e quase chorou.

Lá estava ele, em carne e osso. Seu chefe. Seu colega. O único a quem deixou para trás. E ele estava em pé atrás de uma lápide negra na qual havia seu nome esculpido.

Certo, agora sabia que tinha tomado a decisão certa quando não havia ido ao funeral. O mais perto que chegou disso foi lendo a notícia no Caldwell Courier Journal – e a imagem de todos aqueles cirurgiões, funcionários do hospital e pacientes emocionou-a demais. Mas aquilo era muito pior.

Manny parecia exatamente como ela mesma se sentia: arruinado por dentro.

Jesus, aquela loção pós-barba ainda cheirava bem... e apesar de ter perdido um pouco de peso, era um pedaço de mal caminho, com aquele cabelo escuro e aquele rosto rígido. Seu terno era de risca de giz e feito sob medida... mas havia sujeira em volta da bainha da calça muito bem passada. E seus sapatos estavam sujos também, fazendo com que ela se perguntasse onde diabos ele estivera. Com certeza não tinha ficado assim por causa da sepultura; depois de um ano, o solo ainda estava plano e coberto com grama bem aparada...

Oh, espere. O túmulo devia estar assim desde o primeiro dia. Ela não tinha deixado nada para ser enterrado.

Quando os dedos dele descansaram sobre a pedra, soube que foi ele quem tinha escolhido a sepultura. Ninguém mais teria tido o bom-senso de fazer exatamente o que ela gostaria que fizesse. Nada de muitos detalhes rococós ou dizeres complicados; curto, doce, no ponto.

Jane limpou a garganta.

– Manny...

Ele ergueu a cabeça, mas não olhou para ela... como se tivesse ouvido a voz dela apenas em sua mente.

Assumindo uma forma totalmente corpórea, ela falou mais alto.

– Manny.

Sob qualquer outra circunstância, a reação teria sido uma profusão de risos. Mas ele se virou, em seguida, gritou, tropeçou na lápide e caiu sentado no chão.

– Mas que... diabos... você está fazendo aqui? – ele engasgou. A expressão em seu rosto começou com um sentimento de horror, mas rapidamente mudou para a descrença absoluta.

– Sinto muito.

Era totalmente ridículo, mas foi tudo o que saiu de sua boca.

E parecia mais do que poderia suportar. Encontrar aqueles olhos castanhos fez com que, de repente, ela não tivesse nada a dizer.

Manny ergueu-se com um salto, e seu olhar escuro subia e descia observando o corpo dela.

E, por fim, subiu... fixando-se em seu rosto.

Foi quando a raiva veio. E também uma dor de cabeça, evidentemente, considerando a maneira como ele estremeceu e esfregou as têmporas.

– É algum tipo de piada?

– Não – ela desejava que fosse. – Sinto muito mesmo.

O olhar severo e cruel era dolorosamente familiar, e que ironia sentir-se nostálgica com um olhar ameaçador como aquele.

– Você sente muito.

– Manny, eu...

– Eu a enterrei. E você sente muito? Que porcaria é essa?

– Manny, não tenho tempo para explicar. Preciso de você.

Ele a encarou por um longo momento.

– Você aparece depois de um ano morta e diz que precisa de mim?

A realidade de quanto tempo havia se passado pesou sobre ela. Acima de tudo.

– Manny... não sabia o que lhe dizer.

– Oh, mesmo? Que tal: ah, puxa, por falar nisso, estou viva.

Ele a encarou. Apenas a encarou.

Então, com uma voz rouca, disse:

– Você faz alguma ideia do que foi perdê-la? – passou rapidamente a mão sobre os olhos. – Tem noção?

A dor no peito dela fez com que a respiração ficasse difícil.

– Sim. Porque perdi você... perdi minha vida com você e no hospital.

Manny começou a andar, aproximando-se e afastando-se da lápide. E, embora ela quisesse, sabia que não devia aproximar-se demais.

– Manny... se houvesse alguma maneira de voltar para você, eu voltaria.

– Você voltou. Uma vez. Pensei que era um sonho, mas não. Não era.

– Não.

– Como entrou no meu apartamento?

– Apenas entrei.

Ele se deteve e olhou para ela, a lápide ficou entre eles.

– Por que fez isso, Jane? Por que forjou sua morte?

Bem, na verdade, não havia forjado.

– Não tenho tempo para explicar agora.

– Então, que diabos está fazendo aqui. Que tal explicar isso?

Ela clareou a garganta e disse:

– Estou com uma paciente cujo tratamento exige além da minha capacidade e quero que dê uma olhada. Não posso dizer para onde vou levá-lo, não posso lhe dar muitos detalhes e sei que isso não é justo... mas eu preciso de você – Queria arrancar os cabelos. Cair aos prantos. Abraçá-lo. Mas continuou, por que era isso o que tinha de fazer. – Estou procurando por você há mais de uma hora, então, estou atrasada. Sei que está chateado e confuso e não o culpo. Mas fique com raiva de mim mais tarde... Apenas venha comigo agora. Por favor.

Tudo o que pôde fazer foi esperar. Manny não se convencia por alguém falar demais, não conseguiria persuadi-lo assim. Escolheria ir... ou não.

E, infelizmente, se fosse a segunda opção, ela teria de chamar os Irmãos. Por mais que amasse e sentisse falta de seu antigo chefe, Vishous era seu homem e se sentiria uma maldita se deixasse alguma coisa acontecer com a irmã dele.

De uma forma ou de outra, Manny operaria alguém naquela noite.


CAPÍTULO 5

Butch O’Neal não era o tipo de cara que deixava uma dama em perigo.

Era alguém à moda antiga... o policial... o devoto, o católico praticante que havia nele. Dito isso, ao receber a ligação da amável e talentosa Dra. Jane Whitcomb, o cavalheirismo não seguiu o instinto impulsivo. Nem um pouco.

Ao colocar o pé para fora do Buraco e correr ao longo do túnel em direção ao centro de treinamento da Irmandade, seus interesses e os dela estavam totalmente alinhados, mesmo sem se levar em conta toda a questão de “ser um cavalheiro”: os dois temiam que V. perdesse o controle outra vez.

Já exibia todos os sinais: tudo o que tinha de fazer era olhar para ele e ver que a tampa da panela de pressão estava trancada com força sobre todo aquele calor e confusão. O que aconteceria com toda aquela pressão? Teria de encontrar uma vazão de alguma maneira e, no passado, isso aconteceu das piores maneiras possíveis.

Saindo da porta oculta e emergindo no escritório, Butch virou à direita e desceu ao longo do corredor que levava às instalações médicas. O sopro sutil de tabaco turco no ar disse-lhe exatamente onde encontrar seu alvo, não que houvesse alguma dúvida.

Próximo à porta fechada da sala de exames, ajeitou os punhos da camisa e ergueu o cinto. A batida na porta foi suave. Já o batimento cardíaco estava forte.

Vishous não respondeu com um “entre”. Ao invés disso, o Irmão saiu e fechou a porta atrás de si.

Caramba, ele parecia estar mal. E suas mãos tremiam ligeiramente quando pegou um de seus cigarros para preparar. Enquanto lambia a coisa para selá-la, Butch enfiou a mão no bolso para oferecer o isqueiro, acendendo a chama e erguendo-a à frente. Quando seu melhor amigo inclinou-se para o brilho laranja, reconheceu cada detalhe daquele rosto cruel e impassível. Jane estava absolutamente certa. O pobre coitado estava sobrecarregado e segurava tudo aquilo.

Vishous inalou profundamente e, então, recostou-se contra a parede de concreto, os olhos perspicazes fixos à frente, as botas de combate plantadas solidamente no chão. Em determinado momento, murmurou:

– Não vai perguntar como estou?

Butch inclinou-se da mesma maneira, aproximando-se bem de seu amigo.

– Não precisa.

– Anda lendo mentes?

– Sim. Esse sou eu.

V. inclinou-se para o lado e bateu as cinzas no lixo.

– Então, pode me dizer no que estou pensando, certo?

– Tem certeza que quer que eu solte um monte de palavrões tão perto de sua irmã? – Quando isso produziu uma risada curta, Butch olhou para o perfil de V. As tatuagens ao redor do olho do cara estavam especialmente sinistras, se considerasse as marcas de preocupação que o cercavam, como se fossem nuvens em um inverno nuclear.

– Não quer que eu faça isso em voz alta, V. – disse suavemente.

– Ah. Faça uma tentativa.

Isso significava que V. precisava conversar, mas, considerando a situação, não daria certo forçar coisa nenhuma ali: o macho sempre “finalizava” as conversas, mas, pelo menos, estava indo melhor do que tinha ido... antes? Sim, sequer quebrou uma porta nem nada.

– Ela pediu para que cuide dela se isso não der certo, não foi? – Butch disse, pronunciando o que mais temia. – E não estamos falando de cuidados paliativos de enfermagem.

A resposta de V. foi soltar uma respiração que durou mais ou menos uns quinze minutos depois do infinito.

– O que vai fazer? – perguntou Butch, mesmo sabendo a resposta.

– Não vou hesitar. – O complemento da resposta “mesmo que isso me mate” ficou subentendido.

Maldita vida. Às vezes, as situações pelas quais as pessoas passavam eram cruéis demais.

Butch fechou os olhos e deixou a cabeça cair para trás, contra a parede. A família era tudo para os vampiros. Sua companheira, os Irmãos com quem lutava, seu sangue... era todo o seu mundo. E, segundo essa teoria, ele também sofria junto com V. e Jane e o resto da Irmandade.

– Com sorte, não chegará a fazer isso – Butch olhou para a porta fechada. – A doutora Jane vai encontrar o cara. Ela é como um cão farejador...

– Sabe o que me ocorreu há uns dez minutos?

– O quê?

– Mesmo que não fosse mais dia, ela gostaria de continuar sozinha para encontrá-lo.

Quando o aroma de vinculação do macho exalou, Butch pensou: “Certo, cara. Jane e o cirurgião conviveram juntos durante anos, então, se há algum tipo de persuasão a ser feito, ela terá mais oportunidades sozinha... isso concluindo que ela dará um jeito na coisa toda de voltar dos mortos. Além disso, V. era um vampiro. Caramba. Será que alguém precisava adicionar mais alguma dificuldade nessa confusão toda?”.

Assim, considerando tudo, seria ótimo se o cirurgião tivesse mais de dois metros de altura, estrabismo e pelo de urso nas costas. Ser extremamente feio seria sua única vantagem se o macho vinculado em V. fosse acionado.

– Sem ofensa – Butch murmurou –, mas dá para culpá-la?

– É minha irmã gêmea que está em jogo – o cara passou com força uma das mãos ao longo dos cabelos escuros. – Mas que droga, Butch... minha irmã.

Butch sabia alguma coisa sobre como era perder alguém, então, sim, podia entender o que o macho na frente dele sentia. E, cara, não sairia do lado do Irmão: ele e Jane eram os únicos que conseguiam acalmar Vishous quando ficava assim. Jane já teria muita coisa para fazer ao lidar com o cirurgião e sua paciente.

O som do celular de V. fez os dois saltarem, mas o Irmão recuperou-se rápido e não deu tempo para que um segundo toque chegasse a seus ouvidos.

– Mesmo? Conseguiu? Obrigado... cara... sim. Sim. Encontro vocês na garagem. Certo. – Houve uma pequena pausa e V. olhou como se quisesse ficar sozinho.

Louco para desaparecer dali, Butch olhou para seus sapatos. O Irmão nunca fora muito bom em demonstrações públicas de afeto ou em conversar sobre coisas pessoais com Jane se houvesse alguém por perto. Mas como Butch era um mestiço, não conseguia se desmaterializar – e para onde, diabos, ele correria?

Após V. murmurar um rápido “tchau”, tragou profundamente um de seus cigarros e disse em voz baixa ao expirar:

– Pode parar de fingir que não está a meu lado.

– Que alívio. Não sou muito bom nisso.

– Não tem culpa de ocupar espaço.

– Então, ela o encontrou? – Quando Vishous assentiu, Butch assumiu uma expressão mortalmente séria. – Prometa-me uma coisa.

– O quê?

– Não vai matar esse cirurgião. – Butch sabia muito bem como era dar uma volta lá fora e ter de retornar àquele mundo vampiro. No seu caso, deu tudo certo, mas e quanto a Manello? – Não é culpa do cara e nem problema seu.

V. balançou o cigarro sobre o lixo e olhou para cima, os olhos de diamante estavam frios como uma noite ártica.

– Vamos ver como ele vai se sair, tira.

Com isso, virou-se e entrou onde sua irmã estava.

Bem, pelo menos, o filho da mãe era honesto, Butch pensou junto com uma maldição.

Manny não gostava nem um pouco de outras pessoas dirigindo seu Porsche 911 Turbo. Na verdade, além de seu mecânico, ninguém mais o dirigia.

Contudo, naquela noite, permitiu que Jane assumisse a direção, pois, em primeiro lugar, era competente e poderia mudar as marchas sem destruir a transmissão; em segundo lugar, ela afirmava que a única maneira possível de levá-lo até onde precisavam ir era chegando lá dirigindo o automóvel ela mesma; e, em terceiro lugar, ainda estava se recuperando de ter visto alguém que havia enterrado aparecer de repente e dizer “Oi, tudo bem?”. Então, talvez não fosse uma boa ideia comandar uma máquina pesada que estava correndo a cento e vinte quilômetros por hora.

Não conseguia acreditar que estava sentado ao lado dela, indo para o norte, no carro dele.

Mas é claro que disse sim ao pedido dela. Sua atitude era patética com relação a mulheres aflitas... e também era um profissional viciado em uma sala de cirurgia. Que óbvio!

Porém, ainda havia muitas perguntas e muita fúria. Sim, com certeza, esperava chegar a um lugar cheio de paz, luz, sol e de toda aquela besteira piegas, mas não estava preocupado com toda essa história de lugar perfeito, o que era irônico. Quantas vezes olhou para o teto durante a noite, aninhado em sua cama com uma garrafa de uísque, rezando por algum milagre que trouxesse sua antiga chefe do departamento de traumatologia de volta para ele?

Manny olhou para o perfil de Jane. Iluminada pela luz do painel do carro, ainda mostrava ser inteligente. Ainda mostrava ser forte. Ainda era seu tipo de mulher.

Mas isso nunca aconteceria. Apesar de toda aquela mentira grosseira sobre sua morte, havia um anel cinza escuro em sua mão esquerda.

– Você se casou? – ele disse.

Ela não olhou para ele, apenas continuou dirigindo.

– Sim. Casei.

Aquela dor de cabeça que surgiu no instante da aparição passou imediatamente de incômoda para horrível. Enquanto isso, memórias sombrias surgiam sob a superfície de sua consciência como se fossem o Monstro do Lago Ness, torturando-o e tentando trazer tudo à tona.

Contudo, teve de interromper aquele processo cognitivo de recuperar lembranças antes que tivesse um aneurisma por causa da tensão. Além disso, não chegaria a lugar algum com isso... Por mais que tentasse não conseguiria entender o que sentia ali e tinha a sensação de que poderia causar danos permanentes se continuasse assim.

Quando ele olhou pela janela do carro, pinheiros e carvalhos mostravam-se altos e firmes sob o luar, o bosque que percorria os subúrbios de Caldwell ficava cada vez mais denso ao distanciarem-se da cidade e do nó asfixiante de pessoas e edifícios.

– Você morreu aqui – ele disse severamente. – Ou ao menos fingiu ter morrido.

Um ciclista encontrou o Audi de Jane entre as árvores, em um ponto da estrada não muito longe dali; o carro havia deslizado para fora do acostamento. Entretanto, não havia corpo... e não era por causa do fogo, que havia surgido após a queda.

Jane limpou a garganta.

– É triste, mas tudo o que tenho a dizer é “sinto muito”. Sei que é uma droga.

– Não é exatamente uma festa para mim também.

Silêncio. Muito silêncio. Mas não queria ficar perguntando muita coisa se tudo o que receberia como resposta era um “sinto muito”.

– Gostaria de poder ter lhe contado – ela disse de repente. – Você foi a pessoa mais difícil de ser deixada.

– Mas não abandonou seu trabalho, não é mesmo? Porque ainda está trabalhando como cirurgiã.

– Sim, estou.

– Como é seu marido?

Nesse momento, ela estremeceu.

– Vai conhecê-lo.

Ótimo. Que alegria!

Diminuindo a velocidade, ela virou à direita em direção a... uma estrada de terra? Mas que droga é essa?

– Para sua informação – ele murmurou –, este carro foi feito para pistas de asfalto, não para percursos assim.

– É o único caminho.

Para onde? Ele se perguntou.

– Você vai ficar me devendo algo muito grande por isso.

– Eu sei. Mas você é o único que pode salvá-la.

Manny piscou os olhos.

– Não disse nada sobre ser “ela”.

– Isso importa?

– Se pensar que não estou entendendo nada do que está acontecendo, tudo importa.

Após percorrerem uns dez metros, começaram a passar por vários atoleiros que eram tão profundos quanto malditos lagos e, enquanto seu Porsche trepidava, sentiu algo arranhando seu estômago e apertou os dentes.

– Que se dane essa paciente, quero um reembolso pelo que está fazendo ao chassi do meu carro.

Jane soltou uma risadinha e isso fez com que o centro de seu peito doesse... mas tinha de cair na real. Os dois nunca estiveram, de fato, juntos. Claro, houve uma atração de sua parte, uma grande atração. E, talvez, um beijo. Mas isso foi tudo.

E agora ela era a Sra. de Outra Pessoa, e também tinha acabado de voltar do maldito mundo dos mortos.

Cristo, que tipo de vida ele tinha? Por outro lado, talvez aquilo fosse um sonho... Isso o animou, pois talvez Glory não tivesse se acidentado também.

– Não me disse o tipo de lesão – disse ele.

– Quebra na coluna vertebral. Entre C6 e C7. Nenhuma sensação abaixo da cintura.

– Droga, Jane... Isso é complicado.

– Agora sabe por que preciso tanto de você.

Mais ou menos cinco minutos mais tarde, aproximaram-se de portões que pareciam ter sido construídos durante as Guerras Púnicas, pelo menos dois séculos antes de Cristo... A coisa parecia estar fixada ali nos moldes de Alice no País das Maravilhas, os elos da corrente estavam enferrujados e quebrados em alguns lugares. E a barra que os atravessava? Aquela porcaria não valia nem o esforço de ser manuseada, não era nada além de um pedaço de arame usado para cerca de gado e que já tinha vivido dias melhores. No entando, a maldita coisa abriu sem problemas, e enquanto entravam, viu a primeira câmera de vídeo.

Ao avançarem a passos lentos, uma névoa estranha veio do nada, a paisagem ficou fora de foco até não conseguir enxergar nada que havia além de trinta centímetros à frente do carro. Cristo, era como se estivessem em um episódio de Scooby-Doo.

E, então, houve um progresso curioso: o próximo portão estava em condições um pouco melhores; o seguinte era ainda mais novo e o quarto parecia ter apenas um ano, no máximo. O último portão estava brilhando e parecia algo saído de Alcatraz: mais de sete metros de altura e avisos de alta voltagem espalhados por toda sua extensão. E aquele muro no qual o portão estava instalado? Não era bem para conter gado... Talvez dinossauros. E podia apostar que os tijolos deviam ter pelo menos meio metro de espessura.

Manny girava a cabeça de um lado a outro à medida que avançavam e começavam a descer por um túnel tão profundo e com uma estrutura tão forte que poderia atravessar por baixo do rio Hudson. Quanto mais desciam, mais a grande questão que o assolava desde a aparição intensificava-se em sua mente: por que forjar a morte? Por que provocar o caos que tinha causado na vida dele e na dos outros que trabalhavam com ela no Hospital São Francisco? Nunca tinha sido uma mulher cruel, mentirosa, não tinha problemas financeiros, nem nada do que fugir.

Agora sabia, mesmo que não tivesse dito uma palavra: Governo dos Estados Unidos.

Aquele cenário, aquela estrutura no sistema de segurança... Um local oculto nos subúrbios de uma cidade suficientemente grande, mas não tão grande quanto Nova York, Los Angeles ou Chicago? Tinha de ser o Governo. Quem mais poderia pagar por isso?

E quem era a mulher a quem trataria?

O túnel terminou em uma típica garagem subterrânea, com pilares e vagas limitadas por faixas amarelas... e, mesmo sendo tão grande, o local estava vazio. Havia apenas duas vans, que não conseguia distinguir muito bem a marca, com vidros escurecidos e um micro-ônibus que também tinha vidros filmados.

Antes mesmo de ela estacionar o Porsche na garagem, uma porta de aço abriu-se e...

Bastou um olhar no cara enorme que saiu dali e a cabeça de Manny explodiu, a dor atrás dos olhos ficou tão intensa que escorregou no banco do carro, os braços caíram e seu rosto contorceu-se de agonia. Jane lhe disse alguma coisa. Uma porta do carro foi aberta. Em seguida, a dele.

A brisa que o atingiu era seca e cheirava vagamente a terra... mas havia algo mais. Colônia. Uma fragrância amadeirada de especiarias que era, ao mesmo tempo, cara e agradável, mas também algo que despertava nele um desejo curioso de sair correndo.

Manny forçou as pálpebras a se abrirem. Sua visão estava muito turva, mas era incrível o que a necessidade obrigava alguém a fazer... E quando o homem a sua frente entrou em foco, viu-se encarando o filho da mãe de cavanhaque que tinha...

Com uma onda de dor, seus olhos reviraram e quase vomitou.

– Precisa liberar as memórias – ouviu Jane dizer.

Houve alguma conversa nesse ponto, a voz de sua antiga colega misturava-se com os tons profundos daquele homem com tatuagens nas têmporas.

– Isso o está matando...

– É arriscado demais...

– Como ele vai operar desse jeito?

Houve um longo silêncio. E, então, de repente, a dor foi retirada como se fosse um véu sendo levantado – toda aquela pressão saiu de dentro dele em um piscar de olhos. Em seu lugar, as lembranças inundaram sua mente.

A paciente de Jane. O Hospital São Francisco. O homem com o cavanhaque e... um coração de seis válvulas.

Manny abriu bem os olhos e encarou aquele rosto cruel.

– Conheço você.

– Tire-o do carro – foi a única resposta do cara de cavanhaque. – Não confio nos meus atos se tocar nele.

Que maravilha de boas-vindas. E havia alguém atrás do desgraçado. Um homem que Manny tinha cem por cento de certeza de que já havia visto antes... Contudo, deve ter sido algo muito rápido, pois não conseguia lembrar-se de seu nome ou de onde se conheceram.

– Vamos – Jane disse.

Sim. Grande ideia. Naquele momento, precisava de alguma coisa para se concentrar que não tivesse nada relacionado com aquela situação de não saber o que dizer.

Enquanto o cérebro de Manny lutava para processar o que estava acontecendo, percebeu que ao menos seus pés e pernas seguiam o programa. Depois que Jane o ajudou a sair do carro e a ficar em pé, começou a segui-la e ao cara de cavanhaque pela instalação que era tão insípida e limpa quanto um hospital: corredores sóbrios, lâmpadas fluorescentes no teto, tudo cheirava a produtos de limpeza.

Havia também câmeras de segurança que moviam-se em intervalos regulares, como se o edifício fosse um monstro com muitos olhos.

Enquanto caminhavam, sabia que não devia fazer qualquer pergunta. Bem, sabia disso e de que sua cabeça estava tão confusa que tinha a certeza de que se mover era o máximo de suas habilidades naquele momento. Em seguida, percebeu o cara do cavanhaque e seu olhar mortal... não era exatamente uma abertura para iniciar um bate-papo.

Portas. Passaram por muitas portas, todas as quais foram fechadas em seguida e, sem dúvida, trancadas.

Palavrinhas interessantes como local secreto e segurança nacional brincaram em seu crânio, e isso ajudou muito, fazendo-o acreditar que talvez pudesse perdoar Jane por desaparecer da vida dele... um dia.

Quando Jane parou diante de uma porta dupla, suas mãos brincaram com as lapelas do jaleco branco e, em seguida, com o estetoscópio no bolso. E essa reação só fez com que tivesse a sensação de que tinha uma arma na cabeça: na sala de cirurgia, nos incontáveis problemas graves que se passaram no departamento de traumatologia, ela sempre mantivera a calma. Era sua marca registrada.

Mas aquilo era pessoal, ele pensou. De alguma maneira, seja lá o que estivesse do outro lado daquelas portas, estava relacionado a alguém próximo a ela.

– Tenho bons equipamentos aqui – ela disse. – Mas não tudo. Não tenho ressonância magnética. Apenas tomografias e raios-X. Contudo, a sala de cirurgia é adequada e não só posso ajudar como também tenho uma excelente enfermeira.

Manny respirou fundo, muito fundo, recompondo-se. Com toda força de vontade, calou todas as perguntas, a persistente indignação em sua cabeça e a estranheza daquela viagem ao mundo da espionagem ao estilo 007.

Primeiro item em sua lista de coisas a fazer? Despistar o público revoltado dali.

Olhou por cima do ombro, em direção ao cara de cavanhaque.

– Vai precisar sair daqui, amigo. Quero você fora, no corredor.

A reação que teve depois disso foi... simplesmente fantástica, principalmente se fosse um dentista: o desgraçado exibiu um par de caninos tão longos quanto seu braço e rosnou, em alto e bom som, como um cachorro.

– Certo – disse Jane, posicionando-se entre eles. – Tudo bem. Vishous vai esperar lá fora.

Vishous? Será que tinha ouvido direito?

Por outro lado, a mãe do menino devia ser louca de pedra, considerando o pequeno espetáculo odontológico. Não importa. Tinha trabalho a fazer e, talvez, o filho da mãe mastigasse couro duro ou algo assim.

Entrando na sala de exames ele...

Oh... santo Deus.

Ah... meu Deus do céu.

A paciente sobre a mesa estava deitada como águas tranquilas... era provavelmente a coisa mais linda que ele já tinha visto: o cabelo era muito preto e trançado em uma corda grossa que pendia livre ao lado de sua cabeça. A pele era de um marrom dourado, como se ela fosse descendente de italianos e tivesse sido exposta ao sol recentemente. Olhos... seus olhos eram como diamantes, muito claros e brilhantes ao mesmo tempo, com apenas uma borda escura ao redor da íris.

– Manny?

A voz de Jane estava bem atrás dele, mas sentiu como se estivesse a quilômetros de distância. Na verdade, o mundo inteiro estava em outro lugar, nada existia além do olhar de sua paciente que o encontrou do alto daquela mesa com a cabeça imobilizada.

Finalmente havia acontecido, pensou. Durante a vida inteira perguntara-se por que nunca havia se apaixonado e agora sabia a resposta. Estava esperando aquele momento, aquela mulher, aquela hora.

Esta mulher é minha, pensou.

E mesmo sabendo que aquilo não fazia sentido algum, a convicção era tão forte que não conseguia questionar.

– Você é o curandeiro? – ela disse em uma voz baixa que parou seu coração. – Você está aqui... por mim?

Suas palavras tinham um sotaque forte – maravilhoso por sinal –, e havia também um tom um pouco surpreso.

– Sim. Sou eu. – Arrancou o casaco do terno e jogou-o em um canto, sem dar a mínima importância para onde havia caído. – Estou aqui por você.

Quando se aproximou, lágrimas deslizaram de seus olhos cobertos de gelo.

– Minhas pernas... sinto como se estivesse as movimentando, mas acho que não consigo.

– Doem?

– Sim.

Dor fantasma. Não era uma surpresa.

Manny deteve-se ao lado dela e olhou para seu corpo, que estava coberto com um lençol. Era alta. Pelo menos um metro e oitenta. E era constituída com uma força elegante. Era uma guerreira, pensou, observando a força de seus braços. Uma lutadora.

Deus, a perda da mobilidade em alguém como ela tirava-lhe o fôlego. Por outro lado, mesmo que se tratasse de alguém viciado em televisão, a vida em uma cadeira de rodas seria terrível; mas, para alguém como ela, seria uma sentença de morte.

Manny aproximou-se e pegou a mão dela... No instante em que fez contato, o corpo dele como um todo estremeceu, como se ela fosse a tomada do seu plugue interior.

– Vou cuidar de você – disse enquanto olhava diretamente em seus olhos. – Quero que confie em mim.

Ela engoliu a saliva quando uma lágrima cristalina deslizou de seus olhos. Por instinto, ele estendeu a mão e a deteve com a ponta do dedo...

O rosnado que infiltrou-se pela porta era uma ameaça, uma contagem regressiva para se afastar, mas não deu importância àquilo. Quando olhou para o cara de barbicha, sentiu como se estivesse rosnando de volta para o filho da mãe. O que, mais uma vez, não fazia sentido algum.

Ainda segurando a mão de sua paciente, exclamou para Jane:

– Tire esse bastardo miserável da minha sala de cirurgia. E quero ver os malditos exames e radiografias. Agora.

Ele ia salvar aquela mulher, mesmo se aquilo o matasse.

Quando os olhos do Sr. Cavanhaque brilharam em direção a ele com puro ódio, Manny pensou: “Bem, esse é o máximo que o cara pode fazer...”.


CAPÍTULO 6

Qhuinn saiu sozinho em Caldwell, pela primeira vez na vida.

Quando pensou melhor sobre isso, concluiu que era quase uma impossibilidade estatística. Passou tantas noites lutando, bebendo e fazendo sexo dentro e ao redor dos clubes noturnos do centro da cidade que pelo menos um ou dois voos tinham de ter sido feitos sozinho. Mas não. Quando entrou no Iron Mask, estava sem a companhia de seus dois amigos pela primeira vez.

De qualquer forma, as coisas eram diferentes agora. Os tempos tinham mudado. As pessoas também.

John Matthew estava agora muito feliz casado; então, quando tinha uma folga, como naquela noite, ficava em casa com sua shellan, Xhex, fazendo a cama praticar uma série de exercícios de resistência. Sim, claro, Qhuinn era um ahstrux nohtrum e tudo mais, mas Xhex era uma symphato assassina totalmente capaz de cuidar de seu macho, e da Adaga Negra.

O complexo da Irmandade era uma fortaleza que nem mesmo uma equipe da SWAT poderia invadir. Assim, ele e John chegaram a um acordo... e deixaram isso em segredo.

Quanto a Blay... Qhuinn não ia pensar sobre seu melhor amigo. Não. De jeito nenhum.

Observando o interior do clube, iniciou sua máquina de seleção interna e começou a abrir caminho por meio das mulheres, homens e casais. Havia uma e apenas uma razão para ter ido até ali, e era a mesma que havia levado os outros góticos àquele local.

Não era um lugar para se procurar um relacionamento, sequer uma companhia. Tratava-se apenas de movimentar-se entrando e saindo e, quando tudo estivesse acabado, era o caso de dizer “Obrigado, moça” – ou “cara”, dependendo de seu humor –, “Estou dando o fora”. Porque ele ia precisar de outra pessoa. Ou outras pessoas.

Não investiria apenas uma vez naquela noite; sentia como se estivesse arrancando a própria pele, seu corpo latejava com força, necessitando de alívio. Cara, sempre gostou de transar, mas nos últimos dias sua libido tinha aumentado até crescer como um monstro.

Será que Blay não era mais seu melhor amigo?

Qhuinn fez uma pausa e olhou rapidamente uma vitrine antes de inclinar a cabeça sobre ela: caramba, não tinha mais cinco anos. Machos adultos não têm melhores amigos. Não precisam deles, especialmente se o macho em questão estivesse transando com outra pessoa. O dia inteiro. Todos os dias.

Qhuinn andou até o bar.

– Tequila. Dose dupla. E traga a melhor que tiver.

Os olhos da mulher aqueceram-se por trás do pesado delineador e dos cílios postiços.

– Já vai pagar a comanda?

– Sim – e considerando a maneira como ela escorregou a mão sobre o estômago achatado e desceu ainda mais pelo quadril, ele poderia ter pedido, com certeza, um pedaço dela também.

Quando ele estendeu o cartão de crédito, ela fez um movimento amplo com os seios para pegar a maldita coisa, inclinando-se de tal forma que poderia muito bem pegar algo no chão com os mamilos.

– Volto já, já com sua bebida.

Que surpresa.

– Ótimo.

Estava perdendo tempo ao sair rebolando como fez: não era nada disso que procurava naquela noite... não chegava nem perto. Sexo errado, para começar. E não ia investir em nada que tivesse cabelos escuros. Para dizer a verdade, não conseguia acreditar no que queria.

Tinha algumas limitações por ser daltônico, mas quando vestia apenas preto e trabalhava à noite, na maioria das vezes, isso não era grande coisa. Além disso, seus olhos desiguais eram tão perspicazes e sensíveis às variações de cinza que realmente percebias as “cores” – era tudo uma questão de gradação. Por exemplo, sabia quem eram as pessoas loiras no clube. Sabia a diferença entre as morenas e as de cabelos negros. E, sim, poderia enganar-se e interpretar mal se algum idiota tivesse feito uma tintura estranha, mas, mesmo assim, poderia dizer que havia algo estranho, porque o tom de pele nunca combinava direito com a cor artificial do cabelo.

– Aqui está – disse a bartender.

Qhuinn estendeu a mão, pegou o copo, bebeu a tequila e voltou a colocá-lo vazio sobre o balcão do bar.

– Vamos tentar isso mais algumas vezes.

– É pra já. – Exibiu seu par de seios novamente, sem dúvida com a esperança de que ele os agarrasse a qualquer momento. – Você é o tipo de cliente que gosto. Porque é óbvio que consegue lidar com uma boa bebida.

Uh-hum. Claro. Como se a habilidade de ingerir o equivalente a quatro doses de álcool de uma vez só fosse grande coisa. Deus, a ideia de que alguém, com esse sistema de valores, tivesse permissão para votar fazia com que ele desejasse encarar a vitrine outra vez.

Humanos eram patéticos.

Contudo, quando olhou para trás para observar a multidão, pensou que baixar a bola seria uma boa. Sentia-se patético sozinho naquela noite, especialmente quando viu dois homens em um canto, os dois separados apenas pelas roupas de couro que vestiam. Naturalmente, um deles era loiro. Assim como seu primo. Então, era claro que imagens hipotéticas de Blay e Saxton começaram a brincar em seu campo de polo interior, marcando seu gramado com pegadas e bosta de cavalo.

Só que não eram hipotéticos, mas reais: no final de todas as noites, quando as pessoas à mesa da mansão da Irmandade começavam a se dispersar depois da Última Refeição e a sair para resolver seus assuntos particulares, Blay e Saxton dirigiam-se discretamente para a grande escadaria e desapareciam no corredor do andar de cima, onde seus quartos ficavam.

Nunca tinham se dado as mãos, nunca tinham se beijado na frente de ninguém, e também não havia olhares de reprovação. Por outro lado, Blay era um cavalheiro, e Saxton era uma vagabunda elegante inserida de alguma maneira em um grande espetáculo.

Seu primo era uma verdadeira prostituta...

Não, não é, uma pequena voz soou. Só o odeia porque está de caso com seu garoto.

– Ele não é meu garoto.

– O que disse?

Qhuinn lançou um olhar ao espectador... e, em seguida, reassumiu seu ar durão. Bingo, ele pensou.

Ao lado dele estava um macho humano, mais ou menos um metro e oitenta com um cabelo fabuloso, rosto bonito e lábios muito agradáveis. As roupas não eram totalmente góticas, mas tinha algumas correntes na cintura e duas argolas em uma das orelhas. Mas foi a cor do cabelo que realmente fez a diferença.

– Estava falando sozinho – Qhuinn murmurou.

– Ah. Faço muito isso. – O sorriso foi breve e, em seguida, o cara voltou a cuidar de sua...

– O que está bebendo? – Qhuinn perguntou.

Um copo já na metade foi erguido.

– Vodka e tônica. Não suporto essa coisa de adocicar a bebida.

– Nem eu. Vou de tequila. Pura.

– Patrón?

– Nunca. Gosto da Herradura.

– Ah – o cara virou-se e olhou para frente em direção à multidão. – Gosta das coisas como são.

– Sim.

Qhuinn queria perguntar se o Sr. Vodka e Tônica estava observando os caras ou as garotas, mas permaneceu em silêncio. Cara, aquele cabelo era incrível. Grosso. Enrolado nas pontas.

– Está procurando por alguém em particular? – Qhuinn disse em voz baixa.

– Talvez. E você?

– Com certeza.

O cara riu.

– Tem muita mulher bonita aqui. Pode escolher.

Mas. Que. Droga. Que sorte a dele: um hétero. Por outro lado, talvez pudessem dividir alguma coisa e começar por aí.

O cara inclinou-se e ofereceu a palma da mão.

– Eu sou...

Quando os dois entreolharam-se completamente, o cara deixou a sentença à deriva, mas não tinha importância. Qhuinn não dava a mínima para o nome dele.

– Seus olhos têm cores diferentes? – o cara perguntou suavemente.

– Sim.

– Isso é muito... legal.

Bem, sim. Quando não se é um vampiro nascido na glymera. Se esse fosse o caso, seria considerado um defeito físico que significava ser geneticamente ruim e, portanto, uma vergonha para sua linhagem e absolutamente inabilitado para o acasalamento.

– Obrigado – Qhuinn disse. – Qual é a cor dos seus?

– Não pode dizer?

Qhuinn deu um tapinha sobre a lágrima tatuada perto do olho.

– Daltônico.

– Ah. Os meus são azuis.

– E você é ruivo, certo?

– Como sabe disso?

– Pelo seu tom de pele. Além disso, você é meio pálido e tem sardas.

– Isso é incrível – o cara olhou ao redor. – Está escuro aqui... não imaginava que conseguiria enxergar.

– Acho que posso – e acrescentou mentalmente: e que tal se eu lhe mostrar alguns dos meus outros truques.

O novo amigo de Qhuinn sorriu um pouco e voltou a observar a multidão. Depois de um minuto, disse:

– Por que está olhando para mim assim?

Porque quero transar com você.

– Você me lembra alguém.

– Quem?

– Alguém que perdi.

– Oh, droga, sinto muito.

– Tudo bem. A culpa é minha.

Pequena pausa.

– Então, você é gay, certo?

– Não.

O cara deu risada.

– Desculpe. Apenas imaginei que... Bom, acho que era um bom amigo.

Nenhum comentário.

– Vou encher o copo outra vez. Posso fazer isso para você também?

– Obrigado, cara.

Qhuinn virou-se e sinalizou para a atendente. Enquanto esperava ela se aproximar rebolando, planejou sua abordagem. Primeiro, um pouco mais de álcool. Em seguida, adicionaria algumas fêmeas à mistura. O terceiro passo seria entrar em um dos banheiros e transar com a(s) garota(s).

Então... Mais alguns olhares. De preferência quando um deles ou os dois estivessem dentro de uma mulher. Pois por mais que o ruivo de cabelo espetacular parecesse estar a fim das garotas, o filho da mãe tinha sentido alguma coisa quando os dois se entreolharam – e hétero é um termo relativo.

Assim como virgem.

Isso fazia com que os dois se enquadrassem nesses termos, não? Afinal, Qhuinn nunca, jamais, havia ficado com alguém de cabelo vermelho.

Mas aquela noite seria uma exceção.


CONTINUA

CAPÍTULO 4

No centro de Caldwell havia vários prédios altos, cheios de janelas espelhadas, mas nenhum era como o Commodore. Com trinta andares, estava entre os mais altos daquela floresta de concreto e os sessenta apartamentos que abrigava eram totalmente fantásticos, ao estilo de grandes empresários como Donald Trump, revestido de mármore e detalhes cromados; tudo era muito bem projetado.

No vigésimo sétimo andar, Jane entrou no apartamento de Manny, procurando por sinais de vida, e o que encontrou foi... nada. Literalmente. A casa do cara aproximava-se mais de uma pista de dança do que uma pista de obstáculos: a mobília era composta de três objetos na sala e uma cama enorme na suíte principal. Ponto. Bem, e algumas banquetas de couro ao redor do balcão da cozinha. Quanto às paredes? A única coisa que havia pendurado ali era uma TV de plasma do tamanho de um outdoor. Não havia tapetes sobre os pisos de madeira, apenas mochilas de academia... mais mochilas de academia... e calçados esportivos.

Nada disso indicava que era desorganizado; não tinha coisas suficientes para ser considerado assim.

Com um pânico crescente, entrou no quarto dele e viu mais ou menos meia dúzia de uniformes cirúrgicos deixados em pilhas no chão, como poças d’água após uma tempestade e... nada mais.

Mas a porta do armário estava aberta e ela entrou...

– Meu Deus... mas que droga.

Havia um conjunto de três malas alinhado no chão, onde deveria estar uma pequena, uma média e outra grande... mas a do meio não estava lá. Então, concluiu o que estava acontecendo ao considerar os espaços vazios que havia entre os cabides de calças e camisas: estava fora, em uma viagem. Talvez durante todo o fim de semana.

Sem muita esperança, discou para o sistema de atendimento do hospital e chamou-o outra vez...

Notou que estava recebendo outra chamada e amaldiçoou quando observou o número.

Respirando fundo, respondeu:

– Oi, V.

– Nada?

– Nada no hospital ou no apartamento. – Um rosnado sutil chegou até ela pelo telefone e ampliou a angústia da busca que ainda não tinha dado em nada. – Também procurei na academia, vindo para cá.

– Invadi o sistema do Hospital São Francisco e consegui os horários dele.

– Onde ele está?

– Tudo o que diz lá é que Goldberg está de plantão, certo? Olha, o sol se pôs. Vou sair daqui em, mais ou menos...

– Não, não... fique com Payne. Ehlena é ótima, mas acho que deveria ficar com ela.

Houve uma grande pausa, como se ele soubesse que estava sendo despistado.

– O que vai fazer agora?

Apertou o telefone e perguntou-se a quem deveria recorrer. Deus? À mãe dele?

– Não tenho certeza. Mas liguei para ele. Duas vezes.

– Ligue quando encontrá-lo. Vou pegar vocês.

– Posso levá-lo até em casa...

– Não vou machucá-lo, Jane. Não tenho a menor intenção de deixá-lo em pedaços.

Sim, mas considerando o tom de voz frio, teve de se perguntar sobre aqueles planos bem intencionados de vampiros cheios de autocontrole e blá, blá, blá... Acreditava que Manny viveria para tratar da irmã gêmea de V. Mas, e depois? Tinha suas reservas... especialmente se as coisas dessem errado na sala de cirurgia.

– Vou esperar aqui mais um pouco; talvez ele apareça, ou ligue. Se isso não acontecer, penso em outra coisa.

No longo silêncio, praticamente conseguia sentir uma corrente de ar frio chegando através do celular. Seu companheiro fazia muitas coisas direito: lutar, fazer amor, lidar com qualquer coisa relacionada à informática. Ser forçado a ficar parado? Não era bem uma de suas competências inatas. Na verdade, era garantia de deixá-lo enlouquecido.

Ainda assim, o fato de não confiar nela fez com que se sentisse distante dele.

– Fique com sua irmã, Vishous – disse em um tom de voz equilibrado. – Manterei contato.

Silêncio.

– Vishous. Confie em mim e vá ficar ao lado dela.

Ele não disse coisa alguma depois disso. Apenas desligou.

Quando pressionou a tecla end do telefone, soltou um palavrão.

Uma fração de segundo depois estava discando outra vez e no instante em que ouviu uma voz profunda atender, teve de enxugar uma lágrima que, se pensasse em toda sua natureza translúcida, era muito, muito real.

– Butch – ela resmungou –, preciso de sua ajuda.

Quando o pouco que restava do pôr do sol desapareceu e a noite bateu seu cartão de ponto, assumindo o turno seguinte, o carro de Manny deveria ter ido para casa. Deveria ter sido levado por si só direto para Caldwell.

Ao invés disso, acabou chegando ao extremo sul da cidade, onde as árvores eram grandes e as extensões de grama superavam as de asfalto em até dez vezes mais.

Fazia sentido. Os cemitérios deveriam ter longos trechos de terra, pois não se podia enterrar um caixão no concreto. Bem, até poderia... se se tratasse de um mausoléu.

O cemitério Bosque dos Pinheiros ficava aberto até as dez da noite, seus grandes portões de ferro permaneciam escancarados e seus inúmeros postes de iluminação forjados em ferro emitiam uma luz amarelo-manteiga ao longo do labirinto de ruas. Quando entrou, foi para a direita, os faróis do carro iluminando o local ao longo das lápides e do gramado.

Em última análise, o local para onde se dirigia não significava nada: não havia um corpo embaixo da lápide de granito que ia visitar – não restara nada para ser enterrado. Nada de cinzas para colocar em uma vasilha, também... ou, pelo menos, nada que se pudesse separar com certeza de dentro de um Audi que havia pegado fogo.

Depois de dar, mais ou menos, um quilômetro de voltas, tirou o pé do acelerador e deixou o carro deslizar até estacionar. Até onde conseguia ver, era o único no cemitério, mas isso não era problema para ele. Não havia razão para se ter uma audiência.

Quando saiu do carro, o ar frio não ajudou a limpar sua mente, mas deu algo para seus pulmões fazerem quando inalou profundamente e caminhou sobre a grama áspera da primavera. Teve o cuidado de não pisar em nenhuma tumba enquanto avançava... claro, os mortos não saberiam que estava andando acima deles, mas parecia uma coisa respeitosa a fazer.

O túmulo de Jane estava à frente, e desacelerou o passo quando aproximou-se daquilo que não havia sido deixado por ela, por assim dizer.

Ao longe, o apito de um trem cortou o silêncio... e o som vazio e lúgubre era um clichê tão grande que se sentiu em um filme o qual nunca assistiria sentado em casa, muito menos pagaria para ver em um cinema.

– Droga, Jane.

Inclinando-se, passou os dedos sobre as marcas irregulares da lápide. Foi ele quem tinha escolhido a pedra escura de azeviche, pois ela não teria gostado nem um pouco de algo pastel ou desbotado. E a inscrição também era simples e descomplicada, apenas seu nome, datas e uma frase na parte inferior: DESCANSE EM PAZ.

Sim. Deu a si mesmo nota dez em originalidade por isso.

Lembrava-se exatamente onde estava quando soube que ela tinha morrido: no hospital, claro. Era final de um longo plantão que tinha começado com o joelho de um jogador de hóquei e terminado com a reconstrução espetacular de um ombro, isso porque o viciado decidiu tentar voar.

Saiu da sala de cirurgia e encontrou Goldberg esperando próximo às pias de higienização. Manny parou no meio do processo de retirar a máscara cirúrgica ao dar apenas uma olhada no rosto pálido de seu colega. Com a coisa pendurada em seu queixo como um babador, exigiu saber o que diabos havia acontecido de errado – contando o tempo todo que se tratava de um acidente com quarenta carros engavetados na estrada ou um acidente de avião ou um hotel incendiado... algo relacionado a uma tragédia que englobasse toda uma comunidade.

Só que quando olhou sobre o ombro do cara e viu cinco enfermeiras e três outros médicos... Todos com a mesma aparência de Goldberg... E nenhum deles correndo para chamar outros funcionários para assumirem plantão ou preparando as salas de cirurgia.

Certo. Tinha acontecido algo que englobava toda uma comunidade. A comunidade deles.

– Quem? – perguntou.

Goldberg olhou para trás, em direção a sua tropa de apoio e foi então que Manny entendeu. E mesmo com as entranhas congeladas dentro dele, agarrou-se a uma esperança irracional de que o nome que estava prestes a sair da boca de seu colega cirurgião não fosse...

– Jane. Acidente de carro.

Manny não perdeu tempo.

– Quando ela deu entrada?

– Não chegou a dar entrada.

Com isso, Manny não disse nada. Terminou de tirar a máscara de seu rosto, amassou-a e descartou-a na lata de lixo mais próxima.

Quando foi passando por eles, Goldberg abriu a boca outra vez.

– Nem uma palavra – Manny ladrou. – Nem. Uma. Palavra.

Os outros funcionários começaram a tropeçar entre eles mesmos para sair do caminho, dividindo o grupo com a precisão de um pedaço de tecido cortado ao meio.

Voltando ao presente, não conseguia se lembrar onde tinha ido ou o que tinha feito depois disso... não importava quantas vezes voltasse sua mente àquela noite obscura, esses momentos eram como um buraco negro. Contudo, em dado momento, percebeu que tinha chegado em seu apartamento, pois acordou ali dois dias depois e viu que ainda estava com o uniforme cirúrgico respingado com o sangue do último paciente que havia operado.

O mais irritante de tudo era o fato de que Jane tinha salvado tantas pessoas vítimas de acidentes de carro. A ideia de ter sido levada dessa maneira levava-o a pensar que o Ceifeiro da Morte veio atrás dela para cobrar todas as almas que tinha afastado do alcance de suas garras mortais.

O som de outro apito de trem o fez querer gritar.

O trem e aquele pager apitando.

Hannah Whit. Outra vez?

Mas que diabos...

Manny franziu o cenho e olhou para a lápide. Salvo engano, a irmã mais nova de Jane chamava-se Hannah. Whit. Whitcomb?

Só que ela tinha morrido muito cedo.

Não tinha?

Loucura. Total.

Deus, deveria ter trazido seus tênis para essa aventura, Jane pensou enquanto andava sem rumo pelo apartamento de Manny. Outra vez. Teria deixado o apartamento se tivesse uma ideia melhor de onde ir, mas seu cérebro, mesmo sendo tão astuto, não conseguia enxergar outra opção...

Seu telefone tocando não era exatamente algo bom. Não queria dizer a Vishous que quarenta e cinco minutos depois não tinha nada de novo para relatar.

Pegou o celular.

– Oh... Deus.

Aquele número. Aqueles dez dígitos que sempre estiveram registrados na discagem rápida de todos os telefones que teve antes daquele. Manny.

Quando pressionou a tecla send, sua mente estava em branco e seus olhos cheios de lágrimas. Seu velho e querido amigo e colega de profissão...

– Alô? – ele disse. – Senhorita Whit?

Ao fundo, ouviu o soar fraco de um apito de trem.

– Alô? Hannah? – Aquele tom... era exatamente o mesmo de anos atrás: baixo, impositivo. – Tem alguém aí?

Aquele apito baixo soou outra vez.

Jesus Cristo... ela pensou. Sabia onde ele estava.

Jane desligou e saiu rápido do apartamento, do centro da cidade, atravessando a toda velocidade pelos subúrbios.

Viajando em um borrão à velocidade da luz, suas moléculas atravessaram a noite em uma corrida alucinante que percorreu quilômetros como se fossem centímetros.

O cemitério Bosque dos Pinheiros era o tipo de lugar que precisava de um mapa para se localizar nele, mas quando se é uma forma etérea no ar, pode-se percorrer uma centena de acres em apenas um piscar de olhos.

Quando tomou forma na escuridão perto de sua sepultura, respirou fundo e quase chorou.

Lá estava ele, em carne e osso. Seu chefe. Seu colega. O único a quem deixou para trás. E ele estava em pé atrás de uma lápide negra na qual havia seu nome esculpido.

Certo, agora sabia que tinha tomado a decisão certa quando não havia ido ao funeral. O mais perto que chegou disso foi lendo a notícia no Caldwell Courier Journal – e a imagem de todos aqueles cirurgiões, funcionários do hospital e pacientes emocionou-a demais. Mas aquilo era muito pior.

Manny parecia exatamente como ela mesma se sentia: arruinado por dentro.

Jesus, aquela loção pós-barba ainda cheirava bem... e apesar de ter perdido um pouco de peso, era um pedaço de mal caminho, com aquele cabelo escuro e aquele rosto rígido. Seu terno era de risca de giz e feito sob medida... mas havia sujeira em volta da bainha da calça muito bem passada. E seus sapatos estavam sujos também, fazendo com que ela se perguntasse onde diabos ele estivera. Com certeza não tinha ficado assim por causa da sepultura; depois de um ano, o solo ainda estava plano e coberto com grama bem aparada...

Oh, espere. O túmulo devia estar assim desde o primeiro dia. Ela não tinha deixado nada para ser enterrado.

Quando os dedos dele descansaram sobre a pedra, soube que foi ele quem tinha escolhido a sepultura. Ninguém mais teria tido o bom-senso de fazer exatamente o que ela gostaria que fizesse. Nada de muitos detalhes rococós ou dizeres complicados; curto, doce, no ponto.

Jane limpou a garganta.

– Manny...

Ele ergueu a cabeça, mas não olhou para ela... como se tivesse ouvido a voz dela apenas em sua mente.

Assumindo uma forma totalmente corpórea, ela falou mais alto.

– Manny.

Sob qualquer outra circunstância, a reação teria sido uma profusão de risos. Mas ele se virou, em seguida, gritou, tropeçou na lápide e caiu sentado no chão.

– Mas que... diabos... você está fazendo aqui? – ele engasgou. A expressão em seu rosto começou com um sentimento de horror, mas rapidamente mudou para a descrença absoluta.

– Sinto muito.

Era totalmente ridículo, mas foi tudo o que saiu de sua boca.

E parecia mais do que poderia suportar. Encontrar aqueles olhos castanhos fez com que, de repente, ela não tivesse nada a dizer.

Manny ergueu-se com um salto, e seu olhar escuro subia e descia observando o corpo dela.

E, por fim, subiu... fixando-se em seu rosto.

Foi quando a raiva veio. E também uma dor de cabeça, evidentemente, considerando a maneira como ele estremeceu e esfregou as têmporas.

– É algum tipo de piada?

– Não – ela desejava que fosse. – Sinto muito mesmo.

O olhar severo e cruel era dolorosamente familiar, e que ironia sentir-se nostálgica com um olhar ameaçador como aquele.

– Você sente muito.

– Manny, eu...

– Eu a enterrei. E você sente muito? Que porcaria é essa?

– Manny, não tenho tempo para explicar. Preciso de você.

Ele a encarou por um longo momento.

– Você aparece depois de um ano morta e diz que precisa de mim?

A realidade de quanto tempo havia se passado pesou sobre ela. Acima de tudo.

– Manny... não sabia o que lhe dizer.

– Oh, mesmo? Que tal: ah, puxa, por falar nisso, estou viva.

Ele a encarou. Apenas a encarou.

Então, com uma voz rouca, disse:

– Você faz alguma ideia do que foi perdê-la? – passou rapidamente a mão sobre os olhos. – Tem noção?

A dor no peito dela fez com que a respiração ficasse difícil.

– Sim. Porque perdi você... perdi minha vida com você e no hospital.

Manny começou a andar, aproximando-se e afastando-se da lápide. E, embora ela quisesse, sabia que não devia aproximar-se demais.

– Manny... se houvesse alguma maneira de voltar para você, eu voltaria.

– Você voltou. Uma vez. Pensei que era um sonho, mas não. Não era.

– Não.

– Como entrou no meu apartamento?

– Apenas entrei.

Ele se deteve e olhou para ela, a lápide ficou entre eles.

– Por que fez isso, Jane? Por que forjou sua morte?

Bem, na verdade, não havia forjado.

– Não tenho tempo para explicar agora.

– Então, que diabos está fazendo aqui. Que tal explicar isso?

Ela clareou a garganta e disse:

– Estou com uma paciente cujo tratamento exige além da minha capacidade e quero que dê uma olhada. Não posso dizer para onde vou levá-lo, não posso lhe dar muitos detalhes e sei que isso não é justo... mas eu preciso de você – Queria arrancar os cabelos. Cair aos prantos. Abraçá-lo. Mas continuou, por que era isso o que tinha de fazer. – Estou procurando por você há mais de uma hora, então, estou atrasada. Sei que está chateado e confuso e não o culpo. Mas fique com raiva de mim mais tarde... Apenas venha comigo agora. Por favor.

Tudo o que pôde fazer foi esperar. Manny não se convencia por alguém falar demais, não conseguiria persuadi-lo assim. Escolheria ir... ou não.

E, infelizmente, se fosse a segunda opção, ela teria de chamar os Irmãos. Por mais que amasse e sentisse falta de seu antigo chefe, Vishous era seu homem e se sentiria uma maldita se deixasse alguma coisa acontecer com a irmã dele.

De uma forma ou de outra, Manny operaria alguém naquela noite.


CAPÍTULO 5

Butch O’Neal não era o tipo de cara que deixava uma dama em perigo.

Era alguém à moda antiga... o policial... o devoto, o católico praticante que havia nele. Dito isso, ao receber a ligação da amável e talentosa Dra. Jane Whitcomb, o cavalheirismo não seguiu o instinto impulsivo. Nem um pouco.

Ao colocar o pé para fora do Buraco e correr ao longo do túnel em direção ao centro de treinamento da Irmandade, seus interesses e os dela estavam totalmente alinhados, mesmo sem se levar em conta toda a questão de “ser um cavalheiro”: os dois temiam que V. perdesse o controle outra vez.

Já exibia todos os sinais: tudo o que tinha de fazer era olhar para ele e ver que a tampa da panela de pressão estava trancada com força sobre todo aquele calor e confusão. O que aconteceria com toda aquela pressão? Teria de encontrar uma vazão de alguma maneira e, no passado, isso aconteceu das piores maneiras possíveis.

Saindo da porta oculta e emergindo no escritório, Butch virou à direita e desceu ao longo do corredor que levava às instalações médicas. O sopro sutil de tabaco turco no ar disse-lhe exatamente onde encontrar seu alvo, não que houvesse alguma dúvida.

Próximo à porta fechada da sala de exames, ajeitou os punhos da camisa e ergueu o cinto. A batida na porta foi suave. Já o batimento cardíaco estava forte.

Vishous não respondeu com um “entre”. Ao invés disso, o Irmão saiu e fechou a porta atrás de si.

Caramba, ele parecia estar mal. E suas mãos tremiam ligeiramente quando pegou um de seus cigarros para preparar. Enquanto lambia a coisa para selá-la, Butch enfiou a mão no bolso para oferecer o isqueiro, acendendo a chama e erguendo-a à frente. Quando seu melhor amigo inclinou-se para o brilho laranja, reconheceu cada detalhe daquele rosto cruel e impassível. Jane estava absolutamente certa. O pobre coitado estava sobrecarregado e segurava tudo aquilo.

Vishous inalou profundamente e, então, recostou-se contra a parede de concreto, os olhos perspicazes fixos à frente, as botas de combate plantadas solidamente no chão. Em determinado momento, murmurou:

– Não vai perguntar como estou?

Butch inclinou-se da mesma maneira, aproximando-se bem de seu amigo.

– Não precisa.

– Anda lendo mentes?

– Sim. Esse sou eu.

V. inclinou-se para o lado e bateu as cinzas no lixo.

– Então, pode me dizer no que estou pensando, certo?

– Tem certeza que quer que eu solte um monte de palavrões tão perto de sua irmã? – Quando isso produziu uma risada curta, Butch olhou para o perfil de V. As tatuagens ao redor do olho do cara estavam especialmente sinistras, se considerasse as marcas de preocupação que o cercavam, como se fossem nuvens em um inverno nuclear.

– Não quer que eu faça isso em voz alta, V. – disse suavemente.

– Ah. Faça uma tentativa.

Isso significava que V. precisava conversar, mas, considerando a situação, não daria certo forçar coisa nenhuma ali: o macho sempre “finalizava” as conversas, mas, pelo menos, estava indo melhor do que tinha ido... antes? Sim, sequer quebrou uma porta nem nada.

– Ela pediu para que cuide dela se isso não der certo, não foi? – Butch disse, pronunciando o que mais temia. – E não estamos falando de cuidados paliativos de enfermagem.

A resposta de V. foi soltar uma respiração que durou mais ou menos uns quinze minutos depois do infinito.

– O que vai fazer? – perguntou Butch, mesmo sabendo a resposta.

– Não vou hesitar. – O complemento da resposta “mesmo que isso me mate” ficou subentendido.

Maldita vida. Às vezes, as situações pelas quais as pessoas passavam eram cruéis demais.

Butch fechou os olhos e deixou a cabeça cair para trás, contra a parede. A família era tudo para os vampiros. Sua companheira, os Irmãos com quem lutava, seu sangue... era todo o seu mundo. E, segundo essa teoria, ele também sofria junto com V. e Jane e o resto da Irmandade.

– Com sorte, não chegará a fazer isso – Butch olhou para a porta fechada. – A doutora Jane vai encontrar o cara. Ela é como um cão farejador...

– Sabe o que me ocorreu há uns dez minutos?

– O quê?

– Mesmo que não fosse mais dia, ela gostaria de continuar sozinha para encontrá-lo.

Quando o aroma de vinculação do macho exalou, Butch pensou: “Certo, cara. Jane e o cirurgião conviveram juntos durante anos, então, se há algum tipo de persuasão a ser feito, ela terá mais oportunidades sozinha... isso concluindo que ela dará um jeito na coisa toda de voltar dos mortos. Além disso, V. era um vampiro. Caramba. Será que alguém precisava adicionar mais alguma dificuldade nessa confusão toda?”.

Assim, considerando tudo, seria ótimo se o cirurgião tivesse mais de dois metros de altura, estrabismo e pelo de urso nas costas. Ser extremamente feio seria sua única vantagem se o macho vinculado em V. fosse acionado.

– Sem ofensa – Butch murmurou –, mas dá para culpá-la?

– É minha irmã gêmea que está em jogo – o cara passou com força uma das mãos ao longo dos cabelos escuros. – Mas que droga, Butch... minha irmã.

Butch sabia alguma coisa sobre como era perder alguém, então, sim, podia entender o que o macho na frente dele sentia. E, cara, não sairia do lado do Irmão: ele e Jane eram os únicos que conseguiam acalmar Vishous quando ficava assim. Jane já teria muita coisa para fazer ao lidar com o cirurgião e sua paciente.

O som do celular de V. fez os dois saltarem, mas o Irmão recuperou-se rápido e não deu tempo para que um segundo toque chegasse a seus ouvidos.

– Mesmo? Conseguiu? Obrigado... cara... sim. Sim. Encontro vocês na garagem. Certo. – Houve uma pequena pausa e V. olhou como se quisesse ficar sozinho.

Louco para desaparecer dali, Butch olhou para seus sapatos. O Irmão nunca fora muito bom em demonstrações públicas de afeto ou em conversar sobre coisas pessoais com Jane se houvesse alguém por perto. Mas como Butch era um mestiço, não conseguia se desmaterializar – e para onde, diabos, ele correria?

Após V. murmurar um rápido “tchau”, tragou profundamente um de seus cigarros e disse em voz baixa ao expirar:

– Pode parar de fingir que não está a meu lado.

– Que alívio. Não sou muito bom nisso.

– Não tem culpa de ocupar espaço.

– Então, ela o encontrou? – Quando Vishous assentiu, Butch assumiu uma expressão mortalmente séria. – Prometa-me uma coisa.

– O quê?

– Não vai matar esse cirurgião. – Butch sabia muito bem como era dar uma volta lá fora e ter de retornar àquele mundo vampiro. No seu caso, deu tudo certo, mas e quanto a Manello? – Não é culpa do cara e nem problema seu.

V. balançou o cigarro sobre o lixo e olhou para cima, os olhos de diamante estavam frios como uma noite ártica.

– Vamos ver como ele vai se sair, tira.

Com isso, virou-se e entrou onde sua irmã estava.

Bem, pelo menos, o filho da mãe era honesto, Butch pensou junto com uma maldição.

Manny não gostava nem um pouco de outras pessoas dirigindo seu Porsche 911 Turbo. Na verdade, além de seu mecânico, ninguém mais o dirigia.

Contudo, naquela noite, permitiu que Jane assumisse a direção, pois, em primeiro lugar, era competente e poderia mudar as marchas sem destruir a transmissão; em segundo lugar, ela afirmava que a única maneira possível de levá-lo até onde precisavam ir era chegando lá dirigindo o automóvel ela mesma; e, em terceiro lugar, ainda estava se recuperando de ter visto alguém que havia enterrado aparecer de repente e dizer “Oi, tudo bem?”. Então, talvez não fosse uma boa ideia comandar uma máquina pesada que estava correndo a cento e vinte quilômetros por hora.

Não conseguia acreditar que estava sentado ao lado dela, indo para o norte, no carro dele.

Mas é claro que disse sim ao pedido dela. Sua atitude era patética com relação a mulheres aflitas... e também era um profissional viciado em uma sala de cirurgia. Que óbvio!

Porém, ainda havia muitas perguntas e muita fúria. Sim, com certeza, esperava chegar a um lugar cheio de paz, luz, sol e de toda aquela besteira piegas, mas não estava preocupado com toda essa história de lugar perfeito, o que era irônico. Quantas vezes olhou para o teto durante a noite, aninhado em sua cama com uma garrafa de uísque, rezando por algum milagre que trouxesse sua antiga chefe do departamento de traumatologia de volta para ele?

Manny olhou para o perfil de Jane. Iluminada pela luz do painel do carro, ainda mostrava ser inteligente. Ainda mostrava ser forte. Ainda era seu tipo de mulher.

Mas isso nunca aconteceria. Apesar de toda aquela mentira grosseira sobre sua morte, havia um anel cinza escuro em sua mão esquerda.

– Você se casou? – ele disse.

Ela não olhou para ele, apenas continuou dirigindo.

– Sim. Casei.

Aquela dor de cabeça que surgiu no instante da aparição passou imediatamente de incômoda para horrível. Enquanto isso, memórias sombrias surgiam sob a superfície de sua consciência como se fossem o Monstro do Lago Ness, torturando-o e tentando trazer tudo à tona.

Contudo, teve de interromper aquele processo cognitivo de recuperar lembranças antes que tivesse um aneurisma por causa da tensão. Além disso, não chegaria a lugar algum com isso... Por mais que tentasse não conseguiria entender o que sentia ali e tinha a sensação de que poderia causar danos permanentes se continuasse assim.

Quando ele olhou pela janela do carro, pinheiros e carvalhos mostravam-se altos e firmes sob o luar, o bosque que percorria os subúrbios de Caldwell ficava cada vez mais denso ao distanciarem-se da cidade e do nó asfixiante de pessoas e edifícios.

– Você morreu aqui – ele disse severamente. – Ou ao menos fingiu ter morrido.

Um ciclista encontrou o Audi de Jane entre as árvores, em um ponto da estrada não muito longe dali; o carro havia deslizado para fora do acostamento. Entretanto, não havia corpo... e não era por causa do fogo, que havia surgido após a queda.

Jane limpou a garganta.

– É triste, mas tudo o que tenho a dizer é “sinto muito”. Sei que é uma droga.

– Não é exatamente uma festa para mim também.

Silêncio. Muito silêncio. Mas não queria ficar perguntando muita coisa se tudo o que receberia como resposta era um “sinto muito”.

– Gostaria de poder ter lhe contado – ela disse de repente. – Você foi a pessoa mais difícil de ser deixada.

– Mas não abandonou seu trabalho, não é mesmo? Porque ainda está trabalhando como cirurgiã.

– Sim, estou.

– Como é seu marido?

Nesse momento, ela estremeceu.

– Vai conhecê-lo.

Ótimo. Que alegria!

Diminuindo a velocidade, ela virou à direita em direção a... uma estrada de terra? Mas que droga é essa?

– Para sua informação – ele murmurou –, este carro foi feito para pistas de asfalto, não para percursos assim.

– É o único caminho.

Para onde? Ele se perguntou.

– Você vai ficar me devendo algo muito grande por isso.

– Eu sei. Mas você é o único que pode salvá-la.

Manny piscou os olhos.

– Não disse nada sobre ser “ela”.

– Isso importa?

– Se pensar que não estou entendendo nada do que está acontecendo, tudo importa.

Após percorrerem uns dez metros, começaram a passar por vários atoleiros que eram tão profundos quanto malditos lagos e, enquanto seu Porsche trepidava, sentiu algo arranhando seu estômago e apertou os dentes.

– Que se dane essa paciente, quero um reembolso pelo que está fazendo ao chassi do meu carro.

Jane soltou uma risadinha e isso fez com que o centro de seu peito doesse... mas tinha de cair na real. Os dois nunca estiveram, de fato, juntos. Claro, houve uma atração de sua parte, uma grande atração. E, talvez, um beijo. Mas isso foi tudo.

E agora ela era a Sra. de Outra Pessoa, e também tinha acabado de voltar do maldito mundo dos mortos.

Cristo, que tipo de vida ele tinha? Por outro lado, talvez aquilo fosse um sonho... Isso o animou, pois talvez Glory não tivesse se acidentado também.

– Não me disse o tipo de lesão – disse ele.

– Quebra na coluna vertebral. Entre C6 e C7. Nenhuma sensação abaixo da cintura.

– Droga, Jane... Isso é complicado.

– Agora sabe por que preciso tanto de você.

Mais ou menos cinco minutos mais tarde, aproximaram-se de portões que pareciam ter sido construídos durante as Guerras Púnicas, pelo menos dois séculos antes de Cristo... A coisa parecia estar fixada ali nos moldes de Alice no País das Maravilhas, os elos da corrente estavam enferrujados e quebrados em alguns lugares. E a barra que os atravessava? Aquela porcaria não valia nem o esforço de ser manuseada, não era nada além de um pedaço de arame usado para cerca de gado e que já tinha vivido dias melhores. No entando, a maldita coisa abriu sem problemas, e enquanto entravam, viu a primeira câmera de vídeo.

Ao avançarem a passos lentos, uma névoa estranha veio do nada, a paisagem ficou fora de foco até não conseguir enxergar nada que havia além de trinta centímetros à frente do carro. Cristo, era como se estivessem em um episódio de Scooby-Doo.

E, então, houve um progresso curioso: o próximo portão estava em condições um pouco melhores; o seguinte era ainda mais novo e o quarto parecia ter apenas um ano, no máximo. O último portão estava brilhando e parecia algo saído de Alcatraz: mais de sete metros de altura e avisos de alta voltagem espalhados por toda sua extensão. E aquele muro no qual o portão estava instalado? Não era bem para conter gado... Talvez dinossauros. E podia apostar que os tijolos deviam ter pelo menos meio metro de espessura.

Manny girava a cabeça de um lado a outro à medida que avançavam e começavam a descer por um túnel tão profundo e com uma estrutura tão forte que poderia atravessar por baixo do rio Hudson. Quanto mais desciam, mais a grande questão que o assolava desde a aparição intensificava-se em sua mente: por que forjar a morte? Por que provocar o caos que tinha causado na vida dele e na dos outros que trabalhavam com ela no Hospital São Francisco? Nunca tinha sido uma mulher cruel, mentirosa, não tinha problemas financeiros, nem nada do que fugir.

Agora sabia, mesmo que não tivesse dito uma palavra: Governo dos Estados Unidos.

Aquele cenário, aquela estrutura no sistema de segurança... Um local oculto nos subúrbios de uma cidade suficientemente grande, mas não tão grande quanto Nova York, Los Angeles ou Chicago? Tinha de ser o Governo. Quem mais poderia pagar por isso?

E quem era a mulher a quem trataria?

O túnel terminou em uma típica garagem subterrânea, com pilares e vagas limitadas por faixas amarelas... e, mesmo sendo tão grande, o local estava vazio. Havia apenas duas vans, que não conseguia distinguir muito bem a marca, com vidros escurecidos e um micro-ônibus que também tinha vidros filmados.

Antes mesmo de ela estacionar o Porsche na garagem, uma porta de aço abriu-se e...

Bastou um olhar no cara enorme que saiu dali e a cabeça de Manny explodiu, a dor atrás dos olhos ficou tão intensa que escorregou no banco do carro, os braços caíram e seu rosto contorceu-se de agonia. Jane lhe disse alguma coisa. Uma porta do carro foi aberta. Em seguida, a dele.

A brisa que o atingiu era seca e cheirava vagamente a terra... mas havia algo mais. Colônia. Uma fragrância amadeirada de especiarias que era, ao mesmo tempo, cara e agradável, mas também algo que despertava nele um desejo curioso de sair correndo.

Manny forçou as pálpebras a se abrirem. Sua visão estava muito turva, mas era incrível o que a necessidade obrigava alguém a fazer... E quando o homem a sua frente entrou em foco, viu-se encarando o filho da mãe de cavanhaque que tinha...

Com uma onda de dor, seus olhos reviraram e quase vomitou.

– Precisa liberar as memórias – ouviu Jane dizer.

Houve alguma conversa nesse ponto, a voz de sua antiga colega misturava-se com os tons profundos daquele homem com tatuagens nas têmporas.

– Isso o está matando...

– É arriscado demais...

– Como ele vai operar desse jeito?

Houve um longo silêncio. E, então, de repente, a dor foi retirada como se fosse um véu sendo levantado – toda aquela pressão saiu de dentro dele em um piscar de olhos. Em seu lugar, as lembranças inundaram sua mente.

A paciente de Jane. O Hospital São Francisco. O homem com o cavanhaque e... um coração de seis válvulas.

Manny abriu bem os olhos e encarou aquele rosto cruel.

– Conheço você.

– Tire-o do carro – foi a única resposta do cara de cavanhaque. – Não confio nos meus atos se tocar nele.

Que maravilha de boas-vindas. E havia alguém atrás do desgraçado. Um homem que Manny tinha cem por cento de certeza de que já havia visto antes... Contudo, deve ter sido algo muito rápido, pois não conseguia lembrar-se de seu nome ou de onde se conheceram.

– Vamos – Jane disse.

Sim. Grande ideia. Naquele momento, precisava de alguma coisa para se concentrar que não tivesse nada relacionado com aquela situação de não saber o que dizer.

Enquanto o cérebro de Manny lutava para processar o que estava acontecendo, percebeu que ao menos seus pés e pernas seguiam o programa. Depois que Jane o ajudou a sair do carro e a ficar em pé, começou a segui-la e ao cara de cavanhaque pela instalação que era tão insípida e limpa quanto um hospital: corredores sóbrios, lâmpadas fluorescentes no teto, tudo cheirava a produtos de limpeza.

Havia também câmeras de segurança que moviam-se em intervalos regulares, como se o edifício fosse um monstro com muitos olhos.

Enquanto caminhavam, sabia que não devia fazer qualquer pergunta. Bem, sabia disso e de que sua cabeça estava tão confusa que tinha a certeza de que se mover era o máximo de suas habilidades naquele momento. Em seguida, percebeu o cara do cavanhaque e seu olhar mortal... não era exatamente uma abertura para iniciar um bate-papo.

Portas. Passaram por muitas portas, todas as quais foram fechadas em seguida e, sem dúvida, trancadas.

Palavrinhas interessantes como local secreto e segurança nacional brincaram em seu crânio, e isso ajudou muito, fazendo-o acreditar que talvez pudesse perdoar Jane por desaparecer da vida dele... um dia.

Quando Jane parou diante de uma porta dupla, suas mãos brincaram com as lapelas do jaleco branco e, em seguida, com o estetoscópio no bolso. E essa reação só fez com que tivesse a sensação de que tinha uma arma na cabeça: na sala de cirurgia, nos incontáveis problemas graves que se passaram no departamento de traumatologia, ela sempre mantivera a calma. Era sua marca registrada.

Mas aquilo era pessoal, ele pensou. De alguma maneira, seja lá o que estivesse do outro lado daquelas portas, estava relacionado a alguém próximo a ela.

– Tenho bons equipamentos aqui – ela disse. – Mas não tudo. Não tenho ressonância magnética. Apenas tomografias e raios-X. Contudo, a sala de cirurgia é adequada e não só posso ajudar como também tenho uma excelente enfermeira.

Manny respirou fundo, muito fundo, recompondo-se. Com toda força de vontade, calou todas as perguntas, a persistente indignação em sua cabeça e a estranheza daquela viagem ao mundo da espionagem ao estilo 007.

Primeiro item em sua lista de coisas a fazer? Despistar o público revoltado dali.

Olhou por cima do ombro, em direção ao cara de cavanhaque.

– Vai precisar sair daqui, amigo. Quero você fora, no corredor.

A reação que teve depois disso foi... simplesmente fantástica, principalmente se fosse um dentista: o desgraçado exibiu um par de caninos tão longos quanto seu braço e rosnou, em alto e bom som, como um cachorro.

– Certo – disse Jane, posicionando-se entre eles. – Tudo bem. Vishous vai esperar lá fora.

Vishous? Será que tinha ouvido direito?

Por outro lado, a mãe do menino devia ser louca de pedra, considerando o pequeno espetáculo odontológico. Não importa. Tinha trabalho a fazer e, talvez, o filho da mãe mastigasse couro duro ou algo assim.

Entrando na sala de exames ele...

Oh... santo Deus.

Ah... meu Deus do céu.

A paciente sobre a mesa estava deitada como águas tranquilas... era provavelmente a coisa mais linda que ele já tinha visto: o cabelo era muito preto e trançado em uma corda grossa que pendia livre ao lado de sua cabeça. A pele era de um marrom dourado, como se ela fosse descendente de italianos e tivesse sido exposta ao sol recentemente. Olhos... seus olhos eram como diamantes, muito claros e brilhantes ao mesmo tempo, com apenas uma borda escura ao redor da íris.

– Manny?

A voz de Jane estava bem atrás dele, mas sentiu como se estivesse a quilômetros de distância. Na verdade, o mundo inteiro estava em outro lugar, nada existia além do olhar de sua paciente que o encontrou do alto daquela mesa com a cabeça imobilizada.

Finalmente havia acontecido, pensou. Durante a vida inteira perguntara-se por que nunca havia se apaixonado e agora sabia a resposta. Estava esperando aquele momento, aquela mulher, aquela hora.

Esta mulher é minha, pensou.

E mesmo sabendo que aquilo não fazia sentido algum, a convicção era tão forte que não conseguia questionar.

– Você é o curandeiro? – ela disse em uma voz baixa que parou seu coração. – Você está aqui... por mim?

Suas palavras tinham um sotaque forte – maravilhoso por sinal –, e havia também um tom um pouco surpreso.

– Sim. Sou eu. – Arrancou o casaco do terno e jogou-o em um canto, sem dar a mínima importância para onde havia caído. – Estou aqui por você.

Quando se aproximou, lágrimas deslizaram de seus olhos cobertos de gelo.

– Minhas pernas... sinto como se estivesse as movimentando, mas acho que não consigo.

– Doem?

– Sim.

Dor fantasma. Não era uma surpresa.

Manny deteve-se ao lado dela e olhou para seu corpo, que estava coberto com um lençol. Era alta. Pelo menos um metro e oitenta. E era constituída com uma força elegante. Era uma guerreira, pensou, observando a força de seus braços. Uma lutadora.

Deus, a perda da mobilidade em alguém como ela tirava-lhe o fôlego. Por outro lado, mesmo que se tratasse de alguém viciado em televisão, a vida em uma cadeira de rodas seria terrível; mas, para alguém como ela, seria uma sentença de morte.

Manny aproximou-se e pegou a mão dela... No instante em que fez contato, o corpo dele como um todo estremeceu, como se ela fosse a tomada do seu plugue interior.

– Vou cuidar de você – disse enquanto olhava diretamente em seus olhos. – Quero que confie em mim.

Ela engoliu a saliva quando uma lágrima cristalina deslizou de seus olhos. Por instinto, ele estendeu a mão e a deteve com a ponta do dedo...

O rosnado que infiltrou-se pela porta era uma ameaça, uma contagem regressiva para se afastar, mas não deu importância àquilo. Quando olhou para o cara de barbicha, sentiu como se estivesse rosnando de volta para o filho da mãe. O que, mais uma vez, não fazia sentido algum.

Ainda segurando a mão de sua paciente, exclamou para Jane:

– Tire esse bastardo miserável da minha sala de cirurgia. E quero ver os malditos exames e radiografias. Agora.

Ele ia salvar aquela mulher, mesmo se aquilo o matasse.

Quando os olhos do Sr. Cavanhaque brilharam em direção a ele com puro ódio, Manny pensou: “Bem, esse é o máximo que o cara pode fazer...”.


CAPÍTULO 6

Qhuinn saiu sozinho em Caldwell, pela primeira vez na vida.

Quando pensou melhor sobre isso, concluiu que era quase uma impossibilidade estatística. Passou tantas noites lutando, bebendo e fazendo sexo dentro e ao redor dos clubes noturnos do centro da cidade que pelo menos um ou dois voos tinham de ter sido feitos sozinho. Mas não. Quando entrou no Iron Mask, estava sem a companhia de seus dois amigos pela primeira vez.

De qualquer forma, as coisas eram diferentes agora. Os tempos tinham mudado. As pessoas também.

John Matthew estava agora muito feliz casado; então, quando tinha uma folga, como naquela noite, ficava em casa com sua shellan, Xhex, fazendo a cama praticar uma série de exercícios de resistência. Sim, claro, Qhuinn era um ahstrux nohtrum e tudo mais, mas Xhex era uma symphato assassina totalmente capaz de cuidar de seu macho, e da Adaga Negra.

O complexo da Irmandade era uma fortaleza que nem mesmo uma equipe da SWAT poderia invadir. Assim, ele e John chegaram a um acordo... e deixaram isso em segredo.

Quanto a Blay... Qhuinn não ia pensar sobre seu melhor amigo. Não. De jeito nenhum.

Observando o interior do clube, iniciou sua máquina de seleção interna e começou a abrir caminho por meio das mulheres, homens e casais. Havia uma e apenas uma razão para ter ido até ali, e era a mesma que havia levado os outros góticos àquele local.

Não era um lugar para se procurar um relacionamento, sequer uma companhia. Tratava-se apenas de movimentar-se entrando e saindo e, quando tudo estivesse acabado, era o caso de dizer “Obrigado, moça” – ou “cara”, dependendo de seu humor –, “Estou dando o fora”. Porque ele ia precisar de outra pessoa. Ou outras pessoas.

Não investiria apenas uma vez naquela noite; sentia como se estivesse arrancando a própria pele, seu corpo latejava com força, necessitando de alívio. Cara, sempre gostou de transar, mas nos últimos dias sua libido tinha aumentado até crescer como um monstro.

Será que Blay não era mais seu melhor amigo?

Qhuinn fez uma pausa e olhou rapidamente uma vitrine antes de inclinar a cabeça sobre ela: caramba, não tinha mais cinco anos. Machos adultos não têm melhores amigos. Não precisam deles, especialmente se o macho em questão estivesse transando com outra pessoa. O dia inteiro. Todos os dias.

Qhuinn andou até o bar.

– Tequila. Dose dupla. E traga a melhor que tiver.

Os olhos da mulher aqueceram-se por trás do pesado delineador e dos cílios postiços.

– Já vai pagar a comanda?

– Sim – e considerando a maneira como ela escorregou a mão sobre o estômago achatado e desceu ainda mais pelo quadril, ele poderia ter pedido, com certeza, um pedaço dela também.

Quando ele estendeu o cartão de crédito, ela fez um movimento amplo com os seios para pegar a maldita coisa, inclinando-se de tal forma que poderia muito bem pegar algo no chão com os mamilos.

– Volto já, já com sua bebida.

Que surpresa.

– Ótimo.

Estava perdendo tempo ao sair rebolando como fez: não era nada disso que procurava naquela noite... não chegava nem perto. Sexo errado, para começar. E não ia investir em nada que tivesse cabelos escuros. Para dizer a verdade, não conseguia acreditar no que queria.

Tinha algumas limitações por ser daltônico, mas quando vestia apenas preto e trabalhava à noite, na maioria das vezes, isso não era grande coisa. Além disso, seus olhos desiguais eram tão perspicazes e sensíveis às variações de cinza que realmente percebias as “cores” – era tudo uma questão de gradação. Por exemplo, sabia quem eram as pessoas loiras no clube. Sabia a diferença entre as morenas e as de cabelos negros. E, sim, poderia enganar-se e interpretar mal se algum idiota tivesse feito uma tintura estranha, mas, mesmo assim, poderia dizer que havia algo estranho, porque o tom de pele nunca combinava direito com a cor artificial do cabelo.

– Aqui está – disse a bartender.

Qhuinn estendeu a mão, pegou o copo, bebeu a tequila e voltou a colocá-lo vazio sobre o balcão do bar.

– Vamos tentar isso mais algumas vezes.

– É pra já. – Exibiu seu par de seios novamente, sem dúvida com a esperança de que ele os agarrasse a qualquer momento. – Você é o tipo de cliente que gosto. Porque é óbvio que consegue lidar com uma boa bebida.

Uh-hum. Claro. Como se a habilidade de ingerir o equivalente a quatro doses de álcool de uma vez só fosse grande coisa. Deus, a ideia de que alguém, com esse sistema de valores, tivesse permissão para votar fazia com que ele desejasse encarar a vitrine outra vez.

Humanos eram patéticos.

Contudo, quando olhou para trás para observar a multidão, pensou que baixar a bola seria uma boa. Sentia-se patético sozinho naquela noite, especialmente quando viu dois homens em um canto, os dois separados apenas pelas roupas de couro que vestiam. Naturalmente, um deles era loiro. Assim como seu primo. Então, era claro que imagens hipotéticas de Blay e Saxton começaram a brincar em seu campo de polo interior, marcando seu gramado com pegadas e bosta de cavalo.

Só que não eram hipotéticos, mas reais: no final de todas as noites, quando as pessoas à mesa da mansão da Irmandade começavam a se dispersar depois da Última Refeição e a sair para resolver seus assuntos particulares, Blay e Saxton dirigiam-se discretamente para a grande escadaria e desapareciam no corredor do andar de cima, onde seus quartos ficavam.

Nunca tinham se dado as mãos, nunca tinham se beijado na frente de ninguém, e também não havia olhares de reprovação. Por outro lado, Blay era um cavalheiro, e Saxton era uma vagabunda elegante inserida de alguma maneira em um grande espetáculo.

Seu primo era uma verdadeira prostituta...

Não, não é, uma pequena voz soou. Só o odeia porque está de caso com seu garoto.

– Ele não é meu garoto.

– O que disse?

Qhuinn lançou um olhar ao espectador... e, em seguida, reassumiu seu ar durão. Bingo, ele pensou.

Ao lado dele estava um macho humano, mais ou menos um metro e oitenta com um cabelo fabuloso, rosto bonito e lábios muito agradáveis. As roupas não eram totalmente góticas, mas tinha algumas correntes na cintura e duas argolas em uma das orelhas. Mas foi a cor do cabelo que realmente fez a diferença.

– Estava falando sozinho – Qhuinn murmurou.

– Ah. Faço muito isso. – O sorriso foi breve e, em seguida, o cara voltou a cuidar de sua...

– O que está bebendo? – Qhuinn perguntou.

Um copo já na metade foi erguido.

– Vodka e tônica. Não suporto essa coisa de adocicar a bebida.

– Nem eu. Vou de tequila. Pura.

– Patrón?

– Nunca. Gosto da Herradura.

– Ah – o cara virou-se e olhou para frente em direção à multidão. – Gosta das coisas como são.

– Sim.

Qhuinn queria perguntar se o Sr. Vodka e Tônica estava observando os caras ou as garotas, mas permaneceu em silêncio. Cara, aquele cabelo era incrível. Grosso. Enrolado nas pontas.

– Está procurando por alguém em particular? – Qhuinn disse em voz baixa.

– Talvez. E você?

– Com certeza.

O cara riu.

– Tem muita mulher bonita aqui. Pode escolher.

Mas. Que. Droga. Que sorte a dele: um hétero. Por outro lado, talvez pudessem dividir alguma coisa e começar por aí.

O cara inclinou-se e ofereceu a palma da mão.

– Eu sou...

Quando os dois entreolharam-se completamente, o cara deixou a sentença à deriva, mas não tinha importância. Qhuinn não dava a mínima para o nome dele.

– Seus olhos têm cores diferentes? – o cara perguntou suavemente.

– Sim.

– Isso é muito... legal.

Bem, sim. Quando não se é um vampiro nascido na glymera. Se esse fosse o caso, seria considerado um defeito físico que significava ser geneticamente ruim e, portanto, uma vergonha para sua linhagem e absolutamente inabilitado para o acasalamento.

– Obrigado – Qhuinn disse. – Qual é a cor dos seus?

– Não pode dizer?

Qhuinn deu um tapinha sobre a lágrima tatuada perto do olho.

– Daltônico.

– Ah. Os meus são azuis.

– E você é ruivo, certo?

– Como sabe disso?

– Pelo seu tom de pele. Além disso, você é meio pálido e tem sardas.

– Isso é incrível – o cara olhou ao redor. – Está escuro aqui... não imaginava que conseguiria enxergar.

– Acho que posso – e acrescentou mentalmente: e que tal se eu lhe mostrar alguns dos meus outros truques.

O novo amigo de Qhuinn sorriu um pouco e voltou a observar a multidão. Depois de um minuto, disse:

– Por que está olhando para mim assim?

Porque quero transar com você.

– Você me lembra alguém.

– Quem?

– Alguém que perdi.

– Oh, droga, sinto muito.

– Tudo bem. A culpa é minha.

Pequena pausa.

– Então, você é gay, certo?

– Não.

O cara deu risada.

– Desculpe. Apenas imaginei que... Bom, acho que era um bom amigo.

Nenhum comentário.

– Vou encher o copo outra vez. Posso fazer isso para você também?

– Obrigado, cara.

Qhuinn virou-se e sinalizou para a atendente. Enquanto esperava ela se aproximar rebolando, planejou sua abordagem. Primeiro, um pouco mais de álcool. Em seguida, adicionaria algumas fêmeas à mistura. O terceiro passo seria entrar em um dos banheiros e transar com a(s) garota(s).

Então... Mais alguns olhares. De preferência quando um deles ou os dois estivessem dentro de uma mulher. Pois por mais que o ruivo de cabelo espetacular parecesse estar a fim das garotas, o filho da mãe tinha sentido alguma coisa quando os dois se entreolharam – e hétero é um termo relativo.

Assim como virgem.

Isso fazia com que os dois se enquadrassem nesses termos, não? Afinal, Qhuinn nunca, jamais, havia ficado com alguém de cabelo vermelho.

Mas aquela noite seria uma exceção.


CONTINUA

CAPÍTULO 4

No centro de Caldwell havia vários prédios altos, cheios de janelas espelhadas, mas nenhum era como o Commodore. Com trinta andares, estava entre os mais altos daquela floresta de concreto e os sessenta apartamentos que abrigava eram totalmente fantásticos, ao estilo de grandes empresários como Donald Trump, revestido de mármore e detalhes cromados; tudo era muito bem projetado.

No vigésimo sétimo andar, Jane entrou no apartamento de Manny, procurando por sinais de vida, e o que encontrou foi... nada. Literalmente. A casa do cara aproximava-se mais de uma pista de dança do que uma pista de obstáculos: a mobília era composta de três objetos na sala e uma cama enorme na suíte principal. Ponto. Bem, e algumas banquetas de couro ao redor do balcão da cozinha. Quanto às paredes? A única coisa que havia pendurado ali era uma TV de plasma do tamanho de um outdoor. Não havia tapetes sobre os pisos de madeira, apenas mochilas de academia... mais mochilas de academia... e calçados esportivos.

Nada disso indicava que era desorganizado; não tinha coisas suficientes para ser considerado assim.

Com um pânico crescente, entrou no quarto dele e viu mais ou menos meia dúzia de uniformes cirúrgicos deixados em pilhas no chão, como poças d’água após uma tempestade e... nada mais.

Mas a porta do armário estava aberta e ela entrou...

– Meu Deus... mas que droga.

Havia um conjunto de três malas alinhado no chão, onde deveria estar uma pequena, uma média e outra grande... mas a do meio não estava lá. Então, concluiu o que estava acontecendo ao considerar os espaços vazios que havia entre os cabides de calças e camisas: estava fora, em uma viagem. Talvez durante todo o fim de semana.

Sem muita esperança, discou para o sistema de atendimento do hospital e chamou-o outra vez...

Notou que estava recebendo outra chamada e amaldiçoou quando observou o número.

Respirando fundo, respondeu:

– Oi, V.

– Nada?

– Nada no hospital ou no apartamento. – Um rosnado sutil chegou até ela pelo telefone e ampliou a angústia da busca que ainda não tinha dado em nada. – Também procurei na academia, vindo para cá.

– Invadi o sistema do Hospital São Francisco e consegui os horários dele.

– Onde ele está?

– Tudo o que diz lá é que Goldberg está de plantão, certo? Olha, o sol se pôs. Vou sair daqui em, mais ou menos...

– Não, não... fique com Payne. Ehlena é ótima, mas acho que deveria ficar com ela.

Houve uma grande pausa, como se ele soubesse que estava sendo despistado.

– O que vai fazer agora?

Apertou o telefone e perguntou-se a quem deveria recorrer. Deus? À mãe dele?

– Não tenho certeza. Mas liguei para ele. Duas vezes.

– Ligue quando encontrá-lo. Vou pegar vocês.

– Posso levá-lo até em casa...

– Não vou machucá-lo, Jane. Não tenho a menor intenção de deixá-lo em pedaços.

Sim, mas considerando o tom de voz frio, teve de se perguntar sobre aqueles planos bem intencionados de vampiros cheios de autocontrole e blá, blá, blá... Acreditava que Manny viveria para tratar da irmã gêmea de V. Mas, e depois? Tinha suas reservas... especialmente se as coisas dessem errado na sala de cirurgia.

– Vou esperar aqui mais um pouco; talvez ele apareça, ou ligue. Se isso não acontecer, penso em outra coisa.

No longo silêncio, praticamente conseguia sentir uma corrente de ar frio chegando através do celular. Seu companheiro fazia muitas coisas direito: lutar, fazer amor, lidar com qualquer coisa relacionada à informática. Ser forçado a ficar parado? Não era bem uma de suas competências inatas. Na verdade, era garantia de deixá-lo enlouquecido.

Ainda assim, o fato de não confiar nela fez com que se sentisse distante dele.

– Fique com sua irmã, Vishous – disse em um tom de voz equilibrado. – Manterei contato.

Silêncio.

– Vishous. Confie em mim e vá ficar ao lado dela.

Ele não disse coisa alguma depois disso. Apenas desligou.

Quando pressionou a tecla end do telefone, soltou um palavrão.

Uma fração de segundo depois estava discando outra vez e no instante em que ouviu uma voz profunda atender, teve de enxugar uma lágrima que, se pensasse em toda sua natureza translúcida, era muito, muito real.

– Butch – ela resmungou –, preciso de sua ajuda.

Quando o pouco que restava do pôr do sol desapareceu e a noite bateu seu cartão de ponto, assumindo o turno seguinte, o carro de Manny deveria ter ido para casa. Deveria ter sido levado por si só direto para Caldwell.

Ao invés disso, acabou chegando ao extremo sul da cidade, onde as árvores eram grandes e as extensões de grama superavam as de asfalto em até dez vezes mais.

Fazia sentido. Os cemitérios deveriam ter longos trechos de terra, pois não se podia enterrar um caixão no concreto. Bem, até poderia... se se tratasse de um mausoléu.

O cemitério Bosque dos Pinheiros ficava aberto até as dez da noite, seus grandes portões de ferro permaneciam escancarados e seus inúmeros postes de iluminação forjados em ferro emitiam uma luz amarelo-manteiga ao longo do labirinto de ruas. Quando entrou, foi para a direita, os faróis do carro iluminando o local ao longo das lápides e do gramado.

Em última análise, o local para onde se dirigia não significava nada: não havia um corpo embaixo da lápide de granito que ia visitar – não restara nada para ser enterrado. Nada de cinzas para colocar em uma vasilha, também... ou, pelo menos, nada que se pudesse separar com certeza de dentro de um Audi que havia pegado fogo.

Depois de dar, mais ou menos, um quilômetro de voltas, tirou o pé do acelerador e deixou o carro deslizar até estacionar. Até onde conseguia ver, era o único no cemitério, mas isso não era problema para ele. Não havia razão para se ter uma audiência.

Quando saiu do carro, o ar frio não ajudou a limpar sua mente, mas deu algo para seus pulmões fazerem quando inalou profundamente e caminhou sobre a grama áspera da primavera. Teve o cuidado de não pisar em nenhuma tumba enquanto avançava... claro, os mortos não saberiam que estava andando acima deles, mas parecia uma coisa respeitosa a fazer.

O túmulo de Jane estava à frente, e desacelerou o passo quando aproximou-se daquilo que não havia sido deixado por ela, por assim dizer.

Ao longe, o apito de um trem cortou o silêncio... e o som vazio e lúgubre era um clichê tão grande que se sentiu em um filme o qual nunca assistiria sentado em casa, muito menos pagaria para ver em um cinema.

– Droga, Jane.

Inclinando-se, passou os dedos sobre as marcas irregulares da lápide. Foi ele quem tinha escolhido a pedra escura de azeviche, pois ela não teria gostado nem um pouco de algo pastel ou desbotado. E a inscrição também era simples e descomplicada, apenas seu nome, datas e uma frase na parte inferior: DESCANSE EM PAZ.

Sim. Deu a si mesmo nota dez em originalidade por isso.

Lembrava-se exatamente onde estava quando soube que ela tinha morrido: no hospital, claro. Era final de um longo plantão que tinha começado com o joelho de um jogador de hóquei e terminado com a reconstrução espetacular de um ombro, isso porque o viciado decidiu tentar voar.

Saiu da sala de cirurgia e encontrou Goldberg esperando próximo às pias de higienização. Manny parou no meio do processo de retirar a máscara cirúrgica ao dar apenas uma olhada no rosto pálido de seu colega. Com a coisa pendurada em seu queixo como um babador, exigiu saber o que diabos havia acontecido de errado – contando o tempo todo que se tratava de um acidente com quarenta carros engavetados na estrada ou um acidente de avião ou um hotel incendiado... algo relacionado a uma tragédia que englobasse toda uma comunidade.

Só que quando olhou sobre o ombro do cara e viu cinco enfermeiras e três outros médicos... Todos com a mesma aparência de Goldberg... E nenhum deles correndo para chamar outros funcionários para assumirem plantão ou preparando as salas de cirurgia.

Certo. Tinha acontecido algo que englobava toda uma comunidade. A comunidade deles.

– Quem? – perguntou.

Goldberg olhou para trás, em direção a sua tropa de apoio e foi então que Manny entendeu. E mesmo com as entranhas congeladas dentro dele, agarrou-se a uma esperança irracional de que o nome que estava prestes a sair da boca de seu colega cirurgião não fosse...

– Jane. Acidente de carro.

Manny não perdeu tempo.

– Quando ela deu entrada?

– Não chegou a dar entrada.

Com isso, Manny não disse nada. Terminou de tirar a máscara de seu rosto, amassou-a e descartou-a na lata de lixo mais próxima.

Quando foi passando por eles, Goldberg abriu a boca outra vez.

– Nem uma palavra – Manny ladrou. – Nem. Uma. Palavra.

Os outros funcionários começaram a tropeçar entre eles mesmos para sair do caminho, dividindo o grupo com a precisão de um pedaço de tecido cortado ao meio.

Voltando ao presente, não conseguia se lembrar onde tinha ido ou o que tinha feito depois disso... não importava quantas vezes voltasse sua mente àquela noite obscura, esses momentos eram como um buraco negro. Contudo, em dado momento, percebeu que tinha chegado em seu apartamento, pois acordou ali dois dias depois e viu que ainda estava com o uniforme cirúrgico respingado com o sangue do último paciente que havia operado.

O mais irritante de tudo era o fato de que Jane tinha salvado tantas pessoas vítimas de acidentes de carro. A ideia de ter sido levada dessa maneira levava-o a pensar que o Ceifeiro da Morte veio atrás dela para cobrar todas as almas que tinha afastado do alcance de suas garras mortais.

O som de outro apito de trem o fez querer gritar.

O trem e aquele pager apitando.

Hannah Whit. Outra vez?

Mas que diabos...

Manny franziu o cenho e olhou para a lápide. Salvo engano, a irmã mais nova de Jane chamava-se Hannah. Whit. Whitcomb?

Só que ela tinha morrido muito cedo.

Não tinha?

Loucura. Total.

Deus, deveria ter trazido seus tênis para essa aventura, Jane pensou enquanto andava sem rumo pelo apartamento de Manny. Outra vez. Teria deixado o apartamento se tivesse uma ideia melhor de onde ir, mas seu cérebro, mesmo sendo tão astuto, não conseguia enxergar outra opção...

Seu telefone tocando não era exatamente algo bom. Não queria dizer a Vishous que quarenta e cinco minutos depois não tinha nada de novo para relatar.

Pegou o celular.

– Oh... Deus.

Aquele número. Aqueles dez dígitos que sempre estiveram registrados na discagem rápida de todos os telefones que teve antes daquele. Manny.

Quando pressionou a tecla send, sua mente estava em branco e seus olhos cheios de lágrimas. Seu velho e querido amigo e colega de profissão...

– Alô? – ele disse. – Senhorita Whit?

Ao fundo, ouviu o soar fraco de um apito de trem.

– Alô? Hannah? – Aquele tom... era exatamente o mesmo de anos atrás: baixo, impositivo. – Tem alguém aí?

Aquele apito baixo soou outra vez.

Jesus Cristo... ela pensou. Sabia onde ele estava.

Jane desligou e saiu rápido do apartamento, do centro da cidade, atravessando a toda velocidade pelos subúrbios.

Viajando em um borrão à velocidade da luz, suas moléculas atravessaram a noite em uma corrida alucinante que percorreu quilômetros como se fossem centímetros.

O cemitério Bosque dos Pinheiros era o tipo de lugar que precisava de um mapa para se localizar nele, mas quando se é uma forma etérea no ar, pode-se percorrer uma centena de acres em apenas um piscar de olhos.

Quando tomou forma na escuridão perto de sua sepultura, respirou fundo e quase chorou.

Lá estava ele, em carne e osso. Seu chefe. Seu colega. O único a quem deixou para trás. E ele estava em pé atrás de uma lápide negra na qual havia seu nome esculpido.

Certo, agora sabia que tinha tomado a decisão certa quando não havia ido ao funeral. O mais perto que chegou disso foi lendo a notícia no Caldwell Courier Journal – e a imagem de todos aqueles cirurgiões, funcionários do hospital e pacientes emocionou-a demais. Mas aquilo era muito pior.

Manny parecia exatamente como ela mesma se sentia: arruinado por dentro.

Jesus, aquela loção pós-barba ainda cheirava bem... e apesar de ter perdido um pouco de peso, era um pedaço de mal caminho, com aquele cabelo escuro e aquele rosto rígido. Seu terno era de risca de giz e feito sob medida... mas havia sujeira em volta da bainha da calça muito bem passada. E seus sapatos estavam sujos também, fazendo com que ela se perguntasse onde diabos ele estivera. Com certeza não tinha ficado assim por causa da sepultura; depois de um ano, o solo ainda estava plano e coberto com grama bem aparada...

Oh, espere. O túmulo devia estar assim desde o primeiro dia. Ela não tinha deixado nada para ser enterrado.

Quando os dedos dele descansaram sobre a pedra, soube que foi ele quem tinha escolhido a sepultura. Ninguém mais teria tido o bom-senso de fazer exatamente o que ela gostaria que fizesse. Nada de muitos detalhes rococós ou dizeres complicados; curto, doce, no ponto.

Jane limpou a garganta.

– Manny...

Ele ergueu a cabeça, mas não olhou para ela... como se tivesse ouvido a voz dela apenas em sua mente.

Assumindo uma forma totalmente corpórea, ela falou mais alto.

– Manny.

Sob qualquer outra circunstância, a reação teria sido uma profusão de risos. Mas ele se virou, em seguida, gritou, tropeçou na lápide e caiu sentado no chão.

– Mas que... diabos... você está fazendo aqui? – ele engasgou. A expressão em seu rosto começou com um sentimento de horror, mas rapidamente mudou para a descrença absoluta.

– Sinto muito.

Era totalmente ridículo, mas foi tudo o que saiu de sua boca.

E parecia mais do que poderia suportar. Encontrar aqueles olhos castanhos fez com que, de repente, ela não tivesse nada a dizer.

Manny ergueu-se com um salto, e seu olhar escuro subia e descia observando o corpo dela.

E, por fim, subiu... fixando-se em seu rosto.

Foi quando a raiva veio. E também uma dor de cabeça, evidentemente, considerando a maneira como ele estremeceu e esfregou as têmporas.

– É algum tipo de piada?

– Não – ela desejava que fosse. – Sinto muito mesmo.

O olhar severo e cruel era dolorosamente familiar, e que ironia sentir-se nostálgica com um olhar ameaçador como aquele.

– Você sente muito.

– Manny, eu...

– Eu a enterrei. E você sente muito? Que porcaria é essa?

– Manny, não tenho tempo para explicar. Preciso de você.

Ele a encarou por um longo momento.

– Você aparece depois de um ano morta e diz que precisa de mim?

A realidade de quanto tempo havia se passado pesou sobre ela. Acima de tudo.

– Manny... não sabia o que lhe dizer.

– Oh, mesmo? Que tal: ah, puxa, por falar nisso, estou viva.

Ele a encarou. Apenas a encarou.

Então, com uma voz rouca, disse:

– Você faz alguma ideia do que foi perdê-la? – passou rapidamente a mão sobre os olhos. – Tem noção?

A dor no peito dela fez com que a respiração ficasse difícil.

– Sim. Porque perdi você... perdi minha vida com você e no hospital.

Manny começou a andar, aproximando-se e afastando-se da lápide. E, embora ela quisesse, sabia que não devia aproximar-se demais.

– Manny... se houvesse alguma maneira de voltar para você, eu voltaria.

– Você voltou. Uma vez. Pensei que era um sonho, mas não. Não era.

– Não.

– Como entrou no meu apartamento?

– Apenas entrei.

Ele se deteve e olhou para ela, a lápide ficou entre eles.

– Por que fez isso, Jane? Por que forjou sua morte?

Bem, na verdade, não havia forjado.

– Não tenho tempo para explicar agora.

– Então, que diabos está fazendo aqui. Que tal explicar isso?

Ela clareou a garganta e disse:

– Estou com uma paciente cujo tratamento exige além da minha capacidade e quero que dê uma olhada. Não posso dizer para onde vou levá-lo, não posso lhe dar muitos detalhes e sei que isso não é justo... mas eu preciso de você – Queria arrancar os cabelos. Cair aos prantos. Abraçá-lo. Mas continuou, por que era isso o que tinha de fazer. – Estou procurando por você há mais de uma hora, então, estou atrasada. Sei que está chateado e confuso e não o culpo. Mas fique com raiva de mim mais tarde... Apenas venha comigo agora. Por favor.

Tudo o que pôde fazer foi esperar. Manny não se convencia por alguém falar demais, não conseguiria persuadi-lo assim. Escolheria ir... ou não.

E, infelizmente, se fosse a segunda opção, ela teria de chamar os Irmãos. Por mais que amasse e sentisse falta de seu antigo chefe, Vishous era seu homem e se sentiria uma maldita se deixasse alguma coisa acontecer com a irmã dele.

De uma forma ou de outra, Manny operaria alguém naquela noite.


CAPÍTULO 5

Butch O’Neal não era o tipo de cara que deixava uma dama em perigo.

Era alguém à moda antiga... o policial... o devoto, o católico praticante que havia nele. Dito isso, ao receber a ligação da amável e talentosa Dra. Jane Whitcomb, o cavalheirismo não seguiu o instinto impulsivo. Nem um pouco.

Ao colocar o pé para fora do Buraco e correr ao longo do túnel em direção ao centro de treinamento da Irmandade, seus interesses e os dela estavam totalmente alinhados, mesmo sem se levar em conta toda a questão de “ser um cavalheiro”: os dois temiam que V. perdesse o controle outra vez.

Já exibia todos os sinais: tudo o que tinha de fazer era olhar para ele e ver que a tampa da panela de pressão estava trancada com força sobre todo aquele calor e confusão. O que aconteceria com toda aquela pressão? Teria de encontrar uma vazão de alguma maneira e, no passado, isso aconteceu das piores maneiras possíveis.

Saindo da porta oculta e emergindo no escritório, Butch virou à direita e desceu ao longo do corredor que levava às instalações médicas. O sopro sutil de tabaco turco no ar disse-lhe exatamente onde encontrar seu alvo, não que houvesse alguma dúvida.

Próximo à porta fechada da sala de exames, ajeitou os punhos da camisa e ergueu o cinto. A batida na porta foi suave. Já o batimento cardíaco estava forte.

Vishous não respondeu com um “entre”. Ao invés disso, o Irmão saiu e fechou a porta atrás de si.

Caramba, ele parecia estar mal. E suas mãos tremiam ligeiramente quando pegou um de seus cigarros para preparar. Enquanto lambia a coisa para selá-la, Butch enfiou a mão no bolso para oferecer o isqueiro, acendendo a chama e erguendo-a à frente. Quando seu melhor amigo inclinou-se para o brilho laranja, reconheceu cada detalhe daquele rosto cruel e impassível. Jane estava absolutamente certa. O pobre coitado estava sobrecarregado e segurava tudo aquilo.

Vishous inalou profundamente e, então, recostou-se contra a parede de concreto, os olhos perspicazes fixos à frente, as botas de combate plantadas solidamente no chão. Em determinado momento, murmurou:

– Não vai perguntar como estou?

Butch inclinou-se da mesma maneira, aproximando-se bem de seu amigo.

– Não precisa.

– Anda lendo mentes?

– Sim. Esse sou eu.

V. inclinou-se para o lado e bateu as cinzas no lixo.

– Então, pode me dizer no que estou pensando, certo?

– Tem certeza que quer que eu solte um monte de palavrões tão perto de sua irmã? – Quando isso produziu uma risada curta, Butch olhou para o perfil de V. As tatuagens ao redor do olho do cara estavam especialmente sinistras, se considerasse as marcas de preocupação que o cercavam, como se fossem nuvens em um inverno nuclear.

– Não quer que eu faça isso em voz alta, V. – disse suavemente.

– Ah. Faça uma tentativa.

Isso significava que V. precisava conversar, mas, considerando a situação, não daria certo forçar coisa nenhuma ali: o macho sempre “finalizava” as conversas, mas, pelo menos, estava indo melhor do que tinha ido... antes? Sim, sequer quebrou uma porta nem nada.

– Ela pediu para que cuide dela se isso não der certo, não foi? – Butch disse, pronunciando o que mais temia. – E não estamos falando de cuidados paliativos de enfermagem.

A resposta de V. foi soltar uma respiração que durou mais ou menos uns quinze minutos depois do infinito.

– O que vai fazer? – perguntou Butch, mesmo sabendo a resposta.

– Não vou hesitar. – O complemento da resposta “mesmo que isso me mate” ficou subentendido.

Maldita vida. Às vezes, as situações pelas quais as pessoas passavam eram cruéis demais.

Butch fechou os olhos e deixou a cabeça cair para trás, contra a parede. A família era tudo para os vampiros. Sua companheira, os Irmãos com quem lutava, seu sangue... era todo o seu mundo. E, segundo essa teoria, ele também sofria junto com V. e Jane e o resto da Irmandade.

– Com sorte, não chegará a fazer isso – Butch olhou para a porta fechada. – A doutora Jane vai encontrar o cara. Ela é como um cão farejador...

– Sabe o que me ocorreu há uns dez minutos?

– O quê?

– Mesmo que não fosse mais dia, ela gostaria de continuar sozinha para encontrá-lo.

Quando o aroma de vinculação do macho exalou, Butch pensou: “Certo, cara. Jane e o cirurgião conviveram juntos durante anos, então, se há algum tipo de persuasão a ser feito, ela terá mais oportunidades sozinha... isso concluindo que ela dará um jeito na coisa toda de voltar dos mortos. Além disso, V. era um vampiro. Caramba. Será que alguém precisava adicionar mais alguma dificuldade nessa confusão toda?”.

Assim, considerando tudo, seria ótimo se o cirurgião tivesse mais de dois metros de altura, estrabismo e pelo de urso nas costas. Ser extremamente feio seria sua única vantagem se o macho vinculado em V. fosse acionado.

– Sem ofensa – Butch murmurou –, mas dá para culpá-la?

– É minha irmã gêmea que está em jogo – o cara passou com força uma das mãos ao longo dos cabelos escuros. – Mas que droga, Butch... minha irmã.

Butch sabia alguma coisa sobre como era perder alguém, então, sim, podia entender o que o macho na frente dele sentia. E, cara, não sairia do lado do Irmão: ele e Jane eram os únicos que conseguiam acalmar Vishous quando ficava assim. Jane já teria muita coisa para fazer ao lidar com o cirurgião e sua paciente.

O som do celular de V. fez os dois saltarem, mas o Irmão recuperou-se rápido e não deu tempo para que um segundo toque chegasse a seus ouvidos.

– Mesmo? Conseguiu? Obrigado... cara... sim. Sim. Encontro vocês na garagem. Certo. – Houve uma pequena pausa e V. olhou como se quisesse ficar sozinho.

Louco para desaparecer dali, Butch olhou para seus sapatos. O Irmão nunca fora muito bom em demonstrações públicas de afeto ou em conversar sobre coisas pessoais com Jane se houvesse alguém por perto. Mas como Butch era um mestiço, não conseguia se desmaterializar – e para onde, diabos, ele correria?

Após V. murmurar um rápido “tchau”, tragou profundamente um de seus cigarros e disse em voz baixa ao expirar:

– Pode parar de fingir que não está a meu lado.

– Que alívio. Não sou muito bom nisso.

– Não tem culpa de ocupar espaço.

– Então, ela o encontrou? – Quando Vishous assentiu, Butch assumiu uma expressão mortalmente séria. – Prometa-me uma coisa.

– O quê?

– Não vai matar esse cirurgião. – Butch sabia muito bem como era dar uma volta lá fora e ter de retornar àquele mundo vampiro. No seu caso, deu tudo certo, mas e quanto a Manello? – Não é culpa do cara e nem problema seu.

V. balançou o cigarro sobre o lixo e olhou para cima, os olhos de diamante estavam frios como uma noite ártica.

– Vamos ver como ele vai se sair, tira.

Com isso, virou-se e entrou onde sua irmã estava.

Bem, pelo menos, o filho da mãe era honesto, Butch pensou junto com uma maldição.

Manny não gostava nem um pouco de outras pessoas dirigindo seu Porsche 911 Turbo. Na verdade, além de seu mecânico, ninguém mais o dirigia.

Contudo, naquela noite, permitiu que Jane assumisse a direção, pois, em primeiro lugar, era competente e poderia mudar as marchas sem destruir a transmissão; em segundo lugar, ela afirmava que a única maneira possível de levá-lo até onde precisavam ir era chegando lá dirigindo o automóvel ela mesma; e, em terceiro lugar, ainda estava se recuperando de ter visto alguém que havia enterrado aparecer de repente e dizer “Oi, tudo bem?”. Então, talvez não fosse uma boa ideia comandar uma máquina pesada que estava correndo a cento e vinte quilômetros por hora.

Não conseguia acreditar que estava sentado ao lado dela, indo para o norte, no carro dele.

Mas é claro que disse sim ao pedido dela. Sua atitude era patética com relação a mulheres aflitas... e também era um profissional viciado em uma sala de cirurgia. Que óbvio!

Porém, ainda havia muitas perguntas e muita fúria. Sim, com certeza, esperava chegar a um lugar cheio de paz, luz, sol e de toda aquela besteira piegas, mas não estava preocupado com toda essa história de lugar perfeito, o que era irônico. Quantas vezes olhou para o teto durante a noite, aninhado em sua cama com uma garrafa de uísque, rezando por algum milagre que trouxesse sua antiga chefe do departamento de traumatologia de volta para ele?

Manny olhou para o perfil de Jane. Iluminada pela luz do painel do carro, ainda mostrava ser inteligente. Ainda mostrava ser forte. Ainda era seu tipo de mulher.

Mas isso nunca aconteceria. Apesar de toda aquela mentira grosseira sobre sua morte, havia um anel cinza escuro em sua mão esquerda.

– Você se casou? – ele disse.

Ela não olhou para ele, apenas continuou dirigindo.

– Sim. Casei.

Aquela dor de cabeça que surgiu no instante da aparição passou imediatamente de incômoda para horrível. Enquanto isso, memórias sombrias surgiam sob a superfície de sua consciência como se fossem o Monstro do Lago Ness, torturando-o e tentando trazer tudo à tona.

Contudo, teve de interromper aquele processo cognitivo de recuperar lembranças antes que tivesse um aneurisma por causa da tensão. Além disso, não chegaria a lugar algum com isso... Por mais que tentasse não conseguiria entender o que sentia ali e tinha a sensação de que poderia causar danos permanentes se continuasse assim.

Quando ele olhou pela janela do carro, pinheiros e carvalhos mostravam-se altos e firmes sob o luar, o bosque que percorria os subúrbios de Caldwell ficava cada vez mais denso ao distanciarem-se da cidade e do nó asfixiante de pessoas e edifícios.

– Você morreu aqui – ele disse severamente. – Ou ao menos fingiu ter morrido.

Um ciclista encontrou o Audi de Jane entre as árvores, em um ponto da estrada não muito longe dali; o carro havia deslizado para fora do acostamento. Entretanto, não havia corpo... e não era por causa do fogo, que havia surgido após a queda.

Jane limpou a garganta.

– É triste, mas tudo o que tenho a dizer é “sinto muito”. Sei que é uma droga.

– Não é exatamente uma festa para mim também.

Silêncio. Muito silêncio. Mas não queria ficar perguntando muita coisa se tudo o que receberia como resposta era um “sinto muito”.

– Gostaria de poder ter lhe contado – ela disse de repente. – Você foi a pessoa mais difícil de ser deixada.

– Mas não abandonou seu trabalho, não é mesmo? Porque ainda está trabalhando como cirurgiã.

– Sim, estou.

– Como é seu marido?

Nesse momento, ela estremeceu.

– Vai conhecê-lo.

Ótimo. Que alegria!

Diminuindo a velocidade, ela virou à direita em direção a... uma estrada de terra? Mas que droga é essa?

– Para sua informação – ele murmurou –, este carro foi feito para pistas de asfalto, não para percursos assim.

– É o único caminho.

Para onde? Ele se perguntou.

– Você vai ficar me devendo algo muito grande por isso.

– Eu sei. Mas você é o único que pode salvá-la.

Manny piscou os olhos.

– Não disse nada sobre ser “ela”.

– Isso importa?

– Se pensar que não estou entendendo nada do que está acontecendo, tudo importa.

Após percorrerem uns dez metros, começaram a passar por vários atoleiros que eram tão profundos quanto malditos lagos e, enquanto seu Porsche trepidava, sentiu algo arranhando seu estômago e apertou os dentes.

– Que se dane essa paciente, quero um reembolso pelo que está fazendo ao chassi do meu carro.

Jane soltou uma risadinha e isso fez com que o centro de seu peito doesse... mas tinha de cair na real. Os dois nunca estiveram, de fato, juntos. Claro, houve uma atração de sua parte, uma grande atração. E, talvez, um beijo. Mas isso foi tudo.

E agora ela era a Sra. de Outra Pessoa, e também tinha acabado de voltar do maldito mundo dos mortos.

Cristo, que tipo de vida ele tinha? Por outro lado, talvez aquilo fosse um sonho... Isso o animou, pois talvez Glory não tivesse se acidentado também.

– Não me disse o tipo de lesão – disse ele.

– Quebra na coluna vertebral. Entre C6 e C7. Nenhuma sensação abaixo da cintura.

– Droga, Jane... Isso é complicado.

– Agora sabe por que preciso tanto de você.

Mais ou menos cinco minutos mais tarde, aproximaram-se de portões que pareciam ter sido construídos durante as Guerras Púnicas, pelo menos dois séculos antes de Cristo... A coisa parecia estar fixada ali nos moldes de Alice no País das Maravilhas, os elos da corrente estavam enferrujados e quebrados em alguns lugares. E a barra que os atravessava? Aquela porcaria não valia nem o esforço de ser manuseada, não era nada além de um pedaço de arame usado para cerca de gado e que já tinha vivido dias melhores. No entando, a maldita coisa abriu sem problemas, e enquanto entravam, viu a primeira câmera de vídeo.

Ao avançarem a passos lentos, uma névoa estranha veio do nada, a paisagem ficou fora de foco até não conseguir enxergar nada que havia além de trinta centímetros à frente do carro. Cristo, era como se estivessem em um episódio de Scooby-Doo.

E, então, houve um progresso curioso: o próximo portão estava em condições um pouco melhores; o seguinte era ainda mais novo e o quarto parecia ter apenas um ano, no máximo. O último portão estava brilhando e parecia algo saído de Alcatraz: mais de sete metros de altura e avisos de alta voltagem espalhados por toda sua extensão. E aquele muro no qual o portão estava instalado? Não era bem para conter gado... Talvez dinossauros. E podia apostar que os tijolos deviam ter pelo menos meio metro de espessura.

Manny girava a cabeça de um lado a outro à medida que avançavam e começavam a descer por um túnel tão profundo e com uma estrutura tão forte que poderia atravessar por baixo do rio Hudson. Quanto mais desciam, mais a grande questão que o assolava desde a aparição intensificava-se em sua mente: por que forjar a morte? Por que provocar o caos que tinha causado na vida dele e na dos outros que trabalhavam com ela no Hospital São Francisco? Nunca tinha sido uma mulher cruel, mentirosa, não tinha problemas financeiros, nem nada do que fugir.

Agora sabia, mesmo que não tivesse dito uma palavra: Governo dos Estados Unidos.

Aquele cenário, aquela estrutura no sistema de segurança... Um local oculto nos subúrbios de uma cidade suficientemente grande, mas não tão grande quanto Nova York, Los Angeles ou Chicago? Tinha de ser o Governo. Quem mais poderia pagar por isso?

E quem era a mulher a quem trataria?

O túnel terminou em uma típica garagem subterrânea, com pilares e vagas limitadas por faixas amarelas... e, mesmo sendo tão grande, o local estava vazio. Havia apenas duas vans, que não conseguia distinguir muito bem a marca, com vidros escurecidos e um micro-ônibus que também tinha vidros filmados.

Antes mesmo de ela estacionar o Porsche na garagem, uma porta de aço abriu-se e...

Bastou um olhar no cara enorme que saiu dali e a cabeça de Manny explodiu, a dor atrás dos olhos ficou tão intensa que escorregou no banco do carro, os braços caíram e seu rosto contorceu-se de agonia. Jane lhe disse alguma coisa. Uma porta do carro foi aberta. Em seguida, a dele.

A brisa que o atingiu era seca e cheirava vagamente a terra... mas havia algo mais. Colônia. Uma fragrância amadeirada de especiarias que era, ao mesmo tempo, cara e agradável, mas também algo que despertava nele um desejo curioso de sair correndo.

Manny forçou as pálpebras a se abrirem. Sua visão estava muito turva, mas era incrível o que a necessidade obrigava alguém a fazer... E quando o homem a sua frente entrou em foco, viu-se encarando o filho da mãe de cavanhaque que tinha...

Com uma onda de dor, seus olhos reviraram e quase vomitou.

– Precisa liberar as memórias – ouviu Jane dizer.

Houve alguma conversa nesse ponto, a voz de sua antiga colega misturava-se com os tons profundos daquele homem com tatuagens nas têmporas.

– Isso o está matando...

– É arriscado demais...

– Como ele vai operar desse jeito?

Houve um longo silêncio. E, então, de repente, a dor foi retirada como se fosse um véu sendo levantado – toda aquela pressão saiu de dentro dele em um piscar de olhos. Em seu lugar, as lembranças inundaram sua mente.

A paciente de Jane. O Hospital São Francisco. O homem com o cavanhaque e... um coração de seis válvulas.

Manny abriu bem os olhos e encarou aquele rosto cruel.

– Conheço você.

– Tire-o do carro – foi a única resposta do cara de cavanhaque. – Não confio nos meus atos se tocar nele.

Que maravilha de boas-vindas. E havia alguém atrás do desgraçado. Um homem que Manny tinha cem por cento de certeza de que já havia visto antes... Contudo, deve ter sido algo muito rápido, pois não conseguia lembrar-se de seu nome ou de onde se conheceram.

– Vamos – Jane disse.

Sim. Grande ideia. Naquele momento, precisava de alguma coisa para se concentrar que não tivesse nada relacionado com aquela situação de não saber o que dizer.

Enquanto o cérebro de Manny lutava para processar o que estava acontecendo, percebeu que ao menos seus pés e pernas seguiam o programa. Depois que Jane o ajudou a sair do carro e a ficar em pé, começou a segui-la e ao cara de cavanhaque pela instalação que era tão insípida e limpa quanto um hospital: corredores sóbrios, lâmpadas fluorescentes no teto, tudo cheirava a produtos de limpeza.

Havia também câmeras de segurança que moviam-se em intervalos regulares, como se o edifício fosse um monstro com muitos olhos.

Enquanto caminhavam, sabia que não devia fazer qualquer pergunta. Bem, sabia disso e de que sua cabeça estava tão confusa que tinha a certeza de que se mover era o máximo de suas habilidades naquele momento. Em seguida, percebeu o cara do cavanhaque e seu olhar mortal... não era exatamente uma abertura para iniciar um bate-papo.

Portas. Passaram por muitas portas, todas as quais foram fechadas em seguida e, sem dúvida, trancadas.

Palavrinhas interessantes como local secreto e segurança nacional brincaram em seu crânio, e isso ajudou muito, fazendo-o acreditar que talvez pudesse perdoar Jane por desaparecer da vida dele... um dia.

Quando Jane parou diante de uma porta dupla, suas mãos brincaram com as lapelas do jaleco branco e, em seguida, com o estetoscópio no bolso. E essa reação só fez com que tivesse a sensação de que tinha uma arma na cabeça: na sala de cirurgia, nos incontáveis problemas graves que se passaram no departamento de traumatologia, ela sempre mantivera a calma. Era sua marca registrada.

Mas aquilo era pessoal, ele pensou. De alguma maneira, seja lá o que estivesse do outro lado daquelas portas, estava relacionado a alguém próximo a ela.

– Tenho bons equipamentos aqui – ela disse. – Mas não tudo. Não tenho ressonância magnética. Apenas tomografias e raios-X. Contudo, a sala de cirurgia é adequada e não só posso ajudar como também tenho uma excelente enfermeira.

Manny respirou fundo, muito fundo, recompondo-se. Com toda força de vontade, calou todas as perguntas, a persistente indignação em sua cabeça e a estranheza daquela viagem ao mundo da espionagem ao estilo 007.

Primeiro item em sua lista de coisas a fazer? Despistar o público revoltado dali.

Olhou por cima do ombro, em direção ao cara de cavanhaque.

– Vai precisar sair daqui, amigo. Quero você fora, no corredor.

A reação que teve depois disso foi... simplesmente fantástica, principalmente se fosse um dentista: o desgraçado exibiu um par de caninos tão longos quanto seu braço e rosnou, em alto e bom som, como um cachorro.

– Certo – disse Jane, posicionando-se entre eles. – Tudo bem. Vishous vai esperar lá fora.

Vishous? Será que tinha ouvido direito?

Por outro lado, a mãe do menino devia ser louca de pedra, considerando o pequeno espetáculo odontológico. Não importa. Tinha trabalho a fazer e, talvez, o filho da mãe mastigasse couro duro ou algo assim.

Entrando na sala de exames ele...

Oh... santo Deus.

Ah... meu Deus do céu.

A paciente sobre a mesa estava deitada como águas tranquilas... era provavelmente a coisa mais linda que ele já tinha visto: o cabelo era muito preto e trançado em uma corda grossa que pendia livre ao lado de sua cabeça. A pele era de um marrom dourado, como se ela fosse descendente de italianos e tivesse sido exposta ao sol recentemente. Olhos... seus olhos eram como diamantes, muito claros e brilhantes ao mesmo tempo, com apenas uma borda escura ao redor da íris.

– Manny?

A voz de Jane estava bem atrás dele, mas sentiu como se estivesse a quilômetros de distância. Na verdade, o mundo inteiro estava em outro lugar, nada existia além do olhar de sua paciente que o encontrou do alto daquela mesa com a cabeça imobilizada.

Finalmente havia acontecido, pensou. Durante a vida inteira perguntara-se por que nunca havia se apaixonado e agora sabia a resposta. Estava esperando aquele momento, aquela mulher, aquela hora.

Esta mulher é minha, pensou.

E mesmo sabendo que aquilo não fazia sentido algum, a convicção era tão forte que não conseguia questionar.

– Você é o curandeiro? – ela disse em uma voz baixa que parou seu coração. – Você está aqui... por mim?

Suas palavras tinham um sotaque forte – maravilhoso por sinal –, e havia também um tom um pouco surpreso.

– Sim. Sou eu. – Arrancou o casaco do terno e jogou-o em um canto, sem dar a mínima importância para onde havia caído. – Estou aqui por você.

Quando se aproximou, lágrimas deslizaram de seus olhos cobertos de gelo.

– Minhas pernas... sinto como se estivesse as movimentando, mas acho que não consigo.

– Doem?

– Sim.

Dor fantasma. Não era uma surpresa.

Manny deteve-se ao lado dela e olhou para seu corpo, que estava coberto com um lençol. Era alta. Pelo menos um metro e oitenta. E era constituída com uma força elegante. Era uma guerreira, pensou, observando a força de seus braços. Uma lutadora.

Deus, a perda da mobilidade em alguém como ela tirava-lhe o fôlego. Por outro lado, mesmo que se tratasse de alguém viciado em televisão, a vida em uma cadeira de rodas seria terrível; mas, para alguém como ela, seria uma sentença de morte.

Manny aproximou-se e pegou a mão dela... No instante em que fez contato, o corpo dele como um todo estremeceu, como se ela fosse a tomada do seu plugue interior.

– Vou cuidar de você – disse enquanto olhava diretamente em seus olhos. – Quero que confie em mim.

Ela engoliu a saliva quando uma lágrima cristalina deslizou de seus olhos. Por instinto, ele estendeu a mão e a deteve com a ponta do dedo...

O rosnado que infiltrou-se pela porta era uma ameaça, uma contagem regressiva para se afastar, mas não deu importância àquilo. Quando olhou para o cara de barbicha, sentiu como se estivesse rosnando de volta para o filho da mãe. O que, mais uma vez, não fazia sentido algum.

Ainda segurando a mão de sua paciente, exclamou para Jane:

– Tire esse bastardo miserável da minha sala de cirurgia. E quero ver os malditos exames e radiografias. Agora.

Ele ia salvar aquela mulher, mesmo se aquilo o matasse.

Quando os olhos do Sr. Cavanhaque brilharam em direção a ele com puro ódio, Manny pensou: “Bem, esse é o máximo que o cara pode fazer...”.


CAPÍTULO 6

Qhuinn saiu sozinho em Caldwell, pela primeira vez na vida.

Quando pensou melhor sobre isso, concluiu que era quase uma impossibilidade estatística. Passou tantas noites lutando, bebendo e fazendo sexo dentro e ao redor dos clubes noturnos do centro da cidade que pelo menos um ou dois voos tinham de ter sido feitos sozinho. Mas não. Quando entrou no Iron Mask, estava sem a companhia de seus dois amigos pela primeira vez.

De qualquer forma, as coisas eram diferentes agora. Os tempos tinham mudado. As pessoas também.

John Matthew estava agora muito feliz casado; então, quando tinha uma folga, como naquela noite, ficava em casa com sua shellan, Xhex, fazendo a cama praticar uma série de exercícios de resistência. Sim, claro, Qhuinn era um ahstrux nohtrum e tudo mais, mas Xhex era uma symphato assassina totalmente capaz de cuidar de seu macho, e da Adaga Negra.

O complexo da Irmandade era uma fortaleza que nem mesmo uma equipe da SWAT poderia invadir. Assim, ele e John chegaram a um acordo... e deixaram isso em segredo.

Quanto a Blay... Qhuinn não ia pensar sobre seu melhor amigo. Não. De jeito nenhum.

Observando o interior do clube, iniciou sua máquina de seleção interna e começou a abrir caminho por meio das mulheres, homens e casais. Havia uma e apenas uma razão para ter ido até ali, e era a mesma que havia levado os outros góticos àquele local.

Não era um lugar para se procurar um relacionamento, sequer uma companhia. Tratava-se apenas de movimentar-se entrando e saindo e, quando tudo estivesse acabado, era o caso de dizer “Obrigado, moça” – ou “cara”, dependendo de seu humor –, “Estou dando o fora”. Porque ele ia precisar de outra pessoa. Ou outras pessoas.

Não investiria apenas uma vez naquela noite; sentia como se estivesse arrancando a própria pele, seu corpo latejava com força, necessitando de alívio. Cara, sempre gostou de transar, mas nos últimos dias sua libido tinha aumentado até crescer como um monstro.

Será que Blay não era mais seu melhor amigo?

Qhuinn fez uma pausa e olhou rapidamente uma vitrine antes de inclinar a cabeça sobre ela: caramba, não tinha mais cinco anos. Machos adultos não têm melhores amigos. Não precisam deles, especialmente se o macho em questão estivesse transando com outra pessoa. O dia inteiro. Todos os dias.

Qhuinn andou até o bar.

– Tequila. Dose dupla. E traga a melhor que tiver.

Os olhos da mulher aqueceram-se por trás do pesado delineador e dos cílios postiços.

– Já vai pagar a comanda?

– Sim – e considerando a maneira como ela escorregou a mão sobre o estômago achatado e desceu ainda mais pelo quadril, ele poderia ter pedido, com certeza, um pedaço dela também.

Quando ele estendeu o cartão de crédito, ela fez um movimento amplo com os seios para pegar a maldita coisa, inclinando-se de tal forma que poderia muito bem pegar algo no chão com os mamilos.

– Volto já, já com sua bebida.

Que surpresa.

– Ótimo.

Estava perdendo tempo ao sair rebolando como fez: não era nada disso que procurava naquela noite... não chegava nem perto. Sexo errado, para começar. E não ia investir em nada que tivesse cabelos escuros. Para dizer a verdade, não conseguia acreditar no que queria.

Tinha algumas limitações por ser daltônico, mas quando vestia apenas preto e trabalhava à noite, na maioria das vezes, isso não era grande coisa. Além disso, seus olhos desiguais eram tão perspicazes e sensíveis às variações de cinza que realmente percebias as “cores” – era tudo uma questão de gradação. Por exemplo, sabia quem eram as pessoas loiras no clube. Sabia a diferença entre as morenas e as de cabelos negros. E, sim, poderia enganar-se e interpretar mal se algum idiota tivesse feito uma tintura estranha, mas, mesmo assim, poderia dizer que havia algo estranho, porque o tom de pele nunca combinava direito com a cor artificial do cabelo.

– Aqui está – disse a bartender.

Qhuinn estendeu a mão, pegou o copo, bebeu a tequila e voltou a colocá-lo vazio sobre o balcão do bar.

– Vamos tentar isso mais algumas vezes.

– É pra já. – Exibiu seu par de seios novamente, sem dúvida com a esperança de que ele os agarrasse a qualquer momento. – Você é o tipo de cliente que gosto. Porque é óbvio que consegue lidar com uma boa bebida.

Uh-hum. Claro. Como se a habilidade de ingerir o equivalente a quatro doses de álcool de uma vez só fosse grande coisa. Deus, a ideia de que alguém, com esse sistema de valores, tivesse permissão para votar fazia com que ele desejasse encarar a vitrine outra vez.

Humanos eram patéticos.

Contudo, quando olhou para trás para observar a multidão, pensou que baixar a bola seria uma boa. Sentia-se patético sozinho naquela noite, especialmente quando viu dois homens em um canto, os dois separados apenas pelas roupas de couro que vestiam. Naturalmente, um deles era loiro. Assim como seu primo. Então, era claro que imagens hipotéticas de Blay e Saxton começaram a brincar em seu campo de polo interior, marcando seu gramado com pegadas e bosta de cavalo.

Só que não eram hipotéticos, mas reais: no final de todas as noites, quando as pessoas à mesa da mansão da Irmandade começavam a se dispersar depois da Última Refeição e a sair para resolver seus assuntos particulares, Blay e Saxton dirigiam-se discretamente para a grande escadaria e desapareciam no corredor do andar de cima, onde seus quartos ficavam.

Nunca tinham se dado as mãos, nunca tinham se beijado na frente de ninguém, e também não havia olhares de reprovação. Por outro lado, Blay era um cavalheiro, e Saxton era uma vagabunda elegante inserida de alguma maneira em um grande espetáculo.

Seu primo era uma verdadeira prostituta...

Não, não é, uma pequena voz soou. Só o odeia porque está de caso com seu garoto.

– Ele não é meu garoto.

– O que disse?

Qhuinn lançou um olhar ao espectador... e, em seguida, reassumiu seu ar durão. Bingo, ele pensou.

Ao lado dele estava um macho humano, mais ou menos um metro e oitenta com um cabelo fabuloso, rosto bonito e lábios muito agradáveis. As roupas não eram totalmente góticas, mas tinha algumas correntes na cintura e duas argolas em uma das orelhas. Mas foi a cor do cabelo que realmente fez a diferença.

– Estava falando sozinho – Qhuinn murmurou.

– Ah. Faço muito isso. – O sorriso foi breve e, em seguida, o cara voltou a cuidar de sua...

– O que está bebendo? – Qhuinn perguntou.

Um copo já na metade foi erguido.

– Vodka e tônica. Não suporto essa coisa de adocicar a bebida.

– Nem eu. Vou de tequila. Pura.

– Patrón?

– Nunca. Gosto da Herradura.

– Ah – o cara virou-se e olhou para frente em direção à multidão. – Gosta das coisas como são.

– Sim.

Qhuinn queria perguntar se o Sr. Vodka e Tônica estava observando os caras ou as garotas, mas permaneceu em silêncio. Cara, aquele cabelo era incrível. Grosso. Enrolado nas pontas.

– Está procurando por alguém em particular? – Qhuinn disse em voz baixa.

– Talvez. E você?

– Com certeza.

O cara riu.

– Tem muita mulher bonita aqui. Pode escolher.

Mas. Que. Droga. Que sorte a dele: um hétero. Por outro lado, talvez pudessem dividir alguma coisa e começar por aí.

O cara inclinou-se e ofereceu a palma da mão.

– Eu sou...

Quando os dois entreolharam-se completamente, o cara deixou a sentença à deriva, mas não tinha importância. Qhuinn não dava a mínima para o nome dele.

– Seus olhos têm cores diferentes? – o cara perguntou suavemente.

– Sim.

– Isso é muito... legal.

Bem, sim. Quando não se é um vampiro nascido na glymera. Se esse fosse o caso, seria considerado um defeito físico que significava ser geneticamente ruim e, portanto, uma vergonha para sua linhagem e absolutamente inabilitado para o acasalamento.

– Obrigado – Qhuinn disse. – Qual é a cor dos seus?

– Não pode dizer?

Qhuinn deu um tapinha sobre a lágrima tatuada perto do olho.

– Daltônico.

– Ah. Os meus são azuis.

– E você é ruivo, certo?

– Como sabe disso?

– Pelo seu tom de pele. Além disso, você é meio pálido e tem sardas.

– Isso é incrível – o cara olhou ao redor. – Está escuro aqui... não imaginava que conseguiria enxergar.

– Acho que posso – e acrescentou mentalmente: e que tal se eu lhe mostrar alguns dos meus outros truques.

O novo amigo de Qhuinn sorriu um pouco e voltou a observar a multidão. Depois de um minuto, disse:

– Por que está olhando para mim assim?

Porque quero transar com você.

– Você me lembra alguém.

– Quem?

– Alguém que perdi.

– Oh, droga, sinto muito.

– Tudo bem. A culpa é minha.

Pequena pausa.

– Então, você é gay, certo?

– Não.

O cara deu risada.

– Desculpe. Apenas imaginei que... Bom, acho que era um bom amigo.

Nenhum comentário.

– Vou encher o copo outra vez. Posso fazer isso para você também?

– Obrigado, cara.

Qhuinn virou-se e sinalizou para a atendente. Enquanto esperava ela se aproximar rebolando, planejou sua abordagem. Primeiro, um pouco mais de álcool. Em seguida, adicionaria algumas fêmeas à mistura. O terceiro passo seria entrar em um dos banheiros e transar com a(s) garota(s).

Então... Mais alguns olhares. De preferência quando um deles ou os dois estivessem dentro de uma mulher. Pois por mais que o ruivo de cabelo espetacular parecesse estar a fim das garotas, o filho da mãe tinha sentido alguma coisa quando os dois se entreolharam – e hétero é um termo relativo.

Assim como virgem.

Isso fazia com que os dois se enquadrassem nesses termos, não? Afinal, Qhuinn nunca, jamais, havia ficado com alguém de cabelo vermelho.

Mas aquela noite seria uma exceção.


CONTINUA

CAPÍTULO 4

No centro de Caldwell havia vários prédios altos, cheios de janelas espelhadas, mas nenhum era como o Commodore. Com trinta andares, estava entre os mais altos daquela floresta de concreto e os sessenta apartamentos que abrigava eram totalmente fantásticos, ao estilo de grandes empresários como Donald Trump, revestido de mármore e detalhes cromados; tudo era muito bem projetado.

No vigésimo sétimo andar, Jane entrou no apartamento de Manny, procurando por sinais de vida, e o que encontrou foi... nada. Literalmente. A casa do cara aproximava-se mais de uma pista de dança do que uma pista de obstáculos: a mobília era composta de três objetos na sala e uma cama enorme na suíte principal. Ponto. Bem, e algumas banquetas de couro ao redor do balcão da cozinha. Quanto às paredes? A única coisa que havia pendurado ali era uma TV de plasma do tamanho de um outdoor. Não havia tapetes sobre os pisos de madeira, apenas mochilas de academia... mais mochilas de academia... e calçados esportivos.

Nada disso indicava que era desorganizado; não tinha coisas suficientes para ser considerado assim.

Com um pânico crescente, entrou no quarto dele e viu mais ou menos meia dúzia de uniformes cirúrgicos deixados em pilhas no chão, como poças d’água após uma tempestade e... nada mais.

Mas a porta do armário estava aberta e ela entrou...

– Meu Deus... mas que droga.

Havia um conjunto de três malas alinhado no chão, onde deveria estar uma pequena, uma média e outra grande... mas a do meio não estava lá. Então, concluiu o que estava acontecendo ao considerar os espaços vazios que havia entre os cabides de calças e camisas: estava fora, em uma viagem. Talvez durante todo o fim de semana.

Sem muita esperança, discou para o sistema de atendimento do hospital e chamou-o outra vez...

Notou que estava recebendo outra chamada e amaldiçoou quando observou o número.

Respirando fundo, respondeu:

– Oi, V.

– Nada?

– Nada no hospital ou no apartamento. – Um rosnado sutil chegou até ela pelo telefone e ampliou a angústia da busca que ainda não tinha dado em nada. – Também procurei na academia, vindo para cá.

– Invadi o sistema do Hospital São Francisco e consegui os horários dele.

– Onde ele está?

– Tudo o que diz lá é que Goldberg está de plantão, certo? Olha, o sol se pôs. Vou sair daqui em, mais ou menos...

– Não, não... fique com Payne. Ehlena é ótima, mas acho que deveria ficar com ela.

Houve uma grande pausa, como se ele soubesse que estava sendo despistado.

– O que vai fazer agora?

Apertou o telefone e perguntou-se a quem deveria recorrer. Deus? À mãe dele?

– Não tenho certeza. Mas liguei para ele. Duas vezes.

– Ligue quando encontrá-lo. Vou pegar vocês.

– Posso levá-lo até em casa...

– Não vou machucá-lo, Jane. Não tenho a menor intenção de deixá-lo em pedaços.

Sim, mas considerando o tom de voz frio, teve de se perguntar sobre aqueles planos bem intencionados de vampiros cheios de autocontrole e blá, blá, blá... Acreditava que Manny viveria para tratar da irmã gêmea de V. Mas, e depois? Tinha suas reservas... especialmente se as coisas dessem errado na sala de cirurgia.

– Vou esperar aqui mais um pouco; talvez ele apareça, ou ligue. Se isso não acontecer, penso em outra coisa.

No longo silêncio, praticamente conseguia sentir uma corrente de ar frio chegando através do celular. Seu companheiro fazia muitas coisas direito: lutar, fazer amor, lidar com qualquer coisa relacionada à informática. Ser forçado a ficar parado? Não era bem uma de suas competências inatas. Na verdade, era garantia de deixá-lo enlouquecido.

Ainda assim, o fato de não confiar nela fez com que se sentisse distante dele.

– Fique com sua irmã, Vishous – disse em um tom de voz equilibrado. – Manterei contato.

Silêncio.

– Vishous. Confie em mim e vá ficar ao lado dela.

Ele não disse coisa alguma depois disso. Apenas desligou.

Quando pressionou a tecla end do telefone, soltou um palavrão.

Uma fração de segundo depois estava discando outra vez e no instante em que ouviu uma voz profunda atender, teve de enxugar uma lágrima que, se pensasse em toda sua natureza translúcida, era muito, muito real.

– Butch – ela resmungou –, preciso de sua ajuda.

Quando o pouco que restava do pôr do sol desapareceu e a noite bateu seu cartão de ponto, assumindo o turno seguinte, o carro de Manny deveria ter ido para casa. Deveria ter sido levado por si só direto para Caldwell.

Ao invés disso, acabou chegando ao extremo sul da cidade, onde as árvores eram grandes e as extensões de grama superavam as de asfalto em até dez vezes mais.

Fazia sentido. Os cemitérios deveriam ter longos trechos de terra, pois não se podia enterrar um caixão no concreto. Bem, até poderia... se se tratasse de um mausoléu.

O cemitério Bosque dos Pinheiros ficava aberto até as dez da noite, seus grandes portões de ferro permaneciam escancarados e seus inúmeros postes de iluminação forjados em ferro emitiam uma luz amarelo-manteiga ao longo do labirinto de ruas. Quando entrou, foi para a direita, os faróis do carro iluminando o local ao longo das lápides e do gramado.

Em última análise, o local para onde se dirigia não significava nada: não havia um corpo embaixo da lápide de granito que ia visitar – não restara nada para ser enterrado. Nada de cinzas para colocar em uma vasilha, também... ou, pelo menos, nada que se pudesse separar com certeza de dentro de um Audi que havia pegado fogo.

Depois de dar, mais ou menos, um quilômetro de voltas, tirou o pé do acelerador e deixou o carro deslizar até estacionar. Até onde conseguia ver, era o único no cemitério, mas isso não era problema para ele. Não havia razão para se ter uma audiência.

Quando saiu do carro, o ar frio não ajudou a limpar sua mente, mas deu algo para seus pulmões fazerem quando inalou profundamente e caminhou sobre a grama áspera da primavera. Teve o cuidado de não pisar em nenhuma tumba enquanto avançava... claro, os mortos não saberiam que estava andando acima deles, mas parecia uma coisa respeitosa a fazer.

O túmulo de Jane estava à frente, e desacelerou o passo quando aproximou-se daquilo que não havia sido deixado por ela, por assim dizer.

Ao longe, o apito de um trem cortou o silêncio... e o som vazio e lúgubre era um clichê tão grande que se sentiu em um filme o qual nunca assistiria sentado em casa, muito menos pagaria para ver em um cinema.

– Droga, Jane.

Inclinando-se, passou os dedos sobre as marcas irregulares da lápide. Foi ele quem tinha escolhido a pedra escura de azeviche, pois ela não teria gostado nem um pouco de algo pastel ou desbotado. E a inscrição também era simples e descomplicada, apenas seu nome, datas e uma frase na parte inferior: DESCANSE EM PAZ.

Sim. Deu a si mesmo nota dez em originalidade por isso.

Lembrava-se exatamente onde estava quando soube que ela tinha morrido: no hospital, claro. Era final de um longo plantão que tinha começado com o joelho de um jogador de hóquei e terminado com a reconstrução espetacular de um ombro, isso porque o viciado decidiu tentar voar.

Saiu da sala de cirurgia e encontrou Goldberg esperando próximo às pias de higienização. Manny parou no meio do processo de retirar a máscara cirúrgica ao dar apenas uma olhada no rosto pálido de seu colega. Com a coisa pendurada em seu queixo como um babador, exigiu saber o que diabos havia acontecido de errado – contando o tempo todo que se tratava de um acidente com quarenta carros engavetados na estrada ou um acidente de avião ou um hotel incendiado... algo relacionado a uma tragédia que englobasse toda uma comunidade.

Só que quando olhou sobre o ombro do cara e viu cinco enfermeiras e três outros médicos... Todos com a mesma aparência de Goldberg... E nenhum deles correndo para chamar outros funcionários para assumirem plantão ou preparando as salas de cirurgia.

Certo. Tinha acontecido algo que englobava toda uma comunidade. A comunidade deles.

– Quem? – perguntou.

Goldberg olhou para trás, em direção a sua tropa de apoio e foi então que Manny entendeu. E mesmo com as entranhas congeladas dentro dele, agarrou-se a uma esperança irracional de que o nome que estava prestes a sair da boca de seu colega cirurgião não fosse...

– Jane. Acidente de carro.

Manny não perdeu tempo.

– Quando ela deu entrada?

– Não chegou a dar entrada.

Com isso, Manny não disse nada. Terminou de tirar a máscara de seu rosto, amassou-a e descartou-a na lata de lixo mais próxima.

Quando foi passando por eles, Goldberg abriu a boca outra vez.

– Nem uma palavra – Manny ladrou. – Nem. Uma. Palavra.

Os outros funcionários começaram a tropeçar entre eles mesmos para sair do caminho, dividindo o grupo com a precisão de um pedaço de tecido cortado ao meio.

Voltando ao presente, não conseguia se lembrar onde tinha ido ou o que tinha feito depois disso... não importava quantas vezes voltasse sua mente àquela noite obscura, esses momentos eram como um buraco negro. Contudo, em dado momento, percebeu que tinha chegado em seu apartamento, pois acordou ali dois dias depois e viu que ainda estava com o uniforme cirúrgico respingado com o sangue do último paciente que havia operado.

O mais irritante de tudo era o fato de que Jane tinha salvado tantas pessoas vítimas de acidentes de carro. A ideia de ter sido levada dessa maneira levava-o a pensar que o Ceifeiro da Morte veio atrás dela para cobrar todas as almas que tinha afastado do alcance de suas garras mortais.

O som de outro apito de trem o fez querer gritar.

O trem e aquele pager apitando.

Hannah Whit. Outra vez?

Mas que diabos...

Manny franziu o cenho e olhou para a lápide. Salvo engano, a irmã mais nova de Jane chamava-se Hannah. Whit. Whitcomb?

Só que ela tinha morrido muito cedo.

Não tinha?

Loucura. Total.

Deus, deveria ter trazido seus tênis para essa aventura, Jane pensou enquanto andava sem rumo pelo apartamento de Manny. Outra vez. Teria deixado o apartamento se tivesse uma ideia melhor de onde ir, mas seu cérebro, mesmo sendo tão astuto, não conseguia enxergar outra opção...

Seu telefone tocando não era exatamente algo bom. Não queria dizer a Vishous que quarenta e cinco minutos depois não tinha nada de novo para relatar.

Pegou o celular.

– Oh... Deus.

Aquele número. Aqueles dez dígitos que sempre estiveram registrados na discagem rápida de todos os telefones que teve antes daquele. Manny.

Quando pressionou a tecla send, sua mente estava em branco e seus olhos cheios de lágrimas. Seu velho e querido amigo e colega de profissão...

– Alô? – ele disse. – Senhorita Whit?

Ao fundo, ouviu o soar fraco de um apito de trem.

– Alô? Hannah? – Aquele tom... era exatamente o mesmo de anos atrás: baixo, impositivo. – Tem alguém aí?

Aquele apito baixo soou outra vez.

Jesus Cristo... ela pensou. Sabia onde ele estava.

Jane desligou e saiu rápido do apartamento, do centro da cidade, atravessando a toda velocidade pelos subúrbios.

Viajando em um borrão à velocidade da luz, suas moléculas atravessaram a noite em uma corrida alucinante que percorreu quilômetros como se fossem centímetros.

O cemitério Bosque dos Pinheiros era o tipo de lugar que precisava de um mapa para se localizar nele, mas quando se é uma forma etérea no ar, pode-se percorrer uma centena de acres em apenas um piscar de olhos.

Quando tomou forma na escuridão perto de sua sepultura, respirou fundo e quase chorou.

Lá estava ele, em carne e osso. Seu chefe. Seu colega. O único a quem deixou para trás. E ele estava em pé atrás de uma lápide negra na qual havia seu nome esculpido.

Certo, agora sabia que tinha tomado a decisão certa quando não havia ido ao funeral. O mais perto que chegou disso foi lendo a notícia no Caldwell Courier Journal – e a imagem de todos aqueles cirurgiões, funcionários do hospital e pacientes emocionou-a demais. Mas aquilo era muito pior.

Manny parecia exatamente como ela mesma se sentia: arruinado por dentro.

Jesus, aquela loção pós-barba ainda cheirava bem... e apesar de ter perdido um pouco de peso, era um pedaço de mal caminho, com aquele cabelo escuro e aquele rosto rígido. Seu terno era de risca de giz e feito sob medida... mas havia sujeira em volta da bainha da calça muito bem passada. E seus sapatos estavam sujos também, fazendo com que ela se perguntasse onde diabos ele estivera. Com certeza não tinha ficado assim por causa da sepultura; depois de um ano, o solo ainda estava plano e coberto com grama bem aparada...

Oh, espere. O túmulo devia estar assim desde o primeiro dia. Ela não tinha deixado nada para ser enterrado.

Quando os dedos dele descansaram sobre a pedra, soube que foi ele quem tinha escolhido a sepultura. Ninguém mais teria tido o bom-senso de fazer exatamente o que ela gostaria que fizesse. Nada de muitos detalhes rococós ou dizeres complicados; curto, doce, no ponto.

Jane limpou a garganta.

– Manny...

Ele ergueu a cabeça, mas não olhou para ela... como se tivesse ouvido a voz dela apenas em sua mente.

Assumindo uma forma totalmente corpórea, ela falou mais alto.

– Manny.

Sob qualquer outra circunstância, a reação teria sido uma profusão de risos. Mas ele se virou, em seguida, gritou, tropeçou na lápide e caiu sentado no chão.

– Mas que... diabos... você está fazendo aqui? – ele engasgou. A expressão em seu rosto começou com um sentimento de horror, mas rapidamente mudou para a descrença absoluta.

– Sinto muito.

Era totalmente ridículo, mas foi tudo o que saiu de sua boca.

E parecia mais do que poderia suportar. Encontrar aqueles olhos castanhos fez com que, de repente, ela não tivesse nada a dizer.

Manny ergueu-se com um salto, e seu olhar escuro subia e descia observando o corpo dela.

E, por fim, subiu... fixando-se em seu rosto.

Foi quando a raiva veio. E também uma dor de cabeça, evidentemente, considerando a maneira como ele estremeceu e esfregou as têmporas.

– É algum tipo de piada?

– Não – ela desejava que fosse. – Sinto muito mesmo.

O olhar severo e cruel era dolorosamente familiar, e que ironia sentir-se nostálgica com um olhar ameaçador como aquele.

– Você sente muito.

– Manny, eu...

– Eu a enterrei. E você sente muito? Que porcaria é essa?

– Manny, não tenho tempo para explicar. Preciso de você.

Ele a encarou por um longo momento.

– Você aparece depois de um ano morta e diz que precisa de mim?

A realidade de quanto tempo havia se passado pesou sobre ela. Acima de tudo.

– Manny... não sabia o que lhe dizer.

– Oh, mesmo? Que tal: ah, puxa, por falar nisso, estou viva.

Ele a encarou. Apenas a encarou.

Então, com uma voz rouca, disse:

– Você faz alguma ideia do que foi perdê-la? – passou rapidamente a mão sobre os olhos. – Tem noção?

A dor no peito dela fez com que a respiração ficasse difícil.

– Sim. Porque perdi você... perdi minha vida com você e no hospital.

Manny começou a andar, aproximando-se e afastando-se da lápide. E, embora ela quisesse, sabia que não devia aproximar-se demais.

– Manny... se houvesse alguma maneira de voltar para você, eu voltaria.

– Você voltou. Uma vez. Pensei que era um sonho, mas não. Não era.

– Não.

– Como entrou no meu apartamento?

– Apenas entrei.

Ele se deteve e olhou para ela, a lápide ficou entre eles.

– Por que fez isso, Jane? Por que forjou sua morte?

Bem, na verdade, não havia forjado.

– Não tenho tempo para explicar agora.

– Então, que diabos está fazendo aqui. Que tal explicar isso?

Ela clareou a garganta e disse:

– Estou com uma paciente cujo tratamento exige além da minha capacidade e quero que dê uma olhada. Não posso dizer para onde vou levá-lo, não posso lhe dar muitos detalhes e sei que isso não é justo... mas eu preciso de você – Queria arrancar os cabelos. Cair aos prantos. Abraçá-lo. Mas continuou, por que era isso o que tinha de fazer. – Estou procurando por você há mais de uma hora, então, estou atrasada. Sei que está chateado e confuso e não o culpo. Mas fique com raiva de mim mais tarde... Apenas venha comigo agora. Por favor.

Tudo o que pôde fazer foi esperar. Manny não se convencia por alguém falar demais, não conseguiria persuadi-lo assim. Escolheria ir... ou não.

E, infelizmente, se fosse a segunda opção, ela teria de chamar os Irmãos. Por mais que amasse e sentisse falta de seu antigo chefe, Vishous era seu homem e se sentiria uma maldita se deixasse alguma coisa acontecer com a irmã dele.

De uma forma ou de outra, Manny operaria alguém naquela noite.


CAPÍTULO 5

Butch O’Neal não era o tipo de cara que deixava uma dama em perigo.

Era alguém à moda antiga... o policial... o devoto, o católico praticante que havia nele. Dito isso, ao receber a ligação da amável e talentosa Dra. Jane Whitcomb, o cavalheirismo não seguiu o instinto impulsivo. Nem um pouco.

Ao colocar o pé para fora do Buraco e correr ao longo do túnel em direção ao centro de treinamento da Irmandade, seus interesses e os dela estavam totalmente alinhados, mesmo sem se levar em conta toda a questão de “ser um cavalheiro”: os dois temiam que V. perdesse o controle outra vez.

Já exibia todos os sinais: tudo o que tinha de fazer era olhar para ele e ver que a tampa da panela de pressão estava trancada com força sobre todo aquele calor e confusão. O que aconteceria com toda aquela pressão? Teria de encontrar uma vazão de alguma maneira e, no passado, isso aconteceu das piores maneiras possíveis.

Saindo da porta oculta e emergindo no escritório, Butch virou à direita e desceu ao longo do corredor que levava às instalações médicas. O sopro sutil de tabaco turco no ar disse-lhe exatamente onde encontrar seu alvo, não que houvesse alguma dúvida.

Próximo à porta fechada da sala de exames, ajeitou os punhos da camisa e ergueu o cinto. A batida na porta foi suave. Já o batimento cardíaco estava forte.

Vishous não respondeu com um “entre”. Ao invés disso, o Irmão saiu e fechou a porta atrás de si.

Caramba, ele parecia estar mal. E suas mãos tremiam ligeiramente quando pegou um de seus cigarros para preparar. Enquanto lambia a coisa para selá-la, Butch enfiou a mão no bolso para oferecer o isqueiro, acendendo a chama e erguendo-a à frente. Quando seu melhor amigo inclinou-se para o brilho laranja, reconheceu cada detalhe daquele rosto cruel e impassível. Jane estava absolutamente certa. O pobre coitado estava sobrecarregado e segurava tudo aquilo.

Vishous inalou profundamente e, então, recostou-se contra a parede de concreto, os olhos perspicazes fixos à frente, as botas de combate plantadas solidamente no chão. Em determinado momento, murmurou:

– Não vai perguntar como estou?

Butch inclinou-se da mesma maneira, aproximando-se bem de seu amigo.

– Não precisa.

– Anda lendo mentes?

– Sim. Esse sou eu.

V. inclinou-se para o lado e bateu as cinzas no lixo.

– Então, pode me dizer no que estou pensando, certo?

– Tem certeza que quer que eu solte um monte de palavrões tão perto de sua irmã? – Quando isso produziu uma risada curta, Butch olhou para o perfil de V. As tatuagens ao redor do olho do cara estavam especialmente sinistras, se considerasse as marcas de preocupação que o cercavam, como se fossem nuvens em um inverno nuclear.

– Não quer que eu faça isso em voz alta, V. – disse suavemente.

– Ah. Faça uma tentativa.

Isso significava que V. precisava conversar, mas, considerando a situação, não daria certo forçar coisa nenhuma ali: o macho sempre “finalizava” as conversas, mas, pelo menos, estava indo melhor do que tinha ido... antes? Sim, sequer quebrou uma porta nem nada.

– Ela pediu para que cuide dela se isso não der certo, não foi? – Butch disse, pronunciando o que mais temia. – E não estamos falando de cuidados paliativos de enfermagem.

A resposta de V. foi soltar uma respiração que durou mais ou menos uns quinze minutos depois do infinito.

– O que vai fazer? – perguntou Butch, mesmo sabendo a resposta.

– Não vou hesitar. – O complemento da resposta “mesmo que isso me mate” ficou subentendido.

Maldita vida. Às vezes, as situações pelas quais as pessoas passavam eram cruéis demais.

Butch fechou os olhos e deixou a cabeça cair para trás, contra a parede. A família era tudo para os vampiros. Sua companheira, os Irmãos com quem lutava, seu sangue... era todo o seu mundo. E, segundo essa teoria, ele também sofria junto com V. e Jane e o resto da Irmandade.

– Com sorte, não chegará a fazer isso – Butch olhou para a porta fechada. – A doutora Jane vai encontrar o cara. Ela é como um cão farejador...

– Sabe o que me ocorreu há uns dez minutos?

– O quê?

– Mesmo que não fosse mais dia, ela gostaria de continuar sozinha para encontrá-lo.

Quando o aroma de vinculação do macho exalou, Butch pensou: “Certo, cara. Jane e o cirurgião conviveram juntos durante anos, então, se há algum tipo de persuasão a ser feito, ela terá mais oportunidades sozinha... isso concluindo que ela dará um jeito na coisa toda de voltar dos mortos. Além disso, V. era um vampiro. Caramba. Será que alguém precisava adicionar mais alguma dificuldade nessa confusão toda?”.

Assim, considerando tudo, seria ótimo se o cirurgião tivesse mais de dois metros de altura, estrabismo e pelo de urso nas costas. Ser extremamente feio seria sua única vantagem se o macho vinculado em V. fosse acionado.

– Sem ofensa – Butch murmurou –, mas dá para culpá-la?

– É minha irmã gêmea que está em jogo – o cara passou com força uma das mãos ao longo dos cabelos escuros. – Mas que droga, Butch... minha irmã.

Butch sabia alguma coisa sobre como era perder alguém, então, sim, podia entender o que o macho na frente dele sentia. E, cara, não sairia do lado do Irmão: ele e Jane eram os únicos que conseguiam acalmar Vishous quando ficava assim. Jane já teria muita coisa para fazer ao lidar com o cirurgião e sua paciente.

O som do celular de V. fez os dois saltarem, mas o Irmão recuperou-se rápido e não deu tempo para que um segundo toque chegasse a seus ouvidos.

– Mesmo? Conseguiu? Obrigado... cara... sim. Sim. Encontro vocês na garagem. Certo. – Houve uma pequena pausa e V. olhou como se quisesse ficar sozinho.

Louco para desaparecer dali, Butch olhou para seus sapatos. O Irmão nunca fora muito bom em demonstrações públicas de afeto ou em conversar sobre coisas pessoais com Jane se houvesse alguém por perto. Mas como Butch era um mestiço, não conseguia se desmaterializar – e para onde, diabos, ele correria?

Após V. murmurar um rápido “tchau”, tragou profundamente um de seus cigarros e disse em voz baixa ao expirar:

– Pode parar de fingir que não está a meu lado.

– Que alívio. Não sou muito bom nisso.

– Não tem culpa de ocupar espaço.

– Então, ela o encontrou? – Quando Vishous assentiu, Butch assumiu uma expressão mortalmente séria. – Prometa-me uma coisa.

– O quê?

– Não vai matar esse cirurgião. – Butch sabia muito bem como era dar uma volta lá fora e ter de retornar àquele mundo vampiro. No seu caso, deu tudo certo, mas e quanto a Manello? – Não é culpa do cara e nem problema seu.

V. balançou o cigarro sobre o lixo e olhou para cima, os olhos de diamante estavam frios como uma noite ártica.

– Vamos ver como ele vai se sair, tira.

Com isso, virou-se e entrou onde sua irmã estava.

Bem, pelo menos, o filho da mãe era honesto, Butch pensou junto com uma maldição.

Manny não gostava nem um pouco de outras pessoas dirigindo seu Porsche 911 Turbo. Na verdade, além de seu mecânico, ninguém mais o dirigia.

Contudo, naquela noite, permitiu que Jane assumisse a direção, pois, em primeiro lugar, era competente e poderia mudar as marchas sem destruir a transmissão; em segundo lugar, ela afirmava que a única maneira possível de levá-lo até onde precisavam ir era chegando lá dirigindo o automóvel ela mesma; e, em terceiro lugar, ainda estava se recuperando de ter visto alguém que havia enterrado aparecer de repente e dizer “Oi, tudo bem?”. Então, talvez não fosse uma boa ideia comandar uma máquina pesada que estava correndo a cento e vinte quilômetros por hora.

Não conseguia acreditar que estava sentado ao lado dela, indo para o norte, no carro dele.

Mas é claro que disse sim ao pedido dela. Sua atitude era patética com relação a mulheres aflitas... e também era um profissional viciado em uma sala de cirurgia. Que óbvio!

Porém, ainda havia muitas perguntas e muita fúria. Sim, com certeza, esperava chegar a um lugar cheio de paz, luz, sol e de toda aquela besteira piegas, mas não estava preocupado com toda essa história de lugar perfeito, o que era irônico. Quantas vezes olhou para o teto durante a noite, aninhado em sua cama com uma garrafa de uísque, rezando por algum milagre que trouxesse sua antiga chefe do departamento de traumatologia de volta para ele?

Manny olhou para o perfil de Jane. Iluminada pela luz do painel do carro, ainda mostrava ser inteligente. Ainda mostrava ser forte. Ainda era seu tipo de mulher.

Mas isso nunca aconteceria. Apesar de toda aquela mentira grosseira sobre sua morte, havia um anel cinza escuro em sua mão esquerda.

– Você se casou? – ele disse.

Ela não olhou para ele, apenas continuou dirigindo.

– Sim. Casei.

Aquela dor de cabeça que surgiu no instante da aparição passou imediatamente de incômoda para horrível. Enquanto isso, memórias sombrias surgiam sob a superfície de sua consciência como se fossem o Monstro do Lago Ness, torturando-o e tentando trazer tudo à tona.

Contudo, teve de interromper aquele processo cognitivo de recuperar lembranças antes que tivesse um aneurisma por causa da tensão. Além disso, não chegaria a lugar algum com isso... Por mais que tentasse não conseguiria entender o que sentia ali e tinha a sensação de que poderia causar danos permanentes se continuasse assim.

Quando ele olhou pela janela do carro, pinheiros e carvalhos mostravam-se altos e firmes sob o luar, o bosque que percorria os subúrbios de Caldwell ficava cada vez mais denso ao distanciarem-se da cidade e do nó asfixiante de pessoas e edifícios.

– Você morreu aqui – ele disse severamente. – Ou ao menos fingiu ter morrido.

Um ciclista encontrou o Audi de Jane entre as árvores, em um ponto da estrada não muito longe dali; o carro havia deslizado para fora do acostamento. Entretanto, não havia corpo... e não era por causa do fogo, que havia surgido após a queda.

Jane limpou a garganta.

– É triste, mas tudo o que tenho a dizer é “sinto muito”. Sei que é uma droga.

– Não é exatamente uma festa para mim também.

Silêncio. Muito silêncio. Mas não queria ficar perguntando muita coisa se tudo o que receberia como resposta era um “sinto muito”.

– Gostaria de poder ter lhe contado – ela disse de repente. – Você foi a pessoa mais difícil de ser deixada.

– Mas não abandonou seu trabalho, não é mesmo? Porque ainda está trabalhando como cirurgiã.

– Sim, estou.

– Como é seu marido?

Nesse momento, ela estremeceu.

– Vai conhecê-lo.

Ótimo. Que alegria!

Diminuindo a velocidade, ela virou à direita em direção a... uma estrada de terra? Mas que droga é essa?

– Para sua informação – ele murmurou –, este carro foi feito para pistas de asfalto, não para percursos assim.

– É o único caminho.

Para onde? Ele se perguntou.

– Você vai ficar me devendo algo muito grande por isso.

– Eu sei. Mas você é o único que pode salvá-la.

Manny piscou os olhos.

– Não disse nada sobre ser “ela”.

– Isso importa?

– Se pensar que não estou entendendo nada do que está acontecendo, tudo importa.

Após percorrerem uns dez metros, começaram a passar por vários atoleiros que eram tão profundos quanto malditos lagos e, enquanto seu Porsche trepidava, sentiu algo arranhando seu estômago e apertou os dentes.

– Que se dane essa paciente, quero um reembolso pelo que está fazendo ao chassi do meu carro.

Jane soltou uma risadinha e isso fez com que o centro de seu peito doesse... mas tinha de cair na real. Os dois nunca estiveram, de fato, juntos. Claro, houve uma atração de sua parte, uma grande atração. E, talvez, um beijo. Mas isso foi tudo.

E agora ela era a Sra. de Outra Pessoa, e também tinha acabado de voltar do maldito mundo dos mortos.

Cristo, que tipo de vida ele tinha? Por outro lado, talvez aquilo fosse um sonho... Isso o animou, pois talvez Glory não tivesse se acidentado também.

– Não me disse o tipo de lesão – disse ele.

– Quebra na coluna vertebral. Entre C6 e C7. Nenhuma sensação abaixo da cintura.

– Droga, Jane... Isso é complicado.

– Agora sabe por que preciso tanto de você.

Mais ou menos cinco minutos mais tarde, aproximaram-se de portões que pareciam ter sido construídos durante as Guerras Púnicas, pelo menos dois séculos antes de Cristo... A coisa parecia estar fixada ali nos moldes de Alice no País das Maravilhas, os elos da corrente estavam enferrujados e quebrados em alguns lugares. E a barra que os atravessava? Aquela porcaria não valia nem o esforço de ser manuseada, não era nada além de um pedaço de arame usado para cerca de gado e que já tinha vivido dias melhores. No entando, a maldita coisa abriu sem problemas, e enquanto entravam, viu a primeira câmera de vídeo.

Ao avançarem a passos lentos, uma névoa estranha veio do nada, a paisagem ficou fora de foco até não conseguir enxergar nada que havia além de trinta centímetros à frente do carro. Cristo, era como se estivessem em um episódio de Scooby-Doo.

E, então, houve um progresso curioso: o próximo portão estava em condições um pouco melhores; o seguinte era ainda mais novo e o quarto parecia ter apenas um ano, no máximo. O último portão estava brilhando e parecia algo saído de Alcatraz: mais de sete metros de altura e avisos de alta voltagem espalhados por toda sua extensão. E aquele muro no qual o portão estava instalado? Não era bem para conter gado... Talvez dinossauros. E podia apostar que os tijolos deviam ter pelo menos meio metro de espessura.

Manny girava a cabeça de um lado a outro à medida que avançavam e começavam a descer por um túnel tão profundo e com uma estrutura tão forte que poderia atravessar por baixo do rio Hudson. Quanto mais desciam, mais a grande questão que o assolava desde a aparição intensificava-se em sua mente: por que forjar a morte? Por que provocar o caos que tinha causado na vida dele e na dos outros que trabalhavam com ela no Hospital São Francisco? Nunca tinha sido uma mulher cruel, mentirosa, não tinha problemas financeiros, nem nada do que fugir.

Agora sabia, mesmo que não tivesse dito uma palavra: Governo dos Estados Unidos.

Aquele cenário, aquela estrutura no sistema de segurança... Um local oculto nos subúrbios de uma cidade suficientemente grande, mas não tão grande quanto Nova York, Los Angeles ou Chicago? Tinha de ser o Governo. Quem mais poderia pagar por isso?

E quem era a mulher a quem trataria?

O túnel terminou em uma típica garagem subterrânea, com pilares e vagas limitadas por faixas amarelas... e, mesmo sendo tão grande, o local estava vazio. Havia apenas duas vans, que não conseguia distinguir muito bem a marca, com vidros escurecidos e um micro-ônibus que também tinha vidros filmados.

Antes mesmo de ela estacionar o Porsche na garagem, uma porta de aço abriu-se e...

Bastou um olhar no cara enorme que saiu dali e a cabeça de Manny explodiu, a dor atrás dos olhos ficou tão intensa que escorregou no banco do carro, os braços caíram e seu rosto contorceu-se de agonia. Jane lhe disse alguma coisa. Uma porta do carro foi aberta. Em seguida, a dele.

A brisa que o atingiu era seca e cheirava vagamente a terra... mas havia algo mais. Colônia. Uma fragrância amadeirada de especiarias que era, ao mesmo tempo, cara e agradável, mas também algo que despertava nele um desejo curioso de sair correndo.

Manny forçou as pálpebras a se abrirem. Sua visão estava muito turva, mas era incrível o que a necessidade obrigava alguém a fazer... E quando o homem a sua frente entrou em foco, viu-se encarando o filho da mãe de cavanhaque que tinha...

Com uma onda de dor, seus olhos reviraram e quase vomitou.

– Precisa liberar as memórias – ouviu Jane dizer.

Houve alguma conversa nesse ponto, a voz de sua antiga colega misturava-se com os tons profundos daquele homem com tatuagens nas têmporas.

– Isso o está matando...

– É arriscado demais...

– Como ele vai operar desse jeito?

Houve um longo silêncio. E, então, de repente, a dor foi retirada como se fosse um véu sendo levantado – toda aquela pressão saiu de dentro dele em um piscar de olhos. Em seu lugar, as lembranças inundaram sua mente.

A paciente de Jane. O Hospital São Francisco. O homem com o cavanhaque e... um coração de seis válvulas.

Manny abriu bem os olhos e encarou aquele rosto cruel.

– Conheço você.

– Tire-o do carro – foi a única resposta do cara de cavanhaque. – Não confio nos meus atos se tocar nele.

Que maravilha de boas-vindas. E havia alguém atrás do desgraçado. Um homem que Manny tinha cem por cento de certeza de que já havia visto antes... Contudo, deve ter sido algo muito rápido, pois não conseguia lembrar-se de seu nome ou de onde se conheceram.

– Vamos – Jane disse.

Sim. Grande ideia. Naquele momento, precisava de alguma coisa para se concentrar que não tivesse nada relacionado com aquela situação de não saber o que dizer.

Enquanto o cérebro de Manny lutava para processar o que estava acontecendo, percebeu que ao menos seus pés e pernas seguiam o programa. Depois que Jane o ajudou a sair do carro e a ficar em pé, começou a segui-la e ao cara de cavanhaque pela instalação que era tão insípida e limpa quanto um hospital: corredores sóbrios, lâmpadas fluorescentes no teto, tudo cheirava a produtos de limpeza.

Havia também câmeras de segurança que moviam-se em intervalos regulares, como se o edifício fosse um monstro com muitos olhos.

Enquanto caminhavam, sabia que não devia fazer qualquer pergunta. Bem, sabia disso e de que sua cabeça estava tão confusa que tinha a certeza de que se mover era o máximo de suas habilidades naquele momento. Em seguida, percebeu o cara do cavanhaque e seu olhar mortal... não era exatamente uma abertura para iniciar um bate-papo.

Portas. Passaram por muitas portas, todas as quais foram fechadas em seguida e, sem dúvida, trancadas.

Palavrinhas interessantes como local secreto e segurança nacional brincaram em seu crânio, e isso ajudou muito, fazendo-o acreditar que talvez pudesse perdoar Jane por desaparecer da vida dele... um dia.

Quando Jane parou diante de uma porta dupla, suas mãos brincaram com as lapelas do jaleco branco e, em seguida, com o estetoscópio no bolso. E essa reação só fez com que tivesse a sensação de que tinha uma arma na cabeça: na sala de cirurgia, nos incontáveis problemas graves que se passaram no departamento de traumatologia, ela sempre mantivera a calma. Era sua marca registrada.

Mas aquilo era pessoal, ele pensou. De alguma maneira, seja lá o que estivesse do outro lado daquelas portas, estava relacionado a alguém próximo a ela.

– Tenho bons equipamentos aqui – ela disse. – Mas não tudo. Não tenho ressonância magnética. Apenas tomografias e raios-X. Contudo, a sala de cirurgia é adequada e não só posso ajudar como também tenho uma excelente enfermeira.

Manny respirou fundo, muito fundo, recompondo-se. Com toda força de vontade, calou todas as perguntas, a persistente indignação em sua cabeça e a estranheza daquela viagem ao mundo da espionagem ao estilo 007.

Primeiro item em sua lista de coisas a fazer? Despistar o público revoltado dali.

Olhou por cima do ombro, em direção ao cara de cavanhaque.

– Vai precisar sair daqui, amigo. Quero você fora, no corredor.

A reação que teve depois disso foi... simplesmente fantástica, principalmente se fosse um dentista: o desgraçado exibiu um par de caninos tão longos quanto seu braço e rosnou, em alto e bom som, como um cachorro.

– Certo – disse Jane, posicionando-se entre eles. – Tudo bem. Vishous vai esperar lá fora.

Vishous? Será que tinha ouvido direito?

Por outro lado, a mãe do menino devia ser louca de pedra, considerando o pequeno espetáculo odontológico. Não importa. Tinha trabalho a fazer e, talvez, o filho da mãe mastigasse couro duro ou algo assim.

Entrando na sala de exames ele...

Oh... santo Deus.

Ah... meu Deus do céu.

A paciente sobre a mesa estava deitada como águas tranquilas... era provavelmente a coisa mais linda que ele já tinha visto: o cabelo era muito preto e trançado em uma corda grossa que pendia livre ao lado de sua cabeça. A pele era de um marrom dourado, como se ela fosse descendente de italianos e tivesse sido exposta ao sol recentemente. Olhos... seus olhos eram como diamantes, muito claros e brilhantes ao mesmo tempo, com apenas uma borda escura ao redor da íris.

– Manny?

A voz de Jane estava bem atrás dele, mas sentiu como se estivesse a quilômetros de distância. Na verdade, o mundo inteiro estava em outro lugar, nada existia além do olhar de sua paciente que o encontrou do alto daquela mesa com a cabeça imobilizada.

Finalmente havia acontecido, pensou. Durante a vida inteira perguntara-se por que nunca havia se apaixonado e agora sabia a resposta. Estava esperando aquele momento, aquela mulher, aquela hora.

Esta mulher é minha, pensou.

E mesmo sabendo que aquilo não fazia sentido algum, a convicção era tão forte que não conseguia questionar.

– Você é o curandeiro? – ela disse em uma voz baixa que parou seu coração. – Você está aqui... por mim?

Suas palavras tinham um sotaque forte – maravilhoso por sinal –, e havia também um tom um pouco surpreso.

– Sim. Sou eu. – Arrancou o casaco do terno e jogou-o em um canto, sem dar a mínima importância para onde havia caído. – Estou aqui por você.

Quando se aproximou, lágrimas deslizaram de seus olhos cobertos de gelo.

– Minhas pernas... sinto como se estivesse as movimentando, mas acho que não consigo.

– Doem?

– Sim.

Dor fantasma. Não era uma surpresa.

Manny deteve-se ao lado dela e olhou para seu corpo, que estava coberto com um lençol. Era alta. Pelo menos um metro e oitenta. E era constituída com uma força elegante. Era uma guerreira, pensou, observando a força de seus braços. Uma lutadora.

Deus, a perda da mobilidade em alguém como ela tirava-lhe o fôlego. Por outro lado, mesmo que se tratasse de alguém viciado em televisão, a vida em uma cadeira de rodas seria terrível; mas, para alguém como ela, seria uma sentença de morte.

Manny aproximou-se e pegou a mão dela... No instante em que fez contato, o corpo dele como um todo estremeceu, como se ela fosse a tomada do seu plugue interior.

– Vou cuidar de você – disse enquanto olhava diretamente em seus olhos. – Quero que confie em mim.

Ela engoliu a saliva quando uma lágrima cristalina deslizou de seus olhos. Por instinto, ele estendeu a mão e a deteve com a ponta do dedo...

O rosnado que infiltrou-se pela porta era uma ameaça, uma contagem regressiva para se afastar, mas não deu importância àquilo. Quando olhou para o cara de barbicha, sentiu como se estivesse rosnando de volta para o filho da mãe. O que, mais uma vez, não fazia sentido algum.

Ainda segurando a mão de sua paciente, exclamou para Jane:

– Tire esse bastardo miserável da minha sala de cirurgia. E quero ver os malditos exames e radiografias. Agora.

Ele ia salvar aquela mulher, mesmo se aquilo o matasse.

Quando os olhos do Sr. Cavanhaque brilharam em direção a ele com puro ódio, Manny pensou: “Bem, esse é o máximo que o cara pode fazer...”.


CAPÍTULO 6

Qhuinn saiu sozinho em Caldwell, pela primeira vez na vida.

Quando pensou melhor sobre isso, concluiu que era quase uma impossibilidade estatística. Passou tantas noites lutando, bebendo e fazendo sexo dentro e ao redor dos clubes noturnos do centro da cidade que pelo menos um ou dois voos tinham de ter sido feitos sozinho. Mas não. Quando entrou no Iron Mask, estava sem a companhia de seus dois amigos pela primeira vez.

De qualquer forma, as coisas eram diferentes agora. Os tempos tinham mudado. As pessoas também.

John Matthew estava agora muito feliz casado; então, quando tinha uma folga, como naquela noite, ficava em casa com sua shellan, Xhex, fazendo a cama praticar uma série de exercícios de resistência. Sim, claro, Qhuinn era um ahstrux nohtrum e tudo mais, mas Xhex era uma symphato assassina totalmente capaz de cuidar de seu macho, e da Adaga Negra.

O complexo da Irmandade era uma fortaleza que nem mesmo uma equipe da SWAT poderia invadir. Assim, ele e John chegaram a um acordo... e deixaram isso em segredo.

Quanto a Blay... Qhuinn não ia pensar sobre seu melhor amigo. Não. De jeito nenhum.

Observando o interior do clube, iniciou sua máquina de seleção interna e começou a abrir caminho por meio das mulheres, homens e casais. Havia uma e apenas uma razão para ter ido até ali, e era a mesma que havia levado os outros góticos àquele local.

Não era um lugar para se procurar um relacionamento, sequer uma companhia. Tratava-se apenas de movimentar-se entrando e saindo e, quando tudo estivesse acabado, era o caso de dizer “Obrigado, moça” – ou “cara”, dependendo de seu humor –, “Estou dando o fora”. Porque ele ia precisar de outra pessoa. Ou outras pessoas.

Não investiria apenas uma vez naquela noite; sentia como se estivesse arrancando a própria pele, seu corpo latejava com força, necessitando de alívio. Cara, sempre gostou de transar, mas nos últimos dias sua libido tinha aumentado até crescer como um monstro.

Será que Blay não era mais seu melhor amigo?

Qhuinn fez uma pausa e olhou rapidamente uma vitrine antes de inclinar a cabeça sobre ela: caramba, não tinha mais cinco anos. Machos adultos não têm melhores amigos. Não precisam deles, especialmente se o macho em questão estivesse transando com outra pessoa. O dia inteiro. Todos os dias.

Qhuinn andou até o bar.

– Tequila. Dose dupla. E traga a melhor que tiver.

Os olhos da mulher aqueceram-se por trás do pesado delineador e dos cílios postiços.

– Já vai pagar a comanda?

– Sim – e considerando a maneira como ela escorregou a mão sobre o estômago achatado e desceu ainda mais pelo quadril, ele poderia ter pedido, com certeza, um pedaço dela também.

Quando ele estendeu o cartão de crédito, ela fez um movimento amplo com os seios para pegar a maldita coisa, inclinando-se de tal forma que poderia muito bem pegar algo no chão com os mamilos.

– Volto já, já com sua bebida.

Que surpresa.

– Ótimo.

Estava perdendo tempo ao sair rebolando como fez: não era nada disso que procurava naquela noite... não chegava nem perto. Sexo errado, para começar. E não ia investir em nada que tivesse cabelos escuros. Para dizer a verdade, não conseguia acreditar no que queria.

Tinha algumas limitações por ser daltônico, mas quando vestia apenas preto e trabalhava à noite, na maioria das vezes, isso não era grande coisa. Além disso, seus olhos desiguais eram tão perspicazes e sensíveis às variações de cinza que realmente percebias as “cores” – era tudo uma questão de gradação. Por exemplo, sabia quem eram as pessoas loiras no clube. Sabia a diferença entre as morenas e as de cabelos negros. E, sim, poderia enganar-se e interpretar mal se algum idiota tivesse feito uma tintura estranha, mas, mesmo assim, poderia dizer que havia algo estranho, porque o tom de pele nunca combinava direito com a cor artificial do cabelo.

– Aqui está – disse a bartender.

Qhuinn estendeu a mão, pegou o copo, bebeu a tequila e voltou a colocá-lo vazio sobre o balcão do bar.

– Vamos tentar isso mais algumas vezes.

– É pra já. – Exibiu seu par de seios novamente, sem dúvida com a esperança de que ele os agarrasse a qualquer momento. – Você é o tipo de cliente que gosto. Porque é óbvio que consegue lidar com uma boa bebida.

Uh-hum. Claro. Como se a habilidade de ingerir o equivalente a quatro doses de álcool de uma vez só fosse grande coisa. Deus, a ideia de que alguém, com esse sistema de valores, tivesse permissão para votar fazia com que ele desejasse encarar a vitrine outra vez.

Humanos eram patéticos.

Contudo, quando olhou para trás para observar a multidão, pensou que baixar a bola seria uma boa. Sentia-se patético sozinho naquela noite, especialmente quando viu dois homens em um canto, os dois separados apenas pelas roupas de couro que vestiam. Naturalmente, um deles era loiro. Assim como seu primo. Então, era claro que imagens hipotéticas de Blay e Saxton começaram a brincar em seu campo de polo interior, marcando seu gramado com pegadas e bosta de cavalo.

Só que não eram hipotéticos, mas reais: no final de todas as noites, quando as pessoas à mesa da mansão da Irmandade começavam a se dispersar depois da Última Refeição e a sair para resolver seus assuntos particulares, Blay e Saxton dirigiam-se discretamente para a grande escadaria e desapareciam no corredor do andar de cima, onde seus quartos ficavam.

Nunca tinham se dado as mãos, nunca tinham se beijado na frente de ninguém, e também não havia olhares de reprovação. Por outro lado, Blay era um cavalheiro, e Saxton era uma vagabunda elegante inserida de alguma maneira em um grande espetáculo.

Seu primo era uma verdadeira prostituta...

Não, não é, uma pequena voz soou. Só o odeia porque está de caso com seu garoto.

– Ele não é meu garoto.

– O que disse?

Qhuinn lançou um olhar ao espectador... e, em seguida, reassumiu seu ar durão. Bingo, ele pensou.

Ao lado dele estava um macho humano, mais ou menos um metro e oitenta com um cabelo fabuloso, rosto bonito e lábios muito agradáveis. As roupas não eram totalmente góticas, mas tinha algumas correntes na cintura e duas argolas em uma das orelhas. Mas foi a cor do cabelo que realmente fez a diferença.

– Estava falando sozinho – Qhuinn murmurou.

– Ah. Faço muito isso. – O sorriso foi breve e, em seguida, o cara voltou a cuidar de sua...

– O que está bebendo? – Qhuinn perguntou.

Um copo já na metade foi erguido.

– Vodka e tônica. Não suporto essa coisa de adocicar a bebida.

– Nem eu. Vou de tequila. Pura.

– Patrón?

– Nunca. Gosto da Herradura.

– Ah – o cara virou-se e olhou para frente em direção à multidão. – Gosta das coisas como são.

– Sim.

Qhuinn queria perguntar se o Sr. Vodka e Tônica estava observando os caras ou as garotas, mas permaneceu em silêncio. Cara, aquele cabelo era incrível. Grosso. Enrolado nas pontas.

– Está procurando por alguém em particular? – Qhuinn disse em voz baixa.

– Talvez. E você?

– Com certeza.

O cara riu.

– Tem muita mulher bonita aqui. Pode escolher.

Mas. Que. Droga. Que sorte a dele: um hétero. Por outro lado, talvez pudessem dividir alguma coisa e começar por aí.

O cara inclinou-se e ofereceu a palma da mão.

– Eu sou...

Quando os dois entreolharam-se completamente, o cara deixou a sentença à deriva, mas não tinha importância. Qhuinn não dava a mínima para o nome dele.

– Seus olhos têm cores diferentes? – o cara perguntou suavemente.

– Sim.

– Isso é muito... legal.

Bem, sim. Quando não se é um vampiro nascido na glymera. Se esse fosse o caso, seria considerado um defeito físico que significava ser geneticamente ruim e, portanto, uma vergonha para sua linhagem e absolutamente inabilitado para o acasalamento.

– Obrigado – Qhuinn disse. – Qual é a cor dos seus?

– Não pode dizer?

Qhuinn deu um tapinha sobre a lágrima tatuada perto do olho.

– Daltônico.

– Ah. Os meus são azuis.

– E você é ruivo, certo?

– Como sabe disso?

– Pelo seu tom de pele. Além disso, você é meio pálido e tem sardas.

– Isso é incrível – o cara olhou ao redor. – Está escuro aqui... não imaginava que conseguiria enxergar.

– Acho que posso – e acrescentou mentalmente: e que tal se eu lhe mostrar alguns dos meus outros truques.

O novo amigo de Qhuinn sorriu um pouco e voltou a observar a multidão. Depois de um minuto, disse:

– Por que está olhando para mim assim?

Porque quero transar com você.

– Você me lembra alguém.

– Quem?

– Alguém que perdi.

– Oh, droga, sinto muito.

– Tudo bem. A culpa é minha.

Pequena pausa.

– Então, você é gay, certo?

– Não.

O cara deu risada.

– Desculpe. Apenas imaginei que... Bom, acho que era um bom amigo.

Nenhum comentário.

– Vou encher o copo outra vez. Posso fazer isso para você também?

– Obrigado, cara.

Qhuinn virou-se e sinalizou para a atendente. Enquanto esperava ela se aproximar rebolando, planejou sua abordagem. Primeiro, um pouco mais de álcool. Em seguida, adicionaria algumas fêmeas à mistura. O terceiro passo seria entrar em um dos banheiros e transar com a(s) garota(s).

Então... Mais alguns olhares. De preferência quando um deles ou os dois estivessem dentro de uma mulher. Pois por mais que o ruivo de cabelo espetacular parecesse estar a fim das garotas, o filho da mãe tinha sentido alguma coisa quando os dois se entreolharam – e hétero é um termo relativo.

Assim como virgem.

Isso fazia com que os dois se enquadrassem nesses termos, não? Afinal, Qhuinn nunca, jamais, havia ficado com alguém de cabelo vermelho.

Mas aquela noite seria uma exceção.


CONTINUA

CAPÍTULO 4

No centro de Caldwell havia vários prédios altos, cheios de janelas espelhadas, mas nenhum era como o Commodore. Com trinta andares, estava entre os mais altos daquela floresta de concreto e os sessenta apartamentos que abrigava eram totalmente fantásticos, ao estilo de grandes empresários como Donald Trump, revestido de mármore e detalhes cromados; tudo era muito bem projetado.

No vigésimo sétimo andar, Jane entrou no apartamento de Manny, procurando por sinais de vida, e o que encontrou foi... nada. Literalmente. A casa do cara aproximava-se mais de uma pista de dança do que uma pista de obstáculos: a mobília era composta de três objetos na sala e uma cama enorme na suíte principal. Ponto. Bem, e algumas banquetas de couro ao redor do balcão da cozinha. Quanto às paredes? A única coisa que havia pendurado ali era uma TV de plasma do tamanho de um outdoor. Não havia tapetes sobre os pisos de madeira, apenas mochilas de academia... mais mochilas de academia... e calçados esportivos.

Nada disso indicava que era desorganizado; não tinha coisas suficientes para ser considerado assim.

Com um pânico crescente, entrou no quarto dele e viu mais ou menos meia dúzia de uniformes cirúrgicos deixados em pilhas no chão, como poças d’água após uma tempestade e... nada mais.

Mas a porta do armário estava aberta e ela entrou...

– Meu Deus... mas que droga.

Havia um conjunto de três malas alinhado no chão, onde deveria estar uma pequena, uma média e outra grande... mas a do meio não estava lá. Então, concluiu o que estava acontecendo ao considerar os espaços vazios que havia entre os cabides de calças e camisas: estava fora, em uma viagem. Talvez durante todo o fim de semana.

Sem muita esperança, discou para o sistema de atendimento do hospital e chamou-o outra vez...

Notou que estava recebendo outra chamada e amaldiçoou quando observou o número.

Respirando fundo, respondeu:

– Oi, V.

– Nada?

– Nada no hospital ou no apartamento. – Um rosnado sutil chegou até ela pelo telefone e ampliou a angústia da busca que ainda não tinha dado em nada. – Também procurei na academia, vindo para cá.

– Invadi o sistema do Hospital São Francisco e consegui os horários dele.

– Onde ele está?

– Tudo o que diz lá é que Goldberg está de plantão, certo? Olha, o sol se pôs. Vou sair daqui em, mais ou menos...

– Não, não... fique com Payne. Ehlena é ótima, mas acho que deveria ficar com ela.

Houve uma grande pausa, como se ele soubesse que estava sendo despistado.

– O que vai fazer agora?

Apertou o telefone e perguntou-se a quem deveria recorrer. Deus? À mãe dele?

– Não tenho certeza. Mas liguei para ele. Duas vezes.

– Ligue quando encontrá-lo. Vou pegar vocês.

– Posso levá-lo até em casa...

– Não vou machucá-lo, Jane. Não tenho a menor intenção de deixá-lo em pedaços.

Sim, mas considerando o tom de voz frio, teve de se perguntar sobre aqueles planos bem intencionados de vampiros cheios de autocontrole e blá, blá, blá... Acreditava que Manny viveria para tratar da irmã gêmea de V. Mas, e depois? Tinha suas reservas... especialmente se as coisas dessem errado na sala de cirurgia.

– Vou esperar aqui mais um pouco; talvez ele apareça, ou ligue. Se isso não acontecer, penso em outra coisa.

No longo silêncio, praticamente conseguia sentir uma corrente de ar frio chegando através do celular. Seu companheiro fazia muitas coisas direito: lutar, fazer amor, lidar com qualquer coisa relacionada à informática. Ser forçado a ficar parado? Não era bem uma de suas competências inatas. Na verdade, era garantia de deixá-lo enlouquecido.

Ainda assim, o fato de não confiar nela fez com que se sentisse distante dele.

– Fique com sua irmã, Vishous – disse em um tom de voz equilibrado. – Manterei contato.

Silêncio.

– Vishous. Confie em mim e vá ficar ao lado dela.

Ele não disse coisa alguma depois disso. Apenas desligou.

Quando pressionou a tecla end do telefone, soltou um palavrão.

Uma fração de segundo depois estava discando outra vez e no instante em que ouviu uma voz profunda atender, teve de enxugar uma lágrima que, se pensasse em toda sua natureza translúcida, era muito, muito real.

– Butch – ela resmungou –, preciso de sua ajuda.

Quando o pouco que restava do pôr do sol desapareceu e a noite bateu seu cartão de ponto, assumindo o turno seguinte, o carro de Manny deveria ter ido para casa. Deveria ter sido levado por si só direto para Caldwell.

Ao invés disso, acabou chegando ao extremo sul da cidade, onde as árvores eram grandes e as extensões de grama superavam as de asfalto em até dez vezes mais.

Fazia sentido. Os cemitérios deveriam ter longos trechos de terra, pois não se podia enterrar um caixão no concreto. Bem, até poderia... se se tratasse de um mausoléu.

O cemitério Bosque dos Pinheiros ficava aberto até as dez da noite, seus grandes portões de ferro permaneciam escancarados e seus inúmeros postes de iluminação forjados em ferro emitiam uma luz amarelo-manteiga ao longo do labirinto de ruas. Quando entrou, foi para a direita, os faróis do carro iluminando o local ao longo das lápides e do gramado.

Em última análise, o local para onde se dirigia não significava nada: não havia um corpo embaixo da lápide de granito que ia visitar – não restara nada para ser enterrado. Nada de cinzas para colocar em uma vasilha, também... ou, pelo menos, nada que se pudesse separar com certeza de dentro de um Audi que havia pegado fogo.

Depois de dar, mais ou menos, um quilômetro de voltas, tirou o pé do acelerador e deixou o carro deslizar até estacionar. Até onde conseguia ver, era o único no cemitério, mas isso não era problema para ele. Não havia razão para se ter uma audiência.

Quando saiu do carro, o ar frio não ajudou a limpar sua mente, mas deu algo para seus pulmões fazerem quando inalou profundamente e caminhou sobre a grama áspera da primavera. Teve o cuidado de não pisar em nenhuma tumba enquanto avançava... claro, os mortos não saberiam que estava andando acima deles, mas parecia uma coisa respeitosa a fazer.

O túmulo de Jane estava à frente, e desacelerou o passo quando aproximou-se daquilo que não havia sido deixado por ela, por assim dizer.

Ao longe, o apito de um trem cortou o silêncio... e o som vazio e lúgubre era um clichê tão grande que se sentiu em um filme o qual nunca assistiria sentado em casa, muito menos pagaria para ver em um cinema.

– Droga, Jane.

Inclinando-se, passou os dedos sobre as marcas irregulares da lápide. Foi ele quem tinha escolhido a pedra escura de azeviche, pois ela não teria gostado nem um pouco de algo pastel ou desbotado. E a inscrição também era simples e descomplicada, apenas seu nome, datas e uma frase na parte inferior: DESCANSE EM PAZ.

Sim. Deu a si mesmo nota dez em originalidade por isso.

Lembrava-se exatamente onde estava quando soube que ela tinha morrido: no hospital, claro. Era final de um longo plantão que tinha começado com o joelho de um jogador de hóquei e terminado com a reconstrução espetacular de um ombro, isso porque o viciado decidiu tentar voar.

Saiu da sala de cirurgia e encontrou Goldberg esperando próximo às pias de higienização. Manny parou no meio do processo de retirar a máscara cirúrgica ao dar apenas uma olhada no rosto pálido de seu colega. Com a coisa pendurada em seu queixo como um babador, exigiu saber o que diabos havia acontecido de errado – contando o tempo todo que se tratava de um acidente com quarenta carros engavetados na estrada ou um acidente de avião ou um hotel incendiado... algo relacionado a uma tragédia que englobasse toda uma comunidade.

Só que quando olhou sobre o ombro do cara e viu cinco enfermeiras e três outros médicos... Todos com a mesma aparência de Goldberg... E nenhum deles correndo para chamar outros funcionários para assumirem plantão ou preparando as salas de cirurgia.

Certo. Tinha acontecido algo que englobava toda uma comunidade. A comunidade deles.

– Quem? – perguntou.

Goldberg olhou para trás, em direção a sua tropa de apoio e foi então que Manny entendeu. E mesmo com as entranhas congeladas dentro dele, agarrou-se a uma esperança irracional de que o nome que estava prestes a sair da boca de seu colega cirurgião não fosse...

– Jane. Acidente de carro.

Manny não perdeu tempo.

– Quando ela deu entrada?

– Não chegou a dar entrada.

Com isso, Manny não disse nada. Terminou de tirar a máscara de seu rosto, amassou-a e descartou-a na lata de lixo mais próxima.

Quando foi passando por eles, Goldberg abriu a boca outra vez.

– Nem uma palavra – Manny ladrou. – Nem. Uma. Palavra.

Os outros funcionários começaram a tropeçar entre eles mesmos para sair do caminho, dividindo o grupo com a precisão de um pedaço de tecido cortado ao meio.

Voltando ao presente, não conseguia se lembrar onde tinha ido ou o que tinha feito depois disso... não importava quantas vezes voltasse sua mente àquela noite obscura, esses momentos eram como um buraco negro. Contudo, em dado momento, percebeu que tinha chegado em seu apartamento, pois acordou ali dois dias depois e viu que ainda estava com o uniforme cirúrgico respingado com o sangue do último paciente que havia operado.

O mais irritante de tudo era o fato de que Jane tinha salvado tantas pessoas vítimas de acidentes de carro. A ideia de ter sido levada dessa maneira levava-o a pensar que o Ceifeiro da Morte veio atrás dela para cobrar todas as almas que tinha afastado do alcance de suas garras mortais.

O som de outro apito de trem o fez querer gritar.

O trem e aquele pager apitando.

Hannah Whit. Outra vez?

Mas que diabos...

Manny franziu o cenho e olhou para a lápide. Salvo engano, a irmã mais nova de Jane chamava-se Hannah. Whit. Whitcomb?

Só que ela tinha morrido muito cedo.

Não tinha?

Loucura. Total.

Deus, deveria ter trazido seus tênis para essa aventura, Jane pensou enquanto andava sem rumo pelo apartamento de Manny. Outra vez. Teria deixado o apartamento se tivesse uma ideia melhor de onde ir, mas seu cérebro, mesmo sendo tão astuto, não conseguia enxergar outra opção...

Seu telefone tocando não era exatamente algo bom. Não queria dizer a Vishous que quarenta e cinco minutos depois não tinha nada de novo para relatar.

Pegou o celular.

– Oh... Deus.

Aquele número. Aqueles dez dígitos que sempre estiveram registrados na discagem rápida de todos os telefones que teve antes daquele. Manny.

Quando pressionou a tecla send, sua mente estava em branco e seus olhos cheios de lágrimas. Seu velho e querido amigo e colega de profissão...

– Alô? – ele disse. – Senhorita Whit?

Ao fundo, ouviu o soar fraco de um apito de trem.

– Alô? Hannah? – Aquele tom... era exatamente o mesmo de anos atrás: baixo, impositivo. – Tem alguém aí?

Aquele apito baixo soou outra vez.

Jesus Cristo... ela pensou. Sabia onde ele estava.

Jane desligou e saiu rápido do apartamento, do centro da cidade, atravessando a toda velocidade pelos subúrbios.

Viajando em um borrão à velocidade da luz, suas moléculas atravessaram a noite em uma corrida alucinante que percorreu quilômetros como se fossem centímetros.

O cemitério Bosque dos Pinheiros era o tipo de lugar que precisava de um mapa para se localizar nele, mas quando se é uma forma etérea no ar, pode-se percorrer uma centena de acres em apenas um piscar de olhos.

Quando tomou forma na escuridão perto de sua sepultura, respirou fundo e quase chorou.

Lá estava ele, em carne e osso. Seu chefe. Seu colega. O único a quem deixou para trás. E ele estava em pé atrás de uma lápide negra na qual havia seu nome esculpido.

Certo, agora sabia que tinha tomado a decisão certa quando não havia ido ao funeral. O mais perto que chegou disso foi lendo a notícia no Caldwell Courier Journal – e a imagem de todos aqueles cirurgiões, funcionários do hospital e pacientes emocionou-a demais. Mas aquilo era muito pior.

Manny parecia exatamente como ela mesma se sentia: arruinado por dentro.

Jesus, aquela loção pós-barba ainda cheirava bem... e apesar de ter perdido um pouco de peso, era um pedaço de mal caminho, com aquele cabelo escuro e aquele rosto rígido. Seu terno era de risca de giz e feito sob medida... mas havia sujeira em volta da bainha da calça muito bem passada. E seus sapatos estavam sujos também, fazendo com que ela se perguntasse onde diabos ele estivera. Com certeza não tinha ficado assim por causa da sepultura; depois de um ano, o solo ainda estava plano e coberto com grama bem aparada...

Oh, espere. O túmulo devia estar assim desde o primeiro dia. Ela não tinha deixado nada para ser enterrado.

Quando os dedos dele descansaram sobre a pedra, soube que foi ele quem tinha escolhido a sepultura. Ninguém mais teria tido o bom-senso de fazer exatamente o que ela gostaria que fizesse. Nada de muitos detalhes rococós ou dizeres complicados; curto, doce, no ponto.

Jane limpou a garganta.

– Manny...

Ele ergueu a cabeça, mas não olhou para ela... como se tivesse ouvido a voz dela apenas em sua mente.

Assumindo uma forma totalmente corpórea, ela falou mais alto.

– Manny.

Sob qualquer outra circunstância, a reação teria sido uma profusão de risos. Mas ele se virou, em seguida, gritou, tropeçou na lápide e caiu sentado no chão.

– Mas que... diabos... você está fazendo aqui? – ele engasgou. A expressão em seu rosto começou com um sentimento de horror, mas rapidamente mudou para a descrença absoluta.

– Sinto muito.

Era totalmente ridículo, mas foi tudo o que saiu de sua boca.

E parecia mais do que poderia suportar. Encontrar aqueles olhos castanhos fez com que, de repente, ela não tivesse nada a dizer.

Manny ergueu-se com um salto, e seu olhar escuro subia e descia observando o corpo dela.

E, por fim, subiu... fixando-se em seu rosto.

Foi quando a raiva veio. E também uma dor de cabeça, evidentemente, considerando a maneira como ele estremeceu e esfregou as têmporas.

– É algum tipo de piada?

– Não – ela desejava que fosse. – Sinto muito mesmo.

O olhar severo e cruel era dolorosamente familiar, e que ironia sentir-se nostálgica com um olhar ameaçador como aquele.

– Você sente muito.

– Manny, eu...

– Eu a enterrei. E você sente muito? Que porcaria é essa?

– Manny, não tenho tempo para explicar. Preciso de você.

Ele a encarou por um longo momento.

– Você aparece depois de um ano morta e diz que precisa de mim?

A realidade de quanto tempo havia se passado pesou sobre ela. Acima de tudo.

– Manny... não sabia o que lhe dizer.

– Oh, mesmo? Que tal: ah, puxa, por falar nisso, estou viva.

Ele a encarou. Apenas a encarou.

Então, com uma voz rouca, disse:

– Você faz alguma ideia do que foi perdê-la? – passou rapidamente a mão sobre os olhos. – Tem noção?

A dor no peito dela fez com que a respiração ficasse difícil.

– Sim. Porque perdi você... perdi minha vida com você e no hospital.

Manny começou a andar, aproximando-se e afastando-se da lápide. E, embora ela quisesse, sabia que não devia aproximar-se demais.

– Manny... se houvesse alguma maneira de voltar para você, eu voltaria.

– Você voltou. Uma vez. Pensei que era um sonho, mas não. Não era.

– Não.

– Como entrou no meu apartamento?

– Apenas entrei.

Ele se deteve e olhou para ela, a lápide ficou entre eles.

– Por que fez isso, Jane? Por que forjou sua morte?

Bem, na verdade, não havia forjado.

– Não tenho tempo para explicar agora.

– Então, que diabos está fazendo aqui. Que tal explicar isso?

Ela clareou a garganta e disse:

– Estou com uma paciente cujo tratamento exige além da minha capacidade e quero que dê uma olhada. Não posso dizer para onde vou levá-lo, não posso lhe dar muitos detalhes e sei que isso não é justo... mas eu preciso de você – Queria arrancar os cabelos. Cair aos prantos. Abraçá-lo. Mas continuou, por que era isso o que tinha de fazer. – Estou procurando por você há mais de uma hora, então, estou atrasada. Sei que está chateado e confuso e não o culpo. Mas fique com raiva de mim mais tarde... Apenas venha comigo agora. Por favor.

Tudo o que pôde fazer foi esperar. Manny não se convencia por alguém falar demais, não conseguiria persuadi-lo assim. Escolheria ir... ou não.

E, infelizmente, se fosse a segunda opção, ela teria de chamar os Irmãos. Por mais que amasse e sentisse falta de seu antigo chefe, Vishous era seu homem e se sentiria uma maldita se deixasse alguma coisa acontecer com a irmã dele.

De uma forma ou de outra, Manny operaria alguém naquela noite.


CAPÍTULO 5

Butch O’Neal não era o tipo de cara que deixava uma dama em perigo.

Era alguém à moda antiga... o policial... o devoto, o católico praticante que havia nele. Dito isso, ao receber a ligação da amável e talentosa Dra. Jane Whitcomb, o cavalheirismo não seguiu o instinto impulsivo. Nem um pouco.

Ao colocar o pé para fora do Buraco e correr ao longo do túnel em direção ao centro de treinamento da Irmandade, seus interesses e os dela estavam totalmente alinhados, mesmo sem se levar em conta toda a questão de “ser um cavalheiro”: os dois temiam que V. perdesse o controle outra vez.

Já exibia todos os sinais: tudo o que tinha de fazer era olhar para ele e ver que a tampa da panela de pressão estava trancada com força sobre todo aquele calor e confusão. O que aconteceria com toda aquela pressão? Teria de encontrar uma vazão de alguma maneira e, no passado, isso aconteceu das piores maneiras possíveis.

Saindo da porta oculta e emergindo no escritório, Butch virou à direita e desceu ao longo do corredor que levava às instalações médicas. O sopro sutil de tabaco turco no ar disse-lhe exatamente onde encontrar seu alvo, não que houvesse alguma dúvida.

Próximo à porta fechada da sala de exames, ajeitou os punhos da camisa e ergueu o cinto. A batida na porta foi suave. Já o batimento cardíaco estava forte.

Vishous não respondeu com um “entre”. Ao invés disso, o Irmão saiu e fechou a porta atrás de si.

Caramba, ele parecia estar mal. E suas mãos tremiam ligeiramente quando pegou um de seus cigarros para preparar. Enquanto lambia a coisa para selá-la, Butch enfiou a mão no bolso para oferecer o isqueiro, acendendo a chama e erguendo-a à frente. Quando seu melhor amigo inclinou-se para o brilho laranja, reconheceu cada detalhe daquele rosto cruel e impassível. Jane estava absolutamente certa. O pobre coitado estava sobrecarregado e segurava tudo aquilo.

Vishous inalou profundamente e, então, recostou-se contra a parede de concreto, os olhos perspicazes fixos à frente, as botas de combate plantadas solidamente no chão. Em determinado momento, murmurou:

– Não vai perguntar como estou?

Butch inclinou-se da mesma maneira, aproximando-se bem de seu amigo.

– Não precisa.

– Anda lendo mentes?

– Sim. Esse sou eu.

V. inclinou-se para o lado e bateu as cinzas no lixo.

– Então, pode me dizer no que estou pensando, certo?

– Tem certeza que quer que eu solte um monte de palavrões tão perto de sua irmã? – Quando isso produziu uma risada curta, Butch olhou para o perfil de V. As tatuagens ao redor do olho do cara estavam especialmente sinistras, se considerasse as marcas de preocupação que o cercavam, como se fossem nuvens em um inverno nuclear.

– Não quer que eu faça isso em voz alta, V. – disse suavemente.

– Ah. Faça uma tentativa.

Isso significava que V. precisava conversar, mas, considerando a situação, não daria certo forçar coisa nenhuma ali: o macho sempre “finalizava” as conversas, mas, pelo menos, estava indo melhor do que tinha ido... antes? Sim, sequer quebrou uma porta nem nada.

– Ela pediu para que cuide dela se isso não der certo, não foi? – Butch disse, pronunciando o que mais temia. – E não estamos falando de cuidados paliativos de enfermagem.

A resposta de V. foi soltar uma respiração que durou mais ou menos uns quinze minutos depois do infinito.

– O que vai fazer? – perguntou Butch, mesmo sabendo a resposta.

– Não vou hesitar. – O complemento da resposta “mesmo que isso me mate” ficou subentendido.

Maldita vida. Às vezes, as situações pelas quais as pessoas passavam eram cruéis demais.

Butch fechou os olhos e deixou a cabeça cair para trás, contra a parede. A família era tudo para os vampiros. Sua companheira, os Irmãos com quem lutava, seu sangue... era todo o seu mundo. E, segundo essa teoria, ele também sofria junto com V. e Jane e o resto da Irmandade.

– Com sorte, não chegará a fazer isso – Butch olhou para a porta fechada. – A doutora Jane vai encontrar o cara. Ela é como um cão farejador...

– Sabe o que me ocorreu há uns dez minutos?

– O quê?

– Mesmo que não fosse mais dia, ela gostaria de continuar sozinha para encontrá-lo.

Quando o aroma de vinculação do macho exalou, Butch pensou: “Certo, cara. Jane e o cirurgião conviveram juntos durante anos, então, se há algum tipo de persuasão a ser feito, ela terá mais oportunidades sozinha... isso concluindo que ela dará um jeito na coisa toda de voltar dos mortos. Além disso, V. era um vampiro. Caramba. Será que alguém precisava adicionar mais alguma dificuldade nessa confusão toda?”.

Assim, considerando tudo, seria ótimo se o cirurgião tivesse mais de dois metros de altura, estrabismo e pelo de urso nas costas. Ser extremamente feio seria sua única vantagem se o macho vinculado em V. fosse acionado.

– Sem ofensa – Butch murmurou –, mas dá para culpá-la?

– É minha irmã gêmea que está em jogo – o cara passou com força uma das mãos ao longo dos cabelos escuros. – Mas que droga, Butch... minha irmã.

Butch sabia alguma coisa sobre como era perder alguém, então, sim, podia entender o que o macho na frente dele sentia. E, cara, não sairia do lado do Irmão: ele e Jane eram os únicos que conseguiam acalmar Vishous quando ficava assim. Jane já teria muita coisa para fazer ao lidar com o cirurgião e sua paciente.

O som do celular de V. fez os dois saltarem, mas o Irmão recuperou-se rápido e não deu tempo para que um segundo toque chegasse a seus ouvidos.

– Mesmo? Conseguiu? Obrigado... cara... sim. Sim. Encontro vocês na garagem. Certo. – Houve uma pequena pausa e V. olhou como se quisesse ficar sozinho.

Louco para desaparecer dali, Butch olhou para seus sapatos. O Irmão nunca fora muito bom em demonstrações públicas de afeto ou em conversar sobre coisas pessoais com Jane se houvesse alguém por perto. Mas como Butch era um mestiço, não conseguia se desmaterializar – e para onde, diabos, ele correria?

Após V. murmurar um rápido “tchau”, tragou profundamente um de seus cigarros e disse em voz baixa ao expirar:

– Pode parar de fingir que não está a meu lado.

– Que alívio. Não sou muito bom nisso.

– Não tem culpa de ocupar espaço.

– Então, ela o encontrou? – Quando Vishous assentiu, Butch assumiu uma expressão mortalmente séria. – Prometa-me uma coisa.

– O quê?

– Não vai matar esse cirurgião. – Butch sabia muito bem como era dar uma volta lá fora e ter de retornar àquele mundo vampiro. No seu caso, deu tudo certo, mas e quanto a Manello? – Não é culpa do cara e nem problema seu.

V. balançou o cigarro sobre o lixo e olhou para cima, os olhos de diamante estavam frios como uma noite ártica.

– Vamos ver como ele vai se sair, tira.

Com isso, virou-se e entrou onde sua irmã estava.

Bem, pelo menos, o filho da mãe era honesto, Butch pensou junto com uma maldição.

Manny não gostava nem um pouco de outras pessoas dirigindo seu Porsche 911 Turbo. Na verdade, além de seu mecânico, ninguém mais o dirigia.

Contudo, naquela noite, permitiu que Jane assumisse a direção, pois, em primeiro lugar, era competente e poderia mudar as marchas sem destruir a transmissão; em segundo lugar, ela afirmava que a única maneira possível de levá-lo até onde precisavam ir era chegando lá dirigindo o automóvel ela mesma; e, em terceiro lugar, ainda estava se recuperando de ter visto alguém que havia enterrado aparecer de repente e dizer “Oi, tudo bem?”. Então, talvez não fosse uma boa ideia comandar uma máquina pesada que estava correndo a cento e vinte quilômetros por hora.

Não conseguia acreditar que estava sentado ao lado dela, indo para o norte, no carro dele.

Mas é claro que disse sim ao pedido dela. Sua atitude era patética com relação a mulheres aflitas... e também era um profissional viciado em uma sala de cirurgia. Que óbvio!

Porém, ainda havia muitas perguntas e muita fúria. Sim, com certeza, esperava chegar a um lugar cheio de paz, luz, sol e de toda aquela besteira piegas, mas não estava preocupado com toda essa história de lugar perfeito, o que era irônico. Quantas vezes olhou para o teto durante a noite, aninhado em sua cama com uma garrafa de uísque, rezando por algum milagre que trouxesse sua antiga chefe do departamento de traumatologia de volta para ele?

Manny olhou para o perfil de Jane. Iluminada pela luz do painel do carro, ainda mostrava ser inteligente. Ainda mostrava ser forte. Ainda era seu tipo de mulher.

Mas isso nunca aconteceria. Apesar de toda aquela mentira grosseira sobre sua morte, havia um anel cinza escuro em sua mão esquerda.

– Você se casou? – ele disse.

Ela não olhou para ele, apenas continuou dirigindo.

– Sim. Casei.

Aquela dor de cabeça que surgiu no instante da aparição passou imediatamente de incômoda para horrível. Enquanto isso, memórias sombrias surgiam sob a superfície de sua consciência como se fossem o Monstro do Lago Ness, torturando-o e tentando trazer tudo à tona.

Contudo, teve de interromper aquele processo cognitivo de recuperar lembranças antes que tivesse um aneurisma por causa da tensão. Além disso, não chegaria a lugar algum com isso... Por mais que tentasse não conseguiria entender o que sentia ali e tinha a sensação de que poderia causar danos permanentes se continuasse assim.

Quando ele olhou pela janela do carro, pinheiros e carvalhos mostravam-se altos e firmes sob o luar, o bosque que percorria os subúrbios de Caldwell ficava cada vez mais denso ao distanciarem-se da cidade e do nó asfixiante de pessoas e edifícios.

– Você morreu aqui – ele disse severamente. – Ou ao menos fingiu ter morrido.

Um ciclista encontrou o Audi de Jane entre as árvores, em um ponto da estrada não muito longe dali; o carro havia deslizado para fora do acostamento. Entretanto, não havia corpo... e não era por causa do fogo, que havia surgido após a queda.

Jane limpou a garganta.

– É triste, mas tudo o que tenho a dizer é “sinto muito”. Sei que é uma droga.

– Não é exatamente uma festa para mim também.

Silêncio. Muito silêncio. Mas não queria ficar perguntando muita coisa se tudo o que receberia como resposta era um “sinto muito”.

– Gostaria de poder ter lhe contado – ela disse de repente. – Você foi a pessoa mais difícil de ser deixada.

– Mas não abandonou seu trabalho, não é mesmo? Porque ainda está trabalhando como cirurgiã.

– Sim, estou.

– Como é seu marido?

Nesse momento, ela estremeceu.

– Vai conhecê-lo.

Ótimo. Que alegria!

Diminuindo a velocidade, ela virou à direita em direção a... uma estrada de terra? Mas que droga é essa?

– Para sua informação – ele murmurou –, este carro foi feito para pistas de asfalto, não para percursos assim.

– É o único caminho.

Para onde? Ele se perguntou.

– Você vai ficar me devendo algo muito grande por isso.

– Eu sei. Mas você é o único que pode salvá-la.

Manny piscou os olhos.

– Não disse nada sobre ser “ela”.

– Isso importa?

– Se pensar que não estou entendendo nada do que está acontecendo, tudo importa.

Após percorrerem uns dez metros, começaram a passar por vários atoleiros que eram tão profundos quanto malditos lagos e, enquanto seu Porsche trepidava, sentiu algo arranhando seu estômago e apertou os dentes.

– Que se dane essa paciente, quero um reembolso pelo que está fazendo ao chassi do meu carro.

Jane soltou uma risadinha e isso fez com que o centro de seu peito doesse... mas tinha de cair na real. Os dois nunca estiveram, de fato, juntos. Claro, houve uma atração de sua parte, uma grande atração. E, talvez, um beijo. Mas isso foi tudo.

E agora ela era a Sra. de Outra Pessoa, e também tinha acabado de voltar do maldito mundo dos mortos.

Cristo, que tipo de vida ele tinha? Por outro lado, talvez aquilo fosse um sonho... Isso o animou, pois talvez Glory não tivesse se acidentado também.

– Não me disse o tipo de lesão – disse ele.

– Quebra na coluna vertebral. Entre C6 e C7. Nenhuma sensação abaixo da cintura.

– Droga, Jane... Isso é complicado.

– Agora sabe por que preciso tanto de você.

Mais ou menos cinco minutos mais tarde, aproximaram-se de portões que pareciam ter sido construídos durante as Guerras Púnicas, pelo menos dois séculos antes de Cristo... A coisa parecia estar fixada ali nos moldes de Alice no País das Maravilhas, os elos da corrente estavam enferrujados e quebrados em alguns lugares. E a barra que os atravessava? Aquela porcaria não valia nem o esforço de ser manuseada, não era nada além de um pedaço de arame usado para cerca de gado e que já tinha vivido dias melhores. No entando, a maldita coisa abriu sem problemas, e enquanto entravam, viu a primeira câmera de vídeo.

Ao avançarem a passos lentos, uma névoa estranha veio do nada, a paisagem ficou fora de foco até não conseguir enxergar nada que havia além de trinta centímetros à frente do carro. Cristo, era como se estivessem em um episódio de Scooby-Doo.

E, então, houve um progresso curioso: o próximo portão estava em condições um pouco melhores; o seguinte era ainda mais novo e o quarto parecia ter apenas um ano, no máximo. O último portão estava brilhando e parecia algo saído de Alcatraz: mais de sete metros de altura e avisos de alta voltagem espalhados por toda sua extensão. E aquele muro no qual o portão estava instalado? Não era bem para conter gado... Talvez dinossauros. E podia apostar que os tijolos deviam ter pelo menos meio metro de espessura.

Manny girava a cabeça de um lado a outro à medida que avançavam e começavam a descer por um túnel tão profundo e com uma estrutura tão forte que poderia atravessar por baixo do rio Hudson. Quanto mais desciam, mais a grande questão que o assolava desde a aparição intensificava-se em sua mente: por que forjar a morte? Por que provocar o caos que tinha causado na vida dele e na dos outros que trabalhavam com ela no Hospital São Francisco? Nunca tinha sido uma mulher cruel, mentirosa, não tinha problemas financeiros, nem nada do que fugir.

Agora sabia, mesmo que não tivesse dito uma palavra: Governo dos Estados Unidos.

Aquele cenário, aquela estrutura no sistema de segurança... Um local oculto nos subúrbios de uma cidade suficientemente grande, mas não tão grande quanto Nova York, Los Angeles ou Chicago? Tinha de ser o Governo. Quem mais poderia pagar por isso?

E quem era a mulher a quem trataria?

O túnel terminou em uma típica garagem subterrânea, com pilares e vagas limitadas por faixas amarelas... e, mesmo sendo tão grande, o local estava vazio. Havia apenas duas vans, que não conseguia distinguir muito bem a marca, com vidros escurecidos e um micro-ônibus que também tinha vidros filmados.

Antes mesmo de ela estacionar o Porsche na garagem, uma porta de aço abriu-se e...

Bastou um olhar no cara enorme que saiu dali e a cabeça de Manny explodiu, a dor atrás dos olhos ficou tão intensa que escorregou no banco do carro, os braços caíram e seu rosto contorceu-se de agonia. Jane lhe disse alguma coisa. Uma porta do carro foi aberta. Em seguida, a dele.

A brisa que o atingiu era seca e cheirava vagamente a terra... mas havia algo mais. Colônia. Uma fragrância amadeirada de especiarias que era, ao mesmo tempo, cara e agradável, mas também algo que despertava nele um desejo curioso de sair correndo.

Manny forçou as pálpebras a se abrirem. Sua visão estava muito turva, mas era incrível o que a necessidade obrigava alguém a fazer... E quando o homem a sua frente entrou em foco, viu-se encarando o filho da mãe de cavanhaque que tinha...

Com uma onda de dor, seus olhos reviraram e quase vomitou.

– Precisa liberar as memórias – ouviu Jane dizer.

Houve alguma conversa nesse ponto, a voz de sua antiga colega misturava-se com os tons profundos daquele homem com tatuagens nas têmporas.

– Isso o está matando...

– É arriscado demais...

– Como ele vai operar desse jeito?

Houve um longo silêncio. E, então, de repente, a dor foi retirada como se fosse um véu sendo levantado – toda aquela pressão saiu de dentro dele em um piscar de olhos. Em seu lugar, as lembranças inundaram sua mente.

A paciente de Jane. O Hospital São Francisco. O homem com o cavanhaque e... um coração de seis válvulas.

Manny abriu bem os olhos e encarou aquele rosto cruel.

– Conheço você.

– Tire-o do carro – foi a única resposta do cara de cavanhaque. – Não confio nos meus atos se tocar nele.

Que maravilha de boas-vindas. E havia alguém atrás do desgraçado. Um homem que Manny tinha cem por cento de certeza de que já havia visto antes... Contudo, deve ter sido algo muito rápido, pois não conseguia lembrar-se de seu nome ou de onde se conheceram.

– Vamos – Jane disse.

Sim. Grande ideia. Naquele momento, precisava de alguma coisa para se concentrar que não tivesse nada relacionado com aquela situação de não saber o que dizer.

Enquanto o cérebro de Manny lutava para processar o que estava acontecendo, percebeu que ao menos seus pés e pernas seguiam o programa. Depois que Jane o ajudou a sair do carro e a ficar em pé, começou a segui-la e ao cara de cavanhaque pela instalação que era tão insípida e limpa quanto um hospital: corredores sóbrios, lâmpadas fluorescentes no teto, tudo cheirava a produtos de limpeza.

Havia também câmeras de segurança que moviam-se em intervalos regulares, como se o edifício fosse um monstro com muitos olhos.

Enquanto caminhavam, sabia que não devia fazer qualquer pergunta. Bem, sabia disso e de que sua cabeça estava tão confusa que tinha a certeza de que se mover era o máximo de suas habilidades naquele momento. Em seguida, percebeu o cara do cavanhaque e seu olhar mortal... não era exatamente uma abertura para iniciar um bate-papo.

Portas. Passaram por muitas portas, todas as quais foram fechadas em seguida e, sem dúvida, trancadas.

Palavrinhas interessantes como local secreto e segurança nacional brincaram em seu crânio, e isso ajudou muito, fazendo-o acreditar que talvez pudesse perdoar Jane por desaparecer da vida dele... um dia.

Quando Jane parou diante de uma porta dupla, suas mãos brincaram com as lapelas do jaleco branco e, em seguida, com o estetoscópio no bolso. E essa reação só fez com que tivesse a sensação de que tinha uma arma na cabeça: na sala de cirurgia, nos incontáveis problemas graves que se passaram no departamento de traumatologia, ela sempre mantivera a calma. Era sua marca registrada.

Mas aquilo era pessoal, ele pensou. De alguma maneira, seja lá o que estivesse do outro lado daquelas portas, estava relacionado a alguém próximo a ela.

– Tenho bons equipamentos aqui – ela disse. – Mas não tudo. Não tenho ressonância magnética. Apenas tomografias e raios-X. Contudo, a sala de cirurgia é adequada e não só posso ajudar como também tenho uma excelente enfermeira.

Manny respirou fundo, muito fundo, recompondo-se. Com toda força de vontade, calou todas as perguntas, a persistente indignação em sua cabeça e a estranheza daquela viagem ao mundo da espionagem ao estilo 007.

Primeiro item em sua lista de coisas a fazer? Despistar o público revoltado dali.

Olhou por cima do ombro, em direção ao cara de cavanhaque.

– Vai precisar sair daqui, amigo. Quero você fora, no corredor.

A reação que teve depois disso foi... simplesmente fantástica, principalmente se fosse um dentista: o desgraçado exibiu um par de caninos tão longos quanto seu braço e rosnou, em alto e bom som, como um cachorro.

– Certo – disse Jane, posicionando-se entre eles. – Tudo bem. Vishous vai esperar lá fora.

Vishous? Será que tinha ouvido direito?

Por outro lado, a mãe do menino devia ser louca de pedra, considerando o pequeno espetáculo odontológico. Não importa. Tinha trabalho a fazer e, talvez, o filho da mãe mastigasse couro duro ou algo assim.

Entrando na sala de exames ele...

Oh... santo Deus.

Ah... meu Deus do céu.

A paciente sobre a mesa estava deitada como águas tranquilas... era provavelmente a coisa mais linda que ele já tinha visto: o cabelo era muito preto e trançado em uma corda grossa que pendia livre ao lado de sua cabeça. A pele era de um marrom dourado, como se ela fosse descendente de italianos e tivesse sido exposta ao sol recentemente. Olhos... seus olhos eram como diamantes, muito claros e brilhantes ao mesmo tempo, com apenas uma borda escura ao redor da íris.

– Manny?

A voz de Jane estava bem atrás dele, mas sentiu como se estivesse a quilômetros de distância. Na verdade, o mundo inteiro estava em outro lugar, nada existia além do olhar de sua paciente que o encontrou do alto daquela mesa com a cabeça imobilizada.

Finalmente havia acontecido, pensou. Durante a vida inteira perguntara-se por que nunca havia se apaixonado e agora sabia a resposta. Estava esperando aquele momento, aquela mulher, aquela hora.

Esta mulher é minha, pensou.

E mesmo sabendo que aquilo não fazia sentido algum, a convicção era tão forte que não conseguia questionar.

– Você é o curandeiro? – ela disse em uma voz baixa que parou seu coração. – Você está aqui... por mim?

Suas palavras tinham um sotaque forte – maravilhoso por sinal –, e havia também um tom um pouco surpreso.

– Sim. Sou eu. – Arrancou o casaco do terno e jogou-o em um canto, sem dar a mínima importância para onde havia caído. – Estou aqui por você.

Quando se aproximou, lágrimas deslizaram de seus olhos cobertos de gelo.

– Minhas pernas... sinto como se estivesse as movimentando, mas acho que não consigo.

– Doem?

– Sim.

Dor fantasma. Não era uma surpresa.

Manny deteve-se ao lado dela e olhou para seu corpo, que estava coberto com um lençol. Era alta. Pelo menos um metro e oitenta. E era constituída com uma força elegante. Era uma guerreira, pensou, observando a força de seus braços. Uma lutadora.

Deus, a perda da mobilidade em alguém como ela tirava-lhe o fôlego. Por outro lado, mesmo que se tratasse de alguém viciado em televisão, a vida em uma cadeira de rodas seria terrível; mas, para alguém como ela, seria uma sentença de morte.

Manny aproximou-se e pegou a mão dela... No instante em que fez contato, o corpo dele como um todo estremeceu, como se ela fosse a tomada do seu plugue interior.

– Vou cuidar de você – disse enquanto olhava diretamente em seus olhos. – Quero que confie em mim.

Ela engoliu a saliva quando uma lágrima cristalina deslizou de seus olhos. Por instinto, ele estendeu a mão e a deteve com a ponta do dedo...

O rosnado que infiltrou-se pela porta era uma ameaça, uma contagem regressiva para se afastar, mas não deu importância àquilo. Quando olhou para o cara de barbicha, sentiu como se estivesse rosnando de volta para o filho da mãe. O que, mais uma vez, não fazia sentido algum.

Ainda segurando a mão de sua paciente, exclamou para Jane:

– Tire esse bastardo miserável da minha sala de cirurgia. E quero ver os malditos exames e radiografias. Agora.

Ele ia salvar aquela mulher, mesmo se aquilo o matasse.

Quando os olhos do Sr. Cavanhaque brilharam em direção a ele com puro ódio, Manny pensou: “Bem, esse é o máximo que o cara pode fazer...”.


CAPÍTULO 6

Qhuinn saiu sozinho em Caldwell, pela primeira vez na vida.

Quando pensou melhor sobre isso, concluiu que era quase uma impossibilidade estatística. Passou tantas noites lutando, bebendo e fazendo sexo dentro e ao redor dos clubes noturnos do centro da cidade que pelo menos um ou dois voos tinham de ter sido feitos sozinho. Mas não. Quando entrou no Iron Mask, estava sem a companhia de seus dois amigos pela primeira vez.

De qualquer forma, as coisas eram diferentes agora. Os tempos tinham mudado. As pessoas também.

John Matthew estava agora muito feliz casado; então, quando tinha uma folga, como naquela noite, ficava em casa com sua shellan, Xhex, fazendo a cama praticar uma série de exercícios de resistência. Sim, claro, Qhuinn era um ahstrux nohtrum e tudo mais, mas Xhex era uma symphato assassina totalmente capaz de cuidar de seu macho, e da Adaga Negra.

O complexo da Irmandade era uma fortaleza que nem mesmo uma equipe da SWAT poderia invadir. Assim, ele e John chegaram a um acordo... e deixaram isso em segredo.

Quanto a Blay... Qhuinn não ia pensar sobre seu melhor amigo. Não. De jeito nenhum.

Observando o interior do clube, iniciou sua máquina de seleção interna e começou a abrir caminho por meio das mulheres, homens e casais. Havia uma e apenas uma razão para ter ido até ali, e era a mesma que havia levado os outros góticos àquele local.

Não era um lugar para se procurar um relacionamento, sequer uma companhia. Tratava-se apenas de movimentar-se entrando e saindo e, quando tudo estivesse acabado, era o caso de dizer “Obrigado, moça” – ou “cara”, dependendo de seu humor –, “Estou dando o fora”. Porque ele ia precisar de outra pessoa. Ou outras pessoas.

Não investiria apenas uma vez naquela noite; sentia como se estivesse arrancando a própria pele, seu corpo latejava com força, necessitando de alívio. Cara, sempre gostou de transar, mas nos últimos dias sua libido tinha aumentado até crescer como um monstro.

Será que Blay não era mais seu melhor amigo?

Qhuinn fez uma pausa e olhou rapidamente uma vitrine antes de inclinar a cabeça sobre ela: caramba, não tinha mais cinco anos. Machos adultos não têm melhores amigos. Não precisam deles, especialmente se o macho em questão estivesse transando com outra pessoa. O dia inteiro. Todos os dias.

Qhuinn andou até o bar.

– Tequila. Dose dupla. E traga a melhor que tiver.

Os olhos da mulher aqueceram-se por trás do pesado delineador e dos cílios postiços.

– Já vai pagar a comanda?

– Sim – e considerando a maneira como ela escorregou a mão sobre o estômago achatado e desceu ainda mais pelo quadril, ele poderia ter pedido, com certeza, um pedaço dela também.

Quando ele estendeu o cartão de crédito, ela fez um movimento amplo com os seios para pegar a maldita coisa, inclinando-se de tal forma que poderia muito bem pegar algo no chão com os mamilos.

– Volto já, já com sua bebida.

Que surpresa.

– Ótimo.

Estava perdendo tempo ao sair rebolando como fez: não era nada disso que procurava naquela noite... não chegava nem perto. Sexo errado, para começar. E não ia investir em nada que tivesse cabelos escuros. Para dizer a verdade, não conseguia acreditar no que queria.

Tinha algumas limitações por ser daltônico, mas quando vestia apenas preto e trabalhava à noite, na maioria das vezes, isso não era grande coisa. Além disso, seus olhos desiguais eram tão perspicazes e sensíveis às variações de cinza que realmente percebias as “cores” – era tudo uma questão de gradação. Por exemplo, sabia quem eram as pessoas loiras no clube. Sabia a diferença entre as morenas e as de cabelos negros. E, sim, poderia enganar-se e interpretar mal se algum idiota tivesse feito uma tintura estranha, mas, mesmo assim, poderia dizer que havia algo estranho, porque o tom de pele nunca combinava direito com a cor artificial do cabelo.

– Aqui está – disse a bartender.

Qhuinn estendeu a mão, pegou o copo, bebeu a tequila e voltou a colocá-lo vazio sobre o balcão do bar.

– Vamos tentar isso mais algumas vezes.

– É pra já. – Exibiu seu par de seios novamente, sem dúvida com a esperança de que ele os agarrasse a qualquer momento. – Você é o tipo de cliente que gosto. Porque é óbvio que consegue lidar com uma boa bebida.

Uh-hum. Claro. Como se a habilidade de ingerir o equivalente a quatro doses de álcool de uma vez só fosse grande coisa. Deus, a ideia de que alguém, com esse sistema de valores, tivesse permissão para votar fazia com que ele desejasse encarar a vitrine outra vez.

Humanos eram patéticos.

Contudo, quando olhou para trás para observar a multidão, pensou que baixar a bola seria uma boa. Sentia-se patético sozinho naquela noite, especialmente quando viu dois homens em um canto, os dois separados apenas pelas roupas de couro que vestiam. Naturalmente, um deles era loiro. Assim como seu primo. Então, era claro que imagens hipotéticas de Blay e Saxton começaram a brincar em seu campo de polo interior, marcando seu gramado com pegadas e bosta de cavalo.

Só que não eram hipotéticos, mas reais: no final de todas as noites, quando as pessoas à mesa da mansão da Irmandade começavam a se dispersar depois da Última Refeição e a sair para resolver seus assuntos particulares, Blay e Saxton dirigiam-se discretamente para a grande escadaria e desapareciam no corredor do andar de cima, onde seus quartos ficavam.

Nunca tinham se dado as mãos, nunca tinham se beijado na frente de ninguém, e também não havia olhares de reprovação. Por outro lado, Blay era um cavalheiro, e Saxton era uma vagabunda elegante inserida de alguma maneira em um grande espetáculo.

Seu primo era uma verdadeira prostituta...

Não, não é, uma pequena voz soou. Só o odeia porque está de caso com seu garoto.

– Ele não é meu garoto.

– O que disse?

Qhuinn lançou um olhar ao espectador... e, em seguida, reassumiu seu ar durão. Bingo, ele pensou.

Ao lado dele estava um macho humano, mais ou menos um metro e oitenta com um cabelo fabuloso, rosto bonito e lábios muito agradáveis. As roupas não eram totalmente góticas, mas tinha algumas correntes na cintura e duas argolas em uma das orelhas. Mas foi a cor do cabelo que realmente fez a diferença.

– Estava falando sozinho – Qhuinn murmurou.

– Ah. Faço muito isso. – O sorriso foi breve e, em seguida, o cara voltou a cuidar de sua...

– O que está bebendo? – Qhuinn perguntou.

Um copo já na metade foi erguido.

– Vodka e tônica. Não suporto essa coisa de adocicar a bebida.

– Nem eu. Vou de tequila. Pura.

– Patrón?

– Nunca. Gosto da Herradura.

– Ah – o cara virou-se e olhou para frente em direção à multidão. – Gosta das coisas como são.

– Sim.

Qhuinn queria perguntar se o Sr. Vodka e Tônica estava observando os caras ou as garotas, mas permaneceu em silêncio. Cara, aquele cabelo era incrível. Grosso. Enrolado nas pontas.

– Está procurando por alguém em particular? – Qhuinn disse em voz baixa.

– Talvez. E você?

– Com certeza.

O cara riu.

– Tem muita mulher bonita aqui. Pode escolher.

Mas. Que. Droga. Que sorte a dele: um hétero. Por outro lado, talvez pudessem dividir alguma coisa e começar por aí.

O cara inclinou-se e ofereceu a palma da mão.

– Eu sou...

Quando os dois entreolharam-se completamente, o cara deixou a sentença à deriva, mas não tinha importância. Qhuinn não dava a mínima para o nome dele.

– Seus olhos têm cores diferentes? – o cara perguntou suavemente.

– Sim.

– Isso é muito... legal.

Bem, sim. Quando não se é um vampiro nascido na glymera. Se esse fosse o caso, seria considerado um defeito físico que significava ser geneticamente ruim e, portanto, uma vergonha para sua linhagem e absolutamente inabilitado para o acasalamento.

– Obrigado – Qhuinn disse. – Qual é a cor dos seus?

– Não pode dizer?

Qhuinn deu um tapinha sobre a lágrima tatuada perto do olho.

– Daltônico.

– Ah. Os meus são azuis.

– E você é ruivo, certo?

– Como sabe disso?

– Pelo seu tom de pele. Além disso, você é meio pálido e tem sardas.

– Isso é incrível – o cara olhou ao redor. – Está escuro aqui... não imaginava que conseguiria enxergar.

– Acho que posso – e acrescentou mentalmente: e que tal se eu lhe mostrar alguns dos meus outros truques.

O novo amigo de Qhuinn sorriu um pouco e voltou a observar a multidão. Depois de um minuto, disse:

– Por que está olhando para mim assim?

Porque quero transar com você.

– Você me lembra alguém.

– Quem?

– Alguém que perdi.

– Oh, droga, sinto muito.

– Tudo bem. A culpa é minha.

Pequena pausa.

– Então, você é gay, certo?

– Não.

O cara deu risada.

– Desculpe. Apenas imaginei que... Bom, acho que era um bom amigo.

Nenhum comentário.

– Vou encher o copo outra vez. Posso fazer isso para você também?

– Obrigado, cara.

Qhuinn virou-se e sinalizou para a atendente. Enquanto esperava ela se aproximar rebolando, planejou sua abordagem. Primeiro, um pouco mais de álcool. Em seguida, adicionaria algumas fêmeas à mistura. O terceiro passo seria entrar em um dos banheiros e transar com a(s) garota(s).

Então... Mais alguns olhares. De preferência quando um deles ou os dois estivessem dentro de uma mulher. Pois por mais que o ruivo de cabelo espetacular parecesse estar a fim das garotas, o filho da mãe tinha sentido alguma coisa quando os dois se entreolharam – e hétero é um termo relativo.

Assim como virgem.

Isso fazia com que os dois se enquadrassem nesses termos, não? Afinal, Qhuinn nunca, jamais, havia ficado com alguém de cabelo vermelho.

Mas aquela noite seria uma exceção.


CONTINUA

CAPÍTULO 4

No centro de Caldwell havia vários prédios altos, cheios de janelas espelhadas, mas nenhum era como o Commodore. Com trinta andares, estava entre os mais altos daquela floresta de concreto e os sessenta apartamentos que abrigava eram totalmente fantásticos, ao estilo de grandes empresários como Donald Trump, revestido de mármore e detalhes cromados; tudo era muito bem projetado.

No vigésimo sétimo andar, Jane entrou no apartamento de Manny, procurando por sinais de vida, e o que encontrou foi... nada. Literalmente. A casa do cara aproximava-se mais de uma pista de dança do que uma pista de obstáculos: a mobília era composta de três objetos na sala e uma cama enorme na suíte principal. Ponto. Bem, e algumas banquetas de couro ao redor do balcão da cozinha. Quanto às paredes? A única coisa que havia pendurado ali era uma TV de plasma do tamanho de um outdoor. Não havia tapetes sobre os pisos de madeira, apenas mochilas de academia... mais mochilas de academia... e calçados esportivos.

Nada disso indicava que era desorganizado; não tinha coisas suficientes para ser considerado assim.

Com um pânico crescente, entrou no quarto dele e viu mais ou menos meia dúzia de uniformes cirúrgicos deixados em pilhas no chão, como poças d’água após uma tempestade e... nada mais.

Mas a porta do armário estava aberta e ela entrou...

– Meu Deus... mas que droga.

Havia um conjunto de três malas alinhado no chão, onde deveria estar uma pequena, uma média e outra grande... mas a do meio não estava lá. Então, concluiu o que estava acontecendo ao considerar os espaços vazios que havia entre os cabides de calças e camisas: estava fora, em uma viagem. Talvez durante todo o fim de semana.

Sem muita esperança, discou para o sistema de atendimento do hospital e chamou-o outra vez...

Notou que estava recebendo outra chamada e amaldiçoou quando observou o número.

Respirando fundo, respondeu:

– Oi, V.

– Nada?

– Nada no hospital ou no apartamento. – Um rosnado sutil chegou até ela pelo telefone e ampliou a angústia da busca que ainda não tinha dado em nada. – Também procurei na academia, vindo para cá.

– Invadi o sistema do Hospital São Francisco e consegui os horários dele.

– Onde ele está?

– Tudo o que diz lá é que Goldberg está de plantão, certo? Olha, o sol se pôs. Vou sair daqui em, mais ou menos...

– Não, não... fique com Payne. Ehlena é ótima, mas acho que deveria ficar com ela.

Houve uma grande pausa, como se ele soubesse que estava sendo despistado.

– O que vai fazer agora?

Apertou o telefone e perguntou-se a quem deveria recorrer. Deus? À mãe dele?

– Não tenho certeza. Mas liguei para ele. Duas vezes.

– Ligue quando encontrá-lo. Vou pegar vocês.

– Posso levá-lo até em casa...

– Não vou machucá-lo, Jane. Não tenho a menor intenção de deixá-lo em pedaços.

Sim, mas considerando o tom de voz frio, teve de se perguntar sobre aqueles planos bem intencionados de vampiros cheios de autocontrole e blá, blá, blá... Acreditava que Manny viveria para tratar da irmã gêmea de V. Mas, e depois? Tinha suas reservas... especialmente se as coisas dessem errado na sala de cirurgia.

– Vou esperar aqui mais um pouco; talvez ele apareça, ou ligue. Se isso não acontecer, penso em outra coisa.

No longo silêncio, praticamente conseguia sentir uma corrente de ar frio chegando através do celular. Seu companheiro fazia muitas coisas direito: lutar, fazer amor, lidar com qualquer coisa relacionada à informática. Ser forçado a ficar parado? Não era bem uma de suas competências inatas. Na verdade, era garantia de deixá-lo enlouquecido.

Ainda assim, o fato de não confiar nela fez com que se sentisse distante dele.

– Fique com sua irmã, Vishous – disse em um tom de voz equilibrado. – Manterei contato.

Silêncio.

– Vishous. Confie em mim e vá ficar ao lado dela.

Ele não disse coisa alguma depois disso. Apenas desligou.

Quando pressionou a tecla end do telefone, soltou um palavrão.

Uma fração de segundo depois estava discando outra vez e no instante em que ouviu uma voz profunda atender, teve de enxugar uma lágrima que, se pensasse em toda sua natureza translúcida, era muito, muito real.

– Butch – ela resmungou –, preciso de sua ajuda.

Quando o pouco que restava do pôr do sol desapareceu e a noite bateu seu cartão de ponto, assumindo o turno seguinte, o carro de Manny deveria ter ido para casa. Deveria ter sido levado por si só direto para Caldwell.

Ao invés disso, acabou chegando ao extremo sul da cidade, onde as árvores eram grandes e as extensões de grama superavam as de asfalto em até dez vezes mais.

Fazia sentido. Os cemitérios deveriam ter longos trechos de terra, pois não se podia enterrar um caixão no concreto. Bem, até poderia... se se tratasse de um mausoléu.

O cemitério Bosque dos Pinheiros ficava aberto até as dez da noite, seus grandes portões de ferro permaneciam escancarados e seus inúmeros postes de iluminação forjados em ferro emitiam uma luz amarelo-manteiga ao longo do labirinto de ruas. Quando entrou, foi para a direita, os faróis do carro iluminando o local ao longo das lápides e do gramado.

Em última análise, o local para onde se dirigia não significava nada: não havia um corpo embaixo da lápide de granito que ia visitar – não restara nada para ser enterrado. Nada de cinzas para colocar em uma vasilha, também... ou, pelo menos, nada que se pudesse separar com certeza de dentro de um Audi que havia pegado fogo.

Depois de dar, mais ou menos, um quilômetro de voltas, tirou o pé do acelerador e deixou o carro deslizar até estacionar. Até onde conseguia ver, era o único no cemitério, mas isso não era problema para ele. Não havia razão para se ter uma audiência.

Quando saiu do carro, o ar frio não ajudou a limpar sua mente, mas deu algo para seus pulmões fazerem quando inalou profundamente e caminhou sobre a grama áspera da primavera. Teve o cuidado de não pisar em nenhuma tumba enquanto avançava... claro, os mortos não saberiam que estava andando acima deles, mas parecia uma coisa respeitosa a fazer.

O túmulo de Jane estava à frente, e desacelerou o passo quando aproximou-se daquilo que não havia sido deixado por ela, por assim dizer.

Ao longe, o apito de um trem cortou o silêncio... e o som vazio e lúgubre era um clichê tão grande que se sentiu em um filme o qual nunca assistiria sentado em casa, muito menos pagaria para ver em um cinema.

– Droga, Jane.

Inclinando-se, passou os dedos sobre as marcas irregulares da lápide. Foi ele quem tinha escolhido a pedra escura de azeviche, pois ela não teria gostado nem um pouco de algo pastel ou desbotado. E a inscrição também era simples e descomplicada, apenas seu nome, datas e uma frase na parte inferior: DESCANSE EM PAZ.

Sim. Deu a si mesmo nota dez em originalidade por isso.

Lembrava-se exatamente onde estava quando soube que ela tinha morrido: no hospital, claro. Era final de um longo plantão que tinha começado com o joelho de um jogador de hóquei e terminado com a reconstrução espetacular de um ombro, isso porque o viciado decidiu tentar voar.

Saiu da sala de cirurgia e encontrou Goldberg esperando próximo às pias de higienização. Manny parou no meio do processo de retirar a máscara cirúrgica ao dar apenas uma olhada no rosto pálido de seu colega. Com a coisa pendurada em seu queixo como um babador, exigiu saber o que diabos havia acontecido de errado – contando o tempo todo que se tratava de um acidente com quarenta carros engavetados na estrada ou um acidente de avião ou um hotel incendiado... algo relacionado a uma tragédia que englobasse toda uma comunidade.

Só que quando olhou sobre o ombro do cara e viu cinco enfermeiras e três outros médicos... Todos com a mesma aparência de Goldberg... E nenhum deles correndo para chamar outros funcionários para assumirem plantão ou preparando as salas de cirurgia.

Certo. Tinha acontecido algo que englobava toda uma comunidade. A comunidade deles.

– Quem? – perguntou.

Goldberg olhou para trás, em direção a sua tropa de apoio e foi então que Manny entendeu. E mesmo com as entranhas congeladas dentro dele, agarrou-se a uma esperança irracional de que o nome que estava prestes a sair da boca de seu colega cirurgião não fosse...

– Jane. Acidente de carro.

Manny não perdeu tempo.

– Quando ela deu entrada?

– Não chegou a dar entrada.

Com isso, Manny não disse nada. Terminou de tirar a máscara de seu rosto, amassou-a e descartou-a na lata de lixo mais próxima.

Quando foi passando por eles, Goldberg abriu a boca outra vez.

– Nem uma palavra – Manny ladrou. – Nem. Uma. Palavra.

Os outros funcionários começaram a tropeçar entre eles mesmos para sair do caminho, dividindo o grupo com a precisão de um pedaço de tecido cortado ao meio.

Voltando ao presente, não conseguia se lembrar onde tinha ido ou o que tinha feito depois disso... não importava quantas vezes voltasse sua mente àquela noite obscura, esses momentos eram como um buraco negro. Contudo, em dado momento, percebeu que tinha chegado em seu apartamento, pois acordou ali dois dias depois e viu que ainda estava com o uniforme cirúrgico respingado com o sangue do último paciente que havia operado.

O mais irritante de tudo era o fato de que Jane tinha salvado tantas pessoas vítimas de acidentes de carro. A ideia de ter sido levada dessa maneira levava-o a pensar que o Ceifeiro da Morte veio atrás dela para cobrar todas as almas que tinha afastado do alcance de suas garras mortais.

O som de outro apito de trem o fez querer gritar.

O trem e aquele pager apitando.

Hannah Whit. Outra vez?

Mas que diabos...

Manny franziu o cenho e olhou para a lápide. Salvo engano, a irmã mais nova de Jane chamava-se Hannah. Whit. Whitcomb?

Só que ela tinha morrido muito cedo.

Não tinha?

Loucura. Total.

Deus, deveria ter trazido seus tênis para essa aventura, Jane pensou enquanto andava sem rumo pelo apartamento de Manny. Outra vez. Teria deixado o apartamento se tivesse uma ideia melhor de onde ir, mas seu cérebro, mesmo sendo tão astuto, não conseguia enxergar outra opção...

Seu telefone tocando não era exatamente algo bom. Não queria dizer a Vishous que quarenta e cinco minutos depois não tinha nada de novo para relatar.

Pegou o celular.

– Oh... Deus.

Aquele número. Aqueles dez dígitos que sempre estiveram registrados na discagem rápida de todos os telefones que teve antes daquele. Manny.

Quando pressionou a tecla send, sua mente estava em branco e seus olhos cheios de lágrimas. Seu velho e querido amigo e colega de profissão...

– Alô? – ele disse. – Senhorita Whit?

Ao fundo, ouviu o soar fraco de um apito de trem.

– Alô? Hannah? – Aquele tom... era exatamente o mesmo de anos atrás: baixo, impositivo. – Tem alguém aí?

Aquele apito baixo soou outra vez.

Jesus Cristo... ela pensou. Sabia onde ele estava.

Jane desligou e saiu rápido do apartamento, do centro da cidade, atravessando a toda velocidade pelos subúrbios.

Viajando em um borrão à velocidade da luz, suas moléculas atravessaram a noite em uma corrida alucinante que percorreu quilômetros como se fossem centímetros.

O cemitério Bosque dos Pinheiros era o tipo de lugar que precisava de um mapa para se localizar nele, mas quando se é uma forma etérea no ar, pode-se percorrer uma centena de acres em apenas um piscar de olhos.

Quando tomou forma na escuridão perto de sua sepultura, respirou fundo e quase chorou.

Lá estava ele, em carne e osso. Seu chefe. Seu colega. O único a quem deixou para trás. E ele estava em pé atrás de uma lápide negra na qual havia seu nome esculpido.

Certo, agora sabia que tinha tomado a decisão certa quando não havia ido ao funeral. O mais perto que chegou disso foi lendo a notícia no Caldwell Courier Journal – e a imagem de todos aqueles cirurgiões, funcionários do hospital e pacientes emocionou-a demais. Mas aquilo era muito pior.

Manny parecia exatamente como ela mesma se sentia: arruinado por dentro.

Jesus, aquela loção pós-barba ainda cheirava bem... e apesar de ter perdido um pouco de peso, era um pedaço de mal caminho, com aquele cabelo escuro e aquele rosto rígido. Seu terno era de risca de giz e feito sob medida... mas havia sujeira em volta da bainha da calça muito bem passada. E seus sapatos estavam sujos também, fazendo com que ela se perguntasse onde diabos ele estivera. Com certeza não tinha ficado assim por causa da sepultura; depois de um ano, o solo ainda estava plano e coberto com grama bem aparada...

Oh, espere. O túmulo devia estar assim desde o primeiro dia. Ela não tinha deixado nada para ser enterrado.

Quando os dedos dele descansaram sobre a pedra, soube que foi ele quem tinha escolhido a sepultura. Ninguém mais teria tido o bom-senso de fazer exatamente o que ela gostaria que fizesse. Nada de muitos detalhes rococós ou dizeres complicados; curto, doce, no ponto.

Jane limpou a garganta.

– Manny...

Ele ergueu a cabeça, mas não olhou para ela... como se tivesse ouvido a voz dela apenas em sua mente.

Assumindo uma forma totalmente corpórea, ela falou mais alto.

– Manny.

Sob qualquer outra circunstância, a reação teria sido uma profusão de risos. Mas ele se virou, em seguida, gritou, tropeçou na lápide e caiu sentado no chão.

– Mas que... diabos... você está fazendo aqui? – ele engasgou. A expressão em seu rosto começou com um sentimento de horror, mas rapidamente mudou para a descrença absoluta.

– Sinto muito.

Era totalmente ridículo, mas foi tudo o que saiu de sua boca.

E parecia mais do que poderia suportar. Encontrar aqueles olhos castanhos fez com que, de repente, ela não tivesse nada a dizer.

Manny ergueu-se com um salto, e seu olhar escuro subia e descia observando o corpo dela.

E, por fim, subiu... fixando-se em seu rosto.

Foi quando a raiva veio. E também uma dor de cabeça, evidentemente, considerando a maneira como ele estremeceu e esfregou as têmporas.

– É algum tipo de piada?

– Não – ela desejava que fosse. – Sinto muito mesmo.

O olhar severo e cruel era dolorosamente familiar, e que ironia sentir-se nostálgica com um olhar ameaçador como aquele.

– Você sente muito.

– Manny, eu...

– Eu a enterrei. E você sente muito? Que porcaria é essa?

– Manny, não tenho tempo para explicar. Preciso de você.

Ele a encarou por um longo momento.

– Você aparece depois de um ano morta e diz que precisa de mim?

A realidade de quanto tempo havia se passado pesou sobre ela. Acima de tudo.

– Manny... não sabia o que lhe dizer.

– Oh, mesmo? Que tal: ah, puxa, por falar nisso, estou viva.

Ele a encarou. Apenas a encarou.

Então, com uma voz rouca, disse:

– Você faz alguma ideia do que foi perdê-la? – passou rapidamente a mão sobre os olhos. – Tem noção?

A dor no peito dela fez com que a respiração ficasse difícil.

– Sim. Porque perdi você... perdi minha vida com você e no hospital.

Manny começou a andar, aproximando-se e afastando-se da lápide. E, embora ela quisesse, sabia que não devia aproximar-se demais.

– Manny... se houvesse alguma maneira de voltar para você, eu voltaria.

– Você voltou. Uma vez. Pensei que era um sonho, mas não. Não era.

– Não.

– Como entrou no meu apartamento?

– Apenas entrei.

Ele se deteve e olhou para ela, a lápide ficou entre eles.

– Por que fez isso, Jane? Por que forjou sua morte?

Bem, na verdade, não havia forjado.

– Não tenho tempo para explicar agora.

– Então, que diabos está fazendo aqui. Que tal explicar isso?

Ela clareou a garganta e disse:

– Estou com uma paciente cujo tratamento exige além da minha capacidade e quero que dê uma olhada. Não posso dizer para onde vou levá-lo, não posso lhe dar muitos detalhes e sei que isso não é justo... mas eu preciso de você – Queria arrancar os cabelos. Cair aos prantos. Abraçá-lo. Mas continuou, por que era isso o que tinha de fazer. – Estou procurando por você há mais de uma hora, então, estou atrasada. Sei que está chateado e confuso e não o culpo. Mas fique com raiva de mim mais tarde... Apenas venha comigo agora. Por favor.

Tudo o que pôde fazer foi esperar. Manny não se convencia por alguém falar demais, não conseguiria persuadi-lo assim. Escolheria ir... ou não.

E, infelizmente, se fosse a segunda opção, ela teria de chamar os Irmãos. Por mais que amasse e sentisse falta de seu antigo chefe, Vishous era seu homem e se sentiria uma maldita se deixasse alguma coisa acontecer com a irmã dele.

De uma forma ou de outra, Manny operaria alguém naquela noite.


CAPÍTULO 5

Butch O’Neal não era o tipo de cara que deixava uma dama em perigo.

Era alguém à moda antiga... o policial... o devoto, o católico praticante que havia nele. Dito isso, ao receber a ligação da amável e talentosa Dra. Jane Whitcomb, o cavalheirismo não seguiu o instinto impulsivo. Nem um pouco.

Ao colocar o pé para fora do Buraco e correr ao longo do túnel em direção ao centro de treinamento da Irmandade, seus interesses e os dela estavam totalmente alinhados, mesmo sem se levar em conta toda a questão de “ser um cavalheiro”: os dois temiam que V. perdesse o controle outra vez.

Já exibia todos os sinais: tudo o que tinha de fazer era olhar para ele e ver que a tampa da panela de pressão estava trancada com força sobre todo aquele calor e confusão. O que aconteceria com toda aquela pressão? Teria de encontrar uma vazão de alguma maneira e, no passado, isso aconteceu das piores maneiras possíveis.

Saindo da porta oculta e emergindo no escritório, Butch virou à direita e desceu ao longo do corredor que levava às instalações médicas. O sopro sutil de tabaco turco no ar disse-lhe exatamente onde encontrar seu alvo, não que houvesse alguma dúvida.

Próximo à porta fechada da sala de exames, ajeitou os punhos da camisa e ergueu o cinto. A batida na porta foi suave. Já o batimento cardíaco estava forte.

Vishous não respondeu com um “entre”. Ao invés disso, o Irmão saiu e fechou a porta atrás de si.

Caramba, ele parecia estar mal. E suas mãos tremiam ligeiramente quando pegou um de seus cigarros para preparar. Enquanto lambia a coisa para selá-la, Butch enfiou a mão no bolso para oferecer o isqueiro, acendendo a chama e erguendo-a à frente. Quando seu melhor amigo inclinou-se para o brilho laranja, reconheceu cada detalhe daquele rosto cruel e impassível. Jane estava absolutamente certa. O pobre coitado estava sobrecarregado e segurava tudo aquilo.

Vishous inalou profundamente e, então, recostou-se contra a parede de concreto, os olhos perspicazes fixos à frente, as botas de combate plantadas solidamente no chão. Em determinado momento, murmurou:

– Não vai perguntar como estou?

Butch inclinou-se da mesma maneira, aproximando-se bem de seu amigo.

– Não precisa.

– Anda lendo mentes?

– Sim. Esse sou eu.

V. inclinou-se para o lado e bateu as cinzas no lixo.

– Então, pode me dizer no que estou pensando, certo?

– Tem certeza que quer que eu solte um monte de palavrões tão perto de sua irmã? – Quando isso produziu uma risada curta, Butch olhou para o perfil de V. As tatuagens ao redor do olho do cara estavam especialmente sinistras, se considerasse as marcas de preocupação que o cercavam, como se fossem nuvens em um inverno nuclear.

– Não quer que eu faça isso em voz alta, V. – disse suavemente.

– Ah. Faça uma tentativa.

Isso significava que V. precisava conversar, mas, considerando a situação, não daria certo forçar coisa nenhuma ali: o macho sempre “finalizava” as conversas, mas, pelo menos, estava indo melhor do que tinha ido... antes? Sim, sequer quebrou uma porta nem nada.

– Ela pediu para que cuide dela se isso não der certo, não foi? – Butch disse, pronunciando o que mais temia. – E não estamos falando de cuidados paliativos de enfermagem.

A resposta de V. foi soltar uma respiração que durou mais ou menos uns quinze minutos depois do infinito.

– O que vai fazer? – perguntou Butch, mesmo sabendo a resposta.

– Não vou hesitar. – O complemento da resposta “mesmo que isso me mate” ficou subentendido.

Maldita vida. Às vezes, as situações pelas quais as pessoas passavam eram cruéis demais.

Butch fechou os olhos e deixou a cabeça cair para trás, contra a parede. A família era tudo para os vampiros. Sua companheira, os Irmãos com quem lutava, seu sangue... era todo o seu mundo. E, segundo essa teoria, ele também sofria junto com V. e Jane e o resto da Irmandade.

– Com sorte, não chegará a fazer isso – Butch olhou para a porta fechada. – A doutora Jane vai encontrar o cara. Ela é como um cão farejador...

– Sabe o que me ocorreu há uns dez minutos?

– O quê?

– Mesmo que não fosse mais dia, ela gostaria de continuar sozinha para encontrá-lo.

Quando o aroma de vinculação do macho exalou, Butch pensou: “Certo, cara. Jane e o cirurgião conviveram juntos durante anos, então, se há algum tipo de persuasão a ser feito, ela terá mais oportunidades sozinha... isso concluindo que ela dará um jeito na coisa toda de voltar dos mortos. Além disso, V. era um vampiro. Caramba. Será que alguém precisava adicionar mais alguma dificuldade nessa confusão toda?”.

Assim, considerando tudo, seria ótimo se o cirurgião tivesse mais de dois metros de altura, estrabismo e pelo de urso nas costas. Ser extremamente feio seria sua única vantagem se o macho vinculado em V. fosse acionado.

– Sem ofensa – Butch murmurou –, mas dá para culpá-la?

– É minha irmã gêmea que está em jogo – o cara passou com força uma das mãos ao longo dos cabelos escuros. – Mas que droga, Butch... minha irmã.

Butch sabia alguma coisa sobre como era perder alguém, então, sim, podia entender o que o macho na frente dele sentia. E, cara, não sairia do lado do Irmão: ele e Jane eram os únicos que conseguiam acalmar Vishous quando ficava assim. Jane já teria muita coisa para fazer ao lidar com o cirurgião e sua paciente.

O som do celular de V. fez os dois saltarem, mas o Irmão recuperou-se rápido e não deu tempo para que um segundo toque chegasse a seus ouvidos.

– Mesmo? Conseguiu? Obrigado... cara... sim. Sim. Encontro vocês na garagem. Certo. – Houve uma pequena pausa e V. olhou como se quisesse ficar sozinho.

Louco para desaparecer dali, Butch olhou para seus sapatos. O Irmão nunca fora muito bom em demonstrações públicas de afeto ou em conversar sobre coisas pessoais com Jane se houvesse alguém por perto. Mas como Butch era um mestiço, não conseguia se desmaterializar – e para onde, diabos, ele correria?

Após V. murmurar um rápido “tchau”, tragou profundamente um de seus cigarros e disse em voz baixa ao expirar:

– Pode parar de fingir que não está a meu lado.

– Que alívio. Não sou muito bom nisso.

– Não tem culpa de ocupar espaço.

– Então, ela o encontrou? – Quando Vishous assentiu, Butch assumiu uma expressão mortalmente séria. – Prometa-me uma coisa.

– O quê?

– Não vai matar esse cirurgião. – Butch sabia muito bem como era dar uma volta lá fora e ter de retornar àquele mundo vampiro. No seu caso, deu tudo certo, mas e quanto a Manello? – Não é culpa do cara e nem problema seu.

V. balançou o cigarro sobre o lixo e olhou para cima, os olhos de diamante estavam frios como uma noite ártica.

– Vamos ver como ele vai se sair, tira.

Com isso, virou-se e entrou onde sua irmã estava.

Bem, pelo menos, o filho da mãe era honesto, Butch pensou junto com uma maldição.

Manny não gostava nem um pouco de outras pessoas dirigindo seu Porsche 911 Turbo. Na verdade, além de seu mecânico, ninguém mais o dirigia.

Contudo, naquela noite, permitiu que Jane assumisse a direção, pois, em primeiro lugar, era competente e poderia mudar as marchas sem destruir a transmissão; em segundo lugar, ela afirmava que a única maneira possível de levá-lo até onde precisavam ir era chegando lá dirigindo o automóvel ela mesma; e, em terceiro lugar, ainda estava se recuperando de ter visto alguém que havia enterrado aparecer de repente e dizer “Oi, tudo bem?”. Então, talvez não fosse uma boa ideia comandar uma máquina pesada que estava correndo a cento e vinte quilômetros por hora.

Não conseguia acreditar que estava sentado ao lado dela, indo para o norte, no carro dele.

Mas é claro que disse sim ao pedido dela. Sua atitude era patética com relação a mulheres aflitas... e também era um profissional viciado em uma sala de cirurgia. Que óbvio!

Porém, ainda havia muitas perguntas e muita fúria. Sim, com certeza, esperava chegar a um lugar cheio de paz, luz, sol e de toda aquela besteira piegas, mas não estava preocupado com toda essa história de lugar perfeito, o que era irônico. Quantas vezes olhou para o teto durante a noite, aninhado em sua cama com uma garrafa de uísque, rezando por algum milagre que trouxesse sua antiga chefe do departamento de traumatologia de volta para ele?

Manny olhou para o perfil de Jane. Iluminada pela luz do painel do carro, ainda mostrava ser inteligente. Ainda mostrava ser forte. Ainda era seu tipo de mulher.

Mas isso nunca aconteceria. Apesar de toda aquela mentira grosseira sobre sua morte, havia um anel cinza escuro em sua mão esquerda.

– Você se casou? – ele disse.

Ela não olhou para ele, apenas continuou dirigindo.

– Sim. Casei.

Aquela dor de cabeça que surgiu no instante da aparição passou imediatamente de incômoda para horrível. Enquanto isso, memórias sombrias surgiam sob a superfície de sua consciência como se fossem o Monstro do Lago Ness, torturando-o e tentando trazer tudo à tona.

Contudo, teve de interromper aquele processo cognitivo de recuperar lembranças antes que tivesse um aneurisma por causa da tensão. Além disso, não chegaria a lugar algum com isso... Por mais que tentasse não conseguiria entender o que sentia ali e tinha a sensação de que poderia causar danos permanentes se continuasse assim.

Quando ele olhou pela janela do carro, pinheiros e carvalhos mostravam-se altos e firmes sob o luar, o bosque que percorria os subúrbios de Caldwell ficava cada vez mais denso ao distanciarem-se da cidade e do nó asfixiante de pessoas e edifícios.

– Você morreu aqui – ele disse severamente. – Ou ao menos fingiu ter morrido.

Um ciclista encontrou o Audi de Jane entre as árvores, em um ponto da estrada não muito longe dali; o carro havia deslizado para fora do acostamento. Entretanto, não havia corpo... e não era por causa do fogo, que havia surgido após a queda.

Jane limpou a garganta.

– É triste, mas tudo o que tenho a dizer é “sinto muito”. Sei que é uma droga.

– Não é exatamente uma festa para mim também.

Silêncio. Muito silêncio. Mas não queria ficar perguntando muita coisa se tudo o que receberia como resposta era um “sinto muito”.

– Gostaria de poder ter lhe contado – ela disse de repente. – Você foi a pessoa mais difícil de ser deixada.

– Mas não abandonou seu trabalho, não é mesmo? Porque ainda está trabalhando como cirurgiã.

– Sim, estou.

– Como é seu marido?

Nesse momento, ela estremeceu.

– Vai conhecê-lo.

Ótimo. Que alegria!

Diminuindo a velocidade, ela virou à direita em direção a... uma estrada de terra? Mas que droga é essa?

– Para sua informação – ele murmurou –, este carro foi feito para pistas de asfalto, não para percursos assim.

– É o único caminho.

Para onde? Ele se perguntou.

– Você vai ficar me devendo algo muito grande por isso.

– Eu sei. Mas você é o único que pode salvá-la.

Manny piscou os olhos.

– Não disse nada sobre ser “ela”.

– Isso importa?

– Se pensar que não estou entendendo nada do que está acontecendo, tudo importa.

Após percorrerem uns dez metros, começaram a passar por vários atoleiros que eram tão profundos quanto malditos lagos e, enquanto seu Porsche trepidava, sentiu algo arranhando seu estômago e apertou os dentes.

– Que se dane essa paciente, quero um reembolso pelo que está fazendo ao chassi do meu carro.

Jane soltou uma risadinha e isso fez com que o centro de seu peito doesse... mas tinha de cair na real. Os dois nunca estiveram, de fato, juntos. Claro, houve uma atração de sua parte, uma grande atração. E, talvez, um beijo. Mas isso foi tudo.

E agora ela era a Sra. de Outra Pessoa, e também tinha acabado de voltar do maldito mundo dos mortos.

Cristo, que tipo de vida ele tinha? Por outro lado, talvez aquilo fosse um sonho... Isso o animou, pois talvez Glory não tivesse se acidentado também.

– Não me disse o tipo de lesão – disse ele.

– Quebra na coluna vertebral. Entre C6 e C7. Nenhuma sensação abaixo da cintura.

– Droga, Jane... Isso é complicado.

– Agora sabe por que preciso tanto de você.

Mais ou menos cinco minutos mais tarde, aproximaram-se de portões que pareciam ter sido construídos durante as Guerras Púnicas, pelo menos dois séculos antes de Cristo... A coisa parecia estar fixada ali nos moldes de Alice no País das Maravilhas, os elos da corrente estavam enferrujados e quebrados em alguns lugares. E a barra que os atravessava? Aquela porcaria não valia nem o esforço de ser manuseada, não era nada além de um pedaço de arame usado para cerca de gado e que já tinha vivido dias melhores. No entando, a maldita coisa abriu sem problemas, e enquanto entravam, viu a primeira câmera de vídeo.

Ao avançarem a passos lentos, uma névoa estranha veio do nada, a paisagem ficou fora de foco até não conseguir enxergar nada que havia além de trinta centímetros à frente do carro. Cristo, era como se estivessem em um episódio de Scooby-Doo.

E, então, houve um progresso curioso: o próximo portão estava em condições um pouco melhores; o seguinte era ainda mais novo e o quarto parecia ter apenas um ano, no máximo. O último portão estava brilhando e parecia algo saído de Alcatraz: mais de sete metros de altura e avisos de alta voltagem espalhados por toda sua extensão. E aquele muro no qual o portão estava instalado? Não era bem para conter gado... Talvez dinossauros. E podia apostar que os tijolos deviam ter pelo menos meio metro de espessura.

Manny girava a cabeça de um lado a outro à medida que avançavam e começavam a descer por um túnel tão profundo e com uma estrutura tão forte que poderia atravessar por baixo do rio Hudson. Quanto mais desciam, mais a grande questão que o assolava desde a aparição intensificava-se em sua mente: por que forjar a morte? Por que provocar o caos que tinha causado na vida dele e na dos outros que trabalhavam com ela no Hospital São Francisco? Nunca tinha sido uma mulher cruel, mentirosa, não tinha problemas financeiros, nem nada do que fugir.

Agora sabia, mesmo que não tivesse dito uma palavra: Governo dos Estados Unidos.

Aquele cenário, aquela estrutura no sistema de segurança... Um local oculto nos subúrbios de uma cidade suficientemente grande, mas não tão grande quanto Nova York, Los Angeles ou Chicago? Tinha de ser o Governo. Quem mais poderia pagar por isso?

E quem era a mulher a quem trataria?

O túnel terminou em uma típica garagem subterrânea, com pilares e vagas limitadas por faixas amarelas... e, mesmo sendo tão grande, o local estava vazio. Havia apenas duas vans, que não conseguia distinguir muito bem a marca, com vidros escurecidos e um micro-ônibus que também tinha vidros filmados.

Antes mesmo de ela estacionar o Porsche na garagem, uma porta de aço abriu-se e...

Bastou um olhar no cara enorme que saiu dali e a cabeça de Manny explodiu, a dor atrás dos olhos ficou tão intensa que escorregou no banco do carro, os braços caíram e seu rosto contorceu-se de agonia. Jane lhe disse alguma coisa. Uma porta do carro foi aberta. Em seguida, a dele.

A brisa que o atingiu era seca e cheirava vagamente a terra... mas havia algo mais. Colônia. Uma fragrância amadeirada de especiarias que era, ao mesmo tempo, cara e agradável, mas também algo que despertava nele um desejo curioso de sair correndo.

Manny forçou as pálpebras a se abrirem. Sua visão estava muito turva, mas era incrível o que a necessidade obrigava alguém a fazer... E quando o homem a sua frente entrou em foco, viu-se encarando o filho da mãe de cavanhaque que tinha...

Com uma onda de dor, seus olhos reviraram e quase vomitou.

– Precisa liberar as memórias – ouviu Jane dizer.

Houve alguma conversa nesse ponto, a voz de sua antiga colega misturava-se com os tons profundos daquele homem com tatuagens nas têmporas.

– Isso o está matando...

– É arriscado demais...

– Como ele vai operar desse jeito?

Houve um longo silêncio. E, então, de repente, a dor foi retirada como se fosse um véu sendo levantado – toda aquela pressão saiu de dentro dele em um piscar de olhos. Em seu lugar, as lembranças inundaram sua mente.

A paciente de Jane. O Hospital São Francisco. O homem com o cavanhaque e... um coração de seis válvulas.

Manny abriu bem os olhos e encarou aquele rosto cruel.

– Conheço você.

– Tire-o do carro – foi a única resposta do cara de cavanhaque. – Não confio nos meus atos se tocar nele.

Que maravilha de boas-vindas. E havia alguém atrás do desgraçado. Um homem que Manny tinha cem por cento de certeza de que já havia visto antes... Contudo, deve ter sido algo muito rápido, pois não conseguia lembrar-se de seu nome ou de onde se conheceram.

– Vamos – Jane disse.

Sim. Grande ideia. Naquele momento, precisava de alguma coisa para se concentrar que não tivesse nada relacionado com aquela situação de não saber o que dizer.

Enquanto o cérebro de Manny lutava para processar o que estava acontecendo, percebeu que ao menos seus pés e pernas seguiam o programa. Depois que Jane o ajudou a sair do carro e a ficar em pé, começou a segui-la e ao cara de cavanhaque pela instalação que era tão insípida e limpa quanto um hospital: corredores sóbrios, lâmpadas fluorescentes no teto, tudo cheirava a produtos de limpeza.

Havia também câmeras de segurança que moviam-se em intervalos regulares, como se o edifício fosse um monstro com muitos olhos.

Enquanto caminhavam, sabia que não devia fazer qualquer pergunta. Bem, sabia disso e de que sua cabeça estava tão confusa que tinha a certeza de que se mover era o máximo de suas habilidades naquele momento. Em seguida, percebeu o cara do cavanhaque e seu olhar mortal... não era exatamente uma abertura para iniciar um bate-papo.

Portas. Passaram por muitas portas, todas as quais foram fechadas em seguida e, sem dúvida, trancadas.

Palavrinhas interessantes como local secreto e segurança nacional brincaram em seu crânio, e isso ajudou muito, fazendo-o acreditar que talvez pudesse perdoar Jane por desaparecer da vida dele... um dia.

Quando Jane parou diante de uma porta dupla, suas mãos brincaram com as lapelas do jaleco branco e, em seguida, com o estetoscópio no bolso. E essa reação só fez com que tivesse a sensação de que tinha uma arma na cabeça: na sala de cirurgia, nos incontáveis problemas graves que se passaram no departamento de traumatologia, ela sempre mantivera a calma. Era sua marca registrada.

Mas aquilo era pessoal, ele pensou. De alguma maneira, seja lá o que estivesse do outro lado daquelas portas, estava relacionado a alguém próximo a ela.

– Tenho bons equipamentos aqui – ela disse. – Mas não tudo. Não tenho ressonância magnética. Apenas tomografias e raios-X. Contudo, a sala de cirurgia é adequada e não só posso ajudar como também tenho uma excelente enfermeira.

Manny respirou fundo, muito fundo, recompondo-se. Com toda força de vontade, calou todas as perguntas, a persistente indignação em sua cabeça e a estranheza daquela viagem ao mundo da espionagem ao estilo 007.

Primeiro item em sua lista de coisas a fazer? Despistar o público revoltado dali.

Olhou por cima do ombro, em direção ao cara de cavanhaque.

– Vai precisar sair daqui, amigo. Quero você fora, no corredor.

A reação que teve depois disso foi... simplesmente fantástica, principalmente se fosse um dentista: o desgraçado exibiu um par de caninos tão longos quanto seu braço e rosnou, em alto e bom som, como um cachorro.

– Certo – disse Jane, posicionando-se entre eles. – Tudo bem. Vishous vai esperar lá fora.

Vishous? Será que tinha ouvido direito?

Por outro lado, a mãe do menino devia ser louca de pedra, considerando o pequeno espetáculo odontológico. Não importa. Tinha trabalho a fazer e, talvez, o filho da mãe mastigasse couro duro ou algo assim.

Entrando na sala de exames ele...

Oh... santo Deus.

Ah... meu Deus do céu.

A paciente sobre a mesa estava deitada como águas tranquilas... era provavelmente a coisa mais linda que ele já tinha visto: o cabelo era muito preto e trançado em uma corda grossa que pendia livre ao lado de sua cabeça. A pele era de um marrom dourado, como se ela fosse descendente de italianos e tivesse sido exposta ao sol recentemente. Olhos... seus olhos eram como diamantes, muito claros e brilhantes ao mesmo tempo, com apenas uma borda escura ao redor da íris.

– Manny?

A voz de Jane estava bem atrás dele, mas sentiu como se estivesse a quilômetros de distância. Na verdade, o mundo inteiro estava em outro lugar, nada existia além do olhar de sua paciente que o encontrou do alto daquela mesa com a cabeça imobilizada.

Finalmente havia acontecido, pensou. Durante a vida inteira perguntara-se por que nunca havia se apaixonado e agora sabia a resposta. Estava esperando aquele momento, aquela mulher, aquela hora.

Esta mulher é minha, pensou.

E mesmo sabendo que aquilo não fazia sentido algum, a convicção era tão forte que não conseguia questionar.

– Você é o curandeiro? – ela disse em uma voz baixa que parou seu coração. – Você está aqui... por mim?

Suas palavras tinham um sotaque forte – maravilhoso por sinal –, e havia também um tom um pouco surpreso.

– Sim. Sou eu. – Arrancou o casaco do terno e jogou-o em um canto, sem dar a mínima importância para onde havia caído. – Estou aqui por você.

Quando se aproximou, lágrimas deslizaram de seus olhos cobertos de gelo.

– Minhas pernas... sinto como se estivesse as movimentando, mas acho que não consigo.

– Doem?

– Sim.

Dor fantasma. Não era uma surpresa.

Manny deteve-se ao lado dela e olhou para seu corpo, que estava coberto com um lençol. Era alta. Pelo menos um metro e oitenta. E era constituída com uma força elegante. Era uma guerreira, pensou, observando a força de seus braços. Uma lutadora.

Deus, a perda da mobilidade em alguém como ela tirava-lhe o fôlego. Por outro lado, mesmo que se tratasse de alguém viciado em televisão, a vida em uma cadeira de rodas seria terrível; mas, para alguém como ela, seria uma sentença de morte.

Manny aproximou-se e pegou a mão dela... No instante em que fez contato, o corpo dele como um todo estremeceu, como se ela fosse a tomada do seu plugue interior.

– Vou cuidar de você – disse enquanto olhava diretamente em seus olhos. – Quero que confie em mim.

Ela engoliu a saliva quando uma lágrima cristalina deslizou de seus olhos. Por instinto, ele estendeu a mão e a deteve com a ponta do dedo...

O rosnado que infiltrou-se pela porta era uma ameaça, uma contagem regressiva para se afastar, mas não deu importância àquilo. Quando olhou para o cara de barbicha, sentiu como se estivesse rosnando de volta para o filho da mãe. O que, mais uma vez, não fazia sentido algum.

Ainda segurando a mão de sua paciente, exclamou para Jane:

– Tire esse bastardo miserável da minha sala de cirurgia. E quero ver os malditos exames e radiografias. Agora.

Ele ia salvar aquela mulher, mesmo se aquilo o matasse.

Quando os olhos do Sr. Cavanhaque brilharam em direção a ele com puro ódio, Manny pensou: “Bem, esse é o máximo que o cara pode fazer...”.


CAPÍTULO 6

Qhuinn saiu sozinho em Caldwell, pela primeira vez na vida.

Quando pensou melhor sobre isso, concluiu que era quase uma impossibilidade estatística. Passou tantas noites lutando, bebendo e fazendo sexo dentro e ao redor dos clubes noturnos do centro da cidade que pelo menos um ou dois voos tinham de ter sido feitos sozinho. Mas não. Quando entrou no Iron Mask, estava sem a companhia de seus dois amigos pela primeira vez.

De qualquer forma, as coisas eram diferentes agora. Os tempos tinham mudado. As pessoas também.

John Matthew estava agora muito feliz casado; então, quando tinha uma folga, como naquela noite, ficava em casa com sua shellan, Xhex, fazendo a cama praticar uma série de exercícios de resistência. Sim, claro, Qhuinn era um ahstrux nohtrum e tudo mais, mas Xhex era uma symphato assassina totalmente capaz de cuidar de seu macho, e da Adaga Negra.

O complexo da Irmandade era uma fortaleza que nem mesmo uma equipe da SWAT poderia invadir. Assim, ele e John chegaram a um acordo... e deixaram isso em segredo.

Quanto a Blay... Qhuinn não ia pensar sobre seu melhor amigo. Não. De jeito nenhum.

Observando o interior do clube, iniciou sua máquina de seleção interna e começou a abrir caminho por meio das mulheres, homens e casais. Havia uma e apenas uma razão para ter ido até ali, e era a mesma que havia levado os outros góticos àquele local.

Não era um lugar para se procurar um relacionamento, sequer uma companhia. Tratava-se apenas de movimentar-se entrando e saindo e, quando tudo estivesse acabado, era o caso de dizer “Obrigado, moça” – ou “cara”, dependendo de seu humor –, “Estou dando o fora”. Porque ele ia precisar de outra pessoa. Ou outras pessoas.

Não investiria apenas uma vez naquela noite; sentia como se estivesse arrancando a própria pele, seu corpo latejava com força, necessitando de alívio. Cara, sempre gostou de transar, mas nos últimos dias sua libido tinha aumentado até crescer como um monstro.

Será que Blay não era mais seu melhor amigo?

Qhuinn fez uma pausa e olhou rapidamente uma vitrine antes de inclinar a cabeça sobre ela: caramba, não tinha mais cinco anos. Machos adultos não têm melhores amigos. Não precisam deles, especialmente se o macho em questão estivesse transando com outra pessoa. O dia inteiro. Todos os dias.

Qhuinn andou até o bar.

– Tequila. Dose dupla. E traga a melhor que tiver.

Os olhos da mulher aqueceram-se por trás do pesado delineador e dos cílios postiços.

– Já vai pagar a comanda?

– Sim – e considerando a maneira como ela escorregou a mão sobre o estômago achatado e desceu ainda mais pelo quadril, ele poderia ter pedido, com certeza, um pedaço dela também.

Quando ele estendeu o cartão de crédito, ela fez um movimento amplo com os seios para pegar a maldita coisa, inclinando-se de tal forma que poderia muito bem pegar algo no chão com os mamilos.

– Volto já, já com sua bebida.

Que surpresa.

– Ótimo.

Estava perdendo tempo ao sair rebolando como fez: não era nada disso que procurava naquela noite... não chegava nem perto. Sexo errado, para começar. E não ia investir em nada que tivesse cabelos escuros. Para dizer a verdade, não conseguia acreditar no que queria.

Tinha algumas limitações por ser daltônico, mas quando vestia apenas preto e trabalhava à noite, na maioria das vezes, isso não era grande coisa. Além disso, seus olhos desiguais eram tão perspicazes e sensíveis às variações de cinza que realmente percebias as “cores” – era tudo uma questão de gradação. Por exemplo, sabia quem eram as pessoas loiras no clube. Sabia a diferença entre as morenas e as de cabelos negros. E, sim, poderia enganar-se e interpretar mal se algum idiota tivesse feito uma tintura estranha, mas, mesmo assim, poderia dizer que havia algo estranho, porque o tom de pele nunca combinava direito com a cor artificial do cabelo.

– Aqui está – disse a bartender.

Qhuinn estendeu a mão, pegou o copo, bebeu a tequila e voltou a colocá-lo vazio sobre o balcão do bar.

– Vamos tentar isso mais algumas vezes.

– É pra já. – Exibiu seu par de seios novamente, sem dúvida com a esperança de que ele os agarrasse a qualquer momento. – Você é o tipo de cliente que gosto. Porque é óbvio que consegue lidar com uma boa bebida.

Uh-hum. Claro. Como se a habilidade de ingerir o equivalente a quatro doses de álcool de uma vez só fosse grande coisa. Deus, a ideia de que alguém, com esse sistema de valores, tivesse permissão para votar fazia com que ele desejasse encarar a vitrine outra vez.

Humanos eram patéticos.

Contudo, quando olhou para trás para observar a multidão, pensou que baixar a bola seria uma boa. Sentia-se patético sozinho naquela noite, especialmente quando viu dois homens em um canto, os dois separados apenas pelas roupas de couro que vestiam. Naturalmente, um deles era loiro. Assim como seu primo. Então, era claro que imagens hipotéticas de Blay e Saxton começaram a brincar em seu campo de polo interior, marcando seu gramado com pegadas e bosta de cavalo.

Só que não eram hipotéticos, mas reais: no final de todas as noites, quando as pessoas à mesa da mansão da Irmandade começavam a se dispersar depois da Última Refeição e a sair para resolver seus assuntos particulares, Blay e Saxton dirigiam-se discretamente para a grande escadaria e desapareciam no corredor do andar de cima, onde seus quartos ficavam.

Nunca tinham se dado as mãos, nunca tinham se beijado na frente de ninguém, e também não havia olhares de reprovação. Por outro lado, Blay era um cavalheiro, e Saxton era uma vagabunda elegante inserida de alguma maneira em um grande espetáculo.

Seu primo era uma verdadeira prostituta...

Não, não é, uma pequena voz soou. Só o odeia porque está de caso com seu garoto.

– Ele não é meu garoto.

– O que disse?

Qhuinn lançou um olhar ao espectador... e, em seguida, reassumiu seu ar durão. Bingo, ele pensou.

Ao lado dele estava um macho humano, mais ou menos um metro e oitenta com um cabelo fabuloso, rosto bonito e lábios muito agradáveis. As roupas não eram totalmente góticas, mas tinha algumas correntes na cintura e duas argolas em uma das orelhas. Mas foi a cor do cabelo que realmente fez a diferença.

– Estava falando sozinho – Qhuinn murmurou.

– Ah. Faço muito isso. – O sorriso foi breve e, em seguida, o cara voltou a cuidar de sua...

– O que está bebendo? – Qhuinn perguntou.

Um copo já na metade foi erguido.

– Vodka e tônica. Não suporto essa coisa de adocicar a bebida.

– Nem eu. Vou de tequila. Pura.

– Patrón?

– Nunca. Gosto da Herradura.

– Ah – o cara virou-se e olhou para frente em direção à multidão. – Gosta das coisas como são.

– Sim.

Qhuinn queria perguntar se o Sr. Vodka e Tônica estava observando os caras ou as garotas, mas permaneceu em silêncio. Cara, aquele cabelo era incrível. Grosso. Enrolado nas pontas.

– Está procurando por alguém em particular? – Qhuinn disse em voz baixa.

– Talvez. E você?

– Com certeza.

O cara riu.

– Tem muita mulher bonita aqui. Pode escolher.

Mas. Que. Droga. Que sorte a dele: um hétero. Por outro lado, talvez pudessem dividir alguma coisa e começar por aí.

O cara inclinou-se e ofereceu a palma da mão.

– Eu sou...

Quando os dois entreolharam-se completamente, o cara deixou a sentença à deriva, mas não tinha importância. Qhuinn não dava a mínima para o nome dele.

– Seus olhos têm cores diferentes? – o cara perguntou suavemente.

– Sim.

– Isso é muito... legal.

Bem, sim. Quando não se é um vampiro nascido na glymera. Se esse fosse o caso, seria considerado um defeito físico que significava ser geneticamente ruim e, portanto, uma vergonha para sua linhagem e absolutamente inabilitado para o acasalamento.

– Obrigado – Qhuinn disse. – Qual é a cor dos seus?

– Não pode dizer?

Qhuinn deu um tapinha sobre a lágrima tatuada perto do olho.

– Daltônico.

– Ah. Os meus são azuis.

– E você é ruivo, certo?

– Como sabe disso?

– Pelo seu tom de pele. Além disso, você é meio pálido e tem sardas.

– Isso é incrível – o cara olhou ao redor. – Está escuro aqui... não imaginava que conseguiria enxergar.

– Acho que posso – e acrescentou mentalmente: e que tal se eu lhe mostrar alguns dos meus outros truques.

O novo amigo de Qhuinn sorriu um pouco e voltou a observar a multidão. Depois de um minuto, disse:

– Por que está olhando para mim assim?

Porque quero transar com você.

– Você me lembra alguém.

– Quem?

– Alguém que perdi.

– Oh, droga, sinto muito.

– Tudo bem. A culpa é minha.

Pequena pausa.

– Então, você é gay, certo?

– Não.

O cara deu risada.

– Desculpe. Apenas imaginei que... Bom, acho que era um bom amigo.

Nenhum comentário.

– Vou encher o copo outra vez. Posso fazer isso para você também?

– Obrigado, cara.

Qhuinn virou-se e sinalizou para a atendente. Enquanto esperava ela se aproximar rebolando, planejou sua abordagem. Primeiro, um pouco mais de álcool. Em seguida, adicionaria algumas fêmeas à mistura. O terceiro passo seria entrar em um dos banheiros e transar com a(s) garota(s).

Então... Mais alguns olhares. De preferência quando um deles ou os dois estivessem dentro de uma mulher. Pois por mais que o ruivo de cabelo espetacular parecesse estar a fim das garotas, o filho da mãe tinha sentido alguma coisa quando os dois se entreolharam – e hétero é um termo relativo.

Assim como virgem.

Isso fazia com que os dois se enquadrassem nesses termos, não? Afinal, Qhuinn nunca, jamais, havia ficado com alguém de cabelo vermelho.

Mas aquela noite seria uma exceção.


CONTINUA

CAPÍTULO 4

No centro de Caldwell havia vários prédios altos, cheios de janelas espelhadas, mas nenhum era como o Commodore. Com trinta andares, estava entre os mais altos daquela floresta de concreto e os sessenta apartamentos que abrigava eram totalmente fantásticos, ao estilo de grandes empresários como Donald Trump, revestido de mármore e detalhes cromados; tudo era muito bem projetado.

No vigésimo sétimo andar, Jane entrou no apartamento de Manny, procurando por sinais de vida, e o que encontrou foi... nada. Literalmente. A casa do cara aproximava-se mais de uma pista de dança do que uma pista de obstáculos: a mobília era composta de três objetos na sala e uma cama enorme na suíte principal. Ponto. Bem, e algumas banquetas de couro ao redor do balcão da cozinha. Quanto às paredes? A única coisa que havia pendurado ali era uma TV de plasma do tamanho de um outdoor. Não havia tapetes sobre os pisos de madeira, apenas mochilas de academia... mais mochilas de academia... e calçados esportivos.

Nada disso indicava que era desorganizado; não tinha coisas suficientes para ser considerado assim.

Com um pânico crescente, entrou no quarto dele e viu mais ou menos meia dúzia de uniformes cirúrgicos deixados em pilhas no chão, como poças d’água após uma tempestade e... nada mais.

Mas a porta do armário estava aberta e ela entrou...

– Meu Deus... mas que droga.

Havia um conjunto de três malas alinhado no chão, onde deveria estar uma pequena, uma média e outra grande... mas a do meio não estava lá. Então, concluiu o que estava acontecendo ao considerar os espaços vazios que havia entre os cabides de calças e camisas: estava fora, em uma viagem. Talvez durante todo o fim de semana.

Sem muita esperança, discou para o sistema de atendimento do hospital e chamou-o outra vez...

Notou que estava recebendo outra chamada e amaldiçoou quando observou o número.

Respirando fundo, respondeu:

– Oi, V.

– Nada?

– Nada no hospital ou no apartamento. – Um rosnado sutil chegou até ela pelo telefone e ampliou a angústia da busca que ainda não tinha dado em nada. – Também procurei na academia, vindo para cá.

– Invadi o sistema do Hospital São Francisco e consegui os horários dele.

– Onde ele está?

– Tudo o que diz lá é que Goldberg está de plantão, certo? Olha, o sol se pôs. Vou sair daqui em, mais ou menos...

– Não, não... fique com Payne. Ehlena é ótima, mas acho que deveria ficar com ela.

Houve uma grande pausa, como se ele soubesse que estava sendo despistado.

– O que vai fazer agora?

Apertou o telefone e perguntou-se a quem deveria recorrer. Deus? À mãe dele?

– Não tenho certeza. Mas liguei para ele. Duas vezes.

– Ligue quando encontrá-lo. Vou pegar vocês.

– Posso levá-lo até em casa...

– Não vou machucá-lo, Jane. Não tenho a menor intenção de deixá-lo em pedaços.

Sim, mas considerando o tom de voz frio, teve de se perguntar sobre aqueles planos bem intencionados de vampiros cheios de autocontrole e blá, blá, blá... Acreditava que Manny viveria para tratar da irmã gêmea de V. Mas, e depois? Tinha suas reservas... especialmente se as coisas dessem errado na sala de cirurgia.

– Vou esperar aqui mais um pouco; talvez ele apareça, ou ligue. Se isso não acontecer, penso em outra coisa.

No longo silêncio, praticamente conseguia sentir uma corrente de ar frio chegando através do celular. Seu companheiro fazia muitas coisas direito: lutar, fazer amor, lidar com qualquer coisa relacionada à informática. Ser forçado a ficar parado? Não era bem uma de suas competências inatas. Na verdade, era garantia de deixá-lo enlouquecido.

Ainda assim, o fato de não confiar nela fez com que se sentisse distante dele.

– Fique com sua irmã, Vishous – disse em um tom de voz equilibrado. – Manterei contato.

Silêncio.

– Vishous. Confie em mim e vá ficar ao lado dela.

Ele não disse coisa alguma depois disso. Apenas desligou.

Quando pressionou a tecla end do telefone, soltou um palavrão.

Uma fração de segundo depois estava discando outra vez e no instante em que ouviu uma voz profunda atender, teve de enxugar uma lágrima que, se pensasse em toda sua natureza translúcida, era muito, muito real.

– Butch – ela resmungou –, preciso de sua ajuda.

Quando o pouco que restava do pôr do sol desapareceu e a noite bateu seu cartão de ponto, assumindo o turno seguinte, o carro de Manny deveria ter ido para casa. Deveria ter sido levado por si só direto para Caldwell.

Ao invés disso, acabou chegando ao extremo sul da cidade, onde as árvores eram grandes e as extensões de grama superavam as de asfalto em até dez vezes mais.

Fazia sentido. Os cemitérios deveriam ter longos trechos de terra, pois não se podia enterrar um caixão no concreto. Bem, até poderia... se se tratasse de um mausoléu.

O cemitério Bosque dos Pinheiros ficava aberto até as dez da noite, seus grandes portões de ferro permaneciam escancarados e seus inúmeros postes de iluminação forjados em ferro emitiam uma luz amarelo-manteiga ao longo do labirinto de ruas. Quando entrou, foi para a direita, os faróis do carro iluminando o local ao longo das lápides e do gramado.

Em última análise, o local para onde se dirigia não significava nada: não havia um corpo embaixo da lápide de granito que ia visitar – não restara nada para ser enterrado. Nada de cinzas para colocar em uma vasilha, também... ou, pelo menos, nada que se pudesse separar com certeza de dentro de um Audi que havia pegado fogo.

Depois de dar, mais ou menos, um quilômetro de voltas, tirou o pé do acelerador e deixou o carro deslizar até estacionar. Até onde conseguia ver, era o único no cemitério, mas isso não era problema para ele. Não havia razão para se ter uma audiência.

Quando saiu do carro, o ar frio não ajudou a limpar sua mente, mas deu algo para seus pulmões fazerem quando inalou profundamente e caminhou sobre a grama áspera da primavera. Teve o cuidado de não pisar em nenhuma tumba enquanto avançava... claro, os mortos não saberiam que estava andando acima deles, mas parecia uma coisa respeitosa a fazer.

O túmulo de Jane estava à frente, e desacelerou o passo quando aproximou-se daquilo que não havia sido deixado por ela, por assim dizer.

Ao longe, o apito de um trem cortou o silêncio... e o som vazio e lúgubre era um clichê tão grande que se sentiu em um filme o qual nunca assistiria sentado em casa, muito menos pagaria para ver em um cinema.

– Droga, Jane.

Inclinando-se, passou os dedos sobre as marcas irregulares da lápide. Foi ele quem tinha escolhido a pedra escura de azeviche, pois ela não teria gostado nem um pouco de algo pastel ou desbotado. E a inscrição também era simples e descomplicada, apenas seu nome, datas e uma frase na parte inferior: DESCANSE EM PAZ.

Sim. Deu a si mesmo nota dez em originalidade por isso.

Lembrava-se exatamente onde estava quando soube que ela tinha morrido: no hospital, claro. Era final de um longo plantão que tinha começado com o joelho de um jogador de hóquei e terminado com a reconstrução espetacular de um ombro, isso porque o viciado decidiu tentar voar.

Saiu da sala de cirurgia e encontrou Goldberg esperando próximo às pias de higienização. Manny parou no meio do processo de retirar a máscara cirúrgica ao dar apenas uma olhada no rosto pálido de seu colega. Com a coisa pendurada em seu queixo como um babador, exigiu saber o que diabos havia acontecido de errado – contando o tempo todo que se tratava de um acidente com quarenta carros engavetados na estrada ou um acidente de avião ou um hotel incendiado... algo relacionado a uma tragédia que englobasse toda uma comunidade.

Só que quando olhou sobre o ombro do cara e viu cinco enfermeiras e três outros médicos... Todos com a mesma aparência de Goldberg... E nenhum deles correndo para chamar outros funcionários para assumirem plantão ou preparando as salas de cirurgia.

Certo. Tinha acontecido algo que englobava toda uma comunidade. A comunidade deles.

– Quem? – perguntou.

Goldberg olhou para trás, em direção a sua tropa de apoio e foi então que Manny entendeu. E mesmo com as entranhas congeladas dentro dele, agarrou-se a uma esperança irracional de que o nome que estava prestes a sair da boca de seu colega cirurgião não fosse...

– Jane. Acidente de carro.

Manny não perdeu tempo.

– Quando ela deu entrada?

– Não chegou a dar entrada.

Com isso, Manny não disse nada. Terminou de tirar a máscara de seu rosto, amassou-a e descartou-a na lata de lixo mais próxima.

Quando foi passando por eles, Goldberg abriu a boca outra vez.

– Nem uma palavra – Manny ladrou. – Nem. Uma. Palavra.

Os outros funcionários começaram a tropeçar entre eles mesmos para sair do caminho, dividindo o grupo com a precisão de um pedaço de tecido cortado ao meio.

Voltando ao presente, não conseguia se lembrar onde tinha ido ou o que tinha feito depois disso... não importava quantas vezes voltasse sua mente àquela noite obscura, esses momentos eram como um buraco negro. Contudo, em dado momento, percebeu que tinha chegado em seu apartamento, pois acordou ali dois dias depois e viu que ainda estava com o uniforme cirúrgico respingado com o sangue do último paciente que havia operado.

O mais irritante de tudo era o fato de que Jane tinha salvado tantas pessoas vítimas de acidentes de carro. A ideia de ter sido levada dessa maneira levava-o a pensar que o Ceifeiro da Morte veio atrás dela para cobrar todas as almas que tinha afastado do alcance de suas garras mortais.

O som de outro apito de trem o fez querer gritar.

O trem e aquele pager apitando.

Hannah Whit. Outra vez?

Mas que diabos...

Manny franziu o cenho e olhou para a lápide. Salvo engano, a irmã mais nova de Jane chamava-se Hannah. Whit. Whitcomb?

Só que ela tinha morrido muito cedo.

Não tinha?

Loucura. Total.

Deus, deveria ter trazido seus tênis para essa aventura, Jane pensou enquanto andava sem rumo pelo apartamento de Manny. Outra vez. Teria deixado o apartamento se tivesse uma ideia melhor de onde ir, mas seu cérebro, mesmo sendo tão astuto, não conseguia enxergar outra opção...

Seu telefone tocando não era exatamente algo bom. Não queria dizer a Vishous que quarenta e cinco minutos depois não tinha nada de novo para relatar.

Pegou o celular.

– Oh... Deus.

Aquele número. Aqueles dez dígitos que sempre estiveram registrados na discagem rápida de todos os telefones que teve antes daquele. Manny.

Quando pressionou a tecla send, sua mente estava em branco e seus olhos cheios de lágrimas. Seu velho e querido amigo e colega de profissão...

– Alô? – ele disse. – Senhorita Whit?

Ao fundo, ouviu o soar fraco de um apito de trem.

– Alô? Hannah? – Aquele tom... era exatamente o mesmo de anos atrás: baixo, impositivo. – Tem alguém aí?

Aquele apito baixo soou outra vez.

Jesus Cristo... ela pensou. Sabia onde ele estava.

Jane desligou e saiu rápido do apartamento, do centro da cidade, atravessando a toda velocidade pelos subúrbios.

Viajando em um borrão à velocidade da luz, suas moléculas atravessaram a noite em uma corrida alucinante que percorreu quilômetros como se fossem centímetros.

O cemitério Bosque dos Pinheiros era o tipo de lugar que precisava de um mapa para se localizar nele, mas quando se é uma forma etérea no ar, pode-se percorrer uma centena de acres em apenas um piscar de olhos.

Quando tomou forma na escuridão perto de sua sepultura, respirou fundo e quase chorou.

Lá estava ele, em carne e osso. Seu chefe. Seu colega. O único a quem deixou para trás. E ele estava em pé atrás de uma lápide negra na qual havia seu nome esculpido.

Certo, agora sabia que tinha tomado a decisão certa quando não havia ido ao funeral. O mais perto que chegou disso foi lendo a notícia no Caldwell Courier Journal – e a imagem de todos aqueles cirurgiões, funcionários do hospital e pacientes emocionou-a demais. Mas aquilo era muito pior.

Manny parecia exatamente como ela mesma se sentia: arruinado por dentro.

Jesus, aquela loção pós-barba ainda cheirava bem... e apesar de ter perdido um pouco de peso, era um pedaço de mal caminho, com aquele cabelo escuro e aquele rosto rígido. Seu terno era de risca de giz e feito sob medida... mas havia sujeira em volta da bainha da calça muito bem passada. E seus sapatos estavam sujos também, fazendo com que ela se perguntasse onde diabos ele estivera. Com certeza não tinha ficado assim por causa da sepultura; depois de um ano, o solo ainda estava plano e coberto com grama bem aparada...

Oh, espere. O túmulo devia estar assim desde o primeiro dia. Ela não tinha deixado nada para ser enterrado.

Quando os dedos dele descansaram sobre a pedra, soube que foi ele quem tinha escolhido a sepultura. Ninguém mais teria tido o bom-senso de fazer exatamente o que ela gostaria que fizesse. Nada de muitos detalhes rococós ou dizeres complicados; curto, doce, no ponto.

Jane limpou a garganta.

– Manny...

Ele ergueu a cabeça, mas não olhou para ela... como se tivesse ouvido a voz dela apenas em sua mente.

Assumindo uma forma totalmente corpórea, ela falou mais alto.

– Manny.

Sob qualquer outra circunstância, a reação teria sido uma profusão de risos. Mas ele se virou, em seguida, gritou, tropeçou na lápide e caiu sentado no chão.

– Mas que... diabos... você está fazendo aqui? – ele engasgou. A expressão em seu rosto começou com um sentimento de horror, mas rapidamente mudou para a descrença absoluta.

– Sinto muito.

Era totalmente ridículo, mas foi tudo o que saiu de sua boca.

E parecia mais do que poderia suportar. Encontrar aqueles olhos castanhos fez com que, de repente, ela não tivesse nada a dizer.

Manny ergueu-se com um salto, e seu olhar escuro subia e descia observando o corpo dela.

E, por fim, subiu... fixando-se em seu rosto.

Foi quando a raiva veio. E também uma dor de cabeça, evidentemente, considerando a maneira como ele estremeceu e esfregou as têmporas.

– É algum tipo de piada?

– Não – ela desejava que fosse. – Sinto muito mesmo.

O olhar severo e cruel era dolorosamente familiar, e que ironia sentir-se nostálgica com um olhar ameaçador como aquele.

– Você sente muito.

– Manny, eu...

– Eu a enterrei. E você sente muito? Que porcaria é essa?

– Manny, não tenho tempo para explicar. Preciso de você.

Ele a encarou por um longo momento.

– Você aparece depois de um ano morta e diz que precisa de mim?

A realidade de quanto tempo havia se passado pesou sobre ela. Acima de tudo.

– Manny... não sabia o que lhe dizer.

– Oh, mesmo? Que tal: ah, puxa, por falar nisso, estou viva.

Ele a encarou. Apenas a encarou.

Então, com uma voz rouca, disse:

– Você faz alguma ideia do que foi perdê-la? – passou rapidamente a mão sobre os olhos. – Tem noção?

A dor no peito dela fez com que a respiração ficasse difícil.

– Sim. Porque perdi você... perdi minha vida com você e no hospital.

Manny começou a andar, aproximando-se e afastando-se da lápide. E, embora ela quisesse, sabia que não devia aproximar-se demais.

– Manny... se houvesse alguma maneira de voltar para você, eu voltaria.

– Você voltou. Uma vez. Pensei que era um sonho, mas não. Não era.

– Não.

– Como entrou no meu apartamento?

– Apenas entrei.

Ele se deteve e olhou para ela, a lápide ficou entre eles.

– Por que fez isso, Jane? Por que forjou sua morte?

Bem, na verdade, não havia forjado.

– Não tenho tempo para explicar agora.

– Então, que diabos está fazendo aqui. Que tal explicar isso?

Ela clareou a garganta e disse:

– Estou com uma paciente cujo tratamento exige além da minha capacidade e quero que dê uma olhada. Não posso dizer para onde vou levá-lo, não posso lhe dar muitos detalhes e sei que isso não é justo... mas eu preciso de você – Queria arrancar os cabelos. Cair aos prantos. Abraçá-lo. Mas continuou, por que era isso o que tinha de fazer. – Estou procurando por você há mais de uma hora, então, estou atrasada. Sei que está chateado e confuso e não o culpo. Mas fique com raiva de mim mais tarde... Apenas venha comigo agora. Por favor.

Tudo o que pôde fazer foi esperar. Manny não se convencia por alguém falar demais, não conseguiria persuadi-lo assim. Escolheria ir... ou não.

E, infelizmente, se fosse a segunda opção, ela teria de chamar os Irmãos. Por mais que amasse e sentisse falta de seu antigo chefe, Vishous era seu homem e se sentiria uma maldita se deixasse alguma coisa acontecer com a irmã dele.

De uma forma ou de outra, Manny operaria alguém naquela noite.


CAPÍTULO 5

Butch O’Neal não era o tipo de cara que deixava uma dama em perigo.

Era alguém à moda antiga... o policial... o devoto, o católico praticante que havia nele. Dito isso, ao receber a ligação da amável e talentosa Dra. Jane Whitcomb, o cavalheirismo não seguiu o instinto impulsivo. Nem um pouco.

Ao colocar o pé para fora do Buraco e correr ao longo do túnel em direção ao centro de treinamento da Irmandade, seus interesses e os dela estavam totalmente alinhados, mesmo sem se levar em conta toda a questão de “ser um cavalheiro”: os dois temiam que V. perdesse o controle outra vez.

Já exibia todos os sinais: tudo o que tinha de fazer era olhar para ele e ver que a tampa da panela de pressão estava trancada com força sobre todo aquele calor e confusão. O que aconteceria com toda aquela pressão? Teria de encontrar uma vazão de alguma maneira e, no passado, isso aconteceu das piores maneiras possíveis.

Saindo da porta oculta e emergindo no escritório, Butch virou à direita e desceu ao longo do corredor que levava às instalações médicas. O sopro sutil de tabaco turco no ar disse-lhe exatamente onde encontrar seu alvo, não que houvesse alguma dúvida.

Próximo à porta fechada da sala de exames, ajeitou os punhos da camisa e ergueu o cinto. A batida na porta foi suave. Já o batimento cardíaco estava forte.

Vishous não respondeu com um “entre”. Ao invés disso, o Irmão saiu e fechou a porta atrás de si.

Caramba, ele parecia estar mal. E suas mãos tremiam ligeiramente quando pegou um de seus cigarros para preparar. Enquanto lambia a coisa para selá-la, Butch enfiou a mão no bolso para oferecer o isqueiro, acendendo a chama e erguendo-a à frente. Quando seu melhor amigo inclinou-se para o brilho laranja, reconheceu cada detalhe daquele rosto cruel e impassível. Jane estava absolutamente certa. O pobre coitado estava sobrecarregado e segurava tudo aquilo.

Vishous inalou profundamente e, então, recostou-se contra a parede de concreto, os olhos perspicazes fixos à frente, as botas de combate plantadas solidamente no chão. Em determinado momento, murmurou:

– Não vai perguntar como estou?

Butch inclinou-se da mesma maneira, aproximando-se bem de seu amigo.

– Não precisa.

– Anda lendo mentes?

– Sim. Esse sou eu.

V. inclinou-se para o lado e bateu as cinzas no lixo.

– Então, pode me dizer no que estou pensando, certo?

– Tem certeza que quer que eu solte um monte de palavrões tão perto de sua irmã? – Quando isso produziu uma risada curta, Butch olhou para o perfil de V. As tatuagens ao redor do olho do cara estavam especialmente sinistras, se considerasse as marcas de preocupação que o cercavam, como se fossem nuvens em um inverno nuclear.

– Não quer que eu faça isso em voz alta, V. – disse suavemente.

– Ah. Faça uma tentativa.

Isso significava que V. precisava conversar, mas, considerando a situação, não daria certo forçar coisa nenhuma ali: o macho sempre “finalizava” as conversas, mas, pelo menos, estava indo melhor do que tinha ido... antes? Sim, sequer quebrou uma porta nem nada.

– Ela pediu para que cuide dela se isso não der certo, não foi? – Butch disse, pronunciando o que mais temia. – E não estamos falando de cuidados paliativos de enfermagem.

A resposta de V. foi soltar uma respiração que durou mais ou menos uns quinze minutos depois do infinito.

– O que vai fazer? – perguntou Butch, mesmo sabendo a resposta.

– Não vou hesitar. – O complemento da resposta “mesmo que isso me mate” ficou subentendido.

Maldita vida. Às vezes, as situações pelas quais as pessoas passavam eram cruéis demais.

Butch fechou os olhos e deixou a cabeça cair para trás, contra a parede. A família era tudo para os vampiros. Sua companheira, os Irmãos com quem lutava, seu sangue... era todo o seu mundo. E, segundo essa teoria, ele também sofria junto com V. e Jane e o resto da Irmandade.

– Com sorte, não chegará a fazer isso – Butch olhou para a porta fechada. – A doutora Jane vai encontrar o cara. Ela é como um cão farejador...

– Sabe o que me ocorreu há uns dez minutos?

– O quê?

– Mesmo que não fosse mais dia, ela gostaria de continuar sozinha para encontrá-lo.

Quando o aroma de vinculação do macho exalou, Butch pensou: “Certo, cara. Jane e o cirurgião conviveram juntos durante anos, então, se há algum tipo de persuasão a ser feito, ela terá mais oportunidades sozinha... isso concluindo que ela dará um jeito na coisa toda de voltar dos mortos. Além disso, V. era um vampiro. Caramba. Será que alguém precisava adicionar mais alguma dificuldade nessa confusão toda?”.

Assim, considerando tudo, seria ótimo se o cirurgião tivesse mais de dois metros de altura, estrabismo e pelo de urso nas costas. Ser extremamente feio seria sua única vantagem se o macho vinculado em V. fosse acionado.

– Sem ofensa – Butch murmurou –, mas dá para culpá-la?

– É minha irmã gêmea que está em jogo – o cara passou com força uma das mãos ao longo dos cabelos escuros. – Mas que droga, Butch... minha irmã.

Butch sabia alguma coisa sobre como era perder alguém, então, sim, podia entender o que o macho na frente dele sentia. E, cara, não sairia do lado do Irmão: ele e Jane eram os únicos que conseguiam acalmar Vishous quando ficava assim. Jane já teria muita coisa para fazer ao lidar com o cirurgião e sua paciente.

O som do celular de V. fez os dois saltarem, mas o Irmão recuperou-se rápido e não deu tempo para que um segundo toque chegasse a seus ouvidos.

– Mesmo? Conseguiu? Obrigado... cara... sim. Sim. Encontro vocês na garagem. Certo. – Houve uma pequena pausa e V. olhou como se quisesse ficar sozinho.

Louco para desaparecer dali, Butch olhou para seus sapatos. O Irmão nunca fora muito bom em demonstrações públicas de afeto ou em conversar sobre coisas pessoais com Jane se houvesse alguém por perto. Mas como Butch era um mestiço, não conseguia se desmaterializar – e para onde, diabos, ele correria?

Após V. murmurar um rápido “tchau”, tragou profundamente um de seus cigarros e disse em voz baixa ao expirar:

– Pode parar de fingir que não está a meu lado.

– Que alívio. Não sou muito bom nisso.

– Não tem culpa de ocupar espaço.

– Então, ela o encontrou? – Quando Vishous assentiu, Butch assumiu uma expressão mortalmente séria. – Prometa-me uma coisa.

– O quê?

– Não vai matar esse cirurgião. – Butch sabia muito bem como era dar uma volta lá fora e ter de retornar àquele mundo vampiro. No seu caso, deu tudo certo, mas e quanto a Manello? – Não é culpa do cara e nem problema seu.

V. balançou o cigarro sobre o lixo e olhou para cima, os olhos de diamante estavam frios como uma noite ártica.

– Vamos ver como ele vai se sair, tira.

Com isso, virou-se e entrou onde sua irmã estava.

Bem, pelo menos, o filho da mãe era honesto, Butch pensou junto com uma maldição.

Manny não gostava nem um pouco de outras pessoas dirigindo seu Porsche 911 Turbo. Na verdade, além de seu mecânico, ninguém mais o dirigia.

Contudo, naquela noite, permitiu que Jane assumisse a direção, pois, em primeiro lugar, era competente e poderia mudar as marchas sem destruir a transmissão; em segundo lugar, ela afirmava que a única maneira possível de levá-lo até onde precisavam ir era chegando lá dirigindo o automóvel ela mesma; e, em terceiro lugar, ainda estava se recuperando de ter visto alguém que havia enterrado aparecer de repente e dizer “Oi, tudo bem?”. Então, talvez não fosse uma boa ideia comandar uma máquina pesada que estava correndo a cento e vinte quilômetros por hora.

Não conseguia acreditar que estava sentado ao lado dela, indo para o norte, no carro dele.

Mas é claro que disse sim ao pedido dela. Sua atitude era patética com relação a mulheres aflitas... e também era um profissional viciado em uma sala de cirurgia. Que óbvio!

Porém, ainda havia muitas perguntas e muita fúria. Sim, com certeza, esperava chegar a um lugar cheio de paz, luz, sol e de toda aquela besteira piegas, mas não estava preocupado com toda essa história de lugar perfeito, o que era irônico. Quantas vezes olhou para o teto durante a noite, aninhado em sua cama com uma garrafa de uísque, rezando por algum milagre que trouxesse sua antiga chefe do departamento de traumatologia de volta para ele?

Manny olhou para o perfil de Jane. Iluminada pela luz do painel do carro, ainda mostrava ser inteligente. Ainda mostrava ser forte. Ainda era seu tipo de mulher.

Mas isso nunca aconteceria. Apesar de toda aquela mentira grosseira sobre sua morte, havia um anel cinza escuro em sua mão esquerda.

– Você se casou? – ele disse.

Ela não olhou para ele, apenas continuou dirigindo.

– Sim. Casei.

Aquela dor de cabeça que surgiu no instante da aparição passou imediatamente de incômoda para horrível. Enquanto isso, memórias sombrias surgiam sob a superfície de sua consciência como se fossem o Monstro do Lago Ness, torturando-o e tentando trazer tudo à tona.

Contudo, teve de interromper aquele processo cognitivo de recuperar lembranças antes que tivesse um aneurisma por causa da tensão. Além disso, não chegaria a lugar algum com isso... Por mais que tentasse não conseguiria entender o que sentia ali e tinha a sensação de que poderia causar danos permanentes se continuasse assim.

Quando ele olhou pela janela do carro, pinheiros e carvalhos mostravam-se altos e firmes sob o luar, o bosque que percorria os subúrbios de Caldwell ficava cada vez mais denso ao distanciarem-se da cidade e do nó asfixiante de pessoas e edifícios.

– Você morreu aqui – ele disse severamente. – Ou ao menos fingiu ter morrido.

Um ciclista encontrou o Audi de Jane entre as árvores, em um ponto da estrada não muito longe dali; o carro havia deslizado para fora do acostamento. Entretanto, não havia corpo... e não era por causa do fogo, que havia surgido após a queda.

Jane limpou a garganta.

– É triste, mas tudo o que tenho a dizer é “sinto muito”. Sei que é uma droga.

– Não é exatamente uma festa para mim também.

Silêncio. Muito silêncio. Mas não queria ficar perguntando muita coisa se tudo o que receberia como resposta era um “sinto muito”.

– Gostaria de poder ter lhe contado – ela disse de repente. – Você foi a pessoa mais difícil de ser deixada.

– Mas não abandonou seu trabalho, não é mesmo? Porque ainda está trabalhando como cirurgiã.

– Sim, estou.

– Como é seu marido?

Nesse momento, ela estremeceu.

– Vai conhecê-lo.

Ótimo. Que alegria!

Diminuindo a velocidade, ela virou à direita em direção a... uma estrada de terra? Mas que droga é essa?

– Para sua informação – ele murmurou –, este carro foi feito para pistas de asfalto, não para percursos assim.

– É o único caminho.

Para onde? Ele se perguntou.

– Você vai ficar me devendo algo muito grande por isso.

– Eu sei. Mas você é o único que pode salvá-la.

Manny piscou os olhos.

– Não disse nada sobre ser “ela”.

– Isso importa?

– Se pensar que não estou entendendo nada do que está acontecendo, tudo importa.

Após percorrerem uns dez metros, começaram a passar por vários atoleiros que eram tão profundos quanto malditos lagos e, enquanto seu Porsche trepidava, sentiu algo arranhando seu estômago e apertou os dentes.

– Que se dane essa paciente, quero um reembolso pelo que está fazendo ao chassi do meu carro.

Jane soltou uma risadinha e isso fez com que o centro de seu peito doesse... mas tinha de cair na real. Os dois nunca estiveram, de fato, juntos. Claro, houve uma atração de sua parte, uma grande atração. E, talvez, um beijo. Mas isso foi tudo.

E agora ela era a Sra. de Outra Pessoa, e também tinha acabado de voltar do maldito mundo dos mortos.

Cristo, que tipo de vida ele tinha? Por outro lado, talvez aquilo fosse um sonho... Isso o animou, pois talvez Glory não tivesse se acidentado também.

– Não me disse o tipo de lesão – disse ele.

– Quebra na coluna vertebral. Entre C6 e C7. Nenhuma sensação abaixo da cintura.

– Droga, Jane... Isso é complicado.

– Agora sabe por que preciso tanto de você.

Mais ou menos cinco minutos mais tarde, aproximaram-se de portões que pareciam ter sido construídos durante as Guerras Púnicas, pelo menos dois séculos antes de Cristo... A coisa parecia estar fixada ali nos moldes de Alice no País das Maravilhas, os elos da corrente estavam enferrujados e quebrados em alguns lugares. E a barra que os atravessava? Aquela porcaria não valia nem o esforço de ser manuseada, não era nada além de um pedaço de arame usado para cerca de gado e que já tinha vivido dias melhores. No entando, a maldita coisa abriu sem problemas, e enquanto entravam, viu a primeira câmera de vídeo.

Ao avançarem a passos lentos, uma névoa estranha veio do nada, a paisagem ficou fora de foco até não conseguir enxergar nada que havia além de trinta centímetros à frente do carro. Cristo, era como se estivessem em um episódio de Scooby-Doo.

E, então, houve um progresso curioso: o próximo portão estava em condições um pouco melhores; o seguinte era ainda mais novo e o quarto parecia ter apenas um ano, no máximo. O último portão estava brilhando e parecia algo saído de Alcatraz: mais de sete metros de altura e avisos de alta voltagem espalhados por toda sua extensão. E aquele muro no qual o portão estava instalado? Não era bem para conter gado... Talvez dinossauros. E podia apostar que os tijolos deviam ter pelo menos meio metro de espessura.

Manny girava a cabeça de um lado a outro à medida que avançavam e começavam a descer por um túnel tão profundo e com uma estrutura tão forte que poderia atravessar por baixo do rio Hudson. Quanto mais desciam, mais a grande questão que o assolava desde a aparição intensificava-se em sua mente: por que forjar a morte? Por que provocar o caos que tinha causado na vida dele e na dos outros que trabalhavam com ela no Hospital São Francisco? Nunca tinha sido uma mulher cruel, mentirosa, não tinha problemas financeiros, nem nada do que fugir.

Agora sabia, mesmo que não tivesse dito uma palavra: Governo dos Estados Unidos.

Aquele cenário, aquela estrutura no sistema de segurança... Um local oculto nos subúrbios de uma cidade suficientemente grande, mas não tão grande quanto Nova York, Los Angeles ou Chicago? Tinha de ser o Governo. Quem mais poderia pagar por isso?

E quem era a mulher a quem trataria?

O túnel terminou em uma típica garagem subterrânea, com pilares e vagas limitadas por faixas amarelas... e, mesmo sendo tão grande, o local estava vazio. Havia apenas duas vans, que não conseguia distinguir muito bem a marca, com vidros escurecidos e um micro-ônibus que também tinha vidros filmados.

Antes mesmo de ela estacionar o Porsche na garagem, uma porta de aço abriu-se e...

Bastou um olhar no cara enorme que saiu dali e a cabeça de Manny explodiu, a dor atrás dos olhos ficou tão intensa que escorregou no banco do carro, os braços caíram e seu rosto contorceu-se de agonia. Jane lhe disse alguma coisa. Uma porta do carro foi aberta. Em seguida, a dele.

A brisa que o atingiu era seca e cheirava vagamente a terra... mas havia algo mais. Colônia. Uma fragrância amadeirada de especiarias que era, ao mesmo tempo, cara e agradável, mas também algo que despertava nele um desejo curioso de sair correndo.

Manny forçou as pálpebras a se abrirem. Sua visão estava muito turva, mas era incrível o que a necessidade obrigava alguém a fazer... E quando o homem a sua frente entrou em foco, viu-se encarando o filho da mãe de cavanhaque que tinha...

Com uma onda de dor, seus olhos reviraram e quase vomitou.

– Precisa liberar as memórias – ouviu Jane dizer.

Houve alguma conversa nesse ponto, a voz de sua antiga colega misturava-se com os tons profundos daquele homem com tatuagens nas têmporas.

– Isso o está matando...

– É arriscado demais...

– Como ele vai operar desse jeito?

Houve um longo silêncio. E, então, de repente, a dor foi retirada como se fosse um véu sendo levantado – toda aquela pressão saiu de dentro dele em um piscar de olhos. Em seu lugar, as lembranças inundaram sua mente.

A paciente de Jane. O Hospital São Francisco. O homem com o cavanhaque e... um coração de seis válvulas.

Manny abriu bem os olhos e encarou aquele rosto cruel.

– Conheço você.

– Tire-o do carro – foi a única resposta do cara de cavanhaque. – Não confio nos meus atos se tocar nele.

Que maravilha de boas-vindas. E havia alguém atrás do desgraçado. Um homem que Manny tinha cem por cento de certeza de que já havia visto antes... Contudo, deve ter sido algo muito rápido, pois não conseguia lembrar-se de seu nome ou de onde se conheceram.

– Vamos – Jane disse.

Sim. Grande ideia. Naquele momento, precisava de alguma coisa para se concentrar que não tivesse nada relacionado com aquela situação de não saber o que dizer.

Enquanto o cérebro de Manny lutava para processar o que estava acontecendo, percebeu que ao menos seus pés e pernas seguiam o programa. Depois que Jane o ajudou a sair do carro e a ficar em pé, começou a segui-la e ao cara de cavanhaque pela instalação que era tão insípida e limpa quanto um hospital: corredores sóbrios, lâmpadas fluorescentes no teto, tudo cheirava a produtos de limpeza.

Havia também câmeras de segurança que moviam-se em intervalos regulares, como se o edifício fosse um monstro com muitos olhos.

Enquanto caminhavam, sabia que não devia fazer qualquer pergunta. Bem, sabia disso e de que sua cabeça estava tão confusa que tinha a certeza de que se mover era o máximo de suas habilidades naquele momento. Em seguida, percebeu o cara do cavanhaque e seu olhar mortal... não era exatamente uma abertura para iniciar um bate-papo.

Portas. Passaram por muitas portas, todas as quais foram fechadas em seguida e, sem dúvida, trancadas.

Palavrinhas interessantes como local secreto e segurança nacional brincaram em seu crânio, e isso ajudou muito, fazendo-o acreditar que talvez pudesse perdoar Jane por desaparecer da vida dele... um dia.

Quando Jane parou diante de uma porta dupla, suas mãos brincaram com as lapelas do jaleco branco e, em seguida, com o estetoscópio no bolso. E essa reação só fez com que tivesse a sensação de que tinha uma arma na cabeça: na sala de cirurgia, nos incontáveis problemas graves que se passaram no departamento de traumatologia, ela sempre mantivera a calma. Era sua marca registrada.

Mas aquilo era pessoal, ele pensou. De alguma maneira, seja lá o que estivesse do outro lado daquelas portas, estava relacionado a alguém próximo a ela.

– Tenho bons equipamentos aqui – ela disse. – Mas não tudo. Não tenho ressonância magnética. Apenas tomografias e raios-X. Contudo, a sala de cirurgia é adequada e não só posso ajudar como também tenho uma excelente enfermeira.

Manny respirou fundo, muito fundo, recompondo-se. Com toda força de vontade, calou todas as perguntas, a persistente indignação em sua cabeça e a estranheza daquela viagem ao mundo da espionagem ao estilo 007.

Primeiro item em sua lista de coisas a fazer? Despistar o público revoltado dali.

Olhou por cima do ombro, em direção ao cara de cavanhaque.

– Vai precisar sair daqui, amigo. Quero você fora, no corredor.

A reação que teve depois disso foi... simplesmente fantástica, principalmente se fosse um dentista: o desgraçado exibiu um par de caninos tão longos quanto seu braço e rosnou, em alto e bom som, como um cachorro.

– Certo – disse Jane, posicionando-se entre eles. – Tudo bem. Vishous vai esperar lá fora.

Vishous? Será que tinha ouvido direito?

Por outro lado, a mãe do menino devia ser louca de pedra, considerando o pequeno espetáculo odontológico. Não importa. Tinha trabalho a fazer e, talvez, o filho da mãe mastigasse couro duro ou algo assim.

Entrando na sala de exames ele...

Oh... santo Deus.

Ah... meu Deus do céu.

A paciente sobre a mesa estava deitada como águas tranquilas... era provavelmente a coisa mais linda que ele já tinha visto: o cabelo era muito preto e trançado em uma corda grossa que pendia livre ao lado de sua cabeça. A pele era de um marrom dourado, como se ela fosse descendente de italianos e tivesse sido exposta ao sol recentemente. Olhos... seus olhos eram como diamantes, muito claros e brilhantes ao mesmo tempo, com apenas uma borda escura ao redor da íris.

– Manny?

A voz de Jane estava bem atrás dele, mas sentiu como se estivesse a quilômetros de distância. Na verdade, o mundo inteiro estava em outro lugar, nada existia além do olhar de sua paciente que o encontrou do alto daquela mesa com a cabeça imobilizada.

Finalmente havia acontecido, pensou. Durante a vida inteira perguntara-se por que nunca havia se apaixonado e agora sabia a resposta. Estava esperando aquele momento, aquela mulher, aquela hora.

Esta mulher é minha, pensou.

E mesmo sabendo que aquilo não fazia sentido algum, a convicção era tão forte que não conseguia questionar.

– Você é o curandeiro? – ela disse em uma voz baixa que parou seu coração. – Você está aqui... por mim?

Suas palavras tinham um sotaque forte – maravilhoso por sinal –, e havia também um tom um pouco surpreso.

– Sim. Sou eu. – Arrancou o casaco do terno e jogou-o em um canto, sem dar a mínima importância para onde havia caído. – Estou aqui por você.

Quando se aproximou, lágrimas deslizaram de seus olhos cobertos de gelo.

– Minhas pernas... sinto como se estivesse as movimentando, mas acho que não consigo.

– Doem?

– Sim.

Dor fantasma. Não era uma surpresa.

Manny deteve-se ao lado dela e olhou para seu corpo, que estava coberto com um lençol. Era alta. Pelo menos um metro e oitenta. E era constituída com uma força elegante. Era uma guerreira, pensou, observando a força de seus braços. Uma lutadora.

Deus, a perda da mobilidade em alguém como ela tirava-lhe o fôlego. Por outro lado, mesmo que se tratasse de alguém viciado em televisão, a vida em uma cadeira de rodas seria terrível; mas, para alguém como ela, seria uma sentença de morte.

Manny aproximou-se e pegou a mão dela... No instante em que fez contato, o corpo dele como um todo estremeceu, como se ela fosse a tomada do seu plugue interior.

– Vou cuidar de você – disse enquanto olhava diretamente em seus olhos. – Quero que confie em mim.

Ela engoliu a saliva quando uma lágrima cristalina deslizou de seus olhos. Por instinto, ele estendeu a mão e a deteve com a ponta do dedo...

O rosnado que infiltrou-se pela porta era uma ameaça, uma contagem regressiva para se afastar, mas não deu importância àquilo. Quando olhou para o cara de barbicha, sentiu como se estivesse rosnando de volta para o filho da mãe. O que, mais uma vez, não fazia sentido algum.

Ainda segurando a mão de sua paciente, exclamou para Jane:

– Tire esse bastardo miserável da minha sala de cirurgia. E quero ver os malditos exames e radiografias. Agora.

Ele ia salvar aquela mulher, mesmo se aquilo o matasse.

Quando os olhos do Sr. Cavanhaque brilharam em direção a ele com puro ódio, Manny pensou: “Bem, esse é o máximo que o cara pode fazer...”.


CAPÍTULO 6

Qhuinn saiu sozinho em Caldwell, pela primeira vez na vida.

Quando pensou melhor sobre isso, concluiu que era quase uma impossibilidade estatística. Passou tantas noites lutando, bebendo e fazendo sexo dentro e ao redor dos clubes noturnos do centro da cidade que pelo menos um ou dois voos tinham de ter sido feitos sozinho. Mas não. Quando entrou no Iron Mask, estava sem a companhia de seus dois amigos pela primeira vez.

De qualquer forma, as coisas eram diferentes agora. Os tempos tinham mudado. As pessoas também.

John Matthew estava agora muito feliz casado; então, quando tinha uma folga, como naquela noite, ficava em casa com sua shellan, Xhex, fazendo a cama praticar uma série de exercícios de resistência. Sim, claro, Qhuinn era um ahstrux nohtrum e tudo mais, mas Xhex era uma symphato assassina totalmente capaz de cuidar de seu macho, e da Adaga Negra.

O complexo da Irmandade era uma fortaleza que nem mesmo uma equipe da SWAT poderia invadir. Assim, ele e John chegaram a um acordo... e deixaram isso em segredo.

Quanto a Blay... Qhuinn não ia pensar sobre seu melhor amigo. Não. De jeito nenhum.

Observando o interior do clube, iniciou sua máquina de seleção interna e começou a abrir caminho por meio das mulheres, homens e casais. Havia uma e apenas uma razão para ter ido até ali, e era a mesma que havia levado os outros góticos àquele local.

Não era um lugar para se procurar um relacionamento, sequer uma companhia. Tratava-se apenas de movimentar-se entrando e saindo e, quando tudo estivesse acabado, era o caso de dizer “Obrigado, moça” – ou “cara”, dependendo de seu humor –, “Estou dando o fora”. Porque ele ia precisar de outra pessoa. Ou outras pessoas.

Não investiria apenas uma vez naquela noite; sentia como se estivesse arrancando a própria pele, seu corpo latejava com força, necessitando de alívio. Cara, sempre gostou de transar, mas nos últimos dias sua libido tinha aumentado até crescer como um monstro.

Será que Blay não era mais seu melhor amigo?

Qhuinn fez uma pausa e olhou rapidamente uma vitrine antes de inclinar a cabeça sobre ela: caramba, não tinha mais cinco anos. Machos adultos não têm melhores amigos. Não precisam deles, especialmente se o macho em questão estivesse transando com outra pessoa. O dia inteiro. Todos os dias.

Qhuinn andou até o bar.

– Tequila. Dose dupla. E traga a melhor que tiver.

Os olhos da mulher aqueceram-se por trás do pesado delineador e dos cílios postiços.

– Já vai pagar a comanda?

– Sim – e considerando a maneira como ela escorregou a mão sobre o estômago achatado e desceu ainda mais pelo quadril, ele poderia ter pedido, com certeza, um pedaço dela também.

Quando ele estendeu o cartão de crédito, ela fez um movimento amplo com os seios para pegar a maldita coisa, inclinando-se de tal forma que poderia muito bem pegar algo no chão com os mamilos.

– Volto já, já com sua bebida.

Que surpresa.

– Ótimo.

Estava perdendo tempo ao sair rebolando como fez: não era nada disso que procurava naquela noite... não chegava nem perto. Sexo errado, para começar. E não ia investir em nada que tivesse cabelos escuros. Para dizer a verdade, não conseguia acreditar no que queria.

Tinha algumas limitações por ser daltônico, mas quando vestia apenas preto e trabalhava à noite, na maioria das vezes, isso não era grande coisa. Além disso, seus olhos desiguais eram tão perspicazes e sensíveis às variações de cinza que realmente percebias as “cores” – era tudo uma questão de gradação. Por exemplo, sabia quem eram as pessoas loiras no clube. Sabia a diferença entre as morenas e as de cabelos negros. E, sim, poderia enganar-se e interpretar mal se algum idiota tivesse feito uma tintura estranha, mas, mesmo assim, poderia dizer que havia algo estranho, porque o tom de pele nunca combinava direito com a cor artificial do cabelo.

– Aqui está – disse a bartender.

Qhuinn estendeu a mão, pegou o copo, bebeu a tequila e voltou a colocá-lo vazio sobre o balcão do bar.

– Vamos tentar isso mais algumas vezes.

– É pra já. – Exibiu seu par de seios novamente, sem dúvida com a esperança de que ele os agarrasse a qualquer momento. – Você é o tipo de cliente que gosto. Porque é óbvio que consegue lidar com uma boa bebida.

Uh-hum. Claro. Como se a habilidade de ingerir o equivalente a quatro doses de álcool de uma vez só fosse grande coisa. Deus, a ideia de que alguém, com esse sistema de valores, tivesse permissão para votar fazia com que ele desejasse encarar a vitrine outra vez.

Humanos eram patéticos.

Contudo, quando olhou para trás para observar a multidão, pensou que baixar a bola seria uma boa. Sentia-se patético sozinho naquela noite, especialmente quando viu dois homens em um canto, os dois separados apenas pelas roupas de couro que vestiam. Naturalmente, um deles era loiro. Assim como seu primo. Então, era claro que imagens hipotéticas de Blay e Saxton começaram a brincar em seu campo de polo interior, marcando seu gramado com pegadas e bosta de cavalo.

Só que não eram hipotéticos, mas reais: no final de todas as noites, quando as pessoas à mesa da mansão da Irmandade começavam a se dispersar depois da Última Refeição e a sair para resolver seus assuntos particulares, Blay e Saxton dirigiam-se discretamente para a grande escadaria e desapareciam no corredor do andar de cima, onde seus quartos ficavam.

Nunca tinham se dado as mãos, nunca tinham se beijado na frente de ninguém, e também não havia olhares de reprovação. Por outro lado, Blay era um cavalheiro, e Saxton era uma vagabunda elegante inserida de alguma maneira em um grande espetáculo.

Seu primo era uma verdadeira prostituta...

Não, não é, uma pequena voz soou. Só o odeia porque está de caso com seu garoto.

– Ele não é meu garoto.

– O que disse?

Qhuinn lançou um olhar ao espectador... e, em seguida, reassumiu seu ar durão. Bingo, ele pensou.

Ao lado dele estava um macho humano, mais ou menos um metro e oitenta com um cabelo fabuloso, rosto bonito e lábios muito agradáveis. As roupas não eram totalmente góticas, mas tinha algumas correntes na cintura e duas argolas em uma das orelhas. Mas foi a cor do cabelo que realmente fez a diferença.

– Estava falando sozinho – Qhuinn murmurou.

– Ah. Faço muito isso. – O sorriso foi breve e, em seguida, o cara voltou a cuidar de sua...

– O que está bebendo? – Qhuinn perguntou.

Um copo já na metade foi erguido.

– Vodka e tônica. Não suporto essa coisa de adocicar a bebida.

– Nem eu. Vou de tequila. Pura.

– Patrón?

– Nunca. Gosto da Herradura.

– Ah – o cara virou-se e olhou para frente em direção à multidão. – Gosta das coisas como são.

– Sim.

Qhuinn queria perguntar se o Sr. Vodka e Tônica estava observando os caras ou as garotas, mas permaneceu em silêncio. Cara, aquele cabelo era incrível. Grosso. Enrolado nas pontas.

– Está procurando por alguém em particular? – Qhuinn disse em voz baixa.

– Talvez. E você?

– Com certeza.

O cara riu.

– Tem muita mulher bonita aqui. Pode escolher.

Mas. Que. Droga. Que sorte a dele: um hétero. Por outro lado, talvez pudessem dividir alguma coisa e começar por aí.

O cara inclinou-se e ofereceu a palma da mão.

– Eu sou...

Quando os dois entreolharam-se completamente, o cara deixou a sentença à deriva, mas não tinha importância. Qhuinn não dava a mínima para o nome dele.

– Seus olhos têm cores diferentes? – o cara perguntou suavemente.

– Sim.

– Isso é muito... legal.

Bem, sim. Quando não se é um vampiro nascido na glymera. Se esse fosse o caso, seria considerado um defeito físico que significava ser geneticamente ruim e, portanto, uma vergonha para sua linhagem e absolutamente inabilitado para o acasalamento.

– Obrigado – Qhuinn disse. – Qual é a cor dos seus?

– Não pode dizer?

Qhuinn deu um tapinha sobre a lágrima tatuada perto do olho.

– Daltônico.

– Ah. Os meus são azuis.

– E você é ruivo, certo?

– Como sabe disso?

– Pelo seu tom de pele. Além disso, você é meio pálido e tem sardas.

– Isso é incrível – o cara olhou ao redor. – Está escuro aqui... não imaginava que conseguiria enxergar.

– Acho que posso – e acrescentou mentalmente: e que tal se eu lhe mostrar alguns dos meus outros truques.

O novo amigo de Qhuinn sorriu um pouco e voltou a observar a multidão. Depois de um minuto, disse:

– Por que está olhando para mim assim?

Porque quero transar com você.

– Você me lembra alguém.

– Quem?

– Alguém que perdi.

– Oh, droga, sinto muito.

– Tudo bem. A culpa é minha.

Pequena pausa.

– Então, você é gay, certo?

– Não.

O cara deu risada.

– Desculpe. Apenas imaginei que... Bom, acho que era um bom amigo.

Nenhum comentário.

– Vou encher o copo outra vez. Posso fazer isso para você também?

– Obrigado, cara.

Qhuinn virou-se e sinalizou para a atendente. Enquanto esperava ela se aproximar rebolando, planejou sua abordagem. Primeiro, um pouco mais de álcool. Em seguida, adicionaria algumas fêmeas à mistura. O terceiro passo seria entrar em um dos banheiros e transar com a(s) garota(s).

Então... Mais alguns olhares. De preferência quando um deles ou os dois estivessem dentro de uma mulher. Pois por mais que o ruivo de cabelo espetacular parecesse estar a fim das garotas, o filho da mãe tinha sentido alguma coisa quando os dois se entreolharam – e hétero é um termo relativo.

Assim como virgem.

Isso fazia com que os dois se enquadrassem nesses termos, não? Afinal, Qhuinn nunca, jamais, havia ficado com alguém de cabelo vermelho.

Mas aquela noite seria uma exceção.


CONTINUA

CAPÍTULO 4

No centro de Caldwell havia vários prédios altos, cheios de janelas espelhadas, mas nenhum era como o Commodore. Com trinta andares, estava entre os mais altos daquela floresta de concreto e os sessenta apartamentos que abrigava eram totalmente fantásticos, ao estilo de grandes empresários como Donald Trump, revestido de mármore e detalhes cromados; tudo era muito bem projetado.

No vigésimo sétimo andar, Jane entrou no apartamento de Manny, procurando por sinais de vida, e o que encontrou foi... nada. Literalmente. A casa do cara aproximava-se mais de uma pista de dança do que uma pista de obstáculos: a mobília era composta de três objetos na sala e uma cama enorme na suíte principal. Ponto. Bem, e algumas banquetas de couro ao redor do balcão da cozinha. Quanto às paredes? A única coisa que havia pendurado ali era uma TV de plasma do tamanho de um outdoor. Não havia tapetes sobre os pisos de madeira, apenas mochilas de academia... mais mochilas de academia... e calçados esportivos.

Nada disso indicava que era desorganizado; não tinha coisas suficientes para ser considerado assim.

Com um pânico crescente, entrou no quarto dele e viu mais ou menos meia dúzia de uniformes cirúrgicos deixados em pilhas no chão, como poças d’água após uma tempestade e... nada mais.

Mas a porta do armário estava aberta e ela entrou...

– Meu Deus... mas que droga.

Havia um conjunto de três malas alinhado no chão, onde deveria estar uma pequena, uma média e outra grande... mas a do meio não estava lá. Então, concluiu o que estava acontecendo ao considerar os espaços vazios que havia entre os cabides de calças e camisas: estava fora, em uma viagem. Talvez durante todo o fim de semana.

Sem muita esperança, discou para o sistema de atendimento do hospital e chamou-o outra vez...

Notou que estava recebendo outra chamada e amaldiçoou quando observou o número.

Respirando fundo, respondeu:

– Oi, V.

– Nada?

– Nada no hospital ou no apartamento. – Um rosnado sutil chegou até ela pelo telefone e ampliou a angústia da busca que ainda não tinha dado em nada. – Também procurei na academia, vindo para cá.

– Invadi o sistema do Hospital São Francisco e consegui os horários dele.

– Onde ele está?

– Tudo o que diz lá é que Goldberg está de plantão, certo? Olha, o sol se pôs. Vou sair daqui em, mais ou menos...

– Não, não... fique com Payne. Ehlena é ótima, mas acho que deveria ficar com ela.

Houve uma grande pausa, como se ele soubesse que estava sendo despistado.

– O que vai fazer agora?

Apertou o telefone e perguntou-se a quem deveria recorrer. Deus? À mãe dele?

– Não tenho certeza. Mas liguei para ele. Duas vezes.

– Ligue quando encontrá-lo. Vou pegar vocês.

– Posso levá-lo até em casa...

– Não vou machucá-lo, Jane. Não tenho a menor intenção de deixá-lo em pedaços.

Sim, mas considerando o tom de voz frio, teve de se perguntar sobre aqueles planos bem intencionados de vampiros cheios de autocontrole e blá, blá, blá... Acreditava que Manny viveria para tratar da irmã gêmea de V. Mas, e depois? Tinha suas reservas... especialmente se as coisas dessem errado na sala de cirurgia.

– Vou esperar aqui mais um pouco; talvez ele apareça, ou ligue. Se isso não acontecer, penso em outra coisa.

No longo silêncio, praticamente conseguia sentir uma corrente de ar frio chegando através do celular. Seu companheiro fazia muitas coisas direito: lutar, fazer amor, lidar com qualquer coisa relacionada à informática. Ser forçado a ficar parado? Não era bem uma de suas competências inatas. Na verdade, era garantia de deixá-lo enlouquecido.

Ainda assim, o fato de não confiar nela fez com que se sentisse distante dele.

– Fique com sua irmã, Vishous – disse em um tom de voz equilibrado. – Manterei contato.

Silêncio.

– Vishous. Confie em mim e vá ficar ao lado dela.

Ele não disse coisa alguma depois disso. Apenas desligou.

Quando pressionou a tecla end do telefone, soltou um palavrão.

Uma fração de segundo depois estava discando outra vez e no instante em que ouviu uma voz profunda atender, teve de enxugar uma lágrima que, se pensasse em toda sua natureza translúcida, era muito, muito real.

– Butch – ela resmungou –, preciso de sua ajuda.

Quando o pouco que restava do pôr do sol desapareceu e a noite bateu seu cartão de ponto, assumindo o turno seguinte, o carro de Manny deveria ter ido para casa. Deveria ter sido levado por si só direto para Caldwell.

Ao invés disso, acabou chegando ao extremo sul da cidade, onde as árvores eram grandes e as extensões de grama superavam as de asfalto em até dez vezes mais.

Fazia sentido. Os cemitérios deveriam ter longos trechos de terra, pois não se podia enterrar um caixão no concreto. Bem, até poderia... se se tratasse de um mausoléu.

O cemitério Bosque dos Pinheiros ficava aberto até as dez da noite, seus grandes portões de ferro permaneciam escancarados e seus inúmeros postes de iluminação forjados em ferro emitiam uma luz amarelo-manteiga ao longo do labirinto de ruas. Quando entrou, foi para a direita, os faróis do carro iluminando o local ao longo das lápides e do gramado.

Em última análise, o local para onde se dirigia não significava nada: não havia um corpo embaixo da lápide de granito que ia visitar – não restara nada para ser enterrado. Nada de cinzas para colocar em uma vasilha, também... ou, pelo menos, nada que se pudesse separar com certeza de dentro de um Audi que havia pegado fogo.

Depois de dar, mais ou menos, um quilômetro de voltas, tirou o pé do acelerador e deixou o carro deslizar até estacionar. Até onde conseguia ver, era o único no cemitério, mas isso não era problema para ele. Não havia razão para se ter uma audiência.

Quando saiu do carro, o ar frio não ajudou a limpar sua mente, mas deu algo para seus pulmões fazerem quando inalou profundamente e caminhou sobre a grama áspera da primavera. Teve o cuidado de não pisar em nenhuma tumba enquanto avançava... claro, os mortos não saberiam que estava andando acima deles, mas parecia uma coisa respeitosa a fazer.

O túmulo de Jane estava à frente, e desacelerou o passo quando aproximou-se daquilo que não havia sido deixado por ela, por assim dizer.

Ao longe, o apito de um trem cortou o silêncio... e o som vazio e lúgubre era um clichê tão grande que se sentiu em um filme o qual nunca assistiria sentado em casa, muito menos pagaria para ver em um cinema.

– Droga, Jane.

Inclinando-se, passou os dedos sobre as marcas irregulares da lápide. Foi ele quem tinha escolhido a pedra escura de azeviche, pois ela não teria gostado nem um pouco de algo pastel ou desbotado. E a inscrição também era simples e descomplicada, apenas seu nome, datas e uma frase na parte inferior: DESCANSE EM PAZ.

Sim. Deu a si mesmo nota dez em originalidade por isso.

Lembrava-se exatamente onde estava quando soube que ela tinha morrido: no hospital, claro. Era final de um longo plantão que tinha começado com o joelho de um jogador de hóquei e terminado com a reconstrução espetacular de um ombro, isso porque o viciado decidiu tentar voar.

Saiu da sala de cirurgia e encontrou Goldberg esperando próximo às pias de higienização. Manny parou no meio do processo de retirar a máscara cirúrgica ao dar apenas uma olhada no rosto pálido de seu colega. Com a coisa pendurada em seu queixo como um babador, exigiu saber o que diabos havia acontecido de errado – contando o tempo todo que se tratava de um acidente com quarenta carros engavetados na estrada ou um acidente de avião ou um hotel incendiado... algo relacionado a uma tragédia que englobasse toda uma comunidade.

Só que quando olhou sobre o ombro do cara e viu cinco enfermeiras e três outros médicos... Todos com a mesma aparência de Goldberg... E nenhum deles correndo para chamar outros funcionários para assumirem plantão ou preparando as salas de cirurgia.

Certo. Tinha acontecido algo que englobava toda uma comunidade. A comunidade deles.

– Quem? – perguntou.

Goldberg olhou para trás, em direção a sua tropa de apoio e foi então que Manny entendeu. E mesmo com as entranhas congeladas dentro dele, agarrou-se a uma esperança irracional de que o nome que estava prestes a sair da boca de seu colega cirurgião não fosse...

– Jane. Acidente de carro.

Manny não perdeu tempo.

– Quando ela deu entrada?

– Não chegou a dar entrada.

Com isso, Manny não disse nada. Terminou de tirar a máscara de seu rosto, amassou-a e descartou-a na lata de lixo mais próxima.

Quando foi passando por eles, Goldberg abriu a boca outra vez.

– Nem uma palavra – Manny ladrou. – Nem. Uma. Palavra.

Os outros funcionários começaram a tropeçar entre eles mesmos para sair do caminho, dividindo o grupo com a precisão de um pedaço de tecido cortado ao meio.

Voltando ao presente, não conseguia se lembrar onde tinha ido ou o que tinha feito depois disso... não importava quantas vezes voltasse sua mente àquela noite obscura, esses momentos eram como um buraco negro. Contudo, em dado momento, percebeu que tinha chegado em seu apartamento, pois acordou ali dois dias depois e viu que ainda estava com o uniforme cirúrgico respingado com o sangue do último paciente que havia operado.

O mais irritante de tudo era o fato de que Jane tinha salvado tantas pessoas vítimas de acidentes de carro. A ideia de ter sido levada dessa maneira levava-o a pensar que o Ceifeiro da Morte veio atrás dela para cobrar todas as almas que tinha afastado do alcance de suas garras mortais.

O som de outro apito de trem o fez querer gritar.

O trem e aquele pager apitando.

Hannah Whit. Outra vez?

Mas que diabos...

Manny franziu o cenho e olhou para a lápide. Salvo engano, a irmã mais nova de Jane chamava-se Hannah. Whit. Whitcomb?

Só que ela tinha morrido muito cedo.

Não tinha?

Loucura. Total.

Deus, deveria ter trazido seus tênis para essa aventura, Jane pensou enquanto andava sem rumo pelo apartamento de Manny. Outra vez. Teria deixado o apartamento se tivesse uma ideia melhor de onde ir, mas seu cérebro, mesmo sendo tão astuto, não conseguia enxergar outra opção...

Seu telefone tocando não era exatamente algo bom. Não queria dizer a Vishous que quarenta e cinco minutos depois não tinha nada de novo para relatar.

Pegou o celular.

– Oh... Deus.

Aquele número. Aqueles dez dígitos que sempre estiveram registrados na discagem rápida de todos os telefones que teve antes daquele. Manny.

Quando pressionou a tecla send, sua mente estava em branco e seus olhos cheios de lágrimas. Seu velho e querido amigo e colega de profissão...

– Alô? – ele disse. – Senhorita Whit?

Ao fundo, ouviu o soar fraco de um apito de trem.

– Alô? Hannah? – Aquele tom... era exatamente o mesmo de anos atrás: baixo, impositivo. – Tem alguém aí?

Aquele apito baixo soou outra vez.

Jesus Cristo... ela pensou. Sabia onde ele estava.

Jane desligou e saiu rápido do apartamento, do centro da cidade, atravessando a toda velocidade pelos subúrbios.

Viajando em um borrão à velocidade da luz, suas moléculas atravessaram a noite em uma corrida alucinante que percorreu quilômetros como se fossem centímetros.

O cemitério Bosque dos Pinheiros era o tipo de lugar que precisava de um mapa para se localizar nele, mas quando se é uma forma etérea no ar, pode-se percorrer uma centena de acres em apenas um piscar de olhos.

Quando tomou forma na escuridão perto de sua sepultura, respirou fundo e quase chorou.

Lá estava ele, em carne e osso. Seu chefe. Seu colega. O único a quem deixou para trás. E ele estava em pé atrás de uma lápide negra na qual havia seu nome esculpido.

Certo, agora sabia que tinha tomado a decisão certa quando não havia ido ao funeral. O mais perto que chegou disso foi lendo a notícia no Caldwell Courier Journal – e a imagem de todos aqueles cirurgiões, funcionários do hospital e pacientes emocionou-a demais. Mas aquilo era muito pior.

Manny parecia exatamente como ela mesma se sentia: arruinado por dentro.

Jesus, aquela loção pós-barba ainda cheirava bem... e apesar de ter perdido um pouco de peso, era um pedaço de mal caminho, com aquele cabelo escuro e aquele rosto rígido. Seu terno era de risca de giz e feito sob medida... mas havia sujeira em volta da bainha da calça muito bem passada. E seus sapatos estavam sujos também, fazendo com que ela se perguntasse onde diabos ele estivera. Com certeza não tinha ficado assim por causa da sepultura; depois de um ano, o solo ainda estava plano e coberto com grama bem aparada...

Oh, espere. O túmulo devia estar assim desde o primeiro dia. Ela não tinha deixado nada para ser enterrado.

Quando os dedos dele descansaram sobre a pedra, soube que foi ele quem tinha escolhido a sepultura. Ninguém mais teria tido o bom-senso de fazer exatamente o que ela gostaria que fizesse. Nada de muitos detalhes rococós ou dizeres complicados; curto, doce, no ponto.

Jane limpou a garganta.

– Manny...

Ele ergueu a cabeça, mas não olhou para ela... como se tivesse ouvido a voz dela apenas em sua mente.

Assumindo uma forma totalmente corpórea, ela falou mais alto.

– Manny.

Sob qualquer outra circunstância, a reação teria sido uma profusão de risos. Mas ele se virou, em seguida, gritou, tropeçou na lápide e caiu sentado no chão.

– Mas que... diabos... você está fazendo aqui? – ele engasgou. A expressão em seu rosto começou com um sentimento de horror, mas rapidamente mudou para a descrença absoluta.

– Sinto muito.

Era totalmente ridículo, mas foi tudo o que saiu de sua boca.

E parecia mais do que poderia suportar. Encontrar aqueles olhos castanhos fez com que, de repente, ela não tivesse nada a dizer.

Manny ergueu-se com um salto, e seu olhar escuro subia e descia observando o corpo dela.

E, por fim, subiu... fixando-se em seu rosto.

Foi quando a raiva veio. E também uma dor de cabeça, evidentemente, considerando a maneira como ele estremeceu e esfregou as têmporas.

– É algum tipo de piada?

– Não – ela desejava que fosse. – Sinto muito mesmo.

O olhar severo e cruel era dolorosamente familiar, e que ironia sentir-se nostálgica com um olhar ameaçador como aquele.

– Você sente muito.

– Manny, eu...

– Eu a enterrei. E você sente muito? Que porcaria é essa?

– Manny, não tenho tempo para explicar. Preciso de você.

Ele a encarou por um longo momento.

– Você aparece depois de um ano morta e diz que precisa de mim?

A realidade de quanto tempo havia se passado pesou sobre ela. Acima de tudo.

– Manny... não sabia o que lhe dizer.

– Oh, mesmo? Que tal: ah, puxa, por falar nisso, estou viva.

Ele a encarou. Apenas a encarou.

Então, com uma voz rouca, disse:

– Você faz alguma ideia do que foi perdê-la? – passou rapidamente a mão sobre os olhos. – Tem noção?

A dor no peito dela fez com que a respiração ficasse difícil.

– Sim. Porque perdi você... perdi minha vida com você e no hospital.

Manny começou a andar, aproximando-se e afastando-se da lápide. E, embora ela quisesse, sabia que não devia aproximar-se demais.

– Manny... se houvesse alguma maneira de voltar para você, eu voltaria.

– Você voltou. Uma vez. Pensei que era um sonho, mas não. Não era.

– Não.

– Como entrou no meu apartamento?

– Apenas entrei.

Ele se deteve e olhou para ela, a lápide ficou entre eles.

– Por que fez isso, Jane? Por que forjou sua morte?

Bem, na verdade, não havia forjado.

– Não tenho tempo para explicar agora.

– Então, que diabos está fazendo aqui. Que tal explicar isso?

Ela clareou a garganta e disse:

– Estou com uma paciente cujo tratamento exige além da minha capacidade e quero que dê uma olhada. Não posso dizer para onde vou levá-lo, não posso lhe dar muitos detalhes e sei que isso não é justo... mas eu preciso de você – Queria arrancar os cabelos. Cair aos prantos. Abraçá-lo. Mas continuou, por que era isso o que tinha de fazer. – Estou procurando por você há mais de uma hora, então, estou atrasada. Sei que está chateado e confuso e não o culpo. Mas fique com raiva de mim mais tarde... Apenas venha comigo agora. Por favor.

Tudo o que pôde fazer foi esperar. Manny não se convencia por alguém falar demais, não conseguiria persuadi-lo assim. Escolheria ir... ou não.

E, infelizmente, se fosse a segunda opção, ela teria de chamar os Irmãos. Por mais que amasse e sentisse falta de seu antigo chefe, Vishous era seu homem e se sentiria uma maldita se deixasse alguma coisa acontecer com a irmã dele.

De uma forma ou de outra, Manny operaria alguém naquela noite.


CAPÍTULO 5

Butch O’Neal não era o tipo de cara que deixava uma dama em perigo.

Era alguém à moda antiga... o policial... o devoto, o católico praticante que havia nele. Dito isso, ao receber a ligação da amável e talentosa Dra. Jane Whitcomb, o cavalheirismo não seguiu o instinto impulsivo. Nem um pouco.

Ao colocar o pé para fora do Buraco e correr ao longo do túnel em direção ao centro de treinamento da Irmandade, seus interesses e os dela estavam totalmente alinhados, mesmo sem se levar em conta toda a questão de “ser um cavalheiro”: os dois temiam que V. perdesse o controle outra vez.

Já exibia todos os sinais: tudo o que tinha de fazer era olhar para ele e ver que a tampa da panela de pressão estava trancada com força sobre todo aquele calor e confusão. O que aconteceria com toda aquela pressão? Teria de encontrar uma vazão de alguma maneira e, no passado, isso aconteceu das piores maneiras possíveis.

Saindo da porta oculta e emergindo no escritório, Butch virou à direita e desceu ao longo do corredor que levava às instalações médicas. O sopro sutil de tabaco turco no ar disse-lhe exatamente onde encontrar seu alvo, não que houvesse alguma dúvida.

Próximo à porta fechada da sala de exames, ajeitou os punhos da camisa e ergueu o cinto. A batida na porta foi suave. Já o batimento cardíaco estava forte.

Vishous não respondeu com um “entre”. Ao invés disso, o Irmão saiu e fechou a porta atrás de si.

Caramba, ele parecia estar mal. E suas mãos tremiam ligeiramente quando pegou um de seus cigarros para preparar. Enquanto lambia a coisa para selá-la, Butch enfiou a mão no bolso para oferecer o isqueiro, acendendo a chama e erguendo-a à frente. Quando seu melhor amigo inclinou-se para o brilho laranja, reconheceu cada detalhe daquele rosto cruel e impassível. Jane estava absolutamente certa. O pobre coitado estava sobrecarregado e segurava tudo aquilo.

Vishous inalou profundamente e, então, recostou-se contra a parede de concreto, os olhos perspicazes fixos à frente, as botas de combate plantadas solidamente no chão. Em determinado momento, murmurou:

– Não vai perguntar como estou?

Butch inclinou-se da mesma maneira, aproximando-se bem de seu amigo.

– Não precisa.

– Anda lendo mentes?

– Sim. Esse sou eu.

V. inclinou-se para o lado e bateu as cinzas no lixo.

– Então, pode me dizer no que estou pensando, certo?

– Tem certeza que quer que eu solte um monte de palavrões tão perto de sua irmã? – Quando isso produziu uma risada curta, Butch olhou para o perfil de V. As tatuagens ao redor do olho do cara estavam especialmente sinistras, se considerasse as marcas de preocupação que o cercavam, como se fossem nuvens em um inverno nuclear.

– Não quer que eu faça isso em voz alta, V. – disse suavemente.

– Ah. Faça uma tentativa.

Isso significava que V. precisava conversar, mas, considerando a situação, não daria certo forçar coisa nenhuma ali: o macho sempre “finalizava” as conversas, mas, pelo menos, estava indo melhor do que tinha ido... antes? Sim, sequer quebrou uma porta nem nada.

– Ela pediu para que cuide dela se isso não der certo, não foi? – Butch disse, pronunciando o que mais temia. – E não estamos falando de cuidados paliativos de enfermagem.

A resposta de V. foi soltar uma respiração que durou mais ou menos uns quinze minutos depois do infinito.

– O que vai fazer? – perguntou Butch, mesmo sabendo a resposta.

– Não vou hesitar. – O complemento da resposta “mesmo que isso me mate” ficou subentendido.

Maldita vida. Às vezes, as situações pelas quais as pessoas passavam eram cruéis demais.

Butch fechou os olhos e deixou a cabeça cair para trás, contra a parede. A família era tudo para os vampiros. Sua companheira, os Irmãos com quem lutava, seu sangue... era todo o seu mundo. E, segundo essa teoria, ele também sofria junto com V. e Jane e o resto da Irmandade.

– Com sorte, não chegará a fazer isso – Butch olhou para a porta fechada. – A doutora Jane vai encontrar o cara. Ela é como um cão farejador...

– Sabe o que me ocorreu há uns dez minutos?

– O quê?

– Mesmo que não fosse mais dia, ela gostaria de continuar sozinha para encontrá-lo.

Quando o aroma de vinculação do macho exalou, Butch pensou: “Certo, cara. Jane e o cirurgião conviveram juntos durante anos, então, se há algum tipo de persuasão a ser feito, ela terá mais oportunidades sozinha... isso concluindo que ela dará um jeito na coisa toda de voltar dos mortos. Além disso, V. era um vampiro. Caramba. Será que alguém precisava adicionar mais alguma dificuldade nessa confusão toda?”.

Assim, considerando tudo, seria ótimo se o cirurgião tivesse mais de dois metros de altura, estrabismo e pelo de urso nas costas. Ser extremamente feio seria sua única vantagem se o macho vinculado em V. fosse acionado.

– Sem ofensa – Butch murmurou –, mas dá para culpá-la?

– É minha irmã gêmea que está em jogo – o cara passou com força uma das mãos ao longo dos cabelos escuros. – Mas que droga, Butch... minha irmã.

Butch sabia alguma coisa sobre como era perder alguém, então, sim, podia entender o que o macho na frente dele sentia. E, cara, não sairia do lado do Irmão: ele e Jane eram os únicos que conseguiam acalmar Vishous quando ficava assim. Jane já teria muita coisa para fazer ao lidar com o cirurgião e sua paciente.

O som do celular de V. fez os dois saltarem, mas o Irmão recuperou-se rápido e não deu tempo para que um segundo toque chegasse a seus ouvidos.

– Mesmo? Conseguiu? Obrigado... cara... sim. Sim. Encontro vocês na garagem. Certo. – Houve uma pequena pausa e V. olhou como se quisesse ficar sozinho.

Louco para desaparecer dali, Butch olhou para seus sapatos. O Irmão nunca fora muito bom em demonstrações públicas de afeto ou em conversar sobre coisas pessoais com Jane se houvesse alguém por perto. Mas como Butch era um mestiço, não conseguia se desmaterializar – e para onde, diabos, ele correria?

Após V. murmurar um rápido “tchau”, tragou profundamente um de seus cigarros e disse em voz baixa ao expirar:

– Pode parar de fingir que não está a meu lado.

– Que alívio. Não sou muito bom nisso.

– Não tem culpa de ocupar espaço.

– Então, ela o encontrou? – Quando Vishous assentiu, Butch assumiu uma expressão mortalmente séria. – Prometa-me uma coisa.

– O quê?

– Não vai matar esse cirurgião. – Butch sabia muito bem como era dar uma volta lá fora e ter de retornar àquele mundo vampiro. No seu caso, deu tudo certo, mas e quanto a Manello? – Não é culpa do cara e nem problema seu.

V. balançou o cigarro sobre o lixo e olhou para cima, os olhos de diamante estavam frios como uma noite ártica.

– Vamos ver como ele vai se sair, tira.

Com isso, virou-se e entrou onde sua irmã estava.

Bem, pelo menos, o filho da mãe era honesto, Butch pensou junto com uma maldição.

Manny não gostava nem um pouco de outras pessoas dirigindo seu Porsche 911 Turbo. Na verdade, além de seu mecânico, ninguém mais o dirigia.

Contudo, naquela noite, permitiu que Jane assumisse a direção, pois, em primeiro lugar, era competente e poderia mudar as marchas sem destruir a transmissão; em segundo lugar, ela afirmava que a única maneira possível de levá-lo até onde precisavam ir era chegando lá dirigindo o automóvel ela mesma; e, em terceiro lugar, ainda estava se recuperando de ter visto alguém que havia enterrado aparecer de repente e dizer “Oi, tudo bem?”. Então, talvez não fosse uma boa ideia comandar uma máquina pesada que estava correndo a cento e vinte quilômetros por hora.

Não conseguia acreditar que estava sentado ao lado dela, indo para o norte, no carro dele.

Mas é claro que disse sim ao pedido dela. Sua atitude era patética com relação a mulheres aflitas... e também era um profissional viciado em uma sala de cirurgia. Que óbvio!

Porém, ainda havia muitas perguntas e muita fúria. Sim, com certeza, esperava chegar a um lugar cheio de paz, luz, sol e de toda aquela besteira piegas, mas não estava preocupado com toda essa história de lugar perfeito, o que era irônico. Quantas vezes olhou para o teto durante a noite, aninhado em sua cama com uma garrafa de uísque, rezando por algum milagre que trouxesse sua antiga chefe do departamento de traumatologia de volta para ele?

Manny olhou para o perfil de Jane. Iluminada pela luz do painel do carro, ainda mostrava ser inteligente. Ainda mostrava ser forte. Ainda era seu tipo de mulher.

Mas isso nunca aconteceria. Apesar de toda aquela mentira grosseira sobre sua morte, havia um anel cinza escuro em sua mão esquerda.

– Você se casou? – ele disse.

Ela não olhou para ele, apenas continuou dirigindo.

– Sim. Casei.

Aquela dor de cabeça que surgiu no instante da aparição passou imediatamente de incômoda para horrível. Enquanto isso, memórias sombrias surgiam sob a superfície de sua consciência como se fossem o Monstro do Lago Ness, torturando-o e tentando trazer tudo à tona.

Contudo, teve de interromper aquele processo cognitivo de recuperar lembranças antes que tivesse um aneurisma por causa da tensão. Além disso, não chegaria a lugar algum com isso... Por mais que tentasse não conseguiria entender o que sentia ali e tinha a sensação de que poderia causar danos permanentes se continuasse assim.

Quando ele olhou pela janela do carro, pinheiros e carvalhos mostravam-se altos e firmes sob o luar, o bosque que percorria os subúrbios de Caldwell ficava cada vez mais denso ao distanciarem-se da cidade e do nó asfixiante de pessoas e edifícios.

– Você morreu aqui – ele disse severamente. – Ou ao menos fingiu ter morrido.

Um ciclista encontrou o Audi de Jane entre as árvores, em um ponto da estrada não muito longe dali; o carro havia deslizado para fora do acostamento. Entretanto, não havia corpo... e não era por causa do fogo, que havia surgido após a queda.

Jane limpou a garganta.

– É triste, mas tudo o que tenho a dizer é “sinto muito”. Sei que é uma droga.

– Não é exatamente uma festa para mim também.

Silêncio. Muito silêncio. Mas não queria ficar perguntando muita coisa se tudo o que receberia como resposta era um “sinto muito”.

– Gostaria de poder ter lhe contado – ela disse de repente. – Você foi a pessoa mais difícil de ser deixada.

– Mas não abandonou seu trabalho, não é mesmo? Porque ainda está trabalhando como cirurgiã.

– Sim, estou.

– Como é seu marido?

Nesse momento, ela estremeceu.

– Vai conhecê-lo.

Ótimo. Que alegria!

Diminuindo a velocidade, ela virou à direita em direção a... uma estrada de terra? Mas que droga é essa?

– Para sua informação – ele murmurou –, este carro foi feito para pistas de asfalto, não para percursos assim.

– É o único caminho.

Para onde? Ele se perguntou.

– Você vai ficar me devendo algo muito grande por isso.

– Eu sei. Mas você é o único que pode salvá-la.

Manny piscou os olhos.

– Não disse nada sobre ser “ela”.

– Isso importa?

– Se pensar que não estou entendendo nada do que está acontecendo, tudo importa.

Após percorrerem uns dez metros, começaram a passar por vários atoleiros que eram tão profundos quanto malditos lagos e, enquanto seu Porsche trepidava, sentiu algo arranhando seu estômago e apertou os dentes.

– Que se dane essa paciente, quero um reembolso pelo que está fazendo ao chassi do meu carro.

Jane soltou uma risadinha e isso fez com que o centro de seu peito doesse... mas tinha de cair na real. Os dois nunca estiveram, de fato, juntos. Claro, houve uma atração de sua parte, uma grande atração. E, talvez, um beijo. Mas isso foi tudo.

E agora ela era a Sra. de Outra Pessoa, e também tinha acabado de voltar do maldito mundo dos mortos.

Cristo, que tipo de vida ele tinha? Por outro lado, talvez aquilo fosse um sonho... Isso o animou, pois talvez Glory não tivesse se acidentado também.

– Não me disse o tipo de lesão – disse ele.

– Quebra na coluna vertebral. Entre C6 e C7. Nenhuma sensação abaixo da cintura.

– Droga, Jane... Isso é complicado.

– Agora sabe por que preciso tanto de você.

Mais ou menos cinco minutos mais tarde, aproximaram-se de portões que pareciam ter sido construídos durante as Guerras Púnicas, pelo menos dois séculos antes de Cristo... A coisa parecia estar fixada ali nos moldes de Alice no País das Maravilhas, os elos da corrente estavam enferrujados e quebrados em alguns lugares. E a barra que os atravessava? Aquela porcaria não valia nem o esforço de ser manuseada, não era nada além de um pedaço de arame usado para cerca de gado e que já tinha vivido dias melhores. No entando, a maldita coisa abriu sem problemas, e enquanto entravam, viu a primeira câmera de vídeo.

Ao avançarem a passos lentos, uma névoa estranha veio do nada, a paisagem ficou fora de foco até não conseguir enxergar nada que havia além de trinta centímetros à frente do carro. Cristo, era como se estivessem em um episódio de Scooby-Doo.

E, então, houve um progresso curioso: o próximo portão estava em condições um pouco melhores; o seguinte era ainda mais novo e o quarto parecia ter apenas um ano, no máximo. O último portão estava brilhando e parecia algo saído de Alcatraz: mais de sete metros de altura e avisos de alta voltagem espalhados por toda sua extensão. E aquele muro no qual o portão estava instalado? Não era bem para conter gado... Talvez dinossauros. E podia apostar que os tijolos deviam ter pelo menos meio metro de espessura.

Manny girava a cabeça de um lado a outro à medida que avançavam e começavam a descer por um túnel tão profundo e com uma estrutura tão forte que poderia atravessar por baixo do rio Hudson. Quanto mais desciam, mais a grande questão que o assolava desde a aparição intensificava-se em sua mente: por que forjar a morte? Por que provocar o caos que tinha causado na vida dele e na dos outros que trabalhavam com ela no Hospital São Francisco? Nunca tinha sido uma mulher cruel, mentirosa, não tinha problemas financeiros, nem nada do que fugir.

Agora sabia, mesmo que não tivesse dito uma palavra: Governo dos Estados Unidos.

Aquele cenário, aquela estrutura no sistema de segurança... Um local oculto nos subúrbios de uma cidade suficientemente grande, mas não tão grande quanto Nova York, Los Angeles ou Chicago? Tinha de ser o Governo. Quem mais poderia pagar por isso?

E quem era a mulher a quem trataria?

O túnel terminou em uma típica garagem subterrânea, com pilares e vagas limitadas por faixas amarelas... e, mesmo sendo tão grande, o local estava vazio. Havia apenas duas vans, que não conseguia distinguir muito bem a marca, com vidros escurecidos e um micro-ônibus que também tinha vidros filmados.

Antes mesmo de ela estacionar o Porsche na garagem, uma porta de aço abriu-se e...

Bastou um olhar no cara enorme que saiu dali e a cabeça de Manny explodiu, a dor atrás dos olhos ficou tão intensa que escorregou no banco do carro, os braços caíram e seu rosto contorceu-se de agonia. Jane lhe disse alguma coisa. Uma porta do carro foi aberta. Em seguida, a dele.

A brisa que o atingiu era seca e cheirava vagamente a terra... mas havia algo mais. Colônia. Uma fragrância amadeirada de especiarias que era, ao mesmo tempo, cara e agradável, mas também algo que despertava nele um desejo curioso de sair correndo.

Manny forçou as pálpebras a se abrirem. Sua visão estava muito turva, mas era incrível o que a necessidade obrigava alguém a fazer... E quando o homem a sua frente entrou em foco, viu-se encarando o filho da mãe de cavanhaque que tinha...

Com uma onda de dor, seus olhos reviraram e quase vomitou.

– Precisa liberar as memórias – ouviu Jane dizer.

Houve alguma conversa nesse ponto, a voz de sua antiga colega misturava-se com os tons profundos daquele homem com tatuagens nas têmporas.

– Isso o está matando...

– É arriscado demais...

– Como ele vai operar desse jeito?

Houve um longo silêncio. E, então, de repente, a dor foi retirada como se fosse um véu sendo levantado – toda aquela pressão saiu de dentro dele em um piscar de olhos. Em seu lugar, as lembranças inundaram sua mente.

A paciente de Jane. O Hospital São Francisco. O homem com o cavanhaque e... um coração de seis válvulas.

Manny abriu bem os olhos e encarou aquele rosto cruel.

– Conheço você.

– Tire-o do carro – foi a única resposta do cara de cavanhaque. – Não confio nos meus atos se tocar nele.

Que maravilha de boas-vindas. E havia alguém atrás do desgraçado. Um homem que Manny tinha cem por cento de certeza de que já havia visto antes... Contudo, deve ter sido algo muito rápido, pois não conseguia lembrar-se de seu nome ou de onde se conheceram.

– Vamos – Jane disse.

Sim. Grande ideia. Naquele momento, precisava de alguma coisa para se concentrar que não tivesse nada relacionado com aquela situação de não saber o que dizer.

Enquanto o cérebro de Manny lutava para processar o que estava acontecendo, percebeu que ao menos seus pés e pernas seguiam o programa. Depois que Jane o ajudou a sair do carro e a ficar em pé, começou a segui-la e ao cara de cavanhaque pela instalação que era tão insípida e limpa quanto um hospital: corredores sóbrios, lâmpadas fluorescentes no teto, tudo cheirava a produtos de limpeza.

Havia também câmeras de segurança que moviam-se em intervalos regulares, como se o edifício fosse um monstro com muitos olhos.

Enquanto caminhavam, sabia que não devia fazer qualquer pergunta. Bem, sabia disso e de que sua cabeça estava tão confusa que tinha a certeza de que se mover era o máximo de suas habilidades naquele momento. Em seguida, percebeu o cara do cavanhaque e seu olhar mortal... não era exatamente uma abertura para iniciar um bate-papo.

Portas. Passaram por muitas portas, todas as quais foram fechadas em seguida e, sem dúvida, trancadas.

Palavrinhas interessantes como local secreto e segurança nacional brincaram em seu crânio, e isso ajudou muito, fazendo-o acreditar que talvez pudesse perdoar Jane por desaparecer da vida dele... um dia.

Quando Jane parou diante de uma porta dupla, suas mãos brincaram com as lapelas do jaleco branco e, em seguida, com o estetoscópio no bolso. E essa reação só fez com que tivesse a sensação de que tinha uma arma na cabeça: na sala de cirurgia, nos incontáveis problemas graves que se passaram no departamento de traumatologia, ela sempre mantivera a calma. Era sua marca registrada.

Mas aquilo era pessoal, ele pensou. De alguma maneira, seja lá o que estivesse do outro lado daquelas portas, estava relacionado a alguém próximo a ela.

– Tenho bons equipamentos aqui – ela disse. – Mas não tudo. Não tenho ressonância magnética. Apenas tomografias e raios-X. Contudo, a sala de cirurgia é adequada e não só posso ajudar como também tenho uma excelente enfermeira.

Manny respirou fundo, muito fundo, recompondo-se. Com toda força de vontade, calou todas as perguntas, a persistente indignação em sua cabeça e a estranheza daquela viagem ao mundo da espionagem ao estilo 007.

Primeiro item em sua lista de coisas a fazer? Despistar o público revoltado dali.

Olhou por cima do ombro, em direção ao cara de cavanhaque.

– Vai precisar sair daqui, amigo. Quero você fora, no corredor.

A reação que teve depois disso foi... simplesmente fantástica, principalmente se fosse um dentista: o desgraçado exibiu um par de caninos tão longos quanto seu braço e rosnou, em alto e bom som, como um cachorro.

– Certo – disse Jane, posicionando-se entre eles. – Tudo bem. Vishous vai esperar lá fora.

Vishous? Será que tinha ouvido direito?

Por outro lado, a mãe do menino devia ser louca de pedra, considerando o pequeno espetáculo odontológico. Não importa. Tinha trabalho a fazer e, talvez, o filho da mãe mastigasse couro duro ou algo assim.

Entrando na sala de exames ele...

Oh... santo Deus.

Ah... meu Deus do céu.

A paciente sobre a mesa estava deitada como águas tranquilas... era provavelmente a coisa mais linda que ele já tinha visto: o cabelo era muito preto e trançado em uma corda grossa que pendia livre ao lado de sua cabeça. A pele era de um marrom dourado, como se ela fosse descendente de italianos e tivesse sido exposta ao sol recentemente. Olhos... seus olhos eram como diamantes, muito claros e brilhantes ao mesmo tempo, com apenas uma borda escura ao redor da íris.

– Manny?

A voz de Jane estava bem atrás dele, mas sentiu como se estivesse a quilômetros de distância. Na verdade, o mundo inteiro estava em outro lugar, nada existia além do olhar de sua paciente que o encontrou do alto daquela mesa com a cabeça imobilizada.

Finalmente havia acontecido, pensou. Durante a vida inteira perguntara-se por que nunca havia se apaixonado e agora sabia a resposta. Estava esperando aquele momento, aquela mulher, aquela hora.

Esta mulher é minha, pensou.

E mesmo sabendo que aquilo não fazia sentido algum, a convicção era tão forte que não conseguia questionar.

– Você é o curandeiro? – ela disse em uma voz baixa que parou seu coração. – Você está aqui... por mim?

Suas palavras tinham um sotaque forte – maravilhoso por sinal –, e havia também um tom um pouco surpreso.

– Sim. Sou eu. – Arrancou o casaco do terno e jogou-o em um canto, sem dar a mínima importância para onde havia caído. – Estou aqui por você.

Quando se aproximou, lágrimas deslizaram de seus olhos cobertos de gelo.

– Minhas pernas... sinto como se estivesse as movimentando, mas acho que não consigo.

– Doem?

– Sim.

Dor fantasma. Não era uma surpresa.

Manny deteve-se ao lado dela e olhou para seu corpo, que estava coberto com um lençol. Era alta. Pelo menos um metro e oitenta. E era constituída com uma força elegante. Era uma guerreira, pensou, observando a força de seus braços. Uma lutadora.

Deus, a perda da mobilidade em alguém como ela tirava-lhe o fôlego. Por outro lado, mesmo que se tratasse de alguém viciado em televisão, a vida em uma cadeira de rodas seria terrível; mas, para alguém como ela, seria uma sentença de morte.

Manny aproximou-se e pegou a mão dela... No instante em que fez contato, o corpo dele como um todo estremeceu, como se ela fosse a tomada do seu plugue interior.

– Vou cuidar de você – disse enquanto olhava diretamente em seus olhos. – Quero que confie em mim.

Ela engoliu a saliva quando uma lágrima cristalina deslizou de seus olhos. Por instinto, ele estendeu a mão e a deteve com a ponta do dedo...

O rosnado que infiltrou-se pela porta era uma ameaça, uma contagem regressiva para se afastar, mas não deu importância àquilo. Quando olhou para o cara de barbicha, sentiu como se estivesse rosnando de volta para o filho da mãe. O que, mais uma vez, não fazia sentido algum.

Ainda segurando a mão de sua paciente, exclamou para Jane:

– Tire esse bastardo miserável da minha sala de cirurgia. E quero ver os malditos exames e radiografias. Agora.

Ele ia salvar aquela mulher, mesmo se aquilo o matasse.

Quando os olhos do Sr. Cavanhaque brilharam em direção a ele com puro ódio, Manny pensou: “Bem, esse é o máximo que o cara pode fazer...”.


CAPÍTULO 6

Qhuinn saiu sozinho em Caldwell, pela primeira vez na vida.

Quando pensou melhor sobre isso, concluiu que era quase uma impossibilidade estatística. Passou tantas noites lutando, bebendo e fazendo sexo dentro e ao redor dos clubes noturnos do centro da cidade que pelo menos um ou dois voos tinham de ter sido feitos sozinho. Mas não. Quando entrou no Iron Mask, estava sem a companhia de seus dois amigos pela primeira vez.

De qualquer forma, as coisas eram diferentes agora. Os tempos tinham mudado. As pessoas também.

John Matthew estava agora muito feliz casado; então, quando tinha uma folga, como naquela noite, ficava em casa com sua shellan, Xhex, fazendo a cama praticar uma série de exercícios de resistência. Sim, claro, Qhuinn era um ahstrux nohtrum e tudo mais, mas Xhex era uma symphato assassina totalmente capaz de cuidar de seu macho, e da Adaga Negra.

O complexo da Irmandade era uma fortaleza que nem mesmo uma equipe da SWAT poderia invadir. Assim, ele e John chegaram a um acordo... e deixaram isso em segredo.

Quanto a Blay... Qhuinn não ia pensar sobre seu melhor amigo. Não. De jeito nenhum.

Observando o interior do clube, iniciou sua máquina de seleção interna e começou a abrir caminho por meio das mulheres, homens e casais. Havia uma e apenas uma razão para ter ido até ali, e era a mesma que havia levado os outros góticos àquele local.

Não era um lugar para se procurar um relacionamento, sequer uma companhia. Tratava-se apenas de movimentar-se entrando e saindo e, quando tudo estivesse acabado, era o caso de dizer “Obrigado, moça” – ou “cara”, dependendo de seu humor –, “Estou dando o fora”. Porque ele ia precisar de outra pessoa. Ou outras pessoas.

Não investiria apenas uma vez naquela noite; sentia como se estivesse arrancando a própria pele, seu corpo latejava com força, necessitando de alívio. Cara, sempre gostou de transar, mas nos últimos dias sua libido tinha aumentado até crescer como um monstro.

Será que Blay não era mais seu melhor amigo?

Qhuinn fez uma pausa e olhou rapidamente uma vitrine antes de inclinar a cabeça sobre ela: caramba, não tinha mais cinco anos. Machos adultos não têm melhores amigos. Não precisam deles, especialmente se o macho em questão estivesse transando com outra pessoa. O dia inteiro. Todos os dias.

Qhuinn andou até o bar.

– Tequila. Dose dupla. E traga a melhor que tiver.

Os olhos da mulher aqueceram-se por trás do pesado delineador e dos cílios postiços.

– Já vai pagar a comanda?

– Sim – e considerando a maneira como ela escorregou a mão sobre o estômago achatado e desceu ainda mais pelo quadril, ele poderia ter pedido, com certeza, um pedaço dela também.

Quando ele estendeu o cartão de crédito, ela fez um movimento amplo com os seios para pegar a maldita coisa, inclinando-se de tal forma que poderia muito bem pegar algo no chão com os mamilos.

– Volto já, já com sua bebida.

Que surpresa.

– Ótimo.

Estava perdendo tempo ao sair rebolando como fez: não era nada disso que procurava naquela noite... não chegava nem perto. Sexo errado, para começar. E não ia investir em nada que tivesse cabelos escuros. Para dizer a verdade, não conseguia acreditar no que queria.

Tinha algumas limitações por ser daltônico, mas quando vestia apenas preto e trabalhava à noite, na maioria das vezes, isso não era grande coisa. Além disso, seus olhos desiguais eram tão perspicazes e sensíveis às variações de cinza que realmente percebias as “cores” – era tudo uma questão de gradação. Por exemplo, sabia quem eram as pessoas loiras no clube. Sabia a diferença entre as morenas e as de cabelos negros. E, sim, poderia enganar-se e interpretar mal se algum idiota tivesse feito uma tintura estranha, mas, mesmo assim, poderia dizer que havia algo estranho, porque o tom de pele nunca combinava direito com a cor artificial do cabelo.

– Aqui está – disse a bartender.

Qhuinn estendeu a mão, pegou o copo, bebeu a tequila e voltou a colocá-lo vazio sobre o balcão do bar.

– Vamos tentar isso mais algumas vezes.

– É pra já. – Exibiu seu par de seios novamente, sem dúvida com a esperança de que ele os agarrasse a qualquer momento. – Você é o tipo de cliente que gosto. Porque é óbvio que consegue lidar com uma boa bebida.

Uh-hum. Claro. Como se a habilidade de ingerir o equivalente a quatro doses de álcool de uma vez só fosse grande coisa. Deus, a ideia de que alguém, com esse sistema de valores, tivesse permissão para votar fazia com que ele desejasse encarar a vitrine outra vez.

Humanos eram patéticos.

Contudo, quando olhou para trás para observar a multidão, pensou que baixar a bola seria uma boa. Sentia-se patético sozinho naquela noite, especialmente quando viu dois homens em um canto, os dois separados apenas pelas roupas de couro que vestiam. Naturalmente, um deles era loiro. Assim como seu primo. Então, era claro que imagens hipotéticas de Blay e Saxton começaram a brincar em seu campo de polo interior, marcando seu gramado com pegadas e bosta de cavalo.

Só que não eram hipotéticos, mas reais: no final de todas as noites, quando as pessoas à mesa da mansão da Irmandade começavam a se dispersar depois da Última Refeição e a sair para resolver seus assuntos particulares, Blay e Saxton dirigiam-se discretamente para a grande escadaria e desapareciam no corredor do andar de cima, onde seus quartos ficavam.

Nunca tinham se dado as mãos, nunca tinham se beijado na frente de ninguém, e também não havia olhares de reprovação. Por outro lado, Blay era um cavalheiro, e Saxton era uma vagabunda elegante inserida de alguma maneira em um grande espetáculo.

Seu primo era uma verdadeira prostituta...

Não, não é, uma pequena voz soou. Só o odeia porque está de caso com seu garoto.

– Ele não é meu garoto.

– O que disse?

Qhuinn lançou um olhar ao espectador... e, em seguida, reassumiu seu ar durão. Bingo, ele pensou.

Ao lado dele estava um macho humano, mais ou menos um metro e oitenta com um cabelo fabuloso, rosto bonito e lábios muito agradáveis. As roupas não eram totalmente góticas, mas tinha algumas correntes na cintura e duas argolas em uma das orelhas. Mas foi a cor do cabelo que realmente fez a diferença.

– Estava falando sozinho – Qhuinn murmurou.

– Ah. Faço muito isso. – O sorriso foi breve e, em seguida, o cara voltou a cuidar de sua...

– O que está bebendo? – Qhuinn perguntou.

Um copo já na metade foi erguido.

– Vodka e tônica. Não suporto essa coisa de adocicar a bebida.

– Nem eu. Vou de tequila. Pura.

– Patrón?

– Nunca. Gosto da Herradura.

– Ah – o cara virou-se e olhou para frente em direção à multidão. – Gosta das coisas como são.

– Sim.

Qhuinn queria perguntar se o Sr. Vodka e Tônica estava observando os caras ou as garotas, mas permaneceu em silêncio. Cara, aquele cabelo era incrível. Grosso. Enrolado nas pontas.

– Está procurando por alguém em particular? – Qhuinn disse em voz baixa.

– Talvez. E você?

– Com certeza.

O cara riu.

– Tem muita mulher bonita aqui. Pode escolher.

Mas. Que. Droga. Que sorte a dele: um hétero. Por outro lado, talvez pudessem dividir alguma coisa e começar por aí.

O cara inclinou-se e ofereceu a palma da mão.

– Eu sou...

Quando os dois entreolharam-se completamente, o cara deixou a sentença à deriva, mas não tinha importância. Qhuinn não dava a mínima para o nome dele.

– Seus olhos têm cores diferentes? – o cara perguntou suavemente.

– Sim.

– Isso é muito... legal.

Bem, sim. Quando não se é um vampiro nascido na glymera. Se esse fosse o caso, seria considerado um defeito físico que significava ser geneticamente ruim e, portanto, uma vergonha para sua linhagem e absolutamente inabilitado para o acasalamento.

– Obrigado – Qhuinn disse. – Qual é a cor dos seus?

– Não pode dizer?

Qhuinn deu um tapinha sobre a lágrima tatuada perto do olho.

– Daltônico.

– Ah. Os meus são azuis.

– E você é ruivo, certo?

– Como sabe disso?

– Pelo seu tom de pele. Além disso, você é meio pálido e tem sardas.

– Isso é incrível – o cara olhou ao redor. – Está escuro aqui... não imaginava que conseguiria enxergar.

– Acho que posso – e acrescentou mentalmente: e que tal se eu lhe mostrar alguns dos meus outros truques.

O novo amigo de Qhuinn sorriu um pouco e voltou a observar a multidão. Depois de um minuto, disse:

– Por que está olhando para mim assim?

Porque quero transar com você.

– Você me lembra alguém.

– Quem?

– Alguém que perdi.

– Oh, droga, sinto muito.

– Tudo bem. A culpa é minha.

Pequena pausa.

– Então, você é gay, certo?

– Não.

O cara deu risada.

– Desculpe. Apenas imaginei que... Bom, acho que era um bom amigo.

Nenhum comentário.

– Vou encher o copo outra vez. Posso fazer isso para você também?

– Obrigado, cara.

Qhuinn virou-se e sinalizou para a atendente. Enquanto esperava ela se aproximar rebolando, planejou sua abordagem. Primeiro, um pouco mais de álcool. Em seguida, adicionaria algumas fêmeas à mistura. O terceiro passo seria entrar em um dos banheiros e transar com a(s) garota(s).

Então... Mais alguns olhares. De preferência quando um deles ou os dois estivessem dentro de uma mulher. Pois por mais que o ruivo de cabelo espetacular parecesse estar a fim das garotas, o filho da mãe tinha sentido alguma coisa quando os dois se entreolharam – e hétero é um termo relativo.

Assim como virgem.

Isso fazia com que os dois se enquadrassem nesses termos, não? Afinal, Qhuinn nunca, jamais, havia ficado com alguém de cabelo vermelho.

Mas aquela noite seria uma exceção.


CONTINUA

CAPÍTULO 4

No centro de Caldwell havia vários prédios altos, cheios de janelas espelhadas, mas nenhum era como o Commodore. Com trinta andares, estava entre os mais altos daquela floresta de concreto e os sessenta apartamentos que abrigava eram totalmente fantásticos, ao estilo de grandes empresários como Donald Trump, revestido de mármore e detalhes cromados; tudo era muito bem projetado.

No vigésimo sétimo andar, Jane entrou no apartamento de Manny, procurando por sinais de vida, e o que encontrou foi... nada. Literalmente. A casa do cara aproximava-se mais de uma pista de dança do que uma pista de obstáculos: a mobília era composta de três objetos na sala e uma cama enorme na suíte principal. Ponto. Bem, e algumas banquetas de couro ao redor do balcão da cozinha. Quanto às paredes? A única coisa que havia pendurado ali era uma TV de plasma do tamanho de um outdoor. Não havia tapetes sobre os pisos de madeira, apenas mochilas de academia... mais mochilas de academia... e calçados esportivos.

Nada disso indicava que era desorganizado; não tinha coisas suficientes para ser considerado assim.

Com um pânico crescente, entrou no quarto dele e viu mais ou menos meia dúzia de uniformes cirúrgicos deixados em pilhas no chão, como poças d’água após uma tempestade e... nada mais.

Mas a porta do armário estava aberta e ela entrou...

– Meu Deus... mas que droga.

Havia um conjunto de três malas alinhado no chão, onde deveria estar uma pequena, uma média e outra grande... mas a do meio não estava lá. Então, concluiu o que estava acontecendo ao considerar os espaços vazios que havia entre os cabides de calças e camisas: estava fora, em uma viagem. Talvez durante todo o fim de semana.

Sem muita esperança, discou para o sistema de atendimento do hospital e chamou-o outra vez...

Notou que estava recebendo outra chamada e amaldiçoou quando observou o número.

Respirando fundo, respondeu:

– Oi, V.

– Nada?

– Nada no hospital ou no apartamento. – Um rosnado sutil chegou até ela pelo telefone e ampliou a angústia da busca que ainda não tinha dado em nada. – Também procurei na academia, vindo para cá.

– Invadi o sistema do Hospital São Francisco e consegui os horários dele.

– Onde ele está?

– Tudo o que diz lá é que Goldberg está de plantão, certo? Olha, o sol se pôs. Vou sair daqui em, mais ou menos...

– Não, não... fique com Payne. Ehlena é ótima, mas acho que deveria ficar com ela.

Houve uma grande pausa, como se ele soubesse que estava sendo despistado.

– O que vai fazer agora?

Apertou o telefone e perguntou-se a quem deveria recorrer. Deus? À mãe dele?

– Não tenho certeza. Mas liguei para ele. Duas vezes.

– Ligue quando encontrá-lo. Vou pegar vocês.

– Posso levá-lo até em casa...

– Não vou machucá-lo, Jane. Não tenho a menor intenção de deixá-lo em pedaços.

Sim, mas considerando o tom de voz frio, teve de se perguntar sobre aqueles planos bem intencionados de vampiros cheios de autocontrole e blá, blá, blá... Acreditava que Manny viveria para tratar da irmã gêmea de V. Mas, e depois? Tinha suas reservas... especialmente se as coisas dessem errado na sala de cirurgia.

– Vou esperar aqui mais um pouco; talvez ele apareça, ou ligue. Se isso não acontecer, penso em outra coisa.

No longo silêncio, praticamente conseguia sentir uma corrente de ar frio chegando através do celular. Seu companheiro fazia muitas coisas direito: lutar, fazer amor, lidar com qualquer coisa relacionada à informática. Ser forçado a ficar parado? Não era bem uma de suas competências inatas. Na verdade, era garantia de deixá-lo enlouquecido.

Ainda assim, o fato de não confiar nela fez com que se sentisse distante dele.

– Fique com sua irmã, Vishous – disse em um tom de voz equilibrado. – Manterei contato.

Silêncio.

– Vishous. Confie em mim e vá ficar ao lado dela.

Ele não disse coisa alguma depois disso. Apenas desligou.

Quando pressionou a tecla end do telefone, soltou um palavrão.

Uma fração de segundo depois estava discando outra vez e no instante em que ouviu uma voz profunda atender, teve de enxugar uma lágrima que, se pensasse em toda sua natureza translúcida, era muito, muito real.

– Butch – ela resmungou –, preciso de sua ajuda.

Quando o pouco que restava do pôr do sol desapareceu e a noite bateu seu cartão de ponto, assumindo o turno seguinte, o carro de Manny deveria ter ido para casa. Deveria ter sido levado por si só direto para Caldwell.

Ao invés disso, acabou chegando ao extremo sul da cidade, onde as árvores eram grandes e as extensões de grama superavam as de asfalto em até dez vezes mais.

Fazia sentido. Os cemitérios deveriam ter longos trechos de terra, pois não se podia enterrar um caixão no concreto. Bem, até poderia... se se tratasse de um mausoléu.

O cemitério Bosque dos Pinheiros ficava aberto até as dez da noite, seus grandes portões de ferro permaneciam escancarados e seus inúmeros postes de iluminação forjados em ferro emitiam uma luz amarelo-manteiga ao longo do labirinto de ruas. Quando entrou, foi para a direita, os faróis do carro iluminando o local ao longo das lápides e do gramado.

Em última análise, o local para onde se dirigia não significava nada: não havia um corpo embaixo da lápide de granito que ia visitar – não restara nada para ser enterrado. Nada de cinzas para colocar em uma vasilha, também... ou, pelo menos, nada que se pudesse separar com certeza de dentro de um Audi que havia pegado fogo.

Depois de dar, mais ou menos, um quilômetro de voltas, tirou o pé do acelerador e deixou o carro deslizar até estacionar. Até onde conseguia ver, era o único no cemitério, mas isso não era problema para ele. Não havia razão para se ter uma audiência.

Quando saiu do carro, o ar frio não ajudou a limpar sua mente, mas deu algo para seus pulmões fazerem quando inalou profundamente e caminhou sobre a grama áspera da primavera. Teve o cuidado de não pisar em nenhuma tumba enquanto avançava... claro, os mortos não saberiam que estava andando acima deles, mas parecia uma coisa respeitosa a fazer.

O túmulo de Jane estava à frente, e desacelerou o passo quando aproximou-se daquilo que não havia sido deixado por ela, por assim dizer.

Ao longe, o apito de um trem cortou o silêncio... e o som vazio e lúgubre era um clichê tão grande que se sentiu em um filme o qual nunca assistiria sentado em casa, muito menos pagaria para ver em um cinema.

– Droga, Jane.

Inclinando-se, passou os dedos sobre as marcas irregulares da lápide. Foi ele quem tinha escolhido a pedra escura de azeviche, pois ela não teria gostado nem um pouco de algo pastel ou desbotado. E a inscrição também era simples e descomplicada, apenas seu nome, datas e uma frase na parte inferior: DESCANSE EM PAZ.

Sim. Deu a si mesmo nota dez em originalidade por isso.

Lembrava-se exatamente onde estava quando soube que ela tinha morrido: no hospital, claro. Era final de um longo plantão que tinha começado com o joelho de um jogador de hóquei e terminado com a reconstrução espetacular de um ombro, isso porque o viciado decidiu tentar voar.

Saiu da sala de cirurgia e encontrou Goldberg esperando próximo às pias de higienização. Manny parou no meio do processo de retirar a máscara cirúrgica ao dar apenas uma olhada no rosto pálido de seu colega. Com a coisa pendurada em seu queixo como um babador, exigiu saber o que diabos havia acontecido de errado – contando o tempo todo que se tratava de um acidente com quarenta carros engavetados na estrada ou um acidente de avião ou um hotel incendiado... algo relacionado a uma tragédia que englobasse toda uma comunidade.

Só que quando olhou sobre o ombro do cara e viu cinco enfermeiras e três outros médicos... Todos com a mesma aparência de Goldberg... E nenhum deles correndo para chamar outros funcionários para assumirem plantão ou preparando as salas de cirurgia.

Certo. Tinha acontecido algo que englobava toda uma comunidade. A comunidade deles.

– Quem? – perguntou.

Goldberg olhou para trás, em direção a sua tropa de apoio e foi então que Manny entendeu. E mesmo com as entranhas congeladas dentro dele, agarrou-se a uma esperança irracional de que o nome que estava prestes a sair da boca de seu colega cirurgião não fosse...

– Jane. Acidente de carro.

Manny não perdeu tempo.

– Quando ela deu entrada?

– Não chegou a dar entrada.

Com isso, Manny não disse nada. Terminou de tirar a máscara de seu rosto, amassou-a e descartou-a na lata de lixo mais próxima.

Quando foi passando por eles, Goldberg abriu a boca outra vez.

– Nem uma palavra – Manny ladrou. – Nem. Uma. Palavra.

Os outros funcionários começaram a tropeçar entre eles mesmos para sair do caminho, dividindo o grupo com a precisão de um pedaço de tecido cortado ao meio.

Voltando ao presente, não conseguia se lembrar onde tinha ido ou o que tinha feito depois disso... não importava quantas vezes voltasse sua mente àquela noite obscura, esses momentos eram como um buraco negro. Contudo, em dado momento, percebeu que tinha chegado em seu apartamento, pois acordou ali dois dias depois e viu que ainda estava com o uniforme cirúrgico respingado com o sangue do último paciente que havia operado.

O mais irritante de tudo era o fato de que Jane tinha salvado tantas pessoas vítimas de acidentes de carro. A ideia de ter sido levada dessa maneira levava-o a pensar que o Ceifeiro da Morte veio atrás dela para cobrar todas as almas que tinha afastado do alcance de suas garras mortais.

O som de outro apito de trem o fez querer gritar.

O trem e aquele pager apitando.

Hannah Whit. Outra vez?

Mas que diabos...

Manny franziu o cenho e olhou para a lápide. Salvo engano, a irmã mais nova de Jane chamava-se Hannah. Whit. Whitcomb?

Só que ela tinha morrido muito cedo.

Não tinha?

Loucura. Total.

Deus, deveria ter trazido seus tênis para essa aventura, Jane pensou enquanto andava sem rumo pelo apartamento de Manny. Outra vez. Teria deixado o apartamento se tivesse uma ideia melhor de onde ir, mas seu cérebro, mesmo sendo tão astuto, não conseguia enxergar outra opção...

Seu telefone tocando não era exatamente algo bom. Não queria dizer a Vishous que quarenta e cinco minutos depois não tinha nada de novo para relatar.

Pegou o celular.

– Oh... Deus.

Aquele número. Aqueles dez dígitos que sempre estiveram registrados na discagem rápida de todos os telefones que teve antes daquele. Manny.

Quando pressionou a tecla send, sua mente estava em branco e seus olhos cheios de lágrimas. Seu velho e querido amigo e colega de profissão...

– Alô? – ele disse. – Senhorita Whit?

Ao fundo, ouviu o soar fraco de um apito de trem.

– Alô? Hannah? – Aquele tom... era exatamente o mesmo de anos atrás: baixo, impositivo. – Tem alguém aí?

Aquele apito baixo soou outra vez.

Jesus Cristo... ela pensou. Sabia onde ele estava.

Jane desligou e saiu rápido do apartamento, do centro da cidade, atravessando a toda velocidade pelos subúrbios.

Viajando em um borrão à velocidade da luz, suas moléculas atravessaram a noite em uma corrida alucinante que percorreu quilômetros como se fossem centímetros.

O cemitério Bosque dos Pinheiros era o tipo de lugar que precisava de um mapa para se localizar nele, mas quando se é uma forma etérea no ar, pode-se percorrer uma centena de acres em apenas um piscar de olhos.

Quando tomou forma na escuridão perto de sua sepultura, respirou fundo e quase chorou.

Lá estava ele, em carne e osso. Seu chefe. Seu colega. O único a quem deixou para trás. E ele estava em pé atrás de uma lápide negra na qual havia seu nome esculpido.

Certo, agora sabia que tinha tomado a decisão certa quando não havia ido ao funeral. O mais perto que chegou disso foi lendo a notícia no Caldwell Courier Journal – e a imagem de todos aqueles cirurgiões, funcionários do hospital e pacientes emocionou-a demais. Mas aquilo era muito pior.

Manny parecia exatamente como ela mesma se sentia: arruinado por dentro.

Jesus, aquela loção pós-barba ainda cheirava bem... e apesar de ter perdido um pouco de peso, era um pedaço de mal caminho, com aquele cabelo escuro e aquele rosto rígido. Seu terno era de risca de giz e feito sob medida... mas havia sujeira em volta da bainha da calça muito bem passada. E seus sapatos estavam sujos também, fazendo com que ela se perguntasse onde diabos ele estivera. Com certeza não tinha ficado assim por causa da sepultura; depois de um ano, o solo ainda estava plano e coberto com grama bem aparada...

Oh, espere. O túmulo devia estar assim desde o primeiro dia. Ela não tinha deixado nada para ser enterrado.

Quando os dedos dele descansaram sobre a pedra, soube que foi ele quem tinha escolhido a sepultura. Ninguém mais teria tido o bom-senso de fazer exatamente o que ela gostaria que fizesse. Nada de muitos detalhes rococós ou dizeres complicados; curto, doce, no ponto.

Jane limpou a garganta.

– Manny...

Ele ergueu a cabeça, mas não olhou para ela... como se tivesse ouvido a voz dela apenas em sua mente.

Assumindo uma forma totalmente corpórea, ela falou mais alto.

– Manny.

Sob qualquer outra circunstância, a reação teria sido uma profusão de risos. Mas ele se virou, em seguida, gritou, tropeçou na lápide e caiu sentado no chão.

– Mas que... diabos... você está fazendo aqui? – ele engasgou. A expressão em seu rosto começou com um sentimento de horror, mas rapidamente mudou para a descrença absoluta.

– Sinto muito.

Era totalmente ridículo, mas foi tudo o que saiu de sua boca.

E parecia mais do que poderia suportar. Encontrar aqueles olhos castanhos fez com que, de repente, ela não tivesse nada a dizer.

Manny ergueu-se com um salto, e seu olhar escuro subia e descia observando o corpo dela.

E, por fim, subiu... fixando-se em seu rosto.

Foi quando a raiva veio. E também uma dor de cabeça, evidentemente, considerando a maneira como ele estremeceu e esfregou as têmporas.

– É algum tipo de piada?

– Não – ela desejava que fosse. – Sinto muito mesmo.

O olhar severo e cruel era dolorosamente familiar, e que ironia sentir-se nostálgica com um olhar ameaçador como aquele.

– Você sente muito.

– Manny, eu...

– Eu a enterrei. E você sente muito? Que porcaria é essa?

– Manny, não tenho tempo para explicar. Preciso de você.

Ele a encarou por um longo momento.

– Você aparece depois de um ano morta e diz que precisa de mim?

A realidade de quanto tempo havia se passado pesou sobre ela. Acima de tudo.

– Manny... não sabia o que lhe dizer.

– Oh, mesmo? Que tal: ah, puxa, por falar nisso, estou viva.

Ele a encarou. Apenas a encarou.

Então, com uma voz rouca, disse:

– Você faz alguma ideia do que foi perdê-la? – passou rapidamente a mão sobre os olhos. – Tem noção?

A dor no peito dela fez com que a respiração ficasse difícil.

– Sim. Porque perdi você... perdi minha vida com você e no hospital.

Manny começou a andar, aproximando-se e afastando-se da lápide. E, embora ela quisesse, sabia que não devia aproximar-se demais.

– Manny... se houvesse alguma maneira de voltar para você, eu voltaria.

– Você voltou. Uma vez. Pensei que era um sonho, mas não. Não era.

– Não.

– Como entrou no meu apartamento?

– Apenas entrei.

Ele se deteve e olhou para ela, a lápide ficou entre eles.

– Por que fez isso, Jane? Por que forjou sua morte?

Bem, na verdade, não havia forjado.

– Não tenho tempo para explicar agora.

– Então, que diabos está fazendo aqui. Que tal explicar isso?

Ela clareou a garganta e disse:

– Estou com uma paciente cujo tratamento exige além da minha capacidade e quero que dê uma olhada. Não posso dizer para onde vou levá-lo, não posso lhe dar muitos detalhes e sei que isso não é justo... mas eu preciso de você – Queria arrancar os cabelos. Cair aos prantos. Abraçá-lo. Mas continuou, por que era isso o que tinha de fazer. – Estou procurando por você há mais de uma hora, então, estou atrasada. Sei que está chateado e confuso e não o culpo. Mas fique com raiva de mim mais tarde... Apenas venha comigo agora. Por favor.

Tudo o que pôde fazer foi esperar. Manny não se convencia por alguém falar demais, não conseguiria persuadi-lo assim. Escolheria ir... ou não.

E, infelizmente, se fosse a segunda opção, ela teria de chamar os Irmãos. Por mais que amasse e sentisse falta de seu antigo chefe, Vishous era seu homem e se sentiria uma maldita se deixasse alguma coisa acontecer com a irmã dele.

De uma forma ou de outra, Manny operaria alguém naquela noite.


CAPÍTULO 5

Butch O’Neal não era o tipo de cara que deixava uma dama em perigo.

Era alguém à moda antiga... o policial... o devoto, o católico praticante que havia nele. Dito isso, ao receber a ligação da amável e talentosa Dra. Jane Whitcomb, o cavalheirismo não seguiu o instinto impulsivo. Nem um pouco.

Ao colocar o pé para fora do Buraco e correr ao longo do túnel em direção ao centro de treinamento da Irmandade, seus interesses e os dela estavam totalmente alinhados, mesmo sem se levar em conta toda a questão de “ser um cavalheiro”: os dois temiam que V. perdesse o controle outra vez.

Já exibia todos os sinais: tudo o que tinha de fazer era olhar para ele e ver que a tampa da panela de pressão estava trancada com força sobre todo aquele calor e confusão. O que aconteceria com toda aquela pressão? Teria de encontrar uma vazão de alguma maneira e, no passado, isso aconteceu das piores maneiras possíveis.

Saindo da porta oculta e emergindo no escritório, Butch virou à direita e desceu ao longo do corredor que levava às instalações médicas. O sopro sutil de tabaco turco no ar disse-lhe exatamente onde encontrar seu alvo, não que houvesse alguma dúvida.

Próximo à porta fechada da sala de exames, ajeitou os punhos da camisa e ergueu o cinto. A batida na porta foi suave. Já o batimento cardíaco estava forte.

Vishous não respondeu com um “entre”. Ao invés disso, o Irmão saiu e fechou a porta atrás de si.

Caramba, ele parecia estar mal. E suas mãos tremiam ligeiramente quando pegou um de seus cigarros para preparar. Enquanto lambia a coisa para selá-la, Butch enfiou a mão no bolso para oferecer o isqueiro, acendendo a chama e erguendo-a à frente. Quando seu melhor amigo inclinou-se para o brilho laranja, reconheceu cada detalhe daquele rosto cruel e impassível. Jane estava absolutamente certa. O pobre coitado estava sobrecarregado e segurava tudo aquilo.

Vishous inalou profundamente e, então, recostou-se contra a parede de concreto, os olhos perspicazes fixos à frente, as botas de combate plantadas solidamente no chão. Em determinado momento, murmurou:

– Não vai perguntar como estou?

Butch inclinou-se da mesma maneira, aproximando-se bem de seu amigo.

– Não precisa.

– Anda lendo mentes?

– Sim. Esse sou eu.

V. inclinou-se para o lado e bateu as cinzas no lixo.

– Então, pode me dizer no que estou pensando, certo?

– Tem certeza que quer que eu solte um monte de palavrões tão perto de sua irmã? – Quando isso produziu uma risada curta, Butch olhou para o perfil de V. As tatuagens ao redor do olho do cara estavam especialmente sinistras, se considerasse as marcas de preocupação que o cercavam, como se fossem nuvens em um inverno nuclear.

– Não quer que eu faça isso em voz alta, V. – disse suavemente.

– Ah. Faça uma tentativa.

Isso significava que V. precisava conversar, mas, considerando a situação, não daria certo forçar coisa nenhuma ali: o macho sempre “finalizava” as conversas, mas, pelo menos, estava indo melhor do que tinha ido... antes? Sim, sequer quebrou uma porta nem nada.

– Ela pediu para que cuide dela se isso não der certo, não foi? – Butch disse, pronunciando o que mais temia. – E não estamos falando de cuidados paliativos de enfermagem.

A resposta de V. foi soltar uma respiração que durou mais ou menos uns quinze minutos depois do infinito.

– O que vai fazer? – perguntou Butch, mesmo sabendo a resposta.

– Não vou hesitar. – O complemento da resposta “mesmo que isso me mate” ficou subentendido.

Maldita vida. Às vezes, as situações pelas quais as pessoas passavam eram cruéis demais.

Butch fechou os olhos e deixou a cabeça cair para trás, contra a parede. A família era tudo para os vampiros. Sua companheira, os Irmãos com quem lutava, seu sangue... era todo o seu mundo. E, segundo essa teoria, ele também sofria junto com V. e Jane e o resto da Irmandade.

– Com sorte, não chegará a fazer isso – Butch olhou para a porta fechada. – A doutora Jane vai encontrar o cara. Ela é como um cão farejador...

– Sabe o que me ocorreu há uns dez minutos?

– O quê?

– Mesmo que não fosse mais dia, ela gostaria de continuar sozinha para encontrá-lo.

Quando o aroma de vinculação do macho exalou, Butch pensou: “Certo, cara. Jane e o cirurgião conviveram juntos durante anos, então, se há algum tipo de persuasão a ser feito, ela terá mais oportunidades sozinha... isso concluindo que ela dará um jeito na coisa toda de voltar dos mortos. Além disso, V. era um vampiro. Caramba. Será que alguém precisava adicionar mais alguma dificuldade nessa confusão toda?”.

Assim, considerando tudo, seria ótimo se o cirurgião tivesse mais de dois metros de altura, estrabismo e pelo de urso nas costas. Ser extremamente feio seria sua única vantagem se o macho vinculado em V. fosse acionado.

– Sem ofensa – Butch murmurou –, mas dá para culpá-la?

– É minha irmã gêmea que está em jogo – o cara passou com força uma das mãos ao longo dos cabelos escuros. – Mas que droga, Butch... minha irmã.

Butch sabia alguma coisa sobre como era perder alguém, então, sim, podia entender o que o macho na frente dele sentia. E, cara, não sairia do lado do Irmão: ele e Jane eram os únicos que conseguiam acalmar Vishous quando ficava assim. Jane já teria muita coisa para fazer ao lidar com o cirurgião e sua paciente.

O som do celular de V. fez os dois saltarem, mas o Irmão recuperou-se rápido e não deu tempo para que um segundo toque chegasse a seus ouvidos.

– Mesmo? Conseguiu? Obrigado... cara... sim. Sim. Encontro vocês na garagem. Certo. – Houve uma pequena pausa e V. olhou como se quisesse ficar sozinho.

Louco para desaparecer dali, Butch olhou para seus sapatos. O Irmão nunca fora muito bom em demonstrações públicas de afeto ou em conversar sobre coisas pessoais com Jane se houvesse alguém por perto. Mas como Butch era um mestiço, não conseguia se desmaterializar – e para onde, diabos, ele correria?

Após V. murmurar um rápido “tchau”, tragou profundamente um de seus cigarros e disse em voz baixa ao expirar:

– Pode parar de fingir que não está a meu lado.

– Que alívio. Não sou muito bom nisso.

– Não tem culpa de ocupar espaço.

– Então, ela o encontrou? – Quando Vishous assentiu, Butch assumiu uma expressão mortalmente séria. – Prometa-me uma coisa.

– O quê?

– Não vai matar esse cirurgião. – Butch sabia muito bem como era dar uma volta lá fora e ter de retornar àquele mundo vampiro. No seu caso, deu tudo certo, mas e quanto a Manello? – Não é culpa do cara e nem problema seu.

V. balançou o cigarro sobre o lixo e olhou para cima, os olhos de diamante estavam frios como uma noite ártica.

– Vamos ver como ele vai se sair, tira.

Com isso, virou-se e entrou onde sua irmã estava.

Bem, pelo menos, o filho da mãe era honesto, Butch pensou junto com uma maldição.

Manny não gostava nem um pouco de outras pessoas dirigindo seu Porsche 911 Turbo. Na verdade, além de seu mecânico, ninguém mais o dirigia.

Contudo, naquela noite, permitiu que Jane assumisse a direção, pois, em primeiro lugar, era competente e poderia mudar as marchas sem destruir a transmissão; em segundo lugar, ela afirmava que a única maneira possível de levá-lo até onde precisavam ir era chegando lá dirigindo o automóvel ela mesma; e, em terceiro lugar, ainda estava se recuperando de ter visto alguém que havia enterrado aparecer de repente e dizer “Oi, tudo bem?”. Então, talvez não fosse uma boa ideia comandar uma máquina pesada que estava correndo a cento e vinte quilômetros por hora.

Não conseguia acreditar que estava sentado ao lado dela, indo para o norte, no carro dele.

Mas é claro que disse sim ao pedido dela. Sua atitude era patética com relação a mulheres aflitas... e também era um profissional viciado em uma sala de cirurgia. Que óbvio!

Porém, ainda havia muitas perguntas e muita fúria. Sim, com certeza, esperava chegar a um lugar cheio de paz, luz, sol e de toda aquela besteira piegas, mas não estava preocupado com toda essa história de lugar perfeito, o que era irônico. Quantas vezes olhou para o teto durante a noite, aninhado em sua cama com uma garrafa de uísque, rezando por algum milagre que trouxesse sua antiga chefe do departamento de traumatologia de volta para ele?

Manny olhou para o perfil de Jane. Iluminada pela luz do painel do carro, ainda mostrava ser inteligente. Ainda mostrava ser forte. Ainda era seu tipo de mulher.

Mas isso nunca aconteceria. Apesar de toda aquela mentira grosseira sobre sua morte, havia um anel cinza escuro em sua mão esquerda.

– Você se casou? – ele disse.

Ela não olhou para ele, apenas continuou dirigindo.

– Sim. Casei.

Aquela dor de cabeça que surgiu no instante da aparição passou imediatamente de incômoda para horrível. Enquanto isso, memórias sombrias surgiam sob a superfície de sua consciência como se fossem o Monstro do Lago Ness, torturando-o e tentando trazer tudo à tona.

Contudo, teve de interromper aquele processo cognitivo de recuperar lembranças antes que tivesse um aneurisma por causa da tensão. Além disso, não chegaria a lugar algum com isso... Por mais que tentasse não conseguiria entender o que sentia ali e tinha a sensação de que poderia causar danos permanentes se continuasse assim.

Quando ele olhou pela janela do carro, pinheiros e carvalhos mostravam-se altos e firmes sob o luar, o bosque que percorria os subúrbios de Caldwell ficava cada vez mais denso ao distanciarem-se da cidade e do nó asfixiante de pessoas e edifícios.

– Você morreu aqui – ele disse severamente. – Ou ao menos fingiu ter morrido.

Um ciclista encontrou o Audi de Jane entre as árvores, em um ponto da estrada não muito longe dali; o carro havia deslizado para fora do acostamento. Entretanto, não havia corpo... e não era por causa do fogo, que havia surgido após a queda.

Jane limpou a garganta.

– É triste, mas tudo o que tenho a dizer é “sinto muito”. Sei que é uma droga.

– Não é exatamente uma festa para mim também.

Silêncio. Muito silêncio. Mas não queria ficar perguntando muita coisa se tudo o que receberia como resposta era um “sinto muito”.

– Gostaria de poder ter lhe contado – ela disse de repente. – Você foi a pessoa mais difícil de ser deixada.

– Mas não abandonou seu trabalho, não é mesmo? Porque ainda está trabalhando como cirurgiã.

– Sim, estou.

– Como é seu marido?

Nesse momento, ela estremeceu.

– Vai conhecê-lo.

Ótimo. Que alegria!

Diminuindo a velocidade, ela virou à direita em direção a... uma estrada de terra? Mas que droga é essa?

– Para sua informação – ele murmurou –, este carro foi feito para pistas de asfalto, não para percursos assim.

– É o único caminho.

Para onde? Ele se perguntou.

– Você vai ficar me devendo algo muito grande por isso.

– Eu sei. Mas você é o único que pode salvá-la.

Manny piscou os olhos.

– Não disse nada sobre ser “ela”.

– Isso importa?

– Se pensar que não estou entendendo nada do que está acontecendo, tudo importa.

Após percorrerem uns dez metros, começaram a passar por vários atoleiros que eram tão profundos quanto malditos lagos e, enquanto seu Porsche trepidava, sentiu algo arranhando seu estômago e apertou os dentes.

– Que se dane essa paciente, quero um reembolso pelo que está fazendo ao chassi do meu carro.

Jane soltou uma risadinha e isso fez com que o centro de seu peito doesse... mas tinha de cair na real. Os dois nunca estiveram, de fato, juntos. Claro, houve uma atração de sua parte, uma grande atração. E, talvez, um beijo. Mas isso foi tudo.

E agora ela era a Sra. de Outra Pessoa, e também tinha acabado de voltar do maldito mundo dos mortos.

Cristo, que tipo de vida ele tinha? Por outro lado, talvez aquilo fosse um sonho... Isso o animou, pois talvez Glory não tivesse se acidentado também.

– Não me disse o tipo de lesão – disse ele.

– Quebra na coluna vertebral. Entre C6 e C7. Nenhuma sensação abaixo da cintura.

– Droga, Jane... Isso é complicado.

– Agora sabe por que preciso tanto de você.

Mais ou menos cinco minutos mais tarde, aproximaram-se de portões que pareciam ter sido construídos durante as Guerras Púnicas, pelo menos dois séculos antes de Cristo... A coisa parecia estar fixada ali nos moldes de Alice no País das Maravilhas, os elos da corrente estavam enferrujados e quebrados em alguns lugares. E a barra que os atravessava? Aquela porcaria não valia nem o esforço de ser manuseada, não era nada além de um pedaço de arame usado para cerca de gado e que já tinha vivido dias melhores. No entando, a maldita coisa abriu sem problemas, e enquanto entravam, viu a primeira câmera de vídeo.

Ao avançarem a passos lentos, uma névoa estranha veio do nada, a paisagem ficou fora de foco até não conseguir enxergar nada que havia além de trinta centímetros à frente do carro. Cristo, era como se estivessem em um episódio de Scooby-Doo.

E, então, houve um progresso curioso: o próximo portão estava em condições um pouco melhores; o seguinte era ainda mais novo e o quarto parecia ter apenas um ano, no máximo. O último portão estava brilhando e parecia algo saído de Alcatraz: mais de sete metros de altura e avisos de alta voltagem espalhados por toda sua extensão. E aquele muro no qual o portão estava instalado? Não era bem para conter gado... Talvez dinossauros. E podia apostar que os tijolos deviam ter pelo menos meio metro de espessura.

Manny girava a cabeça de um lado a outro à medida que avançavam e começavam a descer por um túnel tão profundo e com uma estrutura tão forte que poderia atravessar por baixo do rio Hudson. Quanto mais desciam, mais a grande questão que o assolava desde a aparição intensificava-se em sua mente: por que forjar a morte? Por que provocar o caos que tinha causado na vida dele e na dos outros que trabalhavam com ela no Hospital São Francisco? Nunca tinha sido uma mulher cruel, mentirosa, não tinha problemas financeiros, nem nada do que fugir.

Agora sabia, mesmo que não tivesse dito uma palavra: Governo dos Estados Unidos.

Aquele cenário, aquela estrutura no sistema de segurança... Um local oculto nos subúrbios de uma cidade suficientemente grande, mas não tão grande quanto Nova York, Los Angeles ou Chicago? Tinha de ser o Governo. Quem mais poderia pagar por isso?

E quem era a mulher a quem trataria?

O túnel terminou em uma típica garagem subterrânea, com pilares e vagas limitadas por faixas amarelas... e, mesmo sendo tão grande, o local estava vazio. Havia apenas duas vans, que não conseguia distinguir muito bem a marca, com vidros escurecidos e um micro-ônibus que também tinha vidros filmados.

Antes mesmo de ela estacionar o Porsche na garagem, uma porta de aço abriu-se e...

Bastou um olhar no cara enorme que saiu dali e a cabeça de Manny explodiu, a dor atrás dos olhos ficou tão intensa que escorregou no banco do carro, os braços caíram e seu rosto contorceu-se de agonia. Jane lhe disse alguma coisa. Uma porta do carro foi aberta. Em seguida, a dele.

A brisa que o atingiu era seca e cheirava vagamente a terra... mas havia algo mais. Colônia. Uma fragrância amadeirada de especiarias que era, ao mesmo tempo, cara e agradável, mas também algo que despertava nele um desejo curioso de sair correndo.

Manny forçou as pálpebras a se abrirem. Sua visão estava muito turva, mas era incrível o que a necessidade obrigava alguém a fazer... E quando o homem a sua frente entrou em foco, viu-se encarando o filho da mãe de cavanhaque que tinha...

Com uma onda de dor, seus olhos reviraram e quase vomitou.

– Precisa liberar as memórias – ouviu Jane dizer.

Houve alguma conversa nesse ponto, a voz de sua antiga colega misturava-se com os tons profundos daquele homem com tatuagens nas têmporas.

– Isso o está matando...

– É arriscado demais...

– Como ele vai operar desse jeito?

Houve um longo silêncio. E, então, de repente, a dor foi retirada como se fosse um véu sendo levantado – toda aquela pressão saiu de dentro dele em um piscar de olhos. Em seu lugar, as lembranças inundaram sua mente.

A paciente de Jane. O Hospital São Francisco. O homem com o cavanhaque e... um coração de seis válvulas.

Manny abriu bem os olhos e encarou aquele rosto cruel.

– Conheço você.

– Tire-o do carro – foi a única resposta do cara de cavanhaque. – Não confio nos meus atos se tocar nele.

Que maravilha de boas-vindas. E havia alguém atrás do desgraçado. Um homem que Manny tinha cem por cento de certeza de que já havia visto antes... Contudo, deve ter sido algo muito rápido, pois não conseguia lembrar-se de seu nome ou de onde se conheceram.

– Vamos – Jane disse.

Sim. Grande ideia. Naquele momento, precisava de alguma coisa para se concentrar que não tivesse nada relacionado com aquela situação de não saber o que dizer.

Enquanto o cérebro de Manny lutava para processar o que estava acontecendo, percebeu que ao menos seus pés e pernas seguiam o programa. Depois que Jane o ajudou a sair do carro e a ficar em pé, começou a segui-la e ao cara de cavanhaque pela instalação que era tão insípida e limpa quanto um hospital: corredores sóbrios, lâmpadas fluorescentes no teto, tudo cheirava a produtos de limpeza.

Havia também câmeras de segurança que moviam-se em intervalos regulares, como se o edifício fosse um monstro com muitos olhos.

Enquanto caminhavam, sabia que não devia fazer qualquer pergunta. Bem, sabia disso e de que sua cabeça estava tão confusa que tinha a certeza de que se mover era o máximo de suas habilidades naquele momento. Em seguida, percebeu o cara do cavanhaque e seu olhar mortal... não era exatamente uma abertura para iniciar um bate-papo.

Portas. Passaram por muitas portas, todas as quais foram fechadas em seguida e, sem dúvida, trancadas.

Palavrinhas interessantes como local secreto e segurança nacional brincaram em seu crânio, e isso ajudou muito, fazendo-o acreditar que talvez pudesse perdoar Jane por desaparecer da vida dele... um dia.

Quando Jane parou diante de uma porta dupla, suas mãos brincaram com as lapelas do jaleco branco e, em seguida, com o estetoscópio no bolso. E essa reação só fez com que tivesse a sensação de que tinha uma arma na cabeça: na sala de cirurgia, nos incontáveis problemas graves que se passaram no departamento de traumatologia, ela sempre mantivera a calma. Era sua marca registrada.

Mas aquilo era pessoal, ele pensou. De alguma maneira, seja lá o que estivesse do outro lado daquelas portas, estava relacionado a alguém próximo a ela.

– Tenho bons equipamentos aqui – ela disse. – Mas não tudo. Não tenho ressonância magnética. Apenas tomografias e raios-X. Contudo, a sala de cirurgia é adequada e não só posso ajudar como também tenho uma excelente enfermeira.

Manny respirou fundo, muito fundo, recompondo-se. Com toda força de vontade, calou todas as perguntas, a persistente indignação em sua cabeça e a estranheza daquela viagem ao mundo da espionagem ao estilo 007.

Primeiro item em sua lista de coisas a fazer? Despistar o público revoltado dali.

Olhou por cima do ombro, em direção ao cara de cavanhaque.

– Vai precisar sair daqui, amigo. Quero você fora, no corredor.

A reação que teve depois disso foi... simplesmente fantástica, principalmente se fosse um dentista: o desgraçado exibiu um par de caninos tão longos quanto seu braço e rosnou, em alto e bom som, como um cachorro.

– Certo – disse Jane, posicionando-se entre eles. – Tudo bem. Vishous vai esperar lá fora.

Vishous? Será que tinha ouvido direito?

Por outro lado, a mãe do menino devia ser louca de pedra, considerando o pequeno espetáculo odontológico. Não importa. Tinha trabalho a fazer e, talvez, o filho da mãe mastigasse couro duro ou algo assim.

Entrando na sala de exames ele...

Oh... santo Deus.

Ah... meu Deus do céu.

A paciente sobre a mesa estava deitada como águas tranquilas... era provavelmente a coisa mais linda que ele já tinha visto: o cabelo era muito preto e trançado em uma corda grossa que pendia livre ao lado de sua cabeça. A pele era de um marrom dourado, como se ela fosse descendente de italianos e tivesse sido exposta ao sol recentemente. Olhos... seus olhos eram como diamantes, muito claros e brilhantes ao mesmo tempo, com apenas uma borda escura ao redor da íris.

– Manny?

A voz de Jane estava bem atrás dele, mas sentiu como se estivesse a quilômetros de distância. Na verdade, o mundo inteiro estava em outro lugar, nada existia além do olhar de sua paciente que o encontrou do alto daquela mesa com a cabeça imobilizada.

Finalmente havia acontecido, pensou. Durante a vida inteira perguntara-se por que nunca havia se apaixonado e agora sabia a resposta. Estava esperando aquele momento, aquela mulher, aquela hora.

Esta mulher é minha, pensou.

E mesmo sabendo que aquilo não fazia sentido algum, a convicção era tão forte que não conseguia questionar.

– Você é o curandeiro? – ela disse em uma voz baixa que parou seu coração. – Você está aqui... por mim?

Suas palavras tinham um sotaque forte – maravilhoso por sinal –, e havia também um tom um pouco surpreso.

– Sim. Sou eu. – Arrancou o casaco do terno e jogou-o em um canto, sem dar a mínima importância para onde havia caído. – Estou aqui por você.

Quando se aproximou, lágrimas deslizaram de seus olhos cobertos de gelo.

– Minhas pernas... sinto como se estivesse as movimentando, mas acho que não consigo.

– Doem?

– Sim.

Dor fantasma. Não era uma surpresa.

Manny deteve-se ao lado dela e olhou para seu corpo, que estava coberto com um lençol. Era alta. Pelo menos um metro e oitenta. E era constituída com uma força elegante. Era uma guerreira, pensou, observando a força de seus braços. Uma lutadora.

Deus, a perda da mobilidade em alguém como ela tirava-lhe o fôlego. Por outro lado, mesmo que se tratasse de alguém viciado em televisão, a vida em uma cadeira de rodas seria terrível; mas, para alguém como ela, seria uma sentença de morte.

Manny aproximou-se e pegou a mão dela... No instante em que fez contato, o corpo dele como um todo estremeceu, como se ela fosse a tomada do seu plugue interior.

– Vou cuidar de você – disse enquanto olhava diretamente em seus olhos. – Quero que confie em mim.

Ela engoliu a saliva quando uma lágrima cristalina deslizou de seus olhos. Por instinto, ele estendeu a mão e a deteve com a ponta do dedo...

O rosnado que infiltrou-se pela porta era uma ameaça, uma contagem regressiva para se afastar, mas não deu importância àquilo. Quando olhou para o cara de barbicha, sentiu como se estivesse rosnando de volta para o filho da mãe. O que, mais uma vez, não fazia sentido algum.

Ainda segurando a mão de sua paciente, exclamou para Jane:

– Tire esse bastardo miserável da minha sala de cirurgia. E quero ver os malditos exames e radiografias. Agora.

Ele ia salvar aquela mulher, mesmo se aquilo o matasse.

Quando os olhos do Sr. Cavanhaque brilharam em direção a ele com puro ódio, Manny pensou: “Bem, esse é o máximo que o cara pode fazer...”.


CAPÍTULO 6

Qhuinn saiu sozinho em Caldwell, pela primeira vez na vida.

Quando pensou melhor sobre isso, concluiu que era quase uma impossibilidade estatística. Passou tantas noites lutando, bebendo e fazendo sexo dentro e ao redor dos clubes noturnos do centro da cidade que pelo menos um ou dois voos tinham de ter sido feitos sozinho. Mas não. Quando entrou no Iron Mask, estava sem a companhia de seus dois amigos pela primeira vez.

De qualquer forma, as coisas eram diferentes agora. Os tempos tinham mudado. As pessoas também.

John Matthew estava agora muito feliz casado; então, quando tinha uma folga, como naquela noite, ficava em casa com sua shellan, Xhex, fazendo a cama praticar uma série de exercícios de resistência. Sim, claro, Qhuinn era um ahstrux nohtrum e tudo mais, mas Xhex era uma symphato assassina totalmente capaz de cuidar de seu macho, e da Adaga Negra.

O complexo da Irmandade era uma fortaleza que nem mesmo uma equipe da SWAT poderia invadir. Assim, ele e John chegaram a um acordo... e deixaram isso em segredo.

Quanto a Blay... Qhuinn não ia pensar sobre seu melhor amigo. Não. De jeito nenhum.

Observando o interior do clube, iniciou sua máquina de seleção interna e começou a abrir caminho por meio das mulheres, homens e casais. Havia uma e apenas uma razão para ter ido até ali, e era a mesma que havia levado os outros góticos àquele local.

Não era um lugar para se procurar um relacionamento, sequer uma companhia. Tratava-se apenas de movimentar-se entrando e saindo e, quando tudo estivesse acabado, era o caso de dizer “Obrigado, moça” – ou “cara”, dependendo de seu humor –, “Estou dando o fora”. Porque ele ia precisar de outra pessoa. Ou outras pessoas.

Não investiria apenas uma vez naquela noite; sentia como se estivesse arrancando a própria pele, seu corpo latejava com força, necessitando de alívio. Cara, sempre gostou de transar, mas nos últimos dias sua libido tinha aumentado até crescer como um monstro.

Será que Blay não era mais seu melhor amigo?

Qhuinn fez uma pausa e olhou rapidamente uma vitrine antes de inclinar a cabeça sobre ela: caramba, não tinha mais cinco anos. Machos adultos não têm melhores amigos. Não precisam deles, especialmente se o macho em questão estivesse transando com outra pessoa. O dia inteiro. Todos os dias.

Qhuinn andou até o bar.

– Tequila. Dose dupla. E traga a melhor que tiver.

Os olhos da mulher aqueceram-se por trás do pesado delineador e dos cílios postiços.

– Já vai pagar a comanda?

– Sim – e considerando a maneira como ela escorregou a mão sobre o estômago achatado e desceu ainda mais pelo quadril, ele poderia ter pedido, com certeza, um pedaço dela também.

Quando ele estendeu o cartão de crédito, ela fez um movimento amplo com os seios para pegar a maldita coisa, inclinando-se de tal forma que poderia muito bem pegar algo no chão com os mamilos.

– Volto já, já com sua bebida.

Que surpresa.

– Ótimo.

Estava perdendo tempo ao sair rebolando como fez: não era nada disso que procurava naquela noite... não chegava nem perto. Sexo errado, para começar. E não ia investir em nada que tivesse cabelos escuros. Para dizer a verdade, não conseguia acreditar no que queria.

Tinha algumas limitações por ser daltônico, mas quando vestia apenas preto e trabalhava à noite, na maioria das vezes, isso não era grande coisa. Além disso, seus olhos desiguais eram tão perspicazes e sensíveis às variações de cinza que realmente percebias as “cores” – era tudo uma questão de gradação. Por exemplo, sabia quem eram as pessoas loiras no clube. Sabia a diferença entre as morenas e as de cabelos negros. E, sim, poderia enganar-se e interpretar mal se algum idiota tivesse feito uma tintura estranha, mas, mesmo assim, poderia dizer que havia algo estranho, porque o tom de pele nunca combinava direito com a cor artificial do cabelo.

– Aqui está – disse a bartender.

Qhuinn estendeu a mão, pegou o copo, bebeu a tequila e voltou a colocá-lo vazio sobre o balcão do bar.

– Vamos tentar isso mais algumas vezes.

– É pra já. – Exibiu seu par de seios novamente, sem dúvida com a esperança de que ele os agarrasse a qualquer momento. – Você é o tipo de cliente que gosto. Porque é óbvio que consegue lidar com uma boa bebida.

Uh-hum. Claro. Como se a habilidade de ingerir o equivalente a quatro doses de álcool de uma vez só fosse grande coisa. Deus, a ideia de que alguém, com esse sistema de valores, tivesse permissão para votar fazia com que ele desejasse encarar a vitrine outra vez.

Humanos eram patéticos.

Contudo, quando olhou para trás para observar a multidão, pensou que baixar a bola seria uma boa. Sentia-se patético sozinho naquela noite, especialmente quando viu dois homens em um canto, os dois separados apenas pelas roupas de couro que vestiam. Naturalmente, um deles era loiro. Assim como seu primo. Então, era claro que imagens hipotéticas de Blay e Saxton começaram a brincar em seu campo de polo interior, marcando seu gramado com pegadas e bosta de cavalo.

Só que não eram hipotéticos, mas reais: no final de todas as noites, quando as pessoas à mesa da mansão da Irmandade começavam a se dispersar depois da Última Refeição e a sair para resolver seus assuntos particulares, Blay e Saxton dirigiam-se discretamente para a grande escadaria e desapareciam no corredor do andar de cima, onde seus quartos ficavam.

Nunca tinham se dado as mãos, nunca tinham se beijado na frente de ninguém, e também não havia olhares de reprovação. Por outro lado, Blay era um cavalheiro, e Saxton era uma vagabunda elegante inserida de alguma maneira em um grande espetáculo.

Seu primo era uma verdadeira prostituta...

Não, não é, uma pequena voz soou. Só o odeia porque está de caso com seu garoto.

– Ele não é meu garoto.

– O que disse?

Qhuinn lançou um olhar ao espectador... e, em seguida, reassumiu seu ar durão. Bingo, ele pensou.

Ao lado dele estava um macho humano, mais ou menos um metro e oitenta com um cabelo fabuloso, rosto bonito e lábios muito agradáveis. As roupas não eram totalmente góticas, mas tinha algumas correntes na cintura e duas argolas em uma das orelhas. Mas foi a cor do cabelo que realmente fez a diferença.

– Estava falando sozinho – Qhuinn murmurou.

– Ah. Faço muito isso. – O sorriso foi breve e, em seguida, o cara voltou a cuidar de sua...

– O que está bebendo? – Qhuinn perguntou.

Um copo já na metade foi erguido.

– Vodka e tônica. Não suporto essa coisa de adocicar a bebida.

– Nem eu. Vou de tequila. Pura.

– Patrón?

– Nunca. Gosto da Herradura.

– Ah – o cara virou-se e olhou para frente em direção à multidão. – Gosta das coisas como são.

– Sim.

Qhuinn queria perguntar se o Sr. Vodka e Tônica estava observando os caras ou as garotas, mas permaneceu em silêncio. Cara, aquele cabelo era incrível. Grosso. Enrolado nas pontas.

– Está procurando por alguém em particular? – Qhuinn disse em voz baixa.

– Talvez. E você?

– Com certeza.

O cara riu.

– Tem muita mulher bonita aqui. Pode escolher.

Mas. Que. Droga. Que sorte a dele: um hétero. Por outro lado, talvez pudessem dividir alguma coisa e começar por aí.

O cara inclinou-se e ofereceu a palma da mão.

– Eu sou...

Quando os dois entreolharam-se completamente, o cara deixou a sentença à deriva, mas não tinha importância. Qhuinn não dava a mínima para o nome dele.

– Seus olhos têm cores diferentes? – o cara perguntou suavemente.

– Sim.

– Isso é muito... legal.

Bem, sim. Quando não se é um vampiro nascido na glymera. Se esse fosse o caso, seria considerado um defeito físico que significava ser geneticamente ruim e, portanto, uma vergonha para sua linhagem e absolutamente inabilitado para o acasalamento.

– Obrigado – Qhuinn disse. – Qual é a cor dos seus?

– Não pode dizer?

Qhuinn deu um tapinha sobre a lágrima tatuada perto do olho.

– Daltônico.

– Ah. Os meus são azuis.

– E você é ruivo, certo?

– Como sabe disso?

– Pelo seu tom de pele. Além disso, você é meio pálido e tem sardas.

– Isso é incrível – o cara olhou ao redor. – Está escuro aqui... não imaginava que conseguiria enxergar.

– Acho que posso – e acrescentou mentalmente: e que tal se eu lhe mostrar alguns dos meus outros truques.

O novo amigo de Qhuinn sorriu um pouco e voltou a observar a multidão. Depois de um minuto, disse:

– Por que está olhando para mim assim?

Porque quero transar com você.

– Você me lembra alguém.

– Quem?

– Alguém que perdi.

– Oh, droga, sinto muito.

– Tudo bem. A culpa é minha.

Pequena pausa.

– Então, você é gay, certo?

– Não.

O cara deu risada.

– Desculpe. Apenas imaginei que... Bom, acho que era um bom amigo.

Nenhum comentário.

– Vou encher o copo outra vez. Posso fazer isso para você também?

– Obrigado, cara.

Qhuinn virou-se e sinalizou para a atendente. Enquanto esperava ela se aproximar rebolando, planejou sua abordagem. Primeiro, um pouco mais de álcool. Em seguida, adicionaria algumas fêmeas à mistura. O terceiro passo seria entrar em um dos banheiros e transar com a(s) garota(s).

Então... Mais alguns olhares. De preferência quando um deles ou os dois estivessem dentro de uma mulher. Pois por mais que o ruivo de cabelo espetacular parecesse estar a fim das garotas, o filho da mãe tinha sentido alguma coisa quando os dois se entreolharam – e hétero é um termo relativo.

Assim como virgem.

Isso fazia com que os dois se enquadrassem nesses termos, não? Afinal, Qhuinn nunca, jamais, havia ficado com alguém de cabelo vermelho.

Mas aquela noite seria uma exceção.

 


                                    CONTINUA