Irmandade da "Adaga Negra"
CAPÍTULO 35
Quando Payne se vestiu e saiu para o corredor, seu irmão gêmeo já havia partido. No entanto o sangue no chão indicou-lhe a direção que ele seguiu e ela acompanhou a trilha ao longo do corredor e do espaço envidraçado em que se lia “Escritório”. No interior, as pequenas partículas vermelhas faziam um caminho ao redor da mesa e desapareciam por uma porta; então, ela se aproximou a abriu...
Apenas um armário, nada além de um estoque de papéis e material de escritório. Porém, havia mais do que isso; tinha de haver. A trilha de gotas terminava em uma parede de prateleiras.
Tateando, procurou uma alavanca ou alguma coisa que se movesse, enquanto pensava na cena do espelho estilhaçado.
Tinha muito medo, não por ela, mas por Vishous... e o que ela havia lhe induzido a fazer, outra vez. Ela queria ter um relacionamento com seu irmão, mas não assim; nunca havia desejado aquela interação tóxica.
– Procurando alguma coisa?
Olhou por cima do ombro em direção a seu curandeiro. Parado na entrada do escritório, ainda estava molhado, mas não pingava mais e tinha uma toalha branca ao redor de seu pescoço. O cabelo curto e escuro estava desgrenhado, como se tivesse esfregado para secar e deixado como estava.
– Não consigo encontrar o caminho. – Não só relacionado àquilo, mas a muitas outras coisas.
Payne levou um bom tempo apenas olhando fixamente para as pilhas de blocos de notas amarelos, caixas de canetas e fileiras de objetos bem ordenados e alinhados com cuidado cuja função Payne poderia apenas imaginar. Quando finalmente desistiu e saiu, seu curandeiro ainda estava na entrada do escritório, ainda a encarava. Seus olhos estavam negros com a emoção, os lábios finos... e, por alguma razão, sua expressão fez com que ela percebesse como estava totalmente vestido.
Como ele permanecia completamente vestido sempre que se deitava com ela.
Nunca permitiu que ela o tocasse, não foi?
– Você concorda com meu irmão – disse ela com um tom sombrio. – Não concorda?
Não era uma pergunta, e ficou surpresa quando ele assentiu.
– Não é uma coisa a longo prazo – disse com uma gentileza horrível. – Não para você.
– Então foi por isso que não tive o prazer do seu sexo.
As sobrancelhas de Manny ergueram-se brevemente, como se a sinceridade dela o incomodasse.
– Payne... não pode dar certo entre nós.
– Quem disse? A escolha é nossa quanto a quem...
– Tenho uma vida para a qual preciso voltar.
Quando sua respiração ficou mais tensa, ela pensou: como era incrivelmente arrogante. Nunca lhe ocorreu que ele tinha outro lugar para ir; por outro lado, assim como seu irmão havia apontado, quanto ela sabia sobre ele?
– Eu tenho família – ele continuou. – Um trabalho. Um cavalo que preciso ver como está.
Payne caminhou até ele, aproximando-se com sua cabeça erguida.
– Por que chegou à conclusão de que só pode ser isso ou aquilo? Antes que tente, não gaste palavras dizendo que não me deseja. Sei que é verdade... seu perfume não nega.
Ele limpou a garganta.
– Sexo não é tudo, Payne. E mesmo sentindo todo o prazer, não passa disso.
Com isso, outro calafrio percorreu o corpo de Payne, como se houvesse uma brisa passando pela sala. Mas, então, balançou a cabeça.
– Você me desejou, curandeiro. Quando voltou e me viu naquela cama... seu aroma não tinha nada a ver com a condição em que eu me encontrava, e é um covarde se fingir o contrário. Esconda-se se quiser, curandeiro...
– Meu nome é Manny – ele retrucou. – Manuel Manello. Trouxeram-me aqui para ajudá-la... e, no caso de não ter notado, está em pé. Então, eu ajudei. Agora? Estou apenas esperando para que sua gente mexa com meu cérebro outra vez e prendam-me de alguma maneira para que eu não consiga separar o dia da noite e os sonhos da realidade. Este é o seu mundo, não o meu, e existe apenas uma coisa ou outra.
Os olhos deles se encontraram e, naquele momento, como se as instalações estivessem em chamas, ela sentiu que não poderia desviar o olhar... e percebeu que ele também não.
– Se pudesse dar certo – ela disse com tom severo –, se permitissem que entrasse e saísse quando bem entendesse, ficaria comigo?
– Payne...
– Minha pergunta é clara. Responda. Agora. – Quando as sobrancelhas dele se ergueram, não conseguia dizer se estava animada ou assustada com seu ímpeto, mas não se importava com isso naquele momento.
– A verdade é o que é – balançou a cabeça lentamente. – Seu irmão não acha que...
– Dane-se meu irmão – ela rebateu. – Diga-me o que você acha.
No silêncio tenso que se seguiu, ela percebeu o que tinha acabado de dizer e teve vontade de amaldiçoar outra vez. Abaixando a cabeça, olhou para o chão, não com brandura, mas sentindo-se frustrada. Fêmeas de valor não usavam palavras como aquela e não pressionavam as pessoas nem por guardanapos de pano, muito menos por algo assim.
Na verdade, uma fêmea adequada permaneceria sob os cuidados do membro masculino mais velho da família, que controlaria todas as grandes decisões em sua vida, moldando todo seu caminho, desde onde moraria até com quem se casaria.
Explosões. Sexo. Palavrões. Um pouco mais disso e realizaria o desejo de Vishous, pois seu curandeiro – Manuel, esse era o nome dele – a consideraria tão pouco atraente que iria implorar para se afastar dela, sem memória alguma de seu tempo juntos.
Será que ela nunca se encaixaria no padrão feminino de perfeição que era Layla?
Esfregando os olhos, ela murmurou:
– Vocês dois têm razão... só que pelos motivos errados. Nossa relação não poderia dar certo nunca, pois não sou uma boa companheira para nenhum tipo de macho.
– O quê?
Cansada de tudo... dele, de seu irmão, de si mesma, de machos e fêmeas em geral... Fez um breve gesto como se estivesse dissipando alguma coisa no ar com a mão e virou-se.
– Você diz que esse é meu mundo? Pois está muito errado; não pertenço a esse lugar mais do que você.
– Do que diabos está falando?
Na verdade, ele poderia muito bem ter uma imagem real das coisas ao sair dali. Inferno. Olhou por cima do ombro.
– Sou filha de uma deusa, Manuel. Uma divindade. Aquele brilho que provoca em mim? É a essência dela como uma entidade. Isso é o que ela é. Quanto a meu pai? Não era nada além de um bastardo sádico que me transmitiu o desejo de matar... isso não é um “dom”. E quer saber o que fiz com isso? Quer? – Tinha consciência de que o volume de sua voz estava aumentando, mas estava muito pouco inclinada a se acalmar. – Eu o matei, Manuel. E por cometer tal crime contra minha linhagem, por essa ofensa contra os padrões de comportamento das fêmeas, fui aprisionada e mantida assim por séculos. Então, você tem toda razão. Vá... Faça isso agora; é o melhor. Mas não pense que me encaixo melhor do que você neste lugar.
Com outro resmungo passou por ele e saiu para o corredor, acreditando que Manuel se veria livre muito em breve...
– Foi seu irmão. Não foi?
As palavras calmas e baixas ecoaram pelo árido corredor, detendo não apenas os passos de Payne, mas seu coração.
– Eu vi o estado dele – Manuel disse com uma voz profunda. – Existe alguma possibilidade de seu pai ter feito aquilo com o cara?
Payne virou-se lentamente. Em pé, no meio do corredor, seu curandeiro não mostrava nem choque nem horror, apenas uma inteligência que já esperava dele.
– Por que acha isso? – ela disse em um tom letal.
– Quando o operei, vi cicatrizes e ficou muito claro que alguém tentou castrá-lo. Será que estou extrapolando? Pela minha limitada interação com ele, diria que é sensível e agressivo demais com qualquer um que queira o melhor para ele; então, ou foi atacado por um bando de loucos ou alguém o pegou em um momento em que era muito vulnerável. Acho que a última opção é a mais provável, pois... bom, digamos que eu ficaria surpreso se abusos sexuais por parte dos pais não acontecesse também em meio a sua espécie.
Payne engoliu em seco e levou um longo, longo tempo antes que ela conseguisse encontrar sua voz.
– Nosso pai... Sujeitou V. Ordenou um ferreiro tatuá-lo... e a usar um alicate.
Manuel fechou os olhos por alguns instantes.
– Sinto muito. Sinto muito... mesmo.
– Nosso pai foi escolhido para ser um tipo de senhor e reprodutor por sua agressividade e crueldade, e meu irmão foi entregue a ele quando era muito jovem... enquanto eu ficava no Santuário com nossa mahmen. Como não tinha nada para passar meu tempo, via o que acontecia aqui na Terra nas bacias da visão e... meu irmão foi abusado ao longo dos anos no campo de guerra. Dizia isso a minha mãe de tempos em tempos, mas ela insistia em cumprir o acordo com Bloodletter. – Fechou os punhos com força. – Aquele macho, aquele maldito e sádico macho... não era capaz de cuidar de filho algum, mas ela lhe garantiu um de nós para que concordasse em se acasalar com ela. Três anos depois que nascemos, ela abandonou Vishous à crueldade de nosso pai enquanto fazia o máximo possível para me forçar a seguir um modelo que nunca se encaixaria comigo, e, então, aquele último episódio de quando Vishous foi... – Lágrimas brotaram de seus olhos. – Não poderia mais aceitar... não poderia mais deixar de fazer alguma coisa. Desci até aqui e.. e cacei Bloodletter. Eu o detive no chão enquanto o queimava até virar cinzas. E não me arrependo disso.
– Quem a aprisionou?
– Minha mãe. Mas a prisão foi apenas parcial, pois ele estava morto. Algumas vezes eu achava que era mais por ela sentir uma decepção tremenda com relação a mim. – Enxugou o rosto rapidamente e secou a umidade dos dedos. – Mas chega disso, chega de... tudo isso. Vá agora... Vou falar com o Rei e enviá-lo de volta. Adeus, Manuel.
Em vez de esperar que respondesse, saiu com rapidez passando por ele mais uma vez...
– Sim, eu a desejo.
Payne parou e olhou sobre o ombro outra vez. Depois de um momento, ela disse:
– É um ótimo curandeiro e precisa exercer seu trabalho, como teve toda razão em mencionar. Não temos mais motivos para conversar.
Quando voltou a andar, os passos dele se aproximaram com rapidez e a alcançou, girando-a.
– Se tivesse tirado minhas calças, não conseguiria me afastar de você.
– Mesmo?
– Dê-me sua mão.
Sem olhar, ela lhe ofereceu uma das mãos.
– Por que...
Ele agiu rápido, colocando a palma da mão dela entre suas pernas e pressionando-a contra e extensão quente e dura que havia entre seus quadris.
– Você está certa – moveu-se contra ela, seu pênis latejava, a ereção pressionava a mão dela quando ele começou a ofegar. – Mesmo se eu tentasse me convencer do contrário, sabia que se ficasse nua, você permaneceria virgem até o momento que a estendesse sobre a cama. Nada romântico, mas real e totalmente verdadeiro.
Quando os lábios dela se abriram, seus olhos estenderam-se para a boca e ele rosnou.
– Pode sentir a verdade, não pode? Está na sua mão.
– Não se importa com o que eu fiz...?
– Quer dizer, quanto ao seu pai? – ele deteve a carícia e franziu a testa. – Não. Para ser sincero, sou o tipo de cara adepto à lei de talião*. Seu irmão poderia muito bem ter morrido com aqueles machucados... Não importa quão rápido sua gente pode se curar. Mas, indo direto ao ponto, estou disposto a apostar que essa relação pai e filho deve ter detonado a cabeça dele para o resto da vida... então, não, não tenho problemas com o que fez.
Justiça retaliatória, pensou quando as palavras dele infiltraram-se dentro dela.
Voltando a pressionar onde ele a havia induzido, retomou o que tinha parado, fazendo movimentos para cima e para baixo sobre o sexo dele, acariciando-o.
– Fico feliz por se sentir assim.
E aquilo era verdade de muitas maneiras: a ereção dele era deliciosa, tão rígida e contundente na ponta. Desejava explorá-lo assim como ele fez com ela... com os dedos... a boca... a língua...
Manuel revirou os olhos lentamente enquanto rangia os dentes.
– Mas... seu irmão ainda está certo.
– Está...? – Ela curvou-se e lambeu os lábios. – Tem certeza?
Quando ela recuou, houve um momento escaldante quando os olhos deles se encontraram... e, então, com um rugido, ele a girou e a empurrou contra a parede.
– Tenha cuidado. – ele rosnou.
– Por quê? – Mergulhou os lábios sobre o pescoço dele e arrastou uma presa lenta e inexoravelmente ao longo de sua jugular.
– Oh, droga... – Xingando desesperado, fixou os olhos nos dela, mantendo a palma de sua mão naquele lugar entre seus quadris, obviamente tentando mudar o foco. – Ouça-me. Por mais que seja bom o que existe entre nós... – ele engoliu em seco. – Muito bom... Droga, olha, seu irmão sabe o que está acontecendo... não posso cuidar de você da maneira adequada e...
– Posso cuidar de mim mesma. – Pressionou a boca contra a dele e sabia que o possuía quando seus quadris começaram a se movimentar para frente e para trás: ele poderia ter detido sua mão, mas seu corpo estava muito à vontade ali.
– Droga – ele rugiu. – Você me deseja agora?
– Sim. Quero saber como é.
Mais beijos. E embora fosse ele quem estivesse agarrando-a e pressionando-a contra a parede, era ela a agressora.
Manny recuou, mas foi apenas o que pareceu, com um grande esforço. Depois de respirar fundo várias vezes, disse:
– Perguntou-me se eu ficaria com você se pudesse. Não tem nem o que pensar. Você é linda, sexy e eu não sei o que sua mãe ou qualquer outra pessoa têm na cabeça comparando você com alguma coisa ou alguém. Nada se compara a você... de maneira alguma.
Enquanto falava, estava mortalmente sério e era muito sincero... e aquela aceitação foi generosa e única: ela nunca teve aquilo de ninguém. Mesmo o próprio irmão queria negar-lhe a escolha do parceiro.
– Obrigada – ela sussurrou.
– Não é um elogio. As coisas são assim. – Manuel beijou sua boca suavemente e manteve o contato.
– Mas o cara do cavanhaque ainda está certo, Payne.
– Cavanhaque... Cara?
– Desculpe. É um pequeno apelido que atribui a seu irmão – ele deu de ombros. – Mas, de qualquer forma, acho mesmo que ele tem os melhores interesses dentro daquele coração e você realmente vai precisar de alguém que não seja eu em longo prazo... Se eu posso ficar aqui ou não é apenas parte do problema.
– Não a meu ver.
– Então, precisa enxergar com mais clareza. Vou morrer em mais ou menos quatro décadas. Se tiver sorte. Quer mesmo assistir meu envelhecimento? Minha morte?
Ela teve de fechar os olhos e virar a cabeça apenas por pensar nele morrendo.
– Deus... não.
No silêncio que se seguiu, a energia entre eles mudou, passando de algo sexual... para um tipo diferente de desejo. E como se ele estivesse sentindo o mesmo que ela, colocou-a contra seu corpo, segurando-a com força entre seus braços fortes.
– Se existe uma coisa que aprendi como médico – disse ele –, é que a biologia prevalece. Você e eu podemos decidir fazer qualquer coisa, mas não podemos fazer nada para mudar as diferenças biológicas. Minha expectativa de vida é apenas uma fração da sua... no máximo, teríamos um intervalo de dez anos antes que eu tivesse que entrar na terra do Viagra.
– O que é isso?
– É um lugar muito, muito flácido – disse ele secamente.
– Bem... eu iria até lá com você, Manuel. – Ela recuou um pouco para que pudesse observar aqueles belos olhos castanhos. – Seja lá onde for.
Houve um breve silêncio, e, então, ele sorriu triste.
– Adoro a maneira como pronuncia meu nome.
Suspirando, colocou a cabeça sobre o ombro dele.
– E eu adoro dizê-lo.
Enquanto permaneciam ali parados, um contra o outro, ela se perguntou se seria a última vez, e aquilo fez com que pensasse em seu irmão. Estava preocupada com Vishous e precisava conversar com ele, mas ele havia optado por deixá-la sem mostrar qualquer maneira de encontrá-lo.
Que assim seja. Por mais difícil que fosse, deixaria Vishous partir por enquanto... e se concentraria no macho que estava com ela.
– Tenho algo para lhe pedir – ela disse para seu curandeiro... Manuel, corrigiu-se.
– Diga.
– Leve-me a seu mundo. Mostre-me... se não tudo, pelo menos alguma coisa.
Manuel se enrijeceu.
– Não sei se é uma boa ideia. Consegue ficar em pé sozinha apenas há doze horas.
– Mas sinto-me forte e tenho maneiras para lidar com a viagem. – Na pior das hipóteses, poderia se desmaterializar de volta ao complexo: sabia, por ter visto nas bacias de visões, que seu irmão tinha cercado as instalações com o mhis e aquilo era um ponto de referência que poderia ser encontrado facilmente. – Confie em mim, não estarei em perigo.
– Mas como poderíamos sair juntos?
Payne afastou-se de seus braços.
– Pode vestir seu corpo enquanto eu tomo conta de tudo. – Quando parecia que ia argumentar, ela balançou a cabeça. – Não disse que a biologia sempre vence? Muito bem; mas eu lhe digo que temos esta noite... por que desperdiçar isso?
– Mais tempo juntos... só vai tornar a partida mais difícil.
Oh, aquilo doeu.
– Disse que me faria um favor, está em suas mãos. Sua palavra não é um compromisso?
Os lábios dele se estreitaram. Mas, então, inclinou a cabeça.
– Está certo. Vou me vestir.
Quando ele se dirigiu para o quarto, ela voltou para o escritório e pegou o telefone, enquanto Jane e Ehlena mostravam-lhe como fazer. Deu tudo certo ao discar... e o doggen mordomo atendeu com uma voz alegre.
Aquilo tinha de funcionar, disse a si mesma. Tinha de funcionar.
No Antigo Idioma, ela disse:
Aqui é Payne, irmã de sangue de Vishous, membro da Irmandade da Adaga Negra, filho de Bloodletter. Gostaria de falar com o Rei, se pudesse me agraciar com tamanha cortesia.
Cuja máxima diz “Olho por olho, dente por dente”. (N.P.)
CAPÍTULO 36
Quando Vishous irrompeu no Buraco pelo túnel subterrâneo, teve de enxugar o rosto ensanguentado com a palma da mão para que pudesse continuar até o quarto. Considerava ter sido uma coisa boa conseguir acertar o espelho em cheio, pois isso significava que havia alguns cacos nele... mas, na verdade, não dava a mínima.
Quando chegou à porta de Butch e Marissa, bateu. Com força.
– Só um minuto.
Butch não levou muito tempo para abrir e ainda estava vestindo um roupão.
– O que é... – então, tudo o que conseguiu dizer foi: – Jesus Cristo... V.
Atrás do ombro do cara, Marissa sentou-se na cama, faces vermelhas, os cabelos loiros emaranhados, as cobertas puxadas até os seios, e mantendo-as assim. A satisfação sonolenta logo foi substituída pelo choque.
– Deveria ter só telefonado. – V. ficou impressionado com o tom calmo de sua voz e sentiu um gosto metálico na boca enquanto falava. – Mas não sei onde está meu telefone.
Quando seu olhar encontrou o de seu melhor amigo, sentiu-se um diabético desesperado por insulina. Ou talvez fosse mais parecido com o vício da heroína ansiando por uma agulha. Não importa a metáfora, tinha de fugir de si mesmo ou perderia a cabeça e acabaria cometendo algum ato criminoso estúpido, como pegar suas lâminas e transformar aquele cirurgião em carne para hambúrguer.
– Eu os peguei juntos – ouviu-se dizendo. – Mas não se preocupe. O humano ainda está respirando.
E, então, simplesmente ficou ali, a pergunta que veio fazer estava tão evidente quanto o sangue em seu rosto.
Butch olhou para sua shellan. Sem hesitar, ela assentiu, os olhos tristes e gentis compreendiam bem que V. estava emocionado... mesmo naquele estado entorpecido.
– Vá – disse ela. Cuide dele. Eu te amo.
Butch assentiu. Provavelmente gesticulou com a boca um “eu te amo” de volta para ela. Em seguida, olhou para V. e murmurou rispidamente:
– Espere no pátio. Vou pegar o Escalade... e uma toalha do banheiro, tudo bem? Está parecendo o maldito Freddy Krueger.
Quando o tira foi até o armário para tirar o roupão e se vestir, V. olhou para a shellan do macho.
– Está tudo bem, Vishous – ela disse. – Vai ficar tudo bem.
– Não ansiava por isso. – Mas precisava fazer antes que se tornasse um perigo letal para si mesmo e para os outros.
– Eu sei. E eu também te amo.
– És uma bênção sem medida – pronunciou no Antigo Idioma.
E, então, fez uma reverência para ela e se afastou.
Quando o mundo voltou a entrar em foco algum tempo depois, V. viu-se sentado no banco do passageiro do Escalade. Butch estava atrás do volante e considerando a maneira como o tira lidava com os pedais, já tinham percorrido uma boa distância: as luzes de Caldwell não estavam mais distantes, mas por toda parte, brilhando nas janelas da frente e laterais do automóvel.
O silêncio no carro era tenso como um punhal e tão denso quanto um tijolo. E mesmo aproximando-se do destino, V. teve problemas em compreender a viagem que estavam fazendo. No entanto, não tinha volta. Para nenhum dos dois.
Estacionaram na garagem do Commodore.
Motor desligado.
Duas portas se abrindo... duas portas se fechando.
E, em seguida, subiram pelo elevador, que pareceu como a viagem do complexo até o Commodore: nada se encaixava na mente de V.
A próxima coisa que percebeu foi Butch usando a chave de cobre para abrir a cobertura.
V. entrou primeiro e acendeu as velas com a força de sua vontade. No instante em que as paredes e teto negros foram iluminados, passou do modo zumbi para o totalmente ligado, seus sentidos intensificaram-se a ponto de seus passos soarem como bombas caindo e o som da porta trancando-os ali dentro parecer o de um prédio caindo.
Cada respiração que dava era uma rajada de vento. Cada batida de seu coração era como o golpe de um boxeador. Cada porção de saliva que engolia era um porre que passava por sua garganta.
Era assim que seus submissos se sentiam? Com aquele formigamento tão vívido?
Parou próximo a sua mesa. Nenhum casaco para tirar; nada além da bata hospitalar cobria suas costas.
Atrás dele, a presença de Butch pairava tão grande como uma montanha.
– Posso usar seu telefone? – V. perguntou asperamente.
– Aqui.
V. virou-se e apanhou com a mão enluvada o BlackBerry que lhe foi jogado. Selecionando a opção de criar uma nova mensagem, escolheu o contato Dra. Jane na agenda.
Seus dedos se acalmaram nesse momento. Seu cérebro estava entupido de emoções, os gritos que precisava soltar ficavam no caminho e transformavam sua circunspecção usual em um conjunto sólido de barras de aço que o prendiam dentro de si mesmo.
Por outro lado, era por isso que estavam ali.
Xingando em voz baixa, cancelou a tela de texto vazia.
Quando foi devolver o celular, Butch estava perto da cama, tirando um de seus casacos de couro; nada de jaquetas de motoqueiro na rotina do tira inativo... O casaco que costumava vestir ia até o quadril e encaixava-se perfeitamente em seu peitoral. O material era como manteiga dentro de uma nuvem macia. Algo que V. conhecia por já ter segurado a coisa algumas vezes. O cara não relutava ao fazer aquilo, e estava tirando pelas razões certas: não havia motivo para manchar de sangue uma roupa como aquela.
Quando V. colocou o telefone na cama e se afastou, Butch dobrou o casaco com mãos cuidadosas e precisas e quando apoiou o couro, era como se estivesse deitando um filho sobre o edredom negro. Em seguida, aqueles dedos fortes e firmes puxaram as calças pretas para cima e ajeitaram a camisa de seda preta.
Silêncio.
E não do tipo em que as pessoas sentiam-se confortáveis.
Vishous olhou para os painéis de vidro instalados ao redor da cobertura e observou o reflexo de seu melhor amigo.
Depois de um momento, o tira virou a cabeça.
Os olhos deles encontraram-se no vidro.
– Vai continuar vestindo isso? – Butch perguntou com um tom obscuro.
Vishous alcançou o laço que havia em sua nuca e puxou os dois cordões que uniam a bata. Em seguida, fez o mesmo na cintura. Quando a roupa deslizou de seu corpo, o tira observou do outro lado da sala a coisa cair ao chão.
– Preciso de uma maldita bebida – Butch disse.
No bar, o cara serviu-se de uma dose de uísque. E de outra. Então, deixou o copo de lado, pegou a garrafa e bebeu com vontade.
Vishous permaneceu onde estava, a boca aberta, a respiração disparando para dentro e para fora dele enquanto continuava concentrado na figura de seu melhor amigo.
Butch apoiou a garrafa, mas continuou segurando-a, a cabeça baixa como se tivesse fechado os olhos.
– Não tem que fazer isso – disse V. com voz rouca.
– Sim... eu tenho.
A cabeça do policial ergueu-se e, então, ele se virou.
Quando finalmente avançou, deixou a bebida no bar e parou ao se posicionar atrás de Vishous. Estava perto... perto o suficiente para que o calor de seu corpo fosse facilmente percebido.
Ou talvez fosse o próprio sangue de V. começando a ferver.
– Quais são as regras? – disse o tira.
– Não existem. – Vishous endireitou sua postura e se preparou. – Faça o que quiser... mas tem que acabar comigo. Tem que me despedaçar.
No complexo, Manny trocou outro conjunto de uniforme cirúrgico. Se as coisas continuassem assim, poderia comprar ações da maldita loja especializada naquele tipo de roupa. Ou de uma indústria de máquinas de lavar.
No corredor, apoiou-se contra o muro de concreto e encarou seus tênis. Não achava que as solas poderiam animá-lo... tinha a impressão de que ele e Payne não iam a lugar algum. Ao menos, não juntos.
Filha de uma divindade.
Eeeeeee... aquilo não importava para ele. Poderia ser a filha de um avestruz que não dava a mínima importância.
Esfregando o rosto, não conseguiu decidir se ficava impressionado consigo mesmo ou com medo de ter aceitado tão bem as novidades. Provavelmente era mais saudável ficar todo chocado, incrédulo e dizendo “oh, Deus, não!”; contudo, seu cérebro fluiu bem com tudo aquilo... o que significava que ou era realmente flexível com aquilo que considerava realidade ou sua massa cinzenta tinha caído em um estado de aprendizado impotente.
Provavelmente era a primeira opção, pois, apesar de tudo, sentia-se como... droga, sentia-se melhor do que nunca: apesar de ter operado por doze horas seguidas e dormido em uma cadeira durante parte da noite – ou dia, não importava a hora –, o conjunto corpo e mente estava forte, saudável e afiada como uma tacha. Mesmo quando se esticou, não houve rigidez... ou estalos ou rangidos. Era como se estivesse em férias há um mês, fazendo massagens e sessões de ioga de frente para o mar. Não que já tivesse feito sequer algumas daquelas posições mais fáceis da ioga.
Eeeeeeeeeeeee naquele momento, uma imagem realmente fabulosa e muito suja de Payne surgiu em sua mente. Quando seu pênis enrijeceu-se todo alegre para chamar a atenção, pensou que não seria uma boa ideia levá-la para fazer um tour em, digamos, seu quarto. Na verdade, pensando nos últimos acontecimentos, que envolviam ele de joelhos... seu banheiro também estaria fora dos limites. Será que deveria evitar cômodos cobertos por telhado? Então, sua cozinha não era uma boa. A entrada do apartamento também não...
Payne saltou para fora do escritório e trazia sua maleta e outras coisas com ela.
– Estamos livres!
Com toda a graça de uma atleta, correu para ele, os cabelos se movimentavam atrás dela, seu andar era tão natural quanto as ondas negras caindo de sua cabeça.
– Estamos livres! Estamos livres!
Quando ela pulou em seus braços, ele a pegou e a girou no ar.
– Eles nos deixaram ir? – disse ele.
– De fato! Temos autorização para pegar seu automóvel e sair daqui. Enquanto entregava as coisas dele, sorria tanto que suas presas ficaram expostas. – Pensei que precisaria disso. E o telefone funciona agora.
– Como sabe que são minhas coisas?
– Têm o seu perfume. E Wrath me contou sobre o cartãozinho que meu irmão removeu.
Coisas de telefone. Mas o fato dela ter reconhecido as coisas dele pelo cheiro o excitou, lembrando-lhe exatamente o quanto estiveram próximos...
Certo, hora de parar com aquele filme.
Ela colocou a mão no rosto dele.
– Sabe de uma coisa?
– O quê?
– Gosto da maneira como olha para mim, Manuel.
– Mesmo?
– Faz com que eu pense nos momentos em que sua boca estava sobre mim.
Manny gemeu e quase perdeu a firmeza. Então, para evitar que as coisas saíssem do controle, colocou o braço em volta da cintura dela.
– Vamos lá. Vamos sair antes que percamos a oportunidade.
O sorriso de Payne era tão despreocupado que, por algum motivo, aquilo dividiu o peito dele com muita força e expôs as batidas de seu coração. E isso foi antes dela se inclinar e beijar sua bochecha.
– Está excitado.
Manny olhou para ela.
– E você está brincando com fogo.
– Eu gosto de ficar quente.
Manny soltou uma risada alta.
– Bem, não se preocupe... você é quente.
Quando chegaram à saída de emergência, ele colocou a mão sobre a barra.
– Isto realmente vai abrir?
– Tente e descubra.
Inclinou-se sobre a barra... e a trava foi liberada, os painéis de metal pesado se abriram.
Quando não viu vampiros com armas e facões correndo na direção deles e surgindo por todos os lados, ele balançou a cabeça.
– Como conseguiu isso?
– O Rei não está feliz. Mas não sou uma prisioneira aqui, já sou adulta e não há razão para que não me permitissem deixar o complexo.
– E no final da noite... o que vai acontecer? – Quando a alegria dela diminuiu, ele pensou “Uh-hum, foi assim que ela conseguiu”. Tecnicamente, ela estava o escoltando para casa... Aquele era o adeus.
Ele acariciou o cabelo dela para trás.
– Está tudo bem. Está... tudo bem, bambina.
Ela pareceu engolir com dificuldade.
– Eu não deveria pensar no futuro, nem você. Temos horas e horas pela frente.
Horas. Nada de dias, semanas ou meses... ou anos. Horas.
Deus, não se sentia livre.
– Vamos lá – disse ele, saindo e pegando a mão dela. – Vamos fazer valer a pena.
Seu carro estava estacionado nas sombras à direita e quando chegou até lá, encontrou a coisa aberta. Mas, vamos lá, até parece que ninguém ia sequer verificá-lo.
Abriu a porta do passageiro.
– Deixe-me ajudá-la a entrar.
Pegando o braço dela como um cavalheiro, acomodou-a e, em seguida, estendeu o cinto de segurança sobre ela, encaixando-o no lugar.
Quando os olhos dela percorreram o interior do carro e suas mãos acariciaram as laterais do banco, ele percebeu que aquele poderia ser seu primeiro passeio de carro. E como aquilo era bom.
– Já esteve em um desses antes? – perguntou.
– De fato, não.
– Bem, irei devagar.
Ela pegou a mão dele quando se endireitou no banco.
– Isso anda rápido?
Manny riu um pouco.
– É um Porsche. Ser rápido é a função dele.
– Então, você deve nos levar contra o vento! Será como na época em que eu cavalgava!
Manny tirou uma foto mental da felicidade selvagem que havia em seu rosto: ela resplandecia... e não no sentido etéreo, simplesmente por sentir a alegria de viver.
Ele inclinou-se e beijou-a.
– Você é tão linda.
Ela agarrou o rosto dele.
– E eu lhe agradeço por isso,
Oh, mas nada daquilo se devia a ele. O que a iluminava era a liberdade, a saúde, o otimismo... e ela não merecia nada menos na vida.
– Quero que conheça alguém – ele desabafou.
Payne sorriu para ele.
– Então, dirija, Manuel. Leve-nos pela noite.
Depois de um momento olhando-a um pouco mais... foi exatamente isso o que fez.
CAPÍTULO 37
Parado nu na cobertura, Vishous esperou por alguma coisa... qualquer coisa.
Em vez disso, Butch afastou-se e desapareceu na cozinha. Quando foi deixado ali com sua solidão, V. fechou os olhos e praguejou. Foi uma má ideia; não se pedia a um bom garoto católico para brincar com os tipos de brinquedos que V...
O ataque veio por trás, rápido e seguro.
Foi um golpe de luta livre modificado e executado muito bem: dois braços enormes envolveram seu peito e quadris, detendo-o e jogando-o contra a parede próxima à mesa de trabalho, que foi quando o golpe de luta “livre” aconteceu: cada centímetro dele sentiu o impacto. No entanto, nada de voltar para trás, nada de ricochetear.
Estava preso no lugar pela nuca e pelo traseiro.
– Braços sobre a cabeça.
Aquele rosnado foi como uma arma na nuca e V. esforçou-se para obedecer ao comando, lutando contra a pressão que prendia seus dois braços na frente do peito. O lado direito foi liberado primeiro... e no instante em que seu pulso foi exposto, foi agarrado e preso em uma algema. Isso também aconteceu com o lado esquerdo e muito rápido.
Por outro lado, tiras eram bons com aquele acessório de aço.
Houve uma rápida trégua, quando foi capaz de respirar um pouco. Em seguida, o som das correntes de metal sendo agitadas ao longo de uma engrenagem anunciou para onde as coisas estavam indo: para cima.
Gradualmente, seu peso foi retirado de seus pés e carregado para suas articulações e braços. A subida parou pouco antes da ponta dos dedos deixarem o chão completamente... e, então, ficou ali pendurado, de frente para as janelas, o ar entrava e saía com dificuldade de seus pulmões enquanto ouvia Butch movendo-se atrás dele.
– Abra a boca.
Com o comando, V. abriu largamente seu maxilar, a articulação produziu um estalo, os cantos dos olhos enrugaram, seus cortes faciais reviveram com um coro de uivos.
Uma mordaça foi puxada para baixo ao longo de sua cabeça e encaixou-se onde deveria; a bola foi pressionada contra suas presas e forçou a boca a se abrir ainda mais. Com um rápido puxão, as cintas de couro apertaram-se ao longo da nuca e a fivela foi presa com força até ficar cravada no couro cabeludo.
Foi uma combinação perfeita: a suspensão e o confinamento asfixiante cumpriram sua função, estimulando sua adrenalina e fazendo seu corpo ficar tenso de muitas maneiras diferentes.
O colete de arame farpado foi o próximo, a peça encaixada no tronco, não colocada sobre os ombros, as pontas de metal no interior do couro afundaram em sua pele. Butch começou com a alça que havia próxima ao esterno e, em seguida, iniciou uma sequência de puxões, apertando mais forte, mais forte, mais forte... Até que desde a caixa torácica de V. até seu abdômen e o topo dos quadris sentia círculos concêntricos de pura dor que formigaram sua coluna, lançando-se direto aos receptores nervosos de seu cérebro e deixando seu pênis duro como rocha.
O oxigênio silvou em suas narinas quando houve uma breve calmaria sem que tocasse em nada e, em seguida, Butch voltou com quatro cintas de borracha. Para um amador, tinha ótimos instintos: tanto a bola da mordaça quanto o colete tinham anéis de aço inoxidável pendurados em cada centímetro de sua extensão, e era evidente que o tira ia dar um bom uso a todos eles.
Trabalhando com afinco, Butch fez ganchos com os acessórios da mordaça e esticou a borracha para baixo, fixando-o na frente e atrás do colete.
O que, na prática, prendeu a cabeça de Vishous para frente.
Então, Butch balançou-o no ar e fez um pequeno movimento de carrossel com ele. Naquele estado de imobilidade, foi difícil entender o que estava acontecendo, e não levou muito tempo para que não tivesse certeza se ainda estava em movimento ou se era a sala que girava: as coisas passavam uma após a outra, o bar, a porta, a mesa de trabalho... Butch... a cama, as janelas de vidro... em seguida, voltava para o bar, a porta, a mesa... e Butch...
Que tinha caminhado até as correntes e cintas penduradas.
O tira permanecia ali, olhos fixos em Vishous.
Como um trem parando na estação, a rotação foi ficando cada vez mais lenta até que parou completamente... com os dois encarando um ao outro.
– Você disse que não tinha regras – disse Butch com os dentes cerrados. – Ainda é assim?
Sem possibilidade de assentir ou balançar a cabeça, V. fez o possível com seus pés, movendo-os para cima e para baixo sobre o chão.
– Tem certeza?
Quando repetiu o movimento, os olhos de Butch brilharam sob a luz das velas... como se houvesse lágrimas neles.
– Certo – disse com voz rouca. – Se é assim que tem que ser, assim será.
Butch limpou o rosto, virou-se para a parede e foi em direção aos brinquedos. Quando aproximou-se dos chicotes, V. imaginou a franja com pontas afiadas cravando em suas costas e coxas... mas o tira continuou a caminhar. Em seguida, estavam os chicotes de nove cordas e V. podia sentir as pontas açoitando sua carne... mas Butch não parou. Depois, vinham os clipes de mamilo e as algemas de aço inoxidável com arame farpado que poderiam ser colocadas nos tornozelos, nos antebraços, na garganta...
Quando o cara foi passando por cada seção, Vishous franziu a testa, perguntando-se se o tira estava apenas provocando e como aquilo foi inexpressivo...
Porém, Butch parou. E estendeu a mão em direção ao...
V. gemeu e começou a se debater contra os elos que o prendiam no alto. Os olhos se abriram, fez o possível para implorar, mas não havia como movimentar a cabeça e possibilidade alguma de falar.
– Disse que não havia limites – Butch disse um tanto sufocado. – Então, é assim que vamos fazer.
V. teve espasmos nas pernas e seu peito começou a gritar por falta de oxigênio.
Não havia orifícios na máscara que o tira havia escolhido, nem para os olhos, nem para os ouvidos ou para a boca. Feita de couro e costurada com fios de aço inoxidável finos, a única forma de conseguir oxigênio era através de dois painéis de malha laterais posicionados na parte de trás da peça, então, não havia como entrar qualquer facho de luz... e o ar que circulava passava pela pele quente e apavorada antes de entrar pela boca e descer pelos pulmões. V. tinha comprado o acessório, mas nunca o havia utilizado antes: só o mantinha por que o apavorava, e só isso já era razão suficiente para possuí-lo.
Ter sua visão e audição roubadas era a única coisa garantida que poderia fazer Vishous perder a cabeça e foi exatamente por isso que Butch pegou a máscara. Sabia muito bem os botões que devia pressionar... sentir dor física era uma coisa... mas tortura psicológica era bem pior, e, portanto, mais eficaz.
Butch caminhou lentamente ao redor dele e saiu de vista. Com movimentos furiosos V. tentou reposicionar-se para enfrentar o cara, mas os dedos dos pés mal conseguiam tocar o chão... que foi outro ato bem-sucedido da estratégia do tira. Lutar, contorcer-se e chegar a lugar algum apenas aumentava o terror.
De uma só vez, as luzes se apagaram.
Debatendo-se incontrolavelmente, Vishous tentou lutar, mas era uma batalha perdida: com um rápido movimento, a máscara foi apertada ao redor de seu pescoço, de maneira segura, e não ia a lugar algum.
A asfixia mental instalou-se imediatamente. Não havia oxigênio, não passava nada, nada...
Sentiu algo em sua perna. Algo longo, fino e frio, como uma lâmina.
Ficou totalmente imóvel, a ponto de seus esforços anteriores ainda o manterem oscilando para frente e para trás com as correntes acima dele, seu corpo era uma estátua suspensa por cadeias de metal.
A respiração de V. dentro do capuz era como um rugido em seus ouvidos enquanto se concentrava na sensação abaixo da cintura: a faca viajava lenta e inexoravelmente para cima e, enquanto subia, movia-se pela parte interna da coxa.
Atrás dela, uma trilha úmida brotava e escorria sobre os joelhos.
Sequer sentiu a dor do corte enquanto a lâmina dirigia-se para seu sexo: as implicações eram como um maldito golpe no seu botão de destruição.
Em um lampejo, passado e presente misturaram-se, a alquimia inflamada pela adrenalina pulsava em cada uma de suas veias. Num instante, foi arrastado de volta ao longo dos anos até a noite em que os machos de seu pai o seguraram sob o comando sujo de Bloodletter. As tatuagens não foram o pior de tudo. E lá estava, acontecendo outra vez; apenas sem os alicates.
Vishous gritou através da mordaça... e continuou gritando. Gritou por tudo que havia perdido... gritou pelo meio homem que era... gritou por Jane... gritou por quem eram seus pais e pelo que desejava para sua irmã... gritou pelo que forçou seu melhor amigo a fazer... gritou e gritou até não ter mais fôlego para isso, nem consciência, nem nada.
Nenhum passado ou presente.
Nem ele mesmo existia mais.
E, no meio do caos, da maneira mais estranha, libertou-se.
Butch soube o momento exato que seu melhor amigo desmaiou. Não apenas pelo fato de que seus pés suspensos ficaram imóveis. Foi o repentino relaxamento da musculatura. Não havia mais qualquer esforço naqueles braços enormes, nem naquelas coxas sólidas. O grande peito não ofegava mais. Não havia mais tendões tensos nos ombros ou nas costas.
Imediatamente, Butch afastou a colher que havia pegado na cozinha das pernas de V. e também parou de escorrer água morna do copo que havia pegado no bar.
As lágrimas em seus olhos não o ajudaram a soltar o capuz e libertá-lo. Nem ajudaram a remover o simples esquema de imobilização. E lutou especialmente ao tirar a mordaça.
O colete foi terrível para ser removido, mas, apesar do desespero que sentia para libertar logo V., era muito mais fácil soltar as coisas quando se tinha uma carga emocional para lidar com tudo aquilo. Logo, o Irmão estava sangrando, mas livre.
Sobre a parede, Butch soltou o guincho e abaixou o tremendo corpo inanimado de V. Não houve sinais de que a mudança de altitude tenha sido percebida e o chão sofreu um impacto apenas quando as pernas soltas dele desmoronaram e seus joelhos dobraram-se enquanto o mármore erguia-se para saudar suas nádegas e o tronco.
Houve mais sangue quando Butch tirou as algemas.
Deus, seu amigo estava acabado: as tiras da mordaça tinham deixado vergões vermelhos em seu rosto; o dano feito pelo colete mostrou-se ainda mais generalizado e, ainda por cima, os pulsos estavam rasgados de forma irregular.
Além de tudo isso, o rosto do cara estava em péssimo estado, por tê-lo colidido com o que quer que fosse..
Por um momento, tudo o que conseguiu fazer foi acariciar os cabelos escuros de V. com as mãos que tremiam como se tivesse alguma doença. Então, olhou para o corpo do amigo, a mancha abaixo da cintura, o sexo flácido... as cicatrizes.
Bloodletter era um desgraçado sem medida por torturar seu filho como havia feito. E a Virgem Escriba era uma estúpida inútil por ter deixado isso acontecer.
E Butch quase tinha morrido por ter usado esse passado horrível para atingir seu amigo com toda força. Só que não queria atingir V. fisicamente... não era um covarde, mas não teria estômago para isso. Além disso, a mente era a arma mais poderosa que qualquer um possuía contra si mesmo.
Ainda assim, as lágrimas escorreram em seu rosto enquanto pegava a colher e a passava pela parte interna da perna... pois sabia exatamente o efeito instantâneo que aquilo provocaria. E tinha plena consciência de que a água morna solidificaria de fato o deslocamento do presente.
Os gritos foram abafados pela mordaça e pelo capuz... ainda assim, aquele som emudecido havia perfurado os ouvidos de Butch como nada mais poderia.
Levaria um longo, longo tempo até conseguir se recuperar daquilo: toda vez que fechasse os olhos, tudo o que conseguiria ver seria o corpo de seu melhor amigo debatendo-se em espasmos.
Esfregando o rosto, Butch levantou-se e caminhou até o banheiro. Foi até as prateleiras do armário e pegou uma pilha de toalhas pretas. Deixou algumas secas; outras, umedeceu com água quente na pia.
Voltando a se colocar ao lado de Vishous no chão, limpou o sangue e o suor do medo que escorria do corpo de seu melhor amigo, virando-o de um lado a outro para que não deixasse nada para trás.
A limpeza levou uma boa meia hora. E várias viagens de ida e volta até a pia.
A sessão durara apenas uma fração disso.
Quando terminou, reuniu todo aquele tremendo peso de V. em seus braços e levou o cara para a cama, deitando sua cabeça contra os travesseiros de cetim preto. O banho de esponja, tal como havia sido, deixou a pele de V. arrepiada; assim, Butch cobriu o Irmão, soltando os lençóis da cama e esticando-os sobre ele.
A cura já começava a acontecer, a carne arranhada ou cortada estava se regenerando e apagando as marcas que haviam sido feitas.
Isso era bom.
Quando se afastou, parte de Butch queria deitar na cama e abraçar seu amigo. Mas não faria isso consigo mesmo... e, além disso, se não saísse dali e se embebedasse logo, iria enlouquecer.
Quando teve certeza de que V. estava bem, pegou seu casaco, o qual teve de jogar no chão para instalar o amigo...
Espere, as toalhas sangrentas e a bagunça lá fora.
Movendo-se rapidamente, limpou o chão e, em seguida, pegou a carga úmida e pesada e levou tudo para o cesto do banheiro, o que fez com que quisesse saber quem realizava as tarefas domésticas. Talvez fosse Fritz... ou talvez V. cumprisse sozinho a rotina de empregada feliz.
De volta à sala principal, verificou outra vez que todas as evidências tinham desaparecido, menos o copo e a colher... e, então, saiu dali para ver se V. ainda estava dormindo... ou naquele estado de semicoma.
Duro. Frio. Apagado.
– Vou buscar o que realmente precisa – Butch disse suavemente, perguntando-se se conseguiria respirar direito outra vez... seu peito parecia tão apertado quanto o de V. esteve há pouco tempo. – Aguente firme, cara.
Em seu caminho até a porta, tirou o celular para discar... e deixou cair a maldita coisa.
Hum. Parece que as mãos dele ainda estavam tremendo. Veja só.
Quando em determinado momento pressionou a tecla para send, rezou para que a chamada fosse...
– Está feito – disse em tom áspero. – Venha para cá. Não, acredite... ele vai precisar de você. Isso foi feito por vocês dois. Não... sim. Não, estou saindo agora. Bom. Certo.
Depois que desligou, trancou V. e chamou o elevador. Enquanto esperava, tentou colocar seu casaco e atrapalhou-se tanto com a camurça que desistiu e jogou-a sobre o ombro. Quando as portas soaram e se abriram, entrou, apertou o botão onde se lia S... e desceu, desceu, desceu de maneira equilibrada e perfeita graças à caixinha de metal que era o elevador.
Mandou uma mensagem para sua shellan ao invés de telefonar por duas razões: não confiava na própria voz e, para ser franco, não estava pronto para responder às perguntas que ela fatal e justificadamente faria.
Td ok. Indo p casa descansar. Amo vc. Bj. B.
A resposta de Marissa foi tão rápida que ficou evidente que o telefone estava em suas mãos enquanto ela esperava por notícias: Tb te amo. Estou no Safe Place, mas posso ir para casa.
O elevador abriu as portas e o cheiro doce de gasolina disse-lhe que tinha chegado a seu destino. Enquanto se dirigia para o Escalade, enviou uma mensagem de volta: Não, sério, estou bem. Fique e trabalhe... estarei lá quando terminar.
Estava pegando as chaves quando o telefone soou.
Certo, mas se precisar de mim, saiba que é a coisa mais importante.
Deus, tinha uma fêmea de muito valor.
O mesmo para você. Bj, ele digitou em resposta.
Desativando o alarme do carro e destrancando a porta do motorista, entrou, fechou a porta e voltou a trancá-la.
Deveria começar a dirigir. Em vez disso, apoiou a testa sobre o volante e respirou fundo.
Ter uma boa memória era uma habilidade superestimada, e embora não invejasse em nada Manello e todo aquele processo de apagar as coisas da mente do cara, Butch daria qualquer coisa para se livrar daquelas imagens em sua cabeça.
Contudo, não apagaria V. Não apagaria aquele... relacionamento.
Nunca desistira do macho. Jamais.
CAPÍTULO 38
– Aqui, achei que ia gostar de um pouco de café.
Quando José de la Cruz colocou a bebida da Starbucks na mesa de seu parceiro, sentou-se na cadeira do outro lado da mesa.
Veck devia estar se sentindo como uma vítima de acidente de carro, considerando que estava com as mesmas roupas de quando deu uma de personagem do filme Missão Impossível no capô daquele carro na noite anterior. Em vez disso, o filho da mãe conseguia, de alguma forma, parecer resistente e não surrado.
Assim, José estava disposto a apostar que as outras seis xícaras de café consumidas pela metade em volta do computador foram trazidas por várias moças do departamento.
– Obrigado, cara. – Quando Veck pegou a mais recente oferta de bebida quente, seus olhos não saíram da tela do computador... era bem provável que estivesse pesquisando os arquivos de pessoas desaparecidas e puxando casos com mulheres entre dezessete e trinta anos.
– O que está fazendo? – José perguntou assim mesmo.
– Pessoas desaparecidas – Veck esticou-se na cadeira. – Notou quantas pessoas entre dezoito e vinte e quatro anos foram listadas aqui ultimamente? Homens, não mulheres.
– Sim. O prefeito está tentando organizar uma força-tarefa.
– Há muitas garotas também, mas, Cristo, o que está acontecendo é uma epidemia.
No corredor, dois policiais de uniforme passaram por eles, José e Veck cumprimentaram os oficiais. Depois que os passos se distanciaram, Veck limpou a garganta.
– O que o pessoal da unidade de Assuntos Internos diz? – Não era uma pergunta, e aqueles olhos azuis escuros estavam fixos no banco de dados. – É por isso que veio, certo?
– Bom, também para entregar o café; mas parece que já cuidaram de você.
– Foi o pessoal da recepção no andar de baixo.
Ah, sim. As duas Kathys, Brittany, que se escrevia “Britnae”, e Theresa. Todas elas deviam achar que o cara era um herói.
José pigarreou.
– Acontece que o fotógrafo já tem algumas acusações de assédio pendentes contra ele, pois tem o hábito de aparecer em lugares onde não é bem-vindo. Ele e o advogado dele querem que tudo isso desapareça, por que outra invasão de cena de crime não vai ser muito boa para ele. O pessoal dos Assuntos Internos está tomando depoimentos de todos e, moral da história, foi apenas uma simples tentativa de agressão de sua parte... nada grave. Além disso, o fotógrafo disse que se recusa a cooperar com a promotoria contra você se for o caso. Provavelmente porque acha que isso vai ajudá-lo.
Finalmente, aqueles grandes olhos mudaram de foco.
– Graças a Deus.
– Não se anime.
Os olhos de Veck se estreitaram... mas não por estar confuso. Sabia exatamente qual era a situação.
Ainda assim, não perguntou, apenas esperou.
José olhou em volta. Às dez da noite, o Departamento de Homicídios estava vazio, embora os telefones ainda estivessem tocando e alguns ruídos surgissem aqui e ali até o correio de voz atender. No corredor, a equipe de limpeza ocupava-se com aspiradores, o zumbido das máquinas vinha de longe, do laboratório da perícia.
Portanto, não havia razão para não falar sem rodeios.
Mesmo assim, José fechou a porta. Voltando-se para Veck, sentou-se outra vez e pegou um clipe de papel, traçando uma pequena imagem invisível sobre a tampa da mesa de madeira falsa.
– Perguntaram-me o que eu achava de você. – Deu um leve golpe sobre as têmporas com o clipe. – Psicologicamente. Queriam saber o quanto você é estável.
– E você disse...?
José apenas deu de ombros e ficou quieto.
– Aquele filho da mãe estava tirando fotos de um cadáver. Para ganhar dinheiro...
José ergueu a mão para interromper o protesto.
– Não terá argumento. Dane-se, todos nós queríamos dar um soco nele. Porém, a questão é... se eu não o detivesse... até onde você iria, Veck?
Isso produziu outro franzir de testa no cara.
E então tudo caiu em um grande silêncio. Silêncio mortal. Bem, exceto pelos telefones.
– Sei que leu meus arquivos – Veck disse.
– Sim.
– Bem, certo, não sou meu pai – as palavras foram pronunciadas de maneira baixa e lenta. – Eu nem cresci com o cara. Mal o conhecia e não tenho nada a ver com ele.
Traduzindo: Às Vezes Você Tem Sorte.
Thomas DelVecchio tinha várias coisas a seu favor: tirou as notas máximas em sua especialização em Direito Criminal... o primeiro da classe na academia de polícia... seus três anos na patrulha foram impecáveis, e tinha tão boa aparência que nunca havia comprado o próprio café.
Mas era filho de um monstro.
E essa era a raiz do problema que tinham. Considerando o lado bom e correto das coisas, não era justo lançar os pecados do pai em volta do pescoço do filho. E Veck estava certo: em suas avaliações psicológicas, obteve resultados tão normais quanto qualquer outra pessoa.
Então, José o aceitou como parceiro sem pensar um segundo em quem era seu pai.
Aquilo havia mudado desde a noite passada e o problema foi a expressão no rosto de Veck quando se atirou em direção ao fotógrafo.
Muito frio. Muito calmo. Como se aquilo não o afetasse mais do que se tivesse puxado o anel de uma lata de refrigerante.
Tendo trabalhado no Departamento de Homicídios durante quase toda sua vida adulta, José conheceu muitos assassinos. Tinha os caras dos crimes passionais que descontavam sua fúria em um homem ou uma mulher; havia os tipos estúpidos, cujas mentes estavam repletas de drogas, álcool e da violência das gangues; e, por fim, os psicopatas sádicos que precisavam ser presos como cães raivosos.
Todas essas variações do tema causavam tragédias inimagináveis para as famílias de suas vítimas e para a comunidade. Mas não eram os únicos que deixavam José acordado durante a noite.
O pai de Veck havia matado vinte e oito pessoas em dezessete anos... e esses números referiam-se apenas aos corpos encontrados. O desgraçado estava no corredor da morte naquele momento, há mais de duzentos quilômetros dali, na cidade de Somers, Connecticut, e prestes a tomar a injeção letal, apesar de toda a apelação de seu advogado. Mas qual era a importância de tudo aquilo? Thomas DelVecchio, pai, tinha um fã-clube – internacional. Com cem mil amigos no Facebook, propagandas em cafeterias e bandas death-metal compondo músicas sobre ele, o cara era uma celebridade infame.
Caramba, Deus era testemunha de que toda aquela droga fazia José enlouquecer. Aqueles idiotas que idolatravam o filho da mãe deveriam fazer o trabalho dele por uma semana. Queria saber se ainda achariam os assassinos legais na vida real.
Se as coisas continuassem como estavam, nunca chegaria a conhecer DelVecchio, o velho, pessoalmente, mas já havia assistido muitos vídeos de vários promotores e entrevistas de departamentos de polícia. Por fora, o cara parecia bem lúcido e tão calmo quanto um instrutor de ioga. Agradável também. Não importava quem estivesse na frente dele ou o que fosse dito para deixá-lo furioso, ele nunca se inflamava, nunca vacilava, nunca se abatia, nunca dava uma indicação de que alguma coisa importava.
Só que José havia detectado algo em seu rosto... assim como alguns outros profissionais: de vez em quando, exibia um brilho nos olhos que fazia José recorrer a sua cruz. Era o tipo de coisa que um garoto de dezesseis anos pode ter quando vê um carro sofisticado passando ou uma garota de corpo bonito e com um belo traseiro vestindo uma blusa que mostra a barriga. Era como a luz do sol brilhando em uma lâmina afiada... um breve lampejo de luz e prazer.
No entanto, isso era tudo o que tinha demonstrado. Foi tal evidência que o convenceu; nunca seu testemunho.
E aquele era o tipo de assassino que deixava José olhando para o teto enquanto sua mulher dormia ao lado dele. DelVecchio pai era esperto suficiente para permanecer no controle e cobrir seus rastros. Era independente e engenhoso. E implacável com a mudança das estações... celebrava o Halloween mas como se estivesse em um universo paralelo: ao invés de uma pessoa normal com uma máscara, era um demônio por trás de um rosto simpático e bonito.
Veck parecia-se muito com seu pai.
– Ouviu o que eu disse?
Ao som da voz do garoto, José voltou a se concentrar.
– Sim, ouvi.
– Então, é aqui que termina nossa parceria... – Veck disse drasticamente. – Está dizendo que não quer mais trabalhar comigo? Supondo que eu ainda tenha um trabalho.
José voltou para seu desenho com o clipe de papel.
– A unidade de Assuntos Internos lhe dará uma advertência.
– Sério?
– Disse a eles que sua cabeça está no lugar que deveria estar – José disse depois de um momento.
Veck limpou a garganta.
– Obrigado, cara.
José continuou a mover o clipe, o ruído do objeto arranhando a mesa era bastante alto.
– A pressão neste trabalho é assassina – Nesse momento, encarou bem os olhos de Veck. – Não vai ficar mais fácil.
Houve uma pausa. Então, seu parceiro murmurou:
– Não acredita no que disse, não é mesmo?
José deu de ombros.
– O tempo dirá.
– Por que diabos salvou meu trabalho, então?
– Acho que deve ter uma chance para corrigir seus erros... mesmo que não sejam seus, de fato.
O que José guardou para si foi que não era a primeira vez que tinha um parceiro com... coisas para acertar fora do trabalho, digamos assim.
Sim, e veja como Butch O’Neal havia terminado: desaparecido. Provavelmente morto, apesar daquilo que José tinha ouvido na gravação da emergência.
– Não sou meu pai, detetive. Juro. Só porque não fui muito profissional quando atingi o cara...
José inclinou-se para frente, seus olhos fixos nos do garoto.
– Como sabe o que me incomodou no momento do ataque? Como sabe que foi a questão de toda aquela sua calma?
Quando Veck empalideceu, José recostou-se na cadeira outra vez. Após um momento, ele balançou a cabeça.
– Não significa que é um assassino, filho. E só porque teme alguma coisa não significa que seja verdade. Mas acho que você e eu precisamos ser bem claros um com o outro. Como disse, não acho que seja justo ser tratado de forma diferente por causa do seu pai... mas se tiver outra explosão como aquela outra vez... e refiro-me a qualquer coisa, como bilhetes de estacionamento – apontou para a caneca da Starbucks –, café ruim, goma demais na sua camisa... a maldita fotocopiadora... será fim de jogo. Estamos entendidos? Não vou deixar alguém perigoso usar um distintivo... ou uma arma.
De repente, Veck voltou a olhar para o monitor. Sobre ele, havia o rosto de uma bela moça loira de dezenove anos que havia desaparecido há duas semanas. O corpo ainda não havia sido encontrado, mas José poderia apostar que já estava morta.
Depois de assentir, Veck pegou o café e tomou um gole da bebida.
– Combinado.
José expirou e colocou o clipe de papel de volta ao lugar que pertencia, na pequena caixa clara de borda magnética.
– Bom. Porque temos que encontrar esse cara antes que ele ataque outra pessoa.
CAPÍTULO 39
Rumando na direção sul da “estrada”, como Manuel chamava, os olhos de Payne estavam famintos pelo mundo que havia a seu redor. Tudo era uma fonte de fascinação, desde o fluxo dos carros no tráfego dos dois lados da estrada, até o vasto céu negro acima e o estimulante frio noturno que percorria a cabine do automóvel toda vez que ela abria a janela – algo que acontecia a cada cinco minutos. Ela simplesmente amava a mudança de temperatura... quente, frio, quente, frio... Era tão diferente do Santuário, onde tudo era monoclimático. Além disso, havia a grande explosão de ar que soprava em seu rosto, emaranhava seus cabelos e a fazia sorrir.
– Você não perguntou para onde estamos indo – ele disse, depois do último fechamento da janela.
Na verdade, aquilo não importava; estava com ele, estavam livres, sozinhos e aquilo era mais do que suficiente...
Vai apagar a memória dele. No final da noite, vai apagar a memória dele e voltar. Sozinha.
Payne manteve seu estremecimento em segredo: Wrath, filho de Wrath, tinha o tipo de voz que combinava com coroas, tronos e adagas negras sobre o peito. Era um tom real, não um disfarce. Esperava ser obedecido e Payne tinha a ideia errada de que só porque era filha da Virgem Escriba, não estava sujeita às regras de alguma forma. Enquanto estivesse ali, aquele era o mundo dele e estava inserida nele agora.
Enquanto o Rei pronunciava aquelas palavras horríveis teve de fechar os olhos com força e, apesar do silêncio que reinou em seguida, percebeu prontamente que ela e Manuel não iriam a lugar algum se ele não concordasse.
E então... ela concordou.
– Gostaria de saber? Olá? Payne?
Com um estalo, forçou um sorriso no rosto.
– Preferiria ser surpreendida.
Com isso, ele sorriu profundamente.
– É ainda mais divertido... bem, como eu disse, quero apresentá-la a alguém.
O sorriso dela desapareceu um pouco.
– Acho que pode gostar dela.
Ela? Como se fosse uma fêmea?
Gostar?
Na verdade, aquilo só aconteceria se o “ela” em questão tivesse cara de cavalo e um corpo horrível, Payne pensou.
– Adorável – ela disse.
– Aqui é nossa saída. – Houve estalos suaves e, então, Manuel girou o volante e saiu da rodovia para uma rua em declive.
Quando pararam em uma fila de outros veículos, ela observou ao longe o horizonte da enorme cidade, algo que seus olhos esforçavam-se para compreender: grandes edifícios marcados com um número incalculável de luzes levantavam-se em uma extensão coberta de estruturas menores... e não era um lugar estático. Luzes vermelhas e brancas serpenteavam ao redor de suas extremidades... sem dúvida, deveriam ser centenas de carros semelhantes àqueles que tinham visto durante a viagem.
– Está olhando para a cidade de Nova York – Manny disse.
– É... linda.
Ele sorriu um pouco.
– Partes dela realmente são, e a escuridão e a distância são grandes recursos para retocar a obra do artista.
Payne estendeu a mão e tocou a janela de vidro a sua frente.
– Durante meu longo tempo lá em cima, não havia grandes vistas, nenhuma grandeza; nada além de um céu leitoso opressivo e os limites asfixiantes da floresta. Isso é tudo tão maravilhoso...
Um som estridente soou atrás deles e depois outro.
Manny olhou para o pequeno espelho acima de sua cabeça.
– Relaxa, cara. Eu vou...
Quando Manny acelerou, eliminando rapidamente a distância que havia com relação ao carro da frente, ela sentiu-se mal por distraí-lo.
– Sinto muito – ela murmurou. – Não queria atrapalhar.
– Pode falar para sempre que vou ouvir bem feliz.
Bem, era bom saber disso.
– Tenho alguma familiaridade com algumas coisas que observamos aqui, mas a maior parte é uma revelação. As bacias de visão que temos do Outro Lado oferecem apenas algumas imagens rápidas do que acontece aqui na Terra, com foco nas pessoas, não nos objetos... a menos que alguma coisa inanimada faça parte do destino de alguém. Na verdade, nos é mostrado apenas o destino, não o progresso... da vida, não a paisagem. Isto aqui é... tudo o que eu queria quando desejava me libertar.
– Como saiu?
Em qual das vezes?, ela pensou.
– Bem, da primeira vez... percebi que quando minha mãe concedia grandes audiências ao público daqui de baixo, havia uma pequena janela em que a barreira entre os dois mundos transformava-se... em uma espécie de malha. Descobri que conseguia mover minhas moléculas através daqueles finos espaços que eram criados... e foi assim que consegui. – O passado a envolveu, as memórias voltaram à vida e queimavam não só em sua mente, mas em sua alma. – Minha mãe ficou furiosa e foi atrás de mim, exigindo que eu voltasse ao Santuário... e eu disse não. Estava em uma missão e nem mesmo ela poderia me desviar disso. – Payne balançou a cabeça. – Depois que eu... fiz o que fiz... pensei que iria simplesmente viver a minha vida, mas houve coisas as quais eu não antecipei. Aqui embaixo, preciso me alimentar e... há outras preocupações.
Seu cio, especificamente... mas não iria explicar como o período fértil a havia afetado e impactado. Tinha sido um choque. Lá em cima, as fêmeas da Virgem Escriba estavam prontas para conceber quase o tempo todo e, assim, as grandes oscilações de hormônio não afetavam seu corpo. No entanto, quando desciam até ali e passavam um dia ou mais, o ciclo se apoderava delas. Ainda bem que isso acontecia apenas uma vez a cada dez anos... Porém, Payne havia chegado à errônea conclusão de que teria dez anos pela frente para se preocupar com isso.
Infelizmente, acabou acontecendo dez anos depois que o primeiro ciclo se iniciou: seu período de cio começou não mais que um mês depois de ter saído do Santuário.
Conforme se lembrava, as fortes dores para se acasalar deixaram-na indefesa e desesperada. Focou no rosto de Manuel. Será que serviria naquele período? Será que cuidaria de seus desejos violentos e amenizaria seu desejo por sexo? Será que um humano poderia fazer isso?
– Mas acabou voltando para lá? – ele disse.
Ela limpou a voz.
– Sim, voltei. Tive algumas... dificuldades e minha mãe veio até mim outra vez. – Na verdade, a Virgem Escriba temia que os machos no cio se aproveitassem de sua única filha que já havia... arruinado... tanto a vida que lhe fora dada. – Ela disse que iria me ajudar, mas apenas do Outro Lado. Concordei em ir com ela, pensando que seria como antes, que poderia encontrar a saída outra vez. Mas isso não aconteceu.
Manny colocou sua mão sobre a dela.
– Mas está longe de tudo isso agora.
Estava mesmo? O Rei Cego estava tentando administrar seu destino assim como sua mãe fazia. Porém, seus motivos eram menos egoístas... além disso, tinha a Irmandade, as shellans de cada um deles e uma criança morando sob seu teto e tudo isso merecia ser protegido. Só que temia que a visão dos humanos que seu irmão tinha fosse compartilhada por Wrath: ou seja, que eram redutores esperando para serem chamados ao serviço.
– Sabe de uma coisa? – ela disse.
– O quê?
– Acho que poderia ficar neste automóvel com você para sempre.
– Engraçado... eu sinto a mesma coisa.
Mais alguns estalos e viraram à direita.
Quando seguiram por ali, havia menos carros e mais edifícios, e ela entendeu o que Manny quis dizer sobre a noite melhorar o aspecto da cidade, não havia grandeza naquele bairro. Janelas quebradas estavam obscurecidas por dentro dando uma aparência de dentes faltando e a sujeira transbordava pelas laterais dos armazéns e das lojas, como se fossem sinais da idade. Havia manchas produzidas pela podridão ou acidentes ou vandalismo prejudicando o que, sem dúvida, haviam sido belas e iluminadas fachadas; a pintura havia desaparecido, a flor da juventude havia perdido para as intempéries e para a passagem do tempo. E, além disso, os humanos que estavam apoiados nas sombras não estavam em melhores condições.
Vestindo roupas amassadas com as cores da calçada e do asfalto, pareciam curvados por estarem sobrecarregados de peso, como se uma barra invisível forçasse todos os joelhos... e tal objeto os manteria assim sempre.
– Não se preocupe – Manuel disse. – As portas estão trancadas.
– Não estou com medo. Estou... triste, por alguma razão.
– A pobreza urbana fará isso com você.
Passaram por outra caixa podre que cobria muito mal dois seres humanos que dividiam um único casaco. Nunca imaginou que encontraria algum valor na perfeição opressiva do Santuário. Mas talvez sua mãe houvesse criado o paraíso para proteger as Escolhidas contra visões como aquela. Vidas... como aquelas.
No entanto, a aparência dos arredores logo melhorou. E, pouco depois, Manuel saiu da via entrando em uma rua paralela a uma instalação, uma extensão nova que apareceu cobrindo uma grande parcela de terra. Havia postes de luz bem altos por toda parte, lançando uma iluminação cor de pêssego sobre a construção abaixo, sobre os materiais brilhantes que constituíam dois veículos estacionados e sobre os arbustos que margeavam as passagens.
– Aqui estamos – disse ele, parando o carro e voltando-se para ela. – Vou apresentá-la como uma amiga, tudo bem? Apenas tente agir assim.
Ela sorriu.
– Vou tentar fazer isso.
Saíram juntos e... oh, o ar. Um conjunto tão complexo de odores bons e ruins, metálicos e doces, de terra e de algo divino.
– Eu amo isso – disse. – Eu amo isso!
Estendeu os braços e girou sobre um dos pés, que havia sido calçado pouco antes de deixarem o complexo. Quando parou seu giro e seus braços descansaram nas laterais do corpo, viu que Manny a observava e teve de rir constrangida.
– Desculpe. Eu...
– Venha aqui – ele rosnou, pálpebras semicerradas, um olhar quente e possessivo.
Ela ficou excitada imediatamente; seu corpo sentiu um calor intenso, e, de alguma forma, sabia que deveria levar um tempo para se aproximar dele. Sabia como provocá-lo, fazendo-o esperar, mesmo que não fosse por muito tempo.
– Você me deseja – ela falou lentamente quando ficaram face a face.
– Sim. Com certeza. – As mãos dele agarram sua cintura e a puxou com firmeza. – Dê-me sua boca.
Quando ela fez isso, colocou os braços ao redor da nuca de Manny e fundiram-se como um só corpo. O beijo apoderou-se dos dois, e quando terminaram, ela não conseguia parar de sorrir.
– Gosto quando exige algo de mim – disse. – Leva-me de volta ao banho, quando você estava...
Ele soltou um gemido e a interrompeu, colocando a mão sobre a boca dela suavemente.
– Sim, eu me lembro... pode acreditar... eu me lembro.
Payne deu uma lambida sobre a palma de sua mão.
– Vai fazer isso comigo outra vez. Esta noite.
– Devo ter muita sorte.
– Tem sim. E eu também tenho.
Ele riu um pouco.
– Sabe de uma coisa? Vou ter que colocar um dos meus casacos.
Manuel abriu outra vez a porta e inclinou-se dentro do carro. Quando reapareceu, vestiu um casaco branco que tinha seu nome impresso em letra cursiva na lapela. E soube pela maneira como ele fechou as duas metades que estava tentando esconder a reação do seu corpo perante ela.
Pena. Gostava de vê-lo naquela condição, todo orgulhoso e excitado.
– Vamos... vamos entrar – disse, pegando a mão de Payne, e, em seguida, quase sussurrando, pareceu dizer: – Antes de entrar...
Quando não terminou a frase, Payne deixou seu sorriso onde estava, bem na frente e no centro de seu rosto.
Após um exame mais detalhado, percebeu que a instalação parecia ser fortificada para uma batalha, com barras discretas nas janelas e uma cerca alta que se estendia a uma longa distância. As portas das quais se aproximaram também tinham barras e Manuel não recorreu às maçanetas.
Era lógico assegurar o edifício daquela maneira, pensou. Considerando como aquela grande parte da cidade aparentava.
Manuel apertou um botão e imediatamente uma voz distante e distorcida disse:
– Hospital Equino Tricounty.
– Dr. Manuel Manello. – Virou a cabeça em direção a uma câmera. – Estou aqui para ver...
– Olá, doutor. Entre.
Houve um zumbido e, em seguida, Manuel segurou a porta aberta para Payne entrar.
– Depois de você, bambina.
O interior do local que entraram era simples e muito limpo, com um chão de pedra lisa e filas de cadeiras, como se as pessoas passassem muito tempo esperando naquela sala da frente. Nas paredes, imagens de cavalos e bovinos estavam emolduradas; muitos dos animais tinham fitas vermelhas e azuis penduradas em seus cabrestos. Do outro lado, havia um painel de vidro com a palavra RECEPÇÃO gravada mais acima em letras douradas formais e havia portas... muitas portas. Algumas com o símbolo do sexo masculino, outras com o símbolo do sexo feminino... outras com inscrições que diziam VETERINÁRIO DIRETOR... e FINANCEIRO... e GERENTE PESSOAL.
– Que lugar é esse? – perguntou.
– Um lugar onde se salvam vidas. Venha... vamos por esse lado.
Ele a levou por um caminho que atravessava um par de portas duplas e ia até um homem humano uniformizado sentado atrás de uma mesa.
– Olá, Dr. Manello. – O homem apoiou um jornal com letras grandes no topo do papel onde se lia New York Post. – Não nos vemos há um tempo.
– Esta é uma amiga minha, Pa... Pamela. Vamos ver minha garota.
O humano focou o rosto de Payne. E, então, pareceu estremecer.
– Ah... ela está onde a deixou. O doutor responsável pelo tratamento passou bastante tempo com ela hoje.
– Sim. Ele me ligou. – Manuel bateu o tampo da mesa com os dedos. – Vejo você daqui a pouco.
– Claro, doutor. Prazer em conhecê-la... Pamela.
Payne inclinou a cabeça.
– Foi adorável conhecê-lo também.
Houve um silêncio constrangedor quando ela se endireitou. O humano estava completamente atordoado por ela, sua boca ligeiramente aberta, os olhos arregalados... e muito agradecido.
– Calminha aí, garotão – Manuel disse de maneira sombria. – Pode voltar a piscar a qualquer momento... como, por exemplo, agora. Mesmo. De verdade.
Manny colocou-se entre os dois e pegou a mão dela ao mesmo tempo, bloqueando a visão e estabelecendo um ponto de domínio sobre ela. E isso não foi tudo: o aroma de especiarias escuras flutuou dele, um aroma que advertia o outro homem de que a fêmea sendo admirada estava disponível apenas sobre o cadáver de Manuel.
E aquilo fez com que Payne sentisse um sol escaldante no centro do peito.
– Venha, Pay... Pamela. – Quando Manuel voltou-se para ela e os dois começaram a andar, Manny acrescentou com um sussurro: – Antes que a mandíbula do garoto caia do rosto e aterrisse na seção de esportes.
Payne saltitou uma vez, e, em seguida, fez de novo. Manuel olhou.
– O pobre guarda lá atrás esteve prestes a ter uma experiência de quase-morte com seu crachá sendo enfiado pela garganta e você está feliz?
Payne beijou rapidamente a bochecha de Manuel, enxergando por trás da falsa carranca e observando seu lindo rosto.
– Você gosta de mim.
Manuel revirou os olhos e puxou-a pelo pescoço, retribuindo o beijo.
– Dã...
– Dã – ela imitou...
Alguém tropeçou no pé de alguém, difícil dizer quem foi, e Manuel foi o único que evitou que caíssem.
– Melhor prestar atenção – o macho dela disse. – Antes que sejamos nós precisando ser ressuscitados.
Ela deu uma cotovelada nele.
– Sábia conclusão.
– Está me bajulando?
Payne olhou por cima do ombro, e, então, deu um tapa no traseiro dele... forte. Quando ele protestou, ela piscou para ele.
– Sim. De fato, estou mesmo. – Baixando muito os olhos e a voz, disse: – Deseja que eu faça isso outra vez, Manuel? Talvez... do outro lado?
Quando ela arqueou as sobrancelhas para ele, o som do riso de Manny retumbou e preencheu todo o corredor vazio, soando alto e forte. E quando colidiram um com o outro mais uma vez, ele a deteve.
– Espere, precisamos fazer isso melhor. – Aninhou-a sob o braço dele, beijou sua testa e alinhou-se com ela. – No três, use a direita. Pronta? Um... dois... três.
No momento certo, os dois estenderam suas longas pernas direitas e, em seguida, as esquerdas... direita... esquerda.
Andavam perfeitamente.
Lado a lado.
Percorreram o corredor. Juntos.
Nunca ocorreu a Manny que sua vampira sexy pudesse ter senso de humor, e aquilo completava a encomenda perfeitamente.
Ah, inferno, não era só isso. Era toda aquela sensação dela de encantamento, sua alegria e a impressão de que estava pronta para qualquer coisa. Não havia absolutamente qualquer relação com aquelas socialites frágeis e quebradiças ou com aquelas modelos magras demais com quem tinha saído.
– Payne?
– Sim?
– Se eu lhe dissesse para escalar uma montanha esta noite...
– Oh! Eu adoraria! Adoraria observar uma longa vista de...
Bingo. No entanto, Deus, tinha de pensar na crueldade de finalmente encontrar seu par perfeito... alguém tão incompatível.
Quando chegaram ao segundo conjunto de portas duplas que dava para a parte clínica do hospital de cavalos, abriu bem uma delas e, sem perder o ritmo, voltaram a ficar um ao lado do outro e continuaram a passar... e foi então que aconteceu.
Sentiu-se completamente apaixonado por ela.
Foi a conversa alegre dela, o saltitar em seus passos e os olhos de gelo que brilhavam como cristal. Foi a história dela que compartilhou, a dignidade que mostrou e o fato de que tinha sido julgada por um padrão que ele costumava usar... e, agora, não seria capaz de suportar sentar-se do outro lado de uma mesa de jantar com alguém com quem costumava sair. Era a força de seu corpo e a perspicácia de sua mente e...
Cristo... nem pensou no sexo.
Irônico. Ela havia lhe concedido os melhores orgasmos da vida e isso sequer chegou ao topo da lista “Motivos pelos quais amo você”.
Achava que isso se devia ao fato dela ser simplesmente espetacular.
– Não sei por que está sorrindo, Manuel – Payne disse. – Será que está antecipando o lugar que minha mão ocupará sobre seu traseiro?
– Sim. Exatamente isso.
Ele a puxou para outro beijo... e tentou ignorar a dor em seu peito: não havia necessidade de estragar os momentos que tinham com despedidas que já estavam lhes esperando. Aquilo aconteceria muito em breve. Além disso, tinham encontrado seu destino.
– Ela está por aqui – disse, virando à esquerda e entrando em uma área de recuperação.
No instante em que a porta se abriu, Payne hesitou, sua testa franziu quando ouviu os sons ocasionais de relinchos e cascos batendo no chão e sentiu o cheiro de feno exalando no ar.
– Mais à frente – Manny puxou-a pela mão. – Seu nome é Glory.
Glory era a última do lado esquerdo, mas no instante em que Manny disse seu nome, o pescoço longo e elegante estendeu-se e sua cabeça perfeitamente proporcional emergiu no topo da baia.
– Ei, garota – disse. Em resposta, ela soltou uma saudação apropriada, a ponta das orelhas se esticaram e o focinho ricocheteou no ar.
– Céus... – Payne respirou, soltando a mão de Manny e indo à frente dele.
Quando ela se aproximou da baia, Glory sacudiu a cabeça, sua crina negra moveu-se com graça e ele teve uma súbita visão de Payne sendo mordida.
– Cuidado – disse quando iniciou uma pequena corrida. – Ela não gosta... – No instante em que Payne colocou a mão no focinho de seda, Glory voltou-se para ter mais, colidindo contra a palma da mão, procurando mais carinho.
– De gente nova... – Manny terminou pouco convincente.
– Oi, querida – Payne murmurou, com os olhos percorrendo o cavalo ao se inclinar sobre a baia. – Você é tão linda... tão grande e forte... – As mãos pálidas encontraram o pescoço negro e acariciaram em um ritmo lento. – Por que suas pernas estão enfaixadas?
– Ela machucou a direita. Feio. Há uma semana.
– Posso entrar?
– Hã... – Deus, ele não conseguia acreditar, mas Glory parecia estar apaixonada, seus olhos se fechavam enquanto recebia uma boa carícia atrás das orelhas. – Sim, acho que vai ficar tudo bem.
Ele soltou a trava da porta e os dois entraram. E quando Glory teve de se mover para trás, ela mancou... com o que tinha sido seu lado bom.
Tinha perdido tanto peso que suas costelas estavam expostas como estacas de uma cerca sob a pele. E poderia apostar que quando as visitas fossem embora, sua explosão de energia se esvairia rapidamente.
A mensagem no correio de voz deixada pelo médico havia sido muito clara: ela estava caindo. O osso quebrado estava se recuperando, mas não rápido o suficiente e a redistribuição do peso fez com que as camadas do casco oposto enfraquecessem e se separassem.
Glory estendeu o focinho em seu peito e deu-lhe um rápido empurrão.
– Ei, mocinha.
– Ela é extraordinária. – Payne afagou a égua. – Simplesmente extraordinária.
E agora havia outra coisa em sua consciência: talvez trazer Payne ali não tenha sido um presente, mas uma crueldade. Por que apresentá-la a um animal que provavelmente seria...
Deus, não conseguia sequer pensar nisso.
– Não é o único que marca território – Payne disse suavemente.
Manny olhou para Payne sobre a cabeça de Glory.
– Como?
– Quando me disse que ia conhecer uma fêmea, eu... eu esperava que ela tivesse cara de cavalo.
Ele riu e acariciou a fronte de Glory.
– Bem, isso ela tem, com certeza.
– O que vai fazer com ela?
Enquanto tentava formar as palavras, reuniu a crina que caía um pouco acima dos olhos quase negros do cavalo.
– Sua falta de resposta já é suficiente – Payne disse com voz triste.
– Não sei por que a trouxe aqui. Quero dizer... – ele limpou a garganta. – Na verdade, eu sei... e é muito patético. Tudo o que tenho é meu trabalho... Glory é a única coisa que não está relacionada a meu trabalho. É algo pessoal para mim.
– Deve estar de coração partido.
– Estou. – De repente, Manny olhou sobre o dorso de seu cavalo doente para observar a cabeça da vampira de cabelos escuros que tinha apoiado a bochecha sobre o flanco de Glory. – Estou... totalmente destruído com a perda.
CAPÍTULO 40
Alguns poucos momentos após a ligação de Butch, Jane ficou congelada no terraço da cobertura de V. Enquanto sua forma assumia peso, o ar frio da noite movia seus cabelos e fazia seus olhos encherem-se de água.
Ou... talvez fossem apenas as lágrimas.
Olhando pelo vidro, viu tudo muito claramente: a mesa, os açoites, os chicotes, as... outras coisas.
Quando ia até ali antes com Vishous, aquelas armadilhas de suas predileções hardcore pareciam nada mais do que um pano de fundo assustador e tentador para o incrível sexo que tinham. Mas a versão dela para o “jogo” era como a de um poodle se comparada ao do lobisomem que ele adotava.
E como ela via claramente aquilo agora.
O que será que Butch havia usado? Que tipo de instrumento encaixava-se com seu companheiro? Será que haveria muito sangue?
Espere um minuto: onde V. estava?
Passando pela porta de vidro, ela...
Nada de sangue no chão, ou escorrendo dos instrumentos. Nada de ganchos suspensos pendurados no teto. Tudo estava exatamente da mesma maneira que havia deixado da última vez que esteve ali, como se nada tivesse acontecido...
Um gemido veio de fora do círculo de velas e o som fez sua cabeça girar. Claro: a cama.
Ao lançar-se pelo véu da escuridão, seus olhos se ajustaram e lá estava ele: envolto em lençóis de cetim, deitado, contorcendo-se de dor... ou estaria dormindo?
– Vishous? – disse suavemente.
Com um grito, ele acordou de imediato, seu tronco ereto, olhos arregalados. Instantaneamente, ela notou que o rosto dele estava marcado com cicatrizes que já desapareciam... e havia outras ao longo de seu peitoral e abdômen. Mas a expressão em seu rosto foi o que, de fato, chamou sua atenção: ele estava horrorizado.
De repente, houve uma agitação furiosa quando ele tirou as cobertas de seu corpo. Ao olhar para baixo, para si mesmo, o suor brotou no peito e nos ombros, sua pele assumiu um brilho repentino, nas sombras que o envolviam fez um gesto para cobrir seu sexo... como se estivesse protegendo o que restou.
Com a cabeça baixa, respirou fundo várias vezes. Inspira. Expira. Inspira. Expira...
O padrão transformou-se em soluços.
Encolhendo-se, as mãos abrigaram o trabalho de açougueiro que foi feito há muito, muito tempo, chorou em grandes ondas de emoção, sua reserva havia desaparecido, seu controle sumira, sua inteligência não era mais um governante, e sim, um súdito.
Ele não percebeu que ela estava em pé ao lado dele.
E ela deveria ir embora, Jane pensou. Ele não gostaria que o visse assim... nem mesmo antes de tudo que havia desabado sobre eles. O macho que ela conhecia, amava e tinha casado não gostaria de nenhuma testemunha...
Foi difícil dizer o que chamou a atenção dele... e mais tarde ela se perguntaria como ele escolheu o exato momento em que já ia se desmaterializar para olhá-la.
Por um instante, ficou incapacitada: se ficou magoado pelo que havia feito com Payne, iria odiá-la agora... não havia como voltar atrás naquela invasão de privacidade.
– Butch me ligou – ela desabafou. – Ele disse que estaria...
– Ele me machucou... Meu pai me machucou.
As palavras soaram tão baixas e suaves que quase não foram registradas. Mas quando o fizeram, o coração dela parou.
– Por quê? – Vishous perguntou. – Por que ele fez isso comigo? Por que minha mãe fez isso? Nunca pedi a nenhum deles para nascer... e não escolheria nascer se alguém tivesse perguntado... Por quê?
Suas bochechas estavam escorregadias com as lágrimas que derramavam pelos olhos de diamante, em um fluxo incessante que ele não notava nem parecia se importar. E ela teve a sensação de que ia levar um bom tempo para que aquele vazamento cessasse... alguma artéria havia se rompido e aquele era o sangue de seu coração, derramando-se, cobrindo-o.
– Sinto muito – disse, desajeitada. – Não sei quais foram os motivos... mas sei que não merecia nada disso. E... e não é culpa sua.
Suas mãos deixaram a posição protetora e ele olhou para baixo. Passou-se um longo tempo antes que falasse e, quando o fez, suas palavras eram lentas e ponderadas... e saíram num ritmo tão incessante e calmo quanto suas lágrimas.
– Gostaria de ser inteiro. Gostaria de lhe dar filhos se os quisesse e pudesse concebê-los. Gostaria de ter lhe dito que quando pensou que estive com outra pessoa isso me matou. Gostaria de ter passado o último ano acordando todas as noites ao seu lado e lhe dizendo que a amava. Gostaria de ter me acasalado com você da maneira adequada na noite em que voltou para mim dos mortos. Gostaria... – agora, seu olhar cintilante fixou-se no dela. – Gostaria de ter a metade da sua força e gostaria de merecê-la. E... é isso.
Certo. Muito bem. Agora os dois estavam chorando.
– Sinto tanto por Payne – ela disse com voz rouca. – Eu queria falar com você, mas ela estava decidida. Tentei convencê-la, tentei mesmo, mas, no final, eu apenas... apenas... não queria que fosse você que tivesse que fazer isso. Eu preferia viver com essa verdade horrível na minha consciência por uma eternidade do que você ter que matar sua irmã, ou vê-la se machucando mais do que estava.
– Eu sei... Eu sei disso agora.
– E, para ser honesta, o fato de ela estar curada agora? Sinto calafrios ao pensar na quase perda que tivemos.
– Mas está tudo bem. Ela está bem.
Jane enxugou os olhos.
– E eu acho que quando se trata de... – ela olhou para a parede envolvida pela luz amanteigada das velas que não fazia nada para suavizar as pontas afiadas e todas as implicações dos acessórios ali pendurados. – Quando se trata das... coisas... sobre você e seu sexo, sempre me preocupei de não ser o suficiente para você.
– Nossa... não... você é tudo para mim.
Jane colocou a mão sobre a boca para não perder o controle, pois era exatamente o que precisava ouvir.
– Nunca nem sequer escrevi seu nome nas minhas costas – V. disse. – Pensei que era bobagem e uma perda de tempo... mas como pode sentir que estamos vinculados sem isso... especialmente quando cada macho no complexo foi marcado por causa de sua shellan?
Deus, ela não tinha pensado nisso.
V. balançou a cabeça.
– Você me deu espaço... para sair com Butch, lutar com meus Irmãos e fazer o que gosto na internet. O que lhe dei em troca?
– Minha clínica, em primeiro lugar. Não poderia ter construído aquele lugar sem você.
– Não foi exatamente um buquê de rosas.
– Não subestime suas habilidades na carpintaria.
Ele sorriu um pouco com isso. E, então, ficou muito sério outra vez.
– Posso lhe dizer uma coisa que sempre penso todas as vezes que acordo a seu lado?
– Por favor.
Vishous, aquele que tinha resposta para tudo, parecia estar com a língua presa. Mas, então, disse:
– Você é a razão pela qual eu me levanto todas as noites da cama. É a razão pela qual mal posso esperar para voltar para casa ao amanhecer. Não a guerra. Não os Irmãos. Nem mesmo Butch. É... você.
Oh, palavras tão simples... mas com tanto significado. Bom Deus, quanto significado.
– Vai me deixar abraçá-lo agora? – disse ela roucamente.
Seu companheiro estendeu os grandes braços.
– Que tal eu abraçá-la?
Quando Jane saltou para frente e mergulhou sobre ele, respondeu:
– Não precisa ser uma coisa ou outra.
Instantaneamente, ela assumiu sua forma corpórea completa sem esforço algum, aquela química mágica entre eles a chamava e a prendia. E quando Vishous aninhou o rosto em seu cabelo e estremeceu como se tivesse corrido muito e finalmente tivesse voltado para casa... soube exatamente como ele se sentia.
Com sua shellan apertada contra ele, V. sentia como se tivesse explodido em mil pedaços... e agora se reagrupasse.
Deus, o que Butch tinha feito por ele. Por todos eles.
O caminho que o tira percorreu foi o mais correto. Horrível, terrível... mas com certeza o correto. E enquanto V. segurava sua fêmea, seus olhos observavam o espaço onde tudo tinha acontecido. Tudo estava limpo... exceto algumas coisas que estavam fora do lugar no chão: uma colher e um copo quase vazio que tinha de ser água.
Tudo tinha sido uma ilusão: nada havia o cortado, de fato. E apostaria que Butch havia deixado os dois objetos bem em frente e centralizados no local para que V. os observasse ao acordar, para que soubesse os meios que levaram ao fim.
Em retrospecto, parecia tudo tão estúpido... não a sessão com o tira, mas o fato de que V. nunca pensou realmente em Bloodletter naqueles anos no campo de guerra. A última vez que aquele pedaço do seu passado havia sido trazido à tona, foi quando Jane ficou com ele pela primeira vez... e foi só por ela tê-lo visto nu, então, teve de explicar.
Meu pai não queria que eu reproduzisse.
Isso foi tudo o que disse. Em seguida, como um cadáver que havia sido jogado em águas calmas, aquela porcaria afundou, reassentando-se sobre o banco de areia bem dentro dele.
A.J., ou Antes de Jane, só tinha feito sexo vestido. Não por vergonha – ou ao menos era isso o que dizia a si mesmo –, mas porque simplesmente não tinha interesse em ir até o fim com machos e fêmeas anônimos que tinha submetido.
D.J.? Foi tudo diferente. Estar nu era mais do que bom, provavelmente porque Jane ficou tranquila com a revelação, e, ainda assim, quando pensava naquilo agora, percebia que sempre a distanciou, mesmo quando a apertava em seus braços. Na verdade, tinha sido mais próximo de Butch... mas aquilo era uma coisa entre machos, ou seja, algo que, de alguma forma, era menos ameaçador do que a relação macho-fêmea.
Sombras de problemas com a Mamãe, sem dúvida: depois de tudo que sua mahmen havia arrancado dele, simplesmente não conseguia confiar nas mulheres da mesma maneira que confiava em seus Irmãos, ou em seu melhor amigo.
Só que Jane nunca o traiu. Na verdade, estava disposta a lutar contra a própria consciência apenas para salvá-lo do ato inqualificável que sua irmã havia exigido dele.
– Você não é minha mãe – ele disse através dos cabelos de sua shellan.
– Tem toda razão. – Jane recuou e olhou bem nos olhos dele... como era característica sua fazer. – Nunca teria abandonado meu filho, ou tratado minha filha desse jeito.
V. inspirou fundo e quando deixou o oxigênio sair de seus pulmões, sentiu como se estivesse expelindo os mitos com os quais definia a si mesmo... e Jane... e seu acasalamento.
Precisava mudar o paradigma.
Por eles. Por si mesmo. Por Butch.
Cristo, a expressão no rosto do tira quando as coisas foram acontecendo ali foi trágica.
Então, sim, era hora de parar de usar recursos superficiais para medicar suas emoções. O sexo extremo e a dor pareceram excelentes soluções por muito tempo, mas na verdade tinham sido maquiagem sobre uma espinha: a feiura continuava ali.
O que precisava fazer era lidar com o lixo interior; então, não precisava mais de Butch ou de qualquer outra pessoa para espancá-lo para que conseguisse libertar-se das coisas. Assim, as excentricidades poderiam ser reservadas apenas para o prazer com Jane.
Colocar toda aquela porcaria para fora... era mesmo o certo a se fazer... percebeu que estava finalmente preparado para tentar uma versão psiquiátrica de um tratamento eficaz para a pele.
A próxima coisa que faria seria ir até a TV, olhar para a câmera e dizer: “Só é preciso uma camada de autoconsciência... depois, enxáguo com o sabonete. Defina-se e minha mente e emoções ficam limpas e brilhantes”.
Certo, agora estava mesmo perdendo o juízo, tudo bem.
Acariciando os cabelos macios de Jane, murmurou:
– Quanto... às coisas que tenho aqui. Se você estiver no jogo, ainda quero brincar... se é que entende o que estou dizendo. Mas, de agora em diante, é apenas por diversão e apenas para você e para mim.
Caramba, tiveram uma boa dose de sexo extravagante, naquele lugar, envolvendo muito couro, e gostaria sempre de ter aquilo com ela. Com sorte, ela gostaria de fazer o mesmo...
– Gosto do que fazemos aqui – ela sorriu. – Fico excitada.
Bem... parece que aquilo fez seu pênis latejar.
– Eu também.
Quando ele sorriu de volta para ela, reconheceu a chave mestra daquela mistura: aquela decisão de virar a página era muito boa... mas como mantê-la? Na noite seguinte simplesmente não conseguiria mais suportar acordar e ser aquele cara que saía dos trilhos.
Droga, achava que teria de descobrir como fazer isso, não é mesmo?
Com um toque gentil, acariciou a bochecha de sua shellan.
– Nunca estive em um relacionamento antes de você. Deveria saber que teríamos algum impasse em algum momento.
– É assim que funciona.
Pensou em seus Irmãos e na quantidade de precipitações, brigas e discussões que aquele bando de cabeças duras teve entre si. De alguma forma, sempre lidavam com isso... geralmente golpeando uns aos outros de vez em quando. Coisa própria de garotos.
Estava claro que com ele e Jane seria a mesma coisa. Tirando os golpes, claro, mas com as mesmas estradas esburacadas e as resoluções finais. Afinal, aquilo era a vida... não um conto de fadas.
– Mas sabe qual é a melhor coisa? – sua Jane perguntou, quando colocou os braços em volta de seu pescoço.
– Não sentir mais que estou morto por não estar em minha vida?
– Bem, sim, isso também – ela estendeu-se e o beijou. – Duas palavras: sexo reconciliatório.
Ohhhh, siiiiim. Só que...
– Espere, não se diz “sexo de reconciliação”?
– Também é uma possibilidade. – Pausa. – Já mencionei que você é o nerd mais gato que já conheci?
– Eu mereço essa observação. – Baixou a cabeça e roçou a boca contra a dela. – Apenas mantenha isso em segredo. Tenho uma reputação de cara durão a zelar.
– Seu segredo está seguro comigo.
V. ficou sério.
– Eu estou seguro com você.
Jane tocou seu rosto.
– Não posso prometer que não vamos passar por períodos difíceis outra vez e sei que nem sempre vamos concordar com tudo. Mas tenho certeza de uma coisa: você sempre estará seguro comigo. Sempre.
Vishous puxou-a para mais perto de si e enfiou a cabeça em sua garganta. Imaginou que, depois que ela voltou dos mortos por ele em sua forma fantasmagórica adorável, nada superaria isso. Mas estava errado. Percebeu que o amor era como as adagas que fazia em sua oficina: quando as contemplava pela primeira vez, eram novas e brilhantes e as lâminas cintilavam sob a luz. Segurando-a contra a palma da mão, ficava cheio de entusiasmo pelo que ela poderia fazer no campo de batalha e mal podia esperar para experimentá-la. Só que, geralmente, as primeiras noites são difíceis até se acostumar com ela.
Ao longo do tempo, o aço perde seu brilho original e o punho fica manchado, e talvez precise ser lixado algumas vezes. Contudo, o que ganha em troca pode salvar sua vida: uma vez que estiver bem familiarizado com o objeto, torna-se parte de você de tal forma que parece uma extensão de seu braço. Ele o protege e lhe dá um meio de proteger seus irmãos; proporciona confiança e poder para enfrentar qualquer coisa que lhe sobrevenha na noite e, onde quer que vá, ele vai com você, junto a seu coração, sempre ali quando precisa dele.
Entretanto, precisa manter a lâmina afiada e reposicionar o cabo de tempos em tempos, verificar outra vez o peso.
Engraçado... tudo aquilo parecia tão óbvio quando se tratava de armas. Por que não se deu conta de que com o casamento era a mesma coisa?
Revirando os olhos, pensou: Cristo, talvez alguma loja de presentes ainda estivesse aberta à possibilidade de criar uma linha de cartões do dia dos namorados inspirada na época medieval, alguma coisa levemente gótica. Isso seria perfeito para o que precisava.
Fechando os olhos e abraçando Jane, estava quase feliz por ter perdido a cabeça, só para que pudessem chegar até ali.
Bem, ele teria escolhido uma rota mais fácil se existisse uma; mas tinha de merecer onde estavam agora.
– Tenho uma pergunta para lhe fazer – disse ele suavemente.
– Qualquer coisa.
Recuando um pouco, ele acariciou o cabelo de Jane com a mão enluvada e precisou de um tempo para perguntar o que estava na ponta da língua.
– Você vai... permitir que eu faça amor com você?
Quando Jane o encarou e Vishous sentiu seu corpo contra o dela, ela soube que nunca o deixaria. Nunca. E soube também que se conseguiram passar pela última semana, conseguiriam permanecer juntos conforme acontecia nos bons casamentos e acasalamentos.
– Sim – disse ela. – Por favor...
Seu hellren a possuiu tantas vezes desde que estavam juntos: durante a noite e durante o dia; no banho e na cama; vestido, nu, seminu; rápido e forte... forte e rápido. O fato de V. estar sempre no limite fazia parte da emoção... isso e a imprevisibilidade. Ela nunca sabia o que esperar... se ia exigir coisas dela, ou assumir o controle de seu corpo, ou conter-se para que ela fizesse qualquer coisa que desejasse com ele. Porém, um fato constante era que nunca foi seu estilo ir devagar.
Agora, ele apenas acariciava seu cabelo, correndo os dedos através das ondas e posicionando-as por trás de suas orelhas. E manteve o olhar fixo no dela quando suas bocas uniram-se suavemente.
Afagando e acariciando, ele lambeu os lábios dela... mas quando ela abriu a boca, não mergulhou como sempre fazia. Apenas continuou beijando... até ela ficar atordoada com as sucções e carícias da carne contra a carne.
O corpo dela geralmente rugia pelo dele, mas, agora, sentia um desabrochar delicioso percorrê-la, relaxando e acalmando, provocando uma tranquilizante excitação que, de alguma forma, era tão profunda e avassaladora quanto a paixão desesperada que normalmente sentia.
Quando o corpo dele mudou de posição, ela seguiu a liderança, apoiando totalmente as costas quando ele se ergueu e cobriu o corpo dela por completo. O beijo continuava e estava tão envolvida que não percebeu que ele deslizou a mão por baixo de sua camisa. A palma da mão quente arrastava-se para cima, buscando seus seios... encontrou-os e os capturou. Nada de provocações, nada de beliscões, nada de apertões. Apenas passava o dedão em volta e sobre o mamilo, até ela se arquear e gemer em sua boca.
As mãos dela estenderam-se pelas laterais do corpo de Vishous e... oh, Deus, havia aquele padrão de marcas que ela havia visto. E continuavam ao longo de todo seu tronco...
Vishous pegou seus pulsos e os levou de volta para a cama.
– Não pense nisso.
– O que ele fez com você...?
– Shhh.
O beijo foi retomado e ficou tentada a lutar, mas as carícias delicadas submergiram seu cérebro em sensações.
Estava feito, disse a si mesma. Tudo o que tinha acontecido havia ajudado a chegarem até ali.
Isso era tudo o que precisava saber.
A voz de Vishous sussurrou em seu ouvido, profunda e baixa:
– Quero tirar sua roupa. Posso?
– Por favor... sim... Deus, sim.
Despi-la foi parte do prazer, os meios foram tão gloriosos quanto o fim, quando ficaram pele contra pele, e, de alguma maneira, a revelação gradual do que havia observado tantas vezes fez com que parecesse novo e especial.
Seus seios ficavam cada vez mais excitados conforme o ar frio os atingia, e ela observou o rosto de V. contemplá-la. A necessidade estava lá, só que havia muito mais... reverência, gratidão... uma vulnerabilidade que sempre sentiu, mas nunca enxergou com clareza antes.
– Você é tudo o que eu preciso – disse ele quando abaixou a cabeça. Suas mãos estavam em toda parte, sobre o abdômen, os quadris, entre as coxas.
Sobre seu sexo escorregadio.
O orgasmo que lhe deu foi uma onda quente que percorria seu corpo, irradiando-se de dentro para fora, possuindo-a em uma nuvem de êxtase e prazer. Em meio a tudo isso, ele a montou e a penetrou. Nada de golpes fortes dentro dela, apenas mais daquela onda, dentro e fora, enquanto o corpo dele se movia e sua ereção pulsava para frente e para trás.
Nenhum movimento rápido, apenas mais daquele amor lento.
Nada de urgência, apenas todo o tempo do mundo.
Quando ele finalmente gozou, foi em meio a um último movimento de sua coluna e um pulsar dentro dela, e ela o acompanhou; os dois abraçaram-se com ternura, fundindo o corpo... e a alma.
Virando-se na cama, levou-a para cima dele, envolvendo-a com seu peitoral musculoso, firme e tão suave e quase tão leve quanto uma brisa de verão. Ela estava flutuando e quente e...
– Você está bem? – disse Vishous quando a olhou.
– Mais do que bem – Ela examinou seu rosto. – Sinto como se tivesse feito amor com você pela primeira vez.
– Que bom – Ele a beijou. – Esse era o plano.
Deitando a cabeça sobre o coração dele, olhou ao longo da parede atrás da mesa. Nunca pensou que seria grata por aquele bando de “brinquedos” aterrorizantes, mas estava. Em meio à tempestade... encontraram a calmaria.
Separaram-se por um tempo... Mas, agora, eram um só novamente.
CAPÍTULO 41
Na mansão, Qhuinn andava pelo quarto como um rato procurando uma saída em sua gaiola. De todas as noites, aquela era a pior para Wrath mantê-los confinados.
Dane-se.
Quando fez mais outra viagem passando pela porta aberta do banheiro, pensou que o fato da quarentena fazer sentido o irritava ainda mais: apenas John e Xhex não estavam feridos naquele momento; todos que estiveram naquela briga ficaram cortados, fatiados ou arranhados de alguma forma.
Aquilo parecia um maldito Pronto Atendimento, mas, por favor, os três poderiam estar lá fora dando o troco.
Parando em frente às portas da varanda, olhou os jardins bem cuidados que estavam prestes a desabrochar com a primavera. Com as luzes apagadas em seu quarto, pôde ver claramente a piscina com seu toldo de inverno esticado sobre toda a extensão de seu ventre... como se fosse a maior cinta modeladora que o mundo já tinha visto, e as árvores ainda estavam nuas em sua maioria. Os canteiros de flores...
Blay tinha sido ferido.
Ainda não eram nada além de bancos de terra marrom-escuros...
– Droga.
Esfregando os cabelos que agora estavam muito curtos, tentou negociar com a pressão no centro do peito. De acordo com John, Blay tinha sido atingido na cabeça e sofreu um corte no abdômen. O primeiro machucado estava sendo monitorado; o último havia sido costurado pela Doutora Jane. Nenhum deles colocava sua vida em risco.
Tudo muito bem.
Que pena que seu peito não estava assimilando o fato muito bem. Desde que John Matthew havia lhe dado a notícia, aquela maldita dor havia se instalado, como se uma toupeira entrasse e saísse de seus brônquios sem parar.
Literalmente, não conseguia respirar fundo.
Maldição, se fosse um macho maduro – e considerando a maneira como lidava com as coisas algumas vezes, aquilo era bastante discutível, se não completamente errado – sairia no corredor, andaria até o quarto de Blay e bateria na porta. Colocaria a cabeça para dentro, veria por si mesmo que o coração do ruivo ainda estava batendo e todos os sentidos estavam funcionando... e, então, continuaria a fazer suas coisas.
Em vez disso, lá estava ele, tentando fingir que não estava pensando no cara enquanto afundava um caminho no carpete.
Assim, continuou com a caminhada. Teria ido à sala de musculação e corrido um pouco, mas o fato de que Blaylock estava ali, próximo dele, era como uma corda de marionete que o mantinha preso no local, sem muita vontade de puxá-lo, direcionando-o para a luta ou... digamos... mesmo se a casa estivesse pegando fogo, era evidente ser incapaz de se libertar.
E quando se viu em frente às portas francesas outra vez, teve uma vaga ideia do motivo que o fazia parar ali.
Tentou tirar a mão da alça da maçaneta.
Não funcionou.
O trinco produziu um estalo e o ar gelado foi como um tapa em seu rosto. Saindo com os pés descalços e roupão, mal notou a ardósia congelada ou o frio que percorreu suas pernas e agarrou-se em seu pênis.
À frente, uma luz irradiava das portas duplas do quarto de Blay. O que era bom... com certeza eles fechavam a cortina antes de terem relações sexuais.
Então, era seguro ficar observando. Certo...?
Além disso, Blay estava se recuperando de um ferimento; então, não poderiam sair rolando pelo quarto.
Dando uma de xereta, Qhuinn esquivou-se nas sombras e tentou não se sentir um intruso ao andar na ponta dos pés. Quando chegou ao lado da porta, preparou-se, inclinou-se e... respirou fundo e aliviado.
Blay estava sozinho na cama, deitado apoiado contra a cabeceira, seu roupão estava amarrado em meio à cintura, os tornozelos cruzados, os pés cobertos por meias pretas. Seus olhos estavam fechados e sua mão repousava sobre o ventre, como se estivesse cuidando do que, provavelmente, ainda estava enfaixado.
Um movimento do outro lado abriu as pálpebras de Blay e levou seus olhos a se fixarem na direção oposta às janelas. Era Layla que emergia do banheiro e andava lentamente. Os dois trocaram algumas palavras... sem dúvida, ele estava agradecendo pelo alimento que tinha acabado de ingerir e ela estava dizendo que era um prazer: não era surpresa ela estar ali. A Escolhida fazia rondas pela casa naquela noite e Qhuinn já havia cruzado com ela pouco antes da Primeira Refeição... ou o que teria sido a Primeira Refeição se alguém tivesse aparecido.
E quando ela saiu do quarto de Blay, Qhuinn esperou que Saxton entrasse. Nu. Com uma rosa vermelha entre seus dentes, e uma maldita caixa de chocolates.
E uma ereção que faria um monumento nacional parecer pequeno.
Nada.
Blay deixou a cabeça cair para trás e suas pálpebras fecharam-se outra vez. Parecia completamente exausto e, pela primeira vez, mais velho. Não era um garoto em transição recente; era um macho puro-sangue.
Um macho... belíssimo... e puro-sangue.
Em sua mente, Qhuinnn viu-se abrindo a porta e entrando. Blay olharia em volta e tentaria se sentar... mas Qhuinn acenaria para ele, para detê-lo, ao se aproximar.
Perguntaria sobre o ferimento. E Blay abriria o roupão para mostrar. Qhuinn estenderia a mão e tocaria o curativo... e, então, deixaria os dedos vagarem pela gaze e pelo esparadrapo sobre a pele lisa e quente do abdômen de Blay. Ele ficaria chocado, mas, naquela fantasia, Qhuinn deslizaria aquela mão... Mais para baixo, afastando-se do ferimento e descendo para os quadris e seu...
– Droga!
Qhuinn recuou com rapidez, mas já era tarde demais: de alguma forma, Saxton havia entrado no quarto, andado até as janelas e começou a fechar as cortinas. E, durante o processo, tinha visto o idiota do lado de fora da varanda dando uma de câmera de segurança.
Quando Qhuinn virou-se e pegou o caminho de volta para seu quarto, pensou: “Não abra a porta... não abra a porta...”
– Qhuinn?
Pego em flagrante.
Congelando como um assaltante com uma TV de plasma nos braços, certificou-se de que seu roupão estava fechado antes de se virar. Droga. Saxton estava saindo e o bastardo também estava de roupão.
Bem, parece que todos ostentavam um. Mesmo Layla estava vestida com uma peça de roupa assim.
Quando Qhuinn encarou seu primo, percebeu que não tinha dirigido mais que duas palavras ao cara desde que Saxton havia se mudado.
– Só estava pensando em como ele estava. – Não havia razão alguma para usar um nome... estava bem óbvio a quem estava observando.
– Blaylock está dormindo no momento.
– Ele se alimentou? – Qhuinn perguntou mesmo já sabendo a resposta.
– Sim – Saxton fechou a porta atrás dele, sem dúvida para não deixar o frio entrar e Qhuinn tentou ignorar o fato de que os tornozelos e os pés do cara estavam nus, pois havia grandes chances de que o resto dele estivesse assim também.
– Ah, desculpe ter incomodado vocês – Qhuinn murmurou. – Tenha uma boa no...
– Poderia ter simplesmente batido. No corredor – as palavras foram ditas com uma inflexão aristocrática que fez Qhuinn ficar completamente tenso. Não porque odiava Saxton; aquilo apenas lembrava-lhe demais a família que perdeu.
– Não queria lhe incomodar. Incomodá-lo. Nenhum dos dois.
Quando uma rajada de vento percorreu a casa, os cabelos muito grossos, loiros e ondulados de Saxton não se abalaram – como se cada parte dele, cada fio, fosse encorpado e bem-educado demais para ser afetado por... qualquer coisa.
– Qhuinn, você não estaria interrompendo nada.
Mentiroso, Qhuinn pensou.
– Estava aqui primeiro, primo – Saxton murmurou. – Se queria vê-lo ou ficar com ele, eu os deixaria a sós.
Quinn piscou. Então... os dois tinham um relacionamento aberto? Como assim?
Ou espere... talvez tivesse feito um ótimo trabalho ao convencer não apenas a Blay, mas a Saxton, de que não queria nada sexual com seu melhor amigo.
– Primo, posso falar sinceramente?
Qhuinn limpou a garganta.
– Depende do que tem a dizer.
– Sou o namorado dele, primo...
– Ei... – ergueu a mão. – Isso não é da minha conta...
– ... não o amor de sua vida.
Qhuinn piscou outra vez, e, em seguida, por uma fração de segundo, foi sugado para um lugar onde seu primo saía de cena graciosamente e Qhuinn substituía muito bem o filho da mãe. Só que... havia uma grande falha naquela fantasia: Blay tinha cortado relações com ele.
Havia projetado aquele resultado ao longo de muitos anos.
– Entende o que digo, primo? – Saxton manteve a voz baixa, mesmo com o vento soprando e a porta fechada. – Está me ouvindo?
Certo, aquilo não fazia parte nem um pouco do que Qhuinn esperava para a noite... ou para qualquer outra noite. Maldição, seu corpo começou a formigar de repente e tinha menos de um segundo para dizer a seu primo que fosse embora ou que se ferrasse ou mandá-lo para o inferno.
Só que, então, pensou em como Blay parecia mais envelhecido. O cara finalmente havia dado um grande passo em sua vida e era um crime negociar algo sobre isso ali fora, no escuro.
Qhuinn balançou a cabeça.
– Não é certo.
Não para Blay.
– Você é um tolo.
– Não. Eu costumava ser.
– Eu discordo. – A mão elegante de Saxton aproximou a gola de seu roupão. – Se me der licença, é melhor eu entrar. Está frio aqui fora.
Bem, aquilo soava como uma ótima metáfora.
– Não conte a ele sobre isso – Qhuinn disse asperamente. – Por favor.
Os olhos de Saxton se estreitaram.
– Seu segredo está muito bem guardado. Pode acreditar.
Com isso, virou-se e voltou a entrar no quarto de Blaylock; a porta fechou-se com um clique e, em seguida, a luz foi apagada assim que as cortinas pesadas foram arrastadas de volta para o lugar.
Qhuinn esfregou os cabelos outra vez.
Parte dele queria entrar e dizer: Eu mudei de ideia, porque... Agora, caia fora daqui para que eu possa...
Dizer a Blay o que disse a Layla.
Mas Blay deveria estar apaixonado por Saxton e Deus era testemunha de que Qhuinn havia ferrado com seu amigo muitas vezes.
Ou, melhor, ignorou-o, como era o caso.
Quando finalmente voltou para o quarto – apenas porque era patético demais ficar ali parado olhando para as cortinas fechadas –, percebeu que sua vida estava toda relacionada a ele. Era o que desejava, o que precisava, o que tinha de possuir.
O antigo Qhuinn teria pegado um ônibus e atravessado aquela porta com ele...
Com uma careta, tentou não pensar na frase de maneira tããão literal; porém, a questão era que o homossexual patético e fraco estava certo: se você ama alguém, tem de libertá-lo.
Em seu quarto, virou-se e sentou-se na cama. Olhando ao redor, viu a mobília que não havia comprado... e a decoração era ótima, mas anônima, e não tinha nada a ver com seu estilo. As únicas coisas que lhe pertenciam eram suas roupas no armário, o barbeador no banheiro e os tênis de corrida que usava quando chegava mais cedo.
Era como na casa de seus pais.
Bem, ali, as pessoas de fato lhe davam valor, mas conforme o tempo passava, não tinha uma vida própria, realmente. Era o protetor de John, um soldado da Irmandade. E...
Caramba, agora que não se entregava mais ao vício do sexo, esse era o fim da lista.
Recostando-se contra a cabeceira da cama, cruzou os pés e arrumou o roupão. A noite estendia-se à frente dele em uma planície horrível... como se estivesse dirigindo, dirigindo e dirigindo ao longo de um deserto... e tinha apenas mais do mesmo pela frente.
Meses do mesmo.
Anos.
Pensou em Layla e no conselho que tinha dado a ela. Cara, os dois estavam exatamente no mesmo lugar, não?
Fechando os olhos, ficou aliviado quando começou a divagar. Mas tinha a sensação de que qualquer tranquilidade não ia durar muito tempo.
E estava certo.
CAPÍTULO 42
No Hospital Equino Tricounty, Manny permaneceu parado enquanto Glory fungava em seu uniforme hospitalar, provavelmente sabendo que a deixaria. Mas constatou que era incapaz de separar-se ou separar Payne do cavalo.
O tempo estava se esgotando para sua Glory e isso o matava. Mas não poderia deixá-la definhar, permitir que ficasse cada vez mais magra e mais manca a cada dia que passava. Ela merecia muito mais que isso.
– Você a ama – Payne disse suavemente, sua mão pálida deslizava em volta do puro-sangue, descendo para o flanco.
– Sim. Amo.
– Ela tem muita sorte.
Não, ela estava morrendo e isso era uma maldição.
Ele limpou a garganta.
– Acho que precisamos...
– Dr. Manello?
Manny inclinou-se e olhou para a porta da baia.
– Oh, ei, doutor. Tudo bem?
Quando o veterinário-chefe caminhou até eles, seu smoking estava destoando tanto do local quanto um pinguim em uma praia tropical.
– Estou bem... e você parece muito bem.
O cara ajeitou a gravata borboleta.
– O traje de pinguim é porque vou a uma ópera. Mas tinha que passar por aqui e dar uma olhada na sua garota.
Manny aproximou-se e estendeu a mão.
– Eu também.
Quando apertaram as mãos, o veterinário olhou ao redor da baia... e seus olhos se arregalaram quando viu Payne.
– Ah... oi.
Quando Payne ofereceu ao homem um breve sorriso, o bom doutor piscou como se o sol tivesse se desvencilhado de várias nuvens e brilhado sobre ele.
Ceeerto, Manny estava farto de idiotas olhando para ela daquele jeito.
Colocando-se no caminho, disse:
– Existe algum tipo de suporte que poderia colocar nela? Para aliviar a pressão?
– Nós a imobilizamos durante algumas horas todos os dias. – Enquanto o veterinário respondia, avançava pouco a pouco para o lado de maneira que Manny teve de inclinar o tronco para continuar a bloquear a visão.
– Não quero correr o risco de problemas respiratórios ou gastrointestinais.
Entediado com a coisa da inclinação e querendo afastar Payne da conversa, Manny pegou o braço do cara e moveu os dois para um lado.
– Qual será nosso próximo passo?
O veterinário esfregou os olhos como se precisasse de um segundo para organizar sua mente.
– Para ser franco, doutor Manello, não tenho um bom pressentimento sobre nossa situação. O outro casco está afundando e apesar de estar fazendo tudo a meu alcance para tratar isso, não está reagindo.
– Tem que haver mais alguma coisa.
– Sinto muito.
– Quanto tempo até termos certeza...
– Tenho certeza agora. – O olhar do homem era muito triste. – Foi por isso que passei por aqui esta noite... estava esperando um milagre.
Bem, os dois estavam fazendo isso.
– Vou lhe dar um pouco mais de tempo com ela – o veterinário disse. – Fique o quanto precisar.
Na linguagem médica isso queria dizer: pode se despedir.
O veterinário colocou a mão no ombro de Manny brevemente e, então, virou e foi embora. Enquanto saía, verificou cada baia, checando seus pacientes, acariciando um focinho aqui e ali.
Um cara legal, bastante cuidadoso.
Alguém que esgota todas as possibilidades até determinar um cenário de derrota.
Manny respirou fundo e tentou dizer a si mesmo que Glory não era um animal de estimação. As pessoas não tinham cavalos de corrida como animais de estimação, e ela merecia mais do que sofrer em uma pequena baia enquanto ele encontrava coragem para fazer o que era certo em relação a ela.
Colocando a mão no peito, acariciou sua cruz atrás do jaleco e teve uma vontade súbita de ir à igreja...
No início, tudo o que notou foram as sombras na parede do outro lado. Em seguida, pensou que talvez alguém tivesse acendido as luzes.
Finalmente, percebeu que a iluminação vinha da baia de Glory.
O... que...
Escorregando, recuou... e teve de se equilibrar.
Payne estava de joelhos no feno macio, as mãos posicionadas sobre as pernas dianteiras de seu cavalo, os olhos fechados, sobrancelhas tensas.
E seu corpo brilhava com uma luz forte e bela.
Acima dela, Glory estava imóvel, mas seu couro contraía-se e os olhos reviravam. Alguns relinchos satisfeitos percorriam seu longo pescoço e saíam por suas narinas... como se tivesse uma sensação de alívio, alívio da dor.
As pernas dianteiras machucadas iluminaram-se levemente.
Manny não se moveu, não respirou, sequer piscou. Apenas segurou sua cruz ainda mais forte... e rezou para que ninguém interrompesse aquilo.
Não tinha certeza de quanto tempo os três permaneceriam assim, mas, em determinado momento, ficou claro que Payne estava se sobrecarregando com o esforço: seu corpo começou a vibrar e a respirar de maneira forçada.
Manny entrou na baia e a afastou de Glory, segurando seu corpo vacilante contra o seu, e tirou-a do caminho no caso do cavalo se assustar e fazer algo imprevisível.
– Payne? – Oh, Deus...
Os olhos dela tremularam.
– Eu... a ajudei?
Manny acariciava seus cabelos para trás enquanto olhava para a égua. Glory estava parada com firmeza, levantando um dos cascos da frente, depois outro e voltava a movimentar o primeiro como se estivesse tentando descobrir o que causou o repentino conforto. Então, estremeceu... e beliscou o feno que não havia tocado.
Quando aquele maravilhoso som da ponta de um focinho tocando a grama seca encheu o silêncio, olhou para baixo em direção a Payne.
– Você conseguiu – disse com voz rouca. – Acho que conseguiu.
Seus olhos pareceram se esforçar para voltar o foco.
– Não queria que a perdesse.
Transbordando de uma gratidão que não tinha palavras para expressar, Manny puxou-a para mais perto de seu coração e segurou-a por um momento. Desejava ficar daquela maneira por muito mais tempo, mas ela parecia não estar bem e só Deus sabia se alguém mais havia notado o brilho daquela luz. Tinha de tirá-los dali.
– Vamos para minha casa – disse. – Assim, poderá se deitar.
Quando ela assentiu, girou-a em seus braços e ela se encaixou perfeitamente. Quando fechou a baia, olhou para Glory. O cavalo estava fungando contra o feno como se aquilo fosse tudo o que tinha.
Meu Deus... será que tinha funcionado mesmo?
– Volto amanhã – disse a ela, antes de começar a se afastar, impulsionado por uma esperança incandescente.
No balcão da segurança, sorriu e deu de ombros para o cara.
– Alguém está fazendo plantão dobrado no hospital. Ela está exausta.
O homem levantou-se como se a mera presença de Payne, mesmo inconsciente, fosse suficiente para chamar sua atenção.
– É melhor levá-la para casa. É preciso cuidar bem de uma mulher como essa.
Com certeza.
– É exatamente para onde estou indo.
Movendo-se com rapidez, passou pela recepção e aguardou o ruído para que pudesse empurrar as últimas portas. Com alguma sorte, o veterinário-chefe não tinha visto nada...
– Obrigado, Jesus – Manny murmurou quando ouviu o sinal e abriu a porta com o quadril.
Não perdeu tempo ao se dirigir para o carro, apesar de tirar as chaves e manter Payne erguida ao mesmo tempo ter sido uma confusão. Abrir a porta também foi difícil. Mas, em seguida, colocou-a no banco do passageiro, perguntando-se o tempo todo se estava doente. Droga, não tinha como entrar em contato com ninguém do mundo dela.
Dando a volta e sentando-se atrás do volante, pensou: “Dane-se, vou levá-la direto para os vampiros...”
– Posso pedir-lhe uma coisa? – disse ela lentamente.
– Qualquer coisa... O que você...
– Posso tomar de sua veia um pouco? Encontro-me... curiosamente esgotada.
Certo, tudo bem. Estamos aqui para isso: trancou as portas, puxou as mangas da roupa e estendeu-lhe o braço.
Os lábios macios encontraram seu pulso, mas sua mordida não foi ágil, como se estivesse tendo problemas para reunir forças. Ainda assim, começou o trabalho e ele pulou, a dor aguda cravou-se em seu coração e o deixou um pouco tonto. Ou... talvez aquilo estivesse acontecendo em função da excitação súbita e avassaladora que percorreu não apenas seu pênis como o corpo inteiro.
Com um gemido, seus quadris moveram-se sobre o banco do Porsche e deixou sua cabeça cair para trás. Deus, aquilo era bom... o ritmo da sucção que sentia seguia sua ereção... e, mesmo doendo, os puxões e os goles que recebia eram um prazer, um doce e picante prazer pelo qual tinha certeza que poderia morrer.
Caiu em um estado de total felicidade; parecia que havia se passado séculos desde a última vez que não estiveram ligados por aquelas presas em sua carne.
O tempo não tinha qualquer significado nem a realidade de que estavam em um estacionamento dentro de um carro com janelas de vidros claros.
Dane-se o mundo.
Eram apenas ele e ela, juntos.
E isso foi antes dos olhos de diamante de Payne se abrirem e se fixarem nele, observando não seu rosto, mas seu pescoço.
Vampira... ele pensou. Linda vampira.
Minha.
Quando aquele pensamento fundiu-se em sua mente, começou a agir no piloto automático, deslocando a cabeça para o lado, oferecendo sua jugular para ela...
Não precisou pedir duas vezes. Em um grande impulso, Payne se ergueu, lançando-se sobre o corpo dele; sua mão penetrou seus cabelos e apertou sua nuca. Enquanto o detinha sob seu controle, Manny ficou totalmente imobilizado, e ela também, por capturá-lo... presa para sua predadora. E agora que o possuía, suas presas deslizaram sobre a pele e encaixaram-se na altura da garganta, fazendo-o enrijecer ao antecipar a sensação da punção e da sucção...
– Droga! – ele vociferou quando ela o mordeu. – Oh... sim...
As mãos dele agarraram os ombros de Payne, puxando-a para ainda mais perto.
– Tome tudo... tome... oh, Deus... oh, droga...
Algo acariciou seu pênis. E uma vez que sabia exatamente onde estavam suas mãos, tinha de ser ela. Ao movimentar-se, ergueu-se um pouco mais e deu-lhe o máximo de espaço possível para se mover... e ela o fez, para cima e para baixo contra sua ereção, os quadris de Manny ajudavam, intensificando as carícias.
A respiração dele era alta no interior do carro quando começou a ofegar e seus gemidos também: não levou muito tempo até que seu pênis ficasse dormente, a ponta tensa contra a pressão.
– Eu vou gozar – ele gemeu. – É melhor parar se não quiser que...
Com isso, ela puxou o laço do uniforme hospitalar e colocou uma das mãos ali dentro...
Manny viu estrelas. No instante que as peles se encontraram, ele gozou como nunca antes, sua cabeça foi para trás com força, as mãos cravaram sobre os ombros de Payne, os quadris se movimentavam como loucos. E ela não parou de beber ou de acariciar... assim como havia sido antes, ele continuou gozando, o prazer se intensificava a cada espasmo que tinha contra a ereção.
Acabou cedo demais.
Por outro lado, poderiam ficar ali por uma década e ele continuaria faminto.
Quando Payne desvencilhou-se dele, recuou e lambeu as feridas feitas por suas presas afiadas, sua língua era rosada contra as pontas brancas. Cara... aquela luz gloriosa brilhava sob sua pele, fazendo com que ela parecesse um sonho.
Oh, espere, ela era um sonho, não era?
– Seu sangue é forte – disse com voz rouca enquanto curvava-se sobre ele outra vez e lambia sua garganta. – Muito forte.
– É? – ele murmurou. Mas não teve certeza se pronunciou mesmo alguma coisa. Talvez tivesse apenas pensado as palavras.
– Posso sentir o poder percorrendo dentro de mim.
Cara, nunca esteve em um carro esportivo grande antes – aquelas máquinas eram muito desajeitadas e a direção era instável, pareciam pedregulhos caindo de uma montanha –, mas o que não daria por um banco traseiro onde pudesse colocar algo maior que uma bolsa de tacos de golfe. Queria deitá-la ali e...
– Quero mais de você. – Payne murmurou ao se aninhar sobre ele.
Bem, Manny ainda estava duro como uma pedra, mesmo tendo acabado de...
– Quero você na minha boca.
A cabeça de Manny foi impulsionada para trás e gemeu quando seu pênis estremeceu como se uma corrida fosse começar lá embaixo. Mas, por mais que a desejasse, não tinha certeza se ela sabia o que estava por vir. Apenas o pensamento dos lábios dela sobre seu...
A cabeça de Payne desceu sobre o colo antes que ele pudesse encontrar fôlego para falar e não houve preliminares: ela o chupou, masturbando-o em sua boca quente e molhada.
– Droga! Payne!
Suas mãos apoiaram-se sobre os ombros dela, para puxá-la de maneira ostensiva... mas ela não deu a mínima para isso.
Sem qualquer treino, sabia exatamente como fazer, puxando e sugando antes de lamber o tronco. Em seguida, ela o explorou com tal profundidade que Manny só pôde concluir que estava gostando daquilo tanto quanto ele... e aquilo era demais.
Só que sentiu presas no topo, provocando-lhe.
Ele a ergueu rapidamente nesse momento, capturando sua boca em um beijo forte enquanto segurava seu rosto, mas logo perdeu aquilo que tinha entre as mãos. Não durou muito. Ela se desvencilhou dele e voltou para onde estava, capturando-o outra vez no meio de um orgasmo, lambendo o local de seu corpo que parecia desejá-la com todas as forças.
Quando os espasmos pararam, ela se afastou, olhou para ele... e, lentamente, lambeu os lábios.
Manny teve de fechar os olhos diante dessa visão, sua ereção pulsando a ponto de doer.
– Vai me levar para sua casa agora – ela rosnou. Não era uma solicitação. E o tom sugeria que estavam pensando exatamente o mesmo.
Assim, aquilo os levaria apenas a uma única coisa.
Manny reuniu forças e abriu os olhos. Endireitando-se, tocou o rosto dela e acariciou o lábio inferior com o polegar.
– Não tenho certeza se deveríamos, bambina – disse em um tom áspero.
A mão dela apertou seu pênis e ele gemeu.
– Manuel... acho que é exatamente o que precisamos fazer.
– Não é... uma boa ideia.
Payne afastou-se e recolheu a mão, seu brilho desapareceu.
– Mas está excitado. Mesmo agora.
Acha mesmo?
– Esse é o ponto.
Seus olhos percorreram o rosto dela e foram para os seios. Estava tão desesperado por ela, que sentia a tentação de rasgar aquele uniforme hospitalar em dois e tirar a virgindade dela em seu carro.
– Não serei capaz de me segurar, Payne. Mal consigo fazer isso agora...
Ela ronronou de satisfação e lambeu os lábios vermelhos outra vez.
– Eu gosto quando perde o controle.
Oh, Deus, aquilo não ajudava em naaada.
– Eu... – ele balançou a cabeça, pensando que aquilo era ridículo... negar-lhe tal coisa machucava muito. – Acho que deve fazer o que precisa e me deixar agora. Enquanto ainda consigo deixá-la ir.
O som de batidas na janela não fez sentido no começo. Só havia eles dois ali naquele estacionamento vazio. Mas, então, o mistério foi resolvido:
– Saia do carro. E passe a carteira.
Uma voz masculina vinda da janela atingiu a cabeça de Manny... de onde visualizou o tambor de uma arma.
– Você me ouviu, cara. Saia do carro ou eu atiro.
Quando Manny colocou Payne de volta no assento do passageiro, disse suavemente:
– Quando eu sair, tranque as portas. Bem aqui.
Moveu uma das mãos sobre um painel e pressionou um botão.
– Deixe-me lidar com isso. – Tinha mais ou menos quatrocentos dólares em dinheiro na carteira e vários cartões de crédito. – Fique aqui dentro.
– Manuel...
Ele não deu tempo para responder... até onde sabia, aquela arma tinha todas as respostas e impunha todas as regras.
Pegando a carteira, abriu a porta lentamente, mas foi rápido ao sair e quando fechou Payne lá dentro, esperou ouvir as travas das portas.
E esperou.
Desesperado para ouvir o som de Payne acionando as travas de segurança, ouviu vagamente quando o cara de máscara de esqui vociferou:
– A carteira. E diga para a vadia sair do carro.
– Tem quatrocentos...
A carteira desapareceu.
– Diga para sair ou ela vem comigo. E o relógio. Quero o relógio.
Manny olhou para o edifício. Havia janelas em toda parte e com certeza aquele guarda tinha que dar uma olhada para verificar como estavam as coisas lá fora de vez em quando.
Talvez, se ele entregasse devagar...
O cano da arma foi pressionado contra seu rosto.
– Relógio. Agora.
Não era um bom relógio... não operava com seu Piaget, pelo amor de Cristo. Mas não tinha importância... o idiota podia ficar com a maldita coisa. Além disso, quando fingiu que suas mãos tremiam, percebeu que não havia o que questionar...
Difícil dizer o que aconteceu e em qual ordem.
Relembrando, sabia que Payne tinha de ter aberto a porta primeiro. Mas parece que no instante em que ouviu o som horrível do lado do passageiro, ela já estava atrás do ladrão.
E outra coisa estranha foi que isso não aconteceu até que Manny amaldiçoou o fato do bastardo ter percebido a presença de um terceiro elemento no cenário. Só que não poderia ser verdade... ele a teria visto andando ao redor do carro, certo?
Seja como for... foi assim que aconteceu e o mascarado acabou saltando para trás e oscilava entre Payne e Manny com a arma.
Mas aquela partida de tênis não ia durar muito. Com uma lógica terrível, Manny sabia que o cara ia se voltar para Payne, pois era a parte mais fraca do...
Quando, outra vez, o cano da arma oscilou em direção a ela, Payne... desapareceu. E não foi por ter se abaixado ou se esquivado ou corrido muito rápido. Ela estava lá num momento, ocupando espaço... e havia desaparecido em seguida.
Reapareceu uma fração de segundo depois e pegou o pulso do cara no momento em que ia colocar a arma de volta no rosto de Manny. O ato de desarmá-lo também foi muito rápido: primeiro, ela pegou a arma; depois, tirou-a das mãos do filho da mãe; em seguida, jogou-a para Manny, que pegou a coisa.
Então, era hora de finalizar.
Payne girou o cara, agarrou a parte de trás da cabeça e colou o rosto dele no capô do Porsche. Depois de lustrar um pouco a pintura do carro com aquela carranca, reposicionou-o e agarrou a calça jeans folgada do filho da mãe. Erguendo-o pelos cabelos e pelo que era ou o cós de sua calça ou seu ânus, ela o dominou e o jogou... a uns dez metros de distância.
O Super-Homem não faria tão bem... e o ladrão acabou acertando em cheio a parede do hospital equino. O edifício não reagiu e, como era de se esperar, nem o ladrão. Ele aterrissou de bruços em um canteiro de flores e ficou lá, os membros inertes como carne morta e daí para mais.
Nenhum movimento. Nenhum gemido. Nenhuma tentativa de se levantar.
– Você está bem, Manuel?
Manny virou a cabeça lentamente para Payne. Ela sequer estava ofegando.
– Jesus... Cristo... – ele sussurrou.
Quando as palavras de Manny foram levadas por uma brisa, Payne ajeitou sua blusa folgada e as calças soltas. Então, alisou o cabelo. Parecia ser a única coisa possível de se fazer para ficar mais apresentável após o ato de violência.
Quanto esforço desperdiçado na tentativa de ficar mais feminina. Enquanto isso, Manuel continuava apenas olhando para ela.
– Não vai dizer mais nada? – disse ela em voz baixa.
– Hã... – Manuel colocou a mão livre sobre a cabeça. – Sim. Hã... deixe-me ver se ele está vivo.
Payne cruzou os braços enquanto caminhava até o humano. Na verdade, não se importava muito com as condições que tinha deixado o ladrão. Sua prioridade era tirar aquela arma letal do rosto de Manuel e cumpriu sua tarefa. Qualquer coisa que tivesse acontecido com o ladrão era irrelevante... mas era evidente que não conhecia as regras daquele mundo, ou as implicações do que havia feito.
Manuel estava na metade do caminho do canteiro quando a “vítima” rolou com um gemido. As mãos que seguravam a arma de fogo foram até a máscara que cobria seu rosto e ele puxou a malha até a testa.
Manuel ajoelhou-se.
– Eu sou médico. Quantos dedos têm aqui?
– O quê...?
– Quantos dedos?
– Três...
Manuel colocou a mão sobre o ombro do rapaz.
– Não se levante. Foi um golpe forte na cabeça. Tem algum formigamento ou dormência nas pernas?
– Não – o rapaz encarou Manuel. – Por que... está fazendo isso?
Manuel despistou a pergunta.
– Isso se chama curso de medicina... cria uma necessidade compulsiva de tratar uma doença ou um ferimento independentemente da circunstância. Acho que vamos precisar chamar uma ambulância...
– De jeito nenhum!
Payne desmaterializou-se para aproximar-se deles. Apreciava as boas intenções de Manuel, mas preocupava-se com a possibilidade de haver outra arma com o ladrão...
No instante em que apareceu atrás de Manuel, o cara encolheu-se no chão de horror, ergueu os braços e recuou.
Manuel olhou sobre o ombro... e nesse momento Payne viu que ele não era ingênuo. Tinha a arma apontada para o homem.
– Tudo bem, bambina. Peguei o cara...
Atordoado e desajeitado, o ladrão levantou-se e Manuel o acompanhou com a arma apontada em sua direção enquanto o humano tropeçava e recuperava o equilíbrio apoiando-se no edifício.
Era evidente que estava pronto para fugir.
– Vamos ficar com a arma – Manuel disse. – Entendeu? E não preciso dizer o quanto você tem sorte em estar vivo... ninguém agride minha namorada.
Quando o cara sumiu nas sombras, Manny levantou-se.
– Preciso levar essa arma à polícia.
Então, ele simplesmente a olhou.
– Tudo bem, Manuel. Posso cuidar da minha presença diante do guarda, assim, ninguém ficará sabendo de nada. Faça o que deve ser feito.
Com um aceno de cabeça, ele tirou um pequeno dispositivo telefônico, abriu e pressionou alguns botões. Colocando-o sobre o ouvido, disse:
– Sim, meu nome é Manuel Manello e fui abordado com uma arma de fogo em meu veículo. Estou no Hospital Tricounty...
Enquanto falava, ela olhou em volta e pensou que não desejava que aquilo tivesse acabado assim. Só que...
– Tenho que ir – ela disse quando Manuel desligou. – Não posso... continuar aqui se aparecer mais humanos. Só complicaria as coisas.
Manny abaixou o telefone lentamente.
– Certo... sim – franziu a testa. – Ah, ouça... se a polícia chegar, preciso me lembrar do que aconteceu ou... droga, terei uma arma nas mãos sem poder lhes dar qualquer motivo para isso.
De fato, parecia que estavam presos. E, pela primeira vez, estava grata por um aprisionamento.
– Quero que se lembre de mim – ela disse em voz suave.
– Esse não era o plano.
– Eu sei.
Ele balançou a cabeça.
– Você é a coisa mais importante nisso tudo. Então, precisa cuidar-se e isso significa apagar minha...
– Dr. Manello! Dr. Manello... o senhor está bem?
Payne olhou sobre o ombro. O primeiro macho humano que viram no balcão dentro do hospital vinha correndo pelo gramado em pânico.
– Faça isso – Manuel disse. – E vou descobrir um jeito depois...
Quando o guarda aproximou-se correndo deles, Payne encarou o recém-chegado.
– Estava fazendo minha ronda – o homem disse. – E quando estava checando os escritórios na outra extremidade do prédio, vi o senhor pela janela... e corri o mais rápido que pude!
– Estamos bem – disse ela ao guarda. – Mas poderia observar uma coisa para mim?
– Claro! A polícia já foi chamada?
– Sim – ela tocou sob o olho direito. – Olhe para mim, por favor.
Ele já estava fixado no rosto dela e a concentração extra só facilitou seu trabalho; tudo o que ela teve de fazer foi abrir caminho dentro de seu cérebro para colocar um remendo mental em tudo o que se relacionava a ela.
Até onde o humano sabia, o cirurgião tinha chegado e saído sozinho.
Manteve o homem em transe e virou-se para Manuel.
– Não precisa se preocupar. As memórias dele são de muito curto prazo, vai ficar bem.
Ao longe, ouviram o som de sirenes, estridente e urgente.
– É a polícia – disse Manuel.
– Então, tenho que ir.
– Como vai para casa?
– Da mesma maneira que saí do seu carro.
Ela esperou que se aproximasse dela... ou dissesse alguma coisa... ou... mas apenas ficou ali parado com o ar noturno silencioso e frio pairando entre eles.
– Vai mentir para eles? – Manny perguntou. – Dizer que apagou minhas lembranças?
– Não sei.
– Bem, no caso de precisar voltar para fazer isso, estarei no...
– Boa noite, Manuel. Por favor, permaneça em segurança.
Com isso, ela ergueu uma das mãos e, de maneira silenciosa e inexorável, desapareceu.
CAPÍTULO 43
Se aquilo era um truque, era um muito estranho.
– Então, onde está seu amigo?
Karrie Ravisc, mais conhecida nas ruas como Kandy, prostituía-se há mais ou menos nove meses, então, já tinha visto muita porcaria. Mas aquilo...
O homem enorme na porta do quarto de motel falou em voz baixa:
– Está chegando.
Karrie deu outra tragada e pensou: bem, ao menos aquele cara na sua frente era bonitão. Já tinha pagado quinhentos dólares e a instalou naquele quarto. Ainda assim... Havia alguma coisa errada ali.
Sotaque estranho. Olhos estranhos. Ideias estranhas.
Mas muito bonitão.
Enquanto esperavam, deitou-se nua na cama com todas as luzes apagadas. Porém, não estavam totalmente no escuro. O sujeito com a carteira cheia de dinheiro tinha colocado uma grande lanterna no quarto, sobre a cômoda barata. A luz estava direcionada para iluminar seu corpo, como se estivesse em um palco, ou talvez em uma obra de arte.
O que, na verdade, era menos estranho do que algumas coisas que já havia feito. Droga, se a prostituição não fizesse alguém pensar que os homens eram nojentos e uns bastardos doentes, nada mais faria: além dos trapaceiros loucos e dos tipos que gostavam de ficar no comando, havia os filhos da mãe cheios de fetiches, aqueles que gostavam de ser espancados e outros que desejavam que urinassem sobre eles.
Finalizando o baseado, apagou a bituca e pensou que talvez aquela coisa de holofotes não fosse tão ruim. Um idiota quis comer hambúrgueres em cima dela há duas semanas e aquilo, sim, foi grosseiro...
O clique da fechadura virando fez ela pular e percebeu com um estalo que alguém, de alguma forma, havia entrado sem ela notar; aquilo era a porta sendo trancada. Por dentro.
E agora havia um segundo homem perto do primeiro.
Ainda bem que seu cafetão estava no quarto ao lado.
– Boa noite – ela disse, ao se estender mecanicamente para os dois. Seus seios eram falsos, mas boas falsificações, seu estômago era plano mesmo já tendo um filho e não estava apenas depilada, mas havia passado por um processo de eletrólise.
Isso permitia cobrar o que cobrava.
Cara... outro grandão, pensou quando o segundo cara se aproximou e parou na beirada da cama. Na verdade, aquele era enorme. Um mamute, mas não gordo e desleixado... seus ombros eram tão quadrados que pareciam ter sido desenhados com uma régua e seu peito formava um triângulo perfeito sobre seus quadris firmes. Não conseguia ver seu rosto, uma vez que a luz estava vindo por trás dele, mas não se importou quando o primeiro cara deitou-se ao lado dela na cama.
Droga... ela viu-se excitada de repente. Era o tamanho deles e o perigo da escuridão e aroma que exalavam. Deus... o cheiro era incrível.
– Vire de bruços – o segundo exigiu.
Deus, aquela voz. O mesmo sotaque estrangeiro do cara que a tinha instalado ali, mas muito mais profundo... e havia uma vantagem nisso.
– Quer mesmo ver meu traseiro? – disse lentamente, enquanto se sentava. Colocando as mãos sobre os seios extragrandes, ela os ergueu e os uniu. – Porque minha frente é ainda melhor.
Com isso, ela ergueu um dos seios e esticou a língua para lamber o próprio mamilo enquanto os olhos iam e vinham entre os homens.
– De bruços.
Certo, era evidente que havia uma hierarquia ali: o cara deitado ao lado dela ostentava uma tremenda ereção, mas não fazia nenhum movimento em direção a ela. E o Sr. Mandão era o único que falava.
– Se é assim que deseja.
Tirando os travesseiros da cama, fez um show ao girar, torcendo o tronco de modo que um de seus seios ainda aparecesse. Com a unha pintada de esmalte preto, fazia círculos ao redor dos bicos ao arquear as costas e mostrar as nádegas.
Um rosnado sutil percorreu através do ar saturado e rarefeito do quarto e esse foi o sinal. Abrindo as pernas, arqueou a parte inferior do corpo para cima, posicionando os dedos dos pés e curvando a coluna outra vez.
Sabia exatamente o que mostrava ao sujeito parado nos pés da cama... e o rosnado sugeriu que gostou daquilo que tinha. Então, era hora de ir mais além. Olhando para ele, colocou o dedo médio na boca e o sugou; então, deslocou seu peso para cima e levou o dedo até seu sexo para acariciar-se.
Se era a erva ou... droga, alguma coisa naqueles homens... ficou muito excitada de repente. A ponto de querer o que estava prestes a acontecer.
Quando o cara começou a se aproximar dela, o que estava comandando a situação colocou a mão na frente dos quadris.
– Beije-a – ele ordenou.
Ela estava tão pronta para isso, mesmo sendo algo que não permitisse normalmente. Virando o rosto para o outro, sentiu sua boca ser tomada por um conjunto de lábios macios e exigentes... e, em seguida, uma língua a penetrou...
Ao mesmo tempo, mãos enormes agarraram a parte superior das suas coxas e as afastaram ainda mais.
E outro par de mãos instalou-se sobre seus seios.
Mesmo sendo uma profissional, sua mente fez uma pequena viagem, toda aquela porcaria com a qual geralmente se preocupava enquanto fazia o que precisava fazer fugiu... e levou consigo coisas como: onde estavam as camisinhas? Quais eram as regras do jogo?
Fivela. Zíper. Em seguida, ouviu o som de calças caindo ao chão e sentiu o movimento do colchão quando algo pesado deitou-se.
Perguntou-se vagamente se o pênis que havia surgido ali era tão grande quanto o resto do homem atrás dela... se fosse, cara, já estava pensando em oferecer uma segunda rodada grátis. Isso se conseguissem manter o ritmo por tanto tempo...
Uma cabeça cheirando a álcool e cigarro aproximou-se dela enquanto mãos ergueram seus quadris do colchão e a colocaram de quatro.
Deus, o cara era enorme... e ela se preparou para uma série de movimentos quando a palma daquela mão percorreu sua coluna e os dedos enroscaram-se em seus cabelos curtos. Parecia que ia arrancar sua cabeça, mas não se importava. Só queria mais daquele homem dentro dela...
Só que não entrou com força e não se moveu imediatamente; em vez disso, acariciou-a como se tivesse gostado da sensação da sua carne, passando a mão em seus ombros e, mais uma vez, ao redor de sua cintura... e mais abaixo em seu sexo lubrificado. E quando a penetrou completamente, era como uma lâmina lisa e deu-lhe um segundo para se acostumar com a grossura e o comprimento.
Então, travou em seus quadris com as palmas das mãos e começou a arremeter. Nesse momento, o amigo dele se colocou embaixo dela para chupar-lhe os seios.
Com a intensificação do ritmo, os mamilos açoitavam a boca do que estava embaixo dela para frente e para trás ao ritmo dos quadris que pulsavam em seu traseiro várias vezes. Mais rápido. Mais forte. Mais rápido...
– Acabem comigo – ela vociferou. – Oh, droga, isso...
De repente, o que estava deitado no colchão virou-se, reposicionou-a e preencheu a boca dela com o maior pênis que já havia ingerido.
Ela realmente teve um orgasmo.
Se eles continuassem assim, ela iria pagá-los.
Uma fração de segundo depois, o homem atrás dela recuou e ela sentiu um jato quente espalhar-se ao redor dela. Mas ele não tinha terminado. Recomeçou os movimentos um momento depois, tão grosso e rígido como na primeira investida.
O que estava chupando gemia e foi separada dele, pois sua cabeça foi erguida. Ele gozou em seus seios, jorrando violentamente ao longo do seu peito com mais daquele cheiro incrível quando o outro saiu e ejaculou outra vez em suas costas.
Em seguida, o mundo girou e ela viu-se de costas, o cara da carteira assumiu o lugar do que estava no comando e a penetrou, preenchendo-a com algo tão grosso quanto o do outro.
Foi ela quem estendeu a mão para o amigo silencioso que comandava, trazendo seu pênis até a boca, conseguiu afastá-lo de seu papel de espectador e o introduziu dentro dela outra vez.
Era tão grande que teve de abrir bem a mandíbula para conseguir encaixá-lo na garganta e o sabor era delicioso... nada parecido com o que teve antes. Ao sugá-lo com seu amigo atrás dela golpeando muito bem, estava envolta da sensação de ser preenchida, de ser invadida por algo rígido, por pênis poderosos que abalavam todo seu corpo.
Em seu delírio, tentou ver o homem que estava sugando, mas, de alguma forma, ele mantinha a luz atrás de si... e tornava tudo ainda mais erótico, como se estivesse chupando uma sombra. Cara, ao contrário do outro, não emitia qualquer som e nem ofegava. Mas estava excitado, de verdade, empurrava seu sexo contra sua boca, tirava e empurrava de volta. Até que se retirou e apertou a ereção com uma das mãos. Unindo os seios, ela proporcionou um ótimo terreno para gozar e, cara, mesmo sendo a terceira vez, ele a cobriu por inteiro.
Até seu peito ficar brilhante, escorregadio... e escorrendo.
A próxima coisa que percebeu foi que seus joelhos foram erguidos até as orelhas e o cara do dinheiro ia dar um jeito nela da melhor maneira possível. E, então, o chefe beijou-lhe os lábios outra vez, pressionando, querendo mais. Algo pelo qual ela estava muito feliz em proporcionar.
Ao observá-los enquanto moviam-se em sincronia, sentiu uma sensação de medo percorrê-la. Arqueada embaixo deles, teve a sensação de que poderiam quebrá-la ao meio se quisessem.
Mas não a machucaram.
E continuaram, os dois trocavam de lugar várias vezes. Era óbvio para ela que faziam aquilo sempre e, Deus, estava com muita vontade de lhes dar o número de seu telefone.
Finalmente, acabaram.
Nenhum deles disse nada. Nem para ela, nem entre eles... o que era diferente, pois a maioria dos ménages à trois que fazia acabava com os caras conversando alegremente entre si. Aqueles dois, não; fecharam seus zíperes e... bem, como era de se esperar, as carteiras apareceram outra vez.
Enquanto permaneciam parados em cima dela, levou as mãos à boca, ao pescoço e aos seios. Estava lambuzada em tantos lugares que mal conseguia contar – e adorou. Acariciou o que os caras deixaram sobre sua pele, brincando com aquilo, pois simplesmente desejava... não era mais para diverti-los.
– Queremos lhe dar outros quinhentos – o primeiro disse em voz baixa.
– Para quê? – aquele tom satisfeito era mesmo dela?
– Vai ser bom. Prometo.
– É algo depravado?
– Muito.
Ela riu e revirou os quadris.
– Então, eu digo sim.
Quando o cara tirou as verdinhas, parecia haver muitas delas na carteira... e talvez se ele fosse outra pessoa, ela poderia ter ido até seu cafetão e sugerir a Mack para abordá-lo no estacionamento. Mas não ia fazer isso; em parte porque o sexo tinha sido incrível; e além disso, os caras provavelmente espancariam a droga do seu chefe.
– O que você quer que eu faça? – perguntou enquanto pegava o dinheiro e o fechava com força nas mãos.
– Abra as pernas.
Ela não pensou duas vezes, seus joelhos se afastaram.
E eles não hesitaram, os dois se inclinaram em direção a seu sexo escorregadio.
Caramba, será que iam chupá-la? Apenas pensar sobre isso fez seus olhos revirarem e ela gemeu...
– Ai!
Tentou erguer-se, mas as mãos forçaram-na a ficar no colchão.
A sucção sutil veio em seguida e deixou-a tonta. Porém, não era em seu sexo. Estavam nas laterais, bem próximos do centro, na junção onde suas pernas encontravam o tronco.
A sucção era rítmica... como se estivessem se alimentando.
Karrie suspirou e entregou-se àquela sensação. Tinha a impressão chocante de que estavam se alimentando dela de alguma forma, mas aquilo era incrível... especialmente quando alguma coisa a penetrou. Talvez dedos... provavelmente.
Sim, definitivamente.
Quatro dedos a penetraram e duas mãos separadas iniciaram uma série de puxões alternativos enquanto as duas bocas sugavam sua pele.
Ela gozou de novo.
E de novo.
E de novo.
Depois de só Deus sabe quanto tempo, eles a lamberam algumas vezes... nos locais onde tinham sugado, não onde suas mãos estavam.
E, então, tudo se desprendeu, bocas, dedos, corpos.
Os dois se endireitaram.
– Olhe para mim – o líder disse.
Suas pálpebras estavam tão pesadas que teve que se esforçar para obedecer. E no momento em que fez isso, sentiu uma dor lancinante em suas têmporas. Mas que não durou muito e depois... ficou apenas flutuando.
Foi por isso que não prestou muita atenção no grito abafado e distante que veio da porta ao lado... não do quarto onde Mack estava instalado, mas do outro.
Bum! Tum. Pum...
Karrie começou a adormecer nesse ponto, morta para o mundo, o dinheiro colado na palma da mão enquanto aquilo que estava molhado começava a secar.
Não se preocupava com nada. Na verdade, sentia-se incrível.
Droga... com quem havia estado...?
Quando Xcor saiu do quarto de motel da prostituta com Throe logo atrás dele, fechou a porta e olhou para a esquerda e para a direita. A instalação que seu soldado havia escolhido para aquela diversão carnal estava nos arredores da cidade. Decaído e já apodrecendo em alguns lugares, o edifício de apenas um andar tinha sido dividido em mais ou menos cinquenta pequenas caixas do tamanho de armários, com o escritório no final do caminho à esquerda. Queria o último quarto na outra extremidade para ter mais privacidade, mas o melhor que Throe pôde fazer foi conseguir algo perto da entrada.
Porém, quais eram as chances reais daquele local estar totalmente ocupado? Não havia quase ninguém ali.
Analisando as vagas de estacionamento em frente ao quarto deles, viu um Mercedes preto que tentava desesperadamente parecer mais novo do que era... e uma caminhonete com uma capa sobre a cabine. Os outros dois carros estavam mais distantes, perto do escritório.
Aquele lugar era perfeito para o propósito que tinham. Isolado, ocupado por pessoas que não queriam ninguém se metendo em suas vidas e preparado para estender serviços semelhantes a outros. E a iluminação externa era precária: apenas uma a cada seis lâmpadas funcionavam... Inferno, o dispositivo elétrico ao lado de sua cabeça havia sido esmagado. Então, tudo estava escuro e sombrio.
Ele e seu bando de bastardos teriam de encontrar fêmeas de sua raça para servir a suas necessidades de sangue a longo prazo e isso acabaria acontecendo. Até lá? Teriam de se valer daquilo que ele e Throe haviam acabado de saborear e fariam aquilo ali, naquele lugar deserto.
Throe falou calmamente:
– Satisfeito?
– Sim. Ela era muito boa.
– Fico feliz.
Um aroma no ar atraiu as duas cabeças em direção à porta do quarto mais distante. Xcor inalou profundamente para confirmar o que tinha sentido com a leve brisa, o cheiro de sangue humano fresco foi uma surpresa desagradável.
Ao contrário da expressão no rosto de Throe: desagradável, mas sem surpresa alguma.
– Sequer pense nisso – Xcor vociferou. – Throe... Droga!
O soldado virou-se para a porta com uma expressão estrondosa... seu instinto agressivo sem dúvida foi inflamado porque era o sangue de uma fêmea sendo derramado: a fertilidade no ar era óbvia.
– Não temos tempo para isso – Xcor disparou.
Como resposta, Throe chutou a maldita porta.
Quando Xcor xingou, considerou rapidamente em se desmaterializar da cena; o que o distanciou do impulso foi o ato de dar uma olhada dentro do local. A veia heroica ridícula de Throe abriu caminho para uma grande confusão. Literalmente.
Uma fêmea humana estava amarrada à cama com alguma coisa amontoada em sua boca. Estava quase morta... e perto demais de colocar o pé na cova para ser salva. Seu sangue estava em toda parte, na parede atrás dela, pingando no chão, encharcando o colchão. As ferramentas que tinham auxiliado o ato estavam na mesa de cabeceira: duas facas, fita adesiva, tesouras... e meia dúzia de pequenos frascos com fluidos transparentes dentro deles e com as tampas retiradas.
Havia coisas flutuando na...
Uma batida ecoou do banheiro. Como se um painel ou uma janela tivessem sido abertos e fechados em seguida.
Quando Throe correu em direção ao som, Xcor avançou e pegou o macho pelo braço. Com dois movimentos rápidos, Xcor tirou a braçadeira de metal que mantinha junto a seu cinto de armas e apertou o objeto no braço grosso do soldado. Puxando de volta o macho com todo seu peso, balançou-o como uma bola no final de uma corrente. Houve um baque na parede quando o gesso barato recebeu o impacto do pêndulo vampiro.
– Deixe-me ir.
Xcor puxou o cara para ainda mais perto.
– Isso não é problema seu.
Xcor puxou o braço e deu um soco na parede, quebrando o superfície plana.
– É sim! Solte-me!
Xcor bateu na nuca do macho.
– Não. É. Seu. Mundo!
Nesse momento, começaram a se debater, os dois lutavam e batiam em objetos do quarto, produzindo mais barulho do que deveriam. E estavam prestes a cair no carpete ensanguentado quando um macho humano atarracado e com óculos escuros do tamanho de vidraças deslizou pela porta. Deu uma olhada na cama, outra para Xcor e Throe e, em seguida, murmurou alguma coisa, cobrindo os olhos com seus antebraços ao se abaixar e sair.
Uma fração de segundo depois, a porta do quarto onde tinham transado com aquela fêmea humana abriu e fechou... em seguida, abriu e fechou outra vez. Saltos altos ressoaram em passos rápidos e descoordenados e houve um barulho de pessoas entrando em um carro.
Um motor rugiu e o Mercedes saiu rápido do estacionamento, sem dúvida, com a prostituta e o dinheiro dentro dele.
A rápida partida provou serem verdadeiras as hipóteses que Xcor tinha elaborado sobre a clientela do lugar.
– Ouça-me – disse a Throe. – Ouça-me bem, seu bastardo estúpido... não é problema nosso. Mas se ficar aqui vai acabar sendo...
– O assassino foi embora!
– E nós também vamos.
Os olhos pálidos de Throe encararam a cama e a máscara de raiva escorregou por um breve momento. O que havia sob ela deteve até mesmo o impulso agressivo de Xcor. Tanta dor. Deus, quanta dor.
– Ela não é sua irmã – Xcor sussurrou. – Agora, venha comigo.
– Não posso... deixá-la... – Os grandes olhos vidrados atingiram os dele. – Não pode me pedir isso.
Xcor virou-se, mantendo o pulso firme sobre o soldado. Tinha de haver algo do assassino ali, algo que pudesse ter...
Xcor arrastou o lutador para o banheiro e houve uma satisfação cruel quando observaram a janela acima do vaso sanitário. O painel espesso de vidro fosco estava intacto, mas havia uma faixa vermelha brilhante na borda da caixa de metal.
Era exatamente o rastro de que precisavam.
Xcor aproximou-se da janela e passou dois dedos ao redor do que havia detido e rasgado a carne humana.
O sangue aderiu a sua carne, empoçando-a.
– Abra – ordenou.
Throe abriu a boca e sugou aqueles dois dedos, fechando os olhos para se concentrar enquanto sirenes começavam a soar pela noite.
– Temos que partir – Xcor disse. – Venha comigo agora e permitirei que saia para encontrar o macho. Concorda? Pode assentir com a cabeça. – Quando Throe assentiu, decidiu que precisava de mais. – Jure.
Throe inclinou-se em reverência.
– Juro.
A braçadeira foi liberada... então, os dois desapareceram no fino ar assim que luzes azuis anunciaram a chegada da polícia humana.
Xcor não era misericordioso em situação alguma; mas se tinha de ser assim, não ofereceria piedade alguma àquele humano criminoso... que agora era o alvo de Throe... e, logo, seria sua presa.
CAPÍTULO 44
– Dr. Manello?
Ao som de seu nome, Manny voltou-se para a realidade e descobriu que, sim, ainda estava no Tricounty, no gramado. Era muito irônico o fato do guarda de segurança ter sido o único a receber um tratamento mental e, ainda assim, ser o único focado na situação.
– Ah... sim. Desculpe. O que disse?
– O senhor está bem?
– Não, não estou.
– Bem, o senhor foi demais... Não posso acreditar como lidou com ele. Em um minuto, ele o enfrentava... no outro, o senhor tinha a arma e ele estava.... voando. Claro que deve estar cansado.
– Sim. É isso. Exatamente.
Os policiais apareceram dois segundos depois e foi uma enxurrada de perguntas e respostas. E foi ótimo; o guarda sequer mencionou Payne. Era como se ela nunca tivesse estado lá.
Não deveria ser novidade, se considerasse tudo o que Manny havia passado não apenas com ela, mas com Jane. Mesmo assim, era estranho.
Simplesmente não tinha entendido muito bem tudo aquilo: Payne havia desaparecido no ar na frente dele; não deixou nada de si para trás, ao menos não até onde o guarda sabia, mas o cara se lembrava muito bem de Manny; não sabia como ela havia conseguido ficar tão calma e sob controle em uma situação tão ameaçadora.
Na verdade, aquela última parte tinha sido totalmente erótica. Observá-la surrar aquele maldito sujeito foi muito excitante... Manny não tinha certeza do que aquilo poderia dizer sobre si mesmo, mas era isso.
E pensou que ela ia mentir. Diria às pessoas que tinha limpado a mente dele. Diria que havia cuidado das coisas.
De fato, Payne havia encontrado uma solução: Manny ainda tinha sua mente, ela tinha suas pernas funcionando e ninguém saberia disso entre seu irmão e sua classe.
Sim, tudo estava resolvido. Tudo o que tinha de fazer agora era passar o resto de sua vida indo atrás de uma mulher que nunca encontraria. Super fácil.
Uma hora depois, entrou no Porsche e dirigiu-se para Caldwell. Guiando sozinho, o carro não parecia apenas vazio, mas um terreno baldio e viu-se abaixando e subindo as janelas. Não era o mesmo.
Payne não sabia onde ele morava, pensou. Mas isso não importava, não é mesmo? Ela não voltaria.
Deus, era complicado decidir o que era mais difícil: uma longa despedida onde ela olharia em seus olhos e o impediria de falar demais ou aquele esparadrapo retirado de uma só vez.
De qualquer maneira era terrível.
No Commodore, entrou no subsolo, estacionou em sua vaga e saiu. Chamou o elevador. Subiu até seu apartamento. Entrou. Fechou a porta.
Quando o celular tocou, atrapalhou-se para tirá-lo do bolso e quando viu o número, amaldiçoou. Era Goldberg, ligando do centro médico.
Atendeu sem entusiasmo algum.
– Oi.
– Você atendeu – disse o cara com alívio. – Tudo bem?
Certo. Não queria muito responder.
– Estou bem – Quando houve uma pausa, disse. – E você?
– Estou bem. As coisas têm sido... – Hospital. Hospital. Hospital hospital, hospitalh ospit alhosp. Ital hospit alhospital...
Entrava por um ouvido e saía pelo outro. Porém, Manny ocupou-se um pouco. Foi até o bar na cozinha, pegou um Lagavulin e sentiu-se como tivesse recebido um soco na cabeça quando viu como havia pouca bebida na garrafa. Inclinando-se no gabinete, pegou um Jack Daniels da parte de trás que estava ali há tanto tempo que já havia poeira na tampa.
Algum tempo depois, desligou o telefone e levou a sério a questão da bebida. A garrafa do uísque Lagavulin primeiro. O Jack em seguida. Então, foi o caso de recorrer às garrafas de vinho na geladeira. E o que restou das cervejas... foram guardadas na despensa; portanto não estavam geladas.
Porém, seu cérebro não reconheceu qualquer diferença entre a bebida quente e a porcaria gelada.
Dito isso, gastou uma hora no festival do consumo alcoólico. Talvez mais. E foi muito eficaz. Quando pegou a última cerveja e começou a ir para o quarto, sentiu como se estivesse na ponte de comando da Enterprise*, cambaleando para a esquerda e para a direita... e voltando um pouco para trás. E mesmo conseguindo enxergar bem o caminho com a luz ambiente da cidade, tropeçou com várias coisas: por algum milagre inconveniente, sua mobília ganhara vida e a porcaria estava determinada a ficar em seu caminho... tudo, das cadeiras de couro acolchoadas até a...
– Droga!
... mesa de centro.
Eeeeeeeee o fato de que esfregar a canela enquanto avançava foi como adicionar um par de patins à festa. Quando chegou ao quarto, deu um gole na cerveja para celebrar e tropeçou na banheira. Água ligada. Roupas tiradas. Entrar. Não havia razão para esperar a coisa esquentar. Não conseguia sentir nada mesmo e esse era o ponto.
Não se preocupou em se secar; apenas caminhou até a cama com a água pingando do corpo e acabou com a cerveja quando se sentou. Então... só havia um monte de nada. Seu teor de álcool estava bem alto, mas ainda tinha de alcançar mais fundo para derrubá-lo com tudo.
Mas consciência era um termo relativo. Embora estivesse acordado, sem dúvida estava totalmente desconectado... e não só por causa de sua taxa de álcool no sangue. Estava sem energia por dentro, de uma maneira muito curiosa.
Caindo sobre o colchão, pensou que se a situação Payne estava resolvida era hora de começar a reorganizar sua vida... ou pelo menos fazer uma tentativa disso amanhã de manhã, quando sua ressaca o acordasse. Sua mente estava bem, então não havia razão para não voltar ao trabalho e tratar de distanciar aqueles malditos momentos do resto de sua vida normal.
Enquanto olhava para o teto, ficou aliviado quando sua visão ficou turva.
Até que ele percebeu que estava chorando.
– Maldito covarde.
Enxugando os olhos, decidiu que não ia continuar com aquilo de jeito nenhum. Só que foi o que fez... e permaneceu assim. Deus, a saudade que sentia dela já chegava ao ponto da agonia.
– Maldito... inferno...
Ergueu a cabeça de repente e seu pênis latejou. Olhou para fora através da porta de vidro deslizante em seu terraço e procurou pela noite com um desespero que o fez se sentir como se suas crises de loucura estivessem de volta.
Payne...
Payne...?
Lutou para se levantar da cama, mas seu corpo recusou-se a obedecer... como se seu cérebro estivesse falando em um idioma e seus braços e pernas não conseguissem traduzir. E então a embriaguez venceu, pressionando o Ctrl-Alt-Del e fechando seus programas.
Porém, não reiniciou.
Depois que suas pálpebras se fecharam, as luzes se apagaram, por mais que lutasse contra a maré.
No terraço, Payne permaneceu parada no vento frio, os cabelos eram açoitados, sua pele formigava devido à temperatura.
Havia desaparecido da visão de Manuel. Mas não havia lhe deixado.
Mesmo depois de Manny provar ser capaz de cuidar de si mesmo, ela se camuflou com o mhis e permaneceu parada no gramado do hospital equino, observando-o conversar com a polícia e o guarda de segurança. E quando entrou no carro, ela o seguiu desmaterializando-se pouco a pouco e conseguiu segui-lo graças à pequena quantidade de sangue que tomou dela.
A viagem até sua casa culminou nas profundezas de uma cidade menor do que a que havia visto no carro, mas ainda era impressionante, com seus prédios altos, ruas belas e pavimentadas, pontes altas que atravessavam um rio muito largo. Caldwell era realmente adorável à noite.
Será que tinha ido até ali para dizer um adeus invisível?
Quando Manuel entrou em algum tipo de instalação subterrânea para veículos, ela o deixou continuar sozinho. O propósito de Payne foi alcançado quando ele chegou a seu destino com segurança; com isso, soube que precisava partir.
Mas permaneceu ali na rua, mantendo-se no mhis, vendo os carros passarem e os pedestres atravessarem as ruas. Uma hora se passou. E mais um pouco. E, ainda assim, não conseguia partir.
Cedeu a seu coração e começou a subir, subir, subir... dirigindo-se para onde Manuel estava. Tomou forma do lado de fora do terraço do apartamento... e o encontrou no meio do caminho entre a cozinha e a sala. Seu desequilíbrio era evidente, tropeçava em várias peças da mobília... porém, não pelo fato das luzes estarem apagadas. Sem dúvida, era pela bebida em suas mãos. Ou, mais precisamente, toda bebida que já havia tomado antes disso.
Em seu quarto, não se despiu, arrancou as roupas e entrou no chuveiro. Quando saiu do banheiro todo molhado, ela teve vontade de chorar. Parecia tão difícil compreender que apenas um dia os separava do momento em que ela testemunhou pela primeira vez o corpo dele assim... Contudo, na verdade, ela sentia como se pudesse praticamente estender a mão no tempo e tocar aqueles momentos elétricos quando estiveram prestes a... não era apenas um presente, era um futuro.
Não mais.
Sentou-se sobre a cama... depois, jogou-se no colchão.
Quando começou a enxugar as lágrimas, ela ficou completamente arrasada. E isso aumentou sua necessidade de aproximar-se dele...
– Payne.
Com um grito baixinho, ela virou-se. Do outro lado do terraço, em pé na brisa... estava seu irmão gêmeo, e, no instante em que colocou os olhos sobre Vishous, soube que alguma coisa havia mudado nele. Sim, sua face já estava curada do dano que infligiu a si mesmo no espelho... mas não era essa a alteração. O interior dele estava diferente: a tensão, a raiva e a frieza assustadora haviam desaparecido.
Quando o vento emaranhou os cabelos dela, tentou recompor-se rapidamente, enxugando as lágrimas que brilhavam sobre seus olhos.
– Como sabia... que eu estava...?
Com sua mão enluvada, apontou para cima.
– Tenho um apartamento. No topo do edifício. Jane e eu estávamos saindo quando senti que estava aqui.
Ela deveria saber. Da mesma maneira que conseguia sentir o mhis dele... ele poderia sentir o dela.
E como desejava que ele não se detivesse ao ir embora. A última coisa que precisava naquela noite era outra rodada de “autoridade” masculina dizendo-lhe o que fazer. Além disso, o Rei já havia decretado suas leis. O decreto de Wrath não precisava de um reforço vindo de seu irmão.
Ergueu a mão para detê-lo antes que dissesse qualquer palavra sobre Manuel.
– Não estou interessada em lhe ouvir dizendo tudo o que nosso Rei já disse. E já estava indo embora.
– A memória dele já foi apagada?
Ela ergueu o queixo.
– Não, não foi. Ele me levou para sair e houve um... incidente...
O rosnado que seu irmão soltou foi mais alto que o vento.
– O que ele fez...?
– Não foi ele. Por um acaso, poderia... deixar de odiá-lo? – Quando esfregou as têmporas, perguntou-se se a cabeça de alguém já havia explodido... ou se todos na Terra sentiam-se assim de vez em quando. – Fomos atacados por um humano e no processo de desarmá-lo...
– O humano?
– Sim... nesse processo, eu machuquei o homem e a polícia foi chamada...
– Você desarmou um humano?
Payne encarou seu irmão gêmeo.
– Quando remove a arma de alguém, é assim que chamam, não?
Os olhos de Vishous se estreitaram.
– Sim. É.
– Não podia apagar as memórias de Manuel, pois ele não seria capaz de responder as perguntas feitas pela polícia. E eu estou aqui... pois queria vê-lo em casa em segurança.
No silêncio que se seguiu, ela percebeu que tinha se apoiado em algum lugar. Para proteger Manuel, acabou comprovando o argumento de seu irmão de que o macho que desejava não era capaz de cuidar dela. Ah, mas isso não importa. Se levasse em conta que estava disposta a obedecer ao Rei, de qualquer maneira não havia futuro para ela e Manuel.
Quando Vishous ia abrir a boca, ela gemeu e levou as mãos aos ouvidos.
– Se tem alguma compaixão, deixe-me chorar sozinha. Não consigo ouvir todas as razões pelas quais preciso me separar dele... conheço todas. Por favor. Apenas vá.
Fechou os olhos, virou-se e rezou para que sua mãe permitisse que ele fizesse o que tinha pedido...
A mão em seu ombro era pesada e quente.
– Payne. Payne, olhe para mim.
Sem energia para lutar, ela deixou cair os braços e encontrou aqueles olhos sombrios.
– Responda-me uma coisa – seu irmão gêmeo disse.
– O quê?
– Ama esse bast... esse homem? Você o ama?
Payne olhou através do vidro em direção ao humano sobre a cama.
– Sim. Estou apaixonada por ele. E se tentar dissuadir-me disso com o fato de que ainda não vivi o suficiente para julgar, eu lhe digo: dane-se. Não preciso conhecer o mundo para perceber o que meu coração deseja.
Houve um longo silêncio.
– O que Wrath disse?
– A mesma coisa que você diria. Que devo apagar as lembranças relacionadas a mim da memória dele e nunca, jamais voltar a vê-lo.
Quando seu irmão não disse nada, ela balançou a cabeça.
– Por que ainda está aqui, Vishous? Está tentando pensar em alguma coisa para dizer e, assim, me convencer a ir para casa? Deixe-me poupá-lo do esforço... quando a madrugada se aproximar, eu partirei... e obedecerei às regras, mas não porque é bom para você ou para o Rei ou para mim mesma. É porque é a coisa mais segura a se fazer por ele... ele não precisa de inimigos como você e a Irmandade para torturá-lo só porque me sinto assim. Então, estará acabado, assim como deseja. Só que... – nesse momento, ela o encarou – não vou limpar as memórias dele. A mente dele é valiosa demais para ser desperdiçada... e ele não vai suportar outro processo. Vou mantê-lo seguro não voltando mais aqui, mas não vou condená-lo a uma vida de demência. Isso não vai acontecer... ele não fez nada além de me ajudar. Merece mais do que ser usado e descartado.
Payne voltou os olhos para o vidro.
Depois de um longo período de silêncio, concluiu que seu irmão havia partido. Então, quase gritou quando parou em frente a ela e bloqueou a visão de Manuel.
– Ainda está aqui – ela vociferou.
– Vou dar um jeito nisso para você.
Payne recuou e, em seguida, rosnou:
– Não se atreva a pensar em matá-lo...
– Com Wrath. Vou dar um jeito nisso. Vou... – Vishous alisou os cabelos. – Vou fazer alguma coisa para que possa ficar com ele.
Payne piscou. Em seguida, sentiu a boca se abrir.
– O que... o que disse?
– Conheço Wrath há muitos anos. E, tecnicamente, de acordo com as Leis Antigas, sou o líder da nossa pequena família feliz. Irei até ele e lhe direi que aprovo essa... união e que acho que pode ver o bast... o cara. Homem. Manello – limpou a garganta. – Wrath é muito preocupado com a segurança, mas com o mhis ao redor do complexo... Manello não conseguiria nos encontrar se quisesse. Além disso, é hipocrisia negar-lhe o que os outros Irmãos fazem de vez em quando. Droga, Darius teve uma criança com uma mulher humana... e Wrath está casado com a filha dele agora. De fato... se tentasse separar nosso Rei de sua Beth quando a conheceu... Ele teria matado qualquer um que tivesse sequer mencionado tal sugestão. A Mary de Rhage? Mesma coisa. E deve ser o mesmo... para você. Falo até com nossa mahmem, se necessário.
Payne colocou uma das mãos sobre o coração que pulsava forte.
– Não... não entendo porque faria... isso.
Olhou sobre o ombro e encarou o humano que ela amava.
– É minha irmã. E ele é o que você quer – deu de ombros. – E... bem, eu me apaixonei por uma humana. Apaixonei-me por Jane em menos de uma hora depois de conhecê-la. Se o que sente por Manello for ao menos metade do que sinto por minha shellan, sua vida nunca será completa sem ele...
Payne lançou-se sobre seu irmão e o abraçou. Quase o derrubando ao chão.
– Oh... meu irmão...!
Passou os braços ao redor dela e a envolveu.
– Desculpe-me por ter sido tão idiota.
– Você foi... – procurou outra palavra. – Sim, você foi muito idiota.
Ele riu, o som retumbou em seu peito.
– Viu? Conseguimos concordar em alguma coisa.
Enquanto ela o abraçava, disse:
– Obrigada... Obrigada...
Depois de um momento, afastou-se.
– Deixe-me falar com Wrath primeiro antes de falar com Manello, certo? Quero ajeitar tudo com antecedência... e, sim, vou para casa agora. Jane está de plantão e a Irmandade está de folga esta noite, então, já posso acertar alguma coisa com o Rei. – Houve uma pausa. – Só quero uma coisa em troca.
– O quê? Qualquer coisa. Pode dizer.
– Se for ficar aqui até o amanhecer, entre. Está congelando aqui fora. – Deu um passo para trás. – Vá em frente... vá e fique com seu... macho... – Esfregou os olhos e Payne teve a sensação de que estava se lembrando do que viu quando a encontrou no banho com seu curandeiro. – Vou voltar... ah, ligue... Tem um telefone? Aqui pegue o meu... Droga, não estou com ele.
– Está tudo bem, meu irmão. Voltarei ao amanhecer.
– Bom, sim... eu deveria saber.
Ela o encarou.
– Amo você.
Agora, ele sorria. Um sorriso largo e sem reservas. Erguendo a mão, acariciou o rosto dela.
– Amo você também, irmãzinha. Agora, entre e se aqueça.
– Vou entrar. – Deu um pulo e beijou a bochecha dele. – Vou entrar!
Com um aceno, ela se desmaterializou através do vidro.
Oh, como o interior parecia quente em comparação ao terraço... ou talvez fosse apenas a onda de alegria que emanava dela. Seja lá o que fosse, girou sobre um dos pés e, depois, seguiu até a cama.
Manuel não estava apenas dormindo, mas desmaiado... Mas ela não se importava. Subindo na cama, colocou um braço ao redor dele e, instantaneamente, ele gemeu e virou-se para ela, puxando-a para si e a abraçando.
Quando seus corpos fundiram-se e sua ereção tocou o quadril de Payne, os olhos dela voltaram-se para o terraço.
Não havia razão para forçar a sorte com Vishous... mas, felizmente, ele tinha partido.
Sorrindo na escuridão, ela ficou à vontade e acariciou o ombro de seu macho. Tudo ia dar certo e a chave disso era a lógica avassaladora que Vishous havia detalhado. Na verdade, o argumento era tão eficaz que não podia acreditar que não havia pensado nisso antes.
Porém, Wrath poderia não gostar disso; mas, concordaria, pois fatos eram fatos... e era um governante justo que havia provado várias vezes não ser um escravo das antigas leis.
Quando aconchegou-se ao lado dele, sabia que não havia qualquer possibilidade de dormir e, assim, correr o risco de ser queimada pelo sol: estava incandescente quando deitou-se na cama ao lado de Manuel, brilhava tanto que lançava sombras sobre a sala.
Nada de cair no sono para ela.
Queria apenas desfrutar daquele sentimento.
Para sempre.
Nome da nave espacial de Jornada nas Estrelas. (N.P.)
CONTINUA
CAPÍTULO 35
Quando Payne se vestiu e saiu para o corredor, seu irmão gêmeo já havia partido. No entanto o sangue no chão indicou-lhe a direção que ele seguiu e ela acompanhou a trilha ao longo do corredor e do espaço envidraçado em que se lia “Escritório”. No interior, as pequenas partículas vermelhas faziam um caminho ao redor da mesa e desapareciam por uma porta; então, ela se aproximou a abriu...
Apenas um armário, nada além de um estoque de papéis e material de escritório. Porém, havia mais do que isso; tinha de haver. A trilha de gotas terminava em uma parede de prateleiras.
Tateando, procurou uma alavanca ou alguma coisa que se movesse, enquanto pensava na cena do espelho estilhaçado.
Tinha muito medo, não por ela, mas por Vishous... e o que ela havia lhe induzido a fazer, outra vez. Ela queria ter um relacionamento com seu irmão, mas não assim; nunca havia desejado aquela interação tóxica.
– Procurando alguma coisa?
Olhou por cima do ombro em direção a seu curandeiro. Parado na entrada do escritório, ainda estava molhado, mas não pingava mais e tinha uma toalha branca ao redor de seu pescoço. O cabelo curto e escuro estava desgrenhado, como se tivesse esfregado para secar e deixado como estava.
– Não consigo encontrar o caminho. – Não só relacionado àquilo, mas a muitas outras coisas.
Payne levou um bom tempo apenas olhando fixamente para as pilhas de blocos de notas amarelos, caixas de canetas e fileiras de objetos bem ordenados e alinhados com cuidado cuja função Payne poderia apenas imaginar. Quando finalmente desistiu e saiu, seu curandeiro ainda estava na entrada do escritório, ainda a encarava. Seus olhos estavam negros com a emoção, os lábios finos... e, por alguma razão, sua expressão fez com que ela percebesse como estava totalmente vestido.
Como ele permanecia completamente vestido sempre que se deitava com ela.
Nunca permitiu que ela o tocasse, não foi?
– Você concorda com meu irmão – disse ela com um tom sombrio. – Não concorda?
Não era uma pergunta, e ficou surpresa quando ele assentiu.
– Não é uma coisa a longo prazo – disse com uma gentileza horrível. – Não para você.
– Então foi por isso que não tive o prazer do seu sexo.
As sobrancelhas de Manny ergueram-se brevemente, como se a sinceridade dela o incomodasse.
– Payne... não pode dar certo entre nós.
– Quem disse? A escolha é nossa quanto a quem...
– Tenho uma vida para a qual preciso voltar.
Quando sua respiração ficou mais tensa, ela pensou: como era incrivelmente arrogante. Nunca lhe ocorreu que ele tinha outro lugar para ir; por outro lado, assim como seu irmão havia apontado, quanto ela sabia sobre ele?
– Eu tenho família – ele continuou. – Um trabalho. Um cavalo que preciso ver como está.
Payne caminhou até ele, aproximando-se com sua cabeça erguida.
– Por que chegou à conclusão de que só pode ser isso ou aquilo? Antes que tente, não gaste palavras dizendo que não me deseja. Sei que é verdade... seu perfume não nega.
Ele limpou a garganta.
– Sexo não é tudo, Payne. E mesmo sentindo todo o prazer, não passa disso.
Com isso, outro calafrio percorreu o corpo de Payne, como se houvesse uma brisa passando pela sala. Mas, então, balançou a cabeça.
– Você me desejou, curandeiro. Quando voltou e me viu naquela cama... seu aroma não tinha nada a ver com a condição em que eu me encontrava, e é um covarde se fingir o contrário. Esconda-se se quiser, curandeiro...
– Meu nome é Manny – ele retrucou. – Manuel Manello. Trouxeram-me aqui para ajudá-la... e, no caso de não ter notado, está em pé. Então, eu ajudei. Agora? Estou apenas esperando para que sua gente mexa com meu cérebro outra vez e prendam-me de alguma maneira para que eu não consiga separar o dia da noite e os sonhos da realidade. Este é o seu mundo, não o meu, e existe apenas uma coisa ou outra.
Os olhos deles se encontraram e, naquele momento, como se as instalações estivessem em chamas, ela sentiu que não poderia desviar o olhar... e percebeu que ele também não.
– Se pudesse dar certo – ela disse com tom severo –, se permitissem que entrasse e saísse quando bem entendesse, ficaria comigo?
– Payne...
– Minha pergunta é clara. Responda. Agora. – Quando as sobrancelhas dele se ergueram, não conseguia dizer se estava animada ou assustada com seu ímpeto, mas não se importava com isso naquele momento.
– A verdade é o que é – balançou a cabeça lentamente. – Seu irmão não acha que...
– Dane-se meu irmão – ela rebateu. – Diga-me o que você acha.
No silêncio tenso que se seguiu, ela percebeu o que tinha acabado de dizer e teve vontade de amaldiçoar outra vez. Abaixando a cabeça, olhou para o chão, não com brandura, mas sentindo-se frustrada. Fêmeas de valor não usavam palavras como aquela e não pressionavam as pessoas nem por guardanapos de pano, muito menos por algo assim.
Na verdade, uma fêmea adequada permaneceria sob os cuidados do membro masculino mais velho da família, que controlaria todas as grandes decisões em sua vida, moldando todo seu caminho, desde onde moraria até com quem se casaria.
Explosões. Sexo. Palavrões. Um pouco mais disso e realizaria o desejo de Vishous, pois seu curandeiro – Manuel, esse era o nome dele – a consideraria tão pouco atraente que iria implorar para se afastar dela, sem memória alguma de seu tempo juntos.
Será que ela nunca se encaixaria no padrão feminino de perfeição que era Layla?
Esfregando os olhos, ela murmurou:
– Vocês dois têm razão... só que pelos motivos errados. Nossa relação não poderia dar certo nunca, pois não sou uma boa companheira para nenhum tipo de macho.
– O quê?
Cansada de tudo... dele, de seu irmão, de si mesma, de machos e fêmeas em geral... Fez um breve gesto como se estivesse dissipando alguma coisa no ar com a mão e virou-se.
– Você diz que esse é meu mundo? Pois está muito errado; não pertenço a esse lugar mais do que você.
– Do que diabos está falando?
Na verdade, ele poderia muito bem ter uma imagem real das coisas ao sair dali. Inferno. Olhou por cima do ombro.
– Sou filha de uma deusa, Manuel. Uma divindade. Aquele brilho que provoca em mim? É a essência dela como uma entidade. Isso é o que ela é. Quanto a meu pai? Não era nada além de um bastardo sádico que me transmitiu o desejo de matar... isso não é um “dom”. E quer saber o que fiz com isso? Quer? – Tinha consciência de que o volume de sua voz estava aumentando, mas estava muito pouco inclinada a se acalmar. – Eu o matei, Manuel. E por cometer tal crime contra minha linhagem, por essa ofensa contra os padrões de comportamento das fêmeas, fui aprisionada e mantida assim por séculos. Então, você tem toda razão. Vá... Faça isso agora; é o melhor. Mas não pense que me encaixo melhor do que você neste lugar.
Com outro resmungo passou por ele e saiu para o corredor, acreditando que Manuel se veria livre muito em breve...
– Foi seu irmão. Não foi?
As palavras calmas e baixas ecoaram pelo árido corredor, detendo não apenas os passos de Payne, mas seu coração.
– Eu vi o estado dele – Manuel disse com uma voz profunda. – Existe alguma possibilidade de seu pai ter feito aquilo com o cara?
Payne virou-se lentamente. Em pé, no meio do corredor, seu curandeiro não mostrava nem choque nem horror, apenas uma inteligência que já esperava dele.
– Por que acha isso? – ela disse em um tom letal.
– Quando o operei, vi cicatrizes e ficou muito claro que alguém tentou castrá-lo. Será que estou extrapolando? Pela minha limitada interação com ele, diria que é sensível e agressivo demais com qualquer um que queira o melhor para ele; então, ou foi atacado por um bando de loucos ou alguém o pegou em um momento em que era muito vulnerável. Acho que a última opção é a mais provável, pois... bom, digamos que eu ficaria surpreso se abusos sexuais por parte dos pais não acontecesse também em meio a sua espécie.
Payne engoliu em seco e levou um longo, longo tempo antes que ela conseguisse encontrar sua voz.
– Nosso pai... Sujeitou V. Ordenou um ferreiro tatuá-lo... e a usar um alicate.
Manuel fechou os olhos por alguns instantes.
– Sinto muito. Sinto muito... mesmo.
– Nosso pai foi escolhido para ser um tipo de senhor e reprodutor por sua agressividade e crueldade, e meu irmão foi entregue a ele quando era muito jovem... enquanto eu ficava no Santuário com nossa mahmen. Como não tinha nada para passar meu tempo, via o que acontecia aqui na Terra nas bacias da visão e... meu irmão foi abusado ao longo dos anos no campo de guerra. Dizia isso a minha mãe de tempos em tempos, mas ela insistia em cumprir o acordo com Bloodletter. – Fechou os punhos com força. – Aquele macho, aquele maldito e sádico macho... não era capaz de cuidar de filho algum, mas ela lhe garantiu um de nós para que concordasse em se acasalar com ela. Três anos depois que nascemos, ela abandonou Vishous à crueldade de nosso pai enquanto fazia o máximo possível para me forçar a seguir um modelo que nunca se encaixaria comigo, e, então, aquele último episódio de quando Vishous foi... – Lágrimas brotaram de seus olhos. – Não poderia mais aceitar... não poderia mais deixar de fazer alguma coisa. Desci até aqui e.. e cacei Bloodletter. Eu o detive no chão enquanto o queimava até virar cinzas. E não me arrependo disso.
– Quem a aprisionou?
– Minha mãe. Mas a prisão foi apenas parcial, pois ele estava morto. Algumas vezes eu achava que era mais por ela sentir uma decepção tremenda com relação a mim. – Enxugou o rosto rapidamente e secou a umidade dos dedos. – Mas chega disso, chega de... tudo isso. Vá agora... Vou falar com o Rei e enviá-lo de volta. Adeus, Manuel.
Em vez de esperar que respondesse, saiu com rapidez passando por ele mais uma vez...
– Sim, eu a desejo.
Payne parou e olhou sobre o ombro outra vez. Depois de um momento, ela disse:
– É um ótimo curandeiro e precisa exercer seu trabalho, como teve toda razão em mencionar. Não temos mais motivos para conversar.
Quando voltou a andar, os passos dele se aproximaram com rapidez e a alcançou, girando-a.
– Se tivesse tirado minhas calças, não conseguiria me afastar de você.
– Mesmo?
– Dê-me sua mão.
Sem olhar, ela lhe ofereceu uma das mãos.
– Por que...
Ele agiu rápido, colocando a palma da mão dela entre suas pernas e pressionando-a contra e extensão quente e dura que havia entre seus quadris.
– Você está certa – moveu-se contra ela, seu pênis latejava, a ereção pressionava a mão dela quando ele começou a ofegar. – Mesmo se eu tentasse me convencer do contrário, sabia que se ficasse nua, você permaneceria virgem até o momento que a estendesse sobre a cama. Nada romântico, mas real e totalmente verdadeiro.
Quando os lábios dela se abriram, seus olhos estenderam-se para a boca e ele rosnou.
– Pode sentir a verdade, não pode? Está na sua mão.
– Não se importa com o que eu fiz...?
– Quer dizer, quanto ao seu pai? – ele deteve a carícia e franziu a testa. – Não. Para ser sincero, sou o tipo de cara adepto à lei de talião*. Seu irmão poderia muito bem ter morrido com aqueles machucados... Não importa quão rápido sua gente pode se curar. Mas, indo direto ao ponto, estou disposto a apostar que essa relação pai e filho deve ter detonado a cabeça dele para o resto da vida... então, não, não tenho problemas com o que fez.
Justiça retaliatória, pensou quando as palavras dele infiltraram-se dentro dela.
Voltando a pressionar onde ele a havia induzido, retomou o que tinha parado, fazendo movimentos para cima e para baixo sobre o sexo dele, acariciando-o.
– Fico feliz por se sentir assim.
E aquilo era verdade de muitas maneiras: a ereção dele era deliciosa, tão rígida e contundente na ponta. Desejava explorá-lo assim como ele fez com ela... com os dedos... a boca... a língua...
Manuel revirou os olhos lentamente enquanto rangia os dentes.
– Mas... seu irmão ainda está certo.
– Está...? – Ela curvou-se e lambeu os lábios. – Tem certeza?
Quando ela recuou, houve um momento escaldante quando os olhos deles se encontraram... e, então, com um rugido, ele a girou e a empurrou contra a parede.
– Tenha cuidado. – ele rosnou.
– Por quê? – Mergulhou os lábios sobre o pescoço dele e arrastou uma presa lenta e inexoravelmente ao longo de sua jugular.
– Oh, droga... – Xingando desesperado, fixou os olhos nos dela, mantendo a palma de sua mão naquele lugar entre seus quadris, obviamente tentando mudar o foco. – Ouça-me. Por mais que seja bom o que existe entre nós... – ele engoliu em seco. – Muito bom... Droga, olha, seu irmão sabe o que está acontecendo... não posso cuidar de você da maneira adequada e...
– Posso cuidar de mim mesma. – Pressionou a boca contra a dele e sabia que o possuía quando seus quadris começaram a se movimentar para frente e para trás: ele poderia ter detido sua mão, mas seu corpo estava muito à vontade ali.
– Droga – ele rugiu. – Você me deseja agora?
– Sim. Quero saber como é.
Mais beijos. E embora fosse ele quem estivesse agarrando-a e pressionando-a contra a parede, era ela a agressora.
Manny recuou, mas foi apenas o que pareceu, com um grande esforço. Depois de respirar fundo várias vezes, disse:
– Perguntou-me se eu ficaria com você se pudesse. Não tem nem o que pensar. Você é linda, sexy e eu não sei o que sua mãe ou qualquer outra pessoa têm na cabeça comparando você com alguma coisa ou alguém. Nada se compara a você... de maneira alguma.
Enquanto falava, estava mortalmente sério e era muito sincero... e aquela aceitação foi generosa e única: ela nunca teve aquilo de ninguém. Mesmo o próprio irmão queria negar-lhe a escolha do parceiro.
– Obrigada – ela sussurrou.
– Não é um elogio. As coisas são assim. – Manuel beijou sua boca suavemente e manteve o contato.
– Mas o cara do cavanhaque ainda está certo, Payne.
– Cavanhaque... Cara?
– Desculpe. É um pequeno apelido que atribui a seu irmão – ele deu de ombros. – Mas, de qualquer forma, acho mesmo que ele tem os melhores interesses dentro daquele coração e você realmente vai precisar de alguém que não seja eu em longo prazo... Se eu posso ficar aqui ou não é apenas parte do problema.
– Não a meu ver.
– Então, precisa enxergar com mais clareza. Vou morrer em mais ou menos quatro décadas. Se tiver sorte. Quer mesmo assistir meu envelhecimento? Minha morte?
Ela teve de fechar os olhos e virar a cabeça apenas por pensar nele morrendo.
– Deus... não.
No silêncio que se seguiu, a energia entre eles mudou, passando de algo sexual... para um tipo diferente de desejo. E como se ele estivesse sentindo o mesmo que ela, colocou-a contra seu corpo, segurando-a com força entre seus braços fortes.
– Se existe uma coisa que aprendi como médico – disse ele –, é que a biologia prevalece. Você e eu podemos decidir fazer qualquer coisa, mas não podemos fazer nada para mudar as diferenças biológicas. Minha expectativa de vida é apenas uma fração da sua... no máximo, teríamos um intervalo de dez anos antes que eu tivesse que entrar na terra do Viagra.
– O que é isso?
– É um lugar muito, muito flácido – disse ele secamente.
– Bem... eu iria até lá com você, Manuel. – Ela recuou um pouco para que pudesse observar aqueles belos olhos castanhos. – Seja lá onde for.
Houve um breve silêncio, e, então, ele sorriu triste.
– Adoro a maneira como pronuncia meu nome.
Suspirando, colocou a cabeça sobre o ombro dele.
– E eu adoro dizê-lo.
Enquanto permaneciam ali parados, um contra o outro, ela se perguntou se seria a última vez, e aquilo fez com que pensasse em seu irmão. Estava preocupada com Vishous e precisava conversar com ele, mas ele havia optado por deixá-la sem mostrar qualquer maneira de encontrá-lo.
Que assim seja. Por mais difícil que fosse, deixaria Vishous partir por enquanto... e se concentraria no macho que estava com ela.
– Tenho algo para lhe pedir – ela disse para seu curandeiro... Manuel, corrigiu-se.
– Diga.
– Leve-me a seu mundo. Mostre-me... se não tudo, pelo menos alguma coisa.
Manuel se enrijeceu.
– Não sei se é uma boa ideia. Consegue ficar em pé sozinha apenas há doze horas.
– Mas sinto-me forte e tenho maneiras para lidar com a viagem. – Na pior das hipóteses, poderia se desmaterializar de volta ao complexo: sabia, por ter visto nas bacias de visões, que seu irmão tinha cercado as instalações com o mhis e aquilo era um ponto de referência que poderia ser encontrado facilmente. – Confie em mim, não estarei em perigo.
– Mas como poderíamos sair juntos?
Payne afastou-se de seus braços.
– Pode vestir seu corpo enquanto eu tomo conta de tudo. – Quando parecia que ia argumentar, ela balançou a cabeça. – Não disse que a biologia sempre vence? Muito bem; mas eu lhe digo que temos esta noite... por que desperdiçar isso?
– Mais tempo juntos... só vai tornar a partida mais difícil.
Oh, aquilo doeu.
– Disse que me faria um favor, está em suas mãos. Sua palavra não é um compromisso?
Os lábios dele se estreitaram. Mas, então, inclinou a cabeça.
– Está certo. Vou me vestir.
Quando ele se dirigiu para o quarto, ela voltou para o escritório e pegou o telefone, enquanto Jane e Ehlena mostravam-lhe como fazer. Deu tudo certo ao discar... e o doggen mordomo atendeu com uma voz alegre.
Aquilo tinha de funcionar, disse a si mesma. Tinha de funcionar.
No Antigo Idioma, ela disse:
Aqui é Payne, irmã de sangue de Vishous, membro da Irmandade da Adaga Negra, filho de Bloodletter. Gostaria de falar com o Rei, se pudesse me agraciar com tamanha cortesia.
Cuja máxima diz “Olho por olho, dente por dente”. (N.P.)
CAPÍTULO 36
Quando Vishous irrompeu no Buraco pelo túnel subterrâneo, teve de enxugar o rosto ensanguentado com a palma da mão para que pudesse continuar até o quarto. Considerava ter sido uma coisa boa conseguir acertar o espelho em cheio, pois isso significava que havia alguns cacos nele... mas, na verdade, não dava a mínima.
Quando chegou à porta de Butch e Marissa, bateu. Com força.
– Só um minuto.
Butch não levou muito tempo para abrir e ainda estava vestindo um roupão.
– O que é... – então, tudo o que conseguiu dizer foi: – Jesus Cristo... V.
Atrás do ombro do cara, Marissa sentou-se na cama, faces vermelhas, os cabelos loiros emaranhados, as cobertas puxadas até os seios, e mantendo-as assim. A satisfação sonolenta logo foi substituída pelo choque.
– Deveria ter só telefonado. – V. ficou impressionado com o tom calmo de sua voz e sentiu um gosto metálico na boca enquanto falava. – Mas não sei onde está meu telefone.
Quando seu olhar encontrou o de seu melhor amigo, sentiu-se um diabético desesperado por insulina. Ou talvez fosse mais parecido com o vício da heroína ansiando por uma agulha. Não importa a metáfora, tinha de fugir de si mesmo ou perderia a cabeça e acabaria cometendo algum ato criminoso estúpido, como pegar suas lâminas e transformar aquele cirurgião em carne para hambúrguer.
– Eu os peguei juntos – ouviu-se dizendo. – Mas não se preocupe. O humano ainda está respirando.
E, então, simplesmente ficou ali, a pergunta que veio fazer estava tão evidente quanto o sangue em seu rosto.
Butch olhou para sua shellan. Sem hesitar, ela assentiu, os olhos tristes e gentis compreendiam bem que V. estava emocionado... mesmo naquele estado entorpecido.
– Vá – disse ela. Cuide dele. Eu te amo.
Butch assentiu. Provavelmente gesticulou com a boca um “eu te amo” de volta para ela. Em seguida, olhou para V. e murmurou rispidamente:
– Espere no pátio. Vou pegar o Escalade... e uma toalha do banheiro, tudo bem? Está parecendo o maldito Freddy Krueger.
Quando o tira foi até o armário para tirar o roupão e se vestir, V. olhou para a shellan do macho.
– Está tudo bem, Vishous – ela disse. – Vai ficar tudo bem.
– Não ansiava por isso. – Mas precisava fazer antes que se tornasse um perigo letal para si mesmo e para os outros.
– Eu sei. E eu também te amo.
– És uma bênção sem medida – pronunciou no Antigo Idioma.
E, então, fez uma reverência para ela e se afastou.
Quando o mundo voltou a entrar em foco algum tempo depois, V. viu-se sentado no banco do passageiro do Escalade. Butch estava atrás do volante e considerando a maneira como o tira lidava com os pedais, já tinham percorrido uma boa distância: as luzes de Caldwell não estavam mais distantes, mas por toda parte, brilhando nas janelas da frente e laterais do automóvel.
O silêncio no carro era tenso como um punhal e tão denso quanto um tijolo. E mesmo aproximando-se do destino, V. teve problemas em compreender a viagem que estavam fazendo. No entanto, não tinha volta. Para nenhum dos dois.
Estacionaram na garagem do Commodore.
Motor desligado.
Duas portas se abrindo... duas portas se fechando.
E, em seguida, subiram pelo elevador, que pareceu como a viagem do complexo até o Commodore: nada se encaixava na mente de V.
A próxima coisa que percebeu foi Butch usando a chave de cobre para abrir a cobertura.
V. entrou primeiro e acendeu as velas com a força de sua vontade. No instante em que as paredes e teto negros foram iluminados, passou do modo zumbi para o totalmente ligado, seus sentidos intensificaram-se a ponto de seus passos soarem como bombas caindo e o som da porta trancando-os ali dentro parecer o de um prédio caindo.
Cada respiração que dava era uma rajada de vento. Cada batida de seu coração era como o golpe de um boxeador. Cada porção de saliva que engolia era um porre que passava por sua garganta.
Era assim que seus submissos se sentiam? Com aquele formigamento tão vívido?
Parou próximo a sua mesa. Nenhum casaco para tirar; nada além da bata hospitalar cobria suas costas.
Atrás dele, a presença de Butch pairava tão grande como uma montanha.
– Posso usar seu telefone? – V. perguntou asperamente.
– Aqui.
V. virou-se e apanhou com a mão enluvada o BlackBerry que lhe foi jogado. Selecionando a opção de criar uma nova mensagem, escolheu o contato Dra. Jane na agenda.
Seus dedos se acalmaram nesse momento. Seu cérebro estava entupido de emoções, os gritos que precisava soltar ficavam no caminho e transformavam sua circunspecção usual em um conjunto sólido de barras de aço que o prendiam dentro de si mesmo.
Por outro lado, era por isso que estavam ali.
Xingando em voz baixa, cancelou a tela de texto vazia.
Quando foi devolver o celular, Butch estava perto da cama, tirando um de seus casacos de couro; nada de jaquetas de motoqueiro na rotina do tira inativo... O casaco que costumava vestir ia até o quadril e encaixava-se perfeitamente em seu peitoral. O material era como manteiga dentro de uma nuvem macia. Algo que V. conhecia por já ter segurado a coisa algumas vezes. O cara não relutava ao fazer aquilo, e estava tirando pelas razões certas: não havia motivo para manchar de sangue uma roupa como aquela.
Quando V. colocou o telefone na cama e se afastou, Butch dobrou o casaco com mãos cuidadosas e precisas e quando apoiou o couro, era como se estivesse deitando um filho sobre o edredom negro. Em seguida, aqueles dedos fortes e firmes puxaram as calças pretas para cima e ajeitaram a camisa de seda preta.
Silêncio.
E não do tipo em que as pessoas sentiam-se confortáveis.
Vishous olhou para os painéis de vidro instalados ao redor da cobertura e observou o reflexo de seu melhor amigo.
Depois de um momento, o tira virou a cabeça.
Os olhos deles encontraram-se no vidro.
– Vai continuar vestindo isso? – Butch perguntou com um tom obscuro.
Vishous alcançou o laço que havia em sua nuca e puxou os dois cordões que uniam a bata. Em seguida, fez o mesmo na cintura. Quando a roupa deslizou de seu corpo, o tira observou do outro lado da sala a coisa cair ao chão.
– Preciso de uma maldita bebida – Butch disse.
No bar, o cara serviu-se de uma dose de uísque. E de outra. Então, deixou o copo de lado, pegou a garrafa e bebeu com vontade.
Vishous permaneceu onde estava, a boca aberta, a respiração disparando para dentro e para fora dele enquanto continuava concentrado na figura de seu melhor amigo.
Butch apoiou a garrafa, mas continuou segurando-a, a cabeça baixa como se tivesse fechado os olhos.
– Não tem que fazer isso – disse V. com voz rouca.
– Sim... eu tenho.
A cabeça do policial ergueu-se e, então, ele se virou.
Quando finalmente avançou, deixou a bebida no bar e parou ao se posicionar atrás de Vishous. Estava perto... perto o suficiente para que o calor de seu corpo fosse facilmente percebido.
Ou talvez fosse o próprio sangue de V. começando a ferver.
– Quais são as regras? – disse o tira.
– Não existem. – Vishous endireitou sua postura e se preparou. – Faça o que quiser... mas tem que acabar comigo. Tem que me despedaçar.
No complexo, Manny trocou outro conjunto de uniforme cirúrgico. Se as coisas continuassem assim, poderia comprar ações da maldita loja especializada naquele tipo de roupa. Ou de uma indústria de máquinas de lavar.
No corredor, apoiou-se contra o muro de concreto e encarou seus tênis. Não achava que as solas poderiam animá-lo... tinha a impressão de que ele e Payne não iam a lugar algum. Ao menos, não juntos.
Filha de uma divindade.
Eeeeeee... aquilo não importava para ele. Poderia ser a filha de um avestruz que não dava a mínima importância.
Esfregando o rosto, não conseguiu decidir se ficava impressionado consigo mesmo ou com medo de ter aceitado tão bem as novidades. Provavelmente era mais saudável ficar todo chocado, incrédulo e dizendo “oh, Deus, não!”; contudo, seu cérebro fluiu bem com tudo aquilo... o que significava que ou era realmente flexível com aquilo que considerava realidade ou sua massa cinzenta tinha caído em um estado de aprendizado impotente.
Provavelmente era a primeira opção, pois, apesar de tudo, sentia-se como... droga, sentia-se melhor do que nunca: apesar de ter operado por doze horas seguidas e dormido em uma cadeira durante parte da noite – ou dia, não importava a hora –, o conjunto corpo e mente estava forte, saudável e afiada como uma tacha. Mesmo quando se esticou, não houve rigidez... ou estalos ou rangidos. Era como se estivesse em férias há um mês, fazendo massagens e sessões de ioga de frente para o mar. Não que já tivesse feito sequer algumas daquelas posições mais fáceis da ioga.
Eeeeeeeeeeeee naquele momento, uma imagem realmente fabulosa e muito suja de Payne surgiu em sua mente. Quando seu pênis enrijeceu-se todo alegre para chamar a atenção, pensou que não seria uma boa ideia levá-la para fazer um tour em, digamos, seu quarto. Na verdade, pensando nos últimos acontecimentos, que envolviam ele de joelhos... seu banheiro também estaria fora dos limites. Será que deveria evitar cômodos cobertos por telhado? Então, sua cozinha não era uma boa. A entrada do apartamento também não...
Payne saltou para fora do escritório e trazia sua maleta e outras coisas com ela.
– Estamos livres!
Com toda a graça de uma atleta, correu para ele, os cabelos se movimentavam atrás dela, seu andar era tão natural quanto as ondas negras caindo de sua cabeça.
– Estamos livres! Estamos livres!
Quando ela pulou em seus braços, ele a pegou e a girou no ar.
– Eles nos deixaram ir? – disse ele.
– De fato! Temos autorização para pegar seu automóvel e sair daqui. Enquanto entregava as coisas dele, sorria tanto que suas presas ficaram expostas. – Pensei que precisaria disso. E o telefone funciona agora.
– Como sabe que são minhas coisas?
– Têm o seu perfume. E Wrath me contou sobre o cartãozinho que meu irmão removeu.
Coisas de telefone. Mas o fato dela ter reconhecido as coisas dele pelo cheiro o excitou, lembrando-lhe exatamente o quanto estiveram próximos...
Certo, hora de parar com aquele filme.
Ela colocou a mão no rosto dele.
– Sabe de uma coisa?
– O quê?
– Gosto da maneira como olha para mim, Manuel.
– Mesmo?
– Faz com que eu pense nos momentos em que sua boca estava sobre mim.
Manny gemeu e quase perdeu a firmeza. Então, para evitar que as coisas saíssem do controle, colocou o braço em volta da cintura dela.
– Vamos lá. Vamos sair antes que percamos a oportunidade.
O sorriso de Payne era tão despreocupado que, por algum motivo, aquilo dividiu o peito dele com muita força e expôs as batidas de seu coração. E isso foi antes dela se inclinar e beijar sua bochecha.
– Está excitado.
Manny olhou para ela.
– E você está brincando com fogo.
– Eu gosto de ficar quente.
Manny soltou uma risada alta.
– Bem, não se preocupe... você é quente.
Quando chegaram à saída de emergência, ele colocou a mão sobre a barra.
– Isto realmente vai abrir?
– Tente e descubra.
Inclinou-se sobre a barra... e a trava foi liberada, os painéis de metal pesado se abriram.
Quando não viu vampiros com armas e facões correndo na direção deles e surgindo por todos os lados, ele balançou a cabeça.
– Como conseguiu isso?
– O Rei não está feliz. Mas não sou uma prisioneira aqui, já sou adulta e não há razão para que não me permitissem deixar o complexo.
– E no final da noite... o que vai acontecer? – Quando a alegria dela diminuiu, ele pensou “Uh-hum, foi assim que ela conseguiu”. Tecnicamente, ela estava o escoltando para casa... Aquele era o adeus.
Ele acariciou o cabelo dela para trás.
– Está tudo bem. Está... tudo bem, bambina.
Ela pareceu engolir com dificuldade.
– Eu não deveria pensar no futuro, nem você. Temos horas e horas pela frente.
Horas. Nada de dias, semanas ou meses... ou anos. Horas.
Deus, não se sentia livre.
– Vamos lá – disse ele, saindo e pegando a mão dela. – Vamos fazer valer a pena.
Seu carro estava estacionado nas sombras à direita e quando chegou até lá, encontrou a coisa aberta. Mas, vamos lá, até parece que ninguém ia sequer verificá-lo.
Abriu a porta do passageiro.
– Deixe-me ajudá-la a entrar.
Pegando o braço dela como um cavalheiro, acomodou-a e, em seguida, estendeu o cinto de segurança sobre ela, encaixando-o no lugar.
Quando os olhos dela percorreram o interior do carro e suas mãos acariciaram as laterais do banco, ele percebeu que aquele poderia ser seu primeiro passeio de carro. E como aquilo era bom.
– Já esteve em um desses antes? – perguntou.
– De fato, não.
– Bem, irei devagar.
Ela pegou a mão dele quando se endireitou no banco.
– Isso anda rápido?
Manny riu um pouco.
– É um Porsche. Ser rápido é a função dele.
– Então, você deve nos levar contra o vento! Será como na época em que eu cavalgava!
Manny tirou uma foto mental da felicidade selvagem que havia em seu rosto: ela resplandecia... e não no sentido etéreo, simplesmente por sentir a alegria de viver.
Ele inclinou-se e beijou-a.
– Você é tão linda.
Ela agarrou o rosto dele.
– E eu lhe agradeço por isso,
Oh, mas nada daquilo se devia a ele. O que a iluminava era a liberdade, a saúde, o otimismo... e ela não merecia nada menos na vida.
– Quero que conheça alguém – ele desabafou.
Payne sorriu para ele.
– Então, dirija, Manuel. Leve-nos pela noite.
Depois de um momento olhando-a um pouco mais... foi exatamente isso o que fez.
CAPÍTULO 37
Parado nu na cobertura, Vishous esperou por alguma coisa... qualquer coisa.
Em vez disso, Butch afastou-se e desapareceu na cozinha. Quando foi deixado ali com sua solidão, V. fechou os olhos e praguejou. Foi uma má ideia; não se pedia a um bom garoto católico para brincar com os tipos de brinquedos que V...
O ataque veio por trás, rápido e seguro.
Foi um golpe de luta livre modificado e executado muito bem: dois braços enormes envolveram seu peito e quadris, detendo-o e jogando-o contra a parede próxima à mesa de trabalho, que foi quando o golpe de luta “livre” aconteceu: cada centímetro dele sentiu o impacto. No entanto, nada de voltar para trás, nada de ricochetear.
Estava preso no lugar pela nuca e pelo traseiro.
– Braços sobre a cabeça.
Aquele rosnado foi como uma arma na nuca e V. esforçou-se para obedecer ao comando, lutando contra a pressão que prendia seus dois braços na frente do peito. O lado direito foi liberado primeiro... e no instante em que seu pulso foi exposto, foi agarrado e preso em uma algema. Isso também aconteceu com o lado esquerdo e muito rápido.
Por outro lado, tiras eram bons com aquele acessório de aço.
Houve uma rápida trégua, quando foi capaz de respirar um pouco. Em seguida, o som das correntes de metal sendo agitadas ao longo de uma engrenagem anunciou para onde as coisas estavam indo: para cima.
Gradualmente, seu peso foi retirado de seus pés e carregado para suas articulações e braços. A subida parou pouco antes da ponta dos dedos deixarem o chão completamente... e, então, ficou ali pendurado, de frente para as janelas, o ar entrava e saía com dificuldade de seus pulmões enquanto ouvia Butch movendo-se atrás dele.
– Abra a boca.
Com o comando, V. abriu largamente seu maxilar, a articulação produziu um estalo, os cantos dos olhos enrugaram, seus cortes faciais reviveram com um coro de uivos.
Uma mordaça foi puxada para baixo ao longo de sua cabeça e encaixou-se onde deveria; a bola foi pressionada contra suas presas e forçou a boca a se abrir ainda mais. Com um rápido puxão, as cintas de couro apertaram-se ao longo da nuca e a fivela foi presa com força até ficar cravada no couro cabeludo.
Foi uma combinação perfeita: a suspensão e o confinamento asfixiante cumpriram sua função, estimulando sua adrenalina e fazendo seu corpo ficar tenso de muitas maneiras diferentes.
O colete de arame farpado foi o próximo, a peça encaixada no tronco, não colocada sobre os ombros, as pontas de metal no interior do couro afundaram em sua pele. Butch começou com a alça que havia próxima ao esterno e, em seguida, iniciou uma sequência de puxões, apertando mais forte, mais forte, mais forte... Até que desde a caixa torácica de V. até seu abdômen e o topo dos quadris sentia círculos concêntricos de pura dor que formigaram sua coluna, lançando-se direto aos receptores nervosos de seu cérebro e deixando seu pênis duro como rocha.
O oxigênio silvou em suas narinas quando houve uma breve calmaria sem que tocasse em nada e, em seguida, Butch voltou com quatro cintas de borracha. Para um amador, tinha ótimos instintos: tanto a bola da mordaça quanto o colete tinham anéis de aço inoxidável pendurados em cada centímetro de sua extensão, e era evidente que o tira ia dar um bom uso a todos eles.
Trabalhando com afinco, Butch fez ganchos com os acessórios da mordaça e esticou a borracha para baixo, fixando-o na frente e atrás do colete.
O que, na prática, prendeu a cabeça de Vishous para frente.
Então, Butch balançou-o no ar e fez um pequeno movimento de carrossel com ele. Naquele estado de imobilidade, foi difícil entender o que estava acontecendo, e não levou muito tempo para que não tivesse certeza se ainda estava em movimento ou se era a sala que girava: as coisas passavam uma após a outra, o bar, a porta, a mesa de trabalho... Butch... a cama, as janelas de vidro... em seguida, voltava para o bar, a porta, a mesa... e Butch...
Que tinha caminhado até as correntes e cintas penduradas.
O tira permanecia ali, olhos fixos em Vishous.
Como um trem parando na estação, a rotação foi ficando cada vez mais lenta até que parou completamente... com os dois encarando um ao outro.
– Você disse que não tinha regras – disse Butch com os dentes cerrados. – Ainda é assim?
Sem possibilidade de assentir ou balançar a cabeça, V. fez o possível com seus pés, movendo-os para cima e para baixo sobre o chão.
– Tem certeza?
Quando repetiu o movimento, os olhos de Butch brilharam sob a luz das velas... como se houvesse lágrimas neles.
– Certo – disse com voz rouca. – Se é assim que tem que ser, assim será.
Butch limpou o rosto, virou-se para a parede e foi em direção aos brinquedos. Quando aproximou-se dos chicotes, V. imaginou a franja com pontas afiadas cravando em suas costas e coxas... mas o tira continuou a caminhar. Em seguida, estavam os chicotes de nove cordas e V. podia sentir as pontas açoitando sua carne... mas Butch não parou. Depois, vinham os clipes de mamilo e as algemas de aço inoxidável com arame farpado que poderiam ser colocadas nos tornozelos, nos antebraços, na garganta...
Quando o cara foi passando por cada seção, Vishous franziu a testa, perguntando-se se o tira estava apenas provocando e como aquilo foi inexpressivo...
Porém, Butch parou. E estendeu a mão em direção ao...
V. gemeu e começou a se debater contra os elos que o prendiam no alto. Os olhos se abriram, fez o possível para implorar, mas não havia como movimentar a cabeça e possibilidade alguma de falar.
– Disse que não havia limites – Butch disse um tanto sufocado. – Então, é assim que vamos fazer.
V. teve espasmos nas pernas e seu peito começou a gritar por falta de oxigênio.
Não havia orifícios na máscara que o tira havia escolhido, nem para os olhos, nem para os ouvidos ou para a boca. Feita de couro e costurada com fios de aço inoxidável finos, a única forma de conseguir oxigênio era através de dois painéis de malha laterais posicionados na parte de trás da peça, então, não havia como entrar qualquer facho de luz... e o ar que circulava passava pela pele quente e apavorada antes de entrar pela boca e descer pelos pulmões. V. tinha comprado o acessório, mas nunca o havia utilizado antes: só o mantinha por que o apavorava, e só isso já era razão suficiente para possuí-lo.
Ter sua visão e audição roubadas era a única coisa garantida que poderia fazer Vishous perder a cabeça e foi exatamente por isso que Butch pegou a máscara. Sabia muito bem os botões que devia pressionar... sentir dor física era uma coisa... mas tortura psicológica era bem pior, e, portanto, mais eficaz.
Butch caminhou lentamente ao redor dele e saiu de vista. Com movimentos furiosos V. tentou reposicionar-se para enfrentar o cara, mas os dedos dos pés mal conseguiam tocar o chão... que foi outro ato bem-sucedido da estratégia do tira. Lutar, contorcer-se e chegar a lugar algum apenas aumentava o terror.
De uma só vez, as luzes se apagaram.
Debatendo-se incontrolavelmente, Vishous tentou lutar, mas era uma batalha perdida: com um rápido movimento, a máscara foi apertada ao redor de seu pescoço, de maneira segura, e não ia a lugar algum.
A asfixia mental instalou-se imediatamente. Não havia oxigênio, não passava nada, nada...
Sentiu algo em sua perna. Algo longo, fino e frio, como uma lâmina.
Ficou totalmente imóvel, a ponto de seus esforços anteriores ainda o manterem oscilando para frente e para trás com as correntes acima dele, seu corpo era uma estátua suspensa por cadeias de metal.
A respiração de V. dentro do capuz era como um rugido em seus ouvidos enquanto se concentrava na sensação abaixo da cintura: a faca viajava lenta e inexoravelmente para cima e, enquanto subia, movia-se pela parte interna da coxa.
Atrás dela, uma trilha úmida brotava e escorria sobre os joelhos.
Sequer sentiu a dor do corte enquanto a lâmina dirigia-se para seu sexo: as implicações eram como um maldito golpe no seu botão de destruição.
Em um lampejo, passado e presente misturaram-se, a alquimia inflamada pela adrenalina pulsava em cada uma de suas veias. Num instante, foi arrastado de volta ao longo dos anos até a noite em que os machos de seu pai o seguraram sob o comando sujo de Bloodletter. As tatuagens não foram o pior de tudo. E lá estava, acontecendo outra vez; apenas sem os alicates.
Vishous gritou através da mordaça... e continuou gritando. Gritou por tudo que havia perdido... gritou pelo meio homem que era... gritou por Jane... gritou por quem eram seus pais e pelo que desejava para sua irmã... gritou pelo que forçou seu melhor amigo a fazer... gritou e gritou até não ter mais fôlego para isso, nem consciência, nem nada.
Nenhum passado ou presente.
Nem ele mesmo existia mais.
E, no meio do caos, da maneira mais estranha, libertou-se.
Butch soube o momento exato que seu melhor amigo desmaiou. Não apenas pelo fato de que seus pés suspensos ficaram imóveis. Foi o repentino relaxamento da musculatura. Não havia mais qualquer esforço naqueles braços enormes, nem naquelas coxas sólidas. O grande peito não ofegava mais. Não havia mais tendões tensos nos ombros ou nas costas.
Imediatamente, Butch afastou a colher que havia pegado na cozinha das pernas de V. e também parou de escorrer água morna do copo que havia pegado no bar.
As lágrimas em seus olhos não o ajudaram a soltar o capuz e libertá-lo. Nem ajudaram a remover o simples esquema de imobilização. E lutou especialmente ao tirar a mordaça.
O colete foi terrível para ser removido, mas, apesar do desespero que sentia para libertar logo V., era muito mais fácil soltar as coisas quando se tinha uma carga emocional para lidar com tudo aquilo. Logo, o Irmão estava sangrando, mas livre.
Sobre a parede, Butch soltou o guincho e abaixou o tremendo corpo inanimado de V. Não houve sinais de que a mudança de altitude tenha sido percebida e o chão sofreu um impacto apenas quando as pernas soltas dele desmoronaram e seus joelhos dobraram-se enquanto o mármore erguia-se para saudar suas nádegas e o tronco.
Houve mais sangue quando Butch tirou as algemas.
Deus, seu amigo estava acabado: as tiras da mordaça tinham deixado vergões vermelhos em seu rosto; o dano feito pelo colete mostrou-se ainda mais generalizado e, ainda por cima, os pulsos estavam rasgados de forma irregular.
Além de tudo isso, o rosto do cara estava em péssimo estado, por tê-lo colidido com o que quer que fosse..
Por um momento, tudo o que conseguiu fazer foi acariciar os cabelos escuros de V. com as mãos que tremiam como se tivesse alguma doença. Então, olhou para o corpo do amigo, a mancha abaixo da cintura, o sexo flácido... as cicatrizes.
Bloodletter era um desgraçado sem medida por torturar seu filho como havia feito. E a Virgem Escriba era uma estúpida inútil por ter deixado isso acontecer.
E Butch quase tinha morrido por ter usado esse passado horrível para atingir seu amigo com toda força. Só que não queria atingir V. fisicamente... não era um covarde, mas não teria estômago para isso. Além disso, a mente era a arma mais poderosa que qualquer um possuía contra si mesmo.
Ainda assim, as lágrimas escorreram em seu rosto enquanto pegava a colher e a passava pela parte interna da perna... pois sabia exatamente o efeito instantâneo que aquilo provocaria. E tinha plena consciência de que a água morna solidificaria de fato o deslocamento do presente.
Os gritos foram abafados pela mordaça e pelo capuz... ainda assim, aquele som emudecido havia perfurado os ouvidos de Butch como nada mais poderia.
Levaria um longo, longo tempo até conseguir se recuperar daquilo: toda vez que fechasse os olhos, tudo o que conseguiria ver seria o corpo de seu melhor amigo debatendo-se em espasmos.
Esfregando o rosto, Butch levantou-se e caminhou até o banheiro. Foi até as prateleiras do armário e pegou uma pilha de toalhas pretas. Deixou algumas secas; outras, umedeceu com água quente na pia.
Voltando a se colocar ao lado de Vishous no chão, limpou o sangue e o suor do medo que escorria do corpo de seu melhor amigo, virando-o de um lado a outro para que não deixasse nada para trás.
A limpeza levou uma boa meia hora. E várias viagens de ida e volta até a pia.
A sessão durara apenas uma fração disso.
Quando terminou, reuniu todo aquele tremendo peso de V. em seus braços e levou o cara para a cama, deitando sua cabeça contra os travesseiros de cetim preto. O banho de esponja, tal como havia sido, deixou a pele de V. arrepiada; assim, Butch cobriu o Irmão, soltando os lençóis da cama e esticando-os sobre ele.
A cura já começava a acontecer, a carne arranhada ou cortada estava se regenerando e apagando as marcas que haviam sido feitas.
Isso era bom.
Quando se afastou, parte de Butch queria deitar na cama e abraçar seu amigo. Mas não faria isso consigo mesmo... e, além disso, se não saísse dali e se embebedasse logo, iria enlouquecer.
Quando teve certeza de que V. estava bem, pegou seu casaco, o qual teve de jogar no chão para instalar o amigo...
Espere, as toalhas sangrentas e a bagunça lá fora.
Movendo-se rapidamente, limpou o chão e, em seguida, pegou a carga úmida e pesada e levou tudo para o cesto do banheiro, o que fez com que quisesse saber quem realizava as tarefas domésticas. Talvez fosse Fritz... ou talvez V. cumprisse sozinho a rotina de empregada feliz.
De volta à sala principal, verificou outra vez que todas as evidências tinham desaparecido, menos o copo e a colher... e, então, saiu dali para ver se V. ainda estava dormindo... ou naquele estado de semicoma.
Duro. Frio. Apagado.
– Vou buscar o que realmente precisa – Butch disse suavemente, perguntando-se se conseguiria respirar direito outra vez... seu peito parecia tão apertado quanto o de V. esteve há pouco tempo. – Aguente firme, cara.
Em seu caminho até a porta, tirou o celular para discar... e deixou cair a maldita coisa.
Hum. Parece que as mãos dele ainda estavam tremendo. Veja só.
Quando em determinado momento pressionou a tecla para send, rezou para que a chamada fosse...
– Está feito – disse em tom áspero. – Venha para cá. Não, acredite... ele vai precisar de você. Isso foi feito por vocês dois. Não... sim. Não, estou saindo agora. Bom. Certo.
Depois que desligou, trancou V. e chamou o elevador. Enquanto esperava, tentou colocar seu casaco e atrapalhou-se tanto com a camurça que desistiu e jogou-a sobre o ombro. Quando as portas soaram e se abriram, entrou, apertou o botão onde se lia S... e desceu, desceu, desceu de maneira equilibrada e perfeita graças à caixinha de metal que era o elevador.
Mandou uma mensagem para sua shellan ao invés de telefonar por duas razões: não confiava na própria voz e, para ser franco, não estava pronto para responder às perguntas que ela fatal e justificadamente faria.
Td ok. Indo p casa descansar. Amo vc. Bj. B.
A resposta de Marissa foi tão rápida que ficou evidente que o telefone estava em suas mãos enquanto ela esperava por notícias: Tb te amo. Estou no Safe Place, mas posso ir para casa.
O elevador abriu as portas e o cheiro doce de gasolina disse-lhe que tinha chegado a seu destino. Enquanto se dirigia para o Escalade, enviou uma mensagem de volta: Não, sério, estou bem. Fique e trabalhe... estarei lá quando terminar.
Estava pegando as chaves quando o telefone soou.
Certo, mas se precisar de mim, saiba que é a coisa mais importante.
Deus, tinha uma fêmea de muito valor.
O mesmo para você. Bj, ele digitou em resposta.
Desativando o alarme do carro e destrancando a porta do motorista, entrou, fechou a porta e voltou a trancá-la.
Deveria começar a dirigir. Em vez disso, apoiou a testa sobre o volante e respirou fundo.
Ter uma boa memória era uma habilidade superestimada, e embora não invejasse em nada Manello e todo aquele processo de apagar as coisas da mente do cara, Butch daria qualquer coisa para se livrar daquelas imagens em sua cabeça.
Contudo, não apagaria V. Não apagaria aquele... relacionamento.
Nunca desistira do macho. Jamais.
CAPÍTULO 38
– Aqui, achei que ia gostar de um pouco de café.
Quando José de la Cruz colocou a bebida da Starbucks na mesa de seu parceiro, sentou-se na cadeira do outro lado da mesa.
Veck devia estar se sentindo como uma vítima de acidente de carro, considerando que estava com as mesmas roupas de quando deu uma de personagem do filme Missão Impossível no capô daquele carro na noite anterior. Em vez disso, o filho da mãe conseguia, de alguma forma, parecer resistente e não surrado.
Assim, José estava disposto a apostar que as outras seis xícaras de café consumidas pela metade em volta do computador foram trazidas por várias moças do departamento.
– Obrigado, cara. – Quando Veck pegou a mais recente oferta de bebida quente, seus olhos não saíram da tela do computador... era bem provável que estivesse pesquisando os arquivos de pessoas desaparecidas e puxando casos com mulheres entre dezessete e trinta anos.
– O que está fazendo? – José perguntou assim mesmo.
– Pessoas desaparecidas – Veck esticou-se na cadeira. – Notou quantas pessoas entre dezoito e vinte e quatro anos foram listadas aqui ultimamente? Homens, não mulheres.
– Sim. O prefeito está tentando organizar uma força-tarefa.
– Há muitas garotas também, mas, Cristo, o que está acontecendo é uma epidemia.
No corredor, dois policiais de uniforme passaram por eles, José e Veck cumprimentaram os oficiais. Depois que os passos se distanciaram, Veck limpou a garganta.
– O que o pessoal da unidade de Assuntos Internos diz? – Não era uma pergunta, e aqueles olhos azuis escuros estavam fixos no banco de dados. – É por isso que veio, certo?
– Bom, também para entregar o café; mas parece que já cuidaram de você.
– Foi o pessoal da recepção no andar de baixo.
Ah, sim. As duas Kathys, Brittany, que se escrevia “Britnae”, e Theresa. Todas elas deviam achar que o cara era um herói.
José pigarreou.
– Acontece que o fotógrafo já tem algumas acusações de assédio pendentes contra ele, pois tem o hábito de aparecer em lugares onde não é bem-vindo. Ele e o advogado dele querem que tudo isso desapareça, por que outra invasão de cena de crime não vai ser muito boa para ele. O pessoal dos Assuntos Internos está tomando depoimentos de todos e, moral da história, foi apenas uma simples tentativa de agressão de sua parte... nada grave. Além disso, o fotógrafo disse que se recusa a cooperar com a promotoria contra você se for o caso. Provavelmente porque acha que isso vai ajudá-lo.
Finalmente, aqueles grandes olhos mudaram de foco.
– Graças a Deus.
– Não se anime.
Os olhos de Veck se estreitaram... mas não por estar confuso. Sabia exatamente qual era a situação.
Ainda assim, não perguntou, apenas esperou.
José olhou em volta. Às dez da noite, o Departamento de Homicídios estava vazio, embora os telefones ainda estivessem tocando e alguns ruídos surgissem aqui e ali até o correio de voz atender. No corredor, a equipe de limpeza ocupava-se com aspiradores, o zumbido das máquinas vinha de longe, do laboratório da perícia.
Portanto, não havia razão para não falar sem rodeios.
Mesmo assim, José fechou a porta. Voltando-se para Veck, sentou-se outra vez e pegou um clipe de papel, traçando uma pequena imagem invisível sobre a tampa da mesa de madeira falsa.
– Perguntaram-me o que eu achava de você. – Deu um leve golpe sobre as têmporas com o clipe. – Psicologicamente. Queriam saber o quanto você é estável.
– E você disse...?
José apenas deu de ombros e ficou quieto.
– Aquele filho da mãe estava tirando fotos de um cadáver. Para ganhar dinheiro...
José ergueu a mão para interromper o protesto.
– Não terá argumento. Dane-se, todos nós queríamos dar um soco nele. Porém, a questão é... se eu não o detivesse... até onde você iria, Veck?
Isso produziu outro franzir de testa no cara.
E então tudo caiu em um grande silêncio. Silêncio mortal. Bem, exceto pelos telefones.
– Sei que leu meus arquivos – Veck disse.
– Sim.
– Bem, certo, não sou meu pai – as palavras foram pronunciadas de maneira baixa e lenta. – Eu nem cresci com o cara. Mal o conhecia e não tenho nada a ver com ele.
Traduzindo: Às Vezes Você Tem Sorte.
Thomas DelVecchio tinha várias coisas a seu favor: tirou as notas máximas em sua especialização em Direito Criminal... o primeiro da classe na academia de polícia... seus três anos na patrulha foram impecáveis, e tinha tão boa aparência que nunca havia comprado o próprio café.
Mas era filho de um monstro.
E essa era a raiz do problema que tinham. Considerando o lado bom e correto das coisas, não era justo lançar os pecados do pai em volta do pescoço do filho. E Veck estava certo: em suas avaliações psicológicas, obteve resultados tão normais quanto qualquer outra pessoa.
Então, José o aceitou como parceiro sem pensar um segundo em quem era seu pai.
Aquilo havia mudado desde a noite passada e o problema foi a expressão no rosto de Veck quando se atirou em direção ao fotógrafo.
Muito frio. Muito calmo. Como se aquilo não o afetasse mais do que se tivesse puxado o anel de uma lata de refrigerante.
Tendo trabalhado no Departamento de Homicídios durante quase toda sua vida adulta, José conheceu muitos assassinos. Tinha os caras dos crimes passionais que descontavam sua fúria em um homem ou uma mulher; havia os tipos estúpidos, cujas mentes estavam repletas de drogas, álcool e da violência das gangues; e, por fim, os psicopatas sádicos que precisavam ser presos como cães raivosos.
Todas essas variações do tema causavam tragédias inimagináveis para as famílias de suas vítimas e para a comunidade. Mas não eram os únicos que deixavam José acordado durante a noite.
O pai de Veck havia matado vinte e oito pessoas em dezessete anos... e esses números referiam-se apenas aos corpos encontrados. O desgraçado estava no corredor da morte naquele momento, há mais de duzentos quilômetros dali, na cidade de Somers, Connecticut, e prestes a tomar a injeção letal, apesar de toda a apelação de seu advogado. Mas qual era a importância de tudo aquilo? Thomas DelVecchio, pai, tinha um fã-clube – internacional. Com cem mil amigos no Facebook, propagandas em cafeterias e bandas death-metal compondo músicas sobre ele, o cara era uma celebridade infame.
Caramba, Deus era testemunha de que toda aquela droga fazia José enlouquecer. Aqueles idiotas que idolatravam o filho da mãe deveriam fazer o trabalho dele por uma semana. Queria saber se ainda achariam os assassinos legais na vida real.
Se as coisas continuassem como estavam, nunca chegaria a conhecer DelVecchio, o velho, pessoalmente, mas já havia assistido muitos vídeos de vários promotores e entrevistas de departamentos de polícia. Por fora, o cara parecia bem lúcido e tão calmo quanto um instrutor de ioga. Agradável também. Não importava quem estivesse na frente dele ou o que fosse dito para deixá-lo furioso, ele nunca se inflamava, nunca vacilava, nunca se abatia, nunca dava uma indicação de que alguma coisa importava.
Só que José havia detectado algo em seu rosto... assim como alguns outros profissionais: de vez em quando, exibia um brilho nos olhos que fazia José recorrer a sua cruz. Era o tipo de coisa que um garoto de dezesseis anos pode ter quando vê um carro sofisticado passando ou uma garota de corpo bonito e com um belo traseiro vestindo uma blusa que mostra a barriga. Era como a luz do sol brilhando em uma lâmina afiada... um breve lampejo de luz e prazer.
No entanto, isso era tudo o que tinha demonstrado. Foi tal evidência que o convenceu; nunca seu testemunho.
E aquele era o tipo de assassino que deixava José olhando para o teto enquanto sua mulher dormia ao lado dele. DelVecchio pai era esperto suficiente para permanecer no controle e cobrir seus rastros. Era independente e engenhoso. E implacável com a mudança das estações... celebrava o Halloween mas como se estivesse em um universo paralelo: ao invés de uma pessoa normal com uma máscara, era um demônio por trás de um rosto simpático e bonito.
Veck parecia-se muito com seu pai.
– Ouviu o que eu disse?
Ao som da voz do garoto, José voltou a se concentrar.
– Sim, ouvi.
– Então, é aqui que termina nossa parceria... – Veck disse drasticamente. – Está dizendo que não quer mais trabalhar comigo? Supondo que eu ainda tenha um trabalho.
José voltou para seu desenho com o clipe de papel.
– A unidade de Assuntos Internos lhe dará uma advertência.
– Sério?
– Disse a eles que sua cabeça está no lugar que deveria estar – José disse depois de um momento.
Veck limpou a garganta.
– Obrigado, cara.
José continuou a mover o clipe, o ruído do objeto arranhando a mesa era bastante alto.
– A pressão neste trabalho é assassina – Nesse momento, encarou bem os olhos de Veck. – Não vai ficar mais fácil.
Houve uma pausa. Então, seu parceiro murmurou:
– Não acredita no que disse, não é mesmo?
José deu de ombros.
– O tempo dirá.
– Por que diabos salvou meu trabalho, então?
– Acho que deve ter uma chance para corrigir seus erros... mesmo que não sejam seus, de fato.
O que José guardou para si foi que não era a primeira vez que tinha um parceiro com... coisas para acertar fora do trabalho, digamos assim.
Sim, e veja como Butch O’Neal havia terminado: desaparecido. Provavelmente morto, apesar daquilo que José tinha ouvido na gravação da emergência.
– Não sou meu pai, detetive. Juro. Só porque não fui muito profissional quando atingi o cara...
José inclinou-se para frente, seus olhos fixos nos do garoto.
– Como sabe o que me incomodou no momento do ataque? Como sabe que foi a questão de toda aquela sua calma?
Quando Veck empalideceu, José recostou-se na cadeira outra vez. Após um momento, ele balançou a cabeça.
– Não significa que é um assassino, filho. E só porque teme alguma coisa não significa que seja verdade. Mas acho que você e eu precisamos ser bem claros um com o outro. Como disse, não acho que seja justo ser tratado de forma diferente por causa do seu pai... mas se tiver outra explosão como aquela outra vez... e refiro-me a qualquer coisa, como bilhetes de estacionamento – apontou para a caneca da Starbucks –, café ruim, goma demais na sua camisa... a maldita fotocopiadora... será fim de jogo. Estamos entendidos? Não vou deixar alguém perigoso usar um distintivo... ou uma arma.
De repente, Veck voltou a olhar para o monitor. Sobre ele, havia o rosto de uma bela moça loira de dezenove anos que havia desaparecido há duas semanas. O corpo ainda não havia sido encontrado, mas José poderia apostar que já estava morta.
Depois de assentir, Veck pegou o café e tomou um gole da bebida.
– Combinado.
José expirou e colocou o clipe de papel de volta ao lugar que pertencia, na pequena caixa clara de borda magnética.
– Bom. Porque temos que encontrar esse cara antes que ele ataque outra pessoa.
CAPÍTULO 39
Rumando na direção sul da “estrada”, como Manuel chamava, os olhos de Payne estavam famintos pelo mundo que havia a seu redor. Tudo era uma fonte de fascinação, desde o fluxo dos carros no tráfego dos dois lados da estrada, até o vasto céu negro acima e o estimulante frio noturno que percorria a cabine do automóvel toda vez que ela abria a janela – algo que acontecia a cada cinco minutos. Ela simplesmente amava a mudança de temperatura... quente, frio, quente, frio... Era tão diferente do Santuário, onde tudo era monoclimático. Além disso, havia a grande explosão de ar que soprava em seu rosto, emaranhava seus cabelos e a fazia sorrir.
– Você não perguntou para onde estamos indo – ele disse, depois do último fechamento da janela.
Na verdade, aquilo não importava; estava com ele, estavam livres, sozinhos e aquilo era mais do que suficiente...
Vai apagar a memória dele. No final da noite, vai apagar a memória dele e voltar. Sozinha.
Payne manteve seu estremecimento em segredo: Wrath, filho de Wrath, tinha o tipo de voz que combinava com coroas, tronos e adagas negras sobre o peito. Era um tom real, não um disfarce. Esperava ser obedecido e Payne tinha a ideia errada de que só porque era filha da Virgem Escriba, não estava sujeita às regras de alguma forma. Enquanto estivesse ali, aquele era o mundo dele e estava inserida nele agora.
Enquanto o Rei pronunciava aquelas palavras horríveis teve de fechar os olhos com força e, apesar do silêncio que reinou em seguida, percebeu prontamente que ela e Manuel não iriam a lugar algum se ele não concordasse.
E então... ela concordou.
– Gostaria de saber? Olá? Payne?
Com um estalo, forçou um sorriso no rosto.
– Preferiria ser surpreendida.
Com isso, ele sorriu profundamente.
– É ainda mais divertido... bem, como eu disse, quero apresentá-la a alguém.
O sorriso dela desapareceu um pouco.
– Acho que pode gostar dela.
Ela? Como se fosse uma fêmea?
Gostar?
Na verdade, aquilo só aconteceria se o “ela” em questão tivesse cara de cavalo e um corpo horrível, Payne pensou.
– Adorável – ela disse.
– Aqui é nossa saída. – Houve estalos suaves e, então, Manuel girou o volante e saiu da rodovia para uma rua em declive.
Quando pararam em uma fila de outros veículos, ela observou ao longe o horizonte da enorme cidade, algo que seus olhos esforçavam-se para compreender: grandes edifícios marcados com um número incalculável de luzes levantavam-se em uma extensão coberta de estruturas menores... e não era um lugar estático. Luzes vermelhas e brancas serpenteavam ao redor de suas extremidades... sem dúvida, deveriam ser centenas de carros semelhantes àqueles que tinham visto durante a viagem.
– Está olhando para a cidade de Nova York – Manny disse.
– É... linda.
Ele sorriu um pouco.
– Partes dela realmente são, e a escuridão e a distância são grandes recursos para retocar a obra do artista.
Payne estendeu a mão e tocou a janela de vidro a sua frente.
– Durante meu longo tempo lá em cima, não havia grandes vistas, nenhuma grandeza; nada além de um céu leitoso opressivo e os limites asfixiantes da floresta. Isso é tudo tão maravilhoso...
Um som estridente soou atrás deles e depois outro.
Manny olhou para o pequeno espelho acima de sua cabeça.
– Relaxa, cara. Eu vou...
Quando Manny acelerou, eliminando rapidamente a distância que havia com relação ao carro da frente, ela sentiu-se mal por distraí-lo.
– Sinto muito – ela murmurou. – Não queria atrapalhar.
– Pode falar para sempre que vou ouvir bem feliz.
Bem, era bom saber disso.
– Tenho alguma familiaridade com algumas coisas que observamos aqui, mas a maior parte é uma revelação. As bacias de visão que temos do Outro Lado oferecem apenas algumas imagens rápidas do que acontece aqui na Terra, com foco nas pessoas, não nos objetos... a menos que alguma coisa inanimada faça parte do destino de alguém. Na verdade, nos é mostrado apenas o destino, não o progresso... da vida, não a paisagem. Isto aqui é... tudo o que eu queria quando desejava me libertar.
– Como saiu?
Em qual das vezes?, ela pensou.
– Bem, da primeira vez... percebi que quando minha mãe concedia grandes audiências ao público daqui de baixo, havia uma pequena janela em que a barreira entre os dois mundos transformava-se... em uma espécie de malha. Descobri que conseguia mover minhas moléculas através daqueles finos espaços que eram criados... e foi assim que consegui. – O passado a envolveu, as memórias voltaram à vida e queimavam não só em sua mente, mas em sua alma. – Minha mãe ficou furiosa e foi atrás de mim, exigindo que eu voltasse ao Santuário... e eu disse não. Estava em uma missão e nem mesmo ela poderia me desviar disso. – Payne balançou a cabeça. – Depois que eu... fiz o que fiz... pensei que iria simplesmente viver a minha vida, mas houve coisas as quais eu não antecipei. Aqui embaixo, preciso me alimentar e... há outras preocupações.
Seu cio, especificamente... mas não iria explicar como o período fértil a havia afetado e impactado. Tinha sido um choque. Lá em cima, as fêmeas da Virgem Escriba estavam prontas para conceber quase o tempo todo e, assim, as grandes oscilações de hormônio não afetavam seu corpo. No entanto, quando desciam até ali e passavam um dia ou mais, o ciclo se apoderava delas. Ainda bem que isso acontecia apenas uma vez a cada dez anos... Porém, Payne havia chegado à errônea conclusão de que teria dez anos pela frente para se preocupar com isso.
Infelizmente, acabou acontecendo dez anos depois que o primeiro ciclo se iniciou: seu período de cio começou não mais que um mês depois de ter saído do Santuário.
Conforme se lembrava, as fortes dores para se acasalar deixaram-na indefesa e desesperada. Focou no rosto de Manuel. Será que serviria naquele período? Será que cuidaria de seus desejos violentos e amenizaria seu desejo por sexo? Será que um humano poderia fazer isso?
– Mas acabou voltando para lá? – ele disse.
Ela limpou a voz.
– Sim, voltei. Tive algumas... dificuldades e minha mãe veio até mim outra vez. – Na verdade, a Virgem Escriba temia que os machos no cio se aproveitassem de sua única filha que já havia... arruinado... tanto a vida que lhe fora dada. – Ela disse que iria me ajudar, mas apenas do Outro Lado. Concordei em ir com ela, pensando que seria como antes, que poderia encontrar a saída outra vez. Mas isso não aconteceu.
Manny colocou sua mão sobre a dela.
– Mas está longe de tudo isso agora.
Estava mesmo? O Rei Cego estava tentando administrar seu destino assim como sua mãe fazia. Porém, seus motivos eram menos egoístas... além disso, tinha a Irmandade, as shellans de cada um deles e uma criança morando sob seu teto e tudo isso merecia ser protegido. Só que temia que a visão dos humanos que seu irmão tinha fosse compartilhada por Wrath: ou seja, que eram redutores esperando para serem chamados ao serviço.
– Sabe de uma coisa? – ela disse.
– O quê?
– Acho que poderia ficar neste automóvel com você para sempre.
– Engraçado... eu sinto a mesma coisa.
Mais alguns estalos e viraram à direita.
Quando seguiram por ali, havia menos carros e mais edifícios, e ela entendeu o que Manny quis dizer sobre a noite melhorar o aspecto da cidade, não havia grandeza naquele bairro. Janelas quebradas estavam obscurecidas por dentro dando uma aparência de dentes faltando e a sujeira transbordava pelas laterais dos armazéns e das lojas, como se fossem sinais da idade. Havia manchas produzidas pela podridão ou acidentes ou vandalismo prejudicando o que, sem dúvida, haviam sido belas e iluminadas fachadas; a pintura havia desaparecido, a flor da juventude havia perdido para as intempéries e para a passagem do tempo. E, além disso, os humanos que estavam apoiados nas sombras não estavam em melhores condições.
Vestindo roupas amassadas com as cores da calçada e do asfalto, pareciam curvados por estarem sobrecarregados de peso, como se uma barra invisível forçasse todos os joelhos... e tal objeto os manteria assim sempre.
– Não se preocupe – Manuel disse. – As portas estão trancadas.
– Não estou com medo. Estou... triste, por alguma razão.
– A pobreza urbana fará isso com você.
Passaram por outra caixa podre que cobria muito mal dois seres humanos que dividiam um único casaco. Nunca imaginou que encontraria algum valor na perfeição opressiva do Santuário. Mas talvez sua mãe houvesse criado o paraíso para proteger as Escolhidas contra visões como aquela. Vidas... como aquelas.
No entanto, a aparência dos arredores logo melhorou. E, pouco depois, Manuel saiu da via entrando em uma rua paralela a uma instalação, uma extensão nova que apareceu cobrindo uma grande parcela de terra. Havia postes de luz bem altos por toda parte, lançando uma iluminação cor de pêssego sobre a construção abaixo, sobre os materiais brilhantes que constituíam dois veículos estacionados e sobre os arbustos que margeavam as passagens.
– Aqui estamos – disse ele, parando o carro e voltando-se para ela. – Vou apresentá-la como uma amiga, tudo bem? Apenas tente agir assim.
Ela sorriu.
– Vou tentar fazer isso.
Saíram juntos e... oh, o ar. Um conjunto tão complexo de odores bons e ruins, metálicos e doces, de terra e de algo divino.
– Eu amo isso – disse. – Eu amo isso!
Estendeu os braços e girou sobre um dos pés, que havia sido calçado pouco antes de deixarem o complexo. Quando parou seu giro e seus braços descansaram nas laterais do corpo, viu que Manny a observava e teve de rir constrangida.
– Desculpe. Eu...
– Venha aqui – ele rosnou, pálpebras semicerradas, um olhar quente e possessivo.
Ela ficou excitada imediatamente; seu corpo sentiu um calor intenso, e, de alguma forma, sabia que deveria levar um tempo para se aproximar dele. Sabia como provocá-lo, fazendo-o esperar, mesmo que não fosse por muito tempo.
– Você me deseja – ela falou lentamente quando ficaram face a face.
– Sim. Com certeza. – As mãos dele agarram sua cintura e a puxou com firmeza. – Dê-me sua boca.
Quando ela fez isso, colocou os braços ao redor da nuca de Manny e fundiram-se como um só corpo. O beijo apoderou-se dos dois, e quando terminaram, ela não conseguia parar de sorrir.
– Gosto quando exige algo de mim – disse. – Leva-me de volta ao banho, quando você estava...
Ele soltou um gemido e a interrompeu, colocando a mão sobre a boca dela suavemente.
– Sim, eu me lembro... pode acreditar... eu me lembro.
Payne deu uma lambida sobre a palma de sua mão.
– Vai fazer isso comigo outra vez. Esta noite.
– Devo ter muita sorte.
– Tem sim. E eu também tenho.
Ele riu um pouco.
– Sabe de uma coisa? Vou ter que colocar um dos meus casacos.
Manuel abriu outra vez a porta e inclinou-se dentro do carro. Quando reapareceu, vestiu um casaco branco que tinha seu nome impresso em letra cursiva na lapela. E soube pela maneira como ele fechou as duas metades que estava tentando esconder a reação do seu corpo perante ela.
Pena. Gostava de vê-lo naquela condição, todo orgulhoso e excitado.
– Vamos... vamos entrar – disse, pegando a mão de Payne, e, em seguida, quase sussurrando, pareceu dizer: – Antes de entrar...
Quando não terminou a frase, Payne deixou seu sorriso onde estava, bem na frente e no centro de seu rosto.
Após um exame mais detalhado, percebeu que a instalação parecia ser fortificada para uma batalha, com barras discretas nas janelas e uma cerca alta que se estendia a uma longa distância. As portas das quais se aproximaram também tinham barras e Manuel não recorreu às maçanetas.
Era lógico assegurar o edifício daquela maneira, pensou. Considerando como aquela grande parte da cidade aparentava.
Manuel apertou um botão e imediatamente uma voz distante e distorcida disse:
– Hospital Equino Tricounty.
– Dr. Manuel Manello. – Virou a cabeça em direção a uma câmera. – Estou aqui para ver...
– Olá, doutor. Entre.
Houve um zumbido e, em seguida, Manuel segurou a porta aberta para Payne entrar.
– Depois de você, bambina.
O interior do local que entraram era simples e muito limpo, com um chão de pedra lisa e filas de cadeiras, como se as pessoas passassem muito tempo esperando naquela sala da frente. Nas paredes, imagens de cavalos e bovinos estavam emolduradas; muitos dos animais tinham fitas vermelhas e azuis penduradas em seus cabrestos. Do outro lado, havia um painel de vidro com a palavra RECEPÇÃO gravada mais acima em letras douradas formais e havia portas... muitas portas. Algumas com o símbolo do sexo masculino, outras com o símbolo do sexo feminino... outras com inscrições que diziam VETERINÁRIO DIRETOR... e FINANCEIRO... e GERENTE PESSOAL.
– Que lugar é esse? – perguntou.
– Um lugar onde se salvam vidas. Venha... vamos por esse lado.
Ele a levou por um caminho que atravessava um par de portas duplas e ia até um homem humano uniformizado sentado atrás de uma mesa.
– Olá, Dr. Manello. – O homem apoiou um jornal com letras grandes no topo do papel onde se lia New York Post. – Não nos vemos há um tempo.
– Esta é uma amiga minha, Pa... Pamela. Vamos ver minha garota.
O humano focou o rosto de Payne. E, então, pareceu estremecer.
– Ah... ela está onde a deixou. O doutor responsável pelo tratamento passou bastante tempo com ela hoje.
– Sim. Ele me ligou. – Manuel bateu o tampo da mesa com os dedos. – Vejo você daqui a pouco.
– Claro, doutor. Prazer em conhecê-la... Pamela.
Payne inclinou a cabeça.
– Foi adorável conhecê-lo também.
Houve um silêncio constrangedor quando ela se endireitou. O humano estava completamente atordoado por ela, sua boca ligeiramente aberta, os olhos arregalados... e muito agradecido.
– Calminha aí, garotão – Manuel disse de maneira sombria. – Pode voltar a piscar a qualquer momento... como, por exemplo, agora. Mesmo. De verdade.
Manny colocou-se entre os dois e pegou a mão dela ao mesmo tempo, bloqueando a visão e estabelecendo um ponto de domínio sobre ela. E isso não foi tudo: o aroma de especiarias escuras flutuou dele, um aroma que advertia o outro homem de que a fêmea sendo admirada estava disponível apenas sobre o cadáver de Manuel.
E aquilo fez com que Payne sentisse um sol escaldante no centro do peito.
– Venha, Pay... Pamela. – Quando Manuel voltou-se para ela e os dois começaram a andar, Manny acrescentou com um sussurro: – Antes que a mandíbula do garoto caia do rosto e aterrisse na seção de esportes.
Payne saltitou uma vez, e, em seguida, fez de novo. Manuel olhou.
– O pobre guarda lá atrás esteve prestes a ter uma experiência de quase-morte com seu crachá sendo enfiado pela garganta e você está feliz?
Payne beijou rapidamente a bochecha de Manuel, enxergando por trás da falsa carranca e observando seu lindo rosto.
– Você gosta de mim.
Manuel revirou os olhos e puxou-a pelo pescoço, retribuindo o beijo.
– Dã...
– Dã – ela imitou...
Alguém tropeçou no pé de alguém, difícil dizer quem foi, e Manuel foi o único que evitou que caíssem.
– Melhor prestar atenção – o macho dela disse. – Antes que sejamos nós precisando ser ressuscitados.
Ela deu uma cotovelada nele.
– Sábia conclusão.
– Está me bajulando?
Payne olhou por cima do ombro, e, então, deu um tapa no traseiro dele... forte. Quando ele protestou, ela piscou para ele.
– Sim. De fato, estou mesmo. – Baixando muito os olhos e a voz, disse: – Deseja que eu faça isso outra vez, Manuel? Talvez... do outro lado?
Quando ela arqueou as sobrancelhas para ele, o som do riso de Manny retumbou e preencheu todo o corredor vazio, soando alto e forte. E quando colidiram um com o outro mais uma vez, ele a deteve.
– Espere, precisamos fazer isso melhor. – Aninhou-a sob o braço dele, beijou sua testa e alinhou-se com ela. – No três, use a direita. Pronta? Um... dois... três.
No momento certo, os dois estenderam suas longas pernas direitas e, em seguida, as esquerdas... direita... esquerda.
Andavam perfeitamente.
Lado a lado.
Percorreram o corredor. Juntos.
Nunca ocorreu a Manny que sua vampira sexy pudesse ter senso de humor, e aquilo completava a encomenda perfeitamente.
Ah, inferno, não era só isso. Era toda aquela sensação dela de encantamento, sua alegria e a impressão de que estava pronta para qualquer coisa. Não havia absolutamente qualquer relação com aquelas socialites frágeis e quebradiças ou com aquelas modelos magras demais com quem tinha saído.
– Payne?
– Sim?
– Se eu lhe dissesse para escalar uma montanha esta noite...
– Oh! Eu adoraria! Adoraria observar uma longa vista de...
Bingo. No entanto, Deus, tinha de pensar na crueldade de finalmente encontrar seu par perfeito... alguém tão incompatível.
Quando chegaram ao segundo conjunto de portas duplas que dava para a parte clínica do hospital de cavalos, abriu bem uma delas e, sem perder o ritmo, voltaram a ficar um ao lado do outro e continuaram a passar... e foi então que aconteceu.
Sentiu-se completamente apaixonado por ela.
Foi a conversa alegre dela, o saltitar em seus passos e os olhos de gelo que brilhavam como cristal. Foi a história dela que compartilhou, a dignidade que mostrou e o fato de que tinha sido julgada por um padrão que ele costumava usar... e, agora, não seria capaz de suportar sentar-se do outro lado de uma mesa de jantar com alguém com quem costumava sair. Era a força de seu corpo e a perspicácia de sua mente e...
Cristo... nem pensou no sexo.
Irônico. Ela havia lhe concedido os melhores orgasmos da vida e isso sequer chegou ao topo da lista “Motivos pelos quais amo você”.
Achava que isso se devia ao fato dela ser simplesmente espetacular.
– Não sei por que está sorrindo, Manuel – Payne disse. – Será que está antecipando o lugar que minha mão ocupará sobre seu traseiro?
– Sim. Exatamente isso.
Ele a puxou para outro beijo... e tentou ignorar a dor em seu peito: não havia necessidade de estragar os momentos que tinham com despedidas que já estavam lhes esperando. Aquilo aconteceria muito em breve. Além disso, tinham encontrado seu destino.
– Ela está por aqui – disse, virando à esquerda e entrando em uma área de recuperação.
No instante em que a porta se abriu, Payne hesitou, sua testa franziu quando ouviu os sons ocasionais de relinchos e cascos batendo no chão e sentiu o cheiro de feno exalando no ar.
– Mais à frente – Manny puxou-a pela mão. – Seu nome é Glory.
Glory era a última do lado esquerdo, mas no instante em que Manny disse seu nome, o pescoço longo e elegante estendeu-se e sua cabeça perfeitamente proporcional emergiu no topo da baia.
– Ei, garota – disse. Em resposta, ela soltou uma saudação apropriada, a ponta das orelhas se esticaram e o focinho ricocheteou no ar.
– Céus... – Payne respirou, soltando a mão de Manny e indo à frente dele.
Quando ela se aproximou da baia, Glory sacudiu a cabeça, sua crina negra moveu-se com graça e ele teve uma súbita visão de Payne sendo mordida.
– Cuidado – disse quando iniciou uma pequena corrida. – Ela não gosta... – No instante em que Payne colocou a mão no focinho de seda, Glory voltou-se para ter mais, colidindo contra a palma da mão, procurando mais carinho.
– De gente nova... – Manny terminou pouco convincente.
– Oi, querida – Payne murmurou, com os olhos percorrendo o cavalo ao se inclinar sobre a baia. – Você é tão linda... tão grande e forte... – As mãos pálidas encontraram o pescoço negro e acariciaram em um ritmo lento. – Por que suas pernas estão enfaixadas?
– Ela machucou a direita. Feio. Há uma semana.
– Posso entrar?
– Hã... – Deus, ele não conseguia acreditar, mas Glory parecia estar apaixonada, seus olhos se fechavam enquanto recebia uma boa carícia atrás das orelhas. – Sim, acho que vai ficar tudo bem.
Ele soltou a trava da porta e os dois entraram. E quando Glory teve de se mover para trás, ela mancou... com o que tinha sido seu lado bom.
Tinha perdido tanto peso que suas costelas estavam expostas como estacas de uma cerca sob a pele. E poderia apostar que quando as visitas fossem embora, sua explosão de energia se esvairia rapidamente.
A mensagem no correio de voz deixada pelo médico havia sido muito clara: ela estava caindo. O osso quebrado estava se recuperando, mas não rápido o suficiente e a redistribuição do peso fez com que as camadas do casco oposto enfraquecessem e se separassem.
Glory estendeu o focinho em seu peito e deu-lhe um rápido empurrão.
– Ei, mocinha.
– Ela é extraordinária. – Payne afagou a égua. – Simplesmente extraordinária.
E agora havia outra coisa em sua consciência: talvez trazer Payne ali não tenha sido um presente, mas uma crueldade. Por que apresentá-la a um animal que provavelmente seria...
Deus, não conseguia sequer pensar nisso.
– Não é o único que marca território – Payne disse suavemente.
Manny olhou para Payne sobre a cabeça de Glory.
– Como?
– Quando me disse que ia conhecer uma fêmea, eu... eu esperava que ela tivesse cara de cavalo.
Ele riu e acariciou a fronte de Glory.
– Bem, isso ela tem, com certeza.
– O que vai fazer com ela?
Enquanto tentava formar as palavras, reuniu a crina que caía um pouco acima dos olhos quase negros do cavalo.
– Sua falta de resposta já é suficiente – Payne disse com voz triste.
– Não sei por que a trouxe aqui. Quero dizer... – ele limpou a garganta. – Na verdade, eu sei... e é muito patético. Tudo o que tenho é meu trabalho... Glory é a única coisa que não está relacionada a meu trabalho. É algo pessoal para mim.
– Deve estar de coração partido.
– Estou. – De repente, Manny olhou sobre o dorso de seu cavalo doente para observar a cabeça da vampira de cabelos escuros que tinha apoiado a bochecha sobre o flanco de Glory. – Estou... totalmente destruído com a perda.
CAPÍTULO 40
Alguns poucos momentos após a ligação de Butch, Jane ficou congelada no terraço da cobertura de V. Enquanto sua forma assumia peso, o ar frio da noite movia seus cabelos e fazia seus olhos encherem-se de água.
Ou... talvez fossem apenas as lágrimas.
Olhando pelo vidro, viu tudo muito claramente: a mesa, os açoites, os chicotes, as... outras coisas.
Quando ia até ali antes com Vishous, aquelas armadilhas de suas predileções hardcore pareciam nada mais do que um pano de fundo assustador e tentador para o incrível sexo que tinham. Mas a versão dela para o “jogo” era como a de um poodle se comparada ao do lobisomem que ele adotava.
E como ela via claramente aquilo agora.
O que será que Butch havia usado? Que tipo de instrumento encaixava-se com seu companheiro? Será que haveria muito sangue?
Espere um minuto: onde V. estava?
Passando pela porta de vidro, ela...
Nada de sangue no chão, ou escorrendo dos instrumentos. Nada de ganchos suspensos pendurados no teto. Tudo estava exatamente da mesma maneira que havia deixado da última vez que esteve ali, como se nada tivesse acontecido...
Um gemido veio de fora do círculo de velas e o som fez sua cabeça girar. Claro: a cama.
Ao lançar-se pelo véu da escuridão, seus olhos se ajustaram e lá estava ele: envolto em lençóis de cetim, deitado, contorcendo-se de dor... ou estaria dormindo?
– Vishous? – disse suavemente.
Com um grito, ele acordou de imediato, seu tronco ereto, olhos arregalados. Instantaneamente, ela notou que o rosto dele estava marcado com cicatrizes que já desapareciam... e havia outras ao longo de seu peitoral e abdômen. Mas a expressão em seu rosto foi o que, de fato, chamou sua atenção: ele estava horrorizado.
De repente, houve uma agitação furiosa quando ele tirou as cobertas de seu corpo. Ao olhar para baixo, para si mesmo, o suor brotou no peito e nos ombros, sua pele assumiu um brilho repentino, nas sombras que o envolviam fez um gesto para cobrir seu sexo... como se estivesse protegendo o que restou.
Com a cabeça baixa, respirou fundo várias vezes. Inspira. Expira. Inspira. Expira...
O padrão transformou-se em soluços.
Encolhendo-se, as mãos abrigaram o trabalho de açougueiro que foi feito há muito, muito tempo, chorou em grandes ondas de emoção, sua reserva havia desaparecido, seu controle sumira, sua inteligência não era mais um governante, e sim, um súdito.
Ele não percebeu que ela estava em pé ao lado dele.
E ela deveria ir embora, Jane pensou. Ele não gostaria que o visse assim... nem mesmo antes de tudo que havia desabado sobre eles. O macho que ela conhecia, amava e tinha casado não gostaria de nenhuma testemunha...
Foi difícil dizer o que chamou a atenção dele... e mais tarde ela se perguntaria como ele escolheu o exato momento em que já ia se desmaterializar para olhá-la.
Por um instante, ficou incapacitada: se ficou magoado pelo que havia feito com Payne, iria odiá-la agora... não havia como voltar atrás naquela invasão de privacidade.
– Butch me ligou – ela desabafou. – Ele disse que estaria...
– Ele me machucou... Meu pai me machucou.
As palavras soaram tão baixas e suaves que quase não foram registradas. Mas quando o fizeram, o coração dela parou.
– Por quê? – Vishous perguntou. – Por que ele fez isso comigo? Por que minha mãe fez isso? Nunca pedi a nenhum deles para nascer... e não escolheria nascer se alguém tivesse perguntado... Por quê?
Suas bochechas estavam escorregadias com as lágrimas que derramavam pelos olhos de diamante, em um fluxo incessante que ele não notava nem parecia se importar. E ela teve a sensação de que ia levar um bom tempo para que aquele vazamento cessasse... alguma artéria havia se rompido e aquele era o sangue de seu coração, derramando-se, cobrindo-o.
– Sinto muito – disse, desajeitada. – Não sei quais foram os motivos... mas sei que não merecia nada disso. E... e não é culpa sua.
Suas mãos deixaram a posição protetora e ele olhou para baixo. Passou-se um longo tempo antes que falasse e, quando o fez, suas palavras eram lentas e ponderadas... e saíram num ritmo tão incessante e calmo quanto suas lágrimas.
– Gostaria de ser inteiro. Gostaria de lhe dar filhos se os quisesse e pudesse concebê-los. Gostaria de ter lhe dito que quando pensou que estive com outra pessoa isso me matou. Gostaria de ter passado o último ano acordando todas as noites ao seu lado e lhe dizendo que a amava. Gostaria de ter me acasalado com você da maneira adequada na noite em que voltou para mim dos mortos. Gostaria... – agora, seu olhar cintilante fixou-se no dela. – Gostaria de ter a metade da sua força e gostaria de merecê-la. E... é isso.
Certo. Muito bem. Agora os dois estavam chorando.
– Sinto tanto por Payne – ela disse com voz rouca. – Eu queria falar com você, mas ela estava decidida. Tentei convencê-la, tentei mesmo, mas, no final, eu apenas... apenas... não queria que fosse você que tivesse que fazer isso. Eu preferia viver com essa verdade horrível na minha consciência por uma eternidade do que você ter que matar sua irmã, ou vê-la se machucando mais do que estava.
– Eu sei... Eu sei disso agora.
– E, para ser honesta, o fato de ela estar curada agora? Sinto calafrios ao pensar na quase perda que tivemos.
– Mas está tudo bem. Ela está bem.
Jane enxugou os olhos.
– E eu acho que quando se trata de... – ela olhou para a parede envolvida pela luz amanteigada das velas que não fazia nada para suavizar as pontas afiadas e todas as implicações dos acessórios ali pendurados. – Quando se trata das... coisas... sobre você e seu sexo, sempre me preocupei de não ser o suficiente para você.
– Nossa... não... você é tudo para mim.
Jane colocou a mão sobre a boca para não perder o controle, pois era exatamente o que precisava ouvir.
– Nunca nem sequer escrevi seu nome nas minhas costas – V. disse. – Pensei que era bobagem e uma perda de tempo... mas como pode sentir que estamos vinculados sem isso... especialmente quando cada macho no complexo foi marcado por causa de sua shellan?
Deus, ela não tinha pensado nisso.
V. balançou a cabeça.
– Você me deu espaço... para sair com Butch, lutar com meus Irmãos e fazer o que gosto na internet. O que lhe dei em troca?
– Minha clínica, em primeiro lugar. Não poderia ter construído aquele lugar sem você.
– Não foi exatamente um buquê de rosas.
– Não subestime suas habilidades na carpintaria.
Ele sorriu um pouco com isso. E, então, ficou muito sério outra vez.
– Posso lhe dizer uma coisa que sempre penso todas as vezes que acordo a seu lado?
– Por favor.
Vishous, aquele que tinha resposta para tudo, parecia estar com a língua presa. Mas, então, disse:
– Você é a razão pela qual eu me levanto todas as noites da cama. É a razão pela qual mal posso esperar para voltar para casa ao amanhecer. Não a guerra. Não os Irmãos. Nem mesmo Butch. É... você.
Oh, palavras tão simples... mas com tanto significado. Bom Deus, quanto significado.
– Vai me deixar abraçá-lo agora? – disse ela roucamente.
Seu companheiro estendeu os grandes braços.
– Que tal eu abraçá-la?
Quando Jane saltou para frente e mergulhou sobre ele, respondeu:
– Não precisa ser uma coisa ou outra.
Instantaneamente, ela assumiu sua forma corpórea completa sem esforço algum, aquela química mágica entre eles a chamava e a prendia. E quando Vishous aninhou o rosto em seu cabelo e estremeceu como se tivesse corrido muito e finalmente tivesse voltado para casa... soube exatamente como ele se sentia.
Com sua shellan apertada contra ele, V. sentia como se tivesse explodido em mil pedaços... e agora se reagrupasse.
Deus, o que Butch tinha feito por ele. Por todos eles.
O caminho que o tira percorreu foi o mais correto. Horrível, terrível... mas com certeza o correto. E enquanto V. segurava sua fêmea, seus olhos observavam o espaço onde tudo tinha acontecido. Tudo estava limpo... exceto algumas coisas que estavam fora do lugar no chão: uma colher e um copo quase vazio que tinha de ser água.
Tudo tinha sido uma ilusão: nada havia o cortado, de fato. E apostaria que Butch havia deixado os dois objetos bem em frente e centralizados no local para que V. os observasse ao acordar, para que soubesse os meios que levaram ao fim.
Em retrospecto, parecia tudo tão estúpido... não a sessão com o tira, mas o fato de que V. nunca pensou realmente em Bloodletter naqueles anos no campo de guerra. A última vez que aquele pedaço do seu passado havia sido trazido à tona, foi quando Jane ficou com ele pela primeira vez... e foi só por ela tê-lo visto nu, então, teve de explicar.
Meu pai não queria que eu reproduzisse.
Isso foi tudo o que disse. Em seguida, como um cadáver que havia sido jogado em águas calmas, aquela porcaria afundou, reassentando-se sobre o banco de areia bem dentro dele.
A.J., ou Antes de Jane, só tinha feito sexo vestido. Não por vergonha – ou ao menos era isso o que dizia a si mesmo –, mas porque simplesmente não tinha interesse em ir até o fim com machos e fêmeas anônimos que tinha submetido.
D.J.? Foi tudo diferente. Estar nu era mais do que bom, provavelmente porque Jane ficou tranquila com a revelação, e, ainda assim, quando pensava naquilo agora, percebia que sempre a distanciou, mesmo quando a apertava em seus braços. Na verdade, tinha sido mais próximo de Butch... mas aquilo era uma coisa entre machos, ou seja, algo que, de alguma forma, era menos ameaçador do que a relação macho-fêmea.
Sombras de problemas com a Mamãe, sem dúvida: depois de tudo que sua mahmen havia arrancado dele, simplesmente não conseguia confiar nas mulheres da mesma maneira que confiava em seus Irmãos, ou em seu melhor amigo.
Só que Jane nunca o traiu. Na verdade, estava disposta a lutar contra a própria consciência apenas para salvá-lo do ato inqualificável que sua irmã havia exigido dele.
– Você não é minha mãe – ele disse através dos cabelos de sua shellan.
– Tem toda razão. – Jane recuou e olhou bem nos olhos dele... como era característica sua fazer. – Nunca teria abandonado meu filho, ou tratado minha filha desse jeito.
V. inspirou fundo e quando deixou o oxigênio sair de seus pulmões, sentiu como se estivesse expelindo os mitos com os quais definia a si mesmo... e Jane... e seu acasalamento.
Precisava mudar o paradigma.
Por eles. Por si mesmo. Por Butch.
Cristo, a expressão no rosto do tira quando as coisas foram acontecendo ali foi trágica.
Então, sim, era hora de parar de usar recursos superficiais para medicar suas emoções. O sexo extremo e a dor pareceram excelentes soluções por muito tempo, mas na verdade tinham sido maquiagem sobre uma espinha: a feiura continuava ali.
O que precisava fazer era lidar com o lixo interior; então, não precisava mais de Butch ou de qualquer outra pessoa para espancá-lo para que conseguisse libertar-se das coisas. Assim, as excentricidades poderiam ser reservadas apenas para o prazer com Jane.
Colocar toda aquela porcaria para fora... era mesmo o certo a se fazer... percebeu que estava finalmente preparado para tentar uma versão psiquiátrica de um tratamento eficaz para a pele.
A próxima coisa que faria seria ir até a TV, olhar para a câmera e dizer: “Só é preciso uma camada de autoconsciência... depois, enxáguo com o sabonete. Defina-se e minha mente e emoções ficam limpas e brilhantes”.
Certo, agora estava mesmo perdendo o juízo, tudo bem.
Acariciando os cabelos macios de Jane, murmurou:
– Quanto... às coisas que tenho aqui. Se você estiver no jogo, ainda quero brincar... se é que entende o que estou dizendo. Mas, de agora em diante, é apenas por diversão e apenas para você e para mim.
Caramba, tiveram uma boa dose de sexo extravagante, naquele lugar, envolvendo muito couro, e gostaria sempre de ter aquilo com ela. Com sorte, ela gostaria de fazer o mesmo...
– Gosto do que fazemos aqui – ela sorriu. – Fico excitada.
Bem... parece que aquilo fez seu pênis latejar.
– Eu também.
Quando ele sorriu de volta para ela, reconheceu a chave mestra daquela mistura: aquela decisão de virar a página era muito boa... mas como mantê-la? Na noite seguinte simplesmente não conseguiria mais suportar acordar e ser aquele cara que saía dos trilhos.
Droga, achava que teria de descobrir como fazer isso, não é mesmo?
Com um toque gentil, acariciou a bochecha de sua shellan.
– Nunca estive em um relacionamento antes de você. Deveria saber que teríamos algum impasse em algum momento.
– É assim que funciona.
Pensou em seus Irmãos e na quantidade de precipitações, brigas e discussões que aquele bando de cabeças duras teve entre si. De alguma forma, sempre lidavam com isso... geralmente golpeando uns aos outros de vez em quando. Coisa própria de garotos.
Estava claro que com ele e Jane seria a mesma coisa. Tirando os golpes, claro, mas com as mesmas estradas esburacadas e as resoluções finais. Afinal, aquilo era a vida... não um conto de fadas.
– Mas sabe qual é a melhor coisa? – sua Jane perguntou, quando colocou os braços em volta de seu pescoço.
– Não sentir mais que estou morto por não estar em minha vida?
– Bem, sim, isso também – ela estendeu-se e o beijou. – Duas palavras: sexo reconciliatório.
Ohhhh, siiiiim. Só que...
– Espere, não se diz “sexo de reconciliação”?
– Também é uma possibilidade. – Pausa. – Já mencionei que você é o nerd mais gato que já conheci?
– Eu mereço essa observação. – Baixou a cabeça e roçou a boca contra a dela. – Apenas mantenha isso em segredo. Tenho uma reputação de cara durão a zelar.
– Seu segredo está seguro comigo.
V. ficou sério.
– Eu estou seguro com você.
Jane tocou seu rosto.
– Não posso prometer que não vamos passar por períodos difíceis outra vez e sei que nem sempre vamos concordar com tudo. Mas tenho certeza de uma coisa: você sempre estará seguro comigo. Sempre.
Vishous puxou-a para mais perto de si e enfiou a cabeça em sua garganta. Imaginou que, depois que ela voltou dos mortos por ele em sua forma fantasmagórica adorável, nada superaria isso. Mas estava errado. Percebeu que o amor era como as adagas que fazia em sua oficina: quando as contemplava pela primeira vez, eram novas e brilhantes e as lâminas cintilavam sob a luz. Segurando-a contra a palma da mão, ficava cheio de entusiasmo pelo que ela poderia fazer no campo de batalha e mal podia esperar para experimentá-la. Só que, geralmente, as primeiras noites são difíceis até se acostumar com ela.
Ao longo do tempo, o aço perde seu brilho original e o punho fica manchado, e talvez precise ser lixado algumas vezes. Contudo, o que ganha em troca pode salvar sua vida: uma vez que estiver bem familiarizado com o objeto, torna-se parte de você de tal forma que parece uma extensão de seu braço. Ele o protege e lhe dá um meio de proteger seus irmãos; proporciona confiança e poder para enfrentar qualquer coisa que lhe sobrevenha na noite e, onde quer que vá, ele vai com você, junto a seu coração, sempre ali quando precisa dele.
Entretanto, precisa manter a lâmina afiada e reposicionar o cabo de tempos em tempos, verificar outra vez o peso.
Engraçado... tudo aquilo parecia tão óbvio quando se tratava de armas. Por que não se deu conta de que com o casamento era a mesma coisa?
Revirando os olhos, pensou: Cristo, talvez alguma loja de presentes ainda estivesse aberta à possibilidade de criar uma linha de cartões do dia dos namorados inspirada na época medieval, alguma coisa levemente gótica. Isso seria perfeito para o que precisava.
Fechando os olhos e abraçando Jane, estava quase feliz por ter perdido a cabeça, só para que pudessem chegar até ali.
Bem, ele teria escolhido uma rota mais fácil se existisse uma; mas tinha de merecer onde estavam agora.
– Tenho uma pergunta para lhe fazer – disse ele suavemente.
– Qualquer coisa.
Recuando um pouco, ele acariciou o cabelo de Jane com a mão enluvada e precisou de um tempo para perguntar o que estava na ponta da língua.
– Você vai... permitir que eu faça amor com você?
Quando Jane o encarou e Vishous sentiu seu corpo contra o dela, ela soube que nunca o deixaria. Nunca. E soube também que se conseguiram passar pela última semana, conseguiriam permanecer juntos conforme acontecia nos bons casamentos e acasalamentos.
– Sim – disse ela. – Por favor...
Seu hellren a possuiu tantas vezes desde que estavam juntos: durante a noite e durante o dia; no banho e na cama; vestido, nu, seminu; rápido e forte... forte e rápido. O fato de V. estar sempre no limite fazia parte da emoção... isso e a imprevisibilidade. Ela nunca sabia o que esperar... se ia exigir coisas dela, ou assumir o controle de seu corpo, ou conter-se para que ela fizesse qualquer coisa que desejasse com ele. Porém, um fato constante era que nunca foi seu estilo ir devagar.
Agora, ele apenas acariciava seu cabelo, correndo os dedos através das ondas e posicionando-as por trás de suas orelhas. E manteve o olhar fixo no dela quando suas bocas uniram-se suavemente.
Afagando e acariciando, ele lambeu os lábios dela... mas quando ela abriu a boca, não mergulhou como sempre fazia. Apenas continuou beijando... até ela ficar atordoada com as sucções e carícias da carne contra a carne.
O corpo dela geralmente rugia pelo dele, mas, agora, sentia um desabrochar delicioso percorrê-la, relaxando e acalmando, provocando uma tranquilizante excitação que, de alguma forma, era tão profunda e avassaladora quanto a paixão desesperada que normalmente sentia.
Quando o corpo dele mudou de posição, ela seguiu a liderança, apoiando totalmente as costas quando ele se ergueu e cobriu o corpo dela por completo. O beijo continuava e estava tão envolvida que não percebeu que ele deslizou a mão por baixo de sua camisa. A palma da mão quente arrastava-se para cima, buscando seus seios... encontrou-os e os capturou. Nada de provocações, nada de beliscões, nada de apertões. Apenas passava o dedão em volta e sobre o mamilo, até ela se arquear e gemer em sua boca.
As mãos dela estenderam-se pelas laterais do corpo de Vishous e... oh, Deus, havia aquele padrão de marcas que ela havia visto. E continuavam ao longo de todo seu tronco...
Vishous pegou seus pulsos e os levou de volta para a cama.
– Não pense nisso.
– O que ele fez com você...?
– Shhh.
O beijo foi retomado e ficou tentada a lutar, mas as carícias delicadas submergiram seu cérebro em sensações.
Estava feito, disse a si mesma. Tudo o que tinha acontecido havia ajudado a chegarem até ali.
Isso era tudo o que precisava saber.
A voz de Vishous sussurrou em seu ouvido, profunda e baixa:
– Quero tirar sua roupa. Posso?
– Por favor... sim... Deus, sim.
Despi-la foi parte do prazer, os meios foram tão gloriosos quanto o fim, quando ficaram pele contra pele, e, de alguma maneira, a revelação gradual do que havia observado tantas vezes fez com que parecesse novo e especial.
Seus seios ficavam cada vez mais excitados conforme o ar frio os atingia, e ela observou o rosto de V. contemplá-la. A necessidade estava lá, só que havia muito mais... reverência, gratidão... uma vulnerabilidade que sempre sentiu, mas nunca enxergou com clareza antes.
– Você é tudo o que eu preciso – disse ele quando abaixou a cabeça. Suas mãos estavam em toda parte, sobre o abdômen, os quadris, entre as coxas.
Sobre seu sexo escorregadio.
O orgasmo que lhe deu foi uma onda quente que percorria seu corpo, irradiando-se de dentro para fora, possuindo-a em uma nuvem de êxtase e prazer. Em meio a tudo isso, ele a montou e a penetrou. Nada de golpes fortes dentro dela, apenas mais daquela onda, dentro e fora, enquanto o corpo dele se movia e sua ereção pulsava para frente e para trás.
Nenhum movimento rápido, apenas mais daquele amor lento.
Nada de urgência, apenas todo o tempo do mundo.
Quando ele finalmente gozou, foi em meio a um último movimento de sua coluna e um pulsar dentro dela, e ela o acompanhou; os dois abraçaram-se com ternura, fundindo o corpo... e a alma.
Virando-se na cama, levou-a para cima dele, envolvendo-a com seu peitoral musculoso, firme e tão suave e quase tão leve quanto uma brisa de verão. Ela estava flutuando e quente e...
– Você está bem? – disse Vishous quando a olhou.
– Mais do que bem – Ela examinou seu rosto. – Sinto como se tivesse feito amor com você pela primeira vez.
– Que bom – Ele a beijou. – Esse era o plano.
Deitando a cabeça sobre o coração dele, olhou ao longo da parede atrás da mesa. Nunca pensou que seria grata por aquele bando de “brinquedos” aterrorizantes, mas estava. Em meio à tempestade... encontraram a calmaria.
Separaram-se por um tempo... Mas, agora, eram um só novamente.
CAPÍTULO 41
Na mansão, Qhuinn andava pelo quarto como um rato procurando uma saída em sua gaiola. De todas as noites, aquela era a pior para Wrath mantê-los confinados.
Dane-se.
Quando fez mais outra viagem passando pela porta aberta do banheiro, pensou que o fato da quarentena fazer sentido o irritava ainda mais: apenas John e Xhex não estavam feridos naquele momento; todos que estiveram naquela briga ficaram cortados, fatiados ou arranhados de alguma forma.
Aquilo parecia um maldito Pronto Atendimento, mas, por favor, os três poderiam estar lá fora dando o troco.
Parando em frente às portas da varanda, olhou os jardins bem cuidados que estavam prestes a desabrochar com a primavera. Com as luzes apagadas em seu quarto, pôde ver claramente a piscina com seu toldo de inverno esticado sobre toda a extensão de seu ventre... como se fosse a maior cinta modeladora que o mundo já tinha visto, e as árvores ainda estavam nuas em sua maioria. Os canteiros de flores...
Blay tinha sido ferido.
Ainda não eram nada além de bancos de terra marrom-escuros...
– Droga.
Esfregando os cabelos que agora estavam muito curtos, tentou negociar com a pressão no centro do peito. De acordo com John, Blay tinha sido atingido na cabeça e sofreu um corte no abdômen. O primeiro machucado estava sendo monitorado; o último havia sido costurado pela Doutora Jane. Nenhum deles colocava sua vida em risco.
Tudo muito bem.
Que pena que seu peito não estava assimilando o fato muito bem. Desde que John Matthew havia lhe dado a notícia, aquela maldita dor havia se instalado, como se uma toupeira entrasse e saísse de seus brônquios sem parar.
Literalmente, não conseguia respirar fundo.
Maldição, se fosse um macho maduro – e considerando a maneira como lidava com as coisas algumas vezes, aquilo era bastante discutível, se não completamente errado – sairia no corredor, andaria até o quarto de Blay e bateria na porta. Colocaria a cabeça para dentro, veria por si mesmo que o coração do ruivo ainda estava batendo e todos os sentidos estavam funcionando... e, então, continuaria a fazer suas coisas.
Em vez disso, lá estava ele, tentando fingir que não estava pensando no cara enquanto afundava um caminho no carpete.
Assim, continuou com a caminhada. Teria ido à sala de musculação e corrido um pouco, mas o fato de que Blaylock estava ali, próximo dele, era como uma corda de marionete que o mantinha preso no local, sem muita vontade de puxá-lo, direcionando-o para a luta ou... digamos... mesmo se a casa estivesse pegando fogo, era evidente ser incapaz de se libertar.
E quando se viu em frente às portas francesas outra vez, teve uma vaga ideia do motivo que o fazia parar ali.
Tentou tirar a mão da alça da maçaneta.
Não funcionou.
O trinco produziu um estalo e o ar gelado foi como um tapa em seu rosto. Saindo com os pés descalços e roupão, mal notou a ardósia congelada ou o frio que percorreu suas pernas e agarrou-se em seu pênis.
À frente, uma luz irradiava das portas duplas do quarto de Blay. O que era bom... com certeza eles fechavam a cortina antes de terem relações sexuais.
Então, era seguro ficar observando. Certo...?
Além disso, Blay estava se recuperando de um ferimento; então, não poderiam sair rolando pelo quarto.
Dando uma de xereta, Qhuinn esquivou-se nas sombras e tentou não se sentir um intruso ao andar na ponta dos pés. Quando chegou ao lado da porta, preparou-se, inclinou-se e... respirou fundo e aliviado.
Blay estava sozinho na cama, deitado apoiado contra a cabeceira, seu roupão estava amarrado em meio à cintura, os tornozelos cruzados, os pés cobertos por meias pretas. Seus olhos estavam fechados e sua mão repousava sobre o ventre, como se estivesse cuidando do que, provavelmente, ainda estava enfaixado.
Um movimento do outro lado abriu as pálpebras de Blay e levou seus olhos a se fixarem na direção oposta às janelas. Era Layla que emergia do banheiro e andava lentamente. Os dois trocaram algumas palavras... sem dúvida, ele estava agradecendo pelo alimento que tinha acabado de ingerir e ela estava dizendo que era um prazer: não era surpresa ela estar ali. A Escolhida fazia rondas pela casa naquela noite e Qhuinn já havia cruzado com ela pouco antes da Primeira Refeição... ou o que teria sido a Primeira Refeição se alguém tivesse aparecido.
E quando ela saiu do quarto de Blay, Qhuinn esperou que Saxton entrasse. Nu. Com uma rosa vermelha entre seus dentes, e uma maldita caixa de chocolates.
E uma ereção que faria um monumento nacional parecer pequeno.
Nada.
Blay deixou a cabeça cair para trás e suas pálpebras fecharam-se outra vez. Parecia completamente exausto e, pela primeira vez, mais velho. Não era um garoto em transição recente; era um macho puro-sangue.
Um macho... belíssimo... e puro-sangue.
Em sua mente, Qhuinnn viu-se abrindo a porta e entrando. Blay olharia em volta e tentaria se sentar... mas Qhuinn acenaria para ele, para detê-lo, ao se aproximar.
Perguntaria sobre o ferimento. E Blay abriria o roupão para mostrar. Qhuinn estenderia a mão e tocaria o curativo... e, então, deixaria os dedos vagarem pela gaze e pelo esparadrapo sobre a pele lisa e quente do abdômen de Blay. Ele ficaria chocado, mas, naquela fantasia, Qhuinn deslizaria aquela mão... Mais para baixo, afastando-se do ferimento e descendo para os quadris e seu...
– Droga!
Qhuinn recuou com rapidez, mas já era tarde demais: de alguma forma, Saxton havia entrado no quarto, andado até as janelas e começou a fechar as cortinas. E, durante o processo, tinha visto o idiota do lado de fora da varanda dando uma de câmera de segurança.
Quando Qhuinn virou-se e pegou o caminho de volta para seu quarto, pensou: “Não abra a porta... não abra a porta...”
– Qhuinn?
Pego em flagrante.
Congelando como um assaltante com uma TV de plasma nos braços, certificou-se de que seu roupão estava fechado antes de se virar. Droga. Saxton estava saindo e o bastardo também estava de roupão.
Bem, parece que todos ostentavam um. Mesmo Layla estava vestida com uma peça de roupa assim.
Quando Qhuinn encarou seu primo, percebeu que não tinha dirigido mais que duas palavras ao cara desde que Saxton havia se mudado.
– Só estava pensando em como ele estava. – Não havia razão alguma para usar um nome... estava bem óbvio a quem estava observando.
– Blaylock está dormindo no momento.
– Ele se alimentou? – Qhuinn perguntou mesmo já sabendo a resposta.
– Sim – Saxton fechou a porta atrás dele, sem dúvida para não deixar o frio entrar e Qhuinn tentou ignorar o fato de que os tornozelos e os pés do cara estavam nus, pois havia grandes chances de que o resto dele estivesse assim também.
– Ah, desculpe ter incomodado vocês – Qhuinn murmurou. – Tenha uma boa no...
– Poderia ter simplesmente batido. No corredor – as palavras foram ditas com uma inflexão aristocrática que fez Qhuinn ficar completamente tenso. Não porque odiava Saxton; aquilo apenas lembrava-lhe demais a família que perdeu.
– Não queria lhe incomodar. Incomodá-lo. Nenhum dos dois.
Quando uma rajada de vento percorreu a casa, os cabelos muito grossos, loiros e ondulados de Saxton não se abalaram – como se cada parte dele, cada fio, fosse encorpado e bem-educado demais para ser afetado por... qualquer coisa.
– Qhuinn, você não estaria interrompendo nada.
Mentiroso, Qhuinn pensou.
– Estava aqui primeiro, primo – Saxton murmurou. – Se queria vê-lo ou ficar com ele, eu os deixaria a sós.
Quinn piscou. Então... os dois tinham um relacionamento aberto? Como assim?
Ou espere... talvez tivesse feito um ótimo trabalho ao convencer não apenas a Blay, mas a Saxton, de que não queria nada sexual com seu melhor amigo.
– Primo, posso falar sinceramente?
Qhuinn limpou a garganta.
– Depende do que tem a dizer.
– Sou o namorado dele, primo...
– Ei... – ergueu a mão. – Isso não é da minha conta...
– ... não o amor de sua vida.
Qhuinn piscou outra vez, e, em seguida, por uma fração de segundo, foi sugado para um lugar onde seu primo saía de cena graciosamente e Qhuinn substituía muito bem o filho da mãe. Só que... havia uma grande falha naquela fantasia: Blay tinha cortado relações com ele.
Havia projetado aquele resultado ao longo de muitos anos.
– Entende o que digo, primo? – Saxton manteve a voz baixa, mesmo com o vento soprando e a porta fechada. – Está me ouvindo?
Certo, aquilo não fazia parte nem um pouco do que Qhuinn esperava para a noite... ou para qualquer outra noite. Maldição, seu corpo começou a formigar de repente e tinha menos de um segundo para dizer a seu primo que fosse embora ou que se ferrasse ou mandá-lo para o inferno.
Só que, então, pensou em como Blay parecia mais envelhecido. O cara finalmente havia dado um grande passo em sua vida e era um crime negociar algo sobre isso ali fora, no escuro.
Qhuinn balançou a cabeça.
– Não é certo.
Não para Blay.
– Você é um tolo.
– Não. Eu costumava ser.
– Eu discordo. – A mão elegante de Saxton aproximou a gola de seu roupão. – Se me der licença, é melhor eu entrar. Está frio aqui fora.
Bem, aquilo soava como uma ótima metáfora.
– Não conte a ele sobre isso – Qhuinn disse asperamente. – Por favor.
Os olhos de Saxton se estreitaram.
– Seu segredo está muito bem guardado. Pode acreditar.
Com isso, virou-se e voltou a entrar no quarto de Blaylock; a porta fechou-se com um clique e, em seguida, a luz foi apagada assim que as cortinas pesadas foram arrastadas de volta para o lugar.
Qhuinn esfregou os cabelos outra vez.
Parte dele queria entrar e dizer: Eu mudei de ideia, porque... Agora, caia fora daqui para que eu possa...
Dizer a Blay o que disse a Layla.
Mas Blay deveria estar apaixonado por Saxton e Deus era testemunha de que Qhuinn havia ferrado com seu amigo muitas vezes.
Ou, melhor, ignorou-o, como era o caso.
Quando finalmente voltou para o quarto – apenas porque era patético demais ficar ali parado olhando para as cortinas fechadas –, percebeu que sua vida estava toda relacionada a ele. Era o que desejava, o que precisava, o que tinha de possuir.
O antigo Qhuinn teria pegado um ônibus e atravessado aquela porta com ele...
Com uma careta, tentou não pensar na frase de maneira tããão literal; porém, a questão era que o homossexual patético e fraco estava certo: se você ama alguém, tem de libertá-lo.
Em seu quarto, virou-se e sentou-se na cama. Olhando ao redor, viu a mobília que não havia comprado... e a decoração era ótima, mas anônima, e não tinha nada a ver com seu estilo. As únicas coisas que lhe pertenciam eram suas roupas no armário, o barbeador no banheiro e os tênis de corrida que usava quando chegava mais cedo.
Era como na casa de seus pais.
Bem, ali, as pessoas de fato lhe davam valor, mas conforme o tempo passava, não tinha uma vida própria, realmente. Era o protetor de John, um soldado da Irmandade. E...
Caramba, agora que não se entregava mais ao vício do sexo, esse era o fim da lista.
Recostando-se contra a cabeceira da cama, cruzou os pés e arrumou o roupão. A noite estendia-se à frente dele em uma planície horrível... como se estivesse dirigindo, dirigindo e dirigindo ao longo de um deserto... e tinha apenas mais do mesmo pela frente.
Meses do mesmo.
Anos.
Pensou em Layla e no conselho que tinha dado a ela. Cara, os dois estavam exatamente no mesmo lugar, não?
Fechando os olhos, ficou aliviado quando começou a divagar. Mas tinha a sensação de que qualquer tranquilidade não ia durar muito tempo.
E estava certo.
CAPÍTULO 42
No Hospital Equino Tricounty, Manny permaneceu parado enquanto Glory fungava em seu uniforme hospitalar, provavelmente sabendo que a deixaria. Mas constatou que era incapaz de separar-se ou separar Payne do cavalo.
O tempo estava se esgotando para sua Glory e isso o matava. Mas não poderia deixá-la definhar, permitir que ficasse cada vez mais magra e mais manca a cada dia que passava. Ela merecia muito mais que isso.
– Você a ama – Payne disse suavemente, sua mão pálida deslizava em volta do puro-sangue, descendo para o flanco.
– Sim. Amo.
– Ela tem muita sorte.
Não, ela estava morrendo e isso era uma maldição.
Ele limpou a garganta.
– Acho que precisamos...
– Dr. Manello?
Manny inclinou-se e olhou para a porta da baia.
– Oh, ei, doutor. Tudo bem?
Quando o veterinário-chefe caminhou até eles, seu smoking estava destoando tanto do local quanto um pinguim em uma praia tropical.
– Estou bem... e você parece muito bem.
O cara ajeitou a gravata borboleta.
– O traje de pinguim é porque vou a uma ópera. Mas tinha que passar por aqui e dar uma olhada na sua garota.
Manny aproximou-se e estendeu a mão.
– Eu também.
Quando apertaram as mãos, o veterinário olhou ao redor da baia... e seus olhos se arregalaram quando viu Payne.
– Ah... oi.
Quando Payne ofereceu ao homem um breve sorriso, o bom doutor piscou como se o sol tivesse se desvencilhado de várias nuvens e brilhado sobre ele.
Ceeerto, Manny estava farto de idiotas olhando para ela daquele jeito.
Colocando-se no caminho, disse:
– Existe algum tipo de suporte que poderia colocar nela? Para aliviar a pressão?
– Nós a imobilizamos durante algumas horas todos os dias. – Enquanto o veterinário respondia, avançava pouco a pouco para o lado de maneira que Manny teve de inclinar o tronco para continuar a bloquear a visão.
– Não quero correr o risco de problemas respiratórios ou gastrointestinais.
Entediado com a coisa da inclinação e querendo afastar Payne da conversa, Manny pegou o braço do cara e moveu os dois para um lado.
– Qual será nosso próximo passo?
O veterinário esfregou os olhos como se precisasse de um segundo para organizar sua mente.
– Para ser franco, doutor Manello, não tenho um bom pressentimento sobre nossa situação. O outro casco está afundando e apesar de estar fazendo tudo a meu alcance para tratar isso, não está reagindo.
– Tem que haver mais alguma coisa.
– Sinto muito.
– Quanto tempo até termos certeza...
– Tenho certeza agora. – O olhar do homem era muito triste. – Foi por isso que passei por aqui esta noite... estava esperando um milagre.
Bem, os dois estavam fazendo isso.
– Vou lhe dar um pouco mais de tempo com ela – o veterinário disse. – Fique o quanto precisar.
Na linguagem médica isso queria dizer: pode se despedir.
O veterinário colocou a mão no ombro de Manny brevemente e, então, virou e foi embora. Enquanto saía, verificou cada baia, checando seus pacientes, acariciando um focinho aqui e ali.
Um cara legal, bastante cuidadoso.
Alguém que esgota todas as possibilidades até determinar um cenário de derrota.
Manny respirou fundo e tentou dizer a si mesmo que Glory não era um animal de estimação. As pessoas não tinham cavalos de corrida como animais de estimação, e ela merecia mais do que sofrer em uma pequena baia enquanto ele encontrava coragem para fazer o que era certo em relação a ela.
Colocando a mão no peito, acariciou sua cruz atrás do jaleco e teve uma vontade súbita de ir à igreja...
No início, tudo o que notou foram as sombras na parede do outro lado. Em seguida, pensou que talvez alguém tivesse acendido as luzes.
Finalmente, percebeu que a iluminação vinha da baia de Glory.
O... que...
Escorregando, recuou... e teve de se equilibrar.
Payne estava de joelhos no feno macio, as mãos posicionadas sobre as pernas dianteiras de seu cavalo, os olhos fechados, sobrancelhas tensas.
E seu corpo brilhava com uma luz forte e bela.
Acima dela, Glory estava imóvel, mas seu couro contraía-se e os olhos reviravam. Alguns relinchos satisfeitos percorriam seu longo pescoço e saíam por suas narinas... como se tivesse uma sensação de alívio, alívio da dor.
As pernas dianteiras machucadas iluminaram-se levemente.
Manny não se moveu, não respirou, sequer piscou. Apenas segurou sua cruz ainda mais forte... e rezou para que ninguém interrompesse aquilo.
Não tinha certeza de quanto tempo os três permaneceriam assim, mas, em determinado momento, ficou claro que Payne estava se sobrecarregando com o esforço: seu corpo começou a vibrar e a respirar de maneira forçada.
Manny entrou na baia e a afastou de Glory, segurando seu corpo vacilante contra o seu, e tirou-a do caminho no caso do cavalo se assustar e fazer algo imprevisível.
– Payne? – Oh, Deus...
Os olhos dela tremularam.
– Eu... a ajudei?
Manny acariciava seus cabelos para trás enquanto olhava para a égua. Glory estava parada com firmeza, levantando um dos cascos da frente, depois outro e voltava a movimentar o primeiro como se estivesse tentando descobrir o que causou o repentino conforto. Então, estremeceu... e beliscou o feno que não havia tocado.
Quando aquele maravilhoso som da ponta de um focinho tocando a grama seca encheu o silêncio, olhou para baixo em direção a Payne.
– Você conseguiu – disse com voz rouca. – Acho que conseguiu.
Seus olhos pareceram se esforçar para voltar o foco.
– Não queria que a perdesse.
Transbordando de uma gratidão que não tinha palavras para expressar, Manny puxou-a para mais perto de seu coração e segurou-a por um momento. Desejava ficar daquela maneira por muito mais tempo, mas ela parecia não estar bem e só Deus sabia se alguém mais havia notado o brilho daquela luz. Tinha de tirá-los dali.
– Vamos para minha casa – disse. – Assim, poderá se deitar.
Quando ela assentiu, girou-a em seus braços e ela se encaixou perfeitamente. Quando fechou a baia, olhou para Glory. O cavalo estava fungando contra o feno como se aquilo fosse tudo o que tinha.
Meu Deus... será que tinha funcionado mesmo?
– Volto amanhã – disse a ela, antes de começar a se afastar, impulsionado por uma esperança incandescente.
No balcão da segurança, sorriu e deu de ombros para o cara.
– Alguém está fazendo plantão dobrado no hospital. Ela está exausta.
O homem levantou-se como se a mera presença de Payne, mesmo inconsciente, fosse suficiente para chamar sua atenção.
– É melhor levá-la para casa. É preciso cuidar bem de uma mulher como essa.
Com certeza.
– É exatamente para onde estou indo.
Movendo-se com rapidez, passou pela recepção e aguardou o ruído para que pudesse empurrar as últimas portas. Com alguma sorte, o veterinário-chefe não tinha visto nada...
– Obrigado, Jesus – Manny murmurou quando ouviu o sinal e abriu a porta com o quadril.
Não perdeu tempo ao se dirigir para o carro, apesar de tirar as chaves e manter Payne erguida ao mesmo tempo ter sido uma confusão. Abrir a porta também foi difícil. Mas, em seguida, colocou-a no banco do passageiro, perguntando-se o tempo todo se estava doente. Droga, não tinha como entrar em contato com ninguém do mundo dela.
Dando a volta e sentando-se atrás do volante, pensou: “Dane-se, vou levá-la direto para os vampiros...”
– Posso pedir-lhe uma coisa? – disse ela lentamente.
– Qualquer coisa... O que você...
– Posso tomar de sua veia um pouco? Encontro-me... curiosamente esgotada.
Certo, tudo bem. Estamos aqui para isso: trancou as portas, puxou as mangas da roupa e estendeu-lhe o braço.
Os lábios macios encontraram seu pulso, mas sua mordida não foi ágil, como se estivesse tendo problemas para reunir forças. Ainda assim, começou o trabalho e ele pulou, a dor aguda cravou-se em seu coração e o deixou um pouco tonto. Ou... talvez aquilo estivesse acontecendo em função da excitação súbita e avassaladora que percorreu não apenas seu pênis como o corpo inteiro.
Com um gemido, seus quadris moveram-se sobre o banco do Porsche e deixou sua cabeça cair para trás. Deus, aquilo era bom... o ritmo da sucção que sentia seguia sua ereção... e, mesmo doendo, os puxões e os goles que recebia eram um prazer, um doce e picante prazer pelo qual tinha certeza que poderia morrer.
Caiu em um estado de total felicidade; parecia que havia se passado séculos desde a última vez que não estiveram ligados por aquelas presas em sua carne.
O tempo não tinha qualquer significado nem a realidade de que estavam em um estacionamento dentro de um carro com janelas de vidros claros.
Dane-se o mundo.
Eram apenas ele e ela, juntos.
E isso foi antes dos olhos de diamante de Payne se abrirem e se fixarem nele, observando não seu rosto, mas seu pescoço.
Vampira... ele pensou. Linda vampira.
Minha.
Quando aquele pensamento fundiu-se em sua mente, começou a agir no piloto automático, deslocando a cabeça para o lado, oferecendo sua jugular para ela...
Não precisou pedir duas vezes. Em um grande impulso, Payne se ergueu, lançando-se sobre o corpo dele; sua mão penetrou seus cabelos e apertou sua nuca. Enquanto o detinha sob seu controle, Manny ficou totalmente imobilizado, e ela também, por capturá-lo... presa para sua predadora. E agora que o possuía, suas presas deslizaram sobre a pele e encaixaram-se na altura da garganta, fazendo-o enrijecer ao antecipar a sensação da punção e da sucção...
– Droga! – ele vociferou quando ela o mordeu. – Oh... sim...
As mãos dele agarraram os ombros de Payne, puxando-a para ainda mais perto.
– Tome tudo... tome... oh, Deus... oh, droga...
Algo acariciou seu pênis. E uma vez que sabia exatamente onde estavam suas mãos, tinha de ser ela. Ao movimentar-se, ergueu-se um pouco mais e deu-lhe o máximo de espaço possível para se mover... e ela o fez, para cima e para baixo contra sua ereção, os quadris de Manny ajudavam, intensificando as carícias.
A respiração dele era alta no interior do carro quando começou a ofegar e seus gemidos também: não levou muito tempo até que seu pênis ficasse dormente, a ponta tensa contra a pressão.
– Eu vou gozar – ele gemeu. – É melhor parar se não quiser que...
Com isso, ela puxou o laço do uniforme hospitalar e colocou uma das mãos ali dentro...
Manny viu estrelas. No instante que as peles se encontraram, ele gozou como nunca antes, sua cabeça foi para trás com força, as mãos cravaram sobre os ombros de Payne, os quadris se movimentavam como loucos. E ela não parou de beber ou de acariciar... assim como havia sido antes, ele continuou gozando, o prazer se intensificava a cada espasmo que tinha contra a ereção.
Acabou cedo demais.
Por outro lado, poderiam ficar ali por uma década e ele continuaria faminto.
Quando Payne desvencilhou-se dele, recuou e lambeu as feridas feitas por suas presas afiadas, sua língua era rosada contra as pontas brancas. Cara... aquela luz gloriosa brilhava sob sua pele, fazendo com que ela parecesse um sonho.
Oh, espere, ela era um sonho, não era?
– Seu sangue é forte – disse com voz rouca enquanto curvava-se sobre ele outra vez e lambia sua garganta. – Muito forte.
– É? – ele murmurou. Mas não teve certeza se pronunciou mesmo alguma coisa. Talvez tivesse apenas pensado as palavras.
– Posso sentir o poder percorrendo dentro de mim.
Cara, nunca esteve em um carro esportivo grande antes – aquelas máquinas eram muito desajeitadas e a direção era instável, pareciam pedregulhos caindo de uma montanha –, mas o que não daria por um banco traseiro onde pudesse colocar algo maior que uma bolsa de tacos de golfe. Queria deitá-la ali e...
– Quero mais de você. – Payne murmurou ao se aninhar sobre ele.
Bem, Manny ainda estava duro como uma pedra, mesmo tendo acabado de...
– Quero você na minha boca.
A cabeça de Manny foi impulsionada para trás e gemeu quando seu pênis estremeceu como se uma corrida fosse começar lá embaixo. Mas, por mais que a desejasse, não tinha certeza se ela sabia o que estava por vir. Apenas o pensamento dos lábios dela sobre seu...
A cabeça de Payne desceu sobre o colo antes que ele pudesse encontrar fôlego para falar e não houve preliminares: ela o chupou, masturbando-o em sua boca quente e molhada.
– Droga! Payne!
Suas mãos apoiaram-se sobre os ombros dela, para puxá-la de maneira ostensiva... mas ela não deu a mínima para isso.
Sem qualquer treino, sabia exatamente como fazer, puxando e sugando antes de lamber o tronco. Em seguida, ela o explorou com tal profundidade que Manny só pôde concluir que estava gostando daquilo tanto quanto ele... e aquilo era demais.
Só que sentiu presas no topo, provocando-lhe.
Ele a ergueu rapidamente nesse momento, capturando sua boca em um beijo forte enquanto segurava seu rosto, mas logo perdeu aquilo que tinha entre as mãos. Não durou muito. Ela se desvencilhou dele e voltou para onde estava, capturando-o outra vez no meio de um orgasmo, lambendo o local de seu corpo que parecia desejá-la com todas as forças.
Quando os espasmos pararam, ela se afastou, olhou para ele... e, lentamente, lambeu os lábios.
Manny teve de fechar os olhos diante dessa visão, sua ereção pulsando a ponto de doer.
– Vai me levar para sua casa agora – ela rosnou. Não era uma solicitação. E o tom sugeria que estavam pensando exatamente o mesmo.
Assim, aquilo os levaria apenas a uma única coisa.
Manny reuniu forças e abriu os olhos. Endireitando-se, tocou o rosto dela e acariciou o lábio inferior com o polegar.
– Não tenho certeza se deveríamos, bambina – disse em um tom áspero.
A mão dela apertou seu pênis e ele gemeu.
– Manuel... acho que é exatamente o que precisamos fazer.
– Não é... uma boa ideia.
Payne afastou-se e recolheu a mão, seu brilho desapareceu.
– Mas está excitado. Mesmo agora.
Acha mesmo?
– Esse é o ponto.
Seus olhos percorreram o rosto dela e foram para os seios. Estava tão desesperado por ela, que sentia a tentação de rasgar aquele uniforme hospitalar em dois e tirar a virgindade dela em seu carro.
– Não serei capaz de me segurar, Payne. Mal consigo fazer isso agora...
Ela ronronou de satisfação e lambeu os lábios vermelhos outra vez.
– Eu gosto quando perde o controle.
Oh, Deus, aquilo não ajudava em naaada.
– Eu... – ele balançou a cabeça, pensando que aquilo era ridículo... negar-lhe tal coisa machucava muito. – Acho que deve fazer o que precisa e me deixar agora. Enquanto ainda consigo deixá-la ir.
O som de batidas na janela não fez sentido no começo. Só havia eles dois ali naquele estacionamento vazio. Mas, então, o mistério foi resolvido:
– Saia do carro. E passe a carteira.
Uma voz masculina vinda da janela atingiu a cabeça de Manny... de onde visualizou o tambor de uma arma.
– Você me ouviu, cara. Saia do carro ou eu atiro.
Quando Manny colocou Payne de volta no assento do passageiro, disse suavemente:
– Quando eu sair, tranque as portas. Bem aqui.
Moveu uma das mãos sobre um painel e pressionou um botão.
– Deixe-me lidar com isso. – Tinha mais ou menos quatrocentos dólares em dinheiro na carteira e vários cartões de crédito. – Fique aqui dentro.
– Manuel...
Ele não deu tempo para responder... até onde sabia, aquela arma tinha todas as respostas e impunha todas as regras.
Pegando a carteira, abriu a porta lentamente, mas foi rápido ao sair e quando fechou Payne lá dentro, esperou ouvir as travas das portas.
E esperou.
Desesperado para ouvir o som de Payne acionando as travas de segurança, ouviu vagamente quando o cara de máscara de esqui vociferou:
– A carteira. E diga para a vadia sair do carro.
– Tem quatrocentos...
A carteira desapareceu.
– Diga para sair ou ela vem comigo. E o relógio. Quero o relógio.
Manny olhou para o edifício. Havia janelas em toda parte e com certeza aquele guarda tinha que dar uma olhada para verificar como estavam as coisas lá fora de vez em quando.
Talvez, se ele entregasse devagar...
O cano da arma foi pressionado contra seu rosto.
– Relógio. Agora.
Não era um bom relógio... não operava com seu Piaget, pelo amor de Cristo. Mas não tinha importância... o idiota podia ficar com a maldita coisa. Além disso, quando fingiu que suas mãos tremiam, percebeu que não havia o que questionar...
Difícil dizer o que aconteceu e em qual ordem.
Relembrando, sabia que Payne tinha de ter aberto a porta primeiro. Mas parece que no instante em que ouviu o som horrível do lado do passageiro, ela já estava atrás do ladrão.
E outra coisa estranha foi que isso não aconteceu até que Manny amaldiçoou o fato do bastardo ter percebido a presença de um terceiro elemento no cenário. Só que não poderia ser verdade... ele a teria visto andando ao redor do carro, certo?
Seja como for... foi assim que aconteceu e o mascarado acabou saltando para trás e oscilava entre Payne e Manny com a arma.
Mas aquela partida de tênis não ia durar muito. Com uma lógica terrível, Manny sabia que o cara ia se voltar para Payne, pois era a parte mais fraca do...
Quando, outra vez, o cano da arma oscilou em direção a ela, Payne... desapareceu. E não foi por ter se abaixado ou se esquivado ou corrido muito rápido. Ela estava lá num momento, ocupando espaço... e havia desaparecido em seguida.
Reapareceu uma fração de segundo depois e pegou o pulso do cara no momento em que ia colocar a arma de volta no rosto de Manny. O ato de desarmá-lo também foi muito rápido: primeiro, ela pegou a arma; depois, tirou-a das mãos do filho da mãe; em seguida, jogou-a para Manny, que pegou a coisa.
Então, era hora de finalizar.
Payne girou o cara, agarrou a parte de trás da cabeça e colou o rosto dele no capô do Porsche. Depois de lustrar um pouco a pintura do carro com aquela carranca, reposicionou-o e agarrou a calça jeans folgada do filho da mãe. Erguendo-o pelos cabelos e pelo que era ou o cós de sua calça ou seu ânus, ela o dominou e o jogou... a uns dez metros de distância.
O Super-Homem não faria tão bem... e o ladrão acabou acertando em cheio a parede do hospital equino. O edifício não reagiu e, como era de se esperar, nem o ladrão. Ele aterrissou de bruços em um canteiro de flores e ficou lá, os membros inertes como carne morta e daí para mais.
Nenhum movimento. Nenhum gemido. Nenhuma tentativa de se levantar.
– Você está bem, Manuel?
Manny virou a cabeça lentamente para Payne. Ela sequer estava ofegando.
– Jesus... Cristo... – ele sussurrou.
Quando as palavras de Manny foram levadas por uma brisa, Payne ajeitou sua blusa folgada e as calças soltas. Então, alisou o cabelo. Parecia ser a única coisa possível de se fazer para ficar mais apresentável após o ato de violência.
Quanto esforço desperdiçado na tentativa de ficar mais feminina. Enquanto isso, Manuel continuava apenas olhando para ela.
– Não vai dizer mais nada? – disse ela em voz baixa.
– Hã... – Manuel colocou a mão livre sobre a cabeça. – Sim. Hã... deixe-me ver se ele está vivo.
Payne cruzou os braços enquanto caminhava até o humano. Na verdade, não se importava muito com as condições que tinha deixado o ladrão. Sua prioridade era tirar aquela arma letal do rosto de Manuel e cumpriu sua tarefa. Qualquer coisa que tivesse acontecido com o ladrão era irrelevante... mas era evidente que não conhecia as regras daquele mundo, ou as implicações do que havia feito.
Manuel estava na metade do caminho do canteiro quando a “vítima” rolou com um gemido. As mãos que seguravam a arma de fogo foram até a máscara que cobria seu rosto e ele puxou a malha até a testa.
Manuel ajoelhou-se.
– Eu sou médico. Quantos dedos têm aqui?
– O quê...?
– Quantos dedos?
– Três...
Manuel colocou a mão sobre o ombro do rapaz.
– Não se levante. Foi um golpe forte na cabeça. Tem algum formigamento ou dormência nas pernas?
– Não – o rapaz encarou Manuel. – Por que... está fazendo isso?
Manuel despistou a pergunta.
– Isso se chama curso de medicina... cria uma necessidade compulsiva de tratar uma doença ou um ferimento independentemente da circunstância. Acho que vamos precisar chamar uma ambulância...
– De jeito nenhum!
Payne desmaterializou-se para aproximar-se deles. Apreciava as boas intenções de Manuel, mas preocupava-se com a possibilidade de haver outra arma com o ladrão...
No instante em que apareceu atrás de Manuel, o cara encolheu-se no chão de horror, ergueu os braços e recuou.
Manuel olhou sobre o ombro... e nesse momento Payne viu que ele não era ingênuo. Tinha a arma apontada para o homem.
– Tudo bem, bambina. Peguei o cara...
Atordoado e desajeitado, o ladrão levantou-se e Manuel o acompanhou com a arma apontada em sua direção enquanto o humano tropeçava e recuperava o equilíbrio apoiando-se no edifício.
Era evidente que estava pronto para fugir.
– Vamos ficar com a arma – Manuel disse. – Entendeu? E não preciso dizer o quanto você tem sorte em estar vivo... ninguém agride minha namorada.
Quando o cara sumiu nas sombras, Manny levantou-se.
– Preciso levar essa arma à polícia.
Então, ele simplesmente a olhou.
– Tudo bem, Manuel. Posso cuidar da minha presença diante do guarda, assim, ninguém ficará sabendo de nada. Faça o que deve ser feito.
Com um aceno de cabeça, ele tirou um pequeno dispositivo telefônico, abriu e pressionou alguns botões. Colocando-o sobre o ouvido, disse:
– Sim, meu nome é Manuel Manello e fui abordado com uma arma de fogo em meu veículo. Estou no Hospital Tricounty...
Enquanto falava, ela olhou em volta e pensou que não desejava que aquilo tivesse acabado assim. Só que...
– Tenho que ir – ela disse quando Manuel desligou. – Não posso... continuar aqui se aparecer mais humanos. Só complicaria as coisas.
Manny abaixou o telefone lentamente.
– Certo... sim – franziu a testa. – Ah, ouça... se a polícia chegar, preciso me lembrar do que aconteceu ou... droga, terei uma arma nas mãos sem poder lhes dar qualquer motivo para isso.
De fato, parecia que estavam presos. E, pela primeira vez, estava grata por um aprisionamento.
– Quero que se lembre de mim – ela disse em voz suave.
– Esse não era o plano.
– Eu sei.
Ele balançou a cabeça.
– Você é a coisa mais importante nisso tudo. Então, precisa cuidar-se e isso significa apagar minha...
– Dr. Manello! Dr. Manello... o senhor está bem?
Payne olhou sobre o ombro. O primeiro macho humano que viram no balcão dentro do hospital vinha correndo pelo gramado em pânico.
– Faça isso – Manuel disse. – E vou descobrir um jeito depois...
Quando o guarda aproximou-se correndo deles, Payne encarou o recém-chegado.
– Estava fazendo minha ronda – o homem disse. – E quando estava checando os escritórios na outra extremidade do prédio, vi o senhor pela janela... e corri o mais rápido que pude!
– Estamos bem – disse ela ao guarda. – Mas poderia observar uma coisa para mim?
– Claro! A polícia já foi chamada?
– Sim – ela tocou sob o olho direito. – Olhe para mim, por favor.
Ele já estava fixado no rosto dela e a concentração extra só facilitou seu trabalho; tudo o que ela teve de fazer foi abrir caminho dentro de seu cérebro para colocar um remendo mental em tudo o que se relacionava a ela.
Até onde o humano sabia, o cirurgião tinha chegado e saído sozinho.
Manteve o homem em transe e virou-se para Manuel.
– Não precisa se preocupar. As memórias dele são de muito curto prazo, vai ficar bem.
Ao longe, ouviram o som de sirenes, estridente e urgente.
– É a polícia – disse Manuel.
– Então, tenho que ir.
– Como vai para casa?
– Da mesma maneira que saí do seu carro.
Ela esperou que se aproximasse dela... ou dissesse alguma coisa... ou... mas apenas ficou ali parado com o ar noturno silencioso e frio pairando entre eles.
– Vai mentir para eles? – Manny perguntou. – Dizer que apagou minhas lembranças?
– Não sei.
– Bem, no caso de precisar voltar para fazer isso, estarei no...
– Boa noite, Manuel. Por favor, permaneça em segurança.
Com isso, ela ergueu uma das mãos e, de maneira silenciosa e inexorável, desapareceu.
CAPÍTULO 43
Se aquilo era um truque, era um muito estranho.
– Então, onde está seu amigo?
Karrie Ravisc, mais conhecida nas ruas como Kandy, prostituía-se há mais ou menos nove meses, então, já tinha visto muita porcaria. Mas aquilo...
O homem enorme na porta do quarto de motel falou em voz baixa:
– Está chegando.
Karrie deu outra tragada e pensou: bem, ao menos aquele cara na sua frente era bonitão. Já tinha pagado quinhentos dólares e a instalou naquele quarto. Ainda assim... Havia alguma coisa errada ali.
Sotaque estranho. Olhos estranhos. Ideias estranhas.
Mas muito bonitão.
Enquanto esperavam, deitou-se nua na cama com todas as luzes apagadas. Porém, não estavam totalmente no escuro. O sujeito com a carteira cheia de dinheiro tinha colocado uma grande lanterna no quarto, sobre a cômoda barata. A luz estava direcionada para iluminar seu corpo, como se estivesse em um palco, ou talvez em uma obra de arte.
O que, na verdade, era menos estranho do que algumas coisas que já havia feito. Droga, se a prostituição não fizesse alguém pensar que os homens eram nojentos e uns bastardos doentes, nada mais faria: além dos trapaceiros loucos e dos tipos que gostavam de ficar no comando, havia os filhos da mãe cheios de fetiches, aqueles que gostavam de ser espancados e outros que desejavam que urinassem sobre eles.
Finalizando o baseado, apagou a bituca e pensou que talvez aquela coisa de holofotes não fosse tão ruim. Um idiota quis comer hambúrgueres em cima dela há duas semanas e aquilo, sim, foi grosseiro...
O clique da fechadura virando fez ela pular e percebeu com um estalo que alguém, de alguma forma, havia entrado sem ela notar; aquilo era a porta sendo trancada. Por dentro.
E agora havia um segundo homem perto do primeiro.
Ainda bem que seu cafetão estava no quarto ao lado.
– Boa noite – ela disse, ao se estender mecanicamente para os dois. Seus seios eram falsos, mas boas falsificações, seu estômago era plano mesmo já tendo um filho e não estava apenas depilada, mas havia passado por um processo de eletrólise.
Isso permitia cobrar o que cobrava.
Cara... outro grandão, pensou quando o segundo cara se aproximou e parou na beirada da cama. Na verdade, aquele era enorme. Um mamute, mas não gordo e desleixado... seus ombros eram tão quadrados que pareciam ter sido desenhados com uma régua e seu peito formava um triângulo perfeito sobre seus quadris firmes. Não conseguia ver seu rosto, uma vez que a luz estava vindo por trás dele, mas não se importou quando o primeiro cara deitou-se ao lado dela na cama.
Droga... ela viu-se excitada de repente. Era o tamanho deles e o perigo da escuridão e aroma que exalavam. Deus... o cheiro era incrível.
– Vire de bruços – o segundo exigiu.
Deus, aquela voz. O mesmo sotaque estrangeiro do cara que a tinha instalado ali, mas muito mais profundo... e havia uma vantagem nisso.
– Quer mesmo ver meu traseiro? – disse lentamente, enquanto se sentava. Colocando as mãos sobre os seios extragrandes, ela os ergueu e os uniu. – Porque minha frente é ainda melhor.
Com isso, ela ergueu um dos seios e esticou a língua para lamber o próprio mamilo enquanto os olhos iam e vinham entre os homens.
– De bruços.
Certo, era evidente que havia uma hierarquia ali: o cara deitado ao lado dela ostentava uma tremenda ereção, mas não fazia nenhum movimento em direção a ela. E o Sr. Mandão era o único que falava.
– Se é assim que deseja.
Tirando os travesseiros da cama, fez um show ao girar, torcendo o tronco de modo que um de seus seios ainda aparecesse. Com a unha pintada de esmalte preto, fazia círculos ao redor dos bicos ao arquear as costas e mostrar as nádegas.
Um rosnado sutil percorreu através do ar saturado e rarefeito do quarto e esse foi o sinal. Abrindo as pernas, arqueou a parte inferior do corpo para cima, posicionando os dedos dos pés e curvando a coluna outra vez.
Sabia exatamente o que mostrava ao sujeito parado nos pés da cama... e o rosnado sugeriu que gostou daquilo que tinha. Então, era hora de ir mais além. Olhando para ele, colocou o dedo médio na boca e o sugou; então, deslocou seu peso para cima e levou o dedo até seu sexo para acariciar-se.
Se era a erva ou... droga, alguma coisa naqueles homens... ficou muito excitada de repente. A ponto de querer o que estava prestes a acontecer.
Quando o cara começou a se aproximar dela, o que estava comandando a situação colocou a mão na frente dos quadris.
– Beije-a – ele ordenou.
Ela estava tão pronta para isso, mesmo sendo algo que não permitisse normalmente. Virando o rosto para o outro, sentiu sua boca ser tomada por um conjunto de lábios macios e exigentes... e, em seguida, uma língua a penetrou...
Ao mesmo tempo, mãos enormes agarraram a parte superior das suas coxas e as afastaram ainda mais.
E outro par de mãos instalou-se sobre seus seios.
Mesmo sendo uma profissional, sua mente fez uma pequena viagem, toda aquela porcaria com a qual geralmente se preocupava enquanto fazia o que precisava fazer fugiu... e levou consigo coisas como: onde estavam as camisinhas? Quais eram as regras do jogo?
Fivela. Zíper. Em seguida, ouviu o som de calças caindo ao chão e sentiu o movimento do colchão quando algo pesado deitou-se.
Perguntou-se vagamente se o pênis que havia surgido ali era tão grande quanto o resto do homem atrás dela... se fosse, cara, já estava pensando em oferecer uma segunda rodada grátis. Isso se conseguissem manter o ritmo por tanto tempo...
Uma cabeça cheirando a álcool e cigarro aproximou-se dela enquanto mãos ergueram seus quadris do colchão e a colocaram de quatro.
Deus, o cara era enorme... e ela se preparou para uma série de movimentos quando a palma daquela mão percorreu sua coluna e os dedos enroscaram-se em seus cabelos curtos. Parecia que ia arrancar sua cabeça, mas não se importava. Só queria mais daquele homem dentro dela...
Só que não entrou com força e não se moveu imediatamente; em vez disso, acariciou-a como se tivesse gostado da sensação da sua carne, passando a mão em seus ombros e, mais uma vez, ao redor de sua cintura... e mais abaixo em seu sexo lubrificado. E quando a penetrou completamente, era como uma lâmina lisa e deu-lhe um segundo para se acostumar com a grossura e o comprimento.
Então, travou em seus quadris com as palmas das mãos e começou a arremeter. Nesse momento, o amigo dele se colocou embaixo dela para chupar-lhe os seios.
Com a intensificação do ritmo, os mamilos açoitavam a boca do que estava embaixo dela para frente e para trás ao ritmo dos quadris que pulsavam em seu traseiro várias vezes. Mais rápido. Mais forte. Mais rápido...
– Acabem comigo – ela vociferou. – Oh, droga, isso...
De repente, o que estava deitado no colchão virou-se, reposicionou-a e preencheu a boca dela com o maior pênis que já havia ingerido.
Ela realmente teve um orgasmo.
Se eles continuassem assim, ela iria pagá-los.
Uma fração de segundo depois, o homem atrás dela recuou e ela sentiu um jato quente espalhar-se ao redor dela. Mas ele não tinha terminado. Recomeçou os movimentos um momento depois, tão grosso e rígido como na primeira investida.
O que estava chupando gemia e foi separada dele, pois sua cabeça foi erguida. Ele gozou em seus seios, jorrando violentamente ao longo do seu peito com mais daquele cheiro incrível quando o outro saiu e ejaculou outra vez em suas costas.
Em seguida, o mundo girou e ela viu-se de costas, o cara da carteira assumiu o lugar do que estava no comando e a penetrou, preenchendo-a com algo tão grosso quanto o do outro.
Foi ela quem estendeu a mão para o amigo silencioso que comandava, trazendo seu pênis até a boca, conseguiu afastá-lo de seu papel de espectador e o introduziu dentro dela outra vez.
Era tão grande que teve de abrir bem a mandíbula para conseguir encaixá-lo na garganta e o sabor era delicioso... nada parecido com o que teve antes. Ao sugá-lo com seu amigo atrás dela golpeando muito bem, estava envolta da sensação de ser preenchida, de ser invadida por algo rígido, por pênis poderosos que abalavam todo seu corpo.
Em seu delírio, tentou ver o homem que estava sugando, mas, de alguma forma, ele mantinha a luz atrás de si... e tornava tudo ainda mais erótico, como se estivesse chupando uma sombra. Cara, ao contrário do outro, não emitia qualquer som e nem ofegava. Mas estava excitado, de verdade, empurrava seu sexo contra sua boca, tirava e empurrava de volta. Até que se retirou e apertou a ereção com uma das mãos. Unindo os seios, ela proporcionou um ótimo terreno para gozar e, cara, mesmo sendo a terceira vez, ele a cobriu por inteiro.
Até seu peito ficar brilhante, escorregadio... e escorrendo.
A próxima coisa que percebeu foi que seus joelhos foram erguidos até as orelhas e o cara do dinheiro ia dar um jeito nela da melhor maneira possível. E, então, o chefe beijou-lhe os lábios outra vez, pressionando, querendo mais. Algo pelo qual ela estava muito feliz em proporcionar.
Ao observá-los enquanto moviam-se em sincronia, sentiu uma sensação de medo percorrê-la. Arqueada embaixo deles, teve a sensação de que poderiam quebrá-la ao meio se quisessem.
Mas não a machucaram.
E continuaram, os dois trocavam de lugar várias vezes. Era óbvio para ela que faziam aquilo sempre e, Deus, estava com muita vontade de lhes dar o número de seu telefone.
Finalmente, acabaram.
Nenhum deles disse nada. Nem para ela, nem entre eles... o que era diferente, pois a maioria dos ménages à trois que fazia acabava com os caras conversando alegremente entre si. Aqueles dois, não; fecharam seus zíperes e... bem, como era de se esperar, as carteiras apareceram outra vez.
Enquanto permaneciam parados em cima dela, levou as mãos à boca, ao pescoço e aos seios. Estava lambuzada em tantos lugares que mal conseguia contar – e adorou. Acariciou o que os caras deixaram sobre sua pele, brincando com aquilo, pois simplesmente desejava... não era mais para diverti-los.
– Queremos lhe dar outros quinhentos – o primeiro disse em voz baixa.
– Para quê? – aquele tom satisfeito era mesmo dela?
– Vai ser bom. Prometo.
– É algo depravado?
– Muito.
Ela riu e revirou os quadris.
– Então, eu digo sim.
Quando o cara tirou as verdinhas, parecia haver muitas delas na carteira... e talvez se ele fosse outra pessoa, ela poderia ter ido até seu cafetão e sugerir a Mack para abordá-lo no estacionamento. Mas não ia fazer isso; em parte porque o sexo tinha sido incrível; e além disso, os caras provavelmente espancariam a droga do seu chefe.
– O que você quer que eu faça? – perguntou enquanto pegava o dinheiro e o fechava com força nas mãos.
– Abra as pernas.
Ela não pensou duas vezes, seus joelhos se afastaram.
E eles não hesitaram, os dois se inclinaram em direção a seu sexo escorregadio.
Caramba, será que iam chupá-la? Apenas pensar sobre isso fez seus olhos revirarem e ela gemeu...
– Ai!
Tentou erguer-se, mas as mãos forçaram-na a ficar no colchão.
A sucção sutil veio em seguida e deixou-a tonta. Porém, não era em seu sexo. Estavam nas laterais, bem próximos do centro, na junção onde suas pernas encontravam o tronco.
A sucção era rítmica... como se estivessem se alimentando.
Karrie suspirou e entregou-se àquela sensação. Tinha a impressão chocante de que estavam se alimentando dela de alguma forma, mas aquilo era incrível... especialmente quando alguma coisa a penetrou. Talvez dedos... provavelmente.
Sim, definitivamente.
Quatro dedos a penetraram e duas mãos separadas iniciaram uma série de puxões alternativos enquanto as duas bocas sugavam sua pele.
Ela gozou de novo.
E de novo.
E de novo.
Depois de só Deus sabe quanto tempo, eles a lamberam algumas vezes... nos locais onde tinham sugado, não onde suas mãos estavam.
E, então, tudo se desprendeu, bocas, dedos, corpos.
Os dois se endireitaram.
– Olhe para mim – o líder disse.
Suas pálpebras estavam tão pesadas que teve que se esforçar para obedecer. E no momento em que fez isso, sentiu uma dor lancinante em suas têmporas. Mas que não durou muito e depois... ficou apenas flutuando.
Foi por isso que não prestou muita atenção no grito abafado e distante que veio da porta ao lado... não do quarto onde Mack estava instalado, mas do outro.
Bum! Tum. Pum...
Karrie começou a adormecer nesse ponto, morta para o mundo, o dinheiro colado na palma da mão enquanto aquilo que estava molhado começava a secar.
Não se preocupava com nada. Na verdade, sentia-se incrível.
Droga... com quem havia estado...?
Quando Xcor saiu do quarto de motel da prostituta com Throe logo atrás dele, fechou a porta e olhou para a esquerda e para a direita. A instalação que seu soldado havia escolhido para aquela diversão carnal estava nos arredores da cidade. Decaído e já apodrecendo em alguns lugares, o edifício de apenas um andar tinha sido dividido em mais ou menos cinquenta pequenas caixas do tamanho de armários, com o escritório no final do caminho à esquerda. Queria o último quarto na outra extremidade para ter mais privacidade, mas o melhor que Throe pôde fazer foi conseguir algo perto da entrada.
Porém, quais eram as chances reais daquele local estar totalmente ocupado? Não havia quase ninguém ali.
Analisando as vagas de estacionamento em frente ao quarto deles, viu um Mercedes preto que tentava desesperadamente parecer mais novo do que era... e uma caminhonete com uma capa sobre a cabine. Os outros dois carros estavam mais distantes, perto do escritório.
Aquele lugar era perfeito para o propósito que tinham. Isolado, ocupado por pessoas que não queriam ninguém se metendo em suas vidas e preparado para estender serviços semelhantes a outros. E a iluminação externa era precária: apenas uma a cada seis lâmpadas funcionavam... Inferno, o dispositivo elétrico ao lado de sua cabeça havia sido esmagado. Então, tudo estava escuro e sombrio.
Ele e seu bando de bastardos teriam de encontrar fêmeas de sua raça para servir a suas necessidades de sangue a longo prazo e isso acabaria acontecendo. Até lá? Teriam de se valer daquilo que ele e Throe haviam acabado de saborear e fariam aquilo ali, naquele lugar deserto.
Throe falou calmamente:
– Satisfeito?
– Sim. Ela era muito boa.
– Fico feliz.
Um aroma no ar atraiu as duas cabeças em direção à porta do quarto mais distante. Xcor inalou profundamente para confirmar o que tinha sentido com a leve brisa, o cheiro de sangue humano fresco foi uma surpresa desagradável.
Ao contrário da expressão no rosto de Throe: desagradável, mas sem surpresa alguma.
– Sequer pense nisso – Xcor vociferou. – Throe... Droga!
O soldado virou-se para a porta com uma expressão estrondosa... seu instinto agressivo sem dúvida foi inflamado porque era o sangue de uma fêmea sendo derramado: a fertilidade no ar era óbvia.
– Não temos tempo para isso – Xcor disparou.
Como resposta, Throe chutou a maldita porta.
Quando Xcor xingou, considerou rapidamente em se desmaterializar da cena; o que o distanciou do impulso foi o ato de dar uma olhada dentro do local. A veia heroica ridícula de Throe abriu caminho para uma grande confusão. Literalmente.
Uma fêmea humana estava amarrada à cama com alguma coisa amontoada em sua boca. Estava quase morta... e perto demais de colocar o pé na cova para ser salva. Seu sangue estava em toda parte, na parede atrás dela, pingando no chão, encharcando o colchão. As ferramentas que tinham auxiliado o ato estavam na mesa de cabeceira: duas facas, fita adesiva, tesouras... e meia dúzia de pequenos frascos com fluidos transparentes dentro deles e com as tampas retiradas.
Havia coisas flutuando na...
Uma batida ecoou do banheiro. Como se um painel ou uma janela tivessem sido abertos e fechados em seguida.
Quando Throe correu em direção ao som, Xcor avançou e pegou o macho pelo braço. Com dois movimentos rápidos, Xcor tirou a braçadeira de metal que mantinha junto a seu cinto de armas e apertou o objeto no braço grosso do soldado. Puxando de volta o macho com todo seu peso, balançou-o como uma bola no final de uma corrente. Houve um baque na parede quando o gesso barato recebeu o impacto do pêndulo vampiro.
– Deixe-me ir.
Xcor puxou o cara para ainda mais perto.
– Isso não é problema seu.
Xcor puxou o braço e deu um soco na parede, quebrando o superfície plana.
– É sim! Solte-me!
Xcor bateu na nuca do macho.
– Não. É. Seu. Mundo!
Nesse momento, começaram a se debater, os dois lutavam e batiam em objetos do quarto, produzindo mais barulho do que deveriam. E estavam prestes a cair no carpete ensanguentado quando um macho humano atarracado e com óculos escuros do tamanho de vidraças deslizou pela porta. Deu uma olhada na cama, outra para Xcor e Throe e, em seguida, murmurou alguma coisa, cobrindo os olhos com seus antebraços ao se abaixar e sair.
Uma fração de segundo depois, a porta do quarto onde tinham transado com aquela fêmea humana abriu e fechou... em seguida, abriu e fechou outra vez. Saltos altos ressoaram em passos rápidos e descoordenados e houve um barulho de pessoas entrando em um carro.
Um motor rugiu e o Mercedes saiu rápido do estacionamento, sem dúvida, com a prostituta e o dinheiro dentro dele.
A rápida partida provou serem verdadeiras as hipóteses que Xcor tinha elaborado sobre a clientela do lugar.
– Ouça-me – disse a Throe. – Ouça-me bem, seu bastardo estúpido... não é problema nosso. Mas se ficar aqui vai acabar sendo...
– O assassino foi embora!
– E nós também vamos.
Os olhos pálidos de Throe encararam a cama e a máscara de raiva escorregou por um breve momento. O que havia sob ela deteve até mesmo o impulso agressivo de Xcor. Tanta dor. Deus, quanta dor.
– Ela não é sua irmã – Xcor sussurrou. – Agora, venha comigo.
– Não posso... deixá-la... – Os grandes olhos vidrados atingiram os dele. – Não pode me pedir isso.
Xcor virou-se, mantendo o pulso firme sobre o soldado. Tinha de haver algo do assassino ali, algo que pudesse ter...
Xcor arrastou o lutador para o banheiro e houve uma satisfação cruel quando observaram a janela acima do vaso sanitário. O painel espesso de vidro fosco estava intacto, mas havia uma faixa vermelha brilhante na borda da caixa de metal.
Era exatamente o rastro de que precisavam.
Xcor aproximou-se da janela e passou dois dedos ao redor do que havia detido e rasgado a carne humana.
O sangue aderiu a sua carne, empoçando-a.
– Abra – ordenou.
Throe abriu a boca e sugou aqueles dois dedos, fechando os olhos para se concentrar enquanto sirenes começavam a soar pela noite.
– Temos que partir – Xcor disse. – Venha comigo agora e permitirei que saia para encontrar o macho. Concorda? Pode assentir com a cabeça. – Quando Throe assentiu, decidiu que precisava de mais. – Jure.
Throe inclinou-se em reverência.
– Juro.
A braçadeira foi liberada... então, os dois desapareceram no fino ar assim que luzes azuis anunciaram a chegada da polícia humana.
Xcor não era misericordioso em situação alguma; mas se tinha de ser assim, não ofereceria piedade alguma àquele humano criminoso... que agora era o alvo de Throe... e, logo, seria sua presa.
CAPÍTULO 44
– Dr. Manello?
Ao som de seu nome, Manny voltou-se para a realidade e descobriu que, sim, ainda estava no Tricounty, no gramado. Era muito irônico o fato do guarda de segurança ter sido o único a receber um tratamento mental e, ainda assim, ser o único focado na situação.
– Ah... sim. Desculpe. O que disse?
– O senhor está bem?
– Não, não estou.
– Bem, o senhor foi demais... Não posso acreditar como lidou com ele. Em um minuto, ele o enfrentava... no outro, o senhor tinha a arma e ele estava.... voando. Claro que deve estar cansado.
– Sim. É isso. Exatamente.
Os policiais apareceram dois segundos depois e foi uma enxurrada de perguntas e respostas. E foi ótimo; o guarda sequer mencionou Payne. Era como se ela nunca tivesse estado lá.
Não deveria ser novidade, se considerasse tudo o que Manny havia passado não apenas com ela, mas com Jane. Mesmo assim, era estranho.
Simplesmente não tinha entendido muito bem tudo aquilo: Payne havia desaparecido no ar na frente dele; não deixou nada de si para trás, ao menos não até onde o guarda sabia, mas o cara se lembrava muito bem de Manny; não sabia como ela havia conseguido ficar tão calma e sob controle em uma situação tão ameaçadora.
Na verdade, aquela última parte tinha sido totalmente erótica. Observá-la surrar aquele maldito sujeito foi muito excitante... Manny não tinha certeza do que aquilo poderia dizer sobre si mesmo, mas era isso.
E pensou que ela ia mentir. Diria às pessoas que tinha limpado a mente dele. Diria que havia cuidado das coisas.
De fato, Payne havia encontrado uma solução: Manny ainda tinha sua mente, ela tinha suas pernas funcionando e ninguém saberia disso entre seu irmão e sua classe.
Sim, tudo estava resolvido. Tudo o que tinha de fazer agora era passar o resto de sua vida indo atrás de uma mulher que nunca encontraria. Super fácil.
Uma hora depois, entrou no Porsche e dirigiu-se para Caldwell. Guiando sozinho, o carro não parecia apenas vazio, mas um terreno baldio e viu-se abaixando e subindo as janelas. Não era o mesmo.
Payne não sabia onde ele morava, pensou. Mas isso não importava, não é mesmo? Ela não voltaria.
Deus, era complicado decidir o que era mais difícil: uma longa despedida onde ela olharia em seus olhos e o impediria de falar demais ou aquele esparadrapo retirado de uma só vez.
De qualquer maneira era terrível.
No Commodore, entrou no subsolo, estacionou em sua vaga e saiu. Chamou o elevador. Subiu até seu apartamento. Entrou. Fechou a porta.
Quando o celular tocou, atrapalhou-se para tirá-lo do bolso e quando viu o número, amaldiçoou. Era Goldberg, ligando do centro médico.
Atendeu sem entusiasmo algum.
– Oi.
– Você atendeu – disse o cara com alívio. – Tudo bem?
Certo. Não queria muito responder.
– Estou bem – Quando houve uma pausa, disse. – E você?
– Estou bem. As coisas têm sido... – Hospital. Hospital. Hospital hospital, hospitalh ospit alhosp. Ital hospit alhospital...
Entrava por um ouvido e saía pelo outro. Porém, Manny ocupou-se um pouco. Foi até o bar na cozinha, pegou um Lagavulin e sentiu-se como tivesse recebido um soco na cabeça quando viu como havia pouca bebida na garrafa. Inclinando-se no gabinete, pegou um Jack Daniels da parte de trás que estava ali há tanto tempo que já havia poeira na tampa.
Algum tempo depois, desligou o telefone e levou a sério a questão da bebida. A garrafa do uísque Lagavulin primeiro. O Jack em seguida. Então, foi o caso de recorrer às garrafas de vinho na geladeira. E o que restou das cervejas... foram guardadas na despensa; portanto não estavam geladas.
Porém, seu cérebro não reconheceu qualquer diferença entre a bebida quente e a porcaria gelada.
Dito isso, gastou uma hora no festival do consumo alcoólico. Talvez mais. E foi muito eficaz. Quando pegou a última cerveja e começou a ir para o quarto, sentiu como se estivesse na ponte de comando da Enterprise*, cambaleando para a esquerda e para a direita... e voltando um pouco para trás. E mesmo conseguindo enxergar bem o caminho com a luz ambiente da cidade, tropeçou com várias coisas: por algum milagre inconveniente, sua mobília ganhara vida e a porcaria estava determinada a ficar em seu caminho... tudo, das cadeiras de couro acolchoadas até a...
– Droga!
... mesa de centro.
Eeeeeeeee o fato de que esfregar a canela enquanto avançava foi como adicionar um par de patins à festa. Quando chegou ao quarto, deu um gole na cerveja para celebrar e tropeçou na banheira. Água ligada. Roupas tiradas. Entrar. Não havia razão para esperar a coisa esquentar. Não conseguia sentir nada mesmo e esse era o ponto.
Não se preocupou em se secar; apenas caminhou até a cama com a água pingando do corpo e acabou com a cerveja quando se sentou. Então... só havia um monte de nada. Seu teor de álcool estava bem alto, mas ainda tinha de alcançar mais fundo para derrubá-lo com tudo.
Mas consciência era um termo relativo. Embora estivesse acordado, sem dúvida estava totalmente desconectado... e não só por causa de sua taxa de álcool no sangue. Estava sem energia por dentro, de uma maneira muito curiosa.
Caindo sobre o colchão, pensou que se a situação Payne estava resolvida era hora de começar a reorganizar sua vida... ou pelo menos fazer uma tentativa disso amanhã de manhã, quando sua ressaca o acordasse. Sua mente estava bem, então não havia razão para não voltar ao trabalho e tratar de distanciar aqueles malditos momentos do resto de sua vida normal.
Enquanto olhava para o teto, ficou aliviado quando sua visão ficou turva.
Até que ele percebeu que estava chorando.
– Maldito covarde.
Enxugando os olhos, decidiu que não ia continuar com aquilo de jeito nenhum. Só que foi o que fez... e permaneceu assim. Deus, a saudade que sentia dela já chegava ao ponto da agonia.
– Maldito... inferno...
Ergueu a cabeça de repente e seu pênis latejou. Olhou para fora através da porta de vidro deslizante em seu terraço e procurou pela noite com um desespero que o fez se sentir como se suas crises de loucura estivessem de volta.
Payne...
Payne...?
Lutou para se levantar da cama, mas seu corpo recusou-se a obedecer... como se seu cérebro estivesse falando em um idioma e seus braços e pernas não conseguissem traduzir. E então a embriaguez venceu, pressionando o Ctrl-Alt-Del e fechando seus programas.
Porém, não reiniciou.
Depois que suas pálpebras se fecharam, as luzes se apagaram, por mais que lutasse contra a maré.
No terraço, Payne permaneceu parada no vento frio, os cabelos eram açoitados, sua pele formigava devido à temperatura.
Havia desaparecido da visão de Manuel. Mas não havia lhe deixado.
Mesmo depois de Manny provar ser capaz de cuidar de si mesmo, ela se camuflou com o mhis e permaneceu parada no gramado do hospital equino, observando-o conversar com a polícia e o guarda de segurança. E quando entrou no carro, ela o seguiu desmaterializando-se pouco a pouco e conseguiu segui-lo graças à pequena quantidade de sangue que tomou dela.
A viagem até sua casa culminou nas profundezas de uma cidade menor do que a que havia visto no carro, mas ainda era impressionante, com seus prédios altos, ruas belas e pavimentadas, pontes altas que atravessavam um rio muito largo. Caldwell era realmente adorável à noite.
Será que tinha ido até ali para dizer um adeus invisível?
Quando Manuel entrou em algum tipo de instalação subterrânea para veículos, ela o deixou continuar sozinho. O propósito de Payne foi alcançado quando ele chegou a seu destino com segurança; com isso, soube que precisava partir.
Mas permaneceu ali na rua, mantendo-se no mhis, vendo os carros passarem e os pedestres atravessarem as ruas. Uma hora se passou. E mais um pouco. E, ainda assim, não conseguia partir.
Cedeu a seu coração e começou a subir, subir, subir... dirigindo-se para onde Manuel estava. Tomou forma do lado de fora do terraço do apartamento... e o encontrou no meio do caminho entre a cozinha e a sala. Seu desequilíbrio era evidente, tropeçava em várias peças da mobília... porém, não pelo fato das luzes estarem apagadas. Sem dúvida, era pela bebida em suas mãos. Ou, mais precisamente, toda bebida que já havia tomado antes disso.
Em seu quarto, não se despiu, arrancou as roupas e entrou no chuveiro. Quando saiu do banheiro todo molhado, ela teve vontade de chorar. Parecia tão difícil compreender que apenas um dia os separava do momento em que ela testemunhou pela primeira vez o corpo dele assim... Contudo, na verdade, ela sentia como se pudesse praticamente estender a mão no tempo e tocar aqueles momentos elétricos quando estiveram prestes a... não era apenas um presente, era um futuro.
Não mais.
Sentou-se sobre a cama... depois, jogou-se no colchão.
Quando começou a enxugar as lágrimas, ela ficou completamente arrasada. E isso aumentou sua necessidade de aproximar-se dele...
– Payne.
Com um grito baixinho, ela virou-se. Do outro lado do terraço, em pé na brisa... estava seu irmão gêmeo, e, no instante em que colocou os olhos sobre Vishous, soube que alguma coisa havia mudado nele. Sim, sua face já estava curada do dano que infligiu a si mesmo no espelho... mas não era essa a alteração. O interior dele estava diferente: a tensão, a raiva e a frieza assustadora haviam desaparecido.
Quando o vento emaranhou os cabelos dela, tentou recompor-se rapidamente, enxugando as lágrimas que brilhavam sobre seus olhos.
– Como sabia... que eu estava...?
Com sua mão enluvada, apontou para cima.
– Tenho um apartamento. No topo do edifício. Jane e eu estávamos saindo quando senti que estava aqui.
Ela deveria saber. Da mesma maneira que conseguia sentir o mhis dele... ele poderia sentir o dela.
E como desejava que ele não se detivesse ao ir embora. A última coisa que precisava naquela noite era outra rodada de “autoridade” masculina dizendo-lhe o que fazer. Além disso, o Rei já havia decretado suas leis. O decreto de Wrath não precisava de um reforço vindo de seu irmão.
Ergueu a mão para detê-lo antes que dissesse qualquer palavra sobre Manuel.
– Não estou interessada em lhe ouvir dizendo tudo o que nosso Rei já disse. E já estava indo embora.
– A memória dele já foi apagada?
Ela ergueu o queixo.
– Não, não foi. Ele me levou para sair e houve um... incidente...
O rosnado que seu irmão soltou foi mais alto que o vento.
– O que ele fez...?
– Não foi ele. Por um acaso, poderia... deixar de odiá-lo? – Quando esfregou as têmporas, perguntou-se se a cabeça de alguém já havia explodido... ou se todos na Terra sentiam-se assim de vez em quando. – Fomos atacados por um humano e no processo de desarmá-lo...
– O humano?
– Sim... nesse processo, eu machuquei o homem e a polícia foi chamada...
– Você desarmou um humano?
Payne encarou seu irmão gêmeo.
– Quando remove a arma de alguém, é assim que chamam, não?
Os olhos de Vishous se estreitaram.
– Sim. É.
– Não podia apagar as memórias de Manuel, pois ele não seria capaz de responder as perguntas feitas pela polícia. E eu estou aqui... pois queria vê-lo em casa em segurança.
No silêncio que se seguiu, ela percebeu que tinha se apoiado em algum lugar. Para proteger Manuel, acabou comprovando o argumento de seu irmão de que o macho que desejava não era capaz de cuidar dela. Ah, mas isso não importa. Se levasse em conta que estava disposta a obedecer ao Rei, de qualquer maneira não havia futuro para ela e Manuel.
Quando Vishous ia abrir a boca, ela gemeu e levou as mãos aos ouvidos.
– Se tem alguma compaixão, deixe-me chorar sozinha. Não consigo ouvir todas as razões pelas quais preciso me separar dele... conheço todas. Por favor. Apenas vá.
Fechou os olhos, virou-se e rezou para que sua mãe permitisse que ele fizesse o que tinha pedido...
A mão em seu ombro era pesada e quente.
– Payne. Payne, olhe para mim.
Sem energia para lutar, ela deixou cair os braços e encontrou aqueles olhos sombrios.
– Responda-me uma coisa – seu irmão gêmeo disse.
– O quê?
– Ama esse bast... esse homem? Você o ama?
Payne olhou através do vidro em direção ao humano sobre a cama.
– Sim. Estou apaixonada por ele. E se tentar dissuadir-me disso com o fato de que ainda não vivi o suficiente para julgar, eu lhe digo: dane-se. Não preciso conhecer o mundo para perceber o que meu coração deseja.
Houve um longo silêncio.
– O que Wrath disse?
– A mesma coisa que você diria. Que devo apagar as lembranças relacionadas a mim da memória dele e nunca, jamais voltar a vê-lo.
Quando seu irmão não disse nada, ela balançou a cabeça.
– Por que ainda está aqui, Vishous? Está tentando pensar em alguma coisa para dizer e, assim, me convencer a ir para casa? Deixe-me poupá-lo do esforço... quando a madrugada se aproximar, eu partirei... e obedecerei às regras, mas não porque é bom para você ou para o Rei ou para mim mesma. É porque é a coisa mais segura a se fazer por ele... ele não precisa de inimigos como você e a Irmandade para torturá-lo só porque me sinto assim. Então, estará acabado, assim como deseja. Só que... – nesse momento, ela o encarou – não vou limpar as memórias dele. A mente dele é valiosa demais para ser desperdiçada... e ele não vai suportar outro processo. Vou mantê-lo seguro não voltando mais aqui, mas não vou condená-lo a uma vida de demência. Isso não vai acontecer... ele não fez nada além de me ajudar. Merece mais do que ser usado e descartado.
Payne voltou os olhos para o vidro.
Depois de um longo período de silêncio, concluiu que seu irmão havia partido. Então, quase gritou quando parou em frente a ela e bloqueou a visão de Manuel.
– Ainda está aqui – ela vociferou.
– Vou dar um jeito nisso para você.
Payne recuou e, em seguida, rosnou:
– Não se atreva a pensar em matá-lo...
– Com Wrath. Vou dar um jeito nisso. Vou... – Vishous alisou os cabelos. – Vou fazer alguma coisa para que possa ficar com ele.
Payne piscou. Em seguida, sentiu a boca se abrir.
– O que... o que disse?
– Conheço Wrath há muitos anos. E, tecnicamente, de acordo com as Leis Antigas, sou o líder da nossa pequena família feliz. Irei até ele e lhe direi que aprovo essa... união e que acho que pode ver o bast... o cara. Homem. Manello – limpou a garganta. – Wrath é muito preocupado com a segurança, mas com o mhis ao redor do complexo... Manello não conseguiria nos encontrar se quisesse. Além disso, é hipocrisia negar-lhe o que os outros Irmãos fazem de vez em quando. Droga, Darius teve uma criança com uma mulher humana... e Wrath está casado com a filha dele agora. De fato... se tentasse separar nosso Rei de sua Beth quando a conheceu... Ele teria matado qualquer um que tivesse sequer mencionado tal sugestão. A Mary de Rhage? Mesma coisa. E deve ser o mesmo... para você. Falo até com nossa mahmem, se necessário.
Payne colocou uma das mãos sobre o coração que pulsava forte.
– Não... não entendo porque faria... isso.
Olhou sobre o ombro e encarou o humano que ela amava.
– É minha irmã. E ele é o que você quer – deu de ombros. – E... bem, eu me apaixonei por uma humana. Apaixonei-me por Jane em menos de uma hora depois de conhecê-la. Se o que sente por Manello for ao menos metade do que sinto por minha shellan, sua vida nunca será completa sem ele...
Payne lançou-se sobre seu irmão e o abraçou. Quase o derrubando ao chão.
– Oh... meu irmão...!
Passou os braços ao redor dela e a envolveu.
– Desculpe-me por ter sido tão idiota.
– Você foi... – procurou outra palavra. – Sim, você foi muito idiota.
Ele riu, o som retumbou em seu peito.
– Viu? Conseguimos concordar em alguma coisa.
Enquanto ela o abraçava, disse:
– Obrigada... Obrigada...
Depois de um momento, afastou-se.
– Deixe-me falar com Wrath primeiro antes de falar com Manello, certo? Quero ajeitar tudo com antecedência... e, sim, vou para casa agora. Jane está de plantão e a Irmandade está de folga esta noite, então, já posso acertar alguma coisa com o Rei. – Houve uma pausa. – Só quero uma coisa em troca.
– O quê? Qualquer coisa. Pode dizer.
– Se for ficar aqui até o amanhecer, entre. Está congelando aqui fora. – Deu um passo para trás. – Vá em frente... vá e fique com seu... macho... – Esfregou os olhos e Payne teve a sensação de que estava se lembrando do que viu quando a encontrou no banho com seu curandeiro. – Vou voltar... ah, ligue... Tem um telefone? Aqui pegue o meu... Droga, não estou com ele.
– Está tudo bem, meu irmão. Voltarei ao amanhecer.
– Bom, sim... eu deveria saber.
Ela o encarou.
– Amo você.
Agora, ele sorria. Um sorriso largo e sem reservas. Erguendo a mão, acariciou o rosto dela.
– Amo você também, irmãzinha. Agora, entre e se aqueça.
– Vou entrar. – Deu um pulo e beijou a bochecha dele. – Vou entrar!
Com um aceno, ela se desmaterializou através do vidro.
Oh, como o interior parecia quente em comparação ao terraço... ou talvez fosse apenas a onda de alegria que emanava dela. Seja lá o que fosse, girou sobre um dos pés e, depois, seguiu até a cama.
Manuel não estava apenas dormindo, mas desmaiado... Mas ela não se importava. Subindo na cama, colocou um braço ao redor dele e, instantaneamente, ele gemeu e virou-se para ela, puxando-a para si e a abraçando.
Quando seus corpos fundiram-se e sua ereção tocou o quadril de Payne, os olhos dela voltaram-se para o terraço.
Não havia razão para forçar a sorte com Vishous... mas, felizmente, ele tinha partido.
Sorrindo na escuridão, ela ficou à vontade e acariciou o ombro de seu macho. Tudo ia dar certo e a chave disso era a lógica avassaladora que Vishous havia detalhado. Na verdade, o argumento era tão eficaz que não podia acreditar que não havia pensado nisso antes.
Porém, Wrath poderia não gostar disso; mas, concordaria, pois fatos eram fatos... e era um governante justo que havia provado várias vezes não ser um escravo das antigas leis.
Quando aconchegou-se ao lado dele, sabia que não havia qualquer possibilidade de dormir e, assim, correr o risco de ser queimada pelo sol: estava incandescente quando deitou-se na cama ao lado de Manuel, brilhava tanto que lançava sombras sobre a sala.
Nada de cair no sono para ela.
Queria apenas desfrutar daquele sentimento.
Para sempre.
Nome da nave espacial de Jornada nas Estrelas. (N.P.)
CONTINUA
CAPÍTULO 35
Quando Payne se vestiu e saiu para o corredor, seu irmão gêmeo já havia partido. No entanto o sangue no chão indicou-lhe a direção que ele seguiu e ela acompanhou a trilha ao longo do corredor e do espaço envidraçado em que se lia “Escritório”. No interior, as pequenas partículas vermelhas faziam um caminho ao redor da mesa e desapareciam por uma porta; então, ela se aproximou a abriu...
Apenas um armário, nada além de um estoque de papéis e material de escritório. Porém, havia mais do que isso; tinha de haver. A trilha de gotas terminava em uma parede de prateleiras.
Tateando, procurou uma alavanca ou alguma coisa que se movesse, enquanto pensava na cena do espelho estilhaçado.
Tinha muito medo, não por ela, mas por Vishous... e o que ela havia lhe induzido a fazer, outra vez. Ela queria ter um relacionamento com seu irmão, mas não assim; nunca havia desejado aquela interação tóxica.
– Procurando alguma coisa?
Olhou por cima do ombro em direção a seu curandeiro. Parado na entrada do escritório, ainda estava molhado, mas não pingava mais e tinha uma toalha branca ao redor de seu pescoço. O cabelo curto e escuro estava desgrenhado, como se tivesse esfregado para secar e deixado como estava.
– Não consigo encontrar o caminho. – Não só relacionado àquilo, mas a muitas outras coisas.
Payne levou um bom tempo apenas olhando fixamente para as pilhas de blocos de notas amarelos, caixas de canetas e fileiras de objetos bem ordenados e alinhados com cuidado cuja função Payne poderia apenas imaginar. Quando finalmente desistiu e saiu, seu curandeiro ainda estava na entrada do escritório, ainda a encarava. Seus olhos estavam negros com a emoção, os lábios finos... e, por alguma razão, sua expressão fez com que ela percebesse como estava totalmente vestido.
Como ele permanecia completamente vestido sempre que se deitava com ela.
Nunca permitiu que ela o tocasse, não foi?
– Você concorda com meu irmão – disse ela com um tom sombrio. – Não concorda?
Não era uma pergunta, e ficou surpresa quando ele assentiu.
– Não é uma coisa a longo prazo – disse com uma gentileza horrível. – Não para você.
– Então foi por isso que não tive o prazer do seu sexo.
As sobrancelhas de Manny ergueram-se brevemente, como se a sinceridade dela o incomodasse.
– Payne... não pode dar certo entre nós.
– Quem disse? A escolha é nossa quanto a quem...
– Tenho uma vida para a qual preciso voltar.
Quando sua respiração ficou mais tensa, ela pensou: como era incrivelmente arrogante. Nunca lhe ocorreu que ele tinha outro lugar para ir; por outro lado, assim como seu irmão havia apontado, quanto ela sabia sobre ele?
– Eu tenho família – ele continuou. – Um trabalho. Um cavalo que preciso ver como está.
Payne caminhou até ele, aproximando-se com sua cabeça erguida.
– Por que chegou à conclusão de que só pode ser isso ou aquilo? Antes que tente, não gaste palavras dizendo que não me deseja. Sei que é verdade... seu perfume não nega.
Ele limpou a garganta.
– Sexo não é tudo, Payne. E mesmo sentindo todo o prazer, não passa disso.
Com isso, outro calafrio percorreu o corpo de Payne, como se houvesse uma brisa passando pela sala. Mas, então, balançou a cabeça.
– Você me desejou, curandeiro. Quando voltou e me viu naquela cama... seu aroma não tinha nada a ver com a condição em que eu me encontrava, e é um covarde se fingir o contrário. Esconda-se se quiser, curandeiro...
– Meu nome é Manny – ele retrucou. – Manuel Manello. Trouxeram-me aqui para ajudá-la... e, no caso de não ter notado, está em pé. Então, eu ajudei. Agora? Estou apenas esperando para que sua gente mexa com meu cérebro outra vez e prendam-me de alguma maneira para que eu não consiga separar o dia da noite e os sonhos da realidade. Este é o seu mundo, não o meu, e existe apenas uma coisa ou outra.
Os olhos deles se encontraram e, naquele momento, como se as instalações estivessem em chamas, ela sentiu que não poderia desviar o olhar... e percebeu que ele também não.
– Se pudesse dar certo – ela disse com tom severo –, se permitissem que entrasse e saísse quando bem entendesse, ficaria comigo?
– Payne...
– Minha pergunta é clara. Responda. Agora. – Quando as sobrancelhas dele se ergueram, não conseguia dizer se estava animada ou assustada com seu ímpeto, mas não se importava com isso naquele momento.
– A verdade é o que é – balançou a cabeça lentamente. – Seu irmão não acha que...
– Dane-se meu irmão – ela rebateu. – Diga-me o que você acha.
No silêncio tenso que se seguiu, ela percebeu o que tinha acabado de dizer e teve vontade de amaldiçoar outra vez. Abaixando a cabeça, olhou para o chão, não com brandura, mas sentindo-se frustrada. Fêmeas de valor não usavam palavras como aquela e não pressionavam as pessoas nem por guardanapos de pano, muito menos por algo assim.
Na verdade, uma fêmea adequada permaneceria sob os cuidados do membro masculino mais velho da família, que controlaria todas as grandes decisões em sua vida, moldando todo seu caminho, desde onde moraria até com quem se casaria.
Explosões. Sexo. Palavrões. Um pouco mais disso e realizaria o desejo de Vishous, pois seu curandeiro – Manuel, esse era o nome dele – a consideraria tão pouco atraente que iria implorar para se afastar dela, sem memória alguma de seu tempo juntos.
Será que ela nunca se encaixaria no padrão feminino de perfeição que era Layla?
Esfregando os olhos, ela murmurou:
– Vocês dois têm razão... só que pelos motivos errados. Nossa relação não poderia dar certo nunca, pois não sou uma boa companheira para nenhum tipo de macho.
– O quê?
Cansada de tudo... dele, de seu irmão, de si mesma, de machos e fêmeas em geral... Fez um breve gesto como se estivesse dissipando alguma coisa no ar com a mão e virou-se.
– Você diz que esse é meu mundo? Pois está muito errado; não pertenço a esse lugar mais do que você.
– Do que diabos está falando?
Na verdade, ele poderia muito bem ter uma imagem real das coisas ao sair dali. Inferno. Olhou por cima do ombro.
– Sou filha de uma deusa, Manuel. Uma divindade. Aquele brilho que provoca em mim? É a essência dela como uma entidade. Isso é o que ela é. Quanto a meu pai? Não era nada além de um bastardo sádico que me transmitiu o desejo de matar... isso não é um “dom”. E quer saber o que fiz com isso? Quer? – Tinha consciência de que o volume de sua voz estava aumentando, mas estava muito pouco inclinada a se acalmar. – Eu o matei, Manuel. E por cometer tal crime contra minha linhagem, por essa ofensa contra os padrões de comportamento das fêmeas, fui aprisionada e mantida assim por séculos. Então, você tem toda razão. Vá... Faça isso agora; é o melhor. Mas não pense que me encaixo melhor do que você neste lugar.
Com outro resmungo passou por ele e saiu para o corredor, acreditando que Manuel se veria livre muito em breve...
– Foi seu irmão. Não foi?
As palavras calmas e baixas ecoaram pelo árido corredor, detendo não apenas os passos de Payne, mas seu coração.
– Eu vi o estado dele – Manuel disse com uma voz profunda. – Existe alguma possibilidade de seu pai ter feito aquilo com o cara?
Payne virou-se lentamente. Em pé, no meio do corredor, seu curandeiro não mostrava nem choque nem horror, apenas uma inteligência que já esperava dele.
– Por que acha isso? – ela disse em um tom letal.
– Quando o operei, vi cicatrizes e ficou muito claro que alguém tentou castrá-lo. Será que estou extrapolando? Pela minha limitada interação com ele, diria que é sensível e agressivo demais com qualquer um que queira o melhor para ele; então, ou foi atacado por um bando de loucos ou alguém o pegou em um momento em que era muito vulnerável. Acho que a última opção é a mais provável, pois... bom, digamos que eu ficaria surpreso se abusos sexuais por parte dos pais não acontecesse também em meio a sua espécie.
Payne engoliu em seco e levou um longo, longo tempo antes que ela conseguisse encontrar sua voz.
– Nosso pai... Sujeitou V. Ordenou um ferreiro tatuá-lo... e a usar um alicate.
Manuel fechou os olhos por alguns instantes.
– Sinto muito. Sinto muito... mesmo.
– Nosso pai foi escolhido para ser um tipo de senhor e reprodutor por sua agressividade e crueldade, e meu irmão foi entregue a ele quando era muito jovem... enquanto eu ficava no Santuário com nossa mahmen. Como não tinha nada para passar meu tempo, via o que acontecia aqui na Terra nas bacias da visão e... meu irmão foi abusado ao longo dos anos no campo de guerra. Dizia isso a minha mãe de tempos em tempos, mas ela insistia em cumprir o acordo com Bloodletter. – Fechou os punhos com força. – Aquele macho, aquele maldito e sádico macho... não era capaz de cuidar de filho algum, mas ela lhe garantiu um de nós para que concordasse em se acasalar com ela. Três anos depois que nascemos, ela abandonou Vishous à crueldade de nosso pai enquanto fazia o máximo possível para me forçar a seguir um modelo que nunca se encaixaria comigo, e, então, aquele último episódio de quando Vishous foi... – Lágrimas brotaram de seus olhos. – Não poderia mais aceitar... não poderia mais deixar de fazer alguma coisa. Desci até aqui e.. e cacei Bloodletter. Eu o detive no chão enquanto o queimava até virar cinzas. E não me arrependo disso.
– Quem a aprisionou?
– Minha mãe. Mas a prisão foi apenas parcial, pois ele estava morto. Algumas vezes eu achava que era mais por ela sentir uma decepção tremenda com relação a mim. – Enxugou o rosto rapidamente e secou a umidade dos dedos. – Mas chega disso, chega de... tudo isso. Vá agora... Vou falar com o Rei e enviá-lo de volta. Adeus, Manuel.
Em vez de esperar que respondesse, saiu com rapidez passando por ele mais uma vez...
– Sim, eu a desejo.
Payne parou e olhou sobre o ombro outra vez. Depois de um momento, ela disse:
– É um ótimo curandeiro e precisa exercer seu trabalho, como teve toda razão em mencionar. Não temos mais motivos para conversar.
Quando voltou a andar, os passos dele se aproximaram com rapidez e a alcançou, girando-a.
– Se tivesse tirado minhas calças, não conseguiria me afastar de você.
– Mesmo?
– Dê-me sua mão.
Sem olhar, ela lhe ofereceu uma das mãos.
– Por que...
Ele agiu rápido, colocando a palma da mão dela entre suas pernas e pressionando-a contra e extensão quente e dura que havia entre seus quadris.
– Você está certa – moveu-se contra ela, seu pênis latejava, a ereção pressionava a mão dela quando ele começou a ofegar. – Mesmo se eu tentasse me convencer do contrário, sabia que se ficasse nua, você permaneceria virgem até o momento que a estendesse sobre a cama. Nada romântico, mas real e totalmente verdadeiro.
Quando os lábios dela se abriram, seus olhos estenderam-se para a boca e ele rosnou.
– Pode sentir a verdade, não pode? Está na sua mão.
– Não se importa com o que eu fiz...?
– Quer dizer, quanto ao seu pai? – ele deteve a carícia e franziu a testa. – Não. Para ser sincero, sou o tipo de cara adepto à lei de talião*. Seu irmão poderia muito bem ter morrido com aqueles machucados... Não importa quão rápido sua gente pode se curar. Mas, indo direto ao ponto, estou disposto a apostar que essa relação pai e filho deve ter detonado a cabeça dele para o resto da vida... então, não, não tenho problemas com o que fez.
Justiça retaliatória, pensou quando as palavras dele infiltraram-se dentro dela.
Voltando a pressionar onde ele a havia induzido, retomou o que tinha parado, fazendo movimentos para cima e para baixo sobre o sexo dele, acariciando-o.
– Fico feliz por se sentir assim.
E aquilo era verdade de muitas maneiras: a ereção dele era deliciosa, tão rígida e contundente na ponta. Desejava explorá-lo assim como ele fez com ela... com os dedos... a boca... a língua...
Manuel revirou os olhos lentamente enquanto rangia os dentes.
– Mas... seu irmão ainda está certo.
– Está...? – Ela curvou-se e lambeu os lábios. – Tem certeza?
Quando ela recuou, houve um momento escaldante quando os olhos deles se encontraram... e, então, com um rugido, ele a girou e a empurrou contra a parede.
– Tenha cuidado. – ele rosnou.
– Por quê? – Mergulhou os lábios sobre o pescoço dele e arrastou uma presa lenta e inexoravelmente ao longo de sua jugular.
– Oh, droga... – Xingando desesperado, fixou os olhos nos dela, mantendo a palma de sua mão naquele lugar entre seus quadris, obviamente tentando mudar o foco. – Ouça-me. Por mais que seja bom o que existe entre nós... – ele engoliu em seco. – Muito bom... Droga, olha, seu irmão sabe o que está acontecendo... não posso cuidar de você da maneira adequada e...
– Posso cuidar de mim mesma. – Pressionou a boca contra a dele e sabia que o possuía quando seus quadris começaram a se movimentar para frente e para trás: ele poderia ter detido sua mão, mas seu corpo estava muito à vontade ali.
– Droga – ele rugiu. – Você me deseja agora?
– Sim. Quero saber como é.
Mais beijos. E embora fosse ele quem estivesse agarrando-a e pressionando-a contra a parede, era ela a agressora.
Manny recuou, mas foi apenas o que pareceu, com um grande esforço. Depois de respirar fundo várias vezes, disse:
– Perguntou-me se eu ficaria com você se pudesse. Não tem nem o que pensar. Você é linda, sexy e eu não sei o que sua mãe ou qualquer outra pessoa têm na cabeça comparando você com alguma coisa ou alguém. Nada se compara a você... de maneira alguma.
Enquanto falava, estava mortalmente sério e era muito sincero... e aquela aceitação foi generosa e única: ela nunca teve aquilo de ninguém. Mesmo o próprio irmão queria negar-lhe a escolha do parceiro.
– Obrigada – ela sussurrou.
– Não é um elogio. As coisas são assim. – Manuel beijou sua boca suavemente e manteve o contato.
– Mas o cara do cavanhaque ainda está certo, Payne.
– Cavanhaque... Cara?
– Desculpe. É um pequeno apelido que atribui a seu irmão – ele deu de ombros. – Mas, de qualquer forma, acho mesmo que ele tem os melhores interesses dentro daquele coração e você realmente vai precisar de alguém que não seja eu em longo prazo... Se eu posso ficar aqui ou não é apenas parte do problema.
– Não a meu ver.
– Então, precisa enxergar com mais clareza. Vou morrer em mais ou menos quatro décadas. Se tiver sorte. Quer mesmo assistir meu envelhecimento? Minha morte?
Ela teve de fechar os olhos e virar a cabeça apenas por pensar nele morrendo.
– Deus... não.
No silêncio que se seguiu, a energia entre eles mudou, passando de algo sexual... para um tipo diferente de desejo. E como se ele estivesse sentindo o mesmo que ela, colocou-a contra seu corpo, segurando-a com força entre seus braços fortes.
– Se existe uma coisa que aprendi como médico – disse ele –, é que a biologia prevalece. Você e eu podemos decidir fazer qualquer coisa, mas não podemos fazer nada para mudar as diferenças biológicas. Minha expectativa de vida é apenas uma fração da sua... no máximo, teríamos um intervalo de dez anos antes que eu tivesse que entrar na terra do Viagra.
– O que é isso?
– É um lugar muito, muito flácido – disse ele secamente.
– Bem... eu iria até lá com você, Manuel. – Ela recuou um pouco para que pudesse observar aqueles belos olhos castanhos. – Seja lá onde for.
Houve um breve silêncio, e, então, ele sorriu triste.
– Adoro a maneira como pronuncia meu nome.
Suspirando, colocou a cabeça sobre o ombro dele.
– E eu adoro dizê-lo.
Enquanto permaneciam ali parados, um contra o outro, ela se perguntou se seria a última vez, e aquilo fez com que pensasse em seu irmão. Estava preocupada com Vishous e precisava conversar com ele, mas ele havia optado por deixá-la sem mostrar qualquer maneira de encontrá-lo.
Que assim seja. Por mais difícil que fosse, deixaria Vishous partir por enquanto... e se concentraria no macho que estava com ela.
– Tenho algo para lhe pedir – ela disse para seu curandeiro... Manuel, corrigiu-se.
– Diga.
– Leve-me a seu mundo. Mostre-me... se não tudo, pelo menos alguma coisa.
Manuel se enrijeceu.
– Não sei se é uma boa ideia. Consegue ficar em pé sozinha apenas há doze horas.
– Mas sinto-me forte e tenho maneiras para lidar com a viagem. – Na pior das hipóteses, poderia se desmaterializar de volta ao complexo: sabia, por ter visto nas bacias de visões, que seu irmão tinha cercado as instalações com o mhis e aquilo era um ponto de referência que poderia ser encontrado facilmente. – Confie em mim, não estarei em perigo.
– Mas como poderíamos sair juntos?
Payne afastou-se de seus braços.
– Pode vestir seu corpo enquanto eu tomo conta de tudo. – Quando parecia que ia argumentar, ela balançou a cabeça. – Não disse que a biologia sempre vence? Muito bem; mas eu lhe digo que temos esta noite... por que desperdiçar isso?
– Mais tempo juntos... só vai tornar a partida mais difícil.
Oh, aquilo doeu.
– Disse que me faria um favor, está em suas mãos. Sua palavra não é um compromisso?
Os lábios dele se estreitaram. Mas, então, inclinou a cabeça.
– Está certo. Vou me vestir.
Quando ele se dirigiu para o quarto, ela voltou para o escritório e pegou o telefone, enquanto Jane e Ehlena mostravam-lhe como fazer. Deu tudo certo ao discar... e o doggen mordomo atendeu com uma voz alegre.
Aquilo tinha de funcionar, disse a si mesma. Tinha de funcionar.
No Antigo Idioma, ela disse:
Aqui é Payne, irmã de sangue de Vishous, membro da Irmandade da Adaga Negra, filho de Bloodletter. Gostaria de falar com o Rei, se pudesse me agraciar com tamanha cortesia.
Cuja máxima diz “Olho por olho, dente por dente”. (N.P.)
CAPÍTULO 36
Quando Vishous irrompeu no Buraco pelo túnel subterrâneo, teve de enxugar o rosto ensanguentado com a palma da mão para que pudesse continuar até o quarto. Considerava ter sido uma coisa boa conseguir acertar o espelho em cheio, pois isso significava que havia alguns cacos nele... mas, na verdade, não dava a mínima.
Quando chegou à porta de Butch e Marissa, bateu. Com força.
– Só um minuto.
Butch não levou muito tempo para abrir e ainda estava vestindo um roupão.
– O que é... – então, tudo o que conseguiu dizer foi: – Jesus Cristo... V.
Atrás do ombro do cara, Marissa sentou-se na cama, faces vermelhas, os cabelos loiros emaranhados, as cobertas puxadas até os seios, e mantendo-as assim. A satisfação sonolenta logo foi substituída pelo choque.
– Deveria ter só telefonado. – V. ficou impressionado com o tom calmo de sua voz e sentiu um gosto metálico na boca enquanto falava. – Mas não sei onde está meu telefone.
Quando seu olhar encontrou o de seu melhor amigo, sentiu-se um diabético desesperado por insulina. Ou talvez fosse mais parecido com o vício da heroína ansiando por uma agulha. Não importa a metáfora, tinha de fugir de si mesmo ou perderia a cabeça e acabaria cometendo algum ato criminoso estúpido, como pegar suas lâminas e transformar aquele cirurgião em carne para hambúrguer.
– Eu os peguei juntos – ouviu-se dizendo. – Mas não se preocupe. O humano ainda está respirando.
E, então, simplesmente ficou ali, a pergunta que veio fazer estava tão evidente quanto o sangue em seu rosto.
Butch olhou para sua shellan. Sem hesitar, ela assentiu, os olhos tristes e gentis compreendiam bem que V. estava emocionado... mesmo naquele estado entorpecido.
– Vá – disse ela. Cuide dele. Eu te amo.
Butch assentiu. Provavelmente gesticulou com a boca um “eu te amo” de volta para ela. Em seguida, olhou para V. e murmurou rispidamente:
– Espere no pátio. Vou pegar o Escalade... e uma toalha do banheiro, tudo bem? Está parecendo o maldito Freddy Krueger.
Quando o tira foi até o armário para tirar o roupão e se vestir, V. olhou para a shellan do macho.
– Está tudo bem, Vishous – ela disse. – Vai ficar tudo bem.
– Não ansiava por isso. – Mas precisava fazer antes que se tornasse um perigo letal para si mesmo e para os outros.
– Eu sei. E eu também te amo.
– És uma bênção sem medida – pronunciou no Antigo Idioma.
E, então, fez uma reverência para ela e se afastou.
Quando o mundo voltou a entrar em foco algum tempo depois, V. viu-se sentado no banco do passageiro do Escalade. Butch estava atrás do volante e considerando a maneira como o tira lidava com os pedais, já tinham percorrido uma boa distância: as luzes de Caldwell não estavam mais distantes, mas por toda parte, brilhando nas janelas da frente e laterais do automóvel.
O silêncio no carro era tenso como um punhal e tão denso quanto um tijolo. E mesmo aproximando-se do destino, V. teve problemas em compreender a viagem que estavam fazendo. No entanto, não tinha volta. Para nenhum dos dois.
Estacionaram na garagem do Commodore.
Motor desligado.
Duas portas se abrindo... duas portas se fechando.
E, em seguida, subiram pelo elevador, que pareceu como a viagem do complexo até o Commodore: nada se encaixava na mente de V.
A próxima coisa que percebeu foi Butch usando a chave de cobre para abrir a cobertura.
V. entrou primeiro e acendeu as velas com a força de sua vontade. No instante em que as paredes e teto negros foram iluminados, passou do modo zumbi para o totalmente ligado, seus sentidos intensificaram-se a ponto de seus passos soarem como bombas caindo e o som da porta trancando-os ali dentro parecer o de um prédio caindo.
Cada respiração que dava era uma rajada de vento. Cada batida de seu coração era como o golpe de um boxeador. Cada porção de saliva que engolia era um porre que passava por sua garganta.
Era assim que seus submissos se sentiam? Com aquele formigamento tão vívido?
Parou próximo a sua mesa. Nenhum casaco para tirar; nada além da bata hospitalar cobria suas costas.
Atrás dele, a presença de Butch pairava tão grande como uma montanha.
– Posso usar seu telefone? – V. perguntou asperamente.
– Aqui.
V. virou-se e apanhou com a mão enluvada o BlackBerry que lhe foi jogado. Selecionando a opção de criar uma nova mensagem, escolheu o contato Dra. Jane na agenda.
Seus dedos se acalmaram nesse momento. Seu cérebro estava entupido de emoções, os gritos que precisava soltar ficavam no caminho e transformavam sua circunspecção usual em um conjunto sólido de barras de aço que o prendiam dentro de si mesmo.
Por outro lado, era por isso que estavam ali.
Xingando em voz baixa, cancelou a tela de texto vazia.
Quando foi devolver o celular, Butch estava perto da cama, tirando um de seus casacos de couro; nada de jaquetas de motoqueiro na rotina do tira inativo... O casaco que costumava vestir ia até o quadril e encaixava-se perfeitamente em seu peitoral. O material era como manteiga dentro de uma nuvem macia. Algo que V. conhecia por já ter segurado a coisa algumas vezes. O cara não relutava ao fazer aquilo, e estava tirando pelas razões certas: não havia motivo para manchar de sangue uma roupa como aquela.
Quando V. colocou o telefone na cama e se afastou, Butch dobrou o casaco com mãos cuidadosas e precisas e quando apoiou o couro, era como se estivesse deitando um filho sobre o edredom negro. Em seguida, aqueles dedos fortes e firmes puxaram as calças pretas para cima e ajeitaram a camisa de seda preta.
Silêncio.
E não do tipo em que as pessoas sentiam-se confortáveis.
Vishous olhou para os painéis de vidro instalados ao redor da cobertura e observou o reflexo de seu melhor amigo.
Depois de um momento, o tira virou a cabeça.
Os olhos deles encontraram-se no vidro.
– Vai continuar vestindo isso? – Butch perguntou com um tom obscuro.
Vishous alcançou o laço que havia em sua nuca e puxou os dois cordões que uniam a bata. Em seguida, fez o mesmo na cintura. Quando a roupa deslizou de seu corpo, o tira observou do outro lado da sala a coisa cair ao chão.
– Preciso de uma maldita bebida – Butch disse.
No bar, o cara serviu-se de uma dose de uísque. E de outra. Então, deixou o copo de lado, pegou a garrafa e bebeu com vontade.
Vishous permaneceu onde estava, a boca aberta, a respiração disparando para dentro e para fora dele enquanto continuava concentrado na figura de seu melhor amigo.
Butch apoiou a garrafa, mas continuou segurando-a, a cabeça baixa como se tivesse fechado os olhos.
– Não tem que fazer isso – disse V. com voz rouca.
– Sim... eu tenho.
A cabeça do policial ergueu-se e, então, ele se virou.
Quando finalmente avançou, deixou a bebida no bar e parou ao se posicionar atrás de Vishous. Estava perto... perto o suficiente para que o calor de seu corpo fosse facilmente percebido.
Ou talvez fosse o próprio sangue de V. começando a ferver.
– Quais são as regras? – disse o tira.
– Não existem. – Vishous endireitou sua postura e se preparou. – Faça o que quiser... mas tem que acabar comigo. Tem que me despedaçar.
No complexo, Manny trocou outro conjunto de uniforme cirúrgico. Se as coisas continuassem assim, poderia comprar ações da maldita loja especializada naquele tipo de roupa. Ou de uma indústria de máquinas de lavar.
No corredor, apoiou-se contra o muro de concreto e encarou seus tênis. Não achava que as solas poderiam animá-lo... tinha a impressão de que ele e Payne não iam a lugar algum. Ao menos, não juntos.
Filha de uma divindade.
Eeeeeee... aquilo não importava para ele. Poderia ser a filha de um avestruz que não dava a mínima importância.
Esfregando o rosto, não conseguiu decidir se ficava impressionado consigo mesmo ou com medo de ter aceitado tão bem as novidades. Provavelmente era mais saudável ficar todo chocado, incrédulo e dizendo “oh, Deus, não!”; contudo, seu cérebro fluiu bem com tudo aquilo... o que significava que ou era realmente flexível com aquilo que considerava realidade ou sua massa cinzenta tinha caído em um estado de aprendizado impotente.
Provavelmente era a primeira opção, pois, apesar de tudo, sentia-se como... droga, sentia-se melhor do que nunca: apesar de ter operado por doze horas seguidas e dormido em uma cadeira durante parte da noite – ou dia, não importava a hora –, o conjunto corpo e mente estava forte, saudável e afiada como uma tacha. Mesmo quando se esticou, não houve rigidez... ou estalos ou rangidos. Era como se estivesse em férias há um mês, fazendo massagens e sessões de ioga de frente para o mar. Não que já tivesse feito sequer algumas daquelas posições mais fáceis da ioga.
Eeeeeeeeeeeee naquele momento, uma imagem realmente fabulosa e muito suja de Payne surgiu em sua mente. Quando seu pênis enrijeceu-se todo alegre para chamar a atenção, pensou que não seria uma boa ideia levá-la para fazer um tour em, digamos, seu quarto. Na verdade, pensando nos últimos acontecimentos, que envolviam ele de joelhos... seu banheiro também estaria fora dos limites. Será que deveria evitar cômodos cobertos por telhado? Então, sua cozinha não era uma boa. A entrada do apartamento também não...
Payne saltou para fora do escritório e trazia sua maleta e outras coisas com ela.
– Estamos livres!
Com toda a graça de uma atleta, correu para ele, os cabelos se movimentavam atrás dela, seu andar era tão natural quanto as ondas negras caindo de sua cabeça.
– Estamos livres! Estamos livres!
Quando ela pulou em seus braços, ele a pegou e a girou no ar.
– Eles nos deixaram ir? – disse ele.
– De fato! Temos autorização para pegar seu automóvel e sair daqui. Enquanto entregava as coisas dele, sorria tanto que suas presas ficaram expostas. – Pensei que precisaria disso. E o telefone funciona agora.
– Como sabe que são minhas coisas?
– Têm o seu perfume. E Wrath me contou sobre o cartãozinho que meu irmão removeu.
Coisas de telefone. Mas o fato dela ter reconhecido as coisas dele pelo cheiro o excitou, lembrando-lhe exatamente o quanto estiveram próximos...
Certo, hora de parar com aquele filme.
Ela colocou a mão no rosto dele.
– Sabe de uma coisa?
– O quê?
– Gosto da maneira como olha para mim, Manuel.
– Mesmo?
– Faz com que eu pense nos momentos em que sua boca estava sobre mim.
Manny gemeu e quase perdeu a firmeza. Então, para evitar que as coisas saíssem do controle, colocou o braço em volta da cintura dela.
– Vamos lá. Vamos sair antes que percamos a oportunidade.
O sorriso de Payne era tão despreocupado que, por algum motivo, aquilo dividiu o peito dele com muita força e expôs as batidas de seu coração. E isso foi antes dela se inclinar e beijar sua bochecha.
– Está excitado.
Manny olhou para ela.
– E você está brincando com fogo.
– Eu gosto de ficar quente.
Manny soltou uma risada alta.
– Bem, não se preocupe... você é quente.
Quando chegaram à saída de emergência, ele colocou a mão sobre a barra.
– Isto realmente vai abrir?
– Tente e descubra.
Inclinou-se sobre a barra... e a trava foi liberada, os painéis de metal pesado se abriram.
Quando não viu vampiros com armas e facões correndo na direção deles e surgindo por todos os lados, ele balançou a cabeça.
– Como conseguiu isso?
– O Rei não está feliz. Mas não sou uma prisioneira aqui, já sou adulta e não há razão para que não me permitissem deixar o complexo.
– E no final da noite... o que vai acontecer? – Quando a alegria dela diminuiu, ele pensou “Uh-hum, foi assim que ela conseguiu”. Tecnicamente, ela estava o escoltando para casa... Aquele era o adeus.
Ele acariciou o cabelo dela para trás.
– Está tudo bem. Está... tudo bem, bambina.
Ela pareceu engolir com dificuldade.
– Eu não deveria pensar no futuro, nem você. Temos horas e horas pela frente.
Horas. Nada de dias, semanas ou meses... ou anos. Horas.
Deus, não se sentia livre.
– Vamos lá – disse ele, saindo e pegando a mão dela. – Vamos fazer valer a pena.
Seu carro estava estacionado nas sombras à direita e quando chegou até lá, encontrou a coisa aberta. Mas, vamos lá, até parece que ninguém ia sequer verificá-lo.
Abriu a porta do passageiro.
– Deixe-me ajudá-la a entrar.
Pegando o braço dela como um cavalheiro, acomodou-a e, em seguida, estendeu o cinto de segurança sobre ela, encaixando-o no lugar.
Quando os olhos dela percorreram o interior do carro e suas mãos acariciaram as laterais do banco, ele percebeu que aquele poderia ser seu primeiro passeio de carro. E como aquilo era bom.
– Já esteve em um desses antes? – perguntou.
– De fato, não.
– Bem, irei devagar.
Ela pegou a mão dele quando se endireitou no banco.
– Isso anda rápido?
Manny riu um pouco.
– É um Porsche. Ser rápido é a função dele.
– Então, você deve nos levar contra o vento! Será como na época em que eu cavalgava!
Manny tirou uma foto mental da felicidade selvagem que havia em seu rosto: ela resplandecia... e não no sentido etéreo, simplesmente por sentir a alegria de viver.
Ele inclinou-se e beijou-a.
– Você é tão linda.
Ela agarrou o rosto dele.
– E eu lhe agradeço por isso,
Oh, mas nada daquilo se devia a ele. O que a iluminava era a liberdade, a saúde, o otimismo... e ela não merecia nada menos na vida.
– Quero que conheça alguém – ele desabafou.
Payne sorriu para ele.
– Então, dirija, Manuel. Leve-nos pela noite.
Depois de um momento olhando-a um pouco mais... foi exatamente isso o que fez.
CAPÍTULO 37
Parado nu na cobertura, Vishous esperou por alguma coisa... qualquer coisa.
Em vez disso, Butch afastou-se e desapareceu na cozinha. Quando foi deixado ali com sua solidão, V. fechou os olhos e praguejou. Foi uma má ideia; não se pedia a um bom garoto católico para brincar com os tipos de brinquedos que V...
O ataque veio por trás, rápido e seguro.
Foi um golpe de luta livre modificado e executado muito bem: dois braços enormes envolveram seu peito e quadris, detendo-o e jogando-o contra a parede próxima à mesa de trabalho, que foi quando o golpe de luta “livre” aconteceu: cada centímetro dele sentiu o impacto. No entanto, nada de voltar para trás, nada de ricochetear.
Estava preso no lugar pela nuca e pelo traseiro.
– Braços sobre a cabeça.
Aquele rosnado foi como uma arma na nuca e V. esforçou-se para obedecer ao comando, lutando contra a pressão que prendia seus dois braços na frente do peito. O lado direito foi liberado primeiro... e no instante em que seu pulso foi exposto, foi agarrado e preso em uma algema. Isso também aconteceu com o lado esquerdo e muito rápido.
Por outro lado, tiras eram bons com aquele acessório de aço.
Houve uma rápida trégua, quando foi capaz de respirar um pouco. Em seguida, o som das correntes de metal sendo agitadas ao longo de uma engrenagem anunciou para onde as coisas estavam indo: para cima.
Gradualmente, seu peso foi retirado de seus pés e carregado para suas articulações e braços. A subida parou pouco antes da ponta dos dedos deixarem o chão completamente... e, então, ficou ali pendurado, de frente para as janelas, o ar entrava e saía com dificuldade de seus pulmões enquanto ouvia Butch movendo-se atrás dele.
– Abra a boca.
Com o comando, V. abriu largamente seu maxilar, a articulação produziu um estalo, os cantos dos olhos enrugaram, seus cortes faciais reviveram com um coro de uivos.
Uma mordaça foi puxada para baixo ao longo de sua cabeça e encaixou-se onde deveria; a bola foi pressionada contra suas presas e forçou a boca a se abrir ainda mais. Com um rápido puxão, as cintas de couro apertaram-se ao longo da nuca e a fivela foi presa com força até ficar cravada no couro cabeludo.
Foi uma combinação perfeita: a suspensão e o confinamento asfixiante cumpriram sua função, estimulando sua adrenalina e fazendo seu corpo ficar tenso de muitas maneiras diferentes.
O colete de arame farpado foi o próximo, a peça encaixada no tronco, não colocada sobre os ombros, as pontas de metal no interior do couro afundaram em sua pele. Butch começou com a alça que havia próxima ao esterno e, em seguida, iniciou uma sequência de puxões, apertando mais forte, mais forte, mais forte... Até que desde a caixa torácica de V. até seu abdômen e o topo dos quadris sentia círculos concêntricos de pura dor que formigaram sua coluna, lançando-se direto aos receptores nervosos de seu cérebro e deixando seu pênis duro como rocha.
O oxigênio silvou em suas narinas quando houve uma breve calmaria sem que tocasse em nada e, em seguida, Butch voltou com quatro cintas de borracha. Para um amador, tinha ótimos instintos: tanto a bola da mordaça quanto o colete tinham anéis de aço inoxidável pendurados em cada centímetro de sua extensão, e era evidente que o tira ia dar um bom uso a todos eles.
Trabalhando com afinco, Butch fez ganchos com os acessórios da mordaça e esticou a borracha para baixo, fixando-o na frente e atrás do colete.
O que, na prática, prendeu a cabeça de Vishous para frente.
Então, Butch balançou-o no ar e fez um pequeno movimento de carrossel com ele. Naquele estado de imobilidade, foi difícil entender o que estava acontecendo, e não levou muito tempo para que não tivesse certeza se ainda estava em movimento ou se era a sala que girava: as coisas passavam uma após a outra, o bar, a porta, a mesa de trabalho... Butch... a cama, as janelas de vidro... em seguida, voltava para o bar, a porta, a mesa... e Butch...
Que tinha caminhado até as correntes e cintas penduradas.
O tira permanecia ali, olhos fixos em Vishous.
Como um trem parando na estação, a rotação foi ficando cada vez mais lenta até que parou completamente... com os dois encarando um ao outro.
– Você disse que não tinha regras – disse Butch com os dentes cerrados. – Ainda é assim?
Sem possibilidade de assentir ou balançar a cabeça, V. fez o possível com seus pés, movendo-os para cima e para baixo sobre o chão.
– Tem certeza?
Quando repetiu o movimento, os olhos de Butch brilharam sob a luz das velas... como se houvesse lágrimas neles.
– Certo – disse com voz rouca. – Se é assim que tem que ser, assim será.
Butch limpou o rosto, virou-se para a parede e foi em direção aos brinquedos. Quando aproximou-se dos chicotes, V. imaginou a franja com pontas afiadas cravando em suas costas e coxas... mas o tira continuou a caminhar. Em seguida, estavam os chicotes de nove cordas e V. podia sentir as pontas açoitando sua carne... mas Butch não parou. Depois, vinham os clipes de mamilo e as algemas de aço inoxidável com arame farpado que poderiam ser colocadas nos tornozelos, nos antebraços, na garganta...
Quando o cara foi passando por cada seção, Vishous franziu a testa, perguntando-se se o tira estava apenas provocando e como aquilo foi inexpressivo...
Porém, Butch parou. E estendeu a mão em direção ao...
V. gemeu e começou a se debater contra os elos que o prendiam no alto. Os olhos se abriram, fez o possível para implorar, mas não havia como movimentar a cabeça e possibilidade alguma de falar.
– Disse que não havia limites – Butch disse um tanto sufocado. – Então, é assim que vamos fazer.
V. teve espasmos nas pernas e seu peito começou a gritar por falta de oxigênio.
Não havia orifícios na máscara que o tira havia escolhido, nem para os olhos, nem para os ouvidos ou para a boca. Feita de couro e costurada com fios de aço inoxidável finos, a única forma de conseguir oxigênio era através de dois painéis de malha laterais posicionados na parte de trás da peça, então, não havia como entrar qualquer facho de luz... e o ar que circulava passava pela pele quente e apavorada antes de entrar pela boca e descer pelos pulmões. V. tinha comprado o acessório, mas nunca o havia utilizado antes: só o mantinha por que o apavorava, e só isso já era razão suficiente para possuí-lo.
Ter sua visão e audição roubadas era a única coisa garantida que poderia fazer Vishous perder a cabeça e foi exatamente por isso que Butch pegou a máscara. Sabia muito bem os botões que devia pressionar... sentir dor física era uma coisa... mas tortura psicológica era bem pior, e, portanto, mais eficaz.
Butch caminhou lentamente ao redor dele e saiu de vista. Com movimentos furiosos V. tentou reposicionar-se para enfrentar o cara, mas os dedos dos pés mal conseguiam tocar o chão... que foi outro ato bem-sucedido da estratégia do tira. Lutar, contorcer-se e chegar a lugar algum apenas aumentava o terror.
De uma só vez, as luzes se apagaram.
Debatendo-se incontrolavelmente, Vishous tentou lutar, mas era uma batalha perdida: com um rápido movimento, a máscara foi apertada ao redor de seu pescoço, de maneira segura, e não ia a lugar algum.
A asfixia mental instalou-se imediatamente. Não havia oxigênio, não passava nada, nada...
Sentiu algo em sua perna. Algo longo, fino e frio, como uma lâmina.
Ficou totalmente imóvel, a ponto de seus esforços anteriores ainda o manterem oscilando para frente e para trás com as correntes acima dele, seu corpo era uma estátua suspensa por cadeias de metal.
A respiração de V. dentro do capuz era como um rugido em seus ouvidos enquanto se concentrava na sensação abaixo da cintura: a faca viajava lenta e inexoravelmente para cima e, enquanto subia, movia-se pela parte interna da coxa.
Atrás dela, uma trilha úmida brotava e escorria sobre os joelhos.
Sequer sentiu a dor do corte enquanto a lâmina dirigia-se para seu sexo: as implicações eram como um maldito golpe no seu botão de destruição.
Em um lampejo, passado e presente misturaram-se, a alquimia inflamada pela adrenalina pulsava em cada uma de suas veias. Num instante, foi arrastado de volta ao longo dos anos até a noite em que os machos de seu pai o seguraram sob o comando sujo de Bloodletter. As tatuagens não foram o pior de tudo. E lá estava, acontecendo outra vez; apenas sem os alicates.
Vishous gritou através da mordaça... e continuou gritando. Gritou por tudo que havia perdido... gritou pelo meio homem que era... gritou por Jane... gritou por quem eram seus pais e pelo que desejava para sua irmã... gritou pelo que forçou seu melhor amigo a fazer... gritou e gritou até não ter mais fôlego para isso, nem consciência, nem nada.
Nenhum passado ou presente.
Nem ele mesmo existia mais.
E, no meio do caos, da maneira mais estranha, libertou-se.
Butch soube o momento exato que seu melhor amigo desmaiou. Não apenas pelo fato de que seus pés suspensos ficaram imóveis. Foi o repentino relaxamento da musculatura. Não havia mais qualquer esforço naqueles braços enormes, nem naquelas coxas sólidas. O grande peito não ofegava mais. Não havia mais tendões tensos nos ombros ou nas costas.
Imediatamente, Butch afastou a colher que havia pegado na cozinha das pernas de V. e também parou de escorrer água morna do copo que havia pegado no bar.
As lágrimas em seus olhos não o ajudaram a soltar o capuz e libertá-lo. Nem ajudaram a remover o simples esquema de imobilização. E lutou especialmente ao tirar a mordaça.
O colete foi terrível para ser removido, mas, apesar do desespero que sentia para libertar logo V., era muito mais fácil soltar as coisas quando se tinha uma carga emocional para lidar com tudo aquilo. Logo, o Irmão estava sangrando, mas livre.
Sobre a parede, Butch soltou o guincho e abaixou o tremendo corpo inanimado de V. Não houve sinais de que a mudança de altitude tenha sido percebida e o chão sofreu um impacto apenas quando as pernas soltas dele desmoronaram e seus joelhos dobraram-se enquanto o mármore erguia-se para saudar suas nádegas e o tronco.
Houve mais sangue quando Butch tirou as algemas.
Deus, seu amigo estava acabado: as tiras da mordaça tinham deixado vergões vermelhos em seu rosto; o dano feito pelo colete mostrou-se ainda mais generalizado e, ainda por cima, os pulsos estavam rasgados de forma irregular.
Além de tudo isso, o rosto do cara estava em péssimo estado, por tê-lo colidido com o que quer que fosse..
Por um momento, tudo o que conseguiu fazer foi acariciar os cabelos escuros de V. com as mãos que tremiam como se tivesse alguma doença. Então, olhou para o corpo do amigo, a mancha abaixo da cintura, o sexo flácido... as cicatrizes.
Bloodletter era um desgraçado sem medida por torturar seu filho como havia feito. E a Virgem Escriba era uma estúpida inútil por ter deixado isso acontecer.
E Butch quase tinha morrido por ter usado esse passado horrível para atingir seu amigo com toda força. Só que não queria atingir V. fisicamente... não era um covarde, mas não teria estômago para isso. Além disso, a mente era a arma mais poderosa que qualquer um possuía contra si mesmo.
Ainda assim, as lágrimas escorreram em seu rosto enquanto pegava a colher e a passava pela parte interna da perna... pois sabia exatamente o efeito instantâneo que aquilo provocaria. E tinha plena consciência de que a água morna solidificaria de fato o deslocamento do presente.
Os gritos foram abafados pela mordaça e pelo capuz... ainda assim, aquele som emudecido havia perfurado os ouvidos de Butch como nada mais poderia.
Levaria um longo, longo tempo até conseguir se recuperar daquilo: toda vez que fechasse os olhos, tudo o que conseguiria ver seria o corpo de seu melhor amigo debatendo-se em espasmos.
Esfregando o rosto, Butch levantou-se e caminhou até o banheiro. Foi até as prateleiras do armário e pegou uma pilha de toalhas pretas. Deixou algumas secas; outras, umedeceu com água quente na pia.
Voltando a se colocar ao lado de Vishous no chão, limpou o sangue e o suor do medo que escorria do corpo de seu melhor amigo, virando-o de um lado a outro para que não deixasse nada para trás.
A limpeza levou uma boa meia hora. E várias viagens de ida e volta até a pia.
A sessão durara apenas uma fração disso.
Quando terminou, reuniu todo aquele tremendo peso de V. em seus braços e levou o cara para a cama, deitando sua cabeça contra os travesseiros de cetim preto. O banho de esponja, tal como havia sido, deixou a pele de V. arrepiada; assim, Butch cobriu o Irmão, soltando os lençóis da cama e esticando-os sobre ele.
A cura já começava a acontecer, a carne arranhada ou cortada estava se regenerando e apagando as marcas que haviam sido feitas.
Isso era bom.
Quando se afastou, parte de Butch queria deitar na cama e abraçar seu amigo. Mas não faria isso consigo mesmo... e, além disso, se não saísse dali e se embebedasse logo, iria enlouquecer.
Quando teve certeza de que V. estava bem, pegou seu casaco, o qual teve de jogar no chão para instalar o amigo...
Espere, as toalhas sangrentas e a bagunça lá fora.
Movendo-se rapidamente, limpou o chão e, em seguida, pegou a carga úmida e pesada e levou tudo para o cesto do banheiro, o que fez com que quisesse saber quem realizava as tarefas domésticas. Talvez fosse Fritz... ou talvez V. cumprisse sozinho a rotina de empregada feliz.
De volta à sala principal, verificou outra vez que todas as evidências tinham desaparecido, menos o copo e a colher... e, então, saiu dali para ver se V. ainda estava dormindo... ou naquele estado de semicoma.
Duro. Frio. Apagado.
– Vou buscar o que realmente precisa – Butch disse suavemente, perguntando-se se conseguiria respirar direito outra vez... seu peito parecia tão apertado quanto o de V. esteve há pouco tempo. – Aguente firme, cara.
Em seu caminho até a porta, tirou o celular para discar... e deixou cair a maldita coisa.
Hum. Parece que as mãos dele ainda estavam tremendo. Veja só.
Quando em determinado momento pressionou a tecla para send, rezou para que a chamada fosse...
– Está feito – disse em tom áspero. – Venha para cá. Não, acredite... ele vai precisar de você. Isso foi feito por vocês dois. Não... sim. Não, estou saindo agora. Bom. Certo.
Depois que desligou, trancou V. e chamou o elevador. Enquanto esperava, tentou colocar seu casaco e atrapalhou-se tanto com a camurça que desistiu e jogou-a sobre o ombro. Quando as portas soaram e se abriram, entrou, apertou o botão onde se lia S... e desceu, desceu, desceu de maneira equilibrada e perfeita graças à caixinha de metal que era o elevador.
Mandou uma mensagem para sua shellan ao invés de telefonar por duas razões: não confiava na própria voz e, para ser franco, não estava pronto para responder às perguntas que ela fatal e justificadamente faria.
Td ok. Indo p casa descansar. Amo vc. Bj. B.
A resposta de Marissa foi tão rápida que ficou evidente que o telefone estava em suas mãos enquanto ela esperava por notícias: Tb te amo. Estou no Safe Place, mas posso ir para casa.
O elevador abriu as portas e o cheiro doce de gasolina disse-lhe que tinha chegado a seu destino. Enquanto se dirigia para o Escalade, enviou uma mensagem de volta: Não, sério, estou bem. Fique e trabalhe... estarei lá quando terminar.
Estava pegando as chaves quando o telefone soou.
Certo, mas se precisar de mim, saiba que é a coisa mais importante.
Deus, tinha uma fêmea de muito valor.
O mesmo para você. Bj, ele digitou em resposta.
Desativando o alarme do carro e destrancando a porta do motorista, entrou, fechou a porta e voltou a trancá-la.
Deveria começar a dirigir. Em vez disso, apoiou a testa sobre o volante e respirou fundo.
Ter uma boa memória era uma habilidade superestimada, e embora não invejasse em nada Manello e todo aquele processo de apagar as coisas da mente do cara, Butch daria qualquer coisa para se livrar daquelas imagens em sua cabeça.
Contudo, não apagaria V. Não apagaria aquele... relacionamento.
Nunca desistira do macho. Jamais.
CAPÍTULO 38
– Aqui, achei que ia gostar de um pouco de café.
Quando José de la Cruz colocou a bebida da Starbucks na mesa de seu parceiro, sentou-se na cadeira do outro lado da mesa.
Veck devia estar se sentindo como uma vítima de acidente de carro, considerando que estava com as mesmas roupas de quando deu uma de personagem do filme Missão Impossível no capô daquele carro na noite anterior. Em vez disso, o filho da mãe conseguia, de alguma forma, parecer resistente e não surrado.
Assim, José estava disposto a apostar que as outras seis xícaras de café consumidas pela metade em volta do computador foram trazidas por várias moças do departamento.
– Obrigado, cara. – Quando Veck pegou a mais recente oferta de bebida quente, seus olhos não saíram da tela do computador... era bem provável que estivesse pesquisando os arquivos de pessoas desaparecidas e puxando casos com mulheres entre dezessete e trinta anos.
– O que está fazendo? – José perguntou assim mesmo.
– Pessoas desaparecidas – Veck esticou-se na cadeira. – Notou quantas pessoas entre dezoito e vinte e quatro anos foram listadas aqui ultimamente? Homens, não mulheres.
– Sim. O prefeito está tentando organizar uma força-tarefa.
– Há muitas garotas também, mas, Cristo, o que está acontecendo é uma epidemia.
No corredor, dois policiais de uniforme passaram por eles, José e Veck cumprimentaram os oficiais. Depois que os passos se distanciaram, Veck limpou a garganta.
– O que o pessoal da unidade de Assuntos Internos diz? – Não era uma pergunta, e aqueles olhos azuis escuros estavam fixos no banco de dados. – É por isso que veio, certo?
– Bom, também para entregar o café; mas parece que já cuidaram de você.
– Foi o pessoal da recepção no andar de baixo.
Ah, sim. As duas Kathys, Brittany, que se escrevia “Britnae”, e Theresa. Todas elas deviam achar que o cara era um herói.
José pigarreou.
– Acontece que o fotógrafo já tem algumas acusações de assédio pendentes contra ele, pois tem o hábito de aparecer em lugares onde não é bem-vindo. Ele e o advogado dele querem que tudo isso desapareça, por que outra invasão de cena de crime não vai ser muito boa para ele. O pessoal dos Assuntos Internos está tomando depoimentos de todos e, moral da história, foi apenas uma simples tentativa de agressão de sua parte... nada grave. Além disso, o fotógrafo disse que se recusa a cooperar com a promotoria contra você se for o caso. Provavelmente porque acha que isso vai ajudá-lo.
Finalmente, aqueles grandes olhos mudaram de foco.
– Graças a Deus.
– Não se anime.
Os olhos de Veck se estreitaram... mas não por estar confuso. Sabia exatamente qual era a situação.
Ainda assim, não perguntou, apenas esperou.
José olhou em volta. Às dez da noite, o Departamento de Homicídios estava vazio, embora os telefones ainda estivessem tocando e alguns ruídos surgissem aqui e ali até o correio de voz atender. No corredor, a equipe de limpeza ocupava-se com aspiradores, o zumbido das máquinas vinha de longe, do laboratório da perícia.
Portanto, não havia razão para não falar sem rodeios.
Mesmo assim, José fechou a porta. Voltando-se para Veck, sentou-se outra vez e pegou um clipe de papel, traçando uma pequena imagem invisível sobre a tampa da mesa de madeira falsa.
– Perguntaram-me o que eu achava de você. – Deu um leve golpe sobre as têmporas com o clipe. – Psicologicamente. Queriam saber o quanto você é estável.
– E você disse...?
José apenas deu de ombros e ficou quieto.
– Aquele filho da mãe estava tirando fotos de um cadáver. Para ganhar dinheiro...
José ergueu a mão para interromper o protesto.
– Não terá argumento. Dane-se, todos nós queríamos dar um soco nele. Porém, a questão é... se eu não o detivesse... até onde você iria, Veck?
Isso produziu outro franzir de testa no cara.
E então tudo caiu em um grande silêncio. Silêncio mortal. Bem, exceto pelos telefones.
– Sei que leu meus arquivos – Veck disse.
– Sim.
– Bem, certo, não sou meu pai – as palavras foram pronunciadas de maneira baixa e lenta. – Eu nem cresci com o cara. Mal o conhecia e não tenho nada a ver com ele.
Traduzindo: Às Vezes Você Tem Sorte.
Thomas DelVecchio tinha várias coisas a seu favor: tirou as notas máximas em sua especialização em Direito Criminal... o primeiro da classe na academia de polícia... seus três anos na patrulha foram impecáveis, e tinha tão boa aparência que nunca havia comprado o próprio café.
Mas era filho de um monstro.
E essa era a raiz do problema que tinham. Considerando o lado bom e correto das coisas, não era justo lançar os pecados do pai em volta do pescoço do filho. E Veck estava certo: em suas avaliações psicológicas, obteve resultados tão normais quanto qualquer outra pessoa.
Então, José o aceitou como parceiro sem pensar um segundo em quem era seu pai.
Aquilo havia mudado desde a noite passada e o problema foi a expressão no rosto de Veck quando se atirou em direção ao fotógrafo.
Muito frio. Muito calmo. Como se aquilo não o afetasse mais do que se tivesse puxado o anel de uma lata de refrigerante.
Tendo trabalhado no Departamento de Homicídios durante quase toda sua vida adulta, José conheceu muitos assassinos. Tinha os caras dos crimes passionais que descontavam sua fúria em um homem ou uma mulher; havia os tipos estúpidos, cujas mentes estavam repletas de drogas, álcool e da violência das gangues; e, por fim, os psicopatas sádicos que precisavam ser presos como cães raivosos.
Todas essas variações do tema causavam tragédias inimagináveis para as famílias de suas vítimas e para a comunidade. Mas não eram os únicos que deixavam José acordado durante a noite.
O pai de Veck havia matado vinte e oito pessoas em dezessete anos... e esses números referiam-se apenas aos corpos encontrados. O desgraçado estava no corredor da morte naquele momento, há mais de duzentos quilômetros dali, na cidade de Somers, Connecticut, e prestes a tomar a injeção letal, apesar de toda a apelação de seu advogado. Mas qual era a importância de tudo aquilo? Thomas DelVecchio, pai, tinha um fã-clube – internacional. Com cem mil amigos no Facebook, propagandas em cafeterias e bandas death-metal compondo músicas sobre ele, o cara era uma celebridade infame.
Caramba, Deus era testemunha de que toda aquela droga fazia José enlouquecer. Aqueles idiotas que idolatravam o filho da mãe deveriam fazer o trabalho dele por uma semana. Queria saber se ainda achariam os assassinos legais na vida real.
Se as coisas continuassem como estavam, nunca chegaria a conhecer DelVecchio, o velho, pessoalmente, mas já havia assistido muitos vídeos de vários promotores e entrevistas de departamentos de polícia. Por fora, o cara parecia bem lúcido e tão calmo quanto um instrutor de ioga. Agradável também. Não importava quem estivesse na frente dele ou o que fosse dito para deixá-lo furioso, ele nunca se inflamava, nunca vacilava, nunca se abatia, nunca dava uma indicação de que alguma coisa importava.
Só que José havia detectado algo em seu rosto... assim como alguns outros profissionais: de vez em quando, exibia um brilho nos olhos que fazia José recorrer a sua cruz. Era o tipo de coisa que um garoto de dezesseis anos pode ter quando vê um carro sofisticado passando ou uma garota de corpo bonito e com um belo traseiro vestindo uma blusa que mostra a barriga. Era como a luz do sol brilhando em uma lâmina afiada... um breve lampejo de luz e prazer.
No entanto, isso era tudo o que tinha demonstrado. Foi tal evidência que o convenceu; nunca seu testemunho.
E aquele era o tipo de assassino que deixava José olhando para o teto enquanto sua mulher dormia ao lado dele. DelVecchio pai era esperto suficiente para permanecer no controle e cobrir seus rastros. Era independente e engenhoso. E implacável com a mudança das estações... celebrava o Halloween mas como se estivesse em um universo paralelo: ao invés de uma pessoa normal com uma máscara, era um demônio por trás de um rosto simpático e bonito.
Veck parecia-se muito com seu pai.
– Ouviu o que eu disse?
Ao som da voz do garoto, José voltou a se concentrar.
– Sim, ouvi.
– Então, é aqui que termina nossa parceria... – Veck disse drasticamente. – Está dizendo que não quer mais trabalhar comigo? Supondo que eu ainda tenha um trabalho.
José voltou para seu desenho com o clipe de papel.
– A unidade de Assuntos Internos lhe dará uma advertência.
– Sério?
– Disse a eles que sua cabeça está no lugar que deveria estar – José disse depois de um momento.
Veck limpou a garganta.
– Obrigado, cara.
José continuou a mover o clipe, o ruído do objeto arranhando a mesa era bastante alto.
– A pressão neste trabalho é assassina – Nesse momento, encarou bem os olhos de Veck. – Não vai ficar mais fácil.
Houve uma pausa. Então, seu parceiro murmurou:
– Não acredita no que disse, não é mesmo?
José deu de ombros.
– O tempo dirá.
– Por que diabos salvou meu trabalho, então?
– Acho que deve ter uma chance para corrigir seus erros... mesmo que não sejam seus, de fato.
O que José guardou para si foi que não era a primeira vez que tinha um parceiro com... coisas para acertar fora do trabalho, digamos assim.
Sim, e veja como Butch O’Neal havia terminado: desaparecido. Provavelmente morto, apesar daquilo que José tinha ouvido na gravação da emergência.
– Não sou meu pai, detetive. Juro. Só porque não fui muito profissional quando atingi o cara...
José inclinou-se para frente, seus olhos fixos nos do garoto.
– Como sabe o que me incomodou no momento do ataque? Como sabe que foi a questão de toda aquela sua calma?
Quando Veck empalideceu, José recostou-se na cadeira outra vez. Após um momento, ele balançou a cabeça.
– Não significa que é um assassino, filho. E só porque teme alguma coisa não significa que seja verdade. Mas acho que você e eu precisamos ser bem claros um com o outro. Como disse, não acho que seja justo ser tratado de forma diferente por causa do seu pai... mas se tiver outra explosão como aquela outra vez... e refiro-me a qualquer coisa, como bilhetes de estacionamento – apontou para a caneca da Starbucks –, café ruim, goma demais na sua camisa... a maldita fotocopiadora... será fim de jogo. Estamos entendidos? Não vou deixar alguém perigoso usar um distintivo... ou uma arma.
De repente, Veck voltou a olhar para o monitor. Sobre ele, havia o rosto de uma bela moça loira de dezenove anos que havia desaparecido há duas semanas. O corpo ainda não havia sido encontrado, mas José poderia apostar que já estava morta.
Depois de assentir, Veck pegou o café e tomou um gole da bebida.
– Combinado.
José expirou e colocou o clipe de papel de volta ao lugar que pertencia, na pequena caixa clara de borda magnética.
– Bom. Porque temos que encontrar esse cara antes que ele ataque outra pessoa.
CAPÍTULO 39
Rumando na direção sul da “estrada”, como Manuel chamava, os olhos de Payne estavam famintos pelo mundo que havia a seu redor. Tudo era uma fonte de fascinação, desde o fluxo dos carros no tráfego dos dois lados da estrada, até o vasto céu negro acima e o estimulante frio noturno que percorria a cabine do automóvel toda vez que ela abria a janela – algo que acontecia a cada cinco minutos. Ela simplesmente amava a mudança de temperatura... quente, frio, quente, frio... Era tão diferente do Santuário, onde tudo era monoclimático. Além disso, havia a grande explosão de ar que soprava em seu rosto, emaranhava seus cabelos e a fazia sorrir.
– Você não perguntou para onde estamos indo – ele disse, depois do último fechamento da janela.
Na verdade, aquilo não importava; estava com ele, estavam livres, sozinhos e aquilo era mais do que suficiente...
Vai apagar a memória dele. No final da noite, vai apagar a memória dele e voltar. Sozinha.
Payne manteve seu estremecimento em segredo: Wrath, filho de Wrath, tinha o tipo de voz que combinava com coroas, tronos e adagas negras sobre o peito. Era um tom real, não um disfarce. Esperava ser obedecido e Payne tinha a ideia errada de que só porque era filha da Virgem Escriba, não estava sujeita às regras de alguma forma. Enquanto estivesse ali, aquele era o mundo dele e estava inserida nele agora.
Enquanto o Rei pronunciava aquelas palavras horríveis teve de fechar os olhos com força e, apesar do silêncio que reinou em seguida, percebeu prontamente que ela e Manuel não iriam a lugar algum se ele não concordasse.
E então... ela concordou.
– Gostaria de saber? Olá? Payne?
Com um estalo, forçou um sorriso no rosto.
– Preferiria ser surpreendida.
Com isso, ele sorriu profundamente.
– É ainda mais divertido... bem, como eu disse, quero apresentá-la a alguém.
O sorriso dela desapareceu um pouco.
– Acho que pode gostar dela.
Ela? Como se fosse uma fêmea?
Gostar?
Na verdade, aquilo só aconteceria se o “ela” em questão tivesse cara de cavalo e um corpo horrível, Payne pensou.
– Adorável – ela disse.
– Aqui é nossa saída. – Houve estalos suaves e, então, Manuel girou o volante e saiu da rodovia para uma rua em declive.
Quando pararam em uma fila de outros veículos, ela observou ao longe o horizonte da enorme cidade, algo que seus olhos esforçavam-se para compreender: grandes edifícios marcados com um número incalculável de luzes levantavam-se em uma extensão coberta de estruturas menores... e não era um lugar estático. Luzes vermelhas e brancas serpenteavam ao redor de suas extremidades... sem dúvida, deveriam ser centenas de carros semelhantes àqueles que tinham visto durante a viagem.
– Está olhando para a cidade de Nova York – Manny disse.
– É... linda.
Ele sorriu um pouco.
– Partes dela realmente são, e a escuridão e a distância são grandes recursos para retocar a obra do artista.
Payne estendeu a mão e tocou a janela de vidro a sua frente.
– Durante meu longo tempo lá em cima, não havia grandes vistas, nenhuma grandeza; nada além de um céu leitoso opressivo e os limites asfixiantes da floresta. Isso é tudo tão maravilhoso...
Um som estridente soou atrás deles e depois outro.
Manny olhou para o pequeno espelho acima de sua cabeça.
– Relaxa, cara. Eu vou...
Quando Manny acelerou, eliminando rapidamente a distância que havia com relação ao carro da frente, ela sentiu-se mal por distraí-lo.
– Sinto muito – ela murmurou. – Não queria atrapalhar.
– Pode falar para sempre que vou ouvir bem feliz.
Bem, era bom saber disso.
– Tenho alguma familiaridade com algumas coisas que observamos aqui, mas a maior parte é uma revelação. As bacias de visão que temos do Outro Lado oferecem apenas algumas imagens rápidas do que acontece aqui na Terra, com foco nas pessoas, não nos objetos... a menos que alguma coisa inanimada faça parte do destino de alguém. Na verdade, nos é mostrado apenas o destino, não o progresso... da vida, não a paisagem. Isto aqui é... tudo o que eu queria quando desejava me libertar.
– Como saiu?
Em qual das vezes?, ela pensou.
– Bem, da primeira vez... percebi que quando minha mãe concedia grandes audiências ao público daqui de baixo, havia uma pequena janela em que a barreira entre os dois mundos transformava-se... em uma espécie de malha. Descobri que conseguia mover minhas moléculas através daqueles finos espaços que eram criados... e foi assim que consegui. – O passado a envolveu, as memórias voltaram à vida e queimavam não só em sua mente, mas em sua alma. – Minha mãe ficou furiosa e foi atrás de mim, exigindo que eu voltasse ao Santuário... e eu disse não. Estava em uma missão e nem mesmo ela poderia me desviar disso. – Payne balançou a cabeça. – Depois que eu... fiz o que fiz... pensei que iria simplesmente viver a minha vida, mas houve coisas as quais eu não antecipei. Aqui embaixo, preciso me alimentar e... há outras preocupações.
Seu cio, especificamente... mas não iria explicar como o período fértil a havia afetado e impactado. Tinha sido um choque. Lá em cima, as fêmeas da Virgem Escriba estavam prontas para conceber quase o tempo todo e, assim, as grandes oscilações de hormônio não afetavam seu corpo. No entanto, quando desciam até ali e passavam um dia ou mais, o ciclo se apoderava delas. Ainda bem que isso acontecia apenas uma vez a cada dez anos... Porém, Payne havia chegado à errônea conclusão de que teria dez anos pela frente para se preocupar com isso.
Infelizmente, acabou acontecendo dez anos depois que o primeiro ciclo se iniciou: seu período de cio começou não mais que um mês depois de ter saído do Santuário.
Conforme se lembrava, as fortes dores para se acasalar deixaram-na indefesa e desesperada. Focou no rosto de Manuel. Será que serviria naquele período? Será que cuidaria de seus desejos violentos e amenizaria seu desejo por sexo? Será que um humano poderia fazer isso?
– Mas acabou voltando para lá? – ele disse.
Ela limpou a voz.
– Sim, voltei. Tive algumas... dificuldades e minha mãe veio até mim outra vez. – Na verdade, a Virgem Escriba temia que os machos no cio se aproveitassem de sua única filha que já havia... arruinado... tanto a vida que lhe fora dada. – Ela disse que iria me ajudar, mas apenas do Outro Lado. Concordei em ir com ela, pensando que seria como antes, que poderia encontrar a saída outra vez. Mas isso não aconteceu.
Manny colocou sua mão sobre a dela.
– Mas está longe de tudo isso agora.
Estava mesmo? O Rei Cego estava tentando administrar seu destino assim como sua mãe fazia. Porém, seus motivos eram menos egoístas... além disso, tinha a Irmandade, as shellans de cada um deles e uma criança morando sob seu teto e tudo isso merecia ser protegido. Só que temia que a visão dos humanos que seu irmão tinha fosse compartilhada por Wrath: ou seja, que eram redutores esperando para serem chamados ao serviço.
– Sabe de uma coisa? – ela disse.
– O quê?
– Acho que poderia ficar neste automóvel com você para sempre.
– Engraçado... eu sinto a mesma coisa.
Mais alguns estalos e viraram à direita.
Quando seguiram por ali, havia menos carros e mais edifícios, e ela entendeu o que Manny quis dizer sobre a noite melhorar o aspecto da cidade, não havia grandeza naquele bairro. Janelas quebradas estavam obscurecidas por dentro dando uma aparência de dentes faltando e a sujeira transbordava pelas laterais dos armazéns e das lojas, como se fossem sinais da idade. Havia manchas produzidas pela podridão ou acidentes ou vandalismo prejudicando o que, sem dúvida, haviam sido belas e iluminadas fachadas; a pintura havia desaparecido, a flor da juventude havia perdido para as intempéries e para a passagem do tempo. E, além disso, os humanos que estavam apoiados nas sombras não estavam em melhores condições.
Vestindo roupas amassadas com as cores da calçada e do asfalto, pareciam curvados por estarem sobrecarregados de peso, como se uma barra invisível forçasse todos os joelhos... e tal objeto os manteria assim sempre.
– Não se preocupe – Manuel disse. – As portas estão trancadas.
– Não estou com medo. Estou... triste, por alguma razão.
– A pobreza urbana fará isso com você.
Passaram por outra caixa podre que cobria muito mal dois seres humanos que dividiam um único casaco. Nunca imaginou que encontraria algum valor na perfeição opressiva do Santuário. Mas talvez sua mãe houvesse criado o paraíso para proteger as Escolhidas contra visões como aquela. Vidas... como aquelas.
No entanto, a aparência dos arredores logo melhorou. E, pouco depois, Manuel saiu da via entrando em uma rua paralela a uma instalação, uma extensão nova que apareceu cobrindo uma grande parcela de terra. Havia postes de luz bem altos por toda parte, lançando uma iluminação cor de pêssego sobre a construção abaixo, sobre os materiais brilhantes que constituíam dois veículos estacionados e sobre os arbustos que margeavam as passagens.
– Aqui estamos – disse ele, parando o carro e voltando-se para ela. – Vou apresentá-la como uma amiga, tudo bem? Apenas tente agir assim.
Ela sorriu.
– Vou tentar fazer isso.
Saíram juntos e... oh, o ar. Um conjunto tão complexo de odores bons e ruins, metálicos e doces, de terra e de algo divino.
– Eu amo isso – disse. – Eu amo isso!
Estendeu os braços e girou sobre um dos pés, que havia sido calçado pouco antes de deixarem o complexo. Quando parou seu giro e seus braços descansaram nas laterais do corpo, viu que Manny a observava e teve de rir constrangida.
– Desculpe. Eu...
– Venha aqui – ele rosnou, pálpebras semicerradas, um olhar quente e possessivo.
Ela ficou excitada imediatamente; seu corpo sentiu um calor intenso, e, de alguma forma, sabia que deveria levar um tempo para se aproximar dele. Sabia como provocá-lo, fazendo-o esperar, mesmo que não fosse por muito tempo.
– Você me deseja – ela falou lentamente quando ficaram face a face.
– Sim. Com certeza. – As mãos dele agarram sua cintura e a puxou com firmeza. – Dê-me sua boca.
Quando ela fez isso, colocou os braços ao redor da nuca de Manny e fundiram-se como um só corpo. O beijo apoderou-se dos dois, e quando terminaram, ela não conseguia parar de sorrir.
– Gosto quando exige algo de mim – disse. – Leva-me de volta ao banho, quando você estava...
Ele soltou um gemido e a interrompeu, colocando a mão sobre a boca dela suavemente.
– Sim, eu me lembro... pode acreditar... eu me lembro.
Payne deu uma lambida sobre a palma de sua mão.
– Vai fazer isso comigo outra vez. Esta noite.
– Devo ter muita sorte.
– Tem sim. E eu também tenho.
Ele riu um pouco.
– Sabe de uma coisa? Vou ter que colocar um dos meus casacos.
Manuel abriu outra vez a porta e inclinou-se dentro do carro. Quando reapareceu, vestiu um casaco branco que tinha seu nome impresso em letra cursiva na lapela. E soube pela maneira como ele fechou as duas metades que estava tentando esconder a reação do seu corpo perante ela.
Pena. Gostava de vê-lo naquela condição, todo orgulhoso e excitado.
– Vamos... vamos entrar – disse, pegando a mão de Payne, e, em seguida, quase sussurrando, pareceu dizer: – Antes de entrar...
Quando não terminou a frase, Payne deixou seu sorriso onde estava, bem na frente e no centro de seu rosto.
Após um exame mais detalhado, percebeu que a instalação parecia ser fortificada para uma batalha, com barras discretas nas janelas e uma cerca alta que se estendia a uma longa distância. As portas das quais se aproximaram também tinham barras e Manuel não recorreu às maçanetas.
Era lógico assegurar o edifício daquela maneira, pensou. Considerando como aquela grande parte da cidade aparentava.
Manuel apertou um botão e imediatamente uma voz distante e distorcida disse:
– Hospital Equino Tricounty.
– Dr. Manuel Manello. – Virou a cabeça em direção a uma câmera. – Estou aqui para ver...
– Olá, doutor. Entre.
Houve um zumbido e, em seguida, Manuel segurou a porta aberta para Payne entrar.
– Depois de você, bambina.
O interior do local que entraram era simples e muito limpo, com um chão de pedra lisa e filas de cadeiras, como se as pessoas passassem muito tempo esperando naquela sala da frente. Nas paredes, imagens de cavalos e bovinos estavam emolduradas; muitos dos animais tinham fitas vermelhas e azuis penduradas em seus cabrestos. Do outro lado, havia um painel de vidro com a palavra RECEPÇÃO gravada mais acima em letras douradas formais e havia portas... muitas portas. Algumas com o símbolo do sexo masculino, outras com o símbolo do sexo feminino... outras com inscrições que diziam VETERINÁRIO DIRETOR... e FINANCEIRO... e GERENTE PESSOAL.
– Que lugar é esse? – perguntou.
– Um lugar onde se salvam vidas. Venha... vamos por esse lado.
Ele a levou por um caminho que atravessava um par de portas duplas e ia até um homem humano uniformizado sentado atrás de uma mesa.
– Olá, Dr. Manello. – O homem apoiou um jornal com letras grandes no topo do papel onde se lia New York Post. – Não nos vemos há um tempo.
– Esta é uma amiga minha, Pa... Pamela. Vamos ver minha garota.
O humano focou o rosto de Payne. E, então, pareceu estremecer.
– Ah... ela está onde a deixou. O doutor responsável pelo tratamento passou bastante tempo com ela hoje.
– Sim. Ele me ligou. – Manuel bateu o tampo da mesa com os dedos. – Vejo você daqui a pouco.
– Claro, doutor. Prazer em conhecê-la... Pamela.
Payne inclinou a cabeça.
– Foi adorável conhecê-lo também.
Houve um silêncio constrangedor quando ela se endireitou. O humano estava completamente atordoado por ela, sua boca ligeiramente aberta, os olhos arregalados... e muito agradecido.
– Calminha aí, garotão – Manuel disse de maneira sombria. – Pode voltar a piscar a qualquer momento... como, por exemplo, agora. Mesmo. De verdade.
Manny colocou-se entre os dois e pegou a mão dela ao mesmo tempo, bloqueando a visão e estabelecendo um ponto de domínio sobre ela. E isso não foi tudo: o aroma de especiarias escuras flutuou dele, um aroma que advertia o outro homem de que a fêmea sendo admirada estava disponível apenas sobre o cadáver de Manuel.
E aquilo fez com que Payne sentisse um sol escaldante no centro do peito.
– Venha, Pay... Pamela. – Quando Manuel voltou-se para ela e os dois começaram a andar, Manny acrescentou com um sussurro: – Antes que a mandíbula do garoto caia do rosto e aterrisse na seção de esportes.
Payne saltitou uma vez, e, em seguida, fez de novo. Manuel olhou.
– O pobre guarda lá atrás esteve prestes a ter uma experiência de quase-morte com seu crachá sendo enfiado pela garganta e você está feliz?
Payne beijou rapidamente a bochecha de Manuel, enxergando por trás da falsa carranca e observando seu lindo rosto.
– Você gosta de mim.
Manuel revirou os olhos e puxou-a pelo pescoço, retribuindo o beijo.
– Dã...
– Dã – ela imitou...
Alguém tropeçou no pé de alguém, difícil dizer quem foi, e Manuel foi o único que evitou que caíssem.
– Melhor prestar atenção – o macho dela disse. – Antes que sejamos nós precisando ser ressuscitados.
Ela deu uma cotovelada nele.
– Sábia conclusão.
– Está me bajulando?
Payne olhou por cima do ombro, e, então, deu um tapa no traseiro dele... forte. Quando ele protestou, ela piscou para ele.
– Sim. De fato, estou mesmo. – Baixando muito os olhos e a voz, disse: – Deseja que eu faça isso outra vez, Manuel? Talvez... do outro lado?
Quando ela arqueou as sobrancelhas para ele, o som do riso de Manny retumbou e preencheu todo o corredor vazio, soando alto e forte. E quando colidiram um com o outro mais uma vez, ele a deteve.
– Espere, precisamos fazer isso melhor. – Aninhou-a sob o braço dele, beijou sua testa e alinhou-se com ela. – No três, use a direita. Pronta? Um... dois... três.
No momento certo, os dois estenderam suas longas pernas direitas e, em seguida, as esquerdas... direita... esquerda.
Andavam perfeitamente.
Lado a lado.
Percorreram o corredor. Juntos.
Nunca ocorreu a Manny que sua vampira sexy pudesse ter senso de humor, e aquilo completava a encomenda perfeitamente.
Ah, inferno, não era só isso. Era toda aquela sensação dela de encantamento, sua alegria e a impressão de que estava pronta para qualquer coisa. Não havia absolutamente qualquer relação com aquelas socialites frágeis e quebradiças ou com aquelas modelos magras demais com quem tinha saído.
– Payne?
– Sim?
– Se eu lhe dissesse para escalar uma montanha esta noite...
– Oh! Eu adoraria! Adoraria observar uma longa vista de...
Bingo. No entanto, Deus, tinha de pensar na crueldade de finalmente encontrar seu par perfeito... alguém tão incompatível.
Quando chegaram ao segundo conjunto de portas duplas que dava para a parte clínica do hospital de cavalos, abriu bem uma delas e, sem perder o ritmo, voltaram a ficar um ao lado do outro e continuaram a passar... e foi então que aconteceu.
Sentiu-se completamente apaixonado por ela.
Foi a conversa alegre dela, o saltitar em seus passos e os olhos de gelo que brilhavam como cristal. Foi a história dela que compartilhou, a dignidade que mostrou e o fato de que tinha sido julgada por um padrão que ele costumava usar... e, agora, não seria capaz de suportar sentar-se do outro lado de uma mesa de jantar com alguém com quem costumava sair. Era a força de seu corpo e a perspicácia de sua mente e...
Cristo... nem pensou no sexo.
Irônico. Ela havia lhe concedido os melhores orgasmos da vida e isso sequer chegou ao topo da lista “Motivos pelos quais amo você”.
Achava que isso se devia ao fato dela ser simplesmente espetacular.
– Não sei por que está sorrindo, Manuel – Payne disse. – Será que está antecipando o lugar que minha mão ocupará sobre seu traseiro?
– Sim. Exatamente isso.
Ele a puxou para outro beijo... e tentou ignorar a dor em seu peito: não havia necessidade de estragar os momentos que tinham com despedidas que já estavam lhes esperando. Aquilo aconteceria muito em breve. Além disso, tinham encontrado seu destino.
– Ela está por aqui – disse, virando à esquerda e entrando em uma área de recuperação.
No instante em que a porta se abriu, Payne hesitou, sua testa franziu quando ouviu os sons ocasionais de relinchos e cascos batendo no chão e sentiu o cheiro de feno exalando no ar.
– Mais à frente – Manny puxou-a pela mão. – Seu nome é Glory.
Glory era a última do lado esquerdo, mas no instante em que Manny disse seu nome, o pescoço longo e elegante estendeu-se e sua cabeça perfeitamente proporcional emergiu no topo da baia.
– Ei, garota – disse. Em resposta, ela soltou uma saudação apropriada, a ponta das orelhas se esticaram e o focinho ricocheteou no ar.
– Céus... – Payne respirou, soltando a mão de Manny e indo à frente dele.
Quando ela se aproximou da baia, Glory sacudiu a cabeça, sua crina negra moveu-se com graça e ele teve uma súbita visão de Payne sendo mordida.
– Cuidado – disse quando iniciou uma pequena corrida. – Ela não gosta... – No instante em que Payne colocou a mão no focinho de seda, Glory voltou-se para ter mais, colidindo contra a palma da mão, procurando mais carinho.
– De gente nova... – Manny terminou pouco convincente.
– Oi, querida – Payne murmurou, com os olhos percorrendo o cavalo ao se inclinar sobre a baia. – Você é tão linda... tão grande e forte... – As mãos pálidas encontraram o pescoço negro e acariciaram em um ritmo lento. – Por que suas pernas estão enfaixadas?
– Ela machucou a direita. Feio. Há uma semana.
– Posso entrar?
– Hã... – Deus, ele não conseguia acreditar, mas Glory parecia estar apaixonada, seus olhos se fechavam enquanto recebia uma boa carícia atrás das orelhas. – Sim, acho que vai ficar tudo bem.
Ele soltou a trava da porta e os dois entraram. E quando Glory teve de se mover para trás, ela mancou... com o que tinha sido seu lado bom.
Tinha perdido tanto peso que suas costelas estavam expostas como estacas de uma cerca sob a pele. E poderia apostar que quando as visitas fossem embora, sua explosão de energia se esvairia rapidamente.
A mensagem no correio de voz deixada pelo médico havia sido muito clara: ela estava caindo. O osso quebrado estava se recuperando, mas não rápido o suficiente e a redistribuição do peso fez com que as camadas do casco oposto enfraquecessem e se separassem.
Glory estendeu o focinho em seu peito e deu-lhe um rápido empurrão.
– Ei, mocinha.
– Ela é extraordinária. – Payne afagou a égua. – Simplesmente extraordinária.
E agora havia outra coisa em sua consciência: talvez trazer Payne ali não tenha sido um presente, mas uma crueldade. Por que apresentá-la a um animal que provavelmente seria...
Deus, não conseguia sequer pensar nisso.
– Não é o único que marca território – Payne disse suavemente.
Manny olhou para Payne sobre a cabeça de Glory.
– Como?
– Quando me disse que ia conhecer uma fêmea, eu... eu esperava que ela tivesse cara de cavalo.
Ele riu e acariciou a fronte de Glory.
– Bem, isso ela tem, com certeza.
– O que vai fazer com ela?
Enquanto tentava formar as palavras, reuniu a crina que caía um pouco acima dos olhos quase negros do cavalo.
– Sua falta de resposta já é suficiente – Payne disse com voz triste.
– Não sei por que a trouxe aqui. Quero dizer... – ele limpou a garganta. – Na verdade, eu sei... e é muito patético. Tudo o que tenho é meu trabalho... Glory é a única coisa que não está relacionada a meu trabalho. É algo pessoal para mim.
– Deve estar de coração partido.
– Estou. – De repente, Manny olhou sobre o dorso de seu cavalo doente para observar a cabeça da vampira de cabelos escuros que tinha apoiado a bochecha sobre o flanco de Glory. – Estou... totalmente destruído com a perda.
CAPÍTULO 40
Alguns poucos momentos após a ligação de Butch, Jane ficou congelada no terraço da cobertura de V. Enquanto sua forma assumia peso, o ar frio da noite movia seus cabelos e fazia seus olhos encherem-se de água.
Ou... talvez fossem apenas as lágrimas.
Olhando pelo vidro, viu tudo muito claramente: a mesa, os açoites, os chicotes, as... outras coisas.
Quando ia até ali antes com Vishous, aquelas armadilhas de suas predileções hardcore pareciam nada mais do que um pano de fundo assustador e tentador para o incrível sexo que tinham. Mas a versão dela para o “jogo” era como a de um poodle se comparada ao do lobisomem que ele adotava.
E como ela via claramente aquilo agora.
O que será que Butch havia usado? Que tipo de instrumento encaixava-se com seu companheiro? Será que haveria muito sangue?
Espere um minuto: onde V. estava?
Passando pela porta de vidro, ela...
Nada de sangue no chão, ou escorrendo dos instrumentos. Nada de ganchos suspensos pendurados no teto. Tudo estava exatamente da mesma maneira que havia deixado da última vez que esteve ali, como se nada tivesse acontecido...
Um gemido veio de fora do círculo de velas e o som fez sua cabeça girar. Claro: a cama.
Ao lançar-se pelo véu da escuridão, seus olhos se ajustaram e lá estava ele: envolto em lençóis de cetim, deitado, contorcendo-se de dor... ou estaria dormindo?
– Vishous? – disse suavemente.
Com um grito, ele acordou de imediato, seu tronco ereto, olhos arregalados. Instantaneamente, ela notou que o rosto dele estava marcado com cicatrizes que já desapareciam... e havia outras ao longo de seu peitoral e abdômen. Mas a expressão em seu rosto foi o que, de fato, chamou sua atenção: ele estava horrorizado.
De repente, houve uma agitação furiosa quando ele tirou as cobertas de seu corpo. Ao olhar para baixo, para si mesmo, o suor brotou no peito e nos ombros, sua pele assumiu um brilho repentino, nas sombras que o envolviam fez um gesto para cobrir seu sexo... como se estivesse protegendo o que restou.
Com a cabeça baixa, respirou fundo várias vezes. Inspira. Expira. Inspira. Expira...
O padrão transformou-se em soluços.
Encolhendo-se, as mãos abrigaram o trabalho de açougueiro que foi feito há muito, muito tempo, chorou em grandes ondas de emoção, sua reserva havia desaparecido, seu controle sumira, sua inteligência não era mais um governante, e sim, um súdito.
Ele não percebeu que ela estava em pé ao lado dele.
E ela deveria ir embora, Jane pensou. Ele não gostaria que o visse assim... nem mesmo antes de tudo que havia desabado sobre eles. O macho que ela conhecia, amava e tinha casado não gostaria de nenhuma testemunha...
Foi difícil dizer o que chamou a atenção dele... e mais tarde ela se perguntaria como ele escolheu o exato momento em que já ia se desmaterializar para olhá-la.
Por um instante, ficou incapacitada: se ficou magoado pelo que havia feito com Payne, iria odiá-la agora... não havia como voltar atrás naquela invasão de privacidade.
– Butch me ligou – ela desabafou. – Ele disse que estaria...
– Ele me machucou... Meu pai me machucou.
As palavras soaram tão baixas e suaves que quase não foram registradas. Mas quando o fizeram, o coração dela parou.
– Por quê? – Vishous perguntou. – Por que ele fez isso comigo? Por que minha mãe fez isso? Nunca pedi a nenhum deles para nascer... e não escolheria nascer se alguém tivesse perguntado... Por quê?
Suas bochechas estavam escorregadias com as lágrimas que derramavam pelos olhos de diamante, em um fluxo incessante que ele não notava nem parecia se importar. E ela teve a sensação de que ia levar um bom tempo para que aquele vazamento cessasse... alguma artéria havia se rompido e aquele era o sangue de seu coração, derramando-se, cobrindo-o.
– Sinto muito – disse, desajeitada. – Não sei quais foram os motivos... mas sei que não merecia nada disso. E... e não é culpa sua.
Suas mãos deixaram a posição protetora e ele olhou para baixo. Passou-se um longo tempo antes que falasse e, quando o fez, suas palavras eram lentas e ponderadas... e saíram num ritmo tão incessante e calmo quanto suas lágrimas.
– Gostaria de ser inteiro. Gostaria de lhe dar filhos se os quisesse e pudesse concebê-los. Gostaria de ter lhe dito que quando pensou que estive com outra pessoa isso me matou. Gostaria de ter passado o último ano acordando todas as noites ao seu lado e lhe dizendo que a amava. Gostaria de ter me acasalado com você da maneira adequada na noite em que voltou para mim dos mortos. Gostaria... – agora, seu olhar cintilante fixou-se no dela. – Gostaria de ter a metade da sua força e gostaria de merecê-la. E... é isso.
Certo. Muito bem. Agora os dois estavam chorando.
– Sinto tanto por Payne – ela disse com voz rouca. – Eu queria falar com você, mas ela estava decidida. Tentei convencê-la, tentei mesmo, mas, no final, eu apenas... apenas... não queria que fosse você que tivesse que fazer isso. Eu preferia viver com essa verdade horrível na minha consciência por uma eternidade do que você ter que matar sua irmã, ou vê-la se machucando mais do que estava.
– Eu sei... Eu sei disso agora.
– E, para ser honesta, o fato de ela estar curada agora? Sinto calafrios ao pensar na quase perda que tivemos.
– Mas está tudo bem. Ela está bem.
Jane enxugou os olhos.
– E eu acho que quando se trata de... – ela olhou para a parede envolvida pela luz amanteigada das velas que não fazia nada para suavizar as pontas afiadas e todas as implicações dos acessórios ali pendurados. – Quando se trata das... coisas... sobre você e seu sexo, sempre me preocupei de não ser o suficiente para você.
– Nossa... não... você é tudo para mim.
Jane colocou a mão sobre a boca para não perder o controle, pois era exatamente o que precisava ouvir.
– Nunca nem sequer escrevi seu nome nas minhas costas – V. disse. – Pensei que era bobagem e uma perda de tempo... mas como pode sentir que estamos vinculados sem isso... especialmente quando cada macho no complexo foi marcado por causa de sua shellan?
Deus, ela não tinha pensado nisso.
V. balançou a cabeça.
– Você me deu espaço... para sair com Butch, lutar com meus Irmãos e fazer o que gosto na internet. O que lhe dei em troca?
– Minha clínica, em primeiro lugar. Não poderia ter construído aquele lugar sem você.
– Não foi exatamente um buquê de rosas.
– Não subestime suas habilidades na carpintaria.
Ele sorriu um pouco com isso. E, então, ficou muito sério outra vez.
– Posso lhe dizer uma coisa que sempre penso todas as vezes que acordo a seu lado?
– Por favor.
Vishous, aquele que tinha resposta para tudo, parecia estar com a língua presa. Mas, então, disse:
– Você é a razão pela qual eu me levanto todas as noites da cama. É a razão pela qual mal posso esperar para voltar para casa ao amanhecer. Não a guerra. Não os Irmãos. Nem mesmo Butch. É... você.
Oh, palavras tão simples... mas com tanto significado. Bom Deus, quanto significado.
– Vai me deixar abraçá-lo agora? – disse ela roucamente.
Seu companheiro estendeu os grandes braços.
– Que tal eu abraçá-la?
Quando Jane saltou para frente e mergulhou sobre ele, respondeu:
– Não precisa ser uma coisa ou outra.
Instantaneamente, ela assumiu sua forma corpórea completa sem esforço algum, aquela química mágica entre eles a chamava e a prendia. E quando Vishous aninhou o rosto em seu cabelo e estremeceu como se tivesse corrido muito e finalmente tivesse voltado para casa... soube exatamente como ele se sentia.
Com sua shellan apertada contra ele, V. sentia como se tivesse explodido em mil pedaços... e agora se reagrupasse.
Deus, o que Butch tinha feito por ele. Por todos eles.
O caminho que o tira percorreu foi o mais correto. Horrível, terrível... mas com certeza o correto. E enquanto V. segurava sua fêmea, seus olhos observavam o espaço onde tudo tinha acontecido. Tudo estava limpo... exceto algumas coisas que estavam fora do lugar no chão: uma colher e um copo quase vazio que tinha de ser água.
Tudo tinha sido uma ilusão: nada havia o cortado, de fato. E apostaria que Butch havia deixado os dois objetos bem em frente e centralizados no local para que V. os observasse ao acordar, para que soubesse os meios que levaram ao fim.
Em retrospecto, parecia tudo tão estúpido... não a sessão com o tira, mas o fato de que V. nunca pensou realmente em Bloodletter naqueles anos no campo de guerra. A última vez que aquele pedaço do seu passado havia sido trazido à tona, foi quando Jane ficou com ele pela primeira vez... e foi só por ela tê-lo visto nu, então, teve de explicar.
Meu pai não queria que eu reproduzisse.
Isso foi tudo o que disse. Em seguida, como um cadáver que havia sido jogado em águas calmas, aquela porcaria afundou, reassentando-se sobre o banco de areia bem dentro dele.
A.J., ou Antes de Jane, só tinha feito sexo vestido. Não por vergonha – ou ao menos era isso o que dizia a si mesmo –, mas porque simplesmente não tinha interesse em ir até o fim com machos e fêmeas anônimos que tinha submetido.
D.J.? Foi tudo diferente. Estar nu era mais do que bom, provavelmente porque Jane ficou tranquila com a revelação, e, ainda assim, quando pensava naquilo agora, percebia que sempre a distanciou, mesmo quando a apertava em seus braços. Na verdade, tinha sido mais próximo de Butch... mas aquilo era uma coisa entre machos, ou seja, algo que, de alguma forma, era menos ameaçador do que a relação macho-fêmea.
Sombras de problemas com a Mamãe, sem dúvida: depois de tudo que sua mahmen havia arrancado dele, simplesmente não conseguia confiar nas mulheres da mesma maneira que confiava em seus Irmãos, ou em seu melhor amigo.
Só que Jane nunca o traiu. Na verdade, estava disposta a lutar contra a própria consciência apenas para salvá-lo do ato inqualificável que sua irmã havia exigido dele.
– Você não é minha mãe – ele disse através dos cabelos de sua shellan.
– Tem toda razão. – Jane recuou e olhou bem nos olhos dele... como era característica sua fazer. – Nunca teria abandonado meu filho, ou tratado minha filha desse jeito.
V. inspirou fundo e quando deixou o oxigênio sair de seus pulmões, sentiu como se estivesse expelindo os mitos com os quais definia a si mesmo... e Jane... e seu acasalamento.
Precisava mudar o paradigma.
Por eles. Por si mesmo. Por Butch.
Cristo, a expressão no rosto do tira quando as coisas foram acontecendo ali foi trágica.
Então, sim, era hora de parar de usar recursos superficiais para medicar suas emoções. O sexo extremo e a dor pareceram excelentes soluções por muito tempo, mas na verdade tinham sido maquiagem sobre uma espinha: a feiura continuava ali.
O que precisava fazer era lidar com o lixo interior; então, não precisava mais de Butch ou de qualquer outra pessoa para espancá-lo para que conseguisse libertar-se das coisas. Assim, as excentricidades poderiam ser reservadas apenas para o prazer com Jane.
Colocar toda aquela porcaria para fora... era mesmo o certo a se fazer... percebeu que estava finalmente preparado para tentar uma versão psiquiátrica de um tratamento eficaz para a pele.
A próxima coisa que faria seria ir até a TV, olhar para a câmera e dizer: “Só é preciso uma camada de autoconsciência... depois, enxáguo com o sabonete. Defina-se e minha mente e emoções ficam limpas e brilhantes”.
Certo, agora estava mesmo perdendo o juízo, tudo bem.
Acariciando os cabelos macios de Jane, murmurou:
– Quanto... às coisas que tenho aqui. Se você estiver no jogo, ainda quero brincar... se é que entende o que estou dizendo. Mas, de agora em diante, é apenas por diversão e apenas para você e para mim.
Caramba, tiveram uma boa dose de sexo extravagante, naquele lugar, envolvendo muito couro, e gostaria sempre de ter aquilo com ela. Com sorte, ela gostaria de fazer o mesmo...
– Gosto do que fazemos aqui – ela sorriu. – Fico excitada.
Bem... parece que aquilo fez seu pênis latejar.
– Eu também.
Quando ele sorriu de volta para ela, reconheceu a chave mestra daquela mistura: aquela decisão de virar a página era muito boa... mas como mantê-la? Na noite seguinte simplesmente não conseguiria mais suportar acordar e ser aquele cara que saía dos trilhos.
Droga, achava que teria de descobrir como fazer isso, não é mesmo?
Com um toque gentil, acariciou a bochecha de sua shellan.
– Nunca estive em um relacionamento antes de você. Deveria saber que teríamos algum impasse em algum momento.
– É assim que funciona.
Pensou em seus Irmãos e na quantidade de precipitações, brigas e discussões que aquele bando de cabeças duras teve entre si. De alguma forma, sempre lidavam com isso... geralmente golpeando uns aos outros de vez em quando. Coisa própria de garotos.
Estava claro que com ele e Jane seria a mesma coisa. Tirando os golpes, claro, mas com as mesmas estradas esburacadas e as resoluções finais. Afinal, aquilo era a vida... não um conto de fadas.
– Mas sabe qual é a melhor coisa? – sua Jane perguntou, quando colocou os braços em volta de seu pescoço.
– Não sentir mais que estou morto por não estar em minha vida?
– Bem, sim, isso também – ela estendeu-se e o beijou. – Duas palavras: sexo reconciliatório.
Ohhhh, siiiiim. Só que...
– Espere, não se diz “sexo de reconciliação”?
– Também é uma possibilidade. – Pausa. – Já mencionei que você é o nerd mais gato que já conheci?
– Eu mereço essa observação. – Baixou a cabeça e roçou a boca contra a dela. – Apenas mantenha isso em segredo. Tenho uma reputação de cara durão a zelar.
– Seu segredo está seguro comigo.
V. ficou sério.
– Eu estou seguro com você.
Jane tocou seu rosto.
– Não posso prometer que não vamos passar por períodos difíceis outra vez e sei que nem sempre vamos concordar com tudo. Mas tenho certeza de uma coisa: você sempre estará seguro comigo. Sempre.
Vishous puxou-a para mais perto de si e enfiou a cabeça em sua garganta. Imaginou que, depois que ela voltou dos mortos por ele em sua forma fantasmagórica adorável, nada superaria isso. Mas estava errado. Percebeu que o amor era como as adagas que fazia em sua oficina: quando as contemplava pela primeira vez, eram novas e brilhantes e as lâminas cintilavam sob a luz. Segurando-a contra a palma da mão, ficava cheio de entusiasmo pelo que ela poderia fazer no campo de batalha e mal podia esperar para experimentá-la. Só que, geralmente, as primeiras noites são difíceis até se acostumar com ela.
Ao longo do tempo, o aço perde seu brilho original e o punho fica manchado, e talvez precise ser lixado algumas vezes. Contudo, o que ganha em troca pode salvar sua vida: uma vez que estiver bem familiarizado com o objeto, torna-se parte de você de tal forma que parece uma extensão de seu braço. Ele o protege e lhe dá um meio de proteger seus irmãos; proporciona confiança e poder para enfrentar qualquer coisa que lhe sobrevenha na noite e, onde quer que vá, ele vai com você, junto a seu coração, sempre ali quando precisa dele.
Entretanto, precisa manter a lâmina afiada e reposicionar o cabo de tempos em tempos, verificar outra vez o peso.
Engraçado... tudo aquilo parecia tão óbvio quando se tratava de armas. Por que não se deu conta de que com o casamento era a mesma coisa?
Revirando os olhos, pensou: Cristo, talvez alguma loja de presentes ainda estivesse aberta à possibilidade de criar uma linha de cartões do dia dos namorados inspirada na época medieval, alguma coisa levemente gótica. Isso seria perfeito para o que precisava.
Fechando os olhos e abraçando Jane, estava quase feliz por ter perdido a cabeça, só para que pudessem chegar até ali.
Bem, ele teria escolhido uma rota mais fácil se existisse uma; mas tinha de merecer onde estavam agora.
– Tenho uma pergunta para lhe fazer – disse ele suavemente.
– Qualquer coisa.
Recuando um pouco, ele acariciou o cabelo de Jane com a mão enluvada e precisou de um tempo para perguntar o que estava na ponta da língua.
– Você vai... permitir que eu faça amor com você?
Quando Jane o encarou e Vishous sentiu seu corpo contra o dela, ela soube que nunca o deixaria. Nunca. E soube também que se conseguiram passar pela última semana, conseguiriam permanecer juntos conforme acontecia nos bons casamentos e acasalamentos.
– Sim – disse ela. – Por favor...
Seu hellren a possuiu tantas vezes desde que estavam juntos: durante a noite e durante o dia; no banho e na cama; vestido, nu, seminu; rápido e forte... forte e rápido. O fato de V. estar sempre no limite fazia parte da emoção... isso e a imprevisibilidade. Ela nunca sabia o que esperar... se ia exigir coisas dela, ou assumir o controle de seu corpo, ou conter-se para que ela fizesse qualquer coisa que desejasse com ele. Porém, um fato constante era que nunca foi seu estilo ir devagar.
Agora, ele apenas acariciava seu cabelo, correndo os dedos através das ondas e posicionando-as por trás de suas orelhas. E manteve o olhar fixo no dela quando suas bocas uniram-se suavemente.
Afagando e acariciando, ele lambeu os lábios dela... mas quando ela abriu a boca, não mergulhou como sempre fazia. Apenas continuou beijando... até ela ficar atordoada com as sucções e carícias da carne contra a carne.
O corpo dela geralmente rugia pelo dele, mas, agora, sentia um desabrochar delicioso percorrê-la, relaxando e acalmando, provocando uma tranquilizante excitação que, de alguma forma, era tão profunda e avassaladora quanto a paixão desesperada que normalmente sentia.
Quando o corpo dele mudou de posição, ela seguiu a liderança, apoiando totalmente as costas quando ele se ergueu e cobriu o corpo dela por completo. O beijo continuava e estava tão envolvida que não percebeu que ele deslizou a mão por baixo de sua camisa. A palma da mão quente arrastava-se para cima, buscando seus seios... encontrou-os e os capturou. Nada de provocações, nada de beliscões, nada de apertões. Apenas passava o dedão em volta e sobre o mamilo, até ela se arquear e gemer em sua boca.
As mãos dela estenderam-se pelas laterais do corpo de Vishous e... oh, Deus, havia aquele padrão de marcas que ela havia visto. E continuavam ao longo de todo seu tronco...
Vishous pegou seus pulsos e os levou de volta para a cama.
– Não pense nisso.
– O que ele fez com você...?
– Shhh.
O beijo foi retomado e ficou tentada a lutar, mas as carícias delicadas submergiram seu cérebro em sensações.
Estava feito, disse a si mesma. Tudo o que tinha acontecido havia ajudado a chegarem até ali.
Isso era tudo o que precisava saber.
A voz de Vishous sussurrou em seu ouvido, profunda e baixa:
– Quero tirar sua roupa. Posso?
– Por favor... sim... Deus, sim.
Despi-la foi parte do prazer, os meios foram tão gloriosos quanto o fim, quando ficaram pele contra pele, e, de alguma maneira, a revelação gradual do que havia observado tantas vezes fez com que parecesse novo e especial.
Seus seios ficavam cada vez mais excitados conforme o ar frio os atingia, e ela observou o rosto de V. contemplá-la. A necessidade estava lá, só que havia muito mais... reverência, gratidão... uma vulnerabilidade que sempre sentiu, mas nunca enxergou com clareza antes.
– Você é tudo o que eu preciso – disse ele quando abaixou a cabeça. Suas mãos estavam em toda parte, sobre o abdômen, os quadris, entre as coxas.
Sobre seu sexo escorregadio.
O orgasmo que lhe deu foi uma onda quente que percorria seu corpo, irradiando-se de dentro para fora, possuindo-a em uma nuvem de êxtase e prazer. Em meio a tudo isso, ele a montou e a penetrou. Nada de golpes fortes dentro dela, apenas mais daquela onda, dentro e fora, enquanto o corpo dele se movia e sua ereção pulsava para frente e para trás.
Nenhum movimento rápido, apenas mais daquele amor lento.
Nada de urgência, apenas todo o tempo do mundo.
Quando ele finalmente gozou, foi em meio a um último movimento de sua coluna e um pulsar dentro dela, e ela o acompanhou; os dois abraçaram-se com ternura, fundindo o corpo... e a alma.
Virando-se na cama, levou-a para cima dele, envolvendo-a com seu peitoral musculoso, firme e tão suave e quase tão leve quanto uma brisa de verão. Ela estava flutuando e quente e...
– Você está bem? – disse Vishous quando a olhou.
– Mais do que bem – Ela examinou seu rosto. – Sinto como se tivesse feito amor com você pela primeira vez.
– Que bom – Ele a beijou. – Esse era o plano.
Deitando a cabeça sobre o coração dele, olhou ao longo da parede atrás da mesa. Nunca pensou que seria grata por aquele bando de “brinquedos” aterrorizantes, mas estava. Em meio à tempestade... encontraram a calmaria.
Separaram-se por um tempo... Mas, agora, eram um só novamente.
CAPÍTULO 41
Na mansão, Qhuinn andava pelo quarto como um rato procurando uma saída em sua gaiola. De todas as noites, aquela era a pior para Wrath mantê-los confinados.
Dane-se.
Quando fez mais outra viagem passando pela porta aberta do banheiro, pensou que o fato da quarentena fazer sentido o irritava ainda mais: apenas John e Xhex não estavam feridos naquele momento; todos que estiveram naquela briga ficaram cortados, fatiados ou arranhados de alguma forma.
Aquilo parecia um maldito Pronto Atendimento, mas, por favor, os três poderiam estar lá fora dando o troco.
Parando em frente às portas da varanda, olhou os jardins bem cuidados que estavam prestes a desabrochar com a primavera. Com as luzes apagadas em seu quarto, pôde ver claramente a piscina com seu toldo de inverno esticado sobre toda a extensão de seu ventre... como se fosse a maior cinta modeladora que o mundo já tinha visto, e as árvores ainda estavam nuas em sua maioria. Os canteiros de flores...
Blay tinha sido ferido.
Ainda não eram nada além de bancos de terra marrom-escuros...
– Droga.
Esfregando os cabelos que agora estavam muito curtos, tentou negociar com a pressão no centro do peito. De acordo com John, Blay tinha sido atingido na cabeça e sofreu um corte no abdômen. O primeiro machucado estava sendo monitorado; o último havia sido costurado pela Doutora Jane. Nenhum deles colocava sua vida em risco.
Tudo muito bem.
Que pena que seu peito não estava assimilando o fato muito bem. Desde que John Matthew havia lhe dado a notícia, aquela maldita dor havia se instalado, como se uma toupeira entrasse e saísse de seus brônquios sem parar.
Literalmente, não conseguia respirar fundo.
Maldição, se fosse um macho maduro – e considerando a maneira como lidava com as coisas algumas vezes, aquilo era bastante discutível, se não completamente errado – sairia no corredor, andaria até o quarto de Blay e bateria na porta. Colocaria a cabeça para dentro, veria por si mesmo que o coração do ruivo ainda estava batendo e todos os sentidos estavam funcionando... e, então, continuaria a fazer suas coisas.
Em vez disso, lá estava ele, tentando fingir que não estava pensando no cara enquanto afundava um caminho no carpete.
Assim, continuou com a caminhada. Teria ido à sala de musculação e corrido um pouco, mas o fato de que Blaylock estava ali, próximo dele, era como uma corda de marionete que o mantinha preso no local, sem muita vontade de puxá-lo, direcionando-o para a luta ou... digamos... mesmo se a casa estivesse pegando fogo, era evidente ser incapaz de se libertar.
E quando se viu em frente às portas francesas outra vez, teve uma vaga ideia do motivo que o fazia parar ali.
Tentou tirar a mão da alça da maçaneta.
Não funcionou.
O trinco produziu um estalo e o ar gelado foi como um tapa em seu rosto. Saindo com os pés descalços e roupão, mal notou a ardósia congelada ou o frio que percorreu suas pernas e agarrou-se em seu pênis.
À frente, uma luz irradiava das portas duplas do quarto de Blay. O que era bom... com certeza eles fechavam a cortina antes de terem relações sexuais.
Então, era seguro ficar observando. Certo...?
Além disso, Blay estava se recuperando de um ferimento; então, não poderiam sair rolando pelo quarto.
Dando uma de xereta, Qhuinn esquivou-se nas sombras e tentou não se sentir um intruso ao andar na ponta dos pés. Quando chegou ao lado da porta, preparou-se, inclinou-se e... respirou fundo e aliviado.
Blay estava sozinho na cama, deitado apoiado contra a cabeceira, seu roupão estava amarrado em meio à cintura, os tornozelos cruzados, os pés cobertos por meias pretas. Seus olhos estavam fechados e sua mão repousava sobre o ventre, como se estivesse cuidando do que, provavelmente, ainda estava enfaixado.
Um movimento do outro lado abriu as pálpebras de Blay e levou seus olhos a se fixarem na direção oposta às janelas. Era Layla que emergia do banheiro e andava lentamente. Os dois trocaram algumas palavras... sem dúvida, ele estava agradecendo pelo alimento que tinha acabado de ingerir e ela estava dizendo que era um prazer: não era surpresa ela estar ali. A Escolhida fazia rondas pela casa naquela noite e Qhuinn já havia cruzado com ela pouco antes da Primeira Refeição... ou o que teria sido a Primeira Refeição se alguém tivesse aparecido.
E quando ela saiu do quarto de Blay, Qhuinn esperou que Saxton entrasse. Nu. Com uma rosa vermelha entre seus dentes, e uma maldita caixa de chocolates.
E uma ereção que faria um monumento nacional parecer pequeno.
Nada.
Blay deixou a cabeça cair para trás e suas pálpebras fecharam-se outra vez. Parecia completamente exausto e, pela primeira vez, mais velho. Não era um garoto em transição recente; era um macho puro-sangue.
Um macho... belíssimo... e puro-sangue.
Em sua mente, Qhuinnn viu-se abrindo a porta e entrando. Blay olharia em volta e tentaria se sentar... mas Qhuinn acenaria para ele, para detê-lo, ao se aproximar.
Perguntaria sobre o ferimento. E Blay abriria o roupão para mostrar. Qhuinn estenderia a mão e tocaria o curativo... e, então, deixaria os dedos vagarem pela gaze e pelo esparadrapo sobre a pele lisa e quente do abdômen de Blay. Ele ficaria chocado, mas, naquela fantasia, Qhuinn deslizaria aquela mão... Mais para baixo, afastando-se do ferimento e descendo para os quadris e seu...
– Droga!
Qhuinn recuou com rapidez, mas já era tarde demais: de alguma forma, Saxton havia entrado no quarto, andado até as janelas e começou a fechar as cortinas. E, durante o processo, tinha visto o idiota do lado de fora da varanda dando uma de câmera de segurança.
Quando Qhuinn virou-se e pegou o caminho de volta para seu quarto, pensou: “Não abra a porta... não abra a porta...”
– Qhuinn?
Pego em flagrante.
Congelando como um assaltante com uma TV de plasma nos braços, certificou-se de que seu roupão estava fechado antes de se virar. Droga. Saxton estava saindo e o bastardo também estava de roupão.
Bem, parece que todos ostentavam um. Mesmo Layla estava vestida com uma peça de roupa assim.
Quando Qhuinn encarou seu primo, percebeu que não tinha dirigido mais que duas palavras ao cara desde que Saxton havia se mudado.
– Só estava pensando em como ele estava. – Não havia razão alguma para usar um nome... estava bem óbvio a quem estava observando.
– Blaylock está dormindo no momento.
– Ele se alimentou? – Qhuinn perguntou mesmo já sabendo a resposta.
– Sim – Saxton fechou a porta atrás dele, sem dúvida para não deixar o frio entrar e Qhuinn tentou ignorar o fato de que os tornozelos e os pés do cara estavam nus, pois havia grandes chances de que o resto dele estivesse assim também.
– Ah, desculpe ter incomodado vocês – Qhuinn murmurou. – Tenha uma boa no...
– Poderia ter simplesmente batido. No corredor – as palavras foram ditas com uma inflexão aristocrática que fez Qhuinn ficar completamente tenso. Não porque odiava Saxton; aquilo apenas lembrava-lhe demais a família que perdeu.
– Não queria lhe incomodar. Incomodá-lo. Nenhum dos dois.
Quando uma rajada de vento percorreu a casa, os cabelos muito grossos, loiros e ondulados de Saxton não se abalaram – como se cada parte dele, cada fio, fosse encorpado e bem-educado demais para ser afetado por... qualquer coisa.
– Qhuinn, você não estaria interrompendo nada.
Mentiroso, Qhuinn pensou.
– Estava aqui primeiro, primo – Saxton murmurou. – Se queria vê-lo ou ficar com ele, eu os deixaria a sós.
Quinn piscou. Então... os dois tinham um relacionamento aberto? Como assim?
Ou espere... talvez tivesse feito um ótimo trabalho ao convencer não apenas a Blay, mas a Saxton, de que não queria nada sexual com seu melhor amigo.
– Primo, posso falar sinceramente?
Qhuinn limpou a garganta.
– Depende do que tem a dizer.
– Sou o namorado dele, primo...
– Ei... – ergueu a mão. – Isso não é da minha conta...
– ... não o amor de sua vida.
Qhuinn piscou outra vez, e, em seguida, por uma fração de segundo, foi sugado para um lugar onde seu primo saía de cena graciosamente e Qhuinn substituía muito bem o filho da mãe. Só que... havia uma grande falha naquela fantasia: Blay tinha cortado relações com ele.
Havia projetado aquele resultado ao longo de muitos anos.
– Entende o que digo, primo? – Saxton manteve a voz baixa, mesmo com o vento soprando e a porta fechada. – Está me ouvindo?
Certo, aquilo não fazia parte nem um pouco do que Qhuinn esperava para a noite... ou para qualquer outra noite. Maldição, seu corpo começou a formigar de repente e tinha menos de um segundo para dizer a seu primo que fosse embora ou que se ferrasse ou mandá-lo para o inferno.
Só que, então, pensou em como Blay parecia mais envelhecido. O cara finalmente havia dado um grande passo em sua vida e era um crime negociar algo sobre isso ali fora, no escuro.
Qhuinn balançou a cabeça.
– Não é certo.
Não para Blay.
– Você é um tolo.
– Não. Eu costumava ser.
– Eu discordo. – A mão elegante de Saxton aproximou a gola de seu roupão. – Se me der licença, é melhor eu entrar. Está frio aqui fora.
Bem, aquilo soava como uma ótima metáfora.
– Não conte a ele sobre isso – Qhuinn disse asperamente. – Por favor.
Os olhos de Saxton se estreitaram.
– Seu segredo está muito bem guardado. Pode acreditar.
Com isso, virou-se e voltou a entrar no quarto de Blaylock; a porta fechou-se com um clique e, em seguida, a luz foi apagada assim que as cortinas pesadas foram arrastadas de volta para o lugar.
Qhuinn esfregou os cabelos outra vez.
Parte dele queria entrar e dizer: Eu mudei de ideia, porque... Agora, caia fora daqui para que eu possa...
Dizer a Blay o que disse a Layla.
Mas Blay deveria estar apaixonado por Saxton e Deus era testemunha de que Qhuinn havia ferrado com seu amigo muitas vezes.
Ou, melhor, ignorou-o, como era o caso.
Quando finalmente voltou para o quarto – apenas porque era patético demais ficar ali parado olhando para as cortinas fechadas –, percebeu que sua vida estava toda relacionada a ele. Era o que desejava, o que precisava, o que tinha de possuir.
O antigo Qhuinn teria pegado um ônibus e atravessado aquela porta com ele...
Com uma careta, tentou não pensar na frase de maneira tããão literal; porém, a questão era que o homossexual patético e fraco estava certo: se você ama alguém, tem de libertá-lo.
Em seu quarto, virou-se e sentou-se na cama. Olhando ao redor, viu a mobília que não havia comprado... e a decoração era ótima, mas anônima, e não tinha nada a ver com seu estilo. As únicas coisas que lhe pertenciam eram suas roupas no armário, o barbeador no banheiro e os tênis de corrida que usava quando chegava mais cedo.
Era como na casa de seus pais.
Bem, ali, as pessoas de fato lhe davam valor, mas conforme o tempo passava, não tinha uma vida própria, realmente. Era o protetor de John, um soldado da Irmandade. E...
Caramba, agora que não se entregava mais ao vício do sexo, esse era o fim da lista.
Recostando-se contra a cabeceira da cama, cruzou os pés e arrumou o roupão. A noite estendia-se à frente dele em uma planície horrível... como se estivesse dirigindo, dirigindo e dirigindo ao longo de um deserto... e tinha apenas mais do mesmo pela frente.
Meses do mesmo.
Anos.
Pensou em Layla e no conselho que tinha dado a ela. Cara, os dois estavam exatamente no mesmo lugar, não?
Fechando os olhos, ficou aliviado quando começou a divagar. Mas tinha a sensação de que qualquer tranquilidade não ia durar muito tempo.
E estava certo.
CAPÍTULO 42
No Hospital Equino Tricounty, Manny permaneceu parado enquanto Glory fungava em seu uniforme hospitalar, provavelmente sabendo que a deixaria. Mas constatou que era incapaz de separar-se ou separar Payne do cavalo.
O tempo estava se esgotando para sua Glory e isso o matava. Mas não poderia deixá-la definhar, permitir que ficasse cada vez mais magra e mais manca a cada dia que passava. Ela merecia muito mais que isso.
– Você a ama – Payne disse suavemente, sua mão pálida deslizava em volta do puro-sangue, descendo para o flanco.
– Sim. Amo.
– Ela tem muita sorte.
Não, ela estava morrendo e isso era uma maldição.
Ele limpou a garganta.
– Acho que precisamos...
– Dr. Manello?
Manny inclinou-se e olhou para a porta da baia.
– Oh, ei, doutor. Tudo bem?
Quando o veterinário-chefe caminhou até eles, seu smoking estava destoando tanto do local quanto um pinguim em uma praia tropical.
– Estou bem... e você parece muito bem.
O cara ajeitou a gravata borboleta.
– O traje de pinguim é porque vou a uma ópera. Mas tinha que passar por aqui e dar uma olhada na sua garota.
Manny aproximou-se e estendeu a mão.
– Eu também.
Quando apertaram as mãos, o veterinário olhou ao redor da baia... e seus olhos se arregalaram quando viu Payne.
– Ah... oi.
Quando Payne ofereceu ao homem um breve sorriso, o bom doutor piscou como se o sol tivesse se desvencilhado de várias nuvens e brilhado sobre ele.
Ceeerto, Manny estava farto de idiotas olhando para ela daquele jeito.
Colocando-se no caminho, disse:
– Existe algum tipo de suporte que poderia colocar nela? Para aliviar a pressão?
– Nós a imobilizamos durante algumas horas todos os dias. – Enquanto o veterinário respondia, avançava pouco a pouco para o lado de maneira que Manny teve de inclinar o tronco para continuar a bloquear a visão.
– Não quero correr o risco de problemas respiratórios ou gastrointestinais.
Entediado com a coisa da inclinação e querendo afastar Payne da conversa, Manny pegou o braço do cara e moveu os dois para um lado.
– Qual será nosso próximo passo?
O veterinário esfregou os olhos como se precisasse de um segundo para organizar sua mente.
– Para ser franco, doutor Manello, não tenho um bom pressentimento sobre nossa situação. O outro casco está afundando e apesar de estar fazendo tudo a meu alcance para tratar isso, não está reagindo.
– Tem que haver mais alguma coisa.
– Sinto muito.
– Quanto tempo até termos certeza...
– Tenho certeza agora. – O olhar do homem era muito triste. – Foi por isso que passei por aqui esta noite... estava esperando um milagre.
Bem, os dois estavam fazendo isso.
– Vou lhe dar um pouco mais de tempo com ela – o veterinário disse. – Fique o quanto precisar.
Na linguagem médica isso queria dizer: pode se despedir.
O veterinário colocou a mão no ombro de Manny brevemente e, então, virou e foi embora. Enquanto saía, verificou cada baia, checando seus pacientes, acariciando um focinho aqui e ali.
Um cara legal, bastante cuidadoso.
Alguém que esgota todas as possibilidades até determinar um cenário de derrota.
Manny respirou fundo e tentou dizer a si mesmo que Glory não era um animal de estimação. As pessoas não tinham cavalos de corrida como animais de estimação, e ela merecia mais do que sofrer em uma pequena baia enquanto ele encontrava coragem para fazer o que era certo em relação a ela.
Colocando a mão no peito, acariciou sua cruz atrás do jaleco e teve uma vontade súbita de ir à igreja...
No início, tudo o que notou foram as sombras na parede do outro lado. Em seguida, pensou que talvez alguém tivesse acendido as luzes.
Finalmente, percebeu que a iluminação vinha da baia de Glory.
O... que...
Escorregando, recuou... e teve de se equilibrar.
Payne estava de joelhos no feno macio, as mãos posicionadas sobre as pernas dianteiras de seu cavalo, os olhos fechados, sobrancelhas tensas.
E seu corpo brilhava com uma luz forte e bela.
Acima dela, Glory estava imóvel, mas seu couro contraía-se e os olhos reviravam. Alguns relinchos satisfeitos percorriam seu longo pescoço e saíam por suas narinas... como se tivesse uma sensação de alívio, alívio da dor.
As pernas dianteiras machucadas iluminaram-se levemente.
Manny não se moveu, não respirou, sequer piscou. Apenas segurou sua cruz ainda mais forte... e rezou para que ninguém interrompesse aquilo.
Não tinha certeza de quanto tempo os três permaneceriam assim, mas, em determinado momento, ficou claro que Payne estava se sobrecarregando com o esforço: seu corpo começou a vibrar e a respirar de maneira forçada.
Manny entrou na baia e a afastou de Glory, segurando seu corpo vacilante contra o seu, e tirou-a do caminho no caso do cavalo se assustar e fazer algo imprevisível.
– Payne? – Oh, Deus...
Os olhos dela tremularam.
– Eu... a ajudei?
Manny acariciava seus cabelos para trás enquanto olhava para a égua. Glory estava parada com firmeza, levantando um dos cascos da frente, depois outro e voltava a movimentar o primeiro como se estivesse tentando descobrir o que causou o repentino conforto. Então, estremeceu... e beliscou o feno que não havia tocado.
Quando aquele maravilhoso som da ponta de um focinho tocando a grama seca encheu o silêncio, olhou para baixo em direção a Payne.
– Você conseguiu – disse com voz rouca. – Acho que conseguiu.
Seus olhos pareceram se esforçar para voltar o foco.
– Não queria que a perdesse.
Transbordando de uma gratidão que não tinha palavras para expressar, Manny puxou-a para mais perto de seu coração e segurou-a por um momento. Desejava ficar daquela maneira por muito mais tempo, mas ela parecia não estar bem e só Deus sabia se alguém mais havia notado o brilho daquela luz. Tinha de tirá-los dali.
– Vamos para minha casa – disse. – Assim, poderá se deitar.
Quando ela assentiu, girou-a em seus braços e ela se encaixou perfeitamente. Quando fechou a baia, olhou para Glory. O cavalo estava fungando contra o feno como se aquilo fosse tudo o que tinha.
Meu Deus... será que tinha funcionado mesmo?
– Volto amanhã – disse a ela, antes de começar a se afastar, impulsionado por uma esperança incandescente.
No balcão da segurança, sorriu e deu de ombros para o cara.
– Alguém está fazendo plantão dobrado no hospital. Ela está exausta.
O homem levantou-se como se a mera presença de Payne, mesmo inconsciente, fosse suficiente para chamar sua atenção.
– É melhor levá-la para casa. É preciso cuidar bem de uma mulher como essa.
Com certeza.
– É exatamente para onde estou indo.
Movendo-se com rapidez, passou pela recepção e aguardou o ruído para que pudesse empurrar as últimas portas. Com alguma sorte, o veterinário-chefe não tinha visto nada...
– Obrigado, Jesus – Manny murmurou quando ouviu o sinal e abriu a porta com o quadril.
Não perdeu tempo ao se dirigir para o carro, apesar de tirar as chaves e manter Payne erguida ao mesmo tempo ter sido uma confusão. Abrir a porta também foi difícil. Mas, em seguida, colocou-a no banco do passageiro, perguntando-se o tempo todo se estava doente. Droga, não tinha como entrar em contato com ninguém do mundo dela.
Dando a volta e sentando-se atrás do volante, pensou: “Dane-se, vou levá-la direto para os vampiros...”
– Posso pedir-lhe uma coisa? – disse ela lentamente.
– Qualquer coisa... O que você...
– Posso tomar de sua veia um pouco? Encontro-me... curiosamente esgotada.
Certo, tudo bem. Estamos aqui para isso: trancou as portas, puxou as mangas da roupa e estendeu-lhe o braço.
Os lábios macios encontraram seu pulso, mas sua mordida não foi ágil, como se estivesse tendo problemas para reunir forças. Ainda assim, começou o trabalho e ele pulou, a dor aguda cravou-se em seu coração e o deixou um pouco tonto. Ou... talvez aquilo estivesse acontecendo em função da excitação súbita e avassaladora que percorreu não apenas seu pênis como o corpo inteiro.
Com um gemido, seus quadris moveram-se sobre o banco do Porsche e deixou sua cabeça cair para trás. Deus, aquilo era bom... o ritmo da sucção que sentia seguia sua ereção... e, mesmo doendo, os puxões e os goles que recebia eram um prazer, um doce e picante prazer pelo qual tinha certeza que poderia morrer.
Caiu em um estado de total felicidade; parecia que havia se passado séculos desde a última vez que não estiveram ligados por aquelas presas em sua carne.
O tempo não tinha qualquer significado nem a realidade de que estavam em um estacionamento dentro de um carro com janelas de vidros claros.
Dane-se o mundo.
Eram apenas ele e ela, juntos.
E isso foi antes dos olhos de diamante de Payne se abrirem e se fixarem nele, observando não seu rosto, mas seu pescoço.
Vampira... ele pensou. Linda vampira.
Minha.
Quando aquele pensamento fundiu-se em sua mente, começou a agir no piloto automático, deslocando a cabeça para o lado, oferecendo sua jugular para ela...
Não precisou pedir duas vezes. Em um grande impulso, Payne se ergueu, lançando-se sobre o corpo dele; sua mão penetrou seus cabelos e apertou sua nuca. Enquanto o detinha sob seu controle, Manny ficou totalmente imobilizado, e ela também, por capturá-lo... presa para sua predadora. E agora que o possuía, suas presas deslizaram sobre a pele e encaixaram-se na altura da garganta, fazendo-o enrijecer ao antecipar a sensação da punção e da sucção...
– Droga! – ele vociferou quando ela o mordeu. – Oh... sim...
As mãos dele agarraram os ombros de Payne, puxando-a para ainda mais perto.
– Tome tudo... tome... oh, Deus... oh, droga...
Algo acariciou seu pênis. E uma vez que sabia exatamente onde estavam suas mãos, tinha de ser ela. Ao movimentar-se, ergueu-se um pouco mais e deu-lhe o máximo de espaço possível para se mover... e ela o fez, para cima e para baixo contra sua ereção, os quadris de Manny ajudavam, intensificando as carícias.
A respiração dele era alta no interior do carro quando começou a ofegar e seus gemidos também: não levou muito tempo até que seu pênis ficasse dormente, a ponta tensa contra a pressão.
– Eu vou gozar – ele gemeu. – É melhor parar se não quiser que...
Com isso, ela puxou o laço do uniforme hospitalar e colocou uma das mãos ali dentro...
Manny viu estrelas. No instante que as peles se encontraram, ele gozou como nunca antes, sua cabeça foi para trás com força, as mãos cravaram sobre os ombros de Payne, os quadris se movimentavam como loucos. E ela não parou de beber ou de acariciar... assim como havia sido antes, ele continuou gozando, o prazer se intensificava a cada espasmo que tinha contra a ereção.
Acabou cedo demais.
Por outro lado, poderiam ficar ali por uma década e ele continuaria faminto.
Quando Payne desvencilhou-se dele, recuou e lambeu as feridas feitas por suas presas afiadas, sua língua era rosada contra as pontas brancas. Cara... aquela luz gloriosa brilhava sob sua pele, fazendo com que ela parecesse um sonho.
Oh, espere, ela era um sonho, não era?
– Seu sangue é forte – disse com voz rouca enquanto curvava-se sobre ele outra vez e lambia sua garganta. – Muito forte.
– É? – ele murmurou. Mas não teve certeza se pronunciou mesmo alguma coisa. Talvez tivesse apenas pensado as palavras.
– Posso sentir o poder percorrendo dentro de mim.
Cara, nunca esteve em um carro esportivo grande antes – aquelas máquinas eram muito desajeitadas e a direção era instável, pareciam pedregulhos caindo de uma montanha –, mas o que não daria por um banco traseiro onde pudesse colocar algo maior que uma bolsa de tacos de golfe. Queria deitá-la ali e...
– Quero mais de você. – Payne murmurou ao se aninhar sobre ele.
Bem, Manny ainda estava duro como uma pedra, mesmo tendo acabado de...
– Quero você na minha boca.
A cabeça de Manny foi impulsionada para trás e gemeu quando seu pênis estremeceu como se uma corrida fosse começar lá embaixo. Mas, por mais que a desejasse, não tinha certeza se ela sabia o que estava por vir. Apenas o pensamento dos lábios dela sobre seu...
A cabeça de Payne desceu sobre o colo antes que ele pudesse encontrar fôlego para falar e não houve preliminares: ela o chupou, masturbando-o em sua boca quente e molhada.
– Droga! Payne!
Suas mãos apoiaram-se sobre os ombros dela, para puxá-la de maneira ostensiva... mas ela não deu a mínima para isso.
Sem qualquer treino, sabia exatamente como fazer, puxando e sugando antes de lamber o tronco. Em seguida, ela o explorou com tal profundidade que Manny só pôde concluir que estava gostando daquilo tanto quanto ele... e aquilo era demais.
Só que sentiu presas no topo, provocando-lhe.
Ele a ergueu rapidamente nesse momento, capturando sua boca em um beijo forte enquanto segurava seu rosto, mas logo perdeu aquilo que tinha entre as mãos. Não durou muito. Ela se desvencilhou dele e voltou para onde estava, capturando-o outra vez no meio de um orgasmo, lambendo o local de seu corpo que parecia desejá-la com todas as forças.
Quando os espasmos pararam, ela se afastou, olhou para ele... e, lentamente, lambeu os lábios.
Manny teve de fechar os olhos diante dessa visão, sua ereção pulsando a ponto de doer.
– Vai me levar para sua casa agora – ela rosnou. Não era uma solicitação. E o tom sugeria que estavam pensando exatamente o mesmo.
Assim, aquilo os levaria apenas a uma única coisa.
Manny reuniu forças e abriu os olhos. Endireitando-se, tocou o rosto dela e acariciou o lábio inferior com o polegar.
– Não tenho certeza se deveríamos, bambina – disse em um tom áspero.
A mão dela apertou seu pênis e ele gemeu.
– Manuel... acho que é exatamente o que precisamos fazer.
– Não é... uma boa ideia.
Payne afastou-se e recolheu a mão, seu brilho desapareceu.
– Mas está excitado. Mesmo agora.
Acha mesmo?
– Esse é o ponto.
Seus olhos percorreram o rosto dela e foram para os seios. Estava tão desesperado por ela, que sentia a tentação de rasgar aquele uniforme hospitalar em dois e tirar a virgindade dela em seu carro.
– Não serei capaz de me segurar, Payne. Mal consigo fazer isso agora...
Ela ronronou de satisfação e lambeu os lábios vermelhos outra vez.
– Eu gosto quando perde o controle.
Oh, Deus, aquilo não ajudava em naaada.
– Eu... – ele balançou a cabeça, pensando que aquilo era ridículo... negar-lhe tal coisa machucava muito. – Acho que deve fazer o que precisa e me deixar agora. Enquanto ainda consigo deixá-la ir.
O som de batidas na janela não fez sentido no começo. Só havia eles dois ali naquele estacionamento vazio. Mas, então, o mistério foi resolvido:
– Saia do carro. E passe a carteira.
Uma voz masculina vinda da janela atingiu a cabeça de Manny... de onde visualizou o tambor de uma arma.
– Você me ouviu, cara. Saia do carro ou eu atiro.
Quando Manny colocou Payne de volta no assento do passageiro, disse suavemente:
– Quando eu sair, tranque as portas. Bem aqui.
Moveu uma das mãos sobre um painel e pressionou um botão.
– Deixe-me lidar com isso. – Tinha mais ou menos quatrocentos dólares em dinheiro na carteira e vários cartões de crédito. – Fique aqui dentro.
– Manuel...
Ele não deu tempo para responder... até onde sabia, aquela arma tinha todas as respostas e impunha todas as regras.
Pegando a carteira, abriu a porta lentamente, mas foi rápido ao sair e quando fechou Payne lá dentro, esperou ouvir as travas das portas.
E esperou.
Desesperado para ouvir o som de Payne acionando as travas de segurança, ouviu vagamente quando o cara de máscara de esqui vociferou:
– A carteira. E diga para a vadia sair do carro.
– Tem quatrocentos...
A carteira desapareceu.
– Diga para sair ou ela vem comigo. E o relógio. Quero o relógio.
Manny olhou para o edifício. Havia janelas em toda parte e com certeza aquele guarda tinha que dar uma olhada para verificar como estavam as coisas lá fora de vez em quando.
Talvez, se ele entregasse devagar...
O cano da arma foi pressionado contra seu rosto.
– Relógio. Agora.
Não era um bom relógio... não operava com seu Piaget, pelo amor de Cristo. Mas não tinha importância... o idiota podia ficar com a maldita coisa. Além disso, quando fingiu que suas mãos tremiam, percebeu que não havia o que questionar...
Difícil dizer o que aconteceu e em qual ordem.
Relembrando, sabia que Payne tinha de ter aberto a porta primeiro. Mas parece que no instante em que ouviu o som horrível do lado do passageiro, ela já estava atrás do ladrão.
E outra coisa estranha foi que isso não aconteceu até que Manny amaldiçoou o fato do bastardo ter percebido a presença de um terceiro elemento no cenário. Só que não poderia ser verdade... ele a teria visto andando ao redor do carro, certo?
Seja como for... foi assim que aconteceu e o mascarado acabou saltando para trás e oscilava entre Payne e Manny com a arma.
Mas aquela partida de tênis não ia durar muito. Com uma lógica terrível, Manny sabia que o cara ia se voltar para Payne, pois era a parte mais fraca do...
Quando, outra vez, o cano da arma oscilou em direção a ela, Payne... desapareceu. E não foi por ter se abaixado ou se esquivado ou corrido muito rápido. Ela estava lá num momento, ocupando espaço... e havia desaparecido em seguida.
Reapareceu uma fração de segundo depois e pegou o pulso do cara no momento em que ia colocar a arma de volta no rosto de Manny. O ato de desarmá-lo também foi muito rápido: primeiro, ela pegou a arma; depois, tirou-a das mãos do filho da mãe; em seguida, jogou-a para Manny, que pegou a coisa.
Então, era hora de finalizar.
Payne girou o cara, agarrou a parte de trás da cabeça e colou o rosto dele no capô do Porsche. Depois de lustrar um pouco a pintura do carro com aquela carranca, reposicionou-o e agarrou a calça jeans folgada do filho da mãe. Erguendo-o pelos cabelos e pelo que era ou o cós de sua calça ou seu ânus, ela o dominou e o jogou... a uns dez metros de distância.
O Super-Homem não faria tão bem... e o ladrão acabou acertando em cheio a parede do hospital equino. O edifício não reagiu e, como era de se esperar, nem o ladrão. Ele aterrissou de bruços em um canteiro de flores e ficou lá, os membros inertes como carne morta e daí para mais.
Nenhum movimento. Nenhum gemido. Nenhuma tentativa de se levantar.
– Você está bem, Manuel?
Manny virou a cabeça lentamente para Payne. Ela sequer estava ofegando.
– Jesus... Cristo... – ele sussurrou.
Quando as palavras de Manny foram levadas por uma brisa, Payne ajeitou sua blusa folgada e as calças soltas. Então, alisou o cabelo. Parecia ser a única coisa possível de se fazer para ficar mais apresentável após o ato de violência.
Quanto esforço desperdiçado na tentativa de ficar mais feminina. Enquanto isso, Manuel continuava apenas olhando para ela.
– Não vai dizer mais nada? – disse ela em voz baixa.
– Hã... – Manuel colocou a mão livre sobre a cabeça. – Sim. Hã... deixe-me ver se ele está vivo.
Payne cruzou os braços enquanto caminhava até o humano. Na verdade, não se importava muito com as condições que tinha deixado o ladrão. Sua prioridade era tirar aquela arma letal do rosto de Manuel e cumpriu sua tarefa. Qualquer coisa que tivesse acontecido com o ladrão era irrelevante... mas era evidente que não conhecia as regras daquele mundo, ou as implicações do que havia feito.
Manuel estava na metade do caminho do canteiro quando a “vítima” rolou com um gemido. As mãos que seguravam a arma de fogo foram até a máscara que cobria seu rosto e ele puxou a malha até a testa.
Manuel ajoelhou-se.
– Eu sou médico. Quantos dedos têm aqui?
– O quê...?
– Quantos dedos?
– Três...
Manuel colocou a mão sobre o ombro do rapaz.
– Não se levante. Foi um golpe forte na cabeça. Tem algum formigamento ou dormência nas pernas?
– Não – o rapaz encarou Manuel. – Por que... está fazendo isso?
Manuel despistou a pergunta.
– Isso se chama curso de medicina... cria uma necessidade compulsiva de tratar uma doença ou um ferimento independentemente da circunstância. Acho que vamos precisar chamar uma ambulância...
– De jeito nenhum!
Payne desmaterializou-se para aproximar-se deles. Apreciava as boas intenções de Manuel, mas preocupava-se com a possibilidade de haver outra arma com o ladrão...
No instante em que apareceu atrás de Manuel, o cara encolheu-se no chão de horror, ergueu os braços e recuou.
Manuel olhou sobre o ombro... e nesse momento Payne viu que ele não era ingênuo. Tinha a arma apontada para o homem.
– Tudo bem, bambina. Peguei o cara...
Atordoado e desajeitado, o ladrão levantou-se e Manuel o acompanhou com a arma apontada em sua direção enquanto o humano tropeçava e recuperava o equilíbrio apoiando-se no edifício.
Era evidente que estava pronto para fugir.
– Vamos ficar com a arma – Manuel disse. – Entendeu? E não preciso dizer o quanto você tem sorte em estar vivo... ninguém agride minha namorada.
Quando o cara sumiu nas sombras, Manny levantou-se.
– Preciso levar essa arma à polícia.
Então, ele simplesmente a olhou.
– Tudo bem, Manuel. Posso cuidar da minha presença diante do guarda, assim, ninguém ficará sabendo de nada. Faça o que deve ser feito.
Com um aceno de cabeça, ele tirou um pequeno dispositivo telefônico, abriu e pressionou alguns botões. Colocando-o sobre o ouvido, disse:
– Sim, meu nome é Manuel Manello e fui abordado com uma arma de fogo em meu veículo. Estou no Hospital Tricounty...
Enquanto falava, ela olhou em volta e pensou que não desejava que aquilo tivesse acabado assim. Só que...
– Tenho que ir – ela disse quando Manuel desligou. – Não posso... continuar aqui se aparecer mais humanos. Só complicaria as coisas.
Manny abaixou o telefone lentamente.
– Certo... sim – franziu a testa. – Ah, ouça... se a polícia chegar, preciso me lembrar do que aconteceu ou... droga, terei uma arma nas mãos sem poder lhes dar qualquer motivo para isso.
De fato, parecia que estavam presos. E, pela primeira vez, estava grata por um aprisionamento.
– Quero que se lembre de mim – ela disse em voz suave.
– Esse não era o plano.
– Eu sei.
Ele balançou a cabeça.
– Você é a coisa mais importante nisso tudo. Então, precisa cuidar-se e isso significa apagar minha...
– Dr. Manello! Dr. Manello... o senhor está bem?
Payne olhou sobre o ombro. O primeiro macho humano que viram no balcão dentro do hospital vinha correndo pelo gramado em pânico.
– Faça isso – Manuel disse. – E vou descobrir um jeito depois...
Quando o guarda aproximou-se correndo deles, Payne encarou o recém-chegado.
– Estava fazendo minha ronda – o homem disse. – E quando estava checando os escritórios na outra extremidade do prédio, vi o senhor pela janela... e corri o mais rápido que pude!
– Estamos bem – disse ela ao guarda. – Mas poderia observar uma coisa para mim?
– Claro! A polícia já foi chamada?
– Sim – ela tocou sob o olho direito. – Olhe para mim, por favor.
Ele já estava fixado no rosto dela e a concentração extra só facilitou seu trabalho; tudo o que ela teve de fazer foi abrir caminho dentro de seu cérebro para colocar um remendo mental em tudo o que se relacionava a ela.
Até onde o humano sabia, o cirurgião tinha chegado e saído sozinho.
Manteve o homem em transe e virou-se para Manuel.
– Não precisa se preocupar. As memórias dele são de muito curto prazo, vai ficar bem.
Ao longe, ouviram o som de sirenes, estridente e urgente.
– É a polícia – disse Manuel.
– Então, tenho que ir.
– Como vai para casa?
– Da mesma maneira que saí do seu carro.
Ela esperou que se aproximasse dela... ou dissesse alguma coisa... ou... mas apenas ficou ali parado com o ar noturno silencioso e frio pairando entre eles.
– Vai mentir para eles? – Manny perguntou. – Dizer que apagou minhas lembranças?
– Não sei.
– Bem, no caso de precisar voltar para fazer isso, estarei no...
– Boa noite, Manuel. Por favor, permaneça em segurança.
Com isso, ela ergueu uma das mãos e, de maneira silenciosa e inexorável, desapareceu.
CAPÍTULO 43
Se aquilo era um truque, era um muito estranho.
– Então, onde está seu amigo?
Karrie Ravisc, mais conhecida nas ruas como Kandy, prostituía-se há mais ou menos nove meses, então, já tinha visto muita porcaria. Mas aquilo...
O homem enorme na porta do quarto de motel falou em voz baixa:
– Está chegando.
Karrie deu outra tragada e pensou: bem, ao menos aquele cara na sua frente era bonitão. Já tinha pagado quinhentos dólares e a instalou naquele quarto. Ainda assim... Havia alguma coisa errada ali.
Sotaque estranho. Olhos estranhos. Ideias estranhas.
Mas muito bonitão.
Enquanto esperavam, deitou-se nua na cama com todas as luzes apagadas. Porém, não estavam totalmente no escuro. O sujeito com a carteira cheia de dinheiro tinha colocado uma grande lanterna no quarto, sobre a cômoda barata. A luz estava direcionada para iluminar seu corpo, como se estivesse em um palco, ou talvez em uma obra de arte.
O que, na verdade, era menos estranho do que algumas coisas que já havia feito. Droga, se a prostituição não fizesse alguém pensar que os homens eram nojentos e uns bastardos doentes, nada mais faria: além dos trapaceiros loucos e dos tipos que gostavam de ficar no comando, havia os filhos da mãe cheios de fetiches, aqueles que gostavam de ser espancados e outros que desejavam que urinassem sobre eles.
Finalizando o baseado, apagou a bituca e pensou que talvez aquela coisa de holofotes não fosse tão ruim. Um idiota quis comer hambúrgueres em cima dela há duas semanas e aquilo, sim, foi grosseiro...
O clique da fechadura virando fez ela pular e percebeu com um estalo que alguém, de alguma forma, havia entrado sem ela notar; aquilo era a porta sendo trancada. Por dentro.
E agora havia um segundo homem perto do primeiro.
Ainda bem que seu cafetão estava no quarto ao lado.
– Boa noite – ela disse, ao se estender mecanicamente para os dois. Seus seios eram falsos, mas boas falsificações, seu estômago era plano mesmo já tendo um filho e não estava apenas depilada, mas havia passado por um processo de eletrólise.
Isso permitia cobrar o que cobrava.
Cara... outro grandão, pensou quando o segundo cara se aproximou e parou na beirada da cama. Na verdade, aquele era enorme. Um mamute, mas não gordo e desleixado... seus ombros eram tão quadrados que pareciam ter sido desenhados com uma régua e seu peito formava um triângulo perfeito sobre seus quadris firmes. Não conseguia ver seu rosto, uma vez que a luz estava vindo por trás dele, mas não se importou quando o primeiro cara deitou-se ao lado dela na cama.
Droga... ela viu-se excitada de repente. Era o tamanho deles e o perigo da escuridão e aroma que exalavam. Deus... o cheiro era incrível.
– Vire de bruços – o segundo exigiu.
Deus, aquela voz. O mesmo sotaque estrangeiro do cara que a tinha instalado ali, mas muito mais profundo... e havia uma vantagem nisso.
– Quer mesmo ver meu traseiro? – disse lentamente, enquanto se sentava. Colocando as mãos sobre os seios extragrandes, ela os ergueu e os uniu. – Porque minha frente é ainda melhor.
Com isso, ela ergueu um dos seios e esticou a língua para lamber o próprio mamilo enquanto os olhos iam e vinham entre os homens.
– De bruços.
Certo, era evidente que havia uma hierarquia ali: o cara deitado ao lado dela ostentava uma tremenda ereção, mas não fazia nenhum movimento em direção a ela. E o Sr. Mandão era o único que falava.
– Se é assim que deseja.
Tirando os travesseiros da cama, fez um show ao girar, torcendo o tronco de modo que um de seus seios ainda aparecesse. Com a unha pintada de esmalte preto, fazia círculos ao redor dos bicos ao arquear as costas e mostrar as nádegas.
Um rosnado sutil percorreu através do ar saturado e rarefeito do quarto e esse foi o sinal. Abrindo as pernas, arqueou a parte inferior do corpo para cima, posicionando os dedos dos pés e curvando a coluna outra vez.
Sabia exatamente o que mostrava ao sujeito parado nos pés da cama... e o rosnado sugeriu que gostou daquilo que tinha. Então, era hora de ir mais além. Olhando para ele, colocou o dedo médio na boca e o sugou; então, deslocou seu peso para cima e levou o dedo até seu sexo para acariciar-se.
Se era a erva ou... droga, alguma coisa naqueles homens... ficou muito excitada de repente. A ponto de querer o que estava prestes a acontecer.
Quando o cara começou a se aproximar dela, o que estava comandando a situação colocou a mão na frente dos quadris.
– Beije-a – ele ordenou.
Ela estava tão pronta para isso, mesmo sendo algo que não permitisse normalmente. Virando o rosto para o outro, sentiu sua boca ser tomada por um conjunto de lábios macios e exigentes... e, em seguida, uma língua a penetrou...
Ao mesmo tempo, mãos enormes agarraram a parte superior das suas coxas e as afastaram ainda mais.
E outro par de mãos instalou-se sobre seus seios.
Mesmo sendo uma profissional, sua mente fez uma pequena viagem, toda aquela porcaria com a qual geralmente se preocupava enquanto fazia o que precisava fazer fugiu... e levou consigo coisas como: onde estavam as camisinhas? Quais eram as regras do jogo?
Fivela. Zíper. Em seguida, ouviu o som de calças caindo ao chão e sentiu o movimento do colchão quando algo pesado deitou-se.
Perguntou-se vagamente se o pênis que havia surgido ali era tão grande quanto o resto do homem atrás dela... se fosse, cara, já estava pensando em oferecer uma segunda rodada grátis. Isso se conseguissem manter o ritmo por tanto tempo...
Uma cabeça cheirando a álcool e cigarro aproximou-se dela enquanto mãos ergueram seus quadris do colchão e a colocaram de quatro.
Deus, o cara era enorme... e ela se preparou para uma série de movimentos quando a palma daquela mão percorreu sua coluna e os dedos enroscaram-se em seus cabelos curtos. Parecia que ia arrancar sua cabeça, mas não se importava. Só queria mais daquele homem dentro dela...
Só que não entrou com força e não se moveu imediatamente; em vez disso, acariciou-a como se tivesse gostado da sensação da sua carne, passando a mão em seus ombros e, mais uma vez, ao redor de sua cintura... e mais abaixo em seu sexo lubrificado. E quando a penetrou completamente, era como uma lâmina lisa e deu-lhe um segundo para se acostumar com a grossura e o comprimento.
Então, travou em seus quadris com as palmas das mãos e começou a arremeter. Nesse momento, o amigo dele se colocou embaixo dela para chupar-lhe os seios.
Com a intensificação do ritmo, os mamilos açoitavam a boca do que estava embaixo dela para frente e para trás ao ritmo dos quadris que pulsavam em seu traseiro várias vezes. Mais rápido. Mais forte. Mais rápido...
– Acabem comigo – ela vociferou. – Oh, droga, isso...
De repente, o que estava deitado no colchão virou-se, reposicionou-a e preencheu a boca dela com o maior pênis que já havia ingerido.
Ela realmente teve um orgasmo.
Se eles continuassem assim, ela iria pagá-los.
Uma fração de segundo depois, o homem atrás dela recuou e ela sentiu um jato quente espalhar-se ao redor dela. Mas ele não tinha terminado. Recomeçou os movimentos um momento depois, tão grosso e rígido como na primeira investida.
O que estava chupando gemia e foi separada dele, pois sua cabeça foi erguida. Ele gozou em seus seios, jorrando violentamente ao longo do seu peito com mais daquele cheiro incrível quando o outro saiu e ejaculou outra vez em suas costas.
Em seguida, o mundo girou e ela viu-se de costas, o cara da carteira assumiu o lugar do que estava no comando e a penetrou, preenchendo-a com algo tão grosso quanto o do outro.
Foi ela quem estendeu a mão para o amigo silencioso que comandava, trazendo seu pênis até a boca, conseguiu afastá-lo de seu papel de espectador e o introduziu dentro dela outra vez.
Era tão grande que teve de abrir bem a mandíbula para conseguir encaixá-lo na garganta e o sabor era delicioso... nada parecido com o que teve antes. Ao sugá-lo com seu amigo atrás dela golpeando muito bem, estava envolta da sensação de ser preenchida, de ser invadida por algo rígido, por pênis poderosos que abalavam todo seu corpo.
Em seu delírio, tentou ver o homem que estava sugando, mas, de alguma forma, ele mantinha a luz atrás de si... e tornava tudo ainda mais erótico, como se estivesse chupando uma sombra. Cara, ao contrário do outro, não emitia qualquer som e nem ofegava. Mas estava excitado, de verdade, empurrava seu sexo contra sua boca, tirava e empurrava de volta. Até que se retirou e apertou a ereção com uma das mãos. Unindo os seios, ela proporcionou um ótimo terreno para gozar e, cara, mesmo sendo a terceira vez, ele a cobriu por inteiro.
Até seu peito ficar brilhante, escorregadio... e escorrendo.
A próxima coisa que percebeu foi que seus joelhos foram erguidos até as orelhas e o cara do dinheiro ia dar um jeito nela da melhor maneira possível. E, então, o chefe beijou-lhe os lábios outra vez, pressionando, querendo mais. Algo pelo qual ela estava muito feliz em proporcionar.
Ao observá-los enquanto moviam-se em sincronia, sentiu uma sensação de medo percorrê-la. Arqueada embaixo deles, teve a sensação de que poderiam quebrá-la ao meio se quisessem.
Mas não a machucaram.
E continuaram, os dois trocavam de lugar várias vezes. Era óbvio para ela que faziam aquilo sempre e, Deus, estava com muita vontade de lhes dar o número de seu telefone.
Finalmente, acabaram.
Nenhum deles disse nada. Nem para ela, nem entre eles... o que era diferente, pois a maioria dos ménages à trois que fazia acabava com os caras conversando alegremente entre si. Aqueles dois, não; fecharam seus zíperes e... bem, como era de se esperar, as carteiras apareceram outra vez.
Enquanto permaneciam parados em cima dela, levou as mãos à boca, ao pescoço e aos seios. Estava lambuzada em tantos lugares que mal conseguia contar – e adorou. Acariciou o que os caras deixaram sobre sua pele, brincando com aquilo, pois simplesmente desejava... não era mais para diverti-los.
– Queremos lhe dar outros quinhentos – o primeiro disse em voz baixa.
– Para quê? – aquele tom satisfeito era mesmo dela?
– Vai ser bom. Prometo.
– É algo depravado?
– Muito.
Ela riu e revirou os quadris.
– Então, eu digo sim.
Quando o cara tirou as verdinhas, parecia haver muitas delas na carteira... e talvez se ele fosse outra pessoa, ela poderia ter ido até seu cafetão e sugerir a Mack para abordá-lo no estacionamento. Mas não ia fazer isso; em parte porque o sexo tinha sido incrível; e além disso, os caras provavelmente espancariam a droga do seu chefe.
– O que você quer que eu faça? – perguntou enquanto pegava o dinheiro e o fechava com força nas mãos.
– Abra as pernas.
Ela não pensou duas vezes, seus joelhos se afastaram.
E eles não hesitaram, os dois se inclinaram em direção a seu sexo escorregadio.
Caramba, será que iam chupá-la? Apenas pensar sobre isso fez seus olhos revirarem e ela gemeu...
– Ai!
Tentou erguer-se, mas as mãos forçaram-na a ficar no colchão.
A sucção sutil veio em seguida e deixou-a tonta. Porém, não era em seu sexo. Estavam nas laterais, bem próximos do centro, na junção onde suas pernas encontravam o tronco.
A sucção era rítmica... como se estivessem se alimentando.
Karrie suspirou e entregou-se àquela sensação. Tinha a impressão chocante de que estavam se alimentando dela de alguma forma, mas aquilo era incrível... especialmente quando alguma coisa a penetrou. Talvez dedos... provavelmente.
Sim, definitivamente.
Quatro dedos a penetraram e duas mãos separadas iniciaram uma série de puxões alternativos enquanto as duas bocas sugavam sua pele.
Ela gozou de novo.
E de novo.
E de novo.
Depois de só Deus sabe quanto tempo, eles a lamberam algumas vezes... nos locais onde tinham sugado, não onde suas mãos estavam.
E, então, tudo se desprendeu, bocas, dedos, corpos.
Os dois se endireitaram.
– Olhe para mim – o líder disse.
Suas pálpebras estavam tão pesadas que teve que se esforçar para obedecer. E no momento em que fez isso, sentiu uma dor lancinante em suas têmporas. Mas que não durou muito e depois... ficou apenas flutuando.
Foi por isso que não prestou muita atenção no grito abafado e distante que veio da porta ao lado... não do quarto onde Mack estava instalado, mas do outro.
Bum! Tum. Pum...
Karrie começou a adormecer nesse ponto, morta para o mundo, o dinheiro colado na palma da mão enquanto aquilo que estava molhado começava a secar.
Não se preocupava com nada. Na verdade, sentia-se incrível.
Droga... com quem havia estado...?
Quando Xcor saiu do quarto de motel da prostituta com Throe logo atrás dele, fechou a porta e olhou para a esquerda e para a direita. A instalação que seu soldado havia escolhido para aquela diversão carnal estava nos arredores da cidade. Decaído e já apodrecendo em alguns lugares, o edifício de apenas um andar tinha sido dividido em mais ou menos cinquenta pequenas caixas do tamanho de armários, com o escritório no final do caminho à esquerda. Queria o último quarto na outra extremidade para ter mais privacidade, mas o melhor que Throe pôde fazer foi conseguir algo perto da entrada.
Porém, quais eram as chances reais daquele local estar totalmente ocupado? Não havia quase ninguém ali.
Analisando as vagas de estacionamento em frente ao quarto deles, viu um Mercedes preto que tentava desesperadamente parecer mais novo do que era... e uma caminhonete com uma capa sobre a cabine. Os outros dois carros estavam mais distantes, perto do escritório.
Aquele lugar era perfeito para o propósito que tinham. Isolado, ocupado por pessoas que não queriam ninguém se metendo em suas vidas e preparado para estender serviços semelhantes a outros. E a iluminação externa era precária: apenas uma a cada seis lâmpadas funcionavam... Inferno, o dispositivo elétrico ao lado de sua cabeça havia sido esmagado. Então, tudo estava escuro e sombrio.
Ele e seu bando de bastardos teriam de encontrar fêmeas de sua raça para servir a suas necessidades de sangue a longo prazo e isso acabaria acontecendo. Até lá? Teriam de se valer daquilo que ele e Throe haviam acabado de saborear e fariam aquilo ali, naquele lugar deserto.
Throe falou calmamente:
– Satisfeito?
– Sim. Ela era muito boa.
– Fico feliz.
Um aroma no ar atraiu as duas cabeças em direção à porta do quarto mais distante. Xcor inalou profundamente para confirmar o que tinha sentido com a leve brisa, o cheiro de sangue humano fresco foi uma surpresa desagradável.
Ao contrário da expressão no rosto de Throe: desagradável, mas sem surpresa alguma.
– Sequer pense nisso – Xcor vociferou. – Throe... Droga!
O soldado virou-se para a porta com uma expressão estrondosa... seu instinto agressivo sem dúvida foi inflamado porque era o sangue de uma fêmea sendo derramado: a fertilidade no ar era óbvia.
– Não temos tempo para isso – Xcor disparou.
Como resposta, Throe chutou a maldita porta.
Quando Xcor xingou, considerou rapidamente em se desmaterializar da cena; o que o distanciou do impulso foi o ato de dar uma olhada dentro do local. A veia heroica ridícula de Throe abriu caminho para uma grande confusão. Literalmente.
Uma fêmea humana estava amarrada à cama com alguma coisa amontoada em sua boca. Estava quase morta... e perto demais de colocar o pé na cova para ser salva. Seu sangue estava em toda parte, na parede atrás dela, pingando no chão, encharcando o colchão. As ferramentas que tinham auxiliado o ato estavam na mesa de cabeceira: duas facas, fita adesiva, tesouras... e meia dúzia de pequenos frascos com fluidos transparentes dentro deles e com as tampas retiradas.
Havia coisas flutuando na...
Uma batida ecoou do banheiro. Como se um painel ou uma janela tivessem sido abertos e fechados em seguida.
Quando Throe correu em direção ao som, Xcor avançou e pegou o macho pelo braço. Com dois movimentos rápidos, Xcor tirou a braçadeira de metal que mantinha junto a seu cinto de armas e apertou o objeto no braço grosso do soldado. Puxando de volta o macho com todo seu peso, balançou-o como uma bola no final de uma corrente. Houve um baque na parede quando o gesso barato recebeu o impacto do pêndulo vampiro.
– Deixe-me ir.
Xcor puxou o cara para ainda mais perto.
– Isso não é problema seu.
Xcor puxou o braço e deu um soco na parede, quebrando o superfície plana.
– É sim! Solte-me!
Xcor bateu na nuca do macho.
– Não. É. Seu. Mundo!
Nesse momento, começaram a se debater, os dois lutavam e batiam em objetos do quarto, produzindo mais barulho do que deveriam. E estavam prestes a cair no carpete ensanguentado quando um macho humano atarracado e com óculos escuros do tamanho de vidraças deslizou pela porta. Deu uma olhada na cama, outra para Xcor e Throe e, em seguida, murmurou alguma coisa, cobrindo os olhos com seus antebraços ao se abaixar e sair.
Uma fração de segundo depois, a porta do quarto onde tinham transado com aquela fêmea humana abriu e fechou... em seguida, abriu e fechou outra vez. Saltos altos ressoaram em passos rápidos e descoordenados e houve um barulho de pessoas entrando em um carro.
Um motor rugiu e o Mercedes saiu rápido do estacionamento, sem dúvida, com a prostituta e o dinheiro dentro dele.
A rápida partida provou serem verdadeiras as hipóteses que Xcor tinha elaborado sobre a clientela do lugar.
– Ouça-me – disse a Throe. – Ouça-me bem, seu bastardo estúpido... não é problema nosso. Mas se ficar aqui vai acabar sendo...
– O assassino foi embora!
– E nós também vamos.
Os olhos pálidos de Throe encararam a cama e a máscara de raiva escorregou por um breve momento. O que havia sob ela deteve até mesmo o impulso agressivo de Xcor. Tanta dor. Deus, quanta dor.
– Ela não é sua irmã – Xcor sussurrou. – Agora, venha comigo.
– Não posso... deixá-la... – Os grandes olhos vidrados atingiram os dele. – Não pode me pedir isso.
Xcor virou-se, mantendo o pulso firme sobre o soldado. Tinha de haver algo do assassino ali, algo que pudesse ter...
Xcor arrastou o lutador para o banheiro e houve uma satisfação cruel quando observaram a janela acima do vaso sanitário. O painel espesso de vidro fosco estava intacto, mas havia uma faixa vermelha brilhante na borda da caixa de metal.
Era exatamente o rastro de que precisavam.
Xcor aproximou-se da janela e passou dois dedos ao redor do que havia detido e rasgado a carne humana.
O sangue aderiu a sua carne, empoçando-a.
– Abra – ordenou.
Throe abriu a boca e sugou aqueles dois dedos, fechando os olhos para se concentrar enquanto sirenes começavam a soar pela noite.
– Temos que partir – Xcor disse. – Venha comigo agora e permitirei que saia para encontrar o macho. Concorda? Pode assentir com a cabeça. – Quando Throe assentiu, decidiu que precisava de mais. – Jure.
Throe inclinou-se em reverência.
– Juro.
A braçadeira foi liberada... então, os dois desapareceram no fino ar assim que luzes azuis anunciaram a chegada da polícia humana.
Xcor não era misericordioso em situação alguma; mas se tinha de ser assim, não ofereceria piedade alguma àquele humano criminoso... que agora era o alvo de Throe... e, logo, seria sua presa.
CAPÍTULO 44
– Dr. Manello?
Ao som de seu nome, Manny voltou-se para a realidade e descobriu que, sim, ainda estava no Tricounty, no gramado. Era muito irônico o fato do guarda de segurança ter sido o único a receber um tratamento mental e, ainda assim, ser o único focado na situação.
– Ah... sim. Desculpe. O que disse?
– O senhor está bem?
– Não, não estou.
– Bem, o senhor foi demais... Não posso acreditar como lidou com ele. Em um minuto, ele o enfrentava... no outro, o senhor tinha a arma e ele estava.... voando. Claro que deve estar cansado.
– Sim. É isso. Exatamente.
Os policiais apareceram dois segundos depois e foi uma enxurrada de perguntas e respostas. E foi ótimo; o guarda sequer mencionou Payne. Era como se ela nunca tivesse estado lá.
Não deveria ser novidade, se considerasse tudo o que Manny havia passado não apenas com ela, mas com Jane. Mesmo assim, era estranho.
Simplesmente não tinha entendido muito bem tudo aquilo: Payne havia desaparecido no ar na frente dele; não deixou nada de si para trás, ao menos não até onde o guarda sabia, mas o cara se lembrava muito bem de Manny; não sabia como ela havia conseguido ficar tão calma e sob controle em uma situação tão ameaçadora.
Na verdade, aquela última parte tinha sido totalmente erótica. Observá-la surrar aquele maldito sujeito foi muito excitante... Manny não tinha certeza do que aquilo poderia dizer sobre si mesmo, mas era isso.
E pensou que ela ia mentir. Diria às pessoas que tinha limpado a mente dele. Diria que havia cuidado das coisas.
De fato, Payne havia encontrado uma solução: Manny ainda tinha sua mente, ela tinha suas pernas funcionando e ninguém saberia disso entre seu irmão e sua classe.
Sim, tudo estava resolvido. Tudo o que tinha de fazer agora era passar o resto de sua vida indo atrás de uma mulher que nunca encontraria. Super fácil.
Uma hora depois, entrou no Porsche e dirigiu-se para Caldwell. Guiando sozinho, o carro não parecia apenas vazio, mas um terreno baldio e viu-se abaixando e subindo as janelas. Não era o mesmo.
Payne não sabia onde ele morava, pensou. Mas isso não importava, não é mesmo? Ela não voltaria.
Deus, era complicado decidir o que era mais difícil: uma longa despedida onde ela olharia em seus olhos e o impediria de falar demais ou aquele esparadrapo retirado de uma só vez.
De qualquer maneira era terrível.
No Commodore, entrou no subsolo, estacionou em sua vaga e saiu. Chamou o elevador. Subiu até seu apartamento. Entrou. Fechou a porta.
Quando o celular tocou, atrapalhou-se para tirá-lo do bolso e quando viu o número, amaldiçoou. Era Goldberg, ligando do centro médico.
Atendeu sem entusiasmo algum.
– Oi.
– Você atendeu – disse o cara com alívio. – Tudo bem?
Certo. Não queria muito responder.
– Estou bem – Quando houve uma pausa, disse. – E você?
– Estou bem. As coisas têm sido... – Hospital. Hospital. Hospital hospital, hospitalh ospit alhosp. Ital hospit alhospital...
Entrava por um ouvido e saía pelo outro. Porém, Manny ocupou-se um pouco. Foi até o bar na cozinha, pegou um Lagavulin e sentiu-se como tivesse recebido um soco na cabeça quando viu como havia pouca bebida na garrafa. Inclinando-se no gabinete, pegou um Jack Daniels da parte de trás que estava ali há tanto tempo que já havia poeira na tampa.
Algum tempo depois, desligou o telefone e levou a sério a questão da bebida. A garrafa do uísque Lagavulin primeiro. O Jack em seguida. Então, foi o caso de recorrer às garrafas de vinho na geladeira. E o que restou das cervejas... foram guardadas na despensa; portanto não estavam geladas.
Porém, seu cérebro não reconheceu qualquer diferença entre a bebida quente e a porcaria gelada.
Dito isso, gastou uma hora no festival do consumo alcoólico. Talvez mais. E foi muito eficaz. Quando pegou a última cerveja e começou a ir para o quarto, sentiu como se estivesse na ponte de comando da Enterprise*, cambaleando para a esquerda e para a direita... e voltando um pouco para trás. E mesmo conseguindo enxergar bem o caminho com a luz ambiente da cidade, tropeçou com várias coisas: por algum milagre inconveniente, sua mobília ganhara vida e a porcaria estava determinada a ficar em seu caminho... tudo, das cadeiras de couro acolchoadas até a...
– Droga!
... mesa de centro.
Eeeeeeeee o fato de que esfregar a canela enquanto avançava foi como adicionar um par de patins à festa. Quando chegou ao quarto, deu um gole na cerveja para celebrar e tropeçou na banheira. Água ligada. Roupas tiradas. Entrar. Não havia razão para esperar a coisa esquentar. Não conseguia sentir nada mesmo e esse era o ponto.
Não se preocupou em se secar; apenas caminhou até a cama com a água pingando do corpo e acabou com a cerveja quando se sentou. Então... só havia um monte de nada. Seu teor de álcool estava bem alto, mas ainda tinha de alcançar mais fundo para derrubá-lo com tudo.
Mas consciência era um termo relativo. Embora estivesse acordado, sem dúvida estava totalmente desconectado... e não só por causa de sua taxa de álcool no sangue. Estava sem energia por dentro, de uma maneira muito curiosa.
Caindo sobre o colchão, pensou que se a situação Payne estava resolvida era hora de começar a reorganizar sua vida... ou pelo menos fazer uma tentativa disso amanhã de manhã, quando sua ressaca o acordasse. Sua mente estava bem, então não havia razão para não voltar ao trabalho e tratar de distanciar aqueles malditos momentos do resto de sua vida normal.
Enquanto olhava para o teto, ficou aliviado quando sua visão ficou turva.
Até que ele percebeu que estava chorando.
– Maldito covarde.
Enxugando os olhos, decidiu que não ia continuar com aquilo de jeito nenhum. Só que foi o que fez... e permaneceu assim. Deus, a saudade que sentia dela já chegava ao ponto da agonia.
– Maldito... inferno...
Ergueu a cabeça de repente e seu pênis latejou. Olhou para fora através da porta de vidro deslizante em seu terraço e procurou pela noite com um desespero que o fez se sentir como se suas crises de loucura estivessem de volta.
Payne...
Payne...?
Lutou para se levantar da cama, mas seu corpo recusou-se a obedecer... como se seu cérebro estivesse falando em um idioma e seus braços e pernas não conseguissem traduzir. E então a embriaguez venceu, pressionando o Ctrl-Alt-Del e fechando seus programas.
Porém, não reiniciou.
Depois que suas pálpebras se fecharam, as luzes se apagaram, por mais que lutasse contra a maré.
No terraço, Payne permaneceu parada no vento frio, os cabelos eram açoitados, sua pele formigava devido à temperatura.
Havia desaparecido da visão de Manuel. Mas não havia lhe deixado.
Mesmo depois de Manny provar ser capaz de cuidar de si mesmo, ela se camuflou com o mhis e permaneceu parada no gramado do hospital equino, observando-o conversar com a polícia e o guarda de segurança. E quando entrou no carro, ela o seguiu desmaterializando-se pouco a pouco e conseguiu segui-lo graças à pequena quantidade de sangue que tomou dela.
A viagem até sua casa culminou nas profundezas de uma cidade menor do que a que havia visto no carro, mas ainda era impressionante, com seus prédios altos, ruas belas e pavimentadas, pontes altas que atravessavam um rio muito largo. Caldwell era realmente adorável à noite.
Será que tinha ido até ali para dizer um adeus invisível?
Quando Manuel entrou em algum tipo de instalação subterrânea para veículos, ela o deixou continuar sozinho. O propósito de Payne foi alcançado quando ele chegou a seu destino com segurança; com isso, soube que precisava partir.
Mas permaneceu ali na rua, mantendo-se no mhis, vendo os carros passarem e os pedestres atravessarem as ruas. Uma hora se passou. E mais um pouco. E, ainda assim, não conseguia partir.
Cedeu a seu coração e começou a subir, subir, subir... dirigindo-se para onde Manuel estava. Tomou forma do lado de fora do terraço do apartamento... e o encontrou no meio do caminho entre a cozinha e a sala. Seu desequilíbrio era evidente, tropeçava em várias peças da mobília... porém, não pelo fato das luzes estarem apagadas. Sem dúvida, era pela bebida em suas mãos. Ou, mais precisamente, toda bebida que já havia tomado antes disso.
Em seu quarto, não se despiu, arrancou as roupas e entrou no chuveiro. Quando saiu do banheiro todo molhado, ela teve vontade de chorar. Parecia tão difícil compreender que apenas um dia os separava do momento em que ela testemunhou pela primeira vez o corpo dele assim... Contudo, na verdade, ela sentia como se pudesse praticamente estender a mão no tempo e tocar aqueles momentos elétricos quando estiveram prestes a... não era apenas um presente, era um futuro.
Não mais.
Sentou-se sobre a cama... depois, jogou-se no colchão.
Quando começou a enxugar as lágrimas, ela ficou completamente arrasada. E isso aumentou sua necessidade de aproximar-se dele...
– Payne.
Com um grito baixinho, ela virou-se. Do outro lado do terraço, em pé na brisa... estava seu irmão gêmeo, e, no instante em que colocou os olhos sobre Vishous, soube que alguma coisa havia mudado nele. Sim, sua face já estava curada do dano que infligiu a si mesmo no espelho... mas não era essa a alteração. O interior dele estava diferente: a tensão, a raiva e a frieza assustadora haviam desaparecido.
Quando o vento emaranhou os cabelos dela, tentou recompor-se rapidamente, enxugando as lágrimas que brilhavam sobre seus olhos.
– Como sabia... que eu estava...?
Com sua mão enluvada, apontou para cima.
– Tenho um apartamento. No topo do edifício. Jane e eu estávamos saindo quando senti que estava aqui.
Ela deveria saber. Da mesma maneira que conseguia sentir o mhis dele... ele poderia sentir o dela.
E como desejava que ele não se detivesse ao ir embora. A última coisa que precisava naquela noite era outra rodada de “autoridade” masculina dizendo-lhe o que fazer. Além disso, o Rei já havia decretado suas leis. O decreto de Wrath não precisava de um reforço vindo de seu irmão.
Ergueu a mão para detê-lo antes que dissesse qualquer palavra sobre Manuel.
– Não estou interessada em lhe ouvir dizendo tudo o que nosso Rei já disse. E já estava indo embora.
– A memória dele já foi apagada?
Ela ergueu o queixo.
– Não, não foi. Ele me levou para sair e houve um... incidente...
O rosnado que seu irmão soltou foi mais alto que o vento.
– O que ele fez...?
– Não foi ele. Por um acaso, poderia... deixar de odiá-lo? – Quando esfregou as têmporas, perguntou-se se a cabeça de alguém já havia explodido... ou se todos na Terra sentiam-se assim de vez em quando. – Fomos atacados por um humano e no processo de desarmá-lo...
– O humano?
– Sim... nesse processo, eu machuquei o homem e a polícia foi chamada...
– Você desarmou um humano?
Payne encarou seu irmão gêmeo.
– Quando remove a arma de alguém, é assim que chamam, não?
Os olhos de Vishous se estreitaram.
– Sim. É.
– Não podia apagar as memórias de Manuel, pois ele não seria capaz de responder as perguntas feitas pela polícia. E eu estou aqui... pois queria vê-lo em casa em segurança.
No silêncio que se seguiu, ela percebeu que tinha se apoiado em algum lugar. Para proteger Manuel, acabou comprovando o argumento de seu irmão de que o macho que desejava não era capaz de cuidar dela. Ah, mas isso não importa. Se levasse em conta que estava disposta a obedecer ao Rei, de qualquer maneira não havia futuro para ela e Manuel.
Quando Vishous ia abrir a boca, ela gemeu e levou as mãos aos ouvidos.
– Se tem alguma compaixão, deixe-me chorar sozinha. Não consigo ouvir todas as razões pelas quais preciso me separar dele... conheço todas. Por favor. Apenas vá.
Fechou os olhos, virou-se e rezou para que sua mãe permitisse que ele fizesse o que tinha pedido...
A mão em seu ombro era pesada e quente.
– Payne. Payne, olhe para mim.
Sem energia para lutar, ela deixou cair os braços e encontrou aqueles olhos sombrios.
– Responda-me uma coisa – seu irmão gêmeo disse.
– O quê?
– Ama esse bast... esse homem? Você o ama?
Payne olhou através do vidro em direção ao humano sobre a cama.
– Sim. Estou apaixonada por ele. E se tentar dissuadir-me disso com o fato de que ainda não vivi o suficiente para julgar, eu lhe digo: dane-se. Não preciso conhecer o mundo para perceber o que meu coração deseja.
Houve um longo silêncio.
– O que Wrath disse?
– A mesma coisa que você diria. Que devo apagar as lembranças relacionadas a mim da memória dele e nunca, jamais voltar a vê-lo.
Quando seu irmão não disse nada, ela balançou a cabeça.
– Por que ainda está aqui, Vishous? Está tentando pensar em alguma coisa para dizer e, assim, me convencer a ir para casa? Deixe-me poupá-lo do esforço... quando a madrugada se aproximar, eu partirei... e obedecerei às regras, mas não porque é bom para você ou para o Rei ou para mim mesma. É porque é a coisa mais segura a se fazer por ele... ele não precisa de inimigos como você e a Irmandade para torturá-lo só porque me sinto assim. Então, estará acabado, assim como deseja. Só que... – nesse momento, ela o encarou – não vou limpar as memórias dele. A mente dele é valiosa demais para ser desperdiçada... e ele não vai suportar outro processo. Vou mantê-lo seguro não voltando mais aqui, mas não vou condená-lo a uma vida de demência. Isso não vai acontecer... ele não fez nada além de me ajudar. Merece mais do que ser usado e descartado.
Payne voltou os olhos para o vidro.
Depois de um longo período de silêncio, concluiu que seu irmão havia partido. Então, quase gritou quando parou em frente a ela e bloqueou a visão de Manuel.
– Ainda está aqui – ela vociferou.
– Vou dar um jeito nisso para você.
Payne recuou e, em seguida, rosnou:
– Não se atreva a pensar em matá-lo...
– Com Wrath. Vou dar um jeito nisso. Vou... – Vishous alisou os cabelos. – Vou fazer alguma coisa para que possa ficar com ele.
Payne piscou. Em seguida, sentiu a boca se abrir.
– O que... o que disse?
– Conheço Wrath há muitos anos. E, tecnicamente, de acordo com as Leis Antigas, sou o líder da nossa pequena família feliz. Irei até ele e lhe direi que aprovo essa... união e que acho que pode ver o bast... o cara. Homem. Manello – limpou a garganta. – Wrath é muito preocupado com a segurança, mas com o mhis ao redor do complexo... Manello não conseguiria nos encontrar se quisesse. Além disso, é hipocrisia negar-lhe o que os outros Irmãos fazem de vez em quando. Droga, Darius teve uma criança com uma mulher humana... e Wrath está casado com a filha dele agora. De fato... se tentasse separar nosso Rei de sua Beth quando a conheceu... Ele teria matado qualquer um que tivesse sequer mencionado tal sugestão. A Mary de Rhage? Mesma coisa. E deve ser o mesmo... para você. Falo até com nossa mahmem, se necessário.
Payne colocou uma das mãos sobre o coração que pulsava forte.
– Não... não entendo porque faria... isso.
Olhou sobre o ombro e encarou o humano que ela amava.
– É minha irmã. E ele é o que você quer – deu de ombros. – E... bem, eu me apaixonei por uma humana. Apaixonei-me por Jane em menos de uma hora depois de conhecê-la. Se o que sente por Manello for ao menos metade do que sinto por minha shellan, sua vida nunca será completa sem ele...
Payne lançou-se sobre seu irmão e o abraçou. Quase o derrubando ao chão.
– Oh... meu irmão...!
Passou os braços ao redor dela e a envolveu.
– Desculpe-me por ter sido tão idiota.
– Você foi... – procurou outra palavra. – Sim, você foi muito idiota.
Ele riu, o som retumbou em seu peito.
– Viu? Conseguimos concordar em alguma coisa.
Enquanto ela o abraçava, disse:
– Obrigada... Obrigada...
Depois de um momento, afastou-se.
– Deixe-me falar com Wrath primeiro antes de falar com Manello, certo? Quero ajeitar tudo com antecedência... e, sim, vou para casa agora. Jane está de plantão e a Irmandade está de folga esta noite, então, já posso acertar alguma coisa com o Rei. – Houve uma pausa. – Só quero uma coisa em troca.
– O quê? Qualquer coisa. Pode dizer.
– Se for ficar aqui até o amanhecer, entre. Está congelando aqui fora. – Deu um passo para trás. – Vá em frente... vá e fique com seu... macho... – Esfregou os olhos e Payne teve a sensação de que estava se lembrando do que viu quando a encontrou no banho com seu curandeiro. – Vou voltar... ah, ligue... Tem um telefone? Aqui pegue o meu... Droga, não estou com ele.
– Está tudo bem, meu irmão. Voltarei ao amanhecer.
– Bom, sim... eu deveria saber.
Ela o encarou.
– Amo você.
Agora, ele sorria. Um sorriso largo e sem reservas. Erguendo a mão, acariciou o rosto dela.
– Amo você também, irmãzinha. Agora, entre e se aqueça.
– Vou entrar. – Deu um pulo e beijou a bochecha dele. – Vou entrar!
Com um aceno, ela se desmaterializou através do vidro.
Oh, como o interior parecia quente em comparação ao terraço... ou talvez fosse apenas a onda de alegria que emanava dela. Seja lá o que fosse, girou sobre um dos pés e, depois, seguiu até a cama.
Manuel não estava apenas dormindo, mas desmaiado... Mas ela não se importava. Subindo na cama, colocou um braço ao redor dele e, instantaneamente, ele gemeu e virou-se para ela, puxando-a para si e a abraçando.
Quando seus corpos fundiram-se e sua ereção tocou o quadril de Payne, os olhos dela voltaram-se para o terraço.
Não havia razão para forçar a sorte com Vishous... mas, felizmente, ele tinha partido.
Sorrindo na escuridão, ela ficou à vontade e acariciou o ombro de seu macho. Tudo ia dar certo e a chave disso era a lógica avassaladora que Vishous havia detalhado. Na verdade, o argumento era tão eficaz que não podia acreditar que não havia pensado nisso antes.
Porém, Wrath poderia não gostar disso; mas, concordaria, pois fatos eram fatos... e era um governante justo que havia provado várias vezes não ser um escravo das antigas leis.
Quando aconchegou-se ao lado dele, sabia que não havia qualquer possibilidade de dormir e, assim, correr o risco de ser queimada pelo sol: estava incandescente quando deitou-se na cama ao lado de Manuel, brilhava tanto que lançava sombras sobre a sala.
Nada de cair no sono para ela.
Queria apenas desfrutar daquele sentimento.
Para sempre.
Nome da nave espacial de Jornada nas Estrelas. (N.P.)